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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NINGUÉM É DE NINGUÉM / Harold Robbins
NINGUÉM É DE NINGUÉM / Harold Robbins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NINGUÉM É DE NINGUÉM

 

Eram duas e meia quando cheguei ao escritório depois do almoço. Minha secretária levantou os olhos quando entrei.

— O advogado já mandou os contratos? — perguntei.

— Estão em cima de sua mesa, Brad — respondeu ela. Sentei-me à mesa e peguei os contratos. Aquelas folhas de papel datilografadas em espaço 1, com todos os seus termos complicados, eram reais. Representavam a vitória. Não pude deixar de encher-me de satisfação quando comecei a ler. Aquilo era melhor do que conhaque depois do jantar.

A cigarra tocou, e eu peguei o telefone, lendo ainda o contrato.

— Paul Remey telefonando de Washington, na linha 2 — disse a secretária.

— Está bem — disse eu, apertando o botão. A satisfação havia desaparecido da minha voz.  — Paul, estou com o contrato na mão...

— Brad!

A voz dele era áspera, e havia nela alguma coisa que de repente fez-me o coração bater de medo.

— Que foi, Paul?

As palavras dele me queimaram o cérebro.

— Elaine se suicidou!

— Não, Paul!

O contrato me caiu das mãos, e as folhas se espalharam pela mesa e pelo chão. Senti uma compressão violenta no peito. Tentei falar duas vezes e duas vezes não consegui.

O corpo descambou na cadeira. A sala estava começando a rodar vagamente em torno de mim. Fechei os olhos. Elaine, gritei silenciosamente. Elaine, Elaine, Elaine...

Procurei desesperadamente dominar-me e falar. Minha voz me soou falha e estranha aos ouvidos.

— Como, Paul? Quando?

— Na noite passada — disse ele. — Com comprimidos para dormir.

Respirei fundo. Estava recuperando o domínio sobre mim mesmo.

— Por quê, Paul? — perguntei, sabendo de antemão qual seria a resposta. — Deixou alguma coisa escrita?

— Não deixou nada. Ninguém sabe por quê.

Não pude conter um breve suspiro de alívio. Ela fora correta até o fim. Minha voz ficou mais forte.

— É um choque terrível, Paul.

— Para todos nós, Brad — disse ele. — E logo agora quando tudo parecia estar correndo bem para ela também. Ainda há poucas semanas, Edith estava comentando que Elaine parecia feliz, agora que você a estava ajudando naquela campanha da paralisia infantil. Ela disse que Elaine se encontrara de novo, fazendo alguma coisa pelos outros.

— Eu sei — disse eu, exausto. — Eu sei.

— Foi por isso que lhe telefonei, Brad — disse Paul. — Elaine o apreciava muito. Pensava o máximo de você. Dizia sempre a Edith que você era admirável com ela.

Aquelas palavras me faziam sofrer. Tinha de fazê-lo deixar de falar assim, senão ele me mataria.

— Eu também a achava admirável, Paul.

— Todos nós, Brad. Nunca soubemos de onde ela tirava tanta coragem, tanta energia para fazer as coisas que tinha de fazer. E, agora, nunca mais saberemos.

Fechei os olhos. Eles nunca saberiam, mas eu sabia. Eu sabia muitas coisas. Coisas demais.

— Quando será o enterro? — perguntei quase automaticamente.

— Depois de amanhã — respondeu ele, dizendo o nome da capela. — Às onze horas. Vai descansar ao lado do marido e dos filhos.

— Estarei lá, e então nos veremos. Se houver alguma coisa que eu possa fazer...

— Não, Brad. Todas as providências já foram tomadas. Ninguém pode fazer mais nada por ela.

Desliguei o telefone, com o que ele havia dito a ressoar-me nos ouvidos, e fiquei olhando os papéis espalhados em cima da mesa e no chão. Abaixei-me automaticamente para apanhá-los, e nesse momento as lágrimas jorraram de repente.

Ouvi a porta abrir-se,   mas   não   levantei   os   olhos.

Mickey estava diante de mim. Senti a mão dela no meu ombro.

— Sinto muito, Brad — disse ela.

— Já sabe, Mickey?

— Já. Ele me disse antes que eu fizesse a ligação. É terrível — disse ela, estendendo a mão com um uísque.

Peguei o copo enquanto ela apanhava os papéis que estavam no chão. Havia acabado de beber o uísque quando ela juntou os papéis.

Consegui fazer uma careta que tinha de passar por um sorriso.

— Estou bem. Pode deixar os papéis aí. Vou olhá-los depois.

Ela arrumou os papéis numa pilha em cima da mesa e já se encaminhava para a porta quando eu a chamei.

— Não vou atender ao telefone, nem receber ninguém, Mickey. Ficarei algum tempo incomunicável.

Ela saiu, fechando a porta com cuidado. Fui até a janela.

O céu era de um frio azul de inverno, e os edifícios cinzentos da cidade alteavam para ele sinistramente as suas massas. Mil e oitocentos metros quadrados de terreno equivaliam a quatrocentos mil metros quadrados de espaço imobiliário para alugar na Madison Avenue, e havia tanta gente que os novos edifícios pareciam formigueiros. Faziam parte dos grandes negócios, e os grandes negócios faziam parte de mim.

Era o que eu sempre havia querido desde que tivera idade bastante para conhecer as coisas. Agora, sabia, porém, o que valia tudo aquilo. Nada. Absolutamente nada. Um individuozinho que parecia insignificante no meio da rua valia mais do que toda a cidade reunida.

Ela estava morta, mas eu não podia acreditar nisso. Parecia que pouco antes seus quentes lábios estavam unidos aos meus, seu hálito na minha boca, sua voz ao meu ouvido.

— Elaine. — Disse-lhe o nome em voz alta. Antes era um nome suave e doce, mas naquele momento era um punhal no meu coração. — Por que fez isso, Elaine?

A cigarra tocou. Voltei à mesa e peguei iradamente o telefone.

— Não disse que não queria falar com ninguém?

— Seu pai está aqui, Brad — murmurou Mickey.

— Está bem — disse eu, e virei-me para a porta. Ele entrou na sala desajeitadamente. Papai sempre parecia desajeitado quando caminhava. Só mostrava uma atitude elegante quando estava sentado atrás da direção de um carro.

— Já soube? — perguntou ele, esquadrinhando-me o rosto com os olhos pretos.

— Paul me telefonou.

— Ouvi a notícia no rádio do carro. E vim logo para cá.

— Obrigado.

Fui até o armário do bar e peguei uma garrafa.

— Não se preocupe comigo —- disse eu, servindo dois uísques.

Bebi logo o meu, mas ele ficou com o copo na mão, a olhar-me.

— Que é que vai fazer? — perguntou.

— Não sei. Quando falei pelo telefone com Paul, disse que iria até lá, mas agora não sei se poderei. Não sei se ainda terei coragem de ver o rosto dela.

— Por quê?

Olhei-o por um momento e então explodi.

— Por quê? Sabe tão bem quanto eu! Porque fui eu que a matei. Se tivesse apontado um revólver para ela e puxado o gatilho, não teria feito um serviço mais completo.

Atirei-me numa cadeira ao lado do bar e cobri o rosto com as mãos.

— Como sabe? — perguntou ele, sentando-se diante de mim.

— Sei porque mostrei amor por ela, menti para ela e fiz promessas que sabia que nunca poderia cumprir. Sei disso porque ela acreditou em mim e me amou e confiou em mim e nunca imaginou que eu a fosse abandonar. Quando a deixei, nada mais lhe restava no mundo, porque eu me havia tornado o mundo para ela.

Meu pai bebeu o uísque lentamente, olhou demoradamente para mim e por fim falou:

— Acredita mesmo nisso? Fiz um sinal afirmativo.

— Neste caso, deve ir até lá e procurar fazer as pazes com ela, ou nunca mais terá um dia de descanso na vida.

— Mas como é que eu posso, papai?

— Pode, sim — disse ele, levantando-se. — Pode porque você é meu filho, Bernard. Tem muitas das minhas fraquezas e todos os meus defeitos, mas não é covarde. Pode ser difícil, mas você fará as pazes com ela.

Despediu-se de mim, e eu fiquei sozinho de novo. Olhei para a janela. A escuridão do inverno já começava a manchar o dia. Fora num dia assim, não fazia muito tempo, que eu a havia conhecido.

Entre aquele dia e esse dia negro que eu vivia no momento estava a explicação de tudo.

 

Olhei-a pelo canto do espelho enquanto fazia a barba. A porta do banheiro estava aberta, e eu a via sentada na cama. Os longos cabelos castanho-claros rolavam cascateantes sobre os delgados ombros brancos que emergiam da camisola de dormir. Estava muito bem conservada, pensei com orgulho. Ao vê-la, ninguém imaginaria que dali a duas semanas completaríamos vinte anos de casados.

Vinte anos. Dois filhos — um rapaz de dezenove anos e uma moça de dezesseis —, e ela ainda parecia uma garotinha. Era esbelta, de ossos pequenos, e ainda usava o mesmo manequim dos tempos em que nos havíamos casado. Os olhos cinza eram tão grandes, luminosos e vivos como sempre, e a boca ainda era macia e cheia. Mesmo sem batom era uma boca boa de ser beijada, quente, fresca e sadia. O queixo continuava redondo, mas firme e honesto.

Vi-a sair da cama e vestir um robe. O corpo era como sempre fora, persistentemente jovem e provocante. Vi-a sair do campo do espelho e tratei então de acabar de fazer a barba. Passei os dedos pelo rosto. Ainda havia barba. Era sempre assim. Tinha de passar a navalha duas vezes no rosto antes que a pele ficasse mais ou menos lisa. Peguei o pincel e ensaboei de novo o rosto. Percebi de repente que estava cantando baixinho.

Olhei-me surpreso no espelho. Não costumo cantar enquanto faço a barba. Não me sinto feliz nesses momentos porque detesto fazer a barba. Se eu fosse nisso senhor da minha vontade, deixaria crescer uma espessa barba negra.

Marge sempre ria de mim quando eu me queixava da barba.

— Por que não ganha a vida cavando valas no campo? Tem físico para isso, e não teria de fazer a barba todos os dias.

Tinha físico e também cara. Sempre achei que não era possível, pela aparência, dizer o que uma pessoa fazia para viver. Tenho um desses rostos grosseiros e duros que em geral se associam a um trabalhador braçal que vive ao ar livre, e, entretanto, não me lembrava da última vez em que fizera alguma coisa fora de quatro paredes. Nem para ajudar a cuidar do jardim em torno da casa eu levantava um dedo.

Recomecei a fazer a barba, ainda cantarolando baixinho. Sentia-me feliz. Por que iria reprimir o sentimento? Essas coisas eram ainda admiráveis quando podiam acontecer a um homem que tinha vinte anos de casado.

Passei loção no rosto, lavei o aparelho e comecei a pentear os cabelos. Eram uma coisa a meu favor. Os cabelos ainda eram bem fartos, embora nos últimos cinco anos tivessem ficado meio grisalhos.

O quarto estava vazio quando saí do banheiro, mas havia uma muda de roupa limpa estendida em cima da cama, inclusive a gravata e o terno. Sorri. Marge não dava a menor oportunidade ao meu gosto. Eu gostava de combinações um tanto vistosas, mas ela dizia que isso não estava de acordo com a minha profissão. Eu tinha de mostrar um aspecto distinto.

Nem sempre tinha sido assim. Só nos últimos oito ou nove anos. Antes disso, eu podia ir para a rua embrulhado numa manta de cavalo que isso não teria a menor importância. Mas eu não era mais um agente de publicidade. Passara a ser um assessor de relações públicas.

O trabalho era mais suave, mas não tinha diminuído. Só que eu agora ganhava mais. Trinta mil dólares por ano em vez de três mil, um escritório num dos novos edifícios da Madison Avenue em vez do espaço que se tem numa cabina telefônica.

Mas quando olhei para o espelho depois que me vesti, tive de reconhecer que Marge tinha razão. O garotão ainda estava em boas condições. As roupas me melhoravam muito. Atenuavam-me a dureza do rosto e me faziam inspirar confiança.

Quando desci para a saleta do café, Marge já estava sentada à mesa, lendo uma carta. Inclinei-me para ela e beijei-lhe o rosto.

— Bom dia, menina.

— Bom dia, Brad — respondeu ela, sem tirar os olhos da carta.

Olhei a carta por cima de seu ombro e pareceu-me reconhecer a letra.

— Brad? — perguntei.

Isso significava Brad Rowan Júnior. Cursava o primeiro ano da universidade e já estava por lá havia tempo suficiente para que suas cartas chegassem à razão de uma por semana em vez de uma por dia.

Marge fez um sinal afirmativo. Sentei-me no meu lugar e peguei o copo de suco de laranja, perguntando:

— Que é que ele conta de novo?

— Passou nos exames com média 80. A matemática foi a única matéria que lhe deu algum trabalho.

— Não há motivo então para preocupações. A mesma coisa teria acontecido comigo se eu tivesse ido para a universidade.

Acabei o suco de laranja no momento em que Sally, a nossa empregada, entrou com o meu prato de ovos com bacon.

Havia duas coisas que especialmente me agradavam de manhã: ovos e banho de chuveiro. Eram luxos que eu não conhecera nos meus tempos de garoto. Meu velho guiava um táxi em Nova York para viver. Ainda fazia isso apesar de já ter sessenta e quatro anos. Nunca tivemos dinheiro. A única coisa que ele consentiu que eu fizesse por ele foi comprar-lhe um táxi para trabalhar por conta própria. Era um homem muito esquisito em alguns aspectos. Não tinha querido ir morar conosco nem mesmo depois da morte de mamãe. Haveria sempre alguma coisa dela naquele comprido apartamento da Third Avenue. Eu sabia o que ele sentia, e achei melhor não insistir.

— Que mais diz o garoto? — perguntei. Tinha de algum modo a idéia de que um rapaz numa universidade só escrevia para casa a fim de pedir dinheiro, e era de certo modo uma decepção para mim Brad nunca haver pedido qualquer dinheiro além da mesada.

Os olhos dela estavam intranqüilos quando se voltaram para mim. Bateu na carta com os dedos enquanto falava.

— Diz em resumo que está procurando combater um resfriado que apareceu há uma semana por ocasião dos exames, mas não consegue ficar livre da tosse.

Sorri ao vê-la preocupada e disse:

— Deve ser coisa sem importância. Escreva-lhe e diga-lhe que procure um médico.

— Ele não vai fazer isso, Brad. Você bem sabe como ele é.

— Claro que sei. Todos os garotos são assim. Mas um resfriado não é nada, principalmente para ele, que é um menino robusto.

Nesse momento, Jeanie apareceu. Como sempre, estava apressada.

— Ainda não acabou o café, papai? — perguntou ela. Olhei-a, sorrindo. Jeanie era minha filha predileta.

Também era a caçula. E era igualzinha à mãe, apenas mais mimada.

— Onde é o incêndio, Jeanie? Tenho de tomar café.

— Mas vou chegar atrasada à escola, papai! Olhei-a ternamente. Era terrivelmente mimada, e o único culpado era eu.

— Os ônibus passam desde muito cedo, senhorita. Não tinha necessidade de esperar por mim.

Ela pousou a mão em meu braço e beijou-me o rosto. Há alguma coisa diferente no beijo que uma mocinha de dezesseis anos dá no pai. Deixa a gente sem resistência de espécie alguma.

— Ora, papai! Você sabe muito bem que gosto de ir para a escola com você.

Sorri, embora soubesse que isso não era verdade ou, pelo menos, não era toda a verdade. Mas, apesar de tudo, nada podia fazer, porque gostava de que ela dissesse isso.

— Ora, Jeanie, você só espera por mim porque deixo você guiar o carro.

— Não se esqueça de que eu também gosto muito do conversível novo — disse ela, com um sorriso nos lábios e uma cintilação nos olhos.

Olhei para Marge. Ela nos observava com um tranqüilo sorriso. Compreendia-nos perfeitamente a ambos.

— Que é que eu vou fazer com essa menina? — perguntei, fingindo-me desesperado.

— Agora é muito tarde para fazer o que devia ter feito — disse ela, ainda sorrindo. — Agora, não tem outro jeito senão levá-la.

Acabei de tomar o café e levantei-me.

— Então vamos — disse eu.

— Vou pegar seu chapéu e seu casaco, papai — disse Jeanie, correndo para a saleta de entrada.

— Vai voltar cedo esta noite, Brad?

— Não sei ainda — respondi a Marge. — O caso do Instituto do Aço pode fazer-me perder mais tempo com Chris do que pretendo, mas procurarei vir para casa logo que puder.

Ela se levantou e encaminhou-se para mim. Beijei-lhe o rosto macio e suave. Ela me ofereceu os lábios, e eu os beijei. Era bom.

— Não trabalhe demais, ouviu? — disse ela com um sorriso.

— Fique descansada.

Ouvi a buzina tocar em frente à casa. Jeanie já havia tirado o carro da garagem. Dirigi-me para a porta. De repente, parei e voltei-me para Marge, que ainda sorria.

— Quer saber de uma coisa, moça? Se eu fosse vinte anos mais moço, seria até capaz de casar-me com a senhora.

 

Outubro morria por toda parte enquanto eu me dirigia para o carro. Isso quase me entristecia. Era a época do ano de que eu mais gostava. Há quem prefira ver tudo verde. Para mim, nada havia que se comparasse aos vermelhos, aos castanhos e aos dourados do princípio do outono. Esse colorido mexia com alguma coisa dentro de mim e fazia com que eu me sentisse forte, quente e vivo.

Cheguei ao carro e perguntei a Jeanie:

— Por que abaixou a capota?

— Ora, papai. De que adianta ter um conversível se não se desce a capota?

— Mas, querida — disse eu, sentando-me ao lado dela —, não estamos mais no verão. Já é outono.

Ela deu partida no carro e saiu pela alameda. Só então respondeu de maneira muito direta e com toda a paciente tolerância que os muito moços têm pelos muito velhos.

— Não seja desmancha-prazeres, está bem, papai? Sorri comigo mesmo ouvindo isso. Olhei. Ela estava dirigindo com a curiosa concentração que lhe era peculiar. Vi-lhe a pontinha cor-de-rosa da língua aparecer no canto da boca quando ela virou o volante para sair da alameda para a rua. Sempre fazia isso naquela curva.

Senti o carro ganhar velocidade quando ela pisou no acelerador. Olhei para o velocímetro. O ponteiro havia chegado a sessenta em menos de um quarteirão e continuava a subir.

— Menos força no pé, querida.

Ela tirou os olhos da rua e me olhou por um momento, um olhar que me disse mais do que qualquer coisa que eu pudesse dizer. Cheguei até a sentir-me irremediavelmente velho. Calei-me, com um sentimento de culpa, e olhei para a rua em frente.

Daí a alguns segundos, comecei a sentir-me melhor. É claro que ela estava com a razão. De que servia um conversível sem a capota descida? Era delicioso de fato correr por uma estrada no princípio do outono sob o céu aberto e rodeado por todo aquele glorioso torvelinho de cores. A voz dela me colheu de surpresa.

— Que é que vai dar à mamãe de presente no aniversário de casamento, papai?

Gaguejei um pouco na resposta. Ainda não havia pensado nisso.

— Não sei, Jeanie.

— Por que não se decide logo? — perguntou ela naquela maneira prática que as mulheres têm quando falam de presentes. — Faltam menos de quatro semanas.

— É verdade. Tenho de pensar em alguma coisa. Você faz alguma idéia do que ela gostaria de receber?

— Não — disse ela, sacudindo a cabeça. — O problema é seu. Só queria saber.

— Por que queria saber? — perguntei, de súbito curioso com as idéias que corriam por aquela linda cabecinha.

Ela parou o carro num sinal e olhou para mim.

— Não há nenhuma razão especial, papai. É que me deu curiosidade de saber se neste ano ia aparecer de novo com um ramo de flores comprado na última hora.

Senti o rosto ficar vermelho. Eu não havia percebido que aqueles olhinhos prestavam tanta atenção a tudo.

— Nunca sei o que devo comprar para ela.

— Positivamente, imaginação é uma coisa que lhe falta, não é, papai?

— Espere um pouco, Jeanie. Sou um homem muito ocupado. Não tenho tempo para pensar em tudo. Além disso, sua mãe tem tudo o que deseja. Que mais posso lhe dar?

— Claro, papai — disse ela num tom um tanto seco. — Mamãe tem tudo o que deseja. Geladeira nova, fogão novo, máquina de lavar. Mas já pensou em dar a ela alguma coisa que seja para ela mesma? Alguma coisa sem utilidade prática, mas que ela ficaria emocionada de possuir?

Estava começando a sentir-me desesperado. Ela estava, com toda a certeza, com alguma coisa em vista.

— O quê, por exemplo?

— Por exemplo, um casaco de mink — disse ela, prontamente.

— Tem certeza de que ela gostaria? — perguntei, incrédulo. — Ela sempre disse que era coisa que não desejava, um casaco de mink.

— Como é que pode ser tão tolo, papai? Qual é a mulher que não gostaria de ter um casaco de mink, diga o que disser? — disse ela, e começou a rir. — Palavra que não sei o que foi que mamãe viu em você. Não tem nada de romântico.

Não pude deixar de sorrir, apesar de tudo. Tive vontade de perguntar-lhe se ela ainda pensava que fora trazida pela cegonha, mas não se pode falar assim a uma mocinha de dezesseis anos que sabe tudo, ainda mais quando se trata de uma filha.

— Acha então que devo lhe dar um casaco de mink? Ela fez um sinal afirmativo no mesmo instante em que parava o carro diante da escola.

— Então é isso o que vou fazer, Jeanie.

— Sabe que não é tão ruim assim, papai? — perguntou ela, saltando do carro.

Escorreguei no banco até chegar à direção e disse, solenemente:

— Obrigado.

Ela me beijou o rosto.

— Até a noite, papai.

Cheguei ao escritório por volta das onze horas. Estava me sentindo muito satisfeito. Dom me havia dito que ia fazer alguma coisa muito especial para ela. Tinha as medidas dela, e isso não era problema. Eu tinha certeza de que ele ia fazer um bom trabalho. Tinha de fazer. Afinal de contas, seis mil e quinhentos dólares não nascem nas árvores, mesmo quando se trata de um casaco de mink.

Mickey levantou-se quando cheguei.

— Por onde andava, chefe? — perguntou ela, tomando-me o chapéu e o casaco. — Paul Remey está desde cedo telefonando-lhe de Washington.

— Estive fazendo umas compras, Mickey. Que é que ele quer?

— Não me disse. Mas tem a maior urgência em falar-lhe.

— Procure então ligar para ele.

Sentei-me à minha mesa. Mickey foi para o telefone na sala dela, e eu fiquei pensando no que Paul poderia querer. Esperava que tudo estivesse bem com ele. Contudo, nunca se tinha segurança num cargo político, por melhor que se fosse, e ainda que se trabalhasse como assistente presidencial, como era o caso de Paul.

Era um camarada de quem eu gostava. Se não fosse ele, eu nunca estaria no lugar onde estava. De certo modo, ele é que fizera tudo. E tudo começara nos primeiros tempos da guerra.

Eu fora entusiasticamente rejeitado por todas as forças armadas e acabara caindo na divisão de publicidade da Junta de Produção de Guerra. Foi onde conheci Paul. Ele era o encarregado da campanha para a coleta de metal usado, e eu fui designado para a seção dele.

Essas coisas acontecem. Dois camaradas que sintonizam imediatamente um com o outro. Ele tinha sido um homem de negócios de muito êxito no oeste, e vendera tudo para se transformar num homem que ganhava um dólar por ano em Washington. Eu acabara de ser despedido da companhia de cinema para a qual trabalhava e fui para Washington porque soubera que lá as oportunidades eram boas.

O trabalho dele era muito bom, e ele pensava que o meu também era. Quando a guerra acabou, ele me chamou ao seu escritório.    — O que vai fazer agora, Brad?

Lembro-me de ter encolhido os ombros, respondendo:

— Acho que vou ter de procurar um emprego.

— Já pensou em trabalhar por conta própria?

— Isso não é para mim. Não tenho o dinheiro necessário.

— Não é isso o que estou querendo dizer. Estou pensando é em relações públicas. Conheço alguns homens de negócios que poderiam interessar-se pela ajuda que você lhes daria. Você só precisa de um lugar pequeno para começar.

— Isso é o sonho dourado de todo agente de publicidade — disse eu, deixando-me cair numa cadeira em frente à mesa dele. — Mas continue a falar. Não pare.

Foi assim que tudo começou. Levou-me a um pequeno escritório de uma sala só, com Mickey como minha secretária, depois para os amplos escritórios que eu ocupava agora, onde trabalhavam vinte e cinco pessoas. Paul tinha muitos amigos, e os amigos dele tinham muitos amigos.

A cigarra tocou, e eu peguei o telefone. Ouvi a voz de Mickey.

— O Sr. Remey está na linha, Brad.

— Alô, Paul. Como vai tudo?

Ouvi o riso de Paul e sua resposta habitual:

— De um jeito que não pode melhorar.

— Não perca a esperança, chefe. Um dia, quando menos se espera, a coisa vira.

Ele tornou a rir, mas em seguida falou, com voz séria:

— Será que pode me fazer um favor, Brad?

— O que quiser, Paul. É só dizer.

— É outra vez uma dessas obras de caridade de Edith, sabe?

Edith era a mulher dele. Uma ótima criatura, mas havia tomado gosto pelo turbilhão da vida de Washington, e isso lhe havia subido à cabeça. Eu já a havia ajudado em alguns dos seus projetos. Era dessas coisas que não se podiam deixar de fazer, e eu não me importava porque era por Paul que o fazia. Ele fizera bastante por mim.

— Claro, Paul. Com muito prazer. Pode dizer de que se trata.

— Não sei bem o que é, Brad. Só sei que Edith me pediu que não deixasse de lhe telefonar para lhe dizer que você vai ser procurado aí hoje à tarde pela Sra. Hortense E. Schuyler, que lhe dará todas as informações.

— Está muito bem, Paul — disse eu, tomando nota do nome. — Deixe tudo comigo.

— Mais uma coisa, Brad. Edith me recomendou que lhe pedisse que tratasse muito bem a moça, por quem ela tem grande estima.

Eu gostava da maneira pela qual Edith usava a palavra "moça". Edith tinha mais de cinqüenta anos, e todas as suas amigas eram "moças" para ela.

— Diga a Edith que fique descansada, Paul. Darei à pessoa o meu tratamento número 1, especial.

— Obrigado, Brad — disse ele, rindo. — Você sabe o que essas coisas representam para Edith.

— Eu sei. Conte comigo.

Trocamos mais algumas palavras, e desliguei o telefone. Olhei para o bloco em cima da mesa. Hortense E. Schuyler. Todas aquelas damas de Washington tinham nomes assim. E se pareciam com os nomes. Toquei a campainha.

Mickey entrou na sala, de bloco e lápis em punho.

— Vamos trabalhar — disse-lhe eu. — Já se perdeu muito tempo aqui esta manhã.

 

Eram quatro e meia da tarde, e Chris e eu estávamos justamente entrando nos fatores do custo na campanha da indústria do aço quando o aparelho de intercomunicação tocou. Fui até a minha mesa e atendi.

— Não vou atender nenhum telefonema, Mickey — exclamei com uma ponta de irritação na voz. — Não foi o que eu lhe disse?

Desliguei e voltei à mesa grande, onde Chris me esperava.

— Vamos ver as cifras, Chris.

Os olhos azul-claros dele brilhavam através dos óculos. Parecia quase feliz. Parecia sempre feliz quando falava de dinheiro.

— Uma vez por semana em quarenta jornais — disse ele na sua voz nasal e precisa — custará quinhentos e quinze mil dólares. Os nossos quinze por cento de comissão sobre isso montam a setenta e sete mil. Desenhos, textos e composição, tudo isso andará em mil dólares por semana, ou cinqüenta e dois mil por ano.

— Grande, grande — disse eu, interrompendo-o com impaciência. — Mas poderemos manobrar isso? Não quero ficar na mesma situação em que ficamos no ano passado com aquele serviço da Mason.

Ele me olhou calmamente. Eu havia assinado contrato para fazer por trinta e cinco mil dólares um serviço que acabou nos custando sessenta mil.

— É para isso que me está pagando — disse ele. — Para impedi-lo de cometer de novo esse tipo de erros.

— Quanto? — perguntei-lhe.

— Tudo lhe custará quatrocentos por semana. Sairemos disso com cento e oito mil dólares de lucro líquido.

— Ótimo! — disse eu, batendo-lhe no ombro. — Agora, vamos ver a campanha.

Ele se permitiu o vestígio de um sorriso, voltando-se para a tabela na parede, onde estavam expostos os primeiros anúncios da série. Havia dez anúncios ali, cada qual muito bem apresentado numa montagem de papelão.

Ouvi a porta abrir-se e virei-me. Era Mickey.

— Não lhe disse que não queria ser interrompido? — perguntei-lhe rispidamente.

— A Sra. Schuyler quer vê-lo, Brad — disse ela, calmamente, sem tomar conhecimento do meu mau humor.

— Sra. Schuyler? Quem é ela?

Mickey olhou para o pequeno cartão de visita que tinha na mão.

— Sra. Hortense E. Schuyler. Diz que você marcou hora hoje à tarde para ela.

Peguei o cartão e olhei-o. Só havia o nome em tipo simples. Não pude associá-lo a coisa alguma. Devolvi o cartão a Mickey.

— Não me lembro de ter marcado hora para ninguém. Procurei ficar com a tarde toda livre para poder discutir esse caso com Chris.

Havia um olhar peculiar no rosto de Mickey quando lhe entreguei o cartão.

— O que digo a ela? — perguntou-me. Encolhi os ombros.

— Diga o que você quiser, que saí da cidade ou que estou em reunião. Mas livre-se dela. Quero concluir isso.

Já me havia virado para os anúncios quando ouvi a voz de Mickey.

— Ela diz que compreenderá se não puder recebê-la, porque houve muito pouco tempo para que você se desembaraçasse dos seus compromissos. Mas como ela deve voltar amanhã para Washington, gostaria de saber qual a hora que lhe será mais conveniente.

Foi então que me lembrei. Era uma das "moças" de Edith Remey.

— Por que não me disse logo, Mickey? Foi para isso que Paul me telefonou hoje de manhã. Não posso deixar de vê-la. Converse com ela durante alguns minutos, Mickey. Peça-lhe desculpas pela demora e diga-lhe que a receberei logo que encerrar isto aqui.

O olhar peculiar desapareceu do rosto de Mickey, e nele se estampou alguma coisa que parecia alívio.

— Está bem, chefe — disse ela, dando meia-volta e saindo do escritório.

Voltei-me para Chris.

— Bem, vamos ter de parar. O resto ficará para amanhã de manhã.

— Não creio que tenha muito tempo de apreender tudo até encontrar-se com Matt Brady e com a comissão às duas horas.

— O que posso fazer, Chris? Se tiver alguma dificuldade, improvisarei o que tiver de dizer. Não será a primeira vez.

Ele estava diante da minha mesa, com um ar de censura no rosto.

— Não sei se vai dar certo. Aquela gente é muito esperta.

— Pare de se preocupar, Chris. Eles são humanos, não são? São como nós. Gostam de dinheiro, de mulheres e de bebida. Usam roupas e não asas. Havemos de convencê-los, como temos convencido outros. Qualquer um pode ser convencido desde que se descubra o que realmente deseja. Quando descobrirmos, pegaremos o contrato, e com a maior facilidade.

Ele ainda sacudia a cabeça quando liguei o aparelho de intercomunicação. Ria comigo mesmo. Pobre Chris. Ainda vivia num mundo antiquado, onde os negócios eram apenas isso e nada mais. Lembrava-me da primeira vez que soubera que uma mulher contratara nossos serviços. Tinha ficado tão vermelho que pensei que a vermelhidão iria passar para o seu colarinho engomado.

— OK, Mickey — disse eu pelo aparelho. — Pode mandar a velhota entrar.

Ouvi-lhe a breve exclamação de espanto.

— Que foi que você disse, Brad?

— Disse que podia mandar a velhota entrar. Está surda ou o quê?

O sussurro dela era quase entremeado de riso.

— Você não a conhece, não é?

— Não, Mickey. E espero, depois de hoje, nunca mais vê-la.

A essa altura ela já ria abertamente.

— Aposto que vai mudar de idéia. E se não mudar, acreditarei em você na primeira vez que me disser que não pensa mais em mulheres.

O aparelho foi desligado, e eu olhei para Chris.

— Parece que ela está ficando maluca — murmurei. Ele sorriu sem vontade e se encaminhou para a porta, que começou a abrir-se antes que ele chegasse lá. Chris teve de dar um passo rápido para o lado a fim de que a porta não batesse nele.

Ouvi a voz de Mickey.

— Por aqui, Sra. Schuyler.

Comecei lentamente a levantar-me quando Mickey apareceu à porta. Perto dela, Chris olhava para a outra sala. Havia no rosto dele um olhar que era novidade para mim.

Ela entrou, e então eu fiquei sabendo o que significava o olhar de Chris. Afinal de contas, não eram só notas de dólar que corriam nas veias daquele camarada.

A expressão do meu rosto devia ter valido o preço da entrada, a julgar pelo sorriso de Mickey quando saiu e fechou a porta depois que Chris passou. Dei incertamente a volta pela minha mesa para ir ao encontro da mulher que chegava.

— Muito prazer, Sra. Schuyler — disse eu, estendendo-lhe a mão. — Sou Brad Rowan.

Ela sorriu, apertando minha mão.

— O prazer é meu em conhecê-lo, Sr. Rowan — disse ela com voz suave. — Edith me falou muito a seu respeito.

Sua voz fazia ressoarem na sala carrilhões alegres.

Olhei-a. Eu estava habituado a ver mulheres, milhares de mulheres. Quando trabalhava para a companhia de cinema, havia servido de cavalheiro para algumas das mulheres mais bonitas do mundo. Era meu serviço. Elas não me perturbavam. Podia pegá-las ou deixá-las. Mas aquela ali era alguma coisa especial.

Tinha tudo o que se pode chamar de classe. Fichas azuis de mil dólares na mesa. O padrão-ouro. Grandes orquídeas brancas nas vitrinas dos floristas. Uma partitura de Rodgers e Hammerstein. Um sol preguiçoso numa manhã de verão. A terra verde e amiga. Um cálice de vinho do Porto especial depois do jantar. Uma canção de amor de Billy Eckstine.

Os cabelos eram de um castanho rico e suave, curtos na frente e compridos atrás, caindo-lhe quase pelos ombros. Os olhos eram de um azul escuro, quase violeta, com grandes pupilas negras onde se podia quase mergulhar. O rosto não era inteiramente redondo, as maçãs eram altas, a boca branda e generosa, o queixo não de todo quadrado, o nariz não de todo arrebitado, e os dentes brancos e certos não por artes do dentista, mas naturalmente.

Tomei fôlego profundamente e lamentei por um instante que não tivesse jogado no verão passado um pouco mais de tênis ou de golfe para eliminar aquela barriga que estava começando a crescer.

— Chame-me de Brad — disse eu, sorrindo e puxando uma cadeira para ela. — Tenha a bondade de sentar-se.

Ela se sentou, e eu, ainda atordoado, voltei à minha mesa, procurando refazer-me da surpresa.

Olhei-a. Estava tirando as luvas, e eu lhe vi as mãos brancas, pequenas e finas, com um toque de coral nas unhas. Tinha apenas um grande solitário na mão esquerda.

— Paul me disse que viria procurar-me — murmurei, sem saber ao certo o que dizia. — Mas não a esperava tão depressa. Em que posso servi-la, Sra. Schuyler?

Ela sorriu, e pareceu que não havia outra luz na sala.

— Chame-me Elaine — disse ela.

— Elaine — repeti, pronunciando o nome como ela.

— Nunca pude gostar de Hortense — disse ela, sorrindo, e com uma voz delicadamente confidencial. — E nunca perdoei minha mãe por isso.

Sorri.

— Sei exatamente o que sente. Fui batizado como Bernard. E todos me chamavam de Bernie.

Ela tirou um cigarro de uma cigarreira de ouro, e eu quase me estatelei no chão, correndo para junto dela a fim de acendê-lo.

Voltei à minha cadeira e sentei-me. Estava ainda discutindo o caso comigo mesmo. Não podia compreender.

— Edith me aconselhou a procurá-lo — disse ela — porque achava que era o único homem no mundo que poderia ajudar-me.

Ri com ela. Começava a sentir-me melhor. Estava readquirindo o controle sobre mim mesmo. Já estava em terreno conhecido. Achei que havia ficado atordoado porque tinha esperado uma pessoa diferente. Nunca pensara que as amigas de Edith pudessem ser senão cópias de carbono da própria Edith.

— Como assim?

— Escolheram-me como presidente do comitê local da campanha contra a paralisia infantil, e pensei que poderia ajudar-me a planejar uma campanha que realmente desse resultado.

Senti o velho ceticismo invadir-me de novo. Ela era, afinal de contas, uma das "moças" de Edith, fosse qual fosse o seu aspecto. A única coisa importante para ela era conseguir bastante publicidade nos jornais para compensá-la do esforço. Senti-me decepcionado.

Talvez a decepção não fosse compreensível, mas de qualquer maneira existia. Aquelas senhoras de sociedade eram todas a mesma coisa. Com classe ou sem classe, eram como qualquer pessoa com fome de publicidade, ansiosas por um bom recorte de jornal. Levantei-me.

— Terei muita satisfação em ajudá-la, Sra. Schuyler — disse eu bruscamente. — Se deixar seu nome e endereço com a minha secretária e a mantiver informada das suas atividades ou da sua organização, providenciaremos para que tenha boa publicidade e cobertura nos jornais.

Ela me olhou com uma expressão de surpresa. Havia nos seus olhos manifesta confusão ante a maneira súbita pela qual nossa conversa terminava. Perguntou-me com voz ligeiramente incrédula.

— É só o que pode fazer, Sr. Rowan?

Olhei-a, irritado. Estava farto de todas aquelas impostoras que iam para as suas reuniões de caridade com casacos de mink.

— E não é só isso o que deseja, Sra. Schuyler? Afinal de contas, não lhe posso dar uma garantia por escrito do espaço que conseguiremos nos jornais, mas fique certa de que faremos tudo o que for possível. Não foi para isso que veio me ver?

Ela fechou de repente os lábios. Seus olhos tornaram-se sombrios e frios. Levantou-se e apagou o cigarro no cinzeiro ao lado da cadeira. Apanhou a bolsa e, quando se voltou para mim, tinha o rosto tão carrancudo e frio quanto os olhos. O tom de sua voz era um pouco mais desdenhoso do que o meu.

— Não me compreendeu, Sr. Rowan. Não estou querendo tirar disso qualquer publicidade pessoal. Já tive publicidade de sobra. Só vim procurá-lo para projetar a campanha em favor das vítimas da paralisia infantil que vai começar em janeiro. E só aceitei o lugar porque sei por experiência própria o que é perder alguém com essa terrível doença, e, se dependesse de mim, nenhuma outra esposa e nenhuma outra mãe passariam pelo que passei.

Depois de dizer isso, deu-me as costas e encaminhou-se para a porta.

Olhei-a, confuso, por um momento. Vi-lhe então de relance o perfil transtornado por uma fria raiva e me lembrei. Murmurei o nome dela. "Sra. David E. Schuyler!" Recordei todo o caso, e percebi que não passava de um trapalhão idiota e grosseiro. Os jornais haviam falado muito dela no ano anterior. Perdera na mesma época os dois filhos gêmeos e o marido, atacados de paralisia infantil.

Alcancei-a antes que ela abrisse a porta. Encostei-me à porta, conservando-a fechada. Podia ver um traço de lágrimas zangadas nos seus olhos.

— Sra. Schuyler — disse eu, contritamente —, pode perdoar um estúpido imbecil da Third Avenue que pensa que sabe de tudo? Estou realmente arrependido e envergonhado.

Ela me olhou bem nos olhos por um longo momento. Depois respirou profundamente e voltou em silêncio para a cadeira. Tirou a cigarreira com os dedos trêmulos e colocou um cigarro na boca. Risquei um fósforo para ela, dizendo:

— Perdoe-me. Pensei que fosse apenas uma dessas mulheres que andam à procura de prestígio pessoal.

Os olhos dela estavam fitos nos meus, enquanto a fumaça azul do cigarro se enroscava em torno do rosto. Depois, tudo desapareceu, menos os olhos, e eu me perdi no torvelinhante sofrimento azul-escuro que havia neles. Tive de conter-me para não tomá-la nos braços e tentar apagar aquele sofrimento. Nenhuma mulher devia sofrer assim.

Ela falou afinal com voz calma e gentil.

— Se realmente me ajudar, eu o perdoarei, Brad.

 

O telefone tocou. Era Chris.

— O contador acaba de fazer o balancete do mês passado — disse ele.

Olhei para Elaine e sorri.

— Desculpe. Negócios.

— Não tem importância — disse ela.

— Pode falar, Chris.

— Lucro bruto, vinte e um mil dólares. Lucro líquido, nove mil.

— Ótimo. De acordo com o esperado.

— Está com tempo? — perguntou ele, com uma leve nota de sarcasmo na voz.

— Estou — disse eu friamente.

Ele começou a desenrolar uma série de cifras da conta de lucros e perdas constantes do balanço. Não lhe dei a menor atenção. Estava olhando para ela.

Levantara-se da cadeira e fora até a parede, onde examinava os layouts do aço. Gostava da maneira com que ela se movia, do seu porte, do modo com que inclinava a cabeça para o lado a fim de ver melhor um desenho. Sentiu com certeza o meu olhar sobre ela, porque se voltou de repente e sorriu para mim.

Retribuí-lhe o sorriso, e ela voltou à cadeira e sentou-se. Afinal, Chris acabou de falar, e desliguei o telefone.

— Desculpe.

— Não é preciso pedir desculpas — disse ela. — Compreendo perfeitamente. — Olhou para os desenhos e acrescentou: — Parecem anúncios um tanto incomuns. Não procuram vender nada de específico. Aludem apenas às funções do aço.

— É justamente essa a intenção. Trata-se de uma campanha especial que estamos projetando para o Instituto Americano do Aço.

— Ah, a campanha institucional de relações públicas? — perguntou ela.

— Sabe alguma coisa sobre isso?

— Há duas semanas não ouço falar em outra coisa — disse ela, e, ao ver a minha surpresa, explicou: — Meu tio, Matthew Brady, é presidente da Consolidated. Acabo de passar duas semanas em casa dele.

Matt Brady era o último dos magnatas do aço da velha geração. Um pirata até a raiz dos cabelos. Vivo, frio e implacável. Eu sabia que era com ele que teria de lutar, e Chris estava cheio de medo dele.

Ela começou a rir.

— Ficou de repente com uma cara tão engraçada! Em que é que está pensando?

Olhei-a, e cheguei à conclusão de que era uma mulher com quem se tinha que ser sincero.

— Eu estava pensando que o destino parece estar querendo proteger-me. Eu quase a ia tocando para fora do meu escritório. E Matt Brady é seu tio. Teria sido o fim do meu esforço para conseguir o contrato da campanha do aço.

— Acha que isso teria feito alguma diferença para mim?

— Não, para a senhora, não. Mas faria para seu tio. Se eu fosse Matt Brady, ninguém teria coragem de tratá-la mal.

— Isso mostra que não conhece meu tio. Quando se trata de negócios, as relações pessoais nada significam para ele.

— Foi o que me disseram — murmurei. Tinham-me dito coisas piores, mas isso eu não podia dizer a ela.

— Mas é uma boa pessoa, e gosto muito dele — acrescentou ela prontamente.

Sorri comigo mesmo. Era bem difícil caracterizar Matt Brady como uma boa pessoa. Durante a Depressão, levara à bancarrota todas as companhias pequenas e comprara-as por uma bagatela. Só Deus sabia quantas pessoas ele havia arruinado com essa manobra apenas.

— Bem, deixemos isso — disse eu — e tratemos dos nossos problemas. O mal com todas essas campanhas é que o público está farto delas e, por assim dizer, calejado do sofrimento alheio. Mas acho que poderemos superar isso, se tivermos coragem.

— Estou pronta a fazer tudo para ajudar.

— Muito bem — disse eu. — Terá de dar então uma série de entrevistas para os jornais, para o rádio e para a televisão. Providenciaremos tudo. Contará os fatos a seu respeito com simplicidade e acento pessoal.

Uma sombra caiu-lhe sobre os olhos. Nunca vira a dor estampar-se num rosto daquela maneira. Tomei-lhe impulsivamente a mão, que permaneceu imóvel na minha.

— Não terá de fazer isso — disse eu, empenhado em fazer desaparecer aquele sofrimento. — Há outros meios, e nós os descobriremos.

Ela afastou delicadamente a mão e apoiou-a sobre a outra, no colo.

— Faremos assim — disse ela, com os olhos firmes. — Tem toda a razão. É o melhor meio.

Tinha coragem de fato. Matt Brady não tinha por que se envergonhar da sobrinha.

— Muito bem!

A cigarra tocou, e eu liguei o aparelho.

— Que é?

Ouvi a voz de Mickey.

— São seis e meia, chefe, e eu ainda tenho muito o que fazer esta noite. Está precisando ainda de mim?

Olhei para o relógio. Não havia percebido que era tão tarde.

— Pode ir, Mickey. Cuidarei do resto.

— Obrigada, chefe. Boa noite.

Desliguei e voltei-me para Elaine, que sorria.

— Não tinha a intenção de atrasá-lo tanto, Brad.

— Nem eu a você.

— Mas vai chegar em casa tarde para o jantar, ao passo que eu tenho todo o tempo à minha disposição.

— Marge não se importará com isso — disse eu prontamente. — Já está habituada.

— Mesmo assim, acho que já vou indo — disse ela, tirando o batom da bolsa e começando a aplicá-lo.

— Mas ainda não terminamos a nossa conversa — disse eu, sentindo uma curiosa relutância em deixá-la partir. — E voltará para Washington amanhã.

Ela me olhou por cima do espelhinho da bolsa e disse:

— Mas estarei de novo aqui na semana que vem. Continuaremos então a conversa.

— As coisas não são mais as mesmas quando retomadas depois de interrompidas.

— Que sugere então?

Cada vez me surpreendia mais comigo mesmo.

— Vamos ficar aqui mesmo na cidade e jantar juntos, se não tem outro compromisso. Depois, voltaremos para cá e acertaremos tudo.

Ela me olhou um momento, e então, quase imperceptivelmente, sacudiu a cabeça.

— Será melhor não fazermos isso. Não me sentirei bem em atrapalhar os seus horários. Chega o que já atrapalhei.

Ajudei-a a vestir o casaquinho de pele.

— Está bem — disse eu, sem conseguir dissimular a decepção que sentia. — Aceita então um drinque?

Ela me encarou com firmeza e perguntou:

— Aonde está querendo chegar, Brad?

— Não estou querendo chegar a parte alguma. É preciso estar quando se oferece um drinque a uma mulher?

Ela não sorria.

— Forçosamente, não. Mas você não me parece o tipo de homem que vive oferecendo drinques a mulheres.

— E não sou — repliquei, sentindo o rosto vermelho.

— Então por que oferece a mim?

Sentia-me confuso e embaraçado como um garoto a quem uma pequena recusa o convite para ir ao cinema. Achei o que me pareceu uma boa resposta.

— Porque estou arrependido do meu procedimento por ocasião da sua chegada e quero manifestar-lhe o quanto sinto o que aconteceu.

— Não é preciso, Brad — disse ela, já com o rosto calmo. — Já demonstrou isso.

Não respondi.

— Boa noite, Brad, e muito obrigada — disse ela, estendendo-me a mão.

Senti-lhe a mão pequena, leve e macia.

— Boa noite, Elaine.

— Estarei de volta na segunda-feira e poderemos então ver-nos de novo, se não houver nenhum inconveniente para você.

— Na hora em que quiser — disse eu, ainda segurando-lhe a mão. Sentia o sangue latejar-me nas têmporas.

Ela puxou delicadamente a mão e eu lhe notei no rosto um começo de rubor. Voltou-se e dirigiu-se para a porta.

— Se chegar cedo — disse-lhe, seguindo-a —, poderemos almoçar juntos.

Ela parou e me olhou.

— Onde?

— Venha pegar-me a uma hora da tarde.

— Certo — disse ela, ainda sem sorrir.

Vi-a sair e voltei para a minha mesa. Sentia-lhe ainda o perfume. Peguei o telefone para avisar a Marge que chegaria para jantar às oito horas.

Enquanto voltava para casa, não deixei de pensar um só instante nela. E quanto mais pensava, mais zangado ficava comigo mesmo. Que é que havia comigo? Ela não era a mulher mais bonita que eu havia visto na vida. Não era também a mais sexy. Não era nada disso.

Na hora do jantar, falei dela a Marge, e contei-lhe como havia agido quando ela chegara ao escritório.

Marge me escutou em silêncio com a atenção que lhe era peculiar e, quando acabei, deu um suspiro.

— Por que esse suspiro? — perguntei imediatamente.

— Pobre mulher — disse ela. — Como deve ter sofrido!

Olhei-a como se ela tivesse de repente acendido as luzes numa sala escura e eu pudesse ver tudo de novo. Era isso. Ela percebera a coisa sem querer. Elaine Schuyler nada significava para mim. Sentia-me daquele jeito apenas porque tinha pena dela.

Comecei a sentir-me melhor, reintegrado na minha vida e no meu eu. Tinha de ser essa a razão. Quando fui me deitar, estava mais do que convencido disso.

Mas estava errado, e soube disso no momento em que entrei no meu escritório na segunda-feira.

 

Quando cheguei ao escritório na segunda-feira, já voltara ao normal. Havia planejado tudo. Almoçaria com ela, seria cortês e prestativo, e só.

Sorri quando comecei a abrir a correspondência. Havia quase procedido como um idiota. Eu devia ter tido mais juízo. Já passara da idade para essas coisas. Quarenta e três anos já são a velhice para casos de amor.

Há uma época na vida do homem em que a mulher é de capital importância, e sexo e romance são sinônimos. Mas isso acontece quando se é moço, não aos quarenta e três anos. Nessa idade, o homem tem outras coisas em que pensar. Faz parte do amadurecimento, e tenho visto isso em quase todos os homens que conheço. Aos quarenta e três anos, o sexo e o romance exigem muito esforço e provocam um desgaste material e emocional muito grande. Essa energia é necessária para outras coisas. Para os negócios, por exemplo.

Lembro-me de ter ouvido alguém dizer que os negócios eram o substituto que os americanos haviam encontrado para o sexo. Quando um homem envelhecia e o seu ímpeto diminuía, ele procurava outros campos onde pudesse demonstrar a sua capacidade. Os negócios eram a válvula lógica. Era por isso que muitos homens viviam dedicados ao seu trabalho como a uma amante. Era por isso que muitas esposas se sentiam infelizes, porque esse era o risco normal do casamento. Compreendia perfeitamente tudo isso. Um homem só dispõe de determinada dose de energia, e eu era suficientemente inteligente para conhecer as minhas limitações. Além disso, ela era a sobrinha de Matt Brady, e havia também desse lado muitos perigos.

Quando o relógio foi se aproximando de uma hora da tarde, eu estava quase esquecido do almoço que havia marcado. Tinha tido uma manhã cheia de trabalho, que era realmente para mim uma amante muito exigente. O aparelho de intercomunicação tocou e eu atendi com impaciência.

— A Sra. Schuyler está aqui.

As palavras ficaram ressoando-me nos ouvidos. Respirei fundo, e uma pronta agitação se instalou dentro de mim.

— Mande-a entrar — disse eu, levantando-me.

Eu era inteligente, não era? Tinha tudo planejado, não tinha? Pois bem, havia ainda um minuto eu não estava pensando nela e ela não tinha a menor importância para mim. Mas naquele momento era o que havia de mais importante em minha vida.

Compreendi isso no momento em que esperava que a porta se abrisse. Era-me intolerável esperar. Queria correr e ir abrir-lhe a porta. Comecei a dar volta à mesa, mas ela já havia entrado no escritório.

Eu tinha pensado que aquilo não aconteceria de novo. Não podia acontecer de novo. Tinha acontecido na primeira vez em que eu a vira, mas não se ia repetir. Eu já sabia como ela era. Estava com a minha guarda preparada. Estava errado também quanto a isso.

Ela sorriu para mim, e eu quase não pude falar.

— Alô, Brad — disse ela, com a sua voz baixa e quente.

Hesitei um momento. Em seguida, aproximei-me dela e tomei-lhe a mão.

— Elaine — murmurei, sentindo a mão queimar-me a pele. — Elaine, fico tão contente de que tenha vindo.

Ela começou a rir e ia fazer alguma observação alegre e inconseqüente, mas olhou para o meu rosto e a voz morreu-lhe na garganta. Uma sombra caiu-lhe sobre os olhos, e ela desviou o olhar.

— Desculpe, Brad — disse ela, quase num sussurro, puxando a mão —, mas não posso almoçar com você.

— Por quê?

— Tinha-me esquecido de um compromisso anterior — disse ela, ainda sem olhar para mim. — Só passei por aqui para pedir-lhe desculpas.

Olhei-a. O perfil claro e frágil se gravava profundamente em meu espírito. Senti-me de repente furioso.

— Está brincando! Ela não respondeu.

— Se tinha outro compromisso, podia ter-me telefonado. Não era preciso vir até aqui. A cidade está cheia de telefones.

Ela se virou para a porta, afastando-se de mim. Eu me sentia dominado por uma profunda e irremediável frustração. Peguei-a pelos ombros e obriguei-a a olhar para mim.

— Por que está mentindo?

— Não estou mentindo, Brad — disse ela em voz muito baixa, e eu vi que tinha os olhos marejados.

— De que é que você tem medo, Elaine?

Senti o corpo dela descambar como se toda a energia a houvesse abandonado. As lágrimas já lhe rolavam dos olhos.

— Deixe-me, Brad — disse ela num sussurro. — Já não sofri bastante?

Sua voz breve caiu sobre mim como um jorro de água fria, arrastando a minha raiva. Afastei-me dela e voltei lentamente para minha mesa. Ao fim de um momento, olhei para ela e disse:

— Está bem, Elaine. Pode ir, se é isso o que você quer. Ela hesitou, olhando para mim.

— Desculpe-me, Brad. Não respondi.

Vi-a sair e olhei sombriamente para a minha mesa. Ela estava certa. O assunto não comportava nem discussão. Eu estava apenas procurando sofrimento. Não era uma mulher que se podia pegar por uma noite e depois jogar de lado quando se estivesse satisfeito. Era uma mulher de classe, e a única base na qual se pode ter uma mulher de classe é para sempre.

Acendi um cigarro. Era sem dúvida a melhor coisa que poderia ter acontecido. Eu já estava muito velho para começar a ter sonhos de mocidade.

O dia foi passando de uma maneira ou de outra e às cinco horas, quando o telefone tocou, nada mais havia em mim senão a vaga dor de uma frustração. Atendi.

— Paul Remey ao telefone, chefe — disse Mickey. Liguei a chave.

— Como vai, Paul?

— Otimamente, Brad. Pode jantar comigo esta noite?

— Claro — disse eu, surpreso. — Mas onde é que você está?

— Aqui na cidade — disse ele, rindo. — Tive de vir acertar um caso do chefe. Edith veio também para fazer algumas compras. Eu é que tive a brilhante idéia de convidá-lo para jantar. Mas temos de jantar cedo. Vou pegar o avião das nove horas.

— Ótimo — disse eu, tentando fazer a minha voz parecer tão cordial quanto possível. — Vamos então ao 216? Podemos jantar calmamente, e depois levarei vocês de carro para o aeroporto.

— OK. Até lá.

Desliguei o telefone e olhei pela janela. Já estava quase escuro, como sempre acontecia no fim da tarde, tão logo acabava a hora de verão. Sentia-me muito cansado. Só queria ir para casa e meter-me na cama para apagar com uma boa noite de sono o vago sentimento de insatisfação. Mas não podia deixar de atender ao convite de Paul.

Tornei a pegar o telefone e liguei para casa. Marge atendeu.

— Não vou jantar em casa, meu bem. Paul está na cidade e me convidou para jantar com ele. Quer ir conosco?

— Acho que não, Brad. Vou jantar com Jeanie e deitar-me cedo. Divirtam-se.

— OK, querida. Até logo.

Acabei de ler então os cálculos da campanha do aço e aprovei-os, mandando-os para a sala de Chris. Quando acabei, já eram quase seis horas, e, em vista disso, saí.

A noite havia esfriado e o ar estava um tanto cortante. Cheguei à conclusão de que andar um pouco a pé não me faria mal algum. Desci a Madison Avenue até a 52nd Street e dirigi-me para o restaurante.

O maitre deu comigo quando eu estava deixando o chapéu com a chapeleira.

— Sr. Rowan — disse ele —, o Sr. Remey está à sua espera. Por aqui, faça o favor.

Paul levantou-se quando me viu chegar. Edith estava sentada à direita dele. Logo que apertei a mão de Paul, voltei-me para Edith e sorri.

— Foi uma surpresa maravilhosa, Edith. Marge vai ficar muito aborrecida por não ter sabido que estava na cidade.

— Foi uma coisa inesperada, Brad. Mas é com prazer que o vejo.

— É muito bom também ver você — disse eu, sentando-me. — Está cada dia mais jovem.

Ela riu sem acreditar, mas eu sabia que lhe agradava ouvir isso.

— Brad, você é um galanteador incorrigível.

Notei que havia mais um lugar à mesa e perguntei a Paul.

— Alguém que prometeu vir e não veio?

Ele já ia responder, mas Edith tomou-lhe a frente.

— Não — disse ela. — Aí está ela.

Vi Paul olhar para a entrada e começar a levantar-se. Fiz automaticamente o mesmo, e virei-me.

Creio que nos vimos no mesmo instante. Uma luz brilhou nos seus olhos, mas logo se apagou. Pareceu hesitar um momento, mas logo continuou em direção à nossa mesa.

Estendeu a mão e disse com uma voz cerimoniosamente polida:

— Sr. Rowan, é uma satisfação tornar a vê-lo. Apertei-lhe a mão e senti que meus dedos tremiam.

Segurei-lhe a cadeira para que se sentasse. Edith me disse, sorrindo:

— Elaine me apareceu para almoçar no último momento e depois foi fazer compras comigo, Brad. Você não imagina o gosto que ela tem. Compramos metade das lojas de Nova York.

— Espero que me tenha deixado dinheiro que chegue para o jantar — disse Paul, sorrindo.

Edith disse-lhe alguma coisa, mas não pude perceber o que foi. Não tomaria conhecimento das coisas nem que o prédio começasse a desabar em cima de mim. Estava olhando para Elaine e para os seus olhos azuis e a sua boca vermelha, macia e quente, e pensando que seria maravilhoso se eu pudesse beijá-la.

 

Às oito horas, enquanto estávamos descansando depois do café, o maitre chegou à mesa e me disse:

— O seu carro já está aí, Sr. Rowan.

— Obrigado — respondi. Tinha telefonado para a garagem antes de sair do escritório e dissera aonde deveriam levar o carro às oito horas. Olhei em torno da mesa. — Prontos?

— Prontos — respondeu Paul.

Edith fez um retoque de última hora na maquilagem, e eu me voltei para Elaine.

— Não quer ir conosco até o aeroporto?

— Não, acho melhor ir para casa. Estou muito cansada. De qualquer maneira, muito obrigada pelo convite, Sr. Rowan.

— Vamos, sim, Elaine — disse Edith. — Brad deixará você no hotel às dez horas. Um pouco de ar fresco só lhe pode fazer bem.

Elaine olhou para mim, hesitante.

— Estaremos de volta às dez horas — disse eu.

— Está bem — disse ela, sorrindo. — Irei com vocês. No caminho para o aeroporto, as mulheres sentaram-se atrás enquanto Paul ia comigo na frente. De vez em quando, eu olhava pelo espelhinho e via que ela estava me observando. Afastava prontamente os olhos, mas, quando voltava a olhar, encontrava-os de novo.

Contei a Paul as dificuldades relacionadas com o contrato da indústria siderúrgica e ele me contou os últimos boatos de Washington. O trajeto decorreu sem sentirmos, e quando chegamos ao aeroporto faltavam dez minutos para as nove horas. Estacionei o carro, e todos nos encaminhamos para o portão. Despedimo-nos, e prometi a Edith que Marge telefonaria para ela no dia seguinte. Depois, Paul e Edith entraram e Elaine e eu voltamos para o carro.

Não falamos. Abri-lhe a porta em silêncio e fiquei esperando até ela entrar. Depois, dei a volta e entrei pelo outro lado, sentando-me ao volante. Levei a mão à chave de ignição, mas ela me deteve.

— Espere um pouco — disse ela. — Vamos deixar que o avião deles levante vôo.

Recostei-me no banco e olhei para ela. Estava olhando para o avião através do pára-brisa e havia uma profunda tristeza em seu rosto.

— Alguma coisa? — perguntei-lhe.

— Não. Quero ter certeza de que partiram sem contratempos.

— Gosta muito deles? — disse eu, fazendo mais uma afirmação do que uma pergunta.

— Muito mesmo — disse ela. — Não sei como teria resistido depois do que aconteceu se não tivesse Edith e Paul.

Acendi um cigarro no momento em que os motores do avião roncaram dentro da noite. Ficamos em silêncio até que o aparelho levantasse vôo e desaparecesse na escuridão.

— Agora, pronto — disse ela, com um leve sorriso. Não me movi. Fiquei a olhá-la. Ela também me olhou durante algum tempo e disse:

— Não esperava rever você.

— Nem eu a você — respondi. — Ficou triste com isso?

— Não sei sinceramente o que dizer, porque não sei ao certo o que estou sentindo.

— Pois eu sei o que estou sentindo.

— É muito diferente. Você é homem e sente as coisas de modo diferente. Não há nada que seja tão importante para um homem como é para uma mulher.

— Não? — perguntei. Joguei fora o cigarro, coloquei as mãos sobre seus ombros e beijei-a.

Os lábios dela não se moveram, mas não ficaram indiferentes. Não eram frios nem quentes. Não me beijaram em retribuição, mas de certo modo demonstraram amor.

Afastei os lábios e olhei-lhe o rosto. Estava olhando firmemente para mim.

— Tive vontade de beijá-la no primeiro momento em que a vi — disse eu.

Ela se afastou para o seu canto do carro e pegou um cigarro. Risquei um fósforo para ela. Ela tirou a primeira fumaça e pousou a cabeça no encosto do banco. Disse então, sem olhar para mim:

— Quando David era vivo, nunca olhei para outro homem, nem ele para outra mulher.

Eu nada disse, e ela continuou como se estivesse falando sozinha:

— Durante a guerra, vivemos quase sempre separados. Sabe como era Washington naquele tempo porque esteve lá. Todos trabalhavam sem parar. Nada mais importava. Isso me aborrecia muito.

Olhei-a ainda em silêncio.

— E ainda me aborrece — disse ela, olhando então diretamente para mim.

— Ainda tem amor por seu marido, Elaine?

Ela fechou os olhos e respondeu com uma dor calma na voz.

— Sua pergunta não é justa. David está morto.

— Mas você não está — disse eu, cruelmente. — Você é uma mulher adulta. Não é mais uma criança. Tem necessidades. . .

— Homens? — perguntou ela, interrompendo-me. — Sexo? Acha que isso é tão importante assim?

— Não, mas o amor é importante, Elaine. Todos precisam amar e ser amados.

— Está querendo dizer com isso que me ama? — perguntou ela com voz incrédula.

— Não sei — respondi depois de pensar um momento. — Poderia amá-la já, mas não tenho certeza.

— Que está então procurando dizer, Brad? Por que não é honesto comigo, consigo mesmo, e não me diz o que quer?

Baixei a vista para as minhas mãos a fim de fugir ao seu olhar.

— Neste momento, só sei que a quero — disse eu. Ela ficou em silêncio, e vi que o cigarro estava se queimando, esquecido entre seus dedos. — Desde que a vi, quis você. Não sei bem o que sinto, nem como, nem por quê. Só sei que quis e quero você como nunca em minha vida quis qualquer outra coisa.

— Brad — disse ela, gentilmente.

Inclinei-me para ela e beijei-a na boca. Dessa vez, os lábios não estavam parados, nem frios. Eram suaves, doces e trêmulos. Abracei-a e nos beijamos até ficarmos ambos sem fôlego.

Ela pousou a cabeça em meu braço estendido no encosto do banco. Olhou-me ternamente e murmurou:

— Brad.

Beijei-a de novo prontamente.

— Sim, Elaine?

— Não vamos ser como todos os outros, Brad. Não vamos fazer nada de que tenhamos de nos arrepender.

— Até agora, Elaine, só falamos de mim. E você? Que é que você quer?

— O que eu quero não é tão importante quanto o que você quer, Brad. Você tem mais a perder do que eu.

Nada havia que eu pudesse dizer a isso. Ela me olhou bem nos olhos.

— Como se sente em relação a sua mulher, Brad? Você a ama?

— É claro que a amo — respondi prontamente. Mas as palavras me pareceram inadequadas e acrescentei: — Um casal não vive casado por tanto tempo quanto nós sem que haja algum interesse de um pelo outro.

Ela falou calmamente, sem o menor ressentimento.

— Por que então olhou para mim, Brad? Está um pouco enfastiado? Precisa de aventuras? Ou sente necessidade do conforto de uma conquista?

— Você não está sendo justa comigo, Elaine. Já lhe disse que não sei. Não compreendo o que acontece entre um homem e uma mulher quando se sentem atraídos. Nunca me interessei muito por mulheres. Vivo muito ocupado. Sei que quero você, sei que você tem alguma coisa para mim e eu alguma coisa para você. Não me pergunte como sei disso, porque também não posso responder. Não digo que não poderei viver sem você porque sei que posso. Posso abrir mão de quase tudo o que não me cabe ter. Disso tenho certeza. A vida é feita de muitas decepções, mas o indivíduo sobrevive, por maiores que elas sejam. Neste momento, sei apenas que não gostaria de viver sem você se isso não fosse necessário.

Havia um leve sorriso nos lábios dela.

— Você é honesto, Brad. Outros homens têm oferecido mais.

— A honestidade é o único luxo que resta em nossa sociedade, e é o mais dispendioso de todos.

Ela tirou outro cigarro da cigarreira e acendeu-o.

— É melhor levar-me para casa agora, Brad.

Liguei a chave. O motor começou a trabalhar suavemente e eu saí do local de estacionamento, seguindo para a estrada. Não trocamos uma só palavra durante o caminho.

Parei o carro diante do hotel dela e olhei-a.

— Ainda a verei outra vez, Elaine?

— Não sei, Brad. Não sei se devemos.

— Tem medo de mim?

— Você é um homem estranho, Brad. Não, não tenho medo de você.

— Está com medo de apaixonar-se por mim?

— Não, não estou com medo de apaixonar-me por você. Não tenho nada de que ter medo — disse ela, saltando do carro. — Mas você, Brad, acho que deve pensar um pouco. Você não é livre e pode ver-se em dificuldades.

— Esse problema é meu. Posso vê-la outra vez?

— Faça o que eu disse, Brad. É melhor pensar bem.

— E se depois de pensar ainda quiser ver você?

— Ainda assim, não sei. Vamos ver. Boa noite, Brad.

— Boa noite, Elaine.

Esperei que ela entrasse no hotel e desaparecesse no vestíbulo para então afastar-me.

 

Eram quase onze horas quando fechei a porta da garagem e segui pela alameda para entrar em casa. Vi as luzes do nosso quarto acesas e isso me deu uma penosa sensação de desconforto. Pela primeira vez, desejei que Marge não estivesse à minha espera.

Acho que era o sentimento de culpa que já se estava formando. Às onze horas, Marge ainda esperava por mim. Era ainda muito cedo para ela ir dormir. Parei diante da porta e acendi um cigarro.

Era tempo de enfrentar seriamente o meu problema. Elaine tinha razão. Eu devia pensar muito. Que queria afinal de contas com ela? Se eu estava feliz, não tinha necessidade alguma de procurar dificuldades. Mulheres são mulheres.

Sentei-me nos degraus da varanda e olhei para a noite. Pense em tudo o que tem de bom na vida, Brad, disse a mim mesmo. Você tem uma casa que vale trinta mil dólares, uma empresa de cem mil dólares, dois filhos ótimos e uma esposa doce e bondosa, que o compreende e conhece e a quem você está habituado. Tem tudo o que sempre desejou durante os anos difíceis da vida. Por que tentar alterar as coisas agora? Por que transformar-se em alguma coisa que você não é?

Mas do outro lado havia alguma coisa que não se deixava vencer por argumentos. Elaine. Seu rosto. Era a realidade de um sonho que eu tivera toda a minha vida. Toda a beleza que eu sempre procurara numa mulher, toda a beleza que eu nunca pensara que pudesse existir.

Ouvia-lhe a voz ecoar-me no espírito, suave e quente. Vivia na solidão, como eu tinha vivido quando era jovem, e o mundo é um lugar terrível para se viver em solidão. Ela sentia medo, como eu sentira outrora. Sentia medo das coisas que a vida podia fazer, o medo que só pode vir do conhecimento do que a vida já fez conosco.

Sabia que ela gostava de mim. Isso eu sabia com certeza. As pessoas gostavam de mim no primeiro momento — ou não gostavam nunca mais. Elaine gostava de mim. Soube disso desde aquele primeiro dia no escritório, quando eu não a deixara sair. Tivera certeza disso quando ela agira comigo daquele jeito no escritório horas antes, naquele mesmo dia. E todas as dúvidas se haviam dissipado quando eu a beijara.

Da primeira vez, não. Da segunda. Ela me beijara então. E me queria como eu a queria. Havia na sua boca uma fome que ameaçava sugar-me toda a energia e despertar uma paixão que eu pensara que nunca mais me fosse possível. Sua intensidade me surpreendera e também me amedrontara um pouco. Por isso é que eu havia parado. Compreendera de repente que não era diferente de qualquer outro homem que conhecia. E não sabia se gostava disso ou não.

— Alô — disse a voz calma de Marge atrás de mim. — O que está fazendo?

Senti-lhe a mão no meu ombro. Sem me voltar, estendi o braço e toquei-lhe a mão.

— Estou pensando.

— Algum problema, Brad? — disse ela, sentando-se ao meu lado. — Diga-me qual é e talvez eu possa ajudá-lo.

Olhei-a. Os cabelos emolduravam-lhe o delicado oval do rosto, a boca docemente curvada. Era uma coisa que muito me agradava nela. Ela sabia escutar, estava sempre disposta a escutar. Mas aquilo não era coisa de que eu pudesse falar-lhe. Tinha de resolver o caso por mim mesmo.

— Não há nenhum problema, menina. Estava apenas sentado aqui, pensando como isto é sossegado e como repousa a gente depois de toda aquela confusão da cidade.

Ela sorriu e levantou-se, puxando-me.

— Está bem, amante da natureza, mas não se esqueça de que o verão já acabou e que, ficando aqui assim, você pode pegar um resfriado. É melhor entrar, e, enquanto eu lhe preparo um café, você me fala do jantar com Paul e Edith.

Entrei com ela no living.

— A Sra. Schuyler estava também conosco. Levei os dois no carro para o aeroporto e depois deixei-a no hotel.

Ela me lançou um olhar malicioso. — Cuidado com essas viúvas de Washington, rapazinho. Gostam de devorar gente moça como você.

— Tenho é pena dela — disse eu, defendendo-me de nada.

Ela estava ainda troçando comigo.

— Está muito bem, mas não vá ter pena demais. Não se esqueça de que tem uma mulher e dois filhos de que cuidar.

— Não me esquecerei — disse eu com toda a seriedade. Alguma coisa na minha voz fê-la voltar os olhos para mim, e então o riso lhe fugiu do rosto. Aproximou-se de mim, beijou-me o rosto, e disse:

— Sei que não fará isso, Brad. E é por isso que gosto de você.

O brilhante sol matinal que inundava o quarto acordou-me. Olhei vagamente para o teto. O quarto me parecia de certo modo estranho, como se estivesse fora do lugar. Fiquei sabendo então o que era. Eu estava na cama de Marge.

Virei lentamente a cabeça. O rosto dela estava no travesseiro ao lado do meu, seus olhos abertos e voltados para mim. Sorriu.

Sorri também para ela.

Ela murmurou alguma coisa.

Não ouvi bem e perguntei-lhe o que havia dito, e minha voz abalou o silêncio matinal do quarto.

— Eu quase tinha me esquecido, Brad.

Foi então que me lembrei do que acontecera aquela noite.

Ela me abraçou e disse ao meu ouvido:

— Você é um homem maravilhoso, sabe disso, Brad? Senti um aperto na garganta e nada pude dizer. Era possível a um homem amar a esposa para satisfazer o desejo despertado por outra mulher? Qual era a traição mais indigna? A real ou a imaginária?

Ela me afagou os cabelos e murmurou:

— Não devemos passar tanto tempo assim longe um do outro...

Procurei brincar.

— Não se esqueça de que não sou mais tão moço quanto era.

Ela riu.

— Como está enganado, Brad. Você é muito melhor agora. Como você era desajeitado! E como se esforçava para não ser!

Entrei no carro ao lado de Jeanie. Marge olhava-nos da porta.

— Veja se volta cedo hoje, Brad — disse ela. — Papai vem jantar conosco.

— Virei cedo, sim — disse eu. Papai sempre jantava conosco às terças-feiras.

Jeanie saiu com o carro pela alameda. Tiramos uma fina de um poste antes de chegar à rua.

— Um dia você vai derrubar esse poste, Jeanie.

— Calma, papai — disse ela, rindo.

— Quem deve ter calma é você.

Ela freou bem em cima de um sinal vermelho. E então me perguntou:

— Pensou no que eu lhe disse?

— A respeito de quê? — perguntei, fazendo-me de desentendido.

— A respeito de um presente de aniversário para mamãe.

— Claro que sim.

Ela ficou imediatamente interessada.

— Sério, papai? O que vai ser?

— O sinal abriu — disse eu, não dando atenção de propósito às perguntas dela.

— Deixe o sinal para lá — disse ela, seguindo com o carro. — O que vai dar a ela?

— Você vai ver no dia, Jeanie. É uma surpresa, e não quero que você dê com a língua nos dentes.

— Guardarei segredo, papai. Dou-lhe minha palavra.

— Promete mesmo?

— Prometo.

— Um casaco de minki — Oh, papai! Formidável!

— Tire o pé do acelerador ou nenhum de nós estará em casa na hora de dar o presente.

Ela tornou a frear. Estávamos diante da escola. Abriu a porta, depois mudou de idéia, inclinou-se no banco e me beijou o rosto.

— Papai, você é o maior!

Observei-a atravessar a rua correndo e passei para a direção. De repente, vi alguma coisa brilhar no chão. Abaixei-me e apanhei-a.

Era uma pequena cigarreira de ouro. Rodei-a lentamente nas mãos. Num canto, havia um nome gravado.

Elaine.

 

Matt Brady era um homem baixo a quem nunca vi sorrir. Os olhos eram grandes e azuis, mas não pestanejavam. Olhavam diretamente para a gente e através da gente. Não gostava dele. Não sei por quê, mas desde o primeiro momento em que eu o vi, soube que nunca iria gostar dele.

Talvez fosse a sugestão do poder que lhe caía dos ombros como um manto invisível. Talvez fosse a maneira pela qual os outros elementos do comitê se comportavam em sua presença. Cada um deles era um grande homem de negócios. Cada qual presidia uma companhia que valia muitos milhões de dólares. Ainda assim, curvavam-se e rastejavam diante dele, tratando-o como se ele fosse um deus. E ele os tratava como se não passassem de escravos.

Olhei de relance para Chris a fim de ver a impressão dele a respeito de como eu estava me saindo. O rosto se mantinha impassível. Voltei-me então para Matt Brady. A voz dele era tão fria quanto o olhar.

— Meu jovem — disse ele —, não tenho tempo para perder em conversas vazias. Sou um homem muito franco e vou direto ao que interessa. Nenhum ponto de sua exposição me deu a segurança de que possamos alcançar o povo com o tipo de campanha que está sugerindo. Não creio nem mesmo que o povo chegasse a compreender o que estamos querendo dizer.

Sustentei-lhe firmemente o olhar. Não podia compreender como Elaine podia considerá-lo uma boa pessoa.

— Sr. Brady — respondi-lhe —, sou um assessor de relações públicas. Sabe o que isso significa? É um nome meio sofisticado para o camarada que chega à cidade antes do circo e prega cartazes nas paredes. Só que não convido ninguém a ir ao circo. Procuro apenas convencer a todos de que a vida é mais divertida porque existe o circo.

Não se podia desviar o velho patife do seu objetivo.

As palavras nada significavam para ele. Eu já estava começando a compreender como ele conquistara a posição a que chegara.

— Meu jovem — disse ele —, não ponho em dúvida a sua capacidade. Apenas duvido de sua campanha. Parece-me apressada e malconcebida, como se sua maior preocupação fosse conseguir o contrato conosco em vez de prestar-nos um serviço, já que somos possíveis clientes.

Certas coisas só podem ser toleradas até certo ponto. Daí por diante, perde-se tudo, até a roupa do corpo.

— Sr. Brady — disse eu com um sorriso —, se me é permitido ter o mesmo privilégio de franqueza que o senhor se atribui, gostaria de dizer-lhe que o senhor não faz a menor idéia daquilo de que está falando. E isso acontece porque está pensando egoisticamente na maneira pela qual essa campanha poderá servir aos interesses pessoais de Matt Brady, e não aos interesses de toda a indústria.

Senti perfeitamente o vago choque que minhas palavras haviam provocado em torno da mesa. Chris me olhava com o rosto enfarruscado, numa censura alarmada.

A voz de Matt Brady fez-se ouvir, enganosamente macia.

— Continue, jovem.

Olhei-o bem nos olhos. Eu podia estar enganado, mas pareceu-me ver a sombra de um sorriso no fundo de seus olhos.

— Sr. Brady — disse-lhe calmamente —, o senhor fabrica aço, eu fabrico opiniões. Presumo que conheça a sua indústria, e quando compro algum dos seus produtos — uma geladeira ou um carro —, confio em que o senhor tenha fornecido o metal mais apropriado para o caso. E é isso o que me faz continuar comprando.

Voltei os olhos para os seus colegas em torno da mesa.

— Cavalheiros, na escrituração de todas as suas companhias figura um artigo chamado boa vontade. Em algumas companhias esse artigo não vale mais do que um dólar. Em outras, vale um milhão de dólares ou mais. Não sei qual é o método de contabilidade que empregam para determinar o valor desse intangível. Não sou contador. Mas vendo intangíveis. O que lhes dou não pode ser apanhado com as mãos, não pode ser pesado, nem contado, nem incluído num balanço.

Estavam todos interessados no que eu dizia. Podia ver isso em seus rostos.

— Negocio com esse artigo chamado boa vontade. Se me permitem, gostaria de relembrar coisas que se diziam sobre sua indústria, ainda não faz muito tempo. Não são recordações agradáveis, mas infelizmente são necessárias para a minha argumentação. Depois do ataque a Pearl Harbour, dizia-se comumente em Nova York que os japoneses nos haviam atacado com o aço aproveitado do trem elevado da New Avenue. Certa ou erradamente, os senhores foram considerados culpados por terem vendido aos japoneses o aço do elevado. Pouco importa que a verdade fosse muito diferente do rumor. O que importa é que os senhores foram durante muito tempo detestados por isso. Na época, os senhores não se incomodaram muito com esse fato. Não estavam interessados em vender ao público, pois estavam empenhados num esforço de guerra total. Mas isso teria tido muita importância se naquele tempo tivessem de depender do consumidor para viver. Sei muito bem disso. Em 1942, fui chamado a Washington para tentar dar um impulso à campanha do metal usado que estava estagnada. Uma das principais razões dessa estagnação é que o povo não confiava na sua indústria, não confiava no que os senhores iriam fazer com aquele metal. Promovemos então uma campanha de educação e esclarecimento que o público aceitou. Resultado: o público voltou a ter confiança nos senhores e compreendeu perfeitamente o uso a que se destinava o metal, e daí por diante o metal velho começou a chegar aos montes às suas usinas.

Parei para tomar fôlego e beber um gole de água. Pelo canto dos olhos, percebi que até Matt Brady estava interessado no que eu dizia.

— Boa vontade, senhores. É esse o meu negócio. Posso fazer com que o povo tenha boa opinião a respeito dos senhores. Mas provavelmente não conseguiria vender para os senhores nem um abridor de lata. Contudo, se eu tiver êxito, o povo terá melhor conceito dos senhores do que tem hoje. E tudo indica que, se confiarem mais nos senhores, comprarão com mais facilidade as muitas coisas que fabricam. Quer compreendam isso, quer não, é tão importante para os senhores que os fregueses os estimem quanto é para o vendedor de pipocas da esquina a simpatia da sua freguesia. E podem não gostar disso, mas para mim não passam de vendedores de pipocas de alto preço na esquina mais cara do mundo.

Peguei os papéis em cima da mesa e meti-os na pasta. De minha parte a reunião havia terminado...

Não precisei olhar para Chris para ter a confirmação do que eu já sabia. Era meio milhão de dólares que ia por água abaixo e que nunca constaria da nossa escrita...

Chris não disse uma só palavra enquanto descemos no elevador. O ar da rua me pareceu subitamente frio apesar do sol brilhante. Levantei a gola do casaco.

Um táxi encostou ao passeio a meu chamado. Já ia embarcar quando mudei de idéia. Entreguei a pasta a Chris.

— Vá para o escritório. Vou andar um pouco a pé.

Ele tomou a pasta e entrou no táxi. Vi o carro entrar no tráfego e misturei-me à multidão que enchia a Fifth Avenue. Meti as mãos nos bolsos do casaco e comecei a andar em direção oposta ao centro da cidade.

Eu era o maior de todos os idiotas. Não devia ter feito o que fizera. Mas para isso era preciso que eu não tivesse pela frente Matt Brady, com seus olhos frios e seu ar cético. "Tome cuidado com gente pequena", costumava dizer meu pai. "Um homem pequeno tem de ser esperto para sobreviver." Papai tinha razão. Matt Brady era pequeno. E espertíssimo. Percebera imediatamente o embromador que eu era. Senti crescer dentro de mim um ódio enorme por ele. Era um homem que sabia de tudo, tinha solução para tudo. Ao menos, era o que pensava. Mas estava errado. Ninguém tem solução para tudo.

Não sei quanto tempo levei caminhando, nem por onde andei, mas o certo é que, no momento em que parei, estava diante do hotel dela. Desde aquela manhã, a cigarreira de ouro estava no meu bolso.

Ela estava esperando na porta quando apareci, depois de sair do elevador. Seu rosto mostrava com toda a clareza que estava à minha espera.

Entrei com ela no quarto, com a cigarreira na mão.

— Você deixou isto no carro de propósito — disse eu.

Ela recebeu a cigarreira da minha mão, sem confirmar e sem negar. Não olhou para mim. Disse apenas:

— Obrigada, Brad.

— Por quê?

Ela afinal olhou para mim. Senti mais uma vez a tremenda solidão que havia no fundo daqueles olhos. Abriu os lábios como se fosse dizer alguma coisa, mas seus olhos se encheram de lágrimas.

Abri os braços para ela, e ela se aninhou entre eles como se fosse um lugar que de há muito lhe pertencesse. Encostou o rosto no meu, e senti na boca o gosto salgado de suas lágrimas.

Abracei-a durante muito tempo, e afinal as lágrimas cessaram.

— Desculpe, Brad. Mas já estou bem.

Vi-a atravessar o quarto. Daí a segundos, ouvi um barulho de água corrente. Joguei o casaco em cima de uma poltrona e peguei o telefone.

O serviço de copa naquele hotel era bom. Eu havia acabado de colocar o scotch nos copos quando Elaine reapareceu.

O rosto estava lavado e limpo, e não havia em seus olhos o menor sinal das lágrimas que os haviam avermelhado. Entreguei-lhe um copo.

— Você precisa de um drinque.

— Desculpe-me, Brad — tornou ela a dizer. — Eu não queria chorar.

— Não pense mais nisso.

Ela sacudiu a cabeça veementemente.

— Detesto chorar. Não é justo para você. Sentei-me na poltrona onde estava o meu casaco e comecei a dizer:

— Tudo é permitido e justo no amor, e... Mas calei-me ao ver a expressão do rosto dela. Tomei o uísque em silêncio. Meus nervos começaram a dar cambalhotas quando a bebida me caiu no estômago e ricocheteou através de todo o sistema. Ela se sentou numa poltrona diante de mim.

Nunca saberei quanto tempo ficamos assim. Não falamos senão depois que me servi de nova dose de uísque e a paz e o contentamento começaram a abrir caminho dentro de mim. O mundo e os negócios estavam muito longe, e até a decepção de pouco antes havia desaparecido.

A escuridão havia começado a encher de sombras as janelas atrás dela quando minha voz ecoou na sala. As palavras me saíram dos lábios sem que eu as esperasse.

— Amo você, Elaine.

Olhei-a. Ela balançava a cabeça, e disse:

— E eu amo você.

Soube então o que significava aquele gesto de cabeça.

Era como se nós dois tivéssemos sabido todo o tempo daquela verdade. Não me movi da poltrona.

— Não sei como isso aconteceu, nem por quê.

— Não tem importância. Desde o momento em que o conheci, recomecei a viver. Eu estava sozinha.

— Não está mais sozinha.

— Não? — perguntou ela suavemente. Encontramo-nos no centro da sala. Dentro de mim havia uma verdadeira fogueira.

Eu sentia todos os músculos do corpo retesarem-se num ritmo já esquecido. Meus braços tinham uma força maior do que jamais haviam tido e a mantinham presa a mim, enquanto os meus dedos exploravam-lhe os segredos do vestido.

Ela me puxou os cabelos num delírio, e a dor me sacudiu até a ponta dos pés. Olhei-a e vi-lhe o olhar desvairado e vago, ao mesmo tempo que seus lábios se moviam.

— Não, Brad. Pare. Dão a isso um nome terrível.

— Não há nome para isso — murmurei com voz rouca. — É a primeira vez que isso acontece no mundo. Só acontecerá conosco.

Beijei-lhe a boca e, tomando-a nos braços, carreguei-a para o quarto.

Seus lábios eram quentes e trêmulos, até que em dado momento o tremor cessou e só ficou o calor. Ela parecia uma estatueta de marfim velho, e a luz do crepúsculo acendia-lhe reflexos de ouro na carne.

Seu corpo era como uma pilha de combustível havia muito à espera de uma faísca. Num momento, estávamos num mundo todo nosso, sobre uma nuvem que cobria a face da Lua, numa velocidade maior do que a da luz, como um foguete interplanetário.

Encontrei-lhe a boca, e seus dentes deixaram nos meus um gosto de sangue. Um cometa me apanhou em sua cauda e então explodiu dentro de mim como uma estrela cadente. Houve um espantoso momento imóvel, e então caímos num vácuo insondável, enquanto um pensamento alucinado me percorria a cabeça.

Que maneira de ajustar contas com Matt Brady por me ter feito perder meio milhão de dólares!

 

O som da água corrente me acordou. Fiquei ali deitado calmamente, deixando os olhos habituarem-se à estranha escuridão. Estendi instintivamente a mão para pegar os cigarros. Não estavam no seu lugar habitual. Só alguns minutos depois foi que compreendi onde estavam.

Rolei até a borda da cama e sentei-me. Acendi o abajur na mesinha-de-cabeceira e olhei para o relógio. Nove horas. Marge devia estar preocupada. Peguei o telefone e dei o número à telefonista.

Ouvia o ruído da chamada quando a porta do banheiro se abriu e Elaine apareceu. Ficou um momento ali, olhando-me, silhuetada na porta pela luz do banheiro. Tinha uma pequena toalha enrolada na cabeça e uma grande toalha felpuda em volta do corpo.

— Está telefonando para casa? Fiz um sinal afirmativo.

Nesse momento, ouvi a voz de Marge no telefone.

— Brad?

— Sim, sou eu. Tudo bem, menina?

— Tudo, Brad. Mas onde você está? Já estava ficando preocupada.

— Estou bem — disse eu, olhando para Elaine, que continuava na porta como uma adorável silhueta. — Estive tomando uns drinques.

— Tem certeza de que está bem? Sua voz está diferente.

— Já não lhe disse que estou bem? — repliquei com alguma impaciência. — Apenas estive tomando uns uísques.

Elaine voltou para o banheiro e fechou a porta. Apanhei um cigarro e tentei acendê-lo.

— Onde é que você está? No escritório estiveram procurando você a tarde toda.

— Estou num bar na Third Avenue. Que é que eles querem?

— Não sei. Chris disse que era um assunto relacionado com o Instituto do Aço. Pediu para você telefonar para a casa dele, a qualquer hora. Que foi que aconteceu, Brad? As coisas não saíram como você esperava?

— Não, não saíram —- respondi bruscamente. Quase podia ver o sorriso de animação com que ela falava.

— Não se aborreça, Brad. Não tem tanta importância assim. Você vai continuar a viver sem isso.

— Vamos ver.

— Chris me disse que você talvez tivesse de ir a Pittsburgh, ao escritório central do tal instituto. Ele não tinha certeza disso, mas de qualquer maneira preparei sua mala e mandei-a para o escritório, caso precise dela. Vai telefonar para ele agora?

— Vou.

— Então, depois de falar com ele, telefone-me de novo para me contar o que está acontecendo.

— É claro, menina.

— Só espero que você não tenha bebido demais. Não sabe o mal que isso lhe faz.

— Não bebi. — De repente, deu-me uma vontade imperiosa de largar o telefone. — Vou desligar agora, para falar com Chris. Depois lhe telefono.

Desliguei o telefone antes que ela tivesse acabado de dizer "até logo". Como se fosse um sinal, a porta do banheiro se abriu de novo e Elaine apareceu.

— Não era preciso fazer isso — disse-lhe eu. — Não era nada particular.

— Não me foi possível ficar ali parada e ver você mentir.

Tentei brincar.

— Falta de coragem, não é?

— Já lhe disse isso antes. Falta de coragem — disse ela, enquanto uma sombra lhe passava pelos olhos.

Estendi a mão para ela, mas ela me fez parar.

— Tem outro telefonema para dar, não tem?

— Pode esperar — disse eu, beijando-a. Seu corpo estava quente por baixo da toalha. Ela me passou os braços pelo pescoço.

— Brad, querido...

Beijei-lhe o colo, onde havia ainda gosto de água do chuveiro.

— Amo-a, Elaine. Amo-a como nunca amei ninguém, como nunca pensei que pudesse amar.

Ela deu um suspiro de contentamento e se aconchegou mais a mim.

— Fale mais, Brad, fale mais. Faça-me sentir que você não está mentindo, não está brincando comigo. Diga que me ama como eu amo você. Diga. Mostre.

Disse e mostrei.

Chris estava muito agitado quando afinal falei com ele.

— Onde é que você andou metido?

— Bebendo — disse, sucintamente. — O que há?

— Passei a tarde toda tentando falar com você. Matt Brady quer conversar com você no escritório de Pittsburgh amanhã de manhã.

A agitação dele começou a contagiar-me. O velho patife não era tão patife assim. Eu calculara mal as reações dele.

— Vou sair agora mesmo e comprar uma passagem aérea.

— Já tratei disso — respondeu ele prontamente. — As passagens estão no aeroporto em seu nome. O vôo é número 104 e partirá às onze e quinze. Sua maleta está lá também, no depósito de bagagem.

Olhei para o relógio. Eram quase dez horas. Era preciso andar depressa.

— OK, Chris. Vou tratar de andar depressa. Uma nota de satisfação surgiu na voz de Chris.

— Isso, chefe. Volte com o presunto e nós faremos um banquete!

— Banquete com presunto? — exclamei, exultante. — Matem o vitelo mais gordo.

Desliguei e voltei-me para Elaine.

— Você ouviu?

Ela fez um sinal afirmativo, os cabelos espalhados luminosamente pelo travesseiro.

— Ande depressa, querido. Você não dispõe de muito tempo.

— Quem tem de andar depressa é você. Vá arrumar sua mala porque você vai comigo.

Ela se sentou na cama, assustada.

— Você está louco, Brad? Não posso fazer isso! Eu já estava começando a vestir-me.

— Boneca, você não me conhece. Posso fazer tudo o que quiser. Você é meu talismã e não vai sair das minhas vistas enquanto esse contrato não estiver assinado, selado e registrado.

Telefonei para casa enquanto Elaine arrumava a maleta.

— Vou tomar o avião das onze e quinze para Pittsburgh.

— Eu já estava espantada de que você não houvesse telefonado ainda.

— Não pude. O telefone de Chris estava ocupado. Brady quer conversar comigo.

— Ótimo! — exclamou ela, rindo. — Orgulho-me de você. Sempre soube que você ia vencer.

Chris havia tomado todas as providências. Havia um bilhete pregado à maleta que me informava que eu tinha um apartamento reservado em meu nome no Hotel Brooke de Pittsburgh. Assinei o registro e subimos para o quarto às duas horas da madrugada.

Ela ficou no centro da saleta enquanto o boy verificava se tudo estava em ordem no apartamento. Afinal, ele voltou, entregou-me a chave, e eu lhe dei um dólar. A porta se fechou.

Virei-me para ela e sorri.

— Por mais humilde que seja, não há lugar como o lar.

Ela não respondeu.

— Que cara é essa, boneca? Não me diga que acha Pittsburgh tão ruim assim.

— Eu devia estar louca para deixar você fazer isso. E se encontrar algum conhecido?

— E se você encontrar?

— Não devo explicações a ninguém, mas você... Não a deixei acabar.

— Deixe então as minhas preocupações comigo.

— Brad, querido, você não sabe o que podem dizer, o que podem pensar, o que podem...

— Pouco me importa! Não dou a menor importância aos outros. A única coisa que tem importância para mim é você. Quero você perto de mim, junto de mim. Não quero você longe, agora que a encontrei. Passei muito tempo na vida à sua espera.

— Está sendo sincero mesmo, Brad?

— Estamos aqui, não estamos? Creio que isso responde à sua pergunta.

Ela me olhou demoradamente. Não sei o que estava procurando, mas devia ter encontrado o que queria, pois se voltou e encaminhou-se para o quarto. Eu a fiz parar antes de chegar à porta.

— Espere um instante, Elaine. Temos de fazer direito as coisas.

Tomei-a nos braços e carreguei-a através da porta.

 

O edifício administrativo da Consolidated era novo e cintilante, e ficava logo depois da cerca de aço que fechava o terreno. Atrás do edifício, ficavam as fundições pretas e fuliginosas, com as chaminés que vomitavam fogo e fumaça para o céu azul.

Um funcionário fardado me fez parar à porta.

— Sou o Sr. Rowan e quero falar com o Sr. Brady.

— Tem passe?

— Não.

— Tem hora marcada?

— Tenho.

O homem pegou um telefone numa mesa próxima e falou em voz baixa, sem tirar os olhos de cima de mim. Acendi um cigarro para esperar. Mal tinha tirado a primeira baforada e ele já acabara de falar no telefone.

— Por este elevador, Sr. Rowan — disse ele polidamente, apertando um botão na parede.

As portas do elevador se abriram, e nele havia outro homem fardado.

— Sr. Rowan, para o gabinete do Sr. Brady — disse o primeiro guarda ao que estava no elevador.

As portas se fecharam, e o elevador começou a subir. Olhei para o ascensorista e disse:

— É quase tão difícil quanto ver o presidente dos Estados Unidos.

— O Sr. Brady é o presidente da companhia — disse o homem, imperturbavelmente.

Por um momento, tive vontade de dizer-lhe que havia muita diferença entre um presidente e outro, mas achei melhor ficar calado. O elevador parou, as portas se abriram e eu saí.

Mas o homem veio atrás de mim.

— Tenha a bondade, cavalheiro.

Atravessei com ele um corredor de mármore deserto com uma porção de portas fechadas. Em cada intervalo entre as portas havia uma lâmpada em forma de archote sustentada por uma figura clássica grega. A qualquer momento, eu esperava que uma das portas se abrisse e um agente funerário nos conduzisse ao local do velório.

O homem parou diante de uma das portas, bateu de leve, abriu-a e convidou-me a entrar. Pisquei os olhos devido ao excesso de luz da sala, depois de ter atravessado o sombrio corredor. Enquanto isso, a porta se fechou às minhas costas.

— Sr. Rowan? — perguntou uma moça sentada a uma grande secretária semicircular no centro da sala.

Fiz um sinal afirmativo e aproximei-me dela. Ela se levantou e me disse:

— O Sr. Brady não pode vê-lo imediatamente e pede-lhe desculpas. Quer ter a bondade de esperar na sala de recepção?

Assobiei intimamente. Depois de ver aquela pequena, ninguém podia dizer que a única coisa em que Matt Brady pensava era em aço. Aquela menina fora construída com uma carroçaria que podia cobrir longas distâncias com admirável resistência.

— É preciso? — perguntei com um sorriso.

O sorriso foi desperdiçado, porque ela se virou e me conduziu por uma porta. Segui-a lentamente, apreciando-a. Ali estava alguém que sabia o que tinha e não procurava disfarçar. Abriu a porta para eu passar.

Parei e perguntei-lhe:

— Por que não está também fardada como os guardas? Ela não sorriu.

— Fique à vontade — disse cerimoniosamente. — Se quiser alguma coisa, tenha a bondade de chamar-me.

— No duro?

Pela primeira vez, teve uma expressão de surpresa. Não havia compreendido. Ri e traduzi:

— Está falando sério?

— Claro — disse ela. — Há charutos e cigarros nas caixas ali naquela mesa. Revistas e jornais na estante ao lado.

E saiu antes que eu tivesse oportunidade de dizer mais alguma coisa.

A sala tinha sido mobiliada com luxo e bom gosto. As paredes eram revestidas de carvalho, e as pesadas poltronas, forradas de bom couro. Parecia que os pés se enterravam até aos tornozelos nos grossos tapetes. Notei um grupo de fotografias bem emolduradas na parede do outro lado.

Fui até lá. Alguns rostos muito conhecidos apareceram-me. Sete fotografias, todas com dedicatórias pessoais a Matt Brady, de presidentes da República: Woodrow Wilson, Harding, Coolidge, Hoover, Franklin Roosevelt, Truman e Eisenhower.

Apaguei o cigarro num cinzeiro. Não era de admirar que o ascensorista não houvesse entendido a minha pilhéria. Presidentes da República vinham e iam, mas Matt Brady permanecia. Era um homenzinho duro, aquele Matt Brady. Não tinha aquelas fotografias no seu gabinete, como qualquer outro homem o faria, para poder exibi-las ou deliberadamente ignorá-las para impressionar os visitantes. Tinha-as na sala de espera, para que quem chegasse ficasse sabendo o seu lugar.

Comecei a pensar que não tinha nada que fazer ali. Alguém que possuísse um senso tão desenvolvido de psicologia do público, tal como Matt Brady parecia ter, não precisava de um camarada como eu para nada. Olhei para o relógio. Já estava na sala havia cinco minutos. Se eu estava certo nos meus cálculos, ele só me mandaria chamar daí a dez minutos. Eu já teria tido tempo então de absorver o efeito psicológico da sala de espera.

Sorri. Por um momento, ele quase levara a melhor. Mas não era só ele que podia fazer aquele jogo. Levantei-me da poltrona e abri a porta.

— Onde é o lavatório? — perguntei.

Ela apontou em silêncio uma porta do outro lado da sala. Quando eu já ia entrando no lavatório, ouvi a voz dela.

— Mas o Sr. Brady deve estar livre daqui a poucos minutos.

— Peça-lhe que espere um pouco.

Eu já estava sentado num dos compartimentos fazia quase dez minutos quando a porta do lavatório se abriu e alguém entrou. Vi por baixo da porta um par de sapatos. Eram sapatos de guarda. Não era preciso ver as bainhas das calças cinzentas para saber disso. Sorri e continuei onde estava. Poucos segundos depois, os pés se moveram, e eu ouvi a porta do lavatório bater.

Havia demorado algum tempo, mas afinal uma das predições de meu pai se cumprira. Lembrava-me de que muitos anos antes ele dissera a minha mãe que só com a polícia era possível tirar-me do banheiro.

Fiquei ali sentado e folheei a revista. Cerca de cinco minutos depois, a porta do lavatório foi de novo aberta. Vi um par de sapatos pequenos e bem engraxados que passavam. Agora, sim. Aquele round era meu.

Deixei cair a revista no chão. Um segundo depois, levantei-me e fui até a pia.

Havia lá um homem que me olhou interrogativamente. Sorri para ele, fingindo-me surpreso.

— Sr. Brady! Que instalações esplêndidas o senhor tem aqui!

O gabinete de Matt Brady era tão grande que podia servir de vestíbulo para o Radio City Music Hall. Ficava num canto do edifício, e duas das suas paredes eram uma só janela, pela qual se podiam ver edifícios e mais edifícios, todos com os cintilantes emblemas da Consolidated. Sua mesa ficava no canto mais amplo, onde as duas janelas se encontravam. Em torno da mesa havia três cadeiras, todas de frente para ele. Do outro lado do gabinete, havia uma grande mesa de conferências com dez cadeiras. Um grande sofá ocupava os cantos fechados da sala, tendo à frente uma mesa de café, de mármore, e mais duas cadeiras.

Fez-me sinal para que eu me sentasse numa cadeira e sentou-se à sua mesa. Esperei que ele falasse. Sua primeira pergunta veio do lado esquerdo.

— Que idade tem, Sr. Rowan?

— Quarenta e três — respondi, olhando-o com curiosidade.

A segunda pergunta me colheu também de surpresa.

— Quanto ganha por ano?

— Trinta e cinco mil dólares — respondi prontamente, antes que tivesse tempo de mentir.

Ele olhou então para algumas folhas datilografadas em cima da mesa e pareceu examiná-las. Esperei que ele continuasse. Um momento depois, olhou para mim.

— Sabe por que mandei chamá-lo?

— Pensei que soubesse. Mas agora não tenho muita certeza.

Ele sorriu sem alegria.

— Gosto de quem fala franco, meu jovem — disse ele. — Por isso, vou dispensar os rodeios. Gostaria de ganhar sessenta mil dólares por ano?

Ri nervosamente. A maneira pela qual aquele camarada falava em dinheiro me recordava os tempos de Washington.

— Claro que gostaria.

— Bem, na reunião de ontem, apresentou um plano para a indústria siderúrgica, lembra-se?

Fiz um sinal afirmativo, achando que era melhor no momento ficar calado. Lembrava-me também de que ele não mostrara muito entusiasmo pelo plano.

— Havia certas falhas na sua exposição. Mas, no fundo, estava certo.

Afinal de contas, eu não havia estragado coisa alguma. Senti uma exaltação de vitória dominar-me.

— Muito me alegra que pense assim — disse prontamente.

— Confesso que saí da reunião um tanto aborrecido em vista da sua acusação.

— Sinto muito, Sr. Brady. Foi só porque... Ele fez um gesto, interrompendo-me.

— Não é preciso dizer nada. Reconheço que o provoquei suficientemente. Mas o que disse me impressionou. Foi a única pessoa ali que teve coragem de dar o nome aos bois. Há muito tempo ninguém me falava dessa maneira.

Já, então, eu estava inteiramente desorientado. Não sabia o que ele queria e, por isso, fiquei calado. Nunca um homem foi enforcado por ter calado a boca.

Estendeu a mão para as janelas atrás dele.

— Está vendo isso, Sr. Rowan? É a Consolidated Steel. E não está toda aí. Há mais vinte usinas como essas através dos Estados Unidos. Está entre as cinco maiores empresas do mundo, e fui eu que fiz dela o que é hoje. Há muita gente que não concorda com os meus métodos, mas isso não importa. O que importa é que fiz um sonho tornar-se realidade. Como, bebo e durmo aço desde que era um garoto de doze anos que carregava água na usina.

Contra a minha vontade, sentia-me impressionado por ele. Falava com o fervor de um evangelista.

— Por isso, quando disse que eu estava pensando de maneira egoísta, tinha absoluta razão. Não procuro justificar-me. Muitos anos se passaram, e já estou velho demais para mudar.

Eu ainda não percebia aonde ele queria chegar e continuei a esperar. Ele se recostou na cadeira e olhou-me.

Tirei um cigarro e acendi-o. Deixou-me tirar a primeira baforada para então falar. E foi bom que o fizesse, porque o que disse quase me fez dar um pulo da cadeira.

— Eu o aprecio, Sr. Rowan, porque o senhor é como eu. É todas as coisas que disse que eu era. Duro, egoísta, implacável. Mas prefiro chamá-lo de homem prático, que compreende as leis da sobrevivência. Foi por isso que lhe pedi que viesse falar comigo. Proponho-lhe trabalhar aqui comigo como vice-presidente e diretor de relações públicas, com o salário de sessenta mil dólares por ano. Preciso de um homem com a sua capacidade de organização para fazer pela Consolidated o que pretendia fazer por toda a indústria.

— E a campanha da indústria siderúrgica? Matt Brady riu.

— O problema é deles.

Fiquei em silêncio, pensando. Era uma vitória. Durante toda a minha vida havia esperado uma oportunidade assim. Naquele momento em que estava ao alcance de minha mão, não podia acreditar nela.

Matt Brady voltou a falar. Tomara aparentemente por aquiescência o meu atordoado silêncio. Bateu com os dedos nas folhas datilografadas que tinha na mesa.

— Sr. Rowan, estes papéis são um dossiê tão completo de sua vida quanto foi possível conseguir da noite para o dia. Como vê, gosto de saber tudo o que é necessário sobre os que trabalham comigo, e creio que só há um pequeno ponto sobre o qual devo falar-lhe.

Olhei-o, curioso. Minha cabeça rodava. Que é que ele estava dizendo?

— Sua ficha comercial é a melhor possível, e, neste particular, não tenho qualquer observação a fazer. Sua vida doméstica é boa também. Mas há pontos da sua vida particular a respeito dos quais não posso deixar de adverti-lo.

Senti um frio no corpo.

— O quê, por exemplo, Sr. Brady?

— O senhor se registrou na noite passada no Brooke com uma mulher que não é sua esposa, Sr. Rowan. Foi uma leviandade. Devo lembrar-lhe que nós da Consolidated vivemos sob constante vigilância.

Comecei a ficar zangado. Há quanto tempo aquele camarada me vigiava? Seria a sua proposta apenas um meio de afastar-me de Elaine?

— De quem, Sr. Brady? — perguntei. — Quem poderia estar suficientemente interessado em mim para saber o que eu estava fazendo?

— Todo mundo que trabalha com aço em Pittsburgh deve contar com vigilância, Sr. Rowan.

Eu tinha de saber o que havia naqueles papéis.

— E seus espiões disseram também qual era o nome da senhora que estava comigo na noite passada?

— Não me interessa o nome de suas companheiras de quarto, Sr. Rowan. Só mencionei o fato em vista da nossa projetada associação.

Levantei-me da cadeira.

— Cheguei à conclusão de que não estou interessado na sua proposta, Sr. Brady.

Ele se levantou também.

— Tenha juízo, meu jovem. Nenhuma mulher vale isso.

Ri intimamente. Fiquei pensando no que ele diria se soubesse que era da sobrinha dele que falávamos.

— Esse fato nada tem que ver com a minha decisão, Sr. Brady — disse eu, friamente.

Encaminhei-me para a porta e abri-a. Um guarda que estava sentado diante da porta levantou-se.

Voltei a cabeça para o homem que estava sentado à sua mesa no gabinete.

— Acho que está exagerando o dispositivo policial, Sr. Brady. Nem a Gestapo pôde salvar Hitler quando chegou a hora difícil.

 

Cheguei à rua fuzilando de raiva. A luz forte do sol me fez piscar os olhos. Mais adiante, na rua, ficava o Oscar's Bar. Seu interior fresco e sombrio me pareceu convidativo. Passei pela porta giratória.

Era um desses balcões de coquetel conjugados com restaurante. Dirigi-me para o bar e sentei-me num dos bancos. Havia no local muitos funcionários da Consolidated, como se podia ver pelo distintivo nas lapelas. Deviam ser todos funcionários de categoria. Os operários deviam ter outros locais prediletos.

O homem do bar chegou diante de mim.

— Uísque duplo com gelo e uma rodela de limão. O homem preparou a bebida e, quando me trouxe o copo, disse:

— Um dólar e meio.

Ou o dinheiro nada valia ali ou a bebida era cara demais. Joguei uma nota de cinco em cima do balcão e disse:

— Deixe o troco para depois.

Eu precisava de tempo para pensar.

Aqueles papéis em cima da mesa de Matt Brady não me saíam da cabeça. Quem fizera o relatório podia saber que era Elaine que estava comigo. Isso era mau. Matt Brady podia não ligar às minhas palavras, mas não me perdoaria se soubesse que era Elaine que estava comigo. Gostaria de saber quem lhe mandara aquele relatório.

Pensei em Elaine, que estava no hotel à minha espera. Lembrei-me dela naquela manhã na hora do café. Eu estava nervoso, com um aperto constante no estômago.

— Calma, calma — dissera ela, percebendo o meu estado. — Tio Matt não é um bicho-papão. Não quer devorá-lo. Quer apenas conversar sobre uma transação.

Eu sorrira, apesar do que sentia. Talvez fosse uma transação como qualquer outra para Matt Brady, mas para mim era a mais importante da minha vida.

Tomei outro gole de uísque e vi que só havia água. Com um sinal ao homem do bar, pedi outra dose. Sem dúvida alguma, eu tinha dado um pontapé na sorte. Olhei para o relógio. Duas horas. Relutava ante a idéia de voltar ao hotel e contar a Elaine o que havia acontecido.

Estava no segundo uísque duplo quando ergui os olhos para o espelho do bar. Julguei ver uma pequena sorrir para mim. Estava certo. Havia mesmo uma pequena que me sorria.

Girei o corpo no banco e sorri para ela. Ela fez um gesto, e eu apanhei meu copo e fui para a mesa dela. Era a secretária de Matt Brady. Sentia-me já um tanto alto. Franzi a boca num sorriso e perguntei:

— O velho lhe deu licença de sair para o almoço? Ou foi imposição do Departamento do Trabalho?

Ela não deu muita atenção à minha pilhéria.

— O Sr. Brady sai do escritório sempre à uma e meia e não volta mais.

Compreendi que era um convite e sentei-me ao lado dela.

— Ótimo — disse eu. — Não gosto de beber sozinho.

— Telefonei para o seu hotel e deixei um recado para o senhor antes que ele saísse.

— Pode lhe dizer que não adianta — exclamei belicosamente. — Não quero saber de mais nada com ele.

— Está bem, sr. Rowan, mas não se zangue comigo. Eu apenas trabalho lá.

Ela tinha razão. Eu estava sendo um idiota.

— Desculpe...   Como é mesmo seu nome?

— Sandra, Sandra Wallace.

— Srta. Wallace — disse eu cerimoniosamente —, permita-me oferecer-lhe um drinque.

Fiz um sinal chamando o garçom, e ela pediu um martini bem seco. Em seguida, disse-me:

— O Sr. Brady gosta do senhor.

— Está muito bem. Mas eu não gosto dele.

— Quer que o senhor trabalhe para ele. Tinha certeza de que ia consegui-lo. Mandou até o departamento jurídico preparar o seu contrato.

— Ele assina contrato também com os seus espiões? O garçom trouxe o martini dela e se afastou. Levantei o meu copo.

— O único emprego que eu aceitaria dele seria tomar conta de você.

Ela riu.

— Deixe de dizer tolices.

— Tolices, nada. Para isso ele não precisa nem me pagar.

— Obrigada, Sr. Rowan — disse, provando o martini.

— Meu nome é Brad. Sempre que me chamam de Sr. Rowan, tenho a impressão de que estão falando com meu pai.

— Está bem, Brad. Mas, mais cedo ou mais tarde, acabará habituado a essas coisas e fará o que ele quer.

— Não ouviu o que eu disse quando ia saindo? Não quero emprego nenhum dele.

O rosto dela mostrou uma estranha expressão. Era quase como se ela tivesse ouvido aquilo muitas vezes.

— Ele vai consegui-lo, Brad. Não o conhece como eu. Matt Brady sempre consegue o que quer.

Um clarão de compreensão se acendeu de repente na minha cabeça confusa.

— Não gosta dele?

Ela baixou a voz quase a um sussurro:

— Detesto-o.

— Por que fica lá então? Não é obrigada a trabalhar para ele. Há outros empregos.

— Desde que meu pai morreu na usina, quando eu tinha onze anos, sabia que ia ser secretária dele.

— Como assim?

— Minha mãe foi procurá-lo no escritório e me levou com ela. Eu era crescida demais para a minha idade, e Matt Brady não dispensava um só truque. Lembro-me de que ele me pegou a mão com os dedos frios e disse: "Não se preocupe, Sra. Wolenciwicz. Dar-lhe-ei uma mesada para ir vivendo e, quando Alexandra crescer, virá trabalhar aqui comigo. Talvez até seja minha secretária". Nunca mais se esqueceu disso. De vez em quando, telefonava para minha mãe e perguntava como ia eu na escola e se estava me preparando para o lugar que me esperava. Se eu o deixasse, ele não permitiria que eu conseguisse outro emprego.

— Ainda que fosse para outra cidade?

— Já tentei isso uma vez — disse ela com um sorriso amargo. — Ele me cortou todas as chances e depois me readmitiu generosamente.

Tomei mais um gole de uísque e senti um gosto horrível. Larguei o copo. Não queria saber mais de bebida naquela tarde.

— É ele que a sustenta? — perguntei abruptamente.

— Não. Muita gente pensa isso, mas a verdade é que ele nunca me disse uma palavra que não fosse rigorosamente de serviço. Não compreendo — acrescentou ela, com uma expressão perplexa, como se me estivesse pedindo que lhe explicasse as coisas.

— Ele manda espioná-la também?

— Não sei ao certo. Às vezes, penso que manda, outras vezes, acho que não. Não confia em ninguém.

Mas eu tive a impressão de que podia confiar naquela pequena. — Viu o relatório a meu respeito?

— Não. Foi-lhe remetido diretamente pelo departamento de investigação e entregue em mãos dentro de um envelope lacrado.

— Há alguma maneira de eu conseguir uma cópia?

— Só há uma cópia, e é a que está na mesa dele.

— Será que você pode deixar-me passar os olhos nela? É preciso. Talvez haja nele alguma coisa que me possa criar grandes dificuldades.

— Não adianta nada, Brad. Se houver alguma coisa, ele nunca a esquecerá.

— Mas ao menos eu ficaria a par do que ele sabe e do que ele não sabe.

Ela ficou calada. Era evidente que estava um pouco amedrontada de ter falado mais do que devia. Afinal de contas, não me conhecia bem, e eu podia inclusive ser um dos espiões de Matt Brady.

— Um favor por outro — disse eu. — Você me ajuda e eu a ajudo. Deixe-me ver o relatório e eu a livrarei de Matt Brady, de tal modo que ele nunca mais a encontrará.

Ela respirou profundamente, e percebi o que mais me havia chamado a atenção no escritório. Ela possuía um vasto busto, e por um momento pensei que fosse estourar o vestido. Ela notou o meu olhar e teve um sorriso peculiar.

— Não vivo escondida lá dentro — disse ela.

— Seria melhor que vivesse. Mas não tenho sorte. Isso faria dos negócios um prazer.

Um toque de cor chegou-lhe às faces.

— Por que pensa que não seria possível qualquer coisa? — perguntou ela com voz rouca.

 

Entramos pelo grande portão de aço e eu me encaminhei para a entrada do edifício. Ela me tocou o braço e disse:

— Por aqui.

Acompanhei-a ao lado do edifício e chegamos a uma porta escondida atrás de um arco de sebes. Ela tirou uma chave da bolsa e abriu a porta, explicando:

— É a entrada privativa de Matt Brady. Entramos por um pequeno corredor. Poucos passos adiante, havia um elevador. Ela apertou um botão e a porta se abriu. Entramos, e ela se voltou para mim, sorrindo:

— É o elevador particular de Matt Brady.

O elevador começou a subir, e ela continuou a sorrir para mim. Não havia meio de recusar aquele convite. Abracei-a. Ela estava de olhos bem abertos quando passou os braços pelo meu pescoço e uniu os lábios aos meus. Senti-a mover o corpo de encontro a mim. Eu havia acertado desde a primeira vez. Aquela pequena era feita para longas distâncias. Ainda estava abraçada a mim quando as portas do elevador se abriram.

Afinal, parou, a fim de respirar, e com os olhos cintilantes murmurou:

— Gosto de você, sabe disso?

Limitei-me a sorrir. Era um jogo perigoso, que exigia a maior cautela.

— Você é o meu tipo — continuou ela. — Fiquei sabendo disso desde o momento em que vi que foi ele que teve de ir tirar você do banheiro.

Não disse uma palavra.

— Epa! — exclamou ela, com os olhos ainda em mim.

— Que foi? — perguntei, surpreso.

Em vez de explicar-me, ela saiu do elevador. Segui-a até o gabinete particular de Matt Brady. Aproximou-se da mesa e tirou uma chave da bolsa. Hesitou um momento e, depois, abriu a gaveta e tirou o relatório.

— Sou mesmo uma maluca — disse ela, com os papéis ainda na mão. — Você pode ser um guarda e me denunciar.

Não respondi. Limitei-me a ficar olhando para ela. Por fim, ela me passou o relatório. Pela segunda vez em poucos minutos ela me surpreendia.

— Não vai nem ver o que é que diz? — perguntei-lhe.

Ela foi até a porta da sala dela. De lá olhou para mim.

— Não quero ver nada — disse ela. — Sei que você é casado. Isso não me interessa. E se tem outra pequena, não quero saber o nome dela.

Ela saiu, fechando a porta, e fui para junto da janela para ter mais luz. Tinha de tirar o chapéu a Matt Brady. O pessoal dele podia não ter tido muito tempo para trabalhar, mas havia muito pouco que não tivessem apurado. Toda a minha vida estava ali resumida naquelas folhas de papel. Corri os olhos pelo relatório à procura do nome dela.

Não tinha por que me preocupar. O relatório dizia apenas que eu tinha sido acompanhado por uma mulher que passara a noite no meu apartamento no hotel e que, de acordo com as instruções, haviam interrompido as observações. Joguei os papéis em cima da mesa e acendi um cigarro.

Mal havia tirado a primeira baforada, a porta se abriu.

— Então? — perguntou ela.

— Já li.

— Tudo bem?

— Tudo — murmurei, começando a sentir-me um tanto constrangido. Acrescentei meio sem jeito: — Não sei como agradecer-lhe.

Ela não respondeu.

— Bem, acho que é melhor ir andando — disse eu, encaminhando-me para o elevador.

— Você não vai poder sair agora — disse ela. — Será visto. Verão o elevador em movimento no quadro de controle da portaria e irão verificar se há alguma novidade.

— Como é então que vou sair daqui? Ela teve um curioso sorriso.

— Terá de esperar por mim. Saio às cinco e quinze, depois que o grosso do pessoal já foi embora.

Olhei para o meu relógio. Eram quase quatro horas. Ela ainda sorria quando me disse:

— Sente-se e espere. Vou lhe preparar um uísque. Atravessei a sala e sentei-me no grande sofá, dizendo:

— É exatamente do que eu preciso.

Ela foi preparar o uísque e voltou com o barulho amável do gelo chocalhando dentro do copo. Sentou-se numa poltrona diante de mim e perguntou:

— O que vai fazer agora, Brad?

— Voltar para Nova York e não pensar mais nisso.

— Não pense que vai ser tão fácil assim. Matt Brady quer ter você com ele.

Sorri desdenhosamente.

— Não sorria, Brad. Quando chegar ao hotel, encontrará um recado dele convidando-o para jantar em casa dele esta noite. Vai, sim. Quando chegar ao hotel, sua cabeça estará mais fria, e você terá refletido melhor. Pensará no dinheiro todo que ele lhe ofereceu, no que você pode fazer com esse dinheiro e irá.

— Você sabe de tudo, não sabe?

— Não, não sei. Mas não é a primeira vez que vejo isso acontecer. Ele vai consegui-lo. O dinheiro nada representa para ele. Vai empilhar as cifras à sua frente até sua cabeça começar a rodar. Falará com voz bem macia e lhe dirá que você é formidável e que vai ser ainda maior trabalhando com ele. E durante todo o tempo você ficará vendo o monte de fichas crescer à sua frente até o momento em que você não agüentará mais. E então — pronto!

— Por que está me dizendo essas coisas? — perguntei, colocando o copo em cima da mesa do café. — Que interesse tem nisso?

— Escute, Brad. Tenho visto muita gente que se julga grande e importante rastejar diante de Matt Brady. Não sabe quantas vezes me enojei de ver tanta covardia.

— E daí?

— Você, não. Você é grande, forte e corajoso. Não há um pingo de medo dentro de você. Não ficou amedrontado a ponto de nem olhar para mim, confundindo-me com um móvel. Vi bem como você olhou para mim.

— Como foi que olhei para você?

Ela se levantou e veio para perto de mim. Segui todos os movimentos dela, sem poder deixar de admirá-la.

— Como está me olhando agora — disse ela.

Fiquei em silêncio e sem fazer o menor movimento em direção a ela. O estranho sorriso lhe voltara aos lábios.

— Sei que você não é para mim — disse ela. — Sei que há outra mulher em sua vida. E você sabe disso também. Percebi tudo quando você me beijou. Mas para mim não faz diferença. Para você não sou apenas a secretária de Matt Brady, não sou um utensílio do escritório dele. Sou um ser humano, uma entidade à parte, uma mulher. Foi o que o seu olhar me disse.

Nada disse. A única coisa que tinha valor no mundo era o fato de que cada um de nós era um indivíduo e não uma engrenagem numa máquina. Nenhum homem valia mais do que outro pela posição, pela fortuna ou pelas circunstâncias. Cada qual era importante por si mesmo.

Estendi a mão para pegar de novo o uísque, mas a mão dela me deteve. Jogou-se no sofá ao meu lado, e senti nos lábios a sua boca ardente. Comecei a sentir o sangue correr-me precipitadamente nas veias. Não sei o que me fez parar. Ela possuía tudo o que se pode querer numa mulher. Só faltava uma coisa. Eu não sentia amor por ela. Não estava em mim.

Afastei-me com relutância. Não queria magoá-la e não sabia o que dizer.

— Há outra mulher, não há? — disse ela, encarando-me.

Fiz um sinal afirmativo.

Ela respirou fundo e levantou-se. Falou então com um sorriso trêmulo nos lábios.

— É outra coisa que me agrada em você. Você é honesto. É incapaz de enganar pelo prazer de enganar.

Voltou para a sua sala, e daí a poucos minutos ouvi o barulho da máquina de escrever. Os minutos foram-se arrastando. Fui até a janela e olhei para a usina. Matt Brady tinha razão de sentir-se orgulhoso. Se as circunstâncias fossem outras, eu poderia até acabar gostando dele. Mas não eram, talvez porque ele tivesse razão em dizer que eu era muito parecido com ele.

Ouvi um relógio dar as horas. O barulho ainda ressoava no ar quando ela voltou ao gabinete.

— Tudo bem agora — disse ela. — Podemos sair daqui a alguns minutos.

 

Peguei um táxi logo que saí do portão e cheguei ao hotel quando faltava um quarto para as seis. É uma estranha coisa o ego masculino, e creio que o tenho em quantidade suficiente para seis pessoas. Sentia-me bem. Queria saber onde se podia encontrar outro camarada capaz de abrir mão de sessenta mil dólares por ano e de uma pequena maravilhosa, tudo no mesmo dia.

Estava orgulhoso de mim mesmo e ansioso por contar a Elaine que grande homem eu era. Abri a porta do apartamento e chamei:

— Elaine!

Não houve resposta.

Entrei, fechando a porta, e vi um bilhete em cima da mesa da saleta. Meu entusiasmo se desvaneceu como a água que desce por uma pia, e uma súbita apreensão me oprimiu o peito. Não era possível que ela me houvesse abandonado. Não era possível!

Peguei o bilhete e senti um delicioso alívio quando li o seguinte:

Querido:

São quatro e meia da tarde. Uma mulher só pode esperar até essa hora. Depois disso, tem de ir ao salão de beleza. Devo estar de volta às seis e meia. Beijos.

Elaine.

Deixei o bilhete em cima da mesa e fui até o telefone no quarto. Pedi ligação para o meu escritório. A voz de Chris estava cheia de ansiedade.

— Como é que foram as coisas, Brad?

— Mais ou menos, Chris. Brady queria que eu largasse tudo e fosse trabalhar com ele.

— Que foi que ele propôs?

— Sessenta mil dólares por ano.

Não precisava do telefone para ouvir o assobio de Chris. Acrescentei causticamente.

— Ele gosta de mim.

— Quando vai começar? — perguntou Chris, com uma nota de satisfação na voz.

— Não vou começar porque não aceitei.

— Você deve estar louco! Ninguém em seu juízo perfeito enjeita tanto dinheiro!

— Então reserve um quarto para mim no hospício, pois foi isso mesmo o que fiz.

— Mas, Brad, você sempre andou atrás de uma coisa assim! Pode aceitar o emprego e conservar o escritório aqui na surdina. Tomarei conta dele para você e todos os anos teremos uma boa bolada para repartir.

Havia um tom na voz dele que era novo para mim. Um eco de ambição, um desejo frio de subir. Não gostei da rapidez com que ele se havia promovido a meu sócio.

— Eu disse que não queria o lugar, Chris. E ainda sou o chefe. Quero apenas a conta da indústria siderúrgica.

— Se você contrariar Matt Brady, pode se esquecer da conta.

— O problema é meu.

— Já que é assim que você quer, Brad, está bem.

— É assim que eu quero.

Houve uma pausa constrangedora, e ele me perguntou:

— Vai voltar esta noite?

— Não. Só amanhã. Tenho outro encontro com Brady esta noite.

— Quer que eu telefone para Marge e lhe dê a notícia?

— Não. Pode deixar que eu telefono. Até amanhã.

— Pense bem — disse ele antes de desligar, mas não havia entusiasmo na voz dele.

Dei à telefonista o número de minha casa. Tive tempo de preparar um drinque antes que Marge chegasse ao telefone. Achei o uísque delicioso. Estava começando a gostar demais daquilo, pensei com surpresa e alarma. Ouvi a voz de Marge e disse:

— Alô, menina.

— Brad! — exclamou ela com a voz cheia de alegria. Ela me conhecia demais e não me perguntou o que havia acontecido. De qualquer maneira, eu lhe diria logo. — Sua voz parece cansada.

Eu só dissera duas palavras e ela havia percebido que eu estava exausto.

— Estou bem, Marge. O tal Brady é um osso duro de roer.

— Passou o dia no escritório dele?

Fiquei satisfeito de que ela tivesse perguntado isso. Ao menos, eu não teria de mentir.

— Foi. Ele me ofereceu um lugar. Sessenta mil dólares por ano.

— Você não me parece muito feliz com isso.

— E não estou. Não aceitei. O homem não me agrada.

Tive um breve momento de remorso diante da fé que havia nas palavras dela.

— Você sempre soube o que faz — disse ela, sem qualquer hesitação.

— Espero que desta vez também saiba. Poderei perder a conta do aço.

— Haverá outras contas, Brad. Não estou preocupada.

— Saberei mais ainda esta noite. Vou jantar na casa dele.

— O que você fizer, para mim está bem.

A confiança dela estava me fazendo mal. Mudei prontamente de assunto.

— Como vai Jeanie?

— Muito bem. Mas está parecendo um tanto misteriosa. Passou o dia falando numa grande surpresa para o nosso aniversário de casamento. Que será que ela tem em vista?

— Se a conheço bem, deve ser algum rapaz — disse eu, rindo. As probabilidades de que ela falasse do casaco de peles a Marge antes do aniversário eram grandes. — Teve alguma notícia de Brad?

— Recebi uma carta hoje de manhã. Ainda está res-friado e de cama. Estou preocupada.

— Não se preocupe, menina. Não deve ser nada.

— Mas se ele está de cama, deve estar muito doente. Você bem sabe como ele é.

— Com toda a certeza, está tão doente quanto eu. Está apenas tirando uns dias de folga da escola.

— Mas...

— Está tudo certo, menina. Deixe de se preocupar. Estarei aí amanhã.

— Está bem, Brad. Volte depressa. Estou com saudades.

— Eu também, menina. Até a volta.

Desliguei o telefone, coloquei mais gelo e uísque no copo e sentei-me com os pés em cima do sofá. Não me sentia normal. Havia alguma coisa errada comigo, mas eu não sabia o que era. A consciência devia estar me atormentando naquele momento, mas não estava. Talvez a secretária de Matt Brady estivesse errada e eu não fosse assim tão diferente dos outros. Era bem possível que eu fosse um patife natural, mas com capacidade apenas para uma mulher de cada vez. Ou talvez eu tivesse entrado um pouco tarde no jogo. Não sabia.

Elaine. O nome dela veio-me à cabeça, e sorri ao pensar nela. Se havia uma mulher feita para o amor, era ela. Tudo nela era requinte e encanto. O rosto, os olhos, o porte elegante e o andar provocante e nervoso. Tomei outro gole de uísque e fechei os olhos para vê-la melhor. Foi como se eu me desligasse para sonhar e foi isso o que aconteceu.

No sono, ela era a meninazinha que morava na Sutton Place. Eu costumava sair da nossa casa na Third Avenue debaixo dos trilhos do elevado para ir vê-la. Era sempre lindíssima, com os cabelos compridos e dourados e com uma governanta severamente vestida, que não saía de junto dela.

Nunca olhou para mim até o dia em que a bola azul e vermelha com que brincava veio rolando até meus pés. Apanhei-a e silenciosamente entreguei-a nas mãos dela.

Recebeu-a como se eu não tivesse feito mais do que a minha obrigação e deu-me as costas. Mas a governanta disse-lhe alguma coisa, e ela se voltou para agradecer-me. A voz dela era como um sino a repicar na rua.

— Merci — disse ela.

Olhei-a durante um momento maravilhoso e, então, voltei para casa correndo e subi três lances de escadas para perguntar a mamãe o que significava aquela palavra.

— Se não estou enganada, significa "obrigado" em francês.

Senti uma mão no ombro e acordei. Elaine estava sorrindo.

— Bebeu de novo, não foi?

Ri e abracei-a. Peguei-lhe depois o rosto entre as mãos e beijei-lhe a boca. Ao fim de um momento, ela afastou o rosto.

— Ei! — exclamou ela. — Por que isso tudo?

— Por amor.

Ela sorriu e tornou a me beijar. Todo o miserável mundo desapareceu, e quando desci de novo à terra estava todo iluminado pelo fulgor que ela me dera.

— Merci — murmurei.

 

Vi as luzes do aeroporto subirem ao nosso encontro. O avião tocou a terra, a princípio de leve, como se estivesse experimentando a firmeza do chão, e depois compacta-mente, ao mesmo tempo que as luzes nos envolviam.

— Ainda penso que é uma tolice — disse eu, virando-me para Elaine.

— Não é maior tolice do que o fato de você não ter querido ir ver o tio Matt esta noite. Você poderia ter acertado alguma coisa com ele.

Eu estava irritado. Havia contado tudo a ela, menos uma coisa. Não dissera que ele tinha um relatório a meu respeito desde o momento em que eu me registrara no hotel. Não queria inquietá-la.

— Já lhe disse — murmurei friamente — que não quero trabalhar para ele. Prefiro trabalhar por conta própria.

O avião parou, e desapertei o cinto de segurança.

— Tenho certeza de que tudo se poderia arrumar. Eu poderia ter ido com você e ajudado a resolver as coisas. Mas você, com o seu orgulho, preferiu não se aproveitar do fato de me conhecer.

O que me aborrecia ainda mais era o fato de que eu não podia dizer a ela o verdadeiro motivo pelo qual eu não a levara comigo para ver Brady. Depois daquele relatório, bastava que ele a visse comigo e eu estaria perdido.

— Pelo menos, você devia ter telefonado dizendo que não podia ir.

Um fusível queimou dentro de mim.

— Ele que vá para o inferno! Pouco me interessa o que ele pensa de mim!

Descemos do avião, peguei as nossas malas e encaminhei-me em silêncio com ela para o ponto de táxis, muito zangado e com os olhos voltados para o chão.

De repente, ela começou a rir.

— De que está rindo? — perguntei-lhe, atônito.

— De você. Parece um garotinho contrariado em suas vontades.

Tive de sorrir. Ela estava certa. Nada mais havia corrido como eu queria desde o momento em que eu lhe dissera que o tio dela queria que eu fosse jantar com ele e que eu não iria. Depois, queria passar a noite em Pittsburgh e ela insistira em que voltássemos para Nova York. Pegamos um avião às nove horas e passamos a viagem toda discutindo se eu devia ter ido à casa do tio dela ou não.

— Melhorou muito — disse ela. — É o primeiro sorriso que vejo em seu rosto esta noite. Se você pretende ir ao escritório amanhã de manhã, acho bom que tenha a aparência descansada. Ficaremos melhor em meu apartamento no Towers.

— Está bem — disse eu, fazendo sinal para um táxi. O táxi parou à nossa frente. Abri a porta, coloquei as malas lá dentro e, depois, entrei com Elaine.

— Para o Towers — disse eu ao motorista. Acabara de recostar-me no banco e estava acendendo um cigarro quando ouvi a voz do chofer.

— É estranho, Bernard, que você não reconheça o táxi de seu pai.

— Papai! — exclamei, enquanto ele saía do aeroporto, fazendo uma curva fechada para a estrada. — Cuidado, papai! Veja por onde anda!

— É uma noite triste para mim, sabe? Quando você era garoto, conhecia meu táxi de longe. E agora...

— Ora, papai! — exclamei, rindo. — Não era seu táxi que eu conhecia, mas a sua maneira alucinada de dirigir. E vejo que não mudou nada.

Parou num sinal e disse:

— Falei com Marge esta tarde. Ela me disse que você estava em Pittsburgh e que ela não sabia se ia voltar esta noite ou amanhã de manhã. Falou também num grande negócio.

Vi que o olhar dele se voltava para Elaine pelo espelho. Sorri quando o carro arrancou de novo. Papai era um verdadeiro chofer de táxi, disposto sempre a fazer o pior juízo possível de todos os seus fregueses. Achava divertido não estar a salvo das suspeitas dele.

— Devia ser o maior negócio de minha vida, papai. Mas o peixe escapuliu da rede.

Ninguém podia tirar papai do caminho com facilidade.

— E a senhora? Colega de negócio, sem dúvida? Olhei para Elaine. Ela percebera imediatamente a situação e tinha um sorriso divertido no canto dos lábios.

— De certo modo, papai — respondi evasivamente, sabendo que isso iria aborrecê-lo. Virei-me então para Elaine.

— Este é meu pai, Elaine. Tem a cabeça cheia de maus pensamentos, mas a culpa não é minha. Já era assim antes de eu nascer. Papai, esta é a Sra. Schuyler.

— Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Rowan — disse Elaine.

Papai fez um cumprimento com a cabeça, todo confuso. Na verdade, ele se mostrava muito tímido quando se encontrava com pessoas do meu círculo de amizades.

— Encontrei a Sra. Schuyler no avião, papai. E disse que iria deixá-la no hotel.

— Brad é muito gentil, Sr. Rowan — disse Elaine, dando mais um chute na bola. — Não queria que ele se incomodasse por minha causa.

— Bernard é muito atencioso com as mulheres, sra. Schuyler. Principalmente quando são bonitas.

— Estou vendo agora de quem foi que seu filho herdou a gentileza, Sr. Rowan.

— É um bom rapaz, Sra. Schuyler — disse papai, muito sério. — Tem dois filhos ótimos, um de quase dezenove anos, que já está na universidade, e uma menina, de dezesseis, que ainda está fazendo o secundário. Ele não lhe disse?

— Disse, sim.

— É um bom marido e um bom pai — continuou papai. — É casado com uma moça muito boa, que ele conhece desde a escola primária.

Comecei a agitar-me no banco. Que é que tinha dado no velho?

— Pare com isso, papai! Tenho certeza de que a Sra. Schuyler não está interessada em conhecer minha biografia.

— Ao contrário — disse Elaine, com uma nota cáustica na voz. — Continue, Sr. Rowan. Estou fascinada.

Era só disso que ele precisava. Daí por diante, até pararmos diante do hotel, ele não parou de falar. Até eu tinha de reconhecer que era uma história sem o menor interesse. Quem estava interessado em saber que eu tinha sido um mau aluno e não pudera nem terminar o curso secundário?   Fiquei contente quando afinal   chegamos   ao hotel.

— Espere por mim, papai — disse eu, pegando a mala de Elaine e saltando. — Vou levar a Sra. Schuyler até o elevador.

Ela se despediu de papai, apertando-lhe a mão, e entrou comigo pela porta giratória.

— Seu pai se orgulha muito de você — disse ela, enquanto atravessávamos o vestíbulo.

Paramos em frente aos elevadores.

— Afinal de contas, sou filho único, e é natural que ele exagere.

— E tem todo o direito. Na verdade você é um homem excepcional.

Notei que havia alguma coisa diferente na voz dela, mas não pude perceber o que era.

— Que é, Elaine?

— Nada, Brad. Nada e tudo.

— Vou livrar-me dele. Pedirei que me leve até a garagem para eu pegar o meu carro e voltarei para cá.

— Não seja tolo! — disse ela, subitamente irritada. — Não vê então que ele estava à sua espera no aeroporto para levá-lo para casa? Não entendeu isso?

Tudo se ajustava. Ele não podia ter sabido que eu dissera a Marge que estaria em casa no dia seguinte, porque falara com ela à tarde, e eu, só à noitinha. Eu devia ter percebido isso, porque o carro dele não estava na fila dos táxis, mas saíra do outro lado da rua, onde ele devia ter estado à minha espera.

— Eu bem que queria ficar em Pittsburgh, Elaine!

— Isso agora não tem mais nenhuma importância! Olhei-a. As sombras do sofrimento haviam voltado aos seus olhos, e isso me contristava. As portas do elevador se abriram e ela se encaminhou para tomá-lo.

— Depois, eu lhe telefonarei — disse eu tristemente, entregando-lhe a mala.

Havia um toque de lágrimas nos olhos dela. Fez um aceno de cabeça, sem falar.

— Boa noite, querida — murmurei quando as portas se fecharam.

Voltei para o táxi e me sentei atrás, cansado, dizendo:

— Pronto, papai!

Atravessamos a cidade em silêncio. Quando chegamos à estrada, papai me disse:

— Ela é muito bonita, Bernard.

— É mesmo, papai.

— Como você a conheceu?

Contei-lhe então tudo sobre ela e como a conhecera. Quando acabei, ele sacudiu tristemente a cabeça.

— Uma vergonha — murmurou.

Fiquei satisfeito quando o carro entrou na nossa alameda e parou. Não queria falar mais sobre aquilo. Olhei para o relógio. Já passava da meia-noite.

— Por que não dorme aqui conosco, papai? Já é muito tarde para você voltar para casa.

Como sempre, papai mostrou-se independente.

— Nada disso, Bernard. A noite é criança. O melhor serviço começa agora.

Como sempre, tive de adulá-lo.

— Fique, papai. Assim, poderemos descer juntos amanhã para a cidade. Sabe que detesto ir de trem.

Marge ficou surpresa ao ver-me, e expliquei que a reunião tinha sido cancelada no último momento e eu resolvera vir para casa. Jeanie desceu, e todos nós tomamos café na cozinha. Lembro-me de ter dito que encontrara Elaine no avião e de ver o estranho olhar de suspeita de meu pai, mas isso foi logo esquecido quando comecei a falar da proposta de Matt Brady.

Era uma e meia da madrugada quando acabamos. A farmácia de onde eu podia telefonar para Elaine estava fechada e fui para a cama.

Mas estava muito nervoso e não pude dormir. Comecei a rolar na cama de um lado para outro. No meio da noite, Marge estendeu a mão e tocou-me o ombro.

— Alguma coisa, Brad? — perguntou ela numa voz terna como a noite.

— Não. Acho que estou muito nervoso.

— Não admira, depois de tudo o que houve hoje — disse ela.

Levantou-se e foi para minha cama. Passou-me os braços pelo pescoço e descansou-me a cabeça em seu seio.

— Durma, querido, durma — murmurou, embalando-me, como se eu fosse uma criança.

A princípio, eu estava rígido e cheio de tensão como uma mola retesada, mas pouco a pouco fui-me tranqüilizando, escutando-lhe a respiração calma e sentindo-lhe o calor do corpo. Fechei os olhos.

Telefonei para Elaine logo que cheguei ao escritório na manhã seguinte. A resposta da telefonista não foi surpresa para mim. Eu sabia que seria assim desde o momento em que ela entrou no elevador na noite anterior. E, apesar de tudo, não podia acreditar.

— Que está dizendo? — perguntei, como se não tivesse ouvido direito.

A telefonista falou com voz bem clara.

— A Sra. Schuyler deixou o hotel esta manhã.

 

Às três horas da tarde, pensei que ia estourar. A princípio senti-me raivoso e, depois, magoado. Ela não precisava ter fugido daquela maneira. Éramos pessoas adultas. Duas pessoas se apaixonam e pode haver muitos contratempos, mas não é preciso fugir. Não há lugar para onde se possa fugir do amor.

Atirei-me então ao trabalho. Era a única maneira de esquecer. Ao meio-dia, eu estava deixando todo mundo no escritório maluco. Estava agindo como um demônio, e sabia muito bem disso. Não saí nem para almoçar. Mas não adiantava. A dor continuou a crescer dentro de mim até que não pude mais suportar.

Mandei todo mundo sair do meu gabinete e disse a Mickey que não queria ser perturbado. Abri uma garrafa de scotch e tomei uma boa dose. Vinte minutos depois, a cabeça me doía tanto quanto o coração.

Em dado momento, meu telefone particular tocou. Não era ligado à mesa. Fiquei algum tempo ouvindo-o tocar sem que eu respondesse. Marge era a única pessoa que sabia o número, e eu não podia falar com ela.

Mas o telefone continuou a tocar, e afinal levantei-me e fui atender.

— Alô — resmunguei.

— Brad?

Meu coração deu um pulo quando reconheci a voz.

— Onde você está?

— Em casa de tio Matthew. Dei um suspiro de alívio.

— Pensei que estivesse fugindo de mim.

— E estou mesmo.

Por um momento, não pude falar. A dor me apertava as têmporas como um torno.

— Por quê? Por quê? — Foi só o que eu pude murmurar.

— Você não é para mim, Brad. Sei disso agora, especialmente depois da noite passada. Eu devia estar com a cabeça transtornada.

— Meu pai é um velho, Elaine. Você não compreende.

— Compreendo até muito bem. Gostaria que fosse diferente. Não sei por que comecei com você. Em primeiro lugar, não sentia nada.

— Elaine! — exclamei, sentindo a angústia dilacerar-me.

— Talvez tenha acontecido porque eu me sentia muito sozinha. Ou talvez porque eu, havia muito, não tinha um homem e sentia a falta de David.

— Não é verdade, Elaine, e você sabe muito bem disso.

— Não sei mais o que é verdade, nem o que não é. De qualquer maneira, não importa. Só sei que você não me serve e que é melhor que eu me afaste antes de vê-lo tão castigado que não tenha mais remédio.

— Mas eu a amo, Elaine! Amo-a tanto que estou a ponto de enlouquecer desde hoje de manhã, quando soube que você deixara o hotel. Você é para mim o que nada até hoje conseguiu ser. Quando estamos juntos, somos tudo o que um homem e uma mulher devem ser um para o outro. Não somos dois, mas um só. . .

— Não adianta, Brad. Não podemos vencer. Não há outra saída para nós!

— Elaine! Você não pode me abandonar!

— Não está abandonado. Vai ser como se nunca nos tivéssemos conhecido.

— Para você, talvez — exclamei. — Para mim, não. Seria o mesmo que acreditar que nunca nasci!

A voz dela era enganosamente calma.

— De certo modo, Brad, é assim mesmo que deve parecer.

Não repliquei. Não sabia o que dizer.

— De qualquer maneira — disse ela, e suas palavras foram como uma punhalada no meu coração, e o seu tom ainda torceu o punhal —, só lhe telefonei para dizer que tio Matt foi tratar de negócios em Nova York e me disse que, se tivesse tempo, passaria pelo seu escritório. Adeus, Brad.

Depois de dizer isso, desligou o telefone. Coloquei o receptor no lugar e voltei os olhos para a garrafa de uísque. Sentia um gelo mortal invadir-me. Haviam-se acabado os sonhos, a glória, o êxtase. Peguei a garrafa e levei-a à boca.

O interfone tocou, e liguei a chave sem largar a garrafa.

— O Sr. Brady está aqui e quer falar com você — disse Mickey.

Larguei a garrafa. O uísque não fazia mais efeito. Era como água, e eu continuava morto.

— Não quero falar com ele. Leve-o a Chris. A voz de Mickey pareceu assustada.

— Mas, Sr. Rowan...

— Nada! Leve-o a Chris. Não posso falar com ele. Desliguei o interfone e fiquei olhando-o, enquanto a dor me rasgava o peito.

Junto com a dor, veio a violência. A garrafa se quebrou na minha mão quando a bati de encontro ao telefone. O pé me doeu depois do pontapé que dei na cadeira. Os ouvidos zumbiam enquanto eu jogava no chão tudo o que estava em cima da mesa.

A porta do meu gabinete começou a abrir-se. Dei um pulo e fui fechá-la. Ouvi do outro lado a voz de Mickey.

— Alguma coisa, Brad? — perguntou ansiosamente. — Você está bem?

— Estou bem! — gritei. — Vá-se embora!

Ouvi os passos dela, que se afastavam, passei a chave na porta e voltei à minha mesa.

A sala estava destroçada. Tentei aborrecer-me com isso, mas não pude. Não tinha a menor importância. Tirei o lenço do bolso e enxuguei o suor do rosto, o suor frio da náusea. Atravessei a sala e abri a janela.

O ar fresco invadiu a sala, e a náusea desapareceu. Durante muito tempo, fiquei ali olhando a cidade. Você é um cretino, disse a mim mesmo. Está procedendo como um garoto de quinze anos. Tem tudo o que sempre quis na vida. Dinheiro. Posição. Respeito. Um Cadillac. Que é que você quer mais? Não há mulher que valha tudo isso.

Era justamente isso. Nenhuma mulher era tão importante. Sempre soubera disso. Sempre havia pensado assim. Fechei a janela e fui sentar-me no sofá. Abri a outra garrafa de uísque e me servi uma dose reforçada.

Dessa vez, senti a bebida bater-me no estômago e correr por dentro de mim. Acendi um cigarro e recostei-me nas almofadas. Estava exausto e fechei os olhos. Ela então apareceu no meio da sala.

Podia sentir-lhe a maciez do cabelo, a curva gentil do sorriso, a doçura da voz. Rolei o corpo no sofá e escondi o rosto nas almofadas até quase não poder respirar. Mas não adiantou.

Dei socos nas almofadas para afugentar-lhe o rosto. Nenhuma mulher é tão importante. Abri os olhos, mas ela continuava na sala.

Levantei-me impetuosamente e gritei:

— Vá-se embora! Não me aborreça mais! Calei-me, envergonhado, quando minha voz repercutiu entre as paredes vazias.

Por que estava eu agindo como um louco? Podia ter a mulher que eu quisesse. De qualquer tamanho, forma ou cor. Ela não era a única fêmea do mundo.

Tive de repente uma idéia, e atravessei a sala. Peguei o telefone e disquei para a telefonista do interurbano. Dei-lhe o número e fiquei esperando.

Uma voz atendeu.

— Sandra — disse eu prontamente. — É Brad Rowan quem fala. — Ela quis dizer alguma coisa, mas eu não deixei. — Escute, você estava errada quanto àquela outra mulher. Não há outra. Se você tomar o avião das quatro e meia, estará no aeroporto La Guardiã quando faltar um quarto para as sete...

 

Passei pelo Armand's para tomar um drinque antes de pegar o carro. Passava um pouco das seis, e o bar estava repleto. Entrei, cheguei junto ao balcão e fiz sinal ao garçom. Ele colocou automaticamente um copo diante de mim. Já sabia o que eu queria.

Olhei ao redor do bar, cumprimentei algumas pessoas que eu conhecia, mas nada disse. Nada tinha para dizer. Queria só beber.

Senti uma mão no ombro e virei-me. Era Mort Rainier, que tinha uma das melhores agências de publicidade da cidade.

— Alô, coronel — disse eu em resposta ao seu cumprimento, e preparei-me para dez minutos pelo menos de conversas de negócios, durante as quais cada um procuraria superar as mentiras do outro.

Mort era essencialmente um rapaz esperto, sem talento, mas com muito boas relações. Tinha sido coronel no Supremo Comando Aliado durante a guerra, e isso lhe dera excelentes rendimentos. Mas naquele dia o rosto de Mort estava sério. Não ia haver mentiras.

— Você está em dificuldades, rapaz?

— Está me perguntando ou está me dizendo? — perguntei-lhe.

— Então ainda não sabe?

Sacudi a cabeça. Ele fez um gesto, e eu apanhei meu copo e fui com ele para uma mesinha, à qual nos sentamos.

— Todo mundo já sabe. Você fez Matt Brady ficar furioso com você.

Não havia segredos na Madison Avenue. Fazia menos de três horas que eu me negara a ver Brady.

— Onde foi que você ouviu isso?

— Por aí. Todo mundo já sabe. Dizem que ele está empenhado em destruí-lo.

Eu ri.

— Tudo isso é boato. Não fiz senão recusar um lugar que ele me ofereceu. Ninguém pode ficar furioso por isso.

— Matt Brady pode. Soube também que você o pôs para fora do seu escritório.

Aquilo estava começando a aborrecer-me. Estava cercado de espiões. Talvez ele soubesse até a última vez que eu fora ao banheiro.

— E daí? Tenho o direito de fazer negócios ou deixar de fazer com quem eu quiser.

— Sou seu amigo, Brad — disse ele, levantando-se —, e só quis avisá-lo.

— Obrigado — disse eu, secamente. — Também sou seu amigo.

Acabei meu drinque e saí do bar. Enquanto ia no carro para o aeroporto, comecei a pensar a sério. Havia alguém no meu escritório que não merecia confiança, e eu tinha de descobrir quem era ou estaria perdido. Passei em revista todo o meu pessoal. Não havia ninguém que me inspirasse a menor suspeita. Até a telefonista nunca se metera nas minhas conversas.

Deixei o carro no estacionamento e encaminhei-me para o portão. O avião de Pittsburgh estava chegando.

Sandra foi a quarta pessoa a desembarcar. Avistei-a no alto da escada, procurando por mim. Pus os dedos na boca e assobiei.

Ela sorriu e desceu a escada. O comissário estava tão ocupado em olhar para as pernas dela que não a ajudou a descer. Não o censurei por isso. Sandra era uma mulher de verdade, e não uma dessas pequenas sofisticadas e sem busto que trabalham para as agências de modelos. Era uma mulher completa, filha da natureza, e que ainda parecia ter o cheiro da terra.

— Não estava certo de que você viria — disse eu, levando-a para o carro.

Ela nada disse. Abri a porta para ela entrar, dei a volta e fui sentar-me diante da direção. Dei partida no carro e tomei o rumo da cidade.

Alguns minutos depois, ela ainda não havia falado, e eu perguntei:

— Está com fome? Ela sacudiu a cabeça.

— Mas você tem de comer alguma coisa. Um bife, peixe.

— Fiz um lanche no avião. Mas, escute, foi para isso que você me telefonou? Está preocupado com a minha alimentação?

Ri de verdade pela primeira vez naquele dia. Aquela pequena não gostava de rodeios. Para variar, era uma grande coisa a sinceridade. Saí com o carro da estrada e parei debaixo de algumas árvores. Desliguei o motor e voltei-me para ela.

— Respondo "não" às duas perguntas. Agora, eu é que quero saber: que foi que você veio fazer?

Ela se inclinou imediatamente para mim. Passou os braços no meu pescoço e com a ponta da língua me provocou pequenos choques elétricos nos cantos ocultos da boca. Senti-a tremer de paixão nos meus braços. Fechei os olhos e entreguei-me à embriaguez que vinha dela.

Afinal, ela se afastou de mim com a respiração ofegante. Seus olhos estavam amortecidos de prazer.

— Não vim a Nova York comer. A comida em Pitts-burgh é tão boa quanto aqui. Só vim deitar-me com você.

Levei-a para um hotel nos subúrbios. Consegui um apartamento e mandei subir scotch e gelo. Um empregado deixou um rádio, e ficamos sozinhos. Tirei o paletó e a gravata e servi dois drinques. Entreguei-lhe um.

— Seja bem-vinda a Nova York.

Ela me viu beber o meu drinque e servir-me de outro antes que tivesse tempo de provar o seu.

— Coitado! — disse ela. — Você foi fisgado mesmo.

— Importa-se com isso?

— Eu, não — disse ela, sorrindo. — Nisso não tenho orgulho. Aceito você no rebote.

Acabei o segundo uísque. O ambiente do quarto me parecia estranho e a bebida me subia à cabeça.

— Você é sabida — disse eu.

— Não tenho muita certeza disso — murmurou ela. Correu um fecho no vestido, sacudiu os ombros, e a parte de cima do vestido escorregou-lhe pelo corpo. Outro fecho, e ela saiu de dentro da saia. Estava apenas com um sutiã sem alças e uma combinação curta por baixo do vestido. Curvou-se para tirar as meias, e vi os seios fartos moverem-se.

Senti a boca de repente seca e o coração bater-me precipitadamente. Agarrei-lhe os braços, e ela levantou os olhos para mim.

Eram claros os seus olhos, sem sombra de medo. Sorriu para mim com aquele mesmo estranho sorriso que eu já lhe vira nos lábios no dia anterior.

— Você vai voltar para ela no momento em que ela estalar os dedos, Brad, mas eu não me importo.

Zanguei-me.

— Não vou, não! Ela não passa de uma mulher como todas as outras.

Ela se aproximou de mim, e senti, através da roupa, o calor de seu corpo.

— Claro, Brad. Quando as luzes estiverem apagadas, você nem saberá quem está nos seus braços.

A raiva me abandonou com a mesma rapidez com que havia chegado.

— Desculpe, Sandra. Acho que perdi a linha.

— Você está magoado, e compreendo como se sente. Servi outro uísque e já ia levando o copo aos lábios quando ela me segurou a mão.

— É melhor parar um pouco. Tanta bebida não lhe pode fazer bem.

Larguei o copo e olhei-a. Havia lágrimas que brilhavam como diamantes nos cantos de seus olhos. Os lábios estavam trêmulos e os longos cabelos dourados caíam-lhe sobre os ombros brancos. Os seios arfavam dentro do sutiã. O ventre era plano entre as costelas e só se arredondava um pouco quando moldava a seda da combinação e descia para juntar-se à curva dos quadris e das coxas.

— Você é muito bonita, Sandra — murmurei.

— Sou mesmo, Brad?

Estendi a mão e abri um colchete. O sutiã caiu-me nos dedos. Os bicos dos seios eram como botões de rosa que se abrissem ao sol de verão.

— Quando você me olha assim, Brad, tenho até vontade de morrer. Se você me amasse, como eu o amo, não haveria nada que eu não fosse capaz de fazer por você.

Puxei-a de encontro a mim. Beijei-a arrebatadamente e apertei-a com força. Ela gemeu, abraçando-me também.

Comecei a beijá-la no pescoço, nos ombros, nas costas. Ela estava chorando em voz alta, mas eu não me incomodava. Peguei-a violentamente pelos ombros e forcei-a a dobrar o corpo até o chão. Amedrontada, ela tentou levantar-se. Empurrei-a violentamente, e ela ficou estendida no tapete diante de mim.

Olhei-a. Dez mil anos antes, tínhamos estado juntos, e tinha sido assim mesmo. Como sempre, ela estava com medo. Curvei-me sobre ela e rasguei-lhe a última peça de roupa.

Ela juntara as pernas para proteger-se de mim. Arranhava-me o corpo com as unhas para afastar-me. Os dentes dela me haviam cortado os lábios, e eu sentia um gosto de sangue na boca.

Ficamos abraçados no chão, os corpos entrelaçados em renhido combate. Os fortes soluços dela eram agradáveis aos meus ouvidos porque atestavam a minha superioridade sobre ela, a minha superioridade sobre todas as mulheres. Sem mim ela não era nada — vazia e apta apenas para trabalhos servis. Eu era o instrumento do seu prazer, a razão da sua existência.

Os lábios dela estavam em minha boca, e seu hálito se misturava com o meu. Ela se agitava freneticamente, arrebatada pela própria febre, suas chamas me envolveram e eu me perdi. Meus gritos repetiram um nome na sombria oscilação da paixão.

De repente, a oscilação parou e o tempo voltou para mim. A princípio, tive consciência apenas da nossa difícil e exausta respiração. Depois, a selva desvaneceu-se no passado remoto.

Quase dolorosamente, abri os olhos e olhei-a. Ela sorria para mim, acariciando-me o rosto com a ponta dos dedos.

Fechei os olhos de novo e rolei o corpo pelo tapete onde estávamos estendidos. Senti um movimento atrás de mim e virei a cabeça.

Ela estava sentada, ajeitando os cabelos, os seios plenos e fortes acima de mim. Ela percebeu o meu olhar e sorriu para mim.

— Pobre Brad — disse ela, com uma satisfação no fundo da voz.

— Pobre Brad por quê?

— Como foi que você disse que ela se chamava? Elaine?

 

Um telefone estava tocando. A campainha ressoava em minha cabeça como um martelo. Sentei-me de repente na cama, a cabeça estalando. Abri os olhos a tempo de ver Sandra colocar o fone no lugar.

— Quem foi? — perguntei, com a voz engrolada.

— A telefonista. Pedi-lhe que me chamasse às cinco horas. Tenho de tomar o avião das seis.

— Para quê?

— Tenho um emprego. Lembra-se?

Vi-a caminhar para o banheiro. Movia-se sinuosamente com um andar felino.

— Vou levá-la ao aeroporto — disse eu.

— Não é preciso. Posso tomar um táxi.

— Faço questão — disse eu, botando os pés fora da cama. O movimento fez as marteladas voltarem à minha cabeça. — Disfarce e olhe para a minha cabeça, Sandra — acrescentei, rindo. — Veja se ainda está no lugar.

— Tudo no lugar — disse ela, rindo, enquanto fechava a porta do banheiro.

Do aeroporto, fui para meu clube, a fim de trocar de roupa. Perguntei na portaria se tinha havido algum telefonema para mim. O porteiro consultou seus papéis e disse:

— Não, Sr. Rowan.

Subi para o meu quarto. Eu havia dito a Marge na noite anterior que ficaria até tarde na cidade, tratando de negócios, e que dormiria no clube. Era bom que ela não tivesse telefonado. Resolvi ir para a sala de banho turco e fazer uma massagem.

Estendi-me na mesa de massagens, a cabeça nos braços, enquanto Sam trabalhava comigo. Dentro em pouco, a tensão dentro de mim começou a abrandar-se.

Pequena estranha, aquela Sandra. Tinha sido quase cerimoniosa no aeroporto. Estendera-me a mão na hora da despedida e me chamara de Sr. Rowan.

— O meu nome é Brad. Ou já se esqueceu?

— Isso foi ontem. Hoje, a coisa é outra.

— Mas nós nos veremos de novo, não é mesmo? Ela encolheu os ombros.

— Quem sabe? Tanto faz...

— E a noite passada? — protestei, minha vaidade masculina levemente ferida.

Ela me encarou firmemente.

— Você estava querendo uma coisa. Eu também. Ambos conseguimos o que queríamos. Vamos deixar assim, que é melhor para os dois.

Era de uma lógica inatacável. Senti um curioso alívio. Acho que isso transpareceu em meus olhos, porque ela sorriu.

— Você é formidável, Sandra!

— Nada disso. Apenas não gosto de lutar quando sei que vou ser vencida.

Tirou a mão rapidamente da minha e dirigiu-se para o portão de embarque.

Nesse momento, a voz de Sam me interrompeu a recordação.

— O chuveiro já está pronto, Sr. Rowan.

— Obrigado, Sam — disse eu, saindo da mesa de massagens e indo para o chuveiro. A água fria que me caiu no corpo acabou de me acordar.

Mickey tinha uma expressão estranha no rosto quando cheguei ao escritório.

— Telefone para Peter Gordy — disse-me ela.

— Ligue para ele por mim — disse eu, entrando no meu gabinete. A desordem da véspera havia desaparecido e tudo estava arrumado.

Mickey entrou logo depois de mim e colocou alguns papéis em cima da minha mesa. Voltou-se para sair, sem dizer uma palavra.

Eu a fiz parar.

— Obrigado por ter arrumado tudo, Mickey. Ela me olhou, espantada.

— Que foi que deu em você ontem, Brad? Nunca o vi assim.

— Não sei. Acho que tenho trabalhado demais. E ontem não agüentei mais e estourei.

Era evidente que ela não acreditava nisso, mas eu era o patrão, e ela deixou as coisas ficarem assim. Alguns instantes depois, ela estava com Peter Gordy ao telefone.

Peter era uma das minhas melhores contas. Possuía a maior linha de aviação independente do leste. Representava, sozinho, vinte e cinco por cento do meu movimento.

Depois dos cumprimentos habituais, perguntei-lhe o que desejava de mim.

Um tom de embaraço apareceu-lhe na voz.

— Bem, Brad, palavra que não sei como lhe dizer isso. Prendi a respiração por um momento. Mas foi só um momento. Não era preciso que ele me dissesse. Eu já imaginava desde o momento em que chegara ao escritório e soubera que ele queria falar comigo.

— Que é que há, Peter? — perguntei, procurando dar a maior displicência à minha voz.

— Vou ter de cancelar a minha conta.

— Por quê? — Eu sabia por quê, mas queria que ele me dissesse. — Julguei que estivéssemos fazendo um bom trabalho para você.

— De fato, Brad, e não tenho razões de queixa, mas...

— Mas o quê?

— Surgiram certas coisas. Meus banqueiros insistiram.

— O que eles têm a ver com quem trabalha para você, Peter? Sempre julguei que você é que dirigia a sua empresa.

— Brad, por favor, não faça a coisa mais difícil do que já é. Você sabe o conceito que faço de você. Mas nada posso fazer neste caso. Do contrário, eles me cortarão o financiamento.

Não me aborreci. De certo modo ele tinha razão. Nada havia que ele pudesse fazer. Matt Brady tinha dado a sua ordem. Quem se atreveria a desobedecer-lhe?

— Está bem, Peter — disse eu. — Compreendo. Desliguei o telefone e toquei a campainha. Pedi a Mickey que chamasse Chris. Rodei na cadeira e olhei pela janela. Era incrível que aquele homenzinho tivesse tanta força.

O interfone tocou. Liguei a chave e Mickey falou:

— A secretária de Chris diz que ele saiu antes da sua chegada, hoje de manhã.

— Quando vai voltar?

— Ela não sabe.

Desliguei. Era só o que faltava. A casa começa a pegar fogo, e o chefe dos bombeiros é o primeiro a fugir.

A cigarra tocou, e peguei o telefone. Era outro cliente.

A mesma história. Sinto muito, meu velho. Adeus. Foi assim o resto do dia. Telefonaram-me um atrás do outro. Não tive tempo nem de almoçar. Estava ocupado em tomar nota de contas canceladas.

Às cinco horas, o telefone parou de tocar. Olhei para o relógio, satisfeito. Era bom que o dia de trabalho houvesse chegado ao fim. Mais duas horas, e eu estaria de volta à cabina telefônica onde havia começado.

Fui abrir o armário das bebidas. Não havia mais uma só garrafa de scotch. Sorri tristemente. Mickey resolvera não facilitar ao fazer a arrumação naquela manhã. Abri a porta e olhei para ela.

— Onde escondeu o uísque, beleza? Preciso de um drinque.

Ela me olhou, desconfiada.

— Brad, você não vai fazer aquilo de novo, vai?

— Não, minha filha. Mas preciso de um drinque.

Ela apanhou uma garrafa numa gaveta do arquivo ao lado de sua mesa e entrou comigo no escritório.

— Acho que preciso disso também — disse ela. Fiquei esperando enquanto ela preparava os dois uísques. Depois, apanhei o copo que ela me deu.

— Já teve notícias de Chris? — perguntei-lhe.

— Não, Brad. Por onde andará ele? Tive uma idéia.

— Chris falou com Matt Brady ontem, quando eu disse que o levasse a ele?

— Falou, sim.

— Por muito tempo?

— Apenas alguns minutos. Depois, o Sr. Brady saiu.

— Chris lhe disse alguma coisa?

— Nadinha. Saiu antes de você. Parecia muito nervoso. Tomei mais um gole de uísque. Aquilo não me estava agradando. Ainda que Matt Brady estivesse disposto a arruinar-me, como pudera conseguir com tanta rapidez a lista de meus clientes? Devia ter sido ajudado por alguém de dentro.

— Que é que há, Brad? — perguntou Mickey. — Que foi que deu em todo mundo?

— Brady resolveu acabar comigo e me declarou guerra.

 

Cheguei a casa para jantar verdadeiramente exausto. Logo que me viu, Marge me levou para o living.

— Você tem de tomar um coquetel antes do jantar — disse ela prontamente. — Está muito agitado.

Joguei-me na poltrona e olhei para ela. Era como se eu tivesse estado ausente por muito tempo. Havia preocupação em seus olhos enquanto preparava o coquetel, mas ela não disse uma palavra até que eu tivesse tomado o drinque.

— Que é que há, Brad? Recostei-me na poltrona e fechei os olhos.

— As coisas estão difíceis para mim. Brady não gostou da maneira pela qual falei com ele e resolveu acabar comigo.

— E isso é ruim?

— Mais do que você pode imaginar. Perdi hoje oito das minhas melhores contas.

Os olhos dela brilharam de alívio. Sentou-se no braço da poltrona e me disse:

— Foi só isso?

Olhei-a espantado. Íamos a caminho da ruína e ela achava que não tinha importância.

— E não acha bastante? Não nos poderia acontecer nada pior.

Ela sorriu.

— Poderia, sim. Mil vezes pior. E eu pensei que estivesse acontecendo.

— Como assim? — disse eu, sem compreender.

— Pensei que ia perder você — disse ela, segurando-me a mão. — Você estava agindo de maneira tão estranha! Mas agora sei que eram apenas os negócios. Desde que essa coisa do aço começou você não é mais o mesmo.

Fiquei calado.

— É por isso que você tem andado tão nervoso? Foi por isso que não veio para casa ontem à noite, não foi?

Concordei com um aceno de cabeça, sem coragem de falar. Minha voz poderia trair-me.

— Pobre querido, tão cansado... — murmurou ela, beijando-me o rosto.

Jeanie tinha saído, e jantamos sozinhos. Enquanto comíamos, disse a Marge o que havia acontecido durante o dia. Ela me olhou muito séria durante todo o tempo.

— O que vai fazer agora? — perguntou quando eu terminei.

— Não sei ainda. Tenho de esperar e ver o que acontece amanhã. Tudo depende de eu saber com quantas contas ficarei e se com elas poderei manter a agência. De qualquer modo, terei de fazer muitos cortes. Não poderei manter a folha de pagamento.

— Terá que despedir alguém, Brad?

— Não tenho outro recurso.

Ela ficou em silêncio alguns instantes e murmurou com voz cheia de brandura:

—   Será uma vergonha.

Eu sabia o que ela estava pensando.

— Não será tão ruim para eles, meu bem. Não como, quando fui despedido, no tempo da Depressão. Agora, há muitos empregos. Mas é uma pena desmanchar uma equipe assim. Foi preciso tanto tempo para formá-la!

— O que Chris acha?

Eu sabia que Marge tinha muito bom conceito dele.

— Não sei o que ele pensa. Não pus os olhos nele hoje. Saiu do escritório bem cedo e não voltou mais.

— É estranho. Ele sabia o que estava acontecendo?

— Não tenho certeza, mas minha impressão é de que sabia.

Expliquei-lhe as minhas suspeitas.

— Não posso acreditar! — disse ela, horrorizada.

— A ambição é uma coisa implacável e pode levar um homem por vários caminhos, alguns bem pouco recomendáveis. É uma das desvantagens da sociedade.

— Mas Chris não faria isso. Você fez tanto por ele!

— Será que fiz mesmo? Se olharmos as coisas do ponto de vista dele, talvez ele é que tenha feito muito por mim. E agora quer a sua recompensa.

— Não posso acreditar que Chris seja capaz de uma coisa dessas!

Levantei-me da mesa.

— Espero que tenha razão, meu bem — disse-lhe eu.

— O que eu mais gostaria era de estar errado a esse respeito.

Nesse momento, ouvi um carro entrar na nossa alameda e frear.

— Quem será? — murmurei.

— Com certeza, é Jeanie de volta — disse Marge. O carrilhão da porta tocou. Marge levantou-se.

— Não, Marge, acabe o seu café. Vou ver quem é. Abri a porta e, com grande surpresa para mim, dei com os olhos em Paul Remey.

— Paul! O que está fazendo aqui?

— Vim conversar com você — disse ele, entrando. — Será que ficou maluco? O que está tentando fazer? Arruinar-se?

Tomei-lhe o chapéu e o sobretudo e fui pendurá-lo no armário.

— Estamos tomando café — disse eu, fugindo ao assunto. — Venha tomar uma xícara.

Ele foi comigo para a sala de jantar. Depois de cumprimentar Marge, voltou-se para mim e perguntou:

—- É verdade o que me disseram sobre a sua luta com Matt Brady?

— Não estou lutando com ele — respondi calmamente. — Recusei apenas um lugar que ele me ofereceu. Foi só isso.

— Não foi isso o que eu soube — replicou ele, exaltado. — Disseram-me que você o pôs para fora do seu escritório.

— Você me conhece e sabe que eu não faria isso, Paul. Mas não quero trabalhar para ele. Ele foi ao meu escritório e eu não o recebi. Estava muito ocupado.

Paul me olhou, boquiaberto.

— Você não o recebeu? Um dos cinco maiores homens de negócio do país e você não o recebeu! Você não deve estar no seu juízo perfeito. Não sabe que ele pode fechar a sua firma? Onde está com a cabeça, Brad?

— Chegou tarde, Paul. Ele já quase fechou. Trabalhou bem hoje. Perdi sessenta e cinco por cento dos meus clientes.

— Tão depressa? — perguntou Paul.

— Como foi que você soube?

— Pearson sabe que sou seu amigo. Telefonou-me para saber se era verdade antes de publicar o fato na sua coluna. Disse-lhe que não sabia de nada. Só sabia que sua firma estava em negociações para dirigir o plano de relações públicas da indústria siderúrgica.

Encolhi-me por um momento na cadeira. Tinha razão. Quem era eu para lutar com Matt Brady? Era a luta de um mosquito contra um elefante.

— Qual é a verdade? — perguntou-me Paul.

— Brady queria que eu largasse o comitê da indústria siderúrgica e fosse trabalhar com ele. Disse-lhe que não estava interessado em trabalhar para ninguém.

Fechei os olhos um instante. Pela primeira vez naquele dia, ela me apareceu. Elaine. Nunca poderia contar a verdade a ninguém. Se eu dissesse alguma coisa, a situação se tornaria ainda pior. Matt Brady saberia da verdade, e então nada o faria parar.

Paul estava falando, tentando encontrar uma saída para mim. Mas nada do que ele dizia tinha sentido, nem mesmo para ele. Depois de algum tempo, calou-se, e todos nós ficamos ali sentados num apreensivo silêncio.

De repente, Paul deu um estalo com os dedos.

— Já sei como resolver o caso. Elaine Schuyler! Eu estava bem desperto.

— Que é que tem ela?

— É a sobrinha favorita de Matt Brady. Pedirei a Elaine que diga ao tio que você está fazendo muito pela campanha dela.

— Nada disso! — exclamei, sacudindo a cabeça. — Quem luta as minhas batalhas sou eu.

— Não seja bobo, Brad — disse Paul. — Ela pode fazer o que quiser com o velho.

— Não me interessa o que ela pode ou não pode fazer! Esse caso é meu e de Matt Brady. Nada tem a ver com ela, e não quero voltar para ele chorando e protegido pelas saias dela.

— Mas, Brad — disse Marge —, já que você está fazendo tanto por ela. . . Não é você mesmo que diz que uma mão lava a outra?

— Neste caso, não. Não a quero metida nisso.

— Por quê, Brad? — insistiu Marge. — Há tanta coisa em jogo. Ela só poderia ter prazer em ajudá-lo. Você disse que simpatizou com ela e que ela simpatizou com você.

— É verdade, Brad — disse Paul. — Edith disse que nunca viu Elaine tão entusiasmada por ninguém.

Olhei para eles, tentei falar e não pude. As palavras me morriam na garganta. Um pensamento amargo me passou pela cabeça. O que ela havia dito quando me telefonou pela última vez. Ou eu é que dissera? Já não me lembrava.

Seria como se nunca nos tivéssemos conhecido. Tínhamos sido loucos! Recobrei afinal a minha voz.

— Não! — exclamei, e saí da sala.

 

Um milhão de estrelas enchia o céu, e a noite estava límpida e fria. Sentei-me nos degraus da varanda, tremendo um pouco. Acendi um cigarro, sem querer voltar para dentro. Pelas janelas bem iluminadas da sala de jantar, via Paul e Marge, ainda sentados à mesa, conversando.

Olhei para a casa e, depois, para a longa alameda até a rua. Por quanto tempo poderia manter aquilo, caso fechasse a firma? Bem pouco tempo. Tudo o que eu ganhara havia empregado na firma para expandi-la.

Um carro parou diante da casa. Ouvi um rumor de vozes juvenis e, depois, os passos de Jeanie. Ela de nada sabia. O mundo para ela era uma gruta encantada. Era melhor que fosse assim.

Parou de repente, ao ver-me ali sentado.

— Papai! O que está fazendo aqui?

— Tomando um pouco de ar, querida — respondi-lhe, sorrindo.

Ela me beijou o rosto e sentou-se ao meu lado.

— Não disse nada a mamãe sobre o presente. Fiquei calado. Quase me havia esquecido disso. Do jeito que as coisas iam, era bem pouco provável que eu fosse buscar o casaco.

Mas Jeanie percebeu logo que havia alguma coisa.

— Que foi, papai? — perguntou ela, ansiosamente. — Teve alguma discussão com mamãe?

— Nada disso, querida. Apenas problemas de negócios.

— Oh! — exclamou ela, sem parecer muito convencida.

Naquele momento, compreendi que ela não era mais uma criança. Já era uma mulher, com toda a graça, intuição e mistério do seu sexo.

— Pergunta curiosa a que você fez, Jeanie. Que foi que a fez dizer isso?

— Nada — respondeu ela evasivamente.

— Você deve ter tido uma razão.

— Bem, tenho visto você agir de maneira muito estranha ultimamente, e mamãe anda muito triste.

Tentei rir, mas não pude. Eu não havia enganado a ninguém senão a mim mesmo.

— Isso é tolice — murmurei.

Ela passou a mão em meu braço. Parecia tranqüilizada.

— Vi no jornal uma fotografia da Sra. Schuyler, papai. É muito bonita.

Fiz-me de desentendido.

— É mesmo.

— Você acha, como disse vovô, que ela gosta de você? — perguntou ela.

Praguejei em silêncio. Papai devia ter perdido o juízo para ter dito uma coisa dessas.

— Você bem sabe como é seu avô — disse eu, com forçada displicência. — Sempre achou que todas as mulheres viviam loucas por mim.

— Bem, papai, isso não é uma coisa impossível. Você não é decrépito.

— Ainda há poucos dias, você disse que eu era um velho desmancha-prazeres e um homem que nada tinha de romântico. Lembra-se?

— Mas você podia gostar dela. São coisas que acontecem. Uma vez, vi num filme de Clark Gable...

— Isso foi no cinema, Jeanie. E não sou Clark Gable.

— Não, mas é mais bonito do que ele — disse ela prontamente.

Olhei-a, incrédulo. O rosto dela estava sério. Ri, mas no fundo sentia-me satisfeito.

— Não adianta nada me adular, menina — disse eu. De repente, ela voltou a ser uma criança, com todo o romântico fervor da sua idade.

— Não seria formidável, papai, se ela se apaixonasse por você e passasse o resto da vida sabendo que nunca poderia tê-lo?

Uma dor, quase esquecida naquelas últimas horas, voltou a pulsar dentro de mim. A verdade sai da boca das crianças...

Levantei-me. Para mim chegava.

— Vamos entrar, Jeanie. Tio Paul está aí e vai querer vê-la.

Não dormi bem. Os leves ruídos noturnos entravam pelas janelas, mas não me traziam conforto. Por fim, as primeiras sombras cinzentas do dia invadiram o quarto. A noite não me havia apontado soluções. Talvez o sol nascente abrisse um caminho. Fechei os olhos e dei mais um cochilo... Deixei Paul no aeroporto a caminho do escritório. Ele estava muito carrancudo.

— Deixe-me ao menos conversar com ela — pediu ele antes de embarcar.

Sacudi a cabeça.

— Você se torna às vezes intolerável com o seu estúpido orgulho — disse ele, apertando-me a mão. — Espero sinceramente que tudo acabe bem.

— Vai acabar — disse eu, com mais confiança do que sentia. — É preciso.

— Felicidades — disse ele, já encaminhando-se para o portão de embarque.

— Obrigado — disse eu. Senti uma espécie de abatimento no andar dele. Chamei-o impulsivamente: — Paul!

Ele parou e voltou-se para mim.

— Isso é apenas o primeiro round. Coragem! — disse eu, sorrindo.

Por um momento, não houve qualquer expressão no rosto dele. Depois, sorriu também.

— Você é inteiramente doido — disse ele, sacudindo a cabeça e dando-me adeus.

Mickey estava sentada à mesa dela, batendo à máquina como uma louca, quando entrei.

— Quero falar com Chris.

Ela apontou para a porta do meu gabinete.

— Ele já está à sua espera.

Levantei as sobrancelhas. Chris não perdia tempo. Quando entrei no gabinete, ele estava sentado na minha cadeira e à minha mesa, escrevendo alguma coisa. Logo que me viu, dispôs-se a se levantar.

Aceitei a situação e fiz-lhe sinal para que continuasse onde estava. Olhava-me com curiosidade. Não falei. Limitei-me a ficar ali, olhando para ele.

Depois de alguns minutos de silêncio, a situação se tornou intolerável. Seu rosto começava a ficar vermelho. Pigarreou e disse:

—   Brad...

— Está gostando da cadeira, Chris?

Como se houvesse sentido um ferro em brasa, ele se levantou.

— Por que não me disse antes que gostava dela, Chris? Ele ficou muito vermelho, mas, antes que tivesse oportunidade de dizer alguma coisa, tornei a falar:

— Se você tivesse dito — murmurei, passando por ele e indo sentar-me na cadeira —, eu teria providenciado uma igualzinha para você.

— Você não compreende, Brad — disse ele, afinal. — Estou apenas procurando ajudar.

— A quem? A você mesmo?

— Alguém aqui tinha de manter a cabeça no lugar! — gritou ele, exaltadamente. — Você está arrastando a firma para a ruína porque não pensa senão em si mesmo!

Começava a sentir-me melhor. Estávamos em terreno que eu conhecia. A maneira delicada, sutil e cheia de insinuações do mundo dos negócios nunca se ajustou ao meu temperamento. Na Third Avenue, resolvíamos as questões sem qualquer reserva.

— Onde passou ontem o dia inteiro?

— Estava tentando ver se tirava Matt Brady de cima de nossas costas. Estive no escritório dele e fiz um trato com ele.

— Que trato? Todos os nossos fregueses já se afastaram, e os que faltam devem sair hoje.

— Sei disso. No dia em que você não quis recebê-lo, ele me disse que acabaria com você.

— E quem foi que forneceu a ele a lista dos nossos clientes para que ele pudesse agir com tanta rapidez? Foi assim que você tentou ajudar-me? Ou quis ajudar a arruinar-me?

— Ele me pediu algumas referências. Sorri.

— Isso é realmente muito fraco, não acha, Chris? Pensou que eu poderia acreditar nisso?

— Pouco me interessa que acredite ou deixe de acreditar — disse ele com frieza e calma. — Tenho responsabilidades para com as pessoas que trabalham aqui. Não posso ficar de braços cruzados vendo todo o esforço dessa gente ir por água abaixo.

— Muito nobre. Judas pensou da mesma forma. Quais foram os seus trinta dinheiros?

Ele me olhava fixamente. Tinha nos olhos o brilho da ambição, e eu sabia que ele já me julgava derrotado.

— Brady está disposto a parar se você sair da firma.

— Está me oferecendo aquela sociedade de que me falou outro dia pelo telefone?

— Não, Brad. Estou preparado para oferecer-lhe um preço justo pela companhia. Você terá de sair para o bem de todos.

— Que é que você chama um preço justo?

— Cinqüenta mil dólares.

A firma estava fazendo mais de cento e cinqüenta mil dólares por ano.

— Como pode ser tão generoso? — perguntei sarcasticamente.

— E a minha oferta é mesmo generosa. Está na hora de enfrentar a realidade, Brad. Está liquidado. Não tem mais movimento nem para pagar o aluguel do escritório, quanto mais o resto.

O que ele dizia era verdade, mas não tinha a menor importância. Se eu tivesse de fechar a firma, fecharia e pronto. Mas preferia morrer a deixar que alguém se apossasse do que eu construíra com tanto orgulho e trabalho.

— Matt Brady vai financiar você? — perguntei. — Qual será a parte dele?

Ele não respondeu. Esperei alguns momentos. Afinal, ele levantou os olhos para mim.

— Chris — disse eu, delicadamente.

Um rápido brilho de triunfo faiscou nos olhos dele, à espera do que eu ia dizer.

— Estou tentado a pegar o dinheiro e deixar você tomar conta da firma — disse eu calmamente. — Mas minha responsabilidade para com as pessoas que trabalham aqui é maior do que a sua. Veja você, construí a firma e fiz possíveis os empregos de todos eles. A coisa mais fácil do mundo seria para mim pegar o dinheiro que você me oferece e ir tratar de outra vida. Eu me arrumaria.

— Sem dúvida alguma, Brad. Você pode fazer o que quiser.

Deixei-o pensar que eu estava tomando o rumo que ele queria.

— Pensa isso mesmo, Chris?

— Você é um dos melhores homens do ramo, Brad. Não há nenhuma firma que não desse até os olhos da cara para conseguir você. O que você fez aqui fala por si mesmo. Todo mundo sabe que você começou do zero.

— Acho que você me convenceu, Chris.

Um sorriso de vitória lhe iluminou o rosto.

— Eu sabia que você ia compreender, Brad — disse ele, aproximando-se de mim e batendo-me no ombro. — Eu disse ao Sr. Brady que era isso o que ia acontecer.

— Creio que não me compreendeu bem, Chris.

Ele tirou a mão do meu ombro e me olhou espantado.

— Se sou tão bom assim, Chris, vou continuar aqui mesmo. Venceremos essa crise. Minha responsabilidade para com os empregados é tão grande que não posso permitir que passem de uma mão para outra, como se fossem escravos.

— Mas, Brad, eu...

— Escute, Chris, não confiaria a você ou a Matt Brady um cachorro, quanto mais seres humanos. Toquei a cigarra do interfone.

— Sim, Brad — disse Mickey.

— Quero todo o pessoal da firma imediatamente aqui no meu gabinete, até os serventes.

—- Está bem, Brad — disse ela, desligando. Virei-me para Chris. Continuava ali parado como se estivesse plantado no chão.

— O que ainda está fazendo aqui, rapaz? — disse eu, sorrindo. — Esta casa não é mais sua.

Ele fez menção de dizer alguma coisa, mas depois mudou de idéia e se encaminhou para a porta. Quando a abriu, vi que quase todo o pessoal já estava na sala de Mickey, à espera.

— Chris.

Ele se voltou, com a mão na porta aberta. Então eu disse, bem alto para que todos ouvissem, escolhendo bem as palavras para conseguir o máximo de efeito:

— Deixe com minha secretária o endereço para onde deve ser mandada a sua correspondência. É o escritório de Matt Brady ou é o inferno? — Dei uma risada. — Aliás, parece que não terá muita dificuldade para escolher entre os dois.

 

Sentado à minha mesa, fiquei olhando os empregados saírem do meu gabinete. Conservei o sorriso no rosto até o último deles sair e fechar a porta. Sentia o rosto dolorido quando o sorriso desapareceu.

Tinha sido uma boa reunião. Eu havia passado em revista todo o caso, desde o meu primeiro encontro com Matt Brady até o que tivera com Chris antes que eles chegassem. Depois de falar sumariamente desses fatos, disse-lhes que não podia prometer nada senão luta. Não seria fácil, mas, se eu contasse com o apoio deles, haveria uma possibilidade de vitória.

Não poderia perder, principalmente depois de havê-los deixado ouvir o que eu dissera a Chris no momento em que ele saía. Prometeram-me a sua cooperação e tiveram todos palavras animadoras para mim. Alguns chegaram a dizer que aceitariam uma redução nos ordenados até que a situação se normalizasse.

Não concordei com isso, deixando a porta aberta para uma proposta futura nesse sentido, se fosse necessário. Depois, apertei a mão de todos, e eles saíram.

Eu havia prometido muito e não dissera nada. Baixei a vista para a mesa, desconsoladamente. Os telefones estavam estranhamente mudos. Em tempos normais, àquela hora estariam tocando sem parar. Lembrei-me de um velho ditado dos homens de negócios. Quando os telefones deixam de tocar num escritório, é porque ele pertence ao passado. Era isso mesmo o que eu sentia.

A cigarra do interfone tocou, e liguei a chave sem muito interesse.

— Quem é?

— A Sra. Schuyler está aqui e quer saber se tem tempo de ver algumas notas sobre a campanha da paralisia infantil — disse Mickey, com uma voz visivelmente satisfeita.

Levei um momento sem conseguir falar.

— Faça-a entrar — disse, afinal, e desliguei a chave.

Eu estava de pé quando a porta se abriu. Tentei dominar a louca exaltação que sentia. A porta se fechou por trás dela.

Ficou ali olhando para mim. Os olhos eram dois poços de preocupação. Não havia sorriso. Depois, encaminhou-se para a minha mesa.

Não disse uma palavra. Não podia. A simples presença dela me atingia bem no fundo. Eu podia sentir aquela mulher em todas as células do meu ser.

Ela me olhou e disse calmamente:

— Não está com bom aspecto, Brad. Continuei calado, os olhos fitos nela.

— Não vai falar comigo? — perguntou.

— Elaine — disse eu, por fim, estendendo a mão para ela. O simples contato de seus dedos me alucinou, e comecei a puxá-la para mim.

Ela sacudiu a cabeça e afastou a mão.

— Não, Brad. Isso está acabado. Não vamos começar de novo.

— Amo-a, Elaine! Nada está acabado!

— Cometi um erro, Brad. Por favor, não me faça sofrer ainda mais por ele. Quero ser sua amiga.

— E você não me ama?

Nunca vi olhos como os dela naquele momento. Diziam tanto, sofriam tanto!

— Largue-me, Brad — disse ela. — Por favor! Respirei fundo, voltei à minha mesa e sentei-me. Com os dedos trêmulos, bati um cigarro na mesa e acendi-o.

— Por que voltou, Elaine? Para torturar-me? Minhas palavras quase pareceram atingi-la fisicamente.

Disse, então, com uma voz cheia de emoção:

— Vim porque sou a culpada de tudo. Se não fosse por mim, você não estaria lutando com meu tio.

— Você nada teve a ver com isso, Elaine. Ele nem sabe que eu a conheço.

— Sei do relatório que ele recebeu a seu respeito — disse ela. — Foi por isso que você não quis falar com ele naquela noite. Se eu fosse com você, ele saberia de tudo. Você estava me protegendo.

— Estava protegendo a mim mesmo. Procedi no caso de maneira completamente egoísta. Tudo seria pior para mim se ele soubesse.

Ela nada disse:

— Como foi que soube do relatório? — perguntei, pensando em Sandra. Ela ouvira o nome e poderia ter ligado as coisas.

— Foi tio Matt que me disse. Estava muito zangado com a maneira pela qual você falou com ele. Achou que você só estava agindo em interesse próprio.

— O céu me proteja das boas intenções de Matt Brady — disse eu. — Se fossem um pouquinho melhores, eu já estaria morto.

— Tio Matt achava que você teria um brilhante futuro com ele.

— Eu tinha um brilhante futuro aqui mesmo. Seu querido tio tomou providências a esse respeito. Agora, não tenho mais. — Larguei o cigarro, que quase me queimava os dedos. — Ele pode ser uma pessoa muito prestativa, desde que se faça a vontade dele.

— Posso falar com ele, Brad.

— Não, isso não me interessa. De qualquer maneira, agora é tarde. Já perdi as minhas melhores contas. Seu tio Matt não perdeu tempo.

— Sinto muito, Brad.

— Mas eu não sinto. Pelo menos, pessoalmente. Tudo o que se consegue neste mundo tem de ser pago. Não se recebe nada de graça. Pouca felicidade — pouca dor; grande felicidade — preço alto. Tudo se compensa, e a escrita sempre confirma isso.

Ela se levantou e perguntou, com frio desprezo na voz:

— Já desistiu?

— Desistir como? O que posso fazer contra ele? Acioná-lo?

— Será uma decepção para tio Matt. Tenho a impressão de que ele está esperando uma boa luta.

— Com que vou lutar com ele? Com palitos de fósforos? Quando ele afastou os meus clientes, acabou com o meu dinheiro.

— Tenho algum dinheiro.

— Não o quero, Elaine.

— Quero ajudá-lo, Brad. Não há nada que eu possa fazer?

— Não sei, Elaine. Não sei bem se há alguma coisa que alguém possa fazer. Há uma lei escrita neste meu negócio, e eu a violei. Não importa como a gente se sinta, o cliente tem sempre razão. Ninguém mais chegará perto de mim, com receio de sofrer o mesmo.

— E os outros elementos do Comitê do Aço? Conheço alguns deles, e sei que ainda estão interessados no seu plano.

— Com toda a certeza, seu tio já tomou providências com relação a eles também.

— Como é que pode saber sem tentar? Eu os conheço muito bem. E sei que alguns deles não gostam do tio Matt.

Havia alguma verdade no que ela dizia. Ao menos, valia uma tentativa. Estendi a mão para o telefone.

— Quem é que gosta menos dele?

— Richard Martin, da Independent — respondeu ela, interessada. — Vai telefonar para ele?

Disse que sim e pedi a Mickey que ligasse para ele. Larguei o telefone enquanto esperava que a ligação se completasse.

— Muito bem — disse ela, sorrindo. — Já perdemos muito tempo.

Comecei a sorrir. Elaine era maravilhosa. Tudo o que fazia era por mim. Até a maneira como pensava. Tirou a cigarreira de ouro. Fui acender-lhe o cigarro. Ela me olhou, o rosto envolto na fumaça azul.

— Se você não fosse a mulher que eu amo, seria capaz de oferecer-lhe sociedade na firma.

— Tenha cuidado — disse ela, sorrindo. — Posso pegá-lo na palavra e você nunca mais se livrará de mim.

— Não é uma má idéia. Não sou eu que estou querendo fugir.

O sorriso lhe desapareceu dos lábios.

— Não podemos ser amigos, Brad?

Olhei-a por tanto tempo, que ela começou a ficar nervosa e desviou os olhos.

— Não podemos, Brad? — repetiu ela.

— Talvez — murmurei. — Mas só quando o amor desaparecer.

Ela olhou para mim, e me doeu ver o sofrimento nos olhos dela. Cheguei a estender a mão para um carinho que apagasse aquele sofrimento, mas parei.

O telefone tocou, e fui atender. Mickey me disse que Martin saíra para o almoço. Disse-lhe que tentasse depois e desliguei.

— Foi almoçar — disse eu a Elaine.

Ela murmurou alguma coisa e baixou de novo os olhos para o chão.

— Elaine.

— Que é? — perguntou ela, sem levantar a vista.

— O amor ainda não desapareceu, Elaine.

Ela me olhou, e então vi que ela não podia esconder a verdade.

O sofrimento lhe havia desaparecido dos olhos.

 

Fomos almoçar no Colony. O maitre nos recebeu à porta.

— Sr. Rowan, tenho uma mesa ótima para o senhor. Olhei para a sala. Estava cheia, mas aquele camarada tinha uma boa conversa: todas as mesas para ele eram ótimas. Levou-nos para os fundos do restaurante, a uma mesa tão afastada da porta que mais dois passos e iríamos parar na 60,h Street. Teria ouvido falar da situação em que eu estava? Eu não tinha ido tão mal desde a primeira vez em que entrara naquele restaurante, como um homem moço em ascensão que queria impressionar um provável cliente.

Sentei-me, sorrindo ao lembrar-me de que não conseguira o cliente.

— De que está rindo? — perguntou Elaine. Contei-lhe, e ela riu.

— Mas isso é ridículo, Brad.

— Não. É assim que se vive nesta cidade. A notícia anda de boca em boca. Rowan está perdido.

Estávamos ainda rindo quando ouvi uma voz atrás de mim.

— Elaine Schuyler! O que está fazendo na cidade? Levantei-me resignadamente, com um sorriso cortês nos lábios. Era uma mulher de meia-idade, e eu disse mentalmente um nome feio quando a reconheci. Não devia ter ido àquele restaurante. Era a colunista social de uma agência de notícias. Estaríamos nos jornais de todo o país na manhã seguinte. Era uma notícia muito boa para que ela a perdesse. A sobrinha de Matt Brady e seu inimigo almoçando juntos no Colony.

Depois de alguns minutos, ela se afastou, e eu disse a Elaine:

— Sabe o que isso significa? Ela fez um gesto afirmativo.

— Seu tio vai ficar furioso.

— Que importa? — disse ela, sorrindo e tocando-me a mão. — Estou com você.

Voltamos para o escritório, e enquanto esperávamos a ligação para Martin ela me disse algumas coisas sobre Matt Brady e a indústria do aço. Era tudo muito interessante. Aquela gente lutava de verdade. Ao lado dos magnatas do aço, minha turma parecia uma trupe de amadores. Parecia que não havia nenhum deles que não houvesse traído os outros ao menos uma vez. A maioria, muitas vezes. A traição parecia o esporte de salão predileto de todos eles. Ao que tudo indicava, nunca tinham ouvido falar em sexo.

Ou era isso ou então tomavam tantas precauções que nunca eram descobertos. Não era de admirar a advertência que Matt Brady me fizera. Quisessem ou não, não podiam facilitar.

O telefone direto tocou, e eu atendi. Era Marge.

— Como vão as coisas, meu bem? — perguntou ela.

— Melhor. A Sra. Schuyler apareceu hoje de manhã. Ofereceu-me ajuda e eu aceitei.

— Ela vai falar com o tio?

— Não. Você sabe que com isso eu não concordaria. Mas estamos entrando em contato com outros elementos do comitê, e ela espera conseguir a conta para mim, apesar de Matt Brady.

— Oh! — disse ela, decepcionada.

— Prefiro assim — apressei-me em dizer. Parecia haver uma sutil mudança na sua voz.

— E Chris? — perguntou ela.

Contei-lhe por alto o que havia acontecido naquela manhã. Quando acabei, houve silêncio do outro lado do fio.

— Alô? — disse eu.

— Alô. Estou aqui, Brad.

— Ficou tão calada! Pensei que tivesse desligado.

— É porque não sei o que dizer. Nunca pensei que Chris pudesse fazer isso. . .

— Não pense mais nele. A vida é assim, mesmo. Não presta e acabou-se.

— Brad...

— Pode dizer.

— Talvez fosse melhor aceitar a oferta dele. Se você não conseguir a conta, não terá mais nada.

— Não está raciocinando bem, Marge. Se eu aceitar o dinheiro, estarei perdido de qualquer maneira. O dinheiro não durará para sempre, e não conseguirei mais trabalhar em lugar nenhum. Ninguém quer saber de nada com um covarde.

— Recebi outra carta de Brad esta manhã — disse ela, mudando de assunto.

— Ótimo. Que foi que ele disse?

— Está um pouco melhor do resfriado. Espera voltar às aulas na próxima semana.

— Muito bem. Não lhe disse que não era nada de mais?

— Espero que seja assim, mas não sei. Estou preocupada. Parece que nada mais está dando certo.

— Pare de se preocupar que isso não adianta.

— Eu sei.

— Para que as coisas melhorem têm de piorar antes — disse eu, tentando brincar.

— É justamente disso que tenho medo.

— Marge! — exclamei, começando a perder a paciência. — Pare com isso!

— Você está sozinho?

— Não.

— A Sra. Schuyler está aí com você?

— Está.

— Então não se esqueça de falar-lhe da nossa gratidão pela sua desinteressada ajuda — disse ela sarcasticamente.

Desligou abruptamente. Olhei para Elaine. Ela me observava, e fiquei sem saber se tinha ouvido o que Marge me dissera. Resolvi fingir que nada tinha acontecido.

— Adeus, Marge — disse ao telefone desligado, e coloquei o fone no lugar. Virei-me então para Elaine. — Marge me pediu que lhe agradecesse a sua ajuda.

— Sua mulher não gosta de mim?

— Como seria possível? Ela nem a conhece.

— Não a culpo, Brad. Eu procederia da mesma forma se estivesse no lugar dela.

Foi nesse momento que Mickey completou a ligação com Martin, e isso foi ótimo, pois me livrou de um momento difícil. Falou-me com voz muito seca. Lembrava-se perfeitamente de mim. Não, não estava interessado em prosseguir com o plano de relações públicas para a indústria. É claro que falava em seu nome pessoal. Mas duvidava de que os outros elementos do comitê fossem de opinião diversa em vista do que havia acontecido.

— Que foi que aconteceu? — perguntei.

A voz dele foi um jato de água fria em todas as minhas esperanças.

— A Consolidated se retirou do instituto hoje para pôr em prática um plano próprio.

Desliguei o telefone, olhei para Elaine e tentei sorrir.

— Seu tio é perfeito. Retirou-se do instituto, sabendo que os outros não teriam dinheiro suficiente para fazer a campanha sem ele.

— Deixe-me falar com ele, Brad. Ele me escutará.

— Não, isso não. Tem de haver outro meio.

— Que meio?

— Não sei. Mas deve haver alguma saída. Você estava falando sobre a indústria siderúrgica e seu tio. Continue a falar. Talvez se descubra alguma coisa.

O dia foi correndo enquanto eu escutava. Passava um pouco das seis quando uma coisa que ela disse me impressionou: que o marido havia sabido da maneira pela qual a Consolidated havia resolvido o caso da violação da lei anti-truste que o governo havia levantado contra Brady.

— Como foi?

— Nunca soube. David só me falou nisso uma vez. Parecia muito zangado com o fato.

— Ele conversou com seu tio a respeito disso?

— Acho que não. Disse-me isso pouco antes de cair doente.

Tive a idéia de que ali poderia haver alguma coisa. Não sabia o que iria encontrar, mas tinha de ir até o fim. Falei com Paul pelo telefone antes que ele saísse da repartição em Washington.

Fui direto ao assunto.

— Como foi que a Consolidated resolveu o caso de violação da lei antitruste, Paul?

— Por um decreto de consentimento. Por quê?

— Alguma coisa irregular nisso?

— Não. É de praxe. A Consolidated se comprometeu a não interferir com as atividades dos competidores.

— Quem foi que tratou do caso pelo departamento?

— Não sei. Mas posso apurar. É importante?

— Tenho a impressão de que é. Espero que esteja certo. Se estiver errado, estou perdido.

— Telefonarei amanhã de manhã para dar-lhe a resposta — disse ele e desligou.

Elaine me observava com um ar de interesse.

— Acha que pegou alguma coisa?

— Não sei, Elaine. Estou atirando no escuro, mas não posso desprezar qualquer chance. Agora, diga-me tudo de que se lembra sobre isso, tudo o que seu marido possa ter mencionado.

Uma sombra se espalhou mais uma vez sobre o seu olhar, mas ela me contou de novo a história toda.

Já estava escuro quando saímos para a Madison Avenue. Olhei o relógio. Oito e meia. Tomei-lhe o braço.

— Vamos andar um pouco?

Ela fez um sinal afirmativo. Já havíamos andado um quarteirão quando ela falou.

— Em que está pensando, Brad?

Sorri para ela e disse, pensando justamente o contrário.

— Acho que as coisas vão dar certo.

— Sério, Brad? Fico tão satisfeita!

Valia a pena mentir para ver os olhos dela brilharem assim.

— Não lhe disse que você me dava sorte?

— Mas não dei da última vez, Brad.

— A última vez não conta — disse eu prontamente. — E não teve nada a ver com você. Desta vez, sim. Foi você que fez tudo possível. Sem você, eu não teria a menor chance.

Andamos algum tempo em silêncio. O ar frio da noite me abriu o apetite.

— Vamos jantar, Elaine? Estou com fome.

— É melhor não, Brad.

— Que é que há? — perguntei, rindo. — Está com medo de mim? Não vou devorá-la.

— Não é isso, Brad. Apenas acho melhor para nós dois. Só isso.

A dor íntima que havia desaparecido durante o dia inteiro voltou de repente.

— Que mal pode haver? — perguntei com um pouco de irritação. — Você esteve comigo o dia inteiro, e nada aconteceu.

Ela me encarou, e vi aquelas sombras desordenadas dançarem dentro dos olhos dela.

— Aquilo foi diferente, Brad. Estávamos tratando de negócios. Agora, não temos desculpa.

— Desde quando precisamos de desculpas? Ela fugiu à questão e replicou em voz baixa:

— Por favor, Brad, não vamos discutir. Além disso, estou muito cansada.

Não disse mais nada. Chamei um táxi, levei-a ao hotel e, depois, fui até a garagem. Peguei o meu carro e voltei para casa.. .

Quando entrei em casa eram quase dez horas. Marge estava lendo um jornal. Sabia que estava zangada pela maneira como levantou os olhos para mim. Inclinei-me sobre a cadeira para beijá-la, mas ela afastou o rosto.

— Ehh! — protestei, fingindo que considerava aquilo apenas uma brincadeira. — Isso é lá maneira de receber um soldado cansado que volta da guerra?

— Guerra.. — Não gostei do tom que ela deu à palavra, mas não insisti.

Preparei um uísque para mim e disse:

— Estive trabalhando no caso e acho que temos uma chance, embora remota.

— Temos? Quem? A Sra. Schuyler e você?

— Espere um pouco, Marge! Que é que há com você?

— Deve ter estado tão ocupado fazendo planos com a Sra. Schuyler que nem teve tempo de me telefonar e dizer que não vinha jantar, não foi?

Levei a mão à cabeça.

— Ih! Não vê que me esqueci? Desculpe, querida. Estava com tantas coisas na cabeça!

— Para ela, você não estava tão ocupado nem teve tantas coisas na cabeça. . .

— Pare com isso, Marge! — exclamei, zangado. — Ontem, você queria que eu fosse pedir a ajuda dela. Hoje, ela foi me oferecer ajuda e você se zanga. Decida de uma vez por todas o que é que você quer!

— Não quero nada. Apenas não gosto da maneira como você vem agindo.

Abri os braços num gesto de desalento.

— E como você quer que eu aja? Estou levando pontapés de todos os lados e você ainda reclama por causa de um telefonema que me esqueci de dar!

— Se isso não tem importância para você, então estou perdendo o meu tempo — disse ela, friamente.

Dessa vez, queimei mesmo o fusível.

— Quem é que você pensa que eu sou? Uma criança que tem de dar contas de sua vida a você de dez em dez minutos? Deixe-me em paz, sim? As preocupações que tenho já chegam e sobram!

Ela ficou um momento a olhar-me, muito pálida. Depois, virou-se e subiu as escadas para o nosso quarto sem dizer mais uma palavra.

Fiquei ainda algum tempo no living, tomei outro drinque e, por fim, subi também. Levei a mão à porta do nosso quarto e empurrei. A porta não se moveu. Virei a maçaneta. Estava trancada.

Bati na porta e chamei.

Ela não respondeu.

Tornei a bater. Não ouvi barulho algum dentro dó quarto. Fiquei diante da porta, indeciso, sem saber o que fazer. Era a primeira vez que ela me trancava a porta.

Alguns minutos depois, durante os quais me senti como um idiota, atravessei raivosamente o corredor para o quarto de hóspedes. Passei a noite desconfortavelmente, usando apenas a roupa de baixo.

 

A lâmina no aparelho do quarto de hóspedes estava velha e cega. A pressão da água no chuveiro era irregular, e não pude conseguir a temperatura exata para o meu banho. Tive de enxugar-me com uma toalha pequena. Não encontrei loção para o cabelo no armário, e em vez de pasta havia um dentifrício em pó.

Amarrei a pequena toalha em volta da cintura o melhor que pude e atravessei o corredor, descalço, até nosso quarto. Estava vazio, e minhas roupas não estavam estendidas em cima da cama, como de costume.

Remexi as gavetas e armários até que encontrei uma combinação de roupas que me pareceu boa. Vesti-me rapidamente e desci.

Entrei na saleta do café. Meu suco de laranja não estava na mesa, e meu jornal estava todo amarrotado em frente à cadeira de Marge. Peguei o jornal e já ia olhar a seção financeira, quando percebi uma notícia na coluna social. Dizia:

"A sra. Hortense (Elaine) Schuyler, sobrinha de Matthew Brady, magnata do aço, e figura preeminente na sociedade de Washington, saiu afinal do retiro a que se recolheu depois da terrível tragédia do ano passado. Devem ainda lembrar-se da trágica perda de seu marido e dois filhos gêmeos no espaço de poucas semanas. Vimo-la de relance almoçando no Colony com um cavalheiro de feições atraentemente enérgicas. Tomamos informações e soubemos que se trata de Brad Rowan, destacado assessor de relações públicas, que, ao que se diz, está orientando a campanha em favor das vítimas da poliomielite a cargo da Sra. Schuyler. Mas, se o sorriso e a animação do rosto de Elaine significam alguma coisa, podemos ter certeza de que não é apenas a campanha que os aproxima. . .”

O jornal tinha sido dobrado exatamente naquele ponto para que eu não perdesse a notícia. Aborrecido, abri a página financeira. Teria sido melhor que eu jogasse o jornal na lata de lixo. Nada havia nele de bom para mim naquele dia. Um título dizia: "Christopher Proctor nomeado conselheiro especial de relações públicas de Matthew Brady na Consolidated".

Joguei o jornal no chão. Onde estava o meu suco de laranja?

— Marge! — gritei.

A porta da cozinha se abriu e o rosto escuro de Sally apareceu.

— Não ouvi o senhor descer, sr. Rowan.

— Onde está a sra. Rowan?

— Saiu — respondeu Sally. — Já vou buscar o seu suco.

Enquanto eu esperava, Jeanie apareceu. Havia um sorriso malicioso em seu rosto.

— Se andar depressa, papai, deixarei que você me leve à escola.

Já não me restava nenhuma paciência.

— Por que não pode tomar o ônibus como as outras? É por acaso melhor do que elas?

O sorriso lhe fugiu do rosto. Olhou-me por um momento atônita, como se não pudesse acreditar, com uma expressão de grande mágoa no rosto. Não sei por quê, lembrei-me do tempo em que ela era garotinha. Sem uma palavra, ela rodou nos calcanhares e saiu da sala.

Um segundo depois, levantei-me e saí correndo atrás dela. Ouvi a porta da frente bater. Fui até lá e abri-a. Ela descia rapidamente a alameda.

— Jeanie!

Ela nem olhou para trás. Andou mais depressa e daí a pouco desapareceu por trás das sebes que margeavam o gramado.

Fechei a porta e voltei à saleta. Meu suco de laranja estava em cima da mesa. Apanhei-o e provei-o. O gosto não me pareceu bom naquela manhã. Nada prestava naquela manhã.

Sally chegou com um prato de ovos com bacon e outro de torradas. Deixou-os à minha frente e colocou café na minha xícara.

Olhei para tudo sem a menor vontade. Costumava dizer que, com ovos pela manhã, todos os dias pareciam domingo.

Que é que havia de errado comigo, afinal de contas? Empurrei a cadeira para trás e levantei-me.

Sally olhava para mim com uma expressão de espanto.

— Não está passando bem, Sr. Rowan?

— Não estou com fome — disse eu, saindo da sala e da casa, que me pareceu estranhamente fria e vazia, como se todo o amor houvesse fugido dela.

A manhã foi-se arrastando. O escritório esteve calmo. Não tive mais de quatro telefonemas durante toda a manhã. Elaine telefonou quase na hora do almoço.

— Sua voz não me parece boa — disse ela, logo que eu atendi. — Não dormiu bem?

— Dormi. E você?

— Eu estava exausta. Leu a coluna de Nan Page hoje?

— Li.

— Será que sua mulher leu também?

— Não sei. Não a vi hoje de manhã.

— Tio Matt leu e já me telefonou. Estava muito zangado e me disse que eu não devia sair com você, que não passava de um aventureiro.

— Que foi que você disse?

— Respondi que sairia com quem bem quisesse. Acha que diria outra coisa?

Não dei importância a esse desafio.

— E ele ficou muito aborrecido?

— Se ficou! Nunca o vi mais zangado!

— Ótimo, Elaine! Vamos dar-lhe uma chance de ficar ainda mais zangado. Vamos ter um caso.

— Por favor, Brad. Eu lhe disse que estava tudo acabado. Não posso viver assim.

— Não. É só para os jornais falarem. Quero que seu tio fique tão furioso comigo que baixe a guarda e cometa um erro.

— Não posso fazer isso — disse ela com voz sumida. — Ele sempre foi muito bom para mim.

— Então está bem — disse eu, com a maior aspereza na voz.

— Brad, por favor, procure compreender...

— A única coisa que compreendo é que você também está me abandonando. Mas já lhe disse que está bem. Não a censuro.

Um instante depois, ela falou.

— Muito bem, Brad. O que quer que eu faça?

Não deixei que o sentimento de vitória transparecesse em minha voz.

— Escolha o seu vestido mais bonito. Você vai oferecer esta tarde um coquetel à imprensa para comunicar seus planos sobre a campanha.

— Isso também? É o que pode haver de mais vulgar! E depois. . .

Não a deixei continuar.

— Não prejudicará a caridade e me ajudará. Eu lhe telefonarei depois de ter tomado as providências necessárias.

Desliguei o telefone. Depois, tornei a pegá-lo e disse a Mickey:

— A Sra. Schuyler vai dar um coquetel à imprensa no Stork hoje, às cinco da tarde, a propósito da campanha da paralisia infantil. Tome todas as providências e faça o pessoal conseguir que todos os colunistas compareçam com os seus fotógrafos. Mande o nosso fotógrafo também. E avise os redatores. Quero a notícia em todos os matutinos e nas agências telegráficas também.

— OK, chefe.

Um minuto depois, ela voltava ao telefone. — Paul está na linha. Liguei a chave do telefone.

— Paul, conseguiu a informação que eu lhe pedi?

— Consegui. O caso foi entregue a um moço chamado Levi.

— Você o conhece?

— Não. Ele pediu demissão e foi advogar particularmente em Wappinger Falls, no Estado de Nova York.

— Wappinger Falls? Não acha isso estranho, Paul? Em geral, quando uma pessoa ocupa um cargo de algum relevo na capital não quer mais voltar para o interior. Em geral, arruma coisa melhor em uma grande empresa.

— Acho, tanto mais que, embora ninguém saiba muita coisa dele atualmente, foi considerado no seu tempo um dos maiores talentos do Departamento da Justiça. Foi aluno laureado da Escola de Direito de Harvard e assim por diante. Havia-se especializado em legislação antitruste. O caso da Consolidated foi a sua primeira grande causa. Primeira e última.

— Por que ele não levou o caso até o fim?

— Não sei. Com certeza o departamento mudou de opinião.

— Como é o nome todo dele?

— Robert M. Levi. Tem alguma coisa em vista?

— Não sei. Estou cuspindo para o alto. Espero que vá cair no rosto de Matt Brady.

Desliguei o telefone. Toquei o interfone e disse a Mickey:

— Descubra para que lado fica Wappinger Falls, no Estado de Nova York, e como é que se vai para lá. Telefone para a garagem e diga que aprontem meu carro. Depois, telefone para minha casa e diga a Marge que mande aqui para o escritório meu terno azul-marinho e uma muda completa de roupa. Diga-lhe que depois explicarei tudo.

Comi às pressas um sanduíche antes de pegar o carro. Não sei se foi o sanduíche ou a expectativa que me consertou o estômago, mas o fato é que, naquele momento, senti-me bem pela primeira vez em vários dias.

 

Cheguei a Wappinger Falls às duas e trinta da tarde. Não era um lugar muito grande. Quase saí de lá às duas e trinta e um, mas tive sorte. Freei o carro em frente a uma fila de lojas.

Saltei do carro e corri os olhos pela rua. Havia alguns edifícios de escritórios de dois andares. Conferi em cada um deles a relação dos inquilinos. Não havia nenhum Robert M. Levi.

Voltei para a rua e cocei a cabeça. Era o último lugar no mundo onde se podia esperar que um advogado jovem e promissor se fosse enterrar para exercer a profissão. Vi um guarda que passava pela rua e fui ao encontro dele.

— Será que pode ajudar-me? Estou procurando uma pessoa. — Eu sabia, havia muito, que a gente do interior do Estado de Nova York pode ser ainda mais calada e reservada do que a da Nova Inglaterra. Aquele policial não desmentiu meu conceito. Empurrou o quepe para trás e me examinou vagarosamente dos pés à cabeça. Depois, falou, ou melhor, resmungou:

— Hem?

— Estou procurando um advogado chamado Robert M. Levi.

Ele passou alguns momentos em silêncio, pensando, e afinal disse:

— Não há aqui nenhum advogado com esse nome.

— Deve haver. Disseram-me de Washington que ele estava aqui. Vim de carro, de Nova York, para falar com ele.

— Quer dizer da cidade?

— Sim, da cidade de Nova York.

— Bem, o dia está bom para um passeio de carro. Mas que é que deseja com ele? Pode-se saber?

Tive a idéia de que ele sabia onde Levi estava e, por isso, disse a melhor coisa que me veio à cabeça.

— Tenho um emprego para ele, um bom emprego.

Ele olhou para mim, desconfiado.

— Por quê? Há falta de advogados na cidade?

— Não, mas Levi goza da fama de ser um dos melhores na sua especialidade.

Ele olhou para meu carro mais abaixo na rua e, depois, para mim.

— Não há advogado com esse nome que trabalhe aqui. Mas há um Bob Levi que mora na cidade. Foi aviador durante a guerra, um bom aviador. Derrubou onze aviões japoneses. Soube que passou algum tempo em Washington logo depois da guerra. Será esse?

Para mim bastava.

— É esse, sim — disse prontamente. Acendi um cigarro. O tal Levi devia ser notável. Quanto mais sabia de coisas sobre ele, mais incompreensível achava que ele tivesse ido meter-se naquele lugarejo. — Onde posso encontrá-lo?

O guarda apontou a rua.

— Está vendo aquela esquina ali? Entre por ela e vá até o fim da estrada. É lá. Há um cartaz com o nome Kristal Kennels. É onde ele está.

Agradeci e voltei ao meu carro. Entrei na esquina que ele me havia indicado e pouco depois cheguei a uma estrada de terra. Quando já estava pensando que o guarda tinha querido divertir-se à minha custa, ouvi latidos de cachorros e a estrada terminou de repente.

No fundo, havia um cartaz branco que dizia: "Kristal Kennels. Especialidade: jox terriers pêlo duro. Proprietários: Sr. e Sra. Bob Levi".

Saltei do carro e dirigi-me para a casinha branca afastada da estrada. Atrás da casa, avistavam-se as cercas de tela dos canis e ouviam-se os latidos felizes dos cachorros. Havia uma camioneta Ford 49 diante da casa. Toquei a campainha.

Ouvi-a ressoar na casa e, ao mesmo tempo, um sino tocar nos canis, um sinal que fez todos os cães latirem ao mesmo tempo. Acima do barulho, ouvi a voz de um homem.

— Entre aqui pelos fundos.

Desci os degraus da porta da frente e dei a volta pela casa em direção aos canis. Tudo estava bem cuidado, com a grama aparada e os canteiros de flores tratados.

— Aqui — disse uma voz.

Olhei através da tela. Um homem estava sentado no chão, cuidando de um cachorrinho que uma mulher segurava.

— Já vou atendê-lo — disse ele com uma voz agradável, sem levantar a vista. A mulher sorriu para mim, sem falar.

Fiquei observando-os. Ele estava limpando as orelhas do cachorro com um chumaço de algodão, absorvido no que estava fazendo. Um minuto depois, levantou-se. A mulher largou o cachorro, que saiu correndo alegremente para onde estavam os outros.

— Estava com um carrapato na orelha. Temos de conservá-los limpos, pois nunca se sabe o que pode acontecer.

Ele me olhou, e alguma coisa em mim não lhe agradou, porque notei nos seus olhos um lampejo de desconfiança. Lançou um olhar para a mulher, que estava em silêncio. Notei então que ela mostrava certos traços orientais no rosto.

— Que deseja, senhor? Quer comprar um cachorro?

— Não. Estou procurando Robert M. Levi, que trabalhou no Departamento da Justiça em Washington. O senhor é a única pessoa com esse nome que mora por aqui. É o senhor?

O homem olhou para a mulher, que disse:

— Bem, vou para casa, tenho o que fazer.

Dei um passo para o lado para deixá-la sair pelo portão. Havia no seu andar também um quê oriental — passos curtos e cuidadosos. Voltei-me para o homem e esperei que ele falasse.

Ele a olhou até ela desaparecer dentro da casa. Voltou-se então para mim e disse, com os olhos apertados:

— Por que pergunta?

Eu não sabia o que estava torturando aquele homem, mas não queria prolongar essa tortura. Havia nele alguma coisa com que eu simpatizava.

— Quero dessa pessoa uma informação e um conselho — disse eu.

— Abandonei a minha profissão há muito tempo, cavalheiro. Acho que não posso ser de muito préstimo para o senhor.

— Não é em questões de direito que estou interessado, mas em história.

Ele me olhou perplexo.

— Quero falar sobre um caso em que o senhor representou o governo contra a Consolidated Steel, num caso de violação da lei antitruste. — Acendi um cigarro, observando-o. — Segundo soube, o senhor fez as investigações e preparou o caso.

— Que relação tem o senhor com esse caso?

— Eu? Nenhuma. Mas acontece que isso pode ser importante para um assunto que me interessa e, por isso, vim procurá-lo.

— O senhor é advogado?

Sacudi a cabeça. Tive a intuição de que devia proceder com muito cuidado, pois do contrário o homem se fecharia por completo.

— Sou assessor de relações públicas — disse, entregando-lhe o meu cartão.

Ele o olhou atentamente e perguntou:

— Por que está interessado nesse caso, Sr. Rowan? Resolvi tentar uma grande cartada.

— Levei oito anos para construir a firma que está citada nesse cartão. Oito anos de trabalho duro, e toda a minha vida, antes disso, preparando-me para ela.

Tirei uma baforada do cigarro, olhando para ele. Percebi nos olhos dele uma ponta de interesse. Continuei:

— Um dia, surgiu-me uma oportunidade de fazer uma grande transação como representante de toda uma indústria. Fiz a minha proposta e encontrei boa receptividade. Sabia que ia fechar o negócio. Então um camarada me chamou ao seu escritório e ofereceu-me um emprego. Sessenta mil dólares por ano. Muito dinheiro. Eu podia fazer o que quisesse. Mas havia uma condição.

Fiz uma pausa para ver se ele estava prestando atenção. Estava.

— Qual foi? — perguntou ele.

— Bastava que eu traísse todos os outros participantes da transação. Devia abandonar todos os que trabalharam comigo e me ajudaram.

Joguei c cigarro fora.

— Dei a esse homem a única resposta que podia dar. Que ficasse com o seu emprego e fizesse o que bem entendesse com ele. Isso aconteceu há poucos dias. Agora, estou quase arruinado e vencido. Perdi oitenta por cento dos meus clientes porque ele me colocou na lista negra. Vim falar-lhe, procurando agarrar-me a uma palha. Mas, desde que cheguei aqui, tenho a impressão de que o que está acontecendo comigo já aconteceu com o senhor. E que foi a mesma pessoa nos dois casos. Quer saber o nome dessa pessoa?

— Não é preciso dizer. Já sei quem foi — disse ele, acrescentando com a voz carregada de ódio: — Matt Brady.

— E então?

— O sol aqui está muito quente, Sr. Rowan. Vamos conversar lá dentro da casa. Minha mulher faz um café passável.

 

O café que a mulher dele fez não era passável apenas, era uma delícia: quente, preto e forte. Estávamos sentados na cozinha, conversando ao vento fresco que vinha das janelas abertas.

A mulher dele era euro-asiática, meio alemã e meio japonesa. Ele a conhecera em Tóquio quando lá estivera com as forças de ocupação. Tinha uma estranha combinação de beleza. Olhos amendoados, mas azuis; pele dourada, mas com um róseo pálido nórdico nas faces; bastos cabelos pretos que lhe emolduravam as maçãs salientes do rosto até o pescoço delicado.

Escutaram atentamente o que lhes disse sobre as minhas relações com Matt Brady. Quando acabei, eles trocaram um curioso olhar.

— Quer me dizer exatamente como acha que podemos ajudá-lo, Sr. Rowan? — perguntou-me Levi.

— Não sei. Vim aqui apenas na esperança de descobrir alguma coisa.

— Sinto muito decepcioná-lo, Sr. Rowan. Mas não vejo nada que possa lhe dizer.

Tive a impressão de que ele não estava dizendo toda a verdade. Havia demonstrado interesse quando falei em Brady. Tinha havido também muito ódio na voz dele. Estava com medo de alguma coisa. Eu não sabia o que era, mas tinha certeza de que havia medo. De repente, tive uma idéia, e tudo se ajustou. Brady sabia de alguma coisa sobre ele.

Durante as investigações que fizera sobre a Consolidated, podia ter chegado a inquietar Brady. Eu tinha uma idéia do que Brady seria capaz de fazer num caso desses. Podia descobrir o ponto fraco do homem e martelar nele até que o outro sucumbisse. Estava fazendo isso comigo. Podia ter feito com Levi. Que outro motivo poderia ter um homem como ele para abandonar uma carreira promissora e dedicar- se a um trabalho tão estranho à sua capacidade e ao seu preparo quanto aquele?

— Deve haver alguma coisa, Sr. Levi. O senhor trabalhou no caso da Consolidated. Disseram-me que sabe mais sobre a empresa do que qualquer outra pessoa, exceto Matt Brady.

Houve de novo uma curiosa troca de olhares entre ele e a mulher.

— Mas acho que nada do que sei poderá ajudá-lo — disse ele, obstinadamente.

Levantei-me, completamente desanimado. Nada dava certo mesmo. Eu já devia estar morto e não sabia disso.

— Ele também o destruiu — disse eu com um sorriso amargo.

Levi não respondeu. Fui até a porta e olhei para ele.

— Não está precisando de um sócio? Ou Matt Brady fornece também os cachorros a todos a quem destrói?

Um clarão passou-lhe pelos olhos.

— Os cachorros são idéia minha. São melhores do que gente. Não sabem o que seja traição.

Saí e desci até a estrada onde havia deixado o meu carro. Quando estava no meio do caminho para a cidade, ouvi uma buzina. Olhei pelo espelho. A mulher de Levi vinha dirigindo a camioneta que eu vira diante da casa. Afastei meu carro para a direita a fim de deixá-la passar.

Ela passou por mim numa nuvem de poeira e tomou uma curva à frente. Entrei também na curva e pisei nos freios. A camioneta estava parada ao lado da estrada. Ela havia saltado e me fazia sinais. Parei perto dela.

— Sr. Rowan — disse ela no seu curioso sotaque —, preciso falar com o senhor.

Abri a porta ao lado dela e disse:

— Às suas ordens, Sra. Levi.

Ela entrou no carro e acendeu nervosamente um cigarro.

— Meu marido quer ajudá-lo, mas tem medo. Acha que o senhor pode ser outro homem de Brady.

Não pude deixar de rir.

— Não ria, Sr. Rowan. Isto não tem nada de engraçado.

O riso me morreu na garganta. Não era decerto engraçado. Ninguém acha graça num funeral, principalmente quando se trata do seu funeral.

— Desculpe, Sra. Levi. Não foi essa a minha intenção.

— Há muitas coisas que meu marido gostaria de dizer-lhe, mas não tem coragem.

— Por quê? Que poderia Matt Brady fazer com ele agora?

— A preocupação de Bob não é consigo. Ele tem medo por minha causa.

Continuava a não compreender. O que Matt Brady poderia ter contra ela?

— Posso falar com o senhor?

Não foram estas palavras que eu ouvi. Foram muitas outras, todas ditas ao mesmo tempo. É meu amigo? Posso confiar no senhor? Não nos irá prejudicar?

Pensei em todas essas coisas antes de responder.

— Pode-se conhecer uma pessoa toda a sua vida e nunca saber o que ela realmente é. De repente, acontece alguma coisa e se descobre que todas as pessoas a quem se conhecia são nada, e alguém a quem nunca se viu é que estende a mão para ajudar. É essa a situação em que me encontro. Ninguém a quem conheço pode ajudar-me.

Ela fitava a estrada através do pára-brisa com os olhos azuis. Tirou mais uma baforada do cigarro e começou a falar com voz muito suave:

— Quando conheci Bob Levi, ele era um moço inteligente e alegre, sempre com um sorriso nos lábios e os olhos voltados para o futuro. Tinha grandes esperanças e ambições.

A voz dela assumiu então um tom de tristeza.

— Agora, há muito que não o vejo sorrir. Suas ambições desapareceram, e a vida é tão difícil para mim quanto para ele. Em minha terra, costuma-se dizer que não há mal que o amor não domine. E é verdade. Por nosso amor, por minha causa, meu marido tem de viver neste desterro.

Acendeu outro cigarro e disse:

— Foi por isso que ele não falou. Não quero que pense que ele é um covarde.

— Não pensei isso. Mas por que ele não pôde dizer-me alguma coisa?

— Matt Brady é um homem terrível. Descobriu que Bob havia me trazido para este país ilegalmente. Os detetives dele não puderam encontrar nada contra Bob. Mas encontraram isso a meu respeito. Bob queria que vivêssemos juntos aqui e por isso me comprou um passaporte e documentos falsos em Xangai, e foi assim que vim para os Estados Unidos. Vivíamos felizes juntos até que o detetive de Matt Brady disse a Bob que, se ele não abandonasse o caso, as autoridades seriam informadas. Bob fez a única coisa que podia fazer. Abandonou tudo. Para ele, foi melhor do que ver-me voltar para o Japão.

Segundo Paul me dissera, o caso da Consolidated se resolvera por meio de um decreto de consentimento, depois da saída de Levi. Sem ele, o caso não pôde ser mantido. Matt Brady devia ter-se sentido muito orgulhoso da sua vitória.

Eu não sabia o que dizer. Aquelas pobres criaturas já haviam sofrido bastante. Para que eu iria aumentar-lhes a aflição? Estava assim pensando quando ouvi a voz dela.

— Meu marido não é feliz, Sr. Rowan. Olhei-a, surpreso.

— De dia para dia, vejo-o morrer aos pouquinhos. É um homem que vive fazendo o trabalho de uma criança.

— O que posso fazer para ajudar, Sra. Levi? Estou quase no fim da minha corda.

— Bob sabe mais a respeito de Matt Brady, pessoalmente e na vida comercial, do que qualquer pessoa no mundo. Se o senhor lhe desse um emprego, ele poderia ser-lhe muito valioso.

— Ele pode ter um emprego a qualquer momento. Não posso é obrigá-lo a aceitar. A senhora acaba de me dizer por quê.

— Ele não sabe que vim procurá-lo. Disse-lhe que ia à cidade fazer compras. Quando voltar, direi que falei com o senhor e contei-lhe a verdade. Então ele irá procurá-lo.

— E acha que ele irá? — perguntei, sentindo de novo uma leve esperança.

Ela saltou do carro e me disse, com o vento a sacudir-lhe os cabelos em torno do rosto:

— Eu o farei ir, Sr. Rowan. Por mais que isso custe. Não é agradável ser o instrumento da morte de uma pessoa a quem se ama.

Vi-a entrar na camioneta, fazer a manobra na estrada e tomar o caminho de volta para os canis. Deu-me adeus quando passou, mas não sorriu. Tinha um ar de profunda concentração.

Olhei para o relógio. Eram quase quatro horas. Liguei a chave e dei partida no carro. Teria de correr muito para estar no coquetel de Elaine às cinco horas.

 

Fale-se bem de alguém e ninguém escutará. Diga-se alguma coisa mesquinha, maliciosa, escandalosa e todo mundo na cidade ajudará a espalhá-la. Três dias depois, éramos assunto em todas as grandes colunas jornalísticas do Atlântico ao Pacífico. Nossas fotografias apareciam em todo pasquim amarelo que tivesse espaço para publicá-las.

Em quatro dias, passamos a ser o maior romance da cidade, o caso de amor mais comentado. Não me espantaria nem se figurássemos juntos nos guias turísticos. Éramos vistos em todos os espetáculos e nos restaurantes mais caros. Quando passávamos, os olhos se voltavam para ver-nos, as bocas se abriam, os sussurros se multiplicavam e os risos maliciosos nos seguiam.

Mas a pequena se mostrava formidável. Conservava os olhos voltados para a frente e a cabeça erguida. Se ouvia o que diziam, não o deixava transparecer. Se tudo aquilo a magoava, nunca se queixou a mim. Quanto mais a via, mais a apreciava.

Tentei explicar a Marge o que estava fazendo, mas depois da briga que tivéramos ela nem me prestava atenção. A própria Jeanie me olhava de lado. Ambas procediam como se não tomassem conhecimento de minha existência. Até meu pai não acreditou na minha explicação.

Os jornais tinham feito um bom serviço. Atingiram todo mundo, menos o homem a quem tudo aquilo se destinava. Todas as manhãs, fazíamos um ao outro a mesma pergunta: "Alguma notícia de Matt Brady?" E a resposta era sempre a mesma: "Não".

Mas na manhã de quarta-feira, quando telefonei para ela, tive a primeira notícia favorável.

— Tia Nora me telefonou — disse Elaine.

— Quem é ela?

— A mulher de tio Matthew.

— Eu nem sabia que ele era casado. Nunca ouvi falar nela.

— É natural. Tia Nora é inválida. Vive há quase quarenta anos numa cadeira de rodas e quase nunca sai de casa.

— Que foi que houve com ela?

— Teve as pernas esmagadas num desastre de automóvel um ano depois do casamento. Tio Matt estava dirigindo um Stutz novo e o carro capotou com eles. Ele não teve um arranhão, mas ela ficou presa entre os destroços. Ele nunca se perdoou.

— É bom saber que ele tem alguns sentimentos humanos. Estava quase sem esperança.

— Brad, não seja assim tão implacável. Tia Nora era muito moça quando isso aconteceu. Devia ter dezenove anos.

— Bem, o que ela queria?

— Disse-me que seria uma boa idéia eu ir fazer-lhe uma visita. Tem andado muito aflita com o que se tem dito nos jornais.

— E seu tio Matt tinha alguma coisa a dizer?

— Ela disse que ele está zangadíssimo com tudo isso, mas havia dito a ela que já me chamara a atenção uma vez e bastava. Foi por isso que ela resolveu telefonar-me.

— Ótimo — disse eu. — Não vá. Deixe-o queimar de raiva.

— Escute, Brad. Tem certeza de que estamos agindo bem? Até agora não adiantou nada.

— Não sei. Eu lhe disse que se tratava apenas de uma tentativa a longo prazo. Só estou procurando amolecê-lo um pouco, na esperança de que ele cometa algum erro.

— Está certo, Brad. Vou telefonar a tia Nora e dizer-lhe que não posso ir.

—. Temos um almoço juntos hoje.

— Eu sei. Mas você não está ficando um pouco cansado de toda essa representação?

— Quem é que está representando?

— Escute, Brad — disse ela com voz suave. — Já lhe disse que tudo estava acabado. Fizemos um acordo a esse respeito, lembra-se?

— Lembro-me, mas só sei é que estou ao seu lado, Elaine. E quando estou ao seu lado, nada mais importa, nem os negócios, nem o dinheiro, nem Matt Brady, nada!

— Nada, Brad? E sua família? Fechei os olhos e hesitei um momento.

— Não responda, Brad — disse ela, prontamente. — Não devia ter feito essa pergunta.

Desligou o telefone. Não queria que eu respondesse. Talvez tivesse medo do que eu pudesse dizer. A cigarra do interfone tocou, e liguei a chave.

— O Sr. Robert M. Levi está aqui e quer vê-lo — disse Mickey.

Eu quase havia perdido as esperanças de que ele aparecesse. Mas não devia pensar assim depois de ter visto a mulher dele e o ar de decisão com que ela se despedira de mim na estrada.

— Faça-o entrar, Mickey.

Se ele não tivesse sido anunciado, eu dificilmente identificaria nele o homem que eu havia visto em Wappinger Falls. Vestia um terno cinza-escuro, camisa branca e gravata marrom. O rosto estava queimado de sol e havia pequenas rugas nos cantos dos olhos. Levantei-me para recebê-lo.

— Eu devia ter vindo na segunda-feira — disse ele com um sorriso cordial. — Mas todos os meus ternos estavam grandes demais para mim. Tive de mandar fazer este para poder vir.

— Pode ser que nunca tenha compensação pelo seu investimento.

Ele correu os olhos pelo meu gabinete, acendeu um cigarro e disse:

— Estou disposto a assumir o risco, isto é, se sua oferta ainda estiver de pé.

Eu gostava dele. Era inteligente e vivo. Mas tinha alguma coisa de que eu gostava ainda mais. Era o seu ar de profunda e radical honestidade. Com ele não precisava perder o sono pensando no que ele poderia fazer no momento em que lhe desse as costas. Estendi-lhe a mão.

— Seja bem-vindo à cidade, fazendeiro.

Ele riu e disse, imitando muito bem a maneira de falar do interior do Estado:

— Obrigado, moço.

Seu aperto de mão era firme e sólido. Desse momento em diante, fiquei sabendo que seríamos amigos. Acho que ele teve a mesma impressão.

— Onde penduro o meu chapéu? — perguntou.

Era minha vez de surpreendê-lo. Liguei a chave do interfone.

— Pois não, chefe — disse Mickey.

— Tudo pronto?

— Tudo, chefe.

Chamei-o e saímos juntos pelo corredor para o escritório contíguo ao meu, que tinha sido de Chris. Parei em frente à porta e fiquei esperando por ele.

Ele olhou um momento para a porta e então virou-se para mim.

— Meu nome já está na porta!

— Está aí desde que voltei naquele dia.

— Mas como podia saber que eu viria?

— Não sabia, e já estava começando a ficar preocupado. Mandei pintar logo o seu nome na porta para que tivesse tempo de ver o seu escritório antes de fecharmos a firma.

— A situação está tão ruim assim? — perguntou ele.

— Está péssima — disse eu, abrindo-lhe a porta. — Nosso amigo comum fez um bom serviço até agora. Todas as vantagens têm sido dele.

Ele foi até a mesa e sentou-se. Descansou as mãos quase com amor na madeira polida da mesa.

— Hilde está esperando lá embaixo na camioneta — disse ele. — Trouxe uma batelada dos meus arquivos sobre Brady e o caso da Consolidated. Achei que podiam ser úteis.

— Muito bem. Vou mandar um servente buscá-los. Notei uma expressão de descontentamento no rosto dele e acrescentei prontamente:

— Depois, telefonarei para a minha garagem e eles mandarão buscar o seu carro. Assim, ela terá tempo de subir e ver o seu escritório.

Fui até a porta e disse:

— Vou dar-lhe tempo de se habituar à sala. Depois do almoço, teremos uma reunião geral para que fique conhecendo a turma. Em seguida, trataremos de ver o que é possível fazer.

Ele se levantou e me disse com muita sinceridade e emoção:

— Obrigado, Brad. Não entendo nada desse ramo, mas espero que lhe possa ser útil.

— Só sua presença já é de grande utilidade, Bob. Não há muita gente capaz de embarcar num navio que está afundando.

 

Fiquei sabendo mais sobre a Consolidated naquela tarde do que havia conseguido saber naquelas últimas semanas. Mas nada havia em que eu pudesse pôr o dedo. Matt Brady era esperto demais.

Eram quase sete horas quando, exausto, me recostei na cadeira e esfreguei os olhos. Empurrei para o lado a pilha de papéis em cima de minha mesa e olhei para Bob.

— Chega, rapaz. Estou com a cabeça tonta. Continuaremos amanhã de manhã.

Ele olhou para mim, sorrindo. Parecia tão repousado como quando chegara naquela tarde. Invejei-lhe a mocidade.

— OK, Brad — disse ele, levantando-se. O telefone tocou, e eu atendi.

— Alô?

— Sr. Rowan? — A voz era de mulher e vagamente conhecida, mas não a identifiquei de pronto.

— É ele quem fala.

— É Sandra Wallace.

— Alô, Sandra! É bom ter notícias suas. Ela não perdeu tempo.

— Preciso vê-lo, Brad.

Fechei os olhos, cansado. Não tinha tempo para ela. Estava exausto. Além disso, caso ela ainda não soubesse, a verdade é que ela não tinha vez.

— Ando ocupadíssimo. Acho impossível ir até aí agora.

— Mas estou telefonando da farmácia do seu edifício. Era melhor assim. Aquilo não era um telefonema sentimental.

— Por que não sobe então, Sandra? Deixe de cerimônias.

Ouvi-a rir antes de desligar o telefone. Bob olhava-me com curiosidade. Desliguei o telefone.

— Talvez amanhã tenhamos mais sorte — disse-lhe eu.

Ele não respondeu. Fez um gesto de assentimento e encaminhou-se para a porta. Mas antes de chegar lá, voltou-se para mim.

— Que é, Bob?

— Se acha que isso não é da minha conta, pode dizer, Brad. Mas há uma coisa que não estou entendendo.

— Que é?

— Tudo isso que os jornais andam publicando a seu respeito e dessa Sra. Schuyler.

Ele não precisava dizer mais nada. Eu sabia o que estava pensando.

— Não estou tentando rebaixar-me diante dele por esse meio, se é isso o que está pensando. Elaine é uma velha amiga e está do nosso lado.

— Deve saber o que está fazendo — disse ele.

Sua voz mostrava que o caso para ele não tinha muito sentido.

Senti pela primeira vez que minha idéia talvez não tivesse sido boa. Marge e meu pai poderiam ter ânimo preconcebido a esse respeito, mas Bob não tinha nada a ganhar de uma maneira ou de outra. Era uma opinião inteiramente desinteressada.

— Eu tinha de tentar alguma coisa — disse-lhe, sem muita convicção.

— Vi-a várias vezes quando estava em Washington, Brad. É uma das mulheres mais bonitas que já conheci.

— E tem mais coração ainda do que beleza — disse eu impensadamente.

Um brilho de compreensão apareceu nos olhos dele. Mas voltou-se para a porta e disse:

— Até amanhã, Brad.

A porta se abriu antes que ele tocasse nela e Sandra apareceu.

— Oh, desculpem! — exclamou ela. — Não queria interromper.

— Não há nada, Sandra — disse eu. — Pode entrar.

— Eu já estava mesmo de saída —- disse Bob. — Boa noite.

Ele saiu e eu me levantei da mesa.

— Muito prazer em vê-la, Sandra — disse eu, tomando-lhe as mãos.

Ela sorriu.

— Você não me pareceu muito feliz quando falou comigo pelo telefone.

— Estava muito cansado — disse eu, levando-a para uma cadeira. — Seu patrão está me dando um serviço completo.

— Meu ex-patrão, aliás. Estou à procura do lugar que você me prometeu.

— Você saiu afinal? — perguntei, surpreso.

— Vou sair amanhã. Ele ainda não sabe.

— Por que tomou essa decisão? Pensei que pudesse agüentar.

— Estou fazendo isso por sua causa — disse ela, com os olhos em mim. — Sei que com você tenho a mesma chance de uma bola de neve no meio do inferno, mas não posso passar o dia inteiro naquele escritório e ajudá-lo.

Não era muito comum para mim sentir humildade. Mas a sinceridade do olhar dela me encheu de humildade.

— É muita bondade sua, Sandra.

Ela se levantou e se aproximou de mim.

— Quando me despedi de você naquela manhã, estava convencida de que tudo havia acabado e de que você nada queria comigo. Mas quando os dias foram passando e vi que todas as vezes que ele fazia alguma coisa contra você eu sofria também, cheguei a uma decisão.

Ela estava bem perto de mim e eu podia sentir a solicitação do seu corpo, a sensualidade puramente animal que tinha por mim. Resisti ao impulso e esperei.

— Você pode não sentir nada por mim, mas eu sinto por você. Já conheci muitos homens, e sei o que estou dizendo. Nenhum me fez sentir ainda o que sinto por você. E ninguém o fará.

— Você ainda é muito moça. Um dia encontrará alguém que lhe dará o que você merece. Não serei então mais do que uma sombra apagada em sua vida.

— Só acreditarei nisso quando chegar esse momento, Brad.

Voltei à minha mesa, acendi um cigarro e perguntei:

— Vai mesmo deixá-lo?

— Claro, já não lhe disse? Desta vez, não vim para dormir com você, pode crer.

Fiquei sem ter o que dizer e ela continuou:

— Você não disse que me arranjaria emprego? Hesitei.

— Estava mentindo quando me disse isso?

— Não, Sandra. Naquele tempo, eu tinha mais confiança. Agora, já sei tudo de que Matt Brady é capaz.

— Não vai então ajudar-me?

— Não foi isso o que eu disse. Não sei é se ainda me restam amigos que me queiram atender.

— Mas vai tentar?

— Vou fazer o possível e o impossível.

— É só o que eu quero — disse ela, levantando-se e olhando para o relógio. — Meu avião sai daqui a uma hora. Vou andando.

Levantei-me da mesa e perguntei:

— Vai telefonar-me na segunda-feira?

— Vou, sim — disse ela, estendendo-me a mão.

— Escute, Sandra, desculpe se não sou, de todo, o homem que você pensou que eu fosse. Não tive a intenção de fazer promessas que não podia cumprir.

— Você é homem bastante para mim. Olhei-a e não vi mentira em seus olhos.

— Obrigado, Sandra.

Os lábios dela tremeram. Senti um impulso dominar-me. Era aquela a mulher, a mulher primitiva e selvagem que todos os homens tinham de possuir desde o princípio do tempo. Abracei-a, sentindo o seu busto esmagado de encontro a mim. Beijei-a.

Ela gemeu docemente ante o meu beijo.

— Brad!

— Desculpe, Sandra!

Nesse momento, houve um ruído atrás de nós, e eu ouvi outra voz.

— Você está trabalhando demais, Brad, e eu vim buscar você.

Era Elaine. Ficamos por um momento tão surpresos que nem nos movemos. Por fim, Sandra se afastou de mim.

O sorriso morreu nos lábios de Elaine. Continuou com a mão na maçaneta da porta, como se se apoiasse nela para não cair.

— Alô, Sandra — disse ela afinal, lutando para controlar a voz.

— Sra. Schuyler!

Elaine voltou-se então para mim, sem dissimular mais a mágoa que sentia.

— Talvez eu estivesse errada, Brad, mas a verdade é que não acreditei quando você disse que ia explorar todos os ângulos. Mas agora estou convencida!

Fechou a porta e foi-se embora. Sandra e eu nos olhamos como se um encanto se houvesse quebrado. Corri para a porta e abri-a. A sala de Mickey estava vazia.

— Elaine! — gritei, e saí correndo. Ouvi o elevador parar no andar.

— Elaine!

Era muito tarde. O corredor estava deserto. Baixei a cabeça e voltei a passos lentos para o escritório.

Sandra continuava lá. Passei por ela, arrastando a minha tristeza, e caí desalentadamente numa cadeira. Peguei um cigarro e procurei os fósforos.

Um isqueiro se acendeu diante de mim.

— Você a ama muito, Brad — disse Sandra. Assenti com a cabeça.

— Senti isso quando ficamos juntos naquele dia. — Foi até a porta e abriu-a. — Boa noite, Brad.

— Boa noite — respondi maquinalmente.

A porta se fechou e eu não levantei a vista. Recostei-me na cadeira e fechei os olhos. Pensava no sofrimento que se mostrara nos olhos de Elaine, e sofria desesperadamente com ela. Nada dava certo. Nada mais daria certo. Exceto Matt Brady.

Ele vencera. Eu não tinha mais ânimo para a luta. Apaguei o cigarro no cinzeiro e olhei para o escritório. Tinha sido tudo muito bom enquanto havia durado, mas a festa chegara ao fim. Só me restava pagar a música. No dia seguinte, fecharia o escritório, e na próxima semana trataria de procurar emprego.

Atravessei o escritório para pegar uma garrafa de uísque. Podia perfeitamente fazer as coisas com estilo. O uísque me faria mais bem do que aos meus credores. Estava servindo uma dose, quando ouvi baterem na porta.

— Ainda está aí, Brad? — perguntou Levi.

— Entre, Bob — disse eu, com um sorriso amargo. Falaria com ele imediatamente. Não seria mais fácil para mim no dia seguinte. Ele era a pessoa que menos tempo passara em minha firma.

— O que você tem com a filha de Matt Brady? — perguntou ele, logo que entrou.

Olhei-o, espantado.

— A Sra. Schuyler é sobrinha e não filha de Matt Brady.

— Não é da Sra. Schuyler que estou falando — disse ele com impaciência!

— De quem é então?

Larguei o copo subitamente, e um pouco de uísque se derramou em cima da mesa e foi pingar-me nas calças, quando ouvi a resposta dele. Pouco me interessava o uísque. Eu era um homem que se levantava da sepultura.

— De Sandra Wallace — disse ele.

 

Eu deveria ter desconfiado de alguma coisa assim, mas minha cabeça não havia funcionado direito. Eu era como o bookmaker que resolve mudar de vida e passa a proceder honestamente depois de muitos anos. Desorientado de ver que havia tanta trapaça no mundo dos negócios, perde tudo o que tem e é forçado a voltar à vida antiga. Assim era eu.

Eu me impressionara muito com as aparências. Aqueles camaradas não eram diferentes dos outros. O que faziam era esconder mais a sua sujeira e dar mais trabalho quando se procurava descobri-la.

— Tem provas, Bob?

— Não, não tenho. Aliás, não foi uma coisa que eu tivesse procurado deliberadamente. O fato me surgiu acidentalmente, e, como não tinha relação com o caso do governo contra ele, não tratei de apurá-lo.

— Pois isso poderia ter salvo o seu emprego — disse eu, sem saber por que ele não fizera uso do fato.

— Mas não teria conservado Hilde aqui — replicou ele. — Quando a vi hoje aqui no seu gabinete, lembrei-me de tudo e pensei que você houvesse também descoberto a verdade.

— Sandra sabe disso?

— Não. Ninguém sabe. Só Brady, a mãe e o marido desta, que ela sempre julgou que fosse seu pai. Como ele morreu, só a mãe poderá confirmar os fatos, e duvido muito que ela abra a boca.

Acendi um cigarro. Estava bem desperto, e todas as engrenagens de minha cabeça funcionavam. Preparei dois drinques e disse:

— Quer contar tudo do princípio, Bob?

Ele pegou o copo e se sentou na cadeira ao lado da minha mesa.

— Descobri tudo porque fiz uma investigação sobre as ações da Consolidated. Desde 1912, quando transferiu algumas ações para sua noiva, até 1925, Matt Brady nunca vendeu nem transferiu uma só ação. Tratou, isso sim, de aumentá-las, valendo-se de todas as opções. Mas em 1925 transferiu quinhentas ações para Joseph e Marta Wolenciwicz em fideicomisso para Alexandra Wolenciwicz. Essas ações deviam ser conservadas em fideicomisso até a morte dele, quando seriam então transferidas para Alexandra. Tomou um gole de uísque e continuou:

— Na época da transferência, essas ações valiam cerca de cinqüenta mil dólares. Quando eu estava fazendo as investigações, valiam o dobro, e o fato me despertou naturalmente a curiosidade. Foi a primeira vez que tomei conhecimento de alguma doação feita por Matt Brady. Fiz algumas pesquisas. Apurei que a mãe de Sandra tinha sido empregada na casa de Matt em Pittsburgh. Tudo o que eu soube me mostrou que ela era muito parecida com a filha. Ou ao contrário. Não sei se me entende.

— Entendo. Continue.

— Matt Brady tinha naquela época cinqüenta anos. Casara-se tarde, e logo depois do casamento a esposa sofreu um desastre de automóvel e ficou inválida. Uma mulher como Marta podia facilmente impressionar um homem, principalmente se ele fosse casado com uma mulher doente. Não é difícil imaginar o que aconteceu.

O copo dele estava quase vazio. Quis servir-lhe nova dose, mas ele não aceitou.

— Ela já trabalhava na casa de Brady havia três anos quando de repente se despediu. A mulher de Brady ficou surpresa com a decisão, mas deu a Marta um bom presente.

Cerca de três meses depois, Joe Wolenciwicz foi chamado ao gabinete de Brady, ainda com suas roupas de trabalho. O que os dois homens conversaram não sei. Eram velhos amigos e, muitos anos antes, haviam trabalhado juntos na usina. O que sei é que Joe saiu do gabinete com um cheque pessoal de Matt Brady no valor de cinco mil dólares.

Saiu do escritório para a pensão onde morava, e ali trocou de roupa, vestindo o seu terno de cerimônia. Casou-se com Marta naquela tarde. Sandra nasceu quarenta dias depois, e nesse mesmo dia Brady fez a transferência das ações.

Fiquei pensando. Uma coisa se tinha de dizer de Brady. Não era miserável. Estava disposto a pagar pelos seus privilégios ducais. E não era só isso. Ao seu modo, queria bem a Sandra. Era sua única descendente. Compreendia agora por que ele a queria sempre sob suas vistas. Fora da indústria, era a única coisa que lhe lembrava que ele fora um homem.

Tomei outro uísque. As estranhas voltas que o mundo dá! O mesmo sentimento de posse que levava Brady a querer a filha perto dele fazia com que ela o odiasse. Saberia ele dos sentimentos dela, e, se soubesse, faria isso alguma diferença para ele?

— Provas circunstanciais, como dizem vocês, advogados — murmurei.

— Com provas assim, podem se fazer muito boas acusações — disse Bob.

Eu já me havia decidido. Ia tentar o nocaute.

— Quanto tempo você levaria para obter cópia de todos os documentos relacionados com o caso?

— Algumas horas. Já tenho alguns, os que se referem à transferência das ações. O resto eu teria de ir conseguir em Pittsburgh.

Atravessei a sala e guardei a garrafa de uísque no armário.

— Vá tratar disso então — disse-lhe eu. — Encontrar-me-ei com você amanhã à uma hora da tarde no escritório de Matt Brady.

O rosto dele assumiu uma expressão estranha. Queria dizer alguma coisa, mas hesitava.

— Que é que há, Bob? Medo?

— Por mim, não. Tudo o que eu podia passar, já passei. E você?

Eu sabia o que ele queria dizer. Mas não havia outro jeito. Sorri e perguntei:

— Qual é a pena por chantagem na Pensilvânia?

— Assim de memória não sei — respondeu ele, muito sério.

— Procure informar-se enquanto estiver lá. Não faz mal nenhum saber o que acontecerá se eu perder.

O empregado da portaria do Towers sorriu para mim.

— Boa noite, Sr. Rowan.

Olhei para o relógio na parede. Já passava de nove horas.

— Quer fazer o favor de avisar à Sra. Schuyler que estou aqui?

— Pois não, Sr. Rowan. — Pegou o telefone e disse alguma coisa. Ao fim de alguns segundos, olhou para mim.

— Não respondem. — Olhou para os escaninhos. — A chave está ali. Deve ter saído antes da minha chegada.

— Ela com certeza vai voltar a qualquer instante. Dê-me a chave que eu vou esperá-la lá em cima.

—- Bem, isso é contra o regulamento — disse ele. Mas viu a nota na minha mão e mudou de idéia no mesmo instante. — Mas como se trata do senhor... — E trocou a chave pela nota de cinco dólares.

Agradeci e subi para o apartamento de Elaine. Entrei e acendi a luz. Deixei o chapéu e o casaco em cima de uma cadeira e preparei um scotch com água. O quarto estava um pouco quente. Abri a janela e me sentei diante dela.

O barulho da cidade me chegava vagamente aos ouvidos enquanto eu bebericava o uísque. Elaine saberia da situação de Sandra? Provavelmente não, pois do contrário já teria contado tudo. Ou não contaria? Afinal de contas, Matt Brady era seu tio.

Eram quase dez horas quando me levantei para tomar outro uísque e ela ainda não havia chegado. Liguei o rádio e tornei a sentar-me. Estava cansado e sentia os olhos arderem. Apaguei a luz e fiquei sentado ali no escuro. A música era suave e calmante. Os nervos começavam a descansar. Deixei cuidadosamente o copo de uísque na mesa ao meu lado e fechei os olhos. . .

Ouvi ao longe o som de The star-spangled banner. Lutei para abrir os olhos pesados de sono. Acendi a luz. A música vinha do rádio e a estação estava tocando o hino para encerrar a sua programação. Olhei para o relógio. Três horas da madrugada.

Levantei-me e desliguei o rádio. Não sabia que estava tão cansado. Onde estaria ela? Tive de repente uma idéia, entrei no quarto e abri o armário.

A mala não estava lá. Fechei o armário, apanhei o chapéu e o casaco e saí. Desci no elevador meio magoado. Afinal, ela devia dar-me uma chance de explicar. Deixei a chave na portaria e saí para pegar um táxi.

 

Marge entrou no quarto quando eu estava me vestindo. Tentava dar o laço na gravata. Já ia pela quarta tentativa e começava a ficar nervoso.

— Deixe que eu dou o laço — disse ela. Virei-me e ela resolveu o caso com pronta eficiência.

— Você é o único homem do mundo que tem dedos demais e não sabe o que fazer com nenhum deles — disse ela, sorrindo.

Olhei-a, surpreso, pensando que talvez a guerra tivesse acabado. Em toda aquela semana, era a primeira vez que me tratava como um ser humano.

— Sempre fui assim e não vejo razão para mudar agora — repliquei, sorrindo também. — Tá estou velho demais.

— Isso é o que eu não sei — disse ela com um pouco de malícia nos olhos. — Em algumas coisas você mudou.

Eu sabia o que ela queria dizer, mas não quis recomeçar a discussão.

— Vou a Pittsburgh hoje para falar com Brady.

— Uma oportunidade, afinal? — perguntou ela, cheia de esperança.

— Uma, não, a última. Hoje, ou venço ou reconheço a derrota e fecho a firma.

— Sério?

— Sério. Não tenho mais clientes, e as contas estão começando a empilhar-se.

— O que vai dizer a ele?

Apanhei o paletó em cima da cama e vesti-o.

— Vou tentar fazer um pouco de chantagem, só isso.

— E não é perigoso? — perguntou ela, preocupada.

— Um pouco. Mas não tenho mais nada a perder. Ela pensou um instante, passou a mão distraidamente pela colcha da cama e perguntou:

— A firma representa tanto assim para você?

— Nós temos de comer. E eu não posso educar nossos filhos com brisa.

— Podemos passar com menos se for preciso. Seria melhor do que nos metermos em mais dificuldades.

— Não haverá mais dificuldades. Todas elas já aconteceram.

— Espero que você saiba o que está fazendo.

— Fique descansada, Marge.

Descemos em silêncio a escada e nos sentamos à mesa para esperar o café. Jeanie apareceu. Aproximou-se de Marge e beijou-lhe o rosto.

— Até logo, mamãe.

Passou por mim e encaminhou-se para a porta.

— Espere um pouco, Jeanie — disse eu. — Levarei você à escola logo que tomar café.

Ela me olhou com frieza e disse:

— Não, papai, muito obrigada. Vou de ônibus com algumas colegas.

Depois que ela saiu, olhei para Marge. Por um momento, senti-me um estranho dentro de minha casa.

— Ela ainda é uma criança, Brad — murmurou Marge. — Há algumas coisas que ela não compreende.

Sally trouxe o café e eu levei a xícara à boca. O café bem quente me aqueceu um pouco.

— A sra. Schuyler vai também a Pittsburgh? — perguntou Marge.

Sacudi a cabeça.

— Que é que ela acha da sua idéia? Está de acordo?

— Ela de nada sabe. Viajou na noite passada.

— Para onde foi?

— Como é que vou saber? Já tenho problemas de sobra e não vou ainda ficar seguindo os passos dos outros.

— Desculpe, Brad — disse ela com um leve sorriso —, não estou querendo intrometer-me.

Levantei-me e disse:

— Já vou.

— Quando estará de volta?

— Hoje à noite. Se tomar outra decisão, telefonarei para você.

— Brad! — exclamou ela com o rosto voltado para mim. — Boa sorte!

— Obrigado — disse, beijando-lhe o rosto. — Bem que vou precisar disso.

Ela apoiou a mão no meu ombro.

— Aconteça o que acontecer, Brad, saiba que estamos todos do seu lado.

Fiquei olhando-a, sem saber ao certo em que é que ela estava pensando. Ela virou o rosto e descansou-o no meu peito.

— Estou falando com toda a sinceridade. Não terei queixas, aconteça o que acontecer. Nenhum de nós tem uma garantia para toda a vida.

— Marge — murmurei com voz embargada.

— Não diga nada, Brad. Faça o que achar direito, seja lá o que for. Quando chegar a uma decisão, diga-me que eu tentarei ajudá-lo.

Depois de dizer isso, afastou-se de mim e correu para a cozinha.

Fiquei ali um instante, olhando a porta de mola que oscilava. Depois, saí para tomar o carro.

Fui diretamente para o aeroporto e de lá telefonei para o escritório.

— Já teve alguma notícia de Levi? — perguntei a Mickey.

— Já. Ele disse que iria esperá-lo no aeroporto de Pittsburgh.

— Conseguiu alguma coisa?

— Não disse.

— Mais algum telefonema?

— Nada de importante. Ah, espere. A Sra. Schuyler telefonou de Washington e pede que telefone para ela.

Olhei o relógio. Já estava na hora da partida do avião.

— Telefonarei de Pittsburgh, do contrário perderei o avião.

Desliguei e dirigi-me para o portão de embarque. Sentia-me melhor. Ela me havia telefonado. Cheguei ao avião assobiando.

 

O carro nos deixou diante do portão de aço. Passamos por ele e entramos no edifício. O guarda especial olhou ceticamente a pasta de Bob quando paramos diante da mesa dele.

— Sou o Sr. Rowan e desejo falar com o Sr. Brady. O grande relógio da parede marcava uma hora em ponto quando ele pegou no telefone. Olhou-me e disse:

— O Sr. Brady está muito ocupado. Disse que devem falar com o Sr. Proctor.

Não tinha ido ali para falar com Chris.

— Posso falar com a secretária do Sr. Brady?

Ele tornou a falar pelo telefone. Depois, olhou-me com curiosidade e fez-nos sinal para tomarmos o elevador. As portas se abriram e nós entramos.

Sandra estava à nossa espera no corredor.

— Brad! — exclamou ela com a voz contida. — Que está fazendo aqui?

Esperei que as portas do elevador se fechassem. Em seguida, comecei a descer o corredor a caminho do gabinete.

— Quero ver seu patrão.

— Não pode entrar — disse ela. — Ele está com o Sr. Proctor.

— Ótimo. Disseram-me que eu tinha de falar com o Sr. Proctor.

Entrei na sala dela e fui até a porta do gabinete de Brady.

Ela me pegou pelo braço.

— Por favor, não faça isso, Brad. Isso só fará piorar a situação para nós dois.

Olhei para ela. Seus olhos estavam cheios de terror, e sua mão tremia no meu braço. Que espécie de homem era aquele capaz de fazer outra criatura humana sentir-se assim apavorada e insegura? E embora Sandra não soubesse disso, era ainda pior no caso dela, pois o homem era seu pai.

— Sandra — disse eu gentilmente —, não tenha mais medo dele. Quando sairmos desse gabinete, ele não será diferente de qualquer de nós.

— O que vai fazer?

— Apenas mostrar-lhe que ele é um homem igual aos outros.

Chris estava sentado de costas para a porta diante da mesa de Brady. Foi Brady quem primeiro nos viu. Levantou-se furiosamente e exclamou:

— Já disse que não quero vê-lo!

— Mas eu quero vê-lo — disse eu, entrando. Ouvi Bob atrás de mim entrar e fechar a porta.

— Não lhe disseram que falasse com o Sr. Proctor? Chris já estava de pé, olhando para mim. Olhei-o como se não o visse e disse:

— Não quero falar com outras pessoas e, menos ainda, com contínuos.

Encaminhei-me para a mesa. Chris fez um movimento como se quisesse deter-me. Olhei-o friamente e ele recuou para deixar-me passar. Vi Brady estender a mão para o botão da campainha em cima de sua mesa.

— Se eu fosse você, Brady, não chamaria a sua polícia — disse eu. — Poderá arrepender-se.

— Que quer dizer com isso? Fiz então um ataque frontal.

— Sabe que sua filha o odeia?

Ele ficou no mesmo instante intensamente pálido. Olhou-me fixamente, como se quisesse penetrar em meu espírito. Éramos naquele momento as únicas pessoas na sala. Era como se os outros não existissem.

— Está mentindo! — disse ele numa explosão, e a cor voltou-lhe às faces.

Ouvi ? voz de Chris às minhas costas.

— É melhor retirar-se, Brad. O Sr. Brady não dá a menor importância às suas vãs ameaças.

Não me dei nem ao trabalho de olhar para ele.

— Não estou mentindo, Brady. Posso provar-lhe.

— O Sr. Brady estava agora mesmo dizendo-me que o tratasse com toda a consideração possível, mas, em vista do seu procedimento, nada mais adiantará, nem mesmo que rasteje pelo chão implorando misericórdia — continuou Chris.

Pela primeira vez desde que chegara ao escritório, olhei para Chris. Era um lugar onde sua aritmética não iria valer-lhe nada.

— Aprendi muitas coisas com você, Chris. Mas rastejar, não. Isso continua a ser a sua especialidade.

— Quer que chame os guardas, Sr. Brady? — perguntou ele.

Brady ainda estava olhando para mim e falou como se não o tivesse ouvido.

— Procurei fazer tudo por ela, providenciei para que tivesse tudo de que necessitava. Um lar. Dinheiro.

Vi-o de repente como um velho cansado, privado de sua única filha. Pensei em minha Jeanie e senti uma imensa pena dele.

— As pessoas não são indústrias, Brady — disse-lhe delicadamente. — Não se pode comprá-las e vendê-las como se fossem títulos. Não se pode trancá-las dentro de um cofre e esperar que gostem disso.

Ele apertava convulsivamente as mãos em cima da mesa.

— Posso perguntar-lhe como sabe disso, Sr. Rowan?

— Ela apareceu no meu escritório ontem à noite e me pediu que lhe arranjasse um lugar onde pudesse ver-se livre do senhor.

— Ela sabe da relação que tem comigo?

— Não.

— Não disse a ela?

Não podia dizer-lhe que só havia sabido depois que ela saíra.

— Não me cabia fazer isso, Sr. Brady. O senhor é pai dela; eu sou apenas um amigo.

Ele ficou alguns instantes em silêncio e com os olhos baixos. Por fim, levantou a vista e disse:

— Proctor, pode ir para o seu escritório. Eu o chamarei se tiver necessidade.

Chris me envolveu num olhar cheio de ódio ao ser assim sumariamente afastado. Limitei-me a sorrir para ele, o que o enfureceu ainda mais. Depois que ele saiu, voltei-me para Brady.

— Sente-se, Sr. Rowan — disse ele.

Sentei-me na cadeira que Chris deixara vaga. O olhar de Brady se voltou para Bob, mas ele pareceu não reconhecê-lo.

— Meu companheiro, Sr. Robert M. Levi.

Brady fez um breve cumprimento, mas ainda sem reconhecê-lo.

— Talvez se lembre dele — disse eu. — Foi ele o jovem promotor do Departamento da Justiça que preparou a ação contra a sua companhia por violação da lei antitruste.

Houve uma alteração sutil no rosto de Matt Brady. Parecia quase haver desprezo.

— Agora me lembro — disse ele, voltando-se para mim. — Nós lhe pagamos vinte e cinco mil dólares para que ele pedisse demissão.

Olhei para Bob e disse:

— Não foi isso o que me disseram.

— Jamais recebi um centavo! — exclamou Bob, muito vermelho.

— E eu acredito nele, Brady — acrescentei.

— Pois fui eu pessoalmente que entreguei o dinheiro ao detetive particular que havia contratado para vigiá-lo, quando ele me disse que era essa a única maneira de fazê-lo desistir.

— Neste caso, foi enganado, Brady. Bob pediu demissão em virtude da sua insistência, mas não por essa razão. Só o fez para proteger a mulher de suas ameaças. Ofereceram-lhe dinheiro, mas ele nunca aceitou coisa alguma.

Ele olhou para Bob, que confirmou:

— Foi só por isso que me demiti. Não queria e não quero o seu dinheiro.

Brady fechou os olhos, exausto.

— Nem sei mais em quem devo acreditar. Mas, se procedi mal, peço desculpas.

Voltou-se depois para mim e perguntou:

— Como soube de San... de minha filha, Sr. Rowan? Pensei até hoje que tudo isso fosse um segredo muito bem protegido.

— Sua ofensiva contra mim me deixou desesperado, Sr. Brady. Fui procurar Bob e pedi-lhe ajuda. Foi ele na verdade quem descobriu tudo. A transferência de ações que fez para ela logo que nasceu revelou toda a situação. Ele apurou esse fato quando estava trabalhando na ação contra o senhor.

— Compreendo. O senhor é como eu, Sr. Rowan, um lutador. Acho que já lhe disse isso uma vez.

Nada respondi.

— Talvez tivesse sido melhor ter contado tudo a Nora, há muito tempo — murmurou ele, como se falasse consigo mesmo. — Mas não pude. Tive receio de que isso fosse a morte para ela. Ela é inválida e tem muito amor-próprio. Se sentisse que não me tinha dado tudo o que eu queria, seria capaz de morrer.

Virou a cadeira e olhou pela grande janela os fornos fumegantes.

— Não podia dizer a Nora, e não podia deixar minha filha afastar-se de mim. Tinha de encontrar um meio de vê-la todos os dias. Já estou velho. Os médicos dizem que su já devia ter deixado de trabalhar há muito tempo. Mas não me era possível. O único motivo pelo qual ainda venho trabalhar todos os dias é a oportunidade de vê-la, ainda que seja por alguns minutos apenas, todos os dias. Houve uma ocasião em que ela me deixou, e soube que ela não estava nem ganhando o suficiente para viver. Fi-la voltar. Não queria que ela tivesse de lutar pela vida. Mas parece que tudo o que fiz foi errado.

Bob e eu nos olhamos e permanecemos calados. Os minutos foram passando lentamente enquanto o velho olhava para as mãos. Acendi um cigarro.

— O senhor conseguiu ter relações muito estreitas com minha família, Sr. Rowan — disse ele de repente.

Eu sabia o que ele queria dizer e repliquei.

— A Sra. Schuyler é uma grande amiga minha. Estou tentando ajudá-la na sua campanha em favor das vítimas da paralisia infantil.

— E tem saído muito com ela, segundo dizem os jornais.

— Sabe como são os jornais. Querem sempre publicar alguma coisa.

— Julguei que estivesse fazendo isso para atingir-me.

— Conheci Elaine e admirei-a bem antes de conhecê-lo : de saber que era sua parenta. É uma pessoa corajosa, notável mesmo, e tem sofrido muito. Sinto-me honrado com i amizade dela.

— Sei que ela tem muito bom conceito do senhor — disse Brady.

Nada repliquei, e ele acrescentou:

— Isso não resolve o assunto sobre o qual veio falar comigo.

— De fato não resolve.

— Se eu não concordasse em colaborar com o senhor, pretendia tornar público o caso relativo à minha filha?

— O plano era mais ou menos esse — confessei.

— E se eu ainda me negar? Pensei um momento e respondi:

— Meu pai me disse há muitos anos que eu teria de escolher entre um inferno agora e um inferno depois. Não entendi o que ele quis dizer com isso, mas estou começando a compreender. E prefiro que meu inferno fique para depois.

— Não vai então dizer nada?

— Não, não tenho nada com isso. É o seu inferno particular, e não quero participação nenhuma nele.

Deu um breve suspiro.

— Fico muito satisfeito de que tenha dito isso. Se me tivesse ameaçado, eu teria de lutar, custasse o que custasse.

— Foi o que pensei do senhor a última vez que estive aqui — disse eu, levantando-me. — Vamos, Bob?

— Espere um pouco, Sr. Rowan — disse Brady. Levantara-se também, e seu rosto habitualmente reservado estava iluminado por um sorriso. — Se sair agora, como é que vamos poder acertar os detalhes da conta?

Senti o coração bater precipitadamente. Conseguira plena vitória. Tudo dera certo. Não falei.

Saiu da mesa e estendeu-me a mão, que apertei. Abriu então a porta.

— Sandra, quer fazer o favor de vir aqui? Ela entrou na sala e disse:

— Pronto, Sr. Brady!

— A firma do Sr. Rowan vai fazer nossa campanha de relações públicas. Talvez seja uma boa idéia você ir para Nova York e olhar as coisas lá, por mim — disse ele, com um apelo fervoroso no olhar.

Ela olhou para ele e depois voltou a vista para mim. Sacudi quase imperceptivelmente a cabeça e disse-lhe em silêncio, formando a palavra apenas com os lábios: "Depois".

Havia nela bastante do pai, ela apreendia rapidamente as coisas. Sorriu para o velho e disse:

— Se não se importa, Sr. Brady, prefiro ficar mais algum tempo aqui, com o senhor.

O velho não conseguiu dissimular o seu prazer. O radiante sorriso no seu rosto daria para iluminar toda a sala.

 

Era uma dessas construções cercadas de jardins que enchem os bairros elegantes nos arredores de Washington. O vestíbulo estava às escuras, e tive de riscar um fósforo para encontrar a campainha.

Schuyler. Apertei o botão. Ouvi no interior da casa um carrilhão tocar. O fósforo se apagou, e fiquei esperando na escuridão. Tornei a tocar alguns minutos depois. De novo não houve resposta.

Saí do vestíbulo e sentei-me nos degraus da entrada. Sabia que aquilo tudo era pura loucura. Ainda que ela me houvesse telefonado de casa, como Mickey dissera, não havia razão para que estivesse lá, no momento. Podia ter ido passar o fim de semana em algum lugar. Afinal de contas, era noite de sexta-feira.

Acendi um cigarro. Talvez eu estivesse num caminho inteiramente errado. Talvez eu não fosse, ao fim de tudo, muito esperto. Ela podia ter estado me enganando o tempo todo. Talvez houvesse outro — outros até. Eu só sabia dela o que ela me contava. E nada a impedia de mentir-me, se quisesse.

Não senti mais graça no cigarro e joguei-o fora. As fagulhas se espalharam no passeio de cimento à minha frente como pequenos vaga-lumes. A noite estava ficando fria, eu ajeitei em torno do pescoço a gola do casaco. Mas não podia fazer outra coisa. Ficaria ali sentado, esperando-a até o Dia do Juízo, se fosse preciso.

Estava assim desde o momento em que, no aeroporto de Pittsburgh, telefonara para ela sem obter resposta. Resolvi então que teria de vê-la. Não havia outro caminho para mim. Comprei uma passagem de avião para Washington e telefonei para casa.

Procurei dar um tom de despreocupação à voz quando falei com Marge.

— Brady disse que vai me dar o contrato, mas que tenho de ir a Washington falar com o presidente do instituto.

— Isso não pode ficar para segunda-feira, Brad? Estou me sentindo muito inquieta neste fim de semana.

Podia ver-lhe a testa franzida, como sempre acontecia quando ela se sentia deprimida.

— Não, meu bem — disse eu, agravando a mentira.

— Você bem sabe que esse contrato era a nossa última esperança. Estávamos quase mortos até Brady concordar. Não posso permitir que haja qualquer contratempo agora.

Tive a estranha impressão de que ela não estava acreditando em mim.

— Está bem, Brad — murmurou ela com hesitação.

— Se é preciso...

— Claro que é, querida. Se não fosse, eu não iria. Você sabe muito bem disso.

— Não sei mais nada, Brad — disse ela, desligando. Saí da cabina telefônica e fui tomar lugar entre os que iam embarcar para Washington. Havia chegado à cidade pouco depois das nove horas. Eram quase dez quando toquei a campainha. ..

Ouvi nos fundos da casa o barulho de um motor e, depois, de uma porta de garagem que se fechava. Durante alguns segundos, houve silêncio. De repente, percebi ruídos de passos no passeio do lado da casa.

Levantei-me e voltei-me para o lado de onde vinha o barulho. As pernas me tremeram de repente. Ela surgiu do canto da casa, mas não me viu.

O luar iluminava-lhe o rosto, mostrando uma bela e triste solidão que estranhamente me encheu de júbilo.

— Elaine! — exclamei.

— Brad! — disse ela, parando, e em seu rosto apareceu uma súbita alegria que logo desapareceu.

Chegou perto de mim e disse:

— Que veio fazer aqui, Brad? Nós ambos sabemos que está tudo acabado.

— Eu tinha de ver você, Elaine. Você não podia me deixar assim!

— Não acha que já chega? Quer tornar-me vulgar e baixa como as outras? Não pode me deixar em paz?

— Aquela pequena não representa nada para mim. Estava apenas demonstrando sua gratidão porque prometi arranjar-lhe um emprego.

Ela nada disse. Olhou-me apenas com aqueles olhos cheios de sofrimento. Havia neles alguma coisa que me dizia que ela queria acreditar em mim.

Estendi a mão para ela, mas ela recuou.

— Diga-me que não me ama e sairei daqui agora mesmo!

— Vá-se embora! — exclamou ela. — Deixe-me em paz!

— Não posso, Elaine! Você é tudo para mim. Não posso deixar que você desapareça da minha vida. Só se disser que não me ama.

Ela baixou os olhos para o chão e disse com voz sumida:

— Não o amo.

— Mas ainda há poucos dias você disse que me amava. Olhou-me bem nos olhos e disse que me amava de todo o coração. Disse-me que ninguém a fizera sentir-se tão amada e tão amante. Olhe para mim agora e diga que mentiu no outro dia, que hoje não me ama, e que pode abrir ou fechar o amor como se fosse a água numa torneira. Diga, e então acreditarei em você.

Ela voltou pouco a pouco o rosto para mim. Vi que seus lábios tremiam.

— Eu... eu... — murmurou ela, e não pôde falar. Abri-lhe os braços, e ela caiu no mesmo instante neles.

Encostou a cabeça no meu peito e começou a chorar em soluços que a sacudiam toda. Quase não pude compreender o que ela dizia.

— Por um momento... no seu escritório... tive a impressão... de que aquela mulher era eu... e que eu era sua esposa... Fiquei tão envergonhada... Senti-me tão errada...

Abracei-a fortemente. Senti-lhe os cabelos nos lábios quando falei com ela.

— Por favor, Elaine! Não chore!

Ela começou então a beijar-me desesperadamente.

— Amo tanto você, Brad, tanto, tanto! Nunca mais me deixe afastar-me de você! Nunca mais me abandone, Brad!

— Não tenha receio, meu amor! Nunca hei de abandoná-la.

 

Foi um fim de semana em que todos os relógios podiam deixar de existir. O tempo nada significava. Foi a lua-de-mel que nunca aconteceu, o sonho que nunca se realizou. Ficamos juntos como duas pessoas jamais ficaram. Amava-mo-nos quando tínhamos vontade, comíamos quando queríamos, dormíamos quando nos sentíamos exaustos.

Corremos uma cortina em torno das nossas vidas, e a única realidade que havia era o que sentíamos um pelo outro. Ríamos de todas as coisas bobas e normais da vida: fazer a barba, tomar banho, vestir roupas, o café que fervia na máquina, a torrada que saía queimada. Era um mundo particular, criado por nós para o nosso prazer.

Mas, como todas as coisas humanas, teve de ter um fim. Talvez um pouco mais cedo do que havíamos planejado, mas de qualquer maneira o fim se aproximava, e ambos sabíamos disso, embora não o disséssemos. E por fim, quando havíamos começado a falar nisso, o telefone tocou e o fim de semana se quebrou em nossos rostos como uma bolha de sabão.

Eu estava estendido no chão em frente à lareira. Sentia o calor das chamas e me espreguiçava. Ela saía do banheiro e estava passando por mim. Nunca vira ninguém gostar tanto de um banho de chuveiro. Quase tomava banho um minuto sim, um minuto não.

O fogo da lareira tirava lampejos vermelhos das pernas dela, que apareciam abaixo da toalha. Rolei o corpo no chão e agarrei-a, fazendo-a cair entre risadas. Ri também, tentando puxar a toalha. Ela resistiu, mas não demais.

O riso então desapareceu, e o ardor subiu dentro de nós. Beijei-lhe os botões de coral dos seios. Sentia-lhe os dedos, o leve toque das unhas em meus ombros, os dentes em meus lábios.

Nosso amor era como uma música que houvéssemos conhecido toda a nossa vida. Os compassos, os movimentos, as paixões e as agonias se fundiam num todo, que era a cada vez novo e repetido, e cujo ritmo procurávamos e seguíamos não isoladamente, mas juntos.

Um grito de advertência, um tremor incipiente, a cris-pação dos nervos e o impulso do foguete. A bomba explodia, e nós espalhávamos nossa paixão pelo mundo sem fim até onde não havia mundo, para então, no reflexo, voltarmos lentamente a esta terra.

Minha respiração se normalizara. Os olhos dela tinham um véu de sombra. Beijei-lhe o delicado nariz. Ela sorriu um momento, mas os olhos logo voltaram a ficar sombrios. Havia na sua voz o primeiro traço de sofrimento em dois dias.

— O que vai ser de nós, Brad?

Era uma pergunta lógica, mas que me deixou perplexo. Ela merecia uma resposta. Mas eu ainda não havia pensado nisso.

— Não sei, Elaine.

— Não podemos passar o resto da vida assim. Tentei ser engraçado:

— Que mal você vê nisso? Acho maravilhoso. Ela não tomou conhecimento da frase.

— Não podemos passar o resto de nossa vida mentindo e escondendo-nos dos outros. Não sei como você se sente, mas minha natureza se opõe a isso.

Pegou a toalha e embrulhou-se nela. Acendi um cigarro, tirei uma baforada e coloquei o cigarro entre os lábios dela. A resposta que dei me veio do fundo do coração.

— Também detesto isso.

— O que vamos fazer então, Brad?

Pensei muito antes de responder. Aquilo não era uma aventura de fim de semana que se encerrava com uma pilhéria. Aquilo era de verdade. Afaguei-lhe os cabelos, virei-lhe o rosto para mim e disse:

— Só podemos fazer uma coisa. Vamo-nos casar.

— É isso mesmo o que você quer, Brad?

— É o que eu quero.

— Mais do que tudo neste mundo, desejo viver com você, ficar ao seu lado, Brad. E sua mulher? Seus filhos?

A angústia surgiu dentro de mim. Havia pensado numa porção de coisas, mas neles não. Percebia que não me havia preocupado senão comigo mesmo.

— Escute, Elaine. Não fui procurar você, nem você a mim. — Lembrei-me do que Marge me dissera na manhã em que eu saíra para falar com Brady. Parecia-me que Marge já sabia da solução antes de mim. — Tenho a impressão de que Marge já sabe o que sinto por você. Disse-me ainda outro dia que ninguém tem garantia pela vida inteira. Ela seria a primeira a não querer que vivêssemos de outra maneira.

— Pode ser que ela pense assim. Mas você ainda não falou nas crianças.

— Não são mais crianças. Jeanie tem dezesseis anos, e Brad, quase dezenove. Já conhecem a vida, e tenho certeza de que compreenderão. Estão quase na idade em que podem tomar conta de si mesmos.

— E se eles não concordarem e não quiserem mais vê-lo? Que sentirá você? Talvez daqui a algum tempo comece a odiar-me por tê-los afastado de você.

Eu sentia um aperto na garganta e quase não podia falar.

— Não... creio que isso vá acontecer.

— Mas pode acontecer. Não seria a primeira vez. Não queria pensar naquilo.

— Enfrentarei o problema quando chegar o momento, Elaine.

— E há também o problema do dinheiro.

— Qual é ele? — exclamei, com uma suspeita que a resposta dela desvaneceu.

— As despesas com um divórcio não são pequenas, Brad. Depois, conheço você. Você não recuará diante de nada para ser correto com ela. Dará a ela tudo de que ela necessite e nada será mais justo depois de tantos anos juntos. Mas, depois, poderá ficar sentido de ter dado a ela todo esse dinheiro por minha causa.

— Eu não tinha muita coisa quando comecei. Pouco me importa ficar de novo com muito pouco. Isto é, desde que você não se importe.

Ela me apertou a mão.

— O dinheiro não me interessa. O que me interessa é você. Quero que seja feliz, sejam quais forem as circunstâncias.

— Bastará você para fazer-me feliz.

— E farei, fique certo disso — disse ela, beijando-me repetidamente.

— Vou conversar com Marge amanhã.

— Quem sabe se não seria melhor esperar mais um pouco, até ter certeza?

— Já tenho certeza. O adiamento não resolverá nada. Ao contrário, agravará a situação.

— O que vai dizer a ela?

Comecei a responder, mas ela de repente colocou um dedo nos meus lábios, fazendo-me ficar calado.

— Não, não me diga. Não quero saber. Você vai dizer o que toda mulher receia no fundo do seu coração, e que é como um pesadelo constante, o temor de que um dia o homem amado lhe diga que deixou de amá-la. Não quero saber o que vai dizer a ela. Só lhe peço uma coisa, querido.

— Que é?

— Seja delicado com ela, seja bondoso. E nunca me conte nada.

— Prometo — murmurei, beijando-a.

— Você nunca se cansará de mim, Brad?

— Nunca!

Foi nesse momento que o telefone começou a tocar. Levamos um susto. Era a primeira vez que o telefone tocava em todo aquele fim de semana.

— Quem poderá ser? — murmurou Elaine. — Ninguém sabe que estou em casa neste fim de semana.

Sorri para ela.

— Só há uma maneira de saber quem é. Vá atender. Ela pegou o telefone e disse: — Alô?

No mesmo instante, o rosto dela se alterou, e a voz ficou fria e distante.

— Não, não tenho visto — disse ela, olhando-me de maneira estranha.

Arregalou os olhos enquanto escutava, e neles se mostrou uma dor profunda, igual à que eu notara no primeiro dia em que a vira. Fechou os olhos por um momento, e vi que o corpo dela oscilava.

Corri para ela e passei-lhe o braço em torno do corpo para sustentá-la.

— Que é que há? — perguntei.

— Não tem importância, Sr. Rowan — disse ela de repente. — Ele está aqui. Vou passar-lhe o telefone.

— Papai? — disse eu, tomando o fone e vendo-a afastar-se da sala.

— Marge me disse que procurasse de qualquer maneira comunicar-me com você. O garoto está muito doente. Ela tomou o avião para ir vê-lo.

Senti tudo rodar em torno de mim.

— Que é que ele tem?

— Paralisia infantil. Está no hospital. Marge pediu que você rezasse por todos nós.

Fiquei um momento sem poder dizer uma só palavra.

— Brad! — exclamou ele, nervosamente. — Está sentindo alguma coisa?

— Não, papai. Quando foi que Marge viajou?

— Hoje à tarde. Disse-me que não descansasse enquanto não falasse com você.

— Onde está Jeanie?

— Estou aqui, papai. Ouvi meu pai gritar:

— Saia desse telefone, menina!

— Deixe, papai — disse eu. Ela devia estar na extensão do andar de cima. Teria de saber, mais cedo ou mais tarde.

— Como está se sentindo, querida? Ela começou a chorar ao telefone.

— Calma, meu bem. Chorar não adianta. Irei já para aí e vou ver o que posso fazer.

— Vem mesmo, papai? — perguntou ela, com um misto de confiança e incredulidade na voz. — Não vai deixar a gente?

Fechei os olhos.

— Claro que não, meu bem. Agora, largue esse telefone e vá se deitar. Quero falar com vovô.

— Boa noite, papai! — disse ela, com voz mais animada.

— Boa noite, minha filha. Papai?

— Sim, Bernard?

— Vou partir agora mesmo. Quer algum recado para Marge?

— Não. Diga-lhe apenas que estou rezando com vocês. Desliguei o telefone, inteiramente arrasado. Marge não havia telefonado porque sabia. Papai telefonara porque também sabia. A única pessoa a quem eu estava enganando era a mim mesmo.

Fui até onde Elaine estava.

— Ouviu?

— Ouvi. Vou levá-lo até o aeroporto.

— Obrigado. Vou me vestir — disse eu, entrando no banheiro.

Alguns minutos depois, ela entrava no banheiro já vestida para sair. Vi-a pelo espelho enquanto acabava de dar o laço na gravata. Não saiu muito bom, mas dessa vez eu não me importei com isso.

— Não sabe quanto sinto isso, Brad.

— Dizem que quanto mais moça é a pessoa, menos perigo há.

— De qualquer maneira, a medicina está muito mais adiantada agora do que quando. . .

A lembrança trouxe-lhe lágrimas aos olhos.

— Querida! — disse eu, abraçando-a.

— Ande depressa, Brad.

Beijei-a, despedindo-me dela.

— Eu lhe telefonarei, meu amor.

Ela me olhou e disse com imensa tristeza:

— Trago má sorte a todos os que amo.

— Deixe de tolice, Elaine. Você não tem culpa nenhuma.

— Isso é que eu não sei...

— Elaine!

— Vou rezar para que ele fique bom — disse ela, correndo para o seu carro.

Consegui um lugar perto da janela no avião. Procurei por ela, mas não a vi. Os motores começaram a roncar. Descansei a cabeça entre as mãos. Um pensamento cruel me passou pela cabeça. Se alguém era culpado, não era Elaine. Era eu.

O que se dizia sobre os pecados dos pais?

 

Era quase meia-noite quando dei meu nome à enfermeira que estava sentada à mesa de recepção no hospital. Tirei o sobretudo, enquanto ela procurava nas fichas que estavam à sua frente. Vi o táxi que me havia trazido do aeroporto sair do hospital.

Uma freira de hábito cinzento passou por nós, e a enfermeira a chamou:

— Irmã Angélica!

— Sim, Elizabeth?

— Este é o Sr. Rowan. Quer levá-lo ao quarto 822? O filho dele está lá.

— Tenha a bondade de acompanhar-me — disse a freira com voz gentil.

Tomamos um elevador, que estava ligado no automático, e ela mesma apertou o botão.

Saltamos no oitavo andar e saímos num corredor pintado de azul. No centro, havia outro corredor, pelo qual entramos. No fundo, avistei um vulto sentado num banco à porta de um dos quartos.

Comecei a correr, deixando a freira atrás de mim.

— Marge! — exclamei.

Ela levantou o rosto, marcado pela preocupação e pelo cansaço.

— Brad! — disse ela, com uma voz filtrada através de muitas lágrimas naquele dia. — Você está aqui!

Vacilou, e teria caído se eu não a tivesse sustentado.

— Como está ele? — perguntei ansiosamente. Ela começou a chorar.

— Não sei. Os médicos dizem que ainda não podem dizer nada. Ainda não chegou ao período crítico.

Voltou os olhos para mim, e não pude olhá-los. Havia neles o mesmo sofrimento que eu havia visto nos de Elaine.

— Quando poderemos vê-lo? — perguntei, olhando para a porta fechada.

— Disseram-me que seria possível vê-lo por um instante à meia-noite.

Voltei-me para a freira.

— Já é quase meia-noite.

— Vou falar com o médico — disse ela, afastando-se pelo corredor.

— Por que não se senta? — disse eu a Marge, levando-a para o banco e sentando-me também.

Acendi um cigarro e dei-o a ela. Ela começou a fumar nervosamente.

— Já comeu alguma coisa, Marge?

— Não pude. Não tive a menor vontade. Ouvimos passos no corredor e vimos a irmã Angélica, que vinha com um médico.

— Podem vê-lo agora — disse o médico gentilmente. — Mas por um minuto apenas.

Segurou a porta para nós e entramos. Ouvi Marge tomar fôlego quando o vimos, ao mesmo tempo que enterrava as unhas em minha mão. Notei mais tarde pontos ensangüentados na palma da mão.

O corpo de nosso filho estava dentro de um grande pulmão de aço. Só se via a cabeça, com os espessos cabelos negros empapados de suor. Os olhos estavam fechados, o rosto muito pálido. Um tubo preto saía do nariz para um tanque de oxigênio ao lado, e a respiração era lenta e difícil.

Marge deu um passo para tocar nele, mas o médico disse, em voz muito baixa:

— Não, não o perturbe. Ele está descansando e vai precisar de repouso absoluto.

Ela ficou em silêncio, dando-me a mão, enquanto olhávamos para nosso filho. Movia os lábios como se estivesse falando com ele, mas não se ouvia som algum.

Olhei firmemente para Brad. Era minha carne e meu sangue, e eu sentia o sofrimento dele como se fosse em mim. Era uma parte de mim mesmo, e estava ali sofrendo sem que eu pudesse fazer nada para aliviá-lo.

Lembrei-me do momento em que me despedira dele, quando entrara na universidade, naquele outono. Havia-lhe dito em tom de brincadeira que ele era muito leve para jogar futebol americano na equipe da universidade. Mas com a altura que tinha, devia dedicar-se ao basquetebol. Era menos perigoso, e, se ele desse para alguma coisa no esporte, poderia ganhar bom dinheiro com os apostadores.

Não me lembrava do que ele havia respondido, mas tinha presente a sua expressão escandalizada ante o fato de que eu fosse capaz de brincar com uma coisa dessas.

E ali estava ele, dentro de uma caixa de metal que tinha de respirar por ele, porque seu corpo estava debilitado demais para exercer suas funções. Meu filhinho. Quando era pequeno, passeara muitas vezes pelo quarto, carregando-o nos braços. Queixava-me naquele tempo da força que tinha nos pulmões quando chorava de madrugada. Não me queixaria mais. A força se havia acabado. E eu nem sequer podia respirar por ele. Quem o fazia era um monstro de metal, cujos costados brancos e assépticos brilhavam à luz do hospital.

— É bom saírem — disse o médico.

Virei-me para Marge. Ela jogou um beijo para o filho adormecido e eu tomei-lhe o braço, saindo do quarto atrás do médico.

— Quando poderemos saber alguma coisa, doutor?

— Não sei dizer, Sr. Rowan. Não chegou à crise ainda. Pode ser daqui a uma hora, pode ser daqui a uma semana. Ninguém pode saber.

— E ele ficará... com algum defeito?

— Só saberemos isso depois da crise. Logo que ela passar, faremos uma verificação para ver se houve alguma lesão. Por enquanto, só uma coisa lhe posso dizer.

— Que é, doutor? — perguntei ansiosamente.

— Estamos fazendo tudo o que é humanamente possível. Procurem não se preocupar e não prever coisa alguma. Não adiantará nada ficarem doentes também. Sra. Rowan, já está aqui há muito tempo. Procure repousar um pouco.

Ela passou as costas da mão pelos olhos.

— Não estou cansada.

— Faça-a repousar, Sr. Rowan. Poderão ver seu filho de novo às oito horas da manhã. Boa noite.

Afastou-se pelo corredor, e eu me virei para Marge.

— Ouviu o que o médico disse?

— Ouvi.

— Então vamos. Em que hotel estamos?

— Nem pensei em hotel. Vim diretamente do aeroporto para cá.

— Há um telefone lá embaixo, de onde podem ligar para um hotel — disse a irmã Angélica.

Agradeci-lhe e perguntei a Marge:

— Onde está sua mala?

— Lá embaixo, na recepção.

Dirigimo-nos em passos lentos para o elevador. Quando chegamos embaixo, a irmã Angélica me disse:

— O telefone fica no fundo do corredor.

Deixei-as na recepção e pelo telefone falei com o hotel e chamei um táxi. Quando voltei, não as vi.

— Minha mulher? — perguntei à enfermeira.

— Acho que foi à capela com irmã Angélica. É logo depois do elevador, a primeira porta à direita.

Era uma capelinha simples, dourada pela luz de muitas velas acesas. Marge e irmã Angélica estavam ajoelhadas diante do altar, com as cabeças baixas. Entrei e fui ajoelhar-me ao lado de Marge.

Ela movia os lábios e estava com os olhos fechados, mas sabia que eu estava ao lado dela, pois chegou quase imperceptivelmente para mais perto de mim.


33 Estava deitado em silêncio, ouvindo Marge chorar no sono. Acendi um cigarro dentro das mãos em concha para que a luz não a acordasse.

Não me era possível dormir. Lembrava-me do que Marge dissera antes de sucumbir afinal à exaustão que lhe roubara toda a força.

— Estou com tanto medo, Brad! — dissera ela, chorando.

— Não há de ser nada. Ele vai ficar bom — dissera eu, com mais confiança do que sentia.

— Deus permita — dissera ela. — Não suportaria perdê-lo também.

Tive certeza de que ela sabia, mas nada disse. Proferi palavras tranqüilizadoras, mas nada pude dizer a meu respeito. Em outra ocasião, em outro lugar, talvez. Mas não naquele momento.

Pensei em Elaine. Podia compreender tudo o que ela dissera. Apaguei o cigarro no cinzeiro. Marge ainda chorava mansamente no seu sono. Senti por ela uma ternura como nunca havia sentido. Passei o braço pelos ombros dela e puxei-lhe a cabeça de encontro ao meu peito.

Ela descansou nele de leve, como uma criança, e logo o choro parou. A respiração tornou-se calma e repousada. Fiquei ali, olhando a noite até que o dia começou a entrar pelas janelas.

Só uma semana depois é que soubemos. Uma manhã, quando chegamos ao hospital, encontramos todos sorrindo. A irmã Angélica, a recepcionista, o ascensorista, as enfermeiras e atendentes que em geral faziam suas tarefas de cara séria, todos sorriam para nós.

O médico saiu da sala, no corredor, estendendo-nos as mãos. Tomei-lhe uma das mãos, e Marge, a outra.

— Pronto — disse ele, muito satisfeito. — Vai ficar perfeito. Um pouco de descanso e ele estará pronto para outra.

Nada pudemos dizer. Olhamo-nos através das lágrimas. De mãos dadas, seguimos o médico pelo corredor até o quarto de Brad.

Estava deitado numa cama, a cabeça um pouco levantada num travesseiro, de frente para a porta. No outro lado do quarto estava o grande pulmão de aço, branco. Ajoelhamo-nos juntos ao lado da cama e beijamo-lo, chorando.

Sorriu para nós, numa versão um pouco pálida do seu velho riso. Apontou o pulmão de aço e disse com voz fraca, mas com o seu espírito habitual:

— Como andei por dentro daquele túnel!

Do aeroporto fui diretamente para o escritório. Papai levou Marge e Brad para casa. Faltava pouco para as nove, e o escritório ainda estava deserto. Sorri pensando em quanto tinha de trabalhar para pôr tudo em dia. Fechei a porta do meu gabinete e comecei a olhar os papéis em cima da mesa.

Bob Levi fora cem por cento. Havia tomado conta de tudo na minha ausência. Quando se espalhou a notícia de que eu havia feito as pazes com Brady, todos os meus antigos clientes tinham querido voltar. Bob os aceitara, mas havia aumentado os nossos honorários. Creio que achava que deviam pagar pelo que tinham feito.

Eram quase dez horas quando acabei de examinar os papéis. Onde estaria o pessoal? Liguei a chave do interfone.

— É você, Brad? — exclamou a voz espantada de Mickey.

— Claro que sou eu! Pensou que fosse uma alma do outro mundo?

Em seguida, todo o pessoal do escritório apareceu para cumprimentar-me. Todos se sentiam felizes, e eu mais ainda. Quando saíram, Bob continuou na sala e me disse:

— Temos um almoço hoje ao meio-dia e meia com o comitê do Instituto do Aço.

— Muito bem.

— E os advogados prometeram mandar o contrato hoje na parte da tarde.

Olhei-o e disse:

— Não sei o que faria sem você. Ele sorriu para mim.

— É também o que sinto a seu respeito. Engraçado, não é?

— Engraçado e ótimo!

Foi para a sala dele, e a manhã foi passando. Pouco antes da hora do almoço, Mickey apareceu com um embrulho.

— Chegou isso para você da peleteria — disse-me ela. No primeiro momento, não me lembrei. Mas logo me ocorreu que o aniversário era no dia seguinte. Era difícil crer que já se passara um mês desde o dia em que, a caminho da escola, Jeanie me havia falado do casaco de mink. Havia acontecido tanta coisa nesse espaço de tempo...

— Mande levar para o carro — disse-lhe eu.

Ela saiu com o embrulho. E eu fiquei pensando que havia encomendado o casaco no mesmo dia em que conhecera Elaine.

Elaine! Eu havia prometido telefonar-lhe, mas não tivera oportunidade. Mil anos haviam se passado desde que eu falara com ela pela última vez. Peguei o telefone e disquei para a telefonista do interurbano.

Já ia dar o número dela quando Bob apareceu na porta.

— Ande depressa senão chegaremos atrasados para a nossa primeira reunião oficial com eles.

Deixei o telefone e levantei-me. Telefonaria logo depois do almoço. Peguei o chapéu e o sobretudo e saí.

Não sabia, mas ela já estava morta havia mais de doze horas.

 

             O princípio como o fim

 

A cabeça me doía, e os olhos ardiam de lágrimas que não tinham sido derramadas. Não sei quanto tempo fiquei ali sentado, olhando pelas janelas sem encontrar uma explicação.

A cigarra tocou. Peguei lentamente o fone.

— Sim, Mickey?

— Sandra Wailace está aqui e quer vê-lo.

Hesitei um momento. O relógio marcava quase seis horas.

— Mande-a entrar.

Estava ali de pé quando a porta se abriu e Sandra entrou com toda a sua força e vitalidade. As forças da vida estavam dentro dela. Nada havia neste mundo capaz de destruí-la. Tinha certeza disso. Ela era muito diferente de Elaine.

— Alô, Brad!

— Entre, Sandra.

— Como é que está você, Brad?

— Bem...

— Fiquei contente de saber que seu filho está melhor.

— Obrigado — disse eu, pensando vagamente em como ela soubera disso. — O que está fazendo na cidade?

— Vim trazer-lhe uma mensagem.

— Do Sr. Brady?

— Não. Da Sra. Schuyler.

— Da Sra. Schuyler? — exclamei estupefato. — Mas ela...

— Eu sei. Soube hoje de manhã. O sr. Brady ficou muito sentido.

— Como foi que ela lhe deu a mensagem? Esteve com ela?

— Não. Recebi hoje de manhã pelo correio — disse ela, tirando um envelope da bolsa.

Tomei o envelope da mão dela e notei que estava aberto. Olhei-a.

— O primeiro era para mim. O outro, que está aí dentro, é para você.

Peguei o envelope e senti o leve perfume de Elaine, um perfume que conhecia tão bem! Fechei os olhos. Podia vê-la ali diante de mim. Peguei o segundo envelope, que estava fechado, e abri-o.

— Vou esperar lá fora — disse Sandra.

— Não, fique aqui mesmo, Sandra.

Ela foi sentar-se no sofá. Abandonei o corpo na cadeira e comecei a ler a carta de Elaine. A letra era firme e clara, sem denotar o menor nervosismo. E já devia ter tomado sua decisão quando se sentara para escrevê-la. A data era de dois dias antes, e a carta dizia:

Meu querido Brad:

Desde que o deixei no aeroporto, tenho pensado em você e rezado por você constantemente. Minha maior esperança é de que seu filho fique bom. Isso é a coisa mais importante que há no mundo.

Foi pensando nele que compreendi como temos sido mesquinhos e irrefletidos, que egoístas somos na realidade os dois, que pretendíamos sacrificar tudo pela paixão de um momento.

Compreendi também que na verdade era essa a única coisa que podia haver entre nós dois. Minha vida já havia acabado, e estava procurando conseguir, por empréstimo, um pouco da sua vida.

Talvez eu lhe tenha dito que você me recordava David, que tinha as mesmas qualidades dele e a mesma consideração e amor por sua família que ele tinha por nós.

Foi isso o que me atraiu em você, embora eu não o soubesse. Vocês eram muito parecidos.

Sozinha, na sua ausência, fui ao cemitério onde David e as crianças repousam. Fiquei ali sentada, olhando para o mausoléu onde meu nome já está gravado. Há um lugar ao lado dele, o lugar que eu sempre tive durante a vida dele. Foi então que pensei que, se fosse viver com você, nunca mais poderia ficar com ele e com as crianças. Nunca mais poderíamos estar juntos, nós que sempre significamos tanto uns para os outros.

Foi assim que cheguei à conclusão de que não o amo menos, mas que amei mais a David e meus filhos.

Não pense, pois, que traí o seu amor. Ele representou para mim muito mais do que eu poderia dizer-lhe. Peço-lhe que sempre pense em mim com ternura e reze por mim.

Com amor, Elaine.

Os olhos ainda me ardiam, mas eu me sentia melhor. Era um peso que me saía da alma. Levantei-me e disse com voz rouca:

— Você foi muito boa em vir trazer-me isso, Sandra.

— Não podia deixar de fazer isso, Brad. Eu sabia que você a amava.

— Amava-a muito, sim — disse eu.

Não soubera quanto ela havia sofrido e não saberia nunca. Só podia lembrar-me de seus olhos enevoados e azuis, quase violeta, e cheios de dor.

Sandra se levantou.

— Tenho de voltar. Prometi a tia Nora que estaria em casa amanhã de manhã.

— Tia Nora? — perguntei, surpreso.

— Sim, o Sr. Brady me levou à casa dele para que ela me conhecesse, dizendo que quer que eu me sinta como filha dele. Estou passando uns tempos com eles. Não sei o que foi que disse a ele naquele dia, mas ele agora é uma pessoa inteiramente diferente. Estou até começando a gostar dele. Quando se priva com ele, é até um homem muito gentil.

— Fico muito satisfeito de saber disso, Sandra. Será muito bom para os três.

— Também espero — disse ela, estendendo-me o rosto para ser beijada, como uma meninazinha.

Beijei-a.

— Adeus, Sandra.

Depois que ela saiu, abri a janela e rasguei a carta de Elaine em mil pedacinhos, que depois soltei ao vento.

Era um fim, mas era também um princípio. Havia uma nova vida, com mais compreensão para mim. Eu não era diferente de muitos outros homens que esqueciam que o outono era a estação da maturidade e procuravam desesperadamente reencontrar os ardores da primavera. Agora eu sabia. Não se pode fazer voltar o relógio. Tinha de viver com Marge e as crianças. Agora eu sabia o que Elaine quisera dizer. Um lugar ao lado deles. Respirei fundo. O ar fresco chegou-me aos pulmões e fez-me bem. De repente, fiquei ansioso para voltar para casa. . .

As primeiras neves da estação começavam a cair quando eu voltava para casa. Haviam polvilhado levemente o chão quando entrei pela alameda. Parei diante da garagem e fiquei sentado no carro, olhando para minha casa.

Todas as janelas estavam acesas, até as do quarto de Brad, e delas vinha uma quente claridade. O táxi de papai estava parado diante da porta.

Saltei do carro e abri a porta da garagem. Como sempre, a porta rangeu ruidosamente. Tornei a sentar-me à direção e entrei com o carro na garagem.

Ouvi a voz de Jeanie, que me chamava:

— Papai! Papai!

Saltei do carro, e ela correu para os meus braços. Beijei-a e perguntei:

— Como vai a minha queridinha?

— Vou muito bem — disse ela, e em seguida baixou a voz para um tom confidencial. — Espero que não tenha esquecido o presente de mamãe porque ela comprou o mais belo relógio de pulso para você! — Levou a mão à boca. — Viu? Já lhe contei tudo, e havia prometido que nada diria!

Sorri. Ela com toda a certeza contara a Marge sobre o presente que eu ia lhe dar. Não era capaz de guardar um segredo, nunca fora.

— Está bem, Jeanie. Não deixarei você mal. Vou fingir que não sabia de nada.

Tirei a caixa com o selo do peleteiro do banco de trás do carro e coloquei-a debaixo do braço. E de mãos dadas, levantando com os calcanhares a neve no passeio de cimento, fomos para casa.

 

                                                                                Harold Robbins  

 

                      

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