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NÚPCIAS, O VERÃO / Albert Camus
NÚPCIAS, O VERÃO / Albert Camus

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

                              NÚPCIAS EM TIPASA

        Na Primavera Tipasa é habitada pelos deuses e os deuses falam no sol, no odor dos absintos, no mar revestido por uma couraça de prata, no céu de um azul inclemente, nas ruínas cobertas de flores e na luz que jorra aos borbotões por entre as pedras amontoadas. Em certas horas o campo fica negro de sol. Os olhos tentam inutilmente perceber outra coisa que não sejam as gotas de luz e as cores que tremem na beira dos cílios. O odor intenso das plantas aromáticas arranha a garganta e sufoca, no calor descomunal. A muito custo, no fundo da paisagem, consigo vislumbrar a massa escura do Chenoua, que se enraíza nas colinas que circundam a aldeia, estremece com um ritmo seguro e pesado, para ir agachar-se no mar.

        Chegamos pela aldeia que se abre sobre a baía. Entramos num mundo amarelo e azul, onde nos acolhe o suspiro perfumado e acre da terra estival da Argélia. Por toda a parte, as buganvílias, de um rosa avermelhado, irrompem do alto dos muros das casas de campo; nos jardins, hibiscos de um vermelho ainda pálido, uma profusão de rosas-chá, espessas como um creme, e orlas delicadas de longos íris azuis. Todas as pedras estão quentes. No momento em que descemos do ônibus cor de botão-de-ouro, os açougueiros, em suas carroças vermelhas, fazem o costumeiro giro matinal, e o toque de suas cometas chama os habitantes.

        A esquerda do porto, uma escada de pedras secas leva às ruínas, por entre os lentiscos e as giestas. O caminho passa diante de um pequeno farol, para mergulhar logo depois em pleno campo. A partir desse farol, já se vêem as grandes plantas gordurosas, de flores arroxeadas, amarelas e vermelhas, descendo em direção aos primeiros rochedos, que o mar suga com um rumor de beijos. De pé, ao vento leve, sob o sol que nos aquece um só lado do rosto, contemplamos a luz que baixa do céu, o mar sem uma ruga e o sorriso de seus dentes resplandecentes. Antes de entrar no reino das ruínas, somos espectadores pela última vez.

        Ao fim de alguns passos, os absintos agarram-se a nossa garganta. Seu pêlo cinzento recobre as ruínas a perder de vista. Sua essência fermenta sob o calor, e da terra ao sol eleva-se, sobre toda a extensão do mundo, um álcool generoso que faz vacilar o céu. Caminhamos ao encontro do amor e do desejo. Não buscamos lições, nem a amarga filosofia que se exige da grandeza. Além do sol, dos beijos e dos perfumes selvagens, tudo o mais nos parece fútil. Quanto a mim, não procuro estar sozinho nesse lugar. Muitas vezes estive aqui com aqueles que amava, e discernia em seus traços o claro sorriso que neles tomava a face do amor. Deixo a outros a ordem e a medida. Domina-me por completo a grande libertinagem da natureza e do mar. Nesse casamento de ruínas com a primavera, as ruínas tornaram-se em pedras novamente e, tendo perdido o polimento imposto pelo homem, reintegraram-se na natureza. Para o retorno dessas filhas pródigas, a natureza esbanjou as flores. Por entre as lajes do foro, o heliotrópio introduz a cabeça redonda e branca, e os gerânios vermelhos derramam sangue sobre tudo aquilo que outrora foram casas, templos e praças públicas. Tal como esses homens cuja ciência reconduz a Deus, os muitos anos fizeram retornar as ruínas à morada materna. Hoje, finalmente, seu passado as abandona e nada as distrai dessa força profunda que as leva de novo ao cerne das coisas que declinam.

  

 

  

 

        Quantas horas passadas a esmagar absintos, a acariciar as ruínas, tentando conciliar minha respiração com os tumultuosos suspiros do mundo! Mergulhado entre os perfumes selvagens e os concertos de insetos sonolentos, abro os olhos e o coração à grandiosidade insustentável do céu transbordante de calor. Não é tão fácil tornar-se aquilo que se é, reencontrar nossa medida profunda. Mas, ao contemplar o sólido espinhaço do Chenoua, meu coração aquietava-se com uma estranha certeza. Aprendia a respirar, integrava-me, realizava-me. Ia transpondo, uma após outra, as encostas; e cada uma delas me reservava uma recompensa, como o templo cujas colunas medem o curso solar, e de onde se pode avistar a aldeia inteira, seus muros brancos e rosados e as varandas verdes. Como também a basílica sobre a colina a leste: ela conservou as paredes e, num enorme raio que a circunda, alinham-se sarcófagos exumados, na maioria recém-saídos da terra, de cuja natureza ainda participam. Dantes, contiveram mortos; agora, por ali florescem salvinas e mostardas-do-campo. A basílica de Santa Salsa é cristã; no entanto, cada vez que se espreita por uma de

suas aberturas, é a melodia do mundo que chega até nós: outeiros plantados de pinheiros e ciprestes, ou então o mar, que rola seus carneiros brancos a uma vintena de metros. A colina onde se ergue Santa Salsa é achatada no alto e o vento sopra com mais amplidão através de seus pórticos. Sob o sol da manhã, uma grande felicidade balança no espaço.

        Bem pobres são aqueles que têm necessidade de mitos! Nesse lugar, no decorrer dos dias, os deuses servem de leito ou de ponto de encontro. Descrevo e digo: “Eis aqui algo que é vermelho, azul ou verde. Isto é o mar. Esta é a montanha. Aquelas são as flores.” Por que precisaria falar em Dionísio, para dizer que gosto de esmagar pelotas de lentiscos? E é justamente em homenagem a Deméter o velho hino sobre o qual mais tarde meditarei sem constrangimento: “Feliz o vivente sobre a terra que viu estas coisas.” Ver, e ver sobre a terra — como esquecer essa lição? Aos mistérios de Elêusis bastava contemplá-los. Mesmo aqui, sei que jamais me aproximarei suficientemente do mundo. E preciso que eu fique nu e, depois, mergulhe no mar e que, ainda perfumado de essências da terra, possa lavá-las nas águas desse mesmo mar, estreitando em meu corpo o abraço pelo qual suspiram, lábio a lábio, há tão longo tempo, a terra e o mar. Uma vez dentro d’água, é o sobressalto, a subida de uma viscosidade fria e opaca, depois o mergulho no zumbido dos ouvidos, o nariz a pingar e a boca amarga — o nado, os braços polidos de água, saídos do mar para se dourarem ao sol e de novo abaixados, numa torsão de todos os músculos, a corrida da água sobre meu corpo, a posse tumultuosa da onda pelas minhas pernas — e a ausência de horizonte. Na praia, é a queda na areia, abandonado ao mundo, uma vez mais de volta a meu peso de carne e osso, embrutecido de sol, lançando de longe em longe um olhar para os meus braços, onde as poças de pele seca deixam a descoberto, à medida que a água escorre, a penugem loura e a poeira de sal.

        Aqui, compreendo o que se denomina glória: o direito de amar sem medida. Existe apenas um único amor neste mundo. Estreitar um corpo de mulher é também reter de encontro a si essa alegria estranha que desce do céu para o mar. Daqui a pouco, quando me atirar no meio dos absintos, a fim de que seu perfume penetre meu corpo, terei consciência, contra todos os preconceitos, de estar realizando uma verdade que é a do sol e que será também a de minha morte. Em certo sentido, é justamente a minha vida que estou representando aqui, uma vida com sabor de pedra quente, repleta de suspiros do mar e de cigarras, que agora começam a cantar. A brisa é fresca e o céu, azul. Gosto imensamente desta vida e desejo falar sobre ela com liberdade: dá-me o orgulho de minha condição de homem. No entanto, já me foi dito várias vezes: não há nenhum motivo para estar orgulhoso. Mas creio que há muitos: este sol, este mar, meu coração saltando de juventude, meu corpo com sabor de sal e o imenso cenário onde a ternura e a glória se reencontram no amarelo e no verde. E para conquistar tudo isso que preciso aplicar minha força e meus recursos. Tudo aqui me deixa intacto, não abandono nada de mim mesmo, não me revisto de máscara alguma: basta-me aprender pacientemente a difícil ciência de viver, que equivale muito bem a todo o savoir vivre dos que tentaram desiludir-me.

        Um pouco antes do meio-dia, retornamos através das ruínas, em direção a um pequeno bar à beira do porto. Com a cabeça ainda retinindo dos címbalos do sol e das cores, que bem-vinda a frescura dessa sala cheia de sombra e do copo de menta, verde e gelada! Lá fora, o mar e o caminho ardente de poeira. Sentado à mesa, tento prender entre meus cílios, que se agitam, o deslumbramento multicolorido do céu branco de calor. Com o rosto molhado de suor, mas com o corpo fresco no leve tecido que nos veste, todos ostentamos a bem-aventurada lassidão de um dia de núpcias com o mundo.

        Come-se mal neste bar. Mas há muitas frutas — sobretudo pêssegos, que comemos às mordidelas, o sumo a escorrer-nos pelo queixo-. Com os dentes cravados no pêssego, escuto as pancadas violentas de meu sangue a subir até os ouvidos, enquanto meus olhos vão absorvendo tudo o que vêem. Sobre o mar, o silêncio enorme do meio-dia. Todo ser belo tem o orgulho natural de sua beleza, e o mundo, hoje, deixa seu orgulho destilar por todos os poros. Diante dele, por que haveria de negar a alegria de viver, se conheço a maneira de não encerrar tudo nessa mesma alegria de viver? Não há vergonha alguma em ser feliz. Atualmente, porém, o imbecil é rei e, para mim, imbecil é aquele que tem medo de gozar. Tem-se falado muito no orgulho: vocês o conhecem, é o pecado de Satã. Clamava-se: Cuidado! Vós vos perdereis e às vossas forças vivas. Desde então, com efeito, aprendi que um certo orgulho... Mas em outros momentos não consigo evitar a reivindicação deste orgulho de viver que o mundo inteiro conspira para dar-me. Em Tipasa, ver equivale a crer, e não me obstino em negar aquilo que minha mão pode tocar e que meus lábios podem acariciar. Não sinto a necessidade de transformar tudo numa obra de arte, mas sim de narrar o que é diferente. Tipasa surge diante de mim como essas personagens que descrevemos quando indiretamente desejamos dar significado a um determinado ponto de vista sobre o mundo. Tal como elas, Tipasa testemunha, fazendo-o virilmente. Hoje, ela é a minha personagem; e tenho a impressão de que, ao acariciá-la e descrevê-la, minha exaltação será interminável. Há um tempo para viver e um tempo para testemunhar a vida. Também existe um tempo para criar, o que é menos natural. Basta-me viver com todo o meu corpo e testemunhar com todo o meu coração. Viver Tipasa, testemunhar, e a obra de arte virá em seguida. Existe nisto uma espécie de liberdade.

        Jamais permaneci mais de um dia em Tipasa. Chega sempre um instante em que já olhamos demais para uma paisagem, do mesmo modo que é preciso muito tempo para que a vejamos o bastante. As montanhas, o céu e o mar são como rostos cuja aridez ou esplendor se descobrem à força de olhar em vez de ver. Mas todo rosto, para ser eloqüente, deve sofrer certa renovação. Queixamo-nos de nos fatigar depressa demais, quando seria necessário que nos admirássemos de que o mundo nos pareça sempre novo, apenas por ter sido esquecido.

        Ao entardecer, encaminhei-me para uma zona mais bem tratada do parque, toda ajardinada, situada à beira da estrada nacional. Ali, ao sair do tumulto dos perfumes e do sol, no ar agora refrescado pela tarde, o espírito se acalmava e o corpo, distendido, saboreava o silêncio interior que nasce do amor satisfeito. Sentei-me num banco. Olhava o campo arredondar-se com o dia. Sentia-me saciado. Sobre mim, uma romãzeira deixava pender os botões de suas flores, cerrados e cheios de nervuras como pequeninos punhos fechados que contivessem toda a esperança da primavera. Havia alecrim, detrás de meu banco, mas eu percebia apenas o perfume de álcool. Colinas emolduravam-se entre as árvores e, mais longe ainda, um debrum de mar por cima do qual o céu, como vela enfunada, repousava toda a sua ternura. Sentia em meu coração uma estranha alegria, a mesma que nasce da consciência tranqüila. Existe um sentimento que os atores experimentam ao terem consciência de haver cumprido bem seu papel, isto é, no sentido mais preciso, de terem feito coincidir seus gestos com os da personagem ideal que encarnam, de terem conseguido penetrar, de certa forma, num desenho elaborado com antecedência e que eles subitamente fizeram viver e pulsar com seu próprio coração. Era exatamente essa sensação que eu experimentava: representara bem o meu papel. Desempenhara minha tarefa de homem, e o fato de ter conhecido a alegria durante toda uma longa jornada não era para mim um êxito excepcional, mas apenas a realização comovida de uma condição que, em certas circunstâncias, faz com que a felicidade seja um dever para nós. Assim reencontramos uma solidão. Dessa vez, porém, na plenitude.

        Neste momento as árvores estão povoadas de pássaros. A terra suspira lentamente antes de entrar na sombra. Daqui a pouco, com a primeira estrela, a noite cairá sobre o cenário do mundo. Os deuses resplandecentes do dia retornarão à sua morte cotidiana. Mas outros deuses virão. E então, para serem mais sombrias, suas faces devastadas nascerão no coração da terra.

        Enquanto isso, a incessante eclosão das vagas sobre a areia chegava até mim através de um grande espaço, onde bailava um pólen dourado. Mar, campo, silêncio, perfumes desta terra, fartava-me de uma vida olorosa e mordia a polpa do fruto já dourado do mundo, perturbado por sentir seu sumo adocicado e espesso escorrendo pelos meus lábios. Não, não era eu que importava, nem o mundo, mas apenas a harmonia e o silêncio que, vindo dele até mim, fazia nascer o amor. Amor que não tinha a fraqueza de reivindicar para mim só, consciente e orgulhoso de compartilhá-lo com uma raça inteira, nascida do sol e do mar, cheia de vida e de encanto, que alcança a grandeza através de sua simplicidade e que, de pé nas praias, dirige um sorriso cúmplice ao sorriso deslumbrante de seus céus.

 

                                   O VENTO EM DJEMILA

        Há lugares onde o espírito morre a fim de que nasça uma verdade que é a sua própria negação. Quando estive em Djemila, havia vento e sol, mas isso é outra história. O que é preciso dizer, em primeiro lugar, é que ali reinava um vasto silêncio, pesado e compacto — algo semelhante ao equilíbrio de uma balança. Pios de pássaros, o som da flauta de três orifícios, um patear de cabras, rumores que vinham do céu e outros tantos ruídos compunham o silêncio e a desolação desses lugares. De vez em quando, um estalido seco, um grito agudo indicava a fuga de um pássaro acaçapado entre as pedras. Cada um dos caminhos percorridos, as veredas em meio aos restos de casas, as amplas ruas lajeadas sob as colunas reluzentes, o foro imenso entre o arco do triunfo e o templo, sobre uma elevação — tudo conduz às ravinas que demarcam Djemila por todos os lados, baralho aberto sobre um céu sem limites. Está-se ali, concentrado, defronte às pedras e ao silêncio, enquanto o dia vai avançando e as montanhas crescem, tornando-se violáceas. Mas o vento sopra sobre o planalto de Djemila. E nesse imenso amálgama de vento e de sol que mescla as ruínas à luz, forja-se alguma coisa que dá ao homem a medida de sua identificação com a solitude e o silêncio da cidade morta.

        E necessário dispor de muito tempo para ir a Djemila. Não é uma cidade onde se pare e se possa seguir adiante. Não conduz a parte alguma, nem se abre sobre qualquer outra região. E um lugar de onde se retorna. A cidade morta está situada no ponto final de uma longa estrada em forma de laço, que dá a impressão de anunciá-la em cada uma de suas curvas. Por isso mesmo, a estrada nos parece ainda mais longa. Quando Djemila surge por fim, sobre um planalto de cores esmaecidas cravado entre altas montanhas, com seu arcabouço amarelecido semelhando uma floresta de ossos descarnados e secos, representa o símbolo dessa lição de amor e de paciência — a única que nos pode conduzir ao coração palpitante do mundo. Ali, entre algumas árvores e um bocado de capim seco, Djemila se defende com todas as suas montanhas e todas as suas pedras contra a admiração vulgar, o pitoresco ou os enganos da esperança.

        Por esse árido esplendor andáramos a vagar o dia inteiro. Pouco a pouco, o vento, que mal se percebia no início da tarde, pareceu-nos crescer com o passar das horas e ocupar novamente toda a paisagem. Soprava de uma abertura entre as montanhas longínquas, a leste, chegava apressado do fundo do horizonte e vinha cabriolar em cascatas por entre as pedras e o sol. Sem parar, zunia com força através das ruínas, girava num circo de pedras e de terra, banhava os montões de blocos devastados pelo granizo, envolvia cada uma das colunas com seu sopro e depois ia derramar-se com gemidos incessantes sobre o foro que se abria ao céu. Sentia-me estalar ao vento como os mastros de um navio. Esvaziado pela metade, os olhos a arderem e os lábios crestados, minha pele secava a um ponto tal que não mais me pertencia. Antigamente, graças a ela eu decifrava a escritura do mundo. Nela o vento costumava traçar os sinais de sua ternura ou de sua cólera, aquecendo-a com seu hálito de verão ou mordendo-a com seus dentes de gelo. No entanto, tão longamente roçado pelo vento, sacudido durante mais de uma hora e aturdido de tanto resistir, acabei por perder a consciência do contorno do meu próprio corpo. Tal um seixo polido pelas marés, assim estava eu, polido pelo vento, desgastado até a alma. Sentira-me parcela daquela força que me fazia oscilar; cada vez uma parte maior dela; até que finalmente eu era essa própria força, confundindo as pulsações do meu sangue com as grandes batidas sonoras do coração onipresente da natureza. O vento moldava meu corpo à imagem da ardente nudez que me circundava; e seu fugaz abraço me concedia, pedra em meio a pedras, a solidão de uma coluna ou de uma oliveira no céu de verão.

        Esse banho violento de sol e de vento exauria todas as minhas forças vitais. Agora em mim apenas subsiste essa palpitação de asas que aflora, essa vida que se lamenta, essa frágil revolta do espírito. Logo, difundido pelos quatro cantos do mundo, descuidado, esquecido de mim mesmo, sou este vento e, no vento, estas colunas e este arco, estas lajes que exalam quentura e estas montanhas pálidas que circundam a cidade deserta. E jamais senti com tanta intensidade, e a um só tempo, o desprendimento de mim mesmo e a minha presença no mundo.

        Sim, estou presente. E o que me impressiona, nesse instante, é que não posso ir mais longe. Tal como um homem em prisão perpétua, quando todo ele está presente. Mas também como um homem que sabe que o amanhã será semelhante, e todos os outros dias. Pois, para um homem, a tomada de consciência de seu presente significa já não esperar mais nada. Se, na verdade, existem paisagens que são estados d’alma, devem ser os mais vulgares; e eu perseguia, através de toda esta região, algo que não pertencia a mim, mas a ela, uma certa inclinação especial pela morte, que nos era comum. Por entre as colunas, de sombras já agora oblíquas, as inquietudes precipitavam-se no ar como pássaros feridos; e, a substituí-las, a árida lucidez. A inquietude nasce do coração dos vivos. Mas a calma recobrirá este coração que vive: eis aqui toda a clarividência de que sou capaz. A medida que o dia avançava, que os rumores e as luzes eram abafados sob as cinzas que desciam do céu, abandonado de mim mesmo, sentia-me sem defesa contra as forças lentas que em meu ser diziam não.

        Pouca gente compreende que existe uma recusa que nada tem a ver com a renúncia. Que significam aqui as palavras que falam de futuro, de maior bem-estar, de situação? Que significa o progresso do coração? Se rejeito obstinadamente todos os “mais tardes” do mundo, é porque se trata, da mesma forma, de não renunciar à minha riqueza presente. Não me agrada acreditar que a morte se abre para urna outra vida. Para mim, ela é uma porta fechada. Não digo que seja um passo que não tenha de ser dado; mas uma aventura horrível e suja. Tudo o que me é proposto esforça-se por libertar o homem do peso de sua própria vida. E, diante do vôo pesado dos grandes pássaros no céu de Djemila, é justamente um certo peso de vida que reclamo e obtenho. Entregar-me por completo a esta paixão passiva: o resto já não mais me pertence. Possuo juventude demais dentro de mim para poder falar da morte. Mas parece-me que, se tivesse de fazê-lo, aqui é que encontraria a palavra exata para exprimir, entre o horror e o silêncio, a certeza consciente de uma morte sem esperança.

        Convivemos com algumas idéias familiares. Duas ou três. Indiferentes aos mundos e aos homens que vamos encontrando, nós as polimos e transformamos. São necessários dez anos para termos uma idéia bem nossa e sobre a qual possamos falar. Naturalmente isso é um pouco desencorajador. No entanto, é assim que o homem adquire certa familiaridade com o belo rosto do mundo. Até então, ele o via apenas de frente. A partir desse momento, sente a necessidade de dar um passo para o lado, a fim de vê-lo de perfil. Um homem jovem olha o mundo de frente. Ainda não teve tempo para polir a idéia da morte ou do nada, cujo horror, todavia, já mastigou. Deve ser isto a juventude: o duro diálogo com a morte, o medo físico de animal que ama o sol. Ao invés do que se diz, a esse respeito pelo menos a juventude não possui ilusões. Não teve tempo nem devoção para construí-las. E não sei por que, diante desta paisagem de ravinas, diante deste grito de pedra, lúgubre e solene — Djemila inumana ao cair do sol —, diante desta morte da esperança e das cores, eu estava certo de que, ao atingirem o término de uma vida, os homens dignos de serem assim chamados devem reencontrar aquele diálogo, abjurar das poucas idéias que foram as suas e recuperar a inocência e a verdade que brilham no olhar dos homens da antigüidade perante o destino. E ao estreitar a morte que recuperam a juventude. Nada de mais desprezível, sob esse aspecto, do que a doença. E um remédio contra a morte. Prepara-a. Cria uma aprendizagem cuja primeira etapa é o enternecimento para consigo mesmo. Apóia o homem em seu grande esforço, que é o de furtar-se à certeza de morrer totalmente. Mas Djemila... e então sinto com nitidez que o verdadeiro, o único progresso da civilização, aquele a que um homem de vez em quando se aferra, é o de criar mortos conscientes.

        O que sempre me surpreende, uma vez que nos mostramos tão dispostos a ser sutis em outros temas, é a pobreza de nossas idéias a respeito da morte. Está bem ou está mal. Tenho-lhe medo ou a invoco (é o que se diz, em geral). Entretanto, isso prova também que tudo aquilo que é simples foge à nossa compreensão. O que é o azul e que devemos pensar do azul? A mesma dificuldade existe quando se trata da morte. Não sabemos argumentar nem sobre a morte, nem sobre as cores. No entanto, o que realmente tem importância é este homem diante de mim, pesado como a terra, que prefigura meu destino. Mas será que posso de verdade pensar nisto? Digo a mim mesmo: devo morrer. Mas essa reflexão nada significa, uma vez que não consigo acreditar nela e que não posso ter qualquer experiência senão a da morte dos outros. Vi seres humanos morrerem. Sobretudo vi cães morrerem. Tocar nesses mortos era o que perturbava. Penso agora em flores, sorrisos, desejo de mulher, e compreendo que todo o meu horror de morrer está contido em meu ciúme da vida. Sinto ciúme daqueles que viverão e para os quais as flores e o desejo de mulher terão todo o seu sentido de carne e de sangue. Sou invejoso porque amo demais a vida para não ser egoísta. A eternidade não me importa. Certo dia, pode-se, deitado, ouvir a própria voz a dizer: “Es forte e por isso devo ser sincero: posso dizer-te que vais morrer”; e está-se ali, com a vida toda entre as mãos, as entranhas cheias de medo e um olhar idiota. Que significa o resto? Ondas de sangue que vêm golpear minhas têmporas, enquanto sinto que seria capaz de esmagar tudo em volta de mim.

        Mas os homens morrem, apesar deles próprios, apesar de seus disfarces. Dizem-lhes: “Quando estiveres curado...” E eles morrem. Não quero nada disso. Porque, se há dias em que a natureza mente, há dias em que ela diz a verdade. E nesta noite Djemila diz a verdade! Com quanta melancolia e insistente beleza... Sei, diante deste mundo, que não desejo mentir, nem quero que me mintam. Quero suportar minha lucidez até o fim e contemplar minha morte com toda a exuberância de meu ciúme e de meu horror. E à medida que me separo do mundo que tenho medo da morte — à medida que me apego ao destino dos homens que vivem em vez de contemplar o céu que perdura. Criar mortos conscientes é diminuir a distância que nos separa do mundo e entrar, sem alegria, na perfeição final, conscientes das imagens de exaltação de um mundo perdido para sempre. E o canto triste das colinas de Djemila crava-me na alma ainda mais a amargura deste ensinamento.

        Ao cair da noite, escalávamos as encostas que levam à aldeia e, ao retornar sobre nossos passos, ouvíamos explicações: “Aqui se encontra a cidade pagã; este bairro, que luta para emergir da terra, é o dos cristãos. Mais tarde...” Sim, é verdade. Homens e sociedades sucederam-se neste mesmo local; conquistadores marcaram estas terras com sua civilização de suboficiais. Possuíam uma noção baixa e ridícula da grandeza e mediam a de seu Império pela superfície que cobria. O milagre é que as ruínas da civilização que construíram sejam a própria negação de seus ideais. Pois, vista assim, de tão alto, na tarde quase finda e na revoada branca de pombos em torno ao arco do triunfo, esta cidade-esqueleto não inscrevia no céu os sinais da conquista e da ambição. O mundo termina sempre por vencer a história. Conheço bem a poesia deste lugar: lucidez, indiferença, as verdadeiras marcas do desespero ou da beleza. O coração se comprime diante desta grandiosidade que já começamos a abandonar. Deixamos para trás Djemila, com a água triste de seu céu, um canto de pássaro que vem do outro lado do planalto, repentinas e curtas correrias de cabras sobre os flancos das colinas e, no crepúsculo aquietado e sonoro, a face viva de um deus cornudo no frontão de um altar.

 

                                    O VERÃO EM ARGEL

        Freqüentemente, são amores secretos os que partilhamos com uma cidade. As urbes mais importantes, como Paris, Praga e até Florença, estão encerradas sobre si mesmas e por isso limitam o mundo que lhes é próprio. Argel, no entanto, da mesma forma que alguns outros lugares privilegiados, como as cidades à beira-mar, abre-se no céu como uma boca ou uma ferida. O que se pode amar em Argel é aquilo de que todos vivem: o mar, visto de cada esquina de rua, um certo peso de sol, a beleza da raça. E, como sempre, nesse despudor e nessa oferenda, descobre-se um perfume mais secreto. Em Paris, talvez sintamos nostalgia de espaço e de ruflar de asas. Aqui, pelo menos, o homem encontra a saciedade e, uma vez garantida a satisfação de seus desejos, pode medir suas riquezas.

        E preciso, sem dúvida, morar muito tempo em Argel para compreender até que ponto um excesso de bens naturais pode prejudicar a sensibilidade. Aqui não existe nada para aquele que deseja aprender, educar-se ou tornar-se melhor. Esta terra não oferece lições. Nada promete nem deixa entrever. Contenta-se em dar, fazendo-o prodigamente entretanto. Toda ela se entrega aos olhos — fica-se sabendo disso a partir do instante em que se começa a gozar dessa entrega total. Seus prazeres não têm remédio e suas alegrias permanecem sem esperança. O que ela exige são espíritos clarividentes, quero dizer, sem consolo. Ordena que se faça um ato de lucidez, tal como se faria um ato de fé. Estranha terra esta, que dá ao homem que alimenta seu esplendor e sua miséria a um só tempo! Não é de surpreender, portanto, que a riqueza sensual que possui qualquer homem sensível desta terra coincida com a mais extrema privação. Não existe verdade alguma que não traga consigo um travo de amargura. Nesse caso, por que espantar-se de que eu seja capaz de amar mais do que nunca a fisionomia desta terra quando estou junto a seus homens mais pobres?

        Os homens encontram aqui, durante toda a juventude, uma vida à medida da beleza deles. Depois, é a decadência e o olvido. Jogaram tudo o que tinham na sensualidade, com a certeza, porém, de que deveriam perder. Em Argel, para quem é jovem e cheio de vida, tudo é refúgio e pretexto para triunfos: a baía, o sol, o jogo vermelho e branco dos terraços que dão para o mar, as flores e os estádios, as moças de pernas vigorosas. Entretanto, para quem já perdeu a juventude não existe nada a que aferrar-se e não há lugar onde a melancolia se possa salvar de si própria. Além mundo, os terraços da Itália, os conventos da Europa, o contorno das colinas provençais, tantos lugares onde o homem consegue escapar à sua condição humana e libertar-se de si mesmo, docemente! Mas aqui tudo exige a solidão, o sangue dos homens jovens. Goethe, ao morrer, invoca a luz, e sua frase se torna histórica. Em Belcourt e em Bab-el-Oued, os velhotes, sentados no fundo dos bares, escutam as gabolices da rapaziada de cabelos empastados.

        Em Argel, é o verão que nos faz entrega desses inícios e desses fins. Durante meses, a cidade é abandonada. Mas ficam os pobres e o céu. Com os primeiros, descemos juntos, em direção ao porto e aos tesouros do homem: tepidez da água e corpos morenos de mulheres. À noite, cumulados dessas riquezas, eles reencontram o oleado e o candeeiro de petróleo que compõem todo o cenário de suas vidas. Em Argel, nunca se diz “tomar um banho”, mas “dar-se um banho”. Não falemos mais nisso. Em geral, toma-se banho no porto e vai-se repousar sobre as bóias. Quando se passa por perto de uma delas, onde já se encontra uma bela garota, costuma-se gritar aos companheiros: “Eu não disse que era uma gaivota?” São demonstrações de alegria saudável que constituem, aliás, o ideal dessa gente jovem, cuja maior parte continua levando a mesma vida durante o inverno. Diariamente, ao meio-dia, vão todos tomar sol, nus, e comem ali mesmo um almoço frugal. Isso não significa que tenham lido as prédicas enfadonhas dos naturalistas, esses protestantes da carne (há uma sistemática do corpo que é tão exasperante quanto a do espírito). Simplesmente “sentem-se bem ao sol”. Jamais se encarecerá suficientemente a enorme importância desse hábito para nossa época. Pela primeira vez, desde há mil anos, o corpo apareceu nu, nas praias. Durante os últimos vinte séculos, os homens se obstinaram em procurar tornar decentes a insolência e a ingenuidade gregas, em subtrair importância à carne e em complicar a vestimenta. Atualmente, passando por cima de toda essa história, a corrida dos jovens pelas praias do Mediterrâneo reencontra os mesmos gestos magníficos dos atletas de Delos. Ao viver-se assim, próximo a outros corpos e pelo corpo, percebe-se que este tem seus matizes, sua vida própria e, arriscando-me a dizer um disparate, tem também uma psicologia que lhe é peculiar.* Assim como a do espírito, a evolução do corpo tem sua história, seus retrocessos, seus progressos e seu déficit. Um matiz somente: a cor. Durante o verão, quando se freqüentam os banhos de mar no porto, vai-se percebendo uma transição simultânea, em todas as epidermes, do branco ao dourado e depois ao castanho, para finalmente adquirirem uma tonalidade de tabaco que se situa no limite extremo desse esforço de transformação de que o corpo humano é capaz. O porto é dominado pelo jogo de cubos brancos da Casbá. Quando se está ao nível da água, contra o fundo de um branco violento da cidade árabe, os corpos formam um friso cor de cobre. E, à medida que o mês de agosto transcorre e o sol se avoluma, a brancura das casas vai-se tornando cada vez mais enceguecedora e as peles tomam um calor mais profundo. Como seria possível deixar de identificar-se com esse diálogo entre a pedra e a carne, marcado pelo ritmo do sol e das estações? Toda a manhã se passou em mergulhos, em florações de risos por entre repuxos de água, em prolongados passeios de canoas ao redor dos cargueiros vermelhos e pretos (aqueles que vêm da Noruega trescalando todos os perfumes de madeiras; os que chegam da Alemanha, impregnados do odor de óleos; os que fazem a costa, exalando cheiro de vinho e de tonel antigo). Na hora em que o sol transborda por todos os cantos do céu, a canoa cor de laranja, carregada de corpos bronzeados, nos transporta, numa carreira louca. E quando se interrompe bruscamente a batida cadenciada dos remos duplos, asas cor de fruto, e deslizamos longamente nas águas tranqüilas da doca, como não estar seguro de levar comigo por sobre estas águas lisas um fulvo carregamento de deuses, entre os quais identifico meus irmãos?

        Mas, no outro extremo da cidade, o verão já nos oferece, em contraste, suas outras riquezas: refiro-me a seus silêncios e a seu tédio. Esses silêncios não possuem todos a mesma qualidade, conforme nasçam da sombra ou do sol. Há o silêncio do meio-dia na praça do Governo. A sombra das árvores que a circundam, árabes vendem, a cinco tostões, copos de limonada gelada, perfumada com flor de laranjeira. O pregão dos vendedores — “Geladinha! Geladinha!” — atravessa a praça deserta. Após esse grito, o silêncio torna a cair sob o sol; no cântaro do mercador, o gelo se agita e ouço seu mínimo ruído. Há o silêncio da sesta. Nas ruas do bairro da Marinha, defronte às lojas imundas dos barbeiros, pode-se medir esse silêncio, ao som melodioso do zumbido das moscas, por detrás das frestas dos cortinados de junco. Mais adiante, nos botequins mouros da Casbá, é o corpo que fica silencioso, que não consegue arrancar-se dali, deixar o copo de chá e reencontrar o tempo nas pulsações de seu sangue. Mas há sobretudo o silêncio das noites de verão.

        Será necessário que esses curtos instantes, em que o dia resvala na noite, estejam povoados de sinais e apelos secretos para que em mim Argel lhes esteja a tal ponto ligada? Quando passo algum tempo longe deste lugar, imagino seus crepúsculos como promessas de felicidade. Sobre as colinas que dominam o burgo, existem caminhos por entre os lentiscos e as oliveiras. E, nesses momentos, é para eles que meu coração se volta. Vejo elevarem-se punhados de pássaros negros por cima do horizonte verde. No céu, repentinamente esvaziado de sol, algo se distende. Toda uma pequenina aglomeração de nuvens vermelhas se estira, até ser reabsorvida pelo ar. Quase imediatamente a seguir, aparece a primeira estrela, que se vê formar-se e endurecer na espessura do céu. Depois, de súbito, devoradora, a noite. Fugazes entardeceres de Argel, que possuirão de tão inigualável para desatarem este mundo de coisas em mim? A doçura que me deixam nos lábios, mal tenho tempo de cansar-me dela e já desaparece dentro da noite. Será esse o segredo de sua persistência? A ternura desta terra é perturbadora e furtiva. Mas, no instante em que nasce, o coração ao menos se lhe abandona inteiramente. Na praia Padovani, o dancing está aberto todos os dias. E é nessa imensa caixa retangular com toda a extensão aberta para o Mediterrâneo que a juventude pobre do bairro dança até a noite. Muitas vezes deixo-me ficar ali, à espera de um certo instante singular. Durante o dia, a sala é protegida por pára-ventos feitos de tábuas inclinadas. Quando o sol desaparece, retiram-nas. E, então, a sala se enche de uma estranha luz verde, proveniente do brilho duplo do céu e do mar. Quando se está sentado longe das janelas, vê-se apenas o céu e, como se fossem sombras chinesas, os rostos dos dançarmos vão passando, cada um por seu turno. Algumas vezes, é uma valsa que se está a tocar; e, contra o fundo verde, os perfis negros giram, agora com uma espécie de obstinação, tal como essas silhuetas que se costuma pregar no prato de um fonógrafo. A noite chega rápida, logo em seguida, trazendo as luzes. Na verdade, não saberia explicar o que encontro de arrebatador e de secreto nesse instante sutil. Lembro-me, por exemplo, de uma jovem alta e esplêndida, que dançara durante toda a tarde. Trazia um colar de jasmim sobre o vestido azul e colante, molhado de suor da altura dos rins até as pernas. Enquanto dançava, ria e revirava a cabeça. Ao passar junto às mesas, ia deixando atrás de si uma fragrância mesclada de flores e de carne. Ao cair da noite, eu já não lhe discernia o corpo, apertado de encontro ao de seu parceiro; mas, sobre o céu, evolucionavam alternadamente manchas de jasmim branco e de cabelos negros; e sempre que ela inclinava para trás o pescoço intumescido, ouvia-lhe a risada e via o perfil de seu par inclinar-se também, .de repente. Devo minha concepção da inocência a tardes semelhantes a esta. E, quanto a estes seres carregados de violência, sei que não devo jamais separá-los do céu em que seus desejos volteiam.

        Nos cinemas de bairro, em Argel, costuma-se vender de vez em quando umas pastilhas de merita que trazem, gravado em letras vermelhas, tudo o que é necessário para o nascimento do amor: 1. perguntas: “Quando casarás comigo?”; “Me amas?”; 2. respostas: “Loucamente”; “Na primavera”. Após ter preparado o terreno, passam-se as tais pastilhas à vizinha do lado, que responde da mesma forma ou, então, limita-se a fazer-se de desentendida. Em Belcourt, tem-se visto casamentos serem decididos assim e se comprometerem vidas inteiras graças a esse simples intercâmbio de confeitos mentolados. Isso descreve bem o povo-criança desta terra.

        O sinal da juventude talvez seja uma extraordinária vocação para as felicidades fáceis. Mas é sobretudo uma precipitação de viver que chega às raias da extravagância. Em Belcourt e em Babel-Oued, casa-se cedo. Começa-se a trabalhar desde muito jovem e adquire-se em dez anos a experiência de toda uma vida humana. Em geral, um operário de trinta anos de idade já jogou todas as suas cartas. Espera seu fim entre a mulher e os filhos. Seus momentos de felicidade foram bruscos e impiedosos. Sua vida também. Compreende-se, então, que ele tenha nascido desta terra, onde tudo lhe é dado, para tornar a ser tomado de volta. Nessa abundância e prodigalidade, a vida imita a curva das grandes paixões, repentinas, exigentes, generosas. Seu objetivo não é o de construir, mas o de queimar. Não se trata, portanto, de refletir para se tornar melhor. Aqui, a noção de inferno, por exemplo, não passa de simples brincadeira amável. Pensamentos semelhantes são permitidos apenas aos muito virtuosos. E não me resta dúvida de que virtude seja uma palavra sem qualquer significação em toda a Argélia. Não quero dizer que a esses homens lhes faltem princípios. Ao contrário, têm sua moral bem definida e caracterizada. Não se pode “faltar” à própria mãe jamais. Faz-se respeitar a esposa nas ruas. Têm-se cuidados especiais com a mulher grávida. Jamais se ataca a dois um adversário, porque isso seria “coisa de covardes”. Quem não observa esses mandamentos elementares, “é porque não é homem” e, assim, fica o assunto arrumado. Isso me parece certo e importante. Estamos ainda numa fase de manter inconscientemente a observância desse código da rua, o único imparcial que conheço. Ao mesmo tempo, porém, ignora-se aqui a moral do comerciante. Tenho reparado sempre nas caras de compaixão a meu redor, quando se vê passar um indivíduo cercado por agentes da polícia. E, mesmo antes de saber se o sujeito roubara, era parricida ou simplesmente não- conformista, exclamavam: “Pobre coitado!”, ou ainda, com certa admiração na voz: “Aquele ali deve ser um grande vigarista!”

        Há povos nascidos para o orgulho e a vida. São esses justamente os que alimentam a mais extraordinária vocação para o tédio. 1L esses povos também o sentimento da morte inspira a maior repulsa. Se excluirmos a alegria dos sentidos, os divertimentos deste povo são idiotas. O clube de bochas, os banquetes entre amigos, o cinema, ao preço de três francos a entrada, e as festas comunais têm bastado, desde há muito, para a recreação dos maiores de trinta anos. Os domingos de Argel são dos mais sinistros que existem. Como pôde, entretanto, esta gente sem senso de humor adornar com mitos o horror profundo de suas vidas? Aqui, tudo o que diz respeito à morte é considerado ridículo ou odioso. Esta gente sem fé e sem ídolos morre sozinha, após ter vivido sempre no meio da multidão. Não conheço lugar tão hediondo quanto o cemitério do bulevar Bru, situado defronte a uma das mais belas paisagens do mundo. Um amontoado de mau gosto, cercado de muros enegrecidos e do qual se desprende a tristeza terrível que paira sobre esse recinto, onde a morte revela sua verdadeira face. “Tudo passa”, dizem os ex-votos em forma de coração, “menos a saudade”. E todos insistem nessa eternidade irrisória que nos fornece, por pouco preço, o coração daqueles que nos amaram. São sempre as mesmas frases e servem para todos os desesperos. Dirigem-se ao morto, falando-lhe na segunda pessoa: “Nossa saudade jamais te abandonará”. Engano funesto, através do qual se atribuem um corpo e desejos àquilo que, na melhor das hipóteses, não passa de um líquido negro. Mais adiante, no centro de uma esmagadora profusão de flores e pássaros de mármore, este voto temerário: “Jamais tua tumba permanecerá sem flores”. Mas logo nos tranqüilizamos: a inscrição circunda um ramalhete de estuque dourado, bastante econômico para o tempo dos vivos (como esses imortais que devem o nome pomposo à gratidão daqueles que tomam ainda o bonde andando). E, como é necessário estar em dia com o século em que se vive, substitui-se algumas vezes a toutinegra clássica por um espantoso avião de pérolas, pilotado por um anjo tolo que, sem qualquer preocupação pela lógica, está munido de um magnífico par de asas.

        De que maneira fazer com que se entenda, portanto, que estas imagens da morte jamais se separam da vida? Os valores, aqui, estão estreitamente ligados. A brincadeira favorita dos papa-defuntos argelinos, quando vão com seus carros vazios, é gritar “Quer uma carona, beleza?” às jovens bonitas que encontram pela estrada. Nada impede que se considere isso como um símbolo, ainda que desagradável. Também pode parecer blasfematório que, ao receber a notícia de um falecimento, se responda, piscando o olho esquerdo: “Coitado! Este nunca mais cantará”. Ou, então, como aquela oranense que jamais amara o marido: “Deus mo deu, Deus o tomou de volta”. Mas no final de contas, se não compreendo o que a morte possa ter de sagrado, percebo perfeitamente a distância que existe entre o medo e o respeito. Tudo respira o horror de morrer, numa terra que convida à vida. No entanto, é justamente à sombra dos muros desse cemitério que a rapaziada de Belcourt marca seus encontros e que as moças se oferecem a beijos e carícias.

        Compreendo bem que semelhante povo não possa ser aceito por todos. A inteligência, aqui, não ocupa lugar especial, como na Itália. Esta é uma raça indiferente ao espírito. Tem o culto e a admiração do corpo. Disso derivam sua força, seu cinismo ingênuo* * Ver nota à pág. 40. - e uma vaidade pueril, que lhe vale ser severamente julgada. Em geral, reprova-se sua “mentalidade”, isto é, seu modo de ver e de viver. E certo, porém, que certa intensidade de vida não pode existir sem injustiça. Trata-se de um povo sem passado, sem tradição e, no entanto, não destituído de poesia — mas de uma poesia de que eu conheço bem a qualidade dura, carnal, isenta de qualquer espécie de ternura, idêntica à de seu céu, a única, na verdade, que me comove e me reintegra em mim mesmo. O contrário de um povo civilizado é um povo criador. Tenho a esperança insensata de que esses bárbaros, que se estiram descuidadamente nas praias, talvez estejam, sem saberem, modelando o rosto de uma cultura em que a grandeza do homem encontrará por fim seu verdadeiro rosto. Este povo inteiro, voltado para o presente, vive sem mitos, sem consolo. Depositou todos os seus bens sobre esta terra, permanecendo desde então sem defesa contra a morte. Os dons da beleza física lhe foram prodigados. E, juntamente com eles, a singular avidez que sempre acompanha esta riqueza sem futuro. Tudo o que aqui se faz, demonstra a indiferença pela estabilidade e o descaso pelo futuro. Vive-se em ritmo acelerado; e, se surgisse qualquer manifestação de arte, obedeceria a esse ódio pelo durável, que impulsionou os dórios a talharem em madeira sua primeira coluna. No entanto, é possível encontrar, a um só tempo, no rosto violento e obstinado deste povo, uma medida e um desbordamento, tal como neste céu de verão, vazio de ternura, perante o qual todas as verdades podem ser ditas e onde nenhuma divindade enganadora jamais traçou os sinais da esperança ou da redenção. Entre este céu e estes rostos para ele voltados, nada existe em que se possam fixar uma mitologia, uma literatura, uma ética ou uma religião; mas, tão somente, pedras, carne, estrelas e estas verdades que a mão consegue tocar.

        Sentir seus laços com uma terra, seu amor por alguns homens, saber que sempre existirá um lugar onde o coração poderá encontrar sua íntima harmonia, são demasiadas certezas para uma só vida de homem; além disso, são certezas que sem dúvida não nos podem bastar. Nesta pátria da alma, tudo aspira, porém, a certos instantes. “Sim, é para lá que precisamos retornar.” A união almejada por Plotino, que pode haver de estranho em encontrá-la na terra? A Unidade exprime-se aqui, em termos de sol e de mar. E sensível ao coração, através de certo sabor carnal, que origina sua amargura e sua grandeza. Descubro que não existem felicidade sobre-humana nem eternidade alguma para além da curva dos dias. Estes bens irrisórios e essenciais, estas verdades relativas são os únicos que me comovem. Quanto aos outros, os “ideais”, não tenho a alma suficientemente grande para compreendê-los. Não quero dizer que seja preciso bancar o idiota, mas a verdade é que não encontro sentido algum na felicidade dos anjos. Sei apenas que este céu durará mais do que eu. Que poderia chamar de eternidade senão tudo aquilo que continuará depois de minha morte? Não exprimo aqui uma complacência da criatura humana com sua condição. Trata-se de coisa bem diferente. Nem sempre é fácil ser um homem e muito menos ser um homem puro. Ser puro, no entanto, significa reencontrar esta pátria da alma, onde se tornam sensíveis os laços profundos que nos unem ao mundo, onde as pulsações do sangue se confundem com as pulsações violentas do sol das duas horas. E bem sabido que a pátria se reconhece sempre no momento de perdê-la. Para aqueles que são atormentados por sua própria natureza, a terra natal é a que os nega. Não desejaria ser brutal nem parecer exagerado. Mas afinal o que me nega nesta vida é, antes de tudo, o que me mata. Todas as coisas que exaltam a vida aumentam ao mesmo tempo seu sentido de absurdo. No verão da Argélia, aprendo que existe uma única coisa mais prática do que o sofrimento: a vida de um homem feliz. Mas este pode ser também o caminho para uma vida mais grandiosa, pois nos leva a não trapacear.

        Com efeito, muitos simulam amor à vida, a fim de eludir o verdadeiro amor. Procuram gozar e “fazer experiências”. Mas trata-se de atitude meramente espiritual. Necessita-se de rara vocação para ser um hedonista. A vida de um homem se realiza sem a ajuda de seu espírito, com seus recuos e seus avanços e, ao mesmo tempo, sua solidão e suas presenças. Quando se vêem estes homens de Belcourt, que trabalham, protegem suas mulheres e seus filhos — muitas vezes sem uma só queixa —, acredito que se possa ter o sentimento de uma secreta vergonha. Certamente não me faço ilusões. Nessas vidas a que me refiro, não existe muito amor. Talvez devesse dizer que já não existe qualquer espécie de amor. Mas pelo menos esses homens nada eludiram. Há certas palavras cujo significado jamais cheguei a compreender bem, como, por exemplo, pecado. Creio, porém, poder ter a certeza de que os homens de Belcourt nunca pecaram contra a vida. Pois, se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta. Estes homens não trapacearam. Deuses do verão, eles o foram aos vinte anos por seu entusiasmo de viver, e ainda o são, embora privados de toda esperança. Vi morrerem dois deles. Estavam completamente horrorizados, mas silenciosos. E melhor assim. Da caixa de Pandora, na qual fervilhavam os males da humanidade, os gregos fizeram sair a esperança em último lugar, por considerá-la o mais terrível de todos. Não conheço símbolo algum mais emocionante do que este. Porque a esperança, ao contrário do que se crê, equivale à resignação. E viver não é resignar-se.

        Esta, acima de tudo, é a austera lição dos verões da Argélia. Mas a estação já estremece e o verão oscila. As primeiras chuvas de setembro, após tantas violências e obstinações, são como as primeiras lágrimas da terra libertada, como se, durante alguns dias, todo o país se envolvesse em ternura. Enquanto isso, desprende-se das alfarrobeiras um perfume de amor que invade toda a Argélia. A noite ou depois da chuva, o ventre regado por um sêmen com odor de amêndoa amarga, a terra inteira repousa de ter sido possuída pelo sol durante todo o verão. Então, novamente, esse odor consagra as núpcias do homem e da terra, despertando em nós o único amor verdadeiramente viril deste mundo: perecível e generoso.

 

* Posso dar-me ao ridículo de dizer que não gosto do modo que Gide usa para exaltar o corpo? Exige-lhe a contenção de seus desejos a fim de torná-los mais agudos. Dessa forma, o escritor se aproxima daqueles que, na gíria dos prostíbulos, se costuma chamar de “complicados” ou “cerebrais”, O cristianismo também pretende suspender o desejo. Contudo. mais natural, considera esse ato uma mortificação. Meu amigo Vicente, que é tanoeiro e campeão-júnior de nado livre, tem uma visão ainda mais clara das coisas. Bebe, quando sente sede; quando deseja uma mulher, faz o possível para ir para a cama com ela, e chegaria até a desposá-la se a amasse (o que até hoje ainda não aconteceu). Em seguida. Vicente costuma sempre exclamar: “Agora a coisa vai melhor!” — frase que resume de forma vigorosa a apologia que se poderia fazer da saciedade.

                                       NOTA

A título de ilustração, segue-se o relato de uma briga em Babel-Oued, reproduzido palavra por palavra (O narrador não costuma expressar-se como o Cagayous de Musette. Que ninguém se espante. A linguagem de Cagayous é freqüentemente uma linguagem literária, quero dizer, uma reconstrução. O pessoal da zona da malandragem nem sempre fala em gíria. Empregam palavras de calão, o que é diferente. O argelino utiliza um vocabulário característico e uma sintaxe especial. Mas é em virtude de sua inclusão na língua francesa que tais criações ganham sabor). Então Coco chega bem na frente dele e diz: “Pára aí um minuto, pára.” O outro fala pra ele: “Que que há?” Então, Coco retruca: “Vou te dar umas taponas”. “A mim, tu vai me aporrear?” E aí o cara pôs a mão atrás, mas era de pura negaça. Então Coco falou pra ele: “Não mete a mão pra trás, porque senão eu te dou um rabo-de-arraia e te môo de pancada, de qualquer jeito”. Ele não pôs a mão, o outro cara. E Coco bateu só uma vez nele; não duas, uma. O sujeito despencou no chão, gritando: “Ui, ui!”. E foi aí que se armou o rolo. O bafafá começa logo. Teve um camarada que avançou pra cima do Coco, depois eram dois e três. Nessa hora eu falei: “Me diz, tu pretende meter a mão no meu irmão?” “Esse cara daí é teu irmão, por acaso?” “Se não é meu irmão, é como se fosse.” E então dei urna rasteira nele. Coco socava, eu socava, e Lucien também socava. Nisso, eu encurralei um sujeito num canto, e a cabeça dele fazia: “Bumbum!” Nesta altura chegaram os tiras. E eles puseram algemas na gente, vê se pode. Lógico que eu estava com a cara no chão de ter de atravessar todo o Bab-el-Oued. Na frente do Gentleman’s Bar estavam uns caras conhecidos meus e umas garotas. Passei com a cara no chão. Mas depois o pai do Lucien falou pra gente: “Vocês é que estão com a razão.”

 

                                                   O DESERTO

        Viver é certamente um pouco o contrário de exprimir. Se aceito a verdade dos grandes mestres toscanos, viver é testemunhar três vezes, no silêncio, na flama e na imobilidade.

        É preciso muito tempo para reconhecer que as personagens de seus quadros são as mesmas que encontramos todos os dias nas ruas de Florença ou de Pisa. Mas já não somos também capazes de ver os verdadeiros rostos daqueles que nos cercam. Não olhamos mais os nossos contemporâneos, ávidos apenas daquilo que neles serve à nossa orientação e regula a nossa conduta. Ao rosto preferimos a sua mais vulgar poesia. Giotto ou Piero della Francesca possuem, no entanto, a noção perfeita de que a sensibilidade de um homem nada significa. E, para dizer a verdade, coração todo mundo tem. Mas os grandes sentimentos simples e eternos, em torno dos quais gravita o amor pela vida, o ódio, o amor, as lágrimas e as alegrias, germinam na profundeza do homem e modelam a face de seu destino — como, por exemplo, na “Descida ao Túmulo” de Giottino, a dor tensa e contida de Maria. Nas imensas maestàs das igrejas toscanas, vejo uma multidão de anjos de rostos infinitamente repetidos, mas em cada uma dessas faces mudas e apaixonadas reconheço uma solidão.

        Trata-se, na verdade, do pitoresco, do episódico, de matizes ou da emoção. Trata-se, na verdade, de poesia. O que conta é a verdade. E eu chamo verdade tudo o que continua. Há um ensinamento sutil no pensar que, sob esse aspecto, só os pintores podem acalmar nossa fome. Isso porque têm o privilégio de se transformarem nos romancistas do corpo. E porque trabalham com essa matéria-prima magnífica e fútil que se denomina presente. E o presente é sempre figurado como um gesto. Não pintam um sorriso, nem um pudor fugitivo, nem uma queixa, tampouco uma espera, mas uma face em seu relevo de osso e em seu calor de sangue. Dessas faces, imobilizadas em linhas eternas, baniram para sempre a maldição do espírito: ao preço da esperança. Pois o corpo ignora a esperança. Conhece apenas as pulsações de seu sangue. A eternidade que lhe é própria é feita de indiferença. Como a “Flagelação” de Piero della Francesca, onde, num pátio recentemente lavado, o Cristo supliciado e o carrasco de membros pesados deixam que se surpreenda em suas atitudes o mesmo desprendimento. Isso porque esse suplício não continua. E sua lição se interrompe na moldura da tela. Qual a razão de estar emocionado, para quem não espera o amanhã? A impassibilidade e a grandeza do homem sem esperança, o eterno presente é precisamente aquilo que os teólogos esclarecidos denominaram de inferno. E o inferno, como ninguém ignora, é também a carne que sofre. E nessa carne justamente que os toscanos se detêm, e não em seu destino. Não existem quadros proféticos. E não é nos museus que se devem buscar as razões da esperança.

        E verdade que a imortalidade da alma preocupa inúmeros bons espíritos. Mas isso ocorre porque estes recusam, antes de lhe ter esgotado a seiva, a única verdade que se lhes oferece, que é o corpo. Pois o corpo não lhes coloca problemas, ou, pelo menos, eles conhecem a única solução que o corpo lhes propõe: é uma verdade fadada a apodrecer e que, por isso mesmo, se reveste de amargura e de nobreza tais que eles não ousam encará-la. Os bons espíritos preferem a poesia, pois esta diz respeito à alma. Percebe-se claramente que estou jogando com as palavras. Mas compreende-se também que, na verdade, desejo apenas consagrar uma poesia mais alta: a flama negra que, de Cimabue a Francesca, os pintores italianos ergueram, entre as paisagens toscanas, como protesto lúcido do homem atirado sobre uma terra cujo esplendor e cuja luz lhe falam, sem trégua, de um Deus que não existe.

        A força de indiferença e de insensibilidade, pode acontecer que um rosto se incorpore à grandeza mineral de uma paisagem. Assim como cerlos camponeses da Espanha chegam a assemelhar-se às oliveiras de suas terras, assim também os rostos de Giotto, despojados das sombras irrisórias onde a alma se manifesta, terminam por incorporar-se à própria Toscana, na única lição em que ela é pródiga: um exercício da paixão em detrimento da emoção, uma mistura de ascese e de gozos, uma ressonância comum à terra e ao homem, através da qual o homem, tal como a terra, se definiu a meio caminho entre a miséria e o amor. Não existem muitas verdade das quais o coração tenha certeza. E eu compreendia bem a evidência dessa afirmativa, certo entardecer, quando a sombra começava a afogar as vinhas e as oliveiras dos campos de Florença numa grande tristeza muda. Mas nessa região a melancolia é apenas um comentário da beleza. E no trem que corria pela tarde adentro sentia qualquer coisa desatar-se em mim. Posso hoje duvidar de que aquela sensação, embora tivesse o rosto da tristeza, se chamasse felicidade?

        Sim, a lição que seus homens ilustram, a Itália as prodiga também através de suas paisagens. Mas é fácil não atentar na felicidade, porquanto ela é sempre imerecida. Mesmo na Itália. E sua graça, embora súbita, nem sempre é imediata. Melhor do que qualquer outro país, a Itália nos convida a aprofundar uma experiência que dá a impressão de nos oferecer, logo de saída, em toda a sua plenitude. Isso porque, a princípio, é pródiga em poesia, para melhor esconder sua verdade. Seus primeiros sortilégios são ritos do esquecimento: os loureiros rosados de Mônaco, Gênova cheia de flores e de odores de peixe, e as tardes azuis da costa liguriana. Depois, enfim, Pisa, e uma Itália que perdeu o encanto um pouco vulgar da Riviera. Mas ela continua sendo fácil — e por que não cedermos, durante certo tempo, à sua graça sensual? Quanto a mim, que a nada sou forçado, uma vez que estou aqui (e que me encontro privado das alegrias do viajante, sitiado porque uma passagem de preço reduzido me obriga a permanecer algum tempo na cidade “de minha escolha”), minha paciência para gostar e compreender parece-me sem limites, nesta primeira noite, quando, fatigado e faminto, entro em Pisa, sendo acolhido, na avenida da estação, por dez alto-falantes tonitruantes que despejam uma onda de melodias românticas sobre a massa de gente, na qual quase todo mundo é jovem. Já sei o que aguardo. Após tantos frêmitos e emoções, virá aquele instante singular em que os bares já estão fechados e o silêncio retorna repentinamente, quando então me dirigirei, através de ruas curtas e escuras, ao centro da cidade. O Amo, negro e dourado, os monumentos amarelos e verdes, a cidade deserta, não há como descrever esse subterfúgio tão súbito e tão sutil, graças ao qual, às dez horas da noite, Pisa se transforma num cenário estranho de silêncio, água e pedras. “E numa noite como esta, Jessica!” Sobre este planalto incomparável, eis que surgem os deuses, com a voz dos amantes de Shakespeare... E preciso saber entregar-se ao sonho, quando o sonho se entrega a nós. Do cântico mais íntimo que se vem buscar aqui, já principiei a sentir os acordes iniciais no fundo desta noite italiana. Amanhã, amanhã somente, os campos se arredondarão na madrugada. Mas, esta noite, sou um deus entre os deuses e, perante Jessica, que foge “com os passos levados pelo amor”, misturo minha voz à de Lorenzo. Entretanto, Jessica é apenas um pretexto, e esse transporte amoroso a ultrapassa. Pois, na verdade, acredito que o amor de Lorenzo seja menor do que seu sentimento de gratidão por lhe ser permitido amá-la. Mas por que pensar esta noite nos Amantes de Veneza e esquecer Verona? Talvez porque, aqui, nada nos convida a estimar os amantes desditosos. Não há coisa mais vã do que morrer por um amor. Viver é que seria necessário. E Lorenzo vivo vale mais do que Romeu debaixo da terra, não obstante a roseira. Assim, como não dançar nessas festas do amor que vive — dormir, à tarde, sobre a grama curta da Piazza dei Duomo, em meio aos monumentos que sempre há tempo de visitar; beber nas fontes da cidade, onde a água era um pouco morna, mas tão fluida; rever ainda uma vez o rosto da mulher que ria, o nariz longo e a boca orgulhosa. E preciso compreender somente que essa iniciação nos predispõe para iluminações mais elevadas. São os cortejos resplandecentes que levam os mistérios dionisíacos a Elêusis. E na alegria que o homem prepara suas lições e, ao alcançar o mais alto grau de exaltação, a carne se torna consciente e consagra sua comunhão com um mistério sagrado cujo símbolo é o sangue negro. O esquecimento de nós mesmos, exaurido no ardor desta primeira Itália, prepara-nos, portanto, para a lição que nos desata da esperança e nos rouba à nossa história. Dupla verdade do corpo e do instante, diante do espetáculo da beleza é impossível não nos apegarmos a ele, assim como nos aferramos à única felicidade esperada, que deve deleitar-nos mas perecer ao mesmo tempo.

        O materialismo mais repugnante não é aquele em que se crê, mas o que pretende fazer-nos tomar idéias mortas por realidades vivas, e desviar para mitos estéreis a atenção obstinada que dedicamos àquilo que em nós deve morrer para sempre. Lembro-me de que, em Florença, no claustro dos mortos, na Santíssima Annunziata, me senti arrebatado por alguma coisa que tomei por angústia, mas que era simplesmente cólera. Chovia. Eu lia as inscrições das lajes funerárias e dos ex-votos. Este tinha sido pai carinhoso e marido fiel; aquele, o melhor dos esposos ao mesmo tempo que prudente comerciante. Uma jovem, modelo de todas as virtudes, falava francês “si como ii nativo”. Mais adiante, certa mocinha era toda a esperança dos seus, “ma la gioia è peilegrina suila terra”. Entretanto, nada de tudo isso me atingia. Quase todos, a julgar pelas inscrições, se haviam resignado a morrer, e sem incerteza, pois que aceitaram seus outros deveres. Nesse momento, as crianças invadiam o claustro e pulavam carniça sobre as lajes que pretendiam perpetuar as virtudes dos mortos. A noite caía, e eu me sentara no chão com as costas apoiadas numa coluna. Um padre me havia sorrido ao passar. Na igreja, o órgão tocava surdamente, e a tonalidade cálida de seu dedilhado ressurgia, de vez em quando, por trás da gritaria das crianças. Sozinho, de encontro à coluna, sentia-me como alguém a quem se agarra pelo pescoço, e que clama sua fé qual palavra derradeira Tudo em mim protestava contra semelhante resignação. “E preciso”, diziam as inscrições. Mas eu me negava, e minha revolta tinha razão de ser. Essa alegria que passava indiferente e absorta como um peregrino sobre a terra, era necessário que eu a seguisse passo a passo. E, quanto ao resto, eu dizia não. Dizia não com todas as minhas forças. As lajes ensinavam-me que era inútil e que a vida continua “col sol levante col sol cadente”. Mas, ainda hoje, se não consigo compreender o que o sentimento de inutilidade suprime de minha revolta, percebo perfeitamente o que lhe acrescenta.

        Em última análise, não é isso o que desejava dizer. Gostaria de estreitar cada vez mais o cerco a uma verdade cuja força naquele instante sentia bem no íntimo de minha revolta e da qual aquela outra não era senão um prolongamento, uma verdade que ia desde as pequeninas rosas tardias do convento de Santa Maria Novelia até as mulheres da manhã de domingo em Florença, os seios soltos nos vestidos leves e os lábios úmidos. No canto de cada igreja, nesse domingo, erguiam-se aparatosos arranjos de flores, carnudas e brilhantes, perladas de água. Eu via nisso tudo uma espécie de “ingenuidade” e ao mesmo tempo uma recompensa. Nas flores, tal como nas mulheres, havia uma opulência generosa, e eu não julgava que desejar as primeiras pudesse diferir muito de cobiçar as outras. Bastava a mesma pureza de coração. Não é muito freqüente que um homem se sinta com o coração puro. Mas, pelo menos nesse momento, seu dever é considerar como verdade aquilo que tão singularmente o purificou, mesmo que essa verdade possa parecer a outros uma blasfêmia, como é o caso em relação ao que eu pensava naquele dia: passara a manhã em Fiesole, num convento de franciscanos, inundado pela fragrância dos loureiros. Permanecera durante longos momentos num pequeno pátio repleto de flores vermelhas, de sol, de abelhas amarelas e pretas. Num canto havia um regador verde. Antes de chegar ali, visitara as celas dos frades e vira as pequenas mesas adornadas com uma caveira. Agora o jardim testemunhava suas inspirações. Voltei a Florença a pé, ao longo da colina e baixando em direção à cidade que se oferecia com todos os seus ciprestes. O esplendor do mundo, as mulheres e as flores pareciam-me a justificação daqueles homens. Não estava muito seguro de que não fossem igualmente a justificação de todos os homens que sabem que um ponto extremo de pobreza se confunde sempre com o luxo e a riqueza do mundo. Na vida dos franciscanos encerrados entre colunas e flores, e na vida dos jovens da praia de Padovani, em Argel, que passam o ano inteiro ao sol, eu sentia uma ressonância comum. Se eles se despojam é porque aspiram a uma vida mais grandiosa (e não a uma outra vida). Pelo menos este é o único emprego válido da palavra “desprendimento”. Estar nu implica sempre um sentido de liberdade física, e a harmonia da mão e das flores — o entendimento amoroso entre a terra e o homem libertado de sua condição humana —, ah! eu me converteria sem hesitar, se esta já não fosse a minha religião. Não, não pode haver nisso qualquer sentido de blasfêmia — e, muito menos, se disser que o sorriso interior de um São Francisco de Giotto justifica todos aqueles que têm o gosto da felicidade. Pois os mitos têm para a religião o mesmo significado que a poesia para a verdade: máscaras ridículas que escondem a paixão de viver.

        Poderei ir mais longe? Os mesmos homens que em Fiesole vivem diante das flores vermelhas têm em suas celas a caveira que lhes alimenta as meditações. Florença às suas janelas e a morte sobre suas mesas. Uma certa continuidade no desespero pode engendrar a alegria. E a uma determinada temperatura de vida, a alma e o sangue, mesclados, vivem à vontade, apoiados em contradições, tão indiferentes ao dever quanto à fé. Já não me causa espanto algum, portanto, que sobre um muro de Pisa uma mão galhofeira tenha resumido sua singular noção de honra da seguinte maneira: “Alberto fa l’amore con la mia sorella”. Já não me causa nenhum espanto que a Itália seja o país dos incestos, ou pelo menos, o que é ainda mais significativo, dos incestos confessados. Pois o caminho que vai da beleza à imoralidade é tortuoso, mas seguro. Imersa em beleza, a inteligência se entrega ao festim do nada. Diante dessas paisagens, cuja grandiosidade provoca um aperto na garganta, cada um de seus pensamentos representa, no homem, uma rasura. E, dentro em breve, negado, coberto, recoberto e obscurecido por tantas convicções acabrunhadoras, ele já nada mais é perante o mundo a não ser uma espécie de mancha informe que só conhece as verdades passivas, ou sua cor, ou seu sol. Paisagens assim tão puras insensibilizam a alma, a beleza delas lhe é insuportável. Nesses evangelhos de pedra, céu e água está escrito que nada ressuscita. Desde o fundo desse deserto magnífico para o coração começa a tentação para os homens dessas terras. Que há de surpreendente, pois, no fato de que os espíritos educados no espetáculo da nobreza não cheguem, na atmosfera rarefeita do que é belo, a persuadir-se de que se possam aliar a grandeza e a bondade? Uma inteligência sem deus que a aperfeiçoe, busca um deus naquilo que a nega. Borgia, chegando ao Vaticano, exclama: “Agora que Deus nos concedeu o papado, apressemos-nos a gozá-lo.” E cumpriu o que anunciou. Apressar-se é uma expressão bem achada. Através dela começa-se a entrever o desespero tão peculiar aos seres que atingiram o apogeu.

        E possível que me engane. Porque, afinal, como tantos outros antes de mim, fui feliz em Florença. O que é a felicidade senão a simples harmonia entre um ser e a sua própria existência? E que harmonia mais legítima pode unir o homem à vida do que a dupla consciência de seu desejo de duração e de seu destino de morte? Graças a isso, ao menos aprende-se a não contar com coisa alguma e a considerar o presente como a única verdade que nos é oferecida à guisa de “lambujem”. Entendo perfeitamente que me digam: a Itália, o Mediterrâneo, terras antigas, onde tudo existe à medida do homem. Mas, se isso é certo, como encontrá-la e onde está o caminho? Deixem-me abrir os olhos para buscar minha própria medida e meu contentamento! Ou talvez nem seja preciso: vejo-os claramente — Fiesole, Djemila e os portos ao sol. A medida do homem? O silêncio e as pedras mortas. Tudo mais pertence à história.

 

        Seria necessário, entretanto, acrescentar algo mais. Pois ainda não foi dito que a felicidade deve ser inseparável do otimismo, custe o que custar. Ela está ligada ao amor — o que não é a mesma coisa. Pois conheço certos momentos e lugares em que a felicidade pode parecer-nos tão amarga que preferimos apenas sua promessa. Isso porque, nesses momentos ou nesses lugares, eu não tinha coragem bastante para amar, isto é, para não renunciar. O que é preciso mencionar aqui é o ingresso do homem nas festas da terra e da beleza. Pois, nesse instante, tal como o neófito deixa cair seus derradeiros véus, o homem abre mão, diante de seu deus, da insignificante moeda de sua personalidade. Sim, existem momentos de ventura tão grandes em que a própria felicidade parece fútil. Em Florença, subi à parte mais alta do jardim Boboli até chegar a um patamar, de onde se descortinavam o monte Oliveto e as elevações da cidade perdendo-se no horizonte. Sobre cada uma dessas colinas, as oliveiras pareciam pálidas, como pequeninas manchas esfumadas e, em meio ao leve nevoeiro que elas formavam, destacavam-se os jatos mais sólidos dos ciprestes, verdes quanto mais próximos, e negros quanto mais longínquos. No céu azul profundo nuvens espessas punham nódoas. Com o fim da tarde, caía uma luz prateada em que tudo se tornava silêncio. O cume das colinas a princípio estava coberto de nuvens. Depois, levantara-se uma brisa cujo sopro sentia em meu rosto. Com essa brisa, por detrás das colinas, as nuvens se separaram como uma cortina que se abre. Nesse preciso instante, os ciprestes do cimo pareceram avultar-se, erguendo-se de um só jato em direção ao azul súbito descoberto. Ao mesmo tempo, lentamente, levantaram-se também a colina inteira e a paisagem de oliveiras e de pedras. Vieram outras nuvens. A cortina cerrou-se. E a colina tornou a baixar com seus ciprestes e suas casas. Depois, novamente — sobre outras colinas cada vez mais e mais apagadas na distância —, a mesma brisa que descerrava aqui as dobras espessas das nuvens, tornava a cerrá-las além. Nesse vasto movimento respiratório da terra, a mesma exalação se concluía, a poucos segundos de distância, para outra vez retomar de longe em longe o tema, de pedra e de ar, de uma fuga à escala do mundo. A cada vez o tema baixava de tom: acompanhando-o, um pouco mais à distância, eu me acalmava um pouco mais. Ao atingir o limite final dessa perspectiva sensível ao coração, percebia de um só golpe de vista o fugir de colinas a respirarem juntas e, com ele, o canto da terra inteira.

        Sabia que milhões de olhos haviam contemplado essa mesma paisagem, que para mim era como se fosse o primeiro sorriso do céu. Estava fora de mim, no sentido profundo da expressão. Assegurava-me de que, sem o meu amor e sem esse belo grito de pedra, tudo era inútil. O mundo é belo e fora dele não há bem-aventurança eterna. A grande verdade que essa paisagem pacientemente me ensinava, é que o espírito nada significa, como tampouco o próprio coração. E que a pedra aquecida pelo sol ou o cipreste que o céu descoberto faz aumentar de tamanho limitam o único universo onde “ter razão” adquire um sentido: a natureza sem homens. E este mundo me aniquila. Leva-me ao fim. Nega-me, sem cólera. Na noite que caía sobre os campos florentinos, encaminhava-me para uma sabedoria onde tudo já estaria conquistado, se não fossem as lágrimas que me vieram aos olhos e se o imenso soluço de poesia que me inundava todo não me tivesse feito esquecer a verdade do mundo.

 

        Nesse equilíbrio é que seria preciso que nos detivéssemos: instante singular em que a espiritualidade repudia a moral, em que a felicidade nasce da ausência de esperança, em que o espírito encontra sua razão no corpo. Se é certo que toda verdade traz consigo seu travo de amargura, também é certo que toda negação contém a florescência de um “sim” E esse canto de amor sem esperança, que nasce da contemplação, pode igualmente representar a mais eficaz das regras de ação. Ao sair do túmulo, o Cristo ressuscitado de Piero delia Francesca não tem um olhar de homem. Não existe traço de felicidade pintado em seu rosto — apenas uma grandeza cruel e sem alma, que não posso deixar de interpretar como uma resolução de viver. Porquanto o sábio, tal como o idiota, exprime pouco. Esse retorno me seduz.

        Devo esta lição à Itália ou a terei tirado de meu coração? Foi nesse país, sem dúvida, que ela me ocorreu. No entanto, a Itália, assim como outros lugares privilegiados, oferece-me o espetáculo de uma beleza em que, apesar de tudo, morrem os homens. Ainda aqui a verdade deve apodrecer, e que pode haver de mais exaltante? Mesmo que a deseje, que utilidade teria para mim uma verdade que não apodrece nunca? Não está à minha medida. Amar seria, pois, um falso pretexto. Raramente compreende-se que um homem abandone por desespero o que compunha sua vida. As cabeçadas e os desesperos levam a outros tipos de vida, manifestando tão somente uma forma agitada de apego às lições terrenas. Entretanto, pode acontecer que, num certo grau de lucidez, um homem se sinta com o coração cerrado e, sem revolta nem reivindicação, volte as costas àquilo que tomava até então como sendo sua vida, quero dizer, sua agitação. Se Rimbaud terminou seus dias na Abissínia sem escrever uma só linha, não foi pelo gosto da aventura nem por renúncia à sua condição de escritor. Foi “porque a coisa é assim mesmo” e porque, num certo ponto de nossa consciência, terminamos por admitir justamente aquilo que todos nos esforçamos por não compreender, conforme nossa vocação. Percebe-se claramente que, nesse caso, se trata de empreender a geografia de um certo deserto. Mas esse deserto singular não é sensível senão àqueles capazes de nele viverem, sem jamais eludir a sede. E então, e somente então, que ele se povoa das águas vivas da felicidade.

        Ao alcance de minha mão, no jardim Boboli, pendiam enormes caquis dourados de cuja carne arrebentada escorria um líquido espesso. Dessa colina graciosa a esses frutos sumarentos, da fraternidade secreta que me conciliava com o mundo à fome que me impulsionava em direção à carne alaranjada por sobre minha mão, de tudo isso eu captava o equilíbrio que leva certos homens a passarem da ascese ao gozo, do despojamento à prodigalidade na volúpia. Admirava, e admiro, o laço que une o homem ao mundo, o duplo reflexo em que meu coração é capaz de intervir e de ditar sua felicidade, Q VERÃO até o limite exato em que o mundo pode então aperfeiçoá-la ou destruí-la. Florença! Um dos únicos lugares da Europa onde compreendi que no íntimo de minha revolta havia um consentimento latente. Em seu céu, mesclado de lágrimas e de sol, aprendi a submeter-me à terra e a deixar-me abrasar na chama sombria de seus festejos. Eu sentia... mas como expressá-lo? Que desmesura era aquela? De que maneira consagrar a harmonia do amor e da revolta? A terra! Neste grande templo abandonado pelos deuses, todos os meus ídolos têm pés de barro.

                             O MINOTAURO OU A INËRCIA DE ORÃ

        Já não há mais desertos. Já não há mais ilhas. No entanto, sentimos que ambas as coisas são indispensáveis. Para compreender o mundo é preciso por vezes dar-lhe as costas; para melhor servir os homens, mantê-los durante certo tempo à distância. Mas onde encontrar a solidão indispensável à força, o longo hausto graças ao qual o espírito se recompõe, a coragem se mede a si mesma? Restam as grandes cidades. Simplesmente, ainda lhes faltam certas condições.

        As cidades que a Europa nos oferece estão demasiado cheias de rumores do passado. Um ouvido bem exercitado nelas consegue perceber ruídos de asas, palpitação de almas. Sente-se o perpassar da vertigem dos séculos, das revoluções, da glória. Recorda-se que o Ocidente foi forjado entre clamores. Tudo isso impede que o silêncio seja suficiente.

        Na maioria das vezes, Paris é um deserto para o coração; em certas horas, porém, sopra do alto do Père-Lachaise um vento de revolução que subitamente enche esse deserto de bandeiras e de grandezas derrotadas. Assim também em algumas cidades espanholas ou em Florença ou em Praga. Salzburgo seria um lugar sossegado sem Mozart. Mas de longe em longe corre sobre o Salzach o grito orgulhoso e solene de Don Juan mergulhando nos infernos. Viena aparenta ser mais silenciosa, é uma jovem quando comparada às outras cidades. Ali, as pedras não têm mais de três séculos e sua juventude desconhece a melancolia. Mas Viena está numa encruzilhada da história. A seu redor ressoa o fragor dos embates de impérios. Em certos entardeceres, quando o céu se cobre de sangue, os cavalos de pedra sobre os monumentos do Ring parecem estar a ponto de alçar vôo. Nesse fugitivo instante, quando tudo fala de poder e de história, pode-se ouvir distintamente, sob o arremesso impetuoso dos esquadrões poloneses, a queda estrepitosa do reino otomano. Isso também impede que o silêncio seja suficiente.

        Não resta dúvida de que é justamente essa solidão povoada que se vem buscar nas cidades européias. Pelo menos, no caso dos homens que sabem o que devem fazer. Pois ali podem escolher a companhia desejada, tomá-la e abandoná-la. Quantos espíritos adquiriram verdadeira têmpera no percurso entre o quarto de seu hotel e as velhas pedras da ilha de São Luís! Também é certo que outros pereceram de isolamento. No caso dos primeiros, seja como for, souberam encontrar suas motivações para desenvolver-se e afirmar-se. Estavam sós e não o estavam. Séculos de história e de beleza, o testemunho apaixonante de milhares de vidas já vividas, acompanhavam-nos ao lofigo do Sena, falando-lhes de tradições e de conquistas ao mesmo tempo. Entretanto, era sua própria juventude que os levava a invocar essa companhia. Mais tarde, há uma fase da vida, épocas inteiras, em que ela se torna importuna. “Só nós dois!” exclama Rastignac, diante da decadência imensa da cidade parisiense. Dois, sim, mas ainda é demais!

        Até mesmo o deserto adquiriu um sentido: sobrecarregaram-no de poesia. E um lugar consagrado por todas as dores do mundo. Mas o que o coração exige em certos momentos, ao invés disso, são justamente lugares destituídos de poesia. Descartes, tendo de meditar, escolheu seu deserto: a cidade mais mercantilista de sua época. Ali encontra sua solidão e produz talvez o maior de nossos poemas viris: “O primeiro (preceito) era o de não aceitar jamais coisa alguma como verdadeira, a menos que eu a considerasse incontestavelmente como tal.” Contudo, há três séculos Amsterdã vem sendo coberta de museus. Para fugir à poesia e reencontrar a paz das pedras, precisamos de outros desertos, de outros lugares que não tenham alma nem recursos. Orã é um desses lugares.

 

                                        A RUA

        Tenho ouvido muitas vezes os oranenses se queixarem de sua cidade: “Não existe um só ambiente interessante”. Ora, se existisse, vocês não o desejariam! Certas almas bem intencionadas tentaram aclimatar a esse deserto os costumes de um outro mundo, fiéis ao princípio de que não seria possível bem servir à arte ou às idéias sem dedicar-se a várias

delas*. O resultado disso é tal que os únicos ambientes instrutivos terminam por ser os de jogadores de pôquer, amantes do boxe, maníacos da bocha e as associações locais. Nestas ao menos reina a naturalidade. Afinal de contas, existe uma certa grandeza que não se presta à elevação. Por seu próprio estado, ela é infecunda. E aqueles que desejam encontrá-la, abandonam os “ambientes” e vão para a rua.

        Reencontra-se em Orã o Klestakoff de Gogol. Ele boceja e diz: “Tenho a impressão de que vai ser preciso ocupar-me de algo elevado”

        As ruas de Orã estão votadas à poeira, aos pedregulhos e ao calor. Se chove, é o dilúvio e um mar de lama. Mas, quer chova ou faça sol, as lojas têm sempre o mesmo ar extravagante e absurdo. Nelas todo o mau gosto da Europa e do Oriente parece ter marcado encontro. Pode-se descobrir nessas lojas, de cambulhada, galgos de mármore, bailarinas com cisnes, dianas-caçadoras em galalite verde, discóbolos e ceifeiros, tudo aquilo que serve como presente de aniversário ou de casamento, uma infinidade de quinquilharias aflitivas que um duende interesseiro e brincalhão não cessa de produzir com a finalidade de que surjam, de repente, em cima de nossas lareiras. Mas essa aplicação no mau gosto adquire, nesse caso, um aspecto barroco que tudo faz perdoar. Eis aqui, por exemplo, oferecido num envoltório de poeira, o conteúdo de uma vitrina: horrendos modelos em gesso de pés torturados, um lote de desenhos de Rembrandt “queimados a 150 francos cada um”, objetos para pregar peças, carteiras tricolores, um pastel do século XVIII, um burrico mecânico de pelúcia, garrafas de água de Provença para conservar verdes as azeitonas e uma ignóbil virgem de madeira com um sorriso indecente. (A fim de que todos saibam bem do que se trata, a “gerência” colocou a seus pés um letreiro: “Virgem de madeira”.)

                           Pode-se encontrar em Orã:

  1. Bares cujo balcão é envernizado de imundície, salpicado de patas e asas de moscas, e onde o dono está sempre sorrindo, apesar da sala sempre deserta. O “cafezinho” custava nesses lugares doze tostões, e o duplo, dezoito.
  2. Lojas de fotografias onde a técnica não progrediu desde a invenção do papel sensível. Expõem em geral uma fauna singular, impossível de encontrar nas ruas, a começar pelo pseudomarinheiro com o cotovelo apoiado sobre um console, até a jovem vestida de noiva, de cintura muito justa, os braços desengonçados, retratada sobre um fundo silvestre. E licito imaginar que não se trata de retratos naturais: são criações.
  3. Uma edificante abundância de empresas funerárias. Isso não significa que em Orã se morra mais do que em outros lugares; simplesmente, porém, imagino que a coisa seja um bocado mais complicada.

        A simpática ingenuidade desse povo-comerciante é ostensiva até mesmo na publicidade. Leio, no folheto de um cinema oranense, o anúncio de um filme de terceira qualidade. No texto, assinalo os adjetivos “faustoso”, “esplêndido”, “extraordinário”, “prestigioso”, “perturbador” e “formidável”. Para terminar, a gerência informa o público dos sacrifícios consideráveis que se impôs a fim de poder apresentar-lhe essa assombrosa “realização”. No entanto, o preço dos lugares não será aumentado.

        Seria um equívoco acreditar que somente aqui se exerce o gosto pelo exagero, tão característico do Midi. Justamente os autores desse maravilhoso prospecto dão prova de possuírem senso psicológico. Trata-se de derrotar a indiferença e a apatia profundas que se percebem nesta terra, desde o instante em que se faça necessário escolher entre dois espetáculos, dois ofícios e, freqüentemente, até mesmo entre duas mulheres. As pessoas só se decidem quando forçadas a fazê-lo. E a máquina publicitária tem perfeita noção disso. Chegará o dia em que tomará proporções americanas, tendo tanto aqui quanto lá as mesmas razões de exasperar-se.

       As ruas de Orã nos informam, enfim, sobre os dois prazeres essenciais da juventude local: mandar engraxar os sapatos e passear esses mesmos sapatos pelo bulevar. Para ter a sensação perfeita da primeira dessas volúpias, é preciso confiar os sapatos, às dez horas de uma manhã de domingo, aos engraxates do bulevar Gallieni. Empoleirados em altas poltronas, pode-se gozar assim da satisfação muito especial que proporciona, mesmo a um profano, o espetáculo de homens apaixonados por seu ofício, como é visivelmente o caso dos engraxates oranenses. Tudo é trabalhado com detalhe. Diversas escovas, três variedades de trapos, a graxa misturada com gasolina: crê-se que a operação está terminada diante do perfeito brilho que nasce sob a escova suave. Mas a mesma mão encarniçada repassa a graxa sobre a superfície brilhante, esfregando-a, embaçando-a, levando o creme até o próprio cerne das peles e fazendo então brotar sob a mesma escova um duplo e verdadeiramente definitivo brilho, surgido das profundezas do couro.

        As maravilhas assim obtidas são, a seguir, exibidas aos conhecedores. conveniente, a fim de que melhor se possa apreciar os prazeres extraídos do bulevar, assistir aos bailes de máscaras da juventude que se realizam todas as noites nas grandes artérias da cidade. Entre dezesseis e vinte anos, com efeito, os jovens oranenses da “sociedade” pedem emprestados seus modelos de elegância ao cinema americano e se disfarçam antes da hora do jantar. Com a cabeleira ondulada e engomada, desbordando de um chapéu de feltro inclinado sobre a orelha esquerda e de aba dobrada sobre o olho direito, o pescoço cerrado por um colarinho amplo o bastante para servir de apoio aos cabelos, o nó minúsculo da gravata rigorosamente preso por um alfinete, o comprimento do jaquetão na metade da coxa e a cintura bem marcada nos quadris, as calças claras e curtas, os sapatos refulgentes sobre sua sola tripla, todas as noites esses jovens exibem pelas calçadas sua imperturbável sobranceria e a ponta ferrada de seus sapatos. Aplicam-se nas mínimas coisas a imitar as atitudes, a franqueza e a superioridade do Sr. Clark Gable. Por esse motivo, os espíritos críticos da cidade, em virtude de uma descuidada pronúncia, apelidaram essa rapaziada de “clarques”.

        Haja o que houver, ao cair da tarde os grandes bulevares de Orã são invadidos por um exército de simpáticos adolescentes que fazem o possível e o impossível para assumir o ar de maus sujeitos. E como as moças oranenses se consideram, desde que nascem, as futuras prometidas desses gângsteres de coração meigo, também elas ostentam a maquilagem e a elegância das grandes atrizes americanas. Conseqüentemente, os tais espíritos maldosos dão-lhes o nome de “marlenes”. Assim, quando sobre os bulevares da noite um rumor de pássaros se eleva das palmeiras em direção ao céu, dezenas de clarques e de marlenes se encontram, medindo-se com o olhar, avaliadoramente, felizes de viver e de manifestar-se, entregues durante uma hora à vertigem das existências perfeitas. Assiste-se nessas ocasiões, segundo dizem os invejosos, às reuniões da comissão americana. Contudo, percebe-se nesses comentários a amargura dos maiores de trinta anos, daqueles que já não podem participar de semelhantes passatempos. Não fazem justiça a esses congressos cotidianos da juventude e do romanesco que, na realidade, são como os parlamentos de pássaros que se encontram na literatura hindu. Entretanto, nos bulevares de Orã não se debatem problemas existenciais e ninguém se preocupa em buscar o caminho da perfeição. Ficam apenas palpitações de asas, caudas empenachadas, coquetismo e galanteio vitoriosos, todo o deslumbramento de um canto despreocupado que desaparece com a noite.

        Daqui, ouço Klestakoff: “Vai ser preciso ocupar-me de algo elevado.” Ai de mim! É bem possível que ele seja capaz disso. Bastaria que o estimulassem, e povoaria esse deserto em poucos anos. Mas, por enquanto, as almas que sejam algo introvertidas devem procurar desembaraçar-se, nesta cidade fácil, com seu desfile de moças de rostos muito pintados e, no entanto, incapazes de aprestar-se à emoção, conseguindo simular tão mal seu desejo de agradar o sexo oposto que a farsa é logo descoberta. Ocupar-se de algo elevado! Em vez disso, contemplai: Santa Cruz, cinzelada na rocha, as montanhas, o mar liso, o vento violento e o sol, as enormes gruas do porto, os trens, os hangares, os cais e as rampas gigantescas que escalam o rochedo da cidade e, na própria cidade, os passatempos e o tédio, o tumulto e a solidão. Efetivamente, talvez tudo isso não seja bastante elevado. Mas o grande prêmio dessas ilhas superpovoadas é que nelas o coração se desnuda. O silêncio só é possível nas cidades barulhentas. De Amsterdã, Descartes escreve ao velho Guez de Balzac: “Faço meu passeio diário pelas ruas, em meio à confusão de um grande povo, com a mesma liberdade e tranqüilidade de espírito com que o faríeis nas alamedas do vosso jardim”.*

* Sem dúvida, para lembrar essas boas palavras, uma associação oranense de conferências e de debates organizou-se sob o rótulo de CogitoClub.

 

                                        O DESERTO EM ORÃ

        Forçados a viver diante de uma paisagem admirável, os oranenses triunfaram dessa temível prova rodeando-se de construções bastante feias. Imagina-se uma cidade aberta sobre o mar, lavada, refrescada pela brisa das tardes. Ao invés disso, à exceção do bairro espanhol (E do novo bulevar Front-de-Mer), encontramos uma cidade que se apresenta de costas para o mar e que foi construída enrolando-se sobre si mesma como um caracol. Orã é um grande muro circular e amarelo, recoberto por um céu desabrido. A princípio, erra-se por dentro desse labirinto buscando o mar como o sinal de Ariadne. Depois, gira-se em torno de um círculo, pelas ruas fulvas e oprimidas; mas o Minotauro acaba por devorar os oranenses: é o tédio. Há muito tempo os oranenses desistiram de procurar a saída. Resignaram-se a ser engolidos.

        Não se pode saber o que é a pedra sem vir a Orã. Nesta cidade, de todas a mais poeirenta, o calhau é rei. E de tal forma é estimado que os comerciantes o expõem em suas vitrinas para segurar papéis ou mesmo como único objeto exposto. Acumulam-se montões de pedras ao longo das ruas, sem dúvida como um prazer para os olhos, porquanto, um ano depois, as pedras ainda continuam ali amontoadas. Aquilo que em outros lugares extrai sua poesia do vegetal, assume aqui o semblante da pedra. O centenar de árvores que existem na zona comercial da cidade foi cuidadosamente recoberto pelo pó. São vegetais petrificados, de cujos galhos se desprende um cheiro acre e poeirento. Em Argel, os cemitérios árabes possuem manifesta doçura. Em Orã, por cima da ravina Ras-el-Aïn, dessa vez bem defronte ‘ao mar, estão chapados contra o céu azul campos de calhaus gredosos e friáveis, onde o sol ateia incêndios violentos. De longe em longe, em meio a esses ossos da terra, descarnados e secos, um gerânio cor de púrpura dá à paisagem sua vida e seu sangue fresco. A cidade inteira condensou-se numa ganga pedregosa. Quando contemplada da região dos Plantios, a espessura das falésias que encerram a paisagem é tamanha que ela se torna irreal à força de ser inorgânica. Desse lugar o homem está proscrito. Essa beleza tão grande e tão densa parece provir de um outro mundo.

        Se pudermos definir o deserto como um lugar sem alma, onde o céu é o único rei, nesse caso Orã aguarda seus profetas. Efetivamente, ao redor de toda a cidade e por cima dela, a natureza brutal da África adorna-se com seus encantos adustos. Faz brilhar o cenário adverso que a recobre e lança seus gritos violentos por entre as casas, por cima de todos os tetos. Ao subir por um dos caminhos no flanco da montanha de Santa Cruz, o que se vê surgir em primeiro lugar são os cubos dispersos e coloridos de Orã. Subindo um pouco mais, já se avistam as costas escarpadas que circundam o planalto, agachadas no mar como bichos rubros. Continua-se ainda mais para cima e grandes turbilhões de sol e vento se alastram, arejando a cidade desalinhada, dispersa desordenadamente pelos quatro cantos de uma paisagem rochosa, e fundindo-se com ela. Acentua-se aqui o contraste entre essa magnífica anarquia humana e a permanência de um mar sempre igual. Tudo isso faz com que se eleve em direção ao caminho que segue o flanco da encosta um perturbador perfume de vida.

        O deserto tem algo de implacável. O céu mineral de Orã, suas ruas e suas árvores revestidas de poeira formam um conjunto que contribui para criar esse universo denso e impassível, onde o coração e o espírito jamais estão desatentos a si mesmos ou a seu objetivo único, que é o homem. Refiro-me nesse caso às retiradas difíceis. Escrevem-se livros sobre Florença ou Atenas. Essas cidades, formadoras de tantos espíritos europeus, devem possuir necessariamente um significado. Guardam o segredo de enternecer ou de exaltar. Minoram uma certa fome da alma, cujo alimento é a recordação. Mas de que maneira pode alguém enternecer-se quando se trata de uma cidade na qual não existe coisa alguma que solicite o espírito, em que a própria fealdade é anônima e o passado está reduzido a nada? Vazio, tédio, um céu indiferente — que poderes sedutores existem em semelhantes lugares? Certamente a solidão é um deles; outro talvez possa ser a própria criatura humana. Para certa raça de homens, a criatura, onde quer que seja bela, é uma pátria amarga. Orã é uma de suas mil capitais.

 

                                               OS JOGOS

        O Clube Central de Esportes, k rua do Fondouk, em Orã, anunciava uma noitada pugilistica, afirmando que seria apreciada pelos verdadeiros amantes do boxe. Em estilo claro, isso significa que os boxeadores anunciados estão longe de serem famosos, que alguns dentre eles subiriam ao ringue pela primeira vez e que, conseqüentemente, se poderia contar, se não com a ciência, pelo menos com a intrepidez dos adversários. Como um oranense me tivesse deixado eletrizado ao afiançar-me categoricamente de que “o sangue correria”, estava eu nessa noite entre os tais verdadeiros amantes.

        A julgar pelas aparências, trata-se de um tipo de gente que jamais exige conforto algum. Com efeito, havia sido montado um ringue no fundo de uma espécie de garagem rebocada de cal, coberta de zinco ondulado e violentamente iluminada. Cadeiras dobráveis estavam enfileiradas, formando quadrados, ao redor do tablado de cordas. São denominadas “ringues de honra”. Dispuseram mais assentos ao longo desse mesmo recinto e, ao fundo da sala, deixaram livre um amplo espaço denominado salão de descanso e espera, razão pela qual nenhuma das quinhentas pessoas que ali se encontravam seria capaz de conseguir sequer tirar um lenço do bolso sem provocar graves acidentes. Dentro dessa caixa retangular, respiram um milhar de homens e duas ou três mulheres — dessas que, segundo meu vizinho, só se preocupam com “o fato de serem notadas”. Todo mundo sua ferozmente. Enquanto se aguardam as lutas dos “futurosos”, um gigantesco pick-up tritura uma coisa qualquer com a voz do Tino Rossi. Ë a ária romântica que costuma preceder o assassinato.

        A paciência de um verdadeiro amante não tem limites. A reunião, anunciada para as vinte e uma horas, ainda não começara meia hora depois da marcada, mas ninguém protestou. A primavera é quente e excitante o cheiro de uma humanidade em mangas de camisa. A discussão continua firme, misturando-se ao espoucar periódico das rolhas de garrafas de limonada e às incansáveis lamúrias do cantor corso. Alguns recém-chegados conseguem encaixar-se na platéia, no momento preciso em que um projetor derrama uma luz ofuscante sobre o ringue. As lutas dos futurosos têm início. Em geral esses indivíduos são estreantes, lutam só por prazer, e têm sempre a preocupação de provar esse fato, massacrando-se uns aos outros rápida e compulsivamente, com desprezo total por toda espécie de técnica. Nenhum deles jamais conseguiu agüentar-se por mais de três tempos de luta. O herói da noitada, sob esse aspecto, é o jovem Kid-Avião, cuja habitual ocupação é vender bilhetes de loteria nas calcadas dos bares. Seu adversário, com efeito, capota desastradamente do lado de fora do ringue, logo no início do segundo tempo, sob o impacto de um punho manejado como se fosse uma hélice.

        A multidão começa a se animar um pouco, mas ainda é apenas por mera polidez. Respira compenetradamente o perfume sagrado dos fomentos oleosos. Contempla os ritos lentos e os sacrifícios desordenados que se sucedem, ininterruptamente, tornando-se ainda mais autênticos graças às silhuetas propiciatórias das sombras dos combatentes, projetadas na brancura da parede. São os prólogos cerimoniosos de uma religião selvagem e calculada. Só mais tarde é que sobrevirá o momento do transe.

        De súbito, o microfone anuncia Amar, “o imbatível coriáceo oranense”, contra Pérez, “o esmurrador argeliano”. Um profano interpretaria mal os urros que acolhem a apresentação dos dois lutadores sobre o ringue. Imaginaria talvez estar na iminência de assistir a um combate sensacional em que os boxeadores tivessem de lutar até as últimas conseqüências para decidir determinada pendência pessoal, cuja origem o público conhece. Na realidade, é exatamente uma querela que eles vão resolver. Trata-se da mesma que há mais de cem anos vem provocando implacável cizânia entre Argel e Orã. Recuando um pouco ao longo dos séculos, essas duas cidades norte-africanas já se teriam exterminado uma à outra, tal como ocorreu entre Pisa e Florença em tempos mais felizes. Aliás, essa rivalidade é tanto mais forte quanto mais absoluta a inconsistência de sua motivação. Tendo todas as razões para se estimarem, Argel e Orã se detestam, na mesma proporção. Os oranenses acusam os argelianos de ‘ramaneirados” A gente de Argel insinua que os oranenses não sabem comportar-se em sociedade. Semelhantes injúrias são muito mais ofensivas do que aparentam, por serem metafísicas. Na impossibilidade de poderem sitiar-se, as duas cidades reúnem-se, injuriam-se e lutam no terreno dos esportes, das estatísticas e das grandes obras.

        Assim, nesse instante é uma página de história que se desenrola no ringue. Na realidade, o coriáceo oranense, apoiado por um milhar de vozes bramantes, está defendendo, ao lutar contra Pérez, uma maneira de viver e o orgulho de uma província. A bem da verdade, somos obrigados a dizer que Amar argumenta mal em sua disputa. Tem um vício de forma na defesa: falta-lhe o cálculo da extensão do golpe. A defesa do esmurrador argeliano, ao contrário, possui a extensão necessária. Esmurra com convicção a arcada superciliária de seu adversário. O oranense mal se pavoneia com magnificência em meio às vociferações de um público enfurecido. Apesar dos repetidos encorajamentos da galeria e do meu vizinho, apesar dos intrépidos gritos de “Arrebenta com ele!”, “Descasca no duro!”, ou de insidiosos comentários, tais como “Golpe baixo!”, “Ora, esse juiz não viu nada!”, ou, ainda, dos otimistas que berram “Ele está nas últimas”, “O cara já não se agüenta em pé!” — o representante de Argel é proclamado vencedor na contagem dos pontos, afogada por vaias intermináveis. Meu vizinho, que apregoa de bom grado a importância do espírito esportivo, aplaude ostensivamente e, ao mesmo tempo, insinua-me em voz abafada pelo berreiro: “Desse jeito, ele não vai poder andar dizendo por lá que os oranenses são uns selvagens”.

        Enquanto isso, na sala, lutas que não apareciam no programa já se desencadearam. Cadeiras são brandidas, a policia começa a abrir caminho, a exaltação atinge o auge. Para acalmar esses bons ânimos e contribuir para o retorno do silêncio, a “direção”, sem perda de tempo, encarrega o pick-up de vociferar o hino “Sambre-et-Meuse”. Durante alguns instantes a sala comporta-se exemplarmente. Grupos confusos de combatentes e de árbitros benévolos oscilam ainda sob o pulso enérgico dos agentes policiais, a galeria alvoroçada reclama a continuação do espetáculo, emitindo gritos selvagens, cocoricós ou miados fingidos, afogados na torrente irresistível da música militar.

        Entretanto, basta que se anuncie o grande combate da noite para que a calma retorne. Retorna bruscamente, sem “fiorituras”, tal como os atores abandonam o palco uma vez terminada a peça. Com a maior naturalidade, limpa-se o pó dos chapéus, arrumam-se as cadeiras e todos os semblantes assumem, sem qualquer espécie de transição, a expressão complacente e típica do espectador honesto que pagou sua entrada para assistir a um concerto familiar.

        Enfrentam-se no último combate um campeão francês da marinha e um boxeador oranense. Dessa vez, a diferença de extensão do murro oferece vantagem ao oranense. Contudo, suas vantagens durante os primeiros tempos da contenda não bastam para estimular as paixões da multidão. Esta cozinha em fogo lento sua exaltação, recuperando forças. Seu fôlego ainda está curto. Os aplausos, quando acontecem, são isentos de entusiasmo. As vaias tampouco contêm qualquer animosidade. A sala está dividida em dois campos como manda a boa regra. Mas a escolha de cada um obedece a essa espécie de indiferença tão comum às grandes fadigas. Se o francês “agüenta firme” ou se o oranense esquece que não deve atacar com a cabeça, tanto um quanto o outro são logo humilhados por uma chuva de apupos, para em seguida tornar a levantar a cabeça graças a uma salva de palmas. Somente quando chegam ao sétimo tempo é que o espírito esportivo volta à tona, enquanto os verdadeiros amantes do boxe vão pouco a pouco emergindo de sua fadiga. Nesse instante, efetivamente, o francês acabara de cair ao chão e, desejoso de recuperar pontos, arremessa-se com ímpeto sobre seu adversário. “Agora é que a coisa vai esquentar”, disse meu vizinho, “vai começar la corrida.” Realmente, começa la corrida. Cobertos de suor sob a iluminação implacável, os dois boxeadores abrem a guarda, esmurram-se de olhos fechados, arremetem com as costas e com os joelhos, permutam sangue e fungam furiosos. Simultaneamente, ergue-se a sala inteira, medindo palmo a palmo os esforços de seus dois heróis. Ela recebe e aplica os golpes, fazendo-os retumbar através de milhares de vozes surdas e ofegantes. Os mesmos que haviam escolhido seu favorito com indiferença, mantêm-se fiéis à escolha por pura teimosia, terminando por adotá-la com absoluto entusiasmo. De dez em dez segundos, um brado de meu vizinho penetra em minha orelha direita — “Animo, marujo, vai em frente, marinha!” —, enquanto um espectador bem diante de nós berra, dirigindo-se ao oranense: “Anda! hombre!” O homem e o marujo vão em frente com vontade e, nesse templo de cal, zinco e cimento, a sala inteira os acompanha e se abandona a deuses de cabeça baixa. Cada golpe que ressoa surdamente sobre os peitorais reluzentes, repercute em vibrações imensas no próprio corpo da multidão que está empenhando, assim, como os boxeadores, seu último alento.

        Em semelhante atmosfera a anulação da partida é mal acolhida. Pois, na realidade, contraria no público uma sensibilidade totalmente maniqueísta. Existem o bem e o mal, o vencedor e o vencido. É preciso que se tenha razão, se não se estiver em erro. A conclusão dessa lógica impecável é imediatamente fornecida por dois mil pulmões enérgicos que acusam os juízes de serem vendidos ou comprados. Contudo, o marinheiro dirigiu-se ao ringue para abraçar seu adversário e beber-lhe o fraternal suor. Foi o quanto bastou para que a sala, subitamente mudando de posição, explodisse em aplausos. Meu vizinho tem razão: essa gente não é selvagem.

        A multidão que se escoa para fora, sob um céu pleno de silêncio e estrelas, acaba de enfrentar um combate dos mais exaustivos. Cala-se, desaparece furtivamente, sem forças para a exegese. Existem o bem e o mal e essa religião é impiedosa. Agora, a coorte de fiéis não passa de uma assembléia de sombras negras e brancas que vai sumindo dentro da noite. Isso porque a força e a violência são deuses solitários. Não legam coisa alguma à lembrança. Em vez disso, distribuem seus milagres às mãos cheias no momento presente. São milagres feitos sob medida para esse povo sem passado, que celebra suas comunhões ao redor dos ringues. São rituais um tanto árduos, mas que tudo simplificam. O bem e o mal, o vencedor e o vencido: em Corinto, havia dois templos vizinhos, o da Violência e o da Necessidade.

 

                                     OS MONUMENTOS

        Por diversos motivos, que dizem respeito tanto à economia quanto à metafísica, pode-se dizer que o estilo oranense, se existe como tal, está ilustrado com força e clareza no singular edifício conhecido pelo nome de Casa do Colono. A Orã, aliás, não lhe faltam monumentos de forma alguma. A cidade possui bom número de marechais do Império, ministros e benfeitores locais. Encontramo-los em pequenas praças poeirentas, resignados à chuva e ao sol, convertidos, também eles, em pedra e tédio. No entanto, representam contribuições exteriores. Em meio a essa feliz barbárie, são os indícios lamentáveis da civilização.

        Orã, ao contrário das demais cidades, ergueu para si mesma seus altares e suas tribunas. Em pleno coração dessa cidade mercantil, os oranenses, vendo-se diante da necessidade de construir um prédio único para abrigar os inúmeros organismos agrícolas que fazem viver toda a região, decidiram edificar em areia e cal uma imagem convincente de suas virtudes: a Casa do Colono. A julgar pelo aspecto do edifício, tais virtudes são em número de três: a ousadia do gosto, o amor à violência e o sentido das sínteses históricas, O Egito, Bizâncio e Munique colaboraram para a delicada construção de um bolo de noiva, figurando enorme taça invertida. Pedras multicores, do mais vigoroso efeito, vieram emoldurar o teto. A vivacidade desses mosaicos é de tal forma persuasiva que num primeiro instante nada se distingue, a não ser um efeito de ofuscamento difuso. Quando, porém, nos aproximamos, já com a atenção bem desperta, verificamos que as pedras têm um sentido: a graciosa figura de um colono com gravata borboleta e capacete de cortiça branco ali está, recebendo as homenagens de um cortejo de escravos vestidos à antiga (Outra das qualidades da raça argelina é evidentemente a franqueza). O edifício e seus ornamentos coloridos foram finalmente colocados no centro de uma encruzilhada, no meio do vaivém dos bondinhos suspensos, cuja sujeira é um dos encantos da cidade.

        Por outro lado, Orã muito se orgulha dos dois leões de sua praça de armas. Desde 1888 eles lá estão, entronizados em cada um dos lados da escada municipal. Seu autor chamava-se Cain. São animais majestosos, de torso curto. Dizem que durante a noite costumam descer de seus pedestais, um após o outro, dar uma volta silenciosa em torno à praça escura, aproveitando a oportunidade para urinar longamente sob as grandes figueiras poeirentas. Na verdade, tudo isso são simples rumores aos quais os oranenses prestam ouvidos complacentes. Mas a história é inverossímil.

        Apesar de ter feito algumas pesquisas, não consegui entusiasmar-me profundamente por esse tal Cain. Fiquei apenas sabendo que teve boa reputação como animalista. Entretanto, penso nele com freqüência. Eis um artista de nome sonoro, que aqui deixou uma obra sem importância. Muitas centenas de milhares de homens se familiarizaram com as feras bonachonas que ele colocou na frente de uma pretensiosa repartição municipal. E um meio como qualquer outro de obter êxito na arte. Indubitavelmente esses dois leões, tal como milhares de obras do mesmo gênero, testemunham alguma coisa, menos talento. Fizeram-se a “Ronda Noturna”, “São Francisco Recebendo os Estigmas”, o “Davi” ou “A Exaltação da Flor”. Quanto a Cain, o que ele fez foi erigir dois focinhos risonhos na praça de uma província mercantil de além-mar. Mas o “Davi” desmoronará um dia, junto com Florença; e os leões talvez se salvem do desastre. Uma vez mais, nesse caso, é algo diverso que eles testemunham.

        Acaso podemos precisar essa idéia? Existem nessa obra insignificância e solidez. O espírito em nada está presente, é a matéria que conta em quase tudo. A mediocridade deseja durar por todos os meios, inclusive o bronze; recusamos-lhe direitos à eternidade, mais ainda assim os toma dia após dia. Não será, então, ela própria a eternidade? Seja como for, uma tal perseverança tem algo de emocionante e traz consigo uma lição: a de todos os momentos de Orã e a da própria cidade. Uma hora por dia, em determinados instantes, obriga-nos a prestar atenção a coisas sem importância. O espírito tira proveito desses retrocessos. Para ele, representam certa higiene; e como tais instantes de humildade lhe são absolutamente necessários, parece-me que essa oportunidade de embrutecimento é melhor do que muitas outras. Tudo o que é perecível deseja durar. Digamos, portanto, que tudo deseja durar. As obras humanas nada significam a não ser isso mesmo; e sob esse aspecto os leões de Cain têm possibilidades idênticas as das ruínas de Angkor. Tal constatação nos inclina à modéstia.

        Há outros monumentos oranenses. Pelo menos, seria indispensável dar-lhes essa denominação, porquanto também servem de testemunhos para sua cidade, representando-a de forma talvez mais significativa. Refiro-me às grandes obras que atualmente se estendem pela costa, ao longo de uma dezena de quilômetros. Em princípio, pretende-se transformar a mais luminosa das baías em porto gigantesco. Na verdade, é uma nova oportunidade para que o homem se confronte com a pedra.

        Nos quadros de certos mestres flamengos observa-se o retorno insistente de um tema cuja amplitude é admirável: a construção da Torre de Babel. São paisagens desmesuradas, rochas que escalam o céu, escarpas onde abundam operários, animais, escadas, máquinas estranhas, cordas, tração. O homem, de resto, ali está presente apenas para dar a medida justa da grandiosidade inumana do canteiro de obras. E nisso que se pensa quando se está sobre a cornija oranense, a oeste da cidade.

        Colados às imensas encostas; vêem-se trilhos, pequeninos vagões, gruas, minúsculos trens... Rodeadas por um sol devorador, locomotivas que parecem de brinquedo contornam enormes blocos por entre apitos, poeira, fumaça. Dia e noite, um povo de formigas movimenta-se sobre a carcaça fumegante da montanha. Pendurados ao longo de uma mesma corda, encostados ao flanco da falésia, dezenas de homens, com o ventre apoiado nos cabos das escavadoras automáticas, estremecem no vácuo durante todo o dia, deslocando pedaços inteiros dos rochedos que se despedaçam, em meio ao pó e aos estrondos. Mais além, pequenos vagões descem de repente do topo das escarpas; e os rochedos, despencando bruscamente em direção ao mar, lançam-se e rolam para dentro d’água, cada grande bloco seguido por uma chuva de pedras menores. A intervalos regulares, durante a noite ou em pleno dia, as detonações sacodem toda a montanha e agitam até mesmo o próprio mar.

        O homem, no centro desse canteiro, ataca a pedra de frente. E se nos fosse dado esquecer, ao nienos por um instante, a dura escravidão que torna possível esse trabalho, seria preciso admirá-lo. Essas pedras arrancadas à montanha servem ao homem em seus desígnios. Elas se acumulam sob as primeiras vagas, emergem pouco a pouco, ordenando-se finalmente para formar um quebra-mar, logo coberto de homens e de máquinas que avançam, dia após dia, em direção ao alto-mar. Sem cessar, enormes mandíbulas de aço escavam o ventre da falésia, giram sobre si mesmas e vêm vomitar na água sua sobrecarga de cascalho. A medida que o cimo da cornija vai minguando, a costa inteira avança irresistivelmente sobre o mar.

        Sem dúvida, não é possível destruir a pedra. Nós apenas a mudamos de lugar. Seja como for, durará mais do que os homens que dela se servem. No momento, a pedra apóia o desejo de ação do homem. Mesmo isso é certamente inútil. Contudo, mudar as coisas de lugar é o trabalho dos homens; é necessário escolher entre fazê-lo ou não fazer nada (Este ensaio trata de uma certa tentação. É preciso tê-la conhecido. Em seguida poder-se-á agir ou não, mas com conhecimento de causa ). Visivelmente, os oranenses fizeram sua escolha. Diante da baía indiferente, por muitos anos ainda, continuarão a acumular montões de pedras ao longo da costa. Dentro de cem anos, ou seja, amanhã, tudo terá de recomeçar. Mas hoje esses rochedos amontoados servem de testemunhos para os homens mascarados de poeira e suor que circulam por entre eles. Os verdadeiros monumentos de Orã ainda são suas pedras.

 

                                       A PEDRA DE ARIADNE

        Os oranenses parecem assemelhar-se àquele amigo de Flaubert que no instante da morte, lançando um último olhar sobre a terra insubstituível, exclamava: “Fechem a janela, é belo demais!”. Fecharam a janela, enclausuraram-se, exorcizaram a paisagem. Mas Poittevin morreu, e depois de sua morte os dias não cessaram de se renovar. Da mesma maneira, para além dos muros amarelos de Orã, o mar e a terra continuam seu diálogo indiferente. Essa permanência no mundo sempre teve para o homem valores antagônicos. Desespera-o e exalta-o. O mundo repete eternamente uma única coisa; de início consegue cativar; depois cansa. No final, porém, leva vantagem, à força de persistência. Está sempre com a razão.

        Logo de entrada, onde começa a cidade de Orã, a natureza fala em tom mais alto. Do lado de Canastel, encontram-se imensos terrenos baldios, cobertos de urzes perfumadas. O sol e o vento falam apenas de solidão. Acima da cidade estão a montanha de Santa Cruz, o planalto e milhares de ravinas que levam a esses lugares. Caminhos, outrora percorridos por carroças, elevam-se no flanco das encostas que dominam o mar. Em janeiro, alguns desses caminhos ficam totalmente atapetados de flores. Malmequeres e botões-dourados formam aléias luxuriantes, bordadas de amarelo e branco. De Santa Cruz tudo já foi dito. Se eu tivesse de acrescentar alguma coisa, porém, esqueceria os cortejos sagrados que escalam a dura colina por ocasião das grandes festas e evocaria outras peregrinações. Solitárias, elas caminham na pedra vermelha, elevando-se bem acima da baía imóvel e vêm consagrar ao despojamento uma hora luminosa e perfeita.

        Orã possui também seus desertos de areia: suas praias. Aquelas que encontramos bem próximas à entrada da cidade são solitárias apenas no inverno e na primavera. Nessa época, transformam-se em planícies cobertas de lírios silvestres, povoadas de pequeninas casas de campo vazias, rodeadas de flores. O mar resmunga um pouco, como um contrabaixo. No entanto, o sol, o vento leve, a brancura dos malmequeres, a inclemente tonalidade azul do céu, tudo já nos permite imaginar o verão, a juventude dourada que se estenderá sobre a praia, as longas horas sobre a areia e a doçura repentina do anoitecer. Cada ano, ao longo dessas costas, renova-se a colheita das jovens em flor. Aparentemente, elas têm uma só estação. No ano seguinte, outras corolas cálidas surgem para substituí-las; e são as mesmas que no verão anterior ainda eram meninas de corpos rijos como rebentos. As onze da manhã, descendo do planalto, toda essa carne jovem, sumariamente vestida com tecidos multicores, solta-se sobre a areia numa onda policromada.

        E preciso ir mais longe (estranhamente perto, entretanto, desse lugar onde duzentos mil homens giram em torno de si mesmos) para descobrir uma paisagem sempre virgem: longas dunas desertas onde a passagem dos homens não deixou outros vestígios a não ser uma cabana carunchosa. De quando em vez um pastor árabe faz avançar sobre o topo das dunas as manchas pretas e castanho-claras de seu rebanho de cabras. Nessas praias de Orânia, todas as manhãs de verão parecem ser as primeiras do mundo. Todos os crepúsculos dão-nos a impressão de serem os últimos, agonias solenes anunciadas ao pôr-do-sol através de uma derradeira luz que escurece todos os matizes. O mar é ultramar; o caminho, cor de sangue coagulado; a praia, amarela. Tudo desaparece com o sol verde; uma hora mais tarde, a lua começa a jorrar das dunas. Nesses momentos, as noites se fazem incomensuráveis sob a chuva de estrelas. Por vezes cruzam-na tempestades, e os relâmpagos escorrem sobre o dorso das dunas, empalidecem o céu, pondo na areia e nos olhos clarões alaranjados.

        Mas nada disso se pode partilhar. É necessário tê-lo vivido. Tamanha solidão e grandeza dão a esses lugares um rosto inesquecível. Ao nascer da madrugada frágil, passadas as primeiras vagas ainda negras e amargas, é um novo ser o que tende a água da noite, tão longa de suportar. A lembrança dessas alegrias não é uma saudade triste; por isso sei que eram boas. Tantos anos depois, ainda persistem em algum recanto de meu coração, cujas fidelidades costumam ser difíceis. E hoje sei que sobre a duna deserta, se eu quisesse retornar, o mesmo céu continuaria derramando sobre mim sua carga de suspiros e estrelas. Porque aqui estão, as terras da inocência.

        No entanto, a inocência tem necessidade da areia e das pedras. E o homem desaprendeu o convívio com essas coisas. Pelo menos é nisso que temos de acreditar, porquanto se entrincheirou nessa cidade singular onde dorme o tédio. Mas justamente nessa confrontação é que reside a recompensa de Orã. Capital do tédio, sitiada pela inocência e pela beleza, o exército que a encerra tem tantos soldados quanto pedras. Dentro da cidade, porém, principalmente em certos momentos, que tentação a de passar-se ao inimigo! Que tentação a de identificar-se com as pedras, unir-se intimamente a esse universo ardente e impassível que desafia a história e suas agitações! Talvez tudo não passe de um sentimento inútil. Pois existe em cada homem um instinto profundo que não é o da destruição nem o da criação. Trata-se tão-somente de uma tendência para não assemelhar-se a nada. À sombra dos muros quentes de Orã, com os pés apoiados em seu asfalto coberto pelo pó, ouve-se por vezes esse convite. Segundo consta, os espíritos que a ele têm acedido, embora por pouco tempo, jamais se sentiram frustrados. São as trevas de Eurídice e o sono de Isis. Eis os desertos onde o pensamento recuperará seu autodomínio, a mão fresca da noite sobre um coração agitado. Sobre esse monte das Oliveiras, a vigília é inútil; o espírito se une aos apóstolos adormecidos e os aprova. Estariam realmente equivocados? Seja como for, tiveram sua revelação.

        Pensemos em Sáquia-Múni no deserto. Ali permaneceria durante longos anos, agachado, imóvel, olhos postos no céu. Os próprios deuses enviaram-lhe a sabedoria e o destino de pedra. Em suas mãos, estendidas e tensas, as andorinhas haviam feito ninho. Porém, certo dia, alçaram vôo e partiram, atendendo ao apelo de terras longínquas. E aquele homem, que conseguira destruir dentro de si o desejo e a vontade, a glória e a dor, pôs-se a chorar. Assim também, ocorre que nasçam flores no rochedo. Sim, aceitemos a pedra, quando preciso. O segredo e o arrebatamento que exigimos aos semblantes humanos, também ela é capaz de no-los dar. Decerto, isso não saberia durar. Mas, afinal, o que pode durar? O segredo dos rostos se desvanece e eis-nos de novo lançados na cadeia dos desejos. E se a pedra não nos pode oferecer mais do que um coração humano, aquilo que elas nos dá não é muito menos.

        “Não ser nada!” Durante milênios esse grito enorme sublevou milhões de homens que se rebelaram contra o desejo e a dor. Seus ecos se prolongaram e vieram morrer aqui, através dos séculos e dos oceanos, sobre o mar mais antigo do mundo. Ainda ricocheteiam surdamente contra as falésias compactas de Orã. Nesta terra, todos seguem esse conselho sem o saberem. Naturalmente, mais ou menos em vão. Contudo, da mesma forma que recebemos, como tantas outras graças, os sinais eternos que nos trazem as rosas ou o sofrimento humano, assim também não podemos rejeitar os raros convites ao sono que a terra nos concede. Tanto uns quanto outros possuem o mesmo conteúdo de verdade.

        Talvez nisso consista o fio de Ariadne dessa cidade sonâmbula e frenética. Aqui se aprendem as virtudes, todas provisórias, de certo tédio. Para ser poupado é preciso dizer “sim” ao Minotauro. Trata- se de velha e fecunda sabedoria. Por cima do mar, silencioso ao pé das falésias vermelhas, basta-nos conseguir manter um exato equilíbrio, à meia distância dos dois cabos maciços que, à direita e à esquerda, mergulham na água clara. No arquejo de um barco guarda-costas que se arrasta em direção ao alto-mar, banhado de luz radiosa, ouve-se nesse momento, distintamente, o apelo abafado de forças inumanas e resplandecentes: é o adeus do Minotauro.

        É meio-dia e o próprio dia está em equilíbrio. Uma vez realizado o ritual, o viajante recebe a recompensa de sua entrega: a pequena pedra, seca e dura como um asfódelo, que ele apanha sobre a falésia. Para o iniciado, o mundo não é mais pesado de levar do que essa pedra. A tarefa de Atlas é fácil, basta escolher seu momento. Compreende-se, então, que por uma hora, um mês, um ano, esses litorais podem prestar-se à liberdade. Acolhem, de cambulhada, sem mesmo olhá-los, o monge, o funcionário ou o conquistador. Dias houve em que esperei encontrar, nas ruas de Orã, Descartes ou César Bórgia. Não aconteceu. Contudo, é provável que alguém venha a ter melhor sorte. Antigamente, um grande feito, uma grande obra, a meditação viril exigiam a solidão das areias ou do convento. Faziam-se nesses lugares as vigílias de armas do espírito. Hoje, onde seria possível realizá-las melhor do que no vazio de uma grande cidade instalada há tanto tempo na beleza sem espírito?

        Eis a pequena pedra, suave como um asfódelo. Ela está na origem de tudo. As flores, as lágrimas (quando contidas), as partidas e as lutas são para amanhã. No âmago do dia, quando o céu abre suas fontes de luz no espaço imenso e sonoro, todos os promontórios da costa se assemelham a uma frota que parte. Os pesados galeões de rocha e luz estremecem sob suas quilhas, como se estivessem prestes a singrar rumo a ilhas de sol. O manhãs de Orânia! Do cimo do planalto, as andorinhas mergulham nos imensos cubos onde o ar borbulha. O litoral inteiro está pronto para a partida e um frêmito de aventura o percorre. Amanhã talvez partamos juntos.

                                           AS AMENDOEIRAS

        “Sabeis”, dizia Napoleão a Fontanes, “o que mais admiro no mundo? É a incapacidade da força para fundar alguma coisa. Existem apenas duas potências no mundo: a espada e o espírito. A longo prazo, a espada sempre é vencida pelo espírito”.

        Observa-se que os conquistadores são por vezes melancólicos. Na verdade, é preciso que se pague um pouco o preço de tanta glória vã. Mas aquilo que há cem anos atrás era certo no que concerne à espada, já não o é tanto assim em relação aos tanques de hoje. Os conquistadores marcaram pontos; e o morno silêncio dos lugares sem alma estabeleceu-se durante anos sobre uma Europa destroçada. Na época das medonhas guerras de Flandres, os pintores holandeses podiam talvez pintar os galos de seus galinheiros. Assim também, esqueceu-se a guerra dos Cem Anos; no entanto, as orações dos místicos da Silésia habitam ainda alguns corações. Mas hoje em dia as coisas mudaram, o pintor e o monge estão mobilizados: somos solidários com o mundo. O espírito perdeu a segurança real que um conquistador lhe sabia reconhecer; atualmente, extenua-se em maldizer a força, já que não consegue dominá-la. –

       Algumas almas boas vivem dizendo que isso é um mal. Não sabemos se é um mal, mas sabemos que é assim. A conclusão é que, seja como for, precisamos dar um jeito. Basta, portanto, ter conhecimento daquilo que desejamos. E o que desejamos é justamente nunca mais sermos obrigados a nos inclinar perante a espada, nunca mais dar razão a força alguma que não se coloque a serviço do espírito.

        E bem verdade que se trata de tarefa interminável. Mas aqui estamos para dar-lhe continuidade. Não creio suficientemente na razão para julgar que possa subscrever o progresso, nem tampouco em qualquer filosofia da história. Creio, em todo caso, que os homens jamais cessaram de avançar na consciência que tomavam de seu destino. Ainda não superamos nossa condição, embora a conheçamos melhor. Sabemos que estamos em contradição, mas que devemos recusar essa contradição e fazer o que for necessário para reduzi-la. Nossa tarefa de homens é a de encontrar as fórmulas, poucas que sejam, capazes de apaziguar a angústia infinita das almas livres. Devemos recompor os pedaços daquilo que foi destroçado, tornar a justiça imaginável num mundo tão evidentemente injusto, a felicidade significativa para os povos envenenados pela infelicidade do século. Naturalmente é tarefa sobre-humana. Mas denominamos sobre-humanas as tarefas que os homens tardam muito tempo em realizar, eis tudo.

        Saibamos, portanto, aquilo que desejamos, apoiemo-nos firmemente sobre o espírito, mesmo que a força assuma, com a finalidade de nos seduzir, o rosto de uma idéia ou de um conforto. A primeira coisa é não desesperar. Não prestemos ouvidos demasiadamente àqueles que gritam, anunciando o fim do mundo. As civilizações não morrem assim tão facilmente; e mesmo que o mundo estivesse a ponto de vir abaixo, isso só ocorreria depois de ruírem outros. É bem verdade que vivemos uma época trágica. Contudo, muita gente confunde o trágico com o desespero. “O trágico”, dizia Lawrence, “deveria ser uma espécie de grande pontapé dado na infelicidade”. Eis um pensamento saudável e de aplicação imediata. Hoje em dia, há muitas coisas que merecem esse pontapé.

        Quando morava em Argel, suportava sempre com paciência o inverno, pois sabia que numa noite, numa só noite fria e pura de fevereiro, as amendoeiras do vale dos Cônsules se cobririam de flores brancas. Depois, maravilhava-me ao ver que essa neve frágil resistia a todas as chuvas e ao vento do mar. No entanto, ano após ano ela persistia, durando o tempo justo para preparar o fruto.

        Minha intenção não é a de estabelecer símbolos. Não alcançaremos nossa felicidade através de símbolos. Para tanto, seria necessário algo de muito mais sério. Quero dizer apenas que, às vezes, quando a carga da vida se torna demasiado pesada numa Europa ainda tão impregnada de seu infortúnio, procuro voltar-me para essas regiões deslumbrantes, onde tantas forças perduram ainda intactas. Conheço-as bem demais para ignorar que são terras eleitas, onde a contemplação e a coragem podem equilibrar-se. Meditar sobre seus exemplos ensina-me, então, que, se desejamos salvar o espírito, não devemos dar atenção às suas virtudes plangentes e sim exaltar sua força e seus encantos. O mundo está envenenado de infelicidades, parecendo comprazer-se nisso. Está todo ele entregue àquele mal que Nietzsche denominava de espírito lerdo. Não devemos dar nenhum apoio a tal sentimento. É inútil lamentar-se sobre o espírito, basta trabalhar para ele.

        Mas onde estão as virtudes conquistadoras do espírito? O próprio Nietzsche enumerou-as corno sendo as inimigas mortais daquele espírito lerdo. Para ele, tais virtudes são a força de caráter, o gosto, o “mundo”, a felicidade clássica, a dura nobreza da alma, a frugalidade fria do sábio. Essas virtudes, mais do que nunca, são necessárias; e cada qual pode escolher aquela que lhe convém. Diante da enormidade da parcela engajada, não esqueçamos em todo caso a força de caráter. Não me refiro àquela que se faz acompanhar, sobre as tribunas eleitorais, de sobrancelhas franzidas e de ameaças. Mas à que resiste a todos os ventos do mar pela virtude da brancura e da seiva. Porque esta é a que preparará o fruto no inverno do mundo.

 

                                         PROMETEU NOS INFERNOS

        Que significa Prometeu para o homem de nossos tempos? Poder-se-ia dizer, provavelmente, que esse revoltado contra os deuses é o modelo do homem contemporâneo e que o protesto lançado, há milhares de anos, nos desertos da Cita deságua hoje numa convulsão histórica sem igual. Contudo, ao mesmo tempo, algo nos faz pensar que aquele ser perseguido continua vivendo sua sina entre nós e que ainda estamos surdos ao tremendo grito da revolta humana cujo sinal solitário ele nos dá.

        Com efeito, o homem atual é aquele que, em massas gigantescas, sofre sobre a estreita superfície da terra, o homem privado de fogo e de alimento, para quem a liberdade não passa de mero luxo que pode esperar; e para esse homem o problema não pode residir tão-somente em sofrer um pouco mais, assim como para a liberdade e suas derradeiras testemunhas a questão não pode ser apenas a de desaparecer um pouco mais. Prometeu, por sua vez, amou os homens o bastante para ser capaz de dar-lhes, a um só tempo, o fogo e a liberdade, as técnicas e as artes. Hoje, a humanidade só necessita das técnicas e só a elas dá importância. Revolta-se de dentro de suas máquinas, considerando a arte e tudo o que ela pressupõe como um obstáculo e um estigma de servidão. O que caracteriza Prometeu, ao contrário, é que ele não pode separar a máquina da arte. Julga possível libertar, concomitantemente, os corpos e as almas. O homem atual acredita na necessidade de libertar o corpo em primeiro lugar, ainda que o espírito deva morrer provisoriamente. Mas será que o espírito pode morrer provisoriamente? Na realidade, se Prometeu retornasse, os homens de hoje fariam como os deuses de outrora: cravariam-no ao rochedo, vítima do mesmo humanismo do qual é o símbolo primeiro. As vozes inimigas que insultaram o vencido no passado seriam as mesmas que repercutem no limiar da tragédia de Esquilo: as da Força e da Violência.

        Será que estou cedendo ao tempo avaro, às árvores nuas, ao inverno do mundo? Mas é precisamente a nostalgia de luz que me dá razão: fala-me de um outro mundo, minha verdadeira pátria. Terá ela ainda sentido para alguns homens? No ano da guerra, tencionava refazer o périplo de Ulisses. Naquela época, mesmo um rapaz pobre podia aspirar ao projeto suntuoso de atravessar um mar inteiro para ir ao encontro da luz. Entretanto, acabei fazendo como muitos outros. Não embarquei. Assumi meu lugar na fila que marcava passo diante da porta aberta do inferno. Pouco a pouco fomos entrando. E, ao primeiro brado da inocência assassinada, a porta bateu com violência atrás de nós. Estávamos no inferno e dele jamais conseguimos escapar. Após seis longos anos, continuamos tentando uma saída. As visões cálidas das ilhas afortunadas rareavam cada vez

mais; e quando reapareciam, era somente na projeção de outros tantos longos anos que ainda teríamos de viver, sem ânimo e sem sol.

        Nesta Europa úmida e negra como seria possível receber sem um calafrio de remorso e de difícil cumplicidade o lamento do velho Chateaubriand a Ampère, que partia para a Grécia: “Não havereis de reencontrar nem uma folha das oliveiras nem um grão das uvas que vi na Ática. Tenho saudade até mesmo da relva do meu tempo. Faltou-me força para manter viva uma urze sequer”. Também nós, submersos, apesar de nosso sangue jovem, na terrível velhice deste último século, às vezes sentimos saudade da relva de todos os tempos, da folha de oliveira que já não iremos ver por ela mesma e das uvas da liberdade. O homem está em toda aparte, em toda a parte estão seus gritos, sua dor e suas ameaças. Entre tantas criaturas reunidas já não há mais lugar para os grilos. A história é uma terra estéril onde a urze não nasce. Contudo, o homem de hoje escolheu a história; e não podia nem devia dela desviar-se. Mas, em vez de utilizá-la em benefício próprio, consente, cada dia um pouco mais, em ser-lhe escravo. E então que o homem trai Prometeu, esse filho “de pensamentos ousados e de alma livre”. E então que retorna à miséria dos homens, que Prometeu desejou salvar. “Eles olhavam sem ver, ouviam sem escutar, semelhantes às figuras dos sonhos...”

        Sim, basta-nos uma noite na Provença, uma colina perfeita, um odor de sal, para perceber que tudo ainda está por fazer. Cabe a nós a tarefa de reinventar o fogo e de reinstaurar os ofícios, a fim de apaziguar a fome do corpo. A Ática, a liberdade e suas vindimas, o pão da alma ficarão para o futuro. Nesse caso, só nos resta lamentar intimamente: “Nada disso existirá jamais ou só existirá para outros”, e nos empenhamos a fundo para que esses outros, ao menos, não se vejam frustrados. Nós, que percebemos tudo isso com um sentimento de dor, tentando, entretanto, tudo aceitar com o coração isento de amargura, estaremos, pois, atrasados ou avançados demais? Teremos a força de fazer reviverem as urzes?

        A essa indagação crescente de nosso século, pode-se imaginar qual seria a resposta de Prometeu. Na verdade, ele já a pronunciou. “Prometo-vos a reforma e a reparação, ó mortais, se fordes suficientemente hábeis, suficientemente virtuosos e suficientemente fortes para realizá-las com vossas próprias mãos.” Então, e se é verdade que a salvação está em nossas mãos, minha resposta àquela pergunta seria afirmativa, por justificar-se na força madura e na coragem esclarecida cuja existência percebo sempre em certos homens que conheço. “Õ justiça, 6 minha mãe”, exclama Prometeu, “vês o que me fazem sofrer”. E Hermes escarnece o herói: “Espanta-me que, sendo divine, não tenhas previsto o suplício que sofres”. “Eu sabia”, responde o revel. Os homens a que me refiro são, também eles, filhos da justiça. Também eles sofrem a infelicidade de todos, tendo a exata noção de sua causa. Sabem perfeitamente que não existe justiça cega, que a história não tem olhos e que, portanto, é necessário rejeitar sua justiça, substituindo-a, na medida do possível, por uma noção concebida pelo espírito. E nesse momento que Prometeu torna a entrar em nosso século.

        Os mitos não têm vida por si mesmos. Aguardam que nós os encarnemos. Mesmo que um só homem no mundo responda ao seu apelo, é o bastante para nos oferecerem a seiva intacta. Nossa tarefa é a de preservar esse homem e de fazer com que seu sono não seja imortal, a fim de que a ressurreição se torne possível. Por vezes duvido de que nos seja dado salvar o homem de nossos tempos. Mas ainda é possível salvar os filhos desse homem, em seus corpos e em seu espírito. E possível oferecer-lhes as oportunidades da felicidade e da beleza, a um só tempo. Se devemos resignar-nos a viver sem a beleza e a liberdade que ela implica, o mito de Prometeu está entre aqueles que nos farão lembrar que toda mutilação do homem não pode ser senão provisória e que ninguém mostra nada do homem se não o apresenta por inteiro. Se ele tem fome de pão e de urzes e se é verdade que o pão é mais necessário, aprendamos então a preservar a lembrança das urzes. No coração mais sombrio da história, os homens de Prometeu, sem interromper seu penoso ofício, conservarão um olhar sobre a terra e sobre a relva incansável. O herói acorrentado, mesmo sob o raio e o trovão divinos, mantém inabalável sua fé no homem. Assim, ele é mais duro que sua rocha, mais paciente que seu abutre. Melhor do que a revolta contra os deuses, é essa longa obstinação que faz sentido para nós; e essa admirável vontade de não separar nem excluir nada que sempre reconciliou e reconciliará o coração dolorido dos homens e as primaveras do mundo.

 

                   PEQUENO GUIA PARA CIDADES SEM PASSADO

        A suavidade de Argel é manifestamente italiana. O resplendor cruel de Orã tem algo de espanhol. Encarapitada sobre um rochedo, no alto dos desfiladeiros do rio Rummel, Constantina relembra Toledo. Mas a Espanha e a Itália transbordam de recordações, de obras de arte e de ruínas exemplares. Toledo teve seu Greco e seu Barrês. As cidades às quais me refiro nesse momento são, ao contrário, cidades sem passado. Cidades, pois, sem qualquer atmosfera de amena negligência ou enternecimento. Durante as horas de tédio, que são as da sesta, a tristeza reinante é implacável e destituída de melancolia. Assim também, na luminosidade das manhãs ou na opulência natural das noites, não há doçura na alegria. Cidades como essas nada oferecem à reflexão, entregando-se por completo ao arrebatamento. Não se prestam nem à sabedoria nem aos matizes do gosto. Um Barrès e aqueles que se lhe assemelham ali seriam esmagados.

        Os viajantes da paixão (a dos outros), as inteligências demasiado nervosas, os estetas e os recém-casados nada terão a lucrar durante esse passeio argelino. Assim sendo, excetuando-se uma vocação indiscutível, não seríamos capazes de recomendar a ninguém que se retirasse a viver em qualquer desses lugares para sempre. Algumas vezes, em Paris, quando amigos me fazem perguntas sobre a Argélia, tenho vontade de responder, gritando-lhes: “Nem pensem em ir lá!” Tal resposta, mesmo brincalhona, teria certa dose de verdade. Porque percebo claramente o que esperam e que jamais conseguirão encontrar. Ao mesmo tempo, conheço bem os encantos e a sorrateira influência que essa terra exerce, a maneira insinuante com que retém os que ali se demoram, imobilizando-os, privando-os a princípio da capacidade de indagação, para logo adormecê-los, a fim de que terminem anulados pelo cotidiano. A revelação dessa luz tão resplandecente, que se torna negra e branca, tem qualquer coisa de sufocante, no início. Abandonamo-nos a ela, deixando-nos prender. Mais tarde, compreendemos que esse esplendor demasiadamente longo nada oferece à alma, sendo apenas um gozo desmesurado. Desejaríamos, então, retornar às coisas do espírito. Contudo, os homens dessa terra aparentemente têm mais coração do que espírito, nisso residindo sua força. Podem tornar-se amigos (e amigos excelentes!), mas jamais serão confidentes de ninguém. Talvez esta seja uma peculiaridade que alguns julguem perigosa aqui em Paris, cidade onde se faz tamanho consumo da alma e onde a água das confidências escoa furtivamente, interminavelmente, por entre fontes, estátuas e jardins.

        Ë com a Espanha que essa terra mais se assemelha. Mas a Espanha sem a tradição seria apenas um belo deserto. Salvo os que nele tivessem nascido pelos acasos do destino, existe apenas uma raça de homens capaz de pensar em retirar-se num deserto para sempre. Tendo nascido nesse deserto, não posso pretender de modo algum discorrer sobre ele como o faria um simples visitante. Poderia alguém encontrar as palavras exatas para enumerar os encantos de urna mulher muito amada? Não, porque a amamos por atacado, se me permitem a expressão, com uma ou duas peculiaridades precisas que nos enternecem, que podem ser, por exemplo, um muxoxo de nossa especial predileção ou um jeito de sacudir a cabeça. Assim, também entre a Argélia e eu existe uma antiga ligação que jamais terminará e que me impede de ser de todo imparcial naquilo que lhe concerne. Simplesmente, à força de aplicação, consegue-se chegar a distinguir, de uma forma de certo modo abstrata, o detalhe daquilo que se ama em que se ama. Esse é o exercício escolar que posso tentar aqui, no que diz respeito à Argélia.

        Para começar, a juventude argelina é bela. Os árabes, em primeiro lugar, naturalmente, e depois os outros. Os franceses da Argélia são uma raça bastarda, feita de misturas imprevistas. No fim de contas, espanhóis e alsacianos, italianos, malteses, judeus e gregos ali se encontraram todos. Esses cruzamentos brutais tiveram, como na América, felizes resultados. Quando passearem por Argel, observem os punhos das mulheres e dos rapazes e, em seguida, procurem lembrar-se dos que se vêem no metrô parisiense.

        O viajante ainda jovem observará também que as mulheres daqui são lindas. O melhor lugar para verificar isso é o terraço do Café das Faculdades, na rua Michelet, em Argel, com a condição de ali deixar-se ficar algum tempo, numa manhã de domingo, em abril. Multidões de moças, calçando sandálias, vestidas de tecidos leves e cores vivas, sobem e descem a rua. Pode-se admirá-las sem qualquer disfarce: elas vêm para ser admiradas. Em Orã, o Bar Cintra, no bulevar Gailieni, também é bom observatório. Em Constantina, há sempre a possibilidade de um passeio em volta do coreto. Estando, porém, o mar a centenas de quilômetros, tem-se a sensação de que talvez falte qualquer coisa às pessoas que ali encontramos. Em geral, justamente por causa dessa disposição geográfica, Constantina não oferece tantas amenidades e, por isso mesmo, a qualidade do tédio é mais aguda.

        Se o viajante chega no verão, a primeira coisa a fazer, evidentemente, é ir passear pelas praias que contornam as cidades. Então verá as mesmas moças e rapazes, mais deslumbrantes ainda, por estarem menos vestidos. Graças ao sol, o olhar desses jovens adquire uma expressão sonolenta, própria dos grandes animais. Sob esses aspectos, as praias de Orã são as mais belas, porque a natureza e as mulheres são mais selvagens.

        Quanto ao lado pitoresco, Argel apresenta uma cidade árabe; Orã, uma aldeia negra e um bairro espanhol; Constantina, um bairro judeu. Argel possui um extenso colar de bulevares que dão sobre o mar, ao longo dos quais não se pode deixar de passear à noite. Orã tem poucas árvores, mas possui as mais belas pedras do mundo. Em Constantina há uma ponte suspensa onde todos se fazem fotografar. Nos dias de vento muito forte, a ponte balança por cima das profundas gargantas do Rummel e tem-se a sensação de perigo.

 

        Recomendo ao viajante de sensibilidade que, se for a Argel, não deixe de ir beber licor de anis sob as abóbadas do porto; de ir comer, de manhã cedo, na peixaria, o peixe fresquinho, acabado de apanhar e grelhado nos fogareiros a carvão; de ir ouvir música árabe num pequeno bar na rua da Lira cujo nome esqueci; de ir sentar-se no chão, às seis da tarde, ao pé da estátua do duque de Orléans, .na praça do Governo (não por amor ao duque, mas porque por ali passa muita gente e se está bem); de ir almoçar no restaurante Padovani, que é uma espécie de dancing sobre pilotis, à beira-mar, onde a vida é sempre fácil; de ir visitar os cemitérios árabes, em primeiro lugar, a fim de reencontrar ali a paz e a beleza, e, depois, para poder avaliar, em seu verdadeiro sentido, as ignóbeis cidades onde abandonamos nossos mortos; de ir fumar um cigarro na rua dos Açougueiros, na Casbá, no meio de ratos, fígados, membranas e pulmões sangrentos que escorrem por toda parte (o cigarro é necessário, pois essa idade-média tem odor violento).

        De resto, é preciso saber falar mal de Argel, quando se estiver em Orã (insistir na superioridade comercial do porto de Orã), zombar de Orã, quando se estiver em Argel (aceitando sem reservas a idéia de que os oranenses “não sabem viver”), e, em todas as ocasiões, reconhecer humildemente a superioridade da Argélia sobre a França metropolitana. Uma vez feitas essas concessões, teremos oportunidade de perceber a superioridade real do argelino em relação ao francês, isto é, de conhecer sua generosidade sem limites e sua natural hospitalidade.

        A essa altura, talvez seja o momento de eu deixar de ironias. Afinal de contas, a melhor maneira de falarmos daquilo que amamos é fazê-lo um pouco à ligeira. No que se refere à Argélia, tenho sempre receio de apoiar-me na corda inferior que lhe corresponde em mim e cujo canto cego e grave tão bem conheço. Posso, porém, dizer ao menos que ela é a minha verdadeira pátria e que, esteja eu onde estiver, reconheço seus filhos, meus irmãos, graças a esse riso de amizade com que me abro diante deles. Sim, tudo o que amo nas cidades argelinas é algo inseparável dos homens que as povoam. Eis o motivo que me leva a preferir estar aqui, nessa hora da tarde em que os escritórios e as casas despejam nas ruas, ainda não iluminadas, uma multidão tagarelante que acaba por escoar-se sobre os bulevares em frente ao mar e, ali chegando, começa a calar-se, à medida que a noite vem e que as luzes do céu, os faróis da baía e as lâmpadas da cidade se reúnem pouco a pouco, na mesma palpitação indistinta. Assim, todo um povo se recolhe à beira d’água, milhares de solidões brotam da multidão. Nesse momento, começam as grandes noites da África, o exílio real, a exaltação desesperada que aguarda o viajante solitário...

        Não, decididamente aqueles que tiverem o espírito fraco e a alma de um bicho pobre nem pensem em ir lá! Mas, para aqueles que conhecem os dilaceramentos do sim e do não, do meio-dia e das meias-noites, da rebelião e do amor, para aqueles, enfim, que gostam das fogueiras diante do mar, existe nesses lugares uma flama que os espera.

                                     O EXILIO DE HELENA

        O Mediterrâneo tem seu trágico solar, que não é o das brumas. Em certos fins de tarde, a noite cai sobre a curvatura perfeita de uma pequena baía, e das águas silenciosas eleva-se então uma angustiada plenitude. Nesses lugares, compreende-se que, se os gregos tocaram no desespero, foi sempre através da beleza e de certa qualidade opressiva que ela possui. Num clima de dourada infelicidade, culmina a tragédia. Nosso tempo, ao contrário, tem alimentado seu desespero na feiúra e nas convulsões. Por isso, a Europa seria ignóbil, se a dor o pudesse ser.

        Exilamos a beleza, os gregos lutaram por ela. Primeira diferença, mas que vem de longe, O pensamento grego sempre se entrincheirou na idéia de limite. Nada desenvolveu até o fim; nem o sagrado, nem a razão, porque nada negou, nem o sagrado, nem a razão. Seu papel foi o de tudo representar, procurando equilibrar a sombra com a luz. Nossa Europa, ao contrário, lançada à conquista da totalidade, é filha da imoderação. Nega a beleza, assim como nega tudo aquilo que não exalta. E, se bem que diversamente, exalta apenas uma única coisa: o império futuro da razão. Recua, em sua loucura, ultrapassando os limites eternos e, no mesmo instante, as Fúrias obscuras se abatem sobre ela, destroçando-a. Nêmesis vigia, deusa da justa medida, nome da vingança. Todos aqueles que ultrapassam o limite são por ela punidos impiedosamente.

        Os gregos, que durante séculos se interrogaram sobre o sentido daquilo que é justo, nada poderiam compreender do nosso ‘conceito de justiça. A eqüidade, para eles, pressupunha um limite, ao passo que todo o nosso continente se convulsiona à procura da justiça que deseja total. Na aurora do pensamento grego, já entrava nas considerações de Heráclito a idéia de que a justiça estabelece limites até mesmo ao próprio universo físico. “O sol não ultrapassará seus limites, pois, se o fizer, as Fúrias que montam guarda à justiça saberão descobri-lo”. Nós, que exorbitamos o universo e o espírito, achamos graça dessa ameaça. Acendemos num céu inebriado todos os sóis que queremos. Mas isso não impede que os limites existam e que nós o saibamos. Em nossos mais extremos estados de insensatez, sonhamos com um equilíbrio que deixamos para trás e que, ingenuamente, acreditamos poder reencontrar um dia, ao cabo de nossos erros. Infantil presunção que justifica o fato de serem povos-crianças, herdeiros de nossos desatinos, os que hoje conduzem nossa história.

        Um fragmento atribuído ao próprio Heráclito enuncia simplesmente: “presunção, regressão do progresso”. E muitos séculos depois do efesiano, Sócrates, ante a ameaça de uma condenação à morte, não reconhecia em si mesmo qualquer outra superioridade senão esta: não acreditava saber aquilo que ignorava. As vidas e os pensamentos mais exemplares

daqueles séculos realizavam-se através de uma orgulhosa confissão de ignorância. Ao esquecer isso, esquecemos nossa virilidade. Demos preferência ao poder, que arremeda a grandeza, a começar por Alexandre, e depois com os conquistadores romanos, que nossos autores de manuais, em virtude de uma incomparável baixeza de alma, nos ensinam a admirar. Por nossa vez, também fizemos conquistas, deslocamos limites, dominamos o céu e a terra. Nossa razão fez o vazio. Enfim sós, aperfeiçoamos nosso império sobre um deserto. Que imaginação teríamos, portanto, para esse equilíbrio superior em que a natureza contrabalançava a história, a beleza, o bem, e que levava a música dos nomes até mesmo para a tragédia do sangue? Voltamos as costas à natureza, temos vergonha do belo. Nossas miseráveis tragédias arrastam consigo um cheiro de repartição pública e o sangue que delas escorre tem cor de tinta gordurenta.

        Eis porque hoje em dia é indecente proclamar que somos filhos da Grécia. Ou, então, somos seus filhos renegados. Ao colocar a história no trono de Deus, caminhamos em direção à teocracia, tal como aqueles que os gregos denominavam bárbaros e contra os quais combateram até a morte nas águas de Salamina. Se quisermos apreender a fundo a diferença existente entre nós e os antigos gregos, teremos de interpelar o único de nossos filósofos que é o verdadeiro rival de Platão. “Somente a cidade moderna”, atreve-se a escrever Hegel, “oferece ao espírito o terreno propício para que ele tome consciência de si mesmo”. Vivemos, pois, a era das grandes cidades. Deliberadamente o mundo foi amputado daquilo que constitui sua permanência: a natureza, o mar, a colina, a meditação dos entardeceres. A consciência só existe nas ruas porque só nas ruas a história existe, segundo o que está decretado. Conseqüentemente, portanto, nossas mais significativas obras são um testemunho dessa mesma parcialidade. Em vão buscamos as paisagens na grande literatura européia posterior a Dostoievski. A história não explica nem o universo natural que havia antes dela, nem a beleza que lhe está por cima. Assim, sua escolha foi a de ignorar ambas as coisas. Ao passo que Platão continha tudo, o disparate, a razão e o mito, nossos filósofos nada contêm a não ser o disparate ou a razão, porque fecharam os olhos para o resto. A toupeira medita.

        Foi o cristianismo que começou a substituir a contemplação do mundo pela tragédia da alma. Pelo menos, porém, referia-se a uma natureza espiritual e, através dela, mantinha certa constância. Deus morto, nada resta senão a história e a autoridade. Desde há muito todo o esforço de nossos filósofos tem tido como objetivo único o de substituir a noção de natureza humana pela de situação e, igualmente, a harmonia antiga pelo arrebatamento desordenado do acaso ou o movimento impiedoso da razão. Ao passo que os gregos impunham à vontade os limites da razão, pusemos como término desse arrebatamento da vontade o próprio cerne da razão, que, por isso, se tornou mortífera. Para os gregos, os valores eram preexistentes a qualquer ato e este, por sua vez, tinha limites definidos com absoluta precisão por esses mesmos valores. Para a filosofia moderna, a ação antecede os valores. Estes, a princípio, não existem como tal, tornando-se valores depois; e só viremos a conhecê-los por inteiro ao concluir-se a história. Com os valores, o limite desaparece; e como as concepções diferem sobre o significado que poderão ter, como não existe luta alguma cuja tendência não seja, sem o freio desses mesmos valores, a de prolongar-se indefinidamente, os messianismos de hoje se afrontam e seus clamores se misturam no embate dos impérios. A imoderação é um incêndio, segundo Heráclito. O incêndio progride, Nietzsche está ultrapassado. Já não é mais a golpes de martelo que a Europa filosofa, mas a tiros de canhão.

        No entanto, a natureza sempre esteve presente. Contrapõe a serenidade de seus céus e suas razões à loucura dos homens. Até o momento em que o próprio átomo também se incendeie e que a história chegue ao fim, no triunfo da razão e na agonia da espécie. Mas os gregos jamais disseram que o limite não podia ser transposto. Disseram que ele existia e que aquele que ousasse ultrapassá-lo seria impiedosamente golpeado. Nada existe na história atual que possa contradizê-los.

        Tanto o espírito histórico quanto o artista desejam refazer o mundo. Entretanto, o artista, por uma obrigação de sua natureza, conhece os próprios limites, o mesmo não acontecendo com o espírito histórico. Por isso, o fim deste último é a tirania, ao passo que a paixão do primeiro é a liberdade. Todos aqueles que hoje lutam pela liberdade, combatem, em última análise, pela beleza. Bem entendido, não se trata de defender a beleza por si mesma. A beleza não pode prescindir do homem; e não conseguiremos dar ao nosso tempo grandeza e serenidade, a menos que o acompanhemos em sua infelicidade. Nunca mais nos sentiríamos solitários. No entanto, não é menos verdadeiro dizer que o homem não pode prescindir da beleza; e é isso que nossa época pretende querer ignorar. Obstina-se no intuito de alcançar o absoluto e o império, querendo transfigurar o mundo antes de esgotá-lo, pô-lo em ordem antes de compreendê-lo. Digam o que disserem, é esta uma época que deserta do mundo. Ulisses pôde escolher, junto a Calipso, entre a imortalidade e a terra natal. Escolheu a pátria e, com ela, a morte. Grandeza tão simples parece-nos estranha hoje em dia. Outros dirão que o que nos falta é humildade. Porém essa palavra, em suma, é ambígua. Semelhantes àqueles bufões de Dostoievski que se vangloriam de tudo, sobem às estrelas e terminam expondo sua vergonha na primeira praça pública, falta-nos apenas a nobreza de alma do homem que é a fidelidade a seus limites, o lúcido amor de sua condição.

        “Odeio minha época”, escrevia Saint-Exupéry, antes de sua morte, por motivos não muito distantes daqueles que aqui mencionei anteriormente. No entanto, esse grito, por mais perturbador que nos possa parecer justamente porque partiu dele, que tanto amou os homens em tudo aquilo que possuem de admirável, jamais nos levará a qualquer sentimento de responsabilidade. Que tentação, no entanto, em certos momentos, a de dar as costas a este mundo sombrio e árido! Mas esta é a nossa época e não podemos viver odiando-nos uns aos outros. Se ela decaiu tanto, não foi apenas pelo excesso de suas virtudes, mas também pela grandeza de seus defeitos. Lutaremos por aquela, dentre suas virtudes, que vem de longe. Qual virtude? Os cavalos de Pátroclo choram a morte de seu dono na batalha. Tudo está perdido. Mas o combate recomeça com Aquiles e a vitória é obtida no final, porque a amizade acabara de ser assassinada: a amizade é uma virtude.

A ignorância reconhecida, a recusa do fanatismo, os limites do mundo e do homem, o rosto amado, a beleza enfim, eis o campo onde nos reuniremos aos gregos. De certa maneira, o sentido da história de amanhã não é aquele que pensamos. Encontra-se na luta entre a criação e a inquisição. Apesar do preço que custarão aos artistas suas mãos vazias, pode-se aguardar sua vitória. Uma vez mais, a filosofia das trevas se dissipará por cima do mar deslumbrante. O pensamento do meio-dia, a guerra de Tróia se trava longe dos campos de batalha! Ainda desta vez, os muros terríveis da cidade moderna ruirão para libertar, “alma tranqüila como a serenidade dos mares”, a beleza de Helena.

                                          O ENIGMA

        Vagas de sol, despencando-se do alto do céu, ricocheteiam brutalmente sobre o campo circundante. Tudo se cala perante esse estrondo; e o Lubéron, lá embaixo, reduz-se a imensa massa de silêncio, que ouço sem cessar. Fico atento, alguém corre em direção a mim na distância, minha alegria cresce, a mesma de antigamente. Uma vez mais um enigma abençoado ajuda-me a compreender o sentido de todas as coisas.

        Em que reside o absurdo do mundo? Nesse resplendor ou na lembrança de sua ausência? Com tanto sol armazenado na memória, como fui capaz de apostar no absurdo? Isso provoca o espanto de algumas pessoas que me rodeiam; também eu sinto-me surpreso em certos momentos. Poderia responder-lhes (e responder a mim mesmo) que foi justamente o sol que me levou a assumir tal atitude; e que sua luz, à força de densidade, coagula o universo e suas configurações numa consistência de obscuro fascínio. Contudo, esse é um tema que se pode enunciar de maneira diferente e, por isso, diante da limpidez branca e negra que, em minha opinião, tem sido sempre a da verdade, gostaria de explicar-me com singeleza sobre esse absurdo que conheço bem demais para consentir que se disserte a seu respeito sem as devidas gradações. Em última análise, é matéria que nos fará retornar ao tema do sol.

        Homem algum consegue exprimir o que é. Mas pode conseguir dizer o que não é. Àquele que ainda indaga e busca, desejamos que chegue a uma conclusão. Milhares de vozes já lhe anunciam o que descobriu e, no entanto, ele sabe que ainda não acertou. Deve-se, então, continuar buscando e fazer caso omisso dos comentários? Certamente. Mas, de vez em quando, é mister defender-se. Quanto a mim, não sei o que procuro, menciono a questão com prudência, desdigo-me, repito-me, avanço e recuo. Obrigam-me, ainda assim, a dar-lhe nomes determinados ou a defini-la de uma vez por todas. Sempre que isso ocorre, irrito-me; aquilo que se define já não estará perdido? Eis, ao menos, o que posso tentar exprimir.

        Todo homem, se é que devo acreditar no que opina um de meus amigos, tem dois temperamentos: o verdadeiro e aquele que lhe é atribuído por sua mulher. Substituamos mulher por sociedade e compreenderemos que uma fórmula, quando associada por um escritor ao contexto completo de uma sensibilidade, pode ser isolada pelo comentário que dela se fizer e apresentada a seu autor cada vez que ele sinta vontade de falar noutro assunto. A palavra é como o ato: “Foi você quem deu à luz esta criança?” “Sim.” “Então é seu filho.” “Não é tão simples assim, não é tão simples assim!” Do mesmo modo, Nerval, numa noite sórdida, ter-se-ia enforcado duplamente; a primeira vez, por seus próprios motivos e por sentir-se presa do infortúnio; a segunda, por sua lenda, que a alguns ajuda a viver. Ninguém pode escrever sobre a verdadeira infelicidade, nem sobre certas felicidades; pelo menos, eu não tentaria fazer aqui nem uma coisa nem outra. Quanto à lenda, entretanto, é possível descrevê-la e imaginar, por um instante que seja, que conseguimos dissipá-la.

        Um escritor escreve, na maioria dos casos, para ser lido (devemos admirar aqueles que afirmam o contrário, porém jamais levá-los a sério). Mas aqui e agora, cada vez mais, o escritor escreve no intuito de obter essa derradeira consagração que consiste em não ser lido. Com efeito, a partir do momento em que consegue fornecer matéria para um artigo pitoresco que saia publicado em nossa imprensa de larga tiragem, tem todas as possibilidades de tornar-se conhecido por enorme quantidade de pessoas que jamais o lerão porque lhes bastará conhecê-lo de nome e ler o que outros escreveram sobre ele. A partir desse momento, portanto, esse escritor será conhecido (e esquecido) não por aquilo que vale, mas através da imagem que um jornalista apressado terá criado sobre sua obra. Portanto, para criar um nome nos meios literários já não é indispensável escrever livros. E suficiente passar como autor de um livro qualquer que tenha sido comentado pela imprensa vespertina, sobre o qual se poderá dormir daí por diante.

        Certamente, essa reputação, grande ou pequena, acabará por ser usurpada. Mas que fazer? Admitamos antes de mais nada que tal incômodo pode também ser benéfico. Os médicos sabem que certas doenças são desejáveis: à sua maneira compensam uma desordem funcional que, sem elas, se traduziria em desequilíbrios ainda mais sérios. Existem, pois, benfazejas constipações e artritismos providenciais. O dilúvio de palavras e de julgamentos apressados que afoga hoje em dia toda atividade pública num oceano de frivolidade, ao menos serve ao escritor francês como lição de modéstia, cuja necessidade ele sente, incessantemente, numa nação que, por outra parte, dá à profissão das letras importância desproporcionada. Ver nosso próprio nome em dois ou três jornais que conhecemos é provação tão dura que forçosamente deve implicar alguns benefícios para a alma. Louvada seja, pois, a sociedade que a um preço tão barato nos ensina todos os dias, graças justamente às suas homenagens, que as grandezas por ela saudadas nada significam. Tanto maior a força com que explode seu alarido, tanto mais depressa se extingue. Faz evocar aquela fogueira de estopas que Alexandre VI mandava acender muitas vezes diante de si, a fim de nunca esquecer que toda glória do mundo se evola, como a fumaça.

        Mas deixemos de parte a ironia. Será bastante dizer, para nosso objetivo, que o artista deve resignar-se com bom humor a permitir que se espalhe pelas salas de espera dos dentistas e dos cabeleireiros uma imagem de si próprio da qual sabe ser indigno. Assim, conheci certo escritor da moda de quem se dizia presidir todas as noites bacanais suspeitas, em que as ninfas participantes trajavam, como vestimenta única, seus próprios cabelos, e os faunos, unhas tétricas de sujeira. Seria natural nossa estranheza por não conseguirmos imaginar quando e como esse senhor encontraria tempo para redigir uma obra que ocupa várias estantes de qualquer biblioteca. Na realidade, o escritor a que me refiro, tal como vários de seus confrades, costuma dormir a noite inteira, escrever diariamente durante longas horas à sua mesa de trabalho e, além disso, só bebe água mineral, para poupar o fígado. Nada disso impede, porém, que o francês médio, cuja sobriedade saariana e duvidoso asseio sobejamente conhecemos, se indigne com a mera suposição de que um de nossos escritores ensine que se faz mister embriagar-se e não lavar-se em hipótese alguma. Sobram casos parecidos. Pessoalmente, aliás, posso fornecer excelente receita para obter a baixo custo fama de austeridade. Com efeito, carrego o peso dessa reputação que causa imensa graça a meus amigos (e que em mim, ao contrário, provoca um natural enrubescimento, pois bem sei o quanto a usurpo). Voltando à receita, bastará, por exemplo, declinar a honra de jantar com o diretor de um jornal que não seja pessoa de nossa particular estima. A pura e simples decência costuma ser inimaginável sem implicações de alguma tortuosa enfermidade da alma. Além disso, ninguém jamais chegará ao ponto de supor que, se o convite do tal diretor foi recusado, isso pode ter ocorrido pela simples razão de não se gostar dele e, também, porque a coisa que mais se receia no mundo é o tédio — e que pode haver de mais enfadonho do que um jantar parisiense?

        E preciso, portanto, resignar-se. Mas, em certas ocasiões, pode-se tentar retificar o tiro, repetindo, então, que não conseguiríamos ser sempre pintores do absurdo e que ninguém pode crer na autenticidade de uma literatura desesperada. Bem entendido, sempre é possível escrever ou ter escrito um ensaio sobre a noção de absurdo. Mas, afinal de contas, também é possível escrever a respeito do incesto sem que para isto tenha sido indispensável ao escritor precipitar-se sobre sua desditosa irmã; aliás, jamais li em parte alguma que Sófocles tivesse suprimido o pai ou desonrado a mãe. A suposição de que inevitavelmente todo escritor escreve sobre si próprio e retrata a si mesmo em seus livros é uma dessas puerilidades que nos foi legada pelo Romantismo. Não está de todo excluída, ao contrário, a possibilidade de que um artista se interesse em primeiro lugar pelos outros, ou pela época em que vive, ou ainda por certos mitos que lhe são familiares. Mesmo quando se coloca em cena, pode-se considerar como fato excepcional que o artista fale de sua pessoa como é na realidade. As obras de um homem, muitas vezes, narram a história de suas nostalgias ou de suas tentações, quase nunca, porém, sua própria história, principalmente quando os livros pretendem ser auto-biográficos.

        Homem algum jamais ousou descrever-se tal como é.

        Na medida em que isso fosse possível, eu teria gostado de ser, ao invés do que sou, um escritor objetivo. Denomino objetivo o autor que se propõe temas, sem jamais colocar-se a si próprio como assunto da obra. Mas a fúria contemporânea, no sentido de confundir a personalidade do escritor com o tema por ele escolhido, não saberia admitir essa relativa liberdade do autor. E assim nos tornamos profetas do absurdo. No entanto, que tenho feito até hoje senão argumentar sobre uma idéia que já encontrei pelas ruas de meu tempo? Que alimentei essa idéia (e que uma parte de meu ser esteja continuamente a desenvolvê-la), assim como toda a minha geração, é ocioso dizê-lo. Simplesmente tomei diante do tema a necessária distância para tratá-lo e ser capaz de chegar a uma conclusão sobre sua lógica. Tudo o que escrevi a partir desse momento o demonstra suficientemente. Mas é cômodo explorar, em primeiro lugar, a fórmula, deixando para depois a nuança. Escolheu-se a fórmula: eis-me inevitavelmente absurdo.

        Seria talvez inútil ainda dizer que, no âmbito da experiência que me interessava e sobre a qual cheguei a escrever, o absurdo pode ser considerado somente como um ponto de partida, mesmo quando sua lembrança e sua emoção acompanham pesquisas ulteriores. Assim também, guardadas cuidadosamente todas as devidas proporções, a dúvida cartesiana, que é metódica, não basta Pará transformar Descartes num cético. Quando muito, o absurdo limita-se à idéia de que nada tem sentido e de que, portanto, se faz mister desesperar de tudo. Sem procurar alcançar o cerne da questão, poder-se-ia observar, em todo caso, que assim como não existe materialismo absoluto — porquanto, para que essa palavra se forme, é preciso que se comece dizendo existir algo no mundo que transcende a matéria —, também não pode haver niilismo total. A partir do momento em que se diz que tudo é absurdo, está-se exprimindo uma idéia que tem sentido. Mas quando recusamos ao mundo qualquer espécie de significado, retrocedemos à supressão de todo julgamento de valor. Mas viver ou, por exemplo, alimentar-se são duas coisas que implicam julgamento de valor. Escolhemos a sobrevivência a partir do instante em que não nos deixamos morrer; portanto, reconhecemos à vicia um valor pelo menos relativo. Que significa, afinal, uma literatura desesperada? O desespero é silencioso. O próprio silêncio, em última análise, guarda um sentido quando os olhos falam. O verdadeiro desespero é agonia, túmulo ou abismo. Se o desespero fala, raciocina e, sobretudo, escreve, logo um irmão nos dá amparo, e a árvore está justificada, e nasce o amor. Em tais termos, uma literatura desesperada é uma contradição.

        Indubitavelmente meu caso não é o daqueles que possuem certa espécie de otimismo. Cresci, assim como todos os meus contemporâneos, ao som dos tambores da primeira guerra; e em nossa história, desde então, jamais deixaram de estar presentes o homicídio, a injustiça ou a violência. Contudo, quando se encontra o verdadeiro pessimismo, este consiste em levar ainda mais longe tanta crueldade e tanta infâmia. No que me diz respeito, nunca deixei de lutar contra essa desonra e jamais odiei senão os homens cruéis. Na fase mais negra de nosso niilismo, sempre busquei tão-somente razões que nos levassem a ultrapassar esse niilismo. Aliás, não apenas por virtude, tampouco por uma rara elevação da alma, mas por fidelidade instintiva àquela luz onde nasci e onde, há milhares de anos, os homens têm aprendido a saudar a vida, mesmo no sofrimento. Esquilo muitas vezes nos faz desesperar; no entanto, outras vezes, seu resplendor nos reanima. No centro de seu universo, não é uma incongruência infecunda o que encontramos e sim o enigma, isto é, um sentido que deciframos mal, porque nos ofusca. Assim também, aos indignos filhos da Grécia, embora obstinadamente fiéis a ela e que ainda sobrevivem, neste século infecundo, o abrasamento de nossa história pode parecer insuportável; contudo, eles o suportam, fibrado através da planície e das colinas.

        Depois disso, a fogueira de estopas pode arder; que importa aquilo que pareçamos e o que usurpamos? O que somos, o que temos de ser, é suficiente para preencher nossas vidas e ocupar nosso esforço. Paris é uma admirável caverna cujos habitantes, ao verem suas próprias sombras se agitarem sobre a parede do fundo, consideram-nas como a realidade única. Assim também no que concerne à estranha e fugaz celebridade que esta cidade concede. Entretanto, quando longe de Paris, aprendemos que existe uma luz por trás de nós, que é necessário nos voltarmos, abandonando nossos vínculos, para encará-la de frente, e que nossa tarefa, antes de morrer, é a de procurar, por entre todas as palavras possíveis, a correta denominação dessa luz. Cada artista, indubitavelmente, vive em busca de uma verdade que seja a sua. Se possuir autêntico talento, cada uma de suas obras o aproximará ou, ao menos, o fará gravitar sempre mais perto desse centro, sol dissimulado, onde tudo deverá vir queimar-se um dia. Se for medíocre, porém, cada uma de suas obras o afastará e, então, o centro se dispersará por toda parte, desfeita a luz. Mas, na busca obstinada de um artista, os únicos que lhe poderão valer serão aqueles que o amam, e também aqueles que, amando ou criando por sua vez, encontram nessa paixão a medida de toda paixão e, por isso mesmo, sabem julgar. –

        Sim, todo esse tumulto..., quando a paz seria finalmente, porque desejam compreendê-lo. No centro amar e criar em silêncio! Para isso, entretanto, é de nossa obra, por mais negra que seja, resplandece preciso que tenhamos paciência. Espera-se ainda um um sol inesgotável, o mesmo que hoje lança seu momento e, depois, o sol sela nossas bocas

 

                                                REGRESSO A TIPASA

        Há cinco dias, uma chuva sem trégua caía sobre Argel, terminando por molhar até o próprio mar. Do alto de um céu que parecia inesgotável, aguaceiros incessantes, viscosos de tanta espessura, desabavam sobre o golfo. Cinzento e flácido como esponja enorme, o mar ia-se intumescendo na baía sem contornos. Entretanto, a superfície das águas parecia quase imóvel sob a chuva constante. Apenas de longe em longe um imperceptível e amplo movimento fazia alçar-se por cima do mar um vapor turvo, que vinha até o porto, toldando e envolvendo as avenidas molhadas. De Argel, com a umidade a emanar de todas as paredes brancas, também exalava-se outra espécie de vapor aqüoso que ia ao encontro do primeiro. Então, qualquer que fosse o lado para onde se virasse, tinha-se a sensação de respirar água e de que se podia beber o próprio ar.

        Diante do mar afogado, caminhava e esperava nessa Argel que continuava sendo para mim a cidade dos verões. Viera, fugindo da tristeza européia, com o inverno a refletir-se em todos os rostos. No entanto, a cidade dos verões também se esvaziara de seus costumeiros risos e, em troca, oferecia-me dorsos recurvados e reluzentes de chuva. À noite, nos bares violentamente iluminados, onde me ia refugiar, lia minha idade nas fisionomias que reconhecia, sem conseguir, porém, associar os nomes aos seus donos. Lembrava-me somente de que haviam sido moços quando eu também o fora, e já não o eram.

        Apesar de tudo, obstinava-me naquela espera, sem saber exatamente o que estava aguardando, a não ser que fosse talvez o momento de rever Tipasa. Não resta a menor dúvida de que é loucura imensa, quase sempre punida, regressar aos lugares onde se passou a juventude, no desejo de reviver aos quarenta anos de idade tudo aquilo que se amou ou se gozou intensamente aos vinte. Noutra ocasião, já me haviam prevenido contra essa loucura. Da primeira vez, voltara a Tipasa pouco tempo depois dos anos da guerra que, no meu caso, se tinham tornado o marco final da juventude. Voltara, talvez na esperança de reencontrar uma liberdade cuja lembrança me acompanhava sempre. Pois nesse lugar, efetivamente, há mais de vinte anos, passara manhãs inteiras a vagar entre as ruínas, aspirando o perfume dos absintos, recostando-me ao calor das pedras, descobrindo as rosas pequeninas, que tão depressa se despetalavam, únicas sobreviventes da primavera. E só ao meio-dia, hora em que até as cigarras se calavam fatigadas, afastava-me dali apressadamente ante a ávida rutilância de uma luz que tudo devorava. Havia noites em que dormia com os olhos abertos sob um céu rebentando de estrelas. Nesses momentos, sentia-me vivo. Quinze anos depois, voltei para reencontrar minhas ruínas, a poucos passos das primeiras vagas; segui as ruas da cidade esquecida; atravessei os campos cobertos de árvores amargas e, sobre as encostas que dominam a baía, pude ainda acariciar as colunas cor de trigo. Agora, porém, as ruínas estavam cercadas de arames farpados; para transpô-los, precisava estar munido de um bilhete carimbado com autorização especial. Também estavam proibidos (ao que tudo indica, por motivos aprovados pela moral) os passeios noturnos pelo recinto; durante o dia, encontrava-se sempre, montando guarda, um vigia juramentado. Naquela manhã, certamente por mero acaso, chovia sobre toda a extensão das ruínas.

        Desorientado, caminhando pelo campo ermo e úmido, tentava reencontrar ao menos a força, fiel até aquele preciso instante, que sempre me ajudara a aceitar as coisas como são, quando reconheço não ser capaz de mudá-las. Na realidade, entretanto, era-me impossível refazer o curso de um tempo já passado, restituir ao mundo o rosto que eu amara e que desaparecera, num certo dia, muitos anos antes. Em 2 de setembro de 1939, efetivamente, não partira para a Grécia, que era o que deveria ter feito. A guerra de desforra chegara até nós e, mais tarde, estendera-se pela própria Grécia. Essa distância, esses anos que se interpunham entre as ruínas cálidas e os arames farpados, foram os mesmos que reencontrei em mim, naquele dia, diante dos sarcófagos cheios de água escura e sob as tamareiras encharcadas. Educado desde o início no espetáculo do belo, que era a minha única riqueza, eu começara pela plenitude. Mais tarde, vieram os arames farpados, isto é, as tiranias, a guerra, as policias, o tempo da sublevação. Fora necessário ajustar-se às regras estabelecidas pela noite: a beleza do dia era apenas uma recordação. E agora, nessa Tipasa coberta de lama, até mesmo essa lembrança se toldava. E eram justamente a beleza, a plenitude ou a juventude que eu procurava evocar! Sob o clarão dos incêndios, o mundo deixara repentinamente à mostra suas rugas e cicatrizes, antigas e recentes. Envelhecera de um só golpe, sem transição, como nós. Bem sabia eu que a sensação de arrebatamento cuja busca me trouxera até aqui, subleva apenas aquele que ignora estar prestes a abalançar-se sobre algo. Ausência total de amor, nem um pouco de inocência. Onde estaria a inocência? Os impérios desmoronavam, as nações e os homens mordiam-se uns aos outros com truculêneia; nossas bocas estavam enxovalhadas. A princípio inocentes sem que o soubéssemos, éramos agora involuntariamente culpados: o mistério aumentava na mesma medida em que crescia nosso conhecimento. Por isso nos ocupávamos com a moral, ó derrisão! Enfermo, sonhava com a virtude! No tempo da inocência, ignorava que a moral existisse. Hoje o sabia, mas não era capaz de viver à sua altura. Sobre o promontório que antigamente amara, entre as colunas molhadas do templo destruído, parecia-me estar caminhando atrás de alguém, cujos passos continuava a ouvir sobre as lousas e os mosaicos, mas por quem jamais tornaria a esperar. Voltei a Paris, ali permanecendo durante alguns anos, antes de regressar novamente à minha terra.

        No entanto, durante todos esses anos, sentia obscura e constantemente a carência de alguma coisa. Se nos foi dada, embora numa só vez, a oportunidade de amar intensamente, passamos o resto da vida à procura de uma renovação desse mesmo ardor e dessa mesma luz. A renúncia à beleza — e ao sensual bem-estar que lhe é intimamente ligado — e a servidão exclusiva à infelicidade exigem ambas uma grandeza que me falta. Mas, afinal, nada existe de verdadeiro que não nos obrigue à exceção. A beleza isolada termina por tornar-se exagerada, assim como a justiça solitária acaba por oprimir. Aquele que pretender servir a uma pela exclusão da outra, não serve a ninguém, nem a si próprio; e, finalmente, serve duplamente à injustiça. Chega-se então a um ponto tal que, à força de tanta rigidez, nada mais nos produz encantamento, tudo é conhecido e passa-se a vida a recomeçar. E o tempo do exílio, das vidas estioladas, das almas mortas. Para reviver, necessita-se um estado de graça, o esquecimento de si mesmo ou uma pátria. Em certas manhãs, ao dobrar a esquina de uma rua qualquer, um orvalho delicioso tomba sobre nosso coração e depois se evapora. Mas a sensação de seu frescor continua perdurando. E é ela que o coração exige sempre. Foi preciso que eu partisse de novo.

        E, em Argel, pela segunda vez, caminhando sob a mesma chuvarada que parecia não ter cessado ainda desde aquela outra partida (definitiva, como então a considerara), imerso na imensa melancolia com gosto de chuva e de mar, apesar do céu feito de brumas, dos dorsos a fugirem do aguaceiro, dos bares cuja iluminação sulfurosa desfigurava as fisionomias, eu teimava em minha espera. Além disso, acaso não sabia que as chuvas de Argel, apesar da impressão que nos dão de serem infindáveis, costumam parar .subitamente, de um instante a outro, tal como os rios de meu país que se enchem em duas horas, devastando vários hectares de terra e que, de chofre, estancam? Certa tarde, como era de prever, a chuva parou. Esperei ainda mais uma noite. No dia seguinte, uma alvorada líquida emergiu deslumbrante sobre a pureza do mar. Do céu, úmido como um olho, lavado e relavado pelas águas, restituído por aquelas sucessivas barrelas à sua mais perfeita e diáfana textura, baixava uma luz vibrante que ia conferindo a cada casa, a cada árvore, um contorno definido, uma assombrosa renovação. A terra, nos albores do mundo, deve ter surgido envolta por esse mesmo resplendor. Uma vez mais retomei o caminho de Tipasa.

        Para mim, não há um só desses sessenta e nove quilômetros de estrada que não esteja recoberto de lembranças e de sensações. A infância violenta, os devaneios adolescentes ao ronronear do carro, as manhãs, as moças viçosas, as praias, os músculos jovens sempre retesados no auge de sua pujança, a suave angústia do entardecer num coração de dezesseis anos, o desejo de viver, a glória, e sempre o mesmo céu ao longo do tempo, inesgotável de força e de luz, ele próprio insaciável, devorando uma a uma, com o passar dos meses, as vítimas que se lhe ofereciam, crucificadas sobre a areia, na hora fúnebre do meio-dia. Assim também o mar, sempre o mesmo, quase impalpável pela manhã, e que tornei a encontrar no fim do horizonte, a partir do momento em que a estrada, afastando-se do Sahel e de suas colinas plantadas de videiras cor de bronze, começou a descer em direção à costa. Não me detive, porém, a contemplá-lo. Ansiava rever o Chenoua. Essa pesada e sólida montanha, recortada num só bloco, que se estende ao longo da baía de Tipasa a oeste para depois descer e penetrar no mar. Pode-se divisá-la a grande distância, muito antes de chegar, eflúvio azul e tênue que se mistura com o céu. Pouco a pouco, porém, vai-se condensando, à medida que se avança em sua direção, até adquirir a tonalidade das águas que a circundam, imensa vaga imóvel cujo prodigioso impulso parece ter sido brutalmente paralisado por cima do mar, de repente acalmado. Mais perto ainda, quase às portas de Tipasa, eis que surge sua massa sobranceira, eis o velho deus recoberto de musgo que nada abalará, refúgio e porto para seus filhos, entre os quais me encontro.

        A contemplá-la, transponho finalmente os arames farpados e estou de novo no meio das ruínas. E aqui, sob a luz gloriosa de dezembro, tal como acontece apenas uma ou duas vezes em certas existências (que, após esse instante, podem considerar-se realizadas por completo), reencontrei precisamente aquilo que viera buscar e que, apesar do tempo e do mundo, me estava sendo oferecido e, em verdade, só a mim, nessa natureza deserta. Do foro juncado de oliveiras, vislumbrava-se o povoado a contrabaixo. Nenhum ruído ali chegava: tênues fumaças subiam através da limpidez do ar. Também o mar se calava, como se estivesse sufocado sob a ducha ininterrupta de uma luz cintilante e fria. Das bandas do Chenoua, um longínquo canto de galo celebrava solitário a frágil glória do dia. Do lado das ruínas, tão longe quanto a vista nos permitia discernir, viam-se apenas pedras erodidas pelo granizo e os absintos, árvores e colinas perfeitas na transparência do ar cristalino. Tinha-se a impressão de que a manhã se tornara fixa e de que o sol parara durante um instante incalculável. Nessa luz e nesse silêncio, anos e anos de furores e tristezas se dissolviam pouco a pouco. Ouvia dentro de mim um rumor quase esquecido, como se meu coração, parado há tanto tempo, reçomeçasse a bater suavemente. E agora, desperto, eu ia reconhecendo, um após outro, os imperceptíveis ruídos de que era feito aquele silêncio: o baixo-contínuo dos pássaros, os leves e fugazes suspiros do mar, ao pé dos rochedos, a vibração das árvores, o obscuro cântico das colunas, as roçaduras dos absintos, os lagartos furtivos. Escutava tudo aquilo, ouvindo também as ondas de felicidade crescerem em mim. Parecia-me ter finalmente chegado ao porto, por um instante que fosse, e que esse instante a partir de então jamais acabaria. Entretanto, pouco depois o sol visivelmente subiu um grau no céu. Um melro entoou um breve prelúdio e, logo a seguir, provenientes de toda a parte, cantos de pássaros começaram a explodir com uma força, um júbilo, uma alegre discordância e um encantamento infinitos! O dia retomou seu curso. Deixar-me-ia levar por ele até o cair da tarde.

        Ao meio-dia, sobre as encostas semicobertas de areia e heliotrópios, como uma espécie de espuma ali deixada pelo escoar das vagas furiosas daqueles últimos dias, eu contemplava o mar que, nessa hora, se erguia imperceptivelmente num movimento cansado, e saciava as duas sedes que ninguém pode enganar por muito tempo, sem que nosso ser se estiole — a sede de amar e a de admirar. Porque não ser amado é apenas questão de pouca sorte; mas não ser capaz de amar é uma desgraça. Todos nós, atualmente, morremos dessa desgraça. Isso porque o sangue e os ódios descarnam o próprio coração; a longa reivindicação da justiça esgota o amor que, no entanto, foi o que lhe deu origem. No clamor em que vivemos, o amor é impossível e a justiça não basta. Essa é a razão pela qual a Europa odeia o dia e não sabe senão opor a injustiça a si própria. Contudo, a fim de impedir que a justiça se endureça, belo fruto cor de laranja que nada contém a não ser uma polpa amarga e seca, descobri novamente em Tipasa que há que guardar intactos, dentro de si, um frescor, uma fonte de alegria, saber amar o dia que escapa à injustiça e depois, uma vez conquistada essa luz, retornar ao combate. Aqui reencontrei a beleza antiga, um céu jovem, e avaliei minha boa sorte, compreendendo, enfim, que nos piores anos de nossa loucura a lembrança desse céu jamais me abandonara. No final de contas, fora justamente essa lembrança que me impedira de desesperar. Sempre soubera que as ruínas de Tipasa eram mais jovens que nossos canteiros de obras ou nossos escombros. Ali, o mundo recomeçava todos os dias numa luz sempre nova. Õ luz! — é o brado que lançam todos os personagens dos antigos dramas, quando colocados diante de seu destino. Esse último recurso era também o nosso e, agora, eu o sabia. Em pleno inverno, aprendia por fim que existia em meu ser um verão invencível.

        Uma vez mais, tornei a sair de Tipasa para ir ao encontro da Europa e de suas lutas. Mas a recordação daquele dia ainda me serve de alento, ajudando-me a aceitar com idêntico ânimo as coisas que nos arrebatam e as que nos abatem. No momento difícil em que estamos, que outra coisa posso desejar senão que nada seja excluído e que aprendamos a trançar o fio branco junto ao fio negro numa mesma corda retesada, prestes a romper-se? Em tudo aquilo que fiz ou disse até agora, parece-me reconhecer bastante bem essas duas forças, mesmo quando se contrariam. Não pude abjurar da luz onde nasci e, no entanto, não quis recusar as servidões desta época. Seria fácil demais pôr em confronto aqui ao doce nome de Tipasa outros nomes, mais sonoros e mais cruéis; para os homens de hoje existe um caminho interior que conheço bem, por tê-lo percorrido em seus dois sentidos: o caminho que vai das colinas do espírito às capitais do crime. E, certamente, podemos sempre descansar, adormecer sobre a colina ou, então, fazer do crime nossa morada habitual. Mas, a partir do momento em que renunciarmos a uma parcela daquilo que é, é necessário que renunciemos, nós mesmos, a ser. Portanto, é necessário renunciar a viver ou a amar de uma outra maneira que não seja por procuração. Assim, existe uma vontade de viver sem nada recusar da vida que é a virtude que mais aprecio no mundo. De tempos em tempos, pelo menos, é verdade que eu gostaria de tê-la exercido. Uma vez que poucas épocas exigem tanto como a nossa que nos tornemos iguais ao melhor ou ao pior, gostaria justamente de não eludir nada e conservar exata uma dupla memória. Sim, existe a beleza e existem os humilhados. Quaisquer que sejam as dificuldades dessa tarefa, jamais desejaria ser infiel quer à primeira, quer aos últimos.

        Mas ainda isso tem certa semelhança a uma moral; e nós vivemos para alguma coisa cujo alcance é muito mais amplo do que a moral. Se pudéssemos defini-la, que silêncio! Sobre a colina de Santa Salsa, a leste de Tipasa, a tarde está habitada. Na realidade, ainda não escureceu de todo, mas na luz um desfalecimento invisível começa a anunciar que o dia chega ao fim. Eleva-se uma brisa tênue como a noite e, súbito, o mar sem ondas toma certo rumo e desliza, como grande rio infecundo, de um extremo a outro do horizonte, O céu escurece. Então começa o mistério, os deuses da noite, muito além do prazer. De que maneira traduzir tal sensação? A pequenina moeda que levo daqui possui uma face visível, belo rosto de mulher que me repete tudo aquilo que aprendi, no decorrer do dia, e uma outra face corroída cuja superfície sinto sob os dedos durante o regresso. Que pode dizer essa boca sem lábios senão o mesmo que ouço de outra voz misteriosa, falando dentro de mim, a ensinar-me diariamente minha ignorância e minha felicidade:

        “O segredo que procuro descobrir está enterrado num vale de oliveiras, sob a relva e as violetas frias, em volta de uma velha casa que cheira a vide. Durante mais de vinte anos, tenho percorrido este vale e todos os que se lhe assemelham, interrogando cabreiros mudos, batendo à porta de ruínas desabitadas. Por vezes, ao nascer da primeira estrela no céu ainda claro, sob uma chuva de luz sutil, acreditei que sabia. Em verdade, sabia. Talvez eu saiba sempre. Mas ninguém deseja possuir esse segredo, nem mesmo eu, sem dúvida; e não posso separar-me dos meus próprios segredos. Vivo em minha família que crê reinar sobre cidades rica.. e medonhas, construídas de pedras e brumas. Noite e dia, ela fala alto, e tudo se inclina diante dela, que não se inclina diante de nada: surda a todos os segredos. Seu domínio, que me arrasta, aborrece-me no entanto; e, às vezes, acontece que seus gritos me cansam. Porém, sua infelicidade é também a minha, somos do mesmo sangue. Igualmente enfermo, cúmplice e ruidoso, acaso não lancei meus gritos por entre as pedras? Também eu esforço-me por esquecer, caminho através de nossas cidades de ferro e fogo, sorrio corajosa- mente à tristeza, chamo ao longe as tempestades, serei fiel. Em verdade esqueci: sou ativo e surdo a partir desse momento. Mas um dia talvez, quando estivermos prestes a morrer de esgotamento e ignorância, eu possa renunciar aos nossos túmulos espalhafatosos para ir deitar-me no vale sob a mesma luz, e possa aprender pela última vez aquilo que sei.”

                                            DO MAR BEM PERTO

        Cresci no mar e a pobreza me foi faustosa; depois, quando perdi o mar, todos os luxos passaram a ter para mim aparência opaca e a miséria tornou-se intolerável. Desde então espero. Espero as naves do retorno, a morada das águas, o dia límpido. Aguardo pacientemente com todas as minhas forças muito bem brunidas. Quando me vêem passar pelas ruas belas e sábias, admiro as paisagens, aplaudo como todo o mundo, dou a mão, mas não sou eu quem fala. Se recebo louvores, sonho um pouco; se me ofendem, espanto-me menos ainda. Depois, esqueço e sorrio a quem me ultraja ou então cumprimento com excessiva cortesia a quem estimo. Que fazer, se minha memória existe apenas para uma só imagem? Por fim, sou intimado a dizer quem sou. “Nada ainda, nada ainda..;”

        E nos enterros que costumo superar-me. Na realidade, sobrepujo-me a mim mesmo. Caminho com passo lento pelos arrabaldes floridos de ferros velhos, sigo por amplas ruas ajardinadas, plantadas de árvores de cimento e que conduzem aos buracos de terra fria. Ali, sob o penso de gaze levemente

avermelhada do céu, olho com atenção companheiros corajosos sepultarem meus amigos a três metros de profundidade. Nesses momentos, a flor que me é entregue por uma mão qualquer suja de barro, jamais erra o alvo da fossa quando atirada por mim. Tenho a dose precisa de piedade, o exato grau de emoção, a nuca convenientemente inclinada. Admiram-se de que minhas palavras sejam justas. Porém, não tenho nenhum mérito: espero.

        Espero há muito tempo. Por vezes, tropeço, perco a mão, deixo de acertar. Isso pouco importa, estou só nesses momentos. Assim, acordo no meio da noite e parece-me ouvir, ainda semi-adormecido, um barulho de ondas, movimento de águas a respirar. Totalmente desperto, reconheço o vento nas folhagens e o rumor infausto da cidade deserta. Quando isso ocorre, todas as artimanhas que possa empregar parecem-me ainda insuficientes para esconder minha angústia ou trajá-la com as vestes da moda.

        Noutras ocasiões, ao contrário, sou ajudado. Em Nova York, certos dias, perdido no fundo desses poços de pedra e aço onde vagueiam milhões de homens, eu corria de um para outro, sem conseguir avistar o cimo, já esgotado, a ponto de cair ao chão, e sendo sustentado apenas pela própria massa humana que também busca a uma saída. Sentindo-me à beira da asfixia, meu pânico ia gritar. Mas, cada vez que isso acontecia, o chamamento longínquo de um rebocador vinha lembrar-me que essa cidade, cisterna solitária, era uma ilha, e que na extremidade da Battery a água de meu batismo esperava-me negra e podre, coberta de cortiças ocas.

        Assim, eu, que nada possuo, que a outros dei minha fortuna, que costumo acampar junto a todas as minhas casas, sinto-me, apesar de tudo, plenamente satisfeito quando quero; a todas as horas preparo-me para levantar ferros, o desespero me ignora. Não existe pátria para quem desespera e, quanto a mim, sei que o mar me precede e me segue, e minha loucura está sempre pronta. Aqueles que se amam e são separados podem viver sua dor, mas isso não é desespero: eles sabem que o amor existe. Eis porque sofro, de olhos secos, este exílio. Espero ainda. Um dia chega, enfim...

 

        Os pés nus dos marinheiros percorrem mansamente a coberta. Partimos ao nascer do dia. Desde o instante em que abandonamos o porto, um vento rápido e denso espanca vigorosamente o mar, que se revolve em pequenas vagas sem espuma. Um pouco mais tarde, o vento refresca e semeia as águas de camélias, logo desvanecidas. Assim, durante toda a manhã nossas velas estalam sobre um alegre viveiro. As águas estão pesadas, escamosas, cobertas de espumas frescas. De vez em quando, ouve-se o grito das ondas batendo na roda de proa; uma espuma amarga e untuosa, saliva dos deuses, escorre ao longo da madeira até chegar dentro da água, onde se dispersa em desenhos que morrem e de novo renascem, penugem de alguma vaca azul e branca, besta aguada que deriva ainda por muito tempo, seguindo nossa esteira.

 

        Desde o momento da acompanhando nosso navio, aparente, quase sem bater as partida, gaivotas vêm sem qualquer esforço asas. A bela navegação retilínea dessas aves apóia-se, muito de leve, sobre a brisa. De súbito, algo cai dentro d’água, num mergulho barulhento e brutal, proveniente da altura das cozinhas, provocando um alarme guloso entre as gaivotas, destruindo-lhes toda a beleza do vôo e inflamando um braseiro de asas brancas. Os pássaros giram loucamente em todas as direções e, depois, sem nada perder em rapidez, vão deixando, um a um, a confusão do bando para lançar-se ao mar em vôo picado. Após alguns segundos, ei-los novamente reunidos boiando no mar, ruidoso galinheiro que deixamos para trás, aninhado no côncavo das ondas que desfolham lentamente os detritos.

 

        Ao meio-dia, sob um sol atordoante, o mar, extenuado, ondula quase imperceptivelmente. A água, quando torna a cair sobre si mesma, rompe o silêncio com um som sibilante. Após uma hora de cocção, a água pálida, qual imensa placa de chapa metálica quase branca de tão brilhante, se encrespa. Encrespa-se, fumega, acabando por escaldar de calor. Dentro em pouco irá se voltar, a fim de oferecer ao sol seu rosto úmido, agora submerso nas ondas e nas trevas.

 

        Passamos pelas portas de Hércules, o promontório onde morreu Anteu. Mais além, o oceano está em toda parte e, de um só bordejo, dobramos Hornos e Boa Esperança, os meridianos esposam as latitudes, o Pacífico bebe o Atlântico. Logo em seguida, surge o cabo sobre Vancouver, depois nos dirigimos lentamente aos mares do sul. A mais algumas braças de distância, as ilhas de Páscoa, Desolação e Hébridas desfilam em comboio diante de nós. Certa manhã, bruscamente, as gaivotas desaparecem. Estamos sós, distantes de toda terra, com nossas velas e nossas máquinas.

        Sozinhos também diante do horizonte. As vagas vêm do leste invisível, uma a uma, pacientemente; chegam até nós e, pacientemente, tornam a partir em direção ao oeste desconhecido, uma a uma. Longo curso, jamais iniciado, jamais terminado... O riacho e o rio passam, o mar passa e permanece. Assim deveria ser o amor, fiel e fugitivo. Desposo o mar.

        Mar alto. O sol desce, sendo absorvido pela bruma muito antes do horizonte. Um breve instante, o mar fica rosado de um lado, azul do outro. Depois as águas escurecem. A andorinha do mar desliza, minúscula, na superfície de um círculo perfeito, no metal espesso e embaciado. E, na hora de maior quietude, no entardecer que se aproxima, centenas de cetáceos surgem das águas, caracolam durante alguns momentos em torno de nós, para logo desaparecerem em direção ao horizonte sem homens. Quando eles partem, restam o silêncio e a angústia das águas primitivas.

        Um pouco mais tarde ainda, encontro de um iceberg sobre o Trópico. Invisível certamente, após a longa viagem através dessas águas calorentas, mas eficaz: passa ao longo do navio a estibordo, onde os cordames ficam levemente borrifados por uma fina camada de geada, enquanto a bombordo vai-se findando um dia seco.

        A noite não cai sobre o mar; emerge do fundo das águas, que se vão escurecendo pouco a pouco com as cinzas densas do sol afogado, e sobe em direção ao céu ainda pálido. Um breve instante, Vênus permanece solitária por cima do negrume das ondas. Apenas o tempo de fechar os olhos, de tornar a abri-los, e as estrelas brotam na noite líquida.

        A lua apareceu no horizonte. A princípio ilumina debilmente a tona das águas e, quando se eleva mais, escreve na maciez da superfície. Ao atingir o zênite, por fim, sua luz estende-se através de uma longa faixa de mar, opulento rio leitoso que com o movimento o navio deságua sobre nós inesgotavelmente na escuridão do oceano. Eis a noite tépida, a fresca noite pela qual tanto ansiara em meio às luzes aparatosas, ao álcool, à turbulência do desejo.

        Ao navegar sobre espaços tão vastos, temos a sensação de que jamais atingiremos a meta final. Sol e lua surgem e desaparecem alternativamente, num mesmo encadeamento de luz e de sombra. Dias passados no mar, todos parecidos uns aos outros, como a felicidade...

        Esta é a vida rebelde ao esquecimento, rebelde à lembrança, de que fala Stevenson.

        Amanhece. Cortamos o Trópico de Câncer perpendicularmente, as águas gemem e se convulsionam. O dia vai nascendo sobre um mar encapelado, cheio de lantejoulas de aço. O céu está branco de bruma e de calor, com um brilho mortiço mas insustentável, como se o sol se houvesse liquefeito na espessura das nuvens sobre toda a extensão da abóbada celeste. Céu doentio por cima de um mar transtornado. À medida que a hora avança, o calor aumenta no ar lívido. Durante o dia inteiro, a roda de proa vai desalojando bandos de peixes voadores, pequeninos pássaros de ferro, obrigando-os a sair de suas guaridas nas ondas.

        À tarde, cruzamos com um paquete que vem subindo de volta às cidades. A saudação trocada por nossas sirenes com três longos gemidos de animais pré-históricos, os acenos dos passageiros perdidos sobre o mar e alertados pela presença de outros homens, a distância que vai crescendo pouco a pouco entre os dois navios e, finalmente, a separação sobre as águas malévolas, tudo isso provoca aperto no coração. Esses dementes obstinados, agarrados a pranchas, atirados sobre a crina dos imensos oceanos em busca de ilhas à deriva, quem, dentre aqueles que amam a solidão e o mar, poderá jamais deixar de amá-los?

        Na exata metade do Atlântico vergamos sob os ventos selvagens que sopram interminavelmente de um pólo ou outro. Todos os brados que lançamos se perdem, esvaindo-se nos espaços sem limites. Contudo, um desses gritos, levado pelos ventos, dia após dia, aportará por fim numa das extremidades achatadas da terra e ressoará longamente contra as paredes enregeladas até o instante em que um homem, algures, perdido em sua concha de neve o escute e contente se digne de sorrir.

        Cochilava sob o sol das duas horas, quando um ruído tremendo me despertou. Vi o sol no fundo do mar, as vagas reinavam no céu revolto. De repente, o mar ardia, o sol escorria em longos tragos gelados por dentro de minha garganta. Em torno a mim, os marinheiros riam e choravam. Amavam-se uns aos outros, mas não podiam perdoar-se. Nesse dia, compreendi o mundo tal como era, decidi aceitar o fato de que o bem que nele existia pudesse ser, a um só tempo, maléfico, e suas perversidades, salutares. Nesse dia, compreendi que existiam duas verdades, das quais uma jamais deveria ser dita.

        A singular lua austral, um tanto limada, nos acompanha durante várias noites e, depois, desliza rapidamente do céu até cair dentro da água, que a engole. Permanecem o Cruzeiro do Sul, as estrelas raras, o ar poroso. No mesmo momento, o vento pára por completo. O céu rola e joga da popa à proa, por cima de nossos mastros imóveis. O motor parado, o velame descido, apitamos na noite quente enquanto a água golpeia nossos flancos amigavelmente. Nenhuma ordem, as máquinas emudecem. Na verdade, por que continuar e por que retornar? Estamos plenamente satisfeitos, uma silenciosa loucura nos adormece, invencível. Assim chega um dia que tudo realiza; então, é necessário deixar-se levar pela corrente, como aqueles que nadaram até o esgotamento. Realizar o quê? Desde sempre calo a mim mesmo a resposta. Õ amargo leito, cama principesca, a coroa está no fundo das águas!

        Pela manhã, nossa hélice faz espumar suavemente a água morna. Recuperamos velocidade. Por volta do meio-dia, vindo de longínquos continentes, um bando de cervos cruza nosso caminho, nos ultrapassa, nadando com regularidade em direção ao norte, seguido por pássaros multicores que de tempos em tempos vêm repousar em suas galhadas. Esta floresta ruidosa desaparece vagarosamente no horizonte. Um pouco mais tarde, o mar se cobre de estranhas flores amarelas. Ao entardecer, um cântico invisível nos precede durante longas horas. Adormeço confiante.

        Com as velas todas abertas, enfunadas por uma brisa transparente, navegamos velozmente sobre um mar claro e vigoroso. No auge da velocidade, a cana do leme a bombordo. E quando se aproxima o fim do dia, retificando uma vez mais nosso curso, adernados a estibordo, a tal ponto que nosso velame chega a aflorar a água, passamos em marcha muito veloz ao longo de um continente austral que reconheço por tê-lo sobrevoado, certa vez, às cegas, encerrado no bárbaro ataúde de um avião. Rei vadio, minha carruagem se arrastava nessa época; esperava o mar sem jamais alcançá-lo. O monstro urrava, decolava nos guanos do Peru, arremessava-se impetuosamente por cima das praias do Pacífico, sobrevoava as brancas vértebras quebradas dos Andes e, depois, a imensa planície da Argentina, coberta de rebanhos de moscas unia com um só golpe de asa os prados uruguaios inundados de leite aos rios negros da Venezuela, aterrissava, continuava a urrar, tremia de cobiça diante de novos espaços vazios ainda por devorar e, apesar de tudo isso, nunca cessava de não avançar ou, pelo menos, de avançar somente com uma lentidão convulsiva, obstinada, uma energia desvairada e fixa, intoxicada. Nesses momentos, encerrado em minha cela metálica, eu estava morrendo e sonhava com carnificinas e orgias. Sem espaço, não pode haver nem inocência nem liberdade! A prisão, para quem não pode respirar, significa morte ou loucura; que fazer, senão matar e possuir? Atualmente, em vez disso, sinto-me repleto de ventos, todas as nossas asas estalam no ar azul, vou gritar de velocidade, atiramos ao mar nossos sextantes e nossas bússolas.

        Sob o vento imperioso, nossas velas são de ferro. A costa deriva a toda velocidade diante de nossos olhos, florestas de palmeiras imperiais, cujos pés estão de molho nas lagoas cor-de-esmeralda, baía tranqüila, cheia de velas vermelhas, areias de luas. Enormes arranha-céus surgem, já rachados, sob a pujança da floresta virgem que começa no pátio de serviço; aqui e ali um ipê amarelo ou uma árvore com galhos roxos arrebentam uma janela, o Rio desmorona, finalmente, por trás de nós e a vegetação recobrirá suas ruínas novas, onde os macacos da Tijuca estourarão de riso. Ainda mais depressa, ao longo das grandes praias onde as ondas se derramam em feixes de areia, mais depressa ainda, os carneiros do Uruguai entram no mar, tingindo-o de amarelo no mesmo instante. Depois, sobre o litoral argentino, grandes piras grosseiras, a intervalos regulares, levantam em direção ao céu metades de bois que vão grelhando lentamente. De noite, os gelos da Terra do Fogo batem no casco de nosso navio durante horas, o barco diminui a marcha de forma quase imperceptível e faz meia volta. Pela manhã, o único vagalhão do Pacífico, cuja fria barrela verde e branca borbulha sobre os milhares de quilômetros da costa chilena, ergue-nos vagarosamente, ameaçando encalhar-nos. O leme o evita, dobra os Kerguelen. Na tarde adocicada, as primeiras embarcações malaias avançam em direção a nós.

        “Ao mar! Ao mar!” gritavam os garotos maravilhosos de um livro de minha infância. Esqueci tudo sobre o livro, exceto esse grito. “Ao mar!” e, pelo Oceano Indico até o baluarte do Mar Vermelho, de onde se ouvem, a estalarem uma a uma, as pedras do deserto, que gelam depois de terem ardido, retornamos ao mar antigo e, ali, os gritos se calam.

        Certa manhã, afinal, arribamos a uma baía plena de estranho silêncio, balizada por velas fixas. No céu, apenas algumas aves marinhas disputam entre si pedaços de palha. A nado chegamos a uma praia deserta; passamos o dia inteiro entrando na água, para depois nos secar estendidos sobre a areia. Ao entardecer, sob o céu que se torna verde e recua, o mar, embora já tão calmo, aquieta-se ainda mais. Vagas curtas sopram uma barrela de espuma sobre a praia morna. As aves marinhas desapareceram. Resta apenas um espaço, oferecido à viagem imóvel.

 

        Certas noites, cuja doçura se prolonga, sim, é verdade que nos ajuda a morrer a certeza de que elas voltarão depois de nós sobre a terra e o mar. Grande mar, sempre lavrado, sempre virgem, minha religião com a noite! O mar nos lava e nos sacia em seus sulcos estéreis, liberta-nos e nos mantém de pé. Em cada onda, uma promessa, sempre a mesma. Que diz a onda? Se eu tivesse de morrer rodeado de montanhas frias, ignorado pelo mundo, renegado pelos meus, já completamente sem forças, enfim, o mar, no derradeiro instante, encheria minha cela, viria sustentar-me acima de mim mesmo e ajudar-me a morrer sem ódio.

        À meia-noite, sozinho na praia. De novo esperar, e partirei. O próprio céu está parado, com todas as suas estrelas, como esses barcos cobertos de luzes que, a essa mesma hora, no mundo inteiro, iluminam as águas sombrias dos portos. O espaço e o silêncio pesam como um fardo único sobre o coração. Um amor arrebatado, uma grande obra, um ato decisivo, um pensamento que transfigura, produzem em certos momentos a mesma intolerável ansiedade, duplicada por um encanto irresistível. Deliciosa angústia de ser, proximidade singular de um perigo cujo nome não conhecemos — viver, então, será expor-se à sua perda? Uma vez mais, sem demora, exponhamo-nos à nossa própria perda.

        Tenho tido sempre a impressão de viver em alto-mar, ameaçado, no cerne de uma felicidade digna de um rei. 

 

                                                                  Albert Camus

 

 

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