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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NUNCA É TARDE PARA O AMOR / Carole Mortimer
NUNCA É TARDE PARA O AMOR / Carole Mortimer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

“Não resista, Laura. Precisamos de uma nova chance para amar!”

Parecia o fim… Era o começo de um tumultuado romance.

Estava tudo pronto para a festa. Num canto do salão, Laura escondia-se dos convidados, lutando para não chorar. Como avisar a todos que não haveria mais nenhum noivado? Gilberto desistira no último instante, deixando- a naquela terrível situação…

De repente o som da orquestra cessou e Raul Harrington, com seu charme habitual, apanhou o microfone. “Laura não vai mais se casar com Gilberto”, anunciou. “E eu estou aqui para lhes revelar um segredo!”

 

 

 

 

Mais uma vez Laura estava em apuros. Logo agora que o natal se aproximava e as vendas tendiam a aumentar, ainda não tinha conseguido dar um ar festivo à vitrine da livraria.

Nessa manhã levantou-se decidida: a vitrine ficaria perfeita toda enfeitada com papel colorido e flocos de neve artificial. Seria difícil limpar tudo depois, mas mesmo assim faria o Maximo para que a última edição do livro de aventura se esgotasse.

Do interior da vitrine, pensava que teria sido melhor contratar um vitrinista, para o serviço quando avistou de repente, através do vidro sua assistente Polly gesticulando sem parar para a rua tentando chamar a atenção. Acompanhando o empenho da moça, vários transeuntes assistiam à cena.

Deu sinais para a assistente entrar, pois não conseguia entender o que acontecia. Pelo jeito as pessoas da calçada gostavam muito do que viam e se divertiram ainda mais quando Laura quase caiu ao sair dali.

— Droga, se pelo menos meia dúzia daqueles curiosos comprassem o novo lançamento! — Laura resmungou zangada com o incidente. — O que foi Polly?

— Teu irmão chegou!

— Meu irmão? Você está brincando comigo!

— Não, ele está aí. E acho melhor você se arrumar um pouquinho, está parecendo uma árvore de Natal.

— Devia mesmo ter contratado um vitrinista! — Laura limpou a saia preta salpicada por bolinhas brancas e pedaços de papéis laminados . — Que história é essa de meu irmão?

— O moço diz que é teu irmão. — Polly insistiu.

— Mas você ta cansada de saber que eu… — interrompeu-se ao ver o homem que entrava. Devia saber que era “ele”!

— Sabia que o teu cabelo louro combina perfeitamente com o verde? — Raul retirou com delicadeza pedaços laminados da cabeça de Laura. — Para você guardar de lembrança — completou, entregando-lhe os papeizinhos.

— Você aqui? — a voz de Laura soou com indiferença. Em seguida dirigiu-se à assistente. — uma de nós deveria estar atendendo aos clientes, não acha?

Polly ficou vermelha, e desculpando-se, saiu de perto.

— Tudo bem com você, irmãzinha?

— Porque está visita agora? — Laura se voltou zangada para Raul, ignorando a pergunta. — Como pode ver, estou muito ocupada.

— Parece que os negócios vão bem. — Ele parecia concordar com a observação, olhando para a loja cheia de gente.

— Muito bem. Portanto, não tenho tempo a perder…

— Preciso conversar com você, mas não aqui dentro.

— Garanto que é por causa de Amanda. — O olhar de Laura se tornou ainda mais frio.

— E daí? Quando foi a última vez que viu sua mãe? Dois meses atrás?

— A relação que mantenho com Amanda só diz respeito a mim, sabia?

— O quê? Relações?! — zombou ele com desprezo.

— Você. . .

— Podemos sair daqui? — A voz de Raul mostrava que se cansara do jogo. — Não quero discutir assuntos de família no meio de tanta gente. É quase uma e meia, não tem hora de almoço?

— Só falta uma semana para o Natal, e nesta época nenhum comerciante que quer ganhar dinheiro tem hora de almoço.

— E isso é tão importante para você?

— Um banqueiro me perguntando se dinheiro é importante, não acredito. — Laura falava com ironia. — Sem ele, você não estaria nos negócios.

— Mas para mim existem coisas bem mais importantes! A família, por exemplo. E quer queira ou não, você faz parte dela!

— Eu não tenho família. E agora, se me der licença, tenho que voltar ao trabalho. — Laura olhou preocupada para Polly, que estava no caixa.

— Preciso falar com você. — Raul a segurou pelo braço antes que se afastasse. — Voltarei à noite, quando fechar a loja.

Aquilo era uma imposição, não um pedido. Laura foi para o caixa ficar no lugar de Polly. Percebeu que Raul tinha saído com muita raiva.

Não conseguia atinar com o motivo da presença dele ali num momento tão inoportuno. Embora estivesse curiosa, não dera o braço a torcer. Não a Raul, que se habituara a ver as pessoas cumprindo todas suas determinações; o tipo de homem a quem todo mundo obedecia sem pestanejar. Quanta petulância querer que ela largasse a livraria assim, sem mais nem menos. Afinal de contas àquilo era o seu ganha-pão, o meio que havia encontrado para sobreviver.

Laura percebeu que Polly havia passado a tarde inteira querendo saber quem era aquele homem belíssimo que viera à livraria. A moça tinha feito várias insinuações e agora, no fim do expediente, ainda se mostrava reticente.

— Bem Laura, vejo você mais tarde…

— Ótimo Polly, estou acabando de fazer estas contas e também vou embora.

— Sim, eu…

— Te vejo lá às oito?

— Sem falta, não perderia esta festa por nada.

— É mesmo? Só que preciso terminar isto aqui correndo. Tenho que passar em casa para me arrumar. Tudo bem com você, Polly?

— Claro, tudo bem. Te vejo depois, então. — O desapontamento nos olhos da garota era flagrante.

Laura ouviu a porta se fechar com a saída de Polly e se virou para uma estante, colocando alguns livros no lugar. Enquanto isso, pensava na roupa que usaria à noite. O azul-royal fazia sobressair a cor dos olhos e tornava-lhe os cabelos curtos mais dourados. A linha reta do vestido acentuava-lhe os seios eretos e a cintura fina. Com um metro e meio de altura, sempre se considerara magra para ser atraente, mas o vestido de seda marcava-lhe as curvas perfeitas. Não havia muito a fazer para realçar suas feições de moleque, mas a roupa sofisticada a faria parecer mais sensual. Gilberto ia gostar dele!

— Sabe que você conseguiu tornar este lugar muito agradável?

— Como entrou? — Laura se voltou bruscamente, ao ouvir a voz zombeteira de Raul.

— Sua assistente me deixou entrar antes de ir embora. — Encostando no umbral da porta ele a olhava cheio de malícia.

— Fico satisfeita que tenha gostado da decoração da loja — ela respondeu, sem entender por que a presença daquele homem sempre a perturbava tanto.

Raul pegou um livro de artistas franceses que estava na mesa de Laura e começou a folheá-lo.

— É, realmente ficou muito boa. E você parece muito contente com o lucro que obteve hoje... — Parou numa determinada folha do livro. — Prefiro minha mulher um pouco mais magra do que esta.

Laura puxou o livro e olhou para a página aberta: uma cigana de olhos escuros estava nua na frente de um espelho, numa pose bastante sensual.

— Este livro foi separado para um cliente — explicou, fechando-o com força.

— Não precisa ficar tão preocupada assim... — Raul brincou, sentando-se na ponta da mesa. Ainda vestia o terno escuro que usara para trabalhar.

— Poderia me fazer o favor de explicar o que está fazendo aqui?

— Quero falar com você sobre a festa.

— Sobre a "minha" festa?

— E por acaso existe outra?

— Pelo que eu saiba você não foi convidado!

— Não, mas Amanda e meu pai foram. Está certo que você deixou para a última hora, mas enfim... — Laura levantou a cabeça num desafio à censura velada daquelas palavras. Mas ele continuou: — Uma festa de noivado com um homem que eles nem conhecem. Não acha que passou dos limites?

— Já tenho idade suficiente e não preciso do consentimento de ninguém!

— Tem mesmo — Raul concordou. — Mas bem que você poderia ter avisado a sua própria mãe com uma certa antecedência. Ela só ficou sabendo hoje cedo.

— Mandei o convite há quatro dias. — Laura corou diante da condenação, ainda aborrecida por ele ter dado a entender que a considerava velha aos 26 anos. — Não pode me culpar pelo atraso do correio nesta época de Natal.

— Quatro dias! — Raul repetiu com frieza. — E há quanto tempo está planejando a festa?

— Alguns meses, mas…

— E quando enviou os outros convites? — ele insistiu.

— Seis semanas atrás. Mas Raul, não acho que tudo isso…

— E quando foi que a família Gilbraith os recebeu?

— Não receberam! — Laura pôde dizer satisfeita. — Toda a família de Gilberto mora na Escócia, e iremos para lá no próximo verão, para nos casarmos. Foi por isso que decidimos convidar só amigos para a festa de noivado. Depois…

— Depois você foi atacada por sentimento de culpa — Raul concluiu com desgosto. — E no último minuto resolveu convidar Amanda.

— Não me sinto nem um pouco culpada — Laura negou. — Já deu para perceber que minha mãe e eu levamos nossas vidas de maneira independente, não? Depois de conversar com o Gilberto vi que ia ficar mal se ela não estivesse na festa, já que todos sabem que também mora em Londres.

— Céus! Ainda bem que Amanda não sabe que foi convidada só para evitar fofocas. — A raiva tomava conta daqueles olhos dourados. — Ela está felicíssima com o convite. Acredita que agora este distanciamento que existe entre vocês vai diminuir.

Raul ficava muito mais bonito quando zangado. As feições marcantes aguçavam-se como as de um falcão. O queixo quadrado e a boca firme mostravam toda a raiva que sentia, mas a indignação não estava só no rosto. Com um metro e oitenta de altura parecia mais alto por causa da musculatura tensa e a postura ameaçadora. O cabelo curto, quase negro, tornava sua aparência mais feroz. Laura, no entanto, não parecia assustada.

— O relacionamento que tenho com ela há quinze anos não vai mudar de uma hora para outra. É bobagem insistir nesse assunto.

— Pelo jeito você nunca vai perdoá-la. Divórcio é sempre desagradável para as crianças envolvidas, Laura — Raul acrescentou com gentileza. — Não acha que foi melhor assim?

— E o que você sabe a respeito disso? Teu pai quase ficou louco quando sua mãe morreu.

— Você tem razão, mas agora ele reencontrou a felicidade com Amanda.

— Não vai durar, pode ter certeza. Nunca dura!

Depois que Amanda obtivera o divórcio tinha se casado outras vezes. Laura sabia que em nenhuma ocasião a mãe conseguira encontrar a felicidade e não existia razão para crer que esse último casamento com o pai de Raul, há cerca de um ano, viesse a ser diferente.

— Se você não acredita no casamento, por que então vai ficar noiva?

— Eu nunca disse que não acreditava no casamento. Só não quero ter filhos!

Os pais de Laura, Amanda e John Matthews, tinham se divorciados quando ela estava com onze anos. Até então, fora uma criança feliz, cercada de atenções, e a notícia daquela separação inesperada a enchera de angústia e terror. Ao se ver afastada do pai adorado, sentira seu pequeno mundo ruir e nem as raras visitas que lhe fazia a partir daí serviram para consolá-la. Com o tempo, foi se sentindo mais e mais distanciada dele, até que John se tornasse um verdadeiro estranho. Laura sequer lamentara a transferência do pai para os Estados Unidos. Tornara-se uma adolescente arredia, que em seu íntimo guardava um enorme rancor contra Amanda, a quem culpava pelo divórcio.

Ainda bem que Gilberto aparecera em sua vida respeitando-lhe a opção de não querer filhos. Laura duvidava que se uniria a ele caso o noivo não pensasse assim.

— Você não sabe nada sobre meu noivado e nem tem a menor idéia do que aconteceu no passado — disse a Raul com frieza. — Por isso, "irmãozinho", deixe de ser tão arrogante querendo conhecer minhas emoções melhor do que eu.

— Não seja maldosa. Amanda se orgulha muito de você!

— Amanda também não me conhece.

— Mas gostaria de conhecer.

— A minha vida não é nenhuma novela das oito em que no final a mãe se reconcilia com a filhinha rebelde. Amanda e eu nos separamos há muito tempo e quero que continue assim.

— Calma, garota. Você ainda não sabe que a época de Natal é tempo de se perdoar e de se fazer as pazes?

— Raul, diga logo por que está aqui. Não acredito que seja só para me chamar a atenção por não ter mandado o convite antes.

— Não — ele concordou. — Sabe Laura, acontece que meu pai está em Nova York e não vai poder voltar a tempo para a festa. Então me ofereci para acompanhar Amanda, mas primeiro quis me certificar de que você concordaria.

Raul a observava com aqueles olhos indagadores. Laura não conseguia entender como é que às vezes podiam ser tão escuros e pensativos e de repente se tornarem brilhantes como ouro.

— Não ia fazer nenhum escândalo, Raul, se é o que pensou. Quando era adolescente, nunca soube qual "tio" estaria na minha festa de aniversário.

— Se acha que vai me chocar com essas palavras, pode ir parando. Amanda sempre foi muito franca conosco, sabemos tudo sobre o passado dela.

— Para vocês é fácil perdoar. Mas quem presenciou tudo fui eu. E garanto que não sou tão generosa.

— Agora você é uma mulher, Laura, e deveria saber que qualquer um pode errar.

— É, você está certo, principalmente uma pessoa tão egoísta quanto ela que pôs a própria felicidade na frente de tudo e de todos. — Laura ficou vermelha de raiva.

Por um instante, Raul a olhou em silêncio e depois balançou a cabeça.

— Tem certeza de que Gilberto sabe com quem vai se casar? Já deu oportunidade para ele ver como você é desumana?

Laura enfrentou-lhe o olhar.

— Gilberto sabe exatamente o que vai enfrentar casando-se comigo!

— Amanda me disse que antes você sentia as coisas de maneira muito apaixonada e que também era muito ativa. — Raul parecia não acreditar que essa descrição fosse a daquela mulher a sua frente.

— Ela tirou tudo isso de mim. — Os olhos de Laura faiscavam. — Depois que se divorciou do meu pai, nós nos mudamos tantas vezes que até meus brinquedos ficavam para trás, sempre. Amanda dizia que não havia lugar para eles! — Ela se lembrava com amargura de cada uma daquelas mudanças, quando descobria que mais um dos seus preciosos brinquedos havia sumido. Por fim, aprendeu que não se devia apegar a nada.

— Por acaso sabe como tudo ficou difícil para ela depois que se separou do teu pai? — Raul perguntou impaciente. — Não foi fácil…

— Tenho certeza de que tudo o que Amanda lhe contou sobre aquele tempo soou convincente. Mas eu estava lá e sei o que aconteceu. De qualquer modo, traga Amanda na festa, hoje — Laura disse apressada. — Ela é bastante jovem para parecer sua mulher, não é?

— E por que não? Só tem doze anos mais que eu. — A voz de Raul soou reprovadora.

— É... ela não parece ter quarenta e nove anos. Qualquer um lhe dá dez a menos.

— Não me diga que isso também te deixa magoada. Vai ver que foi este o motivo de não ter apresentado Gilberto a ela. Teve medo que ele a achasse mais atraente que você?

— Olhe aqui, seu. . .

— Seu o quê? Porco? Bastardo? — Raul segurou o braço de Laura quando ela tentava dar-lhe um tapa no rosto e em seguida a puxou contra si. — Você parece uma fera enjaulada. É a única maneira de agir que conhece? — murmurou inclinando a cabeça e beijando-a.

Laura não esperava por aquilo. Em poucas horas ficaria noiva, ambos o sabiam, e mesmo assim Raul não desistia do beijo. Continuava com os lábios movendo-se sensuais contra os dela, induzindo-a a responder, apertando-a mais contra si.

Ela estava tremula, assustada com as batidas fortes do coração e com a dureza das coxas de Raul que se moviam, provocando-a. Sem querer, correspondeu.

— Diga que me quer! — A voz dele soou rouca, e seus lábios quentes deslizaram pelo pescoço esguio.

O corpo de Laura parou de tremer quando viu o rosto de Raul Harrington. Aquele não era Gilberto, o homem com quem se casaria.

— Você está muito enganado! — Soltou-se. — Não te quero!

Ele se afastou lentamente.

— Tem certeza? Acho que precisa pensar mais um pouco antes de se comprometer.

— Não preciso pensar em nada! — Laura tinha conseguido se controlar. — Gilberto é o homem com quem pretendo e vou me casar.

— Você o ama?

— Eu não tenho que…

— Como pode amá-lo e beijar como me beijou?

— "Você" me beijou — ela o corrigiu. — E um beijo de outro homem, por mais hábil que seja, não muda o fato de Gilberto ser o homem certo para mim.

Raul parecia ter desistido.

— Então nos veremos na festa do teu noivado. E não vou me incomodar em dizer a Amanda que ela só foi convidada para evitar mexericos.

— Pode dizer o que quiser. Amanda sabe muito bem o que penso sobre ela.

— Laura, torno a insistir: sua mãe não merece esse tipo de tratamento.

— A maneira como a protege é tocante, sabia? No fundo você gostaria de tê-la conhecido antes que seu pai. Estou certa de que hoje você seria o meu padrasto.

Raul a olhou com desgosto, antes de se virar e sair. Laura sentou-se. Nunca permitiria que ele percebesse como aquele beijo inesperado fizera com que ficasse confusa.

Amanda e o pai de Raul se conheceram por causa dos filhos. No último inverno, ao voltar da casa de uma amiga à noite, o carro de Laura derrapara no asfalto molhado, batendo no que estava logo à frente. Raul Harrington dirigia o outro veículo. Ele não se machucara, mas Laura sofrera cortes nos pés e nas mãos com os estilhaços do vidro quebrado. Raul insistira em acompanhá-la na ambulância.

Nenhum dos cortes havia sido muito sério, mas os médicos por precaução acharam melhor mantê-la por uns dias no hospital. Raul fez de tudo para ajudá-la. Depois de ter se certificado de que tudo corria bem, tinha ido até o apartamento dela buscar algumas roupas. De lá telefonou para Amanda avisando-a de que a filha se encontrava hospitalizada.

Laura ficou muito feliz pelo desencontro de Amanda e Raul. Por pouco eles não se cruzaram no quarto, um dia depois do acidente.

Na manhã seguinte Raul telefonou, explicando que não era possível ir vê-la à tarde por causa de uma reunião de negócios, mas que pedira ao pai para substituí-lo. Laura protestou, não havia necessidade de tanta preocupação. Mas Raul foi inflexível.

Roberto Harrington era uma versão mais velha, tão charmoso e tão rígido quanto o filho. Laura soube, pela expressão da mãe quando Roberto entrou no quarto do hospital, que os dias de solteiro daquele homem estavam contados. Casaram-se em um mês, e Raul Harrington se tornou seu meio-irmão. Laura evitava a todos, quando podia.

A sala de recepção do hotel estava repleta de convidados. A maior parte deles era amigos de Laura, pois Gilberto morava em Londres há apenas dezoito meses e ainda não conhecia muita gente. Um conjunto tocava músicas suaves e o bufe fora muito bem organizado.

Gilberto demorava a chegar. Um dos poucos colegas presentes disse que talvez ainda estivesse trabalhando e que, quando saíra do escritório, ele ainda se encontrava lá. Laura tentou telefonar, mas não conseguiu. Pelo jeito todos já haviam deixado o prédio, pois nem mesmo as telefonistas atendiam a chamada. Ela continuava tranqüila; a festa só começaria às oito horas.

O pessoal do hotel fizera uma bonita decoração na sala e um imenso bolo estava no meio da mesa, com os dizeres: "Feliz Noivado".

De manhã cedo, antes do trabalho, Laura tinha passado no joalheiro para pegar o anel de noivado. Precisava mandar apertá-lo um pouco, pois pertencera à avó de Gilberto. Era uma jóia antiga, com uma pedra de rubi cercada por diamantes. Laura se sentira emocionada quando Gilberto lhe contou que pertencera à avó. Agora o ostentava na mão direita e de vez em quando o admirava, feliz.

— Você está linda, querida.

Laura virou-se a tempo de ser envolvida pelo perfume da mãe, que a abraçou. Amanda estava deslumbrante. Ela era baixinha como a filha, possuía cabelos longos e dourados, que lhe emolduravam o rosto muito bem maquilado. O vestido preto que usava ajustava-se com perfeição ao corpo curvilíneo. Podiam ser tomadas por irmãs, Amanda só um pouco mais velha e muito mais charmosa e bonita…

— Amanda tem razão, você está maravilhosa, Laura. — Um odor forte de colônia a invadiu quando Raul, num terno preto que lhe assentava muito bem, encostou seus lábios nos de Laura.

— Onde está o noivo?

Laura se afastou depressa daquele contato perturbador.

— Espero que se divirtam — respondeu apontando o bar. — Por favor, sirvam-se de um drinque.

Outra vez aqueles olhos dourados a observaram, antes de se fixarem em Amanda.

— Vamos apanhar um Martini?

Enquanto os dois se afastavam, Laura olhou preocupada para entrada. Por onde andaria Gilberto? Por certo não precisaria ficar trabalhando até tarde neste dia tão especial. Haviam combinado que anunciariam o noivado às oito e meia e se ele não chegasse logo, adiaria tudo!

— Srta. Matthews?

Ela se virou bruscamente para o garçom que lhe tocava o braço.

— Sim?

— Esta carta acabou de chegar para a senhorita. — O homem lhe entregou o envelope antes de se retirar apressado.

 

Haviam recebido muitos telegramas e cartões desde que o futuro noivado fora anunciado, mas este não parecia ser um deles. Nervosa, ela retirou o papel do envelope.

Ficou pálida ao ler a curta mensagem; as mãos tremiam tanto que não teve sequer forças para protestar quando a carta lhe foi tirada por Raul.

— Miserável! — ele exclamou depois de ler rapidamente a nota. Em seguida, apressou-se em aparar Laura, que estava a ponto de desmaiar.

— Ah, eu nem desconfiei! — ela murmurou apoiada no ombro dele. — Isso nunca me passou pela cabeça. Oh, meu Deus! — Olhou-o assustada. — O que vou fazer com toda esta gente? E os presentes, os cartões? Como vou devolvê-los? Eu…

— Laura, você confia em mim?

Ela levantou o rosto, viu os olhos dourados e não pôde desviar os seus.

— Sim — respondeu tremula, sabendo que de repente confiava mesmo em Raul.

— Então deixe que eu resolvo isto.

— Mas…

— Laura, deixe!

Ela observou o rosto severo, a determinação da boca e do queixo.

— Está bem. Faça o que você achar melhor!

Raul afagou-lhe o braço antes de se virar e ir até ao microfone. A música parou quando ele se aproximou para falar.

— Senhoras e senhores. Estou feliz que todos estejam aqui hoje. Também espero que não fiquem desapontados se lhes disser que haverá uma pequena mudança no que foi planejado.

Fez-se um silêncio quase palpável; todos esperavam para ouvir.

Laura soltou um gemido, desabando numa cadeira. "Uma pequena mudança", Raul dissera! Ela descreveria a atitude de Gilberto de modo totalmente diferente! Havia mudado de idéia, ele havia escrito. Não podia continuar, acrescentara. E, numa rápida observação ao pé da página, perguntava se poderia ter o anel da avó de volta!

Assim que Raul contasse a todos que o noivado terminara, ela iria se esconder no apartamento. Não teria coragem nem de abrir a livraria na manhã seguinte.

— A festa vai continuar, podem ficar tranqüilos — Raul continuou amável. — Por respeitar e gostar de Gilberto, e para salvar a felicidade de ambos, Laura decidiu não o desposar…

Laura quase podia sentir os olhares piedosos, apesar de estar com a cabeça baixa, pois imaginava que todos haviam percebido a verdade.

— Como eu disse antes, só houve mudança em um pequeno detalhe: Laura descobriu que é a mim que ela ama, e aceitou o pedido para se tornar minha esposa! — Raul finalizou, abrindo um sorriso.

Incrédula, Laura levantou a cabeça, procurando vê-lo na confusão que se seguiu. Todos comentavam a notícia, o burburinho tornava-se cada vez mais alto, mas ela nem prestou atenção nos convidados que se aproximavam. Só queria enxergar Raul… Desta vez ele tinha ido longe demais!

Laura só foi acreditar que ouvira mesmo Raul anunciando o noivado dos dois quando as pessoas começaram a cumprimentá-la. Todos se mostravam muito eufóricos, fazendo questão de demonstrar que não viam nada de mais na mudança inesperada de noivos.

— Laura, ele é um homem incrivelmente charmoso — Polly dizia ao beijá-la. — Como é que não percebi nada hoje lá na livraria?

— Era segredo, Polly. — Laura suspirou, pensando que o segredo tinha sido tão bem guardado que nem ela o conhecia.

— Querida! — A mãe a abraçou, sorrindo. — Que surpresa agradável!

Constrangida, Laura olhou em volta, ainda procurando por Raul. Sem dúvida era uma surpresa, mas nada tinha de agradável. Como havia sido capaz de contar essa mentira a todos sem ao menos consultá-la?

De repente ele apareceu, abrindo caminho entre os convidados. Aproximou-se com toda a tranqüilidade, pondo o braço sobre os ombros dela. Laura podia sentir o calor daquela mão que a acariciava com tanta intimidade. Para ele, nada havia acontecido de anormal; recebia as congratulações com muito charme.

Laura não se conformava com a traição de Gilberto. Será que, ele tinha idéia do vexame que a fizera passar? Aquele noivado vinha sendo planejado há meses. O estado de prostração era tanto que ela não sabia se queria se sentar no chão e chorar como nunca havia chorado na vida ou se devia sair atrás de Gilberto e dar-lhe um soco na cara.

"Mas amanhã eu o verei de novo", pensou. Quando finalmente conseguiu ler todo o bilhete, viu que no fim ele dizia que ia passar na loja para pegar o anel.

— Querida?

Laura fitou Raul com olhos enevoados, perdida em pensamentos. Ele suspirou ao ver-lhe a expressão confusa e abaixou a cabeça para beijá-la. Não foi um beijo como o que acontecera antes, na loja. Desta vez Raul exigia, e, como ela não queria corresponder, ele a forçou. Isso a fez ficar mais zangada ainda, mas não conseguiu esquivar-se daqueles braços que a seguravam com firmeza. Finalmente Raul se afastou com os olhos brilhantes e febris.

— Meu Deus do céu — comentou David, o marido de Polly.

— Esses dois estão mesmo apaixonados.

Todos haviam observado a cena com interesse. Agora riam tentando quebrar a tensão que ficara no ar. Laura se distanciou de Raul.

— Por favor, pessoal, há muita comida e bebida — disse aos que estavam mais perto, forçando um sorriso. — Estamos aqui para nos divertir.

— Vamos dançar. — Raul a puxou de novo quando começaram a tocar uma melodia suave, movendo-se com graça ao som da música. — Tudo bem agora? — perguntou com suavidade.

— Você disse que resolveria tudo!

— E você acrescentou: "como achar melhor". Se tivesse dito a verdade, agora você estaria sendo alvo da piedade de todo mundo, além de experimentar o embaraço por ter que devolver os presentes.

— E em vez disso, estou sendo invejada por várias amigas! Pelo jeito você fica muito à vontade com isso.

Ele a olhou divertido.

— Quais delas?

Laura cravou as unhas no braço de Raul.

— Comporte-se! Para todos os efeitos, hoje você é meu noivo.

— Prefiro te ver brigando comigo do que teu olhar de frustração, como quando leu a carta de Gilberto.

— Não estava frustrada. Estava com raiva, e ainda estou.

— Ótimo! Aquele canalha só merece isso, mesmo.

— Estou brava com você também. Você… — Raul a interrompeu, beijando-a outra vez. — Quer parar com isso?! — Laura afastou-se dele.

— Cuidado. — Em nenhum momento o sorriso abandonava o rosto dele. — Temos uma platéia — avisou, apertando-a contra o peito.

Laura virou-se para olhar ao redor, corando ao perceber que eram os únicos na pista. Todos os convidados permaneciam parados em volta, observando-os. Voltou-se rápida para Raul.

— Que terrível, somos o centro das atenções!

— Sorria, Laura. — Os lábios dele se moviam com suavidade pêlos cabelos sedosos e os braços a apertavam cada vez mais.

— Raul, sinto como se estivesse num pesadelo e não pudesse acordar!

— É a primeira vez que uma mulher diz estar num pesadelo quando me beija. Pois eu não estou achando a experiência de ser teu noivo tão perturbadora assim.

— Por que você fez isso?

— Coragem! Será só por algumas semanas.

— Algumas semanas! — Laura repetiu angustiada. — Raul, não vamos poder…

— Claro que vamos. E agora relaxe, estou me divertindo muito.

Ela levantou o rosto para poder observar a expressão de Raul.

— Você é um cínico, sabia? Como pode dizer que está se divertindo?

— Ora, Laura, não leve tudo tão a sério. Às vezes a vida nos surpreende com caminhos inesperados…

— Que quer dizer?

Ele deu de ombros.

— Bem, nós estamos noivos. Seria pena desperdiçar a oportunidade…

— Eu não preciso dessa oportunidade! —- Laura parou de dançar, furiosa. — Peça para minha mãe que dance com você.

— Laura, não seja criança!

— Olha lá, Polly está morrendo de ciúme. David parece enfeitiçado pela minha mãe.

— Imagine… Polly não é tão insegura quanto você. O marido dela é livre para dançar com qualquer uma.

— Você usou as palavras exalas, Raul: "qualquer uma".

— Laura, Amanda não tem culpa por ser tão bonita.

— Você também caiu nas malhas dela, não foi?

— Gosto muito de Amanda, sim. Às vezes até me pergunto como ela pode ser sua mãe.

— Creia-me, não há dúvidas a respeito. Eu mesma me certifiquei disso anos atrás!

— Laura…

— E me dê licença, preciso respirar ar puro. — Ela afastou-se dali com a cabeça erguida e sem olhar para ninguém, apesar de se sentir observada.

Claro que ninguém tinha acreditado nesse outro noivado absurdo, pensou angustiada. Mas também não era de se surpreender. Não fizera segredo de que se casaria com Gilberto por amor. Orgulhava-se dele, era charmoso, agradável e não fazia nenhum tipo de exigência que ela não estivesse pronta a cumprir. Quem a conhecesse intimamente jamais acreditaria que havia escolhido o arrogante Raul Harrington como substituto.

Talvez precisasse convencê-los, então… Tinha de fazer com que acreditassem que se apaixonara de tal maneira por Raul, que se deixara levar por um impulso. Quando o noivado fosse rompido, diria que um relacionamento deve ser fundamentado no amor e no respeito e não no fogo passageiro de uma paixão.

Não queria nem pensar em Gilberto. Mesmo que mudasse de idéia e quisesse reatar o namoro, não o aceitaria. Ele havia selado o próprio destino ao lhe escrever aquela carta. Nunca o perdoaria pela humilhação que tinha passado naquela noite. Se não fosse por Raul…

Com raiva, Laura trancou-se no toalete e se olhou no espelho. Os olhos azuis pareciam mais escuros, sinal evidente do turbilhão de emoções que a perturbava. Tinha sonhado tanto com essa noite… Por que o destino lhe inventara tamanha desilusão? De uma hora para outra Gilberto desaparecia de sua vida e ela se via nos braços de Raul Harrington.

Raul… Desde o momento em que o conhecera, na noite do acidente, pressentira que aquele homem poderia tornar-se um perigo. A mulher que se envolvesse com ele teria que entregar-lhe a alma… Mas não se envolveria com ele, nem ia deixá-lo continuar achando que era seu noivo.

Raul estava junto ao bar, conversando com Amanda, Polly e David, quando Laura voltou para a sala, erguendo os ombros ao encaminhar-se até eles.

— Espero não ter demorado muito, querido. — Ficou na ponta dos pés para beijá-lo. Mesmo de saltos altos, era difícil alcançar-lhe os lábios. — Tive saudade — acrescentou com a voz sensual.

Os olhos de Raul brilharam e mais do que depressa tentou esconder a surpresa diante de tal mudança.

— Também senti a tua falta, amor! Cinco minutos é tempo demais para ficarmos separados.

— Espere até estarem casados cinco anos! — David brincou.

— Esse é o agradecimento que recebo por ter-me casado com você aos dezenove anos e por ter te entregado toda minha juventude? — Polly deu um tapa no ombro do marido.

— E a minha juventude? — ele se queixou. — Você viu quantos cabelos grisalhos já tenho?

— Seis! Eu contei ontem à noite. Depois…

David fingiu embaraço.

— Ela só me trata assim porque sabe que a desejo.

Raul sorriu, malicioso, olhando para Laura com uma expressão apaixonada.

— Conheço a sensação.

Raul era um excelente ator, ela pensou contrariada. Sabia exatamente o tipo de mulher de que ele gostava: ainda podia ver-lhe os olhos de cobiça ao folhear a revista lá na livraria. Laura não se parecia nem um pouco com aquela cigana nua e assim mesmo Raul conseguia olhá-la como se não visse a hora de levá-la para a cama! Se era isso que ele esperava, ia ter uma bela surpresa…

Pelo resto da noite Laura agiu como uma noiva apaixonada. Foi tão convincente que enquanto dançavam pôde sentir todo o desejo dele contra o seu corpo.

Ninguém os olhava mais com curiosidade, e mesmo os poucos conhecidos de Gilberto pareciam persuadidos. Laura pedira para que permanecessem na festa e agora acreditavam que Gilberto ficara trabalhando até tarde para esquecer o compromisso desfeito. Comentaram que ele não parecia muito triste, e tinham certeza de que logo estaria bem. Isso não fez Laura se sentir nem um pouco melhor.

Mas os amigos pareciam aceitar o fato de que ela havia caído nos laços de uma paixão avassaladora, inteiramente diferente do amor calmo que dedicara a Gilberto. O charme de Raul, seus modos sedutores, tudo servia para confirmar a hipótese. Laura estava contente por eles pensarem assim. Preferia mil vezes que a admirassem pela ousadia do que a humilhassem com lamúrias e piedade.

— Nem posso dizer como estou contente pêlos dois — Amanda afirmou, quando, após a festa, Raul insistiu em levá-la para casa. — Roberto vai ficar surpreso amanhã, quando chegar em casa. Oh! Raul, você podia ter me contado o segredo antes da festa.

— Primeiro Laura tinha de falar com Gilberto. — O olhar de aviso de Raul pelo espelho retrovisor fez Laura silenciar no banco traseiro. Amanda estava sentada na frente do Jaguar prateado. — Não teria sido justo contar para alguém, antes que Laura lhe explicasse tudo.

— Não, você tem razão! Filha, quando vai ser o casamento?

— Deixe-nos respirar um pouco, Amanda. Mal acabamos de descobrir que estávamos apaixonados — Raul apressou-se em dizer.

Os olhos de Amanda brilharam.

— Aconteceu quando foi na loja para falar do meu convite?

— Sim — ele concordou.

— Meu Deus, Raul! Você é bem mais rápido do que seu pai. Pelo menos ele deixou passar uma semana para me fazer a proposta.

— Mas eu já conheço Laura há um ano — Raul lembrou.

— E ao saber que ia casar com outro se deu conta de que a amava. É tão romântico! Laura, você percebeu que quando casar com Raul, nosso sobrenome voltará a ser o mesmo?

Dessa vez Laura ignorou o aviso no espelho.

— E já faz muito tempo que nem o sobrenome nós temos em comum, não é?

— Faz? Sim, é verdade! — Amanda não pareceu perceber o tom amargo da filha. — Você poderia ter adotado o sobrenome de Frank...

— Mas eu não quis! — Laura detestara o segundo marido da mãe.

— Não — Amanda concordou. — Vocês nunca se deram bem.

Laura nunca havia contado à mãe a razão do ódio que sentia por Frank. Ele sempre tentara avançar o sinal quando ela voltava para casa, retornando da escola onde a haviam matriculado logo após se casarem. Na época tinha dezesseis anos, e começava a se tornar mulher. Um dia ele lhe dissera que adorava adolescentes.

— Frank era. . .

— Bem, desça logo, Amanda — Raul cortou, ao parar o carro na porta da bonita casa dos Harrington. As luzes estavam todas acesas. — Laura tem que abrir a loja de manhã cedo, lembra?

— Claro, querido. — Amanda desceu, empurrando o banco para a frente, para que Laura pudesse sair também. — Estou certa de que você vai querer se sentar ao lado de Raul, não é?

Laura desceu, com relutância, recebendo um beijo da mãe antes de se sentar na frente.

— Amanhã à noite vocês vêm jantar conosco — Amanda convidou. — Roberto vai fazer questão disso! — acrescentou com firmeza ao notar que Laura ia recusar.

— Acho uma excelente idéia. — Raul virou-se para Laura. — Por volta de sete e meia, está bem, Laura?

— Não, eu...

Raul virou-se para Amanda, com um sorriso.

— A gente chega um pouco mais tarde, então. Laura tem fechado a livraria mais tarde, você entende, não é?

Antes que Laura pudesse protestar, ele deu partida no carro, acenando para a madrasta. Depois de algum tempo em silêncio, virou-se para ela.

— O que ele fez para você?

— Gilberto? — Laura franziu a testa. — Você leu a carta…

— Não, estou falando de Frank Shepherd!

De repente, Laura sentiu a respiração difícil.

— Eu o via pouco. Estava fora, na escola.

— E quando não estava? — Raul insistiu.

Ela deu de ombros.

— Eu não sei...

— Laura, não minta! Pude ver muito bem seu rosto no espelho. — Suas mãos apertavam o volante. — O que aquele desgraçado lhe fez?

— Amanda só ficou casada com ele por um ano…

— Laura! Pude ver o desgosto no teu rosto, medo até. Querida, me diga. Tudo vai ficar bem.

— Ele realmente não fez nada. Não mesmo!

— Então me conte!

— Ele… vivia me perseguindo, mas só ficava nas palavras… Falava sobre meu corpo. Meus seios começavam a crescer, e ele… ele me ofendia, Raul, é só.

— Ele tocou em você?

Laura ficou chocada com a pergunta tão crua. Ainda bem que estava meio escuro e Raul não podia ver como tinha ruborizado.

— Só uma ou duas vezes — admitiu angustiada. — Olhe, Raul, eu não…

— Sabe por que Amanda se divorciou dele?

— Ela me disse que percebeu que um não servia para o outro.

— Isso foi uma parte. Ela ficou com Shepherd para tentar dar a você uma vida estável e a educação que merecia. Tenho certeza de que se imaginasse o que ele andava fazendo…

— Não contei nada a Amanda naquela época e também não quero que saiba disso agora — Laura avisou. — Ela não tem culpa nenhuma. Frank era muito cuidadoso; sempre que minha mãe estava por perto, demonstrava ser um padrasto carinhoso.

— Ela não foi feliz com ele. Bem, acho que não é da minha conta ficar discutindo isso com você. Que confusão danada! Esta experiência fez você… Não, deixe eu perguntar de outro jeito. O sexo para você é alguma coisa ruim?

— Não… — Como poderia rejeitar algo que nunca experimentara? Havia se preparado para ser a mulher de Gilberto, mas ele também não parecia tão interessado no lado físico desse relacionamento. Nunca tentara fazer amor com ela. E essa era a característica dele que Laura mais gostava e aprovava.

— Graças a Deus — Raul suspirou aliviado.

— Por que não me deixou dizer a Amanda que nosso compromisso não era de verdade? — Laura tentou mudar de assunto.

— Pensei que não quisesse ser objeto da piedade dela ou dos outros.

— Obrigada. — Laura corou diante dessa verdade. — Eu... parece que não disse isso antes, mas...

— Não disse mesmo.

— Você nem sabe o que eu ia dizer!

— Não? Pensei que ia me agradecer por ter me tornado seu noivo, salvando você de uma situação difícil.

— Eu ia.

— E então?

— Eu disse "ia"; mudei de idéia!

— Laura, alguém já te disse que você é adorável? — Raul começou a rir.

Ninguém lhe havia feito esse tipo de elogio, Laura pensou de repente, sentindo a raiva diminuir. Não fora uma criança bonita. Na puberdade tinha demorado muito para crescer e agora, na vida adulta, sabia que era uma mulher inteligente mas sentia-se muito insegura quanto à própria sensualidade.

— Não nos últimos tempos. Fico contente que me ache divertida. — Laura acentuou a última palavra, de propósito.

— Não estou rindo de você, Laura. Mas sim do teu humor. Gosto dele.

— Não acho que tenha bom humor.

— Por isso é mais interessante quando ele aparece. O que vai fazer com Gilberto?

Laura sentiu um grande alívio por ele esquecer a história triste de Frank Shepherd e mudar de assunto. O episódio lhe deixara marcas profundas e se surpreendeu por tê-lo contado a Raul.

— Gilberto já se encarregou de fazer o que tinha de ser feito.

— Então tudo acabou dessa maneira maluca?

— E você ainda queria mais?

— Nenhum laço para reatar? Nenhuma explicação?

— Tudo já foi explicado, e não vejo nenhum laço que deva ser reatado.

— E o anel que ele pediu de volta?

— Isso é uma outra história. Se ele quiser mesmo o anel, terá que vir buscá-lo. — Laura se lembrou do assunto inacabado com Gilberto; mas isso ela não queria discutir com Raul.

— Ele vai aparecer amanhã à noite. Não foi o que disse no bilhete? Pode estar certa de que estarei lá.

— Por quê?

— Porque acho que não deve ficar sozinha com ele.

— Até há poucas horas, eu ia me casar com esse homem, esqueceu? Não vai fazer nada de errado comigo.

— Não é por isso que não quero que você fique sozinha com ele.

— Então por quê?... — Laura empalideceu diante do olhar de Raul, quando ele estacionou o carro e se virou para ela. — Raul, este noivado não é real! Só serviu para salvar as aparências…

— Eu sei disso. Mas se eu não estiver com você amanhã, Gilberto também vai ficar sabendo.

— Imagine… Como é que ele poderia tomar conhecimento desse noivado que você inventou de uma hora para outra?

— Você não disse que alguns colegas de trabalho dele estavam na festa? É provável que agora um deles esteja lhe telefonando para contar a novidade. Todo o nosso esforço vai se perder caso ele descubra a farsa. E nós dois vamos parecer idiotas.

Raul tinha razão, claro, não precisava ser um gênio para saber disso. E por que não deixar Gilberto pensando que sua desistência não a havia afetado? Ele ficaria furioso ao saber que no instante seguinte já arranjara outro noivo. Também poderia imaginar que ela já planejara tudo antes. Se Raul estivesse de acordo, e parecia estar, por que não?

— Gilberto disse que viria à noite, na hora de fechar a livraria.

— Eu sei. Vamos esperá-lo juntos. — Raul desceu do carro, para abrir a porta do outro lado. — Eu te acompanho até seu apartamento.

Laura não protestou. Conhecia Raul e tinha certeza de que ele sempre fazia aquilo que lhe passasse pela cabeça.

No elevador, ele a segurou pelo braço e na porta do apartamento, apanhou-lhe as chaves das mãos sem nenhuma cerimônia. Antes que ela entrasse, acendeu todas as luzes.

— Como você acha que me arranjo nas outras noites? — ela zombou.

— Muito bem, eu sei. Por que não aceitou ir morar conosco?

— Porque sou bastante crescida para tomar conta dos meus negócios e da minha vida. Não pretendo morar de novo com minha mãe.

— Se isso é uma indireta, fique sabendo que uma parte da casa é só minha.

— Você ainda mora com seu pai e minha mãe, toma as refeições com eles! Não venha querer se justificar.

— Não devo justificações a você — Raul a olhou com frieza. — Moro lá porque quero. Agora venha cá...

— O que...

— Você me provocou a noite inteira, lembra? — Os braços de Raul a envolveram com suavidade, fazendo-a colar-se ao corpo dele. — É hora de pagar aquelas promessas, doçura.

— Raul!

— Descobri toda a sensualidade que existe em você, Laura… E pretendo me afogar nela.

Aquelas palavras ditas de maneira tão inesperada fizeram com que Laura sentisse uma onda de desejo invadi-la. Nunca ouvira algo semelhante de ninguém, e todos os beijos que tinham trocado durante a noite haviam despertado nela uma curiosidade muito grande.

Começaram com uma exploração vagarosa, mas quando o calor se espalhou pelo corpo de Laura, ela se moveu à procura de Raul. O beijo começou a ficar diferente, exigindo, provocando; de repente parecia que todas as dúvidas desapareciam.

Ela nunca sentira sequer curiosidade pelo corpo de um homem; seu relacionamento com Gilberto restringia-se a um interesse mais intelectual do que físico. Mas naquele instante a vontade de acariciar Raul era enorme. Surpreendeu-se a imaginá-lo nu, os dois se tocando com paixão…

Como se adivinhasse os pensamentos de Laura, Raul começou a acariciar-lhe os seios por sobre a roupa, enquanto seus lábios a tocavam no pescoço, na orelha, no rosto.

Ela deu um suspiro de prazer, mas tentou afastá-lo.

— Não, por favor.

— Pequenos, mas perfeitos — Raul sussurrou.

— É verdade, são muito pequenos — Laura disse com azedume, tirando a mão dele.

Raul olhou-a com ternura.

— Mas perfeitos — insistiu. — Será que consegue perceber o quanto você é sensual?

— Frank disse… — Laura tentava evitar aquele olhar que a desnudava.

— O que foi que aquele bastardo te disse?

Ela suspirou, evasiva.

— Ele não é… era um homem muito sensual.

— Pois eu sou. Muito sensual. E desejei você desde a primeira vez que te vi, de todas as maneiras possíveis.

— Na primeira vez que me viu, estava desmaiada sobre o volante do meu carro, num estado lastimável.

— E mesmo assim eu te quis.

— Esse tipo de desejo é só físico. E pode ficar certo de que não sou adepta do Kama Sutra.

— Eu disse de todas as maneiras, não em todas as posições, bobinha. Existe uma grande diferença. Não é só sexo que quero de você, Laura, eu…

— Por favor, daria para você ir embora? — Ela se virou tentado disfarçar o tremor das mãos. — Foi uma noite muito desgastante, agora gostaria de ficar sozinha.

— Laura. . .

— Por favor, Raul, vá.

— Tudo bem, eu vou. Eu entendo que é muito cedo ainda. Mas você não ama Gilberto, Laura. Só está com o orgulho ferido. Assim que isso passar, eu...

— Nosso compromisso será desfeito, e cada um poderá continuar com a própria vida — ela o interrompeu. — Agradeço muito a tua ajuda. Há pouco posso ter até sentido uma pequena curiosidade sexual sobre você, mas foi só isso.

— Só isso, tem certeza?

— Só isso.

Raul a olhou em silêncio por algum tempo.

— Estarei lá amanhã às seis e meia.

— Ótimo. — Laura o acompanhou até a porta.

— Eu não… Hei, Laura, para que tantas trancas? — Raul olhou para os cadeados na porta. — Não estamos em Nova York sabia?

— Nos últimos meses tem havido vários arrombamentos no prédio. Achei melhor tomar cuidado.

— Arrombamentos? Não gosto disso…

— Ninguém perguntou se gosta ou não — Laura respondeu irritada. — Eu tomo conta de mim mesma desde os dezesseis anos, e não preciso de nenhum homem arrogante me protegendo nem colocando todo o peso da própria ansiedade na minha vida.

— Espero que não esteja me chamando de gordo!

Involuntariamente Laura olhou para aquele corpo esbelto, de músculos exatos. "Gordo" seria o último adjetivo que usaria para Raul.

— Quem sabe? — Ela sorriu. — Talvez você não faça bastante exercícios.

Os olhos de Raul brilharam, maliciosos.

— Espero poder logo provar o contrário.

Ela não pôde evitar que seu rosto ficasse em brasa diante de tal insinuação.

— Raul! — Sentia-se inibida com aquele sorriso travesso, que formava rugas nos cantos da boca e dos olhos e uma covinha num lado do rosto moreno. — Por que você me olha desse jeito? — perguntou desconcertada.

— Sou mesmo arrogante?

— Não precisa se orgulhar, arrogância não é virtude.

— E se for combinada com paixão?

Laura ia discutir, mas pensou melhor. Queria que ele fosse embora logo e tinha medo de que tudo se complicasse.

— Se você acha que é uma boa combinação…

Ele franziu a testa.

— Você quer mesmo que eu vá embora, não é?

— Acho melhor. — Ela continuava esperando na porta.

— Não esqueça de trancar tudo depois que eu sair. — Raul acariciou-lhe o rosto. — Não gosto de pensar que está sozinha aqui, com um ladrão solto nas redondezas.

— O mundo em que vivemos não é dos melhores, mesmo.

— Me avise se estiver sendo protetor demais, doçura.

Laura sabia que ele brincava, mas respondeu com seriedade.

— Não quero e nem preciso que ninguém me proteja.

— Mas você ia se casar…

— Sim, e teria sido uma sociedade, não o tipo de casamento comum em que a mulher é dominada. Boa noite, Raul.

Quando ele se foi, Laura ficou pensando na relação que estabelecera com Gilberto. Na verdade, havia esperado que fosse bem mais do que uma sociedade conjugal. Ele seria seu sócio também nos negócios. Até já havia começado a ajudá-la.

Alguns meses atrás, quando começaram a combinar a festa do noivado, concordara em deixá-lo cuidar de algumas contas. Tinha feito até arranjos no banco, para que Gilberto pudesse assinar cheques para ela.

Dois dias atrás tinha recebido outra cobrança de uma dessas contas. Na hora não se preocupou, culpando a confusão do correio na época do Natal. Agora não estava mais certa disso.

A vida sempre fora muito difícil para Laura. Havia crescido rodeada pêlos homens com quem Amanda se envolvia, angustiada porque a mãe parecia não perceber que eles só pretendiam usá-la. A maioria ficava com ela alguns meses, tirando tudo o que conseguisse para depois trocá-la por outra que também necessitasse de afeto e um pouco de amor.

Agora Laura sabia que tinha incorrido no mesmo erro. A maneira fria e prática com que conduzia a própria vida de nada adiantara diante das artimanhas de Gilberto. Com aquela maneira despretensiosa de agir e com aqueles olhos azuis transparentes, ele a fizera de boba.

Haviam se conhecido seis meses atrás, quando Gilberto fora encomendar um livro sobre computação que não existia no estoque da livraria. Logo ele a convidou para sair quando viesse buscar o livro. Ela recusou, pois nunca saía com um estranho e dele só sabia o nome e que era um rapaz muito simpático com aqueles cabelos loiros caindo-lhe pela testa.

A livraria se situava numa região muito agradável. As ruas eram todas floridas e existiam vários bancos onde as pessoas podiam descansar. No verão, Laura sempre desfrutava do local para lanchar.

Gilberto começou a aparecer com freqüência para lhe fazer companhia e, como era um cliente, seria desagradável ignorá-lo ou tratá-lo com frieza. Aos poucos tornaram-se mais amigos, descobrindo que tinham muito em comum, inclusive o interesse por livros.

Laura apreciava os momentos passados ao lado dele nas alamedas cheias de flores. Logo que o rapaz a convidou outra vez para sair, aceitou. Nos meses seguintes descobriu que ele não era exigente, que a tratava quase como que a uma amiga e gostou disso. Era uma situação cômoda, que não a ameaçava.

Talvez essas qualidades não fossem aquelas que as mulheres buscassem num relacionamento amoroso, mas era o que Laura procurava. Só agora entendia que Gilberto se dera conta disso e nada mais fizera do que corresponder-lhe às expectativas… Para ele, fora um jogo, do qual participara com habilidade! Ainda tentava continuar, sentado ali à frente dela, mas Laura não creditava mais nele.

 

Olhou com frieza para o rosto angustiado do ex-noivo, pensando se devia expulsá-lo da livraria antes que perdesse a paciência.

— Eu te amo, Laura. Só que... a idéia de casamento me assusta.

— E quando foi que fez essa surpreendente descoberta?

Os dois estavam no escritório, uma saleta nos fundos da loja.

— Não seja dura, Laura. Não gosto quando você fica assim.

— Você não sabe como eu me sinto preocupada… — ela respondeu com sarcasmo. — Geralmente fico deste jeito quando o homem com quem pretendia casar não aparece na festa de noivado!

— Estou tentando explicar…

— Explicar! Podia ter explicado ontem à noite em vez de mandar o bilhete. — Ela amassou o papel e o jogou nele. — Se não fosse por Raul…

— Você não me disse que Raul Harrington era seu irmão de criação — ele acusou.

— Eu não sabia que isso era da sua conta! E por falar em conta…

— Que quer dizer?

— A firma Campbells me escreveu na sexta-feira. Eles não receberam o pagamento do aluguel do próximo ano, no entanto verifiquei hoje cedo que o cheque foi debitado na minha conta.

— Laura…

— E também providenciei para que você não possa emitir mais nenhum cheque!

— Escute, preciso lhe contar uma coisa…

— O que você fez com o dinheiro, Gilberto?

— Se você é mesmo a enteada de Roberto Harrington, por que está tentando ganhar a vida nesta lojinha?

— Na semana passada esta "lojinha" era uma "pequena mina de ouro" — ela o lembrou, sentando-se atrás da mesa.

— Você não precisa trabalhar, agora que a sua mãe entrou nesta família.

Laura o olhou como a um estranho.

— Eu já lhe disse uma vez: não me relaciono com minha mãe!

Ele deu uma risada de escárnio.

— Eu me relacionaria com o próprio diabo por todo este dinheiro!

Ainda bem que Gilberto não soubera antes sobre os Harrington; teria feito qualquer coisa para que tudo desse certo entre eles.

— Não tenho a menor dúvida de que um dia você vai encontrá-lo.

— Quem? — Ele não havia entendido a insinuação.

— Com o diabo, Gilberto. Agora diga o que fez com meu dinheiro.

— Não fiz nada…

— Não me venha com mentiras, Gilberto. — Laura estava cansada. — Você pegou o dinheiro, tenho certeza disso.

— Está bem, vamos lá. Primeiro não peguei o dinheiro, você autorizou que eu assinasse o cheque. Segundo, ninguém vai acreditar que você fez isso sob coação: eu tinha contas a pagar, e as paguei. Satisfeita?

— No valor de dez mil libras?

— Sim. Afinal, tenho uma mulher muito extravagante para manter — ele falou, tenso.

— Você é… casado? — Laura se sentiu empalidecer.

— Sim. Pamela é muito dispendiosa. E ainda existe Kevin.

— Seu filho? — ela arriscou.

— Sim, nosso filho.

Nunca ocorrera a Laura que Gilberto pudesse ter uma esposa. À noite sempre estivera livre para os encontros.

— Pamela pensa que estou trabalhando. — Ele adivinhou os pensamentos de Laura. — Eu lhe disse que preciso fazer horas extras para mantê-los do jeito que estão acostumados.

Laura sentia-se nauseada.

— Você a ama?

— Com obsessão! Por que outro motivo eu me corromperia por ela?

— Nós não fizemos amor!

— Porque eu não podia!

— Isso nunca me preocupou, sabia? Em nenhum momento me senti atraída por você. Quero meu dinheiro de volta, Gilberto — Laura disse com voz gelada.

— Já disse, gastei tudo.

— Então é melhor dar um jeito, e rápido!

Um sorriso esquisito curvou os lábios de Gilberto.

— Ou… ?

— Ou então vou te acusar de roubo!

— E o que os Harrington iriam pensar a respeito? A enteada ingênua se deixando lesar por alguns desprezíveis milhares de libras!

— Para mim não são desprezíveis. E as quero de volta, uma por uma.

— Não posso dar o que não possuo.

Laura não tinha dinheiro para repor o que de modo tão idiota deixara que Gilberto levasse. Se não pagasse o que devia no contrato de aluguel, podia perder a livraria.

— Não pode ter gasto tudo, Gilberto. Deve ter sobrado alguma coisa! — ela insistiu desesperada.

— No Natal gastei até as últimas libras num casaco de peles para Pamela. — Ele balançou a cabeça. — Falando nisso, o anel é dela também, por isso gostaria que me devolvesse! — Olhou-a na expectativa.

Aquela audácia deixou Laura sem fala. Gilberto a tinha feito de boba, roubara todas as suas economias e dera-lhe um anel da esposa para o noivado. Agora tinha a coragem de pedir que o devolvesse!

— O gosto da sua mulher para jóias é tão horrível quanto para homens!

— Até hoje você parecia satisfeita com ambos! — Os olhos azuis de Gilberto a fixaram furiosos.

— Pensei que fosse diferente…

— O quê? Um animalzinho de estimação em quem podia mandar e desmandar quando tivesse vontade?

— Não!

— Um impotente a quem às vezes era permitido o privilégio de beijar esses lábios puritanos? — Gilberto tornou a olhá-la desgostoso. — Seu noivado com Harrington é uma grande farsa, assim como você também.

— Eu…

— Quero o anel de volta, Laura. — A voz dele estava perigosamente suave. — Se você não tivesse ido ao joalheiro, ontem, ele já estaria comigo.

— Devolverei o anel quando tiver meu dinheiro, antes não.

— Agora!

Laura balançou a cabeça devagar.

— Não até ter meu dinheiro. Onde sua mulher pensa que o anel está?

— No joalheiro, diminuindo o tamanho, é claro!

— É claro? — Ela riu bem-humorada. — Então você vai se dar mal se não o devolver, não é?

— Quero o anel, Laura.

— E pode tê-lo. Assim que trouxer meu dinheiro.

— Sua… — Ele parou, olhando ao redor quando ouviu uma batida na porta da loja. — Será que não sabem ler o aviso de "fechado"?

A batida se repetiu e Laura se levantou.

— É Raul. Tenho certeza de que tanto quanto eu não quer que ele ouça essa conversa. Então, vamos aceitar que estamos de acordo por enquanto, certo? Eu disse: "certo, Gilberto"? — repetiu mais alto, quando ele não respondeu.

— Não estou desistindo, Laura — ele falou entre dentes.

— Não se preocupe — ela riu. — Nem eu!

Foi abrir a porta e Raul entrou, olhando zangado para Gilberto, antes mesmo de cumprimentá-la.

— Tudo bem com você? — perguntou, enquanto Laura trancava a porta de novo.

Um pouco do vento frio entrou com ele. Estava bem agasalhado usando jeans, malha de lã verde e uma jaqueta. Era difícil Laura vê-lo sem o terno de trabalho ou roupa social e de alguma maneira aquele modo informal de se vestir lhe dava maior confiança. O relacionamento deles até podia terminar bem… Pelo menos, assim esperava; não suportaria mais nenhuma humilhação!

— Estou ótima — disse com suavidade, observando os dois homens se olharem.

Ambos se odiaram à primeira vista. Será que Raul havia percebido de imediato que Gilberto era um homem fraco e mercenário e que fingira amá-la só para tirar-lhe dinheiro? Não queria que Raul sentisse pena dela. Mas ele não demonstrava o que lhe passava pela cabeça. Apenas pôs a mão no seu ombro e a puxou contra si.

— Sem ressentimentos, espero, Gilbraith? Aproveitei a sua vacilada e reivindiquei Laura para mim.

O outro homem permaneceu em silêncio. Laura se sentia nas mãos de Gilberto, não queria que Raul soubesse do roubo.

— Desde que Laura seja feliz…

— Oh, ela é! E farei o possível para que seja sempre assim!

Laura pensou se tinha só imaginado a ameaça atrás das palavras inocentes, mas um olhar para Gilberto lhe mostrou que não; a raiva estava presente em todos os gestos dele.

— Estou certa de que serei feliz. — Laura se aconchegou a Raul. — Com você!

Ele a abraçou.

— Se já conseguiu o que queria, Gilbraith... — disse para o outro homem.

Por um instante, Laura pensou que Gilberto ia discutir, mas ele só suspirou.

— Por enquanto... — sorriu com frieza.

— Que quer dizer? Acho que devo avisá-lo: não permito que ninguém tente tirar algo meu! — Agora era Raul quem o ameaçava.

— Sei muito bem do que você está falando. — Gilberto piscou, com inocência. — Desejo aos dois vida longa e muitas felicidades. A gente se vê — disse diretamente à Laura antes de sair, batendo a porta.

Fez-se silêncio. Raul parecia uma fera. Mas, ao olhar para Laura, seus olhos brilharam de desejo.

— Que tal me abraçar de novo? Agora estamos a sós e posso fazer algo a respeito!

— Você não pensa em outra coisa? — Laura se virou e entrou no escritório.

Raul a seguiu, bem relaxado.

— Do teu lado? Não!

Laura sentou-se.

— Como foi que conseguiu manter as mãos longe de mim, durante todo o ano que passou?

— Não foi fácil.

— Mas conseguiu resistir, certo?

— É, mas não porque quis.

— Então, por quê?

— A desilusão em certos olhos azuis…

— E agora estou mais desiludida ainda. Compromissos desfeitos levam a isso! — O orgulho não lhe permitia admitir o outro assunto com Gilberto.

— O que houve entre vocês antes de eu chegar? — Raul a observou, atento.

— Nada. Não há muito a dizer quando um dos dois muda de idéia sobre se casar.

— Vocês ficaram…amigos de novo?

— Não! — ela negou com firmeza, mas logo relaxou. Raul era muito astuto, muito interessado no que acontecera entre Gilberto e ela. Não seria enganado por muito tempo se ela não se controlasse. — Nunca seremos amigos. Obrigada por oferecer sua ajuda, Raul, mas como já disse, foi desnecessária.

— Não foi por isso que eu vim. Queria ter certeza de que ele mudaria de idéia. Também achei que você pudesse mudar de opinião.

— Nem pensei nisso — ela assegurou.

— Só precisava ter certeza.

— Raul, quer parar, por favor? — Laura sentia-se cada vez mais cansada. Havia dormido pouco, preocupada com as contas que tinha para pagar. Por causa da atitude de Gilberto, outras noites insones se seguiriam até resolver tudo. — Não precisa restaurar minha autoconfiança, ou seja lá o que for que está tentando fazer!

— Talvez eu precise…

— Raul, não sei o que está tentando, mas pare!

— Gilbraith também teve tantos problemas?

— Problemas com quê? — ela perguntou com suspeita.

— Não importa. — Raul balançou a cabeça. — Como é, já terminou o serviço?

— Mal comecei. Ainda preciso fazer o resto da contabilidade.

Raul olhou o relógio.

— São quase sete horas, e nos esperam para o jantar às oito. Que tal se eu te ajudar?

— Sou perfeitamente capaz…

— Eu sei que é. Se não fosse, não teria agüentado cinco anos sozinha nessa loja.

— Como sabe que faz cinco anos? Já sei: Amanda. Só podia ser ela. — Laura riu, mais descontraída. — Então, ainda duvida da minha capacidade?

— De jeito nenhum! Pelo jeito você tem negócios particulares para tratar. — Raul fez uma careta.

— Sim, desculpe.

— Neste caso, vou para casa trocar de roupa. Depois volto e levo você até o seu apartamento. Aí estaremos livres.

— Eu costumo ir a pé para casa. É bem pertinho.

—- Será mais rápido se eu vier te buscar — ele insistiu. — Agora vou deixar você contando o seu santo e suado dinheirinho…

Laura se surpreendeu por ele ter aceitado a decisão tão depressa. Afinal, Raul não era o tipo de homem que mudasse os planos com facilidade. Talvez não fosse tão arrogante como supunha. Mas sim, ele era!

Provavelmente, precisara de muita força de vontade para não tentar se impor. Se ele estivesse pensando que poderia controlá-la, enganara-se redondamente. Sentia-se agradecida, mas era só isso. Já ouvira sobre tantas mulheres na vida do herdeiro dos Harrington, que não pensava em ser mais uma delas!

 

Laura já estava com dor de cabeça de tanto ficar debruçada sobre os livros de contabilidade. Não havia encontrado nenhuma brecha da qual pudesse tirar algum dinheiro para renovar o contrato de aluguel para o próximo ano.

Não tinha a menor vontade de sair para jantar, principalmente na casa da mãe. E a última coisa que faltava para acabar de complicar tudo era a companhia desse homem tão charmoso, Laura pensou, ao ver Raul sair do frio e entrar na loja.

Seria bem melhor que a jaqueta marrom de veludo que ele vestia não assentasse com perfeição nos ombros largos e que a calça de lã cor de areia não moldasse aquelas coxas viris de modo tão insinuante... Do jeito que se encontrava ferida, emocionalmente frágil, poderia fazer alguma bobagem antes da noite acabar! Precisaria tomar muito cuidado.

— Gilbraith não voltou?

— Claro que não.

— Então, acabou o serviço? — Raul esfregou as mãos para se esquentar. — Começou a nevar.

— Sério? — Ela foi até a porta, abriu-a, e deixou que o vento gelado e vários flocos de neve entrassem. Tudo lá fora parecia coberto com um manto branco. — Adoro a neve. — Sorriu e balançou a cabeça, para soltar alguns flocos grudados no cabelo.

— Se quiser, mais tarde faremos uma guerrinha. — Raul se aproximou dela, ao lado da porta ainda aberta.

— Está falando com a campeã de bolas de neve! — Os olhos de Laura brilharam, travessos.

— Laura, como você é linda quando está descontraída! — Ele a tomou nos braços, reclamando-lhe a boca numa carícia sensual, apertando-a contra si.

Raul sempre a pegava de surpresa. Parecia adivinhar os momentos em que se encontrava mais vulnerável… Ele a acariciou devagar, o beijo se aprofundando e demorando. As mãos de aura, tremulas, tentaram resistir à vontade de acariciá-lo também, mas foi impossível. Quando percebeu, sentia-lhe o contorno do rosto, deslizava os dedos por baixo da jaqueta, querendo mais, muito mais…

— Olhe esse namoro aí! — Um rapaz que passava mexeu com eles.

Os dois se assustaram com a interrupção inesperada. Laura entrou depressa na loja, sem graça e aborrecida por ter se perdido de novo no prazer sensual de estar nos braços de Raul Harrington.

— Ele não quis ofender. Laura — disse Raul, seguindo-a ao escritório.

— Eu sei. Eu... Não devia ter acontecido.

— Por que não?

— Ora, Raul. Ontem eu ia ficar noiva de outro!

— Mas não ficou.

— Mas ia… — ela insistiu.

— Você não amava Gilbraith!

— Também não amo você!

— Foi só um beijo, doçura.

— Parece que foram beijos demais em tão pouco tempo.

— Gosto de beijar você. E não diga que também não gosta, senão vou ter que provar que está errada. Além disso, não sabe que seu nariz vai crescer se disser mentiras?

— No meu caso até que seria bom…

— Acho o teu nariz lindo. — Raul a observou trancar as portas e pegar o casaco para irem embora. — Esta é uma das coisas que me dão esperança.

— Do que você está falando?

— Da menininha que existe em você. Ela tenta escapar dessa couraça fria e racional que você tão duramente lhe impôs. — Ele segurou o braço de Laura ao saírem para o vento gelado, a neve caindo incessante, o chão escorregadio. — Essa menininha quer brincar, de vez em quando. Não é a mesma que determinou a se casar com ele. Desta vez você se deu mal, Laura.

— Parece uma conclusão bastante óbvia, não? Afinal, fui abandonada publicamente.

Raul segurou a porta do carro para que ela entrasse.

— Sim, mas tenho a impressão que você não pensou direito sobre o assunto. Talvez tivesse planejado tudo sozinha... o tipo de casamento que desejava, o relacionamento que estabeleceu com Gilberto… Se esqueceu de perguntar a opinião dele, não foi?

— Não! — Laura não queria admitir a verdade das palavras de Raul, mas no íntimo sabia que ele estava com a razão. — Eu nem teria considerado a possibilidade de casar com Gilberto se não…se não me orgulhasse dele.

— Não mesmo?

— Ora, Raul, não me amole.

— E onde foi parar esse orgulho, depois que o noivinho te deixou a ver navios?

— Não estou com a menor vontade de discutir esse assunto, sabia? Acho que não preciso ficar procurando justificativas para o que faço ou deixo de fazer…

Mesmo que quisesse, Laura não iria conseguir explicar tudo o que se passava em seu coração. Durante muitos anos observara a mãe saltar de um relacionamento para outro, acumulando decepções, e então decidiu que quando se casasse não se preocuparia com o amor. Tinha vinte e seis anos, uma livraria que lhe rendia mais do que o suficiente para viver, muitos amigos, mas sua vida particular ainda era vazia. Um marido que não exigisse muito dela pareceu-lhe o passo lógico para tirá-la da solidão. Não sentia medo dos homens ou de um relacionamento físico, só não queria que a sua vida fosse regrada pela paixão e amor por alguém que nunca merecesse ou apreciasse isso.

Mas Raul tinha razão, ela se enganara muito com Gilberto. Os últimos acontecimentos, o rompimento do noivado, a descoberta de que era casado, serviram para lhe mostrar que espécie de homem ele era. Não estava surpresa, no entanto. Aprendera à custa de muita desilusão que o relacionamento entre homem e mulher era quase sempre um beco sem saída. Recriminava-se por ter sido tão tola quanto Amanda, mas, fora isso, dizia a si mesma que agora escolheria o melhor caminho. Ficaria sozinha. Nem Raul teria o poder de envolvê-la de novo na perturbadora vertigem da paixão.

Raul sentou-se na sala, enquanto Laura foi tomar um banho e se trocar. Ela não duvidava que a decoração verde e creme do apartamento era por demais prática e ordenada para o gosto dele.

Laura estava ficando cansada da ironia de Raul sobre sua vida disciplinada e previsível. Por isso, tirou do armário um vestido de noite vermelho; a saia longa e esvoaçante assentava muito bem nos quadris, o corpete sem alças, bem justo, realçava sua figura esguia, moldando-lhe o busto. Vira esse modelo, em preto, numa butique sofisticada, por um preço astronômico. Tinha adorado e não hesitara em mandar fazer um igual, só mudando a for. O estilo era eterno; podia ter estado em moda há cem anos, ou em qualquer época.

Penteou os cabelos para o alto, bem fofos e maquilou-se com cuidado. Os olhos azuis se sobressaíam ainda mais com o rímel azul-marinho e os lábios se tornaram ainda mais convidativos com o batom quase da cor da roupa. Não esqueceu os sapatos de saltos bem altos.

— Vou telefonar aos nossos pais e dizer que não podemos ir. — Raul se levantou devagar, quando Laura entrou na sala, hipnotizado por aquela beleza. — Prefiro ficar aqui sozinho com você. — Seu olhar faminto a devorava. — Quero ter o prazer de tirar esse vestido…

— Não gostou dele? — Laura o provocou de propósito, lançando-lhe um olhar faceiro.

— Adorei. — Ele suspirou fundo. — Você parece uma princesa.

— Obrigada. — Ela se inclinou graciosamente, numa reverência.

— Será que vai me dar a chance de ver se você fica tão bem sem ele?

— O que você acha?

— Acho melhor irmos para minha casa antes que papai e Amanda me acusem de sedução e ponham meu nome numa lista negra. — Ele pôs o agasalho nas costas de Laura. — Enquanto você foi se trocar, dei uma olhadinha na estante…

— Já sei, não achou nenhum romance interessante — ela zombou, enquanto desciam para pegar o carro. Não havia romances na biblioteca da sala. Tinha uma coleção particular no quarto, onde ninguém entrava, a não ser ela.

— Mas encontrei algo interessante, sim.

— É mesmo?

— Oliver Twist, de Charles Dickens, bem manuseado.

— É um clássico. Uma das minhas histórias favoritas.

— E minha também. Que coincidência.

— Então não pense que sou tão desmiolada e inculta; nem tampouco mesquinha com meu dinheiro!

— Não, com dinheiro não. O aparelho de jantar que comprou para Amanda e papai quando casaram era lindo e muito caro. Mas…

— Mas?

— Mas existem coisas bem mais importantes do que presentes…

— Já sei… afeição.

— Como adivinhou?

— Raul, se toda essa conversa é sobre meu relacionamento com Amanda…

— Só em parte, também é sobre Gilberto. Assim que o vi soube que ele não servia para você, não…

— Engraçado… Você já percebeu que todos os seus relacionamentos falharam?

— Quem disse que falharam?

— Você ainda não casou!

— Por opção.

— Eu também estou solteira por opção.

— Uma opção bem diferente. — Ele balançou a cabeça. — Eu procuro o amor, você o evita.

— Se você quer que o jantar seja agradável, acho melhor parar por aqui — Laura avisou.

— Não está mais aqui quem falou. — Raul sorriu sem rancor. — De agora em diante não me meto mais na sua vida, certo?

Laura sentia que devagar Raul estava fazendo com que se rendesse. Era o primeiro homem que ao beijá-la havia conseguido que seus bloqueios desaparecessem quase que por completo. Nos braços dele o passado parecia não existir.

Amanda, como sempre, estava linda num vestido branco simples e elegante. Acompanhada por Roberto, cuja simpatia era indiscutível, dava as boas-vindas à filha.

Laura nunca se sentira diferente junto à família: era sempre uma visita, apesar da boa-vontade dos Harrington. No entanto, nos raros jantares a que comparecera na casa da mãe, eram apenas os quatro presentes. Amanda e o marido, ela e Raul.

— Quer dizer que os dois finalmente resolveram criar juízo? — Roberto mostrava-se feliz com a perspectiva de um noivado entre o filho e Laura. — Sempre achei que vocês dois foram feitos um para o outro. Mas precisou correr o risco de perdê-la para perceber isso, não foi, seu cabeça-dura? — Abraçou Raul com carinho.

— Mas garanto que vou ser o último na vida dela, pai.

O jantar transcorreu num clima de descontração. Raul parecia um adolescente; transbordava de felicidade. A todo instante abraçava e acariciava Laura. Essas atitudes a deixavam confusa e preocupada.

Amanda e Roberto sorriam com indulgência, parecendo apreciar muito essas demonstrações de afeto. Laura até pensou ter visto lágrimas nos olhos da mãe, mas depois achou que fora imaginação. Amanda seria incapaz de chorar por qualquer coisa que não fossem seus próprios problemas.

 

Quando Raul levava Laura para casa, depois do jantar, ainda insistiu em falar no relacionamento conflitante que havia entre ela e a mãe.

— Existe outra razão, além do divórcio e da vida difícil que depois tiveram que levar, para você odiar tanto Amanda? —- perguntou com suavidade.

Laura corou.

— Eu não odeio…

— Ah, odeia sim. Nunca tinha percebido o quanto, mas esta noite eu vi!

— Tudo o que mencionou não é mais do que suficiente? — Ela desistiu de negar o ódio surdo que a mãe lhe despertava. Na presença de Raul, se sentia transparente.

— Talvez no começo o ressentimento fosse natural, mas depois, as circunstâncias deviam ter aproximado vocês duas. Laura, para se decidir o fim de um casamento é preciso duas pessoas. Nunca senti que você também odiasse seu pai.

— Ele está morto. — Laura não tinha mais visto o pai desde que ele se fora para os Estados Unidos. Avisaram-na do falecimento dele por carta, tarde demais até para ir ao funeral.

— Eu sei — Raul concordou gentil. — Mas antes disso, não o odiou?

— Ele não quis que o casamento terminasse, foi Amanda quem decidiu. — A voz dela soou carregada de amargura.

— Quando não se ama mais, o certo é fazer isso Laura.

— Faz tempo que já perdoei minha mãe por não amá-lo mais. Só… só não consigo perdoar o fato de ela ter-me separado de Dan! — Laura estava zangada com Raul, por forçá-la a lembrar daquele tempo terrível, e também consigo mesma, pela emoção que demonstrava. — Amanda foi de uma crueldade sem limites…

— Dan era… teu namorado?

Para Laura não foi surpresa descobrir que Amanda não havia contado a Roberto e a Raul sobre Dan; isto tudo demonstrava mais uma vez como ela era egoísta. Mas apesar de desprezar a mãe pelo modo como Dan lhe fora tirado, não queria que Raul conhecesse os detalhes daquela separação.

— Eu o amava.

— Parece que ainda o ama. — Raul estacionou o carro diante do prédio de Laura.

— Lembro dele com um carinho enorme… Tenho saudade, às vezes.

— Por que você não o procura? Ele é casado?

— Não, não é casado, mas é tarde demais. — Laura lembrou das complicações entre Dan e ela, há cinco anos. Sim, era tarde demais para reencontrarem a afeição e o companheirismo que havia existido.

— É por isso que pretendia levar adiante aquele relacionamento absurdo com Gilbraith?

Falar de Gilberto lembrou a Laura o terrível dilema em que o ex-noivo a colocara, e não queria pensar nisso agora. Saindo do carro, jogou um punhado de neve no cabelo de Raul, divertindo-se com a expressão cômica dele quando a neve lhe escorreu pelo rosto.

Raul recobrou-se rápido do susto, também apanhando um pouco de neve para se vingar.

— Então, quer brigar? — Jogou a bola na direção de Laura.

Ela se abaixou depressa, conseguindo se desviar. Aproveitando, pegou mais um pouco e desta vez acertou o peito de Raul, fazendo com que a camisa branca se colasse ao corpo, molhada.

— Você é uma grandessíssima…

— Campeã — ela completou, novamente evitando ser atingida.

— Vamos ver! — A velocidade com que Raul começou a atirar era tamanha que desta vez algumas acertaram o alvo.

Pouco depois, os dois estavam gelados, molhados e ofegantes.

— Eu me rendo! — ele finalmente gritou, com o cabelo tão molhado que parecia ter saído do banho. — Você é a grande campeã! — falou quando caíram nos braços um do outro. — Mas quem ganhou fui eu, sabia? — anunciou em triunfo ao colocar um monte de neve dentro do decote de Laura.

— E eu sou a vitoriosa! — ela revidou ao puxar o cinto da calça de Raul jogando dentro outro punhado. Riu ao vê-lo tentando se livrar daquela ousadia inesperada. — Por favor, querido — disse alto, ao perceber que um casal bem idoso os observava chocado. — Pelo menos espere até subirmos!

Ao erguer a cabeça, Raul ficou desconcertado ao constatar as testemunhas e desistiu de tirar a neve da calça. Segurou o braço de Laura e empurrou-a para dentro do edifício.

— Você é uma peste! — murmurou entre dentes.

Laura o olhou com inocência.

— Meu decote está todo molhado!

— E eu posso te garantir que não é bem o meu decote que está molhado.

— Raul… Pare com isso.

— Sugiro uma coisa — ele brincou. — Eu posso até te enxugar, mas com uma única condição: depois quem me enxuga é você. Combinado?

Laura começou a rir.

— Pensei que o gelo tivesse esfriado o teu desejo.

— Um pouco de carinho vai deixar tudo em ordem!

— Você não passa de um grande oportunista! — Laura não conseguia parar de rir ao ver a maneira como ele caminhava para não sentir o molhado. — Realmente, Raul, você… Oh! Meu Deus! — Estacou ao entrar no apartamento, não podendo acreditar no que tinha à frente.

Nem parecia o seu apartamento. Livros, móveis, roupas, tudo jogado no chão, numa desordem desconcertante. Sentiu-se em pânico. Era como se alguém tivesse investigado sua vida particular, expondo-a, despindo-a e deixando-a nua diante do mundo. Não sabia se poderia agüentar a náusea.

— Laura, que foi? — Raul finalmente a alcançou, parando espantado. — Meu Deus... — exclamou incrédulo, abraçando-a ao vê-la tremer. — Quem poderia fazer uma coisa destas?

Laura não se sentia bem, não dava para agüentar mais.

— Desculpe — conseguiu dizer com voz estrangulada, antes de correr ao banheiro.

Braços fortes a ampararam, e Raul mais uma vez a abraçou, fazendo-a deitar a cabeça no seu peito, sem permitir que protestasse.

— Vou estragar seu paletó.

— Você acha que vou perder a chance de ter você nos meus braços? — ele disse tentando suavizar a situação.

Laura sabia que ele estava querendo confortá-la, mas ainda precisava voltar ao quarto e ver todo seu mundo desfeito. Até os vasos com plantas haviam sido esvaziados no tapete. Foi até a pia para se refrescar. Não adiantou muito, o golpe fora duro demais.

— Não toque em nada. — Raul a advertiu com gentileza, quando viu que ela ia levantar uma estatueta quebrada. — Temos que chamar a polícia. Devem existir muitas impressões digitais.

Raul estava pensando nos arrombadores que haviam rondado o prédio, mas Laura não precisava das impressões digitais. Quem entrara ali era uma pessoa muito conhecida e procurava uma jóia. Especificamente, um anel.

Laura sabia que fora Gilberto o causador de tanto transtorno. E tudo por nada. O anel estava com ela a noite inteira, na bolsa. Guardara-o ali no dia anterior e acabara se esquecendo. Jamais podia imaginar que o ex-noivo estivesse tão desesperado para recuperá-lo a ponto de fazer uma loucura dessas!

Sentou-se, atordoada, enquanto Raul ligava para a polícia. Deixou que ele tomasse conta de tudo. Os policiais chegaram pouco depois, e Laura respondeu mecanicamente às perguntas. Quando lhe pediram para verificar se estava faltando alguma coisa, olhou em volta, descobrindo que algumas bijuterias sem valor haviam desaparecido. Incrível como Gilberto havia sido esperto. Se nada estivesse faltando, tudo apontaria para ele. Mas do modo como foi, Gilberto se confiara no orgulho de Laura, que não admitiria ter sido ingênua o bastante para dar-lhe o dinheiro em troca do amor. E ele estava certo, ela não podia contar a ninguém como tinha sido uma verdadeira imbecil.

— Você vai para minha casa — Raul falou com firmeza, assim que a polícia partiu.

Laura olhava desesperada para o caos no apartamento.

— E o que eu faço com tudo isso?

— A gente volta amanhã e limpa tudo.

— Acho que hoje não vou poder enfrentar Amanda e Roberto de novo.

— Eu falei "minha" casa, Laura. Já disse que meu canto é totalmente isolado.

Ela sentiu que não poderia ficar ali nem mais um minuto. E também não queria ficar sozinha naquela noite.

— Está bem, Raul. Acho que não tenho mesmo condições de decidir seja lá o que for.

— É para isso que existem os noivos.

Ela estava grata pela solidariedade de Raul, mas nem assim se decidiu a contar as suspeitas que alimentava. Tinha que ver Gilberto o quanto antes, pensou. Não naquele momento, mas assim que se recuperasse do choque. Aquele canalha não perdia por esperar!

— Vamos Raul? — Levantou-se e caminhou para a porta, decidida. Ficar ali se tornava cada vez mais insuportável. Ao virar-se para se certificar de que ele a seguia, viu-o apanhar uma camisola no chão. — Não! Deixe isso aí, por favor! Eu não suportaria usá-la, agora que ele... eles a tocaram!

— Tem razão. Vamos sair daqui. Posso pegar algo de Amanda para você.

— Acho melhor não. Eles poderiam fazer perguntas e… e não quero mais falar sobre isso hoje.

— Tudo bem, não se preocupe. A gente acha qualquer coisa lá em casa.

O calor do carro não a aqueceu. Tudo o que acontecera reapresentava uma ameaça muito maior do que o roubo do dinheiro: mostrava que Gilberto não tinha escrúpulos e que não recuaria diante de nada para conseguir o que quisesse. O pior de tudo é que ela ainda guardava consigo o precioso anel de Pamela Gilbraith. Talvez devesse contar a alguém. Raul? Não, diante dele nunca admitiria que tinha sido tão ingênua.

— Está tudo bem, querida. Não vou deixar ninguém ferir você de novo.

Era um belo pensamento, mas ela não acreditava nisso. Gilberto não havia conseguido o que queria e com certeza ia voltar. Se o anel era tão importante para ele, talvez devesse devolvê-lo logo, antes que…

Mas e o dinheiro? Sem o anel, não via possibilidade de recebê-lo de volta, e precisava dele desesperadamente!

 

Já eram duas horas da manhã quando Laura acabou de tomar banho, voltando para um dos quartos de hóspedes que Raul lhe preparara.

Um banho morno havia sido a maneira que ela encontrara para se livrar da lembrança de Gilberto, embora soubesse que nunca poderia lavá-la dos próprios pensamentos.

Raul tinha lhe emprestado uma camisa branca para dormir e estava justamente fechando o último botão quando ouviu uma batida na porta. Em seguida ele entrou.

— Desculpe, mas não uso pijama. Só deu mesmo para te arrumar esta camisa. — Olhou-a de um modo insinuante. — Você está linda.

A camisa ia até os joelhos, os ombros até os cotovelos e as mangas haviam sido dobradas inúmeras vezes até as mãos aparecerem. Laura não conseguia entender como Raul poderia achá-la bonita daquele jeito.

— Obrigada. Se eu soubesse teria usado isto no lugar do vestido vermelho.

— Ou nada. — Ele sorriu. — Estou certo de que teria sido melhor ainda.

— Você é muito engraçadinho…

— Não me leve a mal. — Raul aproximou-se e a abraçou. — Você tem um corpo lindo, Laura…

— Por favor! — Ela se afastou depressa. — Eu… gostaria de ficar sozinha.

— Claro. Se você precisar estarei logo aí ao lado, é só me chamar. — De repente, ele notou que ela chorava. — Laura? Por favor… não faça isso…

Laura não resistiu quando ele a tomou nos braços. Tentara ser forte, mas se sentia arrasada com o que acontecera. Sabia que estava sendo fraca, mas toda tensão acumulada naquela noite fez com que pela primeira vez, desde os onze anos de idade, dependesse emocionalmente de um homem.

— Sabe como estou me sentindo, Raul? — Soluçava contra o peito dele. — Sabe? Violada. Não consigo me conformar.

— Eu sei, doçura. — Ele acariciou-lhe os cabelos com carinho. — Percebi isso no seu rosto quando entrei e vi o que tinha acontecido. Só estava tentando distraí-la. Eu...

— Quer dizer que aquela história do meu corpo ser bonito era brincadeira?

— Claro que não. — Raul percebeu que ela estava bastante descontrolada. — Mas também sei que esta noite não é o momento certo para a gente tentar se descobrir.

Laura levantou a cabeça, os olhos úmidos.

— Não posso ficar sozinha esta noite. Preciso de… alguém.

— Imagino como você deve estar se sentindo… me dá um tempo até eu tomar um banho.

— Use o meu banheiro. — Só de pensar em ficar sozinha Laura já entrava em pânico. Provavelmente no dia seguinte se sentiria embaraçada por essa dependência, mas agora precisava muito dele.

—- Tudo bem — Raul concordou sorrindo. — Mas primeiro vou buscar o Fred; ele também não gosta de ficar sozinho à noite.

— Fred? — Laura estranhou o nome. — Não imaginei que tivesse um animal de estimação. É um cachorro ou um gato?

— É só um urso esfarrapado — ele admitiu pesaroso.

Os olhos de Laura se arregalaram, espantados. Não imaginava esse homem levando um urso para a cama. A idéia era tão inusitada que quase a fez esquecer o arrombamento. Depois se deu conta de que era isso que Raul queria, que ela esquecesse tudo.

— Você está brincando outra vez.

— De jeito nenhum! — Raul negou indignado. — Palavra de honra.

— É... acho que você não está mentindo. Existe mesmo um urso chamado Fred?

— Sim. Mas ele está em uma caixa, há vinte e cinco anos, desde que descobri que era bem mais interessante abraçar as gatinhas. Minha mãe insistiu para que o guardasse, um dia ia poder presentear um filho meu. E pensando bem, acho que esta noite você vai precisar muito dele. Talvez sinta vontade de me abraçar enquanto durmo. — Ele a olhou fingindo inocência. — Fred vai fazer com que fique bem quietinha, do seu lado da cama.

Laura entendeu a intenção daquelas palavras. Era uma maneira bastante delicada de lhe dizer que ele não a tocaria, e estava grata por esta consideração.

— Sua honra permanecerá salva comigo — assegurou a Raul. — Mas se quiser, pode trazer o Fred para te proteger melhor.

Assim que Raul foi para o outro quarto, ela se deitou. Apesar de ainda estremecer ao lembrar do apartamento, se sentia mais tranqüila por estar longe de lá. Agora que não achara o anel, qual seria o primeiro passo de Gilberto? Por enquanto, só poderia tentar se esquivar da esposa.

Esposa! Todos esses meses e ela nem desconfiara. E um filho, também. Gilberto havia lhe assegurado não gostar de crianças. Realmente era um grande cínico.

— Abrace Fred até eu voltar. — Raul pôs o brinquedo ao lado dela.

Ele não tinha brincado ao dizer que o urso estava esfarrapado; uma orelha maior que a outra, como se tivesse sido puxada uma porção de vezes, a boca torta, o botão do nariz pendurado por um fio e a cor, antes dourada, era agora indefinida.

Laura segurou o bichinho.

— Você deve ter gostado muito dele.

— Pensando nisso agora, me sinto meio culpado pela rapidez com que me esqueci de Fred. Foram anos e anos de um amor muito sincero.

Laura não conseguiu evitar um sorriso diante do olhar de Raul. Era um homem de contradições. Na livraria, tratara-a com a maior frieza, mas logo em seguida tinha corrido para auxiliá-la na festa de noivado. Controlara a situação no apartamento e se mostrava extremamente gentil. Além de tudo, não tinha feito perguntas estúpidas quando ela lhe pediu para passarem a noite na mesma cama, muito pelo contrário. Pareciam existir muitos homens em Raul: o amigo, o irmão, o amante… O amante? Não, o amante não!

— Sabe Raul, acho que Fred vai ser companhia suficiente para mim hoje. Afinal de contas ele também me parece confiável.

— Com toda a certeza... Só que ele não sabe abraçar muito bem, você vai ter que perdoá-lo.

Laura riu.

— Não tem importância, eu também não sei. — Ficou vermelha ao notar a expressão dele. — Quero dizer…

— Tudo bem, Laura. — Ele lhe acariciou os cabelos. — Mas se eu ficar, não vou forçar nada. De maneira nenhuma.

Ela não se preocupava com Raul. A vulnerável ali, naquela noite, era ela; não ousava se arriscar a passar por uma situação da qual se envergonhasse à luz do dia.

— Vou ficar bem com Fred — insistiu, evitando a pergunta daqueles olhos dourados. — Prometo que ele não vai te trair.

— Se precisar de mim, sabe onde me encontrar.

Laura ficou chateada quando ele saiu e fechou a porta. Não queria magoá-lo, mas tinha visto frustração naqueles olhos lindos. O remorso por ter sido um pouco rude fez com que sentisse vontade de sair correndo e dizer o quanto precisava dele. Mas na última vez que dissera isto a alguém havia se machucado muito. Dan. E seu pai antes dele. Poderia mais uma vez se arranjar sem a ajuda de ninguém.

Mas Laura não adormeceu. Não podia… ainda se sentia ameaçada. Levantou-se e andou pelo quarto, tentou ler um livro da estante. Nada, as folhas pareciam todas em branco. Finalmente, tirou da bolsa o anel. Nem mesmo era bonito.

— Pensei ter dito que me chamasse, caso precisasse! — Raul estava em pé ao lado da porta. O robe curto amarrado à cintura mostrava as pernas longas e bronzeadas.

Ela sentiu-se culpada. Seus dedos se fecharam sobre a jóia.

— Está tudo bem, Raul. Obrigada. Só não consigo dormir.

— Que estava fazendo quando entrei?

— Eu?

— É. — Ele atravessou o quarto, suas mãos seguraram as dela, e com gentileza abriu-lhe os dedos, revelando o anel.

— De Gilbraith! — rugiu.

Laura observou-o enquanto ele examinava o anel.

— É dele, não é, Laura? Pensei que tivesse devolvido!

— Eu... ele esqueceu quando você chegou lá na livraria. — A voz tremia ao mentir.

— Ele não vale nada, Laura. Gilberto é um canalha.

— Eu não. ..

— Sei que não é da minha conta. — Raul pôs o anel no bolso e a abraçou. — Mas não quero que sofra por ele, às escondidas. Aquele homem não merece você.

Laura ficou brava.

— O que você…

— Sabe sobre o caso? — Raul terminou a frase. — Sei muito mais do que imagina. Por exemplo, sei que nunca dormiu com Gilbraith…

— Se dormi ou não com ele, isso é assunto meu.

— Agora é meu também — ele disse com calma. — Se não dormiu com Gilbraith, saindo com ele por seis meses, isso significa que devo ser muito gentil quando fizermos amor. Sei que você precisa de mais tempo.

— Mas como não vamos fazer amor…

— Ah! Mas vamos, sim, Laura. Claro que vamos.

— Não!

— Você não consegue dormir, nem eu...

— Só por isso você acha que a gente deve pular para a cama? Não gosto de nada casual.

Raul sorriu.

— Não estaríamos "pulando". — Só para provar o que dizia, levantou-a no colo e a colocou devagar sobre as cobertas, antes de se deitar ao seu lado. — E não haverá nada casual nisso também. — Começou a desabotoar-lhe a camisa. — A partir de agora pretendo fazer amor com você regularmente, pelo menos uma ou duas vezes por noite, e de novo pelas manhãs.

— Raul! — Ela estremeceu ao sentir as mãos quentes movendo-se sobre sua pele, tocando-lhe os seios expostos. — Raul, você não pode…

— Claro que posso. Talvez você precise descansar de vez em quando já que está fora de forma, mas esteja certa de que eu tenho desejo suficiente por você para durar uma vida inteira.

— Não quis dizer isso! — Laura balançou a cabeça, desesperada. — Nós não podemos.

— Claro que podemos! — Raul puxou a camisa, desnudando os ombros delicados, enquanto acariciava-lhe os seios.

— Raul... — Laura suspirou ao sentir o calor daquela boca exigente, a língua se movimentando ao redor dos mamilos. — Você disse que não ia forçar nada…

Raul olhou-a pensativo.

— Não estou forçando ninguém. Nunca fiz amor com uma mulher que não me quisesse.

— Então…

— Você também me deseja, querida. — Ele insistiu firme, desabotoando a camisa toda, o olhar se deliciando com o corpo bem feito. — Você é linda, Laura.

Ela se sentiu bonita diante da expressão do rosto de Raul. Sabia o que ele via ao olhá-la: pequenas seios ousados, cintura fina, quadris estreitos e pernas bem torneadas. Sentiu uma onda de calor se espalhar lentamente pela pele, como se só de olhá-la ele a incendiasse de desejo.

Quando os dedos dele seguiram o mesmo caminho no olhar, ela se assustou com as emoções que experimentava.

— Raul, por favor…

— Não vou magoar você, meu bem, não tenha medo. Só quero te amar. Se fizer algo de que não goste, diga que eu paro.

Laura sabia que ele pensava no que lhe havia contado sobre Frank Shepherd, e se prometeu que ia pará-lo depois de alguns minutos. Mas antes queria perder-se um pouco no desejo louco que tinha por ele. Quando a boca de Raul reclamou seus seios de novo, ela ergueu os quadris, convidativa, e se esqueceu do que prometera a si mesma.

Sua camisa se fora. Sentando-se, Laura o ajudou a tirar o roupão. Mas os lábios de Raul sugando-lhe os seios tornavam a tarefa demorada. Finalmente caiu sobre ele, os dois nus, suas bocas se procurando ávidas.

Ao acariciá-lo, Laura adorou sentir a reação daquele corpo, adorou perceber como era desejada. Entregou-se inteira às emoções, querendo dar a Raul tanto prazer quanto ele a fazia experimentar.

— Ah, Raul… Deixe-me sentir você…

Ele a olhou bem dentro dos olhos.

— Queria prolongar este instante, Laura, até não podermos mais suportar a espera… Queria que você descobrisse o prazer que me dá…

— Por favor, querido. — Ela lhe mordiscou a orelha, depois beijou-lhe os lábios, devagarzinho. — Não agüento mais esperar. Quero você… agora.

— Laura, Laura. — Ele fechou os olhos, percorrendo-lhe o corpo com as mãos, lutando para não explodir de desejo. — Há muito tempo que preciso de você, meu bem. Há muito tempo que te espero…

— Raul?

Ele não teve tempo de lhe contar. Os movimentos se tornaram mais acelerados, mais e mais urgentes, os beijos transbordando de paixão, até que a possuiu, alcançando o êxtase num momento de loucura.

Laura não esperava o olhar surpreso dele, ao se dar conta do ocorrido.

— É muito bom, Raul! — cobriu-o de beijos. — Por favor, faça com que fique melhor.

Raul não perguntou por que ela ainda era virgem aos vinte e seis anos. Com infinita ternura voltou a acariciá-la e a beijá-la, tratando-a com tanta delicadeza que quase a fez chorar. Depois, começou a se mover sem pressa, temeroso de magoá-la, até que a própria Laura lhe mostrasse como a excitação se torná-la insuportável. Tornaram a mergulhar no jogo do amor, rolando na cama, ávidos e finalmente explodiram sem controle, experimentando um prazer que parecia nunca mais ter fim.

Laura caiu exausta e satisfeita sobre o peito de Raul.

Quando Laura acordou, apenas Fred permanecia na cama com ela. Por alguns minutos, se esqueceu de onde estava, sorrindo ao sentir seu corpo tão calmo. Depois se lembrou do que acontecera durante a noite.

Levantou-se num pulo, deixando o ursinho cair no chão. Não havia sinal de Raul no quarto, nem do roupão que usara, também não se ouvia som algum no banheiro ao lado. Mas não era possível que tivesse sonhado. Nenhum sonho poderia ser tão real... e tão maravilhoso. Ele a acordara ao amanhecer, e mais uma vez se amaram, como se a descoberta um do outro não fosse terminar. Por duas vezes mais alcançaram o êxtase, aquele momento mágico em que homem e mulher se tornam um só, sem passado, sem futuro... E agora o desejava de novo.

Estava além da própria compreensão a maneira como reagira nos braços daquele homem. Sem dúvida que a sua inexperiência aumentara o prazer de Raul. Ouvira dizer que os homens achavam excitante ser o primeiro na vida de uma mulher; seria isso?

Não entendia por que ele havia partido. Seria tão bom acordarem juntos, conversarem sobre aqueles momentos mágicos que haviam partilhado… Será que Raul se arrependera? Talvez ele não tivesse coragem de encará-la, depois de descobrir que nunca havia pertencido a outro homem.

Insegura, Laura começou a andar pelo quarto, sem saber o que fazer. Deveria ir embora? Só de pensar no apartamento todo revirado, quase entrava em pânico. Ir para a outra ala da casa e encarar Amanda também não era uma perspectiva agradável.

Sempre pensara que sexo representava apenas uma pequena parte num relacionamento, que, uma vez satisfeita a curiosidade, nada mais restava. Agora Raul provava que estivera certa. Ele não poderia ter sido mais eloqüente. Seu sumiço tinha um significado muito evidente.

Virou-se para a porta ao ouvir um barulho. Uma empregada olhava para ela com curiosidade.

— Desculpe se acordei a senhora.

Constrangida, Laura se sentiu como uma mulher qualquer que Raul tivesse trazido para passar a noite.

— Não, já estava acordada. — Por sorte havia vestido a camisa, mas não a abotoara. Cada vez mais envergonhada, deu um jeito de se recompor.

A empregada sorriu.

— O sr. Raul pediu para que lhe trouxesse o café quando acordasse, mas disse que não era para perturbá-la.

— Fique tranqüila, você não me acordou. E… onde está Raul?

— Teve que sair. O que a senhora quer comer? Bacon com ovos, salsichas… ?

— Café e torradas é o suficiente, obrigada.

— Só isso?

— É só isso. Ele disse quando ia voltar?

— Não. Mas pediu para a senhora esperar. Já vou trazer o café.

— Obrigada. — Quando a empregada saiu, Laura voltou para a cama e recostou-se de novo nos travesseiros. Então Raul voltaria. Talvez não o tivesse desapontado tanto…

Espreguiçou-se, com um sorriso feliz. Sentia-se muito bem, apesar das incertezas. Não estava nem um pouco arrependida. Depois das tentativas de Frank, havia evitado qualquer envolvimento físico com homens, e até a noite anterior não achara difícil fazê-lo. Mas Raul tinha sido diferente. Desde o começo alguma coisa nele a atraía de forma assustadora e inconscientemente havia fugido, como se a razão a alertasse de que aquele homem lhe mudaria a vida. Se não fosse Gilberto, talvez nunca chegasse a se envolver com Raul… Como o destino era irônico.

No entanto, apesar da noite maravilhosa que passaram juntos, não queria alimentar nenhuma expectativa para aquele relacionamento. Continuava não confiando nos homens e ainda achava que o final de toda história de amor era muito triste. Preferia continuar como amiga de Raul. Os amigos eram muito mais sinceros, muito mais fiéis…

Quando tomava banho se lembrou de que Raul guardava no bolso o anel de Gilberto. Enrolou uma toalha no cabelo molhado, vestiu a camisa e o procurou pelo quarto. Não o encontrou.

Foi até o quarto de Raul e abriu a porta. Era um aposento atraente, decorado em marrom, laranja e creme. A mobília era bem masculina, mas não austera demais. A cama larga dava a idéia de ser muito aconchegante.

O quarto estava limpo mas não em ordem; algumas roupas jogadas na poltrona, um livro aberto sobre a mesinha, vários pares de sapatos jogados sob a cama.

Laura deu uma busca por todos os cantos. O roupão que ele havia usado na noite anterior estava pendurado na cadeira. Ela nunca tinha mexido no bolso de outra pessoa, mas precisava encontrar o anel. Os bolsos estavam vazios.

Talvez Raul também tivesse se esquecido dele ao tirar o roupão. Poderia estar em qualquer lugar daquele quarto. Pensou na possibilidade de ter rolado sob a cama. Ajoelhou-se para procurá-lo, mas tudo já havia sido limpo.

— Sei que pedi para me esperar — ouviu uma voz divertida atrás de si — mas nem em minhas fantasias mais ousadas me ocorreu que me esperaria aqui.

Ainda de joelhos, Laura sentiu-se culpada. A toalha caíra e o cabelo curto ainda molhado estava todo crespo. Parecia muito jovem, quase infantil, principalmente pelo rosto levemente ruborizado.

— Onde esteve? — perguntou ao se levantar.

Raul deu de ombros, entrou no quarto e fechou a porta.

— Fui comprar uma cópia do Kama Sutra. Depois de ontem, acho que você está pronta para qualquer coisa.

Laura não se permitiu ficar constrangida com a brincadeira.

— Acabou a criatividade?

Ele riu.

— Do jeito que me sinto ao te olhar, posso inventar coisas que o Kama Sutra nunca ousou imaginar.

— Onde você esteve, Raul?

— No seu apartamento.

— No meu apartamento?! Para quê?

— Laura...

— Pegou a chave na minha bolsa? Como ousa mexer nos meus objetos pessoais?

Raul ficou surpreso. Ergueu as sobrancelhas, querendo lembrá-la de que era ela quem estava vasculhando o quarto dele.

— Poderia lhe fazer a mesma pergunta… Só que não me preocupo, pois não tenho nada a esconder.

— Nem eu! — ela retrucou brava.

— Não? Tem certeza?

Laura sabia que ele achara algo. Mas o quê? Não possuía nada que a comprometesse no apartamento... e a carta do escritório da Campbells estava na bolsa.

— Encontrei uns livros, Laura. .

— Não guardo meus livros-caixa em casa — ela negou.

— Não foram os livros-caixa. — Ele riu. — Você nunca pensa em outra coisa senão no trabalho?

Como Laura estivera o tempo todo pensando nisso, nem se dignou responder.

— Por que andou bisbilhotando na minha casa?

— Não foi essa a intenção. Estive apenas limpando tudo.

— Limpando?

— Sim. Colocando as coisas no lugar. Achei que você gostaria de dormir até mais tarde e, como eu costumo levantar cedo, pensei que um de nós devia pôr sua casa em ordem.

— Você fez isso?

— Fiz. Claro que não consegui colocar tudo no devido lugar, mas acho que dei uma boa ajeitada.

— Que diria, hein? Você pondo em ordem o meu apartamento… — Laura olhou ao redor, para o caos do quarto.

— Não tente mudar de assunto. Isso não vai fazer com que eu esqueça os livros.

— Que livros? — Laura perguntou impaciente.

— Famosos best-sellers românticos e eróticos — ele revelou com satisfação. — Parece que saíram de uma estante do seu quarto.

— Você não tinha o direito! Foi lá para me espionar…

— Laura, só pus os livros na estante.

Laura fez uma careta ao pensar que Gilberto também vira sua coleção de histórias românticas e eróticas. Eram livros raros, de autores famosos ou menos conhecidos, que ela fora juntando pacientemente ao longo de muitos anos. Os mais preciosos eram considerados "malditos", como o Marquês de Sade ou George Bataille, que numa época só podiam ser editados clandestinamente. Tinha o maior ciúme daquelas obras, detestava até mostrá-las aos amigos, com medo de que as pedissem emprestadas.

— Por que essa expressão de susto, querida? Qual é o problema em guardar livros eróticos?

— Não gosto que invadam minha privacidade. Odeio me sentir exposta desse jeito.

— Meu bem, não fui "eu" quem invadiu sua privacidade, esqueceu? — A voz dele soou carregada de ternura, Laura, suspirou.

— Desculpe. Ainda estou nervosa com esse assunto.

— Está bem, vamos deixar isso de lado. — Ele fez uma pausa, percorrendo-lhe o corpo com o olhar. — Você está uma gracinha, com esses cabelos molhados e essa camisa… Puxa, Laura, acho que desejei você desde…

— O momento que me conheceu — ela completou impaciente. — Por favor, Raul, tente me poupar, ta? Me dê o anel e eu vou embora.

— O anel de Gilbraith?

— Lógico, o anel de Gilberto. Você o pegou, não foi?

— Sim. Mas…

— Então me devolva.

— O anel ficará seguro comigo, até você combinar com Gilbraith para ir buscá-lo.

— Eu o quero de volta, Raul. Agora!

— Não vai dar, está trancado no cofre. Não precisa se preocupar tanto assim.

— É meu anel e…

— Errado. É o anel de Gilbraith. Tente se acalmar, Laura — ele aconselhou com suavidade, ao perceber que ela ia explodir. — Eu comprei um para você.

— O quê?!

Raul tirou do bolso uma caixinha e a abriu.

— Acho que esse é um anel bem mais bonito.

— Você não está pensando que vou usar isso, está? — Laura olhou para a jóia, atônita. Um solitário maravilhoso resplandecia contra o veludo escuro.

— Achei que era lindo. — Ele olhou o anel com pesar. — Mas se você não gosta…

— É claro que gosto. Mas não vou usá-lo só para que as pessoas saibam do nosso falso compromisso. Pode colocar de volta no cofre, com o resto da herança da família.

— Não é herança de família. Fui ontem comprá-lo para você.

— Estou certa de que o joalheiro recebe-o de volta com satisfação!

— Experimente, pelo menos, só para ver se acertei a medida.

— Raul…

— Por favor, doçura.

Era o mesmo tom suplicante que ele usara na noite anterior, quando se amavam. Laura não conseguiu resistir, estendeu a mão para que ele colocasse o anel no dedo.

— Perfeito! — Ele sorriu. — Não, não tire! — pediu quando ela quis devolvê-lo.

— Por que não?

— É uma superstição!

— Mas você disse que era só para experimentar…

— Não discuta, Laura, por favor. Estamos noivos, e vamos continuar assim.

— Raul.

— Tenho meus motivos para querer que este noivado seja de verdade. Não é tão terrível, é?

— Gostaria de conhecer essas razões.

Raul sorriu.

— A primeira é muito simples: alguém arrombou seu apartamento, você ficou desesperada e não podia dormir sozinha…

— Oh, não, você está se sentindo responsável por termos dormido juntos! Raul, que coisa mais antiga. O que houve entre a gente não tem nada de mais, foi uma decisão tomada conscientemente, pelos dois.

— Eu sei. — Raul deu-lhe um sorriso de entusiasmo. — fico feliz que você pense desse jeito.

— Só que isso não significa que esse relacionamento vá continuar, Raul. Nem que a gente precise manter essa farsa de noivado.

— Ah, precisamos sim, Laura.

— Você tem medo de que eu fique grávida?

— Para mim não teria o menor problema. — Ele a olhava com uma expressão divertida.

— Então… Não consigo entender. Por quê, Raul?

— Gosto de ser seu noivo.

— O quê?

— Gosto de ser seu noivo — ele repetiu com firmeza. — Gosto de estar com você, falar com você, gosto que pertençamos um ao outro.

— Raul, não quero ser sua noiva.

— Há mais uma razão — ele acrescentou, sério. — Quero provar que estava errada quando escolheu Gilbraith. Você procurava companheirismo, não amor.

— Você não se acha um pouco prepotente, não? Quer dizer que pretende me ensinar…

— É isso mesmo, e já está aprendendo… Você foi uma mulher ardente e vibrante ontem na minha cama.

— Isso foi… — Laura não conseguiu terminar a frase.

— Laura, eu te desejo muito. E vou mostrar o quanto perderia casando com Gilbraith ou com alguém como ele.

Raul era um louco, Laura pensou olhando mais uma vez para o anel que ainda estava em seu dedo, duas horas depois de ele tê-la deixado no apartamento. Tinha insistido em voltar para casa, recusando o convite para que passassem o dia juntos. Embora relutante, ele acabara concordando.

Olhou em volta, notando que a maior parte das coisas já estava no lugar. Ele acertara, o que demonstrava o quanto era observador. Mas apesar de quase tudo já estar em ordem, ainda podia perceber vestígios do arrombamento. Com um arrepio, tornou a se lembrar de que Gilberto vasculhara tudo o que era dela, numa intromissão intolerável. "Patife…”, pensou.

Como Raul era diferente! Não só no físico, mas principalmente no comportamento. Raul era uma pessoa franca, aberta, e não hesitava em demonstrar o que sentia. Lembrou-se da brincadeira na neve, os dois rindo e gritando como crianças. Às vezes ele lhe parecia mesmo um garotinho. Em outras, tornava-se o homem dominador, que gostava de ver a situação evoluindo conforme sua vontade. Talvez fosse essa característica Já personalidade dele que lhe garantira tanto sucesso como banqueiro. Raul não se curvava com facilidade quando decidia estar com a razão. A história do noivado tinha sido um bom exemplo.

A caminho dê casa, Laura avisara uma porção de vezes que não ia levar a sério aquele compromisso, que ele estava perdendo tempo em insistir. Raul não lhe dera ouvidos. Acompanhou-a até a porta, deu-lhe um beijo de despedida e disse que viria buscá-la às sete e meia para jantar. Antes que ela pudesse protestar, ele já estava longe.

Laura se considerava uma mulher independente, que não precisava de nenhum homem lhe controlando os atos. Que arrogância Raul dizer-lhe que o noivado continuaria até que ele decidisse o contrário. Uma noite juntos e já se achava no direito de mandar nela, de ser o príncipe encantado que caíra dos céus.

Mas tinha que vê-lo até que lhe devolvesse o anel da sra. Gilbraith; precisava estar com ele nas mãos antes de falar com Gilberto. O ex-namorado não faria nenhum tipo de acordo sem a jóia.

A ansiedade começou a aumentar, enchendo-a de angústia. Como é que tinha se metido em tamanha encrenca? Se pudesse, fugiria da cidade, iria se esconder em algum canto onde não conhecesse ninguém… Mas não podia fugir. Não podia largar a livraria, as contas a pagar, os compromissos… Droga! Com um suspiro, decidiu sair do apartamento; não agüentava mais permanecer entre aquelas paredes, pensando, pensando. Apanhou um casaco e foi até a livraria.

Era sempre agradável remexer nas prateleiras, folhear os livros, sentir o cheiro de papel novo… Laura trancou a porta e pôs-se a andar entre as estantes, observando aquele lugar que tanto amava. Era bom ficar ali sozinha: tinha a sensação de que nenhum perigo a ameaçava. Nem se lembrava mais de quando adquirira o hábito da leitura. Amanda a presenteava com toda a sorte de literatura e, embora Laura soubesse que era um estratagema para mantê-la afastada, não se importava. Mergulhava naquele mundo de fantasia, soltando a imaginação, distanciando-se da dor e dos conflitos da vida real.

Mais tarde, na época de se decidir pela faculdade, escolheu Literatura. Parecia-lhe o caminho natural, uma vez que praticamente crescera entre os livros. Abrira a livraria no mesmo ano em que entrara na universidade, com o dinheiro que o pai lhe deixara de herança. Depois de formada preferira continuar com o negócio em vez de dar aulas e nunca se arrependera da decisão. Não era uma loja grande, mas estava bem montada e sempre recebia todo o tipo de publicação. Nos últimos anos adquirira na boa clientela e chegara até a ser citada no Times pelas exposições de obras raras que de vez em quando promovia, em convênio com o Departamento Municipal de História.

E agora tudo estava ameaçado, pensou desesperada, com os olhos marejados. O que seria de sua vida se não conseguisse de volta o dinheiro que Gilberto lhe roubara? Se fosse despejada por não pagar o aluguel, não teria condições de arrumar outro espaço. O preço dos imóveis em Londres se tornara abusivo nos dois últimos anos. . .

Resolveu passar a noite ali mesmo. Poderia abrir mais cedo na segunda-feira e começar logo a trabalhar. Pelo menos não teria que enfrentar o resto do domingo no apartamento. O sofá do escritório nada tinha de confortável, era pequeno duro. O lugar estava frio e o suéter que ela usava a protegia só um pouco. Mas se sentia segura e fora de perigo; suas pálpebras finalmente se fecharam e pegou no sono.

 

De manhã bem cedo Laura deu uma chegadinha no apartamento para tomar um banho rápido. Em seguida voltou para a livraria. Pouco antes de abri-la ao público, recebeu um telefonema de Raul. Não ficou surpresa; ao acordar se lembrara da promessa dele de levá-la para jantar na noite anterior.

— Onde esteve a noite inteira?

— Raul, que coisa boa você me ligar tão cedo!

— Não me venha com essa — ele cortou rápido. — Onde esteve?

— Eu?

— Pare com isso, Laura. Telefonei várias vezes ontem à noite…

— Raul, não recebi nenhum telefonema.

— Claro que não, você não estava lá.

— Não estava?

— Você sabe muito bem disso! Laura, onde esteve? — Era óbvio que Raul estava furioso.

— Eu não saí de lá.

— Não minta. Quando não atendeu, fui até seu apartamento.

— Você foi? — Ela começou a ficar preocupada.

— Quase derrubei sua porta, até que um dos seus vizinhos saiu e disse que era óbvio que não havia ninguém em casa. Fiquei feito um bobo.

Laura começou a rir, imaginando a cena.

— Ainda mais quando o homem disse que você havia saído uma hora atrás e não voltara — ele acrescentou.

— Quer dizer que meus vizinhos me vigiam? Talvez precise mudar de lá — Laura suspirou desgostosa.

— Quero saber onde esteve a noite inteira! Foi ver Gilbraith? — Raul insistiu.

— Você devia saber que ele é a última pessoa que eu quero ver agora!

— A última pessoa?

— Ele me deu o fora, esqueceu?

— Quem vê pensa que ele te deixou esperando na porta da igreja.

— Nós…chega de falar sobre Gilberto Gilbraith! Eu não estive com ele ontem à noite, pronto.

— Então esteve com quem?

— Com ninguém. Bem, agora tenho que abrir a loja…

— Ainda não terminei de falar com você, Laura.

— Se for necessário conversaremos depois.

— Não tenha dúvida de que esta conversa vai continuar, mocinha. Passo por aí às sete e meia. Você está me devendo isso, depois do fora que me deu ontem.

— Raul. — A voz dela soou com suavidade, antes que ele desligasse. — Além de você ser relaxado e eu não, de você gostar de se levantar cedo e eu não, acho que há mais uma coisa que devia saber sobre nós dois.

Por um momento, fez-se silêncio. Depois veio a pergunta.

— O que é?

— Parece que em pelo menos uma coisa nós combinamos: ambos gostamos de dar a última palavra... e desta vez a vitória é minha! — Laura desligou o telefone antes que ele pudesse responder e ficou na expectativa de que ligasse de novo. Mas Raul não o fez, deixando-a surpresa.

A manhã passou num piscar de olhos; a cada dia o número pessoas à procura de presentes para o Natal aumentava. Por volta das onze horas o telefone tocou e Laura atendeu mecanicamente, dando o número da loja.

— Lembre-se, Laura, eu só estou tentando te ajudar. — Raul disse com aspereza e desligou.

Ela ficou estarrecida, olhando para o fone. Ajudar! Ele chamava "aquilo" de ajuda? Raul queria era tomar conta de toda vida, isto sim.

— Laura — Polly a chamou. — Este senhor veio pegar o livro que encomendou na semana passada.

Laura colocou o fone no aparelho e virou-se para atender cliente com o melhor dos sorrisos. Se Polly o trouxera até ali, deviam estar com problemas para conseguir o tal livro. E era isso mesmo. Levou um bom tempo para acalmar o homem indignado. Assim que ele se foi, Laura voltou ao telefone e discou.

— Faça algo por mim, Raul — disse entre dentes, ao reconhecer a voz dele. — "Não" me ajude! — Desligou, torcendo para que o barulho tivesse ferido os ouvidos dele.

— Não pensei que ele estivesse tão bravo! — Polly comentou.

— Quem?

— O homem que acabou de sair…

— Não estava, não — Laura se recompôs. — Eu lhe expliquei as dificuldades que estamos enfrentando.

— Então por que... — Polly balançou a cabeça, entendendo que a razão de Laura estar zangada nada tinha a ver com o cliente. — Que presentão, hein?

— O quê?

— O anel — Polly admirou. — Ele é lindo, deve ter custado na fortuna! Eu...

— Deve mesmo. — Laura colocou a mão no bolso. — Mas o tamanho e a impressão que causa não faz jus ao homem que me presenteou!

— Desculpe, eu não quis dizer…

— Tudo bem. — Ela estava brava consigo mesma por descontar a frustração em Polly. — É que estou… um pouco tensa — desculpou-se.

— Claro, você precisou enfrentar tanta coisa… Não deve ter sido fácil, não é?

— Não. — Laura suspirou. Se Polly soubesse…

— Acho que o noivado repentino de Raul foi um choque para certas pessoas. — Polly riu.

Laura ficou tensa.

— Você acha?

— No banco, por exemplo. Afinal, banqueiros devem ser pessoas sérias, não impulsivas.

Por que não pensara nisso antes? Laura refletiu. Depois de anunciar um noivado repentino, pareceria estúpido um rompimento! Talvez houvesse até uma mulher de quem ele quisesse se livrar. Não, não era o jeito de Raul: ele diria claramente se não quisesse mais saber de uma mulher. Mas, de qualquer forma, era óbvio que não ficaria bem ele agir impulsivamente duas vezes em tão curto espaço de tempo. Isso poderia prejudicar-lhe a reputação… Mas devia ter confiado a ela o problema, em vez de ficar inventando aquelas bobagens de mostrar-lhe quê estava errada!

 

Às sete e meia em ponto Raul entrou na livraria. Não quis nem ouvir os argumentos de Laura, de que precisava fechar mais tarde para aproveitar o movimento que antecedia o Natal. Por sorte Polly prontificou-se a ficar até às nove e finalmente os dois saíram para jantar num pequeno restaurante que servia uma excelente comida árabe.

— Obrigado pelas rosas. Mas eu é quem deveria ser o romântico. — Raul disse divertido, assim que o garçom se afastou com os pedidos.

Laura observou-o. Apreciou-lhe a maneira de se vestir, sempre elegante e na moda.

— Você não gosta de rosas brancas?

— Gosto muito. Mas meus assistentes devem ter se admirado quando a moça as trouxe ao meu escritório.

— Pode imaginar como foi difícil conseguir uma floricultura que faça entregas no mesmo dia, na época do Natal?

Raul cobriu a mão de Laura com a dele, por sobre a mesa.

— Estou mais interessado no motivo de você tê-las mandado.

— Não tive tempo de deixar a loja e levá-las pessoalmente.

— Laura!

Ela sorriu, admitindo que brincava.

— Está bem, está bem. Acho que não fui muito justa com você. Afinal de contas, está mesmo tentando me ajudar. Não deve ser fácil se passar por meu noivo.

— Ah, não é mesmo. — Raul deu um suspiro exagerado. — Sou um verdadeiro herói…

— Raul, falo sério.

— Dá para ver. Poderia me explicar o que não é justo e o que não deve ser fácil para mim?

— A situação em que você ficou no banco, ao anunciar nosso noivado para me salvar da humilhação.

— Que situação? — Ele franziu a testa, intrigado.

— Um noivado repentino, seguido de um rompimento mais rápido seria embaraçoso para você — Laura explicou impaciente.

— Como ou quando eu escolho minha esposa é assunto meu e dela! Ninguém tem nada a ver com isso. Achei fantástico você ter mandado as rosas, Laura, mas se pensa que continuo este noivado porque tenho medo de embaraços, então esqueça. Já lhe disse uma centena de vezes, "quero" ser teu noivo.

— Você fala sério mesmo? Quer que seja de verdade?

— Sim. Já mandei a nota para os jornais.

— Você o quê?!

— Sei que ouviu muito bem.

— Pois não tinha o direito!

— Claro que tinha. — Ele se mostrava imperturbável. — Sou o noivo.

— Raul…

— Outro defeito meu que você não mencionou: sou teimoso.

— E eu não gosto que ninguém decida minha vida por mim! — Laura levantou-se, furiosa.

— Aonde pensa que vai? — Raul esqueceu as boas maneiras.

— Para casa!

Ele se levantou também, deixando algumas notas sobre a mesa, para pagar os pratos que o garçom nem havia trazido ainda.

— Você não vai sair daqui sozinha. — Ajudou Laura a vestir o casaco. — Agora somos um casal, doçura.

Ela estava pálida ao entrar no Jaguar e não disse uma palavra durante o percurso.

— Não se importe — avisou quando Raul fez menção de descer do carro, em frente ao prédio. — Você não vai entrar! Pelo menos, não comigo. E quanto às rosas, espero que tenham bastante espinhos! — Saiu do carro batendo a porta.

Quando já ia chegando à entrada, ouviu a voz dele.

— Irei apanhá-la amanhã na livraria, às sete e meia de novo. Laura parou e se virou lentamente.

— Parece que não me entendeu direito…

— Entendi sim. — Raul sorriu. — Mas ainda vou permanecer na tua vida, até que compreenda a sorte que teve ao escapar de Gilbraith.

— A sorte de encontrar "você", não é o que quer dizer?

— Mais ou menos. Até amanhã, querida. E não esqueça de tomar um copo de leite; lembre-se de que não jantou.

Quando Laura conseguiu pensar numa resposta à altura o Jaguar já tinha virado a esquina.

 

Em casa, Laura nem acendeu as luzes. Atirou-se no sofá e fechou os olhos, louca para relaxar. De repente uma voz soou atrás dela, assustando-a.

— Laura? Onde você está? — As luzes se acenderam.

Ela não acreditava no que via. Como Gilberto ousara entrar no apartamento? Só de olhá-lo sentia o estômago revirar. Aquele homem a roubara, agira como um arrombador sem escrúpulos e agora estava ali, como se nada tivesse acontecido. O que mais a deixava exasperada era a ironia dos olhos dele.

Precisou de muito sangue frio para não agredi-lo.

— Não vou perguntar como entrou, deve ter sido da mesma maneira que fez duas noites atrás!

— O quê? — Gilberto a fitou com inocência.

— Nem tente negar que foi você.

— Te assaltaram? — Ele fingiu surpresa.

A Polícia tinha concluído que a bijuteria roubada era evidência do crime. Só ela sabia da verdade.

— Não! — sua voz saiu ríspida.

— Quer dizer que alguém entrou aqui só de brincadeira?

Laura estava mais convencida que nunca. Fora ele quem destruíra seu lar!

— Você é um cínico! E se Raul tivesse subido comigo, o que ia acontecer, em?

— Mas não subiu, boneca. Eu estava olhando pela janela. Que carrinho… Deve valer uma grana.

— Seu… Que está fazendo? — Laura quase pulou quando ele lhe segurou a mão.

— Muito bonito. — Gilberto admirou o anel de diamante que ela usava. — Parece que Harrington leva mesmo a sério este noivado.

Laura puxou a mão.

— Muito a sério — ela disse com satisfação, sabendo ser verdade, mas não da maneira que Gilberto imaginava.

— Então não precisa mais do meu anel.

Ela o olhou com piedade.

— Você sabe exatamente quais são as condições para tê-lo de volta.

— E você sabe que não tenho o dinheiro. — Ele começou a andar pela sala, impaciente.

— O problema não é meu. — Laura mal conseguia pronunciar as palavras, tamanha a raiva. — E me diga uma coisa: como ousou invadir a minha casa, em? Se tivesse se dado ao trabalho de perguntar, saberia que o anel não estava aqui. Como também não está agora.

— Droga! Onde você o escondeu? — Os olhos de Gilbraith brilharam, perigosos.

— Onde você não pode tocá-lo.

— Você está louca, Laura. Me devolva o anel e saio da sua vida para sempre.

Ela balançou a cabeça.

— Não posso.

— Gostaria que falasse com Harrington?

— A respeito de quê?

— Das várias noites em que nós nos divertimos ali no seu quarto…

Ambos sabiam que aquilo era mentira e, depois que passara a noite com Raul, ele também sabia.

— Ora, seu canalha! Por que não vai logo? Melhor, use o telefone. — Ela caminhou decidida até o aparelho e estendeu o fone a Gilberto.

Ele ficou desconcertado com a atitude inesperada. De repente, a expressão de seu rosto se alterou.

— Ah, agora estou entendendo… Quer dizer que você e ele…

— Sim, Raul e eu. Algum problema, "senhor" Gilbraith?

— E ainda estão noivos?

Laura se enfureceu com a insinuação de que não era capaz de responder ao calor de um homem.

— Que foi, Gilberto? Não pode aceitar o fato de Raul ser melhor que você?

— Uma coisa tenho que admitir: corajoso ele é. Eu teria medo de me congelar nos teus braços…

— Saia daqui!

— Não se preocupe, eu saio! Tenho uma mulher ardente e desejável me esperando em casa.

— Tenho certeza de que os dois se merecem.

Ele sorriu.

— Da próxima vez que eu vier, é melhor que o anel esteja aqui.

— Da próxima vez que vier, use a campainha.

— A fechadura que pôs na porta não é suficiente para me manter fora. E se não receber meu anel, talvez decida levar em troca essa pedra enorme que está usando. Parece valer um bom dinheiro.

— Se fizer isso, Raul encontrará você até no fim do mundo.

— Duvido. — Ele caminhou até a porta, mas parou com a mão na maçaneta. — Um escândalo envolvendo o nome dele seria um prato cheio para os jornais… e para os bancos concorrentes também.

Laura se sentiu mal. Primeiro Raul e agora Gilberto. Quanto mais suportaria? Se aquele idiota não possuía mais o dinheiro, ameaças não fariam com que aparecesse de repente. Pelo jeito, ia perder a única coisa boa que conseguira na vida sem poder mexer um dedo.

A menos que… Não, não teria coragem de recorrer a um empréstimo com Roberto ou Raul. Fazia tanto tempo que não pedia nada a ninguém, que nem saberia como fazê-lo.

Não poderia passar a noite no apartamento, sentia-se insegura demais. Vestiu um jeans, uma malha grossa de lã azul e pôs algumas roupas numa valise para se trocar de manhã. Assim que pudesse pretendia procurar um outro lugar para morar.

O sofá do escritório pareceu menos confortável ainda e os problemas não deixavam Laura adormecer. Quase caiu ao chão, de susto, ao ouvir baterem na porta. Será que algum cliente insone resolvera procurar por um livro às duas horas da madrugada? Não, não era possível. Com certeza seria assaltada de novo. Olhou apreensiva para a porta, quando a maçaneta se mexeu.

— Sei que está aí, Laura — ouviu a voz de Raul através do vidro. — E é bom que abra, antes que eu perca as estribeiras e derrube essa porta.

Agora que se aproximara da porta, Laura podia vê-lo através do vidro. A neve caía incessante e o homem de roupa escura parecia mais ameaçador do que nunca. Inconscientemente ela se afastou um pouco, sem coragem de tirar a trava.

— Abra essa droga de porta, Laura — Raul ordenou, batendo os pés na neve e esfregando as mãos.

Laura puxou a trava, recuando quando ele empurrou a porta,

— Deus, como está frio aqui dentro! Que diabos aconteceu com o aquecedor?

— À noite ele não funciona.

Raul se dirigiu ao escritório, olhando contrariado a coberta no sofá.

— Você é louca de dormir aqui, sabia?

— Não é tão ruim assim...

— A Antártica é mais quente!

— Raul…

— Foi aqui que esteve ontem à noite?

— Se você se acalmar…

— Acalmar! — Ele repetiu furioso. — Chegando em casa, liguei para você. Queria saber se estava bem. Quando não respondeu, pensei: ela deve estar mal-humorada…

— Não estou!

— Está sim. Então, tentei de novo uma hora mais tarde…

— Talvez eu tivesse adormecido…

— No seu apartamento? Não poderia. Você não esteve lá nas duas últimas noites, seu vizinho me disse, o mesmo de ontem.

— De novo?

— E desta vez ele quase me matou.

— Era o mínimo que podia fazer. Você gostaria de ser acordado às duas horas da manhã?

— Ele também me informou que você havia saído com um homem. — O olhar dele tornou-se acusador.

— É mentira. Eu sai sozinha. Será que esse fofoqueiro fica escutando através das paredes?

— Não sei. Só quero saber que homem era esse.

— Não havia nenhum homem…— Laura olhou para o outro lado, evasiva.

— Era Gilbraith! — Raul adivinhou na hora. — O que ele queria?

Laura continuou negando, mas Raul não se deixou enganar.

— Queria o anel — ela suspirou, admitindo.

— Você lhe disse que estava comigo?

— Não.

— Por que não?

— Eu… Não quero te envolver nisso!

— Não quer me envolver? Agora você está usando "meu" anel, Laura. E quero Gilberto fora da sua vida, de uma vez por todas!

— E quanto ao que "eu" quero? — Laura perguntou zangada.

— Vou cuidar disso também. — Raul pôs o casaco nos ombros dela e pegou a valise olhando ao redor. — Isso é tudo que trouxe?

— Sim. Mas…

— Não diga mais nada. — Ele a levou para o carro estacionado no outro lado da rua e jogou a maleta no banco de trás. — Só se quiser fazer amor no banco de um carro — completou zangado, sentando-se ao volante.

— Eu... — O brilho do olhar de Raul foi suficiente para silenciá-la.

— O que foi? Ficou muda? — ele perguntou com aspereza, ao entrarem no quarto de hóspedes, na sua casa, jogando a valise de Laura em cima da cama.

A vontade de Laura era bater naquele homem. Mas do jeito que Raul estava, ele seria capaz de revidar, e na certa ela levaria a pior.

— Nesta noite você não vai nem encostar na minha cama!

— Não vou?

— Não! — Laura ergueu a cabeça e enfrentou o olhar dele.

— Fred sentiu saudades, ontem à noite.

— Só Fred?

— Talvez eu também… um pouquinho.

— Estranho, eu não senti falta de nenhum dos dois!

— É porque até agora não passou tempo suficiente conosco. — O bom-humor dele começou a voltar.

— Raul…

— Vá tomar um banho, caso contrário se arrisca a pegar uma pneumonia. Estava gelado naquela loja.

— Bobagem! E não quero tomar banho, já tomei um antes.

— Tudo bem. Vou eu, então. Preciso me esquentar um pouco, mas volto logo.

— Olha, Raul…

— O que foi, querida?

Laura corou diante do olhar cheio de desejo.

— Não vou dormir com você!

— Nenhum de nós vai dormir esta noite — ele assegurou. — Você é minha mulher, e esta noite vai compreender isso…

Ela sentiu um arrepio ao ouvir essas palavras.

— Raul, isto é uma loucura. Você não tem o direito…

— Escute, meu bem, não quero te fazer mal. Acho que já provei isso na outra noite.

Raul também tinha provado que ela não conseguia dizer-lhe não. E sabia que nessa noite não seria diferente.

Quando ele saiu, Laura aproveitou para tirar as roupas da valise. De novo não tinha uma camisola, mas desta vez não precisaria de uma.

Já estava na cama quando Raul voltou. Ficou paralisada ao vê-lo tirar o roupão e se aproximar, com o corpo perfeito iluminado pela luz suave do abajur. Não foi necessário dizer nada. Abraçaram-se com avidez, deixando que a paixão os envolvesse.

— Você pensa demais, Laura — Raul murmurou junto aos lábios dela. — E sempre sobre coisas erradas. Isto é o que importa, quer ver? — Acariciou-lhe os seios firmes, com suavidade. — E isso. — Beijou-a. — E isso também. — Sua mão tocou-lhe as coxas, os quadris, o sexo, fazendo-a delirar de prazer. — Eu e você, é só o que importa.

Laura pensou vagamente que aquilo tudo se resumia em duas palavras: atração física. Só que não aprendera a lidar com emoções tão avassaladoras; ainda era muito inexperiente nestes assuntos. Mas, apesar da confusão, achava bem mais seguro uma relação desse tipo, em que não se sentia ameaçada. Era só se entregar às sensações do corpo, acabaria logo e ninguém sairia magoado.

Esta noite Raul não estava pedindo ou dando com suavidade, mas sim exigindo, tomando, convidando, incitando… Até ela suplicar pela posse, excitando-o cada vez mais. Atingiram o clímax e caíram exaustos.

Mas ele não lhe concedeu repouso, queria mais e mais, levando-os de novo a êxtases incríveis. Amanheceu, sem que se dessem conta.

— Tenho vontade de dar uma mordida bem aqui... — Ele lhe acariciava os seios, devagar.

— Pensei que já tivesse feito isso — ela zombou, deliciosamente cansada para se mover.

— Não, uma bem forte…

Laura olhou-o, sabendo do efeito que um exercia no outro.

— Acho melhor você desistir do canibalismo, Raul. O que vou contar lá em casa?

Ele riu.

— Você está bem?

— Não podia estar melhor… Só que minhas forças acabaram.

— Vai voltar à noite?

— Raul, só fiquei na loja porque o apartamento me oprime, depois do que aconteceu. Eu… não me sinto bem lá.

Ele a abraçou compreensivo.

— Venha morar comigo — sugeriu.

— Não posso, Raul. Gosto demais da minha independência.

— Quer que envelheça antes do tempo de tanto ficar pensando em você? Tenho medo de que te aconteça alguma coisa, Laura.

— Não vou mais morar no meu apartamento…

— Pois então venha morar aqui.

— Não quero. — Por mais tentadora que a idéia lhe parecesse, Laura lutou para não ceder. Morar com Raul seria demasiado… definitivo.

— Só até que encontre outro lugar, doçura.

Bom, desse jeito a situação mudava de figura… Que mal havia desfrutar da um pouco da companhia de Raul, de se deliciar com aquelas noites de loucura?

— Está bem, Raul.

Depois de algumas horas passadas na livraria, Laura já se arrependera da decisão, repreendendo-se por ter concordado tão depressa com a proposta de Raul. Também fora para a cama com ele sem a menor resistência na noite anterior… Devia se parecer mais com a mãe do que imaginava, e não gostava disto.

— Laura, chegou um embrulho. — Polly interrompeu-lhe os pensamentos. — E está escrito “pessoal”.

Ela olhou para o pacotinho marrom que Polly pôs sobre a mesa. Seria de Raul? Ou… Não, não podia ser outro ato de Gilberto. Teve medo de abri-lo.

Uma chave! E havia um bilhete: “Por favor, use-a. Raul”. Era a chave do apartamento que ele ocupava na casa de Amanda.

— Tudo bem? — Polly apareceu na porta de novo.

Rápida, fechou a caixinha e pôs o bilhete no bolso.

— Tudo bem, sim — respondeu. — Você está ocupada lá dentro?

— Não, o movimento hoje está muito tranqüilo. É a calmaria antes da tempestade. Você não me parece bem. — Polly a observou, preocupada. — Algum problema?

— Bem…mais ou menos.

— Posso ajudar, Laura?

— Não, querida, desculpe, mas ninguém pode me ajudar. Mas obrigada do mesmo jeito.

Raul, sempre Raul. Pensara muito nele e todas as conclusões haviam caído por terra com a chegada da chave. Significava que ela poderia ter liberdade e que ele não a prenderia. Laura podia apostar que Raul sabia o efeito que isto causaria nela.

 

Viver com um homem que pouco conhecia era mais problemático do que imaginara; Raul era muito desorganizado e Laura achava estranho o hábito de comer em horas irregulares e às vezes tardias. E ainda havia aquela mania de levantar cedo, justo quando ela mais gostava de se aconchegar às cobertas e continuar dormindo. E além de tudo, ele lhe comprava flores, bombons, e a enchia de elogios por tudo e por nada.

Laura se sentia desorientada. Tentava manter esse relacionamento no plano puramente físico, do jeito que haviam combinado quando se mudara para lá. Mas era difícil, ele a tratava com tanta consideração e cuidado que até a deixava constrangida’. Telefonava-lhe várias vezes por dia só para conversar; comprava-lhe presentes e sempre se mostrava ansioso para se incluir em qualquer programa que ela tivesse planejado.

E depois, havia as noites! Apesar da sua falta de experiência. Laura sabia que nenhum amante casual lhe diria as coisas que ouvia dele ao fazerem amor, nenhum se preocuparia tanto com o prazer dela. Todas as suas antigas idéias sobre relações baseadas só na atração física estavam sendo destruídas.

Após três dias de vida em comum, Laura ficou completamente confusa, pelo menos com relação a si própria. Mas diante de Raul, permanecia fria. Mesmo quando ele insistia em andar nu sem nenhuma inibição. Tinha certeza de que não estava apaixonada por ele e ainda confiava na decisão de nunca amar nenhum homem. Fisicamente… não podia recusá-lo, mas via isso como algo passageiro, que desapareceria com o tempo, depois que a curiosidade fosse satisfeita. O cotidiano em comum se encarregaria de distanciá-los… Não fora assim com todos os namorados de Amanda?

 

Estavam deitados na cama, juntos, a cabeça dela apoiada no ombro de Raul.

Tinha chegado do trabalho há uma hora. Esperava-a um copo de chá quente de limão, o chuveiro quente ligado e seu robe favorito estendido na cama.

Só que Laura ainda não tivera oportunidade de vestir o robe. Tomara o chá de limão, entrara no chuveiro e Raul a alcançara, começando lá o que depois terminara na cama.

— Que há, querida? Já faz cinco minutos que estou falando, mas parece que você não ouviu nenhuma palavra!

— Hum?… Ah, desculpe, Raul. — Ela acariciou o rosto dele.

— O dia foi muito difícil?

Ela havia trabalhado muito, pois só faltavam dois dias para o Natal e, como sempre, os retardatários mergulhavam numa corrida febril para comprar os últimos presentes. Laura esperava passar os dois dias sem cair de exaustão. Noites mal-dormidas e dias cansativos não se misturavam.

— Muito — respondeu. — Eu... Deus, que foi isso? — Sentou-se na cama, ao ouvir um barulho estranho.

— O jantar — disse ele, com satisfação. — Hoje comprei uma panela que avisa quando a comida fica pronta.

Laura não gostou nada daquilo.

— Jantar?

A ala da casa ocupada por Raul era totalmente independente e possuía uma cozinha completa no andar de baixo. Mas só a usavam de manhã para fazer café. Laura se enervou ao ver que ele havia feito o jantar em vez de pedi-lo como sempre fazia da cozinha do pai.

— O que você preparou? — perguntou um pouco preocupada.

— Um ensopado — ele respondeu já saindo do quarto.

— Quero só ver. — Laura vestiu o robe e o seguiu até a cozinha.

Raul parecia ter colocado na panela tudo o que tinha achado no armário, mas, apesar da grande quantidade de espaguete, o gosto do ensopado era bom.

No entanto, a confusão de Laura aumentava a cada minuto.

Os dois passaram as últimas noites sem procurar ninguém e linha certeza de que Amanda e Roberto já haviam notado o carro dela parado o tempo todo lá fora. Além disso, sempre pediam jantar para dois em vez de um. Até ali não se preocupara muito; não se sentia culpada por todos saberem que Raul era seu amante. Mas agora, aquele jantar íntimo e aconchegante a obrigava a pensar melhor na situação. Não queria aquele tipo de convivência; era doméstico demais, comprometedor demais.

— Você está distraída de novo — Raul observou, fazendo-lhe uma carícia no rosto. — O que está acontecendo, doçura?

— Os espaguetes. — Ela se fez de desentendida. — É estranho, sempre me lambuzo toda, até hoje não aprendi a enrolá-los no garfo como os italianos. — Limpou o canto da boca com o guardanapo. — Raul por que foi botar logo espaguetes no ensopado?

— A receita pedia feijão mas, como não gosto, decidi substituir por espaguetes.

— Realmente uma idéia bastante original. — Laura sorriu. Não queira demonstrar o quanto aquela proximidade a deixava apreensiva. — Você cozinha sempre?

— Quase nunca. Eu só queria… te fazer uma surpresa.

— É mesmo?

— Laura, quando vai conversar comigo?

— Eu sempre converso com você, Raul. — A convicção com que Laura falou não era muito grande.

— Mas não sobre o que é importante de verdade para você!

— Não tenho muito sobre o que falar. Passo o dia inteiro na livraria.

— Isso mesmo. — Ele a olhou na expectativa.

— O que quer dizer com "isso mesmo?" — Laura tirou o prato da frente. Tinha perdido o apetite.

— Você não vai contar, não é?

— Contar o quê?

Raul levantou-se e foi até a sala servir-se de um conhaque. Pós o copo na mesinha e se aproximou da lareira. Virou-se devagar, ao perceber que Laura o seguira.

— Você confia em mim?

— Em que sentido?

— Não como amante. Desculpe, não é pretensão da minha parte mas sei que ainda sou o único homem que tira você do sério. O único homem a quem você consegue se entregar.

Apesar da verdade contida naquelas palavras, Laura estremeceu. Nos seus momentos de maior lucidez sabia que era vitima de urna paixão arrasadora.

— Então, Raul, em que sentido?

— Como amigo, como alguém que se preocupa o tempo todo com você. Que, se pudesse, faria tudo para ajudá-la.

Laura virou-se, incapaz de enfrentar o olhar de Raul.

— Eu não…

— Quer perder tudo só por orgulho? — Raul mal podia esconder a raiva que crescia dentro dele.

— Sobre o que você está falando? — Ela o encarou de novo.

— Tentei fazer você falar, se abrir comigo… Mas é tão teimosa…

— Não sei o que você está querendo dizer.

— Esperei, te dei todas as oportunidades e nada!

— Raul!

O olhar dele fez com que Laura sentisse como estava furioso. Agora já lhe conhecia todos os sentimentos através dos olhos expressivos: raiva, desânimo, desejo, prazer, alegria, indulgência. Naquele momento não demonstrava desejo, mas sim uma ira contida e muita impotência.

Raul foi até, a escrivaninha, no canto da sala e retirou um envelope da gaveta maior.

— Caiu da sua bolsa no outro dia. — Jogou o envelope sobre a mesinha. — Esperei o tempo todo que me falasse sobre isso!

Laura observou incrédula o que tinha em sua frente. Havia procurado esta carta em todo lugar. Nem lhe ocorrera que pudesse estar com Raul.

— Quer dizer que "caiu" da minha bolsa? — a voz dela soou descrente.

— O que você está pensando? Que andei mexendo na sua bolsa? Diabos, Laura, foi você que no outro dia derrubou tudo pelo quarto. Não lembra?

Mas é claro… Como se esquecera daquela cena? O tapete macio ao pé da cama de Raul tinha sido lugar de uma delirante paixão em uma daquelas noites. A bolsa caiu de repente e ela pensou que havia recolhido tudo que se espalhara peio chão.

— Foi encontrada debaixo da cama. — Raul adivinhou seu pensamento. — A empregada me entregou, quando cheguei em casa ontem.

— E você leu, não foi?

— Sabe Laura, não costumo ler cartas dos outros, mas não podia deixar de olhar para ela, sentindo um pressentimento esquisito…

— E leu! Raul você não podia ter feito isto.

— Li — ele confirmou irritado. — Só que ainda não consegui entender. Pensei que seus negócios iam bem. Por que ainda não renovou o contrato de aluguel, Laura?

Raul tinha que encontrar justo esta carta da Campbells em que a ameaçava de rescisão de contrato por falta de pagamento? Ainda estava atrasada, e sabe-se lá até quando… Gilberto lhe telefonara de manhã, para dizer que só falaria na possibilidade da devolução do dinheiro quando tivesse o anel de volta. E Laura não podia fazer nada, Raul ainda não havia devolvido a jóia.

Depois que Raul admitiu ter lido a carta da Campbells cobrando o aluguel da livraria, o clima entre eles tornou-se ainda mais tenso.

— Esqueça o que eu disse, ta? Não devia, ter me metido, sei que não é da minha conta. Só queria ajudar, te oferecer um pouco de…

— Dinheiro? Você queria me dar "dinheiro"?

— Laura, só queria ajudar… — Raul afirmou embaraçado.

— Então não me ofereça dinheiro!

— Mas.

— Não estou à venda, Raul.

— O que você disse? — A voz fria soou como um aviso.

Laura hesitou.

— Não quero o seu dinheiro, fui para a cama com você porque… porque… — odiava admitir, mas queria fazê-lo entender qual era o lugar que ocupava na vida dela. — Não preciso mais nada de você do que já tenho, deu para entender agora?

— Ah, não precisa, é? Quer dizer que eu só sirvo para você na cama… Tudo bem, vou sair daqui agora!

— A casa é sua. Eu é que vou embora daqui.

— Não precisa se incomodar. — A voz dele estava carregada de ironia. — Eu volto para dar o que você tanto gosta. — Saiu pisando duro e batendo a porta.

Laura foi até a janela e viu o carro partir em alta velocidade. Raul nunca ficara tão furioso. Ele parecia prestes a estrangulá-la, antes de sair.

Pelo jeito não iria conseguir o que tanto desejara: uma relação impessoal, sem muitas emoções. Emoções era o que tanto evitava há quinze anos. Ao mesmo tempo precisava de Raul, daqueles braços quentes que a envolviam, da posse que sempre a deixava louca de prazer.

Por mais que pensasse, não conseguia entender o que se passava no íntimo. A vida a transformara em uma mulher que necessitava de um homem para amar à noite, mas que a deixasse sozinha o resto do tempo. E este tipo de mulher Raul não queria.

— Laura? Bati, mas parece que você não ouviu — a voz de Amanda soou, vinda da porta.

— É... não ouvi mesmo. — Ela se virou, na defensiva. A mãe era a última pessoa que desejava ver naquele momento.

— Tudo bem, querida?

Amanda e Roberto com certeza tinham visto a saída intempestiva de Raul e imaginaram que haviam brigado.

— Sim, está tudo bem. Raul teve que sair, é só. — A firmeza do olhar de Laura desafiou a mãe a duvidar daquelas palavras. Amanda entrou no quarto.

— Roberto e eu queremos convidar vocês dois para jantarem conosco amanhã à noite, querida.

— Preciso perguntar a Raul, claro, mas acho que não vai ter problema. — Era óbvio que os pais estavam querendo saber se tudo estava dando certo entre os filhos.

— Excelente. — Amanda sorriu satisfeita. — Acho que devíamos nos reunir e falar sobre os preparativos para o casamento.

— Não se preocupe com isso — Laura respondeu, seca.

— Não estou preocupada, querida. Mas como você já está morando aqui...

Laura ficou vermelha. Tinha convencido Raul a não contar aos dois sobre o arrombamento, pois não havia razão para preocupá-los. Agora, era óbvio que Amanda e Roberto concluíam que os dois já estavam definitivamente juntos.

— Se você ou Roberto não querem que eu fique aqui…

— Imagine, Laura. Deus do céu, nenhum de vocês é mais criança, é claro que devem saber o que estão fazendo. Só não vejo por que esperar para oficializar essa situação…

— Vou falar com Raul sobre o jantar.

— Filha, sei que muitas vezes não nos entendemos, mas isso foi no passado… Por que não se abre comigo agora? Vejo que está tensa, ansiosa… Pode falar comigo, você sabe.

Amanda pensava que era simples esquecer a mágoa, o ressentimento… Como esquecer a indiferença da mãe com relação à criança infeliz que vivia ao seu lado, sem conhecer o significado da palavra afeto? E agora propunha falar de paixão, queria discutir o amor. Impossível.

— Não tenho nada para dizer. E, se me der licença, tenho que fazer umas contas. — O movimento na livraria tinha sido tão grande que não sobrara tempo para nada. Por isso trouxera os livros de contabilidade para casa.

— Mas Laura…

— Por favor, não devem se preocupar com a nossa vida. Como você mesma disse, não somos mais crianças.

—- Bem, desculpe. Só estou emocionada, na expectativa de ajudá-la nos preparativos para o casamento.

— Acho que existe um pouco de precipitação da sua parte

A mãe pareceu surpresa.

— Raul me deu a impressão de não querer um noivado muito demorado.

— Quando ele disse isso? — Laura perguntou com frieza.

Amanda piscou.

— Eu... bem… talvez esteja enganada.

Apesar de toda a atração física que sentiam, Raul tinha concordado que esse relacionamento mais cedo ou mais tarde terminaria.

— Sim, você se enganou, Amanda. Tudo bem amanhã às oito? — Laura queria acabar logo com a conversa. A mãe pareceu profundamente desapontada.

— Ótimo — anuiu, e foi saindo, sem saber o que dizer. Laura não lembrava de nenhuma ocasião em que tivesse algo a falar com ela. Mesmo assim sentia-se culpada. "Droga", pensou. Amanda tinha o que merecia, era muito tarde para perdoá-la.

Trabalhou na contabilidade da livraria, lavou a louça do jantar e estava recostada na cama, lendo um livro, quando ouviu o carro de Raul chegar.

— Vocês dois parecem se dar muito bem — ele observou, referindo-se ao ursinho, ao lado dela na cama.

Laura olhou para Fred, divertida. Com a pelúcia limpa e as orelhas e nariz bem costurados, estava irreconhecível.

Voltou-se para Raul. Ele parecia cansado ao sentar-se na banqueta para tirar os sapatos e desatar o nó da gravata. Laura ficou imaginando aonde poderia ter ido, mas o orgulho não lhe permitia dar mostras de fraqueza ou curiosidade.

— Quer um café?

— Não, eu… Sim. — Pensativo, ele mudou de idéia. — Acho que gostaria, sim.

Laura saiu da cama; usava uma camisola nova. Desde que. Gilberto havia arrombado o apartamento e tocado em suas roupas, comprara tudo novo.

Raul a seguia até a cozinha, observando-lhe os movimentos seguros e rápidos ao fazer o café.

— Laura… foi o jantar que começou tudo, não?

Ela o encarou surpresa.

— O jantar não estava tão ruim assim.

— Não estava me referindo aos meus dotes culinários. — Ele sorriu, demonstrando disposição para que conversassem.

— A gente precisava comer, não é? — Laura suspirou, levando a bandeja com café para o quarto.

— É, só que você preferia ter ido a um restaurante ou ter comido alguma coisa feita por outra pessoa. O fato de eu ter preparado o jantar te deixou confusa, não foi?

— Então aquilo era um jantar? — Ela tentava ironizar. — Pensei que fosse um ensopado.

— Laura...

— Muito ou pouco açúcar?

— Sabe como gosto do meu café, Laura.

— Cuidado, está quente. — Ela estendeu-lhe uma xícara de café preto, sem açúcar.

— Tudo bem, obrigado. Veja, Laura…

— O que foi agora? — Ela apanhou outra xícara e sentou-se na cama, cruzando as pernas. Sabia que a camisola lilás lhe assentava muito bem. Se Raul esperava chegar em casa e encontrá-la choramingando, devia estar muito desapontado.

— Acho que devíamos conversar — ele disse com suavidade.

— Parece que todo mundo está querendo isso nesta noite!

Raul se surpreendeu.

— Quem mais esteve aqui, hoje? — Sua voz mostrou uma certa suspeita.

— Não foi Gilberto, se é o que está pensando. Eu nunca o convidaria para vir aqui na sua casa.

Ele relaxou.

— Amanda. Ela e o seu pai nos convidaram para jantar amanhã.

— E sobre o que mais ela queria falar?

— Sobre nossa vida. O casamento. Queria saber para quando estava marcado.

— Ela quis saber sobre nossa vida particular?

— Mais ou menos. Apesar de ter negado, acho que ela e seu pai estão um pouco preocupados.

— Por quê?

— Pergunte a eles. — Laura pôs a xícara na bandeja. — Vou dormir agora, se não se importa. Boa noite!

— Laura, não terminamos nossa conversa — Raul protestou.

— Não temos mais nada a dizer. A menos que queira se desculpar por aquela cena ridícula.

— Me desculpar? Que diabos, você é que está me usando!

— Não se importaria de dormir hoje em seu quarto? Amanhã pretendo me mudar.

— Vai me deixar, só porque percebi que você está me usando?

— Não, porque eu sei que você também me usou este tempo todo.

— Você sabe que para mim significa muito mais que isso.

— Raul, você queria dormir comigo e conseguiu. Não tenho intenção de permitir que haja mais do que isso entre nós.

— Laura, mas eu não quero apenas isso. — Raul aproximou-se dela, impedindo-a de desviar os olhos. — Estou levando a sério este noivado e pretendo me casar com você.

— Não, a menos que queira me carregar à força para a igreja!

— Não, quero você de livre e espontânea vontade, doçura. Puxa, Laura, eu apenas ofereci ajuda, não precisa reagir desse jeito!

— Não estou a fim de aceitar ajuda financeira do meu amante!

— Só queria que parasse de se preocupar com aquele problema de… Em momento algum pretendi te insultar com a minha oferta.

— Sou capaz de cuidar de mim mesma e dos meus negócios. Ainda não percebeu?

— Querida, não quero brigar outra vez. Passei uma noite miserável, indo de um bar a outro, pensando onde tinha errado e imaginando se ainda a encontraria aqui ao voltar.

Laura sentiu-se aliviada ao ouvir aquelas palavras. Não ousava nem pensar em como reagiria se ele dissesse que havia passado a noite com outra mulher.

— Bem, estou aqui. Mas quero que durma no teu quarto esta noite, Raul. E amanhã vou me mudar.

— Para onde?

— Ainda não encontrei outro apartamento. — Ela nem havia procurado. — Mas posso me mudar para um hotel.

— Não. De jeito nenhum.

— Raul, você não pode me impedir.

— O Natal é daqui a dois dias; não tem cabimento você ficar sozinha num hotel.

— Essa sua maneira de se intrometer na minha vida é irritante, sabia?

— Por favor, não fique brava outra vez. Aceito que não queira mais dormir comigo e vou voltar para o meu quarto, como um bom menino. Mas quero que passe o Natal aqui, ao meu lado.

Ela não pretendia mesmo ir para um hotel. Mas também não sabia se devia ficar.

— Vou tentar não me intrometer mais. — Raul notou-lhe a hesitação. — Mas, se precisar de alguém para conversar, me procure.

Laura mordeu o lábio. Ele havia concordado com muita facilidade que não dormiriam juntos. Talvez fosse apenas uma tática para desarmá-la… Não, Raul era um cavalheiro, não iria obrigá-la a nada. E passar o Natal sozinha não era uma perspectiva muito agradável.

— Bem, se você garante que vai me deixar em paz…

— Escute, não sou nenhum maníaco. Posso muito bem me controlar, doçura.

Apesar da convicção que ele demonstrava, Laura continuou um pouco cética. Nos últimos dias, não vira nenhuma evidência de que Raul quisesse se controlar. Pelo contrário, qualquer coisa era motivo para levá-la para a cama.

Só não tinha pensado que ela ia sentir falta do aconchego de todas as noites. Depois de duas horas virando-se de um lado para outro, aceitou a idéia de que já havia se acostumado a adormecer nos braços de Raul, depois das delícias do amor. No entanto, por mais que lhe custasse manter a decisão, não ia ceder. Precisava lutar por sua independência, pela paz de espírito… Passar essa noite sozinha afinal servia para alguma coisa: tinha uma boa oportunidade para perceber que quase sucumbira à sedução de viver com um homem. Seria bom no começo, mas depois, quando a convivência caísse no dia-a-dia, os dois acabariam se odiando…

Já amanhecia quando Laura finalmente adormeceu, ainda repetindo a si mesma que havia escapado no momento exato.

 

Na manhã seguinte, Raul também apresentava sinais de insônia. Olheiras profundas sobressaíam-se no rosto pálido e mal tocou no café. Ao sair para o trabalho, deu um beijo rápido na face de Laura, sem dizer nada.

Quando se encontraram para o jantar com os pais parecia ainda pior, pronto a estourar á menor provocação. E isso aconteceu do modo mais inesperado.

Ficou furioso com Amanda e Roberto, que se olhavam e sorriam o tempo todo durante a refeição. Sentou-se carrancudo enquanto tomavam café no salão, recusando-se a participar da conversa. Se não estivesse tão tensa, Laura teria rido da situação.

— Laura. — Amanda virou-se para a filha. — Sei que não quer discutir o casamento, mas há algo que quero dizer a respeito.

— O que é?

— Não acha que seria bom se Dan pudesse vir?

A pergunta, após tanto tempo sem mencionar Dan, deixou Laura chocada, olhando para a mãe como se nunca a tivesse visto. Em seguida percebeu a fúria de Raul aumentando, indignado por Amanda ter pronunciado aquele nome.

— Dan? — repetiu alarmada.

— Sim — Amanda continuou, apesar de ter percebido a tensão repentina. — Na carta que acabei de receber, diz que em fevereiro terá férias, e pensou passá-las na Inglaterra.

Laura respirou fundo.

— Dan lhe escreveu? — Não tentou esconder o espanto. Uma sombra passou pelo olhar de Amanda.

— Ele sempre me escreve, Laura. E eu sempre lhe respondo.

Laura não podia acreditar. Dan, seu amado Dan, escrevendo para a mulher que os destruíra, que os separara. Não podia ser verdade!

Laura ainda não entendia como a mãe e Dan tinham estado em contato todos esses anos. Era a última coisa que julgaria possível. Más Amanda parecia muito bem informada.

Agora que haviam voltado para onde Raul morava, ele estava mais controlado. Serviu-se de um drinque, que acabara de recusar na casa do pai, na pressa de sair dali.

— Laura, quero saber exatamente o que esse Dan significa para você!

Dan. Dan, com os cabelos negros encaracolados e riso nos olhos azuis. Dan, a quem sempre adorara.

— Não consigo entender quem é esse homem, Laura. Meu pai não demonstrou o menor espanto quando Amanda pronunciou o nome dele com tanto amor.

Laura preferiu ignorar a última observação, apesar de saber que era verdadeira. Também havia percebido a emoção na voz da mãe, ao falar de Dan. Mas não restavam dúvidas de que Roberto sabia de tudo, caso contrário não teria olhado para a mulher com tanta compaixão.

— Se minha esposa falasse de outro homem daquela maneira, teria que me explicar tudo direitinho.

— Você acharia correio que Roberto sentisse ciúme de você?

— Claro que não. Que pergunta mais boba é essa?

Laura suspirou, cansada. Não compreendia porque Dan mantivera contato com a mãe e não com ela.

— Você pode achar que é boba, eu não.

— Vamos acabar com este mistério, por favor? Quem é ele?

— Amanda não foi a primeira esposa do meu pai…

— Quer dizer que ele já tinha um filho do primeiro casamento? — De repente Raul se deu conta da verdade.

Laura concordou. Durante onze anos, Dan fora seu irmão querido, nunca se importando em levá-la junto quando saia com os amigos para passear. Depois veio o divórcio. Ela não quis acreditar quando lhe disseram que precisava ficar com a mãe, enquanto Dan ia embora com o pai. Irmãos não podiam ser separados de um modo tão cruel…

Mas Dan não era filho de Amanda, e a lei exigia que fosse com o pai. Laura tinha implorado para ir junto, mas não lhe deram ouvidos e, um ano depois, quando John Mattews se mudou para os Estados Unidos, levou Dan consigo, rompendo todos os contatos entre eles. Só restaram as cartas, que logo começaram a rarear, e finalmente nunca mais chegaram.

Depois disso, Laura fugira da mãe várias vezes, mas sempre a levavam de volta. Odiava tanto Amanda que não podia nem falar com ela. Ainda a culpava por tudo que havia sofrido.

— Dan é seu irmão. — Raul estava incrédulo.

— Meio-irmão — ela corrigiu com amargura. — Foi isso que fez tanta diferença no divórcio. O juiz não viu nada demais em nos separar…

Raul suspirou fundo, enchendo de novo seu copo.

— Ele foi embora com o pai de vocês?

— Foi. — Laura tinha medo de não suportar a emoção das lembranças.

— Querida…

— Não! — Ela se levantou, evitando que Raul se aproximasse. — Não quero que me toque!

— Laura, pelo jeito Amanda não tem nenhuma queixa dele...

— É hipocrisia dela! E você acha que Amanda queria ficar comigo? Lógico que não.

— Se isso fosse verdade, ela teria convencido o juiz a deixar você com o seu pai.

— Não, ela deve ter tido um motivo muito especial para ficar comigo. Só que até hoje não descobri qual foi! — Laura insistiu.

— Você não sabe que…

— Só sei que depois que papai e Dan se foram, ela nunca me fez um carinho ou disse que me amava. Continuou me levando de uma casa para outra, e nessas mudanças sempre eram meus brinquedos que se perdiam. Quando meu pai e Dan foram para os Estados Unidos, ela se sentiu bem mais aliviada, pois assim eu não os veria mais! — Os olhos de Laura se encheram de lagrimas. Nunca esqueceria o que a mãe lhe dissera na ocasião: "é melhor assim".

— Então por que Dan manteve contato com ela? — Raul perguntou.

Laura não sabia. Sentia-se traída, sem entender como Dan pudera perdoar Amanda depois de tudo que ela havia feito.

— Laura… — Raul se enterneceu ao ver a angústia estampada naquele rosto querido. — Você era uma criança, não deve saber exatamente o que se passou.

— Sei, sei sim; minha mãe nunca se importou com nada na vida. Só com ela mesma.

— Ela te ama…

— Não! Me separar de papai e de Dan não foi um ato de amor.

— Você não sabe de tudo...

— Nem preciso. Se ela pensa que agora pode consertar as coisas que fez convidando Dan para o nosso casamento, está redondamente enganada.

— E vai haver casamento? — ele perguntou depressa.

— Lógico que não!

— Laura, seria tão bom se nós...

— Eu disse não, Raul.

— Você poderia pensar melhor. Que tal fevereiro? É um mês agradável para começarmos vida nova.

— Não vou mudar de idéia — Laura disse com firmeza.

— Pensando bem, não sei se posso esperar dois meses para que você se torne minha esposa.

— Terá que esperar duas existências! Sabe, Raul, você acertou. Ser sua noiva me mostrou como estava errada ao pensar que me contentaria com o tipo de casamento que teria com Gilberto, e também ao pensar que me contentaria em casar com qualquer homem. Agora entendi que não quero casar com ninguém!

— Laura…

— Foi um dia muito longo, Raul. Agora gostaria de me deitar.

— Laura, não vou deixar que saia da minha vida — ele avisou ao vê-la dirigindo-se para o quarto.

Mais do que nunca ela estava convencida de que devia viver sozinha. A convivência com outra pessoa e a intimidade que isso implicava não serviam para ela. Não queria confiar em ninguém, e também dispensava que analisassem seus sentimentos a todo instante. Após o relacionamento físico perfeito que havia tido com Raul, a vida ficara muito confusa.

Chegando no quarto, tirou o anel de noivado e o colocou na penteadeira. Era o fim. A loucura acabara!

A primeira coisa que Laura fez ao acordar foi arrumar suas coisas. Estava decidida a tomar uma atitude de imediato, pois se deixasse para mais tarde poderia ter mais problemas ainda.

— Aonde vai com essa mala?

Laura achou que poderia sair em silêncio, sem brigas, mas, assim que viu a expressão de Raul, soube que não seria possível.

— Estou indo embora — respondeu com calma.

Ele já estava pronto para o trabalho, com um terno que o transformava num estranho e não no insaciável amante noturno. Também parecia não ter dormido, como ela. Laura agradeceu à maquilagem, que lhe escondia as olheiras.

— É véspera de Natal — Raul protestou.

— E daí?

— Não pode ir para um hotel na véspera do Natal, Laura. — Raul não fingia mais e a emoção refletida naqueles olhos dourados a assustou.

— Um hotel é exatamente o que preciso nesse momento. Não quero ninguém me incomodando.

— Laura, não faça isso comigo!

— Você é um homem feito, Raul. Sempre soube como me sentia a respeito do nosso relacionamento. Entrou nisso de olhos abertos.

— Porque não sou covarde.

— Nem eu. Acontece que sou mais realista que você.

— Você é dura, e... Onde está o anel?

— Deixei no quarto.

— Nosso noivado…

— Terminou. Não se preocupe, direi a todos que foi você quem descobriu ter errado. — Ela sabia estar sendo injusta, e mesmo assim não se desculpou. Era até melhor que Raul passasse a odiá-la.

— Não quero que você vá, doçura…

— Eu sei, e acho tudo isso muito engraçado. Apesar de saber como eu sou, você ainda me quer. — Laura passou a mão pelo cabelo, nervosa. — Você se envolveu demais, Raul! De amigo solitário acabou se transformando numa pessoa possessiva, num…

— Marido? — Ele terminou a frase. — Talvez tenha razão. porque foi o que sempre quis ser, desde o primeiro momento.

Era essa situação que Laura tentava evitar, quando quis sair sem vê-lo.

— Raul, por favor, não…

— Eu sempre te quis, Laura. Mas assim que Amanda começou a sair com meu pai, você me tratou como se eu fosse um ser desprezível. Decidi esperar, pois sabia que os dois casamentos da sua mãe tinham deixado você traumatizada. Mas acho que foi em vão; desde aquela época nada mudou. Cada vez que a gente tinha um jantar em família, esperava poder me aproximar, mas a cada dia você nos rejeitava mais… Quando Amanda recebeu o convite para o seu noivado com Gilberto, foi como se eu tivesse sido atingido por um raio!

— Pare, Raul. — Ela começou a andar pela sala, desejando estar longe dali. — Não quero ouvir mais nada.

— Por que não? Só porque de repente se sente responsável pelas emoções de outra pessoa? Isso a incomoda? Você é responsável, Laura. É responsável pelo amor, por meu desejo e por eu não ser capaz de viver sem você!

Laura respirou fundo.

— Você vai sobreviver, não se preocupe.

— Não, não vou!

Ela observou-o desesperada, procurando por algum sinal que lhe mostrasse que Raul mentia, que só queria assustá-la. Mas ele estava demasiado sério.

— Isso é chantagem, Raul. Não vai conseguir me comover com ameaças…

— Não estou falando em suicídio, Laura, só estou tentando dizer que te amo...

— Você não me ama!

— Ah! Amo, amo sim. Sei que não gosta de ouvir esta palavra, mas vou dizê-la sempre, quer você queira ou não.

— Por favor, Raul, vamos esquecer…Tenho certeza de que em alguns dias tudo será apenas uma lembrança boa que…

— Se isso a faz se sentir melhor, pode pensar assim. — Raul a interrompeu, amargurado. — Mas quando estiver levando a vida fria e solitária que tanto deseja, lembre-se de que te amo. Te amei todo este ano que passou, e vou continuar amando. Nada vai mudar meu sentimento. Portanto, minha querida, lhe desejo muitas felicidades na vida que escolheu!

Laura apanhou a mala e saiu; não tinha nada a dizer em resposta a todas aquelas palavras.

Laura, sentada no café em frente à livraria, observava a neve cair de mansinho, dificultando a caminhada das pessoas que entravam e saíam das lojas, carregadas de embrulhos. As últimas compras para o Natal… Deveria estar ajudando Polly, pensou. Mas de repente a angústia se tornara insuportável, obrigando-a a sair um pouco para espairecer.

Tomou outro gole do chocolate quente, esforçando-se para não pensar em Raul e no que ele lhe dissera. No entanto, era impossível. A voz dele ainda parecia soar, carregada de amargura: "Eu te amo, Laura. Vou te amar sempre".

Amor. Nem que quisesse conseguiria explicar a Raul que o amor era perigoso demais para que o aceitasse. No fundo, a culpa era sua. Deixara-se envolver numa situação complicada; fingira não perceber que o relacionamento dos dois estava se tornando muito mais sério que uma simples aventura. Fora cega. Era óbvio que Raul se apaixonara. A maneira como a deixara na noite anterior, magoado, era a de quem havia se entregado de corpo e alma. Tinha visto a dor estampada naqueles olhos dourados, tinha percebido como fora cruel. E pela manhã, a conversa áspera apenas confirmara o que ela já sabia.

Nem ousava avaliar os próprios sentimentos. Não queria mergulhar nas emoções desencontradas que a sobressaltavam e muito menos entender aquela sensação de vazio que a perseguia desde que chegara à loja. Aprenderia a viver sem Raul. Tinha prometido a si mesma que jamais se deixaria destruir pela paixão e estava disposta a cumprir a promessa.

— Telefone para você, Laura — Polly veio chamá-la, apressada.

— Quem é, Polly?

— Sua mãe.

— Ela… disse o que queria?

— Não, só pediu para eu te chamar.

Laura pagou a conta e acompanhou a assistente.

— Alo? — Sua voz soou áspera, ao atender.

— Laura? Gostaria de almoçar com você hoje.

— Sinto muito, mas hoje não vai dar. Acabei de tomar um lanche. — Ela só havia conseguido comer depois de muita insistência de Polly. A noite passada em claro a deixara mal. — Desculpe, Amanda, não é que eu não queira ver você… É que estamos muito ocupadas. — Como sabia que um encontro com a mãe seria inevitável, estava pretendendo marcá-lo para depois do Natal.

— Você não acha que temos muito para conversar?

— É… acho que temos.

— Falo conversar de verdade, Laura.

— Sim, e... precisamos mesmo.

— Que tal hoje à noite? — Amanda sugeriu. — Antes que você e Raul jantem. Eu podia ir até lá e...

— Não vou estar com Raul hoje à noite. Mas talvez eu possa dar uma chegada aí… Se isso não for te incomodar.

— Claro que não, querida. Olhe, se você e Raul vão jantar na cidade, nós podíamos…

— Não, também não vamos jantar na cidade. A gente não vai mais se encontrar e...

— Vocês brigaram?

— Não foi bem uma briga, só percebemos que não temos nada em comum.

— Mas vocês se amam…

— Não, Amanda, não é verdade.

— Ele ama você — a mãe insistiu.

Raul contara a eles… Não, não estava sendo justa. Raul não iria ficar anunciando seus sentimentos a todo mundo. Mas se Amanda havia percebido, por que os outros também não o fariam?

— Isso não é problema meu — disse com firmeza. — Só sei que eu não estou apaixonada por ele. Nosso noivado acabou.

— Que pena, filha. Não há jeito de...

— Não!

— Tudo bem. Nesse caso, Roberto e eu gostaríamos que passasse o Natal conosco.

— Eu… Não, muito obrigada. Tenho outros planos.

Laura ainda não havia procurado um hotel, a mala estava ali num canto do escritório. Não conseguia se lembrar da última vez que passara o Natal com a mãe.

—- Gostaria muito que viesse, Laura. — Amanda pareceu muito aflita ao perceber que ela poderia recusar o convite.

O sentimento de culpa foi surgindo devagar, provocando-lhe um insuportável desconforto. Afinal, quem era Amanda para assumir o papel de mãe protetora, assim, sem mais nem menos?

Logo ela que jogara tudo para o alto só para conseguir a própria felicidade.

— Sinto muito, vai ser impossível.

— Oh… — Amanda ficou desapontada. — Venha jantar, então… Acho que isso não é pedir demais, é?

Laura não sabia, a confusão crescia a cada instante. Se não tivesse que ver Raul, talvez fosse.

— Raul também vai?

— Bem, eu não o convidei, mas não posso responder pelo pai. — Amanda foi honesta. — Mas nós duas temos que conversar e não acho que isso deva esperar até depois do Natal.

Que diferença fariam alguns dias para uma conversa que estava sendo adiada há quinze anos? Por outro lado, não havia motivos para esperar mais. Não estava a fim de se encontrar com Raul, mas isso fatalmente acabaria acontecendo. Então, que fosse logo. A situação entre eles ficaria resolvida de uma vez por todas.

— Tudo bem, eu vou.

— Laura... — Amanda hesitou.

— Sim?

— Eu… eu…

De repente, Laura sentiu-se em pânico, do mesmo modo que de manhã, com Raul. Suas mãos ficaram úmidas.

— Eu amo você, filha. — Amanda disse rápido, e desligou.

Ela sentiu uma dor aguda no peito, como nunca experimentara antes. "Amanda" a amava? Não podia acreditar! Se acreditasse, seria como zombar da decisão que tomara com relação à própria vida, a decisão que a mantivera afastada de qualquer tipo de sentimento mais profundo.

O aperto no peito aumentou.

 

O dia já estava no fim e Laura ainda trabalhava. Polly permanecera na loja, checando as últimas encomendas.

— Creio que sou a última pessoa que você queria ver — Raul disse, com suavidade. — Mas precisamos conversar, doçura. E também tenho uma coisa para te dar.

Laura suspirou ao ouvir aquela voz conhecida. Ele parecia ainda mais cansado do que pela manhã.

— Não acha meio estranho me dar um presente de Natal logo agora?

Raul balançou a cabeça.

— Não é exatamente um presente de Natal.

— Ah, não? — Ela ficou preocupada, olhando para Polly, parada logo atrás de Raul.

— Um feliz Natal para você, Laura. — A amiga se apressou em sair, percebendo a situação. — E a você também, Raul.

— Obrigado. — Ele apertou a mão de Polly, gentil.

Laura se levantou e foi até a porta acompanhar a assistente. Já haviam trocado presentes antes.

Ao voltar para o escritório, estava pensativa. Não esperava que ele viesse.

— Que posso fazer por você? — Raul sorriu.

— Faça o sol aparecer no meio do inverno, as flores se abrirem, o…

— Raul!

— Desculpe. Esqueci que não gosta de nada que seja romântico.

— Você não sabe mentir! — Sabia que ele a provocava, por havê-lo magoado.

— Não sei mesmo. Só pensei que talvez se sentisse um pouco mais calma, agora.

— E por que eu deveria estar mais calma?

— Porque agora sabe que te amo.

— Raul dá para me dizer o que veio fazer aqui? — Laura não deixou a menor dúvida de que queria mudar de assunto.

— Para te dar isto. — Ele tirou um envelope do bolso. — E antes que veja o que é, saiba que não poderá fazer mais nada para mudar a situação. — Estendeu-lhe o envelope.

Dentro, Laura encontrou um recibo da Campbells emitido em seu nome.

— Eu...

— Outro detalhe que deve saber: não quero o dinheiro de volta.

Laura perdeu a voz ao ler o papel. Raul pagara o aluguel para todo o ano seguinte!

Ela havia passado o dia inteiro tentando achar uma maneira de se safar da confusão que Gilberto armara e não tinha encontrado a solução. Já estava até começando a se conformar com a perda da loja. E agora, como que por um passe de mágica, Raul resolvia tudo.

Não existia outro jeito, precisava aceitar o fato consumado. Mas iria pagar cada centavo daquela dívida. Caso contrário, nada feito.

— Não pode sequer me acusar de tentar te comprar, Laura. Agora não estamos mais juntos. Só paguei porque achei que era o mínimo que podia fazer por você. Afinal, vamos continuar amigos, certo?

— Foi um gesto muito bonito Raul, mas…

— Antes que recuse, existem algumas outras coisas que deve saber. Devolvi o anel de Gilbraith.

Laura empalideceu.

— Você não fez isso!

— Por que não me disse que ele era casado?

— Eu… você… você viu a mulher dele? — Ela não conseguia nem respirar direito.

— Gilbraith não estava, então devolvi o anel para a esposa dele. A única coisa que posso dizer é que ela me pareceu se preocupar com o filho.

— Então agora ela sabe sobre… sobre meu noivado com Gilberto? — Laura sentiu-se humilhada.

— Não. Pensou que eu fosse da polícia e que devolvi o anel roubado. Não falei nada, quando percebi quem era ela.

— Mas Gilberto lhe disse que o anel estava no joalheiro!

— E depois, quando você não quis entregá-lo, disse à esposa que a joalheria foi assaltada.

— Não devia ter devolvido, Raul. Agora não tenho nada!

— Você não pode querer um anel que pertence à mulher de Gilbraith, não é?

— Eu precisava desse anel! — Laura gritou, amassando o envelope e o recibo que tinha na mão.

— Por quê?

— Você não tinha o direito de interferir, você… — A voz dela falseou. Encostou-se na mesa, sem forças.

— Laura, eu só quis ajudar.

— Perdi tudo, Raul. — Olhou-o com raiva. — Acabou! Não vou aceitar teu dinheiro, e agora não tenho como…

— Como o quê, Laura?

Ele sabia! Laura estava certa de que ele sabia, sem que tivesse de lhe contar.

Raul permaneceu em silêncio, esperando que Laura se acalmasse. Depois a abraçou com ternura, afagando-lhe os cabelos com uma delicadeza infinita. Mas ela se afastou logo.

— Quanto ele levou, Laura?

Ela continuava com a cabeça baixa, desesperada com o fato de ter perdido tudo. Quanto Gilberto levara? Toda a sua vida.

De repente sentiu que dentro dela uma voz lhe dizia que nem tudo estava perdido. Poderia recomeçar, tentar de novo. Era inteligente, conhecia muito bem a profissão… E, em último caso, poderia dar aulas. Para que servia o diploma? Olhou em volta, com os olhos marejados. Será que sobreviveria sem aquele lugar que tanto amava?

— Laura? — Raul não sabia mais o que fazer para tirá-la da prostração em que se encontrava.

Ela desamassou o recibo, lendo mais uma vez a quantia.

— Laura... — Ele tentou abraçá-la de novo.

— Por favor, não me toque! Agradeço pelo que tentou fazer por mim, Raul. Mas não vai dar.

— Por que não? Se insiste, pode me pagar.

— Não tenha dúvida de que eu insistiria. Acontece que, apesar de ter o suficiente para me manter, esse dinheiro não dá pra cobrir o que te devo.

— Laura, pague daqui a dez, vinte anos! — Ela sorriu.

— Não.

— Mas por que tanta resistência, doçura?

— Principalmente porque não acho que outros devam pagar pela minha estupidez. Confiei em Gilberto, achei que meu futuro marido seria incapaz de me prejudicar. Então, deixei-o livre para assinar alguns cheques. Se me negasse, ia parecer estranho… — Laura se lembrou com amargura de como Gilberto tinha ficado zangado quando ela hesitara. Havia dito que só queria ajudá-la, tirando-lhe algumas tarefas das mãos.

— Ele é um profissional, querida. Faz isso o tempo todo.

— O quê?

— Suspeitei do anel que lhe deu, parecia mesmo uma antiguidade. Por isso, antes de devolvê-lo, fui a um joalheiro que o avaliou em cinco mil libras. Isso me pareceu muito dinheiro para um assalariado.

— Gilberto rouba para se sustentar?

— Nem sempre. Mas se especializou em tapear moças solteiras…

— Mulheres ingênuas.

— Vulneráveis, acho esta palavra bem melhor. — Laura suspirou.

— Você está inventando tudo isso ou é mesmo verdade?

— Falei com a polícia sobre o anel, e ficaram muito interessados no fato de vários apartamentos no seu edifício terem sido arrombados nos últimos tempos…

— Oh, não! — Ela encarou Raul, horrorizada.

— Chamaram Gilbraith para depor, e pelo que sei... Ah, sim, havia me esquecido. Seu vizinho, aquele curioso, já confirmou que ele esteve no seu apartamento na noite do arrombamento. — Raul viu Laura corar. — Você já sabia disso, não é?

— Ele estava procurando o anel. — Não adiantava negar, Raul já sabia muito. — As bijuterias baratas que levou foram para despistar.

— Mas, se sabia que foi ele, por que não contou à policia? Ou para mim?

— Será que alguém gosta de admitir que foi feito de bobo?

— Mas foi bem mais do que isso, Laura. Aquele sujeito levou dinheiro seu e ainda arrombou sua casa…

— E não foi só uma vez — confessou. — Duas noites apôs a primeira tentativa de encontrar o anel, ele invadiu meu apartamento de novo, às duas horas da manhã.

— Laura! Não lhe passou pela cabeça que estava correndo perigo?

— Claro que sim! Por que acha que vim dormir aqui?

— Não sei, talvez assim pudesse ficar mais perto da única coisa que lhe importa. Ah... A polícia vai querer falar com você um dia desses. Já avisei que podem encontrá-la aqui. Pretende mesmo passar o Natal com todos esses livros?

— Ainda não sei.

— Eu também não. A única pessoa com quem gostaria de compartilhá-lo parece que não está a fim.

— Raul…

— Bem, se você mudar de idéia me avise. —- Ele se dirigiu até a porta, mas tornou a se virar. — Gostaria de lhe pedir uma última coisa: converse com Amanda… Sinto que alguma de suas idéias sobre o passado vão cair por terra. Até outro dia, doçura. E não se esqueça de que eu te amo.

Ela continuou olhando para a porta depois que Raul desapareceu, lembrando-se de outra noite, quando o encontrara ali, disposto a levá-la para a casa dele… Lembrou-se também de um ano atrás, quando haviam se conhecido. Como lutara contra os próprios sentimentos! Como lutara contra a atração que aquele homem lhe despertara... Já naquela época tinha percebido que Raul poderia entrar em sua vida, virando-a do avesso. Talvez, se Amanda não tivesse se envolvido com Roberto, as coisas fossem diferentes… Mas no momento, Laura reprimira com violência qualquer emoção que pudesse uni-la a ele. Não correria riscos.

E no entanto, o destino os colocara de novo frente a frente. Raul viera atrás dela, salvando-a de uma situação constrangedora…Raul aparecera, como a lhe dizer que era impossível fugir do amor…

O jantar foi muito desgastante para Laura. Logo que terminaram, Roberto pediu licença e se dirigiu para o estúdio, a fim de deixar as duas mulheres a sós.

Amanda sorriu.

— Ele pensa que não sei que vai lá para fumar.

Laura aceitou uma xícara de café.

— Não sabia que ele fumava.

— Só um cigarro após o jantar — Amanda contou com indulgência. — Ele se tranca no estúdio pois sabe que não suporto o cheiro.

— Papai fumava — Laura falou, sem pensar.

— Sim, e no fim foi o que o matou. Estava muito mal de saúde antes de ter o ataque do coração.

— Parece que você sabe muito sobre ele.

— Através de Dan — a mãe disse com simplicidade. — Sempre me mandou notícias sobre seu pai.

— Por quê?

— Laura, vivi com ele por doze anos, você acha que não me preocupava?

— Mas se divorciou dele.

— Sim, e não foi nada fácil.

— Então por que não ficaram juntos?

— Nosso amor se acabou e continuar o teria matado mais depressa.

— Meu pai ou você?

— Ele não era o tipo de homem que ficava amarrado a uma mulher. O primeiro casamento dele acabou do mesmo jeito. Até que o nosso demorou muito, bem mais do que podia esperar.

— Mas foi você quem pediu o divórcio — Laura lembrou.

— Não me arrependo nem um pouco, Laura. A única coisa que sempre me perturbou foi o fato de você e Dan sofrerem com a situação.

— Você separou a gente! Foi muita maldade.

— Acredita mesmo nisso? — A dor de Amanda era flagrante.

— Fiquei com você e Dan com papai!

— Não precisava ter sido assim…

— Mas foi assim!

— É verdade, mas Dan escolheu.

— Dan? — ela perguntou incrédula. — Que escolha teve?

— Ele tinha dezesseis anos, idade bastante para decidir aonde queria ir, e com quem queria ficar. Escolheu teu pai.

— Não acredito… Dan não me escolheu? — Laura tentava segurar as lágrimas.

— Nenhuma de nós, filha.

— É mentira. — Ela balançou a cabeça, inconformada.

— Logo ele virá nos visitar, querida. Pode perguntar a ele.

Dan não podia ter feito aquilo com ela. Eram tão apegados, ele sempre fora seu ídolo. . . Não podia ter escolhido o pai em vez dela.

— Laura — a mãe chamou gentil. — Ele fez o que achou melhor.

— Melhor para quem?

— Para o teu pai.

— Então por que não pude ir com eles?

— Tente entender, meu bem. Seu pai nunca quis responsabilidades e, quando o conheci, já estava sozinho com Dan há seis meses. Precisava de alguém que cuidasse deles…

— Ele te amou!

— Sim, mas sempre me perguntei se teríamos casado se não fosse por Dan. Seu pai não podia cuidar dele sozinho e sua ex-mulher não era considerada uma mãe conveniente. Então nos casamos, três semanas depois de nos conhecermos. Você nasceu e tudo parecia bem. Mas ele começou a se sentir amarrado. Era um homem que precisava ser livre. Nessa ocasião, Dan já estava crescido o bastante para não prendê-lo. E Dan sabia disso. Apesar de considerá-lo como meu próprio filho, ele me chamava de mamãe, tive que deixá-lo ir embora.

— E eu? — Laura perguntou desesperada. Tinha se indagado sobre isso mil vezes quando criança, sentindo-se pouco amada e desprezada por todos.

— Querida, eu a teria deixado ir com eles se soubesse que seu pai cuidaria bem de você, mesmo se isso significasse… — Amanda estava muito emocionada, mesmo assim continuou: — ...perder você para sempre.

— Eu queria ficar com eles!

— Acha que eu não percebi? Você se afastou de mim, me excluindo da sua vida… Fugia de mim até quando eu tentava abraçá-la. Fiquei com medo de me aproximar, filha.

— Com medo?

Por um breve instante, os olhos de Amanda mostraram raiva.

— Os pais também podem ser magoados, Laura. Perguntei ao seu pai se queria levá-la, expliquei que as conseqüências do divórcio estavam sendo péssimas para você. Ele achou melhor sair da sua vida.

— E foi para os Estados Unidos…

— Supliquei que reconsiderasse, mas não adiantou. Depois que eles se foram, você piorou. A única coisa que a fazia um pouco mais feliz eram os livros. Então eu os comprava, dezenas deles, só para poder vê-la tranqüila.

— Isso também me tirava do seu caminho — Laura acusou.

— Nunca quis você fora do meu caminho! — Os olhos de Amanda faiscaram. — Queria de volta a menina carinhosa que tinha. Mas ela se foi... e nunca mais voltou.

— O que você esperava? Sempre me arrastava de uma casa a outra, como um objeto inútil.

— Será que está preparada para ouvir o que tenho para dizer a respeito?

— Estou sim, pode dizer — Laura desafiou.

— Muito bem — Amanda concordou. — Você percebia mais alguma coisa nessas mudanças?

— O que você quer dizer com isso?

— Vamos Laura, faça um esforço… Tente se recordar.

— Meus brinquedos desapareciam.

— Sim, e cada apartamento era menor que o outro.

— Disso eu não me lembro.

— Pois é, vendi seus brinquedos, Laura, assim como vendi tudo o que me pertencia. Precisava de dinheiro, sabe?

— Dinheiro?

— É, filha, dinheiro. Assim que seu pai foi para os Estados Unidos, a pensão que havia concordado em nos pagar deixou de vir. Continuei escrevendo, mas acho que ele se esqueceu de nossa existência.

— Não, isso não!

— Talvez não. — A mãe balançou a cabeça. — Tudo que sei é que o dinheiro parou de chegar. E após doze anos de casada e sem trabalhar, o único emprego que consegui não dava para as despesas. Quando Dan começou a trabalhar, nos mandava alguns dólares todos os meses…

— E você aceitou o dinheiro?

— Não queria, mas o pouco que tínhamos não dava para nada.

— Mas continuou me comprando livros!

— Ficava sem almoçar para isso — Amanda falou, impaciente. — Só isso te deixava feliz!

Não era fácil aceitar aquelas explicações. Não era fácil derrubar a barreira que erguera ao longo dos anos entre ela e a mãe.

— Frank Shepherd costumava… me tocar — Laura disse em tom provocativo. A mãe ficou pálida.

— Oh, não! Oh, Deus! Não! — grilou, chocada e em lagrimas.

Laura olhou-a sem interesse, ainda incapaz de se livrar da aversão que sentia.

— Raul me disse para te perguntar por que se divorciou de Shepherd.

— Frank… era brutal comigo — Amanda revelou sentida. — Era rico, e... eu queria que você tivesse de novo tudo de melhor. Ele me deu dinheiro para lhe comprar roupas bonitas, para mandá-la a uma escola particular, e como conheci a crueldade dele ainda na lua-de-mel, decidi que um internato seria o melhor. — Olhou-a suplicante. — Frank não… não…

— Não, não fez isso. Ele só ficava me assustando, mas às vezes também... me tocava.

E por muito tempo isso a fizera crer que um homem só queria dela um relacionamento físico…

— Não é de estranhar que você me odiasse. — Amanda sofria muito com as revelações da filha. — Me esforcei tanto por fazer o que era melhor, mas tudo saiu errado. Afastei você daqueles que mais amava, deixando-a nas mãos pervertidas de outro homem. Acho que se estivesse no seu lugar, também me odiaria.

Sem que se dessem conta, mãe e filha estavam abraçadas, chorando as lágrimas contidas por longos anos. Haviam ficado muito tempo separadas, mas o espírito natalino parecia envolvê-las…

As duas sentiam que aquele reencontro seria definitivo.

Aos poucos, Amanda e Laura conseguiram se acalmar. A conversa havia sido difícil para as duas.

— Acho melhor a gente parar de chorar — a voz da mãe soou suave.

Laura sentou-se, enxugando o rosto com as mãos, um pouco inibida depois de tantas emoções.

— Olhe para mim, filha. Talvez precisássemos ter feito isto anos atrás. Eu devia ter insistido para que teu pai a levasse, mesmo se me doesse muito. Ou quem sabe ter dado um jeito e fazer com que Dan ficasse conosco…

— Não — Laura retrucou com firmeza. — Concordo que esta conversa devia ter acontecido antes, mas a culpada sou eu, fique tranqüila. Todos esses anos me mantive inatingível, e provavelmente, se eu tivesse ido com papai, também me sentiria infeliz. A tua situação não era nada fácil, Amanda.

— Laura, não alimente mais essa raiva por Dan. A separação para ele também foi dificílima…

— Não estou com raiva. É que eu nunca consegui entender a nossa separação. Na última vez que estive com ele, nós parecíamos dois estranhos.

— Ele me contou. Disse que estava tenso porque viu o quanto a havia magoado e não sabia mais como alcançá-la. Acho que ele vem em fevereiro para tentar de novo se reaproximar de você. Sabe Laura, é bem mais difícil a gente deixar livre a quem se ama. Mais fácil é se agarrar a ela.

Isso era exatamente o que Raul tentara lhe dizer. Ele a queria, mas não podia segurá-la; a menos que ela fosse encontrá-lo no meio do caminho.

— E sobre você e Raul? — A mãe pareceu adivinhar-lhe os pensamentos. — Não tem solução?

Laura suspirou e se forçou a relaxar. Aquela mulher era sua mãe e, depois de tanto tempo de conflitos, talvez nunca conseguissem se aproximar o bastante. Mas precisava tentar, precisava aprender a confiar nela.

— Teria se eu o amasse.

— E você o ama?

— Não sei! Nunca pensei que fosse capaz de amar alguém, mas agora sei que… te amo.

— Obrigada, querida. Sei como foi difícil para você dizer isso.

— Sempre te amei. Só não entendia tudo o que havia acontecido.

— Não sei se naquele tempo uma explicação teria ajudado. Mas acredito que agora nos entendemos um pouco melhor, e tudo vai ficar bem.

— Espero — Laura disse com carinho.

— E o que vai fazer com Raul?

— Nada. — Ela suspirou de novo. — Pelo menos por enquanto. Preciso pensar, descobrir se sou capaz de dar-lhe o que merece.

A mãe sorriu.

— Estou certa que sim, querida.

— Mas eu não. E até que esteja…

— Entendo — a mãe concordou. — E agora que está tudo em ordem, insisto para que fique para o Natal…

— Não, eu acho que não...

— Talvez não tenha sido bastante firme, Laura. Eu "insisto" que fique conosco para o Natal!

— Se fosse tão rígida comigo assim quinze anos atrás, acho que tudo teria sido diferente.

— Quer dizer que vai ficar? — Amanda sorriu.

— Se você insiste mesmo.

— Claro que sim. Vou mandar preparar um quarto para você.

Amanda deixou Laura sozinha, intuindo que a filha precisava de um tempo para conviver com tantas emoções inesperadas.

Exausta, Laura estendeu-se no sofá e fechou os olhos, pensando em tudo o que acabara de acontecer. Tinha passado tanto tempo culpando a mãe pela tragédia de sua vida… Como não percebera que uma história sempre tem dois lados? Se o pai quisesse mesmo ficar com ela, nada no mundo o teria feito ir para os Estados Unidos. Pobre Amanda. Havia feito o melhor. E o que recebera em troca? Apenas frieza da filha, violência de Shepherd…

E Dan? Também com ele fora injusta; não era de admirar que se sentissem estranhos no último encontro. No íntimo também o culpara por tê-la deixado. Ainda bem que as férias de fevereiro estavam próximas, revê-lo seria maravilhoso.

Raul devia saber de tudo há muito tempo… Ela levantou e começou a andar pela sala, inquieta, aturdida com o que se passava com suas emoções. Apesar de toda a frieza e amargura com que o tratava, ele soubera amá-la. Raul a aceitara sem restrições, mesmo agredido, mesmo quando ela lhe dissera que não desejava nenhum compromisso. O tempo todo se mostrara disposto a ajudá-la, a estender-lhe a mão… Como tinha sido estúpida!

Como desfazer o erro? Não podia simplesmente chegar e pedir desculpas… Ainda não tinha certeza de ser capaz de amar Raul como ele merecia.

— Quer beber alguma coisa? — Roberto apareceu na porta, com um sorriso amável. Ele e Amanda já deviam ter conversado…

— Sim, obrigada. Estou mesmo precisando.

O pai de Raul se aproximou, estendendo-lhe o copo.

— Acho que Raul está em casa, se você quiser ir até lá... — Laura ficou vermelha.

"Sou tão transparente assim?" Pensou que devia estar apaixonada por Raul Harrington há muito tempo, sem saber. Com certeza desde o acidente com o carro. Mas, como banira o amor de sua vida, não havia percebido os próprios sentimentos.

— Vamos brindar a você, Laura, e a todas as pessoas que a amaram.

— Roberto. — Laura mordeu o lábio, — Como é possível amar uma pessoa neurótica como eu?

— Não seja tão dura consigo mesma, querida. Você não é neurótica. Qualquer um no seu lugar teria reagido como fez, tentando se defender das decepções… Ninguém a culpa por nada, Laura. Nem mesmo Raul. Por que não lhe dá uma chance?

— Não sei, Roberto… E se for tarde demais?

— Nunca é tarde para o amor, meu bem. E meu filho te espera há tanto tempo… Acho que se apaixonou por você desde que a conheceu. Ainda me lembro bem de como me falava da garota que conhecera, do acidente… sabia que enquanto você esteve no hospital ele praticamente não dormiu? Depois, quando Amanda e eu iniciamos nosso romance, ele ficou na maior alegria, achando que seria mais fácil se aproximar de você…

Laura riu, amarga.

— E aconteceu exatamente o contrário. Eu fiz questão de me afastar.

— A partir daí Raul mergulhou no trabalho, como um louco. Ficava no banco até tarde; não saía mais para lugar nenhum.

— E ele não tem nenhuma namorada? — ela perguntou temerosa, pois era impossível que Raul também tivesse se afastado das mulheres.

— Nenhuma. Meu filho é homem de uma só mulher. Estive muito preocupado com ele, mas me sinto aliviado por saber que já não é mais necessário.

As palavras de Roberto fizeram com que Laura se decidisse.

— Quer dizer… diga a mamãe que não vou ficar para passar a noite aqui. — Era estranho chamar Amanda dessa forma carinhosa, mas muita coisa em sua vida iria mudar de agora em diante.

— Posso também dizer que você e Raul vêm almoçar amanhã?

— Cruze os dedos por mim! — Ela voltou-se da porta.

Roberto sorriu.

— Não vai ser preciso, querida.

Laura gostaria de sentir a mesma confiança, mas suas mãos estavam tremulas e as pernas fracas, ao sair à procura de Raul.

Roberto se enganara. Raul não se encontrava em casa. Ia dar meia volta para sair dali, mas disse a si mesma que não podia jogar fora a felicidade. Decidida, entrou no quarto dele.

Raul abriu a porta devagar e olhou para a cama, assustado, como se não acreditasse no que via. Laura estava ali, abraçada a Fred.

— Sabe — ela falou com a cabeça baixa. — Eu estive pensando muito na sua proposta…

— É mesmo? E chegou a alguma conclusão? — Ele suspirou, resignado.

— Vou aceitar.

— Ah, sim? — Raul fechou a porta atrás de si, com uma expressão de indiferença.

Parecia muito cansado, exausto. Começou a desatar a gravata; os ombros curvados denotavam derrota. Laura percebeu como o amava e precisou conter o impulso de abraçá-lo.

— Eu não sei como pedir desculpas pelo modo como o tratei, Raul. Acho que meu orgulho me deixou cega… — Ele a encarou com tristeza.

— Não precisa me dar satisfação, Laura. Já disse que não precisa me devolver o dinheiro, nem se preocupar mais com isso.

— Não, eu vim aqui para… Olhe, Raul, vamos colocar as coisas de outro jeito: aceito sua ajuda, desde que concorde com a proposta que vou fazer a você.

— Proposta? Laura, hoje estou muito cansado… não daria para a gente discutir negócios mais tarde? Gostaria de tomar um banho, dormir um pouco…

— Não, Raul. Tem de ser agora, senão eu perco a coragem.

— Você perder a coragem? — Ele sorriu, irônico. — Acho que está se subestimando…

Ela respirou fundo para controlar a emoção.

— Raul, você quer mesmo se casar comigo?

— Se eu quero me casar com você? — O rosto dele se iluminou com um sorriso. — Meu Deus, querida. É a coisa que mais quero no mundo… Só não consigo entender essa mudança toda.

— Acabei de falar com minha mãe. — Laura estava prestes a chorar. — E de repente consegui perceber que havia me colocado numa redoma para evitar qualquer tipo de sofrimento... Ah, Raul, fui tão boba. Estou apaixonada por você, querido.

Num instante ele estava ao lado dela, abraçando-a.

— Laura, minha doce Laura, quanto tempo esperei para ouvir isso de você. Ah, meu amor, não sabe o inferno que passei depois que me deixou... — Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, os lábios ansiosos de Raul tomaram-lhe a boca, num beijo quase desesperado.

— Raul... — Ela conseguiu se afastar um pouquinho. — Então você me perdoa? É capaz de me aceitar depois de tudo o que eu fiz?

— Você me magoou muito, querida, mas sou capaz de entender. Faz muito tempo que aprendi que as coisas não acontecem sempre do jeito que a gente imagina. Eu também a tratei com muita arrogância, não foi? Quantas vezes eu quis me intrometer na sua vida, decidindo sobre assuntos que não me diziam respeito.

— É, você tem uma grave tendência para o machismo. Só espero que não transmita isso para os nossos filhos.

— Filhos? Está falando sério, doçura?

— Hum, num.

— Isso quer dizer sim ou não?

— Ah, você entendeu muito bem.

— Laura, tem certeza de que não estou sonhando?

— Bom, só tem um jeito de tirarmos a dúvida. — Com um sorriso malicioso ela começou a desabotoar-lhe a camisa, deslizando as mãos pelo peito largo. Raul reagiu de imediato, tornando a abraçá-la enquanto a fazia se deitar sobre as cobertas…

Trechos de uma canção chegavam de algum lugar distante. Laura abriu os olhos, sonolenta e sorriu ao ver o rosto de Raul tão perto do seu. Os olhos dourados brilhavam, cheios de amor.

— E então?

— Então o quê, doçura?

— Ainda acha que é um sonho? — Ele riu, acariciando-lhe os seios.

— É um sonho sim, meu bem. Um sonho que vai durar a vida inteira.

— É uma noite bonita para começarmos, não é, Raul?

— Sim. A mais bela de todas.

— Feliz Natal, meu amor.

— Feliz Natal, doçura.

 

 

                                                                  Carole Mortimer

 

 

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