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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NUVEM DE PÁSSAROS BRANCOS / Yasunari Kawabata
NUVEM DE PÁSSAROS BRANCOS / Yasunari Kawabata

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NUVEM DE PÁSSAROS BRANCOS

 

SEMBAZURU

OU OS PÁSSAROS BRANCOS

Kikuji já penetrara no átrio do Templo Engakuji, em Kamakura, mas hesitava ainda. Iria ou não assistir àquela reunião de chá? E depois, não ia chegar atrasado?

Se a Srta. Chikako Kurimoto, professora na arte do chá, nunca deixava de convidá-lo cada vez que organizava suas reuniões, que se realizavam num pavilhão do jardim do templo; ele no entanto jamais fora desde a morte de seu pai. A seu ver, os convites representavam meros gestos polidos em memória do pai falecido e não lhes dava atenção.

No de hoje, porém, a anfitriã insistira, juntando algumas palavras do próprio punho: fazia questão de lhe apresentar uma moça entre suas discípulas.

Ao ler essas palavras, Kikuji recordou de novo as manchas que marcavam o seio de Chikako.

Não devia ter então mais de oito ou nove anos. Chegara em casa dela com o pai, enquanto ela, no quarto, cortava com uma tesourinha os pêlos duros que eriçavam essas manchas. Uma feia nódoa violácea e escura, grande como uma mão aberta, que lhe cobria o seio esquerdo em cima e embaixo, com tufos de pêlos.

— Oh! o senhor está com o seu filho! — exclamara, surpreendida, buscando pôr no lugar a gola do quimono com um gesto vacilante. Sentia-se mais confusa ainda, parecia, por aparentar que escondia o peito com precipitação. Por fim, virou-se um pouco e deixou cair, com segurança e lentamente, o avesso de seu quimono abaixo da cintura.

Não fora por certo a visita do pai de Kikuji que a surpreendera, mas a presença inesperada do menino. A doméstica que lhe abrira a porta provavelmente só lhe anunciara a chegada daquele visitante.

Evitando o quarto de Chikako, o pai de Kikuji ganhara a sala contígua, preparada para servir de ateliê. E ali, diante do tokonoma¹, contemplando fixamente o kakemono exposto, perguntara num tom distraído :

 

1 Numa sala japonesa, onde a decoração supérflua costuma ser eliminada, o tokonoma, o local um pouco acima do chão e ocupando toda a parede do fundo, enquadra a sóbria ornamentação escolhida: um kakemono (desenho, pintura ou caligrafia montada sobre um rolo vertical pendurado à parede), um ikebana (arranjo floral) ou um objeto artístico. Nada mais.

 

— Posso provar o chá?

— Como não! — ela respondeu.

Mas não veio em seguida para a peça onde a esperavam.

Tinha um jornal aberto sob os joelhos e os pêlos que cortava caíam no papel. Duros como os de uma barba masculina. E Kikuji, o filho, vira tudo.

Era meio-dia e no entanto camundongos corriam e dançavam com grande ruído no teto. Fora, perto da galeria, havia um pessegueiro em flor.

Chikako acabou vindo se instalar diante do fogo para preparar o chá, mas com algo de vago nos gestos, como se o seu pensamento estivesse em outra parte.

Uns dez dias mais tarde, Kikuji ouvira a mãe contar ao pai, com o tom que se toma para revelar um grande segredo, que Chikako não se casaria por causa das manchas que tinha no peito. Cândidamente, a mãe de Kikuji pensava que o seu marido não soubesse delas. Estava visivelmente tocada de compaixão por Chikako e com o rosto sinceramente alterado.

— Oh! Ah!

O pai de Kikuji empregava apenas vagos monossílabos para fingir surpresa ouvindo a esposa. Por fim acabou lhe dizendo:

— Talvez não seja assim tão grave... desde que o marido saiba e concorde antes do casamento!

— Foi também o que eu lhe disse. Mas deves compreender que, apesar de tudo, não é tão fácil para uma mulher confessar que tem grandes manchas no peito!

— Não digo que seja, mas afinal ela já não é uma mocinha!

— Mesmo assim, não é simples falar coisa semelhante. Para um homem, sem dúvida, seria diferente; e mesmo que o segredo só fosse revelado depois do casamento, bastava que ele risse e tudo seria esquecido.

— Essas manchas, ela te mostrou?

— Ora, não digas tolices!

— Então ela apenas te contou, foi só isso.

— Claro. Quando ela veio hoje para a lição de chá e a conversa foi parar aí. Ia-se falando de tudo e de nada e acredito que ela confessou a história inteiramente por acaso, sem qualquer premeditação, O pai de Kikuji a ouve sem dizer nada.

— Suponhamos que se case — continuou a mãe. — Que julgas que ele pensará, o seu marido?

— Há de ser decerto desagradável de ver e um tanto repugnante da primeira vez. Mas quem sabe se depois um segredo dessa espécie não teria um lado atraente, até uma certa pimenta talvez?... Eu me pergunto mesmo se esse defeito não iria ao ponto de valorizar suas outras qualidades, como um estrado sob uma mesa. Em todo o caso, a meu ver, não representa um inconveniente maior.

—Tratei de consolá-la dizendo-lhe o mesmo, e foi então que me confiou que a nódoa lhe cobria também o seio.

— Ah, sim?

— Sim, ela pensa no filho que poderá ter e deverá alimentar. É o que a deixa triste. Ainda que as coisas se arranjassem com o marido, que fazer com o filho?

— Queres dizer que esse sinal de nascença a impede de amamentar?

— Não é isso, absolutamente. Ela não pode se acostumar com a idéia de que o filho, quando lhe der o seio, terá sob os olhos aquelas feias manchas. Por mim nem teria pensado nisso. Mas quando se possuem essas marcas horrorosas, pensa-se em todas as conseqüências, é normal. Desde que nasça, o bebê vai para o seio, e quando abrir bem os olhos será para ver aquelas manchas horríveis no seio da mãe. Sua primeira impressão deste mundo, o sentimento inicial que terá de sua mãe, vai ser a vista desse detestável sinal no seu seio... Uma lembrança medonha que não se afastará dele o resto da vida.

— Sem dúvida, sem dúvida. . . Mas isso me parece levar as coisas um pouco longe.

— Talvez, sim, porque sempre se pode criar uma criança com leite de vaca ou recorrer a uma ama-de-leite.

— Por mim eu acho que o principal é que ela seja capaz de dar ela mesma de mamar ao filho.

— Impossível, eu te disse! É um caso de apertar o coração quando se pensa, e não pude reter as lágrimas quando ela me falou a respeito. Imagina com o nosso pequeno Kikuji: acreditas que eu teria podido alimentá-lo, eu, se tivesse manchas parecidas no seio?

— É justo — reconheceu o pai.

O sangue de Kikuji dera uma volta ao ver como o seu pai fingia tudo ignorar. Fervia em cólera. Pois vira também a feia mancha de Chikako. Nem por isso a sua presença perturbava no mínimo ao pai, a quem se pôs a odiar na hora com toda a força da indignação.

Mas no momento, ao recordar essa história de quase vinte anos atrás, Kikuji não consegue deixar de sorrir calculando quanto o pai em realidade devia se sentir contrariado, e mais que contrariado.

Isso não desfaz que, desde os dez anos, tenha muitas vezes voltado a pensar nas palavras de sua mãe. Não raro estremeceu à idéia de que poderia ter, por meio irmão ou irmã, um lactante deste seio marcado, deste seio profanado de manchas duma mãe que não era a sua! E tinha medo, não apenas de ter irmãos ou irmãs de outro leito, mas da própria existência desse rebento provável: não podia deixar de julgar que o pequeno que sugasse o leite dum seio assim coberto daquelas manchas de nascença, com seus tufos de pêlos duros, devia forçosamente ter qualquer coisa de diabólico em sua natureza.

Felizmente, Chikako nunca teve filhos. Talvez tivesse sido o próprio pai de Kikuji que não tivesse querido tê-los com ela. Talvez fosse ele próprio que lhe tivesse sugerido aquela enternecedora história das nódoas e do filho, tão comovente para a mãe de Kikuji, e isso com a intenção bem ponderada de levá-la a renunciar a pôr uma criança no mundo. Em todo o caso, o certo é que, nem antes nem depois da morte do pai de Kikuji, nenhum filho de Chikako viera ao mundo.

E também, como Chikako fizera aquelas confidencias pouco depois de Kikuji, ao acompanhar o pai, ter surpreendido o segredo, era possível que constituíssem um golpe dado por precaução, adiantando-se à confissão que o menino poderia ter feito à mãe. Quem sabe?

De resto, Chikako nunca se casou, e a gente pode bem se perguntar se afinal as manchas não influíram diretamente no seu destino.

Para Kikuji, o choque que teve em criança, ao vê-las, como que gravou nele uma lembrança inapagável. Quem pode dizer se o seu próprio destino não foi também influenciado até certo ponto por essa impressão?

A primeira imagem que se ofereceu a ele ao receber o convite e saber que Chikako tencionava lhe apresentar uma moça naquela reunião de chá, foi ainda a visão das manchas que enodoavam aquele seio, e seu pensamento a elas voltava sem parar.

"Deve ter uma pele doce e fina a jovem que Chikako quer que eu conheça" — cismava vagamente, por contraste.

Seu pensamento depois voltava ao pai e se indagava se não teria às vezes acariciado com os dedos as manchas, divertindo-se em mordiscá-las talvez. . .

Tais eram as quimeras que afagava seguindo o passeio sob a cobertura das árvores perto do templo, sempre escutando o canto dos pássaros.

Poucos anos depois do incidente que marcara a sua infância, Chikako perdera visivelmente tudo o que podia ter de feminino no porte e nos traços. Hoje era um ser positivamente assexuado. E Kikuji, embalado por essas idéias, via-a agora, ativa e cheia de energia, presidir à reunião de chá que organizava. "Seu peito com os sinais de nascença — dizia-se — já não deve ter o mesmo impacto de antes..."

Pusera-se a rir das próprias imaginações e idéias desconexas quando escutou atrás de si, na estradinha, o andar apressado de duas jovens. Apartou-se para lhes abrir caminho, mas não sem lhes indagar se era por ali que se ia ao pavilhão onde a Srta. Kurimoto dava a sua reunião de chá.

— Sim, senhor! — responderam numa voz as duas moças.

Além de que bastava olhar as roupas das jovens para saber, Kikuji não podia hesitar: iam a uma sessão de chá. Se, apesar disso, fizera a pergunta, fora antes para se obrigar a si mesmo a comparecer.

Uma das moças trazia um furochiki² de seda rosa com o motivo de sembazuru³ em branco. Era bela.

 

² Quadrado de fazenda que serve para envolver os objetos que se levam na mão.

3 Jogo infantil que consiste em fazer pássaros de papel.

 

CHEGANDO AO ALPENDRE do pavilhão, as jovens que tinham seguido à sua frente, tiravam as meias de andar¹ para calçar outras limpas. Por cima de seus ombros, Kikuji fitou o recinto do chá, cuja porta estava aberta. Era um salão de oito esteiras, com uma assistência numerosa; só pessoas vestidas com quimonos de cores vivas e apertadas quase ao ponto de se tocar.

 

1 Tabi, tipo de meias com um dedo para o polegar.

 

Chikako, com seu olhar vigilante, percebeu em seguida seu convidado e se ergueu para acolhê-lo no umbral.

— Ah! entre, entre, por favor! É tão raro vê-lo aqui: seja bem-vindo. Por ali, faça o obséquio, entre, não se incomode.

Com um gesto lhe indicava uma porta de correr dando para o lugar de honra, perto do tokonoma.

Sentindo todos os olhares convergirem sobre ele, Kikuji, enrubescendo, pergunta a Chikako:

— Não há senão damas?

— Oh! havia também alguns senhores ainda há pouco, mas já foram embora. Você é a flor da nossa reunião.

— Eu, uma flor? — protestou Kikuji.

— Sim, sim, é uma honra que lhe assenta com perfeição.

Kikuji mostrou com a mão que preferia entrar pela outra porta. Virando-se, viu as jovens de há pouco, que, tendo mudado os tabis e enrolado os que tiraram no lenço ornado com o sembazuru, esperavam com deferência diante da porta de entrada, a fim de o deixar passar primeiro.

Kikuji adiantou-se na antecâmara em que reinava certa desordem, com as roupas e os pacotes deixados pelos convidados, as caixas de doces, os cofrezinhos e os estojos dos preciosos objetos reservados às sessões de chá. Sob a cobertura do mizuia², uma doméstica enxugava as taças e outros recipientes.

 

2 Vestíbulo do pavilhão de chá, em que se lavam e preparam os utensílios necessários ao serviço do chá.

 

Chikako por ali seguiu a Kikuji e, com as mãos nos joelhos, se inclinou e sentou diante dele.

— Que tal a achou? — murmurou-lhe ela. — Simpática, não?

— De quem fala? — indagou Kikuji no mesmo tom. — Será da jovem com o furochiki de sembazuru?

— Que importa o furochiki? Vou eu saber! Falo de uma das jovens que estavam ali de pé, na entrada. A mais bonita. É a Srta. Inamura, Yukiko Inamura.

Kikuji aprovou vagamente com um movimento de cabeça.

— Está me parecendo que tem um olho galante para ter notado até o detalhe do furochiki — tagarelou Chikako. — Pensei mesmo há pouco que tinham chegado juntos! Confesse que teria sido ir um tanto depressinha!

— Está insinuando que... ? — protestou Kikuji.

— De qualquer modo, teve sorte, já que a encontrou ao vir. Seu pai, sabe, conhecia bem a família Inamura.

— Ah, sim?

— Tinham antes uma loja de seda em Yokohama. A moça, note, não sabe nada ainda dos nossos projetos, faço questão de lhe dizer. Mas, olhe-a bem!

Chikako, parlando, ia muito além do tom do cochicho e só estavam separados do salão por uma fina porta. Kikuji pensou nisso contrafeito. Mas Chikako se acerca ainda mais e lhe diz na orelha:

— Há infelizmente alguma coisa um tanto aborrecida. . . A Sra. Ota. . . você sabe... está aqui. E a filha também veio junto. . .

Depôs seu olhar perscrutador no rosto de Kikuji e continuou:

— Entenda, não fui eu quem a convidou hoje; mas a uma reunião como esta, uma sessão de chá, todo o mundo, em princípio, pode vir, até os simples passantes. Ainda há pouco, tivemos de receber dois casais de americanos que aí andavam por mero acaso. É uma pena, mas que podia fazer quando a Sra. Ota chegou? Há de ter sem dúvida ouvido falar da nossa reunião. Nem é preciso lhe dizer que naturalmente ela não está a par de nada, no que diz respeito a você.

— Nem eu, eu... — começou ele, desejando acrescentar: "Não tinha qualquer intenção de me prestar a um encontro clássico com vistas matrimoniais." Mas no último momento, com a garganta seca, permaneceu incapaz de articular as palavras que tinha nos lábios.

— Enfim, para você dá no mesmo, não é? E se alguém se sentir incomodado, há de ser a Sra. Ota e só ela!

Kikuji se sentiu irritado com o tom que Chikako tomara.

A ligação que seu pai teve com ela não durou, evidentemente, nem o tempo de uma aventura breve; mas ela continuara a freqüentar a casa até a morte dele, aí demonstrando sua útil atividade doméstica. Sua presença era imprescindível nas reuniões de chá. Mas a elas comparecia tanto como simples convidada quanto para ajudar nos preparos.

Teria sido demasiado cômico que a mãe de Kikuji, na época, se moesse de ciúme por uma pessoa tão pouco feminina. No entanto é certo que terminara por descobrir que seu marido conhecia muito bem — e já se vê por que — as manchas que Chikako tinha no peito; aí, porém, tudo já estava terminado há muito, e Chikako, com o ar de indiferença daquelas que tudo esqueceram, se mantinha sem qualquer emoção ao lado da esposa que podia ter sido sua rival.

Kikuji, por sua vez, se acostumara a encarar como sem importância a existência dela e tinha pouco a pouco esquecido os violentos agravos da infância. Pôs-se a tratá-la com a distância do desprezo. Como assentava ao caráter dessa mulher tornar-se assim indispensável à família por seus serviços, deixando atrás de si tudo o que poderia ter de encanto feminino! Foi também graças ao apoio dessa família que pôde se assegurar, como professora de chá, um êxito invejável.

A mulher que nela havia só deve ter conhecido, como único traço de amor em sua vida, a aventura efêmera que tivera com o pai de Kikuji, e depois disso apagou-se. Com essa idéia, Kikuji, após a morte do pai, não pensava mais nela senão com um sentimento próximo à compaixão.

Quanto à mãe, como podia nutrir hostilidade em relação a Chikako, quando tinha de se preocupar com o problema infinitamente mais grave que a Sra. Ota representava?

O Sr. Ota e seu pai, ambos adeptos da arte do chá, estavam intimamente ligados. Com a morte do Sr. Ota, foi o pai de Kikuji quem se encarregou de vender a coleção artística do seu amigo. Assim se relacionou com a viúva, que se tornou sua amante.

Chikako não falhou em informar a esposa sem o menor atraso. Sentia-se naturalmente do seu lado e se dava ao caso ativamente. Até um pouco demais. Não seguia o pai como uma sombra, para vigiá-lo? Não ia freqüentemente em casa da viúva, para enchê-la de recriminações? Era de crer-se que seu ciúme, enterrado há anos e anos, súbito refloria na ocasião.

A mãe de Kikuji, ao contrário, antes encabulava com as intervenções excessivamente ruidosas de Chikako, que punham em perigo a honra da família. Nada conseguia detê-la, porém. Inclusive na presença do menino, dizia que enforcar a Sra. Ota era pouco. E o dia em que sua mãe, zangada, quis interrompê-la, respondeu-lhe que até era melhor.

— Na última vez — disse, — quando eu tinha dito as piores coisas à viúva do Sr. Ota, ouvi o choro duma menina na peça ao lado. Era a filha dela que tinha escutado à porta.

— Uma filha. Têm então uma filha? — a mãe franziu as sobrancelhas.

— Sim, uma menina de doze anos pelo que ela me disse. E como é estúpida esta Sra. Ota! Em lugar de passar um pito na pequena, como pensei que ia fazer, apertou-a nos braços e a pôs no colo, na minha frente, para que interpretasse seu papel nessa comédia de ternura!

— A pobre criança!

— Mas também o único meio de que dispomos para supliciar a consciência de sua mãe!... Já que a filha nada ignora do que se passa em casa.

Virando-se para Kikuji, Chikako acrescentou:

— Uma criança encantadora, no entanto, com um lindo rosto redondo. O nosso jovem Sr. Kikuji não deveria também, quando a ocasião se apresentasse, dizer a propósito alguma coisa a seu pai?

— Ah! pare de espalhar por toda parte o seu veneno! — lançou-lhe por fim a mãe de Kikuji, fora de si.

— Não é bom, senhora, conservar todas essas peçonhas no coração. Decida-se duma vez a botar tudo para fora! Está emagrecendo, enquanto a sua rival está mais florescente que nunca. Estúpida como é, basta-lhe chorar tudo o que pode e tomar atitudes meigas para se julgar de tudo absolvida. Imagine que na peça onde recebe seus visitantes ainda está entronizado um imenso retrato de seu falecido marido! Ah! não entendo como o Sr. Mitani faz para agüentar tudo isso!

Ora, a mesma Sra. Ota, objeto das desdenhosas conversas que Kikuji escutara, acontecia estar ali, para assistir, tanto tempo após a morte de seu pai, a uma reunião de chá organizada por Chikako. E não apenas viera ela, fazia-se acompanhar pela filha!

Kikuji sentiu um frio lhe passar pelo coração.

Se era verdade, como Chikako pretendia, que desta vez a Sra. Ota não fora convidada, não era menos surpreendente saber que suas relações tinham prosseguido após a morte de seu pai.

Ensinaria Chikako a arte do chá à Srta. Ota? E isso a pedido da mãe? Eram as perguntas que Kikuji se fazia.

— Se faz questão de não encontrá-la — disse Chikako interrogando-o com o olhar, — vou lhe pedir que se retire.

— Para mim é indiferente. Mas se ela quiser ir embora, que o faça.

— Uma mulher como ela! Não vá julgar que tenha tais delicadezas. Nesse caso, os seus pais não teriam tido tantos incômodos.

— Está com a filha junto, não é? — informou-se Kikuji, que não conhecia a filha. Se lhe era já desagradável avistar-se com a moça do furochiki de sembazuru na presença da Sra. Ota,. parecia-lhe ainda mais penoso encontrar ali a filha pela primeira vez.

Não podia mais suportar os cochichos de Chikako que lhe verrumavam as orelhas. Estavam lhe dando nos nervos.

— De qualquer maneira — cortou, levantando-se, —já sabem que estou aqui. Não posso me esquivar.

E entrou no salão pela porta que dava ao tokonoma, indo assim para o lugar de honra.

Inclinava-se enquanto Chikako, que entrou atrás dele, o apresentou alçando um pouco a voz e com um tom antes cerimonioso: "Tenho o prazer de lhes apresentar o Sr. Mitani, filho do célebre colecionador e amador de chá."

Kikuji inclinou-se outra vez e, erguendo-se, viu diante de si todos aqueles rostos femininos que, de início, tivera dificuldade em discernir em seu embaraço e ofuscado pelas sedas cintilantes dos quimonos. Mas, assim que retomou a calma, verificou que tinha à frente justamente a Sra. Ota.

— Que sorte — dizia, — que sorte vê-lo aqui! E toda a assistência podia ouvir sua voz afetuosa e simples.

— Fazia tanto tempo que não o tinha visto mais!

Com um gesto leve, puxou discretamente a manga da filha sentada ao seu lado, como para convidá-la a saudar por sua vez o jovem. A moça, confusa e enrubescida, inclinou-se diante dele.

Kikuji estava longe de esperar algo semelhante. Não descobria o mínimo traço de antipatia ou constrangimento na Sra. Ota, que era pura espontaneidade e ternura. Indiferente ao que os demais pudessem pensar, rejubilou-se a fundo desse encontro sem a sombra duma segunda intenção.

A filha, ao contrário, conservava os olhos baixos, e quando a Sra. Ota disso se apercebeu, encabulou. Contudo, continuava com os olhos fixos em Kikuji, parecendo exprimir quanto apreciava estar a seu lado e lhe falar.

— Pratica também a arte do chá? — terminou por perguntar.

— Não, infelizmente, nada sei a respeito.

— Oh! mas não pode deixar de tê-la no sangue! Parecia realmente emocionada; as lágrimas lhe vinham aos olhos.

Kikuji, que não revira a Sra. Ota desde as cerimônias fúnebres do pai, achou que mudara pouco durante esses quatro anos. O mesmo ar mais jovem que sua idade, o pescoço flexível e delicado, a nuca longa contrastando com as espáduas redondas e firmes, o nariz e a boca pequenos em comparação com os olhos. Este nariz de linha tão perfeita e tanta graça que, quando se olha, é difícil deixar de sorrir. E este lábio inferior levemente saído, que esboça uma espécie de muxoxo quando ela fala...

Na filha, Kikuji reencontra a nuca longa e os ombros arredondados da mãe. A boca é visivelmente maior, pelo contrário, apesar de ela manter os lábios cerrados com firmeza; e para Kikuji há como uma semente de humor na visão da boca tão miúda da mãe ao lado da filha. Quanto aos olhos, a jovem os tem talvez maiores e mais negros ainda que os da mãe. Dir-se-iam afogados de tristeza...

Foi então que Chikako, depois de ter examinado o estado do fogo, voltou-se e disse:

— Srta. Inamura, desejaria preparar um chá em honra do Sr. Mitani? Se não me engano, hoje ainda não oficiou.

— Mas sem dúvida — respondeu a moça, imediatamente se levantando.

Kikuji sabia que a garota do sembazuru estava ao lado da Sra. Ota, apesar de não ter drigido o olhar para ela sequer uma vez desde o momento em que vira a Sra. Ota e a filha.

Afastando-se do caldeirão diante do qual se colocara, a garota se dirigiu a Chikako e lhe perguntou que taça devia escolher.

-— Creio que a de oribe³ que aí está, é a conveniente — disse Chikako. — É uma taça que o pai do Sr. Mitani apreciava muito. E foi ele que me deu — acrescentou, virando-se para Kikuji.

 

³ Um gênero de cerâmica criado no século XVI, cuja sobriedade naturalmente o destina à arte do chá.

 

Ele se lembrava, com efeito, dessa taça posta à frente da moça. O pai gostava de se servir nela, era verdade; mas a tinha obtido da Sra. Ota, de quem a comprara.

E o que essa ia pensar, o que sentiria vendo reaparecer ali o precioso objeto que, outrora, fizera parte da coleção de seu marido? Indagava-se Kikuji, surpreendido com aquela falta de tato por parte de Chikako.

Mas em matéria de sensibilidade e delicadeza, não havia motivos para crer que a Sra. Ota fosse bem desprovida?

O passado dessas mulheres de idade madura lhe surgia como um nó de víboras, enquanto a jovem para ele preparava, pura e clara, o chá.

Kikuji saboreou ainda mais intensamente sua beleza.

 

Com toda a certeza, a garota do furoshiki de sembazuru nada adivinhara das intenções de Chikako. Terminou de preparar o chá sem qualquer perturbação, e vinha agora pessoalmente apresentar a taça a Kikuji, diante de quem a depôs.

Kikuji provou o chá primeiro e depois contemplou a taça de oribe: um esmalte negro pincelado de branco num ponto em que sobressaía, também em negro, a fina folha dum feto novo.

— Lembra-se dela, não? — perguntou-lhe Chikako de longe.

— Parece, sim... — respondeu num tom incerto, largando a taça.

— Ante esse suave renovo de feto, a gente tem mesmo o sentimento de estar nos montes — explicou Chikako. — É uma taça que combina à perfeição com os primeiros dias da primavera, e sei que seu pai a usava com freqüência. A estação já vai um pouco adiantada agora, mas não há de ser menos agradável ao Sr. Mitani servir-se dessa taça em recordação.

— Oh! tratando-se de objeto tão precioso — replicou, — não é tão importante que meu pai o tenha tido em mãos. Se se pensa que esta taça data da época Momoyama, quando o grande Rikyu ainda vivia, e que tem passado de geração em geração, há perto de quatro séculos, pelas mãos sábias de tantos mestres de chá, o lugar ocupado por meu pai nessa filiação se torna pouco significativo.

Kikuji teria querido com essas palavras apartar de si o recente sentido da taça, mas contra a vontade recaiu nele. Do Sr. Ota à esposa, dessa a seu pai e dele a Chikako, a taça fora transmitida; e agora o Sr. Ota e o pai, os dois homens, estavam mortos, enquanto as duas mulheres ali estavam, na reunião de chá. Pode-se dizer que certos objetos têm um destino incomum, e o da taça, só por aquele pequeno fragmento de sua história, já era bem singular. Ainda mais que todas ou quase todas as pessoas presentes, a Sra. Ota e a filha, Chikako, a Srta. Inamura, outras moças ainda, teriam levado a velha taça aos lábios, tocando-a com as mãos, afagando sua delicada matéria.

Para maior surpresa de Kikuji, a Sra. Ota de repente declarou:

— Também eu gostaria de saborear o chá nesta taça.

Era de indagar-se se essa mulher era uma tola ou de despudorada indiscrição, e a Kikuji doía ver sua filha conservar mortificada os olhos baixos.

A moça dos pássaros brancos recomeçou a preparação, desta vez para a Sra. Ota. A assistência inteira observava cada um de seus gestos. Não, a Srta. Inamura seguramente nada sabia da sombria história da taça negra de oribe: realizava cada gesto segundo o ensino que recebera. Seu estilo era despojado, sem idiossincrasias pessoais. A retidão e sobriedade de sua atitude, a linha inflexível que mantinha do alto do busto à ponta dos joelhos, tudo exprimia uma distinção indiscutível.

Folhagens novas cruzavam suas sombras na janela atrás dela, e a luz difusa pousava com um doce reflexo em seus ombros, deslizando pelas mangas do quimono, a enriquecer-lhe as cores; mesmo os seus cabelos pareciam brilhar. Nessa transparência, excessivamente clara para uma sala de chá, resplendia a flor de sua juventude. Utilizava uma seda vermelho vivo como guardanapo, o que não chocava entre suas mãos juvenis, dando ao invés uma impressão de grande frescor. A cada gesto, dir-se-ia que uma rosa encarnada desabrochava. E em volta dela, como que voavam mil pássaros brancos.

O Sra. Ota, com a taça de oribe na mão, observou:

— O verde do chá neste preto evoca as primeiras folhas primaveris, quando os brotos se abrem.

Privara-se com cuidado de dizer que a taça tinha sido outrora um dos preciosos objetos de seu falecido esposo.

Como manda o costume, agora que a sessão de chá chegava ao fim, passou-se ao que se chama o exame das peças, isto é, à entendida apreciação dos objetos artísticos escolhidos para a reunião. As moças, que evidentemente bastante ignoravam nesse setor, contentavam-se em escutar as explicações dadas por Chikako.

A bilha de água (mizusachi) como o bule de bambu {chachaku) eram peças da coleção do pai de Kikuji, o que evitaram de mencionar tanto Chikako como esse.

As convidadas, uma a uma, se despediram e foram embora, mas Kikuji, o último, permanecia em seu lugar. A Sra. Ota se aproximou e lhe disse:

— Suplico-lhe que me desculpe se há pouco o desgostei; mas, vendo-o, como poderia deixar de pensar no passado?

— Que distinção você adquiriu!

Falava com sinceridade e as lágrimas lhe umedeciam os olhos.

— E a senhora sua mãe. . . Ai! Teria gostado de assistir a seus funerais, mas, no fim, não me atrevi. ..

O rosto de Kikuji crispou-se.

— Que tristeza! Primeiro, seu pai, depois a mãe!

— Vai para casa agora?

— Não logo, não. . .

— Gostaria tanto que nos pudéssemos voltar a ver! Teria tanta coisa a lhe contar. . .

Da peça ao lado, Chikako acabara de chamar Kikuji e a Sra. Ota se retirou, não sem deixar transparecer quanto estava penalizada e cheia de remorsos. Sua filha, que a esperava no jardim, cumprimentou Kikuji junto com a mãe, lançando-lhe um longo olhar como para lhe comunicar alguma coisa.

Com algumas alunas e a empregada, Chikako, na peça contígua, movimentava-se para repor tudo em ordem.

— Do que estava lhe falando a Sra. Ota? — atacou em seguida Chikako.

— Oh! nada de especial.

— Cuidado com ela. Não se deixe levar pelas atitudes doces e os ares de inocência dessa mulher.

Tem sempre esse aspecto de quem leva tudo com o coração, mas no fundo nunca se sabe o que está pensando. É uma criatura estranha!

— Nem por isso ela deixa de vir regularmente às suas reuniões, não é verdade? — retorquiu Kikuji com uma ponta de ironia. — Desde quando, ao certo, ela tem vindo?

Mas sem esperar a resposta, na impaciência de escapar àquela atmosfera venenosa, saiu, seguido por Chikako.

— Que tal a achou? É um amor, não?

— Sim, claro; mas confesso que teria sido muito melhor encontrá-la noutra parte que não aqui. A sua presença, a da Sra. Ota, o fantasma do meu pai... tudo isso!

— Mas você se perturba com essas coisas! Ora! A Sra. Ota não tem nada absolutamente a ver com a Srta. Inamura.

— Mas me constrangeu, veja.

— Ela? Como pode ser? Fico triste por que a presença da Sra. Ota tenha sido tão importuna para você, e me desculpo de novo. Mas deixe a Srta. Inamura, por favor, fora de tudo isso! É diferente.

— Se assim o quer. Mas, por hoje, peço licença para ir embora.

Desejava cortar logo, pois se continuasse a falar caminhando, Chikako não o abandonaria. Quando se viu só, diante das azaléias em botão que atapetavam o pé do outeiro, respirou fundo. Recriminava-se amargamente por ter aceito o convite de Chikako, e no entanto a emoção que o penetrara ao ver a moça dos pássaros brancos nele permanecia com todo o vigor. Sem dúvida a ela devia o fato de o coração não lhe pesar demais depois de ter topado com duas amantes de seu pai ao mesmo tempo. . . Mas uma surda cólera o sacudia à idéia de que as duas mulheres lá estavam, bem vivas, a lhe falar de seu pai, enquanto a sua própria mãe estava morta. E em seguida, no espírito, reviu as detestáveis manchas de Chikako.

A folhagem nova fremia com a brisa refrescante da noite; Kikuji tirara o chapéu e caminhava lentamente, com ele à mão. Acercando-se à porta do templo, percebeu lá longe, de pé, um pouco escondida na sombra, a Sra. Ota. Depressa, olhou em volta, almejando evitá-la. Seguindo por uma ou outra das encostas que flanqueavam a porta, teria podido atravessar. Mas continuou pelo mesmo caminho certo, e os traços de seu rosto endureceram.

A viúva o notara também de longe, e avançou ao seu encontro, com as faces acaloradas.

— Esperava-o — lhe disse. — Queria revê-lo ainda uma vez. Vai decerto me julgar terrivelmente indiscreta, mas me era impossível admitir que se afastasse assim, sem ao menos saber se teríamos uma oportunidade de nos rever.

— E sua filha, onde está?

— Fumiko seguiu na frente, junto com as amigas.

— Sabia que você me esperava?

— Sim — respondeu, olhando-o no rosto.

— Isso não lhe agradava, não é certo? Há pouco já me senti inquieto por ela: se diria que não pode me ver.

Kikuji falara de modo encoberto, num tom equívoco, ao mesmo tempo magoado e zombeteiro.

— Sim, creio que lhe é penoso encontrá-lo.

— Meu pai há de ter sido sem dúvida para ela motivo de muitas penas — disse, subentendendo: como você, para o menino que eu fui.

— Oh! não, não é o que você pensa — protestou a Sra. Ota. -— Ao contrário, seu pai amava muito Fumiko. É tudo isso, justamente, o que eu queria poder lhe explicar um dia; é disso que eu queria tanto lhe falar. No início, a pequena se mostrou muito desconfiada com ele, que era gentilíssimo para ela. Depois, pelo fim da guerra, quando os bombardeios aumentaram, ela súbito mudou inteiramente e só tinha o desejo de devotar-se a seu pai. Devotar é por certo uma palavra excessiva — não era mais que uma menina na época — mas, por exemplo, ela teria ido ao fim do mundo para lhe trazer um frango ou peixe, lhe buscar arroz, pelo qual saía sem se importar com o perigo das bombas que explodiam. Seu pai se surpreendia com essa brusca transformação e meu coração sofria vendo o que o amor filial levava a criança a fazer. Meu tormento de consciência foi mais que duplicado.

Kikuji ficava assim só agora a par da origem dos impressionantes presentes que seu pai não raro levava para casa, desses gêneros mais que preciosos na época, com os quais toda a família se beneficiava.

— Nunca entendi muito bem por que a minha filha mudou tão de repente. Talvez tenha pensado que corríamos o risco de morrer a cada dia. Terá tido piedade de mim. O fato é que ela realmente se consagrou a seu pai, com toda a sua vontade e todas as forças.

O trágico duma guerra que chegava ao catastrófico fim bem que poderia, com efeito, nela apagar mais ou menos a lembrança do pai que perdera, para se prender mais que nunca à presença viva da mãe, seu único bem, e compreender até que ponto o amor do pai de Kikuji constituía para a mãe o único recurso.

— Reparou no anel que Fumiko usava hoje? — perguntou a Sra. Ota.

— Não.

— Pois bem, foi um presente do seu pai. Não ignora que ele se acostumara a voltar para casa ao primeiro sinal de alarme, mesmo quando se achava conosco. Fumiko fazia então questão absoluta de acompanhá-lo, dizendo que não se podia saber que perigos ele teria de enfrentar no caminho. E uma vez que foi embora assim, não voltou. "Pelo menos que tenha podido chegar até a casa dele, eu me dizia; lá encontrará abrigo!" Mas me perguntava se não tinham os dois morrido no caminho. No outro dia, pela manhã, ela voltou. Contou-me que acompanhara seu pai até a porta de casa, tinham podido chegar até lá. Mas, na volta, teve de recorrer a um abrigo de emergência, já não sei mais de que espécie, e aí passar a noite. Foi depois desse incidente que seu pai, quando chegou em nossa casa, lhe deu o anel. "Agradecendo por ontem de noite, Fumi-chan!" — lhe disse. Que se sentisse envergonhada diante de você com esse anel, creio poder entender.

Ao ouvi-la, Kikuji experimentava dissabor. Como era grotesco da parte da Sra. Ota acreditar, como parecia, que aquela história só despertasse nele simpatia! No entanto, coisa estranha, não sentia por ela ódio nem desconfiança. Dela emanava uma calidez tão doce que, sem que ele soubesse no que consistia, deixava-o desarmado.

Se a filha se devotara assim até o sacrifício, foi sem dúvida por não poder suportar ver a mãe tão abandonada em sua pena. Quanto à Sra. Ota, sem falar mais que da filha, não transmitia de modo menos transparente o grande amor que tinha por ela. Sim, foi esse amor o que ela viera confessar. Mas a quem? A quem se abria assim em confidencia? Kikuji se deu conta de que ela não fazia aparentemente diferença entre o filho e o pai. A ternura que por ele tão naturalmente extravasava correspondia para ela a abrir o coração diante do pai.

Quanto ao rancor que antes partilhara com sua mãe contra a Sra. Ota, se não fora de todo abolido, perdera muito da virulência. Kikuji ia ao ponto de se dizer que, se não tomasse cuidado, chegaria, a despeito de si mesmo, a ouvir com os sentimentos do pai a essa mulher que tanto o amara. Não se encaminhava já na quimera duma longa intimidade com ela?

Sentia agora em si mesmo por que o pai, que rompera tão rápido com Chikako, ficou preso à outra até a morte. Compreendia também o desdém que Chikako devia ter por essa mulher. Ainda há instantes, não se sentira ele mesmo tentado a fazer sofrer essa presa fácil, torturando-a como quisesse?

— Vem seguido às reuniões de Kurimoto? — lançou-lhe de imprevisto. — No entanto ela não teve dúvidas em atormentá-la o que podia, antigamente!

— Sim. . . Foi ela que me escreveu depois da morte do seu pai — confessou a Sra. Ota curvando a cabeça. — Sentia-me tão só. . . E não sabia me defender de nada que se referisse à memória dele.

— E a sua filha, sempre vem junto?

— Oh! Mas certamente a contragosto.

Andando sempre, tinham atravessado a passagem de nível, depois a estação, e prosseguiam direto avante, em direção à colina do lado oposto do Templo Engakuji.

 

A Sra. Ota devia ter quarenta e cinco anos, pelo menos vinte a mais que Kikuji; mas soube tão bem lhe fazer esquecer essa diferença de idade, que ele pensava realmente estar beijando uma mulher ainda mais jovem do que ele próprio.

A volúpia que acabava de provar era a de um prazer que só a experiência de sua parceira seria capaz de lhe dar; e no entanto o rapaz, em nenhum momento, se sentira coibido pela timidez de sua inexperiência. Tinha a impressão de saber pela primeira vez o que era uma mulher, desde então conhecendo o que era ser um homem. Kikuji se surpreendia com essa revelação e com o despertar completo da sua virilidade.

Nunca antes suspeitara que existisse, nas mulheres, uma receptividade tão flexível e tão profunda, capaz de orientá-lo, seguindo-o. Esta passividade voluptuosamente ativa e cálida que o mergulha num mar de perfumes. Ele, que apenas experimentava um pouco de dissabor, satisfeito o desejo, cada vez que aproveitara as liberdades que sua vida de solteiro oferecia, a essa altura se espantava de se ver, ao contrário, imerso nas delícias duma languidez gostosa e apaziguadora. Sabia que, de qualquer outra parceira, se teria friamente afastado e a enxotado, enquanto aqui, pela primeira vez, seu corpo adorava sentir o calor doce do outro corpo apertado contra si, prolongando o amplexo indefinidamente. Não, nunca conhecera numa mulher estas ondas acariciantes dum sentimento sem fim. Seus sentidos, ébrios, aí descansavam com delícia, enquanto interiormente saboreava o triunfo do conquistador, do triunfador que se faz lavar os pés por seus escravos. Mas, ao mesmo tempo, se sentia também como uma criança que cisma e se refugia no quente dos braços de sua mãe.

Livrando as espáduas e se erguendo um pouco, Kikuji disse de repente:

— Kurimoto é marcada por grandes manchas de nascença, sabia?

Embora consciente da perversidade de sua frase, não ia, em seu langor, ao ponto de se dar conta de quanto podia com isso prejudicar a Chikako. Não pensava absolutamente em ofendê-la.

— Olhe, são aqui, assim, bem no seio — e adiantou a mão.

Obedecia a um impulso estranho e turvo, não sabendo bem de onde lhe vinha esse inesperado desejo, essa impaciência ávida de trair a si mesmo e ferir a outrem. Ou quem sabe era apenas um modo de disfarçar, por pudor juvenil, a curiosidade que tinha daquele corpo feminino?

— Oh! deixe disso, é repugnante — disse ela, com um gesto distraído de fechar o quimono, como se não entendesse do que se tratava. — É a primeira vez que ouço falar disso — acrescentou com indiferença. — Sob o quimono, não se vê nada.

— Não, claro, mas assim mesmo. . .

— O quê?

— Há momentos em que se deve ver, forçosamente. Veja, pega esta parte aqui e aqui.

— Oh! que malandro. . . Se eu tivesse a mesma coisa, você procuraria olhar?

— Mas não, ora!... Se você tivesse manchas neste lugar, me pergunto o que você faria e o que isso podia oferecer, justamente neste instante..

— Onde ela tem as manchas, aqui? — e seus olhos se fixaram no próprio peito, tranqüilamente. Em seguida, quis saber com simplicidade: — Por que fez essa pergunta? Em que é que isso nos importa?

Kikuji se sentiu desarmado. Desejara passar seu veneno para ela, mas com tão pouco resultado que lhe fora devolvido e de novo o corroía.

— Em muito! Tinha apenas oito ou nove anos na única vez em que vi essas manchas. Desde então, me têm obcecado.

— Mas por quê?

— E você, será que não sofreu também com ela? — insistiu Kikuji. — Há de se lembrar quando a Kurimoto vinha à sua casa, dizendo-se emissária de minha mãe e inclusive de mim, com calúnias e censuras violentas. . .

Ela curvou a cabeça em sinal de assentimento, iniciando um leve movimento para se apartar; mas os braços de Kikuji só a apertaram melhor.

— Pois bem, nada me tirará da mente que toda a sua maldade, naquele momento, não era causada senão pelo despeito e a raiva de ter o seio marcado por essas nódoas, pelo complexo que criou a propósito.

— Mas é terrível o que você está dizendo!

— E talvez também ela tenha buscado vingar-se de meu pai.

— Mas se vingar de quê?

— Seu complexo... as manchas... Em parte por causa delas, tinha sido abandonada. Ficou ainda mais inconsolável, mais amargurada com elas.

— Oh, basta! Não falemos mais nessas manchas horríveis. Perco o ânimo...

E no entanto — dizia-se Kikuji — não faz a mínima idéia do que são!

— A Srta. Kurimoto não tem mais por que se preocupar com isso. Provavelmente, nem pensa mais no assunto. São coisas que se esquecem...

— Imagina que, tendo acontecido, essas coisas não deixem vestígios?

A Sra. Ota ficou pensativa.

— Ocorre que o passado, na lembrança, nos seja ainda mais grato — disse sonhadora.

Foi então que Kikuji soltou a confissão que no entanto decidira firmemente calar.

— Conhece a moça que estava há pouco a seu lado na sessão de chá?

— Yukiko? Sim... É a filha do Sr. Inamura, não é?

— Kurimoto me tinha convidado expressamente para que eu a conhecesse.

— Oh!

Os grandes olhos da Sra. Ota pareceram ainda aumentar e fitaram Kikuji com gravidade.

— Era a apresentação duma noiva então? E eu, que nada notei!

— Mas não, não — protestou Kikuji. — Não estava em causa matrimônio, lhe afirmo. Nada nesse gênero.

— Ah, sim, sim... E na saída, eu...

Kikuji viu se armar nela um grande soluço; logo o espasmo fez tremer seus ombros e já lágrimas abundantes caíam no travesseiro.

— Imperdoável! Sou imperdoável!... Mas por que você não disse nada?

Observou-a a esconder o rosto no travesseiro, chorando sempre. Ele não entedia bem por quê.

— Se existe algo de mal no que fizemos, não há de ser aquela pequena formalidade que mudará qualquer coisa — disse. — Que o tivéssemos feito ao sair de lá ou não, não importa absolutamente. Não há relação entre as duas coisas!

Falava com convicção, era realmente o que pensava. No mesmo instante, porém, reviu a imagem da Srta. Inamura preparando o chá dentro das regras da arte, e o furochiki rosa lhe surgiu igualmente, com os motivos de sembazuru. Teve um estremecimento como de ódio pelo corpo da mulher que soluçava ao seu lado.

— Ai de mim, o que eu fiz? Mulher funesta, pecadora! — dizia entre os soluços, com arrancos que agitavam os ombros redondos.

Kikuji admitiria de bom grado que devesse se escandalizar daquela aventura, se pudesse por ela sentir o mínimo remorso. Pois enfim, sem falar no primeiro encontro com a Srta. Inamura, era nos braços da amante de seu pai que ele se achava!

Mas não, até o minuto presente não tivera um só instante a consciência de agir mal. Nem por um segundo sentira mágoa ou remorso. Poderia ser um faltoso?

Sequer se lembrava muito bem como haviam chegado a tal ponto, aquela mulher e ele. O mais naturalmente possível, sem dúvida, pela simples força das coisas. . . Mas se tivesse de crer no que ela dizia agora, ela se arrependia amargamente de o ter seduzido. Seria certo? De modo algum. Kikuji não tinha dúvidas: não só ela não tivera a intenção como, em nenhum momento, tivera a consciência de o estar fazendo. Quanto a ele, sabia bem não ter tido nem o sentimento e nem mesmo a suspeita de ter-se deixado arrastar. Haviam simplesmente seguido suas inclinações,, um e outro, sem encarar o aspecto moral da questão, sem pensar nisso. Nem um dos dois vira no caso qualquer obstáculo e ambos não resistiram. A moral, em suma, não tinha nada a ver com o assunto.

Tinham chegado ao pé da colina que se defronta com a do Templo Engakuji, e ali entrado numa hospedaria para jantar. Porque aquela conversa, ou antes as confidencias da Sra. Ota falando do pai de Kikuji não acabavam mais. Nada o obrigava a escutá-la, por certo, e considerava mesmo um tanto ridícula a fraqueza que lhe demonstrava. De sua parte, a Sra. Ota, dominada por seu assunto, transbordante de emoção, falava sem fim, sem que pudesse aflorá-la a menor apreensão quanto ao interesse que naquilo tudo pudesse ter o seu interlocutor. Já sutilmente enternecido, a despeito de si mesmo, por sua própria paciência, Kikuji a ouvira, de início, com um sentimento de simpatia vaga, mas foi-se deixando ganhar pouco a pouco pelo calor e a doçura daquela natureza afetuosa e terna, pela deliciosa intimidade que ela criava entre os dois. E em seguida se entregar completamente, envolver-se, cobrir-se naquela intimidade. Ao ponto inclusive de chegar a pensar na felicidade que seu pai deveria ter conhecido.

Sim, se era absolutamente necessário que achasse algo a se censurar, seria essa emoção. Mas do momento em que tinha deixado escapar assim a ocasião que se ofereceu de repeli-la e afastar-se dela, que lhe restava além de se deixar levar, cada vez mais, pelos preciosos enternecimentos do seu coração?

Se se pôs há pouco a lhe falar de improviso, e quase contra a vontade, de Chikako e da Srta. Inamura, foi sem dúvida premido por aquela tenebrosa sensação, aquela parte de sombra que permanecia em seu íntimo. Tinha querido expulsar a peçonha que engolira e lhe fizera mal.

Pagara caro por ela, com efeito, com o coração agora dilacerado mais que nunca por novos arrependimentos, e tão violentamente sacudido, com tanta vergonha de si mesmo, tão furioso, que só experimentava um desejo cego de ferocidade, procurando feri-la com suas palavras mais cruelmente ainda.

— Tratemos de esquecer tudo — insinuou ela.

— Digamos que nada aconteceu.

E em seguida, após uma pausa, num murmúrio:

— Nada absolutamente. Nada.

— Mas é claro que não aconteceu nada — fulminou Kikuji. — Você apenas reviveu um pouco a lembrança de meu pai! Nada mais e só isso!

— Oh!

Ela ergueu surpreendida a cabeça do travesseiro. O rosto estava desfeito, as pálpebras vermelhas com as lágrimas e o branco dos olhos congestionado. Mas mergulhando seu olhar naqueles olhos tão abertos, Kikuji pôde ler ainda neles a deliciosa languidez da mulher.

— Não há de ser eu quem diga o contrário, ai! Sou apenas uma pobre mulher...

— Não me venha com histórias! — bradou Kikuji, descobrindo-lhe os seios num gesto brusco. — Se você por acaso tem um sinal de nascença nalguma parte aí, seria impossível jamais esquecê-la... É antes impressionante.

Surpreendia-se a si mesmo com o que estava dizendo.

— Não me olhe assim, lhe peço. Não sou mais muito jovem. . .

Com os lábios arregaçados, escarnecendo, Kikuji se acercou ainda mais. E se agarrou nela, subitamente pacificado por sua doce languidez, embalado por suaves ondulações voluptuosas e como ainda tépidas do que sucedera há pouco.

Voltando a serenar, distendido, deixou-se cair no sono.

E quando dele emergiu, nesse mundo ambíguo que oscila entre o sonho e a realidade, foi ouvindo pássaros cantar. Era a primeira vez, parecia-lhe, que despertava assim com o canto dos passarinhos.

A bruma matinal perlava a verde folhagem das árvores e ele estava com a cabeça tão clara como se banhada de orvalho. Nenhum vestígio duma idéia inquietante.

A Sra. Ota dormia ainda, de costas para ele. Kikuji se perguntou em que momento ela se virará e, apoiando-se no cotovelo, contemplou longamente o rosto oferecido às primeiras luzes da aurora. Seus lábios esboçaram um leve sorriso.

 

Passados uns quinze dias da reunião de chá no pavilhão do Templo Engakuji, a filha da Sra. Ota foi visitar Kikuji em casa.

Mandou que a fizessem passar para a sala e, tentando calmar as batidas de seu coração, ele próprio foi abrir o armário de gêneros e pôs alguns frios no prato. Viera sozinha ou sua mãe a aguardava na porta, não se atrevendo a entrar? Kikuji não conseguia adivinhar.

Quando veio enfim para a sala, a moça se ergueu da cadeira para a reverência. Ele notou o lábio inferior um pouco saliente de sua boca fechada, enquanto ela baixava a cabeça.

— Perdoe-me por tê-la feito esperar — disse. E passou por trás dela para ir abrir a porta envidraçada que dava para o jardim. As peônias brancas, no vaso, exalavam um perfume delicado. A jovem avançou os ombros redondos, pendendo ligeiramente para a frente quando ele se acercou.

— Permite?... — e Kikuji sentou numa cadeira sem esperar.

Uma sensação de serenidade inexplicavelmente o invadiu, ao ver quanto ela se parecia com a mãe.

— Tomei a liberdade de vir à sua casa sem prevenir — começou ela de olhos baixos.

— É um grande prazer, não se preocupe. Teve dificuldade em achar o caminho?

— Não.

Kikuji de repente lembrou que ela costumava vir até a porta, acompanhando seu pai nos bombardeios, como lhe contara a Sra. Ota no jardim do Templo Engakuji.

Quase lhe diz, mas se retém no último instante. E a observa à vontade, pois ela continua com os olhos baixos.

Sente-se submergir de novo por uma onda morna, lembrando a doçura da Sra. Ota. Não pode se negar a pensar ainda uma vez no total e raro abandono do seu abraço. Abandona-se também, profundamente retranqüilizado e quase esquecendo de se manter na defensiva ante a filha. Sua prudente reserva tinha desaparecido, embora não tivesse ainda podido ver o olhar da moça e mergulhar o seu nos olhos obstinadamente descidos.

— Tomei a liberdade de vir. . .

Fez uma pausa, levantou a cabeça e o fitou no rosto.

— Tomei a liberdade. . . Trata-se de minha mãe: queria lhe pedir um favor.

Kikuji prendeu o fôlego.

— Desejaria que a perdoasse.

— Perdoasse? O que está dizendo?

Mas ao exprimir o seu assombro, compreendera na hora que a mãe contara tudo.

— Se há alguém que deve pedir perdão, sou eu — declarou.

— E eu ficaria contente que lhe perdoasse também tudo o que sucedeu com seu pai — prosseguiu ela.

— Mas também aí o perdão devia ser dado antes a meu pai. Minha mãe já deixou este mundo, sabe. .. Ninguém mais poderia ter agora seja o que for a perdoar à senhora sua mãe.

— Seu pai morreu tão cedo! Sempre me pergunto se não foi por causa das preocupações que minha mãe lhe causou. E também sua mãe, com maior razão. . . É o que eu já disse à minha mãe!

— Você tem escrúpulos exagerados e é injusta em relação a ela.

— Ah, por que não morreu ela primeiro, antes de seus pais!

A moça estava à beira de desmaiar, tanto o penoso diálogo lhe feria o pudor.

Compreendendo que não falava, em suma, senão das relações dela com a mãe, Kikuji se deu conta de como a coisa devia feri-la e ultrajar seus sentimentos, humilhando-a a fundo.

— Por favor, perdoe minha mãe! — repetiu, parecendo, para dizê-lo, apelar às últimas forças.

— Não é um perdão, mas a homenagem do meu reconhecimento e profundo respeito o que devo à sua mãe — precisou Kikuji com firmeza.

— Ela é que é a culpada, com todas as suas fraquezas. E eu queria que não se importasse mais com ela de forma alguma. Suplico-lhe, deixe de se ocupar de minha mãe!

Falou rápido, com uma voz entrecortada e trêmula. Kikuji entendia agora o que desejava dizer pedindo aquele perdão: deixe minha mãe em paz, não volte a vê-la, era o que ela queria significar.

— Não procure nem mesmo lhe telefonar mais — acrescentou.

A despeito do rubor flamejante que lhe invadira a face, ela ergueu a cabeça como para desafiar o próprio arisco pudor e olhou direto nos olhos de Kikuji. Mas seus grandes olhos estavam úmidos de lágrimas e seu olhar, sem o mínimo traço de animosidade, tinha qualquer coisa de suplicante, algo de um apelo desesperado.

— Entendo — disse ele enfim. — Peço desculpas.

— Eu suplico. E me atrevo a contar com você... Essas últimas palavras enrubesceram ainda mais a infeliz jovem, e Kikuji viu-se esbrasear até sua nuca longa e branca. Seria para acentuar a beleza do seu longo pescoço delicado que usava aquele pequeno broche branco na gola do casaco?

— Minha mãe concordou, pelo telefone, com o encontro que você marcou — pôs-se a explicar um pouco menos crispada. — Fazia absoluta questão de ir e fui eu que a impedi. Me agarrei nela com toda a força quando quis sair. Foi por isso que esperou em vão.

Kikuji tinha, com efeito, chamado a Sra. Ota pelo telefone três dias depois do primeiro encontro. O tom dela não deixava qualquer dúvida sobre sua alegria, mas afinal não veio ao café onde a esperava. E desde aquela conversa pelo telefone, nada mais soubera a seu respeito.

— Depois tive muita pena dela, mas, no momento, julguei-a tão odiosa que me opus tenazmente, fora de mim ao ponto de não saber mais onde estava!

"Fumiko — me disse ela, — telefona tu mesma e diz a ele que não irei. Peço-te, telefona!" Fui ao aparelho, mas fiquei com o fone na mão, incapaz de falar. Com o rosto banhado de lágrimas, minha mãe não tirava os olhos do aparelho: era você que ela via, Sr. Mitani, não o telefone. É assim, minha mãe.

Ficaram um longo momento sem dizer nada. Por fim, Kikuji rompeu o comprido silêncio:

— Após a sessão de chá — perguntou, — por que foi na frente quando sua mãe ficava a me esperar?

— Porque queria que você soubesse como ela é, na realidade, um pouco má.

— Má, ela? De fato, é demasiado boa!

A moça desceu os olhos e Kikuji observou de novo o seu rosto: o nariz miúdo e de forma tão perfeita, a boca com o lábio inferior um nada proeminente. A doçura desses traços lhe lembrava os da mãe.

— Desde há muito sabia que a senhora sua mãe tinha uma filha — retomou Kikuji. — Não raro almejei falar de meu pai com ela.

Ela inclinou a cabeça em sinal de aquiescência.

— Foi uma idéia que eu também tive.

Se não tivesse ocorrido nada entre a mãe dela e eu, pensou Kikuji, agora eu poderia lhe falar livremente de meu pai. Mas, pensando — era tão estranho assim? —, foi justamente graças ao que lhe ocorrera com a Sra. Ota, que pudera de todo o coração lhe perdoar a ligação com o pai e compreender tão bem a alma dos dois. As coisas são complexas.

Kikuji fazia em silêncio essas reflexões quando a moça, decerto julgando que prolongara indevidamente a visita, ergueu-se com precipitação. Ele saiu com ela para acompanhá-la.

— Espero que possamos falar um dia juntos de meu pai — disse Kikuji. — E também que me fale de sua mãe. É uma pessoa tão digna de admiração!

Sem dúvida era bastante egoísta o que dizia, mas representava exatamente o que pensava.

— Sim. . . Mas você não vai se casar logo?

— Eu?

— Você. Soube por minha mãe. Com a Srta. Yukiko Inamura.

— Absolutamente. Não há nada a esse respeito. A rua descia em declive logo após a porta do

jardim, fazendo a meia altura uma curva de onde, a gente se virando, não via mais que a parte de cima das árvores do jardim de Kikuji. Andando, ele divisava em mente a moça do sembazuru, que a visitante há pouco lhe lembrara. Ao chegarem na curva, ela se deteve e se despediu.

Kikuji tornou a subir em direção à casa, enquanto ela se afastava, descendo sempre.

 

O SOL MORRENDO ENTRE AS ÁRVORES

Kikuji se dispunha a deixar o escritório quando recebeu um telefonema de Chikako.

— Vai direto para casa esta noite?

Era o que pretendia fazer, mas hesitou, prevendo algum contratempo.

— Quer dizer. . .

— Mas sim, sim, esta noite, por favor, vá logo. Pelo seu pai, entende? Hoje é o dia em que costumava convidar os amigos para uma sessão de chá. A lembrança disso me voltou de golpe e foi preciso que eu fizesse alguma coisa.

Kikuji nada respondeu.

— Fiz uma limpeza no pequeno pavilhão de chá. . . Alô, está ouvindo?... Ah, sim. Pois lavei o chachitsu e em seguida me deu vontade de cozinhar um pouco.

— Mas onde você está?

— Na sua casa, claro, estou na sua casa. Perdoe, devia primeiro tê-lo avisado.

Surpreso, Kikuji ficou calado.

— Recordando este aniversário, não pude ficar aí sem fazer nada, compreende? E disse a mim mesma que a limpeza do chachitsu me acalmaria um pouco. Ah, sei bem: devia ter-lhe pedido permissão, Mas se tivesse lhe telefonado, estou certa de que teria recusado.

O pequeno pavilhão e sua sala de chá estavam em desuso desde a morte do pai de Kikuji. Era verdade. No máximo sua mãe ia ali uma vez ou outra, antes de morrer, em busca de solidão e silêncio. Às vezes ficava tempos, mas sem nunca acender o fogo; mandava que lhe trouxessem a água quente num pequeno cântaro de ferro. Aliás ele não gostava muito de deixar a sua mãe se isolar ali, a saciar mal sabia ele que pensamentos sombrios. Preocupado, várias vezes teve vontade de ir para junto dela, mas, na hora, nunca se atreveu.

Antes da morte do pai, era Chikako que cuidava do pavilhão. Raramente sua mãe nele punha os pés.

E desde que sua mãe falecera, o chachitsu tinha ficado fechado. Só havia a velha doméstica para abri-lo uma ou duas vezes por ano, a fim de arejá-lo. Uma mulher que já os servia quando seu pai era vivo.

— Há quanto tempo que não arrumam aquilo? — continuou Chikako num tom que ele considerou cada vez mais desembaraçado. — As esteiras, limpei e limpei e não consegui tirar o cheiro de mofado. De não se acreditar! Quando tudo ficou bem limpo, me deu desejo de cozinhar e lá fui eu. Assim de improviso, não havia naturalmente tudo o que precisava à mão, mas fiz pelo melhor. E agora o estou esperando, em seguida.

— Realmente, não sei o que dizer.

— Mas se ficarmos só nós dois, vai ser triste. Por que não traz alguns amigos do escritório?

— Nem vale a pena falar, ninguém aqui conhece a prática do chá.

— Não tem importância, ao contrário! É melhor que não sejam entendidos, pois não se poderá ter rigor nos preparativos. Que venham, simplesmente.

— Não, lhe digo, nem vale a pena falar — cortou Kikuji num tom definitivo.

— Oh! de fato? É uma pena! Mas, então, o que faremos?... Quem sabe alguns amigos de chá de seu pai? Não! não poderiam ser convidados assim. Olhe! e se convidássemos a Srta. Inamura para vir?

— Está brincando, não vá fazer uma coisa dessas.

— Por que não? Não compromete você em nada, que lhe importa? A família dela, sabe, se mostra favorável. Enfim, para você é apenas uma ocasião de rever a Srta. Inamura, com quem poderá falar de coração aberto. Se eu a chamar e ela aceitar vir, vai ser uma espécie de confissão de sua parte e você saberá que está de acordo.

— Não quero nada desses processos! — disse Kikuji, contrafeito. — Deixe disso! Se insistir, não vou para casa.

— Bem, bem! De qualquer modo não se pode discutir sobre isso no telefone e adiaremos a coisa para mais tarde. Venha depressa.

— "Isso" não existe, no que a mim diz respeito. Não quero mais ouvir falar no assunto.

— Está certo. Não ouvirá falar mais. Tomo tudo por minha conta e farei como achar melhor, pronto.

Que mulher venenosa! Sua indiscrição, seu desembaraço e este jeito que tem de dispor de você! Indignado, Kikuji sofria com repugnância a autoridade que ela fazia pesar sobre ele. Reviu mais uma vez as terríveis manchas que marcavam a metade esquerda de seu peito. Escutou, como se repercutisse em sua cabeça, o ruído de sua vassoura barulhenta limpando o pavilhão de chá. Sentiu torcer-se em seu cérebro o pano molhado de que ela se servira para lavar os soalhos exteriores.

Além dessas violentas imagens de seu dissabor, Kikuji também se indignou, como duma inconveniência ao mesmo tempo ridícula e odiosa, com o fato de Chikako se permitir ao bel-prazer entrar em sua casa com ele ausente, e aí até mesmo cozinhar!

Se ainda se tivesse contentado em arrumar o chachitsu, pondo nele umas flores em memória do defunto, seria perdoável. . .

E eis que súbito, no remoer detestável dessas sensações aborrecidas, a imagem da Srta. Inamura faiscou nele como uma centelha.

A morte de seu pai forçosamente o afastou de Chikako; estaria ela com o desígnio de se reacercar e prendê-lo em suas redes por meio daquela moça?

Seu telefonema insolente e bufo, se bem que no estilo daquela original, não apenas surpreendera Kikuji, o sobressaltara. Achara no tom de Chikako, no seu modo de cinicamente utilizá-lo, de provocar com consciência o seu riso amargo, de passar adiante de qualquer reação sua, uma espécie de ameaça. Mas tudo isso não se apoiava, olhando a fundo, sobre suas próprias fraquezas? Essa dúvida o retivera, Kikuji sabia perfeitamente, de deixar explodir a sua cólera contra aquele telefonema incongruente. Se ela usava sem complacências de seu ascendente sobre ele, não seria por ter boas razões de se saber a mais forte?

Foi com essas idéias que Kikuji, ao sair do escritório, rumou para Ginza, refugiando-se na atmosfera confinada e sufocante dum café minúsculo. Quisesse ou não, não podia agora deixar de voltar para casa como lhe pedira Chikako. Mas sentia o coração pesado.

Já estaria Chikako a par de seu encontro com a Sra. Ota na saída da sessão de chá? E também de como terminara na pequena hospedaria de Kita-Kamakura? As possibilidades eram poucas... a menos que as duas mulheres não tivessem se avistado depois!

O tom autoritário dela no telefone devia imputá-lo apenas ao defeito natural seu de delicadeza? Ou ainda, não deveria ver naquilo, da parte dela, senão a pressa de ver realizado o seu desígnio, um modo bem seu de chegar logo ao que pretendia no concernente à Srta. Inamura?

Incapaz de suportar-se por mais tempo no local demasiado estreito, Kikuji saiu e foi para a estação, tomando o trem que o levaria para casa.

Pela janela do vagão repleto, entre Yurakucho e a estação central de Tóquio, uma avenida margina-da por grandes árvores atraiu seu olhar.

Muito ampla, orientada de este a oeste, fazia cintilar o sol poente. Essa longa fita brilhava sob a luz como aço polido, e as grandes árvores que a margeavam, vistas assim à contra-luz, pareciam dum verde extraordinariamente sombrio. No chão, a densidade da sombra que as sublinhava era como uma fonte de frescura. As árvores eram belas, de folhagem espessa, ostentando altivamente os ramos poderosos. Aqui e ali, recuadas, se erguiam as fachadas de sólidas casas de arquitetura ocidental.

Estranhamente, em todo o comprimento, a avenida que se oferecia ao olhar estava deserta na hora, riscando como um traço de silêncio e imobilidade, um traço nu de luz até as valas do palácio imperial, ao fundo, onde ia terminar. Que contraste entre a corrida do trem repleto e a paz soberana desta vasta aléia, perpendicular à ferrovia, que semelhava ir afundar sozinha no silêncio maravilhoso, àquela hora singularmente vasta do crepúsculo, para ir dar, como num conto, na própria paisagem do poente! Por um momento, Kikuji acreditou perceber distintamente, avançando na sombra alongada das grandes árvores tão frescas e serenas, a delicada silhueta da Srta. Inamura, com o furoshiki de sembazuru na mão. Sim, via até o menor detalhe os pássaros brancos que ornavam o lenço de seda rosa!

Seu coração se pôs a bater a essa visão e seu humor, deliciosamente, se transformou. Quem sabe ela já não estava lá em sua casa?

Repôs-se pensando em Chikako e no que devia estar planejando. Por que, enfim, ela de saída lhe propôs que trouxesse amigos junto e só falou em convidar a moça depois que recusou. Um fingimento? Teria, desde o início, a intenção de chamar a Srta. Ina-mura? Não compreendia mais nada.

Ao chegar em casa, mal franqueou a porta, Chikako apareceu na entrada.

— Está sozinho?

Respondeu com um sinal de cabeça.

— Felizmente não trouxe ninguém. Ela está aí. Adiantando-se para desembaraçá-lo do chapéu e da pasta, indagou:

— Não veio direto para casa, não foi?

Kikuji se interrogou se seu hálito o traía ou se se notava no quente de sua face que havia bebido.

— O que andou fazendo? Aonde foi? Voltei a ligar para o escritório e me responderam que já tinha saído. Calculando o tempo necessário para chegar, deveria estar aqui bem antes.

— Essa agora!

Mais uma vez a impudência de Chikako o deixou sem voz. O quê? Não bastava a ela chegar em sua casa e aí fazer tudo o que lhe desse na veneta sem mesmo pedir desculpas, tinha ainda censuras a lhe fazer! Passou ao quarto sem uma palavra. Chikako seguiu atrás. A roupa japonesa, preparada pela doméstica, estava à sua espera. Chikako quis ajudá-lo.

— Não, por favor, não faça nada. Não quero abusar e realmente me magoaria infringir a esse ponto as regras da mais simples polidez ou os deveres elementares da hospitalidade! Vou mudar a roupa ao lado.

E como para anular logo qualquer perseguição de parte dela, Kikuji, que tinha tirado o casaco, passou para o vestíbulo.

Trajado à japonesa, voltou ao quarto onde Chikako, sentada a esperá-lo, o acolheu disparando:

— Estes solteiros, afinal, se deslindam bem!

— Acha?

— Sim. Mas esse modo de viver tem muitos inconvenientes e espero que não o prolongue mais do que o necessário.

— Como não! Depois do que vi com o meu pai!... Ela lhe lançou um rápido olhar. Kikuji notou que tinha posto um avental de sua mãe, emprestado pela empregada, sem dúvida. Arregaçara as mangas e ele se impressionou ao ver aqueles braços firmes e brancos, quase brancos demais, com a proeminência aparente dos duros músculos.

Num tom claramente mais convencional, Chikako lhe disse:

— Por ora a introduzi no salão. Mas não seria mais simpático recebê-la no pavilhão de chá?

— Não sei se ali se pode acender a luz. Não me lembro de tê-la visto nunca acesa.

— Poderia se fazer um jantar a velas, era até mais cativante.

— Mas não, ora!

— Ah, estava me esquecendo! — mudou Chikako de assunto bruscamente como se a coisa lhe surgisse da memória. — Há pouco, no telefone, a Srta. Inamura desejou saber se sua mãe estava também convidada. Respondi que isso nos faria ainda mais contentes. Infelizmente a Sra. Inamura tinha um compromisso esta noite e acabamos decidindo que a Srta. Inamura viria só.

— Acabamos decidindo? Quer dizer que você decidiu e que a forçou de acordo com a sua conveniência. Não está direito convidar pessoas assim, no último minuto! É muito incorreto. O que elas não pensarão de nós?

— Mas sim, é verdade, as regras não foram respeitadas como deviam. Mas já que a moça veio, que está aqui, se anula todo aspecto de incorreção de nossa parte.

— Como assim?

— Claro! Já que veio hoje, é porque aceita de bom grado a idéia do casamento. Não digo que isso seja muito clássico, evidentemente. Que mal há? Podem os dois, feita a coisa, se divertirem comigo e com minhas iniciativas "originais"! Mas, sabe, pode-se encarar dum modo ou de outro, não importa: o que deve acontecer sempre acontece. Pelo menos segundo a experiência que tenho.

Assumira no tom uma segurança insolente, como se conhecesse todos os pensamentos de Kikuji.

— Você por acaso lhe disse tudo?

— Naturalmente! Ela está a par de tudo.

E ao dizer isso, tomou uma atitude que dava claramente a entender: vamos, trate de se decidir, já é tempo!

Kikuji se levantou e passou pela galeria se dirigindo ao salão. Um momento, diante da romãzeira, esforçou-se por compor um rosto melhor. Iria se apresentar com seu aspecto menos ágil ante a Srta. Inamura?

Seu olhar, passando distraído pela sombra negra da árvore, lhe trouxe ao espírito as manchas de Chikako. Kikuji sacudiu a cabeça. Os últimos clarões do poente se espelhavam ainda nas pedras do pequeno jardim, guiando os passos até o salão com os tabiques bem abertos.

A Srta. Inamura, num canto da grande peça em semi-obscuridade, criava uma mancha clara que parecia luminosa. No tokonoma, havia um arranjo de íris numa taça. Cumpria ver nisso um sinal do destino? O mesmo motivo adornava a larga cinta de seda (o obi) da moça, envolvendo sua cintura em flores de íris. Talvez não fosse mais que uma simples coincidência, afinal, já que aquela era a flor da estação e se usava em geral para exprimir o clima daquela quadra do ano, o espírito destes derradeiros dias de primavera.

Não eram aliás íris selvagens, e sim cultivados os que entraram no arranjo do tokonoma. Pela disposição alta e empinada do ramalhete, das flores e das folhas, e também por seu frescor, se podia adivinhar que Chikako mal acabara de arrumá-los.

 

O dia seguinte era domingo e chovia. De tarde, Kikuji foi ao chachitsu a fim de pôr em ordem os objetos que tinham sido usados na véspera à noite. Esperava secretamente retemperar-se na atmosfera da moça, como se ainda pudesse ali respirar o perfume da Srta. Inamura.

Tendo pedido um guarda-chuva à empregada, aprestava-se a seguir pelas pedras dispostas como ilhazinhas até a entrada do pavilhão de chá, quando notou que a água caía forte diante da romãzeira. Erguendo os olhos, constatou que havia um buraco grande na calha.

— É preciso mandar consertar isso — disse à doméstica.

— É também o que eu acho, senhor.

Não raro, quando chovia à noite, ele já tinha sido perturbado na cama por aquele jorro, que o impedia de dormir.

— Mas quando a gente começa a fazer consertos, você sabe como são as coisas, não se termina nunca. O melhor seria vender tudo antes que os defeitos se tornem grandes demais.

— Todos os que possuem casas grandes dizem o mesmo hoje — observou a fiel auxiliar. — No entanto a senhorita que esteve aqui ontem de noite ficou maravilhada com a casa tão grande. Ela tem o propósito de vir morar aqui, não é?

Sem dúvida era essa a sua forma de significar que ele não devia vender.

— A Sra. Kurimoto lhe falou então de alguma coisa?

— Sim, senhor. Logo que a senhorita chegou, ela fez com que visitasse a casa toda.

— Só faltava isso!

Na noite anterior, a moça não lhe deixara adivinhar nada com as palavras. Como era possível? Imaginava que ela só tivesse entrado para o salão, daí passando para o pequeno pavilhão do jardim pelo caminho de pedras, tal como ele ia fazer hoje.

Já na noite precedente, como não conseguia dormir, sentia-se empurrado para o chachitsu a fim de respirar de novo o aroma dela. Mas, raciocinando, repetia a si mesmo, procurando dormir, que ela era dum mundo diferente, para sempre inacessível. Alguém de outra esfera. . . sempre. . .

Que Chikako a tivesse feito visitar a casa toda, era a última coisa que teria podido imaginar!

Kikuji pediu à doméstica que lhe trouxesse um braseiro para o chachitsu e seguiu pelo caminho das pedras. Na véspera Chikako, porque devia voltar para Kita-Kamakura, partira ao mesmo tempo que a Srta. Inamura, deixando à empregada a tarefa de arrumar o pavilhão de chá. Assim, não restava mais a Kikuji que pôr no lugar a preciosa baixela e outros objetos, provisoriamente deixados a um canto da pequena peça. Infelizmente, conhecia mal o lugar em que cada coisa devia ser colocada. Resmungando que, sem dúvida, a Kurimoto sabia isso melhor que ele, virou-se para apreciar o kakemono pendurado na véspera: o retrato de um poeta, uma pequena perfeição de Sotatsu, delicada pintura a tinta, finamente realçada com cores de tons esfumados.

No curso da noitada, a Srta. Inamura lhe perguntara o nome do personagem que o retrato representava, mas não pôde senão responder:

— Nada sei, realmente, devo confessar. Nas obras desse estilo, os retratados sofrem um tratamento sempre tão igual que, sem o poema, não se adivinha quem são.

Chikako interveio:

— Deve ser o poeta Muneyuki, e o poema diz mais ou menos: "O verde do pinheiro, que dura todo o ano, parece no entanto mais cintilante quando se acerca a primavera." Devo admitir que essa estação agora já passou um pouco. Mas o seu pai, Sr. Mitani, estimava muito esta obra, com a qual não raro adornava o chachitsu na primavera.

A tais explicações, Kikuji observou que não se podia de fato saber pelo retrato se era Muneyuki ou Tsurayuki. E confirmava de novo agora essa imprecisão, ao contemplar aquele rosto cuja serenidade não era perturbada por nenhum pormenor pessoal que permitisse identificá-lo. Porém o pequeno quadro, de linhas extraordinariamente puras, tinha uma força de sugestão impressionante. Bastava contemplá-lo para alguém se sentir penetrado de viço e pureza.

Como não pensar de novo na Srta. Inamura? E só o arrancou desses pensamentos a chegada da doméstica com o braseiro e a água quente.

— Desculpe se demorei, mas preferi aquecer antes a água. Fica mais cômodo.

Devia ter pensado que era para o chá que pedira o fogo. Na realidade, só pensara no úmido do pavilhão e não tinha qualquer intenção de utilizar a chaleira.

Para não decepcioná-la, colocou o fogo no tripé, mas não da maneira artística, e pôs em cima a chaleira de ferro.

Desde tenra infância, Kikuji conhecia as sessões de chá, de que seu pai era fervente adepto, mas nunca tivera vontade de se entregar àquela prática. Seu pai tampouco jamais insistiu para que aprendesse essa arte.

Neste mesmo instante, logo que a água começou a cantar na chaleira, Kikuji, entregue às suas idéias, contentou-se em deslocar um pouco a tampa sem cerimônia, prosseguindo em sua cisma.

A peça cheirava um tanto a fechado, as esteiras tinham pegado umidade. A tonalidade sóbria das paredes, tão perfeita para valorizar a silhueta de sua jovem convidada de ontem à noite, parecia-lhe hoje triste.

Yukiko, nesta moldura, tinha-lhe causado um pouco o efeito duma moça habituada a viver à maneira ocidental, que não veste senão para certas ocasiões as roupas japonesas e só retoma por exceção o jogo das formas tradicionais. Como para se desculpar, ele lhe tinha dito:

— Esse convite imprevisto da Kurimoto deve tê-la atrapalhado, imagino. É também dela que vem a idéia de recebê-la neste pavilhão de chá.

— Disse-me que era o aniversário da sessão de chá de seu pai.

— A mim também lembrou isso. Tinha esquecido completamente e não me teria de modo algum preocupado.

— A Srta. Kurimoto é uma mestra de chá a quem não falta ironia, receio, convidando a iniciante que eu sou para um semelhante aniversário! Sou ainda menos digna de algo assim porque não tenho seguido o ensino com muita aplicação nesses últimos tempos.

— Foi também esta manhã que Kurimoto subitamente se lembrou do aniversário e resolveu ir pôr em uso o pavilhão. Cheira a fechado, não acha?

E com a voz hesitante, de repente, acrescentou:

— Foi em todo caso uma sorte para mim tê-la conhecido. Lastimo apenas que tenha sido por inter-cessão dessa mulher... Lastimo muito... especialmente por você.

A moça o olhou, perplexa:

— Mas por quê? Se a Srta. Kurimoto não estivesse aí, ninguém nos teria apresentado um ao outro.

Era tão simples quanto real. Sem Kurimoto não teriam nunca se encontrado. E foi para Kikuji como uma chicotada deslumbrante. Não acabava ela implicitamente de revelar que o projeto de matrimônio tinha o seu consentimento? Era a sua convicção. O ar perplexo e o olhar interrogativo da moça se esclareceram para ele.

Perguntava-se ainda o que ela devia julgar de ouvir chamar simplesmente de Kurimoto, sem uma expressão de polidez, a sua mestra de chá. Saberia que Kurimoto tinha sido a amante de seu pai, embora apenas o tempo duma aventura breve?

— Para mim — quis explicar — existem amargas lembranças relacionadas com a pessoa de Kurimoto.

Sua voz quebrava.

— Me seria especialmente desagradável que chegasse a ser um instrumento do meu destino. Não quero acreditar que seja graças a ela que conheci você.

Chikako chegou então com o jantar para três.

— Me admitem como comensal? — disse, deixando-se cair na esteira como para retomar o fôlego.

Depois, virou-se para a Srta. Inamura, inclinando levemente o busto:

— Sinto muito, realmente, que seja a única conviva. Vai decerto se aborrecer.

Inclinando-se a seguir um pouco para Kikuji, finalizou:

— Mas estou certa, Sr. Mitani, de que seu pai está contente e nos assiste.

A jovem se satisfez em baixar os olhos, afirmando outra vez quanto se sentia pouco qualificada para entrar no venerado chachitsu do falecido pai do Sr. Mitani.

Chikako, sem se deter nessas declarações, pôs-se a narrar o papel do pavilhão antes da morte do Sr. Mitani, aflorando as recordações que lhe ocorriam.

Parecia não guardar a mínima dúvida quanto à conclusão do casamento entre Kikuji e a Srta. Inamura. À porta, na hora de sair, declarou-o mais claro ainda ao dizer, diante desta, ao rapaz:

— Na próxima vez, seremos nós que vamos visitar a Srta. Inamura. Mas dessa vez ao menos, avisando com antecedência.

Aprovando com a cabeça, a moça esteve à beira de dizer alguma coisa, mas em seguida se conteve, como a despeito de si mesma, com uma rara expressão de pudor atingido.

Kikuji estava tão longe de esperar uma tal transparência dos seus sentimentos, que uma lufada de calidez o invadiu, inclusive no corpo: teve a impressão de que passava por ele o calor dela. Apesar de tudo, o sombrio e sujo quadro em que se debatia nem por isso se anulou.

Agora ainda, sozinho no silêncio da peça de chá, via diante de si esse quadro de sujeira e trevas. Não só por causa da mulher que lhe apresentara a Srta. Inamura, não. A mácula recaía também nele mesmo.

Tinha uma imagem no espírito: via o pai, com os dentes escuros, mordiscando as manchas imundas de Chikako; e sentia, em imagem, que não era diferente do pai.

A moça nem se preocupava com o fato de Chikako ser a origem do encontro de ambos; mas ele não podia suportar que ela tivesse representado a alcoviteira entre os dois. Havia nisso algo que o embaraçava ao ponto de paralisá-lo; mas se esse problema explicava em parte sua indecisão e suas covardias, não havia apenas isso, mas outras coisas bem diversas que lhe pesavam.

Se tinha horror de Chikako, sabia quão pouco sincero era ao atiçar seu ódio com o pretexto de ser ela que lhe impunha o casamento com a Srta. Inamura. Nesse papel, em suma, ela se achava muito bem no seu lugar e favorecia uma comodidade indiscutível.

Nessa altura de sua reflexão, Kikuji se sentiu como esbofeteado ao pensar que a Srta. Inamura tinha talvez ido até o fundo dele, e ficou aterrado ao medir de repente a amplidão da sua covardia, de que não tivera consciência até o momento.

No fim da refeição, aproveitando o instante em que Chikako se afastou para preparar o chá, desejou retomar o diálogo interrompido por sua chegada:

— Se cumpre ver em Kurimoto um instrumento do destino — disse, — creio então que temos, eu e você, concepções bem diferentes do destino.

Eis tudo o que soubera dizer e se dava perfeitamente conta de que isso ecoava como uma má desculpa, uma desastrada e vã justificação.

E agora compreendia em que se baseava o desprazer que tinha, depois da morte de seu pai, ao saber que sua mãe estava só neste pavilhão de chá. Sim, acabava de compreender: seu pai antes, depois sua mãe, ele agora, cada um, ao vir se isolar naquele pavilhão, se achava só com os seus pensamentos. . .

Fora, a chuva caía pesada sobre as folhagens vergadas das árvores. E eis que naquele atrito contínuo, distinguiu o barulho de gotas tamborilando num guarda-chuva que se aproximava.

Do exterior, a voz da empregada anunciou:

— A Sra. Ota está aí.

— A Sra. Ota?

— Sim, senhor. E parece doente, está com tão mau aspecto.

Kikuji, que o aviso fizera saltar de pé, ficou ali plantado, sem dizer nada.

— Onde quer recebê-la, senhor?

— Aqui mesmo.

— Muito bem.

Para vir ao chachitsu, a Sra. Ota atravessou o jardim sob a chuva forte. Não trazia sombrinha e o rosto estava molhado quando surgiu. Kikuji se disse que devia decerto ter deixado a sombrinha na entrada. Mas não era a chuva, eram as lágrimas que lhe umedeciam o rosto. Compreendendo, Kikuji foi ao seu encontro quase gritando:

— O que houve?

Com a face erguida para ele, a Sra. Ota se sentou na galeria exterior, com as duas mãos apoiadas no chão. Dir-se-ia que caiu diante dele, em cima dele. Lentamente, suas lágrimas brotavam e Kikuji, vendo as gotas no soalho, perto da entrada, acreditou de novo que eram da chuva.

Com os olhos nos de Kikuji, apoiando nele com força o olhar, era como se apenas isso a retivesse de desfalecer. Consciente do perigo, ele não ousava desviar seu olhar, certo de que ela desmoronaria. Perscrutava, a despeito de si mesmo, as profundas olheiras que lhe comiam o rosto, a pele amarrotada em volta deste olhar batido, em febre, morbidamente fixo, e no entanto transbordando uma ternura suplicante através da torrente do pranto e cheio duma inex-primível doçura.

— Peço que me perdoe — disse ela. — Eu não podia mais. Tinha de vê-lo.

Sua voz, todo o seu ser não eram senão amor. Sem o extraordinário e terno calor que dela emanava, Kikuji nunca teria suportado a vista daquele rosto emaciado. Sentia o coração partido pelo atroz sofrimento cujo espetáculo ela lhe ofertava. Mas ainda que soubesse que sua causa era ele próprio, extraía uma espécie de consolo no banho de ternura infinita que ela lhe dava.

— Venha logo, entre, antes de se molhar completamente — disse-lhe, agarrando-a com os dois braços para soerguê-la e guiar, com uma ponta de brutalidade na pressa.

— Deixe!... Largue-me! — soprou ela, procurando caminhar sozinha, pois ele quase a levava nos braços. — Sou bem leve, não é?

— Sim.

— É que emagreci muito nesses últimos tempos .. . Não sou mais o que era.

Kikuji se censurava já da violência do seu gesto.

— A sua filha não terá ficado preocupada?

— Fumiko?

Pelo modo de pronunciar o nome, ele jurou que a moça tivesse vindo junto.

— Ela veio com você? — indagou.

— Oh, não. Vim às escondidas — declarou num soluço. — Minha filha fica me vigiando todo o tempo. Mesmo de noite, acorda ao menor ruído que eu faça. Sofre tanto por minha causa que chego a desconhecê-la. Diz-me coisas terríveis. "Por que sou filha única? Por que não tiveste outros filhos? Com o Sr. Mitani tu podias ter tido, não?..." Coisas assim!

A Sra. Ota, ao falar, se recompunha um pouco. Kikuji adivinhava, através de suas palavras, que insuportável mágoa sua filha sentira ao ver a mãe sofrer por causa dele. Teve uma pontada no coração ao saber que a moça chegara ao extremo de desejar que a mãe tivesse tido um filho do pai dele.

Sempre com o olhar fito em Kikuji, a Sra. Ota prosseguiu:

— É possível que Fumiko já esteja no meu rastro. Aproveitei sua ausência para escapar de casa. Devia ter pensado que eu não sairia por causa da chuva.

— Por causa da chuva? Só por isso?

— Sim, me julga demasiado enfraquecida para enfrentar o mau tempo.

Ele inclinou a cabeça sem dizer nada. A Sra. Ota procurou saber:

— Outro dia ela veio cá, não?

— Sim. Para me pedir que perdoasse você, segundo disse. . ., e fiquei sem saber o que responder a um pedido desses.

— Ah, eu entendo o que ela sente; e no entanto eis-me de novo aqui, apesar de tudo! Por que faço isso?.. . É horrível. Horrível.

— Mas que coisa. A não ser gratidão, que outro sentimento posso ter por você?

— Oh, obrigada! É mais do que eu poderia esperar ... Não mereço perdão daquela infelicidade depois da...

— E por quê? Não está ligada a ninguém, a nada... a menos que seja ao fantasma de meu pai!

O rosto da Sra. Ota permaneceu impassível, como se ela não tivesse ouvido. Ele teve a impressão de haver falado no vácuo.

— Esqueçamos tudo, não pensemos mais sobre isso — disse. — Nunca eu devia ter-me deixado transtornar a esse ponto pelo telefonema da Srta. Kurimoto! Estou envergonhada.

— Kurimoto lhe telefonou?

— Hoje de manhã. Para me dizer que o seu casamento com a Srta. Inamura estava praticamente resolvido. Ah, por que tinha de ser ela quem desse a notícia! Você poderia ter-me avisado...

Uma onda de lágrimas subiu-lhe aos olhos e ele esperava vê-la soluçar de novo quando, de repente, sorriu. Não o sorriso forçado de quem deseja rir entre lágrimas, não. Um sorriso de criança, cândido e doce.

— Ainda nem mesmo encarei a possibilidade de me meter nessa história — insurgiu-se Kikuji, — Será que permitiu a Kurimoto farejar alguma coisa a nosso respeito? Avistou-se com ela nesse período?

— Não, não a encontrei, mas sei como ela é: é bem capaz de ter descoberto algo. Hoje de manhã, no telefone, podia ter desconfiado.. . Fui tão sem jeito, ai!, sou tão incapaz.. . Tive uma espécie de síncope e acho que dei um grito. E ao telefone se adivinha fácil os sentimentos do outro, não é? Em todo caso, ela me disse: "Querida senhora, por favor, não crie obstáculos."

Seus ombros se puseram a tremer como se a sacudisse um calafrio de febre. Sua boca se crispou e o semblante descomposto refletia uma angústia sem limites. Parecia à beira duma síncope.

Kikuji se ergueu e estendeu a mão para sustentá-la pelos ombros, mas a Sra. Ota pegou-a:

— Tenho medo, ah, tenho medo! — suspirou, com o rosto extremamente pálido a trair a sua idade.

Seu olhar errou por todos os lados. E súbito, reencontrando ânimo, examinou a peça e inquiriu:

— Foi neste pavilhão?

Kikuji, sem entender o que queria significar, redargüiu com um "sim" vago e ocasional.

— Um maravilhoso chachitsu! --— disse ela. Estaria pensando que o marido morto tinha sido

não raro recebido nesta sala de chá? Ou pensava no pai de Kikuji?

— É a primeira vez que aqui vem? — quis saber Kikuji.

— Sim.

— Que é que está olhando com este ar engraçado?

— Nada... nada...

— É uma pintura de Sotatsu, o retrato de um poeta.

A Sra. Ota aquiesceu com um sinal de cabeça e baixou os olhos.

— Já tinha vindo aqui em casa?

— Não, nem uma vez.

— De fato? — ele se admirou.

— Ah, sim, perdão. . . Uma vez... no enterro de seu pai.

Sua voz estava tão fraca que Kikuji se fêz diligente:

— A água está fervendo, não acha que isso talvez a animasse? Eu também gostaria de tomar uma taça de chá.

— Com prazer — disse ela. — Dá licença? Ao erguer-se, vacilou um pouco mas se aprumou, dominando-se.

Kikuji foi abrir os estojos colocados num canto e tirou as taças. Por um momento pensou em que esses objetos tinham sido usados na véspera para o chá da Srta. Inamura. Mas afastou a idéia e voltou com as preciosas peças.

Ante o fogo, querendo tirar a tampa da chaleira, a Sra. Ota não pôde impedir a mão de tremer e houve um leve estalido do ferro atritado. Ao se inclinar para a frente, com o bule d'água na mão, suas lágrimas caíram com pequeno ruído no exterior do caldeirão.

— Também isso foi o seu pai que comprou de mim — disse.

— Sim? Não sabia.

Não sentira qualquer embaraço ouvindo dizer que o objeto vinha das coleções de seu marido, tal a forma natural e simples com que ela o informara.

Preparou o chá e o convidou a que ele mesmo viesse pegar sua taça:

— Não posso levá-la — disse.

Ele se colocou ao lado do caldeirão para tomar o chá. Num acesso de fraqueza, ela caiu sobre seus joelhos. Kikuji lhe passou o braço nos ombros e sentiu sua respiração se precipitar.

E foi como uma criança que agarrasse nos braços, tão leve, tão abandonada.

 

— Senhora! Senhora!

Kikuji sacudiu com rudeza o corpo que parecia sem vida. Apertava-lhe o pescoço com as duas mãos, como para estrangulá-lo. Seus dedos sentiam a aresta aguda das clavículas sob a pele, com os vazios muito mais acusados que da última vez.

— Não pode então distinguir entre meu pai e eu?

— Oh, você é cruel... — suspirou ela com uma voz terna, os olhos fechados. A voz dum outro mundo, como se encontrasse dificuldade em voltar a este.

Kikuji, aliás, interrogava menos a Sra. Ota do que exprimia um desconforto da própria consciência. Sem resistência, docilmente, se tinha deixado levar, também ele, para aquele outro mundo. Não encontrava expressão melhor que essa para o universo singular que anulava toda a distinção entre seu pai e ele. Um mundo, outro, de que precisava primeiro retirar-se para vir a sofrer a tortura de sua angústia.

Inquiria-se ainda se era a primeira ou a última do mundo, esta mulher que lhe parecia não ser uma pessoa real, este ser em que se apagara o indivíduo atual para deixá-lo apenas em presença da mulher.

Era ela em si mesma o feminino original, ou sua última encarnação na terra? Pois em seu universo, no mundo extratemporal em que se refugiava, era evidente que não fazia nenhuma diferença entre seu falecido marido, seu pai e ele mesmo.

— Reconheça que todos os seus pensamentos se dirigem a meu pai, que nos confunde completamente, ele e eu!

— Precisa me perdoar, oh, é horrível! Sou tão culpada.

O pranto brotou de seus olhos, deixando-lhe as maçãs empapadas.

— Antes eu estivesse morta! Como gostaria de morrer agora, ai, como isso me alegraria! Kikuji, você fez o gesto de me estrangular.. . Por que não foi até o fim?

— Vamos, vamos, não diga absurdos! É tolo. Mas, se quer que eu lhe diga tudo, há um instante quase tive vontade mesmo.

— De fato? Se soubesse como eu teria gostado! ...

Num gesto aéreo, ofereceu a longa garganta.

— Magra e fraca como estou, não seria difícil ...

— E a sua filha, ia deixar assim?

— De qualquer modo, não posso continuar desse jeito. Estou morrendo de tanto desgosto. Mas você cuidaria de Fumiko, não é?

— Ah, se ao menos a sua filha fosse como você! Os olhos da Sra. Ota se abriram e fixaram em Kikuji, de todo embaraçado pela frase que lhe escapara não sabia como nem por quê. O que ela ia pensar agora?

Ela pegou sua mão, apertando-a contra o peito.

— Está sentindo? Bate de modo tão desordenado! ... Não vou durar muito.

Seria a frase dele que lhe agitou daquele modo o coração?

— Que idade tem ao certo, Kikuji? Ele não respondeu.

— Tenho certeza de que ainda não fez trinta, não é? Que mísera mulher eu represento, odiosamente censurável! Como vai poder um dia me perdoar? Não chego a compreender a mim mesma...

Soergueu-se, dobrando os joelhos sob o corpo e se apoiando numa mão.

Kikuji também se sentou.

— Não, não quis nunca empanar o seu casamento, me acredite, e menos ainda nocivar Yukiko. No entanto está aí no que a coisa deu...

— Não sei absolutamente se me decidirei a casar com ela — repetiu ele. — Mas já que se prende a essa idéia, lhe afirmo que você antes me purificou do passado.

— Ah?

— Isso! Esta Kurimoto, que se empenha em fabricar esse casamento, teve também no passado uma curta aventura com meu pai, e é ela que destila em mim o veneno desse passado. A você, pelo contrário, meu pai amou até o último dia. . . E penso que foi uma grande felicidade para ele.

— Deve desposar Yukiko o mais depressa possível.

— Isso é exclusivamente comigo.

Com o olhar vazio, ela o fitou ausente. Suas faces tinham empalidecido. Num gesto maquinai, levou a mão à testa:

— Acho que vou desmaiar.. . Minha cabeça gira.

E como quis, custasse o que custasse, voltar para casa, Kikuji chamou um táxi e a acompanhou.

No carro, com os olhos fechados, ela se deixou ficar a um canto, numa inércia alarmante. Dir-se-ia que todo vigor a abandonava, que a vida ia deixá-la. Suas mãos estavam geladas quando Kikuji a levou até a porta, sem entrar.

À noite, lá pelas duas da madrugada, Fumiko ligou para ele.

— É o Sr. Mitani? Há pouco.. . minha mãe... — houve um curto silêncio, depois ela articulou com clareza: — minha mãe morreu.

— Como? o quê? que é que está dizendo? o que aconteceu à sua mãe?

— Morreu. Uma crise cardíaca. Tomava muitos soporíferos ultimamente.

Kikuji perdeu a voz.

— Tenho um pedido a lhe fazer, Sr. Mitani.

— Sim?

— Se tem um médico que conheça bem, poderia vir com ele?

— Um médico, disse? Ah, sim! um médico. Entendo, sim. O mais depressa possível.

Espantado por saber que não havia lá um médico, Kikuji entendeu tudo num clarão: a Sra. Ota se suicidara, e Fumiko pedia sua ajuda para esconder a coisa.

— Tratarei de tudo, está combinado.

— Conto com o senhor.

Fumiko devia ter pensado longamente e tudo ponderado antes de chamá-lo. Daí seu tom breve e firme, sem nada além do necessário.

Kikuji permaneceu onde estava, sentado diante do aparelho, e fechou os olhos.

Revia em mente o pôr de sol que havia visto do trem, depois do seu encontro com a Sra. Ota na hospedaria de Kita-Kamakura. O sol vesperal mergulhando para lá dos pequenos bosques do Templo Homonji, em Ikegami.

Um sol vermelho que parecia afagar as copas das árvores veneráveis, antes de imergir no horizonte, e iluminando o céu com seu ouro rútilo.

E sobre o céu deslumbrante, recortava-se a silhueta sombria do cimo franjado das velhas árvores, em cujos ramos ainda escorriam os raios duma luz ofuscante que o obrigou a fechar os olhos lassos.

Detrás de suas pálpebras, agora, todo o ouro do céu daquela tarde renasceu. E nesse céu julgou ver por instantes brincar os mil pequenos pássaros brancos dum certo furoshiki rosa.

 

A BILHA FURTA-CÔR

Uma visita de condolências, Kikuji adiara para o dia seguinte ao sétimo, primeira comemoração fúnebre depois do enterro da Sra. Ota. Para não chegar demasiado tarde, pretendia deixar o escritório antes da hora habitual; mas indeciso e agitado, tanto tergiversou que acabou saindo na hora comum de fechar.

Fumiko veio recebê-lo na entrada, se ajoelhando e fazendo uma curvatura com as duas mãos no chão. Dir-se-ia que se apoiava nas mãos para impedir os ombros de tremerem. Nessa posição, levantou os olhos para o visitante:

— Agradeço as flores que enviou ontem.

— Oh, por favor!

— Como tinha mandado flores, julguei que não viria. . .

— Por que não? Não pensou que eu podia ter mandado as flores adiantado?

— Não, não raciocinei assim.

— Foi num florista perto daqui que vim ontem. Com um movimento de cabeça, ela aprovou:

— Adivinhei na hora de quem vinham, embora não tivessem nome.

Por um momento, ele se reviu na loja, em meio às flores, respirando o leve aroma que era como um bálsamo para sua angústia; aliviava-o daquele acabrunhamento, oriundo da idéia de que cometera uma falta, e serenava um pouco seus pensamentos amargos relacionados todos com a Sra. Ota.

Fumiko igualmente, pela maneira de recebê-lo, trazia-lhe agora alguma doçura.

Ela trajava um vestido branco de algodão e suas faces pálidas não estavam pintadas. Apenas passara um pouco de batom nos lábios, que a mágoa marcara e pareciam secos.

— Pensei que seria melhor não aparecer ontem aqui — continuou ele.

Fumiko desviou os joelhos para o lado, a fim de sugerir ao visitante que entrasse. Ele entrou, compreendendo que ela falava apenas para reprimir ali, com esforço, as lágrimas e que estalaria em soluços se aquilo se prolongasse mais.

— Não pode imaginar quanto fiquei feliz em receber as flores! Mas nada o impedia de ter vindo ontem — disse, levantando-se para seguir Kikuji na casa.

— Não queria atrapalhar na presença da família — declarou ele, esforçando-se por assumir um tom social.

— Oh, é uma espécie de coisas que não me preocupa — afirmou a moça com determinação.

A ara da morta estava no salão, com uma fotografia da Sra. Ota diante da urna. Kikuji, não sem surpresa, reparou que não havia outras flores além das suas. Fumiko teria tirado as outras para não deixar senão as que ele enviara? Ou quem sabe a celebração do sétimo dia de luto tivera um cunho íntimo? Foi antes isso, se disse.

— É um mizusachi (uma bilha d'água), não é? — quis saber.

— Sim — respondeu Fumiko vendo que ele se referia ao vaso onde pusera as flores. — Me pareceu combinar bem.

 

— É um chino¹ excelente — afirmou Kikuji.

 

1 Essa cerâmica tipicamente japonesa data do século XVI e responde perfeitamente às sóbrias exigências da arte do chá. Echino, literalmente chino colorido, o título original deste Livro Terceiro que aproximamos com A bilha furta-côr, comporta um desenho abstrato em marrom ruço, que se funde sob a transparência da cobertura e varia sutil e ricamente de tons.

 

O vaso, de forma arredondada e frágil, relativamente pequeno para um mizusachi, granulado de fosco e tingido dum ocre suave, casava muito bem com as flores, rosas brancas e cravos levemente rosados.

— Minha mãe gostava de usá-lo com flores, e por isso não foi vendido.

Kikuji se prosternou e ofereceu incenso ante o altar da morta. Depois, juntando as mãos, rezou de olhos fechados, pedindo-lhe o seu perdão. Mas a oração, que teria desejado súplice e ardente, saiu morna, enternecida pela emotiva gratidão à lembrança do amor da morta, cuja meiguice vinha temperar e suavizar o seu arrependimento.

Teria sido ela arrastada à morte pelo que considerava seu pecado e por não achar meio de furtar-se a ele? Ou teria sido empurrada pela força do seu amor, que não podia mais sufocar? O pecado ou o amor? Era a questão que supliciava Kikuji há uma semana, noite e dia, sem resposta.

E agora que estava ali, ajoelhado, com os olhos cerrados, diante da ara da defunta, nada achava de surpreendente em se sentir, como se sentia, deliciosamente envolvido por seu doce e perfumado calor, que no entanto nele não evocava nenhuma imagem de seu corpo. Essa presença, ao mesmo tempo sensível e imaterial, mais musical que plástica, acolhia-o com naturalidade e a considerava perfeitamente de acordo com a natureza da mulher que ela fora.

Desde que soube que falecera, ele praticamente não conseguia mais dormir e tinha de recorrer ao álcool com soporíferos. Seus sonos, contudo, eram curtos e leves, cortados por bruscos despertares, embora cheios de sonhos delicados, não de pesadelos; sonhos que o penetravam de volúpia e nela o deixavam, mesmo muito tempo depois de acordar. Interrogava-se, maravilhado, como uma morta podia assim perpetuar pelo sonho a embriagante calidez de seus abraços. Pois sentia sem cessar a delícia deles e uma crescente dificuldade em acreditar.

Na primeira vez, a noite que passaram juntos na hospedaria de Kita-Kamakura, e também na última, quando ela veio encontrá-lo no pavilhão de chá, ela bradara. "Oh, como sou culpada!" Mas ao dizer isso, fremia mais ao apelo ou à lembrança dos prazeres carnais que de receio ou desespero. Não acontecia o mesmo agora com Kikuji diante do altar doméstico? Pois, apesar de censurar-se por ter causado a morte da Sra. Ota, parecia-lhe ouvir, viva e próxima, a voz da amada que chorava, ela também, como antes, sobre o crime do pecado de ambos.

Reabriu os olhos. Atrás de si, estava Fumiko de que tinha escutado os soluços. Contivera o choro até ali, depois cedera, a pobre, para se recuperar em seguida.

Sem ousar voltar-se e sempre de joelhos, ele buscou algo a dizer.

— De quando data este retrato? — foi a pergunta.

— De cinco ou seis anos, mais ou menos. Era uma pequena foto de que foi feita uma ampliação.

— Teria sido tirada numa sessão de chá?

— Como adivinhou?

Na ampliação aparecia quase só o rosto. O busto fora cortado na altura em que o quimono se fechava, sem deixar ver nada praticamente dos ombros.

— Como pôde saber que ela estava numa sessão de chá?

— Tive a impressão — explicou. — O olhar está descido e os olhos atentos, como a vigiar a ação das mãos. Não se vêem os ombros, é certo, mas no entanto se percebe uma certa tensão em toda a atitude.

— Infelizmente, ela aparece muito de perfil e, apesar de minha mãe gostar desta sua foto, hesitei um pouco em expô-la.

— É um retrato excelente, que mostra toda a sua serenidade.

— Sim, mas fica estranho que seu rosto esteja assim de lado. Era melhor de frente, fitando os visitantes que lhe oferecem incenso. Não acha?

— Hem?... Ah, sim, você tem talvez razão.

— Veja. Ela curva um pouco a cabeça e seu olhar está noutra parte.

— Exatamente, é. Não tinha atentado. Kikuji pensava no chá que ela tinha preparado em sua casa, na véspera de morrer. Revia-a, com seu gesto manual para segurar o bule de bambu, enquanto as lágrimas vinham cair sobre o caldeirão fervente. Tinha-se acercado dela para pegar a taça de chá, e as lágrimas haviam secado quando terminou de beber. No que descansou a taça diante dele, ela tombou em seus joelhos...

— Na altura em que esta foto foi tirada, não tinha ainda emagrecido tanto — começou Fumiko, marcou uma hesitação e finalizou:

— Não sei... mas não gosto de mostrar uma foto dela... em que está tão parecida comigo! Me encabula...

Kikuji virou a cabeça para surpreender seu olhar, mas aqueles olhos, que não se despegavam de suas costas, de repente se abaixaram. Era tempo, pensou, de sair da frente do altar e colocar-se ao lado de Fumiko. Mas como proceder, com que palavras lhe pedir perdão?

Detendo-se no vaso furta-côr, o mizusachi echino que servia ao arranjo floral, apoiou de leve as mãos na esteira ante a cerâmica, a fim de a contemplar e apreciar, como é ritual fazer em relação às peças de chá.

Um suave fulgor vermelho aflorava sua matéria clara e fosca, já atraente e cálida em si, sem porém perturbar o frio natural e puro da faiança. A essa comovente superfície, estendeu uma mão querendo tocar.

— Adoro o chino de qualidade — disse. — É doce. . . como um sonho!

Por pouco não falara: doce como um sonho de mulher pode ser doce. Mas pôde reter a tempo essas últimas palavras.

— Se gosta do vaso, deixe que o ofereça a você em memória de minha mãe.

— Oh, não! — insurgiu-se agitado.

— Mas sim, aceite, por favor! Minha mãe teria tido prazer em que o levasse. E como chino, creio que não é uma peça má.

— Está claro que é de grande valor.

— Foi o que me disseram, e por isso fiz questão de pôr nele as flores que nos remeteu.

Com os olhos úmidos, invadido por uma emoção intensa e inesperada, Kikuji, agradecendo, lhe disse que aceitava o presente.

— Minha mãe teria ficado satisfeita!

— Mas comigo, olhe, arrisca acabar como simples vaso de flores, pois sou incapaz de empregá-lo no seu uso real de mizusachi², a única função de que é digno e que poderia lhe dar o justo valor.

 

2 Isto é, como bilha d'água reservada à sessão de chá.

 

— Que importa! Também minha mãe punha flores nele e estará bem assim.

— Só que quando falo de flores, não me refiro a arranjos para o chá. Não é triste que peças como esta sejam desviadas de seu destino original e legítimo?

— Oh, eu vou, também eu, deixar de praticar o chá, penso.

Ao ver de Kikuji, ficaria mal continuar ainda diante do tokonoma, de que se desviara para falar. Ergueu-se, portanto, e puxando sua almofada na direção da abertura que dava para o jardim, ali tomou assento.

Fumiko, que ficara atrás dele desde que se prosternara ante o altar da morta, não tinha almofada sob os joelhos. E agora parecia muito só, abandonada ao meio da peça. Suas mãos, que descansavam nos joelhos com os dedos um pouco contraídos, se crisparam num tremor.

— Sr. Mitani, por favor, perdoe a minha mãe! — atirou-lhe, baixando a cabeça e inclinando o busto tão abruptamente que Kikuji julgou um instante que fosse cair.

— Não diga uma coisa dessas, eu lhe peço! — opôs. — Se há alguém que tenha de pedir perdão, sou eu. E não me julgo com o direito de pedir a ela, foi uma coisa sem desculpa! A vergonha que eu sinto devia até me proibir de estar na presença de você.

— Toda a vergonha recaiu sobre nós — contestou Fumiko enrubescendo. — Queria desaparecer, se fosse possível!

Com o rubor que lhe tomara as faces sem pintura e até seu longo pescoço fino e branco, Kikuji, transtornado, reparou a que ponto suas aflições a tinham deixado esgotada e anêmica. O pobre sangue que lhe subira ao rosto tingira apenas de rosa, esparsamente, a palidez cruel da sua tez.

— Você decerto me odiou com todas as forças — disse ele.

— Odiar? Mas por quê? Minha mãe por acaso o odiou?

— Não. Mas sou eu o responsável pela sua morte.

— Ela a escolheu sozinha. É ao menos o que eu penso. Há oito dias que reflito nisso, aqui, isolada.

— Você ficou aqui inteiramente sem companhia?

— Oh, minha mãe e eu vivemos muito tempo sem companhia; me habituei a essa existência solitária.

— E por culpa minha, você ficou ainda mais só!

— Eu lhe asseguro que foi por conta própria que ela quis morrer. Se pretende se considerar responsável, eu então o seria muito mais! E se fosse preciso que eu odiasse a alguém, devia ser a mim mesma! Mas não conseguimos senão murchar e enodoar sua morte, buscando responsabilizar e censurar a nós mesmos. Acredito que quando os vivos alimentam sentimentos dessa natureza só acrescem o fardo dos mortos.

— Sem dúvida tem razão. Mas se eu não tivesse conhecido a sua mãe. . .

Ele se interrompeu, incapaz de prosseguir.

— Os mortos ficam em paz, creio, quando são perdoados, e minha mãe morreu para que fosse perdoada. Você o fará, há de perdoá-la, não é?

Com essas palavras, Fumiko se levantou e abandonou o salão.

Kikuji, de sua parte, tinha a impressão de que se abrira uma cortina em sua mente. Aliviar o fardo dos mortos. . . sim, entendia isso. Torturar-se em nome deles era como insultá-los, um agravo que a gente lhes faz sem pensar. Os mortos não pregam moral aos vivos; apenas desses exigem que apliquem as categorias morais que foram suas.

E Kikuji contemplou, ainda uma vez, o retrato da Sra. Ota, ali, junto das flores postas no tokonoma.

 

Kumiko voltou ao salão, trazendo uma bandeja com o chá: duas taças de faiança, uma vermelha, outra preta.

Pôs diante dele a segunda, com chá verde de tipo comum, o bancha. Kikuji levantou a taça para olhar o sinete com que fora assinada embaixo.

— De quem é? — quis saber sem mais preâmbulos.

— De Ryonyu, se não me engano.

— A vermelha também?

— Acho que sim.

Fazem um par — supôs ele, observando a taça vermelha que a moça tinha diante de si.

Eram peças perfeitas no volume e na linha para degustar o bancha, mas que acordaram nele perturbadores pensamentos.

Quando seu pai vinha à casa da Sra. Ota, depois da morte do marido, não teriam servido aos dois, a preta para o pai e a vermelha para a Sra. Ota? Adequavam-se ao colóquio amoroso e talvez mesmo as levavam junto ao viajar, pois o preço do Ryonyu não era tanto que o proibisse. E se assim foi, Fumiko forçosamente devia saber, dando para admirar que escolhesse justamente essas taças para os dois. Podia ser uma alusão de mau gosto.

Difícil, porém, pensar que pusesse nisso astúcia ou ironia. Devia antes atribuí-lo ao seu cândido sentimentalismo de mocinha. Ele mesmo, em verdade, não era insensível a essa emoção.

Esgotados como ambos estavam pelo desgosto, tinham sem dúvida dificuldade em se defender de semelhantes acessos sentimentais. E também o par de taças tomava o vulto dum símbolo unindo-os profundamente no pesar comum.

Fumiko nada ignorava dos laços que haviam existido entre o pai dele e a sua mãe e entre essa e ele; além disso, sabia como sua mãe morrera. E os dois, como cúmplices, se empenharam juntos em ocultar o suicídio, o que os acercava em segredo ainda mais.

Quando ela saiu para preparar o chá, devia ter chorado, pois seus olhos ainda estavam vermelhos.

— Julgo que fiz bem em vir vê-la hoje — disse Kikuji. — O que você há pouco dizia significa talvez que, entre os que morrem e os que sobrevivem, não pode haver o problema de um perdão a dar ou a receber, nem nada desse gênero. De minha parte, no entanto, desejo crer que sua mãe me perdoou e permanecer me sentindo perdoado.

Ela aprovou inclinando a cabeça:

— Porque de outro modo você nunca poderia perdoar a minha mãe, que certamente não se perdoou a si mesma. . .

— É talvez indecoroso, até um escândalo, que eu esteja aqui, diante de você, a lhe falar — observou Kikuji.

— Por quê? — perguntou ela, erguendo os olhos para ele. — Condena em minha mãe sua morte? Eu também, quando morreu, em meu desespero fui tomada de cólera, pensando de saída que a morte nada consertava. Tudo o que ela fez não se entende e só se pode interpretar mal, e a morte de algum modo veio selar essa incompreensão, fixando-a para sempre. Morrer é recusar definitivamente toda a compreensão por parte dos outros. Ninguém pode mais entender os atos dum morto; ninguém nunca mais pode se pôr em posição de desculpá-los.

Kikuji ficou em silêncio, compreendendo que também a moça se lançara ao assalto da misteriosa fortaleza da morte.

Surpreendeu-o ouvi-la dizer que a morte fosse uma recusa de ser compreendido por outrem.

No momento, inclusive, se dizia haver uma grande diferença entre a mulher que ele sabia ser a mãe de Fumiko e a que essa se esforçava por compreender. Nunca, tinha a convicção, nunca Fumiko poderia captar o lado essencialmente feminino de sua mãe.

Para ele, dar ou receber o perdão eram o mesmo em seu sonho, nos sonhos amorosos em que reencontrava a presença calorosa desse corpo de mulher e não cessava de vibrar com as ondas voluptuosas e ternas de que era o dispensador. Uma embriaguez de carinho de que usufruía o encanto até na harmonia composta pelo par das taças de chá, a preta e a vermelha.

Não, Fumiko, nada sabendo de toda a feminilidade da mãe, não podia conhecê-la.

Mas como era estranho que a carne nascida daquela carne lhe permanecesse tão diversa e ignorante, ainda mais por ter sido transmitida à filha, sutil e delicadamente, a própria forma do corpo materno!

Ainda à porta, na entrada, não tinha sido conquistado pela sensação apaziguante, doce e terna, que lhe vinha da moça? E intuiu que essa emoção era devida antes de tudo à semelhança dos dois rostos, à expressão que reconhecera no rosto redondo de Fumiko e que lhe lembrou instantaneamente os traços da mãe.

A Sra. Ota pecara ao reencontrar em Kikuji a imagem do pai dele. Mas que agora encontrasse na filha a imagem dela!... Em que círculo infernal se achariam encerrados? De que maldição eram todos vítimas? No entanto Kikuji se sentia atraído com naturalidade pela moça e nada nele surgia como óbice a essa atração.

Seus olhos não largavam a boca miúda, que os dissabores do luto tinha secado, gretado, com aquele querido beicinho inferior, tão guloso e enternece-dor! E se dizia que, em definitivo, nunca poderia brigar seriamente com ela. Que faria para colocá-la em defesa contra ele?

— Foi talvez por sua mãe ser tão sensível, tão meiga, que não pôde agüentar seguir vivendo — lhe declarou. — De que modo cruel devo tê-la atormentado com minhas próprias angústias morais, jogando sobre ela minhas inquietudes! Hesitante, tímido, não passo de um covarde que. . .

— Não, só a minha mãe foi culpada, você não, absolutamente — cortou Fumiko. — Sua fraqueza, seus desfalecimentos. . . porque não chego a crer que com o seu pai. . . e com você. . . não! isso não estava na sua natureza, em seu caráter íntimo.

Fumiko, que falava num tom vacilante, enrubesceu de novo ao pronunciar essas palavras. O vermelho que lhe afogueou o rosto era bem mais vivo que o de há pouco.

Baixou a cabeça e desviou os olhos, como para evitar o olhar de Kikuji. Mas prosseguiu, vencendo-se com esforço:

— Talvez por isso, desde o dia seguinte de sua morte, comecei a pensar em minha mãe vendo-a mais pura e mais bela. Ou antes não, não fui eu que passei a idealizar a sua imagem; foi como se essa imagem dela se fizesse por si mesma mais pura e mais bela em mim.

— É sempre assim quando morrem os que se ama — observou ele.

— Mas creio que ela morreu levada pelo melhor de si mesma, incapaz de suportar o pior daquilo que tinha feito.

— Não vejo como isso tenha sido tão odioso. Não, de modo nenhum!

— Aquela sua impaciência, aquele sofrimento... Tudo isso a despedaçava...

Fumiko se deteve com lágrimas nos olhos. Ele calculou que a moça procurava lhe dizer quanto sua mãe o tinha amado.

— Os mortos pertencem apenas aos sentimentos profundos do nosso coração — contestou. — E podemos aí encarecê-los muito, não é certo? No entanto, ah, morrem tão cedo! — suspirou, dando a entender nessa alusão sucinta que falava dos pais de ambos.

— E nós somos os dois filhos únicos — continuou Kikuji, descobrindo, ao dizer essa frase, como tudo seria ainda pior, mais horrível e de recear, se a Sra. Ota não tivesse aquela filha. Disse-lhe quase a despeito de si mesmo:

— Sua mãe me contou com que encantadora devoção você cuidou de meu pai quando era pequena.

Já estava dito e não lhe restava mais que esperar ter-se exprimido com suficiente naturalidade. Talvez pudesse levá-la a falar de seu pai, a lembrar o tempo em que freqüentava a casa, onde vinha encontrar a Sra. Ota, sua amiga.

Mas a moça o interrompeu de chôfre, declarando com precipitação:

— Não falemos disso, por favor! Era por causa da minha mãe, que me fazia tanta piedade. Ela, já naquela época, parecia sofrer de tal maneira que eu receava por seus dias.

Procurou reprimir os soluços curvando-se para a frente, com as duas mãos apoiadas na esteira. Kikuji viu seus ombros aluírem no instante em que as lágrimas lhe vieram aos olhos.

Não foi senão aí que reparou que estava descalça, tendo sido surpreendida por sua visita inesperada. E os esforços que fez para esconder os pés nus sob ela deram-lhe uma postura mais prostrada ainda. Seus cabelos tocaram a esteira diante dela e quase a taça vermelha, em que não mexera.

Em seguida se levantou e saiu da peça, com o rosto escondido nas mãos.

Kikuji esperou um certo tempo, depois se ergueu e não a vendo voltar, passou para a entrada, onde alteou um pouco a voz para perguntar:

— Permite que me retire por hoje?

Fumiko reapareceu quase imediatamente, estendendo-lhe um pacote envolvido num furochiki.

— Fique com isso, por favor, e me perdoe importuná-lo desse modo.

— O que é?

— O vaso de chino.

Como pôde agir tão depressa? — ele se admirou. Teve de retirar as flores, esvaziar a água do vaso, enxaguá-lo, secar, repô-lo no estojo próprio, fazer em seguida o pacote e embrulhá-lo no furochiki. . . Uma legítima vitória sobre o tempo.

— Faz questão que eu o leve hoje mesmo? Ainda agorinha tinha flores dentro...

— Eu lhe peço, por favor!

Interrogando-se se seria a dor do luto que a fizera preparar tão rápido aquele presente de despedida, Kikuji tomou-lhe cerimoniosamente as mãos dizendo:

— Eu o recebo com profunda gratidão.

— Devia ser eu quem lhe levasse esta bilha d'água — disse ela ainda — mas infelizmente não é possível.

— Por quê?

Ela deixou a pergunta sem resposta. Na porta, depois que Kikuji disse adeus e se virou para ir embora, ela bradou:

— Mais uma vez obrigada pela sua visita. E. . . peço-lhe, não pense mais em minha mãe. Case-se logo!

— O quê? Que diz aí?

Kikuji se voltou, mas em vão. Ela estava paralisada, com a cabeça baixa.

 

De volta em casa, Kikuji fez um arranjo com as mesmas flores no vaso de chino: rosas brancas e cravos levemente avermelhados.

Pela primeira vez, desde a morte da Sra. Ota, teve o sentimento de que a amara de verdade. Ademais, estava convencido de que esse amor era de algum modo confirmado, no fundo de si mesmo, pela existência de Fumiko, aquela filha da morta.

No domingo, telefonou-lhe:

— Sempre só em casa?

— Sim, mas começo a me sentir realmente muito isolada.

— Não devia ficar assim.

— Eu sei.

— Mesmo pelo telefone, tem-se a impressão de que se escuta o silêncio dessa casa deserta.

Ouviu-a rir debilmente.

— É preciso fazer alguma coisa. Por que não convida as amigas para irem à sua casa?

— Devia, mas tenho sempre receio de que descubram alguma coisa a respeito de minha mãe.

Não sabendo o que responder, ele perguntou:

— Se não há ninguém além de você em casa, por que então não sai?

— De fato. Só tinha de fechar as portas a chave.

— Venha até aqui em casa um dia destes.

— Obrigada. Vou pensar nisso.

— E sua saúde?

— Vai indo, obrigada. Apenas emagreci um pouco.

— Pelo menos dorme bem?

— Quase nada.

— Isso não é nada bom!

— Tenho a intenção de me desfazer da casa em breve e alugar um quarto na casa de uma amiga.

— Vai vender?

— Sim.

— A sua casa, quer vender?

— Não acha que é a melhor solução?

— Não sei. Penso também em vender a minha. Fumiko ficou em silêncio.

— Alô! Você está aí? No telefone não dá para se falar direito dessas coisas. E já que hoje é domingo, por que não vem até aqui? Não vou me mexer de casa.

— Sim?...

— Pus flores à maneira ocidental no seu vaso de chino. Mas, se vier, vamos usá-lo como mizusachi.

— Uma sessão de chá, quer dizer?

— Não obrigatoriamente. Mas seria uma pena que o chino não tenha, ao menos uma vez, o uso a que foi destinado de bilha d'água. As peças de chá terminam por perder o sentido e o valor, se a beleza delas não é saboreada junto com outras peças. Umas realçam as outras e, em conjunto, compõem uma harmonia.

— É que, veja, me sinto ainda menos apresentável hoje que da última vez. Não me atrevo a ir assim. . .

— Que importância tem isso? Não haverá mais ninguém além de mim para olhá-la.

— Assim mesmo. . . não, me desculpe.

— Que pena! Não quer de fato vir?

— Até outra vez.

— Até logo, então. E cuide-se. Parece que está chegando uma visita. Até logo.

A visita era Chikako.

Kikuji se contraiu, temendo que tivesse surpreendido sua conversa no aparelho.

— Que calor acachapante! Bom dia. Enfim melhorou o tempo, depois de tanta espera, e aproveitei para vir.

Falando, Chikako já tinha notado o chino.

— Nesta estação, o chá me deixa um pouco mais de descanso. Queria apenas lhe pedir licença para ir um instante ao chachitsu.

Estendeu a Kikuji uma caixa de doces com um leque preso em cima.

— Imagino que o pavilhão de chá deve estar outra vez com cheiro de fechado.

— É mais que provável.

— Esta bilha de chino não vem da casa do Sr. Ota? Dá licença?

Falara com um ar mundano, enquanto se acercava do tokonoma para se colocar diante das flores. Ao descansar as mãos na esteira, curvando a cabeça, Kikuji viu ressaltar seus duros ombros, de robusta ossatura. Tinha o ar dum animal bravio que expele seu veneno.

— Uma aquisição que você fez?

— Não, um presente.

— Um presente? Hum! eis um presente bem in-vulgar! Em memória da defunta, talvez?

Chikako se pôs de novo em pé e virou-se para Kikuji.

— Peças desse valor não crê que seria melhor possuir pela via normal da aquisição? E a Srta. Ota simplesmente a deu para você? E você não teve nenhum escrúpulo em aceitar? No seu lugar, eu teria achado isso um tanto excessivo, até inquietante. . .

— Será sempre tempo de reconsiderar.

— Sim, é o que devia fazer, realmente. Há muitos objetos aqui que vêm da coleção do Sr. Ota; mas o seu pai os comprou todos, na mesma época em que teve uma ligação com a Sra. Ota.

— Não gosto de ouvir falar dessas coisas nesse tom.

— Bem, bem — fez ela, sem insistir.

E se retirou. Ele a ouviu falar com a empregada numa outra peça, depois ela reapareceu, tendo posto um avental.

— O falecimento da Sra. Ota foi suicídio, não foi? — esguichou, surpreendendo Kikuji.

— Não, absolutamente!

— Não? Quanto a mim, não duvidei um só instante. Ela sempre teve alguma coisa de inquietante, de impenetrável.

Ao dizer isso, fixou um olhar perscrutador em Kikuji.

— O seu pai já a achava incompreensível, dizia seguido. Mas as mulheres têm seus modos de ver nesse gênero de coisas: ela tinha um não sei que de demasiado inocente, um ar infantil que não combinava com a sua idade, uma doçura viscosa. . .

— Pare, por favor! É odioso escutar maledicências sobre os mortos!

— Sem dúvida, o que não impede que essa morta tenha se atravessado nos seus planos de casamento. Essa mulher já tinha dado bastante preocupação ao seu pai.

A preocupação fora antes Chikako que a causara! — pensou no íntimo. Como a aventura dela com o seu pai não foi mais que uma brincadeira efêmera, a Sra. Ota em realidade não lhe tinha tirado nada. Chikako não tinha de fato nenhuma razão válida para detestá-la. Mas que ciúme feroz não devia ter tido da mulher que soube reter seu pai até ele morrer!

— É demasiado jovem, Sr. Mitani, para compreender uma mulher dessa espécie. Sua morte o salvou, isso eu lhe digo!

Sem responder, ele se desviou.

— Pode estar certo de que eu nunca teria admitido que ela fosse ao ponto de impedir o seu casamento. Aliás, ela chegou a se dar conta por si mesma de quanto era má! Foi provavelmente porque todo o seu diabolismo lhe subiu à cabeça, que acabou por se suprimir. Tal como era, devia estar persuadida de que ia poder encontrar seu pai num outro mundo, tenho certeza. . .

Kikuji sentiu frio nas costas. Chikako, tendo descido ao jardim, se virou para explicar:

— Vou até o pavilhão de chá agora. Sua calma há de me fazer bem.

Kikuji, imóvel, ficou um longo momento a contemplar as flores. O branco das rosas e o vermelho pálido dos cravos pareciam fundir-se com a doce tinta do chino.

Via diante de si a imagem de Fumiko, tão solitária: uma silhueta tombada ao chão, a chorar com pesados soluços no isolamento.

 

O BATOM DA MÃE

Kikuji estava de cama há alguns dias; mas, voltando do banheiro, esta manhã, ao ver sua velha empregada dispor um delicado volúvel matinal¹ num vasinho de parede, lhe anunciou que pretendia se levantar naquele dia.

 

1 Uma flor que se abre ao surgir do sol e se fecha em uma hora. Símbolo de beleza e de efêmero.

 

Tornou no entanto a se deitar e, com a cabeça no travesseiro, pôs-se a contemplar a flor suspensa no tokonoma.

Da peça vizinha, a serva lhe disse que encontrara a parasita florida no jardim.

— Não vai ao escritório hoje, não? — inquiriu ela.

— Não. Hoje me levanto, mas ainda me concedo um dia de repouso.

A gripe que teve, complicada com fortes dores de cabeça, o forçara a abandonar o trabalho e ficar de cama vários dias.

— Onde achou esta flor? — perguntou à velha.

— Lá no fundo do jardim, no meio dos myoga².

 

2 Uma espécie graúda de lírio, cujos brotos são comestíveis.

 

— Estava sozinha no canteiro, com as gavinhas presas no myoga.

Era sem dúvida um volúvel bravio, com aquela pequena flor dum azul-malva pálido, as folhas frágeis, as gavinhas finas e tenras. A parasita solitária e suas folhas verdes novas a transbordar do vaso antigo, cuja laça vermelha o tempo corroera, inspiravam uma agradável sensação de frescor.

Desde o tempo em que servia seu pai, a doméstica sabia se mostrar capaz de iniciativas assim felizes. O vaso que escolhera para pôr o volúvel era uma peça antiga, com uma assinatura que a idade semi-apagara. Em seu estojo, discernia-se o nome de Sotan, o que, se a indicação estivesse certa, dava-lhe mais de três séculos.

Kikuji, um nada mais experiente que a velha na arte das flores aplicada às sessões de chá, tinha no entanto a impressão de que o volúvel matinal se harmonizaria melhor com a taça de chá tomada ao despertar.

Uma florzinha, tão efêmera que não dura sequer uma manhã, colocada num vaso que passara piedosamente de mão em mão há mais de três séculos, tal era o contraste que nutria a imaginação de Kikuji, enquanto o seu olhar passeava meditativo sobre o arranjo do tokonoma.

Havia ali qualquer coisa de mais secreta e sutil-mente belo pela agudeza da oposição, se dizia, do que, por exemplo, o ramalhete à ocidental no vaso de chino, também velho de mais de três séculos.

Mas aquela frágil planta selvagem, quase delicada demais para servir a um arranjo, quanto tempo ia durar? No fundo o inquietava essa extrema fragilidade na graça do desabrochar.

Tomando o desjejum, disse à empregada:

— Tenho medo de ver a flor murchar sob meus olhos. Mas não, continua aberta.

— É, é mesmo.

Por um momento, pensou de novo na intenção que tivera de pôr peônias no vaso de chino que Fumiko lhe tinha dado, embora a estação delas tivesse passado. Haveria ainda tempo, se disse, caso pusesse em execução logo a sua idéia; sem dúvida ainda encontraria algumas flores tardias. Dirigiu-se à auxiliar:

— Tinha esquecido completamente de que havia este vaso em casa. Foi uma sorte você desencavá-lo.

— Foi, não é?

— Será que viu meu pai colocar nele parasitas?

— Não, senhor, mas pensei que podia ficar bem, por causa das gavinhas.

— Das gavinhas? Que é que você está me dizendo! — se divertiu, admirado com a resposta dela.

Quis em seguida ler o jornal, mas a dor de cabeça tornou a se fazer presente e se estendeu nas esteiras do salão, não sem perguntar se seu quarto já estava arrumado e se podia voltar para a cama.

— Só um instantinho e já termino — disse ela acorrendo e enxugando as mãos ainda molhadas da limpeza que acabava de fazer.

Logo depois, quando ele voltou ao quarto, a parasita tinha sido tirada do tokonoma, junto com o vaso de laça vermelha. Seria para lhe evitar a vista duma flor moribunda que a doméstica tomara essa precaução? Kikuji, a quem tinha divertido a idéia dela das gavinhas, teve agora de reconhecer que sua fidelidade não perdera o diapasão das maneiras refinadas com. que seu pai marcara a vida doméstica.

Assim, vazio, bem no meio do tokonoma, o mizusachi de chino tinha um ar abandonado. Se Fumiko o visse ali, pensou, julgaria sem dúvida que negligenciava o presente dela.

No mesmo dia em que ela o presenteara com aquela bilha d'água, lembrou, apressara-se em ali colocar rosas brancas e cravos levemente avermelhados, tal como ela o tinha feito para adornar o altar da Sra. Ota, com as rosas e os cravos que ele mesmo enviara pelo sétimo dia. Ao sair dessa visita de pêsames a Fumiko, fora ao mesmo florista e comprara as mesmas flores que na véspera. Mas desde aquele dia, não tinha mais tocado no mizusachi de chino, coibido por uma emoção estranha que lhe apressava o coração.

Na rua, por exemplo, seu olhar era atraído, contra a vontade, pelo vulto de mulheres vistas de costas e que poderiam ter a idade da Sra. Ota. Ao se aperceber, censurava-se violentamente como de uma falta. E olhando mais de perto, verificava sempre que a semelhança desses vultos com o da Sra. Ota inexistia, fora talvez certo volume de ancas. E de novo um frêmito de desejo se apossava dele e o arrastava, fizesse o que fizesse, a uma embriaguez voluptuosa, que em seguida o precipitava, como por um brusco despertar, no pânico da falta cometida ou do crime que tinha a impressão de estar à beira de cometer.

Quem anda fazendo esse terrível jogo comigo? — se dizia. Que monstro me torna assim culpado? Sacudia-se desse modo, mas em vão procurava exorcizar o demônio ou expulsar as imagens que lhe habitavam o espírito. Às suas perguntas, às suas exclamações, nada ecoava, a não ser a nostalgia da amada e seu desejo de rever a amante morta. E essas imagens se tornavam cada vez mais vividas e opressoras, fazendo-o temer pela própria saúde, se não conseguisse escapar dessas visões que lhe faziam tão sensível e inquietante a presença, no entanto irreal, do corpo feminino desaparecido.

Seria o arrependimento que nele provocava e reavivava essas sensualidades mórbidas?

Levantou-se, por fim, do leito para ir pegar o mizusachi no tokotíoma e cautelosamente guardá-lo em seu estojo. E se deitou de novo, com o olhar volvido para o jardim.

Contemplava-o quando um trovão ao longe se fez ouvir. A tormenta começara, aumentando e se acercando rápido, com ribombos se seguindo uns aos outros.

Logo, relâmpagos punham clarões entre as árvores do jardim, desenhando-lhes os contornos sombrios sobre um fundo deslumbrante. Mas quando a tromba d'água caiu, a tempestade ao mesmo tempo pareceu se afastar.

Chovia tão forte que o barro do solo manchava de respingos as pedras do caminho.

Abandonando o espetáculo, Kikuji se levantou de novo e foi ao telefone. Ligou para a casa de Fumiko, mas alguém lhe respondeu que ela tinha se mudado.

— Como? — admirou-se.

Depois, pensando que ela sem dúvida tinha vendido a casa, pediu desculpas e quis saber se podia obter seu novo endereço.

— Quer fazer o favor de aguardar um instante? Eu vou ver — disse do outro lado uma voz na aparência de doméstica.

A mesma pessoa voltou ao aparelho e lhe ditou o endereço lentamente, palavra por palavra, como se o lesse num papel. "Em casa do Sr. Tozaki", anotou Kikuji, e o número do telefone.

Em seguida, discou o número.

A voz de Fumiko se fez ouvir, clara e quase jovial:

— Desculpe por tê-lo feito esperar. É Fumiko quem fala.

— Mitani, aqui. Bom dia. Acabo de ligar para o seu número antigo.

— Oh, me perdoe — disse, baixando sensivelmente o tom da voz, como o fazia a mãe.

— Desde quando se mudou? Não avisou nada...

— Sim, eu tencionava... Estou morando na casa duma amiga há algum tempo. Vendi a casa.

— Ah, sim?

— Fiquei horas me perguntando se devia lhe contar. No princípio, não queria fazer nada e pensei até que não era preciso. Mas ultimamente tenho me censurado por ter deixado de o prevenir.

— Mas é claro, devia ter-me dito, ora!

— Não é? Você também acha?

Ele se sentia revigorado, com o coração limpo, admirando-se que uma simples conversa telefônica pudesse ter esse efeito. Disse:

— A bilha de chino que me deu de presente, cada vez que a olho, tenho vontade de rever você.

— Sim? Saiba que tenho ainda um outro chino, uma tacinha estreita e ovalada. Pensei em dá-la para você com o mizusachi, Mas como minha mãe a usava muito seguido, seu batom parece que aí deixou uma marca que não se apaga.

— O batom? Mas como?

— Ela mesma, a minha mãe, já tinha notado isso.

— Mas como o batom pode ter marcado uma terracota?

— Não é bem isso. O chino já tem uma patina de ocre rosado, e quando minha mãe queria lavar o batom que nele ficara, tinha a impressão de que não saía nunca. Eu mesma, examinando a taça depois que ela faleceu, jurei ver na borda um resto de batom.

Fumiko não se daria conta do efeito que essas coisas produziam em Kikuji?

Perturbado, incapaz de continuar o assunto, buscou dar outra direção ao diálogo.

— Aqui cai uma verdadeira tempestade. Está chovendo tão forte aí também?

— Torrencialmente. O trovão e os relâmpagos chegaram a me dar medo há pouco. Fiquei tremendo.

— O aguaceiro vai refrescar o tempo, melhorar. Tenho estado em casa nesses últimos dias e hoje também não sairei. Não quer dar um pulo até aqui?

— Agradeço, mas tinha a intenção de ir procurá-lo só depois de ter encontrado trabalho. Porque estou procurando. . .

Ele ia responder, mas ela não lhe deu tempo e concluiu:

— Ficarei contente em vê-lo. Foi gentil da sua parte me telefonar, me deu muito prazer. Para dizer a verdade, pensei que devíamos não nos rever mais. Mas, enfim, por que não?...

Kikuji esperou primeiro que o aguaceiro amainasse e logo pediu à empregada que arrumasse a cama.

O telefonema, que terminara com a promessa de um encontro com a moça, o deixou admirado. Mas o que o admirava ainda mais era o efeito enigmático que nele produzira, como se ouvir a voz da filha tivesse o poder de anular-lhe no íntimo o gosto amargo do pecado que o ligava à mãe, apartando as idéias de pavor que tinha de sua morte.

Teria a voz da moça bastante força para lhe fazer crer que sua mãe ainda vivia?

Abstraído e entregue a seus pensamentos, passou ao banheiro para se preparar. Ao se barbear, divertiu-se em molhar o pincel com a água da chuva, tocando com o braço estendido as folhas banhadas das árvores do jardim.

Pouco depois do almoço, escutou os passos de alguém chegando. Julgando que fosse a moça, correu à porta. Era Chikako Kurimoto.

— Ah, é você?

— Que calor! Vim saber notícias suas. Faz tempo que não sei nada do que lhe acontece.

— Ando um pouco doente.

— Chi, está se vendo que você não está com boa cara — disse Chikako encarando-o, com a testa cheia de rugas.

Fora um tolo em se enganar, pensou. Fumiko, vestida à ocidental, não ia pisar com aquele bater de geta³ que o tinha feito acorrer.

 

3 Sandálias de madeira, usadas com a roupa japonesa.

 

— Andou indo ao dentista? Ele a rejuvenesceu ...

— Sim, com as chuvas da estação, tenho um pouco menos a fazer e aproveitei para mudar os dentes. Os novos estão ainda muito brancos, mas não importa porque com o tempo isso desaparece.

Chikako entrou no quarto de Kikuji e seu primeiro olhar foi para o tokonoma.

— O vazio é repousante, não acha? — lançou-lhe ele.

— A chuva pouco ajuda as grandes composições, é certo. Mas podia assim mesmo ter posto uma flor ou duas. . .

Interrompeu-se e se virou bruscamente:

— Onde colocou o chino da Sra. Ota? Kikuji não respondeu.

— O melhor era devolvê-lo, me acredite.

— Isso só diz respeito a mim.

— Talvez não tanto quanto parece pensar.

— De qualquer modo, não é a você que diz respeito.

— Talvez não — disse, rindo com seus falsos dentes brancos. — Mas se vim aqui hoje, foi antes de tudo para o pôr de sobreaviso.

Estendendo os braços, abriu as mãos num grande gesto de mágico exorcista, declamando com ar patético :

— Fora daqui, maus espíritos! Eu os expulso!

— Você me atemoriza — Kikuji fez ironia.

— Me empenho é em casá-lo e, como intermediária, me dê licença para lhe dizer. . .

— Se deseja falar da Srta. Inamura — cortou, — lhe agradeço, mas não vale de fato a pena.

— Ih, ih, não banque a criança recusando um partido do seu gosto apenas porque a intermediária lhe desagrada! Meu papel não vai além de servir de ponte entre as duas margens, e sobre a ponte você pode caminhar tudo o que quiser. . . Seu pai, sabe, não se mostrava tão suscetível; soube sempre se servir de mim muito bem.

Kikuji teve um trejeito.

Como de costume, quando falava com calor, Chikako embicou para frente os ombros altos:

— Não sou dessas mulheres que se impõem como a Sra. Ota, deveria saber! — prosseguiu. — Não é absolutamente o meu gênero. Assim, lhe digo duma vez por todas: o que tive com seu pai não teve conseqüências, embora eu não possa senão lamentar, mas não quis metê-lo em embrulhos como outras. Toma! — e já tinha terminado — nesse ponto desceu os olhos para o chão. — Mas isso não foi motivo para que eu quisesse mal ao seu pai, e ele nunca hesitou em recorrer a mim, cada vez que eu podia lhe ser útil nalguma coisa. Fazia-o realmente sem a menor segunda intenção. É sempre mais fácil para um homem se cumpliciar com uma mulher com quem já teve alguma coisa. Quanto a mim, com o seu pai, pude desenvolver minha inteligência e adquirir um certo conhecimento da vida, um modo justo de ver as coisas.

— Tem certeza?

— Você não saberia proceder melhor que aceitando os conselhos da experiência e da minha justa noção das coisas. Esse modo de ver é sadio.

Impressionado pelo tom de cordialidade objetiva, Kikuji não estava longe de crer que havia algo de certo no que ela dizia.

Chikako tirou um leque guardado em seu obi.

— Para compreender bem a psicologia humana

— acrescentou — cumpre não ser nem exclusivamente masculino demais, nem apenas demasiado feminina.

— Ah, ah! A inteligência está então reservada aos seres sem sexo?

— Não zombe; reconheça que, quando a diferença não é muito acusada, é bem mais fácil entender a psicologia de um como do outro sexo. A Sra. Ota, por exemplo, acredita que tinha o direito de morrer abandonando sua filha sozinha no mundo? Julgo isso inconcebível! E se der crédito à minha intuição, ela visava algo; morrendo, devia ter-se dito: deixo a Kikuji o cuidado de se ocupar da minha filha; não estará sozinha. . .

— Quê? Mas o que está dizendo? — ele se sobressaltou.

— À força de pensar no caso, me fixei nessa hipótese. Sua morte, é preciso reconhecer, devia se atravessar no seu casamento, e é forçoso que tivesse uma finalidade. Ela não morreu apenas, se extinguindo no fim de sua vida, como os outros. Não. Foi intencionalmente.

— Mas é uma idéia fixa em você! — bradou Kikuji. — Volta sempre a isso!

O que não impedia que sentisse o coração ferido pela idéia fixa de Chikako. Uma angústia o acabrunhava. Um relâmpago, lá fora, o fez tremer.

Chikako o apertou:

— Você tinha lhe falado da Srta. Inamura, não é?

A pertinência evidente da pergunta o deixou desamparado. Tolhido, fingiu ignorá-la e declarou:

— Foi você mesma, se não me engano, quem telefonou à Sra. Ota e lhe anunciou que eu estava noivo da Srta. Inamura!

— Eu lhe disse, realmente, implorando que não pusesse obstáculos a esse casamento. Horas depois, de noite, a Sra. Ota morria.

O silêncio caiu entre os dois. Ao fim de um momento, ela voltou à carga:

— Como foi que soube que eu tinha ligado para ela? Era preciso que ela tivesse ido chorar junto de você...

A surpresa calou-o.

— Mas é claro, foi desse modo que tudo se passou, não foi? Ela deixou escapar um grito quando eu lhe falava no telefone. . .

— O que redunda em dizer que, na verdade, foi como se você a tivesse assassinado — declarou Kikuji.

— Seja! se faz questão; assim aliviará sua consciência. Por mim, já me acostumei a representar os piores papéis! Seu pai nunca deixou de vir me procurar, tranqüilamente, quando necessitava alguém para preencher a sangue-frio essa espécie de função. Sem chegar a dizer que ainda busco a sua estima, não vim menos aqui, hoje, para endossar essa responsabilidade.

Está à beira de vomitar todo o fel, raciocinou Kikuji em silêncio. Toda a peçonha instilada no seu coração pelo ciúme e o ódio, desde há tantos anos sem uma palavra.

— Faça de conta que não sei o que de fato se passou — prosseguiu, com um semblante tão fuinha que parecia envesgar sobre o nariz. — Eu, fingirei ignorar tudo o que ocorreu nos bastidores. E você pode seguir pensando, com esse ar de repugnância, que a velha que eu sou se intromete no que não lhe diz respeito. No fim, acabarei por arrancá-lo das mãos desse demônio, para que possa fazer um casamento feliz.

— Ah, pare com essa história de casamento feliz! Pare, entendeu?

— Bem, bem, está combinado — conciliou ela. — Eu própria não tenho qualquer razão para querer pôr a Sra. Ota nesse assunto. . . Enfim, não foi talvez uma mulher tão má assim — adoçou a voz. — Morrendo podia ter apenas almejado, sem dizer, que a filha pertencesse a você.

— De novo essa estupidez! — exclamou Kikuji.

— Mas foi bem assim, abra os olhos! Apesar de tudo, não vai pretender que a Sra. Ota nunca afagou a idéia de dá-lo à sua filha. A menos que seja um sonhador impenitente! Mesmo supondo que ela não o tenha querido conscientemente, era no entanto o desejo maior que acalentava. Quanto a ela, nunca, nem um só instante, deixou de pensar no seu pai, de dia ou de noite, dormindo ou em vigília. Uma possessa, uma louca, mas cândida e gentil, se faz questão. E forçosamente a sua filha entrava nesse sonho, nesse delírio, tanto que chegou no fim ao sacrifício da vida. Quando se vêem as coisas objetivamente, de fora, ela surge como um ser amaldiçoado, uma mulher marcada por uma temível fatalidade. Um brinquedo, um instrumento do diabo que estendeu sua rede, inclusive, sob os pés de você.

Kikuji fitou o mirar luzidio dos pequenos olhos de Chikako, a fixá-lo com insistência sob as sobrancelhas altas. E foi ele quem desviou os olhos.

Havia, por certo, alguma covardia de sua parte em lhe permitir tão fácil triunfo, e se censurou essa fraqueza de caráter; mas o verdadeiro motivo vinha de sua surpresa com o teor inesperado do que ela dissera.

Jamais lhe viera ao espírito que a Sra. Ota teria almejado uni-lo à filha, e mesmo agora não acreditava. Mero veneno que o ciúme fazia Chikako despejar, era isso, nada mais: invenções mal-intencionadas, elucubrações malévolas, tão repulsivas quanto as nódoas que lhe cobriam o peito!

Contudo, aquelas frases insanas caíram como um raio dentro dele e o susto o conquistou.

Podia afirmar não ter ele nunca desejado, mais ou menos em segredo, que as coisas fossem da maneira como acabara de representá-la aquela mulher?

Amar a filha daquela que se amou, não tem em si nada de tão excepcional ou extraordinário. Mas se de fato Kikuji, movendo-se ainda entre as delícias e os inebriamentos dos beijos da mãe, se deixava no entanto derivar, a despeito de si mesmo, para a filha, como saber se realmente não estava sendo arrastado por alguma potência diabólica?

Seu próprio ser parecia ter mudado inteiramente, sua natureza profunda se tinha como que transformado desde o dia em que conhecera a Sra. Ota. Sim, e havia n'algum lugar em seu íntimo qualquer coisa que se achava como enfeitiçada.

Pensava sobre isso, quando a empregada veio lhe anunciar:

— A Srta. Ota está aí e manda dizer que voltará outro dia, caso o senhor tenha visita.

— Não, não, que entre! Não foi embora, ao menos?

E já se erguia para ir recebê-la.

 

— Doa tarde! — disse Fumiko, alongando um pouco o pescoço branco e fino para encarar Kikuji.

Ele notou uma sombra ambarina nos pequenos vazios que separam o pescoço do peito, perguntando-se se seria efeito da iluminação ou se ela de fato tinha emagrecido até aquele ponto.

— Kurimoto está aí — assoprou-lhe Kikuji em confidencia.

Estava terrivelmente apreensivo por ter de lhe comunicar isso; mas, na presença da moça, tudo se tornava fácil para ele e as palavras tinham lhe saído naturalmente dos lábios.

Fumiko fez um leve sinal de cabeça:

— Eu reconheci a sombrinha da professora de chá.

— Ah, sim? É aquela?

Uma sombrinha de longo cabo cinzento estava na entrada, perto da porta.

— Prefere me esperar um momento no chachitsu? Ela não vai demorar.

Era a solução que tinha a oferecer, condenando-se por não se ter visto livre de Chikako, já que esperava a vinda da moça.

— Obrigada, mas realmente isso não me incomoda — afirmou Fumiko.

— Não? Então entre, por favor!

Ela entrou e saudou Chikako como se tudo ignorasse da sua hostilidade, e ainda lhe agradecendo os pêsames.

Na atitude convencional das mestras de chá, com o ombro esquerdo um pouco avançado e o busto rígido, Chikako se curvou um nada para responder:

— A senhora sua mãe tinha uma tal doçura! Quando naturezas tão meigas nos abandonam é como se o mundo, já tão duro, perdesse as últimas flores.

— Minha mãe não era uma flor tão preciosa como diz — contestou Fumiko.

— Mas que dor para ela, ao partir, deixar você tão só no mundo!

Fumiko conservou os olhos baixos, fechando com força a boca, com o lábio inferior um nada proeminente.

— Não pensa em retomar as suas lições de chá, procurando se distrair um pouco?

— Oh, não agora, não. . .

— Lhe faria bem, garanto.

— É um luxo que a minha situação não permite que eu me conceda no momento.

— Que é que está dizendo! — exclamou Chikako abrindo as mãos que até ali mantivera cruzadas, nos joelhos. — Logo a mim, que tenho vindo à casa do Sr. Mitani justamente para arejar e dar outra vez um pouco de vida ao pavilhão de chá, pois o momento é propício agora que a estação das chuvas passou.

Em seguida, deslizando um olhar cúmplice para Kikuji, acrescentou:

— Agora que a Srta. Ota está aqui, o que é que acha?

— Acha o quê?

— Seria uma oportunidade de usar o mizusachi de chino e honrar assim a memória de sua mãe — insistiu Chikako.

Fumiko ergueu o olhar para ela, que seguiu explicando :

— Poderíamos falar da senhora sua mãe.

— Não gostaria de me pôr a chorar num chachitsu — declarou Fumiko.

— Que importa, se misturaremos nossas lágrimas às suas? Então, combinado? Porque, note, no dia em que a esposa do Sr. Mitani entrar nesta casa, não poderei mais pôr os pés nesse pavilhão à vontade, embora ele encerre para mim tantas e tantas lembranças.

E após um riso breve, como para obedecer às conveniências ao se fazer mais explícita, ajuntou:

— Quero dizer, bem entendido, se o casamento do Sr. Mitani com a Srta. Yukiko Inamura se realizar!

Fumiko aprovou de cabeça, com o rosto impassível. Mas um certo cansaço surgiu naquele oval tão semelhante ao da mãe.

Kikuji se interpôs, dizendo para Chikako:

— Como pode falar de um casamento a propósito do qual nada ainda foi decidido? É abusar da Srta. Inamura, não entende isso?

— Compreendo bem, mas se ela está de acordo! — reagiu Chikako vivazmente, e se dirigiu à moça:

— Desde que algo de feliz se prepara, é preciso também que os diabos se metam, naturalmente. Por isso eu lhe peço, senhorita, que faça como se nada tivesse ouvido até que a coisa esteja concluída.

— Sem dúvida — aprovou Fumiko com novo movimento de cabeça.

A essa altura, Chikako chamou a empregada e foi para o chachitsu fazer a limpeza.

Ouviu-se ainda, vinda do jardim, sua voz:

— Tome cuidado, hem! Aqui na sombra, as folhas das árvores ainda estão todas molhadas.

 

Kikuji disse a Fumiko:

— Chegou a ouvir hoje de manhã, pelo telefone, com que fúria a chuva caía aqui quando eu lhe falei?

— Não sei se a gente pode ouvir o barulho dum aguaceiro pelo telefone. Confesso que não prestei atenção. Mas é bem possível que tenha percebido sem me dar conta na hora. Vinha por este lado?

Desviou os olhos para o lado do jardim, onde os verdes deixavam agora passar o ruído da faxina que Chikako fazia no pavilhão de chá.

Kikuji, também a olhar o jardim, comentou:

— Eu também acho que não ouvi a água que caía onde você estava; mas a chuva aqui fazia um tal alvoroço, que depois fiquei pensando que isso devia ter passado pelo fio. Caíam torrentes.

— Mais uma vez, tive medo dos clarões, do raio.

— Ah, foi o que me disse no aparelho.

— É curioso como a gente pode se parecer com a mãe até nos pormenores menos importantes. Ela também tinha medo de trovão e, quando eu era pequena, nunca deixava de me esconder a cabeça na manga do quimono durante a tempestade. Se pretendia sair, no verão, olhava sempre o céu para saber se o tempo não ia mudar. E até hoje, quando há trovoada, ainda quero ocultar a cabeça na manga!

Confessando-o, tivera um leve gesto como de confusão ou escusa, que lhe fêz arredondar os ombros. Levantou-se a seguir:

— Trouxe-lhe a pequena taça de chino de que lhe falei.

Não se ausentou mais que um momento e voltou ao salão com um pequeno pacote, que pôs na frente dos joelhos de Kikuji. Mas como ele parecia vacilar em abrir, ela pegou o pacote e tirou a taça, estreita e alta, de seu estojo.

— Se bem me lembro — disse ele, — sua mãe também usava taças de rakuyaki, assinadas por Ryonyu¹, penso.

 

1 Ryonyu (1756-1834), notável ceramista que fundou a célebre linhagem Reku de artesãos do barro.

 

— Sim, mas preferia a taça de chino. Dizia que essas cerâmicas de cor, uma taça vermelha e outra preta, não permitem apreciar a bela coloração clara ou ambarina do bancha ou do sencha².

 

2 Duas das quatro espécies de chá verde japonês, de qualidade comum.

 

— Numa taça preta, com efeito, não se gozam as nuanças douradas do chá — aprovou Kikuji.

Ao ver que ele hesitava em pegar a taça à sua frente. Fumiko lhe disse:

— Talvez não seja um chino muito bom. . .

Ele lhe garantiu em seguida que era excelente, e não por outro motivo lhe custava pegar a taça, preferindo continuar a olhá-la.

Uma tonalidade de vermelho, apenas perceptível, brincava pelo branco opaco do material, como Fumiko lhe tinha dito de manhã ao telefone. Ficando-se a observar a peça, se acreditava ver o vermelho sobressair, como por transparência, no branco. A borda se tingia levemente de ocre rosa, mais carregado num ponto.

Seria o lugar em que os lábios tocavam para beber?

O chá poderia ter deixado essa marca que mal se notava, mas talvez também o batom de lábios femininos tantas e tantas vezes ali pousados.

Olhando bem, podia se achar um vestígio de batom no fundo da tinta ocre. Seria então, como Fumiko dissera, o batom da Sra. Ota que, com o tempo, acabara por se impregnar no próprio barro da cerâmica?

Essa fugidia e sutil mistura de tons marrons e vermelhos, existia até na fina rede de quebrinhas que o tempo fizera na pintura, por pouco que se atentasse.

Cor fanada do batom como uma pétala murcha de rosa, luzindo como o sangue ressecado — dizia-se Kikuji numa emoção estranha que lhe fazia bater o coração. Ao mesmo tempo que uma espécie de repugnância malsã, que ia até a náusea, dele se apoderava, era atraído irresistivelmente como por uma tentação. Sentiu a cabeça vazia, perto da vertigem.

Na superfície exterior da taça, adornando a forma pura desse estreito cilindro, um motivo vegetal, com folhas largas, fora pintado num azul esverdeado quase negro. E sobre as folhas, esparsamente, dir-se-ia que nódoas de ferrugem.

A sadia simplicidade desse desenho vigoroso ao penetrar o olhar de Kikuji salvou-o daquela vertigem mórbida dos sentidos. Pôde apreciar a nobre linha e a pureza da forma.

— Que beleza! — disse, pegando enfim a taça na mão.

— Por mim não saberia julgar — afirmou Fumiko. — Mas minha mãe gostava muito de se servir nesta taça, de preferência a qualquer outra.

— É um objeto criado para a personalidade feminina — falou ele, não sem voltar a sentir em si, viva e cálida de repente, a perturbadora feminilidade da Sra. Ota.

Como Fumiko teve a idéia de vir mostrar, a ele, esse chino que o batom de sua mãe marcara? Por ingenuidade? Por falta de tato? Não chegava a saber. Mas não podia defender-se da dócil flexibilidade que percebia nela, algo de profundamente aceitante que o embebia no íntimo.

Lentamente, girou a taça nos dedos, em cima dos joelhos, evitando, porém, o contato com o lugar avermelhado.

— Me faria o favor de repô-la no estojo? — acabou por pedir. Seria desagradável que Kurimoto, vendo-a, se entregasse de novo às suas mexeriquices.

— Sim.

Docilmente colocou a taça no estojo e refez o pacote.

Sem dúvida trouxera aquela peça com a intenção de oferecê-la a Kikuji, mas, ou não se atreveu a lhe dizer, ou imaginou que o chino talvez não lhe tivesse agradado.

Ergueu-se e foi à entrada para aí deixar o pacote.

Chikako voltou a essa altura e, do jardim, adiantou o busto pela porta.

— Quer, por favor, me buscar o mizusachi da Sra. Ota — solicitou a Kikuji.

— Não seria melhor usar uma das nossa bilhas d'água? — sugeriu ele. — Justamente quando a Srta. Ota está aí, usar a sua. . .

— Que está dizendo? É precisamente por ela estar presente que convém usar esse vaso. Vamos falar sobre a mãe dela e está bem que a conversa aconteça diante do chino da Sra. Ota.

— Da Sra. Ota que você tanto odeia!

— Eu? Por que odiaria? Não era uma mulher do meu tipo, é tudo o que digo. Aliás, como se poderia odiar os mortos? Por certo, não tínhamos o mesmo aspecto e nunca senti nenhuma simpatia por ela. Mas foi precisamente por isso que cheguei a conhecê-la intimamente, adivinhando até as suas segundas intenções.

— Decididamente você tem a mania de adivinhar o pensamento dos outros!

— Bastaria que agissem de modo que eu não pudesse adivinhar, é simples. . .

Fumiko reapareceu e veio tomar seu lugar não longe do umbral.

Chikako voltou-se para ela, com o ombro esquerdo em ponta, para pedir:

— Dá licença, não é, que usemos a bilha de chino da senhora sua mãe?

— Naturalmente, faça como quiser, por favor — respondeu Fumiko.

Kikuji foi buscar o chino no armário em que o guardara.

Chikako, colocando o leque na cintura, pegou a bilha no estojo debaixo do braço e saiu para o jardim.

Indo ao umbral onde estava a moça, Kikuji confiou-lhe:

— Foi de fato uma grande surpresa para mim saber, esta manhã, que tinha se mudado e teve de se arrumar sozinha para vender a casa. Não foi penoso?

— Não. Foi um amigo que comprou e a transação se fez sem maiores complicações. E ainda propôs, se eu quisesse, que fosse morar em Oiso, num pavilhão em que esteve enquanto aguardava. Mas não quis viver sozinha numa casa, por pequena que fosse. Como tencionava procurar trabalho, me convinha mais alugar um quarto. Por isso estou de momento na casa de uma amiga.

— E o trabalho, encontrou?

— Não, ainda não. Entende, me dei conta de que não sabia fazer praticamente nada — explicou com um sorriso de desculpas. — Minha primeira intenção era não vir vê-lo senão depois de ter conseguido uma situação. Acho um pouco aflitivo nos revermos quando estou ainda nesse abandono, sem trabalho, sem casa...

Kikuji quase deixou escapar que não era senão melhor assim. Mas ainda que procurasse imaginar esse isolamento de Fumiko no mundo, não conseguia, a tal ponto ela não aparentava por isso estar marcada.

— Também eu me disponho a vender a minha casa — disse. — Mas até aqui não fiz nada, embora no fundo esteja decidido. A prova é que nem mesmo mandei consertar a calha estragada, como pode ver, nem substituir as esteiras velhas.

— Mas não vai celebrar o casamento aqui? — falou ela com perfeita simplicidade. — Até lá, tem tempo de arrumar tudo.

Kikuji fitou-a nos olhos.

— Está se referindo às bisbilhotices de Kurimoto? Acredita a sério que eu possa me casar depois do que houve?

— Se pensa em minha mãe ao afirmar isso, devia parar duma vez de se atormentar. Ela já tomou bastante a peito essa história para que possa, você, esquecê-la.

 

As mãos experientes de Chikako cedo tudo dispuseram no pavilhão para a sessão de chá.

— Como acha a harmonia da bilha d'água com as outras peças? — inquiriu, mas Kikuji disse não ter opinião nessas matérias, e Fumiko, vendo-o calar, ficou quieta. Ambos, porém, deixaram o olhar repousar sobre o mizusachi de chino.

A peça, empregada como vaso de flores no altar fúnebre erigido à memória da Sra. Ota pela filha, e tendo tido o mesmo uso por Kikuji ao recebê-la de presente, achava enfim hoje sua real função de bilha d'água fresca nas mãos da competente mestra de chá que era Kurimoto.

Raro destino o desse objeto! Mas, considerando bem, não era sempre rara a sorte de todas as peças adstritas à arte do chá?

Antes mesmo que a Sra. Ota o possuísse, ao longo dos três ou quatro séculos decorridos desde o dia em que o mizusachi saíra do forno, passando de mão em mão e de geração em geração, que história fantástica não seria a sua, com a vida e os segredos de cada um de seus sucessivos donos?

— Ao lado do ferro da chaleira ou do caldeirão, não acha admirável que uma matéria tão frágil como o barro do chino sustente, por seu equilíbrio e força interna, harmoniosamente a comparação? — confiou Kikuji a Fumiko.

Dir-se-ia que a doce e branca luz que brincava sobre a superfície delicada da bilha, era como o interior, um brilho emanado da própria matéria.

De manhã, pelo fio, Kikuji tinha revelado a Fumiko que não podia olhar o mizusachi sem ter vontade de vê-la. E agora ele pensa que a fina e suave brancura de pele da Sra. Ota tinha algo de misterioso, algo como a própria feminilidade, em sua essência mais secreta e em toda a força do seu encanto.

Os batentes e a porta de correr do chachitsu, por causa do calor, tinham ficado abertos; e no quadro da janela, com a luz em parte sombreada pela copa duma árvore próxima, recortava-se o vulto de Fumiko, fluindo em seus cabelos as sombras quase líqüidas das folhas e dos ramos. O claro-escuro parecia alongar ainda seu pescoço delicado. Os braços, livres com as mangas curtas do vestido, mergulhavam uma linha nacarada até a sombra profunda e o verde fresco da folhagem. Ela era de corpo fino e desenvolvido, mas os braços e os ombros nem por isso deixavam de possuir uma comovente doçura na curva cheia de suas linhas.

Chikako, cujo olhar também se pregara à bilha, terminou por declarar:

— Um legítimo mizusachi só ganha todo o valor ao representar seu papel na arte do chá. Realmente! É uma vergonha empregá-lo com ramalhetes ao modo ocidental!

— Minha mãe com freqüência o usava para flores, sabe? — disse Fumiko.

— Não é numa perfeição de sonho que essa bilha vem evocar a lembrança de sua mãe? Ah, estou certa de que ficaria alegre em ver o seu mizusachi neste pavilhão!

Havia talvez uma ironia na ambigüidade dessas palavras, mas a moça respondeu com simplicidade:

— Minha mãe praticamente não o usava a não ser como vaso de flores, e eu mesma renunciei a praticar o chá.

— Oh, não diga isso, não diga! — reagiu Chikako olhando aos quatro cantos do chachitsu. Eu que conheço tantos quartos de chá, em nenhum me sinto em tão serena e perfeita disposição como aqui.

E virando-se para Kikuji, acrescentou:

— No próximo ano será o quinto aniversário da morte de seu pai, Sr. Mitani. Que acha de comemorá-lo com uma sessão de chá?

— É uma idéia, e penso que a gente poderia se divertir enganando os convidados e servindo-os com objetos de arte falsos, em vez dos legítimos.

— Falsos! O que está dizendo? Mas na coleção do senhor seu pai não existe sequer uma peça que não seja autêntica!

— Realmente? Acho no entanto que não estaria de todo mal, se se procedesse, de ponta a ponta, à enfática execução do rito tradicional usando, exclusivamente, peças falsas — disse ele, se dirigindo dessa vez a Fumiko. — Sempre me pareceu que o ar rançoso deste quarto estava como envenenado; talvez se purificasse realizando-se aqui uma cerimônia festiva com uma sessão de chá apoiada bem solenemente em imitações! E em seguida a esse meritório ato de exorcismo, para salvaguardar a memória de meu falecido pai, eu abandonaria para sempre a nossa bela tradição ritual da arte do chá, de que, teriam de me reconhecer isso, nunca fui muito entusiasta.

— Em outras palavras, esta velha mestra de chá vem aqui com demasiada freqüência para sacudir este ar e dar de novo um pouco de vida a este maléfico chachitsu — disse Chikako, enquanto manejava com perícia o chasen¹.

 

1 Pequeno bastão de bambu que intervém na preparação para bater os pedacinhos de chá verde.

 

— Não teria me atrevido a ir até aí! — ironizou Kikuji.

— Nem eu até aí o seguiria — retorquiu Chikako. — Mas se de fato faz questão de se liberar desses elos antigos com meu consentimento, não tem outra saída que a de aceitar os elos novos do matrimônio que lhe proponho.

Tendo falado, veio, num gesto seco, pôr ante Kikuji a taça preta de chá. Virou-se logo para Fumiko:

— À força de rebater as zombarias cáusticas do Sr. Mitani, termino por me perguntar se não foi em mãos indignas que pôs a preciosa bilha da senhora sua mãe! Julgo quase rever o seu rosto, a surgir como um reflexo na meiga matéria do chino.

Descansando à sua frente a taça com que acabara de beber, Kikuji teve, por sua vez, um breve olhar ao mizusachi, não sem se dizer que, no espelho de laça da negra tampa da bilha, era decerto o rosto de Chikako que se refletia neste momento.

Fumiko não mostrara reação, tinha o ar um pouco ausente. Seria por não contrariar a professora que a instruía na arte do chá, ou procurava deliberada-mente não ouvir? Kikuji estava em dúvida. Já achara estranha a docilidade com que ela consentira em ali se instalar, no pavilhão em presença de Chikako. E mesmo quando essa se pôs a falar do casamento dele, a jovem nada demonstrou. O ódio de Chikako pela Sra. Ota, o desprezo que ostentava em relação à filha, aquela provocação ofensiva mal dissimulada em cada palavra sua, nada conseguia turbar a serena indiferença de Fumiko.

O luto a teria imergido num tal abismo de tristeza, que nada podia mais atingi-la? Achava-se envolta em sua dor, ao ponto de que todos os sopros perniciosos não fossem para ela mais que brisas inocentes agitando só a superfície, em vão?

Não seria antes por ser ela intimamente semelhante à mãe, com o mesmo caráter incapaz de se revoltar contra si ou contra os outros, perpetuando assim maravilhosamente a imagem duma absoluta e virginal candidez?

Quanto a ele, nada fizera por defender a moça das maldades e ultrajes a que estava exposta. Dava-se bem conta e julgava o próprio comportamento inqualificável.

Mas o que dizer, então, do monstro perverso e odioso que encontrava na pessoa de Chikako?

Essa se servia agora, por último, do chá que preparara, chegando ao fim da sessão. Bebeu e tirou da cintura o relógio que ali levava.

— Estes relógios minúsculos, que absurdo para os velhos de vista cansada!... Sr. Mitani, o senhor devia me dar o antigo relógio do seu pai.

Pouco desejoso de aceder, Kikuji declarou que não o tinha.

— Mas sim, é um relógio de bolso: vi o seu pai com ele tantas vezes! Deve conhecê-lo também, Srta. Ota; certamente o levava consigo quando ia à sua casa — acrescentou, virando-se para Fumiko com um ar de inocência espertamente composto.

Fumiko desceu os olhos e nada disse. Chikako imediatamente retomou seu ritmo de mulher ativa e ocupada:

— Duas e dez, será? Meus pobres olhos se embaralham e não chego a distinguir os dois ponteiros ... Tenho uma lição às três para um pequeno grupo reunido em casa da Srta. Inamura. Mas fiz questão de passar aqui antes para falar com o senhor, a fim de transmitir a ela a sua resposta.

— Que lhe suplico dê com clareza e exatidão, de maneira que não lhe reste qualquer dúvida — insistiu Kikuji, inteiramente em vão aliás.

— Sem dúvida: com clareza e exatidão! — riu Chikako. — Peço também licença para vir aqui com esse pequeno grupo um dia, se o senhor permitir, para uma sessão de chá.

— Quanto a isso, basta que diga à família Inamura que compre a casa. Tenho a intenção de vender, de qualquer modo.

Sem se ocupar mais de Kikuji, Chikako se virou para a moça e disse:

— Vai junto comigo, não é? No que arrumarmos tudo, saímos. Será agradável fazer um pedaço do caminho juntas.

— Eu ajudo a arrumar.

— Muito bem, obrigada.

E Chikako, sem esperar mais, ergueu-se e foi para o mizuya, de onde logo veio o ruído de lavação. Baixo, Kikuji disse rápido à jovem:

— Não tem outros compromissos hoje à tarde, não é? Pode ficar? Então não vá, não vá com ela.

Fumiko, sacudindo a cabeça, murmurou:

— É que eu tenho medo dela.

— Mas, ora, não há nenhuma razão!

— Não, não, não me atrevo.

— Então saiam juntas e retorne logo que se vir livre.

Fumiko sacudiu ainda negativamente a cabeça e se ergueu, com um gesto de ambas as mãos para ajeitar as pregas do vestido. Julgando que ela ia tropeçar, Kikuji estendeu os braços para auxiliá-la. Um rubor súbito tomou as faces da moça.

Seu pudor, já ferido quando Chikako falou sobre o relógio, lhe desenhara como que um botão de rosa vermelha sob os olhos; agora, era uma flor desabrochada.

Levando com cautela a bilha de chino nos braços, Fumiko passou para o mizuya, de onde se escutou coaxar a voz de Chikako:

— Bah, você está sempre acompanhada pela memória de sua mãe!

 

ESTRELA DUPLA

* Duas estrelas que, à vista, parecem uma só.

Chikako Kurimoto foi à casa de Kikuji para lhe anunciar que Fumiko tinha se casado, assim como a Srta. Inamura.

Era verão. Fazia dia ainda, embora já passasse das oito e meia. Após o jantar, Kikuji se espichara na galeria e divertia-se em ver os vaga-lumes na caixinha que a empregada comprara. Via se intensificar e tingir de amarelo o clarão, de início vagamente branco, projetado pelos graciosos insetos, à medida em que o crepúsculo caía. O dia terminou de todo, mas ele nem mesmo pensou em se levantar para acender a luz.

Voltara há pouco para casa, depois de alguns dias de férias à beira do Lago Nojiri, na casa de campo de um dos seus amigos, casado há pouco e com um filho recém-nascido.

Kikuji, que nada sabia de bebês, não fazia idéia da idade que pudesse ter o lactante, e menos ainda se era bonito ou não. Não sabendo o que dizer, exclamou:

— Que belo bonequinho! E como está crescido!

— Oh, não tanto — contestou a esposa do amigo. — Era tão pequeno quando nasceu que dava pena. Mas se recuperou muito ultimamente.

Kikuji mexeu os dedos diante dos olhos do bebê.

— Não pisca ainda? — perguntou.

— Já vê as coisas, distingue as formas, mas seus olhos ainda não se habituaram a reagir. É só mais tarde que começa a pestanejar.

Soube que o bonequinho só tinha três meses, ao passo que lhe atribuía generosamente cinco ou seis. Era por isso, pensou Kikuji, que a jovem esposa do amigo mostrava ainda, com os cabelos mal penteados e a palidez do rosto, o sinal das fadigas do parto.

Nessa casa em que tudo girava em volta do menino, Kikuji se sentiu como apartado. Mas, durante a volta, revia sem cessar a imagem da jovem mãe e esposa, que, tão franzina e pálida, carregava e afagava a criança numa alegria extasiada. Como era feliz a moça na calma daquela vida estivai! Até há pouco o jovem casal tinha tido de morar junto com os pais, e era a primeira vez, desde que o filho nascera, que estavam de fato um com o outro, naquela casa de veraneio à margem do lago.

Agora ainda, já em casa e estendido em sua galeria, Kikuji, a meditar, evocava aquela mãe com uma espécie de santa nostalgia. Foi nesse momento que veio surpreendê-lo a visita de Chikako.

Ela entrara na peça bradando sem cerimônias: — Oh, que escuridão, francamente!

Depois, tomando lugar aos pés dele, continuou:

— Dão lástima estes pobres solteiros! Não têm ninguém que lhes acenda a luz quando querem ficar deitados!

Kikuji encolhera-as pernas como se fosse se levantar, mas se sentou lentamente, quase contra a vontade.

— Não se incomode, por favor! — reagiu ela, sublinhando as palavras com um gesto da mão direita, antes de saudá-lo segundo o costume.

Contou-lhe então que voltava de uma viagem a Kioto, com uma volta por Hakone no regresso. Em Kioto, na casa de sua mestra de chá, voltara a rever o antiquado Oizumi.

— Naturalmente falamos muito de seu pai, e esse senhor fez questão de me dar o endereço do hotel a que seu pai tinha o hábito de ir com companhia feminina. É uma discreta hospedaria japonesa no bairro de Kiyamachi. Chegou até a me aconselhar a dar um pulo lá! Que falta de tato! Pois estou certa de que seu pai ia lá com a Sra. Ota. As pessoas pensam sempre que eu não me comovo com coisa alguma; mas quem dormiria tranqüilo num lugar que conserva a lembrança de dois amantes defuntos?

Se falta tato a alguém nessa história, dizia-se Kikuji, é a esta mulher que me vem narrar coisas assim! No entanto, calou.

— E você, voltando de Nojiri? — continuou ela.

Sua expressão deixava entender que nada ignorava. No que chegou, devia ter tomado informações com a empregada. Era nela habitual se introduzir assim, sem se anunciar.

— Faz poucas horas que cheguei — respondeu Kikuji, num tom impacientado.

— Eu, há alguns dias — declarou de modo seco, não sem embicar o ombro esquerdo antes de prosseguir: — Nesse intervalo, infelizmente, ocorreu uma coisa muito desagradável e que me deixa sem desculpas... Eu mesma caí das nuvens! Imagine que estava a mil léguas de desconfiar e. . .

Tudo isso para lhe dizer que a Srta. Inamura tinha se casado.

O escuro da galeria permitiu a Kikuji deixar que o rosto exprimisse sua surpresa e desventura, pois Chikako não o notaria. Esforçando-se por tornar a voz a mais natural possível, perguntou:

— Ah, sim? Quando casou?

— E você mantém o sangue-frio de alguém a quem isso não dissesse absolutamente respeito! — observou Chikako com uma ponta de ironia.

— Mas eu lhe repeti muitas vezes que não estava interessado nessa proposta de casamento! — retorquiu ele.

— Com as palavras da boca, sim — comentou a mulher. — Diante de mim, faz questão de guardar as aparências e não pára de representar o personagem a quem a velha Kurimoto importuna com suas tentações diabólicas. Pode fingir obstinadamente repugnância, mas há de reconhecer que a moça não estava nada mal!

— Não me diga... — riu acre Kikuji.

— Admita que gostava dela. Sim ou não?

— Quanto a isso, claro que a achava encantadora.

— Está aí! Vê bem que eu tinha adivinhado o que sentia!

— Mas não vejo a relação. Pode-se achar uma moça encantadora sem, por isso, querer casar com ela.

Assim falava e no entanto tivera uma pontada no coração ao saber do enlace da Srta. Inamura, aquela gentil Yukiko de que buscava agora evocar a imagem com uma avidez semelhante a uma sede intensa.

Na realidade, só a vira duas vezes. No pavilhão do Templo Engakuji, onde Chikako a tinha feito preparar o chá, a fim de que ele a pudesse olhar à vontade. Que naturalidade e que distinção achara em seus gestos! Que graça em sua postura! E reencontrava agora toda a primeira emoção ao lembrar a linha do seu quimono de amplas mangas, com aquela cabeleira sob a luz da janela, suavizada pela sombra das árvores próximas. O rosto, não, não conseguia vê-lo com igual nitidez, mas tornava a ver perfeitamente o fukusa¹ vermelho e o delicado furochiki rosa ornado de delicados sembazuru, que ela trazia quando a encontrou a caminho do pavilhão, no jardim do templo.

 

1 Espécie de guardanapo, geralmente de seda.

 

Quando, posteriormente, ela veio à sua casa, foi Chikako que preparou o chá. A emoção que sentira na presença da jovem tinha sido tão profunda que, até no dia seguinte, acreditou encontrar no chachitsu

O aroma sutil do seu perfume. Conservava nos olhos as flores de íris que enfeitavam o seu obi. Mas seus traços e a expressão do rosto, ainda desta vez, lhe escapavam.

Kikuji pensou então que era igualmente difícil fazer ressurgir em si os traços de seus pais, de morte tão recente, embora diante do retrato deles o reconhecimento fosse espontâneo. Sim, era isso. Não é certo que neste mundo quanto mais os seres nos são caros, mais evanescente é a imagem que nos deixam, enquanto o que é detestável ou repugnante se grava mais fundamente na memória?

A imagem que guardava da moça, a forma dos seus olhos, a do rosto, era impalpável e frágil como um fogo-fátuo, enquanto via com um relevo terrível as odiosas manchas no peito de Chikako, claro como se vê de perto um feio sapo.

Ali, na galeria, a despeito do escuro, ele podia perceber muito bem a roupa interior de Chikako em crepe branco de Ojiya. Um simples apelo à memória lhe bastava para perceber as nódoas sob o crepe que, se houvesse luz, teria constituído uma cortina suficiente para cobri-las. Mas o escuro condicionava a clareza de sua imagem das manchas que o horrorizavam.

— Quando se acha uma jovem tão sedutora, é preciso não deixar tão tolamente que escape! — proferiu Chikako. — Olhe que não se encontra duas vezes uma Yukiko! Pode passar o resto da vida a procurar que não dará com outra igual. É uma evidência que até uma criança conhece. Não tardará em compreender!

O tom era cortante e ela continuou, admoestando-o:

— Tem uma tal falta de experiência das coisas da vida ao se mostrar tão exigente! Porque isso vai mudar inteiramente o seu destino, seu e da Srta. Inamura, pois não ignora que ela estava longe de se negar! E qual não será a sua responsabilidade, enfim, se ela não for feliz nesse outro matrimônio!

Kikuji fechou-se.

— E teve a oportunidade de ficar com ela! Ima-gine que Yukiko, dentro de alguns anos, venha a lamentar não ter casado com você. No seu lugar, eu não sentiria a consciência tranqüila!

A voz de Chikako supurava ódio. Mas que adiantavam aqueles discursos já que Yukiko estava casada?

— Não são vaga-lumes o que vejo nesta caixinha? — perguntou de repente, com o pescoço estendido. — Vaga-lumes, quando já estamos chegando na época dos grilos do outono! Ê como se conservasse, fora do tempo, o fantasma da estação passada. . . Como se sentisse muitas saudades dela!

— Foi minha velha empregada que os trouxe — defendeu-se ele.

— Tem aí, com efeito, tudo o que se pode esperar duma empregada. Mas essas coisas não sucederiam na sua casa, se tivesse, como devia, cultivado a arte do chá. Nós, no Japão, respeitamos as estações.

Era difícil pretender que ela estivesse de todo errada no que afirmava. Como negar que o clarão radioso dos pirilampos não estivesse em contradição com a realidade atual do tempo? No Lago de Nojiri, ele ouvira já os grilos do outono, e considerava mesmo estranho que pirilampos tivessem podido sobreviver até o momento.

— Se tivesse se casado, a sua mulher trataria de o poupar destes prosaísmos sinistros. Não deixaria suspensos ante seus olhos coisas tão melancolicamente atrasadas.

Ao observar isso, sua voz se emocionou:

— E eu que esperava prestar um último serviço à memória de seu falecido pai, combinando esse casamento!

— Prestar um serviço a meu pai? — admirou-se.

— Sim, naturalmente. E encontro você deitado no escuro, nesta galeria, a contemplar pirilampos raros! Até a Srta. Ota, durante esse tempo, achou uma oportunidade de se casar.

— Quê! Quando isso ocorreu? — saltou Kikuji, desta vez incapaz de ocultar sua surpresa e emoção.

Chikako por certo não deixara de perceber sua agitação, pensou.

— Eu próprio fiquei estupefata sabendo da notícia, ao voltar de Kioto. Até se julgaria que as duas combinaram se casar ao mesmo tempo! Esta juventude. .. não se pode contar com ela! Soube do casamento de Fumiko e mal tive tempo de me dizer que nada mais se oporia ao seu enlace com a Srta. Inamura: vieram me dizer que essa também se casara. Perdi o pé, mas a culpa é sua por ter adiado e hesitado tanto. Tudo o que aconteceu foi por culpa sua.

Ele só pensava em Fumiko, sem conseguir se afazer à idéia de ela se ter casado.

— Tive de concluir que a Sra. Ota, mesmo depois de morta, triunfara ao impedir a sua união com a Srta. Inamura. Mas penso, agora que a filha dela também se casou, penso que enfim a sua casa se livrou desse mau espírito.

Teve um olhar longo para o jardim e disse:

— O que está feito, está feito. Deveria agora se ocupar um pouco de suas árvores e seu jardim. Mesmo de noite, a gente se sente opressa aqui, com esta vegetação tão densa e desordenada!

Desde a morte do pai, há quatro anos, Kikuji com efeito negligenciara chamar um jardineiro para cuidar das plantas. As árvores, de copas demasiado cheias, como que aprisionavam todo o calor do meio-dia.

— A empregada nem mesmo rega as plantas, quando mais não fosse, para refrescar um pouco. Realmente, você devia falar a ela.

— Mete-se em coisas que não lhe concernem — declarou ele.

Mas podia fazer cara feia a cada nova observação de Chikako, não se deixava menos conquistar por sua tagarelice. Toda vez que a encontrava, era a mesma coisa.

Ela se fazia acerba e picante, mas era para captar sua atenção e melhor poder adivinhá-lo e sondar seus sentimentos secretos. Kikuji não o ignorava e, se fingia entrar no jogo dela, cuidava de manter as suas defesas. Mas Chikako era incurável: tomava a atitude de não se aperceber de nada, ao passo que via sempre tudo e sabia perfeitamente do que se tratava. Nunca deixava, aliás, ainda que de passagem, de mostrar isso bem claro.

Ela possuía, ademais, um viés de caráter tão constantemente irônico, que nunca o surpreendia inteiramente o que ela pudesse dizer. Já mais ou menos o esperava, tanto mais que ela fuxicava sempre entre as coisas que o podiam mais perturbar e repugnar.

Ainda esta noite, não cessara de espreitar suas reações à notícia dos enlaces de Fumiko e da Srta. Inamura. Ele se perguntava por quê. Tinha querido que desposasse Yukiko e, daí, afastá-lo de Fumiko. Mas agora que ambas estavam casadas, que importava a ela saber o que ele pensava e sentia a propósito? No entanto estava ali, ávida por espionar as dobras mais sombrias do seu coração.

Por um momento, ele pensou em acender a luz no quarto e na galeria; havia algo de grotesco naquele diálogo levado a efeito dentro da noite, numa intimidade aparente, bem longe da realidade de suas relações. Se se metia no modo de ele tratar ou não tratar do seu jardim, ao ver de Kikuji, isso não representava mais que um recurso para a sua conversa abrupta e indiscreta de costume, e não o preocupava absolutamente. Por fim, renunciou a ir acender a luz, sentindo-se demasiado preguiçoso.

Ela própria, que vinha gritando desde que entrou por dar com ele deitado na galeria em trevas, também não tivera a idéia de se levantar pela luz. Ela, que outrora não parava quieta e se mostrava tão ativa para todas essas pequenas tarefas domésticas. Teria perdido o gosto, a mulher sempre tão serviçal para a família, agora que só tinha a tratar com ele? Ou seria, simplesmente, um efeito da idade? Ou, talvez ainda, estimasse esse gênero de coisas incompatível com a dignidade que adquirira lecionando a arte do chá? Assim cismava Kikuji, quando Chikako o interrompeu num tom neutro:

— O antiquário Oizumi, em Kioto, me encarregou de lhe dizer que, se por acaso tenciona vender sua coleção, se felicitaria que o considerasse como possível comprador. É possível que você deseje organizar a sua existência de outro modo, agora que a Srta. Inamura lhe escapou. Os objetos de arte já não terão a mesma importância para você. Nem o chá. . . Vou ficar triste, eu que me ocupei tanto tempo dessas coisas enquanto seu pai vivia, quando não tiver aqui mais nada a fazer. Mas, na verdade, o chachitsu nem é aberto fora das raras visitas que eu lhe faço.

Tudo se esclareceu para Kikuji, que agora compreendeu o jogo dela. Ele a fizera perder o casamento com Yukiko; ela deixava de se interessar por ele, a não ser talvez para tirar uma última vantagem, explorando-o na venda da coleção. Assim planejara aquela combinação com o antiquário, indo a Kioto. Era mais do que evidente. Mas em vez de se irritar, como era crível, sentiu-se ao contrário aliviado. Um peso lhe saía dos ombros.

— Como tenho o intuito de vender inclusive a casa — disse, — não é de todo impossível, realmente. Vou pensar nisso.

— Com um comerciante que conheceu e fez fornecimentos a seu pai — opinou ela, — pode estar mais tranqüilo do que com qualquer outro, sem dúvida.

Dizendo-se que ela conhecia provavelmente muito melhor que ele cada peça da coleção, Kikuji imaginou que Chikako já devia ter feito seus cálculos e avaliado o que ia ganhar.

Seu olhar, espontaneamente, se voltou para o chachitsu.

A opulenta floração branca dum kyochikuto² radiava diante do pequeno pavilhão e suavizava a noite, tão escura que só se discernia essa vaga brancura e nada dos contornos mais opacos das demais árvores do jardim.

 

2 Uma espécie de pessegueiro gigante, muito rico em flores mas que não dá frutos.

 

Kikuji se apressava para deixar o escritório, findo o expediente, quando o telefone soou.

— Alô?

— É Fumiko quem fala — disse uma voz fraca e longínqua.

— Alô, Mitani aqui. . .

— É Fu-mi-ko — articulou a voz mais claramente.

— Sim, estou ouvindo melhor agora.

— Estou sem jeito de o incomodar — disse, — mas era preciso que eu lhe ligasse para me desculpar. Se não, seria tarde.

— Para quê?

— Mandei-lhe ontem uma carta, mas na última hora me esqueci de selar.

— Como? Não, ainda não recebi.

— Tinha comprado dez selos no correio, em seguida pus a carta na caixa. Voltando para casa, reparei que estava ainda com os dez selos! Não sei bem o que eu fiz. E fazia questão de me escusar antes de você receber a carta.

— Mas, ora, não há por quê! Uma coisa tão pequena — disse ele, pensando que a carta devia ser sem dúvida para lhe anunciar seu casamento. — Espero que traga uma boa notícia, pelo menos! — acrescentou.

Mas Fumiko provavelmente não o ouviu.

— Como disse? — mas continuou: — Até agora tinha falado com você pelo telefone, mas nunca lhe escrito; vacilei até o último instante se devia lhe remeter a carta, e foi por isso, entende?, que esqueci de pôr o selo.

— Onde está neste instante?

— Na estação central, numa cabina pública; diversas pessoas já estão esperando a vez.

— Numa cabina? — admirou-se ele, antes de voltar à sua primeira idéia e dizer: — É preciso que a cumprimente!

— Ah, sim?... Bem, muito obrigada. . . Mas como você soube?

— Kurimoto me contou.

— A Srta. Kurimoto, disse? Como é que ela ficou sabendo? É de se acreditar que não lhe escapa nada.

— Mas agora vai ser fácil para você mantê-la longe, já é alguma coisa. . . Da última vez que falamos no telefone, eu escutava o ruído da chuva pelo fio.

— Sim, foi o que me disse. Naquele momento, eu acabava de alugar um quarto na casa de uma amiga e me perguntava se devia lhe avisar ou não. Uma hesitação semelhante me voltou há pouco.

— De qualquer modo, prefiro mil vezes que você me dê a nova; me deixa mais à vontade. Pois eu também andei numa hesitação como a sua, depois que Kurimoto me falou: não sabia se devia ou não lhe enviar congratulações.

— É uma tristeza para mim ter de perder o contato com você -— disse ela com uma voz subitamente abafada de melancolia, que lembrou a ele a voz flexível da Sra. Ota.

Como Kikuji nada falasse, ela prosseguiu:

— Mas, fosse como fosse, eu tinha de me afastar de você, eu sei. . . — e, depois de uma pausa: — É uma simples peça de seis esteiras o que encontrei, no dia em que consegui trabalho.

— Hum?

— Foi bem duro começar a trabalhar assim, em pleno calor.

— Sim, compreendo. Sobretudo quando a gente acaba de casar.

— Como disse? Casar? Entendi bem?

— Sim, lhe dou meus parabéns. Felicidades!

— Para mim? Seria então eu quem teria casado? Está brincando?

— Você não se casou?

— Eu? Que idéia!... Como pôde crer que eu tinha alma para casar num momento desses?... Quando perdi minha mãe, e da maneira que conhece.

— Bem. . .

— Foi a mestra Kurimoto que lhe contou isso?

— Sim.

— Mas como é possível? Não entendo realmente. E você, você acreditou nessa conversa?

Pronunciou as últimas palavras como se fizesse a pergunta a si mesma. Kikuji, de repente decidido, cortou:

— Pelo telefone não, não é possível. Posso encontrá-la?

— Sim.

— Muito bem. Vou correndo para a estação central. Me espere aí.

— Mas é que. . .

— Prefere que nos avistemos noutra parte?

— É que eu não gosto muito de esperar na rua. Irei à sua casa, se permite.

— Está combinado. Quer ir junto comigo?

— Era preciso que nos encontrássemos na cidade. . .

— Passe aqui no escritório, se deseja.

— Não, melhor eu ir direto à sua casa. Fica mais simples.

— Perfeito. Vou para lá imediatamente. Se chegar antes de mim, entre e me espere tranqüila que eu não demoro.

Se ela pegar o primeiro trem na estação central, chegará antes de mim, se dizia. Mas, assim pensando, não perdia a esperança de viajar no mesmo trem que ela. Na plataforma da estação, procurou-a com os olhos entre a massa. Em vão.

Quando chegou em casa, ela já estava com efeito lá. A doméstica lhe avisou que a moça o esperava no jardim, e foi direto ao seu encontro, sem entrar em casa.

Fumiko estava sentada numa pedra, à sombra do grande kyochikuto carregado de flores brancas. A pedra parecia um pouco úmida ainda embaixo, pois, após a última visita de Chikako, a empregada voltara a regar o jardim antes da volta do patrão; o velho cano d'água ainda funcionava.

Kikuji se adiantou na direção da árvore florida, cujas flores, docemente afagadas pela brisa da tarde, pareciam coroar a cabeça da moça. Os hyochikuto têm, em geral, uma galharia espessa em que as flores desabrocham como pequenas labaredas; dão uma impressão de verão escaldante. Mas esse, com sua abundância de flores brancas e perfumadas, espalhava uma grata sensação de frescor. Na sua sombra aromatizada, Fumiko estava com um vestido branco de algodão, bordado com linhas finas dum azul forte na gola e nos bolsos. O sol descendo escorria através das folhas seus raios de ouro vermelho, que faziam o céu rutilar.

— Como estou contente de vê-la aqui! — exclamou o rapaz, afetuosamente se acercando da moça.

Fumiko parecia ter dito algo antes dele, umas palavras indistintas, no momento de se levantar e deixando cair os ombros, como se o espontâneo impulso cordial de Kikuji a intimidasse um pouco.

— Foi porque me disse aquilo no telefone que eu vim, para lhe afirmar o contrário.

— Quer dizer o casamento? Eu mesmo fiquei meio surpreendido, lhe garanto.

— Surpreendido? Como? — perguntou Fumiko, baixando os olhos.

— Duplamente: primeiro, com a notícia do seu pretenso matrimônio, e, em seguida, sabendo que não era verdade.

— E as duas coisas o surpreenderam?

— Não é natural? — disse, precedendo-a no caminho indicado pelas pedras que levava à galeria. — Vamos subir por aqui. Não devia ter-me esperado fora, devia ter entrado.

Instalaram-se na galeria e Kikuji explicou:

— Aqui é que eu estava descansando, há alguns dias, de volta dumas férias curtas, quando Kurimoto chegou. Já era de noite.

Do interior, a empregada pediu para falar com ele, sem dúvida a respeito da refeição que lhe ordenara pelo telefone, antes de deixar o escritório. Aproveitou para se mudar e pôs um quimono leve, de cor branca.

Fumiko, também, parecia ter-se arrumado. Esperou que Kikuji voltasse a seu lugar e indagou:

— Exatamente, o que foi que lhe disse a Srta. Kurimoto?

— Que você tinha se casado, só isso.

— E acreditou no que disse só porque o disse?

— Que motivos iria ter para mentir nesse caso?

— Mas você não teve a mínima dúvida?

As lágrimas tremeram nos bordos dos cílios, molhando os grandes olhos negros da moça, que disse com precipitação:

— Como eu podia ter querido me casar? Realmente, pensou que eu seria capaz? Depois de toda a pena, toda a tristeza que tivemos, minha mãe e eu... e quando o tormento não terminou!

Ao ouvir aquela voz, Kikuji, pelo espaço de um momento, chegou a crer que a mãe vivia ainda, que estava ali.

— É uma grande fraqueza nossa, minha e de minha mãe, contar infinitamente com os outros. Mal temos a sensação de sermos compreendidas, entregamos nossa confiança, sem restrição nem medida. Não é de fato uma ilusão vazia? Não mais que uma imagem falsa, o reflexo do próprio estado de alma, como quando a gente se olha na água? — prosseguiu, com uma voz perto dos soluços.

Kikuji, após um tempo de silêncio, notou:

— Na última vez, fui eu que lhe perguntei se podia crer que eu desejava me casar, lembra-se? Foi no dia daquela chuva forte.

— Naquele dia de trovoadas terríveis e clarões?

— Sim, naquele. E agora é você que me diz a mesma coisa, quase palavra por palavra.

— Oh, não, não é de modo algum a mesma coisa!

— Você já então me repetiu várias vezes que eu iria me casar — insistiu ele.

— Mas entre você e mim, a situação não é comparável — afirmou a moça, erguendo para ele os olhos molhados.

— A situação, como assim?

— Sim, a sua e a minha, é tudo diferente. Mas talvez seria melhor falar, em vez de situação, desta parte de sombra no destino. . .

— O sentimento do pecado, é ao que quer aludir? Mas é também o meu fardo.

— Não! — gritou ela, sacudindo a cabeça. Uma lágrima, uma única, deslizou do olho esquerdo pela face de Fumiko, que logo se refez para explicar:

— Esse pecado de que fala, minha mãe o levou consigo na morte. E depois, não acredito que tenha sido um pecado; creio que foi apenas o seu sofrimento.

Kikuji baixou a cabeça.

— O pecado não se apaga talvez nunca — acrescentou a moça, — mas o sofrimento e as aflições se esquecem.

— Ao falar dessa parte de sombra, só consegue tornar mais sombria a morte de sua mãe, me parece...

— É do fundo da dor que devia antes ter falado — corrigiu Fumiko. — Foi o que queria dizer.

— Do fundo da dor. . . — principiou Kikuji, que queria equiparar a expressão à “do fundo do amor", mas calou no último instante.

— Para começar, havia para você a proposta de casamento com Yukiko, o que já faz uma grande diferença! — continuou a moça, trazendo o diálogo ao plano da realidade. — A Srta. Kurimoto tinha achado que minha mãe constituía um obstáculo a esse casamento. Deve ter receado que eu também constituísse, e por isso veio lhe dizer que eu tinha casado. Não acha?

— Mas ela ao mesmo tempo me declarou que a Srta. Inamura também casara!

Fumiko ficou um instante perplexa e logo sacudiu a cabeça afirmando:

— Mas não é verdade! Não é possível... Deve ser outra mentira, não acredito. Em que data ela disse?

— Do casamento? Oh, deve ser recente.

— Não, não é possível que isso seja verdade. . . Estou convencida!

— Kurimoto me disse que as duas tinham casado, Yukiko e você — revelou ele com voz surda. — Foi por isso que acreditei na história do seu casamento. Mas é bem possível que quanto a Yukiko seja certo, quem sabe?

— Não, garanto; ninguém se casa em pleno verão. Não se pode usar vestimenta dupla com o calor, se morre de suor, é um incômodo. Isso não se faz.

— Sem dúvida está certa. Mas não hã nunca núpcias no verão?

— Raríssimamente. Em regra, para os que querem se unir nesta estação de qualquer forma, adia-se a cerimônia para o outono.

E súbito os olhos úmidos de Fumiko — quem saberia por quê? — transbordaram de lágrimas. Com a cabeça baixa, ela fitava as manchas que faziam suas lágrimas caindo em seu regaço.

— Por que, mas por que a Srta. Kurimoto conta essas mentiras?

— Ah, se pode dizer que nos acertou em cheio! — comentou Kikuji, perguntando-se o motivo que fazia Fumiko chorar agora.

O fato certo era que o casamento dela era uma falsidade. Mas talvez Chikako a inventou justamente por ter Yukiko de fato casado, daí querendo afastar Fumiko dele. Era o que Kikuji se dizia, mas sem achar a explicação convincente. Não podia deixar de ter uma dúvida quanto à realidade das bodas de Yukiko.

— Seja como for — concluiu, — enquanto não soubermos, sim ou não, se a Srta. Inamura se casou, nos é impossível dizer a que ponto Kurimoto levou a brincadeira.

— A brincadeira? Chama isso uma brincadeira?

— É um modo de dizer. . . o primeiro que me veio.

— E se não lhe tivesse ligado hoje, continuaria julgando que eu estivesse casada! Como brincadeira, me parece mais do que má. Foi uma malvadez!

A velha doméstica chamou outra vez Kikuji, que voltou em seguida, com uma carta na mão.

— Sua carta acaba de chegar — disse — a carta não selada.

Ia abrir o envelope, mas Fumiko interveio:

— Não, não! Por favor, não a leia!

— Por quê?

— Não quero! Me devolva...

Ao dizer isso, sem se levantar, se inclinou para ele para pegar a carta.

— Devolva-a, suplico-lhe!

Num gesto ágil, Kikuji escondeu a carta nas costas. Ela se curvou mais, buscando pegá-la com a mão direita, apoiando involuntariamente a esquerda no joelho de Kikuji. Esse lhe tirou a carta do alcance e a moça, com a mão estendida, quase caiu sobre ele, perdendo o equilíbrio ao se lançar para a direita. Seu rosto raspou o busto de Kikuji, tanto se inclinara. E teria inteiramente caído sobre ele sem o apoio da mão esquerda no joelho dele, que lhe permitiu, num ágil movimento, se jogar para trás. E no entanto Kikuji mal sentira aquela mão, sem mais peso que uma carícia. Como podia ter-se reerguido assim, apenas o aflorando, quando todo o peso de seu corpo vacilava?

Ele, que esperava receber em si todo esse peso, ficou assombrado com tanta leveza e por pouco não deu um grito. Bruscamente, sentiu-se invadido pelo perturbador sentimento da feminilidade, pela emoção daquela presença de mulher em que reencontrava, a despeito de si mesmo, a personalidade e todos os encantos da Sra. Ota.

Fumiko se erguera no momento em que a esperava nos braços. Como pôde fazer? De onde tirara a força para evitar a queda quando já ia caindo? Por que movimento de incrível agilidade tinha conseguido lhe escapar? Havia aí algo de magia, um dom de feitiço cuja origem devia se prender ao mais secreto do instinto feminino. Porque a jovem parecia ter-se evaporado, na hora mesma em que julgava ir tê-la nos braços, e dela só recebera um sopro, aquele eflúvio cálido retido apenas pela respiração dele.

Mas o transtornara a emanação que se exalou do corpo da moça. Ela trabalhara ao longo de todo aquele dia de verão. E respirando-a, como o fizera, Kikuji se sentiu de repente mergulhado no perfume inebriante da Sra. Ota. Reviveu o seu abraço.

— A carta, eu lhe peço, me devolva! — insistiu Fumiko.

Kikuji cedeu.

Ela pegou a carta e se virou um pouco para rasgá-la em pedacinhos. O olhar de Kikuji surpreendeu, em sua nuca e nos braços, finas gotas de suor.

Quando ela quase caiu sobre ele, seu rosto tinha empalidecido bruscamente para se avermelhar em seguida a que conseguiu se pôr direita. Sem dúvida, era a violência dessas emoções, naquele calor, que tinha criado essas súbitas pérolas de transpiração no corpo da moça.

 

A refeição da noite, que Kikuji mandara vir dum restaurante da vizinhança, nada tinha de extraordinária.

A pequena taça de chino lá estava, no lugar dele, para o chá. A empregada a tinha posto, como fazia todos os dias.

Foi a primeira coisa que ele notou. Fumiko, também a tendo visto, quis saber:

— É a taça com que se serve habitualmente?

— Sim.

— Estou envergonhada — disse, com certo embaraço, sem perceber que ele estava talvez ainda mais confuso que ela. — Tenho há tempos me censurado por lhe ter oferecido este objeto. Era também o que lhe escrevia na carta.

— Mas por quê?

— Eu. . . lhe pedia perdão por lhe ter dado de presente uma peça sem qualquer valor artístico.

— Sem valor, esta taça? Muito ao contrário!

— Não, não é um chino especialmente precioso, e a prova está em que minha mãe a reservava para o uso cotidiano.


— Não quero tomar a atitude dum conhecedor; contudo, julgo esta peça como excepcional — afirmou Kikuji, tomando a taça na mão para contemplá-la.

Fumiko não se sentia ainda satisfeita:

— Existem chinos tão superiores! E quando usa este, como não pensar nos outros por comparação? Será sempre obrigado a considerá-los mais bonitos.

— Não creio que figure nem uma só outra taça de chino na nossa coleção.

— Mas há de forçosamente vê-las noutros lugares, se não as tem em casa. E seria muito triste dever dizer a si mesmo que a sua taça é tão inferior às outras. . . Quero dizer, por minha mãe e por mim...

Kikuji estremeceu ouvindo isso, mas se apressou a contestar:

— Como me afasto cada vez mais da arte do chá, não correrei muito o risco de ter ocasião de observar outras taças.

— Quem sabe?... Mesmo só por acaso. . . Aliás a esta altura você certamente já viu outras mais bonitas.

— Se vai assim, não se pode mais oferecer nada de presente, a não ser puras obras-primas!

— Sim, é justamente o que eu queria dizer — respondeu Fumiko, olhando-o nos olhos. — Refleti muito a respeito, e foi por isso que lhe pedi na carta que tivesse por bem quebrar esta taça e jogar fora os cacos.

— Quebrar? Esta taça? — se pasmou e tentou tirar a moça de sua gravidade: — É uma taça que vem, estou certo, dum dos mais antigos fornos da escola, há três ou mesmo quatro séculos! Na origem, é possível que tenha sido concebida como uma tigelinha, que nada tinha a ver com o chá. Mas já faz séculos que as pessoas dela se servem como taça de chá. Numerosos mestres a conservaram e transmitiram cuidadosamente. Certos amadores, sem dúvida, a empregaram também como uma taça de viagem e a levaram bem guardada por léguas e léguas, longe, em meio a perigos. Foi assim que ela chegou até nós. Oh, não, não é uma peça que a gente se possa permitir quebrar por um capricho!

Ainda mais, pensou, que o bordo dessa preciosa taça, tal como a moça revelara, trazia o sinal dos lábios e do batom da mãe. Um sinal indelével, lhe dissera; um traço que resistira a todas as lavagens, como a ela tinha dito a mãe. Com efeito, a marca, apesar de mínima, não se apagara quando o próprio Kikuji, uma vez na posse da taça, se aplicou em limpá-la. Não era naturalmente a fraca cor do batom, mas um leve traço castanho realçado com um toque de carmim apenas visível. Podia-se aí ver sem dúvida o vestígio fanado dum batom, embora ali só houvesse, muito provavelmente, o tom natural sobre o ruço do chino. Como saber? Desde que a peça foi empregada na arte do chá, tantos lábios tocaram, de geração em geração, sempre no mesmo lugar; seria impossível que terminassem por deixar sua marca ali? E de todos esses lábios, os da Sra. Ota, que tomara a taça para seu uso cotidiano, não teriam sido os mais freqüentes?

Quanto a esse emprego da tacinha de chino, Kikuji podia bem se perguntar se fora a Sra. Ota mesma que resolvera, ou se a iniciativa não vinha de seu pai, o que lhe soava bem mais verossímil.

Lembrou o par de taças de Ryonyu, a preta e a vermelha, se inquirindo se não tinham servido para o colóquio do par; a vermelha, um pouco mais frágil e fina, para a Sra. Ota, e a preta, mais viril, para seu pai.

Sim, devia ter sido o pai que levara a Sra. Ota a usar o mizusachi de chino, não como bilha d'água para a sessão de chá, mas como vaso de flores doméstico, onde aprendera a pôr cravos e rosas; de modo que devia também ter sido ele que sugerira à amante o uso diário da tacinha de chino, em lugar de reservá-la apenas para a arte. E nesse universo que ele mesmo compusera, transposto para a graça e para o encanto da amante, nessa sutil mudança de atmosfera de que só ele tinha a chave, sim, foi nesse clima secretamente harmonioso que mergulhou na contemplação deliciosa da beleza da bem-amada, da beleza da Sra. Ota...

A morte levou os dois e a bilha de chino como a pequena taça vieram para a posse de Kikuji. A própria Fumiko estava ali, em sua casa.

— Não é um capricho — reagiu ela, — mas de fato desejaria que você a destruísse. Foi apenas porque teve tanta alegria quando lhe dei o mizusachi, que pensei em seguida lhe trazer, como complemento, a outra peça de chino que tínhamos. Quase imediatamente me condenei, e desde então não cessei de fazê-lo .

— A verdade é que uma taça deste valor não deveria ser usada todos os dias. É muito risco.

— Existem tantos chinos melhores! Seria uma dor para mim, me entenda, se pensasse neles quando tenha este em mãos.

— Mas enfim, conceda, não se pode sempre oferecer só o que está acima de tudo!

— Não digo isso; mas tudo depende daquele a quem se destina o presente e da circunstância.


A resposta de Fumiko o atingira. Pensaria mesmo que, em lembrança da mãe e por ela igualmente, nada podia convir, a não ser uma perfeita obra de arte do chá?

Podia compreender o sentimento da filha, desejando não ligar à memória da mãe mais do que altas e puras perfeições artísticas. A esse íntimo desejo de sua alma obedecera, de modo espontâneo, quando o presenteara com o mizusachi de chino; aquela obra-prima, cuja matéria misteriosamente febril irradiava um calor vivo a despeito da frieza do objeto, fazia aliás mais do que recordar nele a Sra. Ota: evocava-a em seu coração com uma eficácia soberana. E oferecia ao seu olhar, graças à própria insuperável perfeição, o efeito todo-poderoso duma autoridade magistral que o transportava a um mundo de alta pureza estética, onde não havia lugar para nada sombrio, nada das angústias obstinadas do pecado.

Ao contemplar aquela peça, Kikuji se punha a crer que também a Sra. Ota tinha atingido a mais alta perfeição, que ela havia sido uma obra-prima de beleza feminina, e que nada de impuro, equívoco, agitado ou odioso podia acompanhar a beleza. Uma obra-prima, por definição, é isenta de imperfeições.

Quando ligara a Fumiko no dia em que chovia tão forte, tinha-lhe confiado que a longa contemplação do mizusachi de chino despertava nele o desejo de vê-la. Ousara lhe dizer por ter sido ao telefone. E Fumiko lhe tinha então falado da outra peça de chino que possuía, imaginando já lhe trazer a pequena taça de presente.

Que essa não se comparasse ao mizusachi era possível, depois de tudo. E com essa conclusão que o devolvia ao início de seu meditar, Kikuji retomou o diálogo:

— Lembro que meu pai possuía um pequeno cofre de viagem para o chá, e estou certo de que a taça que aí levava não vale esta de chino!

— De que espécie era?

— Não sei e realmente nunca a vi.

— Dá licença de eu vê-la? — pediu Fumiko. — Guardo a convicção de que a taça de viagem de seu pai era infinitamente superior. E se for esse o caso, como acredito, me deixará destruir esta, não é?

— Você me assusta! — recuou Kikuji.

Quando chegaram à sobremesa, Fumiko, limpando habilmente as sementes dum melão, insistiu em ver a taça de viagem. Kikuji disse à empregada que abrisse o chachitsu e em seguida saiu para o jardim. Tinha a intenção de procurar sozinho a taça e voltar logo, mas a moça o seguiu.

-— O cofre, nem sei onde pode ter sido posto. A Kurimoto é que era preciso perguntar; saberia melhor que eu — disse, virando-se.

Fumiko se deteve sob o kyochikuto em flor; ele quase só via dela os pés, estranhamente calçados de geta sobre meias ocidentais.

Kikuji achou o cofre de viagem num armário de parede do mizuya e voltou em seguida à peça principal, colocando-o diante da jovem sentada. Ela esperou um instante que ele desfizesse a embalagem, mas, vendo que não se mexia, estendeu as mãos.

— Com licença, eu abro.

— Que poeira! — proferiu ele, pegando o pano que envolvia o cofre para sacudi-lo lá fora. — Na prateleira do mizuya — disse, de regresso — achei uma cigarra morta, já com uma porção de insetos sujos em redor.

— Mas a peça do chá está limpíssima.

— Sim, Kurimoto deu uma arrumação há pouco, na noite em que me veio contar que você e a Srta. Inamura estavam casadas. Mas estava escuro e decerto não notou a cigarra presa.

Fumiko, que tirara do cofre um saquinho em que aparentemente estava a taça de viagem, procurava, com os dedos febris e o busto inclinado, desamarrar os cordõezinhos de seda.

Kikuji, que a via de perfil, observou que suas belas espáduas cheias se afilavam ao se debruçar assim, e uma vez mais se maravilhou com a impressionante delicadeza de seu pescoço.

Na boca apertada pelo esforço, o lábio inferior sobressaía num desenho comovente, e ele admirou ainda a finura da orelha, tão deliciosamente debruada.

— Um karatsu! — anunciou, virando-se para olhar Kikuji, que se aproximou.

Ela pôs a taça na esteira:

— Que esplendor!

Era uma tacinha de karatsu, alta e de forma estreita como a outra, que podia servir à degustação do mais nobre chá verde como ao consumo diário do chá comum.

— Que majestade de linha! Que força de expressão! — admirou Fumiko. — É de categoria muitíssimo superior à taça de chino.

— O karatsu e o chino não podem ser comparados — resistiu Kikuji. — São dois gêneros inteiramente diversos.

— Basta colocar uma taça ao lado da outra e verá que a diferença de qualidade salta aos olhos. É indiscutível!

Seduzido também pela força que se desprendia do karatsu, Kikuji pegou a taça em cima do joelho para observar. Ao cabo de um momento, perguntou se devia mandar buscar a tacinha de chino em casa.

— Não, deixe, vou eu mesma — apressou-se a moça, levantando-se e saindo.

Puseram as duas taças lado a lado e seus olhares se cruzaram, mutuamente se penetrando, mas logo se desviaram para as peças.

Agitado e um pouco tímido, Kikuji tratou de dizer:

— Vendo uma junto da outra, não resta dúvida de aqui termos uma taça masculina e uma feminina.

Fumiko, ainda incapaz de articular uma frase, contentou-se em aprovar com a cabeça.

Kikuji se sentiu estranhamente perturbado pela súbita ressonância que suas próprias palavras tiveram nele.

A taça de karatsu, sem o mínimo desenho ornamental, era dum azul esverdeado firme, pelo qual corria esparsamente o calor dum vermelho forte, quase indistinto e no entanto dominante. A base, ligeiramente alargada, dava-lhe um aspecto de perfeito equilíbrio e de força.

— Seu pai devia ter predileção por esta taça, já que a levava até nas viagens. Acho que combinava perfeitamente com ele.

Havia risco em se exprimir assim, mas ela não parecia se dar conta. Kikuji, ao contrário, não ousou ir ao ponto de afirmar, por analogia, que a taça de chino combinava pelo menos tão bem com a mãe de Fumiko. E no entanto as duas taças, lado a lado, pareciam ser as almas do pai dele e da mãe dela.

Existentes há três ou quatro séculos, as peças apartavam o espírito de toda idéia mórbida e desviavam o coração de qualquer imaginação menos pura. A poderosa vitalidade que exprimiam produzia um efeito direto, sensível, que despertava mesmo uma certa emoção sensual.

Kikuji, não apenas tinha a sensação de ter diante de si a alma de seu pai e a da Sra. Ota, parecia-lhe que ambas tinham revestido a figura mais perfeita que se poderia sonhar para elas. A presença tangível dos dois objetos se impunha a ele com tal autoridade que a presença de Fumiko, a defrontá-lo atrás das duas taças, se justificava como a coisa mais natural e menos culpada do mundo.

Outrora, na primeira comemoração fúnebre depois da morte da Sra. Ota, tinha dito à moça que o fato de se encontrarem era talvez mais que repreensível. Mas a sensação de culpa, o receio ou terror de seu pecado se tinham completamente evolado, decerto pelo exorcismo do barro sutil e da superfície pura das taças de karatsu e de chino.

— Admirável! — murmurou, como se falasse apenas por si mesmo. — No fundo, meu pai não era homem que se apaixonasse pela arte de modo desinteressado, seguindo apenas a direção de seus gostos estéticos; e eu me pergunto se não buscava reconforto e abrigo contra o pecado e a tortura do remorso ao se rodear de peças deste gênero, mágicas de perfeição e de pureza.

— Como? Que está dizendo?

— Quando se contemplam estas taças, já não se pode mais em absoluto lembrar as faltas ou os pecados que poderiam ter sido cometidos pelos que as possuíram antes. O período vivido por meu pai não passa de um mínimo e desimportante incidente na longa e impressionante existência dessas obras. . .

— Mas a morte está tão perto de nós! — disse ela, explicando: — Cheguei mesmo à conclusão de que estava mal me prender' por mais tempo à morte de minha mãe, enquanto a morte está aí tão perto, sob nossos pés, por assim dizer. Procurei com todas as forças superar aquela obsessão.

— Fez bem. Quando a gente se apega demais aos mortos, se expõe a terminar acreditando que a gente mesmo não existe mais.

A velha empregada entrou nesse momento, trazendo a chaleira cheia de água quente. Vendo-os ficar tanto tempo no pequeno pavilhão de chá, devia ter pensado que precisariam de água quente para preparar o chá.

Kikuji sugeriu que Fumiko o fizesse segundo os ritos do chá em viagem, com as duas taças de karatsu e de chino.

Dócil, ela assentiu com um sinal de cabeça e murmurou :

— Antes de ser quebrada a taça de chino, você lhe concede a graça de servir ainda uma última vez...

Tirou do cofre um chasen e passou ao mizuya para lavá-lo.

O longo dia de verão ainda não extinguira a sua luz.

Manipulando o minúsculo chasen para preparar o chá na pequena taça, Fumiko alteou a voz:

— Então, como em viagem?

— Sim, como em viagem. Imagine que estamos numa hospedaria.

— Não forçosamente. Talvez à margem dum rio ou ainda no alto dum monte... Recolhemos água fresca na fonte de algum recanto selvagem. . .

E quando tirou o chasen da taça, o mirar de seus olhos negros se fixou um curto momento em Kikuji, antes de voltar à taça que girava lentamente nas mãos¹.

 

1 Como manda o uso, a fim de apresentar a taça ao comensal.

 

Kikuji, com os olhos na taça, a viu vir a si, baixar, colocar-se diante de seus joelhos; e, emocionalmente, era como se a própria Fumiko assim se ofertasse a ele.

A moça põe agora à sua frente a taça de chino da mãe. Mas desta vez teve de interromper a preparação, pois, apesar de tão pequeno, o chasen batia no interior da taça.

— É difícil — suspirou.

— Com uma taça tão estreita, é claro que não deve ser fácil — concordou Kikuji.

Mas a verdade é que eram as mãos da moça que tremiam, ao ponto de seus braços terem arrepios.

E quando desejou retomar a batedura interrompida, foi-lhe impossível agitar o chasen na minúscula taça de chino.

Fumiko curvou a cabeça sobre o punho crispado:

— É a minha mãe que não quer. . .

— Como?

Kikuji saltara de pé para vir pegar a jovem pelos ombros, com as duas mãos, como se se tratasse de sacudir de sua imobilidade a vítima de algum malefício.

Fumiko não lhe opôs nenhuma resistência.

 

Não conseguia dormir e esperou que o dia rompesse para se levantar. Quando as primeiras luzes da aurora passaram através dos postigos, saiu e foi para o chachitsu.

No tsukubai1 jaziam ainda os pedaços da taça quebrada. Recolheu os quatro fragmentos grandes e os rejuntou, reconstituindo assim a forma inteira da taça, fora um pedaço que faltava no bordo, da largura de um dedo mais ou menos.

 

1 Grande pedra chata que serve de patamar para a galeria.

 

Abaixou-se e se pôs a procurar entre as pedras, com a vaga esperança de achar as partes que faltavam, mas não tardou em abandonar a busca inútil.

Ao se erguer viu através das árvores cintilar no céu levante uma única e radiante estrela.

Ficou longamente a contemplar, de pé, a estrela da manhã, cismando como alguém que deixou passar anos sem revê-la. E no céu matinal, via se acama-rem as nuvens que subiam com a aurora.

À beira das nuvens, a estrela parecia brilhar mais do que nunca. Seu contorno luzia e raiava como imerso n'água.

Purificado pela visão da estrela, Kikuji se envergonhou de ter querido recolher os cacos da taça partida. Jogou fora os que tinha na mão.

Na noite da véspera, quando Fumiko atirara o chino nas pedras, não teve meios de impedir. A moça se eclipsara do chachitsu e ele não tinha notado que levava a taça. Não pôde mais que soltar um grito — oh! — quando a viu curvada sobre a pedra do tsukubai, quase caindo com o brusco movimento destrutivo. Acorreu para a impedir de cair, segurando-a pelos ombros, sem procurar achar os destroços na pedra.

— Chinos... há tantos outros melhores... — ela balbuciara.

Seria certo que temia àquele ponto as comparações que ele pudesse fazer?

Os débeis termos de seu balbuciar não cessaram de persegui-lo à medida que a noite avançava. Repetia-os sem parar e o eco deles repercutia em seu coração, repleto de tristeza e acabrurihante como a queixa inconsolável do pudor ferido.

Mal pôde aguardar a luz do dia para correr ao jardim, em busca dos restos da taça partida. Recolhera-os, mas para os jogar fora em seguida, sob o olhar luminoso da estréia. E agora. . .

— Ah! — exclamou a despeito de si mesmo. Levantou de novo o olhar para o céu e a estréia tinha desaparecido. O tempo de dar uma olhada aos cacos no solo e as nuvens a haviam encoberto.

Permaneceu fitando com insistência o céu da manhã: sentia-se frustrado. Não sabia mais onde achar a "sua" estrela atrás da cortina brumosa, mas leve como tule, parecia. No horizonte, uma faixa rosa se fixou, se destacando sobre o contorno recortado pelos tetos da cidade.

— Não posso de qualquer forma deixar estes cacos aqui — disse-se a meia voz, decidindo-se a juntá-los e pôr na manga do quimono².

 

2 A ampla manga do quimono serve de bolso.

 

Deixá-los assim no jardim o confrangia, e havia ainda um risco que não queria correr: Chikako, com a mania das visitas inesperadas, podia vir a descobri-los.

Já que fora Fumiko quem quebrara a taça, e desejando desesperadamente fazê-lo, seria contrariar sua intenção querer conservar os cacos. O melhor seria ainda enterrá-los do lado do tsukubai.

Assim resolveu. Nem por isso deixou de reentrar em casa, onde embrulhou cuidadosamente os fragmentos num papel e os guardou num armário, à espera de serem enterrados. Feito o que, voltou para a cama.

Quando e onde teria podido comparar o seu chino com outros? E por que motivo o faria? Decididamente não chegava a entender qual era a idéia de Fumiko!

E menos que nunca esta manhã, depois da noite inesquecível, agora que a seu ver não existia ninguém no mundo que se pudesse comparar com Fumiko, que se tornara para ele um ser absoluto, um elemento decisivo do seu destino.

Nunca até ali esquecera que ela era a filha da Sra. Ota. E agora era como se nunca tivesse pensado nisso. E o sonho perverso que o fazia reencontrar, por uma mutação equívoca, o corpo inebriante da mãe no da filha, também se desfizera. Sentia-se liberado dos terrores e da treva em que, desde há tanto tempo, se achava encerrado.

Devia a salvação àquela virgindade vencida?

Fumiko não lhe opusera qualquer resistência, só teve de triunfar sobre um casto pudor. E de golpe, por esse ato que se poderia julgar o cúmulo do arrebatamento infernal, ele escapara à maldição e saíra do abismo, no fundo do qual se debatia perdendo as forças, perdendo-se a si mesmo.

Enfeitiçado, vítima de um veneno lento, lhe pareceu dever a cura maravilhosa à absorção duma dose fatal do mesmo veneno.

Logo que chegou no escritório, ligou para Fumiko, na casa de comércio em que trabalhava; uma oficina de tecidos por atacado no bairro de Kanda, como ela lhe tinha dito. A Srta. Ota não viera aquela manhã.

Kikuji, que fizera questão de ir ao escritório apesar da noite em claro, supôs que Fumiko tinha ficado dormindo, depois de não conciliar o sono até muito tarde. A menos que o pudor, quem sabe, a impedisse de sair de casa.

Ligou de novo à tarde, mas ela continuava não estando e ele fez que lhe dessem o seu endereço, que não possuía.

Na carta que recebera ontem dela, devia provavelmente constar; mas Fumiko a rasgara sem lhe dar tempo de ler e metera os pedaços no bolso. Conversando, durante a refeição, retivera de passagem o nome da casa de comércio em que trabalhava, mas não se lembrara de pedir a sua residência. Como pensaria nisso, embebido pela sensação de que ela não podia estar em outra parte senão onde ele estivesse?

Ao sair do escritório, Kikuji foi em busca da casa onde ela locara um quarto. Terminou por encontrá-la; era a última do parque de Ueno.

Fumiko não estava.

Uma menina de doze a treze anos, com uniforme escolar e que acabava sem dúvida de voltar do colégio, mostrou-se um instante na porta, antes de sumir no interior.

— A Srta. Ota saiu esta manhã — lhe anunciou a menina, ao voltar. — Disse que partia de viagem com umas amigas.

— De viagem? — admirou-se. — Viajou esta manhã? A que horas saiu? Não disse para onde ia?

A menina desapareceu de novo para indagar, mas desta vez não veio até ele; gritou-lhe do interior:

— Não sei direito. A minha mãe não está em casa.

Sem dúvida Kikuji intimidara a menina, que tinha, reparara, as sobrancelhas finas e separadas.

Saiu para a rua, mas se virou. Gostaria de saber qual a janela do quarto que Fumiko ocupava. A casa era assobradada e parecia confortável, com um pequeno jardim.

A morte está tão perto de nós! Era o que Fumiko lhe tinha dito. Sentiu-se como pregado ao solo quando essa frase lhe veio ao espírito.

Tirou o lenço e secou o rosto. Tinha a impressão de não ter mais uma gota de sangue sob a pele e se pôs a friccionar a testa e as faces. Quando guardou o lenço, estava maculado de círculos escuros. Deu-se conta, num frêmito, que um suor frio lhe gelava as costas.

— Não há razão para que ela morra — se disse. — Não há razão.


Não, não havia razão para que morresse aquela que lhe devolvera o gosto de viver, que salvara a sua vida!

Mas a docilidade perfeita de Fumiko na véspera, aquela submissão total que lhe mostrara, não era unicamente comandada pela morte?

Ou, quem sabe, igual à mãe, se descobrira infinitamente em pecado pela própria docilidade de que dera prova?

— E é Kurimoto quem continua vivendo! — raivou Kikuji, cuspindo cada palavra como um veneno lançado em face dum inimigo invisível.

Apressou o passo em direção às sombras do parque próximo.

 

                                                                                Yasunari Kawabata

 

                      

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