Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AGOSTO QUE NUNCA ESQUECI / António Mota
O AGOSTO QUE NUNCA ESQUECI / António Mota

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Enfarpelado com penas vistosas, senhor de bela crista vermelha e de um bico quase tão duro e afiado como uma picareta, bom galador de franganitas amedrontadas e velhas galinhas que, mal o viam aproximar-se,   logo se aninhavam   e,   resignadas, fechavam os olhos, aquele galo era o maior de Vilares. Minha mãe tinha muito orgulho nele.

Muitas vezes o Quinzinho Azeiteiro quis comprar o bicho, que tinha o pescoço depenado, mas minha mãe nunca se deixou embrulhar nas suas falinhas mansas.

Não, o animal já tinha o destino traçado.

Todas as vezes que o Quinzinho passava em Vilares para vender barras de sabão, azeite e petróleo que vinham dentro de latões, transportados no lombo da ”Estrela”, égua magrinha e desconfiada, o galo, sem ninguém o mandar, desatava a cantar. E o Quinzinho Azeiteiro lá começava a conversa do costume.

 

 

 

 

- Dou-lhe quatro litros de azeite pelo maldito galo, senhora Inês! Quer?!

- Está mais magro, o meu galo?!... -   ria-se minha mãe; na outra semana ofereceu quatro litros e meio!

- Ai foi?! Então eu não estava a regular bem da cabeça. Palavra dita não volta atrás. Dou-lhe quatro litros e meio de azeite e ainda uma barra de sabão. Fazemos negócio, senhora Inês?

- Muito obrigadinha pela oferta, mas o bicho já tem o destino traçado.

- A senhora é que sabe.

O Quinzinho Azeiteiro tangia a égua para outros lugares. E no chão saibrento do largo de Vilares ficavam os excrementos da ”Estrela” que eu, quando era mais novato, me apressava a recolher para um pequeno e quase desfeito cesto de vime. Depois ia

semeá-los nas bordas do nosso quintal, junto das couves. Aqui um, ali outro, como se estivesse a plantar batatas.

Nesse tempo eu acreditava piamente em tudo o que o meu avô António me dizia. Ele tinha-me dito que os melhores cogumelos, os grandes e carnudos cogumelos que irrompiam da terra com a chegada das primeiras chuvas do Outono, nasciam dos figos das éguas, cavalos e burros. Mas, para que tal acontecesse, era preciso enterrá-los e regá-los de vez em quando. E era o que eu fazia. Por isso, mesmo nos meses de Verão, as couves mais viçosas de Vilares eram as que cresciam nas bordas do nosso quintal.

Com a chegada do mês de Setembro eu calcorreava o quintal a ver se encontrava os cogumelos. E acabava desanimado, de mãos vazias. Ia queixar-me ao meu avô, ressentido com tanta esterilidade e ele respondia-me, com o ar mais sério deste mundo:

- Sabes, David, a natureza é caprichosa e a vida dos homens é um caminho cheio de curvas. Foi um velhinho que eu conheci quando tinha a tua idade que me ensinou estas palavras que muito me têm ajudado. Nunca te esqueças disto, David: a natureza é caprichosa.

Pois que o fosse. Mas surpreendendo-me, por exemplo, com um ou dois cogumelos do tamanho de chapéus-de-chuva. Isso sim, isso é que era um belo capricho da natureza.

O galo tinha o destino traçado. O fim da sua vida, se a raposa não o apanhasse ou a doença não o levasse antes, estava marcado no calendário pendurado na parede da nossa sala. Um belo calendário que mostrava um barco a navegar nas ondas encapeladas do mar que, nesse tempo, eu ainda não tinha visto nem cheirado.

No dia vinte e quatro de Agosto, que calhava a uma Quarta-feira, havia um círculo a lápis, um círculo muito bem traçado a negro. Obra de minha autoria, evidentemente.

Quando chegasse o dia desse círculo, eu faria doze anos. E a minha mãe, como era costume, havia de afiar muito bem o gume da faca de cortar as couves para o caldo verde, apanhar o galo, segurá-lo entre as coxas, dobrar-lhe a cabeça. Aí, depois de lhe arrancar a penugem atrás da crista, faria um golpe certeiro para que o sangue jorrasse em breve bica vermelha para dentro duma tigela com os bordos esbotenados, onde já havia sal e vinagre.

Pouco tempo depois, o galo estaria inerte no meio da cozinha, dentro de um alguidar que tinha flores azuis nos bordos. E, de repente, com as penas acamadas e a crista pendente e descorada, o bicho havia de parecer mais pequeno.

Minha mãe, cheia de pressa e muito concentrada no seu trabalho, que lhe fazia nascer imensas gotas de suor na testa e acabavam, por vezes, por escorrer até à ponta do nariz, tiraria do brasume da lareira uma negríssima panela de ferro com um dos três pés já soldados pelo ferreiro. E despejaria para cima do bicho a água que lá dentro fervia em cachão.

E eu haveria de ajudar a depenar o galo, soprando muitas vezes nas pontas dos meus dedos para espantar tanto calor. As primeiras penas que eu haveria de tirar seriam as das asas. Quando eu era mais novato, gostava de pôr essas penas na cinta azul do meu chapéu feito com palha de centeio. Também as usava para fazer de conta que era o Luís de Camões.

Então não foi com uma pena que ele escreveu os versos desse livro famoso, chamado ”Os Lusíadas”?

Pelo menos era o que me dizia meu avô António, que gostava de escrever quadras em folhas de papel costaneira, compradas na venda do Rodrigo. Hoje somente consigo lembrar a quadra que minha mãe dizia com muito sentimento. Era assim:

 

           A natureza é caprichosa

           Nosso destino também

           A vida é como a rosa

           que muitos espinhos tem.

 

- David, lembra-te que a natureza é caprichosa e o nosso destino também. com uma pena e um bocadinho de tinta podemos ser pessoas famosas. Depois de morrermos, fazem-nos estátuas, o nosso nome fica nas tabuletas das ruas das grandes cidades, e até podemos ser responsáveis por um feriado.

David, nunca te esqueças destas sábias palavras que um velhinho me ensinou quando eu tinha a tua idade. E tu bem podes vir a ser um desses, nunca te esqueças disto, ouviste?

Depois de bem depenado, minha mãe haveria de pôr o galo em cima da mesa para o abrir e esquartejar. E eu levaria, numa bacia, a cabeça, as penas e as vísceras para a estrumeira amontoada à entrada do nosso quintal. Os gatos iriam atrás de mim e seriam muito rápidos a alambazar-se com os restos ainda quentes do galo.

Se eu não tivesse o cuidado de guardar uma provazinha na bacia, Rufino, o cão velho e escanzelado, que vivia com o meu avô António, sem metade de uma pata, cego de um olho, com as orelhas cravejadas de gordas carraças, ficava a farejar e a largar baba pelos cantos da boca, que até metia dó.

Depois de ver o galo cortado aos pedaços, eu pôr-me-ia a pensar por que razão a natureza não era caprichosa com o corpo desse bicho. Em vez de duas, era bem melhor que um galo tivesse pelo menos umas dez belas coxas. Isso sim, isso é que era um acertado capricho da natureza. Se tal acontecesse, haveria sempre coxas na malga da canja e no prato atestado com arroz de cabidela.

 

Mas, nesse ano de mil novecentos e sessenta e seis, o destino do galo haveria de ser bem diferente, como mais adiante contarei.

 

Minha irmã Adélia era muito mais velha que eu. Nesse ano de mil novecentos e sessenta e seis iria fazer dezassete anos no primeiro dia de Dezembro.

A Adélia era muito bonita.

Quando punha nas orelhas as grossas arrecadas de ouro que a avó Mariana, mulher do avô António, lhe deixara, e vestia uma mini-saia, até parecia que tinha sido nascida e criada numa cidade e não em Vilares, como dizia meu avô.

Nesse tempo eu pensava que Vilares era uma grande terra, o centro do mundo. Achava que o rio que passava ao fundo do casario era bem largo e bastante caudaloso. No entanto, o leito do rio era tão estreito e tão seco no Verão que se podia facilmente atravessar sem haver necessidade de molhar os pés.

Entre mim e a Adélia tinha havido outro irmão.

Chamava-se Adelino, mas há muito tempo que já não vivia connosco. Enfezadito desde a nascença, o Adelino morreu pouco depois de ter feito quatro anos. Uma vaca deu-lhe uma cornada e matou-o.

A vaca era nossa e muito mansa. Mas tinha parido na véspera do dia em que a tragédia aconteceu. Logo pela manhã, mal saiu da cama, só com uma camisola vestida, o meu irmão foi meter-se na corte que ficava no rés-do-chão da nossa casa, certamente com a intenção de brincar com o vitelinho.

A vaca deu-lhe uma violenta cornada. O Adelino voou pela corte e foi bater com a cabeça na soleira da porta. Foi aí que minha mãe o encontrou morto, com os olhos muito abertos e a cara coberta de moscas varejeiras.

No dia seguinte ao funeral do infeliz do Adelino, logo pelo amanhecer, meu pai entrou na corte, soltou a vaca para o meio da rua e matou-a com tiros de caçadeira. Quando se certificou que ela já não mexia, desapareceu de Vilares durante três dias.

Uma noite, dois homens do Ingilde, uma aldeia que ficava a mais de três horas de caminho, vieram trazer o meu pai a Vilares, que não se tinha de pé, completamente bêbado e todo esfarrapado. Muita gente pensou que ele enlouquecera.

Entretanto, para que o prejuízo não fosse total, meu avô tirou a pele à vaca, limpou-a e esquartejou a carcaça em pedaços. Todos os vizinhos de Vilares e de outros lugarejos em redor vieram comprar um pedacinho de carne, até meu avó já não ter mais carne para partir.

Muito tempo depois soube-se que a maioria ofereceu a carne aos cães. Tiveram nojo de comer um bocadito de uma vaca que havia parido há tão pouco tempo.

A vitelinha foi criada por minha mãe com o leite de uma vaca turina e, depois, com farinha de milho misturada com água. Não chegou a ser uma grande vitela. Meu pai acabou por vendê-la ao primeiro comprador de gado que apareceu em Vilares.

Às vezes eu tinha medo de meu pai. Alto e magro, com a cara tapada pela barba cerrada, só cortada pelo Zezinho Barbeiro, que aos domingos de manhã vinha bater-nos à porta, meu pai, que se chamava Avelino, em certas ocasiões era bem capaz de andar um dia inteiro a cortar mato, a cavar, a regar, a semear ou a lavrar, sem abrir a boca.

Meu pai bebia muito. Minto: bebia imenso. Eu ficava envergonhado e triste quando o via deitado no meio do caminho, incapaz de dar um passo, a olhar para coisa nenhuma, a conversar consigo próprio.

Tinha muito medo quando ele começava a discutir com a minha mãe. Eu chorava baixinho, abraçado à Adélia, ou ia esconder-me debaixo da mesa quando o via a partir louça, a bater nas portas, a atirar cadeiras ao ar, a dar socos no corpo miúdo de minha mãe.

Nessas alturas eu ficava muito confuso, já nem sabia se gostava dele ou se o odiava. Eu só queria crescer, crescer muito depressa para ter forças para poder defender a minha mãe.

- Avô, porque é que o meu pai é assim tão mau para a minha mãe e para todos nós? - perguntava eu quando era mais pequeno, sentado no seu colo.

O meu avô ficava uma eternidade sem responder, a olhar para longe, a afagar-me o cabelo. Depois dava um grande suspiro e respondia-me:

- David, os filhos não podem odiar quem os gerou, por muito que isso custe. Percebes o que te estou a dizer? Um dia, quando tiveres a minha idade, vais entender melhor o mundo e a vida.

Quando fiquei mais velho explicou-se melhor:

- O meu filho é um homem perdido. Sofre como um cão lazarento. Aquelas mortes secaram-no, David. Tu entendes o que te quero dizer?

Acenei com a cabeça. Um dia disse-lhe:

- Avô, se a minha mãe fugisse de casa, eu ia com ela.

- Não digas disparates, David. Se fosses embora, eu ia contigo agarrado a esta muleta e o Rufino vinha logo a seguir.

Quando os dias de mau génio passavam, meu pai parecia outro.

No ano em que me preparava para fazer o meu décimo primeiro aniversário, depois de ter feito o exame da quarta classe, meu pai vendeu o milho, recebeu o dinheiro, levou-nos à feira e encheu-nos de presentes.

Minha mãe comprou numa tenda uma saia preta, a Adélia pôs no dedo um anel de ouro, e eu tive a fortuna de ficar dono de uma gaita de beiços que perdi uma semana depois.

Abancámos numa tenda, comemos iscas de bacalhau. Um litro de vinho tinto que transbordava do imenso copo de vidro grosso e fosco, deu para matar a sede aos quatro.

Quando meu pai se preparava para mandar encher outra vez o copo, minha mãe deu-me uma cotovelada, depois uma piscadela de olhos. Eu pus um braço sobre o ombro do meu pai e sussurrei o que minha mãe me tinha ensinado desde menino:

- Vamos embora, pai. Vamos?!

Meu pai pagou a conta, levantámo-nos do banco corrido em que estivéramos sentados e, depois, ele deu-me a mão por alguns instantes. Era uma mão repleta de calos que pareciam pedras, com dedos grossos e gretados.

Era uma mão quente, transpirada.

E eu fiquei outra vez muito confuso, agarrado àquela mão que me apertava suavemente os dedos.

Minha mãe sorria.

Indiferente a tudo isto, a Adélia punha e tirava, tirava e punha o anel do dedo. E ia na frente a espalhar por entre as filas de barracas, ajuntamentos de porcos, cabras, ovelhas, vacas e cavalos, coelhos e galinhas, o perfume a violetas com que encharcara o corpo, o cabelo e a roupa antes de saírmos de casa.

 

Meu avô tinha uma cadeira por baixo de uma cerejeira que, em Maio, ficava carregada de cerejas, e, logo pela madrugada, por bandos de .gaios barulhentos e esfomeados. Era aí que ele se sentava e dormitava. Era aí que ele via todo o vale extenso e umacoroa de montes que, de repente, tudo tapava. Depois deles havia o céu e as nuvens, a lua e as estrelas.

Quando o meu avô falava, eu punha-me a olhar para o cocuruto das serras cobertas de penedos e giestas. com o passar dos anos, lentamente, fui-me apercebendo que havia muito mundo para além daquelas giestas e daqueles penedos.

O velho Rufino deitava-se ao lado do meu avô e dormitava, embalado com as conversas do dono. Estava tão velho aquele cão que já nem as cadelas com cio o punham alvoroçado. Limitava-se a mexer a cauda, quando a matilha inquieta seguia a cadela lá na frente.

- O Rufino está mais velho do que eu. Qualquer dia vamos dar com ele mais teso que um bacalhau seco - ria-se meu avô.

Nem sempre eu entendia muito bem certas conversas do meu avô. Mesmo assim, gostava de o ouvir, porque ele falava pausadamente com um tom de voz muito baixo. E o que ele me dizia quase sempre pertencia a outro tempo, pareciam histórias imaginadas.

«Temos de fazer pela vida, David. Nunca ouviste dizer que o pão não cai do céu? Pois é, David. Eu também comecei com a tua idade. Aos oito anos já andava a trabalhar na pedreira. E fraco trabalho era aquele. Logo de manhã tinha de ir buscar os picos afiados a casa do ferreiro. E depois lá ia eu com eles às costas, enfiados num cabo de madeira de carvalho, a caminho da pedreira que ficava no cimo da serra. Quando lá chegava, já a minha camisa ia tão encharcada em suor, que se podia torcer. É que eu tinha de ser o primeiro a chegar. Sem picos, os pedreiros não podiam trabalhar.

Comia mal, não ganhava quase nada e, de vez em quando, levava alguns cachaços para aprender a não brincar nas horas de trabalho.

Mas eu aprendi depressa, David. Era mocinho e já cortava uma pedra com tanta facilidade como quem corta um pedaço de marmelada. Ajudei a fazer muita casinha, David. E nunca tive tempo nem dinheiro para fazer uma bem grande para a minha família; e olha que não precisava que ninguém ma riscasse num papel. Ainda hoje a tenho na minha cabeça.

Quando me casei, o enxoval da tua avó nem chegou a encher dois cestos de vime. Eu e ela nascemos em pobre ninho. Mas fomos felizes. Sim, eu acho que se ela fosse viva, concordava comigo.

Tivemos dois rapazes e duas raparigas. Mas só o teu pai, o mais novo do bando, é que ficou aqui, até ver. Os outros foram por esse mundo além. O Américo e a Rosa foram para o Brasil e nunca mais cá vieram.

A Adelaide foi a mais sortuda. Está no Porto, não se casou e é dona da pensão Belo Sonho, que é um nome muito a propósito para quem precisa de descansar. Ela diz que é um estabelecimento muito fino, muito bem frequentado, que fica perto da estação de S. Bento, mas eu nunca lá fui. Bem, ela também nunca me convidou. O teu pai é que já passou por lá. Deve-lhe correr bem a vida porque todos os meses me manda dinheiro e a casa onde vives e todas as terras que o teu pai amanha foram compradas por ela.

E agora aqui estou agarrado a esta muleta, porque a minha perna direita há muito tempo que anda zangada comigo.

Ainda te lembras da tua avó Mariana, David?

Era boa cozinheira, a tua avó. E cozia muito bem o pão. Quando ia lavar roupa para o ribeiro, punha-se a cantar e eu muito gostava de a ouvir. A tua avó foi uma grande mulher. Foi pena ter-se ido embora tão cedo. Se ela estivesse cá, havia de fazer-nos umas boas travessas de bolinhos de bacalhau a cheirar a salsa. Depois eu dava-te uma malguinha de vinho com muito açúcar. Havia de ser bom, David. Havia de ser muito bom...»

Mas eu não me lembrava dela. Para mim, a avó Mariana era apenas uma personagem das histórias que meu avô me contava.

 

Quando vinham os dias de Verão, quentes e abafados, que nos faziam apetecer a água fresca do rio e as sombras dos salgueiros que a bordejavam, acordava com o lusco-fusco. Minha mãe mexia-me no nariz e nas orelhas e eu já sabia que tinha de largar a mornidão do lençol.

A custo lá me levantava e ia direito ao lavatório de folha azul, pintalgada de branco, que estava a um canto da sala, despejava um bocado da água do jarro pousado ali à beira e lavava a cara.

Na cozinha, minha mãe já tinha sobre a mesa as malgas de café muito docinho, a escaldar, e fatias de broa.

A essa hora da manhã a fome era pouca. O que eu queria era voltar para a cama e dormir até os raios de sol baterem com muita força nos vidros da janela da sala. Sim, da sala, falo bem. É que a nossa casa só tinha um quarto, onde dormiam os meus pais, a sala e a cozinha.

A Adélia também dormia na sala. À volta da cama dela havia uma cortina muito florida. Mas a cortina dava só uma ilusão de intimidade.

À noite, enquanto ela tinha o candeeiro de petróleo aceso, eu via-a tirar a saia, a blusa, o ”soutien”.

Via-lhe o cabelo solto sobre as costas e os seios

erectos antes de ficarem tapados com a camisa de noite. Vi-a abrir a porta da mesinha-de-cabeceira. Depois via o penico a ser posto no soalho. Via-a baixar as cuecas e depois ouvia o ressoar dum barulho breve, idêntico ao da bica da pequena nascente de água que nascia na serra, entre dois penedos.

Depois ela soprava no candeeiro, a luz desaparecia, voltava a escuridão e ficava no ar o cheiro do petróleo queimado. E eu adormecia, muitas vezes embalado com o ressonar que vinha do quarto dos meus pais.

Ninguém sabia que eu via a minha irmã a despir-se, porque eu achava que estava a fazer um pecado, e dos grandes, com direito a uma grande tareia do meu pai, da minha mãe e da própria Adélia. Nem ao velho Padre Miguel, que me pedia para ler as epístolas nas missas de Domingo, fui capaz de contar este segredo que me acompanhou toda a vida. Minha mãe nunca mudou a cortina, porque pensava que eu me deitava na cama e dormia logo de seguida, tão depressa como o pedregulho que se atira para dentro de um poço e logo vai ao fundo. Adiante, que nem tudo o que parece é e, como dizia meu avô António, nunca nos devemos esquecer que a natureza é caprichosa.

Com a chegada das madrugadas de Verão, o que eu queria era voltar a ter quatro ou cinco anos. Deixar-me estar na cama a dormir e não ter de pegar numa enxada e ir para o meio dos campos regar o milho, muito mais alto que eu, com a água que íamos soltar das presas e dos imensos tanques, e que vinha aos turbilhões por regos e levadas.

- Esta água é tão importante para o milho como o azeite no caldo - fartava-se de dizer meu pai.

E era verdade. Sem água, as espigas ficavam mirradas, com poucos grãos e muito carolo.

E nós lá andávamos, cada um por sua banda, a levar a água a todo o chão cultivado. Para espantar o medo de andar sozinho e escondido entre o milheiral, eu punha-me a assobiar modinhas. Quando a rega acabava, eu estava encharcado até aos ossos, e tremia de frio.

Às vezes, minha mãe fazia na borda do campo uma fogueirinha para nos aquecermos, e o meu pai mandava-me beber do frasquinho de aguardente que trazia guardado num dos bolsos do casaco. Eu pegava no frasco e bebia um pequeno gole. De imediato um fogo imenso queimava-me a garganta e o estômago. Minha mãe não gostava de me ver sufocado, sem conseguir conter uma explosão de lágrimas. Meu pai ria-se. E depois perguntava, muito sério:

- Então?! Ainda tens frio, David?...

Que não, dizia eu por gestos, abominando aquele frasco espalmado que tinha um rótulo amarelo a dizer: ”XAROPE DE MEL PARA A TOSSE”.

- Está na hora de começares a aprender a não teres frio - dizia meu pai, sentencioso.

Minha mãe arreliava-se:

- Deixa o rapaz em sossego. Que mal tem, se ele não gostar de aguardente?! De bêbados está o mundo farto.

Meu pai começava a assobiar. Quando ele assobiava, era sinal de que a conversa não lhe interessava.

 

Era a Zefinha que trazia as sardinhas que se fritavam ou assavam em Vilares.

A Zefinha era solteira, bonita e pobre. Morava numa casa muito pequena e tinha um filho, o Celso.

Embora fosse um ano mais velho que eu, fizemos na mesma altura o exame da quarta classe.

O Celso, alto e magricela, falava pouco e andava sempre esfomeado. Na escola, onde não era mau aluno, vimo-lo levar muita tareia por ter comido a merenda dos rapazes que não eram de Vilares.

Dona Preciosa, a professora, muito gorda e baixinha, dava-lhe sovas com uma vara e ficava possessa por ele não pedir desculpa, sempre calado, sem urinar pelas pernas abaixo, sem verter uma lágrima, sem soltar um ai.

- O teu destino está traçado, rapaz. Hás-de ir parar a uma cadeia, que é o sítio para onde a sociedade manda os assassinos e os ladrões. Um filho sem pai é como uma panela sem fundo.

Ninguém de Vilares sabia quem era o pai do Celso. Minha mãe contava que a Zefinha, que sempre fora bonita e calada, nem à mãe revelara o nome do homem que a engravidara.

E eu, metido na minha bata branca, admirava o Celso, filho de pai incógnito. Ai, quem me dera ser assim tão destemido, tão orgulhoso, tão forte, tão resistente.

A caminho de casa, ele dizia em surdina:

- Eu hei-de vingar-me daquele monte de enxúndia!

E nós ríamo-nos por ele chamar monte de enxúndia à dona Preciosa, ainda por cima mulher do senhor Rómulo, cabo da Guarda Nacional Republicana.

No tempo dos ninhos, o Celso não precisava de roubar as merendas. Levava para a escola uma saquinha cheia de passarinhos fritos, embrulhados em folhas de couve, que ele comia a uma velocidade estonteante. Comia-lhes a pouca carne, rilhava-lhes os ossos e depois lambia, deliciado, as folhas de couve.

Pouco depois fazia negócio com a escola inteira:

- Troco duas coxas de gaio por um pedacinho de presunto. Quem quer? Quem quer?

- Troco um melro inteiro por um caderno novo. Quem quer? Quem quer?

- Troco três pardais bem tostadinhos por um lápis. Quem quer? Quem quer?

- Troco quatro ovos de perdiz cozidos por um punhado de azeitonas. Quem quer? Quem quer?

- Troco duas asas e um peito de rola por um ovo estrelado e batatas fritas. Quem quer? Quem quer?

Quando findava o tempo dos ninhos, acabavam-se as trocas, e o Celso voltava a tocar nas merendas dos colegas que não eram de Vilares.

Durante o ano ia catando dos ninheiros de Vilares os ovos que podia. Não se dava ao trabalho de os cozinhar: fazia-lhe dois furinhos e bebia-os. Num instante sorvia a gema e a clara. Depois voltava a pôr a casca do ovo no ninheiro, para que as galinhas a comessem. As mulheres desconfiavam, passavam por sua casa, procuravam as cascas. Mas se não havia cascas como é que podia haver acusação?

O regresso da escola até Vilares era feito por caminhos tortuosos, repletos de ouriços e castanhas, quando era o tempo delas. No Inverno, ficavam empapados ou alagados pelas águas que transbordavam por todo o vale e iam inchar o rio.

Nos dias de abundante pluviosidade, a água era tanta que chegava a passar por cima da ponte. Quando isso acontecia, descalçávamo-nos, despíamos as calças e as ceroulas e atravessávamos a ponte de mãos dadas, em fila indiana, gritando como loucos, felizes da vida. E ninguém se queixava do frio intenso que nos punha a pele roxa e a tremer.

Às vezes, os colegas de outros lugares esperavam, caladinhos como ratos, que começássemos a descer para Vilares. Quando viam que já não os podíamos alcançar, corriam-nos à pedrada e gritavam:

- Lambões! Os de Vilares são lambões! Aí vai pedra!

Em posição inferior, impotentes para um contra-ataque, corríamos como doninhas e íamo-nos escudar nos carvalhos e castanheiros, jurando vingança. No dia seguinte, capitaneados pelo Celso, os que não eram de Vilares ficavam com a cara e as orelhas a arder.

No nosso último ano de escola, poucos dias depois de terem começado as férias de Verão, correu pelo vale uma estranha notícia: a dona Preciosa encontrou as janelas da escola pintadas com bosta de vaca. E em cima da secretária havia uma palavra feita com muitas caganitas de cabra. Uma palavra sem sentido. Até nem era nenhuma palavra porca, bem pelo contrário. ENXÚNDIA era a palavra que lá estava composta.

Na cadeira onde a professora se sentava havia uma caixa de cartão com tripas de galinha onde já rabeavam milhares de vermes.

Contava-se que deu o fanico à dona Preciosa e a irmã do padre Miguel apressou-se a telefonar para o posto da Guarda.

Um dia, logo pela manhã, o senhor Rómulo apareceu em Vilares e foi bater à porta da casita do Celso que lá estava sozinho a dormir. A mãe há muito se tinha levantado para fazer a caminhada atrás da serra para encher a canastra com peixe. Pouco depois vi o Celso a acompanhar o cabo da Guarda. Mas, para meu espanto, daí a pouco voltou sozinho, a correr, e enfiou-se em casa.

- Celso, deixa-me entrar! - dizia eu, com os bolsos cheios de broa e uma fatia de presunto que a Adélia partira. - Eu sou teu amigo. Abre a porta!

- Não quero.

- Eu tenho aqui pão e presunto.

- Não me apetece.

- Abre, Celso, abre lá essa porta!

- Não está aí mais ninguém?

- Não. Só estou eu. Juro por tudo.

A porta acabou por ser aberta. com as mãos a cobrir a cara, o Celso foi deitar-se na cama, que ficava junto da lareira.

- Que é que ele te fez, Celso. Mostra!

Ele voltou-se e eu fiquei mudo. O Celso tinha uma cara roxa com os lábios inchados ainda a largar sangue, e os olhos mal se viam.

- Tu confessaste?

- Nem tive tempo.

- Mas foste tu, pois foste?

- Quem é que havia de ser?

- Bateu-te muito?

- Não. Eu até pensava que ia ser pior. Nessa noite não consegui engolir o caldo de couves que a Adélia tinha cozinhado.

 

Todos os anos, na primeira semana de Julho, tão certo como depois da Lua Nova vir o Quarto Crescente, o senhor Cruz aparecia em Vilares antes do almoço.

Muito alto, magro, bem barbeado, muito moreno, de chapéu, vestido invariavelmente de negro e a cheirar a suor, o senhor Cruz sorria muito e conversava sobre qualquer tema.

E, para compor todas estas virtudes, sabia contar histórias acontecidas no Porto e nas terras por onde passara, que punham toda a gente de Vilares a rir ou a lacrimejar.

O senhor Cruz dizia que era natural de Vila Nova de Gaia, vizinho do rio Douro e da ponte de D. Luís. E mais nada se sabia dele. E se lhe perguntavam pela família, ele arranjava sempre uma forma elegante de não responder.

- A vida do senhor Cruz é um bocado misteriosa - dizia minha mãe. - Nunca soubemos nada sobre a vida dele. Será casado? Terá filhos?

- Leva uma vida boa. Quem me dera ter escolhido a vida dele - respondia meu pai. - Vai para onde quer, não precisa de dar satisfações a ninguém, é um homem livre. Há poucos como ele.

O senhor Cruz aparecia em Vilares com uma caixa de madeira às costas e um molho de varetas e cabos de guarda-chuvas. Dentro da caixa havia alicates, limas, sovelas e arames.

O senhor Cruz ganhava a vida a compor louça e guarda-chuvas. As malgas escaqueiradas em duas, três ou quatro partes, assim como os pratos e os alguidares de barro, esperavam nos cantos das cozinhas um ano inteiro pelas mãos pacientes do senhor Cruz, que as voltava a unir com grampos de arame.

- Isto tem conserto, senhor Cruz? - perguntavam-lhe as mulheres, mostrando-lhe os cacos da loiça.

- com cinco gatos, fica como novo.

Gatos era o nome que ele dava aos grampos de arame.

- Este guarda-chuva tem conserto,   senhor Cruz?

- Claro, leva duas varetas e fica como novo. Tudo tem conserto na vida, menos a morte e a traição.

O senhor Cruz montava a oficina junto da cerejeira que havia à porta do meu avô. E em mais nenhum sítio poderia ser, porque o meu avô António e o senhor Cruz ficaram amigos desde a primeira vez em que apareceu em Vilares.

O Celso ficava empolgado com a chegada do senhor Cruz. Sentava-se junto da cerejeira e adorava ajudá-lo a unir os cacos.

- O rapaz também tem jeito! - dizia meu avô. O Celso ficava todo inchado. E ao fim do dia, o senhor Cruz dava-lhe algumas moedas. E o Celso corria logo para a venda do Rodrigo e comprava bons nacos de queijo.

Nos poucos dias em que ficava em Vilares, o senhor Cruz não precisava de ir comer sandes de marmelada ou sardinhas de conserva para a venda do Rodrigo, como fazia muita gente que por ali passava a negociar.

O senhor Cruz ficava a dormir numa cama que havia na sala do meu avô.

Comia em nossa casa uma única vez, o que nos deixava bastante tristes. Mas tinha de ser assim. O senhor Cruz era convidado a ir sentar-se a muitas mesas, e ele não queria ser indelicado com ninguém.

Quando o senhor Cruz vinha jantar a nossa casa, minha mãe servia-lhe arroz de feijão branco e bolinhos de bacalhau. Ele enchia o prato, comia vagarosamente, deliciado, de olhos fechados.

- Dona Inês, isto não é comida, é uma delícia. No Porto, a cozinhar assim, a senhora enchia-se de dinheiro. Estou a falar sério, muito a sério. No Porto não há uma única cozinheira que esteja ao seu nível. E olhe que eu conheço todas as casas de pasto e alguns restaurantes finos. E a sua filha de certeza que vai no bom caminho.

- Coma mais um bocadinho, senhor Cruz dizia minha mãe, a desfazer-se em amabilidades.

Pudera, só o senhor Cruz é que lhe chamava Dona Inês de ano a ano, só o senhor Cruz é que lhe dizia que ela cozinhava bem.

O meu pai, no topo da mesa, sorria com todos aqueles salamaleques. Por causa do jantar do senhor Cruz, meu avô, que raramente comia connosco, também lá tinha lugar. E a Adélia vestia uma blusa branca encharcada em perfume de violetas.

Depois de jantarmos, meu pai dizia para a minha mãe e a Adélia lavarem a loiça no dia seguinte. E estava certo. Elas também tinham direito a ouvir com muita atenção as histórias verdadeiras que o senhor Cruz, depois de arrotar discretamente, ia começar a contar à luz do candeeiro de petróleo.

Muitas foram as histórias que ele contou. com o correr dos anos, acabei por esquecê-las. No entanto, houve uma que nunca pude esquecer, e que eu tentarei contar o melhor que souber nas páginas seguintes.

 

Um dia o senhor Cruz pôs-se a palmilhar um caminho estreito e tortuoso que ia desembocar num lugarejo muito pobre, uma terriola muito atrasada, longe do mundo.

Chamava-se essa terra Lardosa, ficava para as bandas da serra do Marão e nela

não viviam mais de cinquenta almas. Os aldeões cultivavam umas leiras, tinham muita castanha que davam aos porcos e eram donos de cabras em barda. Os rebanhos, logo pela manhã, saíam para o pasto e só voltavam quando o dia começava a fechar-se.

Era uma terra pacata, com mais cães que pessoas, e nada de extraordinário ali podia acontecer. Mas as coisas mais incríveis acontecem onde menos se espera.

O senhor Cruz passava ali por descargo de consciência, farto de saber que pouco trabalho havia de encontrar. Mas, para compensar o desvio, sabia que ia ser muito bem tratado. Alguma alma caridosa havia de lhe servir um suculento ensopado de cabrito, perfumado com muita hortelã, ou então uns ovos fritos com rodelas de salpicão.

E, se não tivesse essa sorte, sempre haveria por ali uma cebola para ele a cortar em quatro partes e depois salgar com sal grosso. Mastigada com pão, dava perfeitamente para calar os roncos do estômago.

Quem se põe a palmilhar o mundo deve ter muita paciência e estar preparado para dar a cara à fortuna e ao azar, ouvir e calar; e nunca se deve esquecer que quem vem de fora é sempre o primeiro suspeito, o primeiro pecador.

Ora, ia o senhor Cruz a caminho dessa tal Lardosa com a tarde a avançar mais depressa do que era seu desejo.

Ainda há pouco, ao atravessar um ribeiro, tinha-se desequilibrado e, por pouco, não caíra na água. O que lhe valeu foi ter visto a tempo a ponta de um salgueiro para nela se agarrar. Apanhou a caixa que andava a boiar na água e já se preparava para ir na corrente, e seguiu viagem.

Mais à frente é que sentiu uma pequena dor no tornozelo do pé direito. Não havia de ser nada, aquele corpo já estava habituado a suportar todas as tropelias.

Servindo-se da navalha, cortou num carvalhal uma vara para lhe servir de amparo. E lá ia ele, cheio de dores, manque-que-manque, com vontade de descalçar a bota que lhe parecia cada vez mais apertada.

Nunca gostara de ser abocanhado pela noite. Por isso ia, porque não dizê-lo, um bocado preocupado. Não é que a noite lhe fizesse mossa. O que há de dia também há de noite, se descontarmos a escuridão que sempre nos faz pensar mais um bocado na vida. E a solidão, que é irmã gémea das trevas, gosta de rondar por perto nessas ocasiões.

Um homem andarilho tem de andar sempre prevenido. Além da navalha de gume bem afiada no bolso do casaco, o senhor Cruz trazia duas velas na caixa. Uma vela pode acender-se num sítio qualquer, logo que o vento não atrapalhe, e sempre dá um bocadinho de vida a quem está sozinho e perdido nos caminhos por onde Cristo nunca passou.

As dores eram tantas que ele teve de arrear a caixa e sentar-se em cima de uma pedra à beira do caminho. Podia ser pior: se chovesse, ou trovejasse, ou começasse a nevar de repente, como tantas vezes lhe tinha acontecido, então a coisa piava mais fino. Mas não era o caso, e ainda bem para o senhor Cruz, que apalpava aquele pé inchado e dorido. A tarde, que já estava a dar lugar a uma bela noite de lua cheia, pertencia ao mês de Agosto, se a memória não o atraiçoava.

Entrar um desconhecido numa povoação com a noite caída não é conselho que se dê a um amigo. Se tal sucede, põem-se os cães a ladrar, fecham-se portas e cancelas, aparecem rostos a espreitar pelas janelas. O medo aos ladrões é tão velho como o mundo.

Quando calhava não ter tempo de chegar de dia, preferia procurar um abrigo de pastores ou um palheiro para passar a noite.

E era o que lhe estava destinado para essa ocasião. com o pé tão inchado e dorido apetecia-lhe deitar-se por baixo dum carvalho e esperar que a noite e as dores passassem.

Fome não levava. Ainda tinha no bolso do casaco uma lasca de bacalhau cru e um bocado de pão.

O que ele tinha era sede. Ai, uma sede medonha, causada por aquele salitre do bacalhau cru. Ou estaria com febre? A esta pergunta o senhor Cruz não soube responder.

O que ele sabia era que, se continuasse a pensar na sede, mais vontade tinha de beber. E quando se tem sede, a gente imagina uma fonte e a água a cair da sua bica para a nossa boca sôfrega. Parece que ouvimos o rumorejar dum ribeiro ou dum reguito de água corredia, muito fresca, muito boa, onde nos acocoramos para a apanharmos com a concha da mão, esquerda ou direita, para o caso tanto faz. Ou então com um copo improvisado a partir de uma folha de couve ou de outra folha qualquer, e bebermos até a garganta doer.

Paciência, agora o que mais importava era arranjar água. Lardosa não saía do sítio.

Estava o senhor Cruz ocupado com estes pensamentos quando, lá ao longe, viu nascerem uns pequenos pontos de luz.

Voltou o senhor Cruz a calçar a meia, que bem precisava de ser trocada por outra que não tivesse tantos buracos e, a custo, enfiou o pé na bota.

Tinha acabado de fazer este serviço quando todo o seu corpo estremeceu.

- Credo, Virgem Maria, mas o que é isto? - não o disse o senhor Cruz, mas pensou-o com a pele arrepiada.

 

O que o fez assustar-se foi uma pedra redonda, que não pesaria mais de dez quilos.

Estava o senhor Cruz a enfiar o pé na bota, e a reparar que ela já andava necessitada de uma boa camada de gordura, pois o cabedal estava muito ressequido, o que não é bom para quem quer botas impermeáveis, resistentes ao tempo e que não façam calos nos pés.

Aquela pedra, para não estar a mentir, assustou-o, e bem. O pedregulho veio aos rebelões pelo carvalhal abaixo, e parecia um foguete quando passou junto da caixa. Atravessou o caminho e continuou a marcha, se calhar só parando depois de ter caído no meio do leito dum ribeiro que, com toda a certeza, passava ao fundo do cerrado carvalhal.

Já recomposto, o senhor Cruz pôs-se a pensar que uma pedra não desata a rolar por si mesma. Alguém terá de lhe dar o primeiro impulso.

E quem é que pode fazer rolar uma pedra? Um bicho, poderá fazê-lo. Se a pedra não estiver cravada no chão, uma patada de um coelho, ou o focinho de uma raposa ou então de cão vadio, poderá muito bem fazer mover uma pedra mal equilibrada. Até uma raiz com um certo porte também é capaz de partir uma pedra mole em muitas partes.

E, é claro, também podia ter sido gente com os pés ou com as mãos. Mas ele não tinha visto ninguém ao perto ou ao longe e muito menos ouvira passadas. E, no meio da folhagem e de silêncio, só um surdo é que não é capaz de se aperceber de todos os ruídos. Se o rastejar de uma cobra se ouve ao longe, muito melhor se distinguem as passadas de gente.

Ora aí é que estava a dúvida. O senhor Cruz não tinha ouvido absolutamente nada. Ter-se-ia distraído? Era outra hipótese que não podia pôr de lado.

Agora, já com todos os sentidos em alerta, sentindo as veias a latejar, achou que o melhor seria prevenir-se para não ser apanhado de surpresa. Foi ao bolso do casaco buscar a navalha, uma bela navalha espanhola. Abriu-a e ficou com ela na mão direita.

Ele nunca tinha sido assaltado. Quer dizer, chegarem dois gadelhudos à beira dele com uma pistola aperrada ou com uma faca de ponta e mola a reluzir e a dizerem passa para cá o dinheiro, ou morres, nunca tal sucedeu. Lembrava-se, e nunca na vida havia de esquecer, que um dia acordou no meio de um palheiro sem um tostãozinho no bolso. Mas isso foi numa ocasião em que teve a companhia ocasional duma mulher ladina. Mas essa é outra história que um dia o senhor Cruz há-de contar.

Ali estava ele sentado na pedra, com a navalha aberta, quando ouviu atrás de si grande restolhada. Era gente que ali vinha a descer bastante apressada. Algo se passava para não terem escolhido o caminho, que sempre era bem melhor de percorrer do que andar aos tropeções por entre o matagal.

Pelo barulhO que faziam, deduziu serem duas pessoas. Se falassem, descobriria se era um casal, duas mulheres ou dois homens, rapazes ou raparigas. Mas eles, como se costuma dizer, não tugiam nem mugiam.

Outra pedra veio aos rebelões por ali abaixo, mas passou ao lado.

Ao lado também o senhor Cruz desejava que passasse quem tão apressado ia. Em certas ocasiões da nossa vida é melhor não ver nem saber.

Mas não foi isso que aconteceu. De repente, os apressados saltaram uma borda para seguirem pelo caminho. Pelo som do salto, um mais forte, o outro muito mais fraco, ficou o senhor Cruz a saber que ali vinham um homem e uma mulher. Mal teve tempo de assim pensar, porque logo os viu a aparecer na curva do caminho. Vinham de mãos dadas e eram novos.

Quando a rapariga encarou com o senhor Cruz, deu um grito. O rapaz agachou-se, pegou numa pedra e perguntou:

«Quem está aí?»

«Gente de bem. Podem passar.»

«Mas quem está aí ?»

«É o Cruz, o que compõe louça.»

«O senhor Cruz? Quem havia de dizer?!...»

Eles foram-se chegando e o senhor Cruz conheceu-os. Não sabia, como se chamavam, mas conhecia-lhes a cara. Sim, eles eram de Lardosa.

«Então o que aconteceu, senhor Cruz, para estar aqui a esta hora da noite?», perguntou o rapaz.

«Ainda não é assim tão tarde... Estou a descansar um migalho, porque trago aqui um pé que não anda muito católico. E vocês, se mal pergunto, onde é que vão?»

Nenhum deles respondeu. A moça, soube-o o senhor Cruz no dia seguinte, tinha só dezassete anos, mas não parecia tão nova. Era formosa, alta, forte e o cabelo solto caía-lhe até meio das costas.

Ele era mais atarracado, e um ano mais velho do que ela.

Disse o senhor Cruz:

«Se perguntei o que não devia, peço desculpa»

E ela respondeu:

«Vamos embora daqui. Estamos a fugir de Lardosa.»

«E onde é que vocês vão arranjar dormida a esta hora da noite?»

Disse o rapaz:

«Havemos de nos arranjar. Em Portugal é que não ficamos!»

E ela:

«Quando o senhor Cruz chegar a Lardosa, por favor, diga a minha mãe que tinha de ser assim. Diga-lhe para se ir acostumando com a ideia de ser avó daqui a meio ano, se tudo correr bem»

E o rapaz, com voz ciciada, desabafou:

«Vamos para França. Já arranjei um passador que nos há-de ajudar a ir lá ter. Vamos sem passaporte, sem nada. Vamos dar o salto, como se costuma dizer.»

«Lá em França, têm alguém que vos ajude?»

Disse o rapaz:

«Tenho lá um primo. Não há-de acontecer nada de mal.»

«Deseje-nos sorte», disse ela.

«Que Deus os ajude a serem felizes. Vão à vossa vida e tenham cuidado. Não se deixem apanhar.»

Depois aconteceu-lhe uma coisa muita estranha: quando se deu conta, o senhor Cruz estava a abraçá-los, comovido.

Antes de desaparecerem na curva do caminho, disse a moça:

- «Senhor Cruz, quando nós tivermos uma casa, todas as vezes que o senhor aparecer em Lardosa, é nosso convidado. Não se esqueça do que lhe estou a dizer, ouviu?»

Manque-que-manque, o senhor Cruz encontrou à entrada de Lardosa um regato. Atirou-se ao chão, meteu a cara na água corredia e fresca e bebeu grandes goles. Depois descalçou-se e meteu os pés na corrente. Só os tirou da água quando começou a sentir arrepios.

A dor no pé já não era tão intensa. Voltou a calçar as meias e as botas, pegou na mala e continuou a caminhar. Foi ter a um palheiro que havia à entrada de Lardosa. Escorraçou um cão vadio que estava aninhado lá dentro, fechou a porta, deitou-se sobre a palha seca e descalçou-se.

A noite custou-lhe a passar porque havia muitas ratazanas no palheiro. As sacanas guinchavam e corriam pelas paredes, furavam na palha e algumas, mais descaradas, vieram cheirar-lhe os bolsos. Para se livrar delas, ainda teve de agarrar algumas pelo rabo e atirá-las contra a parede.

Ia já alta a madrugada quando passou pelo sono. Acordou com o latido dos cães e as campainhas dos rebanhos. Só quando sentiu o fumo das fogueiras das cozinhas é que o senhor Cruz começou a caminhar para o largo de Lardosa.

 

Minha mãe não gostava que o senhor Cruz contasse histórias muito tristes.

- Para tristezas já bastam as nossas. As histórias querem-se sempre com um final muito alegre.

Eu não era da mesma opinião. Uma história a sério tinha de ter bastante mistério, lances fora do comum e, se houvesse tragédia que me fizesse arrepiar a pele, tanto melhor.

A Adélia, depois de ter começado a namorar, deixou de dar grande importância às histórias do senhor Cruz.

O que mais a entusiasmava eram os bordados. Bordava florinhas de muitas cores nas fronhas, toalhas de linho e lençóis que guardava numa arca, decorada com ferragens muito reluzentes, que estava a um canto da sala.

Quando a Adélia fez quinze anos, meus pais foram à feira comprar-lhe a arca e trouxeram-na para Vilares em cima dum carro de bois.

A minha irmã era muito ciosa da sua arca, sempre fechada à chave. Mas eu estava farto de saber que a chave estava escondida na gaveta da mesinha-de-cabeceira. E, quando ela a abria, a sala ficava a cheirar a naftalina e a rosas.

A Adélia proibira-me de abrir a arca. E eu obedeci, pouco interessado no enxoval, enquanto ela não começou a receber as cartas que o Zeferino começou a mandar-lhe, depois de ter ido para a tropa.

Minha irmã começou a namorar com o Zeferino pouco depois de ter a sua arca.

O Zeferino era o único filho do Zezinho Barbeiro e, como dizia meu avô, tinha faro para o negócio. Comprava e vendia gado, vinho, milho e feijão. Sempre com um sorriso nos lábios, muito educado e de falinhas mansas, antes de ir para a tropa já andava de terra em terra montado numa motorizada e era dono de uma carteira bem recheada.

Aos domingos à tarde o Zeferino vinha namorar com a minha irmã e, quando chegava, punha as galinhas de Vilares em alvoroço.

Encostava a motorizada, limpa e reluzente, à parede de nossa casa e esperava que a Adélia aparecesse. Depois ali ficavam os dois à sombra das videiras a sussurrar, olhando um para o outro, embevecidos, a maior parte do tempo sentados numa pedra que já tinha sido mó de moinho.

Quando chovia ou estava frio, iam para a cozinha, sentavam-se no preguiceira e ali se abraçavam, acariciavam e beijavam. Eu via-os a fazer essas meiguices, porque entre a sala e a cozinha havia um postigo. Eu ia para a sala, subia para cima duma cadeira e espreitava para a cozinha, encoberto pela cortina.

A primeira vez que os vi a beijarem-se na boca fiquei com sérios problemas de consciência. Faria bem em contar a minha mãe o que tinha presenciado, ou seria melhor ficar calado? Mas, se lhe contasse, teria de dizer que me tinha empoleirado na cadeira, que tinha andado a espreitar pelo postigo.

Eu sentia um grande peso na consciência. Minha mãe ensinara-me desde menino que é muito feio espreitar pelo buraco duma fechadura, que nunca se abre uma porta sem primeiro bater. Dona Preciosa batia a quem espreitasse para o ditado ou para as contas do colega, e eu fazia tudo ao contrário.

Decidi ficar calado, guardar o segredo só para mim. Se abrisse o bico, o mais certo era eu apanhar um raspanete da minha mãe, e o postigo, mais cedo ou mais tarde, acabaria por ser tapado com duas tábuas.

Saí da sala sem fazer barulho e fui procurar o Celso que nessa altura andava muito entusiasmado com um cão pequenito que tinha seguido a sua mãe desde o meio da serra, babando-se por uma sardinha moída.

Ao anoitecer, o motor da motorizada voltava a roncar, e a nossa cozinha tresandava a perfume em dias de chuva. E o meu pai, que passava as tardes de Domingo na venda do Rodrigo, fazendo par com meu avô António no jogo da sueca, que também se derretia por um joguinho de cartas, escancarava a porta e a janela e bufava como os gatos encurralados.

A Adélia cantarolava enquanto preparava a comida dos porcos, fazendo de conta que não entendia aquelas sopradelas.

Minha mãe nem sempre tinha paciência. E atirava para o ar.

- Gosto muito do cheiro que há nesta cozinha. Há por aí bocas que têm um bafo a vinho que cheira bem pior...

 

No ano de mil novecentos e sessenta e seis a luz eléctrica ainda não tinha chegado a Vilares e, é claro, em nenhuma casa havia televisão. Toda a gente daquela terra, vindo a noite, alumiava-se com as candeias e os candeeiros a petróleo.

E quando era preciso calcorrear os caminhos da aldeia em noites de Lua Nova, com chuva ou vento, usava-se o lampião, feito de latão, com janelas de vidro e uma chaminé, por onde saía o fumo do pavio incandescente.

Quando as noites frias e longas do Inverno abraçavam Vilares, o remédio era a gente sentar-se no preguiceira, feito de tábuas de carvalho ou de castanho. O preguiceira era, digo eu agora, um primo afastado do sofá, mas, evidentemente, muito mais duro e incómodo.

A gente sentava-se no preguiceira, num banco ou numa cadeira e ali se deixava estar em frente da lareira acesa até o sono tomar conta de nós. A candeia, suspensa num arame que vinha duma trave da cozinha, ou posta na parede sobre uma pedra saliente, dava uma chama amarelada e deixava escapulir um fiozinho de fumo que acabava por nos entrar pelas narinas adentro. Para os que gostam de palavras mais difíceis, fica bem dizer que a candeia bruxuleava no meio da cozinha. E era com o tremeluzir da candeia que as mulheres faziam meias de lã de ovelha. Bordavam. Remendavam calças, meias, camisas, casacos. Fiavam linho ou lã. E contavam-se histórias do antigamente, anedotas que todos já conheciam.

A história mais misteriosa contava-a minha mãe, sentada a um canto da cozinha, com uma voz doce. A história tinha, na minha modesta opinião, um título fracote: «Os dois compadres.»

A história dos dois compadres conta-se assim:

Era uma vez dois compadres que sempre viveram numa aldeia perdida no meio da serra. Um dia, um deles, que se chamava Elias e era muito magrinho e baixinho, herdou, por morte de um tio, um pote de libras de ouro, que estavam escondidas por baixo da pia dos porcos. O Elias logo tratou de se vestir como um senhor e deixou de trabalhar. Um dia meteu-se-lhe na cabeça ir visitar Lisboa. Mas como nunca lá tinha ido, convidou o seu compadre Serôdio, um pobre de Cristo que nada tinha de seu, mas que era muito alto e muito forte.

Disse-lhe o compadre Elias:

”Não te aflijas, Serôdio. Eu dou-te dinheiro para te vestires e calçares decentemente e até te dou um ordenado só para me acompanhares. És tu que levas o saco com metade das minhas libras.

Como não era lorpa, o compadre Serôdio não pensou duas vezes para aceitar a proposta.

Compraram dois cavalos brancos, dois baús para lá meterem as ceroulas, as camisolas, as meias, as camisas, dois pares de sapatos de verniz e seis fatos. Sim, seis fatos. Contando o que levavam no corpo, era um para cada dia da semana.

Amarraram os baús em cima do lombo dos cavalos e lá partiram numa manhãzinha de Verão. O compadre Serôdio, que era muito moreno, ia à frente e levava o saco de cabedal atestado de libras escondido numa cesta de ovos com muita palha. Atrás, com um guarda-sol para que o sol não o crestasse, ia o compadre Elias, que era tão branquinho como a cal.

Andaram, andaram, fartaram-se de conhecer mundo, de correr vilas e cidades, atravessaram pontes e pagaram aos barqueiros para que os passassem da margem direita para a margem esquerda e da margem esquerda para a margem direita. A eles e aos cavalos, evidentemente.

Estavam eles fartos de andar, já com os traseiros a dar a pele, quando foram atacados por um bando de gatunos, barbudos e gadelhudos, armados até aos dentes, com pistolas e facas que cortavam tanto como as navalhas dos barbeiros. O lugar onde os gatunos apareceram era ermo, e a noite ainda mal tinha chegado. Disse assim o chefe, que tinha umas barbas que lhe davam até ao umbigo:

- Onde é que vão os compadres?

O compadre Serôdio respondeu com bons modos.

- Ora então muito boa-noite e louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

- Amén - respondeu o chefe e os outros doze que rodeavam os cavalos.

- Pergunta-me o amigo aonde é que nós vamos. A todas as perguntas eu posso responder, menos a essa. Então porquê?, está o amigo a pensar. E já lhe dou a resposta. Nós não podemos dizer aonde vamos porque aqui o meu colega de jornada viu a morte pela frente. Tão ruim era o seu estado, que fez uma promessa que agora está a cumprir. Para que a promessa se cumpra este amigo, que também é meu compadre, não pode abrir a boca nem de noite nem de dia. Ora, sendo assim, nem eu sei para onde Vou. Por isso eu respondi que a todas as perguntas posso dar resposta, menos a de explicar qual é o nosso destino.

O compadre Elias, que era mais medroso que uma ovelha ranhosa, tremia como as varas verdes quando lhe dá o vento, e não tugia nem mugia.

Diz então o chefe da quadrilha:

- Respeito a fé do meu semelhante. Também eu, apesar de andar nesta vida, sou muito crente em Deus. Os amigos podem seguir em paz. Mas como estamos precisados, agradecia que desmontassem e nos emprestassem os cavalos.   Como vêem, somos pessoas de bem.

E os compadres, coitados, lá lhe deram os cavalos e o baú e ainda agradeceram por não lhes terem pedido a cesta dos ovos, cheia de libras de ouro.

Nessa noite perderam-se no meio da escuridão e, depois de muito caminharem, foram bater à porta de uma casa onde havia luz e muita gargalhada.

Truz, truz.

Silêncio lá dentro.

Truz, truz

”Quem é?”, perguntou uma voz de mulher.

”Gente de bem.”

”Quem?”

”Peregrinos que se perderam no caminho.”

”Já lá Vou. Um momento.”

Ouviram o barulho da chave e logo depois, fazendo uma chiadeira medonha, a porta, que era pesada, feita de madeira muito grossa, abriu.

Mal a porta abriu, os compadres ficaram de boca aberta, de olhos arregalados.

E então o que é que eles viram para ficarem assim? Viram no meio da porta uma mulher muito bonita, com uma vela na mão, anéis de brilhantes em todos os dedos, brincos compridos nas orelhas e um simples véu azul sobre o corpo nu.

”Entrem e acomodem-se, cavalheiros”, disse a mulher, que tinha uns cabelos muito loiros. Tão compridos eram que lhe chegavam ao fundo das costas.

E os compadres lá entraram.

”Que linda cestinha para os ovos. Pode pousá-la aí, que ninguém lhe mexe.”

Pois sim. O compadre Serôdio fez orelhas moucas e não largou a mão da cesta. E começou a pensar lá para os seus botões:

”Viemos meter-nos na toca do lobo. Onde é que eu hei-de esconder as libras? Se deixo a cesta aqui à porta, adeus vida regalada.”

Logo uma boa ideia lhe surgiu. E então o que é que ele fez? Pediu licença para sair, Deu a entender que estava necessitado de aliviar a bexiga.

”Aqui dentro há um quarto onde se fazem essas coisas, disse a mulher.”

”Não estou habituado, prefiro ir mijar lá fora.”

Quando se apanhou na rua, tirou da cesta o saco, abriu-o e tirou dois punhados de libras que meteu nos bolsos das calças. Depois fechou o saco e escondeu-o por baixo de uma pedra que pesava para cima de quatro arrobas.

Para não haver desconfianças, quando voltou a entrar, desculpou-se:

”Estava tão precisadinho, que até a cesta levei comigo!”

”Esteja à vontade, cavalheiro. Esta casa é sua.”

A sala era de um esplendor tal, com tantas luzes acesas e tão ricamente decorada que nem tenho palavras para a descrever.

Sentado numa cadeira igualzinha à de um bispo, o compadre Serôdio viu o compadre Elias com as pernas estendidas, os pés descalços, os olhos fechados e a boca aberta. E o caso não era para menos. É que por baixo dos pés do Elias estava uma bacia de prata fina cheia de água quente que espalhava por toda a sala um cheiro a rosas muito suave, muito agradável.

Uma mulher muito bela, de cabelos pretos, anéis de brilhantes em todos os dedos, brincos compridos nas orelhas e um simples véu azul sobre o corpo nu lavava-lhe os pés.

- ”Amigo, acomode-se à sua vontade. Beba este copinho de vinho do Porto enquanto preparo a água de rosas para lhe lavar os pés”, disse a mulher que tinha aberto a porta.

O compadre Serôdio achou que tudo aquilo era muito estranho. E ficou bastante desconfiado. Mas fez o que a dama lhe mandou.

Depois de lhes terem lavado os pés, as mulheres mandaram-nos sentar à mesa e serviram-lhe cabrito assado, arroz do forno e vinho maduro, tinto. E eles lá comeram e beberam, consoladinhos da vida.

O compadre Serôdio contou outra vez a história da peregrinação e de como tinham sido roubados. Mas não disse que o compadre Elias não podia abrir o bico. E elas tiveram muita pena deles.

Depois puseram-se os quatro a jogar cartas. Às tantas, diz a mulher de cabelos loiros:

- Vamos lá ao último jogo, porque está a fazer-se tarde. E se fizéssemos uma aposta?

- Apostas é comigo - disse o compadre Elias, que já estava com um grãozinho na asa. - A que é que vamos apostar?

- A minha ideia é a seguinte: se os amigos ganharem o jogo podem dormir nas nossas camas. Se perderem, dormem sozinhos nesta sala e dão-nos as libras que estão escondidas na cesta dos ovos.

- Como é que sabe que temos libras na cesta?!

- espantou-se o compadre Elias.

- Ora, ora, os homens não costumam andar com cestinhas na mão. Esse truque é tão velho.

- E se não as dermos todas, o que é que nos acontece? - perguntou o Serôdio.

- Experimentem e verão o que vos acontece... O compadre Serôdio ficou aflito. Fez sinal ao compadre Elias para que se calasse, e disse:

- Isto é a gente a falar. Claro que nós não temos libras na cesta.

- Então para que serve a cesta?

- Agora não serve para nada. Mas já serviu. Na cesta vinham ovos frescos para nós fazermos gemadas com vinho, canela e açúcar.

- É uma boa mentira - disse a mulher. Bem, vamos lá jogar.

O jogo demorou mais de duas horas. Os compadres demoravam muito tempo a pensar as jogadas e as mulheres, para passar o tempo, bebiam copinhos e mais copinhos de vinho do Porto. O compadre Serôdio pensou assim:

- Bendito vinho do Porto, que nos vais safar desta alhada.

Um golezinho agora, um golezinho depois, as mulheres esvaziavam muito depressa os copos, que eram de fino cristal. E logo o Serôdio, que não era tolo, corria a enchê-los.

- Vocês não bebem? - perguntavam elas. Eles diziam que sim, mas era mentira. Copinho e mais copinho, copinho e mais copinho, as mulheres esvaziaram o vinho de duas garrafas e o jogo teve de acabar porque as mulheres, de repente, caíram em cima deles, completamente bêbadas.

Tão borrachas estavam que os compadres tiveram de as levar para uma cama muito larga, com lençóis bordados, que cheiravam a perfume francês.

E eles cheios de pena:

- Que desconsolo, tão bonitas e tão bêbadas. Que pouca sorte.

Depois o Serôdio fechou-lhes a porta do quarto, meteu a chave no bolso das calças e disse ao compadre para se ir deitar numa cama, que ele ia fazer o mesmo, mas que estivesse preparado porque, mal clareasse, teriam de partir.

E assim aconteceu.

Ainda havia estrelas no céu quando acordaram.

Mas o mais bonito ainda estava para acontecer.

Antes de se irem embora resolveram abrir a porta do quarto das mulheres. A chave rodou na fechadura duas vezes. Tudo feito com muitas cautelas, para que elas não acordassem. A porta abriu devagarinho e os compadres ficaram de olhos arregalados. E porquê? Muito simples é a resposta: não havia ninguém na cama e a janela estava aberta. Disse o Serôdio:

- Estamos metidos numa boa encrenca, compadre.

E ele tinha razão. Então não é que a porta da saída estava fechada pelo lado de fora e a cesta não se encontrava na sala?!

Resolveram saltar pela janela. Saltaram de olhos fechados. E quando os abriram viram que tinham poisado no meio de um chiqueiro de porcos.

- Isto é bruxedo! - disse o compadre Elias.

- Será, será. Aqui há bruxedo - respondeu o Serôdio, com as calças sujas de esterco até aos joelhos e já a ficar arrependido de se ter metido naquela aventura.

Dois grandes porcos que mais pareciam javalis vieram em cima deles.

- Serão elas? - perguntou o Serôdio, muito aflito.

- Tudo é possível - respondeu o outro. E saltaram dali, cheios de pressa e tolhidos de medo.

Deram a volta à casa e foram ter ao sítio onde o Serôdio tinha guardado o saco com as libras.

Levantaram o pedregulho, que pesava mais de quatro arrobas e suspiraram, aliviados, quando lá viram o saco.

Ao pegar nele, o Serôdio notou que estava muito bem fechadinho e muito levezinho.

- Ai, que já fomos roubados! - disse o Serôdio.

Mal abriu o saco deu um salto, soltou um grito e atirou-o contra as pedras da calçada. E o caso não era para menos. É que dentro do saco estavam duas cobras muito bem enroladas, com as línguas de fora. Eles nem tiveram tempo de as ver bem. Mas eram duas cobras enormes, muito grossas, castanhas e peludas que se atravessaram e ocuparam toda a largura do caminho. Depois entraram por um buraco para dentro da casa.

Os dois compadres não viram nada disso, porque desataram a correr como doidos. Iam com tanto medo que nem olharam para trás.

Quando já não tinham mais fôlego, pararam e viram que se tinham metido no meio de um arvoredo muito cerrado. Tinham os fatos todos rotinhos, e as pernas, os braços, as mãos e a cara muito arranhados. Pareciam dois pedintes.

O que lhes valeu foi terem descoberto entre dois penedos uma nascentezinha de água que lhes serviu para matarem a sede e se lavarem.

Depois puseram-se à procura de um caminho e finalmente encontraram-no.

Iam eles pelo caminho fora há muitas horas seguidas sem encontrar ninguém e sem saberem que direcção tomavam, quando viram um lameiro testo de erva muito basta e muito verde.

Nesse lameiro andavam cinco cabras brancas com guizos ao pescoço e, junto delas, fincada a um cajado, estava uma velha muito velha, toda vestida de preto.

- Boa tarde, tiazinha! - disse o Serôdio.

- Boa tarde, meus senhores.

- A tiazinha pode dizer-nos para onde é que nos leva este caminho? É que nós andamos perdidos.

- Se não virarem nem à direita nem à esquerda, hão-de encontrar, depois de muito caminharem, uma capela em plena serra.

- Uma serra? - alarmou-se o Elias.

- Tal e qual. E do cimo dessa serra hão-de ver, lá ao fundo, umas casinhas. Na casa que deita fumo negro há uma taberna governada por duas mulheres perdidas. Uma é a mãe, a outra é a filha. Se levam dinheiro nos bolsos, podem bater-lhe à porta a qualquer hora do dia ou da noite que elas abrirão e vos darão comida e tudo o mais que vos apetecer. Mas tenham cuidado. Elas são piores que sanguessugas.

- Que lindas cabrinhas brancas! - disse o Serôdio, com os olhos postos nas tetas das cabras.

- São bonitas, é verdade. E dão leite com fartura. Se têm vontade podem beber.

Leite era bebida que não costumava entrar nas goelas daqueles compadres. Mas a fome era tanta que eles não se fizeram rogados. Como a velha não tinha uma vasilha, tiveram de fazer como os cabritos. O Serôdio segurou uma cabra pelos cornos e o Elias deitou-se e começou a mungi-la. E ali esteve muito consolado a engolir o leite que esguichava das tetas da cabra. E só desistiu quando a bichinha, já com ó úbere vazio, lhe mandou uma patada na cara.

Depois trocaram de posição.

E enquanto isto durou, muito a velha se riu com aquela boca desdentada.

Depois de cada um dar o seu arroto, que muito amedrontou as cabras, disseram os dois compadres:

- Bem haja, tiazinha. Que os anos lhe sejam leves.

Preparavam-se para abalar quando a velha lhes disse:

- Beberam mais do que a conta. Beberam tanto leite que agora já não posso fazer queijos. E eu ganho a minha vida vendendo os queijos que faço. Por isso têm de me pagar.

- A tiazinha tem razão - disse o Serôdio. Que logo tirou dum bolso das calças uma libra de ouro e lha pôs na mão.

A velha ficou muito feliz. E disse assim:

- Podem ir à vossa vida que nada de mal vos acontecerá. Quem ajuda os velhos, agrada a Deus.

E assim aconteceu. Os compadres passaram pela capela e, já a noite tinha caído, foram bater à taberna governada pela mãe e pela filha. Tiveram tanta sorte que, quando lá entraram, não havia ninguém.

As mulheres foram muito prestáveis. Deram-lhes ovos fritos com fatias de salpicão, uma malga com cebolas bem salgadas e avinagradas, azeitonas pretas muito bem curtidas, broa quente, acabada de sair do forno, e uma grande malga de caldo verde.

Estavam eles a palitar os dentes e a pedir a conta, quando ouviram uma grande restolhada.

- O que é isto? - perguntaram os compadres. A mãe e a filha, de repente muito contentes, responderam:

- São eles. Os ladrões da nossa perdição.

- Um deles tem barbas? - perguntou o Serôdio.

- Sim. Tem umas barbas que lhe dão até ao umbigo.

- Ai! - gritou muito alto o Serôdio.

- Que foi? - perguntou a filha, assustada.

- É o meu coração que não está bem. Preciso de ar. Preciso de ir lá para fora. Vem comigo, compadre. Anda depressa!

Mais espantado que as mulheres, o Elias não se mexeu.

- Ajude o homem, seu paspalho! - gritou a filha. E o Elias assim fez.

Mal saíram da taberna, o Serôdio segredou-lhe:

- Eu estou bem. Vamo-nos esconder atrás da casa. Depressa!

Correram para um sítio onde podiam ver a porta da taberna. E logo viram dois homens montados em cavalos brancos. Cada cavalo trazia um baú. Não havia dúvidas, tanto os cavalos como os baús tinham sido roubados aos compadres.

Os homens, fazendo grande algazarra, desmontaram e correram para dentro da taberna. E as mulheres receberam-nos com muitos gritos e gargalhadas.

Então, saindo do esconderijo, os compadres foram ter com os cavalos, subiram para cima deles e obrigaram-nos a galopar.

Quando os ladrões e as mulheres se aperceberam do que tinha acontecido, já era tarde.

Toda a noite galoparam os cavalos. Os compadres não sabiam para onde iam, não conheciam os caminhos, mas não se importavam, o que eles queriam era fugir dali.

Depois de muito galoparem, descobriram uma estrada de alcatrão.

Quando a manhã começou a clarear, os compadres viram que já estavam a chegar à cidade de Lisboa.

Lá chegados, arranjaram onde dormir, venderam os cavalos por bom preço e levaram os baús que pesavam imenso para a beira das camas.

Depois de terem aberto os baús para verem se lá estava a roupa, ficaram espantados.

Então não é que nos baús não havia uma única peça de roupa?!

Os baús estavam repletos de libras de ouro, anéis, pulseiras, gargantilhas, cordões, voltinhas, tudo do mais puro ouro.

- O que é que lhes aconteceu em Lisboa? - perguntava minha mãe.

Depois de esperar breves instantes, que pareciam uma eternidade, acabava sempre assim:

- Essa é outra história que já não me compete contar. Haja alguém que a invente.

 

Baixote, com aquele boné que lhe dava um ar respeitoso, o senhor Alípio aparecia quase todos os dias em Vilares, cavalgando uma motorizada muito maltratada. O senhor Alípio era tão azelha a conduzir que até as galinhas fugiam espavoridas quando ele aparecia, geralmente a meio da tarde, para entregar as cartas, os postais e também os aerogramas que os soldados mandavam da Guiné, de Moçambique e de Angola.

Quando ele chegava ao largo, nem precisava de bater à porta das casas, porque logo ali se reunia um magote de gente, ansiosa e em silêncio.

O senhor Alípio fazia-me lembrar o padre Miguel a distribuir a comunhão. Ambos punham um rosto sério, ambos falavam baixinho; o padre dizendo monocordicamente as mesmas palavras, o senhor Alípio lendo os nomes dos destinatários, que sorriam e suspiravam quando a correspondência lhes era posta nas mãos.

Os que ficavam de mãos a abanar, não se conformavam:

- Tem a certeza que não há mais nada dentro do saco? Veja bem...

O senhor Alípio sorria:

- Não há mais nada. Amanhã também é dia...

Depois de vender alguns selos, que trazia dentro do saco, muito bem acondicionados numa latinha espalmada, punha a motoreta a trabalhar e lá se ia embora, envolto em fumaça.

Depois do Zeferino ter embarcado para Angola, já promovido a primeiro cabo, a minha irmã Adélia fartava-se de escrever e receber aerogramas.

Eu bem a via sentada à mesa da sala, muito concentrada a escrever e a pensar, a pensar e a escrever.

- Tens sempre tanta coisa para dizer? - perguntava-lhe eu, muito admirado. É que em Vilares nunca acontecia nada que não fosse igual ao dia anterior.

- Cala-te, não sabes o que dizes.

Ela tinha razão. Eu não sabia que, quando nos apaixonamos, mesmo o que é mais banal tem sempre grande importância.

Um dia, a Adélia foi dar uma ajuda na cozinha à tia Eulália, mãe do Zeferino, que trazia um bando de gente a arrancar-lhe as batatas. Os meus pais também lá andavam desde o amanhecer. A minha irmã deixara-me um aerograma para entregar ao senhor Alípio, caso ele aparecesse em Vilares.

Sozinho, e com todo o tempo à minha disposição, acendi o lume, e esperei que uma panela cheia de água começasse a ferver. O testo retinia na borda da panela com a força do vapor que se escapulia. Não me lembro quem me ensinou a fazer tal operação. O que eu sei é que, com a preciosa ajuda desse vapor, abri o aerograma com grande facilidade.

com o coração aos saltos, li a carta da Adélia sentado na retrete de madeira que estava ao cimo do quintal. Desde menino eu sabia que aquele sítio era o mais privado de todos os recantos de Vilares.

Li a carta uma série de vezes. E decorei-a:

 

«Zeferino.

Meu querido amorzinho espero que ao leres esta te encontres bem com muita saúde e que não te tenhas esquecido do teu amor. Aqui não aconteceu nada, está tudo bem com os teus pais e com toda a família. O meu cabelo é que anda a ficar espigado, vou ter de o cortar a ver se melhora. Penso muitas vezes em ti e espero que tu penses também em mim, meu amor do coração. Lembro-me de ti a muitas horas do dia e espero que tenhas juízo e não andes por aí a fazer asneiras. Olha que a saúde é um bem e eu espero aqui por ti. Ainda falta muito tempo para vires dessa guerra. Tem cuidado, nunca tires do pescoço a medalha que te dei e que foi abençoada pelo padre Miguel. Meu amorzinho espero que me respondas. Tu bem podias escrever-me mais vezes. Amanhã VOU ajudar a tua mãe na cozinha porque é o dia da arranca das batatas. Este ano há poucas batatas. Meu querido Zeferino, recebe desta que te ama do fundo do coração, todo o meu amor e muitos beijos. Não demores a responder. Desta que muito te ama e que só pensa em ti, e que reza por ti, para que nada de mal te aconteça, Adélia.

Não sejas preguiçoso, ouviste? Escreve hoje mesmo.

Mil beijinhos!, Adélia.»

 

Depois senti-me mal. Desiludido.

Para ler cartas a falar de batatas e de cabelos espigados não valia a pena arriscar a pele a abrir aerogramas.

 

Nesse ano de mil novecentos e sessenta e seis, Vilares inteiro espantou-se com o casamento da Isabel, prima afastada de meu pai.

A Isabel vivia com o pai, o tio Alberto, cesteiro de muita nomeada. Cesto ou cesta que lhe saía das mãos nunca mais tinha fim. Eu gostava de o ver a trabalhar. O que mais me fascinava era vê-lo a tirar a casca verde dos paus de carvalho ou de castanho, depois de os ter aquecido na fogueira que ardia no meio do caminho. Fazia aquilo com uma rapidez estonteante, sem se queimar.

O tio Alberto enviuvara muito cedo. Aos dez anos a Isabel ficou sem os aconchegos da mãe e começou a ser dona de casa. Cozinhava, acendia o forno, amassava e cozia o pão, lavava e remendava a roupa, tratava da casa e cuidava de meia dúzia de ovelhas, das galinhas e dos coelhos e dum campo que dava milho, feijões e um pipo de vinho em ano de boa colheita

- Aquela rapariga sempre foi uma moira de trabalho - comentava minha mãe.

O tio Alberto tinha um temperamento difícil, nunca estava contente com o trabalho da filha, berrava como um possesso e batia-lhe.

Um dia, ao escurecer, teria Isabel quinze anos, foi à fonte buscar água e, como demorava mais que o costume, o pai pôs-se a caminho com uma vergasta de lódão na mão. Encontrou-a a falar com um rapaz da idade dela, um tal Xavier que eu não cheguei a conhecer.

- Casa! - gritou o tio Alberto.

- Estou à espera que o regador fique cheio! Não tenho culpa que a fonte deite tão pouco - desculpou-se a Isabel.

- Casa! Casa!

- Não estou a fazer nada de mal, meu pai...

- Casa! Casa!

E o tal Xavier:

- Senhor Alberto, eu passei aqui por acaso... Cheguei mesmo agora... Tenha calma!

- Casa! Casa! Contigo não quero conversas. Tu cresces e depois apareces, entendido?

- Senhor Alberto, está-me a ofender...

- Eu sou uma pessoa educada. Não admito faltas de respeito. Casa! casa!

A Isabel pegou no regador. A meio do caminho o pai, que vinha atrás dela, aplicou-lhe duas vergastadas nas pernas.

A Isabel atirou com o regador para o chão e começou a correr e a gritar.

Em casa, quando as mulheres e moças de Vilares acorreram a ver o que se passava, a Isabel, desfeita em lágrimas, avisou:

- Meu pai, foi a última vez que me bateu, ouviu?! Foi a última vez! Se torna a fazê-lo eu atiro-me para dentro de um poço. Não me custa nada. Eu não sou sua escrava, meu pai!

Depois as coisas compuseram-se. O tio Alberto arranjou uma amante no Ingilde, ficou mais manso e nunca mais lhe bateu.

A seguir a um dia, outro dia vem, e outro e outro e mais outro; a roda do tempo não pára. Os anos passaram e a Isabel nunca arranjou um namorado.

Aprendeu a arte de tecedeira. E entre aquelas quatro paredes negras, sempre agarrada ao tear, deixou voar a juventude, entretida a ouvir rádio de pilhas de manhã à noite, entusiasmada com as radionovelas, que a faziam sonhar.

O senhor Alípio raramente trazia cartas para a Isabel. Quando isso acontecia, tinha de ir bater à janela onde ela tinha o tear. Mas Vilares inteiro sabia que essas raríssimas cartas vinham de França, escritas pela tia Esmeralda, irmã de sua mãe.

Todos os anos, em princípios de Agosto, um belo carro com matrícula francesa parava uma tarde inteira no largo de Vilares. O carro era dos tios de Isabel, a dona Esmeralda e o senhor Pinheiro, que ali vinham visitar o cunhado e a sobrinha. Ao fim da tarde, o carro voltava a partir em direcção a Chaves, terra natal do senhor Pinheiro, onde já tinham uma vivenda e várias propriedades.

A minha mãe contava que, se o tio Alberto não fosse tão cabeçudo, a Isabel podia ter tido uma vida diferente. Como a dona Esmeralda sabia que não podia ter filhos, quis criar a Isabel. Mas o pai não deixou, ficou pior que um gato assanhado. Mandou-os embora, e pediu-lhes que nunca mais voltassem a Vilares.

”Não há nada melhor que o passar do tempo para as feridas cicatrizarem”, dizia meu avô António. Os tios de Isabel voltaram todos os anos a Vilares para rever a sobrinha. Todos os anos a dona Esmeralda insistiu em levá-la para França. E o pai nunca deixou.

- Foge, Isabel! - diziam-lhe as mulheres de Vilares - Foge, rapariga! O que é que estás aqui a fazer?

Ela respondia que tinha pena do pai.

- És muito tola, rapariga! E se ele se casa? Ainda é muito novo. Os homens precisam duma mulher, é a lei da vida.

- Se ele se casasse, então eu ia-me embora sem olhar para trás.

O tio Alberto nunca se casou. Mas toda a gente estava farta de saber que ele ia duas vezes por semana ao cimo do Ingilde dormir com a Cândida Barbuda.

A Cândida Barbuda era muito carinhosa para o tio Alberto, mas também para o senhor Alípio, para o meu avô António, e tantos outros.

Os anos passaram. E, nos primeiros dias de Agosto de mil novecentos e sessenta e seis, Vilares inteiro espantou-se quando a Isabel contou que se ia casar no segundo Sábado de Agosto.

Nas próximas páginas contarei, com todos os pormenores, como foi possível tal casamento.

 

Naquela aldeia tudo se sabia, tudo se pressentia, tudo se explicava. Os homens sabiam dos últimos negócios de gado, vinho e cereais na venda do Rodrigo. As mulheres tinham todos os dias o lavadoiro, e aos domingos o tempo que demorava a palmilhar o caminho de ia e volta entre Vilares e a igreja.

Minha mãe, enquanto vestíamos a roupa domingueira, costumava dizer:

- Ai daquele que cai na boca do povo. Tem muito cuidado, Adélia. Não estragues o teu futuro.

A Adélia era bonita, e havia sempre rapazes no adro da igreja.

- Os teus olhos só vêem as pedras do caminho, ouviste?

A Adélia, de mini-saia e de arreeadas, bela e eheirosa, às vezes protestava:

- Mas eu não sou nenhuma viúva!

- O respeito é uma coisa muito bonita. Olha para as pedras do caminho, que a tua escolha já está feita.

A Adélia calava-se. Mas não me lembro de a ter visto a olhar para as pedras do caminho. Olhava de frente, muito senhora do seu nariz.

Um dia apareceu com os lábios e os olhos pintados. Minha mãe exasperou-se. Se já se viu uma pouca-vergonha daquelas: uma rapariga comprometida, de olhos e lábios pintados. Essas modernices não pareciam bem numa terra como Vilares. Que tivesse juízo, e tirasse da cara aquelas borradelas. O que é que a mãe do Zeferino não diria ao filho se a visse assim pintada?

A Adélia obedeceu, que remédio. Mas eu gostava que a minha irmã se pintasse na sala, gostava de ver o seu olhar embevecido reflectido no enorme espelho do guarda-fatos que havia na sala.

No dia do casamento da Isabel, a Adélia lá conseguiu convencer minha mãe que as fotografias ficavam muito mais bonitas se ela pintasse os olhos e os lábios.

Em Vilares tudo se sabia, tudo se pressentia, tudo se explicava, dizia eu ainda há pedacinho. Mas não estava a ser correcto. Há sempre uma, ou muitas excepções à regra, como toda a gente sabe.

Ninguém soube que a Isabel namorou oito meses, ninguém pressentiu que as cartas vindas de França, que o senhor Alípio lhe entregava, não eram escritas pela sua tia Esmeralda.

Isabel ia casar-se e só ccnhecia o noivo por uma fotografia.

Que grande espanto em Vilares.

Então a rapariga ia entregar-se assim de repente a um homem lá de França, que nunca tinha estado em Vilares?!

E se fosse manco?

E se fosse gago?

E se fosse anão?

E se fosse maneta?

E se fosse mouco?

E se não fosse um homem completo?

E se fosse um vagabundo?

E se não aparecesse?

Mas, afinal, como é que se chamava esse francês?

E como é que começou o namoro?

Por que é que a Isabel não contou o que se estava a passar?

Quem havia de dizer que era tão sonsinha?!...

É preciso ter lata para enganar toda a gente durante oito meses!

Minha mãe rematava:

- O que interessa é que seja feliz. Bem o merece.

 

O casamento da Isabel estava marcado para o segundo Sábado de Agosto, dia treze; nunca mais esqueci todos estes pormenores. E não os esqueci por causa dos meus anos, dos meus doze anos.

O meu aniversário, já o disse, é no dia de S. Bartolomeu, a vinte e quatro de Agosto. A Isabel casou-se no dia treze. E o galo que minha mãe me tinha prometido, o tal que o Quinzinho Azeiteiro queria trocar por quatro litros e meio de azeite e uma barra de sabão, foi comido na boda de casamento da Isabel.

Minha mãe disse-me:

- Não fiques triste, David. O casamento da Isabel é mais importante do que os teus anos. Ó meu filho, na nossa vida festas de anos há muitas, casamento com boda só temos um. Deixa lá, que no dia de S.Bartolomeu eu mato uma galinha e faço um arrozinho de cabidela, com muito vinagre, como tu gostas.

Eu fiquei descoroçoado e aprendi que não vale a pena termos certezas antecipadas.

Para a boda, além do galo, minha mãe ofereceu cinco dúzias de ovos, cinco quilos de arroz carolino, cinco quilos de açúcar branco e um quilo de aletria, comprados na venda do Rodrigo.

Eu é que fui levar a mercearia a casa da Isabel. A Adélia levou um embrulho onde havia uma dúzia de pratos decorados com flores azuis, uma dúzia de malgas, com decoração idêntica à dos pratos, meia dúzia de copos, tudo comprado na venda do Rodrigo, e uma toalha de linho bordada à mão que a Adélia tirou da sua arca.

Na véspera do casamento apanhei o galo no meio de um silvado, depois de muito correr atrás dele. E só o consegui agarrar porque me lembrei de lhe atirar com uma pedra que lhe bateu em cheio na cabeça, deixando-o atordoado, revirando os olhos.

Minha mãe levou-o dentro de um saco de serapilheira e matou-o em casa da Isabel.

Não posso estar aqui a contar o que é que as outras casas de Vilares deram à Isabel. Mas, não mentirei, se disser que toda a gente lhe foi bater à porta, mesmo a Zefinha que, de seu, pouco mais tinha que o corpo e a canastra. O Celso contou-me que a sua mãe levara a casa da Isabel meia dúzia de copos pequeninos, comprados na venda do Rodrigo. Em cada copo havia a imagem de Nossa Senhora de Fátima e os três pastorinhos.

A Zefinha tinha sido convidada a ajudar uma famosa cozinheira do Ingilde, a senhora Rosinha Borges, que já perdera a conta ao número de bodas que fizera ao longo da vida. O Celso prontificara-se a cuidar do vinho. Durante a boda, as canecas deviam estar sempre a transbordar.

Por causa do casamento, anunciado assim tão repentinamente, o alfaiate Zé Maria passou noites mal dormidas, tantas foram as encomendas que lhe caíram em cima.

Meu pai tinha um fato azul que usava nos dias de festa, e quando ia aos funerais. Tinha duas gravatas com o nó feito, uma era vermelha com bolinhas pretas e a outra preta como a fuligem. A que ele mais usava era a preta. Nos dias de Verão, recusava-se a pôr a gravata vermelha, preferia andar com o colarinho da camisa desabotoado. E quando ele dizia não, já sabíamos que de nada adiantava estar a contrariá-lo.

Minha mãe tinha um vestido verde e um casaco cinzento pendurado no guarda-fatos e rarissimamente o vestia. Mas eu gostava de a ver com o vestido verde, com os sapatos de verniz calçados. Gostava de lhe ver o cabelo preto muito apanhado e entrançado, com muitos ganchos a segurar o carrapito.

- Ó mãe, até parece uma senhora! - dizia eu, deslumbrado.

- E não o sou?! - respondia ela, dando uma gargalhada.

- Se cortasse o cabelo, ficava mais nova -

dizia a Adélia.

- Neste cabelo que Deus me deu ninguém há-de pôr a mão. O pior é a barriga. Breve não caibo dentro dele. Quando eu me casei, pesava quarenta e cinco quilos e agora olha como eu estou. Os filhos põem as mulheres gordas.

O meu avô tinha um fato preto. Não usava gravata. Calçava botas pretas e tinha duas samarras, com pêlo de raposa nas golas. Ele dizia-me que tinha morto as raposas para lhes tirar a pele. E eu, quando era mocito, acreditava piamente nessa mentira.

A samarra coçada era a que ele usava todos os dias. A outra, com o pêlo amarelo muito certinho e muito fofo, estava pendurada na porta do quarto.

Eu gostava mais da samarra coçada. Era lá, escondidos nos bolsos, que havia castanhas, rebuçados, uma navalha que cortava a barba se fosse preciso, nozes, moedas de tostão, figos, piões, uma caneta de tinta permanente, bocados de papel com versos.

Foi num desses bolsos que eu encontrei, no último ano de escola, uma fisga que me ajudou a caçar muitos pardais, que depois oferecia ao Rufino.

Essa maravilhosa fisga com elásticos pretos e pau de cerejeira também me ajudou a estilhaçar em mil pedacinhos o vidro da janela do quarto dos meus pais.

Com medo que meu pai tirasse o cinto das calças e me batesse com ele, menti. Menti descaradamente. E enquanto mentia, acreditava na minha própria mentira. Bastava imaginar.

Fui ter com a minha mãe, que estava a lavar roupa no tanque que havia no quintal, e disse-lhe que o vidro estava partido, mas que não tinha sido eu.

Que tinha ouvido o barulho, e correra a ver o que acontecera.

Que tinha visto pedacinhos de vidro no chão.

Que me pusera a ver se descobria o autor da pedrada.

Que não tinha visto ninguém, mas que aquilo era obra dum moço. Não podia jurar, mas talvez o Celso...

Que....

- Ó filhinho, a mim não me enganas tu! Os teus olhos dizem-me o contrário do que estás para aí a arengar... Foste tu com essa maldita fisga que o teu avô te deu. O teu avô, às vezes, ainda é mais moço do que os moços....

Imaginei-me muito ofendido. E até consegui chorar. Mas nem isso foi suficiente para convencer a senhora Inês.

E foi ela que me salvou. Disse a meu pai que ao tentar abrir a janela do quarto partira o vidro. Meu pai olhou para mím e disse:

- Está bem, eu VOU fazer de conta que acredito.

E mais não disse.

Meu pai, o avô António e minha mãe tinham fatiotas para o casamento. A Adélia, que era a que tinha mais roupa, disse que não tinha nada para vestir nem para calçar.

Eu tinha o fato da comunhão solene. A minha mãe mandou-me vesti-lo para ver como é que eu parecia. E a Adélia desatou à gargalhada quando me viu ali no meio da sala, com um casaco onde eu mal cabia e umas calças que me davam pelos tornozelos. Se eu me pusesse no meio do quintal cem um chapéu na cabeça e de braços abertos, muito medo havia de meter à passarada...

Minha mãe ficou preocupada:

- Credo, em dois anos cresceste tanto, meu filho! E agora?

Não havia volta a dar-lhe, eu precisava dum fato novo.

Minha mãe e eu fomos a casa de alfaiate Zé Maria. E ele disse que tinha muita pena, que desculpássemos, mas que nãe se podia comprometer, que fôssemos procurar outro artista.

- Não vai, e fica o problema resolvido - disse meu pai.

- Somos uma família nos dias maus e nos dias bons. O moço vai ao casamento - respondeu minha mãe.

Meu pai ficou calado. Depois, confessou:

- E nós não vamos ter dinheiro que chegue para tanta despesa. Só se formos pedi-lo. A despesa que se fez na venda do Rodrigo foi posta no livro dos fiados.

Tudo se há-de arranjar - disse minha mãe.

E assim aconteceu. Meu avô António emprestou o dinheiro sob duas condições. Primeira: não contar a ninguém; segunda: tínhamos um ano para saldar a dívida.

Comprámos o meu fato numa tenda de feira. Era um belo fato azul, com calças à boca de sino, bastante folgado. Demorámos mais de duas horas para concluirmos o negócio. Depois de muito teatro, o meu pai lá conseguiu que o vendedor, um sujeito gordo, de cara vermelhinha e papuda, fizesse um desconto de duzentos escudos. Também comprei uns sapatos pretos de tacão alto.

A Adélia comprou uma saia preta e uma blusa branca, um ”soutien” branco, umas sandálias pretas e um frasquinho de perfume com cheiro a violetas.

A custo, meu pai tirava as notas da carteira e barafustava, meneando a cabeça:

- Só agora é que ela se lembrou de arrebitar. Se a Isabel tivesse casado há mais tempo, tínhamos menos despesa. Sai-me tudo ao contrário! Estou farto disto.

E nós fazíamos de conta que a conversa não era connosco.

 

Dois dias antes do casamento da Isabel, apareceram, a meio da manhã, dois carros no largo de Vilares. Dois belos carros novos, vermelhos, brilhantes, da mesma marca. Ambos com assentos de veludo cinzento e matrícula francesa.

E o espanto tomou conta da aldeia. Toda a gente estava à espera que aparecesse o carro branco da dona Esmeralda e do senhor Pinheiro, com o noivo da Isabel atrás e, afinal, apareciam dois, assim de repente, silenciosos, mais vermelhos e mais brilhantes que as cerejas!

O Celso, que foi o primeiro a ver lá ao longe uma coluna de pó a aproximar-se, desatou a gritar.

- Ó Isabel, vêm aí dois carros! Ó Isabel, vêm aí dois carros!

O tio Alberto, abriu a porta da cozinha e gritou:

- Cala-te, mafarrico! Toma lá para teres juízo! E tentou acertar nas costas do Celso com um dos grossos tamancos que trazia calçados. Foi o tamanco pelo ar e acabou por cair em cima do lombo do esgalgado cãozito negro que ia atrás do Celso. O cão ganiu com dores, mas continuou a correr atrás do dono, que não parava de gritar:

- Vêm aí dois carros!   Vêm aí dois carros! Ó Isabel! Isabel!

Minha irmã Adélia, que andava a estender a roupa que tinha acabado de lavar no tanque do nosso quintal, logo ali largou o serviço, e começou a caminhar muito devagarinho em direcção ao largo.

Minha mãe, que tinha acabado de chegar do campo com uma grande cesta de vime - comprada a uns ciganos que por ali acamparam durante dois dias - cheia de feijão verde, limpou o suor que lhe alagava o rosto e começou a caminhar muito devagarinho em direcção ao largo.

Meu avô António, que estava sentado à sombra da cerejeira a conversar com o velho Rufino, pegou na muleta, levantou-se com muitos vagares e começou a caminhar muito devagarinho em direcção ao largo, seguido pelo desgraçado do Rufino, com o focinho húmido farejando aqui e ali as pedras do caminho.

A tia Eulália, mãe do Zeferino, que andava sempre tão atarefada, também veio caminhando muito devagarinho em direcção ao largo.

A Rosinha, mulher do Rodrigo da venda, deixou a porta aberta, e a loja deserta, de repente esquecida dos gatos que tanto gostavam de meter o dente nas bolas vermelhas de queijo expostas numa estante de madeira, enfeitada com papel de fantasia e pôs-se a dar passos apressados em direcção ao largo.

A Zefinha poisou a canastra que trazia à cabeça. E esqueceu-se de apregoar que nesse dia vendia chicharros fresquinhos, ainda a saltar, três por vinte e cinco tostões, preço barato, muito barato, porque cada chicharro com aquele tamanho dava, pelo menos, para fazer quatro boas postas, não contando com a cabeça, que também era muito saborosa, se fosse bem frita e levasse umas gotinhas de vinagre no fim...

A senhora Elvirinha, que morava ao fundo de Vilares e tinha oitenta e nove anos, a cara sulcada por um mar de rugas, um olho cego e fedia a mijo, apareceu no largo caminhando muito devagarinho, agarrada a duas bengalas.

Tão rara e importante era a novidade que até o alfaiate Zé Maria largou a máquina de costura, o dedal e a agulha e também apareceu no largo, manque-que-manque, com o cigarro apagado colado num canto da boca. Mas não veio a tempo de ouvir os motores dos carros a trabalhar. Só ouviu o latido dos cães, desconfiados com aquele som abafado, novo e raro em Vilares. E só se calaram depois do Celso se ter abaixado para pegar numa pedra. Os cães de Vilares conheciam o Celso, sabiam que ele tinha muito boa pontaria. Era tão bom nisso que até nos gatos, que normalmente são lambões e correm como balas, ele conseguia acertar.

A dona Esmeralda e o senhor Pinheiro saíram do carro e correram a cumprimentar o magote de gente ali reunido. Quando a dona Esmeralda chegou junto de mim, beijou-me e disse que eu estava muito crescido, e era tal e qual a cara do meu avô António, só me faltava o bigode. A dona Esmeralda cheirava muito bem. O perfume que ela usava era tão forte que se entranhou na minha roupa o resto do dia.

O noivo da Isabel deixou-se estar no seu carro. Fumou dois cigarros de enfiada e olhava para nós e para o volante. Depois pegou num pano amarelo e começou a limpar o ”tablier”, muito devagarinho, muito concentrado.

Caminhando muito devagarinho, muito corada, de blusa branca e saia preta, com os cabelos soltos sobre os ombros e sapatos de tacão alto, de verniz e a estrear, a Isabel apareceu no largo.

O noivo parou as limpezas no carro, abriu a porta, saiu e foi ao encontro dela. Nesse instante fez-se um grande silêncio no largo. E as cantorias dos pássaros empoleirados na copa de um grande carvalho que havia ali perto começaram a incomodar.

- Olá, Isabel.

- Olá, Adriano.

A Isabel estendeu-lhe a mão. E ele, que afinal se chamava Adriano, deu-lhe um beijo em cada face. E ela, num fiozinho de voz:

- Fizeste boa viagem?

- Fiz. Onde está o teu pai?

- Em casa...

A dona Esmeralda deu um longo e apertado abraço na sobrinha, sem dizer uma palavra.

Depois começou a limpar as lágrimas com as costas das mãos. Minha mãe, a Zefinha, a Rosinha da venda, a tia Eulália, enfim, todas as mulheres de Vilares que estavam no largo, ficaram com os olhos marejados.

- Vamos? - perguntou a Isabel, de repente muito pálida.

- Vamos - respondeu o Adriano, acendendo outro cigarro.

E começaram a caminhar em direcção à casa da Isabel, e do tio Alberto que ali os esperava sentado no seu banco de cesteiro, fazendo de conta que consertava uma cesta. Atrás deles, com as mãos carregadas de sacos, iam os tios.

- O rapaz é uma estampa. Que sejam felizes e tenham muitos filhos, que são a alegria de qualquer lar - comentou a velha Elvira que nunca se tinha casado nem tivera filhos.

E o meu avô rematou:

- Não há dúvida: a natureza é muito caprichosa!

 

No dia do casamento da Isabel tivemos de nos levantar muito cedo. Ainda não se via muito bem e já a água corria nas raízes dos milheiros, muito altos, muito verdes, sempre sedentos.

Cortei dois grandes molhos de erva, apertei-os com um cordel e carreguei com eles às costas até ao estábulo das vacas.

Nessa altura tínhamos duas vacas que nos ajudavam a lavrar os campos, puxando o pesadíssimo arado de ferro que cortava e revolvia a terra, pondo-a negra, pronta a receber as sementes.

Eram as duas vacas que nos puxavam o carro carregado de mato e de lenha. Eram as vacas que nos curtiam o estrume com que adubávamos a terra.

Quando davam sinais do cio, eu e meu pai levávamos as vacas a casa do Teixeira, que ficava nas Tapadas. Uma caminhada que demorava mais de duas horas.

Aí chegados, amarrávamos a vaca impaciente, mugindo e erguendo a cauda, a um grosso carvalho. Depois íamos chamar a mulher do Teixeira, ou a filha que se chamava Glória e devia ter a mesma idade que eu.

Nem precisávamos de dizer ao que íamos. Daí a nada, com uma argola de ferro metida no focinho e uma corda comprida aí enlaçada, aparecia o Tunante. O Tunante era um boi formidável, muito gordo, muito possante, com um pendente e imenso par de testículos.

Por breves instantes o Tunante ficava parado, olhando para nós que, calados, e sem nos mexermos, o observávamos bem longe do carvalho.

De repente o boi punha-se por detrás da vaca, levantava as patas dianteiras e desenfreado saltava para cima dela e cobria-a. E eu ficava sempre impressionado com a violência daquele acto que daí a nada voltava a repetir-se.

Consumada a cobrição, o Tunante, cansado, e vagaroso, voltava ao sossego do seu estábulo, onde havia mato e erva. Pagávamos à Glória, ou a sua mãe, o trabalho do Tunante e voltávamos para casa com a vaca, sabendo que dali a nove meses, se não acontecessem percalços, ela teria à sua beira um bezerro que, depois de criado, nos daria algum dinheiro.

Minha mãe cortou erva para pensar as ovelhas, as cabras e os coelhos. Para não estragar o penteado, nessa manhã, a Adélia não foi para o meio dos milheiros nem andou com carregos à cabeça. Ficou em casa a cuidar das galinhas e dos porcos e a aquecer a água de duas grandes panelas de ferro.

Ainda não eram nove horas da manhã e já estávamos em casa, transpirados com tanta correria.

Cada um bebeu num instantinho a sua malguinha de café muito quente e comeu um bocado de broa. Meu pai ainda não tinha terminado de beber o café e já o Zezinho Barbeiro aparecia com a sua malinha de madeira, cheio de pressa porque também tinha sido convidado para o casamento e ainda não tinha cortado a própria barba.

Sentou-se meu pai numa cadeira posta no meio da rua; o Zezinho abriu a malinha e tirou de lá uma pequena toalha e pôs-lha à volta do pescoço. Depois ensaboou-lhe a cara, verificou o gume da navalha e começou a cortar-lhe a barba. Num instante o escanhoou sem lhe beliscar a pele. E foi-se embora a correr.

Minha mãe pôs no meio da cozinha uma bacia com água quente e mandou-me lavar muito bem todo o corpo e que não me esquecesse de lavar muitas vezes o pescoço para que o colarinho da camisa branca não ficasse sujo.

Despi-me no meio da cozinha, e mal tive tempo de reparar se os pêlos que cresciam no meu corpo estavam mais compridos e já eram tão bastos como os do Celso. Não havia tempo para ver se a pila tinha crescido, nem para grandes imaginações, porque a minha mãe já estava a bater à porta e a dizer para não me atrasar, que o meu pai e ela também precisavam de tomar banho.

- Despacha-te, David, que o tempo está a escapulir-se, e eu não quero chegar atrasada! - gritava minha mãe.

Com a toalha enrolada no corpo corri para a sala que já cheirava intensamente a perfume de violetas, enxuguei-me, penteei-me e vesti o fato azul, com calças à boca de sino e os sapatos pretos de tacão alto. Depois fui ver-me ao espelho e gostei do que vi.

Ali estava um rapaz de repente mais crescido que não demoraria muito tempo a ter um bigode tão farfalhudo como o do seu avô António.

Ali estava um belo rapaz, de cara magra e testa alta, com algumas borbulhas a afligi-lo.

Ali estava um rapaz que, às vezes, tinha sonhos que não podia contar a ninguém, sobretudo aqueles em que a Glória e a Cândida Barbuda apareciam.

Ali estava um rapaz que muitas vezes sonhava acordado e já tinha olheiras.

Agarrado à muleta, com o desgraçado do Rufino sempre atrás, de focinho baixo e rabo descaído, o meu avô apareceu em nossa casa para nos dizer que esperava cinco minutos por nós, nem mais um segundo.

Mas não foi preciso tanto tempo. Daí a nada caminhávamos para casa da Isabel. Minha mãe, metida no seu vestido verde, caminhava devagarinho, amparada a meu pai, aflita com os tacões dos sapatos de verniz.

- Que vá para o inferno quem inventou estes sapatos. Isto é um perigo. Num instante podemos torcer um pé e dar uma bombalhada no caminho.

- Não seja parola, minha mãe! A moda é assim, que é que quer? - respondeu a Adélia, que ia na frente, toda vaporosa, com os lábios e os olhos pintados.

 

A abrir o cortejo ia o Adriano e a dona Esmeralda, madrinha dos noivos. Logo atrás, muito sério, corcunda, metido num fato preto com muitos anos e pouco uso, caminhava o tio Alberto. Depois seguiam os vinte e sete convidados, não contando com o melhor fotógrafo de Chaves - como fez constar a dona Esmeralda - um senhor gordo, coradinho e sorridente.

No fim do cortejo, estreando um vestido branco e repleto de folhos que a dona Esmeralda trouxera de França, caminhava a noiva. Muito séria, muito bonita, a Isabel apertava com as duas mãos um belo e cheiroso ramo de flores de laranjeira que eu nunca descobri onde foi arranjado. A seu lado, sorridente e com um cravo vermelho na lapela do casaco, ia o senhor Pinheiro.

A caminhada para a igreja demorou o seu tempo e a minha mãe já se fartara de amaldiçoar os sapatos, que cada vez mais lhe mogoavam os dedos dos pés.

O padre Miguel não demorou muito tempo a formalizar o casamento. Lia muito depressa, tão depressa falava que nem se percebia muito bem o que estava a dizer.

Às tantas, ouvimos o Adriano e a Isabel a sussurrarem que sim, que estavam dispostos a viverem juntos e para sempre. E a minha mãe, ouvindo aquilo, não conseguiu impedir que duas gordas lágrimas lhe rolassem pela cara.

A Adélia não chorou. Os seus olhos brilhavam.

O cortejo só abandonou a igreja depois da interminável sessão fotográfica:

A noiva na sacristia a assinar o seu nome no livro que o padre Miguel lhe estendera. O noivo a fazer o mesmo. Depois o padrinho, muito aflito com a caneta. Depois, sorridente, a madrinha.

A noiva no meio do altar a sorrir para o noivo.

A noiva a sorrir para o pai.

A noiva a sorrir para os sogros.

A noiva a sorrir para os cunhados.

A noiva abraçada ao avô António.

A noiva apenas com a minha irmã Adélia com aquela mini-saia que minha mãe não gostava que ela tivesse vestido.

Os noivos ao lado do senhor Cruz, muito bem barbeado e de fato cinzento, gravata vermelha e sapatos de verniz, que fora de propósito comprar ao Porto.

A noiva, muito séria, a pôr o ramo de flores de laranjeira no altar da Nossa Senhora da Guia.

Os noivos no adro da igreja no meio de todos os convidados.

- O melhor é deixar para mais tarde o resto dos retratos, se não, quando chegarmos a casa, está a carne esturricada - disse o pai da Isabel farto de esperar.

O velho tinha razão. Ainda era preciso fazer a caminhada até casa da Isabel. Ainda era preciso parar no largo para que a Isabel e o Adriano fossem brindados pelos vizinhos com punhados de arroz do mais baratinho e pétalas de flores atirados para o ar que acabavam por cair, como se fosse chuva, sobre a cabeça de todos os convidados.

E eu já sabia que, depois do cortejo passar, não tardaria a estalar uma guerra entre as galinhas, pintos e galos e mesmo a passarada. Guerreavam-se pela posse dos grãos de arroz caídos no chão.

Quando chegámos a casa da Isabel, acomodámo-nos na sala acanhada cheia de mesas, cadeiras e bancos corridos.

Comemos canja. No meu prato apareceu metade duma grande crista e um pedaço de pescoço. Eu não posso jurar, mas ainda hoje estou convencido que, pelo menos aquela crista, tinha pertencido ao galo que o Quinzinho Azeiteiro tanto desejara comprar e que minha mãe destinara para o dia dos meus anos.

Depois da canja comemos um belo cozido com muitos nacos de presunto cozido, rodelas de salpicão, pedaços de galo e galinha, cenouras, repolho e batatas.

O vinho, desaparecia dos garrafões, das canecas e dos copos.

- Bela pinga! - dizia o senhor Cruz, estralejando a língua. Era um vinho maduro, tinto, comprado pelo senhor Pinheiro numa quinta do Douro.

Quando serviram o borrego assado, as batatas e o arroz do forno, meu pai que já transpirava e estava a ficar com a cara muito vermelhinha, sorria e falava alto.

Minha mãe, aflita, ia-lhe segredando:

- Tem cuidado, Avelino. Não abuses com a bebida.

Meu pai não a ouvia. E eu divertia-me vendo-o tão sorridente, tão carinhoso para com a minha mãe.

A fome já não era nenhuma quando foram servidos os bolos. Mas ninguém quis deixar de bebericar um bocadinho de vinho do Porto.

O barulho era ensurdecedor naquela sala a cheirar a comida, a suor, a tabaco e a aguardente, quando o senhor Cruz se levantou e, muito sério, pediu um minuto de atenção, porque tinha algumas palavras para dizer.

Fez-se silêncio. E o pai da Isabel, que mal tinha provado a comida e parecia estar cheio de sono, mexeu-se na cadeira e admoestou:

- Em minha casa não há pregações! E, enquanto eu for vivo, quem manda nesta casa sou eu.

- O tio Alberto vai fazer o favor de me deixar falar. Porque o que eu tenho a dizer é muito importante. Não, não VOU falar dos vossos assuntos familiares, nem VOU falar deste casamento. O que eu quero falar diz-me respeito a mim e a outras pessoas que estão nesta casa. É um assunto tão importante que só hoje tomei a decisão de o tornar público. Dá-me licença que fale aqui, para que todos sejam testemunhas das minhas palavras?

Atordoado com aquele discurso, o pai da Isabel encolheu-se e acenou com a cabeça.

 

Fez-se um enorme silêncio. Maior silêncio só o que se desfruta no fundo de um poço ou no interior de uma gruta.

Era tão grande o mutismo que se conseguia ouvir o zumbido das moscas que entravam pelas portas e janelas abertas, voavam por toda a sala e acabavam por poisar nas bordas dos pratos e dos copos, em cima das mesas. E, apesar da mão que as enxotava, e das breves pancadas, não paravam de rodopiar sobre a cabeça calva do tio Alberto.

De pé, com um cigarro a fumegar entre os dedos, o senhor Cruz pediu que o Celso e a Zefinha entrassem na sala, assim como a cozinheira e as mulheres que labutavam na cozinha.

Aquele estranho pedido mais adensou o ambiente.

Num instante apareceram na sala as mulheres que trabalhavam na cozinha. Tinham os rostos transpirados, coradíssimos.

Depois de beber de um só trago a aguardente que enchia o cálice de vidro grosso e fosco, o senhor Cruz começou a falar num tom de voz levemente baixo, o que nos obrigou a ficar muito atentos.

E ele contou.

Pausadamente contou.

Contou que de todas as vezes que vinha a caminho de Vilares sentia uma enorme alegria. Mas, ao partir, levava um grande espinho cravado no peito. Sim, queria que todos soubessem que quando tinha de ir ganhar a vida para outras terras ficava com a consciência pesada.

Ouvindo aquelas frases tão enroladas, minha mãe segredou:

- Coitadito, já está com um grãozinho na asa!

O senhor Cruz tinha um ouvido apurado. Virou-se para minha mãe e disse, sem ressentimentos:

- Senhora Inês, estou tão lúcido como a senhora. Dou-lhe a minha palavra de honra, que é uma das coisas que mais prezo neste mundo.

E o senhor Cruz continuou a atirar para o ar frases que nos parecia não levarem a nada de concreto.

Falou das dificuldades da vida e da profissão errante que levava, das alegrias e tristezas que fazem parte de todo o ser humano.

- Mas afinal o que é que tem a dizer? - perguntou lá da porta a senhora Rosinha Borges. - É que lá dentro há uma pilha de louça para lavar...

- Tem razão. O que eu tenho a dizer é muito simples: quero que saibam que nasceu e tem crescido nesta terra um rapaz que é meu filho. É aquele!

E o senhor Cruz apontou para o Celso.

O Celso por breves instantes ficou petrificado no meio da sala, com os olhos esbugalhados. Depois saiu da sala a correr.

A Zefinha, deixou ficar as chinelas na sala e foi atrás dele, gritando:

- Celso, Celso, meu filho, ouve a tua mãe! E ele respondia:

- Deixe-me em paz! Deixe-me em paz!

E o senhor Cruz, atarantado, abanando a cabeça, largando o casaco em cima da cadeira saltou no encalço dos fugitivos.

- Eu já desconfiava, eu já desconfiava - disse minha mãe, embrulhada em copiosas lágrimas.

Eu sentia os ouvidos a zunir. E, de repente, lembrei-me da Dona Preciosa, possessa, desgrenhada, a gritar:

- O teu destino está traçado, rapaz. Hás-de ir parar a uma cadeia, que é o sítio para onde a sociedade manda os assassinos e os ladrões. Um filho sem pai é como uma panela sem fundo.

Apeteceu-me largar tudo e ir ao encontro do Celso. Meu avô António, que estava muito comovido, chamou-me. E apertando-me os ombros com as mãos, disse:

- David, nunca te metas onde não fores chamado. Percebeste? A nossa vida, como qualquer relógio, é feita com muitas rodas dentadas que às vezes se soltam. E o remédio é tentar encaixá-las.

 

Fiquei bastante abalado.

Nunca pensei que o senhor Cruz, tão elegante, tão insinuante, tão bom contador de histórias, fosse capaz de estar tantas vezes junto do Celso sem lhe dizer que era seu pai.

Fiquei bastante abalado.

Por mais voltas que desse, não conseguia compreender por que razão a Zefinha guardara para si aquele segredo.

O que importa aqui contar é que naquele Agosto de mil novecentos e sessenta e seis, logo a seguir ao casamento da Isabel, sucederam-se surpresas atrás de surpresas.

Depois de saber que o senhor Cruz lhes propunha irem os três viver para o Porto, o Celso não dormiu em casa.

No dia seguinte ao casamento, ainda os sinos não tinham tocado para a missa domingueira, minha mãe acordou-me. Queria saber onde é que o Celso fora dormir.

Disse-lhe que não sabia.

- Não mintas, David! Tu deves saber qualquer coisa...

- Não sei de nada! Juro, minha mãe! Eu nunca mais o vi.

- Pensa num sítio, David. Ajuda a pobre da mãe que está ali fora a chorar que até mete dó. E o senhor Cruz, coitado, está raladíssimo.

- Só agora...

- Cala-te, David. Nós não temos o direito de julgar seja quem for. Ouviste?

- Pois sim...

- Pensa, David!

Ainda ensonado, pus-me a pensar em locais onde se podia dormir em sossego. Lembrei-me do palheiro da senhora Elvirinha que tinha uma porta sem chave. O próprio pai do Celso o usava sempre que chegava a Vilares fora de horas, apesar dos protestos do meu avô, que tinha o hábito de se deitar na mesma hora em que as galinhas procuravam os poleiros.

Lembrei-me de uma mina seca, que ficava ao cimo da aldeia. Aquela mina, que tinha à entrada um enorme silvedo, era o nosso esconderijo secreto. Quando eu era mais pequeno, corria a enfiar-me lá dentro sempre que o meu pai vinha atrás de mim com o cinto que tirava das calças.

Lembrei-me do espigueiro, junto duma eira, onde, além das espigas de milho, também havia gordas ratazanas que nós tentávamos apanhar, atirando-lhe pedras com as nossas fisgas. E sabia bem deitarmo-nos por baixo do espigueiro e ali ficarmos muito sossegados, abrigados do sol e de barriga para o ar, ouvindo os estalidos das espigas.

- Fala, rapaz! - insistiu minha mãe. E eu respondi:

- Acho que o Celso dormiu no palheiro da senhora ELvirinha.

Mas estava redondamente enganado. O Celso não tinha ficado no palheiro, o Celso tinha-se ido embora.

Vilares inteiro ficou a sabê-lo depois do meu avô ter descoberto um cartão pregado na cerejeira. No cartão estava escrito a lápis:

 

Não é preciso ficarem preocupados.

Eu já tenho idade para orientar a minha vida.

VOU para França.

Adeus Vilares!

Celso.

 

- Fez muito bem - disse eu em voz baixa.

- Tu és parvo?! Vê lá se te pões a fazer asneiras... Ai de ti!... - disse minha mãe, condoída com a gritaria da Zefinha.

- Ele volta - disse o senhor Cruz. - É tão certo como a seguir ao dia vir a noite.

Nessa noite e nas que se sucederam custou-me a adormecer. Imaginava o Celso perdido nos caminhos do mundo vivendo aventuras extraordinárias ou, então, rapando fome, levando pancada, dormindo ao relento.

 

Meu avô e eu estávamos à sombra da cerejeira a jogar cartas.

Como estava muito calor, já eu tinha ido à fonte buscar um regador de água fresca para fazermos limonada.

Meu avô é que se encarregava de preparar a limonada. Espremia para dentro de uma caneca de barro o sumo de dois limões partidos em quatro partes, depois deitava-lhe muitas colheres de açúcar, mexia e tornava a mexer com uma colher e só depois é que acrescentava a água. Depois, à vez, bebíamos pela caneca. O meu avô dizia que os copos punham a limonada morna.

O meu avô era muito batoteiro a jogar cartas. Mentia descaradamente e, às vezes, começávamos a discutir. Eu não queria que fosse ele sempre a baralhar porque fazia batota. E ele respondia que não, que até baralhava com os olhos fechados. Eu é que era um batoteiro de primeira a baralhar as cartas. Umas cartas muito velhinhas, sujas, com os cantos partidos, a tresandar a fumo. Ele fechava os olhos e ali ficava uma imensidão de tempo a baralhar, a baralhar, a fazer batota, satisfeito da vida. E eu já sabia que raramente me saía o ás, o sete e o rei e dificilmente ganharia.

Estendido num buraco, à sombra da cerejeira e indiferente a tanta balbúrdia, o Rufino aborrecia-se com as moscas e os mosquitos que o cobriam e nunca o largavam e fartava-se de dar dentadas a ver se conseguia trincá-los. Mas nem essa tarefa ele conseguia fazer com grande eficácia.

Meu avô estava a baralhar as cartas e eu já farto de o aturar, quando apareceu junto da cerejeira o senhor Cruz. Atrás vinha a Zefinha. Mais atrás, de focinho agarrado ao chão vinha o cão que o Celso tinha adoptado. E eu reparei nos olhos dela. Eram uns olhos muito verdes e brilhantes.

O senhor Cruz e a Zefinha vieram dizer que se iam embora de Vilares.

A Zefinha entregou a chave da casíta ao meu avô. Era uma chave enorme, muito ferrugenta. A chave era uma coisa simbólica porque as janelas estavam a cair de podres e numa havia um cartão a servir de vidro. Quem quisesse lá entrar não precisava da chave para nada.

- Se o Celso aparecer, dê-lhe bons conselhos, tio António - pediu a Zefinha.

- A nova morada da mãe dele é esta. Fica no Porto, à beira da ponte de D. Luís. Deixo-lhe ficar dinheiro para a viagem da carreira. Chegando ao Porto ele que pergunte, que já tem idade para isso. Quem tem boca vai a Roma, não é verdade? O mundo é muito pequeno! - disse o senhor Cruz, entregando ao meu avô um envelope.

O meu avô ficou bastante tempo com o envelope na mão, calado.

- Também lhe queria pedir um favor, tio António

- disse a Zefinha - Podia ficar-me com o cão. A gente podia matá-lo, mas eu não tenho coragem.

O meu avô pôs-se a coçar a testa, olhando para longe. E quando ele se punha assim, eu já sabia que estava a tomar uma decisão. Já sabia que o sim ou o não, eram definitivos.

O cão do Celso, que era negro, pequenito, magro e só tinha metade do rabo, pôs-se a cheirar o velho Rufino, que lhe rosnou, por desfastio.

Meu avô deixou de olhar para longe. E eu já sabia que tinha tomado uma decisão.

- Está bem, eu fico com o cão. Como é que ele se chama?

- O Celso chamava-lhe Lambão - disse a Zefinha.

- Que raio de nome para um bicho! - riu-se meu avô. Querem limonada?

- Muito agradecido. Ainda tenho umas voltas a dar - disse a Zefinha.

- Espera aí, Zefa! - disse meu avô, levantando-se a custo - Vem cá rapariga. Vem cá, que te quero dar um abraço e desejar-te muita sorte, ouviste, rapariga. E o senhor Cruz já sabe: enquanto eu for vivo tem aqui uma casa às ordens.

Abraçaram-se longamente. Quando voltaram costas, meu avô disse para eu tratar do Lambão. E eu assim fiz. Peguei nele ao colo, e tranquei-o na cozinha depois de lhe dar um bocado de broa untada com banha de porco.

- Nunca te esqueças David: a natureza é caprichosa e a vida dos homens também tem os seus caprichos. Quem havia de dizer que nesta idade ainda havia de ser herdeiro de um cão? - disse meu avô, rindo.

Mas eu bem vi que ele estava a limpar os olhos à manga da camisa.

- E o Celso? Por onde andará o Celso? - perguntei.

- Ele volta - disse meu avô.

 

Privadas do peixe, coberto com camadas de sal que trazia na sua canastra demadeira, todos nós, em Vilares, sentimos a falta da Zefinha.

Minha mãe, sem saber o que nos dar à noite, que costumava ser sardinha assada, carapau ou postas de chicharro fritas, e a malga dó caldo verde, dizia:

- Assim é que se vê a falta que uma pessoa faz.

Quem teve sorte com a ausência da Zefinha foi o Rodrigo, que passou a pôr na balança mais bacalhau miúdo que, depois de bem demolhado, servia para cozer com batatas, para assar nas brasas ou para fazer pataniscas.

Eu sempre adorei pataniscas e bolinhos de bacalhau com pouca batata e muita salsa. Mas, nesse Agosto que agora recordo, a minha irmã Adélia não fez bolinhos de bacalhau porque todos os ovos foram precisos para confeccionar os bolos da boda de casamento da Isabel.

Aquele Agosto, foi, como já o disse, o mês de todas as surpresas.

No dia vinte e quatro de Agosto, data do meu décimo segundo aniversário, não houve comida melhorada, o meu pai já não estava em Vilares e a minha mãe todo o dia andou sozinha nos campos, e nem a casa foi almoçar.

Minha mãe ficou sem apetite e eu com um grande nó na garganta.

Na madrugada do vinte e quatro de Agosto acordei com uma voz, que perguntava:

- Ouves-me David? Estás-me a ouvir?

Abri os olhos e vi minha mãe com o candeeiro de petróleo na mão e o meu pai, de fato e chapéu.

- Adeus, rapaz! - disse ele. E deu-me um beijo em cada face.

- Aonde vai? - perguntei.

- VOU sair de Vilares. O senhor Pinheiro arranjou-me emprego. Mas não digas a ninguém, ouviste?

- Está bem.

E não ouvi mais nada.

Só de manhã é que me apercebi que o meu pai, nessa altura, estava a caminho de França, sem saber uma única palavra de francês.

Para lá chegar, ele e dois homens do Ingilde, tiveram de pagar e confiar nos conhecimentos de um passador que prometera fazê-los chegar clandestinamente a França.

A minha mãe andou todo o dia metida no meio dos milheirais, a Adélia esqueceu-se de fazer o almoço e eu matei a fome com uma fatia de presunto e um pedaço de broa. Que belo almoço para quem fazia doze anos!

Como não contava com tanta desconsideração, fiquei muito triste e fui chorar as minhas amarguras junto de meu avô António.

- Não sejas Miquinhas - disse ele. - O dia de anos não é assim tão importante. Se pensarmos bem, fazemos anos todos os dias. Uma altura virá em que essas coisas não têm grande importância.

- Ninguém gosta de mim! - disse eu.

- Estás tão enganado, David! Então tu achas que eu não gosto de ti?

Fiquei calado.

- Para te provar que gosto muito de ti, vais fazer-me um recado. Vais à venda do Rodrigo e pedes para te venderem um envelope, uma folha de papel e duas latas de sardinha de conserva.

Assim fiz.

Depois pediu-me para ir buscar uma caneta que estava no quarto, num bolso da samarra. Assim fiz.

- Agora senta-te no chão, põe a folha em cima desse banco e escreve o que te VOU ditar. Temos que nos despachar, se quisermos que esta carta seja hoje mesmo entregue ao correio. Depois de termos feito a carta, tratamos dos teus anos. Estás pronto?

- Estou.

- Então escreve o que te VOU ditar.

Comecei a escrever. E à medida que ia pondo no papel as palavras que meu avô ditava muito devagarinho, depois de muito pensar, comecei a sentir o meu coração a bater com mais força.

Quando o meu avô terminou, eu disse:

- Não sei se quero ir. Tenho de falar com a minha mãe, com a Adélia. Não, hoje não podemos entregar esta carta ao senhor Alípio.

O avô pôs-se a olhar para longe. Depois disse:

- Correcto. Gostei de te ouvir. Já pensas pela tua cabeça, e isso é bonito. Correcto. Leva a carta para tua casa, e entrega-a ao correio quando te decidires. Pode ser amanhã, depois, daqui por um mês. Ou podes queimá-la. A decisão é tua, só tua. Mas agora vamos tratar dos teus anos.

Fomos para a cozinha. Cortámos cebolas às rodelas e pusemo-las num prato e temperámo-las com sal, azeite e vinagre. Abrimos as latas, misturámos as sardinhas com as cebolas. Cada um pegou em seu garfo de ferro e num pedaço de broa. Deliciados, vagarosos, comemos do mesmo prato e bebemos vinho tinto pela mesma caneca de barro.

- Isto é melhor que o arroz de cabidela. Não achas, David?

E eu disse que sim.

- Aprende, David: Quem não tem cão, caça com gato... e é melhor um pássaro na mão que dois a voar. Anda, bebe mais, que o vinho é o sangue da terra.

E eu bebi, bebi e voltei a beber. O sangue da terra embebedou-me.

 

A carta que o meu avô me pediu para escrever esteve uma semana inteira na gaveta da minha mesa-de-cabeceira.

Dentro do envelope, ainda por fechar estava escrito:

 

« Vilares, 24 de Agosto de 1966.

Adelaide, minha filha.

Espero que ao receberes estas palavras do teu pai te encontres bem de saúde que eu estou bem, graças a Deus.

Quero agradecer-te o dinheiro que me mandaste, escusavas de te preocupar tanto comigo.

O teu irmão Avelino foi trabalhar para França e a Isabel, que andou contigo na escola, casou-se e foi morar para França.

O teu sobrinho David, neste dia em que te escrevo faz doze anos. Está na hora de lhe traçar um futuro. Deixá-lo nesta terra agarrado a uma enxada não me parece uma boa ideia. Escrevo-te para te pedir um favor: vê lá se consegues arranjar por aí um emprego decente ao teu sobrinho. Certamente que ele ganhará todos os meses o necessário para te pagar as refeições e a dormida.

O rapaz tem-me feito muito boa companhia e já sei que me vai custar imenso vê-lo partir. Mas também sei que não há ninguém que possa tapar com os pés o fio de água que corre por uma ladeira.

Espero que ouças a voz do teu pai, e que me respondas na volta do correio.

Recebe um abraço do teu pai que tanto te estima.

António.»

 

Li e reli a carta, sem coragem para a mostrar a minha mãe ou à Adélia.

Senti a falta do Celso. Se ele estivesse em Vilares, eu teria falado com ele. Assim, tinha de decidir sozinho.

De noite, antes de adormecer, lia a carta e ficava à espera do sono, imaginando como seria a cidade do Porto, como seria viver sem ter junto de mim o meu avô, a minha mãe, a Adélia, toda a gente de Vilares.

Sim, era melhor eu ir-me embora. Que é que eu estava a fazer em Vilares? Partir, sempre foi uma bela aventura.

De manhã acordava e lia a carta. E se eu não gostasse do emprego? Além de ler, escrever e fazer contas, de saber cortar erva para os animais, de cortar lenha e mato, de saber cavar e semear, eu não sabia mais nada. E isso angustiava-me imenso.

Esses dias foram difíceis de passar. Passei todo o tempo a evitar o meu avô e, para espanto de minha mãe, não tinha grande vontade de comer.

Tive sonhos horrorosos. Num deles andava a correr, perdido por vielas muito altas e muito estreitas e com o magricela do cão do Celso atrás de mim.

Quando minha mãe e a Adélia lavavam a loiça usada no jantar, anunciei a minha decisão.

- VOU sair de Vilares.

- Onde vais a esta hora? - espantou-se minha mãe.

- Não é agora que VOU. É daqui por alguns dias.

- E para onde vais?

- VOU para o Porto.

- Quê?

- Não é preciso tanta admiração. VOU trabalhar para o Porto. Já fiz doze anos. Tenho de cuidar da minha vida... ou não?

- Ainda há pouco tempo andava eu a limpar-te o traseiro... e já pensas que és um homem, é?

- Está decidido, minha mãe. Eu VOU trabalhar para o Porto.

- Muito bem! Tens lá um emprego escondido num buraquinho à tua espera!...

- O avô já tratou de tudo.

- Que é que ele andou a fazer?

- Escreveu uma carta à tia Adelaide.

Minha mãe começou a gritar:

- Mas o teu avô pode fazer tudo o que lhe apetece? Quem manda na minha casa sou eu! Isto não fica assim, ele vai ouvir o que nunca ouviu, ai, vai, vai... Não é assim que se tratam as coisas. Mas ele pensa que ainda manda em mim?

Fui buscar a carta e li-a em voz alta, vagarosamente.

Minha mãe tirou-me o papel da mão e, bruscamente, pôs-se a caminhar para casa de meu avô, proibindo-me de a seguir.

Ainda hoje não sei o que é que meu avô lhe disse. Só sei que voltou com os olhos vermelhos e, antes de se deitar, disse-me:

- Tens dinheiro para o selo?

 

Nunca desejei tanto ouvir o ronco do motor da motorizada do senhor Alípio.

Depois do almoço havia uma grande ansiedade em nossa casa. A Adélia esperava uma carta da Isabel que tardava a aparecer e, claro, os aerogramas do Zeferino. Minha mãe suspirava pelas palavras que meu pai havia de mandar de França. E eu queria que o senhor Alípio me entregasse um envelope dirigido a meu avô, com remetente da minha tia Adelaide.

O senhor Alípio aparecia, distribuía a correspondência,   encavalitava-se na motorizada e eu insistia, desanimado:

- Tem a certeza que não há mais nada dentro do saco? Veja bem...

O senhor Alípio sorria:

- Não há mais nada. Amanhã também é dia...

No dia sete de Setembro de mil novecentos e sessenta e seis lemos a carta de meu pai.

Era uma carta muito lacónica a dizer que estava bem de saúde, graças a Deus e que tinha muitas saudades de todos e que já tinha arranjado trabalho numa quinta, bastante longe de Paris, onde havia mais de duzentas vacas leiteiras, e que as vacas não eram mungidas à mão mas sim por uns maquinismos modernos e muito eficazes. Como as vacas não falavam francês e ele também não, entendiam-se muitíssimo bem.

Sei que recebemos a carta do meu pai no dia sete, porque nunca mais esqueci que foi no dia oito de Setembro que chegou a carta da minha tia Adelaide.

Corri a levá-la a meu avô. Encontrei-o de semblante carregado, sentado por baixo da cerejeira.

Nem foi preciso perguntar o que tinha acontecido. A seus pés, estirado no chão, com os olhos muito abertos crivados de moscas, teso como um bacalhau, estava o Rufino.

- Deitou-se aí, olhou para mim e morreu sem eu lhe dar ordem. Viveu comigo dezoito anos. É muito tempo!

Meu avô pediu-me para abrir uma cova junto da cerejeira. Pensei que era um trabalho rápido. Fui buscar uma enxada e comecei a cavar. Mas a terra era tão dura que fui obrigado a pôr de lado a enxada.

Com a ajuda de uma picareta que fui buscar a minha casa demorei mais de duas horas a abrir uma cova com três palmos de fundo.

O corpo do Rufino ficou aconchegado junto das raízes da cerejeira. O Lambão deitou-se sobre a terra revolvida e o meu avô disse:

- O mundo é assim: rei morto, rei posto. Meu avô mandou-me ler a carta.

A minha tia Adelaide dizia que me tinha arranjado emprego numa loja de solas e cabedais que ficava na mesma rua da pensão Belo Sonho. Que me esperava no Domingo, doze, por volta do meio dia, na paragem das camionetas.

- Estás contente? - perguntou o meu avô.

- Não sei. Tenho medo de não conseguir adaptar-me.

- Toda a gente tem medo do que é novo. Vai, vai-te embora e não olhes para trás. Infelizmente esta terra não tem futuro. Muita gente não gosta que eu diga isto, mas é a verdade. E a verdade é como o azeite: vem sempre à tona.

Depois de ter estado com meu avô, meti a carta da minha tia Adelaide no bolso das calças e fui cortar erva para o lameiro.

Fiz um molho, carreguei-o às costas. Encharcado em suor, pus a erva na manjedoira das vacas. As vacas eram velhas e mansas e eu, ali sozinho, abracei-me a elas e chorei. Chorei muito, ali escondido.

Anoitecia quando entrei em casa.

- O que diz a carta? - perguntou minha mãe, enquanto deitava um punhado de farinha no balde cheio de água e couves que daria aos porcos que já grunhiam.

- Vou-me embora no Domingo.

- Já? E tu tens roupa que chegue?

- Levo a que tenho.

- Mas só tens um par de sapatos!

- Eu compro lá outros.

- E qual é o emprego?

- VOU trabalhar numa loja de solas e cabedais.

- E tu percebes alguma coisa disso?!

- Aprendo.

- Não caias em tentações, meu filho! Não pegues no que não te pertence! Não mexas na gaveta do dinheiro!

- Já sei disso há muito tempo.

- Tu és tão novo...

- Agora vai passar todo o tempo a dar-me conselhos. Não confia em mim?

- Claro que confio. E tu queres deixar-me, David? Agora que já não tenho cá o teu pai para nos ajudar na lida da terra, achas bem ires embora? Que é que te falta aqui? Mas não serei eu, por muito que me custe, a travar-te o caminho. Se assim o desejas, vai, vai tratar da tua vida!

Fiquei calado.

Depois de ter deitado a comida aos porcos, minha mãe pediu-me para ir a casa do tio Alberto saber se a cesta que a minha irmã lá levara já estava consertada.

Abri o portão e chamei:

- Tio Alberto, tio Alberto! Respondeu-me um melro.

- Tio Alberto, tio Alberto!

Não vi nenhuma luz acesa.

”Se calhar já se deitou”, pensei. Estava decidido a voltar para minha casa quando reparei que a porta da cozinha estava aberta.

- Tio Alberto, tio Alberto!

Cheguei junto da porta da cozinha, espreitei para dentro e fiquei paralisado quando vi o tio Alberto, muito quieto suspenso no ar, uma corda grossa atada a uma trave a enlaçar-lhe o pescoço, e uma cadeira caída no chão.

Corri para o meio da rua e comecei a gritar até enrouquecer.

- O tio Alberto enforcou-se, o tio Alberto enforcou-se!

 

Eram quatro e meia da manhã. Minha mãe queria que eu bebesse todo o café, muito doce e a escaldar, que enchia a malga e que comesse um naco de pão. Mas eu, de fato e sapatos muito bem engraxados, não conseguia engolir nada. Tinha o estômago embrulhado, vontade de vomitar.

No meio da sala estava a mala de cartão, que meu avô comprara de véspera na loja do Rodrigo. Dentro da mala estava a minha roupa, o livro da quarta classe e a caneta de tinta permanente de meu avô. Pesava pouco, aquela mala.

- Despacha-te, se não ainda perdes a camioneta - disse minha mãe, em combinação, com um casaco sobre as costas.

A Adélia deu-me uma nota de cinquenta escudos e disse:

- Não te percas.

- Está bem.

Abraçamo-nos. Estava muito quente o corpo da minha irmã.

Minha mãe cobriu-me de beijos e molhou-me a cara com as suas lágrimas.

- Adeus, mãe.

- Que Deus te abençoe, meu filho. Queres que eu vá contigo? Não tens medo?

- Eu VOU sozinho.

Peguei na mala e saí de casa. Estava escuro. Minha mãe ficou com o candeeiro na mão a iluminar o caminho.

Comecei a caminhar com passos apressados. Daí a pouco olhei para trás e vi uma luz ao longe a desaparecer.

Depois de caminhar uma hora, cheguei à estrada. Daí a pouco havia de ali passar a camioneta de carreira.

Pousei a mala. Limpei o suor da testa e assustei-me ao ouvir uma voz que me disse:

- Pensei que não vinhas!

Era meu avô, metido na sua samarra velha.

- Que está aqui a fazer?

- Vim despedir-me. Ou não posso?

- E andou tanto. O avô não pode...

- Eu é que sei o que posso e o que não posso fazer. Ou também já queres dar-me conselhos?

- Não era preciso...

- David, lembra-te que a natureza é caprichosa e o nosso destino também. Tens atrás de ti alguém que te vai acompanhar.

Virei-me. À minha frente estava o Celso, a sorrir.

- Celso?

- Veio bater-me à porta esta noite - disse meu avô.

Abraçamo-nos. Perguntei:

- Por onde andaste?

- Depois eu conto-te.

Os faróis da camioneta de carreira brilharam na curva da estrada.

- Preparem-se - disse meu avô.

A camioneta, envolta em baforadas de gasóleo queimado parou. Meu avô abraçou-me com muita força e disse em voz sussurrada:

- Escreve de vez em quando. Tu tens muito jeito para escrever. Não te esqueças de mim, ouviste?

- Eu escrevo, avô. Juro!

A camioneta, que levava meia dúzia de passageiros ensonados, arrancou. E eu, ainda de pé, vi o meu avô embrulhado numa nuvem de fumo a acenar com a muleta. Não posso jurar, mas pareceu-me que gritava:

- David, lembra-te que a natureza é caprichosa e o nosso destino também.  

 

                                                                  António Mota

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades