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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AMANHECER DE UM LINDO DIA / Berthe Bernage
O AMANHECER DE UM LINDO DIA / Berthe Bernage

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

"A adolescência não foi criada para o prazer, mas sim para o heroísmo".

Como se impõe hoje a verdade destas palavras de Paul Claudel!

Nunca foi tão duro o primeiro contacto com a vida. Não nos admiremos, pois, que alguns dos nossos adolescentes sintam pelo absoluto esse gosto, e essa generosidade sem limites. Não os façamos voltar à mediocridade.

Isabel, flor de França num jardim familiar, fazendo coisas muito simples com uma alma muito grande, assemelha-se a todos esses adolescentes belos e heróicos de que o mundo precisará amanhã.

E mesmo agora...

É uma rapariga da França que vem até vós. A verdadeira rapariga de França, que o mundo pouco conhece.

Isabel - "Liseron" para os que a amam - aparece aos quinze anos, tão fresca como o amanhecer dum lindo dia. Quinze anos, idade maravilhosa A vossa, talvez, vós que ledes estas páginas; ou a idade que há pouco tínheis.

Quinze anos... e uma alma toda cambiantes como o céu da nossa terra que não tem a luminosidade do céu da vossa nem a palidez do céu nórdico. Móbil, caprichoso, o céu de França mostra, alternadamente, tonalidades delicadas e encantadoras, tons róseos, azuis, que velam, ao passar, algumas nuvens diáfanas, enviadas pelos nossos mares. Como ele, a alma de Isabel sorri e chora; raramente encontra a segurança.

De resto, alegrias e tristezas sucedem-se num ritmo tão rápido na sua vida de rapariga! Ama e é amada: é a felicidade. Mas a guerra despedaça o seu país, transtorna as suas esperanças, faz do rapaz a quem ama um prisioneiro: é o sofrimento.

Vós outras, raparigas portuguesas, fostes poupadas pela tormenta, mas o vosso coração comover-se-á a este evocar das nossas terríveis provações. Comover-se-á mais ainda devido à amizade tão profunda que existe entre Portugal e a França , nações latinas, nações católicas.

Sentindo-vos irmãs de Isabel, gostareis de ver o trabalho que pode operar o sofrimento numa alma, quando essa alma é grande. Isabel é só piedade e amor. Carrega de facto sobre os ombros a miséria da humanidade. És pequenina ainda", diz-lhe a irmã mais velha, mas amas toda agente. Por isso, apoiamo-nos em ti.

Talvez estas palavras resumam toda a história. Os que amam tornam-se uma força para os outros.

Desejo que seja também esta a vossa história, raparigas do lindo país amigo, vós, que tendes, como Isabel, "a idade das asas".

 

 

 

 

QUATRO horas. Toca a sineta. Um sussurro feito de frases soltas, de passos furtivos, de portas que se abrem, percorreu a grande casa toda branca entre outras iguais, dispersas na vertente da montanha sanatorial.

Nos dormitórios, nos quartos, nos terraços, todos os doentes deram por findo o seu silêncio. Tinham terminado essas horas em que, por imposição, se está calado e inerte, numa morte aparente.

E mais de um destes jovens doentes pensou, espreguiçando-se:

"É esta tarde que a Liseron deixa o Sanatório! "

Porque eles chamavam Liseron(*) à pequena

 

(*) Liseron: campainha, flor trepadeira.

 

Isabel Morlainville. Alguns murmuraram, suspirando.

- Curada. Essa é que tem sorte!

Mas muitos nem mesmo sentiam essa mágoa. Já tinham tão entranhado o hábito de ser doentes!...

Isabel, a liberta, abriu as gavetas pela última vez:

- Não esqueci nada!

Foi até à janela para tornar a ver a montanha de sombras violáceas sob o céu claro. E sentiu a ânsia de partir. Não sabia em que se ocupar, agora que já acabara o tratamento. Sentia-se cheia de vida dentro das quatro paredes daquele quarto duma alvura tão fria.

- Pode ir despedir-se dos seus amigos anunciou a enfermeira, com voz abafada. - A Odília está à sua espera cheia de impaciência. Mas não se demore muito. Enervá-la-ia.

Quando a porta estofada se abriu, a Odília, apoiando-se no esquelético braço, ergueu-se para melhor ver Liseron, já em trajo de viagem.

- É engraçado vê-la assim vestida. Não é nada feio o seu chapéu. Mas já passou de moda, sabe?... Sim, estou a par do que se usa. As revistas são devoradas pelas pobres rapariguitas, como eu, que não vêem nada, não ouvem nada, não têm nada que fazer senão pensar nas subidas e descidas do termómetro. Liseron vai sair daqui... Viver... Vai viver, minha querida! Pergunto a mim própria o que fará para realizar aquela vida intensa que quer ter. Eu, quando me curar... E deixando-se cair, desiludida e cansada:

- Nunca me curarei...

Isabel envergonhou-se da sua saúde.

- Há-de curar-se, Odília! Há três anos também eu estava assim, muito doente... Tive até grandes recaídas. E, no entanto, volto para Paris. E o médico disse quando me abraçou: "Aqui está uma que conseguimos salvar". A sua vez há-de chegar também, Odília.

- Que inocentinha, estaLiseron! - exclamou com ar irónico. Mas calou-se para não tossirQue inocentinha! Isto não tem quinze anos, tem oito... Não sabe nada... Para nos curarmos, minha querida, é preciso "querer"; repetem-nos em todos os tons, no Sanatório. E eu... tenho tão pouco interesse em me curar...

- Todavia, a Odília disse-me muitas vezes que gostava de viajar, de dançar, de ir ao teatro, ao cinema, à piscina!

- Sim. Mas em primeiro lugar, era preciso voltar para casa. E que iria eu encontrar? Nem dinheiro, nem bem-estar... apenas pessoas em permanente e azeda discussão... Está a ver, aqui estou melhor. É mais aborrecido, mas vive-se em paz. E será, de facto, assim tão aborrecido? A doença também é uma companhia.

- É verdade - murmurou Liseron. - Nunca me aborreci senão agora que me sinto boa.

- Deixe-me ver a sua carteira. É bonita!

Tem um espelhinho. Gostava de me ver... Um horror! Estes olhos inchados, estas faces encovadas, este nariz afilado... Pode dizer-me um adeus verdadeiro, Liseron. Nunca mais nos tornaremos a ver! Pronto! Lá está ela a chorar. Olhe a sua carteira. Procure o lenço, que eu não quero contaminá-lo. Enxugue esses lindos olhos azuis. Não se chora no Sanatório, minha querida; faz parte das coisas proibidas.

- Então não seja assim pessimista, Odília.

- Prometido! Conte-me, então, como é a sua casa em Paris. Imaginar a felicidade dos outros não me faz inveja: acredito tanto nela como num conto de fadas.

Houve um silencio. A Odília assustou-se.

- Vamos, Liseron, comece: "Era uma vez uma burguesinha chamada Isabel Morlainville, um nome muito pesado para ela. Por isso, no Sanatório, chamavam-lhe Liseron. E o nome ficava-lhe realmente muito bem: alta e delgada, bochechinhas cor-de-rosa pálido: há campainhas cor-de-rosa; olhos azuis: há campainhas azuis; o cabelo negro e brilhante como uma baga de hera e todo em caracóis. A boca um bocadinho aberta, o que lhe dava um ar simples e encantador ao mesmo tempo". Continue... A falar desta maneira começo já a tossir.

Isabel procura as palavras exactas.

- É difícil, sabe, explicar estas coisas... A casa... é a casa. E aqui tem.

- E aqui tem - repetiu irónica. - Que bebé! Fale então dessa casa surpreendente.

- Nunca disse que ela era surpreendente; nada há de muito bonito em nossa casa. Mas acho-a tão agradável! Eu digo a casa, mas é apenas a parte de um andar. As janelas deitam para um jardim, um jardim verdadeiro, com árvores, erva, passarinhos... E o pôr do Sol!

- E nunca há neve? Já estou tão cansada de todo este branco!

- Nunca conheci outra casa - continuou Isabel.- O meu pai já lá morava antes da morte de minha mãe. Tenho um quarto bonito, só para mim.

- Feliz criatura! Eu dormia na sala, e sentia-me sempre a "rapariguinha a mais". E depois, aquele cheiro a tabaco, brr!...

- Eu gosto muito do meu quarto. As cortinas são de cassa cor-de-rosa com florinhas. E tenho lá uma secretária, uma secretàriazinha.

- Onde Liseron escreverá magníficos versos.

- Trocista... Em casa ninguém sabe que faço versos. E não me parece que eu o vá dizer agora. No entanto, lá em casa, toda a gente é tão boa, tão delicada!

- Mesmo a sua madrasta? Como a trata? Por mãezinha?

- Sim, digo como os outros; quando penso na minha mãe verdadeira, digo "Mãezinha Colette". Mas a mulher do meu pai é tão boa para mim, como para as minhas irmãs mais velhas e para

o meu irmãozito pequeno. É tão bonita! Parece irmã da Teresa e da Estefânia.

- Que são filhas dela, mas não do seu pai. Que complicação de família... Dessas irmãs, que não são suas irmãs, de qual gosta mais?

- Não faço ideia. A Estefânia é mais bonita, mais alegre; mas com a Teresa está-se mais à vontade.

- E o mano - o seu verdadeiro irmão - é outra maravilha?

- O João-Lucas? Oh! Um amor; irritadiço, autoritário, mas tão engraçado! Quando o deixei tinha sete anos: vou encontrar um rapazinho de dez! Creia que estou contentíssima por ir tornar a vê-lo. Parece-se muito com a mãe e com a Estefânia: muito louro, de grandes olhos pretos e uma pele muito rosada.

- Realmente é uma sorte ter uma família tão simpática. Quanto ao seu pai... os seus olhos são iguais aos dele... e adora-o, eu sei.

- Sim... No entanto, intimida-me. Parece frio, fala muito pouco. Mas não calcula como é terno, quando quer. Às vezes trepava-lhe para os joelhos. Acariciava-me os caracóis, enrolava-os assim na ponta dos dedos, e falava numa voz... numa voz diferente da de todos os dias, e dizia coisas que parecia virem de alguém que não era ele. Muitas vezes me lembrei disto, aqui, durante as horas de repouso. E via -como hei-de explicar? - dois pais diferentes: um, um senhor, igual a todos os senhores, um pouco curvado, nem sempre de bom humor, a ler o jornal, a ir para o Ministério... E outro, uma espécie de herói de romance, um tanto misterioso, com um olhar cheio de sonho...

A Odília parecia ter adormecido. Com medo de a fatigar, Isabel levantou-se suavemente, mas ela abriu os olhos, rasos de lágrimas.

- Eu sou uma estúpida! Mas estou a pensar que se tivesse um pai assim à minha espera, até teria vontade de me curar. Ah! Lá vem a enfermeira mandá-la embora. Diga-me adeus, Liseron, linda Liseron pequenina, completamente curada. Não, não choro. Estou a rir. Boa viagem! Esta tarde ouvirei o ruído do seu comboio atravessando o vale...

E a Isabel saiu, recuando, para fixar por mais tempo a visão desse quartinho, exactamente igual, na sua nudez branca, àquele em que ela viveu dos doze aos quinze anos, e reter a imagem daquele rosto triangular sob a franja de cabelo liso.

Os doentes não gostavam da Odília: era muito trocista. Mas Liseron pressentia tanta tristeza por detrás daquelas palavras azedas! Gostava da Odília. Tinha pena dela.

Fez mais visitas. E ouvia sempre:

- Adeus, Liseron.

E, por fim, timidamente, entrou no quarto de Pedro Jacquelin.

Pedro Jacquelin. Um tuberculoso no último grau, ele a quem viam tão alegre, a passear na Tristeza do adeus... Mas para atenuar esta agonia havia uma alegre compensação. voltar para casa.

Deixou que a senhora de olhar duro a envolvesse numa manta - cuidadosa mas não docemente - e a convidasse a dormir. Dormir? Não. A noite caía demasiado lenta para poder extinguir a felicidade deste interminável dia. E o coração da criança quedava-se, hesitante, entre a saudade e a esperança. Pedro, Odília, as enfermeiras, o médico, o silêncio, toda aquela brancura. Mas, além, os pais, o irmão, as irmãs, o quarto com as cortinas de florinhas frescas, o jardim cheio de verdura.

E depois Marieta.

Sentia um estranho bem-estar ao pensar em Marieta, a velha criada que, depois de ter ajudado a criar a Mãe, a vira nascer, e tão inteligentemente a tratara. Sem a Marieta, ter-se-iam apercebido que Isabel não ficara boa depois da coqueluche? Sem a Marieta ter-se-ia feito aquela radiografia, e mandado Isabel, a tempo, para a montanha?

A Marieta, que mal sabia ler, sabia muitas coisas e, sobretudo, sabia ler nas almas. Quando a observava através dos seus òcoluzinhos de aros de metal, a criança sentia-se intimidada:

- Acaba lá com isso, Marieta; assim, não me deixas pensar.

Então a Marieta ria-se baixinho. Metia na algibeira os indiscretos óculos, e piscava os olhitos castanhos. E já não havia senão alegria junto dela.

Aquelas mãos, gastas pelo trabalho, onde brilhava o anel de "viúva de guerra", nunca magoaram quando vestiam ou quando tratavam. . Nunca aqueles lábios gretados pronunciaram uma palavra menos franca. Nunca tinha um sorriso trocista entre as rugas. Não mentia às crianças, nem para ralhar, nem para brincar. Marieta era a encarnação do bom senso e da paz.

De olhos fechados, escondendo o pensamento, Isabel assistia ao desenrolar desse filme interior, que a imaginação projecta antes do sono vir...

Quantos rostos desfilaram um a um Rostos que não voltarão a ver-se: Pedro, semblante marcado pela doença e pela meditação; Odília, rosto comprido, sorriso irónico e olhos tristes; os outros companheiros do Sanatório, quase curados uns, quase mortos outros...

E rostos que breve voltaria a ver: a Mãe, linda e loira, na pujança da vida; o pai, já grisalho, com um rosto que seria apático se não fora a expressão do olhar; Teresa, redondinha e fresca; Estefânia, o último figurino; João-Lucas, um querubim cor-de-rosa; Marieta, feia, amarela e serena.

Tantos corpos, tantas almas! E, contudo, Isabel sente-se só; durante algumas horas o combóio será a sua casa.

Por fim, adormeceu embalada pelas recordações.

Vigiava-a um olhar fixo e duro. E só então a mãe da "outra" - bom coração, apesar de tudo - deixou correr as lágrimas, há tanto recalcadas.

- Denise, minha pobre Denise!

Antigamente, a casa seria assim.

CHEGÁMOS a Paris, - disse a senhora triste, pondo a mão no pulso de Isabel, para a acordar.

Que mão tão fria! E como está envelhecido o rosto que se inclina de olhos vermelhos de tanto chorar! Isabel viu muitas mães a chorar ao deixarem, sozinhas, o Sanatório donde esperavam levar um filho. E compreende-a sem ousar falar. Está escrito no seu olhar. Mas Denise tem também olhos azuis, e poderia levantá-los assim, luminosos, no momento em que regressasse à vida. Por isso o terno olhar despedaça mais ainda aquele coração de mãe. E a senhora triste anseia por estar só, longe da jovem ressuscitada.

Agora Isabel sente-se comovida, embaraçada. As casas que se avistam do comboio, antes de entrar na estação, são altas, sujas, cheias de horríveis cartazes. A estação... Quem estará por detrás da grade, a acolhê-la? A esta hora, o Pai está no Ministério, João Lucas no liceu, Teresa no Banco. Talvez a Mãezinha tenha vindo com a Estefânia, que é desenhadora de modas e pode fazer o trabalho quando lhe convém.

Guiada, sem solicitude, pela senhora triste, caminha entre aquela multidão que espera os que chegam de grandes viagens. Procura as cabeças louras. Nada... Nem a linda Mãezinha, nem a bonita Irmã sorrindo a Isabel. Meu Deus, ter-se-iam esquecido da sua chegada? E a senhora triste tem tanta pressa de a deixar! Isabel inquieta-se, o barulho da estação entontece-a, depois destes anos de silêncio. Que há-de fazer? Mas eis que dois braços a envolvem:

- Minha pequenina! Meu amor! Não a reconhecia! Está tão alta e tão bonita!

- Marieta!

Sempre a mesma, com muitas rugas, com uns olhos pequeninos, castanhos, por detrás dos óculos de aro prateado, muito mal penteada; com o seu horrível e famoso chapéu enfeitado com uvas pretas, que comprou há quatro anos para a primeira comunhão de Isabel.

- É Marieta, a minha criada - disse Isabel à senhora triste.

E esta pensa imediatamente: "Se a minha filha voltasse do Sanatório, não cederia o meu lugar à criada".

Mas não podia adivinhar o que é a Marieta. E de resto, é melhor estar com ela do que com a Mãe que não sabe desembaraçar-se numa estação, enquanto que a Marieta sabe o que há-de fazer. Para salvar a "honra da família", Marieta explica:

- A senhora estava cansada. E o senhor e as meninas tinham as suas ocupações. - Como está bonita, Isabel! E grande! Daqui a pouco está maior do que eu.

Duas lágrimas rebeldes - lágrimas de quem não costuma chorar - embaciam-lhe as lunetas e deslizam-lhe pelas faces enrugadas. Mas não esquece o seu dever. Encontra depressa a bagagem, distribui ponderadamente as gorgetas, chama um "taxi". Partem.

- Como o ar cheira mal, em Paris. Asfixia-se, Marieta. E como as pessoas andam depressa!

No automóvel, Marieta tem o porte duma senhora, e é-o de facto na alma. Dá notícias de casa a Isabel. Trata-a ora por tu, ora por menina, ao acaso. A senhora Morlainville não gosta muito daquele tratamento, mas Marieta não consegue evitá-lo. E a Isabel, por seu lado, também diz "tu": é delicioso.

- Compreendes, Marieta, há três anos que não trato ninguém por "tu".

O seu coração está de novo à vontade. Na bruma azul daquela manhã de Maio, Isabel reconhece o "seu Paris", mas parece-lhe mais pequeno, acanhado. O Sena corre lento e turvo, e ela lembra-se da dança deslumbrante das torrentes precipitando-se do alto da montanha.

Durante muito tempo seguiram ao longo do cais; e das tílias em flor desprendia-se, enfim, um perfume doce e fresco. Mas que céu pálido, que ruas estreitas, que horizontes mesquinhos!

Marieta, intuitiva, inquieta-se com o silêncio pensativo da "sua menina" e tenta fazê-la voltar à infância:

- Sabes, amor, fiz o meu bolo de amêndoas, cor-de-rosa. É para ti.

E, incansável, repete:

- Para ti. Para ti.

Nunca teve outro filho a alimentar, a vestir, a tratar, a amar, senão esta e a mãe. A morte levou a mãe. Mas Marieta soube arrancar-lhe, a tempo, a pequenina que a doença já minava. E o velho coração palpitava com mais força na alegria de ver Isabel tão bonita. Salvara-se esta, ao menos! Contempla-lhe o lindo perfil e inquieta-se mais:

- É preciso fechar bem a boca, Isabel. A gente constipa-se, de boca aberta. Lá não te ensinaram isto? Reconheces o teu bairro de Passy?

- Nem por isso. Há prédios novos. As lojas estão diferentes...

- Mas em nossa casa nada mudou.

- Há melros no jardim. O João-Lucas continua muito engraçado?

- João-Lucas Até demais - responde a Marieta de súbito rabugenta. - Ah! Os rapazes! É preciso saberes defender-te. Porque a Senhora e as tuas Irmãs enchem-no de mimos. Eu, coisas injustas, não as admito.

Que grandes palavras... defender-se... coisas injustas... Isabel acha o discurso muito fatigante, e resmunga:

- Não armes em dragão. Beija-me outra vez enquanto estamos só as duas. Gosto muito de ti, Marieta. Se soubesses como chorei a primeira vez que uma enfermeira me tratou! Queria que fosses tu!

E soube-lhe bem a áspera doçura do beijo daqueles lábios gretados e humildes que repetiam, tentando ralhar:

- Bem sabia que tu não foste muito obediente!

No corrimão da escada - que lhe parecia mais estreita que há três anos - debruçavam-se duas cabeças louras.

- Mãezinha! Fani!

Desta vez, foram lábios duma doçura perfumada que a beijaram, frescamente, nas faces.

- Estavas cansada, Mãezinha?

- Sim, uma pequena dor de cabeça. De resto, a Marieta morria de desejo por ir esperar-te. Deixa ver se estás bonita, minha querida. Um amor! Bem dizia o teu pai, da última vez que te foi ver, que tinhas mudado muito. Ninguém dirá que só tens catorze anos.

- Quinze, Mãezinha! João-Lucas tem dez, a Teresa vinte e um e a Fani vinte.

- Oh! Não vale a pena apregoar a idade das mais velhas. Entra depressa. Deves estar muito cansada e cheia de fome. E tens a ponta do nariz toda suja.

- Vou-me embora - diz Fani. - Tenho de ir esta manhã aos Campos Elísios, mostrar os meus desenhos. Até logo, minha jóia. Pareces espantada? Não reconheces a casa?

- Sim, Fani; mas... é curioso, tinha a impressão de que tudo era maior.

Isabel toma banho, saboreia um delicioso chocolate caseiro, ouve a madrasta, que toma, para lhe falar, um tom que agradaria a uma criança muito pequena: esquece ela então os seus quinze anos? Esta alegria pueril cansa-a um pouco, a ela que vem das mãos graves do silêncio.

- Enquanto espero que eles cheguem, posso ir ao meu quarto desfazer as malas?

- Escuta... A Marieta trata disso. E depois, não sei se o teu quarto já está arranjado. Tu vais compreender: és tão razoável.

Razoável? O amigo Pedro julgava-a fantasista e um pouco exagerada... Isabel sente o frio desta palavra "razoável".

- Durante a tua ausência - foram três anos, Isabel! - o teu irmão cresceu. Quando voltava da escola precisava dum sítio, tranquilo, onde pudesse estudar. Instalámo-lo no teu quarto, que é tão agradável, e, como é natural, não lhe agrada a ideia de o deixar. Vai ver se já tirou de lá as suas coisas. Não podemos forçá-lo; ficaria furioso. Mas, por bem, obtém-se tudo daquele rapaz.

Isabel não ouve mais. Já correu para o seu quarto, admira-se ao sentir o puxador da porta mais pequeno do que era. Lá dentro há ainda a alegre cassa com flores, mas um "Mecano" estende as suas asas de aço, por cima do fogão da sala. Lá está a secretária, a elegante secretàriazinha de pau-rosa, agora carregada de pesados livros...

Há três anos que a obediência disciplinava a pequena independente. Mas o fundo continua violento. O desgosto sobe, ferve. João-Lucas instalado no seu quarto e recusando-se a abandoná-lo... A sua brutalidade de rapaz a estragar tudo... O jarrão da China tem uma falha e o pano verde da secretária uma estrela de tinta.

Oh! Este quarto que deita para o jardim donde se aspira um perfume de verdura e de flores, donde se ouve o cantar dos passarinhos! É a sua casa! "Defende-te"-dissera-lhe a Marieta.

Vai ter com aquela Mãe, que não é a sua Mãe, e encontra-a pondo um lindo chapéu sobre os cabelos sempre tão bem penteados.

- Não fez a mudança? Insuportável rapaz! Minha querida, é impossível ocupar-me agora disso. Tenho inúmeras voltas a dar antes de ir buscar o João-Lucas ao liceu. Peço-te uma coisa: não lhe toques no "Mecano". Tudo isto me contraria imenso; mas deixa lá! A Marieta tratará de tudo. Arranjámos-lhe um quartinho; mas não gostou dele. Que complicação de vida!

Isabel percorreu a casa, divisão por divisão: o quarto dos Pais, onde João-Lucas dormia; o quarto das Irmãs de divãs iguais e muito modernizado durante a sua ausência ; a sala de visitas, a sala de jantar. No quarto de Marieta não entrou. Na realidade, faltava um quarto. É verdade que o João-Lucas já não se podia encaixar entre o guarda-fato e a cómoda, na sua cama de bebé. Lá isso é inegável. Na ausência de Isabel, tinham-lhe ocupado o lugar. Era de admirar?

Não. Mas lembrou-se de Odília, "a rapariguinha a mais", na sala que cheirava a tabaco - Ter-se-ia tornado, também, "a rapariguinha a mais? Deveria dormir na sala de jantar, tão triste e tão fria? Se assim acontecesse, tornar-se-ia estúpida.

Entrou, então, na cozinha, onde a Marieta debulhava ervilhas. Passou-lhe os braços em volta do pescoço e deixou-se estar assim por momentos. Marieta nada disse, porque conhecia a miséria das palavras que querem consolar; embalou-a enternecidamente. E quando, por fim, a Isabel se desprendeu, disse:

- Fiz tudo para o impedir. O senhor também não queria. Mas mimam-no muito, e o teu quarto agradava-lhe...

- E fica com ele?

- Claro que não! Em que estás a pensar, minha linda? Não tive coragem de lhe tirar de lá nem os livros nem a mecânica, mas o resto já se foi embora. Tu dormirás esta noite no teu quarto. - E onde o metem? Na sala de jantar? Ou na de visitas?

- Era o que faltava, para ele estragar tudo. Então não viste? Eu dei-lhe o meu quarto.

- E tu, Marieta? Isso não é possível!

- Eu Arranjei um quarto no sexto andar... só para dormir, serve muito bem. Contanto que vocês se sintam felizes...

O sexto andar... Isabel pensa como a Marieta vai sentir frio no Inverno; calor no Verão; que não terá onde pendurar as suas fotografias.

- Como tu és nossa amiga!

- De quem havia eu de o ser - respondeu Marieta, com toda a simplicidade.

E foi pôr as ervilhas na caçarola.

Isabel ficou junto dela, sem falar. Tinham dito tudo. E Marieta nunca falava inutilmente.

Pouco depois ouviu-se um ruído na fechadura, e um tilintar característico de chaves que já havia esquecido: era o Pai. Correu. Vendo-a tão alta, tão fresca, pareceu-lhe a ressurreição da sua primeira mulher, aquela Colette que ele desposara sem alegria, para se casar como toda a gente, enquanto continuava inconsolável, porque a Jeanine que ele adorava preferira outro. Com o coração endurecido pelo desgosto, não conseguira fazê-la feliz. E ela morrera deixando-lhe esta filha. E João casou com Jeanine, também viúva e com duas filhas. Era feliz, agora ou desiludira-o aquilo que pensara ser a felicidade? Que rugas tristes naquele rosto! Mas nesse momento um sorriso afogou-as na alegria:

- Isabel! Minha filhinha grande... Levou-a suavemente para junto da janela, e,

em plena claridade, viu, assombrado, que encontrava uma rapariga quando esperava uma criança.

- Oh! Paizinho, ainda sou uma petizinha! Não quero envelhecer. Quero ficar como estou.

Quereria acrescentar: "Ser a tua filha pequenina". Não ousou, por causa dos anos que haviam quebrado o à-vontade entre os dois. Por causa daquelas rugas tristes, ao longo das faces e na fronte, que a intimidavam.

De repente, caiu sobre ela um furacão: JoãoLucas, saltitante, garoto. Sempre bonito, mas já não se parecia com aquele anjo papudo de que Isabel se lembrava: um homenzinho. Abraçou-a, deu-lhe a mão e fê-la rodopiar; garantiu-lhe que iriam divertir-se loucamente os dois.

- Sem dúvida, este irmãozito encantador lhe devolveria o quarto...

E chegaram, em seguida, as irmãs. Decididamente Teresa não era bonita, apesar do brilho dos olhos cor de folhas secas e da frescura da pele: um pouco rechonchuda, sem chic. Mas que amabilidade simples, pronta a fazer perguntas oportunas, a dizer palavras que tranquilizam um pequenino coração desorientado!

Oh! Como estava desorientado! O ar era frio, o Sol pálido, até a água que se bebia era insípida. Os Pais pareciam esforçar-se por estar alegres. Falava-se de gente desconhecida.

João-Lucas, que decidira ligar a telefonia, procurou as emissões estrangeiras, mas nada mais conseguiu que um barulho horrível que dava estupidamente vontade de chorar, e comeu-se o delicado bolo de amêndoa ao som de uma música de circo.

Isabel não podia suportar mais aquele ambiente e sentiu acordar em si toda a tristeza que pode conhecer uma criança que viveu só e doente. Olhou para o Pai. Ele compreendeu-a, e, asperamente, ordenou a João-Lucas que desligasse o aparelho.

- Ai! ai! ai! - murmurou o rapaz - já nem sequer se pode ouvir rádio...

Agora era assim, a sua antiga casa?

 

DESPERTAR cor-de-rosa... As pálpebras batem e a alma hesita em cada manhã. Durante três anos o despertar foi branco. Uma paz fria. Sem sonho. Aqui há sonho. Sonho ardente.

João-Lucas entregou o quarto de muito má vontade:

- Então, é tudo para as raparigas?

E chama ao quartinho, onde Marieta se sentia tão bem, "o meu ninho de ratos". Mas a família não cedeu. Isabel, pobre coisinha frágil, precisa ter um quarto só dela para repousar e estudar. Foram todos muito gentis; somente, no fundo, a Mãe e as Irmãs estavam desoladas por contrariar o menino mimado, e Isabel pôde dizer consigo:

- O meu lugar estava ocupado...

Odilia prevenira-a: "Minha querida, quando voltamos do Sanatório, sentimo-nos "a mais".

Todos os que têm ido passar algum tempo com a família sentem esta desagradável impressão". Como se preenche depressa o vazio deixado por alguém que parte! Por morte é pior ainda: deitam outro doente na cama que lhe pertenceu, e não se fala mais dele. É estranha a vida!

A vida! A vida!... O mundo mudou a tal ponto, em três anos Não se consegue reconhecê-lo. Está tudo pequeno e acanhado. Asfixia-se um pouco. Já não existe aquela tranquilidade, aquela certeza do amanhã, que se sentia antigamente, em casa. É uma viagem de descobertas. Far-se-ão descobertas até se ser muito velho, ou chegar-se-á um dia a atingir a sabedoria? A Marieta parece saber tudo sem hesitações. Mas é a mais velha da casa.

Agora Isabel pensa no Pai. Também é bastante velho. Já deve ter uns quarenta e oito anos: quase meio século, é espantoso! No entanto, ainda não acabou a sua viagem de descobertas. Não, ele procura ainda, hesita, experimenta os caminhos. Isabel gostaria de o conduzir pela mão, mas ela também não os conhece. E, além disso, que loucura seria uma rapariguinha guiar os passos dum homem! De repente achou-se estúpida. Ri.

Há a Mãezinha. Oh! Esta -que nunca diz a idade - não atingiu mesmo nada a sabedoria. É linda, e isso basta-lhe.

A Marieta, tão feia - uma figura de cão fiel procurou e encontrou, sozinha, o caminho.

O Paizinho, um chefe de família, tem obrigação de procurar a estrada por onde conduzirá os outros. Mas a Mãezinha, alta, roliça, branca, loura, com uns grandes olhos, um sorriso lindo, não tem necessidade de "saber". Talvez nunca venha a saber mais do que actualmente.

A Teresa? A Teresa não procura. Crê que se caminha, assim, sempre a direito, e que os dias se sucedem, lindos, claros, tranquilos. Junto dela repousa-se. Mas talvez que a vida, qualquer manhã, a conduza pela mão.

E a Estefânia, de unhas esmaltadas? Sabe muito mais. Demasiado. Nada a espanta. Vê sempre o fim às coisas, e passa-lhe um risinho seco pelos lábios, sempre pintados. Mas Liseron não quer seguir o caminho da Fani: faltam-lhe sombras e também as curvas que despertam a vontade de ir mais longe, sempre mais longe.

E aí está. É tudo.

João-Lucas? É muito pequeno, ainda. Um selvagenzinho. Escolherá o caminho amplo e ao acaso, onde passeia a sua Mãe? O lindo caminho árido da Fani, O caminho simples da Teresa, à sombra das macieiras? O mato misterioso do Pai?

São engraçadas as pessoas. Não se parecem nada umas com as outras. Todavia, aqui as aparências são semelhantes. Nos salões, todas as mulheres adoptam a mesma moda, a mesma voz, as mesmas palavras. No Sanatório, cada um parecia-se consigo próprio e não com os outros.

Com quem se parece Liseron, a quem já ninguém chama Liseron?

Repete três, quatro vezes, o nome encantador que lhe davam lá longe. Liseron... Aqui é Isabel Morlainville. Um nome comprido, muito pesado, grande demais para ela, que não tem forma precisa, nem peso, que nem sequer sabe a cor da sua alma. Uma Campainha.

Quando se casar, dirá ao marido:

- Chama-me Liseron. Será o seu Liseron.

Então, pensa em Pedro. Casar-se-á com ele, mais tarde? Oh! Muito mais tarde. Quando ele estiver curado e Liseron for uma senhora. Agradaria ao Pai. Mas acharia Liseron digna de si, ele, tão sensato e ao mesmo tempo um sábio, um herói de romance, um santo E Liseron uma tontinha. Sobretudo agora.

De regresso a Paris, a princípio aborreceu-se. Agora diverte-se. Mas no fundo, naquele fundo que ninguém conhece, continua melancólica, Porque as coisas, vistas de perto, nunca são tão belas como se pensou. E porque as pessoas, mesmo as que parecem felizes, têm uma tragédia interior, Liseron começa a aperceber-se de que à felicidade falta sempre alguma coisa. Ninguém lho disse: descobriu-o. De resto, o que se diz às crianças? Palavras. Mas não a verdade da vida, a verdade por inteiro, a verdade impressionante. E os livros também mascaram sempre a verdade com palavras. Então, onde se há-de aprender a viver?

Mas aqui está Marieta e as torradas com manteiga - Marieta e o bom senso.

- Tens colégio, hoje, Isabel. Sabes as lições?

- As lições?... Palavra que não. Minha pobre Marieta, em vez de fazeres esses olhos, raciocina: achas engraçado ir para as aulas, nesta época do ano? Não aprendi o princípio de nenhum livro, engano-me sempre, mesmo que me farte de estudar. Pareço burra: achas isso divertido? De resto, detesto aquele colégio, as paredes são cor de chocolate, a Directora tem um carrapito no alto da cabeça, manias e uma voz agreste. Para o ano, talvez estude. Este ano... Ah! Está um tempo tão bonito... Deixa-me olhar para os jardins.

Na sua experiência, a Marieta dissera consigo, mais de uma vez, que as lições particulares poriam a par das outras, mais depressa, a pequena inteligência hesitante. Mas como se atreveria a dar uma ideia pedagógica, ela, que mal sabe ler? Calara-se.

E Isabel, revoltada contra os professores, as companheiras, a decoração do colégio, torna-se preguiçosa. E nada há de pior, nesta idade, pensa a velha criada, em que se tem de aprender e formar a vontade.

- Não fiques na cama - aconselha-a-, não é bom. Assim que tomares o pequeno almoço, levanta-te.

Isabel espreguiça-se e suspira. No Sanatório o dever era repousar; aqui é fatigar-se: que complicações! Mas, apesar de tudo, a Marieta tinha razão: aproxima-se a hora de entrar no colégio. Com o livro sobre a bandeja percorre a história grega, sem nada compreender: os Lacedemónios, os Atenienses, os Beócios; quem será esta gente toda? A geometria: um quebra-cabeças.

Em tudo o grande silêncio branco do Sanatório pôs uma neve de ignorância e esquecimento.

Em tudo? Não, nem em tudo. Pedro estudou com ela a literatura e o latim. E, além disso, a imaginação e o pensamento germinaram enquanto o resto dormia. E esses ramos primaveris, cheios de seiva, estão prontos a florir dentre a aridez dos troncos despidos.

É uma criança ou uma mulher? Tem um espírito inculto ou fértil? Um coração generoso ou egoísta? Quem saberá responder? -Ela não, certamente. E a Marieta, intuitiva, inquieta-se:

- É muito difícil, este regressar à vida... Ninguém repara que a criança pensa demais.

No colégio, é tida como estúpida - um pouco selvagem. As companheiras segredam-se:

- A Isabel Morlainville esteve doente. Três anos na montanha.

E afastam-se um pouco, como se nela existissem ainda bacilos. Todavia está sã e cheia de vida.

A sua alma tem fome! Fome de verdade e de amor. Uma fome demasiado intensa para a sua idade. Fome de que ninguém se apercebe.

Tem o aspecto de uma rapariga de quinze anos, correcta, bem educada, sossegada, enquanto que o passado e o futuro a atraem e que procura, apaixonadamente, compreender o presente.

Em casa está quase sempre só. A Senhora Morlainville sai muito, ocupa-se da sua vida elegante. As Irmãs trabalham e dançam. João-Lucas, sempre descontente com o ninho de ratos", anda fora de casa o mais que pode.

Isabel está só, muito só.

Mas não é naquela solidão calma, que conheceu no Sanatório, e que refrescava a febre. É uma solidão ardente, em que a alma se exalta e se estende mais e mais, sem que ninguém disso se aperceba.

A Marieta adivinha-o. E não se cansa de pensar, à noite, metida na sua mansarda. Mas Marieta tudo o que tem é intuitivo, não tem cultura para dirigir Isabel e comunicar-lhe a sua serenidade transbordante.

Em vez de resolver problemas de geometria, Liseron faz versos como fazia na montanha, orientada por Pedro, que se entretivera a ensinar-lhe as principais regras da versificação. Mas, Pedro, guia severo, propunha os temas a desenvolver, e aqui escolhe-os ela própria.

Escolher aos quinze anos? -Não se sabe. Escrevia, ao acaso, versos desastrados, mas onde, aqui e além, uma palavra nova, verdadeira, brotava da sua juventude. Então julgava-se poetisa. Sê-lo-ia, na verdade?

Mas que desgraça, se os "outros" lessem aquilo!

Um dia, ao esconder, na mais funda das gavetas da sua secretária, certo soneto coxo, mas encantador, teve a surpresa de sentir uma mola sobre os dedos.

E foi uma daquelas comoventes revelações que, às vezes, os vivos recebem da alma dos mortos há tanto silenciosa. Num escaninho secreto "alguém"... mas quem?... alguém escondera umas folhas de papel. E depois, os anos passaram. Quantos? Muitos seriam, certamente, para que tivessem esse cheiro a velho e a tinta tão desmaiada.

Isabel leu dum fôlego, apaixonadamente, da primeira à última linha, porque uma alma se lhe revelava em toda a sua nudez, e essa alma era a de Colette Morlainville, a sua verdadeira Mãe.

E que dizia Colette Morlainville? Alguma coisa de terrível, sempre a mesma, com tonalidades diferentes. Falava de João, seu marido.

"João não me ama. Não sou feliz".

Na última folha acrescentava:

"Sei tudo, agora. Ele amou a Jeanine. Casou-se comigo, cinco anos depois do casamento de Jeanine com o Sr. Berger. Mas amava-a ainda. Amá-la-á sempre! Eu não sou feia, mas Jeanine é tão bonita! Acha-me triste, cansada, insignificnate, aborreço-o. Oh! Se não fosse a minha pequenina Isabel, deixar-me-ia morrer".

E morrera. Assim. Sem amor. Sem felicidade. E, logo que pôde, João casava com Jeanine, então já viúva também. Aquela linda Jeanine que ele amava.

Isabel, com o coração a bater desordenado, indignava-se, na sua intransigência de jovem: Colette morrera de desgosto, deixando o seu lugar a Jeanine.

E o primeiro marido de Jeanine, o pai de Teresa e de Estefânia, teria sido feliz? Seria bonito? Inteligente? Mais elegante do que João Morlainville?

Quantas perguntas, de cujas respostas depende, de hoje em diante, a sua tranquilidade!...

Então pode-se amar, e depois esquecer, como Jeanine? Pode-se amar e depois desposar outra mulher, como João? Pode-se amar e morrer de amor, como morrera a pobre Colette?

Noutro papel, leu:

"Para a Isabel. Para a minha pequenina de olhos azuis. Deixo-te o teu Pai. Ama-o sempre, aconteça o que acontecer. Torna-o feliz!"

Isabel empalidecera. De repente sentiu que envelhecia muitos anos. Olhou para o espelho e admirou-se de ver reflectida uma criança de vestidos ainda curtos. Tomada pelo hábito, que adquirira no Sanatório, fez saltar as pantufas e estendeu-se na cama. Seria preguiça? - Não.

Era a necessidade de dilatação dos membros e do pensamento.

Precisava de pensar. Duramente. Longamente. Na mão apertava, com força, aqueles papéis reveladores que cheiravam a bafio.

Mais uma vez, para ela, o mundo mudava de aspecto.

De regresso a Paris, admirara-se da banalidade das pessoas, O Pai muito frio, a Mãe ou melhor, Jeanine - muito mundana. Pois bem: Eram falsas essas aparências! O correcto funcionário, a mulher chic, escondiam, cada um, uma alma.

João esperara, pelo menos, dez anos, a sua Jeanine. Que grande amor!

E Jeanine, de quem gostaria mais, de João ou do Sr. Berger? Tinha obrigação de o adorar, esse João que tanto tempo a esperou!

Não, não o adorava. Havia qualquer coisa entre os dois. Muitas vezes Jeanine falava secamente a João. Chegava a troçar dele.

Dias antes, chamara-lhe "manga de alpaca",

e João, movendo a mão, num gesto cansado - aquela mão de gestos expressivos – parecera responder: "Estou habituado aos seus desdéns".

"Manga de alpaca"...

O Sr. Berger era advogado, um brilhante advogado, de quem as filhas se orgulhavam. Mas, a Fani, que pensava muito no dinheiro, dissera:

- Muito honroso! Só é pena que nada deixasse atrás de si.

Depois... Depois, Jeanine viúva com duas filhas, teria casado com João só para refazer a sua situação financeira Talvez nem mesmo lhe tivesse amor algum. Que miséria, meu Deus, que miséria!

Colette, a amar João que a não ama, João a amar Jeanine que o não ama. E tudo isto é a vida", como dizia a Odília? Ah! Antes o Sanatório, tão calmo, tão puro, tão branco. E até mesmo a morte!

Alguém bate levemente à porta.

- Sou eu, a Marieta. Posso entrar? Não te ouvia, estás doente?

Inquieta-se ao vêla na cama.

- Marieta, sinto-me mal.

- Que te dói, minha jóia? Diz à tua velha Marieta. Dói-te a cabeça, o estômago? Não tossiste, ao menos? Mostra-me o lenço.

Mas foram papéis o que ela arrancou à mão crispada.

Embaciaram-se-lhe as lunetas.

- Oh Minha pequenina, encontrou-os? Tive tanto medo disso, quando o João-Lucas se apoderou da secretária. Eu sabia que ela guardara lá os seus pobres papéis. Cheguei a esconder a chave da última gaveta, e ele muitas vezes ma pediu. Mas eu disse sempre que se perdera. Isabel, isto fez-lhe mal... O que leu?

- A história de ambos. Uma história tão triste! Conhece-la?

- Conheço, porque os vi viver. Mas são segredos dos três: do Senhor, da Senhora e da Mãezinha. Pensava dizer-lhe mais tarde, muito mais tarde, que na secretária existiam coisas sagradas. Se eu tivesse morrido, encontraria um papelinho muito bem dobrado, que tenho dentro da certidão do meu casamento. Nele se explica onde as havias de encontrar. Pedi há muito tempo a um padre que mo escrevesse, pois eu não sei escrever. Mas, afinal, já os leu, e cedo demais os leu. Nunca mais lhes toque, com as suas mãozitas de criança. Esqueça...

- Esquecer, Marieta? És tu quem diz isso? Nada se esquece. E tu sabes isso bem.

- Nada se esquece -repetiu a mulher, lentamente, olhando um campo de batalha- Nada se esquece...

- Então porque falas em esquecimento? De resto, tenho o dever de não esquecer. Conheces o papelinho que a Mãezinha escreveu, de propósito, para mim?

- Não conheço coisa alguma. Não me dizia respeito. E eu não sei ler a letra das pessoas. Não me contes. Prefiro ignorar.

- Tens razão, como sempre. Mas podes, ao menos, ouvir o que a Mãezinha me diz, a mim: "Para Isabel. Para a minha pequenina de olhos azuis. Deixo-te o teu Pai. Ama-o sempre, aconteça o que acontecer. Torna feliz o teu Pai". Choras, Marieta. Porquê?

- Por ela. Por ele. Por si, tão pequenina para conhecer estas coisas. Não fale mais. Não me faça mais perguntas. Não quero trair a confiança dos seus pais, nem dum nem doutro. Ame o seu Pai como lhe recomenda a sua Mãe, a pobre criança!

- Porque teria ela escrito: "Aconteça o que acontecer?

- Porque... porque... um homem viúvo é sempre infeliz. Mas vê, voltou a casar. Tem um filho, um lindo rapaz. Triunfou na sua carreira, É um homem que todos estimam.

- Marieta, o Pai é feliz?

- Cala-te - disse gravemente a criada, voltando a tratá-la por tu. - E cala também o teu espírito. Arruma tudo isso. Vem comigo dar um passeio.

 

APROXIMAVA-SE o dia de S. João. O aniversário do marido e da mulher.

- Que poderemos inventar de divertido para os Pais? -perguntou a Teresa, que se estava a tornar muito alegre. - Deviam ir os dois para o campo desde sábado até segunda-feira. É tão linda a noite de S. João!

Isabel olhou espantada para a Irmã. Poética, a boa Teresa? Mais uma descoberta. Mas a Senhora Morlainville protestou:

- Estás doida? Para o campo, para nos irmos cansar e aborrecer? Não sou pessoa para isso. Proponho que se convidem simplesmente alguns amigos para jantar.

Um riso seco soou por detrás do jornal que escondia o rosto e os pensamentos do seu marido.

- Porque ri, João? Calha até bem, porque temos gentilezas a retribuir. O que é preciso é escolher gente interessante.

Por detrás do jornal apareceu uma mão num gesto trocista.

- Sim, gente interessante. Os seus colegas não, evidentemente. Ninguém do Ministério... Fani, tu que és desembaraçada, ajuda-me; façamos a lista.

Ranger de papéis. O jornal desapareceu na algibeira do casaco cinzento. E o Sr. Morlainville dirigiu-se para a varanda.

"Acaba sempre assim", pensou Isabel, que não cessava de aprofundar os problemas da família. E como a escolha dos convidados cujos nomes desconhecia - nada lhe interessava, foi ter com o Pai á varanda.

Não anoitecera ainda. O céu, de que os baixos telhados da velha rua Nicolo deixavam ver um grande pedaço, parecia de fogo.

Poesia das noites de Junho... Uma festa! Mesmo na cidade os perfumes adejam, quentes e ternos.

- Como as andorinhas voam alto! - disse Isabel, inclinando a cabeça para beber este perfume de folhas, de cerejeiras e de rosas.

- Tens o céu nos olhos... -murmura o homem grisalho. Mas não com a sua voz de todos os dias, a sua voz fria e banal, e sim com aquela voz de oiro com que outrora contava histórias à sua pequenita.

Isabel sorriu, olhando-o de lado. Sorriu para ele, a quem devia tornar feliz, como pedira a Mãezinha, já morta. E ele colheu, com um beijo,

esse sorriso. Beijo breve, furtivo, para que a família, que estava perto, não estranhasse. Isabel estendeu os lábios e a face rude inclinou-se para ser beijada também. Um suspiro... Procurando libertar do silêncio aquela alma, fez uma pergunta ingénua, como as que fazem as rapariguitas que passeiam de braço dado num jardim.

- Paizinho, qual é a tua estação preferida? Ele respondeu tão seriamente como uma criança o poderia fazer:

- O mês de Junho. Este que vivemos.

- Vês? Também eu. Mas não sei porquê. Explica-me, sim?

Como a voz dele era linda, esta tarde... Baixinho, como as primeiras notas dum violoncelo, analisou a sua preferência com palavras largas, tão precisas! Quem diria que estava ali o Sr. Morlainville, funcionário sem renome do Ministério do Interior, e a quem a mulher chama "manga de alpaca?

- Acreditas em fadas, Paizinho - ousou perguntar Isabel.

- Claro que não. Mas, no entanto... esta noite, tu és uma delas. Minha fada de vestido cor-de-rosa!

- Sério? Gostas do meu vestido cor-de-rosa?

- Gosto sobretudo da tua juventude em flor. Teve vontade de lhe contar que no Sanatório

lhe chamavam Liseron. Mas não se sentia ainda bastante à vontade com este Pai. Ele, às vezes, chamava-lhe a Lili...

Mas não era conveniente deixá-lo cair de novo naquele silêncio em que se embrenhava de boa vontade, e que o devia sufocar. Mais uma pergunta pueril:

- Paizinho, gostas mais do céu de Paris ou do céu dos países quentes?

- Nunca viajei.

- Porquê, não gostavas?

- Adorava. Mas a tua Mãe cansa-se. Por isso... Fui uma vez à Costa Azul. Guardo dessa viagem uma recordação maravilhosa.

- Conta.

Como falava bem, este taciturno! Liseron encostara-lhe a cabeça ao braço e, como outrora, ele enrolava nos dedos os seus negros caracolinhos. Não lhe dizia que fora com Colette que fizera essa viagem. Colette, muito mais interessada no marido do que na paisagem, e ele sem poder deixar de evocar, radiosa, a silhueta de Jeanine, em pleno Sol.

Isabel escutava. E o cair da noite entristecia-lhe a alma.

Mas João-Lucas chegou, aos saltos, às piruetas. O pai e a filha voltaram à realidade. Quando se encontrariam, de novo, no sonho? Somente aí a pequena Isabel podia tentar tornar feliz este homem, "aconteça o que acontecer".

No dia de S. João, ele não parecia feliz. Mas Jeanine exultava. E Liseron, de vez em quando, sentava-se no braço duma poltrona ou na borda duma mesa para observar esta Senhora extraordinária que tirava os linhos do armário e as pratas das prateleiras com a mesma alegria que emprestaria a um jogo muito divertido. Como gostava do "mundo" esta Jeanine!

- Então, Isabel, ajuda-me - ralhava a Mãe.

- Porque estás aí pasmada, com tanta coisa para fazer? Hoje não é dia de estar na Lua. E fecha a boca, por amor de Deus.

Mas ralhava-lhe amavelmente, como de costume.-"A sua voz seca, que assobia um pouco, reserva-a para o Paizinho" - notava a pequena. "É boa e procura agradar a todos; mas o Paizinho irrita-a".

Dócil, Isabel deixava-se escorregar para o chão, e tirava das vitrinas coisas lindas que não eram usadas todos os dias e de que se esquecera completamente.

- Isto é teu -disse a madrasta, mostrando-lhe uma salva de prata. - Quando te casares levá-la-ás. Por enquanto podes muito bem emprestar-ma, não é verdade?

- Evidentemente - respondeu Isabel.

Mas corou. Evidentemente, havia em casa muitos objectos que pertenceram a Colette. Quais? Perguntar, parecer-lhe-ia indelicado. Mas ao pegar na salva, tão brilhante que lhe reflectia o rosto, pensou que outrora - talvez num dia de S. João - se reflectira, assim, o semblante triste da Mãe. E afastou-se para beijar, como na igreja se beija a patena, esse espelho do passado.

Cintilação dos cristais. Brilho pesado das pratas. Alvura gelada do linho. Liseron era ainda uma criança antes da austera estadia no Sanatório. Eis que, em plena adolescência, descobria a deliciosa graça das coisas da casa. Era lindo! E a madrasta pasmou ao vê-la de súbito dançar, pequena ninfa da alegria, com uma taça de champanhe entre os dedos.

- Que rapariga tão engraçada! Olhe para ela, Marieta.

Mas Marieta murmurou, ao passar junto da dançarina:

- Tenha termos, Isabel. Isso não são modos.

- Oh, rabugenta! - respondeu Isabel. Marieta não compreendia que era embriagante ter quinze anos? "Ter termos..." Palavras rabugentas. Esboçou ainda um passo, por desafio, e pousou a taça junto das outras. A sua alegria já não ousava expandir-se a dançar. Mas os cristais teniram, a prolongar o delicioso divertimento. E ela divertia-se a recolher as notas claras.

- Ao menos - declarou Jeanine, quando a toalha ostentou definitivamente a sua alvura mate, os seus reflexos, as suas transparências

- tu aprecias as coisas bonitas. A Teresa acha sempre que há luxo demais; ela é tão simples, a minha boa Teresa! E a Fani gostaria de dispor a mesa dum modo ultramoderno: quase nada de toalha, tudo muito pesado, muito feio" muito caro. Sabes, estou contente de reaver a minha terceira Filha. Entendemo-nos à maravilha! Dá-me um beijo!

Mas a Isabel fugiu. Não, não, não queria que lhe chamassem a "terceira filha" e que Jeanine a beijasse a esse título. E queria ainda menos "entender-se à maravilha" com a mulher que falava secamente ao seu Pai.

Vendo-a fugir, Jeanine repetiu, risonha:

- Que engraçada rapariga! E mais alto

- Põe o vestido das flores.

E foi também arranjar-se, tornar-se mais linda.

Sem dúvida, Isabel poria o vestido das flores.

Engraçadíssima, esta sementeira de primaveras! No Sanatório só usava camisolas até ao pescoço. Mas desde a sua chegada, Jeanine - decididamente agora só conseguia chamar-lhe Jeanine - comprara-lhe vestidos. E este encantava-a. A criança - muito alta e delgada, em saia de baixo - divertia-se a baloiçar na ponta dos dedos o lindo vestido de rapariga, e depois enfiou a cabeça; os braços muito finos ergueram-se, surgiram, e a seda leve caiu ao longo do corpo delicado. Isabel apertou o cinto, alisou os caracóis negros, as sobrancelhas bem arqueadas, e, flor por entre as flores, sorriu para o espelho.

Precisava dum elogio. Correu à cozinha, sacudiu Marieta, inclinada para as suas caçarolas odorantes, que a afastou:

- Não te chegues para o forno, pobrezinha! E depois pôs os óculos. Silêncio... Isabel

estaria horrível?

- Fala, Marieta. Estou bonita ou ridícula? Pareço um macaco vestido? Se achas, diz. Mas diz qualquer coisa!

- Ah! Se a tua Mãezinha pudesse ver-te, assim, tão linda!

E a sombra arrebatadora passou ali, entre a mulher velha voltada para o passado e a criança com ânsia de viver...

Um jantar de gala. Não se sabe o que isso representa. Quando se está já um pouco treinado, como todos os adultos, não se apercebe a verdade das coisas e a sua extraordinária simplicidade. Mas para uma Liseron tudo é novo, penetrante. A família está bonita. O Pai, barbeado de fresco e bem vestido, lembra um inglês de olhos claros num rosto rígido. Jeanine - uma rosa muito aberta, quase a desfolhar-se de tanto desabrochar. A Fani ostenta um penteado novo e um vestido surpreendente; não parece a mesma: é uma rapariga de figurino. A Teresa também mudou, mas nela a mudança vem do interior, porque o vestido é igual a qualquer outro. As suas faces estão mais frescas do que de costume, os olhos mais verdes. Irradia luz. Porquê?

O João-Lucas, admitido a um jantar de cerimónia pela primeira vez, dança de alegria por simples razões gastronómicas. Quando viu a Irmã com o vestido de flores:

- Que bonita ela está! Um conselho, minha querida: não te tornes chic demais; desagradarias à Menina Estefânia. O quê? Tu não sabes que ela é invejosa? Felizmente que a Teresa é uma rapariga gorda e boa, senão o que se ouviria nesta casa! Diz-me, o cor-de-rosa das tuas faces é verdadeiro ou postiço?

- Verdadeiro... Fala-me dos convidados. Já não conheço aqui ninguém.

Mas como o João-Lucas distribuiu por todos epítetos pouco lisonjeiros, Isabel tapou os ouvidos com as mãos:

- É revoltante difamar assim as pessoas a quem consideramos amigos! Não quero ouvir-te mais!

- Que pateta! De que se há-de falar em sociedade?

E fugiu para a cozinha de onde emanavam apetitosos perfumes. Isabel, para imitar as mais velhas, foi polir as unhas. E, sentindo-se frívola, pensou em Pedro Jacquelin. Caminharia "na poeira" ou "a olhar para o alto"? Não compreendia muito bem estas fórmulas. Mas adorava as palavras maiores do que ela, e guardava-as no coração, as palavras de Pedro, o doente, as palavras ditas por seu Pai, no terraço... Algum dos convivas encontraria palavras grandes, esta noite, ou só haveria palavras pobres, cansadas, a arrastarem-se no seu vestido de todos os dias? Vestido já muito usado... As palavras haviam tentado mudar de vestido, para o jantar de S. João. Mas, apesar disso, a sua miséria deixava aperceber o disfarce. Principalmente nas mulheres. Então elas não pensavam?

Isabel passou a ouvir os homens; discutiam problemas políticos, financeiros, sociais. Que importância davam ao dinheiro! Ao mesmo dinheiro de que Pedro dizia: "repugna-me".

Entre os convidados, João-Lucas fizera notar, a sua Irmã, um deputado:

- Um pedante. Mas a Mãezinha acha-o admirável. E talvez ele faça com que o Paizinho seja condecorado, o belo Sr. Germaint.

O que é um pedante? A Isabel observava este Germaint, e sentia que, pedante ou homem "admirável", ele dominava os outros. Houve um silêncio e Jeanine voltando-se para ele fez-lhe uma pergunta bastante confusa sobre os últimos decretos. Estaria ele à espera deste convite? Em voz forte demais para uma sala de jantar burguesa, principiou um verdadeiro discurso. Isabel, apaixonadamente atenta, ouvia-o expor as suas ideias de homem, ideias de que nunca ouvira sequer um eco entre as suas neves, e despertavam nela um misto de curiosidade e de inquietação. Estaria tudo assim, tão mau? A felicidade e a paz estariam ameaçadas a tal ponto? No entanto comia-se à vontade, havia que vestir.

Isto causava-lhe um frémito, mas um frémito agradável. Descobria-se o mundo. Sabia-se, enfim, a causa das greves, dos tumultos, das ruínas. Sabia-se... pobre Liseron, que ouvira apenas uma interpretação do grande lamento humano e julgava que era já tudo! Mas atrás daquelas palavras vibrantes adivinhava a simplicidade dolorosa das coisas e, de súbito, teve vergonha de dar tanta importância a um vestido e a uma toalha de mesa luxuosos. O mundo sofria. Meu Deus, como o mundo sofria!

O Sr. Germaint calou-se. E iniciou-se uma discussão; uma a uma as ideias belas e fortes erguiam-se. Não, a existência não era medíocre. Mas todos pareciam desencorajados, entorpecidos, e cada um desejaria despertar, sem no entanto encontrar em si a força necessária para sair daquele torpor. Porquê? Mais um mistério...

E por que razão o Sr. Morlainville continuava silencioso, ele que sabia falar tão bem? Isabel ficou estupefacta ao ver o olhar com que ele fixava Jeanine, que conversava nesse momento com o orador. O olhar duma alma ávida e ferida. A criança disse consigo tristemente:

- "Adora-a. E ela não o ama! Ah! Compreendo que ele goste dela. Como está linda, esta noite! Meu Deus! Como é linda!..."

- Vai descansar, minha Isabelinha - dissera Jeanine quando bateram dez horas.

Foi muito aborrecido percorrer toda a sala para desejar boa noite a toda essa gente que observava o vaguear da sua silhueta esguia, ainda hesitante. Soltaram-se frases destas:

- Encantadora!... Que amor!... Um tipo muito original!... Que olhos, minha querida!... E que graciosidade!

Sentia um imenso cansaço. Deixou que a Marieta a despisse, lhe fizesse perguntas inteligentes e breves e, depois, já na cama, lhe aconchegasse a roupa enquanto recomendava que adormecesse depressa.

Mas como podia adormecer com todas estas imagens impressas ainda de fresco na memória? Era preciso desdobrá-las, observá-las, retê-las. E como podia adormecer quando, na noite, pairava até ao alvorecer a alegria do maior dia do ano?

Noite de S. João... O Natal do Verão, dizia a Marieta, que gostava de contar lendas, meio pagãs, meio cristãs, iluminadas pelas alegres fogueiras ardendo, de outeiro em outeiro. Suavemente, Isabel saltou fora da cama, agasalhou-se, como o sabe fazer uma criança que foi doente, e dirigiu-se para a janela. O jardim e o céu confundiam-se nos perfumes que subiam e na claridade que descia. Ciciava um frémito na relva. E as estrelas vinham ao encontro da terra.

Natal do Verão. As pessoas. As coisas. O amor e a solidão. A felicidade e o sofrimento. O dinheiro e a miséria. João e Jeanine. Fani e os rapazes que açambarcava. O Sr. Germaint, o seu discurso, e o olhar atento dos criados que o escutavam enquanto serviam. O Sr. Germaint pensaria nestes silenciosos quando falava da "classe operária? Existem, então, "classes" na sociedade, como no liceu? O Sr. Germaint teria dito as palavras convenientes?

O mundo era grande, imenso. Haveria sofrimento até às estrelas? Os pássaros do jardim adormecidos seriam felizes e bons? Ou sofreriam como os homens?

João um senhor elegante. Porque é que habitualmente se vestia mal? Por não se importar com isso? Jeanine gostava dos homens bem vestidos. O Sr. Germaint vestia bem... Como a Jeanine estava linda! Tinha pérolas no pescoço, que não eram mais brancas do que a pele onde rolavam, redondas e contentes. Porque se calava o Paizinho? Tinha havido na sala de visitas conversas sobre os últimos livros que apareceram. Silêncio do dono da casa... No entanto, ele gostava de livros tanto ou mais do que aquele homenzinho de monóculo que recitava versos. Pessimamente ditos, aqueles versos, mas magníficos, ao gosto de Isabel. De resto, todos os admiraram. Alguém perguntou, por delicadeza, ao dono da casa:

- Sabe quem é este Romain Villanel? Um pseudónimo, ao que parece, que esconde a personalidade dum verdadeiro e grande poeta.

- Oh! Há tanta gente que se entretém a rimar! - respondera com ar indiferente.

Era a sua máscara, aquele ar indiferente: tirá-la-ia para alguém a não ser para a sua Filha?

Fragmentos de versos vinham de novo à memória da criança, vivificados pelo perfume rápido dessa noite de Verão.

- "Gostava de os ter escrito eu própria!

E depois pensou em Pedro que amava os poetas e a ensinara a amá-los. Mas, sentindo no pescoço o ar fresco do jardim, lembrou-se da prudência... Tornar a adoecer? Oh! Nunca! Era tão apaixonante ver viver os outros!

Entregando a alma nas mãos de Deus, dormiu o belo sono da juventude que da vida só conhece a esperança.

 

TODA verdura a avenida Henry-Martin era teatro das diabruras alegres dos estudantes à saída dos liceus. Homenzinhos. Canduras de comungantes e audácias. Quanta alma nos olhos de longos cílios Na boca já se esboça uma ruga céptica. Mas à primeira palavra agradável a ruga apaga-se para restabelecer o belo sorriso. E no fundo, no verdadeiro fundo daqueles rapazes, continuava a haver brancura, brancura confiante.

Isabel esperava o Irmão. Tinha proposto a Jeanine, que estava absorvida no corte de um vestido de Verão, sair em seu lugar.

- Vou eu - disse Marieta.

- É inútil cansar-se, Marieta. Isabel já é bastante crescida.

- Crescida demais.

E Jeanine encolheu os ombros num gesto que Isabel imitou. Crescida demais A Marieta ia-se tornando estúpida. Tão depressa a declarava já uma senhora, como pequena ainda para fazer determinadas coisas.

Agradava-lhe a ideia de sair, porque, ao mesmo tempo que ia em missão honrosa, era um passeio livre. Que frescura naquela avenida, para quem vinha das ruas ressequidas pelo Sol das onze horas! Isabel vestida de tecido claro e um grande chapéu de palha, sentia aquela frescura nos braços húmidos e no pescoço, e repetia a palavra "oásis", assim, por prazer, nos lábios que se entreabriam muito redondos, saboreando as duas sílabas. e cerravam-se deliciosamente na sílaba sibilante. Oásis... O deserto ardente onde, de súbito, brotou uma nascente. Viajar. Ver países estranhos. Por que razão o pai, que gostava de viajar, seria burocrata? Todos os dias, à mesma hora, tomar o mesmo metropolitano asfixiante, fazer o mesmo trabalho no mesmo escritório cinzento com um enjoativo cheiro de papelada. Oásis... A água que corre por entre as palmeiras.

Mas os rapazes saíam, com um mover brusco de cotovelos, de pulsos, de pernas nuas ansiosas por correr. E em todos os tons, as vozes comentavam as alegrias e as decepções da manhã.

- Ouviste o professor? Que injustiça! Está um calor... Eu não percebi nada... Aquele, pá, estava a ler um romance policial na carteira. Mais quinze dias e estaremos em férias...

Um deles, acompanhado pelo irmão mais velho, tocou ligeiramente em Isabel. Uma voz, lisonjeira, disse:

- Que linda menina!

Isabel tornou-se carmesim, um pouco contente, um pouco aborrecida. Que rapaz tão mal educado! Mas, ao mesmo tempo... Outros, dos mais velhos, olharam-na ao passar. De súbito, muito perto, excessivamente perto, alguém murmurou uma frase incompreensível para a sua candura, mas que, no entanto, lhe trouxe não sei que inquietação. Então teve medo. Adivinhou por que razão Marieta, a sensata, reprovara que a mandassem ir buscar o irmão. E desejou continuar ainda muito tempo na infância.

João-Lucas não aparecia... Ia se embora, deixar o lugar onde, pela primeira vez, fora quebrada a sua paz branca, quando viu o irmão despenteado, com o casaco a esvoaçar, o andar arrastado. E começou a habitual lamentação dos maus alunos: pouca sorte... um castigo injusto...

Um automóvel empanado veio, todavia, distrair o seu espírito revoltado. Isabel, lembrando-se das crises difíceis que ela própria atravessara no Sanatório, e das precauções que Pedro tomara para lhe apaziguar a alma irritada, ficou o tempo que o pequeno quis diante do carro amachucado. Mas ao vê-lo tornar a partir alegre, ousou criticar a sua preguiça.

- E tu? - retorquiu ele grosseiramente.- Não fazes coisa alguma. Somente a Menina julga-se já uma pessoa grande; e, como as pessoas grandes podem ser preguiçosas, coléricas, insolentes, sem que lhes ralhem ou as castiguem...

- As pessoas grandes não são assim, João-Lucas.

- Ah! Sério? Repara, então na Fani. E tu, minha amiga, és a rainha das preguiçosas. Portanto, não te metas a pregar moral. Não pega...

Cansaço. Tristeza. Há qualquer coisa a pesar-lhe sobre os ombros. É o calor verdadeiramente acabrunhante? Ou outra coisa?... Como estaria bom tempo na montanha! Não se lembrava já que os Verões parisienses eram assim quentes.

Trabalhar, sem dúvida, é o dever. Mas ela perdeu o hábito, a sua vontade já não obedece. Era preciso que alguém lhe ensinasse o modo de deixar de ser uma doente para tornar-se uma pessoa viva, sã, como as outras. Em casa, como nunca ninguém esteve doente, não sabem. Pedro, Pedro sim, seria capaz, impondo com uma palavra o seu estranho ascendente! Nem mesmo eram precisas palavras: um olhar firme e frio bastava. Certamente, é preguiçosa, um pouco egoísta, mas no Sanatório o importante eram outras coisas como a temperatura, o sono, a digestão... Trabalhava-se, sim, mas para conseguir a cura. Agora, trabalhar para se instruir, parece difícil. Está embrenhada na ignorância e no desânimo. E não é para a ciência livresca, mas para a vida real e sem artifícios, que se inclina, curiosa, a sua alma de criança.

Era já tarde quando os dois pequenos, muito vagarosamente, chegaram à Rua Nicolo. E, no entanto, o pai-tão pontual-não chegara ainda. Jeanine deu ordem de servir o almoço sem que o esperassem, e perguntou ao João-Lucas se tinha trabalhado bem.

- Sim, mãezinha-respondeu o rapazinho sem corar.

Isabel esboçou um gesto de protesto. Mas teria ela o direito de acusar os outros de preguiça, ela que toda a manhã não fizera mais do que passear? Não, e o irmão sabia-o bem. Porém, ele não era reservado, por natureza, e acabou por contar as suas desventuras, com tanta manha, que todo o liceu parecia culpado, excepto ele. A mãe riu, ameaçou-o com o dedo, e avisou-o de que "para a outra vez" se zangaria; mas desta vez beijou-o. Um caso arrumado.

Mas não aos olhos de Isabel. Este disfarce duma falta perturbava-a, como a perturbava o remorso da sua preguiça, como a perturbava a recordação dos olhares daqueles rapazes e das duas frases: uma lisonjeira, outra horrível. E o pai que não vinha! Jeanine não se inquietou nada com isso. No entanto, se ele estivesse doente? Se tivesse caído sob o metropolitano? Podia estar morto. Finalmente, o ruído inimitável da sua chave na fechadura libertou Isabel de inquietações.

- Já não é nada cedo! - disse Jeanine, readquirindo a sua voz metálica. - Por que motivo só chegou a esta hora, João?

- Atrasei-me- respondeu simplesmente. Sentou-se no lugar habitual, passou a mão pela testa, num gesto cansado, e almoçou em silêncio. Todas as conversas pareciam longe dele: as palavras cortantes de Jeanine, as palavras pueris de João-Lucas, as palavras rápidas e agressivas trocadas entre Teresa e Estefânia, em absoluto desacordo sobre o lugar em que passariam as férias.

- Na Normandia, em Petites-Dalles, como nos últimos anos - dizia Teresa. - Encontraremos lá os nossos amigos.

- Na Costa-Azul - dizia Fani. - Ao menos podem-se tomar banhos de sol. Quanto aos amigos, arranjam-se outros, e pronto.

João calava-se, comendo o que lhe apresentavam ; não ouvia, não olhava.

"Está longe", pensava Isabel, que tomara o hábito de apreender o pensamento expresso naquele rosto. "Mas não é um "longe" mau. As faces estão levemente coloridas. Os olhos grandes, grandes e claros. Em que pensará?"

- Enfim, João - tornou a voz metálica - poderá explicar-me as razões deste atraso?

A mão máscula, comprida e esguia, afastou a pergunta. E a voz de Jeanine readquiriu as suas lindas tonalidades para responder a um dito de João-Lucas. O pai comia, sempre na mesma indiferença.

Levantaram-se da mesa; ele pegou no jornal, instalou-se, como de costume, atrás desse biombo que lhe escondia o rosto. Isabel, que gostava de ajudar a Marieta, foi levantar a mesa, e depois voltou, a passos leves, para junto do Pai. Ele olhava sempre a mesma coluna da mesma página. E ela inquietou-se:

- Marieta - murmurou, - o Paizinho está esquisito, hoje, não achas?

- Não é coisa que interesse, nem a ti, nem a mim - respondeu severamente. - Vai dormira sesta para o teu quarto. Com este calor, é excelente.

Tinha razão, como sempre. Mas aos quinze anos não se escuta a razão. Isabel voltou a procurar as pessoas grandes. O Pai estava no terraço e Jeanine falava asperamente:

- Não suporto isso. Diz que gosta de mim e esconde-me tanta coisa. Gostará na verdade? O que haverá na sua vida? Pergunto-o a mim própria.

- E tu - respondeu uma voz lenta, a insistir no "tu", que raramente se ouvia. - Amas-me, Jeanine? Sê sincera!

- Nada te escondo.

- Aquilo que vejo basta-me. Desdenhas-me. Reservas a tua ternura, o teu espírito para os outros. Gostaste de mim alguma vez, ao menos?

- Gostei. Mas és tão diferente do que esperava! Por que te interessas tu? Pelo teu "ramerrãozinho" da vida do Ministério, pelo jornal, pelo teu terraço e pelas tuas pantufas; aqui

está o que te basta. Em sociedade, calas-te. Pareces até não estar a par de coisa alguma.

- Não estou a par dos mexericos mundanos, certamente.

- Não falo de mexericos mundanos. Julgas-me uma boneca sem cérebro. Quando oiço falar um homem inteligente...

- O Sr. Germaint, por exemplo...

- Se quiseres...

- Aquilo, um homem inteligente? Um utopista. Fala mas não pensa, o teu Sr. Germaint.

- Crise de ciúmes... Já esperava. E tu, como mostras aquilo que pensas? Que obra fizeste, meu pobre João? Nenhuma. Tu és o Sr. Morlainville, "manga de alpaca".

- Porque casaste com ele, com este ser ridículo?

- Porque esperava que houvesse nele alguma coisa. Gostava de ter orgulho no meu marido, enfim, compreendes-me? Ah! Que decepção...

Mas ele não deu mais resposta. Jeanine deixou o terraço. João, atirando o jornal para o chão, foi-se, por sua vez, embora. E Liseron, passando diante do quarto das irmãs, ouviu Estefania troçar.

- Os Pais discutem. Como é bela, a felicidade conjugal! Continuas a sonhar com o casamento, minha querida?

- Sim - respondeu a Teresa. - A felicidade construimo-la nós próprios.

- Ou destruimo-la... Até logo à noite, rapariga sentimental. Previno-te de que esse vestido te fica horrivelmente. És muito gorda para esse corte. Faz-te sair as ancas duma maneira lamentável.

E saiu, delgada, pintada, muito moderna. Isabel correu para a Teresa que, de expressão triste, se olhava no espelho.

- O teu vestido fica-te bem, Teresa. Não acredites na Fani.

- Sinceramente? Não me faz mais gorda? Não dizes isso para me agradar?

- Não. Eu nunca minto. A mentira repugna-me. Não tires o vestido. Nenhum te fica tão bem.

Que lindo sorriso nas bochechinhas redondas. E que alegria para Isabel, sobre quem pesavam as misérias das últimas horas. Era delicioso devolver a confiança a alguém. Beijou-a:

- És tão fresca, pareces uma maçã - disse ela.

E seguindo o conselho de Marieta, adormeceu. Libertou-se do cansaço de pensar.

E as outras pessoas da casa? Os outros viviam. Marieta lavava a loiça, com o nobre cuidado que punha em todas as tarefas. Jeanine costurava um vestido de praia, a pensar que lhe ficaria divinamente. Estefânia olhava, com um olhar simultaneamente artista e invejoso, os modelos apresentados por um costureiro da moda, irritando-se por desenhar vestidos de luxo sem nunca os usar. João-Lucas fazia bolinhas de papel mastigado. Teresa, às voltas com as contas do Banco, pensava em certo rapaz.

Quanto ao Sr. Morlainville, no silêncio cinzento da sua aborrecida repartição, classificava fichas. Mas, de vez em quando, abria um volume amarelo com o perfume fresco da impressão. Era um livro de versos!

Versos. Então o Sr. Morlainville gostava de versos? Quem diria! Nenhum dos seus colegas, dos quais um era doido pela pesca à linha, o outro só pensava em palavras cruzadas, o terceiro em namoros, e o mais novo, um audacioso, na motocicleta.

Versos! Versos dos quais alguns já haviam aparecido numa revista e causado a admiração dos críticos, reconhecendo através deles "um grande poeta". Como título, sobre uma capa luminosa de juventude, uma única palavra: "Canções"; e um nome, pronunciado no salão de Jeanine, e que todos tentavam, em vão, atribuir a alguém, pois este homem escondia-se: Romain Villanel.

- Não fica nada mal numa capa - murmurava o Sr. Morlainville precisamente no momento em que entrava um colega, o pescador à linha.

- Ah! Comprou o livrinho da moda? A minha mulher está interessadíssima em o ler. É bom? Tão bom como dizem?

- Depende do gosto - respondeu o Sr. Morlainville.

- Evidentemente. É preciso que se goste desses artifícios. Mostra-me? Oh! Parece muito sentimental. Não será uma mulher, esse tal Romain Villanel? Este incógnito está a intrigar meio-mundo. A mim, é-me indiferente. Diz-se que este misterioso personagem quer lançar-se no teatro. Ouviu dizer alguma coisa?

- Diz-se. Mas terá ele a envergadura necessária?

- Nunca vou ao teatro, portanto, não seria bom juiz. À noite estou a cair de sono. E o meu amigo? Ah! A Senhora Morlainville gosta de teatro? Lamento o...

Lamento-o! As duas palavras juntaram-se ao calor do dia. O Sr. Morlainville, com os cotovelos apoiados na secretária forrada de flanela verde, repetia-as, exactamente como Isabel repetira a palavra "oásis". E eis que elas se desenrolaram, se envolveram, tomaram ritmo, cantaram e soluçaram, como que a manifestar-se a quem as sabia compreender.

O Sr. Morlainville nada mais ouvia nessa tarde de Junho. Nem o zumbir de uma varejeira no candeeiro; nem o cantar dum melro na cerca do Ministério; nem o crepitar nervoso das máquinas de escrever; nem o rolar longínquo dos autocarros... Nada da misteriosa respiração de Paris, que nunca emudece.

Ouvia sempre as mesmas palavras: lamento-o!

Palavras tristes. Mas palavras ternas. Palavras de piedade humana. Palavras que mereciam asas...

Morlainville tirou a caneta da algibeira do casaco, uma caneta cuja presença a Sr.a Morlainville declarava "deselegante". Por isso, não a usava em casa. Mas no Ministério voltava a metê-la na algibeira, no gesto exacto e maquinal com que se faz a mesma coisa todos os dias. Nas costas em branco duma circular, o Sr. Morlainville traçou algumas linhas.

Eram versos. Adoráveis versos vibrantes.

 

ISABEL nunca vira o mar. As suas recordações reflectiam apenas imagens montanhosas, verdes e brancas grandes pastagens em declive, salpicadas de pinheiros do Natal, torrentes deslumbrantes e selvagens, alvos e resplandecentes cumes de neve.

Este ano, sim, veria o mar, pois que a família adquirira o hábito de passar as férias na praia. Férias breves para o Sr. Morlainville e para a Teresa, mas que a Jeanine e a Fani prolongavam o mais que lhes era possível. Este ano ousariam demorar-se na Normandia todo o período. Não tinha a Isabel necessidade de ar puro?

Oh! Sim! Sobretudo a sua alma. Depois de três anos de vida na montanha, oprimia-a a atmosfera de Verão de Paris.

- Sinto o coração pesado - murmurava por vezes, apoiando os braços nus à grade do terraço, que os refrescava.

E diante do pequeno jardim, tão mudado, sonhava com o desconhecido imenso, incomparável: com o mar. Gostaria dele? O Pai adorava-o. A Teresa também, porque falavam dele com verdadeiro entusiasmo. A Marieta, nascida numa aldeia da Creuse, tinha também a paixão dos horizontes marítimos, desde que os descobrira. Jeanine e Fani diziam: "Adoro o mar", mas logo a seguir falavam dos seus vestidos de praia.

Isabel não podia imaginar o que sentiria diante de toda aquela água ondeante: medo, talvez? Ou alegria da alma?

- Verás - repetia a Marieta, que na sua mansarda escaldante sonhava com a frescura marítima - verás como é belo!

A Marieta, no entanto, não sabia definir o que sentia; eram sempre mesquinhas, as palavras... O Sr. Morlainville, sempre absorvido por uma preocupação misteriosa, dizia à filha:

- Sim, vais gostar do mar, Lili. Tenho a certeza.

E nada explicava. Todavia, ele devia saber o modo de fazer brotar as coisas do desconhecido diante dos olhos duma criança na expectativa: porém, não o punha em prática. Pensava não sei em quê.

Assim, tudo brotou por si, na sua realidade admirável. Chegaram num lindo dia. Desde a estação de Yvelot que Isabel procurava uma linha azul no horizonte, e o irmão ria-se da sua impaciência.

- Não se enerve, assim, Isabel - ralhava Marieta. - Tudo chega a horas para quem sabe esperar.

Ela esperou... espreitando pela janela da camioneta que os transportava para a costa. Mas era só pelo campo que passava, o campo normando, cheio de verdura, com flores a balouçarem-se nas macieiras. De súbito, abriu-se a paisagem e o mar apareceu, pálido, imenso. Nada que detivesse o olhar. Era uma loucura, tanto espaço. Lá longe, nos Alpes, havia sempre um muro bonito, ameado, atrás do qual se escondia uma nova decoração. Aqui, o vazio. O vazio? Melhor, a plenitude pacífica? Como reconhecê-lo através duma vidraça empoeirada?

Nova curva. E a estrada desce direita a um vale.

- Paizinho, voltaremos a ver o mar? - perguntou, inquieta.

E os outros a rir. Eles, aqueles insensíveis, falavam já da pesca ao camarão.

Decepção. A casa onde vão alojar-se está escondida nos bosques. Não vale a pena vir para a beira-mar, para encontrar de novo a sombra verde, os caminhos a pique por entre os fetos e os gerânios, como na montanha! Aqui, cheira a flores... Mas insinua-se outro odor: melhor, um gosto. Liseron senta-se no banco do jardim, e sorve aquele perfume que é salgado e selvagem. Ao longe, um murmúrio... Semelhante ao da torrente? Não. Este respira. Ouve-se um suspiro, um silêncio. E alguns dos suspiros são mais fortes, e alguns dos silêncios têm uma paz maior.

- Ouves o mar a subir? Vem vê-lo - propôs João-Lucas, pegando na mão da irmã. - Atiramos-lhe com seixos.

Mas ela desprendeu-se dele. Com ele, não. A sua alegria turbulenta estragaria tudo. Declarou-se cansada - sem mentir - e deixou o rapazinho afastar-se correndo. Precisava duma pessoa atenciosa e sensível para a levar diante daquela imensidão que respirava misteriosamente. Ir sozinha? Oh! Não! Tinha medo de ter medo.

O Pai avistou-a, sentada num banco junto dum maciço de hortênsias. Tinha as mãosjuntas e os lábios entreabertos. Pressentiu-a inquieta.

- Jeanine! - gritou - esperem por mim para levar o resto da bagagem. Vou acompanhar a Isabel à praia.

Jeanine zangou-se, e teve razão, quando disse que a pequena podia bem ir ter com o João-Lucas. Mas ele tomou a filha pela mão e partiram através dessa dupla fila de casas que dominam as falésias arborizadas. De súbito, o vento envolveu-os, acentuando aquele gosto que os lábios haviam experimentado já. Liseron ouviu, muito próximo, o suspiro seguido de larga pausa. E viu, enfim, o mar que subia para os homens.

Não, não imaginava que fosse tão grande!

Não imaginava que fosse tão vivo. Vinha até ela um apelo que lhe atraía a carne, tanto tempo enferma, e a sua alma, que, tacteando, saía agora da infância. O desconhecido! O infinito! Viviam ali peixes, que lá em baixo cruzavam os corpos ágeis cobertos de escamas. Flores estranhas. Conchas róseas. E, lá muito ao longe, os países com que os marinheiros sonham. Os países, que nem sempre atingem, destruídos, no caminho, pela tempestade que os envolve, que os asfixia, que envia os seus cadáveres para o fundo do mar e as almas para a luz. Oh! Estas almas... Não serão elas que suspiram com a maré?

Isabel mantinha-se apertada contra o pai. Mais adiante, João-Lucas entretinha-se a atirar pedras para o mar. Estar ao pé dele no momento de travar conhecimento com aquilo, que horror! O pai emudecera. Mas, sentia-se que era forte. E aquela força protegia-a contra a angústia de ver sempre, sempre, cada vaga avançar um pouco mais do que a precedente. Estacionariam? Ou, um dia, inundariam o mundo?

- É preciso que eu volte para casa - disse por fim o pai. - Ficas? A Marieta recomendou que protegesses bem o pescoço.

Ela suspirou:

- Oh! Vais-te embora... Paciência; eu fico. Ainda não acabei de ver.

- Nunca se acaba de ver. Mas é preciso ver de verdade. Ouve o conselho do teu velho Pai: esquece todas as descrições que tenhas lido, todas as pinturas, as fotografias, os bilhetes postais. Tudo. Descobrirmos nós próprios, é só o que importa.

Ela deu-lhe um beijo, para o que já não era preciso pôr-se em bicos de pés... Estava muito alta... E o enternecimento de beijar o Pai, libertou-lhe a alma daquela opressão. Sentou-se numas pedras e contemplou, como contempla uma criança que se diverte, mas também como uma mulher que admira e pensa. A contemplação imprimia nela imagens definitivas. Contemplar é transformar-se. Isabel Morlainville transformava-se.

Transformar-se! Que dias de plenitude se seguiram àquele! A alma expandia-se, fazendo rebentar os limites da infância. De manhã cedo, Liseron descia a rua da vila, atraída para este azul que queria ver antes da hora em que os veraneantes tomam banho, se estendem ao sol, jogam a bola e fumam, dando ao local um aspecto medíocre. O horizonte pertencia-lhe. Às vezes, o triângulo duma vela cortava-o, e a pequena fantasiava um embarque de sonho. Uma velha canção de Marieta perseguia-a:

Dites, la jeune belle, oii voules-vous aller La voile ouvre son aile, la brise vá souffler, (*)

 

(*) Dizei, linda jovem, onde quereis ir? A vela abre as asas, vai soprar a brisa.

 

Na canção da Marieta, a linda jovem" pedia que a levassem para la rive fidele ou l'on aime ioujours (*).

Mas a Marieta nunca queria acabar a canção; dizia que o fim era triste. Então, não se ama para sempre?

Jeanine e as filhas, que tinham muitos amigos, iam da praia para o ténis.

"Sou ainda pequena para ir com elas ao Casino- pensava Isabel. - Melhor. Posso fazer "de selvagem"."

E o Sr. Morlainville também fazia "de selvagem". Mal vestido, as algibeiras cheias de livros, vagueava pelas falésias. Nada adequado à bela Jeanine de vestidos claros, audaciosamente decotados num corpo admirável, mas precisamente o Pai que era necessário a esta Liseron, ávida de ar e de claridade.

Às vezes passeavam juntos, mas nem sempre; ambos amavam a solidão. Mas esses passeios eram ricos de alegria. João conhecia as plantas, os animais, os astros, os ventos; dava à pequena ignorante noções científicas, exactas. Mais ainda, comunicava-lhe o seu enternecimento pensativo diante da beleza das coisas mais humildes. Um perfume que a erva emanasse era o bastante para os maravilhar, a ambos. Certo dia, com um dedo no ar, ela escutava a calhandra

 

(1) Para a margem fiel onde se ama para sempre.

 

que cantava entre o trigo; ele apertou-a nos braços, muito forte, quase brutalmente.

- Ah! Tu és bem minha filha!

Ela corou de felicidade e de orgulho, pensando que a Mãe se devia alegrar no meio dos Anjos.

E uma tarde - tarde inesquecível! - em que, sentados nos seixos, contemplavam o mais ardente pôr-do-Sol, ele murmurou versos, muito baixinho, e depois mais alto, parecendo esquecer a pequena sombra quase encostada à sua! Como os dizia bem! Como estes versos eram belos, assim, vindos através duma voz toda cambiantes! Mas era triste. Isabel, tão pronta a chorar, sentiu os olhos inundados.

- Pobre poeta! Quem é?

- Romain Villanel.

- Ah Sim... Aquele de quem toda a gente fala. Conhece-lo, tu? Deves saber então donde vem o seu desgosto.

Após um silêncio, respondeu por fim:

- Esconde a sua alma. Não consegue libertá-la. Por isso o julgam um homenzinho estúpido.

- A ele? A semelhante poeta? Mas porque esconde ele a alma, Paizinho? Tem medo que o ridicularizem?

- Sim, exactamente. E esses trocistas, ama-os ele a tal ponto, que prefere passar por um homem estúpido e vulgar. Compreendes?

- Ah! mas não. Ele não sabe amar. É um orgulhoso... Se o conhecesse era capaz de lhe dizer: Caro Senhor. É muito estúpido o orgulho. Impede que se ame. Caro Senhor, não esconda a sua alma num covil. Mostre que é um poeta, um grande poeta. Chorar-se-á ao ler os seus versos. Amá-lo-ão.

- Que coisas tu imaginas ... Quem tas ensinou?

- O Pedro Jacquelim. No Sanatório.

E um leito branco impôs os seus contornos rígidos na memória da criança. E aquele rosto onde só os olhos viviam.

- Repreendia-me também por ser orgulhosa, porque... Paizinho, aquilo humilhava-me, de princípio, a vida da doentinha. Ele repetia: "É estúpido o orgulho. É falso".

- Ele não é orgulhoso?

- Foi-o, diz ele. Mas tenho a certeza que já o não é. A enfermeira dizia: "Obedece como uma criança." Sabes porquê? Foi ainda ele quem mo explicou: porque conhece o amor de Deus. O Romain Villanel não conhecerá o amor de Deus?

João Morlainville estendera-se ao comprido, o rosto voltado para o céu de paz. O cotovelo dobrado fazia biombo entre a filha e ele. Talvez para esconder o novo olhar dos seus olhos grandes e abertos.

Isabel acrescentou, hesitante:

- Eu não sei muito bem falar destas coisas. O teu Romain Villanel devia ir visitar o Pedro ao Sanatório. Sem mesmo que o Pedro dissesse coisas extraordinárias, ele compreendê-lo-ia. O Pedro é transporte...

E, estendendo-se por sua vez, procurou uma estrela, ainda pálida. Calaram-se os dois.

Mas o silêncio depressa foi perturbado. Barulho de pedras a rolarem sob os pés, murmúrio de vozes jovens. Risos.

- Lá está a Teresa - anunciou a pequena. O Pai ergueu-se, apoiado num cotovelo.

- É. É a Teresa com um rapaz. Então ela também pratica o fUrt?

- É o Sílvio Delorme; conheceu-o em casa duns amigos em Paris. É pintor. É muito simpático. Repara... que bela figura e, depois, alegre, inteligente. Não notaste como a Teresa

se tornou bonita, este Verão? Porque é feliz.

Não fales disto a ninguém. A Mãezinha e a Fani não sabem que estão quase noivos. Mas a Teresa é muito minha amiga e contou-me tudo!

no sábado, antes da chegada do seu Sílvio.

- Tinha feito melhor se falasse à Mãe.

- Ah! a Mãezinha não tem tempo para a ouvir.

Zás, um seixo atirado pelo João vai ricochetear junto dos outros. A Isabel, que não gosta do barulho, tem particular horror por aquele.

Os noivos desaparecem. Agora passa a Fani

num grupo de jovens que caminham de braço

dado e a cantar.

- Olé! Estão aí? Boa noite! - grita Fani.

E Jeanine? Isabel pensa que o Marido devia vir com ela, ali na estrada. Levantando-se num ímpeto, a criança puxou o Pai com ambas as mãos E, alegremente heróica, sacrificou os instantes de alegria que ainda lhe restavam.

- Vem, Paizinho. O ar começa a estar frio demais para mim. E a Marieta fica como um dragão, se me demoro.

Já de pé, deslumbrado pelas luzes do alto, o olhar azul da filha tranquiliza-o. Quanta alma naqueles olhos! Ah! Aquela há-de saber amar! Mas será amada? Despedaçá-la-ão de dor, à sua Filhinha. Pergunta:

- Ficarias contente se lesses um poema de Romain Villanel? Um poema que ainda ninguém leu?

- Excepto tu? Então são grandes amigos? Se a Mãezinha soubesse!

- Não lho digas!

- Sei muito bem guardar segredos, senhor meu Pai. Dá-me o poema, se fazes favor. Adoro os versos desse teu poeta. Os que recitaste hoje e também os outros. Li o livro todo, às escondidas; não te zangues, não? Peço-te que lhe digas que vá visitar o Pedro. E escreverá versos menos tristes.

Pouco depois, encontraram Jeanine, mais bonita ainda do que em Paris, sob aquela patina de Sol. Alta, jovem, bronzeada, ria entre os amigos. João parou. Em lugar de fazer "de selvagem", segundo a expressão de Isabel, falou num tom natural e amável, de homem de sociedade, e a filha ficou contente. Jeanine havia de gostar!

Quando se pôs de novo a caminho- ela que sensatamente ia dormir - avistou o Pai ao lado da Mãe, no lugar que lhe pertencia, o braço sob

o seu.

Então, com as duas mãos, virada para o céu, Isabel enviou-lhe um beijo de alegria.

E a jovem Rosa do bazar, que fechava a porta, admirou-se:

- A quem enviará a nossa pequena inquilina, um beijo, assim?

 

ROSA Martin interessava-se, apaixonadamente, por Isabel.

Já há alguns anos que os Morlainville passavam as férias na vivenda de que sua Mãe, a Sr.a Martin, era guardiã. A Teresa e a Estefânia, raparigas de Paris, intimidavam-na. Desta vez, aparecera uma menina. Precisamente, ela ocupava o quarto onde a Rosa dormia antes da chegada dos banhistas e depois das marés vivas de Setembro, que era o sinal da partida. A Rosa adorava aquele quarto.

De momento, ela e a Mãe moravam ao lado, com uma tia. De resto, a pequena não tinha tempo de chorar a sua casa. No Verão, há muito trabalho nas praias. E a Rosa, cujo Pai desaparecera, lá longe, nos mares da Irlanda, na pesca do bacalhau, Rosa, cuja Mãe estava dobrada em duas pelo reumatismo, geria um pequeno bazar que um comerciante da região estabelecera perto da praia.

Também tinha quinze anos. Mas enquanto a Isabel desejava continuar criança, a Rosa procurava fazer-se mais velha para inspirar confiança à freguesia. De princípio, vestira se de escuro, como a Mãe, mas esse género austero desagradara fortemente ao gordo patrão:

- No comércio, é necessário agradar. Faz um vestido sem mangas à moda. E esse aspecto de nabo! Hum... Cor-de-rosa de framboesa nas faces, vermelhão nos lábios. Não quero que a minha loja tenha o ar de ser dirigida por uma pobretona que não come o que tem na vontade.

Então a Rosa fez um vestidinho de algodão, segundo a moda, que lhe pareceu mais chique. E enrubesceu a sua delicada palidez de normanda.

- Agora, sim - declarou o patrão, satisfeito.

- AO menos far-me-ás reclame.

Mas as pessoas da vila, que não sabiam destas exigências, ou não queriam contar com elas, criticavam-na severamente:

- Adoptou um género, esta Rosa! Vai por bom caminho, não há dúvida...

Quanto aos de fora, iludidos por "este género", não se ensaiavam para lhe fazer propostas audaciosas: mas ela nunca lhes dava resposta.

A Fani, que se pintava escandalosamente, fez coro com a maledicência e declarou que "a pequena Martin não passava de uma leviana".

- Uma rapariga tão simpática! - protestou a Teresa que não acreditava no mal. - Encontra-se tudo o que se precisa na loja dela e é agradável, delicada, inteligente.

- É possível... mas reparaste no seu vestido amarelo?

- Um vestido do feitio do teu, minha amiga.

- Exactamente. Que ousadia copiar as nossas modas! Uma miúda pobre e que não é mais velha do que a Isabel... Todos dizem que ela ainda há-de dar que falar.

As duas irmãs, que nunca tinham a mesma opinião, continuaram a discutir, e a Isabel perguntava a si própria qual delas teria razão. Desta vez, parecia ser a Fani, porque a Marieta também reprovava o uso das pinturas. Mas que significava a expressão "dar que falar"? Imediatamente teve vontade de conhecer essa Rosa da sua idade, que fazia com que assim falassem dela. Através da montra do bazar viam-se-lhe os cabelos muito louros, as faces e os lábios avermelhados, o vestido de corte audacioso, feito de chita de cortinados.

E Isabel entrou para escolher bilhetes postais. A Rosa, que era precisamente da sua altura, sorriu-lhe timidamente. A Isabel arranjou maneira de voltar num dia em que a loja transbordava de alegres clientes. Empoleirou-se na borda de uma mesa e esperou a sua vez, enquanto observava as idas e vindas da rapariguinha. Que quantidade de coisas neste bazar! Viva, ligeira, habilidosa, a Rosa depressa conseguia satisfazer a todos. A sua voz era discreta, as palavras bem escolhidas. Mas todos lhe chamavam Rosa, e esta familiaridade chocou a Isabel, que teve o cuidado de a tratar por "menina" ao pedir as suas sandálias.

Escolha delicada! A Rosa interessou-se muito nela, subiu o escadote, desceu lentamente, ajoelhou-se na almofada, calçou muitas vezes a freguesa cujo pé era tão esguio que balouçava sempre no sapato; Isabel aborrecia-se por ver a rapariga, assim, ajoelhada diante dela.

Quando por fim conseguiram acertar, a Rosa sacudiu os cabelos, que os maldizentes pretendiam louros demais, e levantou a cabeça para sorrir de prazer. Um lindo sorriso de criança contente, e nem por sombras o de uma rapariga leviana.

- Moramos na sua casa - disse Isabel.

- Ah! Já a tinha reconhecido, Menina. Diverte-se em Petites-Dalles? A região é bonita, não é? E durante este tempo podem tomar-se banhos tão agradáveis!

Mas chegaram os fregueses e ela tomou de novo o seu ar de comerciante para gabar os fatos de banhos e as toucas de borracha.

Liseron afastou-se pensativa, com os pés nus nas sandálias. No Sanatório adquire-se uma facilidade extraordinária para decifrar o segredo dos semblantes que se inclinam. Rosto inquieto do médico, rosto atento e meigo das enfermeiras, rostos desanimados ou confiantes, endurecidos ou sonhadores, nos companheiros de desgraça.

Um pestanejar, uma contracção de lábios, uma ruga na fronte, tudo isso indica que um pensamento passa. As pessoas sãs não prestam atenção a estes pequenos nadas: têm muito para onde olhar. Mas para os doentes, é o seu campo visual. Nada lhes escapa destas cambiantes fugitivas da alma. E imediatamente as traduzem.

Liseron "traduziu" o que lia no rosto da Rosa. Eram só pensamentos de justiça, corajosos, honestos. E até mesmo se esboçava um reflexo de ideal. Então um pouco de cor nas faces e um vestido muito decotado era o suficiente para se colocar uma pessoa junto daqueles que nada valem?

Um problema. A Jeanine pintava-se... mas era uma senhora casada. A Fani pintava-se mais ainda... mas trabalhava na moda. Admiravam-nas: à Rosa, criticavam-na. Mas a Rosa servia num bazar. Talvez fosse realmente preciso pintar-se para se gerir um bazar. A quem perguntar isto, se a Marieta detestava todo o género de pinturas?

Perguntou à Teresa, que nada usava naquelas lindas bochechinhas de maçã fresca. Mas a Teresa contentou-se em rir.

- Oh! Os "porquês" da Isabel!

A Teresa ria sempre, durante estas férias. E ninguém a via senão às horas das refeições. Passava todo o dia com o Sílvio, um rapaz alto, indolente e flexível, comparado com ela, redondinha e viva. Como nadavam bem os dois!

A Teresa com os lindos braços estendidos, atirava-se à água com tanta elegância e ousadia que a Isabel sentia vontade de a aplaudir. Mas uma segunda admiração vinha logo a seguir a esta: o mergulho do Sílvio, duma graciosidade alegre. Nadavam juntos para o largo, para depressa voltarem à prancha e recomeçarem. Era magnífico: um voo de costas!

Isabel invejava-os, ela que detestava o contacto com a água fria, e a quem a Marieta, este ano, só permitia uma rápida molhadela, seguida duma fricção.

Estefânia, que nadava mal, tinha outro modo de gozar os prazeres da hora do banho. Estendia, na praia, os membros bronzeados por um óleo em voga.

Lindos membros esguios, de estátua. Perto dela, fortes, doirados, outros corpos, desdenhosos de vestuário, abandonavam-se ao calor das ondas luminosas. Tão pouco, tão pouco cobertos... A Fani não tinha vergonha? Isabel recordava outros corpos, na mesma posição, no Sanatório, mas pudicos e respeitados na sua nudez por quem os tratava. Seria devido à sua miséria esquelética que não ousavam mostrar-se, enquanto que Fani era sã, esbelta e linda? Mesmo assim... O corpo jovem de Isabel, nem deformado, nem ferido, estremeceria de vergonha se assim se exibisse. Aquilo que a Fani se permitia, ora de rosto voltado ao Sol, ora ao contrário, a cabeça soerguida pelo braço dobrado, não devia ser completamente bem. Mas aqueles homens, aquelas mulheres jovens, faziam-no também. Talvez que Isabel fosse tola em se admirar daquela maneira.

Ah! Estas admirações, como embaraçavam o seu desabrochar! "Não compreendo nada disto. Se compreendesse seria feliz". Fosse como fosse, gostava das precauções que a Marieta tomava para a tratar ou para a vestir; nesses momentos Marieta parecia respeitosa.

Um dia, vagueando pelas rochas que exalavam o cheiro selvagem das algas, viu a Rosa a tomar banho. O seu fato - ela que os vendia tão indecorosos - era semelhante ao de Isabel, escolhido pela respeitosa Marieta. Bem entendido, não é à hora favorável à natação que se pode deixar uma loja onde os clientes afluem. Portanto, a Rosa não estava a tomar banho por divertimento. Entrou suavemente na água, que estava baixa, e ajoelhou-se com os magros braços cruzados sobre o peito. Todos os seus gestos eram simples, discretos, puros. Liseron estava radiante.

- Quando comparo este banho com o da Fani!... Se a Rosa é tão simpática, para que se pintará daquela maneira?

Mais um "porquê". .

Foi a Marieta quem trouxe a resposta. Pois a Marieta, inimiga das pinturas, era amiga da justiça. Ao ouvir Fani criticar, uma vez mais, "o género desta pequena", declarou:

- Fani, não é bom julgar os outros precipitadamente.

Falei da Rosa à Mãe Martin. Repeti-lhe o que se dizia. E, calcule! Ela não sabia que a Filha se pintava daquela maneira. Por isso, à noite, fez-lhe uma cena e deu-lhe uma bofetada. Mas a pobre pequena respondeu: "É o sr. Alexandre que mo exige, para que eu tenha um ar moderno. Antes de voltar para casa lavo sempre a cara; deixo somente o preciso para que a minha Mãe me ache com bom aspecto. Por isso, deixe falar o mundo. Sinto-me feliz por trabalhar para si, Mãezinha". Então, a Mãe Martin pediu à Filha perdão da bofetada e chorou muito ao pensar no seu defunto Marido. Parece que é corajosa e boa, aquela criança. Levanta-se antes do Sol, lava, engoma, varre, para que a Mãe descanse. "Dar que falar" disse-me a sr.a Martin - "É mais para temer que se faça Irmã de caridade. E tomam-na por uma leviana! E eu bati-lhe!" Aqui tem, Fani, o que é a Rosa Martin.

- Que lindo! - ridicularizou Fani.

Isabel na sua admiração abriu a boca mais ainda do que de costume.

Fani gostava de contradizer. Mas a Mãe fê-la calar. Jeanine era sensível à poesia da virtude, e a alma que continuava boa sob o verniz mundano, depressa se rendia...

Foi com verdadeira alegria que Isabel notou essa emoção. Um dia, certamente, Jeanine experimentaria uma emoção semelhante, ao compreender quanto o Marido a amava.

Quanto a Isabel, a história da Rosa, frívola por heroísmo, parecia-lhe tão bela que o seu coração não se cansava de a recordar. Que coragem e que amor! Mais de uma vez a Isabel a tinha visto - uma amiga guardava-lhe a loja, enquanto ela fazia compras - entrar na capela à beira do bosque. As orações desses lábios, inocentemente avermelhados, deviam subir, lindas, para Deus, silencioso e atento. Mais belas, certamente, do que aquelas que vinham dos lábios de Isabel, lábios sem pintura, mas que pediam coisas sem nada oferecer. E coisas destinadas a si própria.

A partir de então, Liseron pediu para os outros. Para todos os outros. Para os que estavam perto: para o Pai, cuja alma estava encarcerada e que escondia, por detrás daquele muro de banalidade fria, um segredo fremente ; para Jeanine, boa para todos, menos para ele que a adorava; para a Teresa que tanto desejava casar-se com o seu Sílvio; para a Estefânia que, às vezes, parecia má, mas que depressa se arrependia profundamente das suas palavras ofensivas ; para o João-Lucas, bonzinho mas mentiroso e indolente; para a Marieta... o que pedir para Marieta? Só ela parecia bem no seu lugar, no meio daquela família, e possuir a paz.

Mais longe, havia a Odília que detestava sofrer; o Pedro, o grande amigo, em conformidade com o sofrimento. E mais além... o mundo inteiro, tão incerto, segundo a opinião dos adultos que trocavam entre si palavras tristes, apesar da alegria doirada do Verão. "Revoluções... guerras... falências... ódio de classes... catástrofes...". No Sanatório, falava-se sempre de confiança... Já que a França estava doente, porque não a faziam readquirir a confiança? Lá, os médicos diziam: "servir-se até dos contratempos... recomeçar... ter esperança... querer...". Aqui não se ousava, sequer, ter esperança.

Quando a Isabel for grande poderá fazer alguma coisa para retirar o sofrimento do mundo? Saberá ela fazê-lo? Não se sentia nem forte, como a Rosa, nem sensata, como a Marieta, nem simples, como a Teresa: um nada, "um liseron". "Um liseron" pode servir para alguma coisa? Teria sido para servir, que Deus o impedira de quebrar-se, no Sanatório? Mas se a vida era demasiado dura, dura como a previam os pessimistas, não se quebraria o liseron?

A Rosa pintava as faces para exercer a sua profissão. Liseron podia tentar pôr alegria nas faces, para exercer a sua profissão de mercadora de felicidade. Oh! Estes ares de lunática, estas preguiças, estes caprichos, que se permitia, tudo devia desaparecer, substituído pelo amor. E então, Isabel, tendo por pintura o seu sorriso, trabalharia para a felicidade dos outros, e, em primeiro lugar, destes dois, que era preciso reconciliar: João e Jeanine.

Escreveu sobre o amor - de que tudo ignorava

- versos a imitar os de Romain Villanel; pobres versos, pueris e belos, como a história da Rosa.

E cada dia, as más línguas continuavam a predizer: "há-de dar que falar, aquela Rosa", enquanto que, terna, sensata, prudente, com a alma branca sob a pintura, ia tão bem, a Rosa, sem imaginar - ela era tão simples! - que o seu exemplo inflamava uma alma.

 

A história da Rosa: uma história de amor. A história da Teresa: uma história de amor. Duas espécies de amor. Mas Isabel pensa que amar, no fundo, é sempre a mesma coisa. Quando se ama, dá-se tudo.

A Teresa andava radiante. Até parecia bonita, embora o vento do mar lhe pusesse o cabelo em madeixas, o Sol a queimasse ao acaso e ela usasse sempre o mesmo vestido, cortado a direito e um pouco apertado, pois tinha engordado. Nenhum requinte. Sem dúvida, o Sílvio gostava deste género de maçã fresca, muito simples!

Todavia, ele era um lindo rapaz, nem por isso muito simples: esbelto, grácil, um pouco fantoche, pensava Liseron; sim, ele parecia estar sempre pronto para pular, dançar. Mas que lindo sorriso, naquele rosto fresco de olhos meigos. E que elegância, mesmo quando envergava a sua velha camisola cor de laranja!

Sentindo aproximar-se o fim da licença da Teresa, que voltaria para Paris com o Padrasto, nunca se separavam, aqueles dois. Eram alegres, sem cerimónias, brincavam como crianças. Mas a Isabel vira-os beijarem-se no bosque. Beijos muito demorados, cortados por frases asperamente pronunciadas, muito baixo. Mais tarde, Isabel apoiar-se-ia, assim, no ombro dum rapaz alto E ele chamar-lhe-ia: "minha querida! Manteve-se sonhadora durante todo esse dia em que o hálito dos bosques cheirava a folhas quentes.

Mas não se falava ainda de noivado. Certamente devido à "situação de Sílvio": sempre aquelas questões de dinheiro; Isabel apanhava no ar frases soltas.

- Os Pais são muito engraçados. Julgam que as coisas agora se passam como em 1900. A situação? Consegui-la-emos os dois. Não é verdade, minha Teresa, que não tens necessidade duma casa luxuosa, como um salão Luís xvi, pratas, o armário cheio de linhos e uma criada? Se é preciso esperar que eu possa proporcionar-te tudo isso, quando nos casarmos teremos cem anos. Ou, o que é mais certo, eu já terei morrido. Tenho necessidade da Teresa para me tornar alguém. E até mesmo para viver.

E a Teresa tranquilizava o seu querido rapaz: tudo se arranjaria antes de chegarem aos cem anos.

"Farei o peditório no casamento deles?" perguntava Isabel a si própria, dançando ora num pé, ora noutro, tanto aquela esperança a entusiasmava. Queria um vestido comprido.

"É demais" - pensava a Fani - "um rapaz como aquele apaixonar-se por esta rapariga gorda!"

Enraivecia-se. Porque a Fani estava habituada a arrastar atrás de si todos os rapazes. E aquele tão encantador, escapava-se-lhe! Aquilo estragava-lhe as férias.

De resto, era incompreensível, aquele namoro! Que havia de comum entre a Teresa, simples empregada dum banco, nem bonita, nem chique, nem artista, e o Sílvio Delorme, pintor de talento? Que absurdo! Ah! a Teresa soubera prendê-lo na sua rede. Uma leviana sob a aparência de boa rapariga. São as piores. Felizmente que se ia embora. A Fani teria, só para si, o quarto que dava para o terraço e os rapazes.

Assim, as três Irmãs contavam os dias. A Teresa para reter cada um contra si, olhá-lo ternamente, antes de o deixar fugir. A Fani para os impelir para o futuro. A Isabel para se admirar como o tempo passa tão depressa. No Sanatório não se dava pelo seu desenrolar. Então o tempo não era sempre igual?

E, além disso, duvidava do bom êxito da sua tarefa. Tornar o Pai feliz, como lho pedira aquela que Deus levara? Era demasiado difícil.

O João não podia ser feliz com aquela barreira que continuava a erguer-se entre ele e a Jeanine. Às vezes, dir-se-ia que a barreira ia abrir-se, mas um avanço desastrado tornava a fechá-la. A Isabel não soubera derrubar a barreira. E o João ia voltar para Paris, onde ela se tornaria mais alta ainda, e tão pesada que nunca, nunca, as suas mãos de criança conseguiriam afastá-la, para que a felicidade passasse.

Todavia, eles amavam-se, visto terem casado. E bem mereciam ambos ser amados. Jeanine era linda e boa ; João, - oh - era um homem extraordinário, embora parecesse um homem sorumbático. Inteligente, culto, eloquente, terno. Junto dele, Isabel sentia que na sua alma vibravam pequeninas asas. As pessoas que assim conseguem que as asas se abram, deveriam ser loucamente amadas. Mas saberia a Jeanine que o Marido dava asas? Na sua presença não era mais do que um homem sorumbático. E ela também não passava duma senhora de quarenta anos, com um feitio desagradável, uma voz metálica, e rugas na fronte, que a envelheciam, enquanto que parecia uma rapariga de pele fresca, quando se divertia.

O João não compreendia a Jeanine. A Jeanine não compreendia o João. Passariam toda a vida asssim, a quererem amar-se, sem se amarem?

A Isabel habituara-se a acompanhar o Pai, todos os dias, num dos seus passeios. Só num: porque aquele Pai procurava o silêncio, ao contrário das outras pessoas - da Jeanine, sobretudo - que iam sempre em grupo. Isabel também não gostava de grupos. João-Lucas quisera levá-la com os seus amigos, mas ela escapara-se sempre. Juntar-se com os rapazitos? Os seus jogos já não a divertiam. Com as raparigas Sentia-se intimidada. De resto, tinha as suas ocupações: olhar o que a rodeava, pensar, O João-Lucas, descontente, chamou-lhe "velha selvagem" e não se ocupou mais dela.

Por isso, todas as manhãs, com o seu vestidinho claro, Isabel vagueava pela beira das falésias e pela praia. À tarde, era com o Pai que saía. Para ir, não importa onde. Era tudo tão belo! Até mesmo uma espiga abandonada pelos ceifeiros, uma borboleta de asas frementes sobre um trevo cor de rosa, uma nuvem desfiada pelo vento.

Gostavam especialmente de certa concavidade da falésia oriental, onde se estava longe dos homens e face a face com o sonho imenso. Para a atingir era preciso trepar, sempre a pique, desde o vale. Mas em seguida, que recompensa!

- A minha gruta de selvagem, - dizia o sr. Morlainville.

- A tua gruta de selvagem - repetia Isabel. Não ousava ir lá sem ele. Esta solidão era

demasiado pesada para a sua alma. Mas a presença paternal dissipava toda a angústia. Não havia mais do que plenitude feliz por entre a folhagem vergada pelo vento.

Na véspera da partida do sr. Morlainville não deixaram de lá ir. Era a última vez. Então, tudo acaba? Oh! apertar contra si esta alegria e também esta tristeza tão bela! Nunca mais... até ao próximo ano. Mas as pessoas habituaram-se a fazer cara triste quando se evocam os prazeres do próximo ano.

- Onde estaremos nós, minha pobre pequena?

Por isso, os jovens já não ousam ter esperança. É pena ; devia proibir-se aos mais velhos ter medo a tal ponto. Eles não sabem, de facto, o que está para acontecer. Fariam melhor se dissessem como o Pedro: "Deus sabe", e deixassem as crianças esperar que no próximo ano, no mesmo dia do mês de Agosto, haveria a mesma alegria azul, que se voltaria a esta concavidade da falésia, que se sentaria junto do seu Pai, que se falaria um pouco e calar-se-iam muito. Porque é impossível dizer tudo. E, certamente, não se deve dizer tudo: faria mal ao que escutasse... Mas compreendem-se um ao outro. Há como que uma onda que embala os dois corações. É-se muito feliz. Ama-se... Mas para o ano, é talvez com a Jeanine que o João voltará: se ela o amar...

Estiveram calados muito tempo. Liseron encostara a cabeça, toda em caracóis revoltos, na manga do jaquetão do Pai. Com o dedo, ele enrolava-os, sem lhes olhar a seda doce e escura. Olhava para além. Mais longe que além para o mundo dos sonhos. Liseron sentia-se bem. E, todavia, arrancou-se a esta felicidade íntima, porque ouvira um suspiro, e parecia-lhe que esse suspiro era o sinal de que alguma coisa estremecera no sonho alegre do seu companheiro, e que ele desejava pensar sozinho. Desencostou-se, pôs-se de pé num instante e, direita entre o horizonte e a relva, sorriu-lhe.

- Paizinho, dás licença que vá apanhar flores?

Ele estendeu-lhe ambas as mãos:

- Como é belo, uma rapariguinha de branco à beira duma falésia!

Ela tomou-lhe as mãos, muito flexível, curvou-se para ele, beijou-o na fronte, gravemente, e depois afastou-se, deixando a alma junto daquela alma.

Passear? Não tinha desejo algum de o fazer. Mas a Rosa nem sempre tinha desejo de vender cadeiras dobradiças e bilhetes postais; e nunca o desejo de tomar "mau género". Para a Rosa era aquilo, amar... Talvez o João ficasse contente se o chamasse uma última vez. Gritou:

-Hú-hú!

A voz do Pai respondeu: "hú-hú!" alegremente,

- Agora deixemo-lo tranquilo.

Colheu algumas flores, não muito bonitas, flores corajosas que haviam lutado contra o vento, e ainda estavam pálidas. E depois sentou-se à sombra duma macieira curvada. Tirou da carteira uma agenda, um lápis e compôs versos. Tentou compô-los. Mas decepcionaram-na.

- Sim! Isto rima. Mas não sei que palavras hei-de escolher para exprimir aquilo que vejo. Ah! Se eu fosse Romain Villanel!

Emudecer: vale mais ainda. O mar fala, ao fundo da falésia. E também as recordações. E a esperança. As pessoas grandes enganam-se quando dizem "tudo corre mal". Num dia como este, todo ouro, a esperança vive. A Teresa há-de casar com o Sílvio, o Pedro há-de curar-se, o João e a Jeanine serão felizes, para o ano voltar-se-á, não haverá guerra nem revolução, e o mundo inteiro há-de amar-se. Pois se há tanto amor no coração duma rapariguinha, com certeza ainda há-de haver alguns restos no coração dos outros! Mas os homens não se compreendem, não tentam compreender-se. É estúpido. Fazem como o Paizinho que esconde aquilo que é, e se disfarça tão bem em senhor rabugento e aborrecido, a quem a mulher chama "manga de alpaca" desdenhosamente.

E se a Liseron voltasse para junto desse senhor? Talvez esteja realmente a dormir. Se assim fosse, seria muito agradável velar por ele, como se fosse o filhinho da Liseron. E é um pouco seu filho, visto que Colette lho confiou.

As sandálias brancas dirigem-se, dançantes, leves, para a "gruta do selvagem". Não façamos barulho, sobretudo! Sorrindo, pôs o dedo nos lábios, como para se avisar a si própria, e tornou o passo mais leve ainda.

Olha... está a falar! Quem iria ter com ele? Não conhece, não quer conhecer ninguém, esta criança ... Devagarinho... Se é algum turista impertinente, a Liseron vai-se embora outra vez. Mas não: o seu Filho está muito simplesmente a recitar versos. Que linda voz, meu Deus, que linda voz! De súbito curva-se e foge. Ri, treme. Chegaram até ela algumas frases: "a minha filha tão pura... o seu olhar de pervinca... a seda negra dos cabelos... a alvura do vestido... quinze anos..."

Liseron ajoelha-se voltada para o vento que traz até ela aquelas palavras. Aperta as pálidas flores contra o peito, e sente o coração a bater. Sem dúvida, é o estilo de Romain Villanel: reconhece-lhe o tom, a forma. Mas, então, Romain Villanel tem uma filhinha já grande, vestida de branco, com cabelos negros e olhos azuis?... Uma outra palavra, pronunciada lentamente, vem até ela: "Isabel". E volta sempre, no princípio de cada estrofe, como uma litania. Então arremessa-se, corre. Tanto pior, tanto pior para tudo. Longo assobio do vento, e ei-la na "gruta do selvagem", na gruta do poeta. Tem vontade de dizer:

- Paizinho! Mas então és tu o Romain Villanel?

Mas de súbito não ousa. Agora, que conhece o segredo, aquele sonho demasiado grande intimida-a.

E além disso, naquela fronte alta, já desguarnecida pelos anos, há a chama da inspiração. Por isso, ajoelhando-se, diz-lhe simplesmente:

- Paizinho, aqui tens as flores.

E ele, ainda demasiado comovido para falar, pensa: "A minha flor és tu".

Vai embora amanhã. Aquela noite, toda aquela noite, vagueou pelos lugares altos, aqueles donde se vêem o mar, as estrelas e os bosques, tudo ao mesmo tempo. Isabel deixou-o só. Sente-o perturbado pela partida... Quanto a dormir, ela? É-lhe impossível. Tudo aquilo, tudo aquilo descoberto num repente. O Paizinho um grande poeta! O Paizinho desconhecido dos outros, e porque assim se quer. O Paizinho deixando que acreditem que só pensa nas suas pantufas, no seu jornal, e nos seus registos. O Paizinho um burguês taciturno. Ele que escreve tais coisas! E que as pensa, que as sente, que as tem dentro de si, e que, quando voam, se sente liberto. Isabel é filha dum grande poeta!

Sim, mas ele não deveria ocultar-se assim! Assemelha-se a uma mentira, e todavia, o Paizinho não é mentiroso. Então porque não quer ele que se saiba que compõe aquelas poesias admiráveis? Por que razão? Isabel pensou nos banhistas que se estendem quase nus na areia, e na Rosa que, púdicamente, se afasta. Talvez que o Paizinho não goste de expor a sua alma a nu; assim, cobre-a com um nome que não é

o seu. É compreensível. Contudo... há a Jeanine, a sua mulher. Deve-se dizer tudo à mulher. Quando Isabel se casar, se o marido lhe esconder os seus pensamentos, nem que seja somente um nada, do tamanho da unha do dedo mínimo, não mais o amará do mesmo modo. E a Jeanine seria tão feliz se soubesse que tem por marido um grande poeta! Sim, grande, disseram-no os jornais. De resto, Isabel sabe-o perfeitamente. transforma a alma, aquela poesia.

Dormir! Não... Ao longe o suspiro ofegante do mar. Os grilos tocando viola no jardim. Dormir... O paizinho consagrou os seus versos à Filha. E não é só dos seus olhos, dos seus cabelos, mas da sua alma que ele fala. Liseron julgava que ele nada adivinhara da sua alma e que nela via sempre uma criança. E eis que os seus grandes espantos, a sua esperança, o seu amor pelas pessoas e pelas coisas, tudo ele conhecia. E melhor do que ela própria, que pensava sem saber o que pensava, Romain Villanel, com quem sonhava, estava ali, junto dela, a olhá-la, a escutá-la e a dizer em verso aquilo que ela própria não sabia exprimir em palavras de todos os dias! Que extraordinária aventura!

Romain Villanell... um feiticeiro. Ergueu a varinha e Liseron vê os seus pensamentos a dançar numa roda. "O Sonho duma noite de Verão." leu-o no Sanatório e falou sobre ele ao Pedro. A fada Mab, muito pequenina, é ela. O mundo chama-a. O mundo cheio de amor e

de miséria. O mundo que tem mal por toda a parte e que, apesar disso, quer curar-se e ser feliz. O mundo onde existe o pecado e também a santidade. Rosa, pequenina Rosa... Marieta: humildes, mas tão grandes; Pedro,um prostrado, mas mais vivo do que todos aqueles que se mexem.

"O Sonho duma noite de Verão"... Oh! este suspiro do mar, que há-de durar até à consumação dos séculos! Isabel vai até à janela e inclina-se. Quantas estrelas, meu Deus! Tem medo. O que é uma pequenina Liseron ao pé destes mundos? E o que é o dia que acaba, em face da eternidade! Nada, não são nada. Como a passagem é breve! Já lá vai metade das férias. Oh! Como a calma se dilata! Quinze anos: é uma criança ou uma mulher? Quando crescer, tornar-se-á sensata e boa, ou egoísta, frívola? Não, isso não. Há, sem dúvida, uma missão a cumprir antes de morrer. Mas, o quê? É preciso saber. Sabê-lo-ão as pessoas?

O Sonho duma noite de Verão... O Sonho duma noite de Verão... Como são lindas estas palavras! Isabel não pode mais. Deita-se na cama que ainda está morna, e entrega a sua alma nas mãos d'Aquele que guarda os passarinhos entre a folhagem.

 

PAZ duma manhã de domingo. Esse dia inteiramente diferente de todos os outros. O céu refrescado é uma aguarela. Ao longe, os sinos anunciam donde vem o vento: vamos ter um lindo dia. O sr. Morlainville, que parte esta noite para Paris, ainda viverá um dia de oiro. O último: como a felicidade foge! Mas uma alma de poeta - Isabel ainda não o sabe - guarda de tal modo as impressões dos dias felizes, que continua a vivê-los até ao fim da vida. Para esta alma haverá um passado definido? Não estará tudo ampliado na medida do sonho? As férias acabam, mas a sua beleza continua na recordação. Para sempre.

Mas isto, os outros ignoram-no, e pensam que, ao voltar para Paris, o sr. Morlainville tudo perde. A Isabel não estaria assim triste se soubesse que ele leva o Verão nos braços, na alma. Mais tarde talvez o compreenda, por experiência própria: agora é ainda uma criança.

Voltavam todos da Igreja e a dois a dois, porque o caminho era estreito por entre as ervas. À frente, o João-Lucas e a Teresa, que gostavam muito um do outro: a Teresa era tão maternal! A Estefânia e a Mãe, que falavam dum vestido extraordinário que viram à saída. A Isabel e o Pai, os silenciosos.

Por vezes, a pequena levantava a cabeça. incomodava-a o grande chapéu - para olhar esse poeta que descobrira na véspera. Se os outros soubessem! Durante a missa, toda a sua força suplicante se concentrara nele, que mantinha uma atitude indiferente na presença divina. Depois de o haver arejado com as asas da sua alma, caminhava a seu lado, como uma mãe ao lado de um filho.

E os passarinhos, num esvoaçar alegre, cruzavam o ar por sobre essa boa gente que levava consigo um perfume de incenso para as algas da praia onde subia a vaga selvagem.

O Pai e a filha atrasavam o passo, retidos pelo prazer de caminharem juntos. Viram, ao longe, a Teresa deixar a família para ir ao encontro do Sílvio, e o João-Lucas correr para os amigos. Fani e a Mãe empurravam a grade branca.

- Muda de vestido, Isabel - gritou Jeanine enquanto colhia uma rosa.

Mas a Isabel, que não gostava muito de obedecer, achou mais importante sentar-se no banco, junto ao Pai.

- O último dia! - suspirou este, tirando o chapéu cinzento e passando lentamente a mão pela testa. - Amanhã na gaiola, até o próximo ano.

- Porque escolheste esse emprego, se não gostavas dele?

- Escolher? Fiz o que fazia o meu Pai, que já tomara o lugar do seu. E aqui tens tu como se falha uma vida, e se dá naquilo a que a tua Mãe chama um "manga de alpaca".

Um silêncio. Ambos pensavam em Romain Villanel.

- Paizinho, falharei eu também na minha vida?

Ele olhou-a, àquela evadida da doença, ainda esguia, mas de rosto tão rosado.

- Que gostarias tu de ser mais tarde? Em que ano estás?

Pela primeira vez ocupava-se dos seus estudos. Durante os seus passeios sentira junto dele uma personalidadezinha complexa, e julgara-se culta; mostrava tanto interesse por tudo... Mas, ao interrogá-la, descobriu a sua ignorância. Pasmou, indignou-se, acusou Jeanine, repreendeu, com bastante rispidez, Isabel, que ao ver passar a Rosa, tão activa, se sentiu ainda mais confusa. Tentou explicar ao Pai como perdera o hábito de estudar e como se aborrecia nas aulas.

- Precisavas de lições particulares - observou ele.

- A Mãezinha acha que é muito caro. Um brusco encolher de ombros:

- Tens a fortuna de tua Mãe, Isabel. Já me permitiu que te proporcionasse os cuidados de que precisaste; agora servirá para a tua educação. Não voltarás para esse colégio medíocre onde te sentes asfixiar.

Mas da janela uma voz chamou:

- Isabel, decidir-te-ás, enfim, a mudar de vestido?

- É só no que pensa - murmurou João, com os dentes cerrados. - Era melhor que se ocupasse dos teus estudos.

"E tu?" - pensou a criança, que se habituara a julgar - "preocupaste-te em saber como reagia ao voltar do Sanatório? Sempre escondido atrás do teu jornal..."

Teria ele lido na expressão dos olhos claros da criança que, preparando-se, finalmente, para obedecer, se mantinha de pé diante dele? Isabel conservava ainda aquele olhar directo e intimidante das crianças, que faz baixar as pálpebras dos mais velhos. Tomou-lhe as mãos.

- Eu também, pobre pequena, deveria ter prestado atenção a esse difícil retorno à vida. Mas, sabes, há tantas coisas que pesam, tantas coisas..

Ela pensou ainda: "Se não nos escondesses essas coisas, seríamos mais felizes em casa. E terias tempo de te ocupar da tua filha".

Mas viu tantas rugas naquela fronte marcada pela vida, que se curvou para beijar o poeta. E, sem esperar terceiro aviso da madrasta, subiu a escada a correr.

Encontrou a Teresa no quarto, com os olhos vermelhos de chorar.

- Estou farta de procurar, por toda a parte, a chave da minha mala, sem conseguir encontrá-la.

"É um pretexto" - disse consigo Isabel.- "quer falar-me". E, com efeito.

- Isabel... Escuta.. Se fosses boazinha.

- Escuto e sou boazinha, minha Teresa. Oh! Vejo bem que tens um desgosto. E compreendo-te: voltar já, trabalhar enquanto os outros continuam aqui, e com um tempo tão bonito!...

- Não me compreendes completamente: O Sílvio também fica. Se mo roubassem...

- Que parvinha que é esta pobre Teresa interrompeu a pequena alegremente, despojando-se do vestido. - O Sílvio adora-te. Não, não, não sou demasiado pequena para falar destas coisas. No Sanatório havia alguns que estavam noivos.

- E casavam-se?

- Quando não morriam...

- Queres que te abotoe o vestido? Isabel, diz-me francamente: eu sou feia, demasiado gorda, sem elegância, tenho o nariz arrebitado. Como queres que ele, um artista, me prefira a outras raparigas, lindas, como a Fani e as amigas?

- Todavia, ele prefere-te. Asseguro-te que é uma coisa que está à vista; ouve: tu não és nada feia. Tu és... -como hei-de explicar a minha ideia? -: és natural, és o que aí está, sem fingimentos. Tens umas bochechinhas redondas e frescas, deliciosas para beijar. A tua boca? Um fruto. Olha, és uma maçã; o verde dos teus olhos, a cor-de-rosa das tuas faces, um belo perfume de saúde. Estou convencida que o Sílvio é doido por maçãs. E além disso... mas vais dizer que digo tolices.

- Já disseste muitas, garanto-te.

- O Sílvio? Olha, é uma criança grande. Precisa que alguém lhe dê a mão para o tranquilizar e para o impedir que se desvie do bom caminho. Só tu és capaz disso. Porque tu... a gente pode imaginar-te uma mãezinha, com pequerruchos à volta da saia, e um bebé nos braços. Compreendes, o Silvio será plenamente feliz junto duma mulher-mãezinha. Mas estás-me a beliscar!... Não é esse botão!

- É que tu dizes-me coisas, coisas... És um amor. Escuta... apesar de tudo, vigia-o quando eu cá não estiver, o meu filho grande.

- Prometido! Mas que coisa tão engraçada uma rapariguita a tomar conta do noivo da irmã. Está combinado, minha querida Maçã.

- Minha Maçã! Aí está um nome!

- E fica-te maravilhosamente! Como as tuas bochechinhas são boas para beijar! Era tudo o que querias pedir-me? Fala, em vez de tomares esse ar tão triste.

- Poderias ajudar-me... a fazer a mala? tenho tanta vontade de passar o dia com ele!

- Faço-a sozinha, a tua mala. Põe as coisas em cima da tua cama, ou antes, na minha, por causa da "menina" Fani que desarruma tudo. Vai nadar, passear. Fica descansada: a mala há-de estar pronta a tempo e horas. E depois, estarei de guarda como um dragão para que não te roubem o teu Sílvio.

Partiram ao anoitecer. Um anoitecer tão belo que, partir, despedaçava o coração. Junto do automóvel o Sílvio beijou a Teresa nas faces, aquelas faces de maçã onde uma lágrima rolava. Liseron disse, muito baixinho, ao Pai:

- Sabes? É preciso ser amável para com a Teresa. Ela tem um grande desgosto.

E o sr. Morlainville, enternecido pela partida que fazia vibrar a sua alma de poeta, pôs a mão no ombro da rapariga tão triste.

- Não estejas tão desolada, minha Teresa. Como tens feriado aos sábados, virás passar os fins de semana em Petites-Dalles. Eu pago-te a viagem.

- Hurrá! - gritou o Sílvio. - A vida é bela E beijou, uma vez mais, a deliciosa bochechinha.

A Fani, que tinha horror às "efusões", absteve-se de assistir à partida. Portanto, Isabel ficou sozinha com a Madrasta que não parecia satisfeita. Todavia, se ela não gostava do "manga de alpaca"...

Isabel, pressentindo-lhe uma angústia, uma misteriosa angústia de mulher, passou o braço sob o seu, tão belo, tão roliço. Acalmar-se-ia Jeanine se soubesse que "o manga de alpaca" era um grande poeta? Mas teria Isabel o direito de lho revelar? E não sofreria Jeanine mais ainda em face da reserva do seu marido? Impossível resolver semelhante problema. Isabel era nova demais, e aquela a quem chamava "mãezinha", ainda que no seu pensamento fosse apenas "Jeanine", não podia ter para com ela os sentimentos duma verdadeira Mãe.

Era uma senhora, e nada mais, a mulher do Paizinho, a mãe das mais velhas e do João-Lucas, que era muito sua amiga, uma senhora muito bonita e muito bondosa que gostava tanto de dançar, de jogar, de nadar, como uma rapariga. A Teresa havia de ser uma mãe mais cuidadosa. Sentia-se a gente tranquila junto daquela rapariguinha roliça, acreditava-se na felicidade. Era por isso, sem dúvida, que o Sílvio a amava tanto.

O Sílvio... Vigiar um rapaz como aquele, era uma missão nada fácil!

Nos primeiros dias tudo correu na perfeição. Ele vagueava, enfiado na sua velha camisola toda enrugada, com um grande cachimbo negro na boca; nem bonito, nem elegante: um fantoche

cujo cordel quebrara. Então a Isabel ia ter com ele ao caminho. E ele resmungava:

- Nunca pensei que fosse possível uma pessoa aborrecer-se tanto! Que raio de terra! Tomara já que as férias acabem!

Outras vezes ia pintar para o bosque. Isabel aproximou-se e, a princípio, foi bastante mal recebida. Mas era tão simples, tão gentil, que ele se enterneceu. Emprestou-lhe um pincel, ensinou-a a preparar-lhe a paleta. Era delicioso. Assim obedecia à pobre Teresa, vigiando a criança grande, o fantoche de semblante triste.

A Teresa chegou no sábado; o fantoche endireitou-se. Banhos, passeios "a dois", risos, silêncios, projectos de futuro. Já não havia necessidade de Isabel que, sempre a fugir do grupo do João-Lucas, vagueava, solitária, pelas falésias. Mas a Marieta, no domingo à noite, chamou-a à parte e, com olhar severo por detrás dos óculos, disse-lhe:

- Na tua idade deve brincar se, em lugar de armar em lunática, ou de passear com um senhor. Vai com o teu Irmão.

- Não vou; os seus amigos aborrecem-me.

- Pensas demais e não obedeces o bastante... Julgas-te já uma pessoa grande.

- Então, o que sou? Um bebé?

- Tu és... tu és... nem uma coisa, nem outra. E o Verão é uma estação perigosa. Repara na Rosa Martin.

- A Rosa? Uma rapariga admirável. Sabe-lo perfeitamente.

- Sim. Mas todos falam dela. E eu não quero que se fale de Isabel Morlainville.

- Dragão velho! - gritou-lhe, colérica, Isabel. E Marieta, zangada, tratou-a por "menina"

um dia inteiro.

Mais uma semana de felicidade azul. O fantoche mais uma vez quebrara o fio. Mas chegou um colega do atelier, o Carlos, um gigante engraçado. Troçou dos ares românticos do Sílvio e declarou que se encarregava de o arrancar àquele negrume em que se afundava. O Sílvio, que detestava o negro, deixou-se manejar. Carlos pediu-lhe que o apresentasse ao grupo divertido da terra; e em breve, os dois amigos, alistados no grupo de Fani, rivalizavam em alegria.

Foi então que a Isabel desejou juntar-se àquele grupo.

- Não queremos lá mosquitos como tu declarou-lhe a Fani, um dia em que a pequena perguntou se poderia tomar parte num piquenique.

E Marieta a aprovar:

- Ela que vá brincar com o João-Lucas. Não ceda, Estefânia.

Cruel Marieta... Se ela soubesse a razão, com certeza teria facilitado a Isabel o acesso àquele grupo, embora lá se fizessem mil loucuras e fossem tão exíguos os trajos dos que dele faziam parte.

Não. Nem a Marieta, nem a Fani, nem a Jeanine, condescenderam. E a pobre Isabel perdeu de vista a criança" confiada aos seus cuidados.

Mais um fim-de-semana. A Teresa chegou, fruto empalidecido pela cidade, mas contente. O Sílvio não estava à espera do automóvel, na curva da estrada. A passear de "charuto" os fatos de banho encarnados e azuis, Fani e as amigas, deixara passar a hora. Afogueado, arrependido, correu a casa da Teresa e depressa obteve o perdão, fácil de conseguir quando se pede com tanta gentileza... À noite, a Teresa passeou pelo seu braço, e ele sentia-se tão feliz como ela. A sua Teresa, tão boa, com aquele coração da mãezinha-amiga, repousava-o deliciosamente da semana um pouco perturbadora. Mas no domingo o grupo todo ia ao Casino de Diépe. Por que razão recusaria a Teresa divertir-se como os outros? Por fim cedeu, mas a sua presença parecia incomodar toda a gente. Evidentemente, não tinha nem o bronzeado, nem o vestido próprio, pois vinha da cidade. E sobretudo, sobretudo... não tinha o tom".

De mala na mão, o Sílvio não deixou de a acompanhar ao automóvel. Cada domingo as sombras eram um pouco mais densas, e a partida um pouco mais triste, para o coração da Teresa. Ele beijava-a nas faces, não há dúvida. Mas ao regressar trauteava a canção em voga.

Viu surgir Isabel na ruazinha que sobe através das vivendas, e, apesar de tudo, a música alegre quebrou-se-lhe na garganta.

- Parece um gato selvagem, esta tarde, Isabel. Um gatinho novo, preto e muito zangado. Saudades da mana? Minha menina, não tenho tempo de passear consigo. Tenho um torneio de pinguepongue. Sou um ás para aquilo. Não quer vir admirar-me? Esta tarde não está bom tempo, para estar na praia.

- Não me querem no Casino, sabe perfeitamente.

- E tem muita razão. Somos um grupo de malucos.

Desdenhosa e desolada, virou-lhe as costas.

- Isabel... Isabel... Olhe para mim. Gostaria de pintar o seu retrato, assim, com o cabelo desgrenhado e com esses olhos azuis cheios de trágico. Está imensamente engraçada!

- Ah! como as pessoas grandes são estúpidas!- gritou ela, numa cólera súbita.

E afastou-se rapidamente, subindo a rua, para encontrar, lá em cima, ar puro.

E o Sílvio ficou imóvel, um pouco curvado na sua flexibilidade de fantoche, e comovido, não sei bem porquê.

- Pobre pequena! - murmurou numa voz em que pairava o remorso. - Pobre pequena! Há-de sofrer muito pela vida fora!...

 

JEANINE, com os lindos braços bronzeados estendia, de um espinheiro ao outro, os três fatos de banho que a água tornava pesados. A Isabel, que andava à volta dela, perguntou:

- Mãezinha, quando será o casamento da Teresa

- O casamento da Teresa? Mas que imaginas tu? Não vejo porque se há-de casar. Ah! Estás a pensar naquele rapaz Delorme com quem ela nada? Que absurdo! Ele não tem situação: um pintor, na época actual... De resto, a Teresa não é, nem por sombras, a mulher que lhe convém.

- É sim, Mãezinha; é em absoluto.

- Escuta, Isabel, estás a exagerar. Meteres-te assim na vida das pessoas grandes... O Sílvio Delorme e a tua irmã, são bons amigos, mais nada. Não quero que fantasies semelhantes romances. Brinca com o teu irmão; podes crer que é melhor para ti. Pronto, já está a chorar. Que criança tão sensível! Não quis ralhar-te. Senta-te nos meus joelhos e deixa-me embalar-te, assim... Asseguro-te que és muito nova ainda. Quinze anos! Mas tu julgas-te já com vinte... Não penses tanto, minha queridinha. Tens muito tempo para conhecer as nossas misérias.

A Jeanine não é a mãe de Isabel. Nem sequer é uma mãe como se imagina que uma mãe deve ser. No entanto, os seus braços estão habituados a envolver os filhos com amor; teve três, e esta para quem foi boa. E é tão linda! Meu Deus, como a Jeanine é linda com este raio de Sol a dançar-lhe no cabelo!

Isabel chora mais suavemente; mas ainda chora, porque há nela muita lágrima recalcada. E a Jeanine não pode compreender o motivo da sua angústia. Romain Villanel, que esconde a sua glória, a Teresa que confia a sua felicidade a uma Irmãzinha. Tudo isto é tão pesado, tão pesado! E não o pode desabafar com ninguém! Oh Mãezinha. Oh! Jeanine. Oh! Senhora linda do jardim, se soubesses o que vale o teu marido!

Mas a Jeanine, embalando-a, repete:

- As nossas misérias... as nossas misérias...

Ela, tão despreocupada, é essa a sua canção. Isabel ergue a cabeça para penetrar bem até ao fundo aveludado daqueles grandes olhos.

Não são alegres como se imaginaria. Vibra neles alguma coisa que facilmente se transformaria em dor.

- Todos deviam amar-se - suspira a criança.

- Amam-se - responde a mulher. - Amam-se, no fundo; mas fazem mal uns aos outros. Sim, é um bocadinho triste. Mas não penses mais nisso, minha querida Lili. És tão pequenina ainda! Aos quinze anos, ainda eu vestia as bonecas. Apetece-te requeijão, para esta noite?

Pequenina ainda... Então porque sente a alma a crescer tão depressa? Muito mais depressa do que os braços e as pernas, que crescem sem arrancos. Oh! Ver sempre esta gente que se ama e se fere, que cansaço! A Jeanine também deve cansar-se. Isabel beija a meiga face, para ostentar o sorriso de felicidade, espreguiça-se como um gatinho, declara-se radiante por ir comer requeijão, e afasta-se deixando Jeanine de pé sob a folhagem, loira, forte, jovem, mas de luto pela felicidade que talvez ela matasse por suas próprias mãos.

Jeanine, que era bondosa - não profundamente, mas bondosa, apesar de tudo - ficou impressionada com o desgosto da Isabel. Aquela adolescente que as pessoas grandes não queriam no seu grupo, e que recusava misturar-se com os mais pequenos, devia aborrecer-se muitíssimo. Ora, para Jeanine, o aborrecimento era a maior das tragédias. Decidiu, portanto, proporcionar a essa lunática um divertimento verdadeiramente excepcional: tomar parte no baile de máscaras que a juventude da terra andava a organizar alegremente. "O improviso e a fantasia são obrigatórios", anunciava o cartaz afixado à porta do hotel principal pelo Sílvio, que o havia pintado.

Deslumbramento... Mascarar-se? Era um dos ardentes sonhos de Isabel, cujo espírito andava sempre em busca de alguma coisa nova. Absorvida pela escolha do trajo, esqueceu um pouco os mais velhos com os seus intrincados problemas. De resto, a Teresa assistiria a esta festa na noite de sábado, e o sr. Morlainville também. Vê-los todos reunidos e a divertir-se, que sossego! Assim, Isabel poderia, sem preocupações, tornar-se um personagem de sonho, fugir aos seus vestidos, sempre iguais, imaginar que vive noutra terra, de modo diferente, que foge a todas as horríveis barreiras da realidade contra as quais se despedaça a fantasia.

Mas era muito ignorante. Os trajos históricos, que o Sílvio sugeria, nada evocavam a seus olhos. Ser uma pequena Tanagra? Récamier

 

(*) Troçavam das suas

(*) M.me Récamier: mulher célebre, pelo seu espírito, pela sua beleza, e pelo seu salão, onde se reunia a mais brilhante sociedade, durante a Restauração (1777-1849).- N. da T.

 

perguntas ingénuas e ela tinha horror à troça, sobretudo quando vinha das pessoas grandes.

"Veste-te de fada"-escreveu-lhe, finalmente, o Pai - "sabes bem que és tu a minha fada".

O Sílvio, entusiasmado pela ideia, esboçou um lindo desenho, que representava uma Isabel transformada em fada.

- Sobretudo, ponha-lhe asas - recomendara a criança, mas muito baixinho por causa daqueles trocistas.

E ele, encantador e grave, respeitando o mistério dum tal desejo, poisou um dedo nos lábios.

- Há-de ter asas - murmurou.

- O pior é a Marieta que vai resmungar. A Marieta é que deve fazer o vestido; fazer as asas vai aborrecê-la.

- Eu ensino-a a fazê-las.

- Mas sabe? Então, sabe tudo? Ele riu-se e respondeu:

- Infelizmente sei muito pouca coisa. Mas sou como a Isabel, adoro as asas. Quando era pequeno, às vezes, a minha Avó fazia-mas. E eu julgava que ia voar.

- E agora, Sílvio, ainda gosta de asas?

Ele suspirou, de súbito fantoche melancólico.

- Sim, minha pobre pequena. Gosto das asas. Mas já não as tenho. A minha Avó morreu; agora, quem mas prenderia aos ombros? E depois, já estou demasiado velho. Demasiado estúpido. Demasiado pesado. Mas a Isabel... certamente que tem as asas escondidas debaixo da camisola, e a Marieta só precisa de as puxar, um pouco... assim... para que elas se abram.

Que grande tolo! O Pedro, rígido e pálido na sua cadeira de repouso, gostaria daquele rapaz? Talvez... o Pedro gostava de tudo que fosse encantador.

Naquela semana, a Rosa fez bom negócio. Toda a gente ia procurar ao bazar todos os elementos do disfarce.

- Rosa! queria um tecido com grandes ramagens! Rosa! queria papel plissado! Um leque deste tamanho. Rosa, flores artificiais... Umas lunetas azuis... Um chapéu de salteador... Umas castanholas...

Infelizmente não tinha tudo o que lhe pediam. Isabel viu-a uma tarde a chorar pelo caminho, e soube que a Fani lhe chamara estúpida, nada amiga de fazer vontades, sem préstimo algum. Então João-Lucas sentiu um enternecimento, exactamente como os da Mãe:

- Vou fazer os recados à Rosa. De bicicleta, vai ser bem divertido. As meninas pretensiosas serão bem servidas; e eu imaginarei que sou um contrabandista que passa mercadorias clandestinamente.

- És uma jóia de rapaz - disse a Isabel.

- Só agora é que o sabes - replicou o outro. E tornaram-se bons amigos, encorajados por

Marieta que se inquietava enquanto cosia o vestido de fada.

"Este baile vai enchê-la, mais ainda, de ideias impróprias da sua idade. Pensa demais, aquela pequena. É verdade que num lar sem felicidade as crianças não podem manter-se crianças".

Na noite em que se viu com o seu vestido comprido, azul pálido, e nos ombros a transparência das níveas asas, Isabel sentiu como que um nó na garganta:

- Sou eu? Mesmo eu, a Isabel Morlainville?

Marieta também se perturbou: a sua pequenina, tão grande, tão linda, coroada de flores e vaporizada pelas asas?... Ah! Iria ela voar como a Mãe, que possuía a mesma graça sorridente e pensativa?

Num movimento brusco curvou o rosto enrugado para beijar-lhe as faces duma frescura acetinada.

- És linda demais, minha fada. Não voes.

- E tu, és uma grande tola, minha pobre velha. Voar?... Marieta, haverá Lua esta noite? Gostava de dançar ao luar; seria feérico...

- Estamos em Lua cheia e também nas marés vivas, disse-me o banheiro. Talvez se levante tempestade. Ora escuta...

Sim, o mar começava já a adquirir voz forte, e o vento varria as falésias. Que pena! Para o seu primeiro baile, a Isabel gostaria que tudo se mantivesse calmo e cantante.

- Ora! - exclamou, agarrando-se à esperança.

- O vento há-de afastar as nuvens, e a Senhora Lua brilhará... Gostas do luar Marieta? Gostas das fadas? Gostas da dança? Gostas de versos?

E de música? Gostas... gostas da vida, Marieta?

Os olhitos castanhos endureceram, por detrás dos óculos.

- Isabel, tome cuidado. Já passou da idade dos contos de fadas, e não atingiu ainda a dos romances. Sou uma velha ignorante, mas este conselho posso dar-lho: mantenha-se criança... o mais que possa.

- Que pateta tu és! Não posso ser criança: por causa dos outros.

- Não repares tanto neles. Mas as crianças de hoje já não são crianças, devido a toda esta miséria que anda pelo mundo. E depois, sei muito bem que os problemas das pessoas grandes te divertem. Quantos tormentos terás de sofrer com uma alma como essa!... Basta de salamaleques diante do espelho. Vai ter com as tuas Irmãs. Também estão a arranjar-se.

- A Fani fechou-se por dentro. A sua máscara é segredo. Ouve, Marieta... Queria que a Rosa me visse mascarada. Sê boazinha, vai buscá-la, visto que tu própria reconheces que ela é uma boa rapariga, e teve tanto trabalho para encontrar cambraia deste azul...

Para a Marieta, a justiça era sagrada: trouxe, portanto, a Rosa que, muda de espanto, contemplava essa Isabel que ela adorava sem o dizer. Exactamente como Isabel a adorava, a ela, sem que as suas almas, pensativas e ternas, fossem livres para se aproximarem: deplorável, o género da pequena Rosa! Impossível, deixar que Isabel Morlainville se familiarizasse com ela.

E a Rosa achava essa reserva absolutamente natural. Diante da criança-fada, não pensava "E eu Nunca me divertirei ". Não, a sua paz e a sua alegria eram duma essência muito pura: trabalhar, privar-se, sofrer, parecia-lhe muito simples. "É a tua missão no mundo", dizia-lhe a voz interior, que fala aos corações jovens, sem que os adultos o suspeitem e que lança a semente que há-de florir nos dias futuros.

A Isabel partiu para o baile com as asas na mão, ao lado da Teresa cujas tamancas de camponesa batiam na estrada. A Teresa esperava que o Sílvio a viesse buscar, mas nada se podia prever, naquele fantasista. Ao espelho, a Teresa achara-se engraçada. Mas agora tinha medo de parecer rústica. O Sílvio gostaria de a ver de touca e avental?

"Meu Deus, como é difícil" - pensava Isabel "manter um ar de senhorita".

Esforçava-se por não sorrir demasiado enquanto a Teresa lhe prendia nos ombros as asas cintilantes. Mas tudo, tudo era tão novo, tão apaixonante! Em volta dela as pessoas iam e vinham, encantadoras, surgindo dos tempos antigos, de países exóticos, das páginas dum álbum; ou então, eram flores, frutos, aves. Que divertido reconhecer as pessoas da praia tornadas outras por uma noite!

Um jovem Chinês abordou-a imediatamente:

- Quer dançar?

- Não sei dançar - disse Isabel, corando.

- Ora! Uma Fada! E com uns sapatos tão bonitos. Vai sair-se muito bem. Deixe-se guiar.

Ela pousou dois dedos na manga bordada com dragões; ele tomou-lhe a cintura e foi arrebatada como uma flor pelo vento.

Isabel sentia-se verdadeiramente fada. E ele, sentir-se-ia Chinês da China, ou continuaria simplesmente um rapaz que prepara o seu bacharelato? Não ousou perguntar-lho. Ele tinha uma longa trança de cordão que balançava, os olhos rasgados pela caracterização. Teria também conseguido disfarçar a alma?

- Estou a reconhecê-la. É a irmã da Teresa e da Estefânia. Porque não aparece no ténis ou no pinguepongue?

- Não é coisa que me divirta. E, além disso, as minhas Irmãs não querem que eu vá.

- Obedece às suas Irmãs? A mim, são elas que me obedecem. Tenho quatro, mas não estão a passar aqui as férias. Estou só eu, em casa duns amigos. Diga-me, a sua Irmã Teresa está mascarada de quinteira da região de Caux? Fica-lhe lindamente. E a outra, a loira? Ainda não chegou Ah! Chegou agora. Lá está ela. Repare na sua entrada triunfal. Aquela "Merveilleuse!"

 

(') Merveilleuse: Nome sob o qual se designavam, durante o Directório, as mulheres de uma elegância estudada nos seus modos e no seu vestir. (N. da T.)

 

Isabel não sabia o que eram os "Incroyables, nem as "Merveilleuses" e a sua ignorância irritou-a. Mas adivinhou que eram máscaras em perfeita harmonia e esse acordo roubava qualquer coisa à Teresa. Esbelto, flexível, como que desarticulado, monóculo, bengalinha entre Os dedos, o Sílvio avançava ao lado da Estefânía de vestido comprido e travado, aberto sobre oS sapatos de coturnos e a cabeça encaracolada. Um murmúrio de admiração percorreu a sala e todos se afastaram para os ver dançar.

As faces de Isabel ardiam. Dançavam demasiado bem, aqueles dois, demasiado bem... com passos deslizantes, movimentos envolventes, com leve sorriso de contentamento. Como eram esguios, flexíveis, belos, e que bem caracterizados estavam! E como o pé de Fani pousava bem!" surgindo, com um laço dourado, da fenda da saia de musselina! E como o escarpim do Sílvio está em perfeito acordo com aquele amor de sapatinho!

Aplaudiram-nos. E eles retomaram a sua dança simples e grácil.

 

(') Incroyable: Nome dado, no tempo do Directório, aos rapazes que punham uma grande afectação na sua linguagem, na qual suprimiam os r, r. (N. da T.)

 

- O que devem ter trabalhado para conseguir uma perfeição assim - dizia o Chinês. - É realmente admirável. Por isso, os víamos ensaiarem-se por toda a parte. Até no bosque.

Isabel não respondeu. A música já não lhe parecia alegre. Onde estava a alegria da primeira dança? Como tudo fugia depressa! Porque razão a felicidade não durava sempre? "Sempre", não seria demasiado.

- Não quero dançar mais - disse finalmente.

- Mas onde está minha irmã Teresa?

Com as mãos nas algibeiras do avental camponês, "a minha irmã Teresa" estava de pé a um canto. Tinha os olhos imensos e encovados. Interpelou a pequena asperamente:

- Porque não me avisaste?

- Oh! Teresa, não sabia. A Fani fez o vestido às escondidas.

- Não há-de tirar-me o Sílvio - diz a Teresa com os dentes cerrados. - Vai divertir-te, pobre pequena. E não queiras ser mais velha. Ah! Não.

Ser mais velha No mais profundo de si mesma uma criança soluçava. Haviam-lhe estragado a festa.

Mas o Chinês voltou a convidar a Fada; e outros rapazes depois dele; certamente achavam a Fada graciosa. No entanto, ela não sabia dançar e acontecia-lhe muitas vezes pisar o cavalheiro. Mas, apesar disso, não se aborreciam .. Se ela era leve como uma pena nos braços deles!

Assim voltou à sua despreocupação. Não era muito interessante a conversa dos seus pares, mas isso não a impedia de imaginar que no lugar deste ou daquele estava o "Príncipe Encantado" ou "Riquet à la Houppe" (1). E junto do Chinês sentia-se feliz sem saber porquê.

E, além disso, o Sílvio agora já não abandonava a Teresa. Convidava-a muitas vezes. E certamente a Teresa não notava que parecia uma verdadeira camponesa junto do elegante "Incroyable". Jeanine também dançava, o que adorava.

Por isso Isabel, serenada, podia sorrir. E quando passava pelo Pai, o homem de rosto triste, sentia que a alegria lhe voltava. Era sua filha, essa linda fada coroada de flores. Que frescura! No espírito de João enlaçavam-se as rimas...

Quando a música cessava, ouvia-se muito próximo o mar, que se lamentava muito alto, naquela noite.

- Gostava de ir ao terraço - disse a Fada ao Chinês.

Meu Deus, que bonita era, ousando a custo formular este voto. Falavam os seus olhos! A noite estava romântica, com aquele lamento da maré e aquela luta entre as nuvens negras

e a Lua. O perfil das falésias metia medo, assim, sombreado. O vento envolveu as crianças.

 

(') Riquet à la Houppe: Herói duma fábula de Perrault. ( N. da T.)

 

- Está a apanhar muito frio - disse o Chinês.

- É preciso voltar, senão as asas quebram-se.

Mas, de súbito, da Lua veio um raio que os envolveu na sua claridade leitosa-

- Oh! Dancemos - suplicou ela. - Aqui... um bocadinho. É tão aborrecido ser razoável!

Resistir a um tal pedido? Era impossível. Tomou-lhe a mão. E, tal como o havia sonhado, Liseron dançou ao luar, numa noite de Verão.

 

DESDE manhã que aquilo durava. Sufocava-se. Oh! Que falem todos estes amuados, que se zanguem, que gritem, que discutam, mas que libertem, finalmente, a casa deste silêncio!

Oh! Que horrível silêncio! O João e a Jeanine, a Teresa e a Estefânia, pronunciando apenas as palavras estritamente indispensáveis:

"Passa-me o pão, se fazes favor... Não consigo encontrar a minha boina... Veste o casaco. Isabel... Vão sem mim, ainda não estou pronta".

Palavras de todos os dias, mas, de súbito, privadas de vida, geladas.

Foi nesse ambiente que se saiu para a Igreja e de lá se voltou; assim se passara a manhã. Continuaria aquilo até à noite desse domingo, toda a vida? Mas que teriam eles? Valeu bem a pena ter dançado na véspera...

- Vocês hoje não estão de bom humor - declarou João-Lucas, curioso de saber o que se passara no baile, e aborrecido por responderem monossilàbicamente às suas perguntas. E como, decididamente, o tempo ameaçava tempestade, deixou a carrancuda família, e foi ver a trágica subida da maré de encontro aos seixos.

Mas os outros Ah! os outros...

O mau humor de Teresa compreendia-se; gostava tanto da hora do banho... Nadar com o Sílvio tê-la-ia consolado das danças excessivamente harmoniosas do "Incroyable" e da "Merveilleuse".

Durante uma aberta, o Sílvio apareceu com ar indolente.

- Quem quer vir ver o mar?

E a Teresa passou o braço sob o dele num gesto de posse. Quem sabe se esse gesto o faria aborrecer? Não se podia dizer ao certo... É tão desconcertante o humor dos adultos!

Quando a Teresa voltou para almoçar trazia o cabelo desgrenhado pelo vento e não estava bonita. Quando andava triste a sua pele como que murchava.

- Põe um bocadinho de pó de arroz - aconselhou Jeanine.

- Acho bem; tens o nariz a brilhar - notou o João-Lucas.

- Cala-te, mosquito - retorquiu-lhe a Teresa. E não tornou a falar. Nem tão-pouco os outros.

As janelas fechadas por causa da tempestade, e as almas fechadas: sufocava-se. Ao contrário da Irmã, a Fani tinha um ar glorioso e trocista. Mas dos seus lábios, tão bem pintados, não se desprendia uma palavra.

Oh! Era preciso quebrar o odioso silêncio. A todo o custo. Dizer, não importa o quê. E a Isabel tentou dizer "não importa o quê". Mas cada palavra parecia irritar um dos silenciosos convivas. Falava do baile? Imediatamente o Pai tamborilava com os dedos na mesa, como a adverti-la: "Basta!". Falava da tempestade? A Teresa fazia logo uma carinha de criança triste. Falava do regresso a Paris? A Jeanine suspirava. E, a troçar de todos aqueles silêncios, o silêncio triunfante da Fani. Ah! era divertido, não havia dúvida!

Ao levantar-se da mesa, João-Lucas murmurou:

- Estão com uma cara!... Com que então não correu bem, o famoso baile? Tens de me contar tudo. Vou para a praia. Anda, o mar está lindo.

- Tenho medo das ondas -confessou a Isabel. E era verdade. Por outro lado, ficando em

casa, esperava conseguir acalmar um dos taciturnos: pelo menos o Pai, que na véspera a olhara tão ternamente. Sentou-se junto dele, enquanto a Jeanine ajudava Marieta no seu trabalho. A Marieta adorava o mar, principalmente quando havia tempestade, e esperava, com impaciência, o momento de ir à praia. A Jeanine conversava com Marieta? Então talvez também o João falasse com a Isabel... E, de facto, quando viu a filha aproximar-se, dobrou o jornal - oh! esse jornal! - e falou, no tom mais banal deste mundo, louvando muito o vestido da Fada e afirmando que a Isabel não dançava pior do que as outras.

Com a ponta dos dedos, ela tentou desfazer a funda ruga que cada vez mais se vincava na fronte alta e bela.

- Ah! não conseguirás. O teu Pai já está muito velho.

- Porque quer. No fundo, bem no fundo, é novo, muito novo.

- Que sabes tu disso?

Ela sentou-se-lhe nos joelhos, como outrora.

- Sei, sei muitas coisas. Sou fada, meu caro Senhor, desde ontem à noite.

- Ontem à noite... Ah! se fosses realmente fada, e pudesses transformar o mundo com uma pancada da tua varinha mágica!...

E deitando o jornal para longe:

- Vês tu, quando se lê isto desespera-se completamente.

Ela ousou tomar entre as mãos aquele rosto duro de olhos límpidos:

- É muito mau desesperar. Se o mundo se deixasse manejar...

- Manejar? Por quem?

- Eu não sei: pela bondade, pelo amor, pela confiança. Ensinavam-nos isto, no Sanatório; dizia-se: "devemos aproveitar tudo, mesmo os contratempos:". É difícil explicar, mas compreendes, não é verdade?

- Aproveitares contratempos... Sim, compreendo. Mas quando se trata de contratempos de vida moral, de vida sentimental, não servem para nada as belas teorias dos médicos.

- Mas repara, não há diferença. Muda-se a maneira de agir, eis tudo. E é assim que a gente se cura.

Ele olhava-a e, de súbito, ao reparar nas olheiras motivadas pelo cansaço da noite, inquietou-se.

- Isabel, nunca mais te sentiste doente, pois não? Que seria de mim se fosse preciso que partisses de novo?

- Então, sentes necessidade de mim?

- Sim - respondeu em voz lenta e triste. És tudo o que possuo.

Pobre coraçãozinho! Ouvir isto, tão enternecedor para recolher em si, e recusar uma tal prova de amor! Na sua perturbação foi desastrada.

- Paizinho, o que disseste é muito agradável para mim, mas para a Mãezinha não é muito lisonjeiro. Acho que...

Então ele afastou-a:

- Que tens tu com isso? Deixa-me agora tranquilo.

Ela afastou-se, sentindo-o de novo endurecido. Contratempo, contratempo. Já que era preciso "aproveitar os contratempos", como utilizaria aquele? De momento, só sabia chorar. E refugiou-se no quarto para desabafar à vontade.

É impossível chorar muito tempo em família: não há a paz necessária ao desgosto. Depressa a Teresa abriu a porta.

- Ah! Estás aqui? Não te venho incomodar? A Fani estendeu-se na cama e finge que dorme. E eu não ouso mexer-me. Que estavas a fazer?

Gesto evasivo. Não se pode responder: "estava a chorar". A Teresa já tem bastantes inquietações.

- Então não vais sair - perguntou Isabel.

- O João-Lucas já está na praia. E a Marieta vai para lá.

- Estou à espera do Sílvio. Virá?

Mas lá em baixo uma voz quente chamou:

- Teresa, Teresa.

O pobre rosto cansado refrescou-se de contentamento, e a Teresa aproximou-se da janela, inclinou-se para a rua.

- Desço já.

Correria alegre na escada cuja madeira estala. A Fani deve resmungar: "Que pesada que é esta rapariga tão gorda!" Ao menos sente-se feliz, "a rapariga tão gorda". Mas os outros E o céu carregado de nuvens espessas, acobreadas, trágicas...

Em que há-de passar o tempo Um dia óptimo para escrever cartas que já estão em atraso. E a Isabel, que não tem mesa no quarto, instalou-se no rés-do-chão. No postal mais bonito - aquele em que se vê o mar através de grandes árvores - traçou o endereço do Pedro, no Sanatório; redigiu algumas linhas banais, como as crianças acham que é delicado escrever. Ela, que tem uma alma tão rica, só enviava pobreza pelo bico da pena. "Está um tempo óptimo... fui a um baile de máscaras .."

Lá longe, na cadeira de repouso, onde o seu corpo se ia lentamente reduzindo, enquanto a alma se ampliava, Pedro leria aquelas frases medíocres e, decepcionado, perguntaria a si próprio:

"Teria a vida murchado a minha Liseron? Não... Na sua idade não se sabe escrever cartas. No entanto, esta rapariguinha que faz versos, poderia ter encontrado coisa melhor".

E veria uma vez mais, recordação posta em relevo pela febre de todas as noites, o olhar em flor e o semblante fresco da criança de quem tentara fazer aquilo a que chamava "uma alma"... Liseron, Liseron...

Ela aguardava o momento de tornar a ver o seu grande amigo, para lhe contar os grandes ou pequenos acontecimentos da sua vida. Mas assim, por escrito, não ousava, nem sabia. A pena não encontrava a forma exacta e concisa ; assim, era somente poeira que Pedro receberia, ele que sonhava com o perfume duma Liseron.

Como não tinha esperança de a tornar a ver, escrevia, por vezes, algumas palavras para ela. Isabel ainda não lhes apreciava toda a plenitude todavia, guardava esses curtos bilhetes, pressentindo que continham uma riqueza.

Enquanto Isabel assim escrevia, a Marieta" que já lavara a loiça, partia radiante a caminho da praia. E a Jeanine foi para junto do marido. Isabel ouviu-a pedir secamente .

- Quando acabar de ler o jornal, empreste-mo.

E de novo reinou o silêncio. Esse horrível silêncio cor de cinza, que durava desde manhã.

Isabel redigiu ainda alguns postais, e preparava-se para ir consultar os Pais sobre uma dificuldade ortográfica, quando reconheceu a voz paterna:

- Julgo que voltam para Paris esta semana?

- Já? Faria bem à Isabel ficar mais algum tempo.

- Oh! Não é pela pequena que prolongam assim a vossa ausência, não. É pela Fani, e talvez por si própria, confesse.

Um suspiro:

- Sentimo-nos tão felizes, aqui!

- Evidentemente, visto eu já cá não estar.

- Como se está a tornar duro e injusto, João.

- E você? Ousará dizer no que se tornou? Oh! Vê-la dançar ontem à noite, como se fosse uma rapariga...

Continuar a ouvir semelhante discussão Era-lhe impossível. Isabel saltou pela janela que dava para o jardim, voltando ao vestíbulo donde tirou o impermeável.

- Vou sair-gritou.-Vou ter com a Marieta.

Era difícil caminhar contra o vento que, salpicado de água do mar, varria o vale. Isabel detestava a brutalidade do vento que despedaça a paz do mundo; mas numa casa tão triste sufocava, e aquele sopro brutal afigurava-se-lhe libertador.

Só quando sentiu a sua mão na da Marieta, é que ousou olhar essas vagas, dum verde azulado, que se erguiam enormes, formando depois remoinho para finalmente se desfazerem numa nuvem de espuma.

- É belo - dizia Marieta, orgulhosa por contemplar tão grandioso espectáculo, e comovida no fundo tão nobre da sua alma. - Repara naquela... E esta que se está a formar. Isto não vias tu na tua montanha.

A pequena, acabrunhada pela angústia, recordava o grande silêncio branco, a paz dos quartos onde repousar era o único dever. Aqui: almas sofredoras que se ferem mutuamente. E estas vagas, estas monstruosas vagas! Como podia a Marieta achar belo semelhante espectáculo? Era a cólera, o infortúnio, a ameaça, avançando com uma regularidade apavorante.

- Marieta, achas que a tempestade vai durar muito?

A velha criada, que os pescadores punham ao corrente das coisas do mar, pôs-se a explicar-lhe as marés. Isabel escutava-a, pasmada duma tal inteligência.

- Como falas bem! Como compreendes bem! Não tens pena de ter estado tão pouco tempo na escola?

Um silêncio, durante o qual rebentou uma onda altíssima. Isabel habituara-se a respeitar as pausas que Marieta fazia ao procurar a expressão dum pensamento forte.

- Sim, tive pena. Sobretudo noutro tempo. Mas o saber dos livros é muito pouco ao pé do saber que a vida nos dá. Oh! Que bela onda! Então, não tenhas medo, minha fada. O mar só sobe até onde Deus quer. As coisas obedecem, vês tu? E é preciso imitá-las. Submeter-se ao seu destino. Marieta, a ignorante, educou-te, ela que nunca teve filhos. Julgas que não foi um belo destino? Neste mundo, os infelizes são os que não sabem submeter-se, e recusam o seu destino. Eu, uma simples criada a quem se paga, sou feliz porque aceitei o meu.

A Teresa e o Sílvio passaram, com o rosto endurecido pela luta contra a tempestade. Mas ambos sorriram à pequena que, ao vê-los de novo juntos como nos dias felizes, e sentindo Marieta, tão forte, a seu lado, ousou finalmente contemplar o mar como se contempla aquilo que é belo. O medo de que estava possuída enfraqueceu, ampliou-se, alargou-se e transformou-se nesse sentimento novo para a sua alma frágil: a pesada e santa admiração.

- É magnífico! - diz ela, mas a sua voz perde-se na rebentação duma onda em que tantos seixos se entrechocavam.

Nunca esqueceria aquela hora.

Mas qual a alma que pode esquecer uma só que seja das horas divinas da adolescência?

À noite, como nos outros domingos, o Sílvio lá estava a despedir-se da Teresa: não se muda de hábitos de repente...

Mas a alma muda bem mais depressa do que as atitudes. Na sua, ocupada no despontar dum outro amor, não havia lugar para saudades, mas apenas para este pensamento de que se envergonhava:

"Agora, a Fani e eu, não precisaremos de fugir".

De novo a caminho, com a gola do casaco levantada até às orelhas, agradava-lhe sentir-se esbofeteado pelo vento ao passar, sacudido como coisa miserável, ele que ao dizer "até à volta, Teresa", dera um beijo traidor ao delicioso amor de Teresa, da noiva com coração de mãezinha.

 

SÓ cinco dias, quatro dias, três dias... Escoam-se, gota a gota, os últimos dias de férias. Voltarão novos dias e novas férias mas nunca mais estas, as dos quinze anos. Para onde vão os dias que acabam? De onde vêm os dias que nascem? Isabel estremece: ao olhar tanta vez o imenso céu estrelado, descobriu esta terrível palavra: eternidade. Uma noite o Pai citou-lhe a frase esmagadora de Pascal: "O eterno silêncio dos espaços infinitos, aterra-me". Sentiu-se aterrorizada também.

Oh! Reter os dias, bem presos nos seus braços de criança, não os deixar fugir Mas não... como disse gravemente Marieta, com o rosto debruçado para o mar trágico. "as coisas obedecem ao Altíssimo". A Isabel, que nunca se lembra que um dia será velha - ainda vem tão longe esse dia! - impressiona-se ao pensar que findou um bocado da sua vida. Tudo acaba.

Mas a eternidade não: nova angústia, pensar neste sempre, sempre... Se pudesse falar sobre isto a alguém. Mas é impossível; dir-lhe-iam "és tolinha, minha querida". Felizmente, Deus conhece o segredo daquilo que acaba demasiado cedo, e daquilo que nunca acabará; toda a gente pode repousar junto d'Ele, que, tão grande, um dia se fez pequenino para que nunca mais se tenha medo diante das estrelas.

Mil e um pormenores avivavam o enervamento da partida já tão próxima.

- Não tornes a pôr o vestido branco. manda-se lavar em Paris... As tuas sandálias estão estragadas? Não faz mal, já não vale a pena comprar outras... Marieta, não se esqueça que a mala azul tem o fecho estragado... Os da vivenda grande foram-se embora esta manhã... Já começaram a tirar as barracas...

E Jeanine distendia-se, suspirava, maravilhosamente rejuvenescida pelas férias. Não tinha desejo algum de voltar a Paris. Dir-se-ia que temia encontrar lá aborrecimentos em demasia.

Quanto à Fani: estava outra. Nunca a haviam visto assim, silenciosa, pensativa.

"Bem mais bonita" - notava a Irmã mais nova. - "Ao menos há alguma coisa nos seus olhos, que eram redondos demais, brilhantes demais, como os da minha boneca loira de outrora. Agora tem expressão. Talvez por causa de Sílvio... De qual das mais velhas gostará aquele rapaz? "

Não era muito visto, o tal rapaz. Envergonhado de si mesmo e fugindo da excessivamente linda Fani, parecia amuado. Enfiado na sua velha camisola cor de laranja, aparecia aqui e ali, mancha viva sobre a paisagem, precedido do fumo azul do seu cachimbo. Se alguém lhe propunha fazerem o caminho juntos, movia a mão num gesto breve de recusa e seguia por outra rua. Um autêntico selvagem! já não havia sorriso no lindo rosto talhado para ser alegre, e que o sofrimento tornara tão rígido. E acolhia, pior ainda do que as outras, as tentativas de Isabel, desejosa de contribuir para a felicidade da pobre Teresa.

O próprio tempo mudara desde a tempestade, que sem dúvida revolvera as profundezas azuis do céu e do mar. Já não havia segurança no ar que se respirava. A uma manhã fresca, límpida, sucedia-se uma tarde cinzenta e pesada. Ao anoitecer, as nuvens acumulavam-se, redondas e opacas, orladas de metal; nuvens trágicas e violáceas, cuja sombra Isabel detestava. E, além disso, um vento que levava tudo pelos ares. As falésias elevavam-se em muralha luminosa para o céu nacarado. O mar, liberto de sombras, exalava curtos suspiros exaustos. Podia-se voltar a ser uma alegre rapariguinha, de braços nus.

Pelo menos, podia tentar-se. Mas com todos esses "outros", e as ideias que escondiam por detrás das frontes enrugadas, não era fácil. Não haveria, então, um modo de encontrar a felicidade?

Dois meses atrás, Isabel, ingenuamente, acreditava que as férias lhe proporcionariam uma ventura maravilhosa, feita de esquecimento e de alegria. Mas isso nem por sombras. Coisas, coisas patéticas haviam chegado. "Patético": Isabel colhera essa palavra num poema de Romain Villanel, e repetia-a entre os lábios e a língua. Sem a compreender inteiramente: não havia, em Petites-Dalles, dicionário que a explicasse. Mas que importa? Adorava-a, servia-se dela nos seus sonhos, agitava-a como se fora um fantoche vestido de negro e de púrpura e comprazia-se ao vê-la deslizar através das palavras vulgares, em vestido de trazer por casa. Patético...

Sim, os "outros", com as suas histórias de amor, as suas questões; os seus segredos, as suas lágrimas, haviam-lhe roubado a sua alegria de criança. Seria sempre assim, pela vida fora? Ou poder-se-ia criar uma felicidade aparte, que não fosse tão agitada pelas preocupações alheias?

Cansada de trazer em si pensamentos tão pesados, partilhava da melhor vontade nas brincadeiras de João-Lucas, cujos amigos, na sua maioria, já haviam partido, e que descobrira que esta Isabel, embora armasse em rapariga grande, tinha sempre muitas ideias originais para brincar.

Era também esta a opinião do Chinês.

Desde a noite do baile, este Chinês -que sem máscara era um Florêncio Morot-Léandre, muito francês e muito rosado - não mais deixara de pensar na Fada. As raparigas do grupo da Fani irritavam-no com os seus namoricos, o estendal dos seus diplomas da Sorbonne e das suas receitas de beleza. Junto de Isabel, que dançava à maravilha sem saber dançar, sentia-se como que uma frescura, estava-se bem. Mas era impossível andar com ela, pois fugia dos pequenos e dos grandes. Além disso,o Sílvio devia dar-lhe volta à cabeça, como às outras raparigas. Quando se tem apenas dezasseis anos, como se há-de poder lutar com um rapaz como aquele? Exasperante, ver a Isabel a passear com o Sílvio.

Somente o Sílvio resolvera amuar. Uma sorte Isabel voltou a ser uma rapariguinha e a andar com o João-Lucas. E para Florêncio, o melhor período das férias foi aquela semana rápida, ameaçada, em que brincava às escondidas no bosque com uma petiza que tinha um riso lindo, e silenciosos pensamentos. Uma simples criança que em lugar de falar dos seus professores e do seu cabeleireiro, dizia:

- Oh! Eu sou uma ignorante. Eu não me preocupo com os vestidos.

E que, todavia, qualquer nada lhe dava elegância, que tinha o dom de tornar vibrante tudo o que contava, e que parecia haver feito imensas e lindas viagens.

Uma manhã, partiu-se para Paris. Uma comovente manhã de Setembro que se erguia toda a azul de bruma. O Florêncio veio despedir-se, como o Sílvio, mais desabrido que nunca, e com os olhos cheios de tempestade. Isabel notou-o, o que a preocupava. Mas não olhou para o Florêncio. Nos seus olhos de belo adolescente teria lido um enternecido adeus... Mas não, estava muito ocupada a encerrar toda a paisagem no coração.

Ao voltar-se para colher da trepadeira da cerca um rebento duma madressilva, já avermelhada pelo aproximar do Outono, avistou o Sílvio e a Fani, que se afastaram, de braço dado. Falavam baixo. E depois, um beijo, um beijo brusco uniu os dois rostos.

- Quer a madressilva? - perguntou o Florêncio, sem que ela o escutasse. - Deixe, Isabel. Eu colho-a.

Palavras desperdiçadas... E, tendo cortado o ramo com o seu grande canivete de rapaz, estendia-lho em vão.

"Ah!" - pensou enraivecido - "Está a olhar para o Sílvio. Ela também, como as irmãs".

Não podia adivinhar, o pobre rapaz. Mas fez-lhe mal e a voz abafou-se-lhe, ao repetir:

- Isabel, aqui está a madressilva.

Então ela sorriu-lhe, com um sorriso um pouco cansado:

- Obrigado, Florêncio. Você é muito amável. Acha que ela vai durar até Paris?

- Dura, sim - respondeu Florêncio.

E pensava que aquele sorriso viveria no seu coração muito mais tempo "que até Paris". É tão bonito uma rapariguinha de quinze anos que não é pretensiosa! Apetecia-lhe chorar: mesmo assim... um homem!

Quanto à Rosa, chorava, ao ver arrumar a bagagem dos Morlainville no tejadilho do veículo. Oh Sim, chorava!

E tinha de quê, chegada ao limiar do sombrio Inverno em que o vento ruge. O bazar fecharia em breve, e ela ficaria sem ganhar um real que fosse e, se ganhasse, seria muito pouco, a lavar roupa. A Mãe voltaria a sofrer do reumatismo. A Rosa já não teria essa Isabel, que lhe falava como uma amiga. Amigas? Na terra não as tinha. Impossível. Uma miúda que se pinta e que "há-de dar que falar"... As mães preveniam as filhas: "Não andes com ela; falar-se-ia de ti". E os rapazes diziam-lhe coisas, coisas... Enquanto que a pequena Rosa adorava os lírios, os risos das crianças, as toucas das irmãs de caridade. tudo o que era branco.

- Não me despedi da Rosa! - exclamou de súbito a Isabel.

Florêncio, que tinha Rosa por leviana, pasmou ao ver Isabel abraçar a pequena caixeira. Estranha amizade. Ao partir, a Isabel olhou sempre para a Rosa e nem uma só vez para o Florêncio, que em vão agitava um grande lenço. Felizmente, que no avesso do casaco dela pregara, solidamente, o ramo de madressilva, de embaunilhado perfume.

- "Assim será forçada a pensar no pobre Chinês" - dizia consigo, ao voltar, cabisbaixo, para casa dos amigos. - "Como são estúpidas as separações! Meu Deus! Que estúpidas são!".

- "Sou repugnante" - dizia consigo o Sílvio, mais cabisbaixo ainda. "Mas esta Fani enlouquece-me. Foi desde o baile. E eu gostava de Teresa. Mas já não posso casar com ela. A Fani deu-me volta ao juízo. A Fani disse-me: "Ver-nos-emos em breve, Sílvio ". E a Teresa também. Não, não tornarei a ver a Teresa. Não quero mentir a um coração assim. Já não gosto dela como se gosta duma noiva. E beijei a Fani. Meu Deus, que linda é a Fani!"

Uma única pessoa via claro, no meio desta complicação das pobres Irmãs. E a pensar nisso se ocupava no comboio, ela que não lia jornais nem livros. Óculos no nariz, o chapéu enfeitado com uvas posto à banda, Marieta olhava o desfile dos pomares normandos, todos em esmeralda, alegrados pela púrpura reluzente das maçãs, e repetia consigo:

- "A Senhora e a Fani são iguais: palavra de honra! Que terão elas para assim prenderem os homens? Enlouquecem-nos. O Senhor pela Senhora, fez morrer de desgosto a minha pequena Colette. O sr. Sílvio, pela Fani, fará que a Teresa morra de desgosto... Não, a Teresa não morrerá; é forte; mas viverá, o que ainda é pior. Ah! As mulheres demasiado bonitas, fazem mal ao mundo!"

Mas no seu ombro sentiu pousar uma cabeça cansada. Caracóis negros...

- Como boceja, Isabel - disse. - Durma um bocadinho. Repousá-la-á.

E acrescentou, movendo, sem ruído, os lábios descorados:

"Impedir-te-á de pensar, minha pequenina".

E, sólida, vigilante, maternal, a Marieta sustém, no seu ombro, a criança adormecida num perfume de madressilva...

Isabel, ao acordar, sorriu à madrasta que parecia triste: não custa nada um sorriso e pode causar tanta alegria... Recorda-se do regresso da montanha, por uma manhã de Maio.

Na verdade, só se haviam passado três meses? Como era criança! Quantas coisas se gravaram na sua alma desde então! A volta à vida familiar afigurava-se-lhe cheia de alegria: se ela soubesse... E este regresso que lhe reservaria?

O arrabalde é cinzento e sujo, aos olhos refrescados pelo verde da região normandaViverá gente feliz em todas estas casinhas? Isabel imagina histórias: a história desta, que tem um jardim cheio de dálias; a daquela, tristonha, que entreabre, a custo, as janelas que a chuva e o vento martirizam há muito...

Mas, antes de mais nada, é preciso saber a ortografia, a gramática, talvez o latim. Recuperará o tempo perdido? Não se sente curada da sua preguiça e detesta o colégio que frequentou na Primavera: a professora nunca falava com palavras simples e precisas.

O comboio acelera a marcha e as linhas multiplicam-se. Isabel avista Paris. Uma mancha clara: o Sena que o comboio atravessa ruidosamente e, ao longe, a cidade, grande, alta, pesada. O clarão branco de Montmartre brilha por sobre este baixo relevo onde a multidão fervilha, onde as paixões fazem e desfazem tantas almas. Onde João Morlainville, desdenhado por Jeanine, escreve os versos de Romain Villanel que Jeanine admira. Onde a Teresa sonha com a felicidade de desposar em breve o Sílvio que já não quer casar com ela. Onde a Isabel vai retomar o seu lugar entre milhões de humanos, e tentar consertar as felicidades quebradas.

Mas não tem a certeza de que as felicidades se consertem. E os interessados nem sempre o querem. Era tão simples o João dizer à Jeanine:

- "Gosta destes versos? Pois bem Imagine que fui eu quem os escreveu". - "Então é um grande poeta " - responderia Jeanine. - "Oh Orgulho-me de si". Mas o João recusava-se a falar. Mas porquê?

O comboio desliza por entre as primeiras casas de Paris, cujas traseiras transpiram miséria. Um túnel que corta um sonho. A estação de São Lázaro... Fani põe pó de arroz nas faces. A Marieta põe o chapéu em equilíbrio.

A Isabel sente o coração a bater como se Paris fosse uma cidade desconhecida. Ar pesado e um cheiro insípido, gente demais, a mala é pesada. Como assim? Já usam as peles?

A Isabel reconhece mais facilmente a casa do que à sua chegada do Sanatório. No entanto, esqueceu um pouco os objectos. O Paizinho ainda não chegou do Ministério, nem a Teresa do Banco. Encontram as suas coisas, mas não eles: uns óculos de tartaruga, um trabalho de malha com as agulhas espetadas, umas luvas que têm a forma das mãos de Teresa, livros. No quarto de Jeanine há um ramo de flores. Quem as poria lá? O João ou a Teresa? Não se sabe o que fazer. A alma de férias já não serve para nada, e a alma de Paris perdeu o hábito. O João-Lucas não pára. Debruçam-se à janela. Como o jardim é pequeno!

- Ainda não acabaste o passeio? - resmunga Marieta.

A Marieta não compreende. Passeia-se porque se procura e ainda se não encontrou a tranquilidade.

Finalmente, eis o Paizinho. A Isabel já corre, a dançar, e com os braços estendidos, como no ano passado. E em seguida detém-se: primeiro a Jeanine.

- Que bem enfeitou o meu quarto! -diz Jeanine. - Obrigada, João. É lindo este ramo!

Ele tem um ar feliz e beija-a a valer. Agora é a vez de Isabel.

- Cá está a minha fada pequenina. Passaram-se umas férias divertidas?

"Não" - diz o coração de Isabel. - "Por causa de ti. Por causa dela. Por causa das mais velhas e do Sílvio. Ah Vocês todos..."

Mas é preciso responder "sim"... Para que este pai fique completamente satisfeito.

Ele pergunta-lhe, a rir, com que se perfumou.

- Perfumar-me? Eu? Isso é bom para a Fani. Ah! Já sei, com madressilva. Lembras-te dadaquele Chinês do baile? Foi ele quem me apanhou um lindo ramo de madressilva, na cerca.

E sempre a dançar, vai banhar, na água fresca, a pobre flor cansada da viagem, mas que ainda cheira bem, como o Florêncio desejava que ela cheirasse bem por todo o sempre.

 

POR uma manhã de Outono, cinzenta e amena, pensativa como são certas manhãs, Isabel deixou de vaguear, inquieta e curiosa, entre as quatro paredes duma casa onde as pessoas não sabiam ser felizes. Porque se deu este grande acontecimento da vida dos jovens: a reabertura das aulas.

A reabertura das aulas! Os lápis são compridos e brilhantes, os cadernos cheiram a novo. sente-se prazer em traçar o nome na primeira página: "Isabel Morlainville" ; fica bem.

Três anos haviam passado sem que Outubro trouxesse, para ela, este regresso à actividade intelectual. No Sanatório, os dias sucediam-se vagarosamente, sem que se desse por isso. Mas eis que este, dois de Outubro, se erguia, grave e imperioso, arauto duma longa série de dias de esforço. Isabel perdera o hábito do esforço, só sabia pensar. Deixá-la-iam pensar, nesta nova escola, ou suportaria, como no passado ano, a tutela rígida duma professora que pretendia encerrá-la no "palavra por palavra" e nas fórmulas?

Antes de ir para as aulas, Jeanine beijou-a. Mas para o João-Lucas, os beijos e as recomendações ha viam-se prolongado mais, com uma cambiante de ternura ansiosa que o coração de Isabel teria achado adorável. Não a admirou a ausência dessa tonalidade; todavia, em certos momentos, sentia tanto a necessidade duma verdadeira mãezinha que amasse a sua filha mais do que a si própria!

Jeanine gostava muito de si própria, e gostava do João-Lucas, da Teresa, e da Estefânia, os seus filhos.

Uma preferência muito natural. Mas Isabel ergueu os olhos da alma para a pequenina Colette do Além.

Que pena levar o João-Lucas consigo! É tão agradável caminhar sem dizer palavra, pela fresca da manhã! Trouxera da montanha o amor pelo silêncio, e sem dúvida o conservaria por toda a vida; quem uma vez o saboreia, fica, para sempre, sequioso dele.

Que encontraria nessa escola enfeitada com o nome solene de "Instituto", epíteto mesmo a calhar para sábios velhos, pensava a pequena, finalmente entregue à solidão, pela corrida alegre do rapaz, direito ao liceu. Sim, que encontraria? Aborrecimento? Frieza? Professoras exigentes e feias, sem idade, sem elegância, sem ternura feminina? Companheiras armando em sábias ou mundanas?

Inquietações. Valia mais esquecê-las e admirar estas folhas de oiro caindo silenciosamente das árvores para as áleas. Porque chamar-lhes "folhas mortas"? Nunca foram tão belas. A Isabel caminha ao de leve, sem as pisar: eram o Sol! Haveria folhas feitas de Sol, na cerca do Instituto? Como se iria aborrecer lá, com o espírito alheio, voltado para as paisagens das férias e para os assuntos do coração das pessoas grandes! E como era intimidante chegar como uma desconhecida, uma "nova".

E depois, esqueceu tudo! Diante das alunas - mais novas do que a Isabel, a retardatária, ainda muito novas para serem afectadas - instalou-se uma mulher jovem e pálida, de rosto esguio onde só se viam os olhos. E falou. Falou com palavras de todos os dias, mas que evocavam coisas magníficas. Disse que, saber, compreender, tornar-se grande pelo espírito, seria encontrar a alegria. Encostara-se à mesa, sonhadora, e as suas palavras como que brotavam duma nascente inexaurível de pensamentos. A voz era clara, recalcitrante de súbito nas ideias mais belas, como que hesitante em chegar até todas essas "menores de quinze anos".

Mas, além, uma cabeça, morena e encaracolada, erguia-se para as recolher; uns olhos em flor abriam-se imensamente e a boca, um bocadinho.

Isabel Morlainville, "a nova", fora de súbito mordida no coração por uma fome: a fome de pensar como essa mulher jovem que, com os braços sobre o forro verde da sua secretária, falava tão simplesmente que qualquer pessoa poderia pronunciar exactamente as mesmas palavras, mas com tanta elevação que essas palavras simples se tornavam maravilhas.

A mulher pálida, acabando de libertar as suas riquezas, ditou um trecho que Isabel achou belo. Era preciso desenvolvê-lo. A criança pegou numa folha branca! - oh! esta pureza da folha em expectativa - e sentiu, por sua vez, o brotar da nascente das palavras precisas. Durante muito tempo escreveu, assim, indiferente a tudo mais. Quando, enfim, pousou a caneta, o semblante pálido sorria-lhe: sorriso dos olhos e não dos lábios que se mantinham graves. E Liseron, ao guardar o rascunho, sentiu-se, simultaneamente, cansada e feliz, e um pouco humilhada: tantos erros de ortografia num trabalho que ela desejava tão belo!

Findara, a preguiça? Não. A jovem mulher pálida impedia o espírito de vaguear e a vontade de amolecer; um relance dos seus grandes olhos cinzentos bastava, e mesmo, sem que olhasse a aluna, o desejo de a alcançar no ponto onde se mantinha, envolto em luz, o seu pensamento.

Mas não era a única professora, esta Inês de olhos pensativos. Outras, além dela, se sentavam diante da mesa verde e davam início às ciências abstractas que o espírito fantasista de Isabel repelia. Esses cálculos, essas fórmulas, essas linhas, essas precisões rígidas... Inês, a vivificadora, far-lhe-ia, sem dúvida, compreender a beleza dessa busca do verdadeiro; mas como lhe pediam que a aceitasse simplesmente, sem amor, passou a detestá-la. Continuou a dizer-se: "A Isabel é preguiçosa".- Enquanto que, na aula de francês, o espírito alargava-se, alargava-se... E ela própria, como todas as almas de criança, não conseguindo definir o que sentia, resignava-se ao estado de preguiça e desperdiçava as suas forças vivas.

Que idade tão desconcertante, esta idade da adolescência! Será a idade ingrata, como é costume chamar-lhe? Ou a idade divina, em que se está pronto para todos os heroísmos? Mas só se repara nos seus absurdos, nas suas desconcertantes mudanças de humor, nas suas rudezas e nos seus caprichos. Os outros... têm tanto que fazer, os outros, com os seus sofrimentos pessoais e as suas alegrias. Com o amor...

Em casa, o João e a Jeanine, a Teresa e a Fani, espiavam-se constantemente por causa disso mesmo, do amor. E a sua miséria espiritual era ainda mais penosa, acrescida todos os dias por novos silêncios, por novos mal entendidos. O Silvio fugia da Teresa, o João continuava a fazer de homem carrancudo, de empregado metódico, de maníaco, sempre agarrado ao seu jornal, enquanto que os versos de Romain Villanel floresciam com uma graça primaveril.

À força de se calar, já não podia aguentar mais. Um poeta é como uma roseira que emurchece se não é regada, precisa dos cuidados dum coração feminino. A Isabel, demasiado jovem e sem ousar falar dum assunto tão delicado, não podia ajudá-lo. E a Jeanine... ah! como era dura, a Jeanine!

Então, onde se tornava "autor", ocupando-se, como dum negócio, da edição dos seus livros, onde recebia as provas da imprensa, a sua correspondência Em casa da sua secretária, para onde se dirigia nas horas livres. E aí encontrava um coração delicado e intuitivo. Intuitivo demais para o repouso desse coração. Porque Maria-Amada, a secretária perfeita, não pudera trabalhar com o poeta sem se queimar na sua chama.

Maria-Amada.. uma rapariga já sem frescor, pálida e bonita, de rosto esguio, olhos apaixonados, como os dessa Inês, sua Irmã, que iniciava Isabel na beleza literária. Fora ela quem falara ao Senhor Morlainville-cujo verdadeiro nome conhecia - do Instituto onde leccionava a Irmã mais velha. Assim, Inês e Maria-Amada estavam estranhamente ligadas ao destino da família Morlainville. Mas Inês estava no seu elemento, encarregada de formar o espírito da criança, enquanto que Maria-Amada experimentava uma angústia: qual era o seu papel no meio disto? O senhor Morlainville era casado, pai de família, e escondendo uma face completa da sua vida. E por outro lado - ah era isso o pior - Maria-Amada não conseguira transcrever na sua máquina esses adoráveis versos frementes, sem passar por toda a gama de sentimentos: admiração, simpatia; piedade... e agora, como isso se parecia com o amor!

Refugiava-se junto dela, esse silencioso: mendigava a sua aprovação, iniciava-a nos seus projectos; por vezes, com confiança no seu gosto, pedia-lhe um conselho. Que fardo representava essa confiança! Maria-Amada, que ficara radiante quando lhe propuseram ser a secretária dum poeta, começava a lamentar apaixonadamente esse dia. Porque o seu coração era torturado pela consciência que a acusava, até, da ternura duma simples palavra dirigida, por caridade, a esse homem. Todavia, como recusar-lha quando ele chegava, ao entardecer, um pouco curvado, a manga direita lustrosa de roçar, um dia inteiro, na secretária do Ministério, e se reerguia, rejuvenescia, ao falar da sua obra? Afastá-lo? Impossível. Continuar assim? Maria-Amada era demasiado clarividente e demasiado perspicaz para se atribuir o direito de ocupar esse lugar na vida do senhor Morlainville. Mas que fazer, meu Deus? Que fazer?

Inês, vendo que a Irmã sofria, reflectia e rezava. O que haveria em casa desses Morlainville que tornava o Pai tão reservado e a Filha tão pensativa? Mas Inês, educadora, não estranhava. através dos filhos apercebera o fundo trágico da felicidade aparente de certas famílias. Mais uma que parecia unida, feliz no ritmo agradável da vida burguesa e que sofria, despedaçada. Ah! consolar, aproximar todos estes infelizes por sua própria culpa... e consolar, também, Maria-Amada, infeliz e atormentada, sem culpa sua: fora a dor que a procurara.

Romain Villanel publicou um novo livro. Embora lho tivessem proibido, Isabel leu-o, de ponta a ponta, porque o deixavam poisado por toda a casa. E reconheceu - oh! aperfeiçoados, disfarçados - os versos compostos na gruta da falésia e que celebravam a graça duma rapariguinha.

- É curioso, há aqui versos que parecem inspirados pela Isabel - disse a Jeanine, um dia em que estava de bom humor.

- Estás a sonhar, querida Mãezinha - retorquiu a Fani, com uma pontinha de inveja. A Isabel vai imaginar-se a beleza das belezas.

- Não é feia de todo, não - assegurou o João-Lucas, malicioso. - Estou convencido que daqui a pouco tempo admirá-la-ão mais do que a ti.

- Com a boca aberta, que lhe dá um ar de tolinha?

A Teresa calava-se, calava-se sempre...

- É estranho, - murmurou Jeanine sonhadora - ninguém consegue penetrar o incógnito deste Romain Villanel. Ao que parece, o editor recusa-se a dar a menor informação.

- Eu acho - disse a Fani - que deve ser um rapaz muito novo e muito bonito.

- Oh! Não. Este homem viveu, sofreu, amou. Ama ainda: e com que paixão! É discreto, sem dúvida, mas ardente... Não abras assim os olhos, Isabel, não são assuntos para a tua idade.

- No entanto, estudamos os poetas, na aula - ripostou a Isabel, menos dócil ainda à medida que a sua personalidade se desenvolvia.

- Velhos poetas de barbas! - troçou João-Lucas. - O Pai Hugo, por exemplo. O que esse consegue enervar-me! É melhor que nos ensinem Romain Villanel.

- Basta. Falem de outra coisa - cortou o João, numa voz dura. - Está a tornar-se intolerável, o senhor Villanel.

Mas, de súbito, baixou o olhar sob o olhar azul da Filha. E teve medo. Ela sabia. Oh! Teria Inês cometido alguma indiscrição? Nessa mesma noite interrogou, asperamente, Maria-Amada, que chamou a Irmã. E esta, muito calma, um pouco fria, respondeu-lhe:

- Pode confiar em nós. Nunca revelaremos o seu segredo a ninguém. Mas não se admire que a Isabel o haja descoberto. é demasiado intuitiva para viver junto dum poeta sem adivinhar o que ele tem dentro de si. A minha Irmã e eu estamos de acordo ao dizer-lhe: ponha a sua família ao corrente do que se passa, ou então procure outra secretária. Já não podemos" já não devemos representar, por mais tempo, este papel de confidentes.

Mas quando ela fechou a porta e a sentiu absorvida na correcção dos trabalhos das alunas, João Morlainville mostrou-se tão desorientado que Maria-Amada condoeu-se e prometeu continuar a ser sua colaboradora. Pena dele? Ou de si própria?

- Renuncia - repetia-lhe Inês. - Procedes mal. Não vês o caminho que segues. Ah! pobre pequena, tu, tão orgulhosa do teu celibato puro, estás a tomar, pouco a pouco, o lugar reservado à mulher do Morlainville. Na tua alma, já és culpada. Estás associada a uma mentira. E amas esse homem, sem teres o direito de o amar.

- És dura, Inês. Se o abandono, embrenhar-se-á no desanimo. Não seria também culpada por isso? Tem confiança.

- Não; tenho medo. Chegaste aos trinta anos sem ter conhecido o amor. Estás em perigo, se não de fraquejar, pelo menos de sofrer. Tenho medo.

E esse medo incitava-a a inclinar-se, com maior solicitude, para Isabel, a Filha desse homem complexo, a um tempo burocrata apagado e poeta ardente. Isabel, um espírito também complexo, simultaneamente preguiçosa e intensamente curiosa, a primeira da aula em literatura e a última em ciências; Isabel de olhos pensativos, de boca ingénua. Essa Isabel que era necessário armar para a vida como se alcatrua e se aparelha, solidamente, um navio destinado a arrostar tempestades; essa Isabel que fora a única dos Morlainville que adivinhara o segredo de Romain Villanel, e que o mantinha, firmemente, entre os dentes puros de criança até que lhe permitissem falar dele!

Ah! como é apaixonante formar uma alma! Era a única coisa que a Inês ambicionava do casamento; enquanto que sua Irmã necessitava de amor. A aspiração de ter um filho pode ser apaziguada nobremente, educando os filhos nascidos da carne das outras mulheres; mas a ânsia do amor, arrastar se-á sempre atrás de si até ao anoitecer? Ter-se-á a força necessária para a arrastar todo o caminho, tão longo? Ou - um dia, em que essa ânsia morder o coração mais violentamente - não se acolherá o amor que passa? Oh! irmãzinha de trinta anos, junto de quem passa o amor maravilhoso dum poeta! Será ela capaz de o afastar para longe de si, e voltar à solidão gelada?

O amor dum poeta. O livro amarelo, que entrou em casa dos Morlainville, depressa teve a capa enrolada nos cantos, amachucada. A Jeanine escondia-o no seu cesto de costura, por entre as meias de seda de malhas caídas. Assinalara certas páginas. E lê-as, relê-as,

pasmada que os versos a perturbassem àquele ponto, e sem mesmo saber que, pouco a pouco, o seu coração frívolo se modificava e adquiria cambiantes.

- "Queria" - pensava, enxugando uma lágrima com as pontas dos dedos - "queria ser a mulher para quem foram escritos estes versos".

Dizia isto. E não imaginava que diante da secretária onde rebrilhava uma máquina de escrever, uma rapariga de trinta anos formulava o mesmo desejo lancinante:

- "Queria ser a mulher para quem foram escritos estes versos".

E menos imaginava ainda que o perfeito burocrata, aquele a quem chamava "manga de alpaca" se tornara poeta, por amor a ela. Sim, era ela, cuja perfeita beleza e a graça haviam inspirado cada um dos ternos versos alegres, e cada um dos versos soluçantes. Sim, "essa mulher" era ela.

 

AFANI nunca estivera tão bonita Porque até aqui o seu rosto esguio, de grandes olhos, não tinha alma. E o Sílvio fizera que a alma se lhe desabrochasse. O Sílvio era um encantador de almas.

Quantas raparigas se haviam enamorado do rapaz alto, trocista e terno! Raparigas que encontrara nos salões, nos atelieres, nas Belas-Artes, e a quem, sem qualquer intenção de namoro, dirigira três palavras gentis acompanhadas dum olhar meigo. De aí a imaginar-se notada, amada e a amar um pouco ou loucamente, era caminho que depressa se percorria. Algumas, breve haviam esquecido o romance imaginário; outras continuavam a vivê-lo, alimentavam o seu pobre amor com um nada que o Sílvio desse ao passar, esse Sílvio que, naturalmente, espontaneamente, era encantador. E deixava por toda a parte uma miragem de amor.

E ele? Ele só amara a Teresa. A mais simples, a menos garrida, uma das menos bonitas. Junto da frescura dessa - que encontrara em casa duns amigos que Teresa conhecera através do Banco - sentia-se repousar, tomava mais juízo, apaziguava-se. Órfão desde muito novo, encontrava nela uma ternura que tinha o seu quê de maternal, ao mesmo tempo que amorosa. Era bom. Era sólido. Era tão simples dizer consigo:

- "Quando tiver uma situação, casamo-nos. Não temos muito dinheiro? Ora, a Teresa se arranjará. Uma verdadeira mulher, a Teresa, e não uma princesa de ciência ou de beleza. E eu preciso duma mulher. A minha mulher. A minha boa Teresa de bochechinhas frescas".

Somente, a Fani enlouquecera-o. No entanto, conhecia raparigas tão bonitas como ela ; mas a Fani, como a Mãe, possuía não sei que encanto que a fazia parecer a mais bonita. E a vida livre da praia, pondo em plena luz essa juventude loura, tornara-a deslumbrante. Uma vez que Teresa partira, a Fani passara ao primeiro plano. Sem mesmo dar por isso, o Sílvio dedicara-lhe o seu olhar mais meigo, a sua voz quente e expressiva, as suas atenções imprevistas, encantadoras. Fani, surpreendida, depois contente, depressa impressionada, apaixonara-se, por sua vez, pelo companheiro demasiado gentil e esse amor tornava-a deliciosa e linda estonteante.

E Teresa? Pois bem, continuava a amá-la. Mas, pouco a pouco, ela recuava para a região escura das coisas sólidas e sensatas, e Fani irradiava. Agora, era a Fani que ele sonhava associar à sua vida. Amar-se-iam tanto! E, sem dúvida, Teresa, a tão razoável, em breve esqueceria o seu primeiro romance.

Durante todo esse princípio de Inverno, muitas vezes encontrou a Fani. Ambos se procuravam, e até mesmo pelo seu trabalho a jovem tinha facilidade de se introduzir no meio de artistas. Fani voltava a casa mais rosada, mais alegre, de algum modo melhor, a interessar-se pelos estudos dos petizes. Mas entre a Teresa e ela elevava-se um muro espesso. Nunca as Irmãs se dirigiam a palavra.

- Não sei o que têm as mais velhas - disse um dia Jeanine a Isabel. - Vê se consegues restabelecer a paz entre elas. Imagina que a Teresa teima, obstinadamente, em dormir num divã, na casa de jantar. Não quer partilhar mais do quarto da Irmã. Eu recuso-me a semelhante coisa; ficaria muito feio.

Era a véspera do Natal, o dia em que o voo dos anjos se aproxima anunciando a alegria. Isabel, liberta pelas férias das preocupações da sua vida de colegial, apercebeu-se de que se tornara egoísta:

- "Nunca mais pensei neles... Todavia, o Verão passado, afigurava-se-me que, antes de tudo, devia ocupar-me da sua felicidade...

Por que razão esqueci tudo? Por causa destes aborrecidos estudos".

Dirigiu então o olhar para cada um. O Pai? triste e feliz, ao mesmo tempo, o rosto iluminado não sei por que luz interior. Jeanine? atormentada, com uma nova ruga vincando-lhe a linda fronte, sem lhe diminuir a beleza. A Fani? cada vez mais vibrante. O João-Lucas? com o semblante pálido e amuado: um rapaz que não vale grande coisa. A Teresa! Oh! pobre Teresa, de olhar desesperado! Certamente por causa do Silvio e da Fani.

Devia ser horrível partilhar do quarto duma Irmã que vos causasse um tão grande desgosto. Horrível passar por ela a cada momento. Notar que é bonita. Ver as suas coisas novas, os chapéus, as blusas, tudo isto elegante, escolhido para agradar a alguém que já não olha para vós. E, além disso, quando se tem um desgosto assim, que enche o coração a trasbordar, sabe bem chorar, à noite, encostada ao travesseiro. No Sanatório, nas primeiras noites, Isabel chorava encostada ao travesseiro. Está a gente à vontade; nenhum curioso a ouvir esses pequenos soluços que tentamos engolir com as lágrimas salgadas, mas que às vezes arranham tanto a garganta que ela não consegue guardá-las. Depois adormece-se, a sentir vaga, mas, certamente, que Deus se inclinou sobre o leito e recolheu a dor do coração jovem para fazer dela alguma coisa.

E a Teresa? É-lhe impossível chorar. Nem durante o dia, no Banco, junto dos colegas; nem durante a noite, no quarto, junto da Fani, linda, amada e hostil.

A Isabel, suportando o peso das inquietações alheias, chegou à missa da meia-noite recolhida e grave. Notou que a Teresa procurava uma cadeira longe da família e ajudou-a. Poderia chorar, finalmente. Na Igreja, muita gente chora. Não tem vergonha, contanto que a família os não veja. Os outros? Que importa os outros? Também eles trazem lágrimas.

Sim, a Teresa chorou, cruelmente, nessa noite em que a alegria perfuma o mundo rejuvenescido. As mãos e a gola de pele protegiam-lhe o rosto dos olhares indiscretos. Mas a Isabel via-lhe os ombros sacudidos por bruscos soluços, e quantas vezes, feito em bola, o lenço ia da carteira para os olhos.

Há muito tempo que a Isabel sonhava com a noite de Natal, transfigurada pelas suas recordações de criança, e não trazendo senão alegria. Como tudo lhe parecia mudado! Uma decepção? Não, um alargar. Outrora a sua alma de criança vibrava na expectativa dos presentes; a sua alma de adolescente já não se contentava com presentes. Preferia ser ela a dá-los. Em lugar de receber, dar.

Dar. Dar a ajuda a todo esse sofrimento humano que ela sentia arquejar, muito próximo, endomingado pelo Natal, mas chorando, apesar disso, na sombra perfumada de incenso. Os Pais, as Irmãs, o Sílvio, o João-Lucas: meu Deus, toda essa gente, essa pobre gente, ela abandonara! Porque razão? Os pequenos incidentes da sua vida de estudante - e de estudante preguiçosa-não deviam tê-la absorvido a tal ponto. Havia outra coisa: este desenvolvimento íntimo da rapariga sonhadora, imaginativa... continuava a fazer versos.

Mas, nessa noite, eles chamavam-na, sem que ela compreendesse como: "Filhinha... Irmãzita... Isabel... Liseron... sofremos e não sabemos dizê-lo. Ama-nos. Olha: o teu sorriso, nada mais que o teu sorriso, alivia este peso que trazemos ao peito. Liseron, Liseron, alma em flor...

Também ela, a pequenita, sentia brotar as lágrimas. Mas não brotavam em caudal. Não.. as lágrimas sem desgosto, as lágrimas mais belas, são redondas, calmas: uma pérola que desce lentamente, temos tempo de a desfazer, tépida, ainda no rosto, antes que os outros a vejam brilhar. Mas é esquisito chorar ao ouvir os cânticos de alegria que reboam pelas naves da igreja, e sabendo - pensa-se nisso, porque se é uma criança - que daí a pouco se comerá uma ceia servida sobre a toalha bordada, e haverá presentes de pantufas cor-de-rosa.

Noite de Natal. Dum lado, a miséria do mundo que chama e estende os braços para que a ergam. Noite de Natal. Doutro lado, a poesia, a vida que chama e nos convida a colher flores. Noite de Natal. Uma rapariguinha no meio duma família, semelhante a outras famílias. Somente a Mãe e uma rapariga, muito bonitas, diferem. Mas isso não corta o ritmo da vida mediana e burguesa do dia a dia. Ninguém sabe que algo de grande trabalha a alma da rapariguinha, que ela se dá, que ela se vota à missão magnífica e terrível de trabalhar para a ventura da humanidade, próxima ou longínqua. Vota-se a ela, mas com palavras muito simples, ingénuas, pobremente vestidas.

- "Serei boa. Ocupar-me-ei dos outros. Dar-lhes-ei tudo o que possa. Sim, tudo.

E houve uma coisa que ela deu imediatamente, com a alma erguida pelo sopro dessa noite de oferenda. Uma coisa a que, no entanto, Isabel se apegava ferozmente. Mas era preciso. A Voz, ao falar durante a noite, pedira-a à criança ajoelhada. A criança respondera "Sim". E, ao adormecer, depois da ceia, cruzara os braços sobre o peito, para aí encerrar o seu puro sacrifício.

No dia seguinte, ao acordar, teve um olhar triste. E, logo a seguir, um sorriso. Vestiu-se trauteando um velho cântico do Natal, e, reconhecendo os passos de Teresa, entreabriu a porta.

- Vem dar-me os bons dias, minha Teresa. Escuta, estive a pensar. Sabes? Não é justo que um mosquito como eu tenha um quarto só para si. Vou pedir à Mãezinha que me instale no famoso divã da casa de jantar, que tu reclamas. E tu ficas no meu quarto. Aí temos uma Teresa enterrada na poltrona.

- Minha queridinha... Ah! mas não. O teu quarto de que tu tanto gostas. Todas as tuas coisinhas... És tão boa! A minha verdadeira irmã és tu. Mas não aceito o teu sacrifício. Compreendo-te... És perspicaz. Adivinhaste. Pois bem, confesso que não quero ficar mais tempo junto dela. Sinto-me sufocar naquele quarto. Ela roubou-me tudo, Isabel. Oh! Se tu soubesses!...

Está-se muito bem sobre os joelhos de Teresa: parece que foram feitos para isso. A Isabel senta-se nesses joelhos já maternais e à espera de filhos.

- Sim, minha Maçãzinha, sei um bocadinho. Não precisas de dizer mais. Eu continuo a ter esperanças, VêS tu?... Todavia, tens necessidade de chorar e estar sossegada. Fica com o meu quarto. Repara: a Marieta também renunciou ao dela, e é fria a sua mansarda. De resto, eu... Vou dizer-te um segredo: tenho a impressão que nada devo guardar para mim. Quando guardo, sinto-me infeliz. Só tenho uma coisa para te dar: o meu quarto. Aceita-o.

A Teresa tinha um roupão grosso, de lã, tão macio... Parecia um ninho. Isabel sentia-se bem e repetia baixinho:

- Aceita-o. Aceita-o, minha Maçãzinha.

Mas mantinha os olhos semicerrados para se impedir de olhar esse quarto tão querido e de imaginar o divã na sala de jantar. Viver numa divisão feita para se comer e onde a rigidez dos móveis é tão acabrunhante; que sofrimento para uma sensibilidade de rapariguinha-poetisa!

Teresa, pelo contrário, contemplava a decoração fresca onde a Irmã vivia: cassa cor-de-rosa aos raminhos, que fazia sonhar com a Primavera, móveis um pouco fora de moda mas de talhe bonito e dispostos por Isabel com um sentido tão exacto de harmonia. Algumas estatuetas, raras mas encantadoras. Um não sei quê que adejava no quarto: sem dúvida, o espírito de Isabel. Sentir-se-ia bem, ali.

Mas expulsar a criança do seu ninho? Não... nunca. A Teresa também sabia ser boa. Insistiu na sua recusa. Isabel suplicou, enervou-se, resmungou. E, finalmente, voltando à sua alegria:

- Uma ideia! Vês este armário? Pômo-lo no corredor; e para o seu lugar trazes o teu divã. Vês? há lugar para as duas! E, como adormeço depressa, podes...

Interrompeu-se; então não ia a dizer: "poderás chorar à-vontade"? Que disparate!

- Podes ler na cama.

Mas a Teresa adivinhara. Continuou calada a saborear essa gota vivificante que acabava de cair no seu coração emurchecido. A mensagem do Natal.

Oh! Fugir da Fani, do cheiro do seu pó de arroz e da sua brilhantina: oh! sim, seria bom! E, de resto, Isabel calculava bem naquele ângulo cabia uma cama. Um biombo ao lado e teria, finalmente, o seu "canto", em lugar dessas horríveis camas iguais a aproximarem as Irmãs mudas e hostis.

Então pôs-se de pé para render homenagem à beleza da oferta que lhe faziam, e disse o "sim" que a Isabel desejava e temia.

A Marieta, ao ver fazer a mudança, começou a resmungar. Conhecendo bem a sua Isabel, desolava-se perante tal sacrifício. Mas a pequena, aborrecida de se ouvir lamentar, quando encontrava verdadeira alegria na sua dádiva:

- Dragão velho, alguém te impediu de dares o teu quarto ao João-Lucas? Ousarás dizer que a tua mansarda é quente?

- A Menina e eu, Isabel, nada temos de semelhante. Para um "dragão velho", como a menina me chama, está tudo bem.

- Porquê? Podes explicar-me?

- Não sei- confessou a criada sem hesitar.

- Há pessoas assim, que não têm o direito de se animar.

- Pois bem, eu também não tenho - declarou Isabel.

Então o "dragão velho", abanando a cabeça, suspirou: "Seria o corpo suficientemente forte para seguir a alma, se Isabel se lançasse no heroísmo?".

Fani, como é natural, ficou muito satisfeita com a mudança. Mas, apesar de tudo, um bichinho lhe roía a consciência. Coisa passageira, que depressa o triunfo da alegria fez desaparecer. O Sílvio embriagava-a com as suas palavras ternas.

Nesse dia de Natal foram juntos ao teatro.

Ele perguntou-lhe se ela consentia em vir a ser sua mulher. No seu coração ela respondeu "sim". Mas ir prender-se, assim... tão nova. E de que viveriam? Retrocedeu.

- Sílvio, você é insuportável. Todas essas preocupações, na nossa idade... Julgo que gosta de mim o suficiente para esperar.

- Não, Fani, gosto de si demasiado para esperar. Roubar-ma-ão.

Oh! Não tome esse ar de proprietário. Pensa que a Mãezinha consentiria num casamento tão pouco razoável?

Pouco razoável: a Teresa não teria dito isso.

- Por ainda não ter situação? Então, pelo menos, fiquemos noivos. Os Pais hão-de achar isso absolutamente razoável.

Mas o pano subiu de novo e a Fani fê-lo calar. Era também uma história de amor que se representava no palco.

 

ISABEL, depois de marcar a página do livro de geometria com um postal que recebera na véspera, contemplava essa paisagem branca, em lugar de estudar o árido problema.

Lá longe, como era belo o Inverno, na sua majestade pacífica! Em Paris, sempre a mesma lama, nevoeiro, um céu opaco. Uma só vez a neve estendera a sua pureza sobre todo esse cinzento sujo, mas para depressa se fundir, deixando tudo mais lamacento ainda. Isabel sonhava com a alvura deslumbrante das cumiadas.

A Odília enviara-lhe este postal. com algumas linhas apenas, banais, que não evocavam a vida do Sanatório e o frémito das almas, mais ricas à medida que os corpos definham. O Pedro, sim, sabia escrever bilhetes em que cada palavra trazia mais alguma coisa. Mas o Pedro já não escrevia.

A Odília dava notícias breves desse grande amigo: «Está a ir pior». Isabel suspirou. Gostaria tanto de o tornar a ver, recolher as suas palavras lentas que penetravam até ao fundo da alma que as escutava. E de, durante alguns dias, respirar o ar da grande montanha que tudo purifica.

Bem dissera Marieta:

- Seria bom para a Menina passar lá uma temporada. A senhora não deve esquecer que há quatro anos que ela não passa o Inverno em Paris.

Imediatamente a Jeanine formara belos planos para mandar a Isabel para a montanha com a Estefânia, a quem os desportos de Inverno tanto agradavam.

Mas de repente a Fani recusou-se a partir, sem explicar as razões dessa desconcertante renúncia a um prazer que todos os Invernos reclamava. E nunca mais se falou em mandar a pequena para a região branca. A Marieta ficou de mau humor. A Teresa entristeceu-se mais: "Como deve gostar do Sílvio!". Liseron, cansada da estação, sentia voltar-lhe a saudade em cada manhã, ao atravessar, com o Irmão, as avenidas amarelas de nevoeiro.

À noite, ainda uma saudade, à hora em que o pensamento se torna tão consciente, antes do sono vir. De olhos fechados, imaginava toda a alvura dos Invernos precedentes. Pensava no Pedro e murmurava, só para si, as três sílabas do nome que já ninguém lhe dava Liseron, Liseron. Talvez, se ele tivesse febre, as repetisse, sem saber bem o que dizia, para se refrescar. Um dia, ele pretendera, a rir-se, que essa palavra lhe tirava a febre.

Mas a porta do quarto rangia. Teresa, que decididamente aceitara a hospitalidade da Irmãzita, entrava com o seu andar pesado, apesar das pantufas. Como é natural, Liseron fingia dormir, para que a pobre Teresa se sentisse completamente livre e pudesse chorará vontade, se isso lhe fazia bem. Teresa chorava. Muitas vezes. Primeiro de joelhos, enquanto rezava. Via-se o roupão sacudido por curtos soluços. E depois deitava-se, ao abrigo do biombo. Lia até muito tarde, sem dúvida para se impedir de pensar. Mas, mesmo assim, pensava e chorava, visto que a ouvia assoar-se.

Só uma vez a Isabel ousou interrogá-la. Mas de manhã e não à noite. Se a pobre Teresa soubesse que a ouviam chorar, recalcaria as lágrimas, o que sufoca o coração. Uma manhã, em que a Teresa se queixava de dores de cabeça, Isabel disse-lhe:

- Pobre Maçã, afliges-te tanto! Sabes... o que é feito dele?

- Não. Nunca mais o vi e não quero perguntar por ele a ninguém. Olha, Isabel! o que me causa maior desgosto é pensar que ela não saberá fazê-lo feliz. Oh! o meu pobre pequeno!

Isabel ficou maravilhada diante dum tal amor. De resto, a Teresa tinha razão, pensava.

O Sílvio seria muito mal cuidado pela Fani, e o Sílvio era um homem-criança a quem era preciso tratar, encorajar, amimar um pouco. Mas não gostarão todos os homens que os amimem Até mesmo o João, tão reservado, tão metódico? A Isabel afigurava-se-lhe que ele sentia necessidade disso. Mas Jeanine não o sabia. Ou não o queria.

Em todo o caso, a Fani sofria uma nova metamorfose. Já nada tinha da rapariga bonita, de olhos meigos, em que se tornara depois das férias. Não; tornava-se brusca, nervosa, cada vez mais elegante e pintada. Então o Sílvio gostava daquele género?

- Encontrei o Sílvio - disse um dia o João-Lucas. - Um farrapo, minha amiga. Mal vestido, mal penteado, com o cachimbo ao canto da boca, uma barba de três dias! Não consegui arrancar-lhe mais do que sins e nãos. No tempo da Teresa, era bem mais simpático.

- Mas então onde encontraste tu o Sílvio? Nunca sais sozinho.

O rapaz fez-se carmesim, atrapalhou-se, zangou-se, e acabou por confessar que tinha ido ao cinema numa quinta-feira, em lugar de cumprir um castigo.

- E o boletim da semana? E o aviso aos pais?

- Escuta, é preciso a gente saber desembaraçar-se. Tenho cá uns truques...

- Truques? Quer dizer mentiras?

O João-Lucas subjugado pela severidade da pequena justiceira, e demasiado fraco de vontade para guardar um segredo durante muito tempo, revelou toda uma organização de falsidade: notas falsificadas, cartas interceptadas...

- Olha que não sou só eu. Foi um dos grandes que me ensinou.

- Causas-me horror. Tenho vergonha de ser tua irmã. Ah! Quando os Pais souberem isto!

- Não vais dizer-lhes, não, Isabel? Peço-te, não digas nada. A Mãezinha teria um grande desgosto e o Paizinho... não sei porquê, faz-me medo. Prometo-te não tornar.

O João-Lucas deu mesmo a "sua palavra de honra" e a Irmã calou-se, acreditando na sua sinceridade, mas ignorando ainda que todo o culpado é fraco perante a tentação que já uma vez o venceu. Se a Jeanine fosse a sua verdadeira mãe, far-lhe-ia muito simplesmente uma confidência; mas a Jeanine, que adorava o João-Lucas, não acusaria Isabel de má vontade e ciúme? Falar ao Pai de ambos, nem pensar nisso ; mostrava-se, incoerentemente, ora duro, ora fraco para com o João-Lucas. Contentar-se-ia em vigiar de perto o rapazinho. De resto, ele prometera. A uma promessa nunca se falta, pensava ingenuamente Isabel.

Mas era muito pesado carregar mais este segredo, através do longo Inverno sem Sol.

E ia cair ainda mais um peso sobre ela, criança demasiado frágil. Um dia em que saía já tarde do Instituto, com o pensamento plenamente vivificado por uma lição da Sr.a D. Inês, esta propôs-lhe fazerem caminho juntas. Mesmo sem falarem, a alma sentia um certo bem-estar junto de Inês. Isabel deu-lhe o braço, achando delicioso apoiar-se nele um pouco e sentir-se protegida do crepúsculo, do frio e da melancolia. Sentir-se, finalmente, a mais pequena. No braço de Jeanine não ousava apoiar-se assim; esse gesto parecia irritá-la um pouco. Certamente preferia caminhar sozinha, no seu passo largo e leve. Mas Inês regulava o passo pelo da pequena e deixava-se puxar para trás, pelo peso desse corpo esguio apertado contra o seu. Intimidade muito doce. Talvez ainda mais doce para a mulher. Uma e outra tinham calor na alma e o anoitecer de Inverno tornava-se um lindo amanhecer.

- Aqui está a minha casa - disse Inês. Pensava "Que pena! Ter que deixar esta querida rapariguinha tão inquieta".

Mas dobrando a esquina da rua, dois transeuntes entraram, primeiro que ela, nessa casa de Inês.

- É o Paizinho - exclamou Isabel.-Mas com quem?

- Com a minha Irmã - respondeu, lentamente, gravemente, Inês. - A minha irmã trabalha para o sr. Morlainville como secretária. Mas a Isabel não sabia. Escute, minha querida: acho que deve falar de tudo isto a seu Pai. Ele escreve versos maravilhosos sob um pseudónimo.

- Romain Villanel? Há seis meses que o sei. Mais ninguém, a não ser eu, o adivinhou em casa. Mas por que razão se esconde ele de todos nós? E por que razão a Senhora não me disse que o conhecia? Ensinam as crianças que se deve ser sincero e os adultos não o são. A Senhora, o Paizinho, a minha irmã Estefânia, então toda a gente é assim? Não é de admirar que o meu Irmão falsifique as notas da sua caderneta escolar. Eu devia ter morrido no Sanatório, antes de ver tudo isto! Não me beije, deixe-me. Quero ir para casa. Sinto-me mal.

Mas Inês arrastava a criança revoltada.

- Venha a minha casa. Lá encontrará o seu Pai. A minha Irmã, no ano passado, não podia adivinhar que ele escondia o seu talento à família. Se o soubesse, não teria aceitado essa colaboração. E eu teria o direito de lhe falar disto. Esse segredo não me pertencia. Não lhe menti, Isabel; fui forçada a calar-me, eis tudo. Venha.

- Mas o Paizinho zanga-se.

- Tanto pior. Vale mais isso do que...

Inês acabou mentalmente a frase: "Vale mais isso do que deixar perturbar esta juventude tão pura, pelo pensamento que o Pai visita, às escondidas, uma mulher que não é a sua".

Em casa de Inês: móveis antigos já um pouco cansados, muito agradáveis... Perfume de violeta... Isabel, que receia a cólera do Pai, não espera muito tempo: a porta abre-se. Ah! ele estende-lhe os braços.

- Minha querida filhinha! Por que razão não me disseste que tinhas adivinhado estas coisas?

- Nunca dizes nada, tu. E eu fiz o mesmo. Que reservado és, Paizinho! Porque hás-de ser assim?

- Não podes compreender as minhas razões. Não vais contar isto à tua Mãe, não é verdade? Espero ainda algum tempo antes de a pôr ao corrente. Porque... porque...

- Oh! Não procures explicações. Não tenho nada com isso. Somente, se mais tarde, o meu marido guardar semelhantes segredos só para si, então eu... eu...

- Cala-te, cala-te - diz apaixonadamente o sr. Morlainville. - Se és minha amiga, cala-te. Fazes-me sofrer! Oh! minha Filhinha, conserva-te ainda muito tempo uma rapariguinha!

Duas lágrimas lentas rolavam-lhe dos olhos. Comove ver chorar um homem. Parece que as lágrimas têm vergonha de correr. Era preciso beijá-lo, mas Isabel não quer beijar este mau. Não, primeiro ele.

Ele sentiu-o e inclinou-se, pedindo perdão.

- É dura, sabes, a miséria dos homens. Regressaram a casa sem falar, mas de mãos dadas. Entre esses dois já não havia barreiras.

"É dura", dissera, "a miséria dos homens".

Sim, mas também a miséria das mulheres, de todas as mulheres da casa ; e não seria por causa dos homens que sofriam? Na verdade, no Sanatório, estava-se mais sossegada. Mas estar sossegada, será viver? Teria o direito de ter saudades do belo silêncio frio.

Pelo menos, pela parte de João-Lucas estava mais descansada; sentindo aquela alma fraca, segurava-a com a mão cerrada; e o João-Lucas submetia-se, admirado e respeitoso da força oculta dessa rapariguinha de olhos azuis que se apercebia de tudo. Mentir? Impossível. Ela adivinharia e, em face do seu olhar límpido, a mentira envergonha-se.

- Obedece-lhe melhor do que a mim - notou um dia Jeanine, a rir.

- "Não é de admirar" - pensou Marieta "as crianças não são tolas; obedecem a quem sabe mandar".

Mas Jeanine acrescentou, a meia voz, e o João-Lucas ouviu-a:

- Apesar disso não exageres, Isabel. Na tua idade é-se intransigente.

Isabel inquietou-se em seu coração. exagerar; que significado podia ter essa palavra ao tratar-se duma coisa absoluta como a sinceridade? Então há leis morais com as quais se pode brincar, acatando o que é cómodo e voltando as costas ao que é difícil? Exagerar... Dirigiu os olhos para o Pai. Sem se associar ao debate, ele olhava João-Lucas duramente, tristemente.

- "Em que pensará " - perguntou a si própria Isabel. - "Faria melhor se impedisse a Mãezinha de amimar o João-Lucas a este ponto".

Mas o João nunca impedia Jeanine de fazer o que lhe agradava, ainda que fosse uma coisa absurda. Calava-se. E esse silêncio tornava cada vez mais pesada a atmosfera da casa. Na verdade, enfraquecia-se naquele ambiente. E a pobre Isabel sempre a crescer, a empalidecer neste fim de Inverno em que os bafos quentes se cruzam com os ventos gelados, em que brotam os rebentos do lilás, onde vagueia a emoção da Primavera que volta.

- "Estou a envelhecer" - pensava. - "Ontem o padeiro tratou-me por "minha senhora".

Isto lisonjeava-a, ao mesmo tempo que a afligia. Lamentava ter sonhado tanto durante as férias, em lugar de brincar na praia com o João-Lucas e os amigos.

- "No próximo Verão terei dezasseis anos. Vão achar-me muito crescida para brincar. Devia ter aproveitado o meu tempo. Bem mo dizia a Marieta. Nunca se engana, a Marieta".

E, por vezes, fugitiva, passava, à beira das suas recordações, a silhueta do Florêncio Morot-Léandre, o Chinês da noite do baile, o gentil camarada dos dias azuis de Setembro. Como era jovem e alegre!

Uma manhã, ao voltar das aulas com o Irmãozito, avistou o Sílvio, a caminhar de cabeça baixa.

- Corre atrás dele - disse ao João-Lucas. Depressa!

Alcançou-os. Mas como as palavras caíam vazias, entre eles:

- "Está boa?... Está um tempo horrível. Tem trabalhado muito?"

Era para chorar de raiva. Somente, mesmo quando as palavras são estúpidas, os olhos falam. Os do Sílvio eram olhos de quem sofre violentamente. Para lhe interceptar o olhar, Isabel não precisou de levantar o seu. O Sílvio, tão alto quando estava contente, curvava-se a este ponto nas horas tristes.

- "Sofre, Sílvio? - disseram os olhos da rapariguinha. - "Pobre Sílvio, não se pode fazer qualquer coisa por si?"

- "Absolutamente nada" - disseram os olhos do rapaz.

E cerraram brutalmente as pálpebras. Mas depois dessa pausa, o olhar que surgia estava humanizado. O Sílvio murmurou, com a sua linda voz das férias:

- Como cresceu, Isabel! Já não a via desde... desde... a manhã do vosso regresso a Paris. Que é feito desse jovem Florêncio que lhe ofereceu a madressilva?

- Não faço ideia.

Então o Sílvio desatou a rir, sem que uma única ruga da sua boca se dignasse rir, e pronunciou estas palavras que Isabel não compreendeu:

- Aí está! Já uma mulher...

 

CHEGADA a casa, Isabel, sem mesmo se despir, foi direita à secretàriazinha de embutidos, sempre brilhante nas suas linhas, graças à mão cuidadosa e activa da Marieta. A velha criada adorava e respeitava este móvel legado por Colette à sua Filhinha, com esses papéis tão tristes e tão belos, e tinha honra em cuidar dele.

Isabel abriu a gaveta secreta. Junto do testamento espiritual de sua Mãe - cuja descoberta transformara a sua alma hesitante numa alma devotada - encontrou uma coisa muito pequenina e leve, quase a desfazer-se: o ramo de madressilva.

Por que razão o guardara com tanto cuidado? Gesto pueril duma petiza que quer guardar uma recordação das suas belas férias? Ou antes, um gesto pensativo, dando valor a esse nada que um amigo arrancou à sebe do caminho feliz.

- "Gostava de tornar a ver o Florêncio" disse consigo Isabel.

Mas a voz repreensiva de Marieta chamou-a:

- Quando é que te resolves a ir para a mesa? O quê, ainda nem sequer tiraste a boina E esse ar de lunática Não gosto de te ver assim.

E depois com meiguice:

- Que tens, filhinha?

- Nada - respondeu, muito naturalmente, como respondem as crianças, mesmo que "haja alguma coisa".

Mas, logo a seguir, tomada por uma recordação.

- Encontrámos o Sílvio Delorme. Se visses como parece triste!

- Com certeza que a Fani lhe virou as costas. Ah! a Fani procedeu mal. Mas vem almoçar. Senão a Senhora repreende-te. E o meu soufflê desfaz-se. Gostas de soufflê de queijo?

- Gosto, mas não tenho apetite. João-Lucas não deixou de participar à família

que haviam encontrado o Sílvio. Fez-se um silêncio, um desses silêncios em que cada um se sente incapaz de o dissipar, porque a menor palavra arrisca-se a quebrar alguma coisa. Isabel, de agora em diante, destinada a trazer sobre os ombros o desgosto alheio, pensou que devia ser ela a falar. Oh Para dizer não importa o quê. O seu "não importa o quê" - como são belos estes "não importa o quê", lançados no mundo por caridade - pelo menos, aliviou os silenciosos. A Teresa pareceu menos pálida, as finas sobrancelhas da Fani desenrugaram-se; Jeanine e João discutiram o acontecimento político do dia. Aqueles quatro saberiam a razão porque o Sílvio estava triste? Não estava triste, no fim das férias...

Felizmente, para a afastar dessa casa tristonha, havia um "além": o mundo que se abria em certos dias de aula. Mundo quase infinito: a antiguidade, com a sua história, a sua arte, as suas crenças; o globo terrestre com os seus oceanos, os seus povos, a sua flora, a sua fauna ; sobre este globo a pequena e grande França que tem uma bandeira da cor do céu, da neve e do sangue, como uma alma sonhadora e ardente; a literatura com as suas obras de pensadores. Oh! Ir de descoberta em descoberta! Escutar a voz expressiva de Inês comentando um trecho e fazendo brotar beleza das palavras mais simples. Engrandecer-se, sentir que se avança um pouco para a região das ideias grandes e puras...

Era um deslumbramento. E, todavia, Isabel mantinha as atitudes e a reputação duma aluna medíocre. O estudo persistente aborrecia-a. As ciências positivas desagradavam-lhe; e mesmo para o resto, não fazia esforço algum para aprender. Deixava que as coisas viessem ao seu encontro a sua alma era, a um tempo, ardente e cansada.

Inês assistia, ternamente inquieta, a esta evolução. Preguiçosa, a Filhita do poeta? Não. Um dia havia de ser uma estudiosa. Esse dia tardava, devido a tudo o que perturbava a sua sensibilidade delicada. Ah! Se se conhecesse a fundo a vida de todos esses preguiçosos que arrastam o seu cansaço pelas escolas, descobrir-se-ia, entre eles, muitas almas inquietas, incompreendidas, feridas; Inês, que tinha a preocupação das almas, já curara mais de uma. Com Isabel, era mais difícil.

A pequena nunca falava de Maria-Amada. Sofreria por ver o Pai dar a uma mulher estranha a confiança que recusava à Mãe da família? Ou seria um ciúme inconsciente de criança?

- Maria-Amada - dizia Inês, muitas vezes, à Irmã - o teu papel é perigoso e falso. Renuncia.

- Falas bem - respondia ferozmente a outra.

- Tu tens uma aula inteira para amar. O teu coração está cheio de crianças. E eu? Não me arranques a minha única alegria.

Mas como essa alegria se tornava inquietante, nesse aproximar da Primavera! Cada dia, as tardes são maiores... Maria-Amada, que sabe de cor o texto que copia, por o achar belo, o texto do seu poeta, Maria-Amada tem os olhos pregados na nesga de céu que a janela deixa ver.

Hábeis, os seus dedos ferem o teclado, sem o olhar. Renunciar? A Inês não sabe o que propõe. Depois duma juventude privada de amor, beber esta gota, que êxtase!... Finalmente, Maria-Amada sente-se viver. Se prepara o sofrimento para toda a vida, paciência. Sofrer, também é viver; até então Maria-Amada não vivera. E Inês bem podia poupar-se a este cuidado. Romain Villanel está demasiado tomado pela paixão de que os seus versos são o eco, para ver na secretária alguma coisa mais do que uma secretária.

Mas então quem será aquela que ama? A sua mulher? Neste caso, sem dúvida que a secretária deve desaparecer. Mas se for outra, porque desaparecer, renunciar à inefável colaboração?

Inês, professora numa escola. Maria-Amada, dactilógrafa. O amor nunca viera nem para uma, nem para a outra. Então? A Inês, sem dúvida, procurava a sua felicidade noutro lado, junto de rapariguinhas filhas das outras mulheres e, mais alto, muito mais alto, na contemplação dos horizontes divinos. Seja... Mas Maria-Amada nada tinha, nada. Somente o seu poeta. E queriam tirar-lhe esta participação na grande obra dum homem? Não, continuaria junto de Romain Villanel, poeta e brevemente autor representado no palco. Queria ignorar João Morlainville e a sua vida burguesa.

Primavera... Os jardins de Passy, escondidos entre muralhas, começavam já a libertar a sua seiva que subia, trepava, para alcançar os rebentos. Nada se via ainda que fosse verde, mas o que se respirava ao chegar à janela, não tinha o mesmo gosto. E a Teresa, julgando a Irmã a dormir, ficava ali, nessas lindas noites, espiando esse regresso da felicidade para as coisas. E, a abandonada, sofria porque não havia regresso de felicidade para o seu coração.

Sensatamente voltada para a parede e de olhos fechados, Isabel pensava, já um pouco sonolenta, mas ainda desperta por piedade.

- "O quarto das mais velhas não abre sobre o jardim ; como fiz bem em trazer para aqui a minha gentil Maçã. Evidentemente, isto impede-me de contemplar o jardim, à noite. Mas é esquisito: aquilo que damos aos outros, não o perdemos ; volta para o coração. No ano passado gostava eu do meu jardim. Este ano parece-me que é o meu jardim que gosta de mim".

Mas o decorrer calmo da vida foi interrompido bruscamente. Isabel, anemizada pelo Inverno, apanhou sarampo e foi forçada a readquirir o seu estado de doente. Custou-lhe. Pensou demais durante as tardes febris em que tudo, até os ramos de rosas das cortinas se tornam fantásticos e hostis. Nesses momentos de desarrazoamento, a Marieta não conseguia apaziguá-la: a alma sentia-se arrastada para um mundo desconhecido e, sentindo-se só, tinha medo.

Delirou. Recitou versos de Romain Villanel que Jeanine reconhecia, admirada, nesses lábios infantis que os diziam com uma espécie de paixão feroz. E Jeanine perturbava-se até às lágrimas.

Mas Jeanine bem depressa teve outro doente a vigiar. João-Lucas, contagiado. Quando Isabel pôde levantar-se, alta, branca, nadando nos vestidos demasiado largos, o estado de João-Lucas inspirava cuidado. Porque o rapazinho, já doente, andara a passear pelas ruas ao voltar do Liceu, onde já ninguém o ia buscar. E o sarampo agravou-se com complicações pulmonares.

Além disso, era um doente insuportável. "Não está habituado - dizia Isabel para o desculpar - eu já estava habituada". E, para mais, era um doente a quem Jeanine tinha a fraqueza de ceder.

- Pobre querido, não vale a pena contrariá-lo. É-me impossível fazê-lo sofrer.

Isabel, recordando-se da restrita disciplina imposta no Sanatório, comparava as duas formas de piedade: a que fomenta um grande sofrimento para evitar um pequeno, e aquela que impõe um pequeno para evitar um maior: e pensava que certamente teria morrido lá longe, se tivessem tido por ela uma piedade semelhante à de Jeanine. O João-Lucas não estava bem entregue nessas mãos que apenas procuravam tornar-se ternas, sem saberem ser fortes. E ia desaparecendo o lindo rapaz.

Num repente, Isabel esqueceu as mais velhas e o Sílvio, e até Romain Villanel. Mantinha-se junto do leito do Irmão, pondo ao seu serviço toda a sua jovem experiência de doente, adivinhava se ele tinha sede, se precisava que se lhe levantasse o travesseiro, que se lhe desse a mão, e respeitava esse silêncio de que a doença tanto necessita, ao passo que Jeanine não sabia calar-se: - "Meu pobre pequenino, o que te dói? Sentes-te melhor? Responde à tua Mãezinha" - Via-se bem que Jeanine nunca estivera doente...

"Como o sofrimento é útil!" pensava Isabel, e mantinha-se ali, apesar das repreensões de Marieta, que repetia:

- Nada tem de bom para ti, um quarto de doente.

Ora! A Marieta inquietava-se sempre.

Uma noite em que o médico partira preocupado, Isabel ouviu os Pais conversar. As pessoas crescidas julgam sempre que as crianças não ouvem aquilo que não querem que oiçam. Ora é sempre isso, justamente, que os seus ouvidos, tão apurados, recolhem. A voz de Jeanine era trémula.

- João... Estou muito inquieta. Esta criança não se restabelece. Escute-me e jure dizer-me a verdade, toda a verdade. Quero saber, preciso de saber se já alguma vez esteve doente. Ou se houve, na sua família, algum caso de tuberculose.

A voz de João ergueu-se, lenta, estranha.

- Porque mo pergunta, Jeanine?

- Porque na minha família nunca houve nada.

- E então?

- Não me compreende? A Isabel teve os pulmões atacados, depois da coqueluche.

- E então?

- Então? Estou em cuidado pelo Irmão! Suplico-lhe que me diga a verdade. É tão reservado, João, tão frio! Duro para a sua mulher. Mas, hoje, é a mãe que fala e tem o direito de saber, para defender o Filho. E o João tem o dever de me responder. O mal que atingiu Isabel pode ser hereditário. E o seu Filho estaria ameaçado, como a sua Filha, na mesma idade. Compreendeu, finalmente? Terá piedade de mim?

- O meu Filho, o meu Filho - repetia a voz.

- O meu Filho.

E cada vez o tom se estrangulava um pouco mais.

- Jeanine, vais achar-me louco. Perdoa-me. Já não sei se choro, se rio. Por tua vez tem piedade de mim, pobre homem. Disseste o teu filho. Então é bem meu, o João-Lucas?

Oh! Como a Jeanine soluçava Isabel sentia bem que era preciso deixá-los falar dessas coisas incompreensíveis. Mas abandonar o João-Lucas? Deu-lhe água, aconchegou-lhe a roupa. Pousou-lhe carinhosamente na fronte a sua mão fresca, e deixou o quarto, sem barulho, depois de ter ouvido estas palavras.

- Nunca houve casos de tuberculose entre os Morlainville. Mas a Mãe de Isabel...

E foi junto dessa Mãe, invisível, mas presente, que Isabel foi refugiar a sua pobre almazita, vibrante até às profundezas.

Dias estranhos. Terríveis e magníficos. João-Lucas teve uma recaída. Sentia-se qualquer coisa a rondar. Isabel sabia bem que era a Morte, ceifeira dos novos. Quantas vezes no Sanatório - ainda que envolto em mistério - uma porta se abria para dar passagem a uma caixa comprida, muito pesada. E não mais se ouvia falar de Filipe ou da Jacqueline.

Mas Isabel estava certa de que a Morte não levaria o João-Lucas. Porque os Pais precisavam muitíssimo que ele vivesse, o seu rapazinho. Assim como a Primavera errava pelos jardins à espera da sua hora, a felicidade aproximava-se de João e Jeanine. Nos jardins ainda havia lufadas de vento e, em casa, esta inquietação. E era isto que impedia que tudo florisse. Mas tudo floriria. Talvez não fosse imediatamente. Mas pouco a pouco... E Isabel tornar-se-ia a pequena jardineira da felicidade. Agora sabia que a felicidade podia desabrochar.

Já se inclinavam juntos sobre o leito do seu rapazinho. Uma vez o João chamou à Jeanine "Minha querida". Estava muito mais meigo. Isabel bem via que a Marieta observava o Senhor" através dos óculos: e quando a Marieta olhava dessa maneira, era porque havia alguma coisa de novo.

Interrogar a Marieta? Impossível. Isabel sabia bem que entre aqueles dois se passara alguma coisa de muito grande, que era preciso respeitar sem procurar compreender.

Finalmente, o João-Lucas melhorou.

- "É muito mais forte do que eu era, há-de curar-se". - Pensava a pequena. - Não sabia de que doença morrera a Mãezinha. Agora compreendo por que razão a Marieta quer que eu tome tantas precauções".

João-Lucas voltou a ser insuportável e exigente. Mas agora não era só a Mãe a acarinhá-lo. O Pai passava junto do seu leito todos os momentos livres de que dispunha. Encontraram velhos segredos para fazer maravilhas de papel, e ria do desdém da criança moderna:

- Pobre Paizinho, nem mesmo sabes como se constrói um avião!

Noutros dias - hábil, como o são as crianças, para explorar as riquezas de cada um - João-Lucas exigia que o Pai lhe contasse uma história.

- Onde vai buscar tantas histórias? - admirava-se a Jeanine. - O quê? Inventa-as? Você que tem tão pouca imaginação!

Na noite em que fez esta declaração, ouviu-se um riso fresco. Empoleirada no braço duma poltrona, a menina Isabel troçava das pessoas grandes. O Pai lançou-lhe um olhar inquieto que Jeanine notou.

Mas já Isabel fugira, deixando o Pai acabar o seu conto. Um conto bem mais bonito do que os que se lêem nos livros. E dito numa voz, numa voz...

Uma noite, certa história era tão bela, tão forte, que a Jeanine, ao escutá-la, descobriu que esse homem grisalho tinha em si uma chama.

E, ao ver a linda cabeça loira pensativa, Isabel ousou dizer:

- Mãezinha, a felicidade dá ideias... Não achas que o Paizinho está a tornar-se extraordinário, desde que o João-Lucas melhorou?

- Sim, extraordinário - respondeu Jeanine. Puxou a si o rosto da criança.

- Beija-me. É estranho... às vezes pareces-te com o teu Pai.

 

ISABEL, restabelecida, ficou contentíssima por voltar para o colégio.

Ali, ao menos, todos eram jovens. E preocupavam-se muito mais em sair-se bem duma retroversão latina ou dum problema, do que a decifrar as rugas das fontes melancólicas. Refrescava-a voltar a ser uma colegial.

- Cresceste, Isabel - disseram as companheiras.

Com efeito, o vestido estava curto, o que a aborrecia.

Inês pousou nela o seu lindo olhar pensativo e viu que também a alma lhe crescera. Encontrara mais luz e paz: exactamente como a do Pai, no dizer de Maria-Amada. Os Morlainville ter-se-iam tornado felizes?

Isabel nunca brincava durante o recreio; no Sanatório perde-se esse hábito. Todavia as companheiras gostavam dela, porque era, ao mesmo tempo, simples e delicada, com aquele sorriso que atraía. Mas não tinha nenhuma verdadeira amiga, o seu coração estava demasiado ocupado pela família. No entanto, devia ser bom esquecer, por vezes, estas preocupações causadas pelos Pais e pelas Irmãs.

Ao chegar, nessa manhã, ao canteiro onde os lilases se preparavam para florir, fez uma descoberta espantosa.

- Viste a nova aluna? - perguntou-lhe uma companheira. - Olha, além, aquela rapariga grande vestida de escocês. Veio ontem. Sim, tem ar de quem se aborrece. Que queres? Não a conhecemos.

Singular altivez a destas rapariguinhas! Manter afastada, como uma indigna, "aquela que a gente não conhece". Isabel teve pena e dirigiu-se ao vestido escocês.

Oh! Não foram precisas muitas palavras para pôr à vontade essa rapariga grande, morena e rosada. Muito alegre, por natureza, mas condenada ao mutismo pelo desdém das companheiras, depressa tinha informado Isabel das circunstâncias que ali a haviam trazido: a mudança dos pais, que deixaram a velha casa, demasiado pequena, na margem esquerda, para virem para esta, no xvi.? bairro, e que haviam retirado as filhas do convento onde tanto gostavam de estar para as tornarem alunas deste "Instituto" pouco acolhedor.

- Sim, somos quatro irmãs: está a ver mais três vestidos escoceses aqui, no pátio? Há a Catarina, a Solange, a Denise e um rapaz. Eu sou a Noêlle: a mais velha das raparigas. Noêlle Morot-Léandre. Mas o que disse eu de extraordinário?

- Morot-Léandre? Tive um companheiro com esse nome, na praia, chamava-se Florêncio.

- O meu Irmão! Será você essa Isabel de quem ele fala tantas vezes dizendo-nos: "deviam parecer-se com ela, minhas insuportáveis Irmãs!" A Isabel... Sim, reconheço-a; vi uma fotografia pequenina que o "Senhor" esconde na carteira. Onde mora? Oh! mesmo ao pé de nós. Espere-me à saída, iremos juntas.

A ela juntaram-se as três Irmãs que, tendo todas explorado a carteira do Florêncio reconheceram imediatamente a nova amiga de Noelle. Isabel deixou-as na Rua da Torre à porta da casa onde se instalara a família. Ouviu as vozes agudas das rapariguinhas disputarem-se:

- Sou eu que digo ao Florêncio... Não, menina, sou eu.

Isabel ria-se sozinha. E apressou-se para anunciar também aos seus, a notícia.

- Mãezinha... Marieta..

Só a Marieta apareceu, grave:

- Como estás vermelha! Não tens febre, Isabel?

- Oh! tu enervas-me! Estou contente, eis tudo. Imagina...

Marieta, que compreendia tudo e sabia fazer perguntas inteligentes, interessou-se muito pelo acontecimento. Mas guardava um ar austero. Isabel inquietou-se.

- Estás com a tua cara dos dias maus. Que mais se passou nesta casa?

- Nada de triste, juro-te. Bom: aí estás tu com vontade de chorar. Nada te posso dizer. A Senhora anunciar-te-á a notícia. Uma grande notícia, mas não é triste. Pelo contrário...

E afastou-se para impedir-se de divulgar o segredo que não lhe pertencia.

Isabel, despojada da sua alegria infantil, correu a procurar Jeanine. Quem sabe? Talvez o João se tivesse decidido a contar-lhe tudo. Mas Jeanine, que parecia satisfeita sem estar admirada, disse-lhe:

- A Estefânia anunciou-me, há pouco, o seu noivado.

- Ah Pobre Teresa!

- Pobre Teresa? Evidentemente que é um tanto aborrecido ver a mais nova casar primeiro que a mais velha; mas era de prever! A Fani é tão bonita!

- Isso não é razão para que lhe roube o Sílvio.

- Que imaginas tu, minha querida? Atua Irmã Fani não vai casar-se com esse rapazito Delorme, felizmente! Um criançola tão volúvel... Está noiva dum homem duma certa idade, muito sério, com uma bela situação, e que a ama desde há um ano.

- Ela ama-o? Ah! na verdade, pergunto a mim própria como pode gostar dele, tão pouco tempo depois do Sílvio. É possível mudar assim? Mãezinha, responde-me, quero saber.

Jeanine olhava-a, sonhadora.

- O coração, o coração das mulheres é esquisito, minha pobre pequena. Ter-se-á sempre a certeza de que se ama?

- Todavia, quando se ama, sente-se.

E, com um esforço desesperado, para aproveitar a ocasião que se oferecia:

- Mãezinha, o Paizinho sabe perfeitamente que te ama. E tu sabes também que ele te ama.

- Não fales dessas coisas. O teu Pai, o teu Pai... é tão frio.

- Aparentemente, Mãezinha. Mas no fundo, é um homem ardente. Escuta: tenho a certeza de que um dia virá em que saberemos que ele fez coisas maravilhosas. E todos nos orgulharemos dele.

- Meu Deus, que tolices pode dizer uma rapariguinha! - exclamou Jeanine, esforçando-se por rir. Mas o riso quebrou-se e as lágrimas aveludaram-lhe os olhos.

Ao almoço, Fani apareceu triunfante. Foi preciso beijá-la. Isabel fê-lo apenas com os lábios. Abandonar assim o Sílvio, que é tão simpático! Então por que razão o afastara da pobre Teresa? Para brincar? Como o gato da senhora Martin brincara um dia com um pássaro tombado do ninho? Que horror! As unhas pintadas da Fani afiguravam-se-lhe manchadas de sangue. Quanto à Teresa não veio almoçar.

- Dói-lhe a cabeça - declarou Marieta. - Vou preparar a tisana, daqui a bocado.

- Sou eu quem lha levo! - disse Isabel. João-Lucas, muito lisonjeado de em breve ter um cunhado, e contente pela perspectiva de fazer o peditório no casamento, encarregou-se de manter a conversa. O sr. Morlainville calava-se. Olhava-a, a essa linda Estefânia, tão parecida com Jeanine, a bem amada. Seria ela também uma "bem amada" a quem se não deve dizê-lo? Ah! Pobre Paulo que, já grisalho, esperava toda a sua felicidade dessa fria criança loira!

Por sua vez Isabel olhava as duas loiras e achava Jeanine bem mais bonita, apesar das finas rugas que começavam a vincar-se em volta dos olhos, e apesar do queixo ter engrossado um pouco. No seu olhar havia um não sei quê que transformava tudo. Alguma coisa de "patético", repetia consigo Isabel, sempre presa a esta palavra de que já conhecia o sentido.

- "Alguma coisa de patético. Jeanine já atravessou desgostos. Jeanine ama os Filhos. A Fani nada sabe. É árida".

E como o Pai, Isabel lamentava o "pobre Paulo" de cabelo grisalho... Mas a Marieta entrou com a tisana destinada à Teresa.

Isabel segurou nas mãos a porcelana azulada. Um perfume acalmante evola-se. Pobre Maçã!" cujos dentes brancos acolhem com tanto prazer um bom almoço, contentar-se-á com uma chávena de chá de verbena? Está na poltrona grande, esta pobre Maçã. Tem os olhos fixos. Nenhuma cor nessas faces que, pouco a pouco, perderam o suave arredondado de fruto maduro. Isabel pousa a tisana no canto da secretária. O que mais urge, não é beber, aos golinhos, a verbena, é saber que não está sozinha na sua dor. Dois braços frescos envolveram-lhe o pescoço.

- Minha Teresa. Minha querida Maçã.

Bom, ela chora. Melhor. Aliviá-la-á. As lágrimas correm; são tantas que inundam as faces de Isabel; comovente participação no sofrimento de outrem! Isabel sabe - misteriosa mas claramente - que foi escolhida para isto, que é tão grande, e que na noite de Natal disse o sim". Mas chorar juntas, não basta ; é preciso levar a que sofre a lamentar-se, a desabafar a sua mágoa.

- Bebe o teu chá enquanto está quente. Deitei-lhe bastante açúcar. Deves estar a morrer de sede.

Sim, tem sede a pobre boca que abafou tantos soluços. A Teresa bebe. Isto vai melhor! Ao canto dos lábios descorados esboça-se um ténue sorriso destinado a serenar a Irmãzita inclinada no braço da poltrona e cuja alma se inquieta.

- Como és gentil, Lili! Um amor... Ah! Ao ofereceres-me um canto no teu quarto não podes imaginar o que me deste. Pensa bem, lá era impossível chorar. E, além disso, viver junto dela. Ah! Apanhei horror ao perfume que usa.

- Certamente, minha Maçã. Não podias mais. De resto era demasiado injusto que eu, a mais nova, me instalasse aqui sozinha.

- Injusto? Os móveis pertencem-te. E ao voltares do Sanatório tinhas direito a descansar, minha pobre querida.

- Direito? Não gosto dessa palavra. É muito seca para mim, Teresa. Estou verdadeiramente convencida que... Oh! Não sei explicar-te a minha ideia. Afigura-se-me que desde que possua alguma coisa, sinto necessidade de a partilhar. E, além disso...

Seria conveniente abordar a questão palpitante? Sim, para que a Teresa falasse.

- Vais voltar ao teu quarto azul, visto que a Fani vai casar. Porque recomeças a chorar? Devias estar contente: não casará com o Sílvio.

- Valeu bem a pena tirar-mo. E ele deve sofrer tanto, o pobre pequeno Sofre sozinho, sem que eu nada possa fazer por ele.

Isabel deixou-a chorar: eram lágrimas benéficas, aquelas. As lágrimas assim apaziguam. Lágrimas de amor e de piedade. Lágrimas que devem cair em chuva suave no mundo infeliz. Na sua alma de criança, Isabel oferecia-as ao Pai dos aflitos. E, finalmente, ajoelhando-se diante da Teresa:

- Escuta, minha Maçãzinha. Ele nunca a amou. É a ti que ama verdadeiramente. E com certeza, com certeza há-de voltar para ti, o teu Filho.

- O teu Filho... porque empregas essa palavra?

- Porque... não posso dizer outra quando falo de vocês dois.

- Oh Irmãzinha - murmurou Teresa, contemplando o rosto jovem inclinado para a sua dor de mulher. - Onde vais buscar as tuas palavras?

- Ao meu coração.

- E ao teu coração, quem as inspira?

Uma lágrima enevoou o puro olhar azul e os lábios entreabertos tremeram como os duma criança.

- Não sei. Isto fala dentro de mim. Mas olha que tu fazes com que eu chore também, Teresa! Abraça-me. Sim, com muita força. Sou pequenina... Mas cautela! Vais chegar tarde ao Banco. Banha os olhos. Põe pó de arroz. Sim, sim, precisas de pôr um pouco de pó de arroz, para não apareceres com o nariz vermelho. Uma escovadela no cabelo. Até logo, minha Maçã. Não te desoles. Hás-de encontrar o teu filho.

Esquecera completamente os Morot-Léandre. E, bem entendido, quando chegou ao colégio já tinha principiado a aula. Uma má nota, Isabel Morlainville. Sentiu-se muito despeitada ao pensar que a Noelle iria dar essa novidade ao Florêncio. E, como ainda não queriam tornar oficial o noivado da Fani, era impossível desculpar-se. Na verdade os adultos causam bastantes contrariedades às crianças!

Nunca soube se o Florêncio se escandalizara com a sua falta de pontualidade. As quatro Irmãs traquinas disseram-lhe apenas que ele ficara "vermelho como um tomate", quando lhe deram a grande notícia. O que muito as divertiu.

- Os rapazes troçam das raparigas quando elas coram, e o senhor ainda cora mais. A Mãezinha riu-se. E disse: "Gostava muito de conhecer essa Isabel Morlainville". Vai ver como a Mãezinha é nova e simpática. Muito alegre! Em nossa casa canta-se todo o dia.

A Isabel absteve-se de responder: "Tem muita sorte. Em nossa casa, chora-se".

Mas as rapariguinhas escocesas não precisavam de iniciar-se tão cedo na miséria do mundo. Certamente, a voz misteriosa que fala cá dentro, não lhes pedira isso.

Pelo contrário, trouxeram Isabel para a alegria. Pelo caminho havia sempre histórias divertidas a contar. Histórias em que aparecia o nome de Florêncio. Florêncio, arreliador, mas bom irmão. Florêncio, que, sem hesitar, se servia dos pulsos, mas que em seguida pedia perdão com um beijo. Florêncio, que tinha ideias originais para brincar. Florêncio, que era colérico, mas não era mentiroso, nem preguiçoso, nem amuado. Florêncio, que tão generosamente repartia com os pobres. Um bom rapaz, enfim!

- "Faria bem ao João-Lucas dar-se com ele. Infelizmente não andam no mesmo colégio".

Certa vez, que alegria! Isabel e João-Lucas foram convidados a passar a quinta-feira na Rua da Torre. E foi maravilhoso. Sim, sem nuvens.

Uma casa antiga, restaurada, que cheirava a tintas e felicidade frescas. Um jardim abandonado durante muito tempo, onde os passarinhos eram reis, pequenos reis cantantes. Uma Mãezinha de rosto risonho e rosado sob um lindo cabelo negro e brilhante. E, além disso... o amigo Florêncio.

Depressa conseguiu pôr à vontade Isabel, intimamente comovida. Disse tão gentilmente:

- Bom dia, Senhora Fada.

Que ela foi obrigada a responder-lhe:

- Bom dia, Senhor Chinês. E os dois ao mesmo tempo:

- Como cresceu!

Duas Irmãs segredaram-se, mas a Isabel ouviu perfeitamente as suas insinuações maliciosas:

- Minha querida, pôs a gravata nova.

- E aquela risca, minha velha! Um boião inteiro de brilhantina.

Risos... risos... Como era bom ouvir rir assim... E o riso raro de Isabel, juntou-se aos outros que a haviam libertado das suas preocupações. Foi uma criança alegre.

E também um pouco rapariga, sem o saber... Disse ao Florêncio, que lhe fazia as honras do jardim enquanto o João-Lucas corria com as Irmãs dele em volta do arrelvado:

- Lembra-se da madressilva que colheu na cerca, no momento em que me vinha embora?

Ele não respondeu logo. Como eram novos, meu Deus, e como a relva cheirava bem! Ela repetiu, um pouco admirada:

- Não se lembra? O ramo era muito alto e muito duro. Cortou-o com o seu canivete.

- Oh Sim, lembro-me! E, então?

- Chegou completamente fresco a Paris. O Paizinho, sem o ver, perguntou-me: "Donde vem este perfume?" E o ramo de madressilva, o lindo ramo, conservo-o ainda. Como recordação das férias, compreende?

Ele respondeu, com voz abafada:

- Foi muito amável, Isabel, muito amável.

E caminharam mais lentamente pela álea onde vagueava a alegria de Abril.

 

QUANDO os outros não podiam ver, cada uma das mulheres da casa se detivera, sonhadora, diante do ramo esguio envolto numa nuvem de "tulle" branco que Paulo Bastien escolhera para a sua noiva. Sonhadora... e um pouco hostil:

- O Sílvio nunca poderia oferecer um tão bonito.

Mesmo Fani, a triunfante, pensava isto e sentia ainda uma dissimulada saudade a mordê-la no coração. Absurdo!

A Teresa dizia consigo: "O Sílvio nunca poderia. ." e inclinando a fronte sofria que assim tivessem desdenhado o pobre pequeno! Ah! Uma só rosa, vinda da sua mão!

A Marieta fixava os óculos, e admirando essa dispendiosa alvura:

- Evidentemente, para a Estefânia era preciso luxo.

Isabel, com os olhos sonhadores e os lábios entreabertos, embriagava-se com o perfume dos lilases. Pobre Sílvio, Sílvio o pobre... Então, não basta o amor?

Jeanine, com uma ruga na fronte, procurava desculpar a Filha. Na verdade, ela teria cometido uma imprudência casando com o pequeno Delorme. No entanto, brincar dessa maneira com um coração de homem! Jeanine desejaria voltar a ser rapariga e receber um ramo branco.

E, à noite, muito tarde, um passo de homem aproximou-se furtivamente. João Morlainville inclinou a cabeça grisalha. A ele, poeta, as flores revelavam toda a sua alma. E ele respondia uma única palavra: Jeanine.

Todos estavam perturbados pelo perfume das flores brancas. Perturbados a tal ponto que a pequena Isabel perdeu a razão. Mas não nessa noite: na seguinte, em que os perfumes se faziam mais quentes ainda. Fani saíra com o noivo, e como a Teresa adquirira o hábito de se retirar para o quarto logo a seguir ao jantar, só estavam três pessoas na sala: João, ao abrigo do seu jornal, Jeanine, a fazer malha, Isabel, com um livro, que não lia, entre as mãos. E na noite de Maio, o ramo branco. As suas rosas e os seus lilases. Os seus grandes lírios de pureza.

Jeanine suspirou e, sob o pretexto de ir enxotar uma traça que esvoaçava na sala de visitas, aproximou-se mais uma vez do ramo. O marido, que escrevia a lápis na margem do jornal, deteve-se para contemplar a mulher e as flores. Ela chamou-o.

- Deixe as suas eternas palavras cruzadas, João. Reparou nesta rosa quase a desfolhar-se? Nunca foi tão bela.

Poisando o jornal, ele aproximou-se. Pensava:

- "É como tu, Jeanine. Mais bela ainda que na tua Primavera".

Não o disse. Mas do canapé onde a Isabel sonhava, uma voz se ergueu, lenta, incerta:

- Eu vi-a. Acho que se parece com a Mãezinha. Jeanine, comovida, tentou rir:

- Rapariguinha, serás tu poetisa? A mesma voz:

- Oh! não precisas de mim como poeta. Não procures tão longe...

- Cala-te! - repreendeu João, muito pálido.

- Oh! Não... As flores têm demasiado perfume. E tu, meu querido Paizinho, és demasiadamente pateta. Mesmo assim... Asfixiar, como tu asfixias, quando poderias dizer - e estás a morrer de desejo - quando poderias dizer coisas tão bonitas à tua mulher, que não acredita que as saibas dizer. As coisas que tu tens dentro de ti...

- Calar-te-ás, finalmente, Isabel? Esbofeteava-te de boa vontade.

Num ímpeto, ela alcançou-os. Estava toda despenteada por ter rolado a cabeça nas almofadas. Ergueu o rosto ardente:

- Esbofeteia-me, então. Estou farta de guardar os teus segredos. Escuta, Mãezinha: há um poeta, um grande poeta, aí junto de ti. Há pouco, na margem do jornal, não eram palavras cruzadas que rabiscava, mas versos a propósito da rosa e de ti.

A bofetada estalou, rude, logo seguida da fuga da criança, que voltou com o jornal escrito a lápis.

- Escuta isto, Mãezinha.

Leu dois versos, mas a voz afogou-se num soluço.

Quem a levanta nos braços? Pouco importa. No grande canapé, ei-la enroscada entre os dois. O pai pede-lhe perdão, cobre de beijos a pobre face avermelhada pela bofetada e Jeanine acaricia-lhe a mão entre as suas, tão macias e que tremem.

Como se está bem, meu Deus, como se está bem aqui! Estes dois dirão finalmente que se amam? Ela olha-os: aqui o homem grisalho liberto do seu segredo como uma borboleta que sai do casulo ; ali, os grandes olhos abertos sobre a verdade cujo aproximar pressentia, a linda mulher loira. Choram um pouco; não muito, como gente grande muito bem educada e que se domina. Mas no coração da pequena Isabel, esbofeteada, a Voz, a Voz dos grandes dias ordena: "Diz tudo".

Então, sai desse recanto onde se sentia tão tèpidamente feliz, e, de pé, tentando sorrir, anuncia:

- Minha Senhora, tenho a honra de lhe apresentar o Sr. Romain Villanel.

E foge para o quarto. Já não precisam dela. E se o Paizinho lhe desse mais um bofetão?

.. Era tarde. A Teresa apagara a luz. Dormiria, na verdade? Sim, a respiração era calma, larga, pacífica. Junto do leito, Isabel apanhou um lenço ensopado em lágrimas. Pobre Teresa! Que a noite lhe seja suave e lhe traga um pouco de repouso para a dor de viver!

- Dorme, minha Maçã, dorme.

A criança ajoelha-se e pede que o Sílvio volte. É bom, como é bom, meu Deus, pedir-Te pelos outros Alivia...

Os outros, todos estes outros. Alisou com cuidado as faces do biombo em volto do "cantinho" da Teresa, que precisava de dormir em paz. E ela própria poderia adormecer? A bofetada ainda lhe queimava a face e principalmente a sua altivez infantil.

- "É parvoíce chorar por isto. Mas nunca me tinha batido. Aos dezasseis anos, apanhar uma bofetada..."

Mas lembrou-se da Rosa Martin, de Petites-Dalles, Rosa humilhada. Eram piores que bofetadas, as afrontas que recebia.

- "Sou má, sou uma orgulhosa. A felicidade dos outros compra-se. A Rosa paga-a bem mais cara do que eu".

" Mas como sofria ainda, procurou um refúgio de amor. Abriu a gaveta secreta e tirou o diário escrito outrora por Collete. A sua Mãezinha, a sua verdadeira Mãezinha.

- "Estás contente, Mãezinha? Disseste-me: "Torna feliz o teu Pai. Aconteça o que acontecer". Creio que vai, finalmente, ser feliz. Sem ti, pobre almazinha. Perdoas-me, não é verdade, por ter procurado aproximá-lo da Jeanine? Era preciso. Mãezinha, é difícil viver. Compreendo que tenhas morrido de cansaço. Eu, há um ano, não passava duma criança. Agora, todos eles pesam no meu coração. São pesados, muito pesados. ."

Então, na noite, aquela que só era alma, Collete, muito leve, inclinou-se.

O Florêncio ficou maravilhado quando Isabel lhe anunciou, no jardim, que era Filha dum poeta.

Passeavam enquanto comiam as suas torradas com manteiga, as deliciosas torradas daquela família.

- Em vossa casa-disse ele - há sempre acontecimentos extraordinários. Uma Irmã que vai casar... Um Irmão que escapa à morte... Um Pai que se torna um grande poeta. Na nossa, minha querida Isabel, não se passa coisa alguma.

- Ah! Ainda bem. É muito mais cómodo. Mas tem a certeza disso? Se imagina que a gente sabe tudo o que pensam e fazem as outras pessoas!

- Diga, Isabel, foi de repente que descobriu que o seu Pai publicava versos?

- Não, desde que estivemos em Petites-Dalles que o sei. Mas não o disse a ninguém. O segredo não era meu.

- Pobre Isabel! Devia sufocar. Eu não seria capaz de guardar um segredo desse género.

- Então, tem algum doutro género? Ele corou.

- Sim, tenho um. Dir-lho-ei mais tarde.

- Só mais tarde? Porquê?

- Quando for um homem. Não passo dum rapazito. Nada sei e nada valho. Antes de lhe confiar o meu segredo, quero, sim, quero ter feito coisas belas. De contrário, rir-se-ia de mim.

- Como quiser... Julgo que se trata duma carreira com que sonha. A aviação, talvez?... Ainda tenho outro segredo, Florêncio. E vou confiar-lho. Lembra-se do Sílvio, do Sílvio Delorme?

Ele franziu as sobrancelhas:

- Ah! Esse fantoche!

- É muito pouco amável... Queria que me ajudasse a saber o que é feito dele.

- Mil vezes não, Isabel. Não espere que eu mexa, para isso, a ponta do dedo mínimo. Não lhe basta que ele namore todas as raparigas? Agora é a Isabel? Mas porque bate os pés no chão?

- Porque o acho ridículo. Então, não percebe que é para a Teresa que quero encontrar o Sílvio?

E contou-lhe as desventuras da sua pobre Maçãzinha. O Florêncio indignou-se e enterneceu-se, alternadamente.

- No fundo - disse Isabel - estou convencida que ele nunca amou senão a Teresa. E a Fani faz bem melhor em casar-se com o velho Paulo que é tão rico. Mas casar assim, que horror!

- Que horror - repetiu o Florêncio. -Escute, vou falar do Sílvio ao meu Pai. Ele conhece muita gente das Belas-Artes. Vamos trabalhar para fazer toda a família feliz.

Mas as Irmãs chamavam-nos, impacientes e traquinas.

- Já vamos - gritou o Florêncio. - Guardem-nos fatias.

- Queria ainda perguntar-lhe uma coisa murmurou Isabel. - Mas é uma coisa muito estúpida. Você disse: a sua família será feliz. Acredita que existam pessoas completamente felizes? Não responda "sim" para me agradar ou para falar como os livros. Diga-me... aquilo que pensa quando reflecte, à noite.

- À noite? Durmo. Mas vou dizer-lhe o que penso pela manhã, quando dou uma volta pelo jardim antes das raparigas se levantarem. Àquela hora, as coisas e as ideias estão completamente frescas, lavadas, sem disfarce. A felicidade Não existe já feita e pronta; é preciso que cada um a faça por si próprio. Nunca deixando de ser boa pessoa e ocupando-se dos outros. Mas as manas estão a piar lá em cima.

Vamos jogar o pinguepongue. É muito amável, Isabel, em contar-me os seus segredos.

- É tão bom falar com alguém - suspirou ela.

E ele, a amuar, teria preferido ouvir - "consigo" do que "com alguém"...

Mas excitado pelo orgulho de se sentir tomado para confidente, ganhou todas as partidas de pinguepongue, devorou o resto das torradas com manteiga, sob o olhar maravilhado e respeitoso de João-Lucas.

Com efeito, o João-Lucas, rebelde a todos os conselhos dos Pais e dos professores, submetia-se cada vez mais ao ascendente do belo rapaz alegre. A risca do cabelo imitava o penteado do Florêncio; e na alma também se apagavam as más tendências, para dar lugar a uma linha definida e brilhante.

Por outro lado, o João-Lucas sentia-se tão orgulhoso da sua qualidade de Filho de poeta! Já não se reconhecia o direito de fazer com que o castigassem no liceu. "Noblesse oblige"!

Este Pai, este homem grisalho... Na verdade, já ninguém o reconhecia.

- Cresceu - afirmava o João-Lucas.

- És parvo - respondia Isabel. - Endireitou-se, eis tudo. Como fazem as pessoas quando estão contentes.

- E, além disso, agora veste bem. Reparaste na gravata? Que elegância, minha amiga!

- A Mãezinha vela por isso.

- Imagina que o ouvi cantar, ontem. E nada mal. Sabias que ele podia cantar como toda a gente?

- Pois sabia. Costumava cantar quando passeava comigo em Petites-Dalles.

João-Lucas pasmado com as metamorfoses paternas, não notava o expandir da Mãe, de que Isabel se maravilhava. Em Jeanine, até então duma beleza mole, despertava uma chama. Irradiava. Oh! misteriosa gente grande... Ao lado do amor daqueles dois, como parecia murcho, seco, o romance de Fani! O velho Paulo amava-a, mas sem nobreza, achava Isabel. E a Fani não o amava. Gostava de se sentir admirada eis tudo.

Ao passo que o João e a Jeanine ardiam.

E um grande acontecimento - mais um se preparava para todas essas pessoas que a felicidade rejuvenescia. Romain Villanel, poeta discreto e apreciado somente por um escol, ia conhecer a glória do palco. Ia ser representado um acto em verso, no teatro da moda. O seu nome ler-se-ia no cartaz.

Jeanine estava a fazer um vestido maravilhoso para a estreia, porque queria homenagear o seu grande homem poeta. Mas não era só pela glória. Não... Isabel via-a tão atenciosa e tão terna, mesmo em vestido de trazer por casa! Os pratos preferidos de João apareciam muitas vezes nas ementas, encontrava sempre flores sobre a sua secretária; Jeanine esperava-o à janela quando regressava tarde a casa.

Mas era raro atrasar-se. Tinha sempre muita pressa em tornar a ver esse lindo sorriso de amor.

Assim, não sentira mais que uma decepção passageira quando soube, por Inês, que sua irmã, fatigada, precisava renunciar às suas funções de secretária. Uma secretária exacta e inteligente, encontra-se. Já não sentia necessidade duma presença encorajadora e amiga. Trabalhar em casa era tão suave: junto do esplendor loiro de Jeanine e - suspeitaria ele? - desse refrescante murmúrio de nascente que a alma de Isabel punha na atmosfera familiar. A sua Mulher. A sua Filha.

Mas, ao levar os seus papéis para casa, ao mesmo tempo que as pastas e as gavetas, esvaziara o coração de Maria-Amada. Quem preencheria esse vácuo?

- Ainda podes casar-te - dizia-lhe Inês.

- Oh! Cala-te. Sabes bem que maridos propõem às raparigas pobres do nosso meio e da nossa idade. Mediocridades, e eu vivi junto dum poeta. Se, ao menos, continuasse a ser a sua colaboradora, unida ao seu pensamento! Tiraste-me tudo.

- Nada devias guardar. Nada era teu.

- Imaginas que pode encher-se uma vida a martelar no teclado duma máquina? Inês, nada nem ninguém tenho a quem amar. O meu coração está morto de fome. E baptizaram-me "Maria-Amada". Incoerência. Maria-sem-Amor, seria bem melhor. Diz-me, o que vais dar-me em troca do que me tiraste? Fala, mas fala, então, pedagoga.

Inês estava muito pálida. A sua Irmãzinha... Estendeu-lhe o jornal daquele dia.

- Lê.

- Estás a troçar de mim?

- Lê. Oh! Apenas os títulos. Tumultos...

Motins... Três feridos... Lê um rapazito

foi morto à pedrada por outras crianças que não tinham as mesmas opiniões políticas.

- Isso não é verdade! Crianças...

- É verdade. Tinha nove anos. O ódio germina até no coração dos pequeninos. Lê ainda.. Uma família de operários, cujo marido, desempregado, não tem com que alimentar os filhos. Lê... Os nossos campos estão abandonados. Lê... Invejam-se, julgam-se erradamente. O amor, Maria-Amada, o amor só por si, o amor que aproxima um homem e uma mulher, não é tudo. Não ouves alguma coisa que chama: a miséria do mundo, a miséria da França? Tens trinta anos apenas. Ainda és forte. Podes soerguêla, esta miséria, soerguê-la nos teus braços, até ao teu coração.

Maria-Amada olhava esse quadrado de céu contemplado tanta vez e onde vira passar todas as estações. Ao longe, o rumor de Paris.

Deixou cair os braços sobre a mesa e pousou a cabeça ali, junto da máquina tão pesada. O seu coração perturbava-se.

- Continua - murmurou. - Fala, Inês. Esse rapazinho, por que razão o mataram os outros?

 

GOSTARIA que o casamento de Fani fosse completamente alegre - pensava Isabel" enquanto provava, maravilhada, o seu vestido cor-de-rosa, até aos pés. - "Quantas alegrias! Faço o peditório com o Florêncio. Pareço uma senhorita. Os Pais são felizes. O João-Lucas está a tornar-se um bom rapaz. A Fani... sim, a Fani tem um marido velho e muito feio, mas também tem um automóvel e pérolas. Tudo corre bem. Somente... há a minha Maçã".

Pobre Maçã! Desde o dia do pedido que declarara: "Não serei dama de honor". E todos compreendiam porquê.

Mas com pessoas como os Morlainville, faltar assim aos costumes estabelecidos? Impossível. Uma vez mais a Marieta falou na linguagem do bom senso e da dignidade.

- Teresa, pense na família. Não pode fazer isso.

E a Teresa, abrandada pelo sentimento do dever, aceitou o modelo de vestido desenhado pela Fani com uma perfeita inteligência do que podia embelezar a Irmã.

- É a primeira vez que se ocupa da minha elegância - notava a triste Teresa. - Não é de admirar: trata-se de fazer realçar a noiva.

Enganava-se. a Fani preocupara-se com outra coisa. O amor do Sílvio ao passar pelo seu coração, deixara lá algumas sementes primaveris. Certamente, apenas um reduzido número vingou. a terra deste coração era seca. Mas, mesmo assim, aqui e além, mantinha-se uma vibração, um perfume.

A Isabel não se apercebeu disto senão na véspera do casamento. Até então, como prestar atenção à alma de Fani? Para uma rapariga de dezasseis anos, os preparativos duma festa assim, são tão divertidos! Um conto de fadas. Tudo se mistura num turbilhão cor-de-rosa que canta:

- "As minhas luvas fazem-me as mãos finas.... Há gelados no copo de água... A Marieta comprou um chapéu novo... Que grande que é a cauda da Fani! Um rio de prata... Estará bom tempo? A Mãezinha espera que venha muita gente... O Paizinho, de casaca, vai ficar muito elegante. Oxalá que a mendiga da escada não se ponha a berrar: "Olha que noivo tão velho!"... É preciso que eu ponha a Teresa um pouco do cor-de-rosa de Jeanine... Tocar-se-á violino? É uma coisa que faz chorar... Fazer o peditório com o Florêncio, como vai ser agradável. Tralálálá..."

- "Canta, minha filha-murmurava a Marieta entre dentes. - Choraste muito, este Inverno, por causa de toda esta gente".

.. É amanhã o casamento. Ao jantar as pessoas crescidas estão muito caladas. A Teresa come contrariada. Pensa, pobre Maçã, que a boda devia ser dela e do seu Sílvio. A Fani roubou-lhe tudo e nada guardou, sequer. Que jogo cruel!

A Fani não come mais do que ela, embora a Marieta haja servido os pratos de que ela mais gosta. O último dia da sua vida de solteira, dessa vida que foi feliz sob a protecção dum Padrasto dedicado e generoso... Se, ao menos, ao olhar o passado, não notasse uma barreira negra a atravessar a felicidade da sua irmã Teresa! A Fani sente o coração oprimido. Prendem-se pessoas que não cometeram um pecado tão grave como o seu. E não o sente lavado pelo arrependimento, esse pecado. Seria preciso reparar, fazer qualquer coisa que distendesse um pouco as feições crispadas da Teresa. Mas não ousa falar-lhe; a Teresa responder-lhe-ia: "Oh! Vais deixar-me em paz, não é verdade?". Todavia, amanhã, a Fani não pode dirigir-se para o altar das suas núpcias a arrastar este peso. Recorda-se de ter lido no Evangelho uma frase terrível:

"Se, ao dirigires-te para o altar, te lembrares que há alguma coisa entre o teu irmão e tu..."

É entre a sua Irmã e ela que há "alguma coisa".

Esmigalha, nervosamente, o pão na toalha.

- Estraga! -diz o João-Lucas, brincalhão.

- Quando fores tu a pagar ao padeiro..

E isto dispôs bem toda a gente. Então, a Fani pede licença para se retirar cedo para o quarto. Ainda não acabou de arranjar as gavetas.

- Antes de se deitarem, pequenos, venham, primeiro um e depois o outro, fazer-me uma visita. No fundo das gavetas julgo que vou encontrar qualquer coisita para lhes deixar como recordação.

A Isabel admira-se; é muito amável esta distribuição de presentes, mas nada o género da Fani. Além disso, a sua voz não tem o mesmo som de todos os dias.

Depois que João-Lucas, comovido pela generosidade da Irmã mais velha, fez a sua escolha, Isabel dirigiu-se ao quarto que iria pertencer à Teresa. Muita desordem: mas uma desordem agradável que dava a sensação dum corte impressionante na vida. E, diante das gavetas escancaradas, a Fani, bem bonita com este roupão japonês que não queria levar para a sua nova casa. Olhou a pequena que se aproximava.

- Estás quase da minha altura. Sabes, Isabel? Podes ficar com o meu roupão japonês. Vai ficar-te muito bem. E ficas também com os meus vestidos.

- Sim, agora usarás vestidos de senhora casada, feitos nas modistas que gostas. Estou contente por te ver ainda mais uma vez, assim, como todos os dias, e no teu quarto.

- No meu quarto - repetiu a Fani, inclinada para os guardas-jóias. - Olha, escolhe uma pulseira... um anel, um colar. Parece-me que te vais tornar um bocadinho vaidosa. Escuta, minha jóia, não te tornes demasiado.

- Oh! Não, Fani. Não sou bonita como tu.

- "Há-de vir a ser melhor do que eu", pensa a Fani sem o dizer.

- E, além disso... minha querida... queria pedir-te uma coisa. Notei bem como te preocupavas com todos nós. Ignoro o que se passou entre os Pais, mas creio que a pequena Isabel desempenhou um belo papel. Já que tu, tão nova, sabes e queres ser boa, vem em meu socorro. Sou tão infeliz...

Isabel teve medo. Que mais se passaria? Mas, fazendo, maquinalmente, dançar a pulseira em torno do seu braço esguio, disse:

- Pobre Fani. Diz depressa.

Então a Fani, com as mãos juntas e a cabeça

baixa, falou:

- Fiz mal à Teresa. Adivinhaste-o, não é verdade? Foi por isso que a recolheste no teu quarto, o que te agradeço: ter-nos-íamos tornado demasiado más, as duas juntas. Tu, compreendeste, por isso, nada te explico. Mas queria que, da minha parte, lhe dissesses duas coisas. Ouve bem. São duras de dizer... Isto custa a passar na garganta, porque eu sou uma orgulhosa.

Oh! este despojar duma alma pondo-se a nu sob o olhar duma criança! Fani engoliu um pouco de saliva.

- Sim, duas coisas. Primeiro, peço-lhe perdão. Se me perdoar, queria que me beijasse antes de ir para a Igreja. Antes: lembra-te desta palavra.

- Antes, - repetiu a Isabel, a pôr e a tirar o anel. - Certamente, é preciso que seja antes. E a segunda coisa?

A Fani baixou a cabeça mais ainda:

- Dir-lhe-ás que o Sílvio... O Sílvio nunca amou senão a ela. E ama-a sempre. E é o seu amor que ele chora apaixonadamente, julgando chorar o meu. Aí está... És muito nova para te confiar semelhante missão. Mas a quem me havia eu de dirigir? Tu amas toda a gente. Por isso, embora sejas pequena, nós apoiamo-nos em ti.

Isabel voltou ao quarto com um cofrezinho guarnecido de jóias que em breve fariam a sua alegria. Esta noite não, oh! não. A sua alegria era de outra essência. Afigurava-se-lhe - ideia ingénua de criança - que se parecia com um cãozinho que os velhos quadros representam a correr pela estrada, entre o filho, pródigo e seu pai. Mas a Teresa, vendo-a entrar, teve a visão dum anjinho de cabelo todo encaracolado, e de olhar suave.

- Trago coisas bonitas - anunciou a pequena.

- Olha... Fica-me bem esta pulseira? Amanhã hei-de pô-la.

E, depois, ajoelhada, passando o braço cercado de ouro em volta do pescoço da Irmã:

- Queria que tu me desses uma coisa bem mais linda, minha Maçãzinha.

- Então, o que é? Mais uma jóia? Vaidosa! Que queres?

- Oh! Não é uma jóia. O perdão de Fani. Ela pede-to. É para o pedir, da tua parte, que me pus de joelhos. Ela quereria que a beijasses amanhã, antes da missa, dizendo que lhe perdoas. Insistiu muito para que fosse antes.

- Não serei capaz - gritou Teresa asperamente.

- Sim, hás-de poder. És tão boa, Teresa. Olha para mim, e promete...

Como resistir a este olhar azul, todo claridade?

- Vou tentar. Sim. Beijá-la-ei. Quando estiver vestida e de véu. Será difícil, mas tentarei.

- Trago-te ainda outra coisa da sua parte.

- Ah, Desta vez, não. Não quero presentes dela.

- Não é uma coisa que te dá, grande parva, mas que te devolve. Disse-me: "Dir-lhe-ás que o Silvio nunca amou senão a ela. E ama-a sempre, e que a chora apaixonadamente, julgando chorar-me".

- Ela disse-te isso? Juras?

- Eu nunca minto. Disse isto, minha Maçã. E eu sabia-o sem que ela o dissesse. Anda, que havemos de o encontrar, a esse ruim do teu Sílvio. E tenho a certeza que o seu perdão, não serei obrigada a pedir-to de joelhos.

Um sorriso: raio de Sol nos olhos cor de folhas húmidas. A Teresa amanhã terá esperança.

Sim, a Teresa teve esperança. E a esperança permitiu-lhe resistir. Todavia, era pesado, um dia como aquele: beijar a linda noiva, ouvindo deslizar através dos seus lábios pintados a pequenina palavra difícil de dizer e de recolher: perdão. Ver-se vestida de cor-de-rosa, quando se sonhava com um imenso vestido leitoso. Deixar passear à vontade borlas e lápis no rosto que chorava...

- Tu não te pintas! - gritou Marieta. Proíbo-te, Isabel.

Isabel deitou-lhe a ponta da língua de fora, o que fez rir a Teresa. Mas esperavam-na ainda outras coisas pesadas e que, ao mesmo tempo que a sua, oprimiram a alma frágil de Isabel. Este ressoar de órgãos, esta troca de alianças e de promessas, a música terna e emocionante. Teresa continha as lágrimas. E a pequena Isabel achava aterrorizador representar o papel de noiva. Barulho demais, e gente demais em volta da felicidade. Perguntava a si própria o que pensaria o Florêncio de tudo isto; para ter uma expressão tão grave, devia sentir-se abalado também. Mas os rapazes não gostam de mostrar a sua emoção... Fez-se o peditório.

- Não me deixe fazer tolices - murmurou Isabel pousando a mão na dele.

E desceram a Igreja atrás da Teresa; Isabel, tão atenta a cumprir bem as suas funções, não reparou que a achavam bonita.

Mas o Florêncio ouvia os murmúrios, via os sorrisos. E o seu coração transbordava de orgulho. Que sorte a Fani tê-lo convidado para "pagem de honra"! Se não fosse isso, outro rapaz, um rapaz já homem - talvez aquele glorioso cadete -teria dado a mão a Isabel. A esta ideia, apertava com mais força a ponta dos dedos da sua amiga nos seus: com demasiada força, mesmo( mas a Isabel achava essa pressão tranquilizadora.

- "Acabou" - pensava, contente, ao voltar para o seu lugar. - "Nem um deslize, graças ao Florêncio, O vestido da Teresa fica-lhe lindamente. A Jeanine deve estar radiante: há muita gente".

Voltou um pouco a cabeça para sorrir à Netinha dos porteiros que viera ver a linda noiva, mas estremeceu. Aquele rosto pálido; meio escondido, com a gola do sobretudo levantada" aquela silhueta esguia, curvada, atrás dum confessionário e que se endireitara um pouco depois que as raparigas de cor-de-rosa o ultrapassaram.

Era o Sílvio que se escondia, mas queria ver. Ver quem?

- Que tem - perguntou o Florêncio, admirado da sua paragem.

Ela não respondeu. A Teresa, que estava tão perto, teria ouvido a palavra "Sílvio", essa palavra querida que se tornara uma palavra de dor. Mas guardou a visão do homem emagrecido, que fora um belo rapaz risonho. Como o amor fazia sofrer!

Em seguida, toda a gente desfilou diante dos Morlainville, para os felicitar! Um verdadeiro cinema. Que atraía toda esta gente? A fortuna do velho Paulo? A beleza de Fani? O renome de Romain Villanel cujo incógnito começava a esclarecer-se?

- Acho o Paizinho estupendo, de casaca disse ela ao Florêncio.

E não foi só ela. O homem taciturno do Ministério? Ninguém o reconheceria. E os colegas: o amador da pesca à linha, o solucionador de palavras cruzadas, o entusiasta da motocicleta, ficaram estupefactos. Alguém suspeitaria que ele tinha uma mulher tão bonita e se podia tornar num senhor elegante Transformado, este Morlainville...

E não sabiam que, além disto, este Morlainville era um poeta.

Como o velho Paulo, que queria parecer moderno, pedira que se dançasse, dançou-se. Isabel não conhecia melhor as regras desta arte do que na noite do baile de máscaras. Mas deixava-se guiar tão facilmente pelo Florêncio. E era tão leve!

- Que foi feito das suas asas de fada?-perguntou ele.

- E o seu fato de chinês, com dragões bordados?

Riram a esta recordação que já se tomara longínqua, tão comprido é um ano, para os jovens.

- Era uma petiza - disse Isabel. - Meu Deus, como me pareciam lindos os salões do Hotel! Tudo se me afigurava lindo, naquele tempo.

- E agora, Isabel?

- Agora, sou mais exigente, envelheci, envelheci muito. Garanto-lhe.

Envelhecer? Ele quis brincar:

- Então, também há-de casar com um senhor velho?

- Ah! Não. Um automóvel, jóias, vestidos, "alta costura", como diz a Fani, rio-me disso. O que importa é que me amem. Não é da minha opinião, Florêncio?

Ele afrouxou um pouco a dança. Perguntava isso tão gravemente!

- "Rapariguinha do meu coração..." - pensou. Mas nunca ousaria dizê-lo. E só pelo ter pensado, emudeceu enquanto que os lábios de Isabel se entreabriam, de novo, num sorriso de criança.

 

NAQUELA tarde, naquela tarde de Maio, a gente sentia-se feliz. Feliz e sem preocupações.

Isabel, que acabara de estudar no colégio "A noite de Maio" e que sentia ainda a alma arrebatada pelos admiráveis comentários de Inês, esperava com impaciência que a noite descesse, para se demorar à janela quando o céu ostentasse as suas estrelas. Agora, que de novo possuía o seu quarto, vivia horas intensas debruçada, à noite, sobre o jardim. Demasiado intensas. já não sabia que fazer de toda essa seiva que subia nela como nas roseiras prestes a florir.

Mas a noite tardava a cerrar-se depois de um dia inteiramente azul. Isabel ouvia o João e a Jeanine conversar. Está claro: a conversa era a propósito da peça de Romain Villanel. Alguns dias mais, e o pano erguer-se-ia. E o poeta veria, sim, veria os seus sonhos tornados realidades. Seria uma coisa extraordinária. Jeanine pensava principalmente na glória. Isabel, no deslumbramento que iria sentir.

Porque levariam os pequenos. Estava prometido. Ir pela primeira vez ao teatro, e aplaudir a obra de seu Pai: Isabel e Jeanine não podiam acreditar em tal felicidade.

- "Como a Jeanine agora parece gostar do Paizinho" - pensava Isabel. - "Por que razão, dantes, o não amava do mesmo modo? Então, não tinha descoberto que ele era "grande"? Todavia notam-se as pessoas que são superiores aos outros: a Sr.a D. Inês, o Pedro, o Paizinho, a Marieta, a Rosa".

Bateram à porta. E Marieta entrou, trazendo jornais, cartas - que se tornaram muito numerosas desde o êxito de Romain Villanel - e um grande sobrescrito tarjado de preto.

- Não gosto, nem um bocadinho, destes papéis

- declarou ela sem preâmbulos.

Se tivesse lido o endereço, a carta negra parecer-lhe-ia ainda mais ameaçadora; o João-Lucas encarregou-se disso:

- Ex.ma Sr." D. Isabel Morlainville... como para uma pessoa grande.

- Abre depressa, Isabel - resmungou a Marieta, que estava perto, na expectativa duma dor. - Esta gente é doida, mandar isto a uma criança.

Mas já a carta mostrava o seu conteúdo.

- Não compreendo - disse, extremamente pálida. - Não é possível. Não é ele.

- Mas quem, minha querida? - perguntou Jeanine, aproximando-se da pequena enteada a quem agora tanto amava.

- Lê, Mãezinha, lê. Já não vejo claro.

E no círculo familiar, emudecido pelo respeito da morte, caíram estas palavras definitivas:

- Pedro Jacquelin, professor da Universidade, vinte e sete anos.

- Isso não é verdade, - gritou Isabel. - Ele não pode ter morrido.

- Infelizmente! Por que nos havemos de admirar? Estava muito doente, o pobre rapaz!

- retorquiu Jeanine comovida. Quis abraçá-la.

- Deixa-me - exclamou enfurecida a pequena.

E fugiu para olhar bem de frente e sozinha essa ideia terrível que acabava de erguer-se em face dela: um vivo que amava afundando-se por entre os mortos.

Já não existia o amigo Pedro. Nunca mais voltaria. Oh! este nunca mais... Não, não queria que a consolassem.

Na sala, Jeanine dizia com os olhos cheios de lágrimas:

- Ainda tinha Mãe. Pobre mulher! João, podíamos ter perdido, assim, a pequenita.

- Oh! Não era possível - comentou a Teresa.

- Que faríamos nós sem a nossa petiza!

Silêncio. Cada um pensa no jovem morto que não voltará a ver a Montanha enflorar-se de anémonas. Cada um pensa em Isabel e no que ela deu de amor durante um ano. A tarde de Maio cheira bem, demasiado bem... Porque não se cobriu de luto? João Morlainville recorda a declaração que Alfredo de Vigny empresta à indiferença da Natureza:

Mon hiver prend vos morts comme son hécatombe, Mon printemps ne sent pás vos adorations (*)

E repete a afirmação apaixonada da Teresa para a transformar numa pergunta inquietante:

- Não era possível? A Mãe de Pedro, certamente, disse o mesmo. Saber-se-á a razão porque uns vivem e outros morrem? Era viúva esta mulher, com um único filho, bom, inteligente, na expectativa de um futuro brilhante.

As três almas tremem diante deste mistério do destino. Mas é demasiado pesada para Jeanine esta melancolia, e receia que a sombra de Colette vagueie no meditar de João. Então, fala noutro assunto. E o João, indulgente para com a mulher que adora, embora se aperceba dos seus limites, consente que ela o faça voltar à

 

(') O meu Inverno engole os vossos mortos como uma carnificina, A minha Primavera não sente as vossas adorações.

 

terra: pobre linda Jeanine, a filosofia não é coisa que se adapte ao seu espírito.

Quanto à Teresa, inquieta-se. O Sílvio, mal cuidado, triste, pode cair doente como esse Pedro. Ah! o seu pobre pequeno!

Pouco depois, a Jeanine perguntou se seria conveniente ir ter com Isabel.

- Não - disse o João, passando a mão esguia pela fronte, no gesto de que a felicidade o desacostumara. - Uma criança deste género prefere pensar, completamente só, nos seus mortos.

Mas a Marieta entrara no quarto com um copo de flor de laranja. Isabel, fugindo à noite demasiado bela, deitara-se e chorava.

- Beba isto - aconselhou a criada, estendendo-lhe o copo onde tenia a colher de prata.- Deitei-lhe bastante açúcar. E seja forte, minha Isabel.

Marieta não a trata por "tu" nas horas solenes. Isabel, avisada, escuta-a com singular respeito.

- Seja forte. Sim, tem um grande desgosto. Mas os mortos, vê a menina, os mortos... Pois bem, são os que verdadeiramente vivem. E dizem-nos: "vivei".

- Os teus mortos disseram-to, Marieta? perguntou a pequena entre dois golos perfumados como este bafo que sobe do jardim para as estrelas.

- Sim... E faço por lhes obedecer. Nada fiz de grande, pobre mulher que sou. Mas quis servir para alguma coisa. E fiquei junto de vós, onde podia ser útil a manejar a vassoura e a descascar as batatas. Mas também a amá-los com todo o meu coração, a todos vós. E, como já sou velha e também posso partir por minha vez, quis dizer-lhe isto, Isabel, antes de me ir embora. Os mortos honram-se de que os chorem e lhes levem flores. Querem, acima de tudo, que a gente viva como eles gostariam de viver.

A Isabel chora ainda.

- Marieta, responde-me: onde está o Pedro, o meu amigo Pedro?

- Junto de Deus, porque levou a sua cruz.

- Tu também levaste a tua cruz, a Teresa leva a dela. Um dia terei também uma cruz a levar? Amo tanto a felicidade, Marieta!

- Quando a cruz se apresentar, beijá-la-á. E ela não a impedirá de sentir felicidade na alma. Quando se ama... Agora é preciso dormir, Isabel. Basta de pensar. Dá-me a tua mão, minha jóia, como no tempo em que eras pequenina. Lavei a loiça muito depressa para ficar ao pé de ti. Nada temas.

Como esta mão é tranquilizadora! Por entre os golpes e as rugas, que carinhosa frescura conserva! Isabel sentia que voltava a ser uma pequenina, apertando aquela mão, como outrora. E Marieta, ao olhar a cabeça morena a descansar sobre o travesseiro, sentiu-se, ela também, voltar atrás, mas mais longe ainda: Isabel parecia-se tanto com Colette! Tinha os olhos do Pai, mas quando as pálpebras desciam sobre a sua claridade azul, não se via mais do que a Filha de Colette: Marieta amou-a duplamente. Na quinta-feira seguinte, o Florêncio achou a sua pequena amiga tão triste, apesar da beleza do jardim, que a interrogou:

- Que tem, Isabel? Esteja descansada, não contarei a ninguém.

Ela contou-lhe o luto do seu coração. E ele compreendeu. A pequena construtora de felicidade precisava de ser amparada. Ao perder Pedro Jacquelin, perdia um mestre. Ah! se ele ao menos fosse mais velho, mais sensato, mais forte! Lamentava, por isso, a sua juventude. E, principalmente, as insuficiências da sua vida, sobre a qual todas as noites lançava um olhar claro. Envergonhava-se de continuar um medíocre.

- "Há tantos rapazes admiráveis!"-pensava. Tentou consolá-la, como pôde. Ela não ouvia as

palavras, pobres palavras hesitantes, enquanto as da velha Marieta caíam tão precisas no ponto martirizado. O que ela escutava era, sobretudo, a voz, esta voz jovem, cantante e grave, alternadamente, que ainda continha ressonâncias cristalinas, ao lado de vibrações profundas. Voz de criança ou voz de homem? As duas ao mesmo tempo. Que juventude! Sentia-se reviver.

- Como é bom, Florêncio -murmurou ela. E depois, de novo voltada para o passado:

- Pobre Pedro! Era muito meu amigo.

- "Também eu" - suspirou o coração de Florêncio.

- Nunca lhe disse como ele me tratava? E toda a gente lá adoptara este nome: Liseron... Ele achava que eu me parecia com um "liseron".

Florêncio tinha vontade de chorar. Impossível! Um homem... Cerrando os punhos repetiu:

- Liseron, Liseron... É verdade. Como este nome lhe fica bem!

- Agora que ele morreu - acrescentou a petiza, reprimindo um soluço - já ninguém me tratará por Liseron.

Um silêncio. Ele não ousa. E todavia... Meu Deus, como o jardim cheira bem! A voz estrangula-se-lhe

- Amiguinha, se quisesse,.. Eu chamava-lhe Liseron de boa vontade.

Pensava: - "Só eu. Não digo às raparigas".

Duas lágrimas lentas e redondas rolavam pelas faces de Isabel, um frágil sorriso estremeceu.

Chuva de Verão sobre um "liseron"...

Mais uma mensagem chegou da região branca, mas esta anunciava um regresso à vida.

"Deixo o Sanatório" - escrevia Odília "Passo um dia em Paris. Venha ver-me".

Foi, na expectativa de encontrar uma Odília fresca, trazendo o crestado da montanha num rosto arredondado. Não, ela mantinha o seu rosto em triângulo, lívido, e os olhos sem alegria.

- Curada? -disse-lhe alegremente Isabel.

- Que gracejo! A minha família já não pode pagar o meu internato lá longe, eis tudo. Assim, volto, enquanto estou melhor. Mas sei bem que recairei. Liseron, esta noite durmo na sala cheia de fumo. E ouvirei discussões... Antes disso quis vê-la, a si, que viveu um ano inteiro em família. Mudou muito. Já não é uma criança.. Lembra-se da última conversa que lá tivemos? Continua a achar deliciosa, a casa da rua Nicolo? As pessoas perfeitas? Liseron, estou certa de que teve uma decepção.

Liseron não sabia mentir.

- Sim - confessou. - É difícil o retorno à vida. A gente lembra-se das coisas maiores e mais belas. Mas, depois, tudo se alarga. Está-se à vontade e feliz, dum modo diferente.

- É incrível - murmurou Odília-como estes raciocínios se parecem com os de Pedro Jacquelin.

- Oh! Fale-me dele!

- Sim, Liseron. Morreu como um santo. Quanto mais o fim se aproximava, mais pacífico, simples, paciente se tornava. Vi-o alguns dias antes de morrer. Disse-me uma coisa só para mim. Como adivinhara ele que... Tenho a impressão de que as pessoas que vão morrer lêem nas almas. Afinal, posso bem repetir-lhe isto( mas não chore. Disse-me: - "Nós não temos o direito de fazer por morrer, nem de nos deixarmos morrer". - Compreende, Liseron? Mas não sei se terei coragem para viver, meio doente e profundamente infeliz. Não sei... Não me responda. Não me faça sermões. Seria estúpido. A paz que há nos seus olhos, basta-me. A mesma paz dos olhos de Pedro. Onde vai esta gente buscar a paz?

No quarto do convento calaram-se as duas raparigas. Na capela tocava um sino. Odília suspirou:

- A Irmã ecónoma também possui a paz: adivinhei-o. Liseron, o Pedro falou de si: "Se vir a Liseron, diga-lhe que continue como é, que continue um "liseron". Depois fechou os olhos, e a enfermeira fez-me sinal para que saísse. Ele estará contente, porque continua uma "liseron". Agora fale-me de si. Conte-me o que se passa na sua admirável família... Distrair-me-á.

Pobre Liseron: tagarelar, quando a gente se sente comovida até ao mais profundo do nosso ser? Sim, Pedro assim o quereria. Quando acabou de narrar todos os acontecimentos desse ano, Odília olhou-a, irónica por bravata:

- Continua com a sua boca de bebé, um pouco aberta e ingénua. Ah! minha Liseron, faz-me bem vê-la e ouvi-la. Continue, minha amiga. Vou parecer-lhe estúpida; mas asseguro-lhe que preciso de si.

E sobre elas inclinava-se a alma de Pedro:

- "Sim, Liseron" - dizia essa alma. - "A Odília precisa de si".

O pano estremece

O pano estremece... Oh! este grande pano vermelho!

Bem entendido, chegaram cedo ao teatro. Todavia, Fani - a linda Senhora de Paulo Bastien - declarara, desdenhosamente:

- Nada tem de elegante, sabem?

Tanto pior para a Fani e para a elegância.

- Há outra espécie de elegância, não é verdade, minha velha? - dizia judiciosamente o João-Lucas à Isabel.

E ela respondia:

- Ah! Sem dúvida!

- O grande homem é Pai de nós dois, Isabel... Esta noite a Teresa gostaria bem de chamar-se Morlainville. Se eu adormecer, beliscas-me. Prometes?

- Prometo. Por mim, não há perigo de adormecer. Mesmo que isto durasse toda a noite.

- Estamos todos magníficos. Reparaste no penteado da Mãezinha?

- E os olhos, João-Lucas São duas estrelas. Agora cala-te. Estás a aborrecer-me. Quero ouvir o barulho da sala.

O barulho tem sempre uma alma. Qual é a alma deste? Tanta gente que veio para isto, para o acto em verso de Romain Villanel! As vozes misturam-se, num rumor confuso em que sobressaem os avisos:

"Peçam o programa oficial..." "...É por aqui, o 78..." "Bombons, surpresas".

Agitação de vida que pasma as duas crianças que até esse dia, esse grande dia, nunca haviam entrado num teatro;

Por detrás do pano soam as pancadas do martelo. Monta-se o cenário. Como o autor está pálido! Dar-lhe a mão não seria "distinto", diria a Fani; mas sorrir-lhe, poder-se-á? João bebe este sorriso do olhar. Refresca-o. Porque tem febre. Os seus versos, os seus pobres e queridos versos não irão decepcionar um público exigente? Se falhassem, como velhos alexandrinos poeirentos, a Jeanine já nenhum orgulho teria no seu poeta. E se acharem a intriga simples demais, dirão: "Ora, isto não impressiona". Na verdade é uma loucura ousar defrontar o palco quando se é simplesmente o sr. Morlainville, pacato e metódico chefe de repartição.

Isabel adivinha que um rude turbilhão de pensamentos se agita por detrás da fronte vincada por uma profunda ruga, e que o grande homem se sente um homenzinho estúpido, que bem melhor faria em voltar para casa, onde o esperam o seu jornal e as suas pantufas.

No Sanatório, quando um doente fraquejava, dava-se-lhe uma injecção. Que inventar para fazer voltar a confiança a este? Terna, encantadora, aproxima-se e recita, muito baixinho, certo soneto de Romain Villanel composto em honra dos seus dezasseis anos, e que ela adora. Os versos, correndo através desses lábios redondos, adquirem tanta frescura! O homenzinho estúpido endireita-se. O seu rosto retoma um ar elegante. Entretanto, no palco, soam as últimas marteladas da montagem do cenário.

O seu destino prepara-se. E a sua felicidade também. Porque a verdadeira peça não é a que se representa ali, sobre o tablado, diante dum cenário fictício, mas aquela de que João e Jeanine são, simultaneamente, os autores e os actores, e que poderia chamar-se, ele sabe-o "A felicidade do pobre homem grisalho". Mas as histórias verdadeiras representam-se em casa. Não se levam, palpitantes de realidade, para o teatro. Transpõem-se. Suavizam-se-lhe alguns tons. Transformam-se. O público não deve reconhecê-las. "A felicidade do pobre homem grisalho" nunca será representada diante de espectadores. Esta noite, anuncia-se uma peça que se chama: "Muito simplesmente". O homem grisalho teve medo dum título mais vistoso.

Uma campainhada. Como o coração bate! Apagam-se as luzes. Isabel procura a mão do Pai. Mas no caminho choca com o diamante da Jeanine. O poeta encontrou a mão de que precisava. Ainda bem. Então, para se agarrar também a qualquer coisa de humano e vibrante, Isabel toma a mão de João-Lucas. Por mais que se façam valentes, não passam ainda dum homenzinho muito pequeno e duma mulherzinha muito pequena. E este estreitar serena-os.

Alguns schiu... schiu... percorrem a sala. Três pancadas: meu Deus! caem sobre o coração. O pano sobe.

- "Parece-me que vamos todos morrer" pensa Isabel.

Oh! suave paisagem azul! Uma estrada, de manhã. As folhas agitam-se. Que se irá passar? Isabel não o sabe porque o Pai não quis tirar-lhes a alegria fresca da surpresa. Eis que vem um transeunte; pára sob um raio de Sol; é um homem muito feio e que parece pobre. Que pena! Isabel esperava o Príncipe Encantado. Com certeza que o Paizinho fez mal em ter escolhido para herói um homem tão feio. Inquietação...

Fala o homem feio. Que lindos versos simples! Os versos de Romain Villanel parecem ainda mais encantadores quando os ouvimos dizer. Cada palavra, com a entoação justa, arrastando as outras, é como uma música. E algumas, mais vincadas por aquela voz quente, causam um arrepio.

Pobre homem; sofre. No entanto, a manhã é tão azul! Talvez azul demais. Não, na montanha e no vale de Petites-Dalles há manhãs azuis como esta. Isabel abandona a mão de João-Lucas: estende as mãos para essa torrente de poesia, ao mesmo modo que estende a alma.

Aparecem outros actores. Actores? Não pensa que possam ser actores. A história, a linda história? Mas, é verdadeira e eles vivem-na.

Choram, riem de verdade. Meu Deus, como acabará isto? Contanto que a rapariga loira compreenda que o pobre homem foi criado para a fazer feliz! Contanto que ela não prefira o rapaz que tem um aspecto de manequim de alfaiate! Mesmo assim, o Paizinho não faria uma coisa dessas!

Sim, fê-la. O pobre homem vai-se embora arrastando a sua dor. E depois, quando ele já está longe, longe, muito longe para que possa

voltar, a rapariga descobre que o deveria ter amado. E que, no fundo, o admirava, embora fosse tão feio.

Há muita coisa que Isabel não compreendeu.

Mas a sua almazita branca já sabe reconhecer o mais belo amor. Pensa no Sílvio, que desapareceu. Pensa no Pedro, que desapareceu para sempre. E ei-la que chora com o rosto escondido entre as mãos, enquanto o pano cai. Assemelha-se demasiado à vida.

Como se aplaude! Grita-se: "Bravo! Bis! O pano sobe de novo. O pobre homem – que partira para tão longe - volta à cena, o que decepciona um pouco Isabel nas suas ilusões. Mas tornar a ouvir estes versos, consola. Fecha os olhos desta vez. Assim, só escutará. Os suspiros do mar embalavam assim... Romain Villanel nunca escreveu nada tão belo. Aplaudem ainda: "O autor! O autor!"

Ele ergue-se, firme, pálido, imponente, e agradece. Jeanine olha-o com uns olhos imensos, radiantes de orgulho. Quando se senta de novo, toma a mão do diamante e beija-a... Isabel recorda os versos da "Noite de Maio":

"Poete, prends ton luth; cest mói, íon Immortelle, Qui t'ai vu, cetíe nuit, triste et silencieux, Et qui, comme un oiseau que sã couvée appelle, Pourpleurer avec toi descend du haut dês cieux". (')

Jeanine é a musa...

Feliz João, feliz Jeanine. Mas o João ter-se-ia tornado Romain Villanel, se não tivesse sido devorado pelo desgosto durante vinte anos, antes que a "ave descesse" finalmente até ele?

- "Talvez seja preciso sofrer para escrever versos como estes! Os meus continuam ocos, mesquinhos. Será preciso que tenha no coração

 

(‘) "Poeta, toma o teu estro; sou eu, a tua Musa, Que te vi, esta noite, triste e silencioso, e que, como uma ave a quem a ninhada chama, Para chorar contigo desce do alto dos céus.

 

"uma ferida", como diz a Musa de Maio? E que eu a deixe "alastrar"?

Isabel assusta-se. Mas tudo se aclara: entre os amigos que vêm felicitar o poeta, estão os Morot-Léandre. Trouxeram os dois mais velhos. Noelle beija Isabel e o Florêncio arde de desejo de fazer outro tanto.

- Liseron - murmura.

E essa palavra é fresca sobre o ardor, fresca como o beijo que não ousa.

Isabel e João-Lucas seguem o amigo na galeria. João-Lucas arma em glorioso. Mas Isabel nem se apercebe que se segreda:

- É a filha de Romain Villanel. Sonha. O sonho transborda nela...

Mas onde está a Teresa? Mantém-se no fundo do camarote.

- Anda! - diz-lhe Isabel puxando-a pela mão.

- Não. Oh! Não. Chorei muito. Estou horrível.

- Absolutamente nada, minha Maçã. Fica-te muito bem. Eu também chorei. Toda a gente chorou.

- Isabel, sabes quem vi, lá em cima de tudo? O Sílvio... Escondia-se, mas eu vi-o. Descobri-lo-ia em qualquer parte. Tem mau parecer. O pobre pequeno! Ah! Não se deviam escrever versos como os do Paizinho. Fazem mal. Agitam todo o sofrimento amontoado.

Quando voltaram à sala onde se ia representar uma peça clássica, já lá não estava o Sílvio. Uma vez mais, triste e fugitiva, a sua sombra passara.

Triste e fugitiva também, a sombra de uma rapariga. Bem entendido, Romain Villanel convidara Maria-Amada, a sua perfeita colaboradora, para esta apoteose de versos que fora ela a primeira a conhecer e a amar. E até mesmo, não inspirara ela alguns retoques? Esta rima mais rica, aquela acentuação numa palavra que era preciso tornar forte. Afigurava-se-lhe que esta peça era um pouco obra dela.

- Não vás. Vais sofrer - aconselhava-lhe Inês no seu bom senso e na sua piedade.

- Irei. Há sofrimentos muito belos.

Quem suspeitaria que nessas duas mulheres jovens, pálidas, simplesmente vestidas de preto e silenciosas, cada um desses versos que vinham para a multidão, ressoava como uma nota de violino? Melhor do que qualquer outra pessoa elas conheciam o sentido oculto, a verdade trágica dos murmúrios, dos lamentos, dos apelos. Ao ver Jeanine - Meu Deus, como era linda! radiante, junto do poeta, Maria-Amada comparava a humildade do seu papel de conselheira, à grandeza patética desse papel de inspiradora. Jeanine era a Musa, dizia consigo, como Isabel.

A Musa: seja! Mas porque razão os homens, estes pobres homens, amam a este ponto as mulheres que os fazem sofrer? Oh! Bela Jeanine, feliz Jeanine! Beleza, glória, amor, maternidade. Tudo.

- "E eu? E eu? " - perguntava Maria-Amada a si própria, com as mãos abertas sobre o vestido de seda preta, como que para receber alguma coisa.

Mas já não era asperamente que reclamava a sua parte. E já ouvira a resposta:

- Tu, inclinar-te-ás sobre mim - dizia a miséria.

 

PARIS tomara o seu aspecto de Verão, poeirento e melancólico. Mas além, sob o Sol ardente das searas, os campos resplandeciam. Partir...

Como estudar álgebra e História Antiga, essas coisas mortas, quando a vida chama? Isabel aborrecia-se. E não sabia como ocupar o seu coração: os Pais já não precisavam dela, visto que se amavam.

Restava a Irmã. Mas que fazer por esta pobre Maçã? Entrava todos os dias com um aspecto tão cansado:

- Ah! estes algarismos! - suspirava.

E qualquer alusão às férias a enervava. Voltar a Petites-Dalles sem o Sílvio? Impossível... Entretanto os pequenos ansiavam pela partida, tanto mais que este ano toda a família Morot-Léandre os acompanharia. E haveria muita alegria. Haveria felicidade.

Quanto a Marieta, heróica habitante duma mansarda abrasadora, todas as noites punha a cabeça de fora da clarabóia, procurou avidamente um pouco de brisa e repetia a palavra que encantava a sua alma de camponesa: o mar!

Certo sábado, a Teresa levou Isabel a uma exposição de pintores da montanha, nas Tulherias. Grande jardim triste. Jardim onde o passado revolucionário deixou algo de trágico... Isabel sentiu se melancólica e repreendeu-se a si própria. Então a sua mão procurou o braço da Irmã: recalcando o seu tédio sem nobreza, voltou a ser uma irmãzita que se apoia para melhor consolar. Mas já as folhas amarelas estalavam sob os pés, e pensavam no Outono, sem se ter embriagado de Verão. Era desolador.

- Teresa, não queres realmente ir para Petites-Dalles? Então para onde vais tu?

- Não importa.

A palavra caiu, pesada, no ar quente. Não importa. O desgosto em toda a parte seria igual. Entraram na sala.

- Estou convencida que a montanha te faria bem, minha Maçã. Lá sonha-se menos. Olha..

Grandes paisagens brancas. Pano de fundo das recordações de Isabel. Anos de silêncio. Pureza gelada. Solidão nobre. Estas fórmulas "Lutar. Utilizar os contratempos", essas palavras que se repetiam no Sanatório, seria preciso apresentá-las à Teresa para a arrancar ao seu torpor? Mas a Teresa afundava-se nele voluntariamente, no seu torpor. Teve um riso doloroso.

- Lutar? Para conquistar o quê, minha pobre pequena?

Suaves paisagens verdes. Golear das águas por sobre as rochas. Flores cor de malva e azuis. Isabel colhera ramos delas com o Pedro, nesse Verão em que ele ainda esperava curar-se. Pedro, o grande amigo. "Os mortos são os que verdadeiramente vivem", segundo a Marieta. Isabel suspirou por achar esta presença tão muda.

E eis que, diante duma aguarela, os seus olhos experimentaram a alegria do já visto. Oh! certamente, fora neste pomar em declive que um dia comera cerejas. Com o Pedro...

- Teresa - disse. - Imagina que...

Mas a Teresa já não a escutava. Rolando o catálogo entre os dedos, tinha a cabeça voltada para o outro extremo da sala. Isabel procurou o que assim interessava a Irmã: longa silhueta masculina inclinava-se para os quadros. O Sílvio! Sim, era o Sílvio!

Correu para ele, apesar dos dedos da Teresa crispados no seu braço para o deter. Pronunciou uma palavra apenas:

- Sílvio!

E ele, endireitando-se lentamente:

- Isabel Morlainville.

Como tinha as faces encovadas!

- Venha - disse-lhe ela. - Quero mostrar-lhe uma paisagem que reconheci.

Diante do pomar de cerejas estava a Teresa. Trazia o vestido verde do Verão passado de que ele tanto gostava, afirmando que se adequava aos seus olhos. Teresa hesitou. E depois estendeu-lhe a mão e arrastou-o bruscamente para longe dos quadros.

Isabel ficou só. Não: não estava só. Parecia-lhe que o Pedro estava próximo. Os mortos vivem... Então, sem dúvida, eles assistem-nos, esses vivos libertos da carne! Murmurou:

- Pedro, ajude a minha irmã e o Sílvio.

E aproximou-se para melhor contemplar os pormenores da fresca aguarela. Uma assinatura... Como, assim? Pedro Jacquelin? Obra sua? Não sabia que ele pintava. Que emoção, ver isto que lhe sobreviveria...

Teria feito mais alguma coisa? Tanto pior para os dois que estão lá fora. Alcançou-os. Arrancou o catálogo à Teresa que nem mesmo de tal se apercebeu e procurou o nome do morto. Sim, expunha-se outra aguarela feita por ele.

E que viu, nessa moldura estreita que encerrava toda a alegria dum dia feliz? Um terraço de balaustrada escura. E, a inclinar-se para o cenário das montanhas cumeadas de neve, uma rapariguinha muito nova. Muito vaporosa, como um sonho. Mas distinguiam-se uns caracóis negros sobre o rosto fresco, uma camisola azulada. . Liseron, sim, era a Liseron...

Oh! romance do Sílvio e da Teresa, Deus queira que acabe bem! Liseron - pobre coisinha amadurecida por todas essas chamas em que o seu primo ardia desde há um ano - compreendia, de súbito, que o grande amigo amara a sua Liseron como se ama uma mulher. Ela, tão pequena, tão pequena... Meu Deus, seria possível?

E ele, fora confortado ou despedaçado pelo amor? No momento do supremo adeus, como estava pálido, esse jazente! Ele sabia... ele sabia que era o último adeus. Teria, como o Cristo na cruz, cuja imagem nunca o abandonava, oferecido por ela o sofrimento da sua agonia lenta? Através dele, talvez - pagas por que preço! - haviam vindo até ela todas as riquezas adquiridas durante um ano. Riquezas que recebera a tal ponto que, da sua alma, transbordavam para os outros. E além suores, expectoração sanguínea, lágrimas...

Pedro... Porque ter-lhe escrito tão raramente? Porque tê-lo amado tão pobremente?

- "Eu não sabia. Era tão pequena. É sempre demasiado tarde quando se sabe?"

Mas que faria, se soubesse? A morte queria passar primeiro. "O pomar de cerejas" - "A rapariguinha no terraço", anunciava no catálogo. Esquecia o Sílvio e a Teresa. Mas o Pedro disse-lhe à alma:

- "Vai".

E foi. O Sílvio tinha a mão da Teresa entre as suas.

- Adeus, Teresa.

- Adeus, Sílvio.

Mas o seu aspecto era apenas triste, não era desolado. Eram tão belos, na sua palidez! Isabel estendeu-lhe também a mão.

- Tornaremos a vê-lo, Sílvio?

- Talvez. Se eu o merecer. Ela lhe explicará. Teresa olhava-o enquanto se afastava. Os

olhos que guardariam esta visão querida, não podiam interessar-se pela "Rapariguinha no terraço". Além disso, para quê agravar-lhe o desgosto com a mágoa da Liseron ?

- "Sofrer sozinha" - disse ainda o Pedro "é grande".

Isabel aceitou sofrer sozinha; e, arrastando a Irmã para fora:

- Vem, minha Maçã. Aqui, abafa-se; sentemo-nos um pouco no jardim.

O austero jardim tem, todavia, paisagens de alma. Diante dum canteiro de goivos, encontraram a poesia. Em torno de alvas estátuas adejavam sedosas asas de pombos.

Teresa, contemplando esse quadro, suspirou. Tanta graça feliz, quando se sente a alma tão magoada! E Liseron procurava as palavras que consolam. Mas as palavras são pobres, miseráveis. Tem-se medo de empregá-las. Todavia, era preciso.

- Teresa, ele disse "talvez". Há-de voltar.

Quem sabe? - murmurou a Teresa, com o olhar no vago.

Em que pensava, tão grave e sem lágrimas? Isabel esperou ainda e repetiu:

- Há-de voltar.

Mas a Teresa juntou as mãos sobre a sua dor.

- Ah! a sua consciência é exigente... Escondia-se, o pobre rapaz, porque tinha vergonha. Vergonha de me ter deixado pela Fani. E vergonha... doutra coisa ainda. És muito nova para compreender. Vês tu, nós, as mulheres, quando nos fazem sofrer, choramos. Os homens... alguns, tornam-se filhos pródigos.

Isabel recordou o velho cromo. Era então o Sílvio, o filho pródigo?

- Assim - continuou a Teresa - quer reparar. Todavia, ele deve saber, com certeza, que eu lhe perdoaria imediatamente. Mas aquele orgulhoso quer comprar o seu perdão.

- É belo - murmurou Isabel. -Como te ama! E como se elevou então?

- Então, parte. Vai fazer uma viagem pela África do Norte, a fim de preparar a ilustração dum livro sobre o Padre Foucauld. E eu assusto-me, Isabel. Se ele fica por lá, entre os religiosos do deserto? Com pessoas assim, só alma, saber-se-á com quem contar?

Um silêncio... Um silêncio magnífico. Isabel já não vê o canteiro, todo esmeralda, sob o irizar do jacto de água e florido de goivos. Ao longe, nesse longe de sonho, erguem-se grandes miragens.

Montanhas brancas: o Pedro. Desertos róseos e doirados: o Sílvio. Essas pessoas só alma.., Há as que morrem, chamadas por Deus que não quer deixá-las deter-se junto da felicidade humana. Há as que, por si próprias, abandonam a felicidade humana: os religiosos de que fala a Teresa. Mas é necessário que algumas fiquem e sejam grandes na vida de todos os dias. A França precisa delas. A criança não sabe como exprimir o seu pensamento, fazer-se compreender pela Teresa, pela Teresa que continua a olhar no vago. - "Ajuda-me, Pedro...".

- As pessoas só alma, os artistas, os poetas, os bons trabalhadores, os bons cristãos, os religiosos, os santos, é a esses que chamas "pessoas só alma", diz? Se todos se fossem embora, Teresa, que seria do mundo? O teu, parte, mas há-de voltar. E para vocês dois, para vocês dois... Vês, estou a chorar. É tão lindo o que o Sílvio faz! Ah! para a Fani não faria ele uma coisa tão grande...

Voltaram ao Passy silenciosas, muito juntas uma à outra, roçando a relva verde que refrescava o olhar. Encostaram-se ao parapeito para ver o colear do Sena, e pensaram no mar que essa água lenta iria alcançar.

- Decididamente vou para a montanha disse a Teresa. - Sozinha. Como ele. Também eu quero sacudir-me e readquirir a minha coragem. Toda a minha coragem.

Isabel Morlainville recebeu muito poucos prémios no fim do ano lectivo. Não se sente uma glória. Para a filha dum poeta...

Inês, sem formular nenhuma repreensão, falou do futuro:

- O próximo ano vai ser um belo ano de trabalho. Conto consigo.

Inês saberá que durante os últimos meses esta almazinha fora agitada por tantos acontecimentos? A ciência não pôde germinar livremente, ínês sabe-o, talvez. Sim, os seus olhos, são olhos de quem sabe. Como estão cercados de roxo! E como o cabelo embranqueceu! Sofrimento, também? Evidentemente os professores sofrem como os outros; julga-se que não é assim, vemo-los sempre inclinados sobre os livros e esquecidos de si próprios. Isabel devia ter-se ocupado do coração de Inês. Mas de que sofrem os corações das mulheres solteiras Isabel ignora-o.

Numa bela manhã de alegria partiram para o mar. Sem a Teresa. Sem a Fani. "Como uma família jovem", dizia Jeanine alegremente.

Na camioneta, Marieta sonhava. Sentia o velho coração dilatar-se-lhe de alegria. As férias eram uma linda época. Mas traziam sempre complicações. No ano passado, que barafunda por causa daquele Sílvio de camisola cor de laranja. Gostaria bem de saber o que era feito daquele rapaz. Ainda não era suficientemente sério para se fazer dele um marido. No entanto, a Teresa não o esqueceria. Oxalá que a Isabel não se entusiasme cedo demais por algum rapaz! Marieta, que vira sofrer Colette, inquietava-se pela Filha.

O autocarro atravessou as campinas cheias de verdura e de trémulas flores esguias. Nos vinhedos normandos passavam belas vacas indolentes.

- Haverá maçãs - anunciou Marieta. Isabel pensou na sua querida Maçã.

Eis a curva azul. O declive maravilhoso para o infinito. O vale feliz desenha-se. Desce-se até lá, afundamo-nos nele. Eis os telhados castanhos e, por entre as folhas, o campanário a lembrar que habita ali um hóspede divino; eis os jardinzinhos floridos de hortênsias esféricas e de rosas trepadeiras.

Eis a nossa casa. A mesma casa. Porque mudar? As casas gostam que a gente lhes seja fiel. A Sr.a Martin espera-os, curvada sobre as muletas e com o rosto honesto iluminado pela alegria. E, finalmente, a Rosa, a Rosa sem pintura, bonita, simples, tão rapariga como a própria Liseron. João-Lucas não pôde conter um disparate:

- Olha! Agora já não se pinta!

Ela corou, pobre Rosita, enquanto a mãe anunciava com orgulho:

- O bazar mudou de dono. Agora a Rosa já pode apresentar-se com o aspecto que nos é próprio.

É verdadeiramente delicioso beijar aquelas bochechinhas sem pintura.

Ao longe, o ruído com que se sonhava em Paris: o imenso suspiro do mar. Marieta estende o braço:

- Eis a maré que sobe.

João-Lucas chama-lhe "velho lobo do mar", e todos riem ao ouvi-la responder, já a desembaraçar-se do seu chapéu enfeitado com uvas:

- No entanto, sou natural da Creuse, meus filhos.

 

FLORÊNCIO e Isabel tinham ido buscar manteiga a uma quinta. Levantando-se cedo, gostavam de percorrer o campo na sua frescura perlada e rósea. A esta hora, o mundo é tão jovem!

Cada um levando o seu cesto, sentiram prazer em prolongar o passeio. Trigais ainda não ceifados; uma calhandra subia a cantar e quanto mais subia, mais cantava. Isabel pensou na ascensão duma alma, e contou a história do Sílvio.

- É belo - disse o rapaz - também eu estou convencido de que ele volta. E há-de ser um homem. Até aqui um pouco fantoche, o belo Silvio. Não acha?

intimamente, receava sempre o encanto do Sílvio. Mas ela sacudiu os caracóis negros, embaraçados pelo vento.

- A Teresa é forte. Há-de ampará-lo.

- Sim, a Teresa é forte. Talvez mais que a Liseron.

Era apenas quando estavam sós que lhe chamava Liseron.

-No entanto, amparou a sua Irmã, Liseron. E ainda outros. Passou um ano esplêndido. Isso sim, chama-se viver.

Liseron humilhou-se, para ser verdadeira.

- Esplêndido? Não o foi completamente. Estudei pouco, ao passo que você, Florêncio, está bacharel.

Já não ousava levantar a cabeça, junto deste bacharel tão jovem. Ele não tentou consolá-la. Não: lutava contra a indulgência. Porque queria, devia dizer-lhe qualquer coisa. A sua voz tornou-se severa:

- Liseron, explique-me, porque razão é preguiçosa? É uma coisa que me admira numa rapariga como você...

- Não suporto a Matemática - confessou ela.

- e, além disso... Tive preocupações demais com os meus Pais e as minhas Irmãs.

- Sim, isso representa muito. E acabava de passar três anos a passear. Mas tenciona continuar assim, a perder o seu tempo?

- Não, Florêncio - disse ela, parando para o olhar de frente.

Como os seus olhos eram claros e, todavia, um pouco desolados!

- "Sou um selvagem em estar a aborrecê-la!" - pensou ele.

- Prometo-lhe trabalhar. Mas não sei se me será possível vir a gostar tanto de estudar, como o Florêncio.

- Eu não gosto de estudar.

- Então?

- Então? Digo a mim próprio que é o dever. Além disso, no tempo em que vivemos, regatear o nosso trabalho? Continuar um parasita? Construir um futuro mesquinho? Ah! não. Quanto mais miséria, mais sofrimento, mais maldade houver no mundo, mais necessário se torna que os novos estejam prontos. Não pensa nisto, Liseron?

- Vou pensar, Florêncio. Pensava sobretudo em ter caridade e em ser boa.

- A caridade dos fortes é mais bela. Devemos ser fortes. Mas, então, diga-me: esquecemos a hora do banho? Desta vez vai até à prancha? Despachemo-nos!

Ao cabo de alguns passos, ele parou, inquieto pelo silêncio da companheira:

- Liseron, minha Liseron pequenina... Desgostei-a? Perdoe-me... Se é um pouco preguiçosa, eu tenho muitos outros defeitos.. E é tão boa, Liseron!

- Perdoar-lhe? Não é preciso, meu grande Florêncio. Tenho ar de zangada?

E sorria. Quanta graça nessa criança. .

Para regressar mais depressa, tomaram pelo caminho que desce quase a pique até ao vale. Numa sebe brilhante de verdura, um "liseron" enrolava os seus ramos; e, muito cor-de-rosa, uma flor abria a grande corola frágil.

As crianças detiveram-se, contentes. Esta flor, esta rapariguinha, que usava o mesmo nome! Já a mão tisnada de Florêncio se erguia para colhê-la.

- Não, Florêncio - acode Isabel. - O liseron" murcha quando o colhemos. Deixe-o continuar a expandir-se. É tão lindo, por entre as folhas!

Sobre a trémula flor ela pousou um beijo. Depois baixou-se para abotoar a sandália.

Então o Florêncio, atraindo a si o "liseron", colheu nos lábios o beijo fresco ali deposto entre as gotas de orvalho. Isabel nada viu.

Ergueu-se, um pouco mais rosada.

- Vamos correr - propôs. - Quer, Florêncio?

Jovens, belos, leves, deram as mãos. E desceram direitos ao vale que a alegria da manhã azulava, direitos aos telhados cinzentos e castanhos ao abrigo dos ventos, direitos à miséria humana que os seus corações, muito puros, haviam descoberto antes de a sofrerem.

Desceram: mas a cantar, essas crianças!

 

 

                                                                                                    Berthe Bernage

 

 

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