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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NA ROTA DO PERIGO / Marcos Rey
NA ROTA DO PERIGO / Marcos Rey

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NA ROTA DO PERIGO

 

O mais novo livro do consagrado autor tem todos os requisitos de um bom filme. Você vai ler e “ver” ao mes­mo tempo. E sobretudo vai emocionar-se, torcer, a cada lance, numa sequência sempre envolvente. Capítulo a capítulo, a trama vai levá-lo até um final surpreendente.

Além de Toní, um típico jovem dos dias de hoje, você vai conhecer tio Waldo, um marginal engraçado, que mostrará ao sobri­nho um mundo menos conhecido e muito perigoso. Conhecerá tam­bém outros tipos marcantes: Juliano, barman do badalado bar Pa­radise, que parecia ser um bom sujeito; Antero, padrasto de Toni, cuja ambição não tinha limites; Silvano, filho de Antero, rival de Toni nos amores; Borges, o homem da mancha preta, personagem saído de um pesadelo; e três destacadas figuras femininas: dona Amélia, mãe de Toni; Raquel, uma garota para quem as aparên­cias contavam muito, e Virgínia, ingênua mas até certo ponto.

A “câmera” deste livro conduzirá você a uma variedade de ambientes dominados por luzes ou sombras: salões de sinuca; quartos de hotéis baratos; o animado bar Paradise; uma enferma­ria de hospital; restaurantes finos; um desmanche clandestino de carros... Enfim, cenários da metrópole sucedendo-se velozmente.

Prepare-se. Nas páginas seguintes você vai começar a “ler” um filme cheio de aventuras, ou, se quiser, a “verum livro emo­cionante.

 

 

                         TCHAU, MÃE:

Estou me mandando.

Vou pra São Paulo mas não esquente não. Já sei me virar e estou levando todo o dinheiro que guardei.

Vila Grande não dá mais pé pra mim. Não pela cidade, que é bacana, mas por tudo que anda acontecendo. Você sabe, eu e o padrasto, a gente não se dá muito bem. Aquilo de estudar contabilidade podia ser bom pra empresa dele, pra sua frota de caminhões, não pra mim. Não nasci pra fazer contas. E um cano.

Outro que me enche é o filho dele, o Silvano. Um chato, vive implicando comigo, provocando. Quem ele pensa que é?

O jeito que encontrei pra me livrar disso tudo foi esse: dar o fora daqui, cair no mundo.

Sei que você vai chorar, mas logo passa.

Papai vai ser meu anjo da guarda, sempre por perto, aconselhando. E tudo acabará numa boa, como nos filmes de cinema.

   Tchau. mãe!, Toni

 

                           AQUI NÃO FALTA NADA

Dona Amélia entrou no quarto do filho, viu a carta sobre o travesseiro e adivinhou do que se tratava. As coi­sas em casa andavam tensas. Depois de ler o que Toni havia escrito, ela foi abrir o guarda-roupa do rapaz. Feliz­mente, ele levara as roupas de inverno. São Paulo é uma cidade fria.

Na sala, fez uma ligação telefônica:

— Me chamem o Antero, urgente.

Um segundo e ouviu a voz do marido, sempre bron­queado, como Toni dizia.

— Que aconteceu?

— O Toni...

— O que foi desta vez?

— Fugiu de casa.

— Ah...

— Meu filho foge de casa e você só diz “ah...”?

— O que quer que eu diga? Juízo ele nunca teve mes­mo. Mas não se aflija, ele volta.

— Acha que volta?

— Acho sim. Vai ser uma lição para ele. Voltará dan­do mais valor ao que tinha aqui. Depois a gente conver­sa. Preciso despachar um caminhão.

Dona Amélia saía da sala quando entrou o enteado, Silvano, recém-formado em administração de empresas, sempre bem-vestido e um tanto pretensioso. Com a ma­drasta era apenas educado e mais nada.

— Toni fugiu — ela disse.

Silvano não esboçou a menor reação. Com cara de quem um dia ia ser patrão, nunca se surpreendia.

— Deve ter ido atrás de sua garota.

— Garota? Que garota?

— Lembra aquela que morava na esquina?

— Uma que o pai trabalhava numa firma estrangeira?

— Ele foi transferido e se mudou com a família pra São Paulo.

— Toni não fugiria de casa por causa duma namora­da — replicou dona Amélia, como se tivesse acabado de ouvir um absurdo.

Silvano sentiu que poderia complicar a situação de Toni. Não suportava o meio-irmão nem à distância.

— Que outro motivo Toni poderia ter, dona Amélia? Ele tinha a vida que pediu a Deus. Por acaso falta algu­ma coisa aqui?

Era verdade, admitiu dona Amélia para si mesma. Durante o primeiro casamento e, depois, quando viúva, ela e o filho só conheceram aperturas. José, o falecido, jornalista de cidade pequena, nunca pôde dar conforto à família e, ao morrer, deixara uma seqüencia de zeros na conta bancária. Dona Amélia reconhecia que, com o se­gundo marido, Antero, próspero comerciante, a situação era outra, muito melhor.

— Não, Silvano, aqui não falta nada — respondeu, dando as costas para o rapaz. Ela queria ficar sozinha para reler a carta de Toni.

 

               TONI: PAISAGENS E LEMBRANÇAS

Toni (Antônio Chaves), dezoito anos, corpo bem-proporcionado, considerado muito bonito pelas garotas de Vila Grande, o que mais se destacava nas tardes de rock do clube local, campeão juvenil em várias modalida­des de nado, um dos melhores papos do colégio e dos ba­res de estudantes, entrou no ônibus que o levaria à capi­tal a passos lentos e soltos. Aquilo nem parecia uma fu­ga. Melhor agir com naturalidade, planejara; esquecer os motivos, deixar acontecer. Mas quando o ônibus se afastou da estação rodoviária e ganhou a estrada, as lem­branças desfilaram velozes como as paisagens vistas da janela.

Toni reviu o pai, José Chaves, seu primeiro e maior amigo, um sujeito alegre, contador de casos, que nunca se deixava abater por maiores que fossem as pedras do caminho. Apaixonado por músicas, livros e filmes, sem­pre a par dos acontecimentos, planejava um dia trabalhar num jornal da capital. “Hei de conquistar aquela bruta metrópole”, costumava dizer, empolgando-se. No entan­to, a despeito de toda a garra e da boa saúde que aparen­tava, uma dor súbita o levou ao hospital: úlcera, opera­ção, infecção generalizada, estado de coma e morte. Tu­do em poucos dias.

— E agora? — mãe e filho perguntaram ao destino. Toni conseguiu emprego como office-boy num escri­tório. Dona Amélia, que na mocidade fizera o curso de secretária, empregou-se na Transportadora Mercúrio, a principal da região.

— Não agüento meu patrão — dizia ao filho ao vol­tar para casa. — Vigia os empregados o tempo todo. Se aparecer outro emprego, peço a conta.

Mas a vida tem muitos caminhos, veredas, pontes e surpresas. Seis meses depois de ter ingressado na transpor­tadora, Amélia aproximou-se do filho com um ar diferente.

— Toni, o que você diria se eu me casasse de novo?

— Desejaria sorte, mãe.

— Pois me pediram em casamento. Nem foi bem um pedido, foi um ultimato.

Toni, surpreso, tentou adivinhar:

— Algum colega da transportadora?

— Colega propriamente, não.

— Quem, mãe?

— O patrão. Seu Antero. Também é viúvo.

Dava para entender.

— Mas você não detestava esse cara?

— Detestava. Mas acabei mudando de opinião de­pois que o conheci melhor. Ele tem suas qualidades.

— Pra quando é o casamento?

— Ele quer pra já, no mês que vem.

Essa informação complementar tocou o rapaz mais que a primeira. Exclamou quase num protesto:

— Já?!

Dona Amélia abraçou o filho. Se havia alguma preci­pitação no seu ato, o motivo era Toni. O trabalho como office-boy estava acabando com ele. Mal lhe sobrava âni­mo para estudar à noite. Um sufoco.

— Você não precisará trabalhar mais e poderá cur­sar uma boa escola particular.

— A gente vai mudar daqui?

— Será bom deixar esta casa que está caindo aos pe­daços. Antero mora naquele casarão da praça principal. É o mais bonito do bairro. Conhece, não?

— Conheço — disse Toni, sem entusiasmo.

— Tem uma piscina — ela acrescentou como se dei­xasse para o final o argumento mais convincente.

A Toni apenas ocorreu uma pergunta:

— Ele tem filhos, mãe?

— Apenas um, dois anos mais velho que você. Cha­ma-se Silvano. Acho que vai gostar dele.

— Por que acha que vou gostar dele?

— Bem, ele é muito educado. Fez administração de empresas. Está se preparando para um dia substituir o pai no comando da transportadora.

O casamento realizou-se sem muita comemoração dentro do prazo combinado. Enquanto o casal viajava em lua-de-mel, Toni adaptava-se à nova casa, quase uma mansão. Tinha um aspecto imponente, muito espaço inte­rior, muita mobília de cores sóbrias, cercada por um jar­dim que ocupava um jardineiro a manhã inteira. Ao fun­do, a piscina.

Certo dia, pela manhã, Toni observava Silvano na­dar, concentrado nas braçadas.

— Quer um suco, seu Toni?

Era Divina, a cozinheira, gorducha e simpática. O casarão tinha vários empregados: cozinheira, copeira, ar­rumadeira, jardineiro e chofer. Toni teve de aprender a servir-se deles, a pedir-lhes o que desejava, ele que se sen­tia, timidamente, um intruso na casa. Jamais imaginara que desfrutar de comodidades também requeria certo aprendizado. Mas o melhor era chegar ao novo colégio num carro particular, com chofer fardado, que lhe abria a porta. Era demais!

— Que casamentão sua mãe fez! — exclamou Ra­quel, a garota mais disputada do colégio, quando o viu chegar no auTonióvel do padrasto.

Podia haver alguma ironia ou maldade na exclama­ção de Raquel, mas o fato é que passou a dedicar mais atenção a Toni. Ela e outras estudantes.

A saida do colégio, Toni dava uma carona a Raquel no carro do padrasto e levava-a para casa. Achava isso superempolgante. Um dia, vendo a filha chegar, a mãe de Raquel, à calçada, adiantou-se para conhecer o rapaz.

— Você é o Toni? Entre um pouco para Toniar um suco conosco. Seu chofer espera.

Toni entrou, lembrando-se que a mesma senhora, em outra ocasião, quando seu pai estava vivo, torcera-lhe o nariz, certamente por achar que aquele rapaz de roupas modestas não tinha status para aproximar-se da filha.

Muita coisa mudou na vida de Toni, mas mesmo as­sim ele não perdeu alguns hábitos antigos. Um deles eram os jornais, costume adquirido do pai, jornalista, que não saía de casa antes de ler as notícias principais do dia. Se­ria uma homenagem que o filho lhe prestava? Jornais e livros. Da velha casa, sua mãe apenas trouxera os livros de José. O resto, móveis, utensílios de cozinha e roupas, doara ou vendera. Toni lia histórias de pessoas que iam aventurar-se em terras estranhas, que envolviam gente co­mum com tipos inescrupulosos, perseguidos pela polícia, histórias de perigos e armadilhas ameaçando a paz de per­sonagens desprevenidos.

Preso à sua vida estagnada, de sua casa para o traba­lho, do trabalho para casa, José só conhecia emoções for­tes através da leitura. Ler, para Toní, era uma maneira de se encontrar com o pai a cada livro, a cada capítulo. Parecia-lhe que seguiam juntos, trocando impressões, pe­los becos, pelas ruelas e pelos perigos de enredos agitados, densos e enigmáticos.

Esse apego aos livros do pai, e à lembrança dele, se acentuava com a solidão que sentia. Havia os emprega­dos, mas seu Antero já o advertira para não se misturar com eles. Patrões são uma coisa, dizia, serviçais, outra. Por outro lado, Silvano não era seu amigo. Só dois anos mais velho, mas agia com ele como se fossem vinte. Cer­ta manhã em que mergulhou na piscina quando Silvano nadava, ele saiu precipitadamente. A vez que mais se apro­ximou foi para perguntar de Raquel.

— Você já conhecia aquela sua amiga da escola?

— Já — respondeu Toni. — Chama-se Raquel. O pai trabalha numa grande multinacional. Morávamos per­to. — E como se pretendesse conquistar-lhe a amizade:

— Quer que a apresente pra você?

— Pra quê?

 

                         AINDA O PASSADO VISTO DO ÔNIBUS

Quando Toni concluiu o segundo grau, começaram os desentendimentos com o padrasto. Ele queria que o enteado estudasse contabilidade. Havia uma boa escola em Vila Grande.

— Preferia estudar outra coisa.

— Se fizer contabilidade terá um lugar garantido na transportadora — argumentou Antero.

Toni nunca se dera bem com os números.

— Gosto de jornalismo.

Seu Antero não era homem paciente. Engrossou a voz:

— Para levar a vida de seu pai? Um exemplo que não deve seguir.

A mãe de Toni, sempre querendo evitar atritos, apa­ziguadora, a sós com o filho, ponderou que seu marido tinha razão. Como contador teria uma carreira assegurada.

— Isso eu sei, mãe.

— Antero disse que no futuro fará de você o conta­dor-chefe da transportadora. Participará da diretoria.

— Mas se eu não tenho vocação, mãe?

Problema para dona Amélia!

— Promete-me ao menos pensar no assunto?

Toni prometeu, embora receando que aquela imposi­ção do padrasto fosse crescer como uma bola de neve. Uma montanha a caminho o ameaçava. Para desanuviar a mente telefonou para Raquel e marcou encontro.

Ela apareceu na praça, mais bonita que nunca. Já era uma moça. Mas não se mostrava feliz.

— Oi, Toni, tenho uma péssima notícia.

— Que aconteceu?

— Meu pai foi transferido. Estamos mudando pra São Paulo.

Passearam pela praça, entraram numa lanchonete, ficaram juntos até o anoitecer. Aquilo acontecera numa hora errada. Toni precisava de algúém para lhe dar for­ças. Só com algum apoio enfrentaria o padrasto. Contou-­lhe seu drama.

— Mostre que tem personalidade — disse Raquel. — Não se dobre.

Personalidade! Soou como uma palavra mágica pa­ra Toni.

— Eu ganho essa parada — assegurou.

Dias mais tarde um caminhão de mudanças estaciona­va diante da casa de Raquel. Toni compareceu para as despedidas. Quando o veículo já ia partir, a emoção do­minou Raquel. Na frente dos pais abraçou e beijou com ardor o namorado, sem se importar com nada.

— A gente se vê! — exclamou a moça. — Nada irá nos separar. — E repetiu fazendo a palavra vibrar sozi­nha no espaço: — Nada.

A mãe de Raquel acenou para Toni, que voltou pa­ra casa. Fizera uma descoberta. Antes, era apenas amigo de Raquel. Agora a amava. Mesmo ausente, eIa lhe em­prestaria coragem para não ceder à exigência do padrasto.

 

             ÚLTIMAS PAISAGENS, ÚLTIMAS LEMBRANÇAS

Olhando as paisagens, pela janela do ônibus, Toni foi afunilando suas recordações, até se fixar no choque com o padrasto. Dona Amélia não Tomava partido nas discussões, mas era quem mais sofria. Silvano portava-se como mero espectador, desses que apenas assistem, ne­nhuma emoção. Parecia que estava sendo decidido o futu­ro do filho de uma das empregadas.

Quando dona Amélia procurava Toni no quarto, ou se encontravam no jardim, o assunto sempre voltava.

— Toni, faça o que seu padrasto manda. Quem sa­be acabe gostando de contabilidade.

— Eu já disse que quero estudar jornalismo.

— Em Vila Grande não há escola de jornalismo.

— Em São Paulo tem muitas.

Dona Amélia insistia:

— Meu filho, seja razoável.

Ele lembrou-se de Raquel.

— Tenho personalidade, mãe.

Um dia o padrasto bateu à porta do quarto de Toni e foi entrando.

— Antônio... — Sempre o chamava pelo nome. — Matriculei você no curso de contabilidade.

— Matriculou?

— Começa na próxima segunda-feira.

— O senhor não devia ter feito isso.

— Eu sei o que lhe convém. Um dia, você irá me agradecer...

— Seu Antero...

O padrasto saiu batendo a porta.

Momentos depois, a mãe de Toni entrava no quarto, abatida. Já sabia o que acontecera. Devia ter ouvido a conversa.

— Toni, procure ter paciência.

— Não quero estudar contabilidade — disse o rapaz como se falasse consigo mesmo. Àquela altura já não era ao estudo que se opunha, mas ao padrasto. Tudo o que ele era ou viria a ser estava em jogo.

— O que vai fazer? — perguntou a mãe.

A situação obrigava-o a Tomar uma atitude. Mas qual?

— Não sei — disse. — Só sei que não farei o que ele quer.

Quando dona Amélia saiu do quarto, Toni estendeu­-se na cama. “Estou numa sinuca de bico”, pensou. Essa expressão fez com que se lembrasse de tio Oswaldo, Wal­do, irmão de seu pai, de quem a ouvira. Oswaldo não ti­nha o preparo do irmão, mas já na mocidade se insurgi­ra contra a vida pacata do interior. Foi para São Paulo com a cara e a coragem. Toni apenas o vira duas vezes, quando retornara a Vila Grande para visitar a família. Na segunda, uma visita mais longa, Toni já com quinze anos, ficaram amigos. Waldo levou o sobrinho a um sa­lão de sinuca e ensinou-lhe a jogar. Toni saiu-se tão bem com o taco e as bolas que arrancou aplausos do tio. Quan­do ele partiu, o rapaz voltou a praticar na casa de um amigo que possuía uma mesa para o jogo. Agora lembra­va-se claramente do tio: um solteirão sem problemas apa­rentes, falador e alegre, sempre referindo-se a São Paulo como um cenário de filmes de aventuras. Ele vivia sem temer riscos, e seu irmão, José, invejava sua coragem.

— Já sei o que vou fazer — decidiu Toni em voz alta.

Quando o pai de Toni morreu, Waldo não compare­ceu ao enterro, mas mandou uma carta bem sentimental, em que comunicava seu endereço, caso precisassem dele. Ainda existiria essa carta?

No dia seguinte à decisão, aproveitando a ausência da mãe, que fora fazer compras, Toni entrou no quarto dela. Cautelosamente abriu suas gavetas à procura da car­ta. Foi encontrá-la entre outras, presas por um elástico. Decidiu levá-la. Não haveria pista de seu destino.

Não fugiu naquele dia, mas numa sexta-feira, tendo na véspera enchido de roupa a velha mala que pertence­ra ao pai. Na quinta, Silvano, encontrando-se com Toni, perguntou para espicaçá-lo:

— Então vai mesmo estudar contabilidade?

— Vou — respondeu Toni prontamente. — Seu pai me convenceu.

Silvano deu um passo além e parou para fazer outra pergunta:

— Tem recebido notícia daquela garota, a Raquel?

— Não — respondeu Toni. — Nunca mais soube dela.

Aquela seria a noite mais longa da vida de Toni. Não conseguiu dormir. Só ao amanhecer saberia se real­mente teria disposição suficiente para pegar a mala e ca­minhar até a estação rodoviária.

 

                      TIO, SOU EU, O TONI

Toni chegou tenso à rodoviária paulistana. Já não adiantava enumerar os motivos do seu gesto nem tentar prever o futuro. O presente, feito de matéria concreta, estava ali. Como não sabia conduzir-se na cidade, cha­mou um táxi e deu ao motorista o endereço de tio Waldo.

— Chegamos — informou logo o chofer.

Tio Waldo morava perto do centro, num edifício al­to e largo, recortado por dezenas de janelas estreitas. A metade da população de Vila Grande caberia no edifício. Ele vivia no 15º andar. Toni saiu do elevador e viu-se num corredor sem fim e escuro. Com dificuldade, indo e vindo, localizou o apartamento 1.515. Apertou a cam­painha. Só na terceira vez ouviu uma voz rouca:

— Entre!

Toni entrou; era um apartamento de um só cômodo, ainda mais escuro que o corredor e quase sem móveis, re­cendendo a álcool. Um homem de meia-idade, barba por fazer, estava estendido na cama, com paletó e sapatos.

— Trouxe as bebidas? — perguntou, como se alguém perdido no deserto, sedento, encontrasse um beduíno. Como não obteve resposta, moveu-se na cama. — Você não é o moço do bar?

— Não — respondeu Toni. — O senhor é meu tio Waldo?

— Tio Waldo? — admirou-se o homem deitado. — Se sou tio de alguém, não me lembro disso. E você, pasmado, quem é?

— Sou seu sobrinho Toni. Antônio. O senhor nos visitou duas vezes em Vila Grande.

Waldo nada disse, observando a mala que Toni trazia.

— O que faz com essa mala?

— Deixei o interior — respondeu Toni, formal.

— O que houve lá? Terremoto?

— Fugi de casa, tio.

Waldo ergueu-se imediatamente da cama e aproxi­mou-se do sobrinho. O cheiro de álcool veio com ele.

— Onde pretende morar? Os aluguéis são caríssimos nesta maldita cidade. Tem algum encosto?

— Não, tio.

— Engraçado! Soa estranho me chamarem de tio. Por que fugiu de casa, garoto?

— Meu padrasto queria que eu estudasse contabilidade.

— E isso é ruim?

— Eu preferia outro curso.

20

— Mas ele não é um cara cheio de grana, que tem caminhões, casa com piscina e tudo o mais?

— É...

— E virou as costas pra uma mamata assim? Pirou, garoto?

— Não estou interessado em dinheiro — replicou Toni, altivo.

— Então está interessado em quê?

Toni ficou algum tempo calado, enquanto o tio o perturbava com um longo olhar de curiosidade. Para To­ni era outra pessoa, não o tio que visitara a família em Vila Grande. A barba, por sua vez, causava péssima im­pressão. Seu desejo naquele momento era o de ir embo­ra sem se despedir.

— Espera arranjar emprego aqui?

— Eu não vim para morar com o senhor — disse Toni, já certo de que era esse o receio do tio.

Waldo puxou um cordão junto à janela, permitindo que entrasse um pouco de luz. Depois pegou uma garra­fa, derramou um tanto num copo e levou-o à boca. To­ni permanecia em seu lugar. Nem ao menos descansara a mala no chão.

— A vida na cidade é dureza — disse ao sobrinho. — Sabia disso?

— Sabia.

— Se eu tivesse um parente rico me colava nele, garo­to. Você deu um pontapé na sorte. Seu pai, lá onde esti­ver, deve estar pensando isso também. Emprego... Nun­ca tive um decente. — Mas admitiu: — Na verdade não procurei muito.

Toni, decepcionado, começava a dar razão ao tio. Agira precipitadamente?

— Acho que vou andar por ai — disse.

— Tenho algum salame no armário. Como é mes­mo seu nome?

— Toní, de Antônio.

Waldo abriu um armário carcomido e espiou.

— Pensei que ainda tivesse. Devo ter comido o sala­me ontem à noite.

Toni nem tomara o café da manhã.

— Tem um restaurante por aqui?

— Estou duro, garoto.

— Eu pago — disse o rapaz.

Waldo olhou para o sobrinho como se fosse para um generoso Papai Noel. Meio incrédulo, perguntou:

— Trouxe algum dinheiro de casa?

Toni retirou do bolso interno do paletó sua carteira e exibiu-a. Tio Waldo não disse mais nada: precipitou-se para fora do apartamento fazendo sinal para que o rapaz o acompanhasse.

 

                 MÁGICAS SOBRE UM PANO VERDE

Era um enorme restaurante popular, onde a fregue­sia comia muito e apressadamente. Almoço comercial, es­premido entre dois períodos de trabalho. Waldo não acom­panhava esse ritmo. Como não tinha emprego, dispunha de mais tempo.

— Paga uma cerveja?

— Tudo bem.

Diante dum prato cheio e da cerveja, Waldo tornou-se mais amigável. Tentou lembrar as visitas que fizera a Vila Grande.

— E aquela bela churrascaria? Comi lá várias vezes. Ainda existe?

— Existe, sim, é a Primor, perto do salão de sinuca. Lembra-se do salão? Foi onde o senhor me ensinou a jogar.

— Ensinei você a jogar sinuca? — admirou-se Waldo.

— Ensinou. Nas férias passadas joguei muito na ca­sa de um amigo que tem uma mesa.

Waldo interessou-se:

— Você joga bem?

— Acho que tenho jeito. Minhas mãos são firmes. E o senhor, ainda joga?

Waldo não respondeu, mudando de assunto.

— Se for para um hotel vai sair muito caro. Pode ficar na minha quitinete até resolver o que fazer. Já dor­miu no chão?

— Quando escoteiro, num saco de dormir.

Waldo tinha outra importante pergunta a fazer:

— Poderia me comprar uma garrafa de conhaque? Devolverei o dinheiro assim que puder.

Toni dormiu no apartamento do tio sobre um pano xadrez. Ainda bem que não fazia frio, pois lá não havia cobertor. Pela manhã tomou café puro, que restara de uma garrafa térmica, e saiu para dar uma volta. Tio Wal­do só acordou ao meio-dia. Toni já havia retornado. Abriu a janela e descobriu que durante a noite o tio Toma­ra a metade da garrafa de conhaque.

— Tem dinheiro pro almoço? — perguntou.

— Claro, tio.

— Não se preocupe com os gastos, eu devolvo.

Voltaram ao restaurante da véspera e desta vez tio Waldo tomou duas cervejas. À saída, disse-lhe:

— Vamos nos distrair um pouco.

Bem perto dali ingressaram num salão de bilhar. Aproximaram-se de uma mesa cujos jogadores haviam terminado a partida. Waldo pegou um taco.

— Veja bem isso — disse ao sobrinho.

Que habilidade! A cada tacada encaçapava uma bo­la. Se a bola não estivesse em posição favorável, na dire­ção da caçapa, então mostrava tudo o que sabia. Encaça­pava-a com uma cortada, fazendo-a girar pela mesa até entrar. Parecia que em cada caçapa havia um ímã que atraía as bolas.

— O senhor é um mestre!

— Agora vamos jogar de verdade. — E gritou para o interior do salão: — Tempo!

Veio um empregado, que arrumou as bolas em suas posições: a branca, as vermelhas, a amarela, a verde, a marrom, a azul, a rosa e a sete. E marcou o tempo. Seria uma partida paga, para valer.

— Comece, Toni!

O rapaz deu a primeira tacada, mas, nervoso, fez es­pirrar o taco. Tio Waldo ensinou-lhe a passar giz na pon­ta do taco e a polvilhá-lo com talco, para não escorregar. Aprendida a lição, Toni encaçapou uma vermelha.

— Nunca se deixa a cama feita para o adversário. Você me deixou a cinco na boca.

Numa seqüência de tacadas. Waldo acabou com as vermelhas. Toni apenas tornou a encaçapar a amarela e a marrom. Waldo encaçapou todas sem o menor esforço.

E mesmo fingindo espirrar o taco, pôs a sete no buraco.

— Vamos jogar outra.

— Nem tem graça, tio. O senhor ganha de mim até com uma venda nos olhos.

Alguns homens acercaram-se da mesa. Em todos os salões sempre há mais curiosos, sapos, que jogadores. Toni divertiu-se em imaginar como ficariam admirados com a mestria do tio. Era um craque!

Toni deu uma tacada e encaçapou uma bola. O ta­co de Waldo espirrou. Outra encaçapada de Toni. O tio caprichou, caprichou e perdeu uma que estava pedindo para entrar na caçapa. Ele parece estar fingindo que jo­ga mal, pensou Toni. Em seguida Waldo reagiu, ultrapas­sando Toni no marcador, meio cordão a mais. Voltou, porém, a desperdiçar novas tacadas, acabando por perder a partida, o que provocou risos de satisfação à pequena platéia, que torcera para o rapaz.

— Vou lhe pagar — disse Waldo, fingindo entregar dinheiro a Toni. — Agora, dá o pira, garoto. — E voltan­do-se ao público: — Alguém quer jogar? Hoje estou com vontade de perder dinheiro. Recebi meu salário.

Um dos presentes apresentou-se.

— Topa isso? — perguntou, acenando com o dinhei­ro na mão.

— Topo — disse Waldo.

Toni afastou-se, mas não saiu logo do salão, ficou à porta. Percebeu, mesmo à distância, que o tio procedia como na partida que jogaram: deixava espirrar o taco, desperdiçava oportunidades e quando encaçapava uma bola parecia fruto do acaso. Voltou para o apartamento.

Tio Waldo só regressou à noite. Trazia vinho, pão, queijo, salame, mortadela e um sorriso.

— Quanto lhe devo, garoto?

— A mim não deve nada, tio.

— Se precisar de algum pode me pedir. O trabalho hoje rendeu.

— Ganhou muito?

Ganhei daquele e de outro freguês. Dois patos.

— O senhor fingiu que não sabia o tempo todo?

— Isso às vezes dá na vista. Fingi que não estava com sorte. A patiação é uma arte, garoto. Quem não sabe re­presentar se dá mal.

— Patiação, o senhor disse?

— Significa enganar os patos, os trouxas. Sempre aparecem patos com dinheiro nos salões. Uns até que jo­gam bem. Patiador também pode ser patiado. Entendeu?

— E esse truque sempre dá certo? — perguntou To­ni, querendo saber tudo sobre as atividades do tio.

— Quando se tem um parceiro, um farol, aquele que ganha da gente e sai, aí a coisa não falha. Felizmente ago­ra tenho um parceiro. Os bons tempos voltarão.

— Que parceiro, tio?

— Você, garoto. Vamos trabalhar juntos. Acabou a época das vacas magras.

 

             BOAS NOTÍCIAS 

             Mãe:

Estou gostando muito de São Paulo. Moro com o tio Waldo. Ele é um cara superbacana e gosta muito de mim. Mexe com uma porção de coisas e tem boa freguesia. Eu o ajudo e aprendo muito com ele. Não esquente a cabeça, não. Tudo está indo muito bem. Desculpe não dar meu endereço, que poderia cair nas mãos do padrasto e estragar tudo.

       Tchau, mãe

 

Dona Amélia abriu a gaveta onde guardava cartas. A de Waldo não estava lá.

— Notícias do Antônio? — era seu Antero que per­guntava, entrando inesperadamente no quarto.

— Sim, escreveu.

— Como está se arranjando?

— Morando com seu tio Waldo. Parece que se dão bem.

— Não é aquele que não gostava muito de trabalhar?

Dona Amélia teve de admitir que sim, mas fez um retoque na confirmação.

— Waldo não é mais o mesmo. Criou juízo.

— Mas como sabe disso se nunca mais tiveram contato?

Dona Amélia saiu do quarto: não poderia respon­der. Ela sempre dissera a José que seu irmão era um ca­so perdido.

 

                     A PERIGOSA ARTE DA ENGANAÇÃO

Waldo e Toni passaram a sair todas as tardes e algu­mas noites para fazer aquilo que o tio chamava respeitosamente de “o nosso trabalho”. O processo era sempre o mesmo. Havendo platéia, Toni ganhava uma partida e desaparecia do salão. Agradava a todos o espetáculo de um rapazinho arrasar um coroa no pano verde. Era diver­tido e muitos até aplaudiam. Toni pegava o dinheiro da falsa aposta e sumia. Então os patos caíam no conto-do-vigário do esperto tio Waldo.

Encontrar incautos, nem sempre presentes, obrigava a dupla a correr inúmeros salões. Waldo dizia que a paciên­cia era uma grande virtude, fosse qual fosse o gênero de serviço. Às vezes Toni cansava-se, porque a procura de ingênuos os levava aos quatro cantos da cidade. Anda­vam muito de ônibus e de metrô, indo atrás de salões dis­tantes. Mesmo a cidades vizinhas eles iam às vezes. A du­pla não poderia ficar conhecida, manjada, como dizia Waldo. O encontro dos dois teria sempre de parecer ca­sual, como se representassem uma farsa. Toni cansava­-se. Passar parte das horas do dia num salão enfumaçado a ouvir apenas o ruído do choque das bolas sem noção da passagem do tempo chegava a ser irritante. Por outro lado, as pessoas enganadas, os patos, que chegavam a perder muito dinheiro, causavam pena. Waldo, porém, não se condoía, pois no seu modo de pensar a vida era uma guerra entre espertos e tolos. E orgulhava-se de es­tar entre os primeiros.

— Meu padrasto não precisou enganar ninguém pra chegar onde chegou.

— Você não pode afirmar isso — rebateu Waldo. — O que sabe dos negócios dele? Nada.

Certo dia Toni leu uma notícia no jornal e procurou interessar o tio.

— Vai haver um campeonato de sinuca — infor­mou. — Por que o senhor não participa?

— Não estou interessado em troféus — respondeu. — Geralmente não valem nada. Além do mais, anote, fi­cando conhecido como jogador de sinuca não poderia ga­nhar meu pão como patiador. A pior coisa para mim se­ria um retrato nos jornais. Espantaria os fregueses...

A pretexto de fazer Toni conhecer os vários degraus da cidade, Waldo levava-o às vezes a restaurantes de cate­goria, freqüentados pelo que chamava de a Classe A, os ricos. Mas não pagava a conta, prática que obedecia a certas regras. A primeira delas consistia em escolher uma mesa próxima da porta. A segunda: enquanto o garçom os servia, Toni teria de dirigir-se ao tio como reverendo, professor ou capitão, o que tornava a dupla insuspeita. Era comum, nessas ocasiões, tio Waldo dizer para que o garçom ouvisse: “Estive ontem com o deputado fulano e ele...” A terceira regra cabia numa perguntinha, feita logo a princípio: “Podemos pagar com cartão de crédito”?

Terminada a refeição, Waldo dizia:

— Vamos pedir sobremesa. Quem pede sobremesa logicamente não vai sair já. Mas só pedimos, não come­mos. — Então consultava sem pressa o cardápio e pedia: — crêpes suzettes, por favor. — Depois dava uma olha­da geral na casa. — Eu vou pela direita e você, pela es­querda. Ande depressa, mas sem correr. Nos encontra­mos na rua paralela. A barra está limpa. Já!

Toni ficou muito nervoso e apenas sossegou ao reen­contrar o tio, que palitava os dentes.

— Tio. lá não volto mais.

— E quem quer voltar? Não gostei nada da comida. E viu os preços dos pratos? Ladrões.

Igualmente constrangedor para Toni era acompanhar o tio às feiras. Waldo levava pouquíssimo dinheiro e vol­tava com a sacola cheia: frutas, legumes, frangos, peixes. Tinha mãos de mágico e uma cara de santo. Toni, o par­ceiro, ajudava-o conversando com o feirante, para des­viar a atenção. Ou ficavam os dois, tio e sobrinho, olhan­do para o céu, encantados com as cores de um inexisten­te arco-íris. Os feirantes olhavam para o alto e...

— O senhor nunca fica com remorsos? — quis saber Toni uma vez.

— Que idéia é essa, rapaz? Não assaltei nenhum ban­co. Só peguei um pouco de comida. Além do mais, se os feirantes não vendem tudo, o que sobra apodrece. Nós apenas passamos pelas bancas antes que isso aconteça.

Certo dia Waldo foi a uma loja de roupas e vestiu uma que lhe coube muito bem. Enquanto o balconista em­brulhava sua roupa usada, ele saiu à rua e misturou-se com um pessoal que realizava uma passeata de protesto contra a carestia geral. Contando o fato a Toni, explicou que todas as empresas contabilizam perdas e lucros, o que tornava seu ato apenas um número num dos livros de registro, sem grande significado.

Mais de uma vez Toni pensou em abandonar o tio e cuidar da própria vida. Mas fazer o que naquela cidade desconhecida? E também tinha certa pena de Waldo, que, graças à parceria, aos golpes que aplicava em dupla, vivia melhor agora. O tio dava-se até ao luxo de uma vez por semana decretar dia de descanso, permitindo tempo livre ao sobrinho. Nesses dias Toni escrevia para a mãe, sem­pre sem revelar nada, ia a cinemas ou à biblioteca públi­ca. Ler continuava sendo seu reencontro com o pai e a oportunidade de lembrar tempos menos angustiantes.

Numa tarde, num dos principais salões de sinuca da cidade, de freqüência mais requintada, Waldo pescou com a parceria de Toni seu peixe favorito: um tubarão. O in­cauto era um banqueiro do jogo do bicho, homem pode­roso, endinheirado, conhecido e até temido por sua valentia.

— O nome do cara é Turcão. Sempre quis limpar a carteira dele, justamente o que faz com muita gente.

Turcão ficou apreciando a partida entre o tio e o so­brinho. Toni ganhou duas. Turcão riu, zombeteiro.

— Você não tem cancha pra enfrentar o garoto. Waldo reagiu retirando as bolas da caçapa para no­va partida.

— Vamos jogar outra. Quanto quer apostar?

Toni disse o que lhe cabia:

— Pra mim chega, otário!

— Só mais uma rodada...

— Já ganhei o suficiente — rebateu Toni. — Até um dia, velho. — E saiu do salão.

Waldo fingiu-se desmoralizado. Fixou os olhos no Turcão.

— Você aí! Quer jogar?

— Você não é taco pra mim.

— Aposto tudo o que tenho.

— Lamento, mas vai perder o dinheiro — disse o tu­barão, apanhando um taco.

Waldo só voltou à noite para a quitinete. Assobiando.

— Como foi? — perguntou Toni.

Tudo azul com bolinhas brancas. O maior pato que cacei na vida. — E, tirando as mãos dos bolsos, jo­gou um monte de dinheiro sobre a cama.

— E aqui está sua parte, sócio — disse passando a Toni algumas cédulas. — Dez pra você. Agora vamos co­memorar num bom restaurante.

Foram, realmente, e Waldo até pagou a conta.

— Acha que tem mais patos naquele salão? — per­guntou Toni.

— Deve ter, mas lá só volto no ano que vem.

— Por quê?

— Prudência. O tal Turcão pagou bufando, descon­fiado. Com mafioso como ele é bom não abusar. Gostan­do do salmão? Comida fina, meu caro.

O dinheiro ganho deu novo estímulo a Waldo. Foi arriscar num cassino clandestino e voltou com mais. Ele conhecia todos os cassinos clandestinos da cidade. Nou­tros tempos trocara a sinuca pelo baralho, no que também era muito bom.

— Já esteve no Jóquei Clube? — perguntou a Toni.

— Nunca.

— Então vai conhecer o nosso. É uma beleza! Vista sua melhor roupa.

Toni ficou um tanto deslumbrado com o aspecto do Jóquei. Nunca se vira antes num ambiente tão luxuoso. Passeou com o tio pelas arquibancadas entre cavalheiros e damas elegantemente vestidos. O ar ali era perfumado. Waldo acendeu um charuto. Disse ao sobrinho que o fu­mo lhe afetava os pulmões, mas fumava charuto quando tudo ia bem.

No intervalo entre os páreos Toni reconheceu alguém na arquibancada:

— Aquele não parece o...

— Parece quem?

— O Turcão. Acho que é o Turcão.

— Onde?

— A esquerda, tio, mas olhe de relance... Parece que ele nos viu.

Waldo olhou e engasgou na fumaça.

— É ele!

— O Turcão?

— O Turcão.

Toni observou mais.

— Vem vindo em nossa direção!

— Vamos sair daqui — decidiu Waldo, assustadíssimo.

Ergueram-se e começaram a sair das arquibancadas, Waldo à frente, meio desarvorado. Toni custou a alcançá-lo.

— Vamos ver as corridas de onde?

— Corridas? Vamos é cair fora do Jóquei. Voando.

Já na rua Waldo pôs-se a chamar um táxi, embora não passasse nenhum.

— Tio, não é exagero seu?

— Vou lhe contar: Turcão tem até crimes nas costas.

— Crimes de morte?

— Já deve ter mandado uns vinte para o cemitério.

Um táxi parou e Waldo entrou nele precipitadamen­te. Toni olhou pela janela e viu dois homens saindo do Jóquei às pressas e olhando para todos os lados. Pareceu-lhe serem pessoas que estavam com Turcão na arquiban­cada. Para não assustar mais o tio, calou-se.

À noite Toni acordou com um grito. Sacudiu o tio. Waldo acordou. Tivera um pesadelo.

— Quando fumo charuto tenho maus sonhos. So­nhei que estávamos sendo assassinados pela gangue do Turcão. Mas tudo bem. Vamos dormir.

 

UMA BREVE VISITA AO HOSPITAL

“A vida continua”, costumava dizer Waldo depois de qualquer insucesso. Assim, ele e o sobrinho voltaram aos salões de sinuca. O gerente de um deles certa tarde segurou o taco de Waldo quando ia encaçapar uma bola.

— Agora chega. Wadeco. Alguns fregueses têm se queixado de suas patiações. Ninguém gosta de ser engana­do, ser feito de trouxa. — E a Toni: — Você também, rapaz, pegue a reta e suma.

Waldo e Toni saíram.

— Viu, tio? Não está dando mais pé.

— Ora, existem muitos salões aqui. Isso sem falar nas outras cidades. Apenas uma porta está fechada.

— E se tirássemos umas férias?

— Malandros como nós não têm direito a férias, To­ni. A vida é uma batalha diária. Vamos jogar em Osasco.

Dias mais tarde seguiam os dois por uma rua, quan­do um carrão deu uma brecada fazendo os pneus canta­rem. Imediatamente três homens corpulentos saíram, to­dos fazendo cara feia. Três bravios rinocerontes. Um deles era o Turcão.

Reconhecendo-os e sem possibilidade de fuga, Wal­do teve de representar.

— Andava procurando o senhor pra jogarmos sinuca.

Turcão olhava fixo para Toni.

— Então o garoto é seu sócio, não?

— A gente acabou de se encontrar. Quero tirar uma revanche.

O banqueiro de jogo de bicho devia ter outros com­promissos. Estalando os dedos no ar, disse aos outros:

— Vamos, pessoal. Tirem o couro deles!

Os brutamontes caíram sobre Waldo e o sobrinho, urrando. Murros, empurrões e pontapés. Toni logo sentiu na boca um gosto de sangue e tratou de proteger a cabe­ça com os braços. Waldo tentou escapar mas foi nova­mente derrubado. Turcão pisava-lhe nas mãos como se quisesse impedi-lo de jogar sinuca pelo resto da vida. Waldo gemia e gritava. Toni fingia-se de morto. Os que transitavam pela rua nada faziam para impedir o massa­cre. O rosto do patiador era uma pasta vermelha. Wal­do ainda gemia e xingava quando Toni desmaiou.

 

Toni acordou numa cama alva e macia envolto nu­ma atmosfera que cheirava a remédio. Tudo doía. Pare­cia que um trator passara sobre seu corpo. Eram apenas dois no quarto; Waldo estava na cama vizinha. Logo ele começou a fazer esforços para sair da cama.

— Aonde vai, tio?

— Cair fora daqui. Veja se pode andar.

Entraram um médico e um enfermeiro.

— Sentem dores? — perguntou o médico.

— Nenhuma — apressou-se Waldo. — Acho que não tive fraturas. Está tudo 0K, doutor.

— E você, moço, como se sente

Toni mexeu braços e pernas.

— Ele está perfeito — disse o tio. — Apenas escoria­ções. Podemos ir?

O médico sacudiu a cabeça negativamente.

— Não podem sair sem boletim de ocorrência. É de rotina.

— Mas temos uma viagem, doutor. Não podemos adiar.

— A polícia já foi chamada e vem vindo — disse o médico. — Afinal, houve uma agressão.

— Mas não conhecemos aqueles homens!

— Mesmo assim precisam depor.

Médico e enfermeiro saíram.

— Vamos dar o pira — ordenou Waldo ao sobri­nho. — Levante, garoto.

— O senhor está todo machucado!

— Olha, eu preferia levar outra surra a enfrentar a polícia. Já tive alguns probleminhas com ela. Pessoas maldosas fizeram chaveco, me intrigaram. Vamos desapa­recer.

Toni saltou da cama, mas Waldo só ficou na tentativa.

— Que foi, tio?

— Será que me quebraram? Não estou podendo fi­car em pé.

— Eu ajudo...

Com esforço, Toni conseguiu fazer com que o tio se levantasse. Mas ao mover a perna ele sentiu tanta dor que se agarrou todo ao rapaz.

— Acho que estou quebrado. Não vai dar.

— Tem que dar, tio. Se escore em mim.

Novo esforço desesperado, dolorido.

— Me largue na cama.

Toni obedeceu.

— Respire forte, tio. Assim. Vamos agora.

— É o esqueleto que está avariado. Me partiram a perna.

— Então relaxe.

Waldo fixou Toni com seus olhos espertos.

— Sabe onde guardo o dinheiro no apartamento?

— Sei, no fogão.

Retirou uma chave do bolso.

— Pegue a chave e saia de mansinho. Nada direi aos tiras sobre você. Apenas um garoto que ia passando e foi atacado também. Já! — concluiu no tom em que ordena­va a retirada nos restaurantes.

Toni foi até a porta.

— Quer que avise alguém?

— Eu moro só no planeta, Toni. Você foi o único extraterrestre que veio me visitar.

Toni abriu um palmo de porta cautelosamente. Es­piou e saiu. Lembrou-se da naturalidade que Waldo sabia demonstrar quando iludir era necessário. Fazer-se invisí­vel, outra habilidade sua. A bem da verdade, sua vida con­sistia em aparecer e desaparecer. Dessa vez, foi Toni que se fez invisível no corredor, nas escadas e no saguão do hospital. No térreo agiu como se procurasse alguém, ne­cessitado de informações. Lá estava o médico que fora ao quarto. Ocultou-se atrás de uma coluna. Transpôs o portão, voltando a sentir fortes dores pelo corpo.

Na rua, Toni chamou um táxi para voltar ao aparta­mento do tio. Não pensava em nada, só sentia dores e aturdimento. Abriu a porta do 1515. O cheiro era opressi­vo, de álcool, mofo e tabaco. Como suportara aquilo du­rante meses? Abriu o fogão e pegou o dinheiro. Precisa­va sumir depressa dali, mas não agüentou e desabou na cama, ele que desde a chegada dormia no chão. Dormiu profundamente, sono interrompido por um sobressalto. Certamente a polícia apareceria lá. A casa dos detidos é sempre visitada para averiguações. E por quanto tempo dormira? Precipitou-se para fora da quitínete. No corre­dor, mesmo dolorido, correu como se o perseguissem. Chamou o elevador de serviço.

Ao chegar ao saguão, Toni lembrou-se da mala. Es­quecera-a no apartamento. Não havia nela nenhum docu­mento ou endereço comprometedor, mas precisaria das roupas. Foi quando viu pelo vidro da porta da rua do edifício um pequeno carro policial tentando estacionar. Imediatamente ganhou a rua.

“E agora?”, pensou. Tomou o caminho da rodoviá­ria. Em quatro horas poderia estar em casa e abraçar do­na Amélia. Que saudade dos seus pratos e de uma cama fofa. Chamou um táxi e disse: Rodoviária! Mas mudou de idéia no meio do caminho.

 

                 SOZINHO NO PLANETA

                     Mãe:

Está tudo bem comigo. Não moro mais com o tio Waldo, não queria ser um peso pra ele. Estou agora num pequeno hotel, muito gostoso. Abrindo a janela do quarto, vejo um grande trecho da cidade. Como isso é bonito, apesar de ser só cimento e mais nada!

Já arranjei um emprego, muito divertido, mãe, mas sobre isso só falarei quando for efetivado.

Espero que tudo esteja bem com você.

           Tchau mãe, Toni

 

Durante o almoço seu Antero perguntou à dona Amélia:

— Tem recebido carta de Antônio?

— Recebi hoje.

— O que ele conta?

— Diz que está tudo bem por lá. Arrumou um emprego.

— Deu endereço?

— Não, Antero.

— Se escreveu não está preso. Suponho.

— Por que estaria preso?

Seu Antero levantou-se da mesa fazendo sinal à Amé­lia para que o acompanhasse ao escritório. Lá, abriu uma gaveta e retirou uma página de jornal.

­­— Silvano, que lê todos os jornais da capital, encontrou isso.

Dona Amélia reconheceu um retrato do cunhado. Ao lado havia uma notícia.

 

                 PATIADOR NO XADREZ

Oswaldo Chaves, 52 anos, conhecido nos salões de sinuca como patiador, tendo ludibriado centenas de joga­dores íncautos, foi agredido ontem no bairro de Vila Buar­que por algumas de suas vitimas. Condenado outras ve­z como passador do conto-do-vigário e falso padre que arrecadava fundos para a construção de um orfanato, voltou ao presídio após a agressão para responder a diver­sos processos. Seu comparsa, um jovem de identidade desconhecida, aparentando 18 anos, também justiçado na ocasião, escapou do hospital em que foram socorridos.

 

— Parece que o tal jovem é Antônio.

— Antônio?

— Mal chegou na capital e já é um delinqüente. Pre­cisamos localizá-lo antes que nos envergonhe. Tem algu­ma pista donde possa estar?

Abatida pela notícia, mantendo a cabeça baixa, dona Amélia apenas respondeu:

— Não tenho.

 

                     PARADISE

Toni gastou apenas três dias para arrumar um emprego.

Depois de percorrer muitos escritórios, uma imensa placa chamou-lhe a atenção: PARADISE.

Passara por lá uma vez com tio Waldo. Era um espa­çoso estabelecimento com um sofisticado bar à entrada e pista de dança ao fundo, rodeada de mesas. Devia ser ponto de encontro dos estudantes de dois colégios próxi­mos. Ambiente alegre.

Toni entrou e dirigiu-se ao balcão onde um garçom duns trinta anos, extrovertido e brincalhão, servia coque­téís coloridos a dois jovens.

— Estão precisando dc garçom?

— Que história é essa de garçom? Aqui não há gar­çom, há barman ou bartender. 0K?

— 0K, mas precisam de um?

— Perdemos um ontem à noite. Tem prática?

— Fui barman da cantina do colégio em minha cidade.

— Você tem pinta de estudante e isso pra nós é bom. Aceita um mês como experiência ou faz questão de registro?

— Não quero ser registrado como barman na cartei­ra de trabalho. Aceito a experiência. Com quem falo?

— Comigo mesmo. Acima de mim só tem aquele que está na caixa, o Cintra, mas no bar sou eu quem re­solve. Pode começar hoje?

— Por mim começo agora.

— Seu nome?

— Antônio, mas me chamam mais de Toni.

— Toni é melhor. — Estendendo a mão: — Juliano.

— Tem só um probleminha — disse Toni. — Moro num hoteleco perto da rodoviária, mas a grana está aca­bando.

— O cara que se mandou dormia aqui mesmo, num divâ do escritório. Se você quiser...

— Tudo bem...

— E pode encher a barriga aqui mesmo. Grátis. San­duíches, pizzas, omeletes, batatinhas fritas. Conseguirá se manter vivo e feliz.

— Qual é o salário?

— Você é curioso, não? Salário mínimo. Mas as gor­jetas compensam. Vai precisar duma jaqueta. O Paradi­se tem classe. Temos uma que vai lhe servir.

Juliano levou Toni a um quarto de vestir.

— Vista essa.

Serviu. Toni olhou-se no espelho. Nunca se imagina­ra em vermelho.

— Até que não ficou mal — disse.

— As garotas dos colégios vêm aqui aos montões. Até eu, um trintão, já namorei algumas. Agora vamos à primeira aula. Precisa aprender a preparar coquetéis, as especialidades da casa.

Toni entrou atrás do balcão, muito comprido, monta­do sobre um frigorífico da mesma extensão. Cada coque­tel, explicou Juliano, tinha sua receita. A base era sempre vodca, gim, licores, vinhos, misturados com refrigerantes ou com pedaços de frutas, limão ou laranja, espremidos, servidos em copões cheios de gelo moído ou em cubos. Como complemento um ou dois canudinhos, coloridos e transparentes.

— O importante nesses coquetéis é a apresentação. No gosto até que não diferem muito. Hoje o que conta, em tudo, é o visual.

Os coquetéís levavam nomes extravagantes, batiza­dos por Juliano, do que se orgulhava. Pronunciava-os sorrindo: “Casablanca”, nome extraído de um filme anti­go, muito exibido na televisão; “Shortinho”, o menor de todos; “Penúltimo”, o preferido pelos fregueses que sempre pediam mais um; havia, ainda, “Buuuu”, tão for­te que assustava, e o mais solicitado, “Saudade de Elvis Presley”, homenagem a um dos pais do rock.

A primeira aula só consistiu em observar. Juliano não era um garçom comum, agia com a habilidade e ele­gância dum mágico. A parte mais espetacular do show era a mistura dos ingredientes numa coqueteleira metáli­ca, que ele agitava com ritmo, velocidade e graça. A estu­dantada vibrava ao ver Juliano gingar com a coquetelei­ra, dar passos de dança, arremessá-la ao ar e fingir que ela lhe escapava das mãos. Mas nunca em silêncio: enquan­to “coquetelava” dizia versinhos maliciosos de sua auto­ria ou silabava os nomes dos coquetéis.

—    Um pe-pe-pe-núl-núl-ti-ti-mo-mo já-já.

Toni jamais vira um garçom ser aplaudido. Juliano, o artista, conseguia isso.

— Se espera que vou fazer o que você faz...

— Fazendo a metade já é o bastante.

Toni decidiu levar o trabalho a sério. Decorou depres­sa os nomes dos coquetéis e as receitas, também hábil nas mágicas com a coqueteleira. Bom imitador.

— Você está se saindo melhor que a encomenda — elogiou-o Juliano, uma semana depois. — Poderei folgar mais um pouco. Tenho meus negócios fora do bar.

Devia ter mesmo, observava Toni, que sempre o via sair bem vestido e dirigindo um carro. Se ganhava muito dinheiro nos negócios fora, por que continuava no Para­dise? Amor à arte?

Depois da uma hora da madrugada, quando o Para­dise fechava, Toni recolhia-se ao escritório e deitava-se num desconfortável divã. Logo às sete era enxotado por um faxineiro. Numa dessas madrugadas solitárias, telefo­nou para Juliano. Assim que ele atendeu, ouviu música.

— Estou dando uma festinha. Na próxima convido você. Tudo bem por aí?

Além de Juliano, Toni não conversava muito no Pa­radise. Os demais garçons, que não simpatizavam com os modos expansivos de Juliano, estenderam a antipatia ao seu protegido. Chamavam a ambos de palhaços. Ape­nas a moça da caixa, do período da tarde, gostava de pa­pear com Toni. Aparentava dezoito anos, jeito delicado e chamava-se Virgínia. Órfã de pai, trabalhava para pa­gar os estudos. Sonhava ser arquiteta. “Ela tem um ar de que o mundo está contra ela”, comentara, certa vez, Juliano. O artista decididamente não a apreciava: “Pare­ce minha avó quando era mocinha. Aposto que canta no coro de alguma igreja”.

— Você está indo muito bem no Paradise — disse ela a Toni.

— Este é apenas um emprego provisório. Pretendo entrar na Faculdade. Gosto de jornalismo. Meu pai traba­lhou a vida toda em jornais. Gosto também de livros. Tu­do o que é impresso me atrai.

— Vou lhe fazer uma confissão: odeio este bar. E quer que lhe confesse outra coisa? Odeio também seu amigo Juliano. Você não acha que é um chato?

Toni não poderia desgostar de Juliano, a quem devia o emprego, além de outro favor, desses inesquecíveis. Es­te aconteceu no dia em que lhe perguntou:

— Como é, Toni, está gostando de São Paulo?

— Que São Paulo? — respondeu Toni. — Não saio do Paradise. Me sinto preso aqui.

— Sabe dirigir?

— Dirijo até caminhão. Meu padrasto tem uma pen­ca deles.

— Tem carta?

— Tenho e não foi comprada.

Juliano tirou do bolso uma chave de carro e entre­gou-a a Toni.

— Dê um passeio toda manhã.

— E você?

— Tenho outro, que fica na garagem do edifício. Aviso o pessoal do estacionamento que você vai tirá-lo. Os documentos estão no porta-luvas.

— Você é um camaradão, Juliano! Então tem dois carros?

— Às vezes três.

— Três?

— Compro e vendo carros, chapa. Por isso dou os meus sumiços. Bom divertimento!

Já no dia seguinte Toni fez um passeio matinal no carro de Juliano, o que passou a repetir constantemente. Assim ficou realmente conhecendo a cidade. Em troca do favor, Juliano sempre lhe dava uma piscada e desapa­recia do Paradise nas horas menos movimentadas. Com­prar e vender carros, explicava, exigia-lhe muita conver­sa, trabalho com a documentação, tempo.

Numa dessas manhãs, ao estacionar o carro no Par­que Ibirapuera, para Tomar um sorvete, Toni ouviu que o chamavam. Uma voz feminina, distante, algo conheci­da. Voltou-se e ficou paralisado com a surpresa. O mun­do podia ser pequeno, mas São Paulo não...

 

                       A CURTIÇÃO MATINAL

— Toni!

A voz custou a sair:

— Raquel!

Ela, que se separara de um grupo de amigas, aproxi­mou-se. Estava deslumbrante. Sua beleza, apenas esboça­da em Vila Grande, completara-se.

— Toni, como você está bonito! E de quem é esse carro? Do seu padrasto?

— Não, é meu. Estou morando em São Paulo.

— Mudaram pra cá?

— Eu mudei. — E depois duma pausa dramática:

— Fugi de Vila Grande.

— Fugiu? Que loucura!

— Loucura? Você não me disse que devia ter perso­nalidade?

Como se sentisse responsável pelo que Toni fizera, recuou:

— Mas não disse pra fugir, seu doidão!

— Não suportava mais o padrasto. Se continuasse lá, teria de estudar contabilidade e trabalhar na transpor­tadora, sob as ordens de Silvano.

— Aquele antipático que pensa que é o dono do mun­do?

— Aquele mesmo.

— Então fez bem. Parabéns! Mas recebe mesada do padrasto?

— Se fugi, como poderia receber ajuda? Vivo às mi­nhas custas. Compro e vendo carros — mentiu, Toman­do de empréstimo a profissão de Juliano.

— Isso dá dinheiro?

— Por quê? Aparento estar mal de vida?

Raquel sorriu sedutoramente.

— Que nada! Você está um gato, Toni!

— E você tá demais, superbonita, capa de revista. — ­­E observando certa inquietação no grupo de amigas de Raquel: — Vamos dar um passeio de carro? Depois te levo pra casa.

Nem foi preciso Raquel consultar ou avisar as ami­gas. Uma delas adiantou-se e disse:

— Você já tem um programa melhor que o nosso. Até amanhã, na faculdade.

Raquel entrou no carro de Toni, radiante. Aquela manhã de céu azul estava perfeita para os dois.

— Quem são elas? — perguntou Toni.

— Colegas da faculdade. E você, abandonou os estu­dos?

— Temporariamente.

— Dona Amélia sabe onde você está?

— Sabe apenas que estou em São Paulo. Escrevo-lhe sempre. Se tivessem meu endereço, viriam me buscar.

Raquel tinha tantas perguntas a fazer!

— O que diz da cidade?

— No começo me assustou um pouco, tem gente de­mais, muito barulho, mas acho que já gosto dela. Sabia que aqui tem mil vezes mais pessoas que em Vila Grande?

— Vila Grande... Até esqueci que ela existe. Pra mim, de importante na cidade, só havia você.

Era tudo o que Toni queria ouvir. Aquele foi o maior passeio de sua vida. Bem que precisava de sorte depois do azarado episódio do Turcão. Raquel, no carro, na rua, na lanchonete onde foram depois, também demonstrava muita alegria.

— Às vezes tudo fica muito vazio — disse. — Me canso das coisas, até quando namoro.

Toni enciumou-se:

— Você namora com alguém?

— Não, mas já namorei, de passagem. Foi pra esque­cer você.

Toni poderia ter namorado com Virgínia se quisesse, mas teria sido como enganar Raquel, embora não imagi­nasse encontrá-la mais. Ficou calado, um tanto ferido, mas a emoção do encontro voltou quando ela propôs:

— Podemos nos encontrar sempre.

— Tenho todas as manhãs livres — ele disse de sopetão.

— Isso é ótimo, saio da faculdade às onze. Podia passar por lá.

— Não teremos muito tempo, mas é melhor que nada.

— E podemos sair à noite também.

Toni lembrou-se do Paradise. Sua folga noturna era apenas uma vez por semana.

— Às quintas-feiras eu posso.

— E noutros dias, o que faz? Não me diga que ven­de carros à noite.

— Claro que não — ele respondeu, pensando depres­sa. — É que estou fazendo um curso intensivo de inglês, com professor particular.

Toni brecou o carro diante de um vistoso edifício.

— Moro aqui. E você, onde?

— Moro com um amigo.

— Vou anotar o telefone.

— Sabe que nem sei de cor? — desculpou-se. Dar o telefone do Paradise é que não podia mesmo.

Inesperadamente Raquel beijou-o. Não era mais o beijo recatado e breve de Vila Grande. Foi longo, concen­trado, sem preocupações.

— Passa na faculdade na sexta?

— Por que sexta? Passo amanhã mesmo.

Apesar da grande manhã, cenário de um encontro sensacional, devendo estar soltando rojões, Toni voltou para o Paradise meio triste.

— Problemas? — perguntou Juliano.

— Um só, mas do tamanho do Estádio do Morumbi.

— Segredo?

— Não tenho segredo para você, meu chapa.

Toni contou tudo: a antiga namorada de Vila Gran­de, o encontro puramente ocasional, o namoro que reco­meçava, mas, para atrapalhar, um problema, logo de iní­cio: o número do telefone, que ela certamente tornaria a pedir.

— Entendo — disse Juliano. — Se ela é uma grã-fi­na e descobrir que você trabalha no Paradise, melou tudo.

— Estou numa sinuca de bico.

Juliano não precisou pensar muito para apresentar uma solução:

— Acho que você já anda com as costas doendo de tanto dormir naquele divã, não?

— Se ando, mas se eu mudar para um hotel irão em­bora o salário e as gorjetas.

— Mude para meu apartamento. Tenho um quarto sobrando, onde fica meu aparelho de som.

— Pensei que morasse numa quitinete!

— Morava nos maus tempos. Agora estou numa boa.

— Você me tirou do aperto! — exclamou Toni. Não sabia como sair dessa.

— Você tem me dado cobertura no Paradise. Nas horas de folga é que me viro. E um parceiro como você não se encontra todo dia. O outro era um chato, se eu me atrasasse, me dedurava ao patrão.

— Quando posso mudar?

— Hoje mesmo.

 

               TENSÃO EM VILA GRANDE

                          Mãe:

Já não estou morando naquele hotel da última carta. Mudei para o apartamento de um amigo, que é um luxo. Tem de tudo: geladeira, máquina de lavar roupa, aparelho de som, televisão e. vídeo. E não é muito distante de onde trabalho. Quanto ao tio, não o vi mais porque ando muito ocupado.

Se alguém perguntar por mim em Vila Grande, pode dizer que estou bem, melhor impossível, pois é a pura verdade.

Estou com muita saudade da senhora e mando muitas lembranças. O endereço não posso dar ainda, a senhora sabe por quê.

           Um grande beijo e o tchau do Toni

 

Desta vez dona Amélia leu a carta diante do mari­do, que a trouxera da caixa do correio, tendo reconheci­do a letra do enteado. Sentou-se diante dela, na sala, e esperou que a lesse. Depois, pediu:

— Posso ler?

Seu Antero apenas passou os olhos pela carta.

— Só mentiras. Não acredito que esteja morando num bom apartamento. A não ser que...

— A não ser o quê?

— Que tenha enveredado pelo caminho do tio.

— Toní é um rapaz de princípios.

— Mas não está mais sob seus cuidados. Quem é es­se amigo? Por que não deu o endereço? Onde trabalha? Se estivesse agindo bem não haveria motivo para esse mis­tério todo.

— Certamente receia que eu vá buscá-lo.

— Não penso assim. Se tudo isso fosse verdade, ele se apressaria em provar que venceu sem a nossa ajuda. Seria o lógico.

Dona Amélia, que desde a fuga do filho evitava con­versar com o marido para não ouvir críticas a Toni, dispu­nha-se a voltar para o quarto, seu refúgio, quando Silva­no, sempre com seu ar de superioridade, entrou em cena.

— Leia esta carta — ordenou o pai.

Silvano leu-a em segundos.

— Ele deve estar preparando outra. Só espero que não venha causar complicações — disse, como se Toni fosse um estranho e não o filho de sua madrasta, quase seu irmão.

Seu Antero tomou uma decisão:

— Precisamos localizar Toni e trazê-lo de volta.

— Localizar Toni? — rebateu dona Amélia em tom de protesto. — Seria para ele uma grande humilhação.

— Pode fazer isso, Silvano?

Silvano gostava que o pai lhe confiasse missões difí­ceis para comprovar sua capacidade.

— Conte comigo, pai. Mas como descobrir onde ele está?

— Você sempre tem boas idéias, meu filho. Pense numa que lhe dou carta branca para agir.

 

                     UM APARTAMENTO E TANTO

Toni teve uma grande surpresa ao entrar no aparta­mento de Juliano. Chocante! Era um apê de quem esta­va bem na vida, todo moderninho e elegante. Coisa de rico!

— É um luxo só, companheiro!

— Sei o que é bom. Veja aquelas poltronas vermelhu­das. Custaram uma nota preta.

— E esses quadros na parede!

— Só de pintores superbadalados. Uma forma de in­vestimento. Vamos dar uma olhada na cozinha. Tenho uma penca de eletrodomésticos.

Foram à cozinha, Toni ainda de boca aberta.

— Tudo muito bacana, Juliano! Quem diria que um barman...

Juliano fez uma cara séria.

— Vou pedir um favor, Toni

— Quantos quiser.

— Não abra a boca lá no Paradise. Nem com a Vir­gínia. Tenho pavor de olho gordo, inveja, despeito. Por isso os colegas nem sabem onde moro.

— Sei fazer boca-de-siri. Mas deve estar faturando alto com os carros!

— Estou mesmo, e teria milhões no over se não tor­rasse tanto dinheiro por ai.

— Fico grilado com unia coisa — revelou Toni.

— O quê? — quis saber Juliano.

— Por que, ganhando essa nota, continua no Paradi­se? Afinal as gorjetas não são lá essas coisas.

Juliano riu com toda a sua simpatia.

— E quem disse que vou envelhecer servindo coque­téis? Assim que tiver enchido o colchão de dinheiro, pe­go meu caminho. Venha ver seu quarto.

Que diferença da quitinete do tio Waldo! Televisão, aparelho de som, vídeo e até um pequeno telescópio pa­ra sondar os espaços. Toni olhava tudo, feliz com o no­vo domicílio.

— Você é muito caprichoso.

— Não sou eu quem cuida de tudo. Tem uma faxi­neira que vem aqui três vezes por semana. Você poderá dormir naquele sofá-cama, que não é um quebra-costelas como o do Paradise.

— Você é um grande cara!

— Quem sabe a gente trabalhe junto no negócio de carros. Estou precisando de um sócio de confiança, que saiba ficar calado.

Logo que se viu só, estranhando os sigilos do amigo, Toni pegou o telefone e discou.

— Raquel, sou eu.

— Toni!

— Anote o número do meu telefone.

Raquel anotou e perguntou:

— Tem programa para quinta?

— Não.

— Podemos fazer alguma coisa.

— O que você propuser.

— Me apanhe às oito. Beijos.

Na quinta, durante o trabalho no Paradise, Toni pe­diu a Juliano:

— Pode me emprestar o carro à noite?

— Mas não aquele. Vendi. — E tirando uma chave do bolso. — Este aqui é quase zero-quilômetro. Só que está sem os documentos. Tudo bem?

 

                   DELICIOSA QUINTA-FEIRA

Raquel, que esperava Toni diante do edifício onde morava, exclamou:

— Outro carro?

— Não disse que compro e vendo? Você ainda vai me ver com um carrão importado.

Mas Raquel tinha algo importante a dizer.

— Disse a meus pais que tenho saido com você.

— Bronquearam?

— Pelo contrário, papai quer conhecer você. Lembra-se muito bem de seu padrasto.

— Estamos de relações cortadas. Não quero saber dele.

— Isso não contei — garantiu Raquel. — Nem preci­sam saber. Pelo menos por enquanto. Até que vocês fa­çam as pazes.

— Eu e meu padrasto? Corta essa.

— Vamos entrar.

— Entrar?

— Estão à nossa espera. Não são bichos, não.

Toni hesitou ainda, mas um beijo acabou por conven­cê-lo.

O pai de Raquel, Dr. Ricardo, e a mãe, dona Neusa, agora mais chique, receberam Toni com abraços e sorrisos. Gente muito refinada, cordial. Dr. Ricardo mostrava-se saudoso de Vila Grande, onde dirigia a sucursal da firma para a qual trabalhava.

— Conheci seu padrasto — disse. — É o que os ame­ricanos chamam de seIf-made-man. Fez-se por si próprio. Começou do nada e foi subindo. Muita garra! Sempre me surpreendi com a rapidez com que montou sua frota de caminhões. Espelhe-se no seu padrasto e irá longe!

— Não quis trabalhar na empresa dele — disse To­ni, orgulhoso.

— Bem, isso demonstra valor pessoal, independência.

— Mas ele tem um filho, não? — lembrou dona Neusa.

— Silvano, trabalha na transportadora.

— Estou lembrado — disse o pai. — Parecia muito ativo.

Raquel interveio brincando:

— Mas Toni é muito mais bonito.

— Isso é verdade — concordou a mãe, rindo.

— Vamos omar um refrigerante? — sugeriu o pai. — Ou prefere um coquetel?

A palavra coquetel constrangeu Toni, ligando-a ao Paradise.

— Coquetel — preferiu Raquel pelos dois. — Clara, minha colega, ensinou nossa empregada a preparar um muito gostoso. Chama-se Saudade de Elvis Presley.

Todos riram e Toni fingiu rir também.

Mas o resto da noite foi muito melhor. Passearam muito e foram à mais incrementada danceteria da cidade. Toni aprendera a dançar bem no clube de Vila Grande e mostrou o que sabia.

Raquel estava solta e eufórica.

— Que bom meu pai ter conhecido você.

Quando se cansaram de dançar foram ao carro de Toni, estacionado nas proximidades. Raquel, muito impe­tuosa e romântica, fez com que ele sentisse uma emoção especial, dessas para serem arquivadas e nunca mais es­quecidas. Era mesmo uma pena ter de esconder a ela e ao simpático casal de pais sua verdadeira situação. Mas deveria confiar na sorte, ir em frente. O principal era apro­veitar aqueles momentos.

Na quinta-feira, ao entrar no apartamento, Juliano, que assistia a uma fita de vídeo, olhou-o e brincou:

— Agora sim parece estar no paraíso, não lá no Pa­radise.

Toni riu, achando graça no trocadilho.

 

                         BREVE IDA A VILA GRANDE

Dona Amélia não desejava que Silvano localizasse seu filho na capital. Ser trazido de volta, fracassado, se­ria para ele um mal talvez irreparável. E para ela também, que no íntimo admirava a rebeldia de Toni.

— Podíamos recorrer à polícia paulistana — disse Antero a seu filho.

— Nem pense nisso — protestou dona Amélia. — Não permitirei.

— Ah, tinha esquecido da encrenca em que se meteu com aquele tio fora-da-lei.

Um dia, os três à mesa, Silvano, com seu ar de supe­rioridade e segurança, noticiou friamente:

— Sei como encontrar Toni.

Seu pai moveu-se na cadeira: Silvano nunca o decep­cionava.

— Como, filho?

— Ele namorava aquela garota, a Raquel, filha do Dr. Ricardo, estão lembrados? Pois duvido que não foi procurá-la em São Paulo.

— Boa idéia! — exclamou Antero, com mais um motivo para admirar Silvano. — Isso mesmo. Não sei co­mo não pensamos nisso antes. Mas como descobrir o en­dereço da família em São Paulo?

— Podemos obter informações aqui mesmo na sucur­sal da empresa em que o pai dela trabalha.

— Esse é o caminho, filho! — aprovou Antero. — Trate disso.

Dona Amélia ia pedir — ou mesmo implorar — que esquecessem o filho, que não lhe causassem vexame algum, mas não abriu a boca, ciente de que suas palavras seriam inúteis. Os dois estavam de um lado e ela de outro. Sobre esse assunto e provavelmente sobre todos, não mais se en­tenderiam.

 

                 0 DESTINO TOMA PARTIDO CONTRA TONI

Era uma noite espetacular de sexta-feira em que o Paradise Drinques e Danças estava repleto desde a happy hour, ao cair da tarde. Estudantes espremiam-se de encon­tro ao balcão, ocupavam as mesas, dançavam nas pistas. Toni e Juliano não cessavam de servir refrigerantes, pre­parar coquetéis, sem tempo para as visagens e brincadei­ras dos momentos mais folgados.

— O patrão deve estar assanhado com essa freguesia toda — disse Juliano.

— Veja a coitada da Virgínia na caixa. Ainda não parou um momento.

— E quando pára é pra lhe dar uma olhada. Acho que ‘tá mesmo ligada em você.

— Mas eu não quero nada com ela. Amo Raquel.

Toni, vibrando a coqueteleira, enchendo copos, dis­tribuindo canudinhos, nem olhava ao redor. Se não se concentrasse no serviço, embolava tudo. Era um verda­deiro barman eletrônico.

— Um Saudade de Elvis Presley.

Toni conhecia aquela voz, embora lhe parecesse dis­farçada. Alguém que imitasse a voz de ninguém. Estava abaixado para apanhar gelo do refrigerador e foi erguen­do o corpo como se temesse a materialização de um fan­tasma.

Raquel mantinha os olhos fixos nele, ladeada por um casal de amigos. A moça, Clara, ele já vira algumas vezes.

— Esse aí não é o Toni?

O rapaz ficou totalmente perturbado. Preferia um terremoto, mas tudo estava bem fixo. Não sabia se continuava servindo, se falava com Raquel ou se fugia, saltan­do sobre o balcão.

— Pedi um coquetel — repetiu a garota.

— Mas ele é o Toni, não é? — insistiu Clara.

— Pergunte a ele — disse Raquel.

Juliano, que tinha antenas para tudo e percebia à dis­tância, aproximou-se. Perguntou, lateralmente:

— É a Raquel? — E como Toni não respondesse nem se mexesse, acrescentou: — Eu sirvo o pessoal. Pode sair da raia.

Toni saiu de trás do balcão e contornou-o. Não po­dia ficar sem dizer nada.

— Eu não esperava que você... Está muito zangada?

Raquel olhava-o com ódio.

— Você mentiu pra mim, mentiu pra meus pais, men­tiu...

— Se eu dissesse a verdade, namoraria comigo assim mesmo?

— Volte para o balcão, Toni. Deve precisar muito desse emprego.

Caindo num abismo, Toní retrucou:

— O que disse dos automóveis é fato. O bar é ape­nas um quebra-galho.

Raquel, sem pegar o coquetel que Juliano deposita­ra sobre o balcão, disse aos amigos:

— Já estou de saída!

Toni segurou o braço dela.

— Não vá, explico tudo.

O amigo de Raquel interveio:

— Deixe a moça em paz, sim?

Toni afundou-se no Paradise, empurrando fregueses. Passou por Virgínia, que do caixa assistira à cena, talvez sem entender. Ele precisava lavar o rosto, refrescar-se. Quando voltou ao bar, depois de algum tempo, Raquel e o casal de amigos não estavam mais.

Juliano:

— Era a noivinha?

— Era.

— Coincidências acontecem.

— Acabou tudo.

— Acho que não resta dúvida. A grã-fininha saiu fei­to onça.

No seu aturdimento, Toni procurava encontrar expli­cações.

— Então ela não gostava de mim. Afinal, cometi al­gum crime?

Juliano viu o número de fregueses crescer.

— Dá pra encarar o balcão?

— Posso tentar. Mas estou nocauteado.

Juliano percebeu que Toni não suportaria o trabalho.

— Então vá pra casa, procure relaxar e durma. Sei o que é um pontapé no coração. Me viro sozinho.

Toni foi trocar o jaleco de serviço pelo paletó, pas­sando pela caixa. Virgínia lançou-lhe um olhar solidário. Já devia ter imaginado o que acontecera.

 

                  NA PISTA DE TONI

Silvano entrou às pressas na sala de jantar de sua casa agitando no ar um pedaço de papel como se fosse uma bandeirola.

— O endereço, pai — anunciou triunfante. — Forne­ceram-me rua, número e telefone do pai de Raquel.

A notícia agradou a seu Antero, a dona Amélia não.

— Você é muito eficiente, meu filho. O que devemos fazer? Escrever ou telefonar?

Silvano trouxera uma idéia da rua.

— O assunto é delicado, pai. Creio que seria melhor resolver pessoalmente.

Dona Amélia tomou uma decisão:

— Eu irei — disse com firmeza.

— Melhor que eu vá — rebateu Silvano.

— Ele é meu filho — protestou ela.

Antero ignorava as razões de Silvano, seu motivo se­creto, Raquel, mas se aliou a ele.

— Deixemos pessoas da mesma idade resolverem a questão.

Dona Amélia saiu da sala revoltada. A guerra entre eles se intensificava.

Silvano:

— Parece que ela não quer que o filho volte.

— Temos brigado muito por causa de Antônio. Amé­lia não admite que ele possa me complicar com a polícia.

— Vou preparar tudo para a viagem, pai.

— E se ele não quiser voltar com você?

— O que é melhor, morar aqui ou debaixo de uma ponte em São Paulo?

Mas era em Raquel que ele pensava. Corno um qua­se-enjeitado a conquistara?

 

                         A MOÇA DA CAIXA

Naqueles dias amargos a única distração de Toni era conversar com Virgínia.

— Viu o rebu que aconteceu outro dia? Eu tinha di­to à minha namorada que vendia carros.

— Voltaram a se encontrar depois?

— Claro que não, ela não vai me perdoar nunca.

— Não foi uma grande mentira.

— Você não conhece o mundo em que Raquel e seus pais vivem. Dinheiro, conforto, luxo, são os deuses deles.

— Ainda gosta dela?

— Gostar, não sei. Ela me parece um grande ímã.

Por pena ou simpatia, Virgínia disse:

— Está precisando é de desabafo. Folgo às quintas. Quer chorar as mágoas?

Na quinta seguinte, Toni e Virgínia saíram sem ter nada programado e acabaram entrando numa danceteria. Mas não ficaram muito lá, preferindo um gostoso bar ao ar livre. Toni contou-lhe toda a sua história e ouviu a de Virgínia. Ela morava com a mãe e uma irmã mais velha. Detestava o Paradise, mas não encontrara trabalho melhor para pagar os estudos. Era ambiciosa. Queria fa­zer alguma coisa de bom na vida, além de casar e ter fi­lhos. Tinha uma paixão: observar velhos casarões. Julga­va-se até muito moderna, mas com um pé no passado. Gostava de ler biografias e freqüentar exposições de pintu­ra. Já namorara, porém sem amor. Sentia-se mais velha que todos os seus namorados.

Toni reconheceu logo que Virgínia diferia das outras garotas. Principalmente de Raquel, para quem o mundo era uma festa. Com ela podia abrir-se, expor o seu ínti­mo. E começava a achá-la mais bonita do que lhe parece­ra a princípio. Diante da caixa registradora ficava fria e distante demais.

— Apenas discordo de você num ponto — disse ela. — Juliano. Não suporto os espertos.

— Para mim ele tem sido muito bom. Devo-lhe o em­prego, a casa e a comida.

— Não creio que o ajudou sem interesse.

— Cubro suas faltas no Paradise — explicou Toni. — Ele tem negócios particulares. Uma mão lava a outra. Virgínia olhou para o relógio.

— Preciso ir.

— Gostei muito da noite — afirmou Toni. — Que tal sairmos na semana que vem?

 

                   UM ADEUS SEM PALAVRAS NEM ACENOS

Apesar dos encontros com Virgínia, Toni continua­va com o pensamento fixo em Raquel, o ímã, acreditan­do que um dia ela reapareceria. Juliano percebia a ansiedade.

— Já digeriu aquele pepino?

— O gosto continua na boca.

— Faça um gargarejo.

Toni fingiu rir e perguntou:

— Pode me emprestar o carro?

— Aquele já passei adiante. — E tirou uma chave do bolso. — Tem um menorzinho na garagem. Serve?

Toni pegou o carro e foi rondar o quarteirão do apar­tamento de Raquel. Deu voltas e mais voltas. Se ela apa­recesse, resolvera, iria ao seu encontro. Mas nada de ela aparecer. Decidiu ir até a lanchonete que freqüentaram durante o namoro. Estacionou nas proximidades e ficou espiando. Não a viu. Talvez estivesse no fundo da lancho­nete. Saiu do carro e seguiu até a porta, olhando mesa a mesa. Voltou para o carro pensando percorrer outros pon­tos onde seria possível encontrá-la. Girou a chave do mo­tor. Então olhou para frente e estremeceu.

— Raquel!

Ela, num vestido azul, vaporoso, aproximava-se da lanchonete. Nunca a vira tão esvoaçante e risonha. Mas não estava sozinha. Reconheceu o rapaz que caminhava ao lado de Raquel, como se fosse o dono da tarde. Silva­no! Sim, era Silvano!

O primeiro impulso foi o de dar a partida imediata­mente. Fugir daquela cena. Mas sentiu quase um prazer amargo, desejo de autotortura. Viu quando ambos se sen­taram e chamaram o garçom. Não falavam muito, mas se olhavam, um encantado pelo outro. Pareciam ensaiar gestos de pessoas que tateiam os caminhos da intimidade, que ensaiam aproximações, que testam cautelosamente técnicas de conquistas amorosas.

O elástico da resistência emocional de Toni arreben­tou. Impossível continuar ali. Perdera Raquel e justamen­te para quem mais detestava.

 

                 CHORAR FAZ BEM

Ao entrar no apartamento, Toni largou-se na cama e chorou. Chorou como quando era menino e sua cachor­rinha fugiu de casa para não mais voltar; como no dia em que lhe roubaram a bicicleta; como no enterro do pai. Lá fora o mundo desabava. Teria de andar a vida toda sobre escombros.

Apenas algumas horas depois pôde pensar no fato como uma triste verdade. O que teria aproximado Silva­no de Raquel? Não tardou a imaginar que a pedido de sua mãe, ou de seu Antero, ou de ambos, ele fora a capi­tal à sua procura. E certamente a primeira etapa fora Ra­quel. Em Vila Grande seria fácil obter o endereço do Dr. Ricardo na sucursal da firma em que ele trabalhava.

Mas outro golpe estaria a caminho: Silvano certamen­te iria procurá-lo. Decidiu não atender a telefonemas nem à campainha. Juliano diria que lá não morava nenhum Toni. Porém... E se ele aparecesse no Paradise, já que Raquel sabia onde ele trabalhava? Viu Silvano, com ca­ra de poucos amigos, levando-o de volta à Vila Grande. Viu-se derrotado diante do padrasto e forçado a cursar contabilidade. E para o vencedor, um belo troféu: Raquel.

Sem saber o que fazer, Toni pegou o telefone e dis­cou. Ouviu a voz de uma das empregadas.

— Quer chamar dona Amélia?

Não precisou esperar muito.

— É Amélia.

— Mãe, sou eu.

— Toni! Por que não me telefonou antes?

— Mãe, Silvano veio me buscar, não?

— Sim, embarcou ontem. Falou com voce?

— Eu o vi com Raquel, à distância. Foi você que o mandou me procurar?

— Não, fui contra — ela garantiu.

— Foi mesmo?

— Achei que era uma humilhação para você. Portan­to, se estiver bem, se não lhe falta nada, não é preciso voltar.

— Então foi idéia dele?

— Dele e de Antero, por causa da notícia que saiu no jornal sobre seu tio Waldo. Temem que se meta em confusões que possam prejudicar os negócios aqui.

— Aquilo foi um azar. Mas não me encontrarão. Mudo de emprego, de apartamento, desapareço do mapa.

— E Raquel?

— A gente não namora mais. Pelo que vi numa lan­chonete, ela agora namora o Silvano. Mas não me interes­sa. Vou sumir. Tchau, mãe, um dia telefono.

Depois o rapaz fez outra ligação. Ouviu a voz de Virgínia.

— Sou eu, Toni.

— Olá.

— Alguém esteve me procurando?

— Que eu saiba, não.

— Virgínia, ouça uma coisa.

— Diga.

— Estou deixando o Paradise.

— Por que?

— O filho do meu padrasto veio me buscar e não quero que me encontre. Vou arranjar outro emprego. De­pois telefono pra você e marcamos uma saída. Não diga nada ao Juliano. Quero avisá-lo pessoalmente.

— Juliano não veio trabalhar.

— Não? Mas me disse que ia.

— Só deu uma passada.

— Bem, é isso, Virgínia. Logo nos veremos. Agora vou cuidar da vida.

Toni desligou. A decisão estava tomada. Mas se saís­se do Paradise, Juliano permitiria que continuasse por mais algum tempo no apartamento?

Então ouviu ruídos, porta batendo e passos. Devia ser Juliano que de fato não fora trabalhar.

 

                   O QUE HOUVE? O QUE HOUVE?

Toni levantou-se e foi para a sala. Lá encontrou Ju­liano pálido e um tanto desarvorado. Parecia que o ami­go, igual a ele, havia sido atingido por um míssil. Não era o alegre showman do Paradise. Espiava pela janela.

— O que houve? O que houve?

— Não aconteceu nada — respondeu Juliano brusca­mente.

— Não foi ao Paradise?

Juliano olhou bem sério para o amigo.

— Vou sumir de lá e acho que deve fazer o mesmo.

Toni não entendeu. Acompanhou Juliano, que foi à cozinha, morto de sede.

— Por quê?

— Agora não dá pra explicar.

— Brigou com o patrão?

— Estou metido numa encrenca — disse Juliano de­pois de dois copos de água. — Vou cair fora também do apartamento.

— E eu?

Juliano foi para o quarto, ainda seguido por Toni, abriu uma gaveta cheia de dinheiro e enfiou-o nos bolsos. Entregou uma parte para Toni.

— Fique com isso.

— É muito... Pra quê?

Volte para o interior, faça o que quiser. Aqui não é mais seguro.

— Você vai embora já?

Juliano pegou sua mala e começou a jogar roupa den­tro dela, desordenadamente.

— Hoje não é meu dia de sorte — disse.

— Em que tipo de encrenca se meteu?

— Aquela que dá cadeia. Eu ia muito bem até que pisei numa casca de banana.

Tocaram a campainha.

Juliano estremeceu todo e disse:

— Deixe tocar.

Novos toques insistentes. Os dois permaneciam imóveis.

— Quer que eu espie pelo olho-mágico? — pergun­tou Toni.

Juliano não respondeu logo, como se estudasse possi­bilidades. Deu uma olhada no interior do armário embutido.

— Eu espio — decidiu. — Você fique aqui.

A campainha cessara. Quem quer que fosse já devia ter ido embora. Mas logo em seguida ouviu um clamor de onda raivosa. A porta, forçada num corpo-a-corpo, cedeu, rangendo. Vozes estranhas e de Juliano.

— Você é o Juliano, não? Ou costuma atender por outro nome?

— Ei, que invasão é essa? Eu ia abrir a porta. Esta­va no banheiro.

— Pensava que podia enganar a polícia o tempo to­do, né?

— Qual é a bronca?

— Roubou uns cinqüenta automóveis. Mais nada.

— Pensam que sou algum vagabundo? Trabalho no Paradíse, vocês já devem ter ouvido falar. Podem pergun­tar por mim. Tenho referências.

— Que belo apartamento tem o Juliano Boa-Pinta! — exclamou outra voz. — Bom gosto, isso ele tem. Quem está aqui com você, malandro? — perguntou jocosamente.

— Moro sozinho — disse Juliano.

— Não confia em sócios? Disso já sabíamos.

— Tem até raquetes de tênis — observou o outro po­licial.

— Sou atleta de Cristo, esportista religioso.

— Deixe ver se está armado. Eh, que dinheirama nos bolsos! Por que anda com tanto? Também não con­fia em nosso sistema bancário? Agora vamos dar uma olhada lá dentro, Juliano Boa-Pinta.

Toni, que ouvia do quarto, pensou em se esconder debaixo do sofá: seria descoberto facilmente. Então viu o armário embutido, que Juliano olhara com intenções. Entrou porta adentro, encostou-a e ajoelhou-se a um can­to, coberto por roupas pendentes de cabides.

— Aqui é o espaço de lazer do malandro — disse um dos policiais. — Som, tevê, vídeo e tudo o mais.

— Vamos espiar o quarto de empregada.

Passos se distanciando. Logo depois os tiras voltavam.

— Ele é mesmo de agir sozinho — disse um.

— Por isso que foi difícil te pegar, ô Boa-Pinta.

— E as armas, onde guarda? — quiseram saber.

— Que negócio é esse de armas? — protestou Julia­no. Sou contra violências. Se há algum mal-entendi­do a gente até podia acertar os ponteiros, respeitosamente.

Os policiais riram, afastando-se.

— Você fala como se tivesse dinheiro... Por acaso encontrou algum com ele?

— Nada, Borba. Ia fugir sem nenhum...

— Vão ficar com meu dinheiro! Ladrões!

— Vamos embora.

Toni saiu do armário. Só então pôde respirar profun­damente. Agora foi sua vez de beber água. Espiou pelo visor: ninguém. Apanhou tudo o que lhe pertencia e saiu do apartamento. Na porta havia um racho de ponta a ponta; a fechadura voara. Subiu um andar e chamou o elevador de serviço. Se por algum motivo os policiais vol­tassem, não o encontrariam no corredor.

A porta, outro susto: o zelador.

— Sabe que a policia levou seu amigo?

— Estou levando as roupas dele à delegacia.

— Com você não houve galho?

— Não, vou continuar morando aqui.

Antes de Toni chegar à rua, o zelador comentou:

— Sempre me dava gorjetas. Parecia boa gente.

— Com o dinheiro dos outros, mas era. Bem, vou levar as roupas — disse Toni, afastando-se com a mala.

Sentindo-se seguro, parou num bar para tomar café. Pela segunda vez em tão pouco tempo, Toni livrara-se das grades, graças mais às circunstâncias que à sua esper­teza. Deviam ser as rezas de sua mãe. Mas o “quase”, o “triz”, o “por um segundo” não se repetem indefinidamente. Se quisesse permanecer na capital, e já contava com o aval de dona Amélia, teria de abrir mais os olhos.

Mas outra expressão muito comum o assaltou ao ter­minar o café: e agora?                                

 

                             À PROCURA DE TONI

Silvano estacionou o carro à porta Paradise e en­trou. Hora de pouco movimento, os garçons encostados ao balcão. Toni não estava entre eles. Deu um giro pelo interior da casa, passou pela pista de dança. Perguntou a um dos garçons mais idosos, com jeito de chefe.

— Toni está aqui?

Os olhos do outro se acenderam.

— Acho que não virá mais.

— Não trabalha todos os dias?

— Disse que talvez não venha mais aqui. Ele e Julia­no Boa-Pinta. Acho que tinham negócios. Toni mal en­trou e já fez dupla com Juliano. Os estudantes gostavam de suas bagunças e as gorjetas choviam. Juliano dizia que tinham estilo... Mas eram espertos, só isso.

Silvano viu um rostinho bonito no caixa, alguém que queria depor. Aproximou-se.

— O senhor é da polícia? — ela perguntou.

— Não, não sou.

— Aquele garçom é um invejoso. Falava mal de To­ni? Juliano podia ser um ladrão, mas não o Toni! Não acredito que esteja envolvido nesse negócio.

— Foi acusado de roubar carros?

Virgínia avançara o sinal. Não devia ter aberto a boca.

— Olhe, eu não sei de nada, mas quanto a Toni, ga­ranto...

O tal garçom acercou-se:

— Ele trabalhava aqui sem documentação. Não sa­bíamos seu nome completo. Apenas Toni. Acho isso sus­peito. E por que sumiu daqui, se era Juliano o puxador?

— Esse Juliano roubava automóveis?

— Não leu o jornal? Juliano saiu com fotografia e tudo.

— A reportagem fala de Toni?

— O jornal diz que Juliano trabalhava sozinho. Mas se Toni sumiu... Depois, eram unha e carne. Muito liga­dos. Sabe como é essa gente, um protege o outro. Mas quem é o senhor? Parente de Toni?

Silvano não quis pisar no atoleiro.

— Parente, eu? — sorriu. — Presto assistência a jo­vens transviados. Oriento.

— Espécie de Exército de Salvação?

— Isso, você chegou lá. Já vou indo.

Imediatamente Silvano regressou ao hotel levando um jornal. Ligou para Vila Grande. Seria o segundo inte­rurbano daquele dia. No primeiro dissera ao pai que To­ni trabalhava como garçom num bar e que perdera defini­tivamente a namorada.

— Pai, é o Silvano.

— Fale, filho.

— Tem encrenca do lado de Toni. Um amigo dele, garçom do bar, foi preso como puxador de carros.

— Puxador de carros? Como se chama? — pergun­tou Antero, ansioso.

— Juliano. Está nos jornais de hoje.

— Antônio está envolvido?

— Só o que se sabe é que sumiu do emprego.

— A polícia anda atrás dele?

— Pelo que sei, não. Toni trabalhava sem registro. No bar ninguém sabe seu nome completo.

— Vou ler os jornais...

— Gostaria de continuar aqui mais algum tempo. Fui convidado para uma festinha no apartamento de Ra­quel. São pessoas muito finas. Dr. Ricardo diz que conhe­ceu o senhor aí em Vila Grande.

Silvano desligou e em seguida fez outra ligação.

— Raquel? Silvano. Falei com o velho. Tudo bem. Vou ficar mais uns dias em São Paulo. Posso apanhá-la na saída da faculdade?

 

                   DONA AMÉLIA SOFRE, SOFRE, SOFRE

Seu Antero saiu um pouco mais cedo da transporta­dora. Encontrou sua mulher dando ordens para as empre­gadas. Chamou-a para o jardim-de-inverno, onde ele gos­tava de ter conversas íntimas.

— Silvano telefonou — foi dizendo. — E deu algu­mas notícias sobre Antônio. Vinha trabalhando como gar­çom num bar. Quando a namorada dele soube, acabou a festa.

Dona Amélia procurou não se abalar.

— O que ela esperava? Que Toni fosse algum execu­tivo? Aos dezoito anos?

— Mas a história infelizmente não acaba aí — disse, entregando-lhe o jornal. — Acho que se fez levar pelas más companhias. Um amigo dele, Juliano, foi preso. Rou­bava carros.

— Toni está implicado?

— Pode ser, ele desapareceu do bar.

Dona Amélia pegou o jornal. Leu.

— Não fazem nenhuma referência a Toni.

— Sorte. Antônio trabalhava sem registro.

— Não acredito que meu filho esteja nisso.

— É melhor encarar a realidade. Se você está preocu­pada, eu também estou. Afinal, tenho um nome a ze­lar... Sou um comerciante de nome limpo.

Dona Amélia acusou o marido:

— A culpa de tudo isso foi sua.

— Minha?

— Se não tivesse forçado Toni a estudar contabilida­de, nada disso teria acontecido. Você motivou a fuga e tudo o que aconteceu depois.

Seu Antero perdeu o controle, todo agitado.

— Eu, o culpado? Essa é boa! Se o Antônio está tri­lhando esse caminho, é porque tinha inclinação para is­so, estava no sangue.

— Não há ladrões em minha família.

— Eu fui ingênuo em querer que Toni seguisse uma carreira. Mas ele que fique tranqüilo. Se voltar, não o obrigarei a estudar mais nada. E nem vou querer que tra­balhe na transportadora, ouviu? Seria perigoso deixar o cofre perto dele.

Dona Amélia também se descontrolou.

— Pode ficar descansado. Toni não irá trabalhar com você. Eu não deixarei, desta vez. Farei com que estude o que quiser. Que siga a profissão que escolher! — bradou.

— Não às minhas custas — rebateu Antero. — Ele que trabalhe e pague seus estudos. De mim só terá teto, comida e mais nada.

Dona Amélia, irritada, foi para o quarto. Jogou-se na cama.

— Deus, o que faço?

Pensou depois em Toni voltando para casa e pedin­do desculpas ao padrasto. E que humilhação diante de Silvano! Teria de levar o resto da vida de cabeça baixa, como um marginal, um coitado, dentro da própria casa. E para ela também a convivência seria intolerável. Algu­ma coisa, muito corajosa, devia ser feita.

 

                           TONI ENTRE MILHÔES

Toni nunca sentira antes a sensação opressiva de es­tar completamente só. Os milhões de habitantes da cida­de eram apenas sombras que passavam. Tomava café nos bares, sentava-se nos bancos das praças. Vagou assim até o anoitecer. Passou a noite num hoteleco infestado de in­setos. Mas faltou-lhe coragem para procurar emprego na manhã seguinte. Almoçou num restaurante de segunda classe, entrou num cinema. Certamente pensava em vol­tar a Vila Grande, mas não se decidia. Sentado numa ca­deira de bar, leu a notícia da prisão de Juliano. O jornal tratava-o com intimidade, não era a primeira vez que fre­qüentava as páginas policiais. Era o Juliano Boa-Pinta, conhecido assim entre os puxadores de carro. Voltou pa­ra o hoteleco, felizmente com dinheiro para sobreviver alguns dias. Mas a solidão começou a doer tanto, ficar tão pesada e cinzenta que precisou conversar com alguém. Decidiu esperar Virgínia na esquina do Paradise, saben­do a hora em que ela saía.

— Virgínia!

A garota correu para abraçá-lo.

— Toni! Que bom que está em liberdade!

— Imaginava que eu estivesse preso?

— Nem sabia o que pensar.

Havia perguntas urgentes.

— Alguém me procurou?

— Um rapaz aloirado, elegante...

— Silvano, o filho do meu padrasto. Alguém mais?

— Outro, moreno, atarracado. Conversou só comi­go. Disse que era amigo de Juliano, mas não acreditei muito. Podia ser um tira. Mas fale de você, o que tem feito? Mas não aqui. Vamos a um restaurante. Convite meu. Eu pago.

Sentar-se com Virgínia num restaurante foi o primei­ro momento de satisfação para Toni desde seu rompimen­to com Raquel.

— Nem sabia que Juliano roubava carros.

— Acredito, Toni.

— Sem que eu prove nada?

— Conheço as pessoas. Não dizia que não confiava em Juliano? Mas onde está morando?

— No paraíso dos pernilongos, uma hospedaria.

— Conheço uma pensão limpinha. Morei nela com minha mãe e minha irmã. Não é cara.

— Me dê o endereço.

— Levo você lá depois do almoço.

— Bem instalado, terei mais disposição para procu­rar emprego.

— Que tipo de emprego?

— Qualquer um que não tenha um Juliano por perto.

Terminado o almoço, Virgínia levou Toni à pensão. Havia um quarto vago. Apesar de modesto, gostou da aparência do novo domicílio. Voltou para o hotel a fim de pegar a mala. Ao esperar um táxi para retornar à pen­são com a bagagem, teve a impressão de que alguém, na caIçada, observava-o com nervosa atenção. Mas foi uma impressão breve: logo parou um táxi e esqueceu o fato.

Mais bem acomodado e bastante confortado pela com­panhia de Virgínia, Toni pôde descansar, preparando-se para nova procura de emprego. Não é fácil conseguir um numa cidade em que milhares de pessoas movimentam-se à caça de oportunidades. E é ainda mais difícil quan­do não se tem habilitação profissional, como músico, ar­quivista, mecânico, professor, publicitário, revisor ou téc­nico em qualquer coisa. Toni, aos dezoito anos, não era especializado em nada. E quem é nessa idade? Tinha de correr casas comerciais e perguntar se precisavam de em­pregado. Foram dezenas, até que teve a idéia de apresen­tar-se a uma livraria, já que gostava tanto de leitura. Até o contato físico com o livro agradava-o. Não teve sorte na primeira livraria, mas na terceira, recém-inaugurada, muito ampla, na qual também se vendiam discos, foi bem recebido.

— Apenas exigimos um mês de experiência — disse o gerente.

Toni agarrou a chance, embora o ordenado bastasse apenas para casa, comida e condução. Dinheiro para di­versões e continuar os estudos, nem pensar.

— Posso começar já?

— Pode, mas antes tem de saber onde ficam as se­ções. Aqui na frente estão os últimos lançamentos, as no­vidades. Lá está a estante de ficção nacional. Mais adian­te, ficção estrangeira.

Toni foi percorrendo a livraria. Estantes de livros téc­nicos, psicanálise e psicologia, sociologia, história, econo­mia, ciências, livros de arte, biografias, poesia, culinária, obras para infância e juventude, além dos didáticos. E no fundo, toda uma ala de livros usados, um sebo mui­to bem organizado.

Logo ao primeiro giro pela livraria, parando em ca­da estante, Toni sentiu que poderia ser um bom balconis­ta, capaz de localizar depressa qualquer livro que lhe pe­dissem. Na parte da tarde já começou a atender à fregue­sia. E ficou contente ao vender o primeiro livro sem o au­xílio dos três outros balconistas. No final do expediente, às sete da noite, recebeu um sorriso do gerente, que valeu pela garantia do emprego.

No dia seguinte, Toni ligou para o Paradise.

— Virgínia? Toni. Já estou trabalhando.

— Onde?

— Numa livraria do centro. E estou indo bem, embo­ra o ordenado seja deste tamanhinho...

— Puxa, estou contente!

— Alguém me procurou?

— Ninguém... Ah, aquele cara esteve aqui.

— Silvano?

— Não, o outro. Mas não fez perguntas, só veio dar uma espiada.

— Será da polícia?

— Não sei.

— Como é mesmo o cara?

— Moreno, baixo, troncudo... E tem uma mancha preta no rosto.

— Não imagino quem seja.

— Sábado você trabalha?

— Só até a uma hora.

— Então vamos nos ver no sábado.

— Feito.

— Eu ligo pra pensão. Até!

Em seguida, Toni ligou para a mãe, em Vila Gran­de. Divina, que atendeu ao telefonema, reconheceu-lhe a voz e chamou dona Amélia depressa. Divina era a úni­ca pessoa em sua casa e na cidade com quem dona Amélia confidenciava.

— Toni, como está?

— Estou bem, mãe. Trabalhando numa livraria.

— E como está de saúde?

— Nunca estive melhor.

— Silvano encontrou você?

— Não, mãe, nem vai encontrar. Ele não voltou a Vila Grande?

— Não ainda. E Antero não tem comentado sua de­mora. Toni... O que foi que aconteceu? Lemos no jornal sobre a prisão de um amigo seu, daquele bar. Silvano e Antero pensam que você está envolvido.

— Deixe que pensem.

— Você não está mesmo implicado, filho?

— Esse Juliano era mesmo um ladrão de carros. Mas eu não sabia. Ele foi preso, você sabe, mas comigo não houve nada. Aliás, a polícia nem soube de mim.

— Era no apartamento dele que você morava?

— Era.

— E não sabia desses roubos?

— O jornal disse que ele agia sozinho. E era verda­de. Guardava o maior segredo.

— Mas não há perigo de ele dizer seu nome à polícia?

— Acho que Juliano não faria isso. Além do mais, nem ele nem ninguém no Paradise sabe meu nome com­pleto. A não ser que Silvano me delate.

— Silvano foi a São Paulo para trazer você de volta. Antero teme algum escândalo. Como homem de negócios que é não gosta de complicações com a polícia.

— Mãe, vou desligar. As ligações interurbanas são caras. Outro dia ligo de novo.

— Toni, se quiser que eu vá encontrá-lo, se precisa de mim a seu lado...

— Que idéia, mãe! Como disse, estou bem. Tudo is­so vai passar. Não sei como ou quando, mas vai passar.

Toni desligou. O telefone e os pensamentos. Precisa­va de muito sono e repouso. Mas, no dia seguinte, outra vez, atravessando uma galeria, rumo ao emprego, teve a impressão de que o observavam. Apressou os passos. Mais tarde, olhou para trás. Não viu ninguém.

 

               0 PASSADO AINDA NÃO PASSOU TOTALMENTE

Toni gostava de se ver entre os livros em seu novo emprego. À hora do almoço, sempre lia, readquirindo o antigo hábito. Assim, podia aconselhar bons livros aos fregueses, o que poucos balconistas sabem fazer. E lhe deram licença de ler na pensão os livros usados. Esse era seu divertimento além dos freqüentes encontros com Vir­gínia, marcados em lanchonetes e portas de cinema. Ela adorava filmes e não queria perder os mais comentados. Com Virgínia ele aprendeu a apreciar os melhores direto­res e a distinguir o estilo de alguns. Ela o ensinou a ver com mais profundidade uma arte que até então julgava mero entretenimento.

Certa tarde, numa lanchonete, meio assustada, Virgí­nia disse a Toni:

— Acho que ando sendo seguida.

— Seguida? Por quem?

— Por aquele rapaz baixo, troncudo, que apareceu no Paradise procurando por você.

— Eu também tive essa impressão mais de uma vez — disse Toni. — Mas não deu para observar como era essa pessoa. Duma coisa, porém, podemos ter certeza: é a mim que procura. Segue você para me localizar.

Virgínia admitiu que sim. Muito nervosa.

— Deve ser um tira.

— Só pode ser. Ou então...

— Então o quê?

— Um detetive particular.

— Detetive particular?

— Que Silvano tenha contratado pra me descobrir.

— Ele faria isso? — disse Virgínia.

— Não consigo ver outra hipótese: ou é um tira ou alguém a serviço de Silvano. Mas sendo um ou outro, te­nha muita atenção quando vier me encontrar. Olhe dos lados. Não siga sempre pelo mesmo caminho. E nunca diga a ninguém que temos nos encontrado.

— Já venho tomando essas providências. Mas é estra­nho, não?

— O que é estranho?

— Que seu padrasto tenha tanto empenho em locali­zar você. Será por insistência de sua mãe?

— Por insistência dela, não — respondeu Toni. — Ela agora até prefere que eu não volte. Não quer me ver humilhado. Ele e Silvano agem assim por medo de que eu me meta em confusões e prejudique o bom nome da empresa.

Virgínia não concordava totalmente com a explicação.

— Se a empresa dele tem bom nome, por que temer tanto assim? Não acha exagero?

— Acho, sim, mas meu padrasto é um teimoso, des­ses que quando se aferram a uma idéia não largam mais. Ele me quer amarrado a Vila Grande e pronto.

Virgínia respirou fundo:

— Vamos esquecer esses dois, senão estragamos o passeio. Onde iremos depois da lanchonete?

— Escolha.

— Há um teatro baratinho aí perto, e a peça parece boa. Vamos, pra variar um pouco?

Toni pediu a conta e imediatamente dirigiu-se com Virgínia ao teatro. Assistiram a uma peça teatral diverti­da, dessas que agradam em cheio. Mas em nenhum mo­mento o rapaz deixou de pensar no homem baixo e tron­cudo que o seguia e de imaginar a serviço de quem o fa­zia. O passado, que desejava esquecer, não passara total­mente.

 

                         ALGUÉM QUE CHEGA FELIZ

Dona Amélia andava levando uma vida tensa, insu­portável. Seu único prazer consistia nos telefonemas, ra­ros, do filho. Com o marido falava pouco, apenas o sufi­ciente. E se falassem era para se atritarem, pois o nome de Toni sempre vinha à baila. Essas brigas terminavam comumente com as mesmas palavras.

— Por que não esquece Toni duma vez? Deixe-o fi­car em São Paulo que tudo acabará bem.

— Depois das confusões que criou? Primeiro com o tio, um salafrário, depois com um amigo, puxador de car­ros. Se prosseguir nesse caminho, logo a polícia estará aqui.

Dona Amélia, como Virgínia, tinha a mesma estra­nheza.

— E no que isso poderia prejudicar a empresa? Não entendo tanto receio. Pode explicar?

Antero não explicava nada. O desejo de ver o entea­do de volta parecia obsessão pura, sem motivos evidentes. O fato é que essas contendas, mesmo breves, separavam ainda mais os dois.

Enquanto isso, dona Amélia e Divina ficavam mais amigas. Certa vez, a mãe de Toni revelou seus planos:

— Sabe o que acabo fazendo? Indo embora para São Paulo viver com meu filho.

— Seu Antero não vai permitir isso.

— E terei de pedir autorização? Vou embora simples­mente.

Divina, aproximando seu corpanzil, ponderava:

— Dona Amélia, a senhora não devia se precipitar. Tem todo conforto aqui, uma casa tão boa...

Dona Amélia deu-lhe razão quanto à precipitação. Mas uma bela casa, conforto, um guarda-roupa farto já não significavam muito para ela. Com José não tivera na­da disso, porém, comparando uma vida a outra, concluía que fora mais feliz na modéstia do primeiro casamento.

— Não vou me decidir agora porque não sei onde Toni está. Mas já não sinto apego por nada nesta casa.

Depois de se demorar uns quinze dias em São Paulo, Silvano voltou todo descontraído, sorridente, mais se­nhor de si do que nunca.

— Viu Toni?

— Não, dona Amélia. Acabei perdendo a pista dele. Por mim deixava tudo como está.

E mais tarde repetiu isso para o pai, quando os três jantavam.

— Mas não podemos deixar aquele moleque se alian­do com ladrões. Quer que nos destrua?

Silvano já não parecia interessado no retorno do meio-irmão.

— Dei meus passos, mas não o localizei. Se Raquel souber de alguma coisa, me informará.

Dona Amélia olhou para o enteado cheia de descon­fiança.

— Viu Raquel muitas vezes?

Silvano ficou embaraçado, deixou que a pergunta afun­dasse numa pausa, mas, alinhando os ombros, pondo-se muito firme na cadeira, buscando o olho a olho, declarou:

— Nós ficamos muito amigos. Mais que isso, até...

— Estão namorando? — perguntou o pai.

— Estamos. — E voltando-se para a madrasta, expli­cativo: — Não desejei passar Toni pra trás. Nem ela. A gente se viu e um gostou do outro. Raquel tem inclusive muita pena de Toni...

Dona Amélia reagiu, ofendida, ruborizada:

— Ela não precisa ter pena do meu filho. Que guar­de sua compaixão para outro.

— Está certo — disse Silvano. — Retiro a palavra pena. Mas ela foi até delicada perto do que sentiu real­mente. Sabe o que ela sentiu? Vergonha. Vergonha por ter namorado um rapaz que só lhe disse mentiras e que sé envolveu com marginais.

Dona Amélia quis rebater, mas falou apenas como mãe:

— Toni não é ladrão, é um rapaz direito, ele foi en­ganado, só isso.

Antero tratou de desviar a conversa, falando de seus caminhões, perguntando ao filho se vira os últimos pre­ços na capital. Silvano logo quis provar que não viajara apenas para namorar.

— Vi, sim, pai. Estão custando uma fortuna. Acho que não vai dar para aumentar nossa frota. Trouxe comi­go uma relação de preços. Quer ver?

— Comprarei caminhões usados. Foi assim que fiz a transportadora.

Dona Amélia afastou seu prato e recusou a sobreme­sa que Divina lhe oferecia. Voltou para o quarto. Pobre Toni! Raquel namorava agora a pessoa que o filho prova­velmente menos apreciava. Fatos assim, temia, poderiam acabar fazendo de Toni um revoltado, quem sabe um res­sentido. Então...

 

                       UM SUSTO MAIOR QUE O DIA

Toni, supondo que o tio já estivesse em liberdade, voltou ao edifício onde haviam morado. Estava disposto, inclusive, a procurá-lo pelos salões de sinuca, caso não obtivesse notícias. Esse esforço não foi necessário. O zela­dor do prédio estava bem informado sobre Waldo.

— Ele continua residindo na Detenção...

— Tem certeza?

— Conversei outro dia com um colega dele, amigo de trapaças no salão. Disse que Waldo andou engessado muito tempo por causa da surra. E ainda anda meio que­brado. Mas continua em cana devido a outros casos.

Toni agradeceu e afastou-se. Na pensão, depois de contar o que restava do dinheiro que Juliano lhe dera, re­tirou algumas cédulas e enfiou-as dentro de um envelope. A tarde telefonou para diversas delegacias para localizar o tio. Obtendo a informação desejada, selou o envelope e naturalmente sem escrever nome e endereço do reme­tente — endereçou-o ao tio, com um alô num pedaço de papel: “Um presentinho do ex-parceiro”.

Realmente Toni andava com saudade do malandro tio Waldo. Com pouca gente para conversar, perdido na cidade, lembrava-se muito dele e até ria das suas patia­ções e calotes. Tinha certeza de que mesmo se vivesse cem anos não o esqueceria. E se um dia chegasse a ficar bem na vida, retiraria o tio da cadeia e lhe daria um teto com uma mesa de snoocker para ele jogar enquanto pudesse segurar um taco.

Toni, feliz pelo seu gesto, trabalhou aquela tarde com bastante desenvoltura na livraria, sempre recebendo os fregueses com um sorriso. Além do mais, teria outro en­contro com Virgínia à noite.

— Que livro policial você me aconselha?

Toni viu a seu lado um homem de pouco mais de trin­ta anos, baixo e troncudo. Tinha uma mancha escura do tamanho de uma moeda na face esquerda. Vestia-se um tanto à antiga, com camisa de colarinho e gravata.

— Temos muitos — disse Toni.

— Queria um sobre puxadores, ladrões de automó­veis — acrescentou o freguês em voz baixa, como se fos­se uma preferência sigilosa.

Então Toni percebeu de quem se tratava: o homem baixo e troncudo...

 

                           0 HOMEM DA MANCHA PRETA

Toni procurou controlar-se não respondendo imedia­tamente, fingindo lembrar-se de um livro sobre ladrões de carros. A voz não tremeu, firme:

— Sobre esse tema não temos nenhum.

O homem da mancha preta continuou em tom baixo:

— Será que não tem mesmo, Toni?

Toni não pôde camuflar a surpresa.

— Sabe meu nome?

— Precisamos conversar — disse o outro. — Não aqui, que você tem de trabalhar. Prefere na pensão? Bom, conheço um bar aqui perto também...

— Mora lá na pensão? — perguntou Toni, ciente de que a resposta não seria afirmativa.

— Não, Toni, apenas sei onde mora. Tenho segui­do você por causa de um assunto de seu interesse. Quer que passe às sete? E quando termina seu horário, não?

— Está certo — concordou Toni.

— Mas não saia antes, nada de bancar o esperto. Como disse, o assunto lhe interessa. Até mais tarde!

Toni ficou vendo o homem da mancha preta no ros­to sair da livraria, calmo, no passo natural de qualquer freguês. Quem seria ele? Se fosse alguém da polícia certa­mente não marcaria encontro. E como agiria um deteti­ve particular contratado por Silvano? Havia ainda outra hipótese, não aventada: a de alguém que sabendo de seu relacionamento com Juliano desejasse chantageá-lo. Mas chantagear um modesto funcionário de livraria? A não ser que o homem pretendesse que Toni roubasse a caixa, não muito gorda, do estabelecimento.

O resto daquele dia foi febril e angustiante para To­ni. Os outros balconistas perceberam seu estado e pergun­taram-lhe se estava doente. Disse que sim. O gerente, amigável, propôs dispensa, se quisesse.

— Apenas um resfriado — explicou Toni.

Não adiantaria fugir do encontro. Precisava saber quem era o homem da mancha preta e o que pretendia.

Pouco antes das sete o homem reapareceu na livraria. Fingiu procurar um livro.

— Já posso ir — disse-lhe Toni.

Ambos saíram, sem palavras, e, cem metros além, pararam à porta de um edifício.

— O bar que falei é aqui — disse o homem da man­cha preta. — Fica no primeiro andar. Podemos ir pelas escadas. É pouco freqüentado, poderemos conversar à vontade.

A porta do bar havia um neon verde, imitando letras manuscritas, com o nome do estabelecimento, After Seven-Pub. Um tanto escuro, todo dividido por placas de treliça, formando discretos casulos para fregueses que preferiam não ser vistos, o bar tinha um aspecto agradá­vel. O som morno de músicas dolentes fora graduado pa­ra não perturbar o papo dos poucos fregueses.

— Gosto daqui — disse o homem da mancha preta.

Mal se acomodaram, Toni perguntou:

— Quem é você?

— Pode me chamar de Borges. O que quer beber?

— Nada.

— Eu tomarei um conhaque — disse o outro, já fa­zendo um sinal para o garçom. Fez o pedido e em segui­da acendeu um cigarro. — Não há muitos bares tranqüi­los como este. Aqui se fazem bons negócios.

— Vamos logo ao assunto — pediu Toni.

— Espere o conhaque.

— Você é da policia?

— Já trabalhei na polícia, faz tempo.

— É detetive particular?

Veio o conhaque. Ele Toniou um gole.

— Se sou detetive particular? Não.

— Você me conhece de onde? — perguntou Toni, começando a irritar-se.

— Não conheço você de nenhum lugar. Apenas te­mos um amigo em comum. Um belo sujeito.

— Que amigo?

— O hilário Juliano Boa-Pinta! Que tipo!

— Juliano?

— Mas não se preocupe. Ele falou muito bem de vo­cê. Juliano não perde tempo com pessoas que não merecem.

— Juliano, pelo que sei, está preso.

— Está, sim. Acho que vai pegar alguns anos. Nos encontramos na cadeia.

— Esteve preso também?

— Quando ele entrava, eu saía. Mas esse conhaque está bom mesmo. Não quer um?

— Não — respondeu Toni com firmeza. — Juliano lhe falou de mim?

Borges fez sinal ao garçom pedindo outro conhaque.

— Não vou me embriagar — garantiu. — Sempre paro no segundo. Profissional que se preza não pode be­ber demais. Juliano fez-lhe os maiores elogios. Disse que um tipo como você não se encontra sobrando por aí.

Toni tomou uma atitude defensiva.

— Eu nem sabia da vida de Juliano... Pensei que fos­se apenas barman.

— Ele me disse tudo sobre você, inclusive que andou metido com patiadores de sinuca.

Toni lembrou-se que contara a Juliano, superficialmente, o entrevero com a gangue do Turcão, sem mencio­nar o tio como um dos personagens.

— Isso foi puro acidente, não estava envolvido.

— Essa é a técnica: negar tudo sempre.

Toni esperou que o garçom servisse a segunda dose de conhaque para Borges e perguntou:

— Mas o que quer comigo? Por que me tem seguido?

— Para lhe propor um negócio.

— Trabalho como balconista e estou satisfeito.

— Um cara esperto como você não pode se dar por satisfeito vendendo livros. Até já tentou o golpe do baú namorando uma ricaça, não?

Com que intenção Juliano contara a Borges toda a sua vida?

— Eu gostava dela de verdade, não havia golpe al­gum. O que mais lhe disse Juliano?

— Que posso confiar em você.

— Confiar pra quê?

— Me encomendaram um serviço muito rendoso e vou precisar de um parceiro.

Toni fechou a cara:

— Acho que escolheu o parceiro errado.

— Você negaria um favor ao seu amigo Juliano? Ele lhe deu emprego, casa e comida, emprestou-lhe carros e deu-lhe também um monte de dinheiro. Chegou o momen­to de você reembolsá-lo.

— Nunca lhe pedi nada.

—Nem foi preciso. Ele tem um grande coração.

Toni fez menção de levantar-se.

— Não estou interessado. Esse não é o meu ofício. Acho que a conversa acaba aqui.

Dessa vez, o semblante de Borges se modificou. Per­deu o ar sociável. Ficou duro.

— Juliano vai precisar de dinheiro para pagar advo­gado e você vai ajudá-lo.

Toni decidiu testar a ameaça:

— E se eu me recusar?

— Juliano dirá à polícia que trabalhava em dupla. Você vai se complicar. — Borges partiu para a segunda parte, a complementação da ameaça: — E não adiantará desaparecer da livraria e da pensão. A polícia irá atrás de você.

Toni, em vez de se amedrontar, cresceu, falou alto:

— Mas por que eu? Por que não convida outro? Al­guém que seja do ramo, com experiência?

— Quem lembrou seu nome foi Juliano. Justamente porque nunca esteve preso, tem a barra limpa, pinta de rapaz que teve berço. Bandido com cara de bandido aza­ra os negócios. Além do mais, você tem um probleminha com a família, não tem? Fugiu e não quis voltar lamben­do os pés de ninguém. Pois essa é a oportunidade de er­guer o queixo, dar a volta por cima. E isso, como se faz? Com dinheiro, não? Com muita gaita.

— Volto a dizer que não me interessa.

— Garanto que não vai ser uma longa associação. Preciso de você apenas para uma jogada. Como disse, saí da cadeia e estou desenturmado. Além do mais, não quero vivaldino comigo, gente já manjada e que acaba sempre aprontando. Mas vamos ao principal. Trata-se duma encomenda. A gente pega, entrega e recebe.

— Nem quero saber...

— Serviço limpo, fácil. O freguês é bom. Trabalhei pra ele noutros tempos. Paga o que ficou combinado.

— Está louco se espera poder contar comigo.

O homem da mancha preta mudou o tom de voz, agora soturno:

— Você é que está louco se pensa escapar do compromisso.

— Disse compromisso?

Borges continuou soturno, fixando Toni nos olhos.

— Quer que seu amigo Juliano se trumbique na ca­deia, fique mofando lá? Depois de tudo o que recebeu dele? Em nosso meio temos ética, garoto. Ajuda se paga com ajuda. Você está devendo. É sua vez de pagar.

— Mas não sou do ramo, Juliano não lhe disse isso? Morro de medo só em pensar.

— Esses que são dos bons, os que têm medo, respon­sabilidade. Os corajosos, de peito aberto, são todos dé­beis, xaropes. Nunca topei com um que tivesse a cabeça no lugar.

— Pode ter razão — disse Toni, — mas não entro nessa.

Borges fez uma pausa em que consumiu o que resta­va da dose de conhaque e disse à queima-roupa:

— Então vou te dedurar, boy.

— O que quer dizer com isso?

— Dar sua pista à polícia. Sei onde trabalha e onde mora. A gente sempre dá um jeito com aqueles que se re­cusam a cooperar. Pode ir, chapinha. O caminho está livre.

Toni não se ergueu da cadeira.

— Fale com Juliano, ele vai compreender.

— Vai é ficar danado com você, isso sim. Afinal quem me pôs na sua pista foi ele.

— Não adianta me dedurar. Eu desapareço e a polí­cia não sabe meu nome.

— Isso é verdade, não sabe. Mas não vai ser difícil pra ela encontrar sua família no interior. Como chama mesmo sua cidade? Vila Grande, não é? Pois então...

Toni percebeu que estava cercado.

— Disse que é um negócio só?

— Se gostar terá mais. Mas basta apenas um para pagar sua dívida. E dá tempo para que eu me enturme de novo. Ao contrário de Juliano, não sei agir sozinho. Me saio melhor em dupla. O chato é quando o outro é esperto demais. Mas você não fará isso, tem o rabo preso.

Toni ainda procurava livrar-se de Borges.

— Eu não iria ajudar muito.

— Iria, sim. Tem pinta de garoto de bem e sem ne­nhuma passagem pela polícia. E pelo que disse Juliano, tem uma cabecinha privilegiada, aprende tudo depressa, diferente desses miolos-moles, destrambelhados, que an­dam por aí.

O plano poderia ter um furo e então seria mais fácil escapar. Toni perguntou:

— O que pretende fazer? Não entendi bem.

— Como disse, o serviço é simples. O nosso trabalho será apenas o de pegar o carro, cair na estrada e entregar. Depois, dividimos a bolada em três, uma parte de Julia­no. Aí você fica desobrigado com ele. Paga sua dívida. E só continua no negócio se quiser.

— Se tudo é tão simples, por que precisa de mim? Sozinho lucraria mais.

— Como disse, gosto de trabalhar com um parceiro. Mas tem um outro motivo... Sou muito bom para abrir uma porta de carro, fazer ligação direta... Mas à noite, numa estrada, não sei se poderia guiar. Ninguém é perfei­to. E eu não vejo muito de longe. No escuro, então, sou totalmente cego. Está entendendo melhor agora? Eu en­tro com o tato, para abrir a porta e ligar fios, você com os olhos...

Toni ficou pensativo. O outro fez silêncio à espera do sim.

— Então é só isso?

— Os bons negócios são simples. Os complicados me assustam. Tudo não passará dum passeio por uma ro­dovia. Cem quilômetros no asfalto, é logo ali.

Toni pensava apenas em se livrar daquela situação. O jeito talvez seria passando por ela.

— Se for só uma vez...

— Depois do primeiro negócio está livre. Olhe, aguar­de minha visita na livraria. Antes preciso duma confirma­ção do patrão. Agora, se quiser, pode ir. Os detalhes, fi­cará sabendo depois.

Toni levantou-se e mais que depressa saiu do bar. Alimentava uma vaga esperança: de que o tal patrão de Borges desistisse do plano ou que Borges fosse preso an­tes de aparecer na livraria. Estava deprimido.

 

                   0 MEDO ÀS VEZES APROXIMA AS PESSOAS

Aquela noite Toni tinha um encontro com Virgínia. Falaria ou não de Borges para ela? Decidiu que não. Se falasse, teria de ser por inteiro, incluindo a participação que teria no assalto. Não desejava também que ela sofres­se com seus problemas. Esperou ansiosamente pelo mo­mento do encontro porque não queria estar só. Necessita­va da companhia de alguém, de esquecer por algumas ho­ras ao menos aquele impasse todo.

Virgínia compareceu à hora marcada. Ao contrário de Raquel, nunca o fazia esperar.

— Onde vamos? — ela perguntou.

— Você que faz o programa — respondeu Toni.

— Hoje estou sem tempo. Preciso estudar. Vamos a uma lanchonete e só.

Toni preferiu assim: num cinema ou teatro não con­seguiria concentrar-se. Foram à lanchonete de sempre.

Logo Virgínia fez a pergunta temida:

— Tem visto aquele tipo?

— Não.

— Pode ser que tenha sumido pra sempre.

— Pode ser — Toni fingiu admitir.

Embora Virgínia falasse muito, contasse muita coi­sa, Toni não se mostrava bom ouvinte. Continuava ten­so, vendo Borges em toda parte. E uma dúvida persisten­te o torturava: ele o deixaria realmente em paz depois do roubo?

— Você está bem mesmo? — perguntou Virgínia. — Parece com o pensamento longe.

— Impressão sua. Estou bem.

Virgínia, talvez por não se convencer disso, decidiu voltar mais cedo para casa. Toni acompanhou-a, desejo­so mesmo de estar só. Já que não podia dividir com ela sua angústia, o que lhe adiantava a companhia de Virgínia?

Chegando à pensão, decidiu telefonar para Vila Gran­de. Mas interrompeu a ligação antes de ser completada. A voz de sua mãe seria tão inútil como fora a presença de Virgínia. Enfiou-se na cama para dormir, porém aque­la seria sua mais longa noite de insônia.

 

                           AREIAS MOVEDIÇAS

Toni movimentava-se na livraria com os olhos na porta, à espera de que Borges entrasse a qualquer momen­to. Mas ele não apareceu no período da manhã nem no da tarde. No dia seguinte também não. Toni começou a ter esperanças de que Borges desistira do plano, ou que por algum motivo fora preso ou tivera de fugir da cida­de. Teve então a idéia de mudar de endereço e largar o emprego. Firmou-se nessa idéia e passou a procurar outra pensão.

— Olá, sócio!

Toni voltou-se: era Borges que entrara na livraria sem que ele visse.

— Não posso conversar agora — disse Toni.

— Espero no bar no fim do expediente. Já está tu­do combinado.

Toni foi dizer qualquer coisa, mas não teve tempo:

Borges afastava-se, ligeiro. Pensou em abandonar a livra­ria naquele momento, fugir. Mas, se o fizesse, Juliano o denunciaria, por vingança. Não havia saída: teria mes­mo de encontrar-se com Borges no bar.

Cumprido seu horário de trabalho, Toni foi ao After Seven. Borges não estava lá. Outra vez o imaginou deti­do, o que seria sua salvação. Pediu um refrigerante. Tomou-o todo e Borges não vinha. Se demorasse mais al­guns minutos não o esperaria mais. Já se dispunha a le­vantar-se quando Borges entrou. Viu Toni e foi sentar-se à sua mesa.

— Desculpe a demora — disse. E depois de fazer si­nal ao garçom: — Vai ser amanhã. Já escolhi a presa e sei onde costuma ser deixada.

— Não vai lucrar nada me incluindo nisso.

— Sei o que faço. Mas se acalme, chapinha. Você vai apenas dirigir. A noite, numa estrada, sou o pior mo­torista do mundo.

— Repito que é só dessa vez.

— Vamos nos encontrar na esquina de sua pensão às oito. De lá iremos ao lugar onde costumam deixar o carro. Depois, a gente pega a estrada. É bom não marcar nenhum compromisso para amanhã. A gente nunca sabe quando volta.

— Iremos até onde?

— Um pouco além de Campinas. Olhe, é bom não fazer muitas perguntas. Estou te prevenindo. Há gente graúda metida nisso, que ninguém suspeita. E se quer sa­ber, eu não sei nem se Juliano sabe quem são os caras, os mandões.

— Não estou querendo saber nada.

— Melhor assim. Nesse negócio não interessam no­mes. Isto é problema para a polícia.

Toni não suportava a presença de Borges por muito tempo. Seus nervos o repeliam. Levantou-se.

—    Tem mais — disse o homem da mancha preta em tom frio de advertência. — Nenhuma palavra para aquela garota, a do Paradise. Mulher não sabe guardar segredo, aprenda.

Toni saiu do bar tonto, sem rumo. Ficou a vagar pe­las ruas centrais, imaginando que só o esperto tio Waldo, experiente, poderia aconselhá-lo naquela situação. Mas tio Waldo estava preso. Desde que chegara à capital, cheio de ilusões, nunca se sentira tão sozinho. Parecia que o mundo estava coberto por uma grande nuvem pre­ta. Um mundo soturno, sem luz. Lembrou-se da imagem dum filme: um homem se afundando em areias movedi­ças. Era essa sua sensação.

 

                   0 BURACO NO TEMPO

O que houve foi um buraco no tempo. Já era o dia seguinte e a hora de Toni encontrar-se com o homem da mancha preta na esquina da pensão. O rapaz saiu à rua como se estivesse a caminho da cadeira elétrica. Não viu ninguém. Novamente a esperança de que Borges não apa­recesse. Breve ilusão.

Um carro estacionou na esquina.

— Entre, Toni!

Ele entrou meio de lado, sem conseguir ajeitar-se no assento. Borges percebeu seu mal-estar.

— Relaxe, boy.

— Este carro é seu?

— Roubei para este trabalho. Depois a gente larga em qualquer lugar.

— Pra onde estamos indo?

— Periferia. Conheço bem o local. Não dormi esse tempo todo. Estive de olho na presa. Sei onde vamos pôr a mão.

Borges dirigia mal, pressionando os olhos como se enxergasse com dificuldade. Precisava mesmo de um mo­torista, principalmente na estrada. Não houve papo duran­te o trajeto. Borges dirigia concentrado, esforço que tor­nava seu rosto ainda mais sinistro. Vinte minutos mais tarde chegavam a uma vila industrial, pobre e deserta. A noite, de uma escuridão espessa, enfeiava ainda mais o lugar. Borges fez o carro circular por ruas estreitas e esbu­racadas. Alcançaram afinal uma praça minúscula, onde havia uma velha fábrica, os portões escancarados. Dian­te dela, vazios, dois caminhões estacionados.

— Você vai dirigir o maior — informou o puxador.

— Não sabia que se tratava de caminhões.

— Juliano disse que você dirige.

Realmente Toni dissera que era capaz de dirigir “a­té caminhões”, o que não era exato. Na ausência do pa­drasto, o que costumava fazer era manobrar caminhões de pequeno porte no pátio da transportadora. Nada mais que isso.

— Acho que Juliano o enganou mais uma vez.

Borges ignorou o comentário de Toni. Estacionou o carro e retirou um pano felpudo do porta-luvas. Depois, esfregou-o no volante.

— Nada de impressões digitais — disse. — Vamos descer.

— E o carro, fica aqui?

— Não precisamos mais dele. — E saindo: — Dê uma olhada na chapa. É de Goiânia. Isso confundirá a polícia. Andando.

Borges foi à frente. Um padre atravessava a praça. Borges sorriu para ele.

— Padreco simpático. Fui coroinha. — E fez uma careta de reprimenda. — Tire esse ar suspeito da cara. Quer atrair atenções?

Passaram por um casal de namorados. Um homem magro atravessou a praça levando um pão comprido de­baixo do braço. Seguiram até a esquina, Borges lento, sem pressa. Toni, a seu lado, não conseguia fazer movimen­tos naturais, eram todos duros, curtos, dirigidos. Pararam diante de uma tinturaria fechada.

— Quando a praça ficar limpa a gente se mexe. Mas eu vou na frente. Quando ouvir ruído de motor, da liga­ção direta, então você assume.

— Acho que não vai dar — disse Toni.

— Assim que aquele panaca virar a esquina, eu me vou.

Borges aproximou-se do caminhão lançando um olhar panorâmico pela praça. Abriu a porta, entrou na cabine muito alta e desapareceu dentro dela. Agia curvado para ligar o motor. Devia conhecer bem o ofício. Menos de um minuto depois Toni ouviu o ronco possante do motor. Borges completara a ligação direta. Agora era sua vez. Mas não se mexeu.

O padre voltava. Era desses tipos que embora bona­chões são atentos a tudo. Quase não andava, flutuava len­tamente. Parou bem diante do caminhão, O jeito era de quem esquecera alguma coisa. Um cão vagabundo foi chei­rá-lo e ele ficou coçando-lhe a cabeça. Toni temeu que ele notasse o funcionamento do motor do caminhão sem que visse alguém à cabine. Há pessoas que observam tu­do. O rosto de Borges apareceu. Após um século de um minuto o padre seguiu o seu caminho.

Toni viu Borges acenando e seguiu até o caminhão. Mas não entrou na cabine. Vinha uma mulher de meia-idade, que caminhava olhando para o chão. Esperou-a passar. Depois abriu a porta e subiu para a cabine. Bor­ges recuara, cedendo-lhe o lugar. Sentiu-se num plano ele­vado, como se olhasse a praça do segundo andar de um edifício.

— Por que demorou, paspalho?

— Não viu o padre?

— Vamos sair logo daqui! Engate a marcha! — orde­nou Borges.

Mas Toni encontrou dificuldade, O nervosismo atra­palhava tudo. Engatou a marcha e o caminhão movimen­tou-se, pesadão, bufando. A primeira curva, fechada, quase o arremete contra um poste. O padre cruzou a rua diante deles como uma imagem que os perseguisse.

— Calma, boy, calma — dizia Borges.

— Não sou puxador de caminhões.

— Vai se dar melhor na estrada. Vire à direita. E na­da de furar sinal vermelho.

Toni respirava forte, tentando governar suas ações. Viu um retrato de criança no painel: “Boa viagem, pa­pai”. Outra imagem que se fixava aos seus olhos como a do padre. Já lera que nos momentos de tensão peque­nos detalhes se apegam à percepção como vespas. O me­nino da foto era louro e segurava um chocalho. Borges fingia que não, mas se preocupava com as barbeiragens do parceiro.

— Calma, boy...

— Nunca dirigi caminhão. Você que me meteu nessa.

— Um pouco de música te fará bem — disse o ho­mem, ligando o rádio. Era uma música romântica, arras­tada, que cantava um amor perdido. Borges procurou ou­tra. Sintonizou um rock. Acabou mudando de idéia. Des­ligou.

Toni dirigia curvado sobre o volante, temendo que um motorista de sua idade despertasse suspeitas. Ansia­va por um refrigerante gelado. Não apenas sua boca, to­do o seu corpo estava seco. E morria de calor.

— Até agora tudo bem, boy. Você já está domando este rinoceronte. Sinal vermelho, vá brecando.

Um guarda de trânsito, postado no meio da avenida, olhou fixo para o caminhão.

— E agora? — quis saber Toni.

— Não olhe pra ele. Relaxe... Agora vá saindo devagar.

Não foi desta vez.

— Estamos longe da estrada?

— Indo pela direita, a gente chega logo. Lá é só pi­sar no acelerador e mais nada.

Toni só ouvia palavras, sons. O pensamento voltara-se para sua mãe, em Vila Grande, e para Virgínia. Temia mais o julgamento delas que o da própria Justiça. Viu-se no parlatório de um presídio tentando explicar a elas como caíra naquela armadilha.

— A estrada — anunciou Borges.

 

                         UM INTERURBANO PARA VILA GRANDE

Dona Amélia passava pelo living quando tocou o te­lefone, Interurbano. Ouviu uma voz jovem, de moça.

— É da casa de Silvano?

— Sim, mas ele está na transportadora.

— Ligo à noite. Diga que Raquel telefonou.

Por uma antena invisível, dona Amélia captou o ódio ou ressentimento do filho. Não pôde silenciar.

— Aqui é a mãe de Toni — disse.

— Ah, a mãe de Toni? Muito prazer. Ele... está bem?

— Acha que poderia estar?

— Minha senhora, eu não tive culpa.

— Como não te...

— Eu gostava dele. Quer saber? Gostava muito. Que­ria me casar com ele. Mamãe e papai também gostavam. Mas ele me enganou... Disse que vendia carros, quando na verdade roubava.

— Isso não é verdade, menina. Meu filho não rou­bou carro algum. Quem roubava era aquele rapaz do bar.

— Ora, dona, dona...

— Ele foi ludibriado! É um rapaz muito honesto!

— Eu sei que para uma mãe é duro admitir que o fi­lho rouba. Entendo isso. E posso até estar enganada. Mas não quero mais saber dele.

— Ouça, menina...

— Nem o nome dele quero ouvir. Ele me fez sofrer muito. Pode imaginar como fiquei diante de meus pais? Chorei um dia inteiro.

— Garanto que meu filho...

— A senhora não estava com ele em São Paulo e não sabia o que ele andava fazendo. Mas não quero falar mais disso. Está tudo acabado. E não esqueça de dizer a Silvano que liguei. Boa tarde!

Raquel bateu o fone. Dona Amélia ficou com o tele­fone ainda mais tempo. Disse:

— Toni não é ladrão, menina...

Dona Amélia só despertou ao ouvir a voz do marido. Vou fazer uma pequena viagem. Negócios. Preci­sa de alguma coisa?

— Não, obrigada.

— Volto amanhã ou depois.

Como de outras vezes não houve abraços de despedi­da. Ele simplesmente pegou sua maleta e saiu. Já nenhum sentimento restava entre os dois. E dona Amélia não la­mentava. Aguardava apenas um telefonema de Toni pa­ra tomar uma grande decisão em sua vida. Por que ele não ligava? Onde estaria?

 

                                     A ESTRADA

A noite caía sobre a estrada como um cobertor felpu­do. Apenas dez metros de seu leito eram visíveis sob o ja­to frio dos faróis. Não havia vaga-lumes nem estrelas. Toni dirigia no mais completo sílêncio. Palavras não ame­nizariam seu drama. A seu lado, Borges fumava: ele era apenas uma brasa trêmula de cigarro na cabine.

Subitamente o homem voltou-se para trás.

— Parece que estamos sendo seguidos.

— O que?

— Vem um carro da policia aí. Pegue uma entrada, depressa, a primeira que aparecer — ordenou Borges, des­controlando-se.

— Não vai adiantar.

— Faça o que eu mando.

— Nos pegarão de qualquer maneira.

Borges segurou a direção.

— Entre por aí, entre...

Toni resistiu, mantendo-se na estrada.

O carro da polícia emparelhou com o caminhão, de­pois o ultrapassou. O rapaz e o homem da mancha pre­ta respiraram fundo.

— Você estava certo — admitiu Borges.

— Quase pôs tudo a perder.

— Dou a mão a palmatória, boy.

— Parece que não leva muito jeito pra essa profissão.

Borges riu:

— Meu sonho era ser locutor de rádio. Agora me diga: você está estreando mesmo? É marinheiro de pri­meira viagem?

— De primeira e de última. É bom pôr isso na cabeça.

Borges, impressionado com a segurança de Toni no caso do carro policial, comentou:

— Pena que pense assim. Eu, com esses olhos, preci­saria de um parceiro fixo. Ganharíamos pencas de dinheiro.

— Já estamos chegando a Campinas.

— Continue na estrada. Vamos uns dez quilômetros além. Até aqui foi moleza, não? E vai ser até o fim. Es­se é um negócio seguro. O mal de Juliano foi a ostenta­ção. Era incapaz de esconder os lucros. Vivia dando ban­deira, soltando foguetes. Estrepou-se.

Toni fixava a estrada. A cada quilômetro percorri­do aproximava-se o fim do pesadelo. Estava agora menos tenso e dirigindo mais solto. Já imaginava seu reencontro com Virgínia e o grande abraço que lhe daria. Quanto a Borges...

— Estamos chegando — disse o puxador. — Logo estaremos com o dinheiro no bolso, boy.

 

                       VIRGÍNIA: DÚVIDAS

Virgínia não tinha encontro marcado com Toni mas seu pensamento continuava fixo nele. Estava muito estra­nho no último encontro. Lembrando, parecia-lhe eviden­te que escondia alguma coisa. Se fosse algo banal, não o preocuparia tanto. Decidiu passar pela pensão.

— Como vai, dona Júlia?

Virgínia já morara na pensão e conhecia bem a pro­prietária, sua ex-confidente.

— Aquela gracinha do seu namorado não está — dis­se ela. — Saiu cedo. Foi passear com um amigo.

— Amigo? Que eu saiba ele não tem nenhum.

— Eu tinha ido ao supermercado e o vi entrar num carro.

— Viu o tal amigo?

— Vi e o reconheci porque esteve na pensão uma vez perguntando por Toni. É forte e tem uma mancha preta no rosto.

 

                     UMA OFICINA SUSPEITA

Toni dirigia agora por uma estrada estreita, não-as­faltada. A seu lado, Borges mantinha os olhos fixos na janela: não devia conhecer muito bem aquelas paragens.

— Entre nesse terreno — ordenou.

Toni fez o caminhão entrar num terreno espaçoso, dominado por uma casa de madeira, comprida e estreita, parcialmente iluminada. Alguns carros de marcas e por­tes diversos aglomeravam-se ao fundo. Viu alguns ho­mens vestindo macacões. Um enorme cão recebeu o veícu­lo latindo.

Um homem muito alto, também de macacão, aproxi­mou-se. O que chamou a atenção de Toni foi seu enor­me nariz.

— Você é o Borges? — perguntou.

— Borges sou eu — identificou-se o homem da man­cha preta, já descendo do caminhão.

Toni também desceu.

O narigudo pôs-se a examinar o produto do roubo, enquanto informava:

— Sou o Dino.

— Lembro de você — disse Borges. — Já estive aqui uma vez. Que tal o bicho?

— Parece em boas condições. Quem é seu amigo?

— Toni, um bom motorista. É de confiança, sosse­gue. Acha que o comprador vai aprovar?

— Bem, ele é exigente, mas espero que sim.

— Quando ele vem?

— Já éstá a caminho. Vamos lá pra dentro tomar uma cerveja.

Os três entraram na casa, uma construção precária, dividida em cômodos que ladeavam um comprido e escu­ro corredor. No fim, havia uma ampla cozinha. Dois ho­mens estavam lá.

— Estes são altamente especializados — apontou Dino. — Depois duma maquiagem, nem o próprio dono re­conhece o carro.

Os dois riram.

— A gente faz o que pode — disse um deles.

— Chegou um caminhãozinho — informou o narigu­do. — Vão lá dar uma olhada.

— Caminhão? — admirou-se um deles.

— E dos bons. — E explicou a Borges e Toni: — A polícia anda muito atenta nas estradas. Nós somos os úni­cos que estamos lidando com caminhões na região. É um risco maior, mas o lucro compensa. — Retirou uma cerveja da geladeira. — Não houve problema com vocês?

— Foi uma brincadeira — disse Borges.

— Foi mesmo? — Dino perguntou a Toni, que não respondeu. — Em dois dias espero maquiar o caminhão. É perigoso ficar com ele aqui. Os caminhoneiros andam se unindo... forçando a polícia.

— Então só você está trabalhando com caminhões?

— Por enquanto, sim, Borges. Quando a coisa aper­ta, só os mais peitudos permanecem.

Borges virou seu copo.

— Como estava precisando de um gole!

— Imagino — disse Dino. — Pena que pegaram o Juliano, não? Comprei alguns carros dele. Apenas servi­ço leve. Um tipo divertido.

— Ele facilitou — lamentou Borges. — A mania de ostentação!

— Vai ficar alguns anos fora de circulação.

— Fale do freguês — pediu Borges.

— Um velho conhecido. Já comprou uma dúzia. Mas ele não vai querer conhecer vocês. Cara importante.

— Paga na hora?

— Claro, e em dinheiro. Nesse ramo não se assina nada. Assinaturas já levaram muita gente para a cadeia. Beba, rapaz.

Toni tomou um gole de cerveja.

— Está nisso há muito tempo? — perguntou o nari­gudo.

— Não estou nisso — respondeu Toni, seco.

— É um amigo de Juliano — Borges apressou-se. — Não trabalha nisso habitualmente.

Pela janela os três viram a luz de faróis de um automóvel que entrava no terreno.

— É o freguês! — disse Dino. — Pontualidade britâ­nica. Dá gosto trabalhar com gente assim. Com licença. — E saiu.

Borges pegou outra cerveja na geladeira.

— Viu como é fácil? Agora é só receber e voltar pa­ra casa numa boa.

— A polícia nunca descobriu esse desmanche?

— Alguns policiais estão na folha de pagamento de Dino. Isto é uma empresa. Ele sabe lidar com todo mun­do. Um grande tipo.

Toni sentia-se mal ali. Tomou meio copo de cerveja. Sua impressão era de que a polícia poderia aparecer a qualquer momento. Como era possível àqueles homens viverem sob tal tensão constantemente? E vendo Dino, com sua cara e jeito de homem de negócios, quem diria que estava ali um intermediário da compra de carros rou­bados? Borges contou que muitas vezes Dino também com­prava os carros e os vendia. E que era proprietário até de fazendas na região.

— Uma pessoa que eu respeito.

— Respeito não é o sentimento que ele me inspira.

— Tem um filho que estuda no exterior, graças aos carros roubados. Mas não se admire muito, boy. Não é o único caso. Há muitos Dinos por aí.

Toni foi à janela e viu o pátio iluminado por uma lâmpada solitária, rodeada por uma nuvem circulante de insetos. Perto do caminhão algumas pessoas o examina­vam. Um homem bem-vestido, mais ao escuro, participa­va da vistoria.

Algum tempo depois Dino reaparecia na cozinha com ar satisfeito.

— Negócio aprovado. Vamos para o escritório.

O escritório, um cômodo contíguo à cozinha, tinha apenas uma escrivaninha, uma pequena estante e duas ca­deiras. Dino sentou-se e abriu uma gaveta.

— Fazia tempo que não via a cor do dinheiro — dis­se Borges.

— É a cor mais bela do mundo! — exclamou Dino, pondo sobre a escrivaninha um maço de notas. — Aqui está o pagamento. E sem desconto do imposto sobre a renda. Contem, por favor.

Toni nem se mexeu. Borges contou o dinheiro detida­mente.

— Confere — disse. — Vocês são honestos.

— Agora podem ir. Ramiro leva vocês pra Campi­nas. Certo?

— Certo — concordou Borges.

Depois Dino olhou seriamente para Toni.

— Você é novo no negócio, mas espero que não se­ja dos que abrem o bico. Você nunca esteve aqui, nunca ouviu falar deste lugar, não conhece nenhum Dino, não sabe de nada. Entendido?

Toni e Borges voltaram à cozinha para esperar o ho­mem que os levaria a Campinas.

— Vou lhe dar a sua parte — disse Borges.

— Que parte?

— Você não trabalhou, boy? Quem trabalha recebe.

— Dê minha parte a Juliano.

— Mas alguma coisa você pode levar. Quanto?

— Nada.

— Disse nada?

— Disse.

Um dos homens de macacão entrou na cozinha.

— Condução para Campinas! — anunciou.

Toni e Borges acompanharam Ramiro através do cor­redor e chegaram a uma das extremidades do pátio. Anda­ram até um velho jipe que os levaria a Campinas. Ao la­do estava estacionado um belo Mercedes, com certeza do comprador do caminhão. Toni olhou-o curiosamente.

— Vamos. Nunca viu um Mercedes? — perguntou Ramiro.

Claro, Toni já vira centenas. Inclusive um que tinha a mesma placa. Entrou no jipe.

 

                         VOLTA A VILA GRANDE

Ramiro deixou Toni e Borges na rodoviária de Cam­pinas. Tinha uma séria recomendação a fazer:

— Vocês conhecem o Dino — disse. — Se um dia forem apanhados e abrirem a boca... já aconteceu a ou­tros, devem saber.

— Não é preciso ameaçar — respondeu Borges. — Não conheço Dino algum a não ser um guarda do refor­matório.

— Assim está ótimo, maninho. E boa viagem.

Borges encaminhou-se ao guichê de passagens.

— Compre uma só — disse Toni.

— Não vai para São Paulo?

— Não.

— Vai pra onde?

— Visitar parentes a uns cem quilômetros daqui.

Borges comprou a passagem. Um ônibus estava de saida.

— Até outro dia — disse.

— Não haverá outro dia, Borges.

— Isso a gente resolve depois, boy.

Toni encrespou:

— Se me procurar outra vez, eu o denuncio à polícia.

— Bancando o valente?

— Estou prevenindo, Borges. O que tem a fazer é me esquecer. Saia do meu caminho.

Borges sorriu, mas era o sorriso dos derrotados.

— Você não é o único que dirige caminhões. Julia­no saberá que ganhou nota 10 de comportamento.

Assim que Borges entrou no ônibus, Toni foi ao gui­chê e comprou uma passagem para Vila Grande.

 

                       O REENCONTRO

Toni chegou a Vila Grande muito cedo. A pequena cidade estava envolta numa névoa gostosa. Àquela hora da manhã dona Amélia ainda estaria dormindo. Entrou numa leiteria para um copo de leite e pão com manteiga. Há tempos que não sentia sabores tão puros. Saiu da lei­teria, passou pelos colégios onde estudara, reviu a casa de Raquel e parou diante daquela, modesta, onde vivera quando seu pai estava vivo. Nem soube quanto tempo fi­cou a olhar para ela.

Chegou à quase-mansão do senhor Antero. Tocou a campainha do portão. Divina veio de dentro da casa e ao vê-lo se pôs a chorar sem abrir o portão.

— Toni... É o Toni! — exclamava como se quisesse convencer-se da realidade.

— Abra logo esse portão, Divina! Não quer me dar um abraço?

Divina abriu o portão com dificuldade e depois lhe estirou os braços. Desta vez, sentindo-a, Toni, sem espe­rar, deixou escapar uma lágrima, ele que não era chorão. Não imaginava que gostasse tanto daquela gorducha cheia de afeto.

— Você não avisou sua mãe?

— Surpresa não é melhor? Ela já levantou?

— Está na copa. Vamos.

Toni e Divina entraram na casa.

— Dona Amélia, veja quem chegou!

A mãe de Toni apareceu precipitadamente no corre­dor e voou em direção ao filho:

— Toni! Oh, Toni...

Não pode haver prazer maior que o de voltar para casa, pensou o rapaz ao abraçar a mãe, sob os olhares comovidos de Divina. Para prolongar aquela delícia jun­tou as duas num só abraço e beijou-as. Assim dava tem­po para dona Amélia, refazendo-se da surpresa, poder dizer alguma coisa além de “Toni! Toni!” Foi uma fes­ta a três toda feita de sorrisos e lágrimas.

— Você voltou para sempre? — perguntou Divina.

— Eu e mamãe vamos conversar sobre isso.

Divina enxugou as lágrimas na manga do vestido e disse:

— Vou fazer um belo almoço pra você. Conversem à vontade.

Dona Amélia conduziu o filho até um banco de pe­dra diante da piscina. Sentaram-se de mãos dadas.

— Ainda nem acredito que você voltou. Foram tem­pos difíceis pra mim.

— Minha vida também não foi nenhum mar de ro­sas. Mas vai melhorar. Seu Antero está viajando?

— Divina lhe contou?

— Supus, mãe.

— Viajou ontem, não sei pra onde. Nunca diz. To­ni, está disposto a ficar aqui? Decidiu voltar mesmo?

Toni apertou mais a mão de dona Amélia.

— Não, mãe. Voltei apenas pra uma visita.

Dona Amélia também tinha algo importante a dizer:

— Se for embora, iremos juntos.

— Mãe, deixar esta mansão, este conforto todo, por minha causa?

— Não é uma decisão momentânea. Ela já está toma­da. Pedirei divórcio.

Apesar da voz firme e resoluta que ouviu, Toni pon­derou:

— A vida na capital é muito cara. Não temos dinhei­ro pra dois.

— Eu trabalhava antes de casar com seu pai e traba­lhei depois que ele morreu. Além disso, fiz economias, empreguei dinheiro e tenho algumas jóias de valor.

— Coragem você tem.

— Só mudaria minha decisão se Antero também mu­dasse em relação a você. O que não me parece possível. — E preferindo trocar de assunto, perguntou: — Ainda tem sofrido por causa de Raquel?

— Raquel? Nem lembro que existe. Estou namoran­do uma moça muito melhor que ela. Chama-se Virgínia. Uma estudante que trabalha pra pagar os estudos. Mãe, estou apaixonado!

Dona Amélia gostou da novidade.

— É por isso que está com um aspecto tão bom!

— Será que estou? Com esse sono? Mamãe, queria dormir um pouco. Ainda tem um quarto pra mim?

— Claro! O seu quarto está como quando o deixou. Vamos.

Foram até o quarto. Toni emocionou-se ao entrar.

— Meus livros! Vou dar uma olhada neles.

Subitamente dona Amélia mostrou certa preocupação. Meu receio é de que o Antero o trate mal.

— Ele não tratará.

— Tem tanta certeza disso?

— Tenho.

— Faria as pazes com ele?

— Não.

— Meu filho, está me escondendo alguma coisa?

— Agora quero dormir, mãe!

Dona Amélia saiu e Toni olhou palmo a palmo aque­le quarto tão confortável e comparou-o à quitinete de tio Waldo, ao escritório do Paradise e aos quartos de hotéis onde passara as noites. Jogou-se na cama como estava, vestido, e bastou fechar os olhos para dormir.

Apenas horas mais tarde Toni acordou. Precisou de alguns instantes para lembrar-se onde estava após a via­gem. Mas não quis rememorar episódio algum. Lá esta­vam os livros de seu pai. Pegou carinhosamente um deles. Robinson Crusoé. Quantos prazeres da infância Toni devia àquelas páginas! Despertou, porém. Os momentos eram de decisão, estava vivendo o hoje. Levantou-se.

No corredor Toni encontrou uma pessoa que se as­sustou ao vê-lo. Toni não levou susto algum. Seguro de si.

Silvano:

— Ah... está de volta?

— Vim visitar minha mãe. Soube que andou à minha procura em São Paulo.

— Andei, sim. Soubemos daquele caso do seu tio e depois o do tal Juliano, o puxador de carros. Meu pai fi­cou com receio de que acabasse nos comprometendo.

— Ora, por quê? O nome de seu pai está acima de qualquer suspeita. O honesto seu Antero!

— Pensamos também que pudesse estar necessitan­do de ajuda.

— Muito generoso, Silvano. Mas não precisei.

— A polícia está à sua procura?

— No momento anda muito ocupada com ladrões de caminhões.

Sem novas perguntas, Silvano afastou-se. Evidente­mente não gostara do encontro. O que se passava com Toni?

O almoço, como Divina prometera, foi preparado no capricho, suculento. Seu Antero não voltou da viagem e Silvano não apareceu. Foi um almoço feliz, em que To­ni falou de seu emprego na livraria, no plano de traba­lhar numa editora e... do namoro com Virgínia. Apenas referiu-se com tristeza, saudoso, ao tio Waldo, preso em São Paulo.

— É um malandro, sem dúvida, mas não o esqueço. Gostaria de poder fazer alguma coisa por ele.

— Acha que vai continuar na cadeia por muito tempo?

— Penso que não. Ele não cometeu nenhuma falta grave. Perto do que se pratica hoje é um santo. O proble­ma dele era sobreviver. Pobre tio Waldo!

 

                               PONDO TUDO EM PRATOS LIMPOS

À tarde, sem avisar a mãe, Toni dirigiu-se à Trans­portadora Mercúrio. Logo à distância viu os caminhões da empresa, enfileirados. Alguns estavam sendo carrega­dos. Aproximou-se e ficou espiando. Antero já chegara de viagem. Lá estava ele a falar em voz bem alta, a um grupo de empregados, sobre a aquisição de mais um ca­minhão. Comprara usado e chegaria no dia seguinte.

— Pretendo comprar mais dois até o fim do ano — dizia.

Toni procurou colocar-se no ângulo de visão do pa­drasto. Queria que ele o reconhecesse. Isso aconteceu lo­go. Antero viu-o e fez cara feia. Bem feia mesmo. Seguiu até ele com aquela sua firmeza.

— Ah, você voltou!

— Voltei ontem.

— Temos muito que conversar, mocinho. Vamos pa­ra o escritório.

Toni acompanhou o padrasto ao interior do estabele­cimento. Ao entrarem no escritório, todo reformado e im­ponente, o chefão pediu à secretária que se retirasse, pois tinha assunto particular para tratar. Antes tomou um co­po de água gelada.

— Já que voltou, terá que aceitar minhas condições — começou a dizer. — Não terá mais as regalias que lhe havia prometido. Vai trabalhar como anotador de entra­das e saídas dos caminhões, sob as ordens de Silvano. Quanto aos seus estudos, não intervirei mais. Problema seu. Se quiser estudar, que pague o colégio com seu orde­nado. Mas se nos causar mais embaraços...

Toni, que continuava de pé, impassível, respondeu com a maior naturalidade:

— Agradeço o emprego, mas não preciso dele.

A resposta irritou Antero, que comentou com ódio visível:

— Continua o mesmo, não?

— Já tenho emprego — disse Toni.

— Espero que desta vez seja coisa decente.

— Mais decente do que aquele que eu teria aqui.

Era uma ofensa; Antero não deixou passar.

— O que está dizendo, moleque?

Toni viu o grande momento aproximar-se.

— Posso ser mais claro. Depois do que soube seria constrangedor para mim trabalhar na Mercúrio.

Antero não suportou ficar sentado. Levantou-se. Pa­recia partir para a agressão. Toni, ao contrário, continua­va calmo.

— Depois do que soube?

— Foi o que eu disse.

— Soube o quê?

Toni fez uma pausa. O lance era seu e poderia retardá-­lo quanto quisesse.

— A respeito da transportadora.

— O que é que você soube? Vamos, diga!

Mais pausa, calma para Toni, inquietante para Antero.

— A frota é feita de caminhões roubados.

Antero foi todo sacudido por uma corrente elétrica. Até seus cabelos se revolveram. Tentou manter o equilí­brio, que se desfez num grito.

— Roubados? Meus caminhões? Onde ouviu isso? Está louco?

— Não ouvi de ninguém — respondeu Toni no mes­mo tom controlado de voz.

— Então como faz uma declaração tão leviana? Exi­jo explicação.

— Não é preciso exigir. Sua frota é toda roubada. Inclusive esse caminhão que acaba de adquirir.

— Mas isso é uma calúnia!

Toni notou que a gravata do padrasto, sempre tão bem colocada, saira do lugar. Agora passava a língua so­bre os lábios ressecados pelo nervosismo.

— Eu que dirigi o caminhão de São Paulo até a ofi­cina de desmanche dum tal Dino, perto de Campinas.

— Oficina de desmanche? Não conheço nenhuma oficina de desmanche.

Toni tinha mais uma bomba em seu arsenal. Soltou-a.

— Eu vi o senhor lá ontem à noite.

— Está sonhando.

— O senhor foi com o Mercedes. Pagou em dinheiro.

Antero ensaiou um sorriso. Não foi além de uma con­tração labial para rebater a acusação.

— Pelo que ouvi você é que é ladrão de caminhões. Acaba de confessar. Disse que dirigiu um caminhão até lá, não disse?

— Disse — confirmou Toni. — Fui com um homem que roubou o caminhão. Chama-se Borges, conhecido de Dino. Borges sofre de fotofobia e não pode dirigir nas estradas. Tive de dirigir, sob ameaça. Se me negasse, se­ria delatado como parceiro de Juliano, um rapaz que co­nheci, ladrão de automóveis.

Agora Antero conseguiu rir.

— Suas boas companhias!

— Eu não sabia que Juliano era um puxador até que o prenderam. Mas não dirigirei mais caminhões roubados. — E revelou: — Estou disposto a contar tudo à polícia, bem como revelar onde é a oficina do Dino.

Antero lentamente voltou à sua poltrona. Havia um resto de água no copo, tomou-o. Ele, que raramente fu­mava, acendeu um cigarro. Seu olhar perdia-se no espa­ço do escritório. Toda a sua habitual arrogância evapora­va-se.

— Você não teria coragem de procurar a polícia — disse.

— Não tive, até ontem, mas, para livrar-me de um chantagista como Borges, terei. Informando sobre Dino, pouco ou nada me aconteceria. Sendo réu primário, nem ficarei detido — disse Toni com uma segurança ainda maior.

Antero impressionou-se.

— Você nem calcula o risco que correrá na polícia.

— Estou disposto a correr qualquer risco para não ser mais envolvido por esses puxadores. — E como quem quisesse encerrar o assunto: — Já expliquei por que não quero trabalhar aqui. Isso, sim, seria arriscado.

Toni já seguia para a porta, quando ouviu:

— Esse Borges mencionou o meu nome?

— Não, ele não o conhece.

— E Dino, mencionou?

— Também não — respondeu Toni.

Antero deu mais uma ordem, menos autoritário.

— Sente-se, vamos conversar.

— Acho que já nos dissemos tudo. Se quer saber se contei essa história para minha mãe ou para Silvano, sai­ba que não.

— Sente-se. Insisto. Preciso lhe dizer umas coisas...

Toni hesitou, mas sentou-se, advertindo:

— Não é necessário me explicar nada.

Antero usou um tom de voz confessional e melancólico.

— Já enfrentei situações difíceis na empresa, Toni. Não tinha dinheiro para expandir os negócios e havia muitos concorrentes. Gente que tinha mais capital para investir. Se não ampliasse a frota, teria de fechar as por­tas. Por isso fui forçado a comprar alguns caminhões do Dino. A princípio nem sabia que eram roubados... Acredita?

— Como disse, não precisa me dar explicações.

— Queria que soubesse como aconteceu. Mas não sou o único que compra carros ou caminhões roubados. Apenas comprei alguns. Quer um café?

— Não, obrigado.

Novo tom de voz, mais amigável, meio suplicante:

— Gostaria que viesse trabalhar conosco.

— Já tenho emprego, seu Antero.

— Sua mãe sofreu muito com a sua distância. Ela o prefere aqui. Os empregados também gostam de você.

— Eu sei, mas não vou ficar.

— Espere, Toni. — Dessa vez o padrasto o chamou com intimidade. — Não vou lhe dar simples emprego de apontador. Depois de Silvano e de mim, será o primeiro na empresa. Terá ótimo salário. E parte nos lucros.

Toni não se alterava, apenas ouvia. Mas teve de res­ponder:

— Tomei minha decisão, seu Antero.

Antero partiu para a súplica, baixando a cabeça so­bre a escrivaninha. O chefão desaparecera.

— Toni, eu não vou viver eternamente. Silvano e vo­cê são meus herdeiros. Um dia será sócio da Mercúrio.

— Obrigado, mas não vai dar.

— Ponha os ressentimentos de lado. Esqueça o passa­do.

— Já falamos tudo, seu Antero.

Antes que Toni saísse, o padrasto perguntou:

— Você já sabia que o caminhão seria comprado por mim, fez tudo de caso pensado?

— Não sabia de nada — disse Toni. — Foi o acaso. Às vezes ele está do lado da gente.

Silvano entrou, logo estranhando a atmosfera do es­critório.

— Desculpem, vou sair...

Toni adiantou-se.

— Pode ficar, Silvano. Eu e seu pai já nos entendemos.

— Pense no que disse — propôs Antero ao enteado.

 

                           UMA DECISÃO DEFINITIVA

Toni deixou a transportadora aliviado, mas com a impressão de que já se demorara demais em Vila Grande. Saudade de Virgínia? Chegando em casa, foi até o quar­to da mãe. Bateu na porta.

— Onde esteve, filho?

— Na Mercúrio.

— Antero chegou?

— Chegou e conversamos.

— Ele o tratou mal?

— Estava uma flor. Até me ofereceu emprego. Mas vou embora.

Dona Amélia olhou-o seriamente.

— Está mesmo resolvido?

— Estou sim, mãe.

Ela passou a mão ternamente sobre os cabelos do filho.

— Iremos juntos, Toni. Vou me divorciar de Ante­ro. Direi isso a ele assim que chegar.

Antero não demorou. Surgiu, nervoso, e foi procu­rar dona Amélia. Ela, no quarto, fazia as malas.

— Amélia! — exclamou. — O que está fazendo?

Muito calma, ela respondeu:

— Vou embora com Toni. Espero que nosso divórcio seja amigável.

— Amélia — implorou Antero, — não se precipite. Eu perdôo Toni e lhe dou um alto posto na empresa. Já falei com ele sobre isso. Será meu herdeiro, como Silva­no. E gozará de todas as regalias. Desfaça essas malas...

Dona Amélia continuou seu trabalho.

— Não entendo por que mudou tão rapidamente de idéia, Antero, mas seja qual for o motivo eu e Toni já tomamos nossa decisão.

— Pensem na vida miserável que levarão em São Paulo...

— Conseguirei trabalho. Já passei dificuldades ou­tras vezes.

— Aqui seu filho está seguro, não se desencaminhará.

— Confio no caráter dele.

— Vocês estão loucos?

— Lamento, Antero. Partiremos amanhã cedo.

— É a última palavra?

— A última.

Antero saiu do quarto. Deu alguns passos e parou como se alguma idéia terrível o tivesse detido.

 

                 A HORA DA VERDADE

No dia seguinte, Toni levantou-se cedo e foi para a copa tomar seu café com leite. As coisas mais simples, feitas por Divina, tinham um sabor especial.

— Há um ano que não tomava um café com leite as­sim, gorducha.

— Tem também queijo e geléia, como antes — dis­se Divina.

— Pode me servir tudo o que quiser.

Silvano entrou na copa e sentou-se ao lado de Toni. Parecia incumbido duma missão, não muito à vontade.

— Bom dia.

— Bom dia, Silvano.

Silvano nem esperou pelo café de Divina.

— Meu pai me pediu para conversar com você.

— Ah, sim?

— Ele quer que o convença a ficar.

— Não perca seu tempo, Silvano. Embarco hoje pa­ra São Paulo.

— Acho que está sendo precipitado.

Toni tomou um bom gole de café com leite. Fez uma pergunta embaraçosa:

— A que atribui a insistência de seu pai?

— Ele tem um grande coração. Quer que fique.

— Eu sei. Ofereceu-me até um alto posto na firma. Mas não posso aceitar.

Silvano assumiu um tom mais íntimo e tocou num assunto que lhe era doloroso.

 

— É por causa de meu namoro com Raquel? Não ti­ve intenção de lhe tirar a namorada.

Toni, ao contrário, gostou que ele tocasse no assunto.

— Você não teve culpa alguma. Esqueça. Volto pra São Paulo por outro motivo.

— O que diz sua mãe disso? — quis saber Silvano.

— Ela está de acordo. Tanto assim que vai comigo.

— Como, vai com você?

— Vai se divorciar de seu pai.

— Vai?

— Decisão dela, não lhe pedi isso.

— Meu pai não me falou nada.

— Porque não sabia. Agora já deve estar sabendo.

Silvano fez um ar desanimado.

— Bem, cumpri meu dever. Agora faça o que quiser. Espero que não se arrependa um dia. Ah, quer que lhe dê uma carona para São Paulo? Estou mesmo precisan­do ir até lá.

— Obrigado, iremos de ônibus.

Toni ergueu-se e foi encontrar a mãe no living. Do­na Amélia tinha algo a esclarecer:

— Antero me disse que lhe garantiu um bom posto na empresa. Logo abaixo de Silvano.

— Ele lhe disse também que recusei?

— Disse. E estranhei muito sua mudança de atitude. Quase implorou para que ficássemos. Parece haver um mistério nisso.

Toni achou que ainda não era o momento das revela­ções.

— Ele mandou um emissário para me convencer. Sil­vano. Tive de decepcioná-lo.

— Sua resistência eu entendo, Toni. O que me sur­preende é essa reviravolta na cabeça de Antero.

— E quanto a você? Está mesmo decidida?

— Minhas malas estão prontas.

— Mãe, não gostaria que se divorciasse apenas por minha causa.

— Já não suportava viver aqui, filho. Acho que sen­tirei saudades apenas de Divina.

Dona Amélia voltou para o quarto onde estavam suas malas empilhadas. Antero estava lá.

— Conversou com Antônio?

— Silvano também conversou, pelo que Toni me disse.

— Por favor, reflitam mais um pouco.

— Estamos de saída, Antero.

— Vocês estão cometendo um grande erro.

— É possível.

— De qualquer forma estarei sempre a seu dispor. Surgindo um problema, me telefone. Mas não vamos nos despedir. Detesto despedidas. Façamos como se fosse uma breve separação. — Antero caminhou até a porta e parou. — Quero que aceite um presente meu.

— Não é preciso.

— Para mim é importante. Um carro. Eu o deixarei na porta. Os documentos estão no porta-luvas.

— Obrigada, Antero, mas...

— Insisto para que você aceite...

Dona Amélia permaneceu no quarto tentando solucio­nar aquele enigma. Por que o frio e severo Antero fica­ra tão diferente, amolecera tanto, depois de seu encontro com Toni? Talvez o filho explicasse durante a viagem. Foi até o quarto dele. Toni empacotava os livros de seu pai.

— Livros, escova e pasta de dente — disse Toni. — É o que levarei desta casa.

— Agora vai começar uma parte muito dolorosa — lembrou ela. — Despedirmo-nos de Divina.

— Passei pela cozinha e ela já estava chorando.

— Vamos.

Foi uma longa cena muda. Ninguém dizia palavras. Só abraços e lágrimas. O corpanzil de Divina tremia de tanta emoção. No final, ela pediu:

— Quando puderem, me chamem. Nada me prende a Vila Grande. Não tenho mais nenhum parente aqui.

— Se tudo der certo — prometeu dona Amélia, — não esqueceremos de você.

Carregando malas, mãe, filho, Divina e um criado seguiram até o portão. O presente de seu Antero estava estacionado. Um belo carro prateado. Era praticamente novo.

— Podem colocar as malas — disse dona Amélia. — É nosso.

— Como nosso? — estranhou Toni.

— Presente do Antero — explicou dona Amélia. — Foi uma gentileza, não?

Toni sacudiu a cabeça.

— Não devemos aceitar.

— Toni, ficaria até feio recusar. É melhor nos sepa­rarmos amigavelmente.

Toni fincou o pé.

— Tenho uma razão forte para não aceitar.

— Mas que razão forte é essa?

— Contarei no ônibus, mãe.

— Não é mera teimosia sua?

— Garanto que não — asseverou Toni. — Vamos pegar um táxi até a rodoviária.

Silvano aproximou-se.

— Pretendia lhes dar uma carona até São Paulo, mas precisei levar meu carro pra oficina.

— Por que não vai nesse? — perguntou Toni. — Seu pai quis nos dar, mas não vamos aceitar.

— Você deve estar bem de vida para recusar um pre­sente desses.

— Vá com ele, Silvano.

— Os documentos estão no porta-luvas — disse do­na Amélia.

Silvano olhou o interior do carro, tentado a viajar nele.

— Preciso antes falar com meu pai.

— Vou lhe telefonar para agradecer — disse Toni. — Direi que você partiu com ele.

Silvano abriu a porta do carro.

— Então não querem mesmo?

— Não queremos.

Era a confirmação que Silvano queria ouvir. Para ele, Toni não merecia tal presente.

— Felicidades para vocês — desejou, já entrando no carro.

Toni seguiu para o interior da casa, dizendo ã dona Amélia:

— Meu padrasto precisa saber que não aceitamos o carro. Vou ligar para o escritório.

Ligou para a transportadora.

— Por favor, chame seu Antero. Diga que é o Toni.

— Logo em seguida ouvia seu nome.

— Antônio?

— Sim, seu Antero. Agradecemos muito o carro mas não vamos ficar com ele.

— Posso saber por quê?

— Porque não. Como disse, agradeço.

— Não seja tão orgulhoso, rapaz.

— Não é orgulho.

— Em São Paulo é bom ter condução própria.

— Eu sei, seu Antero, mas está decidido.

O padrasto fez uma pausa e propôs:

— Então use-o apenas para ir a São Paulo. Depois o mandarei buscar em seu endereço.

— Muito gentil, mas o carro já não está conosco.

— Está onde?

— Silvano viajou com ele.

— O quê?!

— O carro dele está na oficina e não ficou pronto.

— Então ele foi com o carro?

— Foi.

— Não é possível...

— O que o senhor disse? Alô! Alô!

Antero já havia desligado.

Toni voltou para a rua. Um motorista de táxi carre­gava o porta-malas. Voltou-se para a mãe:

— Ele levou o maior susto quando soube que Silva­no viajou com o carro.

— Por que o susto?

— Sei lá, mãe!

 

                           0 ACIDENTE

Assim que o ônibus partiu, dona Amélia pediu a Toni a explicação que ele devia:

— Você disse que tinha um motivo forte para não aceitar o carro. Qual é o motivo?

Toni respondeu de uma forma enigmática.

— Eu não podia aceitar nada, mãe, para não me tor­nar cúmplice dele.

— Cúmplice de quê?

— De roubo de caminhões, mãe.

— O quê?

— Toda a sua frota foi feita de caminhões roubados. Sei disso e disse a ele, ontem.

— Você disse?

— A que a senhora atribui a mudança dele em rela­ção a mim? Num minuto me oferecia emprego de mero apontador do movimento de caminhões. Noutro, o tercei­ro lugar na empresa e me fazia um de seus herdeiros. Co­mo recusei o cargo, ofereceu o carro para manter-me cala­do. Espécie de suborno.

— Caminhões roubados! — exclamava dona Amélia, ainda não convencida. — Mas como soube disso?

— Vi o Mercedes dele numa oficina clandestina de desmanche em Campinas, de um tal Dino, que compra e vende carros roubados.

— Quando isso?

— Anteontem.

— E o que você tinha ido fazer lá, Toni?

— Fui dirigindo um caminhão roubado, justamente o que ele acaba de comprar.

Dona Amélia mexeu-se no banco. Não entendia.

— Você foi dirigindo o caminhão roubado?

— Mãe, esta é uma história que precisa ser contada desde o começo, a partir do momento em que tio Waldo foi preso e tive de trabalhar num bar da moda chamado Paradise. Lá que conheci Juliano, o gerente, que se tor­nou o pivô desta novela toda.

— Continue, Toni. Quero saber tudo. Preciso estar bem convencida do que afirma. Para mim parece inacre­ditável. Antero metido com caminhões roubados! Ele que sempre se mostrou um modelo de honestidade para todos!

Toni fez questão de ser minucioso. Havia muito tem­po e estrada pela frente. Dona Amélia não o interrom­pia, imaginando a cada lance todo o sofrimento do filho. Finalmente ele chegou ao diálogo com o padrasto no es­critório, relembrado palavra por palavra.

— Entendeu, mãe, por que não podíamos aceitar o carro?

— Entendi.

— Não agi certo?

— Agiu, mas eu não podia adivinhar. Ainda estou desnorteada. Tudo parece muito irreal.

A essa altura o ônibus parou. O motorista e alguns passageiros dos primeiros bancos desceram.

— Deve ter havido algum acidente — observou do­na Amélia.

Toni olhou também pela janela.

— Há um restaurante aí. Vamos tomar um refrige­rante. Os passageiros estão descendo.

Toni e dona Amélia desceram do ônibus passando por um grupo crescente de curiosos que cercavam um car­ro de passeio espatifado de encontro a um muro. Ouviram uma sirene de ambulância. Comentava-se que o carro vi­nha em alta velocidade, como se não pudesse brecar.

— Alguma vítima? — perguntou dona Amélia a um dos passageiros do ônibus.

— Um rapaz.

Toni olhou, reconhecendo o veículo acidentado.

— Mãe, este não é aquele carro que...

Subitamente mãe e filho viram um luxuoso carro bre­car e dele sair Antero, precipitadamente. Enquanto corria, gritava:

— Silvano! Silvano! — Aproximou-se do filho quan­do era levado para a ambulância.

Toni deu uns passos apressados e aproximou-se do padrasto, que ouvia um enfermeiro dizer:

— Alguém cortou os freios do carro. Mas Deus esta­va por perto. Ele não morreu.

Antero então viu Toni e dona Amélia logo atrás de­le. Eles apenas o olharam em silêncio.

Toni voltou ao ônibus seguido de sua mãe. Acomoda­ram-se nas poltronas.

— Você acha que?... — perguntou dona Amélia.

— Foi um desastre preparado. Por isso ele se espan­tou tanto quando eu disse que Silvano viajara com o carro.

— Mas por que Antero ia querer a nossa morte?

— A minha morte, mãe. Seu medo era de que algum dia eu o acusasse do roubo dos caminhões.

Durante o resto da viagem, chocados, mãe e filho nada disseram. Toni já se concentrava na arriscada deci­são que tomaria depois de se instalarem na capital.

 

                     ENFRENTANDO A SITUAÇÃO

Toni conseguiu um quarto para dona Amélia na pen­são onde morava. Na segunda-feira foi trabalhar normal­mente enquanto ela visitava joalherias para negociar suas jóias. Apurou bom dinheiro. Somado com o que já tinha, rendendo juros, poderia até abrir uma pequena loja.

À noite, Toni e dona Amélia jantaram num restau­rante com a presença de uma convidada especial.

— Mãe, esta é Virgínia. Não é uma gata? Linda?

— Ela é uma graça! Muito bonita! — exclamou do­na Amélia.

Virgínia, na verdade, estava bem produzida, uma atriz de TV.

— Ela que me ajudou a agüentar a barra!

Virgínia simpatizou imediatamente com a mãe de To­ni, mas continuava intrigada.

— Você teve um encontro com aquela pessoa?

— O homem da mancha preta?

— A dona da pensão viu você entrar no carro dele.

— Sim, Virgínia, tivemos um encontro. O primeiro capítulo duma novela que minha mãe já ouviu e que vo­cê vai ouvir agora. O nome da simpatia é Borges, prova­velmente falso. Ele me obrigou a dirigir um caminhão roubado.

Com as mesmas minúcias da narração anterior, fei­ta à sua mãe, Toni contou à Virgínia tudo o que lhe acon­tecera, incluindo o terrível diálogo com o padrasto e con­cluindo com o desastre na estrada.

Virgínia, atenta, já preparava uma pergunta:

— O que pretende fazer agora?

— Apresentar-me à polícia e denunciar a oficina clan­destina de Dino. Quanto ao padrasto, Dino que denuncie, se quiser.

— Vai dizer que conduziu o caminhão?

— Por que não?

— E se a polícia não acreditar em você?

— Também é meu receio — comentou dona Amélia.

Toni não ignorava o perigo.

— Tenho de correr o risco.

Virgínia à dona Amélia:

— A senhora concorda?

— Morro de medo — confessou. — Mas irei à polí­cia com Toni.

Virgínia, que sempre apoiava o rapaz, disse firme:

— Irei também.

Toni sorriu para desanuviar e porque a refeição esta­va chegando:

— Na pior hipótese irei fazer companhia a tio Wal­do. Ando com muita saudade dele. Que tipo!

 

                         CARA A CARA COM JULIANO

No dia seguinte, Toni, dona Amélia e Virgínia dirigi­ram-se à delegacia. Um delegado sisudo e dois detetives ouviram as declarações que Toni fez em tom aparentemen­te calmo. Procurou ser claro, objetivo, mas sem referir­-se ao padrasto.

— Pode explicar direito onde é esse desmanche?

— Posso até fazer um mapa.

O delegado pediu a Toni que voltasse às três da tar­de. Os detetives partiriam imediatamente para Campinas.

Na hora marcada Toni, a mãe e a namorada volta­ram à delegacia. Desta vez houve uma longa espera.

Afinal o delegado apareceu.

— Confirmado — foi dizendo. — Prendemos Dino e meia dúzia de homens. Era o maior desmanche clandes­tino da região. Desmanchavam até ônibus. Uma bela ca­ça. Quanto ao tal Borges foi facilmente identificado devi­do à mancha preta. É um sentenciado na condicional. Não irá longe.

Um grande alívio para o trio.

Dona Amélia:

— Então podemos ir, doutor?

— Você não está livre ainda, rapaz — disse o delega­do. — Prestou um serviço, mas não posso considerá-lo inocente. Quero saber mais de suas ligações com esse ca­so. Volte amanhã às dez e sozinho.

— Por que, doutor?

— Quero fazer uma acareaçao.

— Acareação? Com quem?

— Juliano Boa-Pinta. Se não comparecer será consi­derado fugitivo.

Os três deixaram a delegacia preocupados.

— Minha liberdade está nas mãos de Juliano — dis­se Toni.

— Nas mãos de um bandido — acrescentou Virgínia. Aguardava os três uma noite de insônia. Dona Amé­lia tomou mais de uma dose de calmante.

Na manhã seguinte, Toni compareceu à delegacia. Teve de ficar numa sala com um escrivão enquanto aguar­dava o antigo companheiro do Paradise, o mágico dos coquetéis.

Algum tempo depois entraram na sala o delegado, os dois detetives e Juliano. Lá estava ele, em trajes co­muns, ainda um pouco o Boa-Pinta. Sorria enigmatica­mente para Toni.

— Olá! — cumprimentou.

— Olá! — respondeu Toni.

O delegado fez a primeira pergunta:

— Conhece esse rapaz, Juliano?

Uma pequena pausa.

— Conheço. Era garçom do Paradise.

— Morou no seu apartamento?

— Eu lhe dei cama fofa e comida quente. E lhe ensi­nei a preparar coquetéis. Um deles chamava-se “Buuuu”, lembra-se, Toni? Era um susto gostoso.

— Você lhe emprestava os carros?

— Tenho grande piedade dos pedestres. Como sofrem!

Uma pergunta decisiva:

— Trabalhavam em parceria?

Juliano riu.

— Do que está rindo? — perguntou o delegado.

— Pensei em duplas caipiras. Sempre as detestei. Não acho graça alguma nelas.

— Vamos, responda. Trabalhavam juntos?

— Não tinha talento, é coisa que vem do berço.

— Seja claro, trabalhavam?

— O bom Toni não tinha a menor vocação, conhe­ço as pessoas.

Outra pergunta após um tempo para o escrivão ter­minar de anotar:

— Mas ele sabia que roubava, não?

Juliano sentia algum prazer em fazer pausas que afli­gissem Toni.

— Se sabia? Não sou de soltar a língua. Ele só ficou sabendo quando a coisa estourou, quando houve o rebu no apartamento.

O delegado não se dava por convencido.

— E no caso do roubo do caminhão, o que tem a dizer?

— Bem... Falei dele pro Borges. Disse que era bom de volante e que sabia dirigir até caminhões. Borges é meio cegueta. Não pode com faróis na estrada. E anotou o nome de Toni. Mas não fui eu quem pôs o garoto nes­sa fria. Tudo idéia de Borges, podem crer.

O delegado voltou-se para Toni.

— Onde aprendeu a dirigir caminhões?

Toni podia complicar-se aí.

— Apenas disse a Juliano que seria capaz de dirigir até caminhões. O que levei pra Campinas foi o primeiro.

O delegado dirigiu-se aos detetives.

— Podem levá-lo.

Toni lançou um olhar de agradecimento a Juliano, que antes de abandonar a sala disse:

— Se um dia passar pelo Paradise tome um “Sauda­de de Elvis Presley” por mim.

 

                       FINAIS E NOVOS COMEÇOS

Pelos jornais, não muito tempo depois, Toni ficou sabendo da prisão de Borges. Metido noutro roubo de carro, resistira ao cerco policial e fora baleado. Toni te­meu que ainda pudesse envolvê-lo, mas isso não aconteceu.

Mas a notícia grossa mesmo saiu quando Dino foi forçado a fornecer um listão de nomes de pessoas que compravam seus carros e caminhões roubados. Seu Ante­ro ganhou uma manchete com retrato e biografia. Soube-se depois que não foi preso, por ser réu primário, porém perdeu toda a sua frota, que foi devolvida, e gastou o que tinha com advogados. Por fim, desapareceu de Vila Grande, desacreditado. Quanto a Silvano, dona Amélia localizou-o num hospital e ligou para ele. Permaneceu meses engessado. Mas a ex-madrasta não lhe revelou que fora vitima duma tentativa de assassinato equivocada. Feliz como estava, e cheia de planos, não desejava vingar-se de ninguém.

Certa noite, numa danceteria, Toni estava junto à caixa para pagar sua conta quando lhe tocaram no braço.

— Como vai, Toni?

— Raquel!

— Olá! Fiquei sabendo duma história horrível sobre o pai de Silvano. Comprava caminhões roubados. Meus pais se escandalizaram.

— Muita gente ganha dinheiro desonestamente.

— Parecia uma pessoa tão distinta.

— Só aparências.

— Soube também, no Paradise, que se livrou daque­las acusações.

Como se não ouvisse, Toni perguntou:

— E de Silvano, tem notícias?

— Sofreu um acidente grave. Mas o que havia acabou.

— Silvano nada sabia dos roubos do pai. Sei em que hospital está. Por que não lhe telefona?

— Não — respondeu Raquel prontamente. — Me­lhor deixar pra lá. Estou aqui numa mesa com amigos. A gente está se divertindo. Venha comigo.

A esta altura da conversa, Virgínia aproximou-se.

— Esta é Virgínia, minha namorada.

— Muito prazer!

Raquel mal pôde balbuciar seu “muito prazer

Toni afastou-se com Virgínia.

— Pobre Silvano — disse. — Raquel nem quer saber dele!

— Como se sente depois de vê-la?

— Como quem vira a última página dum livro desa­gradável. Vamos. Amanhã tenho uma entrevista. Acho que arranjei novo emprego.

Com o dinheiro dos investimentos e das jóias, dona Amélia abriu uma pequena butique. Virgínia, doida pa­ra livrar-se do Paradise, foi trabalhar com ela. E ajudou-a também na escolha duma casa. Morar na pensão não da­va mais.

— Mas, trabalhando na butique, não vai sobrar tem­po pra cuidar de mais nada — comentou dona Amélia com Toni. — Precisamos de uma empregada.

Ambos tiveram instantaneamente a mesma lembrança:

— Divina!

Não foi fácil localizar Divina em Vila Grande. A re­sidência de Antero havia sido vendida. Telefonaram pa­ra diversas famílias da cidade e nenhuma soube dar infor­mações. Apelaram até à Prefeitura, onde, por sorte, al­guém sabia da cozinheira. Trabalhava agora num hotelzi­nho. Três dias depois de um contato, Amélia e Toni a es­peravam na rodoviária. Aquela gorducha desorientada era ela!

— Estamos aqui, Divina!

Foi uma choradeira geral, mas lágrimas de felicida­de secam depressa.

Divina não conhecia São Paulo nem qualquer outra cidade maior que Vila Grande. Se saía à rua, ficava ton­ta. Mas logo se acostumou e apaixonou-se por escadas-rolantes. Para ela, ir aos shoppings era o máximo.

Toni deu-se bem na editora, próximo da fonte dos livros, sua paixão. Escrever um, talvez as experiências de sua atribulada juventude, passou a ser sua meta e so­nho. Quanto ao namoro dele com Virgínia é coisa para ser contada em versos, longos poemas, material para letra de músicas. Em prosa não dá para expressar um amor tão curtido e bonito.

Ia tudo muito bem quando ficou ainda melhor. Cer­ta manhã tocaram a campainha da casa. Divina foi aten­der e não soube dizer quem era. Toni foi à porta e levou aquele susto. Não era possível!

— Esqueceram a porta da gaiola aberta — disse o desconhecido.

Que desconhecido que nada! Era Waldo. Já cumpri­ra a pena e fora posto em liberdade.

— Não acredito no que estou vendo! — exclamou Toni.

— Acredite depressa e me sirva um café.

— Café? Você vai ser nosso hóspede permanente, seu velho malandro. Mas diga como foi que nos encontrou.

— Encontrei o tal Borges na cadeia. Ele disse que você trabalhava numa livraria. Fui lá, não o encontrei, mas me deram a dica. Agora quero abraçar a cunhada.

Dona Amélia chorou ao rever Waldo, a quem passa­ra a estimar muito depois de ouvir de Toni as aventuras que haviam vivido. Virgínia logo declarou que ele era o velhote mais simpático e amalucado que conhecera na vi­da. Quanto à Divina, adorou-o.

Waldo instalou-se no quarto de Toni, mas logo se cansou de não fazer nada. Foi trabalhar na butique, on­de se revelou hábil fazedor de pacotes e jeitoso com a fre­guesia. Às vezes ia com Toni a algum salão de sinuca. Continuava bom de taco.

Toni, dona Amélia e Virgínia geralmente lembravam os lances dramáticos que ele vivera.

— Há uma coisa que sempre me intrigou — disse o rapaz, uma vez. — Aquela grande coincidência. É verdade que a vida está cheia delas, mas quando acontece com a gente...

— Está falando de quê, Toni?

— Do fato de Borges ter me levado justamente à ofi­cina onde Antero comprava os caminhões. Na ocasião ele era o único que negociava com caminhões, na região, mas mesmo assim...

— Parece uma história inventada — comentou Virgínia. Dona Amélia iniciou um sorriso, que tomou a for­ma de uma pergunta:

— E quem pode negar que Deus também inventa suas histórias? Imaginação Ele já provou que tem...

 

                                                                                Marcos Rey  

 

 

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