Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NO TRIBUNAL / John Galsworthy
NO TRIBUNAL / John Galsworthy

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

Publicado em Portugal com um sucesso sem precedentes - a primeira edição esgotada em 15 dias -, adaptado à televisão num filme que obteve o mais largo êxito, este romance de John Galsworthy conhece, em todo o mundo, a consagração mais alta que um escritor pode ambicionar. A distinção que lhe foi concedida - o Prémio Nobel da Literatura - e o número elevado de edições que o romance tem alcançado ao longo do tempo - best-seller invisível embora sem parangonas - fizeram de Galsworthy um nome de primeiro plano na literatura mundial. Acerca dele escreveu Rachel de Queiroz estas palavras de extrema lucidez: «A meu ver, a base do talento de Mr. John Galsworthy está no seu poder de introspecção irónica, combinada com um olhar extremamente penetrante e fiel para todos os fenómenos da vida externa dos seus personagens. Esses são os poderes da sua imaginação, cujo servo é um estilo claro, directo, são, iluminado por uma sinceridade inteiramente despida de afectação. É o estilo de um homem cuja simpatia pelo género humano é por de mais genuína para lhe permitir qualquer complacência com a própria vaidade, à custa dos seus semelhantes... e suficientemente aguçado para levar bem fundo a sua ironia impiedosa, e grave bastante para representar o digno veículo da sua profunda compaixão.»

 

 

 

 

EM CASA DE TIMOTHY

O instinto de propriedade nunca permanece inactivo. Através de florescências e rixas, de geadas e incêndios, ele acompanha as leis do progresso, mesmo na família Forsyte, que supõe havê-lo fixado para sempre. É que ele não pode desassociar-se do meio ambiente, tal como a batata não pode deixar de depender da qualidade do solo onde cresce.

O historiador do povo inglês, na década de 1890, deve descrever a evolução algo rápida da sua auto-satisfação e contido provincianismo para um grau muito maior de auto-satisfação e menos contido imperialismo - por outras palavras, o desenvolvimento do instinto possessivo da nação. E assim, em conformidade com essa evolução, decorreu a evolução da família Forsyte. Eles desdobraram-se não só na superfície, mas internamente.

Quando, em 1895, Susan Hayman, a única Forsyte casada, foi incinerada, depois de ter ido reunir-se ao marido na idade ridiculamente curta de setenta e quatro anos, o facto abalou muito pouco os seis Forsyte da velha geração que ainda restavam. Duas razões determinavam essa apatia. Primeiro, o quase sub-reptício enterro do velho Jolyon, em Robin Hill, no ano de 1892. Esse enterro, realizando-se um ano depois dos correctíssimos funerais de Swithin, provocara inúmeras conversas na Bolsa dos Forsyte - a casa de Timothy Forsyte em Bayswarter Road, em Londres, que continuava a reunir e a disseminar todos os mexericos da família. Desde as lamentações da tia Juley até esta opinião, francamente emitida por Francie, que «era justíssimo a gente não querer fazer troça em Highgate», todas as espécies de comentários foram feitos a tal respeito. Naqueles últimos anos, depois da estranha e lamentável história sucedida entre o jovem Bosinney, noivo de sua neta June, e Irene, a mulher do seu sobrinho Soames Forsyte, o tio Jolyon tinha realmente irritado os nervos da família inteira, e todos começaram a considerar a sua habitual originalidade um pouquinho perversa. A veia filosófica que ele tinha em si mostrara sempre uma tendência acentuada para arranhar a superfície dos sedimentos do forsytismo puro, de forma que a parentela não se chocara muito com aquela inumação em local estranho. Mas todo o assunto era singular e quando o testamento do velho teve livre curso na Bolsa dos Forsyte um arrepio percorreu o clã inteiro. Da sua fortuna, que montava em bruto a cento e quarenta e cinco mil trezentas e quatro libras, com um passivo de trinta e cinco libras, sete shillings e quatro pence, ele legara quinze mil libras a quem, minha cara? A Irene! - À esposa fugitiva de Soames, a Irene, a mulher que quase desonrara a família e que - coisa ainda mais espantosa - não lhe estava ligada por nenhum laço de sangue. É verdade que não legara o dinheiro em propriedade plena, mas o rendimento da fortuna em renda vitalícia. Porém, de qualquer modo, a herança lá estava, e o velho Jolyon foi destituído inteiramente das suas pretensões a tipo-padrão de Forsyte.

Era essa a primeira das razões a impedir que os funerais de Susan Hayman, realizados em Woking, produzissem muita agitação.

A segunda razão era ainda mais expansiva e imperial. Ao lado da casa de Campden Hill, Susan tinha um terreno (que lhe fora deixado por morte de Hayman) justamente no extremo da propriedade de Haims, terreno onde os rapazes Hayman haviam aprendido a ser tão bons atiradores e cavaleiros (segundo era crença geral), o que era naturalmente excelente para eles, e honroso para todos, e o facto de possuir a finada uma coisa que se parecia tanto com uma propriedade campestre podia de qualquer forma justificar a dispersão dos seus restos mortais - embora ninguém conseguisse descobrir quem lhe metera na cabeça a ideia da cremação.

Os convites habituais foram entretanto distribuídos, e Soames comparecera, junto com o jovem Nicholas, o testamento fora satisfatoriamente aberto no momento oportuno, e tudo se distribuíra equitativamente e em silêncio entre os filhos.

A terceira razão que impediu que os funerais de Susan Hayman provocassem grande agitação foi resumida, não sem audácia, pela pálida Euphemia:

- A minha opinião - disse ela - è que toda a gente é senhora do seu corpo, mesmo depois de morto.

Partindo de uma filha de Nicholas, liberal à velha moda e extremamente tirânica, tal comentário era surpreendente, e mostrava, num relâmpago, quanta água já correra sob as pontes depois da morte da tia Ann. em 1886, exactamente quando a propriedade de Soames sobre o corpo de sua mulher chegara à incerteza que culminou no desastre, Euphemia, naturalmente, falava como uma criança inexperiente, porque, embora já houvesse passado há muito dos trinta,, ainda usava o nome de Forsyte. Porém, feitos todos os descontos, a sua observação demonstrava a expansão dos princípios de liberdade, a descentralização do centro de gravidade da propriedade dos outros para si própria. Quando Nicholas ouviu, da boca da tia Hester, essa observação da filha, soltou uma praga: «Mulheres e filhas! Hoje já não há limite para a liberdade delas. Sei bem até onde esse caso Jackson irá levar as coisas - chegando até ao habeas corpus!»

Na verdade, ele nunca perdoara o Married Woman's Property Act, que teria interferido terrivelmente com a sua vida, se por felicidade o seu casamento não datasse de muito antes da promulgação da lei. Mas, na verdade, não era possível negar que um vento de revolta agitava a nova geração dos Forsyte contra a ideia de pertencer a outrem, isto é, as disposições coloniais de autodeterminação, que são a paradoxal contrapartida do imperialismo, estavam a progredir entre eles. Já estavam todos casados, excepto George, solidamente fixado no Turf e no Iseeum Club. Francie, que prosseguia na sua carreira musical num estúdio em King's Road, Chelsea, e continuava a levar «namorados» aos bailes, Euphemia, vivendo em casa, queixando-se sempre do pai, Nicholas, e, enfim, os Dois Siameses, Giles e Jesse Hayman.

A terceira geração não era muito numerosa: Jolyon filho tinha três filhos, Winifred Dartie tinha quatro, Nicholas filho já seis, Roger filho, um, Marian Tweetyman, um, Saint John Haymain, dois. Mas os dez restantes, entre os dezasseis casados, isto é, Soames e Cecily, da família de James: Eustace e Thomas, da de Roger, Ernest, Archibald e Florence, da de Nicholas, Augustus e Annabel Spendea-, da de Hayman, viam passar os anos sem progenitura.

De modo que, dos dez velhos Forsyte, vinte e um jovens Forsyte haviam nascido, porém, desses vinte e um da segunda geração, apenas dezassete descendentes havia, e já parecia improvável novo acréscimo, a não ser muito insignificante. Um curioso de estatísticas notaria decerto que a taxa de nascimentos tinha variado de acordo com a taxa de juros sobre o capital. O avô, o «Superior Dosset» Forsyte, nos começos do século xix, recebia dez por cento, e teve portanto dez filhos. Esses dez, deixando de parte os quatro que não se haviam casado, e Juley, cujo marido, Septimus Small, morrera quase imediatamente após o casamento, recebiam uma média de quatro ou cinco por cento, e produziram de acordo com isso. Os vinte e um que eles deram ao mundo estavam a receber agora uns escassos três por cento nos consolidados a que os pais vincularam quase todos os seus capitais, a fim de evitar os impostos de transmissão, e os seis deles que deram prole ao mundo tinham dezassete filhos, ou exactamente a mesma taxa de dois e cinco sextos por cento.

Havia outras razões também para essa moderada reprodução. Uma desconfiança da sua capacidade de ganhar dinheiro (natural onde a suficiência é garantida), junto com o conhecimento de que os pais não morreriam tão cedo, tornava-os cautelosos. Se um deles tinha filhos e um pequeno rendimento, o seu padrão de luxo e conforto tinha necessariamente que decair, pois o que chegava para dois já não chegava para quatro, e então era melhor esperar e ver o que o velho faria. Além disso, era muito agradável não ter crianças para atrapalhar passeios e férias. Em vez de se concentrarem nos filhos, preferiam concentrar-se na propriedade de si mesmos, conforme a crescente tendência fin de siècle, como diziam. Nesse processo era pequeno o risco que se corria e facultava até meios para adquirir um automóvel. É verdade que Eustace comprara um, e aquilo sacudira-o horrivelmente e causara-lhe a quebra de um dos dentes, era melhor esperar que tais máquinas apresentassem mais garantias de segurança. Enquanto esperavam, nada de filhos!. Até Nicholas filho não fazia nenhuma adição aos seus seis já havia mais de três anos.

Entretanto, essa degradação em massa dos Forsyte, ou antes, essa dispersão, de que todos estes factos eram sintomas, ainda não estava tão avançada que os impedisse de se reunirem quando Roger morreu em 1899. O Verão fora magnífico, e eles todos já tinham voltado a Londres depois das férias no estrangeiro ou à beira-mar, quando, comum traço da sua velha originalidade, Roger faleceu repentinamente, na sua residência de Princes Gardens. Em casa de Timothy, murmurou-se com tristeza que o pobre Roger sempre exibira uma certa esquisitice no que se referia às suas digestões - não preferia ele, por exemplo, o carneiro da Alemanha a qualquer outro?

Mas, fosse como fosse, os seus funerais, em Highgaite, desenrolaram-se com toda a perfeição, depois de assistir a eles, Soames Forsyte dirigiu-se quase automaticamente a casa do tio Timothy. em Bayswater Road. As «velhas», as tias Hester e Juley, ficariam satisfeitas em saber como se tinham passado as coisas. Alegando os seus oitenta e oito, James, pai de Soames, não se sentira com forças para arrostar as fadigas da cerimónia, o próprio Timothy também lá não fora:, naturalmente, de modo que os irmãos haviam sido representados apenas por Nicholas. Apesar disso, aparecera muita gente, e as tias Juley e Hester ficariam consoladas ao saberem disso. Esse pensamento gentil não ocorria a Soames, desacompanhado do desejo inevitável de tirar proveito do seu acto - o que é a principal característica de todo o Forsyte, e, na verdade, dos elementos sadios da nação inteira:. E, dirigindo-se a casa de Timothy, para lá discutir os negócios da família, Soames não fazia senão cobrir as pegadas do pai, que tinha o hábito de visitar as tias, em Bayswater Road, pelo menos uma vez por semana. James só renunciara a essas visitas na idade de oitenta e seis anos, quando as forças lhe declinavam e já não podia sair sem a assistência de Emily. E era inútil ir lá em companhia de Emily: como poderia ter uma conversa de verdade na presença da mulher?

Como James o fazia outrora, Soames sempre arranjara tempo para ir até lá aos domingos, para passar alguns instantes na sala das tias. Era uma sala na qual, com o seu indiscutível bom gosto, ele introduzira numerosas modificações, como presentes de Natal, para lá levara alguns bibelots que não satisfaziam as suas luxuosas exigências e umas duas telas da escola de Barbizon cuja autenticidade era duvidosa. Pessoalmente, depois de se ter dado extremamente bem com os Barbizons, ele passara-se aos Marises, aos Israels, aos Mauves, e esperava coisa melhor ainda. Na casa onde morava agora, junto ao rio, perito de Mapledurham, tinha uma colecção de quadros, magnificamente dispostos e iluminados, desconhecidos de muito poucos dos vendedores de Londres. A galeria constituía também uma atracção durante as recepções que ele dava às vezes, aos domingos à tarde, ajudado pelas irmãs, Winifred e Rachel. Apesar de não se mostrar senão como um cicerone taciturno, a sua calma e a singela precisão impressionavam sempre os convidados, porque todos sabiam que a reputação de Soames não estava baseada apenas no simples capricho estético, mas na sua capacidade de prever a valorização da mercadoria artística. Quando ia a casa de Timothy, sempre tinha para contar um pequeno triunfo sobre um vendedor de quadros, e sentia um raro prazer em saborear a rosnadela de orgulho com que as tias invariavelmente recebiam o caso. Naquela tarde, entretanto, à volta do funeral de Roger, vestido num fato irrepreensível de cor escura - não de preto, porque, afinal de contas, um tio não passa de um tio e a sua alma detestava a exibição excessiva de sentimentos-, Soames sentia-se numa disposição de espírito completamente diversa. Reclinado numa cadeira de marqueteríe e contemplando, no prolongamento do nariz erguido, as paredes azuladas semeadas de molduras cor de ouro, mantinha-se num silêncio desacostumado. Talvez porque viesse ou não de um funeral, o feitio peculiar dos Forsyte era visto, naquela tarde, no rosto de Soames, sob um ângulo especiallmente favorável: rosto côncavo e comprido, cuja maxila pareceria extravagante sem os músculos que a recobriam - uma cara toda queixo, mas a que entretanto não se poderia chamar feia. Ele sentia, mais fortemente que nunca, que a casa de Timothy era desesperadamente antiquada e que a allma das tias era uma lamentável revivescência dos meados da era vitoriana. A única questão de que ele desejaria falar - a sua situação de não divorciado-não poderia abordá-la ali. E no entanto ela ocupava-lhe o espírito, com exclusão de qualquer outra, desde a Primavera, fora então que despertara nele um sentimento que o impelia a fazer algo que, praticado por um Forsyte de quarenta e cinco anos, seria forçosamente uma tolice.

Havia allgum tempo que tinha cada dia mais consciência de que «ia bem». Já quando mandara construir a casa de Robin Hill - responsável pelo desastre do seu casamento com Irene - a sua fortuna era considerável, e crescera sempre, com surpreendente vigor, naqueles doze anos de solidão, durante os quais dedicara ao dinheiro todos os seus cuidados. Agora ultrapassava amplamente a quantia de cem mil libras, e ele não tinha ninguém a quem a deixar, nem nenhuma razão verdadeira para continuar a servir o que era a sua religião. Mesmo que agora afrouxasse os esforços, a riqueza engendra a riqueza, e ele pressentia que se veria um belo dia, sem saber como, na posse de cento e cinquenta mil libras. Sempre houvera,, na natureza de Soames, um elemento fortemente doméstico e procriador, decepcionado, frustrado, esse elemento escondera-se, mas agora, na idade madura, voltava a transparecer. E cristalizado em torno de um objectivo preciso, realizado na indubitável beleza de uma rapariga, tornara-se uma verdadeira obsessão.

E aquela rapariga, uma moça francesa, não parecia mulher capaz de perder a cabeça nem de aceitar uma situação ilegítima. Aliás, um pensamento desses também desagradaria a Soames. Ele provara dos aspectos sórdidos da vida sexual durante todos aqueles longos anos de celibato forçado, mas sempre às escondidas, sempre com nojo, porque era um espírito delicado, que sempre tivera um senso inato da lei e da ordem. Não desejava uma ligação furtiva e dissimulada. Com um casamento na Embaixada de Paris, uma viagem de alguns meses, ele poderia trazer de volta à Inglaterra uma Annette completamente separada de um passado que, a falar verdade, nada tinha de distinto - pois ela não passava de caixa no restaurante da mãe, no bairro do Soho, poderia trazer de volta uma Annette muito nova e muito elegante, com as suas qualidades de francesa, cheia de bom gosto e de presença de espírito, para fazê-la rainha de sua casa, The Shelter (1), perto de Mapledurham. Na Bolsa dos Forsyte, e entre os seus amigos da margem do rio, ele contaria que durante as suas viagens se encontrara com uma francesinha encantadora e casara com ela. Haveria um certo perfume de romance, um certo cachet em ter por mulher uma francesa. Não, isso absolutamente não o assustava, o que temia era aquele maldito divórcio que nunca pleiteara, e depois - e depois a questão de saber se Annette o aceitaria, pergunta que ele não ousava fazer antes de poder oferecer-lhe um futuro brilhante, deslumbrante

mesmo.

Na sala de visitas das tias, ouvia pela metade as perguntas habituais: «Como passava o pai? Naturalmente não saía, com este tempo que piorava a toda a hora? Soames teria a bondade de lhe dizer que Hester melhorara muito da dor de lado tomando uma decocção de folhas de azevinho? Punha-se uma cataplasma de três em três horas, e enrolava-se o lado dorido numa baeta. Seria que Soames quereria provar um pouquinho de conserva de ameixas - elas estavam deliciosas, naquele ano, e operavam tão maravilhosamente... Ah, a respeito dos Dartíe - ele não ouvira dizer que Winifred estava a viver muito mal com Montague? Timothy dizia que, na verdade, era preciso protegê-la um pouco. Dizia-se - porém Soames não devia considerar a coisa como certa - que ele dera de presente algumas das jóias de Winifred a uma incrível dançarina. Era um péssimo exemplo para o pobrezinho do Val, justamente quando o pequeno ia entrar para a Universidade. Soames não ouvira contar nada? Oh, então devia ir visitar a irmã e tratar disso. E acreditava Soames que aqueles Boers iriam realmente resistir? Timothy ficara muito abalado. O valor dos consolidados estava tão elevado, e ele tinha uma quantia tão grande empregada neles! Soames acreditava que baixariam,, se houvesse guerra? Soames fez sinal que sim. Mas a guerra não duraria muito. Seria tão triste para Timothy. E naturalmente o querido pai de Soames também sofreria um abalo, na sua idade. «Felizmente aquela terrível ansiedade fora poupada ao pobre Roger.» E a tia Juley, com um lencinho, enxugou a grossa lágrima que procurava transpor as pregas permanentes que lhe rodeavam os olhos,

 

*1. The Shelter -o abrigo. (N. da T.)

 

pois o seu rosto já era um mapa de rugas, começara a recordar o pobre Roger, a sua originalidade e a mania que ele tinha de a espetar com alfinetes quando eram meninos. Com o instinto que a levava a evitar os assuntos tristes, a tia Hester perguntou nesse ponto da conversa se Soames acreditava que Mr. Chamberlain seria nomeado primeiro-ministro imediatamente. Ele consertaria tudo em poucos dias. Ela, tia Hester, gostaria bem de ver o velho Kruger mandado para Santa Helena. Lembrava-se muito bem da notícia da morte de Napoleão e do alívio que representara para o seu avô. Naturalmente, ela e Juley («Nós usávamos nesse tempo umas calças compridas, de rendinhas, minha querida...») não tinham dado então grande importância ao caso.

Soames segurou a xícara de chá que ela lhe estendia, esvaziou-a rapidamente e comeu três daqueles bolinhos de amêndoas que eram a glória da casa de Timothy. O seu sorriso, fraco, pálido e desdenhoso, acentuara-se um pouco mais. Na verdade, a família continuava irremediavelmente provinciana, apesar de os seus membros possuírem entre si uma boa parte de Londres. E naqueles dias de tensão o provincianismo da sua gente ressaltava ainda mais que de costume. Pois o velho Nicholas ainda era free trader e membro daquele antro antediluviano do antigo liberalismo, o clube Remove, embora, na verdade, os seus membros já fossem todos conservadores actualmente, de contrário, Nick não teria aderido a eles. E Timothy, diziam, ainda usava barrete de dormir.

A tia Juley falou de novo. O querido Soames devia gozar tão boa saúde! Parecia pouco mais velho do que o era quando a querida Ann morrera, e haviam-se reunido todos: o querido Jolyon, o querido Swithin, o querido Roger. Seria que - seria que ele ouvira algumas vezes falar de Irene ultimamente? Foi visível o movimento da tia Hester enfiando o ombro entre os dois. Na verdade, Juley vivia sempre a dizer inconveniências! Soames deixou de sorrir, depôs a xícara, e, apesar de todo o desejo que tinha de discutir esse assunto, não pôde aproveitar a ocasião.

A tia Juley prosseguiu com certa pressa:

- Dizem que o querido Jolyon lhe deixara, a princípio, as quinze mil libras em plena propriedade, mas depois verificou que isso não ficava bem, e deixou-lhe apenas uma renda vitalícia. Soames ouvira falar nisso? Soames fez sinal que sim.

- O seu primo Jolyon está viúvo agora. É ele quem administra os rendimentos dela, você sabia disso, decerto.

Soames abanou a cabeça. Ele sabia, mas não queria parecer interessado em tais coisas. Jolyon filho e ele não se tinham avistado desde o dia da morte de Bosinney.

- Deve estar agora um homem maduro -prosseguiu a tia Juley com ar cismador. - Quer ver, ele nasceu quando o seu querido tio morava ainda em Mount Street. Muito antes da mudança para Stanhope Gate, em Dezembro... exactamente antes daquela pavorosa comuna. Já tem mais de cinquenta anos, imagine! Era um garotinho lindo, nós todos orgulhávamos-nos dele: era o primeiro entre vocês todos. - A tia Juley suspirou, e uma madeixa do que não poderia chamar-se propriamente o seu cabelo, destacou-se e ficou a flutuar, provocando um ligeiro arrepio na tia Hester.

Soames ergueu-se, estava a fazer uma curiosa descoberta dentro de si mesmo. A velha ferida no seu orgulho, no seu amor- próprio, não cicatrizara ainda. Supusera, ao chegar a casa das tias, que poderia falar - desejara mesmo falar dos entraves que lhe restringiam a liberdade -, e, para sua surpresa, fugia, como de uma coisa dolorosa, dessas reminiscências do passado traçadas pela tia Juley, sempre pronta a dar gaffes.

Oh, Soames já ia tão cedo!

Soames teve um risinho vingativo e disse:

- Sim, até logo. Dêem lembranças ao tio Timothy!

E, depondo um beijo frio na fronte das velhas, cujas rugas pareciam procurar colar-se-lhe aos lábios, como se desejassem desaparecer sob carícias, deixou as tias, que o viam partir com o olhar luzente de prazer: o querido Soames fora tão gentil em aparecer hoje. exactamente quando elas não estavam a sentir-se muito...

Descendo a escada, onde flutuara aquele cheiro quase agradável de cânfora, de vinho do Porto e de casa sem correntes de ar, ele sentia no peito a leve mordidela de um início de arrependimento. Pobres velhas - não queria entristecê-las! Na rua, esqueceu-as logo, retomado pela imagem de Annette, pelo maldito liame

que o prendia. Porque não fora até ao fim, não requerera o divórcio quando aquele miserável Bosinney fora esmagado e não lhe seria preciso senão baixar-se para colher as provas no chão? E dirigiu-se para a residência da irmã, Winifred Dartie, em Green Street, Mayfair.

 

A PARTIDA DE UM HOMEM DO MUNDO

Seria realmente estranho que um homem do mundo, com a fortuna cheia de vicissitudes, como a de Montague Dartie, habitasse a mesma casa durante vinte anos, se as décimas, taxas, consertos, não fossem todos pagos pelo sogro. Graças a esse expediente custoso, mas simples, James Forsyte assegurava uma relativa estabilidade à vida da filha e dos netos. Afinal de contas, havia algo de inapreciável na posse de um tecto seguro por sobre a cabeça de um sportsman tão brilhante como Dartie. Até aos acontecimentos dos últimos dias, o procedimento de Monty correra numa regularidade quase sobrenatural. O facto é que ele tornara-se co-proprietário de uma potra de George Forsyte, que se dedicara irremediavelmente ao turf, para horror de Roger, horror agora abafado pelo túmulo. Sleeve-Links, filha de Martyr e de Shirt-on-Fire, neta de Suspender, era uma égua baia de três anos, que por diversas razões não mostrara ainda as suas reais possibilidades. Depois que se tornara possuidor de uma metade daquele animal, carregado de esperanças, todo o idealismo latente no carácter de Dartie - como o é de qualquer homem - tinha erguido a cabeça e mantivera-o, durante meses, num estado de sereno fervor. Quando a vida de um homem tem uma finalidade digna dela, é espantoso ver como esse homem se torna sisudo, e Dartie possuía realmentte essa finalidade - uma cotação de vinte e cinco contra um num handicap de Outono por um animal que valia apenas três. O velho céu arcaico nada é em comparação com isso, e ele empenhara todos os seus haveres, até a camisa que vestia, na filha de Shirt-on-Fire. Mas quanto mais do que a sua camisa dependia da neta de Suspender?. Aos quarenta e cinco anos, idade nevrálgica para os Forsyte - e para os próprios Dartie -, Montague detivera numa dançarina as suas afeições vagabundas. Não se tratava de uma paixão medíocre, mas era-lhe preciso dinheiro, e muito, para que esse amor pudesse passar de um estado tão aéreo como os saiotes da sua causadora, e Dartie nunca tinha dinheiro, apenas ia subsistindo miseravelmente das migalhas que conseguia extorquir ou tomar de empréstimo a Winifred - mulher de carácter, que o conservava porque ele era o pai dos seus filhos e por uma admiração obstinada por aqueles ares senhoris de Wardour Street com que ele a fascinara na mocidade. Ela, e mais alguma outra pessoa que consentia em fazer-lhe um empréstimo, e as suas perdas nas cartas e no turf (era extraordinário como alguns homens conseguem ganhar dinheiro com perdas) eram os seus únicos meios de subsistência, porque agora James estava velho de mais, nervoso de mais para lhe ser possível aproximar-se, e Soames era formidavelmente virtuoso. Não é muito dizer que, durante meses, Dartie vinha a viver de esperanças. Ele nunca fora adorador do dinheiro em si, sempre desprezara os Forsyte pelos seus hábitos de economia,, embora cuidasse de se utilizar de tais economias todas as vezes que podia. O que ele gostava, no dinheiro, era daquilo que ele podia pagar - sensações pessoais. «um verdadeiro sportsman não se preocupa com dinheiro», gostava ele de dizer quando pedia um empréstimo para um pony (1). já que não pudera tentar um monkey (2). Havia algo de delicioso em Montague Dartie. Ele era, segundo o dizia George Forsyte, um daisy (3).

A manhã do handicap ergueu-se clara e brilhante.

 

*1. Pony é empregado aqui no sentido de pequena aposta.

  1. Monkey, soma para apostas equivalente a quinhentas libras.
  2. Daisy, elegante, encantador. Em gíria de turf, significa também «cavalo de passo lento», o que poderia ser uma alusão de George às limitadas possibilidades financeiras de Dartie. (N. da T.)

 

Era o último dia de Setembro, e Dartie, que chegara a Newmarket na noite precedente, vestiu um imaculado fato de xadrez e encaminhou-se para uma colina a fim de assistir ao último galope de ensaio da metade da sua potra. Se ela ganhasse, ele meteria no bolso três mil libras de bom dinheiro - magra recompensa à seriedade e à paciência daquelas semanas de esperança, durante as quais a égua fora treinada para a corrida. Porém ele não tivera meios de fazer mais dinheiro. Deveria cobrir-se e dar à égua a cotação de oito contra um que ela acabara por atingir? Era o seu único pensamento, enquanto as cotovias lhe cantavam por sobre a cabeça, as colinas raivosas exalavam suaves perfumes e a linda potra passava, brilhante como cetim, erguendo altivamente o focinho contra o céu. Em caso de perda, afinal de contas, ele não teria nada a pagar, mas isso diminuir-lhe-ia o lucro a cerca de mil e quinhentas libras, isto é, uma quantia que mal daria para transformar uma dançarina em sua propriedade absoluta. Mas a sede de sentir uma verdadeira emoção, que está no sangue de todos os Dartie, forneceu-lhe o argumento mais persuasivo. E, voltando-se para George, disse:

- É um relâmpago. Vai ganhar com uma perna às costas. Eu irei até onde puder. - George tinha-se coberto até ao último penny, e, mais que isso, estava certo de ganhar em qualquer eventualidade. Do alto da sua corpulência deixou cair um sorriso sobre o outro e disse:

- Oh, oh, você é atirado!

Porque, depois de uma aprendizagem em aventuras diversas, atravessadas sem acidentes graças ao dinheiro que Rogers lhe fornecia não sem lamentos, o temperamento de Forsyte começava a servir-lhe como recurso na profissão de proprietário.

Há na vida dos homens horas de desilusão sobre as quais um cronista sensível receia deter-se. Limitemo-nos pois a dizer que a linda esperança naufragou. Sleeve-Links terminou desclassificada. Dartie perdera a camisa.

Entre esses acontecimentos e o dia em que Soames tomara o caminho de Green Street, quanta coisa acontecera!

Quando um homem do temperamento de Montague Dartie consegue controlar-se durante meses, por motivos religiosos, sem se ver recompensado depois, ele não amaldiçoa Deus antes de morrer: amaldiçoa Deus e continua a viver, para desgraça da família.

Winifred era uma mulher corajosa, embora sacrificasse por de mais à moda, já suportava o marido há exactamente vinte e um anos, mas realmente não o imaginara capaz de fazer o que ele fez. Como muitas esposas, supunha já conhecer o marido sob os piores aspectos, mas não o conhecia ainda aos quarenta e cinco anos de idade, quando, como todos os outros homens, ele tinha o sentimento de que seria hoje ou nunca.

Fazendo, no dia 2 de Outubro, uma revista no seu cofre de jóias, descobriu com horror que já não estava lá a auréola da sua feminilidade, as pérolas que Montague lhe oferecera em 1886, por ocasião do nascimento de Benedict, e que James tivera de pagar na Primavera de 87 para evitar um escândalo. Indagou do marido imediatamente. Ele respondeu-lhe que «não havia de ser nada», que as pérolas haveriam de voltar! E ela teve de dizer secamente: «Muito bem, Monty, irei pessoalmente à Scotlamd Yard, para que ela se encarregue do assunto.» Ai dele! Por que motivo o destino exige que a sólida e resoluta continuidade dos desígnios de um homem, necessária à realização de vastas operações, seja sujeita às interrupções da bebida? E Dartie, naquela noite, ao voltar para casa, não se importava com coisa alguma no mundo, nem mantinha uma partícula de discrição. Em tempos normais, Winifred fechar-se-ia no quarto enquanto ele curtisse a bebedeira, mas, na inquietação em que estava a respeito das pérolas, ela ficara desperta, esperando a volta do marido. Tirando do bolso um pequeno revólver e arrimando-se à mesa de jantar, Dartie disse à mulher que lhe era indiferente que ela continuasse a viver, Sob a condição de se manter quieta, mas que, por sua parte, ele estava fatigado da vida. Segurando-se ao outro bordo da mesa. Winifred respondeu-lhe:

- Não seja palhaço, Monty. Você foi à Scotland Yard? Encostando o cano do revólver ao peito, Dartie apertou o

gatilho várias vezes. Mas a arma não estava carregada. E, deixando-a cair, com uma praga, ele murmurara:

- Por amor dos meus filhos! - E atirou-se numa cadeira. Winifred, depois de apanhar o revólver, deu ao marido um pouco de água-soda.

A bebida teve um efeito mágico. A vida sempre o maltratara. Winifred nunca o compreendera. Se ele não tinha direito de levar aquelas pérolas, que ele próprio lhe dera, quem o teria? Aquela potra espanhola apanhara-o. Se Winifred tinha objecções a fazer, ele cortar-lhe-ia o pescoço - a ela.

Winifred, que aprendera a dominar-se numa dura escola, ergueu os olhos para o marido e disse:

- Potra espanhola? Quer referir-se àquela mulher que nós vimos a dançar no Pandemonium Ballet? Você é mesmo um ladrão e um patife!

Aqueles epítetos acabaram de esmagar uma consciência já sobrecarregada de um doloroso peso. Da cadeira onde estava sentado, Dartie agarrou o braço da mulher, e, lembrando-se das façanhas de infância, começou a torcê-lo. Winifred suportou a dor com lágrimas nos olhos, mas sem um grito. Descobrindo nele um momento de fraqueza, libertou-se, depois, pondo a mesa entre ambos, disse de dentes cerrados:

- Você não presta para nada, Monty.

Subiu ao quarto, e, deixando na sala de jantar o marido, que tinha manchas brancas de espuma sobre o bigode, aferrolhou a porta, banhou o braço em água quente e ficou toda a noite acordada, a pensar nas suas pérolas, que estavam a enfeitar o colo de outra, e nas coisas que, indubitavelmente, o marido recebera em troca.

O homem do mundo despertou com a vaga sensação de estar perdido para este vale de lágrimas e a vaga lembrança de terem proclamado que ele «não prestava para nada». Durante meia hora ficou sentado à meia luz da madrugada, na mesma poltrona onde dormira - e aquela meia hora foi talvez a mais miserável de todas as que vivera, porque, mesmo para os Dartie, os fins têm qualquer coisa de trágico. E ele sabia que chegara a um fim. Nunca mais dormiria naquela sala de jantar, para despertar quando a luz se filtrasse através das cortinas que Winifred comprara em Nickens e Jarveys, com o dinheiro de James. Nunca mais almoçaria uma costeleta tostada naquela mesa de pau-rosa, depois de ter mudado a roupa e tomado um banho morno. Tirou a carteira do bolso da casaca. Quatrocentas libras - em notas de cinco e de dez - eis o que lhe restava do preço da sua metade de Sleeve-Links. Comprara-a na noite passada George Forsyte, que não concebera pelo animal - pois ele lucrara com a corrida - a mesma súbita aversão que ele, Dartie, sentia agora. O ballet embarcaria no dia seguinte com destino a Buenos Aires, e ele acompanhá-lo-ia. Ainda não fora pago de todo o valor das pérolas. Subiu a escada na ponta dos pés, sem ousar tomar banho nem fazer a barba (aliás a água deveria estar fria), mudou de roupa e arrumou furtivamente tudo o que pôde. Fazia dó abandonar tantos sapatos de verniz, mas era mister sacrificar qualquer coisa. Depois, com uma maleta em cada uma das mãos, encaminhou-se para a entrada. A casa estava inteiramente calma - a casa onde engendrara os seus quatro filhos. E era um momento curioso aquele - a porta do quarto da mulher, que ele outrora admirara, que amara talvez, e que lhe dissera que ele «não prestava para nada». Consolidou-se na sua resolução pensando nessas palavras e prosseguiu o caminho, sempre na ponta dos pés. Porém a porta seguinte foi mais difícil de passar. Era a do quarto das filhas. Maud estava no colégio, mas Imogen devia provavelmente estar a dormir, e os olhos de Dartie, ainda mal abertos àquela hora matinal, humedeceram-se. Dos quatro, era a que mais se parecia com o pai, com os cabelos pretos e o olhar escuro e aveludado. Em pleno desenvolvimento, era uma linda criatura. Depôs as maletas. Aquela abdicação, por assim dizer formal, da sua paternidade, era-lhe dolorosa. A luz da manhã clareou um rosto agitado por uma emoção verdadeira. Não era o arrependimento, esse sentimento falso, o que ele sentia, mas um verdadeiro amor de pai, e a melancolia do «nunca mais». Passou a língua nos lábios e durante um momento de irresolução absoluta as pernas ficaram-lhe paralisadas, dentro das calças de xadrez que as cobriam. Era duro, duro, ser obrigado assim a abandonar a sua própria casa. «Diabos o levem!», murmurou ele. «Nunca pensei que isto acabasse assim!» Alguns rumores, lá em cima, preveniram-no de que as criadas já estavam a levantar-se. E, agarrando bruscamente as maletas, desceu as escadas na ponta dos pés. Chorava, e a sensação das lágrimas que lhe corriam sobre a face confortava-o, como se elas fossem uma garantia da realidade do seu sacrifício. Demorou-se um pouco nas salas do rés-do-chão, para arrumar todos os charutos que possuía, alguns papéis, o chapéu claque, uma cigarreira de prata e um guia Ruffs. Depois preparou uma dose forte de whisky e soda, acendeu um cigarro e hesitou um momento diante de uma fotografia das duas filhas, numa moldura de prata. Pertencia a Winifred. «Não faz mal», pensou ele. «Ela pode mandar tirar outro retrato, eu é que não posso!» E meteu a fotografia na maleta. Depois pôs o chapéu e vestiu o sobretudo, apanhou dois outros, a sua melhor bengala de junco e um guarda-chuva, e abriu a porta de entrada. Fechando-a suavemente atrás de si, saiu, carregado como nunca se vira, e atingiu a esquina para esperar lá a passagem de algum cab madrugador.

E foi assim que Montague Dartie, aos quarenta e cinco anos de idade, abandonou a casa a que chamara sua.

Quando Winifred desceu e compreendeu que o marido partira, o seu primeiro sentimento foi de cólera surda à ideia de que ele se furtara às recriminações que ela cuidadosamente preparara durante as longas horas de insónia, naquela noite. Fora a New Market ou a Brigthon, e provavelmente com a tal mulher! Dava nojo! Obrigada a um silêncio absoluto diante de Imogen e dos criados e sabendo muito bem que os nervos de seu pai não suportariam a revelação do que se passara, não pudera conter-se mais: fora naquela mesma tarde a casa de Timothy, e contara às tias Hester e Juley, em toda a confiança, a história das pérolas. Só no dia seguinte ela se apercebeu do desaparecimento da fotografia. Que significaria aquilo? Fez um exame minucioso nos objectos deixados pelo marido, e concluiu que ele deveria ter partido definitivamente. Quando se compenetrou disso, parou um momento no meio do quarto de vestir, com todas as gavetas abertas, procurando compreender o que estava a sentir. Realmente não era fácil! Embora ele «não prestasse para nada», era propriedade sua, e para todo o resto da vida ela sentir-se-ia ainda mais pobre, seria viúva, e ao mesmo tempo não o seria, aos quarenta e dois anos, e, com quatro filhos, tornar-se objecto de escândalo e comiseração! E ele partira com uma dançarina espanhola! Lembranças, sentimentos que já supunha esquecidos, reviveram dentro dela. dolorosos, profundos, tenazes. Mecanicamente, foi fechando as gavetas, dirigiu-se à cama, deitou-se, escondeu o rosto entre os travesseiros.

Não chorou. Que lhe adiantaria? Quando se levantou do leito e desceu para o almoço, sentiu que uma única coisa lhe faria bem: a volta de Val para casa. Val, o seu filho mais velho, que deveria ir para Oxford no mês seguinte, a expensas de James, estava naquela ocasião em Littlehampton, ele dizia, imitando as expressões do pai, que estava lá a receber do seu treinador os últimos toques para a corrida de admissão. E a mãe mandou-lhe um telegrama.

- Preciso ver como está a roupa dele - explicou ela a Imogen. - Val não pode ir para Oxford com as coisas à toa. Os rapazes são muito exigentes.

- Val tem muita roupa - respondeu Imogen.

- Eu sei. Mas precisa de uma revista. Espero que ele venha.

- Ele há-de vir ligeiro como uma bala, mamã. Mas será reprovado no exame.

- Não posso evitar isso - disse Winifred. - Preciso dele.

Erguendo para a mãe um olhar inocente e penetrante, Imogen não respondeu. Era por causa do pai, naturalmente! Val chegou, «como uma bala», às seis horas. Imagine-se um cruzamento entre um pickle e um Forsyte, e teremos o jovem Publius Valerius Dartie. Aliás, com tais nomes, ser-lhe-ia difícil dar coisa melhor. Quando ele nascera, Winifred, na sua alegria exaltada e na sua sede de distinção, decidira que os seus filhos todos haveriam de ter nomes como os não possuía ninguém. (Hoje rendia graças por não ter chamado Thisbe a Imogen, como pretendera então.) Mas era a George Forsyte, o eterno trocista, que Val devia os seus complicados prenomes. Aconteceu que Dartie jantou em companhia de George oito dias depois do nascimento do seu herdeiro e mencionou essa aspiração de Winifred.

- Chame-lhe Catão - disse George. - Ficará picante como o diabo!

George acabava de ganhar dez libras num cavalo com esse nome.

- Catão! - respondeu Dartie. Eles eram bastante «modernos» entretanto. - Mas isso não é nome para um cristão!

- Venha cá! - chamou George pelo criado de calções curtos. - Vá buscar-me à biblioteca a Enciclopédia Britânica, letra C.

O criado trouxe o volume.

- Cá está! -disse George, apontando com o charuto. - «Catão, Publius Valerius: Virgílio e Lídia.» Está aqui o que vocês querem! Publius Valerius é bastante cristão.

Dartie, ao chegar a casa, falara a Winifred. Ela ficou encantada. Era tão chique! E Publius Valerius foi o nome do bebé. embora eles houvessem descoberto depois que haviam escolhido justamente o menor dos dois Catões. Em 1890, entretanto, quando o pequenino Publius estava quase a fazer dez anos, a palavra "chique" passou da moda, e iniciou-se uma era de sobriedade. Winifred começou a ter dúvidas. Dúvidas confirmadas pelo próprio Publius. que, quando chegou de férias, depois dos seus três primeiros meses de colégio, queixou-se desse nome que o tornava o divertimento dos colegas, que lhe chamavam "Pubbi". Winifred, mulher decidida, prontamente o mudou de colégio e trocou-lhe o nome para Val, sendo o Publius reduzido a apenas uma inicial.

Aos dezanove anos, ele era um rapaz esbelto, com sardas no rosto, boca ampla, olhos claros, cílios longos, um sorriso realmente agradável, consideráveis conhecimentos sobre o que não devia saber e uma ignorância maior sobre o que deveria entender. Poucos rapazes estiveram tão próximos de uma expulsão do colégio - era um malandro encantador! Depois de beijar a mãe e beliscar Imogen, subiu os degraus da escada a três e três, e logo os desceu quatro a quatro, em trajo de cerimónia. Sentia muito, mas o seu "treinador", que também viera a Londres, convidara-o a jantar no Oxford and Cambridge, não podia faltar, o velhote ficaria ofendido.

Winifred deixou-o partir com um orgulho triste. Gostaria de tê-lo em casa, mas era agradável saber que o seu «preceptor» o estimava tanto. No momento de sair, ele piscou o olho para Imogen e disse:

- Oh, mamã, será que poderiam preparar-me dois ovos cozidos para quando eu voltar? Será esplêndido. E escute, a mamã tem dinheiro? Tive de pedir cinco libras emprestadas ao velho Snobby.

Winifred lançou-lhe um olhar carregado de penetrante afeição e respondeu:

- Meu filho, você é muito desmiolado em matéria de dinheiro. Mas não lhe pague hoje: você é convidado dele.

Como Val estava bonito, tão delgado, com o seu colete branco e os espessos cílios pretos!

- Oh! Mas nós depois vamos ao teatro, mamã. E acho que eu é que devo pagar os bilhetes, ele anda sempre com pouco dinheiro.

Winifred estendeu-lhe uma nota de cinco libras, dizendo:

- Afinal, talvez seja melhor que você pague, mas, depois, não precisa de pagar o teatro.

Val meteu o dinheiro no bolso.

- Nesse caso, não o pagarei-disse ele. - Boa noite, mamã! Saiu de cabeça levantada, com o chapéu derreado para trás.

aspirando o ar de Piccadilly, como um jovem cão de caça solto numa coelheira. Bom negócio! Depois da pasmaceira daquele lugarejo onde estava!

Reuniu-se ao «preceptor», não no Oxford and Cambridge. mas no Goafs Club. Aquele «preceptor» tinha menos de um ano mais que ele. Bonito adolescente, com lindos olhos castanhos, cabelos escuros e lustrosos, boca pequena, rosto oval, um certo ar lânguido, trajo impecável, placidez extrema, era um desses rapazes que, sem esforço, tomam ascendência sobre os condiscípulos. Quase fora expulso do colégio um ano antes de Val, passara aquele ano em Oxford, e faltava pouco para que Val lhe descobrisse uma auréola em redor da cabeça. Chamava-se Crum, e não havia ninguém que soubesse melhor que ele fazer desaparecer o dinheiro. Parecia ser aquele o seu único fito na vida, e isso deslumbrava o jovem Val, em quem, entretanto, de vez em quando, transparecia o Forsyte, e indagava onde arranjaria ele tanto dinheiro.

Jantaram tranquilamente, com distinção e bom gosto, deixaram o clube a fumar charutos, depois de terem bebido exactamente duas garrafas, e deixaram-se cair nas poltronas do Liberty. Para Val, o som das cantigas humorísticas e o espectáculo das lindas pernas eram obscurecidos e amortecidos pelo receio de nunca poder atingir o tranquilo dandismo de Crum. O seu idealismo era simulado, e nesses casos uma pessoa nunca se sente à vontade. Com certeza ele tinha a boca grande de mais, o colete não era de bom corte, a calça não tinha galão de retrós e as luvas cor de alfazema não eram bordadas a soutache preto no dorso. E, além disso, ria de mais - Crum nunca ria, limitava-se a sorrir, erguendo ligeiramente as sobrancelhas negras e regulares por sobre as pálpebras levemente descidas. Não! Nunca seria igual a Crum! Apesar disso, o espectáculo era excelente, e Cynthia Dark era simplesmente assombrosa. Durante os entreactos, Crum transmitia-lhe deliciosos pormenores sobre a vida íntima de Cynthia, e Val informou-se desta coisa formidável: se quisesse, Crum poderia ir aos bastidores. Teve uma vontade furiosa de lhe dizer: «Pois leve-me com você!», mas não ousou, e aquilo tornou-o quase desgraçado durante os dois últimos actos, ou um pouco menos. Quando saíram, Crum disse:

- Ainda falta meia hora para o Pandemonium fechar. Vamos até lá!

Apanharam um cab para transpor os cem metros que os separavam de lá e compraram cadeiras de sete shillings e seis pence, porque iam ficar de pé, deambulando pela promenade. Era nessas pequenas coisas, nesse desprezo absoluto pelo dinheiro, que Crum mostrava um verniz tão cheio de encanto. Era o fim do espectáculo e a última exibição do ballet, pelo que a circulação na promenade sofria as consequências disso. Homens e mulheres acumulavam-se em três filas contra a balaustrada. O turbilhão das formas, o clarão deslumbrante das cores e das luzes da cena, a semiobscuridade, a mistura do cheiro dos cigarros e dos perfumes femininos, essa estranha atmosfera de convite à promiscuidade, característica de todas as promenades, começaram a libertar o jovem Val do seu idealismo. Lançou um olhar de admiração para o rosto de uma moça, viu depois que ela não era moça, realmente, e afastou rapidamente os olhos. Sombras de Cynthia Dark! O braço da mulher tocou o dele, inconscientemente, chegou-lhe ao nariz um cheiro de musgo e reseda. Val olhou-a de lado, por baixo dos cílios. Afinal talvez ela fosse moça. O pé da mulher tocou o seu e ela pediu perdão. Ele disse:

- Oh, não foi nada. Bonito o ballet, não acha?

- Oh! Já estou cansada! E você?

O jovem Val sorriu, com o seu sorriso atraente. Não ousou aventurar-se mais longe, porque a sua convicção não estava ainda completa. No palco, o ballet fazia girar numa ronda endiabrada o seu calidoscópio de branco nevoso, rosa-salmão, verde-esmeralda e violeta, e pareceu de súbito imobilizar-se numa pirâmide cintilante. Rebentaram aplausos, e aquilo foi o fim! Cortinas cor de vinho roubaram a cena da vista da sala. O semicírculo de homens e mulheres que se formara em torno da balaustrada rompeu-se, o braço da rapariga apertou o de Val. A alguma distância, um grupo agitado parecia ter por centro um homem em cuja botoeira floria um cravo cor-de-rosa. Val lançou outro olhar furtivo para a rapariga que espiava para o lado do barulho. Com passo incerto, três homens saíram da aglomeração, de braços dados. No meio estava o homem do cravo cor-de-rosa, com um colete branco, bigode preto, titubeava ligeiramente. Crum disse lenta e nitidamente: «Olhe aquele gigolot velhote, bêbado!» Val voltou a cabeça. O «velhote» libertara o braço e apontava-os com o dedo. Mais nítida do que nunca, a voz de Crum disse:

- Ele parece conhecê-lo! O «velhote» falou:

- Olá! Olhem todos! Lá está o malandro do meu filho!

Val olhou e viu. Era o seu pai. Ah, se pudesse desaparecer dentro daquele tapete escarlate! Não era o encontro naquele lugar, nem mesmo o facto de o pai estar bêbado, era aquele nome depreciativo de gigolot e cuja justeza lhe aparecia agora como por efeito de uma revelação divina. Sim, o pai tinha realmente ares de um gigolot, com os seus olhos escuros e lânguidos, o cravo no peito, a silhueta maciça e vistosa. E, sem uma palavra, mergulhou por trás da mulher e eclipsou-se na galeria. Ouviu alguém gritar «Val!» por trás dele e, sempre correndo, desceu as escadarias cobertas de um tapete espesso, passou pelas bilheteiras e fugiu para a praça.

Talvez a pior prova por que um rapaz possa passar seja a de envergonhar-se do seu próprio pai. E parecia a Val, enquanto se afastava em passos rápidos, que a sua carreira terminara antes de começar. Como poderia ele agora ir para Oxford, conviver com todos aqueles camaradas, aqueles amigos esplêndidos de Crum, que saberiam que o seu pai era um gigolot! E de súbito detestou Crum.

Quem era Crum para ousar dizer tal coisa? Se Crum estivesse ao lado de Val naquele instante, um empurrão tê-lo-ia lançado do passeio abaixo. Seu pai - seu próprio pai. Um soluço subiu-lhe à garganta, e, num gesto furioso, o rapaz enterrou as mãos no bolso do sobretudo. Para os diabos, Crum! E ocorreu-lhe a ideia louca de voltar ao Pandemonium, procurar o pai, dar-lhe o braço e tornar a passar diante de Crum assim acompanhado. Mas abandonou logo a ideia, e prosseguiu o seu caminho ao longo de Piccadilly. Uma rapariga abordou-o:

- Porque está com tanta raiva, queridinho?

Ele assustou-se, desviou-se da mulher e sentiu que recuperava inteiramente a calma, se alguma vez Crum abrisse a boca, ele dar-lhe-ia uma tareia e tudo estaria sanado. Caminhou mais cem metros, tranquilizado por esse pensamento, depois perdeu toda a consolação que ele lhe dava. Não era assim tão simples. Ele sabia que nos colégios, com um pai vergonhoso, o filho ficava marcado. Porque teria sua mãe casado com ele, se sabia que casava com um gigolot? Era por de mais injusto-realmente uma maldade, dar-lhe um pai que não passava de um gigolot. O pior era que, depois de Crum ter dito aquilo, ele apercebia-se de que já há muito tempo notara subconscientemente que o pai não era «uma grande figura». Era o mais sórdido caso que lhe havia acontecido - o mais sórdido caso que jamais acontecera a alguém. E, mais desanimado do que nunca se sentira na sua vida, atingiu Green Street e entrou em casa com uma chave que contrabandeara. Na sala de jantar os ovos esperavam-no, preparados de modo atraente, com torradas de pão com manteiga e um pouco de whisky no fundo de uma garrafa - só o bastante, pensara Winifred, para ele se considerar um homem, porém ele sentiu náuseas ao olhar para aquilo e subiu a escada.

Winifred ouviu-o passar e disse consigo: «O meu filhinho já voltou, graças a Deus! Se ele imitar o pai, não sei o que será de mim. Mas não - o meu filho parece-se comigo.»

 

SOAMES PREPARA-SE PARA AGIR

Quando entrou na sala da irmã, mobilada à Luís XV, com uma pequena sacada sempre florida de gerânios no Verão, e agora ornada de vasos de Lilium Auratum, Soames sentia-se abalado pela imutabilidade dos problemas humanos. A sala parecia a mesma da sua primeira visita aos Dartie recém-casados, vinte e um anos atrás. Ele próprio escolhera a mobília, e fizera-o de modo tão completo que nenhuma tentativa posterior conseguira modificar a atmosfera da sala. Sim, ele instalara bem a irmã, como ela o queria, e realmente fora uma grande coisa para Winifred, durante a sua vida com Dartie, ter contado com uma boa instalação. Desde o começo Soames farejara a natureza de Dartie, sob as aparências de gentileza, savoir faire e elegância com que ele deslumbrara Winifred e a mãe deles, e até mesmo James, que chegara a permitir que aquele sujeito casasse com sua filha sem nada trazer além de algumas acções sem valor.

Winifred estava sentada à sua secretária embutida e tinha uma carta na mão. Ergueu-se e veio ao encontro de Soames. Da mesma altura que o irmão, com as maçãs do rosto fortes e um vestido de bom corte, tinha algo na expressão da face que inquietou Soames. Amarrotou a carta entre os dedos, mas depois mudou de ideia e estendeu-a ao outro. Soames era seu advogado, além de seu irmão.

Soames leu o seguinte, escrito em papel com cabeçalho do Iseeum Club:

 

Agora já você não poderá mais insultar-me em minha própria casa. Partirei amanhã da Inglaterra. Acabou a comédia. Estou cansado dos seus insultos. Foi você que o quis assim. Nenhum homem que se respeite pode suportar isso. Nunca mais lhe pedirei nada. Adeus. Trouxe a fotografia das meninas. Dê saudades minhas a elas. Touco me importo com o que dirá a sua família. Eles é que têm a culpa disto tudo.

Vou iniciar uma vida nova.

  1. D.

 

No bilhete, rabiscado depois do jantar, uma grande mancha incolor não secara ainda. Soames olhou para Winifred. Fora ela, evidentemente, que fizera a mancha, e ele conteve-se para não exclamar: «Que alívio!» E compreendeu então que, graças àquela carta, a irmã entrava na situação que ele tão ardentemente desejava abandonar: a situação de um Forsyte que não se divorciou.

Winifred afastara-se e voltava-lhe as costas, estava a aspirar longamente o conteúdo de um frasco de gargalo dourado. Uma obscura comiseração, vagamente mesclada ao sentimento de que fora lesado, insinuou-se no coração de Soames. Ele viera até ali para falar da sua própria situação, para se queixar, para sentir a solidariedade dela, e eis que encontrava a irmã em posição idêntica, querendo naturalmente falar naquilo e receber os protestos de solidariedade dele. Era sempre assim. Nunca ninguém desconfiava de que ele tivesse as suas complicações e os seus interesses. Dobrou a carta manchada e perguntou:

- Que foi que houve?

Winifred contou calmamente a história das pérolas.

- Você pensa que ele se tenha realmente ido embora, Soames? Vê-se bem o estado em que ele estava quando escreveu isto.

Quando Soames desejava uma coisa, propiciava a Providência fingindo que não acreditava nela. E respondeu:

- Creio que sim, posso indagar qualquer coisa no clube dele.

- Se George estiver lá - disse Winifred -, certamente que sabe.

- George? - perguntou Soames. - Vi-o no enterro do pai.

- Então está, na certa.

Soames, cujo bom senso aplaudia a dedução da irmã, disse-lhe sem entusiasmo:

- Bem, vou lá. Você contou qualquer coisa em Park Lane?

- Falei a Emily - respondeu Winifred. Ela chamava a mãe pelo nome, pois considerava isso muito chique. - O pai, se soubesse, tinha um ataque.

Na verdade, todos tinham agora muito cuidado em manter James na ignorância das coisas desagradáveis. E com outro olhar à mobília, como para apreciar a posição da irmã, Soames partiu para Piccadilly. A noite caía, com uma ponta de frio na bruma de Outubro. Ele caminhava em passo rápido, com o jeito fechado e concentrado que lhe era habitual. Precisava andar depressa, pois desejava jantar no Soho. Quando o porteiro do Iseéum Club lhe disse que Mr. Dartie não viera, ele lançou um olhar ao homem e perguntou se Mr. George Forsyte também não estava. Estava. Soames sempre se sentia pouco à vontade na presença do primo, que gostava de pilheriar à sua custa, seguiu entretanto o criado, levemente tranquilizado ao pensar que George acabava de enterrar o pai. Deveria ter herdado umas trinta mil libras, sem falar da doação que Roger lhe havia feito em vida, e que escapara aos direitos de sucessão. Encontrou George junto ao vão de uma janela, sentado defronte de um prato de muílins (1). Grande, corpulento, vestido de negro, o vulto dele assumia proporções quase ameaçadoras, ao mesmo tempo que conservava a correcção meio sobrenatural do turfman. Careteou um sorriso débil na face carnuda e disse:

- Olá, Soames! Quer um mulfin?

- Não, obrigado - murmurou Soames. - Depois, voltando o chapéu entre os dedos, com o desejo de dizer qualquer coisa que se ajustasse à situação e testemunhasse simpatia, perguntou: - Como está a sua mãe?

 

*1. Bolo semelhante aos nossos sonhos. (N. da T.)

 

- Vai mais ou menos, obrigado. Faz um século que não o vejo. Você nunca vai às corridas. Que há de novo na City?

Sentindo a aproximação das piadas, Soames disse logo o que pretendia.

- Queria perguntar-lhe uma coisa a respeito de Dartie. Dizem que...

- Abandonou o lar e fugiu para Buenos Aires com a linda Lola. Bom negócio para Winifred e os pequenos. Aquele sujeito é um azar.

Soames aprovou com um aceno de cabeça. A despeito da hostilidade natural que havia entre ambos, Dartie aproximava os primos.

- Agora o tio James vai poder dormir descansado - prosseguiu George. - Na certa ele também lhe tirou bastante dinheiro.

Soames sorriu.

- Ah, cada um tem o seu dia - disse George amigavelmente. - É um camarada incrível. Aquele menino, Val, há-de carecer que o vigiem. Eu sempre tive dó de Winifred. É uma mulher corajosa.

Novamente Soames aprovou com um aceno de cabeça.

- Preciso procurá-la - disse ele. - Ela queria ter uma certeza. Talvez nós tenhamos de tomar uma atitude qualquer. Quero crer que não há engano possível?

- É inteiramente okay - disse George, com a sua gíria tranquila. - Ele ontem estava bêbado como um lorde, porém partiu realmente hoje de manhã. O navio é o Tuscarora. - E tirando do bolso um cartão, leu num tom chocarreiro: - «Mr. Montague Dartie, Posta-Restante, Buenos Aires.» Se eu fosse vocês, agiria depressa. Esta noite ele chegou a enojar-me.

- Sim - disse Soames -, mas essas coisas nem sempre são fáceis. - Depois, compreendendo pelo olhar de George que despertara no primo a lembrança do seu próprio caso, ergueu-se e estendeu-lhe a mão. George também se levantou.

- Lembranças a Winifred. Se você me ouvir, inscreva-a imediatamente no Páreo do Divórcio.

Da porta, Soames lançou ao outro um olhar de viés. George sentara-se novamente e olhava fixamente em frente de si, tinha

um ar enorme e solitário, no seu trajo preto. Soames nunca o vira tão pacífico. «Quero crer que, de uma certa forma, isto impressionou-o», pensou ele. «Somando tudo, eles devem receber cerca de cinquenta mil libras cada um. Devem guardar as propriedades em comum, se houver guerra, o preço dos imóveis baixará. Apesar de tudo, o tio Roger era perito nessas coisas.» E na rua, que as trevas começavam a invadir, Soames viu aparecer-lhe o rosto de Annette, os seus cabelos castanhos, os olhos azuis, cujos cílios eram negros, a frescura da boca e das faces, que conservavam, apesar da atmosfera de Londres, a humidade do orvalho e um brilho de flor: o corpo perfeito de francesa. «Agir», pensava ele. Ao chegar a casa de Winifred, encontrou à porta Val, e entraram juntos. Uma ideia ocorreu a Soames: o seu primo Jolyon era o administrador da herança de Irene, e a primeira coisa a fazer seria ir vê-lo a Robin Hill. Robin Hill! Que estranhíssimo sentimento despertava nele esse nome. A casa que Bosinney construíra para Irene e ele, a casa em que eles nunca haviam morado - a casa fatal! E Jolyon morava lá, hoje! Hum! E de súbito pensou: «Dizem que ele tem um filho em Oxford. E se eu levasse Val lá, para que os dois fizessem amizade? Porque não? É um pretexto. Assim, a coisa teria um ar muito mais natural, muito mais!» De forma que disse a Val, enquanto subiam a escada:

- Você tem um primo em Oxford, a quem não conhece. Gostarei muito de o levar lá amanhã, e apresentá-lo a si. Talvez possa ser-lhe útil.

Porém, como Val recebia a proposta com um medíocre entusiasmo, Soames deu o caso como resolvido:

- Passarei amanhã aqui depois do almoço para o levar. É no campo, mas não é longe. A viagem vai agradar-lhe.

Ao entrar na sala, lembrou-se com esforço de que era a Winifred, e não a ele próprio, que interessavam as medidas que encarava naquele instante.

Winifred estava ainda sentada à sua secretária.

- É realmente verdade. Ele embarcou para Buenos Aires hoje de manhã. E devemos mandá-lo seguir logo que pisar terra. Vou telegrafar imediatamente. Se não for assim, teremos de fazer despesas enormes. Quanto mais depressa se fazem estas coisas, melhor.

Eu hei-de lamentar sempre não ter feito... - Interrompeu-se e olhou de lado para Winifred silenciosa. - A propósito - continuou ele -, será que você pode fornecer provas de maus tratos? Winifred respondeu-lhe num tom lânguido:

- Não sei. Que entende você por maus tratos?

- Ora, não lhe bateu, nem fez qualquer coisa de análogo? Winifred pareceu mais abatida, e o seu queixo tornou-se

quadrado.

- Torceu-me o braço. Será que vale a pena contar que ele me apontou o revólver? Ou que entrou bêbado a ponto de não poder mudar de roupa? Ou... Não posso arrastar os meninos num caso desses.

- Não - disse Soames -, não. Fico a pensar... Bem entendido, há a separação legal de corpos e bens, pode-se arranjar isso Apenas separação. Hum!

- Que significa isso? - perguntou Winifred, desolada.

- Significa que ele não terá mais poder nenhum sobre você, nem você sobre ele, ao mesmo tempo serão e não serão casados.

- E Soames soltou novo gemido. Afinal não seria mais que a sua própria maldita situação legalizada! Não, não poria a irmã numa posição assim! - É preciso que se obtenha um divórcio

- disse ele com decisão. - Na falta de maus tratos, pode-se alegar abandono do lar. Já existe agora um método de abreviar os dois anos. Obteremos do tribunal uma intimação para que ele reintegre o domicílio conjugal. E, se ele não o fizer, poderemos requerer o divórcio dentro de seis meses. Sei bem que você não deseja vê-lo de volta. Mas ninguém precisa saber disso. É verdade que fica a haver o risco de que ele regresse. Será talvez melhor tentar os maus tratos.

Winifred abanou a cabeça.

- É tão repugnante!

- Afinal - murmurou Soames -, talvez não haja tanto risco enquanto ele estiver apaixonado pela bailarina e possuir algum dinheiro. Não diga nada a ninguém e não lhe pague nenhuma das dívidas.

Winifred suspirou. Apesar de tudo o que suportara, sentia muito aquela perda. E a ideia de não pagar mais as dívidas do marido punha-a em contacto com a realidade, como nada a pusera antes. Parecia que uma riqueza lhe fugira da vida. Tinha agora de afrontar o mundo sem o marido, sem as suas pérolas e sem o sentimento íntimo de que fazia boa figura abafando a desorganização doméstica. Sentia-se realmente de luto.

E no beijo frio que depôs na testa da irmã Soames pôs mais calor que de costume.

- Devo ir a Robin Hill amanhã - disse ele. - Tenho de ver Jolyon filho a respeito de alguns negócios. Ele tem um filho em Oxford. Creio que vale a pena levar comigo Val e apresentá-lo lá. Porque não vai passar o fim-de-semana com os meninos, lá no Shelter? Ah, não, amanhã não pode ser, tenho outros convidados.

E, dizendo isto, saiu e tomou o caminho do Soho.

 

SOHO

De todos os bairros que compõem o exótico e extravagante amálgama chamado Londres, o Soho é talvez o menos compatível com o espírito dos Forsyte. «Vai ao Soho, seu malandro!», teria dito George, se visse o primo tomar essa direcção. Sujo, cheio de gregos, de levantinos, de gatos, de italianos, de tomates, de restaurantes, de realejos, de fazendas coloridas de nomes exóticos, de gente espiando nas janelas altas, o Soho mantém-se afastado do Corpo Político Britânico. Contudo, tem instintos de propriedade que lhe são peculiares e que lhe elevam os alugueres mesmo quando os dos outros bairros estão em crise. Durante longos anos, os conhecimentos de Soames com o Soho tinham-se reduzido ao seu bastião ocidental, ou seja Wardour Street. Muitos negócios fizera ele ali. Mesmo nestes sete anos que se tinham passado após a morte de Bosinney e a fuga de Irene, muitas vezes adquirira tesouros por lá, embora já não tivesse mais sítio vago onde os pendurar, pois, quando se consolidara nele a convicção de que a mulher partira para sempre, mandara apor este cartaz na sua casa de Montpellier Square:

 

À VENDA ESTA EXCELENTE RESIDÊNCIA

Tratar com Messrs. Lesson & Tukes Court Street, Belgravia

 

Vendera-a dentro de uma semana - aquela excelente residência, à sombra de cuja perfeição um homem e uma mulher haviam devorado o coração um do outro.

Numa nevoenta tarde de Janeiro, pouco antes de o cartaz ser retirado, Soames fora lá uma vez mais, e ficara encostado às grades da praça, olhando para aquelas janelas apagadas, ruminando lembranças de posse que hoje lhe amargavam tanto na boca. Porque nunca o amara Irene? Porquê? Ela recebera tudo que ambicionava, e em troca dera-lhe, a ele, durante três longos anos, tudo o que ele desejava - excepto, na verdade, o coração. Soames engoliu um pequeno soluço involuntário e um polícia que passava olhou-o, suspeitoso - olhou para ele, que em breve já não possuiria o direito de transpor aquela porta pintada de verde, cuja aldrava esculpida se via sob o cartaz «À VENDA». Uma sensação penosa constrangeu-lhe a garganta, e ele fugiu por entre a neblina. Naquela noite, então, encaminhou-se para Brighton, à procura de vida...

Caminhando para Malta Street, no Soho, em direcção ao Restaurant Bretagne, onde encontraria Annette inclinando sobre as costas os lindos ombros, Soames pensava com espanto naqueles sete anos que passara em Brighton. Porque decidira ficar por tanto tempo naquela cidade desprovida do perfume das ervilhas-de-cheiro, onde não tinha sequer espaço para pendurar os seus tesouros? Na verdade, não tinham sido anos em que lhe sobrasse tempo para os olhar - anos de quase apaixonada corrida atrás do dinheiro, durante os quais Forsyte, Bustard & Forsyte haviam cuidado dos interesses de muito mais empresas comerciais do que podiam realmente dar conta. Ia para a City, pela manhã, num carro Pullman, e voltava à tarde num carro Pullman. Papéis legais para estudar ainda à noite, depois o pesado sono da fadiga, e novamente a viagem pela manhã. Do sábado à segunda, passava esses dias no seu clube na cidade - numa curiosa inversão dos hábitos de toda a gente, baseado no seu profundo e cuidadoso instinto de que, enquanto trabalhava, precisava aspirar o ar do mar duas vezes por dia, no percurso de ida e volta da estação, e, por outro lado, nos dias de repouso, devia satisfazer as suas afeições domésticas.

Ao domingo visitava a família, em Park Lane e em Green Street: e as outras visitas ocasionais, aqui e ali, também lhe pareciam tão necessárias à saúde como o ar do mar nos dias de semana. Mesmo depois da sua migração para Mapledurham, Soames mantivera esses hábitos - até que conhecera Annette. Se fora Annette que causara essa revolução nos seus hábitos, ou se fora a revolução que provocara o aparecimento de Annette, ele sabia-o tanto quanto se pode saber onde começa um círculo. E a isso somava-se o seu crescente sentimento de que propriedade sem um herdeiro para a recolher é a negação do verdadeiro forsytismo. Possuir um herdeiro, que fosse como a continuação de si próprio, que começasse quando ele acabasse - garantia, de facto, de que ele nunca acabaria -, era a sua obsessão de havia mais de um ano para cá.

Depois de negociar um Wedgwood, numa certa tarde de Abril, encaminhara-se para Malta Street a fim de ver uma casa, pertencente a seu pai, que haviam transformado em restaurante - o que representava uma operação arriscada e em desacordo com as condições do contrato de locação. Demorara-se alguns instantes a considerar a fachada, revestida de uma pintura creme, de bom aspecto, a porta ostentava dois pequenos loureiros, em grandes caixas pintadas de azul-rei, e era encimada pelo letreiro dourado: Restaurant Bretagne - e o conjunto impressionara-o favoravelmente. Depois entrara, notando que já vários fregueses estavam instalados em torno das mesinhas redondas, pintadas de verde, sobre as quais havia flores frescas e pratos de louça da Bretanha, perguntou pelo proprietário a uma criada vestida com bom gosto. Levaram-no a uma sala de fundo, onde estava sentada uma moça junto a uma secretária singela, coberta de papéis, numa pequena mesa redonda, na mesma sala, estavam postos dois talheres. Tudo aquilo dera-lhe uma impressão de asseio, de ordem e de bom gosto, impressão que se confirmou quando a moça se ergueu e lhe disse, num inglês hesitante:

- Deseja ver a mamã, monsieur?

- Sim - disse Soames. - Sou o representante do seu senhorio, filho dele, na verdade.

- Quer fazer o favor de se sentar? - E acrescentou, dirigindo-se à criada: - Diga à mamã que venha falar com este cavalheiro.

Ele gostara de ver o interesse da moça, sinal de que tinha o instinto dos negócios. E de súbito observou que a rapariga era notavelmente bonita - tão bonita que os olhos resistiam a deixar-lhe o rosto. Quando ela deu alguns passos para lhe estender uma cadeira, notou que o seu andar tinha uma ondulação subtil e curiosa, como se houvesse sido feita pelas mãos de um fabricante possuidor de algum segredo especial, e o rosto e o colo - ligeiramente descoberto - pareciam tão frescos como se houvessem sido salpicados de orvalho. Desde esse instante, provavelmente, Soames decidiu que o contrato de locação não havia sido violado, para si mesmo e para o pai, entretanto, fundou essa decisão na excelência das transformações ilícitas sofridas pelo imóvel, o ar de prosperidade da casa e as evidentes aptidões comerciais de Madame Lamotte. No entanto, teve o cuidado de deixar para mais tarde a ratificação de certos tópicos importantes, e esses tópicos exigiram novas visitas - de tal modo que a pequena sala dos fundos já se habituara a ver-lhe o corpo seco, maciço sem excesso, e o rosto pálido, todo queixo, com o bigode curto e os cabelos pretos que já começavam a encanecer nas têmporas.

«Un monsieur très distingué», era assim que o julgava Madame Lamotte, e acrescentou em breve, vendo os olhos que ele lançava à filha: «Très amical, très gentil.»

Madame Lamotte era uma dessas francesas generosas, de traços finos, cabelo escuro, que, por todos os seus actos, pelo tom de voz, inspiram uma confiança absoluta na solidez das suas virtudes domésticas, nos seus conhecimentos culinários e no aumento zelosamente vigiado da sua conta de banco.

Depois que começaram essas visitas ao Restaurant Bretagne cessaram outras visitas - sem que houvesse nisso, a falar verdade, nada de absolutamente intencional, porque, igual a todos os For syte e a todos os seus compatriotas, Soames era um empírico de nascença. Mas fora essa modificação no seu modo de vida que pouco a pouco lhe fizera sentir claramente o desejo de passar da situação de homem casado-celibatário à situação de homem casado-casado.

Virando a esquina de Malta Street, naquela tarde de começos de Outubro de 1899, comprou um jornal para ver o que havia de novo a respeito do caso Dreyfus - assunto que já lhe servira para estreitar as relações com Madame Lamotte e a filha, que eram católicas e anti-Dreyfus.

Percorrendo as colunas do jornal, Soames não encontrou nada a respeito da França, porém notou uma queda geral na Bolsa e um vergonhoso artigo de fundo a respeito do Transval. Começou a pensar: «A guerra é certa, devo vender as minhas acções.» Não que ele pessoalmente possuísse muitas acções, pois a taxa dos juros era vil, porém deveria prevenir as suas companhias de que as acções de consolidados iam por água abaixo.

Quando transpôs as portas do restaurante, bastou-lhe um olhar para ver que o negócio continuava a ir bem, e essa verificação, que em Abril lhe fora agradável, causava-lhe agora um certo aborrecimento. Se os passos que pretendia dar terminassem pelo casamento com Annette, preferiria que a sogra voltasse definitivamente para a França - e isso era um projecto a que a prosperidade do Restaurant Bretagne poderia servir de obstáculo. Teria de comprar a parte dela, naturalmente, porque os franceses não vêm para a Inglaterra senão para ganhar dinheiro: e aquilo significava que o preço seria elevado. Mas a curiosa impressão que sentia sempre à porta da salinha dos fundos - uma doçura no peito e um ligeiro palpitar do coração - impediu-o de perguntar a si mesmo em quanto importaria esse preço.

Ao entrar, adivinhou uma vasta saia preta que desaparecia no restaurante e encontrou-se na presença de Annette, de pé, com as mãos nos cabelos. Era, entre todas, a atitude em que ele mais a admirava - tão maravilhosamente esbelta, modelada e leve. E disse:

- Vim apenas para falar com sua mãe acerca dessa divisão que ela quer derrubar. Não, não a chame.

- Monsieur quer jantar connosco? Estará pronto dentro de dez minutos.

Soames, que conservara nas suas a mão de Annette, foi vencido por um impulso que o surpreendeu.

- Você está tão linda hoje, Annette, tão linda! Sabe quanto é bonita, Annette?

Annette retirou a mão e corou.

- O senhor é muito amável.

- Amável! Absolutamente! - E sentou-se, melancólico.

As mãos de Annette fizeram um gesto expressivo e um sorriso encrespou-lhe os lábios vermelhos, virgens de pintura. Olhando-lhe os lábios, Soames perguntou:

- Sente-se feliz aqui, ou desejaria voltar para a França?

- Oh, gosto muito de Londres. De Paris também, é claro. Mas Londres é muito melhor que Orléans. E o campo inglês é tão bonito! No domingo passado fui a Richmond.

Durante um instante, Soames debateu-se entre uma veleidade e uma hesitação. Mapledurham? Ousaria? Finalmente, ousaria levá-la até lá e mostrar-lhe que futuro lhe oferecia? Lá poderia falar-lhe. Naquela sala, era impossível.

- Gostaria que você e sua mãe - disse ele de súbito - viessem passar comigo a tarde do próximo domingo. A minha casa é à beira do rio, e ainda não estamos avançados na estação. Além disso, posso mostrar-lhes lindos quadros. Que diz a isso?

Annette juntou as mãos.

- Será adorável. O rio é tão bonito!

- Então está entendido. Vou falar a madame.

Não devia dizer-lhe mais nada, naquela noite, sob o risco de se trair. Não teria talvez já dito de mais? Quem é que convida para a sua casa de campo, a menos que não tenha determinadas intenções, a proprietária de um restaurante e a sua bonita filha? Madame Lamotte compreenderia bem o seu jogo, se Annette não o compreendesse. Ora! Havia poucas coisas que Madame Lamotte não via. Além disso, era aquela a segunda vez que ele jantava com elas à mesa, e devia-lhes hospitalidade.

Quando tomou o caminho de Park Lane - porque estava em casa do pai, naquela semana - guardava a sensação da doce mão de Annette posta na sua e tinha pensamentos agradáveis, levemente sensuais, ou talvez perplexos. Tomar providências! Que providências? Lavar a roupa suja em público? Que nojo! Com a sua reputação de homem sagaz, hábil em prever de longe e em tirar os outros de complicações, ele, o representante das classes proprietárias, tornar-se o joguete dessa mesma justiça da qual era um dos baluartes! Havia nessa ideia algo de revoltante. O caso de Winifred também já era bastante desagradável. E gozar assim de uma dose dupla de publicidade na família! Não seria melhor uma ligação - uma ligação e um filho que ele pudesse adoptar? Mas, sombria, maciça, vigilante, Madame Lamotte interceptava a entrada dessa visão. Não, não podia ser. Seria outra hipótese, se lhe fosse possível inspirar a Annette uma paixão de verdade, mas na sua idade não podia esperar tal coisa. Se a mãe desejasse, se as vantagens materiais fossem evidentemente grandes - talvez. Senão, era certa uma recusa. «Aliás», pensou ele, «não sou um canalha. Não quero fazer-lhe mal e não desejo obtê-la graças a manobras subterrâneas. Mas quero-a, e quero um filho! Não há outro recurso senão um divórcio - um divórcio!» Sob os plátanos, sob a iluminação da rua, seguiu lentamente ao longo das grades de Green Park. Via-se uma bruma suspensa entre os vultos azulados das árvores, fora do alcance das luzes da rua. Quantas vezes não caminhara junto àquelas árvores, ao sair da casa do pai, durante a juventude, ou ao sair da sua própria casa de Mont-pellier Square, durante os quatro anos de vida conjugal! E naquela noite em que tinha decidido romper, se possível, o laço há tanto tempo inútil daquele casamento, veio-lhe a fantasia de continuar o caminho, de entrar em Hide Park Corner e sair por Knightsbridge Gate, como tinha o costume de fazer outrora, nos tempos em que saía de casa para encontrar Irene. Como estaria ela agora? Como teria passado aqueles anos, desde que a vira pela última vez? Doze anos ao todo, pois já fazia sete anos que o tio Jolyon lhe deixara a herança. «Eu quase não mudei», pensou Soames. «Espero que ela tenha mudado. Fez-me sofrer muito.» E de súbito lembrou-se de uma noite - a primeira noite em que saíra só para jantar, um jantar de antigos colegas, no primeiro ano do seu casamento. Com que pressa impaciente voltara! Entrando silencioso como um gato, ouvira-a a tocar piano. Abrira silenciosamente a porta da sala, parara para observar a expressão do rosto de Irene, diferente de todas as expressões que lhe conhecia - aberta, íntima, como se ela houvesse dado à música um coração que ele nunca conhecera. E lembrava-se do modo com que ela parara de tocar e voltara a cabeça, como o rosto de Irene retomara a expressão que lhe conhecia, que arrepio gelado o percorrera, embora momentos depois estivesse junto dela, a acariciar-lhe os ombros. Sim, ela fizera-o sofrer! Divorciar-se! Parecia-lhe ridículo, depois de todos aqueles anos de separação. Mas era preciso. Não tinha outra alternativa. «A questão», pensou ele com repentino realismo, «é saber qual de nós dois. Ela ou eu? Ela que me deixou. Ela que pague por isso. Aliás, ela deve ter alguém, naturalmente.» Soltou um pequeno gemido involuntário e, dando meia volta, retomou o caminho de Park Lane.

 

JAMES TEM VISÕES

Foi o próprio mordomo que abriu a porta e, fechando-a silenciosamente, reteve Soames no capacho de dentro. - O patrão não Vai bem, sir - murmurou ele. - Não quis deitar-se antes da sua volta. Ainda está na sala de jantar. Tinha-se agora, em casa, o hábito de falar baixo. E foi em voz baixa que Soames respondeu:

- Que sucedeu, Warmson?

- Nervoso, creio eu, Mr. Soames. Talvez por causa do enterro, ou talvez por causa de Mrs. Dartie, que esteve aqui hoje à tarde. Creio que ele percebeu qualquer coisa da conversa. Levei-lhe um copo de vinho quente. A patroa acaba de subir.

Soames pendurou o chapéu numa cabeça de veado de mogno.

- Está bem, Warmson, pode ir deitar-se. Eu próprio o levarei ao quarto.

E entrou na sala de jantar.

James estava sentado junto ao fogo, numa grande poltrona. Sobre o casaco, um xaile de pêlo de camelo, muito leve e muito quente, envolvia-lhe os ombros, sobre os quais desciam as longas suíças alvas. Os cabelos brancos, que ainda se mantinham muito espessos, brilhavam sob a lâmpada, os olhos cinzento-claros tinham uma luz fixa, manchando-lhe as faces, que tinham entretanto guardado a sua bela cor, uma pequena exsudação chorava-lhe dos olhos, correndo ao longo das fundas rugas que iam até aos cantos da boca, os lábios agitavam-se num movimento incessante, como se o velho murmurasse o que pensava. Magras como as patas de um corvo, sob as calças de lã escocesa, as pernas estendiam-se quase em vertical, e sobre um dos joelhos uma mão fusiforme, cujos dedos afastados terminavam por unhas despontadas e brilhantes, nunca estava em repouso. Ao seu lado, numa banqueta baixa, tinha um copo de vinho quente, meio cheio, coberto de um orvalho de espuma feito pelo calor. Durante todo o dia, salvo nas horas de refeição, mantinha-se sentado ali, naquela poltrona. Na idade de oitenta e oito anos, continuava são de corpo, mas sofria terrivelmente graças à mania que o atormentava: nunca lhe contavam nada. Ninguém sabia ao certo como descobrira ele que tinham sepultado Roger naquela manhã, pois Emily escondera-lhe a notícia. Ela escondia-lhe tudo o que se passava. Emily tinha apenas setenta anos! James tinha rancor à mulher pela sua juventude. Dizia às vezes de si para si que nunca a haveria desposado se imaginasse que ela teria um dia tantos anos diante de si, enquanto ele os teria tão poucos. Não era natural. Ela sobreviver-lhe-ia durante quinze ou vinte anos, e faria talvez enormes despesas, sempre tivera gostos extravagantes. Quem sabe? Era até capaz de comprar uma dessas máquinas novas, um automóvel. Cecily, Rachel, Imogen e todos os jovens já andavam agora de bicicleta, e iam Deus sabe para onde. E agora Roger morrera. Ele não sabia - não poderia dizer! A família desagregava-se. Soames poderia revelar-lhe o montante da fortuna do tio. Curioso: quando ele pensava em Roger, era como o tio de Soames, e não o seu próprio irmão. Soames! Era, cada dia mais, o único ponto sólido num mundo prestes a desaparecer. Soames era cuidadoso. Era um homem avisado. Mas também não tinha a quem deixar o seu dinheiro. Era isso! E ele não sabia mesmo! E ainda por cima havia esse Chamberlain. Os princípios políticos de James tinham-se fixado entre os anos 70 e 85, quando «aquele radical malandro» se propusera atentar contra a propriedade, nunca tivera confiança na conversão do «malandro», se o sujeito houvesse feito o que intentara, o dinheiro iria por água abaixo e o país ficaria de pernas para o ar. Aquele homem era um terramoto!

Onde estaria Soames? Naturalmente fora ao funeral que lhe tinham querido ocultar,Sabia disso perfeitamente bem, soubera-o ao ver as calças do filho. Roger! Roger no caixão. Lembrava-se de quando eles vinham da escola, do Oeste, em 1824, e Roger adormecera na carriola do velho Slowflyer.

James emitiu uma espécie de cacarejo. Sujeito engraçado, Roger - um original! Não compreendia aquilo: mais moço que ele, James, e já guardado no caixão! A família estava a destruir-se. Lá ia Val para a Universidade, nunca mais tinha vindo visitar o avô. E iria custar-lhe um bom dinheiro nos estudos. Era um tempo de extravagâncias. E todo o bom dinheiro que os quatro netos lhe vinham custando dançou diante dos olhos de James. Não lamentava ter de lhes dar o que dava, mas lamentava terrivelmente o risco que o dispêndio daquele dinheiro poderia trazer a todos: lamentava a diminuição da segurança. E agora, que Cecily casara, começaria também a ter filhos. Ele não sabia, não poderia dizer! Ninguém pensava noutra coisa, actualmente, senão em gastar dinheiro, e correr atrás disso, e fazer o que eles chamam «gozar a vida». Um automóvel passou sob a janela. Horrenda e ruidosa coisa, provocando todo aquele escarcéu! Porém era isso mesmo, o país ia à deriva! O povo vivia numa tal pressa que não tinha tempo de pensar em compostura - uma boa equipagem antiga, como o seu barouche (1) com os baios, valia muito mais que todos esses veículos modernos.

E os consolidados a cento e dezasseis! Devia haver muito dinheiro no país. E ainda por cima esse velho Kruger! Tinham procurado esconder-lhe a existência do velho Kruger. Porém ele descobrira-o muito bem. Nó difícil de desatar, esse Transval! James bem compreendera o que iria suceder quando o tal Gladstone (agora morto, graças a Deus!) fizera um barulhão com aquele pavoroso negócio de Majuba. James não se admiraria se o Império escorregasse e quebrasse o cântaro. E essa visão do Império caindo com o cântaro cheio trouxe-lhe, durante um quarto de hora, um desfalecimento do mais sério carácter. Almoçara mal por causa daquilo.

 

*1. Barouche - carruagem de quatro rodas com capota móvel.

(N. da T.)

 

Mas foi depois do almoço que ocorreu o desastre real para os seus nervos. Ele estava a dormitar, quando escutou umas vozes - vozes falando em segredo. Ah! Aquela gente nunca lhe contava nada! Eram Winifred e a mãe. «Monty! Aquele canalha - Dartie -, sempre aquele canalha! As vozes tinham-se afastado, e James ficara só, aguçando as orelhas como uma lebre, enquanto um sentimento de terror se insinuava nele até às entranhas. Porque o deixavam só? Porque não vinham contar-lhe o que acontecera? E um pensamento horrível, que o apavorara durante anos, , cristalizou-se rapidamente no espírito do velho. Dartie tinha caído em bancarrota fraudulenta - e, para salvar Winifred e as crianças, ele, James, era obrigado a pagar! Seria - seria que Soames poderia arranjar a coisa numa sociedade de responsabilidade limitada? Não, não poderia! Aí estava. De minuto a minuto, esperando a volta de Emily, o espectro tornava-se mais cruel. E quem sabe se não era uma falsificação? Com os olhos fixos sobre o Turner de autenticidade duvidosa que ocupava o centro da parede, James sentia-se em torturas. Via Dartie no banco dos réus, os netos na sarjeta, e ele próprio na cama. Via o seu Turner duvidoso vendido em leilão, no Jobson, e todo o majestoso edifício da sua propriedade reduzido a migalhas. Via, em imaginação, Winifred trajada em roupas sem elegância e ouvia, em imaginação, a voz de Emily a dizer-lhe: «Vamos, não se aborreça, James!» Ela estava sempre a dizer: «Não se aborreça!» Era uma mulher sem nervos. Ele nunca deveria ter casado com uma mulher dezoito anos mais nova! E ouviu a voz real de Emily que lhe perguntava:

- Dormiu um pouco, James?

Dormir! Ele estava na tortura, e eis o que ela lhe perguntava!

- Que é que há a respeito de Dartie? - perguntou, encarando-a.

Emily nunca perdia o domínio sobre si mesma.

- De que é que você anda à escuta? - perguntou ela inocentemente.

- Que é que há a respeito de Dartie? - repetiu James. - Bancarrota?

- Ora, que disparate!

James fez um grande esforço e ergueu em toda a altura o seu corpo de cegonha.

- Você nunca me conta nada. Garanto que ele faliu. Pareceu a Emily que a destruição daquela ideia fixa era tudo

o que tinha importância no momento.

- Absolutamente. Partiu para Buenos Aires.

Se ela houvesse dito «Partiu para o planeta Marte», não poderia ter aturdido James com um golpe mais certeiro. A imaginação dele, concentrada nas operações da Bolsa britânica, era tão incapaz de figurar um dos lugares como o outro.

- Que foi Dartie lá fazer? - perguntou o velho. - Ele não tem vintém. Com quem foi?

Agitada interiormente pelas notícias que Winifred lhe trouxera, enervada pela constante repetição daquela jeremiada, Emily respondeu com o seu tom mais calmo:

- Foi-se embora com as pérolas de Winifred e uma dançarina.

- O quê! - exclamou James. E tornou a sentar-se.

O seu súbito colapso alarmou Emily, e ela acariciou-lhe a testa, dizendo:

- Vamos, não se aborreça, James!

Uma vermelhidão crepuscular espalhara-se pelas faces e pela fronte do velho.

- Fui eu que as paguei - disse ele em voz trémula. -- Aquilo é um ladrão! Eu... eu sabia bem o que ia acontecer. Aquele homem há-de matar-me. Ele...-As palavras faltaram-lhe e ele ficou completamente imóvel. Emily, que supunha conhecer tão bem o marido, estava alarmada e foi buscar ao aparador um frasco de sais. Ela não podia ver o tenaz espírito do Forsyte que lutava, naquele corpo magro e trémulo, contra a extravagância da emoção provocada por aquele insulto a todos os princípios da sua raça - o espírito dos Forsyte, que, no fundo de si mesmo, lhe dizia: «Você não deve agitar-se, não deve!» E, sem que Emily o percebesse, agia mais eficazmente que os sais.

- Beba isso - disse ela. James afastou o copo.

- Como foi que Winifred deixou que ele levasse as pérolas? Emily viu que a crise passara.

- Eu dou-lhe as minhas - disse, num tom de consolação. - Não as uso. O que Winifred devia fazer era divorciar-se.

- Já está você com as suas! Divorciar-se! Nunca houve divórcio nenhum na família. Onde está Soames?

- Deve estar a chegar.

- Não é verdade-disse James quase ferozmente. - Ele foi ao enterro. Vocês pensam que eu não sei de nada.

- Então - disse Emily com calma -, não devia afligir-se assim quando a gente lhe conta alguma coisa.

Depois arranjou-lhe as almofadas, e, pondo-lhe os sais ao alcance da mão, saiu da sala.

Porém, James, na sua poltrona, tinha visões. Winifred na Corte de Divórcios e o nome da família nos jornais, a terra caindo sobre o caixão de Roger, Val, herdeiro do carácter do pai e imitando-lhe a conduta, as pérolas que ele pagara e que nunca mais veria, a taxa de juros rebaixada a quatro por cento e o país caminhando para a ruína. E com a vinda da noite, quando passou a hora do chá, e a do jantar depois, as visões tornaram-se mais confusas e ameaçadoras: não lhe diziam nada, até ao dia em que não restasse mais um centavo de toda a sua fortuna, e mesmo a respeito disso não lhe diriam nada. Onde estava Soames? Porque não voltava para casa? Agarrou o copo de vinho quente, levou-o à boca e viu o filho em pé, junto à poltrona, olhando-o. Um suspiro de alívio escapou-lhe dos lábios. E depôs o copo, dizendo:

- Afinal você chegou! Dartie fugiu para Buenos Aires! Soames fez um gesto de assentimento.

- É verdade-disse ele. - Foi uma limpeza.

Uma onda de calma passou pelo cérebro de James. Soames sabia de tudo, Soames era o único entre todos que tinha bom senso. Porque não vinha morar com eles? Não tinha filhos. E disse, numa voz queixosa:

-Na minha idade, ficamos nervosos. Eu gostaria muito que você estivesse aqui em casa com mais frequência, meu filho.

Soames fez um novo gesto de assentimento. Nada havia no seu rosto que fizesse crer que ele compreendera, mas aproximou-se mais, e, como por acaso, tocou o ombro do pai.

- Mandaram lembranças para o senhor da casa do tio Timothy.

Tudo se passou muito bem. Fui ver Winifred. Vou tratar do caso. - E acrescentou só para si: Sim, e o senhor não deve saber do que vou tratar!

James ergueu os olhos para Soames, as suas longas suíças tremiam, e o pescoço magro, entre as pontas do colarinho, tinha um ar lamentoso e nu.

- Não passei bem durante o dia todo - disse ele. - Nunca me contam nada.

O coração de Soames apertou-se um pouco.

- Pois tudo está muito bem. Não há motivo para o senhor se afligir. Quer subir agora? - E pôs a mão no braço do pai.

Obediente, com tremores pelo corpo todo, James ergueu-se, atravessaram juntos a sala, que tinha um ar confortável e rico à luz do fogo, e chegaram à escada. Subiram lentamente.

- Boa noite, meu filho - disse James à porta do quarto.

- Boa noite, meu pai - respondeu Soames. Sob o xaile, a sua mão acariciava a manga do velho, parecia vazia, tão magro era o braço. E, afastando-se do rectângulo de luz feito pela porta que se abria, subiu mais um andar, até ao seu quarto. «Quero um filho», pensou ele, sentando-se à beira da cama. «Quero um filho.»

 

VISITAS EM CASA DE JOLYON FILHO

As árvores são quase insensíveis ao passar do tempo, e o velho carvalho do relvado superior de Robin Hill não parecia ter envelhecido um único dia desde a época em que, estirado à sua sombra, Bosinney havia dito a Soames: «Forsyte, encontrei o lugar ideal para a sua casa.» Depois disso, Swithin sonhara ao abrigo dos seus ramos, e o velho Jolyon lá morrera. E agora, perto do balouço, Jolyon filho, que já não era moço, detinha-se lá, para manejar os seus pincéis. Entre todos os lugares do mundo, aquele era-lhe talvez o mais sagrado, porque ele amara realmente o pai.

Contemplando a vasta circunferência do tronco da árvore rugosa, um pouco musgosa, mas ainda não carcomida, Jolyon cismava na fuga do tempo. Aquela árvore assistira talvez a todos os feitos da história da Inglaterra, não se surpreenderia se ela datasse do tempo da rainha Isabel, os seus próprios cinquenta anos não significavam nada diante do carvalho. Quando a casa diante da qual o carvalho se erguia - casa que lhe pertencia agora - tivesse trezentos anos de idade, em vez de doze, talvez aquela árvore ainda estivesse de pé no mesmo lugar, vasta e sombria. Quem ousaria cometer o sacrilégio de a derrubar? Talvez a casa fosse habitada ainda por algum Forsyte que a defendesse com um zelo ciumento. E Jolyon perguntava a si próprio que aspecto teria ela com a patina de uma tal velhice. Ramos de glicínias já lhe cobriam as paredes, o ar de construção nova já desaparecera. Conseguiria ela defender-se e preservar a dignidade que Bosinney lhe conferira - ou Londres, a cidade gigantesca, envolvê-la-ia na sua maré enchente e a casa ficaria como um oásis num deserto de estuque? Muitas vezes sentira-se persuadido, dentro de casa e fora dela, de que Bosinney fora guiado por uma inspiração quando a construíra. Pusera realmente o coração ali. Talvez até a edificação ainda se tornasse uma das residências históricas da Inglaterra - façanha rara para uma casa desta época em que a arquitectura estava a degenerar. E o seu senso estético unia-se ao amor da transmissão hereditária das riquezas - gosto que herdara dos Forsyte - para o fazer considerar com prazer e orgulho o facto de ser sua aquela casa. Havia um sabor de reverência e culto dos antepassados (fosse embora por um único antepassado) no seu desejo de legar a casa ao seu filho e ao filho do seu filho. O pai amara aquela casa, amara a paisagem que se avistava dela, o parque, o carvalho, os seus últimos anos passados ali haviam sido felizes, e ninguém a habitara antes dele. Estes onze anos em que vivera em Robin Hill haviam trazido, para Jolyon, um período de êxito na sua vida de pintor. Consideravam-no agora um aguarelista de primeira ordem, por toda a parte os seus quadros andavam expostos e atingiam preços elevados, especializando-se, com a tenacidade da sua raça, na arte intermédia da aguarela, ele «vencera» bastante tarde, mas não tarde de mais para uma família que pretendia ser eterna. E, na verdade, a sua arte tornara-se mais profunda e mais substancial. De acordo com a sua situação, deixara crescer uma pequena barba loura, que começava a ficar grisalha e dissimulava o seu queixo de Forsyte, o rosto moreno já não tinha o ar atormentado do seu tempo de ostracismo, e mudara, parecia que ficara mais moço. A perda da mulher, em 1894, fora uma dessas tragédias domésticas, que, no final de contas, representam um bem para todos. Ele amara-a realmente até ao fim, porque a sua natureza era afectuosa, mas ela cada vez mais se tornava dia a dia de mais difícil convivência: ciumenta da enteada, June, ciumenta da própria filhinha, Holly, queixando-se incessantemente de que ele não podia amá-la, doente como estava, «incapaz de ser útil a ninguém, uma carga tão grande para os outros que seria muito melhor que estivesse morta». Chorara-a sinceramente, mas depois que ela morrera o seu rosto parecia mais moço. Se ao menos ela houvesse podido acreditar que o fazia feliz, como teriam sido muito melhores os vinte anos de vida em comum!

June nunca se entendera bem com a mulher que fizera essa coisa repreensível: tomar o lugar de sua mãe. E depois da morte do velho Jolyon instalara-se em Londres, numa espécie de estúdio. Mas voltara a Robin Hill depois da morte da madrasta, e tomara as rédeas da casa na sua mãozinha decidida. Nessa época, Jolly estava em Harrow e Holly continuava as suas lições com Mademoiselle Beauce. Não havia nada que prendesse Jolyon em casa, e ele transportara para o estrangeiro a sua dor e a sua caixa de tintas. Errara ao acaso, a maior parte do tempo na Bretanha, e acabara por se fixar em Paris. Demorara-se lá vários meses, e voltara de Paris com o seu ar de juventude recuperada e a sua curta barba loura. Era essencialmente um homem que se acomodava bem a qualquer espécie de instalação, de forma que achara excelente o facto de June reinar em Robin Hill, porque isso permitia-lhe sair com o seu cavalete para onde bem entendesse. É verdade que ela tinha uma inclinação excessiva a considerar a casa como um asilo para os seus protegidos, mas o seu tempo de proscrição enchera Jolyon de uma sólida simpatia pelos proscritos, e os "desvalidos" de June não o importunavam.

Ao contrário, permitia sempre que ela os convidasse e sustentasse tantos quantos ela quisesse, e, embora o seu génio irónico lhe fizesse ver que eles satisfaziam ao mesmo tempo o instinto de domínio e o coração generoso da filha, nunca deixava de a admirar ao ver quão numerosos eles eram. De ano para ano, foi adoptando uma atitude cada vez mais desligada e fraternal em relação aos filhos, e aprazia-se em tratá-los com uma espécie de caprichosa igualdade. Quando ia a Harrow visitar Jolly, nunca sabia exactamente qual dos dois era o mais velho, comia de sociedade com o rapaz as cerejas que tiravam do mesmo saco de papel, enquanto um sorriso afectuoso e irónico lhe erguia uma das sobrancelhas e lhe distendia os lábios. Tomava sempre cuidado em trazer dinheiro no bolso e vestir-se pela última moda, para que o filho não se envergonhasse do pai. Eram amigos perfeitos, porém nunca tinham sentido a necessidade de trocar confidências, porque ambos possuíam aquela ciumenta consciência de si particular aos Forsyte. Sabiam bem que estariam um ao lado do outro nas dificuldades, mas não havia necessidade nenhuma de falar nisso. Jolyon tinha um horror impressionante - metade congénito, metade resultante da imoralidade da sua juventude - pela atitude moralista. O máximo que ele era capaz de dizer ao filho era o seguinte: "Escute, meu velho, nunca se esqueça de que você é um gentleman.»

E ainda assim, depois de dizer isso, era capaz de se entregar a reflexões sem fim, para indagar de si mesmo se não se revelara um snob. O jogo anual de cricket entre a escola de Harrow e a escola rival de Eton era a prova mais desagradável que eles tinham de atravessar juntos, todos os anos. Porque Jolyon era um antigo aluno de Eton. Ficavam ambos particularmente atentos durante o jogo e não deixavam de dizer «Bravo! Oh, que falta de sorte, meu velho!» ou «Oh, que azar, papá!» cada vez que um desastre, que lhes fazia saltar o coração de alegria, afectava a escola do outro. E, para não chocar o filho, Jolyon usava, em lugar do seu habitual chapéu mole, uma cartola cinzenta, porque a cartola preta era-lhe insuportável. Quando Jolly foi para Oxford, Jolyon acompanhou-o, divertido, humilde e cuidadoso em não prejudicar o crédito do filho entre aqueles rapazes que pareciam ter muito mais compostura e firmeza do que ele próprio. Dizia para si, frequentemente: «Felizmente sou pintor.» Porque havia muito tempo abandonara o seu emprego de agente de seguros do Lloyds. «É impossível olhar com atrevimento um pintor, porque ninguém o toma a sério.» Porque Jolly, que tinha uma espécie de fidalguia natural, entrara imediatamente numa roda muito fechada, o que secretamente divertia o pai. Jolly tinha os cabelos levemente crespos e os profundos olhos cor de aço do avô. Era bem feito, esbelto e lisonjeava o senso estético de Jolyon, tanto que lhe fazia um pouco de medo, como acontece sempre com os artistas em relação a outros homens cujo físico admiram. Nessa ocasião, no entanto, ele conseguiu reunir coragem bastante para dar conselhos ao filho, e eis o que disse:

- Escute, meu velho. Sei que será fatal que você faça dívidas: não deixe de me procurar imediatamente. É claro que as pagarei.

Mas você pode lembrar-se depois de que uma pessoa respeita-se melhor a si mesma quando paga as suas próprias despesas. E, por favor, nunca peça dinheiro emprestado a ninguém, salvo a mim. Combinado?

E Jolly respondera:

- Muito bem, papá, está combinado. E fizera como o pai lhe pedia.

- E depois ainda há uma coisa, uma única. Não sou muito entendido em assuntos de moral, e em tudo o mais, mas há isto: antes de fazer uma coisa, é bom considerar se isso não vai fazer mais mal aos outros do que o absolutamente necessário.

Jolly tomara um ar pensativo, abanara a cabeça e logo depois apertara a mão do pai. E Jolyon disse para si: «Será que eu tinha o direito de falar disto?» Ele temia sempre perder a confiança muda que ambos tinham um no outro. Porque lembrava-se como, durante longos anos, perdera a confiança do pai, a ponto de não chegar mais a haver entre um e outro senão amor a longa distância. Decerto não estimava no seu justo valor a mudança operada nos espíritos depois que ele próprio estivera em Cambridge, em 1865, e talvez também não estimasse no seu justo valor a capacidade que o filho tinha de compreender que ele era tolerante até aos ossos. Era esse génio tolerante, e talvez o seu cepticismo, que davam um aspecto tão curioso às suas relações com June, que era uma criatura extremamente decidida, sabia sempre muito bem o que desejava e queria as coisas com uma vontade inexorável até as obter - frequentemente, é verdade, para as deixar cair da mão como uma batata quente. A mãe também fora assim, e disso provinham todas as lágrimas choradas. Não que a sua incompatibilidade de génios com a filha se assemelhasse àquela que o separara da primeira Mrs. Jolyon filho. No caso de uma filha, aquilo poderia ser uma fonte de divertimento; mas não há divertimento possível quando se trata de uma esposa. Quando ele via June distender o seu desejo e a sua maxila na perseguição de um objecto, e não os relaxar senão depois de obter o que queria, isso não tinha importância, porque o objectivo nunca constituía um incómodo fundamental para a liberdade de Jolyon - a única coisa que também tornava absolutamente rígida a maxila dele, uma maxila enorme, sob a curta barba grisalha. Mas nunca havia necessidade de se chocarem os dois, frente a frente. Sempre era possível desviar e buscar refúgio na ironia - e, na verdade, muitas vezes ele era obrigado a isso. Mas o verdadeiro obstáculo à harmonia, no caso de June, era que ela jamais agradara ao seu senso estético. Entretanto, bem o poderia ter conseguido, com os seus cabelos de ouro ruivo, os olhos azuis de viking e a sua intrepidez. Já não se dava o mesmo com Holly, meiga e calma, tímida e afectuosa, e que tinha dentro de si, às vezes, um pequeno duende galhofeiro. Jolyon observava a adolescência da filha mais nova com um interesse extraordinário. Quando acabasse de crescer, seria que teria a graça majestosa de um cisne? Com a pele cor de pérola, o rosto oval, os olhos cinzentos, pensativos, os longos cílios negros, talvez isso acontecesse, talvez não. Só pudera firmar uma opinião no decorrer do último ano. Sim, Holly pareceria um cisne - um cisne moreno, talvez, sempre tímido, mas autêntico. Tinha agora dezoito anos, e Mademoiselle Beauce já a deixara. Depois de onze anos cheios de lembranças dos «pequenos Taylor, que eram tão bem-educados», a boa senhora mudara-se para outra família, cujo seio iria agitar com as reminiscências dos «pequenos Forsyte, tão bem-educados». E ensinara Holly a falar francês tão bem como ela própria.

O retrato não era o forte de Jolyon, mas ele já fizera três de Holly, e ocupava-se agora em fazer um quarto, na tarde do dia 4 de Outubro de 1899, quando lhe trouxeram um cartão que lhe fez erguer as sobrancelhas:

 

                         SOAMES FORSYTE

         The Shelter - CONNOISSEURS CLUB

                     Mapledurham - St. James

 

Mas aqui a crónica dos Forsyte deve fazer uma nova digressão. Jolyon nunca esquecera - era por de mais impressionável e tinha o coração por de mais generoso para esquecer o dia em que, voltando de uma longa viagem através da Espanha, encontrara a casa sombria, uma garotinha que chorava perdidamente e o pai querido a dormir pacificamente o seu último sono. Uma certa atmosfera de mistério flutuava em torno desse triste dia e sobre o fim de um homem cuja vida fora tão ordenada, tão equilibrada, tão isenta de dissimulação. Parecia-lhe incrível que o pai pudesse partir desse modo, sem, por assim dizer, comunicar a sua intenção, sem dirigir ao filho as suas últimas palavras, sem fazer as despedidas que são de rigor. E as incoerentes alusões feitas por Holly à «moça de cinzento» e por Mademoiselle Beauce a uma «Madame Enrant» (pelo menos fora assim que ela compreendera o nome) envolvia tudo isso numa névoa que se ergueu um pouco quando o testamento do pai foi lido, juntamente com o codicilo que lhe fora acrescentado.

Na qualidade de executor testamenteiro, tivera de notificar Irene, esposa do seu primo Soames, de que ela se tornara a herdeira de uma renda vitalícia cujo capital era de quinze mil libras. Visitara-a, para lhe explicar que as acções da Bolsa da índia, expressamente indicadas para alimentar essa renda, produziriam de juros a quantia de quatrocentas e trinta e poucas libras, por ano, feita a dedução do imposto sobre a renda e livres de qualquer outro encargo. Fora aquela a terceira vez apenas que ele vira a mulher do primo Soames, se ela era ainda sua mulher, coisa um pouco incerta. Lembrava-se de a ter visto sentada no Jardim Botânico, esperando por Bosinney, tão passiva e tão sedutora que o fizera pensar no Amor Divino de Ticiano; vira-a outra vez em Montpellier Square, quando lá fora a pedido do pai, na tarde em que haviam sabido da morte de Bosinney. E evocava-a ainda, no enquadramento da porta do salão, enquanto no seu belo rosto uma ardente esperança dava lugar a um desespero marmóreo; lembrava-se da piedade que sentira e do sorriso odiento de Soames e ouvia ainda o outro dizer «Não estamos em casa», e a porta de entrada fechada com

fragor.

Na terceira vez em que a viu, o corpo e o rosto de Irene tinham uma beleza mais pura, que nem uma esperança ardente nem um desespero profundo alteravam mais. E ele disse para si, enquanto a olhava: «Realmente, tal como é, meu pai não poderia deixar de admirá-la.» E lentamente compreendeu a estranha história de seu pai, do seu último Verão. Ela falou-lhe com reverência a respeito do velho Jolyon, com lágrimas nos olhos:

- Ele foi tão bom para mim, e não sei mesmo porquê. Estava tão bonito, e tinha um ar tão descansado, na sua poltrona, sob o carvalho; não sei se sabe que fui a primeira pessoa que o viu. Era um dia lindo. Não creio que seja possível ter-se um fim mais feliz. Nós todos deveríamos desejar partir tal como ele partiu.

«Exactamente», pensara Jolyon. «Nós todos queríamos partir em pleno Verão, enquanto, sobre o relvado, a beleza caminha ao nosso encontro».

Depois, percorrendo com o olhar a salinha quase vazia, perguntara-lhe o que ela pretendia fazer agora.

- Vou recomeçar a viver um pouco, primo Jolyon. É uma coisa maravilhosa a gente possuir dinheiro. Creio que conservarei o meu apartamento; estou acostumada a ele; mas poderei ir à Itália.

- Exactamente! - murmurara Jolyon, olhando os lábios dela, que sorriam fracamente. E, ao partir, pensara: «Que mulher fascinante! Que desperdício! Estimo muito que meu pai lhe tenha deixado esse dinheiro.» Nunca mais voltara a vê-la, mas todos os trimestres assinava o cheque e remetia-o ao banco de Irene, prevenindo-a ao mesmo tempo por um bilhete endereçado ao seu apartamento em Chelsea; e sempre ela acusava a recepção, às vezes do seu apartamento, às vezes da Itália: de tal modo que a personalidade da moça acabara por encarnar-se, aos olhos dele, num quadrado de papel cinzento, ligeiramente perfumado, uma elegante caligrafia esguia e as palavras «Meu caro primo Jolyon». O proprietário em que ele se tornara reflectia às vezes, enquanto assinava o cheque trimestral: «Eh, creio que ela consegue no máximo equilibrar as despesas.» E então perguntava vagamente a si mesmo qual poderia ser a sorte dela, num mundo em que os homens não costumam deixar a beleza sem dono. De início, Holly falara nela algumas vezes, mas as "moças de cinzento" desaparecem muito rapidamente da memória das crianças; e cada vez que, nas primeiras semanas que se tinham seguido à morte do pai, ele aludira à sua antiga amiga, June guardara um mutismo que desanimara qualquer referência ulterior. Apenas uma vez, com efeito, June falara com clareza:

- Perdoei a Irene. E fico satisfeita ao saber que ela é agora independente.

Ao receber o cartão de Soames, Jolyon disse à criada (ele tinha horror a criados de casaca):

- Leve-o ao escritório e diga-lhe que estarei lá dentro de um minuto.

Depois olhou para HoLly e perguntou-lhe:

- Você lembra-se da «moça de cinzento» que lhe dava lições de piano?

-Oh, sim! Porquê?

Jolyon abanou a cabeça, e, enfiando um casaco em lugar da blusa, não respondeu nada. Acabava de descobrir que uma história daquelas não fora feita para ouvidos tão jovens. E o seu rosto tornou-se a encarnação da perplexidade, enquanto caminhava para o escritório.

Junto à sacada, olhando para o carvalho, através do terraço, estavam de pé duas pessoas: um homem maduro e um rapaz. E Jolyon pensou: ((Quem será o moço? Eles não tiveram filhos, que eu saiba.»

O mais velho dos visitantes voltou-se. Encontrando-se na casa que fora construída para um deles, e que pertencia agora ao outro, esses dois Forsyte da segunda geração, muito menos simples que os da primeira, adoptaram uma subtil atitude de defesa, velada pelo esforço que ambos faziam para se mostrarem cordiais. «Será que ele vem falar-me a respeito da mulher?», dizia de si para si Jolyon. «Como é que vou começar?», perguntava Intimamente Soames, enquanto Val, que fora trazido para romper o gelo, examinava negligentemente, sob os cílios espessos, aquele «leopardo barbudo».

- É o filho de minha irmã. Val Dartie - disse Soames. - Está de malas arrumadas para Oxford. Gostaria que ele fizesse amizade com o seu filho.

- Oh! Tenho pena que Jolly não esteja aqui. Qual é o colégio?

- B. N. C. - respondeu Val.

- Jolly está em Christ Church, mas terá muito prazer em procurá-lo.

- Muito obrigado.

- Holly está em casa, e, se a companhia de uma priminha não o aborrece, ela poderá mostrar-lhe a casa,. Passe por aí, e há-de encontrá-la no hall, basta correr as cortinas. Eu estava a fazer-lhe o retrato.

Val disse de novo:

- Muito obrigado!

E desapareceu, deixando os dois primos face a face, com o gelo ainda por romper.

- Sei que você expôs uns quadros no Salão dos Aguarelistas - disse Soames.

Jolyon retraiu-se. Havia já vinte e cinco anos que ele não via a maioria dos membros da família Forsyte, porém eles continuavam associados, no seu espírito, ao Derby Day de Frith e aos aramos reproduzidos nas gravuras de Landseer. Soubera por June que Soames era um connoisseur, e aquilo só fazia agravar as coisas. Começava a ter consciência, também, de uma curiosa sensação de repugnância.

- Já há muito tempo que não o via - disse ele.

- Sim - concordou Soames, sem descerrar os lábios -, desde... Na verdade, é por esse mesmo assunto que vim aqui. Soube que você é o administrador da herança dela. - Jolyon fez sinal que sim. - Doze anos são muito tempo - continuou Soames rapidamente-, e eu... eu estou cansado.

Jolyon não achou nada melhor para dizer do que isto:

- Quer um cigarro?

- Não, obrigado.

Jolyon acendeu um cigarro.

- Quero ficar livre - declarou Soames num tom abrupto.

- Eu nunca a vejo-disse Jolyon por trás do fumo do cigarro.

- Mas com certeza você sabe onde ela mora?

Jolyon assentiu. Não pretendia dar o endereço de Irene sem autorização. Soames adivinhou-lhe o pensamento.

- Não peço o endereço dela - disse ele. - Conheço-o.

- Que é que você deseja exactamente?

- Ela abandonou-me. Quero divorciar-me.

- É um pouco tarde, não acha?

- Sim - articulou Soames, seguindo-se um silêncio.

- Não entendo muito dessas coisas, ou, pelo menos, esqueci-as - disse Jolyon com um sorriso contrafeito. Pela sua parte, tivera de esperar que a morte lhe concedesse o divórcio da primeira Mrs. Jolyon. - Você quer que eu lhe fale?

Soames ergueu os olhos para o rosto do primo.

- Sem dúvida ela tem alguém - disse ele. Jolyon ergueu os ombros.

- Nada sei a esse respeito. Creio que vocês dois poderiam viver muito bem, cada um para o seu lado, como se o outro estivesse morto. É o costume, nesses casos.

Soames voltou-se para a janela. As primeiras folhas amarelas do carvalho já juncavam o terraço e turbilhonavam no vento. Jolyon viu Holly e Val Dartie que atravessavam o relvado em direcção às cocheiras. «Eu não posso ficar com um pé em cada um dos campos», pensava ele. «Tenho de defender os interesses dela. Seria esse o desejo de meu pai.» E, durante um instante, pareceu-lhe ver o pai sentado na sua velha poltrona, imediatamente atrás de Soames, com as pernas cruzadas e o Times na mão. A visão esbateu-se.

- Meu pai tinha grande afeição por ela - disse ele placidamente.

- E eu gostaria de saber porquê - respondeu Soames, sem voltar a cabeça. - Ela causou desgostos à sua filha, June, causou desgostos a toda a gente. Dei-lhe tudo quanto uma mulher poderia desejar. Ter-lhe-ia dado até mesmo... o perdão, porém ela preferiu abandonar-me.

Aquilo era dito num tom tão severo que Jolyon não pôde sentir a menor compaixão. Que haveria com o primo que tornava tão difícil lamentá-lo?

- Posso procurá-la, se você quiser - disse Jolyon.

- Talvez ela fique contente por se divorciar, mas não posso afirmar nada. Soames fez um gesto de assentimento.

- Sim, faça-me isso, por favor. Como lhe disse, sei o endereço dela, mas não quero vê-la.

Passava e repassava a língua sobre os lábios, como se eles estivessem ressequidos.

- Quer tomar uma xícara de chá? - perguntou Jolyon. E deteve-se para não acrescentar: «E quer ver a casa?» Depois levou Soames para o hall. Após tocar a campainha e pedir o chá, deu alguns passos até ao cavalete e virou a aguarela para a parede. Sem saber exactamente porquê, não podia suportar a ideia de deixar que o seu trabalho fosse visto por Soames, que estava em pé, no meio da grande sala, construída expressamente para que nela fossem pendurados os seus próprios quadros. No rosto do primo, que tinha, como o seu, um inatingível ar de família no queixo forte, na expressão fechada, concentrada, Jolyon viu certas coisas que o obrigaram a dizer intimamente: «Este indivíduo nunca será capaz de esquecer nada - nem de se entregar. É patético!»

 

O POTRO E A POTRA

Ao abandonar a companhia da geração mais velha, o moço Val pensava: «São muito divertidos os passeios do tio Soames! Vamos ver como será essa potra!».Não esperava nenhum prazer na companhia da pequena, e de súbito viu-a, em pé diante dele, olhando-o. Mas como era bonita! Que sorte!

- Receio que você não me conheça - disse ele. - Chamo-me Val Dartie e somos primos em segundo grau, ou coisa parecida. O nome de solteira de minha mãe era Forsyte.

A delicada mãozinha morena de Holly continuava na dele, porque ela era muito tímida para a tirar. E ela disse:

- Não conheço nenhum dos meus parentes. Será que há muitos?

- Toneladas. Mas são abomináveis, na maioria. Ou, pelo menos, não sei... alguns deles. Isso de parentes são sempre abomináveis, não acha?

- Provavelmente eles também nos julgam abomináveis - retorquiu Holly.

- Não sei porquê. A você,, em todo o caso, ninguém poderá achar abominável.

Holly fitou-o, e, vendo-lhe a pensativa candura dos olhos cinzentos, Vall disse a si mesmo, subitamente, que deveria protegê-la.

- O que eu quis dizer é que há gente de toda a espécie - disse ele com astúcia.

- Seu pai, por exemplo, tem o ar de ser uma grande figura.

- Oh, sim! - disse Holly com fervor. - E é.

Val corou fortemente - aquela cena do Pandemonium, na véspera, e o homem moreno com o cravo na lapela em quem reconhecera o pai!

- Mas você sabe como são os Forsyte- disse ele com uma espécie de malignidade. - Não, esqueci que você não o sabe!

- Como são eles?

- Oh, espantosamente cuidadosos! Não têm nada de desportivo! Olhe para o tio Soames!

- Gostaria de olhar - disse Holly.

Val resistiu ao desejo de passar o braço pelo dela.

- Oh, não - disse ele -, é melhor sairmos, Há-de vê-lo mais logo. Como é o seu irmão?

Holly precedeu-o até ao terraço e até ao relvado que se estendia ao pé do terraço sem responder à pergunta. Como poderia descrever-lhe Jolly, Jolly que, por mais longe que fossem as suas recordações, sempre fora seu senhor, seu dono, seu ideal?

- Será que ele a trata como uma garotinha? - inquiriu Val, com malícia. - Nós iremos conhecer-nos em Oxford. Vocês têm cavalos?

Holly fez um gesto afirmativo.

- Quer ver a cocheira?

- Muito!

Passaram sob o carvalho, atravessaram um bosquezinho ralo e entraram no pátio das cavalariças. Sob uma torre de relógio estava deitado um cão preto e branco, um velho cão de pêlo longo, tão velho que não se levantou, contentando-se em agitar fracamente a cauda, que se lhe levantou nas costas.

- Este é Balthasar - disse Holly. - É velho, terrivelmente velho, quase tão velho como eu. Coitadinho! É muito dedicado ao papá.

- Balthasar! É um nome engraçado. Mas não é um cão de raça, não?

- Não, mas é um amor. - E a pequena baixou-se para acarinhar o cão. Estava com a cabeça descoberta, e, vendo-a assim, tão meiga, tão esbelta, olhando-lhe os cabelos escuros, a nuca, as mãos finas e bronzeadas, Val tinha a impressão de uma criatura cheia de um estranho encanto, de uma coisa que se insinuara entre ele e toda a sua experiência anterior. - Quando o avô morreu - contou ela -, ele não quis comer nada durante dois dias. Assistiu à morte do avô, sabe?

- Seu avô não era o velho tio Jolyon? Minha mãe diz sempre que ele era formidável.

- Era - respondeu Holly singelamente, abrindo a porta da cavalariça.

Solta numa das baias, via-se uma égua ruço-prateada, com cerca de metro e meio de altura, crina e cauda pretas.

- Esta é minha: é Fairy.

- Ah - disse Val -, é uma égua linda. Mas você deveria cortar-lhe a cauda. Ficava mais elegante. - Vendo porém o olhar admirado da rapariga, disse para si: «Não sei... como ela queira...» Aspirou fortemente o ar da cavalariça: - Cavallos são uma coisa esplêndida, não são? O papá... - E calou-se.

- Sim... - disse Holly.

Ele foi quase dominado pelo desejo de aliviar o coração, mas venceu-o.

- Oh, nem sei o que dizia... sim, têm-no feito comprar muitos sendeiros, por aí... Eu também sou doido por cavalos. Adoro andar a cavalo e caçar raposas. Também gosto muito de corridas: gostaria muito de ser gentleman-rider. - E, esquecendo que não tinha mais que um dia para passar em Londres e dois compromissos, disse bruscamente: - Escute, se eu alugar um cavalicoque amanhã, você quer dar um passeio comigo por Richmond Park?

- Oh, sim! Adoro passear a cavalo, mas nós temos aqui o cavalo de Jolly. Porque não vai nele? Nós poderíamos sair depois do chá.

Vall lançou um olhar incerto sobre as suas calças. Em imaginação, vira-se aparecer diante dela com grandes botas castanhas e um colete branco imaculado.

- Não sei se deva usar o cavalo dele. Pode desagradar a seu irmão. E, além disso, creio que o tio Soames há-de querer voltar logo. Não é que eu me deixe governar por ele, compreende. Você não tem tios, tem?

É um animal lindo... - disse depois, examinando o cavalo de Jolly, um baio escuro que deixava ver o branco dos olhos. - Vocês aqui não caçam a raposa?

- Não, nem creio que eu gostasse de caçar. Sei bem que deve ser terrivelmente apaixonante, mas é cruel, não acha? June acha que é cruel.

- Cruel! - exclamou Val. - Oh, que ideia! Quem é June?

- Minha irmã. Minha irmã por parte do papá... muito mais velha que eu. - Holly segurara o focinho do cavalo de Jolly e esfregava o nariz contra ele, com um ronronar muito suave que parecia hipnotizar o animal. Val olhava a face dela apoiada ao focinho do bicho. «É uma jóia», pensou ele.

Falavam menos quando retomaram o caminho de casa, seguidos agora por Balthasar, mais lento no andar que nenhuma outra criatura terrestre e que manifestamente contava que eles não excedessem a sua velocidade máxima.

- Isto aqui é uma maravilha - declarou Val sob o carvalho onde tinham parado, esperando que Balthasar os alcançasse.

- Sim - disse Holly com um suspiro. - Mas naturalmente eu tenho vontade de andar por toda a parte. Gostaria de ser uma cigana.

- Os ciganos são formidáveis - respondeu Val com uma súbita convicção. - Você parece-se muito com uma cigana, sabe?

O rosto de Holly tomou um brilho profundo, como o das folhas queimadas que o sol doura.

- Andar por toda a parte onde a gente queira, ver tudo, viver ao ar livre! Não seria uma delícia?

- Podemos fazer isso - disse Val.

- Pois é, façamos!

- Seria esplêndido, só você e eu.

Então Holly viu o que havia de estranho no que eles diziam e corou violentamente.

- É preciso que a gente realize isso - continuou Val com obstinação, embora também houvesse corado. - Na minha opinião, a gente deve fazer o que tem vontade. Que é que fica deste lado?

- A horta, o tanque, o bosquezinho e a granja.

- Vamos lá!

Holly lançou um olhar em direcção à casa.

- Deve estar na hora do chá. Lá está o papá a chamar-nos. Com uma espécie de grunhido, Val acompanhou-a até à casa. Quando entraram na sala grande, o espectáculo dos dois Forsyte de idade respeitável ocupados em tomar chá operou o seu efeito mágico, e os dois jovens mantiveram-se em completo silêncio. Era, na verdade, uma cena impressionante. Os dois homens estavam sentados lado a lado numa espécie de sofá de tapeçaria de um róseo prateado, que dava a ideia de três cadeiras reunidas, e tinham defronte de si uma mesinha baixa de chá. Parecia que, ao tomarem aquela posição, haviam procurado sentar-se tão longe um do outro quanto o permitia o assento comum, a fim de evitar olharem-se com muita frequência, e ocupavam-se mais em beber e em comer do que em conversar - Soames sempre com o seu ar de desprezar o bolo à medida que o fazia desaparecer, e Jolyon, pelo contrário, vendo no bolo um grande divertimento. Um observador desatento não os tomaria por bons comedores, mas um e outro deram conta de uma boa quantidade de coisas. Os dois jovens serviram-se e a absorção dos alimentos prosseguiu em silêncio, até que chegou o momento de se acenderem os cigarros. Jolyon perguntou então a Soames:

- E como vai o tio James?

- Muito alquebrado, obrigado.

- Nós realizamos uma família maravilhosa, não acha? No outro dia, tirando os dados da grande Bíblia, do meu pai, calculei a média da idade dos dez velhos Forsyte. Já atinge a média de oitenta e quatro anos, e ainda estão cinco vivos. Certamente baterão o record, - E, lançando a Soames um olhar malicioso, Jolyon acrescentou: - Nós é que não somos o que eles foram.

Soames sorriu, parecendo dizer: «Você acha que vou admitir alguma inferioridade minha em relação a eles ou á necessidade de renunciar ao que quer que seja, e particularmente à vida?»

- Talvez nós fiquemos tão velhos como eles - prosseguiu Jolyon. - Mas você sabe que a consciência de si mesmo é um handicap e é o que estabelece a diferença entre eles e nós. Nós não temos a mesma segurança deles. Como e quando essa consciência de nós mesmos nasceu, nunca o consegui descobrir. Meu pai já tinha um pouco, mas não creio que os outros Forsyte da sua geração possuíssem uma migalha dela. Nunca nos vemos como os outros nos vêem-e isso é uma defesa maravilhosa. Toda a história dos últimos cem anos reside na diferença que há entre eles e nós. E entre vocês e nós - acrescentou, fixando, através de uma nuvem de fumo, Val e Holly, contrafeitos sob o seu olhar perscrutador - ainda haverá... outra diferença. Pergunto a mim mesmo qual será. Soames puxou o relógio.

- Precisamos de sair -- disse ele -, se quisermos apanhar o nosso comboio.

- O tio Soames nunca perde o comboio - comentou Val com a boca cheia.

- Porque haveria eu de perder o comboio? - respondeu Soames com simplicidade.

- Oh, não sei - gaguejou Val. - Há pessoas a quem isso acontece.

Na porta, ele apertou longa e sub-repticiamente a fina mão morena de Holly.

- Até amanhã - murmurou o rapaz. - Às três horas. Esperá-la-ei na estrada. Isso nos fará ganhar tempo. Vamos dar um passeio formidável.

Ao chegar à grade, junto á guarita do portão, voltou-se ainda para a olhar, e, se os princípios do homem mundano não o impedissem, ter-lhe-ia acenado com a mão. Não estava com humor capaz de suportar a conversa do tio, mas não corria nenhum risco disso. Absorvido nos seus longínquos pensamentos, Soames mantinha-se num silêncio absoluto.

As folhas amarelladas tombavam em torno deles, enquanto faziam a pé os dois quilómetros que Soames tantas vezes percorrera antes, no tempo em que vinha fiscalizar, com íntimo orgulho, a construção da casa - a casa que deveria abrigar aquela de quem agora ia procurar libertar-se. Voltou-se uma vez para contemplar a longa perspectiva do caminho outonal que se desenrolava entre as áleas de árvores amarelas. Como tudo aquilo estava longe! «Não desejo voltar a vê-la», dissera ele a Jolyon. Seria verdade? «Talvez

seja preciso», disse a si mesmo, sendo tomado por um desses estranhos arrepios que, segundo se diz, são passos que se dão para o túmulo. Como o mundo estava frio! E estranho! Olhando de viés o sobrinho, pensou: «Gostaria de ter a idade dele. Gostaria também de saber como ela está actualmente.»

 

JOLYON PROCURA DESEMPENHAR A SUA MISSÃO

Quando as visitas saíram, Jolyon não voltou à pintura, porque o dia já estava a declinar. Voltou ao escritório, onde desejava, inconscientemente, reencontrar a visão do pai sentado na sua velha poltrona de couro escuro, as pernas cruzadas e os olhos - aquele seu olhar directo - erguidos sob a curva maciça das sobrancelhas. Naquela sala, a mais confortável da casa, sucedia muitas vezes a Jolyon entrar, num rápido instante, em comunhão com o pai. Não era provavelmente porque ele sentisse uma fé definitiva na sobrevivência do espírito humano - o seu sentimento não era assim lógico -, era antes uma espécie de choque atmosférico, uma espécie de perfume, ou ainda, uma coisa idêntica a essas fortes impressões animistas produzidas pela forma dos objectos ou pelos efeitos de luz, às quais são particularmente sensíveis as pessoas que vêem o mundo com olhos de artista.

Aquela pequena sala, onde o pai passara a maioria dos dias e à qual não se havia mudado nada, era o único lugar onde podia recuperar a impressão de não o ter perdido completamente, de estar sempre protegido pelos sábios conselhos do velho, pelo calor da sua afeição imperiosa.

Que conselho lhe daria hoje seu pai, naquele brusco reviver de uma tragédia antiga? Que diria ele a respeito da ameaça dirigida contra aquela por quem concebera uma afeição tão viva nas derradeiras semanas da sua existência? «Eu preciso tentar servi-la da melhor maneira», pensou Jolyon. «Ele confiou-ma no seu testamento. Mas que será o melhor?»

Como se quisesse investir-se da sapiência, do equilíbrio e do profundo bom senso daquele velho Forsyte, Jolyon sentou-se na poltrona antiga e cruzou as pernas. Mas teve a impressão de não ser mais que uma sombra sentada naquela poltrona, e a inspiração não lhe vinha, enquanto o vento açoitava as vidraças da sacada.

«Devo ir vê-la?», cismava ele. «Ou devo pedir-lhe que venha cá? Como terá vivido ela, como viverá hoje? É uma selvageria revolver todas essas cinzas depois de tanto tempo!» E de novo viu surgir diante de si, tão nítida como as figuras dos relógios antigos quando soa a hora, a imagem do primo, de pé, com a mão no umbral de uma porta verde-clara, e, mais distintamente que todos os carrilhões do mundo, ouviu ressoar nos ouvidos as palavras que Soames lhe dissera: «Não preciso de ninguém para resolver os meus negócios. Já lhe disse uma vez e repito: não estamos em casa!» Ele sentira então uma repugnância por Soames, pelo seu rosto glabro e longo, sobre o qual estava escrita a obstinação do buldogue, pelo seu corpo nervoso, quadrado, respirando saúde, ligeiramente inclinado como se estivesse curvado sobre um osso que não conseguia engolir. E a mesma repugnância voltava-lhe agora, tão viva e até, coisa curiosa, mais viva que nunca. «Não o suporto», pensou Jolyon. «Não o suporto absolutamente. E é uma sorte, pois assim posso cuidar melhor dos interesses da mulher dele.» Semiartista e semi-Forsyte, Jolyon era constitucionalmente inimigo do que ele chamava «complicações», e, a menos que estivesse encolerizado, tinha muita coisa em comum com a cadela da história: preferia correr a lutar.

Um pequeno sorriso aninhou-se-lhe na barba. Era uma ironia que Soames tivesse vindo ali - à casa que fora construída para si próprio! Com que olhos contemplara, de boca aberta, aquela ruína das suas ambições passadas! Como farejara as paredes e as escadas e calculara o valor de todos os objectos! E Jolyon teve uma intuição que lhe fez pensar: «Palavra, ele gostaria de morar aqui, mesmo agora. Nunca aprendeu a arte de deixar de lamentar o que já lhe pertenceu. Enfim, é preciso que eu faça qualquer coisa. Mas é uma maçada - uma grande maçada!»

À noite,, escreveu uma carta endereçada ao apartamento de Chelsea, pedindo a Irene que o recebesse.

O velho século, que vira florescer tão maravilhosamente a planta do individualismo, caminhava para o declínio, num céu afogueado pela ameaça de tempestades próximas. Rumores de guerra aceleravam a actividade de Londres, na turbulência do fim das férias de Verão. E para Jolyon, que raramente vinha à cidade, os primeiros automóveis e os primeiros táxis, que lhe chocavam o senso estético, davam às ruas um aspecto febril. Do seu cab, contava-os e calculava que, para vinte carruagens, havia um automóvel. «Um ano atrás, a proporção era de um para trinta. É um acréscimo ao baralho de rodas e ao mau cheiro geral.»

Pois ele era um desses raros liberais que objectam contra tudo o que é novo, quando a novidade toma forma material. E deu ordem ao cocheiro para caminhar pela margem do rio, onde a circulação deveria ser menos intensa e lhe seria possível contemplar as águas do Tamisa através da cortina macia das folhas dos plátanos. Num pequeno bloco de casas retiradas, a cinquenta metros de distância do Embankment, mandou o cocheiro esperar e subiu ao primeiro andar.

Sim, Mrs. Heron estava em casa.

Jolyon descobriu imediatamente a mudança introduzida naquele pequeno apartamento por um rendimento fixo, embora modesto, porque se lembrava muito bem da pobreza que transparecia sob a elegância da sala quando lá viera, oito anos atrás, comunicar a Irene a sua herança. Hoje tudo ali era fresco, delicado, cheio do perfume de flores. A tonalidade geral era prateada. com toques de negro, de hortênsia e ouro. «Ela tem muito gosto», pensou ele. Os anos quase não haviam marcado Jolyon, porque ele era um Forsyte. Mas, para Irene, o tempo parecia absolutamente não haver passado, ou pelo menos foi essa a impressão que ela lhe deu. Não lhe pareceu que ela houvesse envelhecido um único dia quando a viu em pé à sua frente, com os olhos macios e o cabelo de ouro escuro, vestida de veludo claro. Estendeu-lhe a mão e sorriu levemente.

- Quer sentar-se?

Provavelmente ele nunca ocupara uma cadeira com tão completo senso de embaraço.

- Você não mudou em nada.

- E você parece mais moço, primo Jolyon.

Jolyon passou os dedos pela cabeleira, cuja abundância ainda lhe era um consolo.

- Estou velho, mas não o sinto. É uma das vantagens da pintura: conserva-nos jovens. O Ticiano viveu noventa e nove anos, e ainda foi preciso a peste para o matar. Sabe que na primeira vez que a vi pensei num dos quadros dele?

- Quando foi que me viu pela primeira vez?

- No Jardim Botânico.

- Como sabia que era eu, se nunca me tinha visto antes?

- Por intermédio de alguém que veio ao seu encontro. Olhou-a fixamente, mas nenhum traço das suas feições se

moveu, e ela disse, em tom calmo:

- Sim, há séculos que isso sucedeu.

- Qual é a sua receita para a juventude eterna, Irene?

- As pessoas que não vivem ficam maravilhosamente conservadas.

«As pessoas que não vivem» era uma frase amarga. Porém era também uma entrada, e ele aproveitou-a.

- Você lembra-se do meu primo Soames? - Ele viu-a sorrir ligeiramente da estranheza daquela pergunta, e continuou logo: - Veio procurar-me anteontem. Está com vontade de se divorciar. E você?

- Eu? - A palavra parecia ter-lhe sido arrancada pela surpresa.- Depois de doze anos? É tarde de mais! Não será muito difícil?

Jolyon olhou-a bem de frente.

- A menos que...

- A menos que eu tenha um amante agora? Mas nunca tive nenhum, desde aquele tempo.

Que sentiu ele ante a cândida simplicidade daquelas palavras? Alívio, surpresa, piedade! Vénus, e doze anos sem um amante!

- Entretanto - disse ele - creio que você também gostaria de ser livre!

- Não sei. Que é que adiantaria, agora?

- E se você amar outra vez?

- Amarei.

Naquela simples resposta, Irene parecia resumir toda a sua filosofia de mulher reprovada pelo mundo.

- Então, que é que devo dizer a Soames, da sua parte?

- Simplesmente que eu lamento que ele não seja livre. Outrora ter-lhe-ia sido fácil. E não sei mesmo porque não aproveitou a oportunidade.

- Porque ele é um Forsyte, e você sabe muito bem que nós não desistimos de uma coisa senão quando queremos outra no lugar dela, e nem sempre é assim, mesmo nesse caso.

Irene sorriu.

- Você também,-primo Jolyon? Eu não o imaginava assim.

- Realmente, eu sou um pouco mestiço, não sou exactamente

um Forsyte puro. Nunca suprimo os meios pence nos meus cheques, arredondo-os - disse Jolyon num ar embaraçado.

- E emtão, que é que Soames quer pôr no meu lugar?

- Não sei. Talvez filhos.

- Sim - murmurou ela -, é difícil. Eu gostaria de o auxiliar a recuperar a liberdade, se pudesse.

Jolyon fixava o fundo do chapéu. O seu embaraço crescia rapidamente, e também a sua admiração, o seu espanto e a sua piedade. Ela era tão encantadora e tão só, e aquilo tudo junto representava um tal enleio!

- Bem - disse ele -, preciso de ir ver Soames. Se há alguma coisa que eu possa fazer por si, estarei sempre às suas ordens. É preciso considerar-me como um precário substituto de meu pai. De qualquer modo, mantê-la-ei ao corrente do que se passar depois da minha entrevista com Soames. Talvez ele próprio possa fornecer o pretexto para o divórcio.

Ela abanou a cabeça.

- Você sabe que ele tem muito a perder, e eu nada. Gostaria que ele ficasse livre, mas não vejo como possa fazê-lo.

- Nem eu, até agora - disse Jolyon.

E pouco depois despediu-se, subindo para o cab que o esperava. Três horas e meia! Soames ainda deveria estar no escritório.

- Vamos ao Poultry - gritou ele ao cocheiro.

Defronte do Parlamento e em Whitehall os jornaleiros gritavam: «Grave situação no Transval!», mas os seus clamores impressionaram-no ligeiramente, absorto na recordação daquela linda mulher, do seu olhar escuro e macio, das palavras que ela lhe dissera: «Mas nunca tive nenhum amante desde aquele tempo.» Que poderia uma mulher fazer da sua vida, relegada assim do mundo? Solitária, desprotegida, com as mãos de todos os homens estendidas para ela,, ou antes, prestes a agarrá-la ao primeiro sinal? E ano após ano ela continuara a viver assim!

A palavra «Poultry» nas paredes, acima da cabeça dos transeuntes, chamou-o à realidade, e a placa «Forsyte, Bustard & Forsyte» em letras pretas sobre fundo verde inspirou-lhe uma espécie de energia. Então subiu a escada murmurando: «Bolorenta, rançosa propriedade! Mas não poderíamos dispensá-la!»

- Desejo ver Mr. Soames Forsyte -disse ele ao empregado que lhe abriu a porta.

- Quem devo anunciar?

- Mr. Jolyon Forsyte.

O rapaz examinou-o com curiosidade, porque nunca vira um Forsyte barbado, e desapareceu.

Os escritórios de Forsyte, Bustard & Forsyte haviam lentamente absorvido os escritórios de Tooting & Bowles e ocupavam agora todo o primeiro andar. Actualmente, a firma consistia apenas na pessoa de Soames e num grande número de escreventes e outros auxiliares. A retirada completa de James, seis anos atrás, acelerara os negócios, os quais tinham atingido o grau mais alto com a retirada de Bustard, esgotado, segundo se dizia, pelo processo «Fryer versus Forsyte», que continuava como sempre de pé e menos do que nunca beneficiava os seus beneficiários. Soames, com a sua sadia compreensão das realidades, nunca se deixara absorver por aquilo, ao contrário, percebera há muito tempo que a Providência o presenteara, graças àquele processo, com um rendimento perpétuo e líquido de duzentas libras anuais.

Quando Jolyon entrou, o primo estava ocupado em escrever uma lista dos consolidados em poder das suas companhias e que ele iria aconselhá-las a entregar ao mercado, devido aos rumores de guerra, antes que as outras companhias fizessem o mesmo. Virou a cabeça, olhou Jolyon de viés e disse:

- Como vai? Um momento só. Quer sentar-se? - Depois de escrever três algarismos e colocar uma régua sobre o papel para marcar onde ia, voltou-se para Jolyon, mordiscando a unha achatada do indicador. - Então? - perguntou.

- Estive com ela.

- E depois?

- Mantém-se fiel à lembrança do morto. - Depois de dizer essas palavras, Jolyon sentiu pudor. O rosto do primo tornara-se subitamente rubro, de um rubro amarelado. Porque viera ele torturar aquele pobre animal? - Devo dizer-lhe que ela lamenta que você não esteja livre. Doze anos é muito tempo. Você conhece a lei melhor que eu, assim como as perspectivas que ela lhe oferece.

Soames fez ouvir um pequeno rosnido, e decorreu bem um minuto antes que um dos primos rompesse o silêncio. «Parece de cera!», pensava Jolyon, olhando aquele rosto fechado, que retomava rapidamente a sua coloração natural. «Nunca me deixará adivinhar o que pensa, nem o que vai fazer. Parece de cera!» Depois mudou o olhar para a planta da florescente cidade «By Street on Set», cuja futura existência era oferecida com aparato, na parede, aos clientes do escritório e ao seu instinto de propriedade. E uma ideia absurda atravessou-lhe o espírito: «Queria saber se vão mandar-me um memorando a respeito deste negócio, Mr. Jolyon Forsyte, por tê-lo recebido para negociações do meu divórcio, por ter aceitado o seu relatório da sua visita a minha mulher, por lhe ter aconselhado a procurá-la novamente, dezasseis shilHngs e oito pence.»

Soames disse de súbito:

- Isto não pode continuar assim. Afirmo-lhe que é impossível. O olhar dele ia da direita para a esquerda, como o de um

animal que procura por onde fugir. «Ele sofre realmente», pensava Jolyon. «E o facto de eu não gostar dele não é uma razão para que esqueça isso.»

- Com toda a certeza - disse suavemente -, isso depende de si. A gente pode sempre conseguir o que quer, nesses assuntos, quando assume a responsabilidade.

Soames pôs-se bem em frente do primo, e, num tom de voz que parecia vir do mais profundo do seu ser,, perguntou:

- Porque tenho eu de sofrer mais do que já sofri? Porquê?

Jolyon pôde apenas erguer os ombros. A sua razão aprovava-o, o seu instinto revoltava-se, mas seria incapaz de dizer porquê.

- O seu pai - continuou Soames - interessou-se por ela... porquê, só Deus o sabe. Você também, decerto. - E assestou sobre Jolyon um olhar perscrutador. - Dir-se-ia que basta fazer-se mal a alguém para recolher todas as simpatias. Não sei em que é que eu merecia censuras... nunca o soube. Sempre a tratei bem. Dei-lhe tudo o que ela poderia desejar. Eu amava-a.

Novamente a razão de Jolyon disse sim e o seu instinto disse não. «Que foi que me sucedeu?», pensou ele. «Deve haver qualquer coisa errada em mim. E, mesmo que tenha sido assim, prefiro estar do lado mau a estar do bom.»

- Afinal - disse Soames com uma espécie de sombria violência -, ela era minha mulher.

Como um relâmpago, este pensamento atravessou o interlocutor: «Ah, cá estamos! A propriedade! Evidentemente, todos nós possuímos coisas. Mas seres humanos! Uff!»

- Você tem de encarar os factos - disse ele secamente. - Ou a ausência de factos.

Soames lançou-lhe novo olhar de suspeita.

- A ausência de factos? Sim, mas não tenho tanto a certeza disso.

- Peço-lhe perdão - replicou Jolyon. - Repeti-lhe o que ela me disse. Parece-me explícito.

- As minhas relações com ela não foram de natureza a inspirar-me uma confiança cega nas suas palavras. Veremos.

jolyon ergueu-se.

- Até à vista - disse.

- Até à vista - respondeu Soames.

E Jolyon saiu, procurando compreender a expressão meio de surpresa e meio de ameaça que vira no rosto do primo. Foi até à estação de Waterloo numa grande perturbação de espírito, como se houvessem esfolado vivo o seu ser moral, e no comboio não deixou de pensar em Irene, no seu apartamento isolado, em Soames, no seu escritório solitário, na estranha paralisia que imobilizava a vida de ambos. «A espada da justiça», pensava ele. «A espada da justiça no pescoço de ambos, porém o de Irene é tão bonito!»

 

VAL É INFORMADO DAS NOVIDADES

O jovem Val Dartie nunca brilhara muito pela pontualidade em encontros, eis porque, naquele dia em que faltara a dois e comparecia ao terceiro, este último facto é que tinha importância, causando-lhe a mais viva surpresa, enquanto voltava de Robin Hill, ao passo lento do cavalo, depois do passeio em companhia de Holly. Ela parecera-lhe ainda mais bonita que na véspera, no seu palafrém ruço-claro, de cauda longa, e, sentindo-se severo para consigo, naquela atmosfera brumosa de tarde de Outubro, nos subúrbios de Londres, parecia-lhe que apenas as suas botas haviam brilhado durante as duas horas passadas em companhia da rapariga. Puxou o relógio de ouro - relógio novo, presente de James - e olhou, não a hora, mas a sua imagem, na tampa espelhante do relógio aberto. Tinha uma espinha sobre uma das sobrancelhas, e aquilo desagradou-lhe, pois deveria ter desagradado à pequena. Crum nunca tinha espinhas. A lembrança de Crum recordou-lhe os incidentes do Pandemonium. Não sentira naquele dia o menor desejo de falar do pai a Holly. O pai carecia daquela poesia que ele sentia fremir em si pela primeira vez, desde que viera ao mundo, há dezanove anos. O Liberty e Cynthia Dark, essa encarnação quase mística de todas as delícias, o Pandemonium e a mulher de idade incerta - parecia a Val que tudo isso fora abolido ao sair da sua comunhão com aquela prima morena e tímida que acabava de descobrir. Ela montava «muitíssimo bem», o que tornava ainda mais lisonjeiro o facto de ter consentido que fosse ele quem dirigisse o passeio nos grandes galopes através de Richmond Park, que ela entretanto conhecia muito melhor que ele. A pobreza da sua própria conversa durante o passeio mortificava Val: poderia muito bem - cismava - dizer a Holly coisas cheias de inteligência, se uma nova ocasião lhe fosse oferecida. E quando pensava que era preciso voltar a Littlehampton no dia seguinte, e ir para Oxford no dia 12, «para a droga daquele exame», sem ter a menor probabilidade de voltar a vê-la, as trevas invadiam-lhe o espírito mais depressa ainda que o céu no declínio da noite. Haveria de lhe escrever entretanto, e ela prometera-lhe responder. Aquela ideia foi para ele como a primeira estrela que se acende no céu, enquanto chegava às cavalariças de aluguel Padwick, em Sloane Square. Apeou-se e espreguiçou-se voluptuosamente, porque havia andado quarenta bons quilómetros. O Dartie que tinha dentro de si fê-lo tagarelar, durante uns cinco minutos, com o jovem Padwick, a respeito do favorito do Cambridgeshire Stakes, depois disse ao rapaz que «inscrevesse um cavalo por sua conta» e afastou-se, com os joelhos um pouco afastados, batendo nas botas com o chicote de cana da Índia. «Não tenho vontade nenhuma de sair», cogitava ele. «Será que a mamã me oferecerá champanhe na minha última noite?»

Quando desceu, imaculado, depois do banho, a mãe já estava vestida, graças a um escrupuloso respeito dos costumes, com um vestido de noite, e, em companhia dela, teve o desprazer de encontrar o tio Soames. Pararam de falar quando Val entrou, depois Soames disse:

- É melhor contar-lhe.

Seria decerto a respeito do pai, e, ao ouvir aquelas palavras, Val pensou em primeiro lugar em Holly. Iriam contar-lhe alguma coisa horrível? A mãe começou a falar.

- O seu pai - disse ela no tom de voz uniforme que a vida social lhe ensinara, enquanto com a ponta dos dedos amarrotava penosamente o brocado verde-mar do vestido -, o seu pai, meu filhinho, não está em Newmarket, está em viagem para a América do Sul... Abandonou-nos.

Val deixou de fixar a mãe para olhar o tio. O pai deixara-os!

Sentiria ele alguma dor? Gostaria realmente do pai? Parecia-lhe que não o sabia. Depois, subitamente, aspirando um perfume de gardénias e o cheiro de charuto que ainda flutuava na sala, sentiu no coração um ponto doloroso e compreendeu que sofria. Um pai pertence-nos, não pode ir-se embora assim - isso não se faz. E, além disso, o seu pai não fora sempre o gigolot do Pandemonium! Queridas lembranças prendiam-no às lojas de alfaiates, a cavalos, a dinheiro recebido na escola e, de uma maneira geral, a acções de bondade pródiga nas fases de boa sorte.

- Mas porquê? - perguntou ele. Depois, como também era um sportsman, sentiu ter feito aquela pergunta. O rosto da mãe estava perturbado. E Val exclamou: - Está bem, mamã, não me diga! Apenas, que é que isto significa?

- Receio que signifique um divórcio, Val.

Val fez ouvir um pequeno rosnido, depois, rapidamente, mudou o olhar para o tio - aquele tio que lhe tinham ensinado a considerar como uma garantia contra as consequências decorrentes do facto de ter tal pai, e mesmo contra o sangue de Dartie que lhe corria nas veias. O rosto comprido de Soames parecia tremer, e aquilo perturbou o rapaz.

- Não haverá publicidade, pois não? - Porque se erguera nele, muito nítida,, a lembrança da avidez com que lera nos jornais os sórdidos pormenores de vários processos de divórcio. - Será que não haverá meios de realizar isso sem rumor? Será tão desagradável para a mamã... e para toda a gente.

- Tudo será feito com o menor rumor possível, pode ficar certo.

- Sim... mas que necessidade há disso? A mamã não pensa em tornar a casar.

Ele, as irmãs, o nome de todos manchado aos olhos dos camaradas de colégio e de Crum, dos estudantes de Oxford e de Holly! Era insuportável! Que é que se poderia ganhar com isso?

- Você deseja-o, mamã? - perguntou com vivacidade. Posta assim, pela criatura a quem ela mais queria no mundo,

em face de sentimentos que eram tão idênticos aos seus, Winifred ergueu-se da poltrona Império onde estava sentada. Viu que o filho ficaria contra ela se não lhe contassem tudo.

E, no entanto, como contar-lhe? De forma que, amarrotando sempre entre os dedos a seda verde do vestido, ela encarava Soames. Val também fixava Soames. Não seria possível que aquela encarnação da respeitabilidade e do sentimento das conveniências quisesse infligir um tal dano à própria irmã.

Soames fez deslizar lentamente sobre a superfície lisa de uma mesa embutida Um pequeno corta-papéis ornado de incrustações, depois, sem olhar para o sobrinho, começou:

- Você não compreende o que sua mãe teve de suportar durante vinte anos. Este caso de hoje, Val, é apenas a última gota. - E, erguendo os olhos para Winifred, perguntou: - Será preciso contar?

Winifred não respondeu. Se não lhe contassem, ele ficaria contra ela, e entretanto era horrível ouvir tais coisas a respeito do próprio pai. Com os lábios apertados, fez sinal que sim.

Soames falou em voz rápida e uniforme:

- Dartie sempre foi uma pedra amarrada ao pescoço de Winifred. Ela pagou-lhe as dívidas não sei quantas vezes. Várias noites sucedeu ele entrar em casa bêbado, insultá-la, ameaçá-la, agora, fugiu com uma bailarina. - E, como se não tivesse confiança na eficácia dessas palavras nos ouvidos do rapaz, acrescentou precipitadamente: - Ele levou as pérolas de sua mãe para as dar a essa mulher.

Ao chegar a esse ponto, Val ergueu a mão num gesto brusco. Vendo esse sinal de sofrimento, Winifred exclamou:

- Basta, Soames, pare!

No espírito do rapaz, o Dartie e o Forsyte estavam em luta. Ele tinha uma certa simpatia pelas dívidas, a bebida, as bailarinas. Mas as pérolas - isso não! Era de mais! E de súbito sentiu a mão da mãe que apertava a sua.

Ouviu Soames dizer:

- Você vê que não poderemos permitir que isso recomece. Há um limite para tudo, é preciso que malhemos o ferro enquanto está quente.

Val libertou a mão.

- Mas... mesmo assim... não irão alegar o caso das pérolas, não? Eu não poderia suportá-lo... não poderia absolutamente!

- Não, não, Val - gritou Winifred. - Oh, não! Foi apenas para lhe fazer compreender como seu pai excedeu todos os limites.

O tio fez um sinal de assentimento. Um pouco mais calmo, Val acendeu um cigarro. Fora o pai que llhe dera aquela cigarreira chata e curva. Oh, era insuportável - no momento de partir para Oxford!

- Será que não se poderia proteger a mamã sem isso? - perguntou.- Eu cuidaria dela.. E nós sempre poderemos chegar lá, mais tarde, quando for necessário.

Um sorriso brincou um momento sobre os lábios de Soames, e logo se tornou amargo.

- Você não sabe o que está a dizer. Nessa espécie de assuntos, nada é tão fatal como adiar a acção.

- Porquê?

- Estou a dizer-lhe, rapaz, que nada pode ser tão fatal. Falo por experiência própria.

A sua voz tinha um tom exasperado. Val considerava-o de olhos arregalados, porque jamais vira o tio manifestar a menor emoção. Oh, sim, lembrava-se agora. Houvera uma tia Irene - acontecera qualquer coisa, uma coisa de que não se falava, e uma vez ele ouvira o pai, ao referir-se a essa tia, empregar uma palavra que não se pode repetir.

- Não quero falar mal do seu pai - prosseguiu Soames resolutamente -, mas conheço-o bastante para ter a certeza de que dentro de um ano ele andará de novo atrás da sua mãe. E você pode imaginar, pelo que está a suceder agora, o que isso representará para ela e para vocês todos. A única coisa a fazer é cortar o nó de uma vez.

A despeito de si próprio, Val estava impressionado, e, mudando os olhos para o rosto da mãe, teve, pela primeira vez na vida, a intuição de que o que ele próprio sentiria não era a coisa mais importante do mundo.

- Muito bem, mamã, nós ficaremos a seu lado. Apenas gostaria de saber quando se fará isso tudo. Sabe que é o meu primeiro trimestre de universidade, e eu prefiro não estar lá no momento do processo.

- Oh, meu filhinho - murmurou Winifred -, será tão desagradável para si!

O hábito de exprimir por aquela fórmula moderada aquilo que, a julgar-se pela expressão do rosto, representava a sua mágoa mais pungente.

- Quando se fará a coisa, Soames?

- Não poderei dizê-lo... não antes de vários meses. É preciso primeiro que se requeira a reintegração do lar.

«Que diabo será isso?», pensou Val. «Que animais são esses advogados! Não antes de vários meses! Mas há uma coisa que sei muito bem: não janto aqui hoje.» E disse:

- Sinto muito, mamã, mas tenho de sair para jantar.

Se bem que aquela fosse a sua última noite, Winifred aprovou-o com uma espécie de gratidão. Ambos tinham a impressão de terem ido muito longe na expressão dos seus sentimentos.

Deprimido e desolado, Val procurou a liberdade brumosa de Green Street. Só depois de chegar a Piccadilly se recordou de que tinha apenas dezoito pence no bolso. Era impossível jantar com dezoito pence, e ele tinha fome. Contemplou com desejo as janelas do Iseeum Club, onde tantas vezes saboreara, em companhia do pai, a cozinha mais requintada. Aquelas pérolas! Não havia meio de as esquecer. Mas quanto mais rolava os pensamentos sombrios, mais caminhava, e mais fome tinha. Se não queria voltar tristemente para junto da mãe, havia apenas dois lugares aonde poderia ir: a casa do avô, em Park Lane, ou à casa do tio Timothy, em Bays-water Road. Entre essas duas alternativas, qual era a menos deplorável? Chegando de improviso, decerto jantaria melhor em casa do avô. Em casa de Timothy só davam boas refeições quando estavam prevenidos. E ele pensou também que não deveria ir para Oxford sem oferecer ao avô uma oportunidade de lhe dar algum dinheiro - o que não seria justo nem para um, nem para o outro. Escolheu, pois, Park Lane. Decerto a mãe saberia depois que ele fora lá, e poderia achar aquilo estranho, mas que lhe restava fazer? E tocou a campainha.

- Olá, Warmson! Haverá jantar para mim?

- Estão de caminho para a mesa, Master Val. Mr. Forsyte ficará muito contente ao vê-lo.

Hoje, ao almoço, disse que nunca mais o vira.

Val fez uma careta.

- Bem, aqui estou. Mate o vitelo gordo, Warmson, e dê-nos champanhe!

Warmson sorriu levemente, aos seus olhos, Val não era mais que uma criança.

- Vou pedir a Mrs. Forsyte, Master Val.

- É bom que você saiba - disse Val, tirando o sobretudo - que já não estou na escola.

Warmson abriu uma porta, vizinha ao cabide de cabeça de veado, e, não sem uma pontinha de ironia, anunciou:

- Mister Valerius, Ma'am!

«O Diabo o leve!», pensou Val enquanto entrava. A avó beijou Val carinhosamente, exclamando:

- Val! Que boa surpresa! James disse numa voz trémula:

- Afinal, cá está você!

E aquela acolhida reintegrou-o no sentimento da sua dignidade.

- Porque não nos preveniu? Só temos carneiro assado. Traga champanhe, Warmson - disse Emily. E dirigiram-se para a salla de jantar.

A grande mesa, em torno da qual jantara tanta gente elegante, estava agora reduzida ao tamanho mínimo. James sentou-se numa ponta, Emily na outra, e Val no meio do intervalo que os separava: sentiu um pouco a solidão em que viviam os avós, agora que os seus quatro filhos haviam partido. «Oxalá eu rebente antes de chegar à idade do avô», pensava ele: «Pobre do velho, está magro como um galho seco!» E em voz quase baixa, enquanto o avô discutia com Warmson para saber se poderia pôr açúcar na sopa, ele disse a Emily:

- Lá em casa as coisas vão péssimas, avó. Com certeza já sabe.

- Sim,, meu filho.

- O tio Soames estava lá quando saí. E, a propósito disso, será que não se pode fazer nada para evitar um divórcio? Porque se obstina ele com tanta fúria nisso?

- Psiu, meu filho! Nós não falámos nisso ao seu avô.

A voz de James fez-se ouvir na outra ponta da mesa.

- Que é? Que é que vocês estão a dizer?

- É a propósito dos estudos de Val - respondeu Emily. - O jovem Pariser está no mesmo colégio, você lembra-se, aquele que quase rebentou a banca em Monte Carlo.

James murmurou que não sabia. Era preciso que Val estivesse atento, lá no colégio, senão poderiam suceder-lhe muitas coisas desagradáveis. E considerou o neto com uma expressão triste, iluminada por uma afeição inquieta.

- A única coisa que receio - disse Val - é passar apertos por lá.

Ele sabia instintivamente que o ponto fraco do velho era o receio de insegurança para os netos.

- Quanto a isso - disse James, deixando escorrer no prato a colherada de sopa -, você terá uma boa mesada. Mas não deve gastar de mais.

- Decerto, avô - murmurou Val -, se a mesada for boa. Quanto terei?

- Trezentas e cinquenta libras. É muito, na sua idade, eu não tinha quase nada.

Val suspirou: esperara uma mesada de quatrocentas libras e temera uma de trezentas.

- Não sei quanto dão ao seu primo - disse James. - Ele está lá, o pai é rico...

- O senhor não o é? - perguntou Val com audácia.

- Eu? - respondeu James, presa de viva agitação. - Tenho muitas despesas... O seu pai... -E calou-se.

- O primo Jolyon tem uma linda propriedade. Fui lá com o tio Soames. As cavalariças são formidáveis.

- Ah - suspirou profundamente James. - Aquela casa... Eu sabia o que ia acontecer.

E abismou-se numa profunda meditação por sobre as espinihas de peixe no prato. A tragédia do filho, o profundo fosso que ela cavara na família Forsyte, tinha ainda o poder de o arrastar num turbilhão de dúvidas e inquietações. Val, que desejava falar de Robin Hill, porque Robin Hill era Holly, voltou-se para Emily e perguntou:

- Foi aquela a casa construída para o tio Soames? - E, depois de receber em resposta um sinal afirmativo, continuou: - Queria que me falasse dela, avó. Que é feito da tia Irene? Será que ainda existe? Hoje, o tio Soames parecia furiosamente agitado.

Emily pôs o dedo nos lábios, mas o nome de Irene ferira o ouvido de James.

- Que é? - perguntou ele com um pedaço de carneiro parado diante da boca. - Quem foi vê-la? Eu sabia muito bem que não nos havíamos livrado de referências a esse assunto.

- Vamos, James - disse Emily -, coma o seu jantar. Não se foi visitar ninguém.

James depôs o garfo.

- Lá está você - disse ele. - Eu poderia morrer antes que se resolvesse a contar-me qualquer coisa. Será que Soames está a tratar de se divorciar?

- Tolices - disse Emily com incomparável sangue-frio. - Soames não é assim tão tolo.

James levara a mão ao pescoço magro e ossudo, sobre o qual apertava as longas suíças brancas.

- Ela... ela sempre - disse ele.

E a conversa parou nessas palavras enigmáticas, porque Warmson acabava de entrar. Mas depois, quando o assado de carneiro deu lugar à sobremesa e Val recebeu um cheque de vinte libras e o beijo do avô - um beijo que não se parecia com nenhum outro, dado por lábios velozmente estendidos, com uma rapidez receosa, como se o autor houvesse cedido a um momento de fraqueza -, o rapaz voltou à carga, no hall de entrada.

- Fale-me do tio Soames, avó. Porque faz ele tanta questão de que a mamã se divorcie?

- O seu tio Soames - disse Emily, e a voz dela tinha um tom de segurança forçada -, o seu tio é advogado, meu filho. Ele sabe melhor que ninguém o que é preciso fazer.

- Ah, sim - murmurou Val. - Mas que é feito da tia Irene? Lembro-me de que ela era linda.

- Ela... eh... - disse Emily - ela procedeu muito mal. É uma coisa de que nunca falamos.

- De qualquer modo, não tenho nenhum desejo de que toda a gente em Oxford esteja a par das nossas questões de família - disse Val com força. - É uma ideia brutal. Porque não se pode impedir que o pai continue longe sem que o caso se torne público? Emily suspirou. Graças aos seus gostos mundanos, sempre vivera numa atmosfera de divórcios, e muitas das pessoas que se tinham sentado à sua mesa haviam adquirido uma certa notoriedade. Mas, tratando-se da sua própria família, aquilo não lhe agradava mais que aos outros. Era contudo um carácter eminentemente prático, uma mulher corajosa, que nunca perseguiria uma sombra de preferência à sua substância.

- A sua mãe - disse ela - será mais feliz quando for completamente livre, Val. Boa noite, meu filhiinho, não use coletes vistosos em Oxford. Não estão na moda, actualmente. Tome um presentinho para si.

Com mais cinco libras no bolso e um pouco de calor no coração, porque gostava da avó, Val saiu para Park Lane. O vento dissipara a neblina,, as folhas luziam na noite outonal e as estrelas cintilavam. Com tanto dinheiro, sentiu a tentação de ir divertir-se. Mas não tinha percorrido ainda quarenta metros, quando lhe apareceu o rosto tímido de Holly, com os seus olhos graves onde dançava um clarão jovial, e pareceu-lhe sentir ainda a pressão quente da mãozinha enluvada da moça.

- Ora bolas! Vou para casa.

 

SOAMES PENSA NO FUTURO

A estação estava muito adiantada para permitir um passeio pela margem do rio, mas fazia um tempo delicioso e o Verão demorava-se nas folhas amareladas. No seu jardim à margem do Tamisa,, perto de Mapledurham, Soames muitas vezes interrogou o céu naquela manhã de domingo. Com as suas próprias mãos enfeitou de flores todas as salas da casa e muniu do necessário o barco em que contava levar as visitas depois do almoço para um passeio no rio. E, arrumando as almofadas de estilo chinês, não saberia dizer se desejava ou não levar Annette sem a companhia da mãe. Ela era tão bonita... e poderia ele estar certo de que não diria nada de irrevogável, nada que ultrapassasse os limites da discrição? As rosas ainda estavam desabrochadas sob a varanda, as sebes ainda estavam verdes, de tal modo que ainda não havia no ar nada da maturidade do Outono para lhe resfriar os ímpetos. E no entanto sentia-se inquieto, nervoso, com uma estranha falta de confiança na sua capacidade de fazer exactamente o que conviesse. No seu espírito, destinara aquela visita a fazer nascer em Annette e na mãe o justo sentimento da sua fortuna, de modo a prepará-las a acolherem com respeito qualquer proposta que estivese disposto a fazer mais tarde. Vestiu-se com grande cuidado, sem procurar ficar nem jovem de mais, nem velho de mais, alegre por os seus cabelos ainda serem bastante espessos e sedosos, virgens de qualquer fio de prata. Três vezes seguidas subiu à galeria de quadros. Por pouco que elas entendessem daquilo, era impossível que não vissem imediatamente que a sua colecção valia mais de trinta mil libras. Inspeccionou minuciosamente também o seu lindo quarto de dormir, com janelas para o rio, onde elas tirariam os chapéus, Seria também o quarto de Annette se... se as coisas se arranjassem e ela se tornasse sua mulher. Aproximando-se do toucador, passou a mão pela almofadinha lilás onde estavam cravados alfinetes de todos os modelos, um vaso cheio de pétalas fanadas espalhava um cheiro que lhe entonteceu a cabeça. Sua mulher! Se ao menos tudo pudesse ser decidido logo, sem, como prelúdio, o pesadelo do divórcio... E, com uma ruga de preocupação a sulcar-lhe a testa, mudou o olhar para o rio, que brilhava ao sol, para lá do relvado e das roseiras em flor. Madame Lamotte não resistiria a uma tal perspectiva para a filha, Annette não resistiria à mãe. Se ao menos ele fosse livre!

Foi esperá-las à estação, com o carro. Como tinham bom gosto aquelas francesas! Madame Lamotte trajava lilás e negro, e Annette um vestido de linho róseo, com luvas creme e um chapéu do mesmo tom. Tinha a cor um pouco pálida dos habitantes de Londres e os seus olhos azuis estavam cheios de candura. Enquanto esperava que descessem para o almoço, Soames mantinha-se de pé, junto à janela aberta, gozando aquela alegria dos sentidos que vem do sol, das flores, das árvores, e que apenas se experimenta plenamente nos dias em que a beleza e a juventude estão ao nosso lado para as partilhar. Ordenara o almoço com profundo cuidado e mandara trazer da adega um Sauterne especialíssimo, toda a escolha da refeição era perfeita, e o café, servido na varanda, excelente. Madame Lamotte aceitou até o creme de hortelã: Annette recusou. Os seus modos eram encantadores, deixando transparecer uma leve suspeita de que eram modos de rapariga que se sabe bonita. E Soames pensava: «Sim. mas basta mais um ano de Londres, nesse género de vida, para que este encanto se estrague.»

Madame exibia um entusiasmo inteiramente francês: «Adorable! Le soleil est si bon! Como tudo aqui é chique, não acha, Annette? Monsieur é um verdadeiro Monte Cristo!» Annette aprovava a meia voz, e ao mesmo tempo erguia para Soames um olhar que ele não conseguia decifrar. Ele propôs darem um passeio de barco. Mas passear assim por sobre a água com duas pessoas, uma das quais ficava tão linda estirada sobre as almofadas chinesas, só o faria sofrer, com um sentimento de oportunidade perdida. De modo que fizeram apenas um pequeno percurso na direcção de Pangbourne, e voltaram lentamente ao sabor da corrente, enquanto, de tempos a tempos, uma folha dourada caía sobre Annette ou sobre as negras amplitudes da mãe. Soames não se sentia feliz, pelo contrário, atormentava-o este pensamento: «Como... quando... onde falar, que dizer?» Elas ainda não sabiam sequer que ele era casado. Se o dissesse, poderia comprometer tudo, e entretanto, se não as fizesse compreender claramente que desejava a mão de Annette, um outro poderia tomá-la antes que ele pudesse reclamá-la como sua. Ao chá, que ambas tomaram com limão, Soames falou do Transvall.

- Vai haver guerra - disse ele. Madame Lamotte lamentou:

- Ces pauvres gens bergers! Não seria possível deixá-los em paz?

Soames sorriu - a pergunta parecia-lhe absurda.

Ela compreenderia perfeitamente, já que era mulher de negócios, que os Ingleses não poderiam abandonar os seus legítimos interesses comerciais.

- Ah, é isso!

Contudo, Madame Lamotte achava que os Ingleses eram um pouco hipócritas. Falavam em justiça e nos Uitlanders, mas nunca em comércio. Monsieur era o primeiro que apresentava a questão desse modo.

- Os Boers são apenas semicivilizados - comentou Soames. - Perturbam a marcha do progresso. Nós nunca poderemos renunciar à nossa suserania.

- Que quer isso dizer? Suserania! Que palavra estranha! Soames sentiu-se eloquente ante aquela ameaça ao princípio

da propriedade e, estimulado pelos olhos de Annette, que sentia fixos em si, ficou encantado quando a ouviu dizer, depois de um instante:

- Eu creio que monsieur está certo. Eles precisam de uma lição.

Era uma rapariga sensata!

- Naturalmente - disse Soames-, nós temos de agir com moderação. Eu não tenho nada de jingo (1). Devemos mostrar-nos firmes, mas sem brutalidade. Querem subir para ver os meus quadros?

Passando de um para outro dos seus tesouros, ele percebeu logo que elas não entendiam nada de pintura. Não compreenderam o seu último Mauve, um notável estudo sobre A Volta de Um Carro de Feno, e passaram diante dele como se fosse uma litografia. Esperava, com uma espécie de terror, para ver como elas Olhariam para a mais linda peça da colecção - um Israels, cujo preço subira tão alto que já não esperava vê-lo subir mais e acerca do qual considerava que seria melhor pô-lo à venda. Elas não o olharam. A surpresa era desagradável. E entretanto, se era preciso formar o gosto virgem de Anmette, seria melhor essa indiferença do que ter de combater as estúpidas predilecções dos ingleses da classe média. No fundo da galeria havia um Meissonier de que ele quase tinha vergonha - o preço dos Meissonier baixava com uma tal regularidade! Madame Lamotte parou diante do quadro.

- Meissonier! Ah, que jóia!

Soames aproveitou a vantagem do momento.

- Gosta da minha casa, Annette? - murmurou, tocando-lhe levemente o braço.

Ela não fugiu à aproximação, mas também não lhe correspondeu, olhou-o bem de frente, baixou os olhos e murmurou:

- A quem não agradaria? É linda.

- Um dia, talvez... - disse Soames. E calou-se.

Tão bonita, tão senhora de si, ela assustava-o. Os seus olhos cor-de miosótis, a linha de marfim do pescoço, as curvas delicadas - ao vê-la, um homem sentia-se sempre tentado a dizer palavras ousadas. Não, não! Era preciso saber em que ponto estavam, sabê-lo muito melhor. «Se eu me mantiver na reserva», pensava ele, «isso excitar-lhe-á o desejo.» E foi à procura de Madame Lamotte, que estava ainda defronte do Meissonier.

- Sim, este é um bom exemplo da sua última maneira. É preciso voltar, madame,

 

*1. Jingo - partidário de uma política externa agressiva. (N. da T.)

 

para ver todas estas telas à luz artificial. As senhoras deveriam vir passar uma noite aqui.

Madame disse que estava encantada. Realmente, os quadros deveriam ser bonitos, iluminados. E o Tamisa também, haveria de ser um encanto, ao luar.

Annette murmurou:

- Mas tu estás sentimental, mamã!

Sentimental! Aquela francesa atarracada, vestida de preto, que vivia apenas para as coisas do mundo! E de súbito ele sentiu-se tão certo quanto o seria possível de que não havia em nenhuma delas o menor resquício de sentimentalismo. Melhor! Para que serve o sentimento? Entretanto...

Levou-as de carro à estação e acompanhou-as até à portinhola da carruagem. Pareceu-lhe que os dedos de Anmette correspondiam levemente, muito levemente, ao aperto pronunciado que lhes deu: o rosto dela sorria-lhe na sombra.

Regressou ao carro, sonhador.

- Volte sem mim, Jordam - disse ao cocheiro. - Vou fazer o caminho a pé.

E meteu-se em grandes passadas pelos trilhos que as trevas invadiam, dividido entre a prudência e o desejo da posse. Bon soir, monsieur! Com que voz suave ela lhe dissera isso! Se lhe pudesse conhecer os pensamentos! As francesas parecem-se com gatos... nunca podemos ter a certeza de nada! Mas como era bonita! Que coisa perfeita para um homem apertar nos braços! Que mãe para o seu herdeiro! E ele pensou, com um sorriso, na gente da sua família, na surpresa quando o vissem casado com uma francesa,, na curiosidade deles e no modo como ele se divertiria com essa curiosidade e a frustraria - o Diabo que os levasse! Os choupos suspiravam na escuridão. Uma coruja piou. Na água, as sombras pareciam mais profundas. «Quero ficar livre e libertar-me-ei», cismava Soames. «Não vou mais ficar à toa, dependurado. Procurarei Irene. Quando se quer ver as coisas feitas, o melhor é fazê-las pessoalmente. Quero recomeçar a viver, ter liberdade de movimentos, ser eu próprio.»

E, como para fazer eco a esse estranho credo, os sinos das igrejas soaram, chamando os fiéis à oração da noite.

 

E VAI REVER O PASSADO

Numa terça-feira à noite, depois de jantar no seu clube, Soames dispôs-se a realizar uma tarefa que requeria mais coragem e talvez menos delicadeza que qualquer outra que tivera de afrontar durante a vida inteira, salvo talvez o nascimento - e uma outra acção.

Escolheu a noite, com efeito, em parte porque a essa hora Irene com mais probabilidade estaria em casa, mas principalmente porque não conseguira obter de si suficiente audácia durante a luz do dia e carecera de um pouco de vinho a mais para se estimular.

Deixou o carro no Enbankment e caminhou a pé até Old Ghurch. Sabia que ela morava ali, mas sentia-se incerto em identificar qual das casas de apartamentos seria a dela. Encontrou-a depois, escondida junto de um bloco de casas muito maior. Leu o nome: «Mrs. Irene Heron». Heron, com efeito! Então ela retomara o nome de solteira! E voltou à rua, para a calçada oposta, a fim de examinar as janelas do primeiro andar. O apartamento estava iluminado. Ouvia-se o som de um piano. Soames nunca gostara de música e acumulara contra essa arte muitos rancores, outrora, quando a mulher procurava tantas vezes o piano como um local de refúgio em que ele não podia penetrar. Como o repelira! Primeiro repelira-o secretamente, durante longos meses, depois abertamente. O som do piano despertou em Soames recordações amargas.

Provavelmente era Irene que tocava. E, mais ou menos certo de voltar a vê-la agora, sentia-se mais indeciso que nunca. Sentia arrepios de apreensão, a língua secara-lhe na boca, o coração batia em pancadas precipitadas. «Não tenho nenhuma razão para ter medo, eu», pensou ele. E então foi o advogado que se alarmou. Não iria cometer uma imprudência, não deveria preparar uma entrevista em boa e devida forma, na presença do administrador da herança dela? Qual! Na presença daquele Jolyon, cujas simpatias já estavam todas hipotecadas a ela? Nunca! Voltou à entrada, subiu a escada em passos lentos, para acalmar as pancadas do coração, depois tocou a campainha. Quando lhe abriram a porta, as suas sensações afogaram-se todas naquele perfume - aquele perfume do passado longínquo -, perfume de um salão onde tinha o hábito de entrar outrora, de uma casa que fora outrora a sua, perfume de pétalas secas, de rosas e de mel.

- Anuncie Mr. Forsyte - disse ele à criada. - A sua patroa receber-me-á, tenho a certeza.

Ele havia preparado aquilo. Irene pensaria que era Jolyon.

A criada saiu e ele ficou só na pequena entrada, iluminada fracamente por uma lâmpada cujo quebra-luz tinha uma franja de aljôfares e a que o tom prateado das paredes, do tapete, de tudo, dava um ar fantasmagórico. Tudo o que ele pôde fazer foi perguntar a si mesmo esta coisa ridícula: «Tiro o sobretudo ou fico com ele?» A música parou e a criada disse, abrindo a porta:

- O senhor quer ter a bondade de entrar?

Soames entrou. Notou que também na sala tudo era cor de prata e que o piano era de pau-cetim. Irene erguera-se e mantinha-se em pé junto do piano, com o busto inclinado para trás, como se procurasse às cegas um apoio, tocou com as mãos nas teclas e tirou alguns sons discordantes, passaram-se alguns instantes antes que ela erguesse aquela mão e que o silêncio se refizesse. Trajava um vestido de noite, preto, com uma espécie de mantilha nos ombros. Soames não se lembrava de alguma vez a ter visto de preto e um pensamento atravessou-lhe o espírito: «Ela faz toilette de noite mesmo quando está só!»

- Você - ouviu-a murmurar.

Foram muitas as ocasiões em que Soames ensaiara em imaginação aquela cena.

Mas os ensaios agora não o ajudavam em nada. Sentia-se absolutamente incapaz de falar. Nunca supusera que a presença daquela mulher, tão apaixonadamente desejada outrora, tão completamente possuída e que ele não via já há doze anos, o pudesse afectar a tal ponto. Ele imaginara-se falando e agindo, metade como homem de negócios, metade como juiz. E agora era como se estivesse na presença, não de uma mulher e de uma esposa culpada, mas de uma força subtil e impossível de deter, como a própria atmosfera, que estava sempre dentro dele e fora dele, sempre inatingível.

- Sim, é uma visita esquisita! Espero que você tenha passado bem.

- Obrigada. Quer sentar-se?

Ela afastara-se do piano e deixara-se cair sobre uma cadeira, num vão de janela,, com as mãos juntas sobre os joelhos. Estava em plena luz, e Soames podia ver-lhe o rosto, os cabelos, os olhos, tudo estranhamente idêntico à lembrança que guardara e estranhamente belo.

Ele sentou-se na beira de uma cadeira de pau-cetim, recoberta de um estofo prateado, que estava próxima de si.

- Você não mudou, Irene.

- Não. Porque veio visitar-me?

- Para discutir a nossa situação.

- O seu primo já me comunicou os seus desejos.

- E então?

- Eu concordo. Sempre o quis, aliás.

Ele era auxiliado agora pelo som da voz dela, reservado, fechado, pela visão do seu corpo numa atitude de defesa vigilante. Lembrou-se de mil outras ocasiões em que a vira pôr-se em guarda contra ele e disse-lhe com amargura:

- Talvez você tenha a bondade de trazer ao meu conhecimento alguns factos sobre os quais eu possa basear-me para agir. Somos obrigados a conformar-nos com a lei.

- Não tenho nada a comunicar-lhe que já não seja do seu conhecimento.

- Doze anos! E você pensa que eu possa acreditar nisso?

- Não penso em que você acredite em nada do que eu lhe diga. Mas é a verdade.

Soames olhoua duramente. Dissera-lhe, ao entrar, que ela era a mesma. E via entretanto agora que a mulher mudara. Não no rosto, que apenas se tornara mais lindo, não no corpo, que apenas se tornara um pouco mais cheio, mas ela não era a mesma, moralmente. A sua personalidade, de certo modo, afirmava-se muito melhor, e mostrava agora uma certa actividade, uma certa audácia, onde outrora só existira resistência passiva. «Ah», pensou ele, «a herança deu-lhe independência! Para os diabos o tio Jolyon!»

- Segundo penso, você agora vive com conforto, não?

- Sim, obrigada.

- Porque nunca consentiu que eu lhe desse tudo o que você precisasse? Eu tê-lo-ia feito, a despeito de tudo. - Um leve sorriso apareceu nos lábios de Irene, que não respondeu a nada. - Você ainda é minha mulher - acrescentou Soames.

Nem quando falou, nem mais tarde, pôde explicar a si próprio porque dissera aquilo, nem qual a significação de tal frase. Era de um truísmo quase ridículo, mas produziu efeitos notáveis. Irene ergueu-se da cadeira e durante um instante ficou perfeitamente erecta e imóvel, a olhá-lo. Ele podia ver-lhe o seio erguer-se. Depois ela caminhou para a janela e escancarou-a.

- Porque faz isso? - perguntou ele num tom seco. - Vai constipar-se, vestida como está. Eu não sou perigoso. - E soltou uma risadinha triste.

Ela riu também - um riso fraco e amargo.

- Foi... um hábito.

- Estranho hábito - comentou Soames, com a mesma amargura. - Feche essa janela.

Irene fechou-a e tornou a sentar-se.

- Você tem tanto interesse como eu em ser livre. Essa velha história já é antiga de mais.

- Eu já lhe disse tudo.

- Quer dizer-me que nunca houve nada... ninguém?

- Ninguém. Será preciso procurar na sua vida. Esporeado por aquela resposta, Soames começou a percorrer a

sala em largas passadas, entre a parede e a lareira, como o fazia outrora no salão deles, todas as vezes em que era presa de uma emoção forte de mais.

- Isso não pode ser - disse ele. - Foi você que me abandonou. A justiça mais elementar exige que seja você...

Ele viu-a erguer os ombros alvos e ouviu-a murmurar:

- De acordo. Mas porque não requereu o divórcio naquela época? Que me teria importado então?

Ele parou e examinou-a com uma espécie de curiosidade. Que poderia ela fazer de si mesma, se realmente vivia de todo só? E porque, com efeito, não requererá ela o divórcio? E, tal como outrora, enquanto a olhava, sentia a desagradável impressão de que a mulher não o compreendera e não lhe fizera justiça.

- Porque nunca pôde ser uma boa esposa para mim? - perguntou.

- Sim. Foi um crime meu casar consigo. Paguei por isso. Talvez você descubra qualquer modo de resolver o problema. Não se preocupe com a minha reputação; não tenho nada a perder. Mas, agora, creio que o melhor que pode fazer é ir-se embora.

O sentimento de uma derrota - de ter sido defraudado da justificação da sua própria conduta e de uma outra coisa ainda que lhe era impossível explicar - assaltou Soames como o sopro de uma neblina gelada. Maquinalmente, estendeu o braço, apanhou na lareira um vasinho de porcelana, volteou-o entre os dedos e disse:

- Lowestoft. Onde encontrou isto? Comprei o par dele no Jobson.

E, invadido pela lembrança do tempo em que compravam bibelots juntos, demorou-se na contemplação do vaso, como se ele contivesse todo o passado. A voz de Irene tirou-o das suas recordações:

- Leve-o. Não gosto dele. Soames recolocou-o sobre a lareira.

- Quer dar-me a mão? - perguntou.

Um ligeiro sorriso distendeu os lábios de Irene. Ela estendeu a mão. Estava fria ao contacto da mão dele, quase febril. «Ela é feita de gelo», pensou Soames. «Sempre o foi.» Mas, no próprio momento em que esse pensamento lhe atravessou o espírito, os seus sentidos foram assaltados pelo perfume que vinha do vestido da mulher, do seu corpo, como se o ardor que estava nela e que nunca se mostrara por ele se esforçasse por se manifestar.

Soames girou sobre os calcanhares. Saiu e afastou-se como se o perseguissem a chicotadas, sem mesmo procurar um carro, feliz por encontrar o vazio do Embankment, o frio da margem, a sombra espessa das folhas dos plátanos - com a cabeça cheia de ideias confusas, o coração revolvido, descontente e vagamente inquieto, como se houvesse cometido uma falta grave cujas consequências não pudesse prever. E de súbito foi assaltado por esta ideia fantástica: «O melhor que pode fazer é ir-se embora», dissera-lhe ela. E se ela lhe houvesse dito: «O melhor que pode fazer é ficar» - que impressão llhe teria produzido isso? Que teria ele feito? A maldita atracção que Irene exercia sobre ele estava sempre presente ali, depois de tantos anos de afastamento e de amargura. Ela estragara-llhe a vida, ferira mortalmente o seu orgulho, frustrara-o de um filho. E só de vê-la na sua frente, mais fria e hostil que nunca, ele ficara tão completamente perturbado! Devia ser allgum magnetismo infernal que havia nela. E não era surpreendente que, segundo o afirmava, Irene houvesse vivido intocada durante aqueles doze anos. De modo que Bosinney - maldita fosse a sua memória - fizera-lhe companhia durante todo esse tempo. E Soames não podia dizer se aquela solidão lhe dava prazer ou não.

Aproximando-se do seu clube, parou para comprar um jornal da noite. «Os Boers repudiarão a suseramia britânica!», dizia um título. «Suserania! Exactamente iguais a Irene! Ela sempre fez isso. Ainda tenho direito à suserania. E ela deve sentir-se terrivelmente só naquele miserável apartamentozinho!»

 

A BOLSA DOS FORSYTE

Soames pertencia a dois clubes, o Connoisseurs, cujo endereço punha nos seus cartões de visita e onde nunca ia, e o Remove, que nunca indicava nos cartões e que frequentava. Entrara para essa sociedade liberal cinco anos atrás, depois de se certificar de que todos os seus membros eram conservadores no coração e na bolsa, se não em princípios. Fora o tio Nicholas que o levara para lá. A bela sala de leitura era decorada em estilo Adam. Ao entrar no clube, naquela noite, deu uma olhadela à fita do telégrafo para verificar se havia notícias do Transval, e notou que os consolidados haviam baixado sete dezasseis avos desde a manhã. Preparou-se para entrar no salão de leitura,, quando uma voz disse atrás dele:

- Então, Soames, tudo correu bem, não?

Era o tio Nicholas, de sobrecasaca, com o seu colarinho especial e uma gravata preta enfiada num anel. Senhor! Como tinha um aspecto saudável e bem disposto, aos oitenta e dois anos!

- Penso que Roger gostaria do modo como tudo foi feito - disse o tio. - Esteve muito bem. Esses Boers estão a atormentar-me. E esse sujeito, esse Chamberlain, está a arrastar o país para a guerra. Que pensa você?

- Espero complicações - murmurou Soames.

Nicholas passou a mão pela face clara, barbeada de fresco, muito rosada depois da sua estação de águas de Verão.

Uma ligeira irritação vincava-lhe os lábios; aquele assunto fizera reviver todos os seus princípios liberais.

- Não confio naquele sujeito; é um desastrado. As propriedades imobiliárias vão baixar muito, se houver guerra. Você vai ter complicações com o inventário de Roger. Eu sempre lhe disse que se desfizesse de algumas das suas casas. Mas era um cabeçudo de marca maior.

«Fazia par consigo», pensou Soames. Mas nunca discutia com um tio, preservando desse modo a opinião deles a seu respeito como um sujeito de «boa cabeça», assim como a da clientela que lhe representavam.

- Disseram-me em casa de Timothy - disse Nicholas, baixando a voz - que Dartie acabou mesmo por ir-se embora. Foi um alívio para seu pai. Aquilo era um ovo podre.

Novamente Soames concordou com um gesto de cabeça: se havia um assunto a respeito do qual todos os Forsyte estavam realmente de acordo, era sobre o carácter de Montague Dartie.

- Vocês precisam de tomar cuidado - insistiu Nicholas-, senão ele reaparece. O melhor que Winifred poderá fazer é arrancar esse dente, mal comparando. Não se deve deixar na boca um dente cariado.

Soames olhou-o pelo canto do olho. Os seus nervos, exacerbados pela entrevista de que acabara de sair, levaram-no a tomar essas palavras como uma alusão pessoal.

- Estive a aconselhá-la - disse ele, em tom seco.

- Bem - disse Nicholas -, o brougham (1) está à espera; tenho de ir-me embora. Não ando a sentir-me muito bem. Lembranças a seu pai.

E, tendo assim reconsagrado os laços de sangue, Nicholas desceu a escada com o seu passo juvenil e deixou que o ajudante do porteiro o envolvesse na pelica.

«Que família!», pensava Soames. «Nunca vi o tio Nicholas sem dizer que não passava bem e sempre com cara de quem vai ficar para semente! A julgar por ele, ainda tenho trinta e oito anos de saúde à minha frente. Bem. não os quero estragar.»

 

*1. Brougham - carro fechado de um só cavalo. (N. da T.)

 

Pôs-se diante de um espelho, no qual examinou o rosto. Salvo uma ruga ou duas e três ou quatro pêlos brancos no bigode, envelhecera ele mais que Irene? A força da idade - ela e ele estavam na força da idade! E uma ideia fantástica penetrou-lhe o espírito. Era absurdo! Era idiota! Porém a ideia voltava. E, ferido por uma inquietação séria ante a volta daquela ideia - como ficamos inquietos quando sentimos um segundo arrepio que indica uma constipação acompanhada de febre-, sentou-se na balança automática: setenta quilos! O seu peso mantinha-se o mesmo, com diferença de um quilo, desde há vinte anos. Que idade teria ela? Breve faria trinta e sete - ainda poderia muito bem ter filhos. Faria trinta e sete anos no dia nove do próximo mês. Lembrava-se bem do aniversário de Irene - sempre o comemorara religiosamente, mesmo o último, tão pouco tempo antes de ela o abandonar e quando já tinha quase a certeza da sua infidelidade. Passara quatro aniversários sob o seu tecto. Sempre os vira chegar com interesse, porque os presentes que lhe dava obtinham qualquer coisa parecida com gratidão, uma certa mostra de cordialidade. À excepção, na verdade, daquele último aniversário - que lhe dera a impressão de ser religioso de mais! E ele sentiu o seu pensamento empinar-se como um cavallo assustado. A memória acumula sobre certos actos, que são como cadáveres, montes de folhas mortas, sob as quais apenas vagamente ofuscam os sentidos. Depois Soames pensou de súbito: «Eu poderia mandar-lhe um presente de aniversário. Afinal de contas, somos todos cristãos. Será que eu não poderia - não poderíamos unir de novo as nossas existências?» E, sentado ainda na balança, suspirou profundamente. Annette! Ah, mas entre Annette e ele havia a horrorosa necessidade daquele divórcio! E como obtê-lo? «A gente pode sempre obter essas coisas quando toma as responsabilidades sobre si», dissera-lhe Jolyon.

Mas porque devia ele assumir a responsabilidade do escândalo, pondo em jogo toda a sua carreira de baluarte da lei? Não seria justo! Seria quixotesco! Depois de doze anos de separação, durante os quais nada fizera para se tornar livre, não poderia invocar, para requerer divórcio, o procedimento de Irene com Bosinney. E mesmo admitindo que lhe fosse possível obter ainda provas - o que era duvidoso -. ele, Soames, em vista de não ter procurado obter reparações, aquiescera na verdade com os factos. Aliás, o seu orgulho nunca lhe permitiria reviver essa velha história: sofrera de mais com ela. Não! Só novos desregramentos da parte de Irene - e ela negara que os houvesse... e ele acreditara. Não podia fazer nada. Absolutamente nada!

Ergueu-se do assento macio, forrado de veludo vermelho, com a impressão de que estava com o coração apertado num torno. Não poderia dormir com aquela sensação. E, apanhando o sobretudo e o chapéu, saiu e caminhou para o centro da cidade. Em Trafalgar Square foi tirado das suas cismas por um tumulto excepcional. Eram os jornaleiros, que gritavam tão alto que ninguém poderia compreender o que apregoavam. Soames parou para escutar, e um dos jornaleiros passou perto dele.

«Edição especial! Ultimato de Kruger! Declaração de guerra!» Soames comprou o jornal. Lá estava o telegrama, nas notícias de última hora. O seu primeiro movimento foi dizer: «Os Boers estão a suicidar-se.» O segundo foi perguntar a si mesmo: «Ainda tenho alguma coisa para vender?» Nesse caso, já perdera a oportunidade, porque deveria haver uma grande baixa na Bolsa no dia seguinte. Ele acolheu esse pensamento erguendo a cabeça num ar de desafio. O ultimato era uma insolência. E preferia perder dinheiro a aceitá-lo. Eles tinham necessidade de uma lição, e recebê-la-iam., mas seriam precisos pelo menos três meses para os castigar. As tropas necessárias ainda não estavam lá - o Governo atrasava-se sempre! Que o Diabo confundisse aqueles ratos de jornais! Para que alarmar a cidade toda? A notícia recebida de manhã, ao pequeno-almoço, já seria cedo de mais. E ele pensou no pai com inquietação. Na certa iriam gritar a notícia em Park Lane. Chamou um carro e foi para lá.

James e Emily acabavam de subir para o quarto, e, depois de comunicar as notícias a Warmson, Soames preparou-se para os seguir. Mas parou, ante um pensamento súbito, e fez esta pergunta:

- Que é que você pensa disso, Warmson?

O criado suspendeu a escova que passava sobre o chapéu de seda de Soames, e, inclinando um pouco o rosto, disse em voz baixa:

- Bem, sir, eles não têm muitas probabilidades, decerto, mas eu soube que são muito bons atiradores. E mandei um filho meu para lá, nos Innskillings.

- Você, Warmson? Não sabia que era casado.

- Não, sir. Nunca falo nisso. Espero que o rapaz volte.

O ligeiro choque que Sòames sentira ao descobrir que conhecia tão pouco alguém que supunha conhecer tão bem perdeu-se dentro de outro choque muito maior: a descoberta de que a guerra poderia atingir alguém pessoalmente. Nascido no ano da guerra da Crimeia, chegara à idade da razão no ano em que terminara o motim da índia, desde então, as várias pequenas guerras em que o Império Britânico entrara haviam sido inteiramente profissionais - inteiramente à parte da esfera dos Forsyte e de todos os que viviam afastados do corpo político da nação. Decerto aquela guerra não seria uma excepção. Contudo, o seu espírito preocupou-se logo com a família. Dois dos Hayman, tinham-lhe dito, estavam num corpo de Yeomanry - e aquele pensamento até então fora-lhe agradável, porque há sempre uma certa distinção em pertencer aos Yeomanry, que usam, ou costumavam usar,, uma farda azul com galões de prata, e montam a cavalo. E Archibald, lembrava-se bem, inscrevera-se certa vez na milícia. Fora o pai, Nicholas, que o fizera sair de lá com um barulhão, alegando que o filho «estava a perder tempo pavoneando-se dentro de uma farda». Recentemente, soubera também que o filho mais velho de Nicholas filho - Nicholas neto - se inscrevera como voluntário. «Não», pensava Soames subindo lentamente a escada, «não vai haver nada disso que estou a recear!»

Parou no umbral da porta do quarto dos pais, indeciso se deveria ou não bater e dizer duas ou três palavras tranquilizadoras. Abriu a janela do corredor e escutou. Ouviu apenas o surdo rumor dos carros em Piccadilly e, pensando que o preço dos imóveis baixaria se o número dos automóveis continuasse a crescer, preparou-se para subir ao andar superior, onde o esperava o seu quarto, sempre preparado para o receber. Mas ouviu então, longínquo ainda, o grito rouco de um jornaleiro. Já se aproximava! Iria passar diante da casa! Bateu à porta do quarto da mãe e entrou.

O pai estava sentado na cama, de orelhas em pé sob os cabelos brancos, que, graças aos cuidados de Emilly, estavam sempre tão bem cortados.

Parecia muito róseo e extraordinariamente limpo no fundo branco dos lençóis e do travesseiro, donde emergiam, vestidas na camisa de dormir, as suas altas e magras espáduas, semelhantes a montículos pontiagudos. Só se moviam nele os olhos: cinzentos e desconfiados sob as pálpebras fanadas, iam incessantemente da janela a Emily, que, vestida num penteador, passeava através do quarto premindo a pêra de um vaporizador. Estava cercada por uma nuvenzinha de água-de-colónia, da qual fracamente se impregnava a atmosfera do quarto.

- Tudo vai bem - disse Soames.-Não é nenhum incêndio. Os Boers declararam a guerra. É só.

Emily parou de vaporizar.

- Oh - disse ela simplesmente, olhando para James. Soames também olhou o pai. Não recebia a notícia segundo

haviam suposto. Dir-se-ia que se agitava dentro dele um pensamento estranho aos outros dois.

- Hum!-disse o velho em voz surda. - Não verei o fim dessa guerra.

- Tolice, James. Antes do Natal já estará tudo acabado.

- Que é que vocês sabem a esse respeito? - tornou James asperamente. - Boa complicação, e chegando a estas horas da noite! - Caiu em silêncio, e a mulher e o filho, como hipnotizados, esperavam ouvi-lo dizer: «Não sei... não posso dizer... Mas sei bem como vai ser isso...» Porém o velho não falou. Os olhos azuis vagueavam pelo quarto, e evidentemente não enxergavam nada, depois houve uns movimentos por baixo dos lençóis e os joelhos ergueram-se a uma grande altura. - Eles devem mandar Roberts para lá. Tudo é consequência dos disparates do Gladstone.

Os outros dois perceberam-lhe qualquer coisa na voz - algo incomum no velho, como uma nota de verdadeira ansiedade. Era como se ele dissesse: «Nunca mais verei o país em paz e segurança. Terei de morrer antes de o saber vitorioso.» E, por mais que eles pensassem que era preciso combater o nervosismo de James, sentiam-se também abalados. Soames aproximou-se da cama e acariciou a mão do pai, que aparecia entre os lençóis - mão longa, enrugada, sulcada de grossas veias azuis.

- Lembre-se do que estou a dizer-lhe - insistiu James.

- Os consolidados vão cair ao par. E, quem sabe, talvez Val se aliste no exército.

- Ora, James! Você fala como se houvesse perigo de verdade.

E, por aquela vez, a voz serena da mulher pareceu confortá-lo.

- Bem - murmurou ele -, eu bem disse a vocês todos que isso ia acontecer. Não sei, é verdade... ninguém me diz nada. Você dorme aqui, meu filho?

Passara a crise, o velho agora voltaria ao seu grau normal de ansiedade. E, depois de garantir ao pai que dormiria ali, Soames apertou-lhe a mão e subiu ao seu quarto.

Na tarde seguinte, reuniu-se em casa de Timothy o maior grupo que lá acorria desde há anos. Em circunstâncias nacionais, como aquela, era na verdade quase impossível não ir à Bolsa. Não que houvesse perigo, ou antes, porque havia apenas perigo suficiente para sentirem todos a necessidade de trocar, permutar reciprocamente, a segurança que não sentiam.

Nicholas chegou bem cedo. Estivera com Soames na noite anterior - e Soames dissera-lhe que a coisa era inevitável. Aquele Kruger já era um velho caduco - tinha setenta e cinco anos incompletos! (Nicholas tinha oitenta e dois.) Que dizia Timothy? Ele tivera um acesso, depois de Majuba. Aqueles Boers eram insaciáveis! A morena Francie também estava lá, chegada imediatamente após ele. Como convinha ao espírito independente de uma filha de Roger, ela era um pouco inclinada à contradição e interveio:

- É palha ao pé do fogo, tio Nicholas. Qual é o preço dos Uitlanders?

O preço, com efeito! A expressão era nova e decerto a rapariga aprendera-a com seu irmão George.

A tia Juley considerou que Francie não deveria dizer uma coisa assim. O filho da cara Mrs. Mac Anders, o pequeno Charlie Mac Anders, era um Uitlander, e ninguém poderia dizer que ele era um mercenário. A isso Francie respondeu com um dos seus mots, tão escandalizantes e tão frequentemente repetidos:

- Ora, o pai dele é escocês e a mãe é uma gata.

A tia Juley cobriu os ouvidos tarde de mais, mas a tia Hester sorriu, quanto a Nicholas, mostrou má cara, pois recebia sempre mal as pilhérias de que não era autor.

Marian Tweetyman chegou logo depois, seguida quase imediatamente de Nicholas júnior. E, vendo o filho, Nicholas ergueu-se.

- Tenho de ir - disse ele. - Nick dir-lhes-á qual foi o vencedor da corrida.

E retirou-se, depois de fazer esse cumprimento ao filho, que, como um dos luminares da contabilidade e director de uma companhia de seguros, não era mais dedicado aos desportos que o pai.

Caro Nicholas! Que corrida seria aquela? Ou seria apenas uma das suas brincadeiras? Era um homem extraordinário, para a idade que tinha! Quantos doces comeria a cara Marian? E onde estavam Giles e Jesse? A tia Juley calculava que o batalhão de Yeomanry a que eles pertenciam deveria agora estar ocupado a guardar a costa, embora, é claro, os tais Boers não possuíssem navios. Mas ninguém sabe o que os Franceses são capazes de fazer quando apanham uma oportunidade, especialmente depois daquele caso de Fachoda, que comovera tão terrivelmente Timothy. Basta dizer que durante meses seguidos ele não fez nenhum emprego de capital. O mais terrível era a ingratidão dos Boers, depois de tanta coisa que se fizera por amor deles - o Dr. Jameson preso! E Mrs. Mac Anders dizia sempre que ele era um homem encantador. E mandarem Sir Alfred Milner falar com eles - um homem tão fino! Ela não compreendia o que pretendia essa gente.

Mas nesse instante ocorreu um acontecimento sensacional, um desses acontecimentos tão preciosos em casa de Timothy... acontecimentos que nascem às vezes das grandes ocasiões. A criada anunciou:

- Miss June Forsyte.

A tia Hester e a tia Juley puseram-se imediatamente de pé, trémulas, divididas entre o antigo ressentimento, que abafavam, a velha afeição que vinha à tona e o orgulho ante a volta do filho pródigo que era June - depois de tantos anos! E como estava bem disposta! Não mudara absolutamente! Pouco faltou para que lhe perguntassem: «E como vai o seu avozinho?», e esquecessem, naquele momento de vertigem, que fazia já sete anos que o pobre Jolyon estava sepultado.

June sempre se distinguira, entre os Forsyte, pela sua coragem e pela sua franqueza. Pequena e miúda, com o queixo decidido, os olhos ardentes, os cabelos semelhantes a línguas de fogo, sentou-se numa cadeirinha baixa de assento bordado, como se não houvessem passado dez anos depois que ela desaparecera dali, dez anos de viagens, de independência, de devoção aos seus «desvalidos». Esses desvalidos eram ultimamente pintores, gravadores, escultores, de forma que a sua impaciência contra os Forsyte, incuravelmente indiferentes a todas as manifestações de arte, tornara-se vivíssima. Na verdade, ela quase deixara de acreditar que a sua família existisse, e passeou naquele momento um olhar directo em torno de si - carregado de uma impressão de desafio que mergulhou todos numa espécie de mal-estar. Ela não esperara encontrar nenhum deles ali, senão «as pobres velhas», e mesmo em relação a estas mal sabia porque viera visitá-las - sabia apenas que as recordara, com remorsos, como a outros dois «desvalidos» abandonados há muito.

A tia Juley rompeu o silêncio.

- Nós estávamos a falar, June, desse terrível caso dos Boers, Que conduta imprudente tem sido a desse velho Kruger!

- Imprudente! - exclamou June. - Pois eu acho que ele tem toda a razão. Com que direito nós nos envolvemos nos seus negócios? Se ele expulsar todo esse bando de Uitlanders, faz muito bem! Eles só queriam enriquecer.

O silêncio que acompanha os acontecimentos sensacionais foi rompido por Francie:

- O quê? Você então é pró-Boer?

(Indubitavelmente, foi essa a primeira vez em que se empregou tal expressão.)

- E então porque não os deixamos em paz? - disse June exactamente quando, abrindo a porta, a criada anunciou: «Mr. Soames Forsyte!» Sensação sobre sensação! As saudações foram quase suprimidas pela curiosidade em que estavam todos em ver como se passaria o encontro entre ele e June porque, desconfiava-se, ou antes, era certo, que os dois não se tinham encontrado desde o velho e lamentável caso do noivo de June, Bosinney, com a mulher de Soames. E todos viram que eles tocavam a mão um do outro e olhavam-se nos olhos reciprocamente. A tia Juley correu em socorro imediatamente:

- June é tão original! Imagine, Soames, que ela não censura os Boers.

- Eles apenas querem a independência - disse June. - E porque não a terão?

- Porque - disse Soames com o seu sorriso um pouco de viés - têm de acatar a nossa suserania.

- Suserania! - repetiu June, escarninha. - Mas nós não gostaríamos da suserania de ninguém.

- Eles receberam vantagens em troca disso - retrucou Soames. - Um contrato é um contrato.

- Os contratos nem sempre são justos - quase gritou June. - E quando não o são, devem ser quebrados. Os Boers são muito mais fracos. Nós devemos ser generosos.

Soames fungou, desdenhoso:

- Tudo isso é sentimentalismo.

A tia Hester, para quem a coisa mais vergonhosa do mundo era qualquer espécie de discórdia, comentou com decisão:

- Que tempo maravilhoso está a fazer para esta época do ano!

Porém June não se deixou desviar:

- Não sei porque devemos desdenhar o sentimentalismo. É a coisa melhor que existe.

Lançou em torno de si um olhar de desafio, e a tia Juley teve de intervir de novo:

- Você tem comprado alguns quadros ultimamente, Soames? Mais uma vez ela fora servida pelo incomparável instinto que

a fazia procurar sempre o assunto que deve ser evitado. Soames corou. Revelar o nome das suas recentes aquisições era o mesmo que mergulhar de cabeça na goela do desprezo de June. Porque ele conhecia mais ou menos as predilecções da prima pelos «génios» ainda desconhecidos e o seu desdém pelos «êxitos» para cuja vitória ela não contribuíra.

- Um ou dois - murmurou.

Mas o rosto de June tomara uma expressão nova, o Forsyte que havia nela percebia a oportunidade. Porque não compraria Soames alguns quadros de Eric Cobbley, - o seu mais recente protegido? E imediatamente abriu o ataque, Soames estava a par do que ele fazia? Era maravilhoso. Eric Cobbley seria a revelação de amanhã.

Oh, sim, Soames conhecia-lhe alguns quadros. Na sua opinião, a pintura dele era «berrante» e nunca gozaria do favor do grande público.

June ficou toda em fogo e chamas.

- Naturalmente. E isso é a última coisa que ele pode desejar. Eu pensava que você era um connoisseur, e não apenas um comerciante de quadros.

- Mas Soames é na verdade um connoisseur - interveio precipitadamente a tia Juley. - Tem um bom gosto maravilhoso, sabe sempre predizer quem é que vai ter êxito.

- Oh -disse June num ar horrorizado, pondo-se de pé na cadeira dourada. - Tenho horror a esse modo de avaliar quadros segundo o seu êxito. Porque não comprar as coisas apenas quando se gosta delas?

- O que quer dizer - interveio Francie - é quando "você" gosta delas.

E no silêncio que se seguiu a isso ouviu-se Nicholas contar que Violet - a sua quarta filha - andava a frequentar aulas de pastel, não sabia se serviria para alguma coisa.

- Bem, até à vista, tia -disse June.-Tenho de ir.- Beijou as tias, passeou pela sala novo olhar de desafio e disse ainda:

- Até à vista. - E saiu. Uma brisa pareceu sair em companhia

dela, como se todos houvessem soltado um suspiro.

O terceiro acontecimento sensacional produziu-se antes que ninguém houvesse tido tempo para falar.

- Mr. James Forsyte.

James entrou, apoiando-se levemente numa bengala, estava envolvido numa pelica, que lhe dava um volume fictício.

James estava tão velho!

Toda a gente se ergueu. Fazia perto de dois anos que ele não aparecia em casa de Timothy.

- Faz calor aqui - disse James.

Soames ajudou-o a tirar a pelica, e não pôde deixar de admirar a correcção reluzente do seu trajo.

James sentou-se, todo joelhos, cotovelos, sobrecasaca e longas suíças brancas.

- Que quer dizer isto? - indagou o velho. E, embora a pergunta não tivesse nenhum sentido aparente, cada um compreendeu que ele queria falar de June. E os olhos deles perscrutaram a fisionomia do filho. - Pensei que devia vir saber as coisas por mim mesmo. Que é que responderam ao Kruger?

Soames tirou do bolso um jornal da tarde e leu o cabeçalho:

 

               «Acção imediata do Governo inglês.

                 Proclamação do estado de guerra.»

 

- Ah - disse James com um suspiro -, eu estava com medo de que se assustassem, como o velho Gladstone. Desta vez, vamos acabar com eles.

Todos o olharam espantados. James! Ele que estava sempre agitado, ansioso, inquieto! James, com o seu eterno «Eu bem disse!», e o seu pessimismo, e os seus prudentes empregos de capital! Havia algo estranho no espectáculo de tanta resolução no decano dos Forsyte.

- Onde está Timothy? - perguntou James. - Ele devia prestar atenção a esse assunto.

A tia Juley não sabia, Timothy não falara quase nada ao almoço, naquele dia. A tia Hester ergueu-se e saiu da sala e Francie disse com uma certa malícia:

- Os Boers são um bocado duros de roer, tio James.

- Hum! - murmurou James. - Onde é que você se informa? A mim ninguém me diz nada.

Nicholas filho observou com a sua voz tímida que Nick - o seu primogénito - estava a fazer regularmente o treino militar.

- Ah! - murmurou James, olhando para o vazio diante de si. Pensava em Val. - Precisa de cuidar da mãe - disse ele. - Não tem tempo para pensar em treino militar, com o pai que tem.

Aquelas misteriosas palavras fizeram que todos caíssem em silêncio, que ele próprio foi o primeiro a romper.

- Que é que June veio fazer aqui? - E depôs em todos, sucessivamente, um olhar de suspeita. - O pai dela agora está rico.

Puseram-se todos então a falar de Jolyon e da última vez que o tinham visto. Supunha-se que ia muito ao estrangeiro, que se avistava com toda a espécie de gente, agora que a mulher morrera. As suas aguarelas eram expostas por toda a parte e tinham muito êxito. Francie chegou mesmo a dizer:

- Gostaria de voltar a vê-lo. Ele era muito gentil.

A tia Juley lembrou que um dia ele adormecera no sofá, naquele mesmo lugar onde James estava sentado. Sempre fora muito amável.

- Você não acha, Soames?

Sabendo que Jolyon administrava a herança deixada a Irene, todos compreenderam quanto aquela pergunta era inconveniente e olharam para Soames com interesse.

Soames corou ligeiramente.

- Está a começar a encanecer.

Na verdade? Seria que Soames o vira? Soames fez sinal que sim, e o leve rubor desapareceu. James disse de súbito:

- Bem... eu não sei... não posso dizer nada.

Toda a gente sentiu que havia um mistério escondido por trás daquilo, e as palavras de James exprimiam com tal perfeição esse sentimento que ninguém mais falou. Mas nesse momento a tia Hester voltou.

- Timothy - contou ela a meia voz - comprou um mapa e já cravou nele três bandeiras.

- Então Timothy... - E houve um suspiro geral de alívio. Se, na verdade, Timothy cravara três bandeiras no mapa, isso

demonstrava do que seria capaz o país quando os entusiasmos houvessem fermentado. E era como se a guerra já houvesse sido ganha.

 

JOLYON VÊ CLARO DENTRO DE SI MESMO

No velho quarto que Holly ocupara em criança, transformado hoje em atelier, não por causa da sua orientação para o norte, mas porque tinha vista sobre toda a região, até ao Grand Stand de Epson, Jolyon estava de pé, junto a uma janela. Foi depois para a outra, aberta numa parede lateral, que dava para o pátio da cavalariça, e assobiou para o cão Balthasar, eternamente deitado sob a torre do relógio. O velho cão ergueu a cabeça e mexeu a cauda. «Pobre cachorro velho», pensou Jolyon, voltando à primeira janela.

Mantivera-se inactivo durante toda aquela semana, desde a sua tentativa de descobrir a verdade, pouco à vontade na sua consciência, que era sempre muito aguda, perturbado nos seus sentimentos de compaixão, que eram facilmente excitáveis, e com uma profunda sensação de que os seus sonhos a respeito de beleza se haviam encarnado definitivamente.

O Outono apoderara-se do velho carvalho, cujas folhas amarelavam. O sol fora abundante e quente naquele Verão, tanto para a vida das árvores como para a vida dos homens. «Eu também devo viver muito tempo»,, pensava Jolyon. «A ferrugem está a invadir-me por falta de calor. Se não conseguir trabalhar, apanho o comboio para Paris.» Mas a lembrança de Paris não lhe trouxe nenhum prazer. E, além disso, como poderia ele ir para lá?

Tinha de ficar e esperar o que Soames pretendia fazer. «Estou encarregado dos interesses dela. Não posso deixá-la sem protecção», pensava ele. Julgara muito curiosa a clareza com que podia relembrá-la, lá no seu salãozinho, onde apenas entrara duas vezes. A beleza de Irene devia posuir uma espécie de harmonia pungente. Um retrato literal nunca lhe faria justiça, a sua essência era... sim, que é que era? Ouviu o tropel de um cavalo, que o levou à outra janela.

No seu palafrém de longa cauda, Holly entrava no pátio. Ergueu os olhos e acenou-lhe com a mão. Tinha andado muito silenciosa nestes últimos tempos, envelhecia, sem dúvida, e começava a pensar no futuro, como faziam todos - todos os jovens! Era o diabo, o tempo, na verdade! E, cismando que era uma tolice imperdoável estragar um tesouro que se ia embora tão depressa, voltou aos pincéis. Trabalho perdido, não podia fixar a vista - e, além disso, a luz começava a baixar. «Vou à cidade», pensou.

Um criado deteve-o no hall:

- Está uma senhora à sua procura, patrão. Mrs. Heron. Extraordinária coincidência! Atravessando a galeria de pintura, como ainda era chamada, viu Irene em pé junto à janela.

Ela caminhou para ele, dizendo:

- Cometi uma violação de domicílio. Vim através do bosquezinho e do jardim. Sempre passava por lá quando vinha visitar O tio Jolyon.

- Você aqui não pode cometer violações de domicílio, a história desta casa, torna-lhe qualquer violação impossível. E eu estava exactamente a pensar em si.

Irene sorriu. E era como se uma luz interior a houvesse iluminado - não a simples espiritualidade, mas algo de mais sereno, de mais completo, de mais sedutor.

- A história! - murmurou ela. - Certo dia, disse ao tio Jolyon que o amor era eterno. Pois bem, isso é inexacto, só a aversão dura.

Jolyon olhou-a, espantado. Acabara ela por esquecer Bosinney?

- Sim - disse ele -, a aversão é uma coisa mais profunda que o amor ou o ódio, porque é um produto natural dos nossos nervos, e nós não podemos modificá-la.

- Vim contar-lhe que recebi uma visita de Soames. E ele disse-me uma coisa que me assustou: «Você ainda é minha mulher!»

- O quê! - exclamou Jolyon. - Você não deve viver só! - E continuou a fixá-la com os olhos muito abertos, aflito pelo pensamento de que, em presença da Beleza, ninguém segue uma via inteiramente correcta, o que faz que tanta gente a considere imoral. - E que mais?

- Pediu que eu lhe apertasse a mão.

- E você cedeu?

- Sim. Quando ele chegou, tenho a certeza de que não pensava nisso. Mudou de ideia enquanto estava lá em casa.

- Ah, você não deve realmente continuar a viver só!

- Não conheço mulher nenhuma a quem possa pedir que viva comigo. E não posso arranjar um amante por encomenda, primo Jolyon.

- Deus a livre! - disse Jolyon. - Mas que situação abominável! Quer jantar connosco? Não? Então permita que eu a acompanhe até à cidade. Eu pretendia ir lá hoje à noite.

- Ah, sim?

- Sim. Estarei pronto dentro de cinco minutos.

No caminho para a estação, falaram sobre pintura e sobre música, comparando as características de ingleses e franceses e a diferença das atitudes de ambos diante da arte. Mas a cor das sebes que bordejavam o longo caminho plano, o pipilar dos tentilhões que os escoltavam, o perfume dos fenos que já começavam a secar ao sol, a linha da nuca de Irene, a fascinação dos seus olhos escuros, a sedução do seu corpo, tudo isso fazia sobre Jolyon uma impressão muito mais profunda que as palavras que eles trocavam. Sem ter claramente consciência disso, ele mantinha-se mais erecto que de costume e caminhava num passo mais elástico.

No comboio, submeteu-a a uma espécie de confissão sobre o emprego que dava ao seu tempo.

Ela costurava os seus vestidos, andava pelas lojas, ia ver os doentes de um hospital, tocava piano, traduzia do francês. Obtinha trabalho regular num editor, o que lhe proporcionava um pequeno suplemento de rendimentos. Raramente saía à noite.

- Veja você, vivo há tanto tempo só que já nem reparo nisso. Creio que sou naturalmente solitária.

- Não acredito nisso absolutamente - disse Jolyon. - Dá-se com muita gente?

- Muito pouca.

Ao chegarem à estação de Waterloo, entraram num cab e ele acompanhou-a até à porta. No momento de a deixar, apertou-lhe a mão entre as suas e disse:

- Você poderia muito bem vir de vez em quando ver-nos a Robin Hill. É preciso manter-me ao par de tudo o que acontecer. Até à vista, Irene.

- Até à vista - respondeu ela em voz doce.

Voltando ao cab, Jolyon perguntava a si mesmo porque não a convidara para jantar e ir ao teatro. Que vida a de Irene, solitária, monótona, sem alegrias! «Hotch-Potch Club», disse ele ao cocheiro. E quando o cab desembocou no Embankment, viu passar um homem, de casaca e sobretudo, que caminhava em passo rápido, roçando tanto pelas paredes que parecia estar a coçar-se nelas.

- Cos demónios! - exclamou Jolyon. - É Soames. Que diabo estará ele a magicar agora? - Fez parar o carro no canto da rua. desceu e desandou o caminho até poder ver a porta da casa. Soames estava parado defronte e erguia os olhos para a janela iluminada de Irene. «Se ele entrar», perguntava a si mesmo Jolyon, «que é que eu faço? Que é que eu tenho o direito de fazer?» O que aquele sujeito dissera era verdade. Ela ainda era sua mulher, sem a menor protecção contra as suas importunações. «Bem, se ele entrar, sigo-o.» E começou a aproximar-se da casa. Soames, por seu lado, recomeçara a andar. Estava agora exactamente diante da porta. Mas de súbito parou, girou sobre os calcanhares e voltou em direcção ao Tamisa. «Que será agora?», perguntou Jolyon. «Mais dez passos, e ele reconhece-me.» Deu meia volta. O primo caminhava no mesmo passo que ele. Porém Jolyon atingiu o cab e subiu para ele antes que Soames houvesse chegado à esquina. «Ande», disse ele ao cocheiro. A silhueta de Soames apareceu perto do carro.

- Cocheiro! - disse ele. - Está livre? Olá!

- Olá! - respondeu Jolyon. - É você!

Vendo a suspeita que se desenhava no rosto do primo, branco sob as luzes, Jolyon tomou subitamente uma resolução.

- Posso levá-lo, se vai para os lados de Piccadilly.

- Obrigado - disse Soames. E subiu.

- Estive de visita a Irene - disse Jolyon depois de o carro se pôr a andar.

- Ah, sim!?

- Você próprio foi visitá-la, pelo que ela me disse.

- Sim - respondeu Soames. - Ela é minha mulher, você sabe-o.

O tom como aquilo foi dito, o ricto mau que o acompanhava, encheram Jolyon de uma súbita cólera. Mas dominou-se.

- Você sabe o que faz, mas, se quer divorciar-se., talvez não seja muito prudente estar a fazer-lhe visitas. Não se pode acender uma vela a Deus e outra ao Diabo.

- É muito amável em prevenir-me - respondeu Soames -. mas ainda não estou inteiramente resolvido.

- Se você não está, ela está - disse Jolyon, olhando directamente à sua frente. - E ninguém pode fazer que as coisas voltem exactamente ao ponto em que estavam há doze anos.

- Isso é que ainda está para ver.

- Escute - disse Jolyon. - Ela está numa situação abominável, e eu sou o único homem a quem a lei permite dizer uma palavra a respeito dos seus negócios.

- Excepto eu - replicou Soames -. que também estou numa posição abominável. A posição dela. foi ela mesma que a criou. A minha, foi ela que me fez criar. Não tenho a certeza se não lhe pedirei, no seu próprio interesse, que volte a viver comigo.

- O quê! - exclamou Jolyon. E um arrepio percorreu-o todo.

- Não sei o que você quer significar por esse «O quê!» -respondeu friamente Soames. - Tudo o que tem a fazer a respeito dos negócios dela limita-se a pagar-lhe os rendimentos, lembre-se disso. Recusando-me a desonrá-la por um divórcio, conservei os meus direitos, e, como já o disse, não tenho a certeza se não deverei exercê-los.

- Meu Deus! - exclamou jolyon. soltando um pequeno riso breve.

- Sim - disse Soames. E a voz tinha uma tonalidade implacável. - Não esqueci o apelido que seu pai me deu: «O proprietário». Não é à toa que me dão apelidos.

«Isto é fantástico», murmurou consigo Jolyon. «Bem, mas ele não poderá obrigar a mulher a viver em sua companhia. De qualquer forma, esse tempo já passou.» E voltou a cabeça para olhar Soames, perguntando a si mesmo: «Este homem será um ente real?- Contudo, Soames parecia muito real, firme no assento, quase elegante, com o bigode aparado, o rosto pálido, os dentes ligeiramente descobertos por um meio sorriso imóvel. Houve um longo silêncio, durante o qual Jolyon pensou: «Em vez de a auxiliar, só lhe agravei a situação.»

Soames falou de súbito.

- Será a melhor coisa que lhe poderá acontecer, sob muitos aspectos.

Quando ouviu aquilo, fez-se um tal tumulto dentro de Jolyon que ele dificilmente pôde manter-se imóvel no assento do carro. Era como se se sentisse enclausurado em companhia de centenas de milhares dos seus conterrâneos, enclausurado em companhia daquele aspecto do carácter nacional que sempre o revoltara - uma coisa que sabia natural e que entretanto lhe parecia inexplicável -, a intensa crença daquela gente nos contratos e nos direitos orgânicos, o prazer que sentiam ao afirmarem que obravam virtuosamente insistindo sobre esses direitos. Ao seu lado, no cab, tinha a encarnação, a súmula corporal, por assim dizer, do instinto da propriedade - e do seu próprio sangue, ainda por cima! Era inaudito e intolerável! «Mas não há só isso», pensou ele, com um sentimento de nojo. «Dizem que o cão volta ao seu vómito.» E, revendo-a, ele sentiu qualquer coisa despertar dentro de si. «A beleza! O Diabo vive nela!»

- Pois como lhe disse - continuou Soames -, ainda não estou decidido. E ficar-lhe-ei muito grato se você não a procurar, nem se envolver nos assuntos dela.

Jolyon mordeu os lábios. Sempre detestara incidentes, mas dessa vez acolheu quase com prazer a ideia de provocar um.

- Não posso prometer-lhe nada - respondeu secamente.

- Muito bem - retorquiu Soames. - Então ambos sabemos a quantas andamos. Eh, vou descer aqui. - Fez parar o cab e desceu sem uma palavra nem um gesto de adeus. Jolyon continuou até ao seu clube.

Gritavam na rua as primeiras notícias da guerra, mas ele não lhes deu atenção. Que poderia fazer para auxiliar Irene? Se ao menos o pai ainda estivesse neste mundo! O velho poderia fazer Tanta coisa! Mas porque não faria ele próprio tudo de que seu pai fosse capaz? Já não tinha idade bastante? Passara dos cinquenta anos, casara duas vezes, tinha duas filhas adultas e um filho. «É curioso», pensou ele. «Se Irene não fosse tão bonita, eu não teria a menor hesitação. A beleza é uma coisa infernal quando lhe somos sensíveis!»

Penetrou no salão de leitura do clube presa de uma grande agitação interior. Naquela mesma sala, numa tarde de Verão, ele mantivera uma conversa com Bosinney. Lembrava-se muito bem, ainda hoje, da lição disfarçada e secreta que dera ao rapaz, no interesse de June - o diagnóstico que ele se arriscara a fazer dos Forsyte -. e perguntara a si mesmo que espécie de mulher seria aquela contra a qual prevenia o outro. E agora quase precisava de uma advertência para si próprio. «Diabolicamente cómico», pensou, «diabolicamente cómico!»

 

SOAMES DESCOBRE O QUE QUER

É muito mais fácil dizer «Agora sabemos a quantas andamos» do que dar a essas palavras uma significação precisa. Pronunciando-as, Soames não fizera mais que dar livre curso à ciumenta violência dos seus instintos. Descera do cab num estado de circunspecta irritação - contra si próprio por não ter ido ver Irene, contra Jolyon por a ter visto e, agora, contra a sua incapacidade de definir exactamente o que queria.

Abandonara o cab porque já não suportava estar sentado ao lado do primo, e, andando rapidamente em direcção do leste, pensava: «Não confiarei absolutamente nada nesse camarada Jolyon. Cesteiro que faz um cesto, faz um cento! Um sujeito desses tem uma simpatia natural por... por... relaxamento." Ele hesitara ante a palavra «pecado», melodramática de mais para ser empregada por um Forsyte.

A hesitação ante vários desejos era um sentimento novo para Soames. Sentia-se como uma criança dividida entre dois brinquedos: um que lhe haviam prometido, outro que lhe haviam tirado e estranhava-se a si mesmo. Ainda no domingo anterior os seus desejos lhe haviam parecido tão simples - a liberdade e Annette.. e nada mais. «Vou jantar lá», resolveu. Talvez o facto de a ver lhe devolvesse a sua unidade de intenção, lhe acalmasse a exasperação e lhe refizesse a claridade no espírito.

O restaurante estava quase cheio de um grande número de estrangeiros e de pessoas que, a julgar pelo aspecto, Soames tomou como literatos ou artistas. Retalhos de conversa chegavam-lhe aos ouvidos, através do rumor dos pratos e dos copos. Ouviu claramente exprimirem simpatia pelos Boers e censurarem o Governo inglês. «A clientela delas não é grande coisa», pensou. Acabou resolutamente o jantar e o café especial sem revelar a sua presença, e quando finalmente terminou cuidou bem em que não o vissem dirigir-se ao santuário de Madame Lamotte. Segundo esperava, elas estavam a cear - uma ceia tão mais convidativa que o jantar que acabava de comer que lhe deu uma espécie de mágoa - e a surpresa com que o acolheram parecia tão real que lhe acudiu uma brusca suspeita: «Estou certo de que elas já sabiam muito bem da minha presença desde que cheguei.» Atirou a Annette um olhar furtivo e perscrutador. Tão linda, tão cândida na aparência, seria possível que estivesse a tentar pescá-lo? Voltou-se para Madame Lamotte e disse:

- Acabo de jantar aqui.

Realmente! Se ela o houvesse visto! Havia pratos que poderiam recomendar-lhe. Que pena! As suspeitas de Soames confirmaram-se, e ele imediatamente ficou alerta. «Preciso de prestar atenção ao que faço», considerou.

- Quer mais uma xícara de café especial, monsieur, ou um licor, um Grand Marnier? - E Madame Lamotte ergueu-se para encomendar as bebidas escolhidas.

Só com Annette, Soames perguntou, com um sorriso defensivo nos lábios:

- E então, Annette?

A rapariga corou. No domingo precedente aquilo ter-lhe-ia agitado os nervos, hoje, dava-lhe mais ou menos a impressão que sentimos quando recebemos as festas de um cão que nos pertence. Soames sentia uma curiosa sensação de poder, como se compreendesse que poderia dizer à francesinha: «Venha beijar-me!», e ela teria de vir. Entretanto - era estranho - parecia haver na sala outro rosto a mais, uma outra forma humana, e o ardor que sentia nos nervos era por aquele outro vulto ou por este? Fez um movimento de cabeça em direcção do restaurante e disse:

- Vocês têm uns sujeitos esquisitos entre os seus clientes. Gosta desta vida, Annette?

Annette ergueu para ele os olhos durante um instante, baixou-os e brincou com o garfo.

- Não. não gosto.

«Ela é minha», pensou Soames, «se eu a quiser. Mas será que a quero?» Ela era graciosa, era bonita - muito bonita. Era fresca e tinha um certo bom gosto. Os olhos dele percorreram a sala. mas em espírito viu outra coisa: uma meia luz, paredes prateadas, um piano de pau-cetim, e junto desse piano uma mulher em pé, com o corpo inclinado para trás, como se rédeas invisíveis o afastassem dele - uma mulher que tinha ombros brancos que ele conhecia bem, que tinha olhos escuros que ele procurara conhecer. cabelos semelhantes ao âmbar moreno. E como um artista que se esforça em busca do irrealizável e se sente sempre alterado, a sede acendeu-se de novo em Soames naquele momento - sede da velha paixão que nunca satisfizera.

- Bem, você é jovem - disse em tom calmo. - Tem toda a vida diante de si.

Annette abanou a cabeça.

- Às vezes penso que só tenho trabalho diante de mim. E não gosto do trabalho como a mamã gosta.

- A sua mãe é maravilhosa - disse Soames com um leve tom de zombaria. - Nunca permitirá que a má sorte se instale em casa dela.

Annette suspirou:

- Deve ser maravilhoso ser rico.

- Oh, você será rica um dia - respondeu ele com o mesmo tom zombeteiro. - Não receie nada.

Annette ergueu os ombros.

- Monsieur é muito amável. - E por entre os lábios, que faziam um leve trejeito, fez deslizar um chocolate.

«Sim, querida»., pensava Soames. «São muito bonitos, realmente, os seus lábios.»

Madame Lamotte, com o café e o licor, pôs fim ao diálogo. e Soames não se demorou muito mais tempo.

Nas ruas do bairro de Soho, cujos imóveis lhe davam a impressão de não pertencerem aos seus legítimos proprietários, ele entregou-se às suas cismas. Se ao menos Irene lhe houvesse dado um filho, não seria obrigado a viver arrastando-se eternamente atrás das saias das mulheres. Esse pensamento irrompeu da pequena guarida que lhe ocupava no subconsciente. Um filho, uma finalidade para a vida, um ente que daria sentido ao resto da sua existência, um ser a quem poderia legar, uma continuação de si próprio. «Se eu tivesse um filho», pensava ele com amargura, «um filho legítimo, poderia arranjar-me para continuar como no passado. Afinal de contas, as mulheres são todas iguais.)- Mas abanou a cabeça, prosseguindo o caminho. Não! As mulheres não eram todas iguais! Tentara persuadir-se disso outrora. no tempo das decepções da sua vida conjugal, mas nunca o conseguira, E não o conseguiria melhor agora. Tentou convencer-se de que Annette era igual à outra. Contudo, ela não o era, não tinha o fascínio da velha paixão. «E Irene é minha mulher», pensava ele, «minha mulher legítima. Não fiz nada para a afastar de mim. Porque não volta ela para casa? É o melhor, o mais conforme com a lei. Evita todo o escândalo, toda a perturbação. Ser-lhe-ia desagradável - mas porque seria impossível? Não sou um leproso, e ela já não está apaixonada por outro.» Porque aceitar a imposição dos expedientes, dos sórdidos opróbrios e inesperadas derrotas da Corte de Divórcios, quando Irene, igual a uma casa desabitada, esperava apenas que o seu legítimo proprietário voltasse a assumir o seu usufruto e posse? Para um homem de temperamento tão secreto como Soames, havia algo de poderosamente sedutor no pensamento de que regressaria tranquilamente à posse da sua propriedade sem que nenhuma revelação fosse feita ao mundo. «Não», pensava ele. «Fico satisfeito por ter ido ver aquela menina. Agora já sei o que desejo mais. Se Irene consentir em voltar, terei por ela todas as considerações imagináveis. Ela poderá viver a sua própria vida, e talvez - talvez se reconcilie comigo.»

Qualquer coisa se lhe revolveu na garganta. E num passo resoluto, ao longo das grades de Green Park, prosseguiu o caminho em direcção à casa do pai, tentando pôr o pé sobre uma sombra que o precedia no clarão do luar.

 

A TERCEIRA GERAÇÃO

Num meio-dia de Novembro, Jolly Forsyte descia lentamente a High Street, em Oxford, e Val Dartie subia a mesma rua, lentamente também. Jolly acabava de mudar por um fato comum a roupa de flanela usada para o remo e caminhava em direcção do Frying-Pan, clube para o qual acabava de ser eleito. Val trocara o trajo de montar e ia para um local muitíssimo mais excitante: a loja de um bookmaker em Cornmarket.

- Olá! - disse Jolly.

- Olá! - respondeu Val.

Os primos só se haviam encontrado duas vezes: Jolly, estudante do segundo ano, convidara o novato para jantar e no dia seguinte haviam-se avistado de novo em circunstâncias mais ou menos exóticas.

Por cima de uma oficina de alfaiate, em Cornmarket, morava um desses jovens indivíduos a quem chamam «menores», cujos pais já morreram, cuja herança é importante, cujo tutor mora longe e cujos instintos são imorais. Com dezanove anos, começara uma dessas carreiras atraentes e de todo inexplicáveis para o comum dos mortais.

Já famoso por ser possuidor da única roleta existente em Oxford, ia antecipando o que dele se esperava com vertiginosa velocidade. Derrubara até mesmo Crum do seu trono, embora fosse de tipo sanguíneo e gorducho, inteiramente carecido da langorosa fascinação do outro.

Val considerara uma espécie de baptismo ser levado à casa dele para jogar roleta e como uma espécie de confirmação entrar no seu próprio colégio pela janela, depois da hora de as portas serem fechadas. Certo momento, durante aquela noitada mágica, afastara o olhar do pano verde defronte de si e percebera o primo através de uma nuvem de fumo, em pé do outro lado da mesa. «Rouge gagne, impelir, et manque!» Não voltara a vê-lo.

- Venha tomar chá comigo - convidou agora Jolly. E ambos tomaram o mesmo caminho.

Um estranho, vendo-os juntos, notaria uma intangível semelhança entre aqueles dois primos em segundo grau, pertencentes à terceira geração dos Forsyte, o mesmo arcabouço ósseo do rosto, embora os olhos de Jolly fossem de um cinzento mais escuro e os cabelos mais louros e mais ondulados.

- Chá e buns (1) amanteigados, por favor, rapaz - pediu Jolly.

- Quer um cigarro? - perguntou Val, - Vi-o ontem à noite. Quanto fez?

- Não joguei.

-Pois eu ganhei quinze libras.

Jolly teve vontade de repetir uma pilhéria do pai a propósito de jogo: «Quando a gente é depenado, enoja-se, e quando depena os outros, tem dó», mas contentou-se em dizer:

- Acho aquilo um jogo sórdido. Já estive na mesma classe com aquele sujeito: é um cretino.

- Oh, não sei - disse Val, num tom de quem defende um deus atacado pela maledicência.-Ele é bom sportman.

E os dois trocaram em silêncio o fumo dos cigarros.

- Creio que você conhece a minha família - disse Jolly. - Vai chegar aqui amanhã.

Val corou um pouco.

- Deveras! Posso dar-lhe um bom palpite para o handicap de Manchester, em Novembro.

 

*1. Buns - bolinhos de passas e queijo. (N. da T.)

 

- Obrigado, mas eu só me interesso pelas corridas clássicas.

- Mas essas não rendem nada - observou Val.

- Eu detesto o ring - disse Jolly. - É uma barulhada excessiva. Prefiro o paddock.

- Eu gosto de apostar para apoiar as minhas opiniões - respondeu Val.

Jolly sorriu. O seu sorriso parecia-se com o do pai.

- Eu não tenho opiniões. Perco sempre, quando jogo.

- A gente tem de comprar a experiência, é claro.

- Sim, mas estraga-se tudo com a preocupação de não se deixar embaraçar pelos outros.

- Naturalmente, sem isso, são eles que nos devoram, e é por isso que é interessante.

Jolly teve um arzinho de desprezo.

- Que é que você faz do seu tempo? Rema?

- Não, monto a cavalo e conduzo automóvel. Jogarei pólo no próximo trimestre, se conseguir que o meu avô solte o dinheiro.

- O seu avô é o velho tio James? Como é ele?

- Mais velho que o mundo - explicou Val. - E vive a pensar que vai ficar arruinado.

- Creio que o meu avô era irmão dele.

-Não acredito que tenha havido nenhuma grande figura entre todos esses velhos - disse Val. - Parece que todos adoravam o dinheiro.

- O meu avô não era assim! - contradisse Jolly ardorosamente.

Val sacudiu a cinza do cigarro.

- O dinheiro só serve para gastar, eu gostaria bem de ter o dobro do que tenho.

Jolly fitou no outro aquele olhar de desaprovação, directo e ascendente, que herdara do velho Jolyon: dinheiro era uma coisa de que não se devia falar! E houve um novo silêncio, enquanto eles bebiam o chá e comiam os buns.

- Onde vai hospedar-se a sua família? - perguntou Val com uma indiferença estudada.

- No Rainbow. Que é que você pensa da guerra?

- Sórdida, até agora. Os Boers não têm linha. Porque não lutam eles em campo aberto?

- Porque o fariam? Têm tudo contra eles, excepto o modo de lutar. Pois eu admiro-os.

- São bons cavaleiros e bons atiradores - admitiu Val. - Mas são uns sarnentos. Você conhece Crum?

- Crum, de Meryton? Só conheço de vista. É da turma dos desordeiros, não é?

Val falou sem mover os olhos:

- É um dos meus amigos.

- Oh, sinto muito! - E ambos ficaram contrafeitos, olhando o vazio em frente, depois de haverem ofendido reciprocamente as susceptibilidades um do outro. Jolly estava inconscientemente a aliar-se a um grupo cuja palavra de ordem era a seguinte: «Desafiamos vocês a abrirem luta connosco. Só temos à frente a metade da vida, e cada vez falaremos mais rápido e mais azedos, faremos mais e saberemos mais, e gastaremos em cada assunto muito menos tempo do que vocês poderiam sonhar. Nós somos a nata - feitos de ferro e do couro cru com que se fazem chicotes.» E Val, inconscientemente também, arregimentava-se noutro grupo, cuja palavra de ordem rezava assim: «Desafiamos vocês a interessar-nos ou excitar-nos. Nós já experimentámos todas as sensações, ou fingimos que as experimentámos. Estamos tão exaustos pela vida que o tempo é de mais para nós. Saberemos perder até a camisa com indiferença. Queremos viver devagar e chegar atrasados a tudo. Tudo é fumo.» O espírito de competição que está na massa do sangue dos Ingleses obrigava esses dois jovens Forsyte a terem ideias e nos seus programas pelo menos uma centena de ideias estavam misturadas. Os aristocratas já haviam adoptado na maioria uma espécie de messianismo como princípio. Uma vez por outra, entretanto, um honourable como Crum demorava-se languidamente pelo Nirvana dos jogadores que fora o summum bonum dos velhos dandies e dos seus substitutos, os maskers (1) da década dos 1380. E em torno de Crum agrupavam-se ainda as últimas esperanças de alguns fidalgotes com uma plutocrática entourage.

 

*1. Maskers - casquilhos, janotas. (N. da T.)

 

Além disso, havia entre os dois primos uma antipatia que se originava naquele impalpável ar de família que talvez despertasse ressentimentos no coração de um e do outro ou fora produzida por uma prevenção despertada neles por palavras estranhas ou meias alusões expressas pelos mais velhos, oriundas da velha animosidade que persistia entre os respectivos ramos do clã. E Jolly pensava, batendo com a colherinha na mesa: «Olha o alfinete de gravata dele, o colete, o sotaque arrastado, as apostas nas corridas! Valha-me Deus!» E Val pensava, acabando o doce: «É um cretino!»

- Creio que você irá esperar a sua família à estação - disse ele, erguendo-se. - Quer dizer-lhes da minha parte que terei muito prazer em acompanhá-los a um passeio. Não que haja grande coisa a ver... mas se os interessar...

- Obrigado. Darei o seu recado

- Eles aceitarão um almoço? Tenho um «escravo» muito alinhado. - Jolly não sabia se teriam tempo. - De qualquer forma, quer fazer o favor de perguntar?

- Você é muito amável - respondeu Jolly, absolutamente resolvido a não consentir que aceitassem, mas, com uma polidez instintiva, acrescentou: - O melhor que você faz é vir jantar connosco amanhã.

- Muito obrigado. A que horas?

- Sete e meia.

- Trajo de noite?

- Não.

E os primos separaram-se com um subtil antagonismo no coração.

Holly e o pai chegaram no comboio da tarde. Era a primeira visita de Holly à cidade das flechas e dos sonhos, e ela estava muito silenciosa, olhando quase timidamente o irmão que fazia parte de tão maravilhosa cidade. Depois do almoço, ficou a vaguear pela casa, examinando as instalações com viva curiosidade. A sala de estar de Jolly era apainelada, e a arte fazia-se representar ali por uma série de Bartolozzi que haviam pertencido ao velho Jolyon e por fotografias de colegas - rapazes vivos, um pouco heróicos, que poderiam ser comparados à lembrança que ela guardava de Val.

Jolyon também perscrutou com cuidado aquela prova do carácter e dos gostos do filho.

Jolly fazia questão de que eles o vissem remar, e puseram-se os três a caminho do rio. Entre o pai e o irmão, Holly sentia-se em êxtase cada vez que uma cabeça se voltava e um par de olhos pousava nela. A fim de poderem ver melhor o remador, deixaram Jolly no pontão e, atravessando o rio, atingiram a vereda que o ladeava. Quase franzino - porque os únicos corpulentos, entre os Forsyte, eram o velho Swithin e George-, Jolly remava na segunda posição, num barco de oito remadores. Mostrava-se cheio de ardor e de energia. Jolyon considerou com orgulho que ele era o mais simpático de todo o grupo, Holly, como era natural da parte de uma irmã, ficou mais impressionada por um ou dois outros, mas não o confessaria por nada no mundo. O rio estava muito bonito naquela tarde, com a relva das margens muito macia e as árvores ainda exibindo cores soberbas. Reinava em torno da velha cidade uma paz fidalga, e Jolyon prometeu a si mesmo passar o dia a desenhar se o tempo se mantivesse bom. O barco passou por eles uma segunda vez, ao longo dos pontões, a toda a velocidade, para regressar ao ponto de partida - as feições de Jolly estavam tensas, para esconder que vinha estafado. Pai e filha tornaram a atravessar o rio à espera dele.

- Olhe - disse Jolly, quando voltavam pelas campinas de Christ Church. - Tenho de convidar Val Dartie para jantar connosco hoje. Ele queria oferecer-lhes um almoço e convidá-los para um passeio, mas eu pensei que seria melhor convidá-lo eu. Assim, vocês não terão de visitá-lo. Não gosto muito dele.

As faces morenas de Holly tingiram-se de rosa.

- Porquê? - perguntou.

- Oh, não sei. Não tem linha nos trajos e não parece grande coisa. Como são os pais dele, papá? Nós só somos primos em segundo grau, não é?

Jolyon refugiou-se num sorriso.

- Pergunte a Holly. Ela viu o tio dele.

- Val agradou-me - disse Holly, com os olhos fixos no chão, diante de si - O tio dele pareceu-me... diferente. - E por sob os cílios lançou a Jolly um olhar furtivo.

- Meus filhos - disse Jolyon com uma absurda determinação-, vocês já ouviram alguma vez a história da nossa família? Parece um conto de fadas. O primeiro Jolyon Forsyte... pelo menos o primeiro de quem sabemos qualquer coisa e que seria o vosso tretavô, morava no condado de Dorset, à beira-mar, e era de profissão um agricultor, como diz a sua tia, filho de agricultores... camponeses-lavradores, na verdade. O seu avô costumava chamar-lhes «cervejinhas».- Olhou para Jolly, para ver como a fidalguia do rapaz suportava essas revelações, e com o outro olho espiou o prazer malicioso que provocou em Holly a ligeira decepção que se lia no rosto do irmão. - Devemos imaginar que ele era atarracado e sólido, um verdadeiro representante da Inglaterra de antes do começo da Era Industrial. O segundo Jolyon Forsyte, seu bisavô, Jolly, mais conhecido pelo nome de «Superior Dosset» Forsyte, foi construtor de casas, segundo reza a crónica, teve dez filhos e emigrou para Londres. Sabe-se que ele gostava de beber sherry. Devemos supor que representava a Inglaterra das guerras napoleónicas e do mal-estar geral. O seu primogénito foi o terceiro Forsyte que usou o nome de Jolyon, seu avô, negociante de chá e presidente de várias companhias, um dos ingleses mais sólidos que já existiram, e, para mim, o mais querido de todos. - A voz de Jolyon perdeu o seu tom irónico e a filha e o filho fitaram-no com olhos graves. - Ele era justo e tenaz e tinha o coração afectuoso e jovem. Vocês ainda devem lembrar-se dele. Passemos aos outros! O seu tio-avô James, avô de Val, teve um filho, chamado Soames, de quem se conta uma história de amor infeliz, que eu não pretendo contar a vocês. A respeito de James e dos outros oito filhos do «Superior Dosset», dos quais cinco ainda estão vivos, pode-se dizer que eles representam a Inglaterra vitoriana, com os seus princípios de individualismo e de negócios a cinco por cento de juros sobre o capital, caso vocês saibam o que isso significa. De qualquer forma, no decorrer das suas longas existências, eles transformaram trinta mil libras num bom milhão, dividido entre todos. Nunca fizeram nada de extravagante, salvo o tio Swithin, que uma vez se fez depenar jogando com trapaceiros e tinha o apelido de «Forsyte-Quatro-Cavalos» porque costumava guiar um carro de dois cavalos.

O tempo deles passou, bem como o tipo que representavam, o que não é talvez um benefício para o país. Eles eram terra-a-terra, mas eram firmes. Eu sou o quarto Jolyon Forsyte... um mesquinho titular do nome...

- Não, papá - contestou Jolly, enquanto Holly lhe apertava a mão.

- Sim - repetiu Jolyon -, um pobre espécime, representante, receio-o bem, do fim do século, dos rendimentos que nos chegam sem esforço, do amadorismo, da liberdade individual, que não é a mesma coisa, Jolly, que o individualismo. Você é o quinto Jolyon Forsyte, meu velho, e está a abrir o baile do novo século.

Enquanto ele falava, atravessaram os portões do colégio, e Holly disse:

- É fascinante, papá.

Nenhum compreendeu inteiramente o que ela queria dizer. Jolly mostrava-se grave.

O Rainbow, que se distinguia, como todos os hotéis de Oxford, pela sua falta de modernismo, oferecia à clientela um pequeno salão particular, apainelado de carvalho. E Holly estava lá, vestida de branco, tímida e solitária, pronta para receber, quando chegou o seu único conviva.

Val tocou-lhe a mão com o gesto de quem toca uma borboleta. Ela não aceitaria aquela «florinha murcha»? Ficaria muito bem nos seus cabelos. E estendeu-lhe uma gardénia que tirou da botoeira.

- Oh, não, obrigada, não posso... - Mas recebeu a flor e enfiou-a no corpete, porque se lembrara de súbito daquelas palavras «falta de linha nos trajos». A botoeira de Val chocaria, e ela desejava tanto que Jolly o estimasse! Seria que ela compreendia que Val nunca aparecia sob tão bom aspecto, tão moderado, como na sua presença? E estaria nisso talvez a metade do segredo da atracção que ele tinha sobre ela? - Nunca disse nada a respeito do nosso passeio, Val.

- Exactamente! É uma coisa só entre nós.

Ele não sabia o que fazer das mãos, não deixava os pés tranquilos, e dava a Holly, por isso mesmo, uma deliciosa sensação de poder sobre ele.

Sensação impregnada de ternura, do desejo de o tornar feliz.

- Fale-me de Oxford. Parece-me que é adorável.

Val reconheceu que realmente era agradável uma pessoa fazer tudo o que queria. Os cursos não tinham importância e tinha ali muito bons camaradas.

- Apenas - acrescentou ele - eu gostaria de estar em Londres, naturalmente, e poder visitá-la. - A mão de Holly, posta sobre o joelho, fez um pequeno movimento tímido, e os seus olhos baixaram-se. - Você não esqueceu - continuou ele, reunindo toda a sua coragem - que nós dois iremos percorrer o mundo juntos?

Holly sorriu.

- Oh, aquilo era brincadeira. Você sabe muito bem que a gente não pode fazer essas coisas, depois de crescer.

- Porque não? Os primos podem - disse Val. - Nas próximas férias grandes, que começam em Junho, você sabe, e nunca acabam, nós vamos procurar uma oportunidade.

Porém, embora o arrepio da conspiração lhe corresse as veias, Holly abanou a cabeça.

- Não pode ser - murmurou ela.

- Não? - perguntou Val com fervor. - E quem o impedirá? Não será seu pai, nem seu irmão?

Nesse momento, Jolyon e Jolly entraram. E o romance refugiou-se nos sapatos de verniz de Val e nos sapatinhos de cetim de Holly, transmitindo-lhes comichões e frémitos durante todo o serão, onde a cordialidade e a espontaneidade brilharam pela ausência.

Com a sua natureza sensível à atmosfera, Jolyon teve rapidamente consciência da hostilidade latente entre os dois primos, e Holly não se deixou decifrar, de forma que ele refugiou-se inconscientemente na ironia, que é fatal à expansividade dos jovens. Uma carta que lhe trouxeram depois do jantar mergulhou-o num silêncio que só se quebrou quase no momento em que Jolly e Val se ergueram para as despedidas. Ele saiu com os rapazes, com um cigarro na boca, e acompanhou o filho até à grade de Christ Church.

Depois de o deixar lá, tirou a carta do bolso e releu-a sob um poste de iluminação:

 

               Meu caro Jolyon,

Soames voltou esta noite - no dia dos meus trinta e sete anos. Você tinha razão, não devo mais ficar aqui. Mudar-me-ei esta noite para o Tiedmont Hotel, mas não irei para fora antes de lhe falar. Sinto-me muito só e desanimada.

             Afectuosamente, Irene

 

Ele dobrou a carta e voltou a pô-la no bolso, retomando o caminho, espantado da violência dos seus sentimentos. Que teria Soames dito ou feito?

Dobrou High Street, em direcção ao Turf, através de uma massa de flechas e torres, de longas paredes e fachadas de colégios, brilhantes ou sombreadas contra o luar muito claro. Naquele verdadeiro coração da Inglaterra, era-lhe difícil aceitar o facto de uma mulher isolada poder ser importunada ou ofendida - mas que outra coisa significaria aquela carta? Soames, na certa, devia estar a exigir-lhe que voltasse para a sua companhia, tendo ao seu lado o apoio da lei e da opinião pública! «Mil oitocentos e noventa e nove», pensou ele, olhando os cacos de vidro no alto do muro do jardim de uma vila, «mas quando se trata de propriedade, somos ainda um povo de pagãos! Irei a Londres amanhã de manhã. Nem sei se será melhor para ela ir para o estrangeiro.» E, além disso, esse pensamento desagradava-lhe. Com que direito Soames a enxotava da Inglaterra? E, mais ainda, poderia segui-la, e naquelas terras longínquas ela estaria ainda mais indefesa ante as atenções do seu próprio marido. «Preciso tomar cuidado», cismava Jolyon. «Esse sujeito pode tornar-se muito desagradável. Outro dia, no cab, ele assumiu um tom que não me agradou.» Os seus pensamentos voltaram-se então para a filha, para June. Seria que ela poderia ajudá-lo? Irene fora outrora a sua melhor amiga, e agora era uma desvalida» capaz de despertar o interesse de June. Resolveu telegrafar à filha para que o viesse esperar à estação de Paddington.

Desandando o caminho, a fim de voltar ao Rainbow, interrogava-se a si mesmo, para saber o que sentia. Ficaria no estado em que estava por qualquer outra mulher em situação idêntica? Não, absolutamente. A candura daquela conclusão desorientou-o, e, vendo que Holly já se recolhera, subiu para o seu quarto. Mas não pôde dormir, e ficou muito tempo sentado à janela, enfiado no sobretudo, contemplando o brilho do luar sobre os telhados.

No quarto vizinho, Holly também estava desperta e recordava os cílios que franjavam os olhos de Val - sobretudo os cílios inferiores. E cismava no que poderia fazer para que Jolly o estimasse mais. O perfume da gardénia enchia o quarto pequenino e era-lhe agradável.

E Val, debruçado à sua janela do primeiro andar, olhava para o pátio clareado pelo luar, mas sem o ver, via, em vez disso, Holly, frágil no vestido branco, tal como a vira à chegada, sentada junto ao fogo.

Porém Jolly, no seu quarto estreito como um fantasma, estava deitado, com a face sobre a mão, e sonhava que estava no mesmo barco que Val e disputava uma corrida com ele, enquanto o pai lhe gritava, da vereda ao longo do rio: «Olá, número dois! Tire as mãos daí, coa breca!»

 

SOAMES FAZ UMA EXPERIÊNCIA

Entre todas as radiantes firmas que embrasonam com as suas janelas o West End de Londres, Gaves & Cortegal eram considerados por Soames como «a mais atraente» - palavra que então começava a estar em moda. Ele nunca tivera o gosto do seu tio Swithin em matéria de pedras preciosas, e quando, em 1887, Irene abandonara o lar e todas as jóias que ele lhe dera, desgostara-se inteiramente dessa forma de emprego de capital. Porém ainda era capaz de conhecer um diamante, quando via algum, e durante a semana que precedeu o aniversário de Irene, no seu caminho de ida e volta para o Poultry, demorava-se um pouco ante as montras das lojas dos grandes joalheiros, onde, se a gente não recebe o equivalente exacto do seu dinheiro, pelo menos sai de posse de um artigo que tem um cachet especial.

Depois do seu passeio de cab em companhia de Jolyon, cogitações constantes tinham-no convencido cada vez mais da suprema importância daquele momento de sua vida e da suprema necessidade em que estava de tomar uma decisão, uma boa decisão.

E ao lado da convicção fria e raciocinada de que devia, agora ou nunca, garantir o seu bem-estar, instalar-se e fundar uma família, havia também a secreta solicitação dos seus sentidos, despertados pela presença daquela que fora outrora uma pessoa apaixonadamente desejada e o sentimento de que pecaria contra o senso comum e a decente prudência dos Forsyte renunciando a uma mulher que já era sua.

Ele consultara, a respeito do caso de Winifred, a opinião de Dreamer, Q. C. - teria preferido Waterbruck, porém este havia sido nomeado juiz, e de modo tão tardio que dera azo aos habituais boatos de manobra política-, e Dreamer aconselhara- lhe uma medida cuja oportunidade nunca fora posta em dúvida por Soames: reclamar uma ordem do juiz determinando a Dartie que reintegrasse o domicílio conjugal.

Uma vez emitida a ordem, era preciso esperar a acção de Dartie. Se ele não fizesse nada, seria um caso de abandono de domicílio conjugal, nos termos da lei, eles obteriam então provas do mau procedimento do marido e obteriam o divórcio. Tudo isso Soames conhecia muitíssimo bem. E a simplicidade do caso da irmã ainda o tornava mais desesperado ante as dificuldades do seu próprio caso. Tudo realmente o arrastava à simples solução da volta de Irene. Recebê-la-ia como se não tivesse nenhum ressentimento contra ela, nem sentimentos a vencer, nem injúrias a perdoar, nem mágoas a esquecer! Afinal, ele nunca a ofendera, e isso já representava uma garantia. Poderia oferecer-lhe muito mais do que tinha agora. Poderia fazer uma doação liberal, em nome dela. e inamovível.

E de vez em quando examinava minuciosamente a sua própria imagem. Nunca fora um pavão como Dartie, nem se considerava um homme à femmes, mas tinha uma certa fé na sua própria aparência - não de todo injusta, porque era bem feito, bem conservado, limpo, sadio, pálido, sem nenhuma vermelhidão suspeita, provocada pela bebida ou por outros excessos. O queixo dos Forsyte e a impenetrabilidade fisionómica eram, a seus olhos, virtudes. Tanto quanto lhe era possível, não descobria nas suas feições nada que pudesse inspirar repulsa.

Os pensamentos e cuidados com que lidamos diariamente parecem-nos naturais, embora de início nos tenham parecido absurdos. Se lhe fosse possível dar a Irene alguma prova tangível da sua vontade, do seu desejo de fazer tudo o que lhe fosse agradável, seria que ela não consentiria em voltar?

Entrou portanto na loja de Gaves & Cortegal na manhã de 9 de Novembro, para comprar um alfinete de brilhantes.

- Por quatrocentas e vinte e cinco libras é dado, cavalheiro. É um presente para uma senhora distinta.

Na disposição de espírito em que estava, Soames aceitou sem discutir. Retomou o caminho do escritório trazendo no bolso do peito o estojo de marroquim verde. Abriu-o várias vezes, naquele dia, para lhe contemplar as sete pedras que lançavam uma luz fria no seu ninho oval tapetado de veludo. «Se a senhora não gostar dele, cavalheiro, teremos muito prazer em trocá-lo por outro. Mas não é de temer isso.» - Se na verdade não fosse de temer! E realizou um trabalho enorme, pois era o único meio que conhecia para acalmar os nervos. Chegou-lhe um cabograma enquanto ainda estava no escritório, passara-o o seu correspondente de Buenos Aires e trazia pormenores sobre o caso de Dartie, dando o nome e o endereço de uma camareira do Tuscarora que estava pronta a fornecer sob juramento o testemunho necessário. E aquilo reavivou oportunamente em Soames a sua repugnância pela lavagem da roupa suja em público. E enquanto viajava no metropolitano recebeu novo estímulo para reatar a vida conjugal ante a descrição de um processo de divórcio elegante que leu no jornal da tarde.

Movido pelo sentimento que conduz todos os Forsyte quando estão ansiosos ou perturbados e que os leva a aproximarem-se uns dos outros - graças ao instinto gregário que constitui a sua força e a sua coesão-, Soames resolveu ir jantar em Park Lane. Não podia nem queria dizer nada aos pais a respeito das suas intenções - era muito altivo e muito dissimulado-, mas era-lhe um consolo pensar que eles desejariam e se alegrariam com o seu triunfo, se ele lhes contasse qualquer coisa.

James estava de um humor lúgubre, porque o entusiasmo que se acendera nele ante a impudência do ultimato de Kruger recebera um duche frio ante os precários êxitos do mês que se passara e ante as exortações a um esforço maior que se liam nos artigos do Times. Não sabia como acabaria aquilo tudo. Soames procurava animá-lo pronunciando a todo o tempo o nome do general Buller. Porém James não podia dizer nada!

Tudo lhe parecia numa grande confusão. Colley e Ladysmith, na sua opinião, deviam levar os marinheiros lá, tinham trabalhado muito bem na guerra da Crimeia. Soames tentou um outro método de consolo, Winifred recebera uma carta de Val, contando que houvera festejos e fogos de artifício em Oxford comemorando o Guy Fawkes Day e que, como pintara o rosto de preto, ele conseguira não ser apanhado.

- Ah - murmurou James -, ele não é tolo. - Mas balançou a cabeça alguns instantes depois, dizendo que não sabia o que iria acontecer, e, olhando tristemente para o filho, queixou-se de Soames não ter um herdeiro. Ele gostaria de ter um neto que lhe usasse o nome. E agora... bem, aí estava!

Soames estremeceu. Não esperava aquele convite para revelar o segredo do seu coração. E Emily, que o viu estremecer, disse:

- Tolice, James. Não fale assim!

Porém James, sem olhar de frente para ninguém, continuou a murmurar. Tanto Roger, como Nicholas, como Jolyon, todos tinham netos. Swithin e Timothy nunca tinham casado. Ele fizera tudo o que pudera, mas agora não tinha muito tempo de vida diante de si. E, como se houvesse dito palavras profundamente consoladoras, calou-se e pôs-se a comer os miolos que tinha no prato, arrumando-os no garfo com um pedaço de pão e engolindo o pão.

Soames pediu desculpas logo que acabou o jantar. Não estava realmente frio, mas vestiu a pelica, que serviria para o proteger contra os acessos de tremor nervoso que o tinham atacado durante todo o dia. Sabia, no seu subconsciente, que ficava melhor assim do que com o simples sobretudo preto.

Depois, acariciando com a ponta dos dedos o escrínio de marroquim, guardado junto ao coração, pôs-se a caminho. Quase não fumava, mas acendeu um cigarro, e fumou-o, na ponta dos lábios, enquanto caminhava. Desceu lentamente Rotten Row em direcção a Knightsbridge, de modo a chegar a Chelsea às nove e quinze. Em que empregaria ela o tempo, noite após noite, naquele buraco solitário? Que seres misteriosos eram as mulheres! Vivemos ao lado delas sem as conhecermos. Que teria em si aquele Bosinney para a tornar louca? Porque havia indiscutivelmente loucura em tudo o que ela fizera: loucura, maluquice, acção de lunática - que lhe havia feito perder todo o sentimento dos valores e arruinar a sua vida e a do marido! E durante um instante ele sentiu-se cheio de uma espécie de exaltação, como se ele próprio fosse o herói de um conto e, penetrado de espírito cristão, estivesse pronto para devolver à culpada todos os benefícios da existência, perdoar e esquecer, e tornar-se o génio bom do seu futuro. Sob uma árvore, defronte do quartel de Knightsbridge, em plena claridade branca do luar, tirou do bolso mais uma vez o estojo de marroquim e deixou que os diamantes brilhassem sob os raios de luz que os feriam. Sim, eram de primeira água! Mas quando o escrínio se fechou com um ruído seco, sentiu-se percorrido por novo arrepio e pôs-se a caminhar mais depressa, enfiando nos bolsos da pelica as mãos enluvadas, quase desejando que ela não estivesse em casa. Voltou a assaltá-lo a lembrança do perpétuo mistério dela, dos jantares solitários noite após noite - em trajo de cerimónia, como se ela quisesse fazer crer a si própria que tinha companhia. O piano - onde ela tocava para si mesma. Não tinha sequer um cão ou gato - pelo menos segundo o que pudera observar. E então lembrou-se da égua que ele tinha em Mapledurham, para o levar nas viagens à estação. Quando às vezes ele ia à cocheira, achava-a sempre lá, meio adormecida, no entanto, quando voltavam para casa, tinha menos necessidade de a apressar do que quando se afastavam de lá, como se a égua desejasse realmente voltar à solidão da cavalariça. «Hei-de tratá-la bem», pensava ele com incoerência. «Terei muito cuidado!» E toda a sua capacidade para a vida doméstica, da qual um destino zombeteiro parecia querer privá-lo para sempre, despertou subitamente em Soames, enquanto ele caminhava sonhadoramente em direcção inversa a South Kensington Station. Em Kings Road apareceu-lhe um homem, defronte de uma casa pública, tocando concertina. Soames olhou-o um momento, dançando loucamente no passeio, ao som do seu próprio instrumento, e desviou-se, para passar bem distante daquela amostra de bebedeira foliona. Depois passaria a noite na prisão. Como o povo era estúpido! Porém o homem percebera o movimento de Soames ao evitá-lo e atirou-lhe um rio de pragas e insultos. «Espero que o prendam depressa», pensou maldosamente Soames. «Andarem rufiões desta espécie soltos na rua, onde passam mulheres sós!» Esse pensamento fora-lhe sugerido por um vulto de mulher que caminhava à sua frente. O andar dela parecia-lhe conhecido, e quando virou a esquina da rua para a qual ele se destinava o seu coração começou a bater. Apressou o passo para dobrar também a esquina e ver se se enganava. Não! Era realmente Irene. Reconhecia-lhe bem o passo, mesmo naquela ruela sórdida. Ela dobrou mais duas esquinas, e na última viu-a dirigir-se ao pequeno bloco de apartamentos. Para ter a certeza de não a perder mais, deu quase a correr os passos que os separavam, subiu os degraus quatro a quatro e viu-a parada diante da sua porta. Ouviu a entrada da chave na fechadura e alcançou-a exactamente no momento em que ela se voltava, surpresa e inquieta, no umbral da porta que acabava de abrir.

- Não tenha medo - disse ele, quase sem fôlego. - Vi-a por acaso. Deixe-me entrar um minuto.

Ela pusera a mão sobre o seio, tinha o rosto pálido, os olhos dilatados pelo medo. Depois, como se se dominasse, inclinou a cabeça e disse:

- Está bem.

Soames fechou a porta. Ele também tinha necessidade de se acalmar, e, logo que entrou no salãozinho, esperou um bom minuto, respirando profundamente para abrandar as pancadas do coração. Naquele momento, tão cheio de consequências para o futuro, pareceu-lhe grosseiro puxar o escrínio de marroquim. Mas, se não o puxasse, ficaria diante dela, sem desculpas para a visita. E, dentro desse dilema, sentia-se impaciente ante todas aquelas complicações de desculpas e justificações. Teria de haver uma cena - não poderia ser de outra forma -, e ele tinha de afrontá-la. E ouviu a voz de Irene, constrangida e patética na sua doçura:

- Porque voltou? Então não compreendeu que seria melhor não o ter feito?

Ele reparou no vestido de veludo escuro, a écharpe preta, um pequeno toque também de veludo. E o conjunto ia-lhe admiravelmente. Evidentemente ela dispunha de dinheiro para gastar em roupa! E Soames disse bruscamente:

- É o seu aniversário. Eu trouxe-lhe isto. - E estendeu-lhe o escrínio de marroquim verde.

- Oh... não... não!

Soames apertou o fecho e as sete pedras reluziram sobre o veludo cinzento-pálido.

- Porque não? - disse ele. - Apenas como uma prova de que você já não me detesta.

- Não poderia.

Soames tirou o alfinete do escrínio.

- Deixe ver o efeito que ele fará.

Ela recuou. Ele seguiu-a e pôs sobre o peito da mulher, mau grado os protestos dela, o alfinete que mantinha sempre na mão. E ela recuou ainda mais.

Soames deixou cair a mão.

- Irene - disse ele -, esqueçamos o passado. Se eu o posso esquecer, você, certamente, o deve. Recomecemos como se nada houvesse sucedido. Você não quer?-A sua voz implorava e no olhar que ele punha sobre o rosto de Irene havia uma espécie de súplica.

Encostada à parede, ela soltou um pequeno soluço. E foi essa a sua única resposta. Soames continuou:

- Será que você realmente deseja passar toda a sua vida sepultada neste cubículo? Volte para casa, e eu dar-lhe-ei tudo o que você quiser. Viverá a sua própria vida, juro-o.

E ele viu no rosto da mulher um leve estremecimento irónico.

- Sim - repetiu ele -, mas desta vez estou a falar sério. Só lhe pedirei uma coisa: quero apenas... quero apenas um filho. Não me olhe assim. Quero um filho. É muito duro. - Falara numa voz rápida, que ele próprio mal reconhecia, e duas vezes seguidas atirou a cabeça para trás, bruscamente, como se sentisse dificuldade em respirar. E, vendo fixos em si os dois olhos de Irene, negros, com uma espécie de terror fascinado, ele recobrou-se e a sua penosa incoerência mudou-se em cólera: - Será uma coisa antinatural o que lhe peço? - perguntou ele por entre os dentes. - Será uma coisa antinatural querer ter um filho da própria esposa? Você arruinou a nossa vida, destruiu tudo, nós só vivemos pela metade, e não temos nenhum futuro.

E será tão pouco lisonjeiro para você que, a despeito de tudo, eu.,, eu ainda a queira para minha mulher? Fale, pelo amor de Deus, diga alguma coisa! Irene pareceu querer falar, mas não o conseguiu.

- Não quero que tenha medo de mim - disse Soames suavemente. - Deus bem o sabe. Quero apenas que compreenda que não posso continuar a viver assim. Quero que você volte. E quero-a.

Irene ergueu uma das mãos e cobriu com ela a parte inferior do rosto, mas os seus olhos não deixaram os de Soames, como se ela confiasse neles para o manter à distância. E todos aqueles anos desolados e amargos desde - desde quando? - desde que ele a conhecera, quase desfilaram no espírito de Soames numa grande onda de recordações, e um espasmo, que por nada no mundo ele teria conseguido dominar, contraiu-lhe a face.

- Não é tarde de mais - disse ele. - Não, não é tarde demais... se você quiser acreditar que não o é.

Irene descobriu o rosto, e as suas mãos contorceram-se sobre o peito. Soames agarrou-as.

- Não!-disse a mulher em voz baixa. Mas ele continuou a segurá-las, procurando mergulhar o olhar nos olhos dela, que não se adoçavam. E então ela disse em tom calmo: - Estou só aqui. Você não irá proceder como já o fez uma vez.

Ele deixou cair as mãos, como se fossem um ferro em brasa, e voltou-se. Seria possível que houvesse neste mundo uma recusa tão impiedosa de perdão? Seria possível que aquele seu único acto de posse violenta estivesse ainda tão vivo na lembrança de Irene? Seria por isso que ele fora excluído para sempre da presença dela? E, em tom resoluto, ele disse, sem erguer os olhos:

- Não sairei daqui sem uma resposta. Ofereço-lhe o que poucos homens ousariam oferecer, e quero uma resposta... uma resposta razoável.

E, quase com surpresa, ouviu-a dizer:

- Não posso dar-lhe uma resposta razoável. A razão não tem nada que ver com isto. Não posso dizer-lhe senão a verdade brutal: preferiria morrer.

Soames encarou-a de olhos desmesuradamente abertos.

- Oh! - exclamou. E foi ferido por uma espécie de paralisia da fala e de movimento, daquele tremor que possui um homem mortalmente insultado, quando ele ainda não sabe como receber o insulto, oco, ou antes, o que fazer. - Oh - tornou ele finalmente -:, é tão grave assim? Ah, com efeito! Você preferiria morrer! É muito amável!

- Sinto muito. Mas você exigiu que eu respondesse. E não posso lutar contra a verdade, pois não?

Ante aquele apelo, estranhamente espiritual, Soames procurou um alívio numa consideração actual e repôs, com um gesto brusco, o alfinete no escrínio e o escrínio no bolso.

- A verdade! - exclamou. - As mulheres não sabem o que é a verdade. Elas só têm nervos.., apenas nervos.

E ouviu-a murmurar:

- Sim, os nervos não mentem. Você ainda não descobriu isso? Ele estava silencioso, obcecado pelo pensamento: «Eu quero

odiar esta mulher. Quero odiá-la.» E era justamente a dificuldade. Se ao menos o pudesse! Lançou-lhe um olhar agudo e viu-a em pé, de encontro à parede, imóvel, a cabeça erguida e as mãos juntas, exactamente como se fossem fuzilá-la. E ele disse-lhe rapidamente:

- Não acredito numa só palavra disso tudo. Você tem um amante. Se não fosse isso, não seria tão... tão idiota. - O olhar de Irene fez-lhe ver bem o seu erro. Porém ele voltava rapidamente de mais à liberdade de palavras da vida conjugal. Virou as costas à mulher e deu alguns passos em direcção à porta. Mas não pôde sair. Havia algo dentro dele que o impedia de o fazer, a característica mais profunda e mais secreta dos Forsyte, a impossibilidade de largar a presa, a incapacidade de perceber a natureza extravagante e desolada da sua própria tenacidade. Virou-se de novo e ficou de costas encostadas à porta, sem notar nada do ridículo daquela situação, com toda a largura da sala a separá-los.

- Você já alguma vez pensou noutra pessoa além de você mesma? - perguntou ele.

Os lábios de Irene estremeceram, depois ela respondeu lentamente:

- Você já pensou que eu descobri o meu erro... o meu erro irremediável, terrível, logo na nossa primeira semana de casamento? Que durante três anos fiz um esforço incessante... sabe realmente que eu fiz esse esforço? Seria por mim?

Soames cerrou os dentes.

- Sabe Deus por quem seria! Eu nunca a compreendi, nem nunca a compreenderei. Você tinha tudo o que pudesse desejar, e ainda pode ter mais que isso. Que é que há em mim, então? Pergunto-lhe apenas isto: que é que há em mim? - Sem perceber quanto havia de patético nessa pergunta, ele prosseguiu com paixão: - Não sou coxo, não sou repugnante, não sou um bruto, não sou um idiota. Que é que tenho? Que mistério há em mim?

Mas Irene apenas respondeu por um longo suspiro.

Ele juntou as mãos. num gesto estranhamente expressivo.

- Quando vim aqui, hoje à noite, estava... esperava... eu queria sinceramente fazer tudo quanto fosse possível para apagar o passado e recomeçar sob felizes auspícios. E como única resposta você apresenta-me os seus nervos, silêncios e suspiros. Não há nada de tangível. É como... é como uma teia de aranha.

- Sim.

Aquele simples murmúrio, provindo da outra extremidade da sala, provocou em Soames novo acesso de furor.

- Pois não me agrada estar enredado numa teia de aranha. Hei de rasgá-la. - E caminhou em direcção a Irene.-Rasgá-la-ei agora!

Porque se aproximara dela, realmente, não o sabia. Mas quando estava perto, o velho perfume conhecido, que lhe emanava dos vestidos, afectou-o de súbito. Pôs as mãos sobre os ombros da mulher e inclinou-se para a beijar. Mas não lhe beijou os lábios, apenas uma linha estreita e dura, situada no lugar onde os lábios de Irene se haviam cerrado. Depois as mãos dela repeliram-no e ele ouviu-a dizer:

- Oh, não!

Vergonha, compunção e um sentimento da futilidade de tudo invadiram-no inteiramente. Então deu meia volta e saiu.

 

VISITA A IRENE

Jolyon encontrou June a esperá-lo na estação de Paddington. Ela recebera o telegrama do pai durante o pequeno-almoço. O apartamento - um estúdio e dois quartos em Saint Johns Wood Garden - fora escolhido pela completa independência que lhe garantia. Sem a vigilância de Mrs. Grundy, sem a presença de criadas, ela podia receber os seus «desvalidos» a qualquer hora do dia, e não era raramente que os «desvalidos» sem estúdio utilizavam o estúdio de June. Ela gozava a sua liberdade e possuía-se a si mesma com uma espécie de paixão virginal. O ardor que prodigalizara a Bosinney e com o qual - dada a sua tenacidade de Forsyte - decerto o fatigara, empregava-o agora em prol dos enjeitados e dos «génios» desconhecidos do mundo artístico. Vivia, de facto, para transformar aqueles patinhos feios nos cisnes que, tinha a certeza, todos eles eram. O extremo fervor da sua protecção obscurecia-lhe o julgamento. Porém ela era leal e liberal, as suas mãos pequenas e enérgicas estavam sempre erguidas contra a opressão académica e comercial, e, embora o seu rendimento fosse considerável, a sua conta no banco era sempre deficitária. Chegara a Paddington Station extremamente irritada, por causa de uma visita a Eric Cobbley. Uma miserável galeria recusara àquele génio de cabeleira lisa fazer uma exposição individual das suas telas. O impudente gerente, depois de visitar o atelier do pintor, exprimira a opinião que seria «uma exposição precária do ponto de vista de venda». E aquele exemplo decisivo de covardia comercial, aplicado ao seu «desvalido» favorito - coitado, numa situação tão difícil, com mulher e dois filhos - ainda lhe fazia ferver o sangue nas veias, subindo-lhe ao rosto pequeno e resoluto e fazendo que os seus cabelos avermelhados brilhassem mais flamejantes que nunca. Ela beijou o pai e subiu a um cab, em companhia dele, sentindo tanta necessidade dele quanto ele sentia dela. A questão era saber qual seria o primeiro, o pai ou a filha, a fazer saber a sua necessidade. Jolyon chegara a dizer-lhe:

- Minha querida, queria que você viesse comigo...-Mas voltou-se para June e viu pelos seus olhos azuis, que iam da direita para a esquerda como a cauda de um gato preocupado, que ela não o escutava.

- Papá, é realmente verdade que eu não posso absolutamente tocar no meu dinheiro?

- Só no rendimento, felizmente, meu amor.

- Mas é horrível! Será que não se poderia dar um jeito? Deve haver uma maneira. E eu soube que poderia comprar uma pequena sala de exposições por dez mil libras.

- Uma pequena sala de exposições - murmurou Jolyon. - Parece-me um desejo modesto. Porém seu avô previu isso.

- O que eu acho - exclamou vigorosamente June - é que todo esse cuidado com o dinheiro é uma vergonha, quando há tantos homens de talento neste mundo atirados de lado apenas por falta de algumas libras. Nunca me casarei nem terei filhos. Porque não poderei fazer algum bem com o meu dinheiro, em vez de o ter amarrado, na perspectiva de coisas que jamais virão?

- O seu nome é Forsyte, minha querida - respondeu Jolyon naquele tom irónico ao qual a natureza impetuosa da filha jamais se habituara. -E os Forsyte, você bem o sabe, são pessoas que legam as suas propriedades aos netos de tal maneira que, no caso de esses netos morrerem antes dos pais, possam legar em testamento aos tais proprietários o que só lhes chegaria às mãos quando os ditos pais morressem. Você compreendeu? Nem eu, mas, de qualquer forma, é verdade. Nós vivemos o princípio de que, até onde for possível manter a fortuna em família, ela não correrá para fora. Se você morrer solteira, o seu dinheiro irá para Jolly e Holly, e para os filhos deles, se se casarem. Não lhe agrada saber que, faça o que fizer, nunca será deserdada?

- E não poderei arranjar o dinheiro emprestado? Jolyon abanou a cabeça.

- Você pode alugar uma sala, se conseguir fazer isso com o seu rendimento.

June soltou um grunhido de desprezo.

- Sim. E então o rendimento não me chegaria para ajudar mais ninguém.

- Mas, minha filha, isso não viria a dar no mesmo?

- Não - respondeu sagazmente June. - Eu poderia comprar uma sala por dez mil libras, o que representaria apenas quatrocentas libras por ano. De aluguel, no entanto, teria de pagar mil libras por ano, o que só me deixaria quinhentas libras de rendimento. Se eu tivesse essa sala, papá, pense no que poderia fazer? Poderia fazer a reputação de Eric Cobbley num minuto, e a de muitos outros.

- Quem o merece faz o seu nome com o tempo.

- Depois da morte.

- E você já encontrou artista algum, minha querida, que se sentisse melhor por ter feito nome ainda vivo?

- Sim, já o encontrei a si - disse June, apertando-lhe o braço.

Jolyon estremeceu. «Eu?», pensou ele. «Oh, então ela vai pedir-me qualquer coisa. Nós, Forsyte. temos cada um a nossa maneira de pedir.»

June aproximou-se mais do pai.

- Papàzinho - disse ela -, compre a sala, e eu pagar-lhe-ei quatrocentas libras por ano. Assim, nenhum de nós dois ficará mal satisfeito. Aliás, será um bom emprego de capital.

Jolyon procurou libertar-se.

- Você não acha que a compra de uma sala de exposições, feita por um artista, será uma coisa um pouco dúbia? E, além disso, dez mil libras é muito dinheiro, e eu não tenho senso comercial.

June olhava-o com uma expressão admirativa.

- Realmente, mas o senhor tem um grande senso prático, E tenho a certeza de que o senhor seria capaz de fazer a coisa prosperar. Seria uma maneira magnífica de nos vingarmos de todos esses negociantes horrorosos e desse público abominável. - E de novo ela apertou o braço do pai.

O rosto de Jolyon exprimia um desespero cómico.

- E onde fica essa sala tão desejada? Esplendidamente situada, decerto?

- Bem perto de Cork Street.

«Ah», pensou Jolyon, «eu estava certo que haveria de ser bem perto de qualquer parte. E agora é a minha vez de dizer o que quero dela!»

- Bem, vou pensar nisso. Mas não agora. Você lembra-se de Irene? Quero que venha visitá-la em minha companhia. Soames anda de novo a persegui-la. E ela ficaria em segurança se nós lhe déssemos asilo em qualquer parte.

A palavra "asilo", que ele empregara por acaso, era a mais propícia a despertar o interesse de June.

- Irene! Não a vejo desde.. Naturalmente gostarei de a ajudar.

Chegou então a vez de Jolyon lhe apertar o braço, em sinal de calorosa admiração pela ardente criaturinha que ele engendrara.

- Irene é muito orgulhosa - disse ele, olhando-a de viés, porque lhe ocorrera uma dúvida referente à discrição de June - Não é fácil ajudá-la. É preciso proceder com precaução. É aqui o encontro, enviei-lhe um telegrama prevenindo-a de que apareceríamos.

- Não posso suportar Soames -: disse June enquanto descia do carro. - Ele desdenha toda a gente que ainda não triunfou.

Irene estava no que se chamava «o salão das senhoras» no Piedmont Hotel.

Se June tinha uma qualidade, essa qualidade era a coragem moral. Caminhou directamente para a antiga amiga, beijou-a na face e sentaram-se num sofá onde nunca ninguém se sentara desde a abertura do hotel. Jolyon pôde ver que Irene estava profundamente comovida pela simplicidade daquele perdão.

- Então Soames tem vindo incomodá-la? - perguntou ele.

- Visitou-me ontem à noite. Quer que voltemos a viver juntos.

- Mas você não fará isso, naturalmente - exclamou June. Irene sorriu fracamente e sacudiu a cabeça.

- Mas a situação dele é horrível - murmurou ela.

- Culpa dele. Devia ter-se divorciado, quando podia fazê-lo. Jolyon recordou o fervor com que June desejara outrora que

um divórcio não viesse manchar a memória do seu noivo, defunto e infiel.

- Deixemos que Irene nos diga o que pretende fazer - disse ele.

Os lábios de Irene tremeram, porém ela falou em voz calma.

- O melhor que farei é fornecer-lhe um pretexto para se desembaraçar de mim.

- Mas isso é horrível! - gritou June.

- Que outra coisa poderei fazer?

- É impossível fazer isso - disse Jolyon calmamente - sans amour.

Ele pensou que ela iria chorar, mas Irene ergueu-se bruscamente e, voltando as costas aos dois, ficou um momento imóvel, para recuperar o domínio de si própria.

June disse subitamente:

- Então vou procurar Soames, e intimo-o a deixá-la em paz. Que quer ele, na idade em que está?

- Quer um filho, é muito natural.

- Um filho! - exclamou June com desprezo.-Naturalmente! Para ter a quem deixar o dinheiro. Se ele deseja tanto um filho, basta arranjar uma mulher qualquer, e ter um, então vocês poderiam divorciar-se e ele casaria com ela.

Jolyon compreendeu de súbito que fizera mal em trazer june - a violenta parcialidade dela militava a favor de Soames.

- Seria melhor que Irene viesse calmamente para nossa casa de Robin Hill, e esperasse pelo que dão as coisas...

- Naturalmente - disse June. - Apenas...

Irene olhou de frente para Jolyon - e muitas vezes depois ele tentou analisar aquele olhar e não o conseguiu.

- Não! Iria incomodar todos. Vou partir para o estrangeiro.

Ele compreendeu pelo tom de voz dela que a resolução era irrevogável. E, sem ligação directa com as preocupações de todos no momento, ocorreu-lhe esta ideia. «Afinal, poderei vê-la, lá onde estiver.» Mas disse:

- Não acha que lhe seria mais difícil defender-se dele no estrangeiro, na hipótese de ele a seguir?

- Não sei. Mas só o que posso fazer é tentar. June ergueu-se e pôs-se a passear pela sala.

- É horrível! - exclamava ela. - Porque é que as criaturas têm de ser torturadas e reduzidas à miséria e à impotência, eternamente, por causa de leis repulsivas com pretensões à moral?

Mas alguém entrou na sala, e June parou de caminhar. Jolyon aproximou-se de Irene.

- Você precisa de dinheiro?

- Não.

- Quer que eu alugue o seu apartamento?

- Sim, Jolyon, por favor.

- Quando parte?

- Amanhã.

- E não vai voltar lá, antes de partir?-Ele perguntou aquilo com uma ansiedade cuja estranheza o surpreendeu.

- Não, já tenho aqui tudo de que preciso. --Manda-me o seu endereço?

Ela estendeu-lhe a mão.

- Você é um apoio seguro como um rochedo.

- Edificado em areia - disse Jolyon, apertando fortemente a mão dela na sua. - Mas lembre-se de que, em qualquer tempo, ser-me-á um prazer fazer qualquer coisa por si. E se mudar de ideia.. Vamos, June. despeça-se!

June afastou-se da janela e rodeou Irene com os braços.

- Não pense nele - disse ela em voz baixa. - Divirta-se bem, e que Deus a abençoe.

Levando consigo a lembrança de Irene, com lágrimas nos olhos e um sorriso nos lábios, pai e filha afastaram-se em silêncio, passando ao lado da senhora que interrompera a entrevista e folheava os jornais espalhados na mesa.

Defronte à National Gallery, June exclamou:

- Dedicada a todos os animais sem dignidade e entre todas as suas horríveis leis!

Porém Jolyon não lhe respondeu. Ele herdara um pouco do equilíbrio do pai e era capaz de encarar as coisas com imparcialidade, mesmo quando estava comovido. Irene tinha razão. A situação de Soames era tão má ou pior que a dela. Quanto à lei, era feita para uma natureza humana que merecia pouca estima E, sentindo que, se continuasse em companhia da filha, acabaria por cometer uma indiscrição de uma espécie ou de outra, expli cou-lhe que precisava de apanhar o comboio de Oxford, e, chamando um cab, deixou-a a contemplar as aguarelas de Turner. depois de prometer pensar na sua sala de exposições.

Mas, em vez disso, pensava em Irene. Dizem que a piedade é vizinha do amor. Nesse caso, ele estava certamente em risco de a amar, porque sentia uma profunda piedade. Pensar que ela iria errar pela Europa, tão solitária e vencida! «Espero que não vá perder a cabeça. É muito capaz de fazer um gesto de desespero.» Realmente, agora que Irene desfizera o precário laço das suas ocupações quotidianas, não podia imaginar como ela conseguiria prosseguir na vida - tão bonita, sem poder esperar nada, magnífica presa para o primeiro que aparecesse! E na sua exasperação entrava mais uma gota de receio e de ciúme. As mulheres fazem estranhas coisas quando se sentem acuadas num beco sem saída. «Queria saber o que Soames vai fazer agora», cogitava ele. «É uma situação ignóbil e idiota. E certamente hão-de dizer que a culpa é dela.»

Preocupadíssimo, com o coração dolorido, apanhou o comboio, perdeu o bilhete e na estação de Oxford tirou o chapéu a uma senhora que ele recordava ter visto em qualquer parte, sem ser capaz de lhe dizer o nome, nem mesmo quando a viu tomar chá no Rainbow.

 

ONDE OS FORSYTE RECEIAM PÔR O PÉ

Fremente ante a derrota das suas esperanças e guardando ainda, de encontro ao coração, o estojo de marroquim verde, Soames revolvia pensamentos tão amargos como a morte. Uma teia de aranha! Caminhando em passo rápido, sem nada ver do luar, cismava na penosa cena que se acabara de passar e na lembrança que guardava do corpo de Irene, rígido sob o seu abraço. E quanto mais reflectia mais certo ficava de que ela tinha um amante - aquelas palavras que dissera, «preferia morrer», seriam ridículas sem isso. Mesmo que nunca o houvesse amado, jamais dissera nada antes do aparecimento de Bosinney. Não, ela estava novamente apaixonada. De contrário, não teria dado aquela melodramática resposta à sua proposta, que, em qualquer circunstância, era razoável. Muito bem! Aquilo simplificava a situação.

«Vou dar certos passos, para saber a quantas ando», cogitou ele. «Amanhã de manhã, antes de qualquer outra coisa,, irei procurar Polteed.»

Mas, apesar de tomar aquela resolução, sabia que iria ter dificuldades consigo próprio. Muitas vezes recorrera aos serviços da agência de Polteed, na rotina da sua profissão - empregara-os recentemente no caso de Dartie, mas nunca supusera que os empregaria para vigiar a sua própria mulher.

Era muito insultuoso para Soames Forsyte!

Dormiu sobre aquele projecto e sobre o seu orgulho ferido - ou antes, passou uma noite de insónia. Só quando fazia a barba se recordou de que ela própria resolvera usar apenas o seu nome de solteira, Heron. Polteed não saberia - pelo menos de começo - de quem ela era mulher, nem o olharia obsequiosamente para lhe rir nas costas. Irene seria apenas a mulher de um dos seus clientes. E aquilo era verdade - não era ele o seu próprio advogado?

Estava literalmente apavorado por não pôr o seu desígnio em execução no primeiro momento, pois receava fraquejar mais tarde se o não fizesse imediatamente. E, pedindo a Warmson, de manhã cedo, uma xícara de café, fugiu de casa antes da hora do pequeno-almoço. Caminhou rapidamente para uma daquelas pequenas ruas do West End onde Polteed e outras firmas congéneres serviam às virtudes das classes abastadas. Até então, sempre convocara Polteed ao seu escritório, no Poultry, mas conhecia-lhe bem o endereço, e chegou lá à hora em que abriam as portas. Na entrada, tão bem mobilada que poderia parecer a de um agiota, foi recebido por uma senhora que deveria ter sido professora.

- Desejo falar com Mr. Claud Polteed. Ele conhece-me... não é preciso dar o meu nome.

Era importantíssimo - uma consideração que primava sobre todas as outras - evitar que toda a gente soubesse que ele, Soames Forsyte, estava reduzido a mandar espiar a mulher.

Mr. Claud Polteed - tão diferente de Mr. Lewis Polteed - era um desses homens de cabelo preto, nariz ligeiramente adunco e olhos castanhos e vivos que podem ser tomados por judeus, mas que na verdade são fenícios. Recebeu Soames numa sala onde os sons eram abafados por tapetes e cortinas espessas, mobilada confidencialmente, sem nenhum sinal de papelada à vista.

Cumprimentando Soames deferentemente, ele girou a chave na fechadura da única porta com certa ostentação.

«Quando um cliente me chama», costumava ele dizer, «toma as precauções que quer. Se vem aqui, convenço-o de que não há risco de indiscrição. Pode dizer em segurança tudo o que quiser, sem ninguém mais...»

- E então, Mr. Forsyte, em que posso ser-lhe útil?

A garganta de Soames cerrara-se tanto que mal podia falar.

Era absolutamente necessário esconder daquele homem que não tinha mais que um interesse profissional no assunto a tratar e, mecanicamente, o seu rosto exibiu um sorriso de viés.

- Vim procurá-lo tão cedo porque não há um minuto a perder. - Se ele perdesse uma hora a mais, seria bem capaz de ainda se prejudicar a si mesmo. - Você dispõe de uma mulher absolutamente segura?

Mr. Polteed abriu uma gaveta fechada à chave, tirou de lá um memorando, percorreu-o com os olhos e fechou-o depois na gaveta.

- Sim - disse ele. - Disponho de uma mulher inteiramente segura.

Soames sentara-se e cruzara as pernas - e só o traía uma ligeira vermelhidão, que aliás poderia parecer a sua cor normal.

- Então mande-a vigiar imediatamente Mrs. Irene Heron,, apartamento C, Truro Mansions, Chelsea. E espere novas instruções.

- Está muito bem - retorquiu Mr. Polteed. - Divórcio, decerto? - E soprou num tubo acústico. - Mrs. Blamcih está? Preciso de lhe falar dentro de dez minutos.

- Cuide você mesmo dos relatórios - recomendou Soames - e envie-os pessoalmente, com a nota «confidencial», lacrados e registados. O meu cliente exige o maior segredo.

Mr. Polteed sorriu, como para dizer: «Está a ensinar o padre-nosso ao vigário, patrão.» Os seus olhos deslizaram sobre Soames e durante um instante pareceram não profissionais.

- Diga-lhe que fique inteiramente despreocupado - respondeu ele. - O senhor fuma?

- Não - disse Soames. - Compreenda-me bem: é possível que não saia nada desse assunto. Se transparecer algum nome, ou se a vigilância for suspeitada, podem advir consequências seriíssimas.

Mr. Polteed inclinou-se.

- Posso transferir o caso para a categoria cifrada. Sob esse sistema, o nome nunca é mencionado: só há referências a números.

Abriu uma gaveta,, tirou duas pequenas fichas, sobre as quais escreveu algumas palavras, depois estendeu uma delas a Soames.

- Guarde isso, Mr. Forsyte. É a sua chave da cifra. O caso será chamado 7X. A pessoa vigiada será 17, quem a vigiará será 19, o domicílio dessa pessoa será 25, o senhor - quero dizer, o seu escritório -, 31, o meu escritório, 32, e eu, em pessoa, 2. No caso de o senhor ter de mencionar por escrito o seu cliente, o seu número será 43, se existe a pessoa que suspeitamos, ela será 47, uma segunda pessoa será 51. O senhor terá outras indicações ou instruções especiais?

- Não - disse Soames.- Bem, é mister ter toda a consideração que for possível.

Novamente Mr. POlteed se inclinou.

- E quanto a despesas? Soames ergueu os ombros.

- O que for razoável - respondeu ele com um tom seco, levantando-se. - Desejo que isso fique inteiramente nas suas mãos!

- Inteiramente - disse Mr. Polteed, aparecendo subitamente entre ele e a porta. - Breve terei de vê-lo a respeito deste assunto. Até à vista, Mr. Forsyte.

E mais uma vez o seu olhar aflorou Soames, sem nada de profissional na sua expressão, e ele abriu a porta.

- Até à vista -disse Soames, sem olhar nem à direita nem

à esquerda.

Uma vez na rua, praguejou profundamente, fortemente, contra si mesmo. Para rasgar uma teia de aranha, era preciso recorrer a esse método insidioso como outra teia de aranha - secreta e imunda, principalmente para quem considerava a sua vida privada a parte mais sagrada da propriedade. E ele voltou ao escritório, pondo em segurança o escrínio de marroquim verde e a chave do código que devia mostrar-lhe claro como água o seu fracasso doméstico.

Era estranho que aquele homem, cuja vida fora inteiramente dedicada a expor aos olhares do público as dobras mais escondidas da propriedade e dos desacordos domésticos dos outros, receasse tão profundamente ver os seus próprios desacordos expostos ao olhar desse mesmo público, mas, na verdade, não era nada estranho, pois poucas pessoas poderiam conhecer tão bem como ele, em todos os pormenores, os impiedosos processos do maquinismo legal.

Trabalhou severamente durante o dia todo.

Winifred deveria aparecer-lhe às quatro horas, para que ele a acompanhasse a uma conferência no Temple, com Dreamer Q. C, e, esperando-a, Soames releu a carta que ele fizera a irmã escrever no dia da partida de Dartie, para lhe pedir que voltasse:

 

                           Meu caro Montague,

Recebi a sua carta ao mesmo tempo que a notícia de que você me havia abandonado para sempre e partira para Buenos Aires. Isso causou-me, naturalmente, uma penosíssima surpresa. Aproveito a primeira oportunidade para lhe escrever a fim de lhe dizer que estou pronta a perdoar o passado, se você consentir em voltar imediatamente. Peço-lhe que o faça. Estou muito perturbada e não posso dizer-lhe mais nada hoje. Mando-lhe esta carta registada para o endereço que você deixou no seu clube. Responda por favor por cabo submarino.

               Sua mulher afectuosa, Winifred Dartie

 

Irra! Que amarga comédia! E Soames revia-se inclinado sobre o ombro de Winifred, enquanto ela copiava o borrão que ele fizera a lápis, e o modo como ela disse, depondo a pena: «E imagine que ele volte, Soames!», numa voz estranha, como se não soubesse o que queria. «Ele não voltará», respondera o irmão, «antes de ter gasto o dinheiro todo. É por isso que é mister agir imediatamente.» Anexa à cópia dessa carta, estava o bilhete de bêbado que Dartie garatujara no Iseeum Club. Soames talvez desejasse que aquilo não fosse tão manifestamente produto de uma bebedeira, pois era exactamente isso o que o tribunal iria acentuar. Parecia-lhe ouvir a voz do juiz a dizer: «A senhora tomou isso a sério? Sério bastante para lhe escrever a carta que escreveu? A senhora pensa que ele estava em si quando escreveu isso?» Mas não importava, o facto estava claro: Dartie partira e não voltara. Estava claro também a sua resposta telegráfica: «Impossível voltar. Dartie.» Soames sacudiu a cabeça. Se tudo não estivesse feito dentro dos próximos meses, o sujeito acabaria por voltar, como uma moeda fallsa que não se conseguiu passar. Livrando-se dele, economizariam pelo menos mil libras por ano. Sem falar de todos os desgostos que ele dava a Winifred e ao pai. «Vou dizer a Dreamer que ande ligeiro», pensou Soames. «Temos de trabalhar rapidamente.»

Winifred, que adoptara uma espécie de meio luto - e que aliás ficava muito bem com os seus cabelos louros e com a sua alta silhueta, chegou no barouche puxado pela parelha de James. Soames nunca mais a vira na City, desde que o pai se retirara dos negócios, cinco anos atrás, e chocou-o o que o carro tinha de incongruente. «Os tempos mudam», pensou ele, «e ninguém sabe o que está para desaparecer!» As próprias cartolas já iam escasseando E pediu notícias do sobrinho. Val, contou Winifred, escrevera a dizer que Ia jogar pólo no próximo trimestre. Julgava que ele estava a frequentar uma roda muito boa. E acrescentou, com uma ansiedade elegantemente disfarçada:

- Haverá muita publicidade a respeito do meu caso, Soames? Será absolutamente necessário que os jornais falem nele? Há-de ser tão aborrecido para ele e para as meninas!

Sentindo-se atingido pela mesma inquietação, Soames respondeu:

- É muito difícil impedir os jornais de darem a notícia. Eles pretendem proteger a moral pública, e o que fazem é corrompê- la com esse vergonhoso noticiário. Mas ainda não chegámos até aí, iremos hoje procurar Dreamer para que ele 'mande uma intimação a Dartie, concitando-o a retomar a vida conjugal. É lógico que ele compreenda que isso conduz ao divórcio, mas você tem de fingir que deseja sinceramente a volta de Dartie - e pode praticar isso hoje.

Winifred suspirou:

- Oh, como Monty foi estúpido!

Soames lançou-lhe um olhar penetrante. Via claramente que ela não podia tomar Dartie a sério e que renunciaria a tudo ao menor pretexto. Mas poupá-la a um pequeno escândalo, agora, poderia resultar apenas num desastre real para a irmã e os filhos, e talvez mesmo a ruína, se Dartie voltasse a depender deles, piorando cada vez mais e gastando o dinheiro que James deixaria para a filha. Embora toda a herança ficasse vinculada, o sujeito saberia descobrir meios de arranjar dinheiro e obrigaria a família a pagar, sob pena de vê-lo desmoralizado, falido, ou até mesmo preso! Saltaram da carruagem lustrosa, de cavalos lustrosos e criados de cartolas lustrosíssimas, na altura do Embankment, e caminharam até ao escritório de Dreamer, Q. C, em Crown Office Rovv.

- Mr. Bellby está aqui, sir - disse o contínuo. - Mr. Dreamer chegará dentro de dez minutos.

Mr. Bellby era o mais novo da firma, mas não tão novo assim pois Soames só se servia de advogados de reputação firmada: e, aliás, era um mistério para ele como é que os advogados conseguiam estabelecer geralmente o conceito de que deveriam ser consultados de preferência a outros. Mr. Bellby estava sentado, dando uma olhadela final nos seus papéis. Acabava de chegar do tribunal e vestia ainda a beca, o seu nariz parecia um cabo de bomba de água, os olhos eram pequenos e de um azul lavado e o lábio inferior fazia uma protuberância estranha - não poderia ser mais bem escolhido como complemento e controlador de Dreamer.

Depois de cumprida a formalidade da apresentação de Winifred, eles deixaram de falar no bom ou no mau tempo e comentaram a guerra. Soames declarou subitamente:

- Se Dreamer não agir já, nós não poderemos iniciar a acção antes de seis meses. E eu não quero que o caso se arraste muito tempo, Bellby.

Mr. Bellby, que tinha um ligeiro sotaque irlandês, sorriu para Winifred e murmurou:

- É a lemtidão da lei, como diz Hamlet, Mrs. Dartie.

- Seis meses! - repetiu Soames. - Mas isso irá até Junho. E o caso só será julgado então depois das férias grandes. Temos de andar depressa, Bellby. (Ser-lhe-ia por de mais difícil manter Winifred no bom caminho durante esse tempo todo.)

- Mr. Dreamer está à sua espera, sir.

Mr. Bellby entrou primeiro, e Soames acompanhou-o, junto com Winifred, depois de um intervalo de um minuto, que ele mediu no relógio.

Dreamer, Q. C, de beca, mas não de peruca, estava encostado à lareira, como se aquela conferência participasse da natureza de uma recepção mundana, tinha a pele lisa como marroquim - talvez um pouco gordurosa -, característica do saber profundo, um nariz considerávell, sobre o qual estava pendurado um pequeno pincenez, e curtas suíças grisalhas, parecia sentir um grande prazer em piscar constantemente o olho e em fazer desaparecer o lábio inferior sob o lábio superior., o que lhe dava um tom abafado às palavras. Tinha também um modo curioso de se dirigir bruscamente às pessoas, como se as houvesse encontrado subitamente no dobrar de uma esquina, e essa sua maneira de falar, junta a um tom de voz desconcertante e ao hábito que tinha de resmungar antes de falar, havia-lhe garantido uma imensa reputação na Câmara de Divórcios. Depois de ouvir, com um olho meio fechado, a recapitulação dos factos que Mr. Bellby lhe fazia, resmungou e disse:

- Sei disso tudo.-E, despegando-se do canto da lareira e encarando Winifred, fez-lhe esta pergunta no seu tom de voz soturno: - Nós queremos que ele volte, não é, Mrs. Dartie?

Soames apressou-se a responder:

- A situação de minha irmã é intolerável. Dreamer resmungou:

- Exactamente. E agora poderemos basear-nos na recusa que ele mandou telegràficamente, ou devemos esperar até ao Natal, para lhe deixar a possibilidade de escrever uma carta... é esse o ponto, não é?

- Quanto mais cedo... - começou Soames.

- Que é que você diz disso, Belby? - perguntou Dreamer, saindo do outro canto.

Mr. Bellby farejou o ar como um perdigueiro.

- O caso não pode começar antes dos meados de Dezembro. Nós temos de dar um prazo maior.

- Não - disse Soames. - Porque há-de minha irmã ser incomodada só porque o marido resolveu...

- Ganhar o mundo! - completou Dreamer, saindo de novo do seu canto. - Perfeitamente. As pessoas não deveriam ganhar o mundo, não é, Mrs. Dartie? - E soergueu a beca atrás de si, como um peru levantando as penas da cauda para fazer roda. - Estou de acordo. Poderemos agir desde já. Há ainda alguma coisa?

- Não no momento - disse Soames em tom significativo. - O meu fim era apresentá-lo à minha irmã.

Dreamer fez ouvir o seu grunhido amável:

- Muito prazer. Até breve! - E deixou cair a cauda da beca. Saíram em fila. Winifred desceu a escada. Soames ficou ainda um instante. A despeito de si mesmo, estava impressionado com Dreamer.

- Creio que a prova está perfeita - disse ele a Bellby. - Entre nós, se não fizermos a coisa rapidamente, ela acabará por não se fazer. Você acha que «ele» compreenderá isto?

- Hei-de fazê-lo compreender. É um bom sujeito, apesar... um bom sujeito.

Soames fez um gesto de assentimento e desceu para junto da irmã. Encontrou-a no corredor mordendo as unhas sob o véu e disse-lhe logo:

- O testemunho da criada será completo.

O rosto de Winifred endureceu e ela endireitou-se enquanto se dirigiam para o carro. E até chegarem a Green Street mantiveram-se em silêncio, cismando incessantemente, tanto um como o outro, nesta mesma coisa: «Porquê, oh, porquê será preciso que eu exponha assim o meu infortúnio ao público? Porque tenho de empregar espiões, para que metam o nariz nos meus assuntos privados? A culpa não foi minha!»

 

JOLLY DELIBERA

O instinto de propriedade, que, tão redondamente frustrado, estava a levar dois membros da família Forsyte a desembaraçarem-se do que eles já não poderiam possuir, crescia cada dia mais no corpo político britânico. Nicholas, originariamente tão dúbio em referência a uma guerra que poderia afectar a propriedade, andava a dizer que aqueles Boers eram uns suínos. Estavam a provocar enormes despesas, e quanto mais depressa recebessem a sua lição, melhor. Se fosse ele, mandaria para lá Wolseley! Vendo um pouco mais longe que os outros - e era por isso o detentor da maior fortuna entre todos os Forsyte -, já compreendera que Buller não era o homem necessário: «É um touro furioso, que só enxerga onde vai marrar, e, se ele não tomar cuidado, Ladysmith cairá.» Isto foi dito em Dezembro, e quando a Semana Negra começou era-lhe permitido dizer a todos: «Eu bem os preveni disso... Durante essa semana de trevas, tal como nenhum Forsyte jamais vira, Nicholas neto teve de fazer tantos exercícios no seu batalhão, o DeviFs Own, que Nicholas filho consultou o médico da família, a respeito da saúde do filho, e alarmou-se ao saber que ele estava perfeitamente são.

O rapaz contentara-se em comer os seus jantares e em fazer visitas à cantina, gastando lá um pouco, e aquilo representava, de certo modo, um pesadelo para os pais: viam-no a brincar com a eficiência militar justamente num tempo em que eficiência militar era exigida até da população civil. O avô, naturalmente, praguejava contra essa concepção, fora educado na crença, aliás geralmente difundida, de que não pode haver guerra nenhuma na Inglaterra que não seja de pequenas proporções e estritamente profissional, e mostrava-se profundamente desgostoso dos empreendimentos imperiais, que só traziam prejuízos, ele, por exemplo, possuía acções da De Beers, que cada dia baixavam mais, e aquilo doía-lhe mais que o sacrifício do neto.

Em Oxford, entretanto, prevaleciam sentimentos inteiramente diversos. A efervescência natural a todas as aglomerações de jovens, aumentando gradualmente nos dois meses que precederam a Semana Negra, cristalizara-se nas mais ardentes oposições. Os adolescentes normais, mesmo na Inglaterra conservadora, embora não tomem as coisas muito a sério, opinavam veementemente por uma luta decisiva que desse cabo definitivamente dos Boers. Val Dartie era, naturalmente, partidário dessa ampla facção. Os jovens radicais, por outro lado - grupo pequeno, porém talvez mais ruidoso-, eram pela paralisação da guerra e concessão de autonomia, aos Boers. Até à Semana Negra, os grupos eram mais ou menos amorfos,. com apenas as arestas agudas, e as discussões não passavam de académicas. Jolly era dos que não se decidiam por nenhum partido. Herdeiro do amor pela justiça que caracterizava o velho Jolyon, seu avô, não conseguia ver apenas um dos lados da questão. E, ao mesmo tempo, no seu grupo da «nata» havia um chefe de opiniões extremamente avançadas e grande magnetismo pessoal. Jolly hesitava. O pai também parecia indeciso nas suas opiniões. E embora, como é próprio dos vinte anos, ele olhasse severamente para o pai, descobrindo defeitos que ainda poderiam ser remediados, achava que Jolyon tinha um certo «ar» que emprestava encanto especial ao seu credo de tolerância irónica. Os artistas, é claro, são notoriamente semelhantes a Hamlet, e em consideração a isso podia-se perdoar muita coisa a um pai. mesmo quando esse pai é profundamente amado. Porém a opinião original de Jolyon de que «meter o nariz onde não é chamado - como o haviam feito os Uitlanders - e depois tomar poses de oráculo não é atitude decente» - quer fosse fundada ou não - tinha uma certa atracção para o filho, que se preocupava bastante com atitudes fidalgas. Por outro lado, entretanto, Jolly não suportava fazer o papel daquilo que o seu próprio grupo chamava excêntrico e que o grupo de Val chamava maricas, de forma que continuava ainda indeciso quando irrompeu a Semana Negra. Uma-duas - três - assim chegaram sucessivamente as ominosas derrotas de Stormberg, Magersfantein, Colenso. A estúrdia alma inglesa, reagindo depois da primeira, exclamara: «Ah, mas Methuen!» Depois da segunda: «Ah, mas Budiler!» E por fim, sombriamente, endurecera. E Jolly dissera a si próprio: «Não, cos diabos! Acabamos por lamber os pés desses maltrapilhos, não quero mais saber se estou certo ou não.» E, como se estivessem combinados, o pai dele andava a pensar da mesma forma. No sábado seguinte, pelo fim do trimestre, Jolly foi convidado para beber um pouco em companhia de um dos da «nata». Depois do segundo brinde, feito com o borgonha do colégio- «Viva Buller e morram os Boers!» -, sem pateada, ele notou que Val Dartie, também convidado, o olhava sardonicamente e dizia qualquer coisa ao vizinho de mesa. Jolly tinha a certeza de que aquele segredo lhe era injurioso. Apesar de ser o rapaz menos capaz neste mundo de se fazer notado e provocar distúrbios em público, Jolly ficou rubro e apertou os lábios. A hostilidade latente que sempre sentira contra o primo foi súbita e fortemente aumentada. «Muito bem», pensou ele. «Espere um pouco, meu caro!» Mais um pouco de vinho do que seria preciso levou-o a tocar o braço de Val e dizer, quando já caminhavam por um local afastado:

- Que foi que você disse ainda agora, a meu respeito?

- Não sou livre de dizer o que quero?

- Não.

- Bem. Pois eu disse que você é um pró-Boer, e na verdade é isso mesmo!

- Você é um mentiroso!

- Está a procurar briga?

- Naturalmente, mas não aqui. No jardim.

- Muito bem. Então venha.

Foram, olhando de viés um para o outro, mostrando-se sem pressa, e, inflexíveis, pularam as grades do jardim. As pontas de ferro rasgaram a manga de Val. e aquilo preocupou-o.

O espírito de Jolly estava preocupado pela ideia de que iam lutar dentro do recinto de um colégio ao qual ambos eram estranhos. Não podiam fazê-lo, mas isso não importava... Aquela besta!

Passaram pelo relvado em plena escuridão e tiraram os casacos.

- Você não está bêbado, pois não? - perguntou de súbito Jolly. - Porque, se estiver, não posso lutar consigo.

- Estou tanto como você.

- Então muito bem.

Sem se apertarem as mãos, puseram-se ambos em posição de defesa. Ambos sabiam que tinham bebido de mais, e, portanto, tomavam um cuidado especial em manter uma atitude correcta, até que Jolly, quase acidentalmente, atingiu Val no nariz. Após isso, a luta transformou-se numa furiosa troca de sopapos, na sombra profunda das velhas árvores, até que, cansados e já um pouco feridos, os dois se apartaram., ao ouvirem uma voz que perguntava: «Como se chamam, moços?»

Ante aquela suave pergunta, vinda de sob a lâmpada do portão do jardim, semelhante à pergunta de um deus, os lutadores acalmaram-se de súbito, apanharam os casacos, pularam a grade e dirigiram-se para o sítio onde tinham começado a discussão.

Ali, na meia luz, limparam a cara, e, sem uma palavra, puseram-se a caminho, a dez passos de distância um do outro, até ao portão do colégio. Caminhavam silenciosos, Val dirigindo-se para Broad, ao longo de Brewery, e Jolly dirigindo-se para High. Com a cabeça mais desanuviada, lamentava-se de não ter lutado com mais arte, passando em revista todos os golpes de knockout que não utilizara. E visionava um imaginário combate, infinitamente dissemelhante daquele que se acabara de passar, infinitamente heróico, com cinto e espada., com confiança e esgrima, tal como apareciam nas páginas do bem-amado Dumas. Ele via-se a si mesmo na posição de La Mole, Aramis, Bussy. Chicot, D'Artagnan, somados todos num só indivíduo, mas absteve-se inteiramente de imaginar Val na pele de Coconnas, Brissac ou Rochefort. O sujeito era apenas o cretino de um primo a querer ser gente. Não importava! Dera-lhe uns dois bons murros. «Pró-Boer!» A palavra ainda o chicoteou e passaram-lhe pela cabeça pensamentos de se alistar. Via-se a cavalgar nas planícies africanas, lutando valentemente,, enquanto os Boers fugiam como coelhos.

E, erguendo os olhos, viu as estrelas que luziam sobre os telhados do High e ele próprio deitado no karoo (1) - ou noutro lugar qualquer -, enrolado num cobertor, com a espingarda pronta e o olhar fixo num céu luzente.

No dia seguinte teve uma ressaca pavorosa, que ele tratou, como faziam os da sua roda de elegantes, mergulhando a cabeça na água fria, fazendo um café tão forte que não pôde beber e bebericando apenas um cálice de vinho do Reno ao almoço. Espalhou o boato de que «um maluco caíra em cima dele, ao dobrar uma esquina», o que explicava a pisadura que apresentava numa das faces. Não desejava de modo algum contar a história da luta, porque, pensando bem, só lhe traria uma glória muito precária.

No outro dia acabaram-se as aulas, e ele dirigiu-se para Robin Hill. Só lá estavam June e Holly. pois o pai fora de viagem para Paris. E ele passou umas férias inquieto, descontente, quase inteiramente afastado das irmãs. Com efeito, June estava preocupada com os seus "desvalidos" e, como habitualmente, Jolly não se entendia com eles, especialmente Eric Cobbley e a família, que enchiam literalmente a casa durante as férias. E entre Holly e ele realizou-se uma estranha separação, como se ela começasse a ter opiniões por si própria, o que era tão desnecessário. Treinava boxe descuidadamente, no punchball, galopava furiosamente, mas sozinho, em Richmond Park, fazendo questão de saltar as sebes que dividiam certas áleas relvadas - educando os nervos, dizia ele. Jolly, mais que a maioria dos rapazes, vivia sob o medo de ter medo. Comprou uma espingarda e pôs-se a montar guarda nos prados em redor de casa:, atirando através do tanque da horta, pondo em perigo a vida dos jardineiros, com o pensamento de talvez um dia se apresentar como voluntário e ir ajudar a salvar a África do Sul para o seu país. E de facto, quando começou a chamada de recrutas para os Yeomanry, o rapaz sentiu-se inteiramente abalado. Deveria alistar-se? Nenhum dos elegantes seus amigos - e ele mantinha correspondência com muitos - pensava nisso. Se eles fizessem o menor movimento, ele teria ido também, imediatamente - pois, muito sensível à emulação e com um forte sentido de grupo,

 

*1. Karoo - grandes planícies arenosas da África do Sul. (N. da T.)

 

não suportava ser deixado atrás por ninguém -, mas fazer aquilo por impulso próprio poderia parecer fanfarronada, porque, naturalmente, não era um gesto realmente necessário. Ademais, não queria ir, porque, jovem Forsyte que era, recuava antes de saltar um obstáculo desconhecido. Havia uma grande mistura de coisas dentro dele, coisas ardentes e confusas, e ele sentia-se muito diferente do seu antigo eu, sereno e fidalgo. Foi então que, certo dia, se lhe deparou uma cena que o encheu de cólera. Dois cavaleiros trotavam pela alameda do parque próximo da Ham Gate: o da esquerda era sem nenhuma dúvida Holly, na sua égua ruço-prateada, o da direita era aquele cretino do Val Dartie. O primeiro impulso de Jolly foi esporear o cavalo, indagar o motivo daquele fenómeno, depois intimar o primo a desaparecer e levar Holly para casa. O segundo impulso foi pensar que ficaria com cara de parvo se eles não lhe obedecessem. Dirigiu o cavalo para debaixo de uma árvore, mas descobriu então que lhe seria igualmente impossível espiá-los. Restava-lhe apenas voltar para casa e esperar a chegada da irmã. A exibir-se na companhia daquele valdevinos! Não pôde aconselhar-se com June, porque ela partira no comboio da manhã, em companhia de Eric Cobbley e do seu bando. E o pai ainda estava naquela "Paris podre". E sentiu solenemente que aquele era um dos momentos para os quais ele se treinava assiduamente no colégio. Em companhia de um outro rapaz, chamado Brent, costumavam atear fogo a jornais e atirá-los a arder no meio da sala de estudo, a fim de se habituarem a manter o sangue-frio em momentos de perigo. Mas não sentia nenhum sangue-frio enquanto esperava a irmã, na cavalariça, fazendo festas distraídas ao cão Balthasar, gordo como um frade velho, e que, triste pela ausência do dono, virava apenas o focinho, em prova de agradecimento à atenção. Passou-se mais de meia hora antes que Holly chegasse, corada e muito mais bonita do que tinha o direito de estar. Viu que ela o olhava de relance - sentindo-se culpada, sem dúvida-, depois seguiu-a e, segurando-lhe o braço, encaminhou-a para o escritório do avô. A sala, pouco utilizada agora, era ainda vagamente povoada, aos olhos deles dois, por uma presença à qual associavam ternura, grandes bigodes caídos, cheiro de charuto e risadas. Ali, Jolly, menino ainda, antes de frequentar qualquer escola, lutava com o avô, que mesmo aos oitenta anos mantinha o invencível hábito de lhe dar rasteiras. Ali, Holly, trepada no braço da poltrona de couro, afastava as madeixas prateadas de um ouvido onde sempre tinha segredos a murmurar. Através daquela sacada, eles três haviam saído vezes sem conta para jogar cricket no relvado ou brincar um jogo misterioso, chamado "Wopsy-Doozile", que não devia ser descoberto pelos mais velhos, porque cansava muito o velho Jolyon. Ali, certa noite de calor, Holly aparecera de camisolão, porque tivera um pesadelo e tinha medo. E, ainda ali, Jolly, tendo começado mal o dia, pois enchera de magnésia o ovo cozido de Mademoiselle Beauce, travara com o avô - na ausência do pai - o seguinte diálogo:

- Não, rapaz, você não devia ter feito isso.

- Mas, avô, ela deu-me um murro no ouvido, então eu esmurrei-a um pouquinho, e então ela bateu-me de novo.

- Você esmurrou uma dama? Isso não se faz! Já pediu perdão?

- Ainda não.

- Então deve pedir imediatamente. Vamos.

- Mas foi ela que começou, avô. E bateu-me duas vezes e eu só uma.

- Meu caro, isso que você fez foi uma vergonha.

- Bem, mas ela ficou danada, e eu não fiquei.

- Vamos.

- Então o avô também vem.

- Bem, mas só esta vez.

E os dois saíram de mãos dadas.

Ali estavam as novelas de Waverly, os livros de Byron, o Roman Empire, de Gibbon, o Cosmos, de Humboult, os bronzes da chaminé, aquela obra-prima da velha escola Barcos de Pesca Holandeses ao Pôr-do-Sol. A única diferença que havia era a ausência do velho Jolyon, de pernas cruzadas, na cadeira de braços, com a sua ampla fronte e os olhos profundos mergulhados no Times. E foi ali que os seus dois netos entraram. E Jolly disse:

- Vi você e aquele indivíduo no parque.

O rubor que subiu às faces da pequena deu-lhe alguma satisfação: ela devia estar envergonhada!

- E daí? - retorquiu Holly.

Jolly estava surpreso, pois esperava muito mais - ou muito menos.

- Você sabe - disse pausadamente - que ele me chamou pró-Boer no trimestre passado? E tivemos uma briga.

- Quem venceu?

Jolly quis responder: «Creio que fui eu», mas aquilo pareceu-lhe abaixo da sua dignidade. E insistiu:

- Escute - disse. - Que é que isso significa? E sem dizer nada a ninguém!

- Porque tenho obrigação de dizer? O papá não está aqui. Porque não posso passear a cavalo com ele?

- Você pode passear comigo. Na minha opinião, ele é um indivíduo sórdido.

Holly ficou pálida de cólera.

- Não é. É culpa sua, se não gosta dele.

E, deslizando por trás do irmão, saiu da sala, deixando-o a contemplar abstractamente um bronze representando uma Vénus montada numa tartaruga, e que até então ficara escondida dele, atrás da cabeça morena da irmã, coberta pelo chapéu de feltro de amazona. Jolly sentiu-se profundamente perturbado, abalado nos seus alicerces juvenis. Um domínio que fora seu, durante toda a vida, ali estava, despedaçado aos seus pés. Caminhou até à Vénus e mecanicamente examinou a tartaruga. Porque não gostava ele de Val Dartie? Não poderia dizê-lo. Ignorante da história da família, precariamente informado sobre aquele drama que a agitara treze anos atrás, quando Bosinney abandonara June por amor da mulher de Soames, sem saber realmente quase nada a respeito de Val, ele sentia-se completamente alheio a tudo. Apenas não gostava dele. E a questão agora era esta: que devia fazer? Val Dartie, com efeito, era seu segundo primo, mas isso não era desculpa para Holly andar a passear em companhia dele. E, ao mesmo tempo, falar numa coisa que ele vira por acaso, era contra o seu credo. Nesse dilema, sentou-se na velha cadeira de couro e cruzou as pernas. Começava a escurecer, e ele permanecia ali sentado, olhando, através da sacada, o velho carvalho ainda carregado de folhas e transformando-se lentamente num vulto de escuridão mais profunda, desenhado na escuridão mais suave da noite.

«Avô!», pensou ele, sem muito nexo, segurando o seu relógio. Não podia ver os ponteiros, mas escutava o ruído da máquina. Era o primeiro relógio de ouro que o avô possuíra, polido pelo tempo, com mossas provocadas por muitas quedas. O seu som era como uma vozinha vinda daquela tranquila Idade de Ouro, quando a família chegara de Saint John's Wood, em Londres, para aquela casa. Tinham vindo com o avô, na carruagem dele, e quase instantaneamente correram para as árvores. Árvores para trepar, olhando o avô, lá em baixo, a regar os canteiros de gerânios! Que deveria fazer? Escrever ao pai dizendo-lhe que tinha de voltar para casa? Aconselhar-se com June? Mas June era tão - tão inesperada! Não fazer nada e confiar na sorte? Afinal de contas, em breve estariam terminadas as férias. Sair, procurar Val e intimá-lo a desaparecer? Mas onde encontrá-lo? Holly nunca lhe daria o endereço do primo! Um labirinto de caminhos, uma nuvem de possibilidades! Acendeu um cigarro. Quando já tinha fumado metade, o cenho franzido desanuviou-se, quase como se uma mão velha e magra o tivesse acariciado suavemente. E pareceu-lhe, ao mesmo tempo, que ouvia segredarem-lhe ao ouvido: «Não faça nada. Seja bonzinho com Holly, seja bonzinho com sua irmã, meu velho!» E Jolly fez um sinal de assentimento satisfeito, soprando o fumo através das narinas.

Porém lá em cima, no seu quarto, tendo despido o fato de amazona, Holly ainda estava de testa franzida.

«Ele não é assim, não é assim!», eram as palavras que tomavam forma nos seus lábios.

 

JOLYON INDECISO

O pouso de Jolyon em Paris era num pequeno hotel particular, situado mo andar superior de um restaurante junto da Gare Saint-Lazare.

Odiava encontrar os seus correligionários Forsyte a viajarem pelo estrangeiro e a correrem desamparados, como peixes fora de água, na Ópera, na Rue Rivoli e no Moullin Rouge. Aborrecia-o aquele ar que eles exibiam, indicativo de que haviam viajado apenas para verem, o mais rapidamente possível, «qualquer coisa de diferente». Porém nenhum outro Forsyte vinha para perto do seu esconderijo, onde ele tinha um bom fogo no quarto de dormir e onde o café era excelente. Paris sempre lhe parecera mais atraente no Inverno. O aroma acre da lenha de castanheiro que ardia nas lareiras, a vivacidade dos raios brilhantes do sol de Inverno, os cafés abertos, desafiando o ar gelado, as diligentes e compactas multidões que enchiam os boulevards, tudo lhe demonstrava que, no Inverno, Paris possuía uma alma que, como uma ave de arribação, emigrava quando o Verão aparecia.

Ele falava bem o francês, tinha vários amigos, conhecia certos pequenos restaurantes onde se pode comer bons petiscos e observar tipos curiosos. Sentia-se filósofo em Paris, com o fio da ironia aguçado, a vida aparecia-lhe com um subtil e involuntário significado, oferecia-se como um feixe de diversos sabores a provar - era como um tiro disparado na escuridão, desprendendo faíscas fulgurantes.

Quando, na primeira semana de Dezembro, decidira ir a Paris, estava longe de admitir que era a presença de Irene lá que o influenciava. Mas ainda não passara lá dois dias, e já se sentia certo de que o desejo de a ver contribuíra em mais de metade para aquela resolução. Na Inglaterra, não se gosta de admitir o que é natural. Ele pensara, antes, que seria bom falar com ela a respeito do aluguel do apartamento e outros assuntos, mas, logo ao chegar a Paris, compreendeu melhor os seus desejos. Havia um encanto particular na cidade. No terceiro dia escreveu a Irene, recebendo uma resposta que lhe proporcionou um agradável arrepio nos nervos:

 

           Meu caro Jolyon,

Será para mim uma felicidade vê-lo.

               Irene.

 

Dirigiu-se para o hotel dela, num dia luminoso, com a sensação igual à que já experimentara tantas vezes quando ia visitar alguma pintura particularmente querida. Nenhuma mulher, por mais longinquamente que o recordasse, lhe inspirara aquela sensualidade especial e ainda impessoal. Ele ia visitá-la para se sentar lá e dar prazer aos seus olhos, e voltar talvez sem a conhecer melhor, porém disposto a tornar no dia seguinte e novamente dar prazer aos olhos. E era esse o seu sentimento quando ela lhe veio ao encontro, na desbotada e enfeitada salinha de um silencioso hotel da margem do rio, precedia-a um rapazinho, que fazia as vezes de criado e que, pronunciando um discreto «madame», desapareceu. O rosto dela, o sorriso, a postura, eram exactamente as que ele sonhara, e a expressão daquele rosto dizia claramente: «Um amigo!»

- Então - perguntou ele-, quais são as novidades, pobre exilada?

- Nenhuma.

- Nada de Soames?

- Nada.

- Aluguei o seu apartamento, e, como bom servidor, trago-lhe algum dinheiro. Gosta de Paris?

Enquanto lhe fazia esse interrogatório, parecia a Jolyon que jamais vira lábios tão delicados e sensíveis - o lábio de baixo curvando-se um pouquinho, o lábio superior terminando no canto por uma minúscula covinha.

Era o mesmo que estar a descobrir uma mulher naquilo que até agora fora para ele uma estátua animada e meiga, quase impessoalmente admirada. Ela reconhecia que viver só em Paris era um pouco difícil e, embora Paris fosse cheia de vida própria, muitas vezes lhe parecia inócua como um deserto. Além disso, os ingleses não eram muito estimados lá, naquele momento.

- Isso dificilmente será o seu caso - retorquiu Jolyon. --Você deve atrair muito os franceses.

- O que tem as suas desvantagens. Jolyon concordou.

- Então consinta que, enquanto eu estiver em Paris, tome conta de si. Vamos começar isso amanhã. Venha jantar comigo no meu restaurante predilecto, e depois iremos à Ópera Cómica.

E aquilo foi o prelúdio de encontros diários.

Jolyon depressa descobriu que, para todos aqueles que desejam uma situação estática para as suas afeições, Paris é ao mesmo tempo o primeiro e o último lugar onde se pode conviver amigavelmente com uma mulher. E uma descoberta esvoaçava-lhe dentro do coração, como um pássaro brilhante: Elle est ton rêve! Elle est ton rêve! Às vezes parecia-lhe natural, às vezes ridículo, um triste caso de paixão num homem maduro. Graças ao facto de já ter sido uma vez votado ao ostracismo pela sociedade, deixara de ter qualquer consideração pela moralidade convencional, mas a ideia de um amor que ela nunca poderia retribuir - e como o poderia, na idade em que ele estava?, - ia-se apossando do seu subconsciente. Sentia tambem um grande dó pelo vazio e isolamento da vida de Irene. Consciente de representar um conforto para ela e do prazer que, por várias maneiras, ela claramente manifestava na sua companhia, sentia-se afectuosamente disposto a nada fazer nem dizer que pudesse destruir essa satisfação.

Vê-la beber de camaradagem consigo era um espectáculo idêntico a ver uma planta estiolada banhar-se de chuva. Tanto quanto eles podiam saber, ninguém mais conhecia o endereço dela. a não ser ele próprio, era desconhecida em Paris, e a ele mal o conheciam, de forma que lhes parecia desnecessário manterem discrição nos passeios, palestras, concertos, visitas a galerias de pintura, teatros, jantares íntimos, expedições a Versalles, Saint-Cloud, e mesmo Fontainebleau. E o tempo voava - um daqueles meses sem lembranças de passado nem perspectivas de futuro. O que na juventude dele seria uma paixão imprudente era agora um sentimento, talvez profundo, mas mais amável, mais temperado, no seu companheirismo protector, por admiração, desesperança e cavalheirismo, sentimento que se mantinha paralisado nas suas veias enquanto ela estivesse ali, sorridente e feliz junto à sua amizade, e cada dia, aos olhos dele, mais linda e mais rica de afinidades espirituais consigo próprio: a filosofia da vida de Irene parecia-lhe caminhar admiravelmente bem ao lado da sua, condicionada mais pela emoção que pela razão, ironicamente desconfiada, sensível à beleza, quase apaixonadamente humana e tolerante, embora submetida a uma disciplina instintiva, da qual, como simples homem, ele se sentia menos capaz.

E durante todo aquele mês de camaradagem nunca perdeu inteiramente aquele sentimento que o possuíra no primeiro dia, de que visitava uma obra de arte querida pela qual sentia um desejo quase impessoal. O futuro - inexorável émulo do presente-, procurava não o olhar de frente, com receio de perturbar aquela placidez, porém, fez planos de renovar a temporada em lugares ainda mais agradáveis, onde o sol fosse quente e onde houvesse coisas estranhas para ver e pintar. Mas o fim chegou subitamente, no dia 20 de Janeiro, trazido por um telegrama:

 

Alistei-me no Imperial Yeomanry.

     Jolly

 

Jolyon recebeu-o quando estava a preparar-se para acompanhar Irene ao Louvre. E aquilo fez-lhe dar uma reviravolta repentina. Enquanto estava a vagabundear em Paris, o filho - cujo mentor e cujo guia o pai tinha obrigação de ser - dera esse grande passo para o perigo, o sofrimento, talvez mesmo a morte. Sentiu-se perturbado até ao íntimo da alma, compreendendo subitamente que Irene já atingira as raízes mais profundas do seu ser. E, ameaçado assim de ruptura, o laço que os prendia - porque indiscutivelmente já se formara entre eles uma espécie de laço - mostrava que não tinha mais nada de impessoal. O prazer tranquilo de contemplarem juntos as coisas - Jolyon compreendia-o - desaparecera para sempre. E ele via o seu sentimento tal como realmente o era - uma paixão. Ridículo, talvez, mas tão real que cedo ou tarde se revelaria sozinho. E agora, parecia-lhe, não podia, não devia revelar nada.

O telegrama de Jolly interpunha-se inexoravelmente no seu caminho. Sentia orgulho pelo alistamento do filho, orgulho pelo seu rapaz que partia para longe, a fim de lutar pela pátria, porque até no «pró-boerismo» de Jolyon a Semana Negra deixara as suas marcas. E assim o fim do seu romance chegava antes do começo! Bem, felizmente ele nada dera a perceber.

Quando chegou à galeria, ela estava em pé junto à Virgem das Rochas, graciosa, absorta, sorridente e inconsciente. «Terei de deixar de ver isto?», pensava Jolyon. «É antinatural, uma vez que ela deseja que eu continue a procurá-la.» Parou, despercebido, olhando-a., fartando-se da contemplação dela, invejando o quadro que tanto a absorvia. Duas vezes Irene voltou a cabeça para a entrada, e ele pensou: «Isto é por mim». Por fim, caminhou até ela.

- Olhe! - disse Jolyon.

Irene leu o telegrama e ele ouviu-a suspirar.

Aquele suspiro também era para ele! A sua posição era realmente cruel! Para ser leal ao filho, tinha de abandoná-la e partir. Para ser leal ao desejo do seu coração, deveria finalmente dizer-lhe os seus sentimentos. Poderia ela, quereria ela compreender o Silêncio com que ele olhava fixamente o quadro em frente deles?

- Creio que tenho de voltar imediatamente para casa - disse ele por fim. - E vou sentir tremendas saudades disto tudo.

- Eu também. Mas, naturalmente, você deve ir.

- Pois é! - disse Jolyon, estendendo-lhe a mão.

E, ao encontrar os olhos dela, uma onda de ternura quase o dominou completamente.

- Assim é a vida! - disse ele. - Tenha cuidado consigo, minha amiga!

Tinha a impressão de que os pés e as pernas o chumbavam ao chão e o cérebro recusava-se a levá-lo para longe dela. Junto à porta, viu-a erguer a mão e tocar os dedos nos lábios. Jolyon ergueu solenemente o chapéu, e não olhou mais para trás.

 

DARTIE VERSUS DARTIE

O processo «Dartie versus Dartie», para a reintegração do domicílio conjugal - sobre o qual Winifred, intimamente se sentia tão profundamente indecisa -, seguia as leis da subtracção em direcção ao dia do julgamento. Esse dia não chegou antes que o tribunal suspendesse os trabalhos pelo Natal, mas era o terceiro caso da lista no dia da reabertura da Corte de Divórcios. Winifred passou as suas férias de Natal um pouco mais elegantemente que de costume, com aquele segredo fechado no seu peito magro. James foi particularmente liberal para ela naquele Natal, exprimindo desse modo a sua solidariedade e o seu alívio ante a próxima dissolução do casamento da filha com aquele "refinado velhaco" - alívio que o seu velho coração sentia, mas que os seus velhos lábios não ousavam proclamar.

O desaparecimento de Dartie diminuiu muito a importância da queda dos Consolidados, e, quanto ao escândalo, a animosidade real que ele sentia contra o malandro do genro e a crescente primazia que o sentimento de propriedade ia adquirindo sobre a reputação na alma de um legítimo Forsyte já prestes a deixar este mundo serviram para anestesiar o espírito do velho, de quem todas as alusões ao assunto - excepto as dele próprio - eram cuidadosamente afastadas. O que o assustava, como advogado e como pai, era o medo de que Dartie subitamente resolvesse voltar, em obediência à intimação do tribunal. Seria uma bela complicação! E na verdade o medo consumia-o tanto que, ao presentear Winifred com um grande cheque, pelo Natal, ele disse: «Isto é principalmente para aquele sujeito que se foi embora, para o manter afastado daqui.» Era uma pena, realmente, deitar fora tanto dinheiro, mas representava uma espécie de seguro contra aquela ameaça de falência que em breve já não penderia sobre a sua cabeça, se realmente o divórcio se fizesse. E depois inquiriu minuciosamente de Winifred até que ela lhe garantisse que mandara o dinheiro. Pobre mulher! Custara-lhe muito mandar o dinheiro directamente para a bolsa «daquela sujeita». Soames, ouvindo isso, abanou a cabeça. Eles não estavam a tratar com um Forsyte razoavelmente tenaz nos seus propósitos. Aquilo era muito arriscado, já que não sabiam bem como andavam as coisas por lá. E, ademais, era preciso ter muito cuidado com o tribunal. E ia saber o que Dreamer estava a fazer.

- Eu queria saber - disse ele subitamente - para onde vai aquele bailei depois da temporada na Argentina.

Nunca perdia uma oportunidade para uma advertência. Porque ele sabia que Winifred ainda tinha uma fraqueza, se não por Dartie, pelo menos para não expor as misérias dele em público. Embora não achasse bom mostrar-lhe admiração, admitia que ela estava a proceder extremamente bem, com todos os filhos em casa suspirando por notícias do pai: Imogen já em idade de ser apresentada na sociedade e Val muito inquieto a propósito de tudo.

Ele sentia que Val era a verdadeira preocupação de Winifred a esse respeito, pois, indiscutivelmente, ela preferia-o a todos os outros filhos. O rapaz poderia provocar a paralisação do processo, se o resolvesse fazer. De forma que Soames tomava todo o cuidado em afastar dos ouvidos do sobrinho quaisquer referências aos preliminares do caso, que já estavam a realizar-se. Fez mais: convidou Val a ir jantar com ele no Remove, e, depois de ver o rapaz acender um charuto, introduziu o assunto que, sabia-o, lhe tocava tão de perto o coração.

- Ouvi dizer que você pretende jogar pólo em Oxford.

Val rectificou um pouco a sua posição reclinada na cadeira.

- Exactamente! - disse ele.

- Bem - continuou Soames. - É uma coisa muito dispendiosa. Seu avô não consentirá nisso se não lhe garantirem que não o sangrarão também por outro lado.

E fez uma pausa, para ver se o rapaz compreendia o que ele queria dizer.

Os espessos cílios escuros de Val escondiam-lhe os olhos, mas uma ligeira careta contraiu-lhe a boca larga e ele murmurou:

- Creio que o senhor está a referir-se ao papá!

- Sim - retorquiu Soames. - Receio que o seu projecto dependa da alternativa de seu pai continuar a ser ou não uma fonte de despesas para a família.

Mas Val também andava a sonhar, por esses dias, com um palafrém ruço-prateado e com a pequena que o montava. Embora Crum estivesse em Londres e uma apresentação a Cynthia Drake dependesse apenas de um pedido seu, Val não fez esse pedido.

Na verdade, ele evitava Crum e vivia uma vida estranha até para si próprio, excepto no que se referia a assuntos com o alfaiate e com cavalos de aluguel. Para a mãe, para as irmãs, para o irmão mais novo, Val estava a empregar aquelas férias em «visitar colegas» e as suas noites a dormir em casa. Não lhe podiam propor nada durante o dia que ele não respondesse: «Sinto muito, combinei ver um amigo.» E despendia um cuidado extraordinário em sair e entrar despercebido em casa, quando estava em trajos de montar. Até que, sendo admitido como membro do Goats Club, levou a montaria para lá, onde podia trocar de roupa sem que ninguém o visse e deslizar no seu cavalo de aluguel para Richrnond Park. Tratava religiosamente, mesmo consigo próprio, o seu novo sentimento. Não deu uma palavra a respeito dele aos «colegas», que aliás não tentava sequer encontrar - e que considerariam o facto muito ridículo, tão avançados eram os seus credos. Mas não podia impedir que o amor lhe destruísse todos os outros apetites, interpondo-se entre ele e os legítimos prazeres da juventude, de tal modo que - o próprio Val o sabia - estava a tornar-se um maricas aos olhos de Crum. Tudo em que ele cuidava era vestir-se pelos últimos figurinos de equitação e escapulir-se para o portão de Robin Hill, onde deveria chegar a égua ruça, montada modestamente pela sua amazona de cabelos escuros, e na suave queda das folhas enquanto os dois cavalgavam lado a lado, falando pouco, apostando corridas às vezes, e às vezes segurando-lhe as mãos. Mais de uma vez, aos serões, em momentos de expansão, ele se sentira tentado a falar à mãe naquela priminha arisca e meiga, contar-lhe quanto ela já se apoderara dele e lhe enchera a vida. Porém uma amarga experiência ensinava-lhe que gente de mais de trinta e cinco anos é pouco compreensiva. E, afinal, Val pensava que teria de voltar ao colégio e ela teria de «aparecer em sociedade» antes que pudessem casar. Para quê então complicar as coisas enquanto a pudesse ver? Irmãs são entes importunos e antipáticos, um irmão ainda é pior, de forma que não havia ninguém a quem fazer confidências. Ah! Aquele horroroso processo de divórcio! Que infelicidade ter um nome que outras pessoas não usavam! Se ao menos ele se chamasse Gordon, ou Scott, ou Howard, como toda a gente! Mas Dartie - não havia outro no colégio roteiro. Mais lhe valeria chamar-se Morkin, pelo apoio que lhe trazia! E as coisas iam assim, até que um dia, nos meados de janeiro, o palafrém ruço-prateado e a sua amazona não apareceram no ponto de encontro. Hesitante, no ar frio, Val discutia consigo se deveria ou não ir até à casa. Jolly poderia estar lá, e ainda conservava fresca na memória a lembrança do encontro de ambos na escuridão do jardim. E ele não podia viver a lutar com o irmão dela! De forma que voltou tristemente para a cidade e passou a tarde mergulhado em negra melancolia. No dia seguinte, ao pequeno-almoço, notou que a mãe usava um vestido diferente e estava de chapéu na cabeça. O vestido era preto, com vivos de azul-pavão, o chapéu preto e grande - ela estava excepcionalmente bonita. Porém, quando, depois do pequeno-almoço, a mãe lhe disse: «Venha cá, Val», dirigindo-se para a sala de estar, ele sentiu-se possuído de um desfalecimento. Winifred fechou cuidadosamente a porta e passou o lenço sobre os lábios. Aspirando o perfume de violetas de Paraná que o lenço desprendia, Val perguntava intimamente: «Será que ela soube alguma coisa a respeito de Holly?» A voz da mãe interrompeu-lhe o pensamento:

- Você quer ser amável comigo, meu filho? - Val sorriu dubiamente. - Quer acompanhar-me agora de manhã...

- Tenho de ir ver... - começou Val.

Mas qualquer coisa que viu no rosto dela fê-lo interromper-se. - Quero dizer... - prosseguiu ele - a mamã não se refere...

- Sim, tenho de ir ao tribunal agora de manhã.

Já! Aquele diabólico caso, que ele já quase conseguira esquecer desde que ninguém o mencionava! Com dó de si mesmo, ficou de pé, apertando entre os dedos pequenos pedaços da pele do rosto. Mas, percebendo então que os lábios da mãe estavam contorcidos, disse impulsivamente:

- Pois não, mamã. Vou consigo. Brutos!

Quais eram os brutos, ele não sabia, mas a expressão traduzia exactamente o sentimento de ambos e trouxe-lhes uma certa serenidade.

- Creio que é melhor eu mudar de roupa - murmurou ele, fugindo para o quarto.

Pôs um colarinho alto, um alfinete de gravata, um shooter e as suas polainas cinzentas mais novas, numa combinação meio herética. Olhando para si mesmo no espelho, disse: «Bem, quero ir para o Inferno, se deixar perceber alguma coisa!» E saiu. Encontrou na porta de saída a carruagem do avô, e dentro dela a mãe, envolta em peles, com o aspecto de quem ia a uma recepção na Mansion House (1). Sentaram-se ao lado um do outro, no barouche fechado, e durante todo o caminho para o tribunal Val apenas fez uma alusão ao processo.

- Eles não vão falar na história das pérolas, pois não?

O pequeno regalo branco de peles de Winifred pôs-se a tremer.

- Oh, não - disse ela. - Hoje tudo será muito simples. A sua avó quis vir comigo, mas eu não quis. Julguei que o meu filho poderia cuidar de mim. Você está tão bonito. Val. Empurre apenas o colarinho um pouco mais para trás... está bem.

- Se eles a ameaçarem...

- Oh, não o farão. Pretendo mostrar-me muito calma. É o único meio.

- Não irão chamar-me para testemunhar, ou qualquer coisa parecida?

- Não, meu querido. Já está tudo arranjado.

 

*1. Palácio do Lord Mayor de Londres. (N. da T.)

 

E ela acariciou-lhe a mão. A determinação que se lia na fronte de Winifred fez parar o tumulto que lavrava no peito de Val, e ele entreteve-se em tirar e calçar as luvas. Via agora que trouxera exactamente o par que não combinava com as polainas, deveriam ser cinzentas, mas eram de uma camurça pardo-escura. Não podia decidir se as tiraria ou não. Chegaram bastante antes das dez horas. Era a primeira vez que ele ia à Law Courts, e o edifício impressionou-o.

- Cristo!-exclamou quando atravessavam o hall. - Dava para quatro ou cinco bons campos de ténis!

Soames já os esperava ao pé da escada.

- Cá estão vocês! - disse ele, sem lhes apertar as mãos, como se o acontecimento os houvesse tornado íntimos de mais para tais formalidades. - É na Happerly Browne Court I Seremos os primeiros.

Uma sensação idêntica à que experimentava quando ia mergulhar num banho gelado feriu o peito de Val, mas acompanhou fielmente a mãe e o tio, como alguém a quem nada mais poderia valer e achando que o tribunal cheirava a mofo. A gente que andava lá parecia viver a espiar os outros, e ele segurou Soames pela manga:

- Escute, tio, o senhor não vai deixar os miseráveis desses jornais comentarem o caso, vai?

Soames trespassou-o com um daqueles seus olhares de viés que já haviam feito calar tanta gente.

- Aqui - disse ele - você não precisa de tirar as suas peles, Winifred.

Val entrou atrás dele, irritado e de cabeça erguida. Naquele desgraçado buraco, toda a gente - e havia muita gente - parecia estar sentada nos joelhos uns dos outros, embora estivessem separados pelos bancos. E Val teve a impressão de que iam escorregar todos para o vazio no centro do anfiteatro. Isso, entretanto, não foi mais que uma visão momentânea - a que se associavam os móveis de mogno, togas pretas, as brancas perucas em cachos e caras, e papelada - tudo secreto e surrado - antes que ele se sentasse ao lado da mãe na primeira fila, voltando as costas para toda a gente, consolando-se em aspirar o cheiro de violetas de Parma e decidindo-se afinal a tirar as luvas. A mãe olhava-o, e teve a súbita consciência de que ela desejara realmente tê-lo ao seu lado e que ele pesava de algum modo no caso. Pois bem! Iria mostrar àquela gente! Erguendo os ombros, cruzou as pernas e fitou inescrutàvehnente as polainas. Mas nesse mesmo instante um velhote de beca e grande peruca, vergonhosamente parecido com uma velha cómica enfeitada, passou por uma porta, junto à fileira de bancos defronte, obrigando-o a descruzar rapidamente as pernas e a pôr-se de pé como toda a gente. «Dartie versus Dartie!»

Foi inexprimivelmente desagradável para Val ver o seu nome apregoado daquela forma em público. E, consciente de súbito de que alguém perto dele, bem atrás, estava a falar da sua família, volveu o rosto e viu um velho palhaço de grande peruca, que falava como se estivesse a mastigar as palavras - velhote esquisito, que ele já vira uma vez ou duas a jantar em Park Lane e a entornar o vinho do Porto, compreendia agora que estavam a «amansá-lo» então em casa do avô. Ao mesmo tempo, achava o velho palhaço quase fascinante, e teria continuado assim, a fitá-lo, se a mãe não lhe tocasse no braço. Reduzido a olhar em frente de si, fixou o olhar na cara do juiz. Porquê aquele outro velhote, de boca sarcástica e olhos activos, gozava do poder de se imiscuir nos assuntos privados dos outros? Não teria ele próprio os seus assuntos, iguais aos de todos, e provavelmente iguais aos mais sórdidos? E aquilo agitou em Val, como uma dor, o profundo individualismo que ele trazia de nascença na massa do sangue. A voz por trás dele continuava a zumbir:

- Divergências sobre assuntos financeiros. Extravagâncias do acusado. - Que palavra! Seria o seu pai o acusado? - Situação tensa... frequentes ausências da parte de Mr. Dartie. A minha cliente, com toda a razão... Vossa Graça há-de concordar comigo, sentia-se ansiosa por pôr fim a uma situação que apenas poderia levá-la à ruína, advertia-o contra o jogo de cartas e as apostas em cavalos de corridas. - «Está bem», pensava Val, «carreguem!» - A crise dos começos de Outubro, quando o acusado escreveu esta carta, datada do seu clube... Val sentiu as orelhas a arder.

- Proponho que se leia isso, assinalando as emendas e rasuras naturais a uma epístola escrita por um gentleman que, com a permissão de Vossa Graça, estava... a jantar...

«Besta velho!», pensou Val, corando profundamente. «Não estão a pagar-lhe para dizer pilhérias!»

- Agora já você não poderá voltar a insultar-me em minha própria casa. Partirei amanhã da Inglaterra. Ele emprega aqui uma expressão, meritíssimo juiz, bem frequente na boca de todos aqueles que não tiveram êxitos apreciáveis.

«Coruja ridícula!», pensou Val. E o seu rubor acentuou-se.

- Estou cansado dos seus insultos. A minha cliente informará Vossa Graça de que esses alegados insultos consistiram apenas na expressão «você não vale nada», uma expressão suave, arrisco-me a dizer, dadas as circunstâncias.

Val olhou de viés para o rosto impassível da mãe - havia um ar de pânico nos seus olhos. «Pobre mamã», pensou ele. E tocou com o seu o braço de Winifred. A voz atrás deles continuava a zumbir.

- Vou iniciar uma vida nova. M. D. E no dia seguinte, meritíssimo juiz, o acusado embarcou no navio Tuscarora, com destino a Buenos Aires. Desde então, não recebemos nenhuma notícia dele, a não ser uma negativa, pelo cabo submarino, em resposta à carta que a minha cliente lhe escreveu no dia seguinte, consumida de desgosto, pedindo-lhe que voltasse para casa. Com permissão de Vossa Graça, chamarei Mrs. Dartie ao banco das testemunhas.

Quando a mãe se levantou, Val teve um tremendo ímpeto de erguer-se também e dizer: «Olhem! Quero preveni-los de que farão muito bem em tratá-la decentemente.» Mas dominou-se, e, ao ouvi-la dizer «A verdade, toda a verdade, nada mais que a verdade», ergueu os olhos. Ela fazia uma bonita figura com as suas peles e o grande chapéu, um leve rubor nas faces, calma, lacónica, e sentiu-se orgulhoso por vê-la enfrentar assim «aqueles desgraçados rábulas». O inquérito começou. Sabendo que aqueles eram apenas os preliminares do divórcio, Val acompanhava com certa satisfação o questionário organizado de modo a dar a entender que ela apenas queria a volta do marido. Parecia-lhe que era uma forma «de enganar inteligentemente as velhas perucas».

E teve um choque muitíssimo desagradável quando o juiz disse de súbito:

- E agora, porque foi que o seu marido a abandonou? Não foi porque a senhora lhe disse que «ele não valia nada»?

Val viu o olhar do tio brilhar em direcção ao banco das testemunhas, sem que o rosto dele se movesse, ouviu um agitar de papéis atrás de si, e o instinto disse-lhe que a saída estava em perigo. Seria que o tio Soames e o palhaço velho de trás teriam feito alguma embrulhada com aquilo? A mãe estava a falar com um ligeiro tremor.

- Não, senhor juiz, tudo já estava mal há muito tempo.

- Que é que andava mal?

- As nossas divergências a respeito de dinheiro.

- Mas a senhora dava-lhe dinheiro. E pretende que ele a abandonou para melhorar de posição?

«Que bruto! Velho bruto, bruto, bruto!», pensou Val de súbito. «Parece um rato a farejar... a querer atirar-se a um queijo...» E o seu coração parou de súbito. Se... se o juiz dizia aquilo, então, na verdade, sabia muito bem que a mãe não queria que o pai voltasse. A mãe falou num tom um pouco mais mundano:

- Não, senhor juiz, mas eu recusei-me a dar-lhe mais dinheiro. Ele levou bastante tempo a acreditar nisso, mas acreditou por fim, e quando acreditou...

- Eu sei, a senhora recusou.. Mas a senhora mandou-lhe algum dinheiro, depois.

- Senhor juiz, eu queria que ele voltasse.

- E a senhora pensava que isso o traria de volta?

- Não sei, senhor juiz. Agi assim por conselho de meu pai. Algo que Val notou no rosto do juiz, no som de papéis por

trás dele, no súbito cruzar das pernas do tio, mostrou-lhe que ela dera a resposta adequada.

((Muito hábil!», pensou ele. «Mas, meu Deus, quanto fingimento!»

O juiz falava agora:

- Apenas uma pergunta mais, Mrs. Dartie: a senhora ainda estima o seu marido?

As mãos de Val, que pendiam junto ao corpo, cerraram os punhos. Que necessidade tinha aquele juiz de levar as coisas para aquele plano humano? Fazer a mãe falar a respeito do seu próprio coração, dizer talvez o que nem ela própria sabia, diante de toda aquela gente! Não era decente. E Winifred respondeu em voz baixa:

- Sim, senhor juiz.

Val viu o juiz baixar a cabeça. «Ah, se eu pudesse dar-lhe um tabefe no crânio!», pensou irreverentemente o rapaz, enquanto a mãe se erguia e voltava a sentar-se ao seu lado. Seguiram-se os testemunhos da partida e ausência permanente do pai - e o que foi prestado por uma das próprias criadas de sua casa chocou Val como particularmente repulsivo. Houve mais palavrório, mais mentiras, e então o juiz pronunciou a intimação, mandando que o acusado reintegrasse o lar. E todos partiram. Val caminhava atrás da mãe, com o queixo cerrado, os cílios baixos, nivelando a todos no mesmo desprezo. A voz da mãe, no corredor, tirou-o de um espasmo de cólera:

- Você portou-se muito bem, querido. Foi uma grande consolação para mim tê-lo ali. Seu tio e eu vamos almoçar.

- Muito bem - disse Val. - Ainda tenho tempo de apanhar aquele meu colega.

E, separando-se abruptamente deles, correu para as escadas e para o ar livre. Atirou-se a um carro e mandou que se dirigisse para o Goats Club. Só cuidava em ver Holly e no que deveria fazer antes que o irmão dela lhe mostrasse aquilo tudo nos jornais do dia seguinte.

Quando Val os deixou, Winifred e Soames encaminharam-se para o Cheshdre Cheese. Ele combinara aquele local de encontro com Mr. Bellby. Àquela hora matinal, disporiam de lugares quase só para eles, Winifred julgara que seria interessante conhecer a famosa casa de pasto. Depois de pedirem uma refeição ligeira, para consternação do criado, esperaram juntos a chegada de Mr. Bellby - em silenciosa reacção depois da meia hora de suplício nas garras da publicidade. Mr. Bellby entrou, precedido pelo seu nariz, tão jovial quanto eles estavam sombrios. Então! Tinham obtido o mandato de reintegração de domicílio, e isso já era muito!

- Realmente - disse Soames em voz baixa, como convinha. - Mas temos agora de preparar nova espécie de provas. Porque haverá decerto processo de divórcio, e o caso parecerá suspeito à Corte se se descobrir que, desde o começo, já estávamos informados do adultério dele. As perguntas do juiz mostraram claramente que ele não estava a aceitar bem essa tentativa de reintegração de domicílio.

- Ora - disse jovialmente Mr. Bellby -, ele esquece isso tudo. Pense que um juiz desses tem de tratar de uma centena de casos entre uma audiência e outra. Além disso, já tem obrigado os precedentes de divórcio anteriores, concedidos quando as provas são satisfatórias. Basta que não o deixemos saber que Mrs. Dartie tem conhecimento dos factos. Dreamer resolverá isso muito bem. - Soames assentiu com um gesto.-Quero cumprimentá-la, Mrs. Dartie - continuou Mr. Bellby. - A senhora tem um dom natural para depor. Forte como um rochedo.

Chegou então o criado com três pratos numa só mão, observando:

- Mandei apressar as empadas, sir. Hoje o recheio é de codornizes.

Mr. Bellby aplaudiu essa previsão com um fungar do nariz, mas Soames e Winifred olhavam com desconfiança para o prato e tocavam cautelosamente com a ponta do garfo a massa escura da empada, na esperança de distinguirem os corpos das codornizes. No entanto, depois de começarem, ambos sentiram que tinham mais fome do que supunham e comeram o prato todo, com um copo de Porto cada um. A palestra girou sobre a guerra. Soames achava que Ladysmith cairia mesmo que fosse preciso esperar um ano para isso. Bellby achava que tudo estaria terminado pelo Verão. Ambos concordaram em que era preciso mandar mais homens. Isso garantiria a vitória completa, já que se tratava agora de uma questão de prestígio. Winifred trouxe a conversa para um terreno mais sólido, declarando que não queria que o processo de divórcio se prolongasse até depois do início das férias de Verão em Oxford. Assim, os rapazes já teriam esquecido de todo o caso quando Val voltasse para o colégio. Os advogados afirmaram-lhe que era indispensável um intervalo de seis meses, depois disso, quanto mais depressa, melhor. O restaurante começava a encher-se, e os três partiram, Soames para a City, Bellby para o seu escritório, Winifred apanhou um cab e encaminhou-se para Park Lane, a fim de contar à mãe o que se passara. Tudo afinal decorrera tão bem, tomado em conjunto, que se combinou contar a James, pois o velho não cessava de repetir, dia após dia, a propósito do caso de Winifred, que «ele não sabia, não poderia dizer...»

Recebeu as notícias de má vontade. Era uma maneira nova que tinham agora de tratar as coisas, e ele não sabia, não poderia dizer! Porém deu um cheque a Winifred, acrescentando:

- Acho que você deve ter tido uma porção de despesas. Está com um chapéu novo. Porque é que Val não vem visitar-nos?

Winifred prometeu trazê-lo qualquer dia para jantar. Ao chegar a casa, subiu para o quarto de dormir, onde poderia estar só. E agora, que tinham intimado o seu marido a reintegrar o lar, com o fito exclusivo de a afastar dele para sempre, tentou descobrir mais uma vez, no seu coração triste e solitário, o que era que realmente queria.

 

O DESAFIO

Amanhã estava nevoenta, com tendência para nevar, mas o sol apareceu quando Val trotava em direcção a Rochampton Gate, donde se pôs a galopar até ao habitual ponto do encontro. O seu estado de espírito melhorava rapidamente. Afinal, não houvera nada de tão terrível na cerimónia da manhã, além da desagradável violação da vida privada. «Se nós fôssemos noivos», pensava ele, «nada do que acontecesse teria importância.» E sentia-se, com efeito, igual a todo o resto da sociedade humana, que lamenta os maus resultados do casamento, e entretanto diligencia por se casar. E galopou por entre a relva seca pelo Inverno de Richmond Park, com medo de estar atrasado. Porém encontrou-se sozinho no ponto combinado, e essa segunda defecção da parte de Holly abalou-o terrivelmente. Hoje, especialmente hoje, não poderia voltar sem a ter visto! E, saindo do parque, continuou a andar em direcção a Robin Hill. Não podia resolver definitivamente por quem perguntaria quando chegasse lá. Imagine-se que o pai houvesse voltado ou que a irmã ou o irmão estivessem lá! Decidiu-se a arriscar e perguntar primeiro por todos, caso tivesse sorte e não houvesse ninguém, seria muito natural perguntar então por Holly, se estivesse alguém, salvar-se-ia alegando que a visita «fora um pretexto para um passeio a cavalo».

- Só Miss Holly está em casa, sir.

- Oh, obrigado. Posso levar o meu cavalo para a cavalariça? E faça o favor de anunciar a Miss Holly o primo dela... Mr. Val Dartie.

Quando voltou, ela estava no hall, muito corada e medrosa. Conduziu-o até ao fundo da sala e sentaram-se junto a uma sacada.

- Fiquei terrivelmente inquieto - disse Val em voz baixa. - Que sucedeu?

- Jolly já sabe dos nossos passeios a cavalo.

- Ele está em casa?

- Não. Mas espero-o de um momento para o outro.

- Então! - exclamou Val. E, inclinando-se, tomou-lhe a mão. Ela tentou recuar, mas não o conseguiu, desistiu da tentativa, e ficou a olhar o primo intensamente. - Primeiro que tudo - continuou ele -, quero contar-lhe Uma coisa a respeito da minha família. Meu pai, você sabe, não está... Isto é, ele deixou minha mãe, e estão a tentar divorciar-se. Hoje fizeram a intimação para ele reintegrar o lar. Amanhã isso sai nos jornais. - Os olhos de Holly escureceram, tomados de assustado interesse, a mão dela apertou a dele. Porém o jogador que havia em Val dominou-o de novo, e ele prosseguiu rapidamente: - Naturalmente, isso não quer dizer nada, até agora, mas creio que vai piorar muito. Um processo de divórcio é uma coisa horrorosa:, você sabe. E eu fiz questão de lhe contar porque... porque... você deveria saber se... - E pôs-se a gaguejar, fixando os olhos muito abertos da moça. - Se você for um anjo e gostar de mim, Holly, eu adoro-a e queria que ficássemos noivos. - Ele dissera tudo de modo tão atabalhoado que lhe dava vontade de esmurrar a própria cabeça, e, escorregando de joelhos, procurou aproximar-se mais do rosto meigo e perturbado dela. - Você gosta de mim, não gosta? Se você não gostar, eu...-Houve um momento de silêncio e de suspensão, tão assustador que ele podia ouvir o som de uma tosquiadora que pretendia cortar a relva inexistente do campo de ténis. Ela inclinou-se então para a frente, a sua mão livre tocou os cabelos dele e o rapaz arquejou: - Oh, Holly!

Ele sonhara com aquele momento, mas sempre de um modo imperativo, imaginando-se o jovem amante e senhor. E agora sentia-se humilde, comovido, trémulo. Receava erguer-se e quebrar o encanto, com medo de que se deixasse de estar ali, ajoelhado, ela se recobrasse e negasse a sua própria rendição - tão trémula também estava ela no seu abraço, com os cílios baixos e os lábios próximo dos seus. Os olhos da moça abriram-se e pareciam um pouco húmidos, Val comprimiu os lábios nos dela. E de súbito ergueu-se, ouvira passos, uma espécie de gemido abafado. Olhou em torno. Ninguém! Porém as longas cortinas que dividiam o hall ainda estavam a oscilar.

- Deus do Céu! Quem será? Holly também estava de pé.

- Creio que é Jolly - murmurou ela. Val cerrou os punhos e decidiu:

- Muito bem! Já não me importo com coisa alguma, uma vez que estamos noivos!

E correu largamente as cortinas. Junto à lareira do hall, estava Jolly, propositadamente virado de costas. Val avançou: Jolly voltou-se e encarou-o.

- Peço-lhe perdão por ter ouvido - disse ele.

Mesmo com as melhores intenções do mundo, Val não poderia deixar de o admirar naquele momento. Tinha o rosto impassível. a voz límpida, e parecia estranhamente fidalgo, agindo de acordo com os seus princípios.

- Está bem - disse Val abruptamente. - Não tem de que pedir desculpas.

- Oh! - exclamou Jolly. - Venha por aqui, por favor.

E atravessou o hall, seguido pelo primo. Na porta do escritório, sentiu que lhe tocavam o braço e a voz de Holly disse:

- Eu também vou.

- Não - disse Jolly.

- Sim - insistiu Holly.

Jolly abriu a porta e todos entraram. Dentro da pequena sala, colocaram-se em triângulo, nos cantos do espesso tapete turco, profundamente perturbados, sem olharem uns para os outros, realmente incapazes de descobrir qualquer coisa de cómico na situação.

Val quebrou o silêncio:

- Holly e eu estamos noivos.

Jolly deu uns passos para trás e encostou-se à janela.

- Estamos em nossa casa - disse ele -, e não posso insultá-lo aqui. Porém meu pai está em Paris. Tenho de cuidar de minha irmã. Você aproveitou-se disso.

- Não vejo as coisas assim - retorquiu Val, irritado.

- É como eu as vejo - continuou Jolly. - Senão, porque não me falou ou não esperou pela volta de meu pai?

- Tive motivos para isso.

- Que motivos?

- Razões de família. Acabei de contar a Holly. Quis que ela soubesse de tudo antes que as coisas acontecessem.

De súbito, Jolly tornou-se menos distinto.

- Vocês são uns garotos - disse ele. - Você sabe bem disso.

- Não sou um garoto - protestou Vál.

- É... Você ainda não fez vinte anos.

- E que idade tem você?

- Eu já fiz vinte anos - disse Jolly.

- Acabou de os completar. E, de qualquer modo, sou tão homem como você.

O rosto de Jolly tornou-se carmesim, depois ficou sombrio. Evidentemente estava a processar-se uma luta qualquer dentro dele, e Val e Holly esperavam de pé, defrontando-o, tão claramente aquela luta se acusava. Podiam até ouvi-lo respirar. Depois o rosto do rapaz desanuviou-se, e ele mostrou-se estranhamente resoluto.

- Vamos ver isso. Desafio você a fazer o que eu farei.

- Desafia? Jolly sorriu.

- Sim, desafio-o. E sei muito bem que não o fará.

Uma punhalada de dúvida atravessou Val, aquilo era galopar no escuro.

- Não me esqueci de que você é um mata-mouros - disse Jolly lentamente-, e na verdade penso que você não passa disso. E você chamou-me «pró-Boer». - Val ouviu um arfar além do som do seu próprio fôlego e viu o rosto de Holly inclinado um pouco para a frente, muito pálido, com os olhos muito abertos. - Sim - continuou Jolly, com uma espécie de sorriso -, breve o veremos. Vou alistar-me no corpo dos Imperial Yeomanry, e desafio-o a fazer o mesmo, Mr. Val Dartie.

A cabeça de Val recuou. Fora como se recebesse uma pancada entre os olhos, tão inesperado era aquilo, tão excessivo e apavorante no meio do seu enlevo amoroso, e olhou para Holly com os olhos subitamente arregalados, comoventemente confuso.

- Sente-se! - disse Jolly. - Tem tempo para pensar! Pense bem no que vai fazer.

E ele próprio sentou-se no braço da cadeira do avô.

Val não se sentou, ficando em pé, com as mãos enterradas nos bolsos, os punhos cerrados e trémulos. Os terríveis aspectos de ambas as decisões entre as quais era obrigado a escolher feriam-lhe o espírito, como um boxeur enfurecido que o golpeasse pelos dois lados. Se não aceitasse o «desafio», ficaria perdido aos olhos de Holly e aos olhos do seu jovem inimigo - aquele bruto do irmão. Se o aceitasse, então tudo se desvaneceria - o rosto dela, os olhos, os cabelos, os seus beijos que mal tinham começado!

- Não se apresse - disse de novo Jolly. - Não quero ser desleal.

E ambos olharam para Holly. Ela encostara-se às estantes que iam até ao tecto, e a sua cabeça morena repousava contra o Roman Empire, de Gibbon, enquanto os olhos, numa espécie de suave agonia, estavam fixos em Val.

E ele, que não tinha nenhum pendor para a introspecção, teve de súbito uma visão que o cegou: ela ficaria orgulhosa do irmão - o seu inimigo-e ficaria envergonhada por ele, Val! As mãos saíram-lhe dos bolsos, como movidas por uma mola.

- Muito bem! - disse. - Aceito!

O rosto de Holly - oh, era estranho! Ele viu-a corar, inclinar-se para a frente. Acertara, pois. O rosto dela iluminara-se de ansiosa admiração. Jolly pôs-se de pé e inclinou-se de leve, como quem quer dizer: «Está combinado.»

- Amanhã então - disse. - Iremos juntos. Recobrando-se do impulso que o levara àquela decisão, Val

olhou-o maliciosamente por sob os cílios. «Muito bem», pensou ele, «você ganhou esta. Mas a próxima será minha.» E disse com dignidade:

- Estarei pronto.

- Encontrar-nos-emos amanhã, na Repartição de Recrutamento - disse Jolly -, às doze horas.

E, abrindo a porta, encaminhou-se para o terraço, de acordo com o seu credo de cavalheirismo que o fizera retirar-se quando os surpreendera no hall.

Era extrema a confusão de Val ao ver-se só com aquela por quem subitamente pagara tão alto preço. Porém ainda predominava nele a disposição: «Para que vissem como ele era! Deve-se receber as piores coisas com um sorriso!»

- Lá teremos boas cavalgadas e bons exercícios de tiro - disse ele. - De qualquer modo, sempre é uma consolação. - E sentiu uma espécie de amargo prazer ao ouvir o suspiro que parecia provir do fundo do peito de Holly. - Oh, a guerra depressa estará acabada - continuou ele. - Talvez até nem tenhamos de embarcar para lá. Não me importo com coisa alguma, senão com você.

O que ele queria era ver-se livre do horror daquele divórcio. Era uma coisa péssima! Sentiu a mão meio quente dela deslizar na sua. Jolly pensaria que tinha posto algum obstáculo ao amor deles, hem? Apertou-a fortemente contra o peito, olhando-a docemente através dos cílios semicerrados, sorrindo para animá-la, prometendo voltar logo para vê-la, sentindo-se cerca de dez centímetros mais alto e muito mais senhor dela do que nunca o fora. Beijou-a muitas vezes antes de montar a cavalo e voltar para a cidade. E assim, agudamente, ante a menor provocação, o instinto de propriedade floresce e aumenta.

 

JANTAR EM CASA DE JAMES

JÁ não havia jantares de cerimónia em casa de James, em qualquer família chega sempre uma época em que o patrão e a patroa «já não estão mais para isso». Já não se serviam nove pratos seguidos a vinte bocas, nem o gato da casa teria mais de indagar, surpreso, por que razão era subitamente enxotado.

De forma que foi com certa excitação que Emily - pois, apesar dos seus setenta anos, ainda apreciava festas e elegâncias - deu ordens para um jantar de seis talheres em vez de apenas dois, escreveu ela própria uma porção de palavras estrangeiras nos menus e arranjou as flores- mimosas da Riviera e brancos jacintos romanos que não vinham de Roma. É verdade que os convivas seriam apenas James e ela, Soames, Winifred, Val e Imogen - mas Emily sentia prazer em renovar, pelo menos em imaginação, as glórias do passado.

E vestiu um trajo decotado, o que fez James observar:

- Para que vestiu isso? Vai constipar-se.

Mas Emily sabia que o colo das mulheres é resguardado pelo prazer de brilhar, até mesmo aos oitenta anos, e respondeu apenas:

- Deixe-me pôr-lhe um desses peitilhos de camisa que eu lhe dei, James, depois, basta apenas que mude as calças e vista o seu casaco de veludo. Val gosta de o ver bem vestido.

- Peitilho de camisa! - exclamou James. - Você vive a gastar dinheiro à toa.

Porém, suportou que lhe mudassem tudo e murmurou vagamente:

- Tenho medo de que ele dê um sujeito extravagante. Com uma luz mais brilhante nos olhos e um pouco mais de

cor nas faces que de costume, dirigiu-se para a sua cadeira na sala de estar, a fim de esperar o toque da campainha na porta da rua.

- Organizei um jantar de cerimónia - disse Emily, satisfeita. - Achei que seria uma boa oportunidade para Imogen se habituar à sociedade, já que ela vai debutar em breve.

James emitiu um som indefinível, pensando em Imogen quando ela costumava trepar-lhe nos joelhos ou rebentar bombas na sua companhia.

- Ela vai ficar bonita... - disse. - Não me admiro...

- Ela é bonita - acrescentou Emily. - E há-de fazer um bom casamento.

- Lá está você.... - murmurou James. - É muito melhor que fique em casa e cuide da mãe. Se um segundo Dartie lhe levasse a sua linda neta, aquilo acabaria com ele! Nunca perdoara a Emily por se ter deixado levar por Montague Dartie, como ele próprio também se deixara. - Onde está Warmson? - perguntou de súbito o velho. - Quero beber um copo de Madeira hoje à noite.

- Vamos ter champanhe, James. James abanou a cabeça.

- Não. Champanhe não me fará bem nenhum.

Emily inclinou-se na sua cadeira próximo do fogo e tocou a campainha.

- O seu patrão quer que traga uma garrafa de Madeira aberta, Warmson.

- Não, não! - exclamou James, com a ponta das orelhas tremendo veementemente e os olhos fixos num objectivo visto apenas por ele. - Escute, Warmson: vá à adega de baixo, e no meio da última prateleira, à esquerda, você achará sete garrafas. Tire a do meio, mas não a agite. É a última garrafa de Madeira que recebi de Mr. Jolyon quando viemos para cá... e nunca ninguém mexeu nela.

Deve estar ainda em excelentes condições. Porém não sei, não posso dizer...

- Está bem, sir - respondeu Warmson, retirando-se.

- Estava a guardar esse vinho para as nossas bodas de ouro

- disse James de súbito. - Mas não viverei mais três anos, na idade em que estou.

- Tolices, James--disse Emily. - Não fale assim.

- Eu mesmo é que devia ter ido buscar - murmurou James. - Ele vai agitar a garrafa, como se fosse um vinho qualquer.

E caiu em silenciosa rememoração dos longos momentos

- junto aos bicos de gás acesos, às teias de aranha, ao cheiro de vinhos armazenados - passados por ele na adega, momentos que lhe serviam de aperitivo para muitas festas. No vinho daquela adega estava escrita a história dos quarenta anos que tinham decorrido desde que ele viera para Park Lane com a sua jovem noiva e das várias gerações de amigos e conhecidos que já haviam passado para o desconhecido desde então, as suas prateleiras, hoje desfalcadas, guardavam a história das festividades de família - todos os casamentos, nascimentos e mortes de parentes e amigos, E quando ele, James, já também houver partido, a adega ficará, sem que ele saiba o que será feito dela. Se a beberem toda ou a estragarem, não será ele quem se admire!

A entrada do filho arrancou-o dessa cisma profunda, e logo depois chegaram Winifred e os dois filhos mais velhos.

Foram para a sala de jantar de braços dados, James com Imogen - a debutante -, porque a companhia da linda neta alegrava-o, Soames com Winifred, Emily com Val, cujos olhos luziram ao ver o prato de ostras. Seria uma excelente despedida, com champanhe e vinho do Porto! Sentia-se realmente carecido disso, depois do que fizera durante o dia, e que ainda não fora divulgado. Após os primeiros copos, pareceu-lhe agradável ter aquela dinamite escondida dentro da manga - aquela peça sensacional de patriotismo -, ou antes, aquele exemplo de desafio pessoal, porque o seu prazer naquilo que fizera pela pátria e pela rainha tinha, aos seus olhos, um significado inteiramente pessoal. Porque Val não se sentia um homem de caserna, indissoluvelmente ligado a armamentos e a cavalos, tinha direito a sentir-se vaidoso, mas não, naturalmente, do que estava a fazer. Iria anunciar o facto sobriamente, quando houvesse uma pausa na conversa. E, espiando o menu, resolveu que quando chegassem às bombes aux fraises seria o melhor momento. Haveria uma certa solenidade, enquanto estivessem a comer aquilo. Uma ou duas vezes, antes que atingissem esse róseo clímax do jantar, ocorreu a Val que nunca contavam nada ao avô. E, além disso, o velho estava a beber Madeira com um ar tão contente! Mas, por outro lado, talvez lhe agradasse aquela compensação à desagradável notoriedade do divórcio. A vista do tio, do lado oposto da mesa, também era um estímulo forte. Ele estava tão longe de compreender certas coisas de sportsman que seria um prazer ver-lhe a cara na altura da comunicação. E, mais ainda, seria melhor participar o facto à mãe daquela maneira pública do que intimamente, pois então correria o perigo de se comover. Ele sentia muito quando pensava nela, mas, afinal, não é de esperar que alguém sinta muito as tristezas alheias quando tem de enfrentar a separação de Holly.

A voz do avô chegou dèbilmente até ele.

- Val, prove um pouco do Madeira com o doce. Você não pode ter isso no colégio.

Val olhou o leve líquido que lhe enchia o copo, que mostrava o óleo característico dos velhos vinhos a boiar-lhe à superfície, e aspirou-lhe o aroma, pensando: «Agora!» Era um momento excelente. Bebeu, e um suave calor correu-lhe nas veias, já aquecidas. Com um rápido olhar em torno, disse:

- Alistei-me hoje nos Imperial Yeomanry, avô. - E esvaziou o copo, como se bebesse uma saúde ao seu próprio acto.

- O quê? - foi a débil pergunta da mãe.

- Jolly Forsyte e eu alistámo-nos juntos.

- Você já assinou?

- Assinei! Vamos para o campo na segunda-feira.

- Eu sabia! - gritou Imogen.

Todos olharam para James. Ele inclinava-se para a frente, com a mão em torno da orelha.

- O quê? - perguntou ele. - Que está ele a dizer? Não posso ouvir.

Emily estendeu o braço para atingir a mão de Val.

- Estamos apenas a dizer que Val se alistou nos Yeomanry, James. Esplêndido para ele. Vai ficar muito bonito fardado.

- Alistou-se no... Que idiotice! - exclamou trèmulamente James. - Você não vê dois palmos adiante do nariz! Ele... ele vai ter de sair da Inglaterra! Vai ter de ir para a guerra antes mesmo de saber o que está a fazer!

Val viu os olhos de Imogen, que o adimiravam, e sua mãe, tranquila e elegante, com o lenço cobrindo os lábios. De súbito o tio disse:

- Você ainda não tem idade bastante.

- Pensei nisso - sorriu Val. - Declarei vinte e um anos de idade.

Ouviu a avó dizer, em tom admirativo:

- Pois, Val, foi heróico isso que você fez.

Estava cônscio da deferência com que Warmson lhe enchia a taça de champanhe. E da voz do avô, resmungando:

- Não sei mesmo o que há-de acontecer se vocês continuam assim.

Imogen fazia-lhe festas no ombro, o tio olhava-o de lado. Só a mãe se mantinha sentada, imóvel, até que, impressionado pela calma dela, Val disse:

- Vocês sabem que tudo vai indo muito bem, depressa liquidaremos aquilo. Só desejo é chegar lá ainda a tempo de fazer qualquer coisa.

Sentia-se ensoberbecido, triste, e, ao mesmo tempo, tremendamente importante. Aquilo ensinaria ao tio Soames e a todos os Forsyte como é que se é sportsman. Fizera decerto algo de heróico e excepcional declarando que tinha vinte e um anos de idade.

A voz de Emily trouxe-o de volta à terra:

- Você não deve tomar mais outro copo, James. Warmson!

- Vão ficar assombrados em casa de Timothy! - exclamou Imogen. -Eu dava muito para ver a cara deles! Você vai usar espada, Val, ou apenas uma espingarda?

- Quem lhe meteu isso na cabeça?

A voz do tio produziu um leve choque na boca do estômago de Val. «Quem lhe metera na cabeça?» Como responder àquilo? E sentiu-se grato pelo socorro que a avó lhe trouxera.

- Pois eu acho muito bonito isso que Val fez. Tenho a certeza de que vai dar um soldado esplêndido, tem exactamente o tipo próprio. Vamos ficar orgulhosos dele.

- Que é que tem o moço Jolly Forsyte com isso? Porque é que vocês foram juntos? - prosseguiu Soames, misteriosamente implacável. - Supunha que vocês dois não eram muito amigos.

- Não somos - rosnou Val -, mas eu é que não iria deixar-me bater por ele. - Viu que o tio o olhava de modo inteiramente diverso, como se o aprovasse. O avô também balançava a cabeça, concordando, e a avó fazia o mesmo. Todos o aprovavam por não se deixar bater pelo primo. Devia haver uma razão para isso! Val estava obscuramente consciente de qualquer elemento perturbador colocado fora do seu campo de visão, uma coisa semelhante ao centro ainda não localizado de um ciclone. E, fixando o rosto do tio, teve a visão realmente inexplicável de uma mulher de olhos pretos, cabelos louros e colo branco, que cheirava bem. usava lindas meias de seda, de quem ele gostava muito quando era pequenino. Por Deus, sim! Era a tia Irene! Ela gostava de o beijar, e ele um dia mordera-lhe o braço, de brincadeira, porque lhe agradava tanto - tão macio. O avô estava a falar.

- Que é que o pai dele anda a fazer?

- Está fora, em Paris - respondeu Val, fixando a expressão, realmente estranha, do rosto do tio, igual à de um cão que rosna.

- Artistas! - comentou James. E aquela palavra, que vinha do mais profundo da alma do velho, pôs termo ao jantar.

Defronte à mãe, no cab em que voltavam para casa, Val provou os outros frutos do heroísmo, que tinham gosto de nêsperas maduras de mais.

Na verdade, ela apenas disse que ele devia ir ao alfaiate, a fim de ter uma farda bem feita, e não se entrouxar na que lhe forneceriam no regimento. Mas Val pôde ver muito bem que ela estava profundamente abalada. Veio-lhe aos lábios uma consolação: dizer à mãe que pelo menos assim ele estaria afastado daquele estúpido divórcio. Mas a presença de Imogen e a consciência de que ela, Winifred, não ficaria afastada do estúpido divórcio, fizeram-no calar-se. Sentiu-se magoado por já não a ver orgulhosa do filho.

Quando Imogen foi para a cama, ele arriscou uma nota emocional:

- Sinto horrivelmente ter de deixá-la, mamã.

- Bem,, vou tentar suportar isso o melhor que puder. Nós devemos fazer que lhe dêem uma comissão o mais depressa possível. Comissionado, as coisas não serão tão duras para si. Não conhece nenhum dos oficiais, Val?

- Nenhum.

- Espero que eles não o atormentem muito. Vou sair com você amanhã, para arranjar as coisas. Boa noite. Dê-me um beijo.

Com aquele beijo, macio e tépido, entre os olhos, e aquelas palavras «Espero que eles não o atormentem muito», Val sentou-se e acendeu um cigarro em frente do fogo moribundo. Estava com a cabeça fora do lugar - excitado pela figura que fizera. E tudo aquilo escondia um pesar amaldiçoado. «Estarei sempre com aquele sujeito, o Jolly», pensava ele, subindo lentamente a escada e passando defronte do quarto onde a mãe mordia o travesseiro para amortecer os soluços desolados que a agitavam.

E mais um dos convivas do jantar de James estava desperto: Soames, no seu quarto de dormir sobre o quarto do pai. «Então Jolyon estava em Paris - a fazer o quê? Rondando em torno de Irene!» O último relatório de Polteed anunciava algo de novo para breve. Seria isso? Aquele sujeito, com a sua barba, a sua odiosa maneira de falar, filho do velho que o apelidara de «Proprietário» e comprara para ele a sua casa fatal. Soames sempre lamentara ter vendido a casa de Robim Hill e nunca perdoara ao tio por tê-la comprado e ao primo por morar mela.

Indiferente ao frio, levantou a janela e olhou através do parque. A noite de Janeiro estava gelada e escura, o som do tráfego era pequeno, caía geada, as árvores estavam nuas e via-se apenas uma ou duas estrelas.

«Vou ver Polteed amanhã», pensou Soames. «Cos diabos! Acho que estou louco por ainda a querer. Aquele sujeito! Se... Hum! Não!»

 

A MORTE DO CÃO BALTHASAR

Jolyon, que cruzara o estreito durante a noite, chegou a Robin Hill no domingo pela manhã. Não avisara ninguém, de forma que se dirigiu a pé da estação para casa, entrando nos seus domínios pelo portão do bosque. Ao chegar ao banco arranjado no velho tronco caído, sentou-se, cobrindo primeiro o toro com o sobretudo. «Lumbago!», pensou. «É assim que acaba o amor na minha idade!» E de súbito Irene pareceu-lhe muito próxima, exactamente como estivera naquele dia do passeio a Fontainebleau, quando eles se sentaram num tronco para comerem o almoço. Intensamente próxima! Chegava-lhe às narinas o perfume das folhas caídas, que brilhavam ao sol pálido. «Felizmente, não estamos na Primavera», cismou Jolyon. «Com o cheiro dos pinheiros, o canto dos pássaros, o rebentar das flores, isto seria insuportável! Espero que quando chegar a Primavera já tudo isto esteja acabado, velho maluco que sou!» E, apanhando o casaco, tornou ao seu caminho através dos campos. Passou pelo lago e subiu lentamente a encosta. Já ao chegar a cima, um ladrido rouco saudou-o. E em pé, no relvado que ficava depois da fernery, avistou o seu velho cão Balthasar. O animal, cujos olhos embaciados tomavam o dono por um estranho, dava o alarme contra ele. Jolyon soltou o seu assobio especial. E mesmo àquela distância de mais de cem metros, pôde ver o alvoroço que agitava o obeso corpo malhado de castanho e branco ao reconhecê-lo. O velho cão sacudia as ancas, e a sua cauda, enrolada sobre o dorso, iniciou um débil e excitado balanço. Avançou bamboleando-se, ergueu-se num impulso e desapareceu na entrada da fernery. Jolyon esperava encontrá-lo na cancela, mas Balthasar não estava ali, e, alarmado, ele entrou na fernery. Deitado de lado, olhando para cima, com os olhos já vidrados, jazia o velho cão.

- Que é isso, meu velho? - gritou Jolyon.

A cauda enrolada e peluda de Balthasar ainda se agitou e os seus Olhos embaciados pareciam dizer: «Não posso levantar-me, meu dono, mas tenho muito prazer em vê-lo de volta.»

Jolyon ajoelhou-se. Os seus olhos, obscurecidos, dificilmente podiam ver a respiração que deixava aos poucos de agitar o ventre do animal. Ergueu lentamente a cabeça imóvel e pesadíssima.

- Que é isso, velho amigo? Que foi que lhe deu?

A cauda ainda se agitou uma vez, os olhos perderam o último brilho de vida. Jolyon passou as mãos pelo vulto inerme e tépido. Não fora nada - o coração deixara apenas de bater, naquele corpo obeso, ante a emoção da volta do dono.

E Jolyon sentiu o focinho do cão, semeado de alguns pêlos brancos, tornar-se frio de encontro aos seus lábios. Ficou alguns minutos de joelhos, com a mão sob a cabeça, pesada. O corpo pesava também muito, quando ele o levou até ao alto da encosta, o chão estava juncado de folhas mortas, e Jolyon fez com elas uma cobertura para o cadáver do amigo. Não soprava nenhum vento, e as folhas protegê-lo-iam de olhos curiosos até à tarde. «Quero eu próprio enterrá-lo», pensou Jolyon. Já se haviam passado dezoito anos depois que ele chegara um dia à casa de St. John's Wood, com o minúsculo cachorrinho no bolso. Era estranho que o velho cão morresse exactamente agora! Seria um presságio? No portão, voltou-se para olhar o vulto coberto de folhas, depois caminhou lentamente em direcção da casa, com um grande peso no peito.

June estava lá. Viera a correr, ao saber da notícia do alistamento de Jolly. O patriotismo do irmão vencera as simpatias dela pelos Boers. A atmosfera da casa era estranha e agitada quando Jolyon entrou e contou que o velho Balthasar morrera. E a notícia teve o efeito de os solidarizar a todos. Rompera-se um elo com o passado - o velho Balthasar! Dois dos presentes não podiam lembrar-se de nada antes dele, para June, o cão representava os últimos dias do avô, para Jolyon, a vida cheia de dificuldades domésticas e lutas estéticas, antes da sua entrada no reinado do amor e da fortuna do pai! E agora desaparecera!

À tarde, ele e Jolly apanharam pás e enxadas e caminharam para o campo, escolheram um lugar próximo àquele onde já estava o corpo, com o seu lençol de folhas secas, para não serem obrigados a levá-lo para mais longe, e começaram a cavar. Cavaram em silêncio durante dez minutos, e então descansaram.

- Bem, meu velho - disse jolyon. - Você acha que era sua obrigação fazer o que fez?

- Sim - respondeu Jolly. - Naturalmente que não o desejava por mim.

Como aquelas palavras representavam exactamente o próprio estado de espírito de Jolyon!

- Admiro-o muito por isso, meu velho. Não acredito que eu fizesse o mesmo na sua idade... receio que fosse uma coisa excessiva para um Forsyte. Porém creio que o tipo vai enfraquecendo, a cada geração. O seu filho, se você tiver filhos, há de ser um puro altruísta, quem sabe?

- Então não há-de parecer-se comigo, papá, eu sou estupidamente egoísta?

- Não, meu filho, evidentemente você não o é. Jolly abanou a cabeça e voltaram a cavar.

- Estranha vida a de um cão - disse subitamente Jolyon. - O único quadrúpede com rudimentos de altruísmo e sentimento de Deus!

Jolly olhou para o pai.

- O senhor acredita em Deus, papá? Nunca tive uma certeza a esse respeito.

Ante essa pergunta partida de alguém a quem lhe era impossível dar uma resposta leviana, Jolyon soergueu-se um momento, com as costas doloridas da posição em que cavava a terra.

- Que é que você entende por Deus? - perguntou ele. - Há duas ideias irreconciliáveis de Deus. Uns acreditam no Desconhecido Princípio Criador, enquanto outros acreditam em Alguém que é a Substância do altruísmo humano.

- Eu sei. É isso que nos leva a Cristo, não é?

Jolyon encarou o filho. Cristo, o elo entre essas duas ideias! Dito pela boca das crianças! Aqui estava por fim explicada cientificamente toda a ortodoxia! O sublime poema da vida de Cristo era a tentativa humana para reunir esses dois princípios irreconciliáveis. E, afinal, desde que a Substância do altruísmo humano tem uma parte maior do Desconhecido Princípio Criador, quanto nenhuma outra coisa na Natureza e no Universo poderia ser escolhida como um elo pior! Engraçado como se pode atravessar a vida sem ver as coisas por esse prisma!

- Que é que você pensa a esse respeito, meu velho? Jolly franziu o cenho.

- Bem, naturalmente, no meu primeiro ano de Oxford, nós falávamos muito a respeito dessas coisas. Porém no segundo ano já não nos preocupávamos com elas. E eu, não sei porquê... é terrivelmente interessante.

Jolyon recordava que ele também falara muito acerca dessas coisas no seu primeiro ano de Cambridge e abandonadas no segundo.

- Quero crer - disse Jolly - que era daquele segundo Deus em que o senhor falou que o velho Balthasar tinha noção.

- Isso mesmo. Senão ele não teria rebentado o seu pobre velho coração por amor de alguém que não fosse ele próprio.

- Mas, na verdade, não seria isso também uma emoção egoísta? Jolyon abanou a cabeça.

- Não. Os cães não são como os legítimos Forsyte, eles amam outras coisas além deles próprios.

Jolly sorriu.

- Pois então eu penso que sou Forsyte legítimo - disse ele. - Só me alistei porque desafiei Val Dartie a alistar-se também.

- Mas porquê?

- Nós não nos suportamos - disse Jolly laconicamente.

- Ah! - murmurou Jolyon.

Então a aversão durava até à terceira geração! E porquê essa aversão renovada não teria agora uma expressão declarada?

«Devo contar tudo ao rapaz?», pensou ele. Mas qual seria o fim - se ele, por sua parte, tiver de parar em breve?

E Jolly pensou: «Holly que conte o que há a respeito daquele indivíduo. Se ela não o fizer, quer dizer que não deseja que eu fale - e eu teria feito um triste papel. De qualquer forma, pus um ponto final no assunto. E gostaria muito mais de ter feito isso sozinho!»

E continuaram a cavar em silêncio, até que Jolyon disse:

- Agora acho que já está de bom tamanho, meu velho.- E, apoiando-se nas pás, olharam para o monte de folhas, algumas das quais já haviam sido removidas pelo vento do crepúsculo. - Não suporto esta parte da cerimónia - disse subitamente Jolyon.

- Deixe-me fazer, papá. Ele nunca se importou muito comigo. Jolyon abanou a cabeça.

- Vamos depô-lo com todo o cuidado, com folhas e tudo. Nunca mais o hei-de ver. Eu seguro a cabeça. Agora!

Com extremo cuidado, ergueram o corpo do cão, cujo pêlo malhado aparecia aqui e ali através das folhas. Depuseram-no na cova, pesado, frio, indiferente, Jolly espalhou mais folhas em cima do corpo, enquanto Jolyon, profundamente receoso de mostrar emoção em frente do filho, começou rapidamente a atirar terra para dentro do buraco.

Ali estava o passado! Se ao menos houvesse um futuro feliz a esperar! Era o mesmo que estar a lançar terra sobre a sua própria vida. Replantaram cuidadosamente a relva sobre a ligeira elevação, e, satisfeitos por terem poupado os sentimentos um do outro, voltaram para casa de braços dados.

 

TIMOTHY COMBATE A DECOMPOSIÇÃO

Na Bolsa dos Forsyte, a notícia do alistamento espalhou-se depressa, junto à notícia de que June, para não ser ultrapassada,, ia também para fora, como enfermeira da Cruz Vermelha. E tais acontecimentos eram tão extremados, tão subversivos ao puro forsytismo, que provocavam um efeito aglutinante na família. no primeiro domingo à tarde, a casa de Timothy estava apinhada de membros da família que procuravam descobrir o que pensavam uns e outros a respeito daquilo tudo e reforçar entre si o abalado sentimento de crédito da família.

Giles e Jesse Hayman também já não ficariam muito tempo entregues à defesa da costa, breve iriam para a África do Sul, Jolly e Val viajariam em Abril. Quanto a June - bem, nunca ninguém sabia o que ela realmente iria fazer!

A retirada de Spion Kop e a absoluta ausência de notícias do teatro da guerra davam um ar de realidade àquilo tudo, firmada de assustadora maneira por Timothy.

O mais novo dos Forsyte - que tinha apenas oitenta anos e era em geral considerado parecido com o pai, o «Superior Dosset», até mesmo na sua mais conhecida característica, a de beber sherry- permanecera invisível durante tantos anos que se tornara quase um mito. Toda uma longa geração decorrera desde que os riscos da profissão de editor lhe haviam atacado os nervos, na idade de quarenta anos, desde então, retirara-se com um pecúlio de apenas trinta e cinco mil libras e decidira dedicar a sua vida a cuidadosos empregos de capital. Aumentando-o de ano a ano com os juros compostos que cobrava, em quarenta anos duplicara-o, sem jamais saber o que seria gastar as solas dos sapatos para ganhar dinheiro.

Economizava, por ano cerca de duas mil libras, e, com o cuidado que tinha consigo, esperava, segundo dizia a tia Hester, dobrar esse capital antes de morrer. O que quereria então fazer com esse dinheiro, estando mortas as irmãs e morto ele próprio, fora sempre indagado zombeteiramente pelos espíritos livres como Francie, Euphemia, Nicholas filho ou Christopher, cujo espírito era tão livre que ele, ultimamente, andava a dizer que tencionava dedicar-se ao palco. Todos admitiam, entretanto, que Timothy sabia bem o que fazia,, e possivelmente também o sabia Soames - criatura incapaz de divulgar um segredo.

Os poucos Forsyte que o haviam visto descreviam Timothy como um homem de rude e robusta aparência, não muito alto, o rosto muito vermelho, cabelos grisalhos, com muito pouco do refinamento que os outros Forsyte haviam herdado da mãe, pois a mulher do «Superior Dosset» fora bonita, de génio meigo. Sabia-se que ele tomara um interesse surpreendente pela guerra, cravando bandeirinhas num mapa desde que a luta começara - e pensava-se com desagrado no que sucederia quando a Inglaterra fosse de todo escorraçada para o mar, pois então seria quase impossível a Timothy pôr as suas bandeiras no lugar certo. Quanto ao seu conhecimento sobre os movimentos da família ou as suas opiniões a respeito deles, isso era pouco conhecido, salvo pela tia Hester, que alegava,, a propósito de tudo, que o irmão estava muito abalado. Foi portanto uma espécie de milagre quando os Forsyte, ao chegarem na tarde do domingo que se seguiu à evacuação de Spion Kop, perceberam, um após outro, a presença de alguém sentado na única cadeira de braços realmente confortável. A pessoa mantinha-se de costas para a luz, escondendo a parte inferior do rosto com uma das mãos, e a voz respeitosa da tia Hester dizia aos recém-chegados:

- Seu tio Timothy, meu querido.

Timothy saudava-os a todos com uma frase única, e aquilo poder-se-ia antes dizer que escapava dele, em vez de ser articulado:

- Como vai? Desculpe não me levantar.

Francie estava presente e Eustace viera no seu carro, Winifred trouxera Imogen. quebrando a frieza provocada pelos preliminares do divórcio com o entusiasmo pelo alistamento de Val, Marian Tweetyman trazia as últimas notícias de Jesse e Giles. Esses todos, junto com as tias Juley e Hester, Nicholas filho, Euphemia e George, que viera no carro de Eustace, constituíam uma rica assembleia, testemunho dos mais prósperos dias da família. Não havia uma única cadeira desocupada em toda a pequena sala de estar e um receio geral possuía todos - o medo de que viesse mais alguém.

Esquecido um pouco o constrangimento provocado pela presença de Timothy, a conversa tomou um rumo militar. George perguntou à tia Juley quando partiria ela para a Cruz Vermelha, quase lhe provocando uma gargalhada: depois apontou para Nicholas e disse:

- O rapaz de Nicholas filho é um soldado valente, não é? Quando começa ele a usar a farda caqui?

Nicholas filho, sorrindo com uma espécie de meiga súplica, explicou que naturalmente a mãe iria ficar muito inquieta.

- Ouvi dizer que os Siameses já embarcaram - disse George. voltando-se para Marian Tweetyman. - Em breve para lá iremos todos. En avant, Forsytes! Em frente, ordinário! Quem tem medo?

A tia Juley gorgolejou - George era tão engraçado! Hester quereria ir buscar o mapa de Timothy? Assim ele poderia mostrar a todos onde estavam os combatentes.

E, ante um som emitido por Timothy, e que foi interpretado como um consentimento, a tia Hester deixou a sala.

George prosseguia na sua imagem do avanço dos Forsyte, nomeando Timothy marechal-de-campo, Imogen, em quem ele imediatamente reparara, seria vivandeira. E, pondo a cartola entre os joelhos, começou a bater nela como num tambor. Mas a palhaçada dele era recebida com duas reacções simultâneas: todos riam - George tinha a fama de engraçado na família -, mas todos sentiam também que algo semelhante a um caruncho estava a perfurar a solidez da família. E aquilo parecia-lhes pouco natural, justamente agora quando ela estava a mandar cinco dos seus membros para o serviço da rainha. George podia ir longe de mais, de forma que houve um alívio quando ele se levantou, ofereceu o braço à tia Juley, dirigiu-se a Timothy, fez-lhe uma reverência, beijou a tia com uma paixão afectada e cómica e disse:

- Oh, que alegria, querido papá! Vamos, Eustace!

E saiu, seguido pelo grave e desdenhoso Eustace, que nem sequer sorrira.

- Imagine, nem esperaram pelo mapa! Não se incomode com as coisas dele, Timothy. É tão engraçado - disse a tia Juley, quebrando o silêncio.

Timothy ergueu a mão que lhe tapava a boca.

- Não sei que coisas estão para vir - ouviram-no dizer. - Que querem eles com essa história de partir daqui? Não será assim que hão-de vencer os Boers.

Só Francie teve a audácia de observar:

- E como será que os vencerão, tio Timothy?

- Todos esses voluntários bem fardadinhos e as despesas que dão só servem para deitar fora o dinheiro do país.

Foi nessa altura que a tia Hester trouxe o mapa, segurando-o nos braços como a um bebé com erupções. Ajudada por Euphemia, estendeu-o sobre o piano, um Coldwood que tocara pela última vez, segundo se supunha, no Verão que precedeu a morte da tia Ann, treze anos atrás. Timothy ergueu-se. Caminhou para junto do piano, e ficou de pé, olhando o mapa, enquanto todos se lhe reuniam em torno.

- Aqui é que estamos, esta é a última posição conhecida. E muito precária:. Hum!

- Sim - disse Francie, num tom que era quase um desafio. - Mas como é que o senhor vai alterar isso, tio Timothy, sem mais homens?

- Homens! - exclamou Timothy. - Não precisamos de mais homens a gastarem o nosso dinheiro. Precisamos de um Napoleão, ele teria liquidado isso num mês.

- Mas se não se arranjar nenhum Napoleão, tio Timothy?

- Isso é com eles - replicou o velho. - Para que é que sustentamos um exército que nos custa os olhos da cara em tempos de paz? Eles deveriam estar a morrer de vergonha por virem suplicar auxílio ao país. Deixem que cada homem cuide do que lhe compete, e daremos conta do recado. - E, olhando em redor de si, acrescentou quase colérico: - Voluntariado! Com efeito! Gastando bom dinheiro com o que não presta! Temos de economizar! Conservar energia é o único meio. - E com um som prolongado, que não era bem uma fungadela nem era bem um espirro, pisou um pé de Euphemia e saiu da sala, deixando atrás dele uma grande sensação e um leve cheiro de barley-sugar (1).

O efeito de uma tal declaração, emitida com convicção por alguém que evidentemente faz um sacrifício para a dizer, é sempre considerável. E os oito Forsyte que ficaram na sala - todos mulheres, excepto Nicholas filho - ficaram silenciosos um momento, rodeando o mapa. Então Francie disse:

- Realmente, penso que ele tem razão. Afinal, para que existe o exército? Eles deveriam ter previsto isso. Só o que é preciso é estimular os soldados.

- Minha querida! - exclamou a tia Juley. - Mas eles têm sido tão progressistas! Lembre-se de que eles abandonaram a farda escarlate... e sempre foram tão orgulhosos dela! Agora todos parecem presidiários. Ainda ontem,, Hester e eu estivemos a dizer que os militares devem sentir muitíssimo essa mudança. Imaginem o que diria dela o Duque de Ferro!

- As novas cores são muito elegantes - disse Winifred. - Val fica muito bonito fardado.

A tia Juley assentiu.

- Gostaria de saber com quem se parece o filho de Jolyon. E pensar que a gente nunca o viu. O pai deve ter muito orgulho dele.

- O pai dele está em Paris - disse Winifred.

Os ombros da tia Hester ergueram-se subitamente, como para repelir a próxima observação da irmã, porque as faces enrugadas de Juley ficaram rubras.

- Ontem recebemos a visita da querida Mrs. Mac Ander, que acabava de chegar de Paris. E imaginem vocês quem foi que ela encontrou na rua? Nunca adivinharão.

- Nem tentaremos, tia - disse Euphemia.

 

*1. Barley-sugar - doce feito com cevada e açúcar. (N. da T.)

 

- Irene! Imaginem! Depois de todo este tempo... a passear com uma barba loura...

- Tia! A senhora mata-me! Com uma barba loura...

- Eu estava a dizer - continuou a tia Juley severamente - com um cavalheiro de barba loura. Não está nem um dia mais velha, aliás, foi sempre tão bonita - acrescentou a tia Juley com uma espécie de tímida desculpa.

- Oh, conte tudo, tia! - gritou Imogen. - Ainda me lembro dela, é o esqueleto no armário da família, não é?

A tia Hester sentou-se. Na verdade, Juley acabara por contar aquilo!

- Ela não tinha nada de esqueleto, se bem me lembro - murmurou Euphemia. - Se o tinha, era muitíssimo bem coberto.

- Minha querida! - exclamou a tia Juley.-Que maneira esquisita de dizer as coisas, não acho isso bonito.

- Não, mas como é que ela era? - persistiu Imogen.

- Vou dizer-lhe, minha filha - disse Francie.- Uma espécie de Vénus moderna., muitíssimo bem vestida.

Euphemia exclamou causticamente:

- Vénus nunca andou vestida, e tinha olhos de safira. Nessa altura Nicholas despediu-se.

- Mrs. Nick é muito rigorista- disse Francie, com uma gargalhada.

- Ela tem seis filhos - explicou a tia Juley. - Tem toda a razão em ser cuidadosa.

- E o tio Soames tinha uma paixão louca por ela, não tinha? - continuou a inexorável Imogen, movendo os seus olhos escuros de rosto para rosto.

A tia Hester fez um gesto de desespero, enquanto a tia Juley respondia:

- Sim, o seu tio Soames era-lhe muito afeiçoado.

- Naturalmente ela fugiu de casa com alguém?

- Não, decerto não, isto é, não foi precisamente assim.

- Que foi que ela fez então, tia?

- Vamos, Imogen - disse Winifred. - Temos de ir andando. Mas a tia Juley interveio resolutamente:

- Ela... ela não procedeu bem.

- Ora! - exclamou Imogen. - Até aí já eu sabia.

- Pois bem, minha filha - disse Francie. - Ela teve um caso amoroso que terminou com a morte do rapaz, e então deixou seu tio. Eu sempre gostei muito dela.

- Ela costumava dar-me chocolates - murmurou Imogen - e usava um perfume muito bom.

- Naturalmente - notou Euphemia.

- Natural mente, não - retorquiu Francie, que usava essências particularmente caras.

- Não posso compreender porque é que estamos a falar aqui em tais coisas - disse a tia Juley, juntando as mãos.

- Ela divorciou-se?- perguntou Imogen, já da porta,

- Decerto que não - gritou a tia Juley.

Ouviu-se um som na porta do fundo, Timothy voltara à sala.

- Vim buscar o meu mapa - explicou ele. - Quem é que se divorciou?

- Ninguém, tio - respondeu Francie com inteira verdade. Timothy apanhou o mapa de cima do piano.

- Não deve haver dessas coisas na família - disse ele. - Já esses alistamentos todos são bastante ruins. O país está a destruir-se. Nem sei mesmo para onde vamos. - E apontou o dedo rombudo para o tecto: - Há mulheres de mais, actualmente, e elas não sabem o que querem.

Dizendo isto, agarrou firmemente o mapa com ambas as mãos e saiu, como se receasse que lhe respondessem.

As sete mulheres a quem ele se dirigira mergulharam num murmúrio baixíssimo, do qual apenas emergia a voz de Francie:

- Realmente os Forsyte...! Depois a voz da tia Juley:

- Ele precisa de tomar um escalda-pés de mostarda esta noite, Hester. Você quer dizer a Jane? Estou com medo de que o sangue lhe tenha subido à cabeça outra vez...

Naquela noite, quando ela e Hester estavam sentadas sozinhas depois do jantar, a tia Juley deixou cair uma malha do crochet e ergueu os olhos:

- Hester, não posso pensar nisso que andam a dizer: que Soames quer a volta de Irene para casa.

Quem foi que nos contou que George fez uma caricatura de Soames com esta legenda: «Ele não será feliz enquanto não conquistar isto»?

- Foi Eustace - respondeu a tia Hester de sobre o Times. - Trazia-a no bolso, mas não quis mostrá-la.

A tia Juley estava silenciosa, ruminando. O relógio andava, o Times estalava, o fogo fazia ouvir o seu crepitar. A tia Juley deixou cair outra malha.

- Hester - disse ela - tive um pensamento terrível.

- Então não me conte - disse rapidamente Hester.

- Oh, mas tenho de contar. Você nem sabe como é terrível.- E a sua voz desceu até um murmúrio: - Jolyon... Dizem que Jolyon deixou crescer a barba ultimamente. E a barba é loura.

 

PROGRESSO DA INVESTIGAÇÃO

Dois dias depois do jantar em casa de James, Mr. Polteed forneceu a Soames matéria bastante para cogitações. - Um cavalheiro - disse ele, consultando a chave escondida na sua mão esquerda-, 47 segundo convencionámos, está a dedicar uma atenção acentuada a 17, durante este último mês, em Paris. Porém, até agora, parece que nada houve de decisivo. Os encontros realizaram-se todos em lugares públicos, sem que os dois procurassem esconder-se: em restaurantes, na Ópera, na Ópera Cómica, no Louvre, no Jardim do Luxemburgo, na sala do hotel, etc. Nunca ninguém a viu entrar nos aposentos dele, nem vice-versa. Foram a Fontainebleau, mas não se passou nada de especial. Em resumo: a situação é prometedora, mas requer paciência.- E, erguendo subitamente o olhar, Mr. Polteed acrescentou: - É um ponto com efeito curioso: 47 tem o mesmo sobrenome que... que 31!

«Este sujeito sabe que eu sou o marido», pensou Soames.

- O primeiro nome é um pouco esquisito: Jolyon - continuou Mr. Polteed. - Conhecemos o seu endereço em Paris e a sua residência aqui. Não desejamos, naturalmente, estar a seguir uma pista falsa.

- Prossiga, mas tenha muito cuidado - rosnou Soames.

A certeza instintiva de que aquele detective lhe adivinhara o segredo tornava-o ainda mais reticente.

- Com licença, sir - disse Mr. Polteed. - Vou verificar se chegou alguma correspondência nova.

Voltou com algumas cartas. E, tornando a fechar a porta, estudou os envelopes.

- Sim, temos aqui uma carta confidencial para mim, mandada por 19. Eis o que diz: «47 embarcou hoje para a Inglaterra. Endereço da bagagem: Robin Hill. Os dois separaram-se nas galerias do Louvre, às 3.30. A despedida não teve nada de particular. Suponho que o melhor é continuar aqui e prosseguir na vigilância a 17. O senhor pode igualmente fazer vigiar 47 na Inglaterra, se o achar necessário.»

Mr. Polteed lançou a Soames um olhar muito pouco profissional, como se estivesse a reunir material para um livro sobre a natureza humana -- livro que pretenderia escrever mais tarde, quando se aposentasse. Depois continuou:

- 19 é uma mulher muito inteligente e disfarça-se muito bem. Cobra caro, mas merece bem o ordenado. Até agora, ninguém suspeita da vigilância. Porém, depois de algum tempo, o senhor sabe, as pessoas sensíveis começam a perceber aquela presença constante, embora não vejam nada de definitivo. Talvez o melhor seja abandonar a vigilância de 17 e continuar a de 47. Não podemos tentar interceptar a correspondência de ambos sem grandes riscos. E não aconselho isso, no pé em que estão as coisas. Mas o senhor pode dizer ao seu cliente que a vigilância vai prosseguindo muito bem.

E mais uma vez os olhos estreitos do detective perscrutaram o rosto taciturno do seu cliente.

- Não - disse subitamente Soames. - Prefiro que o senhor continue a vigilância em Paris, discretamente, sem se preocupar com esta outra pista.

- Muito bem - retorquiu Mr. Polteed. - Podemos fazer isso.

- Como... como é o modo pelo qual ambos se tratam?

- Posso ler o que diz a nossa vigilante - disse Mr. Polteed, abrindo à chave uma gaveta da secretária e apanhando um maço de papéis. - Estas declarações são inteiramente confidenciais. Cá está! «17 é muito atraente, 47 bem mais puxado em idade (gíria do ofício, o senhor compreende), evidentemente espera uma oportunidade, 17 talvez dificulte para impor condições, impossível dizer mais sem reunir novos elementos. Porém inclinamo-nos a pensar - embora sem conhecer as intenções dela - que agirão de impulso, qualquer dia. Ambos têm estilo.»

- Que significa isso? - perguntou Soames por entre os lábios cerrados.

- Bem - murmurou Mr. Polteed, com um sorriso que lhe mostrava vários dentes muito brancos-, é uma expressão que costumamos empregar. Por outras palavras, não se trata de uma aventura de week-end. Aliás, chegarão a isso, quer se portem seriamente ou não.

- Hum!-rosnou Soames. - É tudo?

- Sim - respondeu Mr. Polteed -, mas é realmente prometedor.

«Aranha!», exclamou mentalmente Soames, dizendo depois:

- Até logo!

Caminhou através de Green Park, em direcção à Victoria Station, onde apanharia o metropolitano para a City. Para fins de Janeiro, fazia muito calor. A luz do sol, furando a neblina, luzia na relva gelada, tecendo no ar uma verdadeira teia de aranha resplandecente.

Pequenas aranhas -e grandes aranhas! E a maior aranha de todas, que era a própria tenacidade dele, envolvida para sempre naquele casulo que não lhe deixava aberto nenhum caminho. Porque andaria aquele sujeito a rondar em torno de Irene? As coisas estariam realmente a passar-se segundo Polteed sugeria? Ou não estaria Jolyon apenas compadecido do isolamento dela, ou como quer que lhe chamasse, incurável sentimental que sempre fora? E se, entretanto, as coisas fossem o que Polteed pretendia? Soames parou. Não podia ser! Jolyon era sete anos mais velho que ele, Soames, e não tinha melhor aparência. Não era mais rico! Que atractivo tinha?

«Além disso, ele voltou», continuou a cismar Soames. «E não parece, pois... Pois irei procurá-lo, eu!» E, agarrando um cartão, escreveu:

 

Se você pode perder comigo uma hora, numa das tardes desta semana, estarei diariamente no Connoisseurs das cinco e trinta às seis, ou irei procurá-lo no Hotch Potch, se você o preferir. Necessito vê-lo.

  1. F.

 

Subiu St. James Street e entregou o bilhete ao porteiro do Hotch Potch.

- Entregue a Mr. Jolyon Forsyte, assim que ele chegue. E tomou um dos novos automóveis em direcção à City. Jolyon recebeu o cartão nessa mesma tarde e olhou da janela

para a fachada do Connoisseurs. Que quereria Soames, agora? Desconfiara dos factos passados em Paris? E, caminhando através de St. James Street, resolveu não esconder a sua visita. «Porém, o que não posso fazer», pensou ele, «é deixá-lo saber que ela está em Paris, a menos que ele não o saiba já.» Nesse complicado estado de espírito, foi conduzido até ao lugar onde Soames estava a tomar o seu chá, numa pequena sacada.

- Não quero chá, obrigado - disse Jolyon. - Mas fumarei, se você o permite.

As cortinas ainda não haviam sido baixadas, embora as luzes da rua já estivessem acesas, os dois primos sentaram-se um em frente do outro, esperando.

- Soube que você esteve em Paris - disse finalmente Soames.

- É verdade. Acabo de voltar.

- Val disse-mo. Ele e seu filho vão realmente embarcar para a África? - Jolyon confirmou com a cabeça. - Quero crer que você não teve oportunidade de ver Irene. Parece que ela está em qualquer parte, no estrangeiro.

Jolyon envolveu-se em fumo antes de responder.

- Sim, vi-a.

- Como vai ela?

- Muito bem.

Houve novo silêncio. Depois Soames ergueu-se da cadeira.

- Quando o vi pela última vez, estava entre duas resoluções. Conversámos, e você manifestou-me a sua opinião. Não desejo reabrir a discussão. Quero apenas dizer isto: a minha posição em relação a ela é extremamente difícil. Não quero que você continue a usar a sua influência contra mim. Aquilo que aconteceu, aconteceu já há muito tempo. E pretendo pedir a Irene que esqueça o passado.

- Você já lhe fez esse pedido, sabe-o muito bem - murmurou Jolyon.

- A ideia, então, era imprevista para ela. Causou-lhe um choque. Porém, quanto mais ela pensar nisso, melhor deve verificar que é a única solução para nós ambos.

- Não é essa a impressão que me ficou do estado de espírito dela-disse Jolyon com uma calma particular. - E desculpe se lhe digo isto, mas creio que você se equivoca quando pensa que o raciocínio tem alguma coisa a ver com o caso.

Viu a face do primo tornar-se ainda mais pálida - ele usara, sem o saber, as próprias palavras de Irene.

- Obrigado, mas eu vejo as coisas mais singelamente do que você pensa. Quero apenas estar certo de que você não usará a sua influência contra mim.

- Não sei o que é que lhe faz pensar que eu tenha qualquer influência - disse Jolyon. - Porém, se eu a tenho, só a utilizarei no sentido que, julgo, conduzirá à felicidade dela. Creio que sou desses a quem chamam "feministas".

- Feminista! - repetiu Soames, como se procurasse ganhar tempo. - Isso significa que você está contra mim?

- Inteiramente. Sou contra toda a mulher que vive com um homem de quem decididamente não gosta, considero isso sórdido.

- E suponho que todas as vezes que você se avista com ela mete-lhe essas coisas na cabeça.

- Não conto vê-la em breve.

- Nem se voltar a Paris?

- Não, pelo menos não o espero - disse Jolyon, consciente da atenção deliberada com que Soames o encarava.

- Bem, isso era tudo que eu tinha a dizer.

Você sabe muito bem que quem quer que se intrometa entre marido e mulher incorre em grave responsabilidade.

Jolyon ergueu-se e fez uma ligeira inclinação de cabeça.

- Até logo - disse. E, sem lhe estender a mão, caminhou para fora, deixando Soames a fitar-lhe as costas.

«Nós, Forsytes», pensava Jolyon, chamando um cab, «somos muito civilizados. Entre homens rústicos, isto teria dado em vias de facto. E se meu filho não estivesse de partida para a guerra! A guerra!» Um ressaibo das suas velhas dúvidas apoderou-se dele. «Linda guerra! Domínio sobre povos ou sobre mulheres! Tentativas para dominar e possuir aquilo que nos repele! A negação da dignidade pacífica! Posse, direitos de propriedade. E quem quer que se insurja é um pária! Graças a Deus, sempre me insurgi!»

Realmente, mesmo antes do seu primeiro e desastroso casamento, ele já se enfurecia contra a opressão dos Irlandeses e já se exaltava a favor de mulheres que procuravam libertar-se de homens a quem detestavam. A Igreja ensinava que a liberdade da alma e a liberdade do corpo eram coisas absolutamente diversas. Perniciosa doutrina! Corpo e alma não podem ser separados. O livre-arbítrio só cresce quando está a salvo de quaisquer prisões. De contrário, deperece. «Eu devia ter dito a Soames», pensou Jolyon, «que o considero cómico. Ah, mas ele também é trágico!»

Realmente, não podia haver no mundo nada mais trágico que um homem escravizado ao seu instinto de propriedade, um homem que, por causa dessa obsessão, não pode sequer olhar para o céu. nem penetrar nos sentimentos de outra pessoa.

«Tenho de escrever a Irene a preveni-la», pensou ele, «de que haverá novo assalto.» E durante todo o caminho para Robin Hill rebelou-se contra o sentimento que lhe dizia que a sua obrigação de se manter junto do filho o impedia de voltar a Paris.

Mas Soames, sentado ainda na sua cadeira, era presa de uma dor não menos aguda - uma dor de ciúme -, como se lhe houvessem revelado que aquele sujeito tinha precedência sobre ele no coração dela e que tecera uma nova teia de aranha no seu caminho até à mulher. «Isso significa que você está contra mim?» E não obtivera nada com aquela pergunta desassombrada. Feminista! Fazedor de frases! «Não devo precipitar as coisas. Tenho algum tempo.

Ele não está de volta para Paris, a menos que me tenha mentido. Vou deixar que venha a Primavera!»

De que modo poderia servir-me a Primavera - a não ser para lhe aumentar a dor - era coisa que ele não saberia dizer. E, olhando em frente para a rua, onde iam passando vultos de poste para poste, sob a luz que caía das altas lâmpadas, ele pensava: «Nada me parece bom, nada me pode ajudar - estou isolado. Este é que é o mal.»

Fechou os olhos, e imediatamente pareceu-lhe ver Irene, numa rua escura, ao pé de uma igreja - passando, voltando o pescoço até que ele pudesse apanhar-lhe o brilho dos olhos, com a testa branca sob um chapeuzinho escuro, grampos dourados enfiados nele e um véu caindo para trás. Abriu os olhos - tão vividamente a enxergara! Oh, não, não havia ninguém ali!

 

«CÁ ESTAMOS OUTRA VEZ!»

As toilettes de Imogen para o seu début ocuparam os cuidados da mãe e a bolsa do avô durante todo o mês de Março. Com a tenacidade dos Forsyte, Winifred procurava a perfeição. E aquilo distraiu-a da rápida aproximação das novas cerimónias que iam devolver-lhe a liberdade - e ela não sabia realmente se a desejava. Distraiu-a também do filho e da próxima partida dele para uma guerra da qual só chegavam notícias inquietadoras. Tal como abelhas ocupadíssimas com as flores de Verão ou vespas adejando e precipitando-se sobre as flores de Outono, ela e a "pequena" - da mesma altura que a mãe e com medidas de busto em nada inferiores - adejavam pelas lojas de Regent Street, os estabelecimentos de Hanover Square e Bond Street, perdidas em cogitações e examinando estofos. Dúzias de moças de gestos afectados e passo peculiar desfilaram diante de Winifred e Imogen, exibindo «criações». Os modelos - «Novíssimo, madame, o último que recebemos» - a que aquelas duas relutantes freguesas haviam voltado as costas chegariam para encher um museu e os modelos que se sentiam obrigadas a comprar davam quase para esgotar a conta bancária de James. «Não se deve fazer as coisas pela metade», pensava Winifred, desejosa de transformar aquele début da filha num êxito inesquecível. A calma delas em provar a paciência daquelas criaturas impessoais que lhes deslizavam à frente só poderia ser igualada à dos que são movidos por uma fé religiosa. E representava,, da parte de Winifred, um longo sacrifício ritual à sua deusa da Moda, tão fervoroso como pode ser o culto de um católico à Virgem, para Imogen, era uma experiência de modo algum desagradável: sentia-se bonita e lisonjeada, numa palavra - era «interessante».

Na tarde de 20 de Março, depois de haverem estripado todo o stock do Skyward's, pararam para merendar em Caramel & Baker's e, depois de restauradas por um bom chocolate coroado de creme, voltaram para casa através de Berkley Square - com a Primavera iluminando a tarde.

Depois de abrir a porta - recentemente pintada de verde-claro. pois nada fora negligenciado para o début de Imogen - Winifred dirigiu-se à cestinha de prata, para ver se havia lá algum novo cartão de visita, quando as suas narinas se aguçaram. Que cheiro era aquele?

Imogen tirara uma novela da estante e absorvera-se nela, e quase rapidamente, devido à estranha sensação que lhe subia ao peito, Winifred disse:

- Vá para cima, querida, e descanse antes do jantar.

Imogen, ainda a ler, subiu a escada. Winifred viu-a bater a porta do quarto, e então aspirou longamente o ar da sala. Seria que a Primavera estava a perturbar-lhe os sentidos, trazendo-lhe nostalgia do seu «palhaço», a despeito de todo o seu juízo e da sua virtude ultrajada? Um cheiro de homem! Um aroma fugidio de charuto e de água de lavanda-um aroma que já não sentia há seis meses, quando dissera a Monty que «ele não valia nada». Donde viria ele? Ou seria o fantasma de um aroma - curiosa emanação da memória? Winifred olhou em torno de si. Não... nada... coisa alguma, nenhuma alteração no hall nem na sala de estar. Era apenas uma ilusão de perfume - falsa, enlouquecedora, doentia! Na cestinha de prata havia cartões novos, dois com «Mr. and Mrs. Polegate Thom» e um com «Mr. Polegate Thom» sozinho. Cheirou-os, mas o perfume deles era severo. «Devo estar fatigada», pensou. «Vou subir e deitar-me.» Lá em cima, o quarto de vestir estava às escuras, esperando uma mão que lhe acendesse as luzes, e ela passou ao quarto de dormir. Lá também as cortinas estavam meio descidas e tudo escuro, porque já eram seis horas. Winifred tirou o chapéu - aquele cheiro, de novo -, e de repente ergueu-se, como se tivesse levado um tiro, agarrada ao espaldar da cama.

Um vulto escuro erguera-se do sofá, no canto. Uma palavra de horror - na sua família - escapou-lhe:

- Meu Deus!

- Sou eu... Monty - disse a voz.

Largando o espaldar, Winifred deu uns passos e fez girar o comutador da luz que pendia sobre a mesa-de-cabeceira. E ele apareceu exactamente dentro da circunferência luminosa da lâmpada, embrasonado pela ausência da corrente do relógio, as botas engraxadas... mas... sim... com os calcanhares roídos. O rosto e o peito estavam na sombra. Indiscutivelmente estava mais magro - ou seria um efeito de luz? Ele avançou, iluminado agora dos calcanhares ao cabelo preto - indiscutivelmente um pouco grisalho! As suas feições estavam mais morenas, descoradas, o bigode preto havia perdido a insolência, mostrava-se agora sardónico, e havia no rosto dele muitas rugas que ela não lhe conhecia. Não tinha alfinete de gravata, e o fato - ah, ela conhecia-o bem! - como estava amarrotado, lustroso! Deteve novamente o olhar nos calcanhares roídos das botas dele. Qualquer coisa de grande e inexorável apoderara-se daquele homem e embriagara-o, devastara-o, gastara-o. E ela continuou de pé, sem falar, imóvel, fitando sempre os calcanhares roídos.

- Pois bem! - disse o marido. - Recebi a intimação e obedeci. Estou de volta.

O peito de Winifred dilatou-se. A nostalgia pelo marido que se erguera nela ante aquele aroma lutava contra um ciúme mais profundo do que ela jamais sentira. Ali estava ele - sombra obscurecida, como que despojada do seu eu brilhante e garboso. Qual seria a força que lhe fizera aquilo, que o espremera como uma laranja a que esgotam o sumo? Aquela mulher!

- Estou de volta - repetiu ele. - Passei um tempo horroroso. Jesus! Volto para o estaleiro. Não trouxe nada além da minha pessoa e do que tenho nesta maleta.

- E onde está o resto? - gritou Winifred, subitamente animada. - Como ousou voltar? Sabia muito bem que a intimação foi feita apenas para fins de divórcio. Não me toque!

Mantinham-se ambos perto do espaldar do grande leito onde haviam passado juntos as noites de tantos anos. Muitas vezes sim, muitas vezes - ela desejara a volta do marido. Mas agora, que ele regressara, sentia-se possuída por um frio e mortal ressentimento. Ele ergueu a mão ao bigode, mas não o torceu nem cofiou, na sua velha maneira habitual, antes o repuxou para baixo.

- Meu Deus! -disse ele. -Se você soubesse o que passei!

- Prefiro não saber!

- Os nossos filhos vão bem? Winifred fez sinal que sim e perguntou:

- Como entrou?

- Com a minha chave.

- Então as criadas não sabem. Você não pode ficar aqui, Monty.

Ele soltou uma risadinha sardónica.

- Onde, então?

- Em qualquer parte.

- Bem, olhe para mim! Aquda... aquela desgraçada...

- Se você falar no nome dela - gritou Winifred -, eu vou imediatamente para Park Lane e não volto.

E subitamente ele fez uma coisa simples, mas tão pouco afectada que a comoveu, Fechou os olhos. Era como se dissesse: «Muito bem! Estou morto para todos.»

- Posso arranjar-lhe um quarto para passar a noite - disse ela. - As suas coisas ainda estão aqui, só Imogen está em casa.

Dartie voltou a encostar-se ao espaldar da cama.

- Bem, está tudo nas suas mãos. - E com a mão dele fez um gesto de entrega. - Já acabei com tudo. Você não tem necessidade de ferir mais com muita força... já não vale a pena. Fiquei apavorado, Freddie.

Aquele apelido carinhoso, já em desuso há anos e anos, provocou um calafrio em Winifred.

«Que é que eu vou fazer?», pensava ela. «Em nome de Deus. que é que eu vou fazer?»

- Tem um cigarro?

Winifred tinha cigarros numa caixa ao lado da cama, pois fumava nas noites em que não podia dormir. Tirou um e acendeu-o.

E aquele acto fê-la recuperar de todo o lado prático da sua natureza.

- Vá tomar um banho quente. Porei alguma roupa sua no quarto de vestir. Conversaremos mais tarde.

Ele acenou que sim e fixou os olhos nela - pareciam meio mortos... ou seriam as rugas das pálpebras que se tinham tornado mais profundas?

«Já não é o mesmo», pensou Winifred. «Nunca mais será o mesmo! Mas que irá ele ser então?»

- Está bem - disse Dartie, caminhando em direcção à porta. Até mesmo o andar mudara - parecia o andar de um homem

que perdera todas as ilusões e dúvidas a respeito de se valeria a pena andar.

Depois que ele saiu e se ouviu o som da água a cair na banheira,, ela pôs uma muda completa de roupas de homem na cama do quarto de vestir, foi ao andar de baixo e apanhou uma caixa de biscoitos e uma garrafa de whisky. Vestindo depois um casaco, escutou um momento à porta da casa de banho e saiu de casa. Na rua, hesitou. Passava das sete! Estaria Soames no seu clube ou em Park Lane? E tomou o caminho de Park Lane. Monty voltara! Soames sempre o receara- e ela muitas vezes o desejara,. Voltara! Era tão próprio dele aquele gesto - gesto de palhaço - chegar e dizer: «Aqui estou!», para levar ao ridículo todos eles: a Lei, Soames e ela própria. Afinal, talvez fosse melhor troçar da Lei do que ter aquela nuvem sombria suspensa sobre ela, sobre os filhos. Que alívio! Ah, mas como aceitar a volta dele? «Aquela mulher» devastara-o, extraíra dele uma paixão que ele nunca dera a ela - uma paixão de que ela nunca o imaginara capaz. Aquilo era o que mais lhe doía: aquele seu clown, egoísta e ruidoso, que ela nunca realmente estimulara, fora despojado e marcado por outra mulher! Era insultante! Insultante de mais! Não estava certo, não era decente recebê-lo de volta!

É verdade que fora ela que o chamara e talvez agora a lei a obrigasse a conservá-lo. E ele ainda era tão seu marido quanto antes - e ela livrar-se-ia das garras do tribunal. Tudo o que ele quereria, decerto, era dinheiro - para o empregar em charutos e em água de lavanda. Aquele cheiro! «Afinal, não estou velha», pensou Winifred, «não estou velha ainda.» E no entanto havia aquela mulher que o reduzira a estas palavras: «Fiquei apavorado... Freddie!»

Winifred já se aproximava da casa do pai, e durante todo o percurso o Forsyte que havia dentro dela conduzia-a à profunda conclusão de que, afinal, Monty era propriedade sua, uma propriedade que tinha de ser disputada a um mundo usurpador. E chegou então à casa de James.

- Mr. Soames? Está no quarto dele? Vou subir. Não diga a ninguém que estou aqui.

O irmão estava a vestir-se. Ela encontrou-o defronte do espelho, atando a gravata com um arzinho de desprezo.

- Olá! - disse ele, vendo-a no espelho. - Que é que vai mal?

- Monty! - disse Winifred insensivelmente. Soames deu meia volta.

- O quê?

- Voltou!

- O tiro saiu pela culatra - murmurou Soames. - Por que diabo você não me consentiu que se alegasse crueldade? Eu sempre soube que havia muitos riscos nesta direcção.

- Oh! Não fale nisso! Que é que eu faço? - Soames respondeu com um profundo suspiro. - Então? - insistiu Winifred, impaciente.

- Que é que ele alegou?

- Nada. Uma das botas dele está quase sem calcanhar. Soames encarou-a.

- Ah! Naturalmente! Está nas últimas. De forma que tudo recomeça! Isso acabará por matar meu pai!

- Não poderemos esconder isto do papá?

- É impossível. Ele tem um faro iniludível para tudo que possa aborrecê-lo. - E Soames pôs-se a meditar, com os dedos enfiados nos suspensórios de seda azul. - Deve haver alguma maneira legal - murmurou por fim - para o manter afastado.

- Não! - gritou Winifred. - Não quero fazer mais papel de tola. Prefiro ficar com ele.

Os dois irmãos encararam-se. Tinham os corações a transbordar, mas não podiam exprimir os seus sentimentos - Forsyte que eram.

- Onde o deixou?

- No banho. - E Winifred soltou uma risadinha amarga. - A única coisa que ele trouxe foi a água de lavanda.

- Calma! - disse Soames. - Você está muito abalada. Vou voltar consigo.

- Que adianta?

- Temos de discutir as coisas com ele.

- Discutir! Há-de ser como sempre... Quando ele melhorar . volta às cartas, aos cavalos, à bebida e...

E ela calou-se, lembrando-se do aspecto do rosto do marido. Parecia uma criança maltratada. Talvez...

- Melhorar? - replicou Soames. - Ele está doente?

- Não. Está liquidado.

Soames tirou o casaco de sobre uma cadeira, vestiu-o, vestiu também o sobretudo, humedeceu o lenço com água-de-colónia, arranjou a corrente do relógio e disse:

- Nós nunca temos sorte.

No meio da sua perturbação, Winifred sentia pena do irmão, como se aquela rápida observação revelasse as profundas mágoas que o roíam.

- Eu gostaria de ver a mamã - disse ela.

- Está com o papá no quarto deles. Vá para o escritório, sem fazer barulho. Levá-la-ei até lá.

Winifred deslizou até ao pequeno escritório escuro, notável principalmente por um Canaletto duvidoso de mais para ser posto noutro local e uma excelente colecção do Anuário Jurídico, fechada já há muitos anos. Ficou lá, com as costas voltadas para as cortinas, olhando a chaminé vazia, até que a mãe entrou, seguida por Soames.

- Oh, pobrezinha! - disse Emily. - Que cara tão triste a sua! Realmente, isso que ele fez foi muito mal feito!

Eles tinham-se habituado tanto, em família, a não darem expansão a emoções deselegantes, que seria impossível a Emily proporcionar à filha um bom desabafo. Mas havia consolação na sua voz abafada e nos seus ombros, ainda roliços, cobertos de rendas negras.

Ajudada pelo orgulho e pelo desejo de não entristecer a mãe, Winifred respondeu, contendo-se como pôde:

- Está tudo muito bem,, mamã.

- Quem sabe - disse Emily, olhando para Soames - se não valeria a pena Winifred dizer-lhe que o processará se ele não desistir de aproveitar o pretexto da intimação de reintegrar o domicílio? Ele levou as pérolas dela, e, se não as trouxe de volta, creio que, com efeito, basta isso.

Winifred sorriu. Todos se empenhavam em dar sugestões sobre isto e aquilo, mas ela já sabia muito bem o que iria fazer - o que se resumiria a não fazer nada. O pensamento de que, afinal, ela conquistara uma espécie de vitória, recuperara a sua propriedade, ia a cada momento ganhando terreno dentro de si. Não! Se ela quisesse puni-lo, poderia fazê-lo dentro de casa, sem precisar de proclamar o facto perante o mundo inteiro.

- Bem - disse Emily -, vamos para a sala de jantar. Você deve descansar e jantar connosco. Deixe que eu falo com seu pai.

E, enquanto Winifred se dirigia à porta, ela fez rodar o comutador da luz. Ainda não tinham visto o que acontecera no corredor.

Lá, atraído pela luz num compartimento onde nunca a acendiam, estava James, enrolado no seu xaile cor de areia, de pêlo de camelo, com os braços escondidos, dando a impressão de que a sua cabeça prateada estava afastada das calças elegantes por toda uma vasta extensão de deserto. E mantinha-se de pé, inimitavelmente semelhante a uma cegonha que tivesse diante de si uma rã grande de mais para a engolir.

- Que é isto tudo? - perguntou James. - Vocês nunca me dizem nada.

O encontro era tão inesperado que deixou Emily sem resposta. Foi Winifred quem caminhou até ele e, pondo a mão sobre um dos braços agasalhados do velho, disse:

- Monty não faliu, papá. Apenas voltou.

Os três esperaram que algo de sério acontecesse, e estimavam que ela lhe houvesse segurado o braço, mas não conheciam a profundidade das raízes naquele sombrio velho Forsyte.

Qualquer coisa entortou-lhe a boca e o queixo, algo agitou-lhe as longas suíças prateadas. E ele disse então, com uma espécie de dignidade:

- Ele ainda há-de ser a minha morte. Sei que ainda há-de ser.

- O senhor não deve incomodar-se, papá. Tenciono encarregar-me de fazer que ele proceda correctamente.

- Ah! - disse James. - Tomem, levem esta coisa. Estou com calor. - Retiraram-lhe o xaile que o envolvia. Ele voltou-se e caminhou firmemente para a sala de jantar. - Não quero sopa - disse para Warmson, sentando-se na sua cadeira.

Todos se sentaram também, Winifred ainda de chapéu, enquanto Warmson punha um quarto talher. Quando ele saiu,. James perguntou:

- Que foi que ele trouxe de volta?

- Nada, papá.

James concentrou o olhar na sua própria imagem reflectida numa das colheres da mesa.

- Divórcio! - resmungou ele. - Idiotice! Em que estava eu a pensar? Devia era ter-lhe pago uma mesada para o manter longe da Inglaterra. Soames! Procure-o e proponha-lhe isso.

Parecia uma sugestão tão recta e tão simples que a própria Winifred ficou surpresa quando se ouviu dizer:

- Não. Pretendo ficar com ele, já que voltou. Ele agora há-de proceder bem.

Todos a olharam. Sempre fora sabido que Winifred tinha muita coragem.

- Fora daqui! - exclamou James elipticamente. - Quem sabe que assassino... Procure o revólver dele, Não vá para a cama sem um revólver. Devia ter Warmson a dormir em sua casa. Eu próprio vou cuidar disso amanhã.

Todos ficaram comovidos por aquela declaração, e Emily disse, para o consolar:

- Está bem, James, não faremos nenhuma tolice.

- Ah! - resmungou James sombriamente. - Não sei, não posso dizer!

A chegada de Warmson, com o peixe, desviou a conversa.

Quando, imediatamente depois do jantar, Winifred se dirigiu

ao pai para lhe dar o beijo de despedida, ele olhou-a com olhos tão cheios de interrogação e tristeza que ela pôs na voz toda a consolação que pôde:

- Está tudo muito bem, papá querido. Não se preocupe. Eu não preciso de nada... ele está muito manso. Nós só nos preocuparemos por causa do senhor. Boa noite. Deus o abençoe!

James repetiu as palavras «Deus o abençoe!», como se não soubesse realmente o que elas significavam,, e os seus olhos acompanharam a filha para além da porta.

Winifred chegou a casa antes das nove e subiu directamente para o primeiro andar.

Dartie estava deitado na cama do quarto de vestir. Mudara toda a roupa e vestia agora um fato azul, com sapatos rasos, cruzara o braço sob a cabeça e um cigarro apagado pendia-lhe da boca.

Winifred comparou-o - com uma sensação de ridículo - às flores da sua varanda num dia abrasador de Estio. Era assim que elas caíam e assim ficavam, desmaiadas, mas já um pouco mais vivas depois que o Sol se punha. Parecia-lhe que um orvalho benéfico já rociara o seu devastado marido.

Ele disse, com indiferença:

- Creio que você esteve em Park Lane. Como vai o velho? Winifred não pôde evitar a resposta amarga:

- Ainda não morreu. - Ele, magoado, encolheu-se. - Escute, Monty. Eu não admitirei que ele seja perturbado. Se não pretende comportar-se decentemente, é melhor que se vá embora, que vá para qualquer parte. Já jantou?

- Não.

- Quer comer qualquer coisa? Ele ergueu os ombros.

- Imogen já me ofereceu. Não quis.

Imogen! Na plenitude da sua emoção, Winifred esquecera a filha.

- Você viu-a? Que disse ela?

- Beijou-me.

Winifred viu, mortificada, que a face escura e sardónica dele se abrandava. «É isso», pensou ela. «Ele preocupa-se com a filha, não comigo.»

Os olhos de Dartie moviam-se de um lado para outro.

- Imogen sabe de alguma coisa a meu respeito? - perguntou ele.

Winifred compreendeu num relance que aquela era a arma de que ela precisava: ele receava que soubessem.

- Não. Val sabe. Os outros não, sabem apenas que você se foi embora. - Ouviu-o suspirar, aliviado. - Mas eles hão-de saber tudo - continuou firmemente -, se você me der motivos para isso.

- Muito bem! - murmurou ele. - Bata-me! Estou por terra! Winifred caminhou para a cama.

- Olhe, Monty. Eu não quero magoá-lo. Não quero feri-lo. Não pretendo aludir a nada. Não pretendo fazer barulho. Qual seria a utilidade disso? - Ficou silenciosa um instante. - Mas não posso aguentar mais, nem o quero! É melhor que você saiba. Fez-me sofrer muito. Mas já me acostumei a gostar de si. E por isso...

Ela cruzou o pesado olhar dos olhos castanihos dele com a luz pálida dos seus olhos esverdeados, tocou-lhe subitamente a mão e dirigiu-se para o seu próprio quarto.

Sentou-se durante um longo espaço de tempo defronte do espelho, brincando com os anéis nos dedos, pensando naquele homem que ela domara, que lhe era quase um estranho, deitado na cama do outro quarto, resolvida a «não fazer barulho», mas, devorada de ciúmes - ciúmes pelo que ele fizera - e, ao mesmo tempo, presa de uma intensa piedade.

 

UMA NOITE DE ORGIA

Soames assistia sombriamente à chegada da Primavera - tarefa penosa para quem está consciente de que o tempo voa-, sem entretanto sentir mais próximo das suas mãos o pássaro que cobiçava, sem conseguir libertar-se da teia invisível que o enredava,. Mr. Polteed não dava novidade nenhuma - apenas que a vigilância continuava - e custava um horror de dinheiro. Val e o primo haviam seguido para a guerra, donde vinham notícias mais favoráveis. Dartie ia-se mantendo razoavelmente, James agarrava-se à saúde, os negócios progrediam quase assustadoramente. Portanto, nada havia a perturbar Soames além da sensação de estar preso àquela teia, sem poder dar um passo em qualquer direcção.

Não chegou propriamente a evitar o Soho, porque não queria fazê-las pensar que «desaparecera», como teria dito James. Mesmo porque ele poderia precisar de «reaparecer» a qualquer momento. Porém estava a ser tão restrito e cauteloso a esse respeito que muitas vezes passava pela porta do Restaurant Bretagne sem entrar e vagueava pelas vizinhanças do prédio, que, por ser situado em tal zona, sempre lhe dera a sensação de uma propriedade ilegal.

Vagueava pois, assim, numa noite de Maio, em Regent Street, por entre a mais estranha multidão que jamais vira. Uma multidão ruidosa, jovial, formidável, que assobiava, bailava e gania., pondo na cara narizes postiços, máscaras grotescas, penachos - todos os aparatos da sandice, conforme Soames pensava.

Mafeking! Realmente, fora um alívio. Deus do Céu! E seria isso uma desculpa? Quem era aquela gente, onde vivia., donde viera para se aglomerar no West End? Faziam-lhe cócegas no rosto, assobiavam-lhe aos ouvidos. As raparigas gritavam: «Tira o chapéu, boneco!» Um moço, com um piparote, derrubou-lhe a cartola, e ele recuperou-a com dificuldade. Explodiam-lhe bombas mesmo debaixo do nariz ou entre os pés. Ele sentia-se perdido, exasperado, ofendido. Aquela vaga imensa de gente que vinha de todos os bairros, como se houvessem num ímpeto rebentado todos os portões divisórios-, era como um rio de águas estranhas, em cuja existência ele já ouvira falar, talvez, mas na qual nunca acreditara. Aquilo era então a populaça, a inumerável e vívida negação dos refinamentos do forsytismo! Aquilo era - por Deus! - a Democracia! E o seu cheiro, os seus berros, eram hediondos! No East End, no Soho. talvez fossem toleráveis, mas ali, em Regent Street, em Piccadilly! Que fazia a polícia? Em 1900, Soames, como milhares de Forsytes, nunca havia visto o caldeirão com a tampa retirada, e agora, olhando para dentro dele, dificilmente podia acreditar no testemunho dos seus olhos abrasados. Era inexprimível, aquilo tudo! Aquela gente não aceitava qualquer restrição e parecia levá-lo na troça. Enxameava ali - rude, brutal, rindo... que risadas! Nada lhes parecia sagrado! Não se surpreenderia se começassem a quebrar as vidraças. Em Pall Mall, junto àquelas augustas mansões - os clubes - cuja entrada custa sessenta libras, a mesma multidão ululante, irreverente, jovial, dançava loucamente pela rua. Das janelas dos clubes, os seus próprios correligionários olhavam para fora, com comedido divertimento. Eles não compreendiam então! Porque aquilo era sério - aquilo poderia conduzir a tudo! A multidão estava alegre hoje, mas qualquer dia poderia estar de humor diferente! Lembrou-se de que ali mesmo houvera um motim, lá pelos anos de oitenta,, quando ele estava em Brighton, e tinham quebrado coisas e feito discursos. Porém, mais do que receio, o que Soames sentia era uma profunda surpresa. Aquela gente era histérica - não parecia inglesa! E tudo isso por causa da libertação de uma cidadezinha - uma cidadezinha do tamanho de Watford, a seis mil milhas de distância. Autodomínio, reserva! Essas qualidades, que lhe eram quase mais caras que a vida, esses indispensáveis atributos da propriedade e da cultura, onde estariam? Aquilo já não era a Inglaterra! Não, não era a Inglaterra!

Assim cogitava Soames, prosseguindo o seu caminho como podia. Era como se subitamente houvesse descoberto qualquer coisa que mutilasse o direito de «propriedade pacífica e total» dos seus documentos legais ou se avistasse um monstro que se emboscava e ameaçava o futuro, cobrindo-o já com a sua sombra.

Aquela falta de compostura, aquela falta de reverência! Era como se ele descobrisse que nove décimos da população da Inglaterra se compunha de estrangeiros. E se era assim, se isso era verdade, então muita coisa poderia acontecer!

Em Hyde Park Corner, esbarrou em George Forsyte, muito queimado do sol que apanhava nos prados de corridas, com um nariz postiço na mão.

- Olá, Soames - disse ele. - Tome um nariz! - Soames respondeu com um sorriso pálido. - Apanhei isto a um desses sportsmen - continuou George, que evidentemente voltava de um jantar bem regado. - Tive de derrubá-lo, porque estava a tentar arrancar- me o chapéu. Digo-lhe que qualquer dia teremos de lutar com esses sujeitos. Estão terrivelmente insolentes... todos esses radicais e socialistas. Querem os nossos proventos. Você deve contar isso ao tio James, há-de ajudá-lo a dormir.

«In vino ventas», pensou Soames. Porém apenas abanou a cabeça e passou para Hamilton Place. Em Park Lane só havia um punhado de foliões, não muito barulhentos. E, erguendo o olhar para as casas, Soames pensou: «Afinal, somos os alicerces do país. Não conseguirão derrubarnnos facilmente. Nove décimos da lei beneficiam a propriedade.»

Mas, quando fechou atrás de si a porta da casa do pai, todo aquele pesadelo orgíaco passou-lhe pelo espírito, como se, depois de um sonho, despertasse no conforto aquecido e limpo do seu leito macio.

Caminhando pelo meio da grande sala de estar, vazia, parou um instante. Precisava de uma mulher! Alguém para falar, para trocar ideias. Era o seu direito! Cos diabos! O seu direito!

 

SOAMES EM PARIS

Soames viajara pouco. Aos dezanove anos, fizera o petit tour com o pai, a mãe e Winifred: Bruxelas, o Reno, a Suíça, e a volta para casa, via Paris. Aos trinta e sete anos, quando começava a tomar interesse pela pintura, passara na Itália oito semanas de Verão, vendo a arte da Renascença - um pouco diferente do que esperara encontrar. Na volta, demorara-se quinze dias em Paris, sempre metido consigo, como acontece com qualquer Forsyte cercado por um povo tão fortemente caracterizado e «estrangeiro» como é o francês. Os seus conhecimentos do francês haviam sido aprendidos na escola secundária, de forma que não o compreendia quando o falavam. E, assim, preferira sempre manter-se silencioso em toda a parte, não correria perigo de que o levassem ao ridículo. Desagradavam-lhe o corte das roupas masculinas, os carros fechados, os teatros, que pareciam colmeias, as exposições, que cheiravam a cera. Era muito cuidadoso e tímido para explorar aquele lado de Paris que os Forsyte supõem constituir a atracção escusa da cidade e, quanto a aquisições para a sua colecção, não fizera nenhuma. Como diria Nicholas - eram todos um bando de esganados. E voltara mal satisfeito, dizendo que Paris era imerecidamente louvada.

Quando, pois, voltou a Paris em 1900, era aquela a sua terceira experiência no centro da civilização. Dessa vez, no entanto, era a montanha que ia ao encontro de Maomé.

Porque ele sentia-se agora mais profundamente civilizado do que Paris, e talvez realmente o fosse. E, além disso, tinha um objectivo definido.

A sua viagem não representava uma mera genuflexão ante um templo de bom gosto e imoralidade, mas a prossecução dos seus próprios e legítimos negócios. E ele viera, realmente, porque as coisas já se iam tornando ridículas. O tempo andava - e nada. nada! Jolyon não voltara a Paris, e ninguém mais era «suspeito»! Ocupado com casos novos e confidenciais, Soames ia-se compenetrando, dia a dia, quanto é essencial a um «solicitador» uma reputação imaculada. Porém, à noite e nos momentos de folga, ele sentia-se devastado pelo pensamento de que o tempo corria, o dinheiro corria, e o seu futuro continuava tão confuso como antes. Desde a noite de Mafeking descobrira que um «jovem médico, doidivanas», andava a rondar em torno de Annette. Duas vezes se encontrara com ele - um moço estúrdio e jovial, com pouco mais de trinta anos. E nada irritava mais Soames que a jovialidade - qualidade indecente, extravagante, sem nenhuma relação com os factos da vida. Numa palavra: a mistura dos seus desejos e esperanças transformara-se numa tortura. E ultimamente ocorrera-lhe o pensamento de que Irene talvez já soubesse que estava a ser seguida. Foi isso que acabou por resolvê-lo a ir a Paris e ver as coisas por si mesmo, ir lá e tentar mais uma vez quebrar-lhe a repugnância, a sua recusa em aplanar e suavizar a vida de ambos. Se fracassasse novamente... bem, de qualquer forma poderia verificar o que ela estava a fazer.

Foi para um hotel na Rue Caumartin, muito recomendado aos Forsytes, onde praticamente ninguém falava francês. Não formara nenhum plano. Não queria assustá-la. Bastava fazê-la crer que não lhe adiantava tentar escapar-se dele pela fuga. E na manhã seguinte levantou-se com um tempo esplêndido.

Paris tinha um ar de alegria, uma tal cintilação na sua forma estrelada, que quase irritava Soames. E ele caminhava gravemente, com o nariz um pouco erguido, numa curiosidade real. Desejava agora compreender as coisas da França. Não era Annette francesa? Tinha muito a aproveitar com aquela visita - mas poderia aproveitar? E, com esses louváveis intuitos, já estava quase a percorrer pela terceira vez a Place de La Concorde. Entrou pelo Coars La Reine, onde estava situado o hotel de Irene - e chegou lá quase subitamente, porque ainda não resolvera nada do que deveria fazer. Atravessando para a outra margem do rio, estudava o edifício, de aspecto alegre, com toldos verdes, visto através de uma cortina de folhas de plátanos. E, certo de que seria melhor encontrá-la casualmente nalgum lugar público, em vez de se arriscar a uma visita, sentou-se num banco donde poderia observar a porta do hotel. Ainda não eram onze horas, e seria improvável que ela já houvesse saído. Alguns pombos esgravatavam por ali e aqueciam a plumagem nas réstias de sol, entre a folhagem dos plátanos. Um trabalhador passou e atirou-lhes as migalhas do seu almoço, enroladas num pedaço de jornal. Uma bonne, com uma touca na cabeça, acompanhava duas rapariguinhas de tranças e calcinhas de rendas. Rolava perto um cab, cujo cocheiro usava um casaco azul e chapéu lustroso. A Soames, parecia que tudo aquilo tinha um ar afectado, composto - uma espécie de pitoresco anacrónico. Que povo teatral, o francês! Acendeu um dos seus raros cigarros, com um sentimento de rancor contra o destino que o arrastara a terras tão estranhas. Não se admiraria se Irene gostasse daquela vida estrangeira. Ela nunca fora propriamente inglesa

- bastava olhá-la para o ver! E começou a pensar que janela seria a dela, sob aqueles toldos verdes. Que palavras poderia ele dizer, capazes de lhe penetrarem a orgulhosa obstinação? Atirou a ponta do cigarro a um pombo, enquanto cogitava: «Não posso ficar aqui para sempre, a rodar os polegares. É melhor ir-me embora e vir visitá-la à tarde.» Mas continuou ali, ouviu bater doze horas, depois meia hora. «Esperarei até à uma hora», pensou ele, «já que esperei até agora.» Porém nesse mesmo instante ergueu-se precipitadamente, mas tornou a sentar-se, rápido. Uma mulher de vestido creme aproximava-se, com uma sombrinha bege. Era Irene! Esperou até que ela se afastasse o bastante para não o reconhecer, depois pôs-se a caminhar atrás dela. Irene andava lentamente, como se não tivesse nenhum objectivo especial, dirigia-se, se ele não se enganava, para o Bois de Boulogne. Durante meia hora acompanhou-a, guardando sempre a mesma distância, até que ela entrou no Bois. Iria encontrar alguém lá? Algum maldito francês

- um desses sujeitos, tipo Bel Ami, que não têm nada a fazer

além de rondar em torno das mulheres? Ele lera aquele livro com dificuldade e com uma espécie de enojada fascinação.

Seguiu-a soturnamente ao longo de uma álea sombreada, perdendo-a de vista, recobrando-a depois, nas curvas do caminho. E lembrou-se de si, muitos anos atrás, quando uma noite, no Hyde Park, deslizara de árvore em árvore, como uma cobra, de cadeira em cadeira, numa caçada cega, ridícula, devorado de ciúmes por causa dela e do moço Bosinney. O caminho terminava subitamente, e, assustado, Soames deu com Irene sentada em frente a uma fonte - uma pequena Níobe de bronze esverdeado, vestida com os cabelos que lhe caíam até aos quadris, fitando o tanque de lágrimas que chorara. Aproximou-se da mulher tão rapidamente que já quase a ultrapassara quando se voltou e tirou o chapéu. Ela não fez nenhum movimento especial. Sempre tivera grande domínio sobre si mesma - era uma das coisas que ele mais lhe admirava, uma das suas grandes queixas contra a mulher, porque nunca lhe fora possível descobrir em que estaria ela a pensar. Teria ela compreendido que ele a seguira? A sua calma encolerizou-o e, desdenhando explicar a sua presença, Soames apontou para a pequena e melancólica Níobe e disse:

- É realmente uma bela coisa. - Pôde verificar então que ela lutava para se manter serena. - Eu não quis assustá-la. É este um dos seus refúgios?

- É.

- Um pouco isolado.

Enquanto ele falava, uma senhora, em andar de passeio, parou um pouco para olhar a fonte e passou por eles. Os olhos de Irene seguiram-na.

- Não - disse ela, picando o chão com a ponteira da sombrinha. - Nunca estou isolada. Todos temos a nossa sombra.

Soames compreendeu e, olhando-a duramente, exclamou:

- Bem, mas a culpa é sua. Pode livrar-se disso a qualquer momento. Irene, volte para mim e liberte-se. - Irene riu. - Não ria! - exclamou Soames, batendo o pé. - Isso é inumano. Escute: não há nenhuma condição que eu possa propor-lhe para a sua volta a casa? E se eu lhe prometer uma casa separada, que só visitarei uma vez por outra?

Irene ergueu-se, com qualquer coisa de selvagem brilhando-lhe subitamente no rosto e no corpo.

- Não! Não! Não! Você pode perseguir-me até ao túmulo! Nunca voltarei!

Ultrajado, humilhado, Soames bateu em retirada.

- Não faça uma cena! - disse ele rudemente. E ambos ficaram de pé, imóveis, olhando para a pequena Níobe, cuja nudez esverdeada o sol iluminava. - É essa então a sua última palavra? - murmurou Soames, cerrando as mãos. - Você condena-nos a ambos.

Irene inclinou a cabeça.

- Não posso voltar. Adeus.

Um sentimento de monstruosa injustiça feriu em cheio Soames.

- Um momento! - disse ele. - Escute-me um instante. Você assumiu para comigo um compromisso sagrado... e veio para mim sem um penny na mão. E teve tudo que eu pude dar-lhe. Você quebrou esse compromisso sem qualquer motivo, foi falsa e desleal comigo. Recusou-me um filho, deixou-me prisioneiro. E, apesar de tudo, representa tanto para mim que eu ainda a quero... ainda a quero. Diga-me agora que é que você pensa de si própria?

Irene voltou-se com o rosto mortalmente pálido, os olhos escuros a faiscar.

- Deus fez-me assim como sou - disse ela. - Perversa, se você o quer, mas não tão perversa a ponto de me entregar outra vez a um homem a quem tenho ódio.

A luz do sol reflectia-se nos seus cabelos louros enquanto ela se afastava e parecia acariciar o seu macio vestido creme.

Soames não pôde falar nem mover-se. Aquela palavra «ódio», tão extremada, tão primitiva, fazia tremer todo o Forsyte que havia nele. Com uma maldição íntima, atirou-se para a frente, para onde ela desaparecera, e quase caiu nos braços da senhora que a seguia - a idiota, a idiota vigilante!

Pouco depois, estava, gotejante de suor, numa das áleas do Bois.

«Está bem,», pensou ele. «Já não preciso ter mais qualquer consideração por ela. Ela não teve consideração nenhuma por mim. Vou mostrar-lhe ainda hoje se é minha mulher ou não.»

Mas no seu caminho de volta para o hotel foi forçado a concluir que ele próprio não sabia o que significava a sua ameaça. Ninguém pode fazer cenas em público. E, além de cenas em público, que podia mais ele fazer? E quase amaldiçoou a própria estupidez. Ela não merecia qualquer consideração. Porém ele merecia consideração de si próprio. E sentado, sem ter querido almoçar, no hall do seu hotel, no qual os turistas passavam a todo o momento de Badeker na mão, sentia-se possuído pelo mais negro desânimo. A ferros! A sua vida inteira, com todos os seus naturais instintos e decentes aspirações empenhados e atados - tudo porque o Destino, dezassete anos antes, entregara o seu coração àquela mulher. E tão completamente que, mesmo hoje, ele não dispunha de coração para o dar a outra mulher. Amaldiçoado o dia em que a encontrara, amaldiçoados os seus olhos por não terem visto nela senão a cruel Vénus que ela era! E no entanto, recordando-a como a vira há pouco, com o seu macio vestido de crepe-da-china banhado pela luz do sol, não pôde suster um pequeno gemido, e um turista que passava, ouvindo-o, pensou: «Esse homem está com alguma cólica? Vejamos! Que foi que comemos ao almoço?»

Mais tarde, defronte do café que ficava próximo da Ópera, junto a um copo de chá frio com limão e um canudo de palha dentro dele, Soames tomou a maliciosa resolução de ir jantar no hotel de Irene. Se ela estivesse lá, poderia falar-lhe. Se não estivesse, deixar-lhe-ia um bilhete. Vestiu-se cuidadosamente e escreveu o seguinte:

 

O seu idílio com aquele sujeito Jolyon Forsyte é-me conhecido em todos os pormenores. Se você prosseguir nisso, fica entendido que não deixarei de virar uma única pedra para tornar a vida dele insuportável.

  1. F.

 

Selou o envelope, mas não lhe pôs endereço, recusando-se a escrever o nome de solteira que ela impudentemente adoptara ou pôr o nome Forsyte, com receio de que ela não o abrisse. Depois pôs-se a caminho, percorrendo as ruas luminosas, abandonadas aos caçadores de prazeres nocturnos. Entrando no hotel dela, tomou lugar num canto afastado da sala de refeições, donde poderia avistar todas as entradas e saídas. Ela ainda não estava lá. Comeu pouco, rapidamente, preocupado. Ela não apareceu. Soames demorou-se na antecâmara, depois do café, bebeu dois cálices de brandy. Porém ela não apareceu. Procurou a lista dos hóspedes e percorreu os nomes. Número 12, primeiro andar! E resolveu-se a entregar ele próprio o bilhete. Subiu os degraus, cobertos por uma passadeira vermelha, e passou um pequeno salão. Oito... dez... doze! Deveria bater, atirar o bilhete por baixo da porta, ou...? Olhou furtivamente em torno e girou o trinco. A porta abriu-se, mas dava apenas para um pequeno espaço que levava a outra porta. Bateu nessa outra porta - mas não recebeu resposta. A porta estava fechada. Ia até muito perto do chão, o bilhete não passava na estreita frincha. Meteu-o de novo no bolso e ficou um instante escutando. Sentiu uma impressão absoluta de que ela não estava ali. E subitamente foi-se embora, atravessando o salão e descendo a escada. Parou na recepção e perguntou:

- O senhor quer ter a bondade de entregar este bilhete a Mrs. Heron?

- Madame Heron partiu hoje, monsieur. Partiu subitamente, às três horas. Motivo de doença na família.

Soames apertou os lábios.

- Oh!-exclamou ele. - E o senhor sabe o endereço dela?

- Non, monsieur. Inglaterra, creio.

Soames tornou a pôr o bilhete no bolso e saiu. Chamou um carro aberto que ia a passar.

- Leve-me a qualquer parte!

O homem, que, obviamente, não o compreendera, sorriu e fez estalar o chicote. E Soames foi conduzido dentro daquela vitória de rodas amarelas por aquela Paris em forma de estrela com uma paragem aqui e ali e a pergunta: «C'est par ici, monsieur?»

- Não, vá andando!

Até que o homem, desesperado, lançou o carro a trote, e a vitória de rodas amarelas continuou a rodar sem parar através das casas altas e patinadas, das avenidas de plátanos.

«Igual à minha vida», pensava Soames. "Sem objectivo, para cá e para lá!»

 

PRESO À TEIA

Soames voltou à Inglaterra no dia seguinte, e na outra manhã recebeu uma visita de Mr. Polteed, que ostentava uma flor na botoeira e chapéu de coco. Soames chegou-lhe uma cadeira.

- As notícias da guerra não são más, pois não? - disse Mr. Polteed. - Espero que esteja a passar bem, sir.

- Obrigado!

Mr. Polteed inclinou-se para trás, sorriu, abriu a mão, olhou para dentro dela e disse brandamente:

- Creio que, finalmente, conseguimos o que o senhor pretendia.

- O quê! - exclamou Soames.

- Dezanove relatórios que, segundo penso, poderão perfeitamente apoiar uma alegação de provas concludentes.

E Mr. Polteed calou-se.

- E então?

- No dia 10 do corrente, depois de testemunhar um encontro entre 17 e uma terceira pessoa, 19 pode jurar que o viu a sair do quarto de dormir dela, no hotel, às 10 horas da noite. Com siderado bastante, especialmente porque 17 deixou Paris... e indiscutivelmente com o cavalheiro em questão. Realmente ambos deixaram a cidade, e ainda não os tornámos a apanhar. Mas havemos de o conseguir. A nossa agente trabalhou duramente, em circunstâncias difíceis, e estou satisfeito por ter chegado a um resultado.

Mr. Polteed tirou um cigarro, bateu-lhe a ponta na mesa, olhou para Soames e tornou a guardá-lo. A expressão do rosto do seu cliente não era animadora.

- Quem é essa nova pessoa? - perguntou Soames abruptamente.

- Isso não sabemos. Mas a nossa agente pode jurar que o viu e descrever a sua aparência. - Mr. Polteed apanhou uma carta e começou a ler: «Homem de meia-idade, estatura mediana, fato azul, à tarde, smoking à noite, pálido, cabelo escuro, bigodinho escuro, faces lisas, queixo grande, olhos pardos, pé pequeno, ar culpado...»

Soames ergueu-se e caminhou até à janela. E parou ali, possuído por uma fúria sardónica. Idiota de nascença, aranha idiota de nascença! Sete meses a quinze libras por semana - para ser seguido como amante da própria mulher! Ar culpado! E escancarou a janela.

- Está calor - disse ele. E voltou a sentar-se. Cruzando os joelhos, lançou um olhar sombrio a Mr. Polteed. - Não creio que isso seja bastante -disse ele, mastigando as palavras -, sem dar nome nem endereço. Creio que os senhores devem dar um descanso à senhora e tomar de novo o fio da meada pelo nosso amigo 47.

Não poderia dizer se Polteed o teria identificado ou não. Porém tinha uma visão mental de si próprio, no meio do pessoal de Polteed, dissolvido em inextinguíveis gargalhadas. «Ar culpado! Com mil demónios!»

Mr. Polteed disse num tom ansioso, quase patético:

- Posso garantir ao senhor que já temos tido êxito com elementos ainda mais precários que estes. É Paris, o senhor sabe. Uma mulher atraente que vive sozinha. Porque não arriscar, sir? Acho que poderemos muito bem empregar este pretexto.

Soames teve uma súbita visão: o zelo profissional do homem espicaçado: «O maior triunfo da minha carreira! Obtive o divórcio de um cliente com o testemunho de uma visita dele ao quarto de dormir da própria mulher! É uma coisa de que poderei gabar-me depois de aposentado!»

E, por um rápido momento, ele próprio pensou: «E porque não? Afinal, centenas de homens de estatura média têm pé pequeno e ar culpado!»

- Não estou autorizado a correr nenhum risco - disse ele laconicamente.

Mr. Polteed ergueu os olhos.

- É pena - disse ele-, realmente é uma pena. A outra pista parece muito dispendiosa.

Soames ergueu-se.

- Não se preocupe com isso. Faça o favor de mandar vigiar 47, e tome cuidado em não cometer nenhum equívoco. Até logo!

Os olhos de Mr. Polteed piscaram ante a palavra «equívoca»..

- Muito bem. Procuraremos estar bem informados,

E Soames viu-se novamente a sós. Que caso emaranhado, confuso, ridículo! Estirando os braços sobre a mesa, deitou neles a fronte. Durante dez minutos ficou assim, até que um escrevente entrou com um dossier de partilhas entre Manifold e Topping.

Naquela tarde ele deixou cedo o trabalho e dirigiu-se ao Restaurant Bretagne. Só Madame Lamotte estava em casa. Quereria monsieur tomar um pouco de chá em companhia dela?

Soames assentiu.

Quando estavam ambos sentados, em ângulo recto um com o outro, na pequena sala, ele disse abruptamente:

- Preciso falar com a senhora, madame. - O rápido clarão que passou pelos límpidos olhos castanhos da mulher mostrou-lhe que ela há muito tempo esperava aquelas palavras. - Primeiro, quero perguntar-lhe uma coisa. Aquele moço médico... como se chama?... há alguma coisa entre ele e Annette?

Madame Lamotte tornara-se de súbito como se fosse toda feita de azeviche: cortante, negra, áspera, luzente.

- Annette é jovem - disse ela. - E também o é monsieur le docteur. Entre gente moça, as coisas marcham rapidamente: porém Annette é uma boa filha. Ah, que jóia que ela é!

Essa exclamação final fez aparecer um sorriso nos lábios de Soames.

- Então não há nada de definitivo?

- Definitivo... não, com efeito! O rapaz é muito simpático, porém, que quer o senhor? Ainda não tem um vintém!

E ergueu a chávena de porcelana, Soames fez o mesmo. Os olhos de ambos encontraram-se.

- Eu sou casado - disse ele - e vivo separado de minha mulher há muitos anos. Estou agora a divorciar-me dela. - Madame Lamotte depôs a chávena. «Com efeito. Como acontecem coisas trágicas a uma pessoa.» A completa ausência de sentimentos dela produziu uma estranha espécie de desdém em Soames. - Sou rico - prosseguiu ele, inteiramente consciente de que aquela observação não era de bom gosto. - É inútil dizer mais. neste momento, mas creio que a senhora me compreende.

Os olhos de madame, tão abertos que mostravam toda a córnea, fitaram-no bem de frente.

- Ah!... Ça... mais nous avons le temps! - foi o que ela disse. - Mais uma xícara?

Soames recusou, e, despedindo-se, saiu.

Podia agora ficar tranquilo. Ela não consentiria que Annette se comprometesse com aquele cretino antes que... Porém, que probabilidades tinha ele de um dia dizer «Estou livre»? Que probabilidades? O futuro perdera todo o aspecto de realidade. Ele sentia-se igual a uma mosca, presa entre os fios de uma teia de aranha, olhando para a maravilhosa liberdade do ar com olhos magoados.

Sentia-se carecido de exercício e pôs-se a caminhar para Kensington Gardens, atravessou Queen's Cate em direcção a Chelsea. Talvez Irene houvesse voltado ao apartamento. E ele poderia descobrir alguma coisa. Porque, desde a sua última e ignominiosa recusa, o seu amor-próprio ofendido refugiara-se na crença de que ela deveria ter um amante. Chegou defronte de Little Mansions à hora do jantar. Mas não houve necessidade de fazer indagações. Uma cabeça grisalha de mulher estava a regar os vasos de flores da janela de Irene, o apartamento fora evidentemente alugado. Ele caminhou lentamente para diante, ao longo do rio - numa tarde de clara e silenciosa beleza, tudo cheio de harmonia e paz. excepto dentro do seu coração.

 

RICHMOND PARK

Na tarde em que Soames atravessou o canal em direcção à França, Jolyon recebeu em Robin Hill o seguinte telegrama:

 

Seu filho doente de tifo sem perigo imediato telegrafaremos notícias.

 

A casa já estava agitada pela iminente partida de June - que embarcaria no dia seguinte-, quando o telegrama chegou. E ela estava a fazer a entrega ao pai de Eric Cobbley e da sua família quando o despacho chegou.

A resolução de servir como enfermeira da Cruz Vermelha que June tomara logo após o alistamento de Jolly estava a ser lealmente executada, a despeito da irritação e a mágoa que ela sentia, como o sentem todos os Forsyte ante tudo que lhes mutila a liberdade individual. Entusiasmada a princípio pela «sublimidade» do trabalho, June começou, passado um mês, a considerar que ela poderia dirigir-se a si própria muito melhor do que poderiam dirigi-la os outros. E, se Holly não tivesse insistido em seguir-lhe o exemplo e não estivesse a cursar a escola de treino, June, inevitavelmente, teria voltado a trás. A partida de Jolly e Val, que embarcaram em Abril, juntamente com os seus batalhões, estimulara a princípio a sua resolução vacilante. Mas agora no momento de partir por sua vez, o pensamento de deixar Eric Cobbley, com a mulher e os dois filhos, atirado no ambiente gelado de um mundo que o desconhecia, pesava tanto sobre ela que quase a fazia desistir.

Mas a leitura do telegrama, com a sua inquietadora realidade, decidiu a questão. Ela já se via a tratar de Jolly - porque, naturalmente, eles deixá-la-iam tratar do próprio irmão! Jolyon, sempre vago e cheio de dúvidas, não tinha tal esperança. Pobre June! Seria que algum Forsyte da geração dela poderia compreender quanto a vida é rude e brutal? Desde que soubera da chegada do filho a Cape Town, a lembrança dele fora um motivo de tristeza para Jolyon. Não podia habituar-se à ideia de que Jolly estava constantemente a correr perigo. E o telegrama, embora grave, como era, trouxera-lhe quase um alívio. Pelo menos, agora estava a salvo de balas. No entanto, o tifo era uma doença tão virulenta! O Times estava cheio de listas de vítimas dela. Porque não podia ser ele próprio o doente, naquela cama de hospital de além-mar, enquanto o seu filho estaria são e salvo em casa? A capacidade anti-forsytiana de sacrifício dos seus três filhos chegava a assustar Jolyon. Ele desejava ardentemente trocar de lugar com o filho porque o amava, mas não eram motivos pessoais idênticos que os moviam a eles três. E ele só podia concluir disso tudo que aquilo era o sinal de declínio do tipo Forsyte.

No fim da tarde, Holly foi procurá-lo, sob o velho carvalho. Ela crescera muito durante aqueles últimos meses de prática hospitalar, fora de casa. E, vendo-a aproximar-se, o pai pensava: «Essa tem mais juízo que June, embora seja ainda uma criança, mais discernimento. Graças a Deus, não vai embarcar como os outros.» Holly sentou-se no balouço e deixou-se ficar quieta e calada. «Sente isso tudo», pensava Jolyon, «tanto como eu.» E, vendo-lhe os olhos fixos nele, disse:

- Não se preocupe muito, minha filha. Se ele não estivesse doente, poderia estar em perigo muito maior.

Holly saiu do balouço.

- Queria dizer-lhe uma coisa, papá. Foi por minha causa que Jolly se alistou.

- Como?

- Quando o senhor estava em Paris, Val Dartie e eu apaixonámo-nos um pelo outro. Costumávamos passear a cavalo por Richmond Park... e ficámos noivos. Jolly descobriu, e achou que deveria impedi-lo. Por isso desafiou Val a alistar-se! Foi culpa minha, papá. E por isso quero também ir para lá. Porque, se acontecer qualquer coisa a um dos dois, morrerei de remorsos. E, além disso, já tenho tanta prática como June.

Jolyon olhava-a, com uma estupefacção mesclada de ironia. Então estava ali a resposta ao enigma que ele tentara descobrir: os seus filhos, afinal, eram todos Forsyte! Holly devia ter-lhe dito isso há mais tempo! Porém ele deteve as palavras sarcásticas que lhe chegavam aos lábios. A ternura para os jovens era talvez o artigo mais sagrado do seu credo. Ele recebera, indubitavelmente, o que merecia. Noiva! Tão afastado vivia da filha! E de Val Dartie, sobrinho de Soames - pertencente ao lado inimigo! Era tudo imensamente desagradável. Desmontou o cavalete e encostou a tela ao tronco da árvore.

- Você já falou a June?

- Já. Ela prometeu que me arranjará um lugar qualquer no camarote. É uma cabina de um só lugar, mas uma de nós pode dormir no chão. Se o senhor consentir, ela irá pedir permissão para o meu embarque.

- Você é muito criança, minha filha. Eles não consentirão na sua partida.

- June conhece algumas pessoas a quem ela ajudou a ir para Cape Town. Se lá eles não me deixarem trabalhar como enfermeira, poderei continuar a praticar, como estou a praticar aqui. Deixe-me ir, papá!

Jolyon sorriu, porque estava com vontade de chorar.

- Eu nunca impeço ninguém de fazer qualquer coisa - disse. Holly rodeou-lhe o pescoço com os braços.

- Oh, papá, é o melhor pai que há no mundo.

«Isto quer dizer que sou o pior», pensou Jolyon. Se alguma vez ele duvidou do seu credo de tolerância, fê-lo naquele instante.

- Eu não me dou com a família de Val - disse ele. - E não conheço Val, mas Jolly não gosta dele.

Holly olhou para longe e disse:

- Eu amo-o.

- Isso resolve tudo - disse Jolyon secamente.

Mas, vendo a expressão do rosto da filha, beijou-a, cismando: «Haverá algo mais patético que a fé dos jovens?» E, uma vez que ele não a proibia de partir, era lógico que deveria fazer que isso se realizasse da melhor forma possível. E foi à cidade em companhia de June. Graças à persistência dela, ou devido ao facto de o oficial com quem tiveram de tratar ser um velho condiscípulo de Jolyon, foi obtida a permissão para Holly partilhar o camarote de June. Levou-as no dia seguinte à estação de Surbiton, onde as duas se despediram dele e partiram, carregadas de dinheiro, de remédios e das letras de crédito sem as quais os Forsyte nunca empreendem uma viagem.

Voltou à noite para Robin Hill, sob um céu brilhante. As criadas serviram-lhe pressurosas o seu jantar tardio, procurando mostrar que o lastimavam, e Jolyon comeu-o com o maior cuidado, para mostrar que apreciava os sentimentos delas. Mas foi um verdadeiro alívio quando pôde ir fumar o seu charuto no terraço calçado de grandes lajes, cuidadosamente escolhidas pelo jovem Bosinney, de acordo com a sua forma e cor. Sentia a noite fechada em torno de si - uma noite lindíssima, com uma brisa que mal soprava entre as árvores e um perfume tão suave que quase fazia sofrer.

O relvado estava molhado de orvalho, e Jolyon continuou a passear, abaixo e acima, por sobre as lajes, parecia-lhe que não era um só, mas três, caminhando de um extremo ao outro: o pai caminhava do lado da casa, o filho caminhava do lado do terraço, e ambos apoiavam ligeiramente o braço nos seus. Ele não ousava erguer a mão até ao charuto, com receio de os perturbar, e o charuto ardia sozinho, lançando-lhe a cinza sobre o peito, até que lhe caiu dos lábios, que já começavam a arder, aquecidos. Os dois então abandonaram-no e os seus braços caíram, desamparados. Três Jolyons num único Jolyon tinham estado a passear ali!

Ainda se demorou um pouco, atentando nos sons de fora - uma carruagem que passou pela estrada, um comboio longínquo, o cão da granja de Gage, as árvores que sussurravam, o moço da estrebaria que soprava a sua gaita. Uma multidão de estrelas lá em cima - tão luminosas e silentes, tão distantes! A Lua ainda não se via. Havia luz suficiente apenas para lhe deixar ver os pendões sombrios das flores de íris na margem do terraço - a sua flor favorita, porque trazia a própria cor da noite nas pétalas crespas. Voltou para a casa grande, escura, sem um único ser vivo ao lado dele para a compartilhar.

Absoluta solidão! Não poderia continuar a viver ali, sozinho. Mas realmente, enquanto existe beleza ao seu lado, porque há-de um homem sentir-se sozinho? A resposta, como a de tantas outras adivinhas idiotas, é esta: «Sente-se só porque está só. Quanto maior é a beleza, maior é o isolamento, porque o complemento da harmonia é a união. A beleza sozinha não consola ninguém, se a alma está privada do resto.» À noite, doentiamente bela, com os seus cachos de estrelas, com o cheiro do mel e das ervas que subia do campo, ele não podia gozá-la, porque aquela que representava aos seus olhos toda a vida e toda a beleza - a sua encarnação e a sua essência - estava longe, totalmente afastada, agora, pensava ele, por respeito às conveniências da moral.

Dificilmente, dormiu um pouco, tentando penosamente obter aquela resignação que é tão difícil de obter pelos Forsyte - gente habituada a agir à sua própria maneira e cuja abastança já foi amplamente garantida pelos pais. Mas pela madrugada conseguiu adormecer profundamente, e logo começou a sonhar um estranho sonho.

Estava num palco, com cortinas imensamente altas e ricas - tão altas como as estrelas - rodeando em semicírculo uma linha enorme de gambiarras. Ele próprio era muito pequenino, um minúsculo vulto preto errando daqui para ali, e o engraçado é que ele não era apenas ele próprio, mas também Soames, de forma que não se contentava apenas em sentir, mas em vigiar igualmente. Aquele vulto que era ele e Soames tentava encontrar uma saída através das cortinas que, pesadas e sombrias, os rodeavam. Várias vezes atravessou o palco, antes que descobrisse com alegria uma súbita fenda, uma estreita tira de beleza, da cor de flores de íris, semelhante a uma nesga do Paraíso, remota, inefável.

Caminhando apressadamente para atravessar a abertura, viu as cortinas fechadas à sua frente. Amargamente desapontado, ele - ou seria Soames? - foi para o outro lado, e novamente descobriu a fenda entre as cortinas separadas, que novamente se fecharam à sua aproximação. E ficou a caminhar assim, de um para o outro lado, sem nunca encontrar saída, até que acordou com a palavra «Irene» nos lábios. O sonho perturbou-o muito, especialmente por causa daquela identificação entre si e Soames. Na manhã seguinte, sentindo que lhe seria impossível trabalhar, passou o dia a andar no cavalo de Jolly, com o fim de se fatigar. E no segundo dia resolveu ir a Londres, a fim de ver se poderia obter permissão para acompanhar as filhas à África do Sul. E começara justamente a aprontar-se, na manhã seguinte, quando recebeu esta carta:

 

         Meu caro Jolyon,

Green Hotel, Richmond, 20 de Junho,

Você ficará surpreendido quando souber quão próxima estou de si. Paris tornou-se impossível - e eu resolvi voltar para cá, a fim de poder estar ao alcance dos seus conselhos. Será para mim uma felicidade se voltar a vê-lo. Desde que você saiu de Paris, não creio que tenha encontrado alguém com quem valesse a pena trocar uma palavra. Vai tudo bem, relativamente a você e ao seu filho? Ninguém sabe, creio eu, que estou agora aqui.

           Irene

 

Irene a três milhas de distância dele! E, além disso, fugindo! Ficou um momento imóvel, com um estranho sorriso nos lábios. Aquilo era muito mais do que ele ousaria desejar!

Pelo meio-dia, dirigiu-se a pé para Richmond Park, e, enquanto caminhava, cismava: «Richmond Park! Coa breca, parece que ele nos persegue, a nós, Forsyte! Não que os Forsyte vivam aqui - ninguém vive aqui, salvo a família real e alguns couteiros e veados-, mas em Richmond Park a Natureza permite-se ir até muito longe, embora não longe de mais, faz um grande esforço para se mostrar natural e parece dizer: Olhe para os meus instintos - são quase paixões, quase incontroláveis, mas não incontroláveis de todo, é claro.» Sim, Richmond Park possuía-se a si próprio, mesmo naquele luminoso dia de Junho, com cantigas de cuco que desciam como setas do cimo das árvores e as abóbadas verdes e copadas anunciando o ápice do Verão.

O Green Hotel, onde Jolyon entrou à uma hora, ficava exactamente em frente daquela famosa hospedaria, a Crown and Sceptre. Era modesto, altamente respeitável, sem nunca prescindir do rosbife frio e da torta de morangos e da presença de duas respeitáveis viúvas, cuja carruagem e parelha estavam sempre estacionadas à porta.

Numa salinha forrada de cretone, tão discreta que parecia destinada a proibir qualquer emoção, sentada ao piano coberto com uma colcha de croché, Irene tocava Hansel e Gretei, lendo a música num velho álbum. Na parede, acima dela, via-se um retrato da Rainha montada num pónei, entre os seus guarda- caças de capas escocesas, e, no chão, corpos de veados mortos. Junto dela, no parapeito da janela, havia um vaso de fucsias róseas e brancas. O vitorianismo da sala só faltava falar-e, no seu vestido justo ao corpo, Irene pareceu a Jolyon como Vénus emergindo dos destroços do século passado.

- Se o dono do hotel tiver olhos - disse ele -, mandá-la-á embora. Você estraga-lhe toda a decoração.

Dizendo isto, tentava desviar a emoção do momento. E depois de almoçarem o rosbife frio, pickles e torta de groselha, tudo regado a ginger-ale, foram passear no parque, onde a palestra leve foi substituída pelo silêncio que Jolyon receara.

- Você não me falou a respeito de Paris - disse ele finalmente.

- Não. Fui seguida durante muitos dias. A gente acaba por se habituar. Porém depois Soames chegou. Junto da pequena Níobe... a mesma história de sempre... se eu não quereria voltar para ele...

- É incrível!

Ela falara sem levantar os olhos, mas ergueu-os então. E aqueles olhos escuros pregados nele diziam o que as palavras não ousavam exprimir: «Já cheguei ao extremo. Se você me quiser, estou aqui.»

Seria que ele já passara por um momento emocional tão profundo como agora - apesar de já estar tão velho?

As palavras «Irene, adoro-a!» quase lhe escaparam. E então, com uma nitidez de que nunca julgara capaz a sua visão mental, viu Jolly deitado, com o rosto voltado para uma parede, branca.

- Meu filho está muito doente, na África - disse calmamente.

O braço de Irene deslizou ao longo do dele.

- Continuemos a andar. Eu compreendo.

Não era preciso tentar nenhuma explicação miserável! Ela compreendera! Continuaram a caminhar através da relva alta, que lhes chegava aos joelhos, por entre os carvalhos, falando a respeito de Jolly. Duas horas mais tarde ele deixou-a em Richmond Hill Gate e voltou para casa.

«Irene conhece o meu sentimento por ela», pensou Jolyon, Naturalmente! Ninguém poderia esconder uma coisa dessas de tal mulher!»

 

POR SOBRE O RIO

Jolly estava mortalmente cansado de sonhos, sonhos que o tinham deixado fraco e lânguido de mais para poder de novo sonhar. Jazia entorpecido, recordando vagamente coisas longínquas, mal tinha forças para abrir os olhos e fitar através da janela próxima à sua cama de campanha uma nesga de rio correndo entre a areia e as moitas alvadias e ralas do karoo. Agora, Jolly já sabia o que era o karoo, embora não houvesse visto ainda nenhum bóer deslizar através dele como um coelho, nem ouvido o perpassar das balas. A doença derrubara-o antes mesmo que tivesse sentido o cheiro da pólvora. Bastara um gole de água infectada, numa altura de sede, ou um fruto mal lavado - quem sabe? Pelo menos, não o sabia ele, que não tinha energia nem mesmo para disputar a vitória à doença, que mal tinha conhecimento bastante para saber que havia muitos outros estirados ali, ao seu lado, conhecimento apenas para espiar aquela nesga de rio e recordar dèbilmente as suas lembranças longínquas.

O Sol já estava quase escondido. Em breve o tempo esfriaria. Ele gostaria de saber as horas, de sentir na mão o seu velho relógio tão gasto, ouvir bater o seu maquinismo. Aquilo dar-lhe-ia uma sensação de conforto de lar. Não tinha forças suficientes para recordar que o seu velho relógio rebentara de vez no dia em que ele caíra ali.

O cérebro pulsava-lhe tão fracamente que as caras que entravam e saíam - enfermeiras, médicos, ordenanças- eram indistinguíveis, todas lhe pareciam a mesma cara indiferente. As palavras que diziam a seu respeito pareciam-lhe todas a mesma coisa e não significavam quase nada.

Os actos que praticara outrora, embora longínquos e apagados, eram mais distintos: caminhadas pelas velhas calçadas de Harrow - «Aqui, sir! Aqui, sir!»-, o seu gesto de enrolar as botas na Westminster Gazette - o papel era esverdeado, as botas luzentes -, o avô chegando de um lugar qualquer, muito escuro - um cheiro de terra -, a estufa dos cogumelos! Robin Hill. O enterro do cão Balthasar sob as folhas! Papá... lá em casa...

A consciência voltou-lhe, mostrando-lhe que o rio não tinha água e que alguém estava a falar. Queria alguma coisa? Não. Que é que se pode querer?

Muito fraco para querer... apenas ouvir o maquinismo do relógio...

Holly! Não estava a atirar bem a bola! Oh! Mande-a de cima! Não deixe arrastar! «Olhe a curva, número dois!» Ele era o número dois! A consciência voltou de novo, mostrando-lhe uma espécie de nevoeiro roxo lá fora e uma Lua crescente, que ia surgindo, sangrenta. Os seus olhos prenderam-se nela, fascinados. E durante longos minutos de vazio cerebral ele sentiu-se erguido para o alto, para o alto...

- Está a acordar, doutor!

Não ia enrolar novamente as botas? Nunca? «Olhe a forma, número dois! Não chore! Vá serenamente... por sobre o rio... durma! Escuro?» Se alguém quisesse fazer soar... o relógio!

 

SOAMES AGE

Uma carta selada, com o endereço do punho de Mr. Polteed, permaneceu fechada no bolso de Soames durante duas horas, dado que dedicava uma atenção absoluta aos negócios da New Colliery Company, pois a companhia, cujo declínio começara por ocasião da retirada do velho Jolyon da presidência, caíra tão baixo que, agora, só se tratava quase de uma liquidação. Levou depois a carta consigo para o almoço no City Club, que hoje lhe era sagrado por causa das refeições que fizera lá em companhia de James, na década de setenta, quando o pai o trazia ali para o habituar desde cedo à rotina da sua futura profissão. Lá, num canto remoto, defronte de um prato de carneiro assado e puré de batatas, Soames leu:

 

             Prezado senhor,

De acordo com a sua sugestão, passei a ocupar-me com o outro lado e obtive resultados compensadores. A observação de 17 permitiu-nos localizar 17 no Green Hotel, em Richmond. Os dois foram vistos em encontros diários, durante a semana passada, em Richmond Park. Nada de absolutamente crucial foi observado até agora. Porém, em conjunção com o que foi observado em Paris, no começo do ano, tenho a certeza de que poderemos satisfazer o tribunal. Continuaremos, entretanto, a manter a vigilância, até receber as suas prezadas ordens. Atenciosamente,

               Claud Polteed

 

Soames leu duas vezes a carta, depois chamou o criado.

- Leve isso. Está frio.

- Quer que lhe traga outra coisa, sir?

- Não. Leve-me café à outra sala.

E, pagando o que não comera, saiu da sala, passando por dois conhecidos sem dar mostra de os ver.

«Satisfazer o tribunal», pensava ele, sentado junto a uma pequena mesa redonda de mármore, com o café defronte de si. Aquele sujeito, aquele Jolyon! Puxou o café, adoçou-o, bebeu-o. Haveria de infamá-lo aos olhos dos próprios filhos! E, erguendo-se com aquela decisão quente dentro de si, sentiu pela primeira vez a inconveniência de ser o seu próprio advogado. Não poderia tratar aquele escandaloso caso no seu próprio escritório. Tinha de confiar a sua dignidade íntima a um estranho, qualquer outro profissional calejado em desonras de família. A quem procuraria? Linkman & Laver, em Budge Row, talvez - gente de confiança, não muito conhecidos, com quem só tinha relações de cumprimento. Mas, antes de os procurar, tinha de ver Polteed mais uma vez. Porém, a esse pensamento, Soames teve um momento de profunda fraqueza. Separar-se do seu segredo? Como encontrar as palavras? Como submeter-se a si próprio à piedade ostensiva dos outros, à zombaria disfarçada?

Afinal, o camarada já sabia de tudo muito bem - sim, sabia! E, sentindo que devia acabar imediatamente com aquilo, apanhou um cab que o levou ao West End.

Naquele dia quente, a janela de Mr. Polteed estava francamente aberta e a única precaução discreta era uma tela, prevenindo a intrusão de moscas. Duas ou três tinham tentado entrar, mas haviam sido apanhadas pela rede, de forma que pareciam estar ali à espera de que as devorassem. Mr. Polteed, seguindo a direcção do olhar do cliente, ergueu-se, pedindo desculpas, e fechou a janela.

«Presunçoso estúpido!», pensou Soames. Como o fazem todos os que acreditam fundamentalmente em si próprios, não esperou oportunidade e disse com o seu sorriso de viés:

- Recebi a sua carta. E vou agir. Creio que o senhor sabe quem é realmente a senhora que está a vigiar?

A expressão de Mr. Polteed era naquele momento uma obra-prima. Dizia claramente: «Bem, que é que o senhor está a pensar? Porém, o meu conhecimento do facto é puramente profissional- por favor, esqueça-o!» E fez um leve movimento com a mão esquerda, como para dizer: «Tais coisas acontecem a todos!»

- Muito bem, pois - disse Soames, mordendo os lábios. - Não há necessidade de dizer mais nada. Estou a dar instruções a Linkman & Laver para agirem em meu nome. Não quero ver as suas provas, mas tenha a bondade de as transmitir a esses senhores, hoje às cinco horas. Continue a vigilância com o mesmo segredo.

Mr. Polteed semicerrou os olhos, como se começasse a obedecer desde logo.

- Meu caro senhor... - disse ele.

- O senhor está convencido - interrompeu Soames com súbita energia - de que as suas provas são suficientes?

Um ligeiro movimento agitou os ombros de Mr. Polteed.

- O senhor pode arriscar. Com o que temos, e com a natureza humana, o senhor pode arriscar.

Soames ergueu-se.

- Então procure Mr. Linkman. Obrigado. Não se incomode. Não podia suportar ver Mr. Polteed deslizar ao seu lado,

como de costume, até à porta.

Na luz do sol, em Picadilly, enxugou a testa. Passara-se já o momento pior - e ele podia encarar os estranhos melhor que os conhecidos. Voltou para a City, a fim de executar o que ainda lhe restava fazer.

Naquela noite, em Park Lane, assistindo ao jantar do pai, sentia-se possuído pelo seu velho desejo de um filho - um filho que lhe assistisse ao jantar quando ele estivesse velho, um filho para sentar nos joelhos, como James o sentara nos seus, tempos atrás, um filho seu que o pudesse entender porque era da sua carne e do seu sangue - entendê-lo, consolá-lo, que fosse mais culto que ele próprio, porque o seu desejo era melhorar e crescer sempre. Envelhecer - tal como aquele magro, prateado e tão frágil vulto sentado ao seu lado - e sentir-se inteiramente só ao lado das riquezas que acumulara, das propriedades que reunira, não tomar interesse por nada, porque não tinha futuro - e tudo o que era seu passaria para mãos e bocas e olhos estranhos, por quem ele não se interessava! Não! Era preciso aceitar o sacrifício, libertar-se para poder casar, para ter um filho que o cuidasse antes que ele ficasse tão velho como aquele ancião, como seu pai, que a todo o momento levantava a vista do picado de fígado para olhar o filho.

Cogitando nessas coisas, foi para a cama. Porém, deitado entre as finas bretanhas que eram o orgulho de Emily, foi assaltado por lembranças e torturas. Visões de Irene, o sentimento quase material do corpo dela ao seu lado. Porque fora ele tão louco por voltar a vê-la, deixar que aquilo de novo o tomasse de tal modo que lhe causava uma dor atroz pensar nela - ela, em companhia daquele sujeito... aquele ladrão!

 

UM DIA DE VERÃO

O pensamento de Jolyon raras vezes deixou a lembrança do filho nos dias que se seguiram ao seu primeiro passeio em companhia de Irene pelas áleas de Richmond Park. Não chegou nenhuma outra notícia. As suas indagações no War Office não lhe adiantaram nada. E não podia esperar nenhuma informação vinda da parte de June ou de Holly antes de três semanas. Naqueles dias, sentiu bem quão insuficientes eram as suas lembranças de Jolly e que pai dilettante ele fora. Não tinha uma única recordação em que nela a cólera entrasse, nenhuma reconciliação, porque nunca houvera uma briga, nenhuma troca de confidências íntimas, nem mesmo quando a mãe do rapaz morrera. Nada, além de uma semi-irónica afeição. Sempre receara tomar abertamente qualquer direcção, com medo de perder a sua liberdade ou de interferir na liberdade do filho. Só na presença de Irene Jolyon sentia alívio - alívio complicado entretanto pela crescente compreensão de quanto o seu coração estava dividido entre ela e o rapaz. Sentia-se ligado a Jolly pelo sentimento de continuidade e pelo credo social de que se alimentara largamente na sua mocidade e na vida escolar e universitária do filho, aquele sentimento de apoio mútuo e mútuo avanço que tanto pai como filho sempre esperam um do outro. A Irene, ligava-o o amor que ambos tinham pelas coisas belas e pela Natureza. E cada dia parecia-lhe mais difícil distinguir qual era, entre ambos, o laço mais forte dentro de si.

E foi rudemente despertado dessa paralisia sentimental, numa certa Tarde, quando se preparava para sair para Richmond. Um rapaz saltou de uma bicicleta e dirigiu-se a ele, com uma cara estranhamente familiar e um meio sorriso:

- Mr. Jolyon Forsyte? Obrigado!

Depondo um envelope nas mãos de Jolyon, cavalgou a sua máquina e desapareceu no caminho. Intrigado, Jolyon abriu o envelope: «Processo de divórcio: Forsyte versus Forsyte e Forsyte». Uma sensação de vergonha e nojo foi seguida por imediata reacção. «Cá está o que você na verdade queria, e agora não gosta!» Ela, porém, deveria ter recebido uma carta idêntica. Tinha de procurá-la imediatamente. E tratou de pôr-se a caminho. Era um assunto cheio de ironia. Porque, a despeito de tudo o que a Escritura diz acerca dos desejos do coração, é preciso que haja mais que intenção para satisfazer a lei. Eles poderiam perfeitamente defender-se, ou, pelo menos, poderiam tentá-lo, em boa fé. Mas a ideia de se submeter a isso revoltava Jolyon. Porque, se não era seu amante de facto, era-o em desejo, e sabia bem que ela estava pronta a dar-se toda a ele. O rosto de Irene dissera-lhe isso bem claro. Não que ele exagerasse o sentimento dela a seu respeito. Era uma mulher que já passara pela sua grande paixão, e ele não poderia esperar nova paixão, na idade que ela agora tinha. Porém, confiava em Jolyon, estimava-o, devia sentir que ele representava um abrigo. Decerto não iria pedir-lhe que se defendesse da acusação, sabendo que ele a adorava! Graças a Deus, Irene não tinha aquela mórbida consciência britânica que recusa a felicidade pelo simples amor da renúncia! Ela alegrar-se-ia ante a perspectiva de se ver livre-depois de dezassete anos de morte em vida! Quanto à publicidade, o óleo já fora lançado sobre as chamas. A denegação da acusação em nada a diminuiria. E Jolyon tinha naquele momento os legítimos sentimentos de um Forsyte cuja vida íntima é ameaçada: se tinha de cair sob a garra da lei, que isso ao menos lhe rendesse uma vantagem real! Ademais, a ideia de se sentar num banco de testemunhas e jurar que nenhum gesto, nem mesmo uma palavra de amor, fora trocada entre ambos, parecia-lhe mais degradante do que aceitar tacitamente o estigma do adultério - mais legitimamente degradante considerando os sentimentos do seu coração -, e nem por isso a coisa se tornaria menos vergonhosa e prejudicial para os seus filhos.

Horrorizava-o a ideia de explicar diante de um juiz e de doze ingleses de condição mediana os seus encontros em Paris, os seus passeios em Richmond. Horrorizava-o a brutalidade, a hipócrita censura do processo, a probabilidade de não ser acreditado, e a simples evocação de Irene, que, aos seus olhos, representava a própria encarnação da Vida e da Beleza, afrontando todas aquelas suspeitas, apavorava-o. Não, não! Uma defesa representaria apenas um bom divertimento para toda Londres, um bom escândalo para aumentar a tiragem dos jornais. Era mil vezes melhor aproveitar o que Soames e os deuses lhe haviam mandado!

«Além disso», cogitava ainda honestamente ele, «quem sabe se, a despeito do que há com o rapaz, eu poderei manter este estado de coisas por muito tempo? E, de qualquer modo, ela ficaria sempre exposta às vergonhas do processo!»

Tão absorvido estava que não se apercebeu da brusca mudança do céu, que se tornara avermelhado, com grandes traços brancos. Uma grande gota de água esmagou-se como uma estrela na poeira da estrada, quando ele entrou no parque. «Oh», pensou Jolyon, «trovoada! Espero que ela não tenha vindo ao meu encontro. Isto vai ficar tudo alagado.» Mas nesse mesmo instante viu Irene, que atravessava o portão. «O único meio é corrermos para Robin Hill», resolveu ele.

A tempestade passara pelo Poultry às quatro horas, trazendo uma abençoada distracção para os escreventes de todos os escritórios. Soames estava a beber uma chávena de chá quando lhe entregaram um bilhete:

 

           Caro senhor

«Forsyte versus Forsyte e Forsyte»,

De acordo com as suas instruções, temos o prazer de informar que fizemos a entrega pessoal das intimações aos respondentes da sua acção, hoje mesmo, nas residências de ambos, respectivamente em Richmond e Robin Hill. Atenciosamente,

             Linkman & Laver

 

Durante alguns minutos, Soames ficou a olhar o memorando. Desde que dera as instruções, sentira-se tentado a anulá-las. Seria um tal escândalo, uma vergonha tão universal! Além disso, as provas obtidas nunca lhe haviam parecido muito concludentes. De qualquer modo, cada dia acreditava menos que aqueles dois houvessem chegado a tais extremos. É verdade que uma tal intimidade decerto e fatalmente os levaria a isso. E esse pensamento fazia-o sofrer. Aquele sujeito ser amante dela - dela, diante de quem ele, Soames, fracassara! Seria tarde de mais? Agora, que os assustara com a intimação, não disporia de alguma arma que pudesse separá-los? «Porém, se eu não agir imediatamente», cogitava Soames, «será depois tarde de mais - pois eles já foram intimados. Vou procurá-lo. Vou imediatamente!»

E, doentiamente enervado, ansioso, dirigiu-se para um dos novos carros a motor. Seria preciso muito tempo para expulsar do campo aquele sujeito, e sabe Deus que decisão teriam eles tomado depois do choque! «Se eu fosse um comediante», pensava Soames, «deveria ter levado um chicote, ou uma pistola, ou qualquer outra dessas coisas!» E apanhou, em vez disso, uma papelada relativa ao caso «Magentic versus Wake», com intenção de a ler em caminho. Mas nem sequer a abriu. Ficou praticamente imóvel dentro do carro, sacudido, balançado, inconsciente da trepidação que lhe maltratava a nuca ou do cheiro de petróleo. Deveria guiar-se pela atitude do outro. O importante era não perder a cabeça!

Londres já começava a despejar os seus operários quando ele chegou a Putney Bridge. O formigueiro movimentava-se em direcção ao subúrbio. E que multidão de formigas, cada uma cuidando da sua vida e segurando com as antenas a grande migalha! Talvez pela primeira vez na sua vida, Soames pensou: «Eu posso ir-me embora para onde quiser! Nada pode atingir-me!

Posso lamber os dedos, viver como quiser - gozar!» Mas não! Ninguém pode deixar subitamente a sua antiga vida, abandonar tudo. e instalar-se em Cápua, para gastar o dinheiro e a reputação que conquistou. A vida de um homem é o que ele possuiu e sonha possuir. Só os loucos pensam diferentemente - loucos, socialistas e libertinos!

O carro passava agora por ruas de vilas, em grande velocidade. «Quinze milhas por hora, penso eu», dizia a si mesmo Soames. «Isto levará toda a gente a mudar-se para fora da cidade.» E pensou no provável reflexo desse acontecimento sobre as porções de Londres que pertenciam a James - porque ele próprio nunca fizera desses empregos de capital, utilizando as suas reservas apenas em aquisições de quadros.

E o carro aumentou de velocidade para subir a colina que fica depois de Wimbledon Common. Ah, aquele encontro! Decerto um homem de cinquenta e dois anos, com filhos crescidos, um nome artístico conhecido, não iria agir estouvadamente. «Ele não há-de querer cobrir toda a família de vergonha, gostava do pai como eu gosto do meu, e eles eram irmãos. Aquela mulher traz em si uma semente de destruição. Que haverá nela? Nunca o soube.»1

O carro passava agora ao longo de um bosque, e ele escutou o canto de um cuco, talvez o primeiro que ouvia naquele ano. Estava agora quase defronte do local que escolhera primitivamente para sua casa e que fora tão sem-cerimoniosamente recusado por Bosinney em favor da própria escolha dele.

E Soames enxugou com o lenço o rosto e as mãos, aspirando longamente o ar, para se acalmar. «Não perder a cabeça», pensava ele, «não perder a cabeça!»

O carro entrou num caminho que deveria ter sido seu e um som de música chegou-lhe aos ouvidos. Esquecera as filhas de Jolyon.

- Talvez eu volte imediatamente - disse ele ao motorista. - Ou talvez demore um pouco. - E tocou a campainha.

Seguindo a criada, atravessou as cortinas do hall interno, sentindo um alívio íntimo ao pensar que a tensão do encontro seria quebrada graças à presença de Holly ou June ao piano.

Mas, para completa surpresa sua, viu Irene a tocar e Jolyon a ouvi-la, sentado numa cadeira de braços. Ambos se ergueram. O sangue subiu à cabeça de Soames e a sua resolução de se guiar estritamente por isto ou aquilo evaporou-se. E aquele sangue dos seus antepassados, os rústicos Forsyte da beira-mar, transtornou-lhe o rosto.

- Muito bonito! - exclamou ele. Ouviu o outro murmurar:

- Não estamos em local apropriado. Vamos para o escritório, se você não se incomoda.

E ambos passaram pela cortina aberta. No pequeno escritório, onde entrou atrás deles, Irene ficou de pé junto à sacada e o «outro» numa grande cadeira, perto dela. Soames bateu a porta atrás de si. E o som chegou-lhe aos ouvidos igual ao de outra porta batida alguns anos atrás-quando ele expulsara Jolyon por se intrometer nos seus negócios.

- Bem - disse ele -, que é que têm em vosso favor? O sujeito teve a audácia de sorrir.

- O papel que recebemos hoje tira-lhe o direito de nos interrogar. Quero crer que gostaria bem de tirar o pescoço do nó da justiça!

- Oh! - exclamou Soames. - Você pensa assim! Pois vim aqui para lhes dizer que pretendo divorciar-me dela fazendo uso de todos os argumentos capazes de os difamar a ambos, a menos que vocês jurem afastar-se completamente um do outro, de hoje em diante.

Estava espantado da sua própria fluência, porque sentia o espírito ausente e as mãos tremiam-lhe. Nenhum dos dois respondeu, mas o rosto de ambos pareceu-lhe insolente.

- Bem - continuou ele. - Você, Irene?

Os lábios dela moveram-se, mas Jolyon pôs-lhe a mão no braço.

- Deixe-a! - exclamou furiosamente Soames. - Irene, você quer fazer esse juramento?

- Não.

- E você?

- Ainda menos.

- Então, ambos vocês são culpados?

- Sim. Culpados.

Era Irene que falava com aquela voz serena, com aquele ar inatingível que o enlouquecia. E, caminhando para ela, exclamou:

- Você é um demónio!

- Saia! Saia desta casa, se não quer que eu lhe quebre a cara! Aquele sujeito falar em quebrar-lhe a cara! Saberia ele quão próximo estava de ser estrangulado?

- Que procurador, aproveitando-se da procuração! Ladrão, a roubar a mulher do primo!

- Chame-me o que quiser. Você escolheu a sua parte, nós escolhemos a nossa,. Saia!

Se houvesse trazido uma arma, Soames tê-la-ia usado naquele momento.

- Vocês hão-de pagar caro!

- Temos muito prazer em pagar.

Ante aquela irónica deformação do sentido da sua frase feita pelo filho daquele que o apelidara «o Proprietário», Soames parou,, fitando-o. Era ridículo!

E os dois defrontavam-se, possuídos pela violência de alguma força secreta. Nada existia que os apaziguasse, palavra nenhuma os reconciliaria. Mas Soames não sabia como fazer, como voltar as costas e sair. Os seus olhos pousavam-se no rosto de Irene - a última vez que olharia aquele rosto fatal... a última vez, decerto!

- Quanto a você - disse ele subitamente -, espero que ela o trate como tratou a mim. É tudo.

Viu-a estremecer, e, com uma sensação que não era inteiramente de triunfo, nem inteiramente de alívio, precipitou-se para abrir a porta, atravessou o hall e refugiou-se no carro, reclinando-se nas almofadas, de olhos fechados. Nunca na sua vida se sentira tão próximo de uma violência criminosa, nunca tivera de travar uma luta tão forte com a sua segunda natureza. Sentia-se ferido e nu, como se tudo o houvesse abandonado - significado da vida, interesse do trabalho. O sol batia-lhe em cheio - mas ele sentia frio. A cena passada não lhe estava mais presente, porém não conseguia materializar o que tinha pela frente, não podia deter-se em nada. E sentia-se assustado, como se pendesse à borda de um precipício, como se algum mecanismo da sanidade mental lhe estivesse a falhar.

«Não fui feito para isto», pensava ele. «Não devia - não fui feito para isto.»

O carro aumentou de velocidade, e, em procissão mecânica, árvores, casas e pessoas passavam,, mas sem qualquer sentido. «Sinto tudo estranho», continuava a pensar Soames. «Vou tomar um banho turco. Estive... estive muito perto de uma certa coisa. De uma coisa proibida.» O carro trepidava mais por sobre a ponte acima de Fuiham Road, ao longo do parque.

- Para o Haimmaim - disse Soames.

Era curioso como, num dia tão quente, o calor pudesse ser tão confortador! Atravessando a sala cheia de vapor quente, cruzou com George Forsyte, que vinha em sentido contrário, vermelho e luzente.

- Olá - disse George. - Você está a treinar-se para quê? Não me parece que tenha nenhuma gordura supérflua.

Palhaço! Soames passou por ele, sorrindo o seu sorriso de viés. Deitado de costas, coçando a pele irritada pelos primeiros sinais da transpiração, ele pensava: «Deixá-los rir! Não quero importar-me com coisa alguma! Não fui feito para violências. Faz-me mal!»

 

UMA NOITE DE VERÃO

Soames deixou um silêncio mortal no pequeno escritório. - Obrigado pela sua boa mentira - disse subitamente Jolyon. - Vamos sair daqui... o ar já não é o que era! E ao longo do prado do sul, junto do qual plantavam pessegueiros, passearam longamente em silêncio. O velho Jolyon plantara algumas árvores meridionais entre aquele terraço relvado e a encosta, cheia de ranúnculos e margaridas. Havia doze anos que elas vinham florescendo, e agora as suas pequenas espirais escuras já tinham um ar da Itália. Os pássaros cantavam suavemente por entre os arbustos húmidos, as andorinhas desciam rápidas, com um luzir azulado de aço nos pequenos corpos agudos, a relva, refrescada, parecia mais verde e primaveril sob os pés dos caminhantes, as borboletas perseguiam-se umas às outras. Depois daquela cena penosa, a calma da Natureza era maravilhosamente pungente. Junto à parede banhada de sol, ficava um estreito canteiro cheio de nesedas e amores-perfeitos, e, além dos zumbidos das abelhas que lhe voejavam em torno, ouviam-se outros sons: o mugido de uma vaca separada do bezerro, o apelo de um cuco no alto de um choupo, bem no meio do bosque. Quem pensaria que atrás deles, a cerca de dez milhas, Londres começava - a Londres dos Forsyte, com a sua riqueza e as suas misérias, a sua bruma e o seu rumor, as suas ilhas isoladas de pedra e beleza, o seu amplo e horrendo mar de tijolos e estuque?

Aquela Londres que assistira à tragédia de Irene e aos duros dias da mocidade de Jolyon, aquela teia de aranha, aquela fábrica principesca do instinto de propriedade!

Enquanto caminhavam, Jolyon meditava nestas palavras: «Espero que o trate como tratou a mim.» Aquilo dependeria dele próprio. E poderia Jolyon confiar em si próprio? Permitiria a Natureza que um Forsyte não escravizasse aquilo que adorava? Poderia a beleza ser-lhe confiada? Ou seria ela apenas como uma visitante, que chegasse quando quisesse, fosse possuída durante alguns momentos passageiros e só voltasse quando novamente o quisesse?

«Somos uma raça de ladrões - mesquinhos e vorazes. A flor da vida não está protegida contra nós. Deixá-la vir para mim se quiser, quando quiser, ou não vir de todo, se não quiser. Deixar-me ser apenas o seu guarda-costas, o seu repouso. Nunca... nunca a sua prisão!»

Ela era aquela nesga de beleza que ele vira no seu sonho. Seria que, agora,, atravessaria as cortinas e a encontraria? Seria que o rico estofo que emparedava aquele círculo fechado, seria que a prisão do instinto de posse dentro da qual se agitava o pequeno vulto negro formado por ele e Soames se abriria e lhe permitiria atravessá-la e ir ao encontro de alguma coisa que não se ligasse apenas aos sentidos? «Ah, possa eu, possa eu ao menos saber não agarrar nada,, não destruir nada!»

Mas por altura do jantar foi preciso organizar planos. À noite ela não deveria voltar ao hotel, e no dia seguinte ele levá-la-ia a Londres. Daria instruções ao seu advogado, Jack Herring. Não deviam levantar um dedo para impedir a marcha do processo. Revelia, custas - tudo o que eles quisessem -, tudo deveria ser pago e feito, conquanto que ela não tivesse de comparecer perante a justiça! No dia seguinte ele procuraria Herring - iriam ambos até lá e falariam com o advogado. E então partiriam, não suscitariam dúvidas, não levantariam nenhuma dificuldade contra as provas, deixariam que a mentira dela se transformasse em verdade. Jolyon olhou para Irene, e pareceu-lhe, aos seus olhos cheios de adoração, que mais de uma mulher estava sentada ali. O espírito da beleza universal profundo, misterioso, o espírito que os velhos mestres, Ticiano, Giorgione, Botticelli, tinham sabido captar e transferir para o rosto dos seus modelos - aquela beleza volátil que lhe parecia impressa na testa, nos cabelos, nos lábios, nos olhos da amada.

«E tudo isso vai ser meu», pensava ele, «Até me provoca medo.»

Depois do jantar foram tomar café no terraço. Ficaram lá longamente, porque a tarde estava belíssima, e assistiram à lenta chegada da noite de Verão. Dois morcegos voejavam, com o misterioso rumor que eles fazem ao voar. Jolyon colocara as cadeiras defronte da sacada do escritório e as mariposas acorriam para visitar a discreta luz que de lá chegava. Não havia vento, nem mesmo um murmúrio nas folhas do carvalho, a vinte metros de distância. A Lua subiu por sobre o bosque, grande, cheia. E as duas luzes lutaram, até que o luar venceu, mudando a cor e a qualidade de todo o jardim, deslizando ao longo das lajes do chão, atingindo os pés de Jolyon e Irene, subindo, modificando-lihes os rostos.

- Bem - disse finalmente Jolyon. - Você deve estar cansada. É melhor ir deitar-se. A criada levá-la-á ao quarto de Holly.

E tocou a campainha do escritório. A criada, ao chegar, estendeu-lhe um telegrama. Vemdo-a sair com Irene, ele pensou: «Este telegrama já deve ter chegado há uma ou duas horas, e ela não ousou trazê-lo aqui! Bem, em breve já não teremos a fama sem o proveito!» E, abrindo o telegrama, leu:

 

           Jolyon Forsyte, Robin Hill

Seu filho faleceu sem sofrimento a 20 de Junho. Sinceras condolências.

 

Um nome desconhecido assinava.

Deixou o papel cair no chão e ficou de pé, imóvel. O luar banhava-ò. Uma mariposa pousou-lhe no rosto. Fora aquele o primeiro dia em que não pensara em Jolly quase incessantemente. Jolyon caminhou cegamente até à sacada, tropeçou na cadeira de braços - a cadeira do pai - e deixou-se cair num dos braços dela. Ficou sentado, olhando fixamente para a noite. Apagara-se como a chama de uma vela, longe de casa, de qualquer amor, sozinho, na escuridão!

O seu filho! O seu pequeno camarada, sempre tão bom, tão amigo! Cortado da vida aos vinte anos de idade, como a haste de uma flor - sem ter vivido nada! «Eu, na verdade, não o conhecia», pensou Jolyon. «Nem ele me conhecia. Mas amávamo-nos um ao outro. E só o amor tem importância.»

Morrer longe dali, sozinho, desejando os seus - desejando estar em casa! Isso parecia ao coração de um Forsyte mais penoso, mais triste que a própria morte. Sem abrigo, sem protecção, em suma, sem amor! E todo o sentimento familiar profundamente enraizado nele, que estava na massa da sua carne e do seu sangue, que fora tão forte no velho Jolyon - e que era tão forte em todos os Forsyte-, sentia-se ultrajado, despedaçado pela morte solitária do filho. Seria muito melhor que Jolly houvesse morrido na batalha, sem ter tempo para desejar a presença dos seus, para chamar por eles, talvez, no seu delírio!

A Lua escondera-se agora por trás do grande carvalho, enchendo-o de uma vida sobrenatural, que parecia estar a espreitá-lo - o carvalho que o seu filho amara tanto, onde gostava de trepar, donde caíra uma vez e se magoara, mas sem chorar!

A porta rangeu e Jolyon viu Irene chegar, apanhar o telegrama, lê-lo. Sentiu o leve roçagar do seu vestido. Irene caiu de joelhos, e Jolyon tentou sorrir-lhe. Depois ela apertou-o nos braços e encostou a cabeça dele ao seu ombro. O perfume e o calor dela rodearaM-no e a presença querida apossou-se lenta e suavemente de todo o seu ser.

 

JAMES À ESPERA

Recuperando a serenidade, Soames jantou no Remove e voltou para Park Lane. Oltimamente, o pai andava a sentir-se pior. E aquele desgosto deveria ser afastado dele. Nunca, até àquele instante, compreendera tão bem quanto o entravava o receio de ver curvada para a cova a cabeça branca do pai, quão Intimamente aquele receio estava ligado ao seu próprio e íntimo receio por um escândalo. A sua afeição pelo pai, sempre profunda, aumentara naqueles últimos anos, em que James o procurara como ao real apoio do seu declínio. Parecia-lhe tristíssimo que alguém que fora tão cuidadoso com a sua própria vida, e que fizera tanto pelo bom nome da família - de tal modo que esse nome era hoje quase uma garantia de sólida e rica respeitabilidade - tivesse de suportar, nos seus últimos dias, vê-lo arrastado nos jornais. Era quase como estender uma mão à morte, aquele inimigo final dos Forsyte, «Falo primeiro com a mamã, e quando o caso se concretizar arranjaremos um meio de lhe esconder os jornais. Ele dificilmente consegue ler algum», pensou Soames. E, abrindo ele próprio a porta com a sua chave, ia começar a subir os degraus, quando se apercebeu de um barulho insólito no patamar do segundo andar. A voz da mãe dizia:

- Que é isso. James, você vai constipar-se. Porque não espera com calma?

E a voz do pai respondeu:

- Esperar? Estou sempre à espera. Porque é que ele não volta?

- Você pode falar com ele amanhã de manhã, em vez de ficar aí no patamar como se fosse uma criança.

- É capaz de ir directamente para a cama. E eu não posso

dormir.

- Mas volte para a cama, James.

- Hum! Você diz tudo isso, mas amanhã de manhã posso muito bem já estar morto.

- Mas não precisa de esperar até amanhã de manhã. Eu vou lá a cima buscá-lo. Aquiete-se!

- Você é assim... sempre com essa alegria. Ele pode muito bem não vir!

- Bem, se ele não vier, não será esperando-o aqui que você o apanha... e vestido só com o robe-de-chambre.

Soames deu a última volta da escada e avistou o vulto alto do pai, enrolado num robe de seda parda, em pé junto à balaustrada do patamar. A luz caía sobre os cabelos prateados e as suíças do velho, envolvendo-lhe a cabeça numa espécie de halo.

- Cá está ele! - ouviu o pai exclamar, numa voz que lhe pareceu magoada, e a consoladora resposta da mãe, da porta do quarto de dormir:

- Então está bem. Venha, que eu vou escovar-lhe os cabelos.

James estendeu um dedo longo e magro, curiosamente semelhante à falange de um esqueleto, e passou através da porta do quarto de dormir.

«Que será?», pensava Soames. «Que será que ele descobriu

agora?»

O pai estava sentado defronte do toucador, em frente do espelho, enquanto Emily lhe passava lentamente sobre o cabelo as escovas de prata. Fazia aquilo várias vezes por dia, porque a escova produzia sobre o velho um efeito idêntico ao que se opera num gato quando alguém o coça entre as orelhas.

- Cá está você! Estive à espera.

Soames bateu-lhe no ombro, e, apanhando um abotoador de prata, examinou cuidadosamente a marca.

- Bem - disse ele -, o senhor está com melhor aspecto. James abanou a cabeça.

- Quero dizer-lhe uma coisa. Ainda não disse nada à sua mãe.

E anunciava a ignorância de Emily sobre o que ele não lhe contara como se aquilo fosse uma ofensa.

- O seu pai esteve muito agitado toda a noite. E, realmente, não sei mesmo do que se trata.

O leve sussurrar das escovas no cabelo continuava a acompanhar-lhe a voz.

- Não! Você não sabe nada! - disse James. - Soames é que pode dizer-me. - E, fixando no filho os olhos parados, nos quais havia um brilho de aço, desagradável de ver, murmurou: - Estou prestes a partir, Soames. Na minha idade, só se pode supor que de um momento para o outro podemos morrer. E fica aí um montão de dinheiro. Rachel e Cecily não têm filhos, Vall foi-se embora... e aquele sujeito, o pai dele, está pronto para agarrar tudo que puder E tenho a certeza de que alguém vai apanhar Imogen.

Soames ouvia vagamente. Já escutara tudo aquilo antes. E entretanto o sussurrar das escovas continuava.

- Se é isso... - disse Emily.

- Isso! - gritou James. - Não é só isso! Estou a chegar ao que quero. - E mais uma vez os seus olhos se detiveram penosamente em Soames. - Falo em você, meu filho-disse ele subitamente.- Você deve requerer o divórcio.

Aquela palavra, vinda de tais lábios, quase desfez o aprumo de Soames, que concentrou rapidamente o olhar no abotoador de prata, enquanto, como pedindo desculpa, James se apressou a dizer:

- Não sei o que é feito dela... dizem por aí que está para fora. O seu tio Swithin admirava-a muito... era um sujeito engraçado.- Era sempre assim que ele aludia ao seu falecido irmão gémeo. - Tenho a certeza de que ela não deve estar sozinha.

E com aquela regra sucinta sobre o efeito da beleza na natureza humana, calou-se, espiando o filho com uns olhos dúbios de pássaro. E Soames manteve-se igualmente calado.

- Vamos, James. Soames sabe melhor que você. É assunto dele.

- Ah! - exclamou James. E a palavra parecia vir-lhe do íntimo. - Mas há todo o meu dinheiro, e todo o dinheiro dele... para onde vai? E, quando ele morrer, perde-se o nome.

Soames voltou a colocar o abotoador no pano róseo de seda e rendas que cobria o toucador.

- O nome? - disse Emily. - Mas há ainda todos os outros Forsyte.

- Como se isso adiantasse - resmungou James. - Irei para a cova, e não ficará ninguém depois de nós, a menos que ele torne a casar.

- O senhor tem toda a razão - disse placidamente Soames - Estou a requerer o divórcio.

Os olhos de James quase lhe saltaram das órbitas.

- O quê! - exclamou ele. - Aí está! Nunca ninguém me diz nada!

- Bem - disse Emily -, quem teria imaginado que você desejaria isso? Meu filho, isso é realmente uma surpresa, depois de tantos anos.

- Vai haver escândalo - resmungou James, como para si mesmo. - Mas não posso evitá-lo. Não escove com tanta força. Quando será o julgamento?

- Antes das férias de Verão. Vai correr à revelia. Os lábios de James moveram-se num cálculo secreto.

- Não hei-de viver até ver o meu neto - disse ele baixinho. Emily parou de lhe escovar os cabelos.

- Naturalmente você há-de vê-lo, James. Soames vai agir tão rápido quanto possa.

Houve um longo silêncio, até que James ergueu o braço.

- Dê cá a água-de-colónia! - E, levando o frasco ao nariz, moveu o rosto na direcção do filho. Soames curvou-se e beijou a testa do pai, exactamente onde começavam a nascer os cabelos. Um arrepio de distensão passou sobre o rosto de James, como se dentro dele as ondas da ansiedade estivessem a rolar para longe. - Vou para a cama - disse. - Não quero ver os jornais, quando trouxerem as notícias. São muito desagradáveis. Não posso preocupar-me com elas... estou velho de mais.

Profundamente impressionado, Soames caminhou até à porta. E ainda ouviu o pai dizer:

- Estou muito cansado. Vou rezar deitado. E a resposta da mãe:

- Está bem, James. Assim fica muito melhor.

 

FORA DA TEIA

Na Bolsa dos Forsyte, a notícia da morte de Jolly, por entre a morte de outros soldados, causou uma estranha sensação. Era estranho ler que Jolyon Forsyte - o quinto daquele nome em descendência directa -morrera de tifo, ao serviço do seu país... e não poder sentir pessoalmente essa perda. E aquilo revivia o velho ressentimento contra o pai do rapaz por se ter exilado da família. Pois tão grande era ainda o prestígio do velho Jolyon que os demais Forsyte não compreendiam, como seria de esperar, que eles próprios haviam banido, por irregulares, os descendentes do irmão mais velho.

A novidade aumentou, como era natural, o interesse e a ansiedade por notícias a respeito de Val, mas o sobrenome de Val era Dartie, e, mesmo que ele fosse morto em batalha ou ganhasse a Victoria Cross, aquilo não representava o que representaria, se ele usasse o nome de Forsyte. Da mesma forma, morte ou glória dos Hayman também não poderiam ser satisfatórias. O orgulho da família sentia-se defraudado.

Como foi que chegou à Bolsa o boato de que «algo de assustador, minha querida, estava para acontecer», ninguém, nem mesmo Soames, que agia com tanto segredo, seria capaz de descobrir. Talvez, alguém houvesse visto a nota «Forsyte versus Forsyte e Forsyte» no diário do foro e acrescentasse a essa informação aquela outra: «Irene em Paris com um homem de barba loura.» Talvez alguma parede em Park Lane tivesse ouvidos. O facto é que era sabido - sussurrado entre os velhos, discutido entre os jovens - que em breve o orgulho da família sofreria um golpe.

Soames, fazendo uma das suas visitas dominicais à casa de Timothy-com a sensação de que, depois do processo, não mais as faria -, sentiu no ar, logo ao chegar, que o facto já era sabido de todos. Ninguém, naturalmente, ousou aludir ao caso diante dele. mas cada um dos quatro Forsyte ali presentes reteve o fôlego, cuidando em que nada impedisse a tia Juley de dizer alguma inconveniência. E ela olhou tão compassivamente para Soames, conteve-se tantas vezes para não falar, que a tia Hester pediu desculpas e saiu, dizendo que ia lavar os olhos de Timothy, que estava com um terçol. Soames, impassível, não se demorou muito. E saiu mordendo uma praga entre os lábios pálidos, quase sorridentes.

Felizmente para a paz do seu espírito - actualmente torturado pela aproximação do escândalo-, vivia cada dia mais ocupado com os assuntos referentes à sua retirada dos negócios, pois já chegara a essa amarga decisão. Continuar a avistar-se com toda aquela gente que o conhecera como um indivíduo esperto e astuto conselheiro - depois daquilo - não! A vaidade e o orgulho, que viviam tão estranhamente associados nele à sua paixão de possuir, revoltavam-se contra tal pensamento. Retirar-se-ia, iria viver isolado, continuaria a comprar quadros, faria um grande nome como coleccionador - afinal, sempre tivera mais vocação para aquilo que para a Lei. E, na prossecução dessa ideia, tratava de realizar a fusão da sua firma com a de um outro colega, sem que ninguém soubesse da transacção, porque aquilo iria despertar curiosidade e anteciparia talvez o momento da humilhação. Entendera-se com a firma Cuthcott, Holiday e Kingson-da qual dois titulares já eram mortos. O nome da firma, depois da fusão, seria Cuthcott, Holliday, Kingson, Forsyte, Bustard & Forsyte. No entanto, depois de um debate durante o qual se discutiu se os mortos deveriam ainda influir, decidiu-se que o nome seria Cuthcott, Kingson & Forsyte - sendo Kingson o sócio activo e Soames o comanditário. E, por deixar à firma o seu nome, o seu prestígio e os seus clientes, Soames iria deter uma parte considerável.

À noite, como o faz todo o homem que chega a esse importante ponto da sua carreira, fez um cálculo do que havia ganho, e, depois de dar uma ampla margem às depreciações decorrentes da guerra, chegou à conclusão de que era possuidor de cerca de cento e trinta mil libras. Por morte do pai, que já não poderia, infelizmente, ser esperada para mais tarde, deveria entrar de posse de mais cinquenta mil, e toda a sua despesa anual, actualmente, mal chegava a duas mil libras. E de pé, por entre os seus quadros, antevia um futuro cheio de aquisições proveitosas, graças à sua exercitada faculdade de conhecer melhor que os outros. Vendendo o que estava prestes a cair, comprando o que ainda iria subir, prevendo judiciosamente as mudanças de gosto que estavam para vir, faria uma colecção única, que, por sua morte, passaria para a nação sob o título: «Doação Forsyte».

Já determinara como agiria em relação a Madame Lamotte, caso o divórcio corresse bem. Sabia que ela só tinha uma ambição - viver das suas rentes em Paris, perto dos seus netos. Ele compraria por bom preço o Restaurant Bretaigne. Madame viveria em Paris como uma rainha-mãe, mantendo-se com os juros desse capital, empregado do modo que ela quisesse. (Incidentalmente, Soames pensava em colocar um bom gerente no lugar dela e fazer que o restaurante lhe pagasse um bom juro pelo seu dinheiro. Havia grandes possibilidades no Soho.) Quanto a Annette, prometia dotá-la com quinze mil libras - exactamente a mesma quantia que o velho Jolyon deixara para «aquela mulher».

Uma carta do advogado de Jolyon, endereçada aos seus próprios advogados:, informou-o de que «aqueles dois» estavam na Itália. E foi devidamente anotado de que primeiro se haviam detido num hotel de Londres. O caso era claro como a luz do sol e seria decidido em meia hora, ou menos. Mas durante aquela meia hora Soames conheceria o Inferno, e, depois daquela meia hora, todos os portadores do nome de Forsyte descobririam o espinho que se esconde sob a rosa. Não tinha ilusões, como Shakespeare, de que as rosas sob um novo nome podem cheirar tão bem como antes. O nome era uma propriedade, uma posse concreta e imaculada, cujo valor se veria reduzido no mínimo de cerca de vinte por cento. Afora Roger, que uma vez recusara apresentar-se ao Parlamento e - oh, ironia! - Jolyon, pintor conhecido e apreciado - nunca houvera propriamente Forsytes «distintos». Mas justamente essa falta de «distinção» social era o grande valor do nome. Era um nome privado, intensamente individual, de inteira propriedade deles. Nunca fora explorado, por bem ou por mall., por nenhuma publicidade importuna. Ele e todos os membros da família possuíam o seu nome inteiramente, sadiamente, privativamente, sem nenhuma outra interferência do público além da que era requerida para a solenização dos seus baptizados, casamentos e mortes. E durante aquelas semanas de espera e preparação para a acção da Lei, Soames concebeu um amargo desagrado pela Lei, tão profundamente sentia a violação do seu nome, forçado que era pela necessidade que sentia de perpetuar esse mesmo nome de uma maneira legal! A monstruosa injustiça do caso excitava em Soames uma eterna e contida fúria. Ele nunca desejara nada mais além de viver dentro de uma obscura domesticidade, e agora tinha de apresentar-se no banco das testemunhas, depois de todos aqueles fúteis e desolados anos, e proclamar a sua falência em reter uma mulher - incorrer na piedade, no divertimento, no desprezo dos seus semelhantes. Tudo estava de pernas para o ar. Ela e aquele sujeito é que deveriam estar a sofrer - e andavam pela Itália! E naquelas semanas, a Lei, a quem ele havia servido tão fielmente, para quem olhara sempre tão reverentemente, como guardiã de toda a propriedade, parecia-lhe quase desprezível. Que poderia haver de mais louco do que dizer a um homem que ele era possuidor da sua mulher e puni-lo depois quando alguém a arrebatava ilegalmente? Seria que a Lei não compreendia que o nome de um homem é para ele como a menina dos seus olhos e que é mais duro ser publicamente um marido enganado do que um sedutor? E ele invejava Jolyon, a reputação que o outro se garantira de haver vencido onde ele, Soames, fracassara. A questão da indemnização também o perturbava. Queria fazer aquele sujeito sofrer, mas lembrava-se das palavras do primo-«Terei muito prazer em pagar..» - com o desagradável sentimento de que a cobrança de uma indemnização faria sofrer não a Jolyon, mas a ele próprio. Chegava mesmo a comprender que Jolyon gostaria realmente de a pagar - pródigo que era. Além disso, uma indemnização não era propriamente o que deveria reclamar.

A exigência de indemnização, entretanto, foi feita quase mecanicamente, e, quando a hora ficou mais próxima, viu naquilo mais uma armadilha que aquela Lei, insensível e despropositada, lhe punha aos pés, para o levar ao ridículo, dando azo a que toda a gente dissesse sarcasticamente: «Oh, sim, bom preço cobra ele pela mulher!» E deu ordem aos seus advogados para que tornassem bem claro que o montante da indemnização era destinado a uma casa de mulheres decaídas. Durante muito tempo hesitara entre a instituição filantrópica a escolher, mas, depois de se haver decidido pelas «Madalenas», acontecia-lhe acordar à noite e pensar: «Não devia ter escolhido uma coisa tão alusiva. Isso vai chamar a atenção. Antes algo mais discreto -- de melhor gosto.» Não gostava de cães, senão tê-los-ia escolhido. E foi já desanimado que por fim - os seus conhecimentos sobre filantropia eram limitados - escolheu os cegos. Isso não poderia parecer impróprio e fazia que o júri cobrasse uma alta indemnização.

Houve desistência de grande número de processos, que já não eram muitos naquele Verão, de forma que o caso de Soames deveria ser julgado antes de Agosto. E quanto mais próximo se ia tornando o dia, mais e mais Winifred se transformava na única consolação do irmão. Ela tinha para ele o sentimento solidário de quem já estivera em circunstâncias idênticas e era a única mulher em quem ele confiava, certo de que ela não introduziria Dartie na confidência. Aquele patife haveria de se alegrar bem! No fim de Julho, na tarde precedente ao julgamento, foi visitar a irmã. Os Dartie não haviam podido passar fora as férias, porque Montague já despendera o orçamento de Verão, e Winifred não ousava ir pedir mais dinheiro ao pai, pois o velho não queria que o perturbassem com coisa alguma enquanto esperava a solução do caso de Soames.

O irmão encontrou-a com uma carta na mão.

- É de Val? - perguntou ele sombriamente. - Que é que ele conta?

- Conta que se casou - respondeu Winifred.

- Com quem, valha-me Deus? Winifred encarou o irmão.

- Com Holly Forsyte, filha de Jolyon.

- O quê?

- Pediu autorização e casou. Eu nem sabia que ele a conhecia. É estúpido, não é?

Soames soltou o seu riso curto ante aquele resumo característico da situação.

- Estúpido! Bem, creio que eles não ouvirão falar no caso antes de voltarem. É melhor que fiquem por lá. O pai há-de dar-lhe dinheiro.

- Mas eu quero que Val volte para cá - disse Winifred quase lamentosamente. - Perdi-o, e é ele quem me ajuda a suportar tudo.

- Eu sei - retorquiu Soames. - Como tem procedido Dartie?

- Poderia ser pior, mas a questão é sempre dinheiro. Quer que o acompanhe ao tribunal amanhã, Soames?

Soames segurou-lhe a mão. O gesto traía tanta solidão da parte dele que ela comprimiu longamente a mão do irmão.

- Não se importe, meu velho. Depois de tudo passar, há-de sentir-se muito melhor.

- Não sei o que foi que eu fiz - disse Soames roucamente. - Não fiz nada. Está tudo às avessas. Eu era louco por ela. Sempre o fui.

Winifred viu uma gota de sangue brotar-lhe do lábio, e aquilo comoveu-a profundamente.

- É claro que a culpada de tudo sempre foi ela! Mas que devo fazer a respeito desse casamento de Val, Soames? Não sei nem como lhe escreverei, como aludir ao facto. Você conheceu essa menina. É bonita?

- Sim,, é bonita - respondeu Soames. - Morena, muito educada.

«Afinal, talvez não seja assim tão mau», pensou Winifred. «Jolyon sempre teve estilo.» E disse:

- É uma complicação. Que dirá disso o papá?

- Não se deve contar a ele. A guerra vai acabar em breve, e é melhor que Val se instale numa fazenda e fique por lá.

Era o mesmo que dizer que o sobrinho estava perdido.

- Eu não disse nada a Monty - acrescentou desoladamente Winifred.

O divórcio foi julgado no dia seguinte antes do meio-dia e liquidado em menos de meia hora. Soames, no banco das testemunhas, pálido, bem vestido, abatido, sofrera tanto na previsão daquilo tudo que o momento já o encontrara quase como um morto. No instante em que a sentença foi pronunciada, ele deixou o tribunal.

Faltavam ainda quatro horas para se tornar propriedade do público! «Processo de divórcio de um advogado»! Uma cólera sombria, agressiva, substituíra o seu inanimado sentimento de antes. «Para o Diabo todos eles!», pensou. «Não fugirei. Irei agir como se nada houvesse acontecido.» E fez a pé todo o caminho que ia de Fleet Street a Ludgate Hill, em direcção ao City Club, onde almoçou, voltando depois para o escritório. E trabalhou estoicamente durante toda a tarde.

À saída, compreendeu que os escreventes já sabiam do caso e respondeu às suas involuntárias olhadelas com um olhar tão sardónico que eles imediatamente se encolheram. Em frente de St. Paul parou para comprar o mais cavalheiresco de todos os jornais da tarde. Sim, lá estava! «Divórcio de um conhecido advogado. Um primo é o cúmplice. Indemnização doada a uma instituição de cegos.» Assim, eles haviam anotado esse pormenor. E, à vista de cada rosto que passava, ele cismava: «Quem me diz que esse não sabe?» E subitamente sentiu-se mal, como se algo estivesse a rodar-lhe em torno da cabeça.

Que era aquilo? Ele estava a deixar que a coisa o possuísse! Nada disso! Assim, adoeceria. Não devia preocupar-se. Devia era ir para o rio, meter-se no barco e ir pescar. «Não vou entregar-me assim, ficar neste desespero», resolveu.

Ocorreu-lhe repentinamente que tinha algo importante a fazer antes de sair da cidade. Madame Lamotte! Tinha de explicar-lhe a Lei. Ainda eram precisos seis meses antes que estivesse realmente livre! Apenas não desejava ver Annette. E levou a mão ao alto da cabeça: estava realmente muito quente.

Dobrou por Covent Garden. Naquele sombrio dia de Julho, o tom sujo do velho mercado ofendeu-o e o Soho pareceu-lhe mais que nunca o desencantado berço da malandragem. SÓ o Restaurant Bretagne, limpo, pintado de claro, com os seus caixotes azuis, onde estavam plantadas arvorezinhas anãs, detinha um longínquo e afrancesado auto-respeito. Era a hora que mediava entre as duas refeições, e uma pálida criadinha estava a preparar as mesas para o jantar. Soames entrou na parte privativa das donas da casa. Para desprazer seu, foi Annette quem atendeu à porta. Ela também parecia pálida e com a cabeça meio tonta.

- O senhor está realmente a tornar-se um estranho - disse ela languidamente.

Soames sorriu.

- Não tenho nenhum desejo de o ser. Onde está sua mãe, Annette? Tenho notícias para ela.

- A mamã não está.

Pareceu a Soames que ela o olhava de uma maneira estranha.

Seria que ela sabia? Que lhe teria contado a mãe? E o esforço para adivinhar essa incógnita provocou-lhe uma tontura. Agarrou-se fortemente à borda da mesa, e, aturdido, viu Anmette caminhar na sua direcção, com os olhos escancarados de surpresa. Soames fechou os seus e disse:

- Estou bem,. Parece que o sol me fez mal.

O sol! O que lhe havia feito mal fora a escuridão! A voz de Annette, francesa e moderada, disse:

- Sente-se, que isso passa. - A mão dela apertou-lhe o ombro, e Soames deixou-se cair numa cadeira. Quando a sombria sensação o abandonou e ele abriu os olhos, ela fitava-o bem de perto. Que expressão inescrutável e estranha numa rapariga de vinte anos! - Sente-se melhor?

- Não é nada - disse Soames. O instinto dizia-lhe que não lhe convinha mostrar-se fraco diante dela - a idade já era um handicap suficiente. A sua fortuna com Annette estava na força de vontade. Nestes últimos meses perdera terreno graças à indecisão - e não podia arriscar-se a perder mais. Ergueu-se e disse: - Escreverei à sua mãe. Vou passar umas longas férias em minha casa na margem do rio. Desejaria muito que vocês ambas fossem até lá e se demorassem. Seria excelente. Você concorda, não?

- Seria realmente adorável.

Um lindo «r» rolado, o dela, mas nenhum entusiasmo. E, quase tristemente, Soames acrescentou:

- Você sofre com o calor, não, Annette? Far-lhe-ia bem ir para perto do rio. Boa noite.

Annette acompanhou-o. Havia uma espécie de compunção naquele movimento.

- O senhor realmente resolveu ir? Não quer um pouco

de café?

- Não - disse Soames com firmeza. - Dê-me a sua mão. Ela estendeu a mão, e Soames levou-a aos lábios. Quando

ergueu os olhos, viu no rosto dela a mesma estranha expressão de antes. «Não posso dizer...», pensava quando saiu. «Mas não devo pensar, não devo preocupar-me.»

Mas preocupava-se enquanto caminhava em direcção a PaM Mall. Inglês, de outra religião, de meia-idade, marcado como estava por uma tragédia doméstica, que tinha ele para lhe dar? Só dinheiro, posição social, lazeres, admiração! Isso era muito, mas seria o bastante para uma linda rapariga de vinte anos? Sentia-se completamente ignorante a respeito de Annette. E tinha também um curioso medo da natureza de francesa da mãe dela e dela própria. Sabiam ambas tão bem o que queriam. Eram quase Forsyte. Nunca soltariam o pássaro da mão pelo que estava a voar!

O tremendo esforço que lhe custou escrever um simples bilhete para Madame Lamotte, quando chegou ao seu clube, mostrou-lhe novamente que já atingira o fim da sua resistência.

Depois de selar a carta e mandá-la para o correio, dirigiu-se à sala de refeições. Três colheradas de sopa convenceram-no de que não podia comer. E, mandando chamar um cab, foi até Paddington Square, onde apanhou o primeiro comboio para Reading. Chegou a casa exactamente quando o Sol desaparecia, e pôs-se a caminhar pelo campo. O ar estava saturado do cheiro dos cravos e cravinas da beira do rio. Uma frialdade sorrateira subia lentamente da água.

Descanso... paz! Deixai que um pobre desgraçado repouse! Não permiti que a confusão, a vergonha, a cólera, lhe voejem pela cabeça como morcegos maléficos! Como os pombos aninhados e já quase adormecidos nos seus pombais, como os animais do bosque, na outra margem, como o pobre diabo na sua casinhola, como as árvores, como o próprio rio, cuja água brilha à meia luz, como o céu já escuro onde apontam as primeiras estrelas - deixai que ele se desligue de si mesmo e repouse!

 

         Minha cara senhora,

A senhora verá por este recorte de jornal incluso que obtive hoje o meu decreto de divórcio. Segundo a lei inglesa, apenas estarei livre, no entanto, para contrair novo casamento, seis meses depois do decreto. Entretanto, tenho a honra de lhe pedir que me considere como candidato formal à mão de sua filha. Dentro de poucos dias terei o prazer de lhe escrever novamente, pedindo a ambas que venham passar uns dias na minha casa de campo.

Sou, minha cara senhora, seu amigo devotado.

                   Soames Forsyte

 

A PASSAGEM DE UMA ERA

O casamento de Soames com Annette' realizou-se em Paris, no último dia de Janeiro de 1901, com tal intimidade que nem Emily foi avisada senão depois de tudo feito. No dia seguinte às bodas, ele trouxe a noiva para um desses silenciosos hotéis de Londres, onde se gasta muito dinheiro com menos resultado que em qualquer outro lugar do mundo. A beleza da mulher, nos seus melhores vestidos de parisiense, dava mais satisfação ao marido do que lhe daria a mais perfeita peça de porcelana, uma jóia ou um quadro. E ansiava pelo momento em que a exibiria em Park Lane, em Green Street e na casa de Timothy.

Se alguém lhe perguntasse nesses dias: «Aqui entre nós... você está apaixonado por essa pequena?», ele teria respondido: «Apaixonado? Que é estar apaixonado? Se se refere ao que senti por Irene nos velhos tempos, nas primeiras vezes em que a encontrei e ela não queria saber de mim, quando eu suspirava e penava atrás dela, sem descanso, até que ela cedeu... não! Mas se quer dizer que eu admiro a juventude e a beleza de Annette, que os meus sentidos doem um pouco quando a vejo mover-se pelo quarto... sim! Se eu penso que ela vai refazer-me a vida, ser uma boa esposa, uma boa mãe para os meus filhos, ainda lhe direi: sim! De que preciso mais? E que mais têm pelo menos três quartos das mulheres que se casam de parte do homem que casa com elas?»

E se o inquiridor prosseguisse nas suas perguntas: «E acha bonito ter tentado essa pequena a entregar-se-lhe por toda a vida sem que você lhe tenha tocado o coração?», ele responderia: «Os franceses vêem as coisas de maneira diferente de nós. Encaram o casamento do ponto de vista do estabelecimento dos filhos, e, segundo a minha própria experiência, não tenho a certeza de que eles não procedam do ponto de vista mais de acordo com os sentimentos. Desta vez, não poderei esperar mais do que o que lhe dou, ou que ela pode dar. Daqui a alguns anos, não me admirarei se ela me der alguns cuidados, mas então estarei velho, terei filhos, fecharei os olhos. Já tive a minha grande paixão - a paixão dela ainda está talvez por vir. E não creio que seja por mim. Ofereço-lhe muitas compensações e não lhe peço grande coisa em troca - excepto filhos, ou, pelo menos, um filho. Porém, de uma coisa estou certo: ela tem muito bom senso!»

E se, 'insaciável, o inquiridor prosseguisse: «Você não deseja então nenhuma união espiritual neste casamento?». Soames teria sorrido com o seu sorriso de viés e continuado: «Ela será como deve ser. Se eu obtenho satisfação para os meus sentidos, perpetuação de mim mesmo, bom gosto e bom humor em casa - é tudo o que posso esperar na minha idade. Já não estou mais para correr atrás de um sentimentalismo absurdo.» E, diante disso, o inquiridor haveria de ter o bom gosto de se calar.

A rainha morrera, e o ar da maior cidade que há sobre a Terra estava sombrio de lágrimas recalcadas. De pelica e cartola, trazendo pelo braço Annette, envolta em peles escuras, Soames cruzava Park Lane na manhã da procissão de funeral, pelo trilho de Hyde Park. Por menos que o comovessem os assuntos nacionais, aquele acontecimento, supremamente simbólico, aquele clímax de um longo e rico período, impressionava-o. Em 1837, quando ela subira ao trono, o «Superior Dosset» estava ainda a construir as casas com que desfeava Londres. E James, um rapazola de vinte e seis anos, começava a fundar os alicerces da sua clientela. Ainda havia diligências, os homens rapavam o lábio superior, comiam ostras que vinham de fora, em barris, lacaios de libré sentavam-se por trás das carruagens, as mulheres ainda não tinham direitos de propriedade. Havia urbanidade no campo e pocilgas para os pobres. Pobres diabos eram enforcados por pequenos crimes e Dickens mal começara a escrever. Quase duas gerações haviam desaparecido- enquanto apareciam os navios a vapor, comboios, o telégrafo, bicicletas, a luz eléctrica, o telefone, e agora aqueles automóveis- e tanta era a fortuna acumulada que os oito por cento tinham descido a três e os Forsytes contavam-se por mil! A moral mudara. as maneiras mudaram, os homens mudaram. Deus transformara-se em Mammon - um Mammon tão respeitável que se decepcionaria a si próprio. Sessenta e quatro anos haviam beneficiado a propriedade e promovido a ascensão da classe média. Tinham-na fortalecido, cinzelado, polido, até que, agora, em maneiras, moral, 'linguagem, aparência, trajo e alma, ela era quase indistinguível da nobreza. Uma época que promovera a liberdade individual de tal modo que um homem, se tinha dinheiro, era livre pela lei e de facto, e, se não tinha dinheiro, era livre pela lei, mas não de facto. Uma era que canonizara a hipocrisia, de forma que bastava parecer respeitável para o ser. Uma grande Era, a cuja influência transformadora nada escapara, a não ser a natureza do homem e a natureza do universo.

E, para assistir à passagem dessa Era, Londres - sua favorita e seu capricho - mandava para a rua os seus cidadãos através de todos os portões de Hyde Park, eixo do vitorianismo, feliz reduto dos Forsytes, por sob o céu cinzento, que já não chuviscava, a sombria multidão reunia-se para assistir ao espectáculo. «A boa rainha velha», cheia de anos e de virtudes, saíra pela última vez da sua reclusão a fim de proporcionar um feriado a Londres. De Hounds-ditch, Acton, Ealing, Hampstead, Isfington e BethnaJ Green, de Hackney, Hornsey, Leytonstone, Battersea e Fumam, de todas aquelas verdes pradarias onde florescem os Forsytes - Mayfair e Kensington, St. James e Belgravia, Bayswater e Chelsea, de Regent's Park, o povo acorria, aglomerando-se nas estradas por onde passaria a morta, com pompa faustosa e sombria. Nunca até então uma rainha reinara tanto tempo, nem povo nenhum tivera a sorte de ver tanta história enterrada de uma vez. Era realmente pena que a guerra devastasse lá fora e que a coroa de louros da vitória não

pudesse ser deposta sobre o esquife real! Mas tudo o mais estava ali para acompanhar a rainha e prestar-lhe honras - soldados, marinheiros, príncipes estrangeiros, bandeiras a meia haste, sinos a tocar e, acima de tudo, a multidão enxameante, imensa, vestida de preto, com talvez uma ligeira tristeza aqui e ali, bem funda no coração, sob a roupa de luto regulamentar, Afinal, mais que uma rainha, partia para o repouso eterno uma mulher que soubera afrontar desgostos e dores e vivera bem e amplamente de acordo com as suas convicções.

Afastado da multidão que se apertava nas filas, Soames, protegendo Annette com o braço, esperava. Sim! O século estava a passar, com os seus trade-unionistas e trabalhistas na Câmara dos Comuns, com a sua ficção continental. Havia algo no sentimento geral que não podia ser expresso em palavras, mas que mostrava que as coisas já eram diferentes. E Soames recordou a multidão da noite de Mafeking e George Forsyte a dizer: «São todos: socialistas e querem o que é nosso!» Tal como James, Soames não sabia, não podia dizer... com Eduardo VII no trono! As coisas nunca estariam tão seguras como sob a boa velha Viccy! Convulsivamente, apertou o braço da mulher. Aquilo, afinal, era algo substancial que lhe pertencia, uma certeza doméstica. Algo que, mais uma vez, fazia da propriedade uma coisa real. Bem junto dela e procurando afastar os outros, Soames sentia-se satisfeito. A multidão espalhava-se em torno deles, comia sanduíches, atirava as migalhas para o chão, garotos trepados nos plátanos tagarelavam lá em cima feitos macacos e atiravam sementes e cascas de laranja. Já passava da hora. O cortejo já deveria estar a aproximar-se!

E de súbito, à esquerda, um pouco atrás, Soames viu um homem alto, de chapéu mole, barba grisalha e curta, e uma mulher também alta, com uma pelica redonda e véu. Jolyon e Irene, conversando, sorrindo um para o outro, juntinhos como Annette e ele! Não o haviam visto, e, furtivamente, com um estranho sentimento no coração, Soames pôs-se a vigiá-los. Pareciam felizes! Que tinham vindo eles fazer ali - criaturas cuja presença era ilícita, rebeldes ao ideal vitoriano? Que tinham eles em comum com aquela multidão? Cada um deles duas vezes exilados pela moralidade - e ostentando, por assim dizer, o seu amor e sua impudência? E olhava-os, fascinado.

Admitindo com repulsa que, mesmo com o seu braço apertado ao de Annette, ela... ela - era... Irene! Não! Ele não admitiria isso! E virou os olhos para o outro lado. Não queria vê-los e deixar que a velha amargura, o velho desejo insatisfeito crescessem de novo dentro de si! Foi então que Annette se voltou e lhe disse:

- Olhe aquele casal, Soames. Tenho a certeza de que eles o conhecem. Quem são?

Soames olhou para os lados.

- Que casal?

- Aquele ali, não vê? Estão agora a andar para lá. Eles conhecem-no?

- Não - respondeu Soames. - É um engano, minha querida.

- Que lindo rosto! E que andar! Elle est très distinguée! Soames olhou então. Dentro da sua vida, fora da sua vida.

ela sempre caminhara assim, deslizando eréctil, distante, inatingível, evitando até mesmo o contacto da sua alma! E afastou abruptamente aquela insidiosa visão do passado.

- É melhor prestar atenção. O cortejo está a chegar. Porém, enquanto ficava de pé, agarrado ao braço de Annette,

fingindo interesse pelo cortejo, estremecia ante o sentimento de sempre - de que perdera alguma coisa, com o instintivo pesar por não poder reter tudo.

A música fúnebre avançava lentamente, até que, em silêncio, a longa linha atingiu o portão do parque. Ouviu Anmette murmurar: «Como é triste e bonito!» Sentiu a pressão da mão dela, que se alçava nas pontas dos pés, e a emoção da multidão possuiu-o também. Lá estava - o caixão da rainha, o sarcófago da sua Era passando lentamente! E ao mesmo tempo subia um gemido da longa fila de todos que haviam estado à espera, um som como Soames jamais escutara, tão inconsciente, tão primitivo, tão profundo e selvagem que nem ele nem ninguém poderia saber como se formara. Estranho som, realmente! Tributo de uma época à sua própria morte!

A garra presa à vida soltara-se... Aquilo que parecera eterno ia-se embora! A rainha! Que Deus a abençoe!

E, acompanhando a marcha do cortejo, aquele mesmo gemido, ia caminhando, como o fogo que anda por sobre as ervas secas, tomava pé e caminhava ao longo das densas multidões, inumano, emergindo da subcOnsciência animal, pelo íntimo conhecimento da morte e da mudança universal. Nenhum de nós - nenhum de nós pode durar sempre!

Houve depois um pequeno silêncio - um rápido silêncio -, e, passado esse silêncio, todos recomeçaram a falar, ansiosos por recuperar o interesse pelo espectáculo. Soames esperou ainda um pouco, para satisfazer Annette, depois levou-a para fora do parque, indo ambos almoçar em casa do pai, em Park Lane.

James passara a manhã debruçado à janela do seu quarto de dormir. O último espectáculo a que ele podia assistir - último, depois de tantos! Ora, pois, lá morrera a rainha! Na verdade, já estava a ficar bastante velha. Swithin e ele tinham-lhe visto a coroação - quando ela ainda era uma garota, mais nova que Imogen! Mais tarde, ela engordara muito. Jolyon assistira ao seu casamento com o tal alemão, é verdade que ele se corrigira completamente, antes de morrer, mas deixara-o com aquele filho.. E recordava as várias noites em que ele e os irmãos haviam meneado a cabeça, após o vinho e as nozes, ante os destemperos juvenis do príncipe. Agora ele subia ao trono. Diziam que já assentara o juízo... Mas James não sabia... não podia dizer! Ainda deitava dinheiro fora, na certa. Quanta gente na rua! Parecia não ter passado muito tempo desde que ele e Swithin se tinham juntado à multidão, ao lado da Abadia de Westminster, no dia da coroação: depois Swithin levara-o a Cremorne - sujeito espantoso, Swithin! Não, não parecia também muito distante o ano do jubileu, quando ele e Roger haviam alugado uma varanda em Piccadilly. Jolyon, Swithin, Roger, todos já se tinham ido, e ele próprio completaria noventa anos em Agosto! E agora Soames estava casado com aquela francesinha. Francesas são gente esquisita, mas dão boas mães, segundo diziam por aí. As coisas mudam! Diziam que o imperador da Alemanha estava presente no funerall. No entanto, o seu telegrama ao velho Krúger fora de péssimo gosto. E não se admiraria se, mais tarde, aquele camarada armasse alguma complicação. Mudanças! Hum! Bem, cada um que cuidasse de si depois de ele se ter ido embora! Ele é que não sabia o que seria feito de si.

E hoje Emily tinha convidado Dartie para o almoço, com Winifred e Imogen, a fim de se encontrarem com a mulher de Soames - Emily estava sempre a fazer qualquer coisa. E Irene vivia com jolyon, diziam. Decerto ele iria casar com ela agora.

«Meu irmão Jolyon», pensou de súbito James, "que diria ele disto tudo?» E a absoluta impossibilidade de saber o que diria o irmão, com um único olhar para aquilo tudo, perturbou de tal modo James que ele abandonou a sua cadeira junto à janela e pôs-se a passear, lentamente, debilmente, através da sala.

«Ela também era uma lindeza», cismava ele. «Eu gostava muito dela. Talvez Soames não a tenha compreendido. Não sei... não posso dizer... Nós nunca tivemos nenhuma complicação com as nossas mulheres. As mulheres mudaram - tudo mudou! E agora a rainha morreu - bem, lá vem!» Um movimento na multidão trouxe-o à janela, e ele ficou de pé, com o nariz encostado à vidraça, embaciando-a com o seu sopro. Tinham ido até Hyde Park Corner, e agora estavam a passar. Porque não vinha Emily olhar também, agora que podia ver tudo, em vez de estar a agitar-se com aquele almoço? Sentia falta dela naquele momento - sentia falta! Através dos ramos nus dos plátanos, podia ver o cortejo, podia ver os chapéus que o povo ia tirando da cabeça - boa porção deles ia constipar-se, na certa! Uma voz por trás dele disse:

- Você daqui vê tudo, James!

- Então você está aqui! - resmungou James. - Porque não veio antes? Podia ter perdido isto! - E ficou silencioso, mantendo-se de pé, com todas as suas forças. - Que barulho é esse? - perguntou subitamente.

- Não ouço barulho - replicou Emily. - Em que é que você está a pensar? Não iriam dar vivas.

- Estou a ouvir barulho.

- Tolice, James!

Nenhum som penetrava através das janelas duplas, e o que james ouvia era o gemido do seu próprio coração à vista da Era que passava.

- Nunca me digam onde é que devo ser enterrado - disse ele de súbito. - Não desejo saber.

E voltou-se da janela. Lá se ia a velha rainha: devia ter passado por muitas angústias ultimamente, e ele era capaz de jurar que, na certa, ela estava satisfeita por se ter libertado. Emily trouxe as escovas de cabelo.

- Temos exactamente o tempo bastante para lhe escovar os cabelos antes que eles cheguem - disse ela. - Você deve apresentar-se do melhor modo possível, James.

- Ah! - murmurou James. - Dizem que ela é bonita.

O encontro com a nova nora realizou-se na sala de jantar. James estava sentado junto ao fogo quando ela entrou. Pôs as mãos nos braços da cadeira e ergueu-se lentamente. Rígido e imaculado dentro do seu casaco, magro como uma linha de Euclides. segurou a mão de Annette nas suas. E os olhos ansiosos, no rosto rodeado pelas suíças, já sem cor, prenderam-se nela. Um leve calor subiu-lhe do rosto até às faces, como um reflexo da rapariga em flor.

- Como vai? - perguntou ele. - Foram ver a rainha, não? Fizeram uma boa travessia?

Era aquela a sua maneira de lhe dizer que lhe agradecia pelas esperanças que lhe dava de um neto que usasse o seu nome.

Olhando para o sogro, tão velho, tão magro, tão imaculado na sua alvura, Annette murmurou qualquer coisa em francês, que James não compreendeu.

- Sim, sim - disse ele. - Você quer o seu almoço, suponho. Soames, toque a campainha. Não vamos esperar pelo tal Dartie.

Mas exactamente nesse momento eles chegaram. Dartie recusara-se a desviar-se do seu caminho para ver a «boa velha». Depois de um cocktail matinal, fora dar uma olhadela à sala de fumo do Iseeum, de forma que Winifred e Imogen haviam sido obrigadas a voltar do parque até lá, para o trazerem. Os seus olhos castanhos demoraram-se em Annette com uma expressão de quase espantada satisfação. A segunda beleza que Soames descobria. Que era que as mulheres descobriam nele? Bem, na certa aquela iria fazer-lhe as mesmas tretas que a outra. Mas, enquanto não o fazia, que diabo de sorte ele tinha! E retorceu o bigode, pois, em nove meses de domesticidade em Green Street, já recuperara quase todo o antigo corpo e a sua habitual ostentação. A despeito, porém, dos maternais esforços de Emily, da compostura de Winifred, da amigável curiosidade de Imogen, das exibições de Dartie e da solicitude de James a respeito do que ela comia, Soames sentiu que aquele primeiro almoço da mulher em casa dos pais não fora um êxito. E levou-a embora muito cedo.

- Aquele Monsieur Dartie - disse Annette quando subiram para o cab -, je n'aim pas ce type-là!

- Não. cos diabos! - exclamou Soames.

- A sua irmã é muito amável, a garota é bonita, o seu pai é muito velho, creio que a sua mãe tem muito trabalho com ele. Não gostaria de estar no lugar dela.

Soames balançou a cabeça, satisfeito com a perspicácia de Annette. mas aquilo inquietava-o um pouco. E, além disso, um pensamento súbito o feriu: «Quando eu tiver oitenta anos, ela terá apenas cinquenta e cinco, e terá trabalho comigo!»

- Ainda há uma casa de parentes meus onde tenho de a levar - disse ele. - Você talvez ache o ambiente esquisito, mas a visita será rápida. Depois jantaremos e iremos ao teatro.

Preparava-a para uma visita a casa de Timothy. Mas lá foi diferente. Elas estavam «encantadas» por verem o caro Soames depois de tanto tempo. E então aquela era Annette!

- Você é tão linda, minha querida, quase bonita e jovem de mais para o caro Soames, não é? Mas ele é muito atencioso e gentil, tão bom marido... - A tia Juley refreou-se e encostou os lábios bem em baixo dos olhos de Annette. E descreveu-os depois a Francie, que só chegou mais tarde: «De um azul centáurea: tive de os beijar. Posso afirmar que o nosso caro Soames é um perfeito connoisseur. À moda francesa - e ela não é francesa de mais -, pode-se dizer que é linda, embora não tão distinta, tão sedutora como... Irene. Porque ela era sedutora, não era? Com aquela pele branca, os olhos escuros e os cabelos couleur de... de quê? Eu esqueço-me sempre.

- Feuille morte - acudiu Fraude.

- Isso mesmo, folhas mortas... é tão estranho. Lembro-me de que quando eu era criança, antes de virmos para Londres, tínhamos um cachorrinho raposeira, tinha uma mancha vermelha na cabeça. o focinho branco, uns olhos escuros lindos... era uma cachorrinha.

- Sim, tia - disse Fraude. - Mas não vejo a conexão.

- Oh - replicou a tia Juley, inteiramente rubra -, era tão linda, com aqueles olhos, e o pêlo. - E calou-se, como se se surpreendesse a cometer uma indelicadeza. - Feuille morte - acrescentou subitamente. - Hester, você lembra-se?

Houvera um considerável debate entre as duas irmãs para decidir se Timothy deveria ou não ser intimado a vir ver Annette.

- Oh, não o incomodem - disse Soames.

- Não, não é incómodo. O caso é que Annette, sendo francesa, pode abalá-lo um pouco. Ele esteve tão incomodado por causa de Fachoda. Creio que talvez o melhor é não corrermos o risco, Hester. É um encanto tê-la só para nós, não é? E você como vai, Soames? Já liquidou completamente o seu...

Hester interpôs apressadamente:

- Que é que você acha de Londres, Annette?

Soames, inquieto, esperava a resposta. E a resposta veio, delicada, serena:

- Oh, eu conhecia Londres. Já a tinha visitado antes.

Ele nunca se arriscara a falar-lhe a respeito do restaurante. Os Franceses têm noções diferentes no que se refere à respeitabilidade, e o facto de ele se incomodar com aquilo poderia parecer ridículo a Annette. Deixara para falar depois do casamento, e agora via que não seria preciso.

- E que parte você conhece melhor?

- Soho - disse simplesmente Annette.

- Soho - repetiu a tia Juley. - Soho?

«Isto vai dar a volta inteira da família», pensou Soames.

- É um bairro francês, muito interessante - disse ele.

- Sim - murmurou a tia Juley -, o seu tio Roger tinha várias casas por lá. E tinha sempre de mandar embora os locatários, lembro-me bem.

Soames mudou o assunto para Mapledurham.

- Naturalmente - disse a tia Juley. - Vocês devem tratar de se instalar lá quanto antes. Nós estamos todos à espera do momento em que Annette nos dará um pequenino...

- Juley - gritou desesperadamente a tia Hester -. toque para

o chá!

Soames não ousou esperar pelo chá e saiu com Annette. - Se eu fosse você, não me referia ao Soho - disse ele depois de estarem no cab.

- É uma parte mal afamada de Londres. E agora você já não tem mais nada com aquele negócio do restaurante. Quero dizer - acrescentou -, quero que você se dê com gente fina, e os Ingleses são horrivelmente snobs.

Os claros olhos de Annette abriram-se e um pequeno sorriso afloroulhe os lábios.

- Sim? - perguntou ela.

«Hum!», pensou Soames. «Isto é para mim!» E olhou asperamente para ela. «Tenho de fazê-la compreender isso de uma vez por todas.»

- Olhe, Annette - disse ele. - É muito simples para quem quer entender. As nossas classes profissionais e abastadas julgam-se vários graus acima da classe comercial, excepto, naturalmente, os que são muito ricos. Pode ser estúpido, mas é assim mesmo. Não é aconselhável, na Inglaterra, deixar que saibam que a gente possuiu um restaurante, ou uma loja, ou qualquer espécie de negócio desse género. Pode ser extremamente rendoso, mas põe nas pessoas uma espécie de estigma. Você não se divertirá tanto, nem se dará com gente fina... é isso.

- Compreendo - respondeu Annette. - Na França é a mesma coisa.

- Oh! - murmurou Soames, ao mesmo tempo aliviado e abatido. - Naturalmente, as classes são as mesmas, em toda a parte.

- Sim - disse Annette. - Comme vous êtes sage.

«Muito bem», pensou Soames, fitando-lhe os lábios. «Ela é quase cínica.» E, rodeando-a com o braço, murmurou com esforço:

- Et vous êtes ma belle femme. Annette soltou uma gargalhada.

- Oh, non! Oh, non, ne parlez pas Français, Soames. De que é que aquela senhora velha, a sua tia, disse que estava à espera.

Soames apertou os lábios.

- Deus o sabe! - disse ele. - Ela está sempre a dizer qualquer coisa.

Mas ele sabia melhor que Deus.

 

ANIMAÇÃO SUSPENSA

A guerra prosseguia. Nicholas dizia por toda a parte que aquilo iria custar trezentos milhões. O imposto sobre a renda estava seriamente ameaçado. É verdade que haveria a posse definitiva da África do Sul para compensar os gastos, e, embora o instinto de propriedade se sentisse dolorosamente alarmado nas vigílias, às três da madrugada, ele melhorava, à hora do pequeno-almoço, ante o pensamento de que não se pode obter nada grátis neste planeta. E toda a gente ia tratando dos seus negócios, como se não houvesse guerra, nem campos de concentração, nem a opinião do Continente, nem nada desagradável. A atitude da nação estava exemplificada pelo mapa de Timothy, cuja animação fora suspensa, porque o dono já não lhe movia as bandeiras, nem elas se podiam movimentar por si próprias, para trás e para diante, como deveriam ter feito.

E essa suspensão de ânimo continuou, invadiu a Bolsa dos Forsyte e produziu uma incerteza geral a respeito do que estava para acontecer. A notícia, saída na coluna social do Times, «Casamento de Jolyon Forsyte e Irene, filha única do falecido professor Heron», ocasionou dúvidas, pois não sabiam se a referência a Irene estava correcta.. No entanto, sentiram alívio por Irene não ter sido mencionada como «ex-esposa» ou «esposa divorciada» de Soames Forsyte. Ao mesmo tempo, foi quase sublime a atitude que a família assumiu, desde o início, a respeito desse assunto.

Exactamente como James dissera: «Está tudo feito! Não adianta fazer barulho!» Nada de admitir que aquilo era um «caso sórdido», segundo a fraseologia actual.

Porém, que iria acontecer agora, já que Soames e Jolyon estavam de novo casados? Era realmente intrigante. Sabia-se que George apostara seis contra cinco, com Eustace, como um pequeno Jolyon apareceria antes de um pequeno Soames. George era tão engraçado! Murmurava-se também que ele apostara com Dartie como James atingiria a idade dos noventa. Só não se sabia em quanto estava cotado James.

No começo de Maio, Winifred informou que Val fora ferido numa perna por uma bala perdida e tinha sido licenciado. A mulher estava a tratar dele - ficaria a coxear um pouco -, mas não valia a pena falar nisso. Queria que o avô lhe comprasse uma fazenda por lá, onde pretendia criar cavalos. O pai de Holly estava a dar-lhe oitocentas libras por ano, de forma que eles podiam viver com conforto, pois o avô de Val dar-lhe-ia quinhentas, mas quanto à fazenda ele não sabia... não poderia dizer... não desejava que Val lhe deitasse fora o dinheiro.

- Mas vocês vêem - disse Winifred. - Ele tem de se ocupar em alguma coisa.

A tia Hester considerava que talvez o caro avô de Val tivesse razão, porque, se ele não pudesse comprar a fazenda, não haveria pretexto para as coisas correrem mal.

- Mas Val gosta de cavalos - disse Winifred. - Seria uma excelente ocupação para ele.

A tia Juley pensava que cavalos eram um negócio muito incerto. Montague não o considerava assim?

- Val é diferente - disse ainda Winifred. - Saiu a mim.

A tia Juley tinha a certeza de que o caro Val era muito capaz.

- Sempre me lembro - contou ela - quando ele deu o penny falso a um mendigo. O avô dele achou tanta graça. Achou que ele mostrava muita presença de espírito. Lembro-me de que ele dizia que o menino deveria entrar para a Marinha.

A tia Hester perguntou:

- Winifred, não acha que era muito melhor que a gente nova estivesse a seguro, sem correr riscos?

- Bem - respondeu Winifred -, se eles estivessem em Londres, talvez, em Londres é divertido não fazer nada. Porém, longe daqui, deve ser mortalmente aborrecido.

A tia Hester achava que deveria ser muito agradável para Val trabalhar, se ele estava certo de não se prejudicar com isso. Não seria a mesma coisa se eles não possuíssem dinheiro. Timothy, naturalmente, fizera muito bem em retirar-se. E a tia Juley gostaria de saber qual era a opinião de Montague acerca do assunto.

Winifred não lhe contou essa opinião, porque Montague observara apenas:

- Espere até que o velho morra.

Nesse momento anunciaram Francie. Os olhos dela estavam luzentes de riso.

- Bem - disse a moça - que é que vocês pensam disso?

- De quê, minha querida?

- Do Times, hoje de manhã.

- Nós ainda não o vimos, só lemos o jornal depois do jantar. Timothy fica com ele até essa hora.

Francie rolava os olhos.

- Você acha que pode dizer-nos? - perguntou a tia Juley. - Que foi?

- Irene teve um filho, em Robin Hill. A tia Juley suspendeu a respiração.

- Mas - disse ela -, eles casaram-se em Março!

- Sim, tia. Não é interessante?

- Bem - disse Winifred. - Estou satisfeita. Tive muita pena quando Jolyon perdeu o filho. Poderia ter sido Val.

A tia Juley parecia mergulhar numa espécie de devaneio.

- Gostaria de saber - murmurou ela - o que é que o caro Soames diz disso. Ele desejou tanto um filho! Um passarinho sempre me disse isso.

- Bem - declarou Winifred -, ele também está cheio de esperanças.

A alegria luziu nos olhos da tia Juley.

- Que felicidade! Para quando?

- Novembro.

Que mês feliz! Mas ela desejaria que a coisa fosse mais cedo. Era muito tempo para James esperar na idade em que estava!

Esperar! Receavam-no para James, mas elas próprias estavam muito habituadas a esperar. Realmente, aquela era a sua maior distracção. Esperar! Esperar pelo Times, para ler, por um ou outro dos sobrinhos que as viesse alegrar um pouco, por notícias da saúde de Nicholas, pela decisão de Christopher a respeito da sua entrada no teatro, por informações concernentes à mina do sobrinho de Mrs. Mac Anders, pelo médico, que vinha dar a sua opinião acerca da mania que Hester tinha de se levantar cedo de mais pela manhã, pelos livros da biblioteca, que sempre estavam por fora, que Timothy se constipasse, por um dia bonito e tépido, nem frio nem quente de mais, que lhes permitisse dar uma volta por Kensington Gardens. Esperar, cada uma num dos cantos da sala de estar, que o relógio, posto ao meio, batesse as horas, as mãos magras, riscadas de veias, nodosas, movendo agulhas de tricot e de croché, com os cabelos cujas ondas, como as ondas de Canuto, não tinham ordem para sofrer qualquer mudança de cor. Esperar, nos seus cetins negros, que a Corte desse licença, findo o luto pela rainha, para que Hester pudesse usar o seu vestido verde-escuro e Juley o castanho mais escuro. Esperar, revolvendo nos seus velhos espíritos as pequenas alegrias e tristezas, os acontecimentos e esperanças do pequeno mundo familiar, como vacas que ruminam pacientemente no pasto habitual. Soames sempre fora o predilecto, com o seu costume de lhes fazer presentes de quadros, as suas visitas quase semanais, que, se rareavam, lhes faziam tanta falta, e a necessidade do carinho delas que ele mostrava depois do fracasso do seu primeiro casamento. E aquele novo acontecimento - o nascimento do herdeiro de Soames - era tão importante para ele, e para o pai dele também, que James não poderia morrer sem levar uma certeza concreta a esse respeito. James detestava a incerteza e não podia realmente morrer satisfeito deixando apenas netos filhos do Montague Dartie! Afinal, o nome tem muita importância! E, como o nonagésimo aniversário de James se aproximava, elas perguntavam entre si que precauções estaria ele a tomar. Seria o primeiro dos Forsyte a atingir essa idade, e batera portanto um novo record. E elas consideravam aquilo importantíssimo, na idade em que estavam - oitenta e cinco e oitenta e sete anos -, embora não gostassem de pensar em si mesmas quando tinham Timothy para cuidar. E Timothy tinha apenas oitenta e dois. Lá no Além, naturalmente, haveria um mundo melhor. «Na casa do meu Pai há muitas mansões», era um dos ditos favoritos da tia Juley. E aquilo sempre a animara, era uma sugestão de casa e propriedade - factores da fortuna do caro Roger. A Bíblia era, com efeito, um grande recurso, e aos domingos de muito bom tempo elas iam à igreja, pela manhã: muitas vezes Juley introduzira-se furtivamente no escritório de Timothy - quando tinha a certeza de que ele não estava lá - e punha como casualmente, entre os livros da mesa, um Novo Testamento aberto - pois ele era um grande ledor, o que era natural, tendo sido editor de profissão. Porém, notara que, sempre, depois dessas suas expedições, Timothy se mostrava mal-humorado ao jantar. E Smither dissera-lhe que, mais de uma vez, apanhara do chão os livros, ao arrumar o quarto. E assim, depois de tudo isso, elas tinham a impressão de que o Céu não deveria ser realmente tão confortável como as salas onde elas e Timothy esperavam há tanto tempo. A tia Hester, especialmente, não podia suportar o pensamento da mudança. Qualquer mudança - ou apenas a ideia de uma mudança, porque ali nunca houvera nenhuma - sempre a abalava muitíssimo. A tia Juley, que tinha mais vivacidade, pensava às vezes que a coisa talvez fosse «excitante». Ela gostara tanto da visita que fizera a Brighton, no ano em que morrera a cara Susan. Mas todos sabiam que Brighton era adorável, enquanto o Céu era tão difícil de dizer com que se pareceria! De forma que, afinal, ela preferia ficar à espera.

Na manhã do aniversário de James, a 5 de Agosto, ambas se sentiram extraordinariamente animadas e trocaram vários bilhetes entre si, por intermédio de Smither, enquanto tomavam o pequeno-almoço na cama. Smither teve de sair, levando as lembranças carinhosas delas e pequenos presentes para Mr. James. Devia indagar ainda como ia ele passando, se dormira bem a noite, com toda aquela excitação. No caminho de volta, Smither deveria passar por Green Street - era um pouco desviado, mas ela podia apanhar depois o ónibus em Bond Street... seria até uma diversão agradável - e pedir notícias da cara Mrs. Dartie antes que ela saísse para a cidade.

Tudo isso Smither fez - uma criada insubstituível, habituada anos atrás sob as ordens da tia Ann, de perfeição já hoje inatingível. Mr. James, segundo disse Mrs. James, passara uma noite excelente e mandava-lhes muitas saudades. Mrs. James contara que ele estivera muito engraçado e queixara-se de não compreender porque faziam tanto barulho com aquilo. Oh! E Mrs. Dartie também lhes mandara saudades e viria tomar chá.

A tia Juley e a tia Hester, quase ofendidas porque não houvera nenhuma menção aos seus presentes - esqueciam, todos os anos, que James não suportava receber presentes, «estragando dinheiro com ele», como dizia sempre-, ficaram «encantadas»: isso provava que James estava com boa disposição, o que era tão importante para a saúde dele. E começaram a esperar por Winifred. Ela veio às quatro, trazendo Imogen e Maud, que acabava de chegar da escola e «estava a ficar também uma mocinha linda»-de modo que foi extremamente difícil pedir notícias do estado de Annette. No entanto, a tia Juley reuniu coragem suficiente para perguntar a Winifred se ela soubera de alguma coisa ou se Soames estava inquieto.

- O tio Soames está sempre inquieto - interrompeu Imogen. - Ele não será feliz enquanto não conquistar aquilo!

As palavras soaram familiarmente aos ouvidos da tia Juley. .Ah, sim! Aquele engraçado desenho de George que não lhe tinham mostrado! Mas que quereria dizer Imogen? Que o tio' sempre desejava o que não podia ter? Não era bonito pensar assim.

A voz de Imogen ergueu-se, clara e cortante:

- Imagine! Annette é apenas dois anos mais velha que eu. Deve ser horrível para ela ser casada com o tio Soames!

A tia Juley ergueu as mãos, horrorizada.

- Minha querida - disse ela-, você não sabe o que está a dizer. O seu tio Soames é um bom casamento para qualquer pessoa. Ele é um homem muito inteligente, bem apessoado e rico, muito atencioso e bom, e não é absolutamente velho, se levarmos tudo isso em conta. - Imogen, volvendo o seu olhar luminoso para as duas velhotas, apenas sorriu. - Espero - continuou severamente

a tia Juley - que você encontre um homem tão bom como ele.

- Não quero casar com nenhum homem bom, tia - murmurou Imogen. - São todos muito estúpidos.

- Se você continua assim - disse a tia Juley, ainda muito abalada -, acaba por não casar com ninguém. Mas é melhor que mudemos de assunto. - E, voltando-se para Winifred, perguntou:

- Como vai Montague?

E naquela noite, enquanto estavam à espera do jantar, a velha murmurou:

- Eu disse a Smither que trouxesse meia garrafa de champanhe, Hester. Creio que devemos beber à saúde do caro James e à saúde da mulher de Soames. Podemos entretanto fazer essa saúde em segredo. Eu direi apenas: «Ao que você sabe, Hester!-. e beberemos. De contrário, poderia abalar Timothy.

- É mais provável que nos abale a nós - disse a tia Hester

- Mas creio que o devemos fazer, num momento como este.

- Sim - disse a tia Juley impulsivamente. - Que momento! Imagine se for um menino para usar o nome da família! Acho que isso é importantíssimo, agora, principalmente depois que Irene teve um filho. Winifred disse que George está a chamar a Jolyon "Três Pavimentos", por causa das três famílias. George é engraçado. E imagine! Afinal, Irene foi viver na casa que Soames construiu para eles dois. Deve ser duro, para Soames, suportar isso, ele que sempre foi tão bem comportado.

Naquela noite, na cama, excitada e ainda um pouco corada pelo copo de vinho e pelo segredo do segundo brinde, a tia Juley ficou deitada, com o livro de orações aberto, o olhar fixo no tecto amarelado pela luz da sua lâmpada de cabeceira. Criancinhas! Eram tão lindas! E ela sentir-se-ia tão feliz vendo o querido Soames feliz! Mas é claro que ele já se devia sentir feliz agora, a despeito do que dizia Imogen. Tinha tudo o que poderia desejar: propriedades, mulher, filhos! E haveria de viver até uma avançada idade, como o seu querido pai. e esquecer tudo o que se referisse a Irene e àquele pavoroso caso. Se ao menos ela ainda estivesse neste mundo para comprar o primeiro cavalo de posta para o filho de Soames! Smither procuraria um pelas lojas, bonito e malhado Ah, como Roger gostava de balançá-la no cavalo até vê-la cair!

Há quanto tempo isso já fora! Enfim! «Na casa do meu Pai há muitas mansões.» Um pequeno rumor chegou-lhe ao ouvido. «Não há-de ser um rato!», pensou ela mecanicamente. O barulho aumentou. Aí está! Era um rato! Aquela louca Smither dizia que não havia ratos. E eles iam roer o forro antes que os descobrissem, e então seria preciso chamar operários para o consertarem. Bichos destruidores! E ficou deitada, mal movendo os olhos, seguindo em espírito aquele leve som e esperando dormir para se livrar dele.

 

NASCIMENTO DE UM FORSYTE

SOAMES atravessou a porta do jardim, ultrapassou o relvado e parou no caminho junto ao rio, girou depois nos calcanhares, voltou à porta do jardim, sem compreender bem por onde caminhara. O som de rodas na estrada convenceu-o de que o tempo passara e o médico já se fora embora. Que dissera ele exactamente?

- O caso é este, Mr. Forsyte. Quase posso garantir a vida dela, se operar, mas a criança nascerá morta. Se não operarmos, a criança provavelmente nascerá viva, porém a mãe corre risco - um grande risco. De qualquer forma, não creio que a sua senhora possa ter mais filhos. No estado em que está, dificilmente pode decidir por si própria, e não podemos esperar pela mãe dela. Enquanto o senhor toma uma decisão, eu vou buscar tudo o que é preciso para a intervenção. Estarei de volta dentro de uma hora.

Uma decisão! Que decisão? Não havia tempo para trazer um especialista de fora. Não havia tempo para nada!

O som das rodas morreu, mas Soames ainda estava de pé, procurando ouvi-lo, depois cobriu subitamente os ouvidos e voltou para junto do rio. Ah, vir assim, antes de tempo, sem probabilidade de escolher nada, nem mesmo esperar a chegada da mãe dela! Cabia à mãe decidir, e Madame Lamotte não podia chegar de Paris antes da noite.

Se ao menos pudesse compreender o palavreado do médico, aquelas idiotices científicas, de modo a estar certo de que pesava as probabilidades com segurança. Mas o que ele dizia soava como grego aos seus ouvidos - tal como um problema jurídico a um leigo. E, assim mesmo, tinha de decidir! Retirou a mão da testa húmida, embora o ar estivesse fresco. Aqueles sons que vinham do quarto de Annette! Voltar para lá apenas tornaria as coisas mais difíceis. Ele precisava de estar calmo, lúcido. Numa das mãos tinha, quase com toda a certeza, a vida da sua jovem mulher e a morte quase certa do filho - e nunca mais viriam outros filhos! Na outra, a possível morte da mulher e, praticamente, a certeza da vida do filho - e também nunca mais viriam outros filhos. Como escolher?

Chovera naquela última quinzena, o rio estava muito cheio e na água, represada pelo desembarcadouro, boiavam as folhas arrancadas pela ventania das árvores em redor.

Folhas mortas, vidas perdidas! Morte! Decidir a respeito da morte! E ninguém para o ajudar. Uma vida, quando perdida estava perdida para sempre, e não se deve deixar ir embora nada que se possa prender. Porque a vida que se vai nunca mais volta. Deixa-nos nus, como aquelas árvores que perderam as folhas, nus. cada vez mais nus, até que chega a hora de irmos embora também.

E, num estranho sobressalto, pareceu-lhe ver, estendida na cama, por trás daquela janela onde o sol luzia, não Annette, mas Irene, no seu quarto de Montpellier Square - como poderia muito bem ter acontecido dezasseis anos atrás. Teria ele hesitado então: Nem um momento! Operar, operar! Garantir a vida dela! Não haveria decisão - apenas um grito instintivo de socorro, a despeito de todo o seu conhecimento de que ela não o amava! Mas agora Não havia nada de absoluto no seu sentimento por Annette, Muitas vezes, naqueles últimos meses, especialmente quando ela se ia mostrando mais assustada, ele detivera-se a observá-la. Ela tinha vontade própria, era egoísta, à sua maneira francesa. No entanto, era tão bonita! Seria que ela escolheria... correr o risco? «Sei que Annette deseja um filho», pensou ele. «Se nascer morto, e não houver mais probabilidades futuras, isso há de abalá-la terrivelmente...» Não mais probabilidades! Tudo para nada! Ficar casado com aquela mulher, anos e anos, sem esperanças de um filho «Sem nada para a reter! Ela é jovem de mais. Nada a preocupá-la, a interessá-la - nem a ela, nem a mim! Nem a mim!" Apertou as mãos contra o peito. Porque não poderia ele pensar sem colocar os seus próprios interesses de permeio, porque não procurava pôr-se fora da questão e ver apenas o que deveria fazer? O pensamento atingiu-o, feriu-o, depois perdeu o fio. como se se houvesse amolgado contra uma couraça de ferro. Esquecer-se de si - impossível! Era como caminhar num espaço surdo, inodoro, intocável, invisível! A própria ideia era irrisória, fútil. E, atingindo aí o chão firme da realidade, o cerne do seu espírito de Forsyte, Soames descansou um pouco.

Olhou o relógio. Dentro de meia hora o médico estaria de volta. E ele tinha de decidir! E se se decidisse contra a operação, e Annette morresse, como afrontaria depois o olhar da mãe dela e do médico? Como afrontar a sua própria consciência? Era o seu filho que ela trazia dentro de si e, se se decidisse pela operação, condenava-se à impossibilidade de filhos futuros. E por que razão casara ele com ela senão para ter herdeiros legais? E seu pai, às portas da morte, à espera de notícias! «É cruel!», pensou ele. "Eu nunca deveria ter nas minhas mãos uma coisa destas a resolver! É cruel!» Caminhou em direcção à casa. Havia uma maneira simples de decidir! Meteu a mão no bolso, tirou uma moeda. Mas tornou a guardá-la, pois sabia que não se submeteria de modo algum à decisão da «cara ou coroa».

Foi até à sala de jantar, bem longe daquele quarto donde vinham os gemidos. O médico dissera que havia uma probabilidade E ali aquela probabilidade parecia maior. O rio não corria, as folhas não caíam. Havia um fogo aceso. Soames abriu o armário das bebidas. Raramente lhes tocava, mas daquela vez pôs num copo uma dose de whisky e bebeu-a de um trago, ansioso por um pouco mais de calor no sangue. «Aquele sujeito, Jolyon», pensou ele. «já tem um filho. Ele é que possui a mulher a quem realmente amei, e agora ela deu-lhe um filho! E eu - pedem-me que destrua o meu próprio filho! Annette não pode morrer. Não é possível! Ela é forte!»

Estava taciturnamente encostado ao aparador, quando ouviu a carruagem do médico, e caminhou ao encontro dele. Teve de o esperar no andar de baixo.

- Então, doutor?

- A situação é a mesma. O senhor já resolveu?

- Já - disse Soames. - Não opere!

- Não? O senhor compreende... o risco que corre? Na face de Soames nada se movia além dos lábios.

- O senhor não disse que havia uma probabilidade?

- Uma probabilidade, sim... mas apenas isso.

- O senhor não disse que, se operar, a criança nascerá morta?

- Sim.

- O senhor pensa realmente que em caso algum ela poderá ter outros filhos, mais tarde?

- Ninguém pode estar absolutamente certo, mas é inteiramente improvável.

- Ela é forte - disse Soames. - Vamos correr o risco. O médico fitou-o severamente.

- Fica por sua conta - disse ele. - Se se tratasse de minha mulher, eu não o ousaria.

O queixo de Soames ergueu-se, como se alguém lhe houvesse batido.

- Sou de alguma utilidade lá? - perguntou.

- Não...

- Estarei na minha galeria de pintura, então. O senhor sabe onde é?

O doutor acenou que sim e foi para o andar de cima.

Soames continuou de pé, escutando. «Amanhã, por esta hora», pensou ele, «talvez eu tenha a morte dela nos meus ombros. Não. é desumano, monstruoso, encarar as coisas por este prisma!» Outra onda sombria o possuiu, e ele encaminhou-se para a galeria. Parou junto a uma janela. O vento soprava do norte, estava frio, claro, o céu muito azul, pesadamente riscado de nuvens que iam para cá e para lá, o rio também estava azul, e através da cortina de árvores douradas os bosques mostravam-se com um colorido rico, ardente, queimado - as primeiras tintas do Outono. Se se tratasse da sua própria vida, ousaria ele correr esse risco? «Mas ela preferiria correr o risco de me perder, do que perder o filho! Ela, na verdade, não pode amar-me!» Que é que se pode esperar de uma rapariga tão nova - e francesa? A única coisa vital para ambos, vital para o casamento e o futuro dos dois, era um filho! Atravessei um horror de coisas para isso», pensava ele. «E tenho de o possuir - tenho de o possuir. Há uma probabilidade de ficar com os dois., uma probabilidade! Basta aceitar as coisas como elas se apresentam... aceitá-las como naturalmente se apresentam!» Pôs-se a caminhar em torno da galeria. Fizera ultimamente uma aquisição que sabia conter em si uma fortuna e parou diante do quadro - uma rapariga com uma cabeleira dourada que parecia feita de filamentos de metal, olhando para um pequeno monstro de ouro que tinha na mão. Mesmo naquele momento de tortura ele pôde sentir a extraordinária qualidade da compra que fizera - admirar a composição da mesa, do chão, da cadeira, do corpo da rapariga, a absorta expressão do rosto dela, os espessos filamentos dourados do cabelo, o ouro brilhante do pequeno monstro. Coleccionador de quadros, ficando cada dia mais rico, mais rico! E para quê, se... Abruptamente, virou as costas ao quadro e voltou à janela. Alguns dos pombos haviam saído dos ninhos e exercitavam as asas voando em torno do pombal. E, na clara luz do sol, a brancura deles quase cintilava. Voavam para longe, traçando complicados hieróglifos pelo céu. Annette gostava de dar comida aos pombos e era um belo espectáculo vê-la entregue a essa ocupação. Os pássaros iam bicar-lhe na mão, conheciam-na. Uma sensação de choque bateu-lhe no peito. Ela não podia - não devia morrer! Era muito sensível, mas era forte, realmente forte, tal como a mãe, a despeito da sua frágil beleza!

Já estava quase escuro quando ele por fim abriu a porta e pôs-se à escuta. Nem um som! Uma meia luz leitosa vinha lá de cima. Já voltara novamente as costas, quando o seu ouvido percebeu um ruído. Espreitando, viu um vulto negro a mover-se, e o seu coração quase parou. Que seria? A morte? A sombra da morte atravessando a porta? Não! Apenas a criada, que tirara o avental branco. Ela chegou até ao pé da escada e disse quase sem fôlego:

- O doutor deseja vê-lo, sir.

Soames correu para cima. Ela encostara-se à parede, para o deixar passar, e acrescentou:

- Oh. sir, já está tudo findo.

- Findo? - perguntou Soames, com uma espécie de ameaça.

- Que é que você quer dizer?

- A criança nasceu, sir.

Ele pulou os quatro degraus que ainda lhe estavam à frente e caiu subitamente sobre o médico, na estreita passagem. O homem enxugava a testa.

- E então? - disse. - Depressa!

- Ambos estão vivos. Está tudo bem. creio eu. Soames ficou imóvel, cobrindo os olhos.

- Felicito-o - ouviu o médico dizer. - Foi uma sorte rara. Soames deixou cair a mão que lhe cobria o rosto.

- Obrigado - disse ele -. muito obrigado. É menino ou menina?

- Menina. Um menino tê-la-ia matado. A cabeça... «Uma filha!», pensou Soames.

- É preciso ter o máximo cuidado com ambos - ouviu ainda o médico dizer -, e poderemos salvá-los. Quando chega a mãe dela?

- Esta noite, entre as nove e as dez, segundo espero.

- Ainda estarei aqui. O senhor quer ver a sua esposa?

- Agora não - disse Soames. - Depois de o senhor sair. Vou mandar que lhe sirvam o jantar.

E desceu a escada.

Que alívio inexprimível, e no entanto - uma filha! Aquilo parecia-lhe injusto. Correr tal risco, atravessar toda aquela agonia - que agonia! - por uma filha! E ficou de pé diante do fogo de toros no fogão do hall, tocando na lenha com a ponta do pé, procurando reequilibrar-se intimamente. «Meu pai!», pensou ele. «Vai ter um amargo desapontamento. Ninguém possui na vida aquilo que quer. E não terei outro filho - ou. se o tiver, não adianta nada!»

Quando ainda estava ali, junto ao fogo, trouxeram-lhe um telegrama:

 

Venha imediatamente, o seu pai está mal.

   Emily

 

Leu-o com uma sensação de choque. Seria de crer que ele não era capaz de sentir nada depois daquelas horas, mas sentiu. Eram

sete e meia, às nove vinha o comboio de Reading, o comboio que traria a mãe de Annette, se ela o apanhara, chegaria às oito e quarenta, ele iria encontrá-la, e partiria. Mandou preparar o carro, comeu mecanicamente qualquer coisa e subiu ao andar de cima. O médico veio-lhe ao encontro.

- Estão ambas a dormir.

- Não quero entrar - disse Soames, com alívio. - Meu pai está à morte. Tenho de ir lá. Está tudo bem?

O rosto do médico exprimiu uma espécie de admiração duvidosa: «Se todos fossem assim, incapazes de emoção!», parecia dizer.

- Sim, penso que o senhor pode ir despreocupado. Voltará logo?

- Amanhã - disse Soames. - Está aqui o endereço. - O médico pareceu suspender a sua tendência para a simpatia. - Boa noite - disse Soames abruptamente.

E saiu, vestindo a pelica. Morte! Era uma coisa arrepiante. Fumou um cigarro no carro - um dos seus raríssimos cigarros. A noite estava ventosa e parecia que vibravam asas negras dentro dela. As luzes da carruagem dificilmente abriam caminho. Seu pai - aquele velho, tão velho... que noite sombria para se morrer.

O comboio de Londres chegou exactamente quando ele atingiu a estação, e Madame Lamotte, substanciosa, vestida de preto, muito pálida à luz da lâmpada, caminhava em direcção à saída com uma maleta na mão.

- É tudo o que a senhora traz? - perguntou-lhe Soames.

- É, sim, não tive tempo para nada. Como vai a minha filha?

- Ambas estão bem, é uma menina!

- Uma menina! Que alegria! Eu fiz uma travessia espantosa! O vulto escuro dela, sólido, não afectado pela assustadora travessia, subiu para dentro do carro.

- E você, mon cher?

- Meu pai está a agonizar - disse Soames entre dentes. - Vou até lá. Dê saudades minhas a Annette.

- Tiens! - murmurou Madame Lamotte. - Quel malheur! Soames soergueu o chapéu e caminhou para o comboio. «Esses franceses!», pensava ele.

 

JAMES É INFORMADO

Uma simples constipação, apanhada na sala de janelas duplas, por onde eram filtrados o ar e as pessoas que vinham vê-lo - a sala que ele não deixara desde meados de Setembro-, e James estava nas vascas da morte.

Uma ligeira constipação, que lhe venceu as fracas resistências e lhe tomou conta imediatamente dos pulmões. «Ele não deve apanhar frio», explicara o médico. E, saído o médico, James apanhara frio. Quando sentiu qualquer coisa na garganta, James disse à enfermeira - porque agora tinha uma enfermeira: «Eu sabia que isto ia acontecer, com essa mania que vocês têm de arejar o quarto!» Durante um dia inteiro esteve extremamente nervoso a respeito de si e tomou a iniciativa de todas as precauções e remédios, respirava com extremo cuidado e tirava a temperatura de hora a hora. Emily não estava alarmada.

Porém, na manhã seguinte, quando ela entrou no quarto, a enfermeira sussurrou-lhe:

- Ele não quis tirar a temperatura.

Emily encaminhou-se para junto da cama onde James estava deitado e disse suavemente:

- Como se sente, James? - E entretanto punha-lhe o termómetro nos lábios. James olhou para ela.

- Para que é isso? - murmurou ríspidamente. - Eu não quero saber.

Ela então alarmou-se. James respirava com dificuldade e parecia terrivelmente fraco, pálido, com leves manchas avermelhadas no rosto. Dera-lhe muito trabalho, Deus o sabia, mas era James.

fora James durante quase cinquenta anos, e ela não podia recordar nem imaginar a vida sem James, James por trás de todas as suas complicações, o seu pessimismo, a sua crosta de rabugice. profundamente afectivo, realmente bom e generoso para toda a família!

Durante todo aquele dia e no dia seguinte, James dificilmente articulou uma palavra, mas os seus olhos apercebiam-se de tudo o que se fazia a seu respeito - um olhar que mostrava a Emily que ele estava a lutar. E ela não perdeu as esperanças. A própria imobilidade do velho, o modo como ele poupava cada migalha de energia, mostrava-lhe bem a tenacidade da sua luta. E aquilo comovia-a profundamente. Embora o seu rosto se mantivesse composto e animador, quando estava no quarto do doente, as lágrimas rolavam-lhe pela face, quando saía de lá.

À hora do chá, no terceiro dia - ela acabara de lhe mudar a roupa, tratando-lhe da aparência, para não o alarmar, pois ele apercebia-se de tudo-, Emily percebeu uma diferença. «Não adianta mais, estou cansado», estava escrito claramente naquele rosto pálido. E, quando a mulher se aproximou mais, ele murmurou:

- Chamem Soames.

- Sim, James - disse Emily animadamente. - Muito bem. imediatamente.

E beijou-lhe a fronte. Uma lágrima caiu, e quando a enxugou viu que os olhos dele a olhavam gratamente. Abaladíssima, já sem nenhuma esperança, Emily mandou o telegrama a Soames.

Quando o filho chegou, saindo da negra noite de ventania, a grande casa estava parada como um túmulo. A cara larga de Warmson parecia ter-se alongado e tirou-lhe a pelica com uma espécie de cuidado redobrado, dizendo:

- Quer tomar um copo de vinho, sir?

Soames abanou a cabeça e as suas sobrancelhas ergueram-se interrogadoramente.

Os lábios de Warmson tremeram.

- Ele chamou pelo senhor, sir. - E subitamente assoou o nariz.- Já há muito tempo, sir, que estou aqui com Mr. Forsyte - disse ele. - Muito tempo.

Soames deixou-o a pendurar a pelica e começou a subir a escada. Aquela casa, onde ele nascera, onde se abrigara sempre nunca lhe parecera tão quente, tão rica, tão confortável, como na sua última peregrinação ao quarto do pai.

Não era certamente uma casa arranjada de acordo com o seu gosto, mas, no seu luxo substancioso, ela representava realmente um símbolo de conforto e segurança. E a noite estava tão escura e tempestuosa! O túmulo tão frio e isolado!

Parou do lado de fora da porta. Nenhum som vinha de dentro. Moveu suavemente o trinco e entrou no quarto antes que o notassem. A luz fora obscurecida. A mãe e Winifred estavam sentadas na ponta da cama, a enfermeira vinha do outro lado do leito, onde estava uma cadeira vazia. «Para mim!», pensou Soames. Quando ele se afastou da porta, a mãe e a irmã ergueram-se, mas ele acenou-lhes com a mão e elas sentaram-se novamente. Dirigiu-se para a cadeira, e ficou de pé, olhando o pai. A respiração de James era como se estivessem a estrangulá-lo, tinha os olhos fechados. E, ao ver o pai tão fraco, tão pálido, tão devassado, ao ouvir-lhe o sopro estrangulado, subiu ao coração de Soames uma apaixonada onda de ódio contra a Natureza, cruel, inexorável Natureza, esmagando com o joelho aquele frangalho de corpo, tirando-lhe lentamente a respiração, espremendo a vida do ente que até então representara para Soames a coisa mais querida do mundo. O pai, mais que qualquer outro homem, levara uma existência prudente, moderada, abstémia, e ali estava a sua recompensa - sentir a vida arrebatada lentamente, penosamente. E, sem saber o que dizia, Soames murmurou:

- É cruel!

Viu a mãe cobrir os olhos e Winifred inclinar a face para a cama. Mulheres! Atravessam as coisas muito melhor que os homens. Deu um passo mais para junto do pai.

Havia três dias que James não era barbeado, e o queixo e os lábios estavam cobertos de uma barba tão nevada como a fronte. E aquilo amaciava-lhe o rosto, dava-lhe um aspecto que realmente já não parecia deste mundo. Abriu os olhos. Soames aproximou-se mais e inclinou-se. Os lábios do velho moveram-se.

- Estou aqui, papá.

- Hum... que... que notícias? Elas nunca me dizem...

A voz morreu, e uma onda de emoção apoderou-se de Soames, não o deixando falar. Dizer-lhe... sim. Mas o quê? Fez um grande esforço, humedeceu os lábios e disse:

- Boas notícias, papá. Annette teve um filho.

- Ah!

Era um som estranho, sinistro, de alívio, de piedade, de triunfo, semelhante ao som que uma criancinha emite quando lhe dão o que deseja. Os olhos fecharam-se e a respiração estrangulada recomeçou. Soames voltou à cadeira e ficou sentado, imóvel como uma pedra. A mentira que dissera, baseada como era num instinto profundo que lhe dizia que James não conheceria a verdade depois de morto, tirara-lhe todo o poder de sentir naquele momento. O braço roçou em alguma coisa. Era o pé nu do pai. Na luta para respirar, ele tirara-o de sob as cobertas. Soames tomou-o nas mãos - um pé frio, leve e magro, branco... muito frio. Que adiantava pô-lo de novo sob os cobertores, enrolá-lo, se dentro em pouco ia ficar mais frio ainda! E aquecia-o mecanicamente com a mão, escutando o penoso respirar do pai, enquanto a capacidade de sentir tornava a crescer dentro dele. Winifred soltou um pequeno soluço, logo abafado, mas a mãe continuava sentada, imóvel, com os olhos fixos em James. Soames fez um sinal para a enfermeira.

- Onde está o médico? - sussurrou.

- Foi-se embora.

- A senhora não pode fazer nada para ajudá-lo a respirar?

- Posso dar uma injecção. Mas depois ele não poderá resistir. O médico disse que enquanto ele estiver a lutar...

- Ele não está a lutar - disse Soames. - Está a ser esmagado lentamente. É terrível.

James agitava-se penosamente, como se percebesse o que os outros estavam a dizer. Soames ergueu-se e inclinou-se sobre o pai. James agitou fracamente as mãos, e Soames segurou-as.

- Ele quer que o levantem - murmurou a enfermeira. Soames levantou-o. Pensava que o movia suavemente, mas

um olhar quase de cólera passou pelo rosto do doente. A enfermeira soergueu os travesseiros. Soames afastou as mãos e inclinou-se, beijando a fronte do pai. Quando levantava o busto, os olhos de James pousaram nele, com um olhar que parecia vir das profundezas onde o velho estava a entrar.

«Estou vencido, meu filho», procurava dizer aquele olhar. «Cuide deles, cuide de si, cuide... deixo tudo ao seu cuidado.»

- Sim, sim -murmurou Soames. - Sim, sim. Lá atrás, a enfermeira fez ele não soube o quê, porque o pai teve um ligeiro movimento de repulsa, como se o incomodasse aquela interferência. Quase imediatamente, a respiração arquejante sossegou, quase silenciosa, e o velho ficou completamente imóvel. A expressão de luta do seu rosto passou, substituída por uma estranha e calma tranquilidade. Os cílios pararam, descansados, e o rosto inteiro descansou. Apenas pelo leve soprar dos lábios se poderia dizer que ainda respirava. Soames deixou-se cair na cadeira e sentiu de novo o contacto com o pé que tentara aquecer. Ouvia a enfermeira a chorar discretamente junto do fogão. Era curioso que, sendo uma estranha, fosse ela a única a chorar ali! E ele ouvia a discreta vibração das chamas a lamberem a lenha. Mais um dos velhos Forsyte que caminhava para o seu repouso. Eram admiráveis! Era admirável o modo como se agarravam à vida! Sua mãe e Winifred inclinavam-se, com o olhar suspenso nos lábios, mas Soames dobrou-se sobre os pés do pai, tentando aquecê-los. Traziam-lhe alguma consolação, frios, cada vez mais frios.. De súbito Soames ergueu-se: um som, um som terrível, como ele nunca ouvira igual, saía por entre os lábios do pai, como o arquejo intenso de um coração ferido, despedaçado. Que coração forte, capaz de emitir aquele adeus! Parou. Soames olhou o rosto do pai. Não havia movimento - não respirava. Subiu as escadas até ao seu quarto, o seu velho quarto, e na cama caiu em soluços, que procurava abafar nos travesseiros.

Um pouco mais tarde, desceu a escada e entrou no quarto. James estava deitado, só, maravilhosamente calmo, livre de sombras e de ansiedade, com a gravidade que a idade extrema dava aos seus traços devastados, a gasta e preciosa gravidade das moedas antigas.

Soames olhou longamente para aquele rosto, para o fogo, para o quarto todo, cujas janelas estavam largamente abertas sobre a noite de Londres.

- Adeus! - suspirou ele. E saiu.

 

SUA

Tinha muito de que cuidar, naquela noite e no dia seguinte. Pela manhã, um telegrama tranquilizou-o acerca de Annette, e só apanhou o último comboio para Reading, levando na testa um beijo de Emily e no ouvido aquelas suas palavras:

- Não sei o que teria sido feito de mim sem você, meu filho. Chegou a casa à meia-noite. O tempo mudara, suavizara, como se, depois de terminado o seu trabalho, depois de ter prestado a um Forsyte as últimas honras, ele repousasse. Um segundo telegrama, recebido à hora do jantar, confirmara as boas notícias de Annette, e, em vez de se encaminhar para casa, Soames atravessou o jardim, sob o luar, e caminhou para a casa dos barcos. Poderia dormir lá muito bem. Amargamente fatigado, atirou-se sobre o sofá, ainda com a pelica, e caiu no sono. Acordou bastante antes de amanhecer e caminhou para o cais. Encostou-se à balaustrada, olhando para o ponto onde o rio se dobrava numa ampla curva e penetrava num bosque. Em Soames, a apreciação das belezas da Natureza era curiosamente idêntica à dos seus antepassados camponeses - um sentimento de mágoa que se aguçara e decerto se civilizara graças às suas pesquisas através de pinturas de paisagens. Mas a aurora tem o poder de animar a mais materialista das visões, e ele sentia-se impressionado. Havia um outro mundo por trás daquele rio - por trás daquela luz longínqua e fria -, um mundo dentro do qual o homem nunca penetrara, um mundo irreal, semelhante a uma estranha praia nunca descoberta. A sua cor não era a cor convencional, quase não era uma cor realmente. As suas sombras agitavam-se ainda distintamente, o seu silêncio entontecia.

Não tinha nenhum cheiro. Por que razão aquilo o comovia, ele não poderia dizê-lo - senão que se sentia tão só dentro de tal mundo, afastado de toda a sua família e de tudo o que possuía. E era dentro daquele mundo que seu pai devia agora viajar, apesar de todas as semelhanças que pudesse ter com o mundo que deixara. E Soames refugiou-se contra aquilo, indagando a si mesmo que pintor poderia fazer-lhe justiça. A água branco-acinzentada era como... como o ventre de um peixe! Era possível que aquele mundo para o qual ele olhava fosse todo propriedade privada-excepto a água, que, mesmo assim, era canalizada! Não havia ali uma árvore, nem mesmo uma hastezinha de relva, nem um pássaro, nem um animal, nem mesmo um peixe, que não tivesse dono. Algum dia, muito tempo atrás, aquilo teria sido floresta, pântano, água, e criaturas felizes vagueavam e brincavam por ali, sem um ente humano que as conhecesse e lhes desse nomes. E uma vegetação desordenada e luxuriante ocupava o lugar daqueles bosques altos e cuidadosamente plantados que iam até à água e o vermelho dos pântanos do outro lado cobrira todas as pastagens de agora. Pois bem! Os homens tinham ido até ali, vencido tudo, rotulado, registado nos escritórios dos notários! E tinham feito muito bem! No entanto, uma vez ou outra, tal como agora, um fantasma do passado surgia e sussurrava ao ouvido do ente humano que se arriscasse a ficar desperto: «Vocês todos voltarão à minha solidão, onde não há donos, e algum dia será você próprio que virá.»

E Soames, que sentia o arrepio e o medo daquele mundo - novo para si e entretanto tão velho, o murado impossuído visitando a cena do passado remoto -, dirigiu-se para casa e fez chá num pequeno fogareiro a álcool. Quando o bebeu, agarrou os utensílios de escrever e grafou dois parágrafos:

 

No dia 20 do corrente, na sua residência em Park lane, faleceu James Forsyte, aos noventa e um anos de idade. O funeral será ao meio-dia do dia 24, em Highgate. Pede-se que não tragam flores.

No dia 20 do corrente, no Shelter, em Mapledurham, Annette, esposa de Soames Forsyte, deu à luz uma filha.

 

E sobre o mata-borrão traçou a palavra «filho».

Eram oito horas, num mundo vulgar de Outono, quando atravessou o jardim em direcção a casa. As moitas perto do rio emergiam, brilhantes, por entre uma bruma leitosa, o fumo da chaminé erguia-se no céu, azul e sinuoso, e os pombos arrulhavam, sacudindo as penas ao sol.

Entrou furtivamente no seu quarto de dormir, banhou-se, barbeou-se, mudou a roupa branca e vestiu um fato preto.

Madame Lamotte iniciava o pequeno-allmoço quando ele desceu.

Ela olhou-lhe para o fato e disse:

- Não me diga! - E apertou-lhe a mão. - Annette está muito bem, mas o médico disse-me que ela nunca mais poderá ter filhos. Já sabia disso? - Soames acenou que sim. - É uma tristeza. Mais la petite est adorable. Du café?

Soames fugiu da sogra tão depressa quanto pôde. Ela ofendia-o - solada, serena, rápida, limpa... francesa. Não podia suportar as vogais dela, os «rr», ressentia-se da maneira como ela o olhara. como se fosse por culpa dele que Annette não teria mais filhos. Culpa dele! E até se ressentia por aquela adoração da avó pela filha que ainda não vira).

Era curioso como ele fugia de se avistar com a mulher e a filha!

Alguém talvez pensasse que ele deveria ter corrido para junto delas no primeiro momento. Pelo contrário, sentia uma espécie de retraimento físico ante isso - complicado proprietário que era Tinha medo do que Annette pensaria do marido, autor das suas agonias, tinha medo de olhar a criança, tinha medo de mostrar o seu desapontamento ante o presente - e ante o futuro.

Gastou uma hora a passear de um lado para o outro, na sala de estar, antes de arranjar coragem, subir a escada e bater à porta do quarto do casal.

Madame Lamotte abriu-a.

- Ah! Finalmente veio! Elle vous attend,

Deixou-o passar, e Soames avançou com o seu passo silencioso, o queixo firmemente erguido, os olhos furtivos.

Annette estava muito pálida e muito linda, deitada no leito. A criança estava escondida em algum lugar. Ele caminhou para a cama, e, com uma emoção súbita, inclinou-se e beijou a testa de Annette.

- Cá está você então, Soames - disse ela. - Agora já não sofro. Mas sofri terrivelmente, terrivelmente. Alegra-me saber que não terei outros. Oh, como sofri!

Soames ficou em silêncio, apertando-lhe a mão. Não lhe ocorria absolutamente qualquer palavra de estímulo, de simpatia. Só lhe vinha o pensamento: «Uma rapariga inglesa não diria isto!» E certamente naquele momento compreendeu que nunca poderia estar próximo dela em espírito e verdade, nem ela próxima dele. Trouxera-a para casa - e era só isso! E as palavras de Jolyon ocorreram-lhe em tropel: «Quero crer que você bem gostaria de tirar o pescoço do nó da Justiça!» Bem, ele enfiara o pescoço! Ainda o teria lá?

- Nós vamos cuidar muito bem de si - disse ele. - Bem depressa estará forte.

- Não quer ver o bebé, Soames? Está a dormir.

Ele saiu de junto da cama, foi até ao outro lado e ficou de pé, a olhar. No primeiro momento, era exactamente o que esperava ver - uma criança. Mas enquanto olhava, o bebé respirou e fez alguns leves movimentos no seu sono, alterou as feições e pareceu assumir um aspecto individual, crescer, igual a um quadro, a uma coisa que ele ainda tinha de conhecer. Não era repulsiva, antes, pelo contrário, comovente, com qualquer coisa de flor. Tinha os cabelos escuros. Tocou-a com o dedo e desejou ver-lhe os olhos. Abriram-se, eram escuros - não poderia dizer se azuis ou castanhos. Os olhos piscaram, pararam-e havia uma espécie de profundo adormecimento neles. E de súbito o coração de Soames sentiu-se estranho, aquecido, como que liberto.

- Ma petite fleur! - disse docemente Annette.

- Fleur - repetiu Soames. - Fleur! Vamos chamar-lhe assim. O sentimento do triunfo, da possessão recuperada, penetrou-o. Por Deus! Aquilo - aquela coisa era sua!

 

O DESPERTAR

Através da clarabóia que iluminava o hall, em Robin Hill, a luz da tarde banhava a ampla escadaria, e dentro dessa brilhante onda de luz estava de pé o pequeno Jon Forsyte, vestido num fato de linho azul. O cabelo do garoto luzia, assim como os olhos sob o cenho franzido - porque ele considerava gravemente como desceria a escada pela centésima vez antes que o carro trouxesse de volta a casa o pai e a mãe. Quatro degraus de uma vez, e cinco no fim? Já estava a tornar-se aborrecido! Pelo corrimão? Mas de que modo? Com os pés ou com a cabeça à frente? Também já começara a ficar cansado! Ou com a cara para o corrimão e a cabeça para baixo, de uma maneira que ninguém mais conhecia senão ele? Era esse o motivo do cenho franzido no rosto iluminado do pequeno Jon.

Naquele Verão de 1909, as almas singelas que sempre desejaram uma simplificação da língua inglesa não tinham, naturalmente, nenhum conhecimento da existência do pequeno Jon, pois tê-lo-iam reclamado como discípulo. Mas ninguém pode ser tão simples assim neste mundo - e a verdade é que o nome real do garoto era Jolyon, e se lhe chamavam Jon era porque o seu pai vivo e o irmão morto já lhe haviam usurpado os outros diminutivos, Jo e Jolly. Até mesmo o pequeno Jon fez o que pôde para se conformar às convenções e escreveu o seu nome primeiro Jhon, depois John, e só depois de o pai lhe haver explicado que isso não tinha qualquer justificação ele passou a usar simplesmente o Jon.

Até agora aquele pai fora o dono da parte do coração que sobrara a Jon depois do muito que ele dera ao groom Bob - que tocava tão bem concertina - e à sua ama Da - que aos domingos se vestia de roxo e gozava o luzido nome de Spraggins nessa vida privada que todos têm, até mesmo as criadas. Quanto à mãe, sempre lhe aparecera quase como em sonhos, deliciosamente perfumada. acariciando-lhe a fronte até que ele dormisse, e às vezes penteando-lhe os cabelos de um castanho dourado. Quando ele partiu a cabeça contra o guarda-fogo da nursery, foi ela que o socorreu e lhe estancou o sangue, e, quando tinha pesadelos, ela sentava-se na caminha do filho e abrigava-lhe a cabeça no colo. Ela era preciosa, mas longínqua, porque Da estava sempre tão próxima, e, na verdade, não há lugar bastante para duas mulheres ao mesmo tempo no coração de um homem. Com o pai, entretanto, ele tinha naturalmente laços especiais, porque o pequeno Jon também pensava em tornar-se pintor, quando fosse homem. Havia apenas uma leve diferença: o pai pintava quadros e Jon tencionava pintar tectos e paredes, de pé numa escada de cavalete, metido num avental sujo de tinta e com um adorável cheiro de cal. O pai também o levava a passear a cavalo em Richmond Park, no seu pónei chamado Mouse, pois tinha exactamente a cor de um rato.

O pequeno Jon nascera reallmente com uma colher de prata na boca - colher grande e rica. Nunca ouvira o pai ou a mãe falar em voz zangada, nem um com o outro, nem com qualquer outra pessoa, o groom Bob, Cook, Jane, Bella e todos os criados,, até mesmo Da - que era a única a impor-lhe algumas restrições - tinham uma voz especial para falar ao rapazinho. De maneira que ele vivia na crença de que o mundo é um local de perfeita e perpétua gentileza e liberdade.

Nascido em 1901, começara a crescer quando o seu país, após aquele forte acesso de escarlatina que fora a guerra dos Boers, estava a preparar-se para o renascimento liberal de 1906. A coerção era impopular, e os pais tinham ideias exaltadas acerca de condescendência com a prole. Destruíam as palmatórias, poupavam os filhos e esperavam, entusiasmados, os resultados dessa política.

O pequeno Jon, além do mais, agira com largueza de vistas e sabedoria, pois escolhera como pai um cavalheiro amável, de cinquenta e dois anos, que já perdera um filho único, e para mãe uma senhora de trinta e oito anos, cujo único filho era ele. O que o salvara de se tornar um estúpido animalzinho, mistura de cãozinho de colo com porquinho de engorda, fora a adoração do pai pela mãe, porque, embora pequenino como era, Jon podia ver muito bem que ela não era apenas sua mãe e que ele ocupava um segundo lugar no coração do pai.

O lugar que tinha no coração da mãe, isso Jon não sabia. Quanto à «tia June», sua meia-irmã - mas tão velha que fora promovida na escala do parentesco -, ele amava-a, naturalmente, mas ela era brusca de mais. A sua devotada Da também tinha algumas ideias espartanas: dava-lhe banhos frios, mantinha-lhe os joelhos nus e nunca o estimulava a ter muito dó de si próprio. Quanto à delicada questão da sua educação, o pequeno Jon participava da teoria que afirma que as crianças não devem ser forçadas. Gostava da mademoiselle que vinha diariamente, durante duas horas, dar-lhe lições de línguas, junto com história, geografia e tabuada, e não lhe desagradavam as lições de piano que a mãe lhe ministrava, porque ela possuía uma maneira própria de o atrair de tom para tom, sem nunca o fazer estudar nada que não lhe desse prazer, de forma que ele rapidamente conseguiu transformar os seus dez inábeis dedos em dedos de pianista. Com o pai, aprendia a desenhar porquinhos e outros bichos. Na verdade, não era um rapaz muito bem-educado, mas deve-se confessar que a colher de prata não o estragara, embora Da dissesse algumas vezes que a companhia de outros meninos lhe faria um bem enorme.

Foi portanto uma grande desilusão quando pela primeira vez - tinha então quase sete anos - ela o pôs de castigo, voltado para a parede, porque o pequeno Jon queria fazer algo sob a evidente desaprovação de Da. Essa primeira interferência contrária ao livre individualismo de um Forsyte quase enfureceu o pequeno Jon. Havia qualquer coisa de espantoso no desamparo daquela situação e uma absoluta incerteza sobre se aquilo teria um limite. Imagine-se se ela nunca mais o viesse voltar! Sofreu torturas, ao mesmo tempo que erguia a voz o mais alto que podia durante cinquenta segundos. Pior do que isso era a compreensão de que Da empregava todo esse tempo para se convencer de que ele estava realmente numa agonia de pavor. E assim, assustadoramente, foi-lhe revelada a falta de imaginação do ente humano! Quando o castigo terminou, estava convencido de que Da fizera uma coisa abominável. E, embora não quisesse acusá-la, viu-se obrigado, com medo de uma repetição, a procurar a mãe e dizer-lhe:

- Mamã, não deixe que a Da volte a pôr-me voltado para a parede.

A mãe, com as mãos erguidas para a cabeça, e dentro delas duas madeixas de cabelo couleur de feuille morte - como o pequeno Jon ainda não aprendera a dizer-, olhara-o com olhos que pareciam retalhos da sua túnica de veludo castanho e respondera:

- Não, querido, não deixo mais.

E, como éla participava da natureza de uma deusa, o pequeno Jon ficou satisfeito, especialmente quando, ao pequeno-almoço do dia seguinte, estando ele escondido sob a mesa, onde esperava apanhar um cogumelo, a ouviu dizer ao pai:

- Então vai falar com Da, ou falo eu? Ela é tão dedicada ao pequeno!

E a resposta do pai:

- Bem. não é dessa maneira que ela pode mostrar a sua dedicação. Eu sei exactamente o que se sente quando se é posto voltado para a parede. Nenhum Forsyte poderia suportá-lo durante um minuto.

Consciente de que ignoravam a sua presença sob a mesa, Jon foi possuído por um novo sentimento, o embaraço, mas permaneceu onde estava, possuído pelo desejo do cogumelo.

Foi esse o seu primeiro mergulho nos sombrios abismos da existência. E nada de muito importante lhe foi revelado depois, até que um dia, quando se dirigia ao estábulo para tomar o seu copo de leite cru, ordenhado por Garrai, viu que o bezerrinho da vaca Clover estava morto. Inconsolável, seguido por Garrai, abaladíssimo, chamara Da. Porém, compreendendo subitamente que ela não seria a pessoa indicada, correu em busca do pai e caiu nos braços da mãe.

- O bezerro de Clover morreu! Oh! Era tão mansinho! A mãe abraçou-o.

- Sim, meu querido, então, então!

E aquilo parara-lhe os soluços. Porém, se o bezerro de Clover podia morrer, tudo o mais também podia - e não só as abelhas, as moscas, escaravelhos e pintos... tanta coisa! Era assustador - e foi rapidamente esquecido!

O acontecimento seguinte verificou-se quando Jon se sentou em cima de uma vespa - pungente experiência que a mãe compreendeu muito melhor que Da. E nada mais de vital importância sucedeu até que o ano acabasse. Então, depois de um dia de extrema miséria física, ele gozou de uma doença, composta de pequenas considerações, cama, mel numa colher e tangerinas. Foi aí, então, que o mundo todo floresceu, e foi a «tia June» que lhe propiciou essa Primavera, pois, logo que soube que o pequeno Jon estava doente, veio a toda a pressa de Londres,, trazendo consigo os livros que lhe haviam nutrido o seu próprio espírito curioso, nascido no notável ano de 1869. Livros velhos e de várias cores, recheados das mais formidáveis façanhas, E ela leu-as para o pequeno Jon, até que ele fosse capaz de ler sozinho. Logo depois, June voltou para Londres, deixando ao pequeno os livros em montão. E a leitura de tal modo lhe acendeu a imaginação que ele já só pensava em marinheiros e piratas, jangadas, compradores de sândalo, cavalos de ferro, tubarões, batalhas, tártaros, peles-vermelhas, balões, gelos do Pólo Norte e outras extravagantes delícias. No momento em que pôde levantar-se, equipou a cama da popa à proa, desceu dela num rápido mergulho nos verdes mares do tapete, em direcção a uma rocha a que subiu escalando os degraus de mogno da cómoda, a fim de varrer o horizonte com um copo colado ao olho, à procura de velas fugitivas. Arranjou uma jangada com uma toalha, os travesseiros e a bandeja do chá. Guardou a calda das suas ameixas francesas, engarrafou-a num frasco de remédio e aprovisionou a jangada com o rum indispensável, arranjou carne seca com restos de galinha torrados à lareira e fez sumo de limão, para combater o escorbuto, com um pouco de sumo das suas tangerinas. Certa manhã, improvisou um Pólo Norte com todos os lençóis da cama, excepto o almofadão, e atingiu-o numa canoa de casca de árvore - que na vida privada era o guarda-fogo-, depois de um terrível encontro com um urso polar arranjado com o supracitado almofadão e quatro varas de skittle (1) vestidas com a camisola de Da. Depois disso, o pai, querendo refrear-lhe a imaginação, trouxe-lhe Ivanhoe, Bevis, Um livro do Rei Artur e o Tom Brown. Ele leu o primeiro, e durante três dias ergueu,, defendeu e demoliu o castelo de Front de Boeuf, desempenhando todos os papéis do drama, excepto os de Rebecca e Rowena. Soltava gritos penetrantes, «En avant. De Bracy», e pelejava duras lides. Depois de ler o livro do Rei Artur, transformou-se quase exclusivamente em Sir Lamorac de Gallis, porque, a despeito de se falar pouco em tal paladino, Jon preferia o seu nome ao de todos os outros cavaleiros. Levou à morte o seu velho cavalo de rodas, armado com um tango bambu. Bevis pareceu-lhe insípido. Além disso, exigia bosques, animais, coisas de que não dispunha na nursery, excepto os dois gatos, Fitz e Tuck, que não lhe permitiam liberdades. Para Tom Brown, ainda era jovem de mais. E foi grande o alívio em casa, quando, depois da quarta semana, lhe foi permitido sair para o jardim.

Como se estava no mês de Março, as árvores pareciam-se extraordinariamente com mastros nus de navios, e para o pequeno Jon aquilo era uma maravilhosa Primavera, extremamente dura para os seus joelhos e fundilhos, assim como para a paciência de Da, a quem cabia a lavagem e a reparação das roupas do garoto. Todas as manhãs, depois do pequeno-almoço. o pai e a mãe, cujas janelas davam para aquele lado, podiam vê-lo sair de casa,, atravessar o terraço e trepar ao carvalho, com a cara resoluta e os cabelos luzentes. Começava o dia assim porque não havia tempo de ir para longe antes da aula. A velha árvore numca o cansava, tinha mastros grandes, vergas, gáveas, e ele podia sempre descer pelos cabos - as cordas do balouço. Depois da aula, que acabava às onze, ia à cozinha, em busca de uma pequena fatia de queijo, um biscoito e duas ameixas - provisões suficientes para uma baleeira e que seriam comidas apenas em imaginação. Depois, armado até aos dentes com revólveres, pistolas e espadas, iniciava as severas aventuras da manhã, encontrando no seu caminho negreiros, índios, piratas, leopardos e ursos.

Era visto frequentemente, a essa hora do dia, com um punhal entre os dentes

 

*1. Skittle - jogo de bola com nove paus. (N. da T.)

 

- tal como Dick Needham - passando através da rápida explosão das balas inimigas. E muitos eram os jardineiros que ele punha em fuga com as pedras atiradas pelo seu revólver. Vivia uma vida da mais violenta acção.

- Jon - disse o pai para a mulher, sob o carvalho - é terrível. Tenho medo de que dê um marinheiro, ou qualquer outra coisa assim, desesperada. Já o viu dar a menor mostra de apreciar a beleza?

- Não, nenhuma.

- Pelo menos, graças a Deus, não lhe interessam rodas nem máquinas. Posso suportar tudo, menos isso. Mas gostaria de que ele tomasse mais interesse pela Natureza.

- Ele é imaginativo, Jolyon.

- Sim, de uma maneira sanguinária. Será que, até hoje, ele gostou de alguém?

- Não. Apenas gosta de tudo. Nunca houve ninguém mais amoroso e mais amável do que Jon.

- É seu filho, Irene.

Nesse momento, o pequeno Jon, que se estirava num grande ramo acima deles, chamou-lhes a atenção atirando-lhes dois caroços. E aquele fragmento de conversa gravou-se no seu minúsculo coração. Amoroso, amável, imaginativo, sanguinário!

As folhas já estavam a ficar grandes e ia-se aproximando a época do seu aniversário, que, ocorrendo todos os anos a 12 de Maio, era também memorável pelo jantar especial com rim de vitela,, cogumelos, bolos de amêndoas e cerveja de gengibre.

Porém, entre esse oitavo aniversário e a tarde em que ele estava de pé no alto da escada, sob a luz do sol de Junho que atravessava a clarabóia, várias coisas importantes aconteceram.

Da, cansada de lhe lavar os joelhos, ou movida pelo misterioso instinto que sempre força as amas a abandonar os filhos de criação, deixou-o, no dia seguinte ao seu aniversário, numa onda de pranto, para casar - imagine-se! - com «um homem».

O pequeno Jon, o principal prejudicado, mostrou-se inconsolável durante a tarde inteira. Não tinham o direito de lhe fazer aquilo! Duas grandes caixas de soldados, alguma artilharia e mais Os Jovens Corneteiros - que faziam parte dos seus presentes de aniversário - cooperaram, juntamente com o seu desgosto, numa espécie de conversão, e, em vez de procurar aventuras pessoalmente, a própria vida,, começou a realizar batalhas imaginárias, nas quais arriscando a própria vida, começou a realizar batalhas imaginárias, nas quais arriscava vidas sem conta de soldadinhos, berlindes, pedras e feijões. E, empregando essa espécie de «carne para canhão», de que possuía infindáveis reservas, refez a Guerra Peninsular, a dos Sete Anos, a dos Trinta Anos e outras guerras acerca das quais andava ultimamente a ler numa grande História da Europa que pertencera ao avô. É verdade que as alterava - para obedecer ao seu génio guerreiro - e empreendia-as todas no soalho da nursery, de forma que ninguém podia entrar lá, sob risco de perturbar Gustavo Adolfo, rei da Suécia, ou pôr em perigo um exército de austríacos. Porque lhes adorava o nome, Jon era apaixonadamente dedicado aos austríacos, e, descobrindo que havia poucas batalhas de que eles tivessem saído vitoriosos, inventava-lhes vitórias nas suas lutas. Os seus generais favoritos eram o príncipe Eugénio, o arquiduque Charles e Wallenstein. Tilly e Mack - o pai chamara-lhes um dia «guerreiros de cabaré» ou o que quer que isso significasse -, esses, embora austríacos, ninguém poderia admirá-los. Por motivos eufónicos, Jon igualmente adoptou Turenne.

Essa fase, que causou inquietação aos pais, pois mantinha-o dentro de casa quando deveria estar ao ar livre, durou todo o mês de Maio e metade de Junho, sendo liquidada pelo pai, que lhe trouxe Tom Sawyer e Hucklberry Finn. Quando o rapaz leu esses livros, qualquer coisa lhe aconteceu,, e saiu pela porta fora, na apaixonada procura de um rio. Como não havia rio nenhum nos arredores de Robin Hill, foi transformado em rio o lago, que, felizmente, tinha lírios-d'água, moscardos, mosquitos, juncos e três pequenos salgueiros. Nesse lago, depois de uma conveniente sondagem feita pelo pai e por Garrai, durante a qual se verificou que o fundo era sólido e não tinha mais de meio metro de profundidade, Jon pôs a vogar uma pequena canoa na qual navegava horas e horas, escondido das vistas do índio Joe e outros inimigos. Nas margens do lago, ele próprio construiu uma cabana de um metro quadrado, feita de velhas caixas de biscoitos, coberta com ramos. E nessa cabana pretendia ele acender pequenas fogueiras, onde assaria os pássaros que ainda não matara com a sua espingarda, caçando no bosque e no relvado, ou o peixe que ainda não pescara no lago, porque não havia lá nenhum. Isso ocupou o resto de Junho e aquele começo de Julho, quando o pai e a mãe estavam fora, na Irlanda. O pequeno levou uma vida solitária de vagabundo durante todas aquelas cinco semanas de Verão, com a espingarda, a cabana, o lago e a canoa. E, embora só raramente o seu cèrebrozinho activo se interessasse pela beleza das coisas, ela penetrava durante um segundo, aqui e além, pousando na asa de uma libélula, deslizando nos lírios-d'água ou lavando-lhe os olhos com o azul do céu, quando ele estava deitado de costas na canoa, emboscado.

A «tia June», que ficara encarregada dele, tinha «gente grande» dentro de casa - um homem que tossia quase constantemente -, de forma que raramente vinha vê-lo no lago. Certo dia, no entanto, ela trouxe consigo duas outras «pessoas grandes». Jon, que pintara o torso nu com riscas azuis e amarelas, usando a caixa de aguarelas do pai, e pusera algumas penas de pato no cabelo, viu-os chegar

- e emboscou-se por trás dos salgueiros. Como previra, dirigiram-se primeiro à cabana e ajoelharam para olharem para dentro, de forma que lhe teria sido facílimo escalpelar a «tia June» e a outra moça antes que elas o beijassem. Os nomes das duas pessoas recém-chegadas eram «tia» Holly e «tio» Val, que tinha a cara queimada de sol, coxeava um pouco e riu terrivelmente dele. Simpatizou com a «tia» Holly, que, segundo diziam, era também sua irmã, mas ambos se foram embora naquela mesma tarde, e ele não os viu mais. Três dias antes da chegada do pai e da mãe, a «tia June» também saiu, numa grande pressa, levando com ela o homem que tossia. E a mademoiselle disse:

- Pobre homem, está muito doente. Está proibido de entrar no quarto dele, Jon.

Jon, que raramente gostava de infringir proibições, dominou o seu desejo de lá ir, embora estivesse aborrecido e solitário. Na verdade, a fase do lago já passara, e ele sentia-se cheio, até ao âmago da sua alma, de uma inquietação, de uma falta de qualquer coisa

- não de uma árvore, não de uma espingarda, mas de uma coisa macia. Aqueles dois últimos dias tinham-lhe parecido dois meses, a despeito do Perdidos no Mar, que estava a ler agora, onde se contava a história da Velha Lee e das suas terríveis fogueiras que causavam naufrágios. Subira e descera a escada uma centena de vezes durante aqueles dois dias, e muitas vezes fugia do seu quarto para o quarto da mãe, olhando tudo, sem tocar em nada. Entrou uma vez no quarto de vestir, e, erguido num pé só, junto à banheira, fez misteriosamente a invocação mágica de Slingsby, para ter sorte. Depois deslizou até ao guarda-roupa da mãe, abriu a porta e aspirou longamente o cheiro que vinha de lá e que parecia aproximá-lo não sabia bem de quê.

Ocupara-se nessas coisas até ao momento em que ficara de pé. no alto da escada, pensando de que maneira a desceria. Todas as maneiras lhe pareciam tolas, e, numa súbita languidez, pôs-se a descer os degraus um a um. Durante aquela descida, pôde lembrar-se distintamente do pai - a curta barba grisalha, os olhos profundos a piscar, o sulco que havia entre eles, o sorriso engraçado, o magro vulto que sempre parecera tão alto ao pequeno Jon. No entanto, não conseguia evocar a mãe. Tudo o que a representava era algo fugitivo, com dois olhos escuros a fitá-lo, e o cheiro do guarda roupa.

Bella estava no hall, ocupada em abrir as grandes cortinas e a porta da frente.

Jon chamou num tom amável:

- Bella!

- Que é, Masterjon?

- Sirva o chá debaixo do carvalho, quando eles chegarem. Sei que preferem tomar lá o chá.

- Isto é, você é que prefere. O pequeno Jon considerou:

- Não, eles preferem, para me agradar. Bella sorriu.

- Bem, sirvo lá o chá se ficar sossegado e não fizer nenhuma travessura até eles chegarem.

Jon sentou-se no último degrau e acenou que sim. Bella aproximou-se e olhou-o de cima para baixo.

- Levante-se! - disse ela.

O pequeno Jon ergueu-se e ela examinou-o todo. Não estava pálido e os joelhos pareciam limpos.

- Muito bem! -disse ela. - Valha-me Deus! Como está queimado! Dê cá um beijo!

E o pequeno Jon consentiu que ela lhe beijasse os cabelos

- Qual é a geleia? - perguntou ele. - Estou tão cansado de esperar!

- Groselha e morango. Hum! Eram as suas favoritas!

Quando ela saiu, ficou sentado e quieto durante um minuto. O grande hall que dava para o nascente estava muito silencioso e podia-se ver uma das árvores, que parecia um brigue a vogar lentamente através do prado alto. No outro hall, as sombras já se inclinavam através dos pilares. O pequeno Jon ergueu-se, pulou por sobre uma delas e caminhou em torno dos maciços de íris que enchiam a piscina de mármore acinzentado do meio do hall. As flores eram bonitas, mas cheiravam muito pouco. Parou junto à porta de entrada, toda aberta, e olhou para fora. «Suponha - suponha que eles não vêm!» Esperara tanto que não podia mais suportar aquilo, e a sua atenção distraiu-se uma vez daquela tensão para as réstias de poeira luminosa que brilhavam na luz que descia dos vidros do tecto. Erguendo a mão, procurou apanhar alguma. Bella devia ter espanado aquela zona da sala! Mas talvez aquilo não fosse poeira - fosse apenas aquilo de que era feita a luz do sol -, e ele olhou para fora, para ver se a luz do sol, ao ar livre, era a mesma coisa. Não era. Prometera ficar sossegado no hall, mas não podia suportar mais aquela imobilidade. E, atravessando a calçada lajeada, estirou-se no relvado. Apanhando seis malmequeres, baptizou-os, respectivamente, com os nomes de Sir Lamorac, Sir Tristan, Sir Lancelot, Sir Palimedes, Sir Boors, Sir Gawain, e, arranjando-os aos pares, pô-los a lutar, em breve, só quem ainda tinha a cabeça era Sir Lamorac, que Jon seleccionara com um caule especialmente forte. Mas, depois de três encontros, até mesmo o valente campeão parecia gasto e exausto. Um escaravelho caminhava lentamente pela relva, que já estava a precisar de ser aparada. E cada caule maior representava uma árvore, em redor de cujo tronco o escaravelho era obrigado a deslizar. Jon agarrou Sir Lamorac e com os pés do herói tangeu para longe o bicho, que se pós a fugir miseravelmente. O pequeno jon riu, depois perdeu o interesse e suspirou. O coração parecia-lhe vazio. Voltou-se e ficou deitado de costas. Vinha um cheiro de mel das limeiras em flor, o azul do céu era lindo, com pequenas nuvens que tinham o aspecto e - quem sabe - o gosto de sorvete de limão. Dali, ouviu Bob a tocar na sua concertina o Vamos Subir o Rio Suwanme. E aquilo tornava-o mais triste - embora fosse bonito. Voltou-se outra vez e encostou o ouvido ao chão - os índios escutam assim as coisas que caminham muito longe -, mas não ouviu nada além da concertina. E quase instantaneamente ouviu um chiar de rodas, um trote. Sim, era um carro vindo - vindo! Pôs-se em pé de um salto. Devia esperá-los no pórtico, ou subir a escada, e, quando eles fossem a entrar, «Olhem!», e escorregar pelo corrimão com a cabeça para a frente? Que faria? O carro já dera a volta na álea ensaibrada. Era tarde de mais! E contentou-se em esperar, saltando de excitamento. O carro chegou rapidamente, rangeu, parou. O pai saltou, exactamente como fazia dantes. Curvou-se e o pequeno Jon saltou-lhe para cima, O pai disse:

- Valha-me Deus! Eh, meu velho, você está um índio! - exactamente como Jon desejara que ele dissesse.

Mas uma impressão de expectativa - de algo desejado - ardia inextinguivelmente no pequeno Jon. Então, num longo e tímido olhar, descobriu a mãe, com um vestido azul e um pequeno véu de viagem cobrindo-lhe o gorro e os cabelos. Sorria. Ele pulou mais alto do que nunca pulara, cruzou as pernas nas costas dela e abraçou-a fortemente. Ouviu-a arfar e sentiu que ela o abraçava também com força. Os olhos dele, de um azul muito escuro, fitaram então os olhos da mãe, de um castanho mais escuro ainda, até que os lábios dela lhe fecharam as pálpebras, e, apertando-a com quanta força tinha, ouviu-a rir, sufocada:

- Você é lorte, Jon!

Ouvindo aquilo, Jon deslizou para o chão e atirou-se para o hall, arrastando-a pela mão.

Quando estava a comer a geleia debaixo do carvalho, reparou que havia na mãe algumas coisas que nunca notara: as faces dela, por exemplo, pareciam leite, havia fios de prata nos seus cabelos dourados, o colo não tinha nenhum nó, como o de Bella, e subia

e descia levemente com a respiração. Notou também uns leves traços que lhe marcavam o canto dos olhos e uma zona levemente escura sob eles. Ela era sempre linda, muito mais bonita que Da. ou mademoiselle, ou a «tia June», ou mesmo a «tia» Holly, com quem Jon simpatizara. Até mesmo mais bonita que Bella, que tinha faces rosadas e aparecia tão subitamente em toda a parte. Aquela nova beleza da mãe assumia uma importância particular, e comeu menos do que esperara.

Quando o chá acabou, o pai convidou-o para dar uma volta pelos jardins. E Jon teve uma longa conversa com o pai acerca das coisas em geral, evitando aludir à sua vida privada - Sir Lamorac, os austríacos, o vazio que sentira nesses últimos três dias, a sensação de plenitude que o possuía agora. O pai falou-lhe de um lugar chamado Glensonfantrim, onde ele e a mãe haviam estado, e das criaturinhas minúsculas que lá existem e que emergem do chão quando tudo está a dormir. O pequeno Jon fez alto, com os calcanhares afastados.

- Acredita realmente nisso, papá?

- Não, Jon, mas acho que você deve acreditar.

- Porquê?

- Você é mais novo que eu... e isso são contos de fadas. O pequeno Jon mostrou a cova voluntariosa do queixo.

- Não acredito em histórias de fadas. Nunca vi nenhuma fada.

- Ah! - exclamou o pai.

- A mamã acredita?

O pai sorriu com o seu sorriso engraçado.

- Não. Ela apenas vê Pan.

- Quem é Pan?

- O deus de pé de cabra que vive nos lugares selvagens e bonitos.

- Ele estava em Glensonfantrim.'

- A sua mãe diz que sim.

O pequeno Jon pôs-se a andar.

- O papá viu-o?

- Não. Eu apenas vi Vénus Anadiomene.

Jon reflectiu. Vénus aparecia no seu livro que falava a respeito dos Gregos e dos Troianos.

Então Ana era o seu nome e Diomene o sobrenome?

Porém, segundo compreendeu quando o perguntou, tudo era uma única palavra e significa "a que nascia das ondas".

- Ela nascia das ondas, em Glensonfantrim?

- Sim. todos os dias.

- Com quem se parece ela, papá?

- Com sua mãe.

- Oh, então ela deve ser... - Mas calou-se ao dizer aquilo, arremeteu contra um muro, trepou nele e depois, rapidamente, saltou para o chão. A descoberta da beleza da mãe parecia-lhe um assunto rigorosamente privado. No entanto, o charuto do pai demorava tanto a sair-lhe da boca que ele se sentiu compelido a dizer: - Estou com vontade de ver o que foi que a mamã trouxe da viagem, Importa-se, papá?

Aproveitou aquele pretexto como desculpa da sua falta de masculinidade e sentiu-se um pouco desconcertado quando o pai, olhando-o bem de frente, deu um grande suspiro e respondeu:

- Está bem, meu velho, vá adorar a sua mãe.

Ele partiu, simulando vagar, e logo adiante pôs-se a correr. Entrou no quarto da mãe através do seu próprio quarto, pois a porta de comunicação estava aberta. Ela estava ajoelhada defronte de uma mala, e ele parou junto dela e ficou imóvel.

Irene ergueu-se e disse:

- E então, Jon?

- Pensei que podia vir para cá olhar.

Depois de lhe dar e receber novo abraço, trepou para a janela e, erguendo as pernas acima da cabeça, pôs-se a vê-la desfazer as malas. Aquele espectáculo dava-lhe um prazer até então desconhecido, parte porque ela estava a tirar da mala coisas curiosas, parte porque gostava de a olhar. A mãe movia-se de uma maneira diferente de toda a gente, especialmente de Bella. Era, indiscutivelmente, a criatura mais refinada que já conhecera. Acabou finalmente de desfazer a mala e ajoelhou-se em frente do filho.

- Teve saudades de nós, Jon?

O pequeno Jon fez sinal que sim - e, depois de confessar dessa maneira os seus sentimentos, continuou a acenar com a cabeça.

- Mas não tinha a tia June?

- Oh! Ela tinha um homem que tossia. - O rosto da mãe alterou-se e mostrou-se quase zangado. Ele acrescentou rapidamente: - Era um pobre coitado, mamã, tossia horrivelmente. Eu... eu gostava dele.

A mãe pôs-lhe uma mão no peito.

- Você gosta de toda a gente, Jon?

- Até certo ponto - disse ele. - A tia June levou-me à igreja num domingo.

- À igreja! Oh!

- Ela queria ver se me afectava.

- E afectou?

- Sim. Comecei a sentir-me esquisito, e ela trouxe-me para casa a toda a pressa. Mas eu não estava doente. Fui para a cama, bebi brandy quente com água e li Os Rapazes de Beechwood. É formidável.

A mãe mordeu o lábio.

- Quando foi isso?

- Oh! Foi... já há muito tempo. Quis que ela me levasse de novo, mas ela não quis. A mamã e o papá nunca vão à igreja,, pois não?

- Não, não vamos.

- Porquê?

A mãe sorriu.

- Não sei, meu querido. Nós íamos quando éramos pequenos. Talvez fôssemos pequenos de mais.

- Eu sei - disse Jon. - É perigoso.

- Você resolverá por si mesmo acerca de todas essas coisas quando for grande.

O pequeno Jon respondeu de um modo calculado.

- Não quero crescer, mamã. Não quero ir para o colégio. - E um súbito desejo de dizer algo mais, de dizer o que realmente sentia, fê-lo corar.- Quero ficar consigo e ser seu namorado, mamã. - Depois, com um instinto que o levava a tirar partido da situação, acrescentou rapidamente: - Esta noite não quero ir para a cama, já estou muito enjoado de ir todas as noites para a cama.

- Teve algum pesadelo?

- Só um, Posso deixar a minha porta aberta para o seu quarto esta noite, mamã?

- Sim, um pouquinho.

O pequeno Jon soltou um suspiro de satisfação. -Que foi que você viu em Glensonfantrim?

- Só coisas bonitas, meu querido.

- A que é que chama coisas bonitas?

- A que é que eu chamo? Oh, Jon, isso é uma pergunta difícil:

- Eu, por exemplo, também posso ver coisas bonitas? A mãe ergueu-se e sentou-se ao lado dele.

- Você vê-as todos os dias. O céu é bonito, as estrelas, as noites de luar... os pássaros, as florestas, as árvores., tudo é bonito. Olhe pela janela... tudo isso não são coisas bonitas, Jon?

- Ah, sim. isso é a vista. E é só isso?

- Só? Não. O mar é maravilhosamente bonito, e as ondas, com a espuma a boiar sobre elas.

- Vocês levantavam-se cedo todos os dias para verem isso, mamã?

A mãe sorriu.

- Sim, nós tomávamos banho.

O pequeno Jon aproximou-se subitamente e apertou-lhe o pescoço entre os braços.

- Eu sei - disse ele misteriosamente. - A coisa bonita era você, e tudo o mais era imitação.

Ela suspirou e riu.

O pequeno Jon disse criticamente:

- Você acha Bella bonita, por exemplo? Eu não acho.

- Bella é jovem. E isso já é muito.

- Pois a mamã ainda parece mais jovem que ela. Ao pé de si, a Bella tem de se esconder. Quando penso em Da, também não acho que ela seja bonita. E a mademoiselle é horrível.

- A mademoiselle tem um rosto muito simpático.

- Oh. sim... simpático. Gosto dessas suas pequenas rugas. mama.

- Rugas?

O pequeno Jon pós um dedo no canto do olho dela.

- Oh, estas? Mas são uma marca da idade.

- Aparecem quando sorri.

- Mas marcam o rosto.

- Oh, gosto delas. Gosta de mim, mamã:

- Eu? Gosto, gosto de você, meu querido.

- Deveras?

- Deveras.

- Mais do que eu penso que você gosta?

- Mais... muito mais.

- Eu também. Então estamos iguais. - Consciente de que jamais na vida se entregara tanto, Jon sentiu uma súbita reacção viril de Sir Lamorac, Dick Needham, Huck Finn e outros heróis. - Posso mostrar-lhe uma coisa? - disse ele, E, deslizando dos braços dela, pôs-se de cabeça para baixo. E então, deslumbrado pela inequívoca admiração da mãe, foi até à cama, ergueu-se sobre a cabeça, com os pés dobrados até às costas, sem tocar em nada com as mãos. Fez isso várias vezes.

Naquela noite, depois de inspeccionar o que eles haviam trazido, Jon sentou-se entre os dois ao jantar na mesa pequena que era usada quando estavam só os três em casa. O pequeno sentia-se extremamente excitado. A mãe vestia um vestido francês, de seda cinzenta, com pequenas rosas de renda creme em torno do pescoço - que estava tão moreno como a renda. E pôs-se a olhá-la, até que o curioso sorriso do pai o fez voltar-se, subitamente atento à sua fatia de ananás. Nunca ficara acordado até tão tarde, quando foram para a cama, A mãe subiu com ele. e jon despiu-se vagarosamente, para a reter junto de si. Quando finalmente já estava com o pijama vestido, disse:

- Prometa que só sai daqui depois de eu rezar.

- Prometo.

Ajoelhando e enterrando o rosto nos lençóis, o pequeno Jon rezava rapidamente, abrindo de vez em quando um olho para a espiar e vê-la de pé. com um sorriso no rosto. «Padre Nosso - rezava ele. «que estais no Céu, santificada seja a mamã, venha a nós o reino da mamã - na Terra como no Céu -, mamã nossa de cada dia nos dai hoje - perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores... Ma-men! Pronto!»

Ergueu-se de um pulo e por um longo minuto ficou nos braços dela. Depois, já deitado, continuou a segurar-lhe a mão.

- Não vai fechar a porta mais do que está, pois não? Não demora a vir dormir, mamã?

- Vou um pouco lá para baixo, tocar para o papá.

- Está bem, daqui eu ouço.

- Não fique a ouvir. É melhor que durma.

- Posso dormir qualquer outra noite.

- Mas esta é uma noite igual às outras.

- Oh. não. é uma noite extra-especial.

- Nas noites extra-especiais a gente sempre dorme melhor.

- Porém, se eu dormir, mamã, não posso ouvir quando subir a escada.

- Bem, quando eu subir, venho dar-lhe um beijo. Se não estiver a dormir, vê-me, e, se estiver, de qualquer modo há-de saber que eu o beijei.

O pequeno Jon suspirou.

- Está bem - disse ele. - Mamã?

- Sim?

- Como é o nome daquela mulher em que o papá acredita? Vénus Ana Diomedes?

- Oh, meu anjo! Vénus Anadiomene.

- Sim. Mas eu gosto mais do nome que lhe chamo.

- Qual é o nome que você me chama, Jon? Jon respondeu timidamente:

- Guinevere! É a da Távola Redonda! Já tinha pensado muito nisso., mas ela usava o cabelo solto.

Os olhos da mãe, olhando para além dele, pareciam flutuar em lágrimas.

- Não se esquece de vir, mamã?

- Não esqueço, se você dormir.

- Então está fechado o negócio. - E o pequeno Jon cerrou os olhos.

Sentiu os lábios dela pousarem na sua testa, ouviu-lhe os passos, abriu os olhos para a ver deslizar através da porta aberta, e, suspirando, fechou de novo os olhos.

Então o Tempo começou.

 

Durante uns dez minutos, tentou lealmente dormir, contando todo um rebanho de ovelhas imaginárias - velha receita de Da para trazer o sono. Parecia-lhe que contava já havia horas. E pensava que já deveria ser tempo para ela subir de volta. Empurrou os lençóis. «Estou com calor!», disse ele. E a sua voz soou engraçada na escuridão, como se fosse a voz de outra pessoa. Porque não subia ela? Sentou-se. Precisava de ver porquê. Levantou-se da cama, foi até à janela e empurrou a cortina para um lado. Não estava escuro, e não poderia dizer se aquilo era luz do dia ou da Lua, que, aliás, estava muito grande. E tinha uma cara cómica e má, e ele não queria olhá-la. Depois, lembrando-se de que a mãe lhe dissera que as noites de luar são bonitas, continuou a olhar para tudo, indiscriminadamente. As árvores lançavam longas sombras, o campo parecia feito de leite derramado, e podia ver um grande e imenso caminho lá muito longe, que parecia cobrir tudo - e tudo parecia diferente e flutuante.

Havia também um cheiro bom, que vinha através da janela aberta.

«Eu queria ter uma pomba, como Noé!», pensou ele.

 

               The moon was round and bright

               it shone and shone and made it light (1).

 

Depois desses versos, que lhe ocorreram de súbito, sentiu a presença da' música - muito suave, linda! Era a mamã a tocar! Apanhou um macaroon (2) que escondera numa das gavetas da cómoda, e, mordendo-o, voltou à janela. Trepou ao parapeito, ora mastigando, ora detendo as maxilas para escutar melhor. Da gostava de contar que os anjos tocam harpa no Céu. Porém, não haveria de ser nem metade tão bonito como a mamã a tocar na noite de luar, enquanto ele comia o seu macaroon. Um bicho zumbiu, uma mariposa roçou-lhe o rosto. A música parou, e o pequeno Jon ergueu a cabeça para a noite. Ela já devia estar de volta. E ele não queria que ela o encontrasse desperto.

 

*1 A Lua era redonda e fulgente,

Brilhando, brilhando, tornava tudo luzente.

  1. Macaroon - bolinho feito de farinha, ovos, amêndoas e açúcar, (N. da T.)

 

Voltou para a cama e puxou os lençóis até à cabeça,embora continuando a ver uma réstia de luar que entrava no quarto. Caía através do soalho, junto aos pés da cama. e o pequeno espiava-a, caminhando lentamente em sua direcção, como se estivesse viva. A música recomeçou, mas ele mal a ouvia, música que embalava, linda, que embalava... linda... embal...

E adormeceu, enquanto a música aumentava, caía, parava. O raio de luar subiu até ao seu rosto. O pequeno Jon virou-se e ficou deitado de costas, com o punho moreno ainda segurando o lençol. Os cantos dos seus olhos tremeram - começara a sonhar. Sonhava que estava a beber leite de um vaso que era a Lua, defronte de um grande gato preto de sorriso engraçado, semelhante ao seu pai. E ouvia-o sussurrar: «Não beba de mais!» O leite era do gato. é claro, e ele estendeu amigavelmente a mão, para acariciar o bicho. Porém, aquilo não durou muito: o vaso transformou-se na cama em que estava deitado, e quando queria descer não conseguia encontrar o fim do colchão. Não conseguia encontrar - não podia descer! Era vaporoso!

Choramingou, a dormir. A cama também começara a rodar. girava por dentro, girava por fora. Girando, girando loucamente era a Velha Lee, saída do Perdidos no Mar, que o impulsionava! Oh! Como ela era horrorosa! Mais depressa, cada vez mais depressa! Até que ele, a cama, a Velha Lee, a Lua e o gato formaram uma única roda. girando, girando mais depressa, mais depressa - medonho - medonho - medonho!

Gritou.

Uma voz que dizia «Meu querido, meu querido» penetrou através da roda. e ele acordou, sentou-se na cama, com os olhos muito abertos.

Era a mãe, com os cabelos como a rainha Guinevere. E, agarrando-se a ela., Jon escondeu a face entre eles.

- Oh, oh!

- Está tudo bem, meu amor. Agora já acordou. Então, então' Não foi nada!

Mas o pequeno Jon continuava a exclamar:

- Oh, oh!

E a voz dela elevou-se, aveludada, aos ouvidos do filho:

- Era o luar, queridinho... uma réstia de luar que subiu para o seu rosto.

O pequeno Jon segurou-a pela camisola.

- E disse que o luar era bonito... Oh!

- Não para dormir dentro dele, Jon. Quem o deixou entrar? Foi você que puxou as cortinas?

- Queria ver a noite. Eu... eu olhei para fora. . eu, mamã. Comi o meu Macaroon... - Mas ia-se sentindo suavemente consolado, e o instinto de desculpar o seu medo reviveu dentro dele. - A Velha Lee veio para junto de mim e pôs tudo a andar à roda - murmurou.

- Mas, Jon, que é que você pode esperar senão isso, se vai comer macaroons depois de estar na cama?

- Foi só um, mamã. E fez a música ficar tão bonita. Eu estava à sua espera. Já estava a pensar que era de manhã.

- Meu tontínho, são apenas onze horas.

O pequeno Jon ficou calado, enfiando o nariz no pescoço dela.

- Mamã, o papá está no seu quarto?

- Esta noite não.

- Posso ir para lá?

- Se quiser, meu amor.

Ainda pouco senhor de si, o pequeno Jon recuou.

- A mamã está diferente. Está mais jovem.

- É porque estou com o cabelo solto, meu querido.

O pequeno Jon segurou aquela massa pesada, toda de ouro, com alguns fios de prata aqui e além.

- Gosto de si assim. Gosto mais de si assim que de qualquer outra maneira.

E, segurando-lhe a mão, pôs-se a puxá-la através da porta. Quando a atravessaram, fechou-a com um suspiro de alívio.

- Qual é o lado da cama que prefere, mamã?

- O lado esquerdo.

- Está bem.

Sem perder tempo, sem lhe dar uma oportunidade de mudar de ideia, o pequeno Jon pulou para a cama, que lhe parecia muito mais macia que a sua. Soltou novo suspiro, enterrou a cabeça no Travesseiro, e ficou a ver a batalha de carros de guerra, espadas e lanças que a gente sempre descobre na superfície dos cobertores quando os pêlos do tecido ficam contra a luz.

- Não era nada de verdade, pois não? - perguntou.

Defronte do espelho, a mãe respondeu:

- NãO! Só o luar e a sua imaginação. Não devia ser tão excitável, Jon.

Porém, sem estar ainda inteiramente de posse dos seus nervos, o pequeno Jon respondeu jactanciosamente:

- Eu não tive medo de verdade, é claro! - E continuou a espiar as lanças e os carros de guerra. A espera estava a parecer-lhe muito longa. - Oh, mamã, venha depressa.

- Meu querido, tenho de entrançar o cabelo.

- Oh, não esta noite. Amanhã tem de destrançá-lo outra vez. Estou com sono agora. Se não vier, daqui a pouco estou sem sono.

A mãe ergueu-se e a sua imagem branca e linda reflectiu-se de pé nos espelhos do toucador. Ele podia ver três imagens dela. com o pescoço voltado, os cabelos a brilhar sob a luz, os olhos escuros sorrindo. Mas aquilo era desnecessário, e ele insistiu:

- Venha, mamã. Estou à espera.

- Está bem, meu amor. já vou.

O pequeno Jon fechou os olhos. Tudo estava a tornar-se mais satisfatório, bastava apenas que ela se apressasse! Sentiu a cama ranger: ela deitava-se. E, ainda de olhos fechados, ele disse, sonolento:

- Está bem, não está?

Ouviu a voz da mãe dizer qualquer coisa, sentiu os seus lábios tocarem-lhe o nariz e, enroscando-se ao lado dela, que estava acordada e pensava amorosamente nele, caiu num sono sem sonhos, que o curava do sono anterior.

 

                                                                                John Galsworthy 

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"VT" Séries