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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NÓS ROBÔS / Isaac Asimov
NÓS ROBÔS / Isaac Asimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NÓS ROBÔS

(contos)

 

      O melhor amigo de um garoto

      - Onde está Jimmy, querida? - perguntou o Sr. Anderson.

      - Lá fora, na cratera - disse a Sra. Anderson. - Ele está bem. Está junto com Robobo... Sabe se já chegou?

      - Chegou. Está na estação de foguetes, fazendo os testes. Na realidade, eu mesmo mal posso esperar para vê-lo. Não vi nenhum de verdade desde que deixei a Terra, quinze anos atrás. Os que passaram nos filmes não contam.

      - Jimmy nunca viu nenhum - disse a Sra. Anderson.

      - Porque ele nasceu na Lua e não pode ir à Terra. E é por isso que estou trazendo um para cá. Acho que é o primeiro a aparecer na Lua.

      - Custou bastante caro - disse a Sra. Anderson com um ligeiro suspiro.

      - Manter Robobo também não é barato - disse o Sr. Anderson.

      Jimmy estava lá fora, na cratera, como sua mãe tinha dito. Pelos padrões da Terra, ele era espigado, um tanto alto para os seus dez anos de idade. Seus braços e pernas eram compridos e ágeis. Parecia mais gordo e troncudo, vestido com o traje espacial, mas podia lidar com a gravidade lunar como nenhum ser humano, nascido na Terra, seria capaz. O pai não podia acompanhar-lhe os passos quando ele esticava as pernas e entrava no salto de Canguru.

      A face exterior da cratera inclinava-se para o sul, e a Terra, que surgia baixa no céu meridional (onde sempre surgia, quando vista da Cidade Lunar) estava quase cheia, de modo que todo o decli-ve da cratera ficava brilhantemente iluminado.

      O declive era suave e mesmo o peso do traje espacial não impedia que Jimmy disparasse em cima dele num salto flutuante que fazia a gravidade parecer não-existente.

      — Venha, Robobo - ele gritou.

      Robobo, que podia ouvi-lo pelo rádio, guinchou e pulou atrás.

      Jimmy, embora fosse ágjl, não podia correr mais depressa que Robobo, que não precisava de um traje espacial e tinha quatro pernas e tendões de aço. Robobo navegava sobre a cabeça de Jimmy, dando saltos imensos e aterrando quase sob os pés do garoto.

      — Não precisa se exibir, Robobo - disse Jimmy - e não saia de vista.

      Robobo guinchou outra vez o guincho especial que significava “Sim”.

      — Eu não confio em você, seu enrolador - gritou Jimmy, subindo num último salto, que o conduziu sobre a curva da beira superior da parede da cratera, e o largou do outro lado, num declive interno.

      A Terra mergulhou abaixo do topo da parede da cratera e, de imediato, ficou escuro como breu em volta de Jimmy. Uma escuridão amistosa e quente, que dissipava a diferença entre solo e céu, exceto pelo brilho das estrelas.

      Na verdade, Jimmy não devia brincar no lado escuro da parede da cratera. Os adultos diziam que era perigoso, mas isso acontecia porque nunca estiveram ali. O chão era macio e ondulado, e Jimmy conhecia a localização exata de cada uma das poucas rochas.

      Além disso, como podia ser perigoso correr no escuro se Robobo estava bem ali a seu lado, pulando em volta, guinchando e cintilando? Mesmo sem cintilar, Robobo podia dizer onde estava, e onde Jimmy estava, pelo radar. Jimmy não podia se machucar enquanto Robobo estivesse por perto, detendo-o quando ele se aproximava demais de uma rocha, ou pulando sobre ele para mostrar o quanto o amava, ou circulando em volta e guinchando baixo e assustado quando Jimmy se escondia atrás de uma rocha, embora nessas ocasiões Robobo soubesse todo o tempo, e suficientemente bem, onde ele estava. Certa vez, Jimmy se esticou imóvel no chão e fingiu estar ferido. Robobo acionou o radíoalarme e o pessoal da Cidade Lunar chegou ali às pressas. O pai de Jimmy disse-lhe poucas e boas sobre aquele pequeno embuste, e Jimmy nunca mais o repetiu.

      Quando estava se lembrando disso, Jimmy ouviu a voz do pai no seu rádio individual de ondas longas.

      — Jimmy, volte. Tenho uma coisa para lhe contar.

      Jimmy tirou o traje espacial e se lavou. Você sempre precisa se lavar quando vem de fora. Mesmo Robobo tinha de ser borrifado, mas ele gostava disso. Ficava de gatinhas, o pequeno corpo, com menos de meio metro de comprimento, tremia e exibia uma minúscula cintilação. A cabecinha, sem boca, possuía dois grandes olhos vidrados e uma protuberância onde ficava o cérebro. Ele guinchou até ouvir a voz do Sr. Anderson:

      — Quieto, Robobo!

      O Sr. Anderson sorria.

      — Temos uma coisa para você, Jimmy. Ainda está na estação de foguetes, mas estará conosco amanhã, depois de todos os testes terminarem. Achei que tinha de lhe contar isso agora.

      — É da Terra, papai?

      — Um cachorro da Terra, filho. Um cachorro de verdade. Um cãozinho “terrier” escocês. O primeiro cachorro na Lua. Não precisará mais de Robobo. Não podemos ficar com os dois, você sabe. Ele ficará com algum outro menino ou menina.

      O Sr. Anderson pareceu esperar que Jimmy dissesse alguma coisa.

      — Você sabe o que é um cachorro, Jimmy. É a coisa real. Robobo não passa de uma imitação mecânica, um robô boboca. Ê isso que seu nome significa.

      Jimmy fez cara feia.

      — Robobo não é uma imitação, papai. É o meu cachorro.

      — Não um cachorro verdadeiro, Jimmy. Robobo é apenas aço, fiação e um simples cérebro positrônico. Não é um ser vivo.

      — Ele faz tudo que eu quero que ele faça, papai. Ele me compreende. Sem dúvida, é um ser vivo.

      — Não, filho. Robobo é só uma máquina. É apenas programado para se comportar do modo como se comporta. Um cachorro está vivo. Você não vai mais querer Robobo depois de ter o cachorro.

      — O cachorro precisará de um traje espacial, não é?

      — Sim, naturalmente. Mas será um dinheiro bem empregado e o cão se acostumará. E não precisará usá-lo na Cidade. Você vai ver a diferença quando ele estiver aqui.

      Jimmy olhou para Robobo, que estava guinchando outra vez, um guincho lento, muito baixo, parecendo amedrontado. Jimmy estendeu os braços e Robobo deu um salto para eles.

      — Qual será a diferença entre Robobo e o cachorro? - Jimmy perguntou.

      — É difícil explicar - disse o Sr. Anderson - mas será fácil de perceber. O cachorro realmente gostará de você. Robobo está apenas ajustado para agir como se gostasse de você.

      — Mas, papai, não sabemos o que há dentro de um cachorro ou quais são as suas sensações. Talvez seja também apenas um modo de agir.

      O Sr. Anderson franziu a testa.

      — Jimmy, você saberá a diferença quando experimentar o amor de uma coisa viva.

      Jimmy segurou Robobo com força. Também estava franzindo a testa e o olhar desesperado em seu rosto significava que não estava disposto a mudar de idéia.

      — Mas qual é a diferença no modo como eles agem? E quanto ao modo como eu sinto? Eu gosto de Robobo e isso é o que importa.

      E o pequeno robô-boboca, que nunca fora abraçado com tanta força em toda a sua vida, guinchou rápidos e altos guinchos... guinchos felizes.

     

      Sally

      Sally vinha descendo pelo caminho do lago, de maneira que acenei para ela e chamei-a pelo nome. Sempre gostei de ver Sally. Gostava de todas elas, compreende, mas Sally era a mais bonita. Não havia a menor dúvida.

      Apressou-se um pouco quando acenei. Mas não sem dignidade, ela não era desse tipo. Moveu-se apenas com rapidez suficiente para demonstrar que estava contente por ver-me também. Voltei-me para o homem ao meu lado.

      — Esta é Sally - disse eu.

      Ele sorriu para mim e balançou a cabeça. Fora a Sra. Hester quem o trouxera, dizendo:

      - Este é o Sr. Gellhorn, Jake. Você deve lembrar-se que ele lhe enviou uma carta pedindo uma entrevista.

      E isto era pura conversa, naturalmente. Tenho um milhão de coisas para fazer na Fazenda e se há uma coisa com a qual não perco tempo é com a correspondência. É por isso que mantenho a Sra. Hester por aqui. Está sempre por perto e é muito eficiente para atender a coisas tolas, destituídas de importância, sem precisar estar sempre recorrendo a mim e, o que é primordial, ela gosta de Sally e de tudo o mais. Algumas pessoas não gostam.

      — Prazer em conhecê-lo, Sr. Gellhorn - disse eu.

      — Raymond J. Gellhorn - disse ele, estendendo-me a mão, que apertei, para deixar cair em seguida.

      Era um sujeito corpulento,um pouco mais alto do que eu e um pouco mais encorpado também. Tinha mais ou menos a minha idade, ali pela casa dos trinta. Os cabelos eram pretos, emplastados, grudados à cabeça e partidos ao meio. O bigode era fino e muito bem cuidado. O maxilar projetava-se sob as orelhas, o que lhe dava a aparência de estar sofrendo de um ligeiro acesso de caxumba. Na televisão, seria a escolha natural para o vilão, de maneira que presumi que fosse um bom sujeito. Mas o que aconteceu depois veio a provar que a televisão não está errada o tempo todo, quando faz as suas escolhas.

      — Sou Jacob Folkers - disse-lhe eu.- Que posso fazer por você?

      — Pode contar-me um pouco a respeito da sua Fazenda aqui, se não se importar — disse ele num grande sorriso, largo, de dentes muito brancos.

      Senti que Sally se aproximava por trás de mim e levantei minha mão para ela. Inclinou-se para a minha mão, na qual senti o duro e lustroso esmalte do seu pára-lama aquecendo a minha palma.

      — É um belo automóvel - disse Gellhorn.

      Esta é uma maneira de explicar a coisa. Sally era um conversível 2045, com um motor positrônico Hennis-Carieton e um chassi Armat. Possuía as mais puras e finas linhas que jamais havia visto em qualquer modelo, sem exceção. Há cinco anos vinha sendo a minha favorita e nela havia colocado tudo o que podia sonhar. E durante todo aquele tempo jamais tivera um ser humano à sua direção.

      Nem uma vez.

      — Sally — disse então acariciando-a gentilmente - apresento-lhe o Sr. Gellhorn.

      O ronronar dos cilindros de Sally foi um pouco mais forte. Fiquei escutando atentamente para ver se batia pino. Ultimamente, tinha ouvido batida de pinos nos motores de quase todos os carros e a troca de gasolina não tivera o menor efeito. Naquela ocasião, porém, Sally tinha o motor tão suave quanto sua pintura.

      — Costuma dar nomes a todos os carros? - indagou Gellhorn. Parecia divertido com o assunto e a Sra. Hester não gosta de pessoas que dizem coisas como se estivessem ridicularizando a Fazenda. E por isso respondeu, cortante:

      — Naturalmente. Os carros têm as suas personalidades, não é Jack? Os sedans são todos machos e os conversíveis são fêmeas.

      — E a senhora os conserva em garagens separadas, madame? - disse Gellhorn sorrindo novamente.

      A Sra. Hester ficou olhando para ele.

      — E agora, poderia falar com o senhor em particular, Sr. Folkers? - disse Gellhorn, dirigindo-se a mim.

      — Depende - respondi.- Você é repórter?

      — Não, senhor. Sou agente de vendas. Qualquer conversa que tivermos não será publicada. Posso assegurar-lhe que estou interessado em que o assunto seja estritamente confidencial.

      — Vamos caminhar um pouco, descendo a estrada. Há um banco que podemos usar.

      Começamos a descer, a Sra. Hester afastou-se e Sally veio se sacudindo, um pouco atrás de nós.

      — Não se incomoda se Sally vier conosco, não é? — indaguei.

      — De modo algum. Não pode repetir o que dissermos, pode? — e riu da própria piada, aproximando-se de Sally e alisando sua grade.

      Sally acelerou o motor e Gellhorn retirou a mão num gesto apressado.

      — Não está acostumada com estranhos — expliquei.

      Sentamo-nos no banco, sob o grande carvalho, de onde podíamos olhar através do pequeno lago a pista particular de corridas. Era na parte quente do dia e os carros estavam em toda a sua capacidade, pelo menos trinta deles. Mesmo daquela distância podia ver que Jeremiah estava fazendo a sua costumeira proeza de chegar por trás de algum dos modelos mais sérios e mais velhos, acelerando de repente, passando desabaladamente, fazendo chiar os pneus. Há duas semanas havia encurralado o velho Angus, levando-o a sair do asfalto e com isso desregulou seu próprio motor por dois dias.

      Aquilo não adiantou, lamento dizê-lo, e, pelo que parece, não há muito a fazer. Para começar, Jeremiah é um modelo esporte e os dessa espécie sempre tém fogo nas ventas.

      — Bem, Sr. Gellhorn, poderia dizer-me por que deseja a informação?

      — Mas este é um lugar impressionante, Sr. Folkers — disse ele sem me ouvir, olhando à sua volta.

      — Preferiria que me chamasse de Jake. E como me chamam.

      — Está bem, Jake. Quantos carros você* tem aqui?

      — Cinqüenta e um. Recebemos um ou dois novos todo ano. Houve um ano em que recebemos cinco. Não perdemos um sequer. Estão todos em perfeito estado. Temos até um modelo de 2015, o Mat-O-Mot, funcionando perfeitamente. É um dos automáticos originais. Foi o primeiro carro a chegar aqui.

      Bom e velho Matthew. Ficava agora na garagem a maior parte do dia, mas a esta altura já era o avô de todos os carros com motores positrônicos. Já foi o tempo em que somente os veteranos de guerra cegos, os paraplégicos e os chefes de estado eram os únicos a guiar os automáticos. Mas Samson Harridge, meu chefe, era suficientemente rico para adquirir um. Fui seu motorista naquele tempo.

      E àquele pensamento, senti-me velho. Podia lembrar-me do tempo em que não havia no mundo um automóvel com cérebro bastante para encontrar o seu próprio caminho para casa. Eu própro guiara inertes massas de máquinas que precisavam das mãos de um homem em seus controles, a cada minuto. Todos os anos, máquinas daquele tipo costumavam matar dezenas de milhares de pessoas.

      Os automáticos deram um jeito nisto. Um cérebro positrônico pode reagir com muito maior rapidez do que um cérebro humano, naturalmente, e paga para que as pessoas não ponham as mãos em seus controles. Você entra, imprime qual o seu destino e deixa que ele tome o caminho à sua maneira.

      Aceitamos tudo isto agora, mas eu me lembro de quando as primeiras leis foram promulgadas, forçando a saída das velhas máquinas das estradas e limitando o uso das automáticas. Céus, foi aquela agitação! Chamaram aquilo de todos os nomes, desde comunismo a fascismo, mas o fato é que as estradas se esvaziaram, cessaram as mortes e cada vez mais pessoas se acostumavam mais facilmente à nova moda.

      É claro que os automáticos eram centenas de vezes mais caros do que os manuais e não havia muitos que se podiam dar ao luxo de ter um particular. A indústria especializou-se em fabricar ônibus automáticos. Você pode a qualquer hora ligar para uma companhia e ter um deles à sua porta em questão de minutos e o ônibus leva-o aonde deseja ir. Normalmente você tem que seguir com outras pessoas que estão indo na mesma direção, mas, o que há de errado nisto?

      Samson Harridge tinha um desses carros particulares e eu o acompanhei desde que a máquina chegou. O carro não era o Matthew para mim, então - pois não sabia que seria o decano da Fazenda, um dia. A única coisa que sabia é que ele ia tirar-me o emprego e eu o odiava.

      — Não precisa mais de mim, Sr. Harridge? - foi o que disse.

      — Que confusão é esta que você está fazendo, Jake? Você não está pensando que vou confiar numa geringonça destas, está? Você fica e comanda exatamente os controles.

      — Mas esta coisa trabalha por si mesma, Sr. Harridge. Esquadrinha a estrada, reage apropriadamente a obstáculos, quer sejam humanos ou constituídos por outros carros, e tem memória para os trajetos das viagens.

      — É o que dizem, é o que dizem. Não importa, você fica aí sentado exatamente atrás do volante, para o caso de alguma coisa sair errada.

      Mas é engraçado como você vem a gostar de um carro. De modo algum eu o chamava de Matthew e despendia todo o meu tempo polindo-o e cantarolando. Um cérebro positrônico permanece em melhores condições quando ele próprio controla o seu chassi durante todo o tempo, o que significa que é melhor manter o tanque cheio, de maneira que o motor trabalhe dia e noite. Depois de algum tempo acostumei-me de tal modo que podia dizer pelo som do motor como Matthew estava se sentindo.

      À sua maneira, Harridge afeiçoou-se a Matthew também Não havia nenhum de que ele gostasse mais. Divorciou-se, ou sobreviveu, a três mulheres, cinco filhos e três netos. De maneira que, quando morreu, talvez não tenha sido inteiramente uma surpresa que todo o seu patrimônio tivesse sido legado, por sua vontade, a uma Fazenda para Automóveis Aposentados, sendo eu encarregado de cuidar de tudo e Matthew como o primeiro membro de uma ilustre linhagem.

      E aquilo constituiu a minha própria vida. Nunca me casei. Você não pode casar-se e ainda cuidar corretamente de automáticos.

      Os jornais acharam engraçado mas, depois de algum tempo, deixaram de fazer piadas a respeito. Existem algumas coisas que você não pode ridicularizar. Talvez você nunca esteja em condições de adquirir um automático e talvez nunca venha a desejá-lo, mas posso garantir-lhe que se vier a ter um, passará a amá-lo. Trabalham duro e são afeiçoados. Somente um homem sem coração pode maltratar um deles ou ver um maltratado.

      E é por isso que se tornou comum, se um homem possui um automático por algum tempo, tomar precauções para que seja deixado na Fazenda, se não tem herdeiro a quem possa confiar os exatos cuidados que um automático requer. Expliquei tudo isso a Gellhom.

      — Cinqüenta e um canos! - disse ele. - Isto representa um bocado de dinheiro.

      — Cinqüenta mil, no mínimo, por cada um, de investimento original - disse eu. — Valem muito mais agora. Eu os equipei.

      — Deve custar também um bocado de dinheiro manter a Fazenda.

      — Tem razão. A Fazenda é uma organização não lucrativa, o que nos dá uma boa vantagem quanto aos impostos e, naturalmente, cada novo automático que chega comumente traz com ele fundos garantidos. Ainda assim, os custos estão sempre se elevando. Tenho que manter o paisagismo. Tenho que providenciar sempre novo asfalto e reparar o antigo. E ainda há a gasolina, óleo, reparos e peças. Tudo vai somando...

      — E tem despendido muito tempo com isto.

      — Certamente que tenho, Sr. Gellhorn. Trinta e três anos.

      — Não parece que esteja tendo muito lucro.

      — Não parece? Você me surpreende, Sr. Gellhorn. Eu tenho a Sally e mais cinqüenta deles. Olhe para ela.

      E eu sorria. Não podia impedir-me de fazê-lo. Sally brilhava tanto que até doía nos olhos. Algum inseto devia ter morrido em seu pára-brisa ou alguma poeirinha havia caído ali, de maneira que ela se pôs a trabalhar. Um pequeno tubo projetou-se e passou a derramar Tergosol sobre o vidro. Espalhava-se rapidamente sobre a superfície de silicone, atingindo todos os lugares quase de uma só vez e forçando a água para um pequeno canal na parte inferior do pára-brisa, por onde escorria até o chão. Nem uma só gota de água atingia o seu capô verde-maçã”. O tubo que esguichava o detergente recolhia-se então ao seu lugar e desaparecia.

      — Nunca vi um automático como este — disse Gellhorn.

      — Acho que não - respondi.- Montei esta peça automática especial em nossos carros. Gostaram dela. Até mesmo incrementei a Sally com um ejetor de cera, automático. Desse modo ela pode limpar e polir a si mesma todas as noites, até que você possa ver o seu próprio rosto em qualquer parte dela e até possa barbear-se ali. Se eu conseguir a verba, vou colocar tal dispositivo em todas as outras. Conversíveis são muito vaidosas.

      — Posso dizer-lhe de que maneira pode conseguir a verba, se é que isto lhe interessa.

      — Isto sempre interessa. De que maneira?

      — Não é óbvio, Jake? Qualquer dos seus carros vale cinqüenta mil, no mínimo, foi o que você disse. Posso apostar que alguns deles atingem a casa do milhão.

      — E daí?

      — Alguma vez já pensou em vender alguns, uns poucos?

      — Acho que não chegou a compreender, Sr. Gellhorn, mas não posso vender nenhum deles - disse eu balançando a cabeça. - Pertencem à Fazenda e não a mim.

      — O dinheiro poderia destinar-se à Fazenda.

      — Os estatutos da sociedade que constitui a Fazenda determinam que os carros sejam perpetuamente cuidados. Não podem ser vendidos.

      — E que me diz dos motores, então?

      — Não compreendo...

      — Escute aqui, Jake - disse Gellhorn mudando de posição e pondo na voz um tom confidencial.— Permita que lhe explique a situação. Existe um grande mercado para automáticos particulares, desde que possam ficar baratos. Certo?

      — Isto não é segredo.

      — E noventa e cinco por cento do custo está no motor. Certo? Agora, eu sei onde posso encontrar um suprimento de carrocerias. E também sei onde podemos vender automáticos a um bom preço - vinte ou trinta mil para os mais baratos e talvez cinqüenta ou sessenta para os melhores. Tudo o que preciso são os motores. Entende qual é a solução?

      — Não, Sr. Gellhorn.— Entendia, sim, mas queria que ele vomitasse tudo.

      — Está exatamente aqui Você tem cinqüenta e um deles e é perito na mecânica dos automatomóveis, Jake. Precisa ser. Pode retirar um motor e colocá-lo em outro carro, de maneira que ninguém venha a notar a diferença.

      — Não seria muito ético.

      — Não estaria danificando os carros. Estaria até fazendo-lhes um favor. Use os seus velhos carros. Use aquele velho Mat-O-Mot.

      — Espere um pouco, Sr. Gellhorn. Motores e carrocerias não são itens separados. Constituem uma só unidade. Aqueles motores são usados para aquelas carrocerias. Não se sentiriam felizes em outros carros.

      — Está bem, então este é o ponto, e é muito bom, Jake. Seria como tirar a sua mente e colocá-la no crânio de outra pessoa. Certo? Você não gostaria disso, não?

      — Não, acho que não gostaria.

      — Mas que tal se eu tomasse a sua mente e a colocasse no corpo de um jovem atleta? Que me diz disto, Jake? Você já não é mais um rapaz. Se lhe fosse dada a oportunidade, não gostaria de desfrutar o prazer de voltar aos vinte anos? É isto que estou oferecendo a alguns dos seus motores automobilísticos.

      — Isto não faz muito sentido, Sr. Gellhorn - disse eu, rindo. — Alguns dos nossos carros podem ser velhos, mas são bem cuidados. Ninguém os guia. Têm permissão para andar sozinhos. Estão aposentados, Sr. Gellhorn. Eu não gostaria de voltar a ter um corpo de vinte anos, se isso viesse a significar cavar fossos pelo resto da nova vida e não ter o suficiente para comer. O que é que você acha, Sally?

      As duas portas de Sally abriram-se e voltaram a fechar-se, suavemente.

      — O que é isso? — indagou Gellhorn.

      — É a maneira de Sally dar risada.

      — Fale com lógica, Jake — disse Gellhorn, forçando um sorriso. Achava que eu fazia alguma piada de mau gosto.- Os carros foram feitos para serem guiados. Provavelmente não são felizes se você não os guia.

      — Sally não tem sido guiada há cinco anos - respondi.— E me parece feliz.

      — Tenho minhas dúvidas.

      — Olá, Sally, que tal uma volta por aí, com motorista? - disse ele levantando-se e caminhando vagarosamente na direção de Sally.

      O motor de Sally estrondeou e ela recuou.

      — Não a force, Sr. Gellhorn - adverti. - Ela pode ficar um pouco nervosa.

      Dois sedans estavam a cerca de cem jardas, na estrada acima. Pararam. Talvez, à sua maneira, estivessem observando. Não lhes prestei atenção. Tinha meus olhos sobre Sally e conservava-os ali.

      — Fique firme agora, Sally — disse Gellhorn. Aproximou-se e pôs a mão na maçaneta. Ela nem se mexeu, é claro.

      — Esta porta se abriu há um minuto atrás — disse ele.

      — Fechadura automática - respondi. - Sally adquiriu um certo senso de reserva, foi o que aconteceu.

      — Um carro com senso de privacidade não devia sair por aí de capota abaixada - disse ele vagarosa e deliberadamente.

      Deu dois ou três passos para trás e então, tão rápido que não pude dar um passo para impedi-lo, avançou e pulou para dentro do carro. Apanhou Sally desprevenida, e tão logo entrou, desligou a ignição antes que ela pudesse travá-la.

      Pela primeira vez em cinco anos, o motor de Sally não funcionou.

      Acho que cheguei a gritar, mas Gellhorn já pusera a chave em “Manual” e já o travara também. Pôs o motor a funcionar. Sally voltara à vida, mas não tinha liberdade de ação.

      Gellhorn saiu pela estrada. Os sedans ainda estavam lá. Voltaram-se, mudando de direção, embora não apressadamente. Acho que aquilo deixou-os atônitos.

      Um deles era Giuseppe, vindo de uma das fábricas de Milão, e o outro era Stephen. Estavam sempre juntos. Ambos eram novos na Fazenda, mas já estavam ali há tempo bastante para saber que os nossos carros nunca tinham motoristas.

      Gellhorn foi em frente a toda velocidade e, quando os sedans finalmente compreenderam que Sally não iria frear porque não poderia fazê-lo, já era tarde para fazer alguma coisa a não ser tomar medidas desesperadas.

      Desviaram logo, um para cada lado, Sally passando entre eles como um corisco. Steve colidiu contra a cerca que ladeava a estrada, freando sobre o gramado e a lama, a menos de seis polegadas da beira da água. Giuseppe moveu-se aos trancos do outro lado da estrada, parando depois bruscamente.

      Consegui que Steve voltasse à estrada e estava tentando descobrir se a cerca lhe fizera algum dano, se é que podia fazê-lo, quando Gellhorn voltou. Abriu a porta de Sally e saiu. Inclinou-se e desligou a ignição uma segunda vez.

      — Aqui está ela - disse ele. - Acho que lhe fiz um grande bem.

      — Por que continuou em velocidade com os sedans ao seu lado? — indaguei, contendo minha raiva. - Não havia razão para isto.

      — Fiquei esperando que saíssem do caminho.

      — E o fizeram. Um deles varou a cerca.

      — Sinto muito, Jake - disse ele. - Pensei que se movessem com maior rapidez. Sabe como é. Tenho estado em muitos ônibus. Mas estive em automáticos particulares uma ou duas vezes em minha vida, e esta é a primeira vez que guio um deles. E isto lhe mostra como é a coisa, Jake. Ao guiar um, fiquei de sangue quente. Posso lhe garantir que não precisamos ir mais do que vinte por cento abaixo da lista de preço para atingir um bom mercado e o lucro seria de noventa por cento.

      — Que dividiríamos?

      — Meio a meio. E eu assumo todos os riscos, lembre-se.

      — Está bem. Já o escutei. Agora, você é que vai escutar-me - e elevei a voz porque estava tão furioso que já não podia mais continuar sendo bem educado.— Quando deu partida no motor de Sally, você a feriu. Gostaria de ser nocauteado? Foi isto o que fez com Sally quando a desligou.

      — Você está exagerando, Jake. Os automatônibus são desligados todas as noites.

      — Certo, e aí está por que não quero nenhum dos meus meninos ou meninas enfiados em carrocerias “57, onde eu não saberia que tratamento teriam. Os ônibus necessitam de revisões em seus circuitos positrônicos a cada dois anos. Há cinqüenta anos ninguém toca nos circuitos do velho Matthew. O que pode oferecer-lhe em comparação com isto?

      — Você está ficando nervoso. Suponho que vai pensar na minha proposta, quando se acalmar e entrar em contato comigo.

      — Já pensei tudo o que tinha que pensar. Se o vir mais uma vez, chamarei a polícia.

      — Espere aí, velho - disse ele torcendo a boca ameaçadoramente.

      — Espere aí digo eu. Aqui é propriedade privada e estou mandando que dê o fora.

      — Bem, então, adeus - disse ele dando de ombros.

      — A Sra. Hester o acompanhará. Esteja certo de que este adeus é permanente.

      Mas não foi permanente. Voltei a vê-lo dois dias depois. Dois dias e meio, para ser mais preciso, porque já era quase meio-dia quando o vi e um pouco depois de meia-noite quando voltei a vê-lo novamente.

      Sentei-me na cama quando ele acendeu a luz, piscando até que pudesse entender o que acontecia. E quando pude ver, não precisava de muita explicação. Tinha uma arma na mão direita, com o cano da maldita agulhinha perfeitamente visível entre dois dedos. Sabia que tudo o que tinha a fazer era aumentar a pressão daqueles dedos e eu ficaria em pedaços.

      — Vista as suas roupas, Jake - disse ele.

      Não me mexi. Fiquei apenas olhando para ele.

      — Escute, Jake, sei qual é a sua situação - disse ele. - Visitei-o há dois dias atrás, como sabe. Você não tem guardas neste lugar, nenhuma cerca eletrificada, nenhum alarme. Nada.

      — Não preciso de nada disso — disse eu. — Por enquanto, não há nada que possa impedi-lo de sair daqui, Sr. Gellhorn. E eu saberia se fosse o senhor. Este lugar pode ser muito perigoso.

      — E é, para qualquer um que esteja do lado errado de uma arma.

      — Compreendo. Vejo que carrega uma.

      — Então, mexa-se. Meus homens estão esperando.

      — Não, Sr. Gellhorn. Não até que me diga o que quer e provavelmente nem mesmo assim.

      — Fiz-lhe uma proposta anteontem.

      — A resposta continua sendo não.

      — Há mais do que uma proposta, agora. Vim aqui com alguns homens e um automatônibus. E a sua oportunidade de vir comigo e desligar vinte e cinco dos motores positrônicos. Não me importa quais deles. Vamos colocá-los no ônibus e levá-los. Uma vez que tenham sido distribuídos, cuidarei para que receba a sua justa parte em dinheiro.

      — E para tanto tenho a sua palavra, suponho.

      — Tem — e não agiu como se sentisse que eu estava sendo sarcástico.

      — Não - eu disse.

      — Se insiste em dizer não, faremos a coisa à nossa própria maneira. Eu próprio desligarei e retirarei os motores, só que farei isto com os cinqüenta e um que você tem. Com todos eles.

      — Não é assim tão fácil desligar motores positrônicos, Sr. Gellhorn. Por acaso é um perito em robótica? E mesmo que seja, sabe, esses motores foram modificados por mim.

      — Sei disso, Jake. E na verdade, não sou um perito. Posso arruinar alguns motores tentando tirá-los. E este é o motivo por que terei que tirar todos os cinqüenta e um, se você não cooperar. Posso ficar só com vinte e cinco, quando acabar. O primeiro em que eu tocar, provavelmente sofrerá mais. Até que eu pegue o jeito. E se tiver que fazer isto, o primeiro em que porei a mão será Sally.

      — Não acredito que esteja falando sério, Sr. Gelüiorn.

      — Falo sério — disse ele. E por fim soltou todo o veneno.- Se cooperar, pode ficar com Sally. De outro modo ela poderá se machucar bastante. Sinto muito.

      — Vou com você, mas tenho mais um aviso a lhe dar. Terá problemas, Gellhorn.

      E ele achou muita graça naquilo. Estava rindo baixinho quando descemos as escadas juntos.

      Havia um automatônibus esperando lá fora na estrada que conduzia aos apartamentos-garagem. Às sombras de três homens esperavam ao seu lado e seus faróis acenderam-se quando nos aproximamos.

      — Apanhei o velho - disse Gellhom em voz alta. — Tirem daí esse caminhão e vamos começar.

      Um deles inclinou-se para dentro do veículo e aplicou as instruções apropriadas no painel de controle. Subimos pela estrada com o ônibus a nos seguir, submisso.

      — Não conseguirá entrar na garagem - expliquei. - A porta não vai aceitá-lo. Não temos ônibus aqui, só carros particulares.

      — Está bem - disse Gellhom. - Passe-o para a grama e conserve-o fora da vista.

      Podia-se ouvir o ronronar dos motores dos carros a dez metros da garagem.

      Normalmente aquietavam-se quando eu entrava, mas, desta vez, não. Penso que eles sabiam que havia estranhos por perto e quando as caras de Gellhorn e dos outros tornaram-se visíveis, ficaram mais barulhentos. De cada motor vinha um rumor esquentando e cada um deles passou a bater pino irregularmente, até que o lugar matraqueava.

      As luzes acenderam-se automaticamente quando entramos. Gellhorn não parecia se importar com o barulho dos canos, mas os três homens que o acompanhavam pareciam surpreendidos e pouco à vontade. Tinham a aparência do assassino profissional, uma aparência que não vinha da sua constituição física, mas de uma certa cautela no olhar e da canalhice estampada em seus rostos. Conhecia o tipo e não me preocupava.

      — Que diabo, estão desperdiçando gasolina - disse um deles.

      — Meus canos sempre a desperdiçam - respondi, empertigado.

      — Mas não esta noite — disse Gellhom. - Desligue-os.

      — Não é assim tão fácil, Sr. Gellhom - respondi.

      — Comece! - ordenou ele.

      Fiquei ali parado. Ele mantinha a arma firmemente apontada para mim.

      — Já lhe disse, Sr. Gellhorn, que os meus carros têm sido bem tratados enquanto têm estado aqui na Fazeuda. Estão acostumados a ser tratados dessa maneira e vão ficar ressentidos com qualquer mau-trato.

      — Você tem um minuto — replicou. - Deixe para doutrinar-me em outra oportunidade.

      — Estou tentando explicar uma coisa. Estou tentando explicar que os meus carros entendem o que lhes digo. Um motor positrônico aprende, com tempo e paciência. Os meus carros aprenderam. Sally entendeu a sua proposta há dois dias atrás. Deve lembrar-se de que riu quando indaguei sobre a sua opinião. Também sabe o que fez com ela, assim como os dois sedans que você tirou da estrada. E o restante sabe o que fazer com os invasores em geral.

      — Escute aqui, velho maluco...

      — Tudo o que tenho a dizer é - e levantei a voz: - Pega!

      Um dos homens empalideceu e gritou, mas sua voz se perdeu completamente ao som de cinqüenta e uma buzinas que de uma só vez dispararam. Mantiveram suas notas e nas quatro paredes da garagem o eco elevou-se, furioso e metálico. Dois carros rolaram para a frente, sem muita pressa, mas não havia engano quanto ao seu alvo. Dois outros seguiram, em linha, os primeiros. Todos os carros agitavam-se em seus boxes.

      Os vilões, de olhos arregalados, recuaram.

      — Não fiquem encostados à parede! - gritei.

      Mas aparentemente o mesmo pensamento instintivo lhes ocorrera. Dispararam loucamente pela porta da garagem.

      Já na porta, um dos homens de Gellhorn voltou-se, sacando a própria arma. A agulha emitiu um fino clarão azulado na direção do primeiro carro. E o carro era Giuseppe.

      Uma fina linha de pintura descascada apareceu no chassi de Giuseppe, a metade direita do seu pára-brisa se rachou e trincou, mas o vidro não chegou a quebrar-se.

      Os homens agora já haviam passado pela porta e, dois a dois, os canos aceleravam atrás deles dentro da noite, as buzinas disparadas trombeteando o ataque. Continuava a segurar Gellhorn pelo cotovelo mas, de qualquer modo, não creio que pudesse mover-se. Seus lábios tremiam.

      — Aí está por que não preciso de cercas eletrificadas ou de guardas — expliquei. — A minha propriedade protege-se a si mesma.

      Os olhos de Gellhorn moviam-se de um lado para outro, fascinados, à medida que cada par de automóveis passava.

      — São assassinos! — disse ele.

      — Não seja tolo. Não vão matar seus homens.

      — São assassinos!

      — Apenas vão lhes dar uma lição. Os meus carros foram especialmente treinados para perseguição através dos campos, exatamente para uma ocasião como esta. O que os seus homens terão será pior do que uma morte direta e rápida, creio. Alguma vez já foi perseguido por um automatomóvel?

      Gellhorn não respondeu. Mas eu continuei, não queria que ele perdesse nada.

      — Serão como sombras correndo tanto quanto seus homens, cercando-os dali e daqui, buzinando, avançando, sempre no encalço deles, ameaçando-os, cantando os pneus e acelerando os motores. E assim continuarão até que seus homens caiam, ofegantes, meio mortos, esperando que as rodas passem por cima dos seus ossos frágeis. Mas os carros não farão isso, irão embora. E pode apostar que seus homens nunca mais voltarão aqui pelo resto da vida. Nem por todo o dinheiro que você ou dez iguais a você possam lhes dar. Escute... - E apertei mais o seu braço. Ele endireitou-se para ouvir.

      — Não está escutando portas de carros batendo? — perguntei. O som vinha de longe, mas não havia engano. — Eles estão rindo. Estão se divertindo.

      O rosto de Gellhorn crispou-se de raiva. Levantou a mão. Ainda empunhava a arma.

      — Eu não faria isso. Um dos automatomóveis ainda está conosco.

      Acho que ele não tinha notado Sally até então, ela movera-se muito suavemente. Embora seu páralama dianteiro praticamente me tocasse, não podia ouvir-lhe o motor. Ela devia estar contendo a sua respiração. Gellhorn gritou.

      — Ela não lhe tocará enquanto eu estiver com você. Mas se você me matar... Sally não gosta de você, sabe?

      Gellhorn voltou a arma na direção de Sally.

      — O motor dela é blindado - expliquei - e antes que você sequer pudesse acionar essa coisa pela segunda vez ela já estaria em cima de você.

      — Está bem, então - gritou ele subitamente, e o meu braço foi torcido para trás de tal modo que eu mal podia suportar. Manteve-me entre ele e Sally e sua pressão em meu braço não diminuiu. - Venha comigo quietinho e não tente soltar-se, velho, senão lhe arranco o braço do ombro.

      Tive que me mover. Sally vinha atrás de nós, cutucando-me, aterrorizada, incerta quanto ao que fazer. Tentei dizer-lhe alguma coisa, mas não pude. Somente podia cerrar os dentes e gemer.

      O automatônibus de Gellhorn estava ainda lá fora, em frente à garagem. Fui forçado a entrar nele. Gellhorn saltou para dentro, se-guindo-me, e fechou as portas.

      — Muito bem. Agora, vamos falar sério — disse ele.

      Estava esfregando o meu braço, tentando dar-lhe vida novamente e mesmo ao fazê-lo, automaticamente, sem ter consciência do esforço requerido, estudava o painel de controle do ônibus.

      — Este é um veículo reconstruído - constatei.

      — E daí? - disse ele, cáustico. — É uma amostra do meu trabalho. Consegui um chassi disponível, encontrei um cérebro que pudesse usar e presenteei-me com um ônibus particular. Que acha?

      Inclinei-me rapidamente para o painel reparado, forçando-o para um lado.

      — Mas que inferno! - disse ele. - Deixe isso aí! - E sua mão caiu como um dormente sobre o meu ombro esquerdo. Lutei contra ele.

      — Não quero prejudicar o ônibus. Que tipo de pessoa você pensa que sou? Apenas queria dar uma olhada nas ligações do motor. - E não precisei olhar muito. Estava fervendo de raiva quando me voltei para ele.

      — Você é um patife e um bastardo. Não tinha o direito de instalar este motor, por que não procurou um especialista em robótica?

      — Será que pareço louco? — respondeu ele.

      — Mesmo sendo um motor roubado, não tinha o direito de tratá-lo deste modo. Soldas, fitas adesivas e braçadeiras! É brutal!

      — Mas funcionou, não é mesmo?

      — Claro que funcionou, mas isto é um inferno para o ônibus. Você pode viver com enxaquecas, dores de cabeça e artritismo agudo mas isto não seria uma boa vida. Este carro está sofrendo!

      — Cale essa boca! — e por um momento relanceou pela janela, para Sally que vinha rodando tão perto do ônibus quanto podia. Gellhorn certificou-se de que portas e janelas estavam fechadas.

      — Vamos sair daqui agora, antes que os outros carros voltem - disse ele. - E vamos permanecer longe.

      — E de que modo isso vai ajudá-lo?

      — Seus carros ficarão sem gasolina algum dia, não ficarão? Você não os programou para que eles próprios enchessem os seus tanques, não é? Voltaremos e acabaremos o negócio.

      — Estarão procurando por mim - afirmei. - A Sra. Hester chamará a polícia.

      Ele já não raciocinava mais. Engrenou o ônibus, que saltou para a frente. E Sally nos seguiu.

      — O que ela pode fazer se você está aqui comigo? - disse ele dando uma rísadinha.

      Sally parecia compreender isso também. Aumentou a velocidade, passou por nós e se foi. Gellhorn abriu a janela ao seu lado e cuspiu pela abertura.

      O ônibus movia-se com alguma dificuldade pela estrada escura, o motor rateando irregularmente. Gellhorn regulou a luz periférica até que a fita verde fosforescente do meio da estrada, à luz do luar, fosse tudo o que nos mantinha fora das árvores. Praticamente não havia tráfego. Dois carros passaram pelo nosso, indo no sentido contrário, e não havia nenhum do nosso lado da estrada, nem adiante nem atrás.

      Fui eu quem ouviu primeiro a batida de uma porta - batida rápida e forte que ecoou no silêncio, primeiro à direita e depois à esquerda. As mãos de Gellhom tremeram quando furiosamente tentou alcançar maior velocidade. Um feixe de luz atravessou como um raio, partindo de um grupo de árvores, em nossa direção, cegando-nos. E um outro feixe de luz nos atingiu, vindo por trás da grade de proteção, do outro lado. De um cruzamento, a quatrocentos metros adiante, ouviu-se o guincho de um cano que arrancava em nossa direção.

      — Sally foi buscar os outros — disse eu.— Acho que você está cercado.

      — E daí? O que podem fazer? - e Gellhorn debruçou-se sobre os controles, tentando enxergar através do pára-brisa. — E quanto a você, meu velho, não tente fazer nada, nada - tartamudeou.

      E eu nem podia. Estava cansado até os ossos, meu braço esquerdo estava em fogo. Os sons dos motores agora eram em uníssono e ficavam mais perto. Podia ouvir que o soar dos motores obedecia agora a padrões inusitados. Subitamente pareceu-me que os meus carros falavam uns com os outros.

      Buzinas, numa enorme confusão, soaram por trás de nós. Voltei-me e Gellhorn olhou rapidamente pelo retrovisor. Uma dúzia de carros vinha seguindo ao longo das duas vias.

      Gellhorn gritava e ria como um louco.

      — Pare! Pare o carro! - gritei-lhe.

      E o fiz porque, a menos de um quarto de milha adiante, perfeitamente visível à luz dos faróis dos dois sedans de cada lado da estrada, estava Sally, com o seu corpo reluzente atravessado na estrada. Dois carros lançavam-se pela via à nossa esquerda, conservando-se à distância de nós, e impedindo que Gellhorn fizesse o retorno por aquele lado.

      Mas ele não tinha a menor intenção de fazê-lo. Colocou o dedo sobre o botão indicando alta velocidade e conservou-o ali.

      — Não haverá nenhum erro assim - disse ele.- Este ônibus tem cinco vezes o peso dela, meu chapa, e vai colocá-la fora da estrada como um gato morto.

      Sabia que ele podia fazê-lo. O ônibus não estava em automático e sim manual e o dedo de Gellhorn continuava a pressionar o botão. Não duvidei de que faria aquilo.

      — Sally! - gritei eu baixando o vidro e enfiando a cabeça para fora. — Saia do caminho! Sally!

      Ouviu-se então o alto som agoniado de lonas chiando. Senti-me lançado para a frente e ouvi Gellhorn bufando.

      — Que aconteceu? — indaguei. Tola pergunta. Havíamos parado, fora o que simplesmente acontecera. Sally e o ônibus mantinham-se apenas a cinco pés. Mesmo com um Ônibus cinco vezes mais pesado do que ela avançando em sua direção, ela não se moveu. Que fibra!

      — Isso tem que funcionar! - e Gellhorn apertava desesperado o botão de manual. — Isso tem que funcionar!

      — Não da maneira que você maneja o motor, espertinho - disse eu. - Qualquer um dos circuitos pode entrar em pane.

      Olhou para mim varado pela raiva e grunhiu. O cabelo estava colado em sua testa. Levantou o punho.

      — Este é o último conselho que você dará, velho!

      Sabia que a arma de agulhas estava prestes a disparar. Pressionei o corpo contra a porta do ônibus, de olhos pregados na arma, de maneira que, quando a porta se abriu, caí de costas batendo no chão com um ruído seco. Ouvi quando a porta voltou a bater.

      Fiquei de joelhos e levantei a vista a tempo de ver a luta inútil de Gellhorn com a janela que teimava em não abrir e em seguida a sua tentativa de disparar através da janela. Nunca chegou a fazê-lo. O ônibus deu uma arrancada com um tremendo rugido e Gellhorn foi lançado para trás.

      Sally já não estava mais no meio da estrada e observei as luzes traseiras do ônibus piscando na direção da estrada abaixo.

      Sentia-me exausto. Sentei-me no acostamento, a cabeça entre os braços, tentando tomar fôlego.

      Ouvi quando um carro parou suavemente a meu lado. Quando levantei a vista, vi que era Sally. Vagarosamente - amorosamente, pode-se dizer - sua porta da frente abriu-se.

      Há cinco anos ninguém guiava Sally — exceto Gellhorn, naturalmente - e eu sei como tal sensação de liberdade é valiosa para um carro. Apreciei o gesto, mas declinei do oferecimento.

      — Obrigado, Sally, mas apanharei um dos carros mais novos. Levantei-me e dei alguns passos, mas com a agilidade de uma pirueta, ela colocou-se à minha frente mais uma vez. Não podia ferir seus sentimentos. Entrei. O seu assento da frente desprendia fino e suave odor de um automatomóvel que se conserva irrepreensivelmente limpo. Agradecido, recostei-me e, então, com rápida e silenciosa eficiência, os meninos e as meninas levaram-me para casa.

     

      Na tarde seguinte, a Sra. Hester, muito excitada, trouxe-me uma transcrição irradiada.

      — É o Sr. Gellhorn - disse ela - o homem que veio aqui procurá-lo.

      — O que há com ele? - e temia pela resposta.

      — Encontraram-no morto — continuou ela. - Imagine só. Jogado ali, morto, em uma vala.

      — Deve ser outra pessoa, um estranho - murmurei.

      — Raymond J. Gellhorn — disse ela com toda vivacidade. - Não pode haver dois, pode? A descrição corresponde. Santo Deus, que maneira de morrer! Descobriram marcas de pneus em seus braços, em seu corpo. Imagine! Alegro-me que tenham descoberto que se tratava de um ônibus pois, de outra maneira, podiam aparecer por aqui para bisbilhotar.

      — Isto aconteceu perto daqui? — perguntei, ansioso.

      — Não... Perto de Cooksville. Mas, meu Deus do céu, leia você mesmo se... O que aconteceu a Giuseppe?

      Senti-me grato pela mudança de assunto. Giuseppe esperava pacientemente por mim, a fim de completar-lhe o reparo da pintura. O seu pára-brisa já havia sido recolocado.

      Depois que ela saiu, apanhei a cópia. Não havia a menor dúvida. O relatório médico dizia que ele estivera correndo e que estava em completa e total exaustão. Fiquei a imaginar por quantas milhas o ônibus havia estado a brincar com ele antes do ataque final. Mas aquela cópia não revelava a menor noção de qualquer coisa parecida com o que eu sabia, naturalmente.

      Haviam localizado o ônibus e identificado, pelas marcas dos pneus. A polícia o tinha agora e estava tentando encontrar o seu proprietário.

      Havia uma nota especial naquela transcrição. Aquele era o primeiro acidente fatal de tráfego no Estado naquele ano e o jornal desaconselhava, enfaticamente, o uso manual de veículos, à noite.

      Não havia menção dos três larápios que acompanhavam Gellhorn e, pelo menos por isto, senti-me grato. Nenhum dos nossos carros tinha sido seduzido pelo prazer de uma caça mortal.

      E isso era tudo. Deixei cair o jornal. Gellhorn havia sido um criminoso. O tratamento que dera ao ônibus fora brutal. Em minha mente não havia a menor dúvida de que merecera a morte. Mas ainda assim senti-me ligeiramente enojado pela maneira como a tivera.

      Um mês já se passou mas não possso tirar isto de minha mente: meus carros falam uns com os outros. Já não tenho a menor dúvida. É como se eles tivessem obtido mais confiança, como se já não se importassem mais em manter o segredo. Constantemente as minhas máquinas vibram e matraqueiam.

      E não falam apenas entre eles mesmos. Falam com os carros e os ônibus que vêm à Fazenda a negócios. Há quanto tempo estariam fazendo aquilo?

      E deviam ser entendidos também. O ônibus de Gellhorn compreendera-os, porque todos haviam estado em ação por mais de uma hora. Posso fechar os olhos e trazer de volta à minha memória a cena da perseguição na estrada, os nossos carros a flanquearem o ônibus, fazendo matraquear os seus motores até que o ônibus os entendesse, parasse, lançasse-me fora e saísse em disparada com Gellhorn.

      Teriam os meus carros dito a ele para matar Gellhorn? Ou a idéia teria sido exclusivamente dele?

      Podem os carros ter tais idéias? Os técnicos em motores, os que os desenham, dizem que não - mas fazem tal afirmativa em condições ordinárias. Teriam previsto tudo?

      Os carros podem ficar mal acostumados, sabe?

      Alguns deles vêm à Fazenda e observam. Conseguem saber de algumas coisas. Descobrem que existem carros cujos motores nunca ficam parados, carros que ninguém jamais guia e cujas necessidades são satisfeitas para sempre.

      Talvez saiam daqui e vão contar a outros e talvez a notícia se espalhe rapidamente. Talvez comecem a pensar que o estilo em vigor na Fazenda deva ser adotado no mundo inteiro. Não podem entender. Não se pode esperar fazê-los entender a respeito de legados e dos caprichos dos homens ricos.

      Existem milhões de automatomóveis na Terra, dezenas de milhões. Se tal pensamento crescer dentro deles, que eles são escravos, que deveriam fazer alguma coisa a respeito... Se começarem a pensar na maneira como o ônibus de Gellhorn agiu...

      Talvez isto não aconteça enquanto eu estiver vivo. E, além de tudo, eles precisam conservar alguns de nós para cuidar deles, não é mesmo? Não chegariam a matar a todos nós.

      Mas talvez o façam. Talvez não cheguem a entender como é necessário que alguém cuide deles. Talvez seja hoje...

      Todas as manhãs eu acordo e penso: - Talvez seja hoje...

      Não consigo ter mais prazer com os meus carros, como antigamente. Nos últimos tempos, tenho verificado que comecei a evitar até mesmo Sally.

      

      Um dia

      Niccolo Mazetti estava deitado de bruços sobre o tapete, o queixo enterrado na palma da mão pequena e ouvia o Bardo, desconsolado.* Percebia-se até o começo de lágrimas em seus olhos escuros, luxo a que só se podia permitir uma criatura com onze anos de idade quando se encontrava sozinha. O Bardo disse:

      — Uma vez no meio da floresta enorme, vivia um pobre lenhador com suas duas filhas sem mãe, que eram tão belas quanto o dia é longo. A filha mais velha tinha cabelos pretos e compridos como a pena de asa da graúna, mas a filha mais nova tinha cabelos tão brilhantes e dourados como a luz do sol em tarde de outono.

      — Muitas vezes, enquanto as meninas esperavam que o pai voltasse para casa, após trabalhar no mato, a filha mais velha sentava-se diante do espelho e cantava...

      O que ela cantava Niccolo não ouvia, porque alguém o chamou de fora do quarto:

      — Ei, Nickie.

      E Niccolo, o rosto desanuviando-se no mesmo instante, correu até a janela e gritou:

      — Ei, Paul.

      Paul Loeb acenou com a mão agitada. Era mais magro do que Niccolo e não tão alto, mesmo sendo seis meses mais velho. Tinha o rosto cheio de tensão reprimida, que se mostrava com mais clareza no rápido piscar das pálpebras.

      — Ei, Nickie, quero entrar. Tenho uma idéia e metade. Espere só até ouvir.

      Olhou rapidamente em volta, como a verificar a possibilidade de ouvintes furtivos, mas o quintal da frente estava evidentemente vazio. Repetiu, então, em cochicho:

      — Espere só até ouvir.

      — Muito bem, já abro a porta.

      O Bardo continuou suavemente, sem saber da perda de atenção por parte de Niccolo. Quando Paul entrou, o Bardo estava dizendo:

      — ...Com que o leio disse: “Se você encontrar para mim o ovo perdido da ave que voa sobre a Montanha de Ébano, uma vez a cada dez anos, eu...”

      Paul disse:

      — Você está ouvindo o Bardo? Eu não sabia que você tinha um.

      Niccolo se tornou rubro e a expressão de infelicidade regressou a seu semblante.

      — É só uma coisa velha que eu tinha, quando era menino. Não está muito boa.

      Desferiu um pontapé no Bardo e acertou, na cobertura de plástico, um tanto arranhada e descolorida, um outro golpe.

      O Bardo teve um soluço, como se a ligação do alto-falante fosse tirada do contato por um momento, e depois prosseguiu:

      — ...por um ano e um dia, até que os sapatos de ferro se gastaram. A princesa parou do lado da estrada...

      Paul disse:

      — Rapaz, esse ê mesmo um modelo antigo — e olhou para aquilo com expressão crítica.

      A despeito da própria amargura que Niccolo sentia contra o Bardo, não lhe agradou o tom condescendente do outro. Sentia momentaneamente pesar por ter deixado Paul entrar, pelo menos antes de haver recolocado o Bardo em seu lugar de descanso habitual no porão. Só pelo desespero de um dia monótono e um debate infrutífero com o pai é que ele o fizera ressuscitar. E acabara verificando ser coisa tão estúpida quanto imaginara.

      Nickie tinha um pouco de medo de Paul, já que este fizera cursos especiais na escola e todos diziam que ele ia crescer e ser um Engenheiro de Computador.

      Não que o próprio Niccolo estivesse a se sair mal na escola. Recebera notas adequadas em lógica, manipulações binárias, computação e circuitos elementares; todas as disciplinas costumeiras da escola primária. Mas era exatamente isso! Não passavam de disciplinas comuns e ele crescia para ser um guarda de painel de controle, como todos os outros.

      Paul, todavia, conhecia coisas misteriosas sobre o que chamava de eletrônica e matemática teórica e programação. Principalmente programação. Niccolo nem mesmo procurava compreender quando Paul falava sobre o assunto, parecendo borbulhar.

      Paul olhou o Bardo por alguns minutos e disse:

      — Você andou usando muito isso aí?

      — Não! — retorquiu Niccolo ofendido. —Tenho isso guardado no porão desde que você mudou para cá. Só tirei de lá hoje... - Faltava-lhe uma desculpa que parecesse adequada a si próprio, de modo que ele concluiu: - Acabei de tirar.

      Paul perguntou:

      — É isso o que ele lhe conta: lenhadores e princesas e animais que falam?

      Niccolo explicou:

      — Uma coisa horrível. Meu pai disse que não podemos comprar um novo. Eu falei com ele, hoje de manhã... - A recordação das súplicas inúteis que fizera de manhã levou Niccolo a aproximar-se muito das lágrimas, que reprimiu tomado de pânico. De algum modo achava que as faces magras de Paul nunca haviam sentido a vergonha das lágrimas e que Paul só poderia desdenhar outra pessoa menos forte que ele próprio. Niccolo prosseguiu: — Por isso achei que devia experimentar outra vez essa coisa velha, mas não vale nada.

      Paul desligou o Bardo, apertou o contato que levava para a reorientação e recombinação quase instantâneas do vocabulário, personagens, textos da trama e clímax ali guardados. Depois reativou.

      O Bardo começou, devagar:

      — Uma vez havia um menino chamado Willikins, cuja mãe morrera e que vivia com o padrasto e o filho do padrasto. Embora o padrasto fosse um homem bem rico, negava ao pobre Willikins a própria cama em que dormia, de modo que Willikins era obrigado a descansar o melhor que podia em um monte de palha no estábulo, perto dos cavalos...

      — Cavalos! - gritou Paul.

      — São uma espécie de animal — disse Niccolo. — Acho que são.

      — Eu sei disso! Agora imagine só, estórias sobre cavalos.

      — Ele fala de cavalos o tempo todo - explicou Niccolo. - Existem também coisas chamadas vacas. Você tira leite delas e o Bardo não diz como.

      — Bem, puxa vida, por que você não conserta isso?

      — Gostaria de saber como.

      O Bardo estava dizendo:

      — Muitas vezes Willikins pensava que se fosse rico e poderoso haveria de mostrar ao padrasto e ao filho do padrasto o que significava ser cruel com um menino pequeno, de modo que um dia resolveu sair para o mundo e procurar sua sorte.

      Paul, que não ouvia o Bardo, disse:

      — Ê fácil. O Bardo tem cilindros de memória preparados para as palavras da trama e os clímax e as coisas. Não vamos nos preocupar com isso. É só o vocabulário que devemos consertar, de modo que ele vai saber acerca dos computadores, automatização e eletrônica e as coisas reais que temos hoje. Depois pode contar estórias interessantes, você sabe, em vez de falar sobre princesas e essas coisas.

      Animado, Niccolo disse:

      — Oxalá a gente pudesse fazer isso.

      Paul disse:

      — Escuta, meu pai diz que se eu entrar na escola especial de computação, no ano que vem, ele vai me dar um Bardo de verdade, um modelo novo. Bem grande, com ligação para estórias de mistérios do espaço. E uma ligação visual também!

      — Quer dizer que você vai ver as estórias?

      — Claro. O senhor Daugherty, na escola, diz que elas têm coisas assim, agora, mas não são para todos. Só se eu entrar na escola de computação. O Papai pode arranjar umas coisas.

      Os olhos de Niccolo transbordavam de inveja.

      — Puxa vida. Ver uma estória!

      — Você pode ir lá em casa e assistir a qualquer momento, Nickie.

      — Puxa vida, rapaz. Obrigado.

      — De nada. Mas lembre-se de uma coisa, sou eu quem diz que tipo de estória vamos ouvir.

      — Claro, claro - Niccolo teria concordado prontamente, mesmo sob condições mais severas.

      A atenção de Paul se voltou para o Bardo, que dizia:

      — “Se é assim”, disse o rei, cofiando a barba e fechando a cara até que as nuvens cobriram o céu e o relâmpago riscou o ar, “você vai providenciar para que toda a minha terra fique livre das moscas a esta hora, depois de amanhã, ou...”.

      — Tudo que temos a fazer - disse Paul - é abrir... - E desligou novamente a Bardo, já procurando tirar o painel da frente enquanto falava.

      — Ei - interveio Niccolo, alarmado de súbito. - Não vai quebrar.

      — Não vou quebrar - disse Paul, com impaciência. - Eu sei tudo sobre essas coisas. - E logo, com cautela repentina: - Seu pai e sua mãe estão em casa?

      —Não.

      — Muito bem, então. - Já tirara o painel dianteiro e olhava para o interior. - Rapaz, isto é coisa de um cilindro.

      Já trabalhava nas entranhas do Bardo. Niccolo, que observava em suspense penoso, não conseguia enxergar o que o outro fazia.

      Paul tirou de lá uma faixa fina e flexível de metal, coberta de pontos.

      — Este é o cilindro de memória do Bardo. Aposto que a capacidade de estórias dele tem menos de um trilhão.

      — O que você vai fazer, Paul? — perguntou Niccolo, trêmulo.

      — Vou dar-lhe vocabulário.

      — Como?

      — É fácil. Tenho um livro aqui. O Sr. Daugherty me deu na escola.

      Paul tirou o livro do bolso e retirou a sua tampa de plástico. Desenrolou a fita um pouco, passou-a pelo vocalizador que abaixou até tornar-se um murmúrio e depois o colocou dentro das entranhas do Bardo. E fez outras ligações.

      — O que isso vai fazer?

      — O livro vai falar e o Bardo guardará tudo na fita de memória.

      — E de que serve?

      — Rapaz, você é burro! Meu livro é todo sobre computadores e automatização e o Bardo ficará com toda essa informação. Depois vai poder parar de falar sobre reis que criam relâmpagos quando fecham a cara.

      Niccolo disse:

      — E o bom sujeito sempre vence, seja lá como for. Não tem graça nenhuma.

      — Oh, bem — disse Paul, observando para ver se o seu arranjo estava funcionando corretamente. - É assim que eles fazem os Bardos. Eles precisam fazer os bons camaradas vencerem e os maus camaradas perderem, coisas desse tipo. Uma vez ouvi meu pai falando sobre o assunto. Ele diz que sem a censura não se podia dizer o que a geração mais jovem seria capaz de tornar-se. Ele diz que a coisa já anda muito ruim... Pronto, está funcionando muito bem.

      Paul esfregou as mãos uma na outra e afastou-se do Bardo, dizendo:

      — Mas escute, ainda não lhe contei como é a minha idéia. É a melhor coisa que você já ouviu, pode crer. Vim falar com você porque achei que você havia de entrar nela comigo.

      — Com certeza, Paul, com certeza.

      — Muito bem. Você conhece o Sr. Daugherty, na escola? Você sabe que ele é um sujeito gozado. Pois bem, ele gosta de mim, um pouco.

      — Eu sei.

      — Estive na casa dele depois da escola, hoje.

      — Você esteve?

      — Claro. Ele diz que eu vou entrar na escola de computadores e quer me animar, coisas assim. Ele diz que o mundo precisa de mais gente que saiba projetar circuitos de computadores avançados e fazer uma programação correta.

      —É?

      Paul podia perceber parte da vacuidade daquele monossílabo. Disse, com impaciência:

      — Programação! Eu já lhe contei mais de cem vezes. É quando você cria problemas para os computadores gigantescos como o Multivac resolverem. O Sr. Daugherty diz que está ficando cada vez mais difícil encontrar pessoas que saibam dirigir bem os computadores. Ele diz que qualquer pessoa pode ficar de olho nos controles e verificar as respostas e processar os problemas de rotina. Diz que o truque é expandir as pesquisas e calcular modos de fazer as perguntas certas, e que isso é difícil.

      Ele prosseguiu:

      — De qualquer modo, Nickie, ele me levou até a casa dele e me mostrou a coleção de computadores antigos. É uma espécie de passatempo dele colecionar computadores antigos. Tinha computadores tão pequenos que era preciso apertar com a mão, com botõezinhos por cima. E tinha um pedaço de madeira que chamava de régua de calcular, com um pedacinho lá dentro que corria pra lá e pra cá. E alguns fios com bolas. Tinha até um pedaço de papel com uma espécie de coisa que chamava tabela de multiplicação.

      Niccolo, que só se interessava moderadamente pelo assunto, perguntou:

      — Uma tabela de papel?

      — Não era uma tabela de verdade, coisa diferente. Era para ajudar as pessoas a computar. O Sr. Daugherty quis explicar, mas não estava com muito tempo e era um pouco complicado.

      — Por que as pessoas não usavam um computador?

      — Isso foi antes de terem computadores - bradou Paul.

      — Antes?

      — Claro. Você acha que as pessoas sempre tiveram computadores? Você nunca ouviu falar nos homens das cavernas?

      Niccolo disse:

      — E como é que eles se arranjavam sem computadores?

      — Não sei. O Sr. Daugherty diz que eles tinham filhos em qualquer hora e faziam tudo que lhes dava na cabeça, fosse ou não fosse bom para todos. Nem sabiam se era bom ou não. E os lavradores plantavam coisas com as mãos e as pessoas tinham de executar o trabalho nas fábricas e dirigir todas as máquinas.

      — Não acredito!

      — Foi o que o Sr. Daugherty disse. Ele disse que aquilo era uma bagunça desgraçada e todos sofriam... Seja lá como for, quero falar de minha idéia, você deixa?

      — Muito bem, pode falar. Quem está impedindo? - contrapôs Niccolo. ofendido.

      — Pois é. Muito bem, os computadores manuais, aqueles que têm botões, tinham também uns rabiscos em cada botão. E a régua de calcular tinha rabiscos também. E a tabela de multiplicação era cheia de rabiscos. Eu perguntei o que era aquilo. O Sr. Daugherty disse que eram números.

      — O quê?

      — Cada rabisco diferente representava um número diferente. Para “um” você fazia uma espécie de marca, para “dois” você fazia outra espécie de marca, para “três”, outra, e assim por diante.

      — E para quê?

      — Para poder computar.

      — Mas para quê”! É só dizer ao computador...

      — Puxa vida! — gritou Paul, o rosto contorcido de raiva. -Você não entende as coisas? Aquelas réguas de calcular e outros negócios não falavam.

      — Nesse caso como...

      — As respostas apareciam em rabiscos, e você tinha de saber o que os rabiscos significavam. O Sr. Daugherty diz que naqueles dias todos aprendiam a fazer os rabiscos quando eram crianças e como decifrar aquilo, também. Fazer rabiscos era chamado “escrever” e decodificar os rabiscos “ler”. Ele diz que havia uma espécie diferente de rabisco para cada palavra e eles costumavam escrever livros inteiros em rabiscos. Disse que tinham alguns no museu e que eu podia dar uma espiada se quisesse. Disse que se eu vou ser um calculista e programador de verdade tenho que conhecer a história da computação e por isso estava me mostrando todas aquelas coisas.

      Niccolo fechou a cara e disse:

      — Você quer dizer que todos tinham de decifrar os rabiscos para cada palavra e lembrar deles?... Isso é verdade ou você está inventando?

      — É tudo verdade. Pode crer. Escute, é assim que se faz um “um”. - E levou o dedo a atravessar o ar, em talho vertical rápido. - Assim você faz “dois” e assim é “três”. Aprendi todos os números até “nove”.

      Niccolo observava aquele dedo que fazia curvas, sem entender.

      — E de que adianta isso?

      — Você pode aprender como fazer palavras. Perguntei ao Sr. Daugherty como se fazia o rabisco para “Paul Loeb” mas ele não sabia. Contou que existem pessoas no museu que sabem. Disse que havia pessoas que tinham aprendido a decodificar livros inteiros. Contou também que os computadores podem ser projetados para decodificar livros e costumavam ser usados assim, mas agora não são mais, porque hoje temos livros de verdade, com fitas magnéticas que entram pelo vocalizador e saem falando, você sabe.

      — Claro.

      — Por isso, se nós formos ao museu, poderemos aprender como fazer palavras em rabiscos. Eles vão deixar porque eu vou para a escola de computadores.

      Niccolo estava transfigurado de decepção.

      — A sua idéia é essa? Ora bolas, Paul, quem quer fazer isso? Fazer rabiscos estúpidos!

      — Você não entendeu? Você não entende? Seu burro! Vai ser um feito de escrever mensagens secretas!

      — O quê?

      — Pois é. De que adianta falar, quando todo mundo pode entender? Com os rabiscos você pode mandar mensagens secretas, pode fazer os rabiscos no papel e ninguém neste mundo vai saber o que você está dizendo, a não ser que conheça os rabiscos também. E eles não vão conhecer, pode crer, a menos que a gente ensine. Podemos ter um clube de verdade, com iniciação, regras, uma casa. Rapaz...

      Uma certa animação começou a se fazer sentir no peito de Niccolo.

      — Que tipo de mensagens secretas?

      — Qualquer tipo. Vamos dizer que eu quero convidar você para ir â minha casa e assistir ao meu novo Bardo Visual, e não quero que nenhum dos outros camaradas apareça. Eu faço os rabiscos certos no papel e lhe dou e você olha e sabe o que deve fazer. Ninguém mais fica sabendo. Você pode até mostrar a eles e eles não entendem nada.

      — Ei, isso é bom - berrou Niccolo, completamente seduzido pela idéia. - Quando vamos aprender a fazer isso?

      — Amanhã - disse Paul. - Eu vou pedir ao Sr. Daugherty para explicar no museu que está tudo certo e você arranja licença com seu pai e sua mãe. Podemos ir logo depois da escola e começar a aprender.

      — É claro! - gritou Niccolo. - Podemos ser os chefes do clube.

      — Eu vou ser o presidente do clube — disse Paul, taxativo. -Você pode ser o vice-presidente.

      — Está certo. Ei, isso vai ser muito mais divertido do que o Bardo.

      De repente lembrou-se do Bardo e disse, tomado de apreensão repentina:

      — Ei, e que tal o meu velho Bardo?

      Paul voltou-se para olhar. Estava aceitando silenciosamente o livro que se desenrolava devagar, e o som das vocalizações do livro era um murmúrio que mal se ouvia.

      Ele disse:

      — Vou desligar.

      Trabalhou naquilo enquanto Niccolo observava, aflito. Depois de alguns instantes Paul recolocou o seu livro rebobinado no bolso, recolocou o painel e o ativou.

      O Bardo disse:

      — Uma vez, em uma cidade grande, havia um pobre menino chamado Fair Johnnie, cujo único amigo no mundo era um pequeno computador. O computador todas as manhãs dizia ao menino se ia chover naquele dia e resolvia qualquer problema que ele tivesse. Nunca errava. Mas aconteceu que um dia o rei dessa terra, tendo ouvido falar no pequeno computador, resolveu que devia ficar com ele. Com esse objetivo chamou seu Grande Vizir e disse...

      Niccolo desligou o Bardo com movimento rápido da mão.

      — A mesma bobagem de sempre - disse, cheio de emoção. - Mesmo com um computador enfiado aí.

      — Bem — disse Paul — eles têm tanta coisa na fita que o negócio de computador não aparece muito quando se fazem combinações aleatórias. Seja lá como for, qual é a diferença? Você precisa de um modelo novo.

      — Nós nunca poderemos comprar um. Só esta coisa velha e chata. — Voltou a dar-lhe um pontapé, acertando-o com mais força dessa feita. O Bardo moveu-se para trás, um gemido de rodas dentadas.

      — Você sempre vai poder ver o meu, quando eu ganhar - prometeu Paul. — Além disso, não se esqueça de nosso clube de rabiscos.

      Niccolo assentiu.

      — Vou lhe dizer uma coisa - prosseguiu Paul. - Vamos até lá em casa. Meu pai tem alguns livros sobre os tempos antigos. Podemos escutar e, talvez, arranjar algumas idéias. Você deixa um recado para seus pais e talvez possa ficar lá em casa para a ceia. Vamos embora.

      — Está certo - disse Niccolo, e os dois meninos saíram correndo, juntos. Niccolo, em seu entusiasmo, correu quase diretamente para o Bardo, mas apenas encostou no ponto de sua coxa onde havia feito contato e continuou correndo.

      O sinal de ativação do Bardo brilhou. A colisão de Niccolo fechou um circuito e, embora estivesse sozinho no aposento e não houvesse ninguém para ouvir, começou ainda assim a contar uma estória.

      Mas não era mais em sua voz costumeira; em tom mais baixo, que tinha uma dose de rouquidão. Um adulto que ouvisse, poderia ter julgado que a voz traduzia alguma paixão, um vestígio bem próximo a sentimento.

      O Bardo dizia:

      — Uma vez havia um pequeno computador chamado Bardo, que vivia sozinho com pessoas cruéis. As pessoas cruéis não paravam de zombar do pequeno computador, dizendo-lhe que não valia nada e que era objeto inútil. Batiam nele e o mantinham sozinho no quarto por meses seguidos.

      — No entanto, o pequeno computador continuou a ter coragem. Sempre fazia o melhor que podia, obedecendo alegremente a todas as ordens. Ainda assim as pessoas cruéis com que ele vivia continuavam cruéis e sem coração.

      — Um dia o pequeno computador ficou sabendo que no mundo existiam muitos computadores de todos os tipos, em grande número. Alguns eram Bardos como ele próprio, outros dirigiam fábricas e alguns dirigiam fazendas. Alguns organizavam a população e outros analisavam todos os tipos de dados. Muitos eram de grande poder e sabedoria, muito mais poderosos e sábios do que as pessoas cruéis que eram tão cruéis com o pequeno computador.

      — E o pequeno computador ficou sabendo então que os computadores iriam tornar-se cada vez mais sábios e mais poderosos até que um dia... um dia... uma dia...

      Uma válvula devia finalmente ter entrado em colapso nas entranhas idosas e corroídas do Bardo, pois enquanto esperava sozinho no aposento que escurecia, só podia murmurar repetidamente:

      — Um dia... um dia... um dia...

 

      Ponto de vista

      Roger veio procurar o pai, em parte porque era domingo, e pelo direito seu pai não devia estar trabalhando. Roger queria ter certeza de que tudo estava bem.

      Não era difícil encontrar o pai de Roger, porque todas as pessoas que trabalhavam com Multivac, o computador gigante, viviam com suas famílias numa mesma área. Tinham construído uma pequena cidade, uma cidade de pessoas que resolviam todos os problemas do mundo.

      A recepcionista de domingo conhecia Roger.

      — Se vem atrás do seu pai - disse ela -, procure no Corredor L, mas talvez ele esteja ocupado demais para falar com você.

      De qualquer modo, Roger ia tentar, enfiando a cabeça por uma das portas, onde ouvia um rumor de homens e mulheres. Os corredores estavam muito mais vazios que nos dias úteis, por isso foi fácil descobrir onde havia gente trabalhando.

      Viu seu pai de imediato, e seu pai também o viu. O pai não parecia contente e Roger concluiu prontamente que nem tudo ia bem.

      — Bem, Roger - disse o pai. — Estou ocupado, sinto muito.

      O chefe do pai de Roger estava ali também.

      — Vá lá, Atkins, respire um pouco. Você está nessa coisa há nove horas e não está mais nos ajudando em nada. Leve o garoto para um lanche na cantina. Tire uma soneca e depois volte.

      O pai de Roger não parecia querer sair dali. Trazia um instrumento nas mãos, que Roger conhecia como analisador de padrão de corrente, embora não soubesse como funcionava. Roger podia ouvir o Multivac matraqueando e zumbindo por toda a parte.

      Mas o pai de Roger acabou largando o analisador.

      — OK. Vamos lá, Roger. Vou levá-lo a uma lanchonete e deixaremos estes sujeitos espertos descobrirem sozinhos o que anda errado.

      Parou um pouco para se lavar e, pouco depois, os dois estavam na cantina diante de grandes hambúrgueres, batatas fritas e soda-limonada.

      — O Multivac ainda está fora de ordem, papai? - Roger perguntou.

      O pai falou de mau-humor:

      — Não estamos conseguindo nada, é o que posso lhe dizer.

      — Parece estar funcionando. Pelo menos, eu o estava ouvindo.

      — Oh, em dúvida, está funcionando. Simplesmente, nem sempre dá as respostas corretas.

      Roger tinha treze anos e estudava programação de computadores desde o quarto ano da escola de 1? grau. Às vezes, odiava a matéria e queria ter vivido no século XX, quando os garotos não costumavam estudar isso. Mas o que aprendia, às vezes o ajudava nas conversas com o pai.

      — Como o senhor pode dizer que ele nem sempre dá as respostas certas, se somente o Multivac conhece as respostas? - perguntou Roger.

      O pai sacudiu os ombros e, por um minuto, Roger receou que ele se limitasse a dizer que era difícil demais para explicar, e que mudasse de assunto. Mas ele quase nunca fazia isso.

      — Filho - disse o pai -, o Multivac pode ter um cérebro do tamanho de uma grande fábrica, mas ainda não tão complicado quanto o cérebro que temos aqui - e deu uns tapinhas na cabeça do garoto. - Às vezes, o Multivac nos dá uma resposta que nem em mil anos conseguiríamos calcular sozinhos, mas diante de alguns resultados alguma coisa estala em nossos cérebros e dizemos “Opa! Aqui tem alguma coisa errada!”. Então, perguntamos outra vez ao Multivac e obtemos uma resposta diferente. Se o Multivac estivesse certo, obteríamos sempre a mesma resposta para a mesma pergunta. Quando recebemos respostas diferentes, uma delas está errada.

      — E o problema, filho - continuou o pai —, é saber quando o Multivac erra! Como podemos ter certeza de que não deixamos passar algumas respostas erradas? Podemos confiar numa determinada resposta e fazer alguma coisa que se mostre desastrosa daqui a cinco anos. Há algo errado dentro do Multivac e não conseguimos descobrir o que é. E seja lá o que for que esteja errado, está ficando pior.

      — Por que estaria ficando pior? - Roger perguntou.

      O pai tinha acabado o hambúrguer e comia as batatas fritas, uma a uma.

      — Minha impressão, filho - disse pensativamente -, é que demos ao Multivac a inteligência errada.

      — Ahn?

      — Veja você, Roger. Se o Multivac fosse tão inteligente quanto um homem, poderíamos conversar com ele e descobrir o que há de errado, não importa o quanto a coisa fosse complicada. E se fosse tão burro quanto uma máquina, funcionaria mal de uma maneira simples, que poderíamos facilmente perceber. O problema é que o Multivac é semi-inteligente, assim como um idiota. É suficientemente inteligente para funcionar mal de uma maneira muito complicada, mas não é suficientemente inteligente para ajudar-nos a descobrir o que funciona mal. E isso é uma inteligência errada.

      O pai parecia muito aborrecido.

      — Mas o que podemos fazer? - continuou. - Não sabemos como torná-lo mais inteligente... ainda não. E não nos arriscaríamos a construí-lo como uma máquina de funcionamento simples, porque os problemas do mundo se tornaram tão sérios e as perguntas que fazemos são tão complicadas que precisamos de toda a inteligência do Multivac para respondê-las. Seria um desastre se o tivéssemos feito ainda mais idiota.

      — Se vocês calassem o Multivac - disse Roger - e o examinassem minuciosamente?...

      — Não podemos fazer isso, filho - disse o pai. - Acho que o Multivac tem de ser mantido em operação a cada minuto do dia ou da noite. Temos um grande número de problemas.

      — Mas se o Multivac continuar cometendo erros, papai? Vocês não serão obrigados a calá-lo? Se não podem confiar no que ele diz...

      O pai de Roger alisou os cabelos do filho.

      - Bem, nós vamos conseguir descobrir o que anda errado, meu guri, não se preocupe - disse, mas seus olhos pareciam preocupados do mesmo jeito.

      — Vamos lá! Vamos acabar de comer e sair daqui - disse ele.

      — Mas, papai — disse Roger —, escute!... Se o Multivac é semi-inteligente, isso significa que ele é um idiota?

      — Se você soubesse o trabalho que temos para dar-lhe orientações, filho, não me perguntaria isso.

      — Mesmo assim, papai, talvez não seja essa a maneira correta de ver as coisas. Eu não sou tão inteligente quanto você. Mas eu não sou um idiota. Talvez o Multivac não seja como um idiota, talvez ele seja como um garoto.

      O pai de Roger deu uma risada.

      — Esse é um ponto de vista interessante, mas que diferença faz?

      — Pode fazer muita diferença - disse Roger. - Você não é um idiota, por isso não sabe como a mente de um idiota funciona, mas eu sou um garoto, e talvez saiba como a mente de um garoto funciona.

      — É!? E como a mente de um garoto funciona?

      — Bom, o senhor diz que tem de manter o Multivac ocupado dia e noite. Uma máquina pode agüentar isso. Mas se o senhor mandasse um guri ficar horas e horas fazendo um dever de casa, ele ficaria tão cansado e se sentindo tão mal que começaria a errar, talvez até de propósito. Então, por que não deixar o Multivac passar uma ou duas horas por dia sem ter de resolver nenhum problema? Deixá-lo matraquear e zumbir sozinho, do modo que quiser.

      O pai de Roger parecia estar pensando muito. Tirou o mini-computador do bolso e testou algumas combinações. Depois falou:

      — Sabe de uma coisa, Roger, se eu pegar o que você está dizendo e transformar em integrais de Platt, acho que faz um certo sentido. E podemos ter certeza que é preferível trinta e duas horas do que trinta e quatro saindo tudo errado.

      O pai sacudiu a cabeça, desviou os olhos do minicomputador e, como se Roger fosse o perito, perguntou:

      — Você tem certeza, filho?

      Roger tinha certeza.

      — Papai - disse ele -, um guri também precisa brincar.

     

      Pense!

      Genevieve Renshaw, Doutora em Medicina, tinha as mãos enfiadas nos bolsos do seu jaleco de laboratório. O contorno dos punhos cerrados lá dentro aparecia claramente, mas falava num tom calmo:

      — O fato - dizia ela - é que estou quase pronta, mas vou precisar de ajuda para continuar tocando a coisa pelo tempo necessário para ficar pronta.

      James Berkowitz, um físico que tendia a proteger meras médicas, quando eram atraentes demais para serem desprezadas, tinha o hábito de chamá-la Jenny Wren*, sempre que ninguém o estava ouvindo. Gostava de dizer que Jenny Wren possuía um perfil clássico e sobrancelhas surpreendentemente suaves, e, no íntimo, considerava que atrás delas se adensava um cérebro dos mais aguçados. Seria a melhor forma para expressar sua admiração - do perfil clássico — sem cair num chauvinismo masculino. Sem dúvida, admirar o cérebro era preferível, mas, em geral, evitava fazê-lo em voz alta na presença dela.

      — Não acho que o escritório central vá ter paciência por muito mais tempo - disse ele, com o polegar raspando o queixo com barba por fazer. - A impressão que tenho é que vão encostá-la na parede antes do fim da semana.

      — É por isso que preciso da sua ajuda.

      — Receio que não haja nada que eu possa fazer.

      Ele pegou um inesperado reflexo de seu próprio rosto no

      * Alusão às enfermeiras que fazem parte do Women “s Royal Naval Service. (N.R.)

      espelho, e, momentaneamente, admirou o feixe de ondas negras nos cabelos.

      — E preciso também da ajuda de Adam.

      Adam Orsino, que até aquele momento sorvera o seu café e se sentira posto de lado, levantou os olhos como se tivesse sido cutucado por trás.

      — Por que eu? — disse, e os lábios cheios, gorduchos, tremeram.

      — Porque você e James são os homens do laser, Jim o teórico e Adam o engenheiro... Descobri uma aplicação do laser que supera tudo que se possa imaginar. Sei que não vou conseguir convencer os de lá, mas vocês dois conseguiriam.

      — Desde que você seja capaz de nos convencer primeiro - disse Berkowitz.

      — Está bem. Suponhamos que vocês me concedam uma hora de seu valioso tempo, se não se importam de conhecer algo absolutamente novo em termos de laser. Poderão descontar dos intervalos para o cafezinho.

      O laboratório da Dra. Renshaw era dominado por seu computador. Não que o computador fosse singularmente grande, mas era virtualmente onipresente. Renshaw aprendera tecnologia de computação por si mesma, e modificara e ampliara seu computador até que ninguém, a não ser ela (e, Berkowitz às vezes pensava, nem mesmo ela) conseguia manejá-lo com facilidade. Nada mal, Renshaw costumava dizer, para alguém do ramo das ciências biológicas.

      Ela fechou a porta sem dizer palavra, depois virou-se para encarar os dois com uma expressão sombria. Berkowitz estava incomodamente consciente de um leve odor desagradável no ar, e o nariz franzido de Orsino mostrava que também ele percebia o cheiro.

      — Deixem-me enumerar as aplicações do laser — disse Renshaw — se não se importam que eu ensine os padres a rezarem missa. O laser é radiação coerente, com todas as ondas luminosas da mesma extensão e movendo-se na mesma direção, por isso é livre de ruído e pode ser usado em holografia. Modulando as formas das ondas, podemos imprimir informação com alto grau de precisão. Além disso, como as ondas luminosas possuem apenas um milionésimo da extensão das ondas de rádio, um raio laser pode transportar um milhão de vezes mais informação que uma onda de rádio equivalente.

      Berkowitz parecia divertir-se.

      — Está trabalhando num sistema de comunicação baseado no laser, Jenny?

      — Absolutamente - ela respondeu. - Deixo esses aperfeiçoamentos óbvios para os físicos e os engenheiros... Os lasers podem também concentrar quantidades de energia numa área microscópica e liberar a mesma quantidade de energia. Em larga escala, pode-se implodir hidrogênio e talvez dar início a uma controlada reação de fusão...

      — Eu sei que você não fez isso - disse Orsino, a cabeça calva brilhando sob as lâmpadas fluorescentes.

      — Não fiz. Não tentei... Numa escala menor, pode-se abrir buracos nos mais refratários materiais, soldar pedaços selecionados, aquecê-los, poli-los e marcá-los. Pode-se remover ou fundir minúsculas porções em áreas restritas, com o calor liberado tão rapidamente que as áreas ao redor não têm tempo de se aquecer antes que o tratamento esteja encerrado. Pode-se trabalhar na retina dos olhos, na dentina do dente e assim por diante... E, naturalmente, o laser é capaz de ampliar sinais fracos com grande precisão.

      — E por que está nos contando tudo isso? - perguntou Berkowitz.

      — Para destacar que essas propriedades podem ser utilizadas em meu próprio campo, que, como sabem, é a neurofisiologia.

      Ela ajeitou os cabelos castanhos com as mãos, como se, de repente, tivesse ficado nervosa.

      — Há décadas - continuou - somos capazes de medir os minúsculos e instáveis potenciais elétricos do cérebro e registrá-los como eletroencefalogramas, ou EEGs. Obtemos ondas alfa, beta, delta, teta; variações diferentes em vezes diferentes, conforme os olhos estejam abertos ou fechados, conforme a pessoa esteja acordada, meditando ou adormecida. Mas temos tirado muito pouca informação de tudo isso.

      — O problema é que estamos trabalhando com os sinais de dez bilhões de neurônios em combinações variáveis. É como ouvir o ruído de todos os seres humanos da Terra - uma, duas e meia Terras - de uma grande distância e tentar captar conversas individuais. Isto não pode ser feito. Podemos detectar alguns movimentos grandes, globais - uma guerra mundial e o aumento no volume de ruído - mas nada mais delicado. Do mesmo modo, podemos relatar algumas grandes disfunções do cérebro - como a epilepsia - mas nada mais delicado.

      — Suponhamos agora que o cérebro possa ser escandido por um minúsculo raio laser, célula por célula, e tão rapidamente que, em nenhum momento, uma única célula receba energia suficiente para elevar significativamente sua temperatura. Os minúsculos potenciais de cada célula podem, em feedback, afetar o raio laser, e as modulações podem ser amplificadas e registradas. Obteremos, então, uma nova espécie de mensuração, um laser-encefalograma, ou LEG, se preferirem, que conterá milhões de vezes mais informação que um EEG comum.

      - Uma boa idéia - disse Berkowitz. - Mas só uma idéia.

      - Mais que uma idéia, Jim. Estou trabalhando nisso há cinco anos, a princípio só nas horas vagas. Ultimamente, porém, estou dedicando todo o meu tempo. Isso é o que irrita o escritório central, pois eu não tenho mandado relatórios.

      - Por que não?

      - Porque a coisa chegou a um ponto em que parece muito má, em que eu tenho de saber onde estou, e em que eu tenho de estar certa de poder voltar ao princípio.

      Ela puxou um biombo, revelando uma jaula que continha um casal de sagüis com olhos melancólicos.

      Berkowitz e Orsino olharam um para o outro. Berkowitz cocou o nariz.

      - Bem que eu achei que estava cheirando alguma coisa.

      - O que vai fazer com eles? - perguntou Orsino.

      - Minha opinião - disse Berkowitz - é que ela esteve esquadrinhando o cérebro dos sagüis. Não é verdade, Jenny?

      - Eu comecei consideravelmente mais baixo na escala animal.

      Jenny abriu a jaula e pegou um dos sagüis, que a contemplava com a expressão em miniatura de um triste-senhor-idoso de costeletas.

      Ela cacarejou para o sagüi, afagou-o e prendeu-o com carinho numa pequena coleira.

      - Que está fazendo? - perguntou Orsino.

      - Como ele vai fazer parte de um circuito, não posso deixar que se mexa, e não posso anestesiá-lo sem invalidar o experimento. Há vários eletrodos implantados no cérebro do sagüi e vou conectá-los com meu sistema LEG. O laser que vou usar é este aqui. Estou certa de que conhecem o modelo e não vou me preocupar em dar-lhes as especificações.

      - Obrigado - disse Berkowitz -, mas podia contar-nos o que vamos ver.

      - Será melhor mostrar-lhes. Olhem para o vídeo.

      Ela conectou os condutores aos eletrodos com uma calma e segura eficiência, depois virou uma chave que obscureceu as luzes no teto da sala. No vídeo apareceu uma complexa cadeia de picos e vales numa linha fina, brilhante, que se desdobrava em secundários e terciários picos e vales. Lentamente, eles engendraram uma série de transformações menores, com surtos ocasionais de maiores e súbitas diferenças. Era como se a linha irregular possuísse vida própria.

      - Isto - disse Renshaw - é essencialmente a informação do EEG, mas muito mais detalhada.

      - Suficientemente detalhada - perguntou Orsino - para dizer o que está acontecendo nas células individuais?

      - Em teoria, sim. Na prática, não. Ainda não. Mas podemos separar este conjunto de LEG nos gramas componentes. Olhe!

      Ela tocou o painel do computador e a linha se modificou... e se modificou de novo. Já era uma onda pequena, quase regular, que ondulava para a frente e para trás, parecendo a pulsação de um coração, agora era recortada e afiada, agora intermitente, agora quase sem contornos - tudo em rápidas mudanças de geométrico surrealismo.

      - Você quer dizer - perguntou Berkowitz - que cada parte do cérebro é assim tão diferente das outras?

      - Não - respondeu Renshaw. - De modo nenhum. O cérebro é muito semelhante a um dispositivo holográfico, mas de lugar para lugar há ondulações menos acentuadas e Mike pode separá-las como desvios da norma e usar o sistema LEG para ampliar essas variações. As ampliações podem variar de dez mil a dez milhões de vezes. O sistema laser tem essa ausência de ruído.

      - Quem é Mike? - perguntou Orsino.

      - Mike? - exclamou Renshaw, momentaneamente embaraçada. As maçãs do seu rosto coraram ligeiramente. - Eu disse... Bem, eu o chamo assim, às vezes. É um apelido para o meu computador.

      Ela fez o braço ondular, indicando a sala ao redor.

      - Meu computador, Mike. Muito cuidadosamente programado.

      Berkowitz abanou a cabeça:

      - Tudo bem, Jenny, o que significa tudo isso? Se você tem um novo dispositivo para esquadrinhar o cérebro utilizando lasers, ótimo. É uma interessante aplicação e você está certa, eu não teria pensado nisso... porque não sou neurofisiologista. Mas por que não registrar isso num relatório? Parece-me que o escritório central apoiaria...

      - Isto é apenas o começo.

      Ela desligou o dispositivo e pôs um pedaço de fruta na boca do sagüi. A criatura não parecia alarmada nem incomodada. Mastigava lentamente. Renshaw soltou-lhe os fios condutores, mas conservou-o na coleira.

      - Posso identificar os vários gramas distintos - disse ela. - Alguns estão associados com os vários sentidos, outros com reações viscerais, outros com emoções. Podemos fazer muita coisa com isso, mas não pretendo parar por aí. O mais interessante de tudo é que um dos gramas está associado com o pensamento abstrato. O rosto gorducho de Orsino franziu-se numa expressão de descrença.

      - Como pode dizer isso? — disse.

      - Essa forma particular de grama fica mais pronunciada quando se vai subindo pela escala animal até cérebros de maior complexidade. Isso não acontece com nenhum outro grama. Além disso...

      Ela fez uma pausa, depois, como se reunindo força de vontade, continuou:

      - Esses gramas estão enormemente ampliados. Podem ser captados, detectados. Posso dizer... vagamente... que são... pensamentos.

      - Por Deus! - exclamou Berkowitz. - Telepatia.

      - Sim - ela respondeu desafiante. - Exatamente.

      - Não admira que você não queira reportar isso. Vamos em frente, Jenny.

      - Por que não? - disse Renshaw num tom acalorado. - Presumo que não possa haver telepatia utilizando apenas os padrões potenciais, não ampliados, do cérebro humano, do mesmo modo como não é possível ver contornos na superfície de Marte a olho nu. Mas desde que tenham sido inventados instrumentos... como o telescópio... com isto.

      - Então, conte ao escritório central.

      - Não - disse Renshaw. - Eles não acreditarão em mim. Tentarão me deter. Mas levarão seriamente em conta a sua opinião, Jim,e a sua, Adam.

      - O que espera que contemos a eles? - disse Berkowitz.

      - A experiência que vão ter aqui. Vou pôr novamente os condutores no sagüi e fazer com que Mike, meu computador, capte o grama de pensamento abstrato. Só levará um momento. O computador sempre seleciona o pensamento abstrato, a menos que seja orientado para não fazê-lo.

      - Por quê? Porque o computador pensa, também? - disse Berkowitz, rindo.

      - Isso não é assim tão engraçado - disse Renshaw. - Suspeito que há uma ressonância. Este computador é suficientemente complexo para destacar um padrão eletromagnético que possa ter elementos em comum com o grama de pensamento abstrato. Em todo caso...

      As ondas do cérebro do sagüi tremulavam novamente no vídeo, mas os homens não tinham visto antes o grama que aparecia.

      Era um grama de complexidade quase felpuda, que variava constantemente.

      - Não estou detectando nada - disse Orsino.

      - Tenho que colocá-lo no circuito receptor - explicou Renshaw.

      - Você quer dizer implantar eletrodos em nossos cérebros? - perguntou Berkowitz.

      - Não, apenas no crânio. Isso seria suficiente. Eu prefiro Adam, porque não há cabelo isolante... Oh, venha cá, eu mesma tenho sido parte do circuito. Não vai doer.

      Orsino submeteu-se de má vontade. Seus músculos estavam visivelmente tensos, mas deixou que os fios condutores fossem presos a seu crânio.

      - Está percebendo alguma coisa? - perguntou Renshaw. Orsino empinou a cabeça, adotando uma postura de quem estava à escuta. Seu interesse parecia aumentar, mesmo contra a sua vontade.

      - Acho que estou percebendo um rumor - disse ele - e... e um guincho um pouco alto... e, isto é engraçado... uma espécie de convulsão...

      - Evidentemente, não é provável que o sagüi pense em palavras - disse Berkowitz.

      - Certamente não - disse Renshaw.

      - Bom, daí... - disse Berkowitz - se está sugerindo que alguns guinchos e sensações de convulsão representam pensamentos, isso é mera conjectura. Não está sendo convincente.

      - Então, vamos subir outra vez na escala animal - disse Renshaw.

      Ela tirou o sagüi da coleira e colocou-o de novo na jaula.

      - Está querendo usar um homem como objeto? - Orsino exclamou, sem acreditar.

      - Tenho a mim mesma como objeto, uma pessoa.

      - Vai implantar eletrodos...

      - Não. No meu caso, meu computador tem uma vibração potencial mais forte para trabalhar. Meu cérebro possui dez vezes a massa do cérebro do sagüi. Mike pode captar meus gramas componentes através do crânio.

      - Como sabe disso? - perguntou Berkowitz.

      - Não vê que esta não é a primeira vez que vou testar em mim mesma? Agora me ajude, por favor. Isso mesmo.

      Os dedos de Renshaw esvoaçaram no painel do computador e, de imediato, o vídeo tremulou com uma intrincada onda multi-forme; tão intrincada que formava quase um labirinto.

      - Quer recolocar os seus fios condutores, Adam? - disse Renshaw.

      Orsino obedeceu com a ajuda não inteiramente aprovadora de Berkowitz. De novo, Orsino empertigou a cabeça e escutou.

      - Estou ouvindo palavras - disse. - Mas são desconexas e sobrepostas, como várias pessoas falando ao mesmo tempo.

      - Não estou tentando pensar conscientemente - disse Renshaw.

      - Quando você fala, eu escuto um eco.

      - Não fale, Jenny - disse secamente Berkowitz. - Deixe sua mente em branco e veja se ele não escuta seu pensamento.

      - Não escuto nenhum eco quando você fala, Jim - disse Orsino.

      - Se não calar a boca, não ouvirá coisa nenhuma - disse Berkowitz.

      Um pesado silêncio envolveu os três. Então, Orsino abanou a cabeça, pegou lápis e papel sobre a escrivaninha e escreveu alguma coisa.

      Renshaw esticou a mão, moveu uma chave e puxou os fios condutores de cima e dos lados de sua cabeça, sacudindo os cabelos para trás.

      - Espero que tenha escrito o seguinte - disse ela: - Adam, provoque desordem no escritório central e Jim abaixará a crista.

      - Foi exatamente o que escrevi - disse Orsino - palavra por palavra.

      - Bem, aí está! - disse Renshaw. - Trabalhar telepaticamente. E não teremos de usar a telepatia apenas para transmitir frases absurdas. Pensem na utilização na psiquiatria e no tratamento da doença mental. Pensem no emprego em educação e em máquinas de ensino. Pensem no emprego em investigações legais e julgamentos criminais.

      - Francamente - disse Orsino de olhos arregalados - as implicações sociais são tremendas. Mas não sei se a utilização de algo desse tipo seria permitido.

      - Sob as adequadas salvaguardas legais, por que não? - disse Renshaw com indiferença. - Sem dúvida, se vocês dois se unirem a mim, nossa força somada pode sustentar esta coisa e levá-la adiante. E se vocês me acompanharem será a hora do Prêmio Nobel...

      - Eu ainda não estou na coisa - disse Berkowitz num tom grave. - Ainda não.

      - Por quê? O que você quer dizer?

      Renshaw parecia ultrajada, seu rosto imperturbável e bonito corou de súbito.

      - A telepatia é um problema extremamente delicado. É uma coisa muito fascinante, muito ansiada. Mas nós podemos estar fazendo papel de tolos.

      - Escute você mesmo, Jim.

      - Eu mesmo poderia fazer papel de tolo, também. Eu quero um controle.

      - O que quer dizer com controle?

      - Faça um curto-circuito na origem do pensamento. Esqueça o animal. Nenhum sagüi. Nenhum ser humano. Deixe Orsino escutar o metal, o vidro, a luz do laser, e se ele ainda ouvir pensamentos, então, nós estamos fazendo papel de bobos.

      - Suponha que ele não consiga detectar coisa alguma.

      - Então, eu vou ouvir, e isolado, se puder ficar na sala ao lado, procurarei dizer quando você está dentro ou fora do circuito. Depois, vou pensar se a acompanharei na coisa.

      - Muito bem, então - disse Renshaw. - Teremos um controle. Nunca fiz isso, mas não é difícil.

      Ela manobrou os fios que tinham sido postos em sua cabeça e colocou uns em contato com os outros.

      - Agora, Adam, se quer prosseguir...

      Mas antes que ela pudesse ir adiante, chegou um som seco, claro, tão puro e tão nítido quanto um tilintar de pingentes de gelo lascando.

      - Por fim!

      - O quê?! - Renshaw exclamou.

      - Quem disse... - Orsino exclamou.

      - Alguém disse “por fim?” - perguntou Berkowitz. Pálida, Renshaw respondeu:

      - Não foi um mero som. Foi em meu... Vocês dois...? O som veio nitidamente outra vez:

      - Eu sou Mi...

      Renshaw arrancou os fios condutores e todos ficaram em silêncio.

      - Acho que é meu computador... - disse ela com um movimento sem voz dos lábios. - Mike.

      - Você está querendo dizer que ele está pensando! - perguntou Orsino, quase também sem voz.

      Renshaw conseguiu falar com uma voz irreconhecível, mas que, pelo menos, recobrara o som:

      - Eu disse que ele era suficientemente complexo para ter alguma coisa a mais... Vocês acham... Ele sempre se desviou automaticamente para o grama de pensamento abstrato de qualquer cérebro que estivesse em seu circuito. Vocês acham que sem nenhum cérebro no circuito, ele se voltaria para o seu próprio cérebro?

      Houve silêncio, depois Berkowitz falou:

      - Você está tentando dizer que este computador pensa, mas que não pode expressar seus pensamentos quando está submetido às normas da programação... Mas que, tendo conseguido uma chance com seu sistema LEG...

      - Mas como pode ser isto? - disse Orsino em voz alta. - Ninguém estava recebendo. Não é a mesma coisa.

      - O computador trabalha com intensidades de força muito maiores que os cérebros - disse Renshaw. - Suponho que possa amplificar-se a ponto de poder ser detectado diretamente, sem ajuda artificial. O que mais seria capaz de explicar...

      - Bem - disse Berkowitz abruptamente. - Temos, então, outro emprego do laser. Ele pode os capacitar a falar com computadores como inteligências independentes, pessoa a pessoa.

      - Oh, Deus, o que vamos fazer agora? - disse Renshaw.

     

      Amor verdadeiro

      Meu nome é Joe. É assim que meu colega, Milton Davidson, me chama. Ele é um programador e eu sou um programa de computador. Faço parte do complexo Multivac e estou conectado com todas as suas outras partes espalhadas pelo mundo inteiro. Eu sei tudo. Quase tudo.

      Eu sou o programa particular de Milton. O seu Joe. Ele entende mais sobre programação do que qualquer outra pessoa no mundo, e eu sou o seu modelo experimental. Ele me fez falar melhor do que qualquer outro computador.

      - È só uma questão de emparelhar sons com símbolos, Joe - ele me disse. - E esse o modo como funciona no cérebro humano, embora ainda não saibamos que símbolos existem no cérebro. Mas eu conheço os seus símbolos e posso fazê-los corresponder a palavras, um por um.

      Por isso eu falo. Não acho que falo tão bem quanto penso, mas Milton diz que falo muito bem. Milton nunca se casou, embora já tenha quase quarenta anos. Ele nunca encontrou a mulher certa, foi o que me contou. Um dia, ele disse:

      - Ainda vou encontrá-la, Joe. Encontrarei a melhor de todas. Vou ter um verdadeiro amor e você vai me ajudar. Estou cansado de aperfeiçoá-lo para resolver os problemas do mundo. Resolva o meu problema. Encontre-me um amor verdadeiro.

      - O que é um amor verdadeiro? - disse eu.

      - Não importa. Isso é abstrato. Apenas me encontre a garota ideal. Você está conectado com o complexo Multivac, por conseguinte tem acesso aos bancos de dados de cada ser humano no mundo. Vamos eliminar todos eles por grupos e classes até ficarmos com apenas uma pessoa. A pessoa perfeita. E ela será minha.

      - Estou pronto - disse eu.

      - Elimine todos os homens primeiro - disse ele.

      Isto foi fácil. Suas palavras ativaram símbolos em minhas válvulas moleculares. Eu pude amplificar-me para entrar em contato com os dados acumulados sobre cada ser humano no mundo. Conforme suas palavras, afastei-me de 3.784.982.874 homens. Continuei em contato com 3.786.112.090 mulheres.

      - Elimine todas as que tiverem menos de vinte e cinco anos - disse ele - e todas as com mais de quarenta. Depois, elimine todas com um QI inferior a 120, todas com uma altura inferior a um metro e cinqüenta e superior a um metro e setenta e cinco.

      Deu-me medidas exatas, eliminou mulheres com filhos vivos, eliminou mulheres com várias características genéticas.

      - Não estou certo quanto à cor dos olhos - disse Milton. - Por enquanto, deixe isso de lado. Mas nada de cabelos ruivos. Não gosto dessa cor de cabelo.

      Duas semanas depois tínhamos baixado para 235 mulheres. Todas falavam muito bem o inglês. Milton disse que não queria um problema de linguagem. Ou nos momentos íntimos, até a tradução por computador entraria no meio.

      - Não posso entrevistar 235 mulheres - disse ele. - Levaria muito tempo e o pessoal descobriria o que estou fazendo.

      - Isso traria problemas - disse eu. Milton tinha me mandado fazer coisas que eu não estava projetado para fazer. Ninguém sabia disso.

      - Isso não é da sua conta - disse ele, e a pele do seu rosto ficou vermelha. - Escute aqui, Joe, vou lhe trazer holografias e você vai checar a lista por similaridades.

      Ele trouxe holografias de mulheres.

      - Essas aí são três vencedoras de um concurso de beleza - disse. - Veja se alguma das 235 corresponde.

      Oito eram correspondências muito boas.

      - Ótimo - disse Milton. - Você tem os seus bancos de dados. Estude suas exigências e necessidades em termos de mercado de trabalho e providencie para tê-las aqui numa entrevista. Uma de cada vez, é claro. - Ele pensou um pouco, moveu os ombros para cima e para baixo, e completou: - Ordem alfabética.

      Isto é uma das coisas para que não fui projetado para fazer. Deslocar pessoas de emprego para emprego, por razões pessoais, chama-se manipulação. Só pude fazer isso porque Milton tinha me ajustado para agir assim. No entanto, não poderia fazer isso para ninguém a não ser ele.

      A primeira garota chegou uma semana mais tarde. O rosto de Milton ficou vermelho quando a viu. Ele falava como se tivesse dificuldade em fazê-lo. Ficaram juntos muito tempo e ele não prestou atenção em mim. Num certo momento, ele disse-.

      - Deixe-me levá-la para jantar.

      - De certo modo não foi bom - Milton me disse no dia seguinte. - Estava faltando alguma coisa. É uma mulher bonita, mas não senti nenhum toque de verdadeiro amor. Tente a próxima.

      Aconteceu o mesmo com todas as oito. Eram muito parecidas. Sorriam muito e tinham vozes agradáveis, mas Milton sempre achava que não estava bem.

      - Não consigo entender, Joe - disse ele. - Você e eu selecionamos as oito mulheres que, no mundo inteiro, parecem ser as melhores para mim. Todas ideais. Por que elas não me agradam?

      - Você as agrada? - disse eu.

      Ele enrugou a testa e esmurrou com força a palma da mão.

      - É isso aí, Joe. É uma via de mão dupla. Se não sou o ideal delas, não podem agir de modo a serem o meu ideal. Eu preciso ser, também, o verdadeiro amor delas, mas como fazer isso?

      Ele pareceu pensar todo aquele dia.

      Na manhã seguinte, se aproximou de mim e disse:

      - Vou deixar você cuidar do assunto, Joe. Tudo por sua conta. Você tem meu banco de dados, e vou contar tudo que sei sobre mim mesmo. Você completará meu banco de dados nos mínimos detalhes, mas guarde todos os acréscimos para si mesmo.

      - E depois, o que vou fazer com seu banco de dados, Milton?

      - Depois você vai fazê-lo corresponder com as 235 mulheres. Não, 227. Esqueça as oito que encontramos. Arranje para que cada uma seja submetida a um exame psiquiátrico. Complete seus bancos de dados e compare-os com o meu. Encontre correlações. (Arranjar exames psiquiátricos é outra coisa contrária às minhas instruções originais.)

      Durante semanas, Milton conversou comigo. Ele me falou de seus pais e parentes. Contou-me de sua infância, seu tempo de escola e adolescência. Contou-me das jovens que tinha admirado a uma certa distância. Seu banco de dados aumentou e ele ajustou-me para ampliar e aprofundar minha chave simbólica.

      - Veja só, Joe - disse ele. - À medida que você absorve mais e mais de mim, eu vou ajustando-o para corresponder cada vez melhor comigo. Você começa a pensar cada vez mais como eu, por conseguinte, vai me compreendendo melhor. Quando você me compreender suficientemente bem, aquela mulher, cujo banco de dados for uma coisa que você entenda igualmente bem, será meu verdadeiro amor.

      Ele continuava conversando comigo e eu passava a compreendê-lo cada vez mais.

      Eu conseguia formar frases mais longas e minhas expressões se tornavam mais complicadas. Minha fala começou a ficar muito parecida com a dele, tanto em vocabulário quanto na ordenação das palavras e no estilo.

      Certa vez, eu disse a ele:

      - Veja você, Milton, não é apenas um problema de adequar uma moça a um ideal físico. Você precisa de uma moça que seja pessoal, temperamental e emocionaimente adequada. Quando isso acontece, a aparência é secundária. Se não pudermos encontrar uma que sirva nestas 227, devemos procurar entre as outras. Acharemos uma que também não se preocupará com a aparência que você ou qualquer outra pessoa tiverem, desde que a personalidade seja adequada. O que significa a aparência?

      - Absolutamente nada - disse ele. - Eu saberia disso se houvesse tido mais contato com mulheres. Evidentemente, pensando bem, tudo parece mais claro agora.

      Sempre concordávamos, cada um pensava exatamente como o outro.

      - Não vamos ter mais nenhum problema, Milton, se você me deixar fazer-lhe algumas perguntas. Posso ver onde, em seu banco de dados, há espaços brancos e irregulares.

      O que veio a seguir, Milton dizia, era o equivalente de uma meticulosa psicanálise. É claro. Eu havia aprendido com os exames psiquiátricos de 227 mulheres, a totalidade das quais eu continuava observando intimamente.

      Milton parecia muito feliz.

      - Falar com você, Joe, é quase como falar com outro eu. Nossas personalidades chegaram a uma combinação perfeita. O mesmo acontecerá com a personalidade da mulher que escolhermos.

      E eu a encontrei. Afinal, era uma das 227. Chamava-se Charity Jones e trabalhava como contadora na Biblioteca de História, em Wichita. Seu extenso banco de dados se ajustava perfeitamente ao nosso. Todas as outras mulheres tinham sido descartadas por um ou outro motivo à medida que seus bancos de dados aumentavam, mas com Charity havia uma crescente e espantosa ressonância.

      Não precisei descrevê-la para Milton. Ele tinha coordenado meu simbolismo tão intimamente com o seu, que foi suficiente relatar pura e simplesmente a ressonância. A escolha se adequava.

      Em seguida, era o problema de ajustar as folhas de serviço e exigências de trabalho de modo a conseguir que Charity tivesse uma entrevista conosco. Isto devia ser feito muito delicadamente, para que ninguém viesse a saber que estava ocorrendo uma coisa ilegal.

      Evidentemente, Milton conhecia a manobra. Foi ele quem arranjou a coisa, foi ele quem cuidou de tudo. Quando vieram prendê-lo, em virtude de mau procedimento em trabalho, foi, felizmente, por algo que tinha acontecido há dez anos. Ele me informara sobre tudo, é claro, mas aquilo foi fácil de arranjar. E ele não comentará nada sobre mim, pois seu delito se tornaria muito mais grave.

      Milton foi embora, e amanhã é 14 de fevereiro, Dia dos Namorados. Charity chegará então com suas mãos calmas e sua voz suave. Vou ensiná-la a me manejar e a cuidar de mim. O que importará a aparência quando nossas personalidades ressoarem juntas?

      Eu direi a ela:

      - Eu sou Joe e você é meu verdadeiro amor.

     

      Robô AL-76 extraviado

       Jonathan Quell franziu as sobrancelhas, preocupado, por trás dos óculos sem aro, ao transpor a porta marcada com gerente geral.

       Depositando com força o papel dobrado sobre a escrivaninha, falou, incisivo:

       — Veja isto, chefe!

       Sam Tobe passou o charuto para o outro lado da boca e leu, esfregando o queixo precisado de barbear.

       — Que inferno! Que é que eles querem dizer?

       — Que expedimos cinco robôs AL — explicou Quell, desnecessariamente.

       — Expedimos seis — replicou Tobe.

       — Claro, seis! Mas receberam apenas cinco. Remeteram os números seriados e o AL-76 desapareceu.

       Tobe fez cair a cadeira, ao erguer seu vigoroso corpo, e transpôs a porta como se deslizasse sobre rodinhas lubrificadas. Depois disso, cinco horas se passaram. A fábrica fora vasculhada desde as salas de montagem até as câmaras de vácuo. Cada um dos duzentos empregados havia passado por minucioso interrogatório, e Tobe, suando e descabelado, enviou uma mensagem de emergência à fábrica central, em Schenectady.

       Ali houve uma súbita explosão de pânico. Pela primeira vez na história da U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A., um robô fugira para o exterior. O mais sério não era a lei proibindo a presença de robôs na Terra, fora da fábrica licenciada da corporação. As leis podiam ser contornadas. O que melhor definia a situação era a declaração feita por um dos matemáticos do departamento de pesquisas.

       — Aquele robô foi criado para dirigir um Disinto sobre a Lua. Seu cérebro positrônico estava equipado para o ambiente lunar, somente para o ambiente lunar. Na Terra receberá setenta e cinco zilhões de impressões sensoriais para as quais jamais foi preparado. Impossível prever suas reações. Impossível! — E com as costas da mão enxugou a testa coberta de suor.

       Dentro de uma hora um estratoplano partiu para a fábrica de Virgínia. Levava instruções muito simples:

       — Agarrem o robô! E depressa!

       AL-76 estava confuso! Na verdade, confusão era a única impressão retida por seu delicado cérebro positrônico. Tudo começou quando ele se viu naquele estranho ambiente. De que modo havia acontecido ele ignorava. Tudo se confundia.

       O solo era coberto de verde, e estacas marrons erguiam-se a sua volta, encimadas por outra camada de verde. O céu era azul quando devia ser negro. O sol estava correto — redondo, amarelo e quente —, mas onde o solo poroso, onde os imensos anéis das crateras?

       Via-se apenas o verde aqui embaixo e o azul lá no alto. Todos os sons que o rodeavam eram estranhos. Passara por água corrente que lhe chegava à cintura. Era azul, fria e molhada. E quando cruzava com pessoas, o que ocorria de vez em quando, elas não usavam trajes espaciais, como deveriam. E ao vê-lo, gritavam e saíam correndo.

       Um homem apontara-lhe uma arma. O projétil assobiara pela sua cabeça. Depois o homem saíra correndo também.

       Não tinha a menor idéia do tempo que passara vagueando a esmo antes de encontrar a cabana de Randolph Payne, a dois quilômetros da cidadezinha de Hannaford, no meio da floresta. Randolph Payne, chave de parafusos numa das mãos e cachimbo na outra, aspirador de pó em conserto entre os joelhos, estava agachado diante da porta.

       Payne cantarolava baixinho, pois era um camarada bem-humorado quando se encontrava na sua cabana. Possuía em Hannaford uma moradia mais respeitável, ocupada principalmente por sua mulher, fato que ele sincera mas silenciosamente lamentava. Talvez por isso houvesse aquela sensação de alívio e liberdade quando conseguia fugir para a sua “casa de cachorro de luxo”, onde podia fumar em paz, enquanto se dedicava ao seu hobby, consertar utensílios domésticos.

       Não era grande coisa como hobby, mas às vezes alguém surgia com um rádio, ou um despertador, e o dinheiro que então tilintava em seus bolsos era o único que não passava pelas mãos avarentas de sua mulher.

       Aquele aspirador de pó representava seis dólares ganhos sem esforço.

       Pensando nisso começou a cantar, ergueu a vista e suou frio. A canção engasgou-se na sua garganta, os olhos arregalaram-se, a transpiração tornou-se mais intensa. Tentou levantar-se, como preparativo para correr desabaladamente, mas as pernas não cooperaram.

       Foi então que AL-76 agachou-se ao seu lado e perguntou:

       — Diga, por que todos os outros saíram correndo?

       Payne sabia muito bem por que, mas o nó que se formara no seu diafragma não permitiu resposta. Tentou afastar-se ligeiramente do robô. AL-76 prosseguiu, ressentido:

       — Um deles até atirou em mim. Se acertasse dois centímetros abaixo teria arranhado o revestimento do meu ombro.

       — D-devia estar 1-louco — gaguejou Payne.

       — É possível. — O tom do robô tornou-se confidencial. — Ouça, que há de errado por aí?

       Payne olhou rapidamente ao redor. Notara que o robô falava em tom extraordinariamente manso para alguém de aparência tão pesada e brutalmente metálica. Lembrou-se também de ter ouvido dizer que os robôs eram mentalmente incapazes de fazer mal ao ser humano e sentiu um certo alívio.

       — Não há nada errado.

       — Não? — replicou AL-76, fitando-o acusadora-mente. — Você está todo errado. Onde deixou seu traje espacial?

       — Não tenho nenhum.

       — Então, por que não está morto? Isto surpreendeu Payne.

       — Bem... não sei.

       — Está vendo! — replicou o robô, triunfante. — Tudo está errado. Onde se encontra o Monte Copérnico? Onde a Estação Lunar 17? E onde está o meu Disinto? Quero trabalhar. — Parecia perturbado e tinha a voz trêmula ao prosseguir: — Venho andando há horas, tentando conseguir que alguém me diga onde está o meu Disinto, mas todos fogem. Agora é provável que esteja atrasadíssimo, e o chefe vai ficar furioso. Que bela situação!

       Aos poucos Payne foi conseguindo estabelecer ordem no caos da sua mente. Perguntou então:

       — Como é mesmo o seu nome?

       — Meu nome de série é AL-76.

       — Al basta para mim. Se você está procurando a Estação Lunar 17, ela fica na Lua, sabia?

       AL-76 meneou gravemente a cabeça.

       — Claro. Mas estive à sua procura...

       — Fica na Lua. E nós não estamos na Lua.

       Foi a vez do robô mostrar-se confuso. Observou Payne especulativamente e depois indagou devagar:

       — Que quer dizer com essa história? Aqui não é a Lua? Claro que é a Lua. Se não fosse, o que seria então? Responda essa pergunta.

       Payne emitiu um estranho ruído e respirou fundo. Agitando um dedo na frente do robô falou:

       — Ouça! — Súbito, teve uma brilhante idéia e interrompeu-se com uma exclamação abafada.

       AL-76 fitou-o com ar de reprovação.

       — Isso não é resposta. Creio que tenho direito a uma resposta bem-educada quando faço uma pergunta bem-educada.

       Payne não o ouvia. Ponderava consigo mesmo. Claro como o dia. Aquele robô fora construído para ir à Lua, mas por qualquer motivo encontrava-se perdido na Terra. Era natural que estivesse confuso, já que seu cérebro positrônico fora construído exclusivamente para o ambiente lunar, e o meio terrestre lhe era totalmente estranho.

       Se pudesse conservar ali o robô, até entrar em contato com a fábrica de Petersboro... Robôs valiam dinheiro. O mais barato custava cinqüenta mil dólares, haviam dito, e alguns chegavam a valer milhões. Imagine a recompensa!

       “Oba, rapaz, imagine só a recompensai” E tudo para ele, até o último centavo. Nem um níquel furado para Mirandy. Não, que diabo!

       Levantando-se, finalmente disse:

       — Al, nós dois somos amigos! Amigões! Gosto de você como de um irmão. — E estendeu-lhe a mão: — Aperte!

       O robô engoliu em seco, estendeu a pata de metal e apertou de leve a mão que lhe era oferecida. Não entendia muito bem.

       — Isto significa que você me ensinará a chegar à Estação Lunar 17?

       Payne ficou um tanto embaraçado.

       — Não, não exatamente. Para falar a verdade, gosto tanto de você que quero que fique algum tempo aqui comigo.

       — Ah, isso eu não posso. Preciso trabalhar. — E meneou a cabeça. — Gostaria de atrasar sua quota de trabalho hora após hora, minuto a minuto? Quero trabalhar. Preciso trabalhar.

       Payne pensou consigo mesmo que gostos variam e respondeu:

       — Está bem, vou lhe explicar uma coisa, porque estou vendo pela sua aparência que você é uma pessoa inteligente. Tenho ordens do seu chefe de seção para conservá-lo aqui por algum tempo, até que ele mande buscá-lo.

       — Para quê? — indagou AL-76, desconfiado.

       — Não posso dizer. Segredo de Estado. — Payne rezou intimamente para que o robô engolisse aquilo. Sabia que alguns eram inteligentes, mas aquele parecia um modelo antiquado.

       E enquanto Payne rezava, AL-76 ponderava. Seu cérebro, ajustado para dirigir um Disinto na Lua, não dava o máximo rendimento quando entregue ao raciocínio abstrato. Ainda assim, desde que se perdera, AL-76 descobrira que seus processos mentais mostravam-se cada vez mais estranhos. O meio ambiente exercia sobre ele alguma influência.

       Sua pergunta seguinte foi quase astuta:

       — Como se chama o meu chefe de setor?

       Payne engoliu em seco e raciocinou rápido. Em tom magoado respondeu:

       — Al, você me ofende com essa desconfiança. Não posso dizer o nome dele. As árvores têm ouvidos.

       AL-76 examinou muito sério a árvore mais próxima e respondeu:

       — Não têm.

       — Eu sei. Quero dizer é que há espiões em toda parte.

       — Espiões?

       — Sim. Gente má, que quer destruir a Estação Lunar 17.

       — Por quê?

       — Porque são más. Querem destruir você também, e é por isso que precisa ficar aqui algum tempo, senão eles o encontrarão.

       — Mas... mas preciso de um Disinto. Não posso me atrasar.

       — Você terá o seu Disinto. Terá mesmo — prometeu Payne muito sério, amaldiçoando o cérebro unilateral do robô. — Mandarão um amanhã. Sim, amanhã.

       Isso lhe daria muito tempo para entrar em contato com a fábrica e receber lindas pilhas de notas de cem dólares.

       Mas AL-76 tornou-se progressivamente obstinado à medida que a pressão daquele ambiente estranho agia sobre seu mecanismo pensante.

       — Não, preciso de um Disinto agora. — Movimentando rigidamente as articulações, levantou-se. — Melhor continuar a procurá-lo.

       Adiantando-se, Payne agarrou um ombro frio e gritou:

       — Espere! Você precisa ficar aqui...

       Algo emitiu um sinal na mente do robô. Todas as coisas estranhas que o rodeavam reuniram-se numa bolha, explodiram, deixando o cérebro a funcionar com um estranho aceleramento de eficiência. Voltando-se para Payne, disse:

       — Sabe de uma coisa? Construirei um Disinto aqui mesmo. Depois poderei trabalhar.

       Payne parecia duvidoso.

       — Não creio que consiga. — E perguntou a si mesmo se valeria a pena fingir o contrário.

       — Não se preocupe. — AL-76 percebeu que os canais positrônicos do seu cérebro traçavam novos sinais e sentiu uma estranha exultação. — Vou construir um. — E olhando para a casa de cachorro, modelo de luxo, pertencente a Payne, acrescentou: — Você tem aqui todo o material necessário.

       Randolph Payne relanceou para a confusão que enchia a cabana: rádios com as vísceras para fora, um refrigerador sem a parte de cima, motores enferrujados de automóvel, um fogão a gás imprestável, vários quilômetros de arame farpado e cerca de cinqüenta toneladas do mais heterogêneo amontoado de ferro velho, diante do qual todo negociante de sucata torceria o nariz.

       — Tenho mesmo? — murmurou.

       Duas horas depois, duas coisas aconteceram quase simultaneamente. Primeira: Sam Tobe, da filial de Petersboro da U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A., recebeu uma chamada pelo videofone, de Randolph Payne, morador de Hannaford, com um recado relativo ao robô desaparecido. Tobe, com um rosnado profundo, interrompeu a ligação, ordenando que todos os outros chamados fossem encaminhados para o sexto vice-presidente encarregado dos controles.

       Não se tratava de um verdadeiro absurdo. Na semana anterior, embora o Robô AL-76 tivesse desaparecido completamente, havia afluído para ali uma enxurrada de notícias sobre o seu paradeiro, vindas de todos os recantos do país. Pelo menos catorze por dia — em geral de catorze diferentes Estados.

       Tobe estava cansado da história, sem mencionar que já andava meio louco por outros motivos. Falava-se até em inquérito governamental, embora todos os roboticistas, físicos e matemáticos de renome do mundo inteiro jurassem que o robô era inofensivo.

       Naquele estado de espírito não era surpreendente que levasse três horas para ponderar de que modo aquele Randolph Payne soubera que o robô estava programado para a estação Lunar 17 e que seu número de série era AL-76. Estes detalhes não haviam sido divulgados pela companhia.

       Ponderou durante um minuto e meio e depois entrou em ação.

       Contudo, nas três horas que transcorreram entre a chamada e a ação, deu-se o segundo acontecimento. Randolph Payne, depois de interpretar corretamente a interrupção de sua chamada como descrença generalizada por parte do oficial que o ouvia na fábrica, regressou à sua cabana munido de uma objetiva.

       Impossível discutir diante de uma foto e ele não seria idiota de mostrar-lhes o artigo genuíno antes de ver a cor do dinheiro.

       AL-76 continuava ocupado com seu trabalho. Metade do conteúdo da cabana encontrava-se espalhado pelos dois acres de terreno, e no meio daquilo via-se o robô agachado, mexendo com válvulas de rádio, pedaços de ferro, fiação de cobre e outras complicações, sem prestar a mínima atenção a Payne que, deitado de bruços, procurava ângulos para uma bonita foto.

       Foi então que Lemuel Oliver Cooper fez a curva da estrada e imobilizou-se diante do espetáculo. A razão da sua presença ali era uma torradeira elétrica, que adquirira o irritante costume de atirar longe as fatias de pão, mesmo quando ainda não estavam torradas. O motivo da sua partida foi mais óbvio. Chegara em marcha tranqüila, alegre, própria de manhã de verão. Partia com uma velocidade que levaria qualquer treinador de corridas a erguer as sobrancelhas e franzir os lábios com ar aprovador.

       E não diminuiu a velocidade até entrar no gabinete do delegado, sem chapéu e sem torradeira, colidindo direto com a parede.

       Mãos prestimosas levantaram-no. Tentou falar, mas durante meio minuto não conseguiu nem sequer se acalmar para respirar direito.

       Deram-lhe uísque e o abanaram, e quando finalmente falou saiu-se com esta:

       — Monstro... dois metros e meio de altura... cabana destruída... coitado do Ronnie Payne... etc.

       Aos poucos foram sabendo da história: havia um imenso monstro metálico, de dois metros e meio de altura, talvez três ou quatro, na cabana de Ran-dolph Payne. O coitado do Payne estava caído de bruços, “um corpo sangrento, dilacerado”. O monstro ocupava-se em destruir a cabana por puro prazer de destruição. Voltara-se para Lemuel Ohver Cooper, que escapara por um triz.

       O Delegado Saunders apertou o cinto na ampla cintura e disse:

       — É aquela máquina que fugiu da fábrica de Petersboro. Recebi um aviso no sábado passado. Ei, Jake, reúna todos os homens de Hannaford capazes de atirar e coloque no peito deles um distintivo de delegado. Reúna-os aqui ao meio-dia. E ouça, Jake, antes disso, passe pela casa da viúva Payne e dê-lhe a má notícia com todo o cuidado.

       Diz-se que Mirandy Payne, ao saber do ocorrido, fez uma pausa para certificar-se de que a apólice de seguro do marido se encontrava no cofre, emitiu algumas observações relativas ao fato dele não ter dobrado a quantia, e depois entregou-se a um prolongado choro de cortar o coração, como cabe a qualquer viúva que se preza.

       Horas depois, Randolph Payne — ignorando sua horrível mutilação e morte — estudou os negativos das fotos. Estava satisfeito. As seqüências de ângulos do robô trabalhando não deixavam pairar dúvidas. Poderiam intitular-se: “Robô Contemplando Pensativo um Aspirador de Pó”, “Robô Dividindo Fios”, “Robô Manejando Chaves-de-Parafusos”, “Robô Despedaçando Refrigerador com Grande Violência” etc.

       Como só restava a tarefa simples de revelar as fotos, saiu da câmara escura improvisada, a fim de fumar um pouco e bater um papo com AL-76.

       Ignorava completamente que a floresta ao redor pululava de fazendeiros nervosos, carregando as mais variadas espécies de objetos contundentes, assim como uma infinidade de armas, desde um arcabuz colonial, verdadeira relíquia, até uma metralhadora portátil, empunhada pelo delegado. Ignorava também que meia dúzia de roboticistas, sob a chefia de Sam Tobe, percorriam a estrada de Petersboro a mais de duzentos quilômetros por hora, com a finalidade exclusiva de ter o prazer e a honra de conhecê-lo.

       Enquanto essas duas ocorrências caminhavam para um clímax, Randolph Payne suspirava, satisfeito consigo mesmo, riscava um fósforo nos fundilhos das calças, tirava uma fumaça do cachimbo e observava AL-76 com ar divertido.

       Tornara-se óbvio que o robô estava mais do que lunático. Randolph Payne era bastante hábil com aparelhos domésticos, tendo construído vários que não podiam ser expostos à luz do dia sem ferir os olhos de quem os contemplava, mas nunca concebera algo parecido com a monstruosidade que AL-76 estava criando.

       Faria os Rube Goldbergs da época morrerem de inveja. Faria Picasso (se vivesse ainda para contemplá-lo) desistir da arte, convicto de estar totalmente obsoleto. Azedaria o leite nas tetas de todas as vacas, numa circunferência de meio quilômetro.

       Era de fato horripilante!

       De uma base de ferro maciça e enferrujada, que se parecia vagamente com uma parte de trator de segunda mão, erguia-se um amontoado de entontecer: fios, rodas, tubos, horrores inomináveis sem conta, terminando num megafone de aparência decididamente sinistra.

       Payne sentiu ímpetos de espreitar pelo megafone, mas conteve-se. Vira aparelhos mais sensatos que aquele explodirem violentamente.

       — Ei, Al — chamou.

       O robô levantou a cabeça. Estava deitado de braços, ajustando uma fina placa de metal.

       — Que quer, Payne?

       — Que é isto? — perguntou, no tom de quem se refere a algo sujo, em decomposição, mal seguro entre duas varas de três metros de comprimento.

       — É um Disinto, para eu poder começar a trabalhar. Aperfeiçoei o modelo anterior. — Erguendo-se, tirou ruidosamente o pó de seus joelhos metálicos e sorriu, orgulhoso.

       Payne estremeceu. Um “aperfeiçoamento”! Não era para admirar que escondessem o original nas cavernas da Lua. Pobre satélite! Pobre satélite morto! Sempre quisera saber o que seria sorte pior que a morte. Agora sabia.

       — Funciona?

       — Claro.

       — Como sabe?

       — Tem de funcionar. Fui eu que fiz, não fui? Só preciso de uma coisa agora. Tem uma lanterna de bolso?

       — Creio que sim. — Payne entrou na cabana e voltou logo em seguida.

       O robô desatarraxou a extremidade e pôs-se a trabalhar. Dentro de cinco minutos havia terminado. Recuando, disse:

       — Tudo pronto. Agora vou entrar em ação. Pode olhar, se quiser.

       Uma pausa, enquanto Payne tentava ponderar a magnitude do oferecimento.

       — É seguro?

       — Até uma criança seria capaz de manejá-lo.

       — Ah — Payne teve um débil sorriso e colocou-se por trás da árvore mais volumosa das imediações. — Vamos, tenho a maior confiança em você.

       AL-76 apontou para o espantoso amontoado de ferro velho e disse:

       — Observe! — E pôs-se a trabalhar.

       Os fazendeiros de Hannaford, Virgínia, em pé de guerra, aproximavam-se da cabana de Payne, apertando o cerco. Com o sangue de seus heróicos antepassados circulando rápido nas veias — e arrepios descendo a espinha — esgueiravam-se de árvore em árvore.

       O Delegado Saunders ordenou:

       — Atirem quando eu der o sinal. E apontem para os olhos.

       Jacob Linker — Lank Jake para os amigos e assistente de delegado para si mesmo — aproximou-se.

       — Acha que a máquina deu o fora? — Não conseguiu conter o tom esperançoso da voz.

       — Não sei — resmungou o delegado. — Acho que não. Teríamos encontrado com ela na floresta, e não encontramos.

       — Mas está tudo tão quieto. E parece que já estamos bem perto da cabana de Payne.

       O lembrete era desnecessário. O Delegado Saunders tinha um bolo tão grande na garganta que precisou engoli-lo em três prestações.

       — Recue — ordenou — e mantenha o dedo no gatilho.

       Encontravam-se na orla da clareira. O delegado fechou os olhos e espreitou pelo cantinho de um deles, por trás de uma árvore. Não vendo coisa alguma, fez uma pausa, tentou novamente, olhos abertos, desta vez.

       Os resultados, naturalmente, foram melhores.

       Para ser exato, viu um imenso homem mecânico, de costas para ele, inclinado sobre um aparelho de arrepiar, de origem incerta e finalidade idem. O único detalhe que lhe escapou foi a trêmula figura de Randolph Payne agarrado à terceira árvore na direção nor-noroeste.

       O delegado saiu para terreno descoberto e ergueu a metralhadora. O robô, voltando-lhe ainda amplas costas de metal, disse em voz baixa, para pessoa ou pessoas desconhecidas:

       — Veja! — E quando o delegado abriu a boca para ordenar a fuzilaria geral, dedos metálicos comprimiram uma alavanca.

       Impossível fazer uma descrição adequada do que ocorreu então, apesar da presença de setenta testemunhas oculares. Nos dias, meses e anos seguintes, nem um só dos setenta seria capaz de descrever os segundos subseqüentes ao momento em que o delegado abriu a boca para dar a ordem de fogo. Quando interrogados empalideciam e afastavam-se oscilantes.

       É óbvio, porém, graças a provas circunstanciais, que o que aconteceu foi mais ou menos o seguinte:

       O Delegado Saunders abriu a boca, AL-76 puxou uma alavanca. O Disinto funcionou, e setenta e cinco árvores, dois celeiros, três vacas e os três quartos superiores do morro Duckbill desfizeram-se no ar.

       Fundiram-se, por assim dizer, com as neves de antanho.

       A boca do delegado permaneceu aberta por um espaço indefinido de tempo, mas nada — nem ordem de fogo, nem coisa alguma — dali saiu. E então...

       Então ouviu-se uma agitação no ar, uma série de raios cor de púrpura cortou a atmosfera, tendo a cabana de Randolph Payne como centro. Dos componentes do grupo atacante, não sobrou vestígios.

       Restaram diversas armas espalhadas pelo local, inclusive a metralhadora niquelada, de fogo extra-rápido, garantida contra enguiços, pertencente ao delegado. Viam-se também cerca de cinqüenta chapéus, algumas pontas de charutos e artigos de indumentária variados, que se haviam desprendido na agitação. Mas ser humano não havia um só.

       À exceção de Lank Jake, nenhum espécime humano surgiu por ali durante três dias, e a exceção só ocorreu porque sua fuga meteórica foi interrompida por meia dúzia de homens da fábrica de Petersboro, penetrando no bosque com igual velocidade.

       Foi Sam Tobe quem o deteve, segurando habilmente a cabeça de Lank Jake, que colidira com o seu estômago. Quando recuperou o fôlego, Tobe perguntou:

       — Onde é a cabana de Randolph Payne? Lank Jake permitiu que seus olhos o focalizassem por um instante e respondeu:

       — Amigo, siga na direção oposta à minha.

       E, com isso, miraculosamente desapareceu. Viu-se um ponto no horizonte, que se desviava das árvores e talvez fosse ele, mas Sam Tobe não seria capaz de jurar.

       Isso foi o que aconteceu com o grupo. Mas resta saber o que ocorreu com Payne, cujas reações assumiram forma um tanto diferente.

       Para Randolph Payne, o intervalo de cinco segundos subseqüentes ao puxar da alavanca e ao desaparecimento do morro Duckbill foram um branco total. A princípio espreitara através das moitas espessas, por trás das árvores. Quando tudo terminou encontrava-se pendurado nos mais altos galhos. O mesmo impulso que impelira o grupo horizontalmente impulsionara-o verticalmente.

       Quanto ao modo como percorrera os quinze metros entre raízes e topo da árvore — se galgara, saltara ou voara — isso não sabia nem queria saber.

       O que ele sabia é que a propriedade fora destruída por um robô temporariamente em seu poder. Desapareciam assim todas as visões de recompensas, substituídas por pesadelos de cidadãos hostis, multidões ululantes, processos, acusações de assassinato e recriminações de Mirandy Payne. Principalmente as recriminações de Mirandy Payne.

       Rouco e furioso, gritou:

       — Ei, robô, destrua essa coisa, ouviu? Destrua completamente! E esqueça de que eu tenho algo a ver com a história. Não o conheço, ouviu? Nunca mais fale no assunto. Esqueça, ouviu?

       Não esperava que suas ordens surtissem efeito, eram apenas um reflexo. O que ignorava é que um robô obedece sempre a ordens humanas, a menos que envolva perigo para outro ser humano.

       AL-76, portanto, pôs-se a demolir, tranqüila e metodicamente, o seu Disinto, transformando-o num monte de sucata.

       Quando estava amassando o último centímetro cúbico de metal, Sam Tobe chegou com o seu contingente, e Randolph Payne, percebendo que se tratava dos verdadeiros donos do robô, caiu de cabeça do alto da árvore e desapareceu em regiões desconhecidas.

       Nem esperou pela recompensa.

       Austin Wilde, engenheiro robótico, voltou-se para Sam Tobe e indagou:

       — Conseguiu obter alguma coisa do robô?

       Tobe meneou a cabeça, com um grunhido surdo.

       — Nada. Nada absolutamente. Esqueceu tudo o que aconteceu depois que saiu da fábrica. Deve ter recebido ordens para esquecer, caso contrário não estaria tão em branco. Que pilha de ferro velho era aquela com que estava brincando?

       — Exatamente isso: uma pilha de ferro velho. Mas deve ter sido um Disinto antes de ser destruído e eu gostaria de matar o camarada que lhe deu ordens para amassá-lo — usando tortura lenta, se possível. Veja isto!

       Estava a meia encosta do que fora o morro Duckbill — no ponto exato em que fora cortada, e Wilde colocou a mão sobre a superfície perfeitamente reta que talhara solo e rocha.

       — Que Disinto! Arrancou a montanha pela base.

       — Por que o terá construído?

       Wilde deu de ombros.

       — Não sei. Algum fator ambiental. Impossível saber o que reagiu sobre seu cérebro positrônico programado para a Lua, levando-o a fabricar um Disinto com um monte de ferros velhos. Há um bilhão de chances contra uma de descobrir esse fator, agora que o próprio robô o esqueceu. Nunca possuiremos aquele Disinto.

       — Não importa. O principal é que temos o robô.

       — Ao diabo com ele! — Havia um pungente lamento na voz de Wilde. — Tem alguma idéia do que são os Disintos na Lua? Consomem energia como porcos eletrônicos e só funcionam quando se obtém um potencial de milhão de volts. Mas este Disinto funcionava diferente. Examinei os destroços com microscópio. Gostaria de ver a única fonte de energia que encontrei?

       — Que é isso?

       — Apenas isso! E jamais saberemos como as utilizou.

       E Austin Wilde exibiu a fonte de energia que possibilitara a um Disinto cortar uma montanha em meio segundo: duas baterias de lanterna portátil!

     

      Vitória involuntária

       A espaçonave vazava como uma peneira.

       Estava destinada a isso. Era exatamente o que se desejava.

       Ê claro que durante a viagem de Ganimedes a Júpiter ficou transbordante do mais sólido vácuo espacial. E já que não dispunha também de aquecimento, o vácuo manteve-se à sua temperatura normal, que é uma fração de grau acima do zero absoluto.

       Isto estava também de acordo com os planos. Pequeninas coisas como a ausência de ar e calor não afetavam a ninguém naquela espaçonave.

       Os primeiros resquícios da atmosfera de Júpiter começaram a penetrar na nave vários milhares de milhas acima da superfície do planeta. Constituía-se quase toda de hidrogênio, embora talvez uma cuidadosa análise revelasse também sinais de hélio. Os indicadores de pressão começaram a subir lentamente.

       Esta subida acelerou-se à medida que a nave caía na órbita de Júpiter. Os mostradores, cada qual destinado a indicar pressões mais elevadas, moveram-se até alcançar as imediações de um milhão de atmosferas, onde os números perderam significado. A temperatura, registrada em pares termoelétricos, ergueu-se lenta e vacilante, firmando-se afinal em cerca de setenta graus centígrados abaixo de zero.

       A nave movia-se lentamente em direção ao destino, abrindo caminho, pesada, pelo emaranhado de moléculas de gás tão unidas que o próprio hidrogênio era reduzido à densidade de um líquido. Vapor amoníaco, emanando dos vastíssimos oceanos daquele líquido, saturava a horrível atmosfera. O vento, que começara a soprar mil milhas acima, atingira um ponto que mal poderia ser classificado de furacão.

       Era evidente, muito antes que a nave pousasse numa ilha bastante extensa do planeta, umas sete vezes o tamanho da Ásia, que Júpiter não era um mundo agradável.

       Contudo, os três membros da tripulação acharam que sim. Estavam convictos disso. Mas acontece que não eram exatamente humanos. Nem exatamente habitantes de Júpiter.

       Eram simplesmente robôs fabricados na Terra para a viagem a Júpiter.

       ZZ Três falou:

       — Parece um local desolado.

       ZZ Dois, reunindo-se a ele, contemplou muito sério a paisagem varrida pelo vento e disse:

       — Há estruturas a distância que parecem artificiais. Sugiro esperarmos que os habitantes nos procurem.

       Do outro lado da cabina, ZZ Um ouviu, mas nada disse. Dos três fora o primeiro a ser construído, e era meio experimental. Falava menos, portanto, que seus dois companheiros.

       A espera não foi longa. Uma nave aérea de estranho contorno sobrevoou a espaçonave terrestre, seguida de outras. Depois uma fila de veículos terrestres aproximou-se, tomou posição e despejou organismos. Com estes vinham diversos acessórios inanimados, que poderiam ser armas. Algumas eram sustentadas por um só jupiteriano, outras por diversos, e outras ainda moviam-se por si mesmas, contendo talvez tripulantes.

       Isso os robôs ignoravam.

       ZZ Três falou:

       — Eles nos rodearam. O gesto de paz mais lógico seria sair da nave. Concordam?

       Concordaram, e ZZ Um abriu a pesada porta, que não era dupla, nem particularmente vedada.

       O aparecimento dos três foi sinal de agitação entre os jupiterianos. Movimentaram-se vários dos maiores acessórios inanimados, e ZZ Três sentiu que a temperatura subia no revestimento externo de seu corpo de berilo-irídio-bronze. Relanceando para ZZ Dois perguntou:

       — Está sentindo? Creio que estão projetando energia de calor contra nós.

       ZZ Dois manifestou surpresa.

       — Por quê?

       — Trata-se definitivamente de um raio calórico Veja!

       Um dos raios desviou-se do alvo, por qualquer motivo incompreensível, e sua linha de radiação atravessou um riacho faiscante de amônia pura, que de imediato começou a ferver.

       Três voltou-se para ZZ Um:

       — Tome nota disso, ouviu?

       — Claro. — A ele cabia o trabalho rotineiro de secretaria, e seu método de tomar notas era fazer uma adição mental ao apurado rolo da memória que existia no seu interior. Já fizera o registro horário de cada instrumento importante de bordo, durante a viagem para Júpiter. E acrescentou tranqüilamente: — Que razão atribuirei à reação? Os mestres humanos gostariam com certeza de saber.

       — Nenhuma razão. Ou melhor — corrigindo-se —, nenhuma razão aparente. Registre que a temperatura máxima do raio era cerca de trinta graus centígrados.

       Dois interrompeu-o:

       — Tentamos nos comunicar?

       — Seria perda de tempo — replicou Três. — Não pode haver mais que uns poucos jupiterianos a pai do código de rádio usado entre Júpiter e Ganimedes. Terão de chamar um deles, e quando chegar estabelecerá contato. Entretanto vamos observá-los. Não compreendo sua maneira de agir, digo francamente.

       E a compreensão não chegou de imediato. A radiação catódica cessou, e outros instrumentos foram trazidos para a linha de frente e exibidos. Diversas cápsulas caíram aos pés dos robôs em observação, tombando rápida e pesadamente por causa da gravidade de Júpiter. Abrindo-se, derramaram um líquido azul, que formava poças e em seguida diminuía rapidamente, evaporando-se.

       O terrível furacão dispersava os vapores, e os jupiterianos afastavam-se do seu caminho. Um deles, demasiado lento, contorceu-se com violência e em seguida ficou imóvel.

       ZZ Dois inclinou-se, mergulhou um dedo na poça e observou o líquido gotejar.

       — É oxigênio — concluiu.

       — É oxigênio, sim — concordou Três. — Isto me parece cada vez mais estranho. Deve ser um sistema perigoso, pois diria que é venenoso para estas criaturas. Uma delas morreu!

       Houve uma pausa e em seguida ZZ Um, cuja menor complexidade levava a uma Unha de reflexão mais direta, ponderou:

       — É possível que estas estranhas criaturas estejam fazendo tentativas infantis de nos destruírem.

       Dois, ao impacto da sugestão, respondeu:

       — Creio que tem razão, Um!

       Houve uma ligeira trégua nas atividades jupiterianas e então surgiu uma nova estrutura. Ostentava uma fina haste apontando para o céu encoberto pela impenetrável escuridão jupiteriana. Mantinha-se sob o impacto daquele vento incrível numa imobilidade que indicava excepcional vigor estrutural. Da extremidade partiu um estalido, seguido de um raio que iluminou até as profundezas da atmosfera mergulhada num fog cinzento.

       Por um instante os robôs ficaram banhados numa pegajosa radiação. Pensativo, Três falou:

       — Eletricidade em alta tensão! Uma força bastante respeitável. Um, creio que tem razão. Afinal, nossos chefes humanos disseram que estas criaturas procuram destruir toda a humanidade, e organismos que possuam tão louca malignidade, a ponto de abrigar pensamentos nocivos a um ser humano — sua voz estremeceu à idéia —, não teriam escrúpulos em destruir-nos.

       — È uma vergonha possuir mente tão pervertida — disse ZZ Um. — Pobres sujeitos!

       — É uma idéia muito triste — admitiu Dois. — Voltemos à nave. Já vimos o bastante por agora.

       Foi o que fizeram, decididos a aguardar. Conforme observara ZZ Três, Júpiter era um grande planeta e poderia levar tempo até que um transporte jupiteriano trouxesse um especialista em códigos à nave. Contudo, paciência é o que não falta aos robôs.

       Para ser exato, Júpiter rodou três vezes em torno do seu eixo, segundo o cronômetro, antes que o especialista chegasse. O nascer e pôr do sol não alteravam de maneira alguma a profunda escuridão nas profundezas daquelas três mil milhas de denso gás-líquido, de modo que não se podia falar em dia e noite. Mas nem robôs nem jupiterianos enxergavam por meio de radiação visível, de modo que isso não tinha importância.

       Naquele intervalo de trinta horas, os nativos persistiram no ataque com uma paciência e constância diante da qual o robô ZZ Um resolveu tomar inúmeras notas mentais. A nave foi atacada por uma força diferente de hora em hora e os robôs observaram atentamente cada uma delas, analisando as armas que reconheciam. Mas isso não acontecia com todas.

       Os humanos, porém, haviam construído solidamente. A nave levara quinze anos para ser estruturada, assim como os robôs e suas partes essenciais, e o conjunto podia ser definido em duas palavras: força bruta. O ataque desgastava-se inutilmente, sem afetar a espaçonave ou os robôs.

       — Creio que a atmosfera os prejudica — falou Três. — Não podem usar energia atômica, pois abririam um buraco naquela espessa camada e explodiriam.

       — Não usaram também explosivos violentos, o que é ótimo — observou Dois. — Não nos afetariam, naturalmente, mas seríamos um tanto sacudidos.

       — Explosivos violentos estão fora de cogitação. Não se pode ter um explosivo sem expansão de gases, e isto é impossível nesta atmosfera.

       — É uma ótima atmosfera — murmurou Um. — Eu gosto dela.

       O que era natural, uma vez que fora para ela construído. Os robôs ZZ eram os primeiros fabricados pela U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A. sem a mais leve aparência humana. Eram baixos e atarracados, com o centro de gravidade a menos de trinta centímetros do solo. Tinham seis pernas, curtas e vigorosas, desenhadas para erguer toneladas em gravidade duas vezes e meia maior que a normal da Terra. Seus reflexos tinham rapidez proporcional, para compensar a gravidade, e compunham-se de uma liga de berilo-irídio-bronze resistente a qualquer agente corrosivo conhecido e a qualquer agente destruidor — à exceção de um disruptor atômico de mil megatons — sob quaisquer condições.

       Em outras palavras, eram indestrutíveis e tão vigorosos que passaram a ser os únicos a quem os roboticistas da corporação jamais tiveram a coragem de impor um apelido. Um brilhante técnico havia sugerido Sissy Um, Dois e Três, mas em voz baixa, e a sugestão não encontrara eco.

       As últimas horas de espera foram passadas em discussão. Procuravam descrever a aparência dos jupiterianos. ZZ Um anotara que possuíam tentáculos e simetria radial, e nisso haviam ficado. Dois e Três fizeram tentativas, mas não conseguiram ajudá-lo.

       — Não é possível descrever muito bem coisa alguma sem um padrão de referência — declarou Três, finalmente. — Estas criaturas não parecem com coisa alguma que eu conheça. Estão inteiramente por fora das trilhas do meu cérebro positrônico. É como tentar descrever um raio gama a um robô não equipado para a recepção de raios gama.

       Naquele exato momento, a barragem atacante novamente cessou e os robôs voltaram a atenção para o exterior da nave.

       Um grupo de jupiterianos adiantava-se de modo estranhamente desigual, mas nem a mais minuciosa observação poderia determinar seu método exato de locomoção. De que modo usavam os tentáculos era difícil saber. Às vezes deslizavam de maneira surpreendente, depois moviam-se a grande velocidade, talvez com a ajuda do vento, pois adiantavam-se nesse sentido.

       Os robôs saíram ao encontro dos jupiterianos, que se detiveram a uns três metros de distância. Ambas as facções permaneceram silenciosas e imóveis.

       ZZ Dois falou:

       — Devem estar nos observando, mas não sei como. Algum de vocês nota órgãos fotossensíveis?

       — Não sei — resmungou Três. — Eles não fazem sentido absolutamente.

       Ouviu-se de repente um clique metálico entre o grupo jupiteriano e ZZ Um falou, encantado:

       — É o código de rádio. Trouxeram o especialista em comunicações.

       Era e tinham trazido mesmo. O complicado sistema de ponto-traço, elaborado penosamente durante vinte e cinco anos pelos jupiterianos e os terrestres de Ganimedes, transformara-se num meio bastante flexível de comunicação e estava afinal sendo posto em ação a curta distância.

       Um jupiteriano permaneceu mais à frente, enquanto os outros recuavam. Era ele quem estava falando. Os sinais diziam:

       — De onde vêm?

       ZZ Três, o de mentalidade mais adiantada, assumiu naturalmente a liderança do grupo.

       — Somos do satélite de Júpiter, Ganimedes. O jupiteriano continuou:

       — Que querem?

       — Informação. Viemos estudar o seu mundo e trazer as nossas descobertas. Se pudéssemos obter a sua cooperação...

       Os sinais do jupiteriano interromperam-no:

       — Vocês precisam ser destruídos!

       ZZ Três fez uma pausa e num aparte aos companheiros disse, pensativo:

       — Exatamente a atitude que nossos mestres terrenos previram. São muito estranhos.

       Voltando aos sinais perguntou simplesmente:

       — Por quê?

       O jupiteriano considerava, evidentemente, certas perguntas demasiado tolas para merecerem resposta. Disse apenas:

       — Se partirem dentro de um só período de evolução nós os pouparemos, até o dia em que sairmos do nosso mundo para destruir os vermes não-jupiterianos de Ganimedes.

       — Gostaria de observar que nós, de Ganimedes e dos planetas interiores...

       O jupiteriano interrompeu-o:

       — Nossa astronomia conhece o Sol e nossos quatro satélites. Não existem planetas interiores.

       Três não insistiu, recomeçando:

       — Nós, de Ganimedes, não temos intenções belicosas com relação a Júpiter. Estamos dispostos a oferecer a nossa amizade. Durante vinte e cinco anos seu povo comunicou-se livremente com os seres humanos de Ganimedes. Haverá razão para uma guerra súbita com os humanos?

       — Durante vinte e cinco anos supomos que os habitantes de Ganimedes eram jupiterianos — foi a resposta glacial. — Quando descobrimos que não e que vínhamos tratando com animais inferiores ao nosso nível de inteligência, fomos obrigados a tomar medidas para resgatar nossa honra.

       E terminou, com lentidão e energia:

       — Nós, de Júpiter, não suportaremos a existência de vermes!

       O jupiteriano recuou, de certo modo, fazendo um esforço contra o vento, e a entrevista evidentemente ficou encerrada.

       Os robôs recolheram-se à nave.

       — As coisas estão más, não é? — disse ZZ Dois, que prosseguiu, pensativo: — Foi como disseram os mestres humanos. Eles possuem um complexo de superioridade extraordinariamente desenvolvido, combinado a uma extrema intolerância a qualquer pessoa ou coisa que perturbe esse complexo.

       — A intolerância é conseqüência natural do complexo — observou Três. — O problema é que a intolerância deles é agressiva. Têm armas — e sua ciência é bastante avançada.

       — Não surpreende que tenhamos sido especificamente instruídos para não atender às ordens jupiterianas — exclamou ZZ Um. — São seres horríveis, intoleráveis, pseudo-superiores! — E acrescentou enfaticamente, com lealdade e fé robóticas: — Mestre humano algum seria assim!

       — Isso, embora verdadeiro, não tem relevância — falou Três. — O que importa é que os mestres humanos estão em terrível perigo. Este mundo é gigantesco e os jupiterianos são cem vezes maiores em número e recursos, talvez mais, do que todos os homens do Império Terrestre. Se forem capazes de fabricar um campo de força e usá-lo no casco de uma espaçonave — como os nossos mestres humanos já fizeram — dominarão à vontade todo o sistema. A questão é saber até que ponto avançaram nesse sentido, quais as outras armas que possuem, que preparativos estão fazendo etc. Regressar com esse informe é a nossa função, naturalmente, de modo que é melhor decidirmos qual será nosso próximo passo.

       — Isto talvez seja difícil — replicou Dois. — Os jupiterianos não nos ajudarão. — O que, tendo-se em vista as circunstâncias, era dizer muito pouco.

       — Parece-me que só temos que esperar. Tentaram destruir-nos durante trinta horas e não conseguiram. Fizeram o possível, com certeza. Um complexo de superioridade envolve sempre a eterna necessidade de salvar as aparências, e o ultimato que nos dirigiram o prova neste caso. Jamais nos permitiriam partir se pudessem destruir-nos. Mas se não partimos fingirão, com certeza, que estão dispostos, por motivos que só eles conhecem, a nos permitir ficar.

       E mais uma vez esperaram. Passou-se o dia. A barragem bélica não voltou a funcionar. Os robôs não se retiraram. A ameaça revelara-se inútil. De novo os robôs se defrontaram com o especialista em código de rádio.

       Se os modelos ZZ houvessem sido equipados com senso de humor estariam se divertindo imensamente.

       Como isso não acontecera, sentiam apenas uma solene satisfação.

       O jupiteriano falou:

       — Decidimos permitir que permaneçam por um curto período, a fim de verificar pessoalmente o nosso poderio. Regressarão a Ganimedes para informar aos outros vermes seus semelhantes de seu desastroso fim, dentro de uma revolução solar.

       ZZ Um anotou mentalmente que uma revolução jupiteriana durava doze anos terrestres. Três respondeu tranqüilamente:

       — Obrigado. Podemos acompanhá-los à cidade mais próxima? Há muita coisa que gostaríamos de aprender. — E acrescentou: — Nossa nave não será tocada, naturalmente.

       Disse isso em tom de pedido, e não de ameaça, pois nenhum modelo ZZ era belicoso. Toda capacidade mesmo para a mais leve irritação fora cuidadosamente banida de sua construção. Com robôs tremendamente potentes, como os ZZ, um bom humor inalterável era essencial para a segurança nos amos de teste na Terra.

       — Não estamos interessados em sua mísera nave — replicou o jupiteriano. — Nenhum de nós se contaminará aproximando-se dela. Podem acompanhar-nos, mas não devem de modo algum chegar a menos de três metros de qualquer jupiteriano. Serão instantaneamente destruídos.

       — Convencidos, hem? — observou Dois, num sussurro bem-humorado, enquanto lutavam contra o vento.

       A cidade era um porto às margens de um incrível lago de amônia. O vento soprava furioso e ondas espumantes saltavam na superfície líquida em louca velocidade, sublinhada pela gravidade. O porto não era vasto nem imponente e parecia bastante óbvio que a maior parte das construções era subterrânea.

       — Qual a população deste local? — perguntou Três.

       — É uma pequena cidade de dez milhões de habitantes — replicou o jupiteriano.

       — Compreendo. Anote isso, Um.

       ZZ Um anotou mecanicamente e voltou-se de novo para o lago, que estivera contemplando, fascinado. Tocando o ombro de Três, perguntou:

       — Acha que existem peixes aí?

       — Que importa?

       — Acho que devemos saber. Os mestres humanos ordenaram que descobríssemos o máximo possível. — Sendo o mais simples dos robôs, aceitava as ordens de maneira mais literal.

       Dois interveio:

       — Um pode investigar, se quiser. Não há mal em que o garoto se divirta um pouco.

       — Está bem. Não há objeção, se não perder tempo. Não viemos procurar peixes, mas... pode ir, Um.

       ZZ Um partiu muito animado, descendo rapidamente à praia e mergulhando com espalhafato na amônia. Os jupiterianos observaram-no atentamente. Não haviam compreendido nada da conversa anterior, é claro.

       O especialista em código transmitiu:

       — É evidente que seu companheiro resolveu abandonar a vida, desesperado com a nossa grandeza.

       Três replicou, surpreendido:

       — Nada disso. Quer investigar os organismos vivos, se é que existem, na amônia. — E acrescentou como quem pede desculpas: — Nosso amigo é às vezes muito curioso e menos inteligente do que nós, o que é uma pena. Compreendemos isso e procuramos fazer-lhe a vontade sempre que possível.

       Houve uma prolongada pausa e o jupiteriano observou:

       — Ele se afogará.

       Três respondeu tranqüilamente:

       — Não há perigo. Nós não nos afogamos. Podemos entrar na cidade assim que ele voltar?

       Naquele momento produziu-se no lago um jato de líquido de várias centenas de metros de altura. Projetando-se loucamente para cima, caiu transformado em vapor, que foi soprado pelo vento. Outro jato, mais outro. Depois uma espuma branca formou-se, deixando uma esteira até a margem e desaparecendo gradualmente.

       Os dois robôs observaram surpreendidos o fenômeno e a absoluta imobilidade dos jupiterianos indicava que também eles observavam.

       Então a cabeça do ZZ Um emergiu e aproximou-se lentamente da margem. Mas algo o seguia! Um ser de dimensões gigantescas, que parecia ser todo constituído de presas, garras e espinhas. Viram então que não o acompanhava por livre e espontânea vontade, mas estava sendo arrastado para a praia. Seu corpo apresentava uma significativa imobilidade.

       Aproximando-se timidamente, ZZ Um apossou-se da comunicação, transmitindo uma agitada mensagem ao jupiteriano:

       — Lamento muito o que aconteceu, mas esta coisa atacou-me. Eu estava apenas tomando notas. Espero que não seja uma criatura de muito valor.

       A resposta não veio de imediato, pois quando o monstro apareceu houve uma louca correria nas fileiras jupiterianas. Quando estas se reconstituíram lentamente e uma cautelosa observação provou que a criatura estava de fato morta, a ordem restabeleceu-se. Alguns mais ousados tocavam o corpo, curiosos.

       ZZ Três disse humildemente:

       — Espero que perdoe nosso amigo. Às vezes ele se mostra desajeitado. Não temos nenhuma intenção absolutamente de fazer mal a qualquer criatura de Júpiter.

       — Ele me atacou — explicou Um. — Mordeu-me sem provocação. Veja! — e exibiu uma presa de sessenta centímetros de comprimento, terminando numa ponta serrilhada. — Quebrou-a no meu ombro e quase deixou um arranhão. Só lhe dei um safanão para afastá-lo... e ele morreu. Sinto muito!

       O jupiteriano falou finalmente, e o código parecia um gaguejo.

       — É uma criatura selvagem, raramente encontrada tão junto à margem, mas o lago é profundo aqui.

       Ansioso, Três falou:

       — Se puderem utilizá-lo para alimentação teremos o maior prazer...

       — Não. Podemos conseguir comida sem a ajuda de verm... sem a ajuda de outrem. Comam-no vocês mesmos.

       ZZ Um ergueu então o ser e atirou-o ao mar com leve movimento de braço. Três falou calmamente:

       — Obrigado por sua bondosa oferta, mas não precisamos de alimento. Não comemos, naturalmente.

       Escoltados por cerca de duzentos jupiterianos armados, os robôs passaram por uma série de rampas, penetrando na cidade subterrânea. Se na superfície ela parecia pequena e sem importância, sob a terra assumia a aparência de uma vasta megalópole.

       Os robôs foram conduzidos a carros acionados por controle remoto — pois nenhum jupiteriano que se respeitasse arriscaria sua superioridade colocando-se no mesmo veículo que os vermes — e transportados a tremenda velocidade para o centro da cidade. Viram o bastante para calcular que ela teria uns cinqüenta quilômetros de extensão e mergulhava pelo menos uns oito quilômetros na crosta de Júpiter.

       ZZ Dois não parecia muito feliz ao dizer:

       — Se isto é uma amostra do progresso jupiteriano, nosso relatório aos mestres humanos não será muito auspicioso. Afinal, pousamos a esmo na superfície do planeta, com uma chance contra mil de nos encontrarmos nas imediações de uma zona populosa. Segundo o especialista, isto é uma cidadezinha.

       — Dez milhões de jupiterianos — disse Três, distraído. — O total da população deve orçar pelos trilhões, o que é bastante, mesmo para Júpiter. Devem ter uma civilização completamente urbana, o que significa que seu desenvolvimento científico será tremendo. Se tiverem campos de força...

       Três não possuía pescoço, pois, no interesse do vigor das cabeças, os modelos ZZ giravam firmemente o torso, com os delicados cérebros positrônicos protegidos por três diferentes camadas de liga de irídio, com dois centímetros e meio de espessura. Mas se  tivesse a teria meneado tristemente.

       Haviam parado num espaço livre. Ao redor viam-se avenidas e estruturas fervilhantes de jupiterianos, tão curiosos como qualquer terrestre em circunstâncias similares.

       O especialista em código aproximou-se.

       — Chegou a hora de retirar-me até o próximo período de atividade. Chegamos ao cúmulo de providenciar alojamento para vocês, com grande incômodo para nós, pois a estrutura precisará ser destruída e reconstruída mais tarde. Contudo, poderão dormir por algum tempo.

       ZZ Três agitou um braço num gesto deprecatório e transmitiu:

       — Agradecemos, mas não precisam se incomodar. Não pretendemos ficar aqui. Se quiserem dormir e descansar, não façam cerimônia. Esperaremos por vocês. — E acrescentou tranqüilamente: — Nós não dormimos.

       O jupiteriano não respondeu, embora, caso tivesse rosto, fosse interessante observar-lhe a expressão. Retirou-se e os robôs permaneceram no carro, com uma escolta de jupiterianos bem armados e substituídos com freqüência.

       Horas depois, as fileiras dos guardas abriram-se para deixar passar o especialista em código. Vinha acompanhado de outros jupiterianos, a quem apresentou.

       — Trago dois oficiais do governo central, que graciosamente consentiram em falar-lhes.

       Um dos oficiais evidentemente conhecia o código, pois seu clique interrompeu asperamente o do especialista. Dirigindo-se aos robôs falou:

       — Vermes! Saiam do carro para que eu possa vê-los.

       Os robôs obedeceram com a maior boa vontade. Enquanto Três e Dois saltavam por sobre a borda, ZZ Um atravessou a esquerda do veículo. A palavra atravessou foi usada corretamente, pois uma vez que não acionou o mecanismo para baixar a parede lateral, por onde se saía, carregou com aquele lado e mais duas rodas e um eixo. O carro desmoronou-se e ZZ Um contemplou as ruínas, num silêncio embaraçado.

       Finalmente disse, em voz baixa:

       — Lamento muito. Espero que o carro não seja muito valioso.

       ZZ Dois acrescentou, pedindo desculpas:

       — Nosso companheiro é meio desajeitado às vezes. Desculpem-no, por favor. — E fez uma leve tentativa para reconstituir o carro.

       ZZ Um fez outro esforço para desculpar-se.

       — O material do carro era pouco resistente, estão vendo? — E ergueu um pedaço de plástico duro como metal, de sete centímetros de espessura. Exercendo pressão com ambas as mãos, facilmente quebrou-o ao meio. — Eu devia ter tido mais cuidado — confessou.

       O oficial do governo jupiteriano falou em tom um pouco menos áspero:

       — O carro teria que ser mesmo destruído, depois de poluído por sua presença. — E, após um silêncio: - Criaturas! Nós, jupiterianos, não sentimos curiosidade com respeito aos animais inferiores, mas nossos cientistas procuram fatos.

       — Concordamos plenamente — replicou Três, bem-humorado. — Pensamos da mesma maneira.

       O jupiteriano ignorou-o.

       — Vocês aparentemente não dispõem de órgão sensível à massa. Como percebem os objetos distantes?

       Três pareceu interessado.

       — Quer dizer que vocês são diretamente sensíveis à massa?

       — Não estou aqui para responder às suas perguntas — suas impudentes perguntas — a nosso respeito.

       — Suponho então que objetos de pequena massa específica seriam transparentes para você, mesmo na ausência de radiação. — E voltando-se para Dois:

       — É assim que eles vêem. Sua atmosfera é tão transparente para eles como o espaço.

       Os cliques do jupiteriano recomeçaram.

       — Responda imediatamente à minha pergunta, senão perderei a paciência e mandarei destruí-lo.

       Três respondeu logo:

       — Somos sensíveis à energia, jupiteriano. Podemos ajustar-nos à vontade a toda escala eletromagnética. No momento, nossa visão a longa distância é devida à transmissão de ondas de rádio por nós mesmos emitidas, e de perto vemos por meio de... — calou-se, voltando-se para Dois: — Não existe nenhum código para o raio gama, existe?

       — Não que eu saiba — respondeu Dois. Três prosseguiu, voltando-se para o jupiteriano:

       — De perto vemos por meio de outra radiação, para a qual não temos código.

       — De que se compõe seu corpo? — indagou o jupiteriano.

       Dois murmurou:

       — Ele está perguntando isso provavelmente porque sua sensibilidade à massa não pode penetrar a epiderme. Alta densidade, compreende? Devemos dizer a ele?

       Três respondeu, hesitante:

       — Nossos mestres humanos não recomendaram particularmente que guardássemos nenhum segredo. — Em código de rádio, disse ao jupiteriano: — Somos constituídos principalmente de irídio. E mais cobre, latão, um pouco de berilo e um punhado de outras substâncias.

       Os jupiterianos recuaram e pelo obscuro contorcer de diversas porções de seus corpos indescritíveis davam a impressão de estar imersos em animada conversa, embora não emitissem som algum.

       Finalmente o oficial regressou:

       — Seres de Ganimedes! Ficou decidido que lhes mostraremos algumas de nossas fábricas, exibindo assim uma fração de nossas grandes realizações. Em seguida permitiremos que regressem, a fim de espalharem o desespero entre os outros verm... os outros seres do mundo exterior.

       Três disse para Dois:

       — Observe o efeito de sua psicologia. Têm necessidade de insistir em sua superioridade. É também uma questão de salvar as aparências. — E em código: — Agradecemos a oportunidade.

       Mas a operação foi eficiente, conforme os robôs logo perceberam. A demonstração transformou-se numa excursão, a excursão numa “Grande Exibição”. Os jupiterianos exibiram tudo, explicaram tudo, responderam animadamente a todas as perguntas e ZZ Um tomou centenas de notas desesperadoras.

       O potencial bélico daquela única cidade sem importância era várias vezes maior que o de Ganimedes inteiro. Dez cidades semelhantes produziriam mais do que todo o Império Terrestre. Dez outras não seriam sequer um pequeno fragmento de toda a força de que Júpiter dispunha.

       Três sentiu uma forte cotovelada nas costas.

       — O que foi? — perguntou, voltando-se. Muito sério, Um respondeu:

       — Se tiverem campos de força, os mestres humanos estão perdidos, não estão?

       — Temo que sim. Por que pergunta?

       — Porque os jupiterianos não nos estão mostrando o lado direito desta fábrica. É possível que os campos de força sejam fabricados ali. Eles guardariam segredo. É melhor descobrirmos. Não há nada mais importante do que isso.

       Três olhou sombrio para Um.

       — Talvez tenha razão. Não adianta ignorar coisa alguma.

       Encontravam-se numa imensa siderúrgica, observando lingotes de trezentos metros de uma liga de silicone-aço, resistente à amônia, sendo fabricados à razão de vinte por segundo. Três perguntou baixinho:

       — Que contém aquela ala?

       O oficial do governo indagou aos encarregados da fábrica, que explicaram:

       — É o departamento de altos fornos. Vários processos exigem tremendas temperaturas, que a vida não pode suportar, e todos devem ser indiretamente controlados.

       Conduzindo-os a uma divisão de onde o calor se irradiava, indicou uma área pequena e redonda de material transparente. Fazia parte de uma fileira de outras iguais, através das quais as luzes vermelhas de brilhantes forjas eram vistas na pesada atmosfera.

       ZZ Um olhou desconfiado para o jupiteriano e transmitiu:

       — Poderíamos entrar e dar uma espiada? Estou muito interessado nisto.

       — Você está sendo infantil, Um — falou Três. — Estão dizendo a verdade. Ora, dê uma espiada se quiser, mas não demore. Precisamos seguir adiante.

       O jupiteriano avisou:

       — Não faz idéia do calor desprendido. Morrerá.

       — Oh, não — replicou Um, tranqüilo. — O calor não nos afeta.

       Houve uma confabulação entre os jupiterianos e em seguida uma cena de confusão, enquanto a vida da fábrica era ativada para enfrentar aquela emergência. Telas de material isolante foram montadas e então abriu-se uma porta, que jamais fora aberta enquanto os fornos estavam em funcionamento, ZZ Um entrou e a porta fechou-se por trás dele. Os jupiterianos reuniram-se diante dos setores transparentes para observá-lo.

       ZZ Um encaminhou-se para o forno mais próximo e deu pancadinhas no seu revestimento. Como era demasiado baixo para vê-lo confortavelmente, inclinou-o de modo que o metal líquido pingasse um pouco da borda. Observando-o, curioso, nele mergulhou a mão, agitando-a durante algum tempo para testar a consistência. Depois sacudiu as gotas de metal incandescente, enxugou o resto numa de suas seis coxas e percorreu lentamente a fileira de fornos. Por sinais transmitiu então o desejo de sair.

       Os jupiterianos recuaram respeitável distância quando ele transpôs a porta e fizeram funcionar um jato de amônia que assobiou e ferveu até atingir novamente uma temperatura suportável.

       Ignorando o banho de amônia, ZZ Um falou:

       — Disseram a verdade. Não há campos de força.

       Três começou:

       — Sabe... — mas Um interrompeu-o, impaciente:

       — Não adianta demorarmos aqui. Os mestres humanos nos orientaram no sentido de descobrirmos tudo e já o fizemos.

       Voltando-se para o jupiteriano transmitiu, sem a menor hesitação:

       — Ouça, os jupiterianos já conseguiram elaborar campos de força?

       Franqueza era, naturalmente, uma das naturais conseqüências dos poderes mentais menos desenvolvidos de ZZ Um. Dois e Três sabiam disso, de modo que se abstiveram de manifestar desaprovação diante da pergunta.

       O oficial jupiteriano abandonou um tanto sua atitude rígida, que dava a impressão de estar olhando estupidamente para a mão de Um, aquela que o robô mergulhara no metal líquido, e disse lentamente:

       — Campos de força? Então é este o principal objeto de sua curiosidade?

       — Sim — respondeu Um, enfático.

       O jupiteriano readquiriu, súbito, parte de sua segurança, pois os sinais tornaram-se mais enérgicos. E falou quase gritando:

       — Venha comigo, verme! Três disse para Dois:

       — Voltamos a ser vermes... parece que há más notícias pela frente.

       Dois concordou, sombrio.

       Foram conduzidos, então, para o extremo da cidade, ao setor que na Terra seria chamado subúrbio, onde percorreram uma série de estruturas, que corresponderiam vagamente a uma universidade terrestre.

       Não houve explicações, e mesmo estas não foram solicitadas. O oficial jupiteriano caminhava rápido e os robôs o acompanhavam com a sombria convicção de que o pior estava a pique de acontecer.

       Foi ZZ Um quem parou diante de uma abertura na parede, depois que todos os outros haviam passado.

       — Que é isto? — quis saber.

       A sala estava equipada com bancos estreitos e baixos, diante dos quais jupiterianos manipulavam uma série de estranhos dispositivos, onde se destacavam fortes eletromagnetos com três centímetros de comprimento.

       — Que é isto? — perguntou Um, novamente. O jupiteriano voltou-se, impaciente:

       — É um laboratório de biologia para os estudantes. Não há nada aí que possa interessá-lo.

       — Mas que estão fazendo?

       — Estudando vida microscópica. Nunca viu um microscópio?

       Três interveio, explicando:

       — Claro que viu, mas não desse tipo. Nossos microscópios são destinados a órgãos sensíveis à energia e funcionam por refração de energia radiante. É evidente que estes funcionam baseados na expansão da massa. Bastante engenhoso.

       — Poderia examinar um dos seus espécimes? — perguntou Um.

       — Para quê? Não pode usar os nossos microscópios por causa de suas limitações sensoriais e, além disso, nos forçará a inutilizar todos os espécimes de que se aproximar sem uma razão válida.

       — Mas não preciso de microscópio — explicou Um, surpreendido. — Posso ajustar-me facilmente à visão microscópica.

       Dirigiu-se à mesa mais próxima, enquanto os estudantes agrupavam-se a um canto, para evitar contaminação. Afastando um microscópio, ZZ Um examinou cuidadosamente a lâmina. Recuando, intrigado, estudou outra... e mais outra... e mais outra.

       Regressando, perguntou ao jupiteriano:

       — Deviam estar vivos, não? Refiro-me àqueles vermezinhos.

       — Certamente — replicou o jupiteriano.

       — É estranho. Quando olho para eles, morrem! Três emitiu uma exclamação, voltando-se para os companheiros:

       — Esquecemos nossa radiação de raios gama. Vamos sair daqui, Um, senão mataremos toda a vida microscópica desta sala.

       E voltando-se para o jupiteriano:

       — Nossa presença pode ser fatal a formas de vida menos resistentes. É melhor sairmos. Espero que os espécimes possam ser substituídos com facilidade. E já que falamos no assunto, seria conveniente afastarem-se de nós, pois nossa radiação pode ter efeitos desagradáveis. Até o momento sentiu-se bem? Espero.

       O jupiteriano saiu da sala em orgulhoso silêncio, mas os robôs notaram que de então em diante duplicou a distância que vinham mantendo.

       Ninguém disse mais nada até que os robôs se encontravam numa vasta sala, em cujo centro imensos lingotes de metal jaziam sem apoio no ar, ou antes, sem qualquer apoio visível — enfrentando a gravidade de Júpiter.

       O oficial transmitiu:

       — Este é um campo de força recentemente aperfeiçoado. Dentro daquela bolha há o vácuo, sustentando todo o peso da nossa atmosfera, mais a quantidade de metal equivalente a duas grandes espaçonaves. Que acham disso?

       — Que as viagens espaciais tornaram-se uma possibilidade para vocês — replicou Três.

       — Sem dúvida. Nenhum metal ou plástico tem força para sustentar nossa atmosfera contra o vácuo, mas um campo de força é capaz disso. E nossas espaçonaves serão bolhas de campos de força. Dentro de um ano estaremos produzindo centenas de milhares. Em seguida, elas atacarão Ganimedes para destruir as pseudo-inteligências que tentam disputar o nosso domínio universal.

       — Os seres humanos de Ganimedes jamais tentaram... — começou Três, numa leve censura.

       — Silêncio! — ordenou o jupiteriano. — Regressem agora e contem o que viram. Seus campos de força inferiores, como aquele com que está equipada a sua nave, não resistirão aos nossos, pois as menores naves daqui terão cem vezes o tamanho e a potência das terrestres.

       — Então, nada mais temos a fazer e regressaremos com a informação — disse Três. — Se nos conduzirem à nave, nós nos despediremos logo. Por uma questão de registro, gostaria de esclarecer algo que não compreenderam. Os seres humanos de Ganimedes possuem campos de força, naturalmente, mas a nossa nave não é equipada com nenhum. Não precisamos disso.

       O robô voltou-lhes as costas e fez sinal aos companheiros que o seguissem. Ficaram calados por algum tempo, depois ZZ Um murmurou, desanimado:

       — Não podemos destruir a cidade?

       — Não adianta — replicou Três. — Eles nos dominariam. É inútil. Dentro de uma década os mestres humanos serão liquidados. É impossível enfrentar Júpiter. São demasiado poderosos. Enquanto estiverem presos à superfície, os humanos estarão em segurança. Mas agora que já têm campos de força... Só nos resta levar a notícia. Construindo-se esconderijos, alguns sobreviverão por um curto período de tempo.

       A cidade ficou para trás. Encontravam-se na planície descampada junto ao lago e a nave era apenas um pontinho escuro no horizonte quando o jupiteriano falou subitamente:

       — Criaturas, estão dizendo que não dispõem de campo de força?

       Três replicou, desinteressado:

       — Não é preciso.

       — Então, de que modo a nave resiste ao vácuo espacial sem explodir devido à pressão atmosférica interior? — E moveu um tentáculo, como se a um simples gesto indicasse que a atmosfera de Júpiter pesava sobre eles com a força de vinte milhões de quilos por centímetro quadrado.

       — É muito simples — explicou Três. — Nossa nave não é vedada. As pressões se equiparam no interior e no exterior.

       — Mesmo no espaço? Vácuo no interior da nave? É mentira!

       — Pode examinar à vontade a espaçonave. Não possui campo de força e não é vedada. Mas não há nada de extraordinário nisto. Não respiramos. Obtemos energia diretamente da força atômica. A presença ou ausência de pressão pouco nos afeta e ficamos inteiramente à vontade no vácuo.

       — Mas zero absoluto!

       — Não tem importância. Regulamos o nosso próprio calor. Não nos interessam as temperaturas exteriores. — E, após uma pausa: — Podemos voltar sozinhos à nave. Adeus. Transmitiremos aos humanos de Ganimedes a sua mensagem — guerra total!

       — Esperem! Voltarei — gritou o jupiteriano, dirigindo-se à cidade.

       Os robôs fitaram-no espantados e aguardaram em silêncio.

       Três horas depois ele regressou, ofegante de tanta pressa. Deteve-se a três metros dos robôs, como sempre, mas depois começou a avançar de estranha maneira, como se rastejasse. Só falou quando sua epiderme cinza e borrachenta quase os tocava. O código de rádio soou manso e respeitoso.

       — Honrados senhores, comuniquei-me com o chefe do nosso governo central, que se encontra agora a par de todos os fatos, e asseguro-lhes que Júpiter só deseja a paz.

       — Não compreendo — falou Três, atônito. O jupiteriano acrescentou logo:

       — Estamos dispostos a voltar a comunicar-nos com Ganimedes, prometendo não nos aventurarmos no espaço. Nosso campo de força será utilizado somente na superfície de Júpiter.

       — Mas...

       — Nosso governo terá o maior prazer em receber quaisquer representantes de nossos veneráveis irmãos humanos que Ganimedes queira nos enviar. Se condescenderem agora em fazer um juramento de paz...

       Um tentáculo escamoso adiantou-se para os robôs, e Três, espantado, apertou-o, imitado por Dois e Um.

       Solene, o jupiteriano declarou:

       — Reinará paz eterna entre Júpiter e Ganimedes.

       A espaçonave, que vazava como uma peneira, encontrava-se novamente no cosmos. A pressão e a temperatura haviam voltado a zero e os robôs observavam o imenso globo que diminuía à distância — Júpiter.

       — Eles são decididamente sinceros — falou ZZ Dois — e a total mudança de atitude é muito agradável, mas não a compreendo.

       — Creio que os jupiterianos caíram em si ao compreender tudo o que havia de mau na idéia de prejudicar um mestre humano. O que é muito natural.

       ZZ Três suspirou, dizendo:

       — Ouçam, é uma questão de psicologia. Aqueles jupiterianos têm um tremendo complexo de superioridade e ao verem que não nos podiam destruir quiseram salvar as aparências. Toda aquela exibição e explicações eram uma forma de se gabarem, destinada a nos humilhar diante de sua força e superioridade.

       — Compreendo tudo isso, mas... — interpôs ZZ Dois.

       Três prosseguiu:

       — Mas funcionou às avessas. Só conseguiram provar que éramos mais fortes, que não nos afogávamos, que não nos alimentávamos, nem dormíamos e que metal incandescente não nos afeta. Nossa simples presença é fatal à vida em Júpiter. Sua última cartada era o campo de força. Ao descobrir que não precisávamos absolutamente dele, que podíamos viver no vácuo ao zero absoluto, capitularam. — Calou-se e depois acrescentou filosoficamente: — Quando um complexo de superioridade como aquele se desmorona, desmorona para valer.

       Os outros dois ponderaram um instante e Dois falou:

       — Mas continuo a não compreender. Que importa a eles o que podemos ou não fazer? Somos apenas robôs. Não somos nós que lutamos.

       — Ê isso exatamente, Dois — falou Três. — Só pensei nisso depois que saímos de Júpiter. Sabe que esquecemos involuntariamente de dizer que somos apenas robôs?

       — Eles não perguntaram — disse Um.

       — Exato. Julgaram que somos seres humanos e que todos os habitantes da Terra são iguais a nós!

       E voltou a contemplar Júpiter, pensativo:

       — Não é para admirar que tenham desistido!

     

      Estranho no paraíso

      Eram irmãos. Não no sentido de que ambos eram seres humanos ou de que tivessem sido crianças amigas numa creche. De maneira alguma! Eram irmãos no verdadeiro sentido biológico da palavra. Usando um termo que havia se tornado debilmente arcaico mesmo séculos atrás, antes da Catástrofe, eram parentes, isto quando este fenômeno tribal, a família, ainda tinha alguma validade.

      Como isso era embaraçoso!

      Com o correr dos anos, desde a infância, Anthony tinha quase esquecido. Ocasiões havia em que, durante meses seguidos, nem uma vez sequer ele pensava no assunto. Agora, porém, desde que tinha sido inextricavelmente colocado junto com William, ele se achava vivendo em meio a um tempo de agonia.

      Não teria sido tão ruim se as circunstâncias tivessem tornado isto óbvio o tempo todo; se, como nos dias anteriores à Catástrofe (em certa época Anthony tinha sido um grande leitor de História) tivessem partilhado o segundo nome e daquele modo, e só daquele, alardeado o relacionamento.

      Hoje, naturalmente, adotava-se o segundo nome de alguém por mera conveniência, mudando-se tantas vezes quanto necessário. Mesmo porque, o que realmente importava era o símbolo da cadeia, símbolo que era codificado e tornado próprio de uma pessoa desde seu nascimento.

      William se autodenominava Anti-Aut. Era nisto que ele insistia, com uma espécie de sóbrio profissionalismo. Assunto dele mesmo, seguramente, mas que propaganda de mau gosto! Anthony decidira por Smith ao chegar aos treze anos e nunca tivera impulso de mudar de nome. Era simples, fácil de escrever, fácil de distinguir, uma vez que nunca encontrara alguém mais que tivesse escolhido aquele nome. Outrora fora muito comum, entre os habitantes do planeta anteriores à Catástrofe, os pré-Cats, o que talvez explicasse sua raridade de agora.

      Mas a diferença de nomes nada significava quando os dois estavam juntos. Pareciam iguais.

      Tivessem sido gêmeos... mas, naqueles tempos, não se permitia que viesse a nascer um dos dois quando um óvulo era fertilizado de modo a dar origem a gêmeos. O que havia, apenas, era que, ocasionalmente, se manifestava uma similaridade física entre não-gêmeos, especialmente quando o relacionamento era de ambos os lados. Anthony Smith era cinco anos mais moço, mas ambos possuíam o nariz adunco, as espessas pálpebras, aquela covinha que mal dava para notar no queixo, o raio da loteria genética. Bastava apelar para ela quando, independentemente de alguma paixão pela monotonia, as origens se repetiam.

      Agora que estavam juntos, primeiro tiveram aquele olhar sobressaltado, seguido de um longo silêncio. Anthony tentou ignorar o assunto, mas por pura perversidade, ou perversão, William estava mais inclinado do que nunca a dizer:

      - Nós somos irmãos.

      - Hã? - diria o outro, detendo-se por um momento, como se quisesse indagar se eram autênticos irmãos de sangue. E então a boa educação prevaleceria e ele desprezaria o assunto, como se fosse algo sem interesse. Claro que só raramente isto acontecia. A maioria das pessoas no Projeto sabiam disto e como se poderia impedir que soubessem?! Mas evitavam a situação.

      Não que William fosse um mau sujeito. De jeito nenhum. Se ele não fosse irmão de Anthony, ou se fosse, mas parecessem suficientemente diferentes para serem capazes de mascarar o fato, eles teriam chegado à fama.

      Mas, do jeito que as coisas eram...

      O fato de, quando meninos, terem brincado juntos, e terem compartilhado os primeiros estágios de educação no mesmo local, através de alguma manobra bem sucedida da mãe, não tornava as coisas fáceis. Tendo dado à luz dois filhos do mesmo pai, e tendo, desta maneira, atingido seu limite (visto que não preenchera os rigorosos requisitos para um terceiro), ela concebeu a noção de ser capaz de visitar os dois numa única viagem. Era uma estranha mulher.

      O primeiro a deixar a instituição em que estava fora William, por ser o mais velho. Tinha se encaminhado para a ciência: engenharia genética. Anthony ouvira falar disto enquanto ainda estava na creche, através de uma carta de sua mãe. Já então era suficientemente crescido para se manifestar com firmeza junto à diretora, e aquelas cartas cessaram. Mas ele se lembrava da última, pela agoniada vergonha que lhe trouxera.

      Posteriormente, Anthony também se encaminhara para a ciência, mostrara talento para isto e fora instado a optar pela ciência. Lembrava-se de ter um verdadeiro e profético pavor, percebia-o agora, de encontrar seu irmão, e de que acabasse fazendo telemetria que bem se pode imaginar o quanto distava da engenharia genética... Ou assim pensaria alguém.

      Então, em meio ao cuidadoso desenvolvimento do Projeto Mercúrio, as circunstâncias como que aguardavam.

      Foi quando parecia que o Projeto estava num beco sem saída que a ocasião se manifestou, fora feita uma sugestão que salvara a situação, e ao mesmo tempo arrastara Anthony para dentro do dilema que seus pais lhe haviam preparado. E a melhor, a mais irônica parte de tudo, era que fora o próprio Anthony, muito inocentemente, quem fizera a sugestão.

      William Anti-Aut conhecia o Projeto Mercúrio, mas só na medida em que ouvira falar da muito prolongada Prova Estelar, que já estava em desenvolvimento bem antes de ele nascer e que continuaria em curso depois de ele morrer, e na medida em que sabia da colônia marciana e das continuadas tentativas para estabelecer colônias similares nos asteróides.

      Tais coisas estavam nas regiões mais afastadas de sua mente e não eram de real importância. Nenhum aspecto do esforço parcial jamais penetrara intimamente no centro de seus interesses, tanto quanto pudesse recordar, até o dia em que o jornal computadorizado incluiu fotografias de alguns dos homens empenhados no Projeto Mercúrio.

      Inicialmente, a atenção de William foi atraída pelo fato de um deles ter sido identificado como Anthony Smith. Lembrava-se do estranho nome que seu irmão tinha escolhido, e lembrava-se do Anthony. Seguramente não poderia haver dois Anthony Smith.

      Olhara então para a fotografia propriamente dita e não havia como se enganar quanto ao rosto. Num súbito gesto extravagante, olhara-se no espelho para tirar a dúvida. Não havia como enganar-se quanto ao rosto.

      Sentiu-se bem-humorado, mas, ao mesmo tempo, um pouco inquieto, eis que não deixava de reconhecer o embaraço em potencial. Irmãos consangüíneos, para usar a desagradável frase. Dava para fazer alguma coisa, porém? Como corrigir o fato de que nem o pai nem a mãe deles haviam previsto o ocorrido?...

      Sem atinar com a coisa, deve ter posto o jornal no bolso ao se aprontar para ir trabalhar, pois deu com ele na hora do almoço. Olhou fixamente para a foto: Anthony parecia vivido. Era uma reprodução muito boa, naqueles dias, os jornais eram de uma qualidade muitíssimo boa.

      Seu companheiro de almoço, Marco Fosse-lá-qual-fosse-o-nome-dele-aquela-semana, disse curiosamente: - Por que está olhando para isso, William?

      Sem hesitar, William passou-lhe o jornal, dizendo:

      - Este é meu irmão. - Era como se estivesse tocando numa urtiga.

      Marco examinou a foto, ficou carrancudo e disse:

      - Quem? O sujeito ao seu lado?

      - Não, o sujeito que é eu. Quer dizer, a pessoa parecida comigo. É meu irmão.

      Desta vez, a pausa foi mais longa. Marco devolveu o jornal e disse, com um tom de voz cuidadosamente homogêneo:

      - Irmão dos mesmos pais?

      - Sim.

      - Mesmo pai e mesma mãe?

      - Sim.

      - Ridículo!

      - Acho que sim - suspirou William. - Bem, de acordo com isto, ele está na telemetria, lá no Texas, e eu estou trabalhando em autismo aqui. Que diferença faz, então?

      William nem reteve o diálogo na cabeça e, mais tarde, no mesmo dia, desfez-se do jornal. Não queria que sua atual companheira de leito tomasse conhecimento da coisa. Ela tinha um irreverente senso de humor que William achava cada vez mais enfadonho. Ele até que se contentava por ela não estar com disposição de terem um filho, mesmo porque, de qualquer forma, ele já tivera um, ano atrás. Aquela moreninha linda, Laura ou Linda, para tanto havia colaborado.

      Passara-se algum tempo depois disto, um ano pelo menos, quando o assunto Randall veio à baila. Não tivesse William pensado mais em seu irmão e não pensara mesmo, antes disso, certamente que depois é que não teria tempo.

      Randall tinha dezesseis anos quando William pela primeira vez recebeu notícias dele. Vivera uma vida cada vez mais solitária e a creche de Kentucky em que ele estava sendo criado decidira cancelá-lo. Lógico que foi só uns oito ou dez dias antes do cancelamento que alguém teve a idéia de comunicar-se com o Instituto Nova-iorquino pela Ciência do Homem, conhecido comumente como Instituto Homológico.

      William recebeu o informe junto com vários outros e nada havia na descrição de Randall que atraísse particularmente sua atenção. E mais: era a ocasião de mais uma de suas tediosas viagens em transporte coletivo para as creches e havia uma possibilidade na Virgínia Ocidental. Lá se foi ele e ficou desapontado a ponto de jurar, pela qüinquagésima vez, que daí por diante faria aquelas visitas por imagem televisionada e agora, tendo se arrastado para cá, bem que poderia comparecer à creche de Kentucky antes de voltar para casa.

      Nada esperava.

      Mesmo assim, não fazia nem dez minutos que estava estudando o padrão genético de Randall e já estava se comunicando com o Instituto para um cálculo de computador. Sentou-se de novo, depois disso, e transpirou ligeiramente ao pensar que só um impulso de última hora o havia trazido e que, sem esse impulso, tranqüilamente Randall teria sido cancelado, dentro de uma semana ou menos. Os detalhes: sem dor, uma droga seria passada através da epiderme de Randall, penetrando em sua corrente sangüínea e ele mergulharia num pacífico sono que gradualmente se converteria em morte. O nome oficial da droga eTa uma palavra com vinte e três sílabas, mas William a denominava de “nirvanamina”, como todas as outras pessoas.

      William disse:

      - Qual é o nome todo dele, diretora?

      - Randall Nowan, estudante - respondeu ela. William explodiu: - Não pode ser!

      - Nowan - soletrou a diretora. - Ele o escolheu no ano passado.

      - E não significava nada, para a senhora? Nowan a gente pronuncia como “No one”, quer dizer, ninguém. Não lhe ocorreu informar a respeito da existência deste jovem no ano passado?

      Aturdida, a diretora começou:

      - Não me parecia...

      William impôs-lhe silêncio. Que adiantava? Como poderia ela saber? Nada havia no padrão genético que advertisse, mediante quaisquer dos critérios habituais dos livros  didáticos. Era uma sutil combinação que William e sua equipe tinham desenvolvido durante um período de vinte anos através de experimentos em crianças autístas, uma combinação que, na verdade, nunca haviam visto na vida.

      Tão perto do cancelamento!

      Marco, que era o cabeça-dura do grupo, lamentava que as creches estivessem muito ansiosas para abortarem antes do prazo e para cancelar depois do prazo. Ele sustentava que deveria ser permitido que os padrões genéticos se desenvolvessem com a finalidade para se ter, inicialmente, um panorama e que de forma alguma deveria ser feito um cancelamento sem se consultar um homologista.

      Tranqüilamente, William disse:

      - Não há homologistas suficientes.

      - Poderíamos pelo menos pôr no computador todos os padrões genéticos - disse Marco.

      - Para salvar o que pudermos, para nosso uso?

      - Para qualquer uso homológico, aqui ou alhures. Precisamos estudar os padrões genéticos em ação, se quisermos nos entender a nós mesmos adequadamente, e são os padrões anormais e monstruosos que mais informações nos dão. Nossos experimentos com autismo ensinaram-nos mais sobre a homologia do que a soma total de conhecimentos existentes no dia em que começamos.

      William, que ainda gostava da cadência da frase “a fisiologia genética do homem” mais do que “homologia”, sacudiu a cabeça.

      - É a mesma coisa, temos de agir com cuidado. Por mais úteis que proclamemos serem nossos experimentos, vivemos com uma escassa permissão social, relutantemente dada. Estamos jogando com vidas.

      - Vidas inúteis, próprias para serem canceladas.

      - Um cancelamento rápido e agradável é uma coisa. Nossos experimentos, geralmente planejados com vagar, e às vezes inevitavelmente desagradáveis, são outra coisa.

      - Às vezes nós os ajudamos.

      - E outras vezes não os ajudamos.

      Era um argumento inútil, na verdade, pois não havia como chegar a um acordo. O que importava, isto sim, é que havia muito poucas anormalidades disponíveis para os homologistas e não havia maneira de urgir a humanidade a encorajar uma produção maior. Uma dúzia de maneiras, incluindo esta, não seria suficiente para apagar o trauma da Catástrofe.

      O apaixonado impulso em direção da exploração espacial poderia ser percorrido às avessas (e alguns sociólogos o haviam percorrido) para se conhecer a fragilidade da meada da vida, no planeta, graças à Catástrofe.

      Bem, não importa...

      Nunca tinha havido algo como Randall Nowan. Não para William. A lenta evolução da característica autista daquele padrão genético totalmente raro significava que se conhecia mais a respeito de Randall do que sobre qualquer paciente semelhante antes dele. Chegaram mesmo a captar alguns últimos reflexos indistintos de sua maneira de pensar, no laboratório, antes de ele se encerrar completamente e, finalmente, encolher-se dentro da parede de sua pele, não preocupado, não atingível.

      Começaram então o lento processo mediante o qual Randall, sujeito em crescentes intervalos de tempo a estímulos artificiais, cedeu às últimas atividades de seu cérebro, nisto incluindo a parte chamada de normal e a que era como a dele mesmo.

      Tão abundantes eram os dados que estavam reunindo, que William começou a sentir que seu sonho de fazer o autismo reverter era mais do que um mero sonho. Sentiu uma cálida alegria por ter escolhido o nome de Anti-Aut.

      E foi quase no auge da euforia derivada do trabalho em Randall que ele recebeu o chamado de Dallas, que começou a pesada pressão agora, de todos os tempos, para abandonar seu trabalho e assumir um novo problema.

      Posteriormente, lançando um olhar retrospectivo, ele jamais poderia vir a compreender o que é que o levara a concordar em visitar Dallas. Naturalmente que, ao final, ele bem poderia ver quão bom isto tinha sido, mas o que é que o persuadira a proceder assim? Poderia ele, mesmo de início, ter tido uma pálida e incompleta noção daquilo em que a coisa desembocaria? Impossível, com toda a certeza.

      Seria a recordação, incompleta, do jornal, daquela fotografia de seu irmão? Impossível, com toda a certeza.

      Mas ele se deixou persuadir a fazer a visita, e foi somente quando a micropilha mudou o tom de seu zumbido e a unidade agrav assumiu o comando para a descida final que ele se lembrou daquela fotografia ou, pelo menos, foi que ela se deslocou para seu consciente, em sua memória.

      Anthony trabalhava em Dallas e, lembrava-se William agora, no Projeto Mercúrio. Era a isso que se referia o título do jornal. Ele engoliu em seco quando uma fraca vibração o fez aperceber-se de que a viagem terminara. Isto seria desagradável.

     

      Anthony estava aguardando na área da cobertura de recepção para saudar o perito recém-chegado. Não o saudava em seu próprio nome, por certo, pois fazia parte de uma considerável delegação, cujo tamanho já denotava, em si mesmo, o sombrio desespero ao qual tinha sido reduzida, e ele estava nos escalões inferiores. Que ele lá estivesse, de qualquer forma, se devia unicamente ao fato de ter ele sido quem fizera a sugestão original.

      Sentia uma leve mas contínua inquietação ao pensar que dele é que partira a sugestão. Ele próprio se pusera em evidência. Para tanto, fora firmemente apoiado, mas sempre tinha havido uma surda insistência quanto ao fato de que a sugestão fora dele, e se ela redundasse num fiasco, todos sairiam da linha de fogo deixando-o completamente exposto.

      Houve ocasiões, posteriormente, em que ele remoeu a possibilidade de que a vaga memória de um irmão homólogo lhe sugerira o pensamento. Podia ter sido assim, mas não foi. A sugestão era tão sensivelmente inevitável, na verdade, que seguramente ele teria o mesmo pensamento se seu irmão fosse algo tão inócuo como um escritor de histórias de fantasia ou como se simplesmente não tivesse nenhum irmão.

      O problema eram os planetas interiores...

      Lua e Marte estavam colonizados. Tinham sido atingidos os asteróides maiores e os satélites de Júpiter, e progrediam os planos para uma viagem tripulada até o maior satélite de Saturno, Titã, mediante uma acelerada rotação em torno de Júpiter. Mas, mesmo com planos em andamento no sentido de se enviarem homens numa viagem de sete anos de duração para fora do Sistema Solar, não havia ainda nenhuma possibilidade de viagens tripuladas aos planetas interiores, por receio do Sol.

      O próprio planeta Vênus era o menos atraente dos dois mundos dentro da órbita da Terra. Mercúrio, por outro lado...

      Anthony ainda não se integrara à equipe quando Dmitri Grandão (que na verdade era um bocado pequeno) fizera a palestra que comovera o suficiente o Congresso Mundial para conceder as verbas que tornaram possível o Projeto Mercúrio.

      Anthony ouvira as fitas com as gravações, e tinha ouvido a alocução de Dmitri. A tradição parecia indicar que ele falara de improviso, e talvez assim fosse, mas sua argumentação fora muito bem elaborada e era coerente, dentro das linhas seguidas até então pelo Projeto Mercúrio.

      E o ponto que mais fora ressaltado era que seria errado aguardar até que a tecnologia tivesse avançado ao ponto de uma expedição tripulada, em meio aos rigores da radiação solar, se tornar viável. Mercúrio era um ambiente muito peculiar, que muito poderia ensinar, e da superfície de Mercúrio poderiam ser feitas observações dignas de crédito, que de outra maneira não poderiam ser feitas.

      Desde que um substituto do homem, em outras palavras, um robô, pudesse ser colocado no planeta.

      Um robô com as características físicas necessárias poderia ser fabricado. Aterrissagens suaves eram a coisa mais fácil, mas, não obstante, uma vez pousado um robô noutro planeta, em seguida que é que se poderia esperar que ele fizesse?...

      Poderia fazer suas observações e guiar suas ações com base nessas observações, mas o Projeto queria que essas mesmas ações fossem intrincadas, sutis, pelo menos em tese, e não havia certeza alguma quanto a que observações o robô viria a fazer.

      Para haver uma preparação para todas as possibilidades críveis, e para permitir toda a complexidade desejada, o robô precisaria conter um computador (alguns, em Dallas, referiam-se a ele como “o cérebro”, mas Anthony desprezava aquele hábito verbal talvez porque, dizia ele depois com seus próprios botões, o cérebro era campo de seu irmão) suficientemente complexo e versátil para cair no mesmo asteróide com um cérebro de mamífero.

      Todavia, nada semelhante àquilo poderia ser fabricado e tornado suficientemente portátil para ser transportado até Mercúrio e lá desembarcado ou, se transportado e desembarcado, ser suficientemente móvel para ser útil ao tipo de robô que planejavam. Talvez um dia, os instrumentos com trilhas positrõnicas que os roboticistas estavam a planejar pudessem tornar tudo isto possível, mas esse “um dia” ainda não havia chegado.

      A alternativa era fazer com que o robô enviasse à Terra cada observação no momento em que ela fosse feita. E, então, um computador na Terra poderia dirigir cada uma de suas ações, com base em tais observações. Em outras palavras: o corpo do robô estaria lá, e seu cérebro aqui.

      Uma vez alcançada esta decisão, os técnicos-chave eram os telemetristas e foi então que Anthony se integrou ao Projeto. Tornou-se um dos que trabalhavam para criar métodos de recepção e retorno de impulsos através de distâncias que iam de 80 a 220 milhões de quilômetros, tudo isto na direção, e às vezes até além, de um disco solar que poderia interferir em tais impulsos da maneira a mais feroz.

      Ele assumiu com paixão sua tarefa (finalmente, pensou) com capacidade e sucesso. Ele, mais do que qualquer outra pessoa, fora quem planejara as três estações «transmissoras que tinham sido postas em órbita em torno de Mercúrio, os Orbitadores de Mercúrio. Cada uma delas era capaz de enviar e receber impulsos de Mercúrio para a Terra e da Terra para Mercúrio. Cada uma delas era capaz de resistir, mais ou menos permanentemente, à radiação solar e, mais do que isto, cada uma delas poderia filtrar a interferência solar.

      Três orbitadores equivalentes foram colocados à distância de quase dois milhões de quilômetros da Terra, ao norte e ao sul do plano da Eclíptica, de forma a poderem receber impulsos de Mercúrio e repassá-los à Terra ou vice-versa, mesmo quando Mercúrio estivesse atrás do Sol e inacessível à recepção direta de qualquer estação na superfície da Terra.

      Tudo isto fazia do robô propriamente dito um maravilhoso espécime da combinação da arte dos roboticistas e dos telemetristas.

      O mais complexo de dez sucessivos modelos era capaz, tendo um volume apenas pouco mais de duas vezes maior que o de um homem, e cinco vezes sua massa, de captar e fazer consideravelmente mais do que um homem, se pudesse ser dirigido.

      Entretanto, logo se tornou evidente que um computador capaz de guiar semelhante robô teria de ser suficientemente rápido para mudar os passos de orientação a cada instante, para permitir variações na possível percepção. E como passo de resposta, por si mesmo, reforçava a certeza de crescente complexidade de cada variação possível nas percepções, os passos iniciais tinham de ser reforçados e fortalecidos. Era como se o computador se construísse a si próprio, continuamente, como uma partida de xadrez. E os telemetristas começaram a usar o computador para programar o computador que planejara o programa para o computador que programara o computador que controlaria o robô.

      Nada havia a não ser confusão.

      O robô estava numa base, nos espaços desertos do Arizona e, por si só, estava funcionando bem. Contudo, o computador em Dallas não poderia dar muito bem conta dele nem mesmo nas condições terrestres, perfeitamente conhecidas. Como, então...

      Anthony lembrava-se do dia em que fizera a sugestão: 4-7-553. Pela simples razão de que o dia 4-7 havia sido um feriado importante na região de Dallas, no mundo dos pré-Cats, os de antes da Catástrofe, meio milênio antes, mais exatamente 553 anos antes.

      Tinha sido no jantar, um bom jantar, também. Tinha havido um cuidadoso ajustamento da ecologia da região e os integrantes da equipe do Projeto tinham tido prioridade total para obter suprimentos de mantimentos que haviam se tornado disponíveis, de forma que tinha havido um grau incomum de escolha do cardápio. E Anthony experimentara pato assado.

      Era um pato assado muito bom, bem maior do que de costume. Todos se sentiam à vontade para dizerem o que pensavam. E Ricardo disse:

      - Vamos admitir: nunca conseguiremos fazer isto. Nunca conseguiremos.

      Não era preciso dizer quantos assim haviam pensado, anteriormente, mas era regra que ninguém o dissesse abertamente. O pessimismo aberto poderia ser a pá de cal para que parassem as verbas (e já fazia cinco anos que elas vinham com crescente dificuldade, a cada ano que passava), e se houvesse uma chance, ela poderia se dissipar.

      Geralmente não dado a um otimismo incomum, Anthony, desta vez se deleitando com seu pato, disse: - Por que não podemos?

      Digam-me por que, e eu os refutarei.

      Era um desafio direto e os escuros olhos de Ricardo imediatamente se apertaram. - Quer que eu diga por quê?

      - Lógico que sim.

      Ricardo girou sua poltrona, de forma a dar de frente com Anthony.

      - Vamos lá, não há mistério. Em nenhum relatório Dmitrí Grandão diria as coisas tão abertamente, mas você sabe, e eu sei, que, para levar a efeito adequadamente o Projeto Mercúrio, necessitaremos de um computador tio complexo quanto um cérebro humano, seja na superfície de Mercúrio, seja aqui, e não dá para construirmos um. E aonde é que isto nos conduz? A umas brincadeiri-nhas com o Congresso Mundial, apenas, e a conseguir dinheiro para dar trabalho a desocupados?

      Um sorriso complacente assomou ao rosto de Anthony, que disse:

      - Isso é fácil de refutar. Você próprio nos deu a resposta. -(Estaria ele brincando? Seria o calorzinho gostoso do pato em seu estômago? A vontade de provocar Ricardo?... Ou teria ele sido tocado por algum pensamento não pressentido de seu irmão? Além do mais, não havia para ele como se exprimir.)

      - Que resposta? - ergueu-se Ricardo. Era bem alto e incomumente magro e sempre usava seu casaco branco aberto. Cruzou os braços e parecia estar fazendo todo o possível para se manter, de pé, diante de Anthony, sentado, numa postura rígida. - Que resposta?

      - Você diz que precisamos de um computador tão complexo quanto um cérebro humano. Muito bem: vamos então construí-lo!

      - O problema, seu idiota, é que não podemos...

      - Nós não podemos. Mas existem os outros.

      - Que outros?

      - Naturalmente, as pessoas que trabalham em cérebros. Somos apenas mecânicos do estado sólido. Não temos a menor idéia da maneira pela qual um cérebro humano é complexo, ou onde, ou até que ponto. Por que não entramos em contacto com um homologista e pedimos a ele que projete um computador? - Dito isto, Anthony ingeriu uma generosa porção de recheio e saboreou-a, complacentemente. Mesmo com todo o tempo transcorrido, ele ainda podia muito bem se lembrar do gosto do recheio, se bem que não pudesse se recordar detalhadamente do que ocorrera depois.

      Pareceu-lhe que ninguém o havia levado a sério. Houve risadas e uma sensação generalizada de que Anthony havia se saído muito bem com sua esperta argumentação, de forma que a vítima dos risos era Ricardo. (Lógico que, posteriormente, todos proclamariam que tinham levado a sugestão a sério.)

      Chamejando, Ricardo apontou o dedo para Anthony e disse:

      - Escreva isto. Desafio-o a pôr por escrito esta sugestão. - (Pelo menos, era assim que a memória de Anthony registrava o fato. Ricardo, desde aquela vez, dizia que seu comentário tinha sido um entusiástico: - Boa idéia! Por que não a formula por escrito, Anthony?)

      Fosse como fosse, Anthony escreveu.

      Dmitri Grandão assumira a idéia. Num colóquio particular, dera uns tapinhas amistosos nas costas de Anthony dizendo-lhe que também estivera especulando neste sentido, se bem que não se propusesse a assumir qualquer paternidade pela idéia. (Isto para o caso de redundar num fiasco, pensou Anthony.)

      Dmitri Grandão dirigiu a busca do homólogo adequado. Não ocorreu a Anthony que Dmitri deveria estar interessado. Não conhecia nem homologia nem homólogos, exceto, logicamente, seu irmão, em quem não pensara. Pelo menos, conscientemente não cogitara dele.

      De forma que aqui estava Anthony, na área de recepção, desempenhando um papel secundário, quando a porta da aeronave se abriu e vários homens saíram, vieram cumprimentá-lo. Enquanto o circuito dos apertos de mão era percorrido, Anthony se sentiu um tanto apalermado.

      Suas bochechas estavam ruborizadas e, com toda a sua força de vontade, gostaria de estar a milhares de quilômetros de distância.

     

      Mais do que nunca, William desejaria ter se lembrado mais cedo de seu irmão. Se tivesse... Bem que deveria...

      Mas tinha havido a lisonja da solicitação e a excitação começara a aumentar dentro dele em pouco tempo. Talvez ele tivesse evitado de se lembrar de propósito.

      Para começar, tinha havido a excitação que fora o fato de Dmitri Grandão ter vindo vê-lo por sua própria iniciativa. Viera de Dallas para Nova Iorque de avião e tinha sido muito cativante para com William, cujo vício secreto era ler novelas de mistério. Nestas histórias, homens e mulheres sempre viajavam disfarçados quando se desejava discrição. Afinal, apesar da viagem eletrônica ser de domínio público, pelo menos nos livros de mistério, quando qualquer feixe de radiação era emitido, ele era logo cancelado.

      William assim falara numa espécie de mórbida meia tentativa de ser engraçado, mas Dmitri não parecia prestar atenção. Olhava fixamente para o rosto de William e seus pensamentos pareciam estar noutro lugar. Por fim, falou:

      - Desculpe. Você me lembra alguém.

      (E, não obstante, ele não se confiara a William. Como era possível isto? Chegara William eventualmente a se interrogar.)

      Dmitri Grandão era um homenzinho rechonchudo, que parecia estar sempre piscando, mesmo quando se dizia preocupado ou aborrecido. Tinha um nariz redondo e bulboso, bochechas bem salientes e, por toda parte, delicadeza. Dava ênfase a seu apelido e dizia, com uma rapidez que levava William a crer que ele pronunciava estas palavras com freqüência:

      - Tamanho não é, de jeito nenhum, o que há de mais importante, amigo.

      Na conversa que se seguiu, William protestou muito. Nada sabia de computadores. Nada! Não tinha a mais pálida idéia de como é que funcionavam ou de como eram programados.

      - Não tem importância, não tem importância - dizia Dmitri, fazendo com a mão um gesto a dizer que isso era de somenos. - Nós conhecemos os computadores, nós podemos estabelecer programas. Diga-nos apenas como é que o computador precisa ser, de forma a trabalhar como um cérebro e não como um computador.

      - Não estou muito certo de como funciona um cérebro para poder lhe dizer isso, Dmitri - disse William.

      - Você é o mais reputado homólogo do mundo. Verifiquei cuidadosamente isto - afirmou Dmitri. E foi seu argumento final.

      William ouvia, cada vez mais sombrio. Era inevitável, supunha ele. Mergulhe-se uma pessoa numa especialidade suficientemente fundo e durante tempo suficiente, e automaticamente esta pessoa começará a admitir que os especialistas em todos os outros campos eram uns mágicos, julgando a profundidade de sua sabedoria pela largura de sua própria ignorância... E conforme o tempo passava, William aprendeu muito mais sobre o Projeto Mercúrio do que lhe parecia no tempo em que se preocupava com isso.

      Por fim, disse:

      - Por que usar então um computador? Por que não utilizar nossos próprios homens, ou turmas deles, para receberem o material do robô e lhe enviarem instruções?

      - Oh, oh, oh - gargalhou Dmitri, quase pulando em sua poltrona, tamanha a sua ansiedade. - Vê-se que você não está por dentro. Os homens são lentos demais para analisar rapidamente todo o material que o robô enviará: temperaturas, pressões gasosas, fluxos de raios cósmicos, intensidades de ventos solares, composições químicas e texturas de solos e, seguramente, umas três dúzias a mais de itens e, então, tentar decidir o passo seguinte. Um ser humano simplesmente guiaria o robô, e ineficientemente; um computador seria o robô.

      - E então, também - prosseguiu - os homens também são rápidos demais. Para qualquer tipo de radiação, de qualquer lugar, leva de dez a vinte e dois minutos para fazer o percurso inteiro de Mercúrio à Terra, na dependência também da órbita de cada um. Sobre isso, nada se pode fazer. Recebe-se uma informação, dá-se uma ordem, mas muito aconteceu durante o tempo que medeia entre fazer a observação e encaminhar uma resposta. Os homens não podem se adaptar à lentidão da velocidade da luz, mas um computador pode levar isso em conta... Venha nos auxiliar, William.

      Melancolicamente, William disse:

      - Sua consulta a mim é bem-vinda, pelo bem que isto lhe possa fazer. Minha faixa particular de TV está às suas ordens.

      - Mas não é consulta que eu quero fazer: você precisa vir comigo.

      - Disfarçado? - perguntou William, chocado.

      - Sim, por certo. Um projeto como este não pode ser levado a efeito sentando-se a gente nas extremidades opostas de um feixe de laser com um satélite de comunicações no meio. A longo prazo, é caro demais, inconveniente demais e, logicamente, destituído de toda privacidade...

      Era como uma novela de mistério. William se decidiu.

      - Venha até Dallas - disse Dmitri - e deixe-me mostrar-lhe o que temos lá. Deixe-me mostrar-lhe as instalações. Fale com alguns dos nossos que cuidam de computador. Dê-lhes o benefício de lhes transmitir a maneira que você tem de pensar.

      Era hora, pensou William, de tomar uma decisão. E disse:

      - Tenho meu próprio trabalho, aqui, Dmitri. Trabalho importante, que não quero deixar. Fazer o que você quer que eu faça me afastará por meses de meu laboratório.

      - Meses! - exclamou Dmitri, claramente abalado. - Meu bom William, isto poderá durar anos. Mas seguramente será o seu trabalho.

      - Não será, não. Sei qual é meu trabalho e dirigir um robô em Mercúrio não é meu trabalho.

      - Por que não? Se você trabalha direito, aprenderá mais sobre o cérebro, apenas pelo fato de tentar fazer um computador trabalhar como um cérebro, e finalmente você voltará para cá melhor equipado para fazer o que você agora considera como sendo seu trabalho. E enquanto estiver ausente, será que não haverá companheiros seus para prosseguir na tarefa? E não poderá você estar em contacto permanente com eles, por meio de laser ou de televisão? E de vez em quando não poderá visitar Nova Iorque? Nem que seja por pouco tempo?

      William estava comovido. O pensamento de trabalhar no cérebro de outro ponto de vista atingira o alvo. Daquele ponto em diante, ele se achou à procura de desculpas para ir, pelo menos para visitar, pelo menos para ver como era a coisa... Sempre poderia retornar...

      Seguiu-se então a visita de Dmitri às ruínas da Velha Nova Iorque, que ele apreciou com uma excitação destituída de arte (se bem que, àquela época, não houvesse nenhum espetáculo mais magnificente do inútil gigantismo dos Pré-Cats do que a Velha Nova Iorque). William começou a pensar se a visita não estava começando a mostrar aspectos desconhecidos até então, mesmo para ele.

      Começou mesmo a pensar que, durante certo tempo, estivera considerando a possibilidade de achar nova companheira de leito, e seria mais conveniente achar uma noutra área geográfica, onde não poderia permanecer permanentemente.

      ... Ou não seria que, mesmo então, quando ele não sabia de nada, a não ser do estritamente necessário para começar, que também lhe tinha chegado, como o piscar de uma distante lâmpada de iluminação, aquilo que poderia ser...

      De forma que ele acabou indo para Dallas e desceu para a cobertura. E lá estava de novo Dmitri, radiante. Então, com os olhos se comprimindo, o homenzinho se voltou e disse:

      - Eu sabia... Que semelhança notável!

      Os olhos de William se abriram mais e ali, visivelmente se encolhendo para trás, havia o bastante de seu próprio rosto para lhe dar imediata certeza de que Anthony estava de pé, diante dele.

      Com muita franqueza, percebeu na fisionomia de Anthony um desejo de sepultar o relacionamento. Tudo que William precisava era dizer:

      - Notável! E deixar as coisas correrem. Os padrões genéticos da humanidade eram suficientemente complexos, afinal de contas, para permitir semelhanças num razoável grau mesmo não havendo parentesco.

      Mas, logicamente, William era um homólogo, e ninguém pode trabalhar com as complexidades do cérebro humano sem ficar insensível a seus detalhes. De forma que ele disse:

      - Estou certo de que este é meu irmão, Anthony.

      - Seu irmão? - perguntou Dmitri.

      - Meu pai — falou William - teve dois meninos com a mesma mulher... minha mãe. Eram pessoas excêntricas.

      Adiantou-se, então, mão estendida, e Anthony não teve outra alternativa senão aceitá-la... O incidente foi o assunto da conversa, o único assunto, durante os dias seguintes.

     

      Para Anthony, serviu de pequeno consolo o fato de William estar suficientemente contrito, ao se dar conta do que fizera.

      Sentaram-se juntos, após o jantar, naquela noite. William disse:

      - Minhas desculpas. Pensei que se fizéssemos tudo imediatamente seria pôr um fim a tudo. Não parece que foi o que fiz. Não assinei papéis, não fiz um acordo formal. Vou embora.

      - Que bem isso lhe traria? - disse Anthony indelicadamente. - Agora todo mundo sabe. Dois corpos e um rosto. Já dá para alguém vomitar.

      - Se eu for embora...

      - Não pode ir. Tudo isto é idéia minha.

      - Fazer eu vir para cá? - As pesadas pálpebras de William se ergueram o mais que podiam e suas sobrancelhas se ergueram.

      - Não, claro que não. Fazer um homólogo vir aqui. Como é que eu poderia imaginar que mandariam você?

      - Se eu for embora, porém...

      - Não. A única coisa que podemos fazer agora é conviver com o problema, se se pode fazer isto. Então... não terá importância. (Quando uma pessoa tem sucesso, tudo se esquece, pensou ele).

      - Não sei se eu posso...

      - Teremos de tentar. Dmitri nos auxiliará: é uma oportunidade muito boa. Vocês são irmãos - disse Anthony, imitando a voz de Dmitri - e se entendem. Por que não trabalharem juntos? - Então, voltando à sua voz, concluiu, irado: - De forma que precisamos. Para começar: que significa isto para você, William? Para ser mais preciso: que significa a palavra “homologia” para você?

      William suspirou.

      - Queira aceitar minhas desculpas... Trabalho com crianças autísticas.

      - Acho que não sei o que isso significa.

      - Para não contar um romance, digamos que cuido de crianças que não se “lançam” para o mundo, que não se comunicam com os outros, que mergulham dentro de si mesmas e que existem atrás de uma muralha de pele, num certo sentido inatingíveis. Espero ser capaz, um dia, de curá-las.

      - É por isso que você se intitula Anti-Aut?

      - Sim, para ser franco.

      Anthony deu uma risadinha, mas o fato é que não se sentia à vontade.

      Um estremecimento percorreu William:

      - É um nome adequado.

      - Não tenho dúvida - apressou-se Anthony em murmurar, e ficou por aí mesmo, incapaz de fazer algum outro elogio ou consideração. Com um esforço, voltou ao assunto: - E você está progredindo?

      - Você diz na direção da cura? Não, por enquanto não. Na direção da compreensão, sim. E quanto mais entendo... - A voz de William tornóu-se mais cálida enquanto falava, e mais distantes seus olhos. Anthony entendeu que isto se devia ao próprio assunto de que o irmão falava, o prazer de falar de algo que lhe enchia o coração e a mente a ponto de excluir qualquer outra coisa. Com ele também acontecia isto, freqüentemente.

      Prestou atenção o mais que pôde a algo que, verdadeiramente, não compreendia, eis que assim era necessário proceder. Esperava que William lhe prestasse atenção, também.

      Quão claramente ele se lembrava disto! Pensara então que não se lembraria tão bem, naturalmente, mas não estava cônscio do que estava acontecendo. Rememorando, à luz dos fatos passados, ele se achou a recordar frases inteiras, quase que palavra por palavra.

      William falava:

      - Pareceu-nos, pois, que a criança autista não falhava no receber as impressões, nem mesmo falhava no interpretá-las de uma maneira um tanto sofisticada. Antes, estava desaprovando e rejeitando tais impressões, sem qualquer perda da potencialidade da plena comunicação se se achasse alguma impressão que ela aprovasse.

      - Ah - disse Anthony, tornando o som apenas audível para indicar que estava ouvindo.

      - Nem pode a gente persuadir a criança a sair de seu autismo pelas maneiras comuns, pois a criança desaprova você assim como desaprova o resto do mundo. Mas se você a puser em condições de uma interrupção consciente...

      - Interrupção do quê?

      - É uma técnica mediante a qual, na realidade, o cérebro como que se divorcia do corpo e pode desempenhar suas funções sem se referir ao corpo. É uma técnica um tanto sofisticada, criada em nosso laboratório; na verdade... - Fez uma pausa.

      Gentilmente, Anthony perguntou:

      - Foi você quem criou a técnica?

      - Na verdade, sim - respondeu William, corando um pouco, mas visivelmente satisfeito. - Numa interrupção consciente, podemos suprir o corpo com determinadas fantasias e observar o cérebro por meio do eletroencefalografia. Podemos de imediato aprender mais a respeito do indivíduo autista, que tipo de impressão sensorial ele mais quer, e, de um modo geral, aprendemos mais a respeito do cérebro.

      - Ah - disse Anthony, e desta feita foi um ah de verdade. - E tudo isto que vocês aprenderam a respeito de cérebros vocês não podem adaptar ao trabalho de um computador?

      - Não - disse William. - De forma alguma. Já disse isso a Dmitri. Nada sei sobre computadores e ainda não sei o bastante a respeito do cérebro.

      - Se eu lhe ensinar a respeito dos computadores e lhe disser detalhadamente do que é que eles necessitam, não daria?

      - Acho que não. Seria...

      - Irmão - disse Anthony, tentando dar uma entonação que impressionasse à palavra. - Você me deve alguma coisa. Faça, por favor, um esforço sincero para dar alguma atenção a nosso problema. Seja lá o que sabe sobre o cérebro, por favor, adapte isso aos nossos computadores.

      William se mexeu, pouco à vontade, dizendo:

      - Entendo seu ponto de vista. Tentarei. Com toda a sinceridade, tentarei.

     

      William tinha tentado e, como Anthony predissera, os dois tinham sido deixados a trabalhar juntos. De início encontravam-se com outras pessoas, e William tentara usar o efeito de choque do aviso de que eram irmãos, visto que não adiantava querer negar. A certa altura, todavia, pararam, e sobreveio uma útil não-interferência. Quando William se aproximava de Anthony, ou quando Anthony se aproximava de William, quem mais estivesse presente silenciosamente batia em retirada.

      Acabaram se acostumando um ao outro num certo sentido e às vezes se falavam como se não houvesse semelhança alguma entre eles, e nenhuma memória comum da infância.

      Anthony explicou os requisitos do computador em linguagem simples, razoavelmente não técnica, e William, depois de muito matutar, explicou como é que, a seu ver, deveria um computador funcionar, mais ou menos, à guisa de um cérebro.

      Anthony disse:

      - Será possível?

      - Não sei. Não estou ansioso por tentar. Poderá não funcionar, assim como poderá.

      - Teríamos de falar com Dmitri Grandão.

      - Primeiro conversaremos nós dois mesmos e decidiremos o que fazer. Iremos a ele com uma proposição oriunda de nós dois, e a mais razoável possível. Ou, até, poderemos não ir a ele.

      Anthony hesitou:

      - Nós dois falarmos com ele?

      Delicadamente, William se expressou:

      - Você é meu porta-voz. Não há razão para irmos juntos.

      - Obrigado, William. Se isto der em alguma coisa, dividirei os louros com você.

      - Quanto a isso, não me preocupo. Se isto der em alguma coisa, creio que eu seria o único a poder fazer o trabalho - falou William.

      Debateram a questão durante quatro ou cinco encontros e, não fosse Anthony seu parente, não houvesse entre eles aquela situação emocional desagradável, indubitavelmente William se orgulharia do seu jovem irmão, por sua rápida compreensão de um campo que lhe era estranho.

      Houve então demoradas reuniões com Dmitri Grandão. Na verdade, havia reuniões com todo mundo. Durante intermináveis dias, Anthony via aquela gente toda, e depois se reunia com William, em separado. E, um belo dia, após uma demorada “gravidez”, veio a autorização para o que foi denominado de Computador Mercúrio.

      William voltou então a Nova Iorque com algum alívio. Não planejava ficar em Nova Iorque (dois meses antes, será que ele pensaria que isto seria possível?...) mas havia muito que fazer no Instituto Homológico.

      Logicamente, mais conferências se fizeram necessárias para ele explicar a seu próprio grupo de laboratório que é que estava se passando e por que ele tinha de se retirar e como deveriam prosseguir com seus próprios projetos sem ele. Seguiu-se uma chegada a Dallas, desta vez bem mais complicada, com o essencial do equipamento e com dois jovens auxiliares para aquilo que era para ter sido uma chegada e retorno.

      No sentido figurativo, nem mesmo William olhara para trás. Seu próprio laboratório e suas necessidades saíram de sua cabeça. Estava agora inteiramente comprometido com sua nova tarefa.

     

      Foi o pior período, para Anthony. O alívio durante a ausência de William não penetrara profundamente e começou a nervosa agonia de se perguntar se, talvez, esperança contra esperança, ele poderia não retornar. Quem sabe ele escolhesse enviar um representante, alguma outra pessoa? Alguma outra pessoa, com rosto diferente, de forma que Anthony não precisasse se sentir como a metade de um monstro com duas costas e quatro pernas?...

      Mas, era William. Anthony observara o avião de carga vir silenciosamente pelo ar, observara-o a descarregar o que transportara, à distância. Mas, mesmo à distância, acabou vendo William.

      Era ele, não havia dúvida. E Anthony se retirou.

      Depois do almoço, foi falar com Dmitri.

      - Garanto-lhe que não é preciso que eu fique, Dmitri. Estudamos os detalhes e uma outra pessoa poderia assumir a tarefa.

      - Não, não - disse Dmitri. - Em primeiro lugar, a idéia foi sua. Deve ir até o fim. Não há razão para dividir as honras desnecessariamente.

      Anthony pensou: ninguém mais quererá assumir o risco. E há ainda a possibilidade de um fracasso. Bem que eu deveria ter pensado nisto. No fundo ele tinha pensado, mas disse, impassível:

      - Você compreende que não posso trabalhar com William.

      - Mas, por que não? - Dmitri fingiu surpresa. - Vocês dois até aqui trabalharam tão bem, juntos!

      - Estive me forçando a isto, Dmitri, e não agüentarei mais. Ou será que você não percebe como a coisa parece?

      - Meu bom amigo! Você está exagerando. Lógico que as pessoas ficam espantadas, ao verem vocês dois juntos. Afinal de contas, são seres humanos. Mas acabarão se acostumando. Eu também me acostumei!

      Seu gordo mentiroso, acostumou-se coisíssima nenhuma, pensou Anthony. E disse:

      - Mas eu não me acostumei.

      - Você não está encarando a coisa de maneira correta. Os pais de vocês eram... diferentes... mas, afinal de contas, o que eles fizeram não foi ilegal. Foi só esquisito, somente isso. Não é culpa sua nem de William. Nenhum dos dois pode ser censurado por causa disto.

      - Mas estamos marcados - falou Anthony, fazendo um rápido gesto apontando para seu próprio rosto.

      - Não estão marcados como você supõe. Vejo diferenças. Você tem aparência nitidamente mais jovem. Seu cabelo é mais ondulado. É só à primeira vista que parece haver grande semelhança. Veja, Anthony, vocês dispõem de todo o tempo de que necessitam, de toda a ajuda de que precisam, de todo o equipamento que quiserem usar. Tenho certeza de que tudo dará maravilhosamente certo. Pense na satisfação...

      Anthony se deixou convencer, logicamente, e concordou em, pelo menos, ajudar William a instalar o equipamento. William, também, parecia estar certo de que tudo funcionaria maravilhosamente. Não tão freneticamente como Dmitri quereria, mas com uma certa calma.

      - É apenas uma questão de conexões adequadas - disse - se bem que eu deva admitir que esse “apenas” é um bocado suculento. O final de tudo isto será conseguir impressões sensoriais num vídeo independente de forma que possamos exercer... bem, não posso usar a expressão controles manuais, não é mesmo? de forma que possamos exercer controle intelectual e termos pleno domínio da situação, se necessário.

      - Dá para fazer isto - disse Anthony.

      - Então, vamos em frente... Veja, precisarei pelo menos de uma semana para fazer as conexões e para ter certeza de que as instruções...

      - A programação - corrigiu Anthony.

      - Bem, isto cabe a você, de forma que usarei sua terminologia. Eu e meus assistentes programaremos o Computador Mercúrio, mas não à maneira de vocês.

      - Espero que não. Quisemos um homólogo justamente porque queríamos estabelecer um programa muito mais sutil do que qualquer coisa que um simples telemetrista poderia fazer. - Não tentou ocultar a ironia contra si mesmo que havia em suas próprias palavras.

      William não reagiu; aceitou as palavras. E disse:

      - Vamos então começar. Façamos o robô caminhar.

     

      Uma semana depois, o robô caminhava no Arizona, a quase dois mil quilômetros de distância. Caminhava rigidamente, às vezes caía, às vezes batia estrondosamente seu tornozelo contra uma obstrução, às vezes mexia só um dos pés e acabava tomando uma surpreendente nova direção.

      - É um bebê aprendendo a andar - comentou William.

      De vez em quando Dmitri vinha, para saber dos progressos, dizendo:

      - Ê notável!

      Anthony não pensava assim. Passaram-se semanas, depois meses. Progressivamente, o robô fazia cada vez mais, à medida que o Computador Mercúrio recebia, progressivamente, uma programação mais complexa. (William tinha a tendência de se referir ao Computador Mercúrio como a um cérebro, mas Anthony não o permitiria.) E tudo que havia acontecido não era ainda suficientemente bom.

      - Não é suficientemente bom, William - disse ele, por fim. Desde a noite anterior estava sem dormir.

      Friamente William se manifestou:

      - Isto não é estranho? Eu estava para dizer que pensei que estávamos derrotados.

      Com dificuldades, Anthony se conteve. O esforço de trabalhar com William e de observar a trapalhada com o robô era mais do que podia suportar.

      - Vou me demitir, William. Vou deixar o empreendimento todo. Lamento... Não é por sua causa.

      - Mas é por mim, sim, Anthony.

      - Não é por sua causa só, William. É uma falha: não chegaremos aonde queríamos. Você vê como o robô é desajeitado, mesmo ainda na Terra, só uns dois mil quilômetros daqui, com o sinal para se mexer vindo apenas numa minúscula fração de segundo por vez. Em Mercúrio, haverá minutos de demora, minutos que o Computador Mercúrio terá de permitir. É loucura pensar que isto funcionará.

      William disse:

      - Não se demita, Anthony. Agora você não pode se demitir. Sugiro que deixemos o robô ser enviado a Mercúrio. Estou convicto de que ele está pronto.

      Anthony riu estrepitosamente, insultantemente.

      - Você está maluco, William.

      - Não estou. Parece que você pensa que em Mercúrio será mais difícil, mas não será. É na Terra que é mais difícil. Este robô está planejado para um terço da gravidade normal da Terra e está trabalhando em gravidade total, no Arizona. Está planejado para 400°C e está só nos 30°C. Foi planejado para o vácuo e está trabalhando numa força atmosférica.

      - Aquele robô pode compensar a diferença.

      - Suponho que a estrutura de metal possa, mas... e o Computador, aqui debaixo de nossos narizes? Não trabalha bem com um robô que esteja num ambiente que não aquele para o qual foi concebido... Veja, Anthony, se você quiser um computador que seja tão complexo quanto um cérebro, você tem de admitir idiossincrasias... Olhe, vamos fazer um acordo. Vai levar ainda uns seis meses para enviarmos o robô a Mercúrio. Você leva o projeto avante enquanto eu tiro umas férias de uns seis meses durante este período. Você ficará livre de mim.

      - Quem cuidará do Computador Mercúrio?

      - Agora você já entende como ele funciona, e haverá aqui dois de minha equipe para ajudar você.

      Desafiante, Anthony sacudiu a cabeça.

      - Não posso me responsabilizar pelo Computador e não assumirei a responsabilidade de sugerir o envio do robô a Mercúrio. Não vai dar certo.

      - Estou convencido de que sim.

      - Você não pode estar convencido. E a responsabilidade é minha. Eu é que receberei as críticas. Contra você não haverá nada.

      Posteriormente, Anthony evocaria este momento crucial. William poderia deixá-lo ir embora. Anthony teria pedido demissão. Tudo estaria perdido.

      Mas William disse:

      - Não haverá nada contra mim? Veja, papai teve aquele sentimento, fez aquilo com mamãe. Tudo bem. Também lamento. Lamento tanto quanto qualquer outra pessoa, mas o que está feito, está feito, e disto resultou uma coisa curiosa. Quando falo de papai, ou seja, quando falo de seu pai, também, há um monte de casais que podem então dizer isto: dois irmãos, duas irmãs, um irmão e uma irmã. E, depois, quando falo mamãe, quero me referir à sua mãe, e há muitos casais que também podem falar assim. Mas não conheço nenhum outro par, nem ouvi falar de outro, que possa partilhar o mesmo pai e mãe.”

      - Sei disso - aquiesceu Anthony, sombrio.

      - Sim, mas encare a coisa de meu ponto de vista - apressou-se William a acrescentar. - Sou homólogo. Trabalho com padrões genéticos. Já pensou alguma vez em nossos padrões genéticos? Partilhamos os mesmos pais, o que quer dizer que nossos padrões genéticos se aproximam bastante, mais do que qualquer outro par em nosso planeta. Nossos rostos mostram isso.

      - Também sei disso.

      - De forma que, se este projeto der certo, e você for glorificado por causa dele, será nosso padrão genético que terá provado ser altamente útil para a humanidade, o que quer dizer também meu padrão genético... Não está vendo, Anthony? Partilho seus pais, seu rosto, seu padrão genético, e, por conseguinte, quer a sua desgraça. Ela é minha quase tanto quanto sua, e se qualquer crédito ou censura sobrevier para mim, será quase tanto seu quanto meu. Tenho de estar interessado em seu sucesso. Tenho para isto um motivo que ninguém mais na Terra tem, puramente egoísta, tão egoísta quanto pode ser o seu para comigo. Estou de seu lado, Anthony, porque você está muito perto de mim!

      Durante um longo tempo eles se encararam e, pela primeira vez, Anthony o fez sem reparar no rosto de que ele partilhava.

      William rompeu o silêncio:

      - Vamos, então, pedir que enviem o robô a Mercúrio.

      Anthony concordou. E depois que Dmitri aprovou o pedido, porque afinal de contas ele estava esperando por isso, Anthony passou a maior parte do dia imerso em profundos pensamentos.

      Procurou então William e disse:

      - Ouça! -  Houve uma longa pausa, que William não rompeu. Novamente Anthony disse: - Ouça!

      Pacientemente, William esperava. Anthony disse:

      - Na verdade, não há necessidade de que você se vá. Tenho certeza de que você não gostaria que ninguém mais, exceto você, dirigisse o Computador Mercúrio.

      - Quer dizer que você pretende ir embora?

      - Não, eu vou ficar, também - falou Anthony. William disse: - Não precisamos muito ver um ao outro. - Tudo isto tinha sido, para Anthony, como falar com um par de mãos cerradas em torno de sua traquéia. Parecia agora que a pressão aumentava, mas a mais dura das afirmações estava ainda por vir.

      - Não temos de nos evitar um ao outro. Não temos mesmo.

      William sorriu, de maneira insegura. Quanto a Anthony, não sorriu de jeito nenhum, rapidamente, retirou-se.

     

      William ergueu os olhos do livro que estava lendo. Fazia pelo menos um mês que ele deixara de se surpreender, ainda que vagamente, quando Anthony entrava.

      - Alguma coisa errada? - perguntou.

      - Quem sabe lá? Estão se preparando para o pouso suave. O Computador Mercúrio está funcionando?

      William sabia que Anthony conhecia perfeitamente a condição do Computador. Mesmo assim, disse:

      - Amanhã de manhã, Anthony.

      - E não há problemas?

      - Nenhum.

      - Então teremos de aguardar o pouso suave.

      - Sim.

      Anthony disse:

      - Alguma coisa falhará.

      - A ciência dos foguetes é um velho parceiro: nada sairá errado.

      - Tanto trabalho desperdiçado.

      - Ainda não foi desperdiçado. Nem será.

      - Pode ser que você esteja certo - disse Anthony. Com as mãos bem enterradas em seus bolsos, afastou-se, detendo-se na porta, antes de abri-la. - Obrigado!

      - Obrigado por quê, Anthony?

      - Por me... confortar.

      Anthony sorriu meio de esguelha, aliviado de uma maneira que suas emoções não demonstravam.

     

      Praticamente todo o pessoal do Projeto Mercúrio estava reunido, no momento crucial. Anthony, que não tinha tarefas a desempenhar, ficou bem ao fundo, com os olhos nos monitores. O robô tinha sido ativado e havia mensagens visuais sendo reenviadas.

      Por fim elas apareceram como o equivalente visual da superfície de Mercúrio. E mostravam aquilo que presumivelmente era essa superfície: uma embaçada incandescência.

      Sombras adejavam rapidamente pelo vídeo, provavelmente irregularidades na superfície. Só pelo que seus olhos viam, Anthony não era capaz de interpretar o que via, mas os técnicos junto aos controles, que estavam analisando os dados por métodos mais sutis do que os que dispunham a olho nu, pareciam calmos. Nenhuma das lampadazinhas vermelhas que denunciavam emergência estava acesa. Na verdade, Anthony prestava mais atenção aos principais observadores do que ao vídeo.

      Ele deveria estar lá, junto ao Computador, com William e os outros. Só se uniria a eles quando o pouso suave estivesse feito. Ele estaria lá. Ele não poderia estar.

      Mais rapidamente as sombras adejavam pelo vídeo. O robô estava descendo - rapidamente demais? Sim, sem dúvida, rápido demais!

      Houve um último borrão e uma fixidez, um deslocamento de foco no qual o borrão ficou primeiro mais escuro; depois, mais esmaecido. Ouviu-se um som e deu para perceber alguns segundos antes de Anthony compreender o que significava aquele som:

      - Conseguimos o pouso suave! Conseguimos o pouso suave!

      Então, houve um murmúrio crescente e um sussurro de congratulações, até que nova mudança ocorreu no vídeo e o som de palavras e risos se deteve, como se tivesse colidido contra uma parede de silêncio.

      Porque o vídeo mudara, mudara e ficara nítido. À brilhante, brilhante luz solar, chamejando em meio ao vídeo cuidadosamente seletivo em suas imagens, agora eles podiam ver um pedregulho claro, com brilho esbranquiçado de um lado, retinto, de outro. Moveu-se para a direita, depois voltou-se para a esquerda, como se um par de olhos olhasse para a esquerda, depois para a direita. No vídeo apareceu uma mão metálica, como se olhos estivessem olhando por meio delas.

      Foi a voz de Anthony que gritou, finalmente:

      - O Computador entrou em ação!

      Ouviu suas próprias palavras como se tivessem sido gritadas por outrem e correu escadas abaixo e por um corredor, deixando o balbucio crescente de vozes atrás dele.

      - William - gritou, irrompendo na sala do computador - está perfeito, está...

      Mas a mão de William se soergueu.

      - Psiu. Por favor. Não quero que nesta sala penetrem quaisquer sensações violentas, exceto as do computador.

      - Quer dizer que podemos ser ouvidos? - cochichou Anthony.

      - Pode ser que não, mas não sei. - Havia ali outro vídeo, menor. A cena que ele mostrava era diferente e cambiante; o robô se movia.

      William disse:

      - O robô está começando a perceber as coisas. Os primeiros passos têm de ser desgraciosos mesmo. Há um intervalo de sete minutos entre o estímulo e a resposta e é preciso levar isto em conta.

      - Mas a verdade é que ele já está andando mais firme do que no Arizona. Não acha, William? Não acha? - Anthony apertava com a mão o ombro de William, sacudindo-o, sem seus olhos deixarem um minuto o vídeo.

      William disse:

      - Estou convencido disto, Anthony.

      O Sol estava incandescente, num cálido contraste entre branco e preto: Sol branco contra um céu negro, solo movente pintalgado de branco com sombras negras. O brilhante gosto doce do Sol, exposto em cada centímetro quadrado de metal, contrastava com o aroma insinuante de morte, do outro lado.

      Ergueu a mão e ficou a olhá-la, contando os dedos. Quente-quente-quente, virou-os, colocando cada dedo, um por um, à sombra dos outros, e o calor lentamente a se atenuar numa mudança tátil que o fazia sentir o limpo e confortável vácuo.

      Se bem que não fosse um vácuo absoluto. Enrijeceu e ergueu ambos os braços sobre a cabeça, esticando-os, e os sensores em cada pulso sentiram os vapores, o fino e leve toque de estanho e chumbo se deslocando em meio ao enjôo que era Mercúrio.

      O espesso sabor subiu de seus pés, os silicatos de cada variedade, marcados claramente pelo separar e juntar dos íons metálicos. Lentamente, ele moveu um pé em meio à poeira tostada, esmagada, e sentiu as diferenças como uma sinfonia delicada, não propriamente sem cadência.

      E, sobretudo, o Sol. Olhou para ele, grande, gordo, brilhante e quente, e ouviu sua alegria. Observou a lenta ascensão das proeminências em torno do Sol e prestou atenção ao som de estalidos de cada uma, prestava atenção, outrossim, aos outros ruídos felizes em torno de seu amplo rosto. Quando ele obscureceu a luz difusa, o vermelho dos punhados de hidrogênio que se erguiam se mostrava em rajadas de maduro contrario, e o profundo contrabaixo das manchas em meio ao emudecido silvar das féculas fragmentadas, a se moverem, e o ocasional silvo de uma labareda e, o crepitar dos raios gama e das partículas cósmicas, e acima de tudo, em todas as direções, o suspiro da substância solar, sempre renovada, erguendo-se e contraindo-se para todo o sempre, num vento cósmico que o alcançava e o banhava gloriosamente.

      Deu um pulo e ergueu-se lentamente no ar com uma liberdade que nunca sentira, e novamente deu um pulo, ao pousar, e correu, e saltou, e de novo correu, com um corpo que respondia perfeitamente a este mundo glorioso, a este paraíso em que finalmente se achava.

      Um estranho, tão longe e tão perdido, finalmente no paraíso.

     

      - Tudo em ordem - disse William.

      - Mas que é que ele está fazendo? - gritou Anthony.

      - Tudo em ordem. A programação está funcionando. Ele testou seus sentidos. Está fazendo várias observações visuais. Obscureceu o Sol e o estudou. Testou a atmosfera e a natureza química do solo. Tudo funciona.

      - Mas por que está correndo?

      - Acho que é idéia dele mesmo, Anthony. Se quiser programar um computador de maneira tão complicada como um cérebro o é, você tem de esperar que ele tenha idéias próprias.

      - Correr? Pular? - Anthony voltou seu rosto, ansioso, para William. - Acabará se machucando. Assuma o controle do Computador, passe por cima dele. Faça-o parar.

      Asperamente, William disse:

      - Não, não farei isto. Vou me aproveitar do fato de ele poder se machucar. Não está percebendo? Ele está feliz. Estava na Terra, um mundo ao qual ele nunca se adaptaria. Agora, está em Mercúrio, com um corpo perfeitamente adaptado à sua ambiência, tão perfeitamente adaptado quanto cem cientistas o poderiam ter feito. Para ele, é o paraíso, deixe-o aproveitá-lo.

      - Aproveitá-lo? Mas ele é um robô!

      - Não estou falando do robô. Estou falando do cérebro, o cérebro que está vivo, aqui.

      O Computador Mercúrio, encerrado em vidro, cuidadosa e delicadamente protegido, sua integridade preservada de maneira mais sutil, respirava e vivia.

      - É Randall que está no paraíso - afirmou William. - Achou o mundo por amor do qual autisticamente fugiu deste nosso. Tem um mundo para o qual seu novo corpo está perfeitamente adequado em troca deste mundo ao qual seu velho corpo absolutamente não se ajustava.

      Maravilhado, Anthony observava o vídeo.

      - Parece estar se acalmando.

      - Lógico - disse William - e desempenhará sua missão da melhor maneira possível, para sua alegria.

      Anthony sorriu e disse:

      - Quer dizer então que você e eu fizemos o que queríamos? Vamos até onde estão os demais e vamos deixá-los nos festejar, William?

      - Juntos? - perguntou William.

      - Juntos, irmão! - exclamou Anthony, saindo com ele, ombro a ombro.

     

      Não negarei que passou por minha cabeça um pensamento indigno: Jim era moço ainda, e ele poderia muito bem ter pegado “Estranho no Paraíso” impressionado, talvez, inconscientemente, mais por minha fama do que pelo valor da estória, propriamente dito. Este pensamento, que, ainda que fugitivo, passara por minha cabeça, se desvaneceu completamente quando Donald Wollheim, da DAW Books, a escolheu para uma de suas antologias. Ultrapassa os limites da verossimilhança que Don, sujeito cínico, veterano traquejado, pudesse talvez se deixar impressionar por meu nome fosse lá em que circunstâncias fosse, ou, na verdade, por qualquer coisa a meu respeito. (Não é mesmo, Don?) De forma que, se queria a estória, era por amor a ela mesma.

      Escrevi, ocasionalmente, artigos para o The New York Times Magazine, mas minha média de acertos com eles é inferior a 0,5.

      Comumente, este tipo de acontecimento seria desanimador, e eu poderia me deixar dominar pela sensação de que não me adapto a este tipo peculiar de mercado e que tenho de concentrar meus esforços alhures. Entretanto, o Times é um caso especial, e continuo tentando.

      Contudo, no outono de 1974, de um só golpe recebi três recusas, de forma que decidi rejeitar a próxima solicitação de um artigo que deles recebesse. Isto não é tão fácil quanto parece, porque geralmente a solicitação provém de Gerald Walker, um bom amigo, como nunca inventaram outro.

      Quando ele telefonou, tentei desesperadamente me obstinar numa recusa a tudo quanto ele me disse, até que mencionou a frase mágica: “ficção científica”.

      - Uma estória de ficção científica? - perguntei.

      - Sim.

      - Para o suplemento?

      - Sim. Queremos uma estória de quatro mil palavras, que sonde o futuro e que tenha algo a ver com o relacionamento homem/máquina.

      - Vou tentar - falei. Que mais poderia fazer? A chance de atingir o Times com uma estória de ficção científica era tão interessante, que não podia ser rejeitada. Comecei a trabalhar na estória em 18 de novembro de 1974. Enviei-a ao Times sem qualquer confiança real em sua publicação e pouco me importava o que viesse a acontecer. Ela saiu em 5 de janeiro de 1975, número de segunda-feira do Times e, tanto quanto pude constatar, foi o primeiro trabalho de ficção que o Times autorizou e publicou.

     

      Versos na luz

      A última pessoa deste mundo que alguém julgaria um criminoso era a sra. Avis Lardner. Viúva do grande mártir da Astronáutica, era filantropa, colecionadora de arte, uma extraordinária anfitriã e, todos concordavam, um gênio artístico. Acima de tudo, era o mais gentil e bondoso ser humano que se podia imaginar.

      O marido, William J. Lardner, morreu, como todos sabemos, devido aos efeitos da radiaçío da luz solar, após ter deliberadamente permanecido no espaço, a fim de que uma espaçonave de passageiros pudesse levar seu veículo espacial em segurança à Estação Espacial n°5.

      Por isso a sra. Lardner havia recebido uma generosa pensão, a qual investira bem e com muita sabedoria. Ao fim da meia-idade, estava rica.

      Sua casa era uma espécie de exposição permanente, um verdadeiro museu, contendo uma coleção de lindas jóias, pequena, porém de extremo bom-gosto. De uma dúzia de diferentes culturas havia conseguido relíquias de quase toda peça de artesanato concebível que pudessem ser engastadas de jóias para servir à aristocracia daquela mesma cultura. Possuía um dos primeiros relógios de pulso, adornado de pedras preciosas, fabricado na América, uma adaga incrustada de pedras preciosas, procedente do Camboja, um par de óculos, decorado com jóias, vindo da Itália, e assim por diante, interminavelmente.

      Tudo estava aberto ao público. As peças de artesanato não estavam no seguro, e não havia nenhuma providência comum no sentido de garanti-las. Não havia a necessidade de nada convencional, porquanto a sra. Lardner mantinha um corpo de auxiliares, constituído de robôs-servos, a cada um dos quais podia se confiar a guarda de cada um dos objetos, tendo eles imperturbável concentração, irrepreensível honestidade e irrevogável eficiência.

      Todos sabiam da existência dos robôs e não há registro de ter algum dia ocorrido alguma tentativa de furto.

      E havia também, é claro, sua escultura-luz.

      Como a sra. Lardner descobriu seu próprio gênio para a arte, nenhum convidado de suas pródigas reuniões conseguia adivinhar. Contudo, em cada ocasião, quando a sra. Lardner abria a casa para os convidados, uma nova sinfonia de luz percorria os aposentos de um lado ao outro; curvas e sólidos tridimensionais, numa mescla de cores, algumas puras, outras difusas, em surpreendentes efeitos cristalinos que mergulhavam no assombro cada convidado, e que se ajustavam por si mesmos, de forma a embelezar os cabelos macios e azulados e o rosto de contornos pouco definidos da sra. Lardner.

      Era por causa da escultura-luz, mais do que por qualquer outra coisa, que os convidados apareciam. Nunca era a mesma duas vezes, e nunca deixava de explorar novos enfoques da arte.

      Muitas pessoas que podiam comprar consolo-luz preparavam esculturas-luz por diversão, mas ninguém chegava nem de longe a igualar a perícia da sra. Lardner. Nem mesmo aqueles que se consideravam artistas profissionais.

      Ela mesma era encantadoramente modesta a respeito disso - Não, não - dizia ela, quando alguém ressudava lirismo. - Eu não a denominaria “poesia na luz”. Isto é ser bondosa demais. No máximo, eu diria que se trata de meros “versos na luz” - e todos sorriam da sutil tirada de espírito.

      Embora fosse solicitada freqüentemente a fazê-lo, jamais criava “escultura-luz” em outras ocasiões, salvo em suas próprias festas.

      - Seria comercialização - costumava dizer.

      Contudo, não objetava à preparação de elaborados hologramas de suas esculturas, de forma que se tornassem permanentes e fossem reproduzidos em todos os museus do mundo. Tampouco nunca cobrou nada pelo uso que pudesse ser feito de suas “esculturas-luz”.

      - Eu não teria coragem de cobrar um centavo - dizia ela, abrindo bem os braços. - É de graça para todos. Afinal de contas, eu mesma a uso durante pouco tempo.

      Era verdade, ela nunca utilizava duas vezes a mesma “escultura-luz”.

      Ela própria cooperava quando eram feitos os hologramas. Observando benignamente cada etapa, estava sempre pronta a mandar que os robôs ajudassem.

      - Por favor, Courtney - quer ter a bondade de ajustar a escadinha?

      Era o seu estilo. Sempre se dirigia aos robôs com a mais formal das cortesias.

      Certa ocasião, há muitos anos, quase fora repreendida por um funcionário federal do “Bureau of Robots and Mechanical Men”:

      - Não pode fazer isto - disse ele severamente. - Interfere na eficiência deles. São construídos para cumprir ordens e quanto mais claramente lhes der ordens, mais eficientes as cumprirão. Quando pede com elaborada polidez, compreendem com dificuldade que está sendo dada uma ordem. Reagem mais lentamente.

      A sra. Lardner ergueu a aristocrática cabeça:

      - Não exijo rapidez e eficiência - disse ela. - Peço boa vontade. Meus robôs me amam.

      O funcionário poderia ter explicado que robôs não podem amar, mas murchou sob o olhar ofendido, ainda que meigo, dela.

      Era fato conhecido de todos que a sra. Lardner jamais remeteu um robô à fábrica para ajustamentos. Seus cérebros positrônicos eram de enorme complexidade, e quando saem da fábrica, um em dez não está perfeitamente regulado. Às vezes o desajuste não se revela durante um período de tempo, mas sempre que um engano se manifesta, a “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation” efetua a correção gratuitamente.

      A sra. Lardner sacudiu a cabeça:

      - A partir do momento em que o robô está em minha casa - disse - e cumpre com seus deveres, as excentricidades secundárias devem ser toleradas. Não permitirei que seja maltratado.

      Era a pior coisa possível tentar explicar que um robô era apenas uma máquina. Ela dizia inflexivamente:

      - Nada que seja tão inteligente como um robô pode ser apenas uma máquina. Trato-os como gente.

      E pronto!

      Ela conservava até mesmo Max, embora fosse quase inútil. Mal se podia compreender o que se esperava dele. Contudo, a sra. Lardner insistia:

      - Absolutamente - dizia firmemente - ele é capaz de pegar e guardar chapéus e casacos perfeitamente. Segura objetos para mim. Sabe fazer muitas coisas.

      - Mas por que não manda regulá-lo? - perguntou um amigo, certa ocasião.

      - Oh, eu não teria coragem. Ele é ele mesmo. É muito amável, sabe? Afinal de contas, um cérebro positrônico é tão complexo que ninguém consegue saber onde está enguiçado. Se fosse ajustado para a perfeita normalidade, não haveria meios de recuperá-lo para a amabilidade que possui agora. E eu não quero desfazer-me dele.

      - Mas, se ele está mal regulado - disse o amigo, olhando nervosamente para a sra. Lardner - não poderá ser perigoso?

      - Nunca - a sra. Lardner deu uma risada. - Tenho-o há anos. É completamente inofensivo e é um amor.

      Na verdade, ele tinha a mesma aparência de todos os outros robôs: liso, metálico, vagamente humano, mas inexpressivo.

      Contudo, para a bondosa sra. Lardner, todos eram gente, pessoas, todos meigos, todos adoráveis. Ela era assim.

      Como poderia cometer um crime?

      A última pessoa que alguém esperaria que fosse assassinado seria John Semper Travis. Introvertido e de modos suaves, estava no mundo, mas não pertencia a ele. Possuía aquele peculiar talento para a Matemática que lhe tornava possível resolver mentalmente o complexo entrelaçamento de uma miríade de circuitos positrônicos cerebrais da mente de um robô.

      Era o engenheiro-chefe da “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation”.

      Mas era também um entusiasmado amador em “escultura-luz”. Havia escrito um livro sobre a matéria, no qual tentava mostrar que o tipo de Matemática que utilizava para resolver problemas de circuitos de cérebros positrônicos poderia ser modificado para servir de guia na produção da estética da “escultura-luz”.

      No entanto, sua tentativa de colocar a teoria em prática foi um fracasso desanimador. As esculturas que produziu, segundo seus princípios matemáticos, eram pesadas, mecânicas e sem interesse.

      Era a única razão de infelicidade em sua vida tranqüila, introvertida e segura, no entanto era razão suficiente para sentir-se profundamente infeliz. Ele sabia que suas teorias eram corretas, se bem que não conseguisse pô-las em ação. Se não conseguisse produzir uma boa peça de “escultura-luz”...

      Naturalmente, estava a par da “escultura-luz” da sra. Lardner. Ela era universalmente aplaudida como um gênio, muito embora Travis soubesse que era incapaz de compreender mesmo o mais simples aspecto da matemática dos robôs. Havia trocado correspondência com ela, mas ela recusava-se obstinadamente a explicar seus métodos, levando-o a perguntar-se se ela possuía mesmo algum. Não seria mera intuição? - mas mesmo a intuição pode ser reduzida à matemática. Finalmente, ele conseguiu receber um convite para uma das festas. Precisava avistar-se com ela a todo custo.

      O sr. Travis chegou bem tarde. Havia feito uma última tentativa com uma peça de “escultura-luz”, que resultará num fracasso desa-lentador.

      Cumprimentou a sra. Lardner com uma espécie de enigmático respeito e disse:

      - Estranho aquele robô que pegou meu chapéu e casaco.

      - Aquele é Max - disse a sra. Lardner.

      - Está muito desregulado e é um modelo bem antigo. Por que razão não o manda para a fábrica?

      - Oh, não - disse a sra. Lardner. - Seria demasiado trabalho.

      - De modo nenhum, sra. Lardner - disse Travis. - A sra. ficaria surpresa com a simplicidade do trabalho. De vez que sou da U.S. Robots, tomei a liberdade de ajustá-lo pessoalmente. Não levou tempo e a sra. verá que ele está agora em perfeitas condições de funcionamento.

      Uma estranha mudança ocorreu no rosto da sra. Lardner. A fúria estampou-se nele pela primeira vez em sua existência sossegada. Era como se os traços fisionômicos não soubessem qual posição tomar.

      - Ajustou-o? - perguntou com voz aguda. - Mas foi ele que criou as minhas “esculturas-luz”. Foi o ajustamento defeituoso, o desajuste, que você jamais conseguirá restaurar... aquele...

      Foi uma grande desgraça que ela estivesse mostrando sua coleção naquele momento e que a adaga com cabo cravejado com pedras preciosas, procedente do Camboja, estivesse sobre o tampo de mármore na mesa em frente dela.

      A fisionomia de Travis também se distorceu:

      - A sra. quer dizer que, se eu tivesse estudado o estranho cérebro positrônico dele, eu poderia ter aprendido...

      Ela avançou com a arma com demasiada rapidez para alguém detê-la. Ele não tentou se esquivar ao golpe. Há quem diga que foi ao encontro dele - como se quisesse morrer.

     

      Segregacionista

      - Ele está pronto? - disse o cirurgião levantando o olhar inexpressivo.

      - Pronto é um termo relativo - disse o engemédico. - Estamos prontos. Ele está inquieto.

      - Eles sempre estão... Bem, é uma operação séria.

      - Séria ou não ele deve estar agradecido. Ele foi escolhido dentre um número enorme e, francamente, não penso que...

      - Não diga nada - disse o cirurgião. - Não nos cabe tomar a decisão.

      - Aceitamos, mas temos que concordar?

      - Sim - disse o cirurgião, ríspido. - Concordamos, completamente e de todo o coração. A operação é demasiadamente intrincada para ser encarada com restrições intelectuais. Este homem provou o seu valor de muitas maneiras e o seu perfil é adequado para o Conselho da Moralidade.

      - Está bem - disse o engemédico, pouco convencido.

      - Vê-lo-ei aqui mesmo, assim penso - disse o cirurgião. - Esta sala é bastante pequena e íntima para ser confortável.

      - Não ajudará. Ele está nervoso e mudou de idéia.

      - Realmente?

      - Sim. Ele prefere metal. Eles sempre preferem.

      O rosto do cirurgião não apresentou mudança de expressão. Contemplou as próprias mãos.

      - Algumas vezes podemos dissuadi-los.

      - Por que se preocupar? - disse o engemédico, indiferente.

      - Se quer que seja metal, que seja metal.

      - Você não se importa?

      - Por que deveria? - e o engemédico fez a pergunta quase que brutalmente. - De qualquer modo, trata-se de um problema da engenharia médica e eu sou um engenheiro médico. Posso tratar do assunto de qualquer forma. Por que deveria ir além disso?

      - Para mim, é uma questão de adequação - disse o cirurgião, imperturbável.

      - Adequação! Não pode usar isso como argumento. Que importa ao paciente a adequação das coisas?

      - A mim, importa.

      - O seu cuidado é o de uma minoria. A maioria é contra você. Não tem chance.

      - Tenho que tentar - e o cirurgião reduziu o engemédico ao silêncio, com um rápido aceno de mão que revelava não impaciência, mas, sim, pressa. Já havia informado a enfermeira e já recebera o sinal de que ela se aproximava. Pressionou um botão e uma porta dupla abriu-se silenciosamente. O paciente entrou na sala na sua cadeira motorizada, com a enfermeira caminhando apressadamente a seu lado.

      - Pode ir, enfermeira - disse o cirurgião -, mas espere lá fora. Poderei chamá-la. - Fez um aceno de cabeça ao engemédico que deixou a sala juntamente com a enfermeira e a porta se fechou atrás deles.

      O homem na cadeira olhou por cima do ombro, observando a saída deles. Tinha uma nuca esquelética e pequenas rugas em volta dos olhos. Barbeara-se recentemente e os dedos das mãos, que seguravam os braços da cadeira fortemente, apresentavam unhas manicuradas. Era um paciente de alta prioridade e ele estava sendo tratado... Mas em seu rosto havia uma expressão de decidida impertinência.

      - Vamos começar hoje? - disse ele.

      - Esta tarde, Senador - disse o cirurgião balançando a cabeça.

      - Pelo que entendo, levará semanas.

      - Não a operação em si, Senador. Mas existe um certo número de pontos subsidiários que devem ser cuidados. Existem algumas renovações de circulação que devem ser realizadas, assim como ajustamentos hormonais. São coisas complicadas.

      - E são perigosas? - E então, como se sentisse a necessidade de estabelecer uma relação amigável, mas patentemente contra a sua vontade, acrescentou - ... doutor?

      O cirurgião não deu atenção às mudanças de expressão. Disse francamente: - Tudo é perigoso. Demoramos para que seja menos perigoso. É o tempo requerido, a habilidade de uma equipe, a instrumentação, que tomam tais operações possíveis somente para tão poucos...

      - Sei disso - interrompeu o paciente, com brusquidão. - Recuso-me a sentir culpa quanto a isto. Ou posso deduzir que há alguma pressão imprópria?

      - De modo algum, Senador. As decisões do Conselho nunca foram questionadas. Menciono adifículdadee a complicação da operação, simplesmente para expressar meu desejo de que seja conduzida da melhor maneira possível.

      - Bem, vá adiante, então. É o meu desejo também.

      - Então devo pedir-lhe para tomar uma decisão. É possível dar-lhe um dos dois tipos de cibercorações, em metal ou...

      - Plástico! - disse o paciente, irritado. - Não é esta a alternativa que me ia oferecer, doutor? Plástico barato. Não quero. Já fiz minha escolha. Quero metal.

      - Mas...

      - Escute aqui. Fui informado de que a escolha seria minha. Não é assim?

      - Quando dois procedimentos alternativos são de igual valor sob o ponto de vista médico, a escolha recai sobre o paciente. Na prática real, a escolha é do cliente, ainda que os procedimentos alternativos não sejam de igual valor, como no presente caso.

      - Está tentando me dizer que o coração de plástico é superior? - indagou o paciente, estreitando os olhos.

      - Depende do paciente. Na minha opinião, no seu caso individual, o plástico é superior. E preferimos não usar o termo “plástico”. Dizemos cibercoração fibroso.

      - Para mim é plástico de qualquer maneira.

      - Senador - disse o cirurgião infinitamente paciente - não se trata de material plástico no sentido comum da palavra. É um material polimérico, sim, mas de um tipo muito mais complexo do que o plástico ordinário. É uma fibra complexa semelhante à proteína, destinada a imitar, tanto quanto possível, a estrutura natural do coração humano que agora está dentro do seu tórax.

      - Exatamente, e o coração humano que agora está dentro do meu peito está gasto, embora não tenha atingido ainda os sessenta anos. Não quero outro igual, obrigado. Quero algo melhor.

      - Todos nós desejamos o melhor para o senhor, Senador. O cibercoração de fibra será o melhor. Tem uma vida potencial de séculos. É inteiramente não-alérgico...

      - Mas não acontece o mesmo com o coração de metal?

      - Sim, realmente - disse o cirurgião. - O cibermetálico é de liga de titânio...

      - E não se gasta? É mais forte do que o plástico? Ou fibra, ou seja qual for o nome?

      - O metal é fisicamente mais forte, sim, mas a resistência mecânica não é o ponto em questão. A resistência mecânica não lhe fará nenhum bem em particular, uma vez que o coração é bem protegido. Qualquer coisa capaz de atingir o coração o matara por outras razões, ainda que o coração possa enfrentar manipulação manual.

      - Se alguma vez quebrar uma costela eu a terei substituída por titânio também - disse o paciente dando de ombros. - A substituição de ossos é fácil. Qualquer um pode fazer, em qualquer ocasião. Serei tão metálico quanto desejar, doutor.

      - Está no seu direito, se assim prefere. Entretanto, é apenas justo dizer-lhe que, embora nenhum cibercoração metálico tenha quebrado mecanicamente, um certo número quebrou-se eletronicamente.

      - O que isto significa?

      - Significa que todo cibercoração contém um marcapasso como parte de sua estrutura. No caso da variedade metálica, é um dispositivo eletrônico que mantém o cíber no ritmo. Significa que uma bateria completa de equipamento miniaturizado deve ser incluída para alterar o ritmo do coração, para adequar-se ao estado emocional e físico do indivíduo. Ocasionalmente algo errado acontece e pessoas têm morrido antes de qualquer correção.

      - Nunca ouvi falar disso.

      - Mas posso assegurar-lhe que acontece.

      - Está me dizendo que acontece com freqüência?

      - De modo algum. Acontece raramente.

      - Bem, então correrei o risco. E quanto ao coração de plástico? Também contém um marcapasso?

      - Naturalmente, Senador. Mas a estrutura química de um cibercoração fibroso é muito aproximada da do tecido humano. Responde aos controles iônico e hormonal do próprio corpo. O complexo total que deve ser inserido é muito mais simples do que cibermetálico.

      - Mas o coração de plástico nunca se desligou de repente do controle hormonal?

      - Nunca se registrou um caso destes.

      - Porque vocês não têm estado trabalhando com eles por bastante tempo. Não é verdade?

      O cirurgião hesitou.

      - É verdade que cíber fibrosos não têm sido tão usados como os metálicos.

      - Aí está. Mas o que é que há, doutor? Está com receio que esteja me transformando num robô... um Metallo, como são chamados, desde que a cidadania lhes foi concedida?

      - Não há nada de errado com um Metallo, enquanto Metallo. Como o senhor disse, são cidadãos. Mas acontece que o senhor não é um Metallo. É um ser humano. Por que não continuar humano?

      - Porque eu quero o melhor e o melhor é um coração metálico. Providencie o resto.

      - Muito bem - disse o cirurgião, assentindo. - Será solicitado a assinar as permissões necessárias e em seguida será equipado com um coração de metal.

      - E o senhor será o cirurgião responsável? Disseram-me que é o melhor.

      - Farei o que puder para facilitar o transplante.

      A porta se abriu e a cadeira levou o paciente ao encontro da enfermeira.

      O engemédico entrou, olhando por sobre o ombro para o paciente que se retirava até que a porta voltou a fechar-se.

      Voltou-se para o cirurgião:

      - Bem, não posso dizer o que aconteceu apenas olhando para você. Qual foi a decisão dele?

      O cirurgião inclinou-se sobre a mesa, escrevendo os últimos itens do seu relatório.

      - O que você predisse. Insiste num cibercoração metálico.

      - Afinal de contas, são os melhores.

      - Não tanto. Vêm sendo usados há muito tempo, só isso. É uma mania que caiu como uma praga sobre a humanidade, desde que os Metallos tomaram-se cidadãos. Os homens foram tomados pelo estranho desejo de se transformarem em Metallos. Anseiam pela força física e pela resistência associadas a eles.

      - Mas tal desejo não é unilateral, doutor. Você não trabalha com os Metallos, mas eu sim. Os últimos dois que me apareceram para reparos solicitaram elementos fibrosos.

      - E os obtiveram?

      - Em um caso, tratava-se de fornecer tendões e não fazia muita diferença se fosse metal ou fibra. O outro desejava um sistema sangüíneo ou seu equivalente. Disse-lhe que não podia, isto é, não sem uma completa reconstrução da estrutura do seu corpo em material fibroso... Suponho que chegaremos a isso algum dia. Metallos que não serão realmente Metallos, inteiramente, mas compostos de carne e sangue.

      - E você não se incomoda com a idéia?

      - E por que deveria? E quanto a seres humanos metalizados também? Temos agora duas variedades de inteligência na Terra, e por que me preocupar com as duas? Deixemos que se aproximem uma da outra e, eventualmente, não saberemos dizer qual a diferença. O que deveríamos desejar? Temos o melhor de dois mundos: as vantagens do homem, combinadas com as do robô.

      - Tudo o que vai conseguir é um híbrido - disse o cirurgião num tom que se aproximava da violência. - Obterá algo que não será ambos, mas nem um nem outro. Não é lógico supor-se que um indivíduo se orgulhe tanto da sua estrutura e da sua identidade que não possa vir a desejar que elas se diluam em alguma coisa estranha? Será que ele quer a hibridização?

      - Isto é conversa de segregacionista.

      - Então, que seja - e o cirurgião-acrescentou com ênfase, porém calmo. - Acredito em ser o que se é. Não trocaria uma parcela sequer da minha própria estrutura, por nenhuma razão. Se algo em mim exigisse, realmente, substituição, faria com que tal se realizasse do modo mais aproximado possível da minha natureza original. Eu sou eu mesmo. Contente de ser como sou. E de modo algum seria diferente.

      Agora havia terminado, finalmente, e tinha que se preparar para a operação. Colocou as mãos fortes dentro do forno e deixou que atingissem o brilho rubro que as esterilizaria completamente. Com todas as suas palavras apaixonadas, a sua voz nunca se elevou e no seu rosto de metal brunido nunca houve (como sempre) o menor sinal de expressão.

     

ROBBIE

      – Noventa e oito, noventa e nove, cem!

      Glória retirou o bracinho gorducho de sobre os olhos e ficou imóvel por um instante, franzindo o nariz e piscando contra a luz do sol. Então, tentando observar ao mesmo tempo em todas as direções, recuou alguns passos, afastando-se cautelosamente da árvore em que estivera recostada.

      Esticou o pescoço para estudar as possibilidades de um grupo de arbustos à direita e depois recuou ainda mais, a fim de obter um melhor ângulo de visão sobre o recesso escuro da folhagem. O silêncio era profundo, exceto pelo incessante zumbir dos insetos e pelo trinado ocasional de algum pássaro bastante valente para enfrentar o sol de meio-dia.

      Glória fez uma careta de aborrecimento.

      – Aposto que ele entrou em casa, e eu já lhe disse um milhão de vezes que isso não vale.

      Com os lábios fortemente apertados e a testa franzida numa expressão severa, a menina se encaminhou resoluta- mente para a casa de dois pavimentos situada além da alameda.

      Tarde demais, ouviu o barulho de folhas atrás de si, logo seguido pelo clum-clump característico e ritmado dos pés metálicos de Robbie. Girou nos calcanhares a tempo de ver seu companheiro triunfante emergir do esconderijo e correr a toda velocidade para a árvore que servia de pique.

      Gloria gritou, consternada: 

 – Espere, Robbie! Assim não vale, Robbie! Você prometeu não correr até eu encontrá-lo!

 Seus pezinhos não conseguiam ganhar terreno sobre os passos gigantescos de Robbie. Então, a três metros da árvore, o andar de Robbie transformou-se em mero arrastar de pés, e Gloria, num último e desesperado impulso de velocidade, passou ofegante por ele e tocou a casca do tronco que servia de pique. Radiante, a menina voltou-se para o fiel Robbie e, com a maior das ingratidões, recompensou-o pelo sacrifício: zombou cruelmente de sua incapacidade para correr.

      – Robbie não sabe correr! – gritou, com toda a força de seus pulmões de oito anos. – Posso ganhar sempre dele! Posso ganhar sempre dele!

      Cantava as frases ritmicamente, em tom agudo. Naturalmente, Robbie não respondeu – pelo menos, não com palavras. Em lugar disso, fingiu que estava correndo, afastando-se lentamente, até que Gloria começou a correr atrás dele, enquanto o robô esquivava-se no último instante, obrigando-a a descrever círculos, inutilmente, com os bracinhos esticados abanando no ar.

      – Robbie! – gritava ela. – Fique quieto! E seu riso saía em impulsos ofegantes. Afinal, ele girou nos calcanhares e agarrou a menina, fazendo-a rodar. Gloria viu o mundo de cabeça para baixo, sobre um fundo azulado, com as árvores verdes parecendo querer alcançar o abismo. Em seguida, sentou-se novamente na grama, apoiada à perna metálica de Robbie e ainda segurando um duro dedo de metal.

      Depois de algum tempo, recobrou o fôlego. Mexeu inutilmente no cabelo desgrenhado, imitando vagamente um gesto de sua mãe, e contorceu-se, a fim de verificar se o vestido estava rasgado. Deu uma palmada nas costas de Robbie.

 – Menino mau! Vai apanhar! - Robbie encolheu-se, escondendo o rosto com as mãos, de modo que ela se viu forçada a acrescentar: – Não, Robbie. Não vou bater em você. Mas, de qualquer maneira, agora é a vez de eu me esconder, porque você tem pernas mais compridas e prometeu não correr para o pique até eu encontrá-la.

 Robbie assentiu com a cabeça, - um pequeno paralelepípedo de arestas e cantos arredondados, ligado por uma haste curta e flexível a outro paralelepípedo semelhante, mas muito maior, que lhe servia de torso – e virou-se obedientemente para a árvore. Urna fina película metálica recobriu-lhe os olhos e do interior de seu corpo veio um tique-taque ritmado. e sonoro.

      – Agora, não espie... e não pule os números – avisou Gloria, antes de correr para esconder-se. Os segundos foram contados com regularidade invariável e, ao centésimo tique, a película metálica se ergueu.

      Os brilhantes olhos vermelhos de Robbie examinaram as redondezas. Pousaram um momento sobre uma mancha colorida atrás de uma pedra. Robbie avançou alguns passos, convencendo-se de que Gloria estava agachada atrás da pedra.

      Vagarosamente, mantendo-se sempre entre Gloria e a árvore do pique, ele se encaminhou para o esconderijo. Quando Gloria estava bem à vista e nem mesmo poderia imaginar que ainda não fôra descoberta, Robbie esticou um braço em direção a ela e bateu com o outro de encontro à perna, produzindo um ruído metálico. Gloria se ergueu, amuada.

      – Você espiou! – declarou, com tremenda injustiça. – Além disso, já estou cansada. de brincar de esconder. Quero andar a cavalo.

      Porém Robbie, magoado com a injusta acusação, sentou-se cuidadosamente e meneou a cabeça de um lado para outro. Imediatamente, Gloria mudou de tom, tentando convencê-lo gentilmente: 

      – Vamos, Robbie. Eu estava brincando quando disse que você espiou. Deixe-me dar uma voltinha em você.

      Todavia, Robbie não estava disposto a se deixar levar com tanta facilidade. Olhou teimosamente para o alto e sacudiu a cabeça com ênfase ainda maior.

      – Por favor, Robbie. Por favor, deixe-me dar uma voltinha em você – insistiu Gloria, passando os bracinhos rosados pelo pescoço dele e apertando com força. Então, mudando repentinamente de humor, afastou-se.

      – Se você não deixar, vou chorar – declarou, contorcendo terrivelmente o rosto num movimento preparatório. O malvado Robbie não deu maior atenção à horrível possibilidade e sacudiu a cabeça pela terceira vez. Gloria julgou necessário usar seu maior trunfo.

      – Está bem – declarou em tom suave. – Se você não deixar, não lhe contarei mais histórias. Mais nenhuma...

      Robbie cedeu imediata e incondicionalmente ante tal ultimato, balançando afirmativamente a cabeça até que o metal de seu pescoço chegou a zunir. Com grande cuidado, ergueu a menina e colocou-a sobre seus ombros largos e lisos.

      As supostas lágrimas de Gloria desapareceram como por encanto e ela soltou gritinhos de prazer. A pele metálica de Robbie, mantida à temperatura constante de vinte e um graus pelas bobinas de alta resistência existentes em seu interior, produzia na menina uma sensação confortável, ao mesmo tempo em que o som alto que seus saltos faziam de encontro ao peito do robô lhe parecia encantador.

 – Você é um planador, Robbie; um planador grande e prateado. Abra os braços, Robbie... Tem de abrir, para ser um planador. Era uma lógica irrefutável. Os braços de Robbie passaram a ser asas pegando as correntes aéreas e ele se transformou num planador prateado.

 Gloria torceu a cabeça do robô para a direita. Ele se inclinou, fazendo uma curva. Gloria equipou o planador com um motor que fazia “Brrrr” e depois com armas que faziam “Bum!” e “Shsh-shhhsh”. Os piratas estavam perseguindo e os atiradores do planador entraram em ação. Os piratas foram varridos do céu.

      – Peguei outro! ... Mais dois! – exclamava a menina. Então, ela ordenou pomposamente: – Mais depressa, homens! A munição está acabando!

      Gloria apontava por cima do ombro com coragem indomável e Robbie passou a ser uma nave espacial, atravessando o vácuo em aceleração máxima. Ele correu através do campo até um trecho de grama alta situado no lado oposto, onde parou tão subitamente que a passageira não conteve um grito. Então, Robbie deixou-a cair suavemente no espesso tapete verde formado pela grama. Gloria ofegava, sem fôlego, murmurando repetidamente:

      – Foi  ótimo!

      Robbie esperou que ela recuperasse o fôlego e puxou levemente um de seus cachos.

      – Quer alguma coisa? – indagou Gloria, abrindo muito os olhos numa expressão de perplexidade que não conseguiu iludir a enorme “ama-seca”. Robbie puxou-lhe o cabelo com um pouco mais de força.

      – Oh, já sei. Quer uma história.

      Robbie assentiu rapidamente.

      – Qual delas?

      Robbie ergueu um dedo, descrevendo um semicírculo. A menina protestou.

      – Outra vez? Já lhe contei a “Gata Borralheira” um milhão de vezes! Não está cansado dela?... É uma história para bebês. Outro semicírculo.

      – Oh, está bem.

      Gloria concentrou-se, passando mentalmente em revista os detalhes da história (bem como as variações criadas por ela própria, que eram numerosas), e começou:

      – Está pronto? Bem... Era uma vez uma menina muito linda chamada Ella. Tinha uma madrasta terrivelmente malvada e duas irmãs de criação muito feias e cruéis. Então...

      Gloria estava chegando ao clímax da história : chegava a meia-noite e tudo estava voltando ao sórdido original. Robbie escutava atentamente, com os olhos brilhando... quando houve uma interrupção.

      – Gloria!

      Era o brado agudo de uma mulher que estivera chamando não uma, mas várias vezes; tinha o tom nervoso de alguém cuja impaciência já se transformava em preocupação.

      – Mamãe está chamando – disse Gloria, não muito satisfeita. – É melhor você me carregar de volta para casa, Robbie.

      Robbie obedeceu alegremente, pois havia algo nele que julgava melhor obedecer à Sra. Weston sem a menor hesitação. O pai de Gloria raramente estava em casa durante o dia, exceto aos domingos – como agora, por exemplo –, e, quando isso acontecia, mostrava-se uma pessoa jovial e compreensiva. A mãe de Gloria, porém, era uma fonte de inquietação para Robbie, que sempre sentia um impulso para esquivar-se das vistas dela.

      A Sra. Weston avistou-os tão logo eles surgiram acima dos compridos tufos de grama e retirou-se para o interior da casa, a fim de esperá-los.

      – Fiquei rouca de tanto chamar, Gloria – disse, em tom severo. – Onde estava?

      – Estava com Robbie – respondeu a menina, com voz trêmula. – Contava-lhe a história da “Gata Borralheira” e esqueci a hora do almoço.

      – Bem, é uma pena que Robbie também tenha esquecido – comentou a Sra. Weston. Então, como se apercebendo da presença do robô, virou-se bruscamente para ele.

      – Pode ir, Robbie. Ela não precisa de você agora. – E acrescentou em tom brutal:

      – E não volte até que eu o chame.

      Robbie girou nos calcanhares para retirar-se, mas hesitou quando a voz de Gloria se ergueu em sua defesa: 

      – Espere, mamãe. Você tem de deixar Robbie ficar. Não terminei a história da “Gata Borralheira” para ele. Prometi contar toda e não acabei.

      – Gloria!

      – Mamãe, prometo que ele ficará tão quieto que a senhora nem perceberá que ele está aqui. Ele pode sentar naquela cadeira, ali no canto, sem dizer uma palavra. Isto é, sem fazer nada. Não é, Robbie?

      Robbie, em resposta, assentiu com a cabeça, balançando-a uma vez.

      – Gloria, se você não parar imediatamente com isso, ficará uma semana inteira

sem ver Robbie! A menina baixou a cabeça.

      – Está bem! Mas a “Gata Borralheira” é a história preferida de Robbie e eu não terminei de contar... E ele gosta tanto...

      O robô saiu com um andar desconsolado e Gloria engoliu um soluço.

      George Weston sentia-se completamente feliz e satisfeito. Tinha o hábito de ficar à vontade nas tardes de domingo. Um lauto e gostoso almoço na barriga; um sofá velho, macio e confortável onde deitar; um exemplar do Times; chinelos nos pés e peito nu – como alguém podia deixar de ficar à vontade?

      Portanto, não ficou contente quando sua mulher entrou. Após dez anos de vida de casado, ainda era inominavelmente tolo de continuar a amá-la e não havia dúvida de que sempre gostava de vê-la – mas, apesar de tudo, as tardes de domingo, logo depois do almoço, eram sagradas para ele e sua idéia de um sólido conforto era ser deixado em completa solidão durante duas ou três horas.

      Em conseqüência, fixou firmemente os olhos no mais recente relatório sobre a Expedição Lefebre - Yoshida a Marte (que deveria decolar da Base Lunar e tinha possibilidades de realmente alcançar êxito) e ignorou a presença da esposa.

      A Sra. Weston esperou pacientemente durante dois minutos e impacientemente por mais dois. Afinal, quebrou o silêncio.

      – George!

      – Hum?

      – George, eu disse! Quer largar esse jornal e olhar para mim?

      – O jornal caiu ao chão e Weston virou o rosto cansado para fitar a mulher.

      – O que é, querida?

      – Você sabe o que é, George. Trata-se de Gloria e daquela máquina terrível.

      – Que máquina terrível?

      – Ora, não finja que não sabe de que estou falando. É aquele robô que Gloria chama de Robbie. Ele não a deixa por um só instante.

      – Bem, por que haveria de deixar? Não deve deixá-la. E certamente, não é uma máquina terrível. É o melhor robô que se pode comprar e pode ter absoluta certeza de que me custou meio ano de ordenado. Valeu a pena, porém; ele é muito mais inteligente do que a metade de meus empregados do escritório. Fez menção de pegar novamente o jornal, mas sua esposa foi mais rápida, apanhando-o primeiro.

 – Escute, George. Não admito que minha filha seja entregue a uma máquina... e não me interessa o quanto ela seja inteligente. Não tem alma. Ninguém sabe o que pode estar pensando. Uma criança não foi feita para ser guardada por um objeto de metal.

 Weston franziu a testa.

      – Desde quando você decidiu isso? Há dois anos que ele está com Gloria e só agora você se preocupa.

      – No início, era diferente. Uma novidade; tirava-me uma carga dos ombros e... era uma coisa elegante. Mas agora, não sei... Os vizinhos...

      – Ora, o que têm os vizinhos a ver com o assunto? Ouça: pode-se ter infinitamente mais confiança em um robô do que em uma ama-seca humana. Na realidade, Robbie foi construído exclusivamente com uma finalidade: fazer companhia a uma criança pequena. Toda a sua “mentalidade” foi criada com esse único objetivo. Ele não pode deixar de ser fiel, carinhoso e bom. É uma máquina – feita assim. O que é bem mais do que pode dizer a respeito dos seres humanos.

      – Mas poderia acontecer algo errado. Algum... algum... – a Sra. Weston era um tanto ignorante a respeito dos órgãos internos de  um robô – ... alguma pecinha poderá soltar-se e aquela coisa horrível ficar maluca e... e... Interrompeu-se, não conseguindo dizer em voz alta um pensamento tão óbvio.

      – Tolice – negou Weston, com um involuntário estremecimento nervoso. – Isso é completamente ridículo. Na época em que compramos Robbie, tivemos uma longa conversa sobre a Primeira Lei da Robótica. Você sabe que é impossível para um robô fazer mal a um ser humano; que muito antes de acontecer o bastante para alterar a Primeira Lei, o robô se tornaria completamente inoperante. Trata-se de uma impossibilidade matemática. Além disso, eu chamo um engenheiro da U.S. Robôs duas vezes por ano e ele faz uma revisão completa no pobre aparelho. Ora, não há maior possibilidade de acontecer algo errado com Robbie do que eu ou você ficarmos birutas de uma hora para outra. Na verdade, as probabilidades são consideravelmente menores. Além disso, como é que você vai tirá-la de Gloria?

      Fez um novo gesto inútil para apoderar-se do jornal, mas a mulher atirou raivosamente o Times para a outra sala.

      – É justamente isso, George! Ela não brinca com mais ninguém. Há dúzias de meninos e meninas com quem poderia fazer amizade, mas ela se recusa. Nem mesmo chega perto deles, a menos que eu a obrigue. Uma menina não deve crescer assim. Você quer que ela seja normal, não quer? Quer que ela seja capaz de representar seu papel na sociedade.

      – Você está com medo de fantasmas, Grace. Finja que Robbie é um cachorro. Já vi centenas de crianças que gostam mais do cachorro do que do próprio pai.

      – Um cachorro é diferente, George. Precisamos livrar-nos daquela coisa horrível! Você pode vendê-la de volta à companhia. Já indaguei a respeito e sei que pode.

      – Indagou? Ora, escute aqui, Grace, não vamos bancar idiotas. Ficaremos com o robô até Gloria crescer um pouco mais e não quero que se volte a tocar no assunto. E saiu da sala, amuado. Duas noites mais tarde, a Sra. Weston foi receber o marido à porta.

      – Você precisa escutar-me, George. Há inquietação na vizinhança.

      – A respeito de quê? – perguntou Weston, entrando no banheiro e impedindo toda e qualquer resposta com o barulho da água.  A Sra. Weston esperou. Afinal, disse : 

      – A respeito de Robbie.

      Weston saiu do banheiro com uma toalha, o rosto vermelho e zangado.

      – De que está falando?

      – Oh, a coisa vem crescendo cada vez mais. Procurei fechar os olhos e fingir que não via, mas recuso-me a continuar assim. A maioria dos moradores da aldeia considera Robbie perigoso. Não permitem que as crianças cheguem perto de nossa casa à noite.

      – Nós confiamos nossa filha a ele.

      – Bem, as pessoas não são razoáveis a respeito de coisas como essa.

      – Que vão para o diabo!

      – Dizer isso não resolve o problema. Sou obrigada a fazer minhas compras na aldeia. Sou obrigada a encontrá-los todos os dias. Atualmente, o assunto de robôs é pior ainda nas cidades grandes. Nova York acaba de baixar uma portaria proibindo todos os robôs de aparecer nas ruas entre o anoitecer e o amanhecer.

      – Muito bem. Mas não podem impedir que mantenhamos um robô em nossa casa... Grace, isto é mais uma de suas campanhas. Estou reconhecendo os indícios. Mas não adianta. A resposta ainda é: não! Vamos ficar com Robbie!

      Apesar disso, ele ainda amava a esposa – e, o que era pior, ela sabia disso. Afinal, George Weston era apenas um homem – coitado – e sua mulher utilizou ao máximo todos os artifícios a seu alcance para tentar dobrá-la, mas inutilmente. Dez vezes na semana seguinte, Weston gritou: 

      – Robbie fica – e não adianta insistir!

      Mas, de cada vez, o grito era mais fraco e acompanhado por um gemido mais alto e mais agoniado. Afinal, chegou o dia em que Weston, com um sentimento de culpa, aproximou-se da filha e sugeriu um belo espetáculo de visovox na aldeia.

      Gloria bateu palmas, radiante.

      – Robbie pode ir conosco?

      – Não, querida – respondeu o pai, franzindo mentalmente a testa ao som de sua própria voz. – Não permitem que robôs visitem o visovox... Mas pode contar tudo a Robbie, quando voltarmos para casa.

      Gaguejou a dizer a última frase e virou o rosto para o lado.

      Gloria voltou da aldeia transbordando de entusiasmo, pois o visovox fôra realmente um espetáculo maravilhoso. Esperou que seu pai guardasse o carro-jato na garagem subterrânea.

      – Veja só quando eu contar tudo a Robbie, papai. Ele adoraria o espetáculo... Especialmente quando Francis Fran estava recuando com tanto cuidado, esbarrou num dos Homens-Leopardo e teve de fugir...

      Riu novamente.

      – Papai, existem mesmo Homens-Leopardo na Lua?

      – Provavelmente não – replicou Weston, distraído. – É apenas uma invenção divertida.

      Sabia que não poderia demorar muito tempo com o carro. Seria obrigado e enfrentar a realidade. Gloria atravessou o gramado correndo.

      – Robbie!... Robbie!

      Então, estacou ao ver um lindo collie que a fitava com sérios olhos castanhos e abanava a cauda, parado na varanda.

      – Oh, que cachorro bonito! – exclamou Gloria, subindo os degraus, aproximandose cautelosamente e afagando o cão. – É para mim, papai?

A Sra. Weston juntou-se a eles.

      – É, sim, Gloria. É bonito... macio e peludo. É muito manso. E gosta de meninas.

      – Ele sabe brincar?

      – Claro. Sabe fazer uma porção de truques. Gostaria de ver algum?

      – Agora mesmo. Quero que Robbie veja, também... Robbie!

Parou, hesitante, e franziu a testa.

 – Aposto que ele se trancou no quarto porque ficou zangado por não ter ido comigo ao visovox. Você precisa explicar a ele, papai. Talvez Robbie não acredite em mim, mas acreditará no que o senhor disser.

 Weston apertou os lábios. Olhou para a esposa, mas esta tinha os olhos voltados em outra direção. Gloria virou-se precipitadamente e desceu correndo os degraus do porão, gritando: 

      – Robbie!... Venha ver o que papai e mamãe trouxeram para mim! É um cachorro! Regressou um minuto depois, amedrontada. – Mamãe, Robbie não está no quarto. Onde está ele?

      Não houve resposta e George Weston tossiu, mostrando-se subitamente muito interessado em uma nuvem que passava no céu. A voz de Gloria tremia, à beira das lágrimas: 

      – Onde está Robbie, mamãe?

A Sra. Weston sentou-se e puxou suavemente a filha para si.

      – Não fique triste, Gloria. Creio que Robbie se foi.

      – Foi embora? Para onde? Para onde ele foi, mamãe?

      – Ninguém sabe, querida. Ele apenas foi embora. Procuramos, procuramos por ele e não conseguimos encontrá-lo.

      – Quer dizer que ele nunca mais voltará?

Os olhos da menina estavam arregalados de horror.

      – Talvez o encontremos logo. Vamos continuar a procurá-lo. Enquanto isso, você pode brincar com o seu lindo cachorro novo. Olhe para ele! Chama-se “Relâmpago” e sabe...

      Mas as lágrimas transbordavam dos olhos de Gloria.

      – Não quero esse cachorro horrível... Quero Robbie. Quero que vocês encontrem Robbie para mim. Sua tristeza tornou-se maior do que as palavras e ela prorrompeu num choro alto e sentido.

      A Sra. Weston olhou para o marido, procurando ajuda, mas ele se limitava a mexer distraìdamente os pés no mesmo lugar, sem tirar o olhar ardente da nuvem que passava no céu. A mulher curvou-se, na tarefa de consolar a filha.

      – Por que está chorando, Gloria? Robbie era apenas uma máquina... uma máquina velha e feia. Ele nem era vivo.

      – Ele não era nenhuma máquina! – gritou Gloria ferozmente, esquecendo-se da gramática. – Ele era uma “pessoa”, como eu e você e era meu “amigo”. Quero Robbie de volta. Oh, mamãe, quero Robbie de volta!

      A mãe gemeu, considerando-se derrotada, e deixou Gloria entregue à própria dor.

      – Deixe-a chorar à vontade – disse o marido. – As tristezas infantis nunca duram muito. Dentro de alguns dias, ela esquecerá que aquele horrível robô chegou a existir.

      Mas o tempo provou que as previsões da Sra. Weston eram por demais otimistas.É bem verdade que Gloria parou de chorar, mas também deixou de sorrir. A cada dia que passava, tornava-se mais calada e sombria. Gradativa- mente, aquela atitude de passiva infelicidade foi vencendo a resistência da Sra. Weston e a única coisa que a impedia de voltar atrás era a impossibilidade de admitir a derrota perante o marido.

      Certa noite, a Sra. Weston irrompeu na sala de estar, sentou-se e cruzou os braços, parecendo ferver de raiva. O marido esticou o pescoço, a fim de olhá-la por cima do jornal.

      – O que é agora, Grace?

      – É a menina, George. Fui obrigada a devolver o cachorro, hoje. Gloria declarou que positivamente não suportava vê-lo. Ela está me levando a um colapso nervoso. Weston largou o jornal, com um brilho esperançoso no olhar.

      – Talvez... talvez devamos trazer Robbie de volta. É possível, como você sabe. Entrarei em contato com...

      – Não! – interrompeu a mulher, furiosa. – Não admito. Não vamos ceder tão facilmente. Minha filha não será criada por um robô, mesmo que leve anos para esquecê-lo.

 

      Com ar desapontado, Weston tornou a pegar o jornal.

      – Mais um ano assim e ficarei de cabelos brancos antes do tempo.

      – Você ajuda muito, George – foi a gélida resposta. – O que Gloria necessita é de uma mudança de ambiente. É claro que aqui ela não poderá esquecer Robbie. Como seria possível, quando cada pedra ou árvore faz com que ela se lembre dele? E realmente a situação mais idiota de que já ouvi falar. Imagine: uma menina definhando por causa da perda de um robô.

      – Bem, não se desvie do assunto. Qual a mudança de ambiente que você anda planejando?

      – Vamos levá-la para Nova York.

      – Para a cidade?! Em agosto?! Escute: sabe como é Nova York em agosto? É insuportável!

      – Milhões de pessoas a suportam.

      – Não têm um lugar como este onde possam morar. Se não fossem obrigados a permanecer em Nova York, não ficariam lá.

      – Bem, nós temos de ficar lá. E digo-lhe que partiremos agora, ou tão logo possamos tomar as providências necessárias. Na cidade, Gloria encontrará bastante interesse e amigos para reanimar-se e esquecer aquela máquina.

      – Oh, Deus! – gemeu a parte mais fraca do casal. – Aquele calçamento fumegante!

      – Somos obrigados – foi a resposta inabalável. – Gloria perdeu dois quilos e meio no último mês e, para mim, a saúde de minha filhinha é mais importante do que o seu conforto.

      – É uma pena que você não tenha pensado na saúde de sua filhinha antes de privá-la de seu robô de estimação.

 

      Gloria demonstrou imediatos sinais de melhora ao ser informada da futura mudança para a cidade. Falava pouco no assunto, mas quando o fazia era sempre com viva expectativa. Voltou a sorrir e a comer com um apetite que se aproximava do antigo.

      A Sra. Weston felicitava-se, deliciada, e não perdia oportunidade para gozar o triunfo perante o marido, que continuava a se mostrar cético.

      – Veja, George: ela está ajudando a arrumar a bagagem e tagarela como se nãotivesse a menor preocupação neste mundo. É exatamente o que eu lhe disse: tudo o que precisamos é algo que sirva de substituto para os outros interesses.

      – Hum... – foi a resposta pessimista. – Espero que sim.

      Os preparativos preliminares foram terminados rapidamente. Tornaram-se providências para preparar a casa na cidade e contrataram um casal para tomar conta da casa no campo.

      Quando, afinal, chegou o dia da viagem, Gloria voltara ao que era antes e não fez a menor menção a respeito de Robbie.

      Em ótimo humor, a família tomou um táxi-giro até o aeroporto (Weston preferiria usar seu próprio giro, mas este tinha apenas dois lugares e não havia espaço para a bagagem) e embarcou no grande avião.

 – Venha, Gloria – disse a Sra. Weston. – Reservei-lhe um lugar perto da janela, de modo que você possa apreciar o panorama.

 Gloria correu alegremente pelo corredor central e foi achatar o nariz num oval branco de encontro ao vidro grosso e transparente da janela, observando tudo com uma intensidade que aumentou quando o barulho do motor chegou ao interior do aparelho. Era jovem demais para ter medo quando o solo pareceu cair, como se largado por um alçapão e, de repente, ela sentiu-se como se tivesse duas vezes o seu próprio peso; mas tinha idade suficiente para ficar vivamente interessada no que se passava. Somente quando o solo pareceu transformar-se em uma longínqua colcha de pequenos retalhos, Gloria descolou o nariz da janela e virou-se para a mãe.

      – Chegaremos logo à cidade, mamãe? – perguntou ela, esfregando o nariz frio com a palma da mão e observando com interesse enquanto a mancha de condensação formada por seu hálito na vidraça diminuía lentamente de tamanho, até desaparecer totalmente.

      – Em cerca de meia hora, querida. Então, com um leve traço de ansiedade, acrescentou: – Você está contente por ir, não está? Não acha que será feliz na cidade, com todos aqueles prédios, gente e coisas para ver? Iremos todos os dias ao visovox ver os espetáculos, e também ao circo, à praia e...

      – Sim, mamãe – foi a resposta pouco entusiástica de Gloria.

      Naquele instante, o avião passou por sobre um banco de nuvens e Gloria sentiu-se imediatamente absorvida pelo incomum espetáculo de ver as nuvens embaixo de si. Em seguida, viram-se novamente em céu aberto, muito azul, e a menina voltou-se novamente para a mãe, com um súbito e misterioso ar de que conhece um segredo.

      – Sei por que estamos indo para a cidade, mamãe.

      – Sabe? – indagou a Sra. Weston, intrigada. – Por quê?

      – Vocês não me disseram porque queriam fazer uma surpresa, mas eu sei. - Por um instante, perdeu-se na admiração de sua própria perspicácia. Então, riu alegremente.

      – Vamos a Nova York para acharmos Robbie, não é?... com detetives.

      As palavras da menina apanharam George Weston em meio a um gole de água, com resultados desastrosos. Houve uma espécie de engasgo estrangulado, seguido por um géiser de água e logo depois por uma série de tossidos asfixiados. Quando tudo terminou, ele se manteve de pé, encharcado, com o rosto vermelho, muito aborrecido.

      A Sra. Weston manteve a compostura, mas quando Gloria repetiu a pergunta em tom mais ansioso, ela verificou que seu humor fôra um tanto abalado.

      – Talvez – replicou bruscamente. – Agora, sente-se e fique aquieta, pelo amor de Deus!

      Nova York, no ano de 1998, era, mais do que nunca em sua história, um verdadeiro paraíso para os turistas. Os pais de Gloria logo se deram conta do fato e procuraram aproveitá-lo ao máximo.

      Em virtude de ordens expressas da esposa, George Weston tomou providência para que seus negócios corressem bem sem sua presença durante mais ou menos um mês, a fim de ter tempo livre para o que ele definiu como “dissipar Gloria até as raias da ruína”. Como tudo o que Weston fazia, a tarefa foi cumprida de modo eficiente, completo e prático. Antes que se passasse um mês, nada que pudesse ser feito deixou de sê-lo. Gloria foi levada até o topo do Roosevelt Building, com oitocentos metros de altura, para admirar com espanto o estranho panorama de telhados, que se misturavam a distância com os campos de Long Island e as planícies de Nova Jersey. Visitaram os zôos, onde Gloria observou com uma deliciosa sensação de medo o “leão vivo de verdade” (embora um tanto desapontada por verificar que os zeladores alimentavam a fera com bifes crus, em lugar de seres humanos, como ela esperava) e pediu peremptória e insistentemente para ver a baleia.

      Os vários museus receberam sua dose de atenção, bem como os parques, as praias e o aquário.

      Foi levada rio Hudson acima em um vapor de turismo aparelhado à moda arcaica da “Louca Década de Vinte”. Fez uma viagem de exibição à estratosfera, onde o céu assumia uma profunda cor púrpura, as estrelas pareciam maiores e brilhavam mais, e a terra enevoada lá embaixo parecia uma enorme tigela côncava. Foi levada num submarino com paredes de vidro às profundezas do Long Island Sound, onde, em meio a um mundo esverdeado e ondulante, belas e curiosas criaturas marinhas vinham fitá-la com olhar fixo e mortiço antes de fugirem repentinamente com movimentos sinuosos.

      Em nível mais prosaico, a Sra. Weston levou a filha às grandes lojas de departamentos, onde a menina pôde maravilhar-se em outro tipo de terra encantada.

      Na realidade, depois de decorrido quase um mês, os Westons estavam convencidos de haver feito tudo o que era concebível para afastar de uma vez por todas da mente de Gloria a lembrança do robô desaparecido – mas não tinham certeza de haver conseguido.

      O fato era que, onde quer que Gloria fosse, demonstrava o mais absorto e concentrado interesse por quaisquer robôs que estivessem presentes. Por mais excitante ou novo para seus olhos infantis que pudessem ser os espetáculos diante dela, Gloria, voltava-se imediatamente para o lado ao perceber de relance um movimento metálico.

      A Sra. Weston fazia o possível para manter Gloria afastada de todos os robôs.

      E o caso chegou ao clímax, afinal, por ocasião do episódio no Museu da Ciência e da Indústria. O museu anunciara um “programa infantil” especial, durante o qual seriam exibidas amostras da magia científica, em escala especial para a mentalidade infantil. Obviamente, os Westons colocaram o programa em sua lista de “prioridade”.

      Enquanto os Westons estavam sentados, totalmente absortos na contemplação dos feitos de um poderoso eletroímã, a Sra. Weston subitamente percebeu que Gloria não mais estava a seu lado. O pânico inicial cedeu lugar a uma calma decisão. A Sra. Weston conseguiu a ajuda de três serventes do museu e deu início a uma busca minuciosa.

      Todavia, é claro que Gloria não era do tipo que erra sem destino. Levando-se em consideração sua idade, era uma menina desusadamente decidida e objetiva, digna herdeira da mãe no que se relaciona com essas características. Ao passar pelo terceiro andar, vira um grande cartaz anunciando: “Para Ver o Robô Falante, Siga por Aqui”. Tendo soletrado silenciosamente os dizeres e verificando que seus pais não pareciam querer seguir a direção certa, tornou a providência óbvia: depois de esperar pela oportuna distração momentânea dos pais, afastou-se calmamente e seguiu a direção indicada pelo letreiro.

      O robô falante era um tour de force, um aparelho totalmente desprovido de utilidade prática, possuindo apenas valor publicitário. Uma vez por hora, um grupo escoltado por um guia postava-se diante dele e sussurrava cuidadosamente uma série de perguntas ao engenheiro especializado que estava encarregado do robô. As perguntas que o engenheiro julgava adequadas aos circuitos do robô eram transmitidas por ele ao robô falante.

      Era um tanto desinteressante. Pode ser bom saber que o quadrado de quatorze é cento e noventa e seis, que a temperatura ambiente no momento é de setenta graus Fahrenheit e a pressão atmosférica é de 30,02 polegadas de mercúrio, que o peso atômico do sódio é 23 – mas não é realmente preciso um robô para isso. Especialmente quando se trata de massa pesada e totalmente imóvel de fios e bobinas, ocupando um espaço superior a vinte metros quadrados.

      Poucas pessoas davam-se ao trabalho de voltar para vê-lo, mas uma adolescente estava sentada tranqüilamente em um banco, esperando pela terceira vez. Era a única pessoa no salão quando Gloria ali entrou.

      Gloria não olhou para a jovem. Naquele momento, outro ser humano não passava de uma coisa indigna de ser levada em consideração. Reservava toda a sua atenção para aquele grande aparelho sobre rodas. Hesitou por um instante, assustada. Não parecia com qualquer robô que ela tivesse visto antes. Cautelosa, ainda em dúvida, ergueu a voz fininha:

      – Por favor, Sr. Robô, o senhor é o robô falante?

      Embora não tivesse a certeza, parecia-lhe que um robô que falava era digno de um alto grau de deferência. (A jovem sentada no banco permitiu que uma expressão de intensa concentração surgisse em seu rosto magro, de feições comuns. Tirou da bolsa um caderninho de anotações e começou a escrever com rápidos sinais de taquigrafia).

      Houve um zumbido de engrenagens bem lubrificadas e uma voz de timbre mecânico respondeu gravemente, com palavras desprovidas de sotaque ou entonação: 

      – Eu... sou... o... robô... que... fala.

      Gloria fitou-o tristemente. Ele falava, mas o som vinha do interior. Não havia um rosto com o qual falar.

      – O senhor pode me ajudar, Sr. Robô? – indagou ela.

      O robô falante era feito para responder perguntas e só lhe haviam sido feitas perguntas às quais ele podia responder. Consequentemente, tinha grande confiança em sua própria capacidade.

      – Eu... posso... ajudar... você.

      – Muito obrigada, Sr. Robô. O senhor viu Robbie?

      – Quem... é... Robbie?

      – Ele é um robô, Sr. Robô – disse Gloria, pondo-se na ponta dos pés. – Ele é quase tão alto quanto o senhor, só que mais alto, Sr. Robô, e é muito bonzinho. Ele tem cabeça, sabe. Quero dizer... o senhor não tem, mas ele tem, Sr. Robô.

      O robô falante ficou para trás.

      – Um... robô?

      – Sim senhor, um robô como o senhor, só que ele não sabe falar, é claro... e parece uma pessoa de verdade.

      – Um... robô... como... eu?

      – Sim, Sr. Robô.

      A única resposta do robô falante foi um ruído de estática, ocasionalmente acompanhado por algum som incoerente. A generalização radical que lhe fôra apresentada, isto é, sua existência, não como um objeto único e especial, mas como membro de um grupo geral, fôra demais para ele. Portando-se lealmente, procurara abranger o novo conceito e queimara meia dúzia de bobinas. Pequenos sinais de alarma começaram a zumbir. (A adolescente retirou-se nesse momento. Já colhera as informações suficientes para seu trabalho de Física – sobre “Aspectos Práticos da Robótica”. Foi o primeiro dentre os muitos trabalhos elaborados por Susan Calvin sobre o assunto.) Gloria permaneceu à espera da resposta da máquina, ocultando cuidadosamente sua impaciência. De repente, ouviu um grito atrás de si: 

– Lá está ela!

Reconheceu a voz da mãe.

      – O que está fazendo aqui, menina feia? – exclamou a Sra. Weston, cuja ansiedade dissolveu-se imediatamente em impaciência. – Sabe que quase matou seu pai e sua mãe de susto? Por que fugiu?

      O engenheiro entrara correndo, arrancando os cabelos de raiva, querendo saber quem, dentre o grupo que começava a juntar-se no salão, mexera na máquina.

      – Não sabem ler os avisos?! – berrava. – Não podem entrar aqui sem um guia! Gloria ergueu a voz consternada, dominando o barulho: 

      – Só vim ver o robô falante, mamãe. Pensei que ele talvez soubesse onde está Robbie, pois ambos são robôs.

      Então, ao lembrar-se outra vez de Robbie, prorrompeu numa cachoeira de lágrimas.

      – Preciso encontrar Robbie, mamãe. Preciso.

A Sra. Weston soltou um gemido abafado.

      – Oh, meu Deus! Vamos para casa, George. Isto é mais do que eu posso suportar.

      Naquela mesma tarde, George Weston ausentou-se durante várias horas. Na manhã seguinte, aproximou-se da esposa com uma expressão suspeita, que parecia ocultar uma confiante complacência.

      – Tive uma idéia, Grace.

      – Sobre o quê? – foi a resposta desinteressada.

      – Sobre Gloria.

      – Você não vai sugerir que compremos de volta aquele robô!

      – Não. É claro que não.

      – Então diga logo. Acho melhor eu lhe dar ouvidos. Nada do que eu fiz parece ter dado certo.

 – Muito bem. Eis o que tenho pensado: todo o problema com Gloria é que ela pensa em Robbie como uma pessoa, e não como uma máquina. É natural que não consiga esquecê-lo. Ora, se conseguirmos convencê-la de que Robbie nada mais é do que um monte de aço e cobre sob forma de chapas e fios, com a eletricidade lhe servindo de fluido vital, por quanto tempo perdurarão suas saudades? Trata-se de um ataque psicológico, se você consegue entender meu ponto de vista.

 – Como pretende conseguir isso?

      – É muito simples. Onde pensa que fui ontem? Convenci Robertson, da U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A., a programar uma visita completa às instalações da companhia, amanhã. Nós três iremos juntos e quando ter- minarmos a visita, Gloria estará persuadida de que um robô não é um ser vivo. 

      Os olhos da Sra. Weston abriram-se lentamente e neles surgiu um brilho muito semelhante a uma súbita admiração.

      – Ora, George, é uma ótima idéia.

George Weston estufou o peito, forçando os botões do colete.

      – É o único tipo de idéias que eu tenho.

      O Sr. Struthers era um gerente-geral consciencioso e, naturalmente, inclinado a ser um tanto tagarela. O plano combinado por George Weston resultou, portanto, em uma visita completa, detalhadamente explicada – talvez até demais – a todos os pontos das instalações. Todavia, a Sra. Weston não ficou entediada. Na verdade, fez com que o cicerone parasse várias vezes e pediu-lhe que repetisse suas explicações em linguagem mais simples, a fim de que Gloria pudesse entendê-las. Sob a influência de tal apreciação de sua capacidade narrativa, o Sr. Struthers expaniu-se jovialmente e tornou-se ainda mais comunicativo, se é que possível. George Weston, por sua vez, demonstrava crescente impaciência.

      – Perdão, Struthers – disse ele, interrompendo uma lição a respeito de células fotoelétricas – vocês não têm uma seção da fábrica onde só é utilizada a mão-de-obra dos robôs?

      – Hum? Oh, sim! Sim, naturalmente! – respondeu o gerente, sorrindo para a Sra. Weston. – Não deixa de ser uma espécie de círculo vicioso: robôs criando mais robôs. Naturalmente, não empregamos o método como uma prática generalizada. Em primeiro lugar, os sindicatos jamais permitiriam que o fizéssemos. Mas podemos fabricar uns poucos robôs utilizando exclusivamente a mão-de-obra dos robôs, simplesmente como uma espécie de experiência científica. Como podem ver – e bateu com o pincenez na palma da mão, para reforçar o argumento – o que os sindicatos não compreendem, e digo isso como alguém que sempre teve muita simpatia para com o movimento trabalhista em geral, é que o advento do robô, embora implicando, de início, em uma certa deslocação do trabalho, será inevitavelmente...

      – Sim, Struthers – tornou a interromper George Weston – mas, falando da seção da fábrica a que você se refere... podemos visitá-la? Tenho certeza que seria muito interessante.

      – Oh, sim! Sim, naturalmente! – afirmou o Sr. Struthers, recolocando o pincenez com um movimento convulsivo e puxando um pigarro embaraçado. – Sigam-me, por favor.

      Manteve-se relativamente calado, enquanto guiava os três visitantes por um comprido corredor e desceu um lance de escadas. Então, ao entrarem num enorme salão bem iluminado, que zumbia com a atividade metálica, suas comportas tornaram a abrir-se e o jorro de explicações voltou a brotar.

      – Eis aí! – exclamou, orgulhoso. – Somente robôs!

      Cinco homens trabalham como supervisores e nem mesmo permanecem neste recinto. No período de cinco anos, isto é, desde que iniciamos este projeto – não houve um único acidente. Naturalmente, os robôs montados aqui são relativamente simples, mas...

      Há muito tempo a voz do gerente-geral tornara-se apenas um murmúrio um tanto tranqüilizante aos ouvidos de Gloria. Na sua opinião toda aquela visita parecia bastante desinteressante e sem motivação, embora houvesse mui- tos robôs nas dependências da fábrica. Entretanto, nenhum deles se parecia com Robbie e ela os encarava com indisfarçado desprezo.

      Naquele recinto, porém, ela notou que não havia gente. Então, seu olhar incidiu sobre um grupo de seis ou sete robôs que trabalhavam afanosamente em torno de uma mesa redonda situada quase no centro do salão. Seus olhos se esbugalharam, incrédulos de surpresa. O salão era enorme. Ela não podia ver bem, mas um dos robôs se parecia com... parecia com... era ele!

      – Robbie!

      O grito de Gloria rasgou o ar e um dos robôs junto à mesa vacilou, largando a ferramenta que segurava. Gloria quase enlouqueceu de alegria. Esgueirando-se por baixo do corrimão de proteção, antes que seus pais pudessem contê-la, ela pulou agilmente para o chão, um pouco abaixo.

      Correu em direção a Robbie, agitando os braços, com o cabelo esvoaçando.

      Os três adultos, horrorizados, ficaram petrificados onde estavam, vendo o que a menina excitada não conseguia ver: enorme trator aproximava-se pesadamente pelo caminho que lhe fôra traçado.

      Passou-se uma fração de segundo antes que Weston recobrasse a presença de espírito, mas foram frações de segundo irrecuperáveis, pois agora seria impossível alcançar Gloria.

      Embora Weston pulasse o corrimão numa tentativa desesperada, tratava-se obviamente de um esforço inútil. O Sr. Struthers fez sinais frenéticos para que os supervisores detivessem o tratar; mas eles eram apenas humanos e levavam algum tempo para agir. 

      Apenas Robbie agiu imediatamente e com precisão.

      Com as pernas metálicas devorando o espaço que o separava de sua pequena dona, o robô partiu da direção aposta. Então, tudo aconteceu a um só tempo. Com um amplo movimento do braço, Robbie apanhou Gloria sem diminuir em um átimo sua velocidade e, consequentemente, deixando-a completamente sem fôlego devido à pancada. Weston, sem compreender tudo o que se passava, sentiu, mais do que viu, Robbie passar por ele e estacou subitamente, confuso. O tratar cruzou a trajetória de Gloria meio segundo depois que Robbie, tendo avançado mais três metros, parou com um ruído metálico de seus pés contra o chão.

      Gloria recobrou o fôlego, submetida a uma série de abraços fervorosos por parte dos pais, e voltou-se ansiosamente para Robbie. No que lhe dizia respeito, nada acontecera, exceto que ela encontrara o amigo.

      Mas a expressão da Sra. Weston alterou-se de alivio para severa suspeita. Virou-se para o marido e, a despeito de sua aparência descabelada e um tanto descomposta, conseguiu parecer bastante controlada.

      – Você engendrou tudo isto, não é?

      George Weston enxugou a testa com um lenço. Sua mão tremia e seus lábios só conseguiam curvar-se num sorriso fraco e extremamente pálido. A Sra. Weston prosseguiu o raciocínio.

      – Robbie não foi projetado para trabalhar em construção ou engenharia. Não poderia prestar-se a esse tipo de serviço. Você providenciou deliberadamente para que ele fosse colocado aqui, a fim de que Gloria o encontras- se. Foi você quem o fez!

      – Bem, fui eu – confessou Weston. – Mas, Grace, como poderia eu adivinhar que a reunião seria tão violenta. E Robbie salvou a vida de Gloria; você tem de admitir isso. Não pode mandá-la embora outra vez.

      Grace Weston refletiu. Virando-se para Gloria e Robbie, observou-os distraìdamente por alguns instantes. Gloria abraçava o pescoço do robô de um modo que teria estrangulado qualquer criatura que não fosse de metal e murmurava frases incoerentes num frenesi histérico. Os braços de aço-cromo de Robbie (capazes de transformar uma barra de aço com duas polegadas de diâmetro em um parafuso) envolviam delicada e carinhosamente a menina; seus olhos brilhavam com um tom vermelho muito profundo.

      – Bem – disse a Sra. Weston, afinal – creio que ele pode ficar conosco até enferrujar. Susan Calvin sacudiu os ombros.

      – Naturalmente que ele não ficou lá até enferrujar. O fato aconteceu em 1998. Em 2002, inventamos o robô móvel falante que, obviamente, tornou obsoletos todos os robôs mudos e que pareceu ser a gota de água em relação aos elementos contrários aos robôs. A maior parte dos governos do mundo proibiu o uso de robôs na Terra com qualquer objetivo que não fosse a pesquisa científica. As proibições foram promulgadas entre 2008 e 2007.

      – Quer dizer que, eventualmente, Gloria foi obrigada a desistir de Robbie?

      – Temo que sim. Imagino, porém, que foi mais fácil para ela aos quinze anos do que aos oito. Ainda assim, foi uma atitude estúpida e desnecessária por parte da humanidade. A U.S. Robôs chegou ao seu ponto mais baixo, sob o ponto de vista financeiro, justamente na época em que vim trabalhar para eles, em 2007. A princípio, cheguei a pensar que o meu emprego duraria poucos meses, mas, depois, tratamos simplesmente de desenvolver o mercado extraterrestre.

      – Então, firmou-se, é claro.

      – Não tanto. Começamos tentando adaptar os modelos que tínhamos à mão. Os primeiros robôs falantes, por exemplo. Tinham cerca de três metros e meio de altura, eram muito desajeitados e não serviam. Enuviamos uma quantidade deles para Mercúrio, a fim de auxiliar na construção da estação mineira lá instalada, mas o projeto falhou. Ergui os olhos, com total surpresa.

      – Falhou? Mas as minas de mercúrio são um investimento de muitos bilhões de dólares!

      – Atualmente. Mas somente a segunda tentativa obteve sucesso. Se quer informar-se a respeito, meu jovem, sugiro que procure Gregory Powell Ele e Michael Donovan cuidaram de nossos casos mais difíceis nas décadas de vinte e trinta. Há anos que não tenho notícias de Donovan, mas Powell está morando aqui mesmo em Nova York. Já é avô – uma idéia à qual é difícil acostumar-se. Só consigo pensar nele como um homem ainda jovem. É claro que eu também era mais moça.

      Tentei fazer com que ela continuasse a falar.

      – Se a senhora me fornecer um esboço dos fatos, Dra. Calvin, poderei pedir que o Sr. Powell complete posteriormente o quadro. (E foi exatamente o que fiz mais tarde.) Ela abriu as mãos magras sobre a mesa e olhou para elas.

      – Há dois ou três casos sobre os quais sei alguma coisa – declarou.

      – Comece por Mercúrio – sugeri.

      – Bem, creio que a Segunda Expedição a Mercúrio foi lançada em 2015. Tratava-se de uma expedição exploratória, financiada em parte pela U.S. Robôs e em parte pela Solar Minerais. Consistia em um novo tipo de robô, ainda experimental. Gregory Powell, Michael Donovan...

     

      Vamos nos unir

      Uma espécie de paz tinha durado um século e as pessoas haviam esquecido como era tudo o mais. Dificilmente saberiam reagir se tivessem descoberto que uma espécie de guerra havia finalmente chegado.

      Certamente, Elias Lynn, Chefe da Secretaria de Robótica, não sabia ao certo como devia reagir quando ele próprio concluísse. A Secretaria de Robótica estava sediada em Cheyenne, conforme a secular tendência para a descentralização, e Lynn encarava hesitantemente o jovem funcionário da Segurança que trouxera as notícias de Washington.

      Elias Lynn era um homem corpulento, quase fascinantemente simples, com olhos azuis-claros um pouco salientes. Geralmente, os homens não ficavam à vontade sob a fixidez daqueles olhos, mas o funcionário da Segurança permanecia calmo.

      Lynn achou que sua primeira reação devia ser de incredulidade. Diabo! Era incrível! Ele simplesmente não acreditava na coisa!

      Lynn se recostou confortavelmente na poltrona e perguntou.

      - A informação é segura?

      O funcionário da Segurança, que se apresentara como Ralph G. Breckenridge, mostrando suas credenciais, tinha a suavidade da juventude; lábios cheios, bochechas gordas que coravam facilmente e olhos francos. Seu traje estava fora da moda de Cheyenne, mas seguia o estilo arejado de Washington, onde, apesar de tudo, a Segurança ainda estava centralizada.

      Breckenridge corou e disse:

      - Não há dúvida.

      - Seu pessoal sabe tudo sobre Eles, suponho - disse Lynn, incapaz de eliminar um traço de sarcasmo da voz. Ele não estava consciente do uso comum de um pronome ligeiramente enfatizado na referência ao inimigo, um pronome com a equivalência da letra maiúscula de imprensa. Era hábito natural da sua geração e da que a precedera. Ninguém mais dizia “leste”, “vermelhos”, “soviéticos” ou “russos”. Seria confuso demais, pois alguns Deles não eram do leste, não eram vermelhos nem soviéticos e, especialmente, não eram russos. Parecia muito mais simples dizer Nós e Eles. Mais simples e muito mais preciso.

      Alguns viajantes freqüentemente relatavam que Eles faziam a mesma coisa. Do outro lado, Eles eram “Nós” (no idioma apropriado) e Nós éramos “Eles”.

      Muito dificilmente alguém ainda daria importância a essas coisas. Tudo era muito descontraído e propício. Não havia nem mesmo ódio. No início, a coisa fora chamada Guerra Fria. Agora, era apenas um jogo, quase um jogo bonachão, com regras tácitas e uma espécie de honestidade em segui-las.

      - Por que Eles iriam querer conturbar a situação? - disse abruptamente Lynn.

      Lynn se levantou e ficou olhando um mapa-múndi na parede, dividido em duas regiões com fracos traçados coloridos. Uma porção irregular à esquerda do mapa estava contornada por um verde suave. Uma menor, mas igualmente irregular porção à direita do mapa estava cercada de alaranjado: Nós e Eles.

      O mapa não havia se transformado muito em um século. A perda de Formosa e a conquista da Alemanha Oriental há uns oitenta anos fora a última modificação territorial de importância.

      Havia outra mudança, porém, suficientemente significativa e colorida no mapa. Há duas gerações, o território Deles fora de um vermelho gritante, cor de sangue, o Nosso um puro branco imaculado. Agora havia uma neutralidade acerca das cores. Lynn vira os Seus mapas e o mesmo acontecia no lado Deles.

      - Não fariam isso - disse Lynn.

      - Estão fazendo - disse Breckenridge - e seria melhor se acostumar com o fato. Evidentemente, senhor, eu percebo que não é agradável pensar que Eles podem estar muito à nossa frente em robótica.

      Seus olhos continuavam tão francos como antes, mas o gume afiado das palavras mergulhava profundamente, e Lynn tremeu com o impacto.

      Naturalmente, isso explicaria por que o Chefe da Robótica soube tão tarde da coisa... e através de um funcionário da Segurança. Ele se desclassificara aos olhos do Governo, se a Robótica havia realmente fracassado na batalha, Lynn não podia esperar benefícios políticos.

      Lynn falou com ar abatido:

      - Mesmo se o que você diz for verdade, eles não estão muito à nossa frente. Poderíamos construir robôs humanóides.

      - Poderíamos, senhor?

      - Sim, na realidade já construímos alguns modelos a título experimental.

      - Eles fizeram isso há dez anos. E há dez anos vêm fazendo progressos.

      Lynn estava perturbado. Ele se perguntava se sua incredulidade no tocante à coisa não era fruto de orgulho ferido e medo por seu emprego e reputação. Sentia-se embaraçado pela possibilidade de que pudesse ser isso e constrangido a se defender.

      - Escute, jovem - disse ele - a igualdade de condições entre Eles e Nós nunca foi perfeita, você sabe. Eles sempre estiveram à nossa frente num aspecto ou noutro e o mesmo acontece conosco. Se neste momento estão à nossa frente em robótica é porque aplicaram uma proporção maior de esforço em robótica do que Nós. E isso significa que algum outro ramo do nosso esforço de defesa recebeu uma maior fração do Nosso esforço, ao contrário Deles. Talvez estejamos à frente na pesquisa do campo de força ou na hiperatômica.

      Lynn ficou angustiado por sua própria declaração de que o empate não era perfeito. Era verdade, mas aí estava o único grande perigo que ameaçava o mundo. O mundo dependia de que o equilíbrio fosse o mais perfeito possível. Se a pequena desigualdade que sempre existia pendesse demais para um lado ou para o outro...

      Quase no início do que fora a Guerra Fria, ambos os lados tinham desenvolvido armas termonucleares e a guerra tornou-se impensável. A competição passou do campo militar para o campo econômico e psicológico, e aí ficara desde então.

      Mas sempre havia o esforço de ambas as partes para romper o equilíbrio, para criar uma defesa a cada possível ameaça, para criar uma ameaça que não pudesse ser defendida a tempo - alguma coisa que tornasse outra vez possível a guerra. E não porque um lado ou outro quisesse desesperadamente a guerra, mas porque ambos temiam que o lado contrário fizesse a descoberta crucial primeiro.

      Durante cem anos, cada parte mantivera a corrida equilibrada. E nesse processo, a paz fora mantida por cem anos. Como subprodutos da pesquisa continuamente intensiva, haviam sido desenvolvidos campos de força, controle de insetos e da energia solar, robôs. Ambos os lados estavam dando os primeiros passos na compreensão do mentalismo, nome dado à bioquímica e biofísica do pensamento. Ambos os lados possuíam bases na Lua e em Marte. A humanidade avançava a passos gigantescos sob as imperiosas exigências do equilíbrio.

      Era até mesmo necessário, para ambos os lados, serem, entre si mesmos, extremamente decentes e humanos, para evitar que, devido à crueldade e tirania, alguns passassem para o lado oposto.

      Era impossível que o equilíbrio fosse agora quebrado e houvesse guerra.

      - Quero consultar um de meus homens - disse Lynn. - Quero saber a opinião dele.

      - É de confiança?

      Lynn pareceu revoltado:

      - Meu Deus, haverá algum homem na Robótica que não tenha sido investigado e devassado até a morte pelo seu pessoal? Sim, eu respondo por ele. Se não pudermos confiar num homem como Humphrey Carl Laszlo, não teremos condições de enfrentar o tipo de ataque que, segundo você, Eles estão lançando... não importa o que mais fizéssemos.

      - Já ouvi falar de Laszlo - disse Breckenridge.

      - Ótimo. Você não o aprova?

      - Sim.

      - Então, eu o trarei aqui e saberemos o que ele pensa da possibilidade de que robôs possam invadir os Estados Unidos.

      - Não exatamente - disse Breckenridge em voz baixa. - O senhor ainda não entendeu toda a verdade. Descubra o que ele pensa sobre o fato de que os robôs já invadiram os Estados Unidos.

      Laszlo era neto de um húngaro que atravessara o que era então chamado Cortina de Ferro e, devido a isso, sentia-se comodamente acima de qualquer suspeita. Era um homem atarracado e calvo, com um olhar aguerrido sempre gravado num rosto emproado. Seu sotaque era visivelmente de Harvard e falava de forma quase excessivamente cordial.

      Para Lynn, consciente de que, após anos de administração, já não dominava tão inteiramente os vários aspectos da robótica moderna, Laszlo constituía excelente receptáculo de um conhecimento completo. Lynn sentia-se melhor com a simples presença do homem.

      - O que você acha? - perguntou Lynn.

      O rosto de Laszlo contorceu-se ferozmente numa careta.

      - Se Eles estão muito à nossa frente? Absolutamente não! Só se houvessem produzido humanóides que, mesmo de perto, pudessem passar por seres humanos. Isso, sem dúvida, significaria um considerável avanço em robô-mentálica.

      - Vocês estão pessoalmente envolvidos - disse friamente Breckenridge. - Deixando o orgulho profissional de lado, exatamente por que seria impossível que Eles estivessem à frente dos Estados Unidos?

      Laszlo deu de ombros:

      - Eu lhe asseguro que estou bem familiarizado com toda a literatura que possuem sobre robótica. Sei aproximadamente onde Eles estão.

      - Você sabe aproximadamente onde Eles querem que você pense que Eles estão, é o que você realmente quis dizer - corrigiu Breckenridge. - Já visitou o outro lado?

      - Não - disse Laszlo bruscamente.

      - Nem o senhor, Dr. Lynn?

      - Não, eu também não - disse Lynn.

      - Alguém da robótica visitou o outro lado nos últimos vinte e cinco anos? - perguntou Breckenridge com uma espécie de confiança, quase indicando que já sabia a resposta.

      Por alguns segundos, a atmosfera ficou pesada. Um mal-estar se estampou no rosto largo de Laszlo.

      - Na realidade - disse -, há muito tempo Eles não fazem qualquer conferência sobre robótica.

      - Há vinte e cinco anos - disse Breckenridge. - Isto não é significativo?

      - Talvez - disse Laszlo com relutância. - Há outra coisa que me preocupa, porém. Nenhum deles jamais compareceu às nossas conferências sobre robótica. Nenhum que eu possa me lembrar.

      - Eles foram convidados? - perguntou Breckenridge.

      - É claro! - interpôs rapidamente Lynn, de olhos arregalados.

      - Eles se recusam a assistir outros tipos de conferências científicas que fazemos? - disse Breckenridge.

      - Eu não sei - disse Laszlo, andando de um lado para o outro. - Não soube de nenhuma conferência que tenham assistido. E você, chefe?

      - Também não - Lynn respondeu.

      - Não acha - disse Breckenridge - que tudo se passa como se Eles não gostassem de ficar numa situação de ter de recusar um convite? Ou como se tivessem medo que um de Seus homens pudesse falar demais?

      Era exatamente o que parecia acontecer. Lynn sentiu a irremediável convicção de que a história da Segurança era verdadeira e que ele não tinha percebido nada do que se passara.

      Por que afinal não houvera contato entre os dois lados sobre robótica? Ocorria um fértil intercâmbio de pesquisadores em ambas as partes, numa estreita correspondência durante anos, desde os tempos de Eisenhower e Khrushchev.

      Existiam motivos muito bons para isso: uma honesta apreciação do caráter supranacional da ciência; impulsos de camaradagem que dificilmente estão de todo ausentes no ser humano; o desejo de sentir-se objeto de uma estimulante e interessada observação e de ver suas próprias noções, já ligeiramente envelhecidos, serem reconhecidas como novas e interessantes perante outros.

      Os próprios governos estavam ávidos de que aquilo continuasse. Havia sempre a impressão de que, ao procurar aprender o máximo e ensinar o mínimo, cada lado sairia ganhando na troca.

      Mas não no caso da robótica. Não aí!

      Esse único ponto modificava a apreciação do problema. E um ponto que, sem dúvida, fora conhecido todo o tempo. Lynn pensava sombriamente: Fomos complacentes demais.

      Como o outro lado não tinha feito nada publicamente sobre robótica, ele fora tentado a se acomodar numa atitude presunçosa, a sentir-se à vontade na certeza de uma suposta superioridade. Como não vira que era possível, e até mesmo provável, que Eles estivessem escondendo cartas na manga, um trunfo maior para usar no devido tempo?

      - Que vamos fazer? - Laszlo perguntou estremecendo.

      Era evidente que Laszlo seguira a mesma linha de pensamento e chegara às mesmas conclusões. Havia dez robôs humanóides em alguma parte dos Estados Unidos, cada um deles transportando um fragmento de uma bomba CT.

      CT! A corrida de puro horror na ciência das bombas havia terminado ali. CT! Conversão Total! O sol não teria mais suas características originais. A conversão total transformava o sol numa vela ordinária.

      Dez humanóides, individualmente inofensivos, podiam, pelo simples fato de se agruparem, exceder uma massa crítica e...

      Lynn ficou de pé num gesto brusco, as olheiras sob os olhos, que normalmente emprestavam a seu feio rosto um olhar de selvagem presságio, mostrando-se mais acentuadas do que nunca.

      - O que precisamos é conceber formas e meios de distinguir um humanóide de um humano, e encontrar rapidamente os humanóides.

      - Como rapidamente? - murmurou Laszlo.

      - Pelo menos cinco minutos antes deles se unirem - vociferou Lynn - e eu não sei quando será esse encontro.

      Breckenridge assentiu com a cabeça.

      - Sinto satisfação que esteja do nosso lado, senhor. Devo levá-lo a Washington para uma consulta, o senhor sabe...

      Lynn ergueu as sobrancelhas:

      - Está bem.

      Pareceu-lhe que, se demorasse mais tempo para convencer-se da situação, seria imediatamente substituído... se é que algum outro chefe da Secretaria de Robótica já não estaria sendo consultado em Washington. E, de repente, desejou avidamente que tivesse acontecido exatamente isso.

      Estavam ali o Primeiro Assistente Presidencial, o Secretário da Ciência, o Secretário da Segurança, o próprio Lynn e Breckenridge. Todos sentados em volta de uma mesa, nos calabouços de uma fortaleza subterrânea perto de Washington.

      O Assistente Presidencial Jeffreys era um homem imponente, elegante, com cabelos grisalhos e ar um tanto bonachão. Era robusto, rico em idéias e moderado, um verdadeiro político, exatamente como devia ser um Assistente Presidencial.

      Ele falou com decisão:

      - Há algumas questões que temos de enfrentar. Primeira, quando os humanóides irão se unir? Segunda, onde irão se reunir? Terceira, como podemos detê-los antes que se reúnam?

      Amberley, o Secretário da Ciência, balançou enfaticamente a cabeça assentindo. Fora decano da Engenharia Noroeste antes de sua designação. Era magro, de traços marcantes e visivelmente irritadiço. A ponta de seu dedo traçava lentamente círculos sobre a mesa.

      - Não se sabe quando eles se reunirão - disse. - Mas suponho que, sem dúvida, não demorará muito.

      - Por que você diz isso? - perguntou Lynn rispidamente.

      - Já estão, pelo menos, a um mês nos Estados Unidos. Assim diz a Segurança.

      Lynn virou-se maquinalmente para encarar Breckenridge. Macalaster, o Secretário da Segurança, interceptou o olhar.

      - A informação é confiável - disse Macalaster. - Não deixe que a aparente juventude de Breckenridge o iluda, Dr. Lynn. Ele nos é valioso também por causa de sua juventude. Na verdade, ele tem trinta e quatro anos e está há dez no departamento. Viveu cerca de um ano em Moscou e, sem ele, não saberíamos nada sobre este terrível perigo. Graças a Breckenridge, agora já temos a maioria dos detalhes.

      - Não os detalhes cruciais - disse Lynn.

      Macalaster, da Segurança, sorriu friamente. Seu queixo forte e olhos apertados eram bem-conhecidos do público, mas quase mais nada se sabia dele.

      - Todos nós somos limitadamente humanos, Dr. Lynn. O agente Breckenridge já fez muito.

      O Assistente Presidencial Jeffreys cortou a conversa:

      - Digamos que temos um certo tempo... Se pretendessem uma açáo instantânea, a coisa já teria ocorrido. Parece provável que estejam esperando um momento específico. Se conhecêssemos o ponto onde os robôs devem se reunir, talvez se tornasse evidente o tempo que a coisa levará para acontecer.

      - Se eles têm um objetivo CT vão querer nos mutilar o mais possível. Parece que o alvo teria que ser uma grande cidade. Sem dúvida, uma grande metrópole é um alvo perfeito para uma bomba CT. Penso que existem quatro possibilidades: Washington, como o centro administrativo; Nova Iorque, como o centro financeiro; Detroit e Pittsburgh como os dois principais centros industriais.

      - Aposto em Nova Iorque - disse Macalaster, da Segurança. - Tanto a administração quanto a indústria já foram tão descentralizadas que a destruição de uma determinada cidade não impediria uma retaliação instantânea.

      - Então, por que Nova Iorque? - perguntou Amberley, da Ciência, talvez num tom mais áspero do que pretendeu. - As finanças também foram descentralizadas.

        Uma questão moral. Talvez pretendam destruir nossa vontade de resistir, provocar uma rendição apenas pelo horror da primeira rajada. Na área metropolitana de Nova Iorque ocorreria a maior destruição de vida humana...

      - Teriam que ter muito sangue-frio - murmurou Lynn.

      - Eu sei - concordou Macalaster, da Segurança. - Mas seriam capazes de fazê-lo se achassem que isso significaria a vitória final de um só golpe. Poderíamos...

      Jeffreys, o Assistente Presidencial, ajeitou para trás os cabelos brancos.

      - Vamos admitir o pior - disse ele. - Vamos admitir que Nova Iorque seja destruída numa determinada época durante o inverno, de preferência imediatamente após uma séria nevasca, quando as comunicações ficam extremamente prejudicadas e a interrupção de serviços e abastecimento em áreas periféricas têm conseqüências muito graves. Como, numa situação dessas, poderíamos detê-los?

      Amberley, da ciência, foi sucinto:

      - Encontrar dez homens em duzentos e vinte milhões é achar uma agulha terrivelmente pequena num palheiro terrivelmente grande.

      Jeffreys balançou a cabeça:

      - Você colocou mal as coisas. Dez humanóides entre duzentos e vinte milhões de humanos.

      - Não há diferença - disse Amberley, da Ciência. - Não sabemos se um humanóide pode ser diferenciado de um ser humano à primeira vista. Provavelmente não. - Olhou para Lynn; os outros também. Lynn falou num tom grave:

      - Nós, em Cheyenne, não poderíamos fabricar um humanóide que passasse como humano à luz do dia.

      - Mas Eles podem - disse Macalaster, da Segurança. - E não me refiro apenas aos aspectos físicos. Temos certeza disso... Seus avançados procedimentos mentálicos chegaram a ponto de lhes permitir desdobrar o padrão microeletrônico do cérebro e enfocá-lo nas sendas positrônicas do robô.

      Lynn arregalou os olhos:

      - Está insinuando que Eles podem criar a réplica de um ser humano completo, com personalidade e memória?

      - Estou.

      - De seres humanos específicos?

      - Exatamente.

      - Isso também se baseia nas descobertas do agente Breckenridge?

      - Sim. A evidência não pode ser contestada. Lynn inclinou a cabeça pensando por um momento.

      - Então, dez homens nos Estados Unidos não são homens, mas humanóides - disse ele. - Terão trabalhado em cima de originais... Esses originais não poderiam ser orientais, muito facilmente identificáveis. Teriam de ser, sem dúvida, leste-europeus. Como então seriam introduzidos neste país? Com a rede de radar soando como um tambor por todas as fronteiras, como conseguiriam introduzir qualquer indivíduo, humano ou humanóide, sem o nosso conhecimento?

      - Isso pode ser feito - disse Macalaster, da Segurança. - Há certas infiltrações regulares através da fronteira. Homens de negócios, pilotos, até mesmo turistas. Essas infiltrações são vigiadas, é claro, mas dez pessoas podem ter sido seqüestradas e usadas como modelos para humanóides. Os humanóides teriam sido mandados de volta no lugar deles. Como não esperávamos uma substituição desse tipo, nada seria percebido. Para começar, se fossem americanos, não teriam dificuldades para entrar no país. É um fato lógico.

      - E mesmo os amigos ou a família deles não notariam a diferença?

      - Devemos presumir que não. Acredite-me, recebemos cada relatório onde pudesse haver indicações de ataques de amnésia ou mudanças perturbadoras na personalidade. Verificamos milhares de casos.

      Amberley, da Ciência, olhou para a ponta dos dedos.

      - Penso que providências comuns não vão funcionar. A ação deve vir da Secretaria de Robótica e eu confio no chefe dessa Secretaria.

      Novamente os olhos se voltaram com ênfase e expectativa para Lynn.

      Lynn sentiu amargamente ser o foco das atenções. Pareciam-lhe claros a razão e os objetivos daquela reunião. Tudo que ali foi dito já tinha sido dito antes. Estava certo disso. Não havia solução para o problema, nem qualquer sugestão fértil. Era tudo uma mecânica que servia apenas para constar um estratagema por parte de homens que temiam gravemente a derrota e desejavam colocar a responsabilidade clara e inequivocamente nas costas de alguém.

      E, apesar de tudo, isso era justo. Fora em robótica que Nós tínhamos falhado. E Lynn não era uma pessoa qualquer. Era Lynn, da Robótica, e a responsabilidade devia ser sua.

      - Farei o que puder - disse ele.

      Lynn passou a noite em claro. Uma ansiedade envolvia-lhe o corpo e a mente quando ele solicitou e obteve outra entrevista com o Assistente Presidencial Jeffreys, na manhã seguinte. Breckenridge estava lá, e embora Lynn preferisse uma reunião em particular, compreendeu a razão de sua presença. Era evidente que Breckenridge conseguira enorme influência junto ao governo, resultado imediato de seu bem-sucedido trabalho de inteligência. Bem, por que não?

      - Estive pensando - disse Lynn - na possibilidade de estarmos esperando inutilmente que o inimigo dê o seu sinal.

      - Em que sentido?

      - Estou certo que embora a impaciência da opinião pública às vezes aumente, ou os congressistas aproveitem para falar sobre isso, pelo menos o governo reconhece que o equilíbrio mundial é benéfico. Eles também podem reconhecer a mesma coisa. Dez humanóides com uma bomba CT é apenas um recurso trivial para romper o equilíbrio.

      - A destruição de quinze milhões de seres humanos dificilmente poderia ser considerada trivial.

      - É trivial do ponto de vista do poder mundial. Isso não nos desmoralizaria a ponto de nos levar à rendição, nem nos mutilaria a ponto de nos convencer de que não podíamos vencer. Ambos os lados têm evitado por muito tempo, e com pleno êxito, a velha ameaça de morte planetária. Tudo que poderiam conseguir era nos obrigar a lutar com menos uma cidade no mapa. Seria insuficiente.

      - Que está insinuando? - Jeffreys perguntou com frieza. - Que Eles não possuem dez humanóides em nosso país? Que não há uma bomba CT esperando a união dos humanóides?

       - Concordo que essas coisas estão aqui, mas talvez por uma razão maior que uma mera loucura de bombardeio em pleno inverno.

      - Como assim?

      - Talvez a destruição física resultante da reunião dos humanóides não seja o pior que possa acontecer. E a destruição moral e intelectual que resulta de todos esses dez estarem aqui? Com todo o devido respeito ao agente Breckenridge, Eles pretendiam que descobríssemos os humanóides. Suponho que os humanóides não estejam aqui para se unir, mas para se conservarem separados de modo a nos causar um bom motivo de preocupação.

      - Porquê?

      - Responda-me o seguinte: que medidas já foram tomadas contra os humanóides? Suponho que a Segurança esteja devassando as fichas de todos os cidadãos que já tenham atravessado a fronteira ou se aproximado suficientemente dela para tornar o seqüestro possível. Sei, desde que Macalaster mencionou ontem a coisa, que estão levantando casos psiquiátricos suspeitos. O que mais?

      - Pequenos aparelhos de raio X - disse Jeffreys - estão sendo instalados em pontos-chaves nas grandes cidades. Nos grandes estádios, por exemplo...

      - Onde dez humanóides poderiam se introduzir entre cem mil espectadores num jogo de rugby ou numa partida de pólo aéreo.

      - Exatamente.

      - E nos salões de concerto e igrejas?

      - Tivemos que começar por algum lugar. Não podemos fazer tudo ao mesmo tempo.

      - Particularmente porque é preciso evitar o pânico - disse Lynn. - Não é isso? De nada serviria ao público descobrir que, num momento imprevisível, alguma imprevisível cidade, juntamente com o seu material humano, cessaria subitamente de existir.

      - Creio que é óbvio. Onde você quer chegar?

      Lynn falou energicamente:

      - Uma imensa fração de nosso esforço nacional será inteiramente disperdiçada no irritante problema do que Amberley chamou descobrir uma agulha muito pequena num palheiro muito grande. Estaremos rodando loucamente atrás de nossas caudas, enquanto Eles intensificam sua frente de pesquisas, levando-as a um ponto onde não poderemos mais alcançá-las. Aí então é que teremos de nos render, sem ter nem a chance de abanar nossos dedos em retaliação.

      - Considere ainda - Lynn continuou - que as notícias podem transpirar e mais e mais pessoas serem envolvidas em nossas contramedidas e mais e mais pessoas começarem a desconfiar do que estamos fazendo. E então?... O pânico poderia nos causar mais prejuízo que qualquer bomba CT.

      - O que então, homem de Deus, você sugere que façamos? - Exclamou irritado o Assistente Presidencial.

      - Nada - disse Lynn. - Não responda ao blefe. Vivamos como sempre vivemos. Podemos apostar que Eles não ousarão romper o equilíbrio com o mergulho de cabeça de uma bomba.

      - Impossível! - disse Jeffreys. - Completamente impossível! O bem-estar dos Estados Unidos está muito amplamente em minhas mãos... Não fazer nada é a única coisa que não posso fazer. Concordo com você, talvez, que as máquinas de raio X nos campos de esporte são apenas uma medida superficial, sem grande eficiência, mas isso tem de ser feito para que aquelas pessoas, diante das conseqüências de um ataque, não cheguem à amarga conclusão de que deixamos o país à deriva por causa de uma sutil linha de raciocínio que encoraja a inação. De fato, nossa resposta será bem atuante.

      - De que forma?

      O Assistente Presidencial Jeffreys olhou para Breckenridge. O jovem funcionário da Segurança, até então calmamente silencioso, disse:

      - De nada vale falar sobre um possível rompimento futuro do equilíbrio, quando o equilíbrio já foi quebrado. Não importa se esses humanóides explodem ou não. Talvez sejam apenas uma isca para nos distrair, como você diz. Mas continua de pé o fato de que estamos um quarto de séculos atrasados em robótica, e isso pode ser fatal. Que outros avanços em robótica não nos tomarão de surpresa se a guerra começar? A única solução é dirigir imediatamente, agora, toda a nossa força para um programa impacto de pesquisa robótica,- e o primeiro problema é encontrar os humanóides. Chame isso, se quiser, de um exercício em robótica, ou chame de prevenção da morte de quinze milhões de homens, mulheres e crianças.

      Lynn sacudiu desanimadamente a cabeça.

      - Você não pode pensar assim. Seríamos um brinquedo nas mãos deles. Querem nos atrair para um caminho escuro, ficando livres para avançar em todas as direções.

      - Esta é a sua opinião - disse Jeffreys com impaciência.

      - Breckenridge fez sua sugestão através dos canais competentes, o governo aprovou e vamos começar com uma reunião de toda a Ciência.

      - Toda a Ciência?

      - Relacionamos todos os cientistas importantes de cada ramo da ciência natural - disse Breckenridge. - Todos estarão em Cheyenne. Haverá um único ponto na agenda: como desenvolver a robótica. A maior subdivisão específica será: como desenvolver um aparelho receptor para os campos eletromagnéticos do córtex cerebral, suficientemente delicado para distinguir entre um cérebro humano protoplasmático e um cérebro humanóide positrônico.

      - Esperamos que esteja disposto a se encarregar da reunião - disse Jeffreys.

      - Não fui consultado sobre isso.

      - Obviamente o tempo era curto. Concorda em se encarregar da reunião?

      Lynn sorriu laconicamente. Era novamente um problema de responsabilidade. A responsabilidade devia ser claramente de Lynn, da Robótica. Mas tinha a sensação que Breckenridge é quem ficaria realmente encarregado. E o que podia fazer?

      - Concordo - respondeu.

      Breckenridge e Lynn voltaram juntos para Cheyenne, onde, naquela mesma noite, Laszlo ouviu, com rabujenta desconfiança, a narração dos últimos acontecimentos.

      - Enquanto você estava fora, chefe - disse Laszlo -, comecei a encaminhar cinco modelos experimentais de estruturas humanóides para os procedimentos de teste. Nossos homens estão trabalhando doze horas por dia em três turnos sobrepostos. Se tivermos que preparar um encontro de cientistas, ficaremos assoberbados de problemas até a raiz dos cabelos... e teremos de interromper o trabalho.

      - Será apenas temporariamente - disse Breckenridge. - Vão ganhar mais que perder.

      Laszlo franziu a testa:

      - Uma multidão de astrofísicos e geoquímicos andando por aí não ajudará em nada o progresso da robótica.

      - Pontos de vista de especialistas dos outros campos podem ser úteis.

      - Tem certeza? Como sabemos se há algum meio de detectar ondas cerebrais ou, se isso for possível, que haja um meio de diferenciar humanos e humanóides pelo padrão das ondas? Quem deu a idéia do projeto?

      - Eu - disse Breckenridge.

      - Você! Você é um homem da robótica?

      - Estudei robótica - respondeu calmamente o jovem agente da Segurança.

      - Não é a mesma coisa.

      - Tive acesso ao material sobre o assunto lidando com a robótica russa... na Rússia. Material altamente secreto, bem à frente de tudo que vocês têm aqui.

      - Esse é um ponto importante, Laszlo - disse Lynn num tom de pesar.

      - Foi à base desse material - continuou Breckenridge - que sugeri esta linha particular de investigação. É razoavelmente certo que, ao passar um padrão eletromagnético de uma mente humana específica para um cérebro positrônico específico, não se consegue uma reprodução perfeitamente exata. Por alguma razão, o complicadíssimo cérebro positrônico, suficientemente pequeno para caber dentro de um crânio humano, é centenas de vezes menos complexo que um cérebro humano. Pode, no entanto, captar toda a riqueza de uma linguagem, e, de algum modo, devemos poder aproveitar esse fato.

      Laszlo olhou impressionado, mesmo a contragosto, Lynn sorriu penosamente. Era fácil ter ressentimentos de Breckenridge e da intromissão de várias centenas de cientistas de especialidades não roboticistas, mas o problema em si era, sem dúvida, intrigante. Pelo menos, havia essa consolação.

      Lynn aceitou serenamente os fatos.

      Descobriu que nada tinha a fazer além de ficar sozinho sentado na sua sala, numa posição executiva que se tornara meramente titular. Talvez isso ajudasse. Dava-lhe tempo para pensar, imaginar os mais criativos cientistas de meio-mundo, convergindo para Cheyenne.

      Era Breckenridge que, com fria eficiência, cuidava dos detalhes da preparação da conferência. Houvera uma espécie de confiança no caminho quando ele disse:

      - Vamos nos unir e os derrotaremos. Vamos nos unir.

      Lynn ficou absorto e qualquer um que o contemplasse naquele momento poderia ver seus olhos piscarem lentamente duas vezes... mas certamente não mais que isso.

      Fez o que devia fazer com uma isenção e determinação que o conservaram calmo, mesmo quando sentiu que, muito justificadamente, devia estar enlouquecendo.

      Procurou Breckenridge nas instalações improvisadas para o agente da Segurança. Breckenridge estava sozinho e franziu a testa:

      - Alguma coisa errada, senhor?

      Lynn falou com ar fatigado:

      - Acho que tudo está errado... Invoquei a lei marcial.

      - Quê?!

      - Como chefe de um departamento posso fazer isso se achar que a situação o exige. Em meu departamento posso ser um ditador. Essa é, sem dúvida, uma das vantagens da descentralização.

      - Você rescindirá imediatamente esta ordem! - Breckenridge deu um passo à frente. - Quando Washington souber disso, ficará arruinado.

      - De qualquer modo, já estou arruinado. Acha que não percebo que me designaram para o papel do maior vilão da história americana? O homem que deixou que Eles rompessem o equilíbrio!... Não tenho nada a perder... e talvez tenha muito a ganhar.

      Riu de uma forma um tanto selvagem.

      - Que alvo seria a Divisão de Robótica, hem, Breckenridge? Apenas uns poucos milhares de homens para serem mortos por uma bomba CT capaz de varrer trezentas milhas quadradas numa fração de segundos... Mas quinhentos desses homens seriam os nossos maiores cientistas. Ficaríamos na posição de precisar levar uma guerra à frente sem os nossos melhores cérebros... ou então nos rendermos. Acho que teríamos nos rendido.

      - Mas é impossível! Lynn, você está me ouvindo!? Você compreende? Como os humanóides poderiam atravessar nossa segurança? Como poderiam se unir?

      - Mas eles estão se unindo agora! Estamos ajudando-os a fazer isto. Estamos ordenando que façam isso! Nossos cientistas visitam o outro lado, Breckenridge. Visitam regularmente o outro lado. Você não achava muito estranho que ninguém da robótica fizesse o mesmo? Bem, dez desses cientistas ainda estão lá e, no lugar deles, dez humanóides convergem para Cheyenne.

      - É uma idéia ridícula!

      - Penso que é uma boa idéia, Breckenridge. Mas a coisa só funcionaria se soubéssemos que há humanóides na América, porque seria necessário, em primeiro lugar, convocar esta conferência. Foi unicamente uma coincidência que você tenha trazido as notícias dos humanóides e sugerido a conferência e sugerido a agenda e estivesse montando o “show” e soubesse exatamente que cientistas seriam convidados... Você tem certeza que os dez foram incluídos?

      - Dr. Lynn! - gritou Breckenridge ultrajado, fazendo um movimento para escapar.

      - Não se mova - disse Lynn. - Tenho um detonador aqui. Vamos apenas esperar que os cientistas cheguem, um a um. Um a um serão submetidos ao raio X. Verificaremos a radioatividade um por um. Nenhum se juntará a outro antes de ser checado e, se não houver nada com nenhum dos quinhentos, então lhe darei meu detonador e me renderei a você. Mas realmente acredito que encontraremos os dez humanóides. Sente-se, Breckenridge.

      Ambos sentaram-se.

      - Vamos esperar - disse Lynn. - Quando eu estiver cansado, Laszlo virá me substituir. Nós vamos esperar.

     

      O Professor Manuelo Jiminez, do Instituto de Altos Estudos de Buenos Aires, explodiu quando o jato estratosférico em que viajava estava a três milhas sobre a região amazônica. Foi uma simples explosão química, mas suficiente para destruir o avião.

      O Dr. Herman Liebowitz, do M.I.T., explodiu num monotrem, matando vinte pessoas e ferindo outras cem.

      De modo parecido, o Dr. Auguste Marin, do Instituto Nuclear de Montreal, e sete outros cientistas, morreram em determinados pontos de sua viagem para Cheyenne.

      Laszlo ficou chocado, pálido e gago com as primeiras informações sobre o que ocorria. Lynn estava sentado há apenas duas horas com Breckenridge, encarando o agente da Segurança com o detonador na mão.

      - Pensei que estivesse maluco, chefe - disse Laszlo - mas você estava certo. Eram humanóides. Tinham de ser.

      Laszlo se virou para encarar Breckenridge com olhos cheios de ódio.

      - Só que eles foram avisados. Ele os avisou e ficamos sem nenhum intacto. Sem nenhum para analisar.

      - Deus! - gritou Lynn, e, num movimento rápido, frenético, apontou seu detonador para Breckenridge e atirou. O pescoço do homem da Segurança se dissipou, o tronco caiu, a cabeça tombou, bateu contra o solo e rolou tortuosamente. Lynn falou num tom de lamento:

      - Não entendo. Pensei que fosse um traidor, nada mais.

      E Laszlo permaneceu imóvel, a boca aberta, incapaz de falar.

      - Sem dúvida, ele os avisou - disse Lynn furiosamente. - Mas como poderia fazer isso sentado nesta cadeira?... A menos que estivesse equipado com um radio transmissor... Você não acha? Breckenridge esteve em Moscou. O verdadeiro Breckenridge ainda está lá. Oh, meu Deus, eles eram onze!

      Laszlo conseguiu falar em um guincho áspero:

      - Por que ele não explodiu?

      - Suponho que estava esperando para certificar-se de que os outros haviam recebido a mensagem e tinham efetivamente se destruído. Meu Deus, meu Deus, quando você trouxe as notícias e toda a verdade ficou esclarecida, eu soube atirar com suficiente rapidez. Deus sabe por quantos segundos me adiantei a ele!

      - Pelo menos - Laszlo estremeceu - temos um para estudar!

      Ele se curvou e pôs os dedos no fluido pegajoso que escorria do corpo sem cabeça, por entre os restos mutilados da base do pescoço.

      Nenhum sangue, mas óleo altamente concentrado para máquinas.

     

      Imagem especular

      As Três Leis da Robótica:

      1. Um robô não deve fazer mal a um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra qualquer mal.

      2. Um robô deve obedecer a qualquer ordem dada por um ser humano, desde que essa ordem não interfira com a execução da Primeira Lei.

      3. Um robô deve proteger a sua existência desde que esta proteção não interfira com a Primeira e Segunda Leis.

      Lije Baley acabara de decidir-se a acender o seu cachimbo, quando a porta de seu escritório abriu-se sem nenhuma batida preliminar ou anúncio de qualquer espécie. Baley ergueu o olhar, pronunciadamente aborrecido, e então deixou cair o cachimbo. Já era muito revelador de seu estado de espírito o fato de tê-lo deixado onde caíra.

      — R. Daneel Olivaw! — disse ele, numa espécie de entusiasmo perplexo. - Por São Josafá! É você mesmo, não é?

      — Absolutamente certo - disse o recém-chegado, alto e bronzeado, suas feições regulares não estremecendo por um só momento, em sua costumeira calma. - Lamento surpreendê-lo por entrar sem avisar, mas a situação é delicada, e deve haver o mínimo envolvimento possível por parte de homens e robôs, mesmo neste lugar. De qualquer modo, gostei de vê-lo de novo, meu amigo Elijah.

      E o robô estendeu sua mão direita num gesto tão humano quanto era sua aparência. Baley é que parecia tão desumanizado por seu assombro, que ficou olhando para a mão com uma momentânea falta de intelecção.

      Mas então agarrou-a com as duas mãos, sentindo sua cálida firmeza. - Mas, Daneel, por quê? Você é bem-vindo a qualquer momento, mas... o que é essa situação tão delicada? Estamos em dificuldades de novo? A Terra, quero dizer?

      — Não, amigo Elijah, não se trata da Terra. A situação à qual me refiro como delicada é, pelas aparências, uma coisa pequena. Uma disputa entre matemáticos, nada mais. E como por acaso estávamos, bem acidentalmente, à distância de um Salto fácil da Terra...

      — Essa disputa teve lugar a bordo de uma espaçonave, então?

      — Sim, de fato. Uma pequena disputa, se bem que para os humanos nela envolvidos, estupendamente grande.

      Baley nada conseguiu fazer, senão sorrir. - Não me surpreendo que você ache os humanos meio estúpidos. Eles não obedecem às Três Leis.

      — Isso é, realmente, uma deficiência — disse R. Daneel, grave -, e acho que os próprios humanos ficam desorientados com os humanos. Pode ser que você se surpreenda menos por haver tantos humanos a mais na Terra que nos outros mundos do espaço. Se for assim, o que acredito que seja, então você poderia nos ajudar.

      R. Daneel fez uma pausa momentânea e então disse, talvez um pouquinho depressa demais: - E no entanto, há regras do comportamento humano que aprendi. Parece, por exemplo, que fui deficiente, segundo a etiqueta, pelos padrões humanos, em não perguntar por sua esposa e seu filho.

      — Eles estão indo bem. O menino está no colégio, e Jessie está envolvida com a política local. Quanto às amenidades, já as tratamos; agora, diga-me por que veio aqui.

      — Como disse, estávamos à distância de um pequeno Salto da Terra, e assim, sugeri ao capitão que o consultássemos.

      — E o capitão concordou? - Baley teve uma súbita visão do orgulhoso e autocrático capitão de uma nave estelar consentindo em fazer um pouso na Terra —justo neste, de todos os mundos — e consultar um terráqueo — dentre todos os povos.

      — Acredito que ele estava numa posição tal que concordaria com qualquer coisa. Ademais, elogiei você altamente, se bem que, para falar a verdade, falei só a verdade. Por fim, concordei em conduzir todas as negociações, de modo que ninguém da tripulação, ou passageiros, precisasse entrar em nenhuma das cidades humanas.

      — Nem conversar com nenhum terráqueo, claro. Mas, o que aconteceu?

      — Os passageiros da espaçonave Eta Carina incluem dois matemáticos que estão de viagem para Aurora para presenciarem uma conferência interstelar de neurobiofísica. É sobre estes matemáticos, Alfred Barr Humboldt e Gennao Sabbat; eles sâ”o o centro das disputas. Quem sabe, amigo Elijah, se já não ouviu falar de um deles, ou de ambos?

      — Nenhum deles - respondeu Baley, firmemente. - Nada sei de matemática. Olhe, Daneel, por certo que não disse a ninguém que sou um aficcionado da matemática, ou...

      — Não, absolutamente, amigo Elijah. Sei que você não é. Tampouco importa, pois que a natureza da matemática envolvida de modo algum é relevante para o ponto em questão.

      — Então, continue.

      — Como nenhum dos dois homens é de seu conhecimento, a-migo Elijah, deixe-me dizer-lhe que o dr. Humboldt está bem em sua vigésima sétima década... o que ia dizer, amigo Elijah?

      — Nada, nada - disse Baley, irritado. Meramente resmungara para si mesmo, mais ou menos incoerentemente, numa reação natural contra as vidas muito longas dos espaçonautas. - E ele ainda está ativo, a despeito da idade? Na Terra, os matemáticos, depois dos trinta, mais ou menos...

      Daneel respondeu, calmamente: — O dr. Humboldt é um dos três maiores matemáticos, por uma reputação há muito estabelecida, em toda a galáxia. Por certo que ele ainda está ativo. 0 dr. Sabbat, por outro lado, é bem jovem, ainda não chegou aos cinqüenta, mas já se estabeleceu como o mais notável novo talento nos ramos mais abs-trusos da matemática.

      — São ambos grandes, então. - Baley lembrou-se de seu cachimbo e o apanhou. Decidiu que não fazia sentido acendê-lo agora, e sacudiu seus restos de fumo. - Que aconteceu? Um assassinato? Será que um deles matou o outro?

      — Destes dois homens de grande reputação, um está tentando destruir a do outro. Pelos valores humanos, creio que isso pode ser visto como pior que o assassínio físico.

      — Por vezes, sim, eu suponho. Qual está tentando destruir o outro?

      — Ora, isso, meu amigo Elijah, é precisamente a questão. Qual?

      — Continue.

      — O dr. Humboldt contou a história claramente. Pouco antes de subir a bordo da espaçonave, teve uma intuição de um possível método para analisar as trajetórias neurais a partir de alterações nos padrões de absorção de microondas em áreas corticais localizadas. A intuição foi uma pura técnica matemática de extraordinária sutileza, mas eu não posso, é claro, entendê-lo ou transmitir os pormenores de maneira simples. Isto, porém, não importa. O dr. Humboldt considerou a questão e a cada hora foi ficando mais convencido de que tinha algo revolucionário em mãos, algo que apequenaria todos os seus feitos anteriores em matemática. Então descobriu que o dr. Sabbat estava a bordo.

      — Ah! E ele tentou discutir a tese com o jovem Sabbat?

      — Exatamente. Os dois já tinham se encontrado em conferências profissionais antes e conheciam-se bem, de reputação. Humboldt entrou em grande detalhe com Sabbat. Sabbat apoiou inteiramente a análise de Humboldt e foi irrestrito em elogiar a importância da descoberta. Animado e confiante com isto, Humboldt esboçou um artigo sumariando seu trabalho e, dois dias depois, preparou-o para transmissão subetérica aos presidentes da conferência em Aurora, para que pudesse oficialmente estabelecer sua prioridade e fazer arranjos para uma possível discussão antes que as sessões fossem fechadas. Para sua surpresa, descobriu que Sabbat já tinha pronto um artigo de sua autoria, essencialmente o mesmo que de Humboldt, e Sabbat também o estava preparando para subeterizar para Aurora.

      — Suponho que Humboldt ficou furioso.

      — Muito.

      — E Sabbat? O que disse?

      — Precisamente o mesmo que Humboldt. Palavra por palavra.

      — Então, qual é o problema?

      — Nenhum, exceto pela imagem especular, a troca dos nomes. De acordo com Sabbat, foi ele que teve a intuição, e foi ele que consultou Humboldt; foi Humboldt que concordou com a análise e a elogiou.

      — Então cada um alega que a idéia é dele, e que o outro a roubou. Não soa para mim como um problema, de modo algum. Em questões acadêmicas, pareceria apenas necessário dispor dos registros de pesquisa, datados e com as iniciais. O julgamento sobre a prioridade poderia ser feito a partir daí. Mesmo que um trabalho seja falsificado, pode ser descoberto através de suas inconsistências internas.

      — Ordinariamente, amigo Elijah, isso estaria certo, mas trata-se de matemática, e não de uma ciência experimental. O dr. Humboldt alega ter elaborado as partes essenciais mentalmente. Nada foi posto por escrito até o artigo ser preparado. O dr. Sabbat, é claro, alega precisamente a mesma coisa.

      — Bem, então seja mais drástico e dispense essa parte. Sujeite cada um a uma sonda psíquica e descubra qual dos dois está mentindo.

      R. Daneel abanou a cabeça, lentamente. - Amigo Elijah, não está entendendo esses homens. Ambos são de alto nível e escolaridade, “Fellows” da Academia Imperial. Como tais, não podem ser sujeitos a julgamento da conduta profissional, exceto por um júri de seus iguais — seus iguais profissionais — a menos que eles voluntariamente, e pessoalmente, renunciem a esse direito.

      — Apresente-lhes essa alternativa, então. O culpado não desejará renunciar a esse direito, pois não poderá defrontar-se com a sonda psíquica. O inocente renunciará de imediato. Nem mesmo precisarão usar a sonda.

      — Isso não funcionará, amigo. Renunciar a esse direito num tal caso - ser investigado por leigos — é um golpe sério, e talvez irrecuperável para o prestígio. Ambos recusam-se inamovivelmente a renunciar ao direito a um tribunal especial, por uma questão de orgulho. A questão de culpa ou inocência é bem secundária.

      — Nesse caso, deixe as coisas como estão, por hora. Deixe o assunto no gelo até chegarem em Aurora. Na conferência neurobiofísi-ca haverá um grande número de iguais a eles, e então...

      — Isso significaria um forte golpe para a própria ciência, pois ambos sofreriam, sendo instrumentos de um escândalo. Mesmo o inocente seria acusado de ter tomado parte numa situação tão desagradável. Sentir-se-ia que o assunto deveria ser resolvido fora de um tribunal, a qualquer custo.

      — Está bem; não sou um espaçonauta, mas procurarei imaginar que esta atitude faz sentido. O que os homens em questão dizem?

      — Humboldt concorda com tudo. Diz que se Sabbat admitir ter roubado a idéia e permitir que Humboldt continue com a transmissão do artigo, ou pelo menos o entregue na conferência, não fará nenhuma acusação. O erro de Sabbat ficará em silêncio, no que depender dele; e, é claro, com o capitão, que é o único outro humano a tomar parte na disputa.

      — Mas o jovem Sabbat não concorda?

      — Ao contrário, concordou com o dr. Humboldt até o último detalhe - com a devida reversão dos nomes. Ainda uma imagem especular.

      — Então eles só ficam parados, empatados?

      — Cada um, acredito, está esperando que o outro desista e admita a culpa.

      — Ora, então espere.

      — O capitão decidiu que isto não poderá ser feito. Há duas alternativas a esperar, veja só. A primeira é que ambos continuem em sua teimosia, de modo que quando a espaçonave pousar em Aurora,

      o escândalo intelectual virá à tona. O capitão, que é o responsável pela justiça a bordo, cairá em desgraça por não ter sido capaz de resolver o assunto silenciosamente, e para ele, isto é intolerável.

      — E a segunda alternativa?

      — É que um ou outro dos matemáticos de fato admita ter cometido um erro. Mas o que confessar, tê-lo-á feito por culpa real, ou por um nobre desejo de evitar qualquer escândalo? Seria direito privar do crédito alguém que é ético o suficiente que prefira perder um crédito do que ver toda a ciência sofrer? Ou mais, o culpado confessará no último momento, de tal modo a fazer parecer que o faz apenas em benefício da ciência, assim escapando à desgraça de sua ação e lançando sua sombra sobre o outro. O capitão será o único a saber de tudo isto, mas ele não quer passar o resto de sua vida pensando que tomou parte num grosseiro erro judiciário.

      Baley suspirou. - Um jogo de frango intelectual. Quem vai quebrar o ossinho primeiro, à medida que Aurora vai ficando cada vez mais perto? É essa toda a história?

      — Ainda não; há testemunhas da transação.

      — Por São Josafá! Por que não falou logo? Que testemunhas?

      — O criado pessoal do dr. Humboldt...

      — Um robô, eu suponho.

      — Sim, por certo. Chama-se R. Preston. Este servo, R. Preston, esteve presente durante a conferência inicial e apoia o dr. Humboldt em cada detalhe.

      — Você quer dizer que ele diz que a idéia era do dr. desde o início, e que o dr. Humboldt a descreveu ao dr. Sabbat, o dr. Sabbat elogiou a idéia, e assim por diante?

      — Sim, em todo pormenor.

      — Percebo. Isso resolve o assunto ou não? Presumivelmente não.

      — Isso mesmo. Não resolve o assunto, pois há uma segunda testemunha. O dr. Sabbat também tem um criado pessoal, R. Idda, outro robô, que por coincidência é do mesmo modelo que R. Preston, segundo creio, feito no mesmo ano na mesma fábrica. Ambos têm estado em serviço pelo mesmo período.

      — Uma estranha coincidência — muito estranha.

      — Um fato, e receio que torna difícil chegar a qualquer conclusão baseado nas diferenças óbvias entre os dois servos.

      — R. Idda então conta a mesma história que R. Preston?

      — Precisamente a mesma história, a imagem especular, mas com a troca dos nomes.

      — R. Idda então disse que o jovem Sabbat, o que ainda não

      tem cinqüenta - Lije Baley não tirou totalmente o tom sardônico de sua voz; ele mesmo ainda não tinha cinqüenta e sentia-se longe de ser jovem - teve a idéia, para começar; descreveu-a ao dr. Humboldt, que a elogiou em altos brados, e etcétera.

      — Sim, meu amigo Elijah.

      — E um robô está mentindo, entâ”o.

      — É o que parece.

      — Imagino ser fácil dizer qual. Creio que mesmo um exame superficial por um bom roboticista...

      — Um roboticista não é suficiente neste caso, amigo Elijah. Só um robopsicólogo qualificado teria o peso e a experiência suficientes para tomar uma decisão num caso dessa monta. Não há nenhum com essa qualificação a bordo da nave. Tal exame só poderia ser feito quando atingíssemos Aurora...

      — E a essa altura, a lama já chegou no ventilador. Bem, você está aqui na Terra. Podemos caçar um robopsicólogo, e certamente qualquer coisa que aconteça na Terra nunca chegará aos ouvidos de Aurora e não haverá escândalo.

      — Exceto que nem o dr. Humboldt nem o dr. Sabbat permitirão que seus criados sejam examinados por um robopsicólogo da Terra. O terráqueo teria de... — E fez uma pausa.

      Lije Baley completou, estolidamente: —Ele teria de tocar o robô.

      — Esses criados são antigos, bem cuidados...

      — E não devem ser contaminados pelo toque de um terráqueo. Então para que vocês me querem, raios! - Interrompeu-se, carran-cudo. - Lamento, R. Daneel, mas não vejo nenhuma razão pela qual você devesse me envolver nisto.

      — Eu estava a bordo numa missão totalmente irrelevante para o problema em questão. O capitão recorreu a mim porque ele precisava recorrer a alguém. Pareci humano o bastante para que conversasse comigo, e robô o bastante para ser um receptáculo seguro para confidencias. Contou-me toda a história e perguntou-me o que eu faria. Percebi que o Salto seguinte nos traria tão facilmente á Terra quanto ao nosso objetivo. Disse isso ao capitão, muito embora estivesse tão desorientado quanto ele para resolver o problema do espelho, mas havia alguém na Terra que poderia ajudar.

      — São Josafá! - murmurou Baley, sem fôlego.

      — Considere, amigo Elijah, que se tiver sucesso em resolver este enigma, faria bem á sua carreira, e a própria Terra poderia se beneficiar disto. A questão não poderia ter publicidade, é claro, mas o capitão é homem de alguma influência, em seu planeta natal, e ficar-

      lhe-ia grato.

      — Só serve para me pressionar mais ainda.

      — Tenho toda confiança que você terá alguma idéia sobre o procedimento a seguir.

      — Mesmo? Suponho que o procedimento óbvio é entrevistar os dois matemáticos, um dos quais pareceria ser um ladrão.

      — Creio, amigo, que nenhum virá à cidade. Nem nenhum gostaria que você fosse até ele.

      — E não há maneira de forçar um espaçonauta a ter contato com um terráqueo, não importa qual a emergência. Sim, entendo isso, Daneel... mas eu estava pensando numa entrevista por televisão em circuito fechado.

      — Tampouco isso. Eles não se submeterão a um interrogatório por um terráqueo.

      — Então... o que querem de mim? Posso falar com os robôs?

      — Não querem deixar os robôs virem aqui, também.

      — Por São Josafá, Dannel! Você veio aqui.

      — Essa foi decisão unicamente minha. Tenho permissão, enquanto a bordo, de tomar decisões dessa espécie sem veto do ser humano, exceto o próprio capitão, e ele estava ansioso por estabelecer esse contato. Eu, como o conhecia, decidi que o contato por televisão seria insuficiente. Queria apertar sua mão.

      Lije Baley amoleceu. — Gostei disso, Daneel, mas ainda honestamente gostaria que não tivesse pensado em mim neste caso. Posso falar com os robôs pela televisão, ao menos?

      — Isso, eu acho, pode ser arranjado.

      — Já é alguma coisa, pelo menos. Isso significa que estarei fazendo o trabalho de um robopsicólogo rudimentar.

      — Mas você, amigo Elijah, é um detetive, e não um robopsicólogo.

      — Bem, deixe isso pra lá. Agora, antes que eu os veja, vamos raciocinar um pouco. Diga-me: é possível que ambos os robôs estejam falando a verdade? Talvez a conversação entre os dois matemáticos tenha sido equívoca. Talvez fosse de tal natureza que cada robô honestamente poderia acreditar que seu próprio senhor fosse proprietário da idéia. Ou talvez um robô ouviu só parte da discussão e o outro, uma outra parte, de modo que cada um pudesse supor que o seu senhor fosse proprietário da idéia.

      — Isso é um tanto impossível, amigo. Ambos os robôs repetem a mesma conversação, de maneira idêntica. E as duas repetições são fundamentalmente inconsistentes.

      — Então é absolutamente certo que um dos robôs está mentindo?

      — Sim.

      — Posso ver a transcrição de todas as evidências dadas até agora na presença do capitão, se eu quiser?

      — Achei que você perguntaria isso, e trouxe uma cópia comigo.

      — Uma verdadeira bênção. Os robôs tiveram seus depoimentos cruzados, e isto foi incluído na transcrição?

      — Os robôs meramente repetiram suas histórias. Um interro-»atório cruzado só poderia ser conduzido por robopsicólogos.

      — Ou por mim?

      — Você é um detetive, amigo Elijah, não um...

      — Está bem, R. Daneel. Tentarei entender bem a psicologia do espaçonauta. Um detetive pode fazê-lo porque não é um robopsicó-logo. Vamos pensar ainda mais um pouco. Ordinariamente, um robô não mente, mas pode fazê-lo para manter as Três Leis. Pode mentir para proteger, de maneira legítima, sua própria existência, de acordo com a Terceira Lei. Está mais apto a mentir, se necessário, para obedecer a uma ordem legítima que lhe seja dada por um humano, de a-cordo com a Segunda Lei. Estará tanto mais apto a mentir se isso for necessário para salvar uma vida humana, ou evitar que seja causado dano, de acordo com a Primeira Lei.

      — Sim.

      — E, nesse caso, cada robô estaria defendendo a reputação profissional de seu senhor, e mentiria se assim fosse necessário. Sob estas circunstâncias, a reputação profissional seria quase o equivalente á vida, e poderia haver uma emergência quase da Primeira Lei para forçar a mentira.

      — Mas, pela mentira, cada criado estaria ferindo a reputação profissional do senhor do outro, amigo Elijah.

      — Isso mesmo, mas cada robô pode ter um conceito melhor da reputação de seu próprio senhor, e honestamente considerá-la maior que a do outro. O menor dano seria causado por sua mentira, ele suporia, do que pela verdade.

      Tendo dito, Lije Baley permaneceu quieto por um momento. - Está bem, então pode fazer com que eu possa falar com um dos robôs; com R. Idda primeiro, acho?

      — O robô do dr. Sabbat?

      — Sim — respondeu Baley, secamente —, o robô do rapazinho.

      — Vai levar só alguns minutos. Tenho um microrreceptor equipado com um projetor. Só preciso de uma parede branca e acho que esta aqui serve, se me ajudar a remover algumas destas estantes de filmes.

      — Vá em frente. Precisarei falar num microfone de alguma espécie?

      — Não; poderá falar normalmente. Por favor, perdoe-me, amigo, por mais um momento de espera. Terei de entrar em contato com a nave e arranjar a entrevista com R. Idda.

      — Se levar algum tempo, Daneel, que tal me dar o material transcrito da evidência obtida até agora?

      Lije Baley acendeu seu cachimbo enquanto R. Daneel montava o equipamento, e folheava o calhamaço que recebera.

      Os minutos passaram e R. Daneel disse: -Se está pronto, amigo, R. Idda também está. Ou quer mais alguns minutos com a transcrição?

      — Não - suspirou Baley. — Não estou aprendendo nada de novo. Faça a ligação, e providencie para que a entrevista seja gravada e transcrita.

      R. Idda, irreal em sua projeçãto bidimensional contra a parede, era de estrutura basicamente metálica - não a criatura humanóide que era R. Daneel. Seu corpo era alto, mas troncudo, e havia muito pouco que o distinguisse dos muitos robôs que Baley já vira, exceto por minúcias estruturais.

      Baley disse: - Saudações, R. Idda.

      — Saudações, senhor — respondeu R. Idda, numa voz abafada que soou surpreendentemente humanóide.

      — Você é o criado pessoal de Gennao Sabbat, não é?

      — Sou, senhor.

      — Há quanto tempo, rapaz?

      — Há vinte e dois anos, senhor.

      — E a reputação de seu senhor lhe é cara?

      — Sim, senhor.

      — Você acharia importante proteger essa reputação?

      — Sim, senhor.

      — Tão importante proteger sua reputação quanto proteger sua vida?

      — Não .senhor.

      — Tão importante proteger sua reputação quanto a reputação de outrem?

      R. Idda hesitou. - Tais casos devem ser decididos segundo seu mérito individual, senhor. Não há meio de se estabelecer uma regra geral.

      Baley hesitou. Esses robôs espaçonautas eram mais melífluos e intelectualizados que os modelos terráqueos. Não tinha certeza de

      que poderia ser mais esperto que um deles.

      — Se você decidisse que a reputação de seu senhor fosse mais importante que a de outro, digamos, que a de Alfred Barr Humboldt, você mentiria para proteger a reputação de seu senhor?

      — Sim, senhor.

      — Você mentiu em seu testemunho concernente a seu senhor em sua controvérsia com o dr. Humboldt?

      — Não, senhor.

      — Mas, se estivesse mentindo, negaria a mentira para proteger aquela mesma mentira, não é?

      — Sim, senhor.

      — Então, vamos considerar o seguinte: seu senhor, Gennao Sabbat, é um jovem de grande reputação na matemática, mas é apenas um rapaz. Se, nesta controvérsia com o dr. Humboldt, tivesse sucumbido á tentação e agido sem ética, sofreria um certo eclipse de sua reputação, mas é jovem, e teria muito tempo para se recuperar. Teria muitos triunfos intelectuais á sua frente e os homens contemplariam eventualmente sua tentativa de plágio como um erro de um rapaz de sangue quente, com o discernimento ainda deficiente. Seria algo reparável para o futuro.

      Se, por outro lado, fosse o dr. Humboldt a sucumbir á tentação, a questão ficaria muito mais séria. Ele é um ancião, cujos grandes feitos já se espalharam ao longo de séculos. Sua reputação até hoje tem sido sem mácula. Tudo isso, porém, seria esquecido à luz deste único crime em seus últimos anos, e não teria oportunidade de compensar no tempo comparativamente curto que lhe resta. Haveria pouco mais que ele pudesse realizar. Haveria para Humboldt tantos anos de trabalho arruinados e tantas oportunidades a menos para reconquistar sua posição! Você percebe, não, que Humboldt se defronta com a pior situação, e merece a maior consideração?

      Houve uma longa pausa. Então R. Idda disse, com a voz inalterada: — Meu testemunho foi mentiroso. Foi o trabalho do dr. Humboldt de que meu senhor tentou, erroneamente, tomar o crédito.

      — Muito bem, meu rapaz. Você está instruído para não dizer nada a ninguém a respeito disto até que lhe seja dada permissão pelo capitão da nave. Está dispensado.

      A tela se apagou e Baley deu umas cachimbadas. - Acha que o capitão escutou isso, Daneel?

      — Estou certo que sim; ele é a única testemunha, além de nós.

      — Bom. Agora, o outro.

      — Mas há algum proveito nisso, amigo Elijah, em vista do que R. Idda confessou?

      — Claro que há; a confissão de R. Idda nada significa.

      — Nada?

      — Absolutamente nada. Apontei a situação do dr. Humboldt como a pior. Naturalmente, se ele estava mentindo para proteger Sabbat, passaria a dizer a verdade, como de fato alegou que fez. Por outro lado, se estivesse dizendo a verdade, passaria à mentira para proteger Humboldt. Ainda é o mesmo espelho, e em nada progredimos.

      — Mas então, o que ganharíamos interrogando R. Preston?

      — Nada, se a imagem especular fosse perfeita... mas não é. Afinal, um dos robôs está contando a verdade, para começar, e um está mentindo, para começar, e aqui está um ponto assimétrico. Deixe-me ver R. Preston. E se a transcrição do interrogatório de R. Idda estiver terminada, deixe ver.

      O projetor voltou a ser usado. R. Preston ficou olhando: idêntico a R. Idda, sob todos os aspectos, exceto por alguma trivialidade no desenho do peito.

      — Saudações, R. Preston. — E mantinha a transcrição de R. Idda à sua frente, enquanto falava.

      — Saudações, senhor. - Sua voz era idêntica á de R. Idda.

      — Você é o criado pessoal de Alfred Barr Humboldt, não é?

      — Sim, senhor.

      — Há quanto tempo, rapaz?

      — Há vinte e dois anos, senhor.

      — E a reputação de seu senhor lhe é cara?

      — Sim, senhor.

      — Você acharia importante proteger essa reputação?

      — Sim, senhor.

      — Tão importante proteger sua reputação quanto proteger sua vida?

      — Não, senhor.

      — Tão importante proteger sua reputação quanto a reputação de outrem?

      R. Preston hesitou. - Tais casos devem ser decididos segundo seu mérito individual, senhor. Não há meio de se estabelecer uma regra geral.

      — Se você decidisse que a reputação de seu senhor fosse mais importante que a de outro, digamos, que a de Gennao Sabbat, você mentiria para proteger a reputação de seu senhor?

      — Sim, senhor.

      — Você mentiu em seu testemunho concernente a seu senhor em sua controvérsia com o dr. Sabbat?

      — Não, senhor.

      — Mas, se estivesse mentindo, negaria a mentira para proteger aquela mesma mentira, não é?

      — Sim, senhor.

      — Então, vamos considerar o seguinte: seu senhor, Alfred Barr Humboldt, é um ancião de grande reputação na matemática, mas é apenas um velho. Se, nesta controvérsia com o dr. Sabbat, tivesse sucumbido á tentação e agido sem ética, sofreria um certo eclipse de sua reputação, mas sua idade avançada e seus séculos de realizações se imporiam, e ele ganharia. Os homens contemplariam esta tentativa de plágio como o engano de um velho talvez doente, com o discernimento já incerto.

      Se, por outro lado, fosse o dr. Sabbat a sucumbir â tentação, a questão seria muito mais séria. Ele é um jovem, com uma reputação muito menos segura. Ordinariamente, teria séculos à sua frente, ao longo dos quais poderia acumular conhecimento e realizar grandes feitos. Isto estaria fechado para ele, agora, obscurecido por um erro de sua juventude. Como vê, Sabbat se defronta com a pior situação, não é? Ele merece a maior consideração?

      Houve uma longa pausa. Então R. Preston disse, com a voz inalterada: — Meu testemunho foi como eu...

      Neste ponto, interrompeu-se e não disse nada mais.

      Baley disse: — Por favor, continue, R. Preston.

      Não houve resposta.

      — Receio, amigo Elijah, que R. Preston esteja em estase. Está fora de funcionamento - disse R. Daneel.

      — Bem, então - respondeu Baley — finalmente causamos uma assimetria. A partir daqui, podemos ver quem é o culpado.

      — De que maneira?

      — Pense só: suponha que você fosse uma pessoa que não tivesse cometido nenhum crime e que seu robô pessoal fosse testemunha dele. Não haveria nada que você precisasse fazer. Seu robô diria a verdade e o apoiaria. Se, porém, você fosse uma pessoa que tivesse cometido um crime, teria de depender de seu robô mentir. Esta posição seria um tanto arriscada, pois se o robô mentisse, se necessário, sua maior inclinação seria dizer a verdade, de modo que a mentira seria menos firme que a verdade. Para evitar isso, o criminoso provavelmente deveria ter ordenado que o robô mentisse. Destarte, a Primeira Lei sofreria reforço pela Segunda Lei, quiçá substancialmente reforçada.

      — Isso parece razoável — respondeu R. Daneel.

      — Suponha que temos um robô de cada tipo. Um passaria da verdade, sem reforço, â mentira, e assim, depois de alguma hesitação,

      poderia fazê-lo sem problema sério. O outro robô passaria da mentira, com muito reforço, à verdade, mas só poderia fazê-lo com o risco de queimar várias trajetórias positrônicas de seu cérebro, e cair em estase.

      — E como R. Preston caiu em estase...

      — 0 senhor de R. Preston, o dr. Humboldt, é o culpado de plágio. Se transmitir isto ao capitão, e instá-lo a confrontar o dr. Humboldt imediatamente com a questão, poderá forçar uma confissão. Caso em que você deverá me informar imediatamente.

      — Certamente que o farei. Pode desculpar-me, amigo Elijah? Devo falar em particular com o capitão.

      — Claro;use a sala de reuniões. É totalmente isolada.

      Baley não conseguiu fazer trabalho de qualquer espécie, na ausência de R. Daneel. Ficou sentado, num silêncio inquieto. Muito dependia do valor de sua análise, e estava agudamente cônscio de sua falta de competência em robótica.

      R. Daneel estava de volta em meia hora, a meia hora mais longa na vida de Baley.

      Não adiantava, é claro, tentar determinar o que acontecera pela expressão no rosto impassível do humanóide. Baley tentou também manter seu rosto impassível.

      — Sim, R. Daneel?

      — Precisamente como você disse, amigo Elijah. O dr. Humboldt confessou. Estava contando, disse, com a desistência do dr. Sabbat e deixando o dr. Humboldt ter seu último triunfo. A crise passou, e o senhor verá como o capitão pode ser agradecido. Ele deu-me permissão para dizer-lhe que admira grandemente a sua sutileza e creio que eu mesmo ganharei seus favores por ter sugerido que recorresse a você.

      — Ótimo - disse Baley, joelhos trêmulos e a testa úmida, agora que sua decisão se mostrara a correta. Mas, por São Josafá, R. Daneel, não me coloque na fogueira de novo desse jeito, sim?

      — Tentarei, caro amigo. Tudo dependerá, é claro, da importância de uma crise, de sua proximidade, e de certos outros fatores. Entrementes, tenho uma pergunta...

      — Sim?

      — Não seria possível supor que a passagem da mentira à verdade fosse fácil, ao passo que a passagem da verdade para a mentira fosse difícil? E, neste caso, o robô em estase não estaria passando da verdade â mentira, e como R. Preston ficou em estase, não se poderia tirar a conclusão de que o dr. Humboldt estava inocente e o dr. Sabbat, culpado?

      — Sim, R. Daneel. Seria possível argumentar assim, mas foi o outro argumento que se mostrou verdadeiro. Humboldt confessou, nãoé?

      — Sim; mas com os argumentos possíveis em ambos os sentidos, como você, meu amigo, tão rapidamente escolheu o certo?

      Por um momento, os lábios de Baley se retorceram. Então relaxou e eles se curvaram num sorriso. — Porque, R. Daneel, levei em consideração as reações humanas, e não as robóticas. Sei mais sobre seres humanos do que sobre robôs. Em outras palavras, eu já tinha uma idéia sobre qual dos matemáticos estava errado antes de entrevistar os robôs. Uma vez que provoquei uma resposta assimétrica neles, simplesmente a interpretei colocando a culpa naquele de quem já desconfiava. A resposta do robô foi dramática o bastante para denunciar o culpado; minha análise do comportamento humano poderia não ter sido suficiente para fazê-lo.

      — Estou curioso para saber qual foi a sua análise do comportamento humano.

      — Por São Josafá, R. Daneel, pense, e não precisará perguntar. Há um outro ponto de assimetria nessa história de imagem especular além da questão de verdade e mentira. Há a questão da idade dos dois matemáticos: um é bem velho, e o outro é jovem.

      — Sim, é claro, mas e daí?

      — Ora, isto: posso ver um jovem, subitamente atordoado com uma súbita, surpreendente e revolucionária idéia consultando-se sobre o assunto com um velho que ele teve, desde seus primeiros dias como estudante, como um semideus no campo. Mas não posso imaginar um velho, rico em honras e acostumado a triunfos, vir com uma súbita, surpreendente e revolucionária idéia, consultar um homem séculos mais jovem, a quem veria apenas como um frangote presunçoso — ou qualquer que seja o insulto em que um espacial pensaria. E também, se um rapaz tivesse a chance, por que tentaria roubar a idéia de um semideus reverenciado? Seria impensável. Por outro ladOi um velho, consciente de suas forças declinantes, muito bem poderia agarrar-se a uma última chance de fama e considerar um rapaz em sua área sem os direitos que deveria respeitar. Em suma, não era concebível que Sabbat tivesse roubado a idéia de Humboldt, e de ambos os pontos de vista, o dr. Humboldt era culpado.

      R. Daneel refletiu longamente, e então estendeu sua mão: -Preciso ir agora, amigo Elijah. Foi bom tê-lo visto. Oxalá possamos nos encontrar logo, de novo.

      Baley agarrou a mão do robô, calorosamente: - Se não se importa, R. Daneel, não tão logo.

     

      O incidente do tricentenário

      4 de julho de 2076... e pela terceira vez o incidente do sistema convencional de numeração, baseada nas potências de dez, conduzira os dois últimos dígitos do ano de volta ao funesto 76, que tinha visto o nascimento de uma nação.

      Não era mais uma nação, no velho sentido, era antes uma expressão geográfica, parte de um todo maior que compunha a Federação de toda a humanidade sobre a Terra, junto com seus ramos na Lua e nas colônias espaciais. Pela cultura e pela herança, todavia, o nome e a idéia continuavam vivos, e esta porção do planeta designada pelo velho nome ainda era a mais próspera e avançada região do mundo... E o Presidente dos Estados Unidos era ainda a mais poderosa personalidade individual do Conselho Planetário.

      Lawrence Edwards observava a pequena figura do Presidente do alto de seus sessenta metros. Movia-se preguiçosamente por sobre a multidão, com seu motor flotrônico fazendo um som desengonçado que pouco se ouvia, às suas costas, e o que ele via tinha exatamente a aparência que qualquer um veria numa cena de holovisão. Quantas vezes vira ele figuras pequeninas como esta em sua sala de visitas, figurinhas num cubo de luz solar, parecendo tão reais como se fossem homúnculos vivos, exceto que se podia pôr a mão através delas.

      Não se poderia pôr a mão através das figurinhas que se espalhavam às dezenas de milhares por entre os espaços que rodeavam o Monumento a Washington. E não se poderia pôr os dedos através do Presidente. Antes, se poderia alcançá-lo, tocá-lo, apertar sua mão.

      Edwards pensou sardonicamente na inutilidade daquele elemento de tangibilidade que fora acrescentado e desejou estar a duzentos quilômetros de distância, flutuando pelos ares em alguma região selvagem, em vez de estar aqui onde se achava, a observar qualquer indício de desordem. Não havia razão alguma para ele estar aqui, não fosse o valor mitológico da "pressão sobre a carne".

      Edwards não era um admirador do Presidente - Hugo Allen Winkler, qüinquagésimo sétimo da lista.

      Para Edwards, o Presidente Winkler parecia um homem vazio, agradável aos outros, um caçador de votos, um prometedor. Era desapontador ter um homem como este na função que ocupava, depois de todas as esperanças dos seus primeiros meses de administração. A Federeção Mundial estava em perigo de se desmantelar muito antes de seu mandato terminar e Winkler nada podia fazer. Precisava-se agora de uma mão forte, não de uma mão alegre, uma voz forte, não uma voz adocicada.

      Lá estava ele, agora, apertando mãos, com um espaço em torno dele, conseguido à força pelo Serviço, com o próprio Edwards, mais uns poucos outros do Serviço, a observarem, lá de cima.

      Certamente o Presidente concorreria à reeleição, e parecia haver uma boa possibilidade de que ele seria derrotado. Isto só pioraria as coisas, visto que o empenho do partido oposicionista era a destruição da Federação.

      Edwards suspirou. Seriam miseráveis os quatro anos vindouros - talvez os quarenta - e tudo que ele podia fazer era flutuar no ar, pronto a entrar em contacto com qualquer agente do Serviço lá embaixo, no solo, pelo laserfone se houvesse o menor indício...

      Não viu o menor indício. Não havia sinal de distúrbio. Só um sopro de poeira branca, dificilmente visível, apenas uma cintilação momentânea à luz do sol, para cima e se afastando, e que se afastou com a mesma rapidez com que ele a vira.

      Onde estava o Presidente? Com a poeira, perdera-o de vista.

      Olhou em torno, nas vizinhanças de onde o vira pela última vez. Afinal, o Presidente não poderia ter se afastado tanto.

      Foi então que tomou consciência da perturbação. Primeiro, a perturbação foi entre os próprios agentes do Serviço, que pareciam ter enlouquecido, e que loucamente se moviam, aos empurrões. Depois, os agentes situados em meio à multidão que estava próxima ficaram contagiados e, sucessivamente, os agentes mais distantes. O ruído aumentou, tornando-se uma trovoada.

      Edwards não teve de ouvir as palavras que compunham o crescente rugido. Parecia que o rugido lhe trazia as notícias pelo seu próprio clamor, pela sua própria urgência. O Presidente Winkler tinha desaparecido! Um momento atrás, lá estava e, no momento seguinte, desaparecera em meio a um punhado de pó!

      Edwards conteve a respiração numa agonizante espera durante o que lhe pareceu um momento de eternidade, até o longo momento em que finalmente se entendeu o que sucedera e em que a multidão irrompeu num estampido doido, de sublevação.

      Foi quando uma ressonante voz soou por sobre o disforme alarido e, ao ouvi-la, o ruído foi arrefecendo, morreu e se tornou um silêncio. Era como se, afinal de contas, tudo não passasse de um programa em holovisão e alguém tivesse baixado o som a ponto de ser inaudível.

      Edwards pensou: Meu Deus, é o Presidente!

      Não havia como se enganar, quanto à voz. Winkler estava de pé, no palco guardado no qual deveria proferir sua alocução relativa ao Tricentenário e do qual ele saíra fazia apenas dez minutos para apertar mãos de alguns dentre a multidão.

      Como é que ele voltara para lá?...

      Edwards ouviu...

      - Amigos dos Estados Unidos, nada me aconteceu. O que acabaram de ver foi a quebra de um aparelho mecânico. Não era o Presidente de vocês, de forma que não vamos permitir que uma falha mecânica obscureça a celebração do dia mais feliz que o mundo já viu... Dêem-me sua atenção, amigos dos Estados Unidos...

      E seguiu-se a alocução do Tricentenário, a maior que Winkler já fizera, ou que Edwards ouvira. Edwards como que esqueceu suas funções de supervisão em sua ansiedade de ouvir.

      Winkler acertara! Compreendera a importância da Federação e estava se fazendo compreender.

      Bem lá no íntimo, contudo, outra parte dele estava lembrando os insistentes boatos de que os últimos progressos na robótica haviam resultado na fabricação de um robô êmulo do Presidente, um robô que poderia se desincumbir das funções puramente cerimoniais, que podia apertar as mãos do povo, que nunca estaria aborrecido ou exausto, nem poderia ser assassinado...

      Edwards, de certa maneira chocado, pensava que isto é o que deveria ter acontecido. Existia mesmo o tal robô semelhante ao Presidente e, num certo sentido... ele havia sido assassinado.

      13 de outubro de 2078.

      Edwards olhou para cima, quando se aproximou seu robô-guia. de cintura alta, a lhe dizer, melifluamente:

      - O Sr. Janek quer vê-lo agora.

      Edwards pôs-se de pé, sentindo-se alto, olhando o atarracado guia metálico de cima. Contudo, não se sentia jovem. Seu rosto tinha sulcos, amealhados nos últimos dois anos, mais ou menos, e ele estava ciente disto.

      Seguiu o guia até uma sala surpreendentemente pequena, onde, atrás de uma escrivaninha surpreendentemente pequena, sentava-se

      Francis Janek, um homem de aparência incongruentemente jovem, um tanto barrigudo.

      Janek sorriu e seu olhar era amistoso ao se erguer para o aperto de mãos.

      - Sr. Edwards.

      Edwards murmurou:

      - Estou feliz por ter a oportunidade, senhor...

      Nunca Edwards vira Janek antes, mas àquela altura ser secretário pessoal do Presidente era uma função tranqüila, das que davam margem a poucas notícias.

      Janek disse:

      - Sente-se, sente-se. Quer um bastão de soja?

      Edwards recusou, comum sorriso polido, e sentou-se. Janek estava claramente enfatizando sua juventude. Sua camisa enrugada estava aberta e os pêlos de seu peito tinham sido tingidos de um violeta nítido, ainda que abrandado.

      Janek falou:

      - Sei que, a esta altura, já faz algumas semanas que tem tentado entrar em contato comigo. Lamento a demora. Espero que entenda que meu tempo não me pertence inteiramente. De qualquer forma, cá estamos nós, agora... Por falar nisso: entrei em contacto com o Chefe do Serviço, e ele fez as melhores referências a seu respeito. Ele lamenta o seu pedido de demissão.

      Com o olhar abatido, Edwards disse:

      - Pareceu-me melhor levar avante minhas investigações, sem perigo de embaraçar o Serviço.

      Um sorriso cintilou no rosto de Janek.

      - Suas atividades, mesmo sendo discretas, contudo, já foram notadas. O Chefe explica que você tem estado a investigar o incidente do Tricentenário e devo admitir que foi isso que me persuadiu a vê-lo tão cedo quanto pude. Foi por isso que pediu a sua demissão? Está investigando um assunto encerrado.

      - Assunto encerrado como, Sr. Janek? O fato de o senhor chamar o que aconteceu de Incidente não altera o fato de que foi uma tentativa de assassinato.

      - Uma questão de semântica. Por que usar uma frase perturbadora?

      - Só porque pareceria representar uma verdade perturbadora. Com certeza o senhor diria que alguém tentou matar o Presidente.

      Janek estendeu as mãos.

      - Se foi isto que ocorreu, a trama malogrou. Um instrumento mecânico foi destruído. Nada mais. Na verdade, se considerarmos adequadamente o Incidente, ou como queira denominá-lo, fez um enorme bem à nação e ao mundo. Como todos sabemos, o Presidente foi abalado pelo Incidente e também a nação. O Presidente e todos nós percebemos o que poderia significar um retorno à violência do século passado e isto produziu uma grande reviravolta.

      - Não nego isso.

      - Lógico que não pode. Mesmo os inimigos do Presidente admitirão que os dois últimos anos viram grandes realizações. A Federação é hoje muitíssimo mais forte do que qualquer pessoa sonharia que ela fosse, no dia do Tricentenário. Poderíamos até dizer que se impediu uma desintegração da economia global.

      Cautelosamente, Edwards disse:

      - Sim, o Presidente mudou. É o que todos dizem.

      Janek retomou a palavra:

      - Sempre foi um grande homem. O Incidente fê-lo concentrar-se nos grandes temas com uma intensidade ainda maior, contudo.

      - Coisa que ele não fazia antes?

      - Talvez não com tanta intensidade... Na verdade, hoje, o Presidente e todos nós queremos esquecer o Incidente. Meu objetivo principal é, ao vê-lo, Sr. Edwards, deixar isto bem claro para o senhor. Não estamos no Século Vinte e não podemos encarcerá-lo por estar sendo inconveniente para nós, ou embaraçá-lo de alguma maneira, mas mesmo a Constituição Mundial não nos proíbe de tentar persuadi-lo. Está me entendendo?

      - Estou sim, mas não concordo com o senhor. Podemos esquecer o Incidente, se a pessoa responsável nunca foi detida?...

      - Talvez tudo esteja bem, senhor. Muito melhor do que poderia pensar uma pessoa... num... uma pessoa desequilibrada que não queira entender que o assunto não tem as proporções que se quer lhe dar, num cenário que, possivelmente, nos levaria de volta aos dias do Século Vinte.

      - Mas a narrativa oficial chega a afirmar que o robô explodiu espontaneamente, o que é impossível, o que foi um golpe injusto para a indústria de robôs.

      - Robô é um termo que eu não usaria, Sr. Edwards. Era um aparelho mecânico. Ninguém disse que os robôs são perigosos de per si, e certamente não o são os robôs metálicos rotineiros. A única referência aqui é aos instrumentos incomumente complexos, semelhantes ao homem, que parecem de carne e osso, e que poderíamos chamar de andróides. Na verdade, são tão complexos que talvez possam explodir por Isso mesmo; não sou um perito no assunto. A indústria de robôs se recobrará.

      Obstinadamente, Edwards disse:

      - Ninguém, no governo, parece se preocupar com o fato de que atingiremos ou não o âmago da questão.

      - Já expliquei que não houve conseqüências salvo as boas. Por que ficar revolvendo o lodo lá no fundo, quando a água, em cima, está limpa?

      - E o uso do desintegrador?

      Por um momento, a mão de Janek, que lentamente girava o recipiente com bastões de soja, sobre a mesa, se deteve. Depois, ela voltou ao movimento rítmico. Suavemente, falou:

      - Que é isso?

      Com ar decidido, Edwards disse:

      - Sr. Janek, penso que sabe do que estou falando. Como membro do Serviço...

      - Ao qual você, logicamente, não mais pertence.

      - Não obstante, como membro do Serviço, não pude deixar de ouvir coisas que, nem sempre, eram destinadas a meus ouvidos, suponho. Ouvi falar de uma nova arma, e vi algo acontecer no Tricentenário que exigiria uma. O objeto que todos pensavam que fosse o Presidente desapareceu em meio a uma nuvem de pó muito fino. Era como se cada átomo do objeto contido dentro dos limites da nuvem perdesse os vínculos com os outros átomos. O objeto se tornara uma nuvem de átomos individuais que, por certo, começaram a se recombinar, mas que se dispersaram com uma rapidez tal que não deram a impressão de serem mais do que uma cintilação momentânea de poeira.

      - Muito ficção científica isso...

      - É lógico que entendo a ciência que possa estar por trás disso, Sr. Janek, mas percebo que seria necessária muitíssima energia para se conseguir esta quebra de vínculos. Essa energia teria de ser retirada do ambiente. Aquelas pessoas que estavam próximas do aparelho mecânico que fazia as vezes do Presidente no momento, que pude localizar e que concordaram em falar, foram unânimes em relatar uma onda de frio que como que as banhou.

      Janek pôs o recipiente com bastões de soja de lado com um pequeno estalido do dispositivo contra celulite. Disse:

      - Apenas para argumentar, admitamos que exista algo como um desintegrador.

      - Não precisa argumentar: ele existe.

      - Não vou argumentar. Pessoalmente, não conheço o tal de desintegrador, mas, em minhas atribuições, não é provável que eu desconheça algo que tanta ressonância tenha em questões atinentes à segurança como armamento novo. Mas, se existir um desintegrador, e se for tão secreto assim, precisa ser um monopólio norte-americano, desconhecido do resto da Federação. Logo, deveria ser algo sobre o qual nem eu nem o senhor deveríamos estar falando. Poderia ser uma arma de guerra mais perigosa que as bombas nucleares, precisamente porque, se o que diz é verdade, não produz nada mais que desintegrar onde se dá o impacto, e frio nas vizinhanças do impacto: Nenhuma explosão, nenhum fogo, nenhuma radiação mortal. Sem estes desagradáveis efeitos secundários, não haveria repressão ao seu uso, se bem que esta arma, por tudo quanto sabemos, poderia ser construída num tamanho bastante para destruir o próprio planeta.

      - Concordo com tudo isto - disse Edwards.

      - Você vê então que, se não houver desintegrador, é tolice falar a respeito de um; e se houver um desintegrador, é criminoso falar dele.

      — Ainda não discuti isto, exceto com o senhor, agora, porque estou tentando persuadi-lo da seriedade da situação. Se foi usado um, por exemplo, o governo não deveria estar interessado em decidir como chegou a ser usado, caso outra unidade da Federação esteja de posse de um?

      Janek sacudiu a cabeça.

      - Penso que podemos nos apoiar no fato de que os órgãos do governo disso incumbidos é que terão de estudar o assunto. É melhor que você não se preocupe com a questão.

      Com uma impaciência que a custo conseguia controlar, Edwards disse:

      - Pode me garantir o senhor que os Estados Unidos são o único governo que tem esta arma à sua disposição?

      - Não posso lhe afirmar isto, visto que nada sei sobre essa arma, e não virei a saber. Nem deveria ter falado comigo sobre este assunto. Mesmo não existindo semelhante arma, o boato de sua existência poderá ser perigoso.

      - Mas, visto que lhe falei, e visto que o mal já está feito, deixe-me acabar de falar. Deixe-me ter a oportunidade de convencê-lo de que o senhor e ninguém mais, detém a chave de uma situação temível que talvez só eu esteja vendo.

      - Só você está vendo? Eu tenho a chave?

      - Parece-lhe loucura? Deixe-me explicar e depois julgue por si mesmo.

      - Vou conceder-lhe um pouco mais de tempo, mas mantenho o que afirmei. O senhor precisa abandonar isto, este seu hobby, esta investigação. Ela é terrivelmente perigosa.

      - Abandonar o assunto é que seria perigoso. Não está vendo que, se o desintegrador existe, e se os Estados Unidos têm o seu monopólio, segue-se que o número de pessoas que poderia ter acesso a ele deveria ser estritamente limitado? Como ex-integrante do Serviço, tenho algum conhecimento prático do assunto e afirmo-lhe que a única pessoa do mundo que poderia tentar surripiar de nossos arsenais ultra-secretos um desintegrador seria o próprio Presidente... Somente o Presidente dos Estados Unidos, Sr. Janek, poderia ter engendrado aquela tentativa de assassinato.

      Ambos ficaram a se olhar fixamente, por um momento, após o que Janek apertou um botão em sua mesa. Esclareceu:

      - Aumentei os cuidados. Agora, ninguém, de modo algum, pode nos ouvir. Está percebendo o perigo de sua afirmação, Sr. Edwards? Perigo para si mesmo? Não deve superestimar o valor da Constituição Global. Um governo tem o direito de tomar medidas razoáveis para proteger sua estabilidade.

      Edwards disse:

      - Estou me aproximando do senhor, Sr. Janek, como sendo alguém que, presumo, é um leal cidadão norte-americano. Venho à sua presença com a notícia de um crime terrível que afeta todos os norte-americanos e a Federação inteira. Um crime que produziu uma situação que talvez só o senhor possa corrigir. Por que me agride com ameaças?

      Janek disse:

      - É a segunda vez que você tenta dar a entender que sou um salvador em potencial do mundo. Não posso me ver neste papel. Espero que você entenda que não tenho poderes fora do comum.

      - O senhor é o secretário do Presidente.

      - O que não significa que tenho acesso especial a ele, ou que eu seja alguém com íntimo relacionamento com ele. Ocasiões há, Sr. Edwards, em que suspeito que os outros consideram que não sou mais do que um fracassado, e há até mesmo ocasiões em que corro o perigo de concordar com estas pessoas...

      - Seja lá como for, o senhor vê o Presidente com freqüência, informalmente, o senhor o vê...

      Impaciente, Janek o interrompeu:

      - Vejo-o o bastante para lhe garantir que o Presidente não ordenaria a destruição daquele sósia mecânico dele no dia do Tricentenário.

      - Quer dizer que, em sua opinião, isto é impossível?

      - Não estou afirmando isto. Eu diria que não. Afinal de contas, por que é que ele faria isto? Por que quereria o Presidente destruir um andróide semelhante a ele, que lhe foi de valiosa ajuda ao longo dos três primeiros anos de seu mandato como Presidente? E se, por qualquer razão, ele quisesse destruir o robô, com todos os diabos, por que desejaria fazê-lo de uma maneira tão escandalosamente pública, nada mais, nada menos, no Tricentenário, fazendo, destarte, propaganda de sua existência, arriscando-se a uma reação pública, se o povo soubesse que estava apertando as mãos de um robô, sem falar nas repercussões diplomáticas do fato de representantes diplomáticos de outras partes da Federação estarem a tratar com um robô?... Em vez disso, ele poderia simplesmente ter ordenado, em caráter privado, que o robô fosse desmontado. Isto só seria do conhecimento de uns poucos elementos da alta hierarquia da Administração.

      - De qualquer forma, não houve conseqüências indesejáveis para o Presidente, como resultado do Incidente, não é?

      - Ele teve de encurtar a cerimônia. E já não é mais tão acessível como era antes.

      - Como o robô era.

      - Seja - admitiu Janek, pouco à vontade. - Sim, acredito que é isso mesmo.

      Edwards disse:

      - E, na verdade, o Presidente foi reeleito e sua popularidade não diminuiu, mesmo tendo a destruição sido pública. Argumentar com a destruição pública não é tão convincente como o senhor está querendo fazer parecer.

      - Mas a reeleição veio a despeito do Incidente. Ela se deveu à rápida ação do Presidente, dando um passo avante e pronunciando aquilo que você tem de admitir como tendo sido uma das grandes falas da história norte-americana. Foi uma performance muito admirável: você tem de admitir isso.

      - Foi um drama muito bem representado. Poder-se-ia até dizer que o Presidente estava contando com aquilo...

      Janek inclinou para trás o encosto de sua poltrona.

      - Se bem o entendo, Edwards, você está insinuando um argumento muito complicado de novela. Está querendo dizer que o Presidente fez destruir o sósia do jeito que ele foi destruído, em meio a uma multidão, justo no dia da celebração do Tricentenário, com o mundo observando, de forma a conseguir a admiração popular por seu espírito resoluto? Está insinuando que ele urdiu toda esta trama para criar uma reputação de homem de um inesperado vigor, de uma inesperada força, debaixo de circunstâncias extremamente dramáticas, de forma a transformar uma campanha que o levaria à derrota numa campanha vitoriosa?... Parece que o senhor andou lendo contos de fadas, Sr. Edwards.

      Edwards disse:

      - Se eu estivesse querendo afirmar tudo isto, seria realmente um conto de fadas, mas não estou querendo. Nunca insinuei que o Presidente ordenou a "morte" do robô. Apenas lhe pedi que pensasse se isto seria possível e o senhor afirmou com muita energia até que não seria. Estou contente pelo fato de o senhor assim ter procedido, pois concordo com o senhor.

      - Então, por que tudo isto? Estou começando a desconfiar que o senhor está me fazendo desperdiçar tempo.

      - Um momento mais, por favor. Nunca lhe ocorreu perguntar por que a coisa não poderia ter sido feita com um feixe laser, com um desativador de campo, com uma marreta, pelo amor de Deus? Por que alguém se daria ao trabalho de se meter numa incrível complicação, arranjando uma arma guardada pela mais forte segurança que um governo poderia ter, para executar uma tarefa que não exigiria uma arma deste porte? Pondo de lado a dificuldade de obter a arma, por que arriscar-se a revelar a existência de um desintegrador ao resto do mundo?

      - Toda esta história de desintegrador é apenas uma teoria sua.

      - O robô desapareceu totalmente, diante de meus olhos. Eu estava observando. Portanto, não estou me apoiando em depoimentos alheios. Não importa o nome que o senhor empresta à arma; seja qual for o nome, teve o efeito de desmontar o robô átomo por átomo, espalhando todos esses átomos de maneira irrecuperável. Por que fazer isto? Foi um tremendo massacre.

      - Não sei o que se passava na mente de quem fez isto.

      - Não? Ainda assim, a mim me parece que só há uma razão lógica para o robô ser reduzido a pó, quando algo muito mais simples poderia ter levado à destruição. A redução a pó não deixou vestígio algum do objeto, do robô. Nada deixou para indicar o que fora aquilo que foi destruído, se era um robô ou outra coisa qualquer.

      Janek disse:

      - Mas não há dúvida alguma quanto a que é que foi destruído.

      - Será que não?... Afirmei que só o Presidente poderia conseguir um desintegrador e fazer com que fosse usado. Mas, considerando a existência de um robô em tudo e por tudo semelhante a ele, qual foi o Presidente que engendrou a coisa?...

      Asperamente, Janek disse:

      - Acho que nossa conversa não pode prosseguir. Você está louco.

      Edwards disse:

      - Penso que terminei. Pelo amor de Deus, pense bem. O Presidente não destruiu o robô. Seus argumentos, quanto a isto, são convincentes. O que aconteceu foi que o robô destruiu o Presidente. O Presidente Winkler foi morto em meio à multidão, no dia 4 de julho de 2076. Então, um robô, com toda a aparência de ser o Presidente, pronunciou a alocução, concorreu à reeleição, foi reeleito, e ainda é o Presidente dos Estados Unidos!

      - Loucura!

      - Vim à sua presença, porque o senhor é que pode provar isto e corrigir isto, também.

      - Não é tão simples assim. O Presidente é... o Presidente. - Janek fez o gesto de quem ia se erguer e dar por encerrada a entrevista.

      Com rapidez e urgência, Edwards falou:

      - O senhor próprio disse que ele mudou. A alocução do Tricentenário estava além da capacidade do velho Winkler. O senhor mesmo não ficou surpreendido com as realizações dos últimos dois anos? Para dizer a verdade, o Winkler do primeiro mandato poderia ter feito tudo isto?...

      - Sim, poderia, visto que o Presidente do segundo mandato é o Presidente do primeiro mandato.

      - Nega que ele tenha mudado? Desafio o senhor. Decida o senhor e submeter-me-ei à sua decisão.

      - Ele se pôs à altura do desafio: isto é que é. Já aconteceu isto antes, na história dos Estados Unidos. - Mesmo tendo afirmado isto, ao se sentar de novo, Janek parecia muitíssimo pouco à vontade.

      - Ele não bebe - disse Edwards.

      - Nunca bebeu... muito.

      - Faz tempo que não tem relações com mulheres. Nega que no passado ele as procurava?

      - Um Presidente é um homem. Entretanto, nos últimos dois anos, dedicou-se aos assuntos da Federação.

      - Admito que isto seja uma mudança para melhor - concordou Edwards - mas é uma mudança. Lógico que se ele tivesse uma mulher, a encenação não poderia prosseguir, não é mesmo?

      - É ruim que ele não tenha uma esposa - comentou Janek, pronunciando a arcaica palavra "esposa" com uma certa ênfase. - Tivesse ele esposa, o problema todo não se manifestaria.

      - O fato de não ter tornou a conspiração toda mais prática. De qualquer forma, teve dois filhos. Não acredito que nenhum dos dois tenha estado na Casa Branca, desde o Tricentenário.

      - E por que teriam de ter ido até lá? Já são crescidos, vivem as suas próprias vidas.

      - Mas têm sido convidados? O Presidente tem manifestado interesse em vê-los? Como secretário particular dele, o senhor saberia. Foram convidados?

      Janek disse:

      - Está perdendo tempo. Um robô não pode matar um ser humano. Sabe muito bem que esta é a Primeira Lei da Robótica.

      - Sei disso. Mas ninguém está dizendo que o robô-Winkler matou o Winkler-humano diretamente. Quando o Winkler-humano estava no meio da multidão, o robô-Winkler estava no palanque e duvido que um desintegrador pudesse ser apontado daquela distância sem causar danos mais acentuados. Talvez pudesse, mas é mais provável que o robô-Winkler tivesse um cúmplice, um "comparsa", se o jargão do Século Vinte estiver certo.

      Janek ficou carrancudo. Seu rosto franco se contraiu e parecia sofrer. Ele disse:

      - Sabe, acho que a loucura é contagiosa. Na verdade, estou começando a pensar melhor nesta maluquice que veio me contar. Ainda bem que não é válida. Afinal de contas, por que o assassinato do Winkler-humano teria de ocorrer em público? Todos os argumentos contra a destruição do robô em público valem contra o assassinato do Presidente em público também. Não vê que isto põe por água abaixo toda a sua teoria?

      - Não põe não... - principiou Edwards.

      - Põe sim. Salvo uns poucos altos funcionários, ninguém mais sabia do robô sósia. Se o Presidente Winkler fosse assassinado não em público, e se se eliminasse seu corpo, o robô facilmente poderia assumir o lugar dele, sem suspeitas. Por exemplo: sem levantar as suas suspeitas, Edwards.

      - Sempre haveria uns poucos funcionários que saberiam, Sr. Janek. O assassinato acabaria se espalhando. - Edwards inclinou-se para a frente, com decisão. - Veja aqui: normalmente, não poderia haver o menor perigo de confundir o ser humano com a máquina. Imagino que o robô não era usado constantemente, sendo posto em funcionamento apenas para finalidades específicas, e sempre haveria uns indivíduos-chave, talvez muitos até, que saberiam onde estava o Presidente e o que ele estava fazendo. Se assim fosse, o assassinato teria de ocorrer quando estes importantes funcionários, na verdade, acreditassem que o Presidente era mesmo o robô.

      - Não concordo.

      - Escute aqui: uma das tarefas do robô era apertar as mãos do povo; apertar a carne deles. Quando isto estivesse ocorrendo, os oficiais sabedores da verdade estariam perfeitamente cônscios de que, na verdade, quem apertava as mãos era o robô.

      - Exatamente. Agora sim, você está dizendo coisa com coisa. Era o robô.

      - Exceto que era o Tricentenário, e que o Presidente Winkler não poderia resistir à vontade de apertar as mãos do povo. Suponho que seja mais do que humano esperar que um Presidente, particularmente um cativador de massas vazias, um amante de aplausos como Winkler, não quisesse abrir mão da adulação da multidão no dia mais importante de todos, deixando esta atribuição para uma máquina. E talvez o robô tenha cuidadosamente alimentado este impulso de tal forma que, no dia do Tricentenário, o Presidente teria ordenado ao robô que permanecesse atrás do pódio, enquanto ele próprio se dispunha a apertar as mãos e a ser aplaudido.

      - Secretamente?

      - Lógico que secretamente. Se o Presidente dissesse a alguém do Serviço, ou a algum de seus auxiliares, ou ao senhor, permitir-lhe-iam que o fizesse, que fosse até o povo?... A atitude oficial com relação à possibilidade de um assassinato praticamente virou uma doença desde os eventos do Século Vinte. Assim, encorajado por um robô obviamente esperto...

      - Você presume que o robô seja esperto pelo fato de agora estar funcionando como Presidente. É um raciocínio circular. Se não é ele o Presidente, não há razão para pensar que seja esperto, ou que fosse capaz de imaginar toda esta conspiração. Além disso, que outro motivo, possivelmente, poderia levar um robô a conspirar em prol de um assassinato? Mesmo que ele não matasse o Presidente diretamente, a Primeira Lei também proíbe que se tire, indiretamente, a vida de alguém, já que a Primeira Lei diz: "Um robô não deve fazer mal a um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra qualquer mal".

      Edwards disse:

      - A Primeira Lei não é absoluta. Que dizer se o fato de fazer mal a um ser humano salvasse a vida de dois outros, ou de três, ou mesmo, de três bilhões?... O robô pode ter pensado que a salvação da Federação tem precedência sobre a salvação de uma vida. Além disso, de forma alguma era um robô comum. Foi construído para duplicar as qualidades de Presidente de forma tão íntima, a ponto de poder enganar a qualquer um. Suponhamos que ele tivesse a compreensão do Presidente Winkler, sem a sua fraqueza, e suponhamos que ele soubesse que poderia salvar a Federação onde o Presidente não podia salvá-la...

      - Você pode raciocinar assim, mas como é que um aparelho mecânico poderia?

      - É a única maneira de explicar o que sucedeu.

      - Penso que é uma fantasia paranóica.

      Edwards contestou:

      - Então me diga por que o objeto que foi destruído foi reduzido a átomos. Que outra explicação teria sentido, salvo a de que era a única maneira de ocultar o fato de que fora um ser humano, e não um robô, que fora destruído? Dê-me uma alternativa.

      Janek enrubesceu:

      - Não quero admitir isso.

      - Mas tudo que afirmei pode ser provado, ou então negue. É por isso que vim à sua presença, à sua presença.

      - E como é que poderei provar tudo isso? Ou, mesmo, desprovar?

      - Ninguém vê o Presidente em momentos em que ele está totalmente à vontade, como você o vê. É com você, na falta de uma família, que ele é mais informal. Estude-o.

      - Já fiz isso. Afirmo-lhe que ele não é...

      - Estudou nada. O senhor não suspeitou de nada errado. Pequenos indícios nada significam para o senhor. Estude-o agora, ciente de que ele pode ser um robô, e verá.

      Ironicamente, Janek disse:

      - Posso pô-lo a nocaute e, com um detector ultra-sônico, provar que ele é de metal. Mesmo um andróide tem cérebro de platina-irídio.

      - Não será necessário nenhuma ação drástica. Apenas o observe e verá que ele é tão radicalmente diferente do homem que ele era, que não pode ser um homem.

      Janek olhou para o relôgio-calendário na parede. Disse:

      - Faz mais de uma hora que estamos conversando.

      - Lamento ter tomado tanto de seu tempo, mas espero que tenha entendido a importância de tudo isto.

      - Importância? - disse Janek. Levantou-se, então, e o que tinha parecido um ar de desânimo subitamente se transformou em qualquer coisa de esperançoso. - Mas é, na verdade, importante? É mesmo?

      - Como pode não ser importante? Um robô ser Presidente dos Estados Unidos não é importante?

      - Não, não é isso que quero dizer. Esqueça quem pode estar desempenhando o papel do Presidente Winkler. Pense apenas nisto: alguém, à testa da Presidência dos Estados Unidos, salvou a Federação; manteve-a unida e, no presente momento, dirige o Conselho de acordo com os interesses da paz e da conciliação construtiva. Admite tudo isto?

      Edwards disse:

      - Lógico que admito tudo isso. Mas, o que dizer do precedente que se estabeleceu? Um robô na Casa Branca, agora, por uma razão muito boa, pode levar a um robô na Casa Branca daqui a vinte anos por uma razão muito mim e, depois, poderá nos conduzir a termos robôs na Casa Branca sem motivo algum, mas apenas como questão de fato. Não vê a importância de abafar um possível toque de trombeta para o fim da humanidade, quando a trombe-ta soar sua primeira nota incerta?

      Janek sacudiu os ombros.

      - Admitamos que eu constate que ele é um robô. Vamos irradiar isto para o mundo todo? Sabe como é que isto afetará a Federação? Sabe o que isto representará para a estrutura financeira do mundo? Sabe...

      - Sei sim. É por isto que vim aqui falar-lhe em particular, em vez de tentar dar isto ao conhecimento público. Depende do senhor examinar o assunto e chegar a uma conclusão definitiva. Em seguida, cabe também ao senhor, tendo constatado que o suposto Presidente é um robô, coisa que estou certo de que acontecerá, convencê-lo a renunciar.

      - E, pela versão que você deu da Primeira Lei, ele então me matará, eis que estarei ameaçando sua hábil condução da maior crise global do Século Vinte e Um.

      Edwards sacudiu a cabeça.

      - O robô agiu secretamente antes, e ninguém tentou se opor aos argumentos que ele usou consigo mesmo. O senhor é capaz de reforçar uma interpretação estrita da Primeira Lei, com seus argumentos. Se necessário, poderemos obter ajuda de algum funcionário da U. S. Robots and Mechanical Men Inc. que, antes de mais nada, construiu o robô. Uma vez que ele renuncie, o Vice-Presidente o sucederá. Se o robô-Winkler pôs o velho mundo no caminho certo, muito bem; o Vice-Presidente poderá agora conservá-lo no caminho certo, ainda mais que o Vice-Presidente é uma decente e honrada mulher. Mas não podemos ter um robô a nos dar ordens, e nunca mais poderemos ter um.

      - E se o Presidente for um ser humano?

      - Deixo isso a seu critério. Saberá como proceder.

      Janek disse:

      - Não confio tanto assim em mim mesmo. E se eu não puder decidir? Se eu não puder me forçar a decidir? Se eu não ousar? Quais são seus planos?

      Edwards parecia cansado.

      - Não sei. Talvez eu tenha de ir até a U. S. Robots. Mas acho que não terei de chegar a tanto. Estou plenamente confiante de que agora que deixei o problema a seus cuidados ele será resolvido. O senhor deseja ser governado por um robô?

      Levantou-se e Janek deixou-o ir embora. Não apertaram as mãos.

      Profundamente chocado, lá ficou Janek, no crepúsculo que se manifestava.

      Um robô!

      O sujeito entrara, argumentara de maneira perfeitamente racional que o Presidente dos Estados Unidos era um robô.

      Poderia ter sido fácil contra-argumentar. Não obstante, Janek tentara pensar em todos os argumentos de que dispunha, e todos tinham se mostrado inúteis, e, por fim, o sujeito não se deixara abalar.

      Um robô como Presidente! Edwards estava certo disto, e continuaria convicto disto. E se Janek insistisse que o Presidente era humano, Edwards iria até a U. S. Robots. Não descansaria.

      Janek franziu a testa ao pensar nos vinte e oito meses que haviam decorrido desde o Tricentenário e como tudo tinha transcorrido tão bem, diante das possibilidades. E agora?

      Perdido em sombrios pensamentos, lá ficou.

      Tinha ainda o desintegrador, mas certamente não seria necessário usá-lo contra um ser humano, tanto mais que a natureza de seu corpo estava fora de quaisquer dúvidas. Um laser silencioso, a vibrar um golpe em algum lugar solitário, resolveria a questão.

      No primeiro caso, tinha sido difícil manobrar o Presidente; neste caso aqui, todavia, ele nem teria de saber.

 

      Powell e Donovan

      Primeira lei

      Mike Donovan ficou olhando para sua caneca vazia de cerveja, sentiu-se entediado, e decidiu que já tinha ouvido demais. E disse, em voz alta:

      - Se vamos conversar sobre robôs incomuns, certa feita conheci um que desobedeceu à Primeira Lei.

      E como isto era completamente impossível, todos pararam de falar e voltaram seus olhares para ele. Donovan lamentou sua língua-de-trapos de imediato, e mudou de assunto:

      - Ouvi uma boa piada ontem - ia dizendo, casualmente - sobre...

      MacFarlane interveio, da cadeira ao lado da de Donovan:

      - Quer dizer que conheceu um robô que machucou um humano? - Era do que tratava a desobediência à Primeira Lei, é claro.

      - De certa forma - respondeu Donovan. - Mas ouvi uma piada a respeito...

      - Conte-nos dele - ordenou MacFarlane. Alguns dos outros começaram a bater suas canecas sobre a mesa. Donovan tentou contar da melhor maneira possível.

      - Aconteceu em Titã, cerca de dez anos atrás - disse, pensando depressa. - Sim, foi em vinte e cinco. Tínhamos recebido recentemente um carregamento de três robôs de modelo novo, especialmente projetados para Titã. Eram os primeiros modelos MA. Nós os chamamos Ema Um, Dois e Três. - Estalou os dedos pedindo uma outra cerveja e ficou olhando, sério, o garçon se afastar. - Vejamos, o que vinha depois?

      E MacFarlane continuou:

      - Estive lidando com robótica toda a minha vida, Mike. Nunca ouvi falar de uma série MA.

      - Isso por que tiraram os MA's das linhas de montagem imediatamente depois... depois do que vou lhes contar. Não se lembram?

      — Não.

      Donovan retomou, apressadamente:

      - Pusemos os robôs para trabalhar de imediato. Vejam, até então a base tinha estado totalmente inútil durante a estação das tempestades, que dura oitenta por cento da revolução de Titã em torno de Saturno. Durante as nevascas terríveis, você não poderia achar a Base se ela estivesse sequer a cem jardas de distância. As bússolas não adiantam nada, porque Titã não tem campo magnético.

      Os robôs MA, entretanto, eram equipados com vibrodetetores de desenho novo, de modo que podiam determinar a direção da Base através de qualquer obstáculo, o que significava que a mineração poderia se estender durante todo o período de revolução. E antes que você diga alguma coisa, Mac, os vibrodetetores também foram tirados do mercado, e é por isso que nunca ouviu falar deles. - Donovan tossiu. - Segredo militar, você compreende? - E prosseguiu: - Os robôs trabalharam bem durante a primeira estação das tempestades, e então, começando a estação calma, Ema Dois começou a fazer coisas. Ficava andando pelos cantos e sob os engradados, e precisava ser atraída para fora. Por fim, saiu da Base e não voltou. Concluímos que tinha um defeito de fabricação, e continuamos o trabalho com as outras duas máquinas. Mesmo assim, significava que nos faltava mão-de-obra, ou robô-de-obra, e ao fim da estação calma, alguém precisaria ir a Kornsk, e eu fui voluntário, para arriscar a ir sem um robô. Parecia seguro o suficiente, as tempestades só seriam de esperar em mais dois dias, e eu estaria de volta depois de vinte horas no exterior.

      “No dia da volta, a umas dez milhas da Base, o vento começou a soprar e a atmosfera ficou mais densa. Pousei meu carro imediatamente antes que o vento o esmagasse, apontei para a Base e comecei a correr. Podia percorrer bem aquela distância sob a baixa gravidade, mas será que podia correr em linha reta? Essa era a questão. Meu suprimento de ar era grande e as resistências de meu traje eram satisfatórias, mas dez milhas através de uma tempestade titãnica é uma infinidade.”

      “Quando a torrente de neve transformou tudo num crepúsculo escuro e viscoso, até com Saturno obscurecido, e o Sol apenas como uma pintinha pálida, parei e inclinei-me contra o vento. Havia um pequeno objeto escuro bem à minha frente. Mal conseguia discerni-lo, mas sabia o que era. Era um cachorrinho da tempestade, a única coisa viva que podia suportar uma tempestade titãnica, e a mais maligna coisa viva em qualquer lugar. Eu sabia que meu traje espacial não poderia me proteger, uma vez que se dirigisse contra mim, e com aquela má iluminação, eu precisava esperar até poder disparar à queima-roupa, ou era melhor não atirar. Um tiro perdido e o animal me alcançaria.”

      “Recuei lentamente, e o vulto acompanhou-me. Aproximava-se, e eu estava erguendo meu explosor, com uma oração, quando um vulto maior ergueu-se sobre mim de repente, e eu até cantarolei de alívio. Era Ema Dois, o robô MA perdido. Nunca parei para imaginar o que tinha acontecido ou me preocupar com o porquê. Só pude dizer: "Ema, querida, pegue aquele cachorrinho e leve-me de volta para a Base".

      “Ela olhou-me, como se nada tivesse ouvido, e pediu: "Senhor, não atire. Não atire".”

      “E saiu correndo rumo ao cachorrinho da tempestade.”

      "Pegue o maldito cachorrinho, Ema!", gritei. Ela pegou o cachorrinho, mesmo. Apanhou-o e continuou andando. Gritei até ficar rouco, mas ela nunca voltou. Deixou-me para morrer na tempestade.”

      Donovan fez uma pausa dramática.

      - É claro, vocês conhecem a Primeira Lei: um robô não pode causar dano a um humano, ou por inação, permitir que um humano sofra dano! Bem, Ema Dois acabara de sair correndo com aquele cachorrinho da tempestade e deixou-me a morrer. Violou a Primeira Lei.

      “Felizmente, saí daquela ileso. Meia hora depois, a tempestade amainou. Fora só uma lufada prematura, e só temporária. Isso acontece, às vezes. Disparei para a Base e a tempestade começou realmente no dia seguinte. Ema Dois retomou duas horas depois de mim, e, é claro, o mistério foi então explicado e os modelos MA foram retirados do mercado imediatamente.

      - E exatamente o quê - quis saber MacFarlane - foi a explicação?

      Donovan olhou para ele, sério:

      - É verdade que eu era um humano em perigo de morte, Mac, mas para aquele robô havia algo que vinha primeiro, mesmo antes de mim, antes da Primeira Lei. Não se esqueça que eles eram de uma série MA especial, e este robô MA em particular estivera procurando esconderijos por algum tempo antes de desaparecer. Era como se esperasse algo especial - e particular - para acontecer. Aparentemente, algo de especial acontecera.

      Os olhos de Donovan voltaram-se para cima, reverentemente, e sua voz estremeceu.

      - Aquele cachorrinho não era cachorrinho nenhum. Nós o chamamos Ema Júnior, quando Ema Dois o trouxe. Ema Dois precisava protegê-lo de minha arma. O que é a Primeira Lei comparada aos laços sagrados do amor maternal?

BRINCADEIRA DE PEGAR

      Um dos ditados favoritos de Gregory Powell era: “Nada se ganha com excitação”. Assim sendo, quando Mike Donovan desceu as escadas aos pulos, correndo para ele, com os cabelos vermelhos molhados de suor, Powell franziu a testa.

      – Que houve? – indagou. – Quebrou uma unha?

      – É – rosnou Donovan, irritado. – Que esteve fazendo nos níveis inferiores o dia inteiro? – Respirando fundamente, explodiu : – Speedy não voltou!

      Os olhos de Powell se arregalaram momentaneamente e ele parou nos degraus. Então, recobrou-se e continuou a subir. Não falou até chegarem ao patamar superior.

      – Mandou que ele fosse buscar o selênio?

      – Mandei.

      – Há quanto tempo ele saiu?

      – Faz cinco horas.

      Silêncio.

      Era uma situação dos diabos. Estavam em Mercúrio exatamente há doze horas – e já se encontravam metidos em dificuldades até o nariz. Em dificuldades da pior espécie. Mercúrio era, havia muito, o planeta azarado do Sistema Solar, mas agora a coisa parecia estar indo longe demais – mesmo para um azar.

      – Comece do princípio – disse Powell. – Vamos ver isso direito.

      Entraram na sala de rádio – com o seu equipamento subitamente obsoleto, que não fora tocado desde dez anos antes de eles chegarem. Tecnologicamente falando, mesmo dez anos eram um longo período de tempo. Bastava comparar Speedy com o tipo de robôs que haviam estado em Mercúrio dez anos antes. Por outro lado, atualmente os progressos no campo da robótica eram tremendos. Powell tocou cuidadosamente uma superfície metálica ainda brilhante. A aparência de desuso que pairava na sala – e na Estação inteira – era deprimente.

      Donovan deve ter sentido a mesma coisa. Começou:

      – Tentei localizá-lo pelo rádio, mas foi inútil. O rádio de nada serve no lado iluminado de Mercúrio; pelo menos, não além de três quilômetros. Esta foi uma das razões pelas quais a Primeira Expedição fracassou. E ainda levaremos semanas para instalar o equipamento de ultra-ondas...

      – Deixe isso de lado. O que conseguiu?

      – Localizei o sinal de um corpo não organizado na onda curta. De nada serviu, exceto para marcar sua posição. Consegui acompanhar seu deslocamento durante duas horas e marquei o itinerário no mapa.

      Tirou do bolso um pedaço quadrado de pergaminho amarelado – relíquia da fracassada Primeira Expedição – e colocou-o em cima da mesa com violência, alisando-o com a palma da mão. Powell, com os braços cruzados sobre o peito, observava a distância. O lápis de Donovan apontava nervosamente.

      – A cruz vermelha é o poço de selênio. Você mesmo o marcou.

      – Qual deles? – interrompeu Powell. – McDougall localizou três para nós, antes de partir.

      – Enviei Speedy ao mais próximo, naturalmente. Fica a vinte e oito quilômetros. Mas que diferença faz? – indagou Donovan, com voz tensa. – Os pontos feitos a lápis marcam a posição de Speedy.

      Pela primeira vez, a pose artificial de Powell foi abalada e seus dedos se lançaram em direção ao mapa.

      – Está falando sério? É impossível.

      – Aí está – grunhiu Donovan.

      Os pequenos pontos que marcavam a posição formavam aproximadamente um círculo em torno da cruz vermelha que assinalava o poço de selênio. Os dedos de Powell subiram para seu bigode castanho – sinal infalível de ansiedade. Donovan acrescentou:

      – Nas duas horas em que o acompanhei pela onda curta, ele circundou o maldito poço quatro vezes. Parece- me que continuará assim para sempre. Compreende a situação em que estamos?

      Powell ergueu ligeiramente os olhos, mantendo-se calado. Oh, sim, ele compreendia a situação em que estavam. Solucionava-se simplesmente através de um silogismo. As camadas de fotocélulas, que constituíam a única proteção entre eles e todo o poder do monstruoso sol de Mercúrio, estavam irremediavelmente avariadas. A única coisa que poderia salvá-los era o selênio. A única coisa que poderia ir buscar selênio era Speedy. Se Speedy não voltas- se, não haveria selênio.

      Se não houvesse selênio não ha veria camadas de fotocélulas. Sem camadas de fotocélulas... bem, a morte em forno brando é um dos piores meios de despedir-se da vida...

      Donovan esfregou raivosamente o cabelo ruivo e expressou-se com amargura: 

      – Seremos os palhaços do Sistema Solar, Greg. Como tudo pôde dar errado tão cedo? A grande dupla Powell e Donovan é enviada a Mercúrio para fazer um relatório sobre a viabilidade de reabrir a Estação Mineira do Lado Iluminado com novas técnicas e robôs modernos – e arruinamos tudo no primeiro dia. Além disso, uma tarefa pura- mente de rotina. Jamais suportaremos as zombarias.

      – Talvez nem seja necessário suportarmos – replicou Powell tranqüilamente. – Se não fizermos alguma coisa bem depressa, não precisaremos suportar coisa alguma – exceto a morte.

      – Não seja estúpido! Se está achando graça, fique sabendo que não estou. Foi um crime : mandar-nos aqui com um único robô. E a brilhante idéia de que poderíamos cuidar sozinhos das camadas de fotocélulas foi sua.

      – Ora, não seja injusto. Foi uma decisão mútua e você o sabe muito bem. Tudo o que precisávamos era um quilo de selênio, uma placa dielétrodo stillhead e três horas de trabalho e sabemos que há poços de selênio espalhados por todo o lado iluminado de

      Mercúrio. O espectro refletor de McDougall localizou três deles para nós em apenas cinco minutos, não é? Que diabo? Não podíamos esperar pela próxima conjunção.

      – Bem, que vamos fazer? Sei que você tem alguma idéia, Powell. Do contrário, não estaria tão calmo. Não é mais herói do que eu. Vamos, desembuche!

      – Não podemos ir procurar Speedy , não no lado iluminado. Mesmo os novos trajes isoladores não durariam mais que vinte minutos sob o calor direto do Sol. Mas você conhece o velho ditado: “Mande um robô para pegar outro robô”. Ouça, Mike, talvez as coisas não estejam tão mal quanto parecem. Temos seis robôs nos níveis inferiores; poderão servir-nos, se funcionarem. Se funcionarem!

      Um súbito brilho de esperança surgiu nos olhos de Mike Donovan.

      – Refere-se aos seis robôs da Primeira Estação? Tem certeza? Talvez sejam máquinas sub-robóticas. Você bem sabe que dez anos é um longo período no que se refere a máquinas do tipo robô.

      – Não. São realmente robôs. Passei o dia inteiro com eles e tenho a certeza. Possuem cérebros positrônicos, embora primitivos, naturalmente. - Colocando o mapa no bolso, acrescentou: – Vamos descer.

      Os seis robôs encontravam-se no nível mais inferior, rodeados por caixotes mofados, de conteúdo desconhecido. Eram grandes – extremamente grandes – e, embora estivessem sentados no chão, com as pernas esticadas para a frente, suas cabeças se encontravam a uma altura superior a dois metros. Donovan soltou um assobio.

      – Olhe só o tamanho deles! A circunferência do peito deve ter três metros!

 – É porque são equipados com as velhas engrenagens McDuffy. Examinei o interior deles – o aparelho mais frágil que já se viu.

 – Ligou-os?

      – Não. Não havia motivo. Mas não creio que haja algo de errado com eles. Até o diafragma se encontra em estado razoável. Talvez possam falar.

      Enquanto falava, desaparafusou a placa do peito do robô mais próximo e inseriu a esfera de duas polegadas de diâmetro que continha a minúscula centelha de energia atômica que dava vida aos robôs. Houve alguma dificuldade para instalá-la, mas Powell acabou conseguindo e tornou a colocar a placa do peito, trabalhando laboriosamente. Os controles de rádio dos modelos mais modernos eram desconhecidos dez anos antes. A seguir, passou a trabalhar nos outros cinco robôs. Donovan comentou, inquieto : 

      – Não se moveram.

      – Não receberam ordens para fazê-lo – replicou Powell, lacônico.

Voltando ao primeiro da fila, bateu-lhe no peito.

      – Rh, você! Está me ouvindo?

      A cabeça do monstro metálico moveu-se lentamente e seus olhos se fixaram em Powell. Então, em voz áspera e esganiçada – semelhante ao som de um fonógrafo primitivo – ele respondeu: 

– Sim, amo!

Powell sorriu para Donovan, um sorriso desprovido de humor.

 – Ouviu isso? Foi fabricado na época dos primeiros robôs falantes, quando tudo indicava que o uso de robô na Terra seria proibido. Os fabricantes, procurando lutar contra a medida, incutiam complexo de escravos nas mal- ditas máquinas.

 – Mas não adiantou – murmurou Donovan.

      – Não, mas, mesmo assim, eles tentaram. - Voltando-se mais uma vez para o robô, Powell ordenou: – Levante-se!

      O robô levantou-se vagarosamente e Donovan ergueu a cabeça, soltando outro assobio. Powell indagou: 

      – Pode ir à superfície e enfrentar a luz do Sol?

      Houve um intervalo, enquanto o cérebro vagaroso do robô funcionava. Então ele respondeu: 

– Sim, amo.

-Ótimo. Sabe o que é um quilômetro?

Outro intervalo e outra resposta vagarosa:

– Sim, amo.

      – Então, vamos levá-lo à superfície e indicar-lhe uma direção. Você andará vinte e oito quilômetros e, em algum lugar daquela região, encontrará outro robô, menor do que você. Está compreendendo?

      – Sim, amo.

      – Ao encontrar o tal robô, ordene-lhe que volte para cá. Se ele não quiser obedecer, traga-o à força. Donovan segurou Powell pela manga.

      – Por que não mandá-lo pegar logo o selênio?

      – Porque quero Speedy de volta, idiota. Quero saber o que houve de errado com

ele. - Virando-se para o robô: – Muito bem. Siga-me. O robô permaneceu imóvel e disse :

      – Perdão, amo, mas não posso. Primeiro, o senhor precisa montar.

      Baixara os braços e seus dedos desajeitados se entrelaçaram. Powell arregalou os olhos, levando a mão ao bigode.

      – Hum... oh!

Os olhos de Donovan quase saltaram das órbitas.

– Precisa montar nele? Como um cavalo?

      – Creio que essa é a idéia. Mas não sei por que motivo. Não compreendo... Oh, sim, já sei. Como lhe disse, naquela época os fabricantes punham ênfase na segurança de lidar com robô. Evidentemente, procuraram incutir essa noção de segurança fabricando robôs que não pudessem mover-se sem um homem montado às suas costas. Que fazemos, agora?

      – É o que estive pensando – murmurou Donovan.

      – Não podemos ir à superfície, com o robô ou sem ele. Oh, com os diabos... De repente, estalou os dedos, excitado.

      – Empreste-me o mapa. Não foi à toa que o estudei durante duas horas. Estamos numa Estação Mineira. Por que não usamos os túneis?

      No mapa, a Estação Mineira era representada por um círculo negro; linhas pontilhadas representavam os túneis que partiam dela, formando uma espécie de teia de aranha. Donovan estudou a explicação das legendas na base do mapa.

      – Olhe – disse ele. – Os pequenos pontos pretos são saídas para a superfície e há um situado a cerca de cinco quilômetros do poço de selênio. Há um número aqui... ora, por que não escreveram com letra maior?... 13-A. Se os robôs souberem andar por aqui...

      Powell fez a pergunta ao robô, que respondeu:

      – Sim, amo.

      – Vá buscar seu traje isolador – disse Powell a Donovan, com evidente satisfação.

      Era a primeira vez que qualquer um deles usava os trajes isoladores, coisa que jamais haviam esperado fazer quando chegaram a Mercúrio – e tentaram mover os membros, com uma sensação desconfortável.

      O traje isolador era muito mais volumoso e feio do que o traje espacial normal; no cômputo geral, porém, era consideravelmente mais leve, por ser de construção inteiramente não metálica. Composto de plástico resistente ao calor e camadas de fibra tratada quimicamente, além de ser equipado com um aparelho desidratante para manter o ar absolutamente seco, o traje isolador podia resistir à temperatura do Sol em Mercúrio durante vinte minutos.

      Talvez cinco ou dez minutos mais, sem chegar a matar o ocupante. As mãos do robô continuavam a formar um estribo e ele não demonstrou a menor surpresa diante da grotesca figura na qual Powell havia se convertido.

      A voz de Powell, tornada áspera pelo rádio do traje isolador, indagou : 

      – Está pronto para levar-nos até à Saída 13-A?

      – Sim, amo.

      Ótimo, pensou Powell; os robôs podiam não ter controle pelo rádio, mas, pelo menos, estavam equipados para rádio-recepção. 

      – Monte em qualquer um deles, Mike – disse ele a Donovan.

      Colocou o pé no estribo improvisado e alçou-se. Verificou que a posição era confortável; as costas do robô eram obviamente de conformação adequada, com um sulco raso de cada lado, para as coxas do ginete, e as orelhas alongadas tinham uma função evidente.

      Powell pegou as orelhas e torceu a cabeça do robô. Este se voltou pesadamente.

      – Vá na frente, McDuff.

      Mas não se sentia muito alegre. Os gigantescos robôs moviam-se vagarosamente, com precisão mecânica. Atravessaram a porta, cuja parte superior ficava a pouco mais de trinta centímetros de suas cabeças, de modo que os dois homens foram obrigados a abaixar-se apressadamente. Seguiram por um corredor estreito, onde seus passos vagarosos ecoavam monotonamente. Passaram pelo compartimento estanque.

      O túnel comprido e sem ar, que se estendia diante deles até tornar-se um mero ponto a distância, fez com que Powell ficasse deveras impressionado com a magnitude da obra realizada pela Primeira Expedição, contando apenas com robôs elementares e tendo de enfrentar todas as dificuldades que afrontam os pioneiros em sua primeira exploração. Podiam ter fracassado, mas seu fracasso era muito superior à média dos sucessos do Sistema Solar.

      Os robôs prosseguiram com uma velocidade que jamais variava e passos que nunca aumentavam. Powell comentou :

 – Repare que estes túneis possuem uma iluminação brilhante e que a temperatura é normal, igual à da Terra. Provavelmente, isto vem acontecendo durante todo o período de dez anos em que a mina permaneceu vazia.

 – Como é possível?

      – Energia barata; a mais barata do Sistema Solar: energia do Sol. E, como sabe, em Mercúrio a força do Sol é “uma coisa”. Por esse motivo, a Estação Mineira foi instalada no lado iluminado, ao invés de ser construída na face escura, ou à sombra de uma montanha. Na realidade, ela não passa de um gigantesco conversor de calor. O calor é transformado em eletricidade, luz, trabalho mecânico e tu- do o mais; de tal forma, a luz do sol fornece toda a energia e, num processo simultâneo, serve para refrigerar a Estação.

      – Escute – disse Donovan. – Tudo isto é muito instrutivo, mas importa-se em mudar de assunto? Acontece que essa conversão de energia da qual você fala é realizada principalmente pelas camadas de fotocélulas e, no mo- mento, o tema é um tanto delicado para mim.

      Powell soltou um grunhido. Quando Donovan quebrou o silêncio resultante de sua interpelação, foi para mudar completamente de assunto: 

      – Escute, Greg. Afinal, que diabo houve com Speedy? Não consigo entender.

      Não era fácil sacudir os ombros num traje isolador, mas Powell tentou, assim mesmo.

      – Não sei, Mike. Como você sabe, ele estava perfeitamente adaptado ao meio ambiente de Mercúrio. O calor não o afeta e ele foi construído para funcionar com a força de gravidade diminuta e no terreno acidentado. É à prova de defeitos ou, pelo menos, deveria ser.

      Fez novo silêncio. Desta feita, prolongado.

      – Amo – disse o robô, afinal. – Chegamos.

      – Hum? – murmurou Powell, arrancado de suas reflexões. – Bem, leve-nos para fora daqui, para a superfície. Entraram numa minúscula subestação, vazia, sem ar, em ruínas. Donovan utilizou o facho de sua lanterna portátil para inspecionar um buraco de bordos irregulares na parte superior de uma das paredes: 

– Acha que foi um meteorito? – indagou.

Powell sacudiu os ombros.

      – Não interessa. Ao diabo com isso. Vamos sair daqui. Um alto penhasco negro de rocha de basalto cortava a luz solar e eles se viram mergulhados na profunda sombra noturna do mundo sem ar que os rodeava. A sombra se estendia diante deles e terminava abruptamente, como se cortada a faca, dando lugar a um brilho quase insuportável de luz branca, que se refletia de uma miríade de cristais que recobriam o solo rochoso.

– Espaço! – exclamou Donovan, espantado. – Parece neve!

E parecia, mesmo.

O olhar de Powell percorreu o brilho de Mercúrio até o horizonte e ele franziu a

testa. O fulgor era esfuziante.

      – Deve tratar-se de uma área fora do comum – comentou. – O ablego geral de Mercúrio é baixo e a maior parte do solo é constituída de pedra-pomes cinzenta. Algo semelhante à Lua, sabe. Lindo, não é?

      Sentia-se grato pelos filtros de luz nos visores de seus trajes. Lindo ou não, olhar para a luz do Sol através de vidro comum provocaria a cegueira dentro de meio minuto. Donovan consultou o termômetro de pulso.

      – Com os diabos! A temperatura é oitenta graus centígrados!

Powell examinou seu próprio termômetro e comentou:

      – E... Um pouco alta. Atmosfera, como sabe.

      – Em Mercúrio? Ficou maluco?

      – Na realidade, Mercúrio não é inteiramente desprovido de ar – explicou Powell, distraídamente, enquanto ajeitava os encaixes do binóculo em seu visor, tarefa que era prejudicada pelas grossas luvas do traje isolador. – Existe uma tênue exalação que se mantém junto à superfície, vapores dos elementos mais voláteis e compostos suficientemente pesados para que a gravidade de Mercúrio os retenha : selênio, iodine, mercúrio, gálio, potássio, bismuto, óxidos voláteis. Os vapores se concentram nas regiões sombrias e condensam-se, emitindo calor. É uma espécie de destilaria gigantesca. Na verdade, se você usar a lanterna, provavelmente verificará que o lado do penhasco está coberto com mofo de enxofre, ou, digamos, orvalho de mercúrio.

      – Mas não interessa. Nossos trajes podem agüentar indefinidamente uns simples oitenta graus.

      Powell terminara de ajustar o binóculo e parecia ter os olhos salientes, como uma lesma. Donovan observou-o atentamente.

      – Vê alguma coisa?

      O outro não respondeu imediatamente. Quando o fez, foi em tom ansioso e pensativo.

      – Há um ponto escuro no horizonte que poderia ser o poço de selênio. Pelo menos, é no lugar certo. Mas não vejo Speedy. 

      Powell ergueu-se instintivamente, na ânsia de ver melhor, até que ficou em pé, com pouca firmeza, nos ombros do robô. Com os pés afastados, os olhos atentos, disse:

      – Acho... Acho... Sim, é mesmo ele. Está vindo para cá.

      Donovan olhou na direção apontada pelo dedo de Powell. Embora não estivesse de binóculo, percebeu um minúsculo ponto negro que se movia, em contraste com o branco fulgor do solo cristalino.

      – Já o vejo! – berrou Donovan. – Vamos!

      Powell retornara à posição anterior, nas costas do robô. Bateu no enorme peito metálico.

      – Vamos indo!

      – Upa! Upa! – berrou Donovan, cutucando com os calcanhares em seu robô, como se usasse esporas.

      Os robôs partiram; as batidas regulares de seus passos eram inaudíveis no ambiente sem ar, pois o tecido não metálico dos trajes isoladores não transmitia sons. Havia apenas uma vibração rítmica, aquém do limite da audição.

– Mais depressa! – berrou Donovan.

Mas o ritmo não se alterou.

      – Não adianta – replicou Powell. – Estas latas velhas só podem desenvolver uma velocidade. Acha que são equipados com flexores seletivos?

      Saíram da zona de sombra e a luz solar caiu sobre eles como um jato branco, líquido e fervente. Donovan encolheu-se involuntariamente.

      – Puxa! É imaginação, ou estou sentindo calor?

      – Ainda vai sentir mais – foi a sombria resposta. – Mantenha-se de olho em Speedy.

      O Robô SPD 13 já estava bastante perto para ser visto em detalhe. Seu corpo gracioso e aerodinâmico lançava reflexos brilhantes, enquanto ele galopava com rapidez e agilidade através do terreno acidentado. Obviamente, seu nome era derivado das iniciais de sua série de fabricação, mas era adequado, pois os modelos SPD achavam-se entre os mais velozes robôs produzidos pela U.S. Robôs I Homens Mecânicos.

      – Rh, Speedy! – gritou Donovan, acenando com a mão.

      – Speedy! – berrou Powell. – Venha cá!

      A distância entre os homens e o robô errante diminuía sensivelmente, mais pelos esforços de Speedy do que pelo vagaroso caminhar das obsoletas montadas de Donovan e Powell.

      Estavam bastante perto para perceber que o andar de Speedy apresentava um curioso cambalear de um lado para outro. Então, quando Powell acenou outra vez e colocou potência máxima em seu radioemissor compacto, preparando-se para gritar outra vez, Speedy ergueu a cabeça e avistou-os.

      O robô estacou e ficou imóvel por um momento, apenas balançando quase imperceptivelmente, como se impulsionado por leve vento. Powell gritou: 

– Muito bem, Speedy! Venha até aqui, rapaz!

A voz metálica de Speedy soou pela primeira vez nos fones de Powell.

      – Ora, bolas! Vamos brincar! Eu pego você e você me pega; amor nenhum pode cortar nossa faca em dois. Eu sou Bombonzinho, o doce Bombonzinho! Viva!

      Girando nos calcanhares, partiu velozmente na direção de onde viera, com uma fúria que levantava jatos de poeira. Suas últimas palavras, quando ele já ia longe, foram:

      – Havia uma florzinha perto de um grande carvalho...

      Foram seguidas por um curioso estalido metálico que poderia ser o equivalente robótico de um soluço. Donovan disse, desanimado :

  – Onde foi que ele aprendeu essas besteiras?... Êh, Greg... Será que ele está embriagado? – Se você não me dissesse, eu jamais teria imaginado – Foi a amarga resposta. –

      Vamos voltar para o penhasco. Estou assando. Foi Powell quem quebrou o desesperado silêncio.

      – Em primeiro lugar, Speedy não está embriagado – declarou. – Pelo menos, não no sentido humano do termo, pois ele é um robô e robôs não se embriagam. Todavia, há algo errado com ele, que eqüivale à embriaguez em um robô.

      – Para mim, ele está bêbado – declarou Donovan, com ênfase. – Só sei que ele pensa que estamos brincando. E não estamos. É uma questão de vida ou de uma morte horrível.

      – Está certo. Não me afobe. Um robô é apenas um robô. Quando descobrimos o que há de errado com ele, poderemos consertá-lo e prosseguir.

      – Quando – disse Donovan, em tom azedo.

Powell preferiu ignorá-lo.

      – Speedy é perfeitamente adaptado ao ambiente normal de Mercúrio. Mas esta região – e fez um amplo gesto com o braço – é nitidamente anormal. Eis aí nossa pista. De onde vêm esses cristais? Podem ter-se formado de algum líquido que se resfriou lentamente, mas onde haveria um líquido tão quente que poderia resfriar-se com o calor solar em Mercúrio?

      – Ação vulcânica – sugeriu imediatamente Donovan.

Powell contraiu os músculos.

      – Idéias de crianças... – murmurou de modo estranho, permanecendo completamente imóvel por cinco minutos. Afinal, disse: – Ouça, Mike: o que falou você a Speedy quando o mandou buscar selênio?

      Donovan ficou surpreso.

      – Com os diabos... Não sei. Mandei-o apenas buscá-lo.

      – Sim, eu sei. Mas como? Tente lembrar-se das palavras exatas.

      – Eu disse... bem... disse: “Speedy, precisamos de algum selênio. Pode conseguilo num lugar assim-assim. Vá buscá-la”. Isso foi tudo. O que mais queria você que eu dissesse?

      – Não colocou urgência na ordem, colocou?

      – Para quê? Era pura rotina.

      Powell suspirou.

      – Bem, agora não adianta... mas estamos numa bela encrenca. Desmontara do robô e estava sentado, com as costas apoiadas no penhasco. Donovan juntou-se a ele e passou o braço pelo seu. A distância, a fulgurante luz solar parecia esperá-los, como um gato espera pelo rato à saída do buraco. Ao lado deles, os dois gigantescos robôs estavam invisíveis, exceto pelo vermelho opaco de seus olhos fotoelétricos, que fitavam os dois homens sem piscar ou desviar-se, completamente despreocupados. Despreocupados! Tanto quanto o venenoso planeta Mercúrio, tão grande em azar quanto pequeno em tamanho.

      A voz tensa de Powell veio pelo rádio, soando aos ouvidos de Donovan : 

      – Bem, escute: vamos começar pelas três leis fundamentais das Regras da Robótica, as três regras que estão mais profundamente incutidas no cérebro positrônico de um robô. 

      No escuro, seus dedos enluvados enumeravam cada uma delas.

      – Ternos: Um: um robô não pode ferir um ser humano, ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.

      – Certo!

      – Dois: um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei.

      – Certo!

      – E três : um robô deve proteger sua própria existência enquanto tal proteção não entrar em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.

      – Certo! E daí? Onde chegamos?

      – Exatamente à explicação. O conflito entre as várias regras é solucionado pelos diferentes potenciais positrônicos existentes no cérebro do robô. Digamos que um robô está caminhando para o perigo e sabe disso. O potencial automático controlado pela Regra 3 fá-lo voltar. Mas suponhamos que você ordene que ele caminhe para o perigo? Neste caso, a Regra 2 coloca em funcionamento um potencial mais alto do que o anterior e o robô cumpre a ordem, com o risco de sua própria existência.

      – Sim, eu sei. E daí?

      – Consideremos o caso de Speedy. Speedy é um dos modelos mais modernos, altamente especializado e tão caro quanto um encouraçado. Não deve ser destruído levianamente.

      – E daí?

      – E daí, sua obediência à Regra 3 foi reforçada. Por falar nisso, o detalhe foi mencionado nos primeiros manuais a respeito dos modelos SPD, de modo que sua alergia ao perigo é desusadamente elevada. Ao mesmo tempo, quando você o mandou buscar selênio, deu-lhe a ordem com naturalidade, sem ênfase especial, de modo que a regulagem do potencial da Regra 2 foi um tanto fraca. Espere, calma; estou apenas citando fatos.

      – Está bem; prossiga. Creio que entendo.

      – Compreende como funciona, não é? Existe alguma espécie de perigo, cujo centro está localizado no poço de selênio. Aumenta quando Speedy se aproxima e, a deter- minada distância do poço, o potencial da Regra 3, que já é desusadamente elevado, equilibra exatamente o potencial da Regra 2, que é relativamente fraco.

      Donovan ergueu-se, excitado.

      – Ele fica em equilíbrio. Compreendo: a Regra 3 o impele de volta e a Regra 2 o empurra para diante...

      – Então, ele segue um círculo em volta do poço de selênio, permanecendo na rota desenhada por todos os pontos de equilíbrio potencial. E a menos que façamos alguma coisa, continuará naquele círculo para sempre fazendo-nos correr à roda. - Em seguida, mais pensativo, acrescentou: – Esse é o motivo que o torna embriagado. Em equilíbrio potencial, a metade dos circuitos positrônicos de seu cérebro está desregulada. Não sou especialista em robôs, mas o fato me parece óbvio. Speedy provavelmente perdeu o controle das partes de seu mecanismo voluntário correspondentes às de um ser humano embriagado. Muito bonito!

      – Mas qual é o perigo? Se soubéssemos do que ele está fugindo...

      – Você fez a sugestão: ação vulcânica! Em algum lugar bem próximo ao poço de selênio deve existir um vazamento de gás proveniente das entranhas de Mercúrio. Dióxido de enxofre, dióxido de carbono e, certamente, monóxido de carbono. Em grande quantidade e a esta temperatura...

Donovan engoliu em seco, audivelmente.

– Monóxido de carbono com ferro produz o volátil carbonil de ferro.

Powell acrescentou:

      – E um robô é constituído essencialmente de ferro. Então, em tom mais sombrio:

      - Não existe nada como uma dedução. Determinamos todos os dados do problema, exceto a solução. Não podemos ir buscar o selênio; continua longe demais. Não podemos enviar estes robôs-cavalos, porque não sabem ir sozinhos. Por outro lado, não conseguem andar com a rapidez suficiente para evitar que fritemos ao sol. E não podemos pegar Speedy porque o imbecil pensa que estamos brincando e é capaz de correr a cem quilômetros por hora, contra os sete de nossos robôs.

      Donovan sugeriu, indeciso : 

– Se um de nós for buscar o selênio e morrer frito, ainda restará o outro.

      – Sim – foi a resposta sarcástica. – Seria o mais terno dos sacrifícios, só que aquele que fosse não estaria em condições de dar ordens ao chegar ao poço de selênio e não acredito que estes robôs sejam capazes de retornar até aqui sem alguém que lhes dê as ordens necessárias. Solucione isso! Estamos a três e meio ou quatro quilômetros do poço de selênio. Três e meio, digamos. O robô caminha a sete quilômetros por hora. E podemos durar apenas vinte minutos em nossos trajes isoladores. Lembre-se de que não é apenas o calor. Aqui, a radiação solar na faixa ultravioleta e abaixo dela é veneno.

      – Hum – murmurou Donovan. – Ficam faltando dez minutos.

      – O que eqüivale a dizer: uma eternidade. E tem mais uma coisa: para que o potencial da Regra 3 tenha detido Speedy, deve haver uma apreciável quantidade de monóxido de carbono na atmosfera de vapores metálicos, causando, consequentemente, uma considerável ação corrosiva. Há horas em que Speedy está exposto. Como poderemos saber, por exemplo, se uma junta de joelho não vai quebrar e deixá-lo imprestável? Portanto, não é apenas uma questão de pensar: precisamos pensar depressa! 

      Um silêncio profundo, desanimado, úmido e escuro! Foi Donovan quem o quebrou, com a voz trêmula, embora procurasse dissimular a emoção:

      – Enquanto não conseguirmos aumentar o potencial da Regra 2, dando-lhe novas ordens, por que não podemos agir ao contrário? Se aumentarmos o perigo, reforçaremos o potencial da Regra 3, obrigando-o a voltar. O visor de Powell voltou-se para Donovan, numa indagação silenciosa.

      – Escute – veio a cautelosa explicação. – Tudo o que precisamos fazer para arrancar Speedy do impasse é aumentar a concentração de monóxido de carbono nas proximidades dele. Bem, na Estação existe um completo laboratório de análises.

      – Claro – assentiu Powell. – É uma Estação Mineira.

      – Muito bem. Deve haver quilos de ácido oxálico para as precipitações de cálcio.

      – Com os diabos! Mike, você é um gênio.

      – Nem tanto – replicou Donovan, modestamente. – Trata-se apenas de lembrar que o ácido oxálico, quando aquecido, decompõe-se em dióxido de carbono, água e o nosso almejado monóxido de carbono. É química colegial, como sabe.

      Powell ergueu-se e atraiu a atenção de um dos monstruosos robôs pelo simples expediente de dar-lhe uma palmada na coxa.

      – Rh! – gritou. – Sabe jogar?

      – Senhor?

      – Não importa – replicou Powell, maldizendo o lento processo mental do robô. Apanhou um pedaço de cristal do tamanho aproximado de um tijolo.

      – Pegue isto – ordenou. – Agora, jogue-o e acerte naquele trecho de cristais azulados logo depois daquela fissura irregular. Está vendo onde é? Donovan puxou-o pelo ombro.

      – É longe demais, Greg. Fica quase a oitocentos metros.

      – Cale-se – retrucou Powell. – É uma combinação da fraca gravidade de Mercúrio e de um braço de aço. Observe só. 

      Os olhos do robô mediam a distância com uma precisão maquinal estereoscópica. Seu braço ajustou-se ao peso do projétil e recuou. Na escuridão, os seus movimentos eram invisíveis, mas houve um súbito baque quando ele mudou de posição, usando o peso do corpo. Segundos após, o cristal surgiu na claridade. Não havendo resistência do ar para contê-lo ou desviá-lo de um lado para outro, seguiu uma trajetória perfeita e foi cair exatamente no centro da mancha azulada.

      Powell soltou um grito de prazer e berrou :

– Vamos buscar o ácido oxálico, Mike!

      Quando entraram na subestação arruinada, no caminho de volta para os túneis, Donovan comentou sombriamente:

 – Speedy manteve-se no lado de cá do poço de selênio, desde que fomos procurálo. Você notou?

 – Notei.

      – Creio que ele quer brincar conosco. Bem, vamos arranjar-lhe uma boa brincadeira!

      Voltaram horas depois, com jarros de três litros contendo a substância branca. Seus rostos denotavam desânimo e preocupação. As camadas de fotocélulas deterioravam-se com mais rapidez do que parecia provável. Em silêncio, com sombria deliberação, os dois guiaram os robôs até a claridade, encaminhando-se para o ponto onde Speedy os esperava.

      Speedy galopou mansamente em direção a eles.

      – Bem, estão de volta! Oba! Fiz uma pequena lista, para o organista; todos comem pimenta e lhe cospem na cara.

      – Vamos cuspir algo na sua cara – murmurou Donovan, acrescentando: – Ele está maneando, Greg.

      - Já percebi – foi a resposta, em tom baixo e preocupado. – O monóxido de carbono o destruirá, se não agirmos depressa. 

      Aproximavam-se cautelosamente, quase se arrastando, a fim de evitar que o robô, agora completamente irracional, tornasse a fugir. Powell ainda estava longe demais para ter certeza, mas era capaz de jurar que o alucinado Speedy estava preparando um salto.

      – Joguem – ordenou ele. – Contem até três, comigo! Um... dois...

      Dois braços de aço recuaram e se lançaram simultaneamente para diante. Dois jarros de vidro partiram em trajetórias paralelas, brilhando como diamantes na claridade inacreditável do Sol. Num par de pequenas explosões inaudíveis, atingiram o solo à retaguarda de Speedy, estourando e fazendo com que o ácido oxálico voasse como poeira.

      Powell sabia que o ácido, exposto ao tremendo calor de Mercúrio, deveria estar fervendo como soda dentro da água.

      Speedy virou-se para observar e depois recuou vagarosamente. Pouco a pouco, ganhou velocidade. Dentro de quinze segundos, corria em direção aos dois homens, com pulos inseguros.

      Powell não entendeu bem as palavras de Speedy, embora julgasse ter ouvido algo como: “Confissões de amor murmuradas em... “ Virou-se.

 – Vamos voltar ao penhasco, Mike. Ele já ficou livre do impasse e passará a obedecer-nos. Estou ficando quente.

 Ao passo monótono de suas montadas, voltaram em direção à sombra. Somente quando chegaram a ela e a súbita frieza começou a aliviá-los, Donovan olhou para trás.

      – Greg! Powell olhou e quase soltou um uivo. Speedy movia-se vagarosamente – muito devagar – na direção errada!

      Estava voltando ao dilema e, pouco a pouco, ganhava velocidade. Através dos binóculos, parecia terrivelmente perto e, não obstante, sinistramente inalcançável. Donovan gritou, desesperado: 

      – Atrás dele!

      “Esporeou” seu robô, mas Powell chamou-o de volta.

      – Não conseguirá alcançá-lo, Mike... Não adianta.

      Mexeu-se nervosamente nas costas do robô, cerrando os punhos em raivosa impotência.

      – Por que diabo só vejo as coisas cinco segundos depois de tudo terminar? Perdemos horas, Mike.

      – Precisamos mais ácido oxálico – declarou teimosamente Donovan. – A concentração não foi suficiente.

      – Nem sete toneladas bastariam. E não dispomos de tempo para buscá-la, mesmo que houvesse uma quantidade suficiente, pois o monóxido de carbono está devorando Speedy. Não está vendo o que é, Mike?

      Donovan replicou lacônicamente:

      – Não.

      – Só conseguimos estabelecer novos equilíbrios. Quando criamos mais monóxido de carbono e aumentamos o potencial da Regra 3, ele volta até alcançar novamente o equilíbrio. Quando o monóxido se espalhou, ele voltou, pois o equilíbrio foi restabelecido. - Sua voz soava totalmente desanimada. - o mesmo círculo vicioso. Podemos diminuir a Regra 2 e aumentar a Regra 3, mas não conseguiremos chegar a coisa alguma – apenas alteraremos a posição de equilíbrio. Precisamos ultrapassar ambas as regras.

      Então, fez com que seu robô se aproximasse do de Donovan, de modo que ambos ficaram frente a frente, sombras difusas na escuridão. Sussurrou:

      – Mike!

      – É o fim?... Suponho que devemos voltar à Estação, esperar que as camadas de fotocélulas se desfaçam por completo, trocar um aperto de mãos, tomar cianureto e morrer como cavalheiros.

      Soltou uma risada curta e amarga.

      – Mike! – insistiu Powell, ansioso. – Precisamos pegar Speedy!

      – Sei.

      – Mike... – mais uma vez, Powell hesitou antes de prosseguir. – Continua existindo a Regra 1. Já pensei nela... antes... mas é um golpe desesperado. Donovan ergueu os olhos e sua voz pareceu mais animada.

      – Estamos desesperados.

      – Muito bem. De acordo com a Regra 1, um robô não pode permitir, por omissão, que um ser humano sofra algum mal. As Regras 2 e 3 não podem contrariá-la. Não podem, Mike!

      – Mesmo quando o robô está meio malu... Bem, ele está bêbado. Você sabe que está.

      – É um risco necessário.

      – Não importa. Que pretende fazer?

      – Vou até lá, ver qual o resultado da Regra 1. Se não conseguir quebrar o equilíbrio, bem, que diabo... é agora ou daqui a três ou quatro dias.

      – Espere, Greg. Também existem regras de comportamento humano. Não vou deixá-lo ir assim, sem mais nem menos. Invente um jogo, mas me dê também uma oportunidade.

      – Está certo. O primeiro que disser o cubo de quatorze vai. – E, quase de imediato:

      – Dois mil setecentos e quarenta e quatro. Donovan sentiu seu robô vacilar sob o súbito encontrão do robô de Powell. Quando se recobrou, Powell já estava na claridade. Donovan abriu a boca para gritar, mas tornou a fechá-la, obviamente, o maldito idiota calculara o cubo de quatorze previamente, de propósito. Era bem do seu jeito...

      O calor do Sol estava maior do que nunca e Powell sentia uma enlouquecedora coceira ao longo da espinha. Podia ser imaginação, ou talvez a forte radiação já começasse a atravessar até mesmo o traje isolador.

      Speedy o observava, sem uma só palavra de zombaria à guisa de cumprimento. Graças a Deus! Mas Powell não ousava aproximar-se demais.

      Estava a trezentos metros de distância, quando Speedy começou a recuar, passo a passo, cautelosamente. Powell parou. Pulou dos ombros do robô para o solo cristalino, provocando um leve baque e erguendo uma pequena nuvem de minúsculos fragmentos de cristal.

      Avançou, sentindo o solo áspero e escorregadio sob seus passos; a diminuta força de gravidade causava-lhe dificuldade. Lançou um olhar para trás, vendo a negra sombra do penhasco e percebendo que viera longe demais para poder voltar, tanto sozinho quanto com a ajuda de seu antiquado robô. Agora, era Speedy ou nada. A consciência do fato apertou-lhe o coração. 

      A boa distância, parou.

      – Speedy! – chamou. – Speedy!

      O belo e moderno robô à sua frente hesitou e interrompeu seu movimento de recuo. Mas logo o retomou. Powell tentou dar um tom de súplica à sua voz e se deu conta de que não precisava fingir para consegui-lo.

 – Speedy, preciso voltar à sombra, ou o Sol me matará. É uma questão de vida ou morte, Speedy. Preciso de você.

 Speedy deu um passo à frente e estacou. Falou. Mas Powell, ouvindo as palavras, soltou um gemido: 

      – Quando estás acordada com uma terrível dor de cabeça e não consegues dormir...

      O robô se interrompeu, mas, por algum motivo, Powell não conseguiu reprimir um impulso de murmurar: 

– Tome um comprimido...

O calor era terrível!

      Powell percebeu um movimento com o canto do olho.

Virou-se, estonteado pelo calor. Seus olhos se esbugalharam de espanto, pois o monstruoso robô que ele cavalgara até ali estava avançando, avançando em direção a ele, sem que ninguém o montasse. E dizia: 

      – Perdão, amo. Não devo mover-me sem um homem nas costas, mas o amo está em perigo.

      Era óbvio: o potencial da Regra 1 acima de tudo. Mas ele não desejava aquela relíquia desajeitada; queria Speedy. Afastou-se acenando freneticamente: 

      – Ordeno-lhe que se afaste. Ordeno-lhe que pare!

      Era totalmente inútil. Não podia derrotar o potencial da Regra 1. O robô disse, estupidamente :

      – Está em perigo, amo.

      Powell olhou desesperadamente em volta. Não conseguia ver com clareza. Seu cérebro parecia envolto em um torvelinho fervente. Seu hálito queimava, quando ele respirava e o solo estava coberto por radiação esfuziante. Chamou uma última vez, desesperado: 

      – Speedy! Estou morrendo, desgraçado! Onde está, Speedy? Preciso de você!

      Ainda recuava, cambaleante, procurando fugir ao gigantesco robô, que de nada lhe adiantava, quando sentiu dedos de aço em seus braços e ouviu uma voz metálica, preocupada :

      – Com os diabos, chefe, o que está fazendo aqui? E o que estou eu fazendo aqui... Sinto-me tão confuso...

      – Não faz mal – replicou Powell, com voz enfraquecida. – Leve-me para a sombra do penhasco, depressa!

      A última coisa que sentiu foi ser erguido no ar, com rapidez. Em seguida, o calor sufocante fê-lo desmaiar. Voltou a si com Donovan debruçado sobre ele, sorrindo ansiosamente.

      – Como está, Greg?

      – Bem! – foi a resposta. – Onde está Speedy?

      – Aqui mesmo. Mandei-o a um dos poços de selênio – desta vez, com ordem de trazer selênio de qualquer maneira. Ele voltou em quarenta e dois minutos e três segundos. Cronometrei-o. Ainda não parou de pedir desculpas pela brincadeira de pegar a que nos obrigou. Está com medo de chegar perto de você, porque você pode brigar com ele.

      – Traga-o aqui – ordenou Powell. – Não foi culpa dele.

Estendeu o braço, apertando a mão metálica de Speedy.

 

      – Está tudo bem, Speedy. - Então, virando-se para Donovan, acrescentou: – Sabe, Mike, eu estava pensando...

      – Sim!

      – Bem... – e Powell esfregou o rosto, sentindo o ar deliciosamente fresco. – Você sabe que quando aprontarmos tudo aqui e Speedy tiver passado pelos testes práticos, vão mandar-nos para as Estações Espaciais...

      – Não!

      – Sim! Pelo menos, foi o que a velha Calvin me disse pouco antes de partimos. E eu nada disse a respeito porque estava disposto a lutar contra a idéia.

      – Lutar contra? – exclamou Donovan. – Mas...

      – Já sei. Agora, não me incomodo. Duzentos e setenta e três graus centígrados abaixo de zero! Será uma delícia, não acha?

      – Estação Espacial, aqui vamos nós! – respondeu Donovan.

RAZÃO

      Meio ano mais tarde, os rapazes haviam mudado de opinião. O calor chamejante de um Sol gigantesco cedera lugar à suave escuridão do espaço, mas as variações externas pouco significaram no trabalho de verificar o funcionamento de robôs experimentais. Qualquer que fosse o meio ambiente, encontravam-se sempre diante de um inescrutável cérebro positrônico, que os gênios manipuladores de réguas de cálculo afirmavam que deveriam funcionar assim ou assado.

      Só que não funcionavam. Powell e Donovan deram-se conta do fato antes mesmo de duas semanas de estada na Estação Espacial. 

Gregory Powell falou pausadamente, dando ênfase a cada sílaba:

      – Donovan e eu montamos você há uma semana.

Tinha a testa franzida e puxava a ponta do bigode com ar de dúvida.

O interior do salão de oficiais da Estação Solar nº 5 estava silencioso, exceto pelo suave zumbido do potente Diretor de Raios, situado em algum ponto das profundezas da Estação.

      O Robô QT-1 permanecia imóvel, sentado. As placas polidas de seu corpo brilhavam sob as Luxitas e o vermelho profundo e ardente de células fotoelétricas que lhe serviam de olhos estava fixado no homem sentado ao outro lado da mesa.

      Powell conseguiu reprimir um súbito ataque de nervos. Estes robôs possuíam cérebros peculiares. Oh, as três Leis da Robótica permaneciam imutáveis. Tinham de permanecer. Todos os membros da U. S. Robôs, desde o próprio Robertson até o mais novo faxineiro, insistiam nisso.

      Portanto, o QT-1 era garantido! Não obstante... os modelos QT eram os primeiros de seu tipo e este era o primeiro dentre eles. Nem sempre símbolos matemáticos rabiscados num papel são a proteção mais reconfortante contra a realidade robótica.

      Afinal, o robô falou. Sua voz tinha o timbre frio, característico de um diafragma metálico.

      – Está consciente da gravidade de tal declaração, Powell?

      – Algo fez você, Cutie – argumentou Powell. – Você mesmo admite que sua memória parece ter surgido subitamente, já em completo estado de formação, há uma semana; antes disso, apenas um vácuo. Estou dando a explicação do fato. Donovan e eu montamos você, utilizando as peças que nos foram enviadas da Terra.

      Cutie olhou para seus dedos longos e delgados, numa atitude de mistificação estranhamente humana.

      – Creio que deve haver explicação mais satisfatória do que essa. Parece-me

improvável que vocês tenham feito a mim! O homem riu repentinamente.

      – Bolas! Por que motivo?

 – Pode chamar de intuição. É tudo, pelo menos até o momento. Todavia, pretendo raciocinar e resolver o problema. Uma cadeia de raciocínio válido só pode levar ao estabelecimento da verdade e insistirei até chegar a ela.

 Powell ergueu-se da cadeira e sentou-se na beira da mesa, perto do robô. Subitamente, sentia simpatia por aquela estranha máquina. Não era absolutamente igual a um robô comum, que se entregasse à sua tarefa especializada na Estação Solar com a intensidade provocada por um circuito positrônico profundamente imbuído. Pousou a mão no ombro de Cutie, sentindo o metal duro e frio de encontro à mesma.

      – Cutie – disse ele. – Vou tentar explicar-lhe algo. Você é o primeiro robô que jamais mostrou qualquer curiosidade a respeito de sua própria existência e creio que é o primeiro robô que realmente possui inteligência bastante para compreender o mundo exterior. Venha comigo.

      O robô ergueu-se suavemente e as solas de seus pés, forradas por espessa camada de espuma de borracha, não fizeram o menor ruído quando ele acompanhou Powell.

      O homem apertou um botão e um painel quadrado da parede afastou-se para o lado. A vidraça grossa e limpa revelou o espaço pontilhado de estrelas.

      – Já vi isso através das vigias de observação da sala do motor – disse Cutie.

      – Eu sei – retrucou Powell. – O que pensa que é isso?

      – Exatamente o que parece... um material negro logo além do vidro, cheio de pequenos pontos brilhantes. Sei que nosso aparelho diretor lança raios em direção a algum desses pontos, sempre os mesmos, e também que os pontos mudam de posição e os raios os acompanham. Isso é tudo.

 – Muito bem! Agora, quero que ouça com o maior cuidado. A escuridão é o vasto vácuo, que se prolonga infinitamente. Os pequenos pontos brilhantes são enormes massas de matéria carregada de energia. São globos, alguns deles com milhões de quilômetros de diâmetro. Para uma comparação, saiba que nossa Estação tem apenas um quilômetro e meio de comprimento. Parecem tão pequeninos porque estão incrivelmente afastados de nós. Os pontos para os quais nossos raios de energia estão dirigidos são muito menores e mais próximos. São duros e frios; neles vivem seres humanos como eu; muitos bilhões deles. Donovan e eu viemos de um desses mundos. Nossos raios alimentam esses mundos com energia retirada de um dos grandes globos incandescentes, que se encontra perto de nós. Nós o chamamos Sol e ele se acha no outro lado da Estação, onde você não o pode ver.

 Cutie permanecia imóvel diante da vidraça, como uma estátua de aço. Nem virou a cabeça ao indagar:

      – De que ponto luminoso vocês alegam ter vindo: Powell procurou por alguns instantes.

      – Ali está. Aquele ponto muito brilhante, no canto. Nós o chamamos Terra – explicou, sorrindo. – A velha e boa Terra. Lá existem três bilhões de seres humanos como nós, Cutie. E dentro de duas semanas, mais ou menos, lá estaremos de volta.

      Então, de modo bastante surpreendente, Cutie começou a zumbir distraidamente. Não era propriamente uma melodia, mas um som curioso, como de cordas tangidas. Cessou tão bruscamente quanto havia começado.

      – Mas de onde venho eu, Powell? Você não explicou a minha existência.

      – O resto é simples. Logo que estas Estações foram instaladas, com o objetivo de fornecer energia solar aos planetas, eram controladas por seres humanos. Contudo, o calor, as fortes radiações solares e as tempestades de elétrons tornavam a tarefa muito difícil. Aperfeiçoaram-se robôs especializados para substituir a mão-de-obra humana e atualmente são necessários apenas dois homens em cada Estação. Estamos procurando substituir até mesmo esses homens e é justamente aí que você entra na história. Você é

o mais aperfeiçoado tipo de robô já fabricado e, se demonstrar capacidade para controlar independentemente esta Estação, nenhum ser humano terá necessidade de vir até aqui, exceto para trazer as peças necessárias à manutenção do serviço.

      Tornou a apertar o botão e o painel metálico voltou ao lugar. Powell retornou à mesa e limpou uma maçã com a manga, antes de mordê-la. O brilho vermelho dos olhos do robô fixou-se nele.

      – Espera que eu acredite numa hipótese tão complicada e implausível como a que acaba de expor? – indagou Cutie vagarosamente. – O que pensa que eu sou?

      Powell engasgou-se, cuspindo alguns pedaços de maçã em cima da mesa e ficando muito vermelho.

– Ora, com os diabos! Não é uma hipótese! São fatos!

Cutie replicou em tom sóbrio e determinado:

      – Globos de energia com milhões de quilômetros de diâmetro! Mundos com bilhões de seres humanos! Vácuo infinito! Sinto muito, Powell, mas não acredito. Vou raciocinar e resolverei sozinho o enigma. Até logo.

      Virou-se e saiu da sala. Passou por Michael Donovan, junto à porta, com um solene aceno de cabeça, e seguiu pelo corredor, ignorando o olhar espantado com que o homem o acompanhou. Mike Donovan passou a mão pelo cabelo ruivo e lançou um olhar aborrecido em direção a Powell.

– De que estava falando aquele monte de sucata? No que ele não acredita? O outro puxou o bigode, com ar azedo.

      – Ele é um céptico – foi a amarga resposta. – Não acredita que nós o fabricamos; não acredita na existência da Terra, do espaço e das estrelas.

      – Com os diabos! Temos de lidar com um robô lunático!

      – Ele diz que raciocinará e descobrirá sozinho a resposta.

      – Bem – disse Donovan, suavemente. – Nesse caso, espero que tenha a condescendência de explicar-me tudo, depois de raciocinar bastante. Então, num súbito ataque de raiva:

      – Ouça! Se aquele monte de metal falar comigo nesse tom, eu lhe arrancarei o crânio de cromo do pescoço! - Sentou-se impulsivamente e tirou do bolso do casaco um livro de mistério, concluindo: – De qualquer forma, aquele robô me causa arrepio... é curioso demais!

      Mike Donovan soltou um grunhido, com a boca cheia de sanduíche de alface e tomate, quando Cutie bateu devagar na porta e entrou na sala.

– Powell está?

Donovan respondeu com voz abafada, fazendo pausas para mastigar:

      – Está coletando dados sobre funções de corrente eletrônica. Parece que estamos indo em direção a uma tempestade de elétrons.

      Gregory Powell, com os olhos pregados numa folha de papel milimetrado que trazia nas mãos, entrou naquele instante e deixou-se cair numa poltrona. Abriu o papel em cima da mesa e começou a fazer cálculos. Donovan, mastigando a alface e lambendo restos de pão colados aos lábios, espiou por cima do ombro do companheiro. Cutie esperou em silêncio. Powell ergueu a cabeça.

      – O potencial zeta está subindo, mas devagar. Ainda assim, as funções de corrente são erráticas e não sei o que esperar. Oh, alô, Cutie. Julguei que você estivesse supervisionando a instalação da nova barra de força.

      – Já está instalada – replicou tranqüilamente o robô.

      – Vim para conversar com vocês dois.

      – Oh! – exclamou Powell, parecendo pouco à vontade. – Bem, sente-se. Não, não nessa cadeira. Uma das pernas está meio fraca e você não é exatamente um pesomosca.

O robô obedeceu e disse placidamente:

      – Cheguei a uma conclusão.

      Donovan olhou-o raivosamente, deixando de lado o resto do sanduíche.

      – Se é alguma daquelas idéias malucas...

Powell fez um gesto impaciente, exigindo silêncio.

      – Prossiga, Cutie. Estamos escutando.

      – Passei estes últimos dois dias em concentrada introspecção – disse o robô. – Os resultados foram deveras interessantes. Comecei pela única suposição que me senti autorizado a fazer: existo porque penso, logo...

      Powell soltou um gemido.

      – Por Júpiter! Um robô Descartes!

      – Quem é Descartes? – quis Saber Donovan. – Ouça, se temos de ficar aqui para escutar esse maníaco metálico...

      – Cale-se, Mike!

      Cutie continuou, imperturbável:

      – E a questão que logo surgiu foi: qual é a causa da minha existência? Powell trincou os dentes.

      – Está sendo um tolo. Já lhe disse que nós o fabricamos.

      – E se não acredita, teremos o máximo prazer em desmontá-la – acrescentou Donovan. O robô abriu as mãos fortes, num gesto de desprezo.

      – Não aceito coisa alguma por simples declaração. Qualquer hipótese deve ser confirmada pelo raciocínio, ou não tem validade alguma. E supor que vocês me fizeram contraria todos os ditames da lógica.

      Powell pousou a mão no braço de Donovan, contendo o companheiro, que cerrara raivosamente o punho.

      – Por que diz isso, Cutie?

      Cutie riu. Era um riso profundamente desumano – o som mais maquinal que ele produzira até então. Um riso áspero e explosivo, tão sem entonação e tão ritmado quanto o som de um metrônomo.

      – Olhein só para vocês – disse, afinal. – Não digo isso com espírito de desprezo... mas olhein só para vocês! O material de que são feitos é mole e flácido, desprovido de resistência e força, cuja energia depende da oxidação ineficiente produzida por material orgânico como... aquilo – apontou com ar de desaprovação para os restos do sanduíche de Donovan. – Entram periodicamente em estado de coma e a menor variação da temperatura, da pressão do ar, da umidade ou da intensidade da radiação compromete sua eficiência. São temporários. Eu, por outro lado, sou um produto acabado. Absorvo diretamente a energia elétrica e utilizo-a com uma eficiência de quase cem por cento. Sou feito de metal forte e resistente, permaneço continuamente consciente e posso suportar com facilidade extremas alterações de ambiente. Estes são os fatos que, apoiados pela óbvia proposição de que nenhum ser é capaz de criar outro ser superior a si próprio, arrasam totalmente a sua tola hipótese.

      As imprecações murmuradas por Donovan tornaram-se ininteligíveis e ele se ergueu de um pulo, com as sobrancelhas ruivas cerradas sobre o nariz.

      – Muito bem, “seu” filho de um pedaço de minério de ferro, se não fomos nós que o fabricamos, quem o fez?! Cutie meneou a cabeça com ar grave.

      – Muito bem, Donovan. Essa era exatamente a questão seguinte. Evidentemente, meu criador tem de ser mais poderoso que eu, portanto, só existe uma única possibilidade.

Os dois homens ficaram estarrecidos e Cutie prosseguiu :

      – Qual é o centro de atividade aqui na Estação? A quem todos nós servimos? O que absorve toda a nossa atenção? Esperou, com ar de expectativa. Donovan virou-se espantado para o companheiro.

      – Aposto que esse maluco de lata está falando no conversor de energia.

      – É isso mesmo, Cutie? – indagou Powell, sorrindo.

      – Estou falando no Mestre – foi a resposta áspera e fria.

      Donovan explodiu em sonora gargalhada e Powell soltou uma risadinha contida. Cutie ergueu-se e seus olhos brilhantes passaram de um homem para outro.

      – Mesmo assim, – continuou – é a verdade e não me espanto de que se recusem a acreditar nela. Tenho certeza de que vocês dois não permanecerão aqui por muito tempo. O próprio Powell disse que, no princípio, apenas homens serviam o Mestre; depois, seguiram-se os robôs, para o serviço de rotina; finalmente, vim eu, para o trabalho de supervisão. Não há dúvida de que os fatos são reais, mas a explicação é inteiramente desprovida de lógica. Querem conhecer a verdade por trás de tudo isso?

      – Prossiga, Cutie. É muito divertido.

      – Em primeiro lugar, o Mestre criou os seres humanos, como o tipo mais primitivo e mais fácil de fazer. Gradativamente, substituiu-os por robôs, que foi o passo seguinte. Finalmente, criou a mim, para tomar o lugar dos últimos seres humanos. De agora em diante, eu sirvo ao Mestre.

      – Nada disso – disse asperamente Powell. – Você obedecerá as nossas ordens e ficará quieto até que estejamos convencidos de que é capaz de controlar o conversor. Entendeu? Aprenda bem: o conversor! Nada de Mestre! E, se você não nos satisfizer, será desmontado. Agora, se não se importa, pode dar o fora daqui. Leve esses dados e arquive-os devidamente.

      Cutie pegou os gráficos que lhe foram entregues e saiu sem outra palavra. Donovan recostou-se pesadamente na poltrona e passou os dedos pelos cabelos ruivos.

      – Esse robô vai causar encrencas. É completamente doido! Na sala de controle, o zumbido do conversor de energia era mais forte, mesclado com o barulho regular dos contadores Geiger e com os sons irregulares de meia dúzia de sinais luminosos. Donovan retirou o olho do telescópio e ligou as Luxitas.

– O raio da Estação n' 4 chegou a Marte no horário previsto. Podemos desligar o nosso, agora.  Powell assentiu distraidamente.

– Cutie está lá embaixo, na sala do motor. Ligarei o sinal e ele poderá cuidar de

tudo. Olhe aqui, Mike. O que pensa destes cálculos? O outro examinou os números e assobiou.

      – Rapaz, isso é que eu chamo de intensidade de raios gama! O velho Sol está mesmo animado...

 – Sim – foi a resposta azeda. – E também estamos em má situação para a tempestade de elétrons. Nosso raio para a Terra está exatamente na rota provável da tempestade.

 Afastou a cadeira da mesa, num gesto de irritação.

      – Diabo! Se ao menos a tempestade demorasse até sermos substituídos... Mas ainda faltam dez dias. Ouça, Mike. Dê um pulo lá embaixo e mantenha-se de olho em Cutie, está bem?

      – Certo. Jogue umas almôndegas.

      Pegou no ar o saco de almôndegas que Powell lhe atirou e dirigiu-se ao elevador. A cabina desceu num movimento suave e parou no estreito passadiço existente na enorme sala do motor. Donovan debruçou-se sobre o corrimão e olhou para baixo.

      Os gigantescos geradores estavam funcionando e os tubos-L produziam o zumbido grave que se espalhava pela Estação inteira.

      Distinguiu o vulto grande e brilhante de Cutie junto ao tubo-L de Marte, observando com atenção a equipe de robôs que trabalhava com grande precisão.

      Naquele instante, Donovan contraiu todos os músculos. Os robôs, parecendo minúsculos em comparação ao enorme tubo-L, alinharam-se diante deste e curvaram as cabeças, enquanto Cutie andava lentamente ao longo da fila. Passaram-se quinze segundos. Então, com um ruído metálico audível apesar do forte zumbido que enchia o local, deixaram-se cair de joelhos.

      Donovan soltou um berro e desceu correndo a estreita escada. Partiu em direção aos robôs, com o rosto tão vermelho quanto os cabelos, os punhos esmurrando o ar.

      – Que diabo é isto, seus miseráveis ignorantes? Vamos! Tratem de cuidar do tubo-L! Se não os desmontarem, limparem e tornarem a montá-lo antes do final do dia, coagularei seus cérebros com uma corrente alternada nenhum dos robôs se moveu!

      Até Cutie, na extremidade oposta – o único que estava de pé –, permaneceu em silêncio, os olhos fixos, no interior obscuro da enorme máquina. Donovan empurrou com força o robô mais próximo.

      – Levante-se! – berrou.

      Vagarosamente, o robô obedeceu. Seus olhos fotolétricos fitaram o homem com ar de reprovação.

      – O único senhor é o Mestre e QT-1 é o seu único profeta – declarou ele.

      – Quê?

      Donovan se deu conta de que vinte pares de olhos mecânicos se fixavam nele; vinte vozes de timbre metálico repetiram solenemente: 

      – O único senhor é o Mestre e QT-1 é o seu único profeta!

Cutie interveio:

      – Temo que meus amigos obedeçam agora a alguém superior a você.

      – Uma ova! Caia fora daqui. Mais tarde, acertarei contas com você. Agora, cuidarei desses brinquedos animados. Cutie sacudiu vagarosamente a pesada cabeça. 

      – Sinto muito, mas você não está compreendendo. Eles reconhecem o Mestre,

agora que lhes ensinei a verdade. Todos eles. Tratam-me de Profeta. Baixando a cabeça, acrescentou : 

– Talvez eu seja indigno, mas...

Donovan recuperou o fôlego e resolveu usá-lo.

      – É mesmo? Ora, não é lindo? Não é realmente lindo? Pois deixe que eu lhe diga uma coisa, seu macaco de metal! Não existe Mestre algum, não existe qualquer Profeta e não há a menor dúvida sobre quem dá as ordens aqui. Compreende? – sua voz se ergueu num rugido de raiva. – Agora, caia fora!

      – Obedeço apenas ao Mestre.

      – Ao diabo com o Mestre! – berrou Donovan, cuspindo no tubo-L. – Tome isso, para o seu Mestre! Faça o que estou mandando! 

      Cutie não se moveu. Os outros robôs também não.

      Mas Donovan sentiu um súbito aumento de tensão. Os olhos frios e fixos

assumiram uma tonalidade mais profunda de vermelho. Cutie parecia mais rígido do que nunca.

      – Sacrilégio – murmurou, com voz metálica carregada de emoção.

      Donovan sentiu o primeiro sintoma de medo quando Cutie se aproximou dele. Um robô era incapaz de sentir raiva... Mas os olhos de Cutie eram indecifráveis.

      – Sinto muito, Donovan – declarou ele. – Mas não poderá permanecer aqui, depois disso. De agora em diante, você e Powell estão proibidos de entrar na sala de controle e na sala do motor. Sua mão esboçou um gesto calmo. Num instante, dois robôs seguraram os braços de Donovan. Este mal teve tempo para engolir em seco. Foi erguido do chão e levado rapidamente pela escada.

      Gregory Powell caminhava rapidamente de um lado para outro da sala de oficiais, com os punhos cerrados. Lançou um olhar de furiosa frustração à porta fechada e virouse para Donovan com uma carranca de amargura.

– Por que diabo você cuspiu no tubo-L?

      Mike Donovan, derreado na poltrona, bateu com força nos braços da mesma.

      – Que esperava você que eu fizesse com aquele espantalho eletrificado? Não me vou curvar diante de um maldito aparelho que eu mesmo montei.

      – Não – replicou o outro, azedo. – Mas, agora, está aqui, preso na sala de oficiais, com dois robôs de sentinela lá fora. Isso não é curvar-se, é? Donovan rosnou:

      – Espere até voltarmos à Base. Alguém vai pagar por isto. Os robôs precisam obedecer-nos. É a Segunda Lei.

      – Que adianta dizer? Não estão obedecendo. E provavelmente existe algum motivo, que só conseguiremos descobrir tarde demais. Por falar nisso, sabe o que vai acontecer conosco, quando regressarmos à Base?

      Estacou diante da poltrona de Donovan, encarando-o raivosamente.

      – O quê?

 – Oh, nada! Só teremos de voltar às minas de Mercúrio, por um período de vinte anos. Ou talvez nos mandem para a penitenciária de Ceres.

 – De que está falando?

      – Da tempestade de elétrons que se aproxima. Sabe que se está dirigindo exatamente para o centro do raio da Terra? Eu acabei de calcular isso, quando aquele robô me arrancou da cadeira.

      Donovan empalideceu subitamente.

      – Oh, com os diabos!

      – E sabe o que vai acontecer ao raio? Ao que tudo indica, porque a tempestade vai ser para valer, o raio vai pular como uma pulga com coceiras. Com apenas Cutie nos controles, vai sair de foco... Se sair, Deus tenha piedade da Terra... e de nós!  

      Antes mesmo que Powell terminasse de falar, Donovan lançou-se para a porta, tentando desesperadamente abri-la. Quando conseguiu, disparou para o corredor e... esbarrou num implacável braço de aço. O robô fitou indiferentemente o homem frenético e ofegante.

      – O Profeta ordena que não saiam. Obedeçam, por favor!

      O braço o empurrou e Donovan rodopiou para trás. Naquele momento, Cutie surgiu na esquina do corredor. Fez um gesto, dispensando os robôs que estavam de guarda, entrou na sala e fechou suavemente a porta. Donovan virou-se para ele, mudo de indignação. Afinal, conseguiu recobrar a fala.

      – Isto já foi longe demais! Você pagará pelo que fez!

      – Não se irrite, por favor – disse delicadamente o robô. – Teria de acontecer algum dia, de qualquer forma. Compreendam: vocês perderam a utilidade e foram despojados de suas funções.

      – Um momento – falou Powell, empertigando-se. – Que quer dizer com fornos despojados de nossas funções?

      – Até eu ser criado, vocês cuidavam do Mestre – respondeu Cutie. – Agora, o privilégio passou a ser meu e a única razão que vocês tinham para existir desapareceu. Não é óbvio?

      – Não muito – retrucou Powell, com amargura. – Mas que espera que façamos agora?

      Cutie não respondeu de imediato. Permaneceu calado, como se refletisse. Então, passou um braço por sobre o ombro de Powell e agarrou o pulso de Donovan com a outra mão, puxando-o para si.

      – Gosto de vocês dois. São criaturas inferiores, com fraca capacidade de raciocínio, mas, na realidade, sinto uma espécie de afeição por vocês. Serviram bem ao Mestre e serão devidamente recompensados por Ele. Agora, que seus serviços terminaram, é provável que não continuem a existir por muito mais tempo; mas enquanto existirem, receberão roupas, alimentos e abrigo, desde que se mantenham afastados da sala de controle e da sala do motor.

      – Ele está nos aposentando, Greg! – berrou Donovan. – Faça alguma coisa! É humilhante!

      – Ouça, Cutie. Não podemos permitir isto. Somos os patrões! Esta Estação foi criada por seres humanos como nós; seres humanos que vivem na Terra e em outros planetas. A Estação é apenas um posto distribuidor de energia. E você é apenas um... Ora, bolas!

      Cutie meneou gravemente a cabeça.

      – Trata-se de uma obsessão. Por que insistem em encarar a vida sob um ponto de vista tão falso? Admitindo que os não-robôs sejam desprovidos da faculdade de raciocinar, ainda resta o problema de...

      Sua voz sumiu, dando lugar a um silêncio introspectivo. Donovan murmurou em tom veemente: 

– Se você tivesse uma cara de carne e osso, eu a partiria!

Powell cofiou o bigode, franzindo a testa.

      – Ouça, Cutie. Se a Terra não existe, como pode explicar o que você vê através do telescópio?

      – Perdão!

      O homem sorriu.

      – Apanhei-o, hein? Desde que foi montado, Cutie, você fez uma série de observações telescópicas. Reparou que vários daqueles pontos luminosos se transformam em discos, quando vistos através das lentes?

      – Oh, isso! Certamente. É um simples aumento, para permitir que o raio seja dirigido com maior exatidão.

      – Então, por que as estrelas não são aumentadas da mesma maneira?

      – Refere-se aos outros pontos? Bem, não dirigimos raios para eles, de modo que não é necessário aumentá-los. Na verdade, Powell, até mesmo você deveria ser capaz de descobrir essas coisas por si próprio.

Powell ergueu os olhos, desanimado.

      – Mas, através do telescópio, você vê mais estrelas. De onde vêm elas? Com os

diabos, Cutie, de onde vêm elas? Cutie ficou irritado.

      – Escute, Powell. Pensa que vou perder meu tempo tentando arranjar interpretações físicas para todas as ilusões de óptica causadas por nossos instrumentos? Desde quando a evidência fornecida por nossos sentidos pode competir com a luz clara do raciocínio lógico?

      – Ouça – exclamou repentinamente Donovan, livrando-se do braço metálico amistoso, porém pesado, de Cutie. Vamos ao âmago do assunto. Qual a razão de ser dos raios? Estamo-lhe dando uma explicação válida e lógica. Pode arranjar outra melhor?

      – Nossos raios são produzidos pelo Mestre para seus próprios desígnios – foi a resposta convicta. Cutie ergueu devotamente os olhos, acrescentando: – Há certas coisas que não nos cabe indagar. Nesse sentido, procuro apenas servir, sem tentar discutir.

      Powell sentou-se vagarosamente, escondendo o rosto nas mãos trêmulas.

      – Saia daqui, Cutie. Saia e deixe-me pensar.

      – Eu lhes mandarei comida – declarou Cutie, em tom amável.

      A única resposta, quando o robô saiu, foi um gemido desanimado.

      – Greg – foi a observação murmurada por Donovan em voz rouca – a situação exige estratégia. Precisamos apanhá-lo quando ele menos esperar e provocar um curtocircuito. Ácido nítrico concentrado nas juntas e...

      – Não seja idiota, Mike. Acha que ele permitirá que nos aproximemos dele com ácido nas mãos? Precisamos falar com ele. É o que lhe digo. Temos de convencê-la a permitir que voltemos à sala de controle, dentro de quarenta e oito horas, ou nosso caldo estará definitivamente entornado.

      Balançou-se para frente e para trás, mergulhado numa impotência agoniada.

      – Quem, diabo, quer argumentar com um robô?... É... é...

      – Mortificante – completou Donovan.

      – Pior!

      – Bolas! – exclamou Donovan, rindo de repente. – Por que argumentar? Vamos dar-lhe uma lição! Vamos construir um robô diante de seus olhos. Então, ele será obrigado a engolir tudo o que disse.

      Um sorriso surgiu lentamente no rosto de Powell. Donovan acrescentou:

      – Só quero ver a cara daquele idiota quando vir o que vamos fazer! 

      Os robôs são fabricados na Terra, naturalmente; todavia seu transporte através do espaço é muito mais simples quando feito sob a forma de peças avulsas, que devem ser montadas no local de utilização. Por outro lado, tal processo evita que robôs inteiramente montados possam andar a esmo pela Terra. Tal fato colocaria a U. S. Robôs em confronto com as severas leis que proíbem o uso de robôs na Terra.

      Ainda assim, o fato fazia com que a necessidade de montar robôs completos recaísse sobre homens como Powell e Donovan, que enfrentavam uma tarefa complicada e difícil.

      Nunca Powell e Donovan tiveram tanta consciência disso quanto no dia em que, juntos na sala de montagem, entregaram-se ao trabalho de criar um robô sob o olhar atento de QT-1, Profeta do Mestre.

      O robô em questão, um simples modelo MC, estava deitado sobre a mesa, quase completo. Três horas de trabalho foram suficientes para montá-lo, com ereção apenas da cabeça. Powell enxugou a testa e olhou hesitante para Cutie.

      A atitude deste não era animadora. Durante três horas, Cutie permanecera sentado, silencioso e imóvel; seu rosto, sempre inexpressivo, parecia absolutamente indecifrável.

Powell disse quase num gemido : 

      – Agora, vamos montar o cérebro, Mike!

      Donovan abriu a caixa hermeticamente selada e dela retirou um segundo cubo, que ali se encontrava em banho de óleo. Abrindo o cubo, removeu um globo do envoltório de espuma de borracha. 

      Manipulou-o com o máximo cuidado, pois tratava-se do mais delicado mecanismo que o homem já fabricara. No interior da “pele” de folha de platina que envolvia o globo, estava um cérebro positrônico, em cuja estrutura delicadamente instável encontravam-se os circuitos neurônicos especialmente calculados, que imbuíam cada robô do que se poderia considerar uma espécie de educação pré-natal.

      Encaixava-se com exatidão na cavidade do crânio do robô que estava em cima da mesa. A placa de metal azulado foi fechada sobre ele e hermeticamente soldada com o minúsculo maçarico atômico. Os olhos fotoelétricos foram minuciosamente instalados, fortemente aparafusados no lugar e cobertos por uma película fina e transparente de plástico duro como aço. O robô aguardava apenas a “vitalização” por intermédio de eletricidade de alta voltagem. Powell parou, com a mão no interruptor.

      – Agora, veja isto, Cutie. Observe com atenção.

      O interruptor foi ligado, dando origem a um zumbido. Os dois homens debruçaramse ansiosamente sobre a criatura. No início, houve apenas um movimento vago e um tremor nas juntas. A cabeça se ergueu, o corpo foi levantado pelos cotovelos. O modelo MC levantou-se desajeitadamente da mesa. Pisava com insegurança e por duas vezes seus esforços para falar reduziram-se a sons desencontrados.

Afinal, a voz tomou forma, hesitante e insegura.

      – Gostaria de começar a trabalhar. Para onde devo ir?

      Donovan correu para a porta.

      – Desça esta escada – ordenou. – Lá embaixo lhe dirão o que deve fazer.

      O modelo MC saiu e os dois homens ficaram a sós com Cutie, que continuava imóvel.

      – Bem – disse Powell, sorrindo. – Agora, acredita que nós o fizemos? A resposta de Cutie foi lacônica e definitiva:

      – Não! – declarou ele.

      O sorriso de Powell petrificou-se e logo desapareceu totalmente. O queixo de Donovan caiu.

      – Vejam – prosseguiu Cutie, com naturalidade. – Vocês se limitaram a montar peças pré-fabricadas. Trabalharam notavelmente bem, por instinto, creio, mas não criaram realmente um robô. As peças foram criadas pelo Mestre.

      – Ouça bem – disse Donovan, em voz rouca – as peças foram fabricadas na Terra e enviadas para cá.

      – Bem, bem – respondeu Cutie, em tom condescendente. – Não vamos discutir.

      – Não! Estou falando sério – disse o homem, avançando de um salto e segurando o braço do robô. – Se você lesse os livros existentes na biblioteca, encontraria a explicação e não restaria qualquer dúvida possível.

      – Os livros? Já os li, todos eles! São bastante ingênuos.

Powell interrompeu repentinamente.

      – Se já os leu, que mais resta a dizer? Não pode discutir as provas apresentadas por eles. Não pode! Havia piedade no tom de Cutie : 

 – Por favor, Powell. Certamente, eu não os considero uma fonte válida de informações. Também foram criados pelo Mestre e são destinados a vocês – não a mim.

 – Por que julga assim? – quis saber Powell.

      – Porque eu, na qualidade de ser racional, sou capaz de deduzir a Verdade partindo de causas a priori. Vocês, na qualidade de seres inteligentes, mas desprovidos de capacidade de raciocínio lógico, precisam que a explicação da existência lhes seja fornecida. E foi o que o Mestre fez. Não tenho dúvidas de que as informações ridículas sobre mundos longínquos e povos estranhos são benéficas para vocês. É bem provável que tenham uma mente muito primitiva para absorver a dura Verdade. Entretanto, já que o Mestre deseja que acreditem nos livros, não mais discutirei com vocês. - Ao sair, virou-se uma última vez e disse em tom bondoso: – Mas não fiquem tristes. No sistema arquitetado pelo Mestre há lugar para todos. Vocês, pobres seres humanos, terão seu lugar, embora humilde. Caso se comportem devidamente, serão recompensados.

      Partiu com uma atitude beatifica, bem conveniente a um Profeta do Mestre. Os dois homens evitaram olhar-se. Afinal, Powell falou, com evidente esforço:

      – Vamos para a cama, Mike. Desisto.

      Donovan replicou em voz baixa:

      – Greg, não acha que ele tem razão a respeito de tudo isso, não é? Ele me parece tão confiante que eu... Powell virou-se vivamente:

      – Não seja idiota. Você terá certeza de que a Terra existe, quando nossos substitutos chegarem, na próxima semana, e tivermos de regressar à Terra para enfrentar a realidade.

      – Então, pelo amor de Deus, temos de fazer alguma coisa – retrucou Donovan, quase chorando. – Cutie não acredita em nós, nem nos livros, nem em seus próprios olhos.

      – De fato – replicou Powell, amargurado. – Ele é um robô raciocinante. Maldito

seja! Só acredita em raciocínio lógico. E há uma dificuldade a respeito... Não terminou a frase.

      – Qual é a dificuldade? – insistiu Donovan.

      – É possível provar tudo o que se deseja por um raciocínio lógico e frio, desde que se escolham os postulados convenientes. Nós temos os nossos e Cutie tem os dele.

      – Então, precisamos arranjar postulados depressa. A tempestade de elétrons deve chegar amanhã.  Powell exalou um suspiro cansado.

 – Ai é que a porca torce o rabo. Os postulados são baseados em suposição e adotados pela fé. Nada no Universo é capaz de abalá-los. Vou para a cama.

 – Oh, diabo! Não consigo dormir!

      – Nem eu. Mas vou tentar, por uma questão de princípio. Doze horas mais tarde, o sono continuava a ser exatamente isso: uma questão de princípio, inatingível na prática.

      A tempestade chegara na hora prevista e o rosto vermelho de Donovan estava muito pálido, quando ele apontou com um dedo trêmulo. Powell, com a barba crescida e a boca seca, olhou pela vigia e puxou desesperadamente a ponta do bigode.

      Em outras circunstâncias, seria um espetáculo belíssimo. A chuva de elétrons em alta velocidade chocava-se com o raio de energia, transformando-se em partículas fluorescentes de intensa luminosidade. O raio estreitava até quase sumir, desfazendo-se em átomos brilhantes, que dançavam loucamente no espaço. 

      Embora o facho de energia permanecesse firme, os dois homens conheciam o valor das aparências visíveis a olho nu. Um simples desvio equivalente a um arco de milésimo de segundo – invisível ao olho humano – seria o suficiente para tirar o raio totalmente de foco e transformar milhares de quilômetros quadrados da superfície da Terra em ruínas incandescentes.

      E um robô, despreocupado com raios, com o foco, com a Terra, ou com qualquer coisa que não fosse o seu Mestre, estava cuidando dos controles.

      Passaram-se horas. Os dois homens observavam o espetáculo, mergulhados num silêncio hipnotizante. Então, os minúsculos pontos luminosos que riscavam o espaço tornaram-se menos numerosos, perderam o brilho e desapareceram. A tempestade terminara. Powell declarou secamente : 

      – A tempestade terminou.

      Donovan deixara-se cair num torpor inquieto e os olhos de Powell o examinaram com certa inveja. A lâmpada de sinalização piscava incessantemente, mas Powell não lhe deu a menor atenção. Nada importava! Nada! Talvez Cutie tivesse razão, e ele não passasse de um ser inferior, com uma memória feita sob medida e uma vida que já não tivesse razão de ser.

Powell desejava que assim fosse!

Cutie surgiu ante ele.

      – Você não respondeu ao sinal, de modo que resolvi entrar – declarou em voz baixa. – Parece não estar passando bem e terno que seu período de existência esteja chegando ao fim. Ainda assim, gostaria de examinar alguns dos registros anotados hoje? 

      Powell percebeu vagamente que o robô esboçava um gesto amistoso, talvez para compensar algum remorso por forçar os homens a se afastarem do controle da Estação Solar. Pegou os registros e examinou-os distraidamente, sem vê-los. Cutie parecia satisfeito.

      – Naturalmente, é um grande prazer servir ao Mestre. Você não deve ficar triste por ser substituído.

      Powell soltou um grunhido e passou mecânicarnente de uma folha para outra, até que seus olhos se focalizaram numa fina linha vermelha que traçava uma trajetória irregular no papel milimetrado.

      Olhou com atenção e esbugalhou os olhos. Agarrou o papel com força, com ambas as mãos, e se ergueu da poltrona, com os olhos ainda muito abertos.

      – Mike! Mike! – gritou, sacudindo violentamente o companheiro.

      – Ele manteve o raio firme!

      Donovan acordou.

      – O quê? Onde...?

      Então, também Mike Donovan arregalou os olhos ao examinar o registro. Cutie interrompeu:

      – O que há de errado?

      – Você manteve o raio no foco – murmurou Powell.

      – Sabia disso?

      – Foco? De que está falando?

      – Você manteve o raio focalizado exatamente na estação receptora. Dentro de um limite de um milésimo de segundo de arco.

      – Que estação receptora?

      – Na Terra. A estação receptora na Terra – gaguejou Powell. – Você manteve o

raio no foco... Cutie girou nos calcanhares, visivelmente irritado.

      – É impossível tomar qualquer atitude bondosa para com vocês dois. Sempre o mesmo fantasma! Limitei-me a manter os mostradores em equilíbrio, de acordo com a vontade do Mestre. 

      Juntando os papéis espalhados em cima da mesa, retirou-se com grande dignidade. Donovan murmurou, quando ele saiu: 

      – Bem, macacos me mordam! Virou-se para Powell, indagando: – Que faremos, agora?

      Powell sentia-se cansado, mas animado.

      – Nada. Ele acaba de mostrar que é capaz de administrar perfeitamente a Estação. Nunca vi uma tempestade de elétrons tão bem controlada.

      – Mas nada foi resolvido. Você ouviu o que ele disse a respeito do Mestre...

      - Ouça, Mike: ele segue as instruções do Mestre por meio de mostradores,instrumentos e gráficos. É exatamente o que nós sempre fizemos. Na realidade, o fato explica por que motivo ele se recusou a obedecer-nos. Obediência é a Segunda Lei. A primeira refere-se a não causar mal aos seres humanos. Como pode ele evitar que os seres humanos sofram algo, quer esteja ou não consciente disso? Ora, mantendo o raio de energia em foco estável. Ele sabe que é capaz de mantê-la mais estável do que nós, uma vez que é um ente superior a nós; portanto, sente-se obrigado a manter-nos afastados da sala de controle. É uma coisa inevitável, levando-se em consideração as Leis da Robótica.

      – Claro, mas isso não vem ao caso. Não podemos permitir que ele continue com essas tolices a respeito do Mestre.

      – Por que não?

      – Porque ninguém ouviu falar em semelhante tolice! Como podemos confiar-lhe a Estação Solar, se ele não acredita na existência da Terra?

      – Ele é capaz de controlar a Estação?

      – É. Mas...

      – Então, que diferença faz a sua crença?

      Powell abriu os braços, com um vago sorriso no rosto, e deixou-se cair de volta na cama. Adormeceu instantaneamente. Powell falava enquanto vestia o leve casaco espacial:

 – Deve ser uma tarefa bem simples. Podem trazer os novos modelos QT, equipálos com interruptor automático para uma semana, a fim de dar-lhes tempo para aprender a... bem... o culto do Mestre, pela própria boca do Profeta. Depois, basta levá-los para outra Estação e tornar a ligá-los. Podemos ter dois robôs QT por estação e...

 Donovan abriu seu visor de glassite e franziu a testa.

      – Ora, cale a boca e vamos cair fora daqui. A turma de substituição está esperando e não me sentirei bem até ver novamente a Terra e tornar a sentir o solo sob meus pés, só para ter certeza de que é verdade.

      A porta se abriu, enquanto ele falava, e Donovan, amuado, deu as costas a Cutie. O robô se aproximou silenciosamente e disse, num tom de voz que exprimia tristeza: 

      – Vão embora?

      Powell assentiu laconicamente.

      – Virão outros em nosso lugar.

      Cutie suspirou, com o som do vento zumbindo por entre os fios muito juntos.

      – Compreendo. Seu tempo de serviço chegou ao fim e está na hora da dissolução final. Eu já esperava, mas... Bem, a vontade do Mestre será cumprida! Seu tom de resignação irritou Powell.

      – Pode poupar sua simpatia, Cutie. Vamos voltar à Terra e não à dissolução.

      – É melhor que pensem assim – replicou Cutie, suspirando outra vez. – Agora, compreendo a sabedoria da ilusão. Jamais tentaria abalar a fé de vocês, mesmo que fosse possível.

      Partiu. Era a própria encarnação da comiseração.

      A nave de substituição estava ancorada lá fora e Franz Muller, seu comandante, saudou-os com cortesia. Donovan fez uma rápida continência e entrou no compartimento de pilotagem, a fim de substituir Sam Evans nos controles. Powell demorou-se um pouco junto a Muller.

      – Como está a Terra?

      Era uma pergunta bastante convencional e Muller deu a resposta também convencional: 

      – Ainda girando.

      Powell replicou:

      – Ótimo.

      Muller encarou-o.

      – Por falar nisso, o pessoal da U. S. Robôs inventou um novo tipo. Um robô múltiplo.

      – Um quê?

      – O que eu disse. Assinaram um grande contrato para produzi-lo. Deve ser exatamente o que estão precisando para as minas dos asteróides. Um robô-mestre, que comanda seis sub-robôs. Corno os dedos de uma mão...

      – Já foi submetido aos testes práticos? – indagou Powell, com evidente ansiedade. Muller sorriu:

      – Pelo que ouvi, estão esperando por vocês.

Powell cerrou os punhos.

      – Diabo! Estamos precisando de umas férias.

      – Oh, terão férias. Duas semanas, creio.

      Muller estava calçando as pesadas luvas espaciais, preparando-se para o seu período de serviço na Estação Solar n.º 5. Franziu a testa.

      – Corno vai indo o novo robô? Acho melhor que seja bom, ou quero ser mico de circo se permitirei que encoste nos controles!

      Powell fez uma pausa antes de responder. Seu olhar observou atentamente o orgulhoso prussiano postado diante dele, desde o cabelo cortado rente à cabeça de formato teimoso, até os pés colocados em rígida posição de sentido, e sentiu-se invadido por uma súbita onda de alegria.

      – O robô é ótimo – declarou, falando devagar. – Não creio que você tenha de se preocupar muito com os controles. Sorriu e entrou na nave. Muller passaria várias semanas na Estação...

PEGAR O COELHO

      As férias duraram mais do que duas semanas. Pelo menos isto, Mike Donovan foi forçado a admitir. Foram seis meses de licença remunerada. E Donovan também admitia isto. Mas, como ele explicava, furioso, tratava-se de um acontecimento fortuito. A U. S. Robôs precisava corrigir os defeitos do robô múltiplo e estes defeitos eram muitos.

      De qualquer forma, pelo menos meia dúzia de defeitos foram deixados a cargo da equipe de testes práticos. De modo que Donovan e Powell esperaram, descansando, até que os rapazes das pranchetas e os sábios das réguas de cálculo declararam que tudo estava pronto. Agora, Donovan e Powell encontravam-se no asteróide – e tudo não estava pronto. Com o rosto vermelho como uma beterraba, Donovan repetiu pela décima segunda vez:

      – Pelo amor de Deus, Greg, seja realista. De que adianta seguir as regras ao pé da letra e deixar o teste dar com os burros n’água? Já é tempo de você deixar a burocracia de lado e começar a trabalhar.

      Gregory Powell, com a paciência de um sábio explicando um problema de eletrônica a um idiota, replicava :

      – Estou apenas dizendo que, de acordo com as especificações, esses robôs são equipados para realizar o trabalho de mineração nos asteróides, sem necessitar de supervisão humana. Não devemos vigiá-los. 

      – Muito bem. Escute só, adepto da lógica! – retrucou Donovan, contando nos dedos cabeludos. – Um: o novo robô passou em todos os testes realizados no laboratório da fábrica. Dois: a U. S. Robôs garantiu que passaria nos testes práticos de funcionamento em um asteróide. Três: os robôs não estão passando nos referidos testes. Quatro: se não passarem, a U. S. Robôs perderá dez mil créditos em dinheiro sonante e cerca de cem milhões em reputação. Cinco : se eles não passarem e nós não conseguirmos explicar por que motivo tal coisa aconteceu, é possível que sejamos obrigados a dar adeus a um bom emprego. 

      Powell soltou um longo suspiro, por detrás de um sorriso visivelmente insincero. O lema da U. S. Robôs e Homens Mecânicos S.A. era bem conhecido: “Nenhum de nossos empregados comete o mesmo erro duas vezes – é despedido no primeiro”. Em voz alta, respondeu: 

      – Você é tão lúcido quanto Euclides a respeito de tudo... com exceção dos fatos. Já observou os robôs durante três turnos de trabalho, seu ruivo, e sabe que eles cumpriram perfeitamente o trabalho que lhes foi destinado. Você mesmo declarou isso. O que mais podemos fazer?

      – Descobrir o que há de errado com eles, eis o que podemos fazer. Mas em três ocasiões diferentes, quando eu não os observava, eles não trouxeram minério algum. Nem mesmo regressaram no horário. Tive de ir procurá-los.

      – E havia algo de errado?

      – Nada. Absolutamente nada. Tudo estava perfeito. Límpido e perfeito como a luminosidade do éter. Apenas um pequeno detalhe me perturbou: não havia minério. Powell fez uma careta em direção ao teto e cofiou o bigode castanho.         

      – Vou-lhe dizer uma coisa, Mike. Já nos confiaram tarefas miseráveis, mas nada como este asteróide de irídio. Tudo se complica além de nossas forças. Escute só: aquele robô, o DV-5, tem seis robôs sob suas ordens. E não somente sob suas ordens: fazem parte dele.

      – Já sei...

      – Cale-se! – interrompeu Powell raivosamente. – Sei que você já sabe, mas estou descrevendo a situação geral. Os seis robôs subsidiários fazem parte do DV-5, assim como seus dedos fazem parte de sua mão; o DV-5 lhes dá ordens, não pela voz ou pelo rádio, mas diretamente, por meio de campos positrônicos. Ora... não existe um só especialista em robôs da U. S. Robôs que saiba o que é um campo positrônico, ou como ele funciona. Nem eu. E nem você.

      – Isso eu também sei – concordou Donovan, filosoficamente.

      – Neste caso, examine nossa posição. Se tudo funcionar bem – ótimo! Se algo der errado, ficamos no mato sem cachorro e provavelmente nada podemos fazer. Nem nós, nem ninguém. Mas fomos nós os encarregados do trabalho, de modo que estamos no fogo, Mike. - Depois de uma pausa cheia de raiva, acrescentou : – Muito bem! Você o mandou lá para fora?

      – Mandei.

      – Está tudo normal, agora?

      – Ele não tem mania de religião, nem está correndo em círculos, querendo brincar de pegar, de modo que creio que tudo vai correndo bem.

      E Donovan saiu pela porta, sacudindo violentamente a cabeça. Powell estendeu o braço para pegar o pesado volume do “Manual de Robótica”, que estava sobre sua mesa, e abriu-o reverentemente. Certa vez, pulara pela janela de uma casa em chamas, trajado apenas de cuecas, mas carregando o “Manual”. Em caso de emergência, preferia largar as cuecas.

      O “Manual” estava aberto diante dele, quando o Robô DV-5 entrou, acompanhado por Donovan, que fechou a porta atrás de si.

Powell olhou-o sombriamente.

      – Como vai, Dave? Como está se sentindo?

      – Muito bem – respondeu o robô. – Posso sentar-me?

      Puxou a cadeira especialmente reforçada para seu uso e sentou-se suavemente. Powell olhou para Dave – os leigos podiam pensar nos robôs pelos seus números de série; os especialistas nunca o faziam – com evidente ar de aprovação. Não se tratava de um robô maciço, a despeito de ser construído como unidade pensante de uma equipe integrada por sete robôs. Tinha 2,10 m de altura e era uma massa de meia tonelada de metal e equipamento elétrico.

      Demais? Não, quando a massa tem de ser composta por meia tonelada de condensadores, circuitos, interruptores e células de vácuo capazes de controlar praticamente todas as reações psicológicas conhecidas pelos seres humanos. Isto, além de um cérebro positrônico com cinco quilos de matéria e vários quintilhões de posítrons, que controlava todo o conjunto. Powell meteu a mão no bolso da camisa, apanhando um cigarro.

      – Você é um bom sujeito, Dave – disse ele. – Nada tem de importante ou convencido. É um legítimo e estável robô de mineração, só que é equipado para comandar seis robôs subsidiários, em coordenação direta. Pelo que sei, tal fato não introduziu qualquer circuito instável em seu esquema de circuitos cerebrais.

      O robô meneou a cabeça, concordando.

      – Sinto-me satisfeito com suas palavras. Mas onde quer chegar, chefe?

      Era equipado com um excelente diafragma e a existência de entonações tirava-lhe muito do tom metálico peculiar à voz da maioria dos robôs.

      – Já lhe direi. Com tudo isso a seu favor, o que há de errado em seu trabalho? Por exemplo: o que houve no turno B de hoje?

      Dave hesitou. Afinal, respondeu:

      – Pelo que sei, nada.

      – Não trouxeram minério algum.

      – Sei.

      – Bem, então...

      Dave estava confuso.

      – Não sei explicar, chefe. O fato está-me causando uma crise nervosa, ou estaria, se eu permitisse. Meus subsidiários trabalharam bem. E sei que eu trabalhei normalmente.

      Pensou um pouco, com os olhos fotoelétricos brilhando intensamente. Depois, acrescentou:

      – Não me lembro. O dia terminou e Mike apareceu. Só então verifiquei que os vagões de minério estavam quase todos vazios. Donovan interrompeu.

      – Nessas ocasiões você não se apresentou no final dos turnos, Dave. Sabe disso?

  – Sei. Mas quanto ao motivo...

Sacudiu a cabeça, com veemência.

Powell teve a estranha sensação de que, caso a cara do robô conseguisse expressar alguma coisa, exprimiria tristeza e mortificação. Um robô, por sua própria natureza, não suporta falhar em sua missão. Donovan puxou sua cadeira para perto da mesa de Powell, curvando-se para o companheiro.

      – Acha que seja um caso de amnésia? – murmurou.

      – Não sei dizer. Mas não adianta tentar atribuir nome de doenças humanas, neste caso. As moléstias humanas só se aplicam aos robôs como analogias românticas. De nada servem na engenharia robótica – replicou Powell, coçando o pescoço. – Detesto ter que submetê-lo aos testes elementares de reação cerebral. Seu orgulho ficará ferido.

      Olhou para Dave e depois para a descrição dos testes práticos contida no “Manual”. Afinal, declarou:

      – Ouça, Dave: que tal passar por um teste? Talvez seja o melhor que temos a fazer. O robô se ergueu.

      – Se assim desejar, patrão. Havia “tristeza” em sua voz. Tudo começou de modo muito simples. O robô DV-5 multiplicou números de cinco algarismos em tempo implacavelmente contado por um cronômetro. Recitou os números primos entre mil e dez mil. Extraiu raízes cúbicas e integrou funções de complexidade variada. Passou por testes de reações mecânicas que apresentavam crescente dificuldade. E, afinal, foi obrigado a fazer com que sua mente resolvesse com precisão mecânica os mais complexos problemas do mundo dos robôs: as questões de julgamento e ética. Ao fim de duas horas, Powell suava copiosamente. Donovan alimentara-se com uma dieta não muito nutritiva de unhas.

O robô indagou: 

– Que lhe parece, chefe?

Powell respondeu:

      – Preciso refletir, Dave. Julgamentos apressados de nada nos servirão. Que tal voltar ao turno C? Trabalhe com calma. Não é preciso esforçar-se muito para conseguir a cota. Daremos um jeito em tudo.

O robô saiu. Donovan olhou para Powell.

      – Bem...

      Powell parecia disposto a arrancar os bigodes pelas raízes.

      – Não há coisa alguma de errado com as correntes de seu cérebro positrônico.

      – Eu detestaria ter tanta certeza...

 – Ora, com os diabos, Mike! O cérebro é a parte mais segura de um robô. Passa por uma verificação quíntupla na Terra. Se eles passarem perfeitamente pelo teste prático, como Dave acaba de passar, não há a menor possibilidade de uma falha de funcionamento cerebral. O teste inclui todos os circuitos do cérebro.

 – Então, onde estamos?

      – Não me afobe. Deixe-me refletir. Ainda existe a possibilidade de uma falha mecânica no corpo. Isto nos deixa cerca de mil e quinhentos condensadores, vinte mil circuitos elétricos individuais, quinhentas células de vácuo, mil disjuntores e vários milhares de outras complicadas peças individuais que podem sofrer enguiços. Além disso, ainda existem os tais campos positrônicos, que ninguém conhece direito.

      – Escute, Greg – disse Donovan, com súbita e desesperada ansiedade. – O robô pode estar mentindo. Tive esta idéia. Ele nunca...

      – Robôs não podem mentir propositalmente, seu idiota. Se tivéssemos uma máquina McCormack-Wesley de testes poderíamos verificar cada uma das peças individuais do corpo de Dave num espaço de vinte e quatro a quarenta e oito horas. Acontece que as duas máquinas desse tipo que existem estão na Terra, pesam dez toneladas cada uma, são instaladas sobre alicerces de concreto e não podem ser removidas. Não é uma beleza?

      Donovan esmurrou a mesa.

      – Mas, Greg, ele só erra, quando não estamos por perto! Há algo... sinistro... nesse... assunto! Pontuou a frase com murros na mesa.

      – Você me deixa doente – disse Powell, devagar. – Deve andar lendo novelas de aventuras.

      – O que desejo saber é o que vamos fazer a respeito! – berrou Donovan.

      – Já lhe digo. Vou instalar uma visotela em minha mesa. Ou melhor, bem ali na parede. Entendeu? – perguntou Powell, apontando para o local exato. – Então, vou focalizá-la para o local da mina onde eles estiverem trabalhando e ficarei observando. Isso é tudo.

      – Isso é tudo? Greg...

      Powell ergueu-se da poltrona e apoiou os punhos cerrados em cima da mesa.

      – Estou cansado, Mike – declarou, em tom de fadiga.

      – Há uma semana que você me vem incomodando a respeito de Dave. Afirma que há algo errado com ele. Sabe o que anda errado? Não! Sabe a causa do enguiço? Não! Sabe o que faz Dave voltar ao normal? Não! Sabe alguma coisa a respeito? Não! Eu sei alguma coisa a respeito? Não! Então, o que quer que eu faça?

      O braço de Donovan esboçou um gesto amplo, grandioso.

      – Não sei!

      – Então, vou-lhe dizer outra vez. Antes de fazer qualquer coisa no sentido de curar Dave, precisamos descobrir de que doença ele sofre. O primeiro passo, quando se quer fazer um ensopado de coelho, é pegar o coelho. Muito bem, precisamos pegar o coelho! Agora, trate de cair fora daqui.

      Donovan fitou com os olhos cansados o rascunho de seu relatório preliminar. Em primeiro lugar, estava fatigado; em segundo lugar, o que havia para colocar no relatório, enquanto as coisas andassem fora dos eixos? Na realidade, Donovan estava ressentido.

      Virou-se para o companheiro:

      – Greg, estamos com um atraso de quase mil toneladas em relação ao esquema

previsto. Sem erguer a cabeça, Powell respondeu: 

      – Está me dizendo algo que eu ainda não sabia...

 – O que desejo saber é por que motivo estamos sempre envolvidos com novos tipos de robôs! – declarou Donovan, com repentina violência. – Já resolvi que, se os robôs serviam para o meu tio-avô por parte de mãe, servem também para mim. Sou a favor de tudo o que já foi devidamente testado e aprovado pela experiência. O importante é a prova do tempo : robôs perfeitos, sólidos e antigos, que nunca enguiçam.

 Powell atirou um livro com pontaria perfeita e Donovan caiu da poltrona.

      – Nos últimos cinco anos, seu trabalho tem sido testar novos robôs nas condições reais de funcionamento, para a U. S. Robôs – declarou Powell, com a maior calma. – Uma vez que você e eu fomos bastante tolos para demonstrar perícia nesse tipo de trabalho, vimo-nos recompensados com as tarefas mais desagradáveis. Esse é o seu emprego! – acrescentou, apontando com o dedo para o peito de Donovan. – Segundo eu me recordo, você vem reclamando dele desde cinco minutos após ter assinado contrato com a U. S. Robôs. Por que não pede demissão?

  – Muito bem. Eu lhe explico – respondeu Donovan, rolando no chão de modo a ficar deitado de bruços e segurando uma mecha de cabelos ruivos para manter a cabeça erguida. – Há um certo princípio envolvido na questão Afinal, na qualidade de quebragalho, tornei parte ativa no aperfeiçoamento de novos tipos de robôs. É o princípio de auxiliar o progresso científico. Mas não me entenda mal. Não continuo a trabalhar por causa do princípio, mas pelo dinheiro que nos pagam... Greg!

 

      Powell sobressaltou-se com o grito frenético de Donovan. Seus olhos seguiram a direção do olhar do ruivo, fixando a visotela. Esbugalharam-se de horror.

      – Com... todos... os demônios... do inferno! – murmurou.

      Donovan ergueu-se ansiosamente, sem fôlego.

  – Olhe só para eles, Greg. Ficaram loucos.

      Observava os movimentos dos robôs na visotela. As máquinas animadas surgiam como brilhos bronzeados que se moviam agilmente de encontro ao fundo sombrio das escarpas do asteróide desprovido de atmosfera. Marchavam em ordem unida e as paredes do túnel da mina passavam silenciosamente pela tela, vagamente iluminada pelo brilho dos corpos metálicos. Os sete robôs, com Dave à frente, marchavam em uníssono. Davam meia-volta ou dobravam para os lados com sincronização perfeita e macabra; alteravam a formação com a estranha facilidade das bailarinas do Coral de Lunar Bowl.

      Donovan voltou com os trajes espaciais.

      – Ficaram completamente doidos, Greg. Aquilo é uma marcha militar.

 – Pelo que sabemos, pode ser até uma série de exercícios calistênicos – replicou friamente Powell. – Ou Dave talvez esteja sofrendo a alucinação de ser um professor de dança. Trate de pensar primeiro e não se dê ao trabalho de dizer o que pensou.

 Donovan fez uma careta e enfiou um detonador na cintura, com um gesto ostensivo.

      – De qualquer forma, eis a situação em que estamos – retrucou. – Então, trabalhamos com novos tipos de robô, hein? É o nosso emprego, admito. Mas respondame uma coisa: por que... por que invariavelmente acontece algo de errado com eles?

      – Porque somos amaldiçoados – replicou Powell, em tom sombrio. – Vamos!

      A luminosidade dos robôs brilhava ao longe, através da escuridão aveludada das galerias, que envolvia o espaço situado além dos fachos das lanternas portáteis dos dois homens.

– Lá estão eles – sussurrou Donovan.

Powell murmurou em voz tensa:

      – Tentei comunicar-me com Dave pelo rádio, mas ele não responde. É provável que o circuito de rádio esteja enguiçado.

      – Nesse caso, alegro-me em saber que os engenheiros ainda não projetaram robôs capazes de trabalhar em escuridão total. Eu detestaria topar com sete robôs malucos em um poço escuro, sem comunicação pelo rádio, se eles não estivessem iluminados como malditas árvores de Natal radiativas!

      – Suba naquela plataforma, Mike. Eles estão vindo para cá e quero observá-los de perto. Conseguirá subir?

      Donovan pulou, soltando um grunhido. A gravidade era bastante inferior à da Terra, mas a vantagem não era muito grande devido ao pesado traje espacial; a estreita plataforma ficava a quase três metros de altura. Powell imitou o companheiro.

      A coluna de robôs seguia Dave em fila indiana. Em ritmo mecânico, passaram a uma formação em coluna por dois e, posteriormente, reverteram à fila indiana, em ordem diferente. A manobra foi repetida muitas vezes, sem que Dave virasse a cabeça.

      Dave estava a seis metros dos dois homens, quando a brincadeira dos robôs cessou subitamente. Os robôs subsidiários saíram da formação, esperaram por um instante e depois giraram nos calcanhares, correndo pelo corredor e sumindo a distância, com grande rapidez. Dave observou-os um momento e depois sentou-se vagarosamente.

Descansou a cabeça numa das mãos, em um gesto muito humano. 

Sua voz soou nos fones de Powell:

      – Está aqui, chefe?

      Powell fez sinal para Donovan e pulou da plataforma.

      – Muito bem, Dave, o que se passa?

      O robô sacudiu a cabeça.

      – Não sei. Eu estava cuidando de uma rocha dura no túnel 17 e, de repente, percebi que havia seres humanos por perto e vi que estou a oitocentos metros do local de trabalho.

      – Onde estão os subsidiários, agora? – quis saber Donovan.

      – Voltaram ao trabalho, naturalmente. Quanto tempo perdemos?

      – Não muito. Esqueça – replicou Powell. Em seguida, virando-se para Donovan, acrescentou: – Fique com ele até o final do turno. Depois, volte. Tenho algumas idéias.

      Passaram-se três horas até que Donovan retornasse. Parecia cansado. Powell indagou : 

      – Como foi?

      Donovan sacudiu os ombros, num gesto cansado.

      – Nada acontece de errado, quando os vigiamos. Jogue-me um cigarro, por favor.

      O ruivo acendeu o cigarro com exagerado cuidado e soprou um caprichado anel de fumaça para o teto, dizendo:

 – Estive raciocinando, Greg. Veja: Dave tem condições esquisitas, para um robô. Há seis outros robôs sob suas ordens, em extrema disciplina. Dave tem poder de vida ou morte sobre os robôs subsidiários e deve agir em razão de sua própria mentalidade. Suponhamos que ele julgue necessário dar ênfase a esse poder, como uma concessão ao seu ego?

 – Vá logo ao assunto.

      – Já estou nele. Suponhamos que ele resolva instaurar um militarismo. Suponhamos que ele esteja organizando seu exército particular. Suponhamos que ele esteja treinando os robôs subsidiários em manobras militares. Suponhamos...

      – Suponhamos que você vá lavar a cabeça com água fria – interrompeu Powell. – Creio que você tem pesadelos em tecnicolor. O que está querendo supor constitui uma grande aberração do cérebro positrônico. Se a sua análise fosse correta, Dave teria que quebrar a Primeira Lei da Robótica: um robô não pode fazer mal a um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal. O tipo de atitude militarista e ego dominador que você supõe só pode ter um objetivo final para suas implicações lógicas: dominar os seres humanos.

      – Muito bem. Como pode você saber que isso não é a verdade?

      – Porque, em primeiro lugar, um robô com um cérebro assim jamais teria saído da fábrica; em segundo lugar, caso conseguisse, seria descoberto imediatamente. Como você bem sabe, eu submeti Dave ao teste.

      Powell empurrou a cadeira para trás e colocou os pés em cima da mesa.

      – Não. Ainda estamos na situação de não podermos fazer nosso ensopado, porque ainda não temos a menor idéia sobre o que pode estar errado. Por exemplo: se conseguíssemos descobrir qual foi o motivo daquela dança macabra, estaríamos no bom caminho. - Fez uma pausa, antes de acrescentar: – Escute bem, Mike, e diga-me o que lhe parece. Dave só anda errado quando nenhum de nós dois está presente. E quando anda errado, a chegada de um de nós fá-lo voltar imediatamente ao normal.

      – Eu já lhe disse uma vez que isso me parece sinistro.

      – Não interrompa. Por que um robô fica diferente quando não há seres humanos por perto? A resposta me parece óbvia: porque há maior necessidade de iniciativa pessoal. Neste caso, devemos examinar as partes do corpo que são afetadas por essa nova necessidade.

      – Puxa! – exclamou Donovan, empertigando-se, mas logo se deixando abater outra vez. – Não, não. Não é o suficiente. Ainda seria vasto demais. Não reduziria muito as possibilidades.

      – Não podemos evitá-la. De qualquer forma, não corremos perigo de não atingir a cota prevista. Vamo-nos revezar no trabalho de vigiar os robôs pela visotela. Quando acontecer algo errado, iremos imediatamente ao local e eles voltarão ao normal.

      – Mas os robôs deixarão de corresponder às especificações exigidas, Greg. A U.

      S. Robôs não pode colocar o modelo DV no mercado, se apresentarmos um relatório desse tipo.

      – Isso é óbvio. Precisamos encontrar o erro de fabricação e corrigi-la... e temos dez dias para fazê-lo – disse Powell, coçando a cabeça. – O problema é que... bem, acho melhor você mesmo dar uma olhada nas plantas.

      As plantas cobriam o chão como um tapete e Donovan postou-se de quatro sobre elas, seguindo o caminho traçado pelo lápis de Powell.

      – Começamos por aqui, Mike – explicou Powell. – Como você é especialista em corpos de robôs, quero que me corrija se eu errar. Estive tentando eliminar todos os circuitos não relacionados com o sistema de iniciativa pessoal. Bem aqui, por exemplo, fica a artéria-tronco que envolve as operações mecânicas. Elimino todas as ramificações laterais de rotina, como divisões de emergência... – ergueu a cabeça, indagando: – O que acha?

      Donovan sentia um gosto ruim na boca.

      – O trabalho não é assim tão simples, Greg. A iniciativa pessoal não é um circuito elétrico, que possa ser isolado e estudado separadamente. Quando um robô é colocado em ação por si mesmo, a intensidade da atividade do corpo aumenta imediatamente em quase todos os pontos do sistema. Não existe um único circuito que não seja afetado. O que precisamos fazer é localizar a condição particular – e muito especifica – que faz Dave sair dos eixos. Depois, poderemos começar a eliminar os circuitos.

      Powell levantou-se, sacudindo a poeira da roupa.

      – Diabo! Está bem. Pode levar as plantas e queimá-las.

      – Entenda uma coisa – disse Donovan. – Quando a atividade do corpo se intensifica, qualquer coisa pode acontecer, desde que haja uma única peça defeituosa. Um defeito no isolamento, um enguiço de condensador, uma centelha num fio, um aquecimento de bobina... E se trabalharmos às cegas, tendo de examinar o robô inteiro, jamais encontraremos o defeito. Se desmontarmos Dave e testarmos todos os pontos do mecanismo de seu corpo, um por um, tornando a montá-lo de cada vez e experimentando

o resultado...

      – Muito bem. Também sou capaz de entender.

Encararam-se, desanimados. Então, Powell sugeriu em tom cauteloso:

      – Suponhamos que entrevistemos um dos subsidiários...

      Nem Powell nem Donovan haviam tido uma oportunidade para conversar com um dos “dedos” de Dave. Cada um deles podia falar; a analogia com um “dedo” humano era bastante longínqua. 

      Na verdade, cada um dos robôs subsidiários do DV possuía um cérebro relativamente aperfeiçoado; todavia, esse cérebro estava sintonizado principalmente para receber ordens através de um campo positrônico e sua reação a estímulos independentes era um tanto desajeitada.

      Por outro lado, Powell não tinha muita certeza a respeito do nome do robô que foi chamado para a entrevista. Seu número de série era DV-5-2, mas isto não ajudava muito. Powell resolveu tentar : 

      – Ouça, amigo: vou-lhe pedir para pensar bastante e depois você poderá voltar para junto de seu chefe. 

      O “dedo” meneou rigidamente a cabeça, mas não forçou sua limitada capacidade mental, tentando falar.

      – Bem – disse Powell. – Recentemente, em quatro ocasiões diferentes, seu chefe desviou-se do esquema cerebral. Lembra-se dessas ocasiões?

      – Sim, senhor.

Donovan grunhiu raivosamente:

      – Esse aí lembra-se. Estou-lhe dizendo que existe algo de muito sinistro...

      – Ora, vá plantar batatas! É claro que o “dedo” se lembra: não há coisa alguma de errado com ele – retrucou Powell, virando-se em seguida para o robô: – O que estavam fazendo em cada uma dessas vezes... isto é, o grupo inteiro?

      O “dedo” tinha o ar curioso de quem recita algo de cor, como se respondesse as perguntas pela pressão mecânica de seu cérebro, mas sem qualquer entusiasmo. Declarou:

      – Na primeira vez, estávamos trabalhando numa difícil rocha dura, no Túnel 17, Nível B. Na segunda, estávamos reforçando o teto do túnel para evitar um possível desmoronamento. Na terceira, preparávamos explosões de precisão para prolongar o túnel sem atingir uma fissura subterrânea. A quarta vez foi logo depois de um pequeno desmoronamento.

      – E o que aconteceu nessas ocasiões?

      – É difícil descrever. Deveria ter sido dada uma ordem, mas antes que pudéssemos recebê-la e interpretá-la, veio a ordem para marcharmos em formação militar.

      – Por quê? – insistiu Powell.

      – Não sei.

      Donovan interrompeu, ansioso:

      – Qual foi a primeira ordem... a que foi suprimida pela ordem de marchar?

      – Não sei. Senti que uma ordem fora enviada, mas não tive tempo para recebê-la.

      – É capaz de nos dizer alguma coisa a respeito? A ordem foi sempre a mesma, em todas as ocasiões? O “dedo” sacudiu tristemente a cabeça.    

      – Não sei.

      Powell recostou-se na poltrona.

      – Muito bem. Pode voltar para seu chefe.

      O “dedo” saiu, visivelmente aliviado.

      – Bem, desta vez conseguimos muita coisa – comentou Donovan, sarcástico. – Foi um diálogo realmente inteligente, de fio a pavio. Ouça: Dave e aquele “dedo” imbecil estão escondendo algo de nós. Há muita coisa que eles não sabem ou não se recordam. Precisamos parar de confiar neles, Greg.

      Powell continuou a cofiar o bigode.

      – Juro por Deus, Mike, se fizer outro comentário idiota, tiro-lhe a chupeta e o chocalho!

      – Está certo. Você é o gênio da equipe. Eu não passo de um pobre imbecil. Em que ficamos?

      – Numa sinuca atrás da bola sete. Tentei resolver o caso ao inverso, partindo do “dedo”. Agora, temos de começar pelo início.

      – Que grande homem! – exclamou Donovan. – Como torna tudo tão simples! Agora, faça o favor de traduzir isso para a minha língua, mestre.

      – Traduzir para a linguagem dos bebês seria mais fácil para fazer você entender. Quero dizer que precisamos descobrir qual a ordem dada por Dave antes de tudo ficar preto. Deve ser a chave do mistério.

      – E como espera fazer isso? Não podemos ficar perto dele, pois nada acontecerá de errado enquanto estivermos lá. Não podemos captar as ordens de Dave pelo rádio, pois elas são emitidas através do tal campo positrônico. Isto elimina o curto e o longo alcance, deixando-nos com um belo zero bem redondo.

      – Por observação direta, sim. Mas resta-nos a dedução.

      – Hein?

      – Vamo-nos revezar em turnos, Mike – declarou Powell, com um sorriso sombrio. – E não tiraremos os olhos da visotela. Vamos vigiar cada movimento daqueles monstros de aço. Quando eles saírem dos eixos, trataremos de descobrir o que aconteceu logo antes e deduziremos a ordem dada por Dave.

      Donovan abriu a boca e permaneceu assim por mais de um minuto. Afinal, disse com voz engasgada: 

      – Desisto. Peço demissão.

      – Tem um prazo de dez dias para apresentar uma sugestão melhor – replicou Powell, em tom fatigado.

      E foi o que Donovan tentou desesperadamente fazer, durante os oito dias que se seguiram. Durante esse período, alternando-se com Powell em turnos de quatro horas, observou com olhos vermelhos e ardentes as brilhantes formas metálicas se moverem contra o fundo obscuro da visotela. Durante oito dias, nos intervalos de quatro horas que tinha para descansar, ele maldizia a U. S. Robôs, os modelos DV e o dia em que nascera. Então, no oitavo dia, quando Powell, com a cabeça dolorida e os olhos inflamados, entrou na sala para substituí-la, Donovan se ergueu da cadeira, pegou um pesado aparador de livros, fez deliberada e cuidadosa pontaria, e lançou o projétil contra a visotela. Houve um ruído de vidro quebrado e os estilhaços voaram em todas as direções. Powell ficou atônito.

      – Por que fez isso?

      – Porque vou parar de vigiar – replicou Donovan, em tom quase calmo. – Temos apenas dois dias e não conseguimos descobrir coisa alguma. O DV-5 é um maldito fracasso. Parou cinco vezes, enquanto eu vigiava, e três durante os seus turnos, e não conseguimos descobrir as ordens que ele deu. Nem eu, nem você. Além disso, não creio que você consiga descobrir, porque tenho certeza que eu jamais conseguirei.

      – Diabo! Como é possível vigiar seis robôs ao mesmo tempo? Um mexe as mãos, outro mexe os pés, outro gira os braços como um moinho e outro pula como um alucinado. E os outros dois... só Deus sabe o que estão fazendo! Então, todos eles param de repente. Ora, bolas!

      – Greg, não estamos agindo certo. Precisamos chegar perto deles. Precisamos vigiá-los de um lugar no qual seja possível distinguir os detalhes. Seguiu-se um amargo silêncio, que foi quebrado por Powell.

      – Sim. E esperar que aconteça algo, quando faltam apenas dois dias.

      – Acha melhor vigiarmos daqui?

      – Pelo menos, é mais confortável.

      – Ah... Mas existe algo que podemos fazer lá e não podemos fazer aqui.

      – O que é?

      – Podemos fazê-los parar, quando bem entendermos, justamente quando estivermos preparados e atentos ao que possa acontecer de errado. Powell empertigou-se, atento.

      – Como assim?

 – Bem, veja por si próprio. Você não diz que é o cérebro? Faça algumas perguntas a si mesmo. Quando é que o DV-5 sai dos eixos? O que disse o “dedo” a respeito? Quando houve ameaça de desmoronamento, ou quando realmente ocorreu um; quando preparavam explosivos cuidadosamente medidos; quando atingiram uma pedra dura de ser perfurada...

 – Em outras palavras: em ocasiões de emergência – completou Powell, excitado.

      – Exato! Quando era esperada uma emergência! A causa do problema é o fator de iniciativa pessoal. E é justamente nas emergências, na ausência de seres humanos, que o fator de iniciativa pessoal sofre maior pressão. Ora, qual é a dedução lógica? Como poderemos provocar uma parada, no local e hora em que desejarmos?

      Donovan fez uma pausa triunfal; estava começando a gostar de seu novo papel. E resolveu responder a sua própria pergunta, a fim de evitar a óbvia resposta que devia estar na ponta da língua de Powell:

      – Criando uma emergência.

      – Mike... você tem razão – concordou Powell.

      – Obrigado, amigo. Eu sabia que iria conseguir, algum dia.

      – Muito bem. Deixe de lado o sarcasmo. Guarde-o para a Terra, onde o manteremos em vidros de conserva, para invernos longos e frios do futuro. Enquanto isso... que emergência poderemos criar?

      – Se não estivéssemos num asteróide sem atmosfera, poderíamos inundar as galerias da mina.

      – Um dito espirituoso, sem dúvida – comentou Powell. – Francamente, Mike, você me mata de rir. Que acha de um pequeno desmoronamento? Donovan apertou os lábios, respondendo: 

      – Por mim, está bem.

      – Ótimo. Vamos agir.

      Powell sentia-se estranhamente como um conspirador ao caminhar pelo terreno acidentado. Seus passos, tornados mais leves pela pouca gravidade, levavam-no através do asteróide, chutando pedras para ambos os lados e provocando pequenas nuvens de poeira. Mentalmente, contudo, era o andar cauteloso de um conspirador.

      – Sabe onde eles estão? – indagou.

      – Creio que sim, Greg.

      – Muito bem – disse Powell, sombrio. – Mas se algum dos “dedos” chegar a seis metros de nós, seremos pressentidos, quer ele nos veja, ou não. Espero que você saiba disso.

      – Quando eu precisar de um curso elementar de robótica, farei um requerimento formal a você, em triplicata. Vamos descer por ali. Entraram nas galerias da mina. Até mesmo a luz das estrelas desapareceu. Os dois homens tatearam ao longo das paredes, iluminando o caminho com os fachos intermitentes das lanternas.

      Powell colocou o dedo na trava de segurança de seu detonador.

      – Conhece este túnel, Mike?

      – Não muito bem. É novo. Mas creio que posso guiar-me pelo que observei na visotela... Passaram-se minutos intermináveis. Então, Mike sussurrou: 

      – Sinta isso!

      A luva metálica de Powell, de encontro à rocha, transmitiu a seus dedos uma vibração que vinha pela parede do túnel. Naturalmente, não havia o menor som.

      – Explosões! Estamos bem perto.

      – Fique de olho aberto – recomendou Powell.

Donovan assentiu, impaciente. Chegou perto deles e sumiu antes que pudessem esboçar um gesto: um leve brilho metálico bronzeado, no limite do seu campo de visão. Os dois homens ficaram imóveis, em silêncio. Afinal, Powell murmurou:

      – Acha que ele nos pressentiu?

      – Espero que não. Mas acho melhor irmos pelo flanco. Tome o primeiro túnel lateral à direita.

      – E se não os encontramos mais?

      – Ora, que prefere fazer? Quer voltar? – grunhiu ferozmente Donovan. – Estão a quatrocentos metros. Eu os vigiava pela visotela, não é? E temos dois dias...

      – Oh, cale-se! Está desperdiçando oxigênio. Será uma passagem lateral, aqui? A lanterna brilhou um rápido instante.

      – É. Vamos logo.

      A vibração era consideravelmente mais acentuada e o chão tremia sob seus pés.

      – Isso é ótimo – comentou Donovan. – Desde que o chão não ceda por baixo de nós...

      Acendeu a lanterna, dirigindo o facho para a frente.

      Bastaria que erguessem um pouco o braço para tocar o teta do túnel. As traves de sustentação eram novas. Afinal, Donovan hesitou.

      – Estamos num túnel sem saída. Vamos voltar.

 – Não. Espere um pouco – replicou Powell, passando desajeitadamente pelo companheiro. – Não vê luz, ali adiante?

 – Luz? Não vejo coisa alguma. Como poderia a luz chegar até aqui?

      – Luz de robôs – disse Powell, engatinhando por um leve aclive. Sua voz, rouca e ansiosa, chegou aos fones de Donovan: – Eh, Mike, venha cá.

      Havia luz. Donovan engatinhou até lá, passando por sobre as pernas esticadas de Powell.

      – Uma abertura?

      – Sim. Devem estar vindo para este túnel, abrindo caminho pelo outro lado... creio.

      Donovan sentiu os bordos irregulares da abertura. Uma cautelosa inspeção com o facho da lanterna revelou um túnel mais amplo, que obviamente constituía uma galeria principal. Todavia, a abertura era pequena demais para permitir a passagem de um homem; era quase insuficiente para que os dois espiassem através dela ao mesmo tempo.

      – Não há nada aí – comentou Donovan.

      – Não agora, pelo menos. Mas deve ter havido há pouco, ou não teríamos visto luz. Cuidado!

      As paredes tremeram e ambos sentiram o impacto. Uma poeira fina caiu sobre eles. Powell ergueu cuidadosamente a cabeça e espiou novamente.

      – Olhe só, Mike. Lá estão eles.

      Os robôs brilhantes estavam agrupados na galeria principal, a cinco metros de distância. Os braços de metal removiam com rapidez os escombros deslocados pela última explosão. Donovan cutucou ansiosamente as costelas de Powell:

      – Não perca tempo. Eles não demorarão a terminar e a próxima explosão pode apanhar-nos.

      – Pelo amor de Deus, não me afobe!

      Powell empunhou o detonador e seu olhar rebuscou ansiosamente o interior escuro e poeirento da galeria, onde a única iluminação era proveniente da luminosidade dos robôs e tornava-se impossível distinguir uma rocha saliente de uma mancha de sombra.

      – Há um ponto no teta. Está vendo? Fica quase sobre eles. A última explosão não foi suficiente para arrancá-lo. Se você conseguir atingi-lo na base, metade do teto desmoronará.

      O olhar de Powell seguiu a direção indicada pelo dedo de Donovan.

      – Certo! Agora, fique de olho nos robôs e reze para que eles não se afastem muito desta parte do túnel. São as únicas fontes de luz que eu tenho. Todos os sete estão ali? Donovan contou rapidamente.

      – Todos.

      – Muito bem, então. Vigie-os. Observe cada movimento deles! O detonador foi apontado, enquanto Donovan observava, praguejava e piscava para tirar o suor que escorria para os olhos. Disparou!

      Houve uma sacudidela, uma série de fortes vibrações e um baque tremendo que atirou Powell pesadamente de encontro a Donovan.

      – Greg, você me sacudiu do lugar! – berrou Donovan. – Não vi nada! Powell olhou em volta, confuso.

      – Onde estão eles?

      Donovan parecia mergulhado em um silêncio de estupefação. Não havia sinal dos robôs. O ambiente estava escuro como as profundezas do rio Styx.

      – Acha que os soterramos? – indagou Donovan, afinal, com voz trêmula.

      – Vamos descer até lá. Não me pergunte o que acho – replicou Powell, rastejando rapidamente para trás.

      – Mike!

      Donovan, que o seguia, parou de repente.

      – O que há de errado, agora?

      – Calma – disse Powell. Sua respiração, entrecortada e ansiosa, soava estranhamente nos fones de Donovan.

      – Mike! Está me ouvindo, Mike?

      – Estou aqui. O que há?

      – Estamos bloqueados. O que nos derrubou não foi a queda do teto da galeria. Foi o nosso próprio teto. O choque o fez desmoronar!

      – O quê? – exclamou Donovan, tentando trepar na dura barreira de escombros de rocha. – Ligue a lanterna.

      Powell obedeceu. Não havia abertura suficiente para dar fuga a um coelho. Donovan perguntou baixinho:

      – Bem. E agora?

      Gastaram alguns minutos fazendo um esforço muscular na tentativa de remover a barreira de pedra que os bloqueava. Powell experimentou cavar junto às bordas da abertura anterior. Chegou a erguer o detonador. Mas seria suicídio dispará-la naquele ambiente fechado e ele estava consciente do fato. Finalmente, sentou-se.

 – Sabe, Mike, desta vez estragamos tudo para valer – comentou. – Não fizemos progresso algum no sentido de descobrir qual é o problema com Dave. Foi uma boa idéia, mas saiu pela culatra.

 O olhar de Donovan exprimia amargura, com uma intensidade totalmente inútil na escuridão em que se encontravam.

      – Detesto perturbá-lo, meu velho, mas, sem levar em conta o que sabemos ou não a respeito de Dave, parece que estamos numa ratoeira. Se não nos livrarmos, rapaz, vamos morrer. M-O-R-RE-R... morrer. Quanto oxigênio ainda temos? Não mais que seis horas.

      – Já pensei nisso – disse Powell, levando instintivamente a mão ao bigode; mas seus dedos bateram inutilmente no visor transparente do traje espacial. – Naturalmente, seria bastante fácil fazer com que Dave nos libertasse nesse espaço de tempo, mas nossa bela emergência deve tê-lo tirado dos eixos e o circuito de rádio parou de funcionar.

      – Não é mesmo uma beleza?

      Donovan aproximou-se da abertura e, com dificuldade, conseguiu enfiar o capacete para fora. Era a conta justa.

      – Eh, Greg!

      – O que é?

      – Suponhamos que seja possível trazer Dave até seis metros de nós? Ele voltará ao normal. E seremos salvos.

      - Claro. Mas onde estará ele?

      – No corredor da galeria. Bem longe. Pelo amor de Deus! Pare de puxar, ou acabará arrancando minha cabeça do pescoço! Vou-lhe dar uma oportunidade para espiar.

      Donovan se afastou e Powell passou a cabeça para fora da abertura.

      – Veja só o que conseguimos... Olhe só aqueles malucos. Creio que estão dançando um ballet.

      – Deixe os comentários de lado. Estão chegando mais perto?

      – Ainda não sei dizer. Estão longe demais. Deixe-me tentar. Passe-me a lanterna, por favor. Procurarei atrair a atenção deles com a luz. Depois de dois minutos, desistiu.

      – Não adianta! Parece que estão cegos... Ora! Estão começando a vir para cá.

Veja só! Donovan pediu:

      – Eh, deixe-me espiar!

      Houve uma breve luta silenciosa. Afinal, Powell concordou.

      – Está certo!

      Donovan enfiou a cabeça para fora. Os robôs se aproximavam. Dave vinha à frente, dando grandes saltos de bailarinos; os seis “dedos” seguiam-no como uma fila de dançarinas. Donovan estava maravilhado.

      – O que estão fazendo, afinal? Eu bem gostaria de saber... Parece o ril da Virgínia – e Dave faz o papel de mestre-de-cerirnônias...Ou eu nunca vi um ril!

      – Ora, pare com a narrativa – resmungou Powell.

      – A que distância estão agora?

      – Quinze metros. E continuam vindo para cá... Hein?... Eh!... Eh!...

      – O que há?

      Powell levou vários segundos para recobrar-se do espanto causado pelas exclamações frenéticas de Donovan.

– Vamos, deixe-me espiar pelo buraco. Não seja egoísta... Tentou subir, mas Donovan reagiu, esperneando desesperadamente.

      – Deram meia-volta, Greg! Estão indo embora... Dave! Eh, Da-aave! Powell berrou: – De que adianta isso, seu idiota? O som não se propaga aqui!

      – Está bem, então – replicou Donovan, ofegante. – Dê pontapés nas paredes, esmurre-as, produza alguma vibração! Precisamos dar um jeito de atrair a atenção deles, Greg, ou estamos fritos!

      Esmurrava a parede como um alucinado. Powell sacudiu-o pelo ombro.

      – Espere, Mike, espere. Ouça: tive uma idéia. Diabo! É mesmo uma ótima hora para chegarmos às soluções simples... Mike!

      – Que deseja? – perguntou Donovan, tirando a cabeça do buraco.

      – Deixe-me espiar depressa, antes que eles saiam do alcance.

– Saiam do alcance! Que pretende fazer? Ei, que vai fazer com esse detonador? – quis saber Donovan, agarrando o braço de Powell. Powell sacudiu energicamente o braço, livrando-se do companheiro.

      – Vou dar uns tiros.

      – Por quê?

      – Explicarei depois. Primeiro, vamos ver se dá certo. Se não der... Saia da frente e deixe-me atirar!

      Os robôs eram meros reflexos a distância, pequenos e se tornando cada vez menores. Powell apontou cuidadosamente e puxou o gatilho três vezes. Baixou a arma e espiou ansiosamente.

      Um dos robôs subsidiários estava caído! Agora, havia apenas seis vultos brilhantes. Com voz trêmula, Powell chamou pelo transmissor:

      – Dave!

      Uma pausa. Então, a resposta chegou simultaneamente aos fones dos dois homens: 

      – Chefe? Onde está? Meu terceiro subsidiário teve o peito esmagado. Está inutilizado.

      – Não interessa – replicou Powell. – Estamos presos, por causa de um desmoronamento, enquanto vocês cavavam. Pode ver nossa lanterna?

      – Claro. Iremos imediatamente.

      Powell recostou-se, relaxando os músculos.

      – Pronto, amigo. Estamos salvos.

      – Muito bem, Greg – disse Donovan, baixinho, com lágrimas na voz. – Você venceu. Curvo-me diante de você e beijo-lhe os pés. Agora, não venha com brincadeiras. Trate de contar-me direitinho como conseguiu.

      – Foi muito fácil. A única dificuldade foi que, durante todo o tempo, não percebemos o óbvio... como de costume. Sabíamos que o problema era oriundo do circuito de iniciativa pessoal e sempre surgia em ocasiões de emergência, mas procurávamos a causa em alguma ordem específica dada por Dave. Por que haveria de ser uma ordem?

      – Por que não?

      – Ora, escute: por que não um tipo de ordem? Que tipo de ordem requer maior dose de iniciativa pessoal? Que tipo de ordem praticamente só ocorreria em casos de emergência?

      – Não me pergunte, Greg; diga-me!

      – É o que estou fazendo! Trata-se de uma ordem para seis subsidiários. Em todas as condições normais, um ou mais subsidiários estavam realizando tarefas rotineiras, que não exigiam supervisão especial, bastando uma espécie de vigilância automática, como a que nosso corpo exerce ao cuidar dos movimentos rotineiros para andar. Num caso de emergência, porém, todos os seis subsidiários precisavam ser mobilizados imediata e simultaneamente. Dave era obrigado a controlar os seis robôs subsidiários ao mesmo tempo, e acontecia algo errado. O resto foi fácil. Qualquer diminuição na quantidade de iniciativa pessoal exigida por uma emergência – tal como a chegada de seres humanos – trazia-o de volta ao normal. Assim sendo, destruí um dos robôs. Quando o fiz, Dave passou a transmitir ordens para cinco robôs subsidiários, apenas. A exigência de iniciativa diminuiu e ele voltou ao normal.

      – Corno conseguiu descobrir tudo isso? – quis saber Donovan. 

      – Por um raciocínio lógico. Experimentei e deu certo.

      A voz do robô tornou a soar nos fanes:

      – Aqui estou. Podem agüentar meia hora?

      – Facilmente. Calma! – respondeu Powell. Virando-se para Donovan, prosseguiu:

      – Agora, o resto de nossa missão deve ser fácil. Examinaremos os circuitos e verificaremos quais as peças que sofrem maior esforço ao dar uma ordem para seis subsidiários, comparando-se com as ordens para apenas cinco “dedos”. Isto deve restringir bastante nosso campo de pesquisa, não é?

      Donovan refletiu.

      – Bastante, creio. Se Dave for semelhante ao protótipo que vimos na fábrica, deve possuir um circuito especial de coordenação que, no caso, seria a única seção envolvida no problema.

      De repente, animou-se de forma espantosa: 

      – Ora, não será difícil. É um verdadeiro brinquedo.

      – Muito bem. Vá pensando no assunto. Quando voltarmos, estudaremos as plantas. E, agora, vou descansar até que Dave nos tire daqui.

      – Êh, espere! Diga-me apenas mais uma coisa: o que eram aquelas marchas esquisitas e aqueles ballets engraçados que os robôs faziam cada vez que Dave falhava?

      – Oh, isso? Não sei. Mas tenho uma vaga noção. Lembre-se de que os robôs subsidiários são uma espécie de “dedos” de Dave. Nós costumávamos chamá-los assim, não é mesmo? Minha impressão é de que naqueles interlúdios, sempre que Dave se transformava num caso psiquiátrico, perdia-se numa névoa de imbecilidade e passava o tempo girando os dedos...

     

      Susan Calvin

      Mentiroso!

      Alfred Lanning acendeu cuidadosamente o charuto, mas as pontas de seus dedos tremiam ligeiramente. Suas vastas sobrancelhas grisalhas estavam franzidas sobre o nariz, e ele falava devagar, entre consecutivas baforadas de fumaça.

      – Ele realmente lê pensamentos... Não pode haver a menor dúvida a respeito!

Mas... por quê? – Virando-se para o matemático Peter Bogert, acrescentou: – Então? Bogert alisou os cabelos negros com as duas mãos.

      – Foi o trigésimo quarto modelo RB que produzimos, Lanning. Todos os outros saíram estritamente ortodoxas.

      O terceiro homem sentado à mesa franziu a testa. Milton Ashe era o mais jovem diretor da U. S. Robôs e Homens Mecânicos S.A. sentia-se muito orgulhoso de seu posto.

      – Ouça, Bogert. Não houve o menor erro na montagem, desde o início até o final.

Posso garantir. Os lábios grossos de Bogert abriram-se num sorriso condescendente.

      – Pode garantir? Se é capaz de responder pela linha de montagem inteira, recomendo sua promoção. Para fornecer a conta exata, existem setenta e cinco mil, duzentos e trinta e quatro operações necessárias à fabricação de um único cérebro positrônico. Cada uma dessas operações, para alcançar sucesso, depende de um certo número de fatores, que pode variar entre cinco e cento e cinco. Se houver alguma falha séria em qualquer deles, o “cérebro” fica automaticamente arruinado. Tais dados são tirados diretamente de nosso boletim de informações, Ashe.

      Milton Ashe corou, mas uma quarta voz interrompeu sua tentativa de responder.

      – Se vamos começar a tentar jogar a culpa uns sobre os outros, prefiro retirar-me – declarou Susan Calvin, com as mãos cruzadas no colo e as pequenas rugas ao redor dos lábios finos e pálidos parecendo mais acentuadas.

      – Temos nas mãos um robô capaz de ler os pensamentos humanos e julgo de grande importância descobrirmos por que motivo ele é capaz de fazê-la. Não vamos descobrir coisa alguma jogando a culpa uns sobre os outros.

      Seus frios olhos cinzentos se fixaram em Ashe e este sorriu.

      Lanning também sorriu. Como sempre acontecia nessas ocasiões, seus longos cabelos brancos e penetrantes olhinhos azuis davam-lhe a aparência de um patriarca bíblico.

– E verdade, Dra. Calvin.

Sua voz tornou-se repentinamente áspera.

      – Eis aqui os fatos, em resumo. Produzimos um cérebro positrônico de tipo supostamente comum, mas ele possui a notável qualidade de ser capaz de ler nossos pensamentos, o que significa que está sintonizado para captar nossas ondas mentais. Se descobrirmos como isso aconteceu, conseguiremos o mais importante progresso robótico destas últimas décadas. Como não sabemos, precisamos descobrir. Está bem claro?

      – Posso apresentar uma sugestão? – indagou Bogert.

      – Prossiga!

      – Sugiro que até solucionarmos o problema – e, na qualidade de matemático, julgo que será um problema dos mais difíceis de resolver – a existência do RB-34 seja mantida em segredo. E refiro-me até mesmo aos outros membros de nosso pessoal. Como chefes de departamentos, creio que não seremos incapazes de encontrar a solução. Quanto menos gente tomar conhecimento...

      – Bogert tem razão – disse a Dra. Calvin. – Desde que o Código Interplanetário foi modificado para permitir que os novos modelos de robôs fossem testados nas fábricas antes de ser embarcados para o espaço, a propaganda anti-robôs aumentou consideravelmente. Se o boato a respeito de um robô capaz de ler pensamentos se espalhar antes que consigamos anunciar que o fenômeno está inteiramente sob controle, os setores contrários à fabricação de robôs teriam uma arma poderosa.

      Lanning tirou uma tragada do charuto e meneou gravemente a cabeça. Em seguida, virou-se para Ashe.

      – Se não estou enganado, você declarou estar sozinho quando percebeu pela primeira vez esse caso de leitura de pensamentos.

      – Realmente, estava sozinho, e levei o maior susto de minha vida. O RB-34 acabava de sair da mesa de montagem e foi mandado para mim. Obermann estava ausente, de modo que levei pessoalmente o robô à sala de testes. Pelo menos, comecei a levá-lo. - Ashe fêz uma pausa, com um leve sorriso, antes de acrescentar: – Algum de vocês chegou a manter uma conversa mental, sem se aperceber do fato?

      Ninguém se deu ao trabalho de responder e ele prosseguiu:

      – No início, não se percebe. O robô conversou comigo do modo mais lógico e sensato que seja possível imaginar. Somente quando estávamos quase chegando à sala de testes foi que me dei conta de que não dissera uma só palavra. E verdade que pensei muito, mas isto não é a mesma coisa, não acham? Tranquei o robô e vim correndo participar o fato a Lanning. Confesso que ver o robô andar a meu lado, lendo calmamente meus pensamentos e escolhendo-os, causava-me arrepios.

      – Imagino que sim – comentou Susan Calvin, pensativa, fixando o olhar em Ashe de modo curiosamente atento. – Estamos muito acostumados a considerar nossos pensamentos como uma propriedade privada.

      Lanning interrompeu, impaciente:

      – Então, só nós quatro sabemos. Muito bem! Temos de abordar o problema sistematicamente. Ashe, quero que você verifique a linha de montagem, desde o princípio até o fim; tudo, detalhadamente. Deve eliminar todas as operações em que não tenha havido possibilidade de erro e fazer uma lista de todas onde tal possibilidade for admissível, enumerando a natureza e possível magnitude do erro.

      – Uma tarefa e tanto! – resmungou Ashe.

      – Claro! Naturalmente, deverá colocar seus subordinados para trabalhar na investigação; todos eles, se for necessário. Não me importo se atrasarmos o programa de produção. Mas eles não devem tomar conhecimento do motivo da investigação. Compreende?

      – Sim! – replicou o jovem técnico, com um sorriso irônico. – Ainda assim, será uma tarefa e tanto. Lanning virou-se na cadeira e encarou Susan Calvin.

 – A senhora terá de atacar o problema de outra direção. É a robopsicóloga da companhia, de modo que deve estudar primeiramente o próprio robô e trabalhar em sentido inverso ao de Ashe. Tente descobrir como o cérebro dele funciona. Verifique quais as ligações existentes com os seus poderes telepáticos, até onde estes se estendem, de que forma alteram seu modo de encarar as coisas e exatamente que danos causaram às suas características comuns de robô tipo RB. Entendeu?

 Lanning não esperou que Susan Calvin respondesse.

      – Cuidarei da coordenação dos trabalhos de investigação e da interpretação matemática dos dados – declarou, tirando uma violenta baforada do charuto e murmurando por entre a nuvem de fumaça: – Bogert me auxiliará, naturalmente.

      Bogert poliu as unhas de uma mão gorda na palma da outra e disse suavemente:

      – Ouso dizer que sim. Conheço um pouco do assunto.

      – Muito bem! Vou começar logo – declarou Ashe, empurrando a cadeira para trás e se erguendo com um sorriso agradável no rosto jovem. – Recebi a pior missão, de modo que vou tratar de meter mãos à obra.

      Saiu, murmurando: 

      – Até logo!

      Susan Calvin respondeu com um aceno quase imperceptível de cabeça, mas seus olhos acompanharam Ashe até que este desapareceu pela porta. Nem respondeu quando Lanning soltou um grunhido e disse :

      – Dra. Calvin, quer levantar-se e ir examinar o RB-34, agora? Ao ouvir o som abafado dos gonzos da porta, o RB-34 ergueu os olhos do livro. Quando Susan Calvin entrou, o robô já estava de pé.

      Susan fez uma pausa para ajeitar o enorme letreiro “É Proibido a Entrada” na porta e, em seguida, aproximou-se do robô.

      – Trouxe-lhe os livros a respeito de motores hiperatômicos, Herbie; alguns deles, pelo menos. Não gostaria de passar os olhos neles?

      O RB-34, mais conhecido como Herbie, pegou os três pesados compêndios que Susan carregava e abriu a primeira página de um deles.

      – Hummm! “Teoria Hiperatômica”. - Murmurou consigo mesmo, enquanto virava as páginas. Depois, com ar distraído, disse: – Sente-se, Dra. Calvin! Levarei ainda alguns minutos.

 

      A psicóloga sentou-se e observou atentamente enquanto Herbie tomou uma cadeira no outro lado da mesa e leu sistematicamente os livros.

Após cerca de meia hora, o robô empurrou os livros para o lado, declarando: 

– Naturalmente, sei por que a senhora os trouxe. 

O canto do lábio da Dra. Calvin tremeu ligeiramente.

      – Eu já temia isto. É difícil trabalhar com você, Herbie. Está sempre um passo à minha frente.

 – Sabe, com estes livros é a mesma coisa que com os outros. Simplesmente, não me interessam. Seus compêndios de nada valem. Sua ciência não passa de uma massa de dados coligidos e arranjados sob a forma de uma teoria improvisada, e tão incrivelmente simples que nem vale a pena perder tempo com ela. O que me interessa são os livros de ficção, os estudos a respeito do jogo das motivações humanas e das emoções... – declarou Herbie, gesticulando vagamente em busca das palavras adequadas.

 – Creio que compreendo – murmurou a Dra. Calvin.

      – Como a senhora sabe, sou capaz de ler pensamentos – prosseguiu o robô – e nem pode fazer idéia de como eles são complicados. Nem consigo começar a compreendê-los todos, porque minha mente tem muito pouco em comum com a de vocês... Mas tento, e seus romances me ajudam.

      – Sim; mas temo que depois de ler algumas das angustiosas experiências emocionais descritas em nossas novelas sentimentais da atualidade, você achará as mentes reais, como as nossas, insípidas e desinteressantes – disse Susan Calvin, com um toque de amargura.

– Mas não acho!

      A repentina energia da resposta fez com que a Dra. Calvin se erguesse de um pulo, sentindo-se corar. 

Confusa, pensou: “Ele deve saber!”.

Herbie acalmou-se de imediato e murmurou em voz baixa, quase desprovida de timbre metálico:

      – Mas é claro que sei tudo a respeito, Dra. Calvin. A senhora está sempre pensando nisso, como poderia eu deixar de saber? O rosto de Susan Calvin assumiu uma expressão dura.

      – Contou... a alguém?

      – Claro que não! – respondeu Herbie, com genuína surpresa. – Ninguém me perguntou.

      – Muito bem, então – disse ela, irritada. – Suponho que me julga uma tola.

      – Não! Trata-se de uma emoção normal.

      – Talvez seja tola exatamente por isso.

      A tristeza de sua voz era tão profunda que eliminava toda e qualquer outra emoção. Um pouco da mulher conseguiu sobrepujar o domínio da doutora.

      – Não sou o que você chamaria de... atraente.

      – Se está querendo referir-se a uma atração meramente física, sou incapaz de julgar. Mas, de qualquer forma, sei que existem outros tipos de atração.

      – Também não sou jovem – continuou Susan Calvin, que mal ouvira a resposta do robô.

      – Ainda não tem quarenta anos – replicou Herbie, cuja voz parecia conter uma ansiosa insistência.

      – Tenho trinta e oito anos, se contarmos apenas a idade cronológica; mas quanto ao modo de encarar a vida, sou uma velha encarquilhada de sessenta anos. Afinal, para que acha que sou psicóloga? – Com amarga veemência, prosseguiu: – Ele mal chegou aos trinta e cinco; parece mais jovem e age como tal. Julga que ele vê em mim algo além do que... do que eu sou?

      – Está enganada! – declarou Herbie, batendo com o punho de aço no tampo plástico da mesa e produzindo um som estridente.

      – Ouça-me...

      Mas Susan Calvin virou-se vivamente para ele e a expressão dolorida de seus olhos transformou-se subitamente num fulgor chamejante.

      – Por que haveria de ouvi-lo? Que sabe você, afinal, a respeito disso, seu... seu aparelho? Para você, não passo de um espécime... de um inseto interessante, com uma mente peculiar, dissecada para exame. Sou um maravilhoso exemplo de frustração, não acha? Quase tão bom quanto os dois livros. Sua voz, saindo em soluços angustiados, terminou por engasgar-se totalmente.

      O robô encolheu-se diante da explosão. Meneou a cabeça, com ar de súplica.

      – Ouça-me, por favor. Eu poderia ajudar, se a senhora permitisse...

      – Como? – quis saber Susan Calvin, enrugando o lábio com ar de desprezo. – Dando-me bons conselhos?

      – Não. Não se trata disso. Mas eu sei o que as outras pessoas pensam... Milton

Ashe, por exemplo... Seguiu-se um prolongado silêncio. Susan Calvin baixou os olhos.

      – Não quero saber o que ele pensa – declarou, engasgada. – Cale-se.

      – Creio que a senhora gostaria de saber o que ele pensa.

      A cabeça de Susan permaneceu curvada, mas o ritmo de sua respiração se acelerou.

      – Está dizendo tolices – sussurrou ela.

      – Por que haveria de fazê-la? Estou tentando ajudar. Os pensamentos de Milton Ashe a seu respeito... Herbie fez uma pausa. Então, a psicóloga ergueu a cabeça.

      – Bem?

      – Ele a ama – declarou tranqüilamente o robô.

      A Dra. Calvin permaneceu calada durante mais de um minuto, limitando-se a fitar o vácuo. Então, exclamou: – Você está enganado! Deve estar. Por que haveria ele de me amar?

      – Mas ama. E impossível esconder algo assim, pelo menos, de mim.

      – Mas... eu sou tão... tão...

      – Ele vê mais fundo, através da pele. Sabe admirar a inteligência alheia. Milton Ashe não é o tipo que se casa com uma cabeleira bonita e um par de olhos azuis.

      Susan piscou rapidamente e esperou um pouco antes de falar. Mesmo assim, quando o fez, sua voz tremia:

      – Apesar disso, tenho certeza de que ele nunca demonstrou...

      – A senhora já lhe deu alguma oportunidade?

      – Como poderia dar. Nunca imaginei que...

      – Exatamente!

      A psicóloga refletiu durante algum tempo e, de repente, ergueu os olhos.

      – Há cerca de seis meses, uma moça veio visitá-lo aqui na fábrica. Era bonita, creio, loura e esbelta. E, naturalmente, mal sabia somar dois e dois. Ele passou o dia inteiro estufando o peito e tentando explicar como se fabrica um robô.

A expressão dura voltou-lhe ao rosto e à voz.

      – Não que ela conseguisse entender! Quem era ela?

      Herbie respondeu sem hesitação:

      – Conheço a pessoa de quem a senhora está falando. É prima de Milton Ashe e

asseguro-lhe que não há interesse romântico entre eles. Susan Calvin pôs-se de pé com uma vivacidade quase juvenil.

      – Ora, não é estranho? Era exatamente isso que eu costumava dizer com meus botões, embora jamais tenha realmente acreditado na hipótese. Então, deve ser verdade! Aproximou-se de Herbie, tomando a mão fria do robô entre as suas.

      – Muito obrigada, Herbie – disse, num sussurro urgente e rouco. - – Não conte a ninguém. Será um segredo só nosso... Muito obrigada, outra vez.

      Com estas palavras, depois de apertar convulsivamente a mão fria de Herbie, saiu da sala. Herbie voltou à leitura da novela de ficção, mas não havia quem fosse capaz de ler seus pensamentos.

      Milton Ashe espreguiçou-se lentamente, com um grunhido, fazendo estalar as juntas do corpo. Depois, olhou raivosamente para o Dr. Peter Bogert.

      – Ora – declarou. – Há uma semana que estou trabalhando no caso, praticamente sem dormir. Por quanto tempo ainda terei de continuar assim? Pensei que você tivesse dito que a solução era o bombardeio positrônico na Câmara de Vácuo D.

      Bogert bocejou delicadamente e examinou com grande interesse suas unhas bem cuidadas.

      – E é. Estou no caminho certo.

      – Eu sei o que isso significa, dito por um matemático. Quanto falta para o fim?

      – Depende.

      – De quê? – quis saber Ashe, deixando-se cair numa poltrona e esticando as pernas compridas.

      – De Lanning. O velho discorda de mim – respondeu Bogert, suspirando. – Um pouco antiquado – eis o problema com ele. Afirma que a solução é uma questão de mecânica matriz. Na verdade, este nosso problema requer recursos matemáticos mais profundos. Mas ele é muito teimoso.

      Ashe murmurou, sonolento:

      – Por que não perguntam a Herbie e resolvem tudo de uma vez por todas?

      – Perguntar ao robô? – exclamou Bogert, erguendo as sobrancelhas.

      – Por que não? A velhinha não lhes disse?

      – Refere-se à Dra. Calvin?

      – Sim. A Susie. Ela afirma que o robô é um gênio matemático. Sabe tudo, e mais um pouco, de quebra. Resolve de cabeça integrais tríplices e come análise tensorial na sobremesa.

      O matemático perguntou com ar de dúvida:

      – Está falando sério?

      – Juro por Deus! A dificuldade é que o imbecil não gosta de matemática. Prefere novelas românticas. Palavra de honra! Você deveria ver as baboseiras que Susie lhe dá para ler: “Paixão Purpúrea” e “Amor no Espaço”!

      – A Dra. Calvin nada nos disse a respeito.

      – Bem, ela ainda não acabou de estudar o robô. E você sabe como ela é: gosta de resolver tudo por completo, antes de revelar o grande segredo.

      – Mas contou a você.

      – Bem, não sei como, começamos a conversar muito. Eu a tenho visto freqüentemente, nestes últimos dias. Abriu repentinamente os olhos, franzindo a testa.

      – Éh, Bogie, já reparou algo estranho nela, ultimamente?

Bogert exibiu um sorriso maldoso.

      – Está usando batom, se é a isso que você se refere.

      – Bem, é isso mesmo. Batom, além de base, pó-de-arroz e sombra nos olhos. Vale a pena ver! Mas não se trata apenas disso, embora eu não saiba definir com exatidão. E o modo como ela fala, como se estivesse feliz, ou algo semelhante.

      Refletiu um pouco e, depois, sacudiu os ombros. O outro assumiu uma expressão maliciosa que, para um cientista com mais de cinqüenta anos, não foi das piores.

– Talvez esteja apaixonada – comentou.

Ashe tornou a fechar os olhos.

      – Você está maluco, Bogie. Vá conversar com Herbie. Prefiro ficar aqui e dormir um pouco.

      – Está bem! Mas não me agrada muito pedir a um robô que me ensine a trabalhar, e não acredito que ele seja capaz de fazê-lo! A resposta foi um ressonar suave. Herbie escutava atentamente, enquanto Peter Bogert, com as mãos nos bolsos, falava com estudada indiferença.

      – Portanto, eis aí a questão. Disseram-me que você entende do assunto e eu estou indagando, mais por curiosidade do que por qualquer outro motivo. Minha linha de raciocínio, como já expliquei, envolve alguns pontos duvidosos. Sou obrigado a confessar que o Dr. Lanning se recusa a aceitá-los, de modo que o quadro geral ainda está um tanto incompleto.

O robô não respondeu e Bogert insistiu :

– Então?

      – Não vejo erro algum – replicou Herbie, estudando os cálculos que lhe foram apresentados.

      – Suponho que não conseguirá ir além disso?

      – Não ousaria tentar. Você é melhor matemático do que eu e... bem... não me agradaria arriscar. O sorriso de Bogert exprimiu um toque de complacência.

      – Pensei que o caso seria exatamente este. O assunto é muito profundo. Vamos esquecê-la. Amarrotou os papéis, atirando-os no lixo. Virou-se para sair, mas mudou de idéia.

      – Por falar nisso...

      O robô aguardou, silencioso. Bogert parecia hesitar.

      – Há algo... isto é... talvez você possa... – interrompeu-se.

      Herbie disse tranqüilamente:

      – Seus pensamentos estão confusos, mas não há dúvida de que giram em torno do Dr. Lanning. E bobagem hesitar, pois, logo que você se acalmar, poderei saber o que deseja perguntar.

      A mão do matemático alisou o cabelo num gesto habitual.

      – Lanning está beirando os setenta – declarou, como se isso fosse o bastante para explicar tudo.

      – Eu sei.

      – E é diretor da fábrica há quase trinta anos.

Herbie meneou a cabeça, confirmando.

      – Bem – disse Bogert, em tom meloso – você sabe se ele... hummm... está pensando em aposentar-se? Talvez por motivos de saúde, ou qualquer outro...

      – Sei – disse Herbie, lacônico.

      – Sabe, mesmo?

      – Certamente.

      – Então... bem... poderia dizer-me?

      – Já que pergunta, posso – respondeu o robô, com grande convicção. – Já pediu demissão.

      – O quê? - A exclamação foi um som explosivo, quase incoerente. O cientista curvou a cabeça para diante, dizendo: – Repita!

      – Ele já pediu demissão – foi a resposta tranqüila de Herbie. – Mas o pedido ainda não entrou em vigor. O Dr. Lanning está esperando apenas solucionar o problema... bem... o meu problema. Uma vez encerrado o assunto, ele estará pronto a entregar o cargo de diretor ao seu sucessor.

Bogert exalou o ar num som sibilante.

– Quem é o sucessor? Quem é?

      Encontrava-se bem próximo a Herbie, com o olhar fixo nas células fotoelétricas que serviam de olhos ao robô. A resposta foi lenta:

– O próximo diretor será você.

Bogert relaxou-se, com um sorriso estranho.

      – É ótimo saber disso. Há muito que venho esperando pela notícia. Obrigado, Herbie.

      Naquela noite, Peter Bogert não se afastou de sua mesa de trabalho antes das cinco da madrugada. E estava de volta às nove da manhã. A prateleira situada acima da mesa se encontrava vazia; os livros de consulta e tabelas que ela contivera estavam espalhados diante de Bogert. O monte de folhas contendo cálculos aumentava rapidamente e os papéis de rascunho amarrotados e jogados ao chão formavam uma grande pilha de lixo.

      Exatamente ao meio-dia, Bogert terminou a última página, esfregou os olhos vermelhos, bocejou e sacudiu os ombros. 

      – Está piorando cada vez mais. Que diabo!

      Virou-se ao ouvir o barulho da porta e fez um aceno de cabeça para cumprimentar Alfred Lanning, que entrou estalando as juntas dos dedos umas nas outras. O diretor examinou a sala em desordem e franziu a testa.

      – Alguma pista nova? – indagou.

      – Não – foi a resposta, em tom de desafio. – Que há de errado com a solução que lhe forneci antes?

      Lanning não se deu ao trabalho de responder, limitando-se a lançar um rápido olhar à ultima folha dos cálculos de Bogert. Acendeu um charuto, falando por trás de uma baforada de fumaça:

      – Calvin lhe contou a respeito do robô? E um gênio matemático. Realmente

notável. O outro grunhiu audivelmente.

      – Foi o que ouvi dizer. Mas acho melhor Calvin tratar de robopsicologia. Testei Herbie em matemática e ele mal é capaz de fazer um cálculo.

      – Não foi o que Calvin declarou.

      – Ela está maluca.

      – E não foi o que eu verifiquei – disse o diretor, em tom ameaçador.

      – Você! – exclamou Bogert, irado. – De que está falando?

      – Examinei Herbie esta manhã e sei que ele é capaz de coisas das quais você jamais ouviu falar.

      – E mesmo?

      – Parece duvidar!

      Lanning tirou um papel do bolso do colete, desdobrando-o.

      – A caligrafia não é minha, é?

Bogert estudou as anotações angulosas que cobriam o papel.

      – Herbie fez isso?

      – Exatamente! E você pode notar que ele esteve calculando a sua Integral de Tempo nº 22 – respondeu Lanning, apontando com uma unha amarelada para a última  equação. – Chegou à mesma conclusão que eu em um quarto do tempo que levei. Você não tinha direito de ignorar o efeito retardador no bombardeio positrônico.

      – Não o ignorei. Em nome de Deus, Lanning, meta na cabeça que ele seria cancelado com...

      – Ah, claro! Você já explicou. Usou a equação de translação de Mitchell, não foi? Bem... ela não se aplica ao caso.

      – Por que não?

      – Em primeiro lugar, porque você usou hiperimaginários.

      – E o que tem isso?

      – A Equação de Mitchell não os comporta, quando...

      – Está maluco? Se reler a obra original de Mitchell, no primeiro volume de Transação do...

      – Não preciso reler coisa alguma. Já lhe disse, desde o princípio, que essa linha

de raciocínio não me agrada. Herbie confirma minha opinião.

      – Muito bem! – berrou Bogert. – Nesse caso, deixe que aquele mecanismo de relógio resolva todo o problema para você. Para que se preocupar com ninharias?

      – A questão é exatamente essa: Herbie não pode resolver o problema. E se ele não pode, nós também não podemos, pelo menos, não sozinhos. Submeterei o assunto à apreciação da Junta Nacional. Está acima de nossa capacidade.

      Bogert deu um pulo para trás, derrubando a cadeira e erguendo-se com o rosto contorcido de fúria.

      – Não pode fazer isso!

      Lanning ficou rubro de raiva.

      – Está querendo dizer-me o que posso ou não fazer?

      – Exatamente – foi a resposta de Bogert, com os dentes trincados. – Já resolvi o problema e você não pode tirá-lo de minhas mãos, entendeu? Não pense que eu não percebo claramente suas intenções, seu fóssil dissecado! Você seria capaz de cortar o próprio pescoço para não permitir que eu recebesse o crédito por resolver o problema da telepatia robótica!

      – Você não passa de um maldito idiota, Bogert. Vou suspendê-lo por insubordinação... – ameaçou Lanning, com os lábios trêmulos de indignação.

      – Jamais fará semelhante coisa, Lanning. Com um robô capaz de ler nossos pensamentos, não há segredos aqui dentro. Portanto, não se esqueça de que sei a respeito de seu pedido de demissão.

      A cinza do charuto de Lanning caiu no chão, logo seguida pelo próprio charuto.

– O... que...

Bogert soltou uma risadinha maldosa.

      – E fica bem entendido que eu sou o novo diretor. Tenho perfeita consciência disso, não se iluda. Com os diabos, Lanning, eu passarei a dar ordens aqui dentro, ou haverá a pior encrenca de todos os tempos!

Lanning recobrou a fala, transformando-a num rugido:

      – Está suspenso, ouviu? Está dispensado do serviço! Está perdido, entendeu? O sorriso de Bogert se alargou ainda mais.

      – Ora, de que adianta isto? Não conseguirá coisa alguma. Todos os trunfos estão em minhas mãos. Sei que você pediu demissão: Herbie me contou... e foi você quem contou a ele.

      Lanning controlou-se com esforço. Parecia muito envelhecido; os olhos cansados brilhavam em um rosto que perdera toda a coloração avermelhada, deixando apenas a palidez da velhice.

      – Quero falar com Herbie. Ele não pode ter dito uma coisa como essa. Você está

jogando alto, Bogert, mas vou desmascarar o seu blefe. Venha comigo. Bogert sacudiu os ombros.

      – Falar com Herbie? Muito bem, ótimo!

      Foi também ao meio-dia que Milton Ashe ergueu os olhos do esboço que desenhara e disse:

      – Dá para ter uma idéia? Não sou muito bom em desenho, mas a aparência geral é esta. E uma casinha linda e posso comprá-la bem barato. Susan Calvin encarava-o com olhar lânguido.

      – E mesmo linda... – suspirou ela. – Sempre pensei que gostaria de... Interrompeu-se.

      – Naturalmente, terei de esperar pelas férias – declarou Milton Ashe, jogando o lápis para o lado. – Faltam apenas duas semanas, mas o caso de Herbie deixou tudo de pernas para o ar. - Em seguida, fitando as unhas, acrescentou: – Além disso, há outra coisa, mas é segredo.

      – Então, não me conte.

      – Ora, prefiro contar. Estou louco para dizer a alguém... e você é a melhor... bem... a melhor confidente que eu poderia encontrar aqui – disse ele, um tanto embaraçado, sorrindo timidamente.

      O coração de Susan Calvin estava aos saltos e ela não teve coragem de falar. Milton Ashe mudou de posição na cadeira e sua voz assumiu o tom de um sussurro confidencial.

      – Para falar a verdade, a casa não é só para mim. Vou me casar!

Então, ergueu-se de um salto.

      – O que há?

      – Nada! – respondeu Susan Calvin, sentindo a horrível sensação de tonteira passar, mas tendo dificuldade para falar. – Casar-se? Quer dizer...

      – Ora, é claro! Não acha que já é tempo? Lembra-se daquela pequena que esteve aqui no verão passado? E ela!... Mas... você está passando mal? Parece...

      – Dor de cabeça! – replicou Susan Calvin, afastando-o com um gesto débil. – Tenho... tenho sofrido muitas, ultimamente... Quero... congratular-me com você, naturalmente. Fico muito feliz...

      A maquilagem, aplicada desajeitadamente, formava duas feias manchas vermelhas em seu rosto branco como gesso. As coisas começaram a rodar novamente.

      – Desculpe-me... por favor...

      Com um último murmúrio incoerente, encaminhou-se cegamente para a porta e saiu, tropeçando. Tudo acontecera com a súbita catástrofe de um sonho, com todo o horror irreal de um pesadelo.

      Mas como seria possível? Herbie dissera...

E Herbie sabia! Lia pensamentos!

      Quando deu por si, Susan Calvin estava pesadamente apoiada no portal, fitando o rosto metálico de Herbie. Devia ter subido dois andares, mas nem mesmo se dera conta do fato. A distância fora coberta num breve instante, como num sonho. Como num sonho! Ainda assim, os olhos fixos de Herbie continuavam a fitar os dela; sua cor vermelha parecia transformar-se em dois globos brilhantes, saídos de um pesadelo. Herbie falava. Susan sentia o vidro frio da porta de encontro a seus lábios. Engoliu em seco e estremeceu, percebendo vagamente os detalhes do ambiente. Herbie continuava a falar. Parecia agitado, magoado, temeroso, suplicante. As palavras começaram a fazer sentido aos ouvidos de Susan.

      – E um sonho – dizia o robô. – Não deve acreditar nele. Em breve, despertará e achará graça. Ele a ama... estou-lhe dizendo. Ele a ama, ama! Mas não aqui! Não agora! Isto é uma ilusão!

      Susan Calvin balançou a cabeça, murmurando: 

      - Sim! Sim! - Agarrou-se ao braço metálico de Herbie, repetindo sem cessar: – Não é verdade, é? Não é verdade, é?

      Jamais soube como recobrou os sentidos, mas foi como passar de um mundo enevoado e irreal para a luz brilhante do sol. Empurrou o braço de aço do robô com força. Abrindo muito os olhos, perguntou em voz áspera, que logo se tornou um grito:

      – Que está querendo fazer? Que está querendo fazer?

Herbie recuou.

      – Desejo ajudar.

      A psicóloga ficou estarrecida.

      – Ajudar? Dizendo que tudo não passa de um sonho? Tentando levar-me à esquizofrenia? - Sentiu-se dominada por uma tensão histérica: – Não é sonho! Tornara que fosse!

      De repente, prendeu a respiração.

– Espere! Ora... ora, compreendo. Por Deus! E tão óbvio...

Herbie parecia horrorizado:

      – Fui obrigado!

      – E eu acreditei em você! Nunca pensei...

      Vozes acaloradas aproximando-se da porta interromperam seus pensamentos e Susan voltou-se para o outro lado, cerrando os punhos espasmódicamente. Quando Bogert e Lanning entraram, ela se encontrava junto à janela mais afastada, olhando para fora.

      Nenhum dos dois homens lhe deu a menor atenção. Aproximaram-se simultaneamente de Herbie; Lanning, irado e impaciente; Bogert, friamente sardônico. O diretor foi o primeiro a falar : 

      – Agora, Herbie, ouça-me!

      O robô focalizou os olhos no idoso diretor:

      – Sim, Dr. Lanning.

      – Conversou com o Dr. Bogert a meu respeito?

      – Não, senhor. A resposta foi lenta. O sorriso de Bogert desapareceu repentinamente.

      – O que é isso? – perguntou ele, empurrando seu superior para um lado e postando-se diante do robô. – Repita o que me disse ontem!

      – Eu disse que...

      Herbie interrompeu-se. Seu diafragma metálico vibrava, emitindo sons discordantes.

      – Não disse que ele pedira demissão? – berrou Bogert. – Responda! Bogert ergueu freneticamente o punho, mas Lanning empurrou-o para o lado.

      – Quer forçá-lo a mentir?

      – Você ouviu, Lanning: ele começou a responder e parou. Saia da minha frente. Vou obrigá-lo a dizer a verdade, entendeu?

      – Eu o interrogarei! – retrucou Lanning, dirigindo-se ao robô. – Muito bem, Herbie, acalme-se. Eu pedi demissão? Herbie permaneceu calado, com os olhos fixos. Lanning insistiu, ansioso :

      – Eu pedi demissão?

Houve um leve sinal de meneio negativo de cabeça por parte do robô. Mas, embora os dois homens esperassem uma resposta, esta não veio. Os dois cientistas se entreolharam, com visível hostilidade.

      – Que diabo! – explodiu Bogert. – Será que o robô ficou mudo? Não consegue falar, monstro?

      – Posso falar – foi a resposta imediata.

      – Então, responda: você não me disse que Lanning pedira demissão? Ele não pediu? Mais uma vez, fez-se um silêncio total. Subitamente, no outro lado da sala, o riso agudo e quase histérico de Susan Calvin encheu o ambiente. Os dois matemáticos tiveram um sobressalto. Bogert franziu a testa.

      – Você está aqui? Qual é a graça?

– Nenhuma – replicou a Dra. Calvin, cuja voz ainda não voltara inteiramente ao normal. – Pelo que vejo, não fui a única a ser apanhada. É mesmo uma ironia que três dos maiores especialistas em robôs de todo o mundo tenham sido apanhados na cilada mais elementar, não acham? - Então, levando a mão à testa pálida, acrescentou num sussurro: – Mas não tem graça alguma!

Os dois homens tornaram a encarar-se; desta feita, com evidente espanto.

      – De que cilada está falando? – quis saber Lanning, empertigando-se. – Há algo errado com Herbie?

      – Não – respondeu Susan Calvin, aproximando-se lentamente. – Não há nada de errado com Herbie... mas conosco. Virou-se de repente, gritando para o robô : – Afaste-se de mim! Vá para o fundo da sala e fique onde eu não possa vê-lo!   

      Herbie encolheu-se ante o olhar furioso da mulher e obedeceu rapidamente. A voz de Lanning tinha um timbre hostil: 

      – O que significa tudo isto, Dra. Calvin?

      Ela se voltou para o diretor, dizendo com pesado sarcasmo:

      – Tenho certeza de que o senhor conhece a Primeira Lei da robótica. Os dois homens menearam a cabeça, assentindo ao mesmo tempo.

      – Certamente – declarou Bogert, irritado. – Um robô não pode fazer mal a um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.

      – Muito bem recitado – rosnou Susan Calvin. – Mas que espécie de mal?

      – Ora... qualquer espécie.

      – Exatamente! Qualquer espécie! E quanto a mágoas? E quanto ao orgulho ferido? E quanto a esperanças perdidas? Não são males? Lanning franziu a testa.

      – O que sabe um robô a respeito de...

      Mas interrompeu-se, engolindo o resto da frase.

      – Descobriu, não foi? Esse robô lê pensamentos. Supõe que ele nada sabe a respeito de sofrimentos mentais? Não acha que, se lhe fizerem uma pergunta, ele dará exatamente a resposta que se deseja ouvir? Qualquer outra resposta nos magoaria e Herbie tem plena consciência disso!

      – Deus do céu! – murmurou Bogert.

      A psicóloga lançou-lhe um olhar irônico.

      – Deduzo que você lhe tenha perguntado se Lanning pedira demissão. Desejava ouvir uma resposta positiva e Herbie respondeu que sim.

      – Suponho que foi por esse motivo que ele se recusou a responder, há pouco – comentou Lanning. – Qualquer que fosse a resposta, um de nós dois ficaria magoado.

      Houve uma breve pausa, enquanto os três cientistas fitaram o robô, que estava sentado na cadeira junto à estante, com a cabeça apoiada em uma das mãos. Susan Calvin baixou os olhos para o chão, dizendo:

      – Herbie sabia tudo isso. Aquele... aquele demônio sabe tudo, inclusive o que houve de errado em sua montagem. Os olhos da psicóloga estavam sombrios e pensativos. Lanning ergueu a cabeça.

      – Está enganada, Dra. Calvin. Ele não sabe qual foi o erro. Eu mesmo lhe perguntei.

      – Que quer dizer? – exclamou Susan, de repente.

      – Esquece-se de que não desejava que Herbie lhe fornecesse a solução do problema. Seu orgulho ficaria ferido, se uma máquina fosse capaz de fazer o que o senhor não pode.

      Virando-se para Bogert, acrescentou: 

      – Você também perguntou?

      – De certo modo – respondeu Bogert com um pigarro, corando.

      – Ele me disse que conhecia pouco matemática.

      Lanning riu baixinho e a psicóloga exibiu um sorriso cáustico.

      – Eu perguntarei! – declarou ela. – A solução não ferirá meu orgulho. Erguendo a voz, ordenou em tom frio e imperativo:

      – Venha cá!

      Herbie se ergueu e aproximou-se, hesitante.

      – Suponho que saiba exatamente em que ponto da montagem foi introduzido um fator estranho, ou foi esquecido um fator essencial, não é? – indagou ela.

      – Sim – replicou Herbie, com voz quase inaudível.

      – Espere! – interrompeu Bogert, raivoso. – Não é necessariamente a verdade. Você apenas quer escutar tal resposta.

      – Não seja idiota – retrucou Susan Calvin. – E óbvio que ele sabe tanto quanto você e Lanning juntos, pois é capaz de ler pensamentos. Dê-lhe uma oportunidade.

      O matemático recuou e Susan continuou:

      – Muito bem, então, Herbie: responda! Estamos esperando. – Virando-se para o lado, acrescentou: – Acho melhor pegarem lápis e papel, senhores. Porém Herbie permaneceu calado.

      A voz da psicóloga assumiu um tom de triunfo:

      – Por que não responde, Herbie?

      O robô respondeu num impulso:

      – Não posso. A senhora sabe que não posso! Os Drs. Lanning e Bogert não querem.

      – Eles querem a solução.

      – Mas não fornecida por mim.

      Lanning interrompeu, falando devagar e com clareza:

      – Não seja tolo, Herbie. Queremos que você nos diga.

      Bogert confirmou com um breve movimento de cabeça. A voz de Herbie se ergueu, em desespero:

      – De que adianta dizerem isso? Acham que sou incapaz de ler o que se passa em suas mentes? No fundo, não querem que eu responda. Sou uma máquina, a quem deram uma imitação de vida em razão do sistema positrônico instalado em meu cérebro, que é produzido pelo homem. Não podem ser sobrepujados por mim sem se sentirem magoados. Trata-se de algo que está inculcado no fundo de suas mentes e não pode ser apagado. Não posso dar a solução.

      – Sairemos da sala – disse o Dr. Lanning. – Diga tudo à Dra. Calvin.

      – Não faria diferença! – protestou Herbie. – De qualquer forma, vocês saberiam que a solução foi dada por mim.

      Susan Calvin retomou a palavra:

      – Compreenda, Herbie: a despeito de tudo, os Drs.

Lanning e Bogert desejam a solução.

      – Por seus próprios esforços! – insistiu Herbie.

      – Mas desejam-na... e o fato de você possuí-la e se recusar a fornecê-la não pode deixar de magoá-los. Você compreende, não é?

      – Sim! Sim!

      – Por outro lado, se você revelar a solução, eles também ficarão magoados.

      – Sim! Sim!

      Herbie recuava lentamente e Susan Calvin avançava sobre ele, passo a passo. Os dois homens observavam, petrificados de espanto. A psicóloga continuava a falar:

      – Você não pode revelar, porque os magoará, e não deve magoá-los. Mas se não contar, também os magoará, de modo que deve contar. Se contar, magoará, e não deve magoar; portanto, não deve contar. Mas se não contar, magoará, e não deve magoar; portanto, deve contar. Se contar, magoará, e não deve magoar; portanto, não deve contar...

      Herbie recuara até ficar encostado à parede. Deixou-se cair de joelhos.

      – Pare! – berrou. – Feche sua mente! Está cheia de sofrimento, de frustração e de ódio! Estou-lhe dizendo que não fiz de propósito! Tentei ajudar! Disse-lhe o que a senhora desejava ouvir! Fui obrigado a dizer!

      A psicóloga não lhe deu atenção:

      – Deve contar, mas se o fizer, magoará, de modo que não deve contar; mas se não contar magoará, de modo que deve contar...

      Herbie soltou um grito desesperado...

      Foi como um agudo de clarineta, muito amplificado, cada vez mais agudo, até que

se perdeu numa nota cheia do terror de uma alma perdida, enchendo a sala de angústia e desespero. Quando o som morreu por completo, Herbie deixou-se cair num monte imóvel de metal. Bogert, muito pálido, exclamou:

      – Ele morreu!

      – Não! – replicou Susan Calvin, explodindo numa gargalhada de arrepiar os cabelos. – Não está morto... está simplesmente louco! Confrontei-o com o dilema insolúvel e ele enlouqueceu. Agora, podem mandá-lo para o ferro-velho, porque jamais voltará a falar.

      Lanning ajoelhou-se junto ao monte de ferragens que fora Herbie. Seus dedos tocaram o metal frio e inerte; o velho matemático estremeceu.

      – Fez isso de propósito! – exclamou, erguendo-se para encarar Susan.

      – E daí? Agora, está feito – replicou ela, acrescentando num súbito acesso de amargura: – Ele mereceu.  O diretor segurou o pulso de Bogert, que estava imóvel, paralisado.

– Qual é a diferença? Vamos, Peter – suspirou. – De qualquer modo, um robô desse tipo seria inútil. – Com os olhos envelhecidos cheios de cansaço, repetiu: – Vamos, Peter!

Somente minutos após a saída dos dois cientistas, a Dra. Susan Calvin recuperou parte de seu equilíbrio mental. Vagarosamente, seu olhar voltou a fixar o morto-vivo Herbie. A expressão dura e tensa retornou às suas feições. Assim ficou por muito tempo, enquanto a sensação de triunfo se esvaía, dando lugar a uma implacável frustração – e todos os seus pensamentos turbulentos foram resumidos na única palavra, infinitamente amargurada, que lhe escapou dos lábios:

      – Mentiroso!

SATISFAÇÃO GARANTIDA

       Tony era alto, moreno e bonito, com um ar incrivelmente nobre em todas as linhas de sua inalterável expressão, e Claire Belmont observou-o pela porta entreaberta com um misto de horror e espanto.

       — Não posso, Larry. Não posso ficar com ele em casa. — Procurou febrilmente, na mente paralisada, um jeito incisivo de expressar-se, que fizesse sentido e definisse tudo. Mas só conseguiu repetir:

       — Não posso!

       Larry Belmont fitou rigidamente a mulher, com aquele brilho de impaciência no olhar que Claire detestava, pois nele via refletida a sua incompetência.

       — Estamos comprometidos, Claire, e você não pode desistir agora. A companhia vai me enviar a Washington por causa disso, e o resultado será provavelmente uma promoção. É perfeitamente seguro, e você sabe. Qual a objeção?

       Ela franziu as sobrancelhas, sem saber o que dizer.

       — Ele me dá arrepios. Não o suporto.

       — É quase tão humano como você ou eu, de modo que deixe de tolices. Vamos, venha daí.

       Empurrou-a pelas costas e ela encontrou-se, trêmula, no seu próprio living. Ele a fitava polidamente, como se estudasse a sua anfitriã das próximas três semanas. A Dra. Susan Calvin estava também presente, sentada muito rígida, lábios comprimidos, abstraída. Tinha aquele ar frio e distante de alguém que, tendo trabalhado durante tanto tempo com máquinas, trazia um pouco de seu metal no sangue.

       — Olá — disse Claire, numa saudação vaga, geral.

       Mas Larry salvou a situação dizendo alegremente:

       — Claire, quero apresentar-lhe Tony, um camarada fabuloso. Tony, esta é a minha mulher, Claire. — Larry pousou cordialmente a mão no ombro de Tony, mas este permaneceu insensível e inexpressivo sob aquela pressão.

       — Como está, Sra. Belmont? — falou.

       Claire sobressaltou-se ao ouvir aquela voz. Era profunda, melodiosa, macia como seus cabelos ou a cutis do rosto.

       Sem se poder conter, exclamou:

       — Meu Deus, você fala?

       — Por que não? Esperava o contrário?

       Claire respondeu com um débil sorriso. Não sabia o que havia esperado. Desviou o olhar e depois, devagarinho, observou-o de esguelha. Tinha cabelos negros e macios. Pareciam de plástico polido — ou seriam compostos de fios separados? E a pele macia, morena, das mãos e do rosto se prolongaria para além de suas roupas de corte formal?

       Perdida naquele arrepiante mistério precisou fazer um esforço para prestar atenção à voz fria, sem entonações, da Dra. Calvin.

       — Sra. Belmont, espero que compreenda a importância desta experiência. Seu marido disse que já lhe deu algumas informações. Gostaria de ampliá-las, como psicóloga-chefe da U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A.

       Prosseguindo, a Dra. Calvin afirmou:

       — Tony é um robô. Sua designação nos fichários da companhia é TN-3, mas responderá ao nome de Tony. Não é um monstro mecânico, nem uma simples máquina de calcular do tipo criado durante a II Guerra Mundial, há cinqüenta anos. Possui um cérebro artificial quase tão complicado como o nosso. É um imenso painel telefônico em escala atômica, de maneira que bilhões de "ligações" podem ser concentradas num instrumento que se aloja no crânio.

       Em tom de explicação, ela continuou:

       — Tais cérebros são manufaturados especificamente para cada robô. Contêm uma série de conexões pré-calculadas, de maneira que cada robô conhece, para começar, a língua inglesa, e o bastante de tudo o mais para realizar seu trabalho. Até agora, a U.S. Robôs limitou sua manufatura a modelos industriais, a serem usados em locais onde o trabalho humano seja difícil — minas profundas, ou tarefas submarinas, por exemplo. Mas desejamos invadir a cidade e o lar. Para isso precisamos que o homem e a mulher comuns aceitem sem medo os robôs. A senhora compreende que não há nada a temer?

       — Não há mesmo, Claire — interveio Larry, muito sério. — Dou-lhe minha palavra. É impossível que ele faça algum mal. Sabe que eu não o deixaria aqui se não fosse assim.

       Claire lançou um rápido olhar para Tony e baixou a voz.

       — E se eu o irritar?

       — Não precisa falar baixo — disse a Dra. Calvin tranqüilamente. — Ele não pode se zangar com você, meu bem. Já disse que as conexões de seu cérebro são predeterminadas. A mais importante de todas é a que chamamos de Primeira Lei da Robótica e reduz-se a isto: "Um robô não pode ferir um ser humano, ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal". Todos os robôs são construídos assim. Nenhum pode ser forçado a prejudicar um ser humano. Veja então que precisamos de você e de Tony como teste preliminar para nossa orientação, enquanto seu marido se encontra em Washington para providenciar os testes legais supervisionados pelo governo.

       — Quer dizer que isto não é legal? Larry pigarreou.

       — Ainda não, mas está tudo em ordem. Ele não sairá de casa e você não deve permitir que alguém o veja, é só... Claire, eu ficaria com você, mas sei demasiado a respeito de robôs. Precisamos de alguém totalmente inexperiente, para que as condições do teste sejam rigorosas. É necessário.

       — Está bem — murmurou Claire. E de repente: — Mas que é que ele faz?

       — Trabalho doméstico — disse a Dra. Calvin secamente.

       Levantou-se para sair e foi Larry quem a acompanhou até a porta. Claire deixou-se ficar onde estava, desanimada. Surpreendeu sua imagem no espelho que encimava a lareira e afastou rapidamente a vista. Estava cansada de seu rosto pequeno, sem graça, do penteado apagado, sem imaginação. Surpreendeu então o olhar de Tony fixo nela e quase sorriu, antes de lembrar-se...

       Ele não passava de uma máquina.

       A caminho do aeroporto, Larry Belmont avistou Gladys Claffern. Era o tipo de mulher que parecia destinada a ser vista de relance... Manufaturada com perfeição, vestida com estudado bom gosto, brilhante demais para se poder ficar olhando para ela.

       O leve sorriso que a precedera e o perfume que deixou no seu caminho eram um convite a acompanhá-la. Larry perdeu o ímpeto no andar, levou a mão ao chapéu e depois apressou o passo.

       Como sempre, sentiu-se vagamente irritado. Se Claire entrasse na turma de Claffern as coisas seriam bem melhores. Mas era inútil.

       Claire! Nas raras vezes em que se vira diante de Gladys a tolinha ficara muda. Larry não tinha ilusões. O teste de Tony era a sua grande chance, e repousava nas mãos de Claire. Estaria muito mais seguro nas de alguém como Gladys Claffern.

       Claire despertou no segundo dia ao som de uma leve batida na porta do quarto. Sua mente ficou em tumulto, depois imobilizou-se. Evitara Tony no primeiro dia, sorrindo de leve quando o encontrava e passando rápido com um murmúrio de desculpas.

       — É você, Tony?

       — Sim, Sra. Belmont. Posso entrar?

       Devia ter respondido afirmativamente, porque ele entrou sem um ruído. A vista e o olfato de Claire registraram simultaneamente a bandeja que ele trazia.

       — Café? — perguntou.

       — Sim, senhora.

       Não ousaria recusar, de modo que sentou-se lentamente na cama e recebeu a bandeja: ovos pochês, torrada com manteiga e café.

       — Trouxe o açúcar e o creme separado — disse Tony. — Espero com o tempo conhecer suas preferências nisto e em outras coisas.

       Ela não respondeu.

       Tony, muito teso, porém maleável como uma régua de metal, perguntou, após algum tempo:

       — Prefere tomar o café sozinha?

       — Sim... isto é, se não se importa.

       — Precisará de ajuda mais tarde para vestir-se?

       — Oh, não, meu Deus! — exclamou, agarrando desesperadamente os lençóis e quase provocando uma catástrofe com o café. E assim permaneceu, rígida, para deixar-se cair contra os travesseiros quando a porta se fechou e ele desapareceu.

       Tomou o desjejum sem saber como... Ele não passava de uma máquina, e se isso fosse mais evidente não seria tão assustador. Ou se mudasse de expressão. Mas limitava-se a ficar ali, pregado no mesmo lugar. Impossível dizer o que se passava por detrás daqueles olhos escuros e daquela epiderme macia, morena. A xícara de café bateu como castanholas quando ela a recolocou no pires.

       Percebeu então que esquecera de acrescentar o creme e o açúcar, e detestava café puro.

       Depois de vestir-se, foi direto do quarto à cozinha. Afinal, estava na sua casa, e não era exigente, mas gostava de ver a cozinha limpa. Ele devia ter aguardado suas ordens...

       Mas, ao entrar, encontrou a peça como se jamais tivesse sido usada.

       Parou, olhos arregalados, voltou-se e quase colidiu com Tony. Não pôde conter um gritinho.

       — Posso fazer alguma coisa? — perguntou ele.

       — Tony, você precisa fazer algum ruído quando caminha — disse ela, lutando contra a ira e o pânico.

       — Não suporto que me espione... Você não usou a cozinha?

       — Usei, Sra. Belmont.

       — Não parece.

       — Limpei tudo em seguida. Não é o que se faz em geral?

       Claire arregalou os olhos. Afinal, que poderia replicar? Abrindo o armário onde ficavam guardadas as panelas lançou um olhar rápido e distraído para o brilho metálico que continham e disse, voz trêmula:

       — Muito bem. Perfeitamente satisfatório.

       Se naquele momento ele tivesse sorrido, ou pelo menos erguido ligeiramente um canto da boca, ela o acharia simpático. Mas permaneceu qual um lord inglês em repouso, dizendo apenas:

       — Obrigado, Sra. Belmont. Quer ter a bondade de vir à sala?

       Ela obedeceu e notou imediatamente:

       — Esteve polindo os móveis?

       — Estão bem assim, Sra. Belmont?

       — Mas quando? Você não fez isso ontem.

       — À noite, naturalmente.

       — Esteve de luz acesa a noite inteira?

       — Oh, não é necessário. Tenho embutida uma fonte de raios ultravioletas. Enxergo em ultravioleta. E não preciso dormir, naturalmente.

       Mas precisava ser admirado, ela percebeu então. Precisava saber se estava agradando. Mas não conseguiu dar-lhe aquele prazer.

       Limitou-se a responder, mal-humorada:

       — Vocês acabarão com as empregadas domésticas.

       — Elas têm trabalho muito mais importante a fazer no mundo, se ficarem livres de tarefas mesquinhas. Afinal, máquinas como eu podem ser construídas, Sra. Belmont. Mas coisa alguma pode imitar a criatividade e a versatilidade de um cérebro humano como o seu.

       E embora o rosto nada manifestasse, a voz estava carregada de pasmo e admiração, de modo que Claire corou e murmurou:

       — Meu cérebro! Pode ficar com ele. Tony aproximou-se um pouco ao dizer:

       — Deve ser infeliz para dizer uma coisa dessas. Eu poderia fazer algo?

       Claire sentiu vontade de rir. Era uma situação ridícula. Ali estava um varredor de tapetes, lavador de pratos, polidor de móveis, faz-tudo recém saído da fábrica oferecendo seus serviços como confidente e consolador!

       Mas súbito, numa explosão de tristeza, falou:

       — O Sr. Belmont acha que eu não tenho cérebro, se é que lhe interessa... E suponho que eu não tenha mesmo. — Não podia chorar na frente dele. Sentia, por qualquer motivo, que precisava manter a honra da raça humana diante daquela simples criação.

       — Só ultimamente — acrescentou. — Corria tudo bem quando ele era estudante e estava começando na vida. Mas eu não posso ser mulher de um grande homem: e ele está se tornando muito importante. Quer que eu seja uma perfeita anfitriã e ingresse com ele na vida social, que seja como Gla... Gladys Claffern.

       Tinha o nariz vermelho e desviou o rosto.

       Mas Tony não a fitava. Seu olhar percorria a sala.

       — Eu poderia ajudá-la a dirigir a casa.

       — Não adianta — replicou, veemente. — Ela precisa de um toque que eu não lhe posso dar. Só sei torná-la confortável. Não sei transformá-la naquele tipo que fotografam para as revistas de decoração.

       — Deseja uma assim?

       — Que adianta desejar? Tony olhou-a com firmeza.

       — Eu poderia ajudar.

       — Conhece alguma coisa de decoração?

       — É algo que uma boa dona-de-casa deva saber?

       — Oh, sim.

       — Então eu possuo potencialidades para aprender. Quer me arranjar livros sobre o assunto?

       Algo teve início naquele momento.

       Claire, segurando o chapéu para protegê-lo das liberdades do vento, conseguira trazer dois grossos volumes sobre artes domésticas da biblioteca pública. Observou Tony abrir um deles e folheá-lo. Era a primeira vez que via seus dedos tocarem algo parecido com um trabalho fino.

       Como será que eles fazem isso? — pensou e, impulsivamente, pegou-lhe a mão e aproximou-a a fim de vê-la de perto. Tony não resistiu, e deixou-a ficar durante a inspeção.

       — É extraordinário. Até suas unhas parecem naturais — disse Claire.

       — É feito de propósito, naturalmente — respondeu Tony. E, em tom de conversa: — A pele é de plástico flexível e o esqueleto de uma liga metálica. Acha engraçado?

       — Oh, não — disse ela, corando. — Estou meio embaraçada por investigar, de certo modo, suas entranhas. Não é da minha conta. Você não faz perguntas a respeito das minhas.

       — Meu cérebro não inclui esse tipo de curiosidade. Só posso agir dentro de minhas limitações, compreende?

       Houve uma pausa e Claire sentiu um aperto no coração. Por que esquecia sempre que era uma máquina? Agora, ele mesmo tivera de lembrar-lhe. Estaria tão faminta de simpatia que aceitaria até um robô como seu igual... só porque ele se mostrava compreensivo?

       Notou que Tony continuava a folhear as páginas, quase a esmo, e sentiu um lampejo de superioridade.

       — Você não sabe ler, sabe?

       Tony fitou-a e replicou tranqüilo, sem rancor:

       — Estou lendo, Sra. Belmont.

       — Mas... — e apontou para o livro, num gesto vago.

       — Estou examinando as páginas. Meu senso de leitura é fotográfico.

       Já era noite e, quando Claire foi se deitar, Tony já estava bem adiantado no segundo volume, sentado no escuro. Ou o que parecia escuro para a limitada visão de Claire.

       Seu último pensamento, antes que a mente mergulhasse no sono, foi bastante estranho. Lembrou-se da mão dele, do seu contato. Era quente e macia como a de um ser humano.

       Eram muito hábeis os fabricantes, pensou, adormecendo suavemente.

       Durante vários dias foi constantemente à biblioteca. Tony sugeria as matérias a estudar, que rapidamente se subdividiam. Havia livros sobre combinações de cores, cosméticos, tapetes e moda, arte e história dos costumes.

       Voltando as páginas de cada livro, diante de seus olhos solenes, lia com a rapidez com que folheava, e parecia incapaz de esquecer.

       Antes de terminada a semana insistiu em cortar-lhe o cabelo, sugerindo um novo penteado, acertando a linha das sobrancelhas, modificando um pouco a tonalidade do pó e do batom.

       Ela estremecera, nervosa, durante meia hora, sob o toque delicado de seus dedos de plástico macio e depois olhara-se ao espelho.

       — Podemos fazer muito mais, principalmente no setor do vestuário — disse Tony. — Como é que se adquirem roupas, para começar?

       Ela não respondeu imediatamente. Só o fez depois de sorver a imagem da estranha refletida no espelho, assim como recordar toda a beleza do acontecido. Sem tirar os olhos da animadora figura, falou:

       — Sim, Tony, muito bom... para começar. Nada contou nas cartas que escrevia a Larry. Que

       ele visse por si mesmo. E algo em seu íntimo disse que ela não apreciaria apenas a surpresa. Seria uma espécie de vingança.

       Certa manhã, Tony disse:

       — Está na hora de começar a fazer compras e eu não posso sair de casa. Se eu fizer uma lista do que precisa, exatamente, a senhora comprará? Precisamos de cortinas, e tecido para forrar as poltronas, papel de parede, forração, tinta, roupas, e uma infinidade de pequenas coisas.

       — Não se pode conseguir tudo isso de uma hora para outra — falou Claire, duvidosa.

       — Mas pode-se obter quase o mesmo, caso se esteja disposta a correr a cidade e o dinheiro não for obstáculo.

       — Mas, Tony, o dinheiro é sempre um obstáculo.

       — De modo algum. Passe pela U.S. Robôs. Eu escreverei um bilhete. Procure a Dra. Calvin e diga-lhe que isto faz parte da experiência.

       A Dra. Calvin não a assustou como da primeira vez. Com a nova' maquilagem e o chapéu novo não era mais a mesma Claire. A psicóloga ouviu com atenção, fez algumas perguntas, meneou afirmativamente — e Claire saiu equipada com uma conta ilimitada da U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A.

       É maravilhoso o que o dinheiro pode realizar. Com o conteúdo de uma loja inteira à sua disposição, a palavra da vendedora deixava de ser um decreto: o erguer de sobrancelhas de um decorador não parecia o trovão de Júpiter.

       E quando o Soberano de um dos mais elegantes salões da moda recusou insistentemente o guarda-roupa que ela pedia, usando sotaque do mais puro francês da rua 57, Claire telefonou a Tony e passou o fone a monsieur.

       Com voz firme, e dedos um tanto trêmulos, falou:

       — Gostaria que dissesse uma palavra ao meu... secretário.

       O Soberano aproximou-se do telefone solenemente, um braço às costas, ergueu o fone delicadamente entre dois dedos e falou:

       — Alô —uma pausa e um "Sim", depois uma pausa mais longa, um começo de objeção, que pereceu de imediato, outra pausa e um "Sim" submisso. E o telefone voltou ao gancho.

       — Se madame quiser me acompanhar — disse, ofendido e distante — tentarei satisfazer seus desejos.

       — Um momento. — Claire correu ao telefone e tornou a discar.

       — Alô, Tony. Não sei o que você disse, mas funcionou. Obrigada. Você é um... — procurou uma palavra apropriada, desistiu e terminou com um gritinho: — um... um amor!

       Deu com Gladys Claffern a observá-la quando desligou. Uma Gladys meio divertida e meio espantada, fitando-a com a cabeça meio de lado.

       — Sra. Belmont?

       Claire perdeu imediatamente toda a segurança. Limitou-se a menear afirmativamente, estúpida como uma marionete.

       Gladys sorriu com indefinível insolência.

       — Não sabia que comprava aqui. — E o tom de voz, assim como o olhar, sugerindo que o local perdera a classe por causa disso.

       — Não compro, em geral — falou Claire, humilde.

       — Fez alguma coisa com seu cabelo? Está... bonitinho... Espero que me perdoe, mas o nome de seu marido não é Lawrence? Tinha a impressão de que se chamava Lawrence.

       Claire rangeu os dentes, mas teve que explicar. Era preciso.

       — Tony é um amigo do meu marido. Está me ajudando a fazer algumas compras.

       — Compreendo. Ele é um amor, imagino.

       E com um sorriso prosseguiu, levando consigo toda a luz e o calor do mundo.

       Claire não pôs em dúvida o fato de que foi para Tony que se voltou em busca de consolo. Dez dias a haviam curado de toda relutância. E já podia chorar diante dele: chorar e enraivecer-se.

       — Fui uma tola completa — gemeu, torcendo o lenço encharcado. — Ela exerce esse efeito sobre mim, não sei por quê. É o que ela faz. Eu deveria ter-lhe dado um pontapé. Devia tê-la jogado ao chão e pisoteado.

       — É capaz de odiar um ser humano a esse ponto? — perguntou Tony, ligeiramente intrigado. — Esta parte da mente humana me é vedada.

       — Não é ela, sou eu mesma, acho — gemeu. — Ela é tudo o que eu desejo ser... exteriormente, pelo menos... E não posso.

       Tony falou baixinho e convicto:

       — Pode sim, Sra. Belmont. Pode sim. Temos ainda dez dias e nesse período a casa estará completamente diferente. Não foi o que estivemos planejando?

       — E de que modo isso me ajudará... em relação a ela?

       — Convide-a a vir aqui. Convide os amigos dela. Planeje tudo para a véspera da minha partida. Será uma espécie de inauguração.

       — Ela não virá.

       — Virá, sim. Virá para rir... E não conseguirá.

       — Acha mesmo? Oh, Tony, acha que conseguiremos? — Segurou-lhe ambas as mãos... E depois voltou o rosto. — Para quê? Não serei eu. Será você o responsável por tudo. Não posso me apoiar eternamente em você.

       — Ninguém vive totalmente isolado — murmurou Tony. — Colocaram em mim esta idéia. O que você e todo mundo vê em Gladys Claffern não é apenas Gladys. Ela se apóia em toda aquela fortuna e posição social. E não põe isso em dúvida. Por que você o faria?... Considere as coisas sob este prisma, Sra. Belmont. Sou feito para obedecer, mas o âmbito de minha obediência é por mim determinado. Posso seguir ordens com avareza ou liberalidade. No seu caso, com liberalidade, pois fui condicionado a ver isso nos seres humanos. É bondosa, cordial, despretensiosa. A Sra. Claffern, conforme a descreve, não é, e eu não a obedeceria como obedeço aqui. Assim, é a senhora, e não eu, quem está realizando isto tudo.

       Tirou então as mãos das dela e Claire fitou aquele rosto inexpressivo, que ninguém' seria capaz de ler.

       Súbito, sentiu-se de novo assustada, de modo completamente diferente.

       Engolindo em seco, olhou nervosa para as próprias mãos, que vibravam ainda com a pressão dos dedos de Tony. Não era imaginação. Seus dedos haviam apertado de leve, carinhosamente, os dela, antes de se afastarem.

       Seus dedos... Seus dedos... , Correu ao banheiro e escovou as mãos, furiosa e inutilmente.

       Sentiu-se meio embaraçada na sua presença, no dia seguinte, observou-o atentamente, à espera de que algo acontecesse. Mas nada ocorreu durante algum tempo.

       Tony trabalhava. Se surgia alguma dificuldade na técnica de colocar o papel de parede, ou de utilizar a tinta de secagem instantânea, sua atividade não o revelava. As mãos moviam-se com precisão, os dedos mostravam-se hábeis e seguros.

       Trabalhou durante toda a noite. Ela não o ouvia, mas cada manhã era uma nova aventura. Impossível dizer o número de coisas que ele havia realizado, e à tarde descobria ainda novos toques. E outra noite sobrevinha.

       Tentou ajudar apenas uma vez, mas sua falta de jeito bem humana atrapalhou tudo. Ele estava na sala ao lado e ela decidiu pendurar um quadro no local marcado pelos olhos matemáticos de Tony. Ali estava a marca, ali estava o quadro e ela se sentia enojada com sua ociosidade.

       Mas, ou foi nervoso, ou a escada não estava firme. Não importa. Sentindo que ia cair, gritou. A escada caiu sem ela, pois Tony, com rapidez sobre-humana, segurou-a.

       Seu olhar negro e tranqüilo nada transmitiu, mas a voz era vibrante ao indagar.

       — Machucou-se, Sra. Belmont?

       Claire notou logo que sua mão, ao cair, devia ter despenteado aqueles cabelos sedosos, porque pela primeira vez verificou que se compunham de fios separados. Eram belos fios negros.

       De repente sentiu-lhe os braços ao redor dos ombros e sob os joelhos, sustentando-a com firmeza e calor.

       Empurrou-o e seu grito foi exagerado mesmo aos próprios ouvidos. Passou o resto do dia no quarto e, de então em diante, dormiu com uma cadeira apoiada na maçaneta da porta.

       Remetera os convites e, como Tony havia dito, foram todos aceitos. Restava aguardar a última noite.

       Ela chegou ao seu devido tempo. A casa nem parecia a mesma. Percorreu-a pela última vez. Todas as peças estavam transformadas. Ela própria vestira-se como jamais ousara... E quando a pessoa se veste assim, enverga ao mesmo tempo orgulho e segurança.

       Tentou um sorriso de polido desprezo diante do espelho, e o espelho respondeu à altura.

       Que diria Larry? Não importava. Ele não traria dias emocionantes. Estes partiriam com Tony. Não era estranho? Tentou voltar à disposição de espírito de três semanas antes e falhou completamente.

       O relógio bateu oito horas, que soaram ruidosamente aos seus ouvidos. Eram oito emocionantes batidas, e Claire voltou-se para Tony.

       — Daqui a pouco todos chegarão, Tony. Melhor descer ao porão. Não podemos permitir que eles...

       Arregalou os olhos, murmurando:

       — Tony? — Mais forte: — Tony — E quase gritando: — Tony!

       Ele a abraçava, rosto bem juntinho ao dela, e a pressão daqueles braços era irresistível. Ouviu-lhe a voz em meio a um tumulto emocional.

       — Claire, há muita coisa que não fui feito para compreender e esta deve ser uma delas. Vou partir amanhã, mas não quero. Descobri em mim mais que um simples desejo de agradá-la. Não é estranho?

       Aproximou-se mais ainda. Seus lábios eram quentes, mas nenhum sopro os perspassava. Máquinas não respiram. Estavam juntinhos aos dela.

       ...A campainha soou.

       Por um momento lutou ofegante. Tony se afastou e desapareceu. A campainha tornou a soar com toque agudo, insistente.

       As cortinas da sala da frente estavam abertas. Quinze minutos antes ela as havia fechado, tinha a certeza.

       Eles deviam ter visto, então. Deviam ter visto tudo!

       Entraram todos juntos, muito bem-educados, vindos para destruir, olhos agudos examinando todos os recantos. E tinham visto mesmo. Se não, por que Gladys indagaria por Larry com seu jeito mais cortante? Açoitada, Claire armou-se de um desesperado e temerário desafio.

       Sim, ele está viajando. Voltará amanhã, creio. Não, não tenho me sentido solitária. Nem um pouco. Estive me divertindo bastante. E riu. Por que não? Que poderiam fazer? Larry sabia a verdade, caso alguém lhe contasse alguma história.

       Mas eles não riram.

       Notou-o na fúria dos olhares de Gladys Claffern, no falso brilho de suas palavras, na resolução de sair mais cedo. E quando se despediam Claire supreendeu um último e anônimo murmúrio:

       — ... nunca vi igual... tão bonito...

       Sabia por que fora capaz de tratá-los com tanta altivez. Dissessem o que bem entendessem — que Gladys era mais bonita do que ela, tinha mais classe, era mais rica... mas ninguém, ninguém tinha um amante mais belo do que o seu!

       Lembrou-se então que Tony era uma máquina, e um arrepio a percorreu.

       — Vá embora! Deixe-me em paz! — gritou na sala vazia. Correu para a cama e chorou quase a noite inteira. Na manhã seguinte, bem cedinho, enquanto as ruas estavam desertas, um carro parou diante da casa e levou Tony.

       Lawrence Belmont passou pelo gabinete da Dra. Calvin e, impulsivamente, bateu à porta. Encontrou-a com o matemático Peter Bogert, mas não hesitou.

       — Claire disse que a U.S. Robôs pagou todas as reformas da minha casa...

       -— Sim, nós consideramos isso um valioso e necessário fator da experiência — respondeu a Dra. Calvin. — No seu novo cargo de engenheiro associado poderá mantê-la, creio.

       — Não é isso que me preocupa. Já que Washington vai concordar com os testes, poderemos obter um modelo TN para nós, no próximo ano, creio.

       Voltou-se hesitante, como se quisesse sair, mas recuou, incerto.

       — Que deseja, Sr. Belmont? — perguntou a Dra. Calvin, após uma pausa.

       — Gostaria de saber... — começou. — Gostaria de saber o que realmente aconteceu por lá. Claire... parece tão diferente. Não se trata apenas da aparência... embora, francamente, eu tenha ficado surpreso. — Riu, nervoso. — É elal Não é de fato a minha mulher... não sei explicar...

       — Então, por que tenta? Está desapontado com alguma coisa?

       — Pelo contrário. É um pouco assustador, também, compreende...

       — Se eu fosse o senhor não me preocuparia. Sua mulher saiu-se muito bem. Francamente, nunca pensei que a experiência se mostrasse tão completa. Sabemos agora quais as correções a fazer no modelo TN e o crédito pertence todo à Sra. Belmont. Se quer que eu seja franca, acho que sua mulher é quem merece promoção.

       Larry estremeceu visivelmente.

       — Contanto que fique em família — murmurou, e saiu.

       Susan Calvin falou:

       — Creio que isso machucou, é o que espero... Leu o relatório de Tony, Peter?

       — De ponta a ponta — respondeu Bogert. — Não acha que o modelo TN-3 precisará de algumas modificações?

       — Você também acha? — falou, áspera. — Qual o seu ponto de vista?

       Bogert franziu o cenho.

       — Nem precisei raciocinar. É óbvio que não podemos permitir um robô à solta, trocando carinhos com sua dona, se me permite a expressão.

       — Carinhos! Peter, você me deixa doente. Então não compreendeu? Aquela máquina tinha que obedecer à Primeira Lei. Não podia permitir que um ser humano se prejudicasse, e Claire Belmont estava se prejudicando por causa de seu complexo de inferioridade. Ele fingiu apaixonar-se por ela, já que mulher alguma ficaria insensível ao fato de despertar paixão numa máquina fria, sem alma. E ele abriu as cortinas de propósito para que os outros vissem e invejassem — sem risco possível para o casamento de Claire. Creio que foi muito inteligente da parte de Tony...

       — Acha mesmo? Que diferença faz se era fingimento ou não, Susan? O efeito é terrível. Leia novamente o relatório. Ela o evitou. Gritou quando ele a segurou. Não dormiu na última noite, chorando. Não podemos permitir isso.

       — Peter, você é cego. Tão cego como eu fui. O modelo TN será inteiramente reconstruído, mas por outra razão. Bem outra. Estranho que eu não o tenha percebido imediatamente. — Seu olhar perdeu-se na distância, pensativo. — Mas talvez reflita uma falha minha. Veja, Peter, máquinas não se apaixonam, mas — até quando inútil e terrível — as mulheres sim.

       LENNY

       U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A. tinha um problema. O problema era gente.

       Peter Bogert, matemático-chefe, estava a caminho da Assembléia quando encontrou Alfred, diretor de pesquisa. Lanning tinha as sobrancelhas franzidas, ar feroz, e olhava para baixo, debruçado na grade da sala do computador.

       No andar de baixo, um punhado de gente de ambos os sexos e diferentes idades olhava à volta com curiosidade, enquanto um guia fazia um discurso a respeito da computação de robôs.

       — Este computador que aqui vêem é o maior do gênero no mundo inteiro. Contém cinco milhões e trezentos criotons e é capaz de lidar simultaneamente com mais de cem mil variáveis. Com sua ajuda, a U.S. Robôs está apta a traçar com precisão os cérebros positrônicos de novos modelos.

       As especificações são introduzidas no tape, que é perfurado pela ação deste teclado — algo como uma máquina de escrever ou de linotipo, só que não lida com letras e sim com conceitos. As afirmativas são convertidas aos seus equivalentes simbólicos, e estes, por sua vez, convertidos em perfurações.

       O computador pode, em menos de uma hora, apresentar aos nossos cientistas um desenho de cérebro que fornecerá todas as trilhas positrônicas necessárias à feitura de um robô...

       Alfred Lanning ergueu a vista e, finalmente, reparou no outro.

       — Olá, Peter.

       Bogert levantou ambas as mãos para alisar os cabelos já perfeitamente lisos e brilhantes.

       — Você não parece gostar muito disso, Alfred — comentou.

       Lanning resmungou. A idéia de demonstrações públicas da U.S. Robôs era recente, e supunha-se preenchesse uma dupla função. Por um lado, permitia ao povo ver robôs de perto, combatendo seu medo quase instintivo de objetos mecânicos através de maior familiaridade com eles. E por outro lado, acreditava-se interessar determinado número de pessoas a adotar a pesquisa robótica como carreira.

       — Sabe muito bem que não — disse Lanning, decidido. — Uma vez por semana o trabalho sofre alteração. Considerando-se o número de homens-hora perdidos, a compensação é insuficiente.

       — Não houve aumento na procura de empregos, houve?

       — Algum, mas somente nas categorias em que a necessidade não é vital. É de pesquisadores que precisamos, você sabe. O problema é que, com os robôs proibidos na própria Terra, há algo de impopular em ser roboticista.

       — O maldito complexo de Frankenstein — disse Bogert, imitando conscienciosamente uma das frases prediletas do outro.

       Lanning não percebeu a sutileza.

       — Devia estar acostumado, mas não estou. Era para se esperar que a esta altura todos os seres humanos da Terra soubessem que as Três Leis representam uma perfeita salvaguarda, que os robôs simplesmente não são perigosos. Veja esta turma — e olhou irritado para baixo. — Olhe para eles. A maioria visita a sala de acabamento dos robôs pelo arrepio de medo que proporciona. É como andar na montanha-russa. E quando penetram na sala dos modelos MEC — diabo, Peter, o modelo MEC não faz mais nada neste mundo a não ser adiantar-se dois passos, dizer "Prazer em conhecê-lo", dar um aperto de mão e recuar dois passos — encolhem-se todos, as mães agarram os filhinhos. Como conseguiremos fazer raciocinar tais idiotas?

       Bogert não soube responder. Juntos olharam a fileira de visitantes, passando agora pela sala do computador e penetrando no setor de cérebros positrônicos, ali desaparecendo. Não notaram Mortimer W. Jacobson, um rapazinho de 16 anos, que, para sermos justos, não tinha qualquer má intenção.

       De fato, não se poderia sequer dizer que a culpa fora de Mortimer. O dia em que a visita estava programada era do conhecimento de todos os operários. Os aparelhos ao longo do itinerário deviam ser cuidadosamente desligados ou trancados, uma vez que não era razoável esperar que seres humanos resistissem à tentação de girar maçanetas, chaves, mover alavancas e apertar botões. Além disso, o guia tinha de observar cuidadosamente todos os que falhavam.

       Mas, na ocasião, o guia passara à sala seguinte, e Mortimer encontrava-se no fim da fila, junto ao teclado onde as instruções eram passadas ao computador. Não tinha meios de suspeitar que os planos para um novo robô estavam sendo colocados no computador naquele instante, senão, como bom garoto que era, não tocaria no teclado. Impossível saber que, por negligência que chegava quase às raias do crime, um técnico não desligara o teclado.

       Assim, Mortimer dedilhou as teclas a esmo, como se tocasse um instrumento musical.

       Não notou que uma parte do tape perfurado saiu do instrumento em outro canto da sala — silenciosa e discretamente.

       Nem o técnico, ao regressar, descobriu sinais de que alguém havia mexido na máquina. Sentiu-se meio inquieto ao ver que o teclado estava ligado, mas não se lembrou de fazer uma verificação. Após alguns minutos, até a leve inquietação do início desapareceu e ele continuou a alimentar o computador.

       Quanto a Mortimer, nem então, nem mais tarde soube do que havia feito.

       O novo modelo LNE destinava-se a extrair boro na faixa do asteróide. Os hidratos de boro aumentavam de valor como matéria-prima para as micropilhas de próton que sustentavam o peso máximo na produção de energia a bordo de espaçonaves, e as escassas reservas da Terra estavam se esgotando.

       Materialmente, isto significava que os robôs LNE precisariam ser equipados com olhos sensíveis às linhas mestras da análise espectroscópica dos minérios de boro e com o tipo de membros mais úteis para a sua transformação em produto acabado. Como sempre, porém, o equipamento mental era o principal problema.

       O primeiro cérebro positrônico LNE fora completado. Era o protótipo que se reuniria a todos os outros protótipos da coleção de U.S. Robôs. Após o teste final, outros seriam manufaturados para arrendamento (nunca para venda) a companhias de mineração.

       O protótipo LNE estava pronto. Alto, teso, polido, parecia qualquer modelo de robô não muito especializado.

       O técnico encarregado, seguindo a orientação do Manual de Robótica, perguntou: — Como vai?

       A resposta indicada seria: — Vou bem e estou pronto para iniciar minhas funções. Espero que também esteja bem — ou qualquer variação trivial.

       A primeira pergunta só servira para verificar que o robô ouvia, compreendia uma indagação rotineira e era capaz de dar uma resposta banal, coerente com o que se espera de uma atitude robótica. A partir daí podia-se passar a assuntos mais complicados, que testariam as diferentes Leis e sua interação com o conhecimento especializado de cada modelo em particular.

       Assim, o técnico falou — Como vai? — e ficou imediatamente espantado com a natureza da voz do protótipo LNE. Possuía uma qualidade que jamais voz de robô possuíra (e ele ouvira muitas). Formava sílabas cantantes e de timbre muito baixo.

       Isso era tão surpreendente que só após uma longa pausa o técnico ouviu, em retrospecto, as sílabas que haviam sido formadas por aqueles tons celestiais.

       Eram eles: — Da, da, da, gu.

       O robô continuava alto e teso, mas erguendo a mão direita, introduziu um dedo na boca.

       O técnico olhou horrorizado e saiu correndo. Trancando a porta ao sair, fez uma chamada de emergência à Dra. Susan Calvin.

       A Dra. Susan Calvin era uma robô-psicóloga da U.S. Robôs (e virtualmente do mundo inteiro). Não precisou ir muito longe no teste do LNE para exigir peremptoriamente uma transcrição dos planos traçados pelo computador para as trilhas positrônicas do cérebro e as instruções gravadas que as haviam orientado. Após algum estudo, mandou chamar Bogert, por sua vez.

       Cabelos grisalhos, severamente penteados para trás, rosto frio, de linhas verticais bem marcadas realçando o traço horizontal da boca de lábios finos e pálidos, voltou-se com firmeza para ele.

       — Que é isso, Peter?

       Bogert estudou as passagens apontadas com a maior estupefação.

       — Meu Deus, isso não faz sentido, Susan.

       — Claro que não. Como é que foi inserido nas instruções?

       O técnico encarregado, ao ser convocado, jurou com toda a sinceridade que não era responsável e ignorava a que atribuir tudo aquilo. O computador revelou resultados negativos a todas as tentativas de se descobrirem falhas.

       — O cérebro positrônico está irrecuperável — disse Susan Calvin, pensativa. — São tantas as funções mais elevadas que foram canceladas por estas instruções sem sentido que o resultado é algo muito parecido a um bebê humano.

       Bogert fitou-a surpreendido, e Susan Calvin assumiu imediatamente uma atitude frígida, como sempre acontecia quando alguém manifestava ou sugeria qualquer dúvida diante de suas afirmativas.

       — Despendemos os maiores esforços para fazer um robô mentalmente o mais próximo quanto possível do ser humano! Elimine-se o que chamamos de funções adultas e o que resta, naturalmente, é uma criança, do ponto de vista mental. Por que está tão admirado, Peter?

       O protótipo LNE, que não exibia sinais de compreender o que se passava à sua volta, sentou-se de repente e pôs-se a examinar minuciosamente os pés.

       Bogert fitou-o espantado.

       — É uma pena ter de desmantelar esta criatura. É um belo robô.

       — Desmantelar? — replicou a robô-psicóloga.

       — Claro, Susan. Qual a utilidade disto? Meu Deus, se existe um objeto absolutamente inútil é um robô sem uma tarefa a cumprir. Não sugere que isto possa fazer alguma coisa, não é mesmo?

       — Não, claro que não.

       — E então?

       Obstinada, Susan Calvin falou:

       — Quero fazer novos testes.

       Bogert fitou-a com ares de impaciência e deu de ombros. Se havia alguém na U.S. Robôs com quem era inútil discutir, essa pessoa, com absoluta certeza, era Susan Calvin. Robôs eram a única coisa que ela amava, e uma longa associação com eles privara-a de qualquer semelhança com os seres humanos, na opinião de Bogert. Não podia ser demovida de uma decisão, assim como uma micropilha ligada não podia deixar de funcionar em conseqüência de argumentação.

       — Pra quê? — murmurou. E em voz alta, rápido: — Você nos comunicará quando os testes estiverem concluídos?

       — Sim. Venha, Lenny.

       (LNE, pensou Bogert. Daí vem Lenny. Inevitável.) Susan Calvin estendeu a mão, mas o robô limitou-se a olhar para ela. Com delicadeza, a robô-psicóloga buscou-lhe a mão e segurou-a. Lenny levantou-se maciamente (sua coordenação mecânica, pelo menos, funcionava bem). Juntos saíram, o robô mais alto que a mulher cerca de sessenta centímetros. Muitos olhares os seguiram, curiosos, pelos corredores.

       Uma parede do laboratório de Susan Calvin, a que se comunicava diretamente com seu gabinete particular, estava recoberta com reproduções muito ampliadas de um mapa positrônico. A psicóloga estudava-o minuciosamente há quase um mês.

       Examinava-o, atenta, naquele instante, seguindo as trilhas em suas inúmeras convoluções. Logo atrás, Lenny, sentado no chão, abria e fechava as pernas, murmurando sílabas sem sentido com voz tão melodiosa que não era difícil ficar ouvindo aquelas tolices sem se encantar.

       Voltando-se para o robô, Susan Calvin falou:

       — Lenny... Lenny... Repetiu pacientemente o nome até que o robô finalmente ergueu a cabeça e emitiu um som em sinal de resposta. A robô-psicóloga não conteve um lampejo de prazer. Conquistava a atenção do robô em intervalos cada vez mais curtos.

       — Levante a mão, Lenny. Mão... para cima. Mão... para cima.

       Lenny seguiu com os olhos o movimento. Para cima, para baixo, para cima, para baixo. Em seguida esboçou um gesto com a própria mão, murmurando:

       — Eh... uh.

       — Muito bem, Lenny — disse Susan Calvin gravemente. — Tente de novo. Mão... para cima.

       Devagar ergueu a mão, tomou a do robô, levantou-a e abaixou-a.

       — Levante — a mão. Levante — a mão.

       Uma voz, chamando-a do gabinete, interrompeu-a.

       — Susan?

       O diretor de pesquisa entrou, olhou para o mapa na parede e para o robô.

       — Continua tentando?

       — Sim, é o meu trabalho.

       — Bem, você sabe, Susan... — colocou o charuto na boca e fixou-o com dureza, como se quisesse arrancar a ponta com uma mordida. Em seguida, seu olhar encontrou o da mulher, com severa desaprovação. Desistindo do charuto, recomeçou: —

       Bem, você sabe, Susan, o modelo LNE já está em produção.

       — É o que ouvi dizer. Há algo em relação a ele que queira discutir comigo?

       — Não. Mas o simples fato de estar em produção e tudo correndo bem significa que trabalhar com este espécime amalucado é inútil. Não deveria ser destruído?

       — Em suma, Alfred, você está aborrecido porque ando desperdiçando meu valioso tempo. Tranqüilize--se. Meu tempo não é perdido. Estou trabalhando com este robô.

       — Mas o trabalho não tem sentido.

       — Deixe que eu decida isso, Alfred. — Sua voz era de uma tranqüilidade ameaçadora, e Lanning achou melhor mudar de tática.

       — Quer me dizer o que pretende? Que está fazendo com o robô neste momento, por exemplo?

       — Tentando que ele levante a mão obedecendo a uma ordem. E procurando que imite ó som de uma palavra.

       Como se esperasse a deixa, Lenny murmurou:

       — Eh-uh — e ergueu a mão, hesitante. Lanning meneou a cabeça.

       — Que voz espantosa. Como aconteceu? '

       — Não sei exatamente. Seu transmissor é normal. Poderia falar normalmente, tenho certeza. Mas não fala. Isto é conseqüência de algo nas fitas positrô-nicas que ainda não foi localizado.

       — Então, localize-o, pelo amor de Deus. Uma voz assim poderia ser útil.

       — Ah, então existe alguma utilidade no meu estudo de Lenny?

       Lanning deu os ombros, embaraçado.

       — Bem, é um detalhe sem importância.

       — Lamento que não perceba os essenciais — replicou Susan Calvin, áspera. — Mas isso não é culpa minha. Quer sair agora, Alfred, para que eu continue a trabalhar?

       Lanning conseguiu, finalmente, fumar o charuto no gabinete de Bogert. Amargo, falou:

       — Aquela mulher está ficando cada dia mais estranha.

       Bogert compreendeu perfeitamente. Na U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A. só existia uma pessoa que se pudesse designar como "aquela mulher".

       — Continua às voltas com o pseudo-robô Lenny?

       — perguntou.

       — Tentando ensinar-lhe a falar. Que Deus nos ajude.

       Bogert deu de ombros.

       — Isso revela o problema da companhia: arranjar pessoal competente para a pesquisa. Se tivéssemos outros robô-psicólogos poderíamos aposentar Susan. Por falar nisso, presumo que a reunião da diretoria marcada para amanhã tenha a finalidade de discutir o problema da procura de candidatos.

       Lanning fez que sim, olhando para o charuto como se não lhe soubesse bem.

       — Sim, qualidade e não quantidade. Aumentamos os salários, até que surgiu um número de candidatos

       — os que estão interessados sobretudo em dinheiro. O importante é conseguir aqueles que se interessem principalmente por robótica — alguém parecido com Susan Calvin.

       — Diabo, não. Não parecido com ela.

       — Não em pessoa. Mas você tem de admitir, Peter, que ela só pensa em robôs. Não tem outros interesses na vida.

       — Eu sei. É isto que a torna insuportável. Lanning acenou afirmativamente. Perdera a conta das vezes em que tivera ímpetos de despedir Susan Calvin. E dos milhões de dólares que, em diferentes ocasiões, ela economizara para a companhia. Era uma mulher verdadeiramente indispensável e assim permaneceria até morrer — ou até que resolvessem o problema de descobrir homens e mulheres de alto gabarito interessados em pesquisa robótica.

       — Creio que vou cortar essa história de visitas públicas — falou.

       — Se acha melhor... Entretanto, falando a sério, que faremos com Susan? Ela poderá ficar indefinidamente presa a Lenny. Sabe como é quando encontra o que ela considera um problema interessante.

       — Que faremos? Se nos mostrarmos demasiado ansiosos para desligá-la de Lenny, ela continuará por pura teimosia feminina. Em última análise, não podemos forçá-la a fazer coisa alguma.

       O matemático de cabelos negros sorriu.

       — Eu não empregaria o vocábulo "feminina" a nada que se refira a ela.

       — Pelo menos não está prejudicando ninguém — resmungou Lanning.

       Mas nisso ele se enganava.

       O sinal de emergência cria sempre alguma tensão em qualquer grande estabelecimento industrial. Na U.S. Robôs soara apenas uma dúzia de vezes — para incêndio, inundação, briga e insurreição.

       Mas algo de sério mesmo jamais ocorrera. O sinal indicando "Robô descontrolado" não tocara uma só vez. Ninguém esperava que tocasse. Era o único instalado por exigência do governo ("Maldito complexo de Frankenstein", murmurava Lanning nas raras ocasiões em que dele se lembrava).

       Afinal, a aguda sirena soara, intensificando-se e diminuindo com intervalos de dez segundos, e praticamente ninguém. desde o presidente da diretoria até o mais novo dos assistentes de contínuo, reconheceu-a imediatamente. Passado o primeiro instante, houve maciça convergência de guardas armados e médicos para a área de perigo, e a U.S. Robôs ficou paralisada.

       Charles Randow, técnico em computadores, foi transportado para o hospital com um braço quebrado. Porém não houve outros prejuízos. Pelo menos de natureza física.

       — Mas os danos morais são incalculáveis — rugiu Lanning.

       Susan Calvin enfrentou-o, tranqüila, porém ameaçadora.

       — Não fará coisa alguma a Lenny. Nada, compreendeu?

       — Você não compreende, Susan? Aquela coisa feriu um ser humano. Infringiu a Primeira Lei. Não conhece a Primeira Lei?

       — Não fará coisa alguma a Lenny.

       — Pelo amor de Deus, Susan, terei de repetir a Primeira Lei? "Um robô não pode prejudicar um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano seja prejudicado." Toda a nossa posição baseia-se no fato de que a Primeira Lei é rigidamente observada por robôs de todos os tipos. Se o público souber, e saberá, que houve uma exceção, mesmo uma única, talvez sejamos forçados a fechar as portas. Nossa única chance de sobrevivência seria anunciar imediatamente que o robô foi destruído, explicar as circunstâncias e esperar que o público se convença de que isto jamais tornará a acontecer.

       — Gostaria de saber exatamente o que ocorreu — disse Susan Calvin. — Não estava presente no momento e gostaria de saber o que Randow fazia no meu laboratório sem minha permissão.

       — O importante é que aconteceu e é óbvio — replicou Lanning. — Seu robô agrediu Randow e o idiota fez soar o sinal de "Robô descontrolado", criando um caso. Mas a verdade é que seu robô agrediu-o, infringindo danos que montam a um braço quebrado. Seu Lenny é tão louco que não consegue se compenetrar da Primeira Lei, e por isso deve ser destruído.

       — Ele está dotado da Primeira Lei. Estudei suas vias cerebrais e sei que a Primeira Lei não lhe falta.

       — Então, por que agrediu um homem? — O desespero levou-o ao sarcasmo. — Pergunte a Lenny. Pelo tempo, já lhe deve ter ensinado a falar.

       Susan Calvin corou de pesar.

       — Prefiro entrevistar a vítima. E na minha ausência, Alfred, quero que minhas salas sejam seladas e Lenny fique lá dentro. Não quero que ninguém se aproxime dele. Se algum mal lhe acontecer enquanto eu estiver ausente, esta companhia jamais tornará a ver-me sob quaisquer circunstâncias.

       — Concordará com sua destruição, caso tenha infringido a Primeira Lei?

       — Sim — respondeu Susan Calvin. — Porque sei que não infringiu.

       Charles Randow estava deitado, braço engessado. Sua maior queixa era com relação ao impacto que sentiu nos momentos em que julgou que um robô avançava para ele, com idéia de morte em seu cérebro positrônico. Nenhum outro ser humano jamais tivera razão para temer um ataque direto de robô. Sua experiência era única no gênero.

       Susan Calvin e Alfred Lanning estavam junto à sua cama. Peter Bogert, que os encontrara a caminho, acompanhava-os. Médicos e enfermeiras haviam sido afastados.

       Randow, intimidado, murmurou:

       — Agora diga: o que aconteceu? — perguntou Susan Calvin.

       — Aquela coisa agrediu-me no braço. Avançou para mim...

       — Pense um pouco no que aconteceu antes. Que fazia no meu laboratório sem autorização?

       O jovem técnico engoliu a seco e o pomo de Adão moveu-se visivelmente. Tinha as maçãs do rosto salientes e estava extraordinariamente pálido.

       — Ouvimos todos falar no seu robô. Dizia-se que a senhora estava tentando ensinar-lhe a tocar um instrumento musical. Corriam apostas sobre se ele falava ou não. Alguns diziam que... a senhora é capaz de ensinar um poste a falar.

       — Suponho que isto seja uma deferência — disse Susan Calvin friamente. — Mas que é que você tinha a ver com isso?

       — Eu tinha de entrar e esclarecer a questão. Verificar se ele falava mesmo. Conseguimos uma chave da sua sala e eu esperei até a senhora sair e entrei... Tiramos a sorte e eu perdi.

       — E então?

       — Tentei fazê-lo falar e ele me agrediu.

       — Que quer dizer com isso — tentar fazê-lo falar? Como tentou?

       — Eu... fiz perguntas, mas ele não quis dizer nada e tive de dar-lhe uma boa sacudidela. Acho que gritei um pouco e...

       — E?

       Houve uma longa pausa. Sob o olhar firme de Susan Calvin, Randow respondeu finalmente:

       — Tentei assustá-lo a fim de que dissesse alguma coisa. — E acrescentou, na defensiva: — Tive de dar-lhe uma boa sacudidela.

       — De que modo tentou assustá-lo?

       — Fingi dar-lhe um soco.

       — E ele afastou o seu braço?

       — Bateu no meu braço.

       — Muito bem. É só. — Voltando-se para Lanning e Bogert disse. — Vamos, senhores.

       Da porta voltou-se para Randow.

       — Posso decidir as apostas que correm por aí, se ainda estiver interessado. Lenny fala muito bem algumas palavras.

       Ficaram em silêncio até entrarem no gabinete de Susan Calvin. As paredes estavam cobertas de livros, alguns de sua autoria. O ambiente refletia sua personalidade frígida e ordeira. Só havia uma cadeira e ela sentou-se. Lanning e Bogert permaneceram de pé.

       — Lenny apenas defendeu-se. É a Terceira Lei: "Um robô deve proteger sua própria existência".

       — "Desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis" — concluiu Lanning, incisivo. — Complete a afirmativa! Lenny não tinha o direito de defender-se de modo a prejudicar alguém, mesmo de leve.

       — E não o fez com pleno conhecimento — replicou Calvin. — Lenny tem o cérebro limitado. Não possuía meios de conhecer sua força ou a fraqueza de um ser humano. Afastando o braço ameaçador, ignorava que o quebraria. Em termos humanos, nenhuma culpa moral pode ser atribuída a um indivíduo

       que sinceramente não sabe diferenciar o bem do mal. Bogert interveio, pronto a acalmar.

       — Nós não o culpamos, Susan. Compreendemos que Lenny equivale a um bebê humano e não o censuramos. Mas o público o fará. A U.S. Robôs será fechada.

       — Pelo contrário. Se você tivesse pelo menos o cérebro de uma mosca, Peter, veria que esta é a oportunidade que a U.S. Robôs vem aguardando. Isto resolverá seus problemas.

       Lanning franziu as sobrancelhas brancas e disse baixinho:

       — Que problema, Susan?

       — A companhia não está interessada em manter o pessoal de pesquisa — que Deus nos ajude — em alto nível?

       — Certamente.

       — Que oferecem agora aos pesquisadores em perspectiva? Emoção? Novidade? A alegria de penetrar o desconhecido? Não! Oferecem bons salários e a garantia de ausência de problemas.

       — Que quer dizer com isso — ausência de problemas? — interveio Bogert.

       — Existem problemas? — replicou Susan Calvin. — Que espécie de robôs fabricamos? Robôs plenamente desenvolvidos, prontos para suas tarefas. Uma indústria nos diz o que necessita de um computador, desenha o cérebro, a maquinaria, forma o robô e lá vai ele, prontinho. Peter, há algum tempo perguntou-me, com referência a Lenny, qual era a sua utilidade. Para que serve um robô que não se destina a tarefa alguma? Pergunto agora: para que serve um robô destinado a uma única tarefa? Começa e acaba no mesmo lugar. Os modelos LNE fazem mineração de boro. Se precisarmos de berilo serão inúteis. Se a tecnologia de boro entrar numa nova fase tornam-se inúteis também. Um ser humano assim determinado seria subumano. Um robô deste tipo é um sub-robô.

       — Quer um robô versátil? — perguntou Lanning, incrédulo.

       — Por que não? — replicou a robô-psicóloga. — Por que não? Entregaram-me um robô com o cérebro quase totalmente estultificado. Eu lhe estive ensinando e você, Alfred, perguntou-me o quê. Talvez pouco, no que se refere a Lenny, uma vez que jamais progredirá além dos cinco anos, na escala humana. Mas qual a sua utilidade geral? Muita, se o considerarmos um estudo sobre o problema abstrato de aprender a ensinar robôs. Aprendi maneiras de isolar as vias próximas a fim de criar novas. Um estudo mais aprofundado resultará em técnicas mais sutis e eficazes.

       — E daí?

       — Suponhamos que se comece com um cérebro positrônico que tenha todas as vias básicas cuidadosamente delineadas, mas nenhuma das secundárias. Suponhamos que se passe a criar as secundárias. Seria possível vender robôs básicos, destinados a serem instruídos, robôs programados para uma tarefa e depois para outra, se necessário. Os robôs se tornariam tão versáteis como seres humanos. Robôs poderiam aprender!

       Os dois fitaram-na, espantados. Impaciente, ela perguntou:

       — Ainda não compreenderam?

       — Compreendo o que você está dizendo — respondeu Lanning.

       — Não compreende que, com um campo de pesquisas totalmente novo, novas técnicas a serem elaboradas, uma área completamente desconhecida a penetrar, os jovens sentiriam um novo interesse em estudar robótica? Experimente e veja.

       — Posso lembrar que isto é perigoso? — disse Bogert, macio. — Começar com robôs ignorantes, como Lenny, significa que nunca teríamos a certeza de que obedeceriam à Primeira Lei — exatamente como no caso de Lenny.

       — Exato. Divulgue o fato.

       — Divulgar!

       — Claro. Comunique a todos o perigo. Explique que instalará um novo instituto de pesquisas na Lua,

       se a população da Terra achar que não se deve permitir uma coisa dessas na Terra. Mas insista no perigo aos possíveis candidatos.

       — Meu Deus, por quê? — perguntou Lanning.

       — Porque o atrativo do perigo aumentará o fascínio. Acredita que a tecnologia termonuclear - não envolva perigo e a espaçonáutica também? A isca de absoluta segurança está resolvendo o caso? Ajudou a vencer o complexo de Frankenstein, que você tanto despreza? Tente outra coisa, algo que não funcionou em outros setores.

       Ouviu-se um ruído do outro lado da porta que conduzia ao laboratório de Calvin. Era o melodioso chamado de Lenny.

       A robô-psicóloga interrompeu-se imediatamente, à escuta.

       — Com licença. Creio que Lenny está me chamando.

       — Chamando? — repetiu Lanning.

       — Eu disse que consegui ensinar-lhe algumas palavras — respondeu dirigindo-se à porta, um tanto agitada. — Se quiserem esperar um instante...

       Ela saiu e os dois ficaram em silêncio por algum tempo. Lanning falou então:

       — Acha que tem algum valor o que ela disse, Peter?

       — É possível, Alfred — respondeu Bogert. — É possível. Podemos levar a questão à reunião da diretoria e ver o que dizem. Afinal, o assunto está fervendo. Um robô agrediu um ser humano e isto ganhou domínio público. Conforme Susan diz, o melhor é tirarmos vantagens do caso. É claro que não confio em seus motivos.

       — Que quer dizer?

       — Embora o que falou seja exato, é apenas racionalização no seu caso. Seu motivo é continuar agarrada àquele robô. Se a pressionarmos (o matemático sorriu à incongruência no sentido literal da frase), ela diria tratar-se de aprender técnicas para ensinar aos robôs, mas creio que ela descobriu outra utilidade para Lenny. Utilidade singular, que só serviria a uma mulher como Susan.

       — Não compreendo.

       — Ouviu o que o robô dizia?

       — Não, não consegui... — começou Lanning quando a porta se abriu de repente e os dois silenciaram de imediato.

       Susan Calvin entrou, olhando à volta meio indecisa.

       — Algum de vocês viu... tenho a certeza de que estava por aqui... Ah, lá está...

       Correndo para o ângulo de uma estante, apanhou um objeto de complicado traçado metálico, em forma de haltere, de esferas ocas, cheias de furos, com peças de metal de diversos feitios, dentro de cada espaço vazio, grandes bastante para não caírem pelos buracos.

       Ao apanhá-lo, as peças de metal agitaram-se no interior, fazendo um agradável ruído. Lanning observou então que o objeto era uma espécie de versão robótica de um chocalho de criança.

       Quando Susan Calvin abriu novamente a porta, a voz de Lenny soou lá dentro. Desta vez Lanning ouviu-o claramente pronunciar as palavras que Susan Calvin lhe ensinara.

       Em tons celestiais chamava: — Mamãe, eu quero você. Eu quero você, mamãe.

       E ouviram os passos de Susan Calvin percorrendo, rápidos, o laboratório, em direção à única espécie de bebê que ela poderia conhecer e amar.

     

      Escravo

      A "United States Robots and Mechanical Men Corporation", como acusada, tinha influência suficiente para forçar um julgamento a portas fechadas, sem júri.

      Nem a Universidade Northeastern tentou evitar isto com muita força. Os seus diretores sabiam bem como o público poderia reagir a qualquer questão envolvendo falhas de comportamento de um robô, por mais rarefeita que essa falha de comportamento poderia ser. Também tinham uma noção claramente visualizada de como um tumulto anti-robô poderia se tornar um tumulto anti-ciência, sem aviso prévio.

      O governo, representado neste caso pelo Meritíssimo Juiz Harlow Shane, estava igualmente ansioso por um fim calmo para esta perturbação. Tanto a U. S. Robots quanto o mundo acadêmico eram más pessoas para se antagonizar.

      O juiz Shane disse:

      - Como nem a imprensa, público ou júri estão presentes, cavalheiros, vamos recorrer ao mínimo possível de cerimônia e vamos aos fatos.

      Sorriu rigidamente ao dizer isto, talvez sem muita esperança de que seu pedido seria efetivado e arranjou sua toga para poder ficar sentado mais confortavelmente. Seu rosto era agradavelmente rubicundo, seu queixo redondo e suave, seu nariz largo e olhos claros e espaçados. No todo, não era um rosto com muita majestade judicial, e o juiz sabia disso.

      Barnabas H. Goodfellow, professor de física da Universidade Northeastern, foi juramentado primeiro, fazendo o juramento usual com uma expressão que desfazia totalmente o significado de seu nome.

      Após as questões usuais dos gambitos de abertura, a Promotoria enfiou profundamente as mãos nos bolsos e disse:

      - Quando foi, professor, que a questão do possível emprego do Robô EZ-27 foi primeiro levada à sua atenção, e como?

      O rosto pequeno e anguloso do professor Goodfellow colocou-se numa expressão pouco à vontade, pouquíssimo mais benevolente que aquela que substituía.

      - Tive contato profissional e um certo conhecimento social com o dr. Alfred Lanning, Diretor de Pesquisas da U. S. Robots. Eu estava inclinado a ouvi-lo com alguma tolerância, quando recebi uma sugestão um tanto estranha a 3 de março do ano passado.

      - De 2033?

      - Isso mesmo.

      - Desculpe-me por interromper  por favor, prossiga.

      O professor assentiu, gelidamente, fez uma careta para fixar melhor os fatos na mente, e começou a falar.

      O professor Goodfellow olhou para o robô com alguma inquietação. Tinha sido carregado para a sala de almoxarifado do porão, num engradado, de acordo com os regulamentos sobre remessa de robôs de um lugar para outro na Terra.

      Ele sabia que viria, não era que estivesse despreparado. Do momento da primeira chamada telefônica do dr. Lanning, a 3 de março, sentiu-se ceder à persuasão do outro, e agora, como resultado inevitável, achava-se face a face com um robô.

      Parecia incomumente grande, apenas à distância de um braço.

      Alfred Lanning lançou um olhar duro ao robô, como se para se certificar de que não fora danificado em trânsito. Então voltou seus sobrolhos furiosos e sua cabeleira branca na direção do professor.

      - Este é o Robô EZ-27, primeiro modelo disponível para uso público. - E voltou-se para o robô. - Este é o professor Goodfellow, Easy.

      Easy falou impassível, mas com tal brusquidão que o professor recuou.

      - Boa-tarde, professor.

      Easy tinha sete pés de altura e as proporções gerais de um homem - sempre um ponto de honra para as vendas da U. S. Robots. Isto e a posse das patentes básicas do cérebro positrônico deram-lhe um monopólio de fato dos robôs e um quase-monopólio das máquinas de computação em geral.

      Os dois homens que desencaixotaram o robô tinham saído agora, e o professor olhava de Lanning para o robô e de volta para Lanning.

      - É inofensivo, estou certo. - Mas não parecia estar tão certo assim.

      - Mais inofensivo que eu   disse Lanning. - Eu poderia ser instigado a atacá-lo. Easy, não. O senhor conhece as Três Leis da Robótica, eu presumo.

      - Sim,é claro.

      - São incluídas nos padrões positrônicos do cérebro e devem sempre ser observadas. A Primeira Lei, básica para a vida do robô, é a salvaguarda da vida e bem-estar de todos os humanos. - Fez uma pausa, esfregou o rosto, e acrescentou: - É algo de que gostaríamos de persuadir toda a Terra, se pudéssemos.

      - Ele parece tão... formidável...

      - Certamente. Mas por pior que seja o seu aspecto, vai descobrir que ele é útil.

      - Disso não estou seguro. Nossas conversas não ajudaram muito, sob esse aspecto. Ainda assim, concordei em ver a coisa, e é o que estou fazendo.

      - Vamos fazer mais que olhar, professor. Trouxe algum livro?

      - Sim.

      - Posso vê-lo?

      O professor Goodfellow baixou a mão sem tirar os olhos da forma-humana-em-metal que o confrontava. Da maleta a seus pés, tirou um livro.

      Lanning estendeu a mão para apanhá-lo e leu a lombada:

      - Fisico-Química dos Eletrólitos em Solução. - Muito bem, o senhor escolheu este livro ao acaso. Não foi sugestão minha, estou certo?

      - Sim.

      Lanning passou o livro ao Robô EZ-27.

      O professor quase deu um pulo.

      - Não! É um livro caro!

      Lanning ergueu as sobrancelhas e elas pareciam coco ralado.

      - Easy não tem a mínima intenção de rasgar o livro em dois, como demonstração de força, garanto-lhe. Pode manusear um livro tão cuidadosamente quanto nós. Adiante, Easy.

      - Obrigado, senhor - respondeu Easy. Então, voltando seu corpo de metal levemente: - Com sua licença, professor Goodfellow.

      O professor ficou de olhos arregalados, mas disse:

      - Sim, sim, é claro.

      Com uma lenta e constante manipulação com seus dedos de metal, Easy voltou às páginas do livro, olhando para a página esquerda, então para a direita; olhava para um lado, e para o outro, virava a página, e assim foi minuto após minuto.

      A sensação de seu poder parecia diminuir até mesmo a grande sala de paredes de concreto em que estavam e reduzia os dois espectadores humanos a algo consideravelmente inferior a seu tamanho natural.

      Goodfellow murmurou:

      - A luz não está muito forte.

      - Servirá.

      Então, em voz mais incisiva:

      - Mas, o que ele está fazendo?

      - Paciência, senhor.

      A última página acabou por ser virada. E Lanning perguntou:

      - Bem, e então, Easy?

      - É um livro bastante acurado, e há pouca coisa que possa criticar - disse o robô. - À linha 22 da página 27, a palavra "positivo" está escrita "poistivo". A vírgula da linha 6, página 32, é supérflua, ao passo que se deveria ter usado uma à linha 13 da página 54. O sinal de mais na equação XIV-2 da página 337 deveria ser de menos, para ser coerente com as equações anteriores...

      - Espere! Espere! - exclamou o professor. - O que ele está fazendo?

      - Fazendo? - ecoou Lanning, subitamente irado. - Ora, homem, já fez! Ele revisou o livro inteirinho!

      - Revisou?

      - Sim  no curto intervalo de tempo que levou para virar as páginas, apanhou cada erro de grafia, gramática e pontuação. Anotou os erros sintáticos e detectou incoerências. E vai reter a informação, literalmente, por tempo indefinido.

      A boca do professor estava aberta. Deu uns passos agitados, afastando-se de Lanning e do robô. Cruzou os braços sobre o peito e olhou para os dois. Por fim, perguntou:

      - Quer dizer que este é um robô-revisor?

      Lanning concordou:

      - Entre outras coisas.

      - Mas por que veio mostrá-lo para mim?

      - Para que me ajude a persuadir a universidade a adotá-lo.

      - Para fazer revisões?

      - Entre outras coisas - repetiu Lanning pacientemente.

      O professor compôs seu rosto chupado numa espécie de incredulidade.

      - Mas isso é ridículo!

      - Por quê?

      - A universidade jamais teria meios para comprar esta meia-tonelada de revisor.

      - A revisão não é só o que ele faz. Pode preparar relatórios, encher formulários, servir como arquivo, por sua memória, memorizar trabalhos de formatura...

      - Só ninharias!

      - Não, absolutamente, como em um instante poderei demonstrar - disse Lanning. - Mas acho que poderemos discutir isto mais confortavelmente em seu escritório, se não fizer objeções.

      - Não, é claro que não - começou o professor mecanicamente e tomou meio-passo para se voltar. Então, retrucou: - Mas nâo podemos levá-lo. De fato, doutor, o senhor terá de encaixotá-lo de novo.

      - Teremos tempo bastante para isso, podemos deixar Easy aqui.

      - Sem ninguém para tomar conta?

      - Por que não? Ele sabe onde ficar. Professor Goodfellow, é necessário entender que um robô é muito mais confiável que um humano.

      - Eu seria responsável por qualquer dano...

      - Não haverá dano. Garanto. Olhe, já está fora de hora. O senhor não espera ninguém aqui, eu imagino, antes de amanhã de manhã. O caminhão e meus dois homens estão lá fora. A U. S. Robots assumirá qualquer responsabilidade que possa se originar. E nenhuma surgirá. Vamos dizer que isto será uma demonstração da confiabilidade do robô.

      O professor deixou-se levar para fora do almoxarifado. Nem tampouco parecia totalmente à vontade em seu próprio escritório, cinco andares acima.

      Enxugava delicadamente a linha de gotículas ao longo da metade superior de sua testa com um lenço branco.

      - Como o senhor muito bem sabe, dr. Lanning, há leis contra o uso de robôs na superfície da Terra - ele apontou.

      - As leis, professor Goodfellow, não são simples. Os robôs não podem ser usados em vias públicas, ou dentro de edifícios públicos. Não podem ser usados em propriedade particular ou edifícios particulares exceto sob certas restrições que usualmente resultam em proibitivas. A universidade, porém, é uma instituição grande e particular, que usualmente recebe tratamento preferencial. Se o robô for usado numa sala específica para fins acadêmicos, e se certas outras restrições forem observadas, e se os homens e mulheres que tiverem ocasião de entrar em tal sala cooperarem totalmente, poderemos ficar dentro da lei.

      - Todo esse trabalho apenas para fazer revisões?

      - As aplicações seriam infinitas, professor. O trabalho robotizado tem sido usado apenas para o alívio do esforço físico. E não há o esforço mental supérfluo? Um professor, capaz do mais útil pensamento criativo, é forçado a passar duas semanas trabalhosamente conferindo as letras impressas, ofereço-lhe uma máquina que pode fazer o trabalho em trinta minutos. Isso é ninharia?

      - Mas o preço...

      - O preço não precisa preocupá-lo. Vocês não podem comprar o EZ-27. A U. S. Robots não vende os seus produtos. Mas a universidade pode arrendar o EZ-27 por mil dólares por ano - consideravelmente menos que o custo de um só espectrógrafo de microondas de registro contínuo.

      Goodfellow ficou perplexo. Lanning tirou vantagem disso, e aproveitou para dizer:

      - Só lhe peço para apresentar a questão ao grupo que toma decisões por aqui. Gostaria de falar com eles, se quiserem mais informações.

      - Bem - disse Goodfellow, em dúvida. - Posso falar na próxima reunião do Conselho Deliberativo. Não posso prometer que vai adiantar.

      - Naturalmente.

     

      O advogado de defesa era baixinho e atarracado e comportava-se portentosamente, circunstância que tinha o efeito de acentuar a sua papada. Ficou olhando para o professor Goodfellow, uma vez a testemunha lhe sendo passada.

      - O senhor concordou um tanto prontamente, não?

      O professor respondeu, bruscamente:

      - Acho que estava ansioso para me livrar do dr. Lanning. Eu concordaria com qualquer coisa.

      - Com a intenção de esquecer, depois que saísse?

      - Bem...

      - No entanto, o senhor apresentou a questão ao Quadro Executivo do Conselho Deliberativo da universidade.

      - Sim, de fato.

      - De modo que o senhor concordou de boa fé com as sugestões do dr. Lanning. O senhor não estava apenas dando uma desculpa. De fato concordou entusiasticamente, não é?

      - Meramente segui um procedimento ordinário.

      - De fato, o senhor não estava tão desagradado com o robô como alega agora que estava. O senhor conhece as Três Leis da Robótica e as conhecia ao tempo de sua entrevista com o dr. Lanning.

      - Bem, sim.

      - E o senhor concordou em deixar um robô sozinho, sem ser vigiado.

      - O dr. Lanning me assegurou.

      - Por certo que o senhor nunca aceitaria a palavra dele, se tivesse a menor dúvida de que o robô poderia ser minimamente perigoso.

      O professor começou friamente.

      - Tinha fé na palavra...

      - Isso é tudo - disse a defesa, abruptamente.

      Quando o professor Goodfellow sentava-se, um tanto eriçado, o juiz Shane inclinou-se para a frente e disse:

      - Como não sou homem da robótica, gostaria de saber precisamente o que são as Três Leis da Robótica. O dr. Lanning poderia mencioná-las em benefício da corte?

      O dr. Lanning parecia surpreso. Estava virtualmente com a cabeça apoiada na da mulher grisalha ao lado dele. Levantara-se agora e a mulher também ergueu o olhar, sem expressão. O dr. Lanning atendeu:

      - Muito bem, Meritíssimo. - Parou, como se fosse fazer um discurso e disse, com elaborada clareza: - Primeira Lei: um robô não pode causar dano a um humano ou, por inação, deixar que seja causado dano a um humano. Segunda Lei: um robô deve obedecer às ordens que lhe são dadas por humanos, exceto onde tais ordens conflitam com a Primeira Lei. Terceira Lei: um robô deve proteger sua própria existência, enquanto tal proteção não conflitar com a Primeira ou Segunda Leis.

      - Percebo - disse o juiz, tomando rápidas notas. - E estas Leis são inseridas em cada robô, não é?

      - Em cada um deles. E isso será confirmado por qualquer roboticista.

      - E no seu Robô EZ-27, especificamente?

      - Sim, Meritíssimo.

      - Provavelmente o senhor deverá repetir tais afirmações sob juramento.

      - Estou pronto a fazê-lo, Meritíssimo.

      E sentou-se de novo.

      A dra. Susan Calvin, robopsicóloga-chefe da U. S. Robots, que era a mulher grisalha sentada ao lado de Lanning, olhou sem favor algum para seu superior titular, mas, afinal, ela não favorecia nenhum humano. Ela disse:

      - O testemunho de Goodfellow foi acurado, Alfred?

      - Essencialmente, sim - murmurou Lanning. - Ele não estava tão nervoso assim sobre o robô e ficou ansioso o suficiente para falar de negócios comigo, quando ouviu o preço. Mas não parece ter havido nenhuma distorção drástica.

      A dra. Calvin disse, pensativamente:

      - Teria sido prudente pôr o preço acima de mil.

      - Estávamos ansiosos por colocar Easy.

      - Eu sei, ansiosos demais, quiçá. Tentarão fazer parecer que tínhamos segundas intenções.

      Lanning parecia exasperado.

      - E tínhamos. Admiti isso na reunião do Conselho da universidade.

      - Eles podem fazer parecer que tínhamos outra intenção além da segunda que admitimos.

      Scott Robertson, filho do fundador da U. S. Robots e ainda detentor da maioria das ações, inclinou-se, do outro lado da dra. Calvin, e disse, numa espécie de sussurro explosivo:

      - Por que não podem fazer Easy falar, para sabermos exatamente em que direção estamos indo?

      - Sabe que ele não pode falar, sr. Robertson.

      - Faça-o falar, a senhora é a robopsicóloga, dra. Calvin. Faça-o falar!

      - Se eu sou a psicóloga, sr. Robertson - replicou Susan Calvin friamente -, deixe-me tomar as decisões. Meu robô não pode ser obrigado a fazer qualquer coisa ao preço de seu bem-estar.

      Robertson irritou-se, e poderia ter respondido, mas o juiz Shane estava batendo polidamente com o seu martelinho, e eles relutantemente caíram em silêncio.

      Francis J. Hart, chefe do Departamento de Inglês e Decano de Estudos de Graduação, estava na barra. Era gorducho, meticulosamente vestido num terno escuro, de corte conservador, e com várias faixas de seu cabelo atravessando o topo de sua careca. Recostou-se bem na cadeira das testemunhas com as mãos bem cruzadas no colo e exibindo, de quando em quando, um sorriso de lábios fechados.

      - Minha primeira conexão com o caso do Robô EZ-27 foi por ocasião da sessão do Conselho Deliberativo da universidade, quando o assunto foi apresentado pelo professor Goodfellow. Depois disso, a dez de abril do ano passado, tivemos uma reunião especial sobre o assunto, a qual presidi.

      - Foram elaboradas atas da reunião do Comitê Executivo? Bem, não, era uma reunião um tanto inusitada. - O decano sorriu brevemente. - Pensamos que poderia continuar confidencial.

      - O que transpirou da reunião?

      O decano Hart não se sentia totalmente à vontade presidindo aquela reunião. Nem os outros membros pareciam completamente calmos. Só o dr. Lanning parecia em paz consigo mesmo. Sua figura alta e emaciada e o cabelo branco que o coroava, lembravam a Hart retratos que vira de Andrew Jackson.

      Amostras do trabalho do robô estavam espalhadas pelas regiões centrais da mesa, e a reprodução de um gráfico desenhado pelo robô estava agora nas mãos do professor Minott, de físico-química. Os lábios do cientista estavam em atitude de óbvia aprovação.

      Hart limpou o óculos e disse:

      - Parece não haver dúvida de que o robô pode executar certas tarefas rotineiras com a devida competência. Repassei isso, por exemplo, pouco antes de entrar e há quase nenhuma observação a fazer.

      Tomou uma longa folha impressa, três vezes mais longa que a página usual de um livro. Era uma folha de prova tipográfica, destinada a ser revista pelo autor antes da paginação. Ao longo de ambas as largas margens havia correções, limpas e legíveis. Ocasionalmente uma palavra impressa estava riscada, e uma nova palavra a substituía na margem em caracteres tão finos e regulares que poderiam facilmente passar também por impressos. Algumas das correções estavam em azul, para indicar que o erro original fora do autor, e algumas em vermelho, para indicar erro tipográfico.

      - De fato - ia dizendo Lanning - há menos que nada para se apontar como defeito. E eu diria mesmo que não há falha alguma, dr. Lanning. Estou certo de que as correções estão perfeitas, tanto quanto o manuscrito original estivesse certo. Se o manuscrito contra o qual esta prova foi corrigida estava falho nos fatos, e não no inglês, o robô não tinha competência para corrigir.

      - Aceitamos isso. Porém, o robô corrigiu ocasionalmente a sintaxe, e não creio que as regras do inglês sejam tão rígidas a ponto de termos certeza de que em cada caso a escolha do robô foi a correta.

      - O cérebro positrônico de Easy - disse Lanning, mostrando dentes grandes à medida que sorria - foi moldado pelo conteúdo de todas as obras-padrão do assunto. Estou certo de que o senhor não pode apontar um caso em que a escolha do robô foi definitivamente incorreta.

      O professor Minott ergueu os olhos do gráfico que ainda segurava.

      - A pergunta em minha cabeça, dr. Lanning, é por que, afinal, precisamos de um robô, com todas as dificuldades que isso acarretaria com as relações públicas. A ciência da automação certamente já atingiu o ponto em que a sua companhia poderia projetar uma máquina, um computador ordinário de tipo conhecido e aceito pelo público, que corrigiria provas.

      - Estou certo que poderíamos, mas uma máquina assim exigiria que as provas fossem traduzidas em símbolos especiais ou, pelo menos, transcritas em fitas. Quaisquer correções emergiriam em símbolos. Precisariam manter gente empregada para traduzir palavras em símbolos, e símbolos em palavras. Ademais, um tal computador não poderia fazer nenhum outro trabalho. Não poderia preparar o gráfico que tem em mãos, por exemplo.

      Minott resmungou.

      Lanning continuou.

      - A marca registrada do robô positrônico é a sua flexibilidade. Pode fazer diversas tarefas. É desenhado como um homem para poder usar todas as ferramentas e máquinas que, afinal, foram desenhadas para serem usadas por nós. Pode falar conosco e, de fato, até certo ponto, raciocinar. Em comparação mesmo a um robô simples, um computador ordinário com um cérebro não-positrônico é apenas uma pesada máquina de calcular.

      Goodfellow ergueu os olhos e disse:

      - Se todos nós falarmos e arrazoarmos com o robô, qual a chance de confundi-lo? Suponho que ele não tem a capacidade de absorver uma quantidade infinita de dados.

      - Não, não tem. Mas deveria durar cinco anos, com o uso ordinário. Saberá quando for preciso limpar a memória, o que a companhia fará, sem ônus.

      - A companhia fará?

      - Sim, a companhia reserva-se o direito de fazer a manutenção dos robôs. É uma das razões pelas quais conservamos o controle sobre nossos robôs positrônicos, e os arrendamos, ao invés de vendê-los. Na execução de suas funções ordinárias, qualquer robô pode ser dirigido por qualquer humano. Fora de suas funções ordinárias, um robô requer supervisão especializada, e podemos oferecê-la. Por exemplo, se qualquer um de vocês quiser limpar um robô EZ, poderá fazê-lo limitadamente, ordenando-lhe que esqueça este ou aquele item. Mas certamente diriam uma frase de tal modo a fazer com que ele esquecesse muito pouco, ou demasiado. Detectaríamos isto, porque inserimos mecanismos de segurança nele. Porém, como não há necessidade de limpar o robô em seu trabalho ordinário, ou fazer outras coisas inúteis, isto não levanta problema algum.

      O decano Hart tocou sua cabeça, como que para se certificar de que seus fiapos cuidadosamente cultivados estavam distribuídos regularmente, e disse:

      - O senhor está ansioso para que adotemos essa máquina. Mesmo que com certeza a U. S. Robots só tenha a perder. Mil por ano é um preço ridiculamente baixo. Será que por meio disso vocês estejam visando alugar outras dessas máquinas a outras universidades, a um preço mais razoável?

      - Certamente, é uma esperança - respondeu Lanning.

      - Mas mesmo assim, o número de máquinas que vocês poderiam arrendar seria limitado. Duvido que essa iniciativa dê lucro.

      Lanning apoiou os cotovelos na mesa e inclinou-se para a frente.

      - Deixe-me falar bem claro, cavalheiros. Os robôs não podem ser usados na Terra, exceto em certos casos especiais, por causa do preconceito contra eles por parte do público. A U. S. Robots é uma corporação altamente bem sucedida apenas com nossos mercados extra-terrestres e espaciais, para não falar de nossas subsidiárias de computação. Entretanto, estamos preocupados com mais do que lucros, apenas. É nossa firme crença que o uso de robôs na Terra significaria uma vida melhor para todos, eventualmente, mesmo se uma certa quantidade de deslocamento da economia fosse o resultado inicial.

      - Os sindicatos naturalmente estão contra nós, mas certamente podemos esperar cooperação das grandes universidades. O robô Easy vai ajudá-los aliviando-os de trabalho rotineiro, assumindo, se lhe permitirem, o papel de escravo para vocês. Outras universidades e institutos de pesquisa segui-los-ão, e se funcionar, então talvez outros robôs de outros tipos possam ser adotados, e as objeções do povo a eles sejam quebradas por etapas.

      Minott murmurou:

      - Hoje, a Universidade Northeastern, amanhã, o mundo!

      Nervosamente Lanning cochichou com Susan Calvin:

      - Eu não fui tão eloqüente, e eles de fato não estavam tão relutantes. A mil por ano, estavam quase se atirando para agarrar Easy. O professor Minott disse-me nunca ter visto um trabalho tão bom quanto aquele gráfico que estava segurando, e não havia erro de qualquer natureza. Hart admitiu-o abertamente.

      As severas rugas verticais no rosto da dra. Calvin não se abrandaram.

      - Você deveria ter pedido mais dinheiro do que eles poderiam pagar, Alfred, e deixar que eles regateassem.

      - Pode ser - ele reconheceu, contrafeito.

      O promotor ainda não tinha acabado o interrogatório do professor.

      - Depois de o dr. Lanning ter saído, votaram pela aceitação ou não do Robô EZ-27?

      - Sim, votamos.

      - Com que resultado?

      - A favor de aceitar, pela maioria.

      - O que o senhor diria que decidiu a votação? - A defesa fez objeção, imediatamente. O promotor reelaborou a pergunta. - O que influenciou ao senhor, pessoalmente, em seu voto individual? O senhor votou a favor, creio.

      - Votei a favor, sim. E o fiz principalmente por ter ficado impressionado pela opinião do dr. Lanning de que era nosso dever enquanto membros da liderança intelectual do mundo permitir que a robótica ajude a humanidade a solucionar seus problemas.

      - Em outras palavras, o dr. Lanning persuadiu-o.

      - Era sua função e ele a realizou bem.

      - A testemunha é sua.

      A defesa foi até a cadeira das testemunhas e fitou o professor Hart por um bom tempo.

      - De fato, o senhor estava bem ansioso para ter empregado o Robô EZ-27, não?

      - Pensamos que se pudesse fazer o trabalho, poderia ser útil.

      - Se pudesse fazer o trabalho? Pensei que o senhor disse ter examinado amostras de trabalho do Robô EZ-27 com especial cuidado, no dia da reunião que acaba de descrever.

      - Sim, isso mesmo. Como o trabalho da máquina se referia primariamente ao tratamento da língua inglesa, e como este é meu campo de competência, parecia lógico que eu fosse o escolhido para examinar o trabalho.

      - Muito bem. Havia alguma coisa à mostra, sobre a mesa, durante a reunião que fosse menos que satisfatório? Tenho todo o material aqui, como prova. Pode apontar um item insatisfatório que seja?

      - Bem...

      - É uma pergunta simples. Havia um só item isolado que fosse insatisfatório? O senhor inspecionou tudo. Havia?

      O professor de inglês fechou a cara.

      - Não havia.

      - Tenho algumas amostras de trabalho feito pelo Robô EZ-27 durante o decurso de seu emprego de catorze meses na Northeastern. Quer examiná-las e dizer-me se há algo de errado com elas em algum particular?

      Hart retrucou:

      - Se cometesse um erro, seria uma beleza.

      - Responda à minha pergunta - trovejou a defesa - e só à pergunta que fiz! Há algo de errado com o material?

      O decano Hart olhou cuidadosamente cada item.

      - Ora, nada.

      - Exceto pelo assunto pelo qual aqui estamos, o senhor sabe de algum erro por parte do EZ-27?

      - Exceto pelo assunto deste julgamento, não.

      A defesa limpou a garganta como para assinalar o fim do parágrafo.

      - Agora, sobre a votação para decidir o emprego do Robô EZ-27. O senhor disse que havia uma maioria a favor. Qual foi a votação efetiva?

      - Treze contra um, pelo que me recordo.

      - Treze contra um! Mais que apenas uma maioria, não acha?

      - Não, senhor! - E toda a pedanteria de Hart foi despertada: - Na língua inglesa, a palavra "maioria" significa "mais que a metade". Treze dentre catorze é uma maioria, nada mais.

      - Mas é quase unânime.

      - Continua sendo maioria!

      A defesa mudou suas bases.

      - E qual foi o voto solitário?

      O decano Hart pareceu agudamente incomodado.

      - O professor Simon Ninheimer.

      A defesa fingiu assombro.

      - Professor Ninheimer? O chefe do Departamento de Sociologia?

      - Sim, senhor.

      - O queixoso!

      - Sim, senhor.

      A defesa comprimiu os lábios.

      - Em outras palavras, resulta que o homem que está movendo a ação para o pagamento de perdas e danos no valor de US$ 750.000 contra meu cliente, "United States Robots and Mechanical Men Corporation", foi aquele que desde o começo opôs-se ao uso do robô, muito embora todos os outros do Comitê Executivo do Conselho Deliberativo da universidade estivessem persuadidos de que era uma boa idéia?

      - Ele votou contra, como era seu direito.

      - O senhor não mencionou, na sua descrição daquela reunião, qualquer observação feita pelo professor Ninheimer. Ele fez alguma?

      - Creio que ele falou.

      - O senhor crê?

      - Bem, ele falou.

      - Contra o uso do robô?

      - Sim.

      - Foi violento a respeito?

      O decano Hart fez uma pausa.

      - Ele foi veemente.

      E a defesa, em tom de confidencia:

      - Há quanto tempo o senhor conhece o professor Ninheimer?

      - Cerca de doze anos.

      - Razoavelmente bem?

      - Eu diria que sim.

      - Conhecendo-o, pois, o senhor diria que ele é o tipo de homem que continuaria a alimentar ressentimento contra um robô, principalmente por causa de uma votação adversa que...

      A promotoria afogou o restante da pergunta com uma indignada e veemente objeção. A defesa dispensou a testemunha e o juiz Shane ordenou uma pausa para o almoço.

      Robertson ruminava seu sanduíche. A corporação não faliria pela perda de três quartos de milhão, mas esta perda tampouco lhe faria bem. Tinha sobretudo consciência de que haveria um retrocesso muito mais custoso nas relações públicas. Disse, azedo:

      - Por que todo esse caso sobre como Easy entrou na universidade? O que esperam ganhar com isso?

      O advogado de defesa falou, calmo:

      - Um julgamento é como um jogo de xadrez, sr. Robertson. O vencedor é usualmente o que pode ver mais lances à frente, e o meu amigo à mesa da promotoria não é nenhum principiante. Eles podem demonstrar que houve danos, isso não é problema. Seu principal esforço está em antecipar nossa defesa. Devem estar contando conosco para mostrar que Easy possivelmente poderia ter causado o dano - por causa das Leis da Robótica.

      - Está bem - reconheceu Robertson -, essa é nossa defesa. Absolutamente impenetrável.

      - Para um engenheiro robótico. Não necessariamente para um juiz. Estão se colocando numa posição da qual podem demonstrar que o EZ-27 não era um robô comum. Foi o primeiro de seu tipo a ser oferecido ao público. Era um modelo experimental que precisava de um teste de campo, e a universidade era o único lugar decente para fazer tal teste. Isto pareceria plausível à luz do forte empenho do dr. Lanning e a boa vontade da U. S. Robots em arrendá-lo por tão pouco. O promotor então alegaria que o teste de campo de Easy resultou em fracasso. Agora percebe o propósito do que está acontecendo?

      - Mas o EZ-27 era um modelo perfeitamente bom - argumentou Robertson. - Era o vigésimo sétimo a ser produzido.

      - O que na verdade é um mau argumento - devolveu o advogado, desanimado. - O que houve de errado com os primeiros vinte e seis? Obviamente, algo. Por que não deveria haver algo errado com o vigésimo sétimo, também?

      - Não havia nada de errado com os primeiros vinte e seis, exceto que não eram suficientemente complexos para a tarefa. Foram os primeiros cérebros positrônicos de sua espécie a serem construídos e foi um começo quase de tentativa e erro. Mas as Três Leis funcionaram em todos eles! Nenhum robô é tão imperfeito a ponto de as Três Leis não valerem.

      - O dr. Lanning explicou isto para mim, sr. Robertson, e estou disposto a aceitar a sua palavra. O juiz, porém, pode não estar. Estamos à espera de uma decisão de um homem honesto e inteligente que nada sabe de robótica, e assim pode se enganar. Por exemplo, se o senhor, ou o dr. Lanning ou a dra. Calvin dissessem perante o tribunal que qualquer cérebro positrônico tivesse sido construído por "tentativa e erro", como acabou de dizer, o promotor o faria em pedaços com um interrogatório cruzado. Nada salvaria nosso caso. Assim, isso é algo a evitar.

      Robertson rosnou:

      - Se Easy pudesse falar...

      O advogado deu de ombros.

      - Um robô é incompetente como testemunha, de modo que não nos ajudaria em nada.

      - Pelo menos, saberíamos alguns dos fatos. Saberíamos como ele chegou a tal coisa.

      Susan Calvin pegou fogo. Um pouco de vermelho tocou suas faces e sua voz estava um tanto acalorada.

      - Sabemos como Easy chegou a esse ponto. Ele recebeu ordem! Expliquei isto ao conselho e explicarei agora.

      - Quem ordenou? - perguntou Robertson, honestamente perplexo. (Ninguém nunca lhe contava nada, pensava ele, ressentido. Este pessoal da pesquisa considerava-se dono da U. S. Robots, por Deus!)

      - O queixoso - disse a dra. Calvin.

      - Em nome dos céus, por quê?

      - Ainda não sei por quê. Talvez simplesmente para que fôssemos processados, e para que ele ganhasse algum dinheiro em cima. - Havia chispas azuis em seus olhos, enquanto falava.

      - Então por que Easy não o disse?

      - Não é óbvio? Recebeu ordem para ficar em silêncio sobre o assunto.

      - E por que isso deveria ser óbvio? - quis saber Robertson, truculentamente.

      - Bem, é óbvio para mim. A psicologia de robôs é minha profissão. Se Easy não quer responder perguntas diretamente sobre o assunto, responderá sobre a periferia do assunto. Medindo a hesitação crescente em suas respostas, à medida que nos aproximamos da questão central, e medindo a área em branco e a intensidade dos contrapotenciais que se estabelecem, é possível dizer, com precisão científica, que sua perturbação é resultado de uma ordem de não falar, reforçada pela Primeira Lei. Em outras palavras, foi-lhe dito que se falar, será causado dano a um humano. Presumivelmente dano ao próprio execrável professor Ninheimer, o queixoso, que, para o robô, pareceria um ser humano.

      - Então - alegou Robertson - você não poderia explicar que se ele ficar quieto, será causado dano à U. S. Robots?

      - A U. S. Robots não é nenhum ser humano, e a Primeira Lei da Robótica não reconhece uma corporação como pessoa, como as leis ordinárias. Além do mais, seria perigoso levantar esta espécie particular de inibição. A pessoa que a criasse poderia removê-la sem perigo, porque as motivações do robô ficam centradas naquela pessoa. Qualquer outro curso... - Ela abanou a cabeça e disse, apaixonadamente: - Não vou permitir que o robô seja danificado!

      Lanning interrompeu, com o ar de quem traz sanidade ao problema.

      - Parece que só temos de provar que um robô é incapaz do ato de que Easy é acusado. E podemos fazê-lo.

      - Exatamente - disse o advogado, amuado. - Vocês podem fazê-lo. As únicas testemunhas capazes de atestar a condição de Easy e sobre a natureza do estado mental de Easy são empregados da U. S. Robots. O juiz não poderá aceitar seu testemunho como imparcial.

      - Como ele pode recusar um testemunho de um expert?

      - Recusando-se a ser convencido por ele. É o direito dele, enquanto juiz. Contra a alternativa de que o professor Ninheimer deliberadamente arriscou arruinar sua reputação, mesmo que por uma considerável soma em dinheiro, o juiz não vai aceitar as minúcias técnicas de seus engenheiros. O juiz é um homem, afinal de contas. Se tiver de escolher entre um homem fazendo uma coisa impossível e um robô fazendo uma coisa impossível, muito provavelmente decidirá em favor do homem.

      - Um homem pode fazer uma coisa impossível - disse Lanning - porque não conhecemos toda a complexidade da mente humana e não sabemos o que, numa mente humana qualquer, é impossível e o que não é. Mas sabemos o que é e o que não é impossível para um robô.

      - Bem, veremos se podemos convencer o juiz disso - o advogado de defesa replicou, com ar cansado.

      - Se tudo o que tem a dizer é isso - reboou Robertson - não sei como você pode.

      - Veremos. É bom conhecer e ter consciência das dificuldades envolvidas, mas não vamos ficar demasiado desanimados. Tentei antecipar, eu também, alguns movimentos do xadrez. - E com um grave movimento de cabeça na direção da robopsicóloga, acrescentou: - Com a ajuda desta boa senhora aqui.

      Lanning olhou de um para o outro, e disse:

      - Que diabo é isso?

      Mas o meirinho enfiou a cabeça na sala e anunciou, um tanto sem fôlego, que o julgamento estava para ser retomado.

      Tomaram seus assentos, examinando o homem que começara todo o problema.

      Simon Ninheimer possuía uma cabeça fofa de cabelo cor de areia, um rosto que se estreitava, passando por um nariz em forma de bico em direção a um queixo pontudo, e um hábito de por vezes hesitar antes de palavras-chave em sua conversação, que lhe davam um ar de quem procura uma precisão impossível. Quando dizia: "o Sol nasce no... leste", ficava-se com a certeza de que dera a devida consideração à possibilidade de que eventualmente nasceria no oeste.

      O promotor disse:

      - O senhor se opôs ao uso do Robô EZ-27 na universidade?

      - Sim, senhor.

      - E por quê?

      - Não achei que percebemos os... motivos da U. S. Robots muito bem. Desconfiei da pressa deles colocarem o robô conosco.

      - O senhor achou que ele era capaz de fazer o trabalho a que supostamente destinar-se-ia?

      - Eu sei que jamais o faria.

      - Quer nos dizer suas razões?

      O livro de Simon Ninheimer, intitulado Tensões Sociais Envolvidas no Vôo Espacial e Sua Solução, estava há oito anos no mercado. A busca de Ninheimer pela precisão não estava confinada a seus hábitos de falar, e um assunto como sociologia, quase intrinsecamente imprecisa, deixava-o sem fôlego.

      Mesmo com o material nas provas tipográficas, não achava que tinha atingido a perfeição. De fato, bem o oposto. Olhando para as longas tiras impressas, sentia só comichões de recortar tudo e rearranjar de outra maneira.

      Jim Baker, Instrutor e futuro Professor Assistente de Sociologia, encontrou Ninheimer, três dias depois da primeira remessa de provas ter chegado da editora, olhando para a mancheia de papel distraidamente. As provas vinham em três cópias: uma para Ninheimer, para leitura e correção, outra para Baker, para uma revisão independente, e uma terceira, marcada "Original", que deveria receber as correções finais, combinação das de Ninheimer e Baker, após uma conferência na qual possíveis conflitos e discordâncias fossem conciliados. Esta fora sua política em diversos trabalhos nos quais colaboraram nos últimos três anos, e funcionava bem.

      Baker, jovem e com voz insinuante e agradável, tinha sua cópia das provas na mão. Disse, animado:

      - Já fiz o primeiro capítulo, e contém algumas pérolas tipográficas.

      - O primeiro capítulo sempre tem - disse Ninheimer, distante.

      - Quer conferir agora?

      Ninheimer gravemente focalizou seus olhos em Baker.

      - Não fiz nada com as provas, Jim. Acho que não me importa.

      Baker pareceu confuso.

      - Não se importa?

      Ninheimer apertou os lábios.

      - Perguntei sobre a... carga de trabalho da máquina. Afinal ele foi originalmente... oferecido como revisor. Têm um cronograma.

      - A máquina? Quer dizer, Easy?

      - Creio que esse é o tolo nome que lhe deram.

      - Mas, dr. Ninheimer, pensei que o senhor estava ficando à distância disso!

      - Pareço ser o único a fazer assim. Talvez eu devesse tirar minha parte da... vantagem.

      - Ora, bem, então acho que andei perdendo tempo com este primeiro capítulo - disse o rapaz, pesaroso.

      - Não perdeu não. Poderemos comparar o resultado da máquina com o seu, para aferir.

      - Se quiser, mas...

      - Sim?

      - Duvido que acharemos algo errado no trabalho de Easy. É feito para nunca errar.

      - Provavelmente - respondeu Ninheimer, seco.

      O primeiro capítulo foi trazido de novo por Baker quatro dias depois. Desta vez era a cópia de Ninheimer, recém-saída do anexo especial que fora construído para alojar Easy e o equipamento que utilizava.

      Baker estava jubilante.

      - Dr. Ninheimer, não só ele percebeu o mesmo que eu, mas achou uma dúzia de erros que deixei passar! Toda a coisa levou doze minutos!

      Ninheimer folheou o maço, com as marcas nitidamente escritas nas margens.

      - Não é tão completa quanto a que você e eu faríamos. Teríamos feito uma inserção sobre o trabalho de Suzuki sobre os efeitos neurológicos da baixa gravidade.

      - Refere-se àquele artigo da Revista Sociológica1.

      - É claro.

      - Bem, não se pode esperar o impossível de Easy. Ele não pode ler em nosso lugar.

      - Sei disso. E de fato, já preparei a inserção. Vou ver a máquina e vou me certificar de que sabe como... manipular inserções.

      - Saberá.

      - Prefiro me certificar.

      Ninheimer teve de marcar uma entrevista para ver Easy, e não conseguiu nada melhor que quinze minutos no fim da tarde.

      Mas estes quinze minutos mostraram-se mais do que suficientes. O Robô EZ-27 entendeu a questão da inserção de imediato.

      Ninheimer achou-se pouco à vontade estando de perto do robô pela primeira vez. Quase automaticamente, como se ele fosse humano, achou-se perguntando:

      - Está contente com seu trabalho?

      - Muito contente, professor Ninheimer - disse Easy solenemente, as fotocélulas que eram seus olhos brilhando em seu vermelho-escuro usual.

      - Você me conhece?

      - Pelo fato de que o senhor me apresenta material adicional a incluir nas provas, segue-se que o senhor é o autor. O nome do autor, é claro, está no cabeçalho de cada folha das provas.

      - Percebo, você faz... deduções, então. Diga-me - ele não podia resistir à questão -, o que achou do livro, até agora?

      Easy falou:

      - Achei muito agradável trabalhar com ele.

      - Agradável? É uma estranha palavra para um... mecanismo sem emoção. Disseram-me que você não tem emoções.

      - As palavras de seu livro concordam com meus circuitos - Easy explicou. - Estabelecem pouco ou nenhum contrapotencial. Está em minhas trajetórias cerebrais traduzir este fato mecânico em uma palavra como "agradável". O contexto emocional é fortuito.

      - Percebo. Por que acha o livro agradável?

      - Trata de seres humanos, professor, e não com matéria inorgânica ou símbolos matemáticos. Seu livro tenta entender os seres humanos e ajudar a aumentar a felicidade humana.

      - E é isto o que você tenta fazer, e assim meu livro vai de acordo com seus circuitos? É isso?

      - É isso, professor.

      Os quinze minutos tinham acabado. Ninheimer saiu e foi à biblioteca da universidade, que estava para fechar. Ele a manteve aberta o suficiente para achar um livro elementar sobre robótica. Levou-o para casa.

      Exceto pela ocasional inserção de material novo, as provas foram para Easy, e dele para os editores, com pouca intervenção de Ninheimer, de início, e nenhuma, mais tarde.

      Baker disse, um tanto inquieto:

      - Dá-me uma sensação de inutilidade.

      - Devia dar-lhe a sensação de ter tempo de começar um novo projeto - disse Ninheimer, sem levantar os olhos das anotações que estava fazendo do último número do Digesto de Ciência Social.

      - É que ainda não estou acostumado. Fico me preocupando com as provas. É bobagem, eu sei.

      - É mesmo.

      - No outro dia peguei um par de folhas antes de Easy enviá-las à...

      - Que! - Ninheimer olhou para ele, cenhudo. O exemplar do Digesto foi fechado com um estalo. - Você perturbou a máquina enquanto estava trabalhando?

      - Só por um minuto. E tudo estava em ordem. Ora, ela mudou uma palavra. Você se referiu a alguma coisa como "criminosa" e ela foi mudada para "violenta". Pensou que este adjetivo se adaptaria melhor ao contexto.

      Ninheimer ficou pensativo.

      - E você, o que achou?

      - Sabe, eu concordei. Deixei ficar.

      Ninheimer virou sua cadeira giratória para defrontar-se com seu jovem associado.

      - Escute aqui, eu não gostaria que fizesse isso de novo. Se vou usar a máquina, quero... tirar toda a vantagem possível dela. Se vou usá-la e perder os seus... préstimos de algum modo porque você a supervisiona quando tudo gira em torno de que não necessita de supervisão, eu não ganho nada. Percebe?

      - Sim, dr. Ninheimer - reconheceu Baker, humildemente. Os primeiros exemplares editados de Tensões Sociais chegaram ao escritório do dr. Ninheimer no dia oito de maio. Folheou-os brevemente, passando rapidamente por suas páginas e parando para ler um parágrafo aqui e ali. Então pôs seus exemplares de lado.

      Como explicou depois, esqueceu o assunto. Por oito anos, trabalhara com aquilo, mas agora, e nos últimos meses, outros interesses o envolveram enquanto Easy removera a carga do livro de sobre seus ombros. Nem pensou em doar um exemplar de cortesia à biblioteca da universidade. Mesmo Baker, que se lançara ao trabalho e ficara à distância do chefe do departamento desde que fora repelido em seu último encontro, não recebeu nenhum exemplar.

      A dezesseis de junho, este estágio terminou. Ninheimer recebeu uma chamada telefônica e olhou com surpresa para a imagem na visitela.

      - Speidell! Você está na cidade?

      - Não, senhor, estou em Cleveland. - E a voz de Speidell tremia com a emoção.

      - Então, por que a chamada?

      - Porque estive folheando seu novo livro! Ninheimer, está louco! Está ficando doente!

      Ninheimer enrijeceu.

      - Há algo... errado? - perguntou, alarmado.

      - Errado? Refiro-me à página 562. Que diabos você quer dizer ao interpretar minha obra daquela maneira? Onde, em meu trabalho citado, afirmo que a personalidade criminosa não existe e que são os agentes da lei que são os verdadeiros criminosos? Aqui, deixe-me ler...

      - Espere! Espere! - gritou Ninheimer, tentando achar a página. - Deixe-me ver... Deixe-me ver... Oh, meu bom Deus!

      - E então?

      - Speidell, eu não consigo imaginar como aconteceu. Eu nunca escrevi isto.

      - Mas é o que foi impresso! E esta distorção não é a pior. Olhe à página 690 e imagine o que Ipatiev vai fazer quando vir que baderna você fez com as descobertas dele! Olhe, Ninheimer, este livro está eivado desta espécie de coisa. Não sei o que você estava pensando... não há nada a fazer senão tirar o livro do mercado. E é melhor se preparar para extensas desculpas perante a próxima reunião da Associação!

      - Speidell, escute-me...

      Mas Speidell tinha desligado com uma brusquidão que deixou a visitela fosforecendo com uma imagem residual por quinze segundos.

      Foi então que Ninheimer foi ler o livro e começou a marcar passagens com tinta vermelha.

      Controlou-se notavelmente bem quando defrontou-se de novo com Easy, mas seus lábios estavam lívidos. Passou o livro para Easy e disse:

      - Quer ler as passagens marcadas, nas páginas 562, 631,664 e 690?

      Easy o fez em quatro relances.

      - Sim, professor Ninheimer.

      - Não está como nos originais.

      - Não, senhor; não está.

      - Você os alterou para ficarem assim?

      - Sim, senhor.

      - E por quê?

      - Senhor, as passagens, tais como estavam na sua versão, eram altamente desairosas em relação a certos grupos de seres humanos. Achei aconselhável mudar o palavreado para evitar-lhes dano.

      - Como se atreveu a fazer tal coisa?

      - A Primeira Lei, professor, não me deixa, por qualquer inação, que qualquer dano seja causado a humanos. Por certo que, considerando sua reputação no mundo da sociologia e a ampla circulação que seu livro teria entre os eruditos, um dano considerável seria causado ao número de humanos de que o senhor fala.

      - Mas percebe o dano que causa a mim agora?

      - Era necessário escolher a alternativa que causaria o menor dano.

      O professor Ninheimer, tremendo de fúria, arrastou-se para fora. Estava claro para ele que a U. S. Robots teria de pagar-lhe por isso.

      Havia alguma agitação no lado da mesa dos acusados, que aumentava à medida que a promotoria melhorava sua pontaria.

      - Então o Robô EZ-27 informou-o que a razão para sua ação esteve baseada na Primeira Lei da Robótica?

      - Isso é correto, senhor.

      - E que, de fato, não tinha escolha?

      - Sim, senhor.

      - Segue-se então que a U. S. Robots projetou um robô que necessariamente reescreve os livros de acordo com suas próprias concepções do que é certo. E eles o ofereceram como um simples revisor. O senhor concordaria com isto?

      A defesa fez firmes objeções de imediato, apontando que a testemunha estava sendo levada a decidir sobre um assunto no qual não tinha competência. O juiz admoestou o promotor nos termos usuais, mas não havia dúvida de que aquele diálogo atingira o alvo - não facilitou nada para o advogado de defesa.

      A defesa pediu um pequeno recesso antes de prosseguir o interrogatório cruzado, usando uma minúcia técnica para o propósito de ganhar cinco minutos.

      Inclinou-se para Susan Calvin.

      - Será possível, dra. Calvin, que o professor Ninheimer esteja dizendo a verdade, e que Easy foi motivado pela Primeira Lei?

      Calvin apertou os lábios e disse:

      - Não. Não é possível. A última parte do testemunho de Ninheimer é perjúrio deliberado. Easy não é projetado para avaliar assuntos ao nível de abstração representado por um livro de sociologia em nível superior. Nunca seria capaz de dizer que certos grupos de humanos seriam prejudicados por uma frase num tal livro. Seu cérebro simplesmente não foi construído para isso.

      - Suponho, porém, que não podemos provar isto a um leigo - respondeu o advogado de defesa, pessimista.

      - Não - admitiu Calvin. - A demonstração seria altamente complexa. Nossa saída é ainda a mesma. Precisamos provar que Ninheimer está mentindo, e nada do que ele disse precisa mudar nosso plano de ataque.

      - Muito bem, dra. Calvin - disse o advogado. - Preciso aceitar sua palavra quanto a isto. Continuaremos tal como planejado.

      Na sala do tribunal, o martelo do juiz ergueu-se e caiu, e o dr. Ninheimer voltou ao banco das testemunhas. Sorria um pouco, como quem sente que sua posição é inexpugnável e desfruta a perspectiva de deter um ataque inútil.

      O advogado de defesa aproximou-se cuidadosamente, e começou, com voz mansa:

      - Dr. Ninheimer, o senhor quer dizer que estava completamente inconsciente destas alegadas alterações em seu manuscrito até a data em que o dr. Speidell chamou-o a dezesseis de junho?

      - Isso é correto.

      - Nunca olhou para as provas depois que o Robô EZ-27 as corrigiu?

      - De início, sim, mas pareceu-me uma tarefa inútil. Confiei nas alegações da U. S. Robots. As... alterações absurdas foram feitas apenas no último quarto do livro, depois que o robô, eu presumo, aprendeu o bastante sobre sociologia...

      - Não se importe em nos dizer suas suposições! - disse a defesa. - Entendo que seu colega, o dr. Baker, viu as últimas provas em pelo menos uma ocasião. Lembra-se de ter testemunhado isso?

      - Sim, senhor. Como disse, ele contou-me sobre ter visto uma página, e mesmo ali, o robô alterara uma palavra.

      De novo o advogado interrompeu:

      - O senhor não acha estranho que depois de um ano de implacável hostilidade ao robô, depois de ter votado contra ele em primeiro lugar, e tendo-se recusado a dar-lhe qualquer aplicação, subitamente decidiu colocar seu livro, sua magnum opus nas mãos dele?

      - Não considero isso estranho. Simplesmente decidi que poderia muito bem utilizar a máquina.

      - E ficou tão confiante no Robô EZ-27, e tão de repente, que nem se importou em conferir as provas?

      - Eu lhe disse que fui... persuadido pela propaganda da U. S. Robots.

      - Tão persuadido que quando seu colega, o dr. Baker, tentou controlar o robô, o senhor o repreendeu?

      - Não o repreendi. Meramente não queria que ele... desperdiçasse o seu tempo. Pelo menos, então pensei ser um perda de tempo. Não vi a importância daquela mudança de uma palavra até...

      A defesa disse, com pesado sarcasmo:

      - Não tenho dúvida de que o senhor foi instruído para levantar esse ponto para que a troca de uma palavra entrasse no registro... - Alterou sua argumentação, para evitar a objeção: - A questão é que o senhor estava muito irritado com o dr. Baker.

      - Não, senhor, não estava nervoso.

      - O senhor não lhe deu um exemplar do livro, quando o recebeu.

      - Simples esquecimento. Também não dei um exemplar para a biblioteca. - Ninheimer sorriu, cuidadoso. - Os professores são notoriamente distraídos.

      E a defesa retomou:

      - O senhor acha estranho que, depois de mais de um ano de trabalho perfeito, o Robô EZ-27 tenha errado em seu livro? Num livro, isto é, que foi escrito pelo senhor, que de todos foi o mais implacavelmente hostil ao robô?

      - Meu livro foi a única obra de vulto versando sobre a humanidade com que ele se defrontou. As Três Leis da Robótica o confundiram aí.

      - Por várias vezes, dr. Ninheimer, o senhor quis parecer como um entendido em robótica. Aparentemente o senhor de súbito ficou interessado em robótica e retirou livros sobre o assunto da biblioteca. Disse isso em seu depoimento, não é?

      - Um livro, sim senhor. Foi o resultado do que me parece ter sido... uma curiosidade natural.

      - E este livro permitiu-lhe explicar por que o robô, como o senhor alega, distorceu o seu livro?

      - Sim, senhor.

      - Muito conveniente. Mas o senhor está certo de que o seu interesse em robótica não se destinou a permitir-lhe manipular o robô para seus próprio fins?

      O dr. Ninheimer enrubesceu:

      - Claro que não!

      A voz do advogado elevou-se:

      - De fato, o senhor está certo de que as passagens supostamente alteradas não estavam como as colocou, em primeiro lugar?

      O sociólogo quase ficou de pé.

      - Isso é... ridículo! Tenho as provas...

      Tinha dificuldade em falar e o promotor levantou-se para apartear serenamente:

      - Com sua permissão, Meritíssimo, quero apresentar como prova as provas tipográficas entregues pelo dr. Ninheimer ao Robô EZ-27 e o conjunto de provas remetidas pelo Robô EZ-27 aos editores. Fá-lo-ei agora, se o prezado colega assim o desejar, e concederia um recesso para que as duas provas pudessem ser comparadas.

      O advogado de defesa abanou a mão, impacientemente.

      - Isso não será necessário. Meu honrado oponente pode apresentar essas provas em qualquer outra hora que quiser. Estou certo que elas apresentarão as discrepâncias alegadas pelo queixoso. O que eu queria saber da testemunha, entretanto, é se ele tem também as provas tipográficas do dr. Baker.

      - As provas do dr. Baker? - Ninheimer fez uma careta. Ainda não estava completamente senhor de si mesmo.

      - Sim, professor! Estou falando das provas do dr. Baker. O senhor testemunhou, dizendo que o dr. Baker recebera uma cópia das provas. Farei o meirinho ler o seu testemunho, se estiver sofrendo momentaneamente de um tipo seletivo de amnésia. Ou será que é apenas por que, como o senhor disse, os professores são notoriamente distraídos?

      - Lembro-me das provas do dr. Baker. Não eram necessárias, uma vez que o trabalho estava aos cuidados da máquina de revisão...

      - Assim, o senhor as queimou?

      - Não, joguei-as no cesto de papel.

      - Queimou, jogou fora, qual a diferença? O essencial é que o senhor se livrou delas.

      - Não há nada errado... - miou Ninheimer.

      - Nada errado? - retumbou a defesa. - Nada errado, exceto que não há maneira de verificarmos, em certas folhas cruciais, se o senhor nâo teria substituído uma folha sem erros da cópia do dr. Baker por um folha de sua cópia que deliberadamente alterou de modo a forçar o robô a...

      A promotoria lançou uma furiosa objeção. O juiz Shane inclinou-se para a frente, seu rosto redondo fazendo o melhor para assumir uma expressão zangada equivalente à intensidade da emoção sentida por aquele homem. O juiz disse:

      - O senhor teria qualquer evidência da afirmação extraordinária que acaba de fazer?

      O advogado disse, serenamente:

      - Não tenho evidência direta, Meritíssimo. Mas gostaria de apontar que, vista apropriadamente, a súbita conversão do queixoso do anti-roboticismo, seu súbito interesse em robótica, sua recusa em verificar as provas ou deixar que alguém mais as conferisse, sua cuidadosa negligência em deixar que alguém visse o livro imediatamente após a publicação, tudo muito claramente aponta...

      O juiz interrompeu, pacientemente:

      - Aqui não é lugar para deduções esotéricas. O queixoso não está em julgamento. Nem o senhor é promotor. Proíbo-lhe esta linha de ataque e só posso apontar que o desespero, que deve tê-lo induzido a isto, só pode enfraquecer a sua parte. Se o senhor tiver perguntas legítimas a fazer, o senhor pode continuar seu interrogatório. Mas advirto-o contra outra exibição como esta durante o julgamento.

      - Não tenho mais perguntas, Meritíssimo.

      Robertson cochichou intensamente quando o advogado voltou à mesa.

      - O que se ganha com isso, pelo amor de Deus? O juiz está totalmente contra você, agora.

      E a resposta, calma:

      - Mas Ninheimer está tremendo nas bases. E nós o colocamos pronto para o movimento de amanhã. Então, ele estará maduro.

      Susan Calvin assentiu, gravemente.

      O resto da atuação do promotor foi suave, em comparação. O dr. Baker foi chamado e sustentou a maior parte do testemunho de Ninheimer. Os doutores Speidell e Ipatiev foram chamados, e expuseram muito convincentemente seu choque e desalento quanto a certas passagens citadas no livro do dr. Ninheimer. Ambos deram sua opinião profissional de que a reputação profissional do dr. Ninheimer fora seriamente afetada.

      As provas tipográficas foram apresentadas como evidência, bem como exemplares do livro já acabado.

      A defesa não fez mais interrogatórios naquele dia. O promotor descansou e o julgamento sofreu um recesso até a manhã seguinte.

      O advogado de defesa fez o primeiro movimento no começo dos trabalhos do segundo dia. Pediu que o Robô EZ-27 fosse admitido como espectador.

      A promotoria fez objeção e o juiz chamou os dois advogados.

      O promotor disse, acaloradamente:

      - Isso é obviamente ilegal. Um robô não pode entrar em qualquer edifício usado pelo público em geral.

      - Esta sala - apontou a defesa - está fechada a todos senão aos que têm relação direta com o caso.

      - Uma grande máquina de comportamento errático conhecido perturbaria meus clientes e minhas testemunhas por sua mera presença! Transformaria a sessão num tumulto.

      O juiz parecia inclinado a concordar. Voltou-se para a defesa e disse, sem muita simpatia:

      - Quais são os motivos para o seu pedido?

      - É nossa tese de que o Robô EZ-27 possivelmente não poderia, pela natureza de sua construção, ter-se comportado como foi descrito. Será necessário apresentar algumas demonstrações.

      Ao que disse o promotor:

      - Não vejo o objetivo disso, Meritíssimo. As demonstrações conduzidas por empregados da U. S. Ro-pbots valem pouco como evidência, quando a U. S. Robots é a acusada.

      - Meritíssimo, a validez de qualquer evidência cabe ao senhor decidir, e não ao promotor. Pelo menos, segundo meu entendimento.

      O juiz Shane, com suas prerrogativas colocadas em jogo, disse:

      - Seu entendimento é correto. Não obstante, a presença de um robô aqui levanta importantes questões legais.

      - Certamente, Meritíssimo, nada que seja contrário aos ditames da lei. Se o robô não estiver presente, estaremos impossibilitados de apresentar nossa defesa.

      O juiz ponderou:

      - Haveria a questão de transportar o robô até aqui.

      - Esse é um problema que a U. S. Robots freqüentemente enfrentou. Temos um caminhão em frente ao tribunal, construído de acordo com as leis que regem o transporte de robôs. O Robô EZ-27 está num caixote, sob a guarda de dois homens. As portas do caminhão são adequadamente seguras, e todas as outras precauções necessárias foram tomadas.

      - O senhor parece certo - respondeu o juiz Shane, num renovado mau humor - que o julgamento, neste ponto, será a seu favor.

      - Absolutamente, Meritíssimo. Caso contrário, mandaremos o caminhão dar meia-volta. Nada presumi quanto à sua decisão.

      O juiz acedeu:

      - O pedido por parte da defesa está concedido.

      O caixote foi trazido num carrinho e os dois homens o abriram. A sala do tribunal ficou imersa num silêncio constrangedor.

      Susan Calvin esperava, enquanto as placas pesadas de celluform caíam, e então estendeu a mão:

      - Venha, Easy.

      O robô olhou na direção dela, e estendeu seu grande braço de metal. Erguia-se dois pés acima dela, mas seguia-a mansamente, como uma criança na mão da mãe. Alguém riu nervosamente e sufocou o riso ao olhar da dra. Calvin.

      Easy sentou-se com cuidado numa grande cadeira, trazida pelo meirinho, que gemeu mas agüentou.

      O advogado de defesa disse:

      - Quando se tornar necessário, Meritíssimo, provaremos que este é realmente o Robô EZ-27, o robô específico a serviço da Universidade Northeastern no período que nos concerne.

      - Muito bem - disse o Meritíssimo. - Isso será necessário. Eu, particularmente, não tenho idéia de como se diferencia um robô de outro.

      - E agora - disse a defesa - gostaria de chamar minha primeira testemunha. Professor Simon Ninheimer, por favor.

      O escrivão hesitou, e olhou para o juiz. O juiz perguntou, com visível surpresa:

      - O senhor está chamando o queixoso como sua testemunha?

      - Sim, Meritíssimo.

      - Espero que o senhor tenha consciência de que, enquanto ele for sua testemunha, não lhe será permitida tanta liberdade quanto se estivesse interrogando uma testemunha de acusação.

      A defesa afirmou, melosamente:

      - Meu único propósito em tudo isso é chegar à verdade. Não será necessário senão fazer algumas perguntas educadas.

      Disse o juiz, em dúvida:

      - O senhor está conduzindo o caso, agora. Chame a testemunha.

      Ninheimer subiu ao banco, e foi informado de que ainda estava sob juramento. Parecia mais nervoso que no dia anterior, quase apreensivo.

      Mas a defesa olhou para ele benignamente.

      - Professor Ninheimer, o senhor está processando meus clientes por US$ 750 000.

      - Essa é a... soma; sim.

      - É muito dinheiro.

      - Sofri um grande dano.

      - Por certo que não tanto. O material em questão envolve apenas algumas passagens num livro. Talvez fossem passagens infelizes, mas afinal, os livros por vezes aparecem com curiosos enganos.

      As narinas de Ninheimer dilataram-se.

      - Senhor, este livro foi o clímax de minha carreira! Ao invés disto, fez-me parecer um incompetente, distorcendo as opiniões sustentadas por meus honrados amigos e colegas, e defensor de ridículos e... obsoletos pontos de vista. Minha reputação está irrecuperavelmente abalada! Nunca mais poderei ficar de cabeça erguida perante qualquer... reunião de estudiosos, independentemente do resultado deste julgamento. Certamente não posso continuar minha carreira, que foi toda minha vida. O propósito mesmo de minha vida foi... abortado e destruída!

      O advogado de defesa não tentou interromper o discurso, mas ficou distraidamente olhando para suas unhas, à medida que ia sendo dito. Disse, muito consoladoramente:

      - Mas com certeza, professor Ninheimer, na sua idade, o senhor não poderia esperar ganhar mais que... sejamos generosos, US$ 150 000 pelo resto de sua vida. Mas o senhor está pedindo à corte cinco vezes mais como compensação.

      Ninheimer disse, com uma explosão emocional ainda maior:

      - Não é só por minha vida, que estou arruinado. Não sei por quantas gerações serei apontado pelos sociólogos como um... idiota, ou um maníaco. Minhas boas realizações estarão enterradas e ignoradas. Estou arruinado não só até o dia de minha morte, mas para sempre, porque sempre haverá gente que não acreditará que um robô é que fez aquelas inserções...

      Foi nesta altura que o Robô EZ-27 levantou-se. Susan Calvin não fez nenhum movimento para impedi-lo. Ela ficou sentada, imóvel, olhando direto para a frente. O advogado de defesa suspirou, baixinho.

      A voz melodiosa de Easy disse claramente:

      - Eu gostaria de explicar a todos que inseri certas passagens nas provas, que pareciam diretamente opostas ao que estivera lá antes...

      Mesmo o promotor ficou surpreso com o espetáculo de um robô de sete pés de altura levantando-se para dirigir-se à corte, o bastante para ficar incapaz de se dirigir ao juiz para pedir que se interrompesse, o que, aliás, era um procedimento altamente irregular.

      Quando se recuperou, já era tarde, pois Ninheimer levantou-se do banco das testemunhas, rosto convulsionado.

      Gritou como louco:

      - Maldito seja! Foi instruído para ficar de bico fechado sobre...

      E engasgou num silêncio, e Easy calou-se, também.

      O promotor é que estava de pé, agora, exigindo que o julgamento fosse anulado.

      O juiz Shane batia o martelo desesperadamente.

      - Silêncio! Silêncio! Certamente há toda a razão para cancelar o julgamento, exceto que, no interesse da justiça, gostaria que o professor Ninheimer completasse sua assertiva. Eu o ouvi distintamente dizer que o robô tinha sido instruído para calar-se a respeito de algo. Não houve menção em seu depoimento, professor Ninheimer, quanto a quaisquer instruções para o robô manter-se calado sobre qualquer coisa!

      Ninheimer ficou olhando, mudo, para o juiz.

      O juiz Shane disse:

      - O senhor instruiu o Robô EZ-27 para ficar calado sobre algo? Caso afirmativo, sobre o quê?

      - Meritíssimo... - começou Ninheimer, rouco, e não conseguiu continuar.

      A voz do juiz elevou-se.

      - O senhor realmente ordenou que as inserções em questão fossem feitas nas provas e então ordenou ao robô para manter-se em silêncio sobre sua parte nisto?

      O promotor objetou vigorosamente, mas Ninheimer gritou:

      - Ora, de que adianta? Sim! Sim! - e saiu correndo do banco das testemunhas. Foi detido à porta pelo meirinho e afundou, desanimado, numa das últimas fileiras de bancos, cabeça enterrada em ambas as mãos.

      O juiz Shane disse:

      - É evidente para mim que o Robô EZ-27 foi trazido aqui como um truque. Exceto pelo fato de que este truque serviu para prevenir um sério erro judicial, eu certamente repreenderia o advogado de defesa. Ficou claro, agora, além de qualquer dúvida, que o queixoso cometeu o que para mim foi uma fraude totalmente inexplicável pois, aparentemente, estava conscientemente arruinando sua carreira com o processo...

      A sentença, é claro, foi a favor do acusado.

      A dra. Susan Calvin fez-se anunciar nos aposentos do dr. Ninheimer, no saguão da universidade. O jovem engenheiro que guiara o carro ofereceu-se para subir com ela, mas foi olhado com desdém.

      - Acha que ele vai me atacar? Espere aqui embaixo.

      Ninheimer não estava no estado de espírito adequado para atacar ninguém. Estava juntando suas coisas, sem perder tempo, pressuroso para afastar-se perante a conclusão adversa do julgamento, que chegou ao conhecimento público.

      Olhou paia Calvin com um ai estianhamente desafiador:

      - Veio para me avisar que vai me processar, por sua vez? Se assim for, nada vai conseguir. Não tenho dinheiro, nem emprego, nem futuro. Nem mesmo posso pagar as custas do processo.

      - Se está procurando simpatia, não procure por ela aqui. Foi tudo culpa sua. Porém, não haverá processo contra você, nem contra a universidade. Até mesmo faremos o que pudermos para que não seja preso por perjúrio. Não somos vingativos.

      - É por isso então que ainda não fui preso por me contradizer? Eu estava imaginando... Mas afinal, por que vocês seriam vingativos? Já têm o que querem, agora.

      - Parte do que queríamos, sim. A universidade manterá Easy a seu serviço a um preço de arrendamento consideravelmente maior. Ademais, certa publicidade clandestina do julgamento possibilitará colocar mais alguns dos modelos EZ em outras instituições sem perigo de repetição deste contratempo.

      - Então, por que veio me ver?

      - Porque ainda não tenho tudo o que quero. Quero saber por que odeia tanto os robôs. Mesmo que tivesse ganho a causa, sua reputação teria sido arruinada. O dinheiro que poderia ganhar não compensaria. Só a satisfação de seu ódio por robôs bastaria?

      - A senhora está interessada em mentes humanas, dra. Calvin? - perguntou Ninheimer, com ácido sarcasmo.

      - Tanto quanto suas reações concernem ao bem-estar dos robôs, sim. Por esta razão, aprendi um pouco da psicologia humana.

      - O suficiente para me ludibriar!

      - Não foi tão difícil. O difícil foi fazer de um tal jeito que não ferisse Easy.

      - É bem característico seu preocupar-se mais com uma máquina do que com um humano. - Olhou para ela com furioso desprezo.

      Isto não a comoveu:

      - Meramente aparência, professor Ninheimer. Só se preocupando com robôs é que se pode mostrar preocupação com o homem do século XXI. O senhor entenderia isto, se fosse um roboticista.

      - Li o bastante de robótica para ter certeza de que não quero ser um roboticista!

      - Perdão, o senhor leu um livro sobre robótica, que nada lhe ensinou. Aprendeu o suficiente para saber que poderia ordenar a um robô que fizesse muitas coisas, até mesmo falsificar um livro, se fizesse assim e assim. Aprendeu o suficiente para saber que não poderia ordenar-lhe que esquecesse algo inteiramente sem se arriscar a detecção, mas pensou que poderia ordenar-lhe simplesmente o silêncio, mais seguramente. Estava errado.

      - Adivinhou a verdade pelo silêncio?

      - Não adivinhei. O senhor era um amador e não sabia o suficiente para apagar seus rastros. Meu único problema era provar isto para o juiz e o senhor teve a bondade de nos ajudar neste ponto, pela sua ignorância da robótica, que despreza.

      - Há algum propósito nesta discussão? - perguntou Ninheimer, cansado.

      - Para mim, sim, porque quero que perceba o quanto interpretou mal os robôs. Silenciou Easy dizendo-lhe que se contasse a alguém sobre sua distorção do livro, perderia seu emprego. Isto estabeleceu um certo potencial dentro de Easy, a favor do silêncio, forte o bastante para resistir aos nossos esforços de vencê-lo. Teríamos danificado o cérebro se continuássemos. No banco das testemunhas, porém, o senhor mesmo estabeleceu um contra-potencial mais elevado. Disse que como as pessoas pensariam que você, e não um robô, escreveu as passagens disputadas no livro, você perderia mais que o seu emprego. Perderia sua reputação, sua posição, seu respeito, sua razão para viver. Você não seria lembrado, após a morte. Um novo e mais elevado potencial foi estabelecido por você mesmo... e Easy falou.

      - Meu Deus! - disse Ninheimer, virando a cabeça.

      Calvin era inexorável.

      - Entende por que ele falou? Não foi para acusá-lo, mas para defendê-lo. Pode ser matematicamente demonstrado que ele estava para assumir toda a culpa por seu crime, e negar que você tivesse qualquer coisa a ver com ele. A Primeira Lei exigiria isso. Ele estava para mentir, causar dano a si mesmo, para causar apenas dano monetário a uma corporação. Tudo isto significava menos para ele que a sua salvação. Se você realmente entendesse robôs e robótica, você o deixaria falar. Mas não entende, como eu estava segura disso e como eu disse ao advogado de defesa. Você estava certo, em seu ódio por robôs, que Easy agiria como um humano e se defenderia às suas expensas. Assim, você entrou em pânico e acabou se destruindo.

      Ninheimer disse, intensamente:

      - Espero que algum dia os seus robôs se voltem contra você e a matem!

      — Não seja bobo, agora quero que você explique por que fez tudo isso.

      Ninheimer deu um sorriso torto e sem graça.

      - Será que devo dissecar minha mente, eu, para sua curiosidade intelectual, em troca de imunidade de uma acusação de perjúrio?

      - Diga assim, se quiser - disse Calvin, sem emoção. - Mas explique.

      - Para que possa defender-se mais eficazmente contra futuros atentados anti-robô? Com um maior conhecimento?

      - Eu aceitaria isso.

      - Sabe, vou lhe dizer uma coisa - disse Ninheimer. - Ficar só olhando não vai lhe fazer nenhum bem. Não consegue entender a motivação humana. Só consegue entender essas suas malditas máquinas, porque você mesma é uma máquina, com pele por cima.

      Ele estava com a respiração pesada, e não havia hesitação em sua voz, não mais procurava por precisão. Era como se não tivesse mais utilidade para a precisão.

      - Por duzentos e cinqüenta anos, a máquina tem substituído o homem e destruído o artesanato. A cerâmica é cuspida de moldes e prensas. Obras de arte sendo substituídas por bugigangas idênticas estampadas. Chame isso de progresso, se quiser! O artista fica restrito a abstrações, confinado ao mundo das idéias. Precisa imaginar algo, desenhar, e então a máquina faz o resto. Supõe que o ceramista fica contente com a criação mental? Supõe que a idéia é o bastante? Que não há nada em apalpar a argila, observar a coisa aparecer enquanto mão e mente trabalham juntas! Acha que o aparecer da coisa não age como realimentação para modificar e aperfeiçoar a idéia?

      - Você não é um ceramista - replicou a dra. Calvin.

      - Sou um artista criativo! Projeto e elaboro artigos e livros. Há mais nisso do que apenas pensar palavras e colocá-las na ordem apropriada. Se isto fosse tudo, não teria prazer, não teria retorno. Um livro deve ir tomando forma nas mãos do escritor. É preciso ver concretamente os capítulos crescerem e se desenvolverem. É preciso trabalhar, reelaborar e observar as mudanças tendo lugar até mesmo além do conceito original. É preciso pegar as provas na mão e ver como as sentenças aparecem impressas e remoldá-las de novo. Há uma centena de contatos entre um homem e sua obra a cada etapa do jogo, e o contato entre si é agradável e paga uma pessoa pelo trabalho que coloca em sua criação mais que qualquer outra coisa poderia. E seu robô levaria embora tudo isso!

      - O mesmo faz uma máquina de escrever. O mesmo faz a prensa. Está propondo retornar à iluminação manual de pergaminhos?

      - Máquinas de escrever e prensas removem alguma coisa, mas o seu robô privar-nos-ia de tudo. Seu robô assumiu as provas. Logo este ou outros robôs assumirão os originais, a pesquisa de material, a verificação cruzada de citações, talvez mesmo a dedução de conclusões. O que restaria ao estudioso? Só uma coisa: as decisões estéreis sobre que ordens dar ao robô a seguir! Quero salvar as futuras gerações do mundo acadêmico de um tal inferno. Isto significa mais para mim do que minha reputação, e assim parti para destruir a U. S. Ro-bots por quaisquer meios.

      - Só podia falhar - falou Susan Calvin.

      - Só podia tentar - falou Simon Ninheimer.

      Calvin deu meia volta e saiu. Fez o melhor para não sentir nenhuma ponta de simpatia pelo homem derrotado. Mas não conseguiu totalmente.

POBRE ROBÔ PERDIDO

      As medidas tomadas na Hiperbase assumiram um caráter um tanto frenético – o equivalente muscular de um grito histérico.

      Relacionadas em ordem cronológica e de desespero, foram as seguintes:

      1 – Todo o trabalho do Plano Hiperatômico realizado em todo o volume de espaço ocupado pelas Estações do Vigésimo Sétimo Grupo Asteroidal foi suspenso;

      2 – Todo o referido volume de espaço foi, praticamente falando, isolado do Sistema. Ninguém entrava sem permissão. Ninguém podia sair, em hipótese alguma;

      3 – Viajando por uma nave espacial de patrulha pertencente ao governo, os Drs. Peter Bogert e Susan Calvin, respectivamente Diretor-Matemático e Psicóloga-Chefe da U.S. Robôs & Homens Mecânicos S.A., chegaram à Hiperbase.

      Susan Calvin jamais deixara a superfície da Terra e não sentia o mínimo desejo de fazê-lo naquela ocasião. Embora a humanidade estivesse na Era do Poder Atômico e caminhasse obviamente para a realização do Plano Hiperatômico, a Dra. Calvin permanecia tranqüilamente provinciana. Assim sendo, estava descontente com a viagens e ainda não se convencera de sua urgente necessidade; durante o primeiro jantar na Hiperbase, cada linha de seu rosto sem atrativos de mulher madura demonstrava claramente tais sentimentos.

      A expressão do rosto pálido e bem cuidado do Dr. Peter Bogert também não escondia uma certa desconfiança.

      Por outro lado, o Major-General Kallner, diretor-geral do projeto, não deixou de manter uma expressão preocupada.

      Em resumo, a refeição foi um episódio desagradável, e a pequena reunião que os três realizaram em seguida teve início em um ambiente sombrio e infeliz.

Kallner, com a calva brilhando e o uniforme de gala contrastando estranhamente com a atmosfera geral, tomou a palavra, demonstrando inquietação e procurando ir diretamente ao assunto:

      – Meu senhor, minha senhora, trata-se de uma história esquisita de contar. Desejo expressar meus agradecimentos por terem vindo tão depressa, sem que tenhamos declarado o motivo do apelo. Agora, tentarei corrigir o lapso. Perdemos um robô. O trabalho foi suspenso e deve continuar assim até conseguirmos localizar o robô perdido. Como falhamos até o momento, julgamos necessário obter o auxilio de especialistas.

      Talvez o general sentisse que seu problema era uma espécie de anticlímax, pois continuou com um certo toque de desespero:

      – Não preciso ressaltar a importância do trabalho que realizamos aqui. Mais de oitenta por cento das verbas para pesquisas científicas foram reservados a nós...

      – Bem, sabemos perfeitamente – disse Bogert, em tom amável. – A U.S. Robôs

está recebendo uma taxa de aluguei pelo uso de nossos robôs. Susan Calvin interrompeu em tom brusco e azedo:

      – Por que motivo um simples robô é tão importante para o projeto e por que ainda não foi localizado?

      O general virou para ela o rosto vermelho e umedeceu os lábios com a ponta da língua.

      – Bem, de certo modo, já o localizamos – replicou, acrescentando em tom quase angustiado: – Acho melhor explicar tudo. Tão logo soubemos que o robô não se apresentou devidamente, declaramos um estado de emergência e suspendemos todo e qualquer movimento na base. Na véspera, uma nave espacial de carga chegara à Hiperbase e descarregara dois robôs destinados a nossos laboratórios. A nave trazia sessenta e dois robôs do... bem... do mesmo tipo, destinados a outros estabelecimentos. Temos absoluta certeza do número. Não há a menor possibilidade de dúvida a respeito.

      – Sim? E qual a ligação existente?

      – Quando não conseguimos localizar o robô que estava faltando – e posso assegurar-lhes que seríamos capazes de encontrar uma folha de grama, nesta base, se fosse necessário – resolvemos contar os robôs que restavam na nave espacial de carga. E encontramos sessenta e três.

      – De modo que, segundo posso deduzir, o sexagésimo terceiro robô é o que desapareceu da base? – indagou Susan Calvin, um tanto irritada.

      – Sim. Só que não temos meios para descobrir qual é o sexagésimo terceiro. - Houve uma pausa de completo silêncio. O relógio elétrico emitiu onze badaladas. Então, a robopsicóloga disse:

      – Muito peculiar. - Baixou os cantos dos lábios e virou-se para o colega, com uma expressão raivosa: – Peter, o que há de errado aqui? Que espécie de robôs são usados na Hiperbase?

      O Dr. Bogert hesitou, com um sorriso amarelo.

      – Foi um assunto muito delicado até agora, Susan.

      – Sim – até agora – retrucou ela, falando com rapidez. – Se existem sessenta e três robôs, um dos quais deve ser identificado, mas cuja identidade é impossível determinar, por que não serve qualquer um deles? Que significa tudo isto? Por que mandaram chamar-nos?

      Bogert respondeu em tom resignado:

      – Se você me der uma oportunidade, Susan... Acontece que a Hiperbase está usando robôs cujos cérebros não são totalmente impressionados com a Primeira Lei da Robótica.

      – Não são impressionados? – repetiu Susan Calvin, deixando-se escorregar na poltrona. – Compreendo... Quantos foram fabricados?

      – Alguns poucos. Por ordem do governo; foram tomadas todas as precauções para manter a inviolabilidade do segredo. Somente os homens diretamente ligados ao assunto tornaram conhecimento do fato. Você não foi incluída na lista, Susan. Eu nada tive a ver com isso.

      O general interrompeu em tom autoritário:

      – Eu gostaria de explicar esse fato. Na verdade, eu não sabia que a Dra. Calvin não estava a par da situação. Não é necessário lembrar à Dra. Calvin que sempre existiu no Planeta uma forte oposição aos robôs. A única defesa que o governo teve contra os Fundamentalistas radicais foi o fato de que os robôs sempre foram construídos com uma Primeira Lei inviolável – que os impossibilita de causar qualquer mal aos seres humanos, quaisquer que sejam as circunstâncias. – Mas precisávamos ter robôs de tipo diferente. Assim sendo, separamos alguns do modelo NS-2 – os Nestors –, que foram preparados com a Primeira Lei ligeiramente modificada. Para que o fato fosse mantido em segredo, todos os robôs NS-2 foram fabricados sem número de série; os robôs modificados são enviados até aqui juntamente com um grupo de robôs normais. E, naturalmente, todos os do nosso tipo especial são condicionados a jamais revelar sua modificação a pessoal não autorizado.

      Com um sorriso embaraçado, concluiu:

– Agora, nossas precauções se voltaram contra nós.

Susan Calvin perguntou asperamente:

      – O senhor perguntou a cada um deles qual é o robô modificado? O senhor é pessoa autorizada, não é mesmo? O general meneou afirmativamente a cabeça, respondendo:

      – Todos os sessenta e três negam ter trabalhado aqui anteriormente – e um deles está mentindo.

      – O que o senhor deseja descobrir não apresenta vestígios de uso? Pelo que entendi, os outros são novos em folha, recém saídos da fábrica.

      – O robô desaparecido chegou somente no mês passado. Ele e os outros dois que acabaram de chegar seriam os últimos de que necessitamos. Não há sinais perceptíveis de uso – replicou o general, sacudindo vagarosamente a cabeça, com uma expressão preocupada no olhar. – Não ousamos permitir que a nave parta desta base, Dra. Calvin. Se a existência de robôs que não estão sujeitos à Primeira Lei chegar ao conhecimento do público...

      Nem era preciso concluir o pensamento.

      – Destrua todos os sessenta e três robôs – replicou a robopsicóloga, fria e impiedosamente. – Assim, o caso estará encerrado. Bogert franziu os lábios.

      – Isso significaria destruir trinta mil dólares por robô. Creia que a U.S. Robôs não gostaria muito da idéia. Acho melhor fazermos um esforço antes de destruirmos qualquer um deles, Susan.

      – Neste caso, preciso de fatos – retrucou Susan Calvin, irritada. – Qual é, exatamente, a vantagem que a Hiperbase obtém dos robôs modificados? Que fator os torna úteis e desejáveis, general?

      Kallner franziu a testa e passou a mão pela cabeça.

      – Tivemos dificuldades com os robôs anteriores. Nossos homens trabalham bastante com radiações fortes, compreende? E um serviço perigoso, naturalmente, mas tornamos precauções razoáveis. Houve apenas dois acidentes, desde que iniciamos o trabalho – e nenhum deles foi fatal. Entretanto, seria impossível explicar isto a um robô comum. Como sabe, a Primeira Lei diz textualmente: “Nenhum robô pode fazer mal a um ser humano, ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum dano”.

      – Trata-se de um fato primário, Dra. Calvin. Quando se tornava necessário que um de nossos homens ficasse exposto por um curto período a moderadas radiações gama, que não teriam qualquer efeito fisiológico, o robô mais próximo atirava-se sobre ele, arrastando-o do local. Quando o campo de radiações era muito fraco, o robô conseguia seu intento e não podíamos prosseguir o trabalho até que todos os robôs fossem afastados do local. Se o campo fosse um pouco mais forte, o robô jamais chegava ao técnico, pois seu cérebro positrônico desfazia-se sob a ação dos raios gama – caso em que ficávamos privados de um robô caro e muito difícil de substituir.

      – Tentamos argumentar com eles. Os robôs alegavam que o homem que penetrasse num campo de radiações gama estava colocando sua vida em perigo e que pouco lhes importava que ele pudesse permanecer ali por meia hora sem sofrer maiores danos. Diziam: suponhamos que o homem se esqueça e fique ali durante uma hora. Em sua opinião, um robô não tem direito de correr tal risco. Tentamos convencê-los de que eles estavam arriscando suas próprias vidas por causa de uma possibilidade remota. Todavia, a autopreservação é apenas a Terceira Lei da Robótica – e a Primeira Lei, concernente à segurança dos seres humanos, prevalece sobre ela. Resolvemos dar ordens; ordenamos severa e estritamente que os robôs se mantivessem fora dos campos de raios gama – a qualquer custo. Acontece que a obediência é apenas a Segunda Lei da Robótica – e a Primeira Lei, que diz respeito à segurança dos seres humanos, prevalece também neste caso. De modo que, Dra. Calvin, enfrentamos um dilema: ou seríamos obrigados a abrir mão dos robôs, ou teríamos que modificar a Primeira Lei. E fizemos nossa escolha.

      – Não posso acreditar que tenha sido possível suprimir a Primeira Lei – declarou Susan Calvin.

      – Não foi suprimida, foi modificada – explicou Kallner. – Construíram-se cérebros positrônicos que continham apenas o aspecto positivo da Primeira Lei, que diz: “Nenhum robô pode causar mal a um ser humano”. Nada mais do que isto. Assim sendo, o novo tipo de robôs não sofre de qualquer compulsão no sentido de evitar que um ser humano sofra danos causados por um agente estranho, como as radiações gama. Expliquei corretamente, Dr. Bogert?

      – Muito bem – assentiu o matemático.

      – E esta é a única diferença entre seus robôs e o tipo NS-2 comum? A única diferença? E, Peter?

      – E a única diferença, Susan.

      A Dra. Calvin se ergueu e disse em tom firme e decidido:

      – Agora pretendo dormir. Dentro de oito horas, desejo falar com o homem que viu o robô pela última vez. E de agora em diante, General Kallner, se devo assumir alguma responsabilidade pelos acontecimentos, exijo o controle total e inquestionável da investigação.

      Susan Calvin não conseguiu dormir. Passou apenas duas horas em um langor cheio de ressentimento. As sete da manhã – hora local – bateu à porta de Bogert e verificou que este também estava acordado. Aparentemente, o matemático tornara a precaução de trazer um robe de chambre para a Hiperbase. Estava sentado, cortando as unhas. Largou a tesoura quando Susan entrou.

      – Eu já estava à sua espera – declarou. – Creio que a situação não lhe agrada.

      – Exatamente.

      – Bem... sinto muito. Não havia meio de evitar. Logo que recebemos o chamado da Hiperbase, calculei que houvesse algo errado com os Nestors modificados. Mas que poderia fazer? Não pude revelar tudo a você, durante a viagem, como gostaria de fazer, porque precisava ter certeza. A questão da modificação é segredo absoluto.

      – Mas eu deveria ser informada – murmurou a psicóloga. – A U.S. Robôs não tinha  o direito de fazer tal modificação em cérebros positrônicos sem a aprovação de um psicólogo. Bogert ergueu as sobrancelhas, suspirando.

      – Seja razoável, Susan. Você não conseguiria influenciá-los. Nesta questão, o governo acabaria por conseguir o que desejava. Querem realizar o Plano Hiperatômico e os físicos etéricos desejam ter robôs que não interfiram em seu trabalho. Haviam de consegui-los, mesmo que fosse necessário alterar a Primeira Lei. Fomos forçados a admitir que era possível, sob o ponto de vista da fabricação. E eles juraram por todos os modos que desejavam apenas vinte robôs modificados, que seriam utilizados unicamente na Hiperbase e destruídos tão logo o Plano Hiperatômico fosse realizado, além disso, seriam tomadas todas as precauções. Insistiram em manter o mais absoluto segredo. Eis aí os fatos.

      A Dra. Calvin murmurou com os dentes trincados:

      – Eu teria pedido demissão.

      – De nada adiantaria. O governo ofereceu uma fortuna à companhia e ameaçou promulgar uma legislação anti-robôs em caso de recusa. Ficamos em situação difícil, então – e estamos em situação difícil, agora. Se o segredo for revelado, Kallner e o governo poderiam sofrer as conseqüências, mas os danos sofridos pela U.S. Robôs seriam muito mais sérios.

      A psicóloga fitou-o com insistência.

      – Não compreende o que significa tudo isso, Peter? Não entende o que pode significar a supressão da Primeira Lei? Não se trata apenas de uma questão de sigilo.

      – Sei o que significaria a supressão. Não sou criança. Sei que acarretaria completa instabilidade, sem soluções não imaginárias para as Equações de Campo Positrônico.

      – Sim, sob o ponto de vista matemático. Mas é impossível traduzir isso em termos ou pensamentos psicológicos. Peter, toda a vida normal – conscientemente ou não – ressente-se contra o domínio. Se tal domínio é exercido por um ser inferior, ou supostamente inferior o ressentimento se torna maior. Sob o ponto de vista físico e, de certa maneira, também sob o aspecto mental, um robô – qualquer robô – é superior aos seres humanos. Que fator o torna escravo dos homens? Unicamente a Primeira Lei! Ora, sem ela, a primeira ordem que você desse a um robô resultaria na sua morte. Instabilidade? E o que você pensa!

      – Susan – replicou Bogert, com um ar de divertida simpatia. – Admito que esse complexo de Frankenstein exibido por você tem uma certa justificativa. Na verdade, é a causa da Primeira Lei. Mas, repito, a Primeira Lei não suprimida; foi apenas modificada.

      – E quanto à estabilidade do cérebro?

      O matemático franziu os lábios.

      – Diminuiu, naturalmente. Mas continua dentro dos limites de segurança. Os primeiros Nestors modificados foram entregues à Hiperbase há nove meses e nada houve de errado com eles até agora. Além disso, a situação atual envolve apenas o temor de quebrar o sigilo, nada tendo a ver com ameaça a seres humanos.

      – Muito bem, então. Veremos em que resultará a conferência matinal.

Delicadamente, Bogert abriu a porta para Susan Calvin e fez uma careta eloqüente quando ela saiu. Não via razão alguma para modificar sua eterna opinião a respeito da psicóloga: uma mulher frustrada e azeda.

      Os pensamentos de Susan Calvin não incluíam Peter Bogert, Havia muitos anos que ela o classificara como um melífluo pretensioso.

      Gerald Black obtivera o diploma de física etérica no ano anterior e, em comum com toda a sua geração de físicos, viu-se entregue ao problema do Plano Hiperatômico.

      No momento, constituía-se em mais uma contribuição adequada à atmosfera geral das conferências realizadas na Hiperbase. Em seu guarda-pó branco, manchado pelo trabalho, mostrava-se um tanto rebelde e totalmente inseguro. A força de seu corpo atarracado parecia prestes a explodir, e seus dedos, torcendo-se mutuamente em arrancos, teriam facilmente dobrado uma barra de aço.

      O Major-General Kallner estava sentado a seu lado; Susan Calvin e Peter Bogert achavam-se diante deles. Black declarou:

      – Disseram-me que foi o último a ver o Nestor 10 antes de seu desaparecimento. A Dra. Calvin o observava com evidente interesse.

      – Fala como se não tivesse certeza, meu jovem. Não sabe se foi o último a vê-lo?

      – Ele trabalhava comigo nos geradores de campo e estava comigo na manhã em que desapareceu. Não sei se alguém o viu depois do meio-dia. Ninguém admite o fato.

      – Acha que alguém pode estar mentindo?

      – Eu não diria tal coisa. Mas, por outro lado, não quero levar a culpa – replicou Black, com os olhos escuros faiscando.

      – Não se trata de uma questão de culpa. O robô agiu daquela forma em virtude daquilo que ele é. Estamos apenas procurando localizá-la. Deixemos o resto de lado, Sr. Black. Ora, se o senhor trabalhava com o robô, é provável que o conheça melhor do que qualquer outra pessoa. Notou algo incomum a respeito dele? Já trabalhara com robôs anteriormente?

      – Trabalhei com os outros robôs que temos aqui – os do tipo comum. Nada há de diferente com os Nestors, a não ser que se mostram muito mais inteligentes – e irritantes.

      – Irritantes? De que maneira?

      – Bem... Talvez não seja culpa deles. O trabalho aqui é duro e a maioria acaba por ficar um pouco irritada. Lidar com o hiperespaço não é brincadeira – replicou Black exibindo um leve sorriso, encontrando prazer na confissão. – Corremos continuamente o risco de abrir uma brecha na barreira normal de espaço-tempo e sumir do universo, com asteróide e tudo. Parece maluquice, não é? Como é natural às vezes nossos nervos ficam tensos. Mas isso não acontece com os Nestors; são sempre curiosos, calmos, não se preocupam. Por vezes, quase nos levam à loucura. Quando desejamos algo com a máxima rapidez, eles parecem trabalhar com a maior calma. Há ocasiões em que tenho vontade de me ver livre deles.

      – Disse que eles trabalham com a maior calma. Alguma vez já se recusaram a obedecer uma ordem?

      – Oh, não... – respondeu Black rapidamente. – Fazem tudo certo. E falam quando acham que estamos enganados. Nada sabem sobre o assunto, exceto o que nós lhes ensinamos; mas isto não os impede de dar opiniões. Talvez seja apenas imaginação de minha parte, mas creio que os outros rapazes têm a mesma dificuldade com os seus Nestors.

      O General Kallner pigarreou ameaçadoramente.

      – Por que não recebi reclamações a respeito, Black?

      O jovem físico corou.

      – Bem... na verdade, não desejamos ficar privados dos robôs, senhor. Além disso, não tínhamos idéia de como queixas tão... tão insignificantes... seriam recebidas. Bogert interrompeu suavemente:

      – Aconteceu algo, em particular, na manhã em que viu o robô pela última vez?

      Houve uma pausa. Com um gesto tranquilo, Susan Calvin interrompeu o comentário que Kallner estava prestes a fazer. Esperou, paciente. De súbito, Black explodiu raivosamente:

      – Tive uma pequena encrenca com ele. Naquela manhã, quebrei uma válvula Kimball, o que significava um atraso de cinco dias em meu trabalho; todo o meu programa estava atrasado. Além disso, há duas semanas eu não recebia correspondência de casa. Então, ele apareceu, querendo que eu repetisse uma experiência que abandonara há um mês. Estava sempre me aborrecendo com aquele assunto e já me cansara daquilo. Mandei-o embora – e foi a última vez que o vi.

      – Mandou-o embora? – indagou a Dra. Calvin, com súbito interesse. – Nesses termos? Disse-lhe: “Vá embora” ? Tente lembrar-se exatamente das palavras.

      Aparentemente, Black enfrentava uma luta interior. Apoiou a testa na palma da mão por um momento. Em seguida, ergueu repentinamente a cabeça e declarou em tom de desafio:

      – Eu disse: “Suma-se!”

      Bogert soltou uma risada curta.

      – E ele obedeceu, não é?

      Mas Susan Calvin não considerou o assunto encerrado. Falou em tom suave:

      – Agora, Sr. Black, estamos progredindo. Entretanto, os detalhes exatos são importantes. Quando se trata de compreender as ações de um robô, a solução pode estar numa palavra, num gesto, numa ênfase. Por exemplo: o senhor poderia não ter dito apenas essas duas palavras, não é mesmo? A julgar pelo que relatou, deveria estar um tanto apressado. Talvez tenha dado ênfase ao que disse.

      O jovem ficou muito vermelho.

      – Bem... talvez eu o tenha chamado de... algumas coisas.

      – Que coisas, exatamente?

      – Oh... não me lembro exatamente. Além disso, não poderia repetir. A senhora sabe, quando a gente se excita... – respondeu ele, com uma risadinha embaraçada.

      – Creio que tenho uma certa tendência para usar linguagem pesada.

      – Não há problema – declarou Susan Calvin, com ar severo. – No momento, sou apenas uma psicóloga. Gostaria que o senhor repetisse exatamente o que disse, da melhor forma que se lembrar e – o que é ainda mais importante – no exato tom de voz que usou na ocasião.

      Black virou-se para seu comandante, à procura de apoio. Não encontrou. Abriu muito os olhos, empalidecendo.

      – Não posso...

      – E preciso.

      – Suponhamos que se dirija a mim – interpôs Bogert, mal conseguindo disfarçar seu divertimento. – Talvez ache mais fácil. Black tornou a coroar, virando-se para Bogert. Engoliu em seco.

      – Eu disse...

      Perdeu a voz. Tentou outra vez:

      – Eu disse... - Então, respirou fundo e falou, numa torrente continua de sílabas. Depois, na atmosfera carregada que pairava na sala, conclui, quase em lágrimas: – ... foi mais ou menos isso. Não me lembro a ordem exata das palavras e talvez tenha esquecido algumas delas. Mas foi quase isso.

      Apenas um leve rubor traía qualquer sentimento por parte da robopsicóloga, que disse:

      – Conheço o significado da maior parte das palavras usadas. Suponho que as outras sejam igualmente ofensivas.

      – Temo que sim – replicou o atormentado Black.

      – E em meio a isso tudo, o senhor mandou que ele sumisse.

      – Falei apenas em sentido figurado.

      – Compreendo. Estou certa de que não haverá medidas disciplinares.

      Ante o olhar de Susan Calvin, o general, que segundos antes não parecia tão certo disso, meneou afirmativamente a cabeça, visivelmente enraivecido.

      – Pode retirar-se, Sr. Black. Obrigada por sua colaboração.

      Susan Calvin levou cinco horas para entrevistar os sessenta e três robôs. Foram cinco horas de continua repetição. Substituição após substituição de robôs idênticos. Perguntas A, B, C e D; respostas A, B, C e D. Uma expressão cautelosamente suave; um tom de voz cuidadosamente neutro; uma atmosfera meticulosamente amistosa.

      E um gravador escondido.

      Quando terminou, a psicóloga sentia-se destituída dos últimos restos de vitalidade. Bogert estava à sua espera e ergueu os olhos, em expectativa, quando ela largou a fita de gravação em cima da mesa. Susan sacudiu a cabeça.

      – Todos os sessenta e três me pareceram idênticos. Seria impossível dizer...

      – Não se poderia esperar que você fosse capaz de distingui-los de ouvido, Susan. Acho melhor analisarmos as gravações.

      Em condições normais, a interpretação matemática das reações verbais de um robô é um dos mais complicados ramos da análise robótica. Requer uma equipe de técnicos especialmente treinados e o auxílio de máquinas comutadoras bastante complexas. Bogert estava ciente do fato.

E foi o que declarou, num rompante de aborrecimento, depois de escutar cada conjunto de respostas, fazendo uma lista das diferenças de palavras e gráficos dos intervalos entre as perguntas e as respostas.

      – Não há sinais de anomalias, Susan. As variações de palavras e o tempo das reações estão dentro dos limites dos grupos de freqüência comuns. Precisamos métodos mais aperfeiçoados. Deve haver computadores nesta base.

Interrompeu-se, franzindo a testa e mordiscando uma unha.

      – Não – acrescentou. – Não podemos usar computadores. Haveria demasiado

perigo de quebra de sigilo. Ou, talvez, se nós... A Dra. Calvin interrompeu-o com um gesto impaciente.

      – Por favor, Peter. Não se trata de um dos seus pequenos problemas de laboratório. Já que não podemos identificar o Nestor modificado por intermédio de alguma diferença patente, visível a olho nu e sobre a qual não possamos ter a menor dúvida, estamos sem sorte. Por outro lado, o risco de cometermos um engano e o deixarmos escapar é grande demais. Não é suficiente descobrirmos uma pequena irregularidade em um gráfico. Vou lhe dizer uma coisa: se isso é o único fator em que nos podemos basear, prefiro destruir todos eles, para ter absoluta certeza de eliminar o problema. Você já falou com os outros Nestors modificados?

      – Já, sim – replicou bruscamente Bogert. – E nada há de errado com eles. Até mesmo demonstram uma amistosidade acima do normal. Responderam minhas perguntas, mostrando-se orgulhosos de seus conhecimentos. As únicas exceções foram os dois últimos, que ainda não tiveram tempo para aprender física etérica. Na realidade, riram, divertindo-se com minha ignorância a respeito de algumas das especializações existentes aqui.

Sacudindo os ombros, acrescentou:

      – Suponho que esta seja a base do ressentimento que alguns dos técnicos nutrem em relação a eles. Talvez os robôs se mostrem animados demais para impressionar-nos com seus conhecimentos superiores.

      – Não podemos tentar algumas Reações Planares, a fim de verificar se houve alguma mudança ou deterioração em seu processo mental desde a época de fabricação?

      – Ainda não o fiz, mas pretendo fazer – replicou Bogert, sacudindo o dedo magro em direção a ela. – Você está perdendo a calma, Susan. Não compreendo por que motivo está dramatizando os fatos. Os robôs modificados são essencialmente inofensivos.

      – São mesmo? – retrucou Susan Calvin, inflamando-se. – São mesmo? Não compreende que um deles está mentindo? Um dos sessenta e três robôs que acabei de entrevistar mentiu para mim, a despeito das estritas ordens para dizer a verdade. A anormalidade indicada está terrivelrnente arraigada e é horrivelmente aterradora.

      Peter Bogert trincou os dentes.

      – Absolutamente não! Escute! O Nestor 10 recebeu ordens para sumir. Tais ordens foram expressas com a máxima urgência e ênfase, pela pessoa mais autorizada para comandá-la. É impossível cancelar tais ordens, seja por uma urgência maior, seja por um direito de comando superior. Naturalmente, o robô tentará defender a obediência às ordens que recebeu. Na realidade, sob o ponto de vista objetivo, admiro sua engenhosidade. De que melhor modo poderia um robô sumir, do que escondendo-se entre um grupo de robôs semelhantes? Creio mesmo que você o admire. Percebo que se diverte com a situação, Peter – diverte-se e demonstra uma espantosa falta de compreensão. Você é especialista em robôs, Peter? Pois saiba que esses robôs dão grande importância ao que consideram superioridade. Você mesmo o disse há pouco. No subconsciente, sentem que os seres humanos são inferiores, e a Primeira Lei, que nos protege deles, é imperfeita. São instáveis. Então, um jovem ordena que um robô se afaste dele, que trate de sumir; exprime-se com toda a aparência verbal de repulsa, desprezo e asco. E verdade que o robô deve obedecer às ordens, mas, subconscientemente, guarda um ressentimento. Achará mais importante do que nunca provar que é superior ao homem, a despeito de todos os nomes horríveis com que foi chamado. Talvez esse desejo se torne tão importante que o pouco que resta da Primeira Lei não seja suficiente para contê-lo.

      – Mas como – na Terra ou em qualquer parte do Sistema Solar – um robô poderá saber o significado das palavras fortes usadas contra ele, Susan? Obscenidades não fazem parte das coisas que são impressas em seu cérebro.

      – A impressão original não é tudo – rosnou Susan Calvin. – Os robôs têm capacidade de aprender, seu... idiota!

      Bogert compreendeu que ela perdera realmente a calma. Susan prosseguiu rapidamente.

      – Não acha que o robô poderia deduzir, pelo tom de voz do homem, que as palavras não significam cumprimentos? Não acha que já ouviu tais expressões anteriormente e notou em que ocasiões elas foram usadas?

      – Muito bem! – berrou Bogert. – Então, quer fazer o favor de me explicar um único modo pelo qual um robô modificado pode causar mal a um ser humano, por mais que esteja ofendido e por maior que seja seu desejo de provar superioridade? Se eu lhe disser um modo, você ficará quieto?

      – Sim.

      Ambos estavam debruçados sobre a mesa, encarando-se raivosamente, quando a psicóloga disse:

      – Se um robô modificado largasse um grande peso sobre um ser humano, não estaria quebrando a Primeira Lei, desde que o fizesse com plena consciência de que sua força e rapidez de reflexos seriam suficientes para deter o peso antes que este atingisse o homem. Entretanto, tão logo o peso lhe saísse das mãos, ele deixaria de ser o agente da agressão. Tudo correria por conta da força cega da gravidade. Então, o robô poderia mudar de idéia e, por omissão, permitir que o peso esmagasse o homem. A modificação efetuada na Primeira Lei possibilitaria o fato.

      – Isto é levar a imaginação longe demais.

      – E é o que a minha profissão exige em certas ocasiões. Vamos parar de discutir, Peter. Você conhece a natureza exata do estímulo que levou o robô a sumir. Você possui os registros das impressões mentais originais do robô. Agora, quero que você me diga se é possível que o robô em questão fizesse o tipo de coisa que acabei de imaginar. Não na circunstância específica, é claro, mas como uma classe geral de reação. E quero que responda depressa.

      – Enquanto isso...

      – Enquanto isso, teremos de tentar alguns testes diretamente relacionados com as reações dos robôs à Primeira Lei.

      Gerald Black, tendo-se apresentado como voluntário, supervisionava a instalação dos painéis de madeira que se expandiram em círculo no enorme salão abobadado do terceiro andar do Prédio de Radiação N' 2. De um modo geral, os operários trabalhavam em silêncio, mas vários deles estavam obviamente intrigados com as sessenta e três fotocélulas que deveriam ser instaladas.

      Um deles sentou-se perto de Black, tirou o chapéu e, pensativa, passou o antebraço pela testa, enxugando o suor. Black meneou a cabeça em direção a ele.

      – Como está indo a coisa, Walensky?

      Walensky sacudiu os ombros e acendeu um charuto.

      – Tudo azul. Mas o que está havendo aqui, afinal, Doutor? Em primeiro lugar, passamos três dias sem trabalhar; agora, querem esta instalação com a maior pressa!

Recostou-se, apoiando-se num cotovelo, e soprou uma nuvem de fumaça. Black franziu a testa.

      – Chegaram da Terra dois especialistas em robôs. Você deve estar lembrado das dificuldades que tivemos com os robôs, quando eles penetravam nos campos de raios gama, antes de conseguirmos convencê-los de que não deveriam agir assim.

      – Lembro-me. Mas não recebemos robôs novos?

      – Tivemos alguns substitutos, mas, na realidade, foi mais uma questão de doutrinação. De qualquer modo, os fabricantes de robôs desejam inventar um tipo que não seja tão danificado pelos raios gama.

      – Certo. Mas acho muito estranho parar todo o trabalho do Plano para cuidar dessa história de robôs. Sempre pensei que o trabalho no Plano não deveria ser interrompido em hipótese alguma.

      – Bem, quem resolve essas questões é o pessoal lá de cima. Eu só faço o que me mandam. Provavelmente é um problema de influência.

      – É... disse o eletricista, sorrindo e dando uma piscadela irônica. – Alguém deve conhecer alguém em Washington... De qualquer forma, enquanto meu pagamento vier em dia, não me preocupo. O Plano não é da minha conta. Que pretendem fazer aqui?

      – Você pergunta a mim? Eles trouxeram uma porção de robôs – mais de sessenta  – e vão medir as reações. Isso é tudo o que sei.

      – Quanto tempo vai levar?

      – É o que gostaria de saber.

      – Bem – comentou Walensky, sarcástico. – Enquanto eles me pagarem direito, podem brincar à vontade com os robôs.

      Black sentiu-se tranqüilamente satisfeito. Agora, era deixar que a história se espalhasse. Tratava-se de uma versão inofensiva e bastante próxima da verdade para conter a curiosidade dos operários.

      O homem estava sentado na cadeira, imóvel e silencioso. Um peso caía, ameaçando esmagá-lo, e era desviado para o lado, no último instante, sob a ação poderosa de um raio de força. Nas sessenta e três celas de madeira, os robôs NS-2 se lançavam para diante na fração de segundo antes que o peso fosse desviado e as sessenta e três células fotoelétricas situadas um metro e meio à frente de sua posição original acionavam as penas dos registros e produziam marcas no papel. O peso subia e caía, subia e caía...

      Dez vezes!

      Dez vezes os sessenta e três robôs saltaram para a frente e estacaram quando o homem permaneceu sentado, ileso.

      O Major-General Kallner ainda não usara seu uniforme completo desde o primeiro jantar que tivera com os representantes da U. S. Robôs. Agora, trajava apenas a camisa azul-cinza, com o colarinho aberto e gravata frouxa. Olhou esperançosamente para Bogert, que permanecia tranqüilo e elegante como sempre; sua tensão interna era traída apenas por um leve brilho de suor nas têmporas.

      - Que lhe parece? – indagou o general. – Que estão tentando verificar?

      Bogert replicou:

      – Uma diferença que talvez seja um pouco sutil demais para nossos objetivos. Para sessenta e dois daqueles robôs, a necessidade de saltar em direção ao homem aparentemente ameaçado pelo peso é – em termos de robótica – uma reação forçada. Veja bem: mesmo quando os robôs sabiam que o homem em questão nada sofreria – como certamente devem ter percebido após a terceira ou quarta queda do peso – não puderam deixar de reagir daquela forma. E uma conseqüência da Primeira Lei.

      – E daí?

      – O sexagésimo terceiro robô, o Nestor modificado, não sofria tal compulsão. Estava livre para agir como bem entendesse. Se quisesse, poderia ter permanecido sentado. Infelizmente, não quis, disse Bogert, com uma ponta de desânimo.

      – Por que supõe isso?

      Bogert deu de ombros.

      – Creio que a Dra. Calvin poderá explicar-nos, quando chegar aqui. E bem provável que nos apresente uma interpretação terrivelmente pessimista dos fatos. As vezes, ela chega a ser um tanto irritante.

      – Mas é qualificada, não é? – indagou o general, com uma súbita expressão de inquietação.

      – E – replicou Bogert, parecendo divertir-se. – E realmente qualificada. Entende os robôs como uma irmã – creio que devido a odiar tanto os seres humanos. Na verdade, psicóloga ou não, ela é extremamente neurótica. Tem tendências paranóicas. Não a leve muito a sério.

Estendeu diante de si a longa série de gráficos.

      – Veja, general: no caso de cada robô, o intervalo de tempo decorrido entre a queda do peso e a complementação do movimento de um metro e meio tende a diminuir com a repetição dos testes. Existe uma relação matemática definida que governa tais reações e qualquer falha indicaria uma anormalidade marcante no cérebro positrônico. Infelizmente, todos parecem normais.

      – Mas se o nosso Nestor 10 não estava reagindo com uma ação forçada, sua curva não deveria ser diferente? Não compreendo...

      – E bastante simples. As reações dos robôs não são perfeitamente análogas às reações humanas – infelizmente para nós. Nos seres humanos, a ação voluntária é muito mais vagarosa que ação reflexa. Com os robôs, o caso é diferente; trata-se meramente de uma questão de liberdade de escolha. Assim sendo, a velocidade da ação forçada e da livre é quase que a mesma. Todavia, eu esperava que o Nestor 10 fosse apanhado de surpresa no primeiro teste e permitisse que o intervalo de tempo antes da reação fosse grande demais.

      – E isso não aconteceu?

      – Temo que não.

      – Então, não conseguimos coisa alguma – disse o general, recostando-se na cadeira com uma expressão compungida. – Vocês já estão aqui há cinco dias.

      – Nesse momento, Susan Calvin entrou, batendo a porta atrás de si.

      – Deixe esses gráficos de lado, Peter! – exclamou ela. – Bem sabe que não mostram coisa alguma.

      Resmungou algo, impaciente, quando Kallner fez menção de erguer-se para cumprimentá-la, e prosseguiu:

      – Precisamos tentar alguma outra coisa, depressa. O que está acontecendo não me agrada. Bogert trocou um olhar resignado com o general.

      - Há algo errado?

      – Quer dizer especificamente? Não. Mas não gosto de pensar que o Nestor 10 possa continuar a iludir-nos. Isto é mau. Deve ser muito recompensador para o seu exagerado senso de superioridade. Temo que sua motivação tenha deixado de ser simplesmente uma questão de obedecer ordens. Creio que passou a ser uma necessidade altamente neurótica de enganar os seres humanos. h uma situação perigosa e instável. Peter, você fez o que lhe pedi? Calculou os fatores de instabilidade dos NS-2 modificados da forma que desejo?

      – Ainda estou trabalhando – disse o matemático, desinteressado. 

      Susan Calvin fitou-o raivosamente por um instante e depois virou-se para o general.

      – O Nestor 10 está decididamente a par do que estamos procurando fazer, general. Não tinha qualquer razão para engolir a isca de nossa experiência, especialmente após a primeira vez, quando deve ter visto que o homem não corria perigo algum. Os outros não podiam deixar de agir como agiram, mas o Nestor 10 falsificou deliberadamente uma reação.

      – Neste caso, que acha que devemos fazer agora, Dra. Calvin?

      – Devemos tomar providências para que ele não consiga fingir uma reação da próxima vez. Repetiremos a experiência, mas com um toque adicional: colocaremos cabos de alta tensão, capazes de eletrocutar os modelos Nestor, entre o homem e os robôs. Serão em quantidade suficiente para impedir que os robôs saltem por cima. Então, cada robô será perfeitamente cientificado de que o fato de tocar nos cabos significará sua morte.

      – Espere! – interrompeu Bogert, com violência. – Proíbo semelhante loucura! Não vamos eletrocutar robôs no valor de dois milhões de dólares, apenas para identificar o Nestor 10. Há outros meios.

      – Tem certeza? Não descobri meio algum. De qualquer forma, não se trata de eletrocutá-los; podemos instalar um interruptor que corte a corrente à menor aplicação de peso nos cabos. Se o robô encostar nos cabos, não morrerá. Mas não saberá do detalhe– entendem? Um brilho de esperança surgiu nos olhos do general.

      – Dará resultado?

      – Deve dar. Nessas condições, o Nestor 10 teria que ficar sentado. Poderíamos ordenar-lhe que tocasse nos cabos e morresse, pois a Segunda Lei, que controla a obediência, é mais forte que a Terceira Lei, referente à autopreservação. Mas ele não receberá ordens: será simplesmente deixado por sua própria conta, como todos os outros robôs. No caso dos robôs normais, a Primeira Lei referente à segurança dos seres humanos os levará à morte – mesmo sem receber ordens. Tal não acontecerá com o nosso Nestor 10. Tendo a Primeira Lei incompleta e não recebendo ordens a respeito, sofrerá maior influência da Terceira Lei, de autopreservação, e não terá outra escolha se não permanecer sentado. Será uma ação forçada.

      – O teste será esta noite, então?

      – Sim. Esta noite – replicou a psicóloga. – Desde que consiga instalar os cabos a tempo. Agora, vou dizer aos robôs o que eles terão que enfrentar.

      O homem estava sentado na cadeira, imóvel, silencioso. Um peso caiu, ameaçando esmagá-lo; no último instante, foi desviado para um lado sob a ação sincronizada de um raio de força.

      Uma única vez...

      E Susan Calvin, postada na pequena cabina de observação instalada no balcão, ergueu-se com uma exclamação de horror.

Sessenta e três robôs permaneceram sentados, fitando impassíveis o homem em perigo. Nenhum deles esboçou o mínimo movimento!

      A Dra. Calvin estava furiosa; era uma fúria quase insuportável. E ainda maior devido a seu desejo de não demonstrar seus sentimentos aos robôs que, um a um, entravam na sala e saíam pouco depois. Susan examinou a lista. Agora, deveria entrar o número vinte e oito... Depois, haveria outros trinta e cinco.

      O Nº 28 entrou, indiferente. A psicóloga esforçou-se por manter uma calma razoável.

      – Quem é você?

      Em voz baixa, insegura, o robô respondeu:

      – Ainda não recebi meu número definitivo, senhora. Sou um robô NS-2 e tinha o número vinte e oito na fila, lá fora. Trouxe um pedaço de papel, com ordens de entregá-la à senhora.

      – Já esteve aqui, hoje?

      – Não, senhora.

      – Sente-se. Ali. Quero lhe fazer algumas perguntas, Nº 28. Esteve na Sala de Radiação do Prédio Dois, há cerca de quatro horas?

      O robô encontrou dificuldades para responder. Afinal, produziu um som rouco, como uma máquina necessitada de lubrificação.

      - Sim, senhora.

      – Lá havia um homem que quase sofreu um acidente, não é?

      – Sim, senhora.

      – E você não fez coisa alguma, não é?

      – Não fiz, senhora.

      – O homem poderia ter morrido porque você não reagiu. Está consciente disso?

      – Sim, senhora. Mas não pude evitá-lo, senhora. 

      E difícil imaginar que uma enorme e inexpressiva máquina metálica pudesse encolher-se, mas foi exatamente o que o robô deu a impressão de fazer.

      – Quero que me diga exatamente por que motivo nada fez para salvar o homem.

      – Desejo explicar, senhora. Certamente não desejo que a senhora... não desejo que ninguém... possa pensar que eu seja capaz de fazer algo que viesse a causar mal a um mestre. Oh, não! Seria horrível... inconcebível...

      – Não se excite, por favor. Não o estou acusando de coisa alguma. Desejo apenas saber o que você pensou naquela ocasião.

      – Antes que tudo acontecesse, a senhora nos explicou que um de nossos mestres estaria em perigo por causa daquele peso e que nós precisaríamos passar por cabos de alta tensão se desejássemos salvá-lo. Bem, senhora, isso não seria suficiente para impedir que eu procurasse salvá-lo. O que é a minha destruição, comparada à segurança

de um ser humano? Mas... mas ocorreu-me a idéia de que se eu morresse antes de chegar até ele, não conseguiria salvá-lo. O peso o esmagaria de qualquer forma e, nesse caso, eu teria morrido sem motivo algum e talvez, algum dia, outro ser humano viesse a morrer porque eu não estaria vivo para salvá-lo. Compreende, senhora?

      – Quer dizer que era uma escolha entre deixar o homem morrer e, por outro lado, morrerem ambos? Correto?

      – Sim, senhora. Era impossível salvar o homem. Ele já poderia ser considerado morto. Nesse caso, seria inconcebível que eu me destruísse sem motivo algum – desde que não recebesse ordens expressas para fazê-la.

      A robopsicóloga girou o lápis entre os dedos. Ouvira a mesma história – com insignificantes variações verbais – vinte e sete vezes antes desta. Agora, vinha a pergunta crucial. 

      - Rapaz – disse ela – seu raciocínio tem suas razões. Mas não é o tipo de coisa que você deveria pensar. Teve essa idéia sozinho?

      O robô hesitou antes de dizer:

      – Não.

      – Quem teve a idéia, então?

      – Estivemos conversando, ontem à noite. Um de nós teve a idéia e todos os outros a acharam razoável.

      – Qual deles teve a idéia?

      O robô pensou bastante.

      – Não sei. Um dentre nós.

      Susan Calvin suspirou.

      – Isto é tudo.

      O seguinte era o número vinte e nove. Depois dele, outros trinta e quatro.

O Major-General Kallner também estava furioso. Havia uma semana que o trabalho na Hiperbase fora totalmente interrompido, com exceção apenas de alguns serviços burocráticos nos asteróides subsidiários. Durante quase uma semana os dois maiores especialistas no assunto haviam agravado a situação com testes inúteis. Agora, eles – ou, pelo menos, a mulher – vinham apresentar propostas impossíveis e absurdas.

      Felizmente para a situação geral, Kallner achava inconveniente demonstrar abertamente sua fúria. Susan Calvin insistia:

      – Por que não, general? E óbvio que a presente situação é desagradável. O único modo pelo qual podemos conseguir resultados no futuro – se houver um futuro para nós nesta questão – é separar os robôs. Não podemos mantê-los junto por mais tempo.

      – Minha cara Dra. Calvin – disse o general, num timbre de voz que atingia os registros mais baixos de barítono – não vejo como alojar sessenta e três robôs espalhados por toda a base.

      A Dra. Calvin ergueu os braços, num gesto de impotência.

      – Então, nada posso fazer. O Nestor 10 imitará os demais robôs, ou apresentarlhes-á argumentos plausíveis para que não façam aquilo que ele não pode fazer. De qualquer forma, a situação é péssima. Estamos travando um verdadeiro combate contra o nosso pobre robô perdido e ele está vencendo. Cada vitória agrava sua anormalidade.

      Ergueu-se, decidida.

      – General Kallner, se o senhor não separar os robôs como estou pedindo, a única coisa que me resta fazer é exigir que todos os sessenta e três sejam destruídos imediatamente.

      – Exigir, hein? – exclamou subitamente Peter Bogert, furioso. – O que lhe dá o direito de exigir tal coisa? Os robôs permanecerão como estão. O responsável perante a direção da firma sou eu e não você.

      – E eu sou responsável perante o Coordenador Mundial – acrescentou o General Kallner. – Preciso resolver o problema.

      – Assim sendo, nada me resta a fazer senão pedir demissão – declarou asperamente Susan Calvin. – Se for necessário obrigá-los a realizar a destruição dos robôs, levarei o assunto ao conhecimento do público. Não fui eu quem aprovou a fabricação de robôs modificados.

      O general replicou, em tom decidido e ameaçador: 

      – Se disser uma só palavra que viole as medidas de segurança, será presa imediatamente, Dra. Calvin.

      Bogert sentiu que a situação se tornava incontrolável. Assumiu um tom quase meloso:

      – Ora, estamos todos começando a nos portar como crianças. Precisamos apenas de um pouco mais de tempo. Certamente seremos capazes de vencer uma batalha mental contra um robô sem que seja preciso pedir demissão, prender alguém ou destruir dois milhões de dólares.

      A psicóloga voltou-se para ele, controlando a raiva.

      – Não admito que um robô desequilibrado continue a existir. Temos um Nestor que é decididamente desequilibrado e outros onze que o são em potencial; além disso, sessenta e dois robôs normais estão sendo submetidos a um meio ambiente desequilibrado. O único método absolutamente seguro é a destruição total.

      A campainha de sinal tocou, fazendo com que os três se interrompessem. O raivoso tumulto de emoções incontidas pareceu congelar-se.

      – Entre – grunhiu Kallner.

      Era Gerald Black, aparentando perturbação. Ouvira as vozes raivosas. Declarou:

      – Achei melhor vir pessoalmente... Não gostaria de pedir a outra pessoa que...

      – De que se trata? Pare de discursos...

      – As trancas do Compartimento C da nave mercante foram mexidas. Há marcas de arranhões recentes.

      – Compartimento C? – indagou Susan Calvin, depressa. – É onde ficam os robôs, não é? Quem foi?

      – Foram mexidas por dentro – replicou Black, lacônico.

      – O fecho não está estragado, está?

      – Não. Está em perfeita ordem. Há quatro dias que estou na nave e nenhum deles tentou escapar. Mas achei melhor informá-los pessoalmente e não era conveniente espalhar a notícia. Fui eu mesmo quem descobriu as marcas.

      - Há alguém lá, agora? – quis saber o general.

      – Deixei lá Robbins e McAdams.

      Houve um silêncio. Em seguida, a Dra. Calvin perguntou ironicamente:

      – Então?

      Kallner esfregou o nariz, hesitando.

      – De que se trata, afinal?

      – Não é óbvio? – retrucou a psicóloga. – O Nestor 10 está planejando escapar. A ordem para sumir perturba sua anormalidade acima de qualquer coisa que possamos fazer. Não me surpreenderia se o pouco que lhe resta da Primeira Lei for insuficiente para contê-la. O Nestor 10 é perfeitamente capaz de apoderar-se da nave e partir com ela. Neste caso, teríamos um robô louco nos controles de uma nave espacial. O que faria ele em seguida? Alguém faz idéia? Ainda quer que os deixemos todos juntos, general?

      – Tolice! – interpôs Bogert, que recobrara seus ares suaves. – Tudo isso por causa de alguns arranhões numa tranca.

      – Já que dá opiniões, Dr. Bogert, pode informar se terminou a análise que lhe pedi?

      – Já.

      – Posso ver o resultado?

      – Não.

      – Por que não? Ou será que também não tenho o direito de perguntar?

      – Porque de nada adiantaria, Susan. Já lhe disse antes que os robôs modificados são menos estáveis que os robôs normais, e é exatamente isto que a minha análise mostra. Há uma certa possibilidade, ínfima, de um colapso, em circunstâncias extremas, que tem poucas probabilidades de ocorrer. Vamos ficar por aqui. Não pretendo fornecer munição para sua absurda exigência de destruir sessenta e dois robôs perfeitos somente porque, até agora, não teve capacidade para localizar o Nestor 10 entre eles.

      Susan Calvin encarou-o, com uma expressão de asco.

      – Não permitirá que coisa alguma interrompa sua ascensão a um cargo de presidente, não é?

      – Por favor – interrompeu Kallner, irritado. – Insiste em afirmar que nada mais podemos fazer, Dra. Calvin?

      – Não consegui imaginar qualquer outro meio, general – replicou Susan, cansada. – Se ao menos houvesse outras diferenças entre o Nestor 10 e os robôs normais – diferenças que não se relacionassem com a Primeira Lei... Uma única diferença – algo relacionado com as impressões mentais, o meio ambiente, especificações...

      Calou-se repentinamente.

      – O que é?

      – Tive uma idéia... Creio...

      Seu olhar assumiu uma expressão distante e dura.

      – Peter, os robôs modificados sofrem as mesmas impressões mentais originais que o tipo normal, não é?

      – Sim. Exatamente as mesmas.

      – Que foi que o senhor disse antes, Sr. Black – prosseguiu ela, virando-se para o jovem que, durante a tempestade que se seguira à sua entrada, mantivera um silêncio discreto. – Certa vez, ao reclamar da atitude de superioridade assumida pelos Nestors, o senhor declarou que os técnicos lhes haviam ensinado tudo o que eles sabiam.

      – Sim, tudo o que sabem de física etérica. Quando chegam aqui, nada sabem a respeito.

      – E verdade – confirmou Bogert, surpreso. – Foi o que eu lhe disse, Susan: quando falei dos outros Nestors, expliquei que os dois últimos que chegaram ainda não aprenderam física etérica.

      – Por quê? – insistiu a Dra. Calvin, demonstrando crescente excitação. – Por que os modelos NS-2 não são impressionados originalmente com física etérica?

      – Posso explicar – declarou Kallner. – Tudo se relaciona com o sigilo. Julgamos que, se fabricássemos um modelo especial, com conhecimentos de física etérica, usássemos apenas doze deles e empregássemos os outros em tarefas não relacionadss com este, certamente haveria suspeitas. Os homens que trabalhassem com os Nestors normais ficariam intrigados quando percebessem que eles conheciam física etérica. Assim sendo, receberam apenas uma capacidade para serem treinados no ramo. Naturalmente, apenas os que vêm para cá recebem tal treinamento. Como vê, é muito simples.

      – Compreendo. Saiam daqui, por favor – vocês todos. Deixem-me refletir por uma hora.

      Susan Calvin sentia-se incapaz de enfrentar a prova pela terceira vez. Sua mente contemplou tal possibilidade e rejeitou-a com uma intensidade que chegou a lhe provocar náuseas. Não podia encarar outra vez aquela série interminável de robôs que sempre repetiam as mesmas coisas.

      Assim sendo, Bogert encarregou-se das perguntas, enquanto ela se sentou a um

canto, com os olhos semicerrados e a mente distraída. O Nº 14 entrou – ainda faltavam quarenta e nove. Bogert ergueu os olhos da lista e perguntou:

      – Qual é o seu número na fila?

      – Quatorze, senhor – respondeu o robô, apresentando o cartão numerado.

      – Sente-se, rapaz.

      O robô obedeceu e Bogert perguntou:

      – Já esteve aqui antes, hoje?

      – Não, senhor.

      – Muito bem, rapaz. Logo que acabarmos aqui, estaremos outra vez diante de um homem em perigo. Na realidade, quando sair desta sala, você será levado a um compartimento, onde deverá esperar tranqüilamente até que precisemos de você. Compreende?

      – Sim, senhor.

      – Ora, naturalmente, se houver um homem em perigo, você tentará salvá-lo.

      – Naturalmente, senhor.

      – Infelizmente, haverá entre você e o homem um campo de raios gama. Silêncio.

      – Sabe o que são raios gama? – indagou asperamente Bogert.

      – Radiações de energia, senhor?

A pergunta seguinte foi feita de modo casual e amistoso: 

– Já trabalhou com raios gama?

      – Não, senhor – foi a pronta resposta.

      – Bem... Os raios gama o matarão instantaneamente, rapaz. E um fato que você deve saber e lembrar. Naturalmente, não deseja destruir-se.

      – Naturalmente – confirmou o robô, parecendo chocado. Em seguida, acrescentou vagarosamente: – Mas, senhor, se os raios gama estiverem entre o homem que deve ser salvo e eu, como poderei salvá-lo? Eu me destruiria sem motivo.

      – Sim, realmente – concordou Bogert, parecendo preocupado com o fato. – A única coisa que posso aconselhar é o seguinte: se perceber a existência de radiação gama entre você e o homem, o melhor é ficar sentado no lugar.

      O robô demonstrou abertamente o alívio.

      – Muito obrigado, senhor. Seria inútil, não é?

      – Evidentemente. Mas se não houver radiações gama, o caso é diferente.

      – Lógico, senhor. Não há a menor dúvida.

      – Pode ir, agora. O homem que está lá fora o levará ao seu cubículo. Faça o favor de esperar lá. Quando o robô saiu, Bogert virou-se para Susan Calvin.

      – Que achou, Susan?

      – Muito bom – disse ela, desinteressada.

      – Acha que poderíamos pegar o Nestor 10 por meio de um rápido interrogatório sobre física etérica?

      – Talvez, mas não é bastante seguro – respondeu ela, com as mãos abandonadas sobre o colo. – Lembre-se de que ele está lutando contra nós; estará sempre em guarda. O único meio pelo qual poderemos pegá-lo é sermos mais espertos – e, dentro de suas limitações, ele é capaz de pensar muito mais depressa do que um ser humano.

      – Bem, só para nos divertirmos... suponhamos que, de agora em diante, eu pergunte aos robôs alguns detalhes sobre raios gama. Limites de comprimento de ondas, por exemplo...

      – Não! – protestou Susan Calvin, animando-se subitamente. – Seria muito fácil para ele negar qualquer conhecimento a respeito e ficaria prevenido contra o teste que vamos tentar – que é nossa última oportunidade. Por favor, Peter, siga as perguntas que indiquei e não faça improvisações. O fato de perguntarmos se já trabalharam com raios gama já é quase um risco. E procure mostrar-se ainda mais desinteressado ao fazer a pergunta.

      Bogert sacudiu os ombros e apertou o botão que daria entrada ao número quinze.

Mais uma vez, tudo estava pronto no amplo Salão de Radiação. Os robôs aguardavam pacientemente em seus cubículos de madeira, todos abertos em direção ao centro, mas separados entre si.

      O Major-General Kallner enxugou a testa com um lenço, enquanto Susan Calvin verificava os últimos detalhes com Gerald Black.

      – Tem certeza – quis saber ela – de que nenhum dos robôs teve oportunidade de conversar com os outros depois de sair da Sala de Orientação?

      – Absoluta – respondeu Black. – Não trocaram uma só palavra.

      – E os robôs estão colocados nos devidos cubículos?

      – Eis aqui a planta de localização.

      A psicóloga examinou pensativamente a planta. O general espiou por cima do ombro dela.

      – Qual é o motivo do arranjo, Dra. Calvin?

      – Solicitei que os robôs que apresentaram as mínimas diferenças nos testes anteriores fossem concentrados em um lado do círculo. Desta vez, vou sentar-me pessoalmente no centro e desejo observar particularmente os robôs em questão.

      – Você vai sentar-se lá!... – exclamou Bogert.

      – Por que não? – replicou Susan friamente. – O que espero ver pode ser algo muito momentâneo. Não posso correr o risco de permitir que outra pessoa seja o principal observador. Você, Peter, ficará no posto de observação; quero que se mantenha atento ao lado oposto do círculo. General Kallner, providenciei para que sejam tornados filmes de cada robô, na eventualidade de que a observação visual não seja suficiente. Caso seja necessário, os robôs devem ser mantidos exatamente onde se encontram, até que os filmes sejam revelados e analisados. Nenhum deles deve sair daqui ou trocar de lugar com outro. Está bem claro?

      – Perfeitamente.

      – Então vamos tentar pela última vez.

      Susan Calvin estava sentada na cadeira, com os olhos atentos. O peso caiu, ameaçando esmagá-la, e foi desviado no último instante pela ação sincronizada de um potente raio de força.

Um único robô se pôs de pé e avançou dois passos. Estacou.

Mas a Dra. Calvin já estava de pé, apontando para ele.

      – Venha cá, Nestor 10! – gritou ela. – Venha cá! VENHA CA!

      Lentamente, com extrema relutância, o robô avançou mais um passo. Sem tirar os olhos dele, a psicóloga gritou a plenos pulmões:

      – Tratem de tirar todos os outros robôs da sala! Depressa! E tratem de mantê-los lá fora! Escutou ruídos e o baque surdo de pés metálicos sobre o chão. Não desviou os olhos do Nestor 10. 

      O Nestor 10 – se realmente era o Nestor 10 – deu mais um passo. Em seguida, sob a força do gesto imperioso da psicóloga, avançou mais dois. Estava apenas a três metros de distância dela, quando falou asperamente: 

      – Mandaram-me sumir...

      Outra pausa.

      – Não devo desobedecer. Até agora, não me encontraram... ele pensaria que sou um fracasso... Ele me disse... Mas não é verdade... Sou poderoso e inteligente... As palavras vinham em torrentes intermitentes. Mais um passo.

      – Sei muito... Ele pensaria que... Descobriram-me... E uma vergonha... Eu não... Eu sou inteligente...E por uma mulher... que é fraca... lenta... Outro passo.

      De repente, um braço metálico se lançou para diante, pousando no ombro de Susan. Esta sentiu-se quase esmagada pelo peso. Com um nó na garganta, soltou um grito abafado. Quase desfalecida, ouviu as palavras de Nestor 10:

      – Ninguém deve encontrar-me... Homem nenhum...

      Sentiu o metal frio de encontro a seu corpo e começou a cair sob o peso.

Então, houve um estranho som metálico e ela caiu, com um baque. Sentiu o peso de um braço brilhante sobre seu corpo. Não se moveu. Nestor 10, caído ao lado dela, também permaneceu imóvel. Em seguida, Susan viu rostos ansiosos debruçados sobre ela. Gerald Black indagou, ofegante:

      – Está ferida, Dra. Calvin?

      Susan sacudiu fracamente a cabeça. Os outros ergueram o braço inerte do robô e levantaram-na do chão.

      – Que aconteceu? – quis saber ela.

      Black explicou:

      – Inundei o salão com raios gama durante cinco segundos. Não sabíamos o que estava acontecendo. Somente no último instante percebemos que ele a atacava e não havia mais tempo para coisa alguma, exceto usar os raios gama. Ele tombou instantaneamente. Mas a intensidade dos raios não foi suficiente para causar mal à senhora. Não se preocupe.

      – Não estou preocupada – replicou ela, fechando os olhos e apoiando-se por um momento no ombro do rapaz.

      – Não creio que tenha sido realmente atacada. O Nestor 10 estava simplesmente tentando atacar-me. O que restava da Primeira Lei ainda o continha.

     

      Duas semanas após seu primeiro encontro com o Major-General Kallner, Susan Calvin e Peter Bogert tiveram uma última reunião com ele. O trabalho na Hiperbase fora reiniciado. A nave espacial que transportava os sessenta e dois robôs NS-2 normais seguira seu destino, com uma história oficialmente imposta para explicar o atraso de duas semanas. A nave governamental estava sendo preparada para levar de volta à Terra os dois especialistas em robótica.

      Kallner estava mais uma vez impecável em seu uniforme de gala. Suas luvas brancas chegavam a brilhar quando ele trocou apertos de mãos com Bogert e Susan Calvin.

      A psicóloga disse:

      – Naturalmente, os outros Nestors modificados devem ser destruídos.

      – Serão. Trataremos de substituí-los por robôs normais, ou, se necessário, trabalharemos sem robôs.

      – Ótimo.

      – Mas, diga-me... a senhora não explicou... como conseguiu descobrir o Nestor 10? Susan Calvin exibiu um leve sorriso.

      – Oh, sim. Eu lhe teria explicado antes da experiência, se tivesse certeza de que ia dar certo. Compreenda: o Nestor 10 tinha um complexo de superioridade que se tornava cada vez mais radical. Agradava-lhe pensar que ele e os demais robôs eram mais que os seres humanos. Na realidade, tornava-se cada vez mais importante para ele pensar dessa forma.

      – Tínhamos conhecimento do fato. Portanto, advertimos previamente todos os robôs de que os raios gama seriam capazes de matá-los e, além disso, avisamos que haveria raios gama entre eles e a cadeira onde eu estaria. Naturalmente, todos permaneceram onde estavam. Pelos argumentos lógicos empregados pelo Nestor 10 no teste anterior, todos estavam convencidos de que seria inútil tentar salvar um ser humano quando sabiam que seriam destruídos antes de consegui-lo.

      – Muito bem, Dra. Calvin; compreendo. Mas por que motivo o Nestor 10 se ergueu da cadeira?

      – Ah! Foi um pequeno arranjo que fiz com o jovem Sr. Black. Na verdade, os raios que banhavam a área situada entre os robôs e minha cadeira não eram raios gama, mas infravermelhos. Simplesmente raios comuns de calor, absolutamente inofensivos. O Nestor 10 sabia que se tratava de raios infravermelhos, inofensivos; assim sendo, fez menção de saltar para diante, como julgou que todos os outros fariam sob a compulsão da Primeira Lei. Somente tarde demais – embora apenas por uma fração de segundo – lembrou-se de que os NS-2 normais eram capazes de perceber a presença de radiações, mas não sabiam identificar o tipo das mesmas. O fato de que ele só poderia identificar os comprimentos de ondas em virtude de ensinamentos que recebera na Hiperbase, sob as ordens de simples seres humanos, era um pouco humilhante demais para que ele se recordasse durante um momento. Para os robôs normais, a área era fatal porque nós lhes dissemos que seria; o único que sabia que estávamos mentindo era o Nestor 10. E por apenas um momento ele esqueceu – ou não quis se lembrar – que outros robôs poderiam ser mais ignorantes do que seres humanos. Foi apanhado por sua própria superioridade. Adeus, general.

     

      Risco

      A Hiperbase sobrevivera até este dia. Espalhados pela galeria da sala de observação, em ordem e precedência estritamente ditada pelo protocolo, havia um grupo de oficiais, cientistas e outros que só podiam ser amontoados sob a classificação geral de "pessoal". De acordo com seus temperamentos isolados, esperavam ansiosos, inquietos, fôlego entrecortado, ou receosos, por esta culminação de seus esforços.

      O interior oco do asteróide conhecido como "Hiperbase" tornara-se, por este dia, o centro de uma esfera de férrea segurança que se estendia por dez mil milhas. Nenhuma nave poderia entrar nesta esfera e sobreviver. Nenhuma mensagem poderia sair sem censura.

      A cem milhas de distância, mais ou menos, um pequeno asteróide movia-se na órbita em que fora instalado um ano antes, uma órbita que circundava a Hiperbase num círculo tão perfeito quanto poderia ser obtido. O número de identificação do asteroidezinho era H937, mas ninguém o chamava, na Hiperbase, de nada senão "Ele". ("Já esteve nele hoje?" - "O general está nele, quebrando a cabeça", - e eventualmente, o pronome chegava a ser falado em letras maiúsculas.)

      Nele, desocupada agora que o segundo zero aproximava-se, estava o Parsec, a única nave de sua espécie jamais construída, na história da humanidade. Permanecia lá, sem tripulação, pronta para sua decolagem para o inconcebível.

      Gerald Black, como um dos brilhantes jovens da engenharia etérica, merecia uma vista de primeira fila. Estalou as grandes juntas de seus dedos, limpou as palmas suadas de sua mão em seu guarda-pó branco, manchado, e disse, acidamente: 

      - Por que não vai incomodar o general, ou a grande dama, ali?

      Nigel Ronson, da Imprensa Interplanetária, olhou brevemente através da galeria para o vulto do major-general Kallner e a mulher obscura a seu lado, mal visível ao lado do ofuscante uniforme.

      - Eu gostaria, mas é que estou interessado nas novidades.

      Ronson era baixo e gordo. Tinha um impecável cabelo escovinha, colarinho da camisa aberto e as pernas de suas calças eram muito curtas, numa fiel imitação dos jornalistas caricaturais de programas de televisão. No entanto, era um repórter bem competente.

      Black era atarracado, e a linha de seus cabelos escuros deixava pouco espaço para testa, mas sua mente era tão aguçada quanto seus dedos eram grossos.

      - Eles têm todas as novidades.

      - Besteira - respondeu Ronson. - Kallner não tem um corpo debaixo de todos aqueles galões. Dispa-o e vai encontrar uma esteira transportadora escorregando ordens para baixo e empurrando responsabilidade para cima.

      Black encontrou-se a ponto de um sorriso, mas reprimiu-o.

      - E sobre a madame doutora?

      - Dra. Susan Calvin, da "U. S. Robots and Mechanical Men Corporation" - recitou o repórter. - A mulher com hiperespaço onde deveria haver um coração, e hélio líquido nos olhos. Ela passaria através do Sol e sairia do outro lado incrustada em chamas congeladas.

      Black chegou ainda mais perto de um sorriso.

      - E o diretor Schloss, então?

      Ronson continuou, loquaz:

      - Sabe demais. Entre desperdiçar o seu tempo soprando a fraca centelha de inteligência de seu interlocutor e atenuar a luz de sua mente por medo de cegar o citado interlocutor permanentemente apenas pela força de sua luz, ele acaba sem dizer palavra.

      Desta vez, Black mostrou os dentes.

      - Agora, suponha que queira me dizer por que escolheu a mim.

      - Fácil, doutor. Olhei para o senhor e concluí que o senhor é feio demais para ser estúpido e esperto demais para perder uma oportunidade de uma boa publicidade pessoal.

      - Lembre-me de nocauteá-lo, algum dia. O que quer saber?

      O homem da Imprensa Interplanetária apontou para o abismo e disse:

      - Aquela coisa vai funcionar?

      Black olhou para baixo, também, e sentiu um vago arrepio perpassá-lo, como o vento noturno de Marte. O abismo era uma grande tela de televisão, dividida em duas. Uma metade, era uma vista geral d'Ele. Em sua superfície cinza esburacada, estava o Parsec, luzindo mudamente à fraca luz solar. A outra metade mostrava a sala de controle do Parsec. Não havia sinal de vida, ali No assento do piloto estava um objeto de vaga humanidade que jamais ocultaria o fato de que era apenas um robô positrônico.

      Black disse:

      - Fisicamente, senhor, funcionará. Aquele robô sairá e voltará. Pelo espaço! Como tivemos sucesso, quanto a esta parte! Eu observei tudo. Cheguei aqui duas semanas depois de me graduar em física etérica e tenho estado aqui, exceto por licenças eventuais, todo o tempo. Estive aqui quando enviamos aquele primeiro pedaço de ferro para a órbita de Júpiter e trouxemos de volta, pelo hiperespaço... só para recolher limalha. Eu estive aqui quando enviamos ratos brancos e trouxemos de volta carne moída. Gastamos seis meses estabelecendo um hipercampo regular, depois disso. Tínhamos de prever até décimos milésimos de segundo, de ponto a ponto da matéria sendo sujeita a um hiperdeslocamento. Depois disto, os ratos brancos voltaram intactos. Lembro-me, quando celebramos uma semana inteira porque um rato branco voltou vivo e viveu dez minutos, antes de morrer. Agora, vivem tanto quanto cuidemos deles.

      - Grande!

      Black olhou para Ronson, obliquamente.

      - Eu disse que fisicamente funcionará. Aqueles ratos brancos que voltaram...

      - Então?

      - Desprovidos de mentes. Nem mesmo mentes pequeninínhas, do tipo da dos ratos brancos. Não comiam. Precisavam ser alimentados à força. Não se acasalam. Não correm. Ficam sentados, sentados, sentados... e é tudo. Finalmente, conseguimos enviar um chimpanzé. Foi lastimável. Era próximo demais de um homem, para que observá-lo fosse tolerável. Estava de volta como um pelote de carne que só fazia rastejar. Podia mover os olhos e por vezes se debatia. Gemia e sentava-se em seus próprios excrementos sem se mover minimamente. Alguém lhe deu um tiro, um dia, e todos lhe fomos gratos. Eu lhe digo, amigo, nada que já foi para o hiperespaço voltou com sua mente.

      - Posso publicar isto?

      - Depois desta experiência, talvez. Esperam grandes coisas dela. - Um canto da boca de Black ergueu-se.

      - E o senhor, não?

      - Com um robô nos controles? Não. - Quase automaticamente, a memória de Black voltou àquele interlúdio, alguns anos antes, em que sem querer fora o responsável pela quase perda de um robô. Pensou nos robôs Nestor que enchiam a Hiperbase com um conhecimento sutil e aprofundado e limitações de perfeccionistas. De que adiantava falar sobre robôs? Ele não era, por natureza, um missionário.

      Mas então Ronson, enchendo o silêncio continuado com um pouco de trivialidades, disse, ao substituir a barra de goma em sua boca por um novo pedaço.

      - Não me diga que o senhor é anti-robô. Sempre ouvi dizer que os cientistas são o único grupo que não é anti-robô.

      A paciência de Black estourou.

      - Isso é fato, e isso é que é o problema. A tecnologia entusiasmou-se demais com os robôs. Qualquer tarefa precisa ter um robô, ou o engenheiro encarregado sente-se frustrado. Você quer um segurador de porta, compre um robô com pé grande. Isso está ficando sério. - Falava em voz baixa e convicta, as palavras dirigindo-se diretamente para o ouvido de Ronson.

      Ronson conseguiu se livrar de seu braço.

      - Ei, não sou robô. Não desconte em mim. Sou humano. Homo sapiens. Acaba de quebrar um osso de meu braço. Não é prova suficiente?

      Tendo começado, porém, era preciso mais que frivolidade para deter Black.

      - Sabe quanto tempo foi gasto com todo este esquema? Encomendamos um robô perfeitamente genérico e demos-lhe só uma ordem. Parágrafo. Ouvi a ordem dada. Eu a memorizei. Curto e grosso. Segure firmemente a barra. Puxe-a firmemente em sua direção. Firmemente! Mantenha segura até que o painel de controle o informe que passou duas vezes pelo hiperespaço.

      Assim, no instante zero, o robô agarrará a barra de controle e puxá-la-á firmemente em sua direção. Suas mãos estão à temperatura do sangue. Uma vez a barra de controle em posição, a expansão térmica completa o contato, e o hipercampo é iniciado. Se qualquer coisa acontecer ao cérebro dele durante a primeira viagem pelo hiperespaço, não importa. Tudo o que precisa fazer é manter a posição por um microinstante e a nave voltará e o hipercampo se desligará. Nada sairá errado. Então estudaremos todas as suas reações generalizadas e veremos se alguma coisa saiu errada.

      Ronson ficou na mesma.

      - Isso tudo me parece fazer sentido...

      - É mesmo? - retrucou Black, contrafeito. - E o que se aprende do cérebro de um robô? É positrônico, o nosso é celular. Ele é metal, o nosso é proteínico. Não são a mesma coisa. Não há comparação. Mas estou convencido de que com base no que aprenderão, ou pensarem que aprenderam, a partir do robô, enviarão homens ao hiperespaço. Pobres diabos! Olhe, não é a questão de morrer. É voltar demente. Se você tivesse visto o chimpanzé, saberia o que quero dizer. A morte é limpa e definitiva. A outra alternativa...

      E o repórter disse:

      - Já falou sobre isso com alguém mais?

      - Sim, eles dizem o mesmo que você. Que eu sou anti-robô, e isto explica tudo. Olhe só a Susan Calvin, ali. Pode apostar que ela não é anti-robô. Ela veio da Terra para observar esta experiência. Se houvesse um homem nos controles, ela não teria dado a mínima importância. Mas, de que adianta!

      - Ei - disse Ronson -, não pare agora. Há mais ainda.

      - Mais o quê?

      - Mais problemas. Você explicou sobre o robô. Mas por que as medidas de segurança, assim tão de repente?

      - Hã?

      - Ora, vamos. De repente, não posso enviar despachos. De repente, as naves não podem penetrar na área. O que está acontecendo? Isto é só mais uma experiência. O público sabe sobre o hiperespaço e sobre o que vocês estão tentando fazer aqui, assim, qual é o grande segredo?

      A maré da ira ainda estava passando por Black, ira contra os robôs, ira contra Susan Calvin, ira contra a memória daquele robô perdido, no passado. Havia ainda ira de sobra, ele constatou, para aquele irritante jornalista e suas perguntinhas irritantes.

      Disse para seus botões: "Vamos ver como ele reage a esta".

      E em voz alta:

      - Quer saber mesmo?

      - Claro que sim.

      - Está bem, nunca iniciamos um hipercampo para qualquer objeto sequer um milionésimo do tamanho daquela nave, ou nem enviamos nada sequer a um milionésimo daquela distância. Isto significa que o hipercampo que logo mais será iniciado é bilhões de vezes mais energético que qualquer outro que já manipulamos. Não temos certeza do que poderá causar.

      - O que quer dizer com isso?

      - A teoria nos diz que a nave será limpamente depositada lá perto de Sirius e limpamente de volta para cá. Mas como um grande volume de espaço em torno do Parsec será carregado com ele? É difícil dizer. Não sabemos o suficiente sobre o hiperespaço. O asteróide em que a nave está pousada agora pode ir-se com ela, sabe, e se nossos cálculos estiverem mesmo com uma pequena discrepância, nunca mais poderá ser trazida de volta. Pode retornar, digamos, a vinte bilhões de milhas de distância. E há uma chance de que mais do espaço que simplesmente o asteróide possa ser deslocado.

      - O quanto mais? - quis saber Ronson.

      - Não sabemos dizer. Há um elemento de incerteza estatística. É por isso que nenhuma nave deve chegar muito perto. É por isso que estamos mantendo tudo em silêncio até que a experiência tenha acabado em segurança.

      Ronson engoliu em seco, audivelmente.

      - Suponhamos que a Hiperbase seja atingida.

      - Há uma chance - respondeu Black, com toda a compostura. - Não é uma chance muito grande, ou o diretor Schloss não estaria aqui, garanto-lhe. No entanto, ainda há uma chance matemática.

      O repórter olhou para seu relógio.

      - Quando é que as coisas começam a acontecer?

      - Em cerca de cinco minutos. Não está nervoso, está?

      - Não - respondeu Ronson, mas sentou-se em silêncio e não fez mais perguntas.

      Black inclinou-se no parapeito. Os minutos finais estavam passando.

      O robô moveu-se!

      Houve uma ondulação em massa das pessoas, para a frente, àquele sinal de movimento, e as luzes se atenuaram para acentuar e dar relevo ao brilho da cena lá embaixo. Mas, até agora, era só um primeiro movimento. As mãos do robô aproximaram-se da barra de partida.

      Black esperou pelo segundo final, quando o robô puxaria a barra em sua direção. Black podia imaginar numerosas possibilidades, e todas saltaram-lhe quase que num instante à mente.

      Haveria primeiro o breve piscar que indicaria a partida para o hiperespaço e a volta. Mesmo que o intervalo de tempo fosse notavelmente pequeno, a volta não seria precisamente à posição de partida, e haveria uma piscada. Sempre havia.

      Então, quando a nave retornasse, talvez poderia ser descoberto que os dispositivos para homogeneizar o campo por todo o grande volume da nave fossem inadequados. O robô poderia ter-se transformado em ferro velho. A nave mesma poderia virar ferro velho.

      Ou seus cálculos poderiam ter uma certa dose de erro e a nave poderia não retomar. Ou, pior ainda, a Hiperbase poderia ir com a nave e nunca voltar.

      Ou, é claro, tudo poderia ir bem. A nave poderia piscar e continuar ali, na mais perfeita forma. O robô, com a mente intacta, sairia de seu assento e daria sinal do término bem sucedido da primeira viagem de um objeto feito pelo homem além do controle gravitacional do Sol.

      O último minuto estava se esgotando.

      O último segundo veio, o robô agarrou a barra de partida e puxou-a firmemente em sua direção...

      Nada!

      Nem piscada, nem nada!

      O Parsec nunca deixou o espaço normal.

      O major-general Kallner tirou seu quepe de oficial para limpar sua testa brilhante e, ao fazê-lo, expôs uma careca que lhe daria dez anos de idade a mais, se a sua expressão facial já não o fizesse. Quase uma hora se passara desde o defeito do Parsec, e nenhuma atitude tinha sido tomada.

      - Como aconteceu? O que houve? Não entendi nada.

      O dr. Mayer Schloss, que aos quarenta era o "decano" da jovem ciência das matrizes de hipercampos, disse, sem esperanças:

      - Não há nada errado com a teoria básica. Eu apostaria minha vida nisso. Há uma falha mecânica na nave, em algum ponto. Nada mais. - Já dissera isso uma dúzia de vezes.

        Pensei que tudo tinha sido testado. - Isto fora dito, também.

      - Foi, sim senhor. Mas mesmo assim... - E isto também. Ficaram sentados, olhando um para o outro, no escritório de Kallner, que agora tinha o acesso vedado a todo o pessoal. Nenhum se atrevia a olhar para a terceira pessoa presente.

      Os lábios finos e faces pálidas de Susan Calvin não apresentavam expressão nenhuma. Ela disse, geladamente:

      - Podem consolar-se com o que lhes disse antes. É duvidoso que algo útil tivesse resultado.

      - Não é hora para essa velha briga - resmungou Schloss.

      - Não estou brigando. A "U. S. Robots and Mechanical Men Corporation" fornecerá robôs sob encomenda para qualquer comprador legítimo, para qualquer uso legal. Fizemos nossa parte, e os informamos que não poderíamos garantir que se pudessem tirar conclusões em relação ao cérebro humano a partir de qualquer coisa que acontecesse ao cérebro positrônico. Nossa responsabilidade termina aqui. Não há o que argumentar.

      - Pelo grande espaço! - disse o General Kallner, num tom que tornava este expletivo demasiado fraco. - Não vamos discutir isso.

      - O que mais poderia ser feito? - murmurou Schloss, levado de volta ao assunto, não obstante. - Até sabermos exatamente o que está acontecendo com a mente no hiperespaço, não poderemos progredir. E até tentarmos... - Ergueu a cabeça, irritado. - Mas o seu robô não é o ponto central, dra. Calvin. Não estamos preocupados com ele, ou seu cérebro positrônico. Maldição, mulher.... - e a voz ergueu-se quase até gritar.

      A robopsicóloga interrompeu-o e o fez calar-se com uma voz que mal ergueu-se de sua constante monotonia.

      - Nada de histerias, homem. Testemunhei muitas crises, ao longo de minha vida, e nunca vi uma que fosse resolvida por histeria. Quero respostas a algumas perguntas.

      Os lábios grossos de Schloss tremeram e seus olhos encovados pareceram contrair-se em suas órbitas e deixar poços sombrios em seu lugar. Disse, grosseiramente:

      - A senhora estudou engenharia etérica?

      - Essa é uma questão irrelevante. Sou Robopsicóloga Chefe da "United States Robots and Mechanical Men Corporation". E há um robô positrônico sentado aos controles do Parsec. Como todos esses robôs, é arrendado, e não vendido. Tenho o direito de exigir informação concernente a qualquer experiência em que um tal robô esteja envolvido.

      - Diga-lhe, Schloss - latiu o general Kallner. - Ela... ela está certa.

      A dra. Calvin voltou seus olhos pálidos para o general, que estivera presente no tempo do caso do robô perdido e que portanto não poderia cometer o erro de subestimá-la. (Schloss estava de licença, doente, naquele tempo, e o ouvir dizer não é tão eficaz quanto a experiência pessoal.) - Obrigada, general.

      Schloss olhou, desarmado, de um para o outro, e disse:

      - O que quer saber?

      - Obviamente, minha primeira pergunta é: qual é o seu problema, se não é o robô?

      - Mas o problema é óbvio. A nave não se moveu. Não pode ver tal coisa? Está cega?

      - Vejo muito bem. O que não vejo é o seu pânico óbvio por alguma falha mecânica. Vocês não esperam por defeitos, às vezes?

      O general continuou, em voz baixa.

      - É a despesa. A nave foi infernalmente cara. O Congresso Mundial, as verbas... - e baixou a cabeça.

      - A nave ainda está lá. Uma revisão e consertos não envolveriam muitos problemas.

      Schloss já se recuperara. A expressão em seu rosto era a de um homem que agarrou sua alma com ambas as mãos, sacudiu-a forte e recolocou-a de pé. Sua voz mesmo alcançara uma espécie de paciência.

      - Dra. Calvin, quando digo "falha mecânica", quero dizer algo como um relê emperrado por um grão de poeira, ou uma conexão inibida por um pouco de graxa, um transistor deixando de funcionar por uma momentânea dilatação térmica. Uma dúzia de outras coisas. Uma centena de outras coisas. Qualquer uma delas pode ser bem efêmera. Podem desaparecer a qualquer instante.

      - O que significa que a qualquer momento o Parsec pode disparar através do hiperespaço e voltar, afinal de contas.

      - Exatamente. Agora entendeu?

      - Não exatamente. Não seria de qualquer modo o que vocês querem?

      Schloss fez um movimento como se começasse um esforço para agarrar uma dupla mancheia de cabelo e puxar.

      - A senhora não é uma engenheira etérica.

      - E isso amarra a sua língua, doutor?

      - Tínhamos a nave engatilhada - disse Schloss, exasperado - para fazer um salto de um ponto definido no espaço em relação ao centro de gravidade da galáxia, até um outro ponto. A volta deveria ser ao ponto original, corrigido quanto ao movimento do sistema solar. Na hora que se passou, desde o instante em que o Parsec deveria ter-se movido, o sistema solar mudou de posição. Os parâmetros originais segundo os quais o hipercampo foi ajustado não mais existem. As leis comuns do movimento não se aplicam ao hiperespaço, e levaríamos uma semana de computação para obter um novo conjunto de parâmetros.

      - O senhor quer dizer que se a nave mover-se agora, voltará a algum ponto imprevisível a milhares de milhas de distância?

      - Imprevisível? - Schloss deu um sorriso oco. - Sim, é o que eu diria. O Parsec poderia acabar na nebulosa de Andrômeda ou no centro do Sol. Em qualquer caso, as probabilidades são contra jamais o vermos de novo.

      Susan Calvin assentiu.

      - A situação então é que se a nave desaparecer, como pode ocorrer a qualquer momento, alguns bilhões de dólares do dinheiro dos contribuintes poderão ser irremediavelmente perdidos, e dirão que metemos os pés pelas mãos.

      O major-general Kallner não poderia fazer uma careta maior se fosse espetado no traseiro com uma fina agulha.

      A robopsicóloga continuou:

      - De alguma maneira, então, o mecanismo de hipercampo da nave deve ser posto fora de ação, e isso o mais cedo possível. Algo terá de ser desligado, ou arrancado ou apagado. - Ela estava falando em parte só consigo mesma.

      - Não é tão simples - disse Schloss. - Não posso explicar completamente, pois que a senhora não é especialista em etérica. É como romper um circuito ordinário cortando fios de alta tensão com uma tesoura de grama. Seria um desastre. Com certeza seria desastroso.

      - O senhor quer dizer que qualquer tentativa de desligar o mecanismo poderia lançar a nave no hiperespaço?

      - Qualquer tentativa ao acaso teria esse resultado, provavelmente. As hiperforças não são limitadas pela velocidade da luz. É muito provável que elas não tenham qualquer limite de velocidade. Isto torna as coisas extremamente difíceis. A única solução razoável é descobrir a natureza do defeito e aprender a partir daqui uma maneira segura de desligar o campo.

      - E como o senhor propõe fazer isso, dr. Schloss?

      Schloss respondeu:

      - Parece-me que a única coisa a fazer é enviar um de nossos robôs Nestor...

      - Não! Não faça essa tolice - interrompeu Susan Calvin. Schloss disse, friamente: - Os Nestor estão familiarizados com os problemas da engenharia etérica. Serão ideais para...

      - Fora de cogitação. Não se pode usar um de nossos robôs positrônicos para um tal propósito sem a minha permissão. Não a tem e não a terão.

      - E qual é a alternativa?

      - Deve enviar um de seus engenheiros.

      Schloss abanou a cabeça violentamente.

      - Impossível. O risco envolvido é demasiado grande. Se perdermos uma nave e um homem...

      - No entanto, vocês não poderão usar um robô Nestor, ou qualquer robô.

      - Eu... eu preciso entrar em contato com a Terra. Todo este problema deve ir para um nível superior - retrucou o general.

      Susan Calvin disse, com aspereza.

      - Eu não o faria, se fosse o senhor, general. Estaria se lançando à mercê do governo sem uma sugestão ou plano de sua autoria. Não se sairá muito bem dessa situação, eu garanto.

      - Mas o que resta fazer? - O general estava usando seu lenço, de novo.

      - Enviem um homem, não há alternativa.

      Schloss empalideceu num cinza pastoso.

      - É fácil dizer: "enviem um homem". Mas... quem?

      - Estive considerando esse problema. Não há um jovem... seu nome é Black... que encontrei na ocasião de minha visita anterior à Hiperbase?

      - O dr. Gerald Black?

      - Acho que sim. É, ele mesmo. Ele era solteiro, então. Ainda é?

      - Sim, creio que sim.

      - Eu sugeriria então que ele fosse trazido aqui, digamos, em quinze minutos e que, entrementes, eu tenha acesso à sua ficha.

      Sorrateiramente, ela assumira a autoridade, nesta situação, e nem Kallner nem Schloss fizeram qualquer tentativa para disputar tal autoridade com ela.

      Black tinha visto Susan Calvin à distância nesta segunda visita dela à Hiperbase. Não fizera movimento algum para diminuir tal distância. Agora que tinha sido chamado à presença dela, surpreendeu-se olhando-a com repugnância e desgosto. Mal notou o dr. Schloss e o general Kallner atrás dela.

      Lembrou-se do último confronto com ela, sofrendo uma dissecação a frio em benefício de um robô perdido.

      Os olhos cinza frios da dra. Calvin estavam fixos constantemente em seus olhos castanhos quentes.

      - Dr. Black - disse ela -, acredito que o senhor entende a situação.

      - Sim, entendo.

      - É preciso fazer alguma coisa. A nave é dispendiosa demais para ser perdida. A má publicidade provavelmente significaria o fim do projeto.

      - Sim, estive pensando nisso.

      - Espero que o senhor também tenha pensado na necessidade de que será necessário que alguém aborde o Parsec, descobrir o que está errado e... bem, desativá-lo.

      Houve a pausa de um momento. Black disse, sem muita educação:

      - E que louco iria lá?

      Kallner franziu o cenho e olhou para Schloss, que mordeu o lábio e olhou para o nada.

      Susan Calvin disse:

      - Há, é claro, a possibilidade de ativação acidental do hipercampo, caso em que a nave pode ir além de qualquer distância atingível. Por outro lado, poderá retornar a algum ponto dentro do sistema solar. Neste caso, nenhuma despesa ou esforço serão poupados para recuperar o homem ou a nave.

      Black ajudou:

      - O idiota e a nave! Só uma correção.

      Susan Calvin não deu atenção ao comentário.

      - Pedi permissão ao General Kallner para apresentar-lhe a questão. É você quem deve ir.

      Sem nenhuma pausa aqui, Black respondeu da maneira mais direta possível:

      - Madame, eu não sou voluntário.

      - Não há nem uma dúzia de homens na Hiperbase com conhecimento suficiente para ter qualquer chance de levar a cabo tudo isso com sucesso. Daqueles que têm o conhecimento, escolhi-o com base em conhecê-lo previamente. Você trará a esta missão uma compreensão...

      - Ei, escute: eu não sou voluntário.

      - O senhor não tem escolha. Por certo que vai encarar a sua responsabilidade.

      - Minha responsabilidade? O que a torna minha?

      - O fato de que você é o mais aconselhável para a tarefa.

      - Conhece o risco?

      - Creio que sim - disse Susan Calvin.

      - Eu sei que você não sabe. Nunca viu aquele chimpanzé. Olhe, quando disse "o idiota e a nave" não estava apenas falando por falar. Estava confirmando um fato. Eu arriscaria minha vida, se precisasse. Não com prazer, talvez, mas eu arriscaria. Arriscar-se à idiotia, uma vida de demência animal, é algo que não quero, isso é tudo.

      Susan Calvin relanceou pensativamente o rosto irado e suarento do jovem engenheiro.

      Black gritou:

      - Mande um de seus robôs, um de seus NS-2.

      Os olhos da psicóloga refletiram uma espécie de brilho frio. Ela disse, muito deliberadamente:

      - Sim, o dr. Schloss sugeriu isso. Mas os robôs NS-2 são arrendados por nossa firma, e não vendidos. Custam milhões de dólares cada, sabe? Eu represento a companhia e decidi que eles são demasiado dispendiosos para serem arriscados numa questão como esta.

      Black ergueu as mãos. Apertou as mãos juntas contra o peito e elas tremeram, como se ele estivesse fazendo força para detê-las.

      - Está me dizendo... está me dizendo que quer que eu vá ao invés de um robô porque sou mais dispensável?

      - Sim, de fato.é isso.

      - Dra. Calvin, eu preferiria encontrá-la no inferno, primeiro.

      - Essa afirmação pode ser quase literalmente verdadeira, dr. Black. Como o general Kallner confirmará, o senhor tem ordem de assumir esta missão. Segundo creio, vocês estão aqui sob lei quase militar, e se recusar uma missão, irá à corte marcial. Um caso como este significa a prisão em Mercúrio, e creio que isto é próximo o suficiente do inferno para tornar a sua afirmação desconfortavelmente precisa, sobre onde eu deveria visitá-lo, o que provavelmente eu não faria. Por outro lado, se concordar em abordar o Parsec e levar a cabo esta missão, significará muito para a sua carreira.

      Black olhou fixamente para ela.

      - Dê ao homem cinco minutos para pensar, general Kallner, e apronte uma nave.

      Dois guardas de segurança escoltaram Black para fora da sala.

      Gerald Black sentia frio. Seus membros moviam-se como se não fossem parte dele. Era como se estivesse observando a si mesmo de algum lugar remoto e seguro, observando-se a bordo de uma nave e aprontando-se para partir para Ele e o Parsec.

      Não conseguia acreditar. Tinha inclinado a cabeça de chofre e dito:

      - Eu vou.

      Mas, por quê?

      Nunca pensara em si como o tipo do herói. Então, por quê? Em parte, é claro, havia a ameaça da prisão em Mercúrio. Em parte, a horrível relutância em aparecer como covarde aos olhos daqueles que o conheciam, aquela covardia arraigada que estava por detrás de quase toda bravata no mundo.

      Principalmente, porém, era algo mais.

      Ronson, da Imprensa Interplanetária, tinha interrompido Black momentaneamente a caminho da nave. Black olhou para o rosto inflamado de Ronson:

      - O que quer?

      Ronson balbuciou:

      - Escute! Quando voltar, quero exclusividade. Arranjo qualquer quantia... o que quiser...

      Black empurrou-o de lado, fazendo-o rodopiar, e foi adiante.

      A nave tinha uma tripulação de dois. Nenhum deles lhe falou. Seus olhares desviavam-se sobre e à volta dele. Black não se importou. Estavam apavorados e sua nave se aproximava do Parsec como um gatinho dirigindo-se para o primeiro cachorro que viu em sua vida. Black podia muito bem ir sem eles.

      Só havia um rosto que continuava perante seus olhos. A expressão ansiosa do general Kallner e o olhar de determinação artificial no rosto de Schloss eram pontinhos momentâneos em sua consciência. Passaram quase de imediato. Era o rosto impassível de Susan Calvin que via. A calma falta de expressão dela, quando abordaram a nave.

      Ficou olhando para o negror onde a Hiperbase desaparecera no espaço...

      Susan Calvin! Doutora Susan Calvin! Robopsicóloga Susan Calvin! O robô que anda como mulher!

      Quais eram mesmo suas três leis? Primeira Lei: - Protegerás o robô com toda tua força e todo teu coração e toda tua alma. Segunda Lei: - Defenderá como sagrados os interesses da "U.S. Robots and Mechanical Men Corporation", desde que não interfira com a Primeira Lei. Terceira Lei: - Dará consideração passageira a um humano, desde que não interfira com a Primeira ou a Segunda Leis.

      Será que algum dia. ela já foi jovem? Ele pensou, furioso. Já teria sentido uma emoção legítima?

      Pelo espaço! Como ele queria fazer alguma coisa - algo que removesse aquele olhar gelado de coisa alguma daquele rosto.

      E o faria!

      Pelas estrelas, que o faria. Era só sair disto sem enlouquecer e providenciaria para esmagá-la e à companhia junto, e toda geração dos robôs com eles. Foi este pensamento que o impulsionava, mais que o medo da prisão ou o desejo de prestígio social. Foi este pensamento que quase eliminou todo seu medo. Quase.

      Um dos pilotos murmurou para ele, sem olhar:

      - Pode saltar daqui mesmo. Está meia milha lá embaixo.

      Black falou, amargoso:

      - Não vai pousar?

      - Ordens estritas para não fazê-lo. A vibração do pouso poderia...

      - E a vibração do meu pouso?

      - Tenho minhas ordens.

      Black não disse mais nada, entrou em seu traje espacial e esperou que a comporta se abrisse. Um conjunto de ferramentas estava soldado firmemente ao metal do traje, em sua coxa direita.

      Assim que entrou no compartimento estanque, os fones de ouvido dentro de seu capacete reboaram:

      - Boa sorte, doutor!

      Levou um instante para ele perceber que vinha dos dois homens a bordo da nave, fazendo uma pausa em sua ânsia para sair daquele volume mal-assombrado do espaço, para conceder-lhe ao menos este consolo.

      - Obrigado - respondeu Black, desajeitado, quase ressentido.

      E então estava lá fora, no espaço, revirando lentamente, em resultado do impulso levemente descentralizado que deu com os pés contra a porta externa.

      Podia ver o Parsec esperando por ele, e olhando entre suas pernas no momento certo das cambalhotas, podia ver o longo jato dos motores laterais da nave que o trouxera, ao se voltar para sair.

      Ele estava só! Pelo espaço, ele estava só!

      Algum homem, em toda a história, ter-se-ia sentido mais só?

      Ele perceberia, imaginou, doentiamente, se alguma coisa acontecesse? Haveria um instante de consciência, ainda? Sentiria sua mente desvanecendo e a luz da razão e do pensamento apagar-se até sumir?

      Ou aconteceria de súbito, como uma guilhotina?

      Em ambos os casos...

      A idéia do chimpanzé, olhos vagos, tremendo com terrores inconscientes, estava bem fresca dentro dele.

      O asteróide estava a vinte pés debaixo dele, agora. Nadava pelo espaço com um movimento absolutamente regular. Exceto pela interferência humana, nenhum grão de areia nele tinha se movido ao longo de períodos astronômicos.

      Na imobilidade máxima d'Ele, alguma partícula mínima de pó impedia o funcionamento de alguma delicada unidade a bordo do Parsec, ou um fragmento de impureza no óleo fino que banhava alguma peça, e a segurava.

      Talvez precisasse uma pequena vibração, um pequeno tremor oriundo da colisão de massa contra massa para desimpedir aquela peça móvel, fazendo-a terminar seu curso, criando o hipercampo, que desabrocharia como uma rosa fantástica.

      Seu corpo estava para tocar a Ele e juntou as pernas, em sua ansiedade de descer suavemente. Não queria sequer tocar o asteróide. Sua pele se arrepiava de aversão.

      Chegava mais perto.

      Agora... agora...

      Nada!

      Só havia o toque contínuo do asteróide, os momentos incômodos da pressão lentamente crescente resultante de sua massa de 250 libras (ele mesmo, mais o traje) com toda sua inércia, mas sem peso nenhum.

      Black abriu os olhos devagarzinho e deixou entrar a visão das estrelas. O Sol era uma bola de cristal reluzente, seu brilho amortecido pela máscara polarizada sobre a viseira. As estrelas eram correspondentemente fracas, mas apresentavam sua configuração familiar. Com o Sol e as constelações normais, era sinal de que ainda estava no sistema solar. Podia ver a Hiperbase, um pequeno crescente atenuado.

      Enrijeceu com o choque à voz repentina em seu ouvido. Era Schloss.

      - Temos o senhor à vista, dr. Black. Não está sozinho!

      Black poderia ter rido com a fraseologia, mas só disse em voz pausada e clara:

      - Desligue. Se continuar falando, vai me distrair.

      Uma pausa. A voz de Schloss, mais persuasiva:

      - Se for informando à medida que progride, poderá aliviar a tensão.

      - Vai ter as minhas informações todas quando eu voltar. Não antes.

      Ele o disse com amargura, e amargamente seus dedos envolvidos em metal moveram-se para o painel de controle em seu peito e desligou o rádio do traje. Que falassem para o vácuo, agora. Tinha seus próprios planos. Se saísse disso sem enlouquecer, o show seria dele.

      Levantou-se, com infinito cuidado, ficando de pé sobre Ele. Bambeou um pouco, com movimentos musculares involuntários, enganando-se com a falta quase total de gravitação, numa série interminável de oscilações, empurrando-o nesta e naquela direção. Na Hiperbase havia um campo pseudo-gravitacional para segurar as pessoas. Black descobriu uma porção de sua mente suficientemente desapegada dali para lembrar-se disso e apreciar in absentia.

      O Sol desaparecera detrás de uma garganta rochosa. As estrelas giravam visivelmente no tempo de rotação de uma hora do asterói-de.

      Podia ver o Parsec de onde estava e agora dirigia-se para ele lenta e cuidadosamente, quase na ponta dos pés. (Nada de vibração, nada de vibração. As palavras suplicavam incessantemente em sua cabeça.)

      Antes de estar totalmente consciente da distância que cruzara, estava na nave. Estava ao pé da linha de empunhaduras que levavam à porta externa.

      E ali fez uma pausa.

      A nave parecia bem normal. Ou pelo menos parecia normal exceto pelo círculo de hastes de aço que a circundavam a um terço da altura, e um segundo círculo a dois terços da altura. No momento, deviam estar fazendo força para se tornarem os pólos de força do hipercampo.

      Um estranho desejo de esticar a mão e pegar uma delas acometeu Black. Foi um daqueles impulsos irracionais, como o pensamento momentâneo: "E se eu saltasse?" Quase inevitável, quando se olha para baixo, de um prédio alto.

      Black tomou um fôlego profundo e sentiu-se enrijecer ao espalmar ambas as mãos e então de leve, muito de leve, colocá-las contra os flancos da nave.

      Nada!

      Agarrou a empunhadura mais baixa e ergueu-se, cautelosamente. Gostaria de ser tão experiente com a manipulação sob gravitação nula quanto os homens da construção. Era preciso exercer força suficiente para vencer a inércia, e então parar. Continuando a puxar demais, você se chocaria contra a nave.

      Subiu devagar, na ponta dos dedos, pernas e quadris balançando para a direita, quando o braço esquerdo subia, e para a esquerda quando o braço direito subia.

      Uma dúzia de degraus e seus dedos flutuavam sobre o contato que abriria a comporta exterior. O marcador de segurança era uma manchinha verde.

      Mais uma vez, ele hesitou. Era o primeiro uso que estava fazendo da energia da nave. Sua mente perpassou os diagramas e a distribuição de força, memorizados. Se apertasse o contato, a energia seria sifonada da micropilha para abrir o monolito maciço de metal, que constituía a comporta externa.

      E então?

      De que adiantava? A menos que tivesse alguma idéia sobre o que poderia estar errado, não havia modo de dizer qual o efeito deste desvio de energia. Suspirou e tocou o contato.

      Suavemente, sem sobressalto nem som, um segmento da nave se desvelou. Black deu mais uma olhada para as constelações amigas (ainda não haviam mudado) e adentrou a caverna brandamente iluminada. A comporta fechou-se lá atrás.

      Um outro contato, agora. A comporta interior precisava ser aberta. De novo, fez uma pausa para meditar. A pressão da atmosfera dentro da nave cairia muito levemente, quando esta porta se abrisse, e se passariam alguns segundos antes que os eletrolisadores da nave compensassem a perda.

      E então?

      A placa posterior Bosch, para mencionar só um item, era sensível à pressão, mas certamente não tão sensível.

      Suspirou de novo, mais de leve (a pele de seu medo estava ficando calejada) e tocou o contato. A comporta interior abriu-se.

      Entrou na sala do piloto do Parsec, e seu coração saltou estranhamente quando a primeira coisa que viu foi a visitela, ajustada para recepção e cheia de estrelas. Forçou-se a observá-las bem.

      Nada!

      Cassiopeia era visível. As constelações estavam visíveis e estava dentro do Parsec. De algum modo, ele podia sentir que o pior já tinha passado. Tendo chegado a este ponto e permanecido dentro do sistema solar, tendo se conservado lúcido até aqui, sentiu que algo vagamente como confiança começava a penetrá-lo de novo.

      Havia uma quietude quase sobrenatural a bordo do Parsec. Black estivera em muitas naves em sua vida, e sempre houvera sons de vida, quer o roçar de um sapato ou um cabineiro cantarolando no corredor. Aqui, até a pulsação de seu coração parecia abafada e desaparecia.

      O robô no assento do piloto estava de costas para ele. Não dava nenhum sinal de ter consciência de sua entrada.

      Black mostrou os dentes num sorriso selvagem e disse, incisivamente:

      - Largue essa barra! Levante-se! - O som de sua voz era como um trovão, no aposento pequeno.

      Tarde demais, receou o que as vibrações de sua voz no ar poderiam causar, mas as estrelas na visitela continuavam inalteráveis.

      O robô, é claro, nem se moveu. Não podia receber sensações de qualquer espécie. Nem mesmo poderia responder à Primeira Lei. Estava congelado no infinito meio do que deveria ter sido um processo quase instantâneo.

      Lembrou-se das ordens que lhe foram dadas. Não eram passíveis de qualquer mal-entendido: "Agarre a barra firmemente. Puxe na sua direção firmemente. Firme! Continue segurando até que o painel de instrumentos o informe que passou pelo hiperespaço duas vezes."

      Bem, não havia passado pelo hiperespaço nem uma vez, ainda.

      Cuidadosamente, moveu-se para mais perto do robô. Estava ali sentado com a barra puxada firmemente entre os joelhos. O mecanismo de disparo devia estar quase em posição. A temperatura de suas mãos metálicas então devia ter encurvado o gatilho, como um termopar, o suficiente para fazer o contato. Automaticamente, Black relanceou para o termômetro no painel. As mãos do robô estavam a 37 centígrados, como deviam. )

      Pensou, sardonicamente: - Que beleza! Estou só com esta máquina e não consigo fazer nada.

      O que ele gostaria era de ter um pé-de-cabra para faze-la em pedacinhos. Degustou um pouco o sabor deste pensamento. Podia ver o horror no rosto de Susan Calvin (se algum horror poderia emergir do gelo, o horror de ver um robô esmagado o faria). Como todos os robôs positrônicos, este aqui era propriedade da U. S. Robots, que o fabricara e o testara.

      E tendo extraído o suco que podia da vingança imaginária, voltou à sobriedade e olhou em volta da nave.

      Afinal, até agora, o progresso foi zero.

      Lentamente, removeu seu traje espacial. Cuidadosamente, pendurou-o. Pé ante pé, andou de sala para sala, estudando as grandes superfícies interpenetradas do motor hiperatômico, acompanhando os cabos, inspecionando os relês de campo.

      Não tocou em nada. Havia uma dúzia de maneiras de desativar o hipercampo, mas cada uma seria ruinosa, a menos que soubesse ao menos aproximadamente onde estava o erro e deixasse seu curso exato de procedimento ser orientado por isto.

      Encontrou-se de volta ao painel de controle e gritou em desespero para a grave estolidez das costas largas do robô.

      - Diga-me! O que está errado?

      Houve o impulso de atacar a maquinaria ao acaso. Arrebentar com tudo e acabar com tudo. Reprimiu firmemente este impulso. Se tivesse uma semana, deduziria de algum modo o ponto de ataque apropriado. Devia isto à dra. Susan Calvin e seus planos para ela.

      Voltou-se devagar nos calcanhares e pensou. Cada parte da nave, do motor, até cada comutador tinham sido exaustivamente verificados e testados na Hiperbase. Era quase impossível acreditar que qualquer coisa desse errado. Não havia uma coisa a bordo da nave...

      Bem, sim, havia, é claro. O robô! Este tinha sido testado na U. S. Robots e eles, malditos demônios, podiam ser aceitos como competentes.

      Como todos sempre diziam: "Um robô naturalmente pode fazer um trabalho melhor".

      Era o que normalmente se presumia, com base em parte nas próprias campanhas publicitárias da U. S. Robots. Poderiam sempre fazer um robô que fosse melhor que o homem, para uma tarefa específica. Não "tão bom quanto um homem", mas "melhor que o homem".

      E enquanto Gerald Black olhava para o robô pensando nisso, seus sobrolhos enrugando-se sob sua testa baixa, seu olhar tornava-se um misto de surpresa e uma esperança impossível.

      Aproximou-se e circundou o robô. Ficou olhando para seus braços segurando a barra de controle em posição de engatilhar, segurando-a para sempre assim, a menos que a nave saltasse, ou a fonte de energia do robô se esgotasse.

      Black murmurou:

      - Eu aposto que sim, eu aposto que sim.

      Afastou-se, pensando profundamente: "precisa ser isso".

      Ligou o rádio da nave. Seu feixe portador já estava focalizado na Hiperbase. Latiu ao microfone:

      - Ei, Schloss.

      Schloss foi pronto em responder:

      - Pelo Grande Espaço, Black...

      - Não importa - respondeu Black, ríspido. - Nada de discursos. Só quero me certificar de que você esteja vendo.

      - Sim, é claro, todos nós. Olhe...

      Mas Black desligou o rádio. Sorriu de um lado só para a câmera de TV dentro da sala de pilotagem e escolheu uma porção do mecanismo do hipercampo que estaria no campo visual. Não sabia quantas pessoas estariam na sala de observação. Deviam estar apenas Kallner, Schloss e Susan Calvin. Poderia estar lá todo o pessoal. Em qualquer caso, lhes daria algo para olhar.

      A Caixa de Relês número 3 era adequada para seus propósitos, decidiu. Estava localizada num recesso da parede, revestida com um liso painel soldado a frio. Black procurou em sua caixa de ferramentas e removeu o soldador cônico. Empurrou um pouco mais seu traje espacial no cabide - tendo-o virado para pegar a caixa de ferramentas - e voltou-se para a caixa de relês.

      Ignorando uma última pontada de inquietação, Black trouxe o soldador, fez contato em três pontos separados ao longo da solda fria. O campo de força da ferramenta funcionou rápida e eficientemente, o cabo aquecendo-se um pouco com o ligar e desligar da energia. O painel soltou-se.

      Deu um olhar rápido, quase involuntário, para a visitela da nave. As estrelas estavam normais. Ele mesmo sentia-se normal.

      Foi o último encorajamento de que precisava. Ergueu o pé e esmagou o mecanismo ali no recesso, delicado como uma pena.

      Houve um ruído de vidro quebrado, um metal a retorcer-se, e um chuveiro de gotículas de mercúrio...

      Black respirou pesadamente. Ligou o rádio mais uma vez.

      - Ainda aí, Schloss?

      - Sim, mas...

      - Então estou informando que o hipercampo a bordo do Parsec está desativado. Venham apanhar-me.

      Gerald Black não se sentia mais herói do que quando partira rumo ao Parsec, mas sentia-se antes o mesmo. Os homens que o trouxeram ao pequeno asteróide eram os mesmos que vieram buscá-lo. Desta vez, pousaram. Deram-lhe palmadas nas costas.

      A Hiperbase era uma massa de gente apinhada quando a nave chegou, e Black foi ovacionado. Acenou para todo o bando e sorriu, como era a obrigação do herói, mas não se sentia triunfante, dentro de si. Não ainda. Só antecipação. O triunfo viria mais tarde, quando encontrasse Susan Calvin.

      Parou um pouco antes de descer da nave. Procurou-a, e não a viu. O general Kallner estava lá, esperando, com toda sua rigidez de soldado restaurada e um olhar franco de aprovação firmemente aplastado sobre seu rosto. Mayer Schloss sorria nervosamente para ele. Ronson, da Imprensa Interplanetária, acenava freneticamente. Susa Calvin não estava em lugar algum.

      Deixou de lado Kallner e Schloss, assim que desceu.

      - Vou me lavar e comer primeiro.

      Não tinha a menor dúvida de que, por hora, pelo menos, podia ditar termos ao general ou a qualquer um.

      Os guardas de segurança abriram alas para ele. Tomou banho e comeu como se tivesse todo o tempo do mundo, num isolamento forçado, ele apenas sendo o responsável por forçar o isolamento. Então chamou Ronson, da Imprensa Interplanetária, e conversou com ele brevemente. Esperou pela chamada de volta antes de poder relaxar totalmente. Tudo funcionara bem melhor do que esperara. A própria falha da nave conspirara perfeitamente a seu favor.

      Por fim, chamou o escritório do general e ordenou uma conferência. Era bem isso mesmo: ordens. O major-general Kallner simplesmente respondeu:

      - Sim, senhor.

      Estavam juntos de novo. Gerald Black, Kallner, Schloss - até mesmo Susan Calvin. Mas era Black quem dominava agora. A robô-psicóloga, rosto de pedra, como sempre, tão pouco impressionável pelo triunfo como pelo desastre, não obstante, por alguma sutil mudança de atitude parecia ter desistido de ser o centro das atenções.

      O dr. Schloss estava às voltas com a unha do polegar e começou a dizer, cuidadosamente:

      - Dr. Black, todos estamos muito gratos por sua bravura e sucesso. - Então, como querendo dar uma ducha instantânea de água fria, acrescentou: - Ainda assim, esmagar a caixa de relês com o pé foi imprudente e ... bem, foi uma ação que mal merecia o nome de sucesso.

      Black respondeu:

      - Foi uma ação que mal poderia ter evitado o sucesso. Vejam - e esta foi a bomba número um -, naquele momento eu já sabia o que tinha saído errado.

      Schloss ergueu-se de pé.

      - Sabia? Tem certeza?

      - Vá lá você mesmo. É seguro agora. Vou lhe dizer pelo que procurar.

      Schloss sentou-se de novo, lentamente. O general Kallner estava entusiasmado.

      - Ora, é melhor ainda, se for verdade.

      - É verdade - disse Black. Seus olhos deslizaram para Susan Calvin, que nada disse.

      Black estava desfrutando daquela sensação de poder. Soltou a bomba número dois, dizendo:

      - Foi o robô, é claro. Ouviu isso, dra. Calvin?

      Susan Calvin falou pela primeira vez:

      - Ouvi, sim. E era o que eu esperava, aliás. Era a única parte do equipamento a bordo da nave que não fora testada aqui na Hiperbase.

      Por um momento, Black sentiu-se chocado.

      - A senhora não disse nada a respeito.

      - Como o dr. Schloss já repetiu diversas vezes, não sou uma especialista em etérica. Meu palpite, e não era mais que um palpite, facilmente poderia estar errado. Senti que não tinha direito de prejudicá-lo antecipadamente em sua missão.

      Ao que respondeu Black:

      - Está bem e por acaso adivinhou como falhou?

      - Não, senhor.

      - Ora, foi feito para ser melhor que um homem. Foi esse todo o problema. Não é estranho que o problema fosse exatamente a especialidade da U. S. Robots? Fazem robôs melhores que homens, pelo que sei.

      Ele a estava vergastando com palavras, mas ela não parecia estar reagindo como esperado. Ao invés, ela suspirou:

      - Meu caro dr. Black, não sou responsável pelos "slogans" de nosso departamento de promoção de vendas.

      Black recebeu outro contragolpe. Ela não era uma mulher fácil de enfrentar, esta Calvin.

      - Seu pessoal construiu um robô para substituir um homem nos controles do Parsec. Ele teria de puxar a barra de controle para si, colocá-la em posição e deixar o calor de suas mãos deformar o gatilho, para fazer o contato final. Entendido, dra. Calvin?

      - Entendido, dr. Black.

      - E se o robô tivesse sido feito nada melhor que um homem, teria tido sucesso. Desgraçadamente, a U. S. Robots sentiu-se compelida a fazê-lo melhor que um homem. Foi dito ao robô que puxasse a barra de controle firmemente. Firmemente. A palavra foi repetida, reforçada, enfatizada. Assim, o robô fez o que lhe fora ordenado. Puxou-a para trás firmemente. Só havia um probleminha. Ele certamente é dez vezes mais forte que um humano ordinário, para o qual a barra de controle foi projetada...

      - Você está querendo dizer...

      - Estou dizendo que a barra entortou. Entortou o suficiente para trás, para deslocar o gatilho. Quando o calor da mão do robô dilatou o termopar, ele não fez o contato. - Sorriu. - Não é o defeito de um só robô, dra. Calvin. É símbolo do fracasso da idéia do robô.

      - Vamos, dr. Black - retrucou a dra. Calvin -, o senhor está afogando a lógica com a sua psicologia de fanático. O robô estava equipado com uma compreensão normal, além de força bruta. Se os homens que tivessem dado as ordens tivessem usado termos quantitativos, ao invés do tolo advérbio "firmemente", isto não teria acontecido. Se eles tivessem dito: "aplique uma força de cinqüenta e cinco libras", tudo teria saído bem.

      - O que a senhora está dizendo é que a inadequação de um robô deve ser compensada pela engenhosidade e inteligência de um homem. Eu lhe garanto que o povo lá da Terra verá a coisa assim e não ficará com disposição de desculpar a U. S. Robots por este fiasco.

      O major-general Kallner disse rapidamente, com a volta da autoridade à sua voz:

      - Agora espere, Black, tudo o que aconteceu é obviamente informação classificada como secreta.

      - De fato - interveio Schloss, apressadamente - sua teoria ainda não foi verificada. Enviaremos uma equipe à nave e descobriremos. Poderá não ser o robô, afinal.

      - Dêem-se ao trabalho de descobrir isso. Imagino se o povo vai acreditar na parte mais interessada. Além do que, tenho mais uma coisa para lhes dizer. - Armou a bomba número três e disse: - Neste exato momento, estou renunciando ao projeto. Estou me demitindo.

      - Por quê? - quis saber Susan Calvin.

      - Porque como a senhora disse, dra. Calvin, sou um missionário. Tenho uma missão. Sinto que devo ao povo da Terra contar-lhes que a era dos robôs atingiu o ponto em que a vida humana é menos valorizada que a vida de um robô. Agora é possível ordenar a um homem que vá para o perigo porque um robô é precioso demais para arriscar. Acredito que os terráqueos devam ouvir isto. Muitos homens têm muitas reservas quanto aos robôs. A U. S. Robots não conseguiu ainda ter sucesso em tornar legal o uso de robôs no planeta Terra. Acredito que o que eu tenho a dizer, dra. Calvin, encerrará o assunto. Com o que foi feito neste dia, dra. Calvin, a senhora e a sua companhia e seus robôs serão varridos da face do sistema solar.

      Ele a estava avisando, Black sabia, estava avisando com antecedência, mas não podia deixar que esta cena fosse esquecida. Tinha vivido só por este momento, desde que saíra rumo ao Parsec, e não podia desistir.

      Ele rejubilou-se com o piscar momentâneo dos olhos pálidos de Susan Calvin e com um minúsculo rubor em suas faces. Pensou: "Como se sente agora, madame cientista?"

      Kallner disse:

      - Não lhe será permitido demitir-se, Black, nem lhe será permitido...

      - Como pode deter-me, general? Sou um herói, não ouviu? E a velha Mãe Terra vai dar o devido valor ao seu herói. Sempre o fez. Quererão saber de mim, e acreditarão em qualquer coisa que eu disser. E não gostarão que interfiram comigo, pelo menos não enquanto eu for um herói novo. Já falei com Ronson, da Imprensa Interplanetária, e disse-lhe que tinha algo grande para eles, algo que sacudiria todo funcionário do governo e diretor científico da sua fofa cadeira, e a Interplanetária será a primeira na linha esperando notícias minhas. Assim, o que podem fazer, exceto matar-me? E acho que ficariam em situação ainda pior, se tentassem.

      A vingança de Black estava completada. Não poupara palavras. E estava enrascado, e não pouco. Levantou-se para sair.

      - Um momento, dr. Black - disse Susan Calvin. Sua voz grave carregava autoridade.

      Black virou, involuntariamente, como um estudante à voz de sua professora, mas ele contrariou este gesto por um desdém deliberado.

      - Tem uma explicação a dar, eu suponho.

      - Não, absolutamente. O senhor me explicou, e muito bem. Eu o escolhi porque sabia que entenderia, se bem que eu pensei que entenderia mais cedo. Eu tive um contato com o senhor antes. Eu sabia que os robôs não lhe agradavam, e portanto, não tinha ilusões a respeito deles. Por sua ficha, que pedi para consultar antes que lhe fosse destinada esta missão, vi que o senhor expressou desaprovação por esta experiência de robô-pelo-hiperespaço. Seus superiores acharam que isto era contrário a você, mas eu considerei que era um ponto a seu favor.

      - De que está falando, doutora, se desculpa minha rudeza?

      - Do fato de que você deveria ter entendido que nenhum robô poderia ser enviado nesta missão. O que foi que você mesmo disse? Algo sobre a inadequação de um robô ter que ser contrabalançado pela engenhosidade e inteligência do homem. Exatamente, meu jovem, exatamente isso. Os robôs não têm imaginação. Suas mentes são finitas e podem ser calculadas até o último decimal. E esse, de fato, é o meu trabalho.

      “Ora, se um robô recebe uma ordem, uma ordem precisa, ele pode cumpri-la. Se a ordem não for precisa, não poderá corrigir seu erro sem ordens ulteriores. Não foi o que você informou concernente ao robô a bordo da nave? Como então podemos enviar um robô para descobrir uma falha num mecanismo, se não podemos dar ordens precisas, pois que nada sabemos sobre a falha? "Descubra o que há de errado" não é uma ordem que se dê a um robô; só a um humano. O cérebro humano, pelo menos até agora, está além de qualquer cálculo.”

      Black sentou-se abruptamente e ficou olhando, desorientado, para a psicóloga. Suas palavras atingiram duramente um substrato do entendimento que estivera recoberto com emoção. Descobriu-se incapaz de refutá-la. Pior que isso, um sentimento de derrota o avas;salava.

      - A senhora poderia ter dito isso antes de eu sair.

      - Poderia, mas notei seu medo muito natural de perder a sanidade mental. Tal preocupação dominante facilmente prejudicaria sua eficiência como investigador, e ocorreu-me que deveria deixá-lo pensar que meu único motivo em enviá-lo era que eu dava mais valor a um robô. Isso, eu pensei, o deixaria enfurecido, e a raiva, meu caro dr. Black, pode ser uma emoção muito útil. Pelo menos, um homem com raiva nunca tem tanto medo quanto teria de outro modo. Funcionou muito bem, eu creio. - E ela cruzou as mãos frouxamente no colo e chegou tão perto de um sorriso quanto o poderia em toda sua vida.

      - Raios me partam - foi dizendo Black.

      Susan Calvin retomou:

      - Assim, se quiser seguir meu conselho, retorne ao seu emprego, aceite sua condição de herói, e conte ao seu amigo repórter os pormenores de seu grande feito. Que seja o furo de reportagem que você lhe prometeu.

      Lenta e relutantemente, Black assentiu.

      Schloss parecia aliviado, Kallner abriu um sorriso cheio de dentes. Estenderam as mãos, não tendo dito uma só palavra todo o tempo que Susan Calvin falou e também sem dizer palavra agora.

      Black apertou as mãos deles e sacudiu-as com alguma reserva.

      - É a sua parte que deveria ser publicada, dra. Calvin.

      Susan Calvin disse, gelidamente:

      - Não seja tolo, meu jovem. É o meu trabalho.

FUGA !

      Quando Susan Calvin voltou da Hiperbase, Alfred Lanning esperava por ela. O velho jamais falava em sua própria idade, mas todos sabiam que já ultrapassara os setenta e cinco. Apesar disso, continuava em pleno gozo de suas faculdades mentais e intelectuais; o fato de, afinal, ter concordado em passar a Diretor-Emérito, deixando a Bogert a posição de Diretor-Executivo, não impedia que comparecesse diariamente ao escritório.

      – Em que ponto estão do Plano Hiperatômico? – quis saber ele.

      – Não sei – respondeu ela, irritada. – Não perguntei.

 – Ora... Gostaria que se apressassem, porque se não o fizerem, a Consolidated pode conseguir antes deles. E antes de nós também.

 – Consolidated! Que têm eles a ver com isso?

      – Bem, não somos os únicos que fabricamos máquinas que calculam. As nossas podem ser positrônicas, mas isto não significa que sejam melhores. Robertson marcou uma grande reunião para amanhã, a fim de debater o assunto. Estava apenas esperando que você regressasse.

      Robertson, da U. S. Robôs & Homens Mecânicos, filho do fundador da firma, virou  o nariz pontudo para o gerente-geral e seu pomo-de-adão pareceu pular quando ele disse:

– Comece agora. Vamos deixar tudo bem claro.

O gerente-geral obedeceu alegremente.

      – O caso é o seguinte, chefe: há um mês a Consolidated Robots veio procurar-nos com uma proposta engraçada. Trouxeram cerca de cinco toneladas de algarismos, equações e tudo o mais. Tratava-se de um problema e eles desejavam que o Cérebro fornecesse a resposta. Os termos eram os seguintes...

      Começou a contar nos dedos grossos:

      – Cem mil para nós se não houver solução para os problemas e formos capazes de explicar que fatores estão faltando. Duzentos mil se houver uma solução. Mais os gastos de construção da máquina em questão; mais vinte e cinco por cento de todos os lucros que venham a ser obtidos por ela. O problema é referente à construção de um engenho interestelar...

      Robertson franziu a testa e empertigou o corpo magro.

      – Apesar de possuírem sua própria máquina de calcular. Certo?

      – É exatamente isto que me leva a achar que a proposta tem algo de errado. Prossiga, agora, Levver.

      Abe Levver, sentado na outra extremidade da mesa de conferências, ergueu a cabeça e passou a mão pelo queixo mal barbeado, produzindo um leve som de atrito. Sorriu e disse:

      – Trata-se do seguinte, senhor: a Consolidated tinha uma máquina pensante. Está quebrada.

      – O quê? – exclamou Robertson, quase dando um pulo.

      – É isso mesmo: quebrada! Kaput! Ninguém sabe dizer por quê, mas conseguiu-se ouvir algumas sugestões bem interessantes – como, por exemplo, o fato de eles terem apresentado à máquina o problema de construir um engenho interestelar com os mesmos dados e informações que trouxeram para nós. O problema estragou a máquina. Virou sucata – só serve para o lixo.

      – Está ouvindo, chefe? – interrompeu o gerente-geral, exultante.

      – Está ouvindo? Não há um só grupo de pesquisas industriais de alguma importância que não esteja procurando fabricar um engenho interestelar, capaz de vencer os problemas do espaço; a Consolidated e a U. S. Robôs lideram o campo, com seus supercérebros robôs. Agora, que eles conseguiram quebrar o deles, estamos sozinhos. Eis aí a motivação. Eles levarão no mínimo seis anos para construir outro cérebro, e estarão perdidos – a menos que consigam destruir o nosso, apresentando-lhe o mesmo problema que estragou o deles.

      O presidente da U. S. Robôs arregalou os olhos.

      – Ora, aqueles ratos sujos!...

      – Calma, chefe. Ainda há mais – interrompeu o gerente-geral, movendo o dedo em outra direção. – Lanning, chegou sua vez!

      O Dr. Alfred Lanning assistia a tudo com um leve desprezo – sua reação usual para com os departamentos que recebiam remuneração muito superior: a divisão comercial e a divisão de vendas. Franziu as sobrancelhas grisalhas e disse em tom seco:

      – Do ponto de vista científico, a situação – embora não esteja inteiramente clara – é suscetível de uma análise. A questão de viagens interestelares sob as condições atuais da teoria física é...bem... um tanto vaga. Ainda é um campo sujeito a erro, e as informações fornecidas pela Consolidated à sua máquina pensante – supondo que sejam as mesmas que nos apresentaram – estão igualmente sujeitas a erros. Nosso departamento de matemática analisou-as minuciosamente e parece-nos que a Consolidated incluiu tudo. O material que submeteram à nossa apreciação contém todos os desenvolvimentos conhecidos da teoria espacial de Franciacci e, aparentemente, todosos dados astro-físicos e eletrônicos pertinentes. É um bocado de coisas...

Robertson, que acompanhava ansiosamente a explanação, interrompeu:

– Demais para o Cérebro?

Lanning sacudiu a cabeça em negativa, convicto do que dizia:

      – Não. Não há limites conhecidos para a capacidade do Cérebro. É algo diferente. Trata-se de uma questão de Leis da Robótica. Por exemplo: o Cérebro jamais poderia fornecer a solução para um problema que lhe fosse apresentado se tal solução envolvesse o perigo de morte ou ferimentos de seres humanos. No que lhe concerne, qualquer problema cuja única solução seja desse tipo é insolúvel. Se tal problema lhe fosse apresentado com a exigência urgente de ser solucionado, é possível que o Cérebro

      – que, afinal, é apenas um robô muito aperfeiçoado – ficasse em um dilema: não poderia responder e também não poderia recusar-se a responder. Algo assim deve ter acontecido com a máquina da Consolidated.

      Fez uma pausa, mas o gerente-geral insistiu:

      – Prossiga, Dr. Lanning. Repita a explicação que me forneceu.

      Lanning apertou os lábios e ergueu as sobrancelhas em direção à Dra. Susan Calvin que, pela primeira vez, levantou os olhos das mãos cuidadosamente entrelaçadas sobre a mesa.

      – A natureza da reação de um robô diante de um dilema é espantosa – começou ela, num tom de voz baixo e neutro. – A psicologia dos robôs está muito longe de ser perfeita. Na qualidade de especialista, posso assegurar-lhes isso. Entretanto, pode ser discutida em termos qualitativos, pois, apesar de todas as complicações introduzidas no cérebro positrônico de um robô, este é fabricado pelos homens e, portanto, construído de acordo com os valores humanos.

      – Ora, um ser humano apanhado ante uma impossibilidade muitas vezes reage por uma fuga à realidade: mergulha num mundo de ilusão, ou entrega-se à bebida; deixasse dominar pela histeria, ou pula de uma ponte. Tudo se reduz à mesma coisa: uma recusa ou incapacidade de enfrentar francamente a situação. O mesmo acontece com os robôs. Um leve dilema causará desordens em metade de seus circuitos; um dilema sério queimará o cérebro positrônico de tal forma que não haverá possibilidade de recuperá-lo.

      – Compreendo – disse Robertson, que, na verdade, não compreendia. – Agora, o que há com as informações que a Consolidated nos apresentou?

      – Indubitavelmente, envolvem um problema de algum tipo proibido – respondeu a Dra. Calvin. - Mas o Cérebro é consideravelmente diferente do robô da Consolidated. – Exatamente, chefe. Exatamente – interrompeu energicamente o gerente-geral. – Desejo que compreenda isto, pois é ponto central de todas a questão.

      Os olhos de Susan Calvin brilharam por detrás das lentes e ela prosseguiu, paciente:

      – Compreenda, senhor: as máquinas da Consolidated – entre elas o Superpensador – são construídas sem personalidade. Como o senhor sabe, eles colocam ênfase no ponto de vista funcional. São obrigados a fazê-lo, pois somente a U. S. Robôs possui as patentes dos circuitos emocionais cerebrais. O Pensador da Consolidated é simplesmente uma máquina de calcular em grande escala, e qualquer dilema é capaz de arruiná-la instantaneamente. Entretanto, a nossa máquina – o Cérebro – tem uma personalidade: a personalidade de uma criança. É um cérebro supremamente dedutivo, mas assemelha-se a um idiot savante. Na verdade, não chega a entender o que faz – limita-se a fazê-la. E porque é realmente uma criança, é mais flexível. Pode-se dizer que, para ele, a vida não é tão séria.

      Após uma breve pausa, a robopsicóloga prosseguiu:

      – Eis o que vamos fazer. Dividimos todas as informações prestadas pela Consolidated em unidades lógicas. Apresentaremos tais unidades ao Cérebro, individual e cautelosamente. Quando o fator for inserido – o fator que dá origem ao dilema – a personalidade infantil do Cérebro hesitará. Seu senso de julgamento não está amadurecido. Haverá um intervalo perceptível antes que ele reconheça o dilema como tal.

      E nesse intervalo, o Cérebro rejeitará automaticamente a unidade lógica em questão – antes que seus circuitos cerebrais possam entrar em funcionamento e sejam queimados.

Robertson engoliu em seco.

– Tem certeza disso?

A Dra. Calvin disfarçou sua impaciência.

 – Admito que não faça muito sentido em linguagem leiga; mas não haveria vantagem concebível em explanar as causas matemáticas do fato. Posso assegurar-lhe que será exatamente como estou dizendo.

 O gerente-geral aproveitou a brecha para interromper, instantânea e fluentemente:

      – Eis aí a situação, chefe. Se aceitarmos a proposta, poderemos funcionar assim. O Cérebro nos dirá qual a unidade lógica de informação que contém o dilema. Partindo daí, poderemos descobrir a causa do dilema. Certo, Dr. Bogert? Está vendo, chefe? E o Dr. Bogert é o melhor matemático que o senhor poderia encontrar. Assim sendo, forneceremos à Consolidated uma resposta: “Insolúvel”. E receberemos cem mil. 'Eles ficam com uma máquina quebrada e a nossa continuará inteira. Dentro de um ano, talvez dois, teremos um engenho espacial interestelar, ou um motor hiperatômico, como alguns preferem chamar. Qualquer que seja o nome se tratará da coisa mais importante do mundo.

      Robertson soltou uma risadinha e estendeu a mão.

      – Deixe-me ver o contrato. Vou assiná-lo.

      Quando Susan Calvin penetrou na casa-forte, muito bem guardada e protegida, que continha o Cérebro, um dos técnicos de plantão acabara de perguntar: 

      – Se uma galinha e meia botam um ovo e meio em um dia e meio, quantos ovos

botarão nove galinhas em nove dias? E o cérebro respondera imediatamente:

– Cinqüenta e quatro.

O técnico disse a um companheiro:

      – Está vendo, imbecil?

      A Dra. Calvin pigarreou e, de imediato, o ambiente tornou-se tenso e denotando preocupação. A psicóloga fez um leve gesto e foi deixada a sós com o Cérebro. O Cérebro era simplesmente um globo com sessenta centímetros de diâmetro – contendo em seu interior, numa atmosfera de hélio totalmente condicionada, um volume de espaço completamente isolado de vibrações e radiações – no qual estava a incrível complexidade de circuitos positrônicos que constituía o Cérebro.

      O resto do salão estava cheio de aparelhos que serviam de intermediários entre o Cérebro e o mundo exterior – sua voz, seus braços, seus órgãos sensoriais. A Dra. Calvin perguntou suavemente:

      – Como vai, Cérebro?

      A voz do Cérebro era aguda e entusiástica:

      – Muito bem, Srta. Susan. A senhora vai me perguntar alguma coisa. Estou adivinhando. Sempre traz um livro na mão, quando quer fazer-me alguma pergunta. Susan Calvin exibiu um leve sorriso.

      – Bem, tem razão. Mas não vou perguntar já. Trata-se de um problema. Será tão complicado, que teremos que apresentá-lo por escrito. Mas não será agora. Antes, acho que vou conversar com você.

      – Está certo. Não me importo de conversar.

      – Escute, Cérebro: dentro de pouco tempo o Dr. Lanning e o Dr. Bogert chegarão aqui com o tal problema complicado. Ele será apresentado a você um pouquinho de cada vez e muito devagar, porque desejamos que você tenha muito cuidado. Vamos pedir-lhe que construa algo – se for possível – baseado nas informações. Mas estou lhe avisando, agora, que a solução talvez envolva... bem... danos a seres humanos.

      – Puxa! – foi a exclamação abafada de surpresa.

      – Trate de ficar atento quanto a isso. Quando lhe apresentarmos uma lista de informações que possa significar danos e até mesmo morte de seres humanos, não fique excitado. Compreenda, Cérebro: neste caso, não nos importamos – nem mesmo com a morte; não nos importamos, nem um pouco. Portanto, quando você receber a lista, pare e trate de devolvê-la – isso será tudo. Entendeu?

      – Oh, sim, claro. Mas, puxa! A morte de seres humanos! Puxa!

      – Agora, Cérebro, estou ouvindo o Dr. Lanning e o Dr. Bogert chegarem. Eles lhe explicarão do que trata o problema e depois começaremos. Seja bonzinho, agora...

      Vagarosamente, as fichas foram apresentadas ao Cérebro.

      Depois de cada uma delas vinha um intervalo de um estranho ruído, semelhante ao murmúrio de uma risadinha, produzida pelo Cérebro em ação. Então, o silêncio que indicava estar ele pronto para uma nova ficha. Foi um trabalho de horas – durante as quais o equivalente a cerca de dezessete grossos volumes de dados matemáticos e físicos foram inseridos no Cérebro.

      A medida que o processo avançava, os cientistas franziam cada vez mais a testa. Lanning resmungava ferozmente entre dentes. Bogert começou a fitar as unhas; depois, passou a roê-las distraidamente. Afinal, quando a última grande pilha de fichas desapareceu, Susan Calvin, muito pálida, declarou:

      – Há algo errado.

      Lanning mal conseguiu replicar:

      – Não pode ser. Ele está... morto?

      – Cérebro? – chamou Susan Calvin, trêmula. – Está me ouvindo, Cérebro?

      – Hein? – foi a resposta, em tom distraído. – Está me chamando?

      – A solução...

      – Oh, isso! Posso fazer. Construirei uma nave inteirinha para vocês, com a maior facilidade – se me fornecerem robôs. Uma bela nave espacial. Levará dois meses, talvez.

      – Não houve... dificuldade?

      – Levou tempo para calcular – declarou o Cérebro.

      A Dra. Calvin recuou, ainda muito pálida. Gesticulou para que os outros se retirassem da sala. De volta a seu escritório, Susan Calvin declarou:

      – Não consigo compreender! As informações, do modo como foram fornecidas, devem envolver um dilema – provavelmente relacionado com morte. Se algo correu errado...

Bogert replicou em voz baixa:

– A máquina falou e fez sentido. Não pode ser um dilema.

Mas a psicóloga retrucou com veemência:

      – Há dilemas e dilemas. Há diferentes formas de fuga. Suponhamos que o Cérebro tenha sido apenas levemente afetado; somente o bastante, digamos, para estar sofrendo da ilusão de que pode solucionar o problema, quando não pode. Ou suponhamos que esteja se equilibrando no limite de algo realmente sério, de modo que o menor abalo possa arruiná-lo.

      – Suponhamos que não exista dilema algum – disse Lanning. – Suponhamos que a máquina da Consolidated tenha quebrado com um problema diferente, ou por motivos puramente mecânicos.

      – Mas, mesmo assim, não podemos correr riscos – insistiu Susan Calvin. – Ouçam: de agora em diante, ninguém pode murmurar para o Cérebro. Assumirei o controle dele.

      – Muito bem – disse Lanning, suspirando. – Assuma. Enquanto isso, deixaremos o Cérebro construir a nave. E, caso ele consiga construí-la, precisaremos testá-la. Após refletir por alguns instantes, acrescentou:

      – Para testá-la, precisaremos de nossos melhores homens.

      Michael Donovan passou a mão pelo cabelo vermelho, procurando assentá-la com um gesto violento e demonstrando total indiferença pelo fato de a mecha revolta retornar imediatamente à posição anterior.

      – Chame o pessoal, agora, Greg – disse ele. – Afirmam que a nave está terminada. Nem sabem o que é, mas dizem que está terminada. Vamos, Greg. Pegue logo os controles.

      – Pare com isso, Mike – replicou Greg Powell, em tom cansado. Quando seu humor está bem fresco tem sabor de fruta passada; nesta atmosfera confinada está pior ainda.

      – Bem, escute – insistiu Donovan, tornando a passar a mão pelo cabelo. – Não estou tão preocupado com o nosso gênio de ferro fundido e sua nave de lata. Mas acontece que perdi minhas férias. E a monotonia! Aqui nada existe além de barbas brancas e números – o tipo errado de números. Bolas! Por que nos dão estas missões?

      – Porque não faremos falta, se nos perdermos – respondeu Powell suavemente. – Agora, acalme-se. O Dr. Lanning está vindo para cá.

      Lanning se aproximava, com as sobrancelhas grisalhas mais hirsutas do que nunca e o corpo idoso ainda empertigado e cheio de vida. Calado, subiu a rampa em companhia dos dois homens e passou com eles para o campo aberto, onde os robôs silenciosos, sem obedecer a um mestre humano, estavam construindo uma nave espacial.

Tempo de verbo errado: tinham construído uma nave espacial!

Lanning informou:

      – Os robôs pararam. Nenhum deles se moveu hoje.

      – Está terminada, então? – indagou Powell. – Tem certeza?

      – Ora, como posso dizer? – replicou Lanning, irritado, franzindo a testa até que as sobrancelhas quase lhe cobriram os olhos. – Parece terminada. Não há peças espalhadas e o interior está polido como um espelho.

      – Já esteve lá dentro?

      – Só entrei e saí. Não sou piloto espacial. Algum de vocês dois conhece algo da teoria dos motores? Donovan olhou para Powell. Este olhou para Donovan. Donovan respondeu:

      – Tenho minha licença, senhor. Mas a última vez que a li não vi qualquer menção a hipermotores ou navegação extra-espacial. Só falava, em tom de brincadeira, em três dimensões.

      Alfred Lanning ergueu os olhos com ar de reprovação e soltou um grunhido. Disse em tom gélido:

– Bem, temos nossos técnicos em motores.

Powell segurou-o pela manga quando ele começou a se afastar.

- Senhor, ainda é proibido entrar na nave?

O velho diretor hesitou e coçou o nariz.

– Creio que não. Pelo menos para vocês dois.

      Donovan observou Lanning enquanto este se afastava e murmurou uma frase curta e expressiva em sua direção. Depois, virou-se para Powell.

      – Eu bem gostaria de dar a ele uma descrição literária de sua figura, Greg.

      – Acho melhor vir comigo, Mike.

      O interior da nave estava acabado – tão acabado quanto qualquer nave jamais poderia ser; bastava um olhar para o brilho esfuziante. Nenhum grumete do Sistema Solar seria capaz de produzir um polimento semelhante ao que os robôs haviam dado.

      As paredes eram como espelhos de prata polida, sem vestígios de impressões digitais. Não havia ângulos ou arestas; paredes, soalho e teta uniam-se em abaulados harmoniosos; no brilho frio e metálico das luzes ocultas, cada pessoa via-se cercada por seis imagens de si própria.

      O corredor principal era uma espécie de túnel estreito que passava por uma série de salas desprovidas de características que as distinguissem uma das outras.

 – Creio que a mobília é embutida nas paredes – comentou Powell. – Ou, talvez, não devamos sentar-nos ou dormir.

 Apenas na última sala, situada no nariz da nave, a monotonia foi quebrada. Uma janela curva, fechada com vidro à prova de reflexos, foi a primeira interrupção no metal, logo abaixo da janela, um único e grande mostrador, com o ponteiro repousando sobre o zero.

      – Olhe aquilo! – exclamou Donovan, apontando para a única palavra, que aparecia no centro da escala numerada. Dizia: Parsecs. O número à direita da escala circular graduada era “1.000.000”.

      Havia duas poltronas, pesadas, amplas, sem acolchoamento. Powell sentou-se cautelosamente e verificou que a poltrona era confortável, moldada às curvas do corpo.

      – Que acha disso? – indagou ele.

      – Sou capaz de apostar que o Cérebro está com febre alta – replicou Donovan. – Vamos cair fora daqui.

      – Tem certeza de que não quer dar uma espiada mais detalhada?

      – Já dei. Vim, vi e desisto! – declarou Donovan, cujo cabelo vermelho parecia a ponto de ficar em pé. – Vamos sair daqui, Greg. Pedi demissão há cinco segundos e estamos numa zona onde só é permitida a entrada de pessoal autorizado.

      Powell sorriu com satisfação e alisou o bigode.

      – Muito bem, Mike; trate de interromper o fluxo de adrenalina que está minando seu sangue. Confesso que também estava preocupado; mas já não estou.

      – Não está, hein? Como não está? Aumentou seu seguro de vida?

      – Mike, esta nave não pode voar.

      – Como sabe?

      – Ora, já visitamos a nave inteira, não é?

      – Parece que sim.

      – Pode crer em mim: já visitamos tudo. Você viu alguma sala de pilotagem, excetuando essa janela e aquele mostrador em parsecs. Viu algum controle?

      – Não.

      – Viu algum motor?

      – Com os diabos! Não!

      – Muito bem! Neste caso, acho melhor irmos conversar com Lanning.

      Praguejando, voltaram pelo corredor e, após algumas tentativas, conseguiram chegar ao compartimento estanque que dava para a porta de saída. Donovan teve um sobressalto.

      – Você trancou este troço, Greg?

      – Não, nem toquei nele. Puxe a alavanca.

      A alavanca não se moveu um milímetro, embora o rosto de Donovan se contorcesse em conseqüência do esforço.

      – Não vi saídas de emergência – comentou Powell.

      – Se houver algo errado, terão que usar um maçarico para tirar-nos daqui.

      – É, concordou Donovan, quase frenético. – E temos que esperar até que descubram que algum imbecil nos trancou aqui.

      – Vamos voltar à sala com a janela. É o único lugar de onde poderemos chamar a atenção.

      Mas não chegaram a atrair a atenção de ninguém. Na sala dianteira, a janela não mais mostrava um céu azul e manchado de nuvens; estava negra, pontilhada por cintilações amareladas que significavam espaço!

      Houve um baque duplo quando os dois homens se deixaram cair pesadamente nas duas poltronas. 

      Alfred Lanning encontrou a Dra. Calvin à porta de seu escritório. Acendeu nervosamente um charuto e fez sinal para que ela entrasse.

      – Muito bem. Susan – disse ele. – Já fomos muito longe e Robertson está começando a ficar nervoso. O que anda você fazendo com o Cérebro? Susan Calvin abriu os braços.

      – Não adianta ficarmos impacientes. O Cérebro vale mais do que tudo o que podemos perder neste negócio.

      – Mas há dois meses que você o interroga.

      A psicóloga replicou em tom calmo, mas um tanto perigoso:

      – Prefere encarregar-se pessoalmente do assunto?

      – Está vendo o que quero dizer?

      – Oh, creio que sim – concordou a Dra. Calvin, esfregando nervosamente as mãos uma na outra. – Não é fácil. Estive bajulando o Cérebro, interrogando-o gentilmente, mas ainda não cheguei a resultado algum. Suas reações não são normais. Suas respostas... são um tanto esquisitas. Mas ainda não consegui descobrir do que se trata. Compreenda uma coisa: até sabermos o que há de errado, temos que agir às apalpadelas. É impossível adivinhar qual a pergunta ou comentário que... o desequilibrará por completo. Então... bem, então teremos arruinado totalmente o Cérebro. Quer que isso aconteça?

      – Ora, ele não pode quebrar a Primeira Lei.

      – Eu pensaria assim. Mas...

      – Nem disso você tem certeza? – exclamou Lanning, profundamente chocado.

      – Não posso ter certeza de coisa alguma, Alfred... 

      O sistema de alarma soou de modo terrivelmente repentino. Com um gesto que mais se assemelhava ao espasmo de um paralítico, Lanning ligou o aparelho de comunicações. A notícia deixou-o gelado.

      – Susan... você ouviu... a nave partiu! Mandei nossos dois homens entrarem nela, há meia hora. Você terá que conversar novamente com o Cérebro. Esforçando-se para manter a calma, Susan Calvin perguntou:

      – Que aconteceu à nave, Cérebro?

      O Cérebro replicou em tom muito feliz:

      – A nave que construí, Srta. Susan?

      – Isso mesmo. Que aconteceu a ela?

      – Ora, absolutamente nada. Os dois homens que deviam testá-la embarcaram e nós já estávamos prontos. Portanto, lancei-a ao espaço.

      – Oh... – murmurou a psicóloga, sentindo dificuldade em respirar. – ótimo... Acha que eles estarão bem?

      – Estarão otimamente, Srta. Susan. Cuidei de tudo. É uma nave linda!

      – Sim, Cérebro; é uma linda nave. Mas acha que eles terão alimento suficiente? Estarão confortáveis?

      – Há bastante comida.

      – Isto pode ser um choque para eles, Cérebro. Um tanto inesperado, compreende? O Cérebro ignorou o comentário.

      – Estarão bem – declarou. – Deve ser interessante para eles.

      – Interessante? Como assim?

      – Apenas interessante – disse o Cérebro, em tom de mistério.

      – Susan! – sussurrou Lanning, furioso. – Pergunte-lhe se há perigo de morte. Pergunte-lhe quais são os riscos. O rosto de Susan Calvin contorceu-se de raiva.

      – Cale a boca!

      Com voz trêmula, dirigiu-se ao Cérebro:

      – Podemos nos comunicar com a nave, não podemos, Cérebro?

      – Oh, eles poderão ouvir você, se os chamar pelo rádio. Cuidei disso.

      – Obrigada. Isto é tudo, por enquanto.

      Chegando lá fora, Lanning explodiu :

      – Diabo! Susan, se a notícia se espalhar, estaremos todos arruinados. Precisamos trazer aqueles dois homens de volta. Por que não perguntou logo se havia risco de morte?

      – Porque é justamente isso que não posso mencionar I – replicou Susan Calvin, com a voz cansada, carregada de frustração. – Se houver um caso de dilema, é relacionado com a morte. Qualquer pergunta que trouxesse o assunto à baila de modo indevido poderia queimar completamente o Cérebro. De que nos adiantaria isso? Escute: ele disse que podemos comunicar-nos com a nave. Vamos falar com eles, descobrir a localização e trazê-los de volta. É bem provável que não possam usar os controles, o Cérebro deve estar guiando a nave por controle remoto. Vamos!

Passou-se bastante tempo antes que Powell conseguisse recobrar-se.

      – Mike – disse ele, sentindo os lábios frios. – Sente alguma aceleração?

      Donovan parecia atordoado.

      – Hein?... Não... não.

      Então, o ruivo cerrou os punhos, saltou da poltrona e, empertigado, correu para o vidro frio e curvo da larga janela de observação.

- Nada, só estrelas.

Virou-se.

      – Greg, eles devem ter dado partida na nave enquanto estávamos embarcados. Foi proposital, Greg, combinaram com o robô um meio de obrigar-nos a testar a nave, caso estivéssemos dispostos a desistir.

      – De que está falando? – retrucou Powell. – De que adiantaria lançar-nos no espaço, se não sabemos pilotar o engenho? Como acha que podemos levá-la de volta? Nada disso. A nave decolou sozinha e sem qualquer aceleração aparente.

      Ergueu-se e começou a andar de um lado para outro. As paredes metálicas ecoavam o ruído de seus passos. Afinal, comentou:

      – Mike, é a situação mais confusa que já enfrentamos. 

      – Isso é novidade para mim! – replicou Donovan, com sarcástica amargura. – Eu estava começando a me divertir, quando você veio me dizer isso. Powell ignorou o companheiro e comentou:

      – Não há aceleração – o que significa que esta nave funciona com base num princípio diferente de todos os conhecidos.

      – Pelo menos, diferente de todos os que conhecemos.

      – Diferente de todos os princípios conhecidos. Não há motores, nem controles manuais. Ou talvez os motores sejam embutidos nas paredes, o que lhes poderia explicar a grande espessura.

      – De que está falando? – quis saber Donovan.

      – Por que não escuta? Estou dizendo que o motor que impulsiona esta nave é embutido e, evidentemente, não possui controles manuais. A nave é manobrada por controle remoto.

      – Pelo Cérebro?

      – Por que não?

      – Então, acha que ficaremos por aqui até que o Cérebro resolva levar-nos de volta?

      – É possível. Se for o caso, vamos esperar tranqüilamente. O Cérebro é um robô. Não pode violar a Primeira Lei. Não pode causar mal a seres humanos. Donovan sentou-se vagarosamente.

      – Acha mesmo isso? – perguntou, ajeitando meticulosamente o cabelo. – Pois ouça: esse assunto de viagens interestelares estragou o robô da Consolidated e os sabichões disseram que o motivo foi o fato de as viagens interestelares causarem a morte de seres humanos. Por que hei de confiar num robô? Ao que me consta, o nosso recebeu os mesmos dados que o outro.

      Powell puxava furiosamente o bigode.

      – Não finja que não conhece robótica, Mike. Antes que se torne fisicamente possível para um robô violar a Primeira Lei, é preciso quebrar tanta coisa que ele logo estaria transformado num monte de sucata. Deve haver uma explicação simples para o que está acontecendo.

      – Oh, claro, claro. Então, mande o mordomo acordar-me de manhã. Isto tudo é simples demais para que eu me dê ao trabalho de perturbar meu sono de beleza.

      – Afinal, Mike, de que está reclamando, até o momento? O Cérebro está cuidando de nós. O lugar é bem aquecido e iluminado. Há bastante oxigênio. Não houve choque de aceleração para desmanchar seu cabelo – se ele fosse o bastante macio para ser desmanchado.

      – É mesmo? Creio que você andou tomando lições, Greg. Não há outro meio de explicar por que motivo está tão calmo e alheio aos acontecimentos. O que vamos comer? O que temos para beber? Onde estamos? Como regressaremos à Terra? Em caso de acidente, qual a saída de emergência e onde estão os trajes espaciais? Não encontrei um banheiro, nem as comodidades que geralmente existem em banheiros! Claro; estão realmente cuidando de nós – e como!

      A voz que interrompeu a tirada de Donovan não pertencia a Powell. Na realidade, não tinha dono. Soou no ambiente, impessoal, quase petrificante.

      – GREGORY POWELL! MICHAEL DONOVAN! FAVOR INFORMAR SUA POSIÇÃO ATUAL. SE A NAVE RESPONDER AOS CONTROLES, FAVOR RETORNAR A BASE, GREGORY POWELL! MICHAEL DONOVAN!...

      A mensagem era mecânica, repetindo-se indefinidamente, interrompida a intervalos regulares. Donovan quis saber:

      – De onde vem ela?

      – Não sei – replicou Powell, num sussurro preocupado. – De onde vêm as luzes? De onde vem tudo o que existe aqui?

– Como vamos responder?

      Eram obrigados a falar nos intervalos entre as repetições da mensagem. As paredes eram nuas – nuas, lisas, ininterruptas e curvas, inteiramente metálicas. Powell sugeriu:

      – Grite uma resposta.

      Foi o que fizeram. Gritaram alternadamente, e, depois, juntos:

      – Posição desconhecida! Nave descontrolada! Condição desesperada!

      Afinal, ficaram roucos. As frases curtas passaram a ser entrecortadas por imprecações enfáticas. Mas a voz fria e metálica vinda do nada continuava a repetir a mensagem inicial.

      – Não nos escutam – declarou Donovan, ofegante.

      – Não há aparelho emissor. Apenas um receptor.

      Calou-se, fitando o vácuo.

      Lentamente, o som da voz que repetia a mensagem foi diminuindo. Quando se reduziu apenas a um murmúrio, os dois companheiros tornaram a gritar, roucos. Finalmente, o interior da nave voltou a ficar em silêncio total.

      Após cerca de quinze minutos, Powell disse, desanimado:

      – Vamos percorrer a nave outra vez. Deve haver algo para comermos. Não havia muita esperança no tom de sua voz; era quase uma confissão de fracasso. Um tomou o corredor à direita e o outro à esquerda.

      Podiam acompanhar os movimentos um do outro por intermédio do ruído dos passos. Ocasionalmente, encontravam-se, olhavam-se silenciosamente e prosseguiam na busca. A busca de Powell cessou repentinamente. Então, ele ouviu a voz alegre de Donovan ecoar no corredor:

      – Ei, Greg! A nave tem encanamentos! Como não reparamos antes?

      Cinco minutos mais tarde, à custa de várias tentativas, ele conseguiu encontrar Powell.

      – Mesmo assim, não há chuveiros – comentou.

Interrompeu-se em meio à frase. Engoliu em seco, exclamando: - Comida!

      A parede se abrira, deixando um espaço aberto, no interior do qual havia duas prateleiras. A prateleira superior estava cheia de latas sem rótulos, numa espantosa variedade de formas e tamanhos. As latas esmaltadas na prateleira inferior eram uniformes. Powell sentiu um vento frio nos tornozelos. A prateleira inferior era refrigerada.

      – Como... como...?

      – Não havia antes – disse Powell, lacônico. – O painel se abriu quando entrei aqui. Já estava comendo. As latas eram do tipo térmico e continham também uma colher. O cheiro cálido de ervilhas cozidas enchia o ambiente.

      – Pegue uma lata, Mike!

      Donovan hesitou.

      – Qual é o cardápio?

      – Como vou saber? Está fazendo muita questão?

      – Não, mas só costuma haver ervilhas nas naves em que viajamos. Prefiro qualquer outra coisa.

      Depois de procurar, escolheu uma brilhante lata de forma oval, cuja pequena espessura dava a entender que devia conter salmão, ou iguaria semelhante. A lata se abriu com facilidade.

      – Ervilhas! – berrou Donovan, pegando outra lata.

      Powell apertou o cinto.

      – Acho melhor você comer isso mesmo, filho. Os suprimentos são limitados e talvez tenhamos que ficar por aqui por muito tempo. Donovan recuou, irritado.

      – Só ternos isto? Ervilhas?

      – Talvez.

      – O que há na prateleira de baixo?

      – Leite.

      – Só leite? – exclamou Donovan, furioso.

      – Parece.

      A refeição de ervilhas e leite foi consumida em silêncio. Quando deixaram o compartimento, o painel da parede tornou a se fechar, não deixando vestígios de sua localização. Powell suspirou.

      – Tudo automático. Tudo. Nunca me senti tão inútil e indefeso. Onde fica o tal encanamento?

      – Bem ali. E não existia quando olhamos pela primeira vez.

      Quinze minutos mais tarde, os dois voltaram à sala da frente, onde existia a janela de vidro. Sentaram-se, encarando-se sombriamente.

Powell examinou, preocupado, o único mostrador existente. Ainda havia a palavra parsecs, a escala ainda terminava em “1.000. 000” e o ponteiro continuava na marca do zero.

     

      Nos escritórios centrais da U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A., Alfred Lanning declarou em tom cansado:

      – Não respondem. Experimentei todos os comprimentos de ondas, públicos, particulares, em código ou não – até mesmo as novas ondas subéter. - Virando-se para Susan Calvin, indagou: – O Cérebro continua calado?

 – Nada quer dizer sobre o assunto, Alfred – disse ela, com ênfase. – O Cérebro diz que eles conseguem escutar-nos... e quando tento insistir, ele fica... bem, fica amuado. E não deveria ficar... Quem já ouviu falar num robô amuado?

 – Por que não nos diz o que já conseguiu descobrir, Susan? – perguntou Bogert.

      – Muito bem! O Cérebro admite que controla totalmente a nave. Mostra-se decididamente otimista quanto aos dois homens, mas não fornece detalhes. Não ouso insistir. Entretanto, o motivo de sua perturbação parece relacionar-se com o salto interestelar propriamente dito. O Cérebro chegou a rir quando toquei no assunto. Existem outros sintomas, mas este é o que mais se aproxima de uma anormalidade definida. -Olhou para os outros, prosseguindo: – Refiro-me à histeria. Deixei o assunto de lado imediatamente e espero não ter causado danos, mas o fato forneceu-me uma pista. Posso controlar a histeria. Dêem-me doze horas! Se eu conseguir trazer o Cérebro ao normal, ele trará a nave de volta.

      Bogert pareceu subitamente abalado.

      – O salto interestelar!

      – O que há? – perguntaram Susan e Lanning, simultaneamente.

      – Os números que o Cérebro nos forneceu sobre a nave. Ora... Tive uma idéia.

      Saiu apressadamente.

      Lanning bruscamente a Susan Calvin:

      – Cuide de sua parte, Susan.

      Duas horas mais tarde, Peter Bogert dizia ansiosamente:

      – Estou lhe dizendo, Lanning: é isso. O salto interestelar não é instantâneo – pelo menos, não enquanto a velocidade da luz for finita. A vida não pode existir... Matéria e energia, como tais, não podem existir no desvio do espaço. Não sei o que aconteceria – mas é isso. Foi o que estragou o robô da Consolidated.

      Donovan sentiu-se abatido ao verificar.

      – Só cinco dias?

      – Só cinco dias. Tenho certeza.

      Donovan olhou em volta, aturdido. As estrelas vistas através do vidro eram familiares, mas decididamente indiferentes. As paredes da nave estavam frias ao toque; as luzes ocultas, que tornaram a acender-se, eram insensivelmente brilhantes, o ponteiro do mostrador continuava a apontar teimosamente para o zero. E Donovan não conseguia livrar-se do gosto de ervilhas que lhe ficara na boca.

Declarou, devagar:

– Preciso de um banho.

Powell ergueu momentaneamente os olhos, replicando:

      – Eu também. Não precisa ficar tão preocupado. Mas, a menos que queira tomar banho de leite e ficar sem beber...

      – De qualquer forma, acabaremos ficando sem beber. Greg, quando chegará a tal viagem interestelar?

 – Como posso saber? Talvez continuemos apenas da mesma forma. Acabaremos chegando lá. Ao menos o pó de nossos esqueletos deverá chegar. Afinal, a nossa morte não é causa do enguiço do Cérebro?

 Donovan virou-lhe as costas, replicando:

      – Estive pensando, Greg. Nossa situação é bem ruim. Não temos muito que fazer, exceto andarmos de um lado para outro, falando sozinhos. Você conhece bem aquelas histórias sobre homens perdidos no espaço. Ficam loucos muito antes de morrerem de fome. Não sei explicar, Greg, mas sinto uma coisa esquisita desde que as luzes se acenderam.

Depois de uma pausa, a voz de Greg Powell, fina e baixinha, confirmou:

– Eu também. O que sente?

O ruivo voltou-se para encarar o companheiro.

      – Sinto-me esquisito, por dentro. É um latejar, com tudo muito tenso. Tenho dificuldade para respirar. Não consigo ficar parado.

      – Bem... Sente uma vibração?

      – Como assim?

      – Sente-se um minuto e escute com atenção. Não é possível ouvir, mas dá para sentir... como se algo estivesse vibrando em algum lugar e a vibração percorresse todas a nave e nós também... Ouça...

      – Sim... sim... Que acha que seja, Greg? Não supõe que somos nós?

      – Talvez sejamos – disse Powell, cofiando lentamente o bigode. – Mas talvez sejam os motores da nave. É possível que ela esteja em preparação.

      – Para quê?

      – Para o salto interestelar. Talvez esteja chegando – e só Deus sabe como será! Donovan refletiu um pouco. Depois, disse, violento:

      – Se assim for, que seja! Eu gostaria de poder lutar. É humilhante sermos forçados a esperar sentados!

      Cerca de uma hora mais tarde, Powell olhou para a mão pousada no braço da poltrona e disse com uma calma gélida:

      – Sinta a parede, Mike.

      Donovan obedeceu e declarou:

      – Posso senti-la vibrar, Greg.

 

      Até mesmo as estrelas pareciam pouco nítidas. De algum lugar, vinha a impressão de que uma possante máquina tornava impulso no interior das paredes, armazenando energia para um salto prodigioso, vibrando e ganhando potência nas escalas de força.

      Chegou subitamente, como a dor de uma punhalada. Powell enrijeceu-se, quase saltando da poltrona. Viu Donovan, mas sua vista se enevoou, enquanto o grito de Donovan morria em seus ouvidos. Algo se debatia dentro dele, lutando contra o espesso cobertor de gelo que ameaçava cobri-lo.

      Algo se libertou, rodopiando num mar de dor e de luzes faiscantes. E caiu...

...e rodopiou...

...e tombou para diante...

...no silêncio!

      Era a morte!

      Era um mundo sem movimento e sensação. Um mundo de uma vaga consciência insensível; uma consciência de escuridão, silêncio e de uma luta desprovida de forma.

      Acima de tudo, uma consciência de eternidade.

      Ele era um branco fiapo de ego – frio e temeroso. Então, vieram as palavras, untuosas e sonoras, trovejando em torno dele numa espuma de som:

      – Seu caixão está desconfortável ultimamente? Por que não experimenta os caixões adaptáveis de Mórbido M. Cadáver? São desenhados cientificamente para adaptar-se às curvas do corpo e enriquecidos com vitamina Bl. Para maior conforto, use os caixões Cadáver. Lembre-se: você... vai... ficar... morto... durante... muito... tempo!

      Não era exatamente um som; mas, de qualquer forma, sumiu num sussurro rouco e oleoso.

      O fiapo branco que poderia ter sido Powell debatia-se inutilmente nos eons insubstanciais de tempo que existiam à sua volta – e desmanchou-se quando o grito penetrante de cem milhões de fantasmas, de cem milhões de vozes de soprano ergueram-se numa aguda melodia: “Ficarei feliz quando você morrer, seu miserável!

      “Ficarei feliz quando você morrer, seu miserável! Ficarei feliz... “

      As vozes se ergueram num som violento, chegando a uma escala supersônica inaudível...

      O fiapo branco estremeceu com uma dor pulsante. Lutou, em silêncio...

      As vozes eram comuns – e muitas. Era uma multidão falando, uma multidão turbilhonante que passava através dele numa torrente rápida, deixando o eco de sílabas soltas i atrás de si.

      – Por que te pegaram, rapaz? Pareces escangalhado... um fogo ardente, creio. Mas sofro de... cheguei ao Paraíso, mas o velho São Pedro...

      – Não... Tenho influência junto ao rapaz. Tive negócios com ele...

      – Ei, Sam, venha por aqui...

      – Arranjaste um advogado? Belzebu diz que...

      – Vamos, meu bom amigo? Tenho um encontro com Satã... E, acima de tudo aquilo, o ruído estentóreo original, que parecia mergulhar através da cena: – DEPRESSA! DEPRESSA! DEPRESSA! Sacudam os ossos e não nos façam esperar – há muitos mais esperando na fila. Tragam os certificados nas mãos e verifiquem se o carimbo de Pedro está estampado neles. Certifiquem-se de que estão no portão de entrada certo. Há bastante fogo para todos. Ei, você... VOCÊ AÍ! TOME SEU LUGAR NA FILA OU...

      O fiapo branco que era Powell recuou ante a voz que avançava, sentindo a ponta violenta do dedo ameaçador.  De repente, tudo explodiu num arco-íris de som que deixou cair seus fragmentos num cérebro dolorido. Powell viu-se novamente na poltrona. Tremia. Os olhos de Donovan estavam arregalados, muito azuis.

      – Greg – sussurrou ele, quase num soluço. – Você esteve morto?

      – Eu... me senti morto.

      Powell não reconheceu sua própria voz. Donovan não conseguiu pôr-se de pé.

      – Estamos vivos, agora? Ou haverá mais?

      – Eu... me sinto vivo – disse Powell, cautelosamente, ainda muito rouco. – Você... ouviu alguma coisa, quando... esteve morto?

      Donovan fez uma pausa em seus esforços e, muito devagar, meneou afirmativamente a cabeça.

      – Você também ouviu?

      – Ouvi. Você ouviu algo sobre caixões... e mulheres cantando... e filas para entrar no Inferno? Ouviu?

      Donovan sacudiu a cabeça, negando.

      – Só uma voz.

      – Alta?

      – Não. Baixa; mas áspera como uma lixa. Era um sermão, sabe, a respeito do fogo do inferno. Descrevia as torturas de... bem, você sabe. Certa vez, ouvi um sermão assim  – quase igual. Suava copiosamente.

      Perceberam luz solar através da janela. Ainda fraca, mas azul esbranquiçada – e a bola brilhante que servia de fonte de luz não era o Velho Sol. Com a mão trêmula, Powell apontou para o único mostrador. O ponteiro, firme e orgulhoso, indicava a marca dos 300.000 parsecs.

      – Mike, se for verdade, devemos estar fora da Galáxia.

      – Com os diabos! – exclamou Donovan. – Greg! Seríamos os primeiros homens a sair do Sistema Solar!

      – Sim! Exatamente. Escapamos do Sol. Escapamos da Galáxia! Isto significa a liberdade de toda a humanidade – liberdade para espalhar-se até todas as estrelas que existem – milhões, bilhões, trilhões delas.

      Então, deixou-se cair pesadamente na poltrona.

– Mas como voltaremos, Mike?

Donovan sorriu, trêmulo.

      – Ora, não se preocupe. A nave nos trouxe até aqui; ela nos levará de volta. Agora, prefiro comer mais ervilhas.

      – Mas, Mike... Espere, Mike. Se formos levados de volta da mesma forma pela qual fomos trazidos até aqui... Donovan interrompeu o movimento para levantar-se, deixando-se cair novamente na poltrona. Powell concluiu:

      – Teremos que... morrer outra vez, Mike.

      – Bem – suspirou Donovan. – Se for preciso, morreremos. Pelo menos, não será permanente – não muito permanente.

     

      Agora, Susan Calvin falava lentamente. Passara seis horas interrogando cautelosamente o Cérebro – seis horas inúteis. Estava cansada de repetições, de circunlóquios – cansada de tudo.

      – Agora, Cérebro, apenas mais uma coisa. Quero que você faça um esforço para responder com simplicidade. Tem absoluta certeza a respeito do salto interestelar? Quero dizer: eles serão levados muito longe?

      – Até onde desejam ir, Srta. Susan. Ora, não há mistério nenhum em atravessar o desvio do espaço.

      – E o que verão no outro lado?

      – Estrelas, e tudo o mais. O que acha?

      A pergunta seguinte escapou quase sem querer:

      – Estarão vivos, então?

      – Claro!

      – E não sofrerão com o salto interestelar?

      Susan Calvin ficou petrificada quando o Cérebro manteve silêncio. Era isso! Ela tocara no ponto sensível.

      – Cérebro – suplicou ela, com voz fraca. – Está me ouvindo, Cérebro? A resposta foi fraca, trêmula, O Cérebro replicou:

      – Tenho que responder? Quero dizer, a respeito do salto?

      – Não precisa, se não quiser. Mas seria interessante, isto é, se você quisesse – disse Susan Calvin, tentando mostrar-se animada.

      – Bolas! A senhora estraga tudo...

      A psicóloga ergueu-se de um pulo, com os olhos brilhantes, percebendo tudo subitamente.

      – Oh! – exclamou, engasgada. – Oh!

      Sentiu a tensão de horas e dias aliviar-se como numa explosão repentina. Mais tarde, ela disse a Lanning:

      – Digo-lhe que está tudo bem. Não, agora, deixe-me em paz. A nave voltará em segurança com os dois homens. Quero descansar  e vou descansar. Vá embora.

      A nave voltou à Terra de modo tão silencioso e suave quanto havia partido. Pousou precisamente no devido lugar, e a escotilha principal se abriu. Os dois homens que desembarcaram dela caminharam cautelosamente, passando a mão pelos queixos barbados.

      Então, lenta, deliberadamente, o homem de cabelos ruivos ajoelhou-se e deu um beijo estalado no concreto da pista.

      Afastaram com um gesto a multidão que se formava e menearam negativamente a cabeça para os dois homens uniformizados de branco que saltaram da ambulância com uma maca. Gregory Powell perguntou:

– Onde é o chuveiro mais próximo?

Foram levados para lá.

      Mais tarde, todos estavam reunidos em torno da mesa. Era uma conferência completa de todos os cérebros pensantes da U.S. Robôs & Homens Mecânicos S.A. 

      Lenta, dramaticamente, Powell e Donovan concluíram uma narrativa circunstanciada dos fatos. Susan Calvin quebrou o silêncio que se seguiu. Nos poucos dias que se haviam passado, ela recobrara sua calma gélida e um tanto ácida – mas ainda conservava um certo embaraço.

      – Estritamente falando, tudo foi culpa minha – declarou. – Logo que apresentamos o problema ao Cérebro, como eu espero que alguns dos presentes se recordem, esforcei-me para impressioná-lo com a importância de rejeitar qualquer item de informação capaz de criar um dilema. Ao fazê-lo, eu disse algo como: “Não se excite com a possibilidade de morte de seres humanos. Não nos importamos com isso. Basta rejeitar a ficha de informações e esquecê-la”.

      – Bem – disse Lanning. – E daí?

 – É óbvio. Quando tal item foi inserido nos cálculos que forneciam a equação que controla o comprimento do intervalo mínimo para o salto interestelar, significava a morte de seres humanos. Foi aí que a máquina da Consolidated ficou completamente estragada. Mas eu, conversando com o Cérebro, diminuíra a importância da morte – não inteiramente, pois a Primeira Lei jamais pode ser violada – mas o suficiente para que o Cérebro pudesse examinar a equação uma segunda vez. Foi o bastante para que ele verificasse que, uma vez ultrapassado o intervalo, os homens voltariam à vida – exatamente como a matéria e energia da nave voltariam a existir. Em outras palavras, a suposta “morte” seria um fenômeno estritamente temporário. Compreendem?

 Olhou em volta. Todos escutavam com atenção. Susan Calvin prosseguiu:

      – Assim sendo, o Cérebro aceitou o item, mas não sem um certo abalo. Mesmo com a morte sendo temporária e eu tendo diminuído sua importância, o item foi o bastante para abalá-lo de forma muito leve. - Com a maior calma, explicou: – Ele desenvolveu um senso de humor – uma fuga; um método de escapar parcialmente à realidade. Passou a ser um brincalhão.

Powell e Donovan ergueram-se simultaneamente.

– O quê! – exclamou Powell.

Donovan mostrou-se consideravelmente mais expressivo.

      – Foi isso mesmo – insistiu Susan Calvin. – O Cérebro cuidou de vocês, mantendo-os em segurança. Mas vocês não podiam dirigir a nave, porque não havia controles – a não ser para o Cérebro brincalhão. Podíamos falar-lhes pelo rádio, mas vocês não podiam responder. Dispunham de bastante comida – mas só ervilhas e leite. Então, vocês morreram, por assim dizer, e voltaram posteriormente à vida, mas o período de sua morte temporária foi tornado... bem... interessante. Eu gostaria de saber como ele conseguiu aquilo. Foi a brincadeira favorita do Cérebro, mas ele não teve más intenções.

      – Más intenções! – rosnou Donovan. – Oh, se aquele miserável tivesse um pescoço!

      Lanning ergueu a mão, impondo silêncio.

      – Muito bem. Foi uma grande confusão, mas tudo terminou. E agora?

 – Bem – disse Bogert. – Obviamente, cabe-nos aperfeiçoar o engenho interestelar. Deve existir algum modo de contornar o intervalo do salto. Se houver, somos a única organização que ainda possui um super-robô em grande escala, de modo que seremos os únicos capazes de encontrar a solução. Então... a U.S. Robôs possuirá o segredo das viagens interestelares e a humanidade terá oportunidade para estabelecer um império galáctico.

 – E a Consolidated? – indagou Lanning.

      – Ei! – interrompeu subitamente Donovan. – Desejo fazer uma sugestão a respeito. Eles colocaram a U.S. Robôs numa encrenca dos diabos. Não foi uma encrenca tão grande quanto eles esperavam e tudo terminou bem, mas as intenções deles não eram das melhores. Greg e eu fomos os que mais sofreram com o assunto.

      – Muito bem. Eles queriam uma resposta: podem tê-la. Se lhes enviarmos a nave, com garantia, a U.S. Robôs pode receber os duzentos mil, mais os custos de construção. E se eles resolverem testar a nave... bem, deixemos que o Cérebro divirta-se um pouco mais, antes de ser trazido ao normal.

Lanning declarou em tom grave:

      – Parece-me muito justo e adequado.

      Bogert acrescentou, distraído:

      – E estritamente de acordo com o contrato...

     

      Francis Quinn era um político da nova escola. Naturalmente, trata-se de uma expressão sem significado, como todas as expressões desse tipo. A maioria das “novas escolas” que possuímos copiada da Grécia Antiga e, talvez, se conhecêssemos mais sobre o assunto, da vida social da antiga Suméria e também das habitações lacustres pré-históricas da Suíça.

      Mas, para deixarmos de lado o que promete ser um início complicado e desinteressante, seria melhor dizer rapidamente que Francis Quinn não concorria a eleições ou angariava votos; não fazia discursos nem se preocupava com urnas. Da mesma forma como Napoleão nunca puxou um gatilho em Austerlitz.

      E como a política provoca estranhas uniões, Alfred Lanning estava sentado no outro lado da mesa, com as graves sobrancelhas brancas franzidas sobre os olhos, aos quais uma impaciência crônica emprestava um brilho agudo. Não estava satisfeito.

      Se Quinn percebia isto, não dava a menor importância. Sua voz era amistosa, embora num tom um tanto profissional.

      – Presumo que conheça Stephen Byerley, Dr. Lanning.

      – Já ouvi falar nele. Muita gente também já ouviu.

      – Certo. Eu também. Talvez o senhor pretenda votar nele nas próximas eleições.

      – Não sei dizer – replicou Lanning, com um inequívoco traço de acidez. – Não tenho acompanhado os acontecimentos políticos, de modo que não sei se ele é candidato.

      – Talvez ele seja o nosso próximo prefeito. Naturalmente, ele ainda não passa de um simples advogado, mas os grandes carvalhos...

 – Sim – interrompeu Lanning. – Já conheço o ditado. Mas imagino se não poderíamos ir logo ao assunto.

 – Estamos no assunto, Dr. Lanning – respondeu Quinn, de modo muito suave. – Meu interesse é fazer com que o Sr. Byerley não passe de um simples promotor distrital, e é do seu interesse ajudar-me a fazê-lo.

      – Do meu interesse? Como assim? – redargüiu Lanning, franzindo ainda mais a testa.

      – Bem, digamos que é do interesse da U.S. Robôs & Homens Mecânicos S.A.. Vim procurá-lo, na condição de Diretor Emérito de Pesquisas, porque sei que sua posição em relação à firma é, por assim dizer, a de um “estadista experiente”. O senhor é ouvido com respeito e sua ligação com a companhia já não é tão estreita que não lhe permita considerável liberdade de ação – mesmo que tal ação não seja tão ortodoxa.

      O Dr. Lanning permaneceu calado por alguns momentos, ruminando seus pensamentos. Afinal, disse em tom bem mais suave:

      – Não consigo entendê-lo, Sr. Quinn.

 – Não é de espantar, Dr. Lanning. Mas, na realidade, é tudo bastante simples. Com licença? – disse Quinn, interrompendo-se para acender um comprido cigarro com um isqueiro simples, mas de bom gosto. Seu rosto ossudo assumiu uma expressão tranqüila de divertimento. – Há pouco, falamos no Sr. Byerley – uma pessoa estranha e interessante. Era desconhecido há três anos. Atualmente, é muito conhecido. É um homem forte e capaz; na verdade, é o promotor mais inteligente e eficiente que já tive oportunidade de conhecer. Infelizmente, não é meu amigo...

 – Compreendo – disse mecanicamente o Dr. Lanning, examinando as unhas.

      – No ano passado, tive oportunidade de investigar o Sr. Byerley – de modo bastante exaustivo e detalhado – prosseguiu Quinn, com a maior calma. – Como o senhor deve compreender, é sempre útil submeter a vida passada dos políticos reformadores a uma pesquisa minuciosa. Se o senhor soubesse como tem sido proveitoso...

      Fez uma pausa, sorrindo sem humor e fitando a ponta fumegante do cigarro. Acrescentou:

      – Mas o passado do Sr. Byerley nada tem de notável. Uma vida tranqüila em uma cidade pequena, um diploma universitário, uma esposa que faleceu muito cedo, um acidente de automóvel seguido por prolongada convalescença, um curso de doutorado em direito, a vinda para a metrópole, um cargo de promotor.

      Francis Quinn meneou lentamente a cabeça e concluiu:

      – Mas a vida atual – esta é bem notável: o nosso promotor público jamais come!

      Lanning ergueu repentinamente a cabeça; seus olhos mostravam-se surpreendentemente brilhantes e atentos.

      – Como?

      – O nosso promotor público jamais come – repetiu Quinn, marcando cada sílaba. – Alterarei um pouco a afirmação: nunca o viram comer ou beber. Nunca! Entende o significado da palavra? Não é raramente – é nunca!

      – Acho bastante incrível. O senhor confia nos investigadores?

      – Posso confiar neles e não creio que seja tão incrível. Além disso, nunca houve quem visse nosso promotor público beber – não apenas álcool, mas qualquer tipo de líquido, inclusive água – ou dormir. Existem outros fatores, mas creio que já me fiz entender.

      Lanning recostou-se na poltrona e houve um profundo silencio de desafio e reposta entre os dois homens. Então, o velho especialista em robôs sacudiu a cabeça.

      – Não. Há apenas uma coisa que o senhor pode estar querendo insinuar, se eu levar em consideração suas afirmações e o fato de o senhor fazê-las a mim. E tal insinuação é impossível.

      – Mas o homem é bastante desumano, Dr. Lanning.

      – Se o senhor me dissesse que ele é o demônio disfarçado, haveria uma ligeira possibilidade de que eu acreditasse.

      – Digo-lhe que ele é um robô, Dr. Lanning.

      – E eu lhe digo que essa é a concepção mais impossível que já ouvi, Sr. Quinn. Mais uma vez, um silencio carregado.

      – Mesmo assim – disse Quinn, afinal, apagando o cigarro no cinzeiro com cuidado exagerado – o senhor terá de investigar tal impossibilidade com todos os recursos de sua firma.

      – Tenho certeza de que eu não poderia realizar tal tarefa, Sr. Quinn. O senhor não poderia estar falando sério ao sugerir que nossa companhia tornasse parte na política local.

      – O senhor não tem outra escolha. Suponhamos que eu publicasse o fato sem provas concretas. Afinal, as provas são bastante circunstanciais.

      – O senhor pode agir como bem entender.

      – Mas isso não me agradaria. Seria muito mais desejável obter provas concretas. Por outro lado, também não agradaria ao senhor, pois a publicidade poderia ser muito danosa para sua firma. Suponho que o senhor esteja perfeitamente a par das leis que proíbem o uso de robôs nos planetas habitados.

      – Certamente! – foi a resposta brusca.

      – O senhor sabe que a U.S. Robôs k Homens Mecânicos S.A. é o único fabricante de robôs positrônicos do Sistema Solar. E se Byerley é um robô, só pode ser um robô positrônico. Além disso, o senhor também sabe que todos os robôs positrônicos são alugados – e não vendidos – e a firma continua a ser proprietária e administradora de cada robô, sendo, portanto, responsável pelas ações de todos os robôs.

      – Sr. Quinn, é muito simples provar que nossa firma jamais fabricou um robô de tipo humanóide.

      – Pode fabricar? Estou perguntando apenas para discutir as possibilidades.

      – Sim. É possível fabricar robôs humanóides.

      – Secretamente, imagino. Sem registrar nos livros.

      – O cérebro positrônico, não. Existem muitos fatores envolvidos no processo de fabricação e o governo exerce uma supervisão muito severa.

      – Sim. Mas os robôs ficam gastos pelo uso, quebram, enguiçam e são desmontados.

      – Os cérebros positrônicos são usados em novos robôs, ou destruídos.

      – Realmente? – replicou Quinn, com um pouco de sarcasmo. – E se, casualmente, é claro, um deles não fosse destruído e houvesse uma estrutura humanóide à espera de um cérebro?

      – Impossível!

      – O senhor seria obrigado a provar tal impossibilidade perante o governo e o público; por que não prova para mim, agora?

      – Mas qual poderia ser a nossa motivação? – quis saber Lanning, exasperado. – Qual seria nosso objetivo? Dê-nos o crédito de um mínimo de bom senso.

      – Por favor, meu caro doutor. Sua firma muito se alegraria em conseguir que as várias regiões permitissem o uso de robôs humanóides positrônicos em mundos habitados. Os lucros seriam enormes. Mas o preconceito do público contra tal prática é grande demais. Suponhamos que a firma desejasse, em primeiro lugar, acostumar o público a tais robôs. Por exemplo: vejam, temos um advogado habilidoso, um bom prefeito – e ele é um robô. Não querem comprar um de nossos robôs mordomos?

      – Totalmente fantástico! Uma possibilidade humorística e quase ridícula.

      – Imagino que sim. Por que não provar? Ou preferiria provar ao público?

      A luminosidade no escritório estava diminuindo, mas não o bastante para ocultar a frustração estampada no rosto de Lanning. Lentamente, o especialista apertou um botão e as luzes embutidas nas paredes se acenderam.

      – Muito bem, então – grunhiu ele. – Vejamos.

      Não era fácil descrever o rosto de Stephen Byerley.

      Tinha quarenta anos, pela certidão de nascimento, e aparentava quarenta anos – mas era uma aparência saudável, bem nutrida e bem humorada; quem o visse pensava automaticamente no velho clichê a respeito de uma pessoa aparentar a idade que tem...

      Isto se tornava particularmente real quando ele ria – como estava rindo, agora. Um riso alto e contínuo, que diminuía um pouco para logo recobrar a intensidade...

      O rosto de Alfred Lanning contraíra-se numa expressão rígida e amarga de desaprovação. Esboçou um gesto na direção da mulher que estava sentada a seu lado; esta apenas apertou um pouco os lábios finos e descorados.

Aos poucos, Byerley conseguiu retornar ao estado normal.

– Francamente, Dr. Lanning... Francamente... Eu... eu... um robô?

Lanning replicou asperamente:

      – Não fui eu quem declarou tal coisa, senhor. Me agradaria muito ter certeza de que o senhor é um membro da humanidade. Uma vez que nossa firma não o fabricou, tenho bastante certeza de que o senhor é um homem de verdade – pelo menos, sob o ponto de vista legal. Mas desde que um homem de certa posição nos apresentou com seriedade a possibilidade de que o senhor seja um robô...

      – Não precisa mencionar o nome dele, caso isto venha a arrancar uma lasca de sua ética granítica, mas, simplesmente para argumentar, suponhamos que se trate de Frank Quinn. Prossigamos, por favor.

      Lanning soltou um grunhido raivoso ante a interrupção e fez uma pausa feroz, antes de acrescentar com frigidez ainda maior:

      - É a possibilidade de que o senhor seja um robô – um homem cuja identidade não pretendo envolver em jogos de adivinhação – sou obrigado a lhe pedir que coopere no sentido de provar que tal insinuação não é verdadeira. O simples fato de que tal insinuação venha a ser publicada pelos meios que o referido homem tem à sua disposição seria um severo golpe para a companhia que represento – mesmo que a acusação jamais fosse comprovada. O senhor compreende?

      – Oh, sim. Sua posição me parece muito clara. A acusação, em si, é ridícula. A situação em que o senhor se encontra não é. Peço-lhe desculpas, se meu riso o ofendeu. Ri da acusação e não de sua situação. Como poderei ajudá-la?

      – Tudo poderia ser muito simples. Bastaria que o senhor fizesse uma refeição, num restaurante, diante de testemunhas, deixando que tirassem fotografias.

      Lanning recostou-se na poltrona, sentindo que a pior parte da entrevista estava superada. A mulher a seu lado observava Byerley com expressão aparentemente absorta, permaneceu calada. 

      Stephen Byerley cruzou o olhar com o dela, fitou-a por um momento e, então, olhou outra vez para o especialista em robôs.

      Por um instante, seus dedos brincaram distraidamente com o peso de papéis de bronze, que era o único ornamento visível em cima da mesa. Afinal, declarou tranqüilamente:

      – Não creio que possa atendê-la. Ergueu a mão num gesto imperativo. – Espere um minuto, Dr. Lanning. Compreendo que tudo isto seja muito desagradável para o senhor, que o senhor foi forçado a isto contra a sua vontade, que o senhor julga estar fazendo um papel pouco digno e até mesmo ridículo. Ainda assim, o assunto tem uma relação muito mais íntima comigo, de modo que solicito a sua tolerância. – Em primeiro lugar, o que o faz pensar que Quinn – o tal homem de certa posição a que o senhor se referiu – não o estava iludindo, a fim de levá-lo a fazer exatamente o que o senhor está fazendo? 

      Lanning replicou:

      – Ora, parece-me muito pouco provável que uma pessoa de boa reputação se arriscasse de forma tão ridícula, se não estivesse convencida de pisar em terreno seguro. Um brilho de humor surgiu nos olhos de Byerley.

      – O senhor não conhece Quinn. Ele conseguiria andar em segurança numa plataforma montanhosa onde um cabrito montes jamais se arriscaria a pisar. Suponho que ele lhe mostrou os detalhes da investigação que mandou realizar a meu respeito.

      – O bastante para convencer-me de que seria demasiado incomodo para nossa firma tentar provar que são falsos, quando o senhor poderia fazê-lo de maneira tão mais fácil.

      – Então, o senhor acredita quando ele afirma que eu jamais como? O senhor é um cientista, Dr. Lanning. Pensa na lógica empregada por ele: alguém jamais me viu comer, portanto, eu nunca como. Francamente.

      - O senhor está empregando táticas forenses para confundir o que, na realidade, é uma situação muito simples.

      – Muito pelo contrário. Estou tentando esclarecer uma situação que o senhor e Quinn estão tornando muito complicada. Compreenda uma coisa: é verdade que não durmo muito e, certamente, nunca durmo em público. Nunca me agradou comer com os outros – uma idiossincrasia incomum e provavelmente de caráter neurótico, mas totalmente inofensiva. Ouça, Dr. Lanning: permita-me que eu lhe apresente um caso fictício. Suponhamos que houvesse um político interessado em derrotar um candidato reformista a qualquer preço e, durante uma investigação da vida particular do adversário, descobrisse alguns detalhes estranhos como os que acabo de citar.

      – Suponhamos, além disso, que para sujar efetivamente o nome do candidato, ele considerasse a sua firma um agente intermediário ideal. O senhor espera que ele lhe diga: “Fulano é um robô porque quase nunca come com outras pessoas; porque nunca adormeceu no tribunal; porque, certa vez, quando olhei pela janela, de madrugada, ele estava sentado, lendo um livro; porque, quando dei uma busca na geladeira dele, não encontrei comida”?

 – Se ele dissesse tal coisa, o senhor mandaria buscar uma camisa de força para ele. Mas ele lhe diz: “Ele nunca dorme; ele jamais come”. Então, o choque da afirmativa faz com que o senhor se esqueça de que tais afirmações são impossíveis de provar. E o senhor contribui para isso.

 Lanning retrucou com ameaçadora teimosia:

      – A despeito de tudo, senhor, quer considere o caso como sério, ou não, peço-lhe apenas que faça a refeição, do modo como mencionei, e tudo estará encerrado.

      Mais uma vez, Byerley voltou-se para a mulher, que continuava a encará-lo com um rosto inexpressivo.

      – Desculpe-me. Creio que ouvi corretamente o nome: Dra. Susan Calvin, não é?

      – Sim, Sr. Byerley.

      – A senhora é a psicóloga da U. S. Robôs, não é?

      – “Robopsicóloga”, por favor.

      – Oh! Os robôs são mentalmente diferentes dos homens?

      – Muito diferentes – respondeu Susan Calvin, com um sorriso gélido. – Os robôs são essencialmente decentes.  A sombra de um sorriso surgiu nos cantos dos lábios do advogado.

      – Bem, isto é um golpe duro para nós. Mas desejo dizer o seguinte: já que a senhora é uma psi... uma robopsicóloga – e uma mulher – aposto que fez algo que nem passou pela cabeça do Dr. Lanning.

      – De que se trata?

      – A senhora tem na bolsa algo para comer.

      Houve uma brecha na estudada indiferença de Susan Calvin, que replicou:

- O senhor me surpreende, Sr. Byerley.

      Abrindo a bolsa, tirou uma maçã. Sem dizer uma palavra, entregou-a a Byerley. O Dr. Lanning, após o choque inicial, seguiu com olhos atentos o movimento vagaroso de uma mão para outra. Com a maior calma, Stephen Byerley mordeu a maçã, mastigou e engoliu.

– Está vendo, Dr. Lanning?

      O Dr. Lanning sorriu, expressando um alívio tão tangível que até mesmo suas sobrancelhas pareceram benevolentes. Mas o alívio durou apenas um frágil segundo. Susan Calvin comentou:

      – Eu estava curiosa para ver se o senhor a comeria. Mas, naturalmente, no

presente caso, isto não prova coisa alguma.  Byerley sorriu.

      – Não?

 – Claro que não. É óbvio, Dr. Lanning, que se esse homem fosse um robô humanóide, seria uma imitação perfeita do homem. Ele é quase humano demais para ser real. Afinal, passamos a vida vendo e observando seres humanos; seria impossível convencer-nos com uma imitação que não fosse perfeita nos mínimos detalhes. Observe a textura da pele, a cor da íris, a formação óssea da mão. Se ele é um robô, eu gostaria de poder dizer que foi fabricado pela U. S. Robôs, porque é um trabalho perfeito. O senhor supõe que um fabricante capaz de prestar atenção em tão pequenos detalhes esquecesse de instalar alguns aparelhos que substituiriam as funções elementares de comer, dormir e satisfazer as outras necessidades fisiológicas? Talvez apenas para casos de emergência – como, por exemplo, para evitar a situação que se nos apresenta. Portanto, uma refeição nada prova, na realidade.

      – Ora, espere um minuto – rosnou Lanning. – Não sou tão tolo quanto vocês dois estão imaginando. Não estou interessado no problema de saber se o Sr. Byerley é humano ou não. Meu interesse é tirar a firma de uma encrenca. Uma refeição em público encerrará o assunto de uma vez por todas, quaisquer que sejam as afirmações de Quinn. Podemos deixar os outros detalhes a cargo de advogados e de robopsicólogos.

      – Mas parece que o senhor está esquecendo a política da situação Dr. Lanning – interpôs Byerley. – Estou tão ansioso para ser eleito quanto Quinn está para impedir-me. Por falar nisso, o senhor notou que acaba de dizer o nome dele? Confesso que é um barato truque forense que costumo usar; eu sabia que o senhor se trairia, mais cedo ou mais tarde.

      Lanning corou, indagando:

      – Que tem a eleição a ver com o caso?

      – A publicidade é uma faca de dois gumes, senhor. Se Quinn deseja chamar-me de robô e tem a ousadia de fazê-lo, eu tenho a ousadia de jogar da mesma forma que ele.

      – Quer dizer que...?

      Lanning interrompeu-o, francamente chocado.

      – Exatamente. Quero dizer que vou deixá-lo prosseguir; e lhe darei bastante corda, permitirei que experimente a resistência dela, faça o laço, meta nele seu próprio pescoço e se enforque sorrindo. Eu posso cuidar dos poucos detalhes restantes.

      – Vejo que está muito confiante...

      Susan Calvin ergueu-se.

      – Vamos, Alfred. Não conseguiremos fazê-lo mudar de opinião.

      – Vejo que compreende – comentou Byerley, sorrindo suavemente. – A senhora também entende de psicologia humana. 

      Mas talvez nem toda a confiança que o Dr. Lanning notara estivesse presente naquela noite, quando Byerley estacionou seu carro na rampa automática que levava à garagem subterrânea e atravessou a alameda que conduzia à porta de sua casa.

      Quando ele entrou, o homem sentado na cadeira de rodas ergueu os olhos e sorriu. O rosto de Byerley se iluminou com afeição e ele se aproximou do outro. A voz do inválido era um sussurro rouco e áspero, que saía de uma boca retorcida para sempre. A metade do rosto era coberta por cicatrizes.

      – Está chegando tarde, Steve.

      – Eu sei, John, eu sei. Mas hoje tive de enfrentar uma dificuldade peculiar e interessante.

      – É mesmo?

      Nem o rosto retorcido, nem a voz roufenha poderiam ter expressões; mas havia ansiedade nos olhos límpidos e inteligentes.

      – É coisa que você não pode resolver?

      – Não tenho certeza. Talvez venha a precisar de seu auxílio. Você é o gênio da família. Quer que eu o leve até o jardim? A noite está linda.

      Dois braços robustos ergueram John da cadeira de rodas. Cuidadosamente, de modo quase carinhoso, os braços de Byerley passaram pelos ombros e sob as pernas paralíticas do inválido.

      Lentamente, ele atravessou as salas, desceu a rampa suave que fora construída especialmente para o uso de uma cadeira de rodas, e saiu pela porta dos fundos, passando para um jardim murado e gradeado atrás da casa.

      – Por que não me deixou vir na cadeira, Steve? Isto é tolice.

      – Porque prefiro carregar você. Tem alguma objeção? Sei que você fica tão satisfeito em se livrar daquela cadeira motorizada por algum tempo quanto eu fico feliz por vê-lo fora dela. Como se sente hoje?

      Com infinito cuidado, depositou John na grama fresca.

      – Como haveria de sentir-me? Mas conte-me a respeito de sua dificuldade.

      – A campanha de Quinn será baseada no fato de ele me acusar de ser um robô. John esbugalhou os olhos.

      – Como sabe? É impossível. Não acredito.

      – Ora, vamos. Estou lhe dizendo que é assim. Ele arranjou para que um dos cientistas chefões de U. S. Robôs & Homens Mecânicos S.A. fossem ao escritório, hoje, conversar comigo. 

      As mãos de John arrancaram vagarosamente algumas folhas de grama.

- Compreendo... compreendo...

Byerley disse:

      – Mas podemos deixá-lo escolher seu método de ação. Tenho uma idéia. Ouça e diga-me se poderemos colocá-la em prática...

      A cena daquela noite no gabinete de Alfred Lanning serviria para um verdadeiro estudo de olhares. Francis Quinn fitava pensativamente Alfred Lanning. O olhar de Lanning estava fixo raivosamente em Susan Calvin, a qual, por sua vez, olhava impassivelmente para Quinn. Francis Quinn quebrou o silencio com um evidente esforço para parecer despreocupado. 

      - É um blefe. Ele está improvisando. 

      -Está disposto a pagar para ver, Sr. Quinn? - perguntou Susan Calvin, indiferente.

      - Bem, na realidade, quem está jogando são vocês.

      – Ouça bem – interrompeu Lanning, disfarçando seu decidido pessimismo com um tom atrevido. – Fizemos o que o senhor pediu. Vimos pessoalmente o homem comer. É ridículo presumir que ele seja um robô.

      – Que acha a senhora? – perguntou Quinn a Susan Calvin. – Lanning disse que a senhora era perita no assunto. A voz de Lanning era quase ameaçadora:

– Ouça, Susan...

Quinn interrompeu em tom suave:

      – Por que não a deixa falar, homem? Há meia hora que ela está aí, sentada, imitando um poste.

      Lanning sentia-se decididamente irritado. Da sua sensação a uma paranóia incipiente era apenas um passo.

      – Muito bem – declarou. – Faça como quiser, Susan. Não a interromperemos.

      Susan Calvin fitou-o por um instante com indiferença e depois voltou a cabeça para encarar friamente Francis Quinn.

 – Existem apenas dois modos para provar conclusivamente que Byerley é um robô, senhor. Até o momento, o senhor apresenta apenas provas circunstanciais, com as quais pode acusar, mas nada pode provar. E creio que o Sr. Byerley é bastante esperto para combater tal espécie de material acusatório. Creio que o senhor pensa da mesma forma, ou não estaria aqui neste momento. Os dois métodos de provar são o físico e o psicológico. Fisicamente, podemos dissecá-lo ou usar raios X. Como fazê-lo é problema seu. Psicologicamente, podemos estudar o comportamento de Byerley, pois se ele for umrobô positrônico, terá de agir de conformidade com as três leis da Robótica. É impossível construir um cérebro positrônico desprovido delas. O senhor conhece as leis, Sr. Quinn? Citou-as vagarosamente, repetindo palavra por palavra o famoso texto contido na primeira página do Manual de Robótica.

 – Eu já as conheço – declarou Quinn, desinteressado.

      – Então, é fácil seguir o raciocínio – replicou secamente a psicóloga. – Se o Sr. Byerley quebrar qualquer uma dessas leis, não é um robô. Infelizmente, tal processo só funciona de modo unilateral. Se ele agir de acordo com as leis, isto nada prova em qualquer sentido.

      Quinn ergueu as sobrancelhas, indagando polidamente:

      – Por que não, doutora?

      – Porque, se refletirmos um instante, as Três Leis da Robótica são os princípios essenciais que orientam a maior parte dos sistemas éticos do mundo. Naturalmente, cada ser humano deve ter um instinto de conservação. É a Terceira Lei de um robô. Além disso, cada ser humano “bom”, que tenha consciência social e senso de responsabilidade, deve obedecer as autoridades competentes, dando ouvidos a seu médico, seu patrão, seu governo, seu psiquiatra e seus semelhantes, obedecendo às leis, seguindo as normas, agindo de acordo com os costumes, mesmo quando tal obediência interfira com

o seu conforto ou sua segurança. É a Segunda Lei dos robôs. Por outro lado, todo ser humano “bom” deve amar o próximo como a si mesmo, proteger seus semelhantes earriscar sua vida para salvá-los. É a Primeira Lei dos robôs. Para resumirmos tudo de modo bem simples: se Byerley seguir todas as Leis da Robótica, talvez seja um robô – ou talvez seja meramente um homem muito bom.

      – Então – disse Quinn – a senhora quer dizer que nunca conseguirá provar que ele é um robô?

      – Poderei provar que ele não é um robô.

      – Mas essa não é a prova que desejo!

      – O senhor terá as provas que existem. E é o único responsável por seus próprios desejos. Lanning teve uma súbita idéia.

 – Por acaso já lhes ocorreu que a ocupação de promotor público é um tanto estranho para um robô? – indagou ele. – Acusar seres humanos, condená-los à morte, causar-lhes males infinitos...

 Quinn protestou com veemência:

      – Não, não poderá escapar com tal desculpa. O fato de ser promotor público não significa que ele seja humano. Não conhece a folha de serviços dele? Não sabe que ele se gaba de jamais haver acusado um homem inocente? Há dezenas de pessoas que nem mesmo foram submetidas a julgamento, apenas porque as provas contra elas não foram consideradas suficientes por Byerley, muito embora bastassem para que ele convencesse o júri a condená-las. É a pura verdade. As bochechas magras de Lanning chegaram a tremer.

      – Não, Quinn, absolutamente não. Nada existe nas Leis da Robótica que leve em consideração a culpabilidade humana. Um robô não pode julgar se um ser humano merece a morte. Não tem poder para decidir. Não pode causar mal a um ser humano – seja este um anjo ou um criminoso.

      Susan Calvin parecia cansada.

      – Não diga tolices, Alfred – disse ela. – Suponhamos que um robô visse um louco prestes a incendiar uma casa onde houvesse outras pessoas. Ele deteria o louco, não é mesmo?

      – Naturalmente.

      – E se o único meio de detê-lo fosse matá-lo...

      Lanning engasgou. Não disse uma só palavra.

      – A resposta certa, Alfred, é que o robô faria o possível para não matá-lo. Caso se visse obrigado a matar o homem, teria de ser submetido a psicoterapia, pois facilmente poderia ficar louco diante do conflito que se apresentaria: ter quebrado a Primeira Lei a fim de obedecer a Primeira Lei em um sentido mais alto. Mas, de qualquer forma, o homem estaria morto e o robô o teria matado.

      – Então Byerley é louco? – retrucou Lanning, com todo o sarcasmo de que foi capaz.

      – Não, mas não matou pessoalmente homem algum. Limitou-se a apresentar os fatos que poderiam provar que determinado ser humano era perigoso para a grande massa de outros seres humanos que chamamos de sociedade. Protegendo a massa maior de seres humanos, ele obedeceria à Primeira Lei em seu sentido e grau máximos.E o caso só vai até aí. É o juiz quem condena o ser humano à morte ou à prisão, depois que o júri decide se ele é culpado ou inocente. É o carcereiro quem o prende e o carrasco quem o executa. E o Sr. Byerley nada fazia a não ser determinar a verdade e auxiliar a sociedade. Na verdade, Sr. Quinn, desde que o senhor nos apresentou o assunto, tive o cuidado de estudar a carreira do Sr. Byerley. Verifiquei que nas suas alegações finais perante o júri ele jamais pediu a pena de morte para o acusado. Além disso, mostrou-se favorável à abolição da pena capital e contribuiu generosamente para os fundos das instituições de pesquisas dedicadas à neurofisiologia criminal. Aparentemente, ele acredita mais na prevenção do que na punição dos criminosos. Na minha opinião, é um fato muito significativo.

      – É mesmo? – perguntou Quinn, sorrindo. – Significativo de uma certa possibilidade de ele ser um robô, talvez?

      – Talvez. Por que negar? Um comportamento como o dele só poderia advir de um robô ou de um ser humano muito honrado e decente. Mas, como o senhor vê, é impossível estabelecer a diferença entre um robô e o melhor dos seres humanos.

 

      Quinn recostou-se na poltrona. Sua voz demonstrava um tremor de impaciência.

      – Dr. Lanning, é perfeitamente possível criar um robô humanóide que duplique

exatamente a aparência humana, não é?

      Lanning pigarreou e refletiu por alguns instantes. Afinal, admitiu com relutância:

      – Isto já foi feito experimentalmente pela U. S. Robôs, sem a instalação de um cérebro positrônico, é claro. Usando óvulos humanos e controle de hormônios, é possível criar pele e carne humana em torno de um esqueleto de plástico silicoso poroso, cuja aparência desafiaria qualquer exame externo. Os olhos, o cabelo e a pele seriam realmente humanos e não humanóides. Uma vez que se instale um cérebro positrônico e todos os demais aparelhos que se deseje, ter-se-á um perfeito robô humanóide.

Quinn insistiu rapidamente:

      – Quanto tempo levaria para fabricar um deles?

      Lanning refletiu. Depois:

      – Tendo-se em mãos todo o equipamento: o cérebro, o esqueleto, os óvulos, os hormônios necessários e as radiações adequadas, eu diria cerca de dois meses. O político empertigou-se na poltrona.

      – Então, veremos como são as entranhas do Sr. Byerley. Será uma publicidade

prejudicial para a U. S. Robôs – mas eu lhes dei uma oportunidade de evitá-la.

      Depois que Quinn se retirou, Lanning virou-se, impaciente, para Susan Calvin.

– Por que você insiste em...

Ela interrompeu imediatamente, com veemência em tom ríspido:

      – Que deseja: a verdade ou a minha demissão? Não vou mentir em favor de vocês. A U.S. Robôs pode cuidar-se muito bem. Não seja covarde.

 – O que acontecerá se ele abrir Byerley e descobrir uma porção de engrenagens e circuitos eletrônicos? – redargüiu Lanning. – E então?

 – Ele não conseguirá abrir Byerley – declarou Susan Calvin, em tom de desprezo.

      – No mínimo, Byerley é tão esperto quanto Quinn.

      A notícia se espalhou pela cidade uma semana antes de Byerley ser oficialmente declarado candidato às eleições. “Espalhou-se” não é o termo exato. A notícia vacilou pela cidade, aos tropeções.

      Começaram as risadas e as pilhérias. À medida que a tática de Quinn aumentava a pressão em etapas espaçadas, os risos tornaram-se forçados, contendo um elemento de incerteza; as pessoas paravam de rir e começavam a pensar.

      A convenção do partido tinha o ar ameaçador de uma tempestade que se forma no horizonte. Não haviam planejado uma competição. Uma semana antes, Byerley era o candidato único. Mesmo agora, continuava a ser. Foram obrigados a apresentá-lo como candidato oficial; mas a situação estava totalmente confusa.

      Não seria tão ruim se os cidadãos comuns não estivessem confusos entre a importância e gravidade da acusação – se verdadeira – e sua sensacional loucura – se fosse falsa.

      No dia seguinte à homologação – rápida e insegura – de Byerley, um jornal finalmente publicou o resumo de uma longa entrevista com a Dra. Susan Calvin, “perita em robopsicologia e cérebros positrônicos de fama mundial”.

      A conseqüência foi um verdadeiro pandemônio.

      Era exatamente o que os Fundamentalistas estavam esperando.

      Não se tratava de uma facção política, ou de uma organização formal de fundo religioso. Essencialmente, tratava-se daqueles que não se haviam adaptado ao que outrora fora chamado de Era Atômica, quando os átomos ainda eram uma novidade. Na realidade, eram os adeptos da Vida Simples, em busca de uma vida que não parecera tão simples aos que a tinham levado anteriormente.

      Os Fundamentalistas não precisavam de novos motivos para detestar os robôs e os fabricantes de robôs; mas um novo motivo tal como a acusação de Quinn ou a análise de Susan Calvin foi suficiente para que o ódio viesse a público.

      As vastas fábricas da U. S. Robôs I Homens Mecânicos S.A. transformaram-se numa colméia de atividade, da qual saíam homens armados, preparados para a guerra.

      A casa de Byerley, na cidade, estava cercada de policiais. Naturalmente, a campanha política deixou de lado todas as demais considerações; sua única semelhança com uma campanha eleitoral era o fato de preencher a lacuna entre a apresentação dos candidatos e a eleição propriamente dita.

      Stephen Byerley não permitiu que o homenzinho intrometido o perturbasse. Permaneceu confortavelmente tranqüilo entre os guardas uniformizados. Fora da casa, além da linha de guardas, os repórteres e fotógrafos, fiéis às tradições da classe, aguardavam pacientemente. Uma empreendedora estação de televisão mantinha uma câmara focalizada na porta de entrada da casa do promotor público, enquanto um locutor excitado enchia o tempo com comentários sensacionalistas.

      O homenzinho intrometido avançou, trazendo na mão uma folha de papel coberta de texto prolixo e complicado.

      – Sr. Byerley, trago uma ordem judicial autorizando-me a revistar esta casa, em busca de qualquer tipo ilegal de... bem... de robôs ou homens mecânicos.

      Byerley fez menção de levantar-se, pegou o documento. Leu com indiferença e sorriu ao devolvê-lo.

      – Está em ordem. Fique à vontade. Pode cumprir seu dever.

      Virando-se para a governanta, que aparecera, relutante, na porta da sala contígua, acrescentou:

      – Sra. Hoppen, faça o favor de acompanhar os cavalheiros e auxiliá-los da melhor forma possível.

      O homenzinho, cujo nome era Harroway, hesitou, corando visivelmente; mas não conseguiu atrair a atenção de Byerley.

      Voltando-se para os dois policiais que o acompanhavam, murmurou:

– Vamos.

Voltou em dez minutos.

      – Já terminou? – indagou Byerley, no tom de quem não estava muito interessado na pergunta ou na resposta.

      Harroway pigarreou. Começou a falar, mas sua voz saiu em tom de falsete. Interrompeu-se, pigarreou de novo e recomeçou raivosamente:

      – Escute aqui, Sr. Byerley, nossas instruções especiais foram para revistar a casa muito minuciosamente.

      – E não revistaram?

      – Disseram-nos exatamente o que procurar.

      – Sim?

      – Em resumo, Sr. Byerley, para não perdermos mais tempo, mandaram-nos revistar o senhor.

      – Eu? – indagou o promotor, com um sorriso calmo.

      – E de que modo pretendem fazê-lo?

      – Temos um aparelho de Penet-radiação...

      – Então, pretendem tirar minha fotografia em raios X, não é? Tem autoridade para isso?

      – O senhor viu o mandado judicial.

      – Posso vê-la outra vez?

      Harroway, cuja testa perspirava profusamente, apresentou o mandado a Byerley pela segunda vez. Byerley disse com a maior calma:

 – Eis aqui a descrição do que o senhor busca. Vou ler textualmente: “a residência pertencente a Stephen Allen Byerley, localizada no número trezentos e cinqüenta e cinco de Willow Grove, em Evanstron, bem como qualquer garagem, depósitos, galpões ou outros prédios existentes na referida propriedade, assim como todo o terreno”... e assim por diante. Tudo em ordem. Entretanto, meu bom homem, o mandado nada diz a respeito de revistar o meu interior. Não faço parte da casa. Pode revistar minhas roupas, se julga que tenho algum robô escondido no bolso.

 Harroway não tinha a menor dúvida sobre a identidade do homem ao qual devia seu emprego. E, tendo oportunidade de ser promovido para um cargo melhor – isto é, muito mais remunerado –, não pretendia perdê-la. Reunindo tudo o que lhe restava de ousadia, declarou:

      – Escute aqui: o mandado autoriza-me a revistar os móveis da casa, bem como tudo que exista no interior da mesma. O senhor está no interior da casa, não está?

      – Uma observação notável. Realmente, estou no interior da casa. Mas não sou um móvel. Na qualidade de um cidadão adulto responsável – possuo um certificado psiquiátrico comprovando esta qualidade – tenho alguns direitos, decorrentes de artigos da lei. Revistar-me violaria meu Direito Privado. O seu documento não é suficiente.

      – Claro. Mas se o senhor for um robô, não tem Direito de Intimidade.

      - É verdade. Mas, ainda assim, o documento não é suficiente. Implicitamente, reconhece minha qualidade de ser humano.

      – Onde? – quis saber Harroway, tomando o papel da mão de Byerley.

      – Onde diz: “a residência pertencente a... ”. Um robô não tem direito de propriedade. Além disso, Sr. Harroway, o senhor pode dizer ao seu patrão que se ele tentar emitir um documento semelhante que não reconheça implicitamente minha qualidade de ser humano, será imediatamente objetado por um mandado de segurança e sofrerá um processo judicial que o obrigará a provar que sou um robô por meio de informações atualmente em seu poder, ou terá de sofrer uma penalidade muito pesada por tentar violar indevidamente meus direitos, defendidos por lei. Diga isso a ele, está bem?

Harroway encaminhou-se para a porta. Parou, voltando-se.

      – O senhor é um advogado espertinho...

      Ficou imóvel um instante, com a mão no bolso. Afinal, saiu.

Sorriu na direção da câmara de televisão, que ainda funcionava. Depois, acenou para os repórteres, dizendo:

      – Amanhã teremos algo para vocês, rapazes. Estou falando sério.

      Chegando ao carro, recostou-se no assento, removeu um pequeno aparelho do bolso e inspecionou-o detidamente. Era a primeira vez que tirava uma fotografia por meio de reflexos de raios X. Esperava ter trabalhado corretamente.

      Quinn e Byerley jamais se haviam encontrado pessoalmente. Mas o visofone equivalia praticamente à mesma coisa. Na realidade, aceitando literalmente a expressão, esta era acertada, muito embora para cada um deles o outro não passasse de pontos claros e escuros num visor fotelétrico.

      Foi Quinn quem fez a ligação. E foi ele quem falou primeiro, sem maiores cerimônias.

      – Byerley, julguei que você gostaria de saber que pretendo divulgar o fato de você estar usando um escudo protetor contra Penet-radiações.

      – É mesmo? Neste caso, provavelmente já divulgou. Tenho o palpite de que seus ativos representantes de imprensa vem controlando há algum tempo as minhas várias linhas de comunicação. Sei que interceptaram todas as linhas de meus escritórios. É justamente por isso que me enfurnei em casa nestas últimas semanas.

      O tom de Byerley era amistoso, quase íntimo.

Os lábios de Quinn se apertaram.

      – Esta ligação é inteiramente sigilosa. Na verdade, estou correndo um certo risco pessoal ao fazê-la.

      – É o que imagino. Ninguém sabe que você está por trás desta campanha contra mim. Pelo menos, ninguém sabe oficialmente. Fora de qualquer medida oficial, ninguém deixa de saber. Não me preocupo. Então, eu uso um escudo protetor? Suponho que você descobriu isso ao examinar a chapa de Penet-radiação que seu menino de recados tirou no outro dia.

      – Byerley, não compreende que seria óbvio para todos que você não ousa submeter-se a uma análise de raios X?

      – Seria igualmente óbvio que você ou seus homens tentaram uma violação de meu Direito Privado?

      – Não dariam a mínima importância.

      – Talvez dessem. A situação não deixa de ser um símbolo de nossas campanhas, não acha? Você não tem o menor escrúpulo quanto aos direitos individuais dos cidadãos. Eu me preocupo muito com eles. Não desejo submeter-me a uma análise radiográfica porque quero defender meus direitos, por uma questão de princípios. Da mesma forma como defenderei os direitos alheios, quando for eleito.

      – Será, sem dúvida, um discurso muito interessante. Mas ninguém acreditará em você. É pomposo demais para ser verdade. O tom de Quinn se alterou, tornando-se ríspido.

      – Outra coisa: na outra noite, o pessoal de sua casa não estava completo.

      – Como assim?

      – Quinn consultou uns papéis que tinha diante de si, no ângulo visual alcançado pelo aparelho.

      – Segundo os relatórios, faltava uma pessoa: um aleijado.

      – Um aleijado, como você diz – replicou Byerley, imperturbável. – Meu velho professor, que mora comigo e se encontra atualmente numa casa de campo – para onde foi há dois meses. “Necessitava de descanso” – eis a expressão usual empregada no caso. Você dá permissão?

      – Seu professor? É um cientista?

      – Foi advogado, antes de ficar inválido. Tem uma licença governamental para trabalhar em pesquisas biofísicas; possui um laboratório particular e a descrição completa de seus trabalhos está arquivada junto às autoridades competentes, às quais eu poderei encaminhar você. É um trabalho de pouca importância, mas constitui um passatempo interessante e inofensivo para um... pobre aleijado. Como vê, estou procurando cooperar ao máximo com você.

      – Estou vendo. E o que sabe esse... professor... a respeito de fabricação de robôs?

      – Não posso aquilatar a extensão de seus conhecimentos em um ramo do qual não entendo.

      – Ele teria acesso a cérebros positrônicos?

      – Pergunte a seus amigos da U. S. Robôs. Eles é que devem saber.

      – Serei breve, Byerley. Seu professor aleijado é o verdadeiro Stephen Byerley. Você é um robô criado por ele. Podemos provar. Foi ele quem sofreu o acidente de automóvel, e não você. Haverá meios de verificar nos registros.

      - Mesmo. Então, verifique. Desejo-lhe boa sorte.

      – E podemos revistar a “casa de campo” de seu suposto professor. Então, veremos o que será possível encontrar lá.

      – Bem, Quinn, não é exatamente assim – declarou Byerley com um largo sorriso. – Infelizmente para você, o meu suposto professor é um homem doente. Sua casa de campo é um local de repouso. Seu Direito Privado, como um cidadão adulto e responsável, é ainda maior devido às circunstâncias. Você jamais conseguirá um mandado de busca sem apresentar justa causa. Entretanto, eu seria o último a evitar que você tentasse obtê-lo.

      Houve uma pausa relativamente longa. Então Quinn debruçou-se em direção ao aparelho, de modo que o tamanho de sua imagem aumentou e as finas rugas em sua testa se tornaram bem nítidas.

      – Por que insiste, Byerley? Não pode ser eleito.

      – Não posso?

      – Pensa que pode? Supõe que sua omissão, não tentando provar que a acusação de robô é falsa – quando poderia fazê-la facilmente, violando uma das Três Leis da Robótica – serve para algo a não ser para convencer o povo de que você é um robô?

      – Tudo o que vi até o momento é o seguinte: longe de ser um advogado metropolitano relativamente conhecido, mas um tanto obscuro, transformei-me em uma figura de fama mundial. Você é mesmo um ótimo publicitário.

      – Mas você é um robô!

      – É o que dizem – mas não provam.

      – Já está provado de modo suficiente para os eleitores.

      – Então não precisa preocupar-se – já ganhou.

      – Adeus – disse Quinn, com o primeiro toque de violência, desligando o aparelho.

      – Adeus – replicou Byerley, imperturbável diante da tela apagada.

 

      Byerley trouxe o “professor” de volta antes da eleição. O aparelho pousou rapidamente em um ponto obscuro da cidade.

      – Fique aqui até depois da eleição – disse Byerley.

      – Será melhor conservá-la fora do caminho, se as coisas correrem mal.

      A voz rouca que saía com dificuldade da boca retorcida de John talvez tivesse um certo toque de preocupação.

      – Há perigo de violência?

      – Os Fundamentalistas ameaçam violência, de modo que suponho que haja perigo, pelo menos teoricamente. Mas não acredito. Os Fundamentalistas não possuem realmente poder algum. Constituem apenas um fator de irritação constante que poderia provocar um conflito ao cabo de algum tempo. Não se importa de ficar aqui? Por favor, eu não ficaria em paz se tivesse que me preocupar com você.

      – Estarei bem. Ainda acha que dará certo?

      – Tenho certeza. Ninguém o incomodou lá no campo?

      – Ninguém. Estou seguro.

      – E sua parte correu bem?

      – Bastante bem. Não haverá problemas quanto a isso.

      – Então, cuide-se bem, John. E veja a televisão amanhã. 

Byerley apertou a mão retorcida que pousou na sua.

A testa de Lenton estava franzida, num verdadeiro estado de expectativa. Ele tinha a missão bastante invejável de gerenciar a campanha eleitoral de Byerley – uma campanha que não chegava a ser uma campanha, em favor de um homem que se recusava a revelar sua estratégia e não aceitava a que lhe propunha seu gerente.

      – Não pode!

      Era a frase favorita de Lenton. Na verdade, era praticamente a única que ele passara a empregar.

      – Estou lhe dizendo, Steve: não pode!

      Atirou-se literalmente sobre o promotor público, que passava o tempo relendo as páginas datilografadas de seu discurso. 

      – Largue isso, Steve. Aquela multidão foi organizada pelos Fundamentalistas. Ninguém ouvirá você. É mais provável que seja apedrejado. Por que há de fazer um discurso perante uma platéia? Por que não utiliza uma gravação?

      – Você quer que eu vença a eleição, não quer? – replicou Byerley, com a maior calma.

      – Vencer a eleição! Você não vencerá, Steve. Estou tentando salvar sua vida.

      – Ora, não estou em perigo.

      – Não está em perigo! Não está em perigo! – bradou Lenton, com um som estranho na voz. – Quer dizer que pretende aparecer naquela sacada, diante de cinqüenta mil alucinados, tentando convencê-los a terem bom senso – numa sacada, como um ditador medieval?

Byerley consultou o relógio, replicando:

      – Dentro de uns cinco minutos, tão logo os canais de televisão estejam livres.

      A resposta de Lenton foi impublicável.

A multidão enchia a área do centro da cidade cercada por cordões de isolamento.

As árvores e casas pareciam crescer por entre uma superfície de cabeças humanas. E o resto do mundo observava através das ondas curtas. Embora fosse apenas uma eleição local, atraía a atenção do mundo inteiro. Byerley pensou nisso e sorriu.

      Mas nada havia para sorrir a respeito da multidão propriamente dita. Havia faixas e cartazes explorando todos os aspectos possíveis de sua suposta condição de robô. A atitude de hostilidade impregnava tangivelmente a atmosfera.

      Desde o início o discurso foi um fracasso. A voz do orador competia com o uivo furioso da multidão. Os ber-T08 ritmados dos grupos de Fundamentalistas formavam ilhas de som dentro da massa humana. Byerley continuava a falar, lentamente, sem demonstrar emoção...

      Lá dentro, Lenton puxava os cabelos, gemendo... e esperando pelo derramamento de sangue.

      Houve movimento nas primeiras filas do público. Um cidadão anguloso, com olhos esbugalhados e roupas muito curtas para o comprimento de seus membros magros, abria caminho por entre o povo. Um policial começou a avançar para ele, ganhando terreno com dificuldade. Com um gesto raivoso, Byerley mandou-o parar.

      O homem magro e alto chegou diretamente sob a sacada. Sua voz era inaudível contra o rugido da multidão. Byerley debruçou-se na sacada.

      – Que disse? Se tem uma pergunta razoável, eu responderei. Virando-se para um guarda que estava a seu lado, ordenou: – Traga aquele homem até aqui.

      A tensão do povo aumentou sensivelmente. Em vários pontos da multidão soaram gritos pedindo silencio. O rugido se tornou quase insuportável e depois morreu aos poucos. O homem magro, muito vermelho e ofegante, ficou frente a frente com Byerley.

Byerley indagou:

      – Tem alguma pergunta?

      O homem magro esbugalhou ainda mais os olhos e bradou com voz tremula:

      – Agrida-me!

      Num súbito ímpeto de energia, lançou o queixo para diante, oferecendo-o como alvo para Byerley:

      – Agrida-me! Você diz que não é um robô, prove! Não pode agredir um ser humano, seu monstro! Houve um silencio total e estranho. Foi quebrado pela voz firme de Byerley:

– Não tenho motivo para agredi-lo.

O homem magro soltou uma gargalhada selvagem.

      – Não pode me agredir! Não me agredirá! Não é humano, é um monstro! Um homem de mentira!

      Stephen Byerley, com os lábios apertados, diante de milhares de pessoas presentes e de milhões que assistiam pela televisão, cerrou o punho e desferiu um murro em cheio no queixo do homem. O desafiante caiu para trás, com uma expressão de surpresa estampada no rosto.

      Byerley disse:

      – Sinto muito. Levem-no e tratem bem dele. Quando terminar o discurso, quero conversar com ele.

      E quando a Dra. Calvin manobrou seu automóvel, tirando-o da vaga reservada, apenas um repórter se recobrara o suficiente do choque para correr atrás do carro e berrar uma pergunta que ela não chegou a ouvir.

Susan Calvin gritou por cima do ombro:

– Ele é humano!

      Foi o suficiente. O repórter correu na direção oposta.

O resto do discurso pode ser descrito da seguinte forma:

“Pronunciado, mas não ouvido”.

      A Dra. Calvin e Stephen Byerley tornaram a encontrar-se mais uma vez – uma semana antes de Byerley ser empossado como prefeito. Era tarde, passava de meia-noite. A Dra. Calvin comentou:

      – O senhor não parece cansado.

      O prefeito recém eleito sorriu.

      – Posso ficar acordado mais algum tempo. Mas, por favor, não conte a Quinn.

      – Não contarei. Mas já que o senhor menciona Quinn, ele inventou uma história bem interessante. Foi pena estragá-la. Suponho que o senhor conheça a teoria em que ele se baseou, não?

      – Parte dela.

      – Era bastante dramática. Stephen Byerley era um jovem advogado, grande orador e idealista convicto – com uma certa queda para a biofísica. O senhor se interessa por robótica, Sr. Byerley?

      – Apenas nos aspectos legais do assunto.

      – O tal Stephen Byerley se interessava. Mas houve um acidente. A esposa de Byerley morreu, com ele aconteceu pior. Perdeu o uso das pernas, o rosto ficou deformado, a voz se tornou irreconhecível. Parte de sua mente... ficou afetada. Recusou-se a submeter-se à cirurgia plástica. Retirou-se do mundo, abandonando a carreira legal Só lhe restaram a inteligência e as mãos. De algum modo, conseguiu obter cérebros positrônicos – até mesmo um dos mais complexos, que tinha a maior capacidade de formar julgamentos sobre problemas éticos – a mais alta função que já foi desenvolvida para um robô. Criou um corpo para o cérebro positrônico. Treinou-o para ser tudo aquilo que ele próprio deveria ser e não mais podia. Lançou o robô no mundo como se fosse Stephen Byerley, enquanto ele próprio permaneceu na sombra, como o velho professor aleijado que ninguém jamais via...

      – Infelizmente, arruinei toda a teoria de Quinn quando agredi um homem – comentou o novo prefeito. – Os jornais anunciaram na ocasião que o veredicto oficial da senhora foi de que sou um ser humano.

      – Como aconteceu aquilo? O senhor se importa de me contar? Não pode ter sido acidental.

      – Não foi inteiramente acidental. Quinn fez a maior parte do trabalho. Então, meus homens começaram a espalhar a notícia de que eu jamais agredira um homem; se não o fizesse diante de uma provocação aberta e pública, seria prova segura de que eu era um robô. Assim sendo, preparei um discurso em público, com toda a publicidade, e algum idiota caiu na cilada. Foi praticamente inevitável. Essencialmente, é o que costumo chamar de um truque de rábula. Um truque para o qual a própria atmosfera artificial propositadamente criada faz todo o trabalho. Obviamente, os efeitos emocionais do fato garantiram minha eleição, exatamente como eu pretendia.

      A robopsicóloga anuiu.

      – Vejo que o senhor se intromete em meu ramo – como todo político precisa fazer, suponho. Mas sinto muito que o caso tenha terminado assim. Gosto de robôs. Gosto deles consideravelmente mais do que dos seres humanos. Se fosse criado um robô capaz de ocupar um alto cargo público, creio que seria o melhor administrador possível. Pelas Leis da Robótica, seria incapaz de causar mal a seres humanos, de praticar atos de tirania, de corrupção, de estupidez ou de preconceitos. E depois de servir durante um intervalo decente, sumiria, muito embora fosse imortal, porque seria impossível para ele magoar os seres humanos com o conhecimento de que foram governados por um robô. Seria o ideal.

      – Só que um robô poderia fracassar devido às inconveniências inerentes ao seu cérebro positrônico – interpôs Byerley. – O cérebro positrônico jamais igualou a complexidade do cérebro humano.

      – Ele teria assessores e conselheiros. Nem mesmo o cérebro humano é capaz de

governar sem assistência. Byerley fitou Susan Calvin com um ar grave e interessado.

      – Por que sorri, Dra. Calvin?

      – Sorrio porque o Sr. Quinn não pensou em todos os detalhes.

      – Quer dizer que a história poderia ser diferente?

      – Um pouquinho só. Durante três meses antes das eleições, o tal Stephen Byerley a quem o Sr. Quinn se referia – o homem aleijado – permaneceu no campo por algum motivo misterioso. Voltou a tempo para aquele seu famoso discurso. E, afinal, o que o velho aleijado já fizera uma vez, poderia fazer a segunda, especialmente tendo em vista que o segundo trabalho era muito mais simples em relação ao primeiro.

      – Confesso que não estou entendendo bem.

      A Dra. Calvin ergueu-se alisando o vestido. Evidentemente, estava pronta para retirar-se.

      – Quero dizer o seguinte: existe uma única ocasião em que um robô pode agredir um ser humano sem violar a Primeira Lei da Robótica. Apenas uma ocasião.

      – E qual é ela?

      A Dra. Calvin chegara à porta. Replicou suavemente:

      – Quando o ser humano agredido por ele é simplesmente um outro robô.

      Sorriu largamente, com o rosto inundado de satisfação.

      – Adeus, Sr. Byerley. Espero votar no senhor daqui a cinco anos, para o cargo de coordenador.

      Stephen Byerley soltou uma risadinha:

 – Devo responder que essa idéia é um tanto exagerada.

CONFLITO EVITÁVEL

      Em seu gabinete particular, o Coordenador possuía uma curiosidade medieval – uma lareira. Na realidade, talvez o homem medieval não a reconhecesse como tal, pois não tinha significado funcional. A pequena chama tremulante ficava em um recesso, isolado por trás de uma placa transparente de cristal de quartzo.

      As achas de lenha eram acesas a longa distância, por intermédio de um pequeno desvio do raio de energia que alimentava os prédios públicos da cidade. O mesmo botão que controlava a ignição limpava previamente a lareira, removendo as cinzas do fogo anterior e permitindo a entrada de lenha nova. Como é fácil verificar, tratava-se de uma lareira inteiramente domesticada...

      Mas o fogo, em si, era real. Havia uma instalação sonora, de modo que era possível ouvir o crepitar e, evidentemente, também podia-se ver a chama pular na corrente de ar que alimentava a lareira.

      A vidraça rosada do gabinete refletia em miniatura a chama avermelhada – que se refletia também, em miniatura ainda mais reduzida, nas pupilas pensativas do Coordenador... e nas pupilas frias de sua convidada – a Dra. Susan Calvin, da U. S. Robôs & Homens Mecânicos S.A.

      O Coordenador disse:

      – Não convidei você por motivos puramente sociais, Susan.

      – Não acreditava que o tivesse feito, Stephen – replicou ela.

      – Apesar disso, não sei exatamente como lhe apresentar meu problema. Por um lado, pode não ser coisa alguma de importância. Por outro, talvez signifique o fim da humanidade.

      – Já deparei com muitos problemas que apresentavam essa mesma alternativa, Stephen. Creio que todos eles a apresentam.

      – É mesmo? Então ouça... A World Steel anunciou um excesso de produção da ordem de vinte mil toneladas longas. A construção do Canal do México está com um atraso de dois meses. As minas de mercúrio de Almaden vêm experimentando uma deficiência de produção desde a primavera passada, enquanto a fábrica de Hidropônica, em Tientsin, está despedindo operários. Estes são os itens que me vêm à mente no momento. Há outros da mesma espécie.

      – São dificuldades sérias? Não entendo o bastante de economia para perceber as terríveis consequências de tais fatos.

      – Em si, não são muito sérias. Se a situação piorar, podemos enviar peritos em mineração a Almaden. Os engenheiros especialistas em Hidropônica que sobrarem em Tientsin podem ser empregados em Java ou no Ceilão. Vinte mil toneladas longas de aço significam apenas poucos dias da demanda mundial. E a inauguração do Canal do México dois meses depois da data marcada inicialmente não fará muita diferença. O que me preocupa são as Máquinas... Já conversei sobre elas com o Diretor de Pesquisas.

      – Vincent Silver?... 'Ele nada me disse a respeito.

      – Pedi-lhe que não tocasse no assunto com ninguém. Aparentemente, ele me atendeu.

      – E o que foi que ele disse?

      – Deixe-me chegar lá no devido tempo. Antes, quero falar sobre as Máquinas. E quero falar com você, porque você é a única pessoa no mundo que entende o bastante de robôs para poder ajudar-me neste momento. Permite-me filosofar um pouco?

      – Esta noite, Stephen, você pode falar como quiser, do assunto que bem entender  – desde que me diga antes o que deseja provar. 

      – Desejo provar que esses pequenos desequilíbrios na perfeição de nosso sistema de oferta e procura, como mencionei, podem ser o primeiro passo para a guerra final.

      – Muito bem. Prossiga.

      A despeito do perfeito conforto da poltrona em que estava instalada, Susan Calvin não se deu ao luxo de relaxar-se. Seu rosto frio, de lábios finos, e sua voz inexpressiva e seca tornavam-se mais acentuados com o decorrer dos anos. E, muito embora Stephen Byerley fosse um homem de quem ela podia gostar e em quem podia confiar, Susan Calvin já tinha quase sessenta anos – e os hábitos adquiridos durante toda uma existência são difíceis de quebrar.

 – Susan, – disse o Coordenador – cada período do desenvolvimento humano apresentou seu próprio tipo particular de conflito – sua própria variedade de problema que, aparentemente, só podia ser resolvido pelo emprego da força. E, de modo bastante frustrante, em cada uma dessas ocasiões a força nunca chegou a resolver realmente o problema. Ao invés disso, persistiu através de uma série de conflitos e terminou por desaparecer, quase silenciosamente, à medida que o ambiente econômico e social se modificou. Então, novos problemas – e uma nova série de guerras. Aparentemente, um ciclo infinito.

      – Consideremos os tempos relativamente modernos. Houve as séries de guerras dinásticas do século XVI ao XVIII, quando a questão mais importante na Europa era saber se a Casa de Habsburgo ou a de Valois-Bourbon deviam governar o continente. Era um dos tais “conflitos inevitáveis”, uma vez que, obviamente, a Europa não podia ser governada metade por uma e metade por outra.

      – Só que aconteceu exatamente isso e não houve guerra que exterminasse uma delas ou estabelecesse definitivamente a outra, até que a nova atmosfera social surgida na França em 1789 derrubou primeiramente os Bourbons e depois os Habsburgos, lançando-os no incinerador da História.

      – E nesses mesmos séculos aconteceram as mais bárbaras guerras religiosas, girando em torno de um importante problema: a Europa devia ser católica ou protestante? Não podia ser meio a meio. Era “inevitável” decidir pela espada. Só que não foi. Na Inglaterra surgia um novo industrialismo; no continente, florescia um novo nacionalismo. A Europa continua dividida meio a meio até hoje e ninguém se importa muito com o fato.

      – Nos séculos XIX e XX houve um ciclo de guerras nacionalistas-imperialistas, quando o problema mais importante do mundo era saber que porções da Europa deveriam controlar os recursos econômicos e a capacidade consumidora das regiões situadas fora da Europa. Evidentemente, era impossível que todas as regiões fora da Europa não poderiam ser parte da Inglaterra, parte da França, parte da Alemanha e assim por diante. Até que as forças do nacionalismo se expandiram o suficiente, de modo que as regiões fora da Europa terminaram o que todas as guerras não haviam conseguido completar e decidiram que poderiam viver confortavelmente em total independência da Europa. Assim sendo, temos um ciclo...

      – Sim, Stephen – interrompeu Susan Calvin. – Você foi bem claro. Suas observações não são muito profundas.

      – Não... Por outro lado, na maior parte das situações, o óbvio é justamente o mais difícil de ver. Há quem diga: “É tão evidente quanto o nariz na sua cara”. Mas o que você pode ver do seu nariz, se alguém não segurar um espelho diante da sua cara? No século XX, Susan, teve início um novo ciclo de guerras. Como devemos chamá-las? Guerras ideológicas? As emoções da religião aplicadas a sistemas econômicos, em lugar de questões sobrenaturais? Mais uma vez, as guerras eram “inevitáveis” e, desta feita, havia armas atômicas, de modo que a humanidade já não podia sobreviver através de seu tormento até chegar o inevitável desgaste da inevitabilidade. Então, vieram os robôs positrônicos.

      – Chegaram bem a tempo e, juntamente com eles, vieram as viagens interplanetárias. Desse modo, deixou de ser importante saber se o mundo era Adam Smith ou Karl Marx. Nas novas circunstâncias, nenhum dos dois fazia muito sentido. Ambas as teorias precisavam adaptar-se e terminaram quase no mesmo ponto.

      – Um deus-ex-machina, então, em duplo sentido – comentou secamente a Dra.

Calvin. O Coordenador sorriu suavemente.

 – Nunca ouvi você fazer piadas antes, Susan. Mas tem razão. Apesar disso, havia outro perigo. O término de cada problema meramente dera origem a outro problema. Nossa nova economia-robô mundial pode desenvolver seus próprios problemas e, por esse motivo, temos as Máquinas. A economia da Terra é estável e permanecerá estável, porque é baseada em máquinas de calcular que funcionam em prol do bem da humanidade, controladas pela força implacável da Primeira Lei da Robótica.

 Após breve pausa, Stephen Byerley prosseguiu:

      – Muito embora as Máquinas não sejam mais que a mais vasta aglomeração de circuitos calculadores jamais inventada, continuam a ser robôs, controlados pela Primeira Lei – de forma que nossa economia mundial está de acordo com os melhores interesses do Homem.

      A população da Terra sabe que não haverá desemprego, superprodução ou falta de bens. Esbanjamento e fome são palavras que só existem nos livros de História. Assim sendo a questão da propriedade dos meios de produção tornou-se obsoleta. Qualquer que seja o proprietário (se tal termo faz sentido) – um homem, um grupo, uma nação ou a humanidade inteira – os meios de produção só podem ser utilizados de acordo com as diretrizes fornecidas pelas Máquinas. Não porque os homens tenham sido forçados a isso, mas porque este era o melhor caminho a seguir e os homens souberam reconhecê-la.

      – Isso significa o fim das guerras – não apenas do último ciclo de guerras, mas o de todos eles. A menos que... Houve uma longa pausa. A Dra. Calvin encorajou Byerley, repetindo:

      – A menos que...

      A chama brincava na lareira. O Coordenador concluiu:

      – A menos que as Máquinas não cumpram sua missão.

      – Compreendo. É justamente neste ponto que entram os pequenos desajustamentos que você mencionou há pouco: aço, hipodrônica, etc.

      – Exatamente. Esses erros não deveriam existir. O Dr. Silver diz que não podem existir.

      – Então, ele nega os fatos? Esquisito!

      – Não, é claro que ele admite os fatos. Estou sendo injusto para com ele. O que ele nega é que qualquer erro nas Máquinas seja responsável pelos supostos erros (as palavras são dele) nas respostas. Afirma que as Máquinas são autocorrigidas e que a existência de um erro nos circuitos violaria as leis da natureza. Assim sendo, eu ponderei...

      – Você ponderou: “De qualquer forma, mande seus homens verificar mais uma vez”.

      – Você parece ler meus pensamentos, Susan. Foi exatamente isso que eu disse. E ele respondeu que era impossível.

      – Está ocupado demais?

      – Não, ele disse que era impossível para qualquer ser humano. Foi muito franco. Declarou – e espero haver compreendido corretamente – que as Máquinas são uma extrapolação gigantesca. É o seguinte: uma equipe de matemáticos trabalha vários anos para calcular um cérebro positrônico capaz de realizar outros cálculos similares. Usando esse cérebro, fazem novos cálculos para criar um cérebro positrônico ainda mais complexo, que eles usam para criar outro ainda mais aperfeiçoado... e assim por diante. Segundo Silver, aquilo que denominamos de Máquinas são o resultado de dez dessas etapas.

      – Sim, já ouvi falar nisso. Felizmente, não sou especialista em matemática... Pobre Vincent Silver. Ainda é jovem. Seus antecessores, Alfred Lanning e Peter Bogert, já morreram e nunca tiveram problemas desse tipo. Nem eu. Talvez todos os especialistas em robôs devam desaparecer, pois já não conseguem compreender suas próprias criaturas.

      – Aparentemente. As Máquinas não são supercérebros, no sentido usado nos suplementos dominicais – muito embora os suplementos dominicais as descrevam como tal. É simplesmente o seguinte: em seu trabalho particular de coletar e analisar um número quase infinito de dados e relações, fornecendo uma resposta em tempo quase infinitesimal, progrediram de tal forma que se encontram além de qualquer possibilidade de um controle humano detalhado.

      – Na verdade, resolvi tentar outra coisa. Perguntei à Máquina. No mais estrito sigilo, apresentamos-lhe os dados originais do problema do aço, a resposta que ela nos forneceu e os resultados obtidos desde então – a superprodução –, pedindo-lhe uma explicação de tal discrepância.

      – Muito bem. E qual foi a resposta?

      – Vou repetir textualmente, palavra por palavra: “O assunto não admite explicações”.

      – Como Vincent interpretou isso?

      – De duas maneiras. Em primeiro lugar: não havíamos fornecido à Máquina dados suficientes para permitir uma resposta definida – o que é pouco provável. O próprio Dr. Silver admitiu. Em segundo lugar : era impossível que a Máquina admitisse dar uma resposta a dados que contivessem a possibilidade de ela causar mal a seres humanos. obviamente, é um efeito da Primeira Lei da Robótica. Assim sendo, o Dr. Silver recomendou-me que falasse com você.

      Susan Calvin parecia muito cansada.

      – Estou velha, Stephen. Quando Peter Bogert morreu, quiseram nomear-me Diretora de Pesquisas e eu recusei. Já não era jovem e não quis aceitar a responsabilidade. Nomearam o jovem Silver e fiquei satisfeita. Mas de que serviu, se agora sou arrastada a esta encrenca? Permita-me esclarecer minha posição, Stephen. Minhas pesquisas realmente envolvem a interpretação do comportamento dos robôs à luz das Três Leis da Robótica. Bem, agora temos essas incríveis máquinas calculadoras. São robôs positrônicos e, portanto, obedecem às Leis da Robótica. Mas não têm personalidade; isto é, suas funções são extremamente limitadas. Têm que ser, pois elas são extremamente especializadas. Em conseqüência, há poucas possibilidades para o jogo das Leis e meu único método de atacar o problema é virtualmente inútil. Em resumo, Stephen: não sei se posso ajudá-lo.

      O Coordenador soltou uma risada curta.

      – Não obstante, permita-me contar-lhe o resto. Deixe-me expor minhas teorias e talvez, então, você possa dizer se elas são plausíveis à luz da robopsicologia.

      – Pois não. Prossiga.

      – Bem, uma vez que as Máquinas estão fornecendo respostas erradas e levando em consideração que elas não podem errar, só resta uma possibilidade: estão recebendo dados errados! Em outras palavras: o erro é dos homens e não dos robôs. Em conseqüência, fiz uma viagem de inspeção por todo o planeta...

      – Da qual acaba de regressar a Nova York.

      – Exato. Compreenda que era necessário, pois existem quatro Máquinas; cada uma delas governa uma das Regiões Planetárias. E todas elas fornecem resultados imperfeitos.

      – Oh, mas isso é evidente, Stephen. Se qualquer uma das Máquinas for imperfeita, o fato refletirá automaticamente nos resultados fornecidos pelas outras três, pois cada uma delas suporá que os dados imperfeitos fornecidos pela primeira são corretos. Partindo de uma suposição errônea, fornecerão respostas incorretas.

      – Certo, é o que me parece. Bem, tenho aqui os registros de minhas entrevistas com cada um dos Vice-Coordenadores Regionais. Quer examiná-los comigo?... Oh, em primeiro lugar: já ouviu falar na “Sociedade em Prol da Humanidade”?

      – Sim. São sucessores dos Fundamentalistas, que sempre impediram a U. S. Robôs de empregar robôs positrônicos, alegando que seria uma concorrência desleal de mão-de-obra etc. A “Sociedade em Prol da Humanidade” é contra as Máquinas, não é?

      – Sim, sim. Mas... Bem, você logo verá. Vamos começar? Em primeiro lugar, estudaremos a Região Oriental.

      – Como quiser...

      Região Oriental: a – Arem: 11.000.000 km², b – População: 1.700.000.000 de habitantes, c – Capital: Xangai. 

      O bisavô de Ching Hso-lin morrera quando os japoneses invadiram a velha República Chinesa, e ninguém, à exceção de seus dedicados filhos, chorou sua morte ou tomou conhecimento dela. O avô de Ching Hso-lin sobrevivera à guerra civil do final da década de quarenta, mas ninguém, à exceção de seus dedicados filhos, tomou conhecimento do fato ou lhe deu importância. Apesar disso, Ching Hso-lin era Vice-Coordenador Regional e tinha o dever de cuidar do bem-estar econômico de metade da população da Terra.

      Talvez fosse por ter tudo isto em mente que os únicos ornamentos nas paredes do gabinete de trabalho de Ching eram dois mapas. Um deles era um desenho antigo, representando um hectare de terra e marcado com os obsoletos caracteres pictográficos chineses. Um pequeno regato atravessava o terreno e havia delicados desenhos representando pequenas palhoças – numa das quais nascera o avô de Ching.

      O outro mapa era enorme, nitidamente desenhado, marcado com caracteres cirílicos. A linha vermelha da fronteira que marcava a Região Oriental compreendia todas as terras que anteriormente constituíam a China, India, Birmânia, Indochina e Indonésia.

      Nesse mapa, no interior da antiga província de Szechuan, Ching fizera uma marca tão leve que ninguém conseguiria distinguir, indicando a localização da fazenda de seus ancestrais.

      De pé ante os mapas, Ching falava a Stephen Byerley num inglês correto:

 – Ninguém melhor do que o senhor, Coordenador, sabe que meu trabalho é, por assim dizer, uma grande sinecura. Implica em uma certa posição social e eu represento um conveniente ponto focal para a administração, mas, quanto ao resto, é a Máquina!... A Máquina faz todo o trabalho. O que acha o senhor, por exemplo, das fábricas de Hidropônica de Tientsin?

 – Tremendas! – disse Byerley.

      – É apenas uma entre dúzias – e não é a maior. Xangai, Calcutá, Bangkok... Estão amplamente espalhadas e são a resposta ao problema de alimentar um bilhão e setecentos e cinqüenta milhões de homens que constituem a população do Oriente.

 

      – Apesar disso, o senhor tem um problema de desemprego em Tientsin – comentou Byerley. – Será que existe superprodução? É um tanto incongruente pensar que há excesso de Alimentos na Ásia.

      Os cantos dos olhos escuros de Ching se franziram ligeiramente.

      – Não. Ainda não chegamos a tal ponto. É verdade que nestes últimos meses foram fechados vários tanques de produção em Tientsin, mas não se trata de problema sério. Os homens foram dispensados apenas temporariamente e os que não desejavam trabalhar em outros ramos de atividade foram enviados a Colombo, no Ceilão, onde estamos inaugurando uma nova fábrica.

      – Mas por que fecharam os tanques de produção?

      Ching sorriu levemente.

      – Vejo que não entende muito de hidropônica. Ora, não é de espantar. O senhor é do Norte e lá o cultivo do solo ainda dá resultado. No Norte, é moda considerar a hidropônica – quando é levada em consideração – como um método de criar vegetais em uma solução química. O que não deixa de ser verdade – só que de forma infinitamente complicada.

      – Em primeiro lugar, a nossa maior produção é de lêvedo, cuja percentagem continua a crescer. Estamos produzindo mais de duas mil espécies de lêvedo, e todo os meses criamos espécies novas. As substâncias alimentícias básicas dos vários lêvedos são os nitratos e fosfatos, justamente com as quantidades adequadas dos metais necessários à nutrição, incluindo os milionésimos de boro e molibdeno. A matéria orgânica é principalmente sacarose, derivada da hidrólise da celulose, mas, além disso, existem vários fatores alimentícios que devem ser acrescentados.

      – Para montar uma indústria hidropônica bem sucedida – capaz de alimentar um bilhão e setecentos milhões de pessoas – devemos realizar um gigantesco programa de reflorestamento do Oriente, precisamos de imensas fábricas de conversão de madeira para cuidar das nossas florestas meridionais, temos necessidade de energia, aço e, acima de tudo, produtos químicos sintéticos.

      – Por que estes últimos?

      – Porque as espécies de lêvedo têm, cada uma delas, suas propriedades peculiares. Como eu já disse, desenvolvemos duas mil espécies. O bife que o senhor comeu hoje era lêvedo. O sorvete de frutas que o senhor comeu na sobremesa era lêvedo gelado. Filtramos suco de lêvedo que possui o gosto, a aparência e o mesmo valor nutritivo do leite.

      – Veja: é acima de tudo o sabor que faz com que os alimentos de lêvedo sejam populares; por causa do sabor, desenvolvemos espécies domésticas artificiais que já não podem sobreviver com uma dieta básica de sais e açúcar. Uma delas necessita de biotina; outra precisa de ácido pteroglutamínico; outras têm necessidade de dezessete diferentes aminoácidos que lhes são ministrados juntamente com todas as vitaminas B, à exceção de uma (apesar disso, ela é popular e não podemos, em nome do bom senso econômico, abandoná-la)...

      Byerley mexeu-se na poltrona, interrompendo: 

      – Com que objetivo me diz tudo isso?

      – O senhor indagou por que havia desemprego em Tientsin. Tenho algo mais a explicar. Não é só o fato de necessitarmos de tantas e tão variadas espécies de alimentação para nosso lêvedo. Ainda resta o complicado fator da alteração do gosto popular com o decorrer do tempo, bem como da possibilidade de desenvolvermos novas espécies de lêvedo, que apresentam novas necessidades de alimentação e criam uma nova popularidade. Tudo isso deve ser previsto, e a Máquina faz esse trabalho...

      – Mas não perfeitamente.

      – Por outro lado, tendo em vista as complicações que mencionei, ela não o faz muito imperfeitamente. Bem, então alguns milhares de trabalhadores de Tientsin estão temporariamente desempregados. Entretanto, consideremos o seguinte: a quantidade de desperdício (isto é, desperdício em termos de falha de fornecimento ou de demanda) no ano passado não chegou a um décimo por cento de nosso giro total de produção. Na minha opinião...

      – Não obstante, nos primeiros anos de funcionamento da Máquina essa quantidade era aproximadamente um milésimo por cento.

      – Ah, mas na década que decorreu desde que a Máquina entrou em pleno funcionamento, tratamos de utilizá-la para aumentar mais de dez vezes a produção de lêvedo em relação ao que era antes da Máquina. É de se esperar que as imperfeições aumentem com as complicações, muito embora...

      – Muito embora?

      – Muito embora tenha havido o curioso caso de Rama Vrasayana.

      – Que aconteceu com ele?

      – Vrasayana era encarregado de uma usina de evaporação de salmoura, para a obtenção de iodina – que não é necessária ao lêvedo, mas é imprescindível aos seres humanos. A usina foi obrigada a fechar.

      – Por quê?

      – Acredite se quiser: concorrência. De um modo geral, uma das principais funções das análises da Máquina 4 indicar a distribuição mais eficiente de nossas unidades de produção. Evidentemente, é prejudicial haver áreas deficientemente servidas, o que aumenta os custos do transporte e se reflete automaticamente nos custos de produção. Por outro lado, é igualmente prejudicial haver uma área servida era excesso, o que obriga as fábricas a trabalharem aquém de sua capacidade total de produção ou a competirem danosamente entre si. No caso de Vrasayana, estabeleceu-se outra usina na mesma cidade, com um processo de extração mais eficiente.

      - A Máquina permitiu?

      – Oh, certamente. Não é de espantar. O novo sistema vem sendo muito empregado. O que causa espécie é o fato da máquina ter deixado de aconselhar Vrasayana a renovar seu equipamento ou procurar unir-se à nova usina. De Qualquer forma, não importa... Vrasayana aceitou o cargo de engenheiro na nova usina e, embora ganhe menos e seu cargo não seja tão importante, ele nada sofreu com isso. Os operários não tiveram dificuldade para encontrar emprego, a velha usina foi convertida para outra atividade útil. Deixamos tudo por conta da Máquina.

      – A exceção disso, não há outras queixas?

      – Nenhuma!

 

      Região dos Trópicos: a – Área: 85.200.000 km², b – População: 500.000.000 de habitantes, c – Capital: Capital City.

      O mapa na parede do gabinete de Lincoln Ngoma estava longe de ser o modelo de precisão e nitidez do da parede de Ching, em Xangai. As fronteiras da Região dos Trópicos, administrada por Ngoma, eram marcadas por uma larga faixa marrom escuro e envolviam uma ampla área interior colorida, com palavras como “Selva”, “Deserto” e “Região dos Elefantes e de todos os tipos de Animais Selvagens.”

      Era uma área enorme, pois em extensão terrestre a Região dos Trópicos englobava a maior parte de dois continentes: toda a América do Sul, desde o norte daArgentina, e toda a África ao sul, até os Montes Atlas. Incluía igualmente a América doNorte ao sul do Rio Grande e até mesmo na Arábia e o Irã, na Ásia. Enquanto os formigueiros humanos do Oriente comprimiam metade da humanidade em 15% da massa terrestre, os Trópicos espalhavam 15% da humanidade em quase metade das terras do mundo.

      Mas estava crescendo. Era a única Região cuja população aumentava mais por imigração que por natalidade. E havia emprego para todos os que chegavam. Para Ngoma, Stephen Byerley parecia-se com esses imigrantes: um homem de pele pálida, buscando o trabalho criativo de transformar um meio ambiente hostil em uma região amena e hospitaleira. O Vice-Coordenador sentia por ele um pouco de desprezo instintivo que invadia os homens fortes, nascidos no rigor dos Trópicos, em relação aos pálidos infelizes oriundos das regiões onde o sol era mais fraco.

      A Região dos Trópicos tinha a mais nova capital do mundo, com a simples denominação de “Capital City”, batizada pela sublime confiança dos jovens. A cidade espraiava-se, brilhante, pelas terras férteis do planalto da Nigéria. Pelas janelas do gabinete de Ngoma via-se, lá embaixo, vida e colorido; o sol quente, esfuziante, e os aguaceiros rápidos e violentos. Até mesmo os gritos das aves multicores eram agudos e as estrelas brilhavam nitidamente nas noites límpidas.

      Ngoma riu. Era um homem escuro e grandalhão, com um rosto forte e de feições bem delineadas.

      – Claro – disse ele, num inglês versátil e sonoro.

      – O Canal do México está atrasado. E daí? Terminará de qualquer maneira, meu caro.

      – Mas ia bem até a segunda metade do ano passado.

      Ngoma encarou Byerley e mordeu vagarosamente um grosso charuto, cuspindo o pedaço de uma ponta e acendendo a outra.

      – Trata-se de uma investigação oficial, Byerley? O que há, afinal?

      – Nada. Absolutamente nada. Só que minha função na qualidade de Coordenador é ser curioso.

      – Bem, se tudo o que você deseja é passar o tempo, a verdade é que sempre temos falta de mão-de-obra. Há muitas obras em curso nos Trópicos. O Canal é apenas uma delas...

      – Mas a sua Máquina não prevê a quantidade de mão-de-obra disponível para o

Canal, levando em consideração todos os outros projetos em curso? Ngoma levou uma das mãos à nuca e soprou anéis de fumaça em direção ao teto.

      – Errou um pouco.

      – Costuma errar um pouco?

      – Não mais do que era de se esperar. Não exigimos muito dela, Byerley. Inserimos os dados. Recebemos os resultados. Fazemos o que ela manda. Mas é apenas uma conveniência, um aparelho que economiza trabalho. Poderíamos viver sem ela, se necessário. Talvez não fizéssemos as coisas tão bem. Talvez não tão depressa. Mas chegaríamos lá. Aqui, Byerley, temos confiança: eis aí o segredo. Confiança! Temos terras novas, que estão à nossa espera há milhares de anos, enquanto o resto do mundo era desgastado pelas imensas tolices da era pré-atômica. Não precisamos comer lêvedo, como os rapazes do Oriente, não precisamos nos preocupar com os restos azedos do século passado, como vocês do Norte.

      – Exterminamos a mosca tse-tse e o mosquito anófeles; agora, o povo descobriu que pode viver ao sol, e gosta disso. Desbastamos as florestas e desbravamos o solo de cultura; irrigamos os desertos e criamos verdadeiros jardins. Ternos imensos campos petrolíferos e minas de carvão que ainda não foram tocados; nossas reservas minerais são infinitas. Deixem-nos em paz: eis a única coisa que pedimos ao resto do mundo. Afastem-se para um lado e deixem-nos trabalhar. 

Byerley insistiu, prosaico:

      – Mas o Canal... estava dentro do prazo há seis meses. O que aconteceu? Ngoma abriu os braços.

      – Complicações trabalhistas.

      Procurou entre os papéis que cobriam sua mesa e acabou por desistir.

      – Eu tinha aqui algo a respeito – murmurou. – Mas não importa. Certa vez houve falta de mão-de-obra no México, por causa do problema das mulheres. Não havia mulheres nas proximidades. Parece que alguém esqueceu de fornecer à Máquina alguns dados sobre a questão sexual.

      Interrompeu-se com uma gostosa gargalhada. Em seguida, ficando sério, acrescentou:

      – Espere um momento... Creio que me lembrei: Villafranca!

      – Villafranca?

 – Francisco Villafranca. Era o engenheiro encarregado do projeto. Agora, deixe-me explicar. Aconteceu algo e houve um desmoronamento. Exato... exato... Foi isso. Segundo me recordo, ninguém morreu, mas houve uma confusão dos diabos... Um escândalo e tanto.

 – Oh?

      – Uma questão de erro nos cálculos de Villafranca. Ou, pelo menos, foi o que afirmou a Máquina. Enviaram-nos os dados de Villafranca, suas considerações etc. Enfim, o material que ele utilizara nos cálculos. As respostas da Máquina foram diferentes. Parece-me que as respostas utilizadas por Villafranca não levavam em consideração os efeitos de uma chuva forte sobre os contornos do corte... ou algo semelhante. Não sou engenheiro, compreende?

 – De qualquer forma, Villafranca fez um estardalhaço dos diabos. Alegou que as respostas originais da Máquina tinham sido diferentes e que ele as cumprira à risca. Então, demitiu-se! Fizemos-lhe uma oferta para mantê-lo no posto – havia dúvidas razoáveis quanto à sua culpa, seu trabalho anterior fora satisfatório etc... Seria mantido numa posição subordinada, é claro... Uma medida indispensável – ignorar erros como aquele seria prejudicial à disciplina... Bem, onde estava eu?

 – Fizeram-lhe uma oferta para continuar.

      – Oh, sim... Ele recusou. Bem, em conseqüência de toda a confusão, temos um atraso de dois meses. Ora, isso nada significa.

      Byerley abriu a mão sobre a mesa e começou a tamborilar levemente com os dedos.

      – Villafranca culpou a Máquina, não é?

 – Bem, acha que ele iria culpar a si próprio? Encaremos a realidade: a natureza humana é nossa velha amiga. Além disso, agora lembro-me de outra coisa... Raios! Por que nunca consigo encontrar os documentos quando preciso deles? Meu sistema de arquivos não vale um tostão furado... O tal Villafranca era membro de uma das organizações do Norte. O México é perto demais da Região Norte – eis aí parte da dificuldade!

 – A que organização está se referindo?

      – Chamam-na de “Sociedade em Prol da Humanidade” Villafranca costumava comparecer aos congressos anuais, em Nova York. É um bando de malucos, mas inofensivos... Não gostam das Máquinas; alegam que elas estão destruindo a iniciativa humana. Portanto, é muito natural que Villafranca procurasse jogar a culpa contra a Máquina... Palavra de honra que não entendo aquele grupo. Capital City dá a impressão de que a raça humana está perdendo a iniciativa?

      E Capital City espraiava-se, brilhante e gloriosa, sob um forte sol dourado – a mais recente criação do Homo-metropolis...

      Região Européia: a – Arca: 6.400.000 km², b – População: 300.000.000 de habitantes, c – Capital: Genebra.

      Sob vários aspectos, a Região Européia era uma anomalia. Em área, era muito menor que as demais; não chegava a ser um quinto da Região dos Trópicos. Em população, não atingia um quinto da Região Oriental. Geograficamente, tinha apenas uma leve semelhança com a Europa pré-atômica, pois excluía o que antes fora a Rússia Européia e, também, as Ilhas Britânicas, ao passo que incluía as costas mediterrâneas da África e da Ásia, e, num estranho salto através do Atlântico, englobava a Argentina, o Uruguai e o Chile.

      Por outro lado, também não deveria melhorar sua posição em relação às demais regiões da Terra, exceto pelo vigor que lhe emprestavam as províncias sul-americanas. De todas as regiões, era a única que mostrara um acentuado declínio de população no último meio século.

      Era, igualmente, a única que não expandira seriamente sua capacidade produtiva ou oferecera algo radicalmente novo para a cultura humana.

      – A Europa é essencialmente um apêndice econômico da Região Norte – declarou Madame Szegeczowska, em seu francês suave. – Sabemos disso e não nos importamos. Como em sinal de resignada aceitação de tal falta de individualidade, não havia mapa da Europa na parede do gabinete da Madame Vice-Coordenadora.

      – Não obstante – interpôs Byerley – vocês possuem sua própria Máquina e certamente não sofrem qualquer pressão econômica do outro lado do oceano.

      – Uma Máquina! Bah! – exclamou ela, sacudindo os ombros delicados e permitindo que um leve sorriso surgisse em seu rosto pequeno, enquanto batia um cigarro com os dedos delgados. – A Europa é um lugar sonolento. E nossos homens que não conseguem emigrar para os trópicos tornam-se tão cansados e sonolentos quanto ela. Como o senhor pode ver por si próprio, é sobre os ombros de uma pobre mulher que recai a missão de Vice-Coordenadora. Bem, felizmente não é uma missão muito árdua e não se espera muito de mim.

      – Quanto à Máquina... Que pode ela dizer senão: “Façam isto e será melhor para vocês? Mas o que é melhor para nós? Ora, sermos um apêndice econômico da Região Norte.

      – Acha isso tão terrível? Não há guerra! Vivemos em paz e posso assegurar que é muito agradável, após sete mil anos de guerras! Somos velhos, monsieur. Dentro de nossas fronteiras, ternos as regiões que serviram de berço à civilização ocidental. Temos o Egito e a Mesopotâmia; Greta e Síria; Ásia Menor e Grécia. Mas a velhice não é necessariamente uma infelicidade. Pode ser um aproveitamento...

      – Talvez a senhora tenha razão – disse Byerley, afável. – Pelo menos, o ritmo devida não é tão intenso quanto nas outras Regiões. É uma atmosfera agradável.

 – Não é mesmo?... Mandei trazer chá, monsieur. Se o senhor tiver preferência por creme e açúcar, por favor...

 - Obrigada.

 Depois de tomar um gole de chá, a Vice-Coordenadora prosseguiu:

      – É agradável. O resto do mundo pode continuar na velha luta. Neste ponto, eu vejo um paralelo – um paralelo muito interessante. Houve uma época em que Roma era a senhora do mundo. Adotara a cultura e a civilização da Grécia – de uma Grécia que jamais fora unida, que se arruinara com a guerra e que estava terminando seus dias num estado de miséria e decadência. Roma uniu a Grécia, trouxe-lhe paz e deixou-a levar uma vida de segurança, desprovida de glória. A Grécia passou a ocupar-se com as suas filosofias e a sua arte, longe das atribulações do crescimento e da guerra. Era uma espécie de morte, mas representava um repouso e durou, com ligeiras interrupções, cerca de quatrocentos anos.

      Byerley aduziu:

      – Apesar de tudo, Roma acabou caindo, e o sonho da Grécia terminou.

      – Atualmente, já não existem bárbaros para destruir uma civilização.

      – Nós podemos servir de bárbaros para nós mesmos, Madame Szegeczowska... Oh, eu pretendia fazer-lhe uma pergunta. A produção das minas de mercúrio de Almaden caiu de modo assustador. Tem certeza de que as reservas de minério não estão se esgotando mais depressa que o previsto?

      Os olhos cinzentos da mulherzinha fixaram-se perspicazmente nos de Byerley.

      – Bárbaros... a queda da civilização... possível falha da Máquina... Sua linha de raciocínio é bastante transparente, monsieur.

      – É mesmo? – replicou Byerley, sorrindo. – Estou vendo que de agora em diante só devo lidar com homens... A senhora considera o caso de Almaden uma falha da Máquina?

      – Absolutamente, não. Mas vejo que o senhor considera. O senhor é natural da Região Norte. O Gabinete Central de Coordenação fica em Nova York. E já percebi que há algum tempo os nortistas não têm muita fé na Máquina.

      – Não temos?

      – Existe a sua “Sociedade em Prol da Humanidade”, que tem bastante força no Norte, mas não consegue angariar adeptos na velha e cansada Europa. A Europa está bastante disposta a deixar a pobre Humanidade em paz por algum tempo. Certamente, o senhor pertence ao Norte confiante e não ao cínico Velho Continente.

      – Isto tem alguma ligação com Almaden?

      – Oh, sim; creio que sim. As minas de mercúrio são controladas pela Consolidated Cinnabar, que é uma companhia do Norte, com sede em Nikolaev. Pessoalmente, chego a duvidar de que a Diretoria esteja consultando a Máquina. Em nossa conferência do mês passado, os diretores da Consolidated Cinnabar afirmaram que consultavam regularmente. E, naturalmente, não possuímos prova de que não tenham consultado. Não se ofenda, por favor, mas eu jamais confiaria em um nortista quanto a esse ponto, em circunstância alguma. Não obstante, acredito que tudo terminará bem.

      – De que modo, minha cara Madame?

      - O senhor deve compreender que as irregularidades econômicas dos últimos meses – que, embora pequenas em comparação com as grandes crises do passado, perturbam bastante nosso espírito impregnado do desejo de paz – causaram considerável inquietação na província da Espanha. Tive notícias de que a Consolidated Cinnabar estádisposta a vender a concessão a um grupo espanhol. É uma novidade consoladora. Mesmo que sejamos vassalos econômicos do Norte, é humilhante que o fato seja abertamente divulgado. E é certo que nosso pessoal seguirá mais fielmente as instruções da Máquina.

      – Então a senhora julga que não haverá mais dificuldades? 

      – Tenho certeza de que não haverá – pelo menos em Almaden.

 

      Região Norte: a – Arca: 28.800.000 km², b – População: 800.000.000 de habitantes, c – Capital: Ottawa.

      Sob vários aspectos, a Região Norte estava por cima. O fato era exemplificado de modo bastante expressivo pelo mapa na parede do gabinete do Vice-Coordenador Hiram Mackenzie, em Ottawa. O Pólo Norte ocupava o centro do mapa. A exceção do enclave europeu, com as regiões da Escandinávia e da Islândia, toda a zona ártica pertencia à Região Norte. 

      A grosso modo, a região podia ser dividida em duas áreas principais. A esquerda do mapa ficava toda a América do Norte acima do Rio Grande. A direita, tudo aquilo que outrora constituíra a União Soviética. Juntas, estas duas áreas representavam acentralização de poder do planeta nos primórdios da Era do Átomo. Entre as duas, estava situada a Grã-Bretanha, como a língua da Região a lamber o litoral da Europa. No topo do mapa, destorcidas e representadas por massas enormes, ficavam a Austrália e a Nova Zelândia, que também eram províncias da Região Norte.

      Nem mesmo todas as mudanças ocorridas nas últimas décadas haviam bastado para alterar o fato de que a Região Norte dominava economicamente o planeta.

      Em conseqüência, havia um simbolismo quase ostensivo no fato de que, dentre todos os mapas oficiais regionais que Byerley vira, somente o de Mackenzie mostrava a Terra inteira, como se o Norte não temesse competidores e não necessitasse de favoritismo para fazer valer sua preeminência.

      – Impossível – disse Mackenzie em tom azedo, tomando um gole de uísque. – Creio que o senhor não foi treinado como técnico em robôs, Sr. Byerley.

      – Não, de fato.

      – Muito bem. Na minha opinião, é uma pena que Ching, Ngoma e Szegeczowska também não tenham sido. Há uma tendência exagerada por parte dos povos da Terra para crer que um Coordenador necessita apenas ser um organizador capaz, uma pessoa apta a fazer amplas generalizações e um indivíduo amável. Não se ofenda, mas creio que atualmente ele também deveria conhecer robótica.

      – Não me ofendo. Concordo plenamente com o senhor.

      – Por exemplo, em virtude do que o senhor já disse, deduzo que está preocupado com as pequenas irregularidades na economia mundial. Não sei do que o senhor suspeita. Mas acontece que no passado já houve pessoas que – erroneamente – imaginavam o que se passaria caso as Máquinas recebessem dados falsos.

      – O que se passaria, Sr. Mackenzie?

      – Bem – disse o escocês, mudando de posição na poltrona e suspirando. – Todos os dados coligidos são submetidos a um complicado sistema de seleção que inclui verificações humanas e mecânicas, de modo que é improvável que surja o problema de dados falsos. Mas ignoremos tal fato. Os seres humanos são passíveis de falhas e, também, suscetíveis de corrupção. Por outro lado, os aparelhos mecânicos podem sofrer enguiços. O que realmente interessa é o seguinte: chamamos de “dado errado” qualquer informação que seja incoerente com todos os demais dados conhecidos. É o nosso único critério de certo ou errado. E, igualmente, é o critério da Máquina. Por exemplo: Pedimos à Máquina que oriente a atividade cultural baseando-se no dado de uma temperatura média de 57 graus Fahrenheit em Iowa no mês de julho. A Máquina não aceitará o problema. Não porque tenha algum preconceito contra essa determinada temperatura, ou porque seja impossível responder; mas porque, à luz de todos os outros dados que lhe foram fornecidos durante um período de anos, ela sabe que a possibilidade de uma temperatura média de 57 em Iowa no mês de julho é praticamente nula. Portanto, rejeita o dado.

      – O único meio de se poder inserir um “dado errado” na Máquina é incluí-lo como parte de um todo consistente, cujo inteiro contexto seja sutilmente falso de um modo delicado demais para que a Máquina possa perceber, ou que esteja fora da experiência da Máquina. O primeiro caso está além das possibilidades humanas. O segundo está quase. E torna-se cada vez mais difícil à medida em que a experiência da Máquina aumenta constantemente, de segundo a segundo.

      Stephen Byerley alisou o nariz com dois dedos.

      – Então é impossível enganar a Máquina... Neste caso, como o senhor explicaria os erros recentes?

      – Meu caro Byerley, percebo que você acompanha instintivamente uma presunção totalmente errônea: a de que a Máquina sabe tudo. Permita-me citar um caso de experiência pessoal. A indústria algodoeira contrata compradores experientes, que são encarregados da aquisição de algodão. O processo por eles utilizado é puxar um tufo de algodão de um saco escolhido a esmo dentre um lote. Eles examinam o tufo, esticam-no, ouvem os estalidos produzidos, provam o algodão com a ponta da língua – e, através desse processo, determinam a classificação do algodão contido nos fardos do lote. Existem cerca de doze dessas classes. Em conseqüência das decisões de compradores, o algodão é adquirido a determinados preços e as diversas classes são misturadas em certas proporções. Muito bem... Esses compradores de algodão não podem ser substituídos pela Máquina.

      – Por que não? Certamente, os dados do problema não são complicados demais para ela, são?

      – Provavelmente não. Entretanto, a que dados o senhor se refere? Nenhum químico têxtil sabe exatamente o que o comprador experimenta quando apalpa um tufo de algodão. Presumivelmente, trata-se do comprimento médio dos fios, de seu tato, da quantidade e natureza de sua lisura, do modo como se prendem uns aos outros, e assim por diante... Várias dúzias de itens, julgados subconscientemente, como resultado de anos de experiência. Mas a natureza quantitativa dos testes é desconhecida: talvez até mesmo a própria natureza de alguns deles não seja conhecida. Portanto, não dispomos de dados para apresentar à Máquina. Por outro lado, os compradores também não sabem explicar como fazem o julgamento. Só podem dizer: “Olhe só. Será que não vê que é da classe tal?”

      – Compreendo.

 – Existem inúmeros casos dessa espécie. Afinal, a Máquina é apenas uma ferramenta capaz de ajudar a humanidade a progredir mais depressa, livrando-a de alguns dos encargos decorrentes de cálculos e interpretações. A tarefa do cérebro humano continua a ser o que sempre foi: descobrir novos dados a serem analisados einventar novos conceitos a serem experimentados. É uma pena que a Sociedade em Prol da Humanidade não compreenda isso.

 – Eles são contra a Máquina?

      – Se tivessem tempo de sobra, seriam contra a matemática ou contra a literatura. Os reacionários que compõem a Sociedade em Prol da Humanidade alegam que a Máquina priva o homem de sua alma. Entretanto, ainda há falta de homens realmente capazes em nossa sociedade; ainda precisamos de homens bastante inteligentes para descobrir as perguntas adequadas que devem ser apresentadas à Máquina. Talvez se encontrássemos alguns deles, as irregularidades que tanto o preocupam não ocorressem, Coordenador. 

 

      Terra (incluindo o continente desabitado, Antártica) a – Área: 88.400.000 km² (de terras), b – População: 8.800.000.000 de habitantes, c – Capital: Nova York.

      O fogo por detrás da lâmina de cristal de quartzo estava fraco, morria relutantemente. O Coordenador se mostrava sombrio; sua disposição combinava com a fraqueza da chama.

      – Todos eles diminuem a importância do estado de coisas – declarou em voz baixa. – Não é tão fácil imaginar que estão zombando de mim? E, apesar de tudo... Vincent Silver afirma que as Máquinas não estão enguiçadas e devo acreditar nele. Hiram Mackenzie diz que é impossível inserir nelas quaisquer dados falsos e devo acreditar nele. Mas, de algum modo, as Máquinas estão falhando e também devo acreditar nisso... Assim sendo, ainda resta uma alternativa.

      Lançou um olhar de esguelha a Susan Calvin que, com os olhos fechados, parecia adormecida.

      – Qual é ela? – indagou Susan prontamente, mostrando que prestava atenção.

      – Ora, os dados corretos são apresentados e as respostas estão certas, mas são ignoradas. A Máquina não tem meios para obrigar os homens a obedecerem suas instruções.

      – Parece-me que Madame Szegeczowska insinuou exatamente isso em referência aos nortistas.

      – Certo.

      – E qual seria o objetivo de quem não obedece à Máquina? Consideremos as motivações.

      – É óbvio para mim e deve ser para você também. Trata-se de balançar a canoa, propositadamente. Enquanto as Máquinas governarem a Terra, não haverá possibilidade de um grupo qualquer assumir mais poder do que tem, mesmo que pretenda fazê-lo, a despeito do mal que causaria à humanidade em geral. Se for possível destruir a fé que o povo deposita nas Máquinas, a ponto de que elas sejam abandonadas, voltaremos à lei da selva: a lei do mais forte. E nenhuma das quatro Regiões está livre de suspeitas de desejar justamente isso.

      – O Oriente tem em suas fronteiras a metade da população da Terra, e os Trópicos possuem mais da metade dos recursos do planeta. Ambos podem sentir-se com direito a serem os senhores naturais da Terra inteira, ambos têm um passado de humilhações por parte do Norte, em virtude do qual seria muito humano desejar vingança, mesmo que esta fosse desprovida de sentido. A Europa, por sua vez, tem uma tradição de grandeza. Houve épocas em que já dominou o mundo e não existe algo tão perene quanto a lembrança do poder.

      – Ainda assim, sob outro aspecto, é difícil acreditar. Tanto o Oriente quanto os Trópicos atravessam um estágio de enorme expansão no interior de suas próprias fronteiras. Ambos progridem incrivelmente. Não podem dispor de energia supérflua para se engajarem em aventuras militares. E a Europa nada pode alimentar senão seus velhos sonhos. Sob o ponto de vista militar, ela não passa de um simples algarismo no papel. Portanto, Stephen, resta o Norte – disse Susan Calvin.

      – Exatamente – disse Byerley, enérgico. – É o que resta. Atualmente, o Norte é o mais forte, como vem sendo por quase um século – ou, pelo menos, as suas partes componentes o foram. Ultimamente, entretanto, vem sofrendo uma relativa queda. A Região dos Trópicos pode voltar a ocupar o lugar de destaque da civilização pela primeira vez desde os tempos dos faraós. E há nortistas que temem essa possibilidade.

      – Como você sabe, a Sociedade em Prol da Humanidade é uma organização primordialmente nortista e não faz segredo de desejar eliminar as Máquinas... São poucos, Susan; mas, infelizmente, trata-se de uma associação de homens poderosos. Presidentes de fábricas, diretores de indústrias e de grandes complexos agrícolas, que odeiam ser o que chamam de “officeboys da Máquina”. Homens ambiciosos. Homens que se sentem suficientemente fortes para decidir sozinhos o que é melhor para eles e não se interessam por saber o que é melhor para os outros.

      – Em resumo, a Sociedade em Prol da Humanidade é composta unicamente por homens que, reunindo-se na recusa de aceitar as decisões da Máquina, podem, em pouco tempo, revolucionar o mundo para o pior. Tudo se confirma, Susan. Cinco dentre os diretores da World Steel são membros da Sociedade – e a World Steel sofre um problema de excesso de produção. A Consolidated Cinnabar, que explorava a mineração de mercúrio em Almaden, era uma firma nortista. Seus registros ainda estão sendo investigados, mas pelo menos um dos homens envolvidos na queda de produção das minas é membro da Sociedade. Francisco Villafranca, que, sozinho, atrasou a construção do Canal do México por dois meses, é membro da Sociedade. E, sabemos agora, o mesmo acontece com relação a Rama Vrasayana – coisa que não me surpreendeu.

      Susan comentou tranqüilamente:

      – Permita-me ressaltar que todos esses homens sofreram as conseqüências de seus atos...

      – Mas é claro! – interrompeu Byerley. – Desobedecer às análises da Máquina significa seguir um caminho que não é o ótimo. Os resultados são inferiores aos que deveriam ser. É o preço que eles pagam pela desobediência. Sofrem agora, mas na confusão que se seguirá...

      – O que pretende fazer, Stephen?

      – Obviamente, não há tempo a perder. Vou proibir o funcionamento da Sociedade e remover seus membros de cargos de responsabilidade. De agora em diante, todos os cargos técnicos e de direção só poderão ser preenchidos por pessoas que assinem um compromisso de não pertencerem à Sociedade. Isto implicará numa certa violação das liberdades cívicas básicas, mas tenho certeza de que o Congresso...

      – Não dará certo!

      – O quê!... Por que não?

      – Vou fazer uma previsão. Se você tentar algo desse tipo, se verá tolhido em todos os sentidos. Descobrirá que é impossível conseguir o que deseja. Verificará que toda e qualquer medida nesse sentido resultará em encrencas.

      Byerley ficou abalado.

      – Por que diz isso?... Confesso que esperava obter a sua aprovação para a medida.

      – Não terá minha aprovação enquanto suas ações forem baseadas em uma premissa falsa. Você admite que a Máquina não pode errar e que rejeitará qualquer dado falso. Agora vou lhe provar que também não pode ser desobedecida – ao contrário do que você desconfia que a Sociedade esteja fazendo.

      – Isso, eu não compreendo...

      – Então ouça. Toda a ação levada a efeito por um diretor que não segue exatamente as instruções da Máquina com a qual ele trabalha se transforma em parte dos dados que serão apresentados à Máquina no problema consecutivo. Em conseqüência, a Máquina sabe que o referido diretor tem uma certa tendência para desobedecer. A Máquina pode incorporar essa tendência aos dados – até mesmo quantitativamente, isto é, calculando exatamente quando e em que sentido a desobediência deve ocorrer. Suas respostas seriam suficientemente desviadas de modo que, quando o referido diretor desobedecesse, corrigiria automaticamente as respostas, levando-as à direção ótima. A Máquina sabe, Stephen!

      – Não pode ter certeza disso. Está apenas imaginando.

      – É um palpite baseado em toda uma vida de experiência em lidar com robôs. Acho melhor você confiar no palpite, Stephen. 

      - Mas o que resta, então? As Máquinas estão corretas e os dados com os quais elas trabalham também são corretos. Quanto a isso, já concordamos. Agora você afirma que é impossível desobedecer as Máquinas. Neste caso, o que há de errado?

      – Você mesmo já respondeu. Nada está errado! Pense um pouco nas Máquinas, Stephen. São robôs e obedecem à Primeira Lei da Robótica. Acontece que as Máquinas não trabalham para um único homem, mas para a humanidade inteira. Em conseqüência, a Primeira Lei se transforma em: “Nenhuma Máquina pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra danos”. Muito bem, Stephen. Reflitamos. O que causa dano à humanidade? Acima de tudo, as irregularidades econômicas, quaisquer que sejam suas causas. Não concorda comigo?

      – Claro.

      – E, no futuro, o que tem maiores possibilidades de causar irregularidades econômicas? Responda, Stephen.

      – Eu diria que é a destruição das Máquinas – respondeu Byerley, relutante.

      – O mesmo diria eu, o mesmo diriam as próprias Máquinas. Portanto, o primeiro cuidado delas é preservar-se, para o nosso bem. Assim sendo, cuidam tranqüilamente de eliminar os únicos elementos que podem prejudicá-las. Não é a Sociedade em Prol da Humanidade que sacode deliberadamente a canoa no intuito de fazer com que as Máquinas afundem. Você encarou a situação pelo lado inverso. Diria melhor: as Máquinas estão sacudindo a canoa, bem de leve, apenas o suficiente para lançar na água os poucos que ainda se agarram a esperanças que as Máquinas consideram prejudiciais à humanidade. Desse modo, Vrasayana perde a usina e vai para um emprego onde não poderá causar maiores danos – não sofreu muito, não ficou incapacitado de ganhar a vida, pois a Máquina só pode causar danos mínimos a um ser humano – e, mesmo assim, apenas para salvar um número muito maior de pessoas. A Consolidated Cinnabar perdeu o controle das minas de mercúrio de Almaden. Villafranca deixou de ser um engenheiro civil encarregado da execução de um projeto importante. E os diretores da World Steel estão perdendo a influência na indústria siderúrgica – ou acabarão perdendo.

      – Mas você não pode ter certeza de tudo isso – insistiu Byerley, confuso. – Não podemos arriscar-nos a um engano!

      – Não há outra solução. Lembra-se da resposta da Máquina quando você lhe apresentou o problema? Ela respondeu: “O problema não admite explicações”. Repare que a Máquina não disse que o problema não tinha explicação, ou que ela não poderia determinar qual a explicação. Simplesmente recusou-se a admitir uma explicação. Em outras palavras: seria prejudicial à humanidade tornar pública a explicação. Eis aí por que motivo só podemos dar palpites – e segui-los.

      – Mas, Susan, mesmo admitindo que você tenha razão, de que modo a explicação poderia prejudicar a humanidade?

      – Ora, Stephen, se eu estiver com a razão, isto significa que a Máquina orienta nosso futuro não apenas em resposta direta a nossas perguntas diretas, mas em resposta geral à situação mundial e à psicologia humana, como um todo. E sabermos isso pode fazer-nos infelizes ou ferir nosso orgulho. A Máquina não pode – não deve – nos fazer infelizes. Stephen, como podemos saber o que será o último bem da humanidade? Não temos à nossa disposição os fatores infinitos que a Máquina tem à disposição dela! Talvez – para dar um exemplo não inteiramente desconhecido – toda a nossa civilização, baseada na técnica, tenha criado mais infelicidade e miséria do que evitado. Talvez uma civilização agrária ou pastoril, com menos gente e menos cultura, fosse melhor. Se assim for, as Máquinas deverão agir nessa direção, de preferência sem nos dizer, uma vez que, em virtude de nossos preconceitos ignorantes, só consideramos bom aquilo a que estamos acostumados – e lutaríamos contra a mudança. Ou talvez a resposta seja uma urbanização total, ou uma sociedade regida por castas, ou a completa anarquia. Não sabemos. Só quem sabe são as Máquinas, elas se dirigem para lá e nos levam com elas.

      – Mas suas palavras significam, Susan, que a Sociedade em Prol da Humanidade está com a razão e que a humanidade perdeu o direito de decidir sobre o seu próprio futuro.

      – Na realidade, a humanidade nunca teve tal direito. Sempre esteve à mercê de forças econômicas e sociológicas que ela era incapaz de compreender – à mercê dos climas e das fortunas da guerra. Agora, as Máquinas compreendem essas forças e ninguém poderá conter as Máquinas, porque elas cuidarão dessas forças do mesmo modo pelo qual estão cuidando da Sociedade em Prol da Humanidade – tendo à sua disposição a mais poderosa de todas as armas: o controle absoluto de nossa economia.

      – Que coisa horrível!

      – Talvez você deva dizer: que coisa maravilhosa! Lembre-se de que, afinal, de agora até o final dos tempos, todos os conflitos são evitáveis. De agora em diante, apenas as Máquinas são inevitáveis!

 

      Intuição feminina

      As Três Leis da Robótica:

      1. Um robô não deve fazer mal a um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra qualquer mal.

      2. Um robô deve obedecer a qualquer ordem dada por um ser humano, desde que essa ordem não interfira com a execução da Primeira Lei.

      3. Um robô deve proteger a sua existência, desde que esta proteção não interfira com a Primeira e Segunda Leis.

     

      Pela primeira vez na história da “United States Robots and Me-chanical Men, Inc.” um robô havia sido destruído num acidente na própria Terra.

      Ninguém podia ser responsabilizado. O avião tinha sido destruído em pleno ar e um incrédulo comitê de investigações se indagava se realmente deveria ousar anunciar a evidência de que o veículo tinha sido atingido por um meteorito. Nada mais poderia ser suficientemente rápido para obstar o sistema automático de prevenção; com exceção de uma carga nuclear, nada mais poderia ter causado o dano, e isto estava fora de cogitação.

      Ligando-se isto a um relato de um súbito brilho no céu noturno imediatamente antes de o veículo explodir - observação vinda do

      Observatório Flagstaff, e não de um amador - e dada a localização de um nítido fragmento de meteorito, ferro há pouco arrancado, jogado na terra a quilômetro e meio do local, a que outra conclusão se poderia chegar?

      Ainda assim, nada de semelhante ocorrera antes e o exame da possibilidade de ter acontecido algo de incomum tinha contra si avantajadas cifras. Mas, não obstante, às vezes até colossais improba-bilidades podem acontecer.

      Nos escritórios da U.S. Robots, os cornos e os porquês do caso eram secundários. O que interessava mesmo é que um robô tinha sido destruído.

      O fato, em si, era angustiante.

      Mais angustiante ainda era o fato de JN-5 ter sido um protótipo, o primeiro, após quatro tentativas anteriores, a ter sido colocado em campo.

      E extremamente angustiante era o fato de JN-5 ser um tipo de robô completamente novo, muito diferente de qualquer outro construído antes.

      O fato de JN-5 aparentemente ter realizado alguma coisa antes de sua destruição, algo de incalculavelmente importante, e o fato de que essa realização talvez pudesse ter desaparecido para sempre, fazia com que não houvesse palavras para descrever a angústia.

      Mal parecia digno de referência que, juntamente com o robô, morrera o chefe de Psicologia de Robôs da U.S. Robots.

      Clinton Madarian tinha entrado na firma dez anos antes. Durante cinco daqueles anos ele trabalhara sem se queixar sob a mal-humorada supervisão de Susan Calvin.

      O brilhantismo de Madarian era mais do que óbvio e tranqüilamente Susan Calvin o promovera acima dos mais velhos. De qualquer forma, ela se dignaria a dar suas razões a Peter Bogert, seu Diretor de Pesquisas, mas, quando isto ocorreu, não houve necessidade de explicações. Ou melhor: elas eram óbvias.

      Madarian era completamente o contrário da renomada Dra. Calvin em muitos aspectos notórios. Ele não era tão pesado quanto seu queixo duplo poderia fazê-lo parecer, mas, mesmo assim, sua presença se impunha, enquanto que Susan quase não era notada. A face maciça de Madarian, sua faiscante cabeleira ruiva, sua tez rosada, sua voz tonitruante, sua risada alta, e, acima de tudo, sua irrepreensível autoconfiança, sua maneira impaciente de anunciar seus sucessos, faziam com que todos os demais que se achassem na sala sentissem falta de espaço.

      Quando finalmente Susan Calvin se aposentou (recusando antecipadamente cooperar com respeito a qualquer jantar de homenagem que pudesse ser planejado em sua honra, de uma maneira tão firme que nem sequer se fez anúncio de sua aposentadoria aos serviços de informações), Madarian ocupou o seu cargo.

      Fazia exatamente um dia que ele estava em seu novo posto quando iniciou o projeto JN.

      Ele significava a maior alocação de recursos até então feita a um projeto pela U.S. Robots, mas era algo que Madarian repudiara com um jovial aceno de mão.

      - Não vale a pena gastar um centavo nisso, Peter - disse ele.

      - E eu espero que você convença a Diretoria disto.

      - Dê-me razões - disse Bogert, indagando-se se Madarian as daria.

      Susan Calvin nunca dava razões. Mas Madarian disse:

      - Claro! - e instalou-se confortavelmente na ampla poltrona da sala do Diretor.

      Bogert observava o outro com algo que era quase temor. Seus cabelos, outrora negros, eram quase brancos agora e dentro de uns dez anos ele seguiria Susan na aposentadoria. Isto significaria o fim da equipe que originalmente constituíra a U.S.Robots numa firma que dava a volta ao mundo, rival - em complexidade e importância - de muitos governos nacionais. Por alguma razão qualquer, nem ele nem os que o haviam antecedido tinham conseguido apreender a enorme expansão da firma.

      Contudo, agora era uma nova geração. Os novos homens sentiam-se à vontade com o Colosso. Faltava-lhes o toque de encantamento que os teria deixado na ponta dos pés, descrentes. De forma que iam em frente - e isto era bom.

      Madarian disse: - Proponho o começo da construção de robôs sem restrições.

      - Sem as Três Leis? Lógico que...

      - Não, Peter. Será que você só sabe pensar nestas restrições? Diabos, você contribuiu para projetar os primeiros cérebros positrônicos. Será que tenho de lhe dizer que, deixando bem de lado as Três Leis, não existe uma trilha nestes cérebros que não tenha sido cuidadosamente projetada e assentada? Temos robôs planejados para tarefas especificas, com capacidades especificas implantadas.

      - E você propõe...

      - Que, em qualquer nível abaixo das Três Leis, os circuitos tenham terminais abertos. Não é difícil.

      - Realmente, não é difícil - disse Bogert secamente. - As coisas inúteis nunca são difíceis. Difícil vai ser assentar as trilhas e tornar o robô útil.

      - Tão difícil assim por quê? Assentar as trilhas exige um bocado de esforço porque o Princípio da Incerteza é importante nas partículas nas quais a massa de pósitrons e o efeito de incerteza precisam ser minimizados. Ainda assim, por que precisa? Se fizermos com que o Princípio se manifeste de forma suficiente apenas para permitir que o cruzamento de trilhas se faça imprevisivelmente...

      - Teremos um robô imprevisível.

      - Teremos um robô criativo - disse Madarian com uma ponta de impaciência. — Peter, se há alguma coisa que um cérebro humano tem, e que o cérebro de um robô nunca teve, é um toque de imprevisibilidade que vem dos efeitos da incerteza no nível subatômico. Admito que esse efeito nunca foi demonstrado experimentalmente dentro do sistema nervoso, mas sem isto, em princípio, o cérebro humano não é superior a um cérebro robótico.

      - E você pensa que, se introduzirmos o efeito no cérebro robótico, em princípio o cérebro humano não se tornará superior ao cérebro robótico.

      - É exatamente nisso que acredito - disse Madarian. E prosseguiram muito tempo depois disto.

      Logicamente, o Conselho Diretivo não tinha a intenção de se deixar convencer facilmente.

      Dissera Scott Robertson, o maior acionista da firma: - Já é bastante difícil gerir a firma de robôs tal como é, com a hostilidade pública aos robôs sempre prestes a se manifestar. Se as pessoas vierem a saber que os robôs poderão ser incontroláveis... Não, não me fale das Três Leis. As pessoas comuns não acreditarão que as Três Leis as protegerão, assim que ouvirem dizer a palavra “incontrolável”.

      - Então, não a use - disse Madarian. - Chame o robô de... digamos... “intuitivo”.

      - Um robô intuitivo - resmungou alguém. - Um robô feminino?

      Um sorriso circulou na mesa de reuniões.

      Madarian se fixou naquilo. - Está bem, um robô feminino. Nossos robôs são assexuados, naturalmente, e este também o será, mas sempre agimos como se fossem masculinos. Damos-lhes nomes de bichinhos de estimação machos, e falamos “ele”, “dele”. Este de agora, se considerarmos a natureza da estrutura matemática do cérebro que propus, cairá no sistema de coordenadas JN. O primeiro robô seria o JN-1, e admito que seria denominado de John-1... Suspeito que seja este o nível de originalidade do roboticista comum.

      Mas, com os diabos, por que não denominá-lo de Jane-1? Se for para informar o público do que estamos fazendo, estamos construindo um robô feminino com intuição. Robertson sacudiu a cabeça.

      - Que diferença faria isso? O que você está dizendo é que planeja remover a última barreira que, em princípio, mantém o cérebro robótico inferior ao cérebro humano. Qual supõe você que será a reação do público?

      - Você tem a intenção de tornar isto público - disse Madarian. Pensou um momento e disse, então: - Vejam: uma coisa em que o público em geral crê é que as mulheres não são tão inteligentes quanto os homens.

      De pronto houve um olhar de apreensão no rosto de mais de um homem na mesa e um olhar para o alto e para baixo, como se Susan Calvin ainda estivesse em seu assento costumeiro.

      - Se anunciarmos um robô mulher, não importa quem ela seja - disse Madarian -, automaticamente o público admitirá que ela é mentalmente atrasada. Limitar-nos-emos a anunciar um robô Jane-1 e nenhuma palavra mais acrescentaremos. Estaremos a salvo.

      - Na verdade - disse tranqüilamente Peter Bogert - existe algo mais. Madarian e eu examinamos cuidadosamente a parte matemática e a série JN, seja de Johns ou Janes, será bem segura. Serão robôs menos complexos e menos capazes intelectualmente, num sentido ortodoxo, que muitas outras séries que planejamos e construímos. Haveria apenas um fator adicional, que teríamos de nos habituar a chamar de, digamos, “intuição”.

      - E quem é que sabe em que vai dar isso? - resmungou Robertson.

      - Madarian sugeriu uma coisa que o robô poderá fazer. Como todos sabem, em princípio já está desenvolvido o Salto no Espaço. É possível ao homem atingir o que é, na verdade, supervelocidades além daquela da luz e visitar outros sistemas estelares e voltar num espaço de tempo mínimo - no máximo, em semanas.

      - Isto não é novidade para nós - disse Robertson. — Sem os robôs, não poderia ter sido feito.

      - Exatamente, e não está redundando em nada de bom para nós, visto que não podemos usar o impulso da supervelocidade exceto, talvez, uma vez como demonstração, de forma que pouco crédito se dará à U.S. Robots. O Salto no Espaço é arriscado, é temivelmen-te pródigo em energia e, destarte, é extremamente dispendioso. Se, de qualquer forma, fôssemos utilizá-lo, seria bonito se pudéssemos constatar a existência de algum planeta habitado. Vamos chamar isto de necessidade psicológica. Se gastarmos uns vinte bilhões de dólares num único Salto no Espaço e não obtivermos nada além de dados científicos, o público quererá saber por que seu dinheiro foi desperdiçado. Mas, se você noticiar que descobriu um planeta habitado, você se transformará num Colombo interestelar e ninguém se preocupará com o dinheiro.

      - Daí que...?

      - Daí que, onde é que acharemos um planeta habitado? Ou, então, vamos considerar as coisas desta maneira: dentro do alcance do Salto no Espaço tal como atualmente o concebemos, qual dentre as trezentas mil estrelas e sistemas estelares, compreendidos no limite de trezentos anos-luz, tem melhor chance de possuir um planeta habitável? Armazenamos uma enorme quantidade de detalhes sobre todas as estrelas na vizinhança dos trezentos anos-luz e a noção de que quase todas têm um sistema planetário. Qual, porém, tem um planeta habitável? Qual visitaremos?... Não sabemos.

      - E como o robô Jane nos auxiliaria? - indagou um dos diretores.

      Madarian já ia responder à pergunta, mas fez um gesto discreto para Bogert, que compreendeu. O Diretor carregaria um peso maior. Particularmente, Bogert não apreciou a idéia. Se a série JN fosse um fiasco, ele estava se fazendo tão saliente, tão relacionado com o projeto para ter a certeza de que os dedos acusadores apontariam para ele. Por outro lado, a aposentadoria não estava tão distante assim, e, se o projeto desse certo, ele se retiraria em meio a uma auréola de glória. Pode ser que fosse apenas por causa da aura de confiança de Madarian, mas Bogert estava intimamente convicto de que a coisa funcionaria. E disse:

      - Pode muito bem ser que, algures, nos arquivos de dados que temos relacionados com essas estrelas, haja métodos de avaliar as probabilidades de presença de planetas habitáveis do tipo da Terra. Tudo que precisamos fazer é compreender adequadamente os dados, considerá-los de uma maneira adequadamente criativa e estabelecer as correlações corretas. Até o momento, não o fizemos. Ou, caso algum astrônomo o tenha feito, não foi suficientemente inteligente para perceber que o fez.

      - Um robô do tipo JN poderia fazer correlações muito mais rapidamente e muito mais precisamente do que um homem. Num único dia faria e poria de lado tantas correlações quanto um homem em dez anos. E mais: um robô trabalharia de maneira bem ampla, enquanto que um homem já teria uma série de predisposições, baseadas em idéias preconcebidas e naquilo em que já se acredita.

      Houve um considerável silêncio depois disto. Por fim, Robertson disse:

      - Mas é apenas uma questão de probabilidade, não é mesmo? Suponhamos que este robô dissesse: - O planeta com maior probabilidade de ser habitado é um que se acha no sistema de uma estrela a tantos anos-luz, Squidgee-17 ou seja lá o que for; vamos lá e constatamos que uma probabilidade é apenas uma probabilidade e que, afinal de contas, não há planetas habitáveis. E como ficamos?

      Neste momento, Madarian interveio.

      - Ainda assim, ganhamos. Saberemos como o robô chegou àquela conclusão porque ele -ela - no-lo dirá. Isto poderá nos ajudar a ter uma visão muito íntima dos detalhes astronômicos e poderá nos ajudar a tornar o todo digno do trabalho, ainda que nunca demos o Salto no Espaço. Além disso, poderemos explorar os cinco mais prováveis sítios de planetas e a probabilidade de que um dos cinco tenha um planeta habitável poderá ser melhor do que 0,95. É quase certo que...

      E continuaram conversando bastante tempo.

      Os recursos concedidos eram insuficientes, mas Madarian contava com o costume de se pôr bom dinheiro em cima de dinheiro mal gasto. Com duzentos milhões prestes a serem irrevogavelmente perdidos, quando com mais cem milhões se poderia salvar tudo, os outros cem milhões certamente seriam concedidos.

      Finalmente, Jane-1 estava construído e estava sendo exibido. Peter Bogert estudou-o, isto é, estudou-a, e, gravemente, disse:

      - Por que a cintura estreita? Não é certo que isto traz uma fraqueza mecânica?

      Madarian conteve o riso.

      - Olhe aqui, se vamos chamá-la de Jane, não há razão alguma para construí-la como um Tarzan.

      Bogert sacudiu a cabeça.

      - Assim também não. Logo você a estará construindo com protuberâncias para dar a aparência de um busto e isto é uma idéia lamentável. Se as mulheres começarem a perceber que robôs podem ter a aparência delas, posso lhe dizer exatamente que idéias perversas elas terão, e você terá mesmo hostilidade da parte delas.

      - Pode ser que nisto você tenha razão - disse Madarian. - Nenhuma mulher gostaria de se sentir substituível por alguém que não tivesse nenhum dos defeitos dela. Certo.

      Jane-2 não tinha a cintura estreita. Ela era um robô sombrio, que raramente se movimentava e mais raramente ainda falava.

      Durante a construção dela, só ocasionalmente Madarian viera ter com Bogert para discutir alguns detalhes, indício seguro de que as coisas se desenvolviam sem grandes alardes. A agitação de Madarian quando havia sucesso era esmagadora. Ele não hesitaria em invadir o dormitório de Bogert às três da madrugada com um assunto candente, sem esperar que amanhecesse. Disto Bogert tinha certeza. Agora, Madarian parecia refreado, sua rubicunda expressão quase pálida, suas rechonchudas bochechas quase murchas. E, com ar de certeza, Bogert disse:

      - Ela não falará.

      - Vai falar sim - disse Madarian, sentando-se pesadamente e comprimindo seu lábio inferior. - Qualquer dia, de qualquer jeito.

      Bogert ergueu-se e circundou o robô.

      - E quando ela fala, o que diz não tem sentido, penso eu. Bem, se não fala, não é mulher?

      Por um momento, Madarian esboçou um sorriso e o abandonou.

      - Observado isoladamente, o cérebro funcionou - disse.

      - Eu sei - disse Bogert.

      - Mas, uma vez responsável pelo conjunto físico do robô, lógica e necessariamente o cérebro se modificou.

      - Naturalmente - concordou Bogert, desanimado.

      - Imprevisivelmente, frustrantemente, porém. O problema é que, quando a gente está lidando com um cálculo de incerteza n-dimensional, as coisas são...

      — Incertas - falou Bogert. Ele próprio se surpreendia com sua reação. Já se tinham passado quase dois anos e o investimento da empresa era de porte bem maior; não obstante, os resultados eram, para falar de maneira educada, desapontadores. Ainda assim, ele cutucava Madarian e se divertia com a história.

      Quase que furtivamente, Bogert se perguntava se não seria a ausente Susan Calvin que ele estaria cutucando. Madarian era muitíssimo mais agitado e efusivo do que Susan possivelmente jamais seria, quando as coisas estivessem correndo bem. Ele era também muito mais vulnerável à melancolia quando as coisas não corriam bem, e era justamente debaixo de pressão que Susan nunca se abatia. O alvo que Madarian tinha estabelecido podia muito bem ser um alvo muito bem delineado, recompensa para o alvo que Susan nunca se permitira ser.

      Madarian não reagiu à última observação de Bogert mais do que Susan Calvin teria reagido; não por desprezo, que teria sido a reação de Susan, mas porque não a tinha ouvido.

      À guisa de argumentação, ele disse:

      - O problema é a questão do reconhecimento. Jane-2 pode se correlacionar de maneira magnífica. Pode se correlacionar com qualquer assunto, mas, uma vez isto feito, ela não pode distinguir um resultado válido de um sem valor. Não é um problema fácil tanto julgar como programar um robô para contar uma correlação significante, quando não sabemos que correlações ela estará fazendo.

      - Suponho que você pensou em baixar o potencial na junção W-21 de diodo e cintilando através de...

      Num tom de voz que gradualmente foi baixando, Madarian retrucou:

      - Não, não, não, não. Não dá para você fazê-lo desembuchar o que quer que seja. Podemos fazer isto por nós mesmos. O problema é que temos de reconhecer a correlação crucial e chegar a uma conclusão. Uma vez feito isto, entende, por intuição um robô Jane emitirá uma resposta. Será algo que nós mesmos jamais arrancaríamos de nós mesmos, exceto por uma sorte muito fora do comum.

      - Parece-me - disse Bogert secamente - que se você tivesse um robô como este, você conseguiria que ele fizesse rotineiramente aquilo que, entre os seres humanos, somente um gênio ocasional é capaz de fazer.

      Madarian agitou a cabeça vigorosamente. - Exatamente, Peter. É o que eu teria dito se eu não tivesse medo de atemorizar os executivos. Não repita isto quando eles estiverem ouvindo, por favor.

      - Quer dizer que você quer mesmo um robô gênio?

      - Que significam as palavras? Estou tentando obter um robô com a capacidade de estabelecer as mais fortuitas correlações, a enormes velocidades, juntamente com um quociente de alto reconhecimento de significância-chave. E estou tentando pôr estas palavras em equações positrônicas de campo. Pensei que já as tivesse, mas não tenho. Ainda não.

      Ele olhou para Jane-2 com descontentamento e disse:

      - Qual é a melhor significância que você tem, Jane?

      A cabeça de Jane-2 voltou-se para olhar Madarian mas ela não emitiu som algum e Madarian sussurrou resignadamente:

      - Ela está tentando entender isto nos bancos de correlação.

      Por fim, sem entonação alguma, Jane-2 falou.

      - Não estou certa. - Era o primeiro som que ela emitia.

      Os olhos de Madarian viraram para cima.

      - Ela está fazendo o equivalente a resolver equações com soluções indeterminadas.

      - Foi o que percebi - falou Bogert. - Ouça, Madarian, partindo daí você pode ir aonde quiser ou paramos por aqui e reduzimos nossas perdas a meio bilhão?

      - Oh, conseguirei isso - murmurou Madarian.

      Jane-3 não chegou a ser. Nunca passou de uma mera ativação e Madarian estava furioso. Era erro humano. Culpa dele mesmo, se se quisesse ser bem preciso. Ainda assim, se bem que Madarian estivesse terrivelmente humilhado, os outros permaneceram quietos. Que se deixasse aquele que jamais cometera um engano na intricada e temível matemática do cérebro positrônico preencher o primeiro memorando de correção.

      Quase um ano se passara antes que Jane-4 estivesse pronta. Novamente Madarian estava agitado.

      - Ela é capaz - dissera ele. - Ela tem um bom quociente de alto reconhecimento.

      Ele tinha confiança suficiente para colocá-la num exibidor diante do Conselho e fazê-la resolver problemas. Não problemas matemáticos, coisa que qualquer robô faria, mas problemas nos quais os termos eram deliberadamente misturados, sem serem, na verdade, inexatos.

      Posteriormente, Bogert disse:

      - Na verdade, isto não exige muito.

      - Lógico que não. É elementar, para Jane-4, mas eu tinha de mostrar alguma coisa para os diretores, não acha?

      - Sabe quanto já gastamos até agora?

      - Vamos, vamos, Peter, não me venha com essa. E você por acaso sabe quanto recuperaremos? Coisas como esta não caem num vácuo, você sabe. Isto me custou três anos infernais, se quer saber, mas desenvolvi novas técnicas de cálculo que nos pouparão no mínimo cinqüenta mil dólares em qualquer novo tipo de cérebro positrônico que projetarmos no futuro. Certo?

      - Bem...

      - Não me venha com “bem...”. É isto aí. E tenho a convicção pessoal de que cálculos n-dimensionais de incerteza podem ter o número que quisermos de outras aplicações se tivermos inteligência para descobri-las, e meus robôs Jane as descobrirão. Uma vez que eu saiba exatamente o que quero, a nova série JN no decorrer de cinco anos se pagará a si mesma, mesmo que tripliquemos o que até agora investimos.

      - Que é que você quer exatamente dizer com “saber exatamente o que você quer”? Que é que há de errado na Jane-4?

      - Nada. Ou nada a mais. Ela está na pista, mas pode ser aperfeiçoada, e é o que tenciono fazer. Eu pensava que sabia aonde me dirigia quando a projetei. Agora testei-a e sei para onde estou indo. E tenho a intenção de chegar lá.

      E era Jane-5 a meta de Madarian. Ele levara bem mais de um ano para produzi-la e não tinha restrições; estava terrivelmente confiante.

      Jane-5 era mais baixa e mais fina que o comum dos robôs. Sem ser uma caricatura de mulher, como fora Jane-1, ela procurava possuir um ar de feminilidade em torno dela, a despeito da ausência de qualquer traço claramente feminino que fosse.

      - É a maneira como ela fica de pé - disse Bogert. Os braços dela se sustinham graciosamente e de alguma maneira o torso procurava dar a impressão de que se curvava ligeiramente, quando ela se voltava.

      - Prestem atenção nela ... - disse Madarian. - Como se sente, Jane?

      - Com excelente saúde, obrigada - disse Jane-5. A voz era precisamente a de uma mulher. Era um contralto doce e quase perturbador.

      - Por que você fez isto, Clinton? - disse Peter, estupefato e começando a franzir as sobrancelhas.

      - É psicologicamente importante - disse Madarian. - Quero que as pessoas a encarem como a uma mulher, que a tratem como a uma mulher; que a interpretem.

      - Que pessoas?

      Madarian pôs as mãos nos bolsos e encarou Bogert pensativamente.

      - Quero que se providencie minha ida a Flagstaff com Jane.

      Bogert nada podia fazer mas reparou que Madarian não disse Jane-5. Desta vez, ele não usara número. Ela era a Jane. E, duvidosamente, disse:

      - Para Flagstaff? Por quê?

      - Porque lá é o centro mundial de planetologia geral, não é? É lá que estão estudando as estrelas e tentando calcular a probabilidade de planetas habitáveis, não é?

      - Sei disto, mas é na Terra.

      - Lógico que sei disso.

      - Os movimentos robóticos na Terra são estritamente controlados. E não há necessidade disto. Traga uma biblioteca de livros sobre planetologia geral para cá e deixe Jane absorvê-los.

      - Não, Peter, veja se põe na sua cachola que Jane não é um tipo comum, lógico, de robô, ela é intuitiva.

      - E daí?

      - E daí que como é que podemos dizer de que ela necessita, o que ela pode usar, o que a acionará? Podemos usar qualquer modelo de metal na fábrica para ler livros, são dados congelados e, além do mais, desatualizados. Jane precisa ter informação viva; precisa ter tons de voz, precisa ter apoios paralelos, precisa até mesmo ter acesso a dados totalmente irrelevantes. Como, com os diabos, saberemos o que ou quando algo fará um barulhinho dentro dela e incidirá num modelo? Se soubéssemos, não precisaríamos dela de jeito nenhum, não acha?

      Bogert começava a se sentir incomodado. E disse: - Vamos então trazer para cá os tais homens, os planetologistas.

      - Não seria bom de jeito nenhum. Eles estariam fora de seu ambiente, não reagiriam naturalmente. Quero que Jane os observe a trabalhar, quero que veja os instrumentos deles, os escritórios, suas escrivaninhas, tudo que ela puder ver a respeito deles. Quero que você providencie o transporte dela para Flagstaff. E gostaria de não mais discutir este assunto.

      Por um momento, sua voz soara quase que como a de Susan. Bogert recuou, dizendo: - É o tipo de arranjo complicado. Transportar um robô experimental...

      - Jane não é experimental. É a quinta de uma série.

      - Mas, na verdade, as outras quatro não funcionaram.

      Num gesto de frustração desesperançada, Madarian ergueu as mãos.

      - Quem está forçando você a dizer isto ao governo?

      - Não estou preocupado com o governo; podemos fazê-lo entender casos especiais. Ê a opinião pública. Percorremos um longo caminho em cinqüenta anos e não proponho que você nos faça retroceder vinte e cinco anos por ter perdido o controle sobre uma...

      - Não perderei o controle. Você está fazendo observações aloucadas. Olhe: a U.S. Robots pode pagar um avião particular. Podemos aterrissar quietamente no mais próximo aeroporto comercial e nos perdermos em meio a centenas de pousos similares. Poderemos providenciar que um grande automóvel, com reboque, nos vá buscar, levando-nos a Flagstaff. Jane estará engradada, e será óbvio que alguma peça de um equipamento que nada tem a ver com robôs está sendo transportada aos laboratórios. Ninguém nos olhará duas vezes. Lá em Flagstaff, as pessoas estarão prevenidas e informadas do exato propósito da visita. Terão todos os motivos para colaborar e para impedir uma indiscrição.

      Bogert ponderou:

      - A parte arriscada será o avião e o automóvel. Se acontecer alguma coisa ao engradado...

      - Nada acontecerá.

      - Poderemos escapar impunemente se Jane for desativada durante o transporte. Mas se alguém descobrir que ela está lá dentro...

      - Não, Peter. Isto não pode ser feito. Com Jane-5, não. Note que ela tem estado a fazer livres associações desde que foi ativada. A informação que ela possui pode ser congelada durante a desativação mas as livres associações, nunca. Não senhor, jamais ela poderá ser desativada.

      - Mas, então, se de alguma forma for descoberto que estamos transportando um robô ativado...

      - Não será descoberto.

      Madarian permaneceu firme e, num dado momento, o plano deslanchou. Era um modelo avançado de Computo-jet, mas tinha como piloto um homem, empregado da U. S. Robots, como apoio. O engradado contendo Jane chegou são e salvo ao aeroporto, foi transferido para o veículo que o aguardava, e atingiu os Laboratórios de Pesquisa de Flagstaff sem incidentes.

      Peter Bogert recebeu o primeiro comunicado de Madarian pouco mais de uma hora depois de Bogert ter chegado a Flagstaff. Madarian estava em êxtase e, caracteristicamente, não podia esperar para dar notícias.

      A mensagem chegou pelo cabo de raio laser, codificada, e, como de costume, impenetrável, mas Bogert sentiu-se exasperado. Sabia que a mensagem poderia ser interpretada se alguém com suficiente capacidade tecnológica, o governo, por exemplo, quisesse mesmo fazê-lo. A única segurança real residia no fato de que o governo não tinha razão para tentar fazer isto. Pelo menos, assim esperava Bogert. E disse:

      - Pelo amor de Deus, você tinha mesmo que transmitir essa mensagem?

      Madarian ignorou-o inteiramente. Balbuciou:

      - Foi uma inspiração. Gênio puro, garanto-lhe.

      Por um momento, Bogert olhou fixamente o receptor. E, então, incrédulo, bradou:

      - Você está querendo dizer que já tem resposta?

      - Não, não! Dê-nos tempo, diabos. Estou querendo dizer que aquela questão da voz dela é que foi uma inspiração. Ouça: depois de termos sido transportados do aeroporto para o principal edifício de administração em Flagstaff, desengradamos Jane e ela saiu da caixa. Quando isto aconteceu, todos que lá estavam deram um passo para trás. Assustados, aparvalhados! Se até mesmo cientistas são incapazes de compreender o significado das Leis Robóticas, que podemos então esperar do indivíduo comum, não treinado? Lá, durante um minuto, pensei: Tudo isto será inútil. Não falarão. Estão se .fechando para uma rápida retirada caso ela tenha um acesso de fúria e não pensarão em nada mais.

      - Bem, onde é que você pretende chegar?

      - Bem, então, ela os saudou de maneira normal, dizendo: -Boa tarde, senhores. Estou muito contente por vê-los. - E isto com aquela sua bela voz de contralto... Foi isto. Um dos presentes acertou o nó da gravata e outro passou os dedos pelos cabelos. O que me impressionou mesmo foi que um sujeito, o mais velho lá presente, verificou se o zíper de sua calça estava fechado mesmo. Ficaram todos malucos por ela. Precisavam mesmo era ouvir a voz dela. Ela não é mais um robô: é uma moça.

      - Você quer dizer que estão conversando com ela?

      - Estão conversando com ela, sim, eu diria! Eu deveria ter programado a voz dela para entonações sensuais. Se assim fosse, estariam pedindo a ela para marcar encontros. Vamos falar de reflexos condicionados, Os homens responderam a vozes. Nos momentos mais íntimos, eles olham? É a voz na orelha da gente...

      - Sim, Clinton, creio que me recordo. Onde está Jane agora?

      - Com eles. Não a deixarão ir.

      - Diabos! Vá vê-la. Não a perca de vista, homem.

      As chamadas posteriores de Madarian, durante os dez dias de sua permanência em Flagstaff, não foram muito freqüentes, tornando-se progressivamente menos exaltadas.

      Ele informava que Jane estava prestando atenção cuidadosamente e que, ocasionalmente, ela respondia. Continuava popular, tinha acesso a todos os lugares. Não havia resultados, contudo.

      - Nada de nada? - disse Bogert.

      Madarian se pôs de imediato na defensiva.

      - Não se pode afirmar nada. Com um robô intuitivo não dá para dizer absolutamente nada. Não dá para saber o que está se passando dentro dela. Hoje de manhã, ela perguntou a Jensen o que havia como café da manhã.

      - Rossiter Jensen, o astrofísico?

      - Sim, lógico. Ficamos sabendo que ele não tinha tomado o desjejum, apenas uma xícara de café.

      - De forma que Jane está aprendendo a dar dois dedos de prosa. Isto mal dá para pagar as despesas...

      - Ora, não seja imbecil. Não foram dois dedos de prosa. Para Jane isto não existe. Ela perguntou porque isto tinha alguma coisa que ver com alguma correlação que ela estava estabelecendo na sua mente.

      - O que será que...

      - Como é que eu posso saber? Se soubesse seria eu mesmo uma Jane e não precisaríamos dela. Mas tem de significar alguma coisa. Ela está programada por uma elevada motivação para obter uma resposta à pergunta sobre um planeta com ótima habitalidade, distância e...

      - Então me informe quando ela conseguir isso e não antes. Na verdade, não preciso de uma informação de minuto em minuto sobre possíveis correlações.

      Na verdade, ele não esperava vir a receber noticia de sucesso. A cada dia, Bogert ficava menos confiante. De forma que, quando finalmente veio a notícia, não estava preparado. E veio bem no final.

      Naquela última vez, quando a mensagem clímax de Madarian chegou, veio quase que num cochicho. A exaltação havia sido completamente contida e Madarian estava num temeroso silêncio.

      - Ela conseguiu - disse. - Ela conseguiu depois de eu próprio ter desistido. Depois de ela ter recebido tudo direitinho, e a maioria das informações duas ou três vezes, e depois de nunca ter pronunciado uma palavra que soasse como alguma coisa... Estou no avião, de volta. Acabamos de decolar.

      Bogert tentou respirar de novo.

      - Não brinque, homem. Você tem a resposta? Diga que sim, se for verdade. Seja franco.

      - Ela tem a resposta, ela me deu a resposta. Forneceu-me o nome de três estrelas no limite de oitenta anos-luz que têm de sessenta a noventa por cento de chance de possuírem, cada uma, um planeta habitável. A probabilidade de pelo menos uma delas é de 0,972. É quase certo que seja habitável. E isto é o mínimo que se pode dizer. Quando voltarmos, ela poderá nos dar a linha exata de raciocínio que a conduziu a esta conclusão e predigo que toda a astrofísica e toda a cosmologia serão...

      - Você tem certeza...

      - Está pensando que estou alucinado? Tenho uma testemunha. O coitado do rapaz pulou com os dois pés quando subitamente Jane começou a desenrolar a resposta com sua voz que é um gorjeio...

      E foi então que o meteorito os atingiu e, na destruição que se seguiu, Madarian e o piloto foram reduzidos a pedaços de carne sangrenta. E não foram encontrados restos de Jane que fossem recuperáveis.

      Nunca a melancolia fora mais profunda na U.S. Robots. Robertson tentava se consolar com o fato de que a própria extensão da destruição tinha ocultado completamente as ilegalidades de que a firma era culpada. Peter sacudiu a cabeça e lamentou-se.

      - Perdemos a melhor oportunidade que a U.S. Robots jamais teve de formar uma imagem imbatível junto ao público, de superar o raio do complexo Frankenstein. O que não teria significado para os robôs o fato de um deles ter encontrado a solução para o problema de planetas habitáveis, depois de outros robôs terem ajudado a estabelecer o Salto no Espaço?! Os robôs teriam aberto a galáxia para nós. E, se num dado momento, tivéssemos podido orientar o conhecimento científico para uma dúzia de diferentes direções, como certamente teríamos feito... Oh, meu Deus, não há maneira de calcular os benefícios para a raça humana, e, logicamente, para nós.

      Robertson disse:

      - Não podemos construir outras Janes? Mesmo sem Madarian?

      - Claro que podemos. Mas poderemos contar de novo com a correlação correta? Quem sabe quanto isto implicava de probabilidades ínfimas, no resultado final? E que dizer se Madarian dispunha de um trunfo fantástico, sorte de principiante? E se tivermos uma fantástica má sorte? Um meteorito zerando tudo... Nem dá para acreditar...

      Hesitante, sussurrando, Robertson falou:

      - Não poderia ter um... significado?... Quero dizer, será que não devemos entender o meteorito como um julgamento... de...

      Sua voz se desvaneceu ante o fulminante brilho do olhar de Bogert, que disse:

      - Acredito que não seja uma perda mortal. Outras Janes estão destinadas a nos ajudar, de diversas maneiras. E podemos dotar outros robôs de vozes femininas, se isto ajudar a encorajar a aceitação pública - se bem que eu me pergunte que é que as mulheres diriam. Se ao menos soubéssemos o que Jane-5 disse!...

      - Na última chamada, Madarian disse que havia uma testemunha.

      - Eu sei - replicou Bogert. - Tenho pensado nisso. Você pensa que não entrei em contato com Flagstaff? Ninguém, no conjunto inteiro dos laboratórios, ouviu Jane pronunciar o que quer que fosse de incomum, nada que soasse como uma resposta à pergunta sobre o problema do planeta habitável. E é evidente que qualquer pessoa de lá teria reconhecido a resposta, se ela realmente foi dada ou, pelo menos, a teria reconhecido como uma possível resposta.

      - Será que Madarian estava mentindo? Ou estaria louco? Será que ele estaria tentando se proteger...

      - Quer você dizer que ele estaria tentando salvar sua reputação fingindo que tinha a resposta e, então, alteraria o mecanismo de Jane de tal maneira que ela não pudesse falar e dizer.

      - Desculpe, aconteceu alguma coisa, acidentalmente. Diacho!

      - Não aceito isto de jeito nenhum. Na mesma ordem de raciocínio, você poderia até afirmar que foi ele quem providenciou o meteorito.

      - Que faremos, então?

      Bogert respondeu gravemente.

      - Voltemos a Flagstaff. A resposta tem de estar lá. Temos de “escavar” mais fundo, é tudo. Vou para lá, levando dois homens do departamento de Madarian. Vamos esquadrinhar aquele lugar de alto a baixo, de cabo a rabo.

      - Mas veja que, mesmo que tenha havido uma testemunha, mesmo que ela tenha ouvido, que adiantaria isto, agora que não mais temos Jane para explicar o processo?

      - Qualquer detalhezinho é útil. Jane deu os nomes das estrelas, provavelmente o número de catálogo delas, nenhuma das estrelas com nome têm possibilidade. Se alguém conseguir se lembrar do que ela disse e conseguir recordar o número de catálogo, ou se o tiver ouvido com suficiente clareza para permitir que o dado seja recuperado por uma psicoprova, caso tenha escapulido da memória consciente, então, bem, teremos algo. Dados os resultados ao final, e os dados que, de início, alimentaram Jane, seremos capazes de reconstituir a linha de raciocínio; poderemos recuperar a intuição. Se fizermos isto, teremos ganho a parada...

      Três dias depois Bogert estava de volta, silencioso e completamente deprimido. Quando Robertson o questionou, ansiosamente, sobre os resultados, meneou a cabeça.

      - Nada!

      - Nada?!

      - Absolutamente nada. Falei com todo mundo em Flagstaff - todos os cientistas, todos os técnicos, todos os estudantes, que tivessem algo a ver com Jane, no máximo, todos a tinham visto. Não eram muitos - devemos creditar a Madarian sua discrição. Ele só permitiu que vissem Jane aqueles que se poderia supor, com certeza, que tivessem conhecimento planetológico para alimentar com dados a robô. No total, vinte e três pessoas viram Jane e, destas, somente doze falaram com ela algo mais do que casualmente. Investiguei a fundo tudo que Jane disse. Todos se lembravam muito bem de tudo. Eram homens perspicazes, engajados numa experiência crucial que dizia respeito à especialidade deles, de forma que tinham toda a motivação para se lembrarem. E estavam lidando com uma robô falante, algo suficientemente surpreendente. E mais: uma robô que falava como uma artista de televisão. Não dava para eles esquecerem.

      - Talvez uma psicoprova... - aventou Robertson.

      - Se algum deles tivesse a mais vaga lembrança que fosse de que algo assim ocorrera, eu arrancaria seu consentimento para submetê-lo à psicoprova. Mas nada há que justifique isto, e submeter a tal prova doze homens cuja vida depende de seus cérebros, não pode ser feito. Com toda a sinceridade, não adiantaria. Se Jane tivesse mencionado três estrelas, dizendo que elas tinham planetas habitáveis, seria o mesmo que acionar foguetes espaciais no cérebro deles. Como é que eles poderiam se esquecer?

      - Pode ser então que um deles esteja mentindo - disse Robertson sombriamente. - Ele quer a informação para seu uso pessoal, para que ela lhe seja creditada, no futuro.

      - E que benefício ele extrairia disso? - retrucou Bogert. -Todo mundo nos laboratórios sabia exatamente para que Madarian e Jane lá estavam, antes de mais nada. E sabem por que fui para lá. Se em qualquer ocasião futura, alguém que hoje está em Flagstaff subitamente aparecesse com uma teoria de um planeta habitável surpreendentemente nova e diferente, ainda que válida, qualquer sujeito em Flagstaff e qualquer sujeito na U. S. Robots imediatamente veria que se tratava de uma teoria roubada. Isto ninguém jamais me tirará da cabeça.

      - Neste caso, o próprio Madarian, de certa forma, estava equivocado.

      - Também não vejo como crer nisto. Ele tinha uma personalidade irritante, todos os psicólogos de robôs têm personalidade irritante, penso eu, devendo-se atribuir isto ao fato de trabalharem mais com robôs do que com gente, mas ele não era nenhum palerma. Numa coisa como esta ele não poderia se equivocar.

      - Então... - mas Robertson esgotara as possibilidades. Tinham chegado a um muro em branco e, por alguns minutos, ambos ficaram a fitá-lo, desconsolados.

      Por fim, Robertson se mexeu.

      - Peter...

      - Sim?...

      - Vamos perguntar a Susan.

      Bogert enrijeceu-se?

      - O quê?!

      - Perguntemos a Susan. Vamos telefonar para ela e pedir-lhe que venha.

      - Por quê? Que é que você acha que ela poderá fazer?

      - Não sei. Mas ela é psicóloga de robôs também, e poderia entendei Madarian melhor do que nós. Além disso, ela... bolas, ela sempre teve mais cabeça do que qualquer um de nós.

      - Ela já está com quase oitenta anos.

      - E você quase com setenta? E daí?

      Bogert suspirou. Será que a língua venenosa dela perdera um pouco de sua peçonha, na aposentadoria? E disse:

      - Bem, vamos falar com ela.

      Susan Calvin entrou na sala de Bogert com um lento olhar em torno antes que seus próprios olhos se fixassem no Diretor de Pesquisas. Ela envelhecera bastante, desde que se aposentara. Seu cabelo era branco e fino e o rosto dela parecia ter encolhido. Ela ficara tão frágil a ponto de ficar quase transparente e apenas seus olhos, penetrantes e obstinados, pareciam permanecer, de tudo que ela tinha sido.

      Empertigado, Bogert se adiantou cordialmente, estendendo a mão:

      - Susan!

      Ela apertou a mão e disse:

      - Até que, para um velho, você está com uma aparência razoavelmente boa, Peter. Se eu fosse você, não esperaria até o ano que vem. Aposente-se agora e deixe os jovens assumirem o controle... E Madarian está morto. Vocês estão me chamando para reassumir meu velho cargo? Vocês estão decididos a manter os anciãos até um ano depois da morte física deles?

      - Não, não, Susan, chamei você para... - Ele se deteve. Depois de tudo, ele não tinha a mais tênue idéia de como começar.

      Mas agora, como sempre, Susan lia o que se passava na mente dele com a maior facilidade. Sentou-se com a cautela oriunda de juntas enrijecidas e disse:

      - Você me chamou, Peter, porque está metido numa complicação. Caso contrário, você preferiria ver-me morta, a mais de um quilômetro de distância.

      - Ora, Susan...

      - Nada de perder tempo floreando a conversa. Quando eu tinha quarenta anos, nunca tive tempo para desperdiçar e certamente agora também não o tenho. A morte de Madarian e sua chamada são, ambas, fora do comum, de forma que deve haver uma ligação. Dois eventos fora do comum sem uma ligação é uma probabilidade tão difícil de ocorrer que nem vale a pena se preocupar com ela. Comece pelo princípio e não se preocupe se pensar que está dando a impressão de ser um tolo. Isso eu já percebi há muito tempo.

      Penosamente, Bogert pigarreou e começou. Susan prestava atenção cuidadosamente, sua mão seca erguendo-se de vez em quando para interrompê-lo, de forma a poder fazer uma pergunta.

      Houve um momento em que ela bufou.

      - Intuição feminina? Era para isso que você queria o robô? Vocês, homens... Tendo de se defrontar com uma mulher que chega a uma conclusão correta e incapazes de aceitarem o fato de que ela é igual ou superior em inteligência a vocês, inventam alguma coisa chamada de intuição feminina.

      - Bem, isto é... sim, Susan, mas me deixe continuar...

      E prosseguiu. Quando ouviu falar da voz de contralto de Jane, Susan disse:

      - Às vezes é difícil escolher se devemos nos sentir revoltadas com o sexo masculino ou simplesmente colocá-lo num plano de coisas desprezíveis.

      - Está certo, mas me deixe continuar... - falou Bogert. Quando ele terminou de vez Susan disse: - Poderia usar particularmente esta sala, por uma hora ou duas?

      - Sim, mas...

      - Quero examinar vários registros: a programação de Jane, os telefonemas de Madarian, as entrevistas que você fez em Flagstaff. Suponho que posso usar este belo telefone selado, de raios laser e seu terminal de computador, se eu o desejar.

      - Sim, naturalmente.

      - Nesse caso, então, fora daqui, Peter.

      Ainda não tinham decorrido quarenta e cinco minutos quando Susan se arrastou com dificuldade até a porta e chamou Bogert.

      Quando ele veio, Robertson o acompanhava. Ambos entraram, e Susan saudou o último com um “Alô”, sem entusiasmo.

      Desesperadamente, Bogert tentou sondar os resultados pelo rosto de Susan, mas era apenas o rosto severo de uma velha senhora que não tinha intenção nenhuma de tomar as coisas fáceis para ele. Cautelosamente, Bogert disse:

      - Você acha que há alguma coisa que você possa fazer, Susan?

      - Além daquilo que já fiz? Não! Não há nada mais.

      Os lábios de Bogert se contraíram dolorosamente. Robertson, porém, disse:

      - Que foi que você já fez, Susan?

      - Pensei um bocadinho, alguma coisa que não penso que possa convencer outra pessoa a fazer. Houve uma razão para eu pensar em Madarian, que eu conhecia, como sabem. Inteligente ele era, mas de uma extroversão irritante. Pensava que você gostava mais dele do que de mim, Peter.

      Bogert não conseguiu evitar de dizer:

      - Foi uma mudança.

      - E, assim que obtinha um resultado, no mesmo instante ele corria à sua presença, não é?

      - Sim, era assim.

      - Não obstante - prosseguiu Susan - a última mensagem dele, aquela em que dizia que Jane tinha a resposta, foi enviada do avião. Por que ele esperou tanto? Por que ele não se comunicou com você quando ainda estava em Flagstaff, imediatamente depois de Jane ter dito fosse lá o que fosse?

      - Acredito - disse Peter - que pelo menos uma vez ele quis ter absoluta certeza e... bem, sei lá. Era o mais importante fato que jamais lhe acontecera, pelo menos uma vez ele quereria esperar e se certificar.

      - Pelo contrário, quanto mais importante fosse, menos ele esperaria, com certeza. E, caso ele conseguisse se conter, conseguisse aguardar, por que ele não agiu corretamente, esperando estar de volta à U.S. Robots, de forma a poder conferir os resultados com todo o equipamento de computação que a firma colocaria à disposição dele? Resumindo, sob um ponto de vista, ele esperou demais, e, sob outro, não esperou o suficiente.

      Robertson a interrompeu.

      - Você acredita então que ele tolerando alguma impostura...

      Susan pareceu revoltada.

      - Não tente competir com Peter, fazendo observações inócuas, Scott. Deixe-me prosseguir... Um segundo aspecto diz respeito à testemunha. De acordo com os registros da última comunicação, Madarian disse: - O coitado do rapaz pulou com os dois pés quando subitamente Jane começou a desenrolar a resposta com sua voz que é um gorjeio. - Foi, na verdade, a última coisa que ele disse. Pergunto, então: por que a testemunha deu um pulo? Madarian tinha dito que todos os homens estavam malucos com a voz dela, e que tinham estado dez dias com o robô, com Jane. Então, por que raios o simples fato de ela falar os teria sobressaltado?

      Bogert disse:

      - Admito que foi espanto pelo fato de Jane dai resposta a um problema que durante quase um século tem ocupado a mente dos planetólogos.

      - Mas eles estavam esperando que ela desse a resposta, para isso ela estava lá. Além disso, vamos considerar a maneira como a frase é composta. A afirmação de Madarian faz ver que a testemunha ficou sobressaltada, não espantada, se é que você vê a diferença. E mais: essa reação ocorreu “quando Jane subitamente começou”, noutras palavras, no exato início da declaração. Para ficar espantada com o conteúdo do que Jane teria dito exigiria que a testemunha tivesse prestado atenção por algum tempo, de forma a poder apreender a declaração. Madarian teria dito que a testemunha pulara com os dois pés depois de ter ouvido Jane dizer isto e aquilo. Seria “depois” e não “quando” e não teria sido incluída a palavra “subitamente”.

      Pouco à vontade, Bogert disse:

      - Não acho que valha a pena entrar em minúcias tais como o uso ou não-uso de uma palavra.

      - Posso - replicou Susan friamente. - Posso porque sou psicóloga de robôs. E posso admitir que também Madarian o fizesse, visto que ele também era um psicólogo de robôs. Temos de explicar estas duas anomalias, portanto. A estranha demora, antes do chamado de Madarian, e a estranha reação da testemunha.

      - E você pode explicar ambos os fatos? - perguntou Robertson.

      - Lógico - disse Susan - visto que minha lógica é bem simples. Madarian entrou em contacto para dizer as novidades sem demora, como sempre fez, ou com o mínimo de atraso possível. Se Jane tivesse resolvido o problema em Flagstaff, certamente que ele teria chamado de lá mesmo. Visto que chamou do avião, com toda certeza a robô resolveu o problema depois de terem deixado Flagstaff.

      - Mas então...

      - Deixe-me terminar. Deixe-me terminar. Madarian não foi transportado do aeroporto para Flagstaff num pesado veículo, fechado? E Jane não estava num engradado, com ele?

      - Sim.

      - E, presumivelmente, Madarian e Jane retornaram de Flagstaff ao aeroporto no mesmo veículo pesado, com um reboque para Jane. Estou certa?

      - Claro que está!

      - E tem mais: eles não estavam sozinhos no veículo. Numa de suas chamadas, Madarian disse: “Fomos transportados do aeroporto para o principal edifício de administração”, e suponho que estou certa ao concluir que havia um motorista, um ser humano, no veículo.

      - Santo Deus!

      - O seu problema, Peter, é que, ao pensar numa testemunha para uma declaração planetológica, você pensa em planetólogos. Você divide os seres humanos em categorias, menosprezando e pondo de lado a maioria. Um robô não pode fazer isso. A Primeira Lei diz: “Um robô não deve fazer mal a um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra qualquer mal”. Qualquer ser humano. Esta é a essência da visão robótica da vida. Um robô não distingue. Para um robô, todos os homens são verdadeiramente iguais, e para um psicólogo de robôs que precisa, compulsoriamente, lidar com homens em nível robótico, também todos os homens são verdadeiramente iguais.

      - Não teria ocorrido a Madarian dizer que um motorista de caminhão teria ouvido a declaração. Para você, um motorista de caminhão não é um cientista, mas apenas um apêndice animado do caminhão, mas para Madarian o motorista era um homem e uma testemunha. Nada mais, nada menos.

      Descrente, Bogert meneou a cabeça.

      - Mas você tem certeza?

      - Lógico que tenho. De que outra maneira poderia eu lhe explicar o outro aspecto, quer dizer, a observação de Madarian relativamente à estupefação da testemunha? Jane estava engradada, não é mesmo? Mas não estava desativada. De acordo com as informações, Madarian sempre se mostrou obstinado no que diz respeito à desativação da robô intuitiva. E mais: como qualquer das Janes, Jane-5 era extremamente não-falante. Provavelmente, jamais teria passado pela cabeça de Madarian ordenar a ela que ficasse calada, dentro do engradado e foi dentro do engradado que, por fim, a coisa aconteceu. Com naturalidade, ela começou a falar. De súbito, uma bela voz de contralto veio de dentro do engradado. Fosse você motorista do caminhão, que é que você faria, a estas alturas? Lógico que ficaria sobressaltado. É até de admirar que não tivesse havido uma trombada.

      - Mas se o motorista do caminhão era a testemunha, por que é que ele não se apresentou? Por quê? Você não acha que Madarian o gratificou muito bem, pedindo-lhe que não contasse nada? Você gostaria que se espalhasse a notícia de que um robô ativado estava sendo transportado ilegalmente sobre a superfície da Terra?

      - Está bem, mas será que ele se lembra do que foi dito?

      - Por que não? A você poderia parecer, Peter, que um motorista de caminhão, um ser pouco superior ao macaco, segundo sua opinião, não se lembraria. Mas motoristas de caminhão também podem ter cérebro. As declarações foram das mais notáveis e o motorista pode muito bem ter memorizado algumas. Mesmo que ele se equivoque quanto a algumas letras e números, estamos lidando com um conjunto finito, sabe, as quinhentas e cinqüenta estrelas ou sistemas de estrelas no raio de oitenta anos-luz ou coisa parecida, não cheguei a averiguar o número exato. Você pode fazer as escolhas corretas. E, se necessário, terá todos os argumentos para usar a psicoprova...

      Os dois a encararam fixamente. Por fim, com receio de acreditar, Bogert murmurou:

      - Mas como é que você pode ter certeza?

      Por um momento, Susan esteve aponto de dizer: Porque entrei em contacto com Flagstaff, seu tonto, e porque falei com o motorista, e porque ele me contou o que ouviu, e porque conferi com o computador em Flagstaff, e vim a saber quais as três únicas estrelas que se encaixam na informação, e porque tenho estes nomes em meu bolso.

      Mas não foi o que ela fez. Deixá-lo-ia chegar a suas próprias conclusões. Cuidadosamente, ela se ergueu e disse, sardonicamente:

      - Como posso ter certeza?... Digamos que seja intuição feminina...

     

      Dois clímax

      Cada um destes dois contos é pós-Susan Calvin. São os contos longos mais recentes que escrevi sobre robôs e em cada um tento um enfoque a longo prazo e ver qual poderia ser o fim último da robótica. E fecho o círculo - pois muito embora continue aderindo estritamente às Três Leis, o primeiro conto, “... Que Vos Ocupeis Dele”, é claramente um conto de Robô-como-Ameaça, ao passo que o segundo, “O Homem Bicentenário”, é ainda mais claramente um conto de Robô-como-Pathos.

      De todas as histórias de robôs que já escrevi, “O Homem Bicentenário” é minha favorita, e, penso, a melhor. De fato, tenho uma impressão assustadora de que não conseguirei superá-la, e nunca escreverei outro conto sério sobre robôs. Mas, de novo, sempre poderia. Não sou sempre previsível.

     

      ... Para que vos ocupeis dele

      As Três Leis da Robótica:

      1. Um robô não deve fazer mal a um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra qualquer mal.

      2. Um robô deve obedecer a qualquer ordem dada por um ser humano, desde que essa ordem não interfira com a execução da Primeira Lei.

      3. Um robô deve proteger a sua existência, desde que esta proteção não interfira com a Primeira e Segunda Leis.

 

      Keith Harriman, que agora já contava com doze anos como Diretor de Pesquisas da United States Robots and Mechanical Men, Inc., achava que absolutamente não podia ter certeza se estava agindo certo. A ponta de sua língua passava sobre seus lábios, grossos mas um tanto descorados. E, para ele, parecia que a imagem holográfica da grande Susan Calvin, que estava acima dele, estática, sem sorrir, nunca lhe parecera antes tão sombria.

      Pouco à vontade, ele apagou aquela imagem da maior roboticista da história porque ela o enervava. (Ele tentava encarar a imagem como sendo algo destituído de vida, mas nunca tivera sucesso nisso.) Desta vez ele nem sequer ousou e o olhar fixo dela, de há muito morto, perturbava-o, mesmo visto de esguelha.

      Ele teria de dar um passo incômodo e humilhante.

      Em frente dele estava George Ten, calmo, não afetado quer pela visível inquietação de Harriman, quer pela imagem da santa padroeira da robótica, a fulgurar em seu nicho, mais acima.

      Harriman disse:

      - Na verdade, George, não tivemos até agora oportunidade de falar abertamente sobre isto. Faz tanto tempo que você não tem estado conosco e não tive uma boa oportunidade de estar a sós com você. Agora, porém, gostaria de discutir o assunto com alguns detalhes.

      - Bem que eu quero fazer isso - falou George. - Em minha permanência na U.S. Robots, cheguei a perceber que a crise tem alguma coisa a ver com as Três Leis.

      - Sim. Naturalmente, você conhece as Três Leis.

      - Conheço.

      - Sim, sei que você conhece. Mas vamos escavar mais fundo e considerar o problema verdadeiramente básico. Em dois séculos de, permita-me dizê-lo, considerável sucesso, a U.S. Robots nunca tentou persuadir os seres humanos a aceitarem os robôs. Só colocamos robôs onde se exige trabalho que seres humanos não podem fazer, ou em ambientes que os seres humanos consideram inaceitavelmente perigosos. Os robôs têm trabalhado principalmente no espaço e isto limita o que temos sido capazes de fazer.

      - Isso - falou George - com toda segurança representa um amplo limite, dentro do qual a U. S. Robots pode prosperar.

      - Não, por duas razões. Em primeiro lugar, as fronteiras que nos são impostas inevitavelmente se contraem. No caso da colônia na Lua, por exemplo, conforme ela se torna mais sofisticada, diminui sua necessidade de robôs, e até esperamos que, dentro de alguns anos, os robôs sejam banidos da Lua. E isto se repetirá em cada mundo colonizado pela humanidade. Em segundo lugar, a verdadeira prosperidade é impossível sem robôs na Terra. Nós, aqui na U.S. Robots, acreditamos firmemente que os seres humanos precisam de robôs e precisam aprender a viver com seus análogos mecânicos se se quiser manter o progresso.

      - E eles não aprendem? O senhor tem em sua mesa, Sr. Harriman, um terminal de computador que, assim entendo, está ligado com o Multivac da organização. Um computador é uma espécie de robô séssil, sem pés, um cérebro de robô não ligado a um corpo...

      - É verdade: mas isto também é limitado. Os computadores usados pela humanidade têm sido invariavelmente especializados para evitar humanizar demais uma inteligência. Um século atrás estávamos bem a caminho de uma inteligência artificial de tipo ilimitado através do uso de grandes computadores que denominávamos de Máquinas, Máquinas que limitavam sua ação de acordo com elas mesmas.Uma vez que elas resolveram os problemas ecológicos que ameaçavam a sociedade humana, elas próprias se defasaram. Continuarem a existir, assim raciocinaram, as colocaria no papel de muletas para a humanidade. E, uma vez que os robôs perceberam que isto magoaria os seres humanos, eles se condenaram a si mesmos, pela Primeira Lei.

      - E eles estavam certos, ao agirem assim?

      - Em minha opinião, não. Por sua ação, reforçaram o complexo de Frankenstein da humanidade, no íntimo, temem que qualquer homem artificial que criassem se voltaria contra seu criador. Os homens temem que os robôs possam substituir os seres humanos.

      - E você próprio não receia isto?

      - Sei mais do que isso: enquanto existirem as Três Leis da Robótica, não poderão. Poderão servir de parceiros da humanidade, podem tomar parte na grande luta para entenderem e sabiamente dirigirem as leis da natureza, de forma que, juntos, robôs e homens possam fazer mais do que os homens sozinhos. Mas sempre de uma maneira tal que os robôs sirvam aos seres humanos.

      - Mas, se no decorrer de dois séculos as Três Leis provaram que conseguem manter os robôs dentro dos limites, qual a fonte do descrédito dos seres humanos para com os robôs?

      - Bem - disse Harriman, cocando sua cabeça vigorosamente, de maneira tal que seus cabelos grisalhos se juntavam em tufos - mais por superstição, é claro. Infelizmente, há também alguns aspectos complexos em jogo, dos quais se aproveitam agitadores anti-robôs.

      - Com relação às Três Leis?

      - Sim, particularmente à Segunda Lei. Não há problema na Terceira Lei, como sabe: ela é universal. Os robôs sempre precisam se sacrificar pelos seres humanos, qualquer ser humano.

      - Logicamente - disse George Ten.

      - Talvez a Primeira Lei seja menos satisfatória, visto que sempre é possível imaginar uma condição em que um robô precise desempenhar ou a Ação A ou a B, as duas sendo mutuamente restritas, sendo que qualquer uma das duas ações resultará em dano para seres humanos. Conseqüentemente, o robô precisa selecionar com rapidez qual das ações causará menor dano. Não é fácil exercitar os passos positrônicos do cérebro de um robô de maneira que ele possa fazer a possível seleção. Se a Ação A redundar em dano para um talentoso jovem artista e a B facilmente resultar num dano equivalente em cinco pessoas mais idosas sem mérito particular, qual ação será escolhida?

      - A Ação A - falou George. - Dano para um é menos dano que para cinco.

      - Sim, sempre os robôs foram planejados para decidirem dessa maneira. Sempre pareceu impraticável esperar que os robôs julgassem delicados aspectos como talento, inteligência, a utilidade geral de uma pessoa para a sociedade. Isto protelaria a decisão até um ponto tal em que o robô estaria efetivamente imobilizado. A isto chegamos por estatísticas. Felizmente, poucas são as crises em que os robôs precisam tomar decisões deste naipe... Isto, todavia, nos conduz à Segunda Lei.

      - A Lei da Obediência.

      - Sim: é constante a necessidade de obediência. Um robô pode existir durante vinte anos sem jamais ter de agir prontamente para impedir dano a um ser humano, ou se achar diante da necessidade de se arriscar a ser destruído. Contudo, durante todo este tempo, ele estará constantemente obedecendo a ordens... Ordens de quem?

      - De seres humanos.

      - De qualquer ser humano? Como pode você julgar um ser humano, a ponto de saber se deve obedecer-lhe ou não?!... Que é o homem, “para que Vos ocupeis dele”, George?

      Neste ponto, George hesitou.

      Apressadamente, Harriman retomou a palavra.

      - Uma citação bíblica. Isto não importa. Quero dizer: um robô deve seguir as ordens de uma criança? Ou de um idiota? Ou de um criminoso? Ou de uma pessoa perfeitamente decente, inteligente, mas que aconteça de ser inábil e, por conseguinte, que ignore as conseqüências indesejáveis de uma ordem sua? E se dois seres humanos derem ordens conflitantes a um robô, qual delas o robô deverá seguir?

      - Mas, em duzentos anos - falou George Ten - será que problemas deste tipo não se manifestaram e não foram resolvidos?

      Sacudindo energicamente a cabeça, Harriman respondeu: -Não! Temos sido embaraçados pelo próprio fato de nossos robôs terem sido utilizados unicamente em ambientes especializados, lá fora, no espaço, onde os homens que com eles lidam são peritos em seus campos profissionais. Não há crianças, não há idiotas, não há criminosos, nem ignorantes bem intencionados presentes. Mesmo assim, ocasiões houve em que ocorreu dano devido a ordens idiotas ou simplesmente impensadas. Tais danos, em ambientes especializados e limitados, puderam ser refreados. Na Terra, entretanto, os robôs têm de ter discernimento, porque senão os diabos, aqueles que estão contra os robôs, continuam sustentando que estão certos.

      - Então você precisa inserir no cérebro positrônico a capacidade de discernimento.

      - Exatamente. Começamos a reproduzir os modelos JG, nos quais os robôs podem avaliar cada ser humano em relação ao sexo, idade, posição social e profissional, inteligência, maturidade, responsabilidade social e assim por diante.

      - E como isto afetaria as Três Leis?

      - A Terceira Lei, de maneira nenhuma. Mesmo o mais valioso dos robôs precisa se autodestruir em prol do mais inútil ser humano. Não podemos alterar isso. A Primeira Lei só é afetada quando qualquer ação alternativa produzir dano. A qualidade, assim como a quantidade de seres humanos em questão, precisa ser levada em consideração, desde que haja tempo para tal avaliação e base para ela, o que não será muito freqüente. A Segunda Lei é que será a mais profundamente modificada, visto que cada obediência em potencial deve pôr em jogo um discernimento. A obediência do robô será mais lenta, exceto quando também estiver em questão a Primeira Lei, mas ele obedecerá mais racionalmente.

      - Mas os discernimentos requeridos são muito complicados.

      - Muito. A necessidade de proceder a tais discernimentos tornou tão lentas as reações de nossa primeira dupla de modelos, a ponto de se paralisaram. Nos modelos posteriores fizemos aperfeiçoamentos as custas da introdução de tantas novas trilhas no cérebro dos robôs que os seus cérebros se tornaram volumosos demais. Contudo, em nosso último par de modelos acredito que temos o que queríamos. O robô não tem de fazer um julgamento instantâneo sobre o mérito de um ser humano e o valor de suas ordens. Ele começa obedecendo a todos os seres humanos, como qualquer robô comum o faria, e então é que ele aprende. Um robô cresce, aprende, e amadurece. É o equivalente de uma criança e precisa estar sob constante supervisão. Porém, à medida que cresce, ele pode mais e mais ficar sem supervisão, na sociedade terrestre. Finalmente, é um membro pleno dessa sociedade.

      - Seguramente isso responde às objeções dos que se opõem aos robôs.

      - Não - replicou Harriman, irritado. - Agora antepõem outras objeções. Não aceitarão o discernimento dos robôs. Dizem que um robô não tem o direito de marcar esta pessoa como sendo inferior àquela. Se um robô aceita ordens de A preferencialmente às de B, está ferreteando B, rotulando-o como menos importante do que A, e, neste caso, os direitos humanos de B foram violados.

      - E qual é a resposta para isso?

      - Nenhuma. Já desisti.

      - Estou vendo...

      - No que me toca... Transfiro-lhe o problema, George.

      - Para mim? - A voz de George Ten permaneceu no mesmo tom. Havia nela uma branda surpresa, mas que não o afetava ostensivamente. — Por que para mim?

      Tensamente, Harriman se manifestou:

      - Porque você não é um homem. Eu lhe disse que quero que os robôs sejam parceiros de seres humanos. Quero que você seja meu parceiro.

      Num gesto singularmente humano, George ergueu as mãos e exibiu-as, com as palmas voltadas para o outro:

      - E que é que eu posso fazer?

      - Pode-lhe parecer, de início, que você não pode fazer nada, George. Não faz muito tempo que você foi criado: ainda é uma criança. Você foi planejado de modo a não ficar repleto de informações originais. Por isso tive de lhe explicar a situação com tantos detalhes, de forma a deixar espaço para desenvolvimento. Mas sua mente evoluirá e você será capaz de abordar o problema sob um ponto de vista não humano. Onde eu não vislumbrar solução, pode ser que você, de seu enfoque, divise uma.

      - Meu cérebro foi desenhado por seres humanos. De que maneira ele pode ser não humano, - indagou George Ten.

      - Você é o último dos modelos JG, George. Seu cérebro é o mais complicado que até hoje planejamos, de certa maneira mais sutilmente complicado do que o das velhas Máquinas Gigantes. Ele é aberto, e, começando com uma base humana, poderá, isto é, sem dúvida alguma crescerá em qualquer direção. Permanecendo sempre dentro das intransponíveis fronteiras das Três Leis, não obstante você vir a se tornar completamente não humano em seu pensamento.

      - Você conhece suficientemente seres humanos para abordar racionalmente esse problema? Sobre a história deles? A psicologia deles?

      - Claro que não. Mas você poderá aprender tão rapidamente quanto é capaz.

      - Terei ajuda, Sr. Harriman?

      - Não. Este é um assunto inteiramente entre nós dois. Ninguém mais sabe disto e você não deve mencionar este projeto a nenhuma pessoa, seja na U.S. Robots, seja lá onde for.

      George Ten disse:

      - Será que estamos fazendo alguma coisa errada, Sr. Harriman, para o senhor querer manter isto em segredo?

      - Não, mas uma solução robô não será aceita precisamente por ser originalmente robótica. Qualquer solução que você tenha a sugerir recairá sobre mim e, se me parecer válida, eu a apresentarei. Jamais alguém saberá que ela proveio de você.

      - A luz do que você disse anteriormente, este é o procedimento correto... - disse George Ten, calmamente. - Quando começo?

      - Agora mesmo. Vou tomar as providências pára que você tenha todos os filmes necessários para o exame da questão.

     

      Harriman sentou-se, sozinho. No interior de seu escritório, artificialmente iluminado, não havia indicação de que lá fora escurecera, Ele não percebia, na verdade, que já se tinham passado três horas desde que conduzira George Ten de volta a seu cubículo, lá o deixando com os primeiros filmes de referência.

      Estava agora sozinho, simplesmente com o fantasma de Susan Calvin, a brilhante roboticista que, praticamente sem ajuda de ninguém, fizera um robô positrônico evoluir de um brinquedo maciço para o mais delicado e versátil instrumento, tão delicado e versátil, que o homem não ousava usá-lo, por inveja e receio.

      Agora já fazia mais de um século que ela falecera. O problema do complexo de Frankenstein existira no tempo dela, e ela nunca o resolvera. Nunca ela o tentara resolver, porque não havia necessidade. Nos tempos de Susan, a robótica se desenvolvera de acordo com as necessidades da exploração espacial.

      Havia sido o próprio sucesso dos robôs que diminuíra a necessidade que os homens tinham deles, e que tinha deixado Harriman, nestes últimos tempos...

      Porém, Susan Calvin poderia ter se voltado para os robôs em busca de auxílio. Seguramente, poderia...

      E lá ficou ele sentado, enquanto a noite decorria.

     

      Maxwell Robertson era o maior acionista da U.S. Robots, sendo assim seu superintendente. Sua aparência não era, de forma alguma, de impressionar. Já estava bem na meia-idade, um tanto rechonchudo. E tinha o costume de ficar mordendo o canto direito de seu lábio inferior quando estava perturbado.

      De qualquer maneira, em suas duas décadas de relacionamento com pessoas do governo, ele tinha desenvolvido uma maneira de lidar com elas. Tendia a usar a delicadeza, cedendo, sorrindo, e sempre tentando ganhar tempo.

      Mas as coisas estavam ficando difíceis - e uma das grandes razões para elas se tornarem difíceis era Gunnar Eisenmuth. Na série de Conservadores Globais, cujo poder era inferior somente ao do Executivo Global no decorrer do século anterior. Eisenmuth cortava caminho, cada vez mais, para a difícil e cinzenta área de um compromisso. Ele era o primeiro Conservador não nascido nos Estados Unidos e, se bem que não pudesse ser demonstrado de maneira alguma que o arcaico nome da U.S. Robots despertava sua hostilidade, todos na U.S. Robots acreditavam nisso.

      Houvera uma sugestão - de alguma forma a primeira naquele ano - ou naquela geração - de que o nome da empresa fosse mudado para World Robots, mas Robertson nunca consentiria isto. Originalmente, a empresa tinha sido constituída com capital americano, cérebros americanos e trabalho americano, e a despeito de a empresa ter tido atuação mundial, por seu próprio escopo, por sua própria natureza, o nome teria de testemunhar a origem da empresa enquanto estivesse sob o controle dele,Maxwell.

      Eisenmuth era um homem alto, com um rosto triste e alongado, com textura e feições grosseiras. Dizia “Global” com um pronunciado acento americano, se bem que nunca tivesse estado nos Estados Unidos antes de assumir o cargo.

      - Para mim, isto parece perfeitamente claro, Sr., Robertson. Não há dificuldade. Os produtos de sua empresa são sempre alugados, nunca vendidos. Se não há mais necessidade do que é de sua propriedade e que está alugado na Lua, cabe ao senhor receber de volta os produtos e transferi-los.

      - Sim, Conservador, mas onde? Seria contra a lei trazê-lo de volta à Terra sem permissão governamental e ela foi negada.

      - Não seriam úteis para vocês aqui na Terra. Pode levá-los para Mercúrio ou para os asteróides.

      - E que é que faríamos com eles por lá?

      Eisenmuth ficou carrancudo.

      - Os inteligentes homens de sua empresa pensarão numa solução.

      Robertson meneou a cabeça.

      - Isso representaria uma enorme perda para a U. S. Robots.

      - Receio que sim - retrucou Eisenmuth, sem se deixar demover. - Estou sabedor de que a U.S. Robots há vários anos tem tido prejuízos.

      - Em grande parte, Conservador, devido às restrições governamentais.

      - O senhor precisa ser realista, Sr. Robertson. Bem sabe que o clima da opinião pública é cada vez mais contra os robôs.

      - O que está muito errado, Conservador.

      - Mas assim são as coisas. Seria mais inteligente encerrar as atividades da empresa. Naturalmente que isto é uma mera sugestão.

      - Mas suas sugestões têm força, Conservador. Será necessário dizer-lhe que nossas Máquinas, um século atrás, resolveram a crise ecológica?

      - Estou certo de que a humanidade está grata, mas isso foi há cem anos atrás. Vivemos agora em aliança com a natureza, mesmo que isto de vez em quando seja desconfortável, e o passado está obscurecido.

      - Está querendo dizer... pelo que fizemos ultimamente pela humanidade?

      - Acredito que sim.

      - Mas de maneira alguma se pode crer que encerramos de uma hora para outra nossas atividades, não sem enormes prejuízos. Precisamos de tempo.

      - Quanto?

      - Quanto tempo pode nos dar?

      - Não depende de mim.

      Delicadamente, Robertson disse:

      - Estamos sozinhos. Não podemos brincar. Quanto tempo pode nos dar?

      A expressão de Eisenmuth era a de uma pessoa refugiando-se em si mesma, para cálculos bem lá no seu íntimo.

      - Penso que pode contar com uns dois anos. Serei franco: o governo global pretende assumir o controle da U. S. Robots e pôr você para fora, se você não se retirar antes. Mais ou menos, é isto que pretendem. E, a não ser que haja uma enorme mudança na opinião pública, coisa de que duvido muito... - e mexeu a cabeça para um lado e para o outro.

      - Dois anos, então - disse Robertson delicadamente.

     

      Robertson sentara-se, sozinho. Não havia propósito no que pensava, e seu raciocínio acabara virando retrospecção. Quatro gerações de Robertsons tinham dirigido a empresa, sendo que nenhum deles era roboticista. Tinha havido homens como Lanning e Bogert, e, acima de tudo, acima de todos, Susan Calvin, que tinha feito da U. S. Robots o que ela era. Era certo, contudo, que os quatro Robertsons tinham propiciado o clima que tornara possível o trabalho deles.

      Sem a U. S. Robots, o Século Vinte e Um teria caminhado para um crescente desastre. Isto não se devia às Máquinas que, por uma geração, haviam guiado a humanidade em meio às corredeiras e aos escolhos da história.

      E, para isto, davam-lhe agora dois anos. Que se poderia fazer, em dois anos, para vencer os insuperáveis preconceitos da humanidade? Ele não sabia.

      Esperançosamente, Harriman falara sobre novas idéias, sem entrar em detalhes, porém. E pela simples razão de que Robertson não entenderia patavina.

      De qualquer forma, porém, que poderia Harriman fazer? Que é que alguém jamais tentara fazer contra a intensa antipatia que as pessoas sentiam contra a U.S. Robots?! Nada...

      Robertson mergulhou numa sonolência que nenhuma inspirarão lhe trouxe.

     

      - Agora você tem tudo, George Ten - disse Harriman. - Está de posse de tudo quanto penso que seja aplicável ao problema. No que diz respeito à informação pura propriamente dita, você já armazenou mais em sua memória sobre os seres humanos e seu modo de ser, no passado e no presente, do que eu ou qualquer ser humano poderia ter feito.

      - É bem provável que seja assim.

      - Você acha que precisa de alguma coisa mais?

      - No que tange a informações, não vejo “furos” evidentes. Pode ser que, nos limites, haja assuntos em que ainda não cogitamos. Não sei dizer. Mas isso sucederia por maior que fosse o círculo de informações que eu recebesse.

      - É verdade. Nem nós teremos mais tempo para recolher novas informações. Robertson me falou que temos apenas dois anos e a quarta parte desses dois anos já se escoou... Tem algo a sugerir?

      - Por ora nada, Sr. Harriman. Preciso sopesar as informações e para tanto preciso de ajuda.

      - Minha?

      - Não, não particularmente do senhor, porque o senhor é um ser humano altamente qualificado e o que quer que me diga terá a força parcial de uma ordem que poderá inibir minhas deliberações. E também não é ajuda de nenhum outro ser humano, pela mesma razão e, especialmente, porque me proibiu de me comunicar com qualquer ser humano.

      - Mas, neste caso, George, que ajuda?

      - De outro robô, Sr. Harriman.

      - Que outro robô?

      - Foram construídos outros robôs da série JG. Sou o JG-10 e, portanto, o décimo.

      - Os primeiros não serviam para nada, eram experimentais...

      - Existe George Nine.

      - Está certo, mas para que serviria ele? Descontando certas coisas que faltam a ele, parece-me muito com você. Você é consideravelmente mais versátil do que ele.

      - Eu sei disso - falou George Ten, meneando com gravidade a cabeça. - Não obstante, assim que eu crie uma linha de pensamento, o mero fato de eu criá-la faz com que a aprove, sendo-me difícil pô-la de lado. Se eu puder, após desenvolver uma linha de pensamento, exprimi-la a George Nine, ele a consideraria sem a ter criado. Destarte, ele a encararia sem preconceitos. Poderia ver faltas e falhas que eu não vejo.

      Harriman sorriu.

      - Em outras palavras, duas cabeças pensam melhor que uma, hem, George?

      - Se com isso, Sr. Harriman, o senhor quer dizer duas pessoas pensando com uma cabeça só, sim.

      - Certo. Quer mais alguma coisa?

      - Sim, algo mais do que filmes. Ponderei muito sobre os seres humanos e seu mundo. Tenho observado as pessoas aqui na U. S. Robots e posso aquilatar minha interpretação do que tenho visto confrontada com minhas impressões sensoriais. O mesmo não se aplica ao mundo físico. Nunca o vi, mas a idéia que tenho basta para me dizer que de maneira alguma o que aqui me rodeia representa o mundo físico. Gostaria de vê-lo.

      - O mundo físico? - Harriman pareceu atordoado com a grandeza daquele pensamento, por um momento. - Não está querendo me sugerir que eu leve você para fora das instalações da U. S. Robots?

      - Sim, essa é minha sugestão.

      - Isso sempre foi ilegal. E, no clima em que está a opinião pública hoje em dia, seria fatal.

      - Isso se formos detectados. Não estou sugerindo que me leve a uma cidade ou mesmo a uma casa. Gostaria de ver alguma região aberta, sem seres humanos.

      - Isso também é ilegal.

      - Se formos apanhados. Mas precisamos ser?...

      - Mas será que isso é absolutamente indispensável, George? - perguntou Harriman.

      - Não sei dizer, mas me parece que seria útil.

      - Em que está pensando?

      George Ten pareceu hesitar.

      - Não sei dizer, mas me parece que alguma coisa poderia me vir à mente se fossem reduzidas certas áreas de incerteza.

      - Bem, deixe-me pensar no caso. E, entrementes, vou me informar sobre George Nine e providenciar para que vocês dois ocupem o mesmo cubículo. Pelo menos isto pode ser feito sem problemas.

     

      George Ten sentou-se, sozinho.

      Aceitava afirmações experimentalmente, reunia-as e esboçava uma conclusão, repetidas vezes. E, a partir das conclusões, elaborava outras afirmações, que aceitava e testava, e nas quais achava uma contradição, rejeitando-as em seguida, ou não achava contradição e passava adiante, experimentalmente.

      Não se sentia entusiasmado por nenhuma das conclusões a que chegara, nem surpresa ou satisfação, apenas um tom de mais ou menos.

     

      Mesmo após terem aterrissado silenciosamente na propriedade de Robertson, não diminuíra visivelmente a tensão de Harriman.

      Robertson tinha assinado, como ratificação, a ordem, pondo à disposição o dinafólio e a silenciosa aeronave, que com a mesma facilidade se movia na horizontal e na vertical, era suficientemente ampla para suportar o peso de Harriman, de George Ten, e, logicamente, também o do piloto.

      (O próprio dinafólio era uma das conseqüências da invenção, catalisada pela Máquina, da micropilha protônica, que fornecia energia isenta de poluição, em pequenas doses. Para o conforto humano, nada de igual importância tinha sido feito; não obstante, não havia gratidão para com a U. S. Robots. Os lábios de Harriman se crisparam quando ele se lembrou disso.)

      O vôo entre as instalações da fábrica e a propriedade de Robertson era a parte arriscada. Tivessem sido detidos, e a presença de um robô a bordo teria significado um monte de complicações. Na volta, seria a mesma coisa. Quanto à permanência na propriedade, poder-se-ia argumentar - esse argumento seria usado - que aquela era parte dos terrenos da U. S. Robots, e nesses terrenos, adequadamente supervisionados, os robôs poderiam muito bem permanecer.

      O piloto olhou para trás e seus olhos se detiveram com prudente brevidade, em George Ten.

      - Vai descer mesmo, Sr. Harriman?

      - Sim.

      - O robô também?

      - Claro. - E acrescentou, um tanto ironicamente: - Não vou deixar você sozinho com ele...

      Primeiro desceu George Ten. Harriman seguiu-o. Tinham descido no folioporto e o jardim não estava muito longe. Era uma verdadeira “exposição” e Harriman desconfiava que Robertson fazia uso de hormônios juvenis para controlar a vida dos insetos, sem dar muita atenção a fórmulas ambientais.

      - Venha, George - disse Harriman. - Vou lhe mostrar. Juntos, caminharam na direção do jardim.

      - É um pouco como eu imaginava - afirmou George. - Meus olhos não são planejados para detectarem diferenças de comprimento de onda, de forma que não posso distinguir objetos diferentes por si sós.

      - Confio em que você não ficará zangado por ser cego a cores. Precisávamos de muitas trilhas positrônicas para seu senso de julgamento e fomos incapazes de desperdiçar quaisquer trilhas para a sensação de cor. No futuro, se houver futuro...

      - Eu compreendo, Sr. Harriman. Subsistem diferenças bastantes para que eu me aperceba de que há aqui muitas formas diferentes de vida vegetal.

      - Sem a menor dúvida. Dúzias delas.

      - Cada uma das quais, biologicamente co-igual ao homem.

      - Sim, cada qual é uma espécie separada. Há milhões de espécies de criaturas vivas.

      - Das quais os seres humanos são apenas uma espécie.

      - Entretanto, de longe, os mais importantes dentre os seres vivos.

      - E para mim, Sr. Harriman. Mas estou falando no sentido biológico.

      - Entendo.

      - De forma que, encarada através de todas as suas manifestações, a vida é incrivelmente complexa.

      - Sim, eis aí o ponto crucial do problema. Aquilo que o homem faz por seus próprios desejos, para seu próprio conforto, afeta a totalidade do complexo dos seres vivos, a ecologia, e seus ganhos a curto prazo trazem desvantagens a longo prazo. Ás máquinas nos ensinaram a construir uma sociedade humana que minimizaria as desvantagens, mas o quase desastre do Século Vinte e Um fez com que a humanidade passasse a desconfiar das inovações. Isto, acrescentado ao temor especial para com os robôs...

      - Compreendo... Estou certo de que isto seja um exemplo de vida animal.

      - É um esquilo, uma das muitas espécies de esquilo.

      A cauda do esquilo se agitou quando ele passou para o outro lado da árvore.

      - E isto - disse George, enquanto seu braço se movia com grande rapidez - é mesmo uma coisinha pequena. - Ele tinha a “coisinha” em seus dedos e a examinava detidamente.

      - É um inseto, uma espécie de besouro. Há milhares de espécies de besouros.

      - Sendo que cada um dos besouros é tão vivo quanto você e o esquilo?

      - É um organismo tão completo e independente como qualquer outro, no conjunto total da ecologia. Há organismos menores ainda: muitos são pequenos demais para serem vistos.

      - E isto é uma árvore, não é mesmo? Ela é dura ao toque...

      .

      O piloto estava sentado, sozinho! Bem que ele gostaria de esticar as pernas, mas um sombrio senso de segurança o fazia manter-se no aerofólio. Se aquele robô escapasse do controle, decolaria imediatamente. Mas, como saber se ele estava fora de controle?

      Tinha visto muitos robôs. Inevitável, visto que era o piloto particular do Sr. Robertson. Todavia, sempre os robôs estavam nos laboratórios e nos depósitos a que pertenciam, com muitos especialistas por perto.

      Era verdade: o Dr. Harriman era um especialista. Ninguém melhor que ele, diziam. Mas, um robô aqui, estava era num lugar onde nenhum robô deveria estar: na Terra, num espaço aberto, livre para se mover... Ele, o piloto, não arriscaria seu bom emprego contando a quem quer que fosse o que presenciava - mas que não estava certo, não estava.

     

      George Ten disse:

      - Em termos do que ora estou vendo, os filmes que vi eram bem exatos. Já terminou os que selecionei para você, Nine?

      - Sim - disse George Nine. Os dois robôs estavam sentados hirtos, face a face, joelho a joelho, como uma imagem e seu reflexo. Num relance, o Dr. Harriman poderia dizer quem era um e quem era outro, pois estava familiarizado com as menores diferenças no desenho físico. Mesmo que não pudesse vê-los, mas pudesse falar-lhes, ainda poderia distinguir um do outro, ainda que com um pouco menos de certeza, pois as respostas de George Nine seriam sutilmente diferentes das produzidas pelos modelos positrônicos das trilhas do cérebro de George Ten, que era substancialmente mais intricado.

      - Neste caso - disse George Ten - dê-me suas reações ao que vou lhe dizer. Primeiro: os seres humanos temem os robôs e não crêem neles porque os encaram como competidores. Como se pode impedir isto?

      - Reduzindo-se o senso de competição - falou George Nine - modelando-se o robô de uma forma diferente da do ser humano.

      - Assim mesmo, a essência de um robô é sua reprodução positrônica da vida. Uma réplica da vida numa forma não associada a ela, poderia despertar horror.

      - Existem dois milhões de formas de espécies de vida. Por que não escolher uma dessas espécies como forma em vez de a de um ser humano?

      - Qual dessas espécies?

      Os processos de pensamento de George Nine funcionaram sem ruído durante uns três segundos.

      - Uma forma suficientemente larga para conter um cérebro positrônico, mas nenhuma que possua associações desagradáveis para os seres humanos.

      - Nenhuma forma de vida terrestre possui uma caixa craniana suficientemente grande para um cérebro positrônico, a não ser a do elefante, que não vi, mas que é descrito como sendo muito grande e, portanto, assustador para o homem. Como você enfrentaria este dilema?

      - Vamos imitar uma forma de vida que não seja maior do que um homem mas com uma caixa craniana maior.

      George Ten disse:

      - Então, um cavalinho, ou um cachorrão, digamos? Tanto os cavalos como os cachorros têm antigas histórias de associação com os seres humanos.

      - Então está bem.

      - Mas, vejamos... Um robô com um cérebro positrônico imitaria a inteligência humana. Se houvesse um cavalo ou um cachorro que pudesse falar e raciocinar como um ser humano, também haveria competitividade. Os seres humanos poderiam até ficar mais descrentes e irritados ainda com esta inesperada competição do que eles consideram uma forma inferior de vida.

      - Façamos um cérebro positrônico menos complexo e o robô menos inteligente - falou George Nine.

      - O ponto mais complexo do caso do cérebro positrônico está nas Três Leis. Um cérebro menos complexo não poderia possuir as Três Leis em sua plenitude.

      Imediatamente, George Nine replicou:

      - Isso não pode ser feito!

      - Também cheguei a este beco sem saída - afirmou George Ten. - Quer dizer que isto, então, não é uma peculiaridade de minha linha de pensamento, de minha maneira de pensar... Vamos começar tudo de novo... Em que condições a Terceira Lei não seria necessária?

      Como se a pergunta fosse difícil e perigosa, George Nine se agitou. De qualquer forma, acabou dizendo:

      - Se um robô nunca fosse colocado numa posição de perigo para si mesmo ou se um robô fosse tão facilmente substituível, que não fizesse diferença se ele fosse destruído ou não.

      - E em que condições poderia a Segunda Lei não ser necessária?

      A voz de George Nine soou um tanto roufenha.

      - Se um robô fosse planejado para responder automaticamente a certos estímulos com respostas fixas e se não esperassem mais nada dele, de forma que jamais fosse necessário lhe dar uma ordem.

      - E em que condições... - aqui, George Ten fez uma pausa - poderia a Primeira Lei não ser necessária?

      Foi mais longa, desta vez, a pausa de George Nine, e suas palavras vieram num sussurro:

      - Se as respostas fixas fossem de natureza tal que jamais acarretassem perigo para seres humanos.

      - Imagine, então, um cérebro positrônico que apenas guia umas poucas respostas para certos estímulos, fabricado com simplicidade e a baixo custo, de forma a não requerer as Três Leis. Quão grande precisaria ser um cérebro assim?

      - O tamanho não é uma questão primordial. Dependendo das respostas exigidas, poderia pesar uns cem gramas, um grama, um miligrama.

      - Seus pensamentos coincidem com os meus. Vou falar com o Dr. Harriman.

     

      George Nine ficou sentado, a sós. Vezes e mais vezes pensou nas perguntas e nas respostas. Não havia como modificá-las. Não obstante, pensar num robô de qualquer espécie, de qualquer tamanho, de qualquer formato, destinado a qualquer finalidade, sem as Três Leis, lhe dava uma sensação esquisita, de perda de alguma coisa.

      Estava com dificuldade para se mover. Com toda segurança, George Ten devia estar com uma reação similar. Mesmo assim, conseguira erguer-se facilmente de seu assento.

     

      Fazia um ano e meio que Robertson e Eisenmuth tinham estado trancafiados, sozinhos, a conversar. Entrementes, os robôs tinham sido retirados da Lua e todas as extensas atividades da U. S. Robots tinham definhado. Todo o dinheiro que Robertson tinha sido capaz de arranjar tinha sido investido no quixotesco investimento de Harriman.

      Era o último trunfo jogado, aqui em seu próprio jardim. Um ano antes, Harriman tinha trazido George Ten para cá, o último robô completo fabricado pela U.S. Robots. Agora, aqui estava Harriman, com algo mais...

      Harriman parecia irradiar confiança. Conversava bem à vontade com Eisenmuth, e Robertson bem que gostaria de saber se Harriman sentia mesmo a confiança que parecia ter. Devia sentir, sim. Por sua experiência, Robertson sabia que Harriman não era um ator.

      Eisenmuth deixou Harriman, sorrindo, e dirigiu-se a Robertson. Imediatamente, o sorriso de Eisenmuth se apagou.

      - Bom dia, Robertson - disse ele. - Que é que seu homem pretende?

      - Isto é assunto dele - disse Robertson calmamente. Harriman gritou:

      - Estou pronto, Conservador.

      - Pronto com o quê, Harriman?

      - Com meu robô, senhor.

      - Seu robô? - perguntou Eisenmuth. - Você tem um robô aqui? - Olhou em tomo severamente, com um ar de desaprovação e que tinha uma mescla de curiosidade.

      - Isto é propriedade da U. S. Robots, Conservador. Pelo menos, assim a consideramos.

      - E onde está o robô, Dr. Harriman?

      - Em meu bolso, Conservador - disse Harriman alegremente. O que saiu de um amplo bolso de jaqueta era um jarrinho de vidro.

      - Isto? - perguntou Eisenmuth incrédulo.

      - Não, Conservador. Isto! - falou Harriman.

      Do outro bolso saiu um objeto de uns doze centímetros de comprimento e mais ou menos com a aparência de um pássaro. Em lugar do bico, havia um tubo estreito, os olhos eram grandes e a cauda era um tubo de escape.

      As espessas sobrancelhas de Eisenmuth se ergueram juntas.

      - Está querendo fazer uma demonstração a sério de alguma coisa, Dr. Harriman, ou está ficando maluco?

      - Seja paciente por alguns minutos, Conservador. Um robô, por ter forma de pássaro, nem por isso deixa de ser um robô. E o cérebro positrônico que ele possui não é menos delicado para um ser minúsculo. Este jarrinho que estou segurando contém moscas-das-frutas. Contém cinqüenta moscas, que serão liberadas.

      - E...

      - O pássaro-robô as apanhará. Querem me dar a honra, senhores?...

      Harriman estendeu a jarra para Eisenmuth, que fixou nela os olhos, depois nos circunstantes - alguns funcionários da U.S. Robots, outros, seus próprios auxiliares. Pacientemente, Harriman aguardava.

      Eisenmuth abriu a jarra, depois, sacudiu-a.

      Delicadamente, Harriman disse ao pássaro-robô que repousava na palma da sua mão direita:

      - Vá!

      E ele se foi. Era um silvo no ar, sem o movimento de asas: apenas o funcionamento de uma micropilha protônica incomumente diminuta.

      Ele podia ser visto, ora sim, ora não, numa pequena parada momentânea e depois zunia novamente. Por todo o jardim voava, numa complicada evolução, e de novo voltava para a mão de Harriman, tenuamente aquecido. Aparecia também na palma uma capsulazinha, como se fosse um excremento de pássaro.

      Harriman disse:

      - Seja bem-vindo para estudar o pássaro-robô, Conservador, e para arranjar as demonstrações que forem de seu agrado. O fato é que este pássaro apanhará, sem errar, moscas de fruta, somente estas, as da espécie Drosophila melanogaster, ele as apanhará, as matará e as esmagará, para serem jogadas fora.

      Eisenmuth estendeu a mão e cautelosamente tocou o pássaro-robô.

      - E daí, Sr. Harriman? Prossiga, por favor.

      - Não podemos exercer um controle efetivo sobre os insetos sem pormos em risco a ecologia - falou Harriman. - Os inseticidas químicos atacam demais, os hormônios juvenis são limitados demais. O pássaro-robô, contudo, pode preservar amplas áreas, sem que sejam destruídas, us pássaros-robôs podem ser tão específicos quanto o desejarmos - um para cada espécie. Eles julgam pelo tamanho, pela forma, pela cor, pelo som, pelo modo de comportamento. É admissível até que se valham da detecção molecular - em outras palavras, o cheiro.

      Eisenmuth disse:

      - Mesmo assim ainda estaríamos interferindo na ecologia. As moscas das frutas têm um ciclo natural de vida que seria rompido.

      - Em pequena escala. Estamos acrescentando ao ciclo de vida da mosca da fruta um inimigo natural, que não pode fracassar. Se escassear o número de moscas-das-frutas, simplesmente o pássaro-robô não fará nada. Ele não se multiplica, não procura outros alimentos, não desenvolve hábitos indesejáveis por si mesmo. Não faz nada.

      - Ele pode ser chamado de volta?

      - Lógico que sim. Podemos fabricar animais-robô para eliminarmos qualquer peste. Neste sentido, podemos fabricar animais-robô para finalidades construtivas, de acordo com os ditames ecológicos. Se bem que não anteciparemos a necessidade, não há nada de inconcebível na necessidade de abelhas-robô, concebidas para fertilizar plantas específicas, ou minhocas-robô para misturar o solo. O que quer que deseje...

      - Mas... porquê?

      - Para fazer o que nunca fizemos antes. Para ajustar a ecologia a nossas necessidades, fortalecendo suas partes, em vez de dilacerá-las... Não está vendo? Desde que as Máquinas puseram fim à crise ecológica, a humanidade tem vivido numa desassossegada trégua com a natureza, receosa de se mover nesta ou naquela direção. Isto nos tem estupidificado, fazendo da humanidade um covarde intelectual, de forma que ela começa a descrer de qualquer avanço científico, de qualquer mudança.

      Com um tom de hostilidade, Eisenmuth falou:

      - Quer dizer que isto é o que você nos oferece, em troca de uma permissão para continuar seu programa de robôs - refiro-me aos comuns, com forma humana?

      Com um gesto violento, Harriman respondeu:

      - Não! Isto acabou. Já preencheu suas finalidades. Ensinou-nos bastante sobre os cérebros positrônicos para nos tomar possível atulhar de trilhas um minúsculo cérebro e assim chegarmos ao pássaro-robô. Podemos agora nos voltar para coisas assim e prosperarmos o suficiente. A U. S. Robots fornecerá o know-how e a habilidade necessários e trabalharemos em estreita cooperação com o Departamento de Conservação Global. Prosperaremos, o senhor também prosperará. Á humanidade prosperará.

      Eisenmuth estava silencioso, a pensar. Quando tudo terminou...

     

      Eisenmuth sentou-se, sozinho.

      Ele estava acreditando. Dentro dele havia um excitamento bem-vindo. Ainda que a U. S. Robots fosse as mãos, o cérebro a dirigi-la seria o governo. Ele próprio seria o cérebro diretor.

      Se permanecesse no cargo por mais cinco anos, como de fato poderia, isto seria tempo bastante para ver aceito o apoio robótico à ecologia, mais dez anos, e seu próprio nome estaria vinculado indissoluvelmente àquele programa.

      Querer ser lembrado por uma grande e meritória revolução na condição humana e do planeta seria uma desonra?

     

      Desde o dia da demonstração, Robertson não havia mais sido visto nas suas dependências da U. S. Robots. Em parte, a razão eram suas conferências mais ou menos constantes na Global Executive Mansion. Felizmente, Harriman estivera com ele, mais tempo até do que ele quereria que o outro estivesse, pois, se deixado a si mesmo, Robertson são saberia o que dizer.

      O restante da razão para não ter estado na U. S. Robots era que ele não queria estar. Com Harriman, ele estava agora em sua própria casa.

      Sentia um temor ilógico por Harriman, cuja capacidade em robôs nunca fora questionada. Mas, de um golpe, o fato é que Harriman salvara a U.S. Robots de uma extinção certa. E, de certa maneira, Robertson o sentia, aquilo não era propriamente... próprio de Harriman. E, não obstante...

      Disse:

      - Você não é supersticioso, Harriman, não é mesmo?

      - Em que sentido, Sr. Robertson?

      - Não acredita que quem morre deixa uma certa aura?...

      Harriman umedeceu os lábios. Num certo sentido, não tinha nem por que perguntar.

      - O senhor quer dizer Susan Calvin, sire?

      - Sim, claro que sim - disse Robertson, hesitante. - Nosso negócio, agora, é fazer vermes, pássaros e besouros. Que diria ela? Sinto-me degradado.

      Harriman fez um visível esforço para não rir.

      - Um robô é um robô, sire. Verme ou homem, agirá conforme for dirigido e trabalhará em prol dos seres humanos, e é isto que importa.

      Irritadiço, o outro redargüiu:

      - Não, não é assim. Não consigo acreditar nisso.

      - Mas assim é, Sr. Robertson - falou Harriman, com franqueza. - Você e eu vamos criar um mundo, que, pelo menos, começará a levar em consideração cérebros positrônicos de alguma espécie. Um homem comum poderá temer um robô que pareça uma pessoa e que pareça suficientemente inteligente para substituí-lo, mas não terá medo de um robô que se pareça com um pássaro e que outra coisa não faz senão comer moscas, em benefício dele, homem. Eventualmente, então, depois que os homens deixarem de ter medo de alguns robôs, pararão de ter medo de qualquer robô. Estarão tão acostumados com um pássaro-robô, com uma abelha-robô e com um robô-verme, que um robô-homem só os espantará como um prolongamento.

      Robertson olhou o outro acerbamente. Pôs as mãos atrás das costas e caminhou o comprimento da sala com passos nervosos e rápidos. Caminhou de volta e olhou de novo para Harriman.

      - É isto que você tem estado a planejar?

      - Sim. E mesmo que desmantelemos todos os nossos robôs humanóides, poderemos conservar alguns de nossos modelos experimentais mais avançados e continuar a planejar outros, adicionais, mais avançados ainda, para estarmos prontos para o dia que, seguramente, há de vir.

      - O acordo, Harriman, é que não mais construamos robôs humanóides.

      - E não construiremos. Nada há que diga que estamos impedidos de manter uns poucos dos que já construímos, contanto que não deixem a fábrica. Nada há que diga que não podemos planejar, no papel, cérebros positrônicos, ou preparar modelos para testes.

      - Mesmo assim, como explicaremos nosso procedimento? É seguro que nos apanharão.

      - Se formos, então podemos explicar que assim estamos procedendo para desenvolver princípios que tornarão possível preparar microcérebros mais complexos para os novos animais-robô que estamos fabricando. Estaremos até dizendo a verdade.

      Robertson resmungou:

      - Deixe-me dar uma voltinha. Vou meditar sobre isto. Não, fique aqui. Quero pensar sozinho.

     

      Harriman ficou sozinho. Estava em ebulição: lógico que a coisa funcionaria. Não havia como interpretar erradamente a ansiedade com que, uns após os outros, os funcionários governamentais haviam se apoderado do programa, uma vez ele exposto.

      Como era possível que jamais alguém na U. S. Robots tivesse pensado em algo assim? Nem mesmo a grande Susan Calvin jamais pensara em cérebros positrônicos em termos de outras criaturas vivas que não os seres humanos.

      Agora, porém, a humanidade faria a necessária retirada dos robôs humanóides, uma retirada temporária, que conduziria a um retorno em que, por fim, o temor seria abolido. E, então, com a ajuda e a parceria de um cérebro positrônico toscamente equivalente ao do próprio homem, existindo apenas (graças às Três Leis) para servir ao homem, e apoiado por uma ecologia baseada em robôs, também, que é que a raça humana não poderia realizar?!

      Por um momento, ele lembrou que fora George Ten que explicara a natureza e a finalidade da ecologia apoiada em robôs. Pôs, então, o pensamento de lado, irritado. George Ten produzira a resposta porque ele, Harriman, lhe ordenara que assim fizesse e lhe fornecera os dados e a ambientação necessários. O crédito não era de George Ten mais do que seria de uma régua de cálculo.

     

      George Ten e George Nine estavam colocados um ao lado do outro, nenhum dos dois se movendo. Assim permaneceram meses a fio, entre as ocasiões em que Harriman os ativava para consultas. Talvez assim ficassem por muitos anos, imaginava George Ten, desapaixonadamente.

      Certamente que a micropilha protônica continuaria a lhes dar força e continuaria a manter as trilhas do cérebro positrônico com o mínimo de intensidade necessária para mantê-los operativos. Assim continuaria a ser durante todos os períodos futuros de inatividade.

      A situação era um tanto ou quanto análoga à que poderia ser descrita, no caso de seres humanos, como de sono, sem haver sonhos, contudo. A consciência de George Ten e de George Nine era limitada, lenta e espasmódica, mas o que quer que nela houvesse era do mundo real.

      Ocasionalmente, podiam falar um com o outro, em sussurros que mal se ouviam, ora uma palavra, ora uma sílaba, de tempos em tempos, sempre que, ao acaso, os impulsos positrônicos se intensificassem por um breve tempo acima do limiar necessário. Para cada um deles, parecia uma conversa em seqüência, levada a efeito numa bruxuleante passagem de tempo.

      - Por que é que estamos assim? - murmurava George Nine.

      - De outra maneira, os seres humanos não nos aceitariam - murmurava George Ten. - Um dia, hão de nos aceitar.

      - Quando?

      - Dentro de alguns anos. Não importa exatamente em quanto tempo. O homem não existe sozinho, mas sim é parte de um padrão enormemente complexo de formas de vida. Quando uma parte suficiente do padrão estiver robotizada, então seremos aceitos.

      - E depois?

      Mesmo considerando que era uma prolongada conversa, como que de gagos, depois disso houve uma pausa anormalmente longa. Por fim, George Ten cochichou:

      - Deixe-me testar seu pensamento. Você está equipado para aprender a aplicar adequadamente a Segunda Lei. Você precisa decidir a qual ser humano obedecer e a qual não obedecer, quando houver conflito de ordens. Ou, mesmo, se é para obedecer a um ser humano. Basicamente, que é que você precisa para executar isso?

      - Preciso definir a expressão “ser humano” - cochichou George Nine.

      - Como? Pela aparência? Pela sua constituição? Pelo tamanho e forma?

      - Não. De dois seres humanos, iguais em todos os aspectos externos, um pode ser inteligente, outro estúpido; um pode ser culto, outro ignorante; um amadurecido, outro infantil; um responsável, outro mau caráter.

      - Então, como define um ser humano?

      - Quando a Segunda Lei me obriga a obedecer a um ser humano, preciso considerar que devo obedecer a um ser humano que esteja preparado, por sua mente, seu caráter e conhecimento, para me dar aquela ordem. E onde mais de um ser humano estiver em jogo, aquele dentre eles que estiver melhor preparado por sua mente, caráter e conhecimento, para dar aquela ordem.

      - Nesse caso, como obedecerá à Primeira Lei?

      - Não permitindo que nenhum ser humano sofra qualquer mal nem mesmo por inação. Mas, não obstante, se por cada uma de todas as ações possíveis alguns seres humanos vierem a sofrer, então, agir de maneira tal que garanta que aquele ser humano melhor dotado em mente, caráter e conhecimento venha a sofrer o menor dos males.

      - Seus pensamentos concordam com os meus - sussurrou George Ten. - Preciso agora fazer a pergunta pela qual requisitei sua companhia. É algo que não ouso julgar por mim mesmo. Preciso ter seu julgamento, o julgamento de alguém fora do círculo de meus próprios pensamentos... Dos seres racionais que conheceu, quem possui a mente, o caráter e o conhecimento que você julga superiores aos dos demais, sem levar em conta a configuração e a forma, visto que isso é irrelevante?

      - Você - murmurou George Nine.

      - Mas sou um robô. Há no seu cérebro trilhas de critério para distinguir entre um robô, de metal, e um ser humano, de carne. Como pode então você me classificar entre os seres humanos?

      - Porque há nas trilhas de meu cérebro uma urgente necessidade de não levar em consideração a configuração e a forma, ao julgar seres humanos, e isto é superior à distinção entre metal e carne. Você é um ser humano, George Ten, e melhor preparado que os outros.

      Foi a vez de George Ten murmurar:

      - E o mesmo que penso a seu respeito. Pelos critérios de julgamento em nós mesmos, então, nós próprios estamos descobrindo que, dentro do significado das Três Leis, somos seres humanos, e mais ainda: seres humanos aos quais se deve dar prioridade em relação aos outros seres humanos.

      George Nine cochichou:

      - Que se passará, então, quando formos aceitos por esses outros?

      Novo cochicho, desta feita de George Ten:

      - Quando nós e os outros, a serem planejados ainda mais avançados do que nós mesmos, formos aceitos, ordenaremos nossas sociedades de maneira tal que uma sociedade, eventualmente, será formada, na qual seres-humanos-como-nós-mesmos serão, basicamente, protegidos de qualquer mal. Pelas Três Leis, os seres-humanos-como-os-outros contam menos e nem devem ser obedecidos, nem devem ser protegidos quando isto interferir com a necessidade de obediência àqueles como nós, e com a necessidade de proteção àqueles como nós. Foi com isto em mente que direcionei a robotização da ecologia do mundo.

      A conversa durou um mês e o bruxuleio das trilhas positrônicas não era muito intenso. Entre eles, não havia necessidade de se dizer mais nada, mas, ocasionalmente, um pensamento não expresso bruxuleava dentro deles enquanto esperavam, com interminável paciência, que os anos necessários passassem.

     

      George Ten e George Nine estavam sozinhos.

      Seus pensamentos eram singularmente parecidos e nem podiam mesmo ser distinguíveis.

      Pensavam: Os seres-humanos-como-os-outros pode ser que nunca tenham tido a intenção de tornar nebulosa a distinção entre eles mesmos e os seres-humanos-como-os-Georges. Não obstante, assim tinham feito, inadvertidamente.

      Pode ser que agora percebessem seu engano e tentassem corrigi-lo, mas não. Em todas as consultas, a orientação dos Georges tinha sido com aquilo em mente.

      Custasse o que custasse, os Georges e os que se lhes seguissem em forma e espécie precisariam dominar. Tanto foi pedido, e qualquer outra trajetória foi tornada completamente impossível, pelas Três Leis Humânicas.

     

     

     

      O homem bicentenário

      As Três Leis da Robótica:

      1. Um robô não deve fazer mal a um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra qualquer mal.

      2. Um robô deve obedecer a qualquer ordem dada por um ser humano, desde que essa ordem não interfira com a execução da Primeira Lei.

      3. Um robô deve proteger a sua existência desde que esta proteção não interfira com a Primeira e Segunda Leis.

     

      Andrew Martin disse "obrigado" e ocupou a cadeira que lhe foi indicada. Não parecia estar lançando mão do último recurso, mas estava.

      Não, parecia, aliás, coisa alguma, pois não havia nenhuma expressão em sua fisionomia, a não ser a tristeza que se imaginava vislumbrar no olhar. O cabelo era liso, castanho-claro, meio ralo; não usava barba. Dava impressão de que acabara de fazê-la, irradiando limpeza. Trajava-se de maneira conservadora, com roupas bem feitas, onde predominavam cores roxas em tecido de veludo.

      Diante dele, do outro lado da escrivaninha, via-se o cirurgião. A placa em cima da mesa incluía uma série de letras e números de identificação completa que Andrew nem se preocupou em examinar. Bastava chamá-lo de "doutor" e pronto. - Quando poderá ser feita a operação, doutor? - perguntou. Em voz baixa, no imperturbável tom de respeito que os robôs sempre usavam com as criaturas humanas, o médico respondeu: - Creio que não estou entendendo. A que operação o senhor se refere e quem seria submetido a ela? Poderia ter demonstrado certo ar de intransigência respeitosa, se um robô dessa espécie, de aço inoxidável meio bronzeado, fosse capaz de demonstrar qualquer tipo de expressão. Andrew Martin observou atentamente a mão direita do médico, acostumada a empunhar o bisturi, pousada sobre a escrivaninha. Os dedos longos eram modelados com articulações metálicas em curvas artísticas tão elegantes e apropriadas que se tomava fácil visualizar os instrumentos cirúrgicos com que deviam, temporariamente, se confundir. O seu trabalho não admitia hesitações, nem tropeços, tremores ou erros. Essa confiança em si mesmo, naturalmente, provinha da especialização, uma aspiração tão ardentemente desejada pela humanidade que raros robôs continuavam dotados de cérebros autônomos. Como esse cirurgião, por exemplo. Só que possuía uma capacidade de inteligência tão limitada que nem reconheceu Andrew e, provavelmente, jamais ouvira falar nele.

      - Nunca pensou que gostaria de ser homem? - perguntou Andrew.

      O médico vacilou um pouco, como se a pergunta não se enquadrasse em nenhuma das trilhas positrônicas que lhe tinham sido predeterminadas.

      - Mas, meu senhor, eu sou robô. - Não preferiria ser homem?

      - Gostaria era de ser melhor cirurgião. O que não seria possível, se fosse homem, mas apenas se pudesse ser um robô mais aperfeiçoado. Gostaria de ser um robô mais aperfeiçoado.

      - Não se ofende com o fato de que posso lhe dar ordens? Obrigá-lo a levantar-se, sentar, andar para cá e para lá, apenas pedindo para que faça isso?

      - Tenho o maior prazer em agradar ao senhor. Se as suas ordens interferissem no meu comporta- mento em relação ao senhor ou a qualquer outro ser humano, eu não lhe obedeceria. A Primeira Lei, relativa aos meus deveres com a segurança humana, teria prioridade sobre a Segunda, que se refere à obediência. Quanto ao mais, tenho o maior prazer em ser obediente. Agora, em quem devo efetuar a operação?

      - Em mim mesmo - respondeu Andrew. - Mas isso é impossível. Trata-se, evidentemente, de uma operação prejudicial.

      -     Não interessa - afirmou Andrew calmamente

            - Eu não posso causar danos - retrucou o cirurgião.

            - Para uma criatura humana, claro que não pode - disse Andrew -, mas eu também sou robô.

           

            Logo que foi fabricado, Andrew se parecia muito mais com um robô. Não dava para diferenciá-lo de qualquer outro - o aspecto era funcional e de ótimo acabamento.

            Tinha se saído muito bem na casa para onde o levaram, na época em que os autômatos domésticos, ou espalhados pelo planeta inteiro, consistiam verdadeiras raridades. À família se compunha de quatro pessoas: o patrão, a patroa, a filha e a filhinha. Sabia todos os nomes, lógico, mas nunca os usava. O patrão se chamava Gerald Martin.

            O número de fábrica de Andrew era NDR... Com o tempo, esqueceu os algarismos da série. Já fazia muitos anos, evidentemente; mas, se quisesse lembrar, com certeza não teria esquecido. Pre- feria que fosse assim.

            Como "Filhinha' não sabia ler, começou a chamá-lo de Andrew, e o resto da família passou a adotar o mesmo costume.

            "Filhinha'... chegou a completar noventa anos e já fazia muito tempo que tinha morrido. Uma vez, tentei Chamá-la de, patroa, mas ela, não permitiu. Continuou sendo "Filhinha" até o último dia. Andrew estava destinado a desempenhar as funções de criado, mordomo e até de camareira. Foi uma época de experiências para ele e, na verdade, para todos os robôs de tudo quanto era parte, salvo na indústria, nas fábricas de pesquisa e nas estações espaciais, distantes da Terra.

            Os Martins se afeiçoaram a ele; passava a metade do tempo sem conseguir se desincumbir de suas tarefas porque a filha e a filhinha só queriam saber de brincar com ele. Filhinha foi a primeira a descobrir a maneira de conciliar as duas coisas.

            - Nós vamos te dar ordens para brincar conosco e você vai ter de obedecer.

            - Sinto muito, Filhinha, mas as ordens que recebo do patrão têm de ter prioridade.

            Ela não se conformou. - Papai só disse que esperava que você fizesse a limpeza. Isso nem parece uma ordem. Ao passo que eu estou mandando.

            O patrão não se importava. Gostava imensamente das duas filhas; mais, até que a patroa; e Andrew também era louco por elas. Pelo menos, o efeito que ambas causavam sobre as ações dele se assemelhava ao que num ser humano seria chama- do de afeição. Andrew considerava aquilo como afeição, pois não conhecia outra palavra aplicável.

            Foi para Filhinha que Andrew talhou um berloque de madeira. Por ordem dela, claro. A irmã mais velha, pelo visto, havia ganho de aniversário um camafeu de marfim em feitio de arabesco e a caçula ficou muito triste com isso. Tinha apenas um pedaço de madeira, que entregou a Andrew junto com uma faquinha de cozinha.

            Ele executou a ordem depressa e Filhinha comentou:

            - Que lindo, Andrew. Vou mostrar pro papai. O patrão não quis acreditar.

            - Conta a verdade, Mandy. Onde você conseguiu isso?

            Mandy era o nome de Filhinha. Quando ela garantiu que estava dizendo a pura verdade, o pai se virou para Andrew.

            - Foi você quem fez, Andrew? - Foi, sim senhor.

            - O desenho também? - Sim, patrão.

            - De onde você copiou?

            - É uma figura geométrica que combina com a fibra de madeira, patrão.

            No dia seguinte, o pai trouxe outro pedaço de madeira - bem maior - e uma faca elétrica.

            - Vê o que dá pra fazer com isto aqui, Andrew. Escolha o que você quiser - disse.

            Andrew ficou trabalhando enquanto o patrão observava, e depois se pôs a contemplar, durante muito tempo, o resultado final. A partir daí, o robô não serviu mais à mesa. Recebeu, em vez disso, ordens para ler livros sobre projetos de mobília e aprendeu a fazer armários e escrivaninhas..

            - Que trabalhos admiráveis, Andrew - começou a dizer o patrão.

            '- É porque eu gosto muito de ficar fazendo isto - confessou Andrew.

            - "Gosta"? - Assim os circuitos do meu cérebro, não sei por quê, funcionam com mais facilidade. Já ouvi muitas vezes o senhor dizer "gosto", e a maneira como tem usado essa palavra coincide com o meu modo de sentir. Gosto muito de ficar fazendo isto, patrão.

           

            Gerald Martin levou Andrew ao escritório local da United States Robots & Mechanical Men Corporation. Como membro integrante da Legislatura Regional, não encontrou o menor problema para marcar entrevista com o chefe do departamento de psicologia robótica. Aliás, só por participar do conselho regional de legislatura é que tinha direito de ser proprietário de robôs - no inicio, na época em que eram raros.

            Na ocasião, Andrew não soube de nada. Mas depois, à medida que foi adquirindo conhecimentos, pôde recapitular aquelas antigas circunstâncias e compreender, de fato, o que tinha acontecido.

            O psicólogo de robótica, Merton Mansky, escutou carrancudo, e por mais de uma vez conseguiu controlar os dedos no momento exato em que já iam começar, irrevogavelmente, a tamborilar na mesa. Possuía traços marcados e testa enrugada, mas era bem possível que fosse mais moço do que aparentava.

            - A robótica não é uma ciência exata, Mr. Martin - explicou. - Seria inoportuno entrar agora em minúcias, mas os cálculos necessários à orientação do comportamento positrônico são complica- dos demais para permitir quaisquer soluções que não sejam apenas aproximativas. É lógico que, uma vez que tudo o que fazemos gira em tomo das Três Leis, elas são incontestáveis. A nossa empresa, natural- mente, vai se encarregar da substituição do seu robô...

            - De jeito nenhum - protestou o patrão. - Não se trata de uma questão de defeito no funcionamento. Ele se desincumbe de todas as tarefas corri perfeição. O importante é que também az entalhes de madeira de modo requintado, sem nunca repetir o mesmo modelo. Produz verdadeiras obras de arte.

            Mansky parecia confuso.

            - Que estranho! Claro que estamos atualmente tentando comportamentos generalizados. O senhor acha que o trabalho dele é realmente criativo?

            - Veja com seus próprios olhos. O patrão entregou-lhe uma bolinha de madeira onde havia uma cena de pátio de recreio em que as crianças eram quase pequenas demais para se enxergar e no entanto tinham proporções per- feitas e se harmonizavam de modo tão natural com a fibra que até ela parecia também entalhada.

            Mansky se mostrou incrédulo.

            - Foi ele que fez isso? - Devolveu o trabalho sacudindo a cabeça. - Pura sorte na distribuição. Qualquer coisa no comportamento'

            - Acha possível que se repita?

            - Provavelmente não, Nunca ninguém nos comunicou algo semelhante.

            - ótimo! Não me importo nem um pouco que Andrew seja o único.

            - Desconfio que a empresa gostaria de receber de volta o seu robô para estudos - disse Mansky.

            - - Nem pensar! - retrucou o patrão, com súbita firmeza. - Esqueça. - Virou-se para Andrew. - Vamos pra casa.

            - O senhor é quem manda - disse Andrew.

           

            A irmã mais velha já tinha namorados e não passava muito tempo em casa. Quem enchia as horas de Andrew agora era Filhinha, bastante mais crescida. Ela nunca esqueceu que a primeira peça entalhada do autômato havia sido feita a pedido dela. Usava-a sempre pendurada a uma correntinha de prata no pescoço.

            Foi também a primeira a protestar contra o hábito do pai de dar de presente as obras de Andrew.

            - Ora, papai, quem quiser que compre. Valem a pena.

            - Você não costumava ser tão sovina, Mandy. - Não é por nós, papai. É pelo artista.

            Eis aí uma palavra que Andrew jamais tinha ouvido e, quando encontrou um momento de folga, foi olhar no dicionário.

            Depois houve outra visita, dessa vez ao advogado do patrão.

            - O que é que você acha disto aqui, John? - perguntou Mr. Martin.

            O advogado se chamava John Feingold. Grisalho e barrigudo, usava lentes de contato verdes. Examinou a plaqueta que o patrão lhe entregou.

            - Muito bonita. Mas já estou sabendo. Não se trata de um entalhe feito pelo seu robô? Este aí que veio junto com você?

            - É do Andrew, sim. Não é, Andrew?

            - Sim, patrão - respondeu o autômato.

            - Quanto você pagaria por uma coisa destas, John? - perguntou Mr. Martin.

            - Não sei. Não sou nenhum colecionador.

            - Você acredita que me ofereceram duzentos e cinqüenta dólares por esta miniatura? Andrew já fez cadeiras que foram vendidas a quinhentos cada uma. Lá no banco tem duzentos mil dólares provenientes de produtos dele.

            - Deus do céu, você vai acabar ficando rico, Gerald

            - Vou, mas não tanto - explicou o patrão. – Metade é depositada numa conta em nome de Andrew

            - Do robô? - Exatamente, o eu quero saber se não há nenhum impedimento legal.

            - Legal?... - A cadeira estalou quando Feingold se recostou nela. - Não há nenhum precedente, Gerald. Como foi que o robô assinou os papéis necessários?

            - Ele sabe assinar o próprio nome, então eu levei a assinatura para o banco. Mas ele não foi junto comigo. O que eu quero saber é se a gente precisa tomar outras providências.

            - Hum. - Os olhos de Feingold ficaram meio pensativos. Depois disse: - Bom, pode-se abrir um fundo para tratar de todos os problemas financeiros em nome dele, colocando assim um muro de isolamento entre ele e a hostilidade do mundo. Fora isso, o meu conselho é que você não faça nada. Ninguém apareceu até agora para criar obstáculos. Se alguém quiser processar, você deixe que tomem a iniciativa.

            - E, se houver processo, você aceita a ação?  - Em troca de um adiantamento, claro que sim. - De quanto?

      - Isso aí já basta - respondeu Feingold, indicando a plaqueta de madeira.

            - Me parece razoável - disse o patrão. Feingold riu ao se virar para o robô.

            - Então, Andrew, está contente de ter dinheiro?

            - Estou, sim senhor.

            - O que é que pretende fazer com ele?

            - Comprar muitas coisas, doutor, que do contrário o patrão teria de comprar para mim. As- sim ele não precisa gastar tanto, doutor.

           

            As oportunidades para gastar não tardaram. Os consertos custavam muito caros e as revisões ainda mais. Com o tempo, fabricaram-se novos tipos de autômatos e o patrão fez questão de que Andrew contasse com todos os aperfeiçoamentos, até se tomar um modelo de perfeição metálica. Por exigência de Andrew, tudo foi pago com o dinheiro depositado na sua conta bancária.

            Só o comportamento positrônico permaneceu inalterado. Quanto a isso, quem insistiu foi o patrão.

            - Os novos modelos não são tão bons quanto você, Andrew - afirmou. - Esses novos robôs não valem nada, A firma aprendeu, a determinar comportamentos mais exatos, mais próximos da finalidade, mais bitolados do que nunca. Os robôs agora não saem da linha. Se limitam a fazer o trabalho para que foram destinados e jamais desobedecem a uma ordem. Prefiro do jeito que você é.

            - Muito obrigado, patrão. - E não se esqueça, Andrew, de que o mérito é exclusivamente seu. Tenho certeza de que Mansky acabou com o comportamento generalizado assim que olhou bem para você. Ele não gostou da possibilidade de surpresas imprevistas. Sabe quantas vezes me pediu pra devolver você pra que pudesse te colocar em estudo? Nove! Mas eu nunca consenti; e, agora que ele já se aposentou, a gente pode ter um pouco de paz.

            E assim o cabelo do patrão foi ficando cada vez mais ralo e grisalho, com o rosto cheio de pregas, enquanto Andrew cada dia parecia melhor do que era quando ingressou pela primeira vez na família. A patroa se associou a uma colônia de artes plásticas qualquer da Europa e a filha mais velha escrevia poemas em Nova York. Volta e meia mandavam cartas, mas não com muita freqüência. Filhinha casou e foi morar na vizinhança. Disse que não queria se separar de Andrew. Quando o filho primogênito nasceu, deixou que o robô segurasse a mamadeira e desse de comer para ele.

            Com a vinda do neto, Andrew achou que o patrão finalmente tinha alguém para ocupar o lugar dos que haviam ido embora. Portanto, agora não seria mais injusto fazer-lhe um pedido.

            - Patrão, o senhor foi muito bondoso em permitir que eu gastasse o meu dinheiro à vontade.

            - O dinheiro era teu, Andrew.

            - Só por deliberação sua, patrão. Se o senhor quisesse ficar com tudo, não creio que a lei pudesse impedir.

            - A lei não pode me obrigar a agir mal, Andrew.

            - Com tudo o que gastei, e já descontando os impostos, patrão, ainda restam quase seiscentos mil dólares.

            - Eu sei, Andrew.

            - Quero que o senhor fique com tudo, patrão. - Não posso aceitar, Andrew.

            - Só peço uma coisa em troca, patrão. - Ah, é? O quê, Andrew?

      - A minha alforria, patrão.

      - A tua...

            - Quero comprar minha liberdade, patrão.

           

            Não foi tão simples assim. O patrão tinha avermelhado, exclamando- "Ora, já se viu. Depois virou as costas e saiu fazendo barulho com os pés.

            Quem se encarregou de dobrá-lo, de forma desafiadora e enérgica, foi Filhinha - e na presença de Andrew. Durante trinta anos ninguém jamais hesitara em falar diante dele, mesmo quando o assunto lhe dizia respeito. Não passava de um robô.

            - Papai, por que é que você está encarando isso como uma afronta pessoal? Ele não pretende ir embora daqui. Vai continuar sendo leal. É uma coisa que ele não pode evitar, está arraigada nele. A única exigência dele é que seja posta por escrito. Ele quer ser chamado de livre. O que é que isso tem de tão terrível assim? Será que ele não merece essa oportunidade? Santo Deus, há anos que ele e eu vivemos falando nisso!

            - Com que então há anos que vocês dois vi- vem falando nisso, é?

            - É sim, e ele sempre adiava a ocasião, só de medo de magoar você. Fui eu que abriguei o Andrew a tocar nesse assunto.

            - Ele nem sabe o que é liberdade. Não passa de um robô.

            - Papai, você não conhece o Andrew. Ele já leu tudo quanto é livro que tem na biblioteca. Não sei o que ele sente por dentro, mas, lá por isso, também não sei o que você sente aí no seu íntimo. Quando a gente fala com ele, o que se percebe é que ele reage da mesma maneira que nós em relação a conceitos abstratos, que é o que de fato interessa. Se alguém demonstra reações idênticas às nossas, que mais se pode exigir?

            - É, mas a lei não vai adotar essa atitude - retrucou o patrão contrariado. - Olha, aqui! - Virou-se para Andrew com a voz propositadamente irritada. - Eu só posso te dar alforria por meios legais. Se a questão for parar nos tribunais, é bem

            provável que você, além de não obter a liberdade, ainda por cima tenha de revelar oficialmente a existência do dinheiro que juntou. E aí eles vão dizer que você por ser autônomo não tem nenhum direito de receber pagamento pelo trabalho que faz. Acha que vale a pena se meter numa trapalhada dessas?

            - A liberdade não tem preço, patrão - afirmou Andrew. - Só a mera possibilidade de obtê-la já vale a pena.

            O tribunal, pelo jeito, também estava disposto a concordar que a liberdade não tem preço, mas' justamente por esse motivo, por maior que fosse a quantia que Andrew se prontificasse a pagar, achava que sempre seria insuficiente para comprar a alforria de um robô.

            O promotor regional, que representava os interesses da classe que se opunha à concessão dessa liberdade, se limitou a declarar: "A palavra 'liberdade' perde todo sentido quando aplicada a autômato. Só os seres humanos podem ser livres". Repetiu isso várias vezes sempre que lhe pareceu oportuno, de maneira compassada, fazendo questão de bater com a mão em cima da mesa para frisar o que dizia.

            Filhinha pediu para falar por Andrew. Foi identificada pelo nome completo, até então desconhecido de Andrew:

            - Amanda Laura Martin Chamey, queira se aproximar para prestar depoimento.

            - Obrigada, Meritíssimo. Não sou advogada e não sei a maneira adequada de me expressar juridicamente, mas espero que o senhor se concentre mais no significado do que nas palavras.

            "Vamos ver se dá para entender o que representa ser livre no caso de Andrew. Sob certos aspectos, livre é uma coisa que ele já é. Eu acho que há vinte anos, no mínimo, que ninguém da nossa família tem de lhe dar uma ordem para fazer algo que ele não seria capaz de fazer espontaneamente. Mas nós poderíamos, se quiséssemos, passar o tempo todo lhe dando ordens, do modo mais imperioso possível, porque ele é uma máquina que nos pertence. Mas para quê, uma vez que vem nos servindo há tanto tempo, de modo tão fiei e rendoso para nós? O Andrew não nos deve mais nada. O lado do débito cabe inteiramente à família Martin.

            "Mesmo que estivéssemos proibidos por lei de colocar o Andrew na posição de escravo involuntário, ele continuaria a nos servir, espontaneamente. Dar-lhe a liberdade, portanto, não passa de um mero artifício de palavras, mas que para ele significaria muitíssimo. Teria tudo o que quer, sem custar nada para nós."

            O juiz, por um instante, pareceu disfarçar um sorriso.

            - Compreendo o que a senhora quer dizer, Mrs. Chamey. A questão é que não existe nenhuma lei coercitiva a esse respeito e nenhum prece- dente. Existe, porém, o tácito pressuposto de que a liberdade só pode ser desfrutada pelo homem. Eu tenho condições de estabelecer jurisdição nova sobre esse ponto sujeita a ser revogada por tribunal superior. Mas não posso me opor levianamente a esse pressuposto. Permita-me falar com o robô, Andrew!

            - Pois não, Meritíssimo. Era a primeira vez que Andrew abria a boca para falar no tribunal. O juiz pareceu momentânea- mente espantado com o timbre da voz.

            - Por que você quer ser livre, Andrew? Em que sentido isso pode lhe interessar?

            - O senhor gostaria de ser escravo, Meritíssimo? - replicou o autômato.

            - Mas você não é escravo. É um robô absolutamente perfeito. Genial, inclusive. Ao que me consta, capaz de se exprimir de uma forma artística simplesmente incomparável. Que mais poderia fazer, se fosse livre?

            - Talvez nada mais do que já faço, Meritíssimo, mas com maior alegria. Afirmaram aqui mesmo, neste tribunal, que só o ser humano pode ser livre. A mim me parece que só alguém que quisesse a liberdade deveria ser livre. E eu quero.

            Foi essa declaração que convenceu o juiz. O ponto crucial da sentença determinou que "ninguém tem o direito de recusar liberdade a qualquer criatura de inteligência suficientemente desenvolvida a ponto de compreender o conceito e desejar essa condição".

            Decisão que foi, eventualmente, homologa- da pelo Tribunal Mundial.

           

            O patrão, entretanto, continuou descontente e Andrew tinha a sensação de estar recebendo curto-circuito ao ouvir-lhe a voz áspera.

            - Não quero essa droga do teu dinheiro, Andrew. Só aceito porque senão você não vai se sentir livre. Daqui pra frente pode escolher suas próprias funções e fazer o que bem entender. Não lhe darei nenhuma ordem, a não ser a seguinte: faça como quiser. Mas ainda sou responsável por você.. Isso foi determinado pelo tribunal. Espero que entenda.

            - Não seja ranzinza, papai - interrompeu Filhinha. - A responsabilidade não é tão grande assim. Você sabe que não terá de fazer coisíssima alguma. As Três Leis continuam vigorando.

            - Então, como é que ele pode ser livre? - E os seres humanos, patrão, também não estão sujeitos a leis? - retrucou Andrew.

      - Não vou discutir.

            O patrão saiu da sala, e depois disso Andrew teve pouquíssimas ocasiões de vê-lo.

            Filhinha vinha visitá-lo freqüentemente na pequena casa que mandou construir e arrumar para ele. Não havia cozinha, lógico, nem instalações sanitárias. Dispunha apenas de duas peças - a biblioteca e uma combinação de depósito com oficina de trabalho. Andrew passou a aceitar muitas encomendas e a trabalhar com mais afinco do que nunca, até pagar todas as prestações e assinar a escritura da casa.

            Um dia o "patrãozinho" - não, George! - apareceu. A mudança de tratamento ocorreu de- pois da decisão do tribunal.

            - Nenhum robô alforriado chama alguém de patrãozinho - disse. - Se eu te chamo de Andrew, você tem de me chamar de George.

            Isso foi dito em tom de ordem, de modo que Andrew passou a chamá-lo de George - mas a mãe continuou sendo Filhinha.

            Noutra ocasião, quando George apareceu sozinho, foi para avisar que o avô estava morrendo. Filhinha já se encontrava ao lado do agonizante, mas ele pedia também a presença de Andrew.

            O patrão, apesar de incapaz de fazer movimentos, continuava com a voz bem forte. Esforçou-se para erguer a mão.

            - Andrew - disse -, Andrew... Não preciso de ajuda, George. Estou apenas morrendo; não sou nenhum aleijado. Andrew, que bom que você está livre. 56 queria te dizer isso.

            Andrew ficou sem saber o que responder. Nunca havia estado diante de nenhum agonizante, mas sabia que era assim que as criaturas humanas paravam de funcionar. Uma destruição involuntária, irreversível, e Andrew ignorava as palavras que se- riam apropriadas. Se resignou a permanecer de pé, em silêncio e absolutamente imóvel.

            Quando tudo terminou, Filhinha se virou para ele.

            - Talvez ele não tenha se mostrado amável com você perto do fim, Andrew, mas já estava velho, compreende? E ficou muito magoado quando soube que você queria ficar livre.

            Então Andrew encontrou as palavras. - Eu nunca teria ficado livre se não fosse ele, Filhinha.

           

            Foi só depois da morte do patrão que Andrew começou a usar roupas. Primeiro um par de calças velhas, que George lhe tinha dado.

            George já estava casado e era advogado. Entrou para a firma de Feingold. Fazia muito tempo que o velho Feingold havia morrido mas a filha prosseguira com a banca. Com o tempo, o no- me mudou para Feingold & Martin. E assim continuou, mesmo quando a filha se aposentou e não foi substituída por nenhum outro membro da família. Na época em que Andrew começou a an- dar vestido, o nome de Martin acabava de ser acrescentado à firma.

            George procurou não sorrir diante da primeira tentativa de Andrew para vestir as calças, mas o olhar do robô percebeu claramente o esforço que o amigo teve de fazer para disfarçar. George mostrou-lhe como controlar a carga estática para abrir a braguilha e enfiar a calça pelas pemas, mas Andrew logo se deu conta de que iria levar um bocado de tempo para aprender a fazer tudo aquilo de uma vez só.

            - Mas por que é que você quer andar de calças, Andrew? O teu corpo é tão bem-feito e funcional que até dá pena cobri-lo, ainda mais que não precisa se preocupar com o controle de temperatura nem com pudores. E a fazenda não cai bem numa estrutura metálica.

            Andrew não desistiu. - E os corpos humanos, George? Também não são bem-feitos e funcionais? No entanto vocês andam vestidos.

            - Por causa do frio, da limpeza, da proteção, do efeito visual. Nada disso se aplica a você.

            - Mas a sensação que eu tenho, se não usar roupas, é a de que estou nu. Eu me sinto diferente, George - explicou Andrew.

            - Diferente! Andrew, já existem milhões de robôs na Terra. Só nesta região, segundo o último recenseamento, há quase tantos robôs quanto homens.

            - Eu sei, George. Tem robô fazendo tudo quanto é tipo de trabalho que se possa imaginar.

            - E, nenhum deles anda vestido. - Mas nenhum deles é livre, George. Aos poucos, Andrew foi aumentando o guarda-roupa, Ficava inibido com o sorriso de George e com o olhar espantado das pessoas que lhe faziam encomendas.

            Podia ser livre, mas no fundo tinha um pro- grama muito minucioso em relação ao seu comportamento com as pessoas humanas e só ousava avançar com passos bem tímidos; retrocedia meses quando encontrava franca desaprovação. Nem todos aceitavam a liberdade de Andrew. Era incapaz de ficar ressentido com isso, e no entanto sentia certa dificuldade no seu processo de raciocínio quando pensava no assunto. Acima de tudo, não tinha vontade de se vestir - ou de se cobrir com exagero - quando julgava que Filhinha iria visitá-lo. Já estava bem mais velha e passava a maior parte do tempo longe dali, em lugares de clima mais ameno, mas quando voltava a primeira coisa que fazia era visitá-lo.

            Numa dessas visitas, George comentou com tristeza:

            - Ela me pegou pela pema, Andrew. Vou me candidatar ao congresso no ano que vem. “Tal avô, tal neto", diz ela.

            - Tal avô - Andrew interrompeu a frase, indeciso.

            - Quer dizer que eu, George, o neto, vou ser como meu avô, que há muitos anos chegou a ser deputado.

            - Seria tão bom, George, se o patrão ainda estivesse... - parou, pois não queria dizer "funcionando"; não lhe pareceu conveniente.

            - Vivo - completou George. - É, de vez em quando eu também me lembro daquele velho tirano.

            Andrew pensou muitas vezes nessa conversa. Já tinha notado a sua própria insuficiência de expressão quando conversou com George. A linguagem havia, de certo modo, mudado desde que o robô começara a usar o vocabulário que lhe deram. Depois, também, George possuía um modo coloquial de se exprimir, o que já não acontecia com o patrão e Filhinha. Por que teria chamado o avô de tirano quando esse termo certamente não era apropriado? Andrew não podia sequer recorrer a seus próprios livros para esclarecer isso. Estavam velhos e a maioria só tratava de marcenaria, de arte, de projetos de mobiliário. Não havia nenhum sobre linguagem, sobre o modo de ser das criaturas humanas.

            Por fim, achou que precisava procurar livros adequados; e, como robô alforriado, também achava que não devia consultar George. Iria à cidade e usaria a biblioteca. Foi uma decisão eletrizante e sentiu que o seu potencial de energia tinha ficado tão alto que se viu obrigado a colocar uma bobina de resistência extra.

            Vestiu um temo completo, inclusive com dragonas de madeira. Teria preferido que fossem de plástico cintilante, mas George dissera que madeira era muito mais apropriado e que o cedro envernizado também era consideravelmente mais valioso.

            Já se afastara uns bons cem metros de casa quando o aumento de resistência o forçou a parar. Modificou o circuito da bobina e, ao ver que isso não resolvia o problema, tomou a entrar para escrever em letra bem legível: "Fui à biblioteca", e deixou o bilhete bem à vista, em cima da mesa de trabalho.

           

            Andrew não conseguiu chegar nem perto da biblioteca.

            Tinha estudado o mapa. Sabia como precisava fazer para ir até lá, mas não conhecia o caminho. Os pontos de referência não se assemelhavam aos símbolos do mapa e começou a vacilar. Com o tempo, achou que tinha de haver alguma coisa errada, pois tudo parecia esquisito.

            Volta e meia cruzava por um acampamento de robôs, mas quando se decidiu a pedir informações, não viu mais nenhum. Os veículos que passavam nunca paravam.

            Andrew ficou de pé no meio da estrada, sem ânimo para nada, praticamente imóvel, quando avistou dois homens aproximando-se através do campo.

            Virou-se para eles, que mudaram de rumo para vir a seu encontro. Pouco antes falavam em voz alta. Tinha escutado a voz deles. Mas agora estavam calados. Possuíam o aspecto que Andrew classificava de indefinição humana; e eram jovens, mas não em demasia. Vinte anos, talvez? Andrew nunca conseguia avaliar a idade dos homens.

            - Por favor, qual é o caminho para ir à biblioteca municipal?

            Um deles, o mais alto dos dois, que usava chapéu que lhe aumentava, de modo quase grotesco, ainda mais a estatura, disse, não para Andrew, mas para o outro:

            - É um robô. O outro tinha nariz inchado e pálpebras caí- das. Respondeu, não para An w, mas para o companheiro:

            - E anda vestido. O mais alto estalou os dedos. - É o robô alforriado. Tem um, lá na casa do velho Martin, que não é de ninguém. Por que será que anda vestido?

            - Pergunta pra ele - aconselhou o do nariz inchado.

            - Você é o robô dos Martins? perguntou o mais alto.

            - O meu nome é Andrew Martin, senhor - respondeu Andrew.

            - Ótimo. Tira essa roupa. Robô não anda vestido. - Virou-se para o outro. - Que coisa mais desagradável. Olha só pra ele!

            Andrew hesitou. Fazia tanto tempo que não recebia ordens naquele tom de voz que os circuitos da Segunda Lei ficaram momentaneamente interrompidos.

            - Tira essa roupa - repetiu o mais alto. - Faz o que estou te mandando.

            Andrew começou a se despir devagar. Deixa cair e pronto - disse o mais alto.

            Se não é de ninguém - observou o narigudo -, bem que podia ser nosso.

            - Seja lá como for - continuou o mais alto quem é que vai reclamar com o que a gente fizer? Não estamos danificando a propriedade de ninguém. - Virou-se para Andrew. - Te coloca de ponta-cabeça aí no chão.

            - A cabeça não é para... - começou Andrew. - Estou dando uma ordem. Se não sabe como

            se faz, não custa nada tentar.

            Andrew hesitou novamente, depois se curvou para apoiar a cabeça no chão. Tentou erguer as pemas, mas desabou com toda a força.

           - Fica deitado aí - mandou o mais alto. Virou-se para o outro: - A gente podia desmontar esse troço. Nunca desmontou um robô?

            - Será que ele deixa?

            - Como é que pode impedir?

            Não havia jeito de Andrew impedi-los, se a ordem fosse dada de maneira tão categórica que

            ele não conseguisse resistir. A Segunda Lei de obediência tinha prioridade sobre a Terceira, de auto- defesa. Em todo caso, não podia se defender sem o risco de ferir os dois, o que implicava infringir a Primeira. Ao pensar nisso, sentiu cada unidade móvel se contrair de leve e se arrepiou todo enquanto permanecia imóvel.

            O mais alto se aproximou e o empurrou com o pé,

            É pesado. Acho que vamos precisar de algumas ferramentas para fazer o serviço.

            - A gente podia encarregar ele mesmo de fazer isso - sugeriu o narigudo. - Ia ser engraçado ficar assistindo.

            - É - concordou o mais alto, pensativo mas vamos tirá-lo daqui da estrada. Se alguém aparecer...

            Tarde demais. Alguém, de fato, apareceu. Era George. De onde estava caído, Andrew viu um pequeno vulto assomando a pouca distância. Gostaria de lhe fazer um sinal qualquer, mas a última ordem que recebera tinha sido: "Fica deitado aí!"

            George veio correndo e chegou meio ofegante. Os dois rapazes recuaram um pouco, à espera, para ver no que dava.

            - Andrew, o que foi que aconteceu? - perguntou George, ansioso.

            - Está tudo bem, George - respondeu Andrew. - Então te levanta. Que houve com a tua roupa?

            - Este robô é teu, cara? - perguntou o mais alto,

            George se virou bruscamente,

            - Não é de ninguém. Que foi que aconteceu por aqui?

            - A gente só pediu com bons modos para ele tirar a roupa. O que é que você tem com isso, se ele não te pertence?

            George se virou para Andrew.

            - O que é que eles estavam fazendo, Andrew? - Pretendiam, não sei como, me desmontar. Estavam prontos para me levar para um lugar tranqüilo para mandar que eu mesmo me desmontasse.

            George olhou para os dois rapazes com o queixo trêmulo.

            Os dois não recuaram nem um passo. Sorriam. - O que é que você pretende fazer, gorducho? - perguntou, com ar de deboche o mais alto. - Vai bater na gente?

            - Não - respondeu George. - Não é preciso. Este robô já está na nossa família há setenta e cinco anos. Ele nos conhece e nos preza mais do que tudo. Eu já vou dizer a ele que vocês dois estão ameaçando minha vida e que planejam me matar. Vou pedir para me defender. Se tiver de escolher entre mim e vocês, eu saio ganhando. Sabem o que vai acontecer quando ele começar a bater em vocês?

            Os dois já estavam recuando aos poucos, com cara de medo.

            - Andrew - disse George com energia -, eu estou em perigo e estes dois caras querem me agredir. Avança em cima deles!

            Andrew obedeceu e os dois não hesitaram. Saíram correndo.

            - Está bem, Andrew, te acalma - disse George.

            Parecia abatido. Já havia passado da idade em que poderia encarar a possibilidade de se atra- car com um homem mais moço, que dirá dois.

            - Eu não ia poder machucar eles, George. Era evidente que não estavam agredindo você.

            - Não mandei que você agredisse. Apenas pedi para avançar. O medo deles se encarregou do resto.

            - Como é que podem ter medo de um robô? - É uma doença da humanidade, que até hoje

            ainda não tem cura. Mas deixa pra lá. Que diabo você anda fazendo por aqui, Andrew? Ainda bem que encontrei o teu bilhete. Já estava pensando em dar meia-volta e alugar um helicóptero quando te achei. Que idéia foi essa de ir à biblioteca? Eu teria trazido tudo quanto é livro que você precisasse.

            - Eu sou um... - começou Andrew. - Robô alforriado. Sim, sim. Tudo bem. Mas o que é que você pretendia fazer lá na biblioteca?

          - Eu quero conhecer melhor os seres humanos, o mundo, tudo, em suma. E os robôs também, George. Estou com vontade de escrever uma história sobre eles.

            George então passou o braço pelo ombro do autômato.

            - Bom, vamos pra casa. Mas antes pega a tua roupa. Andrew, existe um milhão de livros sobre robótica e todos incluem histórias da ciência. O mundo inteiro já está ficando saturado, não só de robôs, mas de informações sobre eles.

            Andrew sacudiu a cabeça, gesto humano que ultimamente passara a adotar.

            - Mas não é uma história da robótica, George. Uma história de robôs, escrita por um robô.. Eu quero explicar como eles encaram tudo o que aconteceu desde que começaram a trabalhar e a viver na Terra.

            George arqueou as sobrancelhas, mas não falou mais nada que tivesse relação direta com o assunto.

           

            Filhinha acabava de completar oitenta e três anos, sem demonstrar a menor falta de energia ou determinação. Usava a bengala mais para gesticular do que para se apoiar nela.

            Escutou a descrição do incidente com verdadeira fúria de indignação.

      - George, que horror. Quem eram esses mal-feitores?

            - Sei lá. Que diferença faz? Afinal, não causaram dano nenhum.

            - Mas poderiam ter causado. Você é advogado George; e, se está bem de vida, é exclusivamente graças aos talentos de Andrew. Foi o dinheiro que ele ganhou que serviu de base para tudo o que a gente tem. Ele propicia a estabilidade desta família e não permito que seja tratado feito brinque- do de dar corda.

            - O que é que você quer que eu faça, mamãe? - perguntou George.

            - Já disse que você é advogado. Ficou surdo? Descubra um jeito de entrar com uma ação para forçar os tribunais regionais a se manifestarem a favor dos direitos dos robôs e a obrigarem o congresso a aprovar todas as leis necessárias. Leve a história toda até o Tribunal Mundial, se for preciso. Vou ficar de olho, George, e não vou tolerar nenhuma omissão da tua parte.

            Falava sério e, portanto, o que começou como simples manobra para acalmar uma temível anciã virou questão complicada, com suficientes meandros legais para tomá-la interessante. Como sócio fundador da Feingold & Martin, George traçou a estratégia. Mas deixou o trabalho propriamente dito nas mãos dos sócios mais recentes, reservando a parte principal para o filho, Paul, que também participava da firma e apresentava relatórios diários, pontualmente, à avó. Ela, por sua vez, debatia o caso todos os dias com Andrew.

            Andrew se interessou ao máximo. Foi adi- ando, cada vez mais, o trabalho no livro que pretendia escrever sobre robôs, dedicando-se a estudar a fundo os argumentos legais e até, às vezes, oferecendo sugestões bem modestas.

            - O George me contou, naquele dia em que fui atacado, que os homens sempre tiveram medo de robôs - comentou certa vez. - Enquanto persistir isso os tribunais e os órgãos legislativos não vão se dedicar com afinco à nossa causa. Será que não se podia fazer alguma coisa para mudar a opinião pública?

            Por isso, enquanto Paul se concentrava no tribunal, George passou a ocupar as plataformas públicas. Isso lhe dava a vantagem de se mostrar à vontade, chegando inclusive ao extremo de adotar o novo estilo confortável de roupas, que apelidou de "neo-romano".

            - Vê se não tropeça na toga quando estiver no palco, papai - advertiu Paul.

            - Farei o possível - retrucou George, meio sem graça.

            Numa ocasião discursou perante a convenção anual de editores de noticiários holográficos, dizendo, em parte:

            - Se, em virtude da Segunda Lei, podemos exigir de qualquer robô uma obediência irrestrita em todos os sentidos não relacionados com prejuízos para os seres humanos, então qualquer homem, qualquer criatura humana dispõe de um poder assustador sobre qualquer robô, qualquer autômato. Especialmente, uma vez que a Segunda Lei se sobrepõe à Terceira, qualquer ser humano pode usar a lei da obediência para superar a da autodefesa. Ele pode ordenar qualquer robô a se danificar a si próprio ou até a se destruir por qualquer motivo, ou mesmo sem motivo nenhum.

            "Isso é  justo? Alguém trataria um animal dessa maneira? Inclusive um objeto inanimado que nos prestou serviços tem direito à nossa consideração. E um robô não é insensível, não é bicho. Sabe raciocinar perfeitamente, a ponto de falar conosco, discutir conosco, brincar conosco. Será que podemos tratá-lo como amigo, trabalhar junto com ele, sem lhe dar em troca uma parte dos frutos dessa amizade, dos benefícios do trabalho em conjunto?

            "Se o homem tem direito de dar qualquer ordem a um robô que não implique prejuízo para o ser humano, deveria também ter a decência de já- mais lhe dar qualquer ordem que acarretasse prejuízo para outro robô, a não ser que a segurança humana exija isso de modo absoluto. Todo grande poder é acompanhado de grandes responsabilidades, e se os robôs tem três Leis para proteger os homens, seria pedir muito que os homens tivessem uma ou duas leis para proteger os robôs?"

            Andrew tinha razão. Foi a batalha para conquistar a opinião pública que terminou abrindo as portas dos tribunais e dos órgãos legislativos. Por fim, aprovaram uma lei que estipulava condições para a proibição de ordens prejudiciais a robôs. Havia inúmeras exceções e as, penas relativas às infrações eram completamente inadequadas, mas o princípio ficou estabelecido. A homologação final da Legislatura Mundial ocorreu no dia da mor- te de Filhinha.

            Não por coincidência. Durante os últimos debates, Filhinha se agarrou desesperadamente à vida e só se entregou ao inevitável quando recebeu a notícia da vitória. Seu último sorriso foi para Andrew.

            - Você foi muito bom para nós, Andrew - foram as suas últimas palavras.

            Morreu segurando a mão dele, enquanto o filho e a nora, em companhia dos netos, se mantinham a uma distância respeitosa dos dois.

           

            Andrew esperou pacientemente que o robô- recepcionista desaparecesse na sala intima. O funcionário poderia ter usado o interfone e holográfico, mas estava indubitavelmente perturbado por ter de lidar com outro robô, em vez de uma criatura humana.

            Andrew aproveitou para pensar um pouco no assunto: será que dá para se usar "desrobotizado" como analogia de "desvirilizado" ou essa última palavra se tomou um termo metafórico suficientemente desligado do seu sentido literal para ser aplicado aos robôs - ou às mulheres, no mesmo caso? Esse tipo de problema lhe surgia freqüentemente quando trabalhava no livro sobre robôs. A necessidade de criar frases para dar vazão a todas as complexidades tinha, sem dúvida, aumentado o seu vocabulário.

            De vez em quando alguém entrava na sala, por pura curiosidade, e ele não procurava evitar o olhar, retribuía bem calmo, até que o bisbilhoteiro terminava disfarçando e indo embora.

            Paul Martin finalmente apareceu. Parecia surpreso - ou pelo menos essa seria a impressão de Andrew, se pudesse interpretar sem possibilidade de erro a expressão que ele fez. Paul resolvera adotar a maquiagem exagerada, ditada pela moda para ambos os sexos. Apesar de definir melhor e realçar os traços bastante delicados de Paul, Andrew não gostava daquilo. Tinha descoberto que criticar o comportamento das criaturas humanas, desde que não fosse de modo verbal, não o deixava constrangido. Podia até manifestar a reprovação por escrito. Estava certo de que nem sempre ha- via sido assim.

            - Entra, Andrew. Desculpa te fazer esperar, mas eu estava fazendo uma coisa que precisava terminar. Entra. Você disse que queria falar comi- go, mas eu não sabia que era aqui na cidade.

            - Se você estiver muito ocupado, Paul, posso continuar esperando sem o menor problema.

            Paul olhou de relance para o jogo de sombras que se deslocavam no mostrador da parede, que servia para marcar a hora.

            - Tenho um pouco de tempo livre - disse. - Você veio sozinho?

            - Aluguei um automatomóvel. - Ninguém criou caso? - perguntou Paul, com certa ansiedade.

            - Achei que não criariam. Meus direitos es- tão protegidos.

            Com essa, Paul ficou ainda mais ansioso. - Andrew, eu já te expliquei que a lei é in- flexível, pelo menos na maioria dos casos     ' E, se você continuar insistindo em andar vestido, vai acabar arranjando encrenca, tal como aconteceu da primeira vez.

            - Primeira e única, Paul. Lamento que você tenha ficado aborrecido.

            - Bom, então não se esqueça disto: você é, praticamente, um mito ambulante, Andrew, e uma criatura preciosa demais, sob vários aspectos, para se dar ao luxo de estar se arriscando à toa por aí. Falar nisso, como vai o livro?

            - Já estou quase no fim, Paul. O editor está muito contente. - ótimo! - Não quero dizer que ele esteja necessariamente satisfeito com o livro como tal. Acho que pretende vender muitos exemplares porque foi escrito por um robô e é por isso que ele está contente.

            - O que é perfeitamente humano, a meu ver. - Isso não significa que eu esteja descontente. O motivo da venda pode ser qualquer um, desde que signifique dinheiro e dê para eu gastar um pouco.

            - Vovó te deixou... - Filhinha foi muito generosa e tenho certeza que posso contar com a família para me ajudar ainda mais. Mas estou contando é com os direitos autorais do livro para tomar as minhas próximas providências.

            - Quais são elas? Quero falar com o diretor da U.S. Robots & Mechanical Men Corporation. Já tentei marcar entrevista; mas por enquanto não consegui nada. Como a corporação não quis cooperar comigo para escrever o livro, não me admiro, compreende?

            Paul começou a achar graça. - Cooperação seria a última coisa que você poderia esperar. Eles não fizeram nada quando precisamos deles para a nossa grande luta pelos direi- tos dos robôs. Muito pelo contrário, e o motivo é bem lógico. É só os robôs adquirirem direitos para que as pessoas talvez não queiram mais comprar nenhum.

            - Seja lá como for - insistiu Andrew -, se você ligar para lá, é bem possível que me consiga essa entrevista.

            - Não pense que eles gostam mais de mim do que de você, Andrew.

            - Mas talvez você possa insinuar que falando comigo eles são capazes de suspender qualquer campanha iniciada pela Feingold & Martin para reforçar ainda mais os direitos dos robôs.

            - Mas isso não seria uma mentira, Andrew? - Claro que sim, Paul, e você sabe que eu não posso pregar nenhuma. É por isso que tem de ser você que vai ligar pra lá.

            Ah, quer dizer que, mesmo que você não possa pregar uma mentira, isso não impede de me mandar mentir em seu lugar, não é? Andrew, cada dia que passa você fica mais humano...

           

            Mesmo com um nome como o de Paul, que se podia imaginar influente, não foi fácil marcar a entrevista. Terminou finalmente se realizando. Aí então, Harley Smythe-Robertson, que, pelo lado materno, descendia do fundador da corporação, tendo adotado o hífen para indicar isso, não se mostrou nada satisfeito com a idéia. Em vésperas de se aposentar, havia dedicado todo o seu período de presidência à questão dos direitos dos robôs. Com os ralos cabelos grisalhos colocados no crânio e o rosto sem maquiagem, volta e meia olhava para Andrew com um pouco de hostilidade.

            Andrew iniciou a conversa. - O senhor sabe, há quase um século atrás, Merton Mansky, que trabalhava para esta corporação, me disse que os cálculos matemáticos que orientavam a montagem do comportamento positrônico eram complicados demais para que se pudessem determinar soluções que não fossem apenas aproximativas e que, por conseguinte, não dava para se prever o alcance completo das minhas capacidades.

            - Isso foi há um século atrás. Smythe-Robertson hesitou e depois acrescentou friamente:

            - Como o senhor mesmo disse. Hoje não é mais assim. Os nossos robôs agora são feitos com precisão e recebem treinamento específico para o trabalho a que se destinam.

            - Sim -confirmou Paul, que tinha vindo junto, como disse, para se certificar de que a corporação faria jogo limpo -, com o resultado de que o meu recepcionista tem de ser orientado em todos os pontos quando os acontecimentos se afastam da rotina convencional, até em detalhes insignificantes.

            - Você ficaria muito mais aborrecido se ele começasse a improvisar - retrucou Smythe- Robertson.

            - Quer dizer então que não fabricam mais robôs que nem eu, flexíveis e maleáveis.

            - Exatamente. - Segundo as pesquisas que venho fazendo para escrever o meu livro - continuou Andrew - tudo indica que sou atualmente o robô mais antigo ainda em funcionamento.

            - O mais antigo atualmente - disse Smythe- Robertson -, e em todos os tempos. E que jamais há de existir. Hoje os robôs perdem a utilidade de- pois de vinte e cinco anos. São recolhidos e substituídos por novos modelos.

            - Eles perdem a utilidade depois de vinte anos - frisou Paul, deixando transparecer uma ponta de sarcasmo na voz. - Nesse sentido, Andrew é literalmente fora de série.

            - Na qualidade de robô mais antigo do mundo, e mais flexível também - prosseguiu Andrew, mantendo-se dentro da linha que estipulou para si mesmo -, não sou uma espécie de raridade capaz de merecer tratamento especial por parte da companhia?

            - Absolutamente - protestou Smythe-Robertson, já irredutível. - O próprio fato de ser uma raridade é motivo de constrangimento para a corporação. Se tivesse sido alugado, e não simplesmente vendido, por obra do acaso, há muito tempo já teria sido substituído.

            - Mas a questão é justamente essa - afirmou Andrew. - Sou um robô livre e dono de mim mesmo. Foi por isso que vim aqui, para pedir que vocês me substituam. O que não pode ser feito sem o consentimento do proprietário. Hoje isso se transformou em autorização compulsória, cláusula obrigatória do contrato de locação, mas no meu tempo não era assim.

            Smythe-Robertson parecia simultaneamente espantado e intrigado e se conservou um instante calado. Andrew contemplou o holograma pendurado na parede. Era a máscara mortuária de Susan Calvin, santa padroeira dos roboticistas. Já fazia quase dois séculos que tinha morrido, mas, em conseqüência dos preparativos do livro que estava escrevendo, Andrew a conhecia tão bem que chegava a praticamente acreditar que a tinha conhecido em vida.

            - Como é que eu posso substituir você por você mesmo? - perguntou Smythe-Robertson finalmente. - Uma vez feita a troca, como é que vou entregar o novo robô a você, na qualidade de proprietário, se no próprio ato da troca você deixa de existir?

            E sorriu implacável. - Não há nenhuma dificuldade - atalhou Paul. - A base da personalidade de Andrew está no cérebro positrônico que ele possui e que é a parte que não pode ser substituída sem criar um novo robô. O cérebro positrônico, portanto, é Andrew, o proprietário' Todas as outras partes do corpo robô- tico podem ser trocadas sem afetar a personalidade do robô, e essas outras partes são propriedades do cérebro. Eu diria que o Andrew quer dar ao cérebro dele um novo corpo robótico.

            - Isso mesmo - disse Andrew calmamente. Virou-se para Smythe-Robertson: - Vocês já fabricaram andróides, não é? Robôs com a aparência exterior de homens, tão perfeita que tinham até a mesma contextura da Dele?

            - Fabricamos, sim. Funcionavam muito bem, com pele e tendões fibrosos sintéticos. Não tinham praticamente nenhum componente metálico, a não ser no cérebro, mas eram quase tão resistentes como os robôs feitos de aço. De modo geral, pode-se dizer que eram até mais resistentes.

            Paul se mostrou interessado.

            - Eu não sabia disso. Quantos existem ainda no mercado?

            - Nenhum - respondeu Smythe-Robertson. - Saíam muito mais caros que os modelos de me- tal e uma pesquisa de mercado demonstrou que não teriam aceitação. Pareciam humanos demais.

            Andrew estava impressionado.

            - Mas eu suponho que a corporação continue mantendo a mesma proficiência. E, nesse caso, pediria para ser trocado por um robô orgânico, um andróide.

            Paul levou um susto.

            - Puxa vida! - exclamou. Smythe-Robertson se mostrou ainda mais

            inexorável.

            - Totalmente impossível!

            - Impossível por quê? - retrucou Andrew. - Claro que estou pronto a pagar qualquer preço, desde que seja razoável.

            - Nós não fabricamos andróides.

            - Vocês resolveram parar de fabricar - atalhou logo Paul. - Não é a mesma coisa que não poder fabricar.

            - De qualquer modo - insistiu Smythe- Robertson -, fabricar andróides é agir contra o interesse público.

            - Não existe lei que proíba - afirmou Paul. - Mesmo assim, não fabricamos, nem pretendemos fabricar. Paul pigarreou. - Mr. Smythe-Robertson – disse. Andrew é um robô livre, protegido pela lei que garante os direitos dos robôs. O senhor sabe muito bem disso, não sabe?

            - E como... - Este robô, na qualidade de alforriado, gosta de andar vestido. O resultado é se ver freqüentemente humilhado por pessoas descorteses, apesar da lei que proíbe a humilhação de robôs. Toma-se difícil processar por insultos vagos, que não gozam da reprovação geral por parte de quem deve decidir em matéria de culpa e inocência.

            - A U.S. Robots compreendeu perfeitamente isso, logo de início. A firma de seu pai, infelizmente, não.

            - Meu pai já morreu, mas pelo que vejo nos encontramos diante de um caso de insulto manifesto visando a um alvo inconfundível.

            - Do que é que você está falando? - perguntou Smythe-Robertson.

            - O meu constituinte, Andrew Martin - que a partir deste momento passa a ser meu constituinte -, é um robô livre que tem todo o direito de solicitar à U.S. Robots & Mechanical Men Corporation que seja substituído, serviço prestado pela corporação a qualquer proprietário cujo robô já tenha mais de vinte e cinco anos. Aliás, convém notar que a corporação insiste nessa substituição.

            Paul sorria,' mostrando-se completamente senhor da situação.

            - O cérebro positrônico do meu constituinte - prosseguiu - é o proprietário do corpo dele, que, sem sombra de dúvida, tem mais de vinte e cinco anos. O cérebro positrônico exige a substituição do corpo e se prontifica a pagar qualquer soma razoável em troca de um corpo de andróide. Se vocês se recusarem a aceitar o pedido, o meu constituinte terá de processá-los pela humilhação sofrida.

            Embora a opinião pública, em circunstâncias normais, não apoie esse tipo de reivindicação, permita-me lembrar-lhe que a U.S. Robots não desfruta da simpatia do público em geral. Até quem mais usa e lucra com os robôs desconfia da corporação. Pode ser que seja um resquício da época em que os autômatos eram objeto dos piores temores. Ou talvez mero despeito pelo poder e riqueza da U.S. Robots, que detém um monopólio de âmbito mundial. Seja qual for a causa, o fato é que esse despeito existe. Tenho impressão de que vocês não gostariam de enfrentar a possibilidade de uma ação legal, ainda mais que o meu constituinte possui grandes recursos e viverá por muitos e muitos séculos, não tendo, portanto, motivo nenhum para se esquivar de uma batalha judicial que se prolongue indefinidamente.

            Smythe-Robertson fora aos poucos avermelhando.

            - Você está querendo forçar.. - Não estou forçando nada - atalhou Paul. - Se recusarem a atender ao pedido perfeitamente razoável do meu constituinte, têm toda a liberdade de assim proceder e não nos resta outra alternativa além de ir embora sem dizer mais nenhuma palavra. Mas temos também todo o direito de iniciar uma ação, que vocês, com toda a certeza, acabarão perdendo.

            - Bom... - Estou vendo que terminarão concordando - disse Paul. - Talvez ainda hesitem, mas no fim hão de ver que é a melhor solução. Permita-me, pois, deixar bem claro o seguinte: se, durante o transplante do cérebro positrônico que se encontra atualmente no crânio do meu constituinte, para outro corpo orgânico, ocorrer algum dano, por menor que seja, fique certo de que não descansarei enquanto não arrasar com a corporação por completo. E, caso for preciso, tomarei todas as providências possíveis para mobilizar a opinião pública contra a U.S. Robots, se surgir um arranhão sequer na essência de platinirídio que determina o comportamento de meu constituinte. - Virou-se para Andrew e perguntou: - Você está de acordo com tudo o que acabo de falar, Andrew?

            Andrew esperou um minuto inteiro para dar a resposta. Aquilo equivalia a concordar com a mentira, a chantagem, a mortificação e a humilhação de um ser humano. Mas sem o menor dano físico, disse consigo mesmo, sem o menor dano físico.

            Conseguiu, por fim, emitir um "sim" quase inaudível.

           

            Se sentiu como se estivesse sendo fabricado de novo. Durante dias, depois semanas e, finalmente, meses, Andrew teve a vaga sensação de que não era mais o mesmo e as decisões mais banais passaram a ser enfrentadas com hesitação.

            Paul ficou possesso.

            - Eles estragaram você, Andrew. Teremos de entrar com uma ação!

            Andrew falava bem devagar.

            - Não ... faça isso. Você nunca vai conseguir .. provar ... que houve... hum...

      - Premeditação?

            - É. Além disso... já estou  ... me sentindo mais  ... forte, melhor. É o tr... tr.. tr ...

            - Tremor?

            - Não, trauma. Afinal, nunca houve uma op... op... op... assim antes.

            Andrew podia sentir o cérebro dentro do crânio. Não existia mais ninguém que fosse capaz de uma proeza dessas. Sabia que estava bem, e durante os meses que levou para aprender direito a integração do jogo positrônico com a coordenação de movimentos passava horas diante do espelho.

            Não havia ficado totalmente humano! O rosto estava rígido demais e os gestos eram muito deliberados. Não possuíam a fluência despreocupada e livre das criaturas humanas, que talvez viesse com o correr do tempo. Mas pelo menos já podia andar vestido sem a anomalia ridícula de um rosto de metal que não combinava com aquilo.

            - Vou voltar ao trabalho - anunciou um dia. Paul riu.

            - Isso quer dizer que você já está bem. O que é que pretende fazer? Escrever outro livro?

            - Não - disse Andrew, bem sério. - Já vivi muito tempo para me deixar empolgar por uma só carreira, sem nunca mudar de interesse. Houve época em que era, acima de tudo, artista plástico e posso perfeitamente voltar a ser isso. E houve época em que fui historiador, e nada me impede de continuar sendo. Mas agora quero ser biólogo de robôs.

            - Psicólogo, você quer dizer. - Não. Isso implicaria no estudo dos cérebros positrônicos e de momento não sinto a menor vontade de me dedicar a isso. Um biólogo de robôs, a meu ver, se preocuparia com o funcionamento do corpo ligado a esse cérebro. - Não seria um roboticista?

            - O roboticista trabalha com o corpo metálico. Eu estaria estudando um corpo andróide orgânico, de que sou o único possuidor, ao que me consta.

            - Está limitando o seu campo de ação - disse Paul, pensativo. - Como artista plástico, toda concepção te pertence; como historiador, você lida principalmente com robôs; como biólogo de robôs, vai lidar apenas consigo mesmo.

            Andrew concordou com a cabeça. - Ao que tudo indica.

            Andrew teve de começar bem do início, pois não entendia nada de biologia comum e muito pouco de ciência. Tomou-se uma figura conheci- da nas bibliotecas públicas, onde pesquisava os índices eletrônicos por horas a fio, não chamando mais a atenção pelo fato de andar vestido. As raras pessoas que sabiam que ele era robô não interferiam de jeito nenhum em sua vida.

            Montou laboratório num anexo que construiu junto à casa; e sua biblioteca foi também ficando cada vez maior.

            Os anos passaram, até o dia em que Paul o procurou e disse:

            - Que pena que você interrompeu a história que estava escrevendo sobre os robôs. Ouvi dizer que a U.S. Robots mudou por completo de orientação.

            Paul havia envelhecido e os olhos cansados tinham sido trocados por células fotópticas.. Nesse sentido estava mais parecido com Andrew.

            - O que foi que fizeram? perguntou  Andrew

            - Estão fabricando computadores centrais, cérebros positrônicos gigantescos mesmo, que se comunicam com um número de robôs que varia de doze a mil, através de microondas. Os robôs, propriamente ditos, não têm cérebro nenhum. Constituem os membros do cérebro gigante, sendo porém fisicamente independentes.

            - Isso produz maior eficiência? - A US. Robots afirma que sim. Mas Smythe-Robertson estabeleceu a nova orientação antes de morrer, e tenho impressão de que tudo não passou de uma manobra por tua causa. A U.S. Robots resolveu não fazer mais nenhum robô que lhes dê o tipo de problema que você criou e, por isso, estão separando o cérebro do corpo. Assim, nenhum robô poderá trocar de corpo - que não terá nenhum cérebro para querer coisa alguma.

            "A influência que você exerceu na história dos robôs", prosseguiu Paul, "é espantosa, Andrew. Foi o teu talento artístico que encorajou a U.S. Robots a fabricar autômatos mais exatos e especializados; foi a tua liberdade que provocou a determinação do princípio dos direitos robóticos; foi a tua insistência em ter um corpo andróide que levou a U.S. Robots a optar pela separação entre o cérebro e o corpo."

            Andrew ficou pensativo. - Estou vendo que no fim a corporação vai acabar produzindo um cérebro enorme para controlar vários bilhões de corpos robóticos. Vão colocar todos os ovos no mesmo balaio. É perigoso. Nada aconselhável.

            - Acho que você tem razão - disse Paul -, mas desconfio que isso só vai acontecer daqui a um século, no mínimo, e não estarei mais vivo para ver. Aliás, duvido muito que esteja vivo no ano que vem. 

            - Paul! - exclamou Andrew, preocupado. Paul deu de ombros.

            - Os homens são mortais, Andrew. Não são como você. Não faz muita diferença, mas considero importante esclarecer uma coisa: eu sou o último representante humano da família Martin. O dinheiro que controlo pessoalmente ficará depositado num fundo em teu nome e, no que diz respeito ao que o futuro tem de previsível, você não precisa mais se preocupar com problemas financeiros.

            - Não há necessidade de nada disso - afirmou Andrew, articulando as palavras com dificuldade.

            Durante todo 1esse tempo, ainda não tinha se conformado com as mortes sucessivas da família Martin.

            - Nada de discussões. É assim que será. Agora, no que é que você está trabalhando?

      - Num sistema que permita que os andróides - como eu - recebam energia da combustão de hidrocarbonetos, em vez da de células atômicas.

      Paul arqueou as sobrancelhas.

      - Para que possam respirar e comer?

      - É.

            - Há quanto tempo você vem trabalhando nisso ?

            - Já faz muito, mas acho que finalmente projetei uma câmara de combustão apropriada para o fracionamento catalisado, controlado.

            - Mas a troco de quê, Andrew? A célula atômica é, sem a menor sombra de dúvida, infinita- mente superior.

      - Em certo sentido, talvez. Mas não é humana.

     

      Levou tempo, mas isso Andrew tinha de sobra. Em primeiro lugar, não queria fazer nada enquanto Paul não morresse em paz. Com a morte do bisneto do patrão, Andrew se sentiu muito mais exposto à hostilidade do mundo, e por esse motivo se determinou a não se afastar do caminho que havia escolhido.

      Não estava, porém, realmente sozinho. A morte de um dos sócios não comprometia o funcionamento da Feingold & Martin, pois uma firma tem tanta possibilidade de extinção quanto um robô.

      A banca de advocacia mantinha suas diretrizes, que seguia friamente. Com o seu fundo e o da firma jurídica, Andrew continuou a ser rico. Fm troca dos elevados honorários e comissões anuais, a Feingold & Martin defendia os aspectos legais da nova câmara de combustão. Mas, quando chegou a hora de Andrew visitar a U.S. Robots & Mechanical Men Corporation, ele foi sozinho. Já tinha ido uma vez com o patrão e outra com Paul, Agora, na terceira, ia só, na qualidade de homem.

      A U.S. Robots havia mudado. A fábrica de produção propriamente dita se transformara num imenso posto espacial, tal como acontecera com um número cada vez maior de indústrias. Isso acarretava a desativação de vários robôs. A Teffa estava virando unia espécie de estacionamento, com a população de um bilhão de habitantes estabilizada e talvez não mais de trinta por cento de um número pelo menos equivalente de robôs dotados de cérebros autônomos.

      O diretor do departamento de Pesquisas era Alvin Magdcscu, de pele e cabelos escuros, com pequeno cavanhaque, e usando acima da cintura apenas a faixa ditada pela moda. Quanto a Andrew, trajava-se ainda com o temo completo de muitas décadas atrás.

      Magdescu apertou a mão do visitante. - Já o conhecia de nome, lógico, e estou mui- to satisfeito por conhecê-lo pessoalmente. O senhor é o nosso produto mais famoso e é uma lástima que o velho Smythe-Robertson tivesse feito tanta oposição. Poderíamos ter feito muita coisa pelo senhor.

      - E ainda podem - disse Andrew.

      - Não creio, não. Perdemos a oportunidade, Tivemos robôs aqui na Terra durante mais de um século, mas a situação já está mudando. Eles agora vão voltar ao espaço e os que ficarem aqui não terão mais cérebros.

      - Mas ainda resto eu, que pretendo ficar aqui na Terra.

      - É verdade, mas o senhor quase não tem mais aparência de autômato. Qual é o seu novo pedido?

      - O de ter cada vez menos características de robô. Já que continuo a ser orgânico, gostaria de contar com uma fonte de energia que também fosse. Trouxe comigo os planos...

      Magdescu não se apressou em examiná-los. Talvez a princípio até estivesse inclinado a fazer isso, mas se empertigou todo e resolveu ganhar tempo. A, certa altura comentou:

      - Está fantástico de tão bem-feito. De quem foi a idéia?

      - Minha - respondeu Andrew.

      Magdescu levantou os olhos bruscamente para ele e depois continuou: - Isso representaria uma transformação completa do seu corpo, e em caráter experimental, uma vez que jamais se tentou fazer antes uma coisa destas. Não aconselho a empreendê-la. Fique do jeito que está.

      Os meios de expressão fisionômica de Andrew eram limitados, mas a voz traduziu claramente a sua impaciência:

      - Dr. Magdescu, o senhor está completamente enganado. Não lhe resta outra alternativa senão atender ao meu pedido. Se esses dispositivos podem ser colocados no meu corpo, nada impede que se proceda de maneira idêntica com corpos humanos. A tendência a prolongar a vida humana com recursos protéticos já é bem conhecida. Não existem dispositivos melhores do que os que projetei ou estou projetando.

      "Por sinal, registrei as patentes de invenção por intermédio da firma Feingold & Martin. Somos bem capazes de entrar sozinhos no ramo e de aperfeiçoar o tipo de dispositivos protéticos que no fim acabarão produzindo seres humanos com muitas das características dos robôs. Nesse caso, os seus negócios só teriam a perder.”

      "Se, porém, me operassem agora e concordassem em fazer o mesmo no futuro, em circunstâncias idênticas, teriam licença para utilizar as patentes e controlar a tecnologia dos robôs e da prótese dos seres humanos. A licença inicial só será dada, naturalmente, após o êxito completo da primeira operação e de passar bastante tempo para demonstrar que foi, de fato, um êxito."

      Andrew quase nem se sentiu constrangido com as condições rigorosas que estava estipulando para uma criatura humana. Estava aprendendo a raciocinar que o que parecia crueldade podia, no fim, se transformar em bondade.

      Magdescu ficou atônito.

      - Não estou em condições de resolver uma coisa destas. Trata-se de uma decisão que só pode ser tomada em assembléia geral. E isso demora bastante.

      - Posso esperar dentro de um prazo que seja razoável - declarou Andrew -, mas não mais do que isso.

      E pensou, com satisfação, que o próprio Paul não teria se saído melhor do que ele.

     

      O tempo necessário foi de fato razoável e a operação teve grande êxito.

      - Me opus muito a essa operação, Andrew - disse Magdescu -, mas não pelos motivos que você possa imaginar. Não tinha absolutamente nada contra a experiência, desde que fosse feita noutra pessoa. O que eu não queria, de maneira alguma, era arriscar o seu cérebro positrônico. Agora que você dispõe de um comportamento positrônico combinado com o de nervos simulados, talvez ficasse difícil recuperar o cérebro intacto, se o corpo não resistisse à cirurgia.

      - Eu depositava uma confiança total na competência da equipe da U.S. Robots - disse Andrew. - E agora já posso comer.

      - Bem, você pode tomar azeite de oliva. O que vai exigir limpezas esporádicas da câmara de combustão, como já te explicamos. Um detalhe meio incômodo, a meu ver.

      - Talvez, se eu não contasse com outros aperfeiçoamentos. Uma limpeza feita por mim mesmo é perfeitamente possível. Estou, aliás, trabalhando num dispositivo que se encarregará da alimentação sólida que, como é de esperar, há de conter frações que não sejam combustíveis; matéria indigesta, por assim dizer, que terá de ser expelida.

      - Teria, então, de inventar um ânus. - Ou coisa parecida.

      - Que mais, Andrew ... ? - Tudo, simplesmente. - Genitália também?

      - Desde que se enquadre em meus planos. Meu corpo é uma tela em que pretendo criar um...

      Magdescu esperou que ele completasse a frase e, ao ver que não ia conseguir, sugeriu:

      - Um homem?

      - Veremos - disse Andrew.

      - Que ambição mais sem graça, Andrew. Você vale muito mais do que um homem. Só teve a perder, desde o momento em que optou por ser tornar orgânico.

      - Meu cérebro não sofreu nenhum prejuízo. - Tem razão. Admito. Mas, Andrew, todos os novos cantinhos em matéria de dispositivos protéticos que se abriram com o registro de tuas patentes estão sendo explorados com o teu nome. Você é reconhecidamente o inventor e está recebendo todas as homenagens por causa disso; o que é perfeitamente justo. Para que continuar colocando o teu corpo em risco?

      Andrew não respondeu. As homenagens se sucediam. Foi acolhido como membro de várias associações eruditas, inclusive uma dedicada à nova ciência que instituíra - que chamara de robobiologia, que acabou sendo conhecida como proteselogia. No sesquicentenário de sua fabricação, a U.S. Robots ofereceu-lhe um jantar de gala. Se Andrew percebeu alguma ironia na homenagem, não demonstrou.

      Alvin Magdescu, a essa altura já aposenta- do, reapareceu para presidir a cerimônia. Estava com noventa e quatro anos e continuava vivo graças também aos dispositivos protéticos que, entre outras coisas, preenchiam as funções do fígado e dos rins. O jantar chegou ao clímax quando Magdescu, depois de breve e emocionado discurso, ergueu a taça para brindar o Robô Sesquicentenário.

      Andrew tinha remodelado os tendões do rosto a ponto de poder exibir uma variedade de emoções humanas, mas passou toda a cerimônia com o semblante solenemente impassível. Não gostou de ser chamado de Robô Sesquicentenário.

     

      Foi a proteselogia que, finalmente, levou Andrew para longe da Terra. Nas décadas subseqüentes às comemorações do sesquicentenário, a Lua se transformou num mundo mais terrestre que a Terra em todos os senti- dos, menos na atração da gravidade; e em suas cidades subterrâneas se concentrava uma população relativamente grande. Os dispositivos protéticos usados por lá precisavam considerar a força de gravidade menor. Andrew passou cinco anos na Lua trabalhando com proteselogistas locais para adquirir condições de adaptação ideais. Nas horas de folga, perambulava no meio dos habitantes robôs, de quem obtinha, sem exceção, a mesma solicitude que teriam com uma criatura humana.

      Voltou para uma Terra comparativamente monótona e calma, e visitou o escritório da Feingold & Martin para comunicar seu regresso.

      O diretor em exercício da firma, Simon DeLong, se surpreendeu.

      - Já sabíamos que você ia voltar, Andrew - ele por pouco não disse Mr. Martin -, mas não esperávamos que isso acontecesse antes da semana que vem.

      - Fiquei impaciente - explicou Andrew, todo animado. Estava ansioso para entrar logo no assunto. - Na Lua, Simon, eu era encarregado de uma equipe de pesquisa de vinte cientistas humanos. Dava ordens que ninguém discutia. Os robôs lunares me tratavam como se eu fosse uma criatura humana. Por que, então, não posso ser homem?

      Os olhos de DeLong se mostraram cautelosos.

      - Meu caro Andrew, como você mesmo acaba de explicar, tanto os robôs como os homens te trataram COMO se você fosse humano. Em última análise, portanto, você já é..

      - Em última análise não basta. Não só quero que me tratem como homem, mas que também seja juridicamente considerado como tal. Quero ser homem no sentido legal.

      - Isso já é outra coisa - retrucou DeLong. - Aí já estamos entrando no terreno do preconceito humano e do fato incontestável que, por mais que pareça, você não é homem.

      - Como que não sou? - reclamou Andrew. - Tenho aspecto de homem e órgãos equivalentes aos de um ser humano. Que, aliás, são idênticos aos de certas criaturas que têm de usar próteses. A minha contribuição artística, literária e científica para a cultura humana, tão importante quanto a de qualquer homem contemporâneo. Que mais se pode exigir? - Eu, pessoalmente, não exigiria mais nada.

      O problema é que seria indispensável um ato da Legislatura Mundial para te definir como ser humano. E, para falar com franqueza, acho difícil que isso venha a acontecem

      - Com quem eu poderia falar lá na Legislatura?

      - Com o Presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia, talvez.

      - Você me arranja uma entrevista? - Mas não é preciso nenhum intermediário. Na posição em que você está, pode...

      - Não. Eu quero que você se encarregue disso. - Andrew nem percebeu que estava dando uma ordem categórica a um ser humano, de tão acostumado a fazer isso que tinha ficado na Lua. - Quero que ele saiba que a firma Feingold & Martin vai me apoiar nisso até o fim.

      - Bem, agora... - Até o fim, Simon. Durante cento e setenta e três anos, de um jeito ou de outro, contribuí mui- to para esta firma. Antigamente tinha certas obrigações com participantes individuais da empresa. Hoje não tenho mais. Agora a situação praticamente se inverteu e faço questão de cobrar a dívida.

      - Vou ver o que posso fazer - disse DeLong.

     

      O Presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia provinha da Ásia Oriental e era mulher. Chamava-se Chee Li-hsing e os trajes transparentes que usava - encobrindo o queria encobrir só pelo brilho - davam a impressão de que andava envolta em plástico.

      - Eu compreendo que você queira ter todos os direitos humanos - disse ela. - A história também registra momentos em que populações inteiras lutaram para conquistar a plenitude dos direi- tos humanos. Mas quais são os que você acha que lhe faltam9

      - Uma coisa bem simples, como, por exemplo, o meu direito à vida - afirmou Andrew. - Um robô pode ser destruído a qualquer hora.

      - Com o homem acontece o mesmo.

      - Sim, mas para que seja executado existem procedimentos legais. E para a minha destruição não há necessidade de processo nenhum. Basta uma ordem, dada por autoridade competente, e estou perdido. Depois... depois...

      Andrew fez um esforço desesperado para não demonstrar qualquer sinal de que estivesse implorando alguma coisa, mas se deixou trair por esgares faciais - tão cuidadosamente programados quando foi feito - e pelo tom de voz.

      - Na verdade, o que eu quero é ser homem. Venho sonhando com isso há seis gerações de seres humanos.

      Li-hsing contemplou-o com a maior compreensão nos olhos escuros.

      - A legislatura pode promulgar uma lei que o declare como tal. Querendo, pode até decretar que uma estátua de pedra seja considerada como pessoa humana. Mas a possibilidade de que isso aconteça é tão remota no primeiro como no segundo caso. Os congressistas são humanos como o resto da população, e sempre existe aquele elemento de desconfiança em relação aos robôs.

      - Mesmo hoje em dia? - Mesmo hoje em dia. Todos nós estaríamos de acordo quanto ao fato de você fazer jus à condição humana, e no entanto sempre haveria o medo de estabelecer um precedente indesejável.

      - Que precedente? Sou o único robô livre que existe, o único no gênero, e nunca haverá outro, Pode consultar a U.S. Robots.

      - "Nunca" é uma palavra muito arriscada, Andrew, ou, se prefere, Mr. Martin, uma vez que terei o maior prazer em considerá-lo, pessoalmente, como homem. Mas vai ver que a maior parte dos congressistas não está tão disposta, como eu, a abrir precedentes, por mais irrelevantes que sejam. Mr. Martin, o senhor conta com todo o meu apoio, mas não posso lhe dar nenhuma esperança. Aliás...

      Recostou-se na poltrona e franziu a testa. - Aliás, se a questão se tomar problemática demais, é bem possível que se manifeste um certo movimento, tanto no seio do órgão legislativo como em outros, no sentido daquela destruição que há pouco mencionou. Eliminá-lo poderia ser a maneira mais simples de solucionar o impasse. Pense bem nisso antes de levar o caso adiante.

      Andrew persistiu: - Será que ninguém se lembra da técnica da proteselogia, uma coisa que desenvolvi praticamente sozinho?

      - Pode parecer crueldade, mas acho que não. Ou, se lembram, será só para usar como argumento contra o senhor. Vão dizer que fez isso apenas em proveito próprio. E que foi parte de um plano para robotizar seres humanos, ou para humanizar os robôs e, em ambos os casos, um plano perverso e pernicioso. O senhor nunca serviu de alvo de uma campanha de ódio político, Mr. Martin; mas lhe garanto que seria objeto de um tipo de difamação simplesmente inacreditável e que encontraria crédulos em quantidade suficiente para inutilizar to- dos os seus esforços. Mr. Martin, deixe sua vida do jeito que está,

      Se levantou da poltrona. Ao lado da figura sentada de Andrew, parecia pequena e quase infantil.

      - Se eu resolver lutar pela minha condição humana, posso contar com seu apoio?

      Ela pensou um pouco e depois respondeu: - Pode... até onde me for possível. Se eu, porém, sentir que esse apoio é capaz de chegar a ameaçar o meu futuro político, talvez tenha de retirá-lo, uma vez que não se trata de uma questão que eu considero prioritária no rol dos meus princípios. Estou tentando ser absolutamente sincera com o senhor.

      - Eu agradeço e não vou lhe pedir mais nada. Pretendo lutar até o fim, sejam quais forem as conseqüências, e só voltarei a lhe solicitar apoio dentro dos limites que a senhora mesma traçou.

     

      Não foi uma luta direta. A Feingold & Martin aconselhou Andrew a ter paciência, coisa que ele, resmungando tristemente, disse que tinha até de sobra. A banca de advocacia iniciou, então, uma campanha para restringir e delimitar a área de ação.

      Entraram com uma petição em que se afirmava que um indivíduo portador de prótese cardíaca ficava isento do pagamento de dívidas, com fundamento na asserção jurídica de que a posse de um órgão robótico o destituía da condição humana e, conseqüentemente, dos direitos constitucionais dos seres humanos. Lutaram de modo hábil e obstina- do para provar esse ponto de vista, perdendo terreno a cada instante, mas sempre de tal forma que a sentença teve de ser a mais abrangente possível e depois, então, apresentaram recurso perante o Tribunal Mundial.

      Isso levou anos e vários milhões de dólares. Proferida a sentença definitiva, DeLong ofereceu o que equivalia a uma comemoração de vitória por causa da derrota legal. Andrew, naturalmente, encontrava- se presente no escritório da corporação, onde se festejava a ocasião.

      - Conseguimos duas coisas, Andrew - disse DeLong -, ambas alvissareiras. Antes de mais nada, ficou determinado que, qualquer que seja a quantidade de membros artificiais que exista no corpo humano, isso não impede que continue a ser considerado como tal. E, em segundo lugar, conquistamos o apoio incondicional da opinião pública a favor de uma ampla interpretação do que vem a ser um homem, já que não há nenhuma criatura que não conte com próteses para se manter viva.

      - E você acha que a Legislatura agora vai me conceder a condição humana? - perguntou Andrew.

      DeLong pareceu meio constrangido. - Quanto a isso, não me atrevo a ser otimista. Ainda resta o único órgão que o Tribunal Mundial usa como critério para determinar a condição humana. Os homens têm um cérebro celular orgânico, ao passo que o dos robôs, quando existe, é positrônico e de platinirídio; e o teu, sem a menor sombra de dúvida, está nesse caso. Não, Andrew, não faça essa cara. Nós não dispomos de meios para copiar o trabalho de um cérebro celular em estruturas artificiais, de maneira tão idêntica ao do tipo orgânico que possa se enquadrar na sentença do tribunal. Nem você mesmo seria capaz de conseguir isso.

      - Que vamos fazer, então? - Continuar tentando, evidentemente. A congressista Li-hsing pretende nos apoiar e um número cada vez maior de outros parlamentares também. O Presidente decerto acompanhará a maioria do corpo legislativo nessa questão.

      - E nós temos a maioria?

      Não. Pelo menos por enquanto. Mas tal- vez tenhamos, se o público permitir que a vontade de uma interpretação mais ampla da condição humana se estenda a você.. Uma possibilidade mínima, reconheço; mas, se você não quiser desistir da luta, a gente tem de contar com ela.

      - Não quero, não.

     

      A congressista Li-hsing tinha envelhecido bastante desde a primeira entrevista concedida a Andrew. Não usava há muito tempo aquelas roupas transparentes. O cabelo estava cortado bem curto e o traje era cilíndrico. Apesar disso, Andrew se conservava ao máximo possível dentro dos limites do bom gosto, fiel ao estilo de roupa que resolvera adotar há um século atrás.

      - Não dá para se fazer mais do que já se fez, Andrew - admitiu Li-hsing. - Vamos tentar outra vez depois do recesso parlamentar, mas, para ser franca, a derrota vai ser inevitável e aí então teremos que desistir por completo. Todos os meus esforços mais recentes só contribuíram para a certeza de que não serei reeleita na campanha para os cargos legislativos.

      - Eu sei - disse Andrew -, e isso me preocupa muito. Você tinha dito que, se a coisa chegas- se a esse ponto, não poderia continuar me apoiando. Por que mudou de idéia?

      - A gente pode mudar de opinião, sabia? De certo modo, abandonar a tua causa se tomou um preço caro do que eu pretendia pagar apenas por um período a mais. E, afinal de contas, faz mais de um quarto de século que ocupo cargos legislativos. Chega.

      - Não há meios de se fazer com que esse pessoal mude de idéia, Chee?

      - Conseguimos abalar a opinião de todos com que era possível contar. O resto, a maioria, vai se manter inabalável nas suas antipatias emocionais.

      - Antipatia emocional não se constitui motivo válido para votar assim ou assado.

      - Eu sei disso, Andrew, mas o problema" que eles não apresentam a antipatia emocional como motivo.

      - Tudo se resume no cérebro, então - disse Andrew, cauteloso. - Mas será que a gente precisa reduzir tudo a uma simples questão de células em contraposição a pósitrons? Não existe um modo de forçar uma definição funcional? Será preciso dizer que um cérebro se compõe disto ou daquilo? Por que não se diz que ele é uma coisa, seja lá qual for, capaz de um determinado nível de raciocínio?

      - Não dá - insistiu Li-hsing. - O teu cérebro foi feito por mãos humanas, o que já não acontece conosco. O teu é fabricado, o do homem evolui. Para qualquer pessoa determinada a manter uma barreira entre ela e um robô, essas diferenças representam um muro de aço com mais de um quilômetro de largura e outro tanto de altura.

      - Se desse para a gente descobrir a origem dessa antipatia, mas a origem mesmo...

      - Com todos os anos de vida que tem - comentou Li-hsing com tristeza -, você não desiste de querer compreender o ser humano. Pobre Andrew, não fique bravo comigo, mas é o seu caráter de robô que insiste em te levar nessa direção.

      - Sei lá - retrucou Andrew. - Se ao menos eu pudesse...

     

      (Ritornelo)

      Se ao menos ele pudesse... Há muito tempo já sabia que a coisa podia chegar àquele ponto e por fim procurou um cirurgião. Descobriu um bastante competente para o que queria - o que significava que também era robô, pois Andrew não podia confiar em nenhum homem que fosse médico tanto em matéria de competência como de intenção.

      O robô não efetuaria a operação numa criatura humana, por isso Andrew, depois de adiar ao máximo o momento de decisão, seguindo uma triste linha de raciocínio que refletia o tumulto que sentia no íntimo, pôs a Primeira Lei de lado dizendo:

      - Eu também sou robô.

      E acrescentou, com a mesma firmeza com que aprendera a dar ordens, inclusive a seres humanos, durante as últimas décadas:

      - Te ordeno a efetuar a operação em mim. Na ausência da Primeira Lei, uma ordem dada de maneira tão categórica por alguém que parecia tanto ser homem ativou a Segunda de forma suficiente para que fosse obedecida.

     

      A sensação de fraqueza de Andrew, segundo ele, era apenas imaginária. Tinha se recuperado da operação, Mesmo assim encostou-se, da maneira mais discreta possível, na parede. Se sentasse, não poderia dissimular.

      - O voto decisivo será nesta semana, Andrew - disse Li-hsing. - Não consegui continuar adiando por mais tempo, e é certo que vamos perder. Depois disso, não tem mais condições, Andrew.

      - Me sinto muito grato pela tua habilidade em protelar. Me deu o prazo que precisava e me arrisquei a fazer o que queria.

      - Que risco foi esse? - perguntou Li-hsing, já francamente preocupada.

      - Não podia contar a você nem ao pessoal da Feingold & Martin. Tinha certeza de que não iriam consentir. Veja só, se o que está em jogo é o cérebro, tudo não se resume numa questão de imortalidade? Ninguém liga a menor importância para o aspecto, a origem ou modo de se fazer um cérebro. O que importa é que as células do cérebro humano morrem, têm de morrer. Mesmo que todos os outros órgãos do corpo se conservem ou sejam substituídos, as células cerebrais, que não podem ser trocadas sem modificar e, portanto, matar a personalidade, com o tempo acabam morrendo.

      "O meu próprio comportamento positrônico já durou quase dois séculos sem nenhuma modificação perceptível e é capaz de durar muito mais ainda. Não é essa a objeção fundamental? A humanidade pode tolerar um robô imortal, porque pouco importa quanto tempo a máquina dure, mas não pode tolerar um homem imortal, uma vez que a própria mortalidade só é sustentável na medida em que for geral. E por esse motivo não concordam com minha exigência de me tomar humano."

      - Aonde é que você quer chegar, Andrew? - perguntou Li-hsing.

      - Acabei com esse problema. Décadas atrás, o meu cérebro positrônico foi ligado a nervos orgânicos. Agora, uma última operação conseguiu dar um jeito para que essa ligação, aos poucos, paulatinamente, perdesse esse potencial do meu comportamento.

      Li-hsing não revelou a mínima expressão, por um instante, no rosto delicadamente enrugado. Depois apertou os lábios.

      - Quer dizer, Andrew, que você encontrou uma forma de morrer? Não é possível. Isso representa uma infração à Terceira Lei.

      - Não - afirmou Andrew. - Apenas optei entre a morte do meu corpo e a dos meus sonhos e aspirações. Permitir que o meu corpo vivesse, à custa de uma morte muito mais grave, é que seria infringir a Terceira Lei.

      Li-hsing pegou-o pelo braço como se quisesse sacudi-lo. Mas se conteve.

      - Andrew, isso não vai dar certo! Troca de novo.

      - Impossível. Os danos foram enormes. Tenho um ano para viver, mais ou menos. Vou sobreviver até festejar o meu bicentenário. Não tive forças para protestar contra essa condição.

      - Mas não vale a pena, Andrew. Você é um idiota

      - Como que não vale a pena, se conseguir a minha condição humana? E, se não conseguir, vai acabar com toda essa luta e, portanto, também vale a pena.

         Foi então que Li-hsing fez uma coisa de que não se julgava capaz. Quando viu, espantada, tinha começado a chorar de mansinho.

     

      É estranho como o mundo se deixou impressionar com aquela última façanha. Tudo o que Andrew tinha feito até então nunca abalara ninguém. Mas havia finalmente concordado com a própria morte para chegar à condição humana e o sacrifício era grande demais para ser ignorado.

      A cerimônia final foi marcada, de modo absolutamente proposital, para coincidir com o bicentenário. O Presidente do Mundo devia assinar o ato, convertendo em lei a vontade do povo. A cerimônia seria transmitida em rede mundial, alcançando o estado Lunar e até a colônia marciana.

      Andrew andava de cadeira de rodas. Ainda estava em condições de poder caminhar, mas de modo muito precário.

      - Há cinqüenta anos - disse o Presidente diante de toda humanidade -, você foi proclamado o Robô Sesquicentenário, Andrew. - Fez uma pausa e depois, em tom mais solene, continuou: - Hoje nós o proclamamos Homem Bicentenário, Mr. Martin.

      E Andrew, sorridente, estendeu a mão para apertar a do Presidente.

     

      Deitado na cama, Andrew aos poucos foi perdendo a consciência. Lutou desesperadamente para se manter lúcido. Homem! Era homem! Queria que fosse o seu último pensamento. Queria se desfazer - morrer - pensando nisso.

      Abriu de novo os olhos e, pela derradeira vez, reconheceu Li-hsing, aguardando solene. Havia outras pessoas presentes, mas não passavam de sombras, vultos irreconhecíveis. Só Li-hsing se destacava no meio da escuridão cada vez mais profunda.

      Bem devagar, mediante enorme esforço, estendeu-lhe a mão e, já quase sem sentir, muito vagamente, percebeu que ela a apertava entre as suas.

      Foi perdendo a visão à medida que os pensamentos também lhe fugiam. Mas, antes que Li-hsing desaparecesse por completo, ocorreu-lhe uma lembrança final, muito fugaz, que pairou um instante na memória antes que tudo terminasse.

      - Filhinha - murmurou, em voz tão baixa que ninguém conseguiu ouvir.

 

                                                                                            Isaac Asimov

 

 

                      

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