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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NEGÓCIO PERIGOSO / Catherine Aird
NEGÓCIO PERIGOSO / Catherine Aird

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A excêntrica e idosa Octavia Garamond deixara um testamento no qual pedia a presença da Polícia no seu funeral e recomendava que o médico lhe examinasse cuidadosamente o corpo depois da sua morte. A estranheza causada por estas exigências mais se acentuou quando surgiram novos factos insólitos: a casa da falecida aparece revistada de alto a baixo, o Pároco da aldeia não deseja presidir às cerimónias fúnebres e duas grandes empresas industriais entram em litígio por causa da morte de Octavia... Ao tomar conta do caso, o Inspector-chefe C. D. Sloan terá, assim, de resolver vários mistérios entrelaçados!

 

 

 

 

"Encontro no jardim, morto em plena glória..."

Os homens da agência funerária tinham sido muito úteis.

Não, pensou imediatamente, essa expressão não era suficientemente forte para definir a situação. Reconstruiu de imediato a frase na sua mente.

A Agência J. Morton and Sons, Agentes Funerários, de Nethergate Street, Berebury, não poderiam, dadas as circunstâncias - as circunstâncias efectivamente muito especiais - ter feito mais do que haviam feito.

Mesmo esta nova frase, concluiu depois de pensar um pouco, ainda não definia com justiça a verdadeira situação.

Amelia, não sendo hipócrita, endireitou os ombros e, pela primeira vez, confessou toda a verdade a si própria: ou seja, que, sem a ajuda do jovem Tod Morton, não teria sabido por onde começar para organizar aquele funeral.

E ali estava ela, apenas uma semana depois de ter falado pela primeira vez com Tod Morton, a acompanhar a urna da sua tia-avó Octavia pelo caminho que conduzia à Igreja de St. Hilary, na pequena aldeia de Great Primer, no condado de Calleshire, segundo mandava a tradição.

E estava mesmo à porta de casa. O cortejo da tia-avó Octavia tinha saído pouco tempo antes da sua residência - A Granja de Great Primer, que ficava suficientemente perto da igreja para permitir que nem os crentes mais atrasados chegassem à igreja fora de horas: quem andasse depressa poderia mesmo esperar que o pequeno sino tocasse para se pôr a caminho.

Amelia tinha seguido no primeiro carro atrás daquele que transportava a urna, o que constituía um nítido sinal para todos os presentes da sua posição.

A Polícia não tinha ficado muito satisfeita com isso, tendo seriamente aconselhado uma maior descrição, mas nesse aspecto, Amelia tinha-se mostrado inflexível. Era a parente mais próxima, e era esse o lugar que ocuparia no funeral.

Tod Morton, envergando um casaco preto e calças de fantasia, luvas pretas e chapéu alto na mão, tinha-se conservado sempre discretamente junto dela, indicando-lhe o que devia fazer, como se o tivesse conhecido durante toda a sua vida e não apenas havia sete dias.

Os últimos sete dias.

 

Tinha principiado tudo com uma morte.

Era geralmente assim que começavam os funerais, pensou Amelia sombriamente, seguindo as discretas instruções de Tod Morton com uma obediência infantil. Enquanto o caixão atravessava o portão do cemitério, constatou que lhe custava ainda a crer que, na semana anterior, por aquela altura, tivesse estado a gozar umas descuidadas férias no estrangeiro.

Efectivamente, encontrava-se a descansar em França quando recebera a estranha mensagem acerca da morte da sua tia-avó Octavia. Ela e três amigas tinham alugado uma gîte (1) durante o mês de Agosto. Tinham sido colegas no liceu e na Faculdade, e uma certa e indefinível nostalgia conservava-as juntas durante umas últimas férias, antes que a vida e o trabalho as reclamassem, com a sua dureza habitual.

 

(1) Vivenda, casa. (N. do T.)

 

Tinha sido Mary-Louise que levantara o auscultador do telefone quando o aparelho fizera ouvir o seu característico toque gálico. E ela não estava à espera de notícias mais excitantes do que um telefonema da sua mãe a comunicar-lhe os resultados dos exames. Até esse momento, a jovem Mary-Louise nunca tinha imaginado que pudesse existir qualquer coisa mais emocionante do que os resultados dos exames.

- É para ti, Milly - disse Mary-Louise com um ar perturbado. - É uma agência funerária a falar de Inglaterra.

No espaço de tempo que Amelia levou a atravessar a sala até ao telefone, soube, sem sombra de dúvida, que não podia tratar-se da morte do seu pai. Se assim fosse, seria a própria Phoebe - a sua querida Phoebe - a dar-lhe a notícia, nem que tivesse que largar tudo e vir a Dordogne em pessoa para o fazer. Todavia, pensou Amelia, extremamente surpreendida, a sua madastra Phoebe era a única pessoa que tinha o número de telefone da vivenda perto de Montpazier.

- Estou a falar com Miss Kennerley? - perguntara Tod Morton.

- Sim - respondera Amelia, cautelosamente.

- A Drª Plantin indicou-me como poderia entrar em contacto consigo.

Amelia ficou ainda mais tranquila. Houvesse o que houvesse, Phoebe Plantin nunca delegaria noutra pessoa a transmissão de más notícias, mas muito menos num agente funerário desconhecido, dizendo-lhe que telefonasse para outro país. Isso, pelo menos, confirmava a sua certeza de que nada de terrível sucedera ao seu pai.

- Acerca de quê? - perguntara então a Tod Morton. Não acreditava que ele estivesse a telefonar-lhe por causa do túmulo da mãe. Nada de urgente acontecia aos túmulos. Para mais ao fim de doze anos. Apercebeu-se imediatamente de que a sua pergunta devia ter parecido inepta e erradamente construída, do ponto de vista gramatical, e emendara-a antes que a voz do outro lado pudesse responder. Ironicamente, as duas semanas passadas a concentrar-se na língua francesa já tinham tido efeito sobre o seu inglês.

- Morreu alguém?

- Mrs. Octavia Garamond, da Granja de Great Primer...

- A minha tia-avó... - Amelia franziu a testa. - Quero dizer, penso que seja ela.

- É sim. Foi o que a Dr. Phoebe disse.

Portanto a sua madrasta era a Drª Phoebe para Tod Morton, como para metade da população da cidade-mercado de Berebury.

- Lamento dizer-lhe - prosseguiu ele - que ela faleceu na noite passada.

- Bom - disse Amelia - ela era muito idosa. Devia ser.

Mrs. Octavia Garamont tinha sido uma das tias da sua falecida mãe - ou, para ser mais exacta - a viúva do tio William da sua falecida mãe.

- Sim - respondera Tod Morton. - Foi o que me disseram...

- É muito amável da sua parte ter-me telefonado. - Amelia procurou na sua mente algo mais para dizer, e perguntou: - Quando se realiza o funeral?

O seu pai, concluiu ela, devia ter partido para uma das suas famosas excursões. Se ele estivesse em Calleshire ter-se-ia, sem dúvida, ocupado ele próprio do assunto, e talvez fosse até à aldeia de Great Primer assistir ao funeral, afastando-se, por certo, da sua secretária com a maior relutância. Afinal, o seu pai ainda se recordava provavelmente da tia-avó Octavia, dos velhos tempos em que ele - e ela - tinham feito parte da extensa família Garamond: de qualquer forma, teria sido mais fácil para ele. O seu pai era antropologista e uma grande autoridade em famílias extensas...

- Isso compete-lhe a si decidir - respondera a voz do outro lado do telefone.

- A mim? - Amelia quase sentira vontade de dizer "Que sou eu a Hecuba, para chorar por ela?", mas calara-se. Não era a altura própria para citar Shakespeare e o Príncipe da Dinamarca. Em vez disso, inquirira, um pouco desajeitadamente: - Porquê eu?

- Fui informado - disse Tod Morton, pigarreando - pelos solicitadores de Mrs. Garamond, a firma Puckle, Puckle and Nunnery, que é a executora do testamento.

Amelia Kennerley quase dissera de novo "Eu?", de pura surpresa. Engolira rapidamente em seco e, em vez disso, tinha perguntado: - Eu e quem mais? - num tom semelhante, apesar de não o conhecer, ao do comediante Rob Wilton, no seu famoso número acerca de ter que ganhar a guerra sozinho.

- É a única executora - respondera a voz do outro lado do telefone continental.

- O quê?!... Oh, peço desculpa - dissera Amelia automaticamente. sentindo um turbilhão a girar dentro da cabeça: estava a pensar que tinha apenas uma vaga recordação da sua tia-avó. Mesmo muito vaga. Devia tê-la conhecido quando era ainda muito pequena, mas, na realidade, ainda conseguia evocar a imagem desfocada de uma estranha casa, onde se conservara bem agarrada à mão da sua mãe, enquanto uma velha senhora desconhecida (quando somos pequenos, todas as senhoras parecem velhas) conversava com ela. Amelia dominara-se e perguntara: - Ela deixou algumas instruções quanto ao funeral?

Sabia que as pessoas costumavam fazê-lo, porque a sua própria mãe tinha, aparentemente, dito muito antes de morrer que pretendia ser enterrada junto do campanário de Almstone. Sempre tinha gostado do som dos sinos da igreja...

- Soube através de Dr. Puckle, o Dr. James Puckle, o mais jovem, não o tio nem o avô, que Mrs. Garamond manifestou nas disposições do seu testamento um desejo quanto ao seu funeral...

A mente de Amelia tinha descrito uma espiral completa, tentando determinar quantos Puckles haveria na firma. Lembrou-se do velho ditado sobre a economia: "Muitos tostões fazem um milhão". Seria também verdade que muitos clientes faziam um solicitador?

Tod Morton continuava a falar.

- No cemitério de St. Hilary, ao lado dos túmulos do seu marido e da sua filha.

Amelia começava a recordar-se agora. Lembrava-se de que a sua falecida mãe tinha tido uma prima que também tinha morrido jovem. Morrer jovem parecia ser uma característica da família da sua mãe...

- Bom, então... - dissera a Tod Morton.

O homem tinha pigarreado delicadamente.

- Mr. Puckle disse-me que, na sua qualidade de única executora, lhe cabe a si a decisão. Os executores e parentes próximos podem ultrapassar os desejos expressos pelos falecidos.

- Eu nunca faria uma coisa dessas - exclamara Amelia energicamente.

- Foi o que eu pensei - replicara Tod Morton imediatamente - por isso falei com o reitor de Great Primer para que mandasse abrir o túmulo da família Garamond.

- Óptimo.

- E fiz também preparativos provisórios para que sejam efectuados os serviços fúnebres na Igreja Paroquial de St. Hilary, em Great Primer na próxima sexta-feira, isto é, daqui a uma semana.

- Óptimo - repetira Amelia.

- Sujeito à sua aprovação.

- Dou-lha - tinha dito Amelia. Ainda se sentia um pouco confusa. - Diga-me, Mr... an...?

- Morton - dissera a voz, num tom prestável. - Tod Morton.

- Diga-me, Mr. Morton, o Dr. Puckle, o Dr. James Puckle, disse... quero dizer, sabe-se... por que motivo Mrs. Garamond me nomeou única executora?

Amelia tinha a sensação de que passara muito tempo desde que a sua mãe a apresentara a uma senhora que, mesmo nessa altura, já lhe parecera tão velha como as montanhas: e mesmo essa recordação lhe parecia um pouco incerta.

De uma coisa estava certa, porém. Tinha sido antes de ela, Amelia, ter começado a ser conhecida pela família como "a filha da pobre Helena".

- Não sei dizer-lhe - respondera Tod Morton. - Só sei que o médico dela disse aos solicitadores que Mrs. Garamond tinha morrido e eles comunicaram-mo.

Amelia Kennerley reprimira um forte desejo de acrescentar "e vai daí eles disseram ao sacristão e o sacristão tocou o sino". As citações de "Quem matou o galo Robin?", eram ainda menos apropriadas à situação do que as de Hamlet.

- E eu disse-o ao Dr. Fournier... refiro-me ao Dr. Edwin Fournier - prosseguira Tod Morton, que, naturalmente, não fazia ideia do que lhe estava a passar pela cabeça.

- O Dr. Fournier?

- É o vigário de Great Primer - respondera Tod. - Peço desculpa, mas não percebi o que disse.

Amelia tinha quase sido invadida por uma sensação semelhante à histeria. Esforçou-se por encontrar as palavras adequadas. Teria que dizer qualquer coisa que não tivesse qualquer relação com o Galo Robin.

- O que disse o Dr. Fournier?

Tinha havido uma pausa no outro extremo do telefone continental: uma pausa mais longa do que ela esperava. Seria possível que Tod Morton - parecia muito jovem ao telefone - também estivesse a esforçar-se por não dizer.

 

"Quem vai levar o pálio?

Nós, disse a carriça,

Mais o galo e a galinha

Nós levaremos o pálio."

 

Mas não se tratava disso.

Tod Morton não lhe respondera porque parecia estar a escolher as palavras com invulgar cuidado, para a informar de algo inesperado. E tinha dito:

- Quando informei o Dr. Fournier de que a idosa Mrs. Garamond, da Granja, tinha falecido e lhe perguntei se poderia ocupar-se do serviço fúnebre...

- O que sucedeu?

- Ele disse-me, Miss Kennerley, que era seu dever, simultaneamente segundo a lei cristã e a lei canónica inglesa, efectuar o funeral de Mrs. Garamond de uma forma decente e cristã com um serviço baseado no Livro de Orações...

Mesmo Amelia, apesar de inexperiente nessas matérias, tinha achado esta reacção muito estranha num homem que tomara as Santas Ordens, ao ouvir a notícia do falecimento de uma das suas paroquianas.

- E - prosseguira Tod - disse ainda que, uma vez que tinha, por esses motivos, que o fazer, fá-lo-ia. - Nessa altura, o homem da agência funerária fungara. - Se quer que lhe diga, Miss Kennerley, pareceu-me que o homem estava um pouco ofendido por qualquer razão, e que tinha mais ou menos ensaiado o que haveria de dizer naquela altura.

Algures no fundo da mente de Amelia tinha brotado a recordação de que enterrar os mortos era uma das Virtudes Contrárias; as Virtudes Contrárias sempre a tinham intrigado quando frequentava a Catequese, até ter conseguido meter finalmente na cabeça que elas se chamavam "Contrárias" porque eram o oposto dos Pecados Capitais e não apenas discordantes.

- O Dr. Fournier... - principiara Tod Morton uma segunda vez.

Não, pensara ela de novo, afinal enterrar os mortos não era uma das Virtudes Contrárias. Mas, por certo, Enterrar os Mortos seria um dos Sete Actos Corporais de Misericórdia. Como Dar Abrigo aos Desabrigados.

- Mas o Dr. Fournier disse... - persistira o homem da agência funerária.

E, pensou Amelia, por certo o reitor não poderia dizer que não sepultava a sua tia-avó, pois não? De qualquer forma, era evidente que não o tinha dito, visto que Tod Morton estava a dizer qualquer coisa mais...

- O Dr. Fournier - Tod Morton conseguira finalmente captar toda a sua atenção - disse-me que era igualmente obrigado pela lei canónica a permitir que outra pessoa fizesse o ofício fúnebre na sua igreja, se nós pretendêssemos que fosse outro clérico a fazê-lo.

- É pretendemos? - inquirira Amelia, começando a perguntar a si mesma se, afinal, aquele telefonema de Inglaterra não seria uma partida bem imaginada, talvez mesmo uma partida de estudantes.

- Talvez - respondera Tod Morton com franqueza - mas a falecida Mrs. Garamont não.

- Ah sim? - Aquela conversa, decidira Amelia, afinal nada tinha a ver com "Quem Matou o Galo Robin?". Era puramente "Alice no Pais das Maravilhas", isso sim.

O homem continuava a falar.

- O Dr. Puckle disse-me que a falecida Mrs. Garamond tinha expressamente indicado nas suas instruções que fosse o Dr. Fournier a conduzir o serviço fúnebre.

- Ah disse? - perguntara Amelia. - Então isso quer dizer que ela sabia que o reitor não iria querer fazê-lo? - Tal como Alice, começava a achar as coisas cada vez mais curiosas.

- Isso não sei, Miss Kennerley.

- E então?

- Então nós fixámos, provisoriamente, o funeral para de hoje a uma semana, como já lhe disse. Isto é, se estiver de acordo...

- Por mim está bem - ouvira-se Amelia Kennerley dizer em voz alta - mas estará bem para todas as outras pessoas?

- Ah - fez o homem da agência funerária, do outro lado da linha - a falecida Mrs. Garamont também deixou instruções muito precisas a esse respeito.

- Diga-me quais - ordenara Amelia. Era óbvio que havia em tudo aquilo algo mais do que conseguia entender à primeira vista.

- Instruções muito precisas - tinha repetido Tod Morton, passando a transmitir-lhas.

A sua amiga Mary-Louise observou o rosto de Amelia, enquanto ela escutava atentamente, agradecia ao seu interlocutor e pousava o auscultador com uma expressão muito pensativa.

- O que foi tudo isso? - perguntou a Amelia.

- Morreu a minha tia-avó.

Mary-Louise era a especialista em línguas do grupo e disse imediatamente:

- "Os jovens por vezes morrem, mas os velhos morrem sempre". É um antigo ditado bretão.

Amelia voltou a colocar o telefone em cima da étagère (1), suspirou e disse:

 

(1) Prateleira. (N. do T.)

 

- Escuta...

Mary-Louise prestou-lhe toda a sua atenção.

- E - concluiu finalmente Amelia - há que publicar um obituário nos principais jornais de Londres e em dois escoceses, além de em três jornais locais de Calleshire...

- Naturalmente - disse Mary-Louise, afectando um conhecimento do assunto que ainda não possuía.

- E no jornal do Courant Club - concluiu Amelia.

- Do quê?

- Do Courant Club.

- Nunca ouvi falar disso.

- Nem eu, até agora - disse Amelia. - Aparentemente, trata-se do jornal dos actuais e antigos empregados de uma fábrica para que ela e o tio Williams trabalharam durante a guerra. Uma qualquer firma importante que tem algo a ver com a produção de corantes. - Empurrou a caquetoire (2) para fora do Sol, para a parte sombria da sala, antes de se deixar cair nela.

 

(2) Cadeira baixa sem braços e de encosto alto. (N. do T.)

 

- Mary-Louise, sabes que a tia-avó Octavia já tinha redigido os obituários para os jornais e os deixou já prontos ao solicitador?

- Isso - disse Mary-Louise respeitosamente - é aquilo a que eu chamo ter realmente classe.

- Continham tudo, disse o homem da agência, excepto a data exacta da morte.

- Evidentemente - disse Mary-Louise. - Quero dizer, não se pode saber qual a data a indicar, a menos que se trate de suicídio... - A sua voz arrastou-se um pouco, ao ocorrer-lhe uma ideia desconfortável. - Não foi, pois não, Amelia?

- Não - disse Amelia. - Eu perguntei-lhe. Ele disse que a data estava em branco.

- Ah - Mary-Louise soltou um pequeno suspiro de alívio. - Fico satisfeita por saber isso.

- Ela deixou também - prosseguiu Amelia obstinadamente - uma lista das pessoas que deveriam ser chamadas à Granja de Great Primer depois do funeral.

- Tais como... - A frase não tinha sido muito bem construída, mas ela sabia o que queria dizer.

Aparentemente, Amelia Kennerley também.

- Tais como a Polícia - disse Amelia inexpressivamente.

 

"Oh, pensar que o pintarroxo havia de morrer na Primavera!"

- Quem? - perguntou o Detective-Inspector C. D. Sloan.

- O senhor, Sloan - vociferou o Superintendente Leeyes.

- Eu? - inquiriu Sloan, que acabava de ser chamado ao gabinete do seu superior na Divisão "F" da Central em Berebury.

- Ouviu bem o que eu disse - rosnou o Superintendente.

- Sim, senhor - apressou-se Sloan a concordar.

E provavelmente também metade da esquadra o ouvira.

O detective-inspector, que a mulher e a família conheciam como Christopher Dennis, e que, por motivos óbvios, era "CD" para os amigos e colegas da Polícia de Calleshire, ainda estava surpreendido.

- Provavelmente é uma coisa desnecessária, evidentemente - disse o Superintendente Leeyes num tom magnânimo - mas não podemos correr riscos, hoje em dia. As coisas já não são como eram.

- Não senhor. - Sloan sentia-se em terreno seguro ao concordar com isso. Era chefe do minúsculo Departamento de Investigação Criminal da Divisão de Berebury do condado de Calleshire, e os relatórios de todos os crimes que lá ocorriam iam parar à sua secretária. - O que é que é desnecessário?

- Este estranhíssimo convite para um funeral de que tenho estado a tentar falar-lhe - respondeu o Superintendente injustamente. - Há uma velhota que bateu a bota e deixou um pedido ao seu solicitador, para que a Polícia fosse convidada para o seu funeral.

- Porquê? - perguntou o Detective-Inspector Sloan.

- Não disse porquê.

- Peço desculpa, mas eu estava a perguntar porquê eu em particular - respondeu cuidadosamente o detective-inspector. - Sabemos se há algum envolvimento criminoso, de algum tipo?

- Não sabemos nada, Sloan - replicou Leeyes mal-humorado. - Por enquanto. Acabámos de receber notícias do solicitador. O que eu estou a dizer-lhe é que terá de ir à firma Puckle, Puckle and Nunnery e descobrir se eles sabem mais alguma coisa.

- Sim senhor. - Afinal, já tinha tido missões mais estranhas na sua vida profissional.

- E, se eles souberem mais alguma coisa - acrescentou o Superintendente pesadamente - convém saber se estão dispostos a dizer-lhe o que sabem, o que não é a mesma coisa, na prática.

- Não senhor. Muito bem. - Sloan puxou do seu caderno de notas. - De hoje a uma semana, penso eu, foi quando disse que seria o funeral. De tarde.

- Às duas e meia - disse o Superintendente. - Pode levar consigo o Agente Crosby - prosseguiu, estragando imediatamente qualquer suspeita de magnanimidade ao acrescentar: - Pelo menos ficamos livres dele durante a tarde.

- Obrigado - disse Sloan rigidamente. O Detective William Edward Crosby era o mais jovem e mais inexperiente membro da Força em todo o Departamento "F", e geralmente um íncubo em qualquer operação policial que não implicasse conduzir carros a grande velocidade.

- E há uma coisa boa em ir a um funeral - rugiu Leeyes - que será útil a ambos, nestas circunstâncias.

Sloan ergueu o olhar:

- Não é como um casamento, em que nos perguntam de que lado estamos, mal entramos na igreja.

- Não senhor.

Recolhiam-se migalhas de conforto profissional nos sítios mais estranhos.

- Ora isso pode tornar-se complicado - disse o Superintendente, veterano de muitas reuniões familiares. - Pelo menos num funeral podemos sentar-nos onde quisermos na igreja.

Era uma coisa em que o Detective-Inspector Sloan ainda não tinha pensado.

- Mas se eu estivesse no seu lugar, Sloan...

- Diga, senhor Superintendente.

- Sentava-me ao fundo e mantinha os olhos fechados.

- Sim senhor.

No interesse do seu próprio Departamento de Investigação Criminal, Sloan tentou uma nova abordagem com o Superintendente.

- Já se... quero dizer, sabe-se se... an... ocorreu alguma coisa com a falecida que devesse... an... que exigisse especificamente a nossa presença?

- Que eu saiba até à data, não. - O Superintendente atirou uma fina folha de mensagem na direcção de Sloan. - Isto é toda a papelada que nos chegou até agora.

- Obrigado, senhor - disse Sloan inexpressivamente, pegando na folha.

- Então, na próxima sexta-feira a tarde, Sloan, na Igreja de St. Hilary em Great Primer... remeta-me oportunamente o seu relatório.

- Sim senhor. - O inspector deve-se enquanto dobrava o papel e depois disse: - Esta senhora foi, por acaso, alguma vez magistrada?

Em teoria, todos os magistrados civis estavam totalmente separados da Polícia, mas o mundo não era perfeito e formavam-se inevitavelmente relacionamentos ao fim de anos a trabalharem juntos nos mesmos tribunais. Era uma coisa de que os advogados que trabalhavam para os réus não gostavam muito.

- Não, Sloan, não foi - respondeu Leeyes vivamente. - Acabei de verificar isso junto do encarregado dos magistrados.

- Foi só uma ideia.

- Mas podia ter sido - aceitou o Superintendente, cuja mente estava a seguir uma linha de pensamento que teria, sem dúvida, sobressaltado o Departamento do Lord Chanceler, além de quase todos os advogados de defesa do país. O Subchefe da Polícia disse-me que Mrs. Garamond era nobre por direito, aquilo a que as pessoas ligadas ao vinho chamam Edelfäule.

- Como disse, Superintendente? Aquilo devia ter saído das aulas de Apreciação do Vinho do Superintendente: ele gostava muito de frequentar cursos nocturnos para adultos sobre os mais variados assuntos - quanto mais desconhecidos, melhor.

- Casta nobre, Sloan. Casta nobre.

- Ah.

O que o Subchefe da Polícia - pessoa muito bem relacionada - tinha realmente dito era que a falecida Mrs. Octavia Garamond era uma das poucas sobreviventes da antiga escola, visto que provinha da antiga família escocesa dos Harquil-Grasset. Isso tinha sido antes de citar qualquer coisa melancólica de G. K. Chesterton acerca dos últimos e tristes cavaleiros que atravessam lentamente o mar nos seus cavalos; mas o Superintendente Leeyes tinha captado os aspectos essenciais.

- Disse uma outra coisa, Sloan.

- O que foi?

- Que havia uma igreja antiga muito interessante em Great Primer.

- Ah sim? - inquiriu Sloan delicadamente.

- Do ponto de vista dos procedimentos policiais.

- De que forma?

- Bem pode perguntar - resmungou Leeyes, a quem não agradava a ideia de subchefes eruditos no corpo da Polícia.

- Cálices roubados? - arriscou Sloan. O aristocrático Subchefe da Polícia não acharia, por certo, interessantes clérigos transviados.

- Qualquer coisa histórica - fungou Leeyes, irmão espiritual do falecido Henry Ford.

- Sim? - Talvez, nesse caso, pensou Sloan, talvez em tempos passados um infeliz sacristão de Great Primer tivesse sido mandado para a prisão por ofensas contra os Regulamentos do Culto Público. Lei de 1874: actividades abomináveis, tais como acender velas onde não deveria haver velas acesas. O professor no Colégio de Treino da Polícia tinha insistido, perante uma descrente classe de jovens polícias em que o ritualismo sempre tinha provocado autênticas disputas entre os paroquianos...

- Algumas marcações na parede sul - disse sombriamente o Superintendente Leeyes. Talvez o Subchefe da Polícia gostasse de antiguidades, mas o Superintendente não gostava.

- A sério?

- Afirma-se - replicou Leeyes - que se trata de um marco do século XIII a delimitar a antiga paróquia Watch and Ward para o polícia da aldeia.

- Hei-de procurar - prometeu solenemente o Inspector Sloan, acrescentando. no mesmo tom: - Por acaso sabemos qual foi a causa da morte de Mrs. Garamond?

- Ah! - exclamou Leeyes. - Sabemos o que o médico escreveu na certidão de óbito, que pode ser ou não a mesma coisa.

- Aceito o toque. - Dizer que o Superintendente concedia à antiga profissão de curar pouco respeito era um exagero: em relação à medicina, era um herético de longa data e profundamente convicto. - Então o que é que o médico declarou?

- Falha do ventrículo esquerdo - disse o Superintendente. - Está nesse papel que acabei de lhe dar.

- É geralmente causa de morte - observou o Inspector Sloan secamente.

- E degeneração senil do miocárdio.

- Então ela era velha... - murmurou Sloan, quase em voz alta.

- A idade é uma coisa relativa - declarou Leeyes, que estava à beira da reforma. Fez uma pausa e depois disse: - No entanto, há uma coisa estranha na certidão de óbito, ou antes, nas circunstâncias em que o médico de clínica geral a assinou...

- O que é? - O Detective-Inspector Sloan era imediatamente todo ouvidos, e a sua atenção tinha sido totalmente acordada.

- A falecida pediu particularmente ao médico que fizesse um exame completo do seu corpo depois de ter morrido. Insistiu muito nesse ponto, segundo o Dr. Aldus.

 

- Efectivamente, meus senhores - repetiu o Dr. John Aldus ao Inspector Sloan e ao Agente Crosby, quando estavam ambos sentados no seu consultório, ao fim da tarde - nesse aspecto posso dizer-lhes que Mrs. Octavia Garamond foi específica ao ponto de ser indelicada.

Ouviam-se ruídos em fundo; algures um bebé chorava e, mais perto, soava a campainha de um telefone. Não obstante, o Inspector Sloan inclinou-se mais para diante e incitou o médico de clínica geral a contar-lhe exactamente o que se passara.

- O que ela me disse quando de uma das minhas últimas visitas - relatou John Aldus - foi: "O doutor vai examinar-me decididamente, não vai, quando eu morrer?"

- Para ter a certeza absoluta de que está morta - prometera John Aldus, perguntando a si mesmo se Mrs. Garamond iria pedir lhe que lhe abrisse uma veia para tornar a morte absolutamente certa. Muitos dos seus idosos sentiam um medo mórbido, e absolutamente injustificado, de serem enterrados vivos.

- Não era isso que eu queria dizer - dissera severamente a idosa senhora. - Que diabo, homem, se nesta altura ainda não consegue reconhecer a morte, não merece o dinheiro que ganha.

Ele tinha dito:

- Então o que quer dizer? - sem se ofender com a franqueza dela. Como a maior parte dos médicos, passava grande parte do seu tempo a tentar interpretar as observações indirectas que lhe eram feitas pelos seus pacientes, e, como todos os médicos, tinha a aprendido a lidar com o eufemismo. A franqueza da idosa Mrs. Garamont era uma mudança agradável.

- O que eu quero dizer - dissera ela claramente - é que quero que examine o meu cadáver. Isto já é bastante claro para si?

O Dr. Aldus tinha-se sentido dividido entre ser profissional tranquilizador e sentir-se naturalmente intrigado.

- É claro que o farei - dissera gentilmente - se deseja que o faça.

- Desejo, sim. E como deve ser, note bem. Nada de puxar o lençol para trás para uma rápida olhadela.

- Diga-me por que motivo...

A velha soltara uma risada aguda e dissera:

- O médico da Rainha Victoria julgava que conhecia sua paciente.

- Ah.

- Só quando ela morreu descobriu que tinha uma hérnia abdominal.

- A senhora não tem uma hérnia abdominal.

Mrs. Octavia Garamond tinha-lhe dirigido um sorriso enigmático que ficara atravessado na mente desde então.

- Eu sei.

- Então, por que motivo está tão ansiosa por que eu examine depois da morte?

Ela recusara-se a explicar-se.

- Se quiser, ponha isso à conta, doutor - dissera com a sua respiração asmática - de satisfazer a última vontade de uma velha.

- Muito bem - John Aldus ter-lhe-ia feito a vontade de qualquer forma, mas, agora genuinamente preocupado, perguntara:

- Há alguma coisa que a preocupe, minha querida?

- O inferno, doutor, o inferno... - e começara a tossir.

Tinha sido uma tosse ligeira, uma tosse do coração, não dos pulmões.

- Talvez esse lugar não exista.. . - principiara. Mas Octavia Garamond não estava a escutá-lo.

- Recorda-se do que disse Ariel em "A Tempestade"? - Diga-me o que foi.

- "O inferno está vazio e os diabos andam todos cá fora..." - citara ela quase sem fôlego.

- "O inferno está vazio" - repetiu ele.

- Shakespeare sabia.

- Oh, sim - O médico estava de acordo com ela. - William Shakespeare sabia bem disso, especialmente depois da morte do seu filho Hamnet.

- "O inferno está vazio e os diabos andam todos cá fora" - repetiu ela, fechando os olhos e perdendo o interesse pelo resto da consulta.

 

"Sepultai-o, camaradas, é um dever doloroso"

Nessa altura, algures ao fundo do consultório do médico, um telefone recomeçou a tocar. O bebé tinha parado de chorar, mas havia outros ruídos. O Dr. Aldus olhou atentamente para os dois polícias sentados no seu consultório e prosseguiu a sua narrativa.

- Tratei de mandar colocar uma garrafa de oxigénio à cabeceira de Mrs. Garamond, para a ajudar a respirar, mas foi tudo o que consegui arrancar dela, a não ser...

- O quê? - inquiriu Sloan atentamente.

- A não ser que ela me disse, na minha visita seguinte, que pensava que a sua alma lhe iria ser exigida numa noite muito próxima.

Sloan ergueu os olhos para o médico.

Este prosseguiu:

- Recordo-me do que ela citou uma terrível balada antiga acerca de ir finalmente para o fogo do Purgatório. - Franziu a testa. - Penso que ela disse que era de "The Lyke - Wake Dirge". - Abanou a cabeça. - Não consegui reconfortá-la.

- E era? - O Agente Crosby inclinou-se para diante com um interesse aparentemente genuíno. - A alma dela estava mesmo para partir?

- Dentro de uma semana - disse o médico, num tom de voz tenso.

O Inspector Sloan pigarreou e perguntou se o médico tinha receitado especificamente algum medicamento para o medo do inferno da sua paciente.

- Receio bem que não haja medicamentos na Farmacopeia Britânica capazes de o tratarem, inspector. Pelo menos - acrescentou secamente - a esta hora tão tardia.

- É verdade - disse Sloan suavemente. Havia um dístico que tinha guardado na mente desde os tempos de escola, que dizia precisamente o contrário:

 

"Entre o estribo e a queda no chão

Pedi perdão, foi-me dado o perdão."

 

Mas absteve-se de o citar. Eram uns versos para românticos incuráveis, não para médicos de clínica geral, nem sequer, vendo bem, para detectives-inspectores experientes.

O bebé recomeçou a chorar.

- Apenas um calmante - O Dr. Aldus seguia ainda a sua linha de pensamento. - E posso assegurar-lhe que não lhe dei um daqueles.

- Com certeza... - murmurou Sloan, tomando nota mentalmente para investigar, apesar de tudo.

- Eu sou apenas um médico de província - observou John Aldus - não um padre.

- A confissão faz bem à alma - observou Crosby, só para dizer alguma coisa.

Aldus voltou-se para o agente e disse:

- Pode ser que sim, mas os médicos não dão a absolvição, pelo menos se tiverem juízo. - Franziu a testa. - Além disso...

- Além disso, o quê - insistiu Sloan.

- Mrs. Garamond já estava bem medicamentada, de qualquer forma. Era o bastante.

- Para o coração? - perguntou Sloan: afinal não era para o medo do inferno.

- Para o coração - desse o médico categoricamente.

- Ainda não existem tratamentos contra a velhice, apesar de as pessoas procurarem o elixir da juventude há muito tempo.

- É certo - concordou Sloan, que mal começava a ter idade para se interessar pelo assunto.

- Envelhecer é um processo, não uma doença - prosseguiu Aldus - embora eu esteja convencido de que um destes dias há-de surgir um tratamento até mesmo para isso. - Fez um esgar. - Mas não no meu tempo, segundo espero.

O Inspector Sloan tinha outra pergunta, muito diferente, a fazer ao médico:

- Esse último pedido da falecida, cumpriu-o?

- Na realidade, inspector, cumpri-o, apesar de ser pouco vulgar quando não se efectua uma cremação.

- Porquê?

Aldus hesitou:

- Porque ela me pediu, penso eu; porque sentia curiosidade, talvez; porque...

- Porque ela estava ali? - sugeriu o Agente Crosby inesperadamente. - Como o Everest?

- Isso também, penso eu. - Se Aldus ficou surpreendido com o sorriso, não permitiu que isso se notasse. - Mas, como todos nós, principalmente para o caso de me ter escapado alguma coisa.

- E tinha? - perguntou o agente com um ar despreocupado, enquanto Sloan escutava atentamente. O receio de ter deixado escapar alguma coisa importante é um receio que os verdadeiros detectives partilhavam com os médicos; e a agonia de a descobrir tarde de mais era comum a ambas as vocações.

- Nada que eu conseguisse detectar - disse John Aldus - A única coisa que encontrei, ao examiná-la, foi o corpo de uma mulher idosa, desgastada como eu esperaria de alguém tão velho, um pouco edematosa apesar dos diuréticos, não se vê muito anasarca actualmente, e muito ligeiramente cianosada.

Sloan inclinou-se para a frente.

- Diga-me, doutor, o que poderia ter sido?

O médico do clinica geral pareceu ficar ligeiramente envergonhado.

- Devo confessar, inspector, que me passou pela cabeça, embora saiba que parece uma coisa idiota, que poderia encontrar qualquer coisa que Mrs. Garamond não tinha querido que eu soubesse durante a sua vida.

- Como a Rainha Victoria? - perguntou Crosby inteligentemente .

Aldus acenou lentamente com a cabeça.

- De certa forma.

- Que género de coisa, por exemplo? - insistiu Sloan.

- Ocorreu-me - disse o médico num tom ligeiramente defensivo - que poderia, talvez, encontrar qualquer coisa não irradicável da sua pele...

- Como uma tatuagem? - perguntou Sloan.

O bebé que tinha estado a chorar em fundo parou subitamente. No meio do silêncio, o médico disse calmamente:

- Como um número de um campo de concentração.

Sloan sacudiu a cabeça.

- A marca de Caim.

- Não era uma ideia muito despropositada, inspector - disse Aldus. - Recordo-me de alguém me ter dito, mas não Mrs. Garamond, que ela tinha feito qualquer coisa invulgar em tempo de guerra, embora eu nunca soubesse exactamente o quê.

- Ah - fez Sloan, que sabia que, mesmo agora, ainda havia livros fechados em alguns departamentos de estado.

- Ela esteve casada com um cientista muito famoso, além disso, e era uma mulher muito culta - disse Aldus.

- Eu sabia disso, aliás bastava conversar com ela...

Tanto quanto sei, inspector, creio que ela teria sido apanhada no estrangeiro quando a guerra principiou. Ou ido lá depois de ter principiado.

- Mas não encontrou nada desse género, pois não, doutor? - insistiu Sloan.

- Não - disse ele, abanando a cabeça. - Apenas, como cristã, antigas cicatrizes que carregou para o outro mundo. E bastante grandes, note. Apêndice e vesícula, teria eu dito logo à primeira vista. Os cirurgiões não eram tão cuidadosos nas suas incisões antigamente. Nada de cirurgia tipo buraco de fechadura.

- Equimoses? - inquiriu o Detective-Inspector Sloan prosaicamente, embora também ele conhecesse o seu Progresso do Peregrino.

- Não. - Os ombros do Dr. John Aldus curvaram-se.

- E também nada encontrei na boca, quando a examinei.

O Detective Crosby animou-se.

- Na boca?

- Se quer saber porquê - disse o médico com aparente irrelevância - há muito mais senhoras idosas mortas por asfixia pelas suas enfermeiras exaustas do que os médicos vêm a saber.

O Detective-Inspector Sloan não discutiu esse ponto.

Sempre tinha suspeitado de que "perder uma luta de almofadas" tinha outro significado em muitos lares de baixo nível para pessoas idosas.

O médico continuou a descrever os seus actos.

- Confirmei os comprimidos, também, por uma questão de segurança. Não achava impossível que ela tomasse uma dose deles, se se decidisse a isso...

Portanto, anotou Sloan mentalmente, o Dr. John Aldus, médico de clinica geral, apesar do que dissera antes, tinha ficado suficientemente impressionado com o último pedido da sua paciente para fazer uma exaustiva verificação, pelo menos em certos aspectos.

- Estavam junto da cama, mas não faltava nenhum e estavam todos correctos - disse Aldus. - Além disso, ela não tinha deixado de tomar nenhum.

- Quem cuidava dela? - perguntou Sloan.

- Uma série de mulheres da Agência de Calleford tratava dela e a minha enfermeira ia visitá-la em dias alternados. Dava-lhe banho na cama, etc., e também não notou coisa alguma...

Sloan tomou mentalmente nota de que o médico também já tinha achado conveniente interrogar a enfermeira.

- Isto foi só desde que morreu a velha criada de Mrs. Garamond, evidentemente. - Aldus olhou para Sloan.

- Até então, ela tinha sempre tido Ellen. Devo dizer que Ellen era o protótipo da criada antiga e fazia tudo por ela.

Crosby voltou subitamente à vida de novo e perguntou vivamente:

- E de que morreu Ellen, então?

Como o protótipo de criada antiga que tinha evidentemente sido, Ellen não parecia ter apelido.

- Isso não posso dizer-lhe - Aldus agitou a mão mais ou menos na direcção do leste. - Morreu em Luston, quando estava a visitar a sobrinha. Ela tinha vindo de Luston.

- Deve ter sido um rude golpe para a sua paciente - observou Sloan.

O médico hesitou.

- Eu trato muitas pessoas idosas, inspector, e, segundo a minha experiência, são as pessoas mais idosas as que melhor aceitam esse tipo de coisas.

- Compreendo porquê.

- E, quando são muito idosas mesmo, só pensam nelas próprias, é uma espécie de egoísmo protector. Estou a falar dos sobreviventes, claro. - Fez uma pausa e acrescentou, num tom pensativo. - Não sei se há alguma moralidade nisso...

- Provavelmente - disse Sloan, que tinha sido ensinado em pequeno, por uma mãe frequentadora da igreja, que de tudo se podia extrair uma moralidade.

- Isso não quer dizer, naturalmente, que Mrs. Garamond não ficasse desgostosa com a morte de Ellen. Trabalhava para ela havia muitos anos e sei que era invulgarmente bem tratada.

- E quanto à família? - disse Sloan. polícia em primeiro lugar, em último, e sempre quando estava a trabalhar. Segundo a sua experiência, quando havia uma morte havia geralmente parentes.

- Ninguém, que eu saiba - respondeu imediatamente o médico - e Ellen disse-me, certa vez, que Mrs. Garamond tinha estado sozinha no mundo durante muito tempo.

- Sobreviveu a todos, hem? - disse Sloan, com simpatia. Eram esses os proprietários de casas que a Polícia tinha geralmente que arrombar, pessoas que nunca recebiam visitas, cujo telefone nunca tocava e onde o carteiro nunca batia... o leiteiro era o único a manter um elo entre elas e o mundo exterior.

- Deve ter sobrevivido - concordou o médico. - A minha paciente disse-me que, ultimamente, conhecia mais gente no cemitério do que na aldeia.

- E - disse o Inspector Sloan, regressando ao ponto fulcral do assunto - esperava que ela morresse quando morreu?

- Não ficaria surpreendido se ela morresse em qualquer altura - respondeu Aldus francamente, mas nunca se sabe, com as doenças cardíacas, tirando o facto de algumas velhotas continuarem a viver quase eternamente.

- Nesse caso, doutor - Sloan lançou uma olhadela ao seu caderno de notas - Não teve problemas em passar a certidão de óbito?

- Não tive na altura. - Inesperadamente, acrescentou: - Agora tenho.

O telefone recomeçou a tocar, não longe da sala do consultório. Como um toque de alarme.

- Porquê? - Sloan ergueu uma sobrancelha.

- Por dois motivos, inspector.

Sloan inclinou-se para a frente.

- Quais?

O Dr. Aldus tamborilou com os dedos sobre a secretária.

- Não sei qual enunciar primeiro.

- Qualquer serve - disse o polícia calmamente.

- Um dos motivos é a sua presença aqui.

- E o outro? - insistiu Sloan.

- O segundo motivo - disse o médico com firmeza - é que tenho motivos para crer que eu poderia ter um interesse pecuniário na morte da minha paciente...

- E tinha? - murmurou Sloan.

- O solicitador dela... James Puckle, o mais novo, não o negou. Perguntei-lho quando soube que a Polícia vinha procurar-me, e ele não o negou.

 

"Abafada, soou solenemente a campainha do jantar"

- Vamos ver se nos entendemos, Sloan - disse o Dr. Dabbe.

Como passava das seis horas da tarde de uma sexta-feira, os dois polícias tinham-se dirigido, através do campo, para a casa do médico patologista de Berebury da Administração do Hospital de Berebury e do Distrito.

Estavam sentados no escritório do patologista, e o Detective-Inspector Sloan tinha-lhe explicado o caso da falecida Mrs. Octavia Garamond.

- Devo então entender - prosseguiu o patologista - que a Polícia pretende que eu faça uma autópsia, apenas com base no facto de uma velha senhora ter manifestado o desejo de que o seu médico de clínica geral lhe fizesse um exame superficial, e uso esta palavra no seu sentido exacto, depois do morte?

- Há também - disse Sloan firmemente - o pedido por escrito da falecida, deixado aos solicitadores, para que a Polícia fosse assistir ao funeral. - Não era frequente contactar o patologista no seu próprio escritório, mas o Dr. Dabbe tinha abandonado o seu laboratório e ido para casa, onde passaria o fim-de-semana. - Mrs. Garamond faleceu, segundo pensamos, às primeiras horas desta madrugada...

- O mais curioso - prosseguiu o patologista insistentemente - é que John Aldus, o médico em questão, agora também me pede que faça a mesma coisa...

- Ah sim? - inquiriu Sloan, alerta.

- Porque diz que está relativamente seguro de que vai receber um legado, segundo o testamento da dita senhora.

- Vou falar amanhã de manhã com o solicitador dela - disse Sloan, lançando um olhar interessado ao jardim, através da janela do escritório. Reparou que as roseiras em Penniless Bench, estavam a precisar muito de ser podadas, mas a atenção de Crosby tinha sido atraída para uma fileira de boiões com espécimes em cima da lareira.

Onde outros homens teriam exposto ornamentos ou troféus da Faculdade, ou até mesmo um relógio, via-se uma série de recipientes de vidro transparente, contendo, em suspensão, algo que se assemelhava a pickles de pepinos espectacularmente infelizes.

- Não existe qualquer lei, Sloan, que eu saiba, que proíba um médico de ser herdeiro - disse o Dr. Dabbe que também era médico, mas, a avaliar pelas suas roseiras, concluiu Sloan, não era um jardineiro.

- Nenhuma - disse com suavidade o Detective-Inspector Sloan.

- Além disso, presumo que já tenha convencido o velho Locombe-Stapleford a concordar consigo em que...

- O médico legista - citou Sloan sobriamente - é de opinião que uma autópsia estava indicada, nos melhores interesses de todas as pessoas ligadas ao assunto.

- Se realmente se refere a todas as pessoas - o patologista exibiu um sorriso de lobo, falando num tom pedante - então seria de esperar que tudo dependesse do que eu achasse, não lhe parece?

- Está certo, doutor - disse Sloan - absolutamente certo.

- E - disse o patologista, desta vez inexpressivamente - veio ter comigo, depois das horas de trabalho, numa sexta-feira à tarde, só para me dizer isso, ou foi apenas por estar uma bela tarde para passear?

- Por acaso - disse Sloan descaradamente - ouvi a previsão do tempo para o fim-de-semana.

- Perfeito para um passeio à vela - resmungou o patologista, que guardava o seu "Westerley Longbow" na marina de Kinnisport. - Até as marés são perfeitas.

- Foi o que nós pensámos, doutor.

- Já agora poderiam dizer - nessa altura o Dr. Dabbe deu uma pequena pancada, tristemente, no barómetro - nas Palavras imortais do bardo: "O vento estava bonançoso em direcção a França."

Sloan pigarreou.

- Na verdade, doutor, pode-se dizer que o vento... an... que vem de França que nos interessa mais, neste momento.

O patologista ergueu o olhar. O Detective Crosby parecia ocupado a contar os boiões com espécimes em cima da lareira do patologista.

- Entrámos em contacto com o médico legista - disse Sloan - porque a única executora do testamento de Mrs. Garamond, que é a única parente da falecida que conhecem os solicitadores, Puckle, Puckle and Nunnery...

- Nessa firma não há falta de parentes, pois não? - observou o Detective Crosby, sem se dirigir a pessoa alguma em especial.

- É - persistiu Sloan - uma jovem chamada Amelia Kennerley.

- E não é uma parente próxima, pois não? - disse Crosby - Doutor, o que contêm aqueles boiões que estão além?

- Íleos paralíticos - disse o patologista. - Eu colecciono-os. Maravilhosos espécimes, não acha?

- Amelia Kennerley - disse Sloan concisamente, recusando-se a deixar-se interromper - é sobrinha-neta do falecido marido da morta.

- Colecciona-os? - perguntou Crosby.

- Quando os encontro, claro - disse modestamente o Dr. Dabbe. - É um pequeno passatempo que eu tenho.

- Ela vem a caminho de Calleshire, neste momento, proveniente da Dordogne - disse Sloan - por isso não podemos contactá-la e convidá-la a dar consentimento à execução da autópsia.

- Todas as pessoas a quem estes bocados pertenciam estão mortas? - perguntou Crosby, ainda fascinado pelo conteúdo dos boiões sobre a lareira.

- Oh, sim. Absolutamente - respondeu animadamente o patologista. - E agora diga-me, Sloan, vamos utilizar esta autópsia como decisão final acerca do tratamento, ou parece-lhe que há mais alguma coisa para além disso? - Não sei, doutor. Não temos mais em que nos basear para além do que eu já lhe disse. - Pôs-se de pé, pronto a sair. - Pelo que sei, a falecida sabia há algum tempo que não tinha cura e tinha-o dito ao seu solicitador.

- Ah, isso foi provavelmente para o apressar a elaborar o testamento - disse o Dr. Dabbe, com pouca convicção.

 

- As palavras exactas da minha falecida cliente, se bem me recordo, inspector - disse James Puckle - foram "em artigo de morte".

Os escritórios, junto da ponte, de Puckle, Puckle and Nunnery, Notários, tinham sido construídos na primeira parte do século XVIII. Como gostava de salientar o sócio que se especializara em assuntos relacionados com as Leis do Planeamento da Cidade e do País (um homem velho como poucos antes da idade devida). havia sinais na fachada do edifício através dos quais os especialistas reconheciam esse facto.

Havia, por exemplo, uma cornija linear ao nível do telhado, que se tinha tornado lei em 1707 em virtude da Segunda Lei do Incêndio de Londres, que exigia a substituição das antigas cornijas e medalhões de madeira que contribuíram grandemente para acelerar o Grande Incêndio de Londres de 1666.

- "Em artigo de morte"? - O Detective-Inspector Sloan anotou devidamente as palavras no seu caderno de notas.

A moda arquitectónica iniciada em Londres tinha levado algum tempo a alcançar a sonolenta cidade-mercado de Berebury, no interior do rural Calleshire, mas acabara por lá chegar. Em breve tinha sido seguida por sinais visíveis da implementação da nova lei, que exigia o recuo dos 7,5 cm obrigatórios nos caixilhos das janelas, uma outra medida destinada a demorar a propagação do fogo nos edifícios de madeira e tijolos.

O Detective-Inspector Sloan não estava interessado em janelas. Para ele, o edifício tinha simplesmente aspecto de velho.

A mente de James Puckle, no entanto, recuara ainda mais na história do que o Grande Incêndio de Londres.

- "Em artigo de morte", inspector - disse ele - é uma das muitas expressões que eram muito comuns no preâmbulo de muitos testamentos medievais.

- Ah sim? - Havia um único testamento que interessava a Sloan naquele momento, e era o de Octavia Garamond.

- Uma outra muito popular era "a dois passos da morte". - O solicitador, não era muito velho e parecia deslocado naquele ambiente arcaico, olhou para os dois polícias e disse: - Bem vê, inspector, nos tempos que já lá vão, os nossos antepassados geralmente sabiam quando iam morrer...

- Ou tinham sido avisados - interrompeu Sloan.

- Ou tinham sido avisados - concordou Puckle - e não se punham com eufemismos, como nos nossos dias e na nossa época.

- Chamavam à pá do coveiro pá de sacristão, não chamavam? - disse o Detective Crosby, que estava a achar a sua cadeira desconfortável.

- Não pretendo, no entanto, inspector - disse James Puckle, prosseguindo diplomaticamente - dar a impressão de que o testamento de Mrs. Garamond fosse elaborado no seu leito de morte, porque não foi. - Encostou as pontas dos dedos de ambas as mãos e tomou uma expressão solene, que o tornou imediatamente muito mais velho.

- Os testamentos feitos no leito de morte - disse gravemente - são geralmente maus testamentos.

- É de esperar que sejam - concordou Sloan, recordando-se de que o grande Dr. Samuel Johnson tinha dito que, quando um homem sabe que vai ser enforcado dentro de quinze dias, a sua mente se concentra maravilhosamente. Um leito de morte parecia-lhe uma coisa demasiado rápida.

- A nossa profissão não gosta de os fazer - prosseguiu James Puckle. - Trabalhar à pressa não ajuda a pensar bem.

- Quanto mais depressa, mais devagar - declarou o Detective Crosby, prestimosamente.

O Detective-Inspector Sloan, que estava sempre a trabalhar sob pressão, não fez comentários.

- Pelo contrário - disse o solicitador - posso assegurar-lhes que a minha cliente tinha prestado bastante atenção, posso mesmo dizer uma grande atenção, às suas disposições testamentárias.

- Fico satisfeito por saber disso - observou Sloan, pois, em sua opinião, a elaboração de testamentos, como a dos contratos de casamento, era uma coisa que não devia ser feita de ânimo leve e sem aconselhamento.

- Na verdade, penso que deverão gostar de saber, meus senhores - disse James Puckle - que o testamento de Mrs. Garamond já tem quase dois anos.

Sloan tentou mostrar-se devidamente agradecido por esta revelação tão pouco acutilante.

- E foi composto pelo meu avô - disse James Puckle.

Sloan disse:

- Recordo-me bem dele.

Ali não se vivia propriamente como numa grande cidade; nas pequenas cidades de província, os polícias acabavam por conhecer os notários.

- Era ele o executor do testamento - disse Puckle.

- Deixe-me pensar, ele deve ter morrido há um ano ou pouco mais...

- Quase dois - disse James Puckle.

- Então...

- Então Mrs. Garamond executou um codicilo.

- Nomeando Amelia Kennerley no seu lugar? - inquiriu Sloan.

- E revogando igualmente a cláusula da tutela - disse Puckle, abanando tristemente a cabeça.

Sloan ergueu o olhar e perguntou directamente:

- Porquê?

Não havia, afinal, falta de Puckles na firma, para não falar de Charles Nunnery, que estava, segundo o conhecimento que Sloan tinha do Tribunal dos Magistrados, ainda de excelente saúde.

- Mrs. Garamond... an... zangou-se com os restantes sócios, por um motivo qualquer, e nomeou Miss Kennerley para o lugar do meu avô.

A nota de Sloan desta vez foi mental. Seria posteriormente introduzida no seu caderno.

- O meu pai era, nessa altura, um dos sócios principais, avisou vivamente Mrs. Garamond contra a insensatez de entregar propriedades tão importantes como as suas a alguém tão jovem. Além disso - acrescentou significativamente - uma pessoa que desconhecia totalmente.

- E - salientou Sloan, desta vez tomando nota - alguém que não era propriamente uma parente sua.

- Exactamente, inspector. Mas, segundo o meu pai, a nossa cliente mostrou-se inflexível nesse aspecto. - Subitamente tomou um aspecto juvenil e sorriu, ao dizer: - Na realidade, achei Mrs. Garamond mais do que inflexível em todos os aspectos.

- Se - observou inesperadamente o Detective Crosby - ela estava "em artigo de morte" há dois anos, levou o seu tempo, não lhe parece?

- A última vez em que vi Mrs. Garamond - disse o solicitador - citou-me o Rei Carlos II.

- O Alegre Monarca - disse Sloan, trazendo à superfície uma recordação dos tempos de escola.

- "Um monarca alegre, escandaloso e pobre" (1), foi o que disseram dele - replicou imediatamente James Puckle - mas o que a minha cliente me disse foi que estava a levar, como Carlos II, "um tempo imoderado a morrer" (2).

 

(1) De uma sátira feita Por John Wilmot, Conde de Rochester (1647-1680) a Carlos II, que lhe valeu ser banido da corte. (N. do T.)

(2) "Tinha levado, segundo dizia, um tempo imoderado a morrer, mas esperava que lho perdoassem" - Macauley, História de Inglaterra. (N. do T.)

 

- Ela não era pobre como ele, pois não? - arriscou-se a perguntar o Inspector Sloan, em cada dia mais polícia do que historiador.

- Meu Deus, não, inspector. Pelo contrário. - Fez uma pausa. - Muito pelo contrário, diria eu.

- O dinheiro fala - observou o Detective Crosby, sem se dirigir a ninguém em particular.

Sloan inclinou-se ligeiramente para a frente e disse ao solicitador:

- Tem alguma ideia, Dr. Puckle, do motivo por que a Polícia teria sido convidada para assistir ao funeral de Octavia Garamond?

Ele abanou a cabeça.

- Nenhuma. Foi apenas uma de uma série de exigências feitas pela nossa cliente.

Uma vez cliente, cliente para sempre, pensou Sloan, era obviamente um dos lemas da firma Puckle, Puckle and Nunnery. Apesar de a cláusula da tutela ter sido revogada.

- Todas marcadas para entrarem em efeito logo que ela morresse, incluindo a publicação de diversos obituários em jornais especificados. Isto, como deve compreender, inspector, no caso de Miss Kennerley não ser localizada antes do funeral ou declinar agir como executora única.

- Quer dizer - perguntou Crosby com algo semelhante a animação - que ela ainda não tinha aceitado?

- Quer dizer - explicou James Puckle - que ela não tinha sido contactada.

- Isso, para já, tem a sua piada - disse o agente.

A mente do Detective-Inspector Sloan movia-se, no entanto, segundo linhas muito diferentes.

- Esses pedidos que Mrs. Garamond lhe confiou, Dr. Puckle...

- Diga.

- Havia mais instruções que nós desconheçamos? - Fez uma pausa e acrescentou. - E devêssemos conhecer?

James Puckle disse prudentemente:

- Uma, talvez.

O Detective-Inspector Sloan guardou um silêncio bastante significativo.

Quase como se estivesse a falar consigo próprio, o solicitador murmurou:

- Não vejo mal algum em dizer-lhe, talvez deva mesmo fazê-lo, que havia instruções para que a executora...

- Amelia Kennerley.

- Recebesse a chave da Granja em Great Primer antes de qualquer outra pessoa lá entrar...

 

"Enterrem-no ternamente num cantinho"

A chave, cuidadosamente etiquetada, foi a primeira coisa que Amelia Kennerley viu, quando entrou em sua casa depois de regressar de França, no sábado do manhã.

Estava em cima da mesa do hall, ao lado de uma carta que lhe era dirigida. Vindo do fundo da casa, escutou o som de uma máquina de café e, como a acompanhá-lo, uma música de piano tocada por uma médica.

- Se queres um banho primeiro, desligo o café - gritou a pianista.

- Café, café, o meu reino por um café. - Amelia correu do hall para a cozinha. - Nunca achei que Ricardo III tivesse sabido escolher as suas prioridades (1).

 

(1) Na peça "Ricardo III", de Shakespeare, o rei, ao ser desmontado durante uma batalha decisiva, grita: "Um cavalo, um cavalo, o meu reino por um cavalo!" (N. do T.)

 

Uma cabeça grisalha de cabelos despenteados espreitou à porta do cozinha.

- Há toranja na despensa, se quiseres.

- O que eu quero - disse com firmeza - é que me digam o que se passa.

- Nesse campo não posso dar-te grande ajuda, sinto muito. - Phoebe Plantin meteu os dedos fortes e capazes por entre os cabelos, despenteando-os ainda mais. - E o teu pai está na América do Sul. Não que ele conseguisse ajudar-te muito, também. Que me lembre, ele nunca me falou dos Garamond.

- Nem a mim - disse Amelia num tom pesaroso. - Em que parte da América do Sul? Ele disse?

- Algures no Mato Grosso - respondeu a Drª Plantin - com a tribo dos Pegola.

- No interior?

- Conheces o teu pai. Com ele é sempre no interior.

- É verdade.

Amelia costumava dizer que o pai era distraído. Phoebe Plantin tinha-lhe explicado que ele não era distraído, andava sempre a pensar noutras coisas, o que era muito diferente, mas fazia o mesmo feito.

- Vais gostar de saber que os índios Pegola da América do Sul não só tem uma estrutura de classes muito invulgar e interessante, intocada pelo mundo exterior, como também possuem o que se pensa ser um método único de comunicar entre si, sem falar, nas montanhas.

- Irresistível - disse Amelia.

- Não creio que ele tenha sequer tentado resistir - disse sem rancor a segunda esposa do Professor Kennerley. - Partiu logo que pôde.

Amelia sorriu. Tinha apenas dez anos do idade quando a sua mãe morrera e só muitos anos mais tarde tinha compreendido o significado de algo que ouvira a sua mãe, Helena, dizer quando estava já muito doente. Helena Kennerley, que era grande amiga de Phoebe Plantin, bem como sua paciente, sabia perfeitamente que ia morrer.

Um dia, Amelia tinha ouvido a sua mãe dizer-lhe:

- Phoebe, vais olhar pelos meus dois pintainhos, não vais, querida?

Amelia ainda não se tinha esquecido da forma por que Phoebe, comovida e sem fala, acenara afirmativamente com a cabeça, mas só muito, muito mais tarde, se apercebera de que a sua mãe estava a citar o enlutado Macduff do drama "Macbeth", de Shakespeare, e só muito mais tarde ainda entendera que Helena Kennerley queria dizer que, de certa forma, o seu marido era mais uma criança do que um homem.

- Um dos empregados dos Puckle veio cá hoje com a chave da Granja para ti - informou Phoebe - e tens uma reunião marcada com eles na segunda-feira de manhã, porque acham que necessitarás dela.

Amelia leu a carta dos solicitadores e disse:

- Phoebe, por acaso não estás de serviço neste fim-de-semana, pois não?

- Não, graças a Deus. Não tenho nem mais uma criança com pintas nem mais um nariz a escorrer até segunda-feira de manhã.

- Então, por favor. Poderias levar-me a Great Primer daqui a pouco? Logo que eu tome um banho e coma qualquer coisa?

- Com certeza.

Uma das grandes virtudes da Drª Phoebe Plantin como madrasta era que não só nunca fazia sugestões úteis, como também aceitava as das outras pessoas sempre que podia.

- A Granja não deve ser difícil de encontrar. Oh, a propósito, Tod Morton, da agencia funerária, também telefonou. Pediu que lhe telefonasses quando pudesses, mesmo que seja fora do horas.

 

Um outro lugar que não tinha horas de expediente era a morgue.

Foi a meio de uma das mais soalheiras tardes de sábado do ano que o Dr. Dabbe conduziu o Detective-Inspector Sloan e o Detective Crosby ao laboratório de autópsias. Burns, o eternamente silencioso técnico de exames post-mortem do Dr. Dabbe, fez um gesto com a cabeça na direcção deles, em guisa de saudação.

- Venham comigo ao Templo da Verdade, meus senhores - disse o patologista - onde todos seremos libertados e eu dir-lhes-ei qual das três causas de morte realmente matou... Octavia Garamond, não foi assim que disse que ela se chamava?

- Três? - inquiriu vivamente o Inspector Sloan. No seu manual havia quatro causas de morte: causas naturais, acidente, suicídio ou homicídio. - Apenas três, doutor?

- Apenas três, Sloan - respondeu o médico, erguendo um dedo ossudo. - Primeira, a doença... que William Shakespeare descreveu na sua magnífica frase sobre a genética como "o milhar de males que a carne herdou". Burns, a minha bata.

- Naturalmente. Isso sei eu.

- Segunda, o tratamento médico.

- O tratamento médico? - repetiu o Detective Crosby ingenuamente.

- Também conhecido como doença latrogénica - disse o patologista. - Ou seja, doença provocada pelos médicos. Há muitas. - Voltou-se enquanto Burns lhe atava a bata.

- Resulta de tomar comprimidos, presumo - disse Sloan secamente - receitados para as doenças atrás referidas.

- Ou mesmo - prosseguiu o patologista com profundo cinismo - para as doenças erradas. Burns, as minhas luvas.

- E a terceira? - perguntou Sloan. Pensava que a profissão médica tinha um famoso preceito que a mandava não causar o mal, mas não queria dizer isso, naquele momento.

- A terceira é o diagnóstico - concluiu laconicamente o Dr. Dabbe, estendendo as mãos para as luvas cirúrgicas.

O Detective Crosby, disposto a atrasar o mais possível a autópsia, perguntou:

- Como se pode morrer de diagnóstico, doutor?

- Está sempre a acontecer - respondeu Dabbe, agitando uma mão enluvada. Conservou a outra estendida. - Agora esta, Burns.

- Que história é essa? - inquiriu Crosby.

Aquela maneira de falar, decidiu o Detective-Inspector Sloan, estava muito bem para a cantina da esquadra, mas estava indeciso sem saber se havia de pedir ou não desculpa ao médico por Crosby pela sua utilização, quando o Dr. Dabbe respondeu directamente ao agente:

- Em primeiro lugar, Crosby, o seu médico diz-lhe que sofre das temidas alergias.

- E então? - perguntou Crosby.

- Então - disse o patologista, de forma alguma incomodado - o senhor pega no seu dicionário médico desactualizado e lê tudo acerca das alergias.

- E? - disse Crosby, de forma ainda menos informal.

O Detective-Inspector Sloan estremeceu: os agentes jovens estavam cada vez mais atrevidos.

- E fica a saber através do dicionário antigo - prosseguiu o Dr. Dabbe - que os doentes que sofrem das temidas alergias não tem cura.

- Como aquelas pessoas, cujas entranhas guardou naqueles boiões de vidro? - perguntou Crosby.

- Exactamente - concluiu alegremente o patologista. - De modo que vai para casa e estica o pernil também.

Crosby franziu as sobrancelhas.

- Uma espécie de feiticeiros mas ao contrário? - Penso - disse o Detective-Inspector Sloan austeramente - que podemos partir do princípio de que Mrs. Garamond não morreu de diagnóstico. Estamos à sua disposição, doutor.

De bata e luvas, o patologista avançou decididamente para o corpo de uma senhora idosa de aspecto anónimo, com uma etiqueta escrita à mão presa ao dedo grande do pé direito, único sinal visível de que possuía uma identidade.

- Se eu pudesse colocar um dístico por cima da porta, seria "Mortui Vivos Docenti" (1) - disse Dabbe.

 

(1) Os Mortos Ensinam os Vivos. (N. do T.)

 

- Nós temos uma luz azul por cima da nossa - disse Crosby, que não gostava de assistir a autópsias.

Sloan, que nada disse, constatou que a sua mente se desviara da morgue até um certo lugar chamado Mosteiro de Calleford. O cadáver da idosa Octavia Garamond recordara-lhe um daqueles antigos túmulos do Mosteiro onde se via um prelado morto havia muito representado em efígie sobre um túmulo, ao nível dos olhos, em toda a sua glória mitrada, enquanto, por baixo, era representado como um cadáver nu, numa moralidade representada em alabastro para que todos a vissem. Não havia glória mitrada, agora, para a falecida Mrs. Garamond.

O Dr. Dabbe ficou imóvel junto da mesa das autópsias e disse:

- Devem tratar-se os pacientes mortos como os vivos, Sloan. Sabia disso?

- Não, doutor.

- Usam-se os olhos primeiro, depois as mãos e por fim a língua. Se for necessária.

- Sim, doutor.

Dabbe olhou para o rosto da morta, e quebrou a sua regra.

- Há aqui qualquer coisa estranha, Sloan.

- Onde, doutor?

- Em volta do nariz e da boca. Veja por si próprio.

- O patologista apontou para um fino anel de marcas de pressão que mal se via.

- Ela estava a receber oxigénio - disse Sloan.

- O que talvez explique isto - concordou Dabbe, prosseguindo o seu exame visual. - Não há outros sinais anormais na cabeça ou no pescoço. Vá tomando nota, Burns, sim? - O patologista deu um passo ou dois para a direita. - Nada no peito. Duas cicatrizes no abdómen, sinais de antigos assaltos cirúrgicos...

Era interessante, pensou Sloan, saber que tanto a profissão médica como os pacientes consideravam as intervenções cirúrgicas como assaltos.

- Colecistectomia, diria eu, sabia, Sloan, que hoje fazem isto com espelhos, dizem-me que isso reflecte muito dinheiro, e aqui em baixo, segundo penso, uma apendicectomia muito antiga... parece mais uma laparotomia, na verdade. O cirurgião não devia saber o que procurava quando abriu. Os cirurgiões da moda, hoje em dia, não tiram o apêndice, faz jeito para sobresselentes mais tarde...

- Ah sim?

O detective-inspector inclinou-se delicadamente para a frente e olhou. John Bunyan tinha tido razão quando fizera o Sr. Constante dizer no final do Progresso do Peregrino: "As minhas cicatrizes levo-as comigo para o outro lado." Talvez, quem poderia sabê-lo?, fossem o que toda a gente levava para o outro Reino...

- Tinha tamanho suficiente para meter ambas as mãos até aos cotovelos, diria eu - disse o Dr. Dabbe, endireitando-se. - Diga-me, há alguma coisa que pense que eu deveria procurar em especial, no caso de - o patologista olhou para a etiqueta presa ao idoso "digitus maximus" e leu em voz alta - Octavia Louise Augustina Garamond?

- A certidão de óbito diz... - principiou Sloan e deixou a frase inacabada. A expressão do patologista dizia-lhe exactamente o que pensava de certidões de óbito.

- Eu vi-a - disse Dabbe, esticando melhor as luvas de borracha e pegando num bisturi. - Sabia que três quartos das autópsias revelam dados anteriormente desconhecidos e clinicamente importantes? Ora vamos lá a isto...

Só ao fim de uma hora descalçou as luvas.

Quando falou foi primeiro para Burns, o seu técnico:

- O que anotou até agora?

- Edema cerebral e pulmonar, doutor, dilatação cardíaca com degeneração gordurosa do miocárdio...

- Aldus acertou nesse ponto, pelo menos - disse Dabbe. - Continue...

- Sim, senhor doutor. - Burns continuou a ler: - Infiltração de gordura no fígado e congestão de baço e dos rins. Retiradas amostras de todos os órgãos.

O patologista acenou afirmativamente com a cabeça e despiu a bata.

- Vou apresentar este caso na nossa próxima Reunião de Mortalidade, Sloan, como um caso de grande interesse clínico.

- Ah sim, doutor? - disse Sloan, acrescentando, com uma prudência obtida ao longo dos anos. - E de que forma o acha interessante?

- A causa da morte...

- Sim, doutor. - Sloan tinha a caneta a postos. - Qual foi?

Pela primeira vez, tanto quanto conseguia recordar-se, o Dr. Dabbe disse a Sloan:

- Não determinada.

- Não determinada? - repetiu Sloan.

Até mesmo o fleumático Burns largou o que estava a fazer e ergueu o olhar. Crosby continuava a olhar para os sapatos.

- Talvez quando chegarem os relatórios sobre alguns dos fragmentos que recolhi - disse o patologista, atirando a bata para um cesto - eu esteja em posição de lhe dizer mais alguma coisa. Entretanto... receio não poder dizer-lhe mais, e o mesmo direi ao médico legista.

 

- Não determinada? - repetiu o superintendente, num tom indignado, pelo telefone. Ele, pelo menos, estava a passar o fim-de-semana em casa - O que é que ele quer dizer com isso, Sloan? Que não sabe?

- Que não consegue descobrir - disse Sloan.

- Eu julgava que as autópsias se faziam actualmente para controlo de qualidade - disse Leeyes, num tom desanimado.

- Ele escreveu no relatório - disse Sloan, lendo cuidadosamente - que vai aguardar o resultado de uma histopalotogia de diagnóstico da secção de parafina.

- Um bonito serviço, é o que eu acho - resmungou Leeyes. - Então a única coisa que o patologista nos sabe dizer é que não é óbvio o que fez a velha bater a bota? - Ele geralmente não diz que não sabe - observou Sloan.

- Sempre é uma mudança, lá isso é verdade - disse Leeyes. - E o que vai fazer agora? Tem um encontro marcado com uma rosa, Sloan?

- Não senhor. No entanto, estava a contar passar um fim-de-semana tranquilo.

Mas essa esperança dificilmente poderia ter sido mais frustrada.

- Só queria dar-lhe uma palavrinha, Miss Kennerley - disse Tod Morton pelo telefone. - Achei que deveria falar consigo antes de ir a Great Primer. Queria dizer-lhe que falei com o reitor.

Amelia franziu a testa.

- Um tal Dr. Fournier, não é? - Exactamente. Parece que ele foi à Granja ontem à tarde para lhe deixar um recado, a perguntar se deseja um organista e o coro da igreja, e isso tudo, no funeral.

- Provavelmente - disse Amelia.

- E encontrou uma rapariga que vinha a sair da Granja, quando lá chegou. Levava flores e disse que tinha ido visitar Mrs. Garamond.

Amelia murmurou entre dentes:

- Vale mais tarde que nunca.

- É possível - disse Tod. - Fosse como fosse, o reitor disse-lhe que entrasse em contacto comigo, visto que não a conhece a si, pois não?

- Não... - disse Amelia no mesmo tom.

- De qualquer forma, a tal mulher perguntou quando seria o funeral, e eu disse-lhe. Estava muito transtornada, Miss Kennerley. Perguntou-me se havia parentes vivos e não pude evitar falar-lhe de si.

- Eu não sou parente de sangue - disse Amelia.

- Foi o que a mulher disse, mas eu anotei o nome dela, pelo sim pelo não. Chama-se Baskerville, Miss Jane Baskerville. Este nome diz-lhe alguma coisa?

- Nunca o ouvi - disse Amelia animadamente - mas aposto que vou ouvi-lo. Mr. Morton, eu vou neste momento para Great Primer com a minha madrasta e depois entro em contacto consigo.

- Muito bem, miss. Vire à esquerda depois da igreja e está logo lá, mas não creio que a menina e a Drª Phoebe tenham dificuldade em encontrar a Granja.

Não tiveram.

Amelia experimentou, porém, uma sensação de inquietude enquanto avançavam a pé até a velha casa. Sem lhe prestar atenção por a considerar um misto de curiosidade e súbita responsabilidade, introduziu a chave da Granja na fechadura antiquada da porta da frente.

A tal sensação difícil de identificar foi rapidamente substituída por uma sensação muito mais definida e avassaladora, quando as duas mulheres cruzaram o limiar da porta.

A casa tinha sido assaltada.

 

"Ali estão sepultados a ave, o cão e o peixinho dourado"

- Isto dá a impressão, Inspector - disse profundamente o Detective Crosby, depois de ter observado o interior da Granja - de um jogo de esconder o tesouro que correu mal. Muito mal, mesmo.

Tinha acabado de levar o seu superior até à aldeia de Great Primer, a uma velocidade que, noutras circunstâncias, teria sido deplorável.

O Detective-Inspector Sloan estava ainda a recuperar o fôlego, enquanto escutava Amelia Kennerley.

- Não sei quem fez isto, nem o que pretendiam daqui - disse ela com firmeza - mas não há dúvida de que fizeram um bom trabalho.

- E parece que tiveram todo o tempo do mundo para o fazer - murmurou a Drª Phoebe Plantin - se a agência funerária levou o corpo ontem de manhã.

Amelia protestou imediatamente:

- Mas, Phoebe, isso quereria dizer que quem fez isto soube imediatamente que a tia-avó Octavia tinha morrido...

- A sua voz foi baixando de tom e a jovem olhou com insegurança para Sloan. - Não lhe parece?

- Parece-me que alguém soube, sim, miss - disse Sloan, olhando para a confusão de livros e Papéis espalhados por toda a parte - embora não possamos dizer exactamente o que é que soube. Ou mesmo se soube, vendo bem. Ainda não podemos dizê-lo.

- E dá a impressão que sabiam o que procuravam - observou a Drª Plantin rispidamente. - Venha aqui ver, inspector, neste aparador...

Sloan seguiu com o olhar a direcção em que o dedo apontava.

- Não tocaram nestas pastorinhas de Dresden e posso garantir-lhe que valem um balúrdio.

- Efectivamente parece - observou cautelosamente o Detective-Inspector Sloan - que procuravam qualquer coisa escrita.

- Deve ter sido uma busca muito exaustiva - murmurou Amelia, encontrando o adjectivo que procurava. - Venha por aqui, inspector...

O caos, numa sala que teria sido obviamente uma mistura de escritório e biblioteca, era indescritível.

- Dá a ideia - disse Amelia - que cada livro foi retirado da sua prateleira, sacudido e deixado cair no chão... e quanto àquilo...

Apontou para uma magnífica escrivaninha de castanho que estava aberta, com as gavetas voltadas e esvaziadas no chão.

- Não estava fechada, por isso não foi provavelmente danificada - disse o polícia, com um conhecimento nascido de anos de experiência. - Não, não lhe toque, miss. Não toque em nada. Crosby, chame aqui um agente encarregado da cena do crime e os fotógrafos. Dyson e Williams, se estiverem livres.

Ficou de pé, por um momento, no limiar da biblioteca, a olhar para o caos que se estendia diante de si.

Ao seu lado, Amelia estremeceu e disse:

- Não foi um assalto vulgar, pois não, inspector?

Sloan abanou a cabeça.

- Nem uma busca vulgar, miss. E agora, se as senhoras não se importam de esperar aqui, o meu agente e eu vamos dar uma vista de olhos ao andar de cima.

Não sabia que idade tinha a casa, mas era grande e confortável e ostentava uma opulência antiga, do tempo antes da guerra, nos seus acessórios e acabamentos, que nunca mais voltara depois de Agosto de 1914. A escadaria era ampla e os degraus fundos; o corrimão tinha sido trabalhado em madeira de cedro e estava muito bem polido, para os tempos que corriam. Os dois polícias subiram cautelosamente, não esquecendo a possibilidade da existência de pegadas na espessa alcatifa.

Sloan mandou Crosby examinar os quartos menores, enquanto ele se dirigia para aquele a que os agentes imobiliários chamam o quarto principal. Não ficou extremamente surpreendido ao deparar-se-lhe uma réplica da confusão que reinava na biblioteca.

Alguém, uma pessoa ou mais que uma, desconhecido de momento, tinha-se dado a grande trabalho para encontrar qualquer coisa. O grau de devastação era suficientemente amplo para dar a ideia de que a busca tinha falhado. Com um pouco de sorte, talvez o tempo lhe dissesse se assim tinha sido.

O tempo e um trabalho árduo.

Não esquecendo a sorte, no entanto.

Se havia uma coisa que Sloan tinha aprendido ao longo dos anos, era que o factor sorte nunca devia ser desprezado, no trabalho de um detective.

Quem quer que tinha andado a fazer aquela busca na Granja não tinha sentido escrúpulos em amontoar o conteúdo das gavetas do quarto em cima da cama, ainda tão recentemente ocupada pela morta. Não se tratava de um "lit de mort" cerimonial, mas de uma cama desmanchada, com o colchão coberto apenas com um lençol.

Para começar, Sloan deixou-se ficar de pé junto da porta, deixando que as primeiras impressões assentassem. Junto da cabeceira da cama via-se uma garrafa de oxigénio, com a máscara ainda pendente dos manípulos. Ao lado, mais perto da porta, sobre um pequeno armário de cabeceira que o próprio William Morris (1) poderia ter desenhado, via-se um telefone e dois frascos do comprimidos, ambos quase cheios.

 

(1) William Morris (1834-1896), artista e poeta inglês criador de alguns móveis. (N. do T.)

 

Portanto, quem quer que tinha estado naquele quarto depois da morte de Mrs. Garamond não tinha tido interesse em retirar os medicamentos ou desejava mesmo que estes fossem vistos e examinados.

E seriam examinados, decidiu, desviando o olhar para a cama. Era uma cama de casal, com um segundo armário do outro lado. Sobre este último também havia um candeeiro. Era do tipo móvel que se podia apoiar na cabeceira da cama, com um cordão pendurado. Em cima de uma cómoda alta tinha-se encontrado, por certo, uma pequena colecção de livros, entre dois suportes ornamentais. Os livros e os suportes encontravam-se espalhados pelo chão.

Sloan inclinou-se e tentou ler um ou dois títulos sem tocar nos livros. Os livros que se encontravam num quarto, recordou a si próprio, eram os que o seu proprietário geralmente lia. O Dicionário das Rosas, de Gault e Synge estava sempre junto da sua almofada, e ele começava a sentir uma grande curiosidade acerca do tipo de pessoa que havia sido a falecida Mrs. Garamond.

Culta, decidiu imediatamente.

Muito culta, concluiu pouco depois, tendo descoberto uma das obras de Sigmund Freud em cima da alcatifa, ao lado de "Crime e Castigo", de Fiodor Dostoiewski. O próprio Sloan, quando ainda era um jovem polícia, tinha sido, como muitos outros, atraído por este título. Parecera-lhe uma leitura indispensável a um polícia em início de carreira, mas em breve o tinha devolvido à biblioteca pública. Não havia mais relação entre o crime e o castigo no romance do que na vida real...

- Não há por cá ninguém, para além de nós, inspector - disse Crosby - embora os outros quartos estejam mais ou menos no mesmo estado deste.

- Voltado do avesso? - Era uma pergunta muito modesta.

- E de que maneira! Fosse o que fosse que eles queriam, inspector, não há dúvida de que estavam aflitos por o encontrar.

- E - observou Sloan, avançando cuidadosamente na direcção da lareira - nem sequer sabemos se o encontraram, pois não?

- Não senhor. - Crosby olhou para o chão. - Uns suportes engraçados...

Sloan olhou-os de novo. Continuavam a parecer-lhe vagamente ornamentais. De metal, mas com estilo.

- Feitos de metralha - disse Crosby com grande segurança. - Há um tipo que tem uma loja perto do mercado que ainda vende coisas desse tipo. A loja chama-se Recordações da Guerra.

Sloan observou-os mais atentamente.

- Efectivamente são. - Começou a estudar as fotografias que se encontravam em cima da lareira. Todas tinham molduras de prata mas não pareciam ter interessado a pessoa que fizera a busca, porque não lhes tinha tocado.

No centro via se um instantâneo de amador que representava uma rapariga alta e risonha, cujos cabelos, puxados para trás. deixavam ver um belo rosto. Uma das mãos acenava alegremente para quem estava a tirar a fotografia.

A outra estava ocupada a fechar o casaco, pois parecia fazer muito vento.

- É a rapariga que está lá em baixo, não é? - perguntou Crosby por cima do ombro dele.

- Com este estilo de casaco, não - disse Sloan. - Mas há uma parecença familiar, isso posso garantir...

As duas outras fotografias, tiradas com décadas de intervalo, representavam um homem que fumava cachimbo em ambas.

- Em jovem e em velho - comentou Crosby. - Aguentou-se muito bem, não acha? - E foi daqui, Crosby, calculo eu, que veio a metralha.

- Apontou para uma fotografia de um grande edifício fabril coberto com uma pintura de camuflagem, com três fileiras de empregados, de pé e sentados, no exterior.

Havia uma inscrição no canto inferior direito: Chernwoods' Dyestuffs, 8 de Maio de 1945.

O dia em que fora confirmada a paz.

Na Europa, claro.

De momento, pelo menos.

- A fábrica de Chernwoods já não tem aquele aspecto - disse Crosby. - Passei por lá na semana passada.

- Já não está camuflada, deve ser por isso. - Sloan observou atentamente os rostos da fotografia até encontrar aquele que queria. Estava a meio da fileira central. - E repararam os danos causados pelas bombas.

Conhecia bem o edifício, tal como era agora. A Chernwoods' Dyestuffs continuava a ser um dos principais locais de emprego em Luston, que era a única cidade industrial realmente grande em Calleshire. Sloan regressou para junto da porta, com a nítida impressão de que a sua mente não tinha registado qualquer coisa significativa. Teria que regressar mais tarde, embora soubesse que não valia a pena examinar a parte de trás do roupeiro, naquele momento ou posteriormente. Quem quer que fizesse uma busca no quarto de uma mulher ia sempre direito ao guarda-fatos em primeiro lugar.

E com bons motivos.

Especialmente se a mulher tivesse o hábito de beber.

Em vez disso, Sloan inclinou-se e olhou de novo para a confusão de livros no chão.

Não havia uma Bíblia.

Teria esperado encontrar uma Bíblia. A sua mãe tinha sempre uma na mesa-de-cabeceira. As senhoras idosas que sofrem de falha cardíaca crónica têm sempre uma à cabeceira. E dentro dessa Bíblia estão frequentemente guardadas as suas mais preciosas recordações.

Olhou novamente para o chão junto da cama.

Decididamente, não havia uma Bíblia.

Sloan e Crosby iam a meio das escadas quando ouviram o telefone tocar.

Amelia Kennerley levantou o auscultador no átrio e disse:

- Está?

- É da Granja de Great Primer? - inquiriu uma voz masculina. - Da casa da falecida Mrs. Garamond?

- Sim - disse Amelia, consciente de que todos estavam a olhar para ela. - Quem fala, por favor?

- O meu nome é Gregory Rosart, trabalho na Chernwoods' Dyestuffs, em Luston... - Nada na sua voz lhe dava uma ideia do homem, pensou Amelia. - Peço desculpa por a incomodar tão cedo e, ainda por cima, num sábado à tarde, mas acabo de ver o óbito no jornal da manhã. Ficámos todos muito pesarosos, naturalmente, ao saber do falecimento de Mrs. Garamond...

- Foi muito amável em telefonar - disse Amelia.

- Mas - prosseguiu a voz fluentemente - eu sou o bibliotecário da firma e o encarregado da imprensa, e estou a telefonar para dizer que nós, na Chernwoods, gostaríamos muito de dar uma olhadela aos papéis de Mrs. Garamond, ela e o marido trabalharam aqui, como sabe, durante a guerra, e também gostaríamos imenso de adquirir alguns documentos que tivessem interesse para os nossos arquivos...

Amelia soltou uma súbita gargalhada divertida.

- Sinto muito, Mr. Rosart, mas não foi suficientemente rápido a esse respeito.

- Mas...

- Sábado ou não - declarou, muito consciente de que estava a ser observada pelos dois polícias e pela madrasta - receio bem que já alguém os tenha levado.

- O quê! - exclamou a voz. - Como é que isso...

- Foi sem pedir - disse Amelia gravemente.

Gregory Rosart emitiu um assobio baixo:

- Foi muito rápido...

 

"Peçam ao gatinho preto que siga à frente do cortejo"

Gregory Rosart decidiu, sem perda de tempo, contactar o próprio Joe Keen, o chefe dos químicos da Chernwood' Dyestuffs Ltd. Dirigiu-se a grande velocidade para a residência de Joe em Larking. A casa, situada no meio dos seus próprios terrenos, fazia um terrível contraste com o sombrio edifício onde ambos trabalhavam. Era indubitável, pensou Rosart, olhando em volta, que a casa da família Keen possuía aquele algo a que se chama classe.

Joe Keen orgulhava-se de ser um homem de poucas palavras. Escutou Rosart e depois disse:

- E?

- E - disse Rosart - ainda não sabemos de que é que Harris and Marsh já se conseguiram apoderar.

- O suficiente para os fazer continuar a comprar, de qualquer forma - disse Keen. - Adquiriram outra tranche importante de Acções Ordinárias de 25 p da Chernwoods ontem ao fim da tarde.

- Foram oportunos - disse Rosart com admiração. - Não tem muito mais que aprender.

- Mesmo antes de a Bolsa fechar para o fim-de-semana - disse Keen, acenando afirmativamente com a cabeça.

- Bom trabalho. Não foi?

- Então o nosso Claude não deve ter dormido muito...

O chefe dos químicos disse:

- Ficou terrivelmente assustado.

Claude Miller, Presidente do Conselho e Director-Geral da Chernwoods' Dyestuffs, era um exemplo vivo da velha frase que dizia "bastam três gerações para estragar uma família". O seu pai não tinha sido o mesmo homem que o seu avô fora e, pior ainda, Claude Miller nem sequer conseguira igualar o seu pai.

- Era de esperar - disse Rosart, sorrindo. - O que ainda não sabemos, no entanto - prosseguiu mais insistentemente - é se Harris and Marsh o têm ou não.

- Isso é verdade, Greg - disse Keen, dirigindo-lhe um leve sorriso - mas penso que em breve o saberemos.

- Como assim?

- Porque penso que Harris and Marsh deixarão de pressionar a Chernwoods logo que o tenham. Aposto que vão deixar de comprar acções o mais depressa que possam. Afinal, não se trata de um grande negócio e sabe Deus onde vão eles buscar o dinheiro.

- Crédito - disse Rosart energicamente. - O que está a dizer, Joe, é que, se conseguiram o que pretendem, já não precisarão de nós. - Rosart olhou para o químico e disse: - E depois?

- Depois o jogo torna-se ligeiramente diferente, só isso. - Joe Keen estava a olhar pela janela para a paisagem rural, mas a sua mente estava em Luston. - E mesmo assim, Greg, só se aquilo a que chama OZ for realmente o que a Harris and Marsh's Chemicals pretende.

- Mas...

- Mas ainda não temos a certeza disso, pois não?

O olhar de Keen percorreu a sala e fixou-se em Greg Rosart.

- Sabemos, no entanto, que eles nos querem a nós - insistiu Rosart, encolhendo os ombros. Nunca gostava daquele olhar de Keen. - E apenas nós - recordou-lhe.

E isso é que era realmente importante, acrescentou interiormente o bibliotecário e encarregado da imprensa.

- E só agora - acrescentou Keen. - Isso é o mais interessante de tudo, não é?

- É verdade...

- Eu acho, Greg - disse Joe profundamente, e bastante satisfeito com a deliberada modéstia da sua afirmação - que poderíamos chamar a Harris and Marsh a incógnita da equação.

 

- Portanto, miss - dizia Sloan - sabemos que pelo menos duas outras pessoas vieram até à Granja ontem à tarde...

- Foi o que Tod Morton me disse, inspector - respondeu Amelia. - O reitor, o Dr. Fournier, que veio entregar uma carta acerca do serviço fúnebre... hinos e coisas no género.

- Que está na mesa do átrio - interveio a Drª Plantin.

- Estava em cima do tapete da entrada quando entrámos e eu automaticamente peguei nela e coloquei-a ali. Foi antes de ver o resto da casa.

- E uma jovem chamada Jane Baskerville, que o Dr. Fournier viu quando veio entregar a sua carta - prosseguiu Amelia.

Sloan tomou nota dos nomes.

- Também ficámos a saber agora - disse Amelia gravemente - que a Chernwoods' Dyestuffs também pretendia os documentos de Mrs. Garamond.

- Interessados ao ponto de telefonarem para aqui no próprio dia em que souberam pelo jornal que ela tinha morrido - disse Phoebe Plantin - apesar de estarmos no fim-de-semana. Se foi assim que souberam da morte, claro - acrescentou astutamente.

- Contactaremos a Chernwoods no decurso das nossas investigações - disse Sloan formalmente. - Não tem mais nada para me dizer, pois não, miss?

Amelia disse lentamente:

- Apenas que o homem da agência funerária me disse que o reitor não parecia muito disposto a ocupar-se do funeral da minha tia-avó, mas ela deixou instruções para que fosse ele a fazê-lo.

 

Os polícias, os patologistas e os encarregados da imprensa podiam todos trabalhar aos sábados e aos domingos. Os membros do foro, porém, não o faziam.

Na segunda-feira de manhã, Amelia reuniu-se com James Puckle no escritório dos solicitadores, perto da ponte de Berebury.

- Miss Kennerley, faça o favor de entrar... - Indicou-lhe uma cadeira. - Tudo isto deve ter sido uma grande surpresa para si...

Amelia observou o jovem solicitador e disse apenas:

- Sim.

- O assalto deve ter sido uma maçada e lamento que tenha tido que haver uma autópsia, mas, dadas as circunstâncias ...

- Como Maria Tudor - observou Amelia.

- Maria Tudor? - James Puckle parecia surpreendido.

- Foi "morta e aberta".

- Ah sim? não sabia... bom, como Maria Tudor, então.

- Maria Tudor - disse Amelia inexpressivamente - disse-lhes que encontrariam .Calais" gravado no seu coração.

- Soube que não - se conhece ainda o resultado da autópsia da sua tia-avó - James Puckle abriu um dossier que tinha em cima da secretária - embora saiba que ela sofria de problemas cardíacos... an... também. No entanto...

- Diga.

O olhar de Amelia tinha sido atraído pela gravata de James Puckle. Azul com qualquer coisa cruzada. Seriam espadas?

- Pelo que sei, Miss Kennerley, não conhecia bem a sua tia-avó.

- Não a conhecia sequer - disse ela com absoluta sinceridade.

O solicitador consultou um papel dentro do dossier.

- Mesmo assim, ela parece disposta a conceder-lhe uma enorme confiança.

- Ao que parece - disse Amelia, no mesmo tom seco que ele usara - não resta mais ninguém da família.

- Talvez... quero dizer, pode muito bem ser esse o caso... exactamente... talvez seja assim embora não estejamos, como hei-de dizer?, ainda absolutamente seguros disso.

- Sem contar com o meu pai - disse Amelia.

- O parentesco dele é ainda mais ténue do que o seu - disse James Puckle. - Além disso, há também a questão do seu aspecto.

- Do meu aspecto? Que raio tem isso a ver com...

- Aparentemente - disse James Puckle, fitando-a nos olhos - a menina lembrava muito à nossa cliente a sua falecida filha, Perpetua.

Ligeiramente sobressaltada, Amelia disse: - Parece saber muito a meu respeito, Dr. Puckle.

O solicitador respondeu: - Demos alguns passos para saber o que poderíamos fazer pela nossa cliente, quando soubemos exactamente o que Mrs. Garamond pretendia que fizesse.

- E o que é? - Mrs. Garamond - respondeu ele obliquamente - por motivos que só ela conhecia, preferiu expressar os seus desejos testamentários na forma de algumas palavras precatórias...

- O que são palavras precatórias? - inquiriu Amelia imediatamente.

- Palavras de votos, esperanças, desejos ou rogos - respondeu o solicitador.

- Compreendo... - Não estava a compreender coisa alguma.

- Geralmente acompanhando uma doação, com a intenção de que o beneficiário disponha dos bens de uma determinada forma.

Começava a fazer-se luz na mente de Amelia.

- A minha tia-avó Octavia queria que fosse feita alguma coisa?

- Penso que poderá pôr as coisas nesse pé - disse o solicitador.

- Alguma coisa, essa coisa que ela quer que eu faça, que ela própria não pôde fazer?

- Creio que é uma inferência justa. - O homem hesitou. - A menos que ela tenha tentado fazê-lo e falhado. Não sabemos isso.

- Fazer o quê? - perguntou Amelia.

- Encontrar alguém.

- Quem? - Ah, aí é que se nos depara uma pequena dificuldade. - James Puckle indicou um papel que tinha na mão. - Ela quer que encontre uma mulher que deverá ter cerca de cinquenta anos agora mas...

- Mas?

Amelia tinha conseguido ver melhor o desenho da gravata do solicitador, não eram espadas cruzadas que julgara ver mas sticks de hóquei. E o brasão do Berebury Hockey Club.

- Receio bem - disse Puckle pesarosamente - que Mrs. Garamond não fizesse ideia do nome que essa mulher usava na altura da sua morte.

- Isso não alarga muito o campo - concordou Amelia gravemente - pois não?

- Faz parte da dificuldade - disse James Puckle. - É apenas uma parte, porém.

Ela recostou se na cadeira.

- Diga lá...

- Uma vez encontrada, se puder ser encontrada, existe esta custódia precatória que Mrs. Garamond criou no seu testamento e com que terá de lidar.

Amelia fitou-o.

- Essa mulher... o que é que a minha tia-avó sabe... sabia acerca dela, então?

- O nome da mãe dela - respondeu James Puckle.

- E onde nasceu? - inquiriu Amelia rispidamente.

- Onde, eu sei - esclareceu o solicitador. - Tenho aqui no meu arquivo a certidão de nascimento dela...

- E? - disse Amelia no curto silêncio que se seguiu quando ele parou de falar.

- Isso parece ser tudo o que a minha cliente sabia - disse Puckle suavemente - isto é, na altura em que fez o testamento.

Amelia fitou-o:

- E tudo?

James Puckle introduziu a mão no dossier.

- No entanto, deveria ser-lhe entregue esta fotografia.

Amelia estendeu a mão em silêncio.

- Infelizmente não é a fotografia da pessoa em questão - disse ele, estendendo-lha por cima da secretária.

- Mas devo sentir-me grata por pequenas ajudas? isso que quer dizer? Tratava-se mais de um instantâneo do que de uma fotografia propriamente dita, e, ainda por cima, pouco nítida. Era a preto e branco, muito pequena e bastante apagada. Pareceu a Amelia um cruzeiro em memória de alguém, junto de uma encruzilhada. Observou a imagem atentamente.

- Uma cruz mas não num cemitério?

- Não é um túmulo - concordou Puckle.- Penso que contém uma inscrição, mas é pequena de mais para se conseguir ler, mesmo com a lente do meu avô.

Amelia esforçou-se, mas também não conseguiu ler.

- Parece-me situar-se - disse o solicitador - num cruzamento de estradas, mas não sei dizer onde.

- Em França, pelo menos - disse Amelia imediatamente.

- França?

- Nos campos de Flandres, Dr. Puckle, onde crescem papoilas. - Amelia olhou para o solicitador do outro lado da enorme secretária coberta de cabedal verde e perguntou: - Não está a gozar comigo com tudo isto, pois não, Dr. Puckle?

- Oh, não, Miss Kennerley, de forma alguma, posso garantir-lhe. Pelo contrário, efectivamente. A questão é séria. Muito séria, mesmo.

- Eu diria que quem assaltou a Granja também estava a agir muito a sério - disse Amelia. - Pensa que as duas coisas possam estar ligadas?

James Puckle franziu a testa.

- Não posso responder a isso. Só posso dizer que as minhas instruções foram dar-lhe a chave da Granja, assim como a certidão de nascimento e a fotografia.- Ajeitou a gravata e disse: - É possível que haja muito dinheiro à espera desta mulher, se ela for encontrada.

- Possível? - inquiriu Amelia.- Que quer dizer com possível?

James Puckle respondeu:

- Antes de mais, deixe-me explicar-lhe a natureza de uma custódia precatória.

- Talvez seja boa ideia - disse Amelia, calculando que o facto de ele ter endireitado a gravata queria dizer que tinha mais coisas para dizer. - Por outro lado, talvez não.

Ele dirigiu-lhe um rápido sorriso.

- É geralmente usada com um dispositivo legal, segundo o qual um homem pode tratar do sustento discreto de uma amante e de família que tenha constituído através dela, depois de ter morrido, sem que a mulher e o resto da família venham a saber da sua existência.

- Quanto a mim - interrompeu Amelia num tom militante - qualquer esposa que se preze descobriria isso.

James Puckle não objectou, prosseguindo:

- Os acordos precatórios foram vulgarmente utilizados nos tempos da Rainha Victoria...

- O que não teria divertido muito a rainha...

- Quando havia um maior opróbio ligado a... an... ligações irregulares.

- Está a tentar dizer-me - perguntou directamente Amelia - que a minha tia-avó tinha um amante?

- Estou a tentar explicar-lhe o que são custódias e acordos precatórios - disse suavemente James Puckle.

- Oh, está bem. Continue.

- O mecanismo que presido a este dispositivo é realmente muito simples...

- Simples! Oh, desculpe...

- O testador deixaria uma soma de dinheiro apropriada ao seu melhor amigo ou a alguém em quem confiasse...

- Os melhores amigos nem sempre são os mais dignos de confiança.

- Certo. Não obstante, o testador escolheria um amigo ou membro da sua família...

- O que também nem sempre é a mesma coisa.

- Em quem achasse que poderia confiar e nomeava-o legatário, por vezes dos resíduos da herança porque isso era mais flexível, e depois... - James Puckle deteve-se.

- E depois...? - incitou Amelia, inclinando-se para a frente.

- E depois fazia com que lhe fosse entregue um sobrescrito selado com o testamento em que o testador explicava que o dinheiro que lhe tinha sido deixado não era propriamente para ele mas para a manutenção secreta da sua amante.

Amelia recostou-se de novo e declarou:

- Realmente não percebo o que é que isso tem a ver comigo.

- Muito, Miss Kennerley. Deve compreender que Mrs. Garamond fez de si a sua única executora e a sua legatária residual partindo do princípio de que, o acordo não escrito e discreto no que diz respeito ao testamento, repare, será encontrará esta mulher...

- E depois? - perguntou Amelia com voz tensa.

- As instruções de Mrs. Garamond exigem que, uma vez encontrada, seja feito um julgamento antes de lhe ser entregue o grosso dos seus bens.

- Um julgamento muito subjectivo acerca do seu direito a herdar.

Amelia suspirou.

- Então vou ter que ser simultaneamente juiz e júri, não é assim? Sempre partindo do princípio de que consigo encontrá-la...

- A custódia precatória dá-lhe uma opção total. - James Puckle folheou os seus papéis. - No entanto, se alguma vez os seus actos forem postos em causa, embora eu não consiga imaginar por quem, teríamos, evidentemente, muito gosto em agir por sua conta.

Amelia franziu o nariz, desorientada.

- E se eu não... se não conseguir... encontrá-la, ou se ela estiver morta, o que sucede?

- O resíduo das propriedades da sua tia-avó será seu.

Amelia disse ironicamente:

- Fica tudo em família, não é?

- Exactamente, Miss Kennerley - disse o solicitador. - A ligação está aí. Afinal, a sua falecida mãe e a filha da testadora, Perpetua, eram primas direitas.

Amelia acenou com a cabeça, concordando com esta afirmação. Puckle, Puckle e Nunnery tinham estudado devidamente o seu passado.

James Puckle prosseguiu:

- As palavras precatórias, devo recordar-lhe, não passam de um desejo privado, uma esperança, um voto...

- E um rogo - terminou ela.

- Expresso por escrito em privado. - O homem tossiu. - Devo recordar-lhe que não foi estabelecida qualquer custódia no sentido legal do termo, embora, ao abrigo de legislação mais recente, fosse possível que ela tivesse uma declaração separada de seu próprio direito...

Amelia já quase não o escutava. A sua mente recuara para a estranha ocorrência na Granja, talvez fosse ainda mais importante agora.

- E que nem as provisões das diversas Leis das Custódias nem as das palavras precatórias são legalmente executáveis. - Fitou-a e perguntou: - Fui bem claro?

- Como o Rei Carlos II quando disse "Não deixem a pobre Nellie morrer à fome" (1)? - perguntou Amelia.

 

(1) Carlos II referia-se a Nell Gwyn (1650-1687), actriz que foi sua amante. (N. do T.)

 

- Tal e qual como o Rei Carlos, Miss Kennerley, exceptuando o facto - disse ele secamente - de que talvez se interesse mais pelos desejos da sua tia-avó do que os amigos e parentes do Rei fizeram. Ao que parece, efectivamente a pobre Nellie do Rei morreu de fome.

- E se eu não o fizer? - perguntou Amelia por curiosidade.

- Isso - disse o solicitador - é uma questão inteiramente entre si e a sua consciência.

- Compreendo.

- Devo também dizer-lhe que poderá, evidentemente, recusar-se a agir, se assim o entender.

- Porque estamos num país livre. - Amelia cravou os olhos nos de James Puckle e disse: - Sabemos por que motivo a tia-avó Octavia deixou o seu dinheiro desta forma a uma pessoa cujo nome não sabia e eu não devo mencionar?

- Oh, sim, Miss Kennerley - respondeu o solicitador. - Isso não é problema. Bem vê, era filha dela.

- Mas a sua filha Perpetua morreu...

- Não se trata de Perpetua - disse James Puckle. - Ela tinha tido outra filha antes de casar com o tio da sua mãe...

 

"Agitando a cauda como uma pluma no ar"

- E, Phoebe - Amelia parou para respirar, - colocando uma cópia da certidão de nascimento que James Puckle lhe dera sobre a mesa da cozinha, para que a sua madrasta a visse - sabias que a tia-avó Octavia me deixou uma patética mensagem para transmitir à sua filha quando, se, eu a encontrar? E no seu testamento deixou uma vela, só isso, a uma pessoa chamada Kate. Não achas tudo isto triste?

A Drª Plantin acenou afirmativamente com a cabeça.

- E pensar que ela desejou tanto vê-la durante todos estes anos... - disse Amelia.

Phoebe Plantin pousou firmemente no chão da cozinha o seu grande saco de médica, puxou uma cadeira para junto da mesa e examinou o documento.

- "Uma criança do sexo feminino" - leu em voz alta - "nascida a 15 de Dezembro de 1940. Sobrenome da mãe Harquil-Grasset..."

- Continua - insistiu Amelia.

- "Pai desconhecido" - disse Phoebe.

- Quando a encontrar - disse Amelia, um pouco insegura - devo dizer-lhe como ela lamentava ter-lhe inflingido o ferrete. James Puckle diz que era assim que antigamente se dizia na Escócia, com o sentido de marca, o ferrete da bastardia, mas que fizera apenas o que achava estar certo na altura.

- Ninguém pode fazer mais - comentou Phoebe Plantin com um ar doutoral. - Quanto ao apelido não sei, mas deu-lhe bastantes primeiros nomes, não te parece? - Erica Hester Goudy - citou Amelia. - Eu sei, mas James Puckle diz que ela pode não os ter conservado quando foi adoptada. Tem todas as probabilidades de, neste momento, se chamar qualquer coisa como Mary Smith.

- Nascida numa clínica de Londres - observou a Drª Plantin, observando ainda atentamente a certidão - e durante a guerra.

- Provavelmente disse-lhes que era viúva de guerra - observou Amelia.

- Não me surpreendia muito - disse Phoebe Plantin, que tinha deixado de se surpreender havia muito tempo.

- E tratou de mandar flores a si mesma, penso eu. Já houve casos desses. Não que esse tipo de clínicas fizesse perguntas, de qualquer forma.

- Mas repara - Amelia apontou para uma linha da certidão de nascimento. - Ela indicou a sua profissão.

- Química bióloga... - disse a médica pensativamente. - Deve ter sido uma pessoa muito inteligente para ter escolhido esse curso antes da guerra.

- Deixou algum dinheiro para a sua antiga faculdade - disse Amelia. - Está no testamento.

- Pensou em tudo, não achas? - De qualquer forma - disse Amelia, voltando-se para prestar atenção a qualquer coisa sobre o fogão - é tudo tão diferente agora, refiro-me à adopção de um bebé. O Parlamento não fez passar uma lei, ou coisa parecida, dizendo que as crianças adoptados podem agora descobrir a sua verdadeira mãe?

- Fez, sim - disse Phoebe Plantin calorosamente - só que não lhe chamam verdadeira mãe, mas sim mãe natural...

- Mas como é essa nova lei? - Amelia desejava agora ter prestado mais atenção às suas aulas de educação cívica no liceu, a lei parecia uma coisa tão remota, do ponto de vista do sexto ano. - De que tratava?

- Deves estar a referir-te à Lei das Crianças de 1975, penso eu, mas - Phoebe abanou a cabeça - não vai ajudar-te a encontrar a filha de Octavia Garamont, lamento muito.

Amelia afastou-se do fogão.

- Porque não?

- Porque, embora a lei tenha dado às crianças adoptadas o direito de procurar as suas mães naturais, quando alcançarem a idade de dezoito anos - disse a madrasta - não deu às mães naturais qualquer direito para descobrirem o que sucedeu aos seus filhos naturais que foram adoptados...

- Mas...

- O que se poderá chamar molho para os patinhos mas não para o pato.

- Ou para a pata.

- Ou para a pata - disse Phoebe Plantin, tamborilando com os dedos sobre a certidão de nascimento. - Quando Erica Hester Goudy Harquil-Grasset foi adoptada, que foi presumivelmente o que lhe sucedeu, uma vez que a sua mãe natural não conseguiu encontrá-la posteriormente...

- Se tentou - disse Amelia. - Ainda não sabemos disso.

- Pode ter recebido uma nova certidão de nascimento.

- Percebo - disse Amelia - mas...

- A Conservatória Geral mantém um registo confidencial das adopções e das ligações entre os nomes antigos e novos a que apenas a criança tem acesso - disse a Drª Plantin, acrescentando com autoridade - e apenas quando atingir a idade de dezoito anos e tiver recebido aconselhamento profissional.

- A mãe verdadeira, perdão, natural não tem esse acesso?

- A mãe natural não - disse a Drª Plantin.

- Mas não há nada que a impeça de procurar, pois não? - perguntou Amelia, mexendo o conteúdo da caçarola. - Estamos num país livre...

- Nada. - Phoebe Plantin empurrou a certidão de nascimento para o lado e puxou a pequena toalha individual.

- Mas há apenas duas coisas que ela pode fazer que são realmente úteis.

- Quais são?

- Uma delas é depositar o seu nome e endereço na Conservatória, dizendo que deseja que eles sejam indicados ao seu filho natural, se ele, ou ela, procurar a identidade da mãe, indicando que deseja estabelecer contacto com ele, de modo que, se o filho o desejar, poderá contactá-la imediatamente.

- E a outra?

- Pôr um anúncio num jornal. Já viste com certeza anúncios a pedir a uma criança adoptada, nascida em tal ou tal data, que escreva para alguém, que é provavelmente a sua mãe - disse a Drª Plantin. - Evidentemente, é uma coisa que poderá lugar a abusos de confiança de uma ou doutra parte, mas talvez tenhas que fazer uma coisa dessas.

- Ou - disse Amelia - procurar todas as crianças do sexo feminino nascidas em 15 de Dezembro de 1940.

- Difícil - disse Phoebe Plantin placidamente. - Até mesmo Herodes teve os seus problemas, nesse aspecto, apesar de ser rei.

- O Rei Herodes?

- Ele tentou, não foi? Se o que está ao lume é sopa, está a queimar-se.

 

- Ah, Sloan... - O Superintendente Leeyes podia ser geralmente encontrado no seu gabinete, mais ou menos da mesma forma por que uma aranha poupa as suas forças e vai vigiando a sua rede. A única verdadeira diferença residia no facto de, enquanto a aranha tem que esperar que a sua vítima fique presa na rede, o superintendente mandava chamar a sua.

- Superintendente.

- Cá está, finalmente... - O superintendente tinha, havia muito, transformado a forma de chamar à atenção os seus subordinados numa verdadeira arte. - Aquele caso Garamond... está a fazer progressos, espero.

- Determinámos que, quem fez todos aqueles danos na Granja de Great Primer entrou por uma janela da copa, nas traseiras da casa. - Sloan não estava muito seguro de que isto fosse um progresso e insistiu. - A uma hora ainda indeterminada, depois de os agentes funerários Mortons terem removido o corpo na sexta-feira de manhã, e antes de Miss Kennerley e a Drª Plantin terem chegado no sábado à tarde.

- Não se importaria de estreitar um pouco o leque, Sloan? - perguntou Leeyes com fingida solicitude. - Digamos para sexta-feira ou sábado, ou para um mês que tenha R?

- De momento não, superintendente, obrigado. - Consultou o seu caderno de notas e prosseguiu: - Também determinámos que o intruso ou intrusos usaram luvas...

- Então o que temos de novo? - disse Leeyes, encolhendo os ombros.

- O facto - respondeu à letra Sloan - de eles também usarem uma espécie de cobertura para os sapatos, presumivelmente para não deixar pegadas. As alcatifas da Granja são excelentes.

Leeyes grunhiu.

- Se a jovem que foi vista pelo reitor a abandonar o local às quatro e meia na sexta-feira à tarde teve alguma coisa a ver com o assalto, é coisa que ainda temos que descobrir - prosseguiu Sloan. - Fizemos circular o nome que ela indicou e uma descrição aproximada... e o Detective Crosby está a entrevistar a mulher que estava a trabalhar como auxiliar de saúde na Granja, na noite em que Mrs. Garamond morreu.

Leeyes grunhiu de novo.

- E depois vamos a Luston. O casal Garamond trabalhou na Chernwoods' Dyestuffs e aquela antiga firma...

- Antiga firma, uma treta - disse Leeyes vivamente. - No mês passado foi a tribunal por infringir os regulamentos de saúde e segurança e pôr em perigo o bem-estar do pessoal. Não soube disso?

- Mesmo assim - disse Sloan - parecem mostrar muito interesse pelo assalto à Granja.

- Ah sim? - resmungou Leeyes. - É melhor confirmar se é um interesse saudável. Mas espere aí, espere aí um minuto, Sloan... havia mais alguém interessado na Chernwoods' Dyestuffs, não havia? Creio que vinha em The Chronicle, na semana passada...

- Harris and Marsh's Chemicals, superintendente - informou Sloan, que também lia o jornal local. - Troquei umas palavras com a Divisão "G" em Luston a esse respeito, esta manhã. Ao que parece, Harris and Marsh's andam a tentar apoderar-se da Chernwoods já há algum tempo.

- Sempre pensei que os cães não se comiam uns aos outros - objectou Leeyes - mas suponho que estou antiquado.

- Em negócios, é assim mesmo - disse Sloan sem hesitar. - Mas não é tudo. Consta em Luston que, em vez de serem... an... comidos pela Harris and Marsh's Chemicals, alguns dos directores da Chernwoods' Dyestuffs preferiam uma aquisição por gestão da direcção.

- A sim? - Leeyes fungou. - Espero que saibam o que estão a fazer, pondo todos os ovos no mesmo cesto, dessa forma.

- Ocorreu-me, superintendente, a ideia de que a falecida pudesse ter uma posição significativa na Chernwoods, uma vez que ela e o marido lá trabalharam em tempos.

- Não fazia mal tentar saber - concordou Leeyes.

- A falecida - disse Sloan, consultando de novo o seu caderno - parece ter tido um profundo desaguisado, em tempos, com o reitor de Great Primer.

- Espero, Sloan - disse Leeyes, com irritação - que a religião não entre nesta história. Nesse caso, não há nada que esteja interdito...

 

No que dizia respeito ao presidente do conselho e director-geral da Chernwoods' Dyestuffs, nunca tinha havido coisa alguma que estivesse interdita, no campo dos negócios. Este tinha sido um dos muitos desapontamentos da sua vida. Naquele momento, escutava atentamente o relato de Gregory Rosart do seu telefonema para a Granja, sentindo-se ainda mais preocupado.

- Achei que não devia esperar até hoje, Mr. Miller, para tentar estabelecer contacto - disse o encarregado da imprensa, tendo o cuidado de suprimir qualquer referência à sua visita a Joe Keen. - Poderia ser tarde demais.

Claude Miller mordiscou a articulação da mão.

- Certo.

- E tinha toda a razão. Já lá tinha ido alguém.

- Fomos batidos, não é isso, Greg? - disse Miller.

Gostava de pensar que sabia enfrentar as realidades.

- Ah. - Rosart ergueu o indicador. - Isso é uma coisa que nós ainda não podemos saber, pois não?

- Se quer saber - respondeu Claude Miller amargamente - é aí que reside todo o problema. Ninguém sabe ao certo quanto os outros sabem deste assunto e não temos forma de o descobrir. Só temos suposições.

- Ora, eu não diria isso, Mr. Miller. Ainda não...

 

A auxiliar de saúde que trabalhava de noite na Granja chamava-se Mrs. Shirley Doves e não se fez rogada em falar com um jovem polícia simpático que parecia tão interessado em todos os seus actos.

- Quinta-feira à noite? Foi como todas as outras noites. O meu Ron levou-me até lá. Saímos de casa, mais ou menos às nove e meia, penso eu. Deito os miúdos, a minha mãe vai lá dar uma olhadela de vez em quando, e depois Ron leva-me a Great Primer.

- Então a que horas deve ter chegado à Granja? - perguntou o Detective Crosby. Sabia que deveria tratá-la por "minha senhora", mas não conseguia fazê-lo.

- Oh, nós não vamos direitos à Granja, querido, eu só tinha que lá estar às dez e meia, percebe? Não, a gente passa primeiro pelo "Cão e Pato". Não sei se conhece... aquele bar do outro lado da igreja, vindo da Granja. Já o deve ter visto, quando foi para aqueles lados, considera-se polícia e não conhece os bares? Oh, pronto, está bem... o senhor é que sabe... O meu Ron conhece o dono, percebe? Bom, a gente vai até lá primeiro, senão - Shirley riu-se - nunca via o Ron, não lhe parece? Oh, bom, quase nunca. Está a ver, ele vai trabalhar na altura em que eu chego, de manhã, a minha mãe leva os miúdos à escola, excepto o mais pequeno, por isso aquela hora no bar, à noite, é o único tempo que passamos juntos, o Ron e eu. Veja bem - disse elipticamente - que a minha mãe diz que já chega ter quatro filhos com menos de seis anos. Ela acha que é tempo do Ron fechar o estabelecimento, mas ele não gosta muito da ideia.

O Detective Crosby corou um pouco e perguntou se a quinta-feira anterior tinha sido diferente das outras noites, de alguma forma.

- Agora que pergunta - admitiu Shirley - talvez eu tenha chegado um pouco mais tarde que habitualmente. Não muito, repare. Bem vê, a gente começou a falar com um tipo que estava no bar e ele ofereceu-nos mais uma rodada antes de nos irmos embora. - Apressou-se a dizer: - A velhota não se importou. Acho que ela já não queria saber que horas eram. Além disso, disse-me que estava à espera de uma visita na tarde do dia seguinte. Estava muito excitada. De qualquer forma, preparei-a para a noite como sempre fazia, depois dei-lhe um copo de leite com os comprimidos, e fui deitar-me. Um bocado cedo, por acaso. Durante a noite? Não, não me chamou uma única vez e dormi a noite toda de seguida. É claro, de manhã ela tinha morrido. Não foi surpresa para ninguém. Podia ter acontecido em qualquer altura, disse o médico. É uma pessoa muito simpática, o Dr. Aldus. Não ficou nada aborrecido comigo. Sabia que eu não tinha a obrigação de ficar acordado a olhar para ela: Só tinha que lá estar para que não lhe acontecesse mal nenhum...

 

"Sepultem-no nobremente - mesmo ao lado do burro"

- Phoebe...

- Hum?

- Penso - disse Amelia - que vou precisar de saber onde esteve a tia-avó durante aquele ano em que a sua filha nasceu.

- Também me parece.

- Diz-me lá, se a bebé nasceu em 15 de Dezembro, quando teria ela sabido que estava grávida?

A Drª Plantin pensou um pouco.

- Naqueles tempos, por volta de meados do Maio.

- Naqueles tempos?

- Os testes de gravidez eram diferentes, naquela altura. - Ergueu uma mão. - Eu sei que vais dizer-me que vais dizer que, evidentemente, ela teria sabido primeiro, mas deves lembrar-te que, naquela altura, as coisas não eram como agora. Os testes de gravidez em 1940 precisavam de muito tempo e de ratos.

- Ratos? - ecoou Amelia, surpreendida.

- Ratos, coelhos ou rãs. - O telefone começou a tocar e Phoebe Plantin pôs-se de pé. - Poderás começar por tentar descobrir, se puderes, onde estava a tua tia-avó por volta da segunda metade de Março de 1940. - Pegou na sua mala. - Foi por essa altura que o bebé foi concebido. Se for do meu consultório, diz-lhes que já vou a caminho.

- Phoebe, não sei bem se devia ter-te falado da bebé... ela devia querer que ficasse em segredo.

- Vai comigo para o túmulo - prometeu a Drª Plantin, saindo da sala.

Amelia sorriu e dirigiu-se ao telefone, pronta a transmitir a mensagem da Drª Plantin, mas o telefonema não era para a médica, mas sim para si.

- Fala Claude Miller, Presidente da Chernwoods' Dyestuffs - disse uma voz, num tom importante. - Estou a telefonar para dizer que consideraria uma grande honra dizer algumas palavras acerca de Mrs. Garamond no seu funeral. Ou talvez fazer uma palestra. Não pretendo intrometer-me, evidentemente, mas, afinal, ela esteve ligada à nossa firma durante muito tempo.

Amelia prometeu que falaria com o reitor. E depois resolveu fazer umas chamadas particulares.

- Informações? Desejo, por favor, o número da secretaria do Boleyn College...

A chefe da secretaria tinha uma voz aguda e fina e chamava-se Miss Wotherspoon.

- Em que posso ajudá-la? - guinchou. - Quem? Garamond, com o sobrenome de solteira Harquil-Grasset, foi o que disse? Ah, sim, vi no jornal. Só um momento, vou consultar os meus arquivos...

Amelia ouviu os seus passos a afastarem-se e depois a regressarem.

- Ainda está aí, Miss Kennerley? Ela entrou como Bolseira de Brakewell antes da guerra e fez o curso de Química Biológica, nessa altura ainda não lhe chamávamos Biologia, esse nome estava a começar a entrar em moda na altura e o Boleyn sempre fez tudo à antiga - Licenciada com Honra em Química Biológica. - Miss Watherspoon recuperou o fôlego e prosseguiu: - Foi uma excelente aluna, recebeu o Prémio Malthus, o Banksia para Ensaios por um trabalho acerca da mitose no açúcar de beterraba... que, por acaso, foi muito útil mais tarde...

- Mais tarde...? - interrompeu Amelia.

- Neste país deixou de se importar cana-de-açúcar praticamente desde que a guerra principiou, e tenho a certeza de que ela se doutoraria, se a guerra não rebentasse nessa altura... estaria destinada a fazê-lo.

- Sim, evidentemente - disse Amelia. - Isso fez, com certeza, uma grande diferença.

- Depois fez investigações no Linnean Institute até 1940 - prosseguiu a chefe da secretaria, obviamente a ler em voz alta. - Trabalhou durante a guerra na firma Chernwoods' Dyestuffs de Luston, Calleshire, casou-se em 1941 com William Garamond... - A voz de Miss Wothersoon desvaneceu-se num desapontamento patente. - Apenas colaborou em publicações com William Garamond depois, infelizmente, parece não ter publicado qualquer coisa apenas sua...

Amelia perguntou a si mesma o que teria pensado disto Ana Bolena. Ou Henrique VIII...

- É sempre tão difícil - prosseguiu a funcionária vivamente - , quando há trabalhos conjuntos de cônjuges, saber quem fez o verdadeiro trabalho, pois as esposas, mesmo que sejam muito boas profissionais, escondem sempre isso.

Não é possível impedi-las.

- Não - disse Amelia - mas ficará por certa satisfeita por saber que a minha tia-avó não esqueceu Boleyn no seu testamento...

 

Mal o Detective-Inspector Sloan regressou ao seu gabinete, o telefone começou a tocar. Era o patologista.

- Ela pode ter sido assassinada? - repetiu Sloan.

- Foi o que eu disse e é isso que eu quero dizer - declarou o patologista sem arrependimentos. - Estive a falar com as pessoas a quem enviei aquelas colheitas.

- E?

- São ambíguos - disse o Dr. Dabbe, acrescentando animadamente - tanto as colheitas como as pessoas.

- Mas...

- Vão fazer mais testes mas pensei que, entretanto, deveria pô-lo ao corrente do que se passa.

- Obrigado, doutor, mas...

- Se tiver sido administrada à falecida qualquer substância nociva - prosseguiu o patologista - que justifique os achados da autópsia no seu fígado e rins, não sabemos ainda de que se trata.

- Quando diz "administrada", doutor, o que quer dizer exactamente?

- Quero dizer - respondeu imediatamente Dabbe - que ainda não está claro de que forma a substância penetrou no organismo da velha senhora, se é que penetrou, evidentemente.

- Todas as precauções dela - disse Sloan cautelosamente - parecem apontar para o facto de ela considerar a possibilidade de... an... malfeitoria.

- E tudo o que eu posso dizer nesta fase - disse, um pouco menos informalmente, o Dr. Dabbe - é que, se alguém lhe queria fazer mal, o pode ter feito...

- Mas como? - inquiriu Sloan, tendo diante da sua mente, embora não expresso verbalmente, o clássico trio dos pré-requisitos do crime: o meio, o motivo e a oportunidade.

- Ah, isso já é um assunto completamente diferente - disse Dabbe. - Ainda não podemos dizer-lhe como.

- Compreendo - disse ele.

- Posso dizer-lhe, no entanto, algumas das formas por que não aconteceu - disse o Dr. Dabbe prestimosamente. - Ela não a engoliu porque fiz colheita do estômago, recorda-se?

Sloan recordava-se.

- E também examinei o corpo muito cuidadosamente, para ver se havia marcas de picadas.

- Não havia.

- Exactamente, Sloan - concordou o médico. - Não havia. Como aquele curioso incidente do cão durante a noite.

- Não ladrou - respondeu Sloan. Era um bom jogo para dois.

- Foi isso, como Sherlock Holmes observou, que foi curioso - disse o patologista. - Também posso afirmar que não havia quaisquer marcas na pele dela que sugerissem a aplicação de um veneno percutâneo...

- Como disse, doutor?

- O pai de Hamlet...

- O Espectro?

- O Espectro. Se bem se recorda, Sloan, tinha sido assassinado com um veneno percutâneo que lhe foi deitado no ouvido.

- Mas Mrs. Garamond não foi esse o caso, pois não? - perguntou Sloan, tentando conservar a lucidez.

- Ambos os ouvidos - respondeu Dabbe Imediatamente - estavam secos e os tímpanos visíveis, e nem John Aldus nem eu encontrámos coisa alguma na sua pele.

- No entanto, ela pediu-lhe que a observasse.

- Assim parece.

- Ainda resta o nariz... - disse o Detective-Inspector Sloan, decidido a não se deixar distrair por alusões literárias.   - Ela teria podido inalar alguma coisa?

- Não posso dizer-lhe que não o fez - disse o patologista com voz suave. - Por enquanto.

 

- Então em que ponto estamos agora, Crosby?

- Acabamos de passar a saída de Calleford.

- Não é onde estamos na estrada, Crosby. Isso posso eu ver, obrigado, isto é, se e quando me decidir a abrir os olhos.

- Como disse? - O Detective Crosby parecia ofendido.

Os dois polícias seguiam de carro pelo único troço de auto-estrada de Calleshire, satisfazendo a ânsia de velocidade de Crosby e, ao mesmo tempo, prejudicando gravemente os processos digestivos de Sloan.

- Eu queria dizer - suspirou Sloan - em que ponto estamos do caso, se é que existe um caso, da falecida Octavia Garamond.

- Oh. - Houve uma longa pausa e depois Crosby disse, hesitante: - Não muito longe, pois não?

- Surpresa, surpresa, Crosby. Pode ter acertado.

- Obrigado, senhor.

Um sorriso radiante substituíra o ar ofendido do detective.

- Tudo aquilo que conseguimos até este momento não passa de palha - disse Sloan. - Pode-se soprar como um dente-de-leão, porque está a parar, Crosby? A estrada está totalmente desimpedida...

- O Inspector Harpe, do Trânsito, mandou colocar um controlo de velocidade ao fundo de Bembo Hill, hoje mesmo.

- Mas ele fez isso? - perguntou Sloan. - Boa ideia.

- Sim senhor. - Crosby acendeu os faróis na direcção de um polícia fardado que tinha na mão um aparelho de radar computadorizado, ao passar junto dele à sua menor velocidade da semana.

Sloan gozou um momento de descontracção.

- Não vou perguntar-lhe como soube disto.

- Obrigado, senhor.

- Mas agora que o perigo imediato já passou, Crosby, talvez possa voltar de novo a sua mente para o assunto em mãos.

- Não se tratou - adiantou Crosby - de um assalto vulgar, na Granja.

- Pois não - concordou Sloan.

- E quem o fez começou a procurar pouco tempo depois de a senhora ter morrido.

- Certo.

- E depois houve aquela coisa de ela querer que o médico a observasse depois de morrer.

- Muito bem. Continue.

- E de pedir a nossa presença no funeral.

Sloan disse muito seriamente:

- Penso que não há dúvidas de que, quer o tenha sido quer não, a falecida parecia pensar que iria ser assassinada.

- A mim parece-me - disse Crosby, retomando a sua velocidade habitual - que ela estava absolutamente certa disso.

- Seja como for - disse Sloan - atendendo a que ela era, sob todos os aspectos, uma mulher muito inteligente, penso que os seus últimos desejos deverão ser respeitados por toda a gente.

- Então - disse Crosby - porque é que ela não disse a alguém que tinha medo de ser assassinada, enquanto ainda estava viva?

- Tenho estado a pensar nisso - disse Sloan - e cheguei à conclusão de que ela não tinha medo de morrer e não se importava.

Crosby, surpreendido, levantou o pé do acelerador.

- Não se importava de ser assassinada?

- Estava velha, doente e sozinha no mundo, e o seu médico concorda em que ela sabia que não poderia viver muito tempo.

Crosby voltou a pisar o acelerador.

Sloan disse:

- Eu diria que ela já tinha decidido que não tinha interesse em viver... - Ergueu o olhar e agarrou-se quando ultrapassaram um carro de desporto TVR a uma velocidade em que nem queria pensar. - Quero que saiba que eu tenho, Crosby.

- O quê?

- Tudo. Uma mulher, um filho, um emprego e agora Madame Caroline Testout.

- Como disse?

- Uma antiga rosa Chá Híbrida. Está no seu auge, neste momento.

- Sim senhor.

- E, além disso, quero que saiba que não partilho esse seu horror enraizado a olhar para a parte de trás de um veículo que vai à sua frente.

- Sim senhor.

- Especialmente quando estou a pensar num caso muito estranho, em que o patologista e os seus ajudantes nem sequer conseguem saber ao certo de que morreu a falecida.

O Detective Crosby meteu o carro da Polícia na faixa lenta da auto estrada, mesmo atrás de um camião articulado pesadamente carregado, com um reboque, e disse:

- Aquela coisa que toda a gente andou a procurar na Granja...

- Concordo que seria útil se soubéssemos de que se trata - respondeu Sloan, mais ao raciocínio de Crosby do que às suas palavras.

- Parece-lhe, inspector, que a velhota teria isso lá? Fosse o que fosse.

- Se tinha - disse Sloan - então acho que, ou ela sabia que estava num sítio...

- Onde ninguém a poderia encontrar? - disse Crosby, aproximando mais o carro do escape do camião.

- Isso mesmo - disse o Inspector Sloan - ou, estivesse lá ou não, que ela queria que eles fizessem a sua jogada.

- Fossem eles quem fossem? - disse Crosby.

Sloan subiu o vidro da janela para não deixar entrar o fumo.

- Exactamente. E havia outra coisa mais...

- O quê?

Crosby tentou ver através do fumo, de uma forma muito exagerada.

- Aquelas notícias sobre a sua morte, enviadas a todos aqueles jornais diferentes, de que Tod Morton nos falou...

- O que é que têm?

- Acho que ela queria ter a certeza de que alguém...

- Pessoa ou pessoas desconhecidas - ajudou Crosby, que estava a esfregar o interior do pára brisas do carro, como para dispersar o fumo negro do camião.

- Soubesse que ela tinha morrido.

- Para virem passar uma busca à sua casa?

- Não exactamente. Podiam ter feito isso em qualquer altura. Pelo que o Dr. Aldus disse, Mrs. Garamond sempre foi muito frágil para os deter.

- Então para quê, inspector?

- Para eles virem passar uma busca a casa depois de ela estar morta. Há uma grande diferença.

Era um aspecto demasiado subtil para Crosby. Concentrou-se, de preferência, em fazer regressar o carro à faixa rápida.

Estavam quase em Luston quando falou de novo:

- Inspector, como é que havemos de saber se eles...

- Pessoa ou pessoas desconhecidas?

- Isso - disse o agente - levaram ou não aquilo que pretendiam?

- Ah! Essa é uma boa pergunta - disse Sloan.

"Vai buscar a bandeira e agita-a no ar"

Era exactamente esse mesmo problema que estava a preocupar Michael Harris da firma Harris and Marsh's Chemicals de Luston. Achava a pergunta tão difícil de responder como o Inspector Sloan achara.

No entanto, ao contrário de Sloan e Gregory Rosart, Harris não tinha com quem falar abertamente acerca deste problema. Podia, no entanto, falar da sua acção predatória sobre a Chernwoods' Dyestuffs com o seu director financeiro, na verdade tinha mesmo que conversar com David Gillsans, porque ainda estava pouco ao corrente das letrinhas miúdas dos contratos de aquisição de companhias limitadas. Tal como o seu pai antes dele, Michael Harris era sobretudo um químico e não um especialista em leis ou em finanças. Considerava que o seu director financeiro, David Gillsams, era ambas as coisas.

- Então o que é que já detemos da Chernwoods, David?

- À hora do fecho da Bolsa na passada sexta-feira à tarde, apenas um por cento abaixo da percentagem que nos permitirá fazer uma oferta pública.

- Isso não inclui a parte do meu pai, pois não?

- Não - disse o director financeiro pacientemente.

Era um terreno já batido e já tinham falado antes no assunto.

- Nem a de Octavia Garamont?

- Não, naturalmente.

- Ela morreu na sexta-feira.

- Eu vi no jornal.

- O que sucede agora à parte dela?

- Depende do que ela tiver decidido no testamento. Se não especificou as acções no testamento como legado condicionado, os executores poderão decidir vendê-las para conseguir fundos para transferência de capital e imposto sucessório...

- Gostava que chamasse as coisas pelos seus nomes, David - disse Harris, um pouco irritado - para eu saber de que é que estamos a falar...

- Os impostos pagos pela morte - disse David Gillsams com voz suave.

Brincou momentaneamente com a ideia de dizer ao seu patrão que o imposto tinha tido a sua origem como uma multa aplicada a um súbdito por morrer e assim privar a Coroa dos serviços do falecido, mas decidiu não o fazer. Harris já estava suficientemente enervado naquela manhã. Por isso disse apenas:

- Vai haver um bom atraso, evidentemente, antes de poderem ser vendidas, inventário, etc. Os solicitadores nunca tem pressa

- Ela deve ter uma boa parte - disse Harris, pensativo - porque na altura eram dois. Ela e o marido.

- É difícil acreditar que a Chernwoods' Dyestruffs passou por um mau bocado, depois da guerra - disse David Gillsams num tom pacífico - e que precisava de capital.

Estava a pisar um terreno mais seguro. Michael Harris estava sempre pronto a contar de que forma o seu pai e Freddie Marsh tinham abandonado a Chernwoods depois da última guerra e montado a sua própria firma do outro lado da cidade: e como Albert Harris tinha conservado as suas acções da Chernwood também, de modo a poder ir observando como estava a portar-se a sua rival mais directa. Não que as folhas de balanço dissessem tudo. O velho Albert Harris sabia disso, muito antes de ele e Freddie Marsh terem decidido seguir o seu próprio caminho.

- Deve ter sido duro para todos eles, nessa altura - disse Michael Harris. - Repare que eu ainda era um rapaz, mas o pai falava muito do assunto em casa.

- Separaram-se de má vontade? - perguntou David Gillsams por curiosidade. - Quero dizer, o seu pai e Freddie zangaram-se com eles ou afastaram-se muito simplesmente?

- Oh, não, nada disso - respondeu Harris, pressentindo uma crítica. - Os Garamond tinham possibilidade de meter dinheiro a sério na Chernwoods, bem vê, e o pai e o Freddie não podiam fazê-lo. Naquela altura. O pai tinha apenas algumas acções, como recordação dos velhos tempos e para poder ir acompanhando o que eles faziam.

- E como está o seu pai? - perguntou David Gillsams delicadamente. Freddie Marsh tinha morrido havia muito.

- Na mesma - disse Harris, encolhendo os ombros. - A divagar, como é habitual ultimamente. Nem sequer tenho a certeza de que ele me reconheça.

- É uma pena, quando se pensa no que ele fez no passado.

David Gillsams não teria sonhado em dizer que achava bom que o pai de Harris não soubesse do que se estava a passar. O velho nunca teria concordado com aquela imprudente batalha de aquisição em que o seu filho se empenhara.

Em todo o sentido da palavra, pensou Gillsams.

Felizmente, Harris não sabia ler os pensamentos.

Harris prosseguiu:

- Passei a maior parte do domingo à tarde sentado ao lado da cama dele, não que isso lhe sirva de alguma coisa. No entanto, convém mostrar interesse, senão a clínica começa a desleixar-se.

- É bem verdade - disse Gillsams, acenando afirmativamente com a cabeça.

- É triste, quando nos lembramos de como ele era.

- É certo.

Na verdade, o director financeiro sabia bastante acerca dos esforços iniciais da Harris and Marsh's Chemicals Ltd., visto que não só tinha tido acesso aos antigos relatórios e folhas de balanço da companhia, como os interpretara perfeitamente. O velho Albert Harris tinha-se portado muito bem nos seus tempos, e tinha tido uma ponta de sorte, também, quando precisava dela.

Como sempre, Michael Harris voltou à paixão que o consumia: a aquisição da Chernwoods' Dyestuffs.

- Ele ia ficar muito satisfeito, David, se soubesse do que estamos a fazer. Era o seu sonho, bem sabe, acabar por possuir a firma onde trabalhou inicialmente.

O director financeiro não se deixava embalar pelos sonhos do seu patrão: do seu ponto de vista a personalidade das pessoas não deveria afectar as decisões financeiras.

- Não há sentimentos em negócios - avisou.

- Diga isso à Chernwoods, quando a apanharmos.

- Se a apanharmos - recordou Gillsams ao patrão, não pela primeira vez. Do ponto de vista económico, as rivalidades liceais não deviam ultrapassar o recreio. - Ainda não está no papo, não se esqueça.

- Se a lei não disser que não se pode fazer - disse Michael Harris, em tom de aforismo - pode-se fazer. - Nesse momento a porta do seu gabinete abriu-se, depois de uma rápida pancada, e a sua secretária entrou. - O que há, Deanne?

- É a minha prima Doreen, que é telefonista da Chernwoods, Mr. Harris...

- O que sucedeu? - Michael Harris ficou imediatamente alerta, como teria feito os de Gand quando chegou o mensageiro de Aix (1).

 

(1) Em 1668 foi assinado em Aix-la-Chapelle um tratado que pôs fim à guerra da Devolução e entregou a Flandres à França. (N. do T.)

 

- Ela diz que está lá a Polícia - informou Deanne com os olhos muito abertos.

 

"Enterrem-no bem fundo - lembrem-se do macaco"

Luston era a principal cidade industrial de Calleshire. No que dizia respeito à história dos povoamentos ingleses, tinha idade suficiente para pedir meças a Berebury, e até a Calleford, mas só se tinha transformado numa verdadeira cidade em meados do século XIX, quando principiara subitamente a desenvolver-se com o advento dos caminhos-de-ferro.

Claude Miller, Presidente do Conselho e Director-Geral da Chernwoods' Dyestuffs, recebeu o Detective-Inspector Sloan e o Detective Crosby com uma mistura judiciosamente equilibrada de cortesia e curiosidade. Gregory Rosart, encarregado da imprensa e bibliotecário, estava ao seu lado. Miller, observou Sloan, tinha uma figura alta e magra, esguia como um poste, e propensão para movimentos bruscos e desnecessários, ao passo que Rosart era baixo e entroncado, com mãos gordas e inchadas.

Miller disse:

- Já pedi a Greg que procurasse os registos que solicitou, inspector.

- Mrs. Garamond veio para esta firma no início de 1941, inspector - informou Rosart fluentemente. - Nessa altura era apenas a Drª O. L. A. Harquil-Grasset, Licenciada em Química. Só se casou depois.

- Pelo que soube - comentou Claude Miller, em aditamento - era uma das nossas melhores colaboradoras, nessa altura...

- As notas que lhe entreguei - interrompeu o encarregado da imprensa - descrevem-na como uma jovem cientista muito prometedora...

- E - inquiriu Sloan pertinentemente - essa promessa foi cumprida?

Havia homens que tinham frequentado a Escola de Treino da Polícia com ele que já eram chefes da Polícia... e outros que eram ainda agentes e que se ocupavam do trânsito, numa esquadra que equivalia a uma punição.

- Oh, sim, efectivamente. - Tinha sido Claude Miller a responder, desta vez. - O trabalho que ela fez durante a guerra encontra-se, na sua maior parte, ainda coberto pela Lei dos Segredos Oficiais e não possuímos registos completos, naturalmente...

- Naturalmente - concordou o inspector, que tinha feito, e mantido, o seu próprio Juramento de Lealdade.

- Mas, posteriormente, ela e o marido, como sabe ela veio a casar-se com William Garamond, que também trabalhava aqui, era um químico genético...

O detective-inspector Sloan incluiu um "aida mémoire" no seu caderno de notas. Não valia a pena tentar adivinhar o que era um químico genético. Nem tentar dizê-lo ao superintendente sem saber ao certo de que se tratava.

- Bom - disse Claude Miller com um tom decidido, no tom de presidente decidido que gostaria de ter sido - eles estiveram entre aqueles, cujo trabalho fez da Chernwoods' Dyestuffs aquilo que hoje é.

- E o que é hoje? - perguntou o Detective-Inspector Sloan. Não via motivo para dizer que já tinha enviado um pedido urgente à Câmara de Comércio, pedindo pormenores completos não só da Chernwoods' Dyestuffs mas também da Harris and Marsh's Chemicals.

Curiosamente, o presidente do conselho de administração da Chernwoods deixou a resposta a essa pergunta ao seu encarregado da imprensa.

- Uma das mais importantes empresas do sector de investigação médica bioquímica, meus senhores - debitou Gregory Rosart sem hesitar.

- Donde é que vêm os corantes, então?

- Ah, inspector - prosseguiu Rosart, após uma rápida olhadela ao seu presidente - isso provém da nossa história inicial. A Chernwoods' Dyestuffs começou a trabalhar há cerca de cento e cinquenta anos como processadora do corantes naturais, cresciam nesta área tanto a "Isatis tinctoria" como a "Reseda luteola"...

- E importa-se de me dizer o que são? - perguntou o Detective-Inspector Sloan, que gostava pouco de que lhe falassem com superioridade.

- A erva-pastel-dos-tintureiros e o lírio-dos-tintureiros - disse Rosart.

A atenção de Claude Miller parecia voltada para outros assuntos.

- Compreendo - disse Sloan, acenando afirmativamente com a cabeça. Pensou na fotografia sobre a lareira da Granja e perguntou: - E durante a guerra?

Notou imediatamente que Miller ficara tenso, e que também se verificara uma tensão quase imperceptível na postura de Gregory Rosart, demasiado subtil para poder ser descrita como uma mudança de disposição.

- Segundo as minhas investigações, inspector - disse Rosart - a Chernwoods começou a trabalhar em prol da guerra em Setembro de 1939.

- Antes do meu tempo - disse Claude Miller num tom despreocupado. - Eu só trabalho nesta firma desde que o meu pai morreu, há cerca de dez anos. Ele e o meu avô talvez pudessem prestar-lhe uma melhor ajuda.

- E faziam o quê - insistiu Sloan, sem perder a bola de vista - durante a guerra?

- Muitas coisas - respondeu Rosart.

- Contribuições para a guerra química?

- Creio que chegaram a fazer alguns testes mas não chegaram a fabricar nada - disse Rosart, de má vontade. - Os registos não são explícitos.

- Mais alguma coisa?

Era interessante, notou Sloan, constatar que o encarregado da imprensa se tinha distanciado imediatamente de uma coisa desagradável. O "nós" real transformara-se imediatamente em "eles", ao falar da firma.

- Muito mais coisas, naturalmente.

- Relacionadas com corantes?

- Principalmente.

- Os Garamond - inquiriu Sloan. - O que faziam eles? Sabe?

- Não exactamente, inspector, mas constatei, através dos poucos registos que há, que, para começar, o trabalho deles tinha a ver com a coloração de células humanas.

Sloan disse que não compreendia o que tinha isso a ver com o esforço de guerra.

- Creio, inspector, isto é, na medida em que posso chegar a essa conclusão, que os chefões do Ministério da Guerra estavam interessados num corante para a pele com que pudessem identificar os prisioneiros de guerra numa base semipermanente.

- Uma tatuagem que desaparecesse com o tempo? - inquiriu Sloan com conhecimento de causa.

- Exactamente. Encontrei registos que indicam que se fizeram investigações para determinar se essa medido não contrairia a Convenção de Genebra.

- Daí a combinação de um químico com uma bioquímica? - perguntou Sloan. - Teriam sido os ingleses os únicos a pensar que a guerra deveria ser travada segundo as regras do Marquês de Queensbury?

Escrupulosamente.

Mesmo que do outro lado fizessem jogo sujo.

- Muito provavelmente, inspector. Todavia, pelo que sei, o projecto, recebeu o nome de código de Operação Identificação, não levou a nada e foi abandonado depois de a fábrica ter sido bombardeada.

- A Chernwoods' Dyestuffs pretendia a documentação dela na semana passada - disse Sloan directamente. - Foi o que o senhor disse no sábado, quando telefonou para a Granja...

- E, a avaliar pelo estado da Granja de Great Primer, parece que mais alguém tinha um grande interesse nos papéis dela - disse Sloan - e, a menos que eu esteja muito enganado, não apenas como recordação.

- Assim parece.

Surgira um fino fio de transpiração junto à linha do cabelo de Gregory Rosart.

- Por isso - prosseguiu Sloan logicamente - dá a impressão de que os documentos de Mrs. Garamond não deviam ter sido depositados aqui, nem aqui deixados em qualquer altura...

- Não foram - apressou-se a dizer Rosart.

Com demasiada pressa.

Isso queria dizer que Gregory Rosart já tinha investigado. E tivera um motivo para investigar.

- O que era então - inquiriu o Detective-Inspector Sloan - que a Chernwoods pretendia dos pertences de Mrs. Garamond? Dirigira-se a ambos os homens, mas Claude Miller não fez qualquer tentativa para lhe responder.

Gregory Rosart atrapalhou-se.

- Eu... isto é, nós... não sabemos.

- Mas há qualquer coisa...

- Sim... não... isto é, pensámos que pudesse haver - disse o encarregado da imprensa.

- Mas não sabem o quê? - Por um motivo qualquer, que só ele conhecia, o Detective Crosby começou subitamente a mostrar interesse pelo assunto.

Rosart voltou-se para ele...

- Não, não sabemos exactamente.

- Mas - disse Sloan com voz suave - aconteceu alguma coisa que o fez pensar que poderia haver... an... qualquer coisa?

- Creio que poderá pôr as coisas dessa forma.

- E que os papéis de Mrs. Garamond pudessem dizer-lhes de que se tratava?

Desta vez foi o presidente Claude Miller a responder.

- Sim, inspector.

- Porque esperou até ela ter morrido? - perguntou Sloan.

- Não esperámos. - Miller apontou para Rosart. - O Greg fez diversas abordagens por carta e pessoalmente junto dela.

- É verdade - disse Rosart com intensidade.

- Mas Mrs. Garamond não quis recebê-lo. Não é verdade, Greg? - inquiriu Claude Miller.

O encarregado da imprensa acenou afirmativamente com a cabeça.

- Nunca consegui passar pelo dragão que estava à entrada.

Sloan pesquisou rapidamente na memória.

- Ellen? A velha criada dela?

- Mais parecia uma sentinela no seu posto de guarda - ripostou Rosart.

- E as cartas?

- Sem resposta. Tal como os telefonemas - disse Rosart. - Nada, em direcção alguma.

- Compreendo. - Sloan instalou-se mais confortavelmente no seu lugar. - E vão dizer-me o que foi que provocou subitamente o vosso interesse?

Após uma rápida olhadela ao seu presidente, Rosart disse: - Há cerca de seis meses, começámos subitamente a receber uma série de pedidos de informação, a que recusámos responder, acerca do trabalho aqui efectuado nos velhos tempos. Provinham de alguém que se dizia historiador e que andava a fazer investigações para uma tese.

- Mandámos confirmar isto, inspector - explicou o presidente - e não era verdade.

- Compreendo. - Sloan manteve a sua postura descontraída. - E depois?

- Em seguida apareceu uma oferta de um especialista em história comercial que queria escrever a nossa história, em comemoração do nosso centésimo quinquagésimo aniversário.

- O que, presumo, envolveria proporcionarem ao autor um total acesso aos vossos registos? - perguntou Sloan.

- Exactamente - disse Miller.

Sloan esperou.

- E então?

Claude Miller disse: - Greg começou a desenterrar informações por sua conta, para ver se havia alguma coisa, e...

- E... - incitou Sloan.

Rosart disse lentamente:

- Não havia nada que me desse uma indicação, excepto algo que talvez fosse um nome de código, inspector. Nada mais do que isso...

- Um nome de código?

- OZ.

O Detective Crosby endireitou-se na cadeira.

- O Maravilhoso Feiticeiro?

Rosart respondeu:

- Pode ser ou pode não ser. Mas é mais provável que se trate das iniciais de operação qualquer coisa.

- Esse nome de código - disse Sloan - donde saiu?

- Da lista de despesas da Cabana Onze, em fins de 1943. Para um abastecimento adicional de slides para microscópios.

- Só isso? - inquiriu Sloan.

Nem sequer uma boa dose de vinho para acompanhar o meio péni de pão? Sir John Falstaff (1) teria feito melhor que isso.

 

(1) Personagem de Henrique IV, de Shakespeare. (N. do T.)

 

- Foi só porque parece haver uma espécie de lenda ligada à Cabana Onze que nela procurámos duas vezes...

- "A lenda da Cabana Onze"? - inquiriu Sloan, pensativo. O Superintendente Leeyes não ia gostar daquilo. Quando havia melodrama pelo meio, o superintendente gostava de ser o seu "único criador" (2).

 

(2) Sonetos de W. Shakespeare, Dedication. (N. do T.)

 

- Não sei grande coisa a esse respeito - apressou-se a dizer o encarregado da imprensa - corre apenas um boato, - que ainda persiste, de que eles descobriram qualquer coisa, mas não havia coisa alguma nos registos que procurámos.

- Mas por certo, senhores - disse Sloan, que não sabia praticamente coisa alguma de química, mas percebia muito de roubos - qualquer trabalho feito aqui por um empregado passa a ser propriedade da companhia, não é verdade?

- Assim é, inspector - disse Miller enfaticamente. - Temos um departamento que só se ocupa de patentes, direitos de cópia, propriedade intelectual, etc. - Estendeu um longo braço magro na direcção do encarregado da imprensa. - E uma das funções de Greg consiste em... an... monitorizar antecipadamente - censurar, traduziu Sloan, mas não em voz alta - aquilo que publicamos acerca das nossas... an... conclusões - descobertas, pensou Sloan - que sejam, que possam ser, comercialmente interessantes.

- E posso perguntar o que era a Cabana Onze? - perguntou Sloan, que sabia exactamente o que o presidente da Chernwoods' Dyestuffs queria dizer com "comercialmente interessantes".

Valiosas.

Rosart respondeu desta vez:

- Durante a guerra, inspector, o pessoal da Chernwoods trabalhava em pequenas cabanas, nos campos, para o caso de haver raides aéreos. Era regra da companhia nunca haver mais de dez pessoas a trabalhar em cada cabana de cada vez.

O Detective-Inspector Sloan acenou afirmativamente com a cabeça. Hoje em dia as firmas estabeleciam a mesma regra acerca de os empregados de um departamento pertencerem ao mesmo sindicato. O raciocínio era o mesmo em ambos os casos: o empregador não queria perder todos os especialistas de uma determinada área ao mesmo tempo.

- Acertaria se me arriscasse a dizer - observou Sloan - que Mr. e Mrs. Garamond trabalharam na Cabana Onze?

- Em cheio - disse Gregory Rosart com um suspiro de resignação. - Ambos.

- E quem mais?

- Ah, inspector, aí é que temos um pequeno problema... - disse Rosart. - Foi há muito tempo, como sabe. - Há pessoas que não conseguimos localizar - disse Claude Miller - embora bem gostássemos de o fazer.

- Vivos ou mortos? - inquiriu o Detective Crosby, numa das suas raras intervenções.

- Qualquer das coisas - disse Claude Miller com voz tensa.

- Ambas as coisas - disse Gregory Rosart, no mesmo tom.

 

"Se a cova não for funda, os cães desenterram-no"

Amelia ficou sentada à mesa da cozinha durante longo tempo, depois de ter falado com a secretária do Boleyn College, tentando decidir o que havia de fazer em seguida.

Gostaria de voltar à Granja de Great Primer, mas a Polícia pedira-lhe que não o fizesse por enquanto. Pensava que, se estivesse no interior da casa, poderia captar um pouco da sensação do que significava realmente a morte da sua tia-avó. Mas, de qualquer forma, havia poucas probabilidades, concluiu de uma forma realista, de pressentir qualquer ambiente na Granja se a Polícia ainda andasse por lá a investigar...

Também gostaria do estudar muito mais cuidadosamente a fotografia do cruzeiro que James Puckle lhe mostrara, mas Phoebe tinha-a levado consigo para o seu consultório, onde havia uma lente realmente substancial, capaz de ultrapassar todas as lentes caseiras.

Gostaria de saber quem era Kate, aquela a quem fora deixada uma vela, e de consultar novamente a lista de jornais em que a sua tia-avó Octavia mandara anunciar a sua morte, para ver se dai tirava alguma conclusão, mas os pormenores continuavam em poder de Tod Morton e ela não queria incomodá-lo de novo.

Isso deixava-lhe apenas a certidão do nascimento.

A certidão de nascimento era, pelo menos, tangível e uma prova de que não tinha sonhado com toda aquela história improvável. Estava sobre a mesa. Pegou nela e observou-a uma vez mais. A certidão de nascimento do uma desconhecida sobre a qual nada sabia... bom, nada não era bem o caso. Pelo menos conhecia os nomes que a sua mãe natural lhe dera, Erica Hester Goudy, mesmo que ela não os tivesse usado posteriormente.

E sabia, sem dúvida que, uma vez que tinha nascido em 1940, devia ser agora de meia idade. O que não sabia, evidentemente, era se ela estaria morta ou viva. Procurar uma mulher sem nome já era difícil: procurar uma morta anónima seria praticamente impossível.

Continuou a olhar para o documento oficial que tinha na mão. Ao fazê-lo, recordou-se de uma coisa que o professor de História da sua faculdade citava frequentemente.

- Os documentos - insistiu ele vezes sem conto, durante as suas aulas - não falam com estranhos...

Era verdade, concluiu Amelia. Aquele documento não lhe dizia praticamente coisa alguma. Talvez devesse tentar remediar isso. Atravessou a casa e entrou no escritório do seu pai. Pelo menos, poderia ficar a saber qualquer coisa acerca de 1940.

Procurou nas prateleiras, tinha que haver ali livros acerca do século XX, para não falar de livros acerca da guerra, visto que a guerra e a antropologia deviam, por certo, de ser inseparáveis; ou isto seria um pensamento excessivamente cínico? O seu pai não estava presente para discutir esse ponto com ela, de modo que resolveu dedicar-se a procurar um livro que lhe dissesse o que estava a passar-se em Inglaterra em 1940. Tinha sempre pensado que aquela fora a última guerra em preto e branco. A Grande Guerra tinha sido aquela em que os homens caminhavam de uma forma sacudida. Nos filmes da II Guerra Mundial, os homens moviam-se normalmente, mas ainda a preto e branco.

Devia haver um plano das prateleiras da biblioteca do pai, mas era difícil descobri-lo. O pai nunca a tinha impedido de ler os seus livros e estava sempre disposto a explicar-lhe a maior parte deles, só se tendo esquivado uma vez, que ela se lembrasse. Tinha sido quando ela escolhera The Golden Bough (1), de Sir James Frazer, pensando, pelo título, que se tratasse de uma história infantil.

 

(1) O Ramo Dourado (obra de um antropologista, que contém críticas religiosas. (N. do T.)

 

A única coisa que ele lhe pedia era que voltasse sempre a pôr os livros no mesmo sítio de onde os retirara.

Dizia-lhe:

- São as minhas ferramentas, Amelia, e preciso de poder encontrá-las sempre, tal como um mecânico numa garagem.

Passou os dedos pelas prateleiras, procurando obras que lhe falassem de 1940, e encontrou finalmente uma pequena fileira deles. Experimentou em primeiro lugar "The Phoeney War" (2), de E. S. Turner, como uma base sólida;

 

(2) A Falsa Guerra. (N. do T.)

 

em seguida "The Oaken Heart" (1), de Margery Alligham, para uma boa leitura. Deixou "Put Out More Flags" (2), de Evelyn Waugh na prateleira. Era demasiado jovem ou demasiado velha, não sabia ao certo, para os livros de Evelyn Waugh; finalmente encontrou a história da guerra de Winston Churchill. Já bastava para começar.

 

(1) O Coração de Carvalho. (N. do T.)

(2) Desfraldem mais Bandeiras. (N. do T.)

 

O capítulo intitulado "A Guerra Crepuscular: Um Novo Ano Sombrio" deu-lhe algo por onde começar. Os primeiros meses de 1940 pareciam ter sido dedicados ao envio de divisões do Exército Britânico para França; e, pelo lado dos alemães, a preparar um ataque à Noruega. Em meados de Março, a Rússia tinha esmagado a Finlândia e, no dia 18 desse mês, Hitler encontrou-se com Mussolini na Passagem de Brenner.

E, segundo parecia, por essa altura Octavia Harquil-Grasset concebera uma filha.

Amelia regressou à emocionante narrativa de Winston Churchill. Iniciara as suas funções como Primeiro-Ministro em 10 de Maio de 1940, nada mais oferecendo do que "sangue, esforço, suor e lágrimas", no dia em que os exércitos de Hitler tinham marchado sobre os Países Baixos. Uma unidade de que Amelia nunca ouvira falar, chamada Força Expedicionária Britânica, flanqueada por divisões belgas e francesas, avançava contra as forças inimigas quando a frente se rompeu.

Continuou a ler, no silêncio da biblioteca, estranhamente impressionada pela prosa de guerra, só parando quando aos seus se deparou uma palavra que conhecia, Dunquerque. Churchill tinha escrito sobre "a libertação de Dunquerque" na última semana de Maio e na primeira semana de Junho.

Por essa altura, calculou Amelia, segundo Phoebe, Octavia Harquil-Grasset devia já ter a certeza, independentemente dos ratos, rãs e coelhos, de que estava grávida, e que também para ela, não só para a Grã-Bretanha, haveria sangue, esforço, lágrimas e suor.

Amelia voltou à obra de Winston Churchill, procurando a história de outro mês, nesse ano perigoso.

Dezembro.

No dia 15 de Dezembro de 1940, Octavia Harquil-Grasset tinha dado à luz uma criança do sexo feminino, numa Londres que já estava a sofrer ataques aéreos. E dado à luz, aparentemente, sem a aprovação do clero, por assim dizer. A sua mente voltou-se para o egrégio Dr. Fournier: ele saberia do nascimento "sub rosa" (1) de Erica Hester Goudy? E seria por isso que se mostrava tão relutante em fazer o serviço fúnebre da sua tia-avó? Ou seria porque ele era um fundamentalista e a sua tia-avó uma bióloga Darwinista?

 

(1) Secreto, confidencial (N. do T.)

 

Não conhecendo, naturalmente, a resposta, voltou a Churchill. Não havia coisa alguma "sub rosa" em Churchill. Era, pensou Amelia, uma pessoa com quem se sabia que terreno se pisava. Permaneceu sentada, sozinha, no escritório silencioso, perguntando a si mesma se teria extraído tudo quanto podia da certidão de nascimento.

Havia apenas uma coisa mais que podia fazer, enquanto se encontrava entre os livros do seu pai. Procurar o significado da palavra "mitose" no dicionário, visto que tinha sido o estudo de Octavia no açúcar de beterraba que a levara a ganhar o seu prémio como ensaista no Boleyn College.

Amelia repetiu a definição em voz alta, e descobriu que não ficou a saber mais por isso: "O processo de divisão do núcleo de uma célula em minúsculos filamentos..."

 

- Em que ponto estamos, Sloan? - Tudo dava a entender que o Superintendente Leeyes estava prestes a abandonar o seu gabinete.

- É difícil dizer - respondeu Sloan.

O cesto dos papéis do superintendente estava de lado, o que era um sinal seguro de que o seu superior tinha dedicado pelo menos uma parte da sua tarde à antiga arte do golfe.

Leeyes grunhiu, com um olho no relógio.

- É melhor tentar, apesar disso.

- Há uma firma em Londres chamada Harris and March's Chemicals, que está a agir como se pretendesse adquirir a Chernwoods' Chemicals, um facto que talvez possa ter qualquer coisa a ver com o assunto em mãos.

- E com uma morte acerca da qual os médicos não conseguem decidir-se - interveio Leeyes. - Não se esqueça disso.

- Deve acontecer de vez em quando...

- Voltaire disse que a prática da medicina era assassina e largamente conjectural. Sabia disso, Sloan?

- Não senhor - respondeu Sloan.

Voltaire devia ser um resíduo da breve passagem do superintendente por um curso de Educação de Adultos sobre "Escritores Franceses Famosos". O curso tinha ficado famoso na esquadra por ter tido apenas três aulas antes de o professor se demitir, muito ofendido. O Inspector Harpe, da Divisão de Transito, tinha sido o vencedor de um jogo informal de apostas sobre o assunto, feito na esquadra nessa altura.

- Então... - disse Leeyes.

- Então estamos em "espera", no que se refere à morte de Mrs. Garamond, e vamos continuando a investigar as circunstâncias que a rodeiam.

- Sloan - disse Leeyes num tom ameaçador - está a começar a parecer-se com um comunicado à imprensa ambulante...

- Lamento, superintendente...

- Bom, continue com isso, homem.

- Não há muito mais para dizer, nesta fase. Estou a tentar determinar se as acções de Mrs. Garamond na sua antiga companhia eram suficientemente grandes para serem significativas em termos da aquisição.

- E, sendo assim, ela não teria sido morta por causa dessa disputa - disse o superintendente num tom brusco, pois também não tinha uma boa opinião acerca dos advogados.

- Isso também, superintendente. Vou ter que falar com James Puckle para conhecer as dimensões do lote de acções. Miss Kennerley não sabe dizer-mo; e continuo a espera de um relatório do laboratório, para saber se há vestígios úteis deixados durante o assalto à Granja.

- Mais alguma coisa? - perguntou Leeyes.

- Penso que vamos precisar de saber bastante mais acerca da Chernwoods' Dyestuffs, e do trabalho que a falecida e o marido lá fizeram.

- Tem um motivo para isso, presumo.

- Mrs. Garamond insistiu em que saísse uma notícia do seu falecimento no jornal do pessoal. - Sloan puxou do seu caderno de notas. - Deram-me uma lista das pessoas com quem ela trabalhou mais estreitamente nos seus primeiros tempos, na fábrica. Isto é, daqueles que se pensa estarem ainda vivos.

- Penso que estamos de acordo, Sloan, em que os mortos não falam.

- Sim senhor - disse Sloan, embora, efectivamente, não estivesse muito de acordo com essa opinião. Quem tinha dito "Procuro na Ciência a cura do Crime"? Os verdadeiros cientistas legais não precisavam dos vivos para todas as suas observações...

- E então?

- Mrs. Garamond trabalhou... an... de uma forma especialmente próxima, durante a guerra, com nove pessoas, sete homens e duas mulheres. Seis desses dez já morreram, ao longo dos anos, restando três homens e uma mulher. Chamam-se Nicholas Cochin, Catherine Camus, Martin Dido e Albert Harris...

- Tem alguma ligação - perguntou Leeyes astutamente - com a Harris and Marsh's Chemicals Ltd., também de Luston?

- Fundador e pai do actual presidente - disse Sloan - mas diz-se que está mentalmente perturbado e encontra-se actualmente numa clínica.

- Confirme isso - disse Leeyes sombriamente. - Há por vezes pessoas que são internadas porque isso convém a outras.

- Sim senhor. - Sloan tossiu. - Em todo o caso, vou tentar procurar todos os colegas de Mrs. Garamond vivos o mais depressa possível...

- Faça isso - disse Leeyes.

- Porque me parece que ela se esforçou bastante para que alguém, não sabemos quem, tivesse conhecimento da sua morte.

- Então é melhor descobrir quem - disse o superintendente, estendendo a mão para pegar o casaco.

O Detective-Inspector Sloan, assim tacitamente despedido, regressou ao seu gabinete. Havia sobre a secretária, à sua espera, uma mensagem de Dyson, o fotógrafo da Polícia, dizendo que estava a tratar de um grave caso de fome e sede na cantina. Se o D. I. Sloan quisesse ir ter com ele oportunamente, talvez ficasse a saber algo que lhe interessava.

Sloan apresentou-se junto da mesa de Dyson, na cantina da Polícia, com um prato de sanduíches de presunto e uma caneca de chá nas mãos.

- Não me tinha apercebido de como estava cheio de fome - observou Sloan - até olhar de novo para a comida.

- Desconfio que na Força nunca ouviram falar de horas de expediente, apesar de terem funcionários civis - disse Dyson. - Não vou dizer-lhe a que horas cheguei a casa no sábado à noite, mas se tiver visto uma mulher grande a percorrer as ruas de Berebury com uma frigideira em riste, era a minha mulher. Quase deu cabo de mim, garanto-lhe, por ter chegado àquela hora, e quando lhe disse o que tinha estado a fazer, atirou-se novamente a mim.

- E o que é que tinha estado a fazer? - perguntou Sloan entre dentadas.

- A fotografar uma alcatifa.

- Interessante?

- Muito.

- Diga coisas.

- Lembra-se de me dizer que quem tinha estado na Granja a remexer tudo aquilo usava qualquer coisa por cima dos sapatos?

- Sim.

- Isso estava de acordo com os vestígios que encontrei nas alcatifas, belas alcatifas, a propósito - disse Dyson, esvaziando a sua caneca.

- Ela era uma mulher rica - disse o Detective-Inspector Sloan. - Continue.

- Bom, tinham deixado uma marca na alcatifa...

- Naturalmente.

- Bem como os sapatos dos dois cangalheiros que foram buscar o corpo e os da mulher, da Shirley Qualquer Coisa que passou a noite lá e encontrou a velhota morta de manhã.

- E os do médico que a examinou? - perguntou Sloan.

- Também. Fiz uma data de fotografias - disse Dyson. - Esta nova máquina que eu tenho é fantástica. Já lhe falei da minha nova máquina, não falei?

- Várias vezes - disse Sloan.

- Bom, hoje revelei as películas e devo dizer-lhe que ficaram sensacionais.

- O que é que descobriu?

Dyson inclinou-se para a frente e disse:

- O que diria o senhor, inspector, se eu lhe dissesse que tenho uma pegada tão nítida, como qualquer tribunal poderia desejar, do sapato da tal mulher, por cima de uma marca tão nítida de uma das pegadas esborratadas do Desconhecido?

- Diria, Dyson - disse Sloan dirigindo um olhar de admiração ao fotógrafo - que é boa altura de beber uma chávena de chá e que terei muito gosto em ir buscar-lha.

 

"Enterra-o suavemente - envolto em algodão"

Havia pelo menos um membro da força policial da City de Londres cujo uniforme era um fato preto com calças de fantasia e que andava armado não com o cassetete regulamentar, mas com um chapéu-de-chuva cuidadosamente enrolado.

A sua especialidade era os crimes de colarinho branco e a sua ronda os arredores da Bolsa. Para ele, uma folha de balanço era um mapa tão evidente como a palma da sua mão, as opções negociáveis faziam parte da sua rotina diária. Pelo telefone, declarou-se absolutamente disposto a conversar com o Detective-Inspector C. D. Sloan, da Polícia do Calleshire, sobre qualquer pequena dificuldade financeira local, e disse que tinha os papéis à sua frente.

- Há alguma pista na folha de balanço e relatório anual da Chernwoods' Dyestuffs quanto ao motivo por que a Harris and Marsh's Chemicals podem querer controlá-la? - perguntou Sloan, indo direito ao assunto.

- Nada que eu consiga ver, meu velho. - O especialista parecia ter adquirido o modo de falar da sua área. - Dei uma olhadela ao caso e devo dizer-lhe que a situação comercial da Chernwoods' Dyestuffs é relativamente mediana para o seu sector. Um pouco inferior, talvez, na realidade.

- Exactamente, inspector, mas alguém tem andado a comprar acções deles ultimamente. E em grandes quantidades, apesar de eles terem tido alguns soluços no último ano comercial.

- Soluços? - perguntou Sloan prudentemente. Os soluços podiam impedir uma detecção. Ou ajudá-la.

- Parecem ter os seus problemas - disse a voz - como um incêndio no departamento de embalagens e uma grande reclamação por quebra de direitos de propriedade intelectual, ou seja, fanar as ideias de outrem, aqui para nós, e algumas desavenças entre administradores.

- Então não são propriamente uma jóia da coroa no campo da investigação química? - perguntou Sloan.

- Continuam a fazer negócios por pura força de hábito, diria eu. Já negoceiam há muito tempo. As minhas fontes dizem-me que o actual presidente da Chernwoods é ainda pior que o casmurro do pai. E fraco, ainda por cima.

- É a terceira geração - disse Sloan.

- Repare - disse o especialista - que todas estas companhias químicas dependem de o seu último produto ser melhor do que o último produto inventado pelo rival ao fundo da rua. Ou em qualquer parte do mundo, a falar verdade.

- Compreendo - Sloan teria que cortar o resto do mundo quando fizesse o seu relatório ao Superintendente Leeyes. A cosmografia do superintendente não ultrapassava os limites do condado de Calleshire. Até àquela altura ninguém tinha tido a coragem de lhe dizer que tinha sido Guilherme o Conquistador a determinar os limites dos condados ingleses...

- E - prosseguiu o homem da City - com este tipo de companhias há sempre o problema de terem que manter muito dinheiro ligado à investigação durante anos a fio. Até uma descoberta as compensar pela década seguinte.

- Ou não as compensar - disse Sloan.

- Certo. Nesse caso começam a acolher predadores. De preferência com longas bolsas para contratos de exoneração da administração e pessoal superior...

- Ou promessas de os conservar?

- Não, se tiverem um pouco de bom senso - disse a voz de Londres com franqueza. - Se a velha guarda prestasse para alguma coisa, já teria sido apanhada pelas companhias importantes há muito tempo.

- Nesse caso, estamos a falar de peixe miúdo? - perguntou Sloan, pouco surpreendido. A natureza era, segundo parecia, tão implacável na Milha Quadrada (1) como em qualquer outro local.

 

(1) A City (centro financeiro e comercial de Londres onde se situa a Bolsa e o Banco de Inglaterra), cuja área é, aproximadamente, de uma milha quadrada. (N. do T.)

 

- Relativamente. Mas devo dizer que ambas as companhias são peixe bastante graúdo no vosso lago entre os bosques...

- Apenas um pequeno charco - admitiu Sloan, que também sabia servir-se de metáforas.

- Outra coisa que poderia ter acontecido, se a Chernwoods' Dyestuffs valesse a pena - disse o homem da City do outro lado da linha - era ela própria estar a fazer uma bela aquisição por sua conta, e não dar sinais de isso ter acontecido nem no balanço nem no relatório anual.

- Portanto - disse Sloan, ansioso por esclarecer um ponto em especial - se a Chernwoods tivesse ideias realmente valiosas em seu poder, alguém já as teria apanhado há muito tempo, a menos que guardassem cuidadosamente segredo?

- Exactamente. Os grandalhões estão sempre alerta em busca das descobertas dos outros, e não têm grandes pruridos quanto à forma por que as apanham - disse a voz. - Já que estamos a falar de peixes, poderíamos classificá-los como lúcios.

- Lúcios? - Essa comparação iria ser difícil de transmitir ao superintendente.

- Grandes, vorazes, omnívoros e procurando em águas turvas tudo aquilo que podem abocanhar - disse o homem de Londres. - E duros como botas velhas.

- Já percebi - disse Sloan. - Subitamente, ser polícia e combater crimes vulgares no meio do mato começava a parecer-lhe mais atraente. - E agora poderia, por favor dizer-me se há alguma coisa acerca da Harris and Marsh's Chemicals que a predisponha a adquirir a Chernwoods' Dyestuffs?

- Não. Nenhuma das companhias apareceu com qualquer coisa que valha a pena durante longo tempo. E isso que torna toda a situação realmente interessante. Não faz sentido, do ponto de vista comercial.

O Detective-Inspector Sloan fez uma anotação: todos os bons polícias apreciavam, por natureza, o que era invulgar, para não dizer improvável.

- Em minha opinião - prosseguiu o perito financeiro. - A Harris and Marsh's estaria simplesmente a aumentar os seus encargos se adquirisse a Chernwoods' Dyestuffs neste ponto das suas histórias mútuas.

- Compreendo.

Tudo o que saía da normalidade era como a bebida para um detective.

- Em primeiro lugar, a Harris and Marsh's está seriamente descapitalizada, segundo as normas actuais para o seu campo de acção - disse a voz calmamente. - E se a Harris and Marsh's Chemicals pensar sequer em oferecer uma das suas acções por duas ordinárias da Chernwoods, ou coisa parecida, só posso dizer que a administração da Chernwoods também deveria ir em massa consultar um psiquiatra.

- Talvez - sugeriu Sloan, um pouco timidamente - eles pretendam apenas adquirir uma posição na Chernwoods' Dyestuffs.

- Não sei com quê - disse animadamente o homem da City. - Nestes números não se vê grande coisa quanto a reservas em dinheiro. E se eles vão pedir um empréstimo para o fazer, não queria estar na pele dos banqueiros deles.

- Então... - disse Sloan.

- Então, ou eles não sabem o que estão a fazer - disse a voz do outro lado do linha - e pode crer que isso acontece mais vezes do que seria de esperar, ou há qualquer coisa que a Chernwoods não sabe que tem, e muito menos eu, o senhor ou o público, ou a Chernwoods sabe e não diz a ninguém, o que é legal, ou então...

- Ou então...

- Um idiota qualquer decidiu adquirir o controlo só para satisfazer a ambição da sua vida, isso acontece a todos os níveis com pessoas que deviam ter mais juízo. Não, se me pedissem a minha opinião...

- Que diria?

A Sloan aquilo parecia mais um caso de "comer ou ser comido" no meio daquela selva, mas estava sempre disposto a aprender.

- Eu dir-lhes-ia que uma fusão seria o único curso de acção possível, com pés para andar comercialmente, para além de promoverem ou despedirem o chefe dos químicos.

- Consta por aqui - arriscou Sloan cuidadosamente desejando ter jogado o seu Monopólio com mais atenção - que existe mais uma possibilidade de tomada de controlo pela administração do que de aquisição pela Harris and Marsh's Chemicals.

- Também já ouvimos dizer isso, por isso tive uma conversa com um dos meus contactos a esse respeito - disse astutamente o homem da City - e fui informado de que isso estava a ser orientado pelo dito chefe dos químicos, um tal Joe Keen.

Sloan anotou de novo.

- Ouvi dizer que ele está ofendido porque não lhe deram um lugar na administração. É nesse aspecto - acrescentou com experiência - que muita gente costuma ofender-se.

- Como poderia um controlo pela administração processar-se na Chernwoods? - inquiriu Sloan.

Gostaria de ver uma coisa dessas ser experimentada na Divisão "F" da esquadra, embora achasse que nem assim se veriam livres do Superintendente Leeyes.

- Bom, dizem que nasce um idiota a cada minuto - disse o homem da City, num tom descontraído. - Não conseguimos salvá-los de si próprios, como sabe.

- Pois não...

Essa era uma lição que aprendera bastante cedo na Polícia.

- Se eu fosse a si, inspector - aconselhou o outro a uma distância confortável - poupava o meu fôlego para soprar as papas de aveia e deixava-os ir para a frente.

- Si-im. - Não era de admirar que o especialista pensasse dessa forma.

- A Chernwoods' Dyestuffs parece-me uma firma com azar e a Bolsa é quase tão supersticiosa como Napoleão, nunca gosta de generais com falta de sorte.

- Já, inspector? Neste preciso momento?

- Já. Como disse, já, Crosby. - O Detective-Inspector Sloan consultou uma folha de papel. - A clínica fica na estrada entre Larking e Luston e é suficientemente grande para a notarmos.

- O que eu estou a notar - disse o Detective Crosby em tom queixoso - é falta de comida.

- Os velhotes que estão nas clínicas e se diz estarem mentalmente perturbados podem morrer tão rapidamente como as velhotas que se diz sofrerem do coração - disse Sloan incisivamente. - Não há altura como a presente no trabalho da Polícia, Crosby. Nunca se esqueça disso.

- Sim senhor. - O tom rebelde do agente tornou-se amável. - Então é uma coisa importante, não é assim?

- Ou a senhora que entrevistou não se apresentou na Granja na quinta-feira à noite - respondeu Sloan obliquamente - e apenas lá foi na manhã seguinte e deu com Mrs. Garamond morta, ou então...

- Ou então?

- Ou então - disse Sloan decisivamente - quem lá foi procurar qualquer coisa já tinha estado no quarto da falecida durante a noite, e há fotografias de pegadas sobre outras pegadas que provam isso.

- Cada imagem conta uma história - observou o agente, utilizando o seu próprio pé.

- E - prosseguiu o Detective-Inspector Sloan - se eles foram ao quarto da falecida, durante a noite, com vista a acelerar a sua morte, Crosby, temos um caso de homicídio entre as mãos.

Efectivamente encontraram a clínica sem dificuldade. Tinha começado por ser uma bela residência de um cavalheiro Victoriano, e agora era a última residência de uma série de membros desse infeliz grupo de pacientes classificados como psicogeriátricos.

Mr. Albert Harris encontrava-se presentemente num quarto das traseiras, ocupado, sem dúvida, noutros tempos, por uma criada de quarto mal paga. Que poderia ser considerada rica em comparação com o seu actual ocupante. As suas roupas de cama estavam em considerável desalinho e o pijama cobria apenas as partes indevidas da sua anatomia. Era absolutamente óbvio que se encontrava ali apenas em corpo, mas de espírito ausente; e poderia ter representado num palco os últimos dias do Rei Lear sem mudar de trajo e sem ensaiar o papel.

- Sou um detective encarregado de uma investigação - disse Sloan, lenta e claramente.

- Óptimo - disse imediatamente o velho. - Roubaram-me os meus dentes.

- Já partiu três placas - disse a enfermeira-chefe junto de Sloan. - Atira-as às enfermeiras.

- Queria falar consigo acerca de Octavia Garamond - disse o inspector.

Ao ouvir este nome, perpassou um clarão de reconhecimento pelo rosto do velho Albert Harris Sénior e fechou com força os maxilares desdentados.

Sloan voltou-se para o lado e disse à enfermeira-chefe, em voz baixa, que queria falar a Mr. Harris da morte de uma antiga colega, mas não queria afligi-lo.

- Não o aflige, inspector, garanto-lhe - disse ela fatigadamente. - Aqui quem se aflige são as enfermeiras, não os doentes.

O Detective-Inspector Sloan disse:

- Mr. Harris, recorda-se da Cabana Onze?

- O senhor não é o meu filho - guinchou Mr. Harris.

- Não. Não sou o seu filho.

- Havia guerra - disse o velho. - Quero os meus dentes, enfermeira...

- Havia guerra, sim - concordou Sloan. - O que fazia Octavia Garamond na Cabana Onze da Chernwoods?

- Dona Triques - grasnou o velho. - Dona Triques.

- Lamento, inspector - desculpou-se a enfermeira-chefe. - Ele hoje não está nos seus melhores dias.

- Bom, melhor, óptimo - entoou Harris, com a sua voz de cana rachada. - Não se pode descansar enquanto o bom não for melhor e o melhor não for óptimo.

- O que é que havia de bom na Cabana Onze? - perguntou Sloan.

O rosto desdentado de Albert Harris tomou uma expressão espantosamente astuta.

- Não posso falar da Cabana Onze - disse. - Não posso falar da Cabana Onze a ninguém. Nunca.

- Comigo pode falar - disse o Detective-Inspector Sloan num tom persuasivo. - Diga-me quem era a Dona Triques.

O velho agarrou no lençol amarrotado e tapou a cabeça com ele.

- Tinha alguma coisa a ver com a Operação Identificação? - inquiriu Sloan.

O lençol foi de novo atirado para trás e Albert Harris disse:

- Não se deve contar segredos.

- Pois não - concordou Sloan pacificamente - Não se deve. Fale-me então de OZ.

Albert Harris desatou subitamente a cantar. Com a voz infantilmente trémula da sexta idade do homem, entoou "O Maravilhoso Feiticeiro de OZ".

- Quem era o maravilhoso feiticeiro de OZ? - perguntou Sloan.

- A Dona Triques, evidentemente - respondeu o velho, com um súbito ar racional. - Toda a gente sabe disso. - Olhou para Sloan. - Eu não o conheço. Afinal, quem é o senhor?

- Uma pessoa que quer saber coisas da Cabana Onze e dos outros. Como Nicholas Cochin...

- Fred morreu - observou o velho, inconsequentemente. - Coitado do Fred.

- O Fred não, Mr. Harris. Nicholas Cochin...

- Esse não sabia.

- Não sabia o quê? O rosto de Harris tornou-se sombrio.

- Não sabia de nada.

- Catherine Camus?

- A Kate não tem moscas... - O ar racional regressou momentaneamente e os maxilares fecharam-se de novo. - Quem é o senhor?

- E Martin Didot?

- O senhor não é Martin Didot - disse Albert Harris, observando-o.

- Não, não sou Martin Didot, mas quero saber coisas acerca dele.

- Era apenas um rapaz. - Albert Harris estendeu uma mão e agarrou no braço de Sloan, com uma força surpreendente numa pessoa tão frágil. - Onde está o Fred?

Não obtendo resposta, começou a abanar-se para trás e para diante, cantarolando:

- Coitado do Fred, o Fred morreu...

- Por vezes - disse a enfermeira-chefe, enquanto acompanhava os dois polícias até à saída - está muito bem; noutras está completamente louco. Nunca se sabe.

Se aquele era um dos melhores dias de Albert Harris, Sloan não queria pensar como seriam os piores.

 

"Beija-lhes as pobres penas - beijo primeiro e último"

Amelia ficou sentada no escritório do seu pai durante longo tempo, com a mente em torvelinho, em volta de tudo aquilo que lhe havia sido dito e lera naquele dia. Ainda na semana anterior, parecia-lhe que isso tinha acontecido séculos atrás, por aquela hora, Mary-Louise e ela tinham subido o monte até à aldeia bastide (1), de Domme e fotografado a paisagem maravilhosa do vale do rio Dordogne, lá em baixo.

 

(1) Fortificada (N. do T.)

 

Mary-Louise tinha citado a frase de Goethe acerca de não valer a pena observar uma paisagem durante mais de quinze minutos, e Amelia tinha contestado isso: e acabara por se confessar derrotada ao fim de dez longos minutos, ao sucumbir à perspectiva ainda mais tentadora de um chocolat Liègeois (2).

 

(2) Chocolate de Liège. (N. do T.)

 

Os seus pensamentos foram interrompidos pelo som do telefone.

- Fala a secretária da Drª Phoebe - disse uma voz jovem. - A doutora pediu-me que lhe telefonasse, para lhe dizer que vai chegar muito tarde esta noite e que não espere por ela para jantar.

- Obrigada pela informação - disse Amelia automaticamente.

- A doutora pediu-me que lhe dissesse que tem que ir a uma reunião da Enfermaria de Calleshire esta noite mas pediu-me também que a informasse de que tinha observado a sua fotografia com a lente...

- E então?

- A doutora acha que descobriu uma frase que pode ser uma divisa, no cimo...

Amelia puxou uma folha de papel para junto de si.

- Deixe-me procurar uma caneta... sim, pronto, diga.

- A doutora tem quase a certeza de que diz "Nec temere..."

- Latim?

- Isso não sei - respondeu a secretária.

- Desculpe. Não queria interrompê-la...

- A doutora pensa - disse a secretária, lendo letra por letra - que diz "Nec temere, nec timide".

- Mais nada? - insistiu Amelia.

- Mais nada que a Drª Phoebe conseguisse ver com a lente daqui...

Amelia pousou o auscultador e consultou rapidamente o relógio. Podia ligar para Montpazier: as outras já deviam ter voltado de onde quer que tivessem passado o dia, e deviam estar a pensar no jantar.

Entrar em contacto foi fácil, o mais difícil era conseguir chegar ao motivo do seu telefonema. Mary-Louise estava cheia de perguntas e de simpatia.

- Nós estamos bem, Milly, querida, e tu?

- Eu depois conto-te tudo - prometeu. - Mary-Louise, diz-me o que significa "Nec temere, nec timide"...

- Nem temerário, nem temeroso - disse imediatamente a especialista em línguas. - Escuta, Milly, tens que voltar para cá. Hoje demos uma volta maravilhosa, fomos a um castelo antigo chamado Bonaguil, e agora estamos sentadas no "terrasse" a beber um kir (1) antes do jantar...

 

(1) Bebida feita com vinho branco e groselha negra. (N. do T.)

 

Era um outro mundo.

Quase tão distante como a Lua, concluiu Amelia, consultando o relógio antes de pegar no seu casaco e sair rapidamente de casa.

 

- PBX do Hospital de Berebury - disse uma voz jovem. - O Detective-Inspector Sloan pode receber uma chamada do Dr. Dabbe?

- Pode - disse Sloan vivamente. - Fala Sloan...

- Ah, Sloan. Acabo de ter uma conversa com um velho amigo - disse o patologista.

- Ah sim? - disse Sloan, desconfiado.

Já era difícil imaginar uma pessoa de sangue tão frio como o doutor com uma família, quanto mais com amigos.

- Conheci-o no primeiro dia em que demos Anatomia - recordou o patologista. - Partilhei com ele uma perna, há montes de anos, na nossa primeira dissecção humana.

- A sério? - disse Sloan num tom desencorajador.

- Temos sido amigos, desde essa altura - prosseguiu Dabbe com entusiasmo. - É engraçado como podemos tornar-nos amigos de um tipo com quem partilhamos uma perna.

- De facto - respondeu Sloan, que achava que seria impossível imaginar um encontro menos provável. E não conseguia sequer perceber como poderia uma perna morta conduzir a uma amizade tão profunda.

Mas devia ter conduzido, porque o patologista prosseguiu:

- Agate progrediu muito, depois disso, foi para Toxicologia, doutorou-se, dá aulas na faculdade, escreve manuais e coisas nesse género...

- Óptimo - disse Sloan vagamente.

- Era magnífico já quando era estudante, nunca esqueci o dia em que ele explorou aquele primeiro joelho...

- Não me diga - replicou Sloan, contendo-se.

- Bom, mandei-lhe um pedaço do fígado daquela velhota, para me dar uma opinião, pensei que ele se interessaria e gostaria de o ver...

- E então? - disse Sloan.

O patologista parecia ter reduzido toda a questão da autópsia e da investigação policial a uma rápida passagem para o mundo de dois rapazes da escola que trocam livros em quadradinhos.

- Ele quer ver uma secção do pulmão - disse, muito satisfeito. - Diz que não se pode por de parte a presença de um dos hidrocarbonetos halogenados. Pensa que talvez consiga isolar um dos agentes.

- Ah sim? - disse Sloan, que não gostava que a ciência o cegasse. - E que são eles? - E também detestava profundamente parecer idiota por pronunciar erradamente palavras que desconhecia.

- Boa pergunta - disse o patologista. - São um grande grupo de substâncias químicas desagradáveis, utilizadas principalmente como agentes de limpeza industriais e aceleradores do crescimento agrícola.

- Compreendo. - Sloan voltou uma página do seu caderno de notas. - Industriais, foi o que disse?

- O meu velho amigo Agate, chamavamos-lhe Stony (1), evidentemente, diz que acha que talvez tenha sido administrada à falecida uma substância que contém um desses carbonetos halogenados...

 

(1) Agate quer dizer ágata; Stony, feito de pedra. (N. do T.)

 

- De verdade? - perguntou Sloan, para quem as palavras "acha" e "talvez" eram excessivamente circunspectas para um detective-inspector, qualquer detective-inspector.

- Na opinião de Agate, algo deixou vestígios nas secções de fígado e rim que poderiam ser perfeitamente consistentes com o envenenamento por etileno.

- Compreendo - disse Sloan.

Agate, fosse ele quem fosse, tinha aprendido a usar de prudência profissional, ao longo dos anos. As opiniões eram algo que qualquer pessoa podia dar, e dava.

- Os hidrocarbonetos halogenados são um grupo muito volátil - disse o patologista.

- Mas o Dr. Aldus afirmou que ela tinha morrido de falha cardíaca - observou Sloan.

O superintendente também podia ser muito volátil, especialmente quando confrontado com opiniões médicas contraditórias.

- E é verdade - disse firmemente o patologista. - A forma da morte seria falha respiratória e circulatória, o que era exactamente aquilo de que o Dr. Aldus esperava que ela morresse.

- Mas...

- É a causa da morte que estamos a discutir agora, Sloan, não a forma. São duas coisas completamente diferentes.

- Então está a dizer, doutor - o Detective-Inspector Sloan não estava disposto a fazer jogos de palavras com especialistas - que a morte de Mrs. Garamond pode ter resultado de ela ter inalado qualquer coisa?

- Uma substância nociva - disse o doutor.

- Gás venenoso, quer o senhor dizer?

- Digamos antes que pode ter sido um gás que era venenoso - definiu o médico.

- Estou a ver.

Faltava pouco para que se pusessem a discutir quantos anjos conseguiriam dançar na cabeça de um alfinete.

- Ainda há aquelas marcas na cara dela... - disse Dabbe.

- Vou já mandar examinar a garrafa de oxigénio - disse Sloan, tomando uma nota. - Evidentemente, doutor, se foi uma daquelas coisas halogéneas de que estava a falar...

- Hidrocarbonos halogenados - interviu o médico prestimosamente.

- Isso poderia querer dizer que estaríamos a lidar com alguém que sabia o que estava a fazer, do ponto do vista químico.

- Bom - admitiu o patologista - Não seria fácil encontrá-los num estojo de química infantil...

- Eu já estava a começar a pensar nessa hipótese - disse o detective-inspector, puxando para si o caderno de notas e escrevendo Chernwoods' Dyestuffs e Harris and Marsh's Chemicals no cimo da página seguinte.

- O que o meu amigo gostaria de saber - prosseguiu o médico - e eu também naturalmente, Sloan, é se existe alguém em quem ande de olho e que seja capaz de distinguir os produtos químicos, por assim dizer.

- Sim - disse Sloan com pouco entusiasmo.

- Ah... assim é que é. Agate disse que ajudaria muito se soubéssemos de que produtos os suspeitos poderiam facilmente apropriar-se.

- Nada menos que os trabalhadores de duas firmas de fabricantes de produtos químicos - disse Sloan, acrescentando significativamente - além dos que já trabalharam para as ditas firmas. E isto, doutor, só para começar...

Já tinha acrescentado à sua lista o nome de John Aldus.

 

- Ora viva - disse Tod Morton, quando Crosby entrou no pátio da agência funerária na Nethergate Street, em Berebury. - Mas o que é que temos aqui?

- Estás a roubar-me as piadas - declarou o detective. - Podia prender-te por isso, Tod Morton, mas desta vez safas-te.

O agente funerário ergueu as mãos, fingindo render-se e disse:

- Pronto, pronto. Nesse caso não digo "Vamos lá a não incomodar as pessoas..."

- Acho bem - rosnou Crosby.

- Porque no fim quem te apanha sou eu - disse Tom, piscando um olho. - Eu no fim apanho toda a gente, bem sabes.

- Ando a fazer investigações policiais, só isso, Tod Morton, e agradecia a tua ajuda.

- Podes falar - convidou Tod amavelmente.

- Andamos a tentar descobrir pormenores acerca da tal rapariga, de nome Baskerville, que foi vista na Granja de Great Primer pelo reitor, na sexta-feira à tarde.

- Outra vez?

- Bom, ainda não a encontrámos - disse Crosby ingenuamente - e gostaríamos de falar com ela.

- Aposto que sim.

- Não me agrada que fales comigo nesse tom, Tod Morton - disse Crosby, picado. - Ela pode não ter nada a ver com as nossas investigações.

- Que investigações? - perguntou Tod com voz suave.

- Não tens nada com isso - retorquiu Crosby com um ar importante. - O que eu quero saber é se podes acrescentar alguma coisa àquilo que disseste no sábado.

Tod franziu a testa, tentando recordar-se.

- Não, sinto muito.

- Idade?

- Cerca de vinte e cinco, mais ano menos ano.

- Altura? - perguntou Crosby, pegando no seu caderno de notas. - Que te parece?

- Um metro e sessenta e cinco.

- Tens a certeza?

O agente funerário sorriu, mostrando os dentes.

- A altura é a única coisa de que eu tenho sempre a certeza.

- Hem?

- De caras. Não percebes porquê?

- Não.

- Oh, deixa isso, podes ter a certeza de que a rapariga tinha um metro e sessenta e cinco.

- Como é que tu...

Tod observou o detective, avaliando-o.

- E tu tens um metro e setenta e oito e meio, não tens?

A cabeça de Crosby ergueu-se bruscamente.

- Tenho a altura regulamentar para a Polícia...

- Sem sapatos - acrescentou Tod.

- Estou pasmado...

- A prática conduz à perfeição - disse Tod modestamente, acrescentando:

- Podia arranjar-te um caixão imediatamente, se quisesses, mas em vez disso ofereço-te uma chávena de chá. Vem para dentro comigo.

Encaminhou-o para o interior do edifício. Por cima do seu ombro, perguntou-lhe:

- Já soubeste daquele homem de Calleford, com dois metros e dez, que não conseguem enterrar?

- Não - respondeu Crosby. - Porque é que não conseguem enterrá-lo?

- Porque ainda não morreu.

 

O Detective-Inspector Sloan curvou os ombros para a frente, no assento ao lado do condutor do carro da Polícia, era um sinal de que estava profundamente embrenhado nos seus pensamentos, enquanto Crosby conduzia o veículo através do trânsito citadino do fim do tarde, em direcção a Great Primer.

- Vamos encontrar-nos, lá com o Dr. Aldius, Crosby - disse Sloan.

- Porquê ele? - inquiriu Crosby.

- O Inspector Harpe disse-me que ouviu dizer o que nosso bom médico iria fazer com o seu legado.

- Vinho, mulheres ou canções? - perguntou o detective.

- Nada disso - disse Sloan. - Nós prendemos os médicos que bebem, não se esqueça, a Ordem dos Médicos ocupa-se dos que se metem com mulheres, e num sítio como Great Primer é difícil haver canções, não lhe parece?

- Apostas, então? - disse Crosby. - Cavalos lentos em vez de mulheres rápidas?

- Foi o que me disseram - respondeu Sloan.

- Não é um crime.

- Mas sai muito mais caro. - Consultou o relógio. - Gostava de chegar lá primeiro.

Não precisava de se preocupar, e sabia-o bem, com esse aspecto. Enquanto Crosby avançava pelas azinhagas rurais à máxima velocidade que se atrevia a dar ao carro, Sloan entregava a sua mente àquilo que sabia agora ser um caso de homicídio. Um homicídio astutamente perpetrado por uma pessoa ou pessoas desconhecidas, utilizando uma perícia invulgar, que, se a vítima não estivesse alerta, teria muito boas probabilidades de não ser detectado.

- Gostaríamos de repassar um ou dois pontos relacionados com o assassinato de Mrs. Octavia Garamond - disse Sloan ao Dr. Aldus, sem preâmbulos - consigo e aqui no local.

Tinha convocado o médico para a Granja de Great Primer por diversos motivos, um dos quais era o facto de, no seu consultório, ele se sentir mais seguro atrás da secretária. Os três homens encontravam-se naquele momento no quarto de dormir da falecida.

- Assassinato? - O Dr. Aldus pareceu ficar bastante surpreendido. - Como foi ela assassinada?

- Ora eu estava à espera de que o senhor pudesse ajudar-nos, nesse aspecto, doutor.

- Eu?

O médico parecia extremamente alarmado, muito especialmente porque o Detective Crosby o olhava, com o livro de notas a postos.

- Viu-a depois de ela ter morrido - disse Sloan, subitamente com um ar muito razoável. - E examinou o corpo. Pelo menos - acrescentou - disse-nos que o tinha feito.

Aldus acenou vigorosamente com a cabeça.

- Com certeza, foi o que fiz. E, como lhe disse, não encontrei nada que consiste com a morte por falha cardíaca congestiva.

- Os médicos legistas encontraram - disse Sloan.

Aldus fitou-o, surpreendido.

- Posso assegurar-lhe que não havia sinais visíveis de ter havido alguma coisa... ah... exterior que provocasse a morte, quando observei a minha paciente pela última vez.

- Talvez não houvesse provas visíveis - declarou Sloan.

- Nem - insistiu Aldus, indignado - um único sinal de intervenção estranha no quarto que eu visse, quando fui chamado.

- Foi o que disse, doutor, foi o que disse.

"Estranhamente", pensou Sloan, Crosby não tinha feito qualquer observação. Nem parecia dele.

- E assim foi. - Aldus olhou para os dois polícias - Não vão dizer-me como foi perpetrado o crime?

- Provavelmente enquanto ela estava a dormir - disse Sloan, elipticamente. - Mrs. Garamond tomava comprimidos para dormir, não é verdade?

- É.

- Uma dose pequena ou grande?

- A dose certa de qualquer medicamento, inspector, é a que basta para fazer aquilo que queremos que faça, sem fazer aquilo que não queremos que faça.

- E então?

Sloan ergueu a mão, rejeitando aquela demonstração de filosofia médica, sem estabelecer paralelos com a excelente noite de sono aparentemente gozada na Granja, naquela noite, por Mrs. Shirley Doves.

- Então - retorquiu prontamente o médico - Mrs. Garamond estava a tomar a dose adequada de um preparado narcótico para lhe assegurar uma boa noite de sono sem deprimir a sua função respiratória já comprometida.

Sloan apontou para a cama de casal.

- Diga-me, doutor, de que lado da cama dormia a senhora?

- Deste lado - disse Aldus sem hesitar. - Do lado da porta.

- Tem a certeza?

- Absoluta, porque eu sou destro e por isso examinava-a deste lado.

- Então por que motivo o candeeiro da mesa-de-cabeceira estava do outro lado? - Sloan recordava-se de que isso o tinha intrigado na sua primeira visita. - Ela não poderia chegar ao comutador deste lado da cama.

- Isso não sei. Geralmente não estava ali.

- A garrafa de oxigénio estava... onde?

- Onde está agora, do outro lado. Como podem ver, a tubagem era suficiente para a máscara chegar até à paciente, deste lado da cama.

Sloan já tinha estudado a máscara que poderia ou não ter deixado a marca que o patologista notara no rosto de Mrs. Garamond.

- Onde estava a campainha?

O Dr. Aldus franziu a testa.

- Não reparei. Geralmente estava presa à dobra do lençol.

Sloan sentiu subitamente uma pouco profissional onda de piedade por uma senhora idosa e indefesa, a morrer sozinha, sem poder pedir ajuda, na escuridão, com a possibilidade de pedir socorro, e até mesmo o conforto de uma luz, deliberadamente colocada fora do seu alcance.

Para o próprio bem dela, esperava que tivesse morrido sem se aperceber do assassino e, para bem da justiça, pretendia denunciar essa pessoa.

Era uma maneira de pensar que fazia de um polícia um homem.

 

"Digam à pobre viúva que bons amigos o encontraram"

Gregory Rosart recebeu a sua convocação para se apresentar no gabinete do presidente do conselho pouco antes do fim da tarde. Joe Keen já lá se encontrava, de casaco branco, exteriormente passível.

- Ah, finalmente, Greg - disse Claude Miller, muito agitado. - Entre. Queremos o seu conselho acerca de um comunicado à imprensa.

Rosart desviou rapidamente o olhar de Claude Miller para Joe Keen e depois voltou a olhá-lo.

- Um comunicado à imprensa acerca de quê? Não fizemos nenhuma descoberta, pois não?

- Exactamente - disse Keen. - Eu também gostaria de saber. - Olhou, com um ar insultuoso, para um ponto acima do ombro de Claude Miller. - E não, não fizemos qualquer descoberta.

- Falei outra vez com os nossos corretores - anunciou o presidente da Chernwoods - e eles dizem que a Harris and Marsh's deixou subitamente de comprar.

- Não os censuro por isso - disse Joe Keen lentamente. - O que me espanta é que tenham começado por o fazer. - Trocou outro rápido olhar com Rosart. - Se querem deixar de perder dinheiro, acho bem, mas não se trata de uma notícia sensacional.

O presidente da Chernwoods estremeceu, mas o seu químico chefe ainda não tinha acabado.

- Não percebo por que se há-de interessar a imprensa numa tentativa de aquisição...

- Mas, Joe, se ligássemos isso ao anúncio de um produto...

- Mesmo assim - disse Keen - penso que isso se pode transformar numa oferta hostil a qualquer momento.

Claude Miller abriu a boca para falar, mas Keen estava imparável.

- Lamento privá-lo de uma das suas famosas oportunidades de publicar fotografias, Grey - disse Keen com patente insinceridade - mas se houve alguma vez altura para sermos discretos, esta é uma delas.

- Eu devia ter pensado - aceitou Greg Rosart cuidadosamente - que, neste momento, quantas menos pessoas soubessem do que está a passar-se, melhor.

- Também eu - disse imediatamente Joe Keen.

- Sinceramente, Claude - disse o encarregado da imprensa antes que Miller pudesse falar - o que a Harris and Marsh's está a tentar fazer...

- Estavam a tentar fazer - interveio Claude Miller. - Eu disse-lhe que eles pararam.

- Seja como for - disse Rosart. - Não é caso para uma notícia. Pode crer que duas linhas no fundo de uma coluna nos jornais financeiros é quanto a Chernwoods precisa, neste momento. E não nos serviria de nada, Mr. Miller.

- Eu podia dizer-lhes - insistiu Claude Miller - que a administração da Chernwoods vai lutar contra a Harris and Marsh's até à última trincheira...

Miler era como muitas pessoas indecisas que, quando tomam finalmente uma decisão, o fazem de uma forma obstinada e irracional.

O silêncio dos seus dois empregados foi tão eloquente como qualquer argumento.

Finalmente, Greg Rosart disse delicadamente:

- Eu acho, Mr. Miller, que devíamos avançar muito lentamente. Poderíamos facilmelnte ganhar excessiva publicidade, se não tivermos cuidado.

- O que pretende dizer, Greg - interrompeu Joe Keen rispidamente - é que a Chernwoods já apareceu vezes de mais nos jornais este ano.

Claude Miller abriu a boca para falar, mas não conseguiu meter uma palavra entre as frases dos outros.

- Antes de mais - enumerou Keen - tivemos um incêndio que não foi explicação, depois uma perseguição por parte da Saúde e Segurança, que nos valeu uma multa colossal e toda a publicidade desfavorável do mundo - começou a pôr-se de pé, enquanto falava - e, como se isso não bastasse, foi apresentada uma queixa bem sucedida contra nós por despedimento sem justa causa, que abalou a força de trabalho até aos alicerces. - Principiou a dirigir-se para a porta. - Não, obrigado, Claude, já que falou em últimas trincheiras, eu sugiro que conservemos a cabeça abaixo do parapeito, por agora.

Miller corou e retorquiu, irritado:

- Vai gostar bastante de ter publicidade, Joe, quando, isto é, se descobrir o produto que nos fará ganhar fortunas.

- Nessa altura, eu próprio trato disso - ripostou Keen a meio caminho da porta. - E com muito gosto.

 

Amelia consultou o relógio, enquanto percorria rapidamente as ruas de Berebury em direcção a uma loja em frente do mercado. Queria chegar lá antes que fechasse. Mas não precisava de se ter preocupado. Mr. Henryson ainda lá estava, rodeado, como sempre, por pilhas de livros, distintivos, fardas antigas e outras relíquias dos tempo da guerra, a que geralmente se chamava Artigos Militares.

Entrou na loja, passando entre um gigantesco obus, que servia agora de suporte para chapéus de chuva, e uma pilha de capacetes de aço de todas as guerras, países e períodos imagináveis. A porta da loja Recordações da Guerra ainda tinha uma campainha que tilintava quando um cliente entrava e Mr. Henryson levantou o olhar, junto do expositor de livros em segunda mão, com um vago desinteresse, quando Amelia entrou. Estava profundamente embrenhado num livro e por certo não teria dado pela entrada dela ou de qualquer outra pessoa, se não fosse a campainha.

Fez-lhe um aceno com a cabeça, conservando o dedo a marcar o livro.

- Em que posso ajudá-la?

- Agradecia - disse Amelia. - Não sei exactamente aquilo que procuro.

- Ah - disse Mr. Henryson delicadamente.

- Mas pensei que talvez o senhor pudesse dizer-mo.

- Talvez - disse ele.

Era um soldado falhado, um fuzileiro que nunca tinha ido à guerra mas que tinha feito um longo e diligente estudo do deus Marte e seus descendentes.

- Acho que preciso de um livro sobre divisas militares - disse ela - mas não tenho a certeza. É aquilo a que se poderia chamar um tiro no escuro. - Pensando bem, talvez aquela expressão tivesse origem militar.

- Diga lá... - pediu Mr. Henryson com um vago interesse.

- Queria saber se "Nec Temere, Nec Timide" será a divisa de um regimento.

Mr. Henryson acariciou o queixo, pensando por um momento.

- Fortescue saberia disso - respondeu. - Sir John é sempre muito bom nisso. Não tenho um Swinson, mas poderíamos ver se F. Tyler Fraser...

- Onde poderia encontrá-los? - perguntou ela ansiosamente. - É muito importante...

- Naquelas prateleiras além, minha filha.

Mr. Henryson conduziu-a até ao fundo da loja. Contornando uma pilha de armaduras antigas, Amelia seguiu-o, evitando pisar alguns cinturões Sam Browne e algo que lhe pareceu serem minas magnéticas desactivadas.

- Este é ainda melhor - disse ele, estendendo a mão para um volume coberto de pó.

- Penso que há de encontrar tudo por ai, se não se importar de fazer um pouco de pesquisa.

- Não, não me importo - disse ela ansiosamente. - Tenho que encontrar isto.

- Vai levar tempo - avisou ele. - Especialmente se, como eu, for propensa a entusiasmar-se. - Sorriu distraidamente. - Estava precisamente a atravessar o Somme quando entrou.

Amelia consultou a sua memória.

- 1916?

Ele abanou a cabeça.

- 1346. Crécy. Não consigo perceber como o nosso exército o atravessou naquele local. Dá a impressão de que seria largo de mais e os nossos...

- A que horas fecha? - perguntou ela, de uma forma directa

- Há cerca de meia hora atrás - disse ele, com um ar de quem se desculpa. - A minha mulher não gosta que eu chegue muito tarde, porque tem que manter o jantar aquecido. Sou famoso por me esquecer completamente do jantar quando me entusiasmo com a leitura. Os campos de batalha são excitantes, sabe? É como jogar aos dados ou a dinheiro. Há tanta coisa que depende de tão pouco - refiro-me ao resultado.

Amelia olhou para o livro que ele lhe recomendara. Não era muito grosso e Phoebe chegaria tarde a casa. Perguntou-lhe:

- Se eu fosse jantar ao Veado Branco...

- Infelizmente Ricardo II não era um soldado - disse o livreiro - com veado branco ou não, mas Eduardo III (1) - os seus olhos brilharam - já era diferente...

 

(1) Conta-se que Henrique III, ao se lhe deparar um magnífico veado branco, o poupou. Infelizmente o veado veio a ser morto por Thomas de la Lynd, o que lhe valeu um castigo. (N. do T.)

 

- ... ao Veado Branco - disse Amelia, ignorando esta tentadora diversão - do outro lado do mercado, e metesse o livro na sua caixa do correio quando acabasse, importava-se?

O livro, inclinado sobre a mesa da estalagem e tratando apenas de regimentos, podia não ser grosso, mas era muito denso. Amelia já tinha jantado e tomado café na sala antes de chegar ao meio. Pediu mais café e aplicou-se de novo ao estudo das armas e distintivos de todos os regimentos, desviando inevitavelmente os olhos para as suas honras de batalha.

Tinha quase terminado o livro - e estava quase a dormir - quando se lhe depararam as armas dos Fearnshires, e viu as palavras "Nec Temere, Nec Timide" a olharem para si no meio da página. Os Fearnshires eram, ao que parecia, um Regimento dos Highlands, de origem antiga, que tinha começado por ser um grupo de "homens de armas" do chefe do seu clã, e só fora regularizado e oficializado como membro do Exército britânico depois de 1745 e da Batalha de Culloden Moor ("também conhecida", dizia o texto, o mais imparcialmente que podia, "como Drumossie").

Amelia escreveu uma nota de agradecimento a Mr. Henrysson, acrescentando um P.S. a perguntar-lhe se teria, por acaso, algum livro sobre a história do regimento dos Fearnshires à venda na sua loja. Meteu a nota no livro e introduziu ambos na caixa do correio das Recordações da Guerra, dirigiu-se para casa, pelas ruas de Berebury, surpreendida por constatar que era tão tarde.

 

Outra pessoa a chegar tarde a casa nessa noite foi o Detective-Inspector C. D. Sloan: tão tarde que Madame Caroline Testout não recebeu a sua habitual visita diária, embora o "filho que devia suspirar pelo regresso do seu pai" (1) já tinha ido havia muito tempo para a cama e estava a dormir.

 

(1) Elegy Written in a Country Churchyard, de Thomas Gray (1716-1771). (N. do T.)

 

Por vezes surge, na vida de cada polícia, uma altura em que tem que decidir até que ponto deve falar do trabalho com a sua mulher. O ponto ideal situava-se algures entre o "nada" aconselhado por aqueles que o haviam treinado, e o "tudo" advogado por aqueles cuja preocupação estava em fazer durar os casamentos. Também era importante quanto tempo após o casamento um homem tomava uma decisão...

O velho sargento, que lhe ensinara muita coisa nos seus primeiros tempos na Polícia, tinha-o sempre aconselhado segundo o antigo anúncio do sabão para fazer a barba - "não muito pouco, não demasiado, a quantidade certa", acrescentando:

- Mas, seja o que for que lhe diga, meu rapaz, nunca a informe a que horas pode contar com a sua chegada a casa. No dia em que chegar mais tarde, ela moi-lhe o juízo e nunca mais deixa de falar no assunto.

Sloan fazia o que a maior parte dos homens faz. Contava em casa algumas coisas interessantes e escondia as desinteressantes e perigosas sob o manto da rotina.

Naquela noite, as coisas foram ligeiramente diferentes. Empurrando para o lado o prato agora vazio, perguntou à sua mulher, Margaret, quantas palavras conhecia que começassem com a letra "Z".

- Ziguezague - disse Margaret, franzindo a testa. - Zircão...

- Zebra... - disse o polícia.

- Zero - disse a mulher.

Sloan acrescentou:

- Zénite... oh, Zenana. - A sua avó sempre tinha apoiado as missões Zenana.

- Zeus - disse Margaret Sloan -, ou não contam os nomes próprios?

- Não sabemos. Pensamos que o "O" queira dizer "Operação", mas o "Z" pode querer dizer imensa coisa.

- Zepelim?

- Pode ser. Toda esta coisa da "OZ" passou-se na última guerra. Mas também temos Zebedeu - acrescentou Sloan, filho obediente de uma mãe que frequentava a igreja.

- Não há outro metal...

- Zinco - disse Sloan.

- E zínia - disse Margaret Sloan. - Devias ter-te lembrado desta, Chris. Tu é que és o jardineiro.

- E tu a cozinheira. - A comida da cantina não comparava com a caseira.

- Traz uma vez o Crosby para jantar que eu faço um bife e pudim de rins. Não vale a pena fazê-lo só para dois.

- Quando ele tiver trabalhado um pouco mais neste caso.

- O que é essa história toda da letra "Z"?

Ele contou-lhe tudo.

Ainda estava a falar do caso quando o telefone tocou.

 

Gregory Rosart tinha permanecido nos escritórios da Chernwoods tempo suficiente para receber o telefonema de Joe Green.

- Não sei se fez bem, Greg, em abafar a ideia do Claude quanto a uma comunicação à imprensa - disse o químico-chefe.

Rosart engoliu a réplica óbvia de que tinha sido Keen a contrariá-la desde o início.

- O que sugere então? - perguntou com o autodomínio de um homem habituado às relações públicas.

- Já pensou que um pouco de publicidade poderia fazer aparecer aquela mulher de que anda à procura?

- Miss Catherine Camus? - O seu tom era prudente. - Não, Joe, não me tinha ocorrido.

- Nunca se sabe o que vai saltar do mato quando os jornais começam a batida - disse Keen.

- Joe, parece-lhe que Harris and Mars'h pararam de comprar por já terem aquilo que nos procuramos?

- Talvez, ou então...

- Ou então...

- Ou então imaginaram outra forma de o conseguir. Não tinha pensado nisso, pois não?

- Não - disse Gregory Rosart, pensativo. - Não, não tinha.

 

Amelia percorria as ruas escuras, a caminho de casa, mais do que satisfeita com as suas investigações dessa noite. Com um pouco de sorte, talvez conseguisse em breve descobrir exactamente o que tinham feito os Fearnshires naqueles cruciais meses de Março, Maio e Dezembro de 1940. E talvez deduzir da sua história que ligação tinham tido com a jovem Octavia Harquil-Grasset - embora agora começasse a pensar que talvez pudesse descobri-la por si própria.

Tal como a sua tia-avó teria esperado dela...

Agora iria começar a procurar uma pessoa chamada Kate e o local da cruz representada na fotografia que a tia-avó Octavia tivera o cuidado de lhe deixar. Isto é, depois de ter estudado a história do regimento dos Fearnshires. No dia seguinte, iria rever o testamento da sua tia-avó. Uma vez que a idosa senhora se tinha preocupado tanto com ele, talvez contivesse pistas que lhe tivessem escapado nessa manhã - teria sido apenas nessa manhã? Efectivamente não tinha estudado o testamento com cuidado... como era aquela frase repetida nas suas aulas de História? "Os documentos não falam com estranhos"... de manhã leria o testamento com novos olhos.

Amelia voltou para a sua rua, perguntando a si mesma se Phoebe já teria regressado, depois da sua reunião na clínica... ela própria tinha estado fora durante longo tempo.

Atravessou a rua por trás de um carro estacionado. Abriu o portão, notando apenas subconscientemente que estava aberto, quando ela se recordava de o ter fechado cuidadosamente quando saíra nessa tarde...

Amelia voltou o olhar para a garagem mas as suas portas estavam fechadas e não conseguiu determinar à primeira vista se a madrasta estava em casa ou não.

Começou a percorrer o caminho de acesso... e quase caiu sobre qualquer coisa atravessada sobre ele.

Quando recuperou o equilíbrio, olhou cuidadosamente para baixo.

Quase caíra por cima do corpo de uma rapariga - uma rapariga de cuja nuca escorria qualquer coisa escura e pegajosa.

 

"Planta na triste campa algo que cresça bem depressa"

- Que diabo, Sloan - explodiu o Superintendente Leeyes -, nem sequer consegue fazer com que as raparigas andem seguras pelas ruas de Berebury?

- Esta rapariga não estava na rua - retorquiu Sloan sobriamente. - Pelo menos quando foi encontrada. Estava no jardim da casa de Amelia Kennerley. Ainda não sabemos exactamente onde foi atacada.

- Por um assaltante desconhecido, segundo presumo? - disse o superintendente ironicamente.

- Desconhecido para nós - concordou Sloan. - Não sabemos se ele, ou eles, eram desconhecidos para ela, porque continua profundamente inconsciente e não pode dizer-no-lo.

Na verdade, Sloan achara que a rapariga que estava no hospital mais parecia uma estátua jacente do que uma pessoa viva.

Leeys resmungou, quando Sloan prosseguiu.

- Amelia Kennerley recorda-se do ter reparado num pequeno carro azul estacionado na rua, quando a atravessou, nada mais.

- Isso não ajuda muito.

- Depois a madrasta dela, a Drª Plantin, regressou de uma reunião médica em Callefford. Tratou a ferida da rapariga e ligou-a, enquanto esperava que a ambulância a levasse ao hospital.

Leeys grunhiu de novo.

- E nem ela nem a Drª Plantin conheciam a rapariga - disse Sloan, antes que ele pudesse perguntar.

- E o Tod Morton? - perguntou Leeys, cuja noite de domingo tinha sido passada na cama, sem ser incomodado. - Ele viu a rapariga.

- Vamos levá-lo ao hospital para a ver - disse Sloan. - Ela não levava coisa alguma que dissesse quem era. Vamos também pedir ao reitor de Great Primer que lá vá, mas quero falar com ele primeiro.

- Deixou a rapariga guardada, segundo espero.

- Sim, senhor - disse Sloan, regressando à sua narrativa. - A rapariga foi atacada por trás com qualquer coisa lisa e pesada, cerca de uma hora antes de ser encontrada e é praticamente tudo o que podemos dizer de momento...

- E, Sloan - disse o superintendente acidamente -, sabemos se essa rapariga foi assaltada por seu próprio direito, por assim dizer, ou em lugar de Amelia Kennerley?

- Não - disse Sloan francamente -, não sabemos, mas as coisas não são assim tão simples.

Leeys gemeu.

- Nunca pensei que fosse. Continue...

- Não sabemos ao certo por que razão a rapariga estava lá em casa, mas...

- Não estamos a chegar depressa a parte alguma, pois não?

O Detective-Inspector Sloan disse:

- É apenas uma forma de dizer, superintendente. Mas temos também a casa...

- Não é altura para adivinhas, Sloan. Já devia saber disso. Que quer dizer?

- Alguém estava a fazer lá o que penso que já fizeram na Granja, na sexta-feira passada.

- À procura de qualquer coisa...

- Exactamente - disse Sloan fatigadamente. A sua noite não tinha sido passada descansadamente na cama. - Penso que eles, quem quer que eles possam ter sido, não podem ter encontrado aquilo que procuravam na Granja...

- O que quer que isso fosse - disse Leeys, cuja abordagem altamente idiossincrática da álgebra nunca tinha, sem discussão, ultrapassado o ponto de considerar "a" igual a uma coisa e "b" igual a outra. Já se sentia um pouco melhor quanto a permitir que a letra "x" representasse uma quantidade desconhecida: mas não muito.

- O que quer que isso fosse - concordou Sloan - quando assaltaram a Granja de Great Primer - prosseguiu mais lentamente - como presumivelmente não encontraram o que queriam, podem, por isso, ter concluído que os solicitadores de Mrs. Garamond poderiam tê-la...

- O que quer que fosse...

- O que quer que seja - disse Sloan mais esperançosamente -, e ter decidido que não seria facilmente acessível quando guardado no cofre do escritório dos solicitadores, mas sê-lo-ia quando fosse entregue a Amelia Kennerley. Como única executora, ela teria presumivelmente direito a ele, o que quer que seja.

- Por isso - sugeriu Leeyes - pensa que revistaram casa dela?

- Assim parece - disse o Detective-Inspector Sloan, suspirando.

- Mas ainda não sabe para quê, pois não? - disse Leeyes, que nunca errava a pôr o dedo numa ferida.

- Não, não sabemos. Sucede que a única coisa que James Puckle, o solicitador, entregou a Amelia Kennerley foi uma fotografia muito pouco nítida de um cruzeiro à beira de uma estrada.

- Ah!

Sloan não conseguia lembrar-se do nome do homem que dissera: "Mas para mim nada de mas", mas sentia-se consideravelmente solidário com ele, e gostaria de ter dito: "Ah, para mim nada de ahs!" ao superintendente, mas achava que não devia fazê-lo. Afinal, tinha que pensar na sua situação...

Em vez disso, respondeu que a Drª Phoebe tinha tido a fotografia guardada em segurança na sua mala, durante toda a tarde e toda a noite, e que, se era isso que o intruso desconhecido viera procurar, não o tinha conseguido. Dyson estava a trabalhar com a fotografia na sua câmara-escura, naquele momento, e tinha prometido fornecer um relatório o mais rapidamente possível.

Devia ter calculado que isso não era suficientemente depressa para o superintendente, que disse:

- Sloan, como pode uma fotografia ser assim tão importante?

- Não sei, superintendente - respondeu Sloan, que não ia tentar explicar o possível significado da divisa de um regimento a um homem que um dia desdenhara do Othello de Shakespeare, dizendo que não passava de uma data de confusões por causa de um lenço.

- Nesse caso, espero um relatório da situação por volta do meio-dia - disse vivamente o superintendente. - Então, homem, de que está à espera? Não fique aí parado...

Sloan tossiu.

- Receio muito, superintendente, que pareça haver uma ligeira complicação quanto à nossa lista das pessoas que poderiam saber que Miss Kennerley era a única executora do testamento.

Unindo as sobrancelhas, o superintendente disse:

- Oh, com que então temos complicações?

- Ao que parece, os Mortons da agência funerária têm-no dito a toda a gente que queira saber.

- Não há motivo para não o fazerem, penso eu - disse Leeyes de mau humor. - Não pode ficar em segredo para sempre... então o que é que se propõe fazer, Sloan?

Um estranho que escutasse o Superintendente Leeyes poderia ter sido levado a pensar que ele tinha feito um volte-face completo e estava agora a preferir a abordagem não directiva. O Detective-Inspector Sloan, que já o conhecia bem, respondeu:

- Vou voltar ao hospital...

Leeyes grunhiu.

- Depois disso vou a Great Primer para falar com o Dr. Fournier, o que acho que já devia ter feito. E depois vou tentar encontrar dois idosos chamados Nicholas Cochin e Martin Didot e uma senhora também idosa que dá pelo nome de Miss Catherine Camus.

 

- Phoebe, quando vais telefonar de novo para o hospital ?

- Não vou - respondeu Phoebe Plantin calmamente. - De qualquer forma eles não dizem pelo telefone qualquer coisa que valha a pena. Além disso, tenho que sair.

- Pobre rapariga. - Amelia ainda estava perturbada. - Podia ter sido eu.

Phoebe disse sobriamente: - Talvez te fosse destinado.

Estavam de pé no corredor de uma casa que tinha sido apressadamente revistada e deixada na maior desordem.

- A Polícia disse que já podíamos arrumar isto - disse Amelia. - Vou começar a fazê-lo.

- É bom teres qualquer coisa para fazer - concordou Phoebe - mas eu pensava duas vezes antes de abrir a porta, de qualquer forma.

Amelia começou a restaurar a ordem na cozinha, em primeiro lugar. Alguém achara necessário inspeccionar até a lata do chá. Amelia não conseguia concentrar-se no que estava a fazer. Impulsivamente, telefonou a James Puckle e contou-lhe o que tinha sucedido.

- Dr. Puckle, tenho que começar a procurar alguém dos Fearnshires que tenha sido morto depois da tia-avó saber que estava grávida...

- Isso só lhe daria o nome do pai da criança - disse Puckle - e, além disso, seriam apenas suposições...

- Já seria alguma coisa.

- Seria mais útil conhecermos o nome de adopção dado à criança - contrariou Puckle - e, além disso, é improvável que esclareça o grande interesse que a antiga firma da sua tia-avó parece mostrar agora pelos seus pertences, para não falar das pessoas que assaltaram as casas.

- E feriram uma pessoa - disse ela, contando-lhe o caso da rapariga que encontrara à beira da morte.

- Miss Kennerley - aconselhou ele sinceramente - tem que tomar cuidado, muito cuidado. E penso que deve contar à Polícia os termos da custódia precatória. Poderá estar a correr grande perigo e isso seria a última coisa que Mrs. Garamond havia de querer.

- Não - disse ela asperamente. - A última coisa que ela quis foi a Polícia no seu funeral. Recorda-se?

O seu telefonema seguinte foi para o alfarrabista, Henryson.

 

O reitor de Great Primer estava no seu jardim a tentar pôr em movimento o seu corta-relva. Deu um último puxão desanimado a um recalcitrante motor de dois êmbolos. Este não reagiu. Olhando furiosamente para o aparelho, o reitor endireitou lentamente as costas e perguntou aos dois polícias o que pretendiam.

- Mrs. Garamond? - disse ele, franzindo a testa. - Levei a minha carta à Granja por volta das quatro e meia de sexta-feira à tarde. Afinal, se pretendem um serviço fúnebre na sexta-feira próxima, e os agentes funerários disseram-me que sim, preciso de conhecer os pormenores, não é verdade?

- Com certeza, senhor reitor. Naturalmente.

- Para não falar de que é preciso avisar o coro e os sineiros... isto é, se os quiserem...

- Disso não sei - principiou Sloan, não mencionando a possibilidade muito real de ter que embargar o funeral para fazer novas averiguações, mas...

- Penso que vão querê-los - disse o Dr. Fournier de mau humor. Tirou do bolso um grande lenço e limpou as mãos. Pareceu ficar levemente surpreendido ao ver aparecer marcas de óleo negro no lenço branco, e meteu-o rapidamente no bolso. - Aquele género de pessoas gosta sempre de partir em grande estilo.

- Disso também não sei - disse Sloan - mas gostaríamos de saber um pouco mais acerca da pessoa que viu quando foi entregar a sua carta à Granja.

- Uma rapariga que descia o caminho de acesso - disse imediatamente o Dr. Fournier. - Vinda dos lados da casa. Trazia um ramo de flores na mão.

- Idade? - O hospital tinha calculado em vinte e quatro anos a idade da sua paciente de rosto pálido e cabeça ligada.

- Jovem.

- Por acaso reparou no que ela trazia vestido?

O Detective-Inspector Sloan não concordava inteiramente com a ideia de que o trajo fazia o monge, mas ajudava bastante a completar uma descrição feita à Polícia.

- Um vestido de Verão perfeitamente vulgar...

Tinham despido à rapariga um vestido vulgar, só que já não estava perfeito.

- Que disse ela? - Afinal, pensou Sloan, não estavam a falar de uma aparição fantasmagórica, mas de uma rapariga viva. A jovem entubada no hospital ainda estava viva, por enquanto... mas o hospital estava bem guardado.

- Disse-me que tinha desejado muito visitar Mrs. Garamond, mas ninguém respondia na Granja.

- Ela não trazia mais nada na mão...? - A doente no hospital não tinha consigo quaisquer meios de identificação.

- Não que eu reparasse, inspector.

O reitor explicou então que lhe tinha falado da morte de Mrs Garamond.

- E como é que ela recebeu a notícia?

- Pareceu-me ter ficado muito perturbada. Perguntou-me se havia parentes e eu disse-lhe que falasse com os Mortons, a agência funerária, visto que alguém os devia ter informado.

- Senhor reitor, na última vez em que viu Mrs. Garamond, ela não lhe disse, por acaso, que estava à espera de visitas?

- Na última vez em que vi Mrs. Garamond - disse o clérigo, que parecia alimentar uma ofensa - a única coisa de que ela soube falar-me foi de brasões.

O Detective-Inspector Sloan abriu a boca para falar mas foi impedido.

- Brasões, veja bem! - exclamou o reitor com inesperada violência. - Nos tempos que correm, com metade das crianças do mundo a morrer de fome, a mulher mais rica da minha paróquia insiste em falar-me de um anacronismo medieval como os brasões.

- Realmente - murmurou Sloan, embora, pelo que ele se recordava das suas lições de História, tivesse sido, por certo, na época medieval que as pessoas tinham levado o Cristianismo mais a sério. - Importa-se de me explicar de que se tratava, senhor reitor?

O Dr. Fournier fungou.

- Tratava-se do costume, usado por aqueles que se consideram superiores aos seus próximos, de afixar um pedaço de madeira em forma de losango, pintado com as armas do falecido, na parte da frente da sua última morada...

- Compreendo - disse Sloan. - Uma espécie de "Nós somos gente de categoria".

- Durante um ano após a morte - prosseguiu o reitor - o habitual era que o brasão fosse recebido na igreja, onde ficava pendurado para sempre.

- Ou até ao dia do Juízo Final - amplificou Crosby, que, subitamente, começara a mostrar interesse pelo caso.

O reitor não se deixou abalar por este prestimoso comentário teológico e prosseguiu, indignadamente:

- Não consegui despertar-lhe o interesse para a ajuda a prestar às crianças com fome do mundo subdesenvolvido, inspector também para mim, ela não parecia ralar-se nada com o facto de metade do mundo, parecer apostado em destruir-se a si próprio, levando consigo toda a gente do planeta.

- Discutiu com ela por causa disso, não é verdade, senhor reitor? - perguntou o detective-inspector.

A doutrina não era o seu campo: o desacordo talvez. A riqueza interessava-lhe mais vezes do que desejaria.

- Suponho que poderá dizer que discordei dela - confessou o clérigo. Fez uma pausa e acrescentou significativamente: - Ou ela de mim.

- Acerca das crianças com fome do mundo subdesenvolvido - perguntou Sloan gravemente - ou dos brasões?

- Nenhuma das coisas, inspector. - O reitor começou a mostrar-se ainda mais excitado. - Para mim, foi uma questão de princípio, inspector, por isso foi muito importante.

- De que se tratava? - inquiriu Sloan, no seu tom mais avuncular.

- Não sabia, inspector? - O Dr. Fournier postou-se erecto, junto do cortador de relva e declarou: - O primeiro ponto em que Mrs. Garamond e eu discordávamos fundamentalmente era a manutenção do Domingo da Recordação todos os Novembros, no domingo mais próximo do Dia do Armistício.

- Ah...

- Bem vê, inspector, quando vim para aqui há dois anos, insisti em acabar com a parada anual na igreja e com os dois minutos de silêncio às onze horas.

- Por uma questão de princípio?

- Exactamente. Tenho a certeza de que sabe a que tipo de coisas estou a referir-me. Música marcial das velhas guerras de modo a conservar as pessoas emocionalmente agitadas e uma congregação que nunca põe o pé na igreja em qualquer outro domingo do ano...

Aí é que estava a questão, pensou Sloan sem se pronunciar.

- Velhos com medalhas antigas, transportando bandeiras esfarrapadas... e crianças a admirá-los. Era disso que eu não gostava. A glorificação da guerra, era o que aquilo era.

Shakespeare, o Sargento Shakespeare, talvez? Não pensava assim, recordou Sloan, e os velhos por certo não esqueciam.

O reitor continuava a falar.

- E ganhei, inspector, apesar de Mrs. Garamond ter pedido a minha cabeça ao Bispo de Calleford. - Ironicamente, pôs-se em sentido ao declarar: - Devo dizer-lhe que sou um pacifista activo e que me orgulho disso.

- E a falecida Mrs. Garamond não era? - arriscou Sloan brandamente.

- É claro que não. Sabe o que ela teve a coragem de me citar certa vez?

- Não - disse Sloan, com genuíno interesse. Começava a sentir-se cada vez mais curioso em relação à falecida Octavia Garamond. Segundo a sua experiência, os clérigos obesos e de meia-idade raramente se excitam por qualquer motivo, mas nunca por causa de velhotas obstinadas.

- "Dulce et decorum est pro patria mori" (1). - O reitor afastou o cortador de relva do caminho e disse: - O que, traduzido - o Detective Crosby ergueu a cabeça ao ouvir a palavra "traduzido" - quer dizer - prosseguiu Fournier - que "É doce e belo morrer pela pátria."

 

(1) Horácio (Odes, III, 2, 13). (N. do T.)

 

- Muito provavelmente, senhor reitor - disse Sloan no tom mais neutro que conseguiu. - Muitos polícias morriam também pela mesma causa, para manter a paz para a sua rainha.

- Devo dizer-lhes - disse o Dr. Fournier, apontando na direcção de uma reitoria Georgiana que era suficientemente grande para um clérigo com uma família numerosa - que sou um dedicado defensor de todos os movimentos que conduzem à paz.

Mesmo àquela distância, Sloan conseguiu decifrar um símbolo emprestado pelo código de semáforo sobre a porta.

- E a falecida Mrs. Garamond não era? - deduziu em voz alta, abstendo-se de traçar qualquer paralelo com um brasão noutra moradia.

- Era uma mulher muito militante. - Edwin Fournier apertou os lábios, transformando-os numa linha fina e severa. - Sabem o que ela me disse uma vez?

- Não. - Sloan ficou à espera.

- Que achava que uma pequena guerra de vez em quando era uma boa coisa para uma nação. Mantinha uma raça nas pontas dos pés, disse ela.

Sloan tossiu.

- Penso que disse, senhor reitor, que o facto de acabar com o Dia da Recordação tinha sido o primeiro assunto em que discordou com a falecida Mrs. Garamond.

A cor do Dr. Fournier, já avermelhada pelo Sol e pelo esforço a que não estava habituado, tomou um tom ainda mais escuro.

- Ela levou-me ao tribunal do consistório...

- Ah sim? - murmurou Sloan. Era um tribunal onde nunca prestara declarações. Até agora. - Por que razão?

- Por ter retirado o Memorial de Guerra da Capela de Nossa Senhora sem permissão. - O reitor acrescentou inexpressivamente: - Perdi.

- Diga-me - inquiriu Sloan, que continuava a ser um detective em serviço - havia algum membro da família dela incluído no memorial?

- Que eu saiba não, inspector.

- E então?

- Tive que repô-lo onde estava - disse Edwin Fournier, baixando a cabeça para o cortador de relva.

- Pelo que sei - disse Sloan - ela pediu, não obstante, que fosse o senhor a ocupar-se do seu funeral.

- Quis ter a última palavra, penso eu - disse o reitor num tom descortês. - Difícil até ao fim, é o que eu acho.

- Pois eu acho, senhor reitor - disse o Detective-Inspector Sloan, polícia em primeiro lugar, mas jardineiro logo a seguir - que aquilo de que a sua máquina precisa é...

- Diga - incitou o pacifista ansiosamente.

- Um pouco menos de carburação e um pouco mais de estrangulamento.

 

"Adeus, avezinha, ruiva, morta na tua beleza"

Shirley Doves ergueu o olhar do cesto da roupa lavada que estava a pendurar no pátio das traseiras.

- Conheço-o de qualquer lado, não conheço?

- Conhece, sim - disse o Detective Crosby.

- Vá, diga lá - disse ela, segurando uma mola com os dentes. - Diga "Uma vez visto, nunca esquecido".

- A falar verdade - respondeu Crosby - é isso que me traz aqui.

- Uma vez visto, nunca esquecido? Ponha-se a mexer.

- Aquele homem que estava no Cão e Pato e que a fez chegar um pouco atrasada à Granja na quinta-feira à noite...

- Ainda está nisso?

- Conhecia-o?

Shirley Doves abanou a cabeça. Como tinha metido mais algumas molas na boca, o efeito era macabro.

- Nunca o tinha visto mais gordo. E, pensando bem, nunca mais o vi desde que a velhota morreu.

- O que estava a beber na quinta-feira? Shirley pendurou duas toalhas antes de responder a Crosby.

- Eu estava a beber cerveja com limão e o Ron bitter.

- Sempre?

- Até o tal tipo nos convidar para festejar com ele.

Precisamente quando já nos íamos embora.

- Festejar o quê?

Shirley Doves ficou surpreendida.

- Não sei. Só disse que tinha tido um bocado de sorte e perguntou o que queríamos beber.

- Continue - disse Crosby.

- Bom - disse ela desembaraçadamente, fitando-o. - O Ron ia guiar de modo que só bebeu outro bitter...

- Não tenho nada a ver com trânsito e bebidas - disse ele abertamente.

- Mas o tipo perguntou-me o que eu gostaria mesmo de beber. Era uma grande comemoração, disse ele, de modo que queria que eu dissesse o que gostaria realmente de beber.

- E disse-lhe...

- Um uísque escocês - disse Shirley Doves imediatamente. - E diabos me levem, foi isso mesmo que ele me trouxe. Até me custou a crer em tanta sorte.

- Que aspecto tinha ele?

- Um tipo vulgar. - Apertou os olhos. - Vestido à maneira, talvez, só isso...

- A maneira?

- Sabe como é, um bocado antiquado.

Crosby não sabia como era, mas fez conscienciosamente uma anotação no seu caderno.

- Vai ao funeral, então? - perguntou.

- É claro que vou - disse ela, ofendida. - Eu vou sempre aos funerais das minhas velhotas.

 

Michael Harris mandou chamar o seu director financeiro na terça-feira de manhã, com muito pouco entusiasmo. Por muito inteligente e trabalhador que fosse, tacto era coisa que não possuía.

- O nosso corretor informou-me - disse-lhe Harris - que o preço das Acções Ordinárias "A" da Chernwoods cairam um bocado desde sexta-feira.

- Era de esperar - respondeu David Gillsams. - Ontem não estivemos no mercado, e nós somos os únicos a comprar; o motivo por que o fazemos, ultrapassa-me mas...

- Pronto, pronto - Harris fê-lo calar com um gesto da mão. - Mas isso quer dizer que a compra vai ficar mais barata para nós.

- Quer dizer que não há tantos investidores a querer saltar para o seu carro como pensava, só isso - disse Gillsams, acrescentando mentalmente que eles tinham mais juízo.

Harris coçou o queixo.

- E não pode comprar mais acções, seja qual for o preço, sem declarar as suas intenções ou infringir a lei - acrescentou Gillsams inequivocamente. David Gillsams, como convinha a um economista, era um homem a preto e branco e não estava interessado na vasta gama de cinzentos.

- Eu sei, eu sei - disse Harris ansiosamente - mas quando se compra além do limite, sai mais barato.

Gillsams disse inexpressivamente:

- É uma das formas de ver a questão.

- Podem valer muito menos nessa altura...

Gillsams fitou-o vivamente mas ficou em silêncio.

- Muito menos - disse Harris astutamente.

- O argumento contra a compra continua a ser o mesmo - disse Gillsams.

- Mas lembre-se... as acções desceram muito depois de eles terem ido várias vezes a tribunal.

- Isso é perfeitamente natural - disse Gillsams. Deteve-se, pensando que, se Harris pretendia fazer alguma fraude, o melhor era ele não saber.

- Por isso penso - disse Harris misteriosamente - que devemos esperar até à próxima semana antes de darmos novos passos para comprar.

Gillsams acenou afirmativamente com a cabeça. altura era cedo de mais para ele, mas na semana seguinte era melhor do que agora. Por momentos desejou que ainda houvesse um Marsh na firma, com quem se discutir o assunto, mas o Marsh do Harris and Marsh's estava tão morto como Jacob Morley, o sócio há muito falecido de Mr. Scrooge (1).

 

(1) "A Christmas Carol", de Charles Dickens (1812-1870). (N. do T.)

 

- Eu vou ao funeral, evidentemente - disse Harris, revelando que era aquela semana que o encorajava ao atraso. - Mandei enviar uma coroa.

- Eu sei - disse maldosamente o outro. - Foi debitada no orçamento de publicidade.

 

- Foi muito amável da sua parte vir até cá, Mr. Henryson...

- A Drª Phoebe é a nossa médica, Miss Kennerley - disse o alfarrabista obliquamente, estendendo-lhe o livro. - A minha mulher não deixava que mais ninguém a operasse.

- Então e as Recordações da Guerra?

Ele dirigiu-lhe um sorriso desdenhoso.

- Os meus clientes não se importam de ter que voltar, sabe. São entusiastas e o tempo não lhes interessa muito. Além disso - fez uma vénia com a cabeça - disse-me que isto era importante.

- É, sim - disse Amelia. - Poderá parecer-lhe idiota, Mr. Henryson, mas necessito realmente de conhecer os nomes dos soldados dos Fearnshires que morreram na última guerra, provavelmente em 1940.

- Ah, então penso que isto vai ajudá-la. - O livreiro abriu o livro. - A história do regimento...

- Maravilhoso! Deixe-me ver...

- Os Fearnshires passaram um mau bocado em França em 1940 - disse Mr. Henryson. - Depois da queda da França o 2º Batalhão ficou encurralado entre as duas forças alemãs em progresso no terreno. Estava demasiado a sul, compreende, para alcançar Dunquerque...

- De onde poderiam ter partido. - Amelia tinha uma recordação exacta desse momento épico.

- Talvez tivessem podido - concordou Mr. Henryson. - Provavelmente estavam a tentar passar através de St. Valéry-en-Caux - esperavam poder evacuar alguns homens por aí...

- Mas não conseguiram, não é assim?

Mr. Henryson abanou a cabeça.

- Não. Os Fearnshires aguentaram tanto quanto puderam, evidentemente - havia uma abundância de sentido militar neste evidentemente - mas, por fim...

- Que sucedeu?

O alfarrabista disse:

- A superioridade das forças inimigas prevaleceu...

- Como costuma suceder - observou Amelia logicamente.

- Nem sempre - disse Mr. Henryson, historiador amador. - Tivemos David e Golias, bem sabe. No entanto, receio bem que os membros do 2º Batalhão dos Fearnshires fossem todos mortos ou feitos prisioneiros numa aldeia chamada Hautchamps. - Mr. Henryson apontou para o volume que trouxera. - Está tudo aqui. Foi num pequeno local chamado Hautchamps que eles aguentaram a sua última posição.

- Há lá algum monumento? Amelia abriu a história e começou a folheá-la.

Mr. Henryson disse que estava certo de que haveria e havia, por certo, um outro, na forma de um monte de pedras escocês, no quartel do batalhão, porque ele tinha-o visto.

Bem grande.

Estava certo, disse, de que ela conhecia a origem dos montes de pedras como memorial e o significado do seu tamanho.

- Quanto maior foi a batalha, maior o monte de pedras? - arriscou Amelia, quase sem pensar, ocupada em folhear a história o mais depressa que conseguia.

- Não exactamente - disse Mr. Henryson. - Data dos tempos antes das listas de chamada para revista...

Os Fearnshires, concluiu Amelia, deviam ter ficado entre o fogo de canhões da direita e da esquerda, naquele terrível mês de Maio.

- Quando um Highlander partia para a batalha, deixava uma pedra na pilha - prosseguiu o alfarrabista - e...

- "Os Fearnshires" - leu Amelia - "tinham também dificuldade em defender a retaguarda."

- E - disse o infatigável Mr. Henryson - quando, se um soldado voltasse, ia recolher a sua pedra. Por isso, quanto maior fosse o monte de pedras não levantadas, maior tinha sido o número de baixas...

Amelia interrompeu a sua dissertação.

- Mr. Henryson, o que quer dizer "fogo de enfiada"?

- Fogo de artilharia que varre uma linha de homens ou de edifícios de um extremo ao outro - respondeu imediatamente Mr. Henryson.

- Foi o que eu pensei - disse Amelia, subitamente triste. Leu alto: - "Na noite de 10 de Junho de 1940, os homens reagruparam-se e formaram-se junto da encruzilhada de Hautchamps, sob o comando do Segundo-Tenente E. H. Goudy, do 2º Batalhão dos Fearnshires, depois de terem sido varridos pelo fogo do inimigo."

- "Nec temere, nec timide" - observou Mr. Henryson. - Era isso que procurava, não era?

Amelia prosseguiu: - "O Segundo-Tenente Goudy fez parte daqueles que foram mortos pelo fogo de morteiros, na madrugada seguinte."

O alfarrabista perguntou-lhe:

- Era essa a pessoa que procurava?

Amelia pestanejou para se libertar de uma súbita névoa que lhe dificultava a visão e acenou afirmativamente com a cabeça.

- As batalhas mais antigas e mais longínquas são melhores - disse Mr. Henryson, embora pensasse que ela não estava a escutá-lo.

 

Mr. Nicholas Cochin vivia em Calleford num bangalô num extremo da cidade. Os dois polícias encontraram a sua casa sem dificuldade. Só os impediu de entrevistá-lo o facto de ele e a mulher se encontrarem no Canadá a visitar uma filha casada.

O vizinho do lado oferecera-se para cuidar das plantas e enviar-lhe o correio. Disse a Sloan que tinham, efectivamente, aparecido outras pessoas para o visitar e que lhes tinha dado a mesma informação, mas não mais do que isso.

Não, os outros visitantes não tinham deixado os seus nomes... mas tinham dito que voltariam quando os Cochin regressassem a casa.

Não, o vizinho não conseguia descrever nenhum deles.

Os polícias tiveram mais sorte com a sua visita seguinte.

Martin Didot vivia em Luston, reformado, e era um velho cheio de vivacidade, que conservava toda a sua lucidez. Apesar de ser idoso, ainda não era verdadeiramente velho, nem aquilo a que os geriatras chamam esclerosado.

- Chernowoods durante a guerra, inspector? Sim, trabalhei lá, efectivamente. Era um homem e ainda um rapaz, poder-se-á dizer. Foi no tempo em que os últimos da família Chernwoods ainda lá estavam. Grandes tempos, acredite. Nunca mais foi a mesma coisa, depois de a nova administração tomar o controlo.

- Não, senhor, tenho a certeza disso, mas...

- O nome deles veio nos jornais há pouco tempo, quando alguém os processou por despedimento sem justa causa. - Olhou Sloan de frente e disse severamente: - Esse tipo de coisa nunca teria acontecido nos velhos tempos, acredite. Não é bom para uma firma, esse género de coisas.

- Não senhor - concordou Sloan - Não é.

- E depois, ainda há pouco tempo, tiveram um incêndio.

- Isso foi um azar - disse Sloan.

- Se quer saber - disse Didot - eu digo que foi fogo posto.

- Teria sido? - Sloan tomou mentalmente nota para investigar mais tarde.

- Fui lá na manhã seguinte, para dar uma olhadela ao meu antigo local de trabalho. As oficinas estavam uma desgraça, a fervilhar de peritos de incêndio e acessores de seguros...

O Detective-Inspector Sloan introduziu outra nota no seu caderno.

- Desconfio, meu rapaz - disse Didot - que há alguém que quer prejudicar a minha velha companhia.

- O que eu vim perguntar-lhe - disse vivamente o Inspector Sloan (havia muitos anos que não o tratavam por "meu rapaz") - é acerca da Cabana Onze.

Sloan viu-se observado por um par de olhos notavelmente perspicazes, apesar de lacrimejantes. O homem perguntou-lhe ironicamente:

- O senhor também, inspector?

- Houve outros, então?

- Oh, sim - acenou afirmativamente com a cabeça -, tem havido outros. Da parte da administração e de Deus sabe donde. E...

- E?

- Todos querem saber o que nós fazíamos na Cabana Onze, naquela altura.

Sloan inclinou-se para diante.

- E o que é que lhes tem dito, Mr. Didot?

- A verdade, inspector. Que eu era apenas um rapaz, o ajudante do laboratório. Nessa altura, geralmente vão-se embora.

- Mas sabia da OZ? - insistiu Sloan, que não tencionava ir-se embora.

- Sabia, inspector. Mas é tudo.

- Continue.

- Quero dizer, sabia dela até ao ponto de poder dizer que sabia que estava a fazer-se uma investigação com esse nome, mas não do que se tratava exactamente. - Olhou para o exterior, pela janela. - Foi tudo há muito tempo, compreende.

- Essa é uma das dificuldades - disse Sloan, sem desanimar. O longo braço da Lei já se tinha estendido muitas vezes para trás. E chegado mais longe.

- E - disse Didot com naturalidade - eu não tinha as mesmas habilitações que os outros. Eles eram, na sua maioria, cientistas bem preparados, compreende, recrutados das universidades à medida que a guerra ia progredindo.

- Mas Mrs. Garamond sabia tudo a respeito do assunto, não sabia? - sugeriu Sloan.

A pequena casa bem arranjada, no meio de uma fileira de outras iguais, parecia muito longe das investigações do tempo da guerra.

- Oh, sim, mas a descoberta foi dela, por isso não admira.

- E o que foi? - perguntou Sloan calmamente.

- A OZ - disse Martin Didot -, a Operação Zénite, como sabe...

- Não, não sabia. Diga-me, o que era a Operação Zénite, Mr. Didot?

- Como já lhe disse, inspector, não sei. Eu era apenas o rapaz do laboratório, que ajudava a preparar os aparelhos para os outros. - Fitou o vazio, fazendo recuar a memória. - Mas era uma coisa importante, isso posso eu dizer-lhe.

- Mais importante - disse Sloan - do que a Operação Identificação?

- Muito mais importante.

- Onde posso descobri-la?

- Não pode, inspector. Agora que a Dona Triques se foi. Era como nós chamávamos a Mrs. Garamond, por trás das suas costas, claro. Era uma mulher fantástica.

- Quem mais poderia saber ainda?

- Como lhe disse, ninguém. - Martin Didot ficou a pensar por um momento. - Não. Já não restam muitos dos antigos.

- E Nicholas Cochin?

Martin Didot fungou expressivamente.

- Esse fez sempre de conta que sabia, mas não creio que soubesse realmente. O nosso Nicholas gostava de dar nas vistas. Fala-Barato era o que nos lhe chamávamos por trás das costas.

O Detective-Inspector Sloan, que conhecia o valor do silêncio melhor do que muita gente, ficou à espera.

Ao fim de algum tempo, o homem prosseguiu: - Suponho que as únicas pessoas que restam e que podem saber alguma coisa são Alfred Harris e Miss Camus...

- Miss Kate Camus? - Era o último nome da lista de Sloan.

Didot olhou para Sloan com um ar sabido e esfregou a parte lateral do nariz.

- Se quer saber, ela estava apaixonada pelo William Garamond, mas ele casou-se com a Dona Triques.

Sloan inquiriu ansiosamente:

- Onde posso encontrar Miss Camus, Mr. Didot

- Ninguém sabe, inspector. Ela deixou a Chernwoods logo a seguir à guerra, e nunca mais se soube dela. Não sabia?

 

- É o senhor, Sloan? Fala Dabbe. Onde diabo tem estado?

- Por aí - disse Sloan sem mentir. - Aí por fora... principalmente a tentar identificar uma rapariga inconsciente.

- Bem - disse Dabbe, a quem os vivos raramente interessavam - , estive a falar com o meu velho amigo Stony Agate. Recorda-se de quem é? O toxicologista forense de que lhe falei.

- Recordo-me - disse Sloan. - Aquele que conheceu por causa de uma perna.

- Bom, ele está convencido de que a sua velhota...

Mrs. Octavia Garamond era também um caso do patologista, não apenas dele, mas Sloan não fez comentários.

- Diga.

- Stony, é assim que chamávamos ao Agate - já lhe disse isso, não disse, inspector?

- Já, doutor.

- Bom, o Stony diz...

Havia um jogo que Sloan jogava quando era pequeno, chamado "Simon diz..." Tinha que lembrar-se de o ensinar ao filho. Se, evidentemente, conseguir alguma vez chegar a casa antes de ele estar a dormir.

- O Stony diz agora que a falecida morreu provavelmente por inalar um vapor...

O Detective-Inspector Sloan ergueu a cabeça.

- Um vapor, doutor?

- Bom, um gás, se prefere...

- Gás venenoso?

- Os vapores produzidos pelo aditamento de hidróxido de sódio e etilenocloridina - disse o Dr. Dabbe.

- Mas como diabo poderia alguém introduzir gases tóxicos nos pulmões da senhora? - perguntou Sloan. - Havia apenas oxigénio na garrafa junto do leito de Mrs. Garamond, isso já foi investigado.

- O Stony diz que se mete primeiro a etilenocloridrina num balão de ensaio...

- Primeiro apanha-se a etilenocloridrina, com certeza... - disse Sloan, que pensou que apanhar uma lebre devia ser muito mais fácil.

- Não é difícil - disse o Dr. Stabbe. - É estável e barata...

- Certo - capitulou Sloan. - E depois?

- Depois, quando a colocamos por baixo do nariz da vítima, basta adicionar-lhe hidróxido de sódio e... hã... a pessoa já era. Ou mais exactamente - disse o Dr. Dabbe - o que se pode dizer é que se corre o pano para quem respirar os vapores. Sloan - acrescentou - parece-lhe que se usa este "pano" como sinónimo da morte por causa das cortinas do crematório ou por o correrem no palco depois de uma peça? "O resto é silêncio" (1) e tudo o mais?

 

(1) Shakespeare - "Hamlet". (N. do T.)

 

- Qual é o resultado? - perguntou Sloan, como polícia pertinaz que era. Para ele, o pano corrido tinha vindo a significar a morte porque era costume correr os cortinados quando alguém morria numa casa. A sua avó tinha-lhe dito isso, a sua avó e Wilfred Owen, em "E cada crepúsculo é um lento correr das persianas...". Inquiriu de novo: - Qual é o resultado, doutor?

- O resultado da mistura de hidróxido de sódio com etileno-cloridina - respondeu o patologista - é, quimicamente, óxido de etileno.

- Ai é? - disse Sloan, um pouco inseguro quanto à forma de escrever as palavras que estava a anotar.

- E, Sloan, o que há de mais importante no óxido do etileno, do seu ponto de vista...

- O que é?

- É que se transforma em gás a temperaturas normais.

- Isso é importante, não é, doutor? - disse cautelosamente, perguntando a si mesmo se deveria perguntar ao médico como se escrevia "cloridrina" ou aguardar a chegada do relatório. O superintendente iria perguntar, de certeza.

- Bom, isso e o facto de ser fatal para quem o inala, evidentemente. Fácil, não é? disse o Dr. Dabbe. - O Stony ficou extremamente interessado, pensa que isso nunca se fez antes.

- Espero que não - disse Sloan repressivamente.

- Mas ele tem a certeza - disse Dabbe. - Um bom tipo, aquele Stony. Depois de dissecarmos aquela perna, continuámos...

- Certeza até que ponto? apressou-se a perguntar Sloan.

- A certeza de uma testemunha especialista - disse Dabbe concisamente.

- Ah - fez Sloan, aliviado. Isso queria dizer que o amigo do patologista não se importava de ser interrogado no banco das testemunhas.

- Na verdade - confidenciou o patologista - está um pouco ansioso por o fazer. Ele gosta de julgamentos de homicídios.

- Muito bem - disse Sloan - , mas primeiro tenho que... hã... apanhar a minha lebre.

- Boa caçada.

- Hei - de lá chegar, doutor. Também tenho que apanhar um herdeiro desaparecido, ou antes, uma herdeira, da velhota, para a executora do testamento - disse Sloan. - Amelia Kennerley disse-me que havia uma filha ilegítima desconhecida, que é uma possível herdeira da velha senhora.

- Continue, Sloan...

- Diz que deve ter uns cinquenta anos agora, se ainda estiver viva e - prosseguiu - ainda tenho que descobrir quem é a rapariga que foi ferida na cabeça...

Houve um pequeno silêncio do outro lado da linha telefónica e depois o Dr. Dabbe disse, com uma timidez pouco característica nele:

- Podia arranjar-me alguns cabelos dela, Sloan? Basta uma madeixa...

 

"Calado durante o Verão, enquanto os outros cantam"

De maneiras diferentes, tanto o Superintendente Leeyes como o Detective Crosby tiveram dificuldade em entender o comportamento do Detective-Inspector Sloan na manhã de quarta-feira.

Passou-a sentado à secretária no seu gabinete.

O Detective Crosby foi o primeiro a perturbar os seus pensamentos.

- Aonde vamos hoje? - perguntou da porta, já com as chaves do carro a postos.

- A parte nenhuma - respondeu Sloan, ignorando uma pilha de relatórios em cima da sua secretária. - Oh, Crosby, pode ir averiguar se há mais alguma coisa quanto ao paradeiro de Miss Camus.

- Se ela era importante, a velhota não havia de ter a morada dela?

- Talvez, Crosby. Se os desejos fossem cavalos, os mendigos podiam cavalgar.

- Como diz? - Crosby parecia ofendido.

- Primeiro, não sabemos se Miss Camus ficou solteira, tanto quanto sabemos, pode hoje ser Mrs. Qualquer Coisa, e, segundo, a agenda de Mrs. Garamond, se existiu, não se encontra na Granja. Já a procurámos.

- Roubada?

- Muito provavelmente.

- Para nos impedir do a encontrar?

- Ou para permitir a outros encontrá-la?

- Primeiro?

- Essa é uma das minhas preocupações, Crosby.

- Sim, senhor.

- O facto de Miss Camus ter idade para trabalhar durante a última guerra, quer dizer que ela também já não é nova.

- Se ainda estiver viva - disse Crosby.

- Mas - declarou Sloan -, o facto de, se estiver viva, já ser velha não quer dizer que não tenha direito de viver os seus dias como deseja, sem os ver truncados pela violência, como parece ter sucedido no caso de Octavia Garamond. - Sloan agitou um relatório que tinha na mão. - O Dr. Dabbe e o seu amigo, o Professor Agate, parecem estar seguros de que Mrs. Garamond foi assassinada.

- Sim, senhor. Eu também.

Sloan ergueu o olhar, surpreendido.

- Ai está? Porquê?

- Os homens nos bares não convidam pessoas totalmente estranhas para festejar com eles, ao fim da noite - disse Crosby muito simplesmente. - Não é natural. Fá-lo-iam logo que chegassem, não lhe parece? É uma coisa razoável.

- Certo - concordou Sloan. Talvez um dia conseguissem fazer de Crosby um detective, afinal.

- Cá para mim, inspector, o tipo meteu um pó para dormir no copo de Mrs. Shirley Doves para ela dormir profundamente naquela noite.

- Então é melhor ir verificar se a descrição do seu estranho com qualquer coisa para festejar condiz com os homens do nosso caso. Excepto o médico, porque Mrs. Doves conhecia-o.

- Sim, senhor - disse Crosby, sacudindo esperançosamente as chaves do carro. - E depois?

- Depois pode vir ajudar-me com a papelada - disse Sloan, assegurando-se assim de uma prolongada ausência da parte de Crosby. Vou trabalhar com duas listas, o que sabemos e o que não sabemos.

- Sim, senhor.

- E uma das listas é bastante mais longa do que a outra...

- Sim, senhor.

- Na verdade, aquilo que sabemos cabe numa folha de papel escrita de um só lado.

- Sabemos que há qualquer coisa que alguém procura desesperadamente - disse Crosby. - E que é pequena.

- Mas não o que é.

- Mas trata-se de qualquer coisa muito valiosa, senão não haveria toda esta confusão.

- Se, por confusão se refere a homicídio, Crosby, sim, é muito valiosa para alguém.

- Mas não sabemos quem, não é verdade, Inspector?

- A Chernwoods's Dyesstuffs, talvez.

- Ou alguém de lá - disse Crosby, que tinha dificuldade em apreender o conceito da identidade de uma corporação. - Ou da responsabilidade.

- E a Harris and Marsh's - disse Sloan.

- Ou alguém de lá, também - disse Crosby.

- Mas o que ainda não sabemos - disse o inspector - é se se trata de alguma coisa que está a ser procurada para ser destruída...

- Como aquelas lâmpadas eléctricas eternas do que estão sempre a falar?

- Precisamente - concordou Sloan. - Ou se estão à procura de qualquer coisa que possam explorar.

- Mesmo que não seja deles? - inquiriu Crosby.

O Detective-Inspector Sloan disse: - Se a descoberta foi feita na Chernwoods por membros do pessoal que na altura trabalhavam para ela, eu acho que pertencia à Chernwoods. O que poderia justificar o desejo da Harris and Marsh's de a adquirir.

- Sim, senhor.

- Hoje chama-se a isso direitos de propriedade intelectual mas antigamente eram provavelmente conhecidos como direitos de cópia ou patente.

A testa de Crosby desanuviou-se.

- Compreendo, senhor. Então se a Harris and Marsh's adquirisse a Chernwoods, o segredo seria deles e poderiam fazer dele o que quisessem?

- Percebeu tudo perfeitamente, Crosby - disse Sloan com amabilidade, desejando intimamente que o superintendente pudesse, e quisesse, seguir a mesma linha de raciocínio sem discussões.

- Então o que é que essa Miss Camus tem a ver com tudo isto?

- Segundo penso - disse o Detective-Inspector Sloan - Miss Kate Camus é a única pessoa viva que pode relatar-nos, a nós ou a qualquer outra pessoa, toda esta história. - Emendou a sua afirmação ao ouvir tocar o telefone: - Miss Camus e o Dr. Dabbe...

 

- Esse funeral de sexta-feira à tarde, Sloan - começou Leeyes a dizer, assim que o infeliz inspector enfiou a cabeça pela porta do gabinete do superintendente - Quer que mande embargá-lo?

- Não, obrigado, superintendente - disse Sloan delicadamente.

- Não? - Um par de sobrancelhas hirsutas ergueu-se subitamente.

- Não, quero dizer, a sexta-feira à tarde serve perfeitamente, muito obrigado.

- Apesar do nosso amigo patologista afirmar que se trata de um crime?

- Sim, senhor. Especialmente por causa disso. Ele diz que tem tudo aquilo de que precisa para o juiz de instrução.

- E já tem uma lista do todas as pessoas que podem saber que deitar um daqueles produtos químicos por cima do outro produz um efeito perigoso?

- Já - disse Sloan. - É uma longa lista. Incluindo o médico dela - acrescentou meticulosamente. - Mrs. Octavia Garamond foi morta por alguém que sabia de Química. - Absteve-se de dizer que, naquele caso, esse facto alargava a lista dos suspeitos, em vez de a reduzir.

- Não está à espera, pois não, Sloan - observou Leeyes sarcasticamente, com a sua voz tonitroante -, que o tempo dos milagres ainda não tenha acabado e que alguém considere a ocasião do funeral excessivamente emocional e confesse tudo?

- Não, senhor, mas gostaria que a Sargento Perkins estivesse presente em Great Primer na sexta-feira.

- Precisa de que ela lhe segure na mão?

- Preciso de uma mulher-polícia no local - disse Sloan, seriamente, acrescentando: - E à paisana.

- Disfarçada de quê? - perguntou Leeyes.

- De jornalista do Luston News.

Leeyes grunhiu.

- Isso não deve ser difícil para a Polly Perkins.

- Não, senhor. - Sloan não tinha dúvidas de que, se lho pedissem, na sexta-feira à tarde a Sargento Perkins se apresentaria com todo o aspecto de uma jornalista de um jornal de província.

- E a rapariga do hospital?

- Não está muito bem.

- Isso quer dizer que tem a vida por um fio, calculo eu. - Leeyes interpretava facilmente os relatórios do hospital.

- Ainda não voltou a si.

- E continua sem saber quem ela é?

- Ainda não sei.

- Então...

- Então, vamos prosseguir a nossa averiguação junto de uma senhora idosa chamada Kate Camus, da qual tivemos notícias pela última vez depois do fim da guerra, quando saiu da Chernwoods' Dyestuffs, com destino desconhecido.

- É um nome pouco vulgar.

- Pode tê-lo mudado, evidentemente.

- Pode estar morta.

- Sim, senhor.

Leeyes disse:

- E pode não saber de nada útil.

- Certo, senhor. - Tossiu. - Ou pode ter sido assassinada também, mas, de certa forma, penso que não.

- Está bem, está bem, Sloan. Entro nessa. Porque pensa que ela não foi assassinada como Mrs. Garamond?

- Porque - disse Sloan sobriamente - não é possível encontrá-la.

- E nós conseguimos encontrá-la?

- Estamos a esforçar-nos muito por isso. Procuramos por todo o lado, mas podemos não ser os únicos fazê-lo. Aí é que está o problema.

- Pode voltar e ser morta?

- Qualquer coisa parecida. - Acrescentou lentamente: - Não me agradava nada que fôssemos nós a descobri-la para outra pessoa a matar.

- E então?

- Por isso, estou... hã... a aguentar os cavalos até ao funeral.

 

Claude Miller não estava apenas a aguentar os seus cavalos para o funeral mas a flexibilizá-los. Mandou chamar o seu encarregado da imprensa e bibliotecário.

- Greg, penso que lhe disse que vou dizer algumas palavras no funeral de Mrs. Garamond.

- Disse, sim - respondeu Rosart, sem mostrar entusiasmo.

- Vou precisar de material de apoio.

- Sim, Mr. Miller. Vou desenterrar alguns factos para lhe dar. Datas, etc.

- Soube que Michael Harris vai estar lá. - A telefonista deles e a sua prima na Harris and Marsh's tinham-se revelado valiosas fontes de informação, quando os dois presidentes só comunicavam através dos seus advogados.

- O nosso Michael não podia perder uma ocasião como essa - concordou Rosart - para não falar de o seu nome sair nos jornais.

- Afinal - disse Miller, já a ajeitar a gravata - a velhota foi uma das jóias da coroa da Chernwoods nos velhos tempos...

- Penso que seria preferível qualquer coisa mais concreta, Mr. Miller, para o seu discurso.

- Certo - disse o presidente no tom que gostava de pensar ser de comando. - Ponha qualquer coisa no papel e eu vou contactar com a família...

- Família? - exclamou Greg Rosart. - Que eu saiba, há apenas uma sobrinha-neta.

- Exactamente. Que tal se fôssemos em grupo até à Igreja? Ou ao cemitério? Acha que podia tratar disso? Só para que fique registado, evidentemente...

 

"Sepultai-os, camaradas, que doloroso dever"

Os homens que transportavam o caixão na sexta-feira - homens de Tod Morton - pararam, como nos tempos antigos, junto do portão coberto à entrada do cemitério da Igreja de St. Hilary em Great Primer, quando foram colocadas sobre ele duas grandes coroas. Uma era feita de rosas vermelhas e a outra de brancas. As cores tinham sido escolhidas por Amelia.

O portão coberto onde o cortejo havia parado tinha proporcionado abrigo e um lugar para as pessoas se sentarem, nos velhos tempos, quando o cortejo - sem as vantagens do relógio e da escrita - tinha que esperar pela chegada do clérigo para fazer o serviço fúnebre.

Já não era assim.

O Reverendo Edwin Fournier já estava presente, devidamente paramentado, aguardando a chegada do caixão e pronto a acolher os acompanhantes com palavras em que Amelia pensava sempre como "palavras de conforto".

O que não lhe dava tanto conforto era saber que, por trás dos teixos imemoriais da igreja espreitavam homens que não eram acompanhantes mas sim polícias. Antes do Cristianismo, o teixo, quase a única árvore sempre verde em Inglaterra, tinha, só por si, sido um símbolo da vida eterna. Naquele momento, os teixos daquele cemitério de província estavam a servir de cobertura a detectives à paisana.

- Pronto, miss - disse Tod Morton, tocando no ombro de Amelia. - Podemos continuar.

Os passos que esmagavam o cascalho em uníssono era o único som que Amelia realmente ouvia, mas a sua cabeça estava cheia de sons e imagens e sentia as pernas mais trémulas do que gostaria de confessar, mesmo a Phoebe.

Quando o cortejo entrou na igreja, a senhora bem constituída do jornal acabou de registar os nomes junto ao pórtico da igreja - um costume antigo que, sem dúvida, a tia-avó Octavia teria aprovado - e foi sentar-se ao fundo da igreja.

O Detective-Inspector Sloan tinha seguido o conselho do superintendente e encontrava-se perto do fundo, do outro lado da igreja. Por motivos que apenas a Polícia conhecia, o Detective Crosby estava sentado muito perto da frente, no extremo do banco lateral mais próximo da porta da sacristia.

Amelia levou alguns momentos a adaptar a vista à relativa obscuridade no interior da igreja, depois da luz brilhante do cemitério. Pestanejou e seguiu o pequeno cortejo pela nave. Tod Morton encaminhou-se até ao banco da frente e o Reverendo Edwin Fournier principiou o Serviço para Sepultamento dos Mortos.

Ao fim de pouco tempo, Amelia Kennerley constatou aquilo que inúmeras outras pessoas já o haviam feito antes, que o banco da frente não era o melhor local para observar a congregação. Tinha, no entanto, do sítio onde se encontrava, uma boa visão da Capela de Nossa Senhora. Lá estavam os nomes inscritos no Memorial - o motivo de acesa disputa entre o padre e a sua paroquiana - que pertenciam aos homens do Regimento de Calleshire Oriental, mas - Amelia não tinha dúvidas de que tinha sido o nome de um certo Segundo-Tenente E. H. Goudy, dos malfadados Fearnshires, que a tia-avó Octavia tinha presente quando se ajoelhava ali. Isso não queria dizer, de forma alguma, que o seu casamento com o tio da sua mãe, William Garamond, tivesse sido infeliz.

Apenas diferente, provavelmente.

- Nada trazemos a este mundo - declarou o Reverendo Edwin Fournier à congregação reunida - e é bem verdade que nada levamos connosco...

Mas, pensou Amelia, embora a tia-avó Octavia talvez soubesse que os sudários não têm bolsos, tinha deixado as suas instruções para os vindouros, sem qualquer hesitação.

O Detective-Inspector Sloan percorreu a congregação com o olhar. O seu olhar tinha-se cruzado apenas com o da Sargento Perkins, mas isso tinha sido suficiente.

Ela indicara-lhe uma pequena dama idosa, de cabelos grisalhos e aspecto normal, que se fora sentar num banco a meio da nave central, e que, naquele momento, estava atenta à leitura.

Era do Eclesiastes.

- "Para tudo" - leu o reitor - "há uma razão, e um tempo para cada coisa debaixo do céu..."

Amelia endireitou-se, permitindo que as palavras deslizassem sobre ela como um bálsamo.

- "Um tempo para nascer e um tempo para morrer" - prosseguiu o reitor. - "Um tempo para plantar e um tempo para colher o que se plantou; um tempo para matar..."

O Detective-Inspector Sloan estava rigidamente sentado no seu banco, também, e perguntava a si mesmo porque tinha havido um momento exacto para alguém matar Mrs. Garamond, dando entretanto graças a Deus por as pálpebras de uma rapariga inconsciente no Hospital de Berebury terem começado a mover-se. Também havia um tempo de esperança.

- "E um tempo para curar" - prosseguiu o reitor -, "um tempo para destruir..."

Octavia Harquil-Grasset não tinha destruído, no entanto, pensou Amelia, no seu banco da frente. Tinha tida a sua filha, chorado o seu pai, dado a criança para adopção e partido para desempenhar o seu papel no esforço de guerra.

- "Um tempo para calar e um tempo para falar; um tempo para amar... e um tempo para odiar..."

Amelia gostaria de ter conhecido a sua tia-avó, do a ter conhecido realmente. Não apenas numa visita a um domingo de tarde, mas tê-la conhecido verdadeiramente para saber o que ela pensava das coisas...

A voz de Edwin Fournier sobrepôs-se aos seus pensamentos.

- "Um tempo para a guerra..."

Isso aplicava-se, sem dúvida, a Octavia Garamond.

- "... e um tempo para a paz" - concluiu o reitor com firmeza, fechando a Bíblia e dirigindo-se de novo ao seu estrado.

Aquilo também, pensou Amelia, enquanto Claude Miller pronunciava o seu discurso lapidar e o serviço fúnebre se aproximava do final.

O Detective-Inspector Sloan tinha tido mais tempo para olhar em volta da igreja e, de qualquer forma, encontrava-se num local de maior visibilidade. Sentia agora que o seu papel era triplo, como o de um cão de pastor: ao mesmo tempo proteger do perigo as ovelhas tresmalhadas do rebanho, encaminhá-las na direcção que queria que elas seguissem, e marcar as cabras no meio delas.

No interior da igreja encontrava-se também uma mulher-polícia, a Sargento Perkins, cuja única missão, naquele dia, consistia em vigiar a pequena senhora idosa, que dera o seu nome à entrada como Miss Catherine Camus. O Detective Crosby tinha misteriosamente saído pela porta da sacristia e encontrava-se no cemitério, mesmo por trás de Mrs. Shirley Doves, auxiliar de saúde.

- Oh, sim - disse ela, apontando. - é aquele mesmo. Foi ele que esteve no Cão e Pato naquela noite. Reconhecia-o em qualquer parte, pode crer.

 

"Abafa o som da campainha do jantar, com um toque de finados"

Não era a primeira vez, na longa história daquele estabelecimento legal, que os escritórios de Puckle, Puckle and Nunnery, junto à ponte de Berebury, tinham sido local para reuniões explicativas. Ocorreu mesmo a Amelia Kennerley que a sua tia-avó Octavia teria achado que os mognos e os velhos cabedais já gastos tornavam o ambiente ainda mais apropriado.

A pessoa que melhor se enquadrava naquele ambiente antiquado era Miss Kate Camus. Era uma senhora idosa, elegante e formal, que se instalou num dos sofás de James Puckle com grande compostura.

- Compreendo perfeitamente a sua dificuldade, inspector - disse ela a Sloan. - O assassino tinha que pertencer à Chernwoods' Dyestuffs ou à Harris and Marsh's Chemicals...

- Não vejo porquê - disse Amelia, que estava quase - mas não completamente - recuperada, depois de assistir à prisão de Gregory Rosart, três dias antes, minutos depois do sepultamento da sua tia-avó.

- Eles eram as únicas pessoas que podiam ter sabido da OZ - disse Miss Camus calmamente. - A Chernwoods por ter encontrado indicações nos seus registos, apesar de termos sido muito cuidadosos, e a Harris and Marsh's através de coisas que Albert Harris dissera, depois de ter perdido o juízo. - Acrescentou: - Fui vê-lo ontem, está completamente louco, coitado.

- Sim - disse o Detective-Inspector Sloan - mas o filho não está.

Tinha acabado de fazer Michael Harris passar pela hora mais difícil da sua vida de oportunista, antes de lhe dizer que a Polícia não o acusaria por aquilo a que o público teria chamado negócio privilegiado, apesar de a lei não o considerar como tal.

- O que eu não percebo - interveio James Puckle - é o motivo por que Rosart lhes disse tanta coisa...

Surpreendentemente, foi o Detective Crosby que respondeu: - Estava a tentar fazer de nós parvos. - Ainda estava furioso com a ideia. - Rosart não conseguia descobrir esta senhora e pensava que nós iríamos procurá-la para ele.

- Além disso - acrescentou Kate Camus - também cometeu o erro de pensar que, se me encontrasse, se apoderaria da OZ.

- O segredo da Cabana Onze? - disse Amelia, desejando que a frase não se parecesse muito com o título de um mau livro infantil.

- Um deles, pelo menos - disse Miss Camus.

James Puckle voltou ao ponto anterior:

- Então de nada lhe teria servido, se Rosart a descobrisse primeiro?

- Talvez tivesse evitado que ele ferisse Jane Baskerville... - disse Miss Camus vigorosamente.

- Que confundiu comigo - disse Amelia. Rosart tinha-o confessado. - Ela deparou com ele quando ia a sair depois do assalto.

A rapariga que estava no Hospital de Berebury tinha recuperado a consciência durante tempo suficiente para lhe dizer isso. E não só.

- Essa descoberta - disse Sloan, agarrando-se tenazmente à questão - era valiosa?

- Era uma descoberta muito importante, inspector - disse Miss Camus. - Indubitavelmente, a Operação Zénite era um autêntico marco na ciência biológica, segundo qualquer dos standards da época.

- Feita por...

- Oh, por Octavia Harquil-Grasset. - Abanou a cabeça. - Não por mim.

- O que é feito dela? - perguntou o inspector, embora começasse a pensar que já sabia.

- Destruímo-la - disse ela serenamente.

- Quem?

- Tavi, Bill Garamond e eu.

O detective-inspector disse calmamente:

- Importa-se de nos dizer porquê?

- Tavi achava que o mundo ainda não estava preparado para ela.

- Miss Camus - James Puckle falou como um homem de leis, lenta e cuidadosamente. - Está a dizer-me que Mr. e Mrs. Garamond destruíram deliberadamente todos os registos da Cabana Onze?

- Apenas os desta descoberta, Dr. Puckle - disse ela, com igual precisão. - Não os de qualquer outro trabalho.

- Mas - interveio o Detective-Inspector Sloan, sempre polícia - todos os registos da descoberta que recebeu o nome de código Operação Zénite?

- Todos e cada um, inspector. - Miss Camus falava muito calmamente.

- Oh - exclamou Amelia - por favor diga-nos porquê...

- Tavi estava preocupada com a ideia de que, se mais alguém a conhecesse, pudesse ir parar às mãos erradas. - Observou a sua audiência com a distância da idade avançada e disse: - Havia um perigo real, nessa altura, de a Inglaterra poder ser invadida.

- Mas sabia de que se tratava? - insistiu Amelia. - Essa descoberta...

Miss Camus ajeitou os óculos e disse com precisão:

- Eu sabia exactamente em que é que Tavi tinha tropeçado, qual era a natureza da sua descoberta, por assim dizer. Não sei como ela o fez e ela não mo disse, na verdade pedi-lhe que não o fizesse, no interesse de uma maior segurança.

- Mas - disse Sloan, agarrando-se ainda à questão principal - concordou com a sua total destruição.

- Oh, sim, de facto concordei. Quem sabe que terrível uso poderia ter sido feito dela? - Observou a sua audiência e disse: - Não se esqueçam de que havia nessa altura uma guerra, em que a ciência tinha sido utilizada para fins que os cientistas não conseguiam controlar. Poderiam ser efectuados danos irreparáveis antes que alguém pudesse impedi-los. - Olhou para longe, sem nada ver, quando disse: - São todos muito jovens para recordar, e ouvir contar não é a mesma coisa. Naqueles tempos, o mal estava organizado no estrangeiro...

- Mas diga nos de que se tratava - suplicou Amelia. - Só sei que a minha tia-avó tinha trabalhado anteriormente na forma por que as células se dividem nas plantas...

- Aquilo que nós, na Chernwoods, estávamos a fazer resultava disso - disse Kate Camus. - Tínhamos estudado os empregos possíveis, em tempo de guerra, dos corantes químicos em e sobre os seres humanos...

- A Operação Identificação... - disse Sloan.

Miss Camus disse, com aparente irrelevância:

- Tavi tinha um cérebro excelente, e muitos outros interesses para além das ciências biológicas. A psicologia era um dos seus passatempos favoritos. Era grade leitora de Sigmund Freud...

- E... - disse Sloan.

- E pensou que se lhe tinha deparado, no seu microscópio, uma coisa acerca da qual ele tinha escrito mas não soubera identificar.

- Ah sim? - perguntou Sloan. O nome de Sigmund Freud era muito conhecido de toda a gente na esquadra. Especialmente o seu princípio do prazer.

- Mas o que era? - exclamou Amelia.

- Aquilo a que Freud chamou "a hora secreta do meio-dia da vida" - disse Miss Camus. - Não contando com os acidentes, naturalmente.

O Detective-Inspector Sloan ouviu-se a repetir:

- Naturalmente.

Miss Camus disse exortativamente:

- Tavi descobriu um conjunto de células, em algumas plantas com que tinha trabalhado, que começavam a declinar exactamente a meio do ciclo de vida da planta, de modo que raciocinou que os animais talvez tivessem um marcador semelhante na sua constituição.

- E tinham? - Sloan compreendera a ideia. Como todas as boas ideias, era surpreendentemente simples.

Miss Camus acenou afirmativamente com a cabeça.

- Continuou a fazer experiências com ratos e... nela própria. O corpo humano não corresponde a algumas espécies animais, como sabem.

Eles sabiam isso à sua custa na esquadra da Polícia.

Foi o solicitador que falou em seguida:

- Nunca teria resultado - disse James Puckle - que as pessoas ficassem a saber exactamente quando estavam a meio das suas vidas.

Ela sorriu.

- Foi o que nós pensámos, também.

- No entanto, teria sido um segredo digno de conhecer - murmurou Sloan.

- Miss Camus - disse Amelia impulsivamente. - O testamento da minha tia-avó diz "Deixo uma vela a Kate". Sabe porquê?

- Ah. - O rosto da idosa senhora foi invadido par um rubor de verdadeiro prazer, e, pela primeira vez, Miss Kate Camus pareceu ficar sem palavras. Quando finalmente recuperou a voz, disse, com certa emoção:

- Ora, esse é um segredo da Cabana Onze que eu não vou revelar-lhes... Digamos apenas que se trata de uma chama antiga

 

- Não deixou pontas soltas, pois não, Sloan? - disse o Superintendente Leeyes que, provavelmente, teria podido ensinar algumas coisas a Sigmund Freud, no campo de manter a superioridade.

- Não senhor. A descoberta de Mrs. Garamond teria sido um segredo que valeria a pena conhecer. - disse Sloan, consciente de que eram apenas os verdadeiros desportistas que achavam impróprio apostar nas certezas, nunca os actuários ou as companhias de seguros.

- Não me surpreende - disse Leeyes acidamente - tendo em conta a relutância que a classe médica sempre mostrou em arriscar uma opinião sobre quando uma pessoa vai morrer, mesmo quando o sabe.

- As implicações potenciais da sua descoberta teriam sido consideráveis - concordou Sloan, acrescentando: - Para a humanidade em geral e para a Chernwoods' Dyestuffs em particular.

- Então o que é que Rosart tinha em vista?

- Queria constituir uma parte importante de uma aquisição por gestão, conduzida pelo químico-chefe da Chernwoods. - Sloan abriu o seu caderno de notas. - Compreendemos que todos os azares que tinham afligido a firma podiam ter sido maquinados no interior para manter as acções em baixo. O que estragou esse pequeno plano foi o facto de a Harris and Marsh's Chemicals tentar uma aquisição por sua conta, o que levou à subida das acções novamente.

- An-an.

- Eles pensavam que a Chernwoods possuía o segredo da Cabana Onze.

- E isso, segundo suponho, proveio de escutarem as divagações do velho Harris.

- Sim senhor.

- Não há limites no mundo dos negócios, pois não? - surpreendeu-se Leeyes.

- São implacáveis. - E acrescentou: - Penso que descobriremos que Rosart conseguiu o seu etileno-cloridrina algures na Chernwoods, mas não através de Keen.

- E a Harris and Marsh's... ficam a ver navios, não? - disse Leeyes, cujo entendimento do mundo financeiro era muito fraco.

- Bom, sim e não.

- O que é que isso quer dizer?

- O nosso homem da City - citou Sloan - diz que eles terão, provavelmente, que se fundir com a Chernwoods' Dyestuffs ou falir. - Para Sloan, aquilo parecera um castigo pior que a morte. - E meter o químico-chefe na administração.

- E a rapariga que foi ferida na cabeça?

- Jane Baskerville está a melhorar bastante - disse Sloan, acrescentando um aforismo de jardineiro: "É a raiz que controla o vigor do crescimento e sabemos que isso é bom."

- E - perguntou o superintendente sem se deixar distrair - donde vem ela, então?

- Jane Baskerville é neta de Mrs. Garamond.

- Isso é o que ela diz - troçou Leeyes.

- É filha de uma certa Mrs. Erica Baskerville que, por sua vez, é filha de Octavia Harquil-Grasset e Eric Hector Goudy, do Regimento de Fearnshire.

- Vai ter que provar isso, Sloan, e...

- Não é ela que o diz, superintendente.

- O quê? O quê...?

- É o Dr. Dabbe que o diz.

- O que é que ele tem a ver com isto? - exclamou Leeyes truculentamente.

- É um novo teste que ele fez. Está no relatório dele e demonstra a herança materna do ADN da mitocôndria através de três gerações. Jane Baskerville é filha da filha de Octavia Garamond...

Tinha sido o Dr. Dabbe que tinha recolhido e comparado os cabelos, afinal.

 

- Esses testes de Tipos de ADN da mitocôndria estão a tornar-se muito comuns no campo legal, Miss Kennerley - disse James Puckle, quando se encontraram de novo a sós. - Teriam sido muito úteis na altura do pretendente Tichborne (1).

 

(1) Arthud Orton (1834-1898), um ex-magarefe, afirmou ser o herdeiro desaparecido de Sir Roger Tichborne, com direito tanto ao título de baronete como à fortuna correspondente. Acusado de perjúrio, foi condenado a sete anos de prisão. Foi um processo sensacional que captou a atenção do público em 1872-1874. (N. do T.)

 

- Jane Baskerville não está a exigir nada - disse Amelia. - Diz que vai casar-se e só pretendia conhecer a hereditariedade da família da mãe.

- Muito sensato da parte dela - disse James Puckle, acenando com a cabeça. - Seria bom que mais pessoas...

- E foi então que encontraram a carta no Registo de Adopções, escrita pela tia-avó Octavia, dando o seu nome e endereço para o caso de a filha vir a consultá-lo.

- Penso que poderemos dizer a Mrs. Erica Baskerville muita coisa acerca do seu pai, também - disse James Puckle, que descobrira muitos pormenores acerca da família de um jovem oficial escocês morto em Maio de 1940 num lugar chamado Hautchamps.

- E acerca de custódias precatórias - disse Amelia, que conhecia o seu dever.

- E aeerca de custódias precatórias - confirmou o solicitador. - Mas só quando Jane estiver um pouco mais forte. Entretanto...

- Sim? - Algo na voz dele fez Amelia erguer o olhar.

- Reservei uma mesa para dois no Veado Branco... isto é - disse arcaicamente - se me der a honra de me fazer companhia.

 

- Não percebo porque é que esse negócio das células era tão importante - resmungou Crosby, sempre mais difícil de suportar quando estava com fome.

- Chama-se progresso científico - disse Sloan, apressando-se a acrescentar - ou ter-se-ia chamado se a falecida não tivesse decidido o contrário.

- E também não percebo como é que o Dr. Dabbe pôde saber que a rapariga era neta da falecida sem sequer a ter visto - insistiu Crosby, com ressentimento. - Essa coisa não faz sentido para mim.

- Isso também se chama progresso científico, Crosby.

- Está tudo muito bem, inspector, mas como é que ele pode ter a certeza?

- Não me pergunte a mim, Crosby. Eu não sei. Vai ter que perguntar ao próprio Dr. Dabbe.

- Já perguntei, inspector. - O detective ainda parecia ofendido.

- E o que é que ele disse?

- Que era tão certo como dois e dois serem quatro.

 

 

                                                                  Catherine Aird

 

 

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