Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AMOR NÃO SECOMPRA / Ana Seymour
O AMOR NÃO SECOMPRA / Ana Seymour

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O AMOR NÃO SE COMPRA

 

De que lado eles estão chegan­do? Pode vê-los, Lettie? Será que dessa vez, o barão virá também? — Inquieta, Alyce Rose inclinou-se demais sobre o parapeito largo da janela de seu quarto, que ficava no pa­vimento superior do Castelo de Sherborne.

Apavorada, a serva idosa puxou a gola dura do vestido de Alyce para trás, com uma força ina­creditável para uma mulher de estatura tão baixa.

— Eles chegarão logo, milady. E poderá então satisfazer sua curiosidade. Não adiantará nada despencar da janela e cair aos pés deles.

. Alyce torceu os lábios, com ar de pouco-caso.

— Também, tudo o que faço está errado! Apesar de seu aborrecimento, ela saiu da janelae voltou com Lettie para o interior do pequeno dormitório. Mesmo depois da morte do pai, havia onze meses, ela não se mudara para o espaçoso aposento principal. Achava que os quartos enso­larados do lado oposto do hall ainda estavam im­pregnados com a presença dele. Gostava de lembrar-se dele, ativo e sempre a tratando com uma certa severidade, como se quisesse impregná-la com a própria energia. Não o imaginava morto e enterrado na Igreja de Saint Anne, ao lado da esposa a quem tanto amava.

Lettie observou-a, com as mãos nos quadris amplos.

— Não é bom que fique tão deprimida, Allie querida. Os homens do barão podem pensar que a senhora castelã de Sherborne vive de mau humor.

— Não me importo com o que eles podem pen­sar. Seria bom mesmo que me achassem parecida com uma bruxa horrorosa, e melhor ainda que contem isso a meu futuro noivo!

Lettie deu uma rísadinha abafada..

— E provável que o barão de Dunstan tenha sido informado de sua aparência antes de convencer o príncipe João a permitir oficialmente o casamento. Dizem por aí que ele salvou a vida do príncipe e teria, por isso, direito a uma recompensa.

Desanimada, Alyce sentou-se no catre estreito.

— Lettie, ele é mais velho que meu pai seria, se estivesse vivo.

— Eu sei. — A velha ama suspirou. — Não posso deixar de pensar que nosso verdadeiro rei jamais forçaria esse enlace.

— Se o rei Ricardo I, Coração de Leão, estivesse na Inglaterra, não permitiria que isso acontecesse. Pelo menos teria escolhido outro que não fosse tão horripilante. Que mundo é esse onde uma mu­lher pode ser arrematada pelo maior lance, como se fosse um cavalo de raça?

Elas ouviram o portão do castelo ranger para subir e, em seguida, o barulho de uma confusão de homens e cavalos.

— Vamos descer para saudá-los, milady? — Let­tie usou o tom formal que empregava desde a morte de lorde Sherborne.

O título também parecia absurdo para Alyce, pro­nunciado por uma mulher que cuidara dela desde o primeiro minuto de seus vinte anos de vida.

— Não, deixe que Alfred os acomode. Não vou cair nas garras deles como um coelho esperando para ser assado!

— Mas, Allie, e se o barão estiver com eles...

— Se for assim, terei ainda menos vontade de cooperar — Alyce interrompeu. — Quem sabe, se ele achar que a futura esposa é mal-educada e de temperamento difícil, poderá mudar de ideia e pedir ao príncipe outra noiva.

— Allie... — Lettie ponderou preocupada.— To­dos dizem que o barão Philip de Dunstan tem um temperamento terrível. Chegou mesmo a espancar um jovem cavalariço, só porque o pobre não trouxe o cavalo com a rapidez suficiente.

Alyce deu de ombros e levantou o queixo.

— Não tenho medo dele, Lettie. Meu pai não teve filhos, mas sempre dizia que seu consolo era saber que tinha uma filha com o espírito de meia dúzia de cavaleiros.

A serva balançou a cabeça.  

— Milady passou a infância tentando provar a si mesma que sabia agir como menino. Já é tempo de enxergar que é uma mulher, que vai casar-se e que terá filhos fortes.

— Não darei à luz nenhum filho da linhagem Dunstan! — Alyce reclamou exasperada e fitou o céu pela janela.

— Bem, se é assim — Lettie suspirou —, des­cerei sozinha e direi ao barão que milady está adoentada. Mas aposto que será um motivo para ele ficar ainda mais ansioso por vê-la.

— Não, não quero que vá. Não deixe que ninguém saiba do meu paradeiro, vamos fazer um pouco de mistério. Uma recepção fria talvez faça com que os visitantes não se demorem. Se Dunstan perceber que há muitos transtornos em minha família, será um verdadeiro tolo se ainda me quiser como esposa.

— Desafiar o demónio sempre fez parte de seu modo de vida. Desde a morte de seu pai, milady, já enxotou três emissários do barão. Eu não me arriscaria a irritar ainda mais o homem que de­verá ser- seu marido.

Alyce não se importou com as palavras da ama. Depois que seu pai havia falecido, por três vezes o barão de Dunstan enviara seus homens ao Cas­telo de Sherborne para convencê-la a aceitar as ordens do príncipe João Sem Terra. Nas três oca­siões, ela os maltratara e mandara-os de volta. O último grupo fora embora havia três meses, convicto de que o lorde deles havia escolhido uma megera para casar-se. Mas com o ano de luto qua­se terminado, ela recebia novas visitas. Presumia que, dessa vez, o barão se encarregara pessoal­mente da tarefa.

Alyce inclinou a cabeça pensativa.

— Pode dizer a Alfred que lhe ofereça jantar.

— Naturalmente, milady — Lettie surpreen­deu-se com a oferta generosa.

— Depois diga a Alfred para falar com o cozi­nheiro. A carne de carneiro que fez adoecer me­tade do castelo já foi atirada aos cachorros?

Lettie arregalou os olhos horrorizada.

— Milady, não pode pensar em fazer uma coisa dessas!

— Pois eu farei! — Alyce sorriu, matreira e decidida. — Ura belo ensopado é o mais apropriado para oferecer ao barão e seus homens, depois des­sa longa viagem.

Thomas Brand estirou suas longas pernas de­fronte da enorme lareira do grande hall do Castelo de Sherborne. A estrutura do recinto lembrava o lar de Lyonsbridge, mas a semelhança ficava só na arquitetura.

Sua avó Ellen jamais teria deixado as visitas entregues à própria sorte, como fizera lady Sher­borne naquela tarde. Em Lyonsbridge, o jantar com cavaleiros visitantes sempre era uma ocasião festiva. Os candelabros das paredes estariam ace­sos e flamejantes, o que tornaria o átrio claro como o dia. Menestréis seriam chamados da aldeia para entreter os visitantes durante a noite.

Já fazia três anos que não desfrutava do calor das noites em Lyonsbridge.Pelo jeito, a sua estada em Sherborne não iria atenuar a saudade que ele e seus homens sentiam de pisar novamente em solo inglês.

Haviam feito uma longa jornada até Jerusalém e voltado, seguindo o rei Ricardo I em sua mal­fadada Guerra Santa, a Terceira Cruzada. Com a causa perdida, supunha-se que eles deveriam retornar e curar as feridas no aconchego de suas famílias. Em vez disso, eram obrigados a percorrer a Inglaterra, com a missão penosa de reunir o resgate para libertar Ricardo das mãos do impe­rador germânico, Henrique VI, o Cruel. Se depen­desse do príncipe João, Ricardo apodreceria na cadeia, para felicidade de seu irmão.

Thomas relanceou um olhar pelo vestíbulo es­curo e estreitou os olhos para ver se seus homens haviam pelo menos conseguido catres para repou­sar, junto à extremidade aquecida da parede. O fogo já quase se apagara, e ele só via sombras no imenso recinto.

— Thomas! — Kenton sussurrou aflito. Thomas endireitou-se no banco e abaixou as pernas.

— O que é?

Kenton Hinsdale, seu amigo e segundo no co­mando, surgiu da escuridão.

— Os homens estão doentes — ele avisou desolado.

— Doentes? Muitos? Mas o que aconteceu? Kenton agachou-se perto da lareira e esticou as mãos para aproveitar o calor derradeiro das chamas quase extintas.

— Não sei. Harry está vomitando no pátio desde o jantar e agora mais três foram para lá. Eu mes­mo não estou me sentindo muito bem.

— E o estômago, homem?

Por misericórdia de Santa Maria, por que havia parado naquele lugar infeliz que tinha a pretensão de chamar-se de lar?, Thomas perguntou-se.

Desde a chegada, não haviam falado com ninguém, a não ser com o despenseiro velho e senil, que os havia confinado naquele saguão frio e es­curo. Não lhes fora oferecido nada além do piso duro para dormir. Nem ao menos indicaram-lhes onde conseguir combustível para acender o fogo e esquentar a noite fria. E pior de tudo, certa­mente seus homens haviam adoecido por comer comida mal conservada!

Thomas não encostara em nenhum dos pratos. Seu mau humor lhe tirara o apetite e, além do mais, não gostara do cheiro do guisado. Mas os homens estavam famintos. O rotundo Harry era um dos que jamais rejeitava comida.

Thomas ergueu-se.

— Eu suportaria o frio, a escuridão e a negligência. Mas por Deus, não meus homens envenenados! Que­ro uma audiência com a senhora deste castelo, nem que eu tenha de arrancá-la nua da cama!

— Eu iria com o senhor para falar com ela, mas temo... — Kenton esfregou o abdómen na al­tura do estômago e empalideceu.

— Não se preocupe, Kent — Thomas acenou para o amigo. — Não preciso de ajuda para en­contrar a bruxa que é dona disto aqui. Espero que a perícia medicinal dela seja melhor de que a hospedagem.

Kenton apertou o estômago, virou-se e correu pela porta afora.

Alyce comeu os últimos pedacinhos suculentos da coxa do frango capão e, com um suspiro de satisfação, pôs os ossos no tabuleiro de trinchar carne. Lambeu a gelatina de oxicoco dos dedos e fez uma careta para Lettie, que a olhava com desaprovação.

- Sua santa mãe vai virar-se no túmulo, Allie, de ver como os visitantes estão sendo tratados no Castelo de Sherborne.

Alyce franziu o nariz.

— Não me admiraria nada em ver o fantasma dela e do meu pai vagando no pátio de Saint Anne, só de pensar que a única filha deles será forçada a casar-se com alguém como Philip de Dunstan.

Lettie fez o sinal-da-cruz e benzeu-se.

— Pelo menos eles saberão que ela tem um homem forte a protegê-la. Não é fácil para uma mulher viver sozinha neste mundo agressivo.

Alyce apoiou os pés no chão e abaixou-se para deixar o tabuleiro perto da cama.

— Só que esta mulher prefere encarar o mundo por si mesma, em vez de fazê-lo de cima da cama de alguém,que ela não ama.

Lettie bufou.

— Isso para uma jovem que sempre disse que o amor é para os menestréis. "Não ligue para essas baladas idiotas", ela sempre me dizia. "No mundo real..."

Ela parou, ao ouvir as fortes batidas na porta. Por um instante, as duas se entreolharam, e de­pois Alyce abafou uma risada.

— Tenho a impressão de que um de nossos vi­sitantes veio pedir a receita do delicioso ensopado que servimos para eles.

— O que faremos? — Lettie fez a pergunta e engasgou.

— Não deixarei que derrubem minha porta. Abra-a, Lettie. Mas primeiro...

Alyce ficou em pé e arrancou a touca marrom de Lettie, que agarrou a cabeça descoberta assus­tada. Depois, abaixou-se e escondeu o tabuleiro com os restos de comida debaixo do catre. Pulou na cama, encaixou a touca na cabeça e puxou os cobertores até a metade do rosto.

— Temos de fazê-los crer que também estou doen­te, senão não acreditarão que não foi proposital.

— Será que é Dunstan em pessoa? — Lettie perguntou trémula.

As batidas se intensificaram. Alyce escondeu-se debaixo das cobertas.

— Pouco importa. Ele é homem e os outros tam­bém. Eles pensam que por serem mais fortes e serem dominantes no ato do amor, podem ditar regras para a nossa vida! Muito revoltante.

Lettie ficou vermelha com as palavras de Alyce, mas não teve tempo de reclamar. O madeiramento maciço da porta começava a tremer, tamanho o impacto dos murros.

— Abra, Lettie — Alyce ordenou, com a voz disfarçada pelas mantas.

A boa senhora obedeceu e escancarou a porta. De seu ninho improvisado, Alyce notou que o ho­mem furioso era também muito forte. A túnica era curta e o calção de lã modelava as coxas mus­culosas. Alyce fitou-lhe o rosto, era jovem! Com certeza, não era o seu marido.em perspectiva. Dunstan mandara um lacaio buscar a noiva. Ape­sar de tudo, ela suspirou com certo alívio.

— Estou falando com a senhora deste castelo? — O homem parecia irado, mas notou-se uma pe­quena dúvida, quando ele mirou o quarto de alto a baixo e a viu na cama.

— Sim — Lettie respondeu por ela. — Este é o aposento de lady Alyce de Sherborne, meu se­nhor. Porém milady está muito doente.

—Ela também foi envenenada, como meus homens? Lettie anuiu vigorosamente.

— Temo que sim, milorde.

— Sinto muito. — Toda a raiva sumiu da voz dele. Alyce sorriu triunfante, de debaixo das cobertas.

— Ela tem estado com muitas cólicas desde o jantar, milorde.

Alyce teve de conter-se para não gargalhar. A sua ama, velha e honesta, oferecia-lhe mentiras! Bon­dosa Lettie. O que não faria ela por sua menina?

O cavaleiro franziu o cenho.

— Então foi sério, mesmo. Vim à procura de sua senhora, em busca de remédios para aliviar os males de meus homens. Mas como ela mesma também foi acometida, seria melhor procurar um ervanário. Existe algum neste castelo?

Lettie assumiu um ar ainda mais sombrio, e a resposta não foi efusiva.

— Aqui não, milorde. Uma velha, Maeve, mora na aldeia. Mas muitos acham que ela está meio de­mente. A maioria prefere usar as próprias receitas.

O cavaleiro de aspecto imponente suspirou irritado.

— Então a castelã está enferma, e a herborista é louca! Quem a senhora recomenda que eú vá procurar, minha boa senhora?

Lettie fitou o monte de cobertas sobre o catre e hesitou, sem saber o que responder.

— A velha Maeve poderá ajudá-lo — Alyce dis­se, com voz fraca e disfarçada pelas dobras da touca. — Será a melhor solução.

O cavaleiro fitou a cama, de cara feia.

— A senhora já está se recuperando, milady? Alyce balançou a cabeça, negando. O cavaleiro deu um passo para dentro do quarto e espiou mais de perto, como se quisesse ver-lhe o rosto. Alyce puxou ainda mais os cobertores para cima.

— Se a velha tiver alguns pós que possam ajudar, trarei para a senhora também, lady Sherborne.

— Muita bondade... — Alyce agradeceu, com voz incerta.

O homem aguardou mais algumas palavras que não vieram, antes de concluir.

— Mandarei alguém lá imediatamente ou, se ninguém estiver em condições, irei eu mesmo à procura da herbolária.

Ele fez uma mesura elegante dirigida às duas, Alyce e Lettie, virou-se e saiu.

Ambas ficaram em silêncio, depois de ele fechar a porta atrás de si, com cuidado.

— Deus nos ajude, Allie, você viu o homem? Alyce   atirou fora   as   cobertas   e   sentou-se abruptamente.

— Claro que eu vi. Não sou cega.

— Não acha que ele é o homem mais bonito de toda a cristandade? E ainda por cima muito edu­cado, Allie. Isso me faz sentir repulsiva por termos feito uma brincadeira tão malvada com ele.

Alyce tirou a touca e lançou-lhe um olhar mal-humorado.

— Não considero nenhuma evidência de boa edu­cação bater daquele jeito na porta de uma dama enferma e que poderia estar às portas da morte.

— Mas milady não está doente! — A ama co­mentou o óbvio, como se Alyce não soubesse.

— Não. Mas ele não sabia disso.

— Estou me sentindo muito mal, assim mesmo. E agora o mandamos atrás da pobre velha Maeve. Sabe-se lá o que vai achar naquele lugar!

Alyce deu uma fungada de indiferença. Não iria admitir para sua criada que partilhava do mesmo sentimento de culpa. O cavaleiro fora educado, sim. E muito mais do que isso. Era um homem muito bonito e dono de um físico magnífico. Bem, nada mais natural que fosse agradável olhar para ele. Não era culpa daquele homem ter sido o es­colhido para executar a tarefa inescrupulosa de Philip de Dunstan e do príncipe João.

— Se Maeve estiver em um de seus bons dias, ela o ajudará — Alyce condescendeu.

— E, e se estiver em um dos maus, ele prova­velmente pensará que estamos todos loucos.

— O que poderá ajudar no relatório que ele fará ao barão de Dunstan. Se tivermos sorte, ele ficará tão desgostoso, que voltará até seu senhor e dirá que a senhora de Sherborne é uma bruxa doente, que seu lar é deplorável e que o povo dela é lunático.

— Na verdade, Kenton, não saberia dizer-lhe se os pós ajudarão ou terminarão de fazer o tra­balho que o guisado deles iniciou.

Thomas e seu lugar-tenente estavam sentadqs, com as costas de encontro à parede fria do grande vestíbulo. O amanhecer se avizinhava. Thomas havia dormido um pouco, depois de seu retorno do vilarejo. Como a criada avisara, ele havia en­contrado uma velha enrugada e fraca, tanto de saúde quanto mentalmente, que vagava entre o real e o imaginário. Porém ela conseguira entre­gar-lhe matricária e um pouco de flores secas de lúpulo. Ainda prometera que, juntos, os dois pós poderiam expurgar o mais violento dos venenos.

— A maioria dos homens ainda está dormindo, Thomas — Kenton assegurou, apontando para os corpos estendidos ao redor deles. — Parece que resolveram o problema sozinhos. Eu mesmo, sin­to-me bem melhor esta manhã.

Nisso, eles ouviram um gemido no canto mais escuro do hall.

— Harry? — Thomas deduziu, pela tom de voz.

— É ele. Foi quem ficou pior. Talvez os remédios possam ter um efeito benéfico sobre ele.

Thomas puxou a algibeira de dentro de seu manto.

— A bruxa disse para eu misturar os pós com cerveja quente.

Kenton tentou ficar em pé e equilibrar-se.

— Verei se posso achar por aí uma das criadas que servem à mesa para indicar-me onde conse­guir a bebida.

Thomas empurrou o amigo de volta para o chão.

— Farei isso, Kent. Sou o único que não está doente. Verei também se consigo um café da ma­nhã para nós.

Kenton sacudiu a cabeça, titubeante.

— Para mim, apenas cerveja, Thomas. Já provei comida suficiente do Castelo de Sherborne para não querer mais nada.

Thomas sorriu com simpatia e saiu à procura de algum sinal de vida naquele castelo estranho.

Alyce permaneceu acordada durante horas, depois da saída de Lettie. Isso se tornara um hábito, depois da morte do pai. Durante o dia, ela mostra­va-se alegre e otimista quanto ao futuro, mas à noite, ficava acordada, pensando em como poderia salvar-se de um destino que lhe parecia inevitável.

Menos de um mês após o pai ter morrido, ela ainda se achava entorpecida de tanto desgosto. Foi quando recebeu o mensageiro de João Sem Terra, para in­formá-la de que o príncipe, atuando como senhor feu­dal na ausência do rei Ricardo I, havia-a prometido em casamento a um súdito leal, Philip de Dunstan.

Os pesadelos começaram, ao ouvir as histórias sobre o homem que havia sido escolhido como seu noivo. Mas naquela noite, era a culpa que a fazia rolar sem sossego na cama estreita. Quando fi­nalmente adormeceu, sonhou que um grupo de cavaleiros altos" e todos parecidos com o mensageiro de Dunstan, a forçavam a comer um deplorável caldo de carne, legumes e vísceras deterioradas. Depois eles a levaram por um hall muito grande e comprido, até o estrado, onde o noivo a aguardava. Ela acordou com a pele fria e molhada de suor.

Faltava pouco para o amanhecer. Alyce sentou-se, fitando o escuro, perseguida pela preocupação. E se um dos homens que ela havia envenenado com tanta desumanidade morresse? Levantou-se da cama e tateou no escuro, à procura de suas roupas. Não incomodaria Lettie e nenhuma das outras serviçais. Desceria pé ante pé até o grande hall, para certificar-se de que não havia nenhum dos visitantes em estado grave.

Se houvesse alguém muito doente, não teria ou­tra escolha a não ser revelar quem era e cuidar dele. Alyce possuía a arca de ervas da mãe e havia aprendido a usá-las depois de sua morte, quando contava apenas dez anos.

Não precisava de nenhum círio para iluminar seu caminho através do saguão. Conhecia o Cas­telo de Sherborne como a palma da mão. Sem o mínimo ruído, ela entrou no grande hall e parou, à escuta. A sua volta, apenas o ronco leve dos homens adormecidos. Percebeu aliviada que não havia gemidos de sofrimento.

Certamente haveria algum indício, se alguém es­tivesse muito doente. O fogo teria sido aceso e alguns homens estariam despertos, cuidando do paciente.

Esgueirou-se silenciosamente e atravessou o sa­lão, até a despensa.

Naquela manhã, não estava com a vivacidade costumeira, ela refletiu, com ironia.

Sem dúvida, era uma punição pela maldade de comer metade de um frango na noite anterior, enquanto seus hóspedes se alimentavam de co­mida estragada.

O sol começava a derramar seus raios oblíquos pelas janelas do castelo. Alyce entrou na despensa e demorou alguns instantes para entender por que o recinto estava iluminado não pelos raios solares, mas sim por uma archote de parede. Com toda a certeza, a tocha fora levada até lá pelo cavaleiro de seus sonhos, que, naquele momento, estava es­tático a sua frente, com uma caneca de cerveja a meio caminho da boca.

 

Peço-lhe mil desculpas — ele disse, depois de um momen­to. — A senhora assustou-me. Alyce olhava-o com espanto. O homem pôs a caneca em cima de uma barrica próxima e cumprimentou com uma leve inclinação da cabeça, antes de continuar.

— Não consegui achar ninguém agora pela ma­nhã. Tomei a liberdade de servir-me de cerveja.

Alyce permaneceu imóvel por um momento, ra­ciocinando com rapidez. O cavaleiro não parecia sa­ber quem ela era. Ela estava com a aparência de alguém bem mais saudável do que a de lady Sher-borne, que ele havia visto tão enferma horas antes.

— Pode continuar a servir-se, senhor. Sem ne­nhum problema. Milady terá muito gosto em saber disso. Ela mesma teria providenciado tudo, se es­tivesse em condições.

— Como está passando a sua senhora nesta manhã?

Ele a fitava intensamente com os olhos muito escuros. Alyce teve a sensação de que todos seus segredos estavam sendo desvendados. Encabula­da, ela abaixou um pouco a cabeça.

— Milady está bem melhor, senhor.

— Meus homens também melhoraram bastante.

— Lady Alyce ficará feliz em sabê-lo. — Ela o fitou de soslaio e viu que ele continuava a enca­rá-la com os olhos perturbadores.

Seria ele capaz de enxergar o que ela fizera?, ela perguntou-se.

— Perdoe-me por olhá-la tanto — ele descul­pou-se, como se lhe houvesse lido os pensamentos. — Mas a senhora é a primeira pessoa agradável que vejo, desde minha chegada a Sherborne. Na verdade, ouso dizer que a senhora é a pessoa mais adorável que tenho visto nesses últimos tempos.

Alyce sentiu a vermelhidão subir-lhe ao rosto. Depois da morte de sua mãe* seu pai optara por uma vida solitária e tranquila em Sherborne, um lugar bem afastado dos centros maiores. Ela não tivera oportunidades de conviver com os jovens e com os namoricos do mundo sofisticado da corte ou das cidades grandes. Nem mesmo tinha certeza se o cavaleiro a sua frente estaria apenas exer­citando seus encantos masculinos ou aprofundan­do uma tentativa de flerte.

Ela hesitou por alguns instantes.

— Ah... obrigada — ela balbuciou e abaixou novamente o olhar.

— E essa beleza toda tem um nome? — ele per­guntou, com um sorriso extremamente charmoso.

Alyce encarou-o e não teve dúvidas quanto à natureza da intenção dele. Urgia dizer qualquer coisa e, principalmente, não demonstrar nenhum embaraço.

— É... Rose. Eu me chamo Rose.

— Mas que nome mais adequado para uma flor tão bela. — Ele aproximou-se, tomou uma das mãos de Alyce entre as suas e levou-a aos lábios. — Sou Thomas, sra. Rose, um humilde servo a seu dispor.

Seria imaginação da jovem lady ou sua pulsação parecera aumentar nos dedos que ele tocava? Ela ainda teve a impressão, ou melhor a certeza, de que seu coração disparava.

— Thomas? — ela quis saber.

Ele hesitou alguns instantes, antes de responder.

— Thomas... Havilland.

Ela afastou os dedos da mão de Thomas e es­forçou-se ao máximo para não perder a presença de espírito. O problema é que ela mal conseguia pensar, em virtude do zumbir que vinha dos ou­vidos. Aprumou-se para falar com palavras lógicas e voz firme.

— Sir Thomas, o senhor afirma que seus ho­mens já se recuperaram?

— Acredito que sim, salvo Harry Streeter, que deve ter ingerido muito mais de que uma porção do guisado da noite passada — ele comentou, com um sorriso forçado. — O corpanzil dele exige sem­pre uma quantidade de alimento bem maior de que a dos outros.

— Sir Thomas, posso afirmar-lhe com segurança" que lady Alyce deve estar mortificada pelo fato de a comida de Sherborne haver causado todo esse transtorno.

— Tais infortúnios acontecem — Thomas con­temporizou. — Não se pode culpar ninguém pelo que ocorreu.

A culpa que Alyce sentiu foi bem menor de que o tremor e a perturbação que a acometiam e tei­mavam em não deixá-la. Deu um passo atrás, pro­curando acalmar-se.

Aquilo era um absurdo!, ela recriminou-se.

O cavaleiro viera para roubar-lhe a independência, para levá-la até o homem cruel ..que lhe haviam des­tinado para ser seu marido, totalmente contra a von­tade dela! Essa reflexão trouxe-lhe novas forças.

— Acredito que o senhor vá relatar tudo a seu amo — ela deduziu, já com a frieza necessária para o momento.

— Meu amo? — ele surpreendeu-se.

— O barão Philip de Dunstan.

Ele piscou, como se não houvesse entendido.

— Minha senhora, não tenho nenhum compro­misso de fidelidade com Dunstan! — Thomas afir­mou com voz firme e sincera. — O que a fez pensar em tal coisa?

— O senhor não foi enviado pelo príncipe João Sem Terra para levar lady Alyce de Sherborne para casar-se com o barão de Dunstan?

A expressão do cavaleiro tornou-se sombria.

— Eu preferiria limpar estábulos de manhã à noite a prestar qualquer serviço para o príncipe João. Quanto a Philip de Dunstan, perdoe-me di­zer-lhe, mas se a sua senhora está para casar-se com ele, então que Deus a ajude!

— Lettie, ele se chama Thomas Havilland! E não tem nada a ver com o príncipe João! Trata-se sim­plesmente de um cavaleiro que andava por aí... sei lá... fazendo o que todos os cavaleiros fazem, eu acho.

Alyce sentou-se na cama e apoiou a cabeça entre as mãos.

Lettie acomodou-se a seu lado e abraçou-a pelos ombros. Como sempre, confortando sua menina.

— Será preciso apenas lhe contar a verdade, Allie. Se ele diz que Dunstan é um monstro, então deve ser mesmo verdade. Ele entenderá que mi­lady estava querendo somente proteger a si mes­ma. Talvez até a admire por isso.

— Mesmo depois de eu contar que envenenei seus homens? Certamente me abandonaria aos cuidados de homens sem escrúpulos.

— Estas eram as palavras de seu pai, Allie. Ele sempre a doutrinou com tolices sobre homens, um pouco mais venenosas do que a carne que foi servida aos infelizes cavaleiros na noite passada.

— Meu pai sempre quis proteger-me contra as maldades do mundo — Alyce retrucou, na defen­siva. — Imagine se ele soubesse que eu teria de casar-me, vendida como se fosse uma valiosa égua reprodutora! Certamente teria movido céus e ter­ras para deixar-me dinheiro suficiente. Só assim eu teria recursos para pagar meus tributos ao rei e livrar-me desse ónus.

— Sei que ele o faria, minha menina. Ele era um bom homem. Mas ainda assim, não concordo com a maneira como e}e espantava seus pretendentes.

Alyce deu uma fungadela.

— Não estou interessada em pretendentes, Let­tie. Gosto de minha vida do jeito que ela é. Faço o que quero e não tenho de dar satisfações a ne­nhum homem.

— Bem, Allie. O que pensa fazer a respeito desse tal Thomas Havilland? Ele não duvidará de haver caído em uma armadilha, quando tomar conhecimen­to da verdadeira identidade de milady e compreender que Alyce de Sherborne nunca esteve doente. Alyce esfregou o nariz, frustrada.

— Segundo ele deu a entender, todos estão aqui de passagem. Assim que os homens estiverem em condições, partirão para seu destino. Será uma pena, mas infelizmente Alyce de Sherborne não vai recuperar-se tão cedo. Pelo menos, não antes de eles irem embora.

— Pretende ficar na cama esse tempo todo? — Lettie indagou, entre descrente e espantada.

Matreira, Alyce deu um sorriso largo e forçado.

— Lady Alyce continuará acamada. Contudo, em seu lugar, a dama de companhia de milady, Rose, servirá como anfitriã para os cavaleiros.

— Ah, minha querida, mais uma vez está brin­cando com fogo. Se ele descobrir que está sendo enganado...

— Tomarei cuidado. Será uma experiência interessante...

— Não se sabe nada a respeito desse homem, Allie. — Lettie balançou a cabeça preocupada. — Quem é esse sir Thomas? Pode ser um bandido. Apesar das negativas, pode ter vindo por parte do príncipe João. Quem pode afirmar o contrário? Pode ser um dos espiões do príncipe João tentando saber mais coisas sobre a sra. de Sherborne. Ou talvez...

Alyce inclinou-se para dar um forte abraço em sua ama.

— Não seja tão dramática, Lettie. Não importa quem eles sejam. Partirão logo. Mas não estou disposta a ficar trancafiada neste quarto minús­culo. Lá embaixo estão forasteiros que podem tra­zer-me novidades do mundo.

— E homens muito atraentes, diga-se de passagem. Alyce torceu o nariz, fazendo uma careta.

— Não me importo com a aparência de ninguém, Lettie. Quero apenas ouvir-lhes as histórias.

— Mas também não dói nada ter uma bela fisio­nomia^ à frente, enquanto se escuta as novidades.

— É... quanto a isso... tem razão.

— Ah, minha menina — Lettie sorriu com tris­teza e falou com sabedoria, — É uma grande in­justiça milady ter de casar-se com um velho, a mando daquele canalha do príncipe João. Seria tão fácil apaixonar-se por um cavaleiro jovem e bonito como sir Thomas.

— Já lhe disse que não pretendo apaixonar-me por ninguém, Lettie. As mulheres já padecem o suficiente para ter suas migalhas de independên­cia. Não precisam empanturrar suas mentes com noções ridículas de romance,

— Não acredito em amores românticos — Alyce pronunciou-se em voz mais alta do que pretendia.

Thomas ergueu o olhar de seu alaúde. Vários de seus homens estavam reunidos perto da grande lareira, para escutar seu líder cantar uma das baladas de amor sem fim. Era um talento estranho para um homem forte como Thomas Brand. En­tretanto, servira para mantê-los entretidos por muitas das noites terríveis, durante o longo ca­minho para a Terra Santa e também na difícil volta. Eles se inclinaram para a frente, à espera da resposta de Thomas à declaração um tanto cí­nica da bela jovem.

Thomas demorou-se por um momento nas ado­ráveis feições de sua anfitriã.

— Não se acredita no amor — ele contestou, com suavidade. — Ele foi feito para ser sentido.

— Então, nunca senti isso — ela fez a declaração de modo decisivo e com o nariz um tanto empinado.

— E sua senhora? Alyce Rose empalideceu.

— Lady Alyce? — ela procurou disfarçar, para recompor-se.

— Sim, quem mais poderia ser? Ela nunca amou?

— Não. — Dessa vez ela foi ainda mais categórica.

Thomas balançou a cabeça e dedilhou ao acaso as cordas de seu instrumento.

— É uma pena, pois não é com o marido que escolheram para ela que lady Alyce vai encontrar exatamente o amor.

Alyce não foi capaz de resistir à curiosidade.

— Sir Thomas, o senhor conhece o barão? Pode me dizer como ele é?

O dedilhar do alaúde foi intenso e dissonante.

— Tille é um dos homens do príncipe João. Nos dias atuais, não é prudente falar contra um aliado do príncipe João. Mas assim mesmo, pode dizer a sua senhora que um amigo avisou-lhe para não levar adiante esse casamento.

— E o senhor acha que ela se casaria com tal indivíduo se tivesse qualquer outra escolha? — ela desafiou, corada de raiva.

Kenton, que se mantivera de olhos fixos nela a noite toda, resolveu tomar parte na conversa.

— Ela é dona de uma propriedade considerável. Certamente lhe será dado o direito de manifestar-se.

— Nem um pouquinho. Quando uma mulher herda um pariato, o rei tem o direito de casá-la com quem ele quiser.

Kenton e Thomas se entreolharam.

— O rei — Kenton quase soletrou. — Não o irmão do rei.

Alyçe suspirou e cruzou as mãos.

— E indiferente saber quem ostenta o título. Minha sorte será a mesma. Isto é... o destino de lady Alyce não poderá ser mudado, independente de quem for o soberano.

— Sra. Rose, gostaria de falar com milady. — Thomas tirou o alaúde do colo. — Talvez eu pudesse dar-lhe alguns conselhos sobre o assunto. Acha que ela está em condições de me ouvir esta noite?

— Não! — Alyce deu um pulo no lugar. — De jeito nenhum! Ela está... — Ela calou-se e relan­ceou um olhar para os homens que a observavam com simpatia e admiração. Alguns ainda estavam pálidos, sob os efeitos da experiência penosa. — Milady está muito doente, sir Thomas. Duvido de que a recuperação dela seja breve.

Thomas também a fitava com bondade e con­sideração. Mais uma vez, Alyce sentiu-se culpada.

— Não pretendo perturbá-la — ele comentou. — Mas talvez ela me permita dizer-lhe algumas palavras em seus aposentos. Afinal, eu já a vi a noite passada. Para falar a verdade, há outra ra­zão para eu querer revê-la. Gostaria de descul­par-me por minha grosseria.

— Senhor, posso garantir-lhe de que ela estava tão doente que nem percebeu. Como também sei que ela ficaria humilhada de receber um visitante nas condições em que se encontra. Receio que será melhor o senhor relatar-me a sua mensagem, e eu a transmitirei para milady.

Thomas franziu a testa, mas não insistiu.

— Por favor, leve um recado meu — Kenton pediu e Alyce voltou-se para ele. — Pode dizer-lhe que ela tem a dama de companhia mais bonita de toda a Inglaterra.

As palavras de seu lugar-tenente deixaram Tho­mas ainda mais carrancudo.

— Por favor, não leve em consideração o atre­vimento e a vontade de aparecer de meus homens — Thomas recomendou. — Nós estamos longe de casa há muito tempo.

— Não quis ofendê-la, minha senhora — Kenton admitiu sem demora.

Alyce sorriu para o jovem cavaleiro.

— Sir Kenton, seria de muito mau gosto uma dama ofender-se por um cumprimento tão amável.

Thomas fitou Kenton e Alyce, pigarreou e depois falou com voz mais alta de que o normal.

— Sra. Rose, andar muito tempo fora de casa faz com que esqueçamos como são extraordinárias as flores que temos em nosso país. — Thomas lançou para o amigo um olhar competitivo.

Kenton correspondeu ao desafio.

— Na verdade, no leste nada mais há do que desertos, se comparados aos jardins luxuriantes da formosura das inglesas.

Alyce teve a impressão de que bebera em ex­cesso a cerveja aquecida e adoçada com especiarias, embora não houvesse encostado na caneca. Não estava acostumada à companhia de homens estranhos e muito menos de ser o alvo da admi­ração e rivalidade deles. Bastante confusa, ela ficou em pé.

— Cavalheiros, foi uma noite muito agradável, mas tenho de ver se milady precisa de mim.

Imediatamente, todos se levantaram.

— Eu a acompanharei — Kenton ofereceu-se. Alyce fitou um por um, em um relance.

— Não, obrigada. Pode reassumir sua parte nas atividades sociais. — Ela apontou para o alaúde. — Não quero interromper o entretenimento no-turno dos senhores. Por favor, continuem.

Thomas arreganhou os dentes, em um sorriso insípido.

— Perdão, senhora, mas o verdadeiro espetáculo é o que pretende deixar o recinto.

Alyce não pôde deixar de sorrir.

Sem dúvida, tratava-se de uma simples brin­cadeira, porém inteligente, ela disse para si mes­ma, lisonjeada.

Seria assim o dia-a-dia na corte? Não era de admirar que se contassem histórias de tagarelices decadentes. Essa maneira de versar sobre o as­sunto tontearia qualquer jovem.

— Sir Thomas, minha ausência não vai alterar em nada a sequência de sua música admirável. Imploro para que o senhor continue tocando. De­sejo a todos uma boa noite.

Ela sorriu para o grupo em geral, e Kenton não foi o único a ficar encantado. Alyce começou a atravessar o grande hall, em direcção à escada que conduzia a sua câmara. Tho­mas alcançou-a, antes de ela chegar aos degraus.

— Posição social tem seus privilégios, Rose — ele murmurou, curvado na direção dela. — Eu a conduzirei até os aposentos de milady.

Ela observou que ele empregara simplesmente o nome cristão. Ou melhor, o que ele pensava que fosse.

— Esse é meu nome — ela advertiu a si mesma, na defensiva. Em seguida levou a mão à boca por ter pensado alto.

— Como assim?

— O senhor chamou-me apenas de Rose. Eles começaram a subir a escadaria estreita de

pedra. Ele ajudou-a, com a mão na cintura delgada de Alyce.

— Sim, e isso é avançar demais?

— Tenho receio, sir Thomas, de que eu não es­teja familiarizada com as convenções apropriadas.

— Fico feliz em ouvi-la. — Ele sorriu, com ex­pressão de malícia. — Em geral, elas não servem mesmo para nada, só para nos aborrecer. Assim, poderemos dispensá-las e poderá chamar-me ape­nas de Thomas,

Ele apertou um pouco mais a cintura de Alyce.

O tom caçoísta do cavaleiro e a proximidade de seu corpo provocavam nela sensações desconheci­das. Ela ficou perplexa de ver que elas não eram totalmente desagradáveis.

Alyce tentou afastar-se, mas seu ombro raspou a parede arredondada da escadaria. Thomas pu­xou-a de encontro a ele outra vez.

— Deixe-me ajudá-la. Que bela escolta eu faria, se a deixasse cair da escada.

— No pavimento superior deve haver iluminação — ela informou, ao ver o fio de luz que os atingia, enquanto rodeavam o último lance da escada.

Thomas parou e puxou-a para o mesmo degrau onde ele se encontrava.

— Isso não é muito bom — ele murmurou. — Eu já estava acostumado de segurá-la bem perto de mim, no escuro.

Se o que Alyce conhecia sobre maneiras refina­das era verdade, então estava certa de que seria impróprio para um cavalheiro fazer declarações tão sugestivas para uma dama, a quem havia co­nhecido apenas havia um dia. Ainda assim e para seu infortúnio, aquelas palavras fizeram com que sentisse o sangue latejar nas têmporas.

Bem, não podia esquecer-se de que sir Thomas não sabia que ela era uma lady. Sem dúvida, não seria umâ transgressão tão grande falar dessa ma­neira com uma simples dama de companhia.

— Então é uma sorte para mim que lady Alyce tenha o costume de manter o castelo todo ilumi­nado — ela gracejou com naturalidade.

Thomas riu e soltou-a um pouco, sem deixar-lhe, entretanto, liberdade para escalar os poucos de­graus restantes.

— A sua boa sina é o meu azar. Mas veja só, que estranho... A noite passada nós tropeçávamos por aqui como um bando de cegos. Onde estava a iluminação que a senhora diz que lady Alyce tem o hábito usar?

— Milady estava doente, lembra-se?

— Ah, sim. Engraçado, Rose. Não entendo uma coisa. Aquela comida não lhe fez mal?

— Não, eu... — Ela fez uma pausa. — Eu comi frango capão. Fiquei com receio de que a quantidade de guisado não fosse suficiente para as visitas.

— É sempre tão correta assim, Rose? — ele murmurou-lhe ao ouvido.

— Sim — ela sussurrou e molhou os lábios que, de repente, haviam ficado ressequidos.

— O que também é uma pena.

Sob a luz indistinta da escada, ela pôde ver que as feições dele haviam se alterado. Estreitara os olhos e sua expressão passara de um charme provocante para predatório. Ela tentou afastar-se do braço que a segurava, mas acabou encostan­do-se na parede. Ele pressionou mais, e ela pôde sentir, dos joelhos até ò peito, o calor e a rigidez daquele corpo masculino.

— Preciso ir...

Ela ia começar a falar, quando ele abaixou a cabeça e beijou-a.

O beijo foi breve, mas o sabor dele continuou nos lábios de Alyce, mesmo depois de Thomas ha­ver se afastado.

Eles nada disseram durante alguns segundos. Em seguida ele deu um sorriso pesaroso.

— Senhora, pode dar-me uma bofetada, se qui­ser. Mas valeu a pena. Não senti nada tão doce desde que saí para a longa viagem até Damasco e de lá voltei.

Alyce encostou-se na parede, com as pernas bambas.

— Suponho que devam ser feitas concessões para um soldado que retorna de uma guerra. O senhor deve ter visto poucas mulheres em sua jornada e, nessas circunstâncias, qualquer mulher o tentaria.

— Não, Rose. Qualquer uma, não. Ouso dizer-lhe que tenho resistido a muito mais tentações do que possa imaginar. Neste momento, eu não pude resistir a uma mulher tão adorável. Pode me perdoar?

O tom dele foi mais provocante de que arre­pendido. Ela suspeitou que Thomas Havilland confiava que seu beijo poderia não ser considerado como um insulto. Principalmente por uma pobre e esperançosa criada de um pequeno castelo, si­tuado em um lugar modesto. A despeito da arro­gância do cavaleiro, ela sorriu em resposta.

— Digamos que não mencionarei o fato a lady Alyce. Isto é, se soltar-me agora e deixar que eu cuide de minhas obrigações.

Ele afastou-se para o outro lado do degrau e apontou o pavimento acima.

— Pode ir, formosa mulher. A pequena amostra será suficiente para adicionar um delicioso tem­pero aos meus sonhos desta noite. Talvez amanhã eu possa persuadi-la a deixar que eu prove mais atentamente as especialidades de Sherborne. E não estou me referindo ao ensopado — ele acres­centou, com uma risada marota.

Alyce sentiu novamente um calor no rosto. Re­preendeu-se por achar estimulantes as palavras atrevidas do cavaleiro. Por todos os santos, o que estaria ela pensando? Passara a agir como a serva que representava, em vez de tomar atitudes con­dizentes com as da orgulhosa senhora de Sher­borne. Endireitou-se e encarou-o.

— Fui negligente em deixar lady Alyce sozinha esta noite. Pretendo passar amanhã o dia inteiro a seu lado.

— Então eu lhes farei companhia — Thomas anunciou intrépido. — Tenho mesmo algumas coi­sas para dizer a ela sobre aquele assunto do ca­samento. Ricardo I ainda é o rei da Inglaterra. O irmão dele não tem o direito de impor-lhe sua autoridade.

— Mas como o senhor sugere que ela se defenda, se o príncipe João controla a Inglaterra inteira e a nobreza?

— Não todos os nobres — Thomas grunhiu e acrescentou, em tom mais brando. — Pelo menos, lady Sherborne e eu poderemos discutir o assunto. Vamos, não seja teimosa. Diga a milady que irei procurá-la em seus aposentos no meio da manhã. Então, depois de nossa conversa, eu a convencerei a dar-lhe o resto do dia livre para que me mostre as cercanias de Sherborne.

Alyce deu um gemido surdo.

— Seus homens já estão recuperados. Pensei que estivesse ansioso para prosseguir em seu caminho.

— Nosso objetivo pode esperar mais uns dois dias. Ainda não estou pronto para ir embora daqui.

Mesmo inexperiente em matéria de galanteios, o sorriso dele não deixava dúvidas quanto ao por­quê de ele não estar pronto para deixar Sherborne. E, a bem da verdade, ela não estava nem um pouco ansiosa para que ele partisse. Era um ab­surdo, mas, de repente, ela entendeu que não seria nem um pouco contrária a outros beijos de Thomas Havilland. Para ser franca, até ansiaria por eles.

Ela suspirou e resolveu falar pausadamente, pois temia não terminar a frase de modo correto.

— Sir Thomas, receio que milady não vá querer recebê-lo, estando doente. Mas tenho convicção de que ela está pesarosa por não poder mostrar-se uma anfitriã mais cortês. Pedirei a ela que me permita mostrar-lhe os arredores da propriedade.

— Excelente! — O rosto dele iluminou-se. — Então nos encontraremos no meio da manhli?

Ela confirmou, com um gesto de cabeça. E antes que pudesse arrepender-se da decisão precipitada, Alyce virou-se e subiu correndo os degraus restantes.

No longo corredor até seu quarto, ela inventou justificativas para seu comportamento inadequa­do. Depois do que ele dissera, a sua concordância em vê-lo era mais do que um convite para ele beijá-la de novo. Ela jamais teria feito nada pa­recido, se seu pai estivesse vivo.

Mas naquele momento, ela era. uma mulher adulta. Mesmo que Thomas fosse contra o propó­sito do casamento, os emissários reais do barão de Dunstan chegariam em breve.Tinha pouco tempo para exercitar-se nos namoricos dos quais todos se gabavam de já ter usufruído. E, afinal, não seria lady Alyce de Sherborne que beijaria o cavaleiro atraente no dia seguinte. Seria Rose, a dama de companhia.

Alyce entrou no quarto, com um sorriso discreto nos lábios. Tivera um ano de luto e trabalhos ár­duos. Certamente merecia um pouco de distração. Ela se permitiria um dia nesse folguedo.

 

Não precisa jurar. Eu sei que não foi para a cama com a criada, Thomas — Kenton, seu lugar-tenente ob­servou. — Retornou muito depressa para a lareira, ontem à noite. Thomas deu uma risadinha.

— Talvez eu seja mais rápido de quê a maioria.

— Não, isso não corresponde à realidade. — Ken­ton balançou a cabeça com energia. — Já ouvi relatos suficientes de damas da corte sobre sua mestria e seu desempenho nas conquistas amorosas. Thomas Brand não se apressa em amar as mulheres. O se­nhor elabora muito as preliminares.

— É verdade. Prefiro ocupar mais meu tempo com os prazeres. As batalhas devem ser rápidas. Fazer amor deve ser um processo prolongado.

— Por quanto tempo o senhor pretende prolon­gar-se em Sherborne, enquanto nosso rei apodrece na masmorra do imperador?

Thomas fitou o amigo com ar reprovador, mas o tom de voz continuou bem-humorado.

— Um dia ou dois a mais não vai prejudicar ninguém. Nós já conseguimos a maior parte do dinheiro.

— O senhor disse à pequena Rose seu verda­deiro nome?

Thomas franziu a testa.

— Não, dei a alcunha de Havilland. Não sei se seria prudente saberem que voltei para a Ingla­terra. Até mesmo aqui, neste castelo de fim de mundo, seria arriscado divulgar a notícia.

— Quanto antes reunirmos o resgate para o rei Ricardo e voltarmos para o continente, melhor. Se o príncipe João Sem Terra descobrir nossa mis­são, tentará matar-nos sem piedade.

— Sei disso. Eu também não pretendo que nin­guém nos encontre.

— Ainda assim, está pondo em perigo nossa segurança. A sua demora em Sherborne só poderá prejudicar-nos. Ah, Deus! E tudo por um belo ros-tinho — Kenton, normalmente bem alegre, falou com seriedade.

— Coma um pouco desta carne de veado. Ela lhe devolverá o bom humor.

Os dois homens estavam sentados sozinhos no grande saguão, junto à longa mesa principal. Os outros guerreiros já haviam quebrado o je­jum e saído para o pátio. A intenção era apro­veitar o tempo de folga para limpar as armas e os equipamentos.

— Eu lhe disse-,— Kenton respondeu carran­cudo. — Preferia não comer mais nada que viesse da despensa de Sherborne.

— Por isso é que está tão ranzinza. Isso é fome. Não é de seu feitio conceder a um amigo um dia de brincadeiras amorosas, com tanta má vontade! Ou será que deseja a jovem para si mesmo?

Kenton ergueu a faca e espetou um pedaço de carne da prancha de madeira que estava na mesa, em frente a Thomas.

— Não se preocupe, senhor cabeça-dura. Ela só tem olhos para o senhor. Qualquer tolo percebe isso. E além disso, ela é muito magricela para meu gosto.

Thomas quase engasgou com o pedaço de carne que tinha acabado de levar à boca.

— Ela tem curvas em abundância naquele corpo longo e esbelto. Raramente tenho visto juntas tan­ta beleza de rosto e de formas.

— Ela é bonitinha — Kenton concedeu, quase com desdém.

Thomas parou de mastigar e fitou o amigo.

— Então você a queria! .

— Pelas chagas de Cristo, Thomas, veja como estou ofegante! — Kenton ironizou e cortou outro naco de carne. — Ainda não havia percebido? Oh, céus, ela não me quer! Acho que vou me matar de tanto desgosto.

Ambos permaneceram em silêncio por um bom tempo, mastigando a carne fibrosa. Finalmente, Thomas suspirou,

— Sabe, Kenton, ela é do tipo de mulher que faz queimar as entranhas de qualquer homem dig­no desse nome. O diabo é que ela não parece dar-se conta disso. Ela fulgura pelo mundo, na maior inocência de seu poder.

— Também não parece ser muito afeita ao as­sunto — Kenton declarou. — Ela virou seu lindo narizinho para cima para as baladas românticas que o senhor cantou.

Thomas, já com a fome saciada, afastou o tabuleiro,

— Acho que ela se interessa muito mais do que quer admitir.

Kenton inclinou-se para o lado de Thomas.

— E como foi que o senhor chegou a essa con­clusão brilhante?

— Isso, meu amigo, não é de sua conta. — Tho­mas fez pouco caso e deu um sorriso forçado, sem mostrar os dentes. — É só para os entendidos.

— Nós sofremos todos os tipos de privações nos últimos meses — Kenton afirmou amuado. — Se o senhor conseguir a criada, o mínimo que poderá fazer, será alegrar-nos com o relato dos detalhes.

Thomas levantou-se.

— Vá escovar seu cavalo, Kenton, ou azeitar sua armadura ou enfie-se na água gelada do reservatório do castelo. Vou ao encontro de uma dama.

— Lady Alyce também gosta de cavalgar? — Thomas indagou, ao puxar seu grande garanhão para perto da égua de Alyce.

— Bastante — Alyce respondeu, mal contendo uma risada. — É uma amazona conhecida nas redondezas.

Os olhos dele brilharam sob o sol, raro no mês de novembro.

— Ouso dizer que provavelmente não é tão ha­bilidosa quanto a sua dama de companhia Rose.

— Agradeço seus cumprimentos, senhor, mas todos dizem que lady Alyce é a mulher que tem melhor desempenho na equitação neste condado.

Thomas balançou a cabeça, em dúvida.

— O povo dirá qualquer coisa para agradar a um nobre. Ela deve ser uma daquelas senhoras mui­to finas que se pendura do lado da sela e grita his­térica, se o animal andar um pouco mais depressa.

Alyce não aguentou e gargalhou. Ela se divertia muito e não queria reprimir-se. Uma bela manhã e a companhia de um charmoso cavaleiro era uma mistura inebriante. O fato de ela manter a iden­tidade em segredo somente aumentava a diversão. Ela decidiu que, só durante aquele dia abençoado, esqueceria impostos de matrimonio e noivos bru­tais. Fizera o possível para ficar bonita e ir ao encontro de um jovem pretendente muito mais de que aceitável.

Thomas não tentara beijá-la de novo. Naquela manhã, ele a saudara com uma mesura palaciana e manteve uma distância conveniente. Ela havia sugerido um passeio a cavalo. Ele perguntara ime­diatamente se ela preferiria levar com eles outros acompanhantes do castelo. Imprudente, ela de­clarara que iria sozinha com ele e vira uma chama breve de animação nos olhos dele, que logo fora cuidadosamente disfarçada.

— Não acho que lady Alyce seja inclinada a dar gritinhos — ela respondeu. — E pode acreditar quando lhe digo que ela monta tão bem quanto eu.

— Então a estou menosprezando. Terei de cor­rigir-me, quando finalmente tiver a oportunidade de conhecê-la. Ela jantará conosco esta noite?

— Oh, receio que não — Alyce apressou-se em negar. — Esta manhã ela ainda estava bastante doente.

Thomas relanceou um olhar pela campina que atravessavam- O extenso tapete estava repleto de flores silvestres de outono, que o deixa­vam salpicados nas cores púrpura e amarela.

— Que pena lady Alyce ter de ficar na cama em um dia como este! Que tal colhermos flores e levá-las para ela? E o mínimo que posso fazer, se pensar que o guisado que a envenenou foi prepa­rado por nossa causa.

Alyce inquieta mexeu-se sobre a sela.

— Ela não iria gostar de saber que o senhor se atormenta por isso, sir Thomas. Milady é... — ela fez uma pausa para engolir em seco — ...uma pessoa de natureza doce e ficaria muito infeliz em pensar que o senhor está preocupado.

— Ah, está me parecendo que ela deve mesmo ser um anjo. Mais um motivo para tentarmos ale-grar seu quarto de doente. — Thomas apeou de seu cavalp e estendeu os braços para Alyce. — Venha, vamos colher flores para milady juntos.

Alyce deslizou nos braços dele e, de repente, nova onda de culpa abafou todo o embaraço. Havia sido muito engraçado brincar de dama de compa­nhia. O disfarce dera-lhe uma agradável sensação de liberdade. Mas ela entendia que continuar en­ganando Thomas era uma atitude muito perversa.

Ele demorou-se alguns segundos, antes de sol­tá-la e recuar.

— Nós deveríamos ter trazido um cesto. Entãc poderíamos encher os aposentos de milady com estas maravilhas da natureza e suas cores exuberantes.

Com uma expressão pesarosa, Alyce balançou a cabeça. Observou o visitante alto e forte abai­xar-se e apanhar as flores delicadas.

— Pensei que os cavaleiros passassem seu tempo lutando uns com os outros e contra os dragões — ela comentou com graça. — Suas mãos são fortes e trazem marcas de batalhas. No entanto, ontem à noite eu as vi tocando alaúde e agora, elas colhem flores. O senhor me surpreende.

Ele a olhou, sorriu e continuou sua tarefa.

— Rose, um cavaleiro de verdade precisa ser um homem de muitos talentos. Ele enfrenta inú­meras guerras, mas não pode deixar de amar a arte e a música. E ainda por cima, deve sobrar-lhe tempo para entusiasmar-se por uma bela jovem — ele declarou e deu uma piscadela.

— O senhor se considera um autêntico cavalei­ro, sir Thomas?

— Um dos mais verdadeiros. — Ele deu um sorriso largo.

— Suponho que a modéstia não seja uma de suas virtudes.

— Também é, mas me menor proporção. A parte sobre as damas é muito mais importante.

Alyce riu. Nunca antes havia brincado dessa maneira com um homem. Aquilo era engraçado e, por mais estranho que pudesse parecer, esti­mulante. Teve vontade de ficar na ponta dos pés e rodopiar de alegria.

Thomas endireitou-se, ficou em pé, fitou-a e aproximou-se, com uma braçada de flores.

— Se não pretende colhê-las, pelo menos segure estas enquanto eu apanho mais.

— Sir Thomas, tenho certeza de que estas já são mais do que suficientes. O aposento de lady Alyce não é muito grande.

Ele fitou o ramalhete que tinha nas mãos, por um momento — Assim mesmo, terá de segurá-las — ele alegou.

— Por quê? — ela quis saber, ao mesmo tempo em que pegava o buque das mãos dele.

— Porque preciso de minhas mãos livres para segurar uma linda dama — ele assegurou.

Thomas puxou-a para perto dele e abraçou-a. As flores ficaram entre eles. Ambos riram, e ele as fitou, aborrecido.

— Ah, meu Deus — ele lamentou-se. — Assim também não conseguirei abraçá-la.

Alyce envergonhava-se de admitir para ela mes­ma que esperara por aquele momento durante o dia inteiro. Fora incapaz de tirar de seu pensa­mento a lembrança do breve beijo de Thomas. Em­bora admitisse que se tratava de um desejo es­candaloso para uma jovem bem-nascida, ela que­ria outro. E não haveria de permitir que algumas simples flores do campo fossem impedir o acon­tecimento tão almejado.

— Não se preocupe — ela confidenciou e abai­xou-se para colocar o ramalhete no solo. — Elas ficarão muito bem aqui, até a hora de partirmos.

O sorriso de satisfação de Thomas confirmou o que ela imaginava. Estava agindo como uma mu­lher namoradeira do povoado, embora isso não a preocupasse no momento. Ele envolveu-a entre os braços fortes e, abaixou a cabeça para beijá-la de maneira lenta e demorada. Thomas moldou sua boca, quente e úmida, na de Alyce. Depois abriu os lábios para uma união mais ardente. Alyce per­deu a noção de onde estavam e do que os rodeava. Nada mais existia a não ser Thomas, ela e o beijo. Não sentiu mais o cheiro da grama seca do campo nem ouviu o resfolgar impaciente dos cavalos. O mundo inteiro concentrou-se na junção escaldante dos lábios deles.

Ele deixou escapar um pequeno gemido de pra­zer, ao afastar-se alguns centímetros. Fechou os olhos e encostou a testa na de Alyce.

— Por Deus, Rose, nunca em minha vida ex­perimentei nada tão doce.

Alyce, que o abraçava pelo pescoço, apertou-o ainda mais. Ele parecia-lhe profundamente sin­cero. Sem dúvida, apesar de sua pouca experiência na questão de jogos amorosos, ela constatou que Thomas Havilland era um galanteador experien­te. Mas também havia alguma coisa nas palavras dele que não a deixou desconfiada quanto à ve­racidade das mesmas.

Tinha de admitir que era uma noção absurda. Com toda a certeza, ele já beijara inúmeras mu­lheres. Para ele, ela não passava de uma criada, com quem poderia praticar as artes do namoro. E, obviamente, estava sedento por uma mulher, depois de campanhas tão árduas e prolongadas.

— Sir Thomas, o senhor disse que estava fora de casa havia muito tempo. — Ela transformou o pen­samento em palavras. — É perfeitamente compreen­sível que a pequena atenção por parte de unia obs­cura criada inglesa possa ser supervalorizada.

Ele diminuiu o aperto do abraço.

— Não se trata disso, de maneira alguma. Devo admitir que tive poucas oportunidades de beijar nesses últimos meses, mas há algo diferente... — Ele pronunciou as palavras bem devagar, antes de interromper-se.

Thomas mostrava uma expressão de perplexidade.

Alyce foi levada a acreditar que ele, tanto quan­to ela mesma, achara o beijo irresistível. Levada pelo inconsciente, ergueu o rosto, e ele aceitou a oferta muda. Beijou-a de novo. Dessa vez, ela não soube dizer quanto tempo se passou, antes de Tho­mas soltá-la e suspirar desigual e profundamente.

— Rose, sinto-me enfeitiçado. Será que não me fez ingerir alguma poção de amor da velha Maeve? — Ele riu, ao vê-la corar. — Não faz mal. Não estou reclamando. No entanto, é preciso entender que é muito arriscado incitar as paixões de um homem.

Alyce não sabia nada disso, mas o olhar provo­cante dele não era menos perigoso, e ela sorriu-lhe.

O que diria uma dama de companhia em uma situação como essa?, ela perguntou a si mesma.

— Que vergonha -para o senhor — ela tentou uma saída —, se acha que eu precisaria de uma poção para executar a tarefa.

Dessa vez ela pressentiu o perigo no olhar se-micerrado e no alargamento das narinas. Com um movimento rápido, ele ergueu-a nos braços e ca­minhou em direção ao arvoredo, do outro lado da campina. Ele a carregou com facilidade e sem per­der o fôlego, apesar da distância razoável do tra-jeto. Alyce é quem não conseguia encontrar o ar e respirava a custo.

Chegaram até as árvores, e Thomas deu-lhe um beijo rápido.

— Na verdade, querida, quando chegamos, jul­guei Sherborne um lugar modesto. Nunca imagi­nei que pudesse haver tanta riqueza por aqui.

Alyce sehtia-se muito agitada. Apesar de sua inexperiência, compreendeu que Thomas preten­dia mais do que alguns beijos. Em parte, ela que­ria que ele continuasse. Os beijos a haviam dei­xado excitada. Teve consciência de que seu corpo cândido ansiava por aprender o que fosse de le­viandades, que Thomas tivesse para ensinar.

Ele deitou-a suavemente sobre um monte de grama macia ao lado de um freixo e ajoelhou-se a seu lado, sem deixar de fitá-la. Acariciou-lhe a linha delicada do maxilar e depois desceu escul­pindo, sobre o vestido grosso, o busto arfante.

— Posso tirar alguns desses envoltórios?

Em pânico, Alyce afastou bruscamente a mão dele e sentou-se tão depressa, como se uma abelha a houvesse picado. O que acontecera com ela? O cavaleiro podia pensar que ela fosse uma criada, mas ela não era! Ela era lady Alyce do Castelo de Sherborne, vassala do rei da Inglaterra, Não era dona de seu corpo e nem de seu destino.

— Não posso fazer isso — ela declarou muito séria. A princípio, Thomas pareceu pensar que aquilo

fazia parte do jogo. Segurou-a pelos ombros e bei­jou-lhe a ponta do nariz.

— Não se preocupe, amor — ele murmurou, como parte da brincadeira. — Seremos cuidadosos.

Alyce tinha uma vaga ideia do significado da­quelas palavras, porém tinha certeza de que ne­nhum cuidado do mundo poderia tornar correto, para lady Alyce de Sherborne, o fato de ela dei­tar-se com um cavaleiro que estava de passagem por seu castelo. Ela afastou-o com determinação.

— Não, o senhor não pode entender. Por favor, preciso voltar para o castelo.

O toque de alarme presente na voz dela surtiu efeito. Ele a soltou e deixou os braços penderem ao lado do corpo.

— Perdão, Rose — ele desculpou-se com serie­dade. — Eu achei que a senhora estivesse sendo receptiva.

Alyce mordeu o lábio ainda sensível em conse­quência do beijo.

— Sim... — ela lamentou-se. — Isto é... não. Não o culpo, sir Thomas. Eu é que agi com imprudência.

Ele não demonstrou raiva nem desapontamen­to. Apenas sorriu.

— Talvez eu tenha ido muito depressa, querida. A falta não está em seus atos, mas sim em sua doçura e beleza. Não pretendia pressioná-la, mas a bela Rose fez-me perder a cabeça.

Alyce entendeu que, depois de haver agido de maneira tão insensata, deveria ser-lhe agradecida pela compreensão, ante a brusca mudança de ati­tude de sua parte.

— Obrigada.

Ele ficou em pé e estendeu-lhe a mão.

— Venha. Vamos ver quantas de nossas flores sobreviveram, para as levarmos para milady.

Trémula, Alyce aceitou a mão para erguer-se, mas soltou-a no mesmo instante em que se pôs em pé.Até chegar aos cavalos, ela manteve-se calada. Ele ajudou-a a montar, juntou as flores machucadas e subiu em seu garanhão.

Alyce continuou em silêncio, no caminho de vol­ta ao castelo. Estava confusa pela própria atitude e pela rapidez com que a situação evoluíra entre Thomas e ela.

Já não tinha problemas suficientes, mesmo sem perder todos os vestígios do bom senso por causa de um cavaleiro atraente e de belas palavras?, ela recriminou-se com raiva.

Eles desmontaram, e Thomas indagou se a veria no jantar. Ele parecia magoado pela mudança im­prevista da situação. Porém, ela não confiava em si mesma o suficiente para ficar mais tempo ao lado dele e mitigar-lhe a tristeza. Alyce deu uma resposta vaga, entregou-lhe as rédeas de sua montaria e apressou-se em alcançar a segurança do castelo.

— Thomas, foi o senhor mesmo quem disse que não deveríamos ficar por muito tempo em um lu­gar, por temer que Dunstan tomasse conhecimen­to de nosso paradeiro. Se ele e o príncipe João souberem que estamos coletando dinheiro para o resgate do rei Ricardo, mandarão imediatamente seus homens e cachorros atrás de nós.

Dessa vez, Kenton havia recrutado ajuda para tentar convencer o líder. Harry, o Robusto, sen­tara-se com eles à mesa, junto com outro cavaleiro a quem os homens chamavam de Martin, o Cei­feiro. Ao contrário de Harry, o apelido de Martin nada tinha a ver com sua aparência. Tinha a ver com o grande número de guerreiros de Saladino que ele dizimara nos campos de batalha.

— Kenton está certo — Martin assegurou só­brio, apesar do jarro de cerveja que havia consu­mido. — Devemos sair daqui, antes que a notícia de nossa presença se espalhe. Já nos asseguramos de que este castelo é muito pobre para contribuir para nossa causa. Ao que tudo indica, a misteriosa senhora não tem dinheiro nem para comprar a própria liberdade. Tanto é que vai casar-se com um pretendente escolhido pelo rei.

— Do rei não, do príncipe João, segundo a dama de companhia — Thomas corrigiu. — E que é, por coincidência, nada menos de que o Dunstan em pessoa.Parece certo a vocês que deixemos a pobre senhora entregue a sua sorte? Não fizemos o juramento da Cavalaria de sempre ajudar don­zelas em perigo?

— Não tenho muita simpatia por essa tal se­nhora de Sherborne, depois da maneira como fo­mos tratados. — Harry limpou a gordura da boca e deixou o osso da perna de coelho sobre a mesa. — Ela quase nos matou. Eu deixaria Dunstan entender-se com ela.

— Certo..— Martin concordou. — Nosso dever é para com o rei Ricardo e para com ninguém mais.

Kenton observava Thomas, intrigado.

— Thomas, eu não o reconheço. Nunca o vi agir com tanta imprudência. E o que é pior, por causa de um rosto bonito. Vamos cuidar de nossos objetivos. Quando Ricardo estiver livre, o senhor poderá voltar aqui, para procurar essa criada que o encantou.

Thomas analisou seus homens. Não podia dei­xar de admitir que estavam com a razão. Não podia explicar, nem a si mesmo, como a serva da senhora de Sherborne conseguira conquistá-lo. Ele só entendera o fato ao ver que ela não descera para a refeição da noite. A estocada do desapon­tamento foi tão aguda quanto a espada sarracena que quase lhe tirara a vida no campo de batalha.

Por que o idiota rei Ricardo tinha de meter-se em outra confusão?, ele cismou, com uma grosse­ria que não lhe era característica.

Thomas estava convicto de que sua lealdade só era devida ao rei, mas não podia ir embora, sem ver Rose novamente.

Ele ficou em pé.

— Não posso acreditar que só mais um dia aqui vá pôr em risco nossa missão. Os homens podem usar o tempo para descansar e restaurar os equi­pamentos. Sinto-me na obrigação de procurar uma audiência com lady Alyce, para ter certeza de que ela não está sendo forçada a um casamento que a repugna.

— E se estiver? — Kenton perguntou.

— Como o senhor já disse, nosso objetivo é a missão pela qual vimos lutando.

Thomas deu de ombros.

— Mas como Dunstan é inimigo do rei Ricardo, podemos encampar a causa e sermos úteis à se­nhora na resolução do problema.

— Então o senhor quer ver lady Alyce e não a criada — Kenton perguntou, escondendo seu ceticismo.

— Verei as duas — Thomas admitiu.

Ele fitou cada um dos cavaleiros a seu lado. Nenhum deles retrucou. Thomas Brand era nor­malmente um companheiro de atitudes concilia­tórias e um amigo caloroso. Mas eles haviam aprendido, por experiência própria, a não se opor ao líder, quando sua expressão endurecia e o tom de voz se tornava cortante como uma adaga.

Kenton ainda teve a coragem de balançar a ca­beça em desaprovação, mas permaneceu em silêncio, enquanto Thomas caminhava a passos lar­gos em direção à escada que conduzia ao pavi­mento superior.

Thomas havia feito uma pilhéria, ao acusar Rose de valer-se das poções mágicas da velha Mae-ve. Mas, quando chegou à porta do aposento de lady Alyce, ele perguntou a si mesmo se não ha­veria um fundo de verdade naquela brincadeira. A vontade de vê-la queimava-lhe o estômago.

De dentro do quarto vinha uma luminosidade visível pelas frestas, o que o encorajava a bater à porta. Ele refletiu rapidamente sobre a situação. Se lady Alyce estava doente na cama, Rose deveria estar cuidando dela e certamente viria abrir a porta. Ele aproveitaria aqueles poucos instantes para desculpar-se por tê-la aborrecido na campina pela manhã.

Ele bateu de leve, ao contrário da outra noite, quando esmurrara a porta movido pela raiva de ver seus homens adoecerem. Se tivesse sorte, lady Alyce estaria dormindo, e Rose estaria livre para sair um pouco com ele.

O coração de Thomas deu um pulo, quando Rose abriu a porta.

— Oh! — ela gritou e levou a mão à boca. — Pensei que fosse Lettie.

Thomas brindou-a com o mais charmoso de seus sorrisos.

— Espero que não esteja desapontada. Senti sua falta na mesa do jantar. — Ele resolveu usar de seriedade, ao ver que ela continuava preocupada. — Preciso falar-lhe, Rose. Por favor, escute-me.

— Eu... Já é muito tarde. — Ela não encontrou outras palavras com facilidade.

— Eu sei, mas tenho pouco tempo. Meus homens estão ansiosos para retomar seus deveres. Entre­tanto eu não poderia deixar Sherborne sem es­clarecer algumas coisas.

Ela segurava a porta entreaberta, e ele tentou espiar o quarto por cima do ombro de Alyce, para ver a misteriosa senhora do castelo. Para sua sur­presa, constatou que o recinto estava vazio.

— Onde está lady Alyce? — ele perguntou, com o cenho franzido.

Alyce saiu do vão da porta e mostrou o aposento onde só ela se encontrava.

— Se quer mesmo saber, ela foi até a latrina. Ela pode retornar a qualquer momento e não fi­cará nada contente de encontrá-lo por aqui.

Thomas adiantou-se e forçou-a a recuar.

— Eu lhe explicarei que esta sua serva enfeiti­çou-me e trouxe-me até aqui, contra minha vontade.

Alyce Rose sorriu, embora se mostrasse constrangida.

—- Thomas, por favor vá embora. Perdoe-me, mas nada será possível entre nós.

— Rose, nossos beijos não foram unilaterais — ele retrucou sério. — Não posso acreditar que não tenha sentido os mesmos impulsos que eu senti.

Ela negou com movimentos enérgicos de cabeça.

— Não, eu não senti nada.

Thomas nunca a vira tão bela. Até aquele mo­mento, ela só se mostrara de touca ou com os cabelos trançados. Naquela noite, eles estavam soltos como um rio de fios de ouro que passava do meio das costas. Quase inconscientemente, ele estendeu a mão para alcançá-los.

— Está mentindo, minha pequena coquete — ele afirmou com ternura. — O que aconteceu entre nós teve um componente muito forte, vindo de ambas as partes.

Ela afastou-se com brusquidão, e a mão dele tocou no aro frio de metal que segurava as mechas afastadas do rosto. Ele olhou-o espantado.

— Mas isto é de ouro!

Rose arrancou a tiara da cabeça e atirou-a sobre a cama.

— É sim e é de lady Alyce. Eu não deveria estar usando este ornamento.

O ligeiro tremor na voz traiu-a.

Alguma coisa estava errada, Thomas refletiu.

Será que ela estaria preocupada com o fato de que a senhora poderia encontrá-la mexendo em suas jóias? Essa explicação não o satisfez.

Ele entrou no quarto e apanhou o enfeite de cima do catre.

— Acha mesmo que ela se zangaria? Alyce arregalou os olhos.

— Sim. Não tenho o direito de mexer em seus objetos pessoais. Ela poderia até mandar castigar-me.

Thomas inclinou a cabeça.

— Pensei que houvesse dito que lady Alyce fosse uma pessoa doce e bondosa.

Aquelas palavras a desorientaram.

— É, eu disse. Mas é que às vezes ela tem um temperamento terrível. Aliás, ela fica mais irritadiça quando está doente, e, como o senhor sabe, sir Tho­mas, ela tem estado muito, mas muito mesmo...

— Doente — ele completou.

— Sim — ela concordou, com um pequeno suspiro. Ele passava a tiara de uma mão a outra, como se quisesse avaliar o peso da mercadoria.

— Bem, então ficarei mesmo até ela voltar, para ter a certeza de que você não vai meter-se em apuros.

— Não há necessidade! — ela desesperou-se.

— Acredito que ela já esteja pronta para o repouso da noite e...

— Eu vou ficar — ele a interrompeu, com fir­meza. — Não perderia a oportunidade, por nada desse mundo, de conhecer essa intrigante dama que é, ao mesmo tempo, um anjo e uma megera.

Ela fitou-o, implorando em silêncio.

— Parece tão aflita... — ele disse, com suavidade.

— Quer me dizer alguma coisa, minha bela Rose? Thomas aproximou-se de Alyce e ergueu-lhe o

queixo com o dedo. Ela não teve como deixar de encará-lo.

— Ou sou eu quem deve dizer, minha encan­tadora Alyce?

 

Alyce prendeu a respiração. Thomas -mantinha-lhe o queixo erguido, for­çando-a a encará-lo.

— A senhora é Alyce, não é verdade? — ele insistiu.

Ela soltou o ar com um suspiro.

— Sou.

Thomas soltou-lhe o rosto e deu um passo para trás.

— E foi a senhora quem eu vi pela primeira vez, enfiada debaixo das roupas de cama?

Ela anuiu, torceu as mãos e abaixou a cabeça.

— E por que toda essa pantomima? Thomas parecia mais confuso do que irritado.

Alyce compreendeu que, felizmente, ele ainda não fizera a suposição de quem poderia ter sido o res­ponsável pela carne estragada.

— Eu pensei que o senhor fosse o enviado do príncipe João Sem Terra, lembra-se? Eu pretendi disfarçar-me para que eles não me pudessem le­var. Não queria entregar-me a meus algozes, de jeito nenhum. Se tivesse mesmo de fazê-lo, pelo menos dar-lhes-ia um grande trabalho.

— Por que não me contou sua verdadeira iden­tidade, quando expliquei que não tinha vindo a mando do príncipe?

— Bem... eu... estava insegura, O senhor há de convir que eu não lhe conhecia. Precisava saber mais alguma coisa sobre o senhor. Mas não in­ventei o Rose. Meu nome é Alyce Rose.

Thomas mirou-a indeciso. Havia mais alguma coisa estranha. Mas onde? Tentou ligar os fatos e recordou-se da primeira conversa na despensa.

— Então a senhora não estava doente?

— Sim... sim, mas só na primeira noite. O se­nhor nem pode imaginar a sorte. Eu tive uma recuperação bastante rápida. Meu pai costumava dizer que meu estômago era de ferro. Eu podia comer qualquer coisa que...

Alyce conteve-se. Sabia que falara depressa de­mais e, pela expressão de Thomas, percebeu que ele ficava cada vez mais desconfiado.

— Sem a menor dúvida, a senhora e sua ado­rável dama de companhia Rose decidiram que a senhora comeria o frango capão. Bondosamente resolveram deixar o guisado para nós.

Ela mordeu o lábio e concordou, com um gesto de cabeça.

— É, foi isso mesmo.

— O que se tratou de uma generosidade fora do comum, se levarmos em conta que a senhora acre­ditava que tínhamos vindo para arrastá-la, de qual­quer maneira, em direção a um casamento que lhe apavorava! — Finalmente, explodiu no olhar de Tho­mas a raiva com a qual Alyce já contava. — Oh, céus, eu poderia imaginar tudo, menos isso!

Alyce evitou fitá-lo e abaixou a cabeça.

— Sinto muito — ela sussurrou.

— A senhora poderia ter matado um inocente com suas traquinagens infantis. — O tom frio da voz de Thomas escondia uma fúria profunda.

Alyce compreendeu que Thomas Havilland po­deria esquecer uma injúria feita contra ele mesmo, mas não perdoaria um dano que envolvesse seus comandados. E, de repente, tornou-se importante para Alyce que ele não a considerasse malvada e mesquinha.

— O senhor tem razão — ela assegurou, arre­pendida e sincera. — Foi uma tolice, além de um grande erro. Se seus homens não houvessem se recuperado, eu jamais me perdoaria.

Thomas surpreendeu-se com a admissão tão di-reta de tamanha leviandade.

— O que a levou a fazer uma coisa dessa?

— Eu quis demonstrar que seria uma esposa terrível. Imaginei, pelo que ouvira contar dele, que Dunstan poderia ter vindo junto com a dele­gação. Se me comportasse mal, eu poderia ter es­peranças de que ele se cansasse de mim e final­mente resolvesse procurar por uma mulher mais cordata e educada. — As palavras finais foram pronunciadas em tom de desespero.

Relutante em aceitar os argumentos de Alyce, Thomas nada disse durante alguns minutos. De­pois sorriu e prosseguiu em tom mais gentil.

— Ouso afirmar, Alyce Rose, que se ele a tivesse visto, mesmo que fosse de relance, nem toda a carne estragada do reino teria alterado os propó­sitos dele.

A bondade dele era bem pior de suportar do que sua raiva.

— Sinto muito — ela repetiu, com os olhos rasos de água. — Seus homens foram muito gentis co­migo. Eu juro. Gostaria de não ter feito o que fiz. Não poderei perdoar-me nunca por isso. Estou realmente envergonhada.

Ele balançou a cabeça, com um ligeiro sorriso.

— Com certeza eles já comeram coisas piores nos campos de batalha e sobreviveram para contar a história. Mas, de qualquer forma e se a senhora estiver de acordo, acho que será melhor guardar­mos o segredo entre nós.

— Muito, muito obrigada, sir Thomas. Serei sua devedora para sempre.

Ele ergueu uma das sobrancelhas, sugestivamente.

—- Ah, milady... isso pode não ser a coisa mais sensata a dizer para um cavaleiro exausto pelas lutas, quando ele estiver sozinho com a dama em um quarto.

Alyce percebeu que, apesar do tom provocador que ele usava, não deveria alarmar-se. Mesmo ha­vendo insinuado um galanteio mais ousado, ele não se aproximou. Desapontada, ela deu-se conta de que ele nem tinha intenção de fazê-lo. Ela não era mais Rose, a criada, de quem ele se aproximara sem maio­res escrúpulos. A partir daquele momento, seria lady Alyce, uma dama da nobreza. E o relacionamento deles jamais voltaria a mostrar-se descontraído, como o fora naquela manhã no prado.

— Eu nunca fico sozinha por muito tempo — ela confidenciou pesarosa. — Logo mais, Lettie virá ajudar-me nos preparativos para o repouso noturno.

— Claro — ele disse, fitou-a rapidamente e des­viou o olhar.

Será que ele pensava o mesmo que ela?, Alyce perguntou a si mesma.

Se ela não fosse uma dama da nobreza, mas apenas Rose, a serva, poder-se-ia ter imaginado um ritual bem diferente para dormir.

— Então será melhor deixá-la — ele acrescen­tou, em voz mais baixa.

— E, será melhor mesmo — ela teve de admitir. Eles se entreolharam por um longo momento, com o pesar estampado em seus rostos.

— Durma bem, milady — ele murmurou, vi-rou-se e saiu.

Se os guerreiros haviam desconfiado das origens da carne estragada, não deram a mínima demons­tração do fato. Na manhã seguinte, quando Alyce desceu para o café da manhã, todos demonstraram conhecer sua identidade verdadeira. De fato, Ken-ton falou com ela em particular por alguns mi­nutos, com a finalidade de desculpar-se. Os co­mentários que havia feito poderiam ser aceitáveis para uma jovem criada, mas não seriam apro­priados, de modo algum, para lady Alyce Rose de Sherborne, a senhora do castelo.

A afabilidade de todos aumentou ainda mais o sentimento de culpa de Alyce. Porém, mais ali­viada, ela decidiu pôr uma pedra sobre o assunto, ao ver que Thomas não lhe guardava rancor. En­tretanto, estava determinada a reverter a hospi­talidade deficiente com que brindara os cavaleiros desde a chegada.

Insistiu para que eles permanecessem para as festividades da noite, mesmo sabendo que eles já se haviam demorado em Sherborne mais tempo do que o previsto. Ela começava a entender que seu sorriso poderia transformar um cavaleiro feroz em um verdadeiro cordeirinho.

— Sentir-me-ei ofendida se os senhores não con­cordarem — ela insistiu com Kenton.

A reação dele não a desapontou. Ele arregalou os olhos e apressou-se em explicar.

— Eu não a ofenderia por nada desse mundo, milady. O problema é que...

— Então está decidido — ela o interrompeu, alegremente.

E assim foi feito. Alyce enviou Fredrick, neto de Alfred, até a aldeia à procura de Quentin. O cervejeiro era responsável pela melhor bebida, como também pelo tambor que usava com fre­quência para animar as festas.

— Na volta, faça uma visita à velha Maeve — ela disse ao jovem aldeão. — Se ela estiver em um de seus bons dias, pode convidá-la para participar da festa. Ela poderá entreter-nos com sua quiromancia.

Desde a morte do pai, Alyce não se sentia tão feliz. Lettie resmungou, balançando a cabeça, dis­cordando daquela festança mas, como de hábito, saiu para cumprir as ordens da castelã, a quem amava como filha.

Ao entardecer, a refeição estava pronta e o cerve­jeiro já viera do povoado com um grande tonel de cerveja. Ele trouxe consigo o primo, um homem enor­me e barbado que extraía melodias maviosas de uma harpa ridiculamente pequena para o tamanho dele.

A correria e a ansiedade deixaram Alyce até atordoada. Sua mãe, a qualquer pretexto, se en­carregara de promover tais ocasiões festivas. De­pois de sua morte, as festas de Sherborne foram escasseando e normalmente se estendiam somente aos residentes do castelo. Essas restrições deviam-se ao fato de seu pai não querer muito contato com o mundo exterior.

Contudo, Alyce lembrou-se com carinho das noi­tes cálidas passadas naquele saguão enorme. Era quase como ter seus pais de volta. Se isso fosse possível, eles veriam o recinto lotado de pessoas felizes que se divertiam em meio a companhias agradáveis e boa comida.

Thomas sentou-se a seu lado, junto à mesa prin­cipal, na plataforma. Ele a fitava com frequência e demonstrava admiração e calidez. Mas era in­discutível que suas atitudes haviam se tornado muito mais formais. Embora Alyce jà devesse es­perar por isso, o fato deixava-a entristecida e até frustrada. O sorriso que ela ostentara a noite in­teira fenecia aos poucos.

Ele notou a mudança de Alyce. Inclinou-se para ela, com jeito de conspirador.

— Esse guisado foi o que sobrou do Ano-Novo ou de uma ocasião ainda mais remota? — Thomas indagou, em tom caçoísta e deu uma piscadela, Alyce caiu na risada.

— Os coelhos foram caçados na campina hoje pela manhã — ela assegurou, mais contente.

Thomas fitou o tabuleiro com expressão pesarosa.

— Ah, quanta nobreza destas criaturas! Renunciam à própria vida para encher a barriga de um bando de cavaleiros andantes e esfomeados!

— Duvido de que lhes foi dada a chance de escolher — Alyce assegurou e parou de sorrir, as­sim que terminou a frase.

Thomas inclinou a cabeça para o lado e fitou-lhe os olhos.

— Milady, todos nós precisamos comer. A sina dos animais é ser sacrificado.

— Deles e de algumas mulheres também. Alyce permaneceu em   silêncio por algum tempo, cismando acabrunhada. Uma noite de alegria e divertimento não mudaria a situação. Em breve os emissários do príncipe João mos­trariam suas caras e lanças nos portões do cas­telo. A partir daí teria tanto controle sobre sua vida quanto os coelhos que Thomas devorava tinham da sua.

— Milady, perdoe-me por intrometer-me em seus assuntos — Thomas contornou. — Mas o príncipe João não tem autoridade sobre a senhora e, por isso, milady não lhe deve obrigações. Seu senhor feudal é o rei Ricardo.

— Muitos dizem que Ricardo morrerá em con­sequência de seus ferimentos, antes do valor do resgate ser levantado para libertá-lo. Então João será o rei por direito.

— Há muitas pessoas boas trabalhando ardua­mente para tentar evitar essa calamidade, milady — Thomas garantiu.

A veemência das palavras do cavaleiro deixa­ram-na curiosa.

— Sir Thomas, tenho a impressão que o bem-estar do rei Ricardo é muito importante para o se­nhor. É por que o senhor não gosta do príncipe João?

— É a senhora que me preocupa e não o prín­cipe. Antes de morrer, o senhor seu pai poderia ter designado alguém mais aceitável para ser seu marido.

Não precisaria ser muito inteligente para per­ceber que ele não queria falar sobre o assunto do resgate do rei.

— Um contrato de casamento legal não pode ser mudado nem mesmo pelo rei.

Sem apetite, Alyce deixou de lado sua faca. Não havia motivos razoáveis para contar sua história a um estranho. Entretanto, ela não se conteve.

— Minha mãe morreu há dez anos, na tenta­tiva de dar um filho a meu pai. Depois disso, ele pareceu perder o interesse por tudo o que não se referisse ao Castelo de Sherborne. Nunca mais se interessou por outra mulher e também não demonstrou nenhum desejo de falar em com­promisso para sua filha. Muito menos de aceitar um pretendente.

Thomas mirou-a com ternura e simpatia.

— Se ele queria dedicar a vida ao luto, a escolha era dele. Mas não tinha o direito de infligir sua dor à filha.

— Imagino que ele estava convencido de que fazia o melhor para mim. Ele achava que qualquer pretendente a minha mão estaria somente inte­ressado em Sherborne.

Thomas quedou-se boquiaberto de tanto assombro.

— Seu pai era um homem cego?

O comentário fez Alyce sorrir enrubescida.

— Ele não duvidava dos meus atrativos, mas sim da índole de seus companheiros.

— Desculpe, milady. Mas ele estava errado em ser tão cético. Há muitos homens honrados que poderiam constituir-se em bons maridos para a filha dele.

— Não acredito que ele sempre houvesse sido tão amargo, sir Thomas. — Alyce suspirou. — Como eu lhe disse, ele nunca se recuperou do abalo que sofreu com a morte de minha mãe.

— Então certamente casaram-se por amor! Ele agora está onde sempre quis ficar. Ao lado da esposa.

— É... E a filha deles está aqui sozinha — Alyce concluiu, melancólica.

Thomas sorriu com simpatia.

— Pelo que pude depreender, milady, a senhora raramente fica só. Seu castelo está cheio de pes­soas que a amam. Ouvi dizer que seus criados fariam qualquer coisa para protegê-la, até mesmo envenenar uns pobres visitantes.

Aflita, Alyce lançou um olhar de soslaio ao redor da mesa para ver se alguém ouvira a observação mordaz.

— Sir Thomas, eu já assumi a culpa por aquele infortúnio. Por favor não culpe minha criadagem.

— A senhora deu as ordens, e seu pessoal se­guiu-as à risca, sem pestanejar. .Isso já diz tudo. O sr. Alfred não moveu um só músculo do rosto ao servir-nos o jantar fatal. E a velha senhora que estava em seu quarto na outra noite parecia determinada a rachar-me a cabeça ao meio, se eu tentasse chegar mais perto de milady que esteva tão doente.

Alyce escondeu uma risadinha com a mão.

— Alfred e Lettie são amigos de verdade. O senhor tem razão. Tenho muitos como eles por aqui.

Thomas observou o saguão enorme e cheio de gente. Ao contrário de várias partes da Europa, os residentes de Sherborne pareciam felizes. E prósperos.

— Seus arrendatários não seriam capazes de ajudá-la a pagar os tributos ao príncipe João? — ele sugeriu.

Alyce balançou a cabeça, negando.

— Eles já pagaram demais. Primeiro foram os impostos exorbitantes para o rei Ricardo montar sua Cruzada e depois para João encher os bolsos.

— Milady, na Inglaterra atual, essas palavras podem tornar-se perigosas. Espero que a senhora não fale de "maneira tão franca com todos seus visitantes.

Alyce deu de ombros, despreocupada.

— O senhor também não faz segredo de que não morre de amores por ele. Duvido de que vá até West-minster para denunciar-me como traidora.

— Mas posso ser leal ao rei Ricardo e tomar como ofensa uma declaração dessas. Afinal, o prín­cipe é irmão do rei Ricardo.

— Não dou muita importância para a política. Do mesmo modo que a guerra, ela não passa de uma invenção masculina destinada a convencer mulheres de que nós necessitamos de homens para conduzir nossa vida.

— E o que o mais belo sexo poderia fazer sem nós? — Thomas inquiriu divertido.

— Sem guerra e sem política? Acho que o mundo se tornaria um lugar infinitamente melhor para se viver. E nós, mulheres, poderíamos ser livres para conduzir nossos lares e atividades, além de educar nossa família.

Thomas inclinou-se para o lado dela.

— Milady, como é que as mulheres constitui­riam família sem... digamos, a colaboração dos homens?

Envergonhada, ela titubeou antes de responder:

— Sir Thomas, não se preocupe. Eu sei de onde vêm os bebés. Mas nunca ouvi dizer que um homem precisa ser guerreiro ou político para produzi-los.

Ele caiu na gargalhada. O que fez Kenton, sen­tado à uma mesa abaixo deles, virar-se.

— O senhor não gostaria de compartilhar co-nosco a pilhéria, Thomas?

— Por favor — Alyce implorou em voz baixa. — Isso não passou de uma observação tola e impudente.

Thomas fitou Alyce e deu um sorriso largo e forçado. Depois virou-se para seu lugar-tenente.

— Nós estamos falando de coelhos, Kent, e de como o futuro deles pode ser imprevisto.

Kenton mostrou-se confuso quanto à resposta, mas sorriu e aceitou.

— Pedimos apenas que não monopolize as aten­ções e a conversa de lady Alyce. O senhor não é o único que está com saudade do som de uma doce voz inglesa.

Alyce levantou-se, agradecida a Thomas por sua discrição e por haver interrompido um diálogo que faria sua santa mãe corar até a raiz dos cabelos. Acenou para Kenton, com um gesto de cabeça.

— Agora é a voz de sir Thomas que gostaríamos de ouvir, assim que a refeição terminar. Talvez ele nos conceda a honra de uma canção.

— Seus músicos tocam muito bem, milady. — Kenton apontou a extremidade do grande hall, onde o cervejeiro e seu primo selecionavam me­lodias pomposas que mal podiam ser ouvidas em meio ao barulho da multidão. — Nossos guerreiros já ouviram o suficiente das desventuras amorosas de Thomas.

Os dois homens se entreolharam, e ninguém duvidou de que a reprimenda fora fraternal. Alyce hesitou, sem querer insistir mais.

— Tudo bem, então. Quem sabe poderemos pas­sar momentos agradáveis tentando saber nossa sorte.

Thomas também se erguera, ao lado de Alyce.

— Otima ideia. Vamos ver se fomos destinados a um futuro mais feliz de que o das pequenas lebres que acabamos de comer.

Ainda passou-se mais meia hora até todos termi­narem de jantar. Os serviçais levaram os tabuleiros para a cozinha. Alguns homens perambularam até a barrica, para tornar a encher suas jarras de cer­veja. Outros procuravam a privacidade, para ali­viar-se da bebida que haviam consumido.

Finalmente, as duas cadeiras principais, de es­paldar alto, foram levadas até a frente da lareira enorme. A velha Maeve sentou-se rapidamente em uma delas e a outra permaneceu vazia.

Ansiosa, Alyce bateu palmas.

— Quem será o primeiro? — ela perguntou e olhou para os lados.

Houve um momento de silêncio. Nenhum dos ca­valeiros prontificou-se a ser o primeiro voluntário. Nisso, a velha Maeve pronunciou-se com sua voz quebradiça, como o farfalhar de folhas secas.

— Eu vim para predizer o futuro de Sua Alteza, lady Alyce. Eu vi tudo ali, no^fogo. — Ela levan­tou um dedo esquelético e apontou-o na direção de Thomas. — E esta noite, o futuro veio a meu encontro!

Alyce estremeceu. Ela pensara em divertir os cavaleiros visitantes com algumas das previsões malucas de Maeve. Mas lamentou haver esquecido que, ocasionalmente, as profecias da velha envol­viam também a má sorte. Maeve tinha o dom da predição! Cada um dos habitantes de Sherborne sabia disso.

— Sim, de lady Alyce! — Kenton exclamou e, em seguida, ergueu-se um coro de vozes concordantes.

Thomas fitou-a interrogativo.

— A senhora está disposta, milady? Ou estará receosa do que sua vidente possa predizer?

Por alguma razão desconhecida, Alyce teve medo. Mas não queria que Thomas Havilland per­cebesse seu temor. Endireitou os ombros, andou até a cadeira em frente de Maeve e sentou-se.

— Como se sente esta noite, Maeve? — ela in­dagou, para descontrair-se.

A mulher idosa piscou devagar, como se ten­tasse focalizar os próprios olhos.

— Os lobos uivam ao luar. Alyce suspirou aborrecida.

Efetivamente, chamar a velha senhora para vir ao castelo não fora uma boa ideia!, ela recriminou-se.

— Não há lobos, Maeve. Quem sabe se a senhora não terá ouvido os cães lutando pelos restos de comida.

— Há uma lua sangrenta — Maeve continuou, sem demonstração de haver escutado as palavras de Alyce. — Vejo traições e talvez mesmo a morte.

— Ela fechou os olhos. — E, a morte.

Alyce endireitou-se na cadeira. Um calafrio per­correu-lhe a espinha. Com uma risada nervosa, olhou para cima, na direção de Thomas, cuja ex­pressão tornara-se sombria.

— A quiromancia sempre tem de ser dramática

— Alyce tentou desculpar-se.

Os músicos pararam de tocar. As pessoas co­meçavam a aglomerar-se em volta da lareira, para ouvir o diálogo entre a feiticeira e a senhora do Castelo de Sherborne. Entretanto, Maeve parecia ter adormecido.

Alyce inclinou-se para a frente e tocou nos joe­lhos da mulher.

— Maeve!

A quiromante abriu os olhos e encarou Alyce.

— Não se preocupe, jovem. Não foi sua morte que eu vi. Foi a de um homem. Ele está banhado no sangue do luar,

Kenton, ao lado de Thomas, fez o sinal-da-cruz e ajoelhou-se em uma só perna, perto de Maeve.

— É um de nós, boa mulher? Pode nos dizer se foi um dos cavaleiros que veio visitar Sherborne?

Ela virou a cabeça para ele e semicerrou os olhos,

— Esta noite foi a sorte de lady Alyce de Sher­borne que eu vi nas chamas. A lua de sangue ergueu-se para ela.

Alyce empalideceu. Thomas aproximou-se da ca­deira onde ela estava sentada e segurou-lhe um ombro.

— Lady Alyce, a senhora trouxe para Sherborne uma brincadeira um tanto assustadora. Poderia dizer sua vidente para que faça surgir predições mais agradáveis?

Vários presentes fizeram gestos de concordância.

— Senhora, o que tem a nos dizer sobre a boa sorte? — Kenton, ainda sobre um joelho, sugeriu.

— Ou sobre amor, crianças ou...

— Não haverá amor para lady Alyce — Maeve interrompeu —, até que a lua de sangue reclame sua vítima.

Kenton franziu a testa e voltou-se para Alyce.

— Milady, a senhora sabe a que ela se refere? Essa... lua sangrenta é alguma lenda local?

— Trata-se apenas de tagarelices de uma velha

— Thomas assegurou, ainda com a mão no ombro de Alyce.

Alyce nunca ouvira falar daquilo e agradeceu a pronta intervenção de Thomas, que lhe pareceu apropriada. Gostaria de ouvir de Maeve algo mais iminente e mais próximo da realidade.

— Maeve, o que mais viu em meu futuro? Pode dizer-me se... eu me casarei contra minha vontade?

Novamente, Maeve pareceu fitar o vazio.

— Sim. Antes de doze meses, milady estará ca­sada com quem o rei escolher.

Alyce gelou. Era o destino que procurara evitar a todo custo. Ouvir a profecia com as palavras tétricas proferidas por Maeve confirmava que ele seria mesmo doloroso.

— Então foi o marido de milady? — Kenton arriscou. — O da traição e da morte?

Maeve entrara novamente em seu transe.

— Os lobos uivarão — ela falou devagar. — Os lobos uivarão enquanto a lua sangrenta clamar por sua vítima.

Quase todos no imenso saguão tinham uma ex­pressão de seriedade, diante do tom sinistro e pa­voroso daquela declaração. Maeve balançava-se para a frente e para trás, sentada na cadeira. A seguir, começou a balbuciar em uma linguagem desconhecida de todos.

Fredrick, neto de Alfred, esgueirou-se por entre as pessoas aglomeradas.

— Milady, ela entrou em um de seus momentos de perda de lucidez, de palavras mágicas e feitiçaria — ele explicou para Alyce, não sem antes fazer uma mesura respeitosa.

— Ela pode ficar assim durante horas. Permita-me levá-la de volta para a aldeia.

Alyce gostaria muito de obter mais detalhes so­bre as predições da velha, mas não havia alter­nativa. Maeve não falaria mais nada que fosse compreensível.

— Está bem, Fredrick. Leve-a de volta para casa. Acho que ela já está muito velha para esse tipo de entretenimento.

Kenton levantou-se, e vários cavaleiros afasta­ram-se para o jovem servo alcançar Maeve. Ela continuava a murmurar, enquanto o rapaz a er­guia da cadeira e a conduzia até a porta.

— Não vamos deixar que as rabugices de uma velha lunática estraguem uma noite tão festiva

— Thomas sugeriu.

— Se ela predisse a morte de Dunstan, com certeza isso tornará o mundo melhor. — Kenton não se con­venceu do absurdo das palavras da velha Maeve.

Thomas fez um gesto negativo para o amigo e voltou-se para Alyce.

— Como a senhora mesma disse, não há lobos. E até hoje, em todas minhas andanças pelo mun­do, também nunca soube da existência de luas sangrentas.

As palavras que ainda ecoavam nos ouvidos de Alyce nada tinham a ver com luas ou morte.

— Pode ser. — Ela suspirou. —Mas ainda existe o fato da imposição do casamento. Se a velha Mae­ve estiver certa, tornar-me-ei esposa do barão de Dunstan antes de um ano.

Depois da saída de Maeve, muitos aldeões par­tiram. Alguns dos cavaleiros de Thomas já esta­vam à procura de lugares ao longo da parede, para estender-se e descansar.

Alyce despediu-se dos hóspedes remanescentes com um sorriso nos lábios, mantido a duras penas. Aceitou, com graça, os agradecimentos pela refei­ção suntuosa.

Kenton e Thomas observaram Alyce, ereta e de cabeça erguida, cruzar o amplo recinto em direção à escada.

— Será um verdadeiro crime, se o príncipe João obrigá-la a casar-se com Dunstan — Ken­ton argumentou.

Thomas semicerrou as pálpebras.

— Outro para somar aos que ele já cometeu.

— Mon Dieu, eu preferia unir-me aos lobos ou à lua sangrenta do que a um homem como Philip de Dunstan — Kenton afirmou arrepiado. — Tal ultraje deveria ser evitado.

Thomas não respondeu de imediato.

— Sim — ele repetiu, finalmente. — Deveria ser evitado.

 

Os homens moviam-se vagarosamen­te depois do consumo excessivo de cerveja da noite anterior. Mas eram soldados trei­nados e, quando as ordens eram para marchar, tinham de estar prontos.

Kenton terminou de inspecionar a tensão da barrigueira de sua sela.

— Já fui testemunha de seus planos malucos an­tes, Thomas — ele falou para seu líder que, em postura de descontração, observava os preparativos dos guerreiros. — E não aprovo essa sua ideia.

Thomas cruzou os braços sobre a camurça de sua túnica. Ao contrário dos outros, ele não estava vestido para montar.

— O senhor é sempre muito preocupado, Ken­ton. Por isso o bom Deus nos fez companheiros. Posso aventurar-me com a imprudência que qui­ser, pois sei que meu sensato amigo virá atrás de mim, consertando meus eventuais deslizes. Que nunca foram tão grandes assim, o senhor há de convir.

Kenton não pôde deixar de achar graça e deu um largo sorriso.

— Haverá de chegar o dia em que não poderei salvar seu pescoço, o qual o senhor quase perdeu pelo menos meia dúzia de vezes nesses três últi­mos anos!

Thomas aproximou-se de seu lugar-tenente e bateu-lhe nas costas.

— Se não puder salvar-me, Kenton, então nin­guém poderá fazê-lo. A verdade é que não tenho nenhum outro homem que possa ser meu braço direito! Além de ser, é claro, o amigo mais leal e corajoso que alguém possa desejar.

Kenton livrou-se da mão de Thomas, com um leve empurrão.

— Recuso-me a escutar seu palavrório e sua bajulação. O senhor faz isso para convencer-me de que seu esquema absurdo faz sentido. No en­tanto, Thomas, o senhor sabe que isso é uma lou­cura tão grande como as da velha Maeve de ontem à noite.

— Meu amigo, você sabe muito bem que eu não arriscaria a segurança de meus homens e muito menos a do rei Ricardo em pessoa, se eu não sou­besse que vai dar certo.

Kenton encarou Thomas com seriedade.

— E o senhor tem certeza de que seu raciocínio não está sendo toldado pela vontade de uma vin­gança pessoal contra Dunstan? E preciso pesar bem as consequências.

Thomas sorriu.

— Só há coisa, ou melhor uma pessoa, que pode atrapalhar meu discernimento. E é com certeza lady Alyce, com seus olhos azuis da cor do céu e seus cabelos dourados.

Kenton montou seu cavalo, com um gemido de exasperação.

— Nunca vi o senhor ficar de cabeça tão virada por causa de uma mulher!

— Não, não é mesmo meu estilo — Thomas retrucou, divertido. — Mas ela é diferente. E especial.

— Quem sabe quando o rei Ricardo voltar, ele lhe conceda a mão de lady Alyce, como recompensa por sua lealdade.

— Ela quer apenas a sua liberdade. Se eu salvar Alyce de Sherborne de seu casamento imposto, não será de bom alvitre forçá-la a aceitar outro.

Harry, Martin e os outros já haviam seguido rumo aos portões do castelo. Kenton esporeou seu cavalo para segui-los. Mas antes de sair do raio do alcance de sua voz, gritou por sobre os ombros:

— Não será forçado, se a dama também quiser.

— Seus cavaleiros estão acostumados a fazer viagens sem sua presença, sir Thomas? — Alyce indagou.

Eles cavalgavam na mesma campina que ha­viam visitado antes, mas nenhum dos dois men­cionou aqueles momentos no arvoredo, quando um cavaleiro quase fizera amor com uma dama de companhia.

— Kenton conhece minha mente e minhas di-retrizes melhor do que eu mesmo. Ele não terá nenhum problema em assumir a responsabilidade por alguns dias.

— Ou seja, incumbir-se da missão sobre a qual o senhor faz tanto mistério.

— É verdade. — Thomas não se prolongou em explicações.

Alyce franziu o nariz. Ela tentara, com empe­nho, descobrir mais fatos novos sobre o cavaleiro atraente que parecia ocupar cada vez mais seus pensamentos, quer estivesse acordada ou dormin­do. Soubera que ele e seus homens estiveram au­sentes do país por três anos e naquele momento estavam incumbidos de uma missão especial e se­creta, antes da almejada volta a seus lares. Ela suspeitava de que eles haviam acompanhado o rei Ricardo na Terceira Cruzada, mas nenhum deles ostentava as cruzes reveladoras que os pro­clamaria como heróis das guerras santas.

— O senhor disse que não gostava do príncipe João, o que me leva a pensar que sua missão é concernente ao rei.

O garanhão dele sacudiu a cabeça, e Thomas fez-lhe um afago para acalmá-lo. O dia estava nublado. O vento que cruzava o prado era forte e frio.

— Eu lhe disse que era perigoso discutir política. Alyce fitou a extensa planície ao redor, com a

mão em concha sobre os olhos.

— Está vendo algum espião do príncipe escon­dido atrás das moitas de tojo, sir Thomas? Acho que o senhor passou tempo demais envolvido com as intrigas da corte.

— Lady Alyce, não tenho estado na corte há muito tempo. E muito menos o rei Ricardo.

— Então o senhor confessa que está a serviço do rei! — ela exclamou triunfante.

Thomas sacudiu a cabeça, diante da persistên­cia dela.

— Se a senhora fosse Rose, aquela criadinha atrevida, eu a repreenderia por atormentar-me com suas perguntas.

Alyce riu e puxou as rédeas de sua égua para detê-la.

— Mas o senhor não pode fazer isso, porque sou lady Alyce, a castelã de Sherborne.

Thomas parou ao lado dela.

— É verdade... a castelã de Sherborne — ele repetiu devagar.

A intensidade do olhar dele era tão grande, que Alyce sentiu a mesma emoção como se ele a es­tivesse tocando.

— Tudo seria mais fácil se eu fosse Rose e não Alyce — ela confessou, com a voz ligeiramente engasgada.

Thomas fitou-a por um longo tempo, sem nada dizer. Em seguida, pigarreou e sorriu com tristeza.

— Talvez não. Se milady fosse Rose, eu não sairia deste prado sem completar o que havíamos começado no outro dia.

— Acho que Rose concordaria com o senhor — ela respondeu, em tom de voz quase inaudível.

— Nesse caso, seria uma atitude mais do que temerária. Ela arriscaria muito por alguns mo­mentos de prazer.

Alyce não tinha experiência sobre esse tipo de prazer a que ele se referia. Mas compreendeu que o atual diálogo, embora despretensioso, criava o mesmo tipo de ansiedade e expectativa que tivera, quando fora beijada por Thomas. Involuntaria­mente, ela fitou a margem da campina ao lado do bosque, para onde ele a carregara naquele dia.

— Talvez Rose quisesse assumir aquela possi­bilidade de perigo — ela comentou pensativa.

Thomas negou com movimentos enérgicos de cabeça.

— Para uma simples dama de companhia, o risco poderia valer a pena. Mas não para uma protegida do rei.

— E cujo corpo não lhe pertence, para ela en­tregar a quem quiser — Alyce concluiu.

— Isso mesmo — ele concordou com tristeza. Alyce reconheceu no olhar dele uma emoção in­tensa, o que fez seu coração bater mais rápido.

Depois de eles permanecerem muito tempo em silêncio, Alyce estremeceu.

— Acho que encontramos um assunto tão pe­rigoso como a política — ela falou com um sorriso.

— E extremamente mais arriscado, Milady.

— Contudo, sabemos o que aconteceu aqui entre um cavaleiro e uma criada. Acho que seria mais lógico chamar-me de Alyce.

Thomas deu um sorriso largo.

— Eu ficaria muito honrado, mesmo que fosse só em situações de privacidade. Entretanto eu pre­firo dizer Alyce Rose, para lembrar-me do que poderia ter sido.

Alyce não precisava de nada para recordar-se. Cada centímetro de seu corpo lembrava-lhe, a cada baque dos cascos de seu cavalo. Eles haviam deixado os animais estenderem-se em um galope. Ela diminuiu um pouco o ritmo e permitiu que Thomas passasse á sua frente. Observou-lhe o ca­valgar. Ele mantinha as costas erectas e as pernas fortes controlavam facilmente o grande animal.

Então era isso? Era essa a insensatez da paixão que os menestréis tanto louvavam em suas bala­das? Ela não teve certeza. Mas suas mãos suavam, e seu coração disparava loucamente. Sem sombra de dúvida, não conseguia mais apreciar a bela paisagem da região rural. Sentia-se atraída por aquele cavaleiro charmoso e não se cansava de admirar-lhe a largura dos ombros e o balouçar dos cabelos escuros. Era um cavaleiro muito atraente e que a deixava sem fôlego, em quaisquer circunstâncias.

Aquele homem era o fruto proibido. Ela estava destinada a outro, mesmo contra a sua vontade. Preferia mesmo ser a criada Rose e poder usufruir dos prazeres a que Thomas aludia.

Santo Deus, ela remoeu-se com tristeza.

Se essa era a tal fascinação de que falavam, então seria melhor comer uma carroçada do gui­sado que ela servira aos cavaleiros de Havilland.

Thomas, ao contrário do que sempre acontecia, vinha agindo com lentidão com seu plano de salvar Alyce de Sherborne do encontro com Dunstan. Ou seja, com o homem de má índole que ele esperava ver caminhando para o inferno.

Ele costumava ser até imprudente, na sua pres­sa em conseguir os objectivos. Kenton e seus ho­mens haviam partido havia dois dias no prosse­guimento da incumbência secreta de arrecadar fundos para o resgate, de mais dois partidários do rei de Ricardo. Ainda assim, Thomas não re­velara o plano para Alyce. Dizia para si mesmo que esteva apenas ganhando tempo para examinar tudo com muito critério. O plano exigia um ajus­tamento cuidadoso. A escolha do momento apropria­do era a premissa para uma execução perfeita.

Mas a verdade era outra. Assim que o objectivo fosse atingido e concluído, ele não teria mais ne­nhuma desculpa para ficar ao lado de Alyce. Thomas procurava estender ao máximo as horas pre­ciosas de seu convívio com ela.

Ele nunca havia encontrado uma mulher como Alyce. Ela era dotada de uma alma pura, correcta e sincera, e de uma grande alegria de viver. Atributos só encontrados nas pessoas que tinham o privilégio de crescer na zona rural, longe das intrigas da corte e da mesquinhez das cidades. Era inteligente e es­pirituosa, sem ostentar falsos pudores. Sustentava as brincadeiras com chistes, e tão prontamente quanto os bufões. Debatia os assuntos com tanta habilidade quanto um perito em leis.

Subjacente a isso tudo, Alyce emanava uma sen­sualidade inocente e devastadora. Eram exatamente essas qualidades que faziam Thomas virar-se de um lado para o outro, sem conseguir dormir à noite, em seu catre de solteiro. Ele se lembrava do que fora beijar aqueles lábios carnudos e sentir a ple­nitude daquele busto deleitável...

Tinha certeza de que ela não fazia a menor ideia do efeito que causava nele... ou em qualquer homem que a visse.

— O senhor está me escutando, sir Thomas? — ela perguntou, com os dedos encostados na manga da túnica de Thomas.

Ele afastou o braço.

— Não, eu...— Ele corou violentamente e pela primeira vez desde que, ainda rapaz imaturo, tomava conhecimento dos prazeres da carne. — Perdoe-me.

Ela pareceu não ter notado nenhuma improprie­dade. Estavam sentados muito próximos, no banco do eirado, para onde tinham ido depois da refeição noturna. Pretendiam conversar em particular, longe dos ouvidos dos criados boateiros que já especula­vam sobre a amizade crescente entre a senhora de Sherborne e o cavaleiro desconhecido.

— Eu perguntei por quanto tempo o senhor pre­tende estender a visita — ela insistiu. — Espero que não me leve a mal e pense que estou querendo vê-lo partir. Para ser franca, tenho me comprazido muito de estar em sua companhia durante os úl­timos dias.

— Eu também, minha pequena Rose.— Thomas sorriu com ternura e continuou, bem mais sério.

— A pergunta é legítima e merece uma resposta adequada.

Alyce surpreendeu-se com o tom formal.

— O senhor será bem-vindo em minha casa, sempre que vier e por quanto tempo quiser ficar

— ela assegurou.

Ele levantou-se e pegou-lhe a mão.

— Quer me acompanhar? — ele pediu.

Ela segurou a mão dele e deixou-se conduzir, como se não tivesse vontade própria. Atravessaram os re­cintos inferiores do castelo e depois foram até o pátio. Estava escuro. Archotes espalhavam-se pelos velhos parapeitos de pedra, e a iluminação era suficiente para eles caminharem por entre o entulho que cobria várias passagens do espaço descoberto.

— Para onde estamos indo? — ela quis saber.

— Quero mostrar-lhe algo. Mas peço-lhe, reco­mendo com grande interesse, para manter a re­velação em segredo.Caso isso seja descoberto, todo o plano poderá naufragar.

— Que delícia! Sempre adorei segredos.

— Eu lhe garanto que irá gostar muito desse — ele avisou, com olhar malicioso.

Thomas levou-a até o galpão de pedra, que os cavaleiros haviam usado para deixar as armas e os equipamentos. Como Alyce se escondera du­rante a chegada dos visitantes, não pudera prestar atenção ao que eles carregavam. Thomas girou e tirou um dos fachos sujo de breu do suporte apli­cado à parede. Abaixou-se e parou, antes de entrar no telheiro.

- Venha — ele chamou.

Alyce, quando menina, muitas vezes viera es­conder-se naquela pequena construção, mergu­lhando atrás de peças enferrujadas de armaduras. Ela se aproveitava dos momentos de distração de Lettie. Seu pai ralhava, mas sempre acabava per­doando-lhe as travessuras com uma risada indul­gente. Fazia muito tempo que não entrava ali. Era menor do que lhe parecera naquelas ocasiões. O que Thomas, tencionava lhe mostrar?

Ele apontou a parede oposta com a tocha.

— Aqui.

Alyce pôde ver, na obscuridade, dois ou três baús de couro. Não lhe pareceu serem pertencen­tes a Sherborne.

— São seus? — ela perguntou, ainda sem en­tender nada.

Ele confirmou, com um gesto de cabeça.

— Vá. Abra um.

Intrigada, Alyce deu uma olhadela rápida na direção de Thomas e aproximou-se das arcas. Ajoe­lhou-se e abriu a maior. Então literalmente en­gasgou ao ver a luz, bruxuleante sob as chamas do archote, das milhares de moedas de ouro.

Ela se apavorou e sentiu um nó na boca do estômago. Lettie bem lhe avisara. Não sabia nada sobre aquele homem, nem sobre suas origens ou destino. Ele poderia ser até mesmo um bandido, ou um espião a serviço do príncipe. Alyce resolvera ignorar o aviso da bondosa ama, ficara muito es­timulada por todos os sentimentos novos que a presença de Thomas lhe provocava.

Ela ergueu a cabeça apavorada.

— Isto é roubado? — ela indagou. Thomas caiu na gargalhada.

— Não, minha "Rose que anda à procura de aventuras". Sinto desapontá-la, mas aqui não há uma só moedinha que tenha sido surrupiada de alguém.

Alyce ainda tinha as pernas bambas, mas sen­tiu-se mais aliviada.

— Então o que...

Thomas parou de rir, e seu semblante tornou-se grave.

— Espero que entenda a necessidade de manter o segredo. Esta é uma grande quantia de fundos arrecadados para resgatar nosso verdadeiro rei, Ricardo I, das garras de Henrique VI, o imperador germânico. O rei Ricardo tem muitos inimigos, entre eles seu próprio irmão. Pode calcular as pessoas neste país que se alegrariam em fazer esse dinheiro não chegar ao destino certo. Aliás, que estariam, em última análise, dispostas a roubá-lo.

— O próprio príncipe João Sem Terra — Alyce enfatizou.

— Sim, e também Philip de Dunstan — ele lembrou.

— Fico feliz em ver que confia em mim, Thomas. Porém eu me pergunto. Por que me mostrou tudo isso, se é necessário manter sigilo absoluto sobre a existência dessa fortuna? E também por que esta quantidade enorme de moedas de ouro en­contra-se aqui, nesse galpão aberto, em vez de em outro local e sob uma vigilância severa?

— Guardas serviriam somente para chamar a atenção. Seria um chamariz anunciando a exis­tência de alguma coisa muito valiosa para ser vigiada. O que de certo despertaria o interesse do povo e provavelmente provocaria pilhagens. Se fingirmos que uma coisa não tem importância, ninguém lhe prestará atenção. Foi uma lição que aprendemos com os árabes.

— Então esteve mesmo na Cruzada com o rei

Ricardo?

— Estive, sim.

— E quanto a minha outra questão?

— Por que eu lhe mostrei tudo isso?

— Ah-ah.

Segurando o facho para cima, Thomas aproxi­mou-se e ajoelhou-se ao lado de Alyce. Remexeu as moedas com a mão livre.

— Isto é uma beleza, não é mesmo? O brilho das moedas de ouro.

— Não tão bonito quanto um gramado de cam­painhas em um dia de primavera — ela retorquiu.

Thomas deu uma risada.

— Ah, Alyce Rose. Juro que é uma mulher in­comparável, sem preço. Mas já que a lei permitiu que lhe fosse outorgado um valor, não temos outro recurso senão pagá-lo.

— Está se referindo ao imposto matrimonial? — Alyce parecia assombrada.

Thomas apanhou um punhado de moedas e dei­xou-as cair, uma a uma, sobre o monte.

— Em um segundo momento, eu diria que está certa. O dinheiro em si não tem beleza. Mas esta riqueza aqui tem um propósito. Para ser mais exato, pode ter mais do que um. O deles é comprar a liberdade de nosso rei legítimo e com isso li­bertar a Inglaterra do jugo do príncipe João.

— Sim, eu já sei.

Ele deixou cair a última moeda e ergueu a mão.

— Mas também servirá, antes do projeto final, para comprar a liberdade de uma certa senhora muito linda.

Alyce arregalou os olhos.

— Eu não entendo...

Thomas fechou a tampa da arca.

— Aqui há dinheiro suficiente para pagar cinco vezes a taxa que o príncipe está reivindicando.

— Não vejo a coisa por esse lado. Eu não usaria o dinheiro destinado ao resgate do rei. O destino dele é muito mais importante de que o meu.

— O povo bondoso de Sherborne poderia não estar de acordo com a senhora, mas isso não vem ao caso. O dinheiro servirá para os dois objetivos.

Nós apenas o tomaremos emprestado por um certo tempo, para libertá-la desse casamento absurdo que João está tentando impor-lhe.

— Mas para isso terá de dar o dinheiro ao prín­cipe, ou melhor, ao nobre que é o representante dele nesta questão.

— E que vem a ser o barão de Dunstan — Thomas afirmou.

Alyce torceu as mãos, com um suspiro.

— Muito bem. Nós entregaremos o ouro direto nas mãos de Philip de Dunstan — Thomas continuou.

— Mas então... — Alyce hesitou — Como o di­nheiro vai voltar?

Thomas deu um grande sorriso e inclinou-se para o lado de Alyce. Beijou-a pela primeira vez desde que soubera de sua verdadeira identidade.

— Esta será a parte mais engraçada da história, Alyce Rose. Nós o roubaremos e o traremos de volta.

— Ainda não entendi por que eles fariam isto | por mim, Lettie — Alyce comentou com sua aia enquanto a outra escovava-lhe os cabelos, entre os preparativos para dormir.

— Não sei por que insiste em cavalgar sem a touca, Allie — a mulher idosa queixou-se, sem responder à pergunta, enquanto desembaraçava uma das madeixas emaranhadas.

— Ele nem mesmo me conhece direito. Por que arriscaria sua cabeça perante o príncipe João?

Lettie parou com as escovadelas e pôs uma das mãos na cintura.

— Quer parar de pensar que ele é apenas um ser humano decente? Um cavaleiro honorável que vê uma donzela em perigo e resolve ajudar?

Alyce balançou a cabeça várias vezes.

— Não, não. Posso ter me tornado uma jovem inocente, enfiada aqui em Sherborne, mas meu pai ensinou-me muito bem. Os homens estão sem­pre atrás de seus próprios interesses.

— Allie, tenho pensado muitas vezes que o se­nhor seu pai não lhe fez nenhum benefício em deixá-la tão desconfiada em relação aos homens.

— Os ensinamentos dele sempre me foram úteis. Os representantes do sexo masculino que vieram aqui, desde a morte de meu pai...eram horríveis e rudes. Mas preste atenção à natureza do amo que eles representavam. Nem todos são iguais ao barão de Dunstan.

— Meu pai ainda não esfriara na cova, e eles já haviam se acomodado aqui, comendo de mi­nha comida e bebendo de meu vinho. Disseram ainda que tomariam conta da administração de Sherborne, pois o barão pretendia aliviar mi­nhas responsabilidades!

— Aquilo foi uma desumanidade do barão — Lettie acrescentou. — Ninguém poderá culpá-la pelo que fez.

Alyce deu um leve sorriso, ao lembrar-se dos fatos. O primeiro grupo fora despachado com fa­cilidade. Não demonstrara a mínima vontade de ficar, quando confrontados com os aldeões amigos e leais a ela, o cervejeiro e o primo que, juntos, pesavam mais do que cinco quintais.

Logo em seguida apareceu uma segunda comitiva, conduzida por um intrometido com cara de doninha e que declarou ter sido enviado pelo barão para ser o novo contador. Conhecedor que era da reputação de Dunstan e de sua cólera quando en­ganado, o pobre homem fugiu, mergulhado no maior pânico, assim que Alyce simulou pretender conquistá-lo.

— Nós conseguimos dar um fim em todos eles, não foi mesmo? — Alyce perguntou a Lettie, rindo.

— Ao custo de dez anos de minha vida — a velha ama confessou, apontando para os próprios cabelos brancos — Quando vi a última delegação oscilar na beira do parapeito do castelo e ameaçar jogar-se, meu coração quase parou.

— Mas naquela altura dos acontecimentos, o barão, por certo, já chegara à conclusão de que deveria mandar um grupo de soldados experien­tes. E não tive meios de escorraçá-los. Se eu não houvesse escalado o muro, acredito que eles te­riam nos infernizado até passar o ano de luto. Depois poderiam levar-me tranquilamente à pre­sença do barão.

Lettie anuiu e inspirou fundo.

— Tem razão, Allie. Aquele último bando era mesmo composto de valentões. Penso que seu noi­vo mandou-os para que a vigiassem,

— Assim o valioso galardão não lhes escaparia por entre os dedos — Alyce comentou, mais alegre por lembrar-se de que a ameaça estava prestes a terminar.

— Sem dúvida, minha menina. Alyce deu uma risadinha.

— Daria tudo para ver a cara do barão de Dunstan quando souber que paguei o imposto e que não serei mais a esposa dele!

Lettie sorriu e retomou a tarefa de escovar os longos cabelos de sua menina.

— Veja bem, Allie. Pouco importa o motivo por que sir Thomas vai ajudar-lhe. 0 fundamental é que estaremos livres.

— Oh, Lettie. Não se preocupe. Não tenho a mínima intenção de recusar a oferta de sir Thomas. Entendo apenas que, sendo homem, ele está fazendo isso para satisfazer seus próprios motivos.

Lettie estacou boquiaberta. Depois inclinou-se para a frente e perguntou, enrubescida pela vergonha.

— Allie, acha que ele tem, digamos... hum.,. intenções a seu respeito? Quero dizer, ele nunca tentou nada... de nenhum jeito? — Lettie corou mais ainda. — Sua mãe está morta, meu bem, e provavelmente você nem mesmo sabe do que estou falando, não é?

Alyce concedeu a sua ama-seca um sorriso in­dulgente. Ainda bem que o conhecimento dela so­bre o que acontecia entre um homem e uma mu­lher não se baseava apenas no que Lettie deixara escapar. Senão, com toda certeza, ainda acredi­taria que os bebes chegavam flutuando na reguei­ra da calha da azenha, o moinho de roda movido a água, na Noite das Bruxas.

— Eu sei sobre o que está falando, Lettie. E a resposta é: não sei de sir Thomas tem intenções a meu respeito.

Mal acabara de falar, ela sentiu a mesma sen­sação agradável que a acometera naquela tarde na campina. Alyce não desgostou nem um pouco da ideia de que sir Thomas tivesse tais intenções ao ajudá-la.

— Um namoro breve e sem consequências po­deria ser o suficiente para um homem cometer um ato tão afoito como esse que ele se propõe a executar? — Alyce perguntou e imediatamente ar­rependeu-se, ao ver a expressão chocada de Lettie.

— Allie, batalhas têm sido desencadeadas por esses motivos. E um campo muito perigoso. Se sir Thomas tem em mente alguma coisa parecida, é melhor corrigi-lo quanto antes.

Alyce empurrou a mão da serva.

— Por hoje é o suficiente, Lettie. Estou cansada. Lettie largou a escova em cima do aparador.

Inclinou-se e virou a cabeça para fitar Alyce bem nos olhos.

— Estou falando sério, Allie. Prometa-me que tomará precauções para não fazer nenhuma tolice.

Alyce jogou-se na cama, escondeu-se debaixo das cobertas e abraçou-as como se fossem os bra­ços recobertos de lã de Thomas Havilland.

— Ah, Lettie — ela falou, com um sorriso matreiro.— Quando é que me viu fazer alguma bobagem?

 

Por favor, sir Thomas. Não adianta tentar convencer-me. Trata-se de minha vida e de meu casamento. E eu irei com o senhor.

Alyce havia discutido com ele durante a refeição da manhã, antes mesmo de ele tomar o primeiro gole de cerveja usado para tirar o gosto de ranço noturno da boca. Thomas não gostara nem um pouco da ideia de Alyce. Classificara-a como a mais louca dos últimos tempos.

— Por direito, o dinheiro deveria ser entregue por intermédio de um mensageiro — Thomas ex­plicou, com calma. — Mas eu faço questão de ir pessoalmente ao Castelo de Dunstan para encontrar meus homens lá. Nenhum de nós entrará na forta­leza. Não tenho vontade alguma de me confrontar com Philip de Dunstan no interior de seu covil.

— O que o senhor pretende fazer? Deixar o ouro nos portões do castelo e sair correndo como criança em uma brincadeira?

— Não. — Thomas suspirou, como quem estava à procura de paciência. — Nós mandaremos o di­nheiro dos impostos com um mensageiro que, en­tretanto, não será nenhum de meus homens.

— Quem deverá ser, então? E por que não posso cavalgar até o castelo com ele? Eu gostaria de, pelo menos, ver esse candidato a noivo de quem escapei. Com a graça de Deus! — Alyce ergueu as mãos para cima.

Thomas não se decidira entre ficar irritado ou achar engraçado. A combinação de ousadia e in­genuidade fazia parte do charme daquela donzela tão formosa. Porém ele tinha certeza de que Alyce nem sequer imaginava o jogo perigoso do qual estava tentando participar.

— Não posso deixá-la ir, Alyce. Assim que Duns­tan estiver de posse do dinheiro para entregar ao príncipe João, eu e meus guerreiros teremos de executar o final da operação. Furtar tudo e levar de volta para Ricardo. Isso é muito arriscado e perigoso. Tenho de planejar cuidadosamente cada etapa do plano, para que nada saia errado. Não terei tempo de escoltá-la pela zona rural afora e nem posso lhe garantir que poderá fazer o retorno em segurança. Perdoe-me, mas quero que entenda e não me julgue mal. Distraída, Alyce mastigava um pedaço de pão duro.

— Lettie e Alfred poderiam vir connosco. De­pois de entregarmos o dinheiro, eles poderiam voltar comigo. O senhor não teria de preocupar-se com isso, Thomas conteve uma imprecação e bateu com o punho na mesa.

— Lettie e Alfred? Um servo ancião e uma idosa dama de companhia? Jesus amado! Alyce, será que está mesmo em seu juízo perfeito?

— Trata-se de minha vida, Thomas — ela re­petiu. — Quero ir também!

Ela franziu ligeiramente o nariz perfeito, e a impaciência abandonou-o.

Por todos os santos, Alyce fizera dele um tonto! ele repreendeu-se.

Thomas não sabia explicar o que acontecia. Mas o fato é que ele beirava perigosamente os limites da perda total do bom senso. Estava a ponto de fazer o que ela lhe pedia. Sempre ouvira dizer que o amor fazia do homem mais empedernido um verdadeiro tolo. Mas até aquele momento, ele jamais experimentara a verdade dessa afirmação.

Thomas sacudiu a cabeça, mal acreditando no que estava prestes a dizer.

— Tudo bem. Se quiser, poderá vir comigo até o castelo, mas só se for acompanhada por três ou qua­tro de seus homens. E têm de ser guardas do castelo. Nada do despenseiro e nem da ama-seca. A senhora também não manterá contato, em hipótese alguma, com Dunstan. Tem de prometer-me que, depois da entrega do dinheiro, a senhora voltará direto para cá. Não podemos ter certeza de quais serão as reações de Dunstan, ao descobrir que a perdeu.

— Otimo, eu concordo — ela apressou-se a falar, antes de que ele pudesse mudar de ideia.

O sorriso brilhante de Alyce e seu ar de triunfo fizeram Thomas arrepender-se da capitulação.

— Alyce Rose, terá de cumprir exatamente o que eu lhe disser e nem pense em me enganar — ele advertiu, preocupado por antecipação.

— Claro, Thomas. Serei tão obediente quanto um soldado.

Sem fome, Thomas afastou o tabuleiro do café da manhã e tomou um grande gole de cerveja.

— Serão dois dias de cavalgada até o Castelo de Dunstan. Teremos de dormir na estrada à noi­te. Não pretendo arriscar-nos com uma parada em alguma estalagem. Assim evitaremos a pos­sibilidade de Dunstan tomar conhecimento dos objetivos de nossa viagem.

— Vou adorar! — ela confessou, com um brilho nos olhos. — Será uma grande aventura.

Thomas tornou a balançar a cabeça, incrédulo com a atitude benevolente que fora compelido a assumir. Estava começando a parecer que ele é que se lançara em uma grande aventura, desde o momento em que vira lady Alyce Rose de Sherborne pela primeira vez.

— Então escolha seus cavaleiros. Têm de ser os melhores e os mais valentes. E também arrume os pertences para a viagem. Sairemos amanhã, ao alvorecer.

O castelo fora construído havia mais de cem anos por um ancestral Sherborne, no auge das disputas entre normandos e saxões. Por esse mo­tivo, assemelhava-se a uma verdadeira fortaleza. Muralhas e parapeitos grossos de pedra, além de fossos largos e profundos. Contudo, a propriedade era situada longe de qualquer cidade conhecida e fora das principais vias de comunicação que cru­zavam o país. Os residentes da construção peque­na, porém imponente, nunca tiveram de preocu­par-se com a defesa. Os visitantes eram raros, fossem amigos ou de qualquer outra natureza.

Para ser bem exata, ela não podia queixar-se da falta de visitas naquele último ano.

Quando Thomas lhe recomendara para que le­vasse três ou quatro membros da guarda do cas­telo, Alyce nem se preocupara em explicar-lhe que não havia um só homem em seu lar que pudesse ser chamado de guerreiro.

Ela apresentou-os, sem perder a postura altiva, um a um.

— Este é Fredrick, neto de Alfred, meu des­penseiro. Este é o primo dele, Hugh. E Guelph, primo de Hugh.

Thomas observou o trio com incredulidade.

— Os senhores não possuem espadas? — ele perguntou-lhes, adivinhando a resposta óbvia.   .

Os três sacudiram a cabeça, em uma solene negativa.

— Arcos, então?

— Ah, sim, senhor — Fredrick respondeu pelo gru­po. — Podemos pegar um coelho a cem metros. Guelph é o melhor arqueiro do condado. Depois dele, sou eu. Hugh às vezes erra o alvo, porque não enxerga do olho esquerdo. Mas ele é muito forte, senhor.

Thomas suspirou, desanimado, e revirou os olhos disfarçadamente.

— Se houver encrenca, rapazes, terão de acertar mais de que coelhos. Entenderam?

Os três anuíram, com o mesmo ar solene. Thomas observou Alyce. Ela estava vestida para mon­tar. Mas nem a roupa pesada de couro conseguia esconder o encanto de sua silhueta feminina.

— Devo estar louco por permitir que nos acom­panhe — ele afirmou, fitando Alyce.

Ela fez ar de pouco caso.

— Sir Thomas, o senhor não está me permitindo nada. Lembre-se de que sou a dona do castelo, e que fui eu que escolhi acompanhá-lo nesta missão tão importante para meu futuro.

Fredrick, um rapaz simpático e impaciente, de não mais de vinte anos, resolveu emitir sua opi­nião sobre o comportamento de sua senhora.

— O senhor pode desistir de lutar, sir Thomas. Lady Alyce sempre faz as coisas a sua maneira. — Ele sorriu para Alyce, sem jeito e corou. — Perdão, senhora. Isso não foi uma crítica. O povo de Sherborne não gostaria que fosse diferente. Nós a amamos do jeito que milady é.

Alyce deu uma risada.

— Não tenha receio de ferir meus sentimentos. Fredrick. Pode contar para sir Thomas que fui muito mimada nesses meus vinte anos de vida. Isso é a mais pura verdade. Fui abençoada por ter sido cria­da neste lugar, entre tantos bons amigos.

Thomas realmente acreditou que estava ficando louco.

Alyce sorriu afetuosamente para os três guardiões.

— Eu não quero nada além de sepultar o as­sunto desse casamento absurdo — ela continuou — e poder retornar a Sherborne, para viver o res­tante de minha vida do mesmo modo privilegiado.

— Amém, milady — Fredrick concordou. Thomas ainda observava os jovens com descren­ça e falta de confiança.

— Os rapazes têm montarias?

— Temos, sir. Hugh cavalga no meio de nós dois, porque ele só enxerga de um lado.

Thomas revirou os olhos, dessa vez de modo explícito e voltou-se para Alyce.

— A senhora está mesmo determinada a levar adiante a empreitada?

Não poderia haver afirmativa mas enfática de que a anuência imediata e enérgica de Alyce.

Thomas ergueu os ombros resignado. Caminhou até seu garanhão, sem nem ajudar Alyce a montar.

— Então, vamos. Temos uma longa viagem pela frente.

No momento em que Thomas saiu da estrada e embrenhou-se em um trecho de floresta espessa, Alyce já não achava a aventura tão excitante. Ele avisara que finalmente iriam parar para dormir. Estavam cavalgando sem parar, desde o alvorecer. Alyce sentia todos os ossos do corpo moídos, em consequência de tantas horas seguidas em cima de um cavalo.

A escuridão já deixara para trás o crepúsculo vespertino. A lua, quase cheia, havia se erguido naquele fim de tarde, para iluminar a paisagem.

Thomas ajudou-a a desmontar.

— Tenho de admitir, Alyce Rose, a senhora é uma dama de fibra.

Ela escorregou nos braços dele que, pegando-a pela cintura, deixou-a no solo e soltou-a, sem fazer nenhum comentário.

— Eu lhe disse, no primeiro dia, que Alyce mon­tava tão bem quanto Rose — ela gracejou, com um sorriso cansado.

— Não duvido de suas habilidades de amazona. O que me impressionou foi sua capacidade de resistência. Achei que teríamos de voltar para Sherborne, antes mesmo do meio-dia. Alyce franziu a testa.

— Quer mesmo saber? Eu não poderia imaginar que nos forçaria a cavalgar horas a fio. Pensei que a viagem a Dunstan seria feita facilmente em dois dias.

Thomas nada respondeu e ajeitou o gibão de couro.

— O senhor está querendo me matar de cansaço

e ficar livre de mim?

Thomas estendeu a mão e limpou uma mancha de sujeira do rosto de Alyce.

— Ah, minha bela Alyce, isso seria a última coisa no mundo que eu gostaria de fazer. Nunca pensei em livrar-me da senhora, mesmo quando não me entusiasmei.com sua companhia nesta jor­nada. E que a senhora não imagina que tipo de homem é Philip de Dunstan.

— Bem — ela desdenhou —, seu plano não fun­cionou. Ainda estou aqui. Agora acredito que po­deremos dormir até mais tarde, desde que temos pela frente só mais um dia de viagem.

— Pode dormir até a hora que quiser, milady. Se o barulho do cacarejar das gralhas o permitir. A senhora já dormiu alguma vez ao relento?

Alyce negou com um gesto de cabeça. Fredrick e os primos haviam se afastado. Tinham ido amar­rar os cavalos para passar a noite. Ela ficara so­zinha com Thomas e teve medo de mover-se. Em­bora não quisesse admitir, sentia os joelhos cam-baleantes, por cavalgar tantas horas seguidas.

Thomas salvou o orgulho de Alyce, oferecendo-lhe o braço como apoio.

— Permita-me levá-la até seus aposentos, mi­lady— ele ironizou a formalidade.

Ela sorriu agradecida e esforçou-se para não de­monstrar fraqueza. Ele conduziu-a por um declive pouco acentuado e logo adiante eles avistaram uma clareira pequena, bem afastada da estrada.

Alyce relanceou um olhar ao redor, curiosa.

— Nós iremos... deitar-nos neste chão imundo e dormir?

— É exatamente o que fazemos quando estamos em marcha.Mas não se preocupe, nós lhe provi­denciaremos uma noite sofrível. Assim que deter­minarmos o lugar certo, apanharei algumas co­bertas dos cavalos.

Eles encontraram um lugar mais ou menos ni­velado. Alyce agradeceu aos céus por poder sen­tar-se no chão, para esperar a ida e a volta de Thomas. Quando ele voltou, carregado de mantas, ela estava quase adormecida.

— Isto aqui a manterá aquecida e confortável — ele afirmou e despejou a pilha na frente dela.

Ela inclinou a cabeça e espiou atrás de Thomas.

— Onde estão os outros?

— Eles tomaram posição em três diferentes lu­gares estratégicos ao longo da estrada. Se apare­cer alguém, eles acordarão e poderão avisar os outros se houver um perigo em potencial.

— Ninguém viaja por essas estradas longínquas à noite.

— Sim, e o problema está precisamente aí. Se alguém vier, não será por um motivo pacífico. Nes­se caso, poder-se-ia prever alguma emboscada.

Naquela altura dos acontecimentos, Alyce deu-se conta de que passaria sozinha, pela primeira vez em sua vida, a noite com um homem estranho, sem nenhuma acompanhante. Fitou o físico atlético que se delineava a sua frente, sob a luz do luar. Embora não tivesse medo dele, ela estava inquieta. No mes­mo instante, ela entendeu o porquê de Lettie se opor tão violentamente àquela viagem.

Alyce levantou-se, com a boca seca e sacudiu as mantas.

— Posso fazer minha cama aqui?

— Claro. É um lugar tão bom como qualquer outro. Ela estendeu uma das cobertas de lã sobre a relva e, depois de hesitar por um instante, ofere­ceu-lhe outra.

— Onde o senhor vai fazer a sua?

Embora tentasse falar com naturalidade, ela teve a intuição de que Thomas percebia lhe o nervosismo.

— Não precisarei de cama esta noite. Pretendo ficar acordado, tomando conta de uma certa don­zela chamada Rose.

— De jeito nenhum! O senhor mesmo concordou que há poucos viajantes por aqui. Não acredito que permanecerá sem dormir.

— Eu não me importo. Nos campos de batalha é comum passar muitos dias sem conciliar no sono. E, com toda a certeza, terei uma visão muito mais agradável para contemplar durante a vigília noturna, de todas as que tive durante as Cruzadas.

Alyce ficou vermelha, Pensar que ele a obser­varia enquanto estivesse dormindo, dava-lhe uma indescritível sensação de intimidade.

— Se eu não houvesse insistido em vir, o senhor poderia dormir esta noite.

— E verdade, mas eu também ficaria privado de sua doce companhia. — Ele pareceu sincero.

Alyce enrolou-se nos cobertores e deitou-se, com um suspiro.

— O senhor é um homem muito especial, Tho­mas de Havilland. Tem sido clemente, paciente e honesto comigo, desde que por aqui chegou. Isso, depois da maravilhosa recepção que teve — ela comentou com remorso.

A noite já cobrira a floresta com seu manto es­curo, e Alyce não o viu franzir a testa enquanto ela falava.

— Durma bem, Alyce Rose. O amanhecer che­gará antes de que possa perceber.

O solo era duro e frio. Ela estava exausta e imaginou que levaria horas antes de conseguir adormecer.

— Durma bem, bela Rose... — ele repetiu os votos, com sua voz melodiosa de trovador.

Mas ela nem escutou o final da frase.

Thomas encostou a cabeça no tronco de uma árvore. Não tinha a mínima vontade de dormir. Sua resistência ao cansaço era consequência do treinamento exaustivo nos longos dias de cami­nhada que enfrentara durante as batalhas. Sen­tia-se bem e com vontade de ficar sentado mais um pouco. Não se sentia nem um pouco cansado.

E mesmo que estivesse, tinha de reconhecer que estava muito inquieto para conseguir pegar no sono. Os pensamentos não lhe davam sossego. Iam para a incumbência que os esperava no dia se­guinte e voltavam para a mulher que dormia placidamente não muito longe dali.

As últimas palavras dela haviam sido tão con­fiantes e, na verdade, ele não as merecia. Embora não houvesse tentado enganá-la e nem levado nenhum tipo de vantagem como os outros que a ha­viam visitado após a morte do pai, ele mentira para Alyce. Não lhe contara nada sobre o triste! episódio que enfrentara ao lado de Dunstan nem | mesmo lhe dissera seu nome real.

Bem, quanto a isso... ela também ocultara sua verdadeira identidade, ele lembrou-se. Nesse ponto, es­tavam empatados. Quando ele cumprisse sua missão e libertasse o rei Ricardo I, poderia voltar a Sherborne e relatar a Alyce os fatos sobre Lyonsbridge. Con­tar-lhe-ia sobre o avô saxão, Connor, que, havia mui­tos anos, forjara a paz entre normandos e saxões na grande propriedade. Isso porque conseguira o amor de uma beldade normanda, EUen de Wakefield.

Fora Connor quem ensinara Thomas a tocar o alaúde. Connor, grande e corajoso, que havia ga­nho muitas batalhas com sua força muscular, fi­zera suas maiores conquistas com a música, com o charme e, em última instância, com seu amor. Connor e Ellen haviam pacificado e governado Lyonsbridge por muitos anos. O amor deles fora um liame muito intenso e impedira que a rivali­dade, entre saxões e normandos lhes ameaçasse | a felicidade.

Thomas sentiu a dor cruciante da saudade. Sen­tia falta de seus avós. Acreditava que eles esti­vessem bem, pois não tivera notícias em contrário.Mas ambos já contavam com mais de oitenta anos e não lhe restava muito tempo para alegrar-se com a companhia deles. Esse era um dos motivos prementes pelos quais desejava pôr logo um termo a suas obrigações de dar um destino certo ao di­nheiro. Queria voltar para casa e reassumir a vida tranquila em Lyonsbridge. Porém, com o passar dos dias, ele começava a compreender que a vida que almejava para si mesmo incluía uma linda dama da nobreza de olhos azuis, endiabrada e perturbadora, chamada Alyce Rose.

O que seus avós haveriam de pensar sobre ela?, ele refletiu.

O avô Connor diria que era muito bonita, como o fora sua querida Ellen. A avó Ellen, por sua vez, diria que Alyce era atrevida, independente e teimosa, bem parecida com ela própria.

Thomas imaginou a cena com seus queridos avós. Eles sorririam com aprovação, trocando olhares significativos que sempre haviam sido a marca constante na vida deles. De repente, teve vontade de acordar Alyce e contar-lhe tudo sobre ele e sobre Lyonsbridge. Queria revelar-lhe seu nome verdadeiro. Explicar-lhe por que tinha de manter o segredo para o príncipe João Sem Terra não descobrir o progresso deles na tentativa de libertar o rei Ricardo I, Coração de Leão.

Thomas deixou a cabeça cair para trás e bater no tronco da árvore. Era evidente que não poderia tomar essa iniciativa. Ele poria não somente a vida de seus homens em perigo, como também a de Alyce. Se Ricardo não voltasse mais para a Ingla­terra, todos aqueles que haviam trabalhado em seu benefício ou que houvessem tomado conhecimento desses esforços poderiam ser acusados de traição,

Ah... Teria de continuar mantendo os, fatos em sigilo ainda por um longo tempo. Mas quando o resgate fosse pago e Ricardo reassumisse o trono... Thomas observou Alyce, estendida no solo, dor­mindo. Ela voltou-se, e ele pôde ver-lhe o rosto sob a luz do luar.

Não, eles não haviam sido sinceros um com o outro, ele assegurou a si mesmo, em silêncio.Mas em breve, entre a bela Alyce Rose e ele não ha­veria mais necessidade de mistérios.

Os pesadelos haviam retornado. Os guardas ar­rastavam-na pela nave lateral de uma igreja, em direção a um gigante que usava uma armadura prateada que lhe escondia o rosto. Ao aproximar-se, viu que o altar fronteiriço da igreja havia se transformado em uma enorme lua amarela que gotejava sangue vermelho escuro...

Ela lutou contra os braços que a agarravam e debateu-se com todas suas forças. — Acalme-se, minha querida... Aos poucos, Alyce reconheceu o sussurro insisten­te de Thomas e começou a se acalmar. Não havia nenhum inimigo a apertá-la. Era Thomas que lhe segurava os braços. Seu coração voltou a bater nor­malmente. Ela abriu os olhos e viu-o, a poucos cen­tímetros de distância, fitando-a com preocupação.

— Foi apenas um sonho — ela asseverou, com voz rouca — que acontece de vez em quando.

Ele apertou-a nos braços com maior firmeza.

— Que sonho é esse, minha pequena Rose?

— Não é nada, não se preocupe. Enquanto meu pai vivia, nunca tive pesadelos. Eles começaram depois da primeira visita dos homens de Dunstan.

O Amor Não Se Compra

— Amanhã, estará livre daquele homem. Não haverá mais motivos para que tais sonhos voltem a atormenta-la.

Alyce estremeceu.

— Sim... — Ela suspirou profundamente. —É que...

Thomas beijou-lhe a testa com leveza.

— O que foi? — ele murmurou.

— Se eu disser, vai achar-me uma tola.

— Nunca poderia pensar tal coisa. Pode falar.

O calor daqueles braços que a envolviam dei­xavam-na com uma sensação de segurança, e ela envergonhou-se de contar.

— Foi a velha Maeve... Ela disse que eu poderia ser obrigada a casar-me contra minha vontade.

— Ela também afirmou que a lua se tornaria sangrenta e mais outros absurdos nos quais não se pode acreditar. Querida, não deve deixar que os delírios de uma velha a perturbem.

— E que as predições dela costumam tomar-se realidade.

Thomas sorriu.

— Desta vez isso não acontecerá. Amanhã en­tregaremos os tributos no Castelo de Dunstan, e essa será a última vez que pensará no barão Philip de Dunstan.

Alyce percebeu que estava sentada sobre as co­xas de Thomas, com as pernas esticadas para a frente, junto com as dele. O antebraço dele fazia pressão em um de seus seios. A posição era im­própria, mas ela permaneceu imóvel, sem querer afastar-se de Thomas. De fato, ela completou a impropriedade encostando a cabeça no ombro dele.

— Assim espero — Alyce suspirou baixinho. — Já ouvi histórias monstruosas sobre Philip de Dunstan e em quantidade suficiente para o resto

da vida.

Eles ficaram alguns minutos em silêncio. Alyce fechou os olhos e comprouve-se com o calor dos corpos em contato, em contraste com o ar frio da noite. Alyce estava enrolada em um cobertor, en­tre os braços de Thomas. Ele não trouxera ne­nhuma manta para dormir.

— Espere — ela pediu e afastou o tecido grosso de lã de si mesma. — Veja. É grande e dará para nós dois. Está ficando muito frio.

Thomas deu uma risada e soltou-a, permitindo que ela jogasse o agasalho sobre os ombros de ambos.

— Eu nem havia notado — ele confessou. — Pelo menos, nestes últimos minutos.

— Mas assim ficará muito mais quente, não é mesmo?

— Seguramente que sim.

Apesar da afirmativa ter sido pronunciada com voz doce, ela pressentiu um cuidadoso comedimen­to na atitude de Thomas. Ele não fez nada além de segurá-la.

— A alvorada já está próxima? — ela perguntou.

— Nunca fiquei fora até tão tarde.

Ele fitou o céu. A escuridão já havia cedido, mas ainda era possível ver algumas estrelas.

— Ainda vai demorar um pouco. Acha que po­derá dormir de novo?

— Não. Prefiro ficar aqui, a seu lado. É muito melhor. A menos que seus braços estejam cansados.

— Meus braços não são o problema, querida.

Alyce não compreendeu a insinuação. Ela se mo­veu para aliviar-lhe o que achava ser o transtorno do peso. O esforço somente o fez gemer.

— Vou levantar-me — ela disse de repente. — Sou muito pesada para ser embalada como um bebe.

— Claro que não é pesada — Thomas murmu­rou. — Porém é mais do que evidente que tenho uma mulher em meus braços e não um bebe.

Dessa vez Alyce percebeu a sutileza contida nas palavras. Voltou-se um pouco para fitá-lo. Ela en­treabriu os lábios, involuntariamente, e parou de respirar.

Thomas virou-a em seu braços, e beijou-a.

 

Thomas estivera lutando contra seu de­sejo durante o dia inteiro, enquanto Alyce, ereta e orgulhosa sobre a sela, cavalgava a seu lado. O mesmo acontecera à noite, ao observá-la dormindo tão tranquila. Beijá-la consistiu em um erro e uma temeridade, mas ele admitiu para si mesmo que sua resistência já tinha sido testada até o limite. O propósito de Thomas era não permitir que a rendição fosse além de um beijo, mas no mo­mento em que os lábios de ambos se tocaram, a promessa e a racionalidade o abandonaram.

Alyce não demonstrou a menor objeção as suas carícias. Ela enlaçou os braços ao redor dele e permitiu que os corpos se juntassem em um en­trelaçamento íntimo, à procura do maior contato possível. Eles acabaram deitando-se no solo com os lábios ainda colados. Thomas por cima de Alyce, unidos do peito aos pés. Ele continuou a beber-lhe os beijos, um após o outro, profunda e levemente, até se sentir embriagado.

Alyce compartilhou de um efeito semelhante e deixou escapar um riso gutural. — Acho que foi o senhor quem adquiriu a poção de Maeve para deixar-me entontecida — ela mur­murou, com voz pastosa.

Ele recuou, e isso fez com que os corpos quentes resfriassem.

— Eu estou sentindo a mesma coisa, minha que­rida. Mas fomos embebedados pelos beijos e não por ervas.

Alyce inspirou profundamente e desejou que aquele momento jamais terminasse.

— Estou começando a compreender por que as pessoas ficam loucas por amor — ela murmurou. — E maravilhoso.

— E a mais pura verdade. E fácil esquecer tudo quando se está sob o encantamento de Eros. — Thomas rolou para o lado dela, mantendo-lhe a cabeça aninhada em um dos braços — Mas não se preocupe. Como cavaleiro, fiz um juramento de não levar vantagem sobre nenhuma donzela em situação angustiante que eu tenha me decidido a ajudar.

— Fez mesmo? — Alyce ergueu a cabeça. Para surpresa de Thomas, ela parecia quase irritada.

— Só não entendi quais as condições que o fizeram pensar que sou uma de suas damas em perigo.

Naquela altura dos acontecimentos, Thomas quedou-se ainda mais desconcertado. Ele poderia entender se ela ficasse zangada por ele ter a pre­tensão de requisitar favores sexuais, valendo-se de sua condição de protetor. Mas havendo dado sua palavra de cavaleiro, de quem honrava o có­digo social e moral, ele não via motivos para a raiva de Alyce.

— Não há nenhuma condição em particular — ele defendeu-se.

— Exceto que não deseja fazer amor comigo — ela afirmou contundente.

Thomas, exasperado, ergueu as mãos. Pela enésima vez, ele chegava à conclusão de que Alyce de Sherborne era diferente de todas as mulheres que já havia conhecido.

— Minha doce Alyce, se a senhora fosse um pouco mais experiente nesses assuntos, teria per­cebido evidências irrefutáveis de que quero muito fazer amor com a senhora. Mas não posso. Nem sempre se pode fazer tudo o que se quer.

Seguiu-se uma pausa, em que só se ouvia o respirar deles.

— Oh, sinto muito — ela lastimou, com um certo cuidado, temerosa de melindrá-lo. — Trata-se de alguma ferida de guerra?

Thomas deu uma gargalhada.

— Não é nenhum ferimento que me mantém no celibato esta noite, com uma mulher tão deleitável a meu lado. Acontece que a dama em ques­tão pertence à nobreza, um verdadeiro prémio con­cedido pelo rei.

Ele esticou o braço, apertou-lhe levemente o queixo e fitou-a com ternura.

— Tenho certeza de que a senhora é tão inocente que nem pode perceber as consequências de um jogo desse tipo. Para uma mulher de sua posição, a virgindade deve ser reservada unicamente para o marido. Para ninguém mais.

— Não será o senhor, nem o rei e nenhum outro homem que me dirá para quem devo ou não entregar minha virgindade! — Alyce mostrou-se ofendida, para o espanto e a frustração de Thomas.

— Alyce... — ele protestou e, sem sucesso, ten­tou interrompê-la.

— O que aconteceu connosco há alguns minutos foi lindo. Como também foi aquele dia na campina, quando o senhor imaginava que eu fosse apenas Rose, a criada. Nada havia de errado no fato de estarmos juntos...

— Sim, é verdade, mas...

— Então o senhor sistematiza as situações e vem me dizer que meu corpo pertence àquele que o rei escolher para mim. O senhor não é muito diferente dos homens enviados pelo barão de Dunstan, que discutiam meu casamento e meu leito como se eu fosse uma porca premiada!

— Não foi isso que eu...

Enraivecida, Alyce pôs-se em pé, em um pulo.

— Pois muito bem, senhor honrado cavaleiro. Acei­tarei sua ajuda, ainda mais porque não tenho muita escolha. Mas, de agora em diante, eu agradeceria muito se o senhor mantivesse suas mãos e seus con­selhos para si mesmo! E bem distantes de mim!

— Alyce, querida, minha intenção não era...

— E se eu acabar tendo de casar-me com Philip de Dunstan, espero que isso não lhe dê paz e o faça remoer-se sem cessar, à noite, em seu catre solitário. Sem esquecer um só minuto de que ele será o único a coletar esse prémio que eu lhe teria entregue de livre e espontânea vontade!

— A senhora não sabe...

Antes de que Thomas conseguisse terminar a fra­se, Alyce afastou-se decidida, em direção à estrada.

Aturdido, ele ficou sentado no chão por alguns momentos. Outrora, já levara um tapa no rosto por tomar muitas liberdades com uma dama. Mas essa era a primeira vez que lhe chamavam a aten­ção por fazer exatamente o contrário. Quem é que entendia as mulheres?

Thomas ergueu-se devagar. Teve de concordar com seu próprio corpo ávido, que lhe fazia uma reprimenda semelhante à de Alyce. Ele a tivera nos braços, cálida, flexível e propensa a amar. Ela estava certa. Como é que ele, Thomas Brand, tornara-se tão cavalheiresco a ponto de ofender uma dama, não pelo excesso mas pela escassez? Praguejou e começou a caminhar.

Tentara agir com nobreza. Só conseguira dei­xá-la furiosa. O erro, se é que houvera algum, já fora cometido. Não adiantaria mais fazer nada a respeito. Assim que alcançassem o Castelo de Dunstan, Alyce de Sherborne sairia da vida dele.

Para o momento, ele achou que a melhor provi­dência seria ir atrás de Alyce para ver se ela não seguira por trilha errada. Ela poderia acabar por perder-se no meio da floresta. Enquanto estivesse sob a responsabilidade dele, teria de cuidar de sua integridade e de seu bem-estar. Mas de uma coisa tinha certeza, se lhe coubesse a ventura de ter no­vamente lady Sherborne nos braços, ele seguiria os ditames de seu corpo e de seu coração. O juramento ao código da cavalaria seria esquecido!

Eles encontraram os companheiros em uma pe­quena igreja perto do Castelo de Dunstan. O clé­rigo que os cumprimentou demonstrou conhecer Thomas e levou-os imediatamente para dentro da sacristia, onde Kenton já estava à espera.

— Duas solicitações foram efetuadas com su­cesso! — Kenton exclamou, assim que eles entra­ram. — Já temos coletado o suficiente... — ele interrompeu-se, ao ver Alyce. — O que ela está fazendo aqui? Ficou louco, homem?

Thomas fez pouco caso da crítica do amigo.

— Ela veio para ter certeza de que o dinheiro chegaria em segurança.Depois disso, lady Alyce voltará diretamente para Sherborne, com seus ho­mens, que a acompanharam até aqui.

Kenton corrigiu a falta de cerimonia e, preocu­pado, fez uma pequena mesura para Alyce.

— Bom dia, lady Alyce. Não quis ofendê-la. Mas isto não é tarefa para uma dama. Não gostaria de vê-la por aqui, tão perto do Castelo de Dunstan.

— Nem eu — Thomas acrescentou cortesmente e virou-se para ela. — A senhora e seus homens já viram que nós e o dinheiro chegamos em se­gurança. Agora, já podem voltar.

Alyce passara a manhã inteira arrependendo-se das palavras ásperas que dissera na noite ante­rior, mas não tinha ideia do que poderia fazer para redimir-se. A impulsividade sempre fora um de seus defeitos. Mais calma, compreendeu que Thomas, na verdade, pretendia proteger-lhe a re­putação e a castidade. Poderia até jurar que ele, tanto quanto ela, queria continuar o namoro. Tho­mas se contivera somente para o bem de uma mulher que ele respeitava. Deveria agradecê-lo, em vez de censurá-lo.

Durante o trajeto até ali, ele se mantivera altivo e distante e falara somente o indispensável. Desse modo, ela também permaneceu em silêncio.

Naquele momento ele queria mandá-la embora, sem conceder lhe ao menos alguns minutos de pri­vacidade para resolver a desavença. Alyce achou a ideia intolerável.

— Ficarei até que o dinheiro tenha sido entre­gue — ela afirmou com determinação.

Kenton balbuciou um início de imprecação e imediatamente mudou o tom.

— O homem que entregará o dinheiro a Duns-tan ainda não chegou. Poderemos ter de esperar horas até sua chegada, É melhor a senhora voltar, milady. Esta seria uma atitude muito aconselhá­vel, para sua própria segurança.

Alyce fitou Thomas, que fez a anuência com um movimento de cabeça.

— A senhora prometeu que faria o que eu lhe pedisse — ele lembrou-a.

— Eu sei e não estou discutindo esse ponto. Mas o senhor prometeu que eu poderia ver o di­nheiro chegar ao destino.

— Que é aqui, milady, como já deve ter perce­bido. Já chegamos a Dunstan.

Teimosa, ela sacudiu a cabeça.

— Estamos perto de Dunstan, e o dinheiro ainda não chegou às portas do castelo.

A irritação de Kenton pela presença de Alyce foi suplantada pela diversão de ver o amigo dis­cutir com ela.

— Venho lhe advertindo, Thomas — ele avisou, com um sorriso matreiro —, para tomar cuidado com os negociadores astutos.

Tinha-se a impressão de que Thomas estava pres­tes a esgoelar tanto Alyce quanto seu lugar-tenente, porém sua voz permaneceu calma na réplica.

— Ficaremos aqui até a chegada de nosso ho­mem de confiança, que levará o dinheiro. A se­nhora e seus cavaleiros podem ficar também. As­sim que o mensageiro chegar, milady voltará. A partir daí, não teremos mais condições de conti­nuar a protegê-la. Teremos de concentrar-nos em recuperar as moedas de Dunstan.

Alyce espiou pela janela alta da sacristia e viu o castelo imponente a distância,

— O barão estará no castelo agora? — ela indagou. Thomas fitou o sacerdote, que assentiu e respondeu.

— Sim, milady, Philip de Dunstan normalmente fica em sua residência.

Alyce arrepiou-se. Estava a menos de cinco qui­lómetros da sombra que havia assomado sobre ela durante todo o ano que se passara. Thomas estava certo. Depois daquele dia, ficaria livre de Dunstan. Era-lhe até difícil acreditar.

— Mais um motivo para a senhora partir ra­pidamente, lady Alyce— Thomas acrescentou.

Ele dava ordens como um comandante. Não res­tara nem sequer um mínimo traço que pudesse lembrar o homem encantador, dono de uma voz melodiosa, que havia sussurrado em seus ouvidos na noite anterior e que a drogara com seus beijos. Era óbvio que ele pusera um fim nos folguedos amorosos e esquecera a agradável distração que encontrara pelo caminho. Estava pronto a voltar ao trabalho. A seus deveres, a sua missão.

Que assim seja, ela pensou, resignada.

— Eu e meus homens ficaremos apenas mais algum tempo — ela avisou secamente — e depois iremos embora. Não quero aborrecê-lo mais.

Thomas concordou e não aparentou ter notado a frieza dela. Pôs a mão no ombro de Kenton, e ambos se encaminharam até a porta.

— Conte-me a respeito das coletas — ele pediu. Os dois homens saíram da sala, entretidos na conversa, e deixaram Alyce sozinha na sacristia. Thomas dera mesmo como encerrada a breve pas­sagem que haviam feito pelo mundo dos enamo­rados. Ele prosseguiria seu caminho, ileso, como um soldado valoroso. Entretanto Alyce não estava muito certa quanto a sua própria vontade de aban­donar o campo de batalha. Ele se tornara frio e distante, por isso ela precisava de uma oportuni­dade para dialogar com Thomas sobre o que acon­tecera entre eles.

Alyce ergueu a cabeça, endireitou os ombros e saiu à procura de seus cavaleiros.

Alyce, Thomas e seus cavaleiros, mais os guar­das de Sherborne aguardavam na pequena sala da modesta casa paroquial, junto à igreja. Thomas mantivera-se ocupado durante toda a tarde, e Alyce não tivera nem um momento de privacidade com ele.

Eles haviam esperado o dia inteiro, mas o men­sageiro ainda não havia chegado. Quando Alyce ten­tou saber de quem se tratava, Thomas respondeu-lhe, relutante, que era um aliado do rei Ricardo e que trabalhava dentro do Castelo de Dunstan.

— E mais seguro para ele e para Milady, não saber nem mesmo o nome dele. Mas pode ficar descansada. Ele fará a entrega do dinheiro e trará uma prova documentada do fato. Assim nem Dunstan e nem o príncipe João poderão dizer que nunca o receberam.

— Eu gostaria de encontrar-me com ele e agra­decê-lo por sua ajuda — Alyce explicou.

— Isso não seria sensato, Milady — Thomas respondeu sem demora. — Não se preocupe. Eu o farei saber de sua gratidão.

Nas poucas vezes em que conversaram, ele usa­ra de formalidade excessiva e mantivera-se muito distante. Dessa maneira, ela não tivera oportu­nidade de trazer à baila um assunto tão íntimo sobre o qual pretendia conversar. O homem que serviria como mensageiro poderia chegar a qual­quer momento. Se pensava em retratar-se, tinha de agir com presteza.

— Será que poderíamos conversar em particu­lar? — ela fez a pergunta em voz baixa.

Thomas deu uma rápida olhadela pelo recinto acanhado, pretendendo recusar o pedido.

— Devo ater-me à elaboração dos planos junto com Kenton. Precisa de alguma coisa urgente?

— É sobre ontem à noite... — Alyce abaixou ainda mais o tom de voz.

— Eu já tentei desculpar-me, embora, na verdade, eu não esteja absolutamente certo a respeito do que poderia ter-lhe causado tanta irritação. Acredito que foi por eu estar protegendo a sua virtude.

Os três guardas de Sherborne jogavam dados no chão, quase aos pés deles. Alyce encaminhou-se até a porta.

— Poderíamos sair por um momento?

Thomas ergueu os ombros e seguiu-a. Abaixou-se para passar sob o dintel. O sol do entardecer estava à espera deles.

— Alyce — ele falou, quando ficaram sozinhos —, eu não tive intenção de ofendê-la. Jamais pen­saria em fazer uma coisa dessas.

Alyce sentiu alívio ao perceber novamente a calidez na voz de Thomas.

— Por isso mesmo é que preciso falar-lhe. Eu cometi um erro ao ficar zangada. Para ser sincera, eu não tenho a menor experiência nesses assuntos e eu... — ela interrompeu-se.

Como faria uma lady bem-nascida para dizer a um homem que o desejava, que seu corpo a atraía com uma urgência que lhe era desconhecida até então?                                                        

Thomas deu um sorriso desanimado.

— Chegou à conclusão de que eu estava certo de interromper o que vinha acontecendo entre nós.

Não era isso que ela pretendia dizer-lhe. Mas Kenton surgiu, vindo da lateral da igreja, antes de ela poder organizar os pensamentos.

— Thomas, ele mandou um aviso! Eles o man­têm sob estreita vigilância. Ele acredita que está sob suspeita e que, nas atuais circunstâncias, seria muito arriscado vir ao nosso encontro.        

Thomas tornou-se muito sério.

— Seu mensageiro? — Alyce indagou Kenton assentiu, com um gesto de cabeça, antes de perguntar ao amigo.

— Então, o que faremos agora?

— Não temos mais tempo para esperar a vinda dele — Thomas respondeu. — Eu mesmo levarei o dinheiro.

Kenton estacou assustado.

— Agora tenho certeza de que ficou louco! Dunstan o achará em um instante.

— O senhor conhece o barão? — Alyce indagou surpresa.

Ninguém lhe respondeu.

— Fingirei que sou um trabalhador de Sherborne e levarei o dinheiro ao administrador do castelo. Não preciso encontrar-me com Dunstan.

— Thomas, mas ele pode vê-lo! Se o senhor en­trar no castelo, ele o reconhecerá no mesmo ins­tante. Deixe que eu vá.

Thomas negou com energia.

— Dunstan poderá reconhecê-lo também, Ken­ton. Não. Eu é que terei de arriscar-me.

Kenton ressentiu-se exasperado.

— Isso é uma insanidade. Qualquer um dos ca­valeiros pode ir. Dificilmente serão reconhecidos por ele.

— Sir Thomas, como o senhor conheceu Duns­tan? — Alyce insistiu.

Thomas continuou a ignorá-la.

— Não discuta, Kenton. Eu é que irei. Alyce pigarreou, irritada.

— Será que alguém pode me escutar? — ela gri­tou. — Se Dunstan os conhece; então eu levarei o dinheiro. Isso é o que eu queria fazer. Enfrentar eu mesma o monstro! Eu mereço ver a expressão dele, quando vir o dinheiro dos impostos, depois de todos os problemas que ele me causou no ano passado.

Kenton e Thomas mal a olharam, certamente achando a oferta ridícula demais.

Thomas virou-se, e eles caminharam para voltar à pequena casa ao lado da igreja,

— Discutiremos o assunto com os outros e ela­boraremos um plano, para o caso de alguma coisa sair errada. O que acha de eu ir esta noite?

Kenton seguiu seu líder.

— Os homens ficarão contra o senhor, do mesmo modo que eu fiquei. Já está quase escurecendo. Não poderemos fazer nada até o amanhecer. Talvez então Fantierre possa executar ele mesmo a tarefa.

Ambos passaram sob a verga, e a porta foi fe­chada. Mais uma vez, Alyce foi deixada à própria sorte.

— Agora todos entenderam por que não devem fazer isso? Eu não me responsabilizo pelo que pos­sa acontecer, caso insistam em não levar adiante a ideia. — Alyce inclinou-se para os três jovens que a fitavam com adoração.

— Faremos o que mandar, Milady — Fredrick respondeu pelos três. — Se Milady acha que assim está certo... Foi para isso que viemos.

Hugh e Guelph balançaram a cabeça, concordando. O coração de Alyce disparou de tanta ansiedade.

— Então escutem o plano. Direi a sir Thomas que voltaremos para Sherborne. O que não será uma mentira em sua totalidade. Faremos apenas uma parada no caminho, no Castelo de Dunstan.

— Como conseguiremos o dinheiro, Milady? — Hugh perguntou.

— Muito simples. Teremos apenas de tirá-lo do esconderijo. As arcas estão guardadas na sacristia. Precisamos só de uma delas. Parece-me que sir Thomas tem o hábito de guardar dinheiro sem prestar muita atenção à vigilância. Fredrick franziu o cenho.

— Com perdão de Vossa Senhoria, mas nós nos sentiríamos muito melhor, se deixasse nós três irmos sozinhos. Quem sabe o que poderão dizer no castelo, ao ver entrar uma dama da nobreza cavalgando a nosso lado?

— Concordo plenamente — Alyce falou com ma­lícia. — Por isso é que somente os três rapazes de Sherborne entregarão o dinheiro. Fredrick... Hugh... e eu

— Iremos os três? — Fredrick espantou-se. — Milady, suponho que Vossa Senhoria não deveria...

— Isso mesmo — ela o interrompeu. — Guelph ficará vigiando os portões, enquanto entramos.

Guelph anuiu, sem falar. Ele era o mais magro e o mais envergonhado. Ele falava tão pouco, que Alyce não teve certeza de que lhe reconheceria a voz, se a ouvisse.

— Vossa Senhoria disse três rapazes, Milady — Fredrick alegou, cauteloso.

— Isso mesmo. Três rapazes. — Ela virou-se para Guelph. — Tenho mais um favor a pedir-lhe, Guelph.

Houve mais um aceno afirmativo e silencioso por parte do garoto, e Alyce prosseguiu:

— Terá de emprestar me suas roupas.

Alyce sabia muito bem que sua maior aventura seria também a mais temerária. Mas o que po­deria sair errado? Ninguém reconheceria o rapaz esbelto metido naquela túnica suja e com o velho chapéu de feltro. Jamais poderiam identificá-lo com a senhora de Sherborne.

Eles entregariam o dinheiro para o administra­dor do castelo, exigiriam um recibo em troca e iriam embora. Como Thomas mesmo dissera, eles nem teriam oportunidade de deitar os olhos no barão. Embora, secretamente, ela bem que gos­taria de dar apenas uma espiada nele.

Terminariam o serviço e voltariam até a igreja. Comunicariam a sir Thomas e aos outros que a missão fora cumprida. Thomas não acreditaria e tornar-se-ia lívido.

Mal podia esperar para ver-lhe o rosto, ela pen­sou sorrindo astuciosa.

Tinham de apressar se. Até eles recolherem o baú com as moedas de ouro e trocarem as roupas, o pôr-do-sol já estaria bem longe. Ela ficou com pena de pensar no pobre Guelph enrolado em uma manta. Os portões do castelo já estariam fechados, mas haveria guardas para manejá-los. Quando o trio dissesse que vinha de Sherborne e pedisse para ver o intendente, os guardas abririam os por­tões para deixá-los entrar.

Finalmente chegaram à frente dó castelo, que era fechado por uma grade levadiça com pontas de ferro assustadoras na parte inferior. Alyce ob­servou-as, enquanto subiam. Sentiu um frio no estômago, ao compreender o perigo que ela e seus servidores poderiam estar correndo.

Alyce e seus servos passaram para o lado de den­tro dos portões. Imediatamente aproximaram-se de­les dois guardas com o uniforme usado pelos cava­leiros do Castelo de Dunstan. Um terceiro apres­sou-os para que fossem para um pequeno telheiro, no lado de fora da fortaleza. Aquele pareceu a Alyce ser mais um lugar para guardar arreios, de que qualquer tipo de sala de administração.

— Certifique se de que eles saibam que dese­jamos falar com o intendente — Alyce murmurou para Fredrick, aflita.

— Sim, Milady.

— Shh — ela advertiu-o. — Lembre-se que meu nome é Guelph.

O rosto macilento de Fredrick refletiu a própria angústia de Alyce quanto ao plano. Porém, dedi­cado a sua senhora, ele voltou-se para o guarda e pediu-lhe mais uma vez para ter uma audiência com o responsável pelo dinheiro do barão ou mes­mo com o bailio do castelo. Depois, ele apoiou a arca de couro no chão.

Nervosos, eles esperaram, descansando em um pé, ora no outro. O recinto era sombrio, iluminado apenas por uma pequena tocha. O tempo passava, Alyce tornava-se mais angustiada. Se os guardas não houvessem levado os cavalos, ela seria ten­tada a pular no lombo de sua égua e sair voando.

— O bailio está demorando — Hugh finalmente comentou.

— Deve ser um homem muito ocupado — Alyce afirmou, tentando convencer a si mesma. — Este é um castelo muito mais importante de que Sherborne.

— Eles viram que não trazíamos armas — Fre­drick analisou. — Não vejo o porquê de despertar suspeitas.

Ninguém aparecia. Os pés de Alyce doíam den­tro das botas duras de Guelph. Ela relanceou um olhar pelo quarto, imaginando se poderia sentar-se em uma das barricas alinhadas contra á parede.

Ela adiantou-se ao mesmo tempo em que um fa­cho de luz aparecia atrás dela. Virou-se e viu dois soldados, cada um carregando um archote. Atrás deles vinha um homem de cabelos grisalhos, ves­tido com uma túnica longa cor de vinho.

— O que é essa história de ouro de Sherborne? — o homem indagou imperioso.

— É o imposto, Eminência — respondeu, com voz esganiçada. — Veio da parte de lady Alyce. São os tributos para o príncipe João. Assim ela não terá de casar-se com o barão. — A medida que falava, o tom de voz tornava-se mais forte. Ao terminar, ela estava tão categórica quanto o homem vestido com a túnica. — Pedimos também a Vossa Excelência que nos dê um papel com sua chancela, para que possamos mostrar que o di­nheiro foi entregue aqui.

O homem deu dois passos e parou na frente de Fredrick.

— Quem é o senhor?

— Sou Fredrick — ele respondeu, com uma me­sura pequena e trémula, mas logo se recompôs. — Fredrick, do Castelo de Sherborne.

O homem fitou os dois acompanhantes e, para alívio de Alyce, não lhes deu muita importância.

— Quem o mandou? — ele perguntou a Fredrick e sua voz ecoou nas paredes de pedra.

— Viemos por parte de lady Alyce. — O rapaz não vacilou. — Para entregar seu imposto.

O homem de túnica encarnada abaixou o olhar para o baú e fez sinal para um dos guerreiros de seu castelo que estava atrás dele.

— Abra-o!

O homem apressou-se em obedecer, mas não o fez com a rapidez necessária para agradar o se­nhor. Assim que a arca foi aberta, ele levou um solene pontapé do homem alto e grisalho e esta­telou-se no chão de terra.

Houve um momento de silêncio. Todos os olhos convergiram para a enorme quantidade de moedas de ouro.

— De onde veio este dinheiro? — o mandão perguntou a Fredrick.

O rapaz não tinha resposta para a pergunta. Alyce rezou para ele ter discernimento suficiente e não mencionar os cavaleiros Havilland.

— Eu não sei, senhor... Eminência.... Excelên­cia. — Fredrick não sabia como chamá-lo, já que o outro não se havia apresentado. — Ordenaram-me apenas para trazer o ouro e levar a prova da entrega para lady Alyce.

Alyce observava o homem alto. Ele usava uma pesada corrente de ouro no pescoço e, no dedo, um anel do tamanho de uma amêndoa. Entendeu que não se tratava de um administrador ou in­tendente. Aquele homem era rico e certamente nobre. Poder-se-ia dizer que era bonito, mas as linhas do rosto eram duras, como se fossem es­culpidas para mostrar uma carranca eterna.

Ele contorceu os músculos do rosto e sorriu com crueldade.

— Bem, Fredrick de Sherborne, talvez se seus amigos virem sua língua ser arrancada, a memó­ria deles provará ser melhor de que a sua.

Fredrick deu um passo vacilante para trás e empalideceu. O semblante do homem parecia bri­lhar, enquanto ele observava a vítima ajoelhar-se.

Alyce compreendeu, no mesmo instante e sem a menor sombra de dúvida, quem era o monstro que atormentava Fredrick, a poucos passos dela.

O barão Philip de Dunstan, em pessoa.

O medo começou a pesar-lhe nas entranhas como uma bola de chumbo. Entretanto não dei­xaria que algum mal acontecesse a seus homens por culpa de seu comportamento imprudente. Te­ria de revelar sua identidade, e aquele pensamen­to a aterrorizou. Depois de ter-lhe visto a expres­são, teve certeza de que seria terrível tornar-se o alvo da ira do barão de Dunstan. Ainda mais que ela era uma dama da nobreza leal ao rei Ri­cardo. Nem podia pensar no que Dunstan seria capaz de fazer, para vê-la sofrer.

Alyce abriu a boca para falar, mas antes que dissesse alguma coisa, o barão deu uma exclama­ção de desagrado.

— Já é muito tarde para perder tempo com estes tolos — ele grunhiu e virou-se para os guar­das. — Atire-os na masmorra.

O barão virou-se, a veste escarlate girou em ondas e ele saiu.

 

Thomas, em pé e com as mãos na cin­tura, encarava o jovem tremulo que permanecia a sua frente. O pobre garoto estava vestido somente com calções e embrulhava-se em um cobertor.

— Como é seu nome, rapaz?

— Guelph, sir.

— Vamos começar tudo de novo, Guelph. Fale devagar. Lady Alyce foi para o Castelo de Duns­tan? Viu-a entrar?

O infeliz fez um aceno afirmativo e enrolou mais a manta sobre si mesmo, para resguardar-se me­lhor do frio. Ele estava parado do lado de fora da porta da diminuta casa paroquial, onde viera ba­ter timidamente havia alguns momentos.

— Por todos os santos — Thomas falou, por entre os dentes cerrados. — Juro que vou torcer aquele lindo pescoço, se Dunstan ainda não hou­ver feito o serviço para mim!

— Eles não haviam planejado um encontro com o barão ou qualquer coisa parecida, sir. Preten­diam apenas deixar lá o dinheiro. Milady afirmou que seria mais seguro para nós três executarmos a tarefa. Assim os senhores não se arriscariam a ser reconhecidos pelo barão que, segundo Milady, é um homem malvado.

— Há quanto tempo eles já estão lá? — Thomas perguntou, lutando para conter os maus pressen­timentos que se avolumavam.

— Avalio que eles devem ter entrado logo ao pôr-do-sol, sir. Calculamos que estaríamos no caminho de volta a Sherborne bem depressa. Mas como eles estavam demorando para sair, achei melhor vir falar com o senhor. Fiquei com medo de que pudesse ha­ver acontecido alguma coisa, sir.

— Foi a primeira coisa sensata que fez, rapaz — Thomas alfinetou, com raiva. — Como é que os senhores a deixaram ir até lá? E pior de tudo, deixaram-na entrar! Será que não poderiam ima­ginar o perigo que ela correria? Dentro do Castelo de Dunstan, com aquele...

Guelph abaixou a cabeça. Sabia que errara, mas era impossível negar qualquer pedido de lady Alyce.

— Sinto muito de verdade, Excelência, mas é que em Sherborne, quando lady Alyce diz alguma coisa... bem, sempre fazemos o que ela manda. Não há um homem entre nós que não dê a vida por ela. Ela é muito boa e faz muita coisa por nós e...

Impaciente, Thomas bufou e interrompeu o falatório.

— Já sei disso. Agora teremos de rezar muito, para que vidas não sejam ceifadas esta noite, Guelph.

— O barão de Dunstan não fará nenhum mal a lady Alyce, se souber quem ela é, não é mesmo? Ninguém ousaria feri-la.

— Philip de Dunstan levaria a própria mãe à fogueira, se estivesse de mau humor.

O jovem guarda, que não deveria ter mais de quinze anos, estava prestes a chorar.

— Vá ver se acha algumas roupas para vestir, Guelph, enquanto decidimos o que fazer — Thomas avisou.

— Se Vossa Excelência estiver planejando ir até o castelo, quero ir junto — Guelph pediu. — Eu sei manejar muito bem o arco, sir.

Thomas anuiu distraído. Os planos giravam em sua mente.

— Meu rapaz, não poderá ir seminu a lugar algum. Ande logo. Vá vestir-se.

Guelph anuiu decidido, e saiu rapidamente em direção à igreja.

Os guardas de Dunstan haviam levado Alyce e os dois guardas para um buraco escuro e húmido que cheirava a urina e terror humanos. Durante o caminho pelo pátio e na descida pela pequena escada, Alyce perguntava a si mesma se deveria revelar quem era, ou não. Certamente Philip de Dunstan não ousaria atirar uma fidalga em um lugar infecto e apavorante como aquele.

Alyce lembrou-se, então, da expressão do rosto dele, quanto chutara o soldado que o servia. E também do brilho malévolo de seu olhar, quando falara em arrancar a língua de Fredrick. Quem é que poderia saber do que aquele monstro seria capaz? Talvez fosse até pior ele descobrir que ela viera, pessoalmente e disfarçada, com o ouro que poderia libertá-la de casar-se com ele.

— Não diga nada, Milady — Fredrick aconse­lhara. — O homem é a encarnação do demónio. Pude ver isso em seu olhar.

— Acho que tem razão — ela concordara. — Mas temos de fazer algo, tomar uma atitude. Ele poderá decidir matar-nos amanhã ou mesmo dei­xar-nos apodrecer neste calabouço.

Alyce chegou à conclusão de que a escuridão do lugar era uma bênção. Seria mais fácil per­manecer ali sem enxergar o que mais dividia a cela com eles. Na verdade, temia encontrar ossos de outras pessoas infelizes que haviam sido ati­radas ali e que nunca mais foram vistas. Ainda bem que a falta de luz era total. A única prova de que o cubículo pestilento não estava vazio era o arranhar de pequenas criaturas que se espa­lhavam pelas paredes de pedra.

— Em um lugar como este não deve ser demo­rado apodrecer — Hugh observou calmamente. — Os ratos, as baratas e mais sei lá o quê se en­carregam disso.

— Ah, meus amigos, perdoem-me! — Alyce ex­clamou acabrunhada. — A culpa é toda minha por estarem aqui. Pensei que estivesse ajudando sir Thomas, mas foi uma grande tolice o que fiz. Agora ele nem mesmo saberá o que nos aconteceu e não poderá fazer nada por nós.

— Ah, vai saber; sim, milady. Não se preocupe — Hugh tentou acalmá-la. — Acho que Guelph já tratou de avisá-lo.

Alyce cerrou os olhos, embora a escuridão fosse a mesma com eles abertos ou fechados. Thomas ficaria furioso com ela e com razão. Ela arriscara a própria vida e a de seus homens para satisfazer a própria curiosidade. A imprudência de sempre ainda a perseguia.

— Juro por Santa Ana que, se sairmos vivos daqui, irei para Sherborne rapidamente e passarei o dia inteiro com Lettie, bordando tapeçarias — ela afirmou arrependida.

Alyce não podia ver o rosto de Fredrick, mas sentiu o sorriso descrente dele na resposta.

— Isso seria mesmo uma atração digna de ser vista, Milady.

Nenhum dos três havia se sentado. O chão era imundo e cedia à compressão dos pés. Alyce sus­pirou, sem deixar de culpar-se. Eles não aguen­tariam ficar em pé a noite inteira.

— Será que estamos no meio da cela? — ela perguntou.

Ela ouviu os passos de... Seria Hugh ou Fredrick? e em seguida um passar de mão nas pedras.

— Há uma parede aqui, milady — Hugh expli­cou. — E aqui. E... suponho que estamos no meio..

— Hugh bateu o pé em algum entulho. — Será melhor que a senhora não se mova. Fique aí mes­mo, Milady — ele acrescentou.

Alyce sentou-se devagar, tateando para ter cer­teza de que não encontraria algum ser repelente ou quem sabe, ossos. Ela benzeu-se arrepiada.

— Se os dois se sentarem a meu lado, e nós nos encostarmos um no outro, talvez possamos dormir um pouco.

— Hugh e eu... encostados em Vossa Senhoria?

— Fredrick parecia chocado. — Meu Deus, isso não seria decente.

— Confesso nunca ter aprendido quais seriam as regras de etiqueta apropriadas para usar em prisões subterrâneas, Fredrick. Então deixemos que prevaleçam as normas práticas. Andem logo. Ficaremos sentados e apoiados pelas costas.

Os dois sentaram-se rapidamente atrás de Alyce. Ela ergueu um braço para trás e sentiu dois ombros fortes.

— Vai dar certo — ela afirmou. — Apoiem-se e tentem não pensar demais. Vamos apostar para ver quem dorme primeiro.

Alyce pensava apenas descontrair o ambiente. Não tinha ilusões, não conseguiria descansar na­quelas condições. Porém dormira mal na noite an­terior e os acontecimentos dos dois últimos dias haviam-na deixado exausta. Prestou atenção no ressonar de Hugh e Fredrick, amparados nela. Fechou os olhos e adormeceu.

Tudo se arrastava e demorava demais!, Thomas pensou, engolindo o gosto amargo do medo.

Já era perto da meia-noite, quando o clérigo chegou do castelo, com o homem de confiança de­les. Thomas andava de um lado para o outro, im­paciente, dentro da minúscula sala da casa paro­quial. Mal podia conter sua inquietação. Aterro­rizado, só pensava no pior. Kenton, mais de uma vez, tivera de impedi-lo de marchar sobre o Castelo de Dunstan e de entrar lá sozinho.

— Se Dunstan descobrir o disfarce de Alyce, Deus sabe o que ele poderá fazer — Thomas, atormentado por essa ideia, dissera a seu lugar-tenente.

— Sua Alyce é uma mulher inteligente, Thomas.

Esperemos que ela entenda que não deve revelar sua verdadeira identidade.

— Ela não é minha Alyce — Thomas grunhira. Ele continuara a andar nervosamente e a bater na coxa, como se fosse desembainhar a espada e trespassar Philip de Dunstan.

O aliado do rei Ricardo que trabalhava no Cas­telo de Dunstan era um cavaleiro alto e magro, chamado Fantierre. Nascera em Paris e tornara-se um dos primeiros seguidores do jovem rei idea­lista. Fantierre aceitara uma missão perigosa, quando Ricardo decidira embarcar em sua Cru­zada e deixara o país à mercê do irmão. O francês permaneceria na Inglaterra como um dos auxi­liares secretos de Ricardo, cuidando dos interesses do rei verdadeiro.

— A sua dama é muito tola — Fantierre opinou, assim que chegou à residência do padre. — Duns­tan poderia muito bem ter matado os três sem maiores explicações.

— Ela não é minha dama — Thomas corrigiu. — Mas o senhor tem razão. Eles poderão consi­derar-se felizes, se as injúrias ficarem restritas a algumas horas no calabouço. Pensando melhor — ele acrescentou, muito sério —, isso só poderá fa­zer-lhes algum bem.

Fantierre ignorou as palavras de Thomas e pis­cou, à maneira gaulesa, os olhos negros.

— Ah, o amor pode mesmo ser um tormento, não é?

Thomas não dispunha de tempo para discus­sões. Se Fantierre estivesse certo, então ainda não haviam feito nenhum mal a Alyce. Mas assim que raiasse o dia, aumentariam as chances de o dis­farce ser descoberto. Então, nem seria bom ima­ginar do que Dunstan seria capaz.

Ainda não havia amanhecido, quando Fantierre conduziu-os até um local onde poderia escalar a muralha do castelo.

— Não haverá problemas em Dunstan — Fan­tierre advertiu-os. — A guarnição é pequena e geralmente dorme durante a noite, exceto por dois guardas que permanecem no portão.

Os soldados de Thomas eram bastante treina­dos. Sem o menor ruído, escalaram muralha acima e depois abaixo, e a seguir esgueiraram-se pelas terras do castelo.

— Foi simples demais — Kenton afirmou exultante.

No plano que haviam elaborado, Kenton e Harry, o Robusto, ficaram encarregados de achar a arca com o dinheiro. De acordo com Fantierre, o ouro ainda não fora levado para dentro do castelo. Kenton fez um aceno para Thomas, indicando que iria tratar de sua missão. Thomas assentiu e, com mais um homem, seguiu Fantierre pelo pátio e depois des­ceram a escada que conduzia à masmorra.

Mais uma vez, não havia sentinelas em lugar algum.

— Kenton estava certo — Thomas sussurrou.

— E quase uma tarefa infantil.

— A porta estará trancada — Fantierre avisou.

— Talvez não possamos abri-la sem fazer ruído, o que certamente chamará a atenção.

— Não temos escolha. — Thomas estremeceu.

— Vamos tirá-los dali de qualquer jeito.

Mas eles continuaram com sorte. A porta es­tava fechada apenas com uma barra grossa de madeira. Embora por dentro fosse impossível abri-la, por fora o processo pareceu inteiramente descomplicado.

Fantierre deslizou a tranca para fora das bra­çadeiras e voltou-se para Thomas.

— Quer ter a honra, Brand? A bela dama o aguarda.

Thomas sorriu para o francês, adiantou-se e em­purrou a porta pesada. Atrás dele, um dos guer­reiros carregava uma pequena tocha que mal ilu­minou o local pequeno e horrível onde acabavam de chegar.

O mau cheiro foi a primeira coisa que chocou Tho­mas. A sujeira repugnante enjoou-lhe o estômago.

Oh, Deus! E pensar que Alyce ficara em um lugar desses!

Depois ele a viu. Encolhida no chão, com os dois rapazes de Sherborne, parecia muito pequena e ins­pirava comiseração. O coração de Thomas compun­giu-se. Esqueceu as palavras duras que vinha en­saiando para lhe dizer, correu até ela, ergueu-a nos braços e segurou-a de encontro ao peito.

Alyce abraçou-o, e Thomas sentiu o busto me­xer-se quando ela engoliu um soluço e suspirou.

— Thomas.

— A senhora está bem? Não está ferida?

— Não estou machucada. Ah, mas eu sinto mui­to, muito mesmo, Thomas. Nunca pensei...

— Shh... — Ele aconchegou-a mais um pouco, antes de deixá-la no chão. — Não diga nada. Fala­remos mais tarde. Primeiro precisamos sair daqui.

Ambos voltaram-se para a porta, onde Fantierre os observara com um sorriso malicioso.

— Enfim, os amantes estão unidos — o francês comentou.

Thomas balançou a cabeça muito irritado.

— Alyce, este romântico incorrigível é Fantier­re. Foi ele quem nos trouxe até aqui.

Alyce agradeceu com seu melhor sorriso, e ele respondeu com uma meia-reverência elegante. Po­rém não havia mais tempo para floreios sociais. Rápida e silenciosamente, eles subiram os degraus estreitos, até o pátio interno.

Kenton e Harry aguardavam no topo da escada, muito sorridentes. Harry segurava a arca do tesouro.

— Bom trabalho! — Thomas falou em voz baixa, enquanto o grupo caminhava de volta, pelo pátio do castelo.

— Mais simples de que descascar uma ameixa. — O lugar-tenente escalou o muro e voltou-se para ajudar Alyce. Thomas ergueu-a pelos pés e Kenton puxou-a para cima. — O velho Dunstan vai cuspir fogo quando descobrir que seus prisioneiros fugi­ram e o dinheiro também. Seria bom que tivesse um ataque, assim nos pouparia trabalho!

— Silêncio! — Thomas ordenou de baixo, mas o aviso veio tarde demais.

Um soldado apareceu no muro, atrás deles. Ken­ton virou-se para encarar o homem.

Thomas pulou e chegou perto de Kenton, em questão de segundos. Antes de o sentinela ter tem­po de gritar, Thomas bateu-lhe no rosto com o pesado ferro do punho de sua faca de caça.

Alyce observou, horrorizada, o homem estatelar-se no chão, com o sangue jorrando da órbita ocular. Por um momento, ela ficou paralisada.

— Vamos embora depressa — Thomas avisou.

— Outros podem ter ouvido.

Alyce fitava o homem caído e notou que a face direita dele ficara afundada. Ela achou que iria vomitar. Então Thomas segurou-a pelos ombros. Meio puxada e meio carregada, ela passou por cima da muralha.

— Rápido! — ele ordenou, assim que alcança­ram o solo.

Thomas segurava-lhe por um braço, e Kenton, pelo outro. Assim eles correram pelo fosso seco e por entre as árvores. Os cavaleiros de Thomas haviam resgatado os cavalos de Sherborne e os animais estavam à espera. Sem falar nada, eles montaram e voltaram em direção à igreja.

O acontecimento final com o soldado empanara um pouco o entusiasmo deles. Mas Kenton ainda se mostrava triunfante, quando eles desmontaram e fizeram um levantamento do local para ver se todos haviam voltado.

— Missão cumprida, homens. E bem-feita — Kenton assegurou.

— Só espero que Dunstan não procure vingança em Sherborne. Nosso trabalho desta noite o dei­xará possesso, e ele certamente não a esquecerá tão cedo, Milady. — Fantierre mostrou-se bem me­nos entusiasmado.

Thomas anuiu com seriedade.

— Ele poderá exigir que eu me case com ele

— Alyce lembrou, com desânimo. — Afinal de con­tas, ele acabou ficando sem o dinheiro.

Thomas negou, sacudindo a cabeça com energia.

— De qualquer maneira, isso retardará o pro­blema. A senhora ficará firme em Sherborne mandará dizer ao príncipe João que há três tes­temunhas que podem jurar que o dinheiro foi en­tregue nas mãos de Dunstan. Se eles perderam o tesouro, a culpa é deles e não sua.

— Teria sido melhor se eu pudesse ter saído durante a tarde para executar os planos, conforme estava combinado. — Fantierre estava desgostoso.

— Agora não há tempo para lamentações — Thomas contrapôs. — O que está feito, está feito. Apenas precisamos conseguir tempo para lady Alyce. O rei Ricardo logo estará de volta e ne­nhum dos esquemas do príncipe João fará qual­quer diferença.

O brilho do sol começava a aparecer no hori­zonte a leste. Fantierre voltou-se para o nascente pensativo.

— Conseguiremos esse tempo para a dama, meu amigo. E, como o senhor mesmo diz, quando Ri­cardo voltar, teremos uma Inglaterra muito me­lhor para todos. Agora preciso retornar.

— Mas o senhor não pode voltar ao castelo! — Alyce exclamou. — O que acontecerá quando eles souberem que o senhor conduziu Thomas esta noite?

Fantierre riu e pegou-lhe na mão. Embora ela es­tivesse imunda e vestida com roupas de homem, ele levantou-lhe os dedos e levou-os aos lábios, como se ambos estivessem no salão mais elegante de Paris.

— Não se preocupe comigo, ma chère. Tenho conseguido manter as suspeitas de Dunstan bem longe de mim. Qualquer dia desses Ricardo voltara, e então poderei tirar a máscara que sou for­çado a usar e deixarei de fingir que sou leal a essas pessoas desprezíveis que são Dunstan e seu amo, João.

Fantierre virou-se e estendeu a mão para Thomas, que a apertou entre as suas. Fez mais uma de suas mesuras incomparáveis e saiu apressa­damente, sob a luz da aurora.

— Receio por ele, Thomas — Alyce afirmou, após a partida de Fantierre.

— É. Todo o santo dia ele enfrenta o inferno por sua vida. Mas, como ele mesmo disse, não será por muito tempo.

— Estamos prontos para partir, Thomas. — Kenton aproximou-se deles. — O tesouro já foi acondicionado. Está tudo certo.

— Kenton, alterei um pouco os planos. Eu não irei agora. Eu os encontrarei em Dover.

— Thomas, não temos tempo... — Kenton, sur­preso, voltou seu olhar para Alyce.

— Não vou demorar-me — Thomas interrompeu o amigo. — Voltarei com lady Alyce para Sherborne, mas eu lhe prometo que estarei em Dover, antes mesmo de sua chegada. Eu é que terei de aguardá-los.

— Posso ir com Fredrick e... Meus homens me levarão em segurança... — Alyce tentou protestar.

Nenhum deles prestou-lhe atenção.

— Sabe onde é o local do encontro? — Thomas perguntou.

— Sei. — Kenton demonstrou sua desaprovação, mesmo sem argumentar mais. — Quanto tempo teremos de esperar pelo senhor?

Thomas tomou Alyce pelo braço, virou-a com certa brusquidão e puxou-a rumo aos cavalos. A resposta veio por sobre o ombro.

— Não terão de esperar por mim,

— Sei que o senhor está com raiva de mim — Alyce disse, depois de cavalgarem metade da ma­nhã em silêncio.

Eles trotavam um pouco à frente dos três va­lentes guardas de Sherborne.

— Sua fuga foi uma grande tolice — Thomas afir­mou, fitando-a. — Mas eu fui mais culpado por haver permitido que viesse junto comigo nesta empreitada.

- Eu é que insisti em vir.

— Sei disso. Mas eu deveria ter-lhe negado a permissão.

Calados, eles marcharam mais um pouco, sa­cudindo-se em cima dos cavalos.

—Perdoe-me, Thomas — Alyce pediu com sinceridade.

— Nós tivemos sorte de não haver danos maio­res no episódio.

— Houve sim. O rosto do pobre soldado. — Ela estremeceu. — Eu gostaria que seu amigo Fantierre não tivesse de voltar lá.

— Ele sabe o que está fazendo.

Alyce suspirou. Era evidente que nada de que pudesse dizer amenizaria a raiva de Thomas, em­bora ela admitisse que era até bem merecida. Fez mais uma tentativa.

— Pelo menos o senhor poderá levar todo o di­nheiro em segurança para resgatar o rei — Alyce sugeriu a proposta, com voz doce.

— Sim. — Dessa vez, ele nem mesmo a olhou.

— Pretendo enviar algumas palavras ao prín­cipe João, para avisar-lhe que paguei meus im­postos, que meus mensageiros foram muito mal­tratados e que espero não ser aborrecida por ele novamente.

A afirmação conseguiu tirar um pequeno sorriso de Thomas.

— Não tenho a menor dúvida de que o príncipe João não irá gostar nada da missiva.

— Eu não me importo. Como o senhor mesmo disse, ele não é o rei. E, mais a mais, ele jamais deveria ter-me arranjado um casamento. Ah, como se eu houvesse pedido!

— Com certeza, a senhora poderá contar com a ira de um homem poderoso. Talvez não seja prudente provocar a cólera do príncipe João. Ele pode enraivecer-se ao ponto de entregar a Dunstan o que o cão maldito deseja. Com tributos ou sem eles.

Alyce suspirou.

— Então minha situação não mudou muito. Ain­da me encontro à disposição de homens inescrupulosos que farão o que quiserem comigo.

Thomas deteve o garanhão no ponto da estrada que ficava próximo a um pequeno rio. Fredrick, Hugh e Guelph aproximaram-se.

— Vamos parar um pouco para descansar e be­ber água — Thomas avisou.

Os três rapazes desmontaram e levaram seus animais para pastar no talude gramado. Thomas pulou do cavalo, chegou perto de Alyce e esten­deu-lhe os braços.

— Estou começando a achar que seu casamento com Dunstan seria obra da justiça divina. Mas, infelizmente, não tenho estômago nem para pen­sar nisso. Suponho que terei de tomar providên­cias e dar como certo que isso não acontecerá,

Alyce ressentiu-se indignada. Thomas viera em seu socorro, era verdade, mas a atitude dele a fazia chegar à conclusão de que não passava de mais um homem a querer controlar sua maneira de viver.

— E o que o senhor pretende fazer, sir Thomas de Havilland? Pensei que iria diretamente para o encontro com seus homens em Dover.

— E vou.

— E dali, irá entregar o resgate do rei Ricardo no continente.

— Correto.

— O que faz do senhor a pessoa menos apro­priada para livrar-me de qualquer plano que Dunstan e o príncipe João possam articular.

Thomas ainda segurava os braços erguidos para ajudá-la a desmontar, mas ela não se moveu.

— Desça — ele ordenou. — Se a senhora não precisa descansar, saiba que a égua está muito cansada. Ela aceitou o auxílio dele, relutante.

— O senhor não tem resposta, não é mesmo? Como um cavaleiro pode proteger sua dama, se ele nem se encontra no mesmo país?

Alyce percebeu que as palavras o perturbaram, mas a resposta dele foi calma e deliberada.

— Ele está pensando em trancá-la em alguma torre — ele declarou sério. — Mas a primeira coisa que ele deve fazer é certificar-se de que a dama compreendeu que, na verdade, pertence-lhe.

Alyce abriu a boca para perguntar-lhe o que ele pretendia dizer, mas ele já andava a passos largos, rumo ao regato.

Philip de Dunstan andava de um lado para o outro, na armaria do castelo. O capitão da guarda permanecia em posição de sentido.

— Será que fui amaldiçoado com a presença ma­ciça de idiotas em meu castelo? — Dunstan explodiu.

O capitão permaneceu em silêncio, sem saber o que responder.

— Responda! Fui? — Dunstan rugiu.

— Oh, não, milorde. E que...

— Primeiro três retardados enganam aqueles que não conseguem nem dar cumprimento satisfatório a uma simples atribuição. Tomar conta de um cas­telo situado neste fim de mundo. — Dunstan bateu a mão em uma pilha de armas e derrubou-as, com estrondo. — Os idiotas foram logrados como um ban­do de crianças. — Ele fitou o capitão com olhar mortífero. — Será que o senhor não tem um só soldado que valha o pão que come?

O capitão engoliu em seco, profundamente aflito.

— Não é bem assim, milorde. O senhor tem muitos soldados competentes em suas fileiras. Se o senhor permitir que eu leve um contingente a Sherborne, acredito...

Dunstan negou, irritado, com um gesto de cabeça.

— Não, terei de resolver isso sozinho! — Duns­tan esmurrou a mesa. — Acho que deveria tê-lo feito há muito tempo.

— O senhor pretende ir a Sherborne, milorde?

— Sim. Já é tempo de eu fazer uma visita a minha charmosa futura noiva.

— Muito bem, milorde. — O capitão aceitou a decisão sem discutir. — Sobre a noite passada... claro, terei de castigar os guardas...

Subitamente, Dunstan ergueu uma das mãos e estacou.

— Temos um traidor entre nós — o barão afir­mou, estreitando os olhos. — Alguém deixou aque­les homens entrarem ontem à noite no castelo.

— Sim, milorde. Receio de que o senhor esteja com a razão.

— Um miserável e asqueroso traidor — Duns­tan enfatizou e passou a mão pela lâmina afiada de uma espada pendurada na parede, em um dos cabides de armas.

— O senhor acha que é alguém trabalhando a favor de Ricardo? — o capitão indagou.

Dunstan mirou-o com raiva.

— Claro que é um homem de Ricardo, imbecil! Quero que o encontrem!

O capitão fez uma mesura.

— Sim, milorde.

— Mas não o matem.

— Milorde...

— Ache-o e traga-o para mim. Quero ter o pra­zer de atravessar o bastardo com minha espada.

Lettie fazia o maior espalhafato em volta de Alyce, como se a jovem houvesse voltado do inferno.

O que não deixava de estar longe da verdade, Alyce refletiu.

Ela estremeceu ao lembrar-se da noite que pas­sara dentro das entranhas do Castelo de Dunstan. Ela fizera Fredrick, Hugh e Guelph jurar que guardariam segredo dos detalhes da aventura. Po­rém, para a velha ama estava claro que ela havia sofrido algum tipo de constrangimento.

O restante da viagem não fora acompanhada de diálogos. Desse modo, Alyce pôde refletir sobre o sig­nificado do comentário de Thomas à beira do regato.

"A primeira coisa que ele deve fazer é certificar se de que a dama compreendeu que, na ver­dade, pertence-lhe".

Eram palavras de amante ou de marido. Porém a frase fora dita de maneira severa, quase raivosa. Nem de longe poderia ser interpretada como uma expressão amorosa.

Alyce teve de admitir que a declaração havia lhe provocado um formigamento nos membros, muito semelhante ao que sentira quando ele a beijara pela primeira vez. Mas uma coisa era cer­ta. Ela não queria pertencer nem a ele e nem a nenhum outro homem. Já não haviam arriscado a vida na entrega do malfadado imposto só para provar isso?

Eles não haviam feito mais nenhuma parada, no caminho de volta. Thomas fizera com que ca­valgassem a noite inteira. Quando chegaram a Sherborne, depois de quase dois dias sem dormir, estavam exaustos e doloridos. Alyce agira apenas com civilidade ao oferecer-lhe uma cama para des­cansar, antes de ele iniciar a viagem para Dover.

— Eu lhe agradeço muito — ele foi breve. — Preciso dormir, mas eu a verei antes de partir.

Ela não respondeu e deixou que Lettie a con­duzisse pela escada, até seu aposento. A velha ama ofereceu-se para preparar-lhe um banho, an­tes de dormir. Lettie esconjurou a sujeira que achava ser proveniente apenas da árdua viagem. Embora zonza pela fadiga, Alyce gostou de esfre­gar a pele até doer. Na verdade, ela estava re­movendo qualquer resíduo do cárcere de Dunstan que, porventura, ainda estivesse grudado.

Finalmente o banho terminou. Vestiu uma rou­pa leve de dormir, recusou o café da manhã que Lettie trouxera e jogou-se em seu catre. Dormiu imediatamente, a despeito da luz brilhante da ma­nhã que se infiltrava pelo quarto.

Quando ela acordou, no fim da tarde, o sol já estava alto, com a cor amarelo avermelhada. Um barulho a fizera abrir os olhos. Thomas estava em pé, parado à porta do quarto. Alyce sentou-se na cama, não exatamente alar­mada, mas inquieta. Teve a impressão de que es­tava para receber a repreensão que esperava, des­de seu salvamento em Dunstan. Thomas entrou e fechou a tranca de uma só vez, sem entretanto demonstrar raiva. Poder-se-ia dizer que parecia... determinado.

— Desculpe-me por ter de acordá-la — ele disse e aproximou-se da cama. — Tenho de iniciar sem demora a viagem a Dover. Antes de partir, nós temos alguns negócios para discutir.

— Negócios? — Ela fitou-o surpresa.

— Sim. — Ele segurou-lhe os pés e empurrou-os, para sentar-se na cama.— Como a senhora mesma salientou em nossa conversa na estrada, ainda pode correr o perigo de ser ameaçada por Dunstan, pelo príncipe João ou por ambos. Lembra-se do que falou?

Ela não se esquecera de nem uma só palavra.

— Ainda pretendo mandar uma mensagem para o príncipe, mas tentarei ser diplomática nas pa­lavras. É por isso que o senhor está preocupado?

Thomas a fitava com intenções inequívocas. De repente, ela deu-se conta de que o tecido fino da veste de dormir não escondia muita coisa. Alcan­çou a manta para cobrir-se, mas ele a deteve.

— Pode deixar — ele argumentou, em voz baixa. — Gosto de olhá-la.

— Não é correto o senhor estar aqui... — ela começou.

— Nem tenho a intenção de que seja — ele avisou. — De maneira alguma.

 

Alyce sentiu o eco da pulsação forte na garganta. Não teve de perguntar o que ele pretendia dizer com aquelas palavras. A inten­sidade do olhar dele não deixava dúvida. Os pen­samentos de Thomas estavam bem longe das intri­gas da corte ou dos impostos matrimoniais.

— Thomas, foi o senhor mesmo quem disse que isso não poderia acontecer entre nós — ela argu­mentou, encarando-o.

— Mudei de ideia.

Ele segurou-lhe, com força, as mãos que pren­diam o cobertor, mas ela afastou-se.

— Talvez eu também tenha mudado de ideia — ela falou, embora os tremores internos que sen­tia gritassem ser aquilo uma mentira.

— Não acredito nisso. A senhora quer tanto quanto eu. Ambos desejávamos que isso aconte­cesse, desde o primeiro momento em que nos en­contramos. Não pode negar isso, não é mesmo?

Uma parte de Alyce esperava que ele terminas­se de falar o mais depressa possível e a beijasse, como havia feito antes. A outra parte queria pular da cama e sair voando do quarto, para que ele nunca mais a encontrasse. Thomas esperava a res­posta dela, ansioso, imóvel e quase sem respirar.

— Não, não vou.

Foi o suficiente. Thomas ergueu-a e sentou-a em seu colo.

— Vim pensando nisso durante o trajeto inteiro de Dunstan até Sherborne — ele afirmou.

Alyce não teve tempo de dizer-lhe que, com ela, havia acontecido o mesmo. Thomas colou os lábios nos dela e deitou-a novamente. A túnica de lã mostrou-se rústica e fria, de encontro ao tecido fino da bata de Alyce. Entretida no contato sedoso de suas bocas, ela mal notou o inconveniente. Pelo contrário, a sensação foi de uma carícia leve e excitante.

Thomas tomou-lhe os seios intumescidos e apal­pou-os delicadamente por cima da fina roupa de dormir.

— Tenho pensado tanto em fazer isso! — ele murmurou. — Em meus devaneios, eu me via sen­tindo o calor de seu corpo. E nas melhores fan­tasias... — ele acrescentou, com um sorriso — seu corpo estava nu.

Enquanto falava, Thomas tratou de puxar para cima a veste que a cobria. Depois de um momento de hesitação, ela moveu-se para ajudá-lo a tirar a roupa pela cabeça. Em questão de segundos, Alyce estava despida.

Thomas atirou a peça para um lado e fitou-a novamente.

— Nem mesmo Rose faz justiça a sua beleza, querida — ele assegurou, com voz subitamente rouca.

O estranho é que ela não se sentia envergonhada de estar ali, deitada, nua e descoberta, sob o olhar dele. Nem um pensamento de pudicícia sequer pas­sou-lhe pela mente, nem mesmo quando ele a aca­riciou do joelho até o busto com muita suavidade, quase com reverência. O que fora mesmo que ele dissera naquele dia, na estrada? "A primeira coisa que ele deve fazer é certificar-se de que a dama compreendeu que, na verdade, pertence-lhe".

Thomas queria ter certeza de que ela estaria convicta de uma nova situação. Naquele momento, ela entendeu o significado das palavras dele e de sua própria vida. Era tudo bastante lógico. Per­tencia a Thomas Havilland, de corpo e alma.

Alyce cerrou as pálpebras e concedeu a si mes­ma a oportunidade de sentir as mãos dele em sua pele. Prazeres pecaminosos, porém divinos, que ela nunca havia sentido. Sem mais demora, ele também despiu-se. Daí para a frente não eram apenas as mãos que a acariciavam, mas o físico dele por inteiro que a afagava. Os pêlos das coxas musculosas de Thomas que lhe arranhavam a ma­ciez. Os músculos rígidos do peito que lhe aper­tavam os seios maleáveis.

— Não quero magoá-la, meu amor — ele de­clarou. — Levaremos quanto tempo for necessário.

Alyce, porém, sentia impulsos que não se sa­tisfariam com uma simples exploração por parte dele. Com um pequeno gemido, ela abraçou-o com força e colou-se a seu corpo. Thomas sentiu a ne­cessidade que envolvia Alyce. Acariciou-a intimamente com mãos experientes e penetrou-a, sus­surrando-lhe palavras estimulantes ao ouvido.

Ela teve a sensação de uma pequena ferroada, que logo se desvaneceu, substituída por desejos muito mais prementes.

— Shh, querida, relaxe — ele sussurrou, mo­vendo-se com um vagar requintado.

Ela contorceu-se em movimentos ritmados que a deixavam ainda mais ansiosa. Os espasmos in­voluntários avolumavam-se e tomavam conta do corpo inexperiente e angustiado. Quando Alyce pensou não poder aguentar mais o desejo impe­tuoso, ele irrompeu dentro dela. Dúzias de estrelas irradiaram sua luz, a partir do lugar íntimo e especial da união de ambos.

O retesamento do corpo de Thomas, aliado a um exalar profundo da respiração, deram-lhe a certeza de que ele também encontrara a rea­lização. Depois ele deixou a cabeça cair sobre o peito de Alyce. Ela permaneceu quieta, aman­do a sensação do peso do corpo de Thomas em cima do seu.

Passaram-se vários minutos até ele erguer a cabeça. Ela concedeu-lhe um sorriso cansado, mas satisfeito.

— Minha Rose está feliz — ele deduziu, bei­jando-lhe a ponta do nariz.

Ela anuiu sonolenta.

— Achei que seria muito mais complicado — ela admitiu com sinceridade.

— Desculpe-me se a desapontei — ele comentou, sentindo-se um tanto insultado.

— Não me entenda mal. Não foi desapontador, de jeito nenhum. Foi natural, correto e simples­mente... maravilhoso.

Thomas moveu-se para um lado e deitou-a em seus braços, com a cabeça em seu ombro.

— Foi mesmo.

— Eu não tinha ideia do que fosse fazer amor. Mas alguma coisa me alertava de que teria de ser tão incrível como foi conosco. — Ela suspirou. — Aquele dia na estrada, eu fiquei furiosa e ma­goada. Pareceu-me que, ao meio do caminho, eu não lhe despertava mais interesse.

Thomas deu uma risada.

— Eu lhe juro que deve ter sido a primeira vez na história que um homem foi recriminado por não tirar proveito de uma mulher indefesa.

— Não sou uma mulher indefesa — Alyce eri­çou-se, e ele sorriu. — Admito que me meti em apuros uma ou duas vezes depois que nos conhe­cemos. Mas tem de acreditar em mini, quando lhe digo que não sou uma jovem desamparada. Afinal, eu escorracei os homens de Dunstan por quase um ano. Isso deve ter algum crédito a meu favor, não é verdade?

— Minha querida, retiro o que eu disse. Alyce Rose é, de longe, a mulher menos frágil que já co­nheci. Mas isso não me dava o direito de seduzi-la.

— Se formos até o âmago da questão, pode-se dizer que nós dois fomos seduzidos, um pelo outro — Alyce retrucou, com firmeza, recusando-se a admitir a caracterização simplista do amor deles.

Thomas acabou por impacientar-se.

— Não é assim que as coisas funcionam — ele falou secamente.

— E por que mudou de opinião? Por que decidiu que iria fazer amor comigo esta noite?

Ele ergueu-se sobre um cotovelo e fitou-a.

— Eu lhe disse lá na estrada.

— Queria que eu soubesse que lhe pertencia.

— Isso mesmo. Estou convencido disso. Quando eu soube que estava prisioneira no Castelo de Dunstan, compreendi que não suportaria se Philip de Dunstan se apoderasse do que estava destinado para mim.

Alyce começava a sentir as fisgadas da irritação, ao mesmo tempo em que seu rosto ficava menos afogueado.

— Thomas, sou a dona do Castelo de Sherborne, uma dama da nobreza dentro de seus plenos di­reitos. Paguei meus impostos ao rei, de modo que, se eu quiser, posso ser independente. Não devo obrigações a mais ninguém e não tenho de per­tencer a nenhum homem.

— Seus encargos para com o rei foram saldados. Daqui para a frente, não será de mais ninguém. Só minha. Única e exclusivamente minha, não é mesmo? — Thomas caprichou no mais encantador de seus sorrisos, o que, no entanto, não tornou as palavras menos indigestas.

Alyce sentou-se e disparou.

— Não sou de ninguém e nem do senhor! Sem perder o sorriso dos lábios e com ar de protetor, Thomas pôs uma das mãos sobre o ven­tre dela.

— Devo fazer amor consigo mais uma vez para convencê-la?

Ela afastou a mão dele.

— O senhor está parecendo um cavaleiro que se vangloria de uma conquista. Será que estou certa?

Thomas parou de sorrir e sentou-se ao lado dela.

— Minha querida, se isso foi uma conquista, certamente a responsável foi Alyce Rose. Quando eu pensava em Dunstan com a senhora... entendi que teria de ser comigo e com ninguém mais.

Era a segunda vez que ele mencionava Dunstan. Alyce lembrou-se de que ele admitira conhecer o barão. Teria acontecido alguma desavença pessoal entre eles?

— Como foi que o senhor conheceu Dunstan?

— O barão esteve conosco na Cruzada — ele explicou secamente.

— Eram companheiros?

— Cavalgávamos juntos.

— E não se deram bem — ela deduziu. Thomas mostrava-se relutante em contar-lhe a historia.

— Houve uma circunstância incidental até hoje não esclarecida — ele acabou por confessar.

— De que tipo? — ela insistiu curiosa.

De uma certa maneira, parecia importante para Alyce entender o relacionamento passado de Thomas com o seu ex-futuro marido.

— lguns de nossos cavaleiros foram mortos em uma emboscada pelas tropas de Saladino. Kenton e eu achamos que Dunstan enviou informações de nosso paradeiro ao campo inimigo.

— Mas isso é traição! — ela surpreendeu-se.

— Em mais alto grau e da pior espécie. E o mais grave. Acreditamos que o príncipe João en­viou Dunstan à Cruzada para assegurar-se de que Ricardo não voltaria. O problema era que nós não podíamos provar nada. Só nós restava uma única alternativa, diante da falta de evidências escla­recedoras. Convencemos o rei Ricardo a mandar Dunstan de volta para a Inglaterra.

— É por isso que o odeia?

Thomas virou a cabeça e observou, pela janela aberta, os últimos raios do sol no ocaso. Alyce ainda não vira em seu rosto uma expressão como aquela.

Thomas ficou muito tempo em silêncio, antes de continuar.

— Um dos homens que não voltaram da cilada habilmente preparada foi meu irmão mais novo, Edmund.

— Oh, não, Thomas.

O coração de Alyce confrangeu-se de pesar e, ao mesmo tempo, ela lembrou-se de que sabia pou­co sobre ele e seus familiares.

— Dunstan causou a morte de muitos homens de bem — Thomas continuou, como se não a ou­visse — e poderia ter sido responsável pela morte de nosso rei, se não o houvéssemos impedido de continuar lutando conosco.

O comportamento de Thomas mudara radical­mente. Alyce arrependeu-se de havê-lo pressiona­do a dar detalhes sobre o relacionamento dele com o barão. Entretanto, pensando no que ele acabara de contar-lhe, começou a entender o significado daquela confissão.

Alyce tentou esconder a aflição que a acometia.

— Então devo concluir Philip de Dunstan é seu inimigo figadal. Fazendo amor comigo, o senhor teve certeza que ele jamais me possuiria, pelo me­nos não como uma noiva virgem.

Thomas virou a cabeça sobressaltado.

— Dunstan nada tem a ver com isso! — Ele agarrou-a pelos ombros com força. — Ele não tem nada a ver conosco. Fiz amor com você hoje porque tenho de partir. E antes disso, eu queria que en­tendesse como me sinto a seu respeito.

Alyce estava literalmente furiosa.

— O senhor queria imprimir sua marca em mim, antes de sua viagem para o encontro com o rei Ricardo! — ela lamentou desanimada e co­briu-se com a manta. — Muito bem. O senhor conseguiu seu objetivo. Eu não o esquecerei, Thomas de Havilland. Mesmo porque, provavelmente, eu nunca mais o verei.

Thomas também mostrou-se exasperado.

— O que a fez ficar tão obstinada? Por que se recusa a acreditar que um homem possa querê-la simplesmente pelo que a senhora é e não por ou­tros motivos? E claro que nos encontraremos de novo, sua teimosa mais linda que já vi. Lembre-se de que é minha. Nós pertencemos um ao outro.

Alyce já não escutava mais as palavras dele. A revelação do ódio de Thomas por Dunstan mur­chou o pequeno botão de esperança que começara a crescer dentro dela. Thomas a desejara para vingar-se de Dunstan! Seu pai estivera coberto de razão. Era melhor precaver-se, contra os ho­mens. Todos eles!

— Acho melhor o senhor ir agora — ela acon­selhou, em voz baixa.

Thomas mostrou-se preocupado.

— Não posso deixá-la assim, Alyce. Não se trata de nada do que está imaginando. As suas deduções não passam de um grande absurdo!

— Pois fique sabendo que estou convicta do que lhe falei. Acho que, desde que o conheci, é a pri­meira vez que minha razão está no lugar. Pode ir, Thomas de Havilland. Vá para seu rei e dei­xe-me em paz em Sherborne.

Alyce engoliu todas as lágrimas. Jamais dei­xaria que ele as visse. Thomas tivera êxito em seus propósitos. Ele a afastara de Dunstan e a tomara como um prémio para si mesmo. Naquele momento estava apressado para encontrar seus comandados.

Finalmente ele falou, cansado.

— Minha querida, meus homens estão a minha espera. Se eu me demorar mais, poderei estar ar­riscando suas vidas, como também a do rei.

— Sim. Eu já lhe disse que deveria ter ido — ela salientou, sem olhá-lo.

— Sei que está brava comigo, mas não tenho tem­po para esperar que seu humor melhore — ele afir­mou, como se ela fosse uma criança petulante.

— Ficarei melhor humorada quando estiver so­zinha — ela respondeu.

Thomas pegou-lhe no queixo e virou-lhe o rosto para ele.

— Então é melhor mesmo eu ir. Mas antes, quero que me escute — ele declarou, como um comandante em campo de batalha. — Eu a amo, Alyce de Sherborne.

Ela engoliu penosamente o bolo que se formara em sua garganta. Teria feito alguma diferença se ele dissesse aquilo e não houvesse confessado os problemas com Dunstan? Alyce queria muito acre­ditar nele. Porém os sentimentos irresistíveis de ternura e confiança que tivera ao estar nos braços dele já haviam se apagado. Embora partilhando da mesma cama, eles se encaravam como dois estranhos.

— Vá ao encontro de seus homens, Thomas. Não pretendo ser mais uma vez responsável por estar arriscando a vida deles.

A resposta dela não o agradou. Mesmo assim, ele juntou as roupas e começou a vestir-se.

— Assim que o rei Ricardo estiver livre, eu vol­tarei — ele garantiu solene.

Alyce não respondeu.

Thomas enfiou as botas, sem conseguir ordenar logicamente as pensamentos. Como é que as coisas haviam saído de modo tão errado? Gostaria de deixar tudo esclarecido antes de partir. Dizer a Alyce quanto a amava e, principalmente, mostrar-lhe o tamanho desse amor. A demonstração física correra bem, mas ele teve a impressão de que estragara tudo com as palavras que dissera. Ape­sar de todas as baladas de amor que entoava, parecia necessitar com urgência de lições na arte de cortejar.

Ele tornou a sentar-se ao lado de Alyce no catre e tentou tomá-la nos braços, mas ela se afastou. — A senhora poderá me fazer o favor de se manter afastada de encrencas até eu voltar? — Thomas tentou caçoar, desesperado para melhorar o astral de Alyce. — Não ande por aí a envenenar bandos de cavaleiros andantes e nem vá enfiar-se em alguma masmorra.

Ele pensou haver detectado um sorriso impercep­tível nos lábios de Alyce, mas ela não respondeu.

— Posso não saber expressar-me corretamente, mesmo porque nunca fiz isso antes — Thomas afir­mou. — Mas vou repetir. Eu a amo, Alyce Rose.

Ela virou-se e encarou-o, visivelmente pertur­bada. Ele foi tentado a tomá-la novamente nos braços e fazer amor com ela. Quando os corpos de ambos estiveram juntos, a comunicação entre eles fora perfeita. Os problemas começaram com a intervenção das palavras.

Thomas fitou o exterior escuro, pela janela. Não poderia ficar mais ali nem sequer por uma hora. Já estava excessivamente atrasado na saída para Dover.

— Tenho direito a um beijo de despedida? — ele pediu, com suavidade.

Alyce sentiu os olhos rasos de água. Thomas entendeu que, longe da aparência de insensibili­dade e indiferença que ela procurava demonstrar, Alyce estava confusa e magoada. Sentiu-se cul­pado. Pensara que fazer amor com ela seria como uma promessa de que voltaria para seus braços. Mas ele se enganara redondamente. Naquela al­tura dos acontecimentos, ele não tinha outra opção a não ser ir embora, levando com ele a lembrança daquelas lágrimas.

Thomas inclinou-se e beijou-a nos lábios com leveza e ternura.

— Alyce, tudo vai dar certo. Eu lhe prometo. E mais cedo do que possa imaginar.

Ele endireitou-se e saiu rapidamente do quarto, sem olhar para trás.

— Ah, Allie querida. O que foi que lhe fizeram no Castelo de Dunstan? — Lettie indagou, ao sentar-se na beirada da cama de Alyce e tomar-lhe uma das mãos. — Desde a sua volta, e hoje faz dois dias, ainda nem provou a comida.

Alyce afastou-se e cedeu lugar na cama para sua grande e querida ama-seca.

— Já lhe disse, Lettie. Nós mal dormimos, tanto na ida, quanto na volta.

— Sei. E sir Thomas parecia um cadáver am­bulante quando saiu daqui ontem à noite. Não entendo como ele conseguiu manter-se em cima do cavalo, naquele estado.

Alyce retesou-se ao ouvir aquele nome. Passara a noite inteira virando-se de um lado para o outro, dividida entre a certeza de odiar Thomas e a ad­missão de que o amava. Lembrava-se dos momen­tos em que as bocas fundiram-se em ternura e daqueles em que o corpo de Thomas movia-se para dentro dela. Daí ela dizia a si mesma que ele voltara a Sherborne com o único propósito de pos­suí-la, antes de que o inimigo Dunstan o fizesse.

A história que ele lhe contara era horripilante. Thomas tinha todo o direito de odiar o homem cuja traição havia resultado na morte do irmão. Só não tinha o direito de usá-la como um instru­mento de vingança!

Alyce apertou a mão de Lettie.

— Lettie, acredita mesmo que homens possam se apaixonar? Ou eles sempre confundem o amor com a conquista, a vingança ou com seus instintos básicos?

Lettie entristeceu-se.

— Ah, minha vida, receio que o senhor seu pai, que Deus o tenha em sua santa paz, transfor­mou-a em uma pessoa cética.

Alyce sentou-se na cama.

— Acha mesmo que foi amor o que motivou Philip de Dunstan a conseguir a promessa de ca­samento do príncipe João? Ele nem mesmo me conhecia...

— Acho que certas coisas são mais difíceis para os ricos e para os nobres. Muitas vezes acho que os aldeões resolvem com maior facilidade os problemas do coração.

Alyce deitou-se outra vez.

— Então, Lettie, eu gostaria de ter nascido uma aldeã.

— Acha que assim acreditaria em seu coração, quando ele lhe dissesse que está apaixonada por sir Thomas? — Lettie indagou, com pena de Alyce.

Alyce tornou-se carrancuda.

— Não! O motivo é outro. Eu poderia viver mi­nha vida e ser feliz por mim mesma. Não teria de preocupar-me com um homem que me fizesse infeliz.

 

Já haviam se passado seis semanas desde a partida de Thomas, e Alyce não se atormentava mais com dúvidas. A reali­dade comprovava que seu pai estivera coberto de razões. Apesar de todas as palavras doces de amor, Thomas Havilland não fora diferente de todos os homens que seu pai, enquanto vivo, mandara em­bora para protegê-la. Com o passar dos dias e sem nenhuma notícia dele, Alyce afastara os últimos resquícios de sentimento que deixara aflo­rar, quando aquele cavaleiro charmoso e vibrante entrara em sua vida. Não acalentava mais ne­nhuma esperança de que Thomas pudesse ter amor por ela. Ela só servira para aplacar o ódio que Thomas sentia por Dunstan.

Entretanto, tinha de reconhecer que devia agra­decer a Thomas de Havilland pela resolução de dois fatos importantes. Ele resolvera o problema da obrigação tributária dela para com o príncipe João e, por conseguinte, para com Philip de Dunstan. Depois de sua volta da desastrada e quase trágica visita ao Castelo de Dunstan, não ouvira mais falar dos dois.

Ela se convencera, de uma vez por todas, de que seu pai tivera motivos mais do que louváveis para fazê-la descrer de todos os homens. Naquela altura, sabia o rumo que pretendia dar em sua vida. Assentaria a cabeça e seria uma senhora justa e bondosa para todos os que a amavam em Sherborne. Deixaria os menestréis cantarem suas baladas de amor conquistado ou perdido e não se abalaria por isso. Teria uma vida estável com Lettie, Alfred, Fredrick e os outros, eles eram sua família e toda a felicidade de que necessitava.

O pai de Fredrick havia morrido em um aci­dente na ferraria do castelo, logo após o nasci­mento do filho. O garoto fora criado pelo avô, Al­fred. Pareceu natural para todos no castelo e in­clusive para Alyce, que o neto assumisse a maioria das funções do avô, pois este não estava mais em condições de executá-las.

O entusiasmo do jovem Fredrick provou ser um tónico para Alyce. O rapaz tinha muitas ideias sobre melhorias para o castelo e para as terras cultivadas pelos camponeses. Alyce, por sua vez, era uma ouvinte atenta. Eles passavam dias in­teiros cavalgando pelos arredores daquela região rural. As noites, à luz de velas, eram dedicadas à elaboração dos planejamentos.

Thomas partira havia dois meses. Para Alyce, as aventuras com os cavaleiros Havilland pare­ciam fazer parte de um sonho. Para ser mais exa-ta, era um sonho recorrente e que, algumas vezes, assombrava-a no meio da noite. Em tais horas, ela acordava suada e lembrava-se dos beijos ardentes que ela e Thomas haviam trocado. Mas em geral, e durante o dia, ela conseguia manter o episódio todo fora de sua mente. Com o passar dos dias, enquanto ela e Fredrick planejavam no­vos melhoramentos para Sherborne, Alyce sentia-se bem mais animada.

Chegava mesmo a convencer-se, com relativo sucesso, de que a sua decisão de permanecer sol­teira e escondida em Sherborne, fora uma ideia feliz e abençoada.

Naquele dia, ela e o auxiliar mais direto esta­vam sobre a muralha e observavam as terras pró­ximas dos arrendatários.

— Na feira de Hartford, milady — Fredrick con­tou —, os camponeses foram aconselhados a alqueivar os campos uma vez a cada quatro anos. Ou seja, lavrar a terra e deixá-la de repouso para que adquiram força produtiva. Dessa maneira as safras serão melhores e mais fortes, nos três anos seguintes.

Alyce franziu o nariz.

— E por quê? É muito difícil tomar a decisão de perder um ano inteiro de colheitas. Isso faz sentido?

Fredrick apontou o leste, onde lotes limpos de terras de Sherborne haviam sido desmoitados ha­via várias gerações, antes mesmo dos normandos terem vindo para a Inglaterra.

— Eu não saberia explicar-lhe como o fato ocor­re, milady, mas acho que vale a pena experimen­tar. A cevada tem sido fraca e pobre em toda essa faixa. Eu gostaria de roçar a terra até o rio, assim teríamos lotes adicionais e daríamos aos arrendatários condições de incluir estas faixas naquilo que eles chamam de agricultura no sistema de três campos.

Fredrick não sabia ler e nem escrever, mas era dotado de uma inteligência inata e de um instinto no cultivo da terra que sempre impressionavam Alyce.

— Muito bem — ela concordou. — Vamos tentar. Verei se posso achar qualquer coisa sobre o as­sunto nos livros de meu pai.

— Tentei falar com seu pai e meu avô quando voltei da feira no ano passado, mas eles não me deram muita atenção.

— Bem, isso agora não importa. Vamos resolver... Ela parou de falar e pôs a mão espalmada sobre os olhos para evitar a luz do sol.

— Veja, cavaleiros!

Fredrick virou-se na direção apontada por Alyce.

— Eles vêm vindo para cá.

Alyce franziu a testa à aproximação dos homens e olhou para Fredrick, que demonstrou preocupação.

— Eles vêm com a bandeira do Castelo de Dunstan hasteada — ela assegurou.

— É, sim. Ao menos que eu esteja muito en­ganado, Milady, o homem alto que vem à frente do préstito deve ser o barão em pessoa.

Ele não pareceu nem tão diabólico e nem tão horripilante quanto na ocasião em que eles foram aprisionados no Castelo de Dunstan. De fato, a impressão era de que Philip de Dunstan esforça­va-se para impressionar Alyce com amabilidades.

Depois de Alyce e Fredrick terem visto, de cima do muro do castelo, a aproximação dos visitantes, ela havia corrido para seu quarto. Escolhera o vestido mais suntuoso e, depois de pronta, ficara sentada na cama por mais de meia hora. Sem outra alternativa para o momento, ela finalmente desceu do pavimento superior e dirigiu-se até o grande hall, onde ele se ergueu para saudá-la, sem nenhum sinal de impaciência.

— Lady Alyce — ele cumprimentou, com sua voz grave de baixo, em tom melífluo — enfim nos encontramos.

Mais uma vez, ele estava vestido de vermelho. Embora houvesse acabado de chegar da estrada poeirenta, sua túnica mostrava-se limpa e sem vincos. Poder-se-ia dizer que as botas de couro escarlate brilhavam. Era como se ele houvesse acabado de vestir-se.

Desconfiada das boas maneiras de Dunstan, Alyce permitiu que ele levasse aos lábios a mão que ela estendia.

— O senhor nos surpreendeu com sua visita, lorde Dunstan. Não esperava vê-lo, desde que não sou mais devedora do príncipe João. Paguei meus tributos...

— Não vim para falar de obrigações, Milady — ele a interrompeu —, embora seu dinheiro jamais tenha chegado às mãos do príncipe, como tenho certeza de que já deve saber.

Ao pronunciar as últimas palavras, houve uma mudança sutil no brilho dos olhos negros. Alyce, sem demonstrar o arrepio que a invadia, lembrou-se da expressão dele ao dizer que arrancaria a língua de Fredrick.

— O dinheiro foi, sem sombra de dúvida, en­tregue em suas mãos, milorde! — ela afirmou, com a convicção necessária para reforçar a farsa. — Se for necessário algum tipo de depoimento, tenho testemunhas que podem comprovar isso.

— Não me importo com o que pessoas tenham visto ou ouvido — ele declarou, com um sorriso capaz de provocar calafrios, e apontou o banco em frente à lareira, onde ele estivera esperando por ela. — Podemos nos sentar?

Alyce não tinha a menor vontade de ficar perto daquele homem que a fitava do alto de sua soberba carmesim. Sentou-se em uma das extremidades do banco.

— Por fineza, lorde Dunstan — ela usou da maior cortesia possível —, o senhor poderia in­formar-me a que veio, pois estou interrompendo uma atividade de vital importância em desenvol­vimento com meu administrador, a respeito de nossos arrendatários.

Ele sentou-se no meio do banco e virou-se para ela.

— Lady Alyce, a senhora não deveria preocu­par-se com tais assuntos. Isso não é trabalho para uma mulher. Milady precisa de um homem para ajudá-la a administrar Sherborne.

O barão relanceou os olhos pelo grande recinto, como se estivesse à procura de alguma prova que demonstrasse estar o castelo necessitado da mão forte de um homem.

— A sua preocupação é louvável, milorde. Porém meu pai educou-me exatamente para lidar com tais assuntos. Como ele não teve nenhum filho varão, quis ter certeza de que eu estaria bem treinada para tomar conta da prosperidade de Sherborne.

— Mas ele certamente pensava em fazer o tra­balho junto com Milady. Sem a menor sombra de dúvida, ele devia confiar na possibilidade futura de que a senhora teria um marido que a ajudasse. Infelizmente para todos nós, não houve tempo para satisfazer-lhe a segunda vontade, pois Deus o levou cedo demais. Se me permite...

Ela o interrompeu, erguendo uma das mãos.

— Desde a morte de meu pai, há um ano, venho administrando Sherborne. A herdade está prós­pera e todos estão felizes. Perdoe-me a insolência, barão, mas não vejo por que esses fatos devam preocupá-lo.

Philip tomou-lhe a mão levantada. Os dedos dele eram gelados.

— Vou ser honesto com a senhora, lady Alyce. No ano passado, estive muito ocupado com pro­blemas políticos. Como Milady bem pode imagi­nar, o príncipe João estava terrivelmente apreen­sivo quanto às dificuldades enfrentadas por seu irmão. Precisava do apoio de seus amigos.

Alyce entendia exatamente o motivo das preo­cupações do príncipe a respeito de seu irmão, o rei, mas não fez nenhum comentário.

— Esse fato fez com que eu negligenciasse mi­nhas obrigações para com Milady — Dunstan con­tinuou, com o mesmo sorriso falso. — Peço-lhe que me perdoe, minha cara.

— Não me senti descurada, milorde — ela con­fessou com rispidez, surpresa pela declaração de Dunstan. — Pelo contrário. Fui honrada por muitas visitas, até em excesso para meu gosto. Agora, se me perdoa a franqueza, nada mais me resta a fazer, a não ser deixá-lo sozinho.

O barão de Dunstan continuava a segurar-lhe a mão, a despeito dos esforços dela em contrário.

— Os homens que vieram visitá-la eram todos obviamente idiotas. Eu lhe asseguro que eles pa­garam pela falta absoluta de aptidão. Compreendi com um certo atraso que, se eu desejar que o as­sunto chegue a um bom termo, terei de executá-lo eu mesmo.

— Assunto?

— Nosso contrato de casamento. Por isso tive de vir pessoalmente.

Alyce puxou bruscamente a mão que ele segurava.

— Então, sinto muito ter de lhe dizer, barão, mas o senhor veio por nada. Não pretendo casar-me com o senhor e nem com qualquer outro homem.

Philip continuou com o sorriso nos lábios.

— Minha cara Alyce, compreendo que algumas mulheres precisam de um pouco de persuasão. E foi por isso que, desta vez e como já lhe disse, resolvi vir pessoalmente — ele enfatizou a palavra.

Ela levantou-se.

— Não estou interessada em ser persuadida, lorde Dunstan. Queira perdoar-me, mas sua vinda não tem propósito.

Ele também ficou em pé e era bem mais alto de que ela.

— Sou um homem paciente, lady Alyce, mas minha paciência tem limites. Vim preparado para dar-lhe um dia ou dois de prazo. Tempo suficiente para Milady acostumar-se com minha companhia.

Alyce deu uma mirada ao redor. Em cada uma das portas do grande hall, havia um soldado ves­tido com o uniforme do Castelo de Dunstan, todos muito bem armados.

— Não tenho obrigações para com o senhor — ela reiterou o que já dissera. — O senhor não tem direitos aqui em Sherborne.

Ele fez uma mesura ligeira com a cabeça.

— Como a senhora mesma disse, Milady, eu a surpreendi. Talvez precise de algumas horas para acostumar-se à ideia. Enquanto isso... — ele fez um gesto circular que passou por todo o saguão —, meus homens poderão aproveitar de sua hospitalidade.

Ao longe, na extremidade do grande vestíbulo, Fredrick, demonstrando grande desânimo, observa­va a conversa. A alguns passos dele, dois dos guardas de Dunstan o agarravam por trás, e em posição desajeitada para o preso, os braços frágeis de Alfred. O homem idoso ostentava uma careta de dor.

Alyce sentiu frio e calor ao mesmo tempo. O que poderia fazer naquelas circunstâncias? - ela afligiu-se.

Teve o pressentimento de que o barão Philip de Dunstan não seria afugentado com a mesma faci­lidade com que ela se livrara dos mensageiros que ele mandara anteriormente. Considerou o episódio da comida estragada, mas descartou-o. Ela não du­vidava de que, se ele descobrisse o embuste, a vin­gança seria terrível contra os cozinheiros e os criados que houvessem ajudado a levar o plano adiante.

Empertigou-se o mais que pôde.

— Sim — ela concedeu com frieza. — Eu preciso de algum tempo.

— Otimo — ele alegrou-se e apontou para um de seus homens. — Lady Alyce gostaria de ser escoltada até seus aposentos. Espere do lado de fora da porta, até ela avisá-lo de que está disposta a falar comigo novamente.

Ele fitou os guardas que ainda seguravam Alfred.

— Se milorde espera algum tipo de colaboração de minha parte, deixe meu povo em paz.

Dunstan seguiu-lhe o olhar. Fez um pequeno gesto e os dois homens soltaram o pobre velho.

Satisfeita para o momento, Alyce empinou o queixo e saiu, escoltada pelo soldado de Dunstan.

— Essa não é exatamente a maneira pela qual eu teria feito meus avanços amorosos, Thomas — Kenton afirmou, com um sorriso largo.

Era uma noite agradável de Janeiro, e eles haviam decidido dormir do lado de fora da casa. Eram de opinião de que o ar frio seria preferível a enfrentar a multidão que lotava o grande hall do Castelo de Nottingham. O rei Ricardo fora libertado após o pa­gamento do resgate, voltara para a Inglaterra e de­cidira ficar em Nottingham até os feriados da Pás­coa. O castelo estava excessivamente cheio de gente. O vestíbulo de proporções gigantescas, onde alguns dos homens de Thomas permaneciam acomodados, recendia a suor e fumaça, além do cheiro dos homens e das roupas não lavadas durante os meses de estada no continente europeu.

Kenton e Thomas haviam tomado banho pela manhã. Thomas, ainda menino, adquirira esse há­bito com a avó Ellen. Ela viera da Normandia com o firme propósito de civilizar os saxões atrasados de Lyonsbridge e acabara tornando-se mais saxônica do que normanda. Mas Ellen fizera um belo trabalho em Lyonsbridge. Havia melhorado muito os padrões de limpeza do velho castelo e difundira hábitos higiénicos entre o povo.

O avô Connor algumas vezes resmungava seu protesto. Afirmava que um banho anual seria mais do que suficiente para qualquer soldado. Apesar disso, Thomas fora testemunha da grande frequência com que o avô pedia para as tinas de madeira com água serem levadas a seus aposen­tos. Principalmente nas noites em que ele e a es­posa passavam o jantar inteiro trocando olhares íntimos muito especiais. Situação essa, aliás, que era aprovada com satisfação pelo moradores de Lyonsbridge.

— Pelo que eu pude apreender de sua lady Alyce, ela não parece ser do tipo que aprecia muito ser intimidada — Kenton prosseguiu.

Thomas estava deitado sobre as mantas esten­didas na relva e fitava as estrelas.

— Eu sei, mas ela também não pareceu haver gostado muito de meus protestos de amor.

— Talvez o senhor não tenha usado as palavras certas -— Kenton caçou do amigo. — Eu poderia ter-lhe dado algumas lições.

— E não pode fazer isso agora?

— Claro que sim. Ou o senhor já se esqueceu de quando éramos mais jovens em Lyonsbridge, e eu sempre tinha três garotas contra uma única namorada sua?

— Ah, aquilo se devia exclusivamente ao fato de eu preferir uma só a um bando.

Kenton deu uma risada sonora.

— Bem, admitamos que foi o senhor quem en­cantou a bela Alyce de Sherborne. Na verdade, ela mal me olhava. Quanto a suas juras de amor, exatamente quanto tempo o senhor gastou nelas?

— Kenton, o senhor sabe muito bem que eu tinha de partir o mais rápido possível para en­contrá-los em Dover.

Kenton estendeu-se de costas ao lado do amigo e também passou a observar as estrelas.

— O senhor disse-lhe que os olhos dela brilha­vam como as estrelas do firmamento? — Kenton apontou o céu. — Que sua pele era tão suave como as pétalas de uma flor? Ou que sua voz era tão melodiosa quanto o trinar de uma cotovia?

Thomas fitou o outro com irritação..

— Pelas chagas de Cristo, Kent, tínhamos pouco tempo para ficar juntos. Eu não iria perder mi­nutos preciosos com palavras.

Kenton discordou, balançando a cabeça.

— Esse pode ter sido seu erro. Mulheres pre­cisam desse tipo de agrados.

— Alyce não gosta disso. Ela tem tendência a ser mais prática.

— Ah, Thomas, todas as mulheres gostam de ser cortejadas, sejam elas objetivas como lady Aly­ce ou não.

— Fiz o melhor que pude, dadas as limitações do tempo, e ela não se impressionou.

— O senhor já parou para pensar que talvez ela não seja aquela que lhe foi destinada.

Thomas tornou a fíxar-se nas estrelas.

— Ela é, sim. Poderia apostar minha vida nis­so, Kent.

— Parece que já o fez. Ou pelo menos, jogou com a felicidade. Até pediu ao rei Ricardo que concorde em conceder-lhe a mão de lady Alyce em casamento! Agora não há muito o que se fazer a respeito. Arrepender-se não vai adiantar, mesmo que isso tenha sido um erro.

— Não será. Tenho certeza disso. Ela está tão apaixonada por mim quanto eu por ela. Eu só preciso de algum tempo para convencê-la do fato.

— E acha que o melhor meio de fazer isso é arrastá-la, por intermédio dos homens do rei, e forçá-la a casar-se com o senhor?

— Pelo menos isso me dará a chance de fazer Alyce enxergar a verdade. Kent, não tenho conseguido dormir, de tanto pensar nela.

Kenton ajeitou a bota que lhe servia de travesseiro e tornou a deitar a cabeça.

— Se está tão ansioso para ver Alyce novamen­te, por que não vai com os guardas de Ricardo destacados para trazê-la?

Thomas riu à socapa.

— Kenton, estou apaixonado, mas ainda não fiquei completamente louco. — Thomas virou-se para o outro lado e ajeitou-se com as mantas, pron­to para mais uma noite agitada.

— A quem o rei designou para buscá-la? Depois de algum tempo de silêncio, Thomas respondeu.

— Ranulf.

Kenton sentou-se de súbito.

— Ranulf?! E o senhor o deixou ir?

— E por que não? — Thomas deu um sorriso, sem mostrar os dentes. — Desta vez meu irmão sentirá o gosto do mundo.

Lettie estava parada em pé, à porta, e tentava usar seu corpo gordo e sólido para impedir que o homem entrasse no quarto.

— Milady está dormindo — ela declarou. Philip de Dunstan fulminou a fiel criada com o olhar.

— Deixe-me passar, mulher — ele ordenou. Lettie cerrou os dentes e recusou-se a obedecer.

O barão deu um passo atrás e fez um sinal para dois de seus homens, que aguardavam no corre­dor. No mesmo instante, eles agarraram Lettie pelos braços e levaram-na para fora do quarto.

Dunstan voltou para onde estava, atravessou a soleira e aproximou-se da cama. A despeito do que Lettie dissera, Alyce não estava dormindo. Ela levantou-se.

— Lady Alyce, a senhora teve dois dias para pensar — ele afirmou com voz firme, porém, com polidez. — Tenho outros negócios para resolver.

— Por favor, barão, pode ficar à vontade. Vá cuidar de seus interesses. Não desperdice seu tem­po ficando aqui.

Dunstan caminhou de um lado dela para o outro, como se observasse um cavalo que pretendia comprar,

— A culpa pode ter sido minha — ele comentou com gentileza enganosa. — Talvez eu não tenha me expressado com a clareza suficiente. Vim até aqui para reivindicar a noiva que me foi prometida pelo príncipe João. Não irei embora até que o noi­vado seja oficializado.

Alyce balançou a cabeça, de queixo erguido.

— Então prepare-se para uma estada longa, milorde. Não tenho obrigação nem desejo de me casar com o senhor.

O barão parou na frente dela e rodeou-lhe o pescoço com os dedos longos.

— Novamente, acho que não expliquei de ma­neira correta. Eu não lhe dei escolha.

Alyce sentiu o desconforto do polegar dele que a apertava sob a orelha, mas permaneceu firme.

— O senhor não pode forçar-me ao casamento. Mesmo antes de eu pagar os impostos, só o rei ou seu regente poderiam ter autoridade para de­liberar sobre o assunto.

Ele inclinou-se mais um pouco para a frente e aumentou a pressão no pescoço dela.

— Acho que terá de aprender desde o começo, minha encantadora Alyce. Posso fazer o que qui­ser, se é que isso lhe interessa. Milady será minha, de corpo... — ele soltou-lhe o pescoço, passou a mão pelo corpete e apertou-lhe o busto — ...e alma.

Alyce pensou que iria vomitar. Entretanto, en­goliu a náusea, empertigou-se e deu uma bofetada no rosto de Dunstan, com toda a força que con­seguiu imprimir na mão direita.

Apesar do tamanho dele, o tapa fê-lo cambalear. _ Furioso, ele semicerrou os olhos e empurrou a de costas sobre o catre. Curvou-se sobre ela e impe­diu-a de levantar-se, comprimindo-lhe o estômago com o joelho.

— Eu não me importo se a mulher é volunta­riosa, Alyce. Mas entenda uma coisa. Esta foi a última vez que a senhora me atingiu, a menos que queira ver sua bondosa e velha ama esquar­tejada e pendurada até apodrecer.

Alyce sentiu um gosto amargo na garganta. Olhou ao redor do quarto, à procura de uma arma. Havia um cântaro de barro sobre a bacia de lavar as mãos. Se ao menos ela pudesse alcançá-lo...

Dunstan apertava-lhe o estômago com o joelho e segurava-lhe os ombros com as mãos. O braço dela não poderia cobrir a distância até o suporte. Ela tentou distraí-lo com mais argumentos.

— Podemos estar sentindo a falta do rei, mas ainda há uma lei na Inglaterra. Nem mesmo o príncipe João toleraria que o senhor me levasse à força e sob ameaças.

— O príncipe João estará de acordo com tudo o que eu lhe disser para...

Dunstan foi interrompido por um dos soldados que irrompeu no quarto.

O barão Philip virou-se para o homem, com ex­pressão aterradora.

— O que o senhor quer? — ele rugiu.

— Queira desculpar-me, meu senhor — o ho­mem respondeu, tremendo. — Pensei que o senhor deveria saber que um contingente de guerreiros acaba de passar os portões de Sherborne. Vieram da parte do rei Ricardo I.

Dunstan pareceu sobressaltado.

— O senhor quer dizer por parte do príncipe João. O homem sacudiu a cabeça com força.

— Não, milorde. De Ricardo. Ele voltou. O rei Ricardo I, Coração de Leão, voltou para a Inglaterra.

 

Dunstan levou menos de uma hora para reunir seus homens e sair à galope junto com eles, para fora de Sherborne. A notícia ribombante da volta de Ricardo fizera o barão perder todo o interesse e entusiasmo a res­peito de contratos de casamento.

Interpelara furiosamente um jovem cavaleiro que entrara à frente dos outros. O mensageiro do rei não mostrara intimidar-se com a fúria do ba­rão. Explicara calmamente que o resgate fora pago e que o rei havia voltado para a Inglaterra e reas­sumido o trono. Ele passaria os feriados da Páscoa em Nottingham.

Dunstan havia se apressado, com a intenção evidente de advertir o príncipe João sobre o re­torno do rei, e mal olhara para Alyce enquanto ordenava a seus homens a saída imediata.

Alyce ficara muito aliviada com a partida deles. Ela nem tivera tempo de raciocinar sobre qual teria sido sua sorte, se não fosse a interrupção oportuna dos emissários do rei. Entretanto esque­ceu-se completamente do barão Philip de Dunstan ao fitar, boquiaberta, o jovem enviado do rei Ricardo. Pediu para o jovem repetir duas vezes a mensagem que trouxera para ela. Ainda assim, não podia acreditar no que ouvira.

— Eu paguei um imposto para comprar a li­berdade de minhas obrigações feudais para com o rei — ela frisou, embora soubesse que de nada adiantaria arguir com aquele homem. Ele certa­mente só era autorizado a cumprir ordens.

— Sim, Milady, eu entendi — o jovem cavaleiro disse com simpatia. — A senhora já explicou, mas tenho ordens de levá-la a Nottingham, onde o rei aguarda o prazer de sua visita.

Alyce agitou-se sobre a ponta dos pés, tentando controlar a fúria que ameaçava explodir-lhe a cabeça.

— O meu prazer seria não ter nada a ver com o rei ou com o novo pretendente que ele encontrou para mim. Por falar nisso, quem é o homem?

— É um dos mais fiéis colaboradores do rei, milady.

— É como ele se chama?

— Sír Thomas Brand.

Outro Thomas, ela pensou com tristeza. Aquilo só iria agravar a situação de quem pretendia en­terrar para sempre aquele nome.

— E quem é o senhor?

— Ranulf, Milady.

— Muito bem, sir Ranulf, o senhor pode dizer a seu rei e a sir Thomas que eu recuso a oferta bondosa deles em ajudar-me quanto a meus pla­nos para o futuro. De agora em diante, eu pre­tendo tomar conta de mim mesma. Aliás como venho fazendo há um ano, com resultados bas­tante eficazes.

O jovem cavaleiro era mais perspicaz do que ela poderia supor.

— É isso que a senhora estava fazendo com lorde Dunstan, Milady? — ele perguntou respeitosamente, sem encará-la. — Planejando seus dias vindouros?

Ela não podia negar que a tropa de Ricardo havia chegado em boa hora. Mas Ranulf, de ma­neira esperta, aproveitava a ocasião e apontava para as aparências evidentes. Porém ela não es­tava tratando de garantir seu destino, quando eles entraram no castelo!

— Como o senhor sem dúvida já deve ter conjeturado — ela retrucou com firmeza —, o barão de Dunstan não era uma pessoa mais bem-vinda em Sherborne de que o senhor. Porém eu teria encontrado uma maneira de lidar com ele, se a visita imprevista de seus homens não o tivesse feito bater em retirada.

Ela não estava tão segura quanto pretendia fazê-lo crer, mas Dunstan não era mais uma ameaça imediata, enquanto aquele homem era.

— Tenho certeza de que o faria, Milady. Já fui informado de sua habilidade em tratar os visitantes.

Alyce enrubesceu. Quem poderia saber as his­tórias que contavam sobre ela na corte? Ela ob­servou o enviado do rei que estava em pé a sua frente e que não demonstrava o menor sinal de impaciência. Se eles estavam convencidos de que ela era uma pessoa difícil de lidar e haviam en­viado Ranulf, é porque certamente confiavam nele, ou não o teriam encarregado daquela tarefa. O intruso era um homem de boa aparência, esbelto mas com ombros largos, e muito bonito. Alguma coisa nele pareceu-lhe familiar, embora não sou­besse precisar o que era.

— O senhor não teve medo de vir, mesmo co­nhecendo minha fama?

Ranulf sorriu, e ela percebeu com quem ele se parecia.

— Sir Ranulf, seu nome não é Havilland?

— Não, milady — ele assegurou, sem fornecer maiores detalhes.

Alyce suspirou.

— Quais são suas ordens se eu resolver não o acompanhar?

— A única coisa que me disseram era para eu levá-la até o rei. Os meios a serem utilizados fo­ram deixados a meu critério.

Ele não era, de modo algum, tão alto e nem tinha aparência tão ameaçadora como Dunstan. Porém ela teve o pressentimento de que, se ela resistisse, Ranulf seria capaz de atirá-la em cima de um cavalo e conservá-la amarrada durante todo o trajeto até Nottingham.

Thomas havia dito que o rei Ricardo era, ao contrário do príncipe João, um homem honrado. Talvez a melhor alternativa fosse ir até à presença do rei e pleitear as graças de Sua Majestade para as próprias reivindicações.

— Diga-me, sir Ranulf, o senhor considera Ricardo ura monarca justo? Pode falar francamente, não há ninguém aqui para levar suas palavras até ele.

Ranulf tornou a sorrir. E, mais uma vez, ela se impressionou pela semelhança dele com Tho­mas Havilland.

— Sim, milady. Ricardo é um homem bom e um rei sempre pronto a fazer justiça.

— Então eu irei com o senhor. Eu gostaria de ver esse assunto resolvido de uma vez por todas. Antes de que a estrada para Sherborne se trans­forme em uma vala, de tantos cavalos que entram e saem, trazendo homens idiotas que tentam se meter em minha vida.

O Castelo de Nottingham era a maior locali­dade que Alyce já vira. Havia várias edificações dentro dos muros grossos que rodeavam as ter­ras do castelo. Todas ao redor de uma fortaleza imponente construída no tempo de Guilherme, o Conquistador.

Ranulf escoltou-a para dentro, com a cortesia usual.- A companhia dele na viagem de dois dias, fora, para surpresa de Alyce, extremamente agra­dável. Ela não saberia dizer se era pela autocon­fiança própria de juventude ou pela semelhança es­tranha que ele tinha com Thomas. Entretanto a verdade era inegável. Sentiu-se muito à vontade com ele. O bom humor dele a fizera esquecer, durante um bom tempo, os motivos da viagem a Nottingham.

A jornada teria sido mais rápida, se Alyce não houvesse insistido para Lettie acompanhá-los. Sem demonstrar a menor irritação, Ranulf havia providenciado uma liteira grande com cortinas para levar a idosa senhora. Como também dimi­nuíra a velocidade da marcha dos cavalos, sem se queixar.

Enquanto se dirigiam pelo pátio em direção aos estábulos, Alyce confessou para si mesma que estava curiosa para conhecer o grande rei Ricardo I, Coração de Leão, assim chamado depois do res­gate corajoso da fortaleza cristã situada em Jaffa.

— Sua Majestade se recuperou dos ferimentos? — ela perguntou para Ranulf.

— Ah, sim, Milady — o jovem cavaleiro respon­deu. Ele a ajudou a desmontar e entregou as ré­deas para um cavalariço. — Ele já se encontra em perfeitas condições de saúde. O que é lamen­tável, como dizem alguns.

— Como assim?

— Eleja está falando em liderar outra Cruzada,

— Quem sabe se não terei a felicidade de ver meu novo prometido acompanhá-lo? — Alyce comentou, com uma careta.

— Eu não contaria com isso, Milady — Ranulf respondeu, sem outros comentários.

Eles esperaram a liteira de Lettie chegar. A senhora idosa desceu, esticando as costas e recla­mando das sacudidelas da viagem.

— Vamos levá-la para a cama, minha querida Lettie — Alyce ofereceu.

Lettie sacudiu a cabeça e fez vários movimentos com uma das mãos, certamente para afastar uma mosca.

— Vá. Pode ir, Alyce. Estou bem. Ficarei aqui para ver se nossa bagagem será descarregada convenientemente.

Ranulf sorriu, divertido, ao ver como a mu­lher pequena e rotunda fazia os cavalariços cor­rerem de um lado para o outro. Depois ofereceu o braço para Alyce, e ambos atravessaram o pá­tio tumultuado.

— Não acho que a senhora ficará desapontada com seu futuro marido, Milady — Ranulf assegu­rou-lhe, no caminho rumo à porta da construção principal. — E um homem muito simpático e de ótima aparência.

— Com quem ele se parece? — ela perguntou, curiosa apesar de tudo.

Ranulf fitou-a com expressão marota.

— Há uma certa semelhança familiar entre to­dos os irmãos Brand.

— Ele tem irmãos?

— Tem. Dois. Um deles foi perdido na Terra Santa — ele concluiu com ar subitamente contrito.

— A semelhança familiar não iria ajudar muito, pois não conheço nenhum membro da família Brand.

— Ah, conhece sim, Milady. — Eles estavam quase chegando. Ele parou e fez uma pequena mesura. — Ranulf Brand, as suas ordens.

Alyce recuou atónita.

— Seu irmão?

— Isso mesmo, lady Alyce. — Ranulf agarrou-lhe os ombros, puxou-a até ele e beijou-a leve­mente nas duas faces. — Bem-vinda a Nottingham, cunhada.

Alyce ainda não se recuperara do susto, quando a porta- enorme do castelo foi aberta e ela ouviu o som de uma voz irritada, mas conhecida.

— Eu lhe disse para trazê-la sã e salva, seu patife. Pode tratar de tirar suas patas grossas de cima dela!

Ranulf virou-se para o intrometido, sorrindo e sem alarmar-se.

— Estou apenas dando a sua noiva as boas-vindas da cidade, Thomas, já que o senhor não estava por aqui para fazer isso.

Noiva?

Alyce fitou os dois boquiaberta. O seu noivo em perspectiva, Thomas Brand era ninguém mais e ninguém menos de que seu primeiro amor, Thomas Havilland!

— Por que o senhor não me contou? — ela ques­tionou Ranulf, indignada e um tanto magoada.

Ela simpatizara com o cavaleiro jovem e riso­nho. Até mesmo o classificara como amável e gen­til. Naquela altura, ela poderia situá-lo na lista dos homens que, de uma ou outra maneira, ha­viam-na traído.

Ranulf sorriu sem muito empenho, como a desculpar-se.

— Thomas não tinha muita certeza de que Milady viria, se soubesse com quem estava prestes a se casar. — Ele deu de ombros e fitou o irmão, provocando-o. — Francamente, não entendo. Meu irmão sempre foi muito pretensioso, mas parece que ele achou em Milady uma antagonista à al­tura. A senhora deixou-o mergulhado em suores nervosos e...

Thomas desceu os dois últimos degraus e deu um tapa um tanto brusco no braço do irmão.

— Já chega, irmãozinho. Já cumpriu seu dever, e eu posso encarregar-me das tarefas de anfitrião daqui para a frente.

O tapa foi suficiente para Ranulf abandonar as indiretas, mas não alterou o sorriso caçoísta.

Alyce voltou-se para Thomas, irada.

— Foi uma crueldade de sua parte fazer-me vir até aqui, deixando-me pensar que eu estava pres­tes a casar-me com um estranho.

— E teria vindo com maior boa vontade se lhe dissessem que o noivo era aquele a quem a senhora conhecia como Thomas Havilland? — ele indagou.

Ela teria ficado mais contente se o chamado Thomas Havilland houvesse vindo até ela por con­ta própria. Explicado a ausência prolongada e ter-lhe dito novamente as palavras que ouvira dele, antes de ele tê-la deixado em Sherborne. Aquilo não parecia lógico para um homem, quanto era para ela? Embora, para ser honesta, ela não o encorajara nem um pouco quando ele lhe decla­rara seu amor.

Ela observou-o, à procura de uma resposta. Tho­mas envelhecera naqueles três meses. Não se lem­brava de ter-lhe visto as pequenas rugas ao redor da boca. Talvez tivesse sido porque passara dois dias olhando para o irmão mais moço. Juntos, a semelhança era indiscutível. Ela deveria ter adi­vinhado imediatamente da existência de algum parentesco.

Ranulf e Thomas esperavam por uma resposta.

— Nenhuma mulher quer ser forçada a se ca­sar... independente de quem seja o "noivo — ela afirmou, pesando bem as palavras.

Thomas não se surpreendeu. De certo modo, ele já esperava uma declaração daquele tipo.

— Apesar de tudo, a senhora veio.

— Não tive escolha. — Alyce fitou Ranulf.

— Não faz nem um minuto que acabei de tirar os grilhões de suas mãos e pés — Ranulf caçoou.

Nem Thomas nem Alyce estavam de bom humor.

— O rei acha que a senhora ficaria mais segura sob a proteção de um marido, principalmente se considerarmos os interesses insistentes de Dunstan — Thomas ponderou.

— De fato, quando chegamos, tivemos de ex­pulsar seu amigo barão — Ranulf interveio, para corroborar a afirmativa de Thomas.

— Dunstan em Sherborne? — Thomas fitou o irmão com espanto e voltou-se para ouvir uma explicação de Alyce.

— É evidente que o barão e o senhor têm a mesma opinião... — ela afirmou com sarcasmo — ...de que eu preciso de proteção. A única diferença é que ele acha que deveria ser o escolhido.

Thomas aproximou-se para resmungar.

— Por quanto tempo ele esteve lá? Ele a machucou?

Alyce olhou para Ranulf de soslaio e decidiu que não se importaria que o irmão mais novo ou­visse a resposta.

— Se o senhor quis insinuar se ele teve tempo de impor sua vontade, devo dizer-lhe que a che­gada de seu irmão foi mais do que oportuna para prevenir qualquer avanço. Thomas descontraiu-se.

— Graças a Deus! Dunstan lhe ofereceu algum tipo de resistência? — eJe perguntou ao irmão, como quem achava que o jovem cavaleiro não teria dificuldades em rechaçar um oponente do calibre de Dunstan.

— Não. Infelizmente o bastardo nem se aven­turou a lutar conosco. Acho que ele ficou atordoado ao saber que Ricardo havia voltado. Principalmen­te depois do que ele e João fizeram para impedir que isso ocorresse. Tudo o que desejava era sair correndo para contar a novidade para o príncipe. Thomas voltou a falar com Alyce.

— Alyce, a senhora pode não gostar de minhas táticas, mas, acredite em mim. Sempre agi com a senhora com a melhor das intenções. O rei está fa­lando em deixar o país novamente. Se isso se con­cretizar, a senhora voltará a ficar à mercê do prín­cipe João e de Dunstan. Tenho certeza de que seria uma situação que não a agradaria nem um pouco.

— Por esse motivo tenho de aceitar um marido que me proteja de outros homens?

— Isso mesmo — Thomas concordou, com au­toridade e não demonstrou entender a indireta.

Eles se entreolharam por alguns instantes.

— Muito bem — Ranulf interrompeu, batendo as mãos espalmadas para tirar o pó. — Agora que eu reuni os dois pombinhos, nada mais justo do que sair à procura de um jarro de cerveja e de alguma companhia agradável. Gostei muito de viajar com a senhora, Milady.

Alyce ofereceu a Ranulf um belo sorriso.

— Muito obrigada por sua gentileza, Ranulf, e por sua paciência com Lettie.

— Ah, lady Alyce, fui eu quem não teve escolha. — Ranulf deu uma piscadela. — Pelo olhar feroz de sua ama, receei que ela me castrasse, caso eu me recusasse a trazê-la junto para proteger Milady.

A senhora em questão aproximou-se naquele momento, dando ordens a dois servos infelizes, carregados com sacolas e baús.

— Cuidado para não derrubarem nada nesta sujeira — ela comandou. — Não quero que Milady vá ao encontro do rei vestida com trapos manchados.

Ranulf e Alyce trocaram sorrisos.

— De qualquer forma — Alyce estendeu a mão para o jovem —, sou-lhe muito grata.

— Ranulf, parece que ouvi dizer que iria tomar cerveja — Thomas criticou, irritado por Alyce ter cumulado o irmão com tantas gentilezas e sorrisos.

— Eu também gostaria de refrescar minha gar­ganta — Alyce dirigiu-se a Ranulf.

Ranulf levantou os ombros, sem saber o que fazer, e deu uma olhadela para o irmão. Porém, não pôde deixar de sorrir satisfeito, quando tomou a mão de Alyce e a pôs sobre o próprio braço.

— Então iremos juntos à procura da bebida, Milady. Precisamos tirar a poeira da estrada e molhar a garganta. — Por sobre o ombro, ele falou, despreocupado. — Se quiser, Thomas, pode vir conosco.

Thomas, frustrado, bateu na coxa com impa­ciência e virou-se para segui-los. Os três atraves­saram a enorme porta principal do castelo.

— O senhor mandou me chamar, sir Thomas? — Lettie indagou, com uma preocupação mais do que evidente.

Thomas ficou em pé, quando a mulher de baixa estatura entrou no pequeno recinto onde ele a esperava. Ele fez um sinal para que ela se sen­tasse. Ela obedeceu, pouco à vontade com a quebra de protocolo entre um senhor e uma criada.

— Mandei. Eu gostaria de falar com a senhora. Ela ergueu o queixo. Thomas sorriu. Entendeu en­tão de onde Alyce havia tirado aquele gesto de desafio.

— Não direi uma palavra contra Milady, sir Thomas. Não adianta. Desse modo, o senhor não deve esperar nada de mim. — Em seguida, ela tentou explicar-se, quase de um fôlego só. — Ela pode ser teimosa, é verdade, mas só porque ela sentiu-se acossada por todos os lados, desde que o pai, lorde Sherborne, morreu... Mas no íntimo ela é uma jovem doce, amável e atenciosa, com um coração tão grande que...

Thomas ergueu a mão para interrompê-la.

— A senhora não precisa perder tempo em ar­gumentar comigo, Lettie. Eu não somente admiro Milady, como também estou apaixonado por ela.

— É verdade, senhor? — Lettie perguntou, com os olhos arregalados.

— Isso mesmo. E desde o primeiro momento em que a vi, logo depois de a senhora e ela terem envenenado meus homens.

Lettie corou, profundamente envergonhada pelo ato terrível que ajudara a praticar.

— Aquilo foi uma consequência do desespero, milorde. Ela já havia sido dolorosamente atormen­tada por todos aqueles homens que entravam e saíam, dizendo-lhe o que...

— Lettie, eu não estou culpando Milady — ele interrompeu-a novamente —, e nem à senhora. En­tendo que as senhoras estavam defendendo seu lar.

A velha ama pareceu aliviada, embora um tanto confusa.

— Perdão por fazer-lhe uma pergunta, sir Thomas, mas se o senhor diz que a ama, por que a forçou a vir até aqui?

— Porque quero me casar com ela e não tenho certeza se ela me quer.

Lettie balançou a cabeça contrariada.

— Então o senhor achou que a coisa mais lógica para fazê-la querer se casar com o senhor seria ar­rastá-la por toda a Inglaterra, contra a vontade... — Ela cruzou os braços sobre o busto e fitou Thomas com expressão de censura. — Por que os homens apaixonados parecem ter cérebro de minhoca?

— Eu não sei, bondosa senhora. — Thomas deu um sorriso triste. — Eu já me fiz essa pergunta várias vezes. A senhora acha mesmo que cometi uma tolice em trazê-la para cá?

— Acho — Lettie não titubeou.

— Mas ela nem quis saber de mim, quando eu lhe disse, ainda em Sherborne, que a amava. Como a senhora deve se lembrar, isso foi antes de eu partir com a caravana na missão de libertar Ricardo.

— Ah, meu jovem senhor — Lettie condoeu-se. — Às vezes as mulheres gostam de ser cortejadas um pouquinho. Cortejadas — ela repetiu em tom mais alto — e não arrastadas. Infelizmente, no caso de Alyce, temo que será necessário um pouco mais do que isso. Graças aos absurdos que lorde Sherborne infundiu-lhe ao longo dos anos.

— O pai de lady Alyce?

— Sim, senhor. Ele passou a vida inteira in­sistindo na mesma ideia. Dizia que a única razão por que um homem iria querer casar-se com ela seria para tomar conta do Castelo de Sherborne.

— Será que uma pequena espiada no espelho não a convenceria do contrário?

— Não. Ela está convencida de que os ho­mens querem casar-se com ela só por causa de Sherborne.

— Sherborne é uma herdade feudal modesta

— Thomas observou.

Lettie não gostou da maneira com que ele se referia ao castelo de Alyce, e ele nem ousou men­cionar o fato de que a fortuna de Lyonsbridge podia comprar dez Sherborne.

— Pode ser modesta, sir Thomas, mas é tudo o que Alyce tem na vida. Ela não está disposta a deixar que um homem usurpe-lhe a propriedade.

Thomas suspirou.

— Philip de Dunstan é muito mais rico do que ela. Como é um nobre muito ambicioso, ele poderia até interessar-se pelo castelo, mas ele pretendia

a mão de Alyce.

— Não é assim que Milady enxerga os fatos. O ambiente ficou em silêncio, enquanto Thomas refletia sobre as palavras de Lettie.

— Alguma coisa mais, sir Thomas? — Lettie perguntou, depois de algum tempo.

— O que se deve fazer para convencê-la de que um homem pode se apaixonar por ela pelo que ela é?

— Ah, milorde. — Lettie suspirou e levantou-se.

— Será melhor voltar as suas baladas de amor, se quiser uma resposta à questão.

Lettie fez uma cortesia e saiu do recinto.

— A senhora deveria ouvi-lo, Allie querida — Lettie disse, penteando os cabelos de Alyce. Ela circundava com um fio de pérolas as duas tranças que fizera, nos preparativos para a audiência com o rei Ricardo.

— Eu já o ouvi, Lettie. Ele não é diferente dos outros homens. Já não percebeu que todos só pre­tendem me dominar? Casar-se comigo à força, sabe-se lá com que intenções?

— Alyce Rose, a senhora nunca me enganou antes. Mas com o respeito que devo à memória de seu pai, acho que desta vez está fazendo isso. Ou então, está enganando a si mesma.

Alyce deu um gritinho, quando Lettie, inadver­tidamente, puxou uma mecha com mais força.

— Não estou enganando ninguém, Lettie! Ele é muito mais agradável do que Dunstan, posso lhe garantir, mas tentou me tapear. Nem mesmo me disse o verdadeiro nome e, além do mais, trou­xe-me até aqui como se eu fosse um tipo de mer­cadoria. Como uma prisioneira!

— Allie, eu acho que ele a ama de verdade — Lettie sugeriu com ternura.

— O que quer dizer isso? — Alyce retrucou irritada. — Que ele me quer em sua cama? Ah, quanto a isso não tenho a menor dúvida. Ele quer ser o senhor de Sherborne? Ah, sim, isso também. O que mais é o amor, Lettie? Será que pode me dizer?

Alyce chegou às lágrimas, ao término da frase.

Lettie meneou a cabeça tristemente.

— Alyce, espero que o dia em que a senhora descobrirá a verdade não demore muito a chegar.

Ambas viraram-se para a porta, na direção de onde haviam escutado o som de uma batida. Lettie apressou-se e abriu-a. O homem parado junto à soleira viera com o uniforme de escudeiro real.

— Bom dia, Milady... senhora — ele cumpri­mentou as duas, curvando a cintura. — Vim para escoltá-la, lady Alyce. O rei Ricardo aguarda sua presença.

 

Mesmo habitando um lugar longínquo como Sherborne, Alyce ouvira as histórias sobre o intrépido rei Ricardo. Os nar­radores relatavam como ele mesmo liderara a in­vestida, desembarcando à frente das tropas, para auxiliar as guarnições em Jaffa. Ele era tido como um guerreiro feroz e, às vezes, cruel. Mas também era o preferido dos trovadores, tendo escrito os poemas líricos para muitas das baladas que eles entoavam.

A criada que fora destinada para servir Alyce e Lettie dentro do castelo apinhado de gente dis­sera-lhes que o rei planejava voltar ao continente europeu, depois dos feriados da Páscoa. Pretendia supervisionar suas possessões lá existentes, como também aventara a possibilidade de organizar uma nova Cruzada.

Alyce perguntou-se como o monarca tivera tem­po, nesse pouco tempo de sua estada no país, de ter conhecimento dos problemas de Sherborne, que era certamente um de seus menores feudos. Sem a menor sombra de dúvida, os acontecimen­tos que envolviam o Castelo de Sherborne não teriam merecido a atenção do rei, sem a inter­venção de Thomas.

Alyce foi obrigada a reconhecer que, se não fosse pelo rei Ricardo e por Thomas, teria de continuar sua luta contra Dunstan e o príncipe João. Em­bora não fosse mulher de se intimidar com as ameaças do barão, ela admitiu que a intervenção oportuna dos cavaleiros de Thomas havia-lhe pou­pado aborrecimentos maiores.

Alyce esforçou-se para manter uma postura al­tiva, à medida que se aproximava do grande hall. O vestíbulo impressionou-a pelas dimensões des­comunais e fora a parte do castelo que o rei, du­rante sua estada em Nottingham, havia reservado como local de recepção. Ela sabia que Lettie, que caminhava a seu lado, a fitava com olhar crítico, à espera de que ela soubesse comportar-se com o decoro apropriado.

Alyce confessou a si mesma que preferiria um andar mais saltitante para aliviar a tensão, mas provavelmente não conseguiria fazê-lo, por causa do traje pesado. Ela usava, sobre o espesso fustão de uma bata comprida, um vestido túnica todo bordado com fios de ouro e que pertencera a sua mãe. Muitas vezes ela admirara o traje, quando Lettie expunha o ao ar para tirar o cheiro de mofo, embora nunca tivesse coragem de vesti-lo. Quando elas se preparavam para sair de Sherborne com Ranulf e o resto da tropa, Lettie in­sistira para levarem aquela roupa magnífica. Afirmara, categórica, ser esse o único traje do guarda-roupa dê Alyce adequado para um en­contro com um rei.

O salão gigantesco estava lotado de pessoas, na maioria homens. Alyce viu Thomas imediatamen­te. Em pé na parte frontal do átrio, ele conversava com um homem quase da mesma altura. Mesmo a distância, ela reconheceu os cabelos castanhos espessos e a imponência real do homem a que chamavam Coração de Leão.

Tinha belas feições, mas em seu rosto não se percebia calidez ou bom humor. Ela sentiu os joe­lhos trémulos, enquanto a multidão afastava-se a sua aproximação. Lettie manteve-se para atrás e deixou Alyce caminhar sozinha.

Ela viu Kenton, lugar-tenente de Thomas, no meio da multidão. Mais adiante, junto a um outro grupo, estava Ranulf. O irmão mais novo de Thomas sorriu, à guisa de encorajamento, e deu uma piscadela. Ela continuou a trajetória e tentou não pensar no peso da túnica que lhe cingia os ombros. Altaneira, dirigiu-se para a frente do grande hall. Ao chegar perto do rei, mergulhou em uma reve­rência profunda, que ela e Lettie haviam ensaiado, em segredo e exaustivamente, na noite anterior. — Vossa Majestade permite que eu lhe apresente lady Alyce de Sherborne? — Thomas indagou.

O cavaleiro estendeu a mão, e ela, sem perce­ber como, ergueu-se usando os dedos longos de Thomas como apoio. Ereta, ela não retirou a mão que ele continuava segurando. Alyce sentiu-lhe o calor e a segurança que lhe deram coragem de encarar o rei.

O rei Ricardo não pareceu impressionar-se com ela. Relanceou-lhe um olhar breve, anuiu, voltou-se para um de seus cortesãos e iniciou uma conversa sobre um outro assunto. Alyce sentiu-se atordoada. Então aquele era o homem que, pelas normas da lei e da soberania, tinha o poder total sobre o curso de sua vida! Ele não lhe dera a mínima atenção. Ela se preocupara muito com o encontro real, e o rei nem mesmo a fitara com algum interesse. Alyce ressentiu-se mais por Sherborne, do que por ela mesma.

Thomas notou-lhe a perplexidade e inclinou-se para ela.

— O rei tem muitas coisas em mente hoje — ele sussurrou.

— E, obviamente, não sou uma delas — ela res­pondeu, sem preocupar-se em abaixar o tom de voz.

O som atraiu a atenção de Ricardo, e o rei virou-se para ela.

— Lady Sherborne, sir Thomas está provendo satisfatoriamente suas necessidades?

— No momento, Majestade, não tenho nenhuma necessidade em particular — Alyce respondeu. A alguma distância, atrás de si, ela escutou a tosse aflita de Lettie.

O rei Ricardo pareceu não a ter escutado. Fitava Thomas.

— Agora vejo por que o senhor faz questão de se casar com ela — o rei declarou. — Ela é muito bonita.

Thomas mirou Alyce e desculpou-se com ò olhar.

— Sim, Majestade — ele falou respeitosamente, — Lady Alyce é tão linda quanto inteligente. O senhor fez de mim um homem afortunado.

— Sou um devedor seu, Thomas. — O rei olhou de um para o outro. — E costumo pagar minhas dívidas. Lembre-se que da próxima vez eu é que pedirei um favor.

— Lembrarei, Majestade — Thomas respondeu, com uma pequena mesura.

Ricardo deu por encerrada a audiência e pre­parou-se para sair.

Ela havia sido tratada com tão pouco caso como se fosse uma criada inoportuna, Alyce disse para si mesma, bastante irritada.

Tudo bem que Sherborne fosse um lugar mi­núsculo, provavelmente não merecedor de muitas atenções por parte do rei. Mas ele era seu senhor feudal. Pela lei, ela devia-lhe um compromisso de fidelidade, e o rei tinha obrigação de prover lhe a proteção.

— Majestade — ela pronunciou a palavra com um tom de voz elevado e, de relance, viu Thomas estremecer. — Gostaria de falar lhe sobre esse casamento que o senhor me propõe.

O rei voltou-se para ela, surpreendido. Pela pri­meira vez, ele concentrou-se no poder daqueles olhos azuis. E Alyce entendeu por que ele era capaz de inspirar lealdade entre seus soldados e ódio entre os inimigos.

— Seu casamento? O que a senhora tem a dizer sobre isso, lady Sherborne? — ele pergun­tou calmamente.

Fez-se um silêncio mortal no recinto. Todos para­ram de falar para observar a cena que começava a se desenrolar. Nem mesmo se ouviu mais o farfalhar dos mantos de seda dos clérigos. Alyce pigarreou.

— Não tenho a mínima vontade de me casar — ela explicou impávida, e a raiva escondeu seu tremor.

Não houve mudança na expressão do rei Ri­cardo, porém ele passou a encará-la com maior interesse.

— Isso é verdade? — Ricardo fitou Thomas. — Pensei que o senhor houvesse dito que lady Sher­borne estava de acordo e já havia demonstrado interesse.

Thomas negou, balançando a cabeça, negando.

— Se Vossa Majestade me permite, devo lem­brá-lo ter afirmado que eu era o único empenhado no caso. Não tenho certeza dos sentimentos de Milady.

Ricardo ergueu as sobrancelhas espessas.

— Lady Alyce de Sherborne, a senhora tem al­guma objeção contra sir Thomas?

— Não, isto é... — Aflita, ela procurou as pa­lavras certas. — Não tenho nada contra ele pes­soalmente. Só não aceito a ideia de ser forçada a me casar, com qualquer um que seja.

Para surpresa de Alyce, o rei pareceu mais ca­loroso e deu um sorriso discreto.

— A senhora prefere administrar o Castelo de Sherborne sozinha? — ele indagou.

Ela anuiu, sem emitir som algum.

— Sir Thomas, eu não sou especialmente favo­rável a forçar casamentos entre meus vassalos, se não for do agrado deles. Eu não havia entendido que a dama não era favorável a essa união. Talvez seja necessário reconsiderarmos a ideia.

Alyce foi acometida por uma onda de triunfo, mas também fez-se presente uma inexplicável ponta de desapontamento. A bem da verdade, ela não esperava que o rei desse ouvidos à reivindicação de não querer casar-se. Por consequência, ainda não analisara como haveria de sentir-se, se ficasse livre do compromisso e voltasse para Sherborne como uma mulher independente. E com a perspectiva de nunca mais ver Thomas Brand.

— Queira desculpar-me, majestade — Thomas interferiu —, mas acredito ser uma necessidade imperiosa a realização imediata deste casamento.

— E por quê?

Thomas relanceou um olhar ao redor e achou Ranulf no meio da multidão.

— Diga ao rei quem estava em Sherborne, quan­do o senhor lá chegou — ele ordenou ao irmão.

Ranulf adiantou-se.

— O barão Philip de Dunstan estava lá, com um considerável número de soldados.

A expressão de Ricardo sombreou-se e ele fitou Alyce.

— Ele foi a escolha de meu irmão para a se­nhora, é isso?

Alyce teve a impressão de que terminava seu breve flerte com a liberdade.

— Com certeza, o barão não foi um visitante bem-vindo. Mas posso garantir-lhe, majestade, que meu povo e eu teríamos nos ocupado com ele a contento — ela reagiu orgulhosa.

Ela achou que Ranulf revelaria até que ponto a tropa de Dunstan estava entrincheirada em Sherborne, e onde o barão se encontrava na hora da chegada salvadora dos cavaleiros de Thomas, mas ele não o fez.

— Sir Thomas, lady Sherborne não parece ter receio de Dunstan. Essa seria a única razão para o senhor reivindicar um casamento imediato? — o rei arguiu.

O olhar de Thomas foi do rei para Alyce, pre­vendo, obviamente, que sua vindícia enfraquecia. O cavaleiro inspirou fundo, antes de prosseguir.

— Majestade, posso lhe falar em particular por um momento?

Ricardo mostrou surpresa, mas condescendeu. Fez um gesto ligeiro com a mão direita. Imedia­tamente os homens que estavam ao redor deles começaram a se afastar, deixando espaço para que o rei conversasse com Thomas, sem ser ouvido pelos outros. Um dos cortesãos tomou Alyce delicada­mente pelo braço e conduziu-a para mais longe.

Quando já não havia mais ninguém por perto, o rei tomou a iniciativa de falar.

— Muito bem, Thomas. Queira dizer-me por que devo conceder-lhe a mão de lady Alyce, sendo que essa não é a vontade dela.

— Majestade, a despeito do que ela afirma, acre­dito que Dunstan possa ser uma ameaça perigosa para lády Alyce e para Sherborne. E mais a mais... — ele suspirou e fez uma pausa —, há o fato de que lady Alyce talvez possa estar carregando um filho meu.

O rei ergueu novamente as sobrancelhas grossas.

— Sei... sei — ele falou devagar. — O senhor tem conhecimento de que ela se encontra sob mi­nha proteção, não tem?

Thomas sustentou o olhar do soberano.

— Tenho, majestade.

— Presumo que Milady, nisso pelo menos, tenha sido propensa à boa vontade.

— O senhor me conhece, majestade. E sabe que eu jamais levaria para meu leito uma dama contrariada.

Ricardo ficou em silêncio durante alguns minutos.

— Eu acredito no senhor, Thomas. Mas se ela não teve objeções antes, por que as demonstra agora?

Thomas fez um gesto de exasperação.

— Não tenho muita certeza, majestade, mas suspeito de que ela convenceu-se de que deve ser independente.

Um dos cantos da boca do rei estremeceu involuntariamente.

— O senhor tem certeza de que deseja essa mulher como esposa?

— Tenho, majestade.

O rei fitou Alyce, que os observava a uma certa distância.

— Pelo que pude deduzir, ela não quer ser for­çada ao casamento e ficará mais feliz se o senhor esperar um pouco e, digamos, aproveitar o tempo para cortejá-la.

— Sim, mas nesse período ela certamente terá de enfrentar Dunstan. Eu não quero correr o risco de que venha a acontecer um episódio dos mais desagradáveis.

Ricardo concordou.

— Nesse caso, os esponsais poderão realizar-se esta tarde. O bispo de Westminster encarregar-se-á da cerimónia.

O rei fez um gesto para os cortesãos, que se aproximaram, e apontou para um dos clérigos ves­tido com manto escarlate.

— Excelência Reverendíssima, eu gostaria que ficasse livre esta tarde para um realizar um con­trato de casamento — o rei ordenou.

— As suas ordens, Vossa Majestade — o bispo murmurou.

— O castelo está cheio de gente — o rei dirigiu-se a Thomas. — Mandarei providenciar alojamentos especiais para sua noite de comemoração.

— Obrigado, majestade. — Thomas curvou-se em uma saudação.

Alyce não fora consultada. Ela deu alguns pas­sos à frente, pronta para recomeçar a conversa sobre o seu caso, mas o rei limitou-se a erguer a mão direita.

— Lady Sherborne, estou lhe concedendo em casamento um homem admirável. Espero que esta união seja abençoada e duradoura.

Assim que terminou a frase, o rei virou-se, já envolvido com outros assuntos.

Tudo aconteceu muito depressa. Um noivado não era tão decisivo quanto um casamento, mas os votos foram sacramentados diante de Deus, representado na Terra pelo entediado bispo de Westminster. O prelado mostrava-se visivelmente aborrecido por ter de dispensar o cochilo vespertino em função de um assunto de tão pouca importância.

Alyce usou o mesmo vestido túnica dourado e as pérolas. Lettie fez todos os estardalhaços a que tinha direito, inclusive abusando dos gritinhos histéricos. Enquanto isso, Alyce permanecia ator­doada e incrédula, destituída de sua própria von­tade. Quando o sol chegou ao poente, ela já estava comprometida e sentada ao lado do noivo à longa mesa do rei Ricardo. Compartilhava de um mesmo tabuleiro com Thomas e debicava os pedaços su­culentos de carne que ele cortava para ela, sem sentir gosto em nada.

Eles permaneceram à mesa somente o tempo necessário para cumprir as regras da etiqueta. Fora decidido que seria dada ao casal a privaci­dade de uma pequena casa da guarda, localizada em um dos cantos da muralha do castelo. Thomas havia agradecido a oferenda com um conciso "mui­to obrigado". Ele aceitara os cumprimentos, as congratulações e os comentários irreverentes de seus homens, apertando a mão de todos, com exceção de Kenton e Ranulf, com quem mal falara. O amigo e o irmão mostravam-se visivelmente preocupados com o caráter impositivo do noivado, enquanto o casal saía do recinto enorme.

— Receio que meu irmão tenha cometido um grande erro ao forçá-la dessa maneira — Ranulf argumentou.

Ele e Kenton ergueram as canecas, quando a criada que servia à mesa passou com o jarro de cerveja.

— Ele deve ter raciocinado que não havia escolha — Kenton comentou. — Ricardo está preparado para partir dentro de um mês, e, lady Alyce ficaria no­vamente em perigo. Dunstan, com o aval do príncipe João, estaria livre para novas investidas.

Ranulf concordou, desalentado.

— Eu sei, mas ela pareceu tão infeliz! Será ne­cessário muito convencimento para fazê-la enten­der todos esses pormenores.

Ambos fitaram a porta do hall, por onde Alyce e Thomas haviam saído.

— Quem sabe se dessa maneira vai funcionar — Kenton filosofou. — Seu irmão é perito nessa arte.

— É verdade. Mas duvido que lady Alyce terá disposição para escutar o que ele tem a lhe dizer.

— O senhor ainda é muito jovem, Ranulf — Kenton afirmou com um sorriso. — Se Thomas for inteligente, as palavras não serão exatamente o tipo de persuasão empregado,

O crepúsculo precoce da primavera tornava-se mais longo com o passar dos dias. Ainda havia uma faixa de luz no oeste, quando Alyce e Tho­mas saíram do castelo principal e se dirigiram para a pequena casa de pedra. Nenhum do dois pronunciou nem sequer um monossílabo, e a pe­quena distância do pátio a ser atravessado pa­receu não ter fim.

Durante o jantar, Thomas procurara conversar, mas logo cessara as tentativas, pois Alyce se mos­trava lacónica e distante. Eles saíram sem ne­nhuma cerimónia. Ela nem mesmo se despedira de Lettie.

— Chegamos — Thomas quebrou a quietude da noite, ao abrir a tranca da porta de madeira. — Acredito que será satisfatório. Lettie disse que trouxe algumas de suas... — ele hesitou — ...ah, coisas pessoais.

Alyce não pôde deixar de sorrir. Thomas já en­frentara os guerreiros mais ferozes em campos de batalha sem nenhuma apreensão. Mas ela teve a impressão de que o mundo das possessões femininas era um mistério que ele não ousava enfren­tar. Esse pensamento acalmou um pouco o ner­vosismo acumulado desde a audiência com o rei Ricardo naquela manhã. Sentia as costas e a nuca muito tensas.

Para ser bem honesta, não tinha muita certeza sobre quais seriam seus anseios verdadeiros, ela admitiu para si mesma, ao entrar na pequena casa da guarda.

Durante o ano anterior, pensando na possibili­dade de ter de se casar com o barão de Dunstan, ela jurara que, se não houvesse escapatória, faria o marido arrepender-se até do dia em que nascera.

Mas aquele era um homem velho, asqueroso e diabólico, que pretendia levá-la ao leito nupcial. E não Thomas, o homem que havia beijado uma jovem serviçal chamada Rose e, por esse motivo, transformara a vida de lady Alyce de Sherborne para sempre.

A casa da guarda era simples. Perto da lareira, já acesa, havia uma mesa e cadeiras. A cama era grande e estava preparada com roupa branca e nova. Em cima da pequena mesa-de-cabeceira, uma jarra e dois copos.

Alyce caminhou até o fogo e estendeu as mãos diante das chamas. As palmas aqueceram-se, mas certamente nada poderia esquentar o frio interior. Ela sentia-se ainda mais confusa e sozinha do que após a morte do pai.

Thomas aproximou-se.

— Gostaria de tomar um pouco de vinho? — ele perguntou gentil.

Ela limitou-se a balançar a cabeça.

Thomas também chegou perto do fogo.

— Está muito frio aqui dentro. Vou dar um jeito nisso.

Ele atirou alguns pedaços de lenha cortada ao fogo, esfregou as mãos, ergueu-se e fitou-a. Ela permanecia imóvel como uma rocha, sem demons­trar qualquer tipo de emoção.

— Está cansada, querida? — ele indagou, pro­curando conversar.

Alyce enrijeceu-se mais ainda, se é que isso era possível, ao escutar aquela mostra de carinho. A voz dele estava com o mesmo tom rouco daquela tarde em Sherborne em que haviam feito amor. Con­tra a vontade, sentia o aguçar de seus sentidos.

Ela negou, sem nada falar e continuou fitando as chamas.

Thomas suspirou, dando a volta por trás dela.

— Minha pequena Rose, tão teimosa... O que devo fazer para ter direito a um sorriso seu? Ou pelo menos a uma palavra?

Ela prosseguiu em silêncio.

Thomas aproximou-se e segurou-a pelos ombros.

— Está linda hoje, mais do que nunca — ele murmurou. — Aposto que todos os homens pre­sentes no castelo tiveram inveja de mim.

Uma lágrima solitária deslizou pela face fria de Alyce e brilhou à luz das chamas. Ele viu aqui­lo, tomou-a nos braços e apertou-a contra si.

— Ah, querida, não chore. Como eu poderia tor­nar isso mais agradável? Minha brava Alyce não conseguiu a tão almejada independência, simples­mente conseguiu um aliado para protegê-la do mundo.

As palavras de Thomas eram convincentes, mas Alyce ainda não estava preparada para sucumbir à visão confortante que elas retratavam. As lá­grimas escorreram, e ela ignorou-as, ao responder com voz firme.

— Aliados são aqueles que escolhem unir-se con­tra um inimigo comum. Nós dois somos o conquis­tador e o vencido. Palavras não alteram os fatos.

Ele afastou as mãos dos braços dela.

— Quando fizemos amor em Sherborne, tam­bém sentiu essa relação?

— Não. — Ela o encarou. — Lá foi uma união de iguais.

Thomas passou a ponta do polegar sobre o fio de lágrimas.

— Não fiz isso para deixá-la infeliz, Alyce. Pen­sei apenas em sua segurança. Acha preferível vol­tar para Sherborne e ter de lutar novamente com Dunstan?

— Pelo menos, ele é um inimigo mais fácil de odiar — ela sorriu, por entre as lágrimas.

Thomas imediatamente aproveitou-se da peque­na vantagem que ela lhe oferecia.

— Quer dizer que eu não sou? — ele indagou. Relutante, ela acabou por negar, sem muito entusiasmo.

Ele sorriu aliviado.

— Talvez não consiga odiar-me por saber, no íntimo, que não sou seu inimigo. — Ele segurou-a pela nuca e beijou-a com suavidade. — Inimigos raramente se beijam — ele sussurrou.

Alyce controlou-se para não corresponder ao to­que dos lábios de Thomas, e ele parou de sorrir.

— Sei que a senhora não esqueceu o que houve entre nós. Por que agora haveria de ser diferente, só porque um sacerdote leu algumas palavras para nós?

Era verdade. O bispo dissera as palavras que os havia comprometido, um com o outro. Alyce refletiu se algum dia Thomas chegaria a entender como ela se sentira naquela tarde. Rodeada de estranhos, de homens que haviam determinado uma guinada no curso de sua vida. Ela pensara no pai, que sempre confiara na filha, como se ela fosse tão rija quanto um homem. Nenhum filho de Sherborne teria sido vendido para casar-se.

As lágrimas pararam de fluir. De repente, ela sentiu um cansaço profundo.

— O senhor não é meu inimigo, Thomas, mas também jamais será bem-vindo em minha cama. O senhor obrigou-me a um contrato de casamento, mas não poderá forçar-me a corresponder a seu amor.

Um lampejo de cólera passou como um relâm­pago nos olhos de, Thomas.

— A senhora vai negar a nós dois o que que­remos, só porque não tive tempo de correr sema­nalmente a Sherborne durante vários meses? Por não ser capaz de cortejá-la com sonetos e belas palavras?

— O senhor fez um péssimo negócio, Thomas — Alyce afirmou indiferente. — Houve somente a celebração do noivado. Não foram ditos os votos matrimoniais. Talvez não seja tarde para mudar de ideia e dizer ao rei que deseja uma esposa mais compreensiva.

Thomas apertou os lábios, antes de responder.

— Obrigado por seu conselho, Milady, mas não vou levá-lo em conta. Ao contrário da senhora, sei muito bem o que quero.

A raiva dele era mais fácil de encarar de que a ternura anterior. Ela ergueu o queixo e fixou-lhe um olhar atrevido.

— Otimo para o senhor, sir Thomas. Isso faz do senhor um homem afortunado e incomum, mas não me fará mudar de ideia. Se o senhor me quiser em sua cama esta noite, eu serei levada contra minha vontade, do mesmo modo que o fui ao altar.

Alyce percebeu que Thomas flexionava as mãos postas na cintura. Talvez ele quisesse conter-se para não a sacudir. Ela permaneceu imóvel, sem se amedrontar.

— Nunca forcei uma mulher a ir para a cama comigo.— ele afirmou severamente. — E não há de ser com a senhora que irei fazê-lo.

No mesmo instante, ele virou-se e saiu da casa.

Alyce continuou em pé no meio do quarto, de­sajeitada, à espera de que ele retornasse a qual­quer momento. Passaram-se vários minutos, e ele não voltou. Alyce descontraiu os músculos e deu um longo suspiro. E então? Ela não podia imagi­nar para onde ele iria, se todos no castelo espe­ravam que eles estivessem no leito que fora destinado aos noivos.

Olhou ao redor do ambiente, tentando resolver o que deveria fazer. Poderia voltar ao castelo. Mas certamente o catre no qual dormira na noite an­terior já deveria ter sido emprestado a outra pes­soa, em virtude do número excessivo de moradores e visitantes.

O fogo crepitava e deixava o lugar com um bri­lho aconchegante. Alyce estava com o corpo doído de ficar o dia todo com aquele traje pesado de ouro. A cama pareceu-lhe convidativa. Suavemen­te tentadora. Seu leito de noivado.

Tirou a túnica pela cabeça e jogou-a sobre a mesa. Foi como se tirasse a carga do dia de cima de seus ombros. Alyce atravessou o cómodo can­tarolando uma balada quase dissonante que fora a favorita de seu pai. Deitou-se na cama, enro­lou-se nas mantas e adormeceu.

Thomas andava de um lado a outro, na muralha maciça, antiga e larga que fazia parte das fortificações do Castelo de Nottingham. Do saguão principal vinha o som do ba­rulho da festança que se seguira ao jantar. Mesmo assim, ele não pretendia voltar para lá. Calculava que sua presença no hall haveria de provocar me­xericos, além de deixá-lo em situação ridícula. Todos supunham que ele deveria estar se divertindo com os obséquios de sua noiva. Ninguém poderia ima­ginar que Thomas Brand estivesse perambulando no meio da noite como um fantasma indesejável.

Rememorou, pela décima vez, a conversa que tivera com Alyce. Imaginara realmente que, ter­minadas as legalidades necessárias e aborrecidas da união deles, ela cessaria de lutar contra ele e admitiria que haviam sido destinados um para o outro. Na verdade, houve momentos na casa da guarda em que ele pensara ter-lhe visto um pouco de ternura no olhar. Isso havia ocorrido quando ela parecera corresponder às palavras de ternura e às carícias leves.

No final ela demonstrara ser ainda mais implacável do que ele poderia supor. Talvez ele hou­vesse errado em acreditar que os sentimentos de Alyce vibrassem e uníssono com os dele. Normal­mente, quando uma mulher permitia que um ho­mem fizesse amor com ela, era porque o amava. Mas Alyce era diferente de qualquer mulher que já conhecera. Pelo espírito aventureiro que ela de­monstrava, não seria fora de propósito pensar que houvesse concedido fazer amor com ele por mera curiosidade.

Uma questão se impunha. O que fazer? A noite estava um tanto fria e orvalhada, pela promessa da próxima estação. Ele tivera esperanças de pas­sar aquela primavera em Lyonsbridge e apresen­tar a noiva à família.

Ele escutou passos atrás de si, no piso de pedra. Virou-se instantaneamente, acostumado que es­tava à espreita de inimigos em todos os lugares.

— Calma, Thomas, sou eu. — Era a voz de Ken-ton. O lugar-tenente aproximou-se demasiadamente depressa, para ser reconhecido na escuridão.

— Kenton. O que está fazendo aqui?

Uma espécie de vergonha de ser flagrado sozi­nho na noite de seu noivado fez com que Thomas usasse um tom mais ríspido do que o habitual.

— Vi uma figura aproximando-se do parapeito e vim investigar de quem se tratava. Não esperava que fosse o senhor.

A resposta fora uma questão implícita. Mas Kenton era seu melhor amigo, e Thomas resolveu ser franco.

— Ela mandou-me embora. Eu pensei que de­pois da cerimónia ela esqueceria o ressentimento, mas parece que subestimei a teimosia dela.

Depois de um silêncio breve, Kenton pronun­ciou-se com ironia.

— E o senhor pretende abrir uma trilha neste pavimento de lajes, de tanto andar para cima e para baixo?

— Melhor do que entrar e admitir que fui man­dado embora de meu leito de noivado — Thomas respondeu com um sorriso tímido.

Kenton alçou-se para tomar assento na beirada da muralha.

— Sente-se aqui. Seu andar está me deixando tonto.

Thomas obedeceu. Durante algum tempo, os dois amigos ficaram sentados no parapeito, sem falar. Limitaram-se a olhar as estrelas que apareciam e desapareciam sob as nuvens em movimento.

— Acho que foi mesmo um engano — Thomas finalmente falou.

Kenton estalou os dentes.

— Pensei que houvesse dito que a amava.

— E amo. Mas se ela insiste em ser contra o casamento, de nada adiantará forçar ainda mais a situação. Só fará nossa vida se transformar em um inferno.

— E esse o guerreiro que segurava o flanco em JafFa, em condições desfavoráveis de três contra um?

— Estou começando a pensar que foi mais fácil ganhar aquela batalha — Thomas afirmou tristemente.

Kenton riu.

— Pelo jeito, o senhor preferiria encarar mil turcos em guerra a uma jovem mulher impetuosa e intrépida.

— Todos os dias da semana — Thomas acres­centou, para reforçar a ideia.

— Ah, meu amigo, o senhor me desponta. Nunca o vi entregar-se com tanta facilidade.

Thomas deu de ombros.

— Eu não me entreguei.

— Pois é o que parece. O que o senhor lhe disse?

— Não disse nada. Apenas saí. Kenton revirou os olhos.

— O que lhe disse antes de sair? Seguiu aqueles meus conselhos sobre discursos enfeitados?

Thomas tentou lembrar-se. Dissera quanto ela era linda, não dissera? Não poderia jurar, mas tinha quase certeza que sim.

— O senhor pelo menos lhe disse que a amava, não disse? — Kenton continuou. — O que, diga-se de passagem, foi uma boa coisa.

Será que reiterara o amor que sentia por ela?, Thomas perguntou a si mesmo.

Kenton gemeu frustrado.

Thomas passou a mão na testa e percebeu o suor que ali brotava.

Como podia não lhe ter dito que a amava?, ele pensou, furioso com a própria estupidez.

Kenton ficou em pé.

— Quer saber de uma coisa, Thomas? O senhor merece ficar aqui, no meio da noite, congelando o traseiro, em vez de ficar em uma cama quente ao lado de uma mulher mais do que agradável. E sabe do que mais? Lavo minhas mãos neste episódio.

Kenton deu um tapa no ombro de Thomas e foi embora. Thomas continuou sentado e triste, mirando o amigo afastar-se. Eles haviam crescido juntos, e Thomas, de um modo geral, sempre demonstrara ser o mais desenvolto. Era o líder nos campos de batalha e fora deles. Era o mais rápido nos cál­culos, lia bem e estava por dentro das intrigas da corte. Mas quando se tratava de mulheres, Kenton sempre aparecia rodeado delas.

O amigo estava certo em lhe criticar. Era mesmo um tolo empedernido! Thomas desceu da beirada em um pulo e endireitou-se. Se tivesse sorte, Alyce ainda estaria lá, esperando para dar-lhe uma nova opor­tunidade. Determinado, voltou para a casa da guarda.

Quando ele entrou, só restavam brasas na la­reira, porém em quantidade suficiente para ilu­minar a cama. Alyce não fora embora, mas tam­bém não o aguardava para dar-lhe nova chance. Ela dormia tranquila e profundamente. Thomas percebeu-lhe a respiração suave, pelo leve erguer e abaixar da manta.

Alyce acordou preguiçosamente. Não podia lem­brar-se da última vez que tivera um sono tão re­confortante. Aos poucos, começou a compreender onde se encontrava. Na cama, ao lado de um corpo estendido e quente, em contraste com o ar quase frio do quarto.

De alguma forma, ela não se surpreendeu de encontrá-lo ali. Embora nunca houvesse passado a noite com alguém em seu leito, pareceu-lhe na­tural acordar ao lado de Thomas, encostada nele.

Alyce piscou várias vezes e observou-o sob a luz da manhã. Dormindo, ele parecia mais jovem. Mais do que o homem que cantara baladas românticas ao pé do fogo e do que o cavaleiro ex­periente dos campos de luta que pedira ao rei a mão dela em casamento.

Notava-se em seu queixo a barba por fazer. Os cabelos estavam revoltos, e havia uma madeixa grossa sobre a testa. Sem se conter, ela afastou delicadamente os fios do rosto.

Ele mexeu-se por causa do leve toque, mas não acordou. Ela ergueu-se sobre um cotovelo para vê-lo melhor. A coberta havia escorregado dos ombros e revelava o peito nu e esculpido. A visão fez aumentar a frequência da pulsação de Alyce. Mais uma vez, ela desejou ardentemente ser Rose, a criada. Assim poderia escolher seus amo­res com liberdade, indiferente às considerações de fortuna ou posição social. Gostaria de não ter sido ela quem escutara as divagações sem fim de seu pai, sobre os homens pobres que deseja­vam enriquecer e sobre os ricos que estavam à procura de poder.

"Pai, será que não existem casos nos quais as pessoas simplesmente se apaixonam? O senhor e minha mãe não se amavam tanto? Por que isso só pôde acontecer uma vez?"

Alyce fitou as vigas de madeira no teto, enquanto enviava silenciosamente a pergunta aos céus.

Thomas tornou a mexer-se. De olhos fechados, ele alcançou-a e puxou-a de encontro ao peito. Ela não fez nenhum esforço em contrário. O calor e a força de seus braços eram reconfortantes e des­pertavam-lhe a sensualidade. Alyce sentiu como se lhe pertencesse de verdade. Era muito natural estar ali, deitada ao lado de Thomas, sendo abraçada por ele. Ela esqueceu todos os argumentos em contrário e deixou-se envolver.

Thomas abriu os olhos, surpreso por vê-la junto dele, flexível e desejosa. Ela deu um sorriso leve, e ele, um breve suspiro.

— Alyce? — ele chamou, com a voz ainda grumosa de sono.

— Não — ela sussurrou. — É Rose, Vim acor­dá-lo antes de o sol erguer-se e encontrar-nos aqui, entretidos em nossas brincadeiras.

Thomas virou-a ligeiramente, e ela ficou recos­tada em apenas um dos braços dele.

— Jovem travessa, esta Rose — ele murmurou, — O que acontecerá se sua senhora nos surpreender?

— Ela poderá mandar açoitar-me.

— É verdade. Ela é muito má.

Thomas beijou-lhe o lábio inferior várias vezes, com suavidade. Ele prosseguiu desfiando o rosário de beijos pela face e testa de Alyce. Continuou a carícia pelos olhos fechados e têmporas. Naquela altura, ela já imaginava flutuar em um verdadeiro mar de beijos.

— Ontem à noite eu fiz tudo errado, Alyce — Thomas afirmou com seriedade. — A primeira coi­sa que eu deveria ter dito era que eu...

Alyce não quis saber de palavras e levantou um pouco a cabeça.

— Shh... — ela sussurrou. — Não sou Alyce. Sou Rose, a rapariga atrevida que não quer nada mais além de passar a manhã inteira fazendo amor.

Thomas estava feliz demais para pensar em con­trariá-la. Aquela era a Alyce que ele sonhara em ter nos braços mais uma vez. Era a Alyce que não lhe saía do pensamento durante os dias e as noites insones. Era a Alyce que ele amava mais do que tudo no mundo. Puxou-a para cima dele, e o peso dela pressionou-o sensualmente.

— Gosto de minhas criadinhas bem libertinas — ele comentou com um sorriso, e a rigidez de sua masculinidade reforçou suas palavras.

Ela deu uma gargalhada e, com os cotovelos apoia­dos no peito descoberto, passou as mãos no rosto dele para sentir a barba roçando-lhe os dedos.

— E eu gosto de homens audaciosos — ela afir­mou, com as pupilas azuis cintilando.

— E mesmo? — ele indagou com voz baixa e rouca, estreitando os olhos. Virou-a no mesmo ins­tante e ficou por cima dela, prendendo-a. — Então serei o mais arrojado deles — ele falou, antes de fechar-lhe a boca com um beijo.

Alyce teve a sensação de que o mundo se resu­mia a eles dois. Aquela ânsia desesperada rou­bou-lhe o ar e a razão. Thomas despertou nela o fogo do desejo, com a língua e com os lábios. Ela se contorcia sob ele, querendo mais.

Impaciente, Thomas afastou as cobertas. Jun­tos, eles tiraram as poucas roupas que usavam para dormir, aflitos para sentir o contato das peles nuas. A dele, quente, conservava ainda o calor do aconchego das mantas. A de Alyce, fria, aqueceu-se" em todos os lugares em que era tocada.

Ele afastou o rosto e fez um suave caminho de beijos do pescoço de Alyce até encontrar um dos seios. Despertou-o para a vida, com a ponta da língua.

— Nunca imaginei que uma rosa pudesse ter um gosto tão doce — ele murmurou e depois voltou-se para o outro seio, acariciando-o com a mes­ma intensidade.

Alyce foi invadida por ondas de sensibilidade que se avolumavam, e ela gemeu de prazer. Os impulsos elétricos se sucediam, em movimentos incontroláveis, irregulares e violentos. Thomas sentiu-lhe a angústia ardente e afastou-se apenas para proporcionar a ambos uma união mais ínti­ma. Ela gritava o nome dele que a segurava com firmeza enquanto ela chegava ao fim.

Ele permaneceu imóvel dentro dela, enquanto tornava a beijar-lhe o pescoço, a boca e os seios. Não demorou muito e o desejo começou a crescer novamente. Dessa vez ele moveu-se junto com ela, com impactos toda vez mais enérgicos, até que ambos chegaram ao êxtase.

Por um momento ela ficou totalmente quieta, exausta, e ele também descansou, com a cabeça sobre o busto dela. Nisso, sem nenhum motivo aparente, Alyce começou a rir. Ela sentia-se livre e incrivelmente feliz. Era como se todas as pre­ocupações do mundo houvessem sumido. Ela per­cebeu que ele sorria, de encontro ao seio.

Dali a pouco Thomas levantou a cabeça.

— Essa audácia foi suficiente para a senhora, minha cara Rose? — ele continuou o jogo que os levara às nuvens.

— Foi perfeito — ela confessou com sinceridade e sorriu, encarando-o. — Na verdade, foi divino.

— A única perfeição aqui é você, minha querida. E eu sou o homem mais feliz da Inglaterra, por ter uma mulher maravilhosa que me pertence.

Alyce quase respondeu que não pertencia a ninguém, mas conteve-se. Estava feliz demais para dis­cutir. Só queria ficar deitada com Thomas e rego­zijar-se com o simples prazer que poderia advir entre um homem e uma mulher que se amavam.

— Fico feliz que tenha voltado — ela assegurou.

— Eu entrei aqui ontem à noite, mas seu sono era tão profundo, que não quis acordá-la.

— Ontem foi um dia muito cansativo — ela observou, não sem um traço de ironia.

Ele apertou-a entre os braços e beijou-a delicadamente.

— Minha pobre querida. Pretendo resguardá-la de todas as intempéries que porventura ousem se aproximar. Exatamente por isso quero ser seu ma­rido. Para depositar-lhe aos pés toda a felicidade do mundo e protegê-la de todos os males que pos­sam ocorrer.

— Já me fez muito feliz esta manhã — ela evitou falar em casamento e deu preferência a tópicos não sujeitos a atritos.

— Não tanto quanto fez a mim, minha adorada. Ontem à noite pensei que a teimosa lady Alyce jamais deixaria eu me aproximar. Por que mudou de ideia?

Alyce não pôde responder. Não iria contar que ficara acordada, examinando seu rosto à luz do dia, e que chegara à conclusão de que estava apai­xonada por ele.

— Acredito que pela manhã fico mais bem humorada — ela arriscou insegura.

Thomas deu uma gargalhada.

— Lembrar-me-ei disso. Agora que estou come­çando a conhecer alguns de seus segredos, poderei convencê-la a abandonar o mau humor também em outras horas do dia — ele brincou com um dos seios desnudos e sorriu matreiro — e da noite.

— Não vou jurar, mas acredito que irá conseguir — ela retribuiu o sorriso.

— Bem, e o que acha de testarmos o tempera­mento de Milady — Ele fitou a altura do sol pela janela da casa da guarda — no meio da manhã?

Alyce deu uma risadinha e aninhou-se nos bra­ços dele novamente.

— Tenho o pressentimento de que o meio da ma­nhã também é uma hora do dia bastante auspiciosa.

Thomas beijou Alyce, e eles não conversaram mais durante um bom tempo.

— Pelo que vejo, meu breve sermão de ontem à noite surtiu efeito — Kenton assegurou, ao en­trar no estábulo.

Thomas ajudava um cavalariço a encilhar dois cavalos.

— Acabo de ver lady Alyce praticamente dan­çando no saguão — Kenton continuou — e asso­biando uma daquelas baladas românticas que ela jurava desprezar. E o senhor está com aspecto de um garoto que tenta conseguir, em segredo, uma torta de maçã inteira só para si.

— Não comi nada o dia todo — Thomas con­fessou feliz.

Kenton fez um ar desagrado.

— Isso não é uma atitude inteligente, meu ami­go. Um homem em sua situação precisa de ali­mento. — Ele tirou uma côdea de pão do bolso.

— Tome, coma logo, antes que desfaleça de fome.

Thomas não aceitou a oferta do amigo.

— Um homem apaixonado não precisa comer.

— Oh, não, Thomas! — Kenton deu um gemido. — O senhor foi mesmo atingido pela flecha do amor. Presumo que tenha se saído bem na tarefa de convencer Milady desta verdade.

Thomas terminou de apertar a barrigueira da sela de seu cavalo e examinou a da égua de Alyce, que já estava pronta.

— Nem precisei dizer-lhe nada. O convencimen­to foi feito de outras maneiras.

— Ah, sim. Aquelas outras maneiras também são ótimas. Mas, por favor, Thomas, não se es­queça de confessar-lhe diretamente os sentimen­tos. Isso é tão importante quanto aquilo.

— Se ela fosse sua — Thomas sorriu, sem jeito —, quanto tempo perderia em conversas?

— O tempo que fosse necessário para eu asse­gurar-me de que não haveria mais desentendi­mentos entre nós.

— Esse tempo já terminou, Kenton, Alyce e eu estamos apaixonados e nada irá interpor-se entre nós outra vez.

Kenton deu uma pancadinha nas costas de Thomas.

— Pelo que estou vendo e a minha grande as­túcia permite-me deduzir, o senhor não me con­vidará para cavalgar junto com os dois esta tarde.

— Acertou, Kenton! O raciocínio está corretíssimo, meu amigo.

Thomas apanhou as rédeas dos dois cavalos e saiu do estábulo.

Eles deixaram para trás as ruas lotadas da ci­dade de Nottingham e cavalgaram pela zona ru­ral, deleitando-se com o ar da primavera que se iniciava. Alyce trouxera uma cesta com comida. Eles haviam perdido o horário da refeição da ma­nhã e estavam por demais famintos para esperar o jantar.

Conduziram os cavalos em marcha tranquila, sem pressa e sem direção, felizes por haverem superado as discussões que cercavam o noivado.

Eles poderiam ser muito bem a criada e seu namorado, saindo para um piquenique naquele belo dia, Alyce pensou, radiante de felicidade.

Eles seguiram pela beira de um riacho sinuoso que os levou até uma série de colinas pouco ele­vadas, fora do raio de abrangência do castelo e da cidade.

— Que lugar lindo, Thomas! Parece que desco­brimos uma localidade particular, que será só nos­sa — Alyce comentou.

Ainda atordoada com o amor que haviam en­contrado e usufruído pela manhã, Alyce só tinha vontade de rir e gritar.

— Minha querida, nós já partilhamos de um mundo só nosso.

Ela sentia a felicidade borbulhar dentro de si.

— O dia está magnífico.

— Eu concordo. — Thomas parou o cavalo. — Mas será que existe comida neste nosso universo? Porque, na verdade, hoje foi um dia de trabalho desgastante e sem nenhum reforço alimentar.

Alyce franziu o nariz, fazendo charme,

— Que vergonha, sir, chamar aquilo de trabalho.

Thomas desmontou e aproximou-se para ajudá-la a fazer o mesmo.

— Estou caçoando, amor. Passei uma manhã desfrutando de prazeres tão agradáveis, como há muito não fazia.

Ela deslizou nos braços dele, mas afastou-o, quando ele tentou beijá-la.

— Há muito? — ela repetiu, brava.

— Nunca! Aliás, era isso mesmo o que eu queria dizer. Nunca! — Thomas corrigiu-se.

Alyce riu e ficou na ponta dos pés, à espera do beijo desejado. Ele abraçou-a com carícias sen­suais, e a volúpia acendeu-lhes novamente o de­sejo. Ao final do abraço, ambos estavam sem ar.

— Comida! — Alyce lembrou-o.

Ele se entristeceu, para reagir em seguida.

— É verdade. — Thomas fez uma careta. — Devemos alimentar-nos primeiro.

Alyce fitou-o por sobre o ombro, matreira, enquanto desamarrava a cesta da sela de sua montaria. Ele conduziu os cavalos sedentos até o regato. Ela sen­tou-se na relva e abriu o embrulho feito com um guardanapo grande. Dentro dele havia dois pastelões de carne. Depois tirou da cesta uma garrafa de vinho.

Embora o beijo os houvesse distraído um pouco, ao começar a comer descobriram que estavam fa­mintos. Devoraram os petiscos suculentos até a última migalha e tomaram quase todo o vinho. Quando terminaram a refeição, Thomas encostou-se no barranco com um gemido satisfeito.

— Os anjos do céu não poderiam ter-nos ofere­cido um dia mais delicioso do que este — ele con­cluiu, sorrindo.

Ela pegou-lhe na mão.

— Eu nunca pensei que pudesse ser tão feliz — confessou.

Ele puxou-a para perto dele, até as pernas de ambos se tocarem.

— Isso quer dizer que me perdoou por eu pedir ao rei para conceder-me sua mão em casamento?

Alyce esperou um pouco, antes de responder.

— Eu gostaria que houvesse falado comigo primeiro.

— E o que Milady teria dito? Ela riu.

— Não tenho muita certeza.

— Está vendo? — ele caçoou. — Eu estava certo de fazer tudo a minha maneira.

Ela não concordou, mas também não estava dis­posta a discutir.

— Então a profecia estava certa — ela murmurou. Thomas empalideceu.

— Profecia?

— Sim. Quando voltei ao castelo para mudar de roupa para nosso passeio, Lettie lembrou-me de que a profecia da velha Maeve tornou-se rea­lidade. Lembra-se? Naquela noite em que ela disse que eu seria forçada a aceitar um noivo escolhido pelo rei.

Thomas não se impressionou.

— Minha querida, ela também disse que have­ria lobos ao luar ou qualquer coisa parecida e tão absurda quanto. Isso é bobagem.

— Não, os lobos estavam uivando na noite em que ela teve a visão. A lua estava... — Alyce viu que ele não prestava atenção. — De qualquer maneira, eu teria de casar-me segundo a vontade do rei. Apenas não sabíamos de quem se tratava.

— Mas agora se alegra de que seja eu.

— E... deixe-me pensar se é mesmo verdade — ela fez um pouco de graça.

Thomas pegou-lhe a mão e beijou-lhe a palma. Depois, com olhar malicioso e sem soltá-la, fez os movimentos de alguém que decifrava as linhas.

— Milady, vejo coisas magníficas em seu futuro. Ela riu.

— E que coisas são essas, senhor profeta? Ele virou-lhe a mão para um lado e depois para o outro.

— Vejo que será muito feliz com um homem maravilhoso.

— Maravilhoso?

— Sim, e bonito. Além de corajoso. — Pelo que vejo, também bastante modesto — ela ironizou.

Ele meneou a mão de Alyce mais um pouco, estreitou os olhos e perscrutou atentamente a pele da palma.

— É, talvez não seja tão modesto.

Ela inclinou-se para a frente para fazer o exame junto com ele.

— Viu tudo isso aí?

— Tudo. Ah, ainda vejo crianças. Uma dúzia.

— No mínimo — ela ironizou. Ele tornou a fitar-lhe a mão.

— E, no mínimo.

Ela afastou a mão e deu uma risadinha.

— Acho que o senhor deve continuar confiando em suas habilidades de guerreiro e deixar a qui­romancia para as ciganas.

— Minha querida, não é preciso ser cartomante para prever um futuro feliz para nós — ele asse­gurou, muito sério.

— Espero que esteja certo — ela respondeu, com um suspiro.

— E já me perdoou? — ele tornou a perguntar.

— Primeiro satisfaça minha curiosidade. O que foi que disse ao rei, quando pediu para falar com ele em particular? Por que ele decidiu, de repente, conceder a permissão ao pedido que ele anterior­mente negara?

Thomas demorou-se e não respondeu. Ela fitou-o e desconfiou, surpresa, de que ele escondia algum fato.

— Thomas?

— Tratou-se apenas de uma conversa entre ho­mens — ele assegurou, com desinteresse fingido. — Convenci-o de que lady Alyce precisava de mi­nha proteção.

Alyce sentiu-se invadida por uma onda de frio. Ela fizera a pergunta por fazer. Mas aquilo as­sumira um significado que ela não esperava. Por alguma razão desconhecida, Thomas estava men­tindo para ela.

 

Alyce teve tanta certeza, como tinha e seu próprio nome. Qualquer que fosse o assunto que Thomas falara com o rei, ele deixava transparecer a vontade de não permitir que ela tomasse conhecimento do mesmo.

— Não conversaram sobre nada mais além disso?

— Não. Nem demorei muito para convencê-lo. O rei Ricardo devia-me um favor e qual a melhor maneira de retribuir, senão me concedendo a mão da mulher mais bonita do reino?

As belas palavras agradaram-na imensamente, mas já não estava tão feliz como havia alguns momentos. Estavam de volta todas as suspeitas que seu pai implantara na mente da filha. Thomas não queria que ela soubesse sobre o que haviam conversado. O rei devia-lhe um favor. Ela teria sido entregue a Thomas como esposa por ser bo­nita ou porque o rei queria recompensar um pobre cavaleiro que estava à procura de uma esposa que o poderia tornar um homem rico?

Thomas entendeu que os rumos da conversa dei­xaram-na apreensiva.

— Minha querida, não falemos mais sobre o noivado. E um fato consumado. Esqueçamos o res­to. Voltemos a ser Thomas e Rose, duas pessoas simples que se propõem a aproveitar um dia lindo de primavera.

Alyce concentrou suas energias em um sorriso pálido.

— Eu gostaria que isso fosse uma verdade, Thomas sentou-se e tomou-a nos braços.

— Nós faremos com que seja, doçura. Vamos lá, tome um gole de vinho.

Eles não haviam trazido canecas. Ele desta­pou e inclinou o jarro, e ela tomou um grande gole da bebida. Depois ele se serviu e tornou a tampar o frasco com a rolha. Sem soltá-la, ele inclinou-se para a frente e deixou o recipiente so­bre a relva, a uma distância segura. Depois co­meçou a beijá-la, lentamente.

— Duas pessoas simples — ele repetiu em um murmúrio e beijou-a com maior intensidade.

Alyce não resistiu, mas demorou algum tempo antes que seu corpo dominasse seu cérebro e co­meçasse a responder às carícias de Thomas. Uma vez iniciado o processo, ela se esqueceu dos co­mentários evasivos de Thomas e de todas as de­mais implicações negativas. Concentrou sua aten­ção no sabor dos lábios dele e nas mãos que lhe acariciavam o corpo de maneira sensual.

Ambos desejavam continuar e já não podiam con ter-se.

— Ainda está muito claro — Alyce murmurou. — Poderão ver-nos.

Eles olharam ao redor e riram, semiconscientes de que não seriam vistos da estrada.

— Os coelhos e os pássaros não se ofenderão com nossos jogos amorosos, minha querida — Thomas assegurou-lhe.

Depois, mantendo-se cobertos com as próprias roupas, por uma questão de decoro, eles comple­taram juntos o delicioso caminho até a satisfação.

Mais tarde, enquanto Thomas, deitado, cochi­lava a seu lado, é que as dúvidas de Alyce reco­meçaram. Havia algum tempo, em Sherborne, Thomas dissera que a amava. O amor que haviam feito até poderia confirmar o fato. Mas teria sido esse o motivo verdadeiro por que pretendera se casar com ela? Ou ele seria como todos os homens contra os quais seu pai a advertira tantas vezes? Estaria Thomas pensando em seduzi-la, apenas para apropriar-se de Sherborne?

Sem chegar à conclusão, Alyce sentou-se, sus­pirou e começou a recolher as roupas.

— E óbvio que ele está apaixonado, Allie. Ele a acompanha com o olhar para onde quer que Milady vá. Quando percebe que um dos cavaleiros brinda-a com mais do que uma atenção conveniente à eti­queta, sir Thomas encara o infeliz com tanta ira, que faz o pobre sair em outra direção. Um homem que não ama uma mulher jamais faria isso.

Lettie ajudava Alyce a banhar-se na diminuta tina de madeira. Dali a pouco, ela e Thomas iriam reu­nir-se com o rei para a refeição noturna no grande hall. Como fizera durante a vida inteira, Alyce com­partilhava todas as dúvidas com sua confiável ama-seca, que sempre dava à ré um tempo curto para a confissão e absolvição de seus pecados.

— Ele pode ser ciumento e ainda assim cobiçar a herdade de Sherborne — Alyce contrapôs. — Pode-se ter ciúme de uma propriedade. Isso não quer dizer nada.

— E o que há de errado se ele estiver apaixo­nado por Milady? Meu amor, ao contrário do que seu pai sempre tentou ensinar-lhe durante a vida inteira, não é vergonha alguma ter-se um pouco de ambição.

— Mas como poderei ter certeza de que ele me quer tanto quanto almeja Sherborne?

Lettie esfregou as costas de Alyce com certa força.

— Minha jovem ingénua e teimosa... Qualquer homem que tenha olhos para ver e uma cabeça para pensar não poderá deixar de querer Milady por si mesma. Se a senhora ainda não percebeu isso, talvez nunca chegará a entender. Neste caso, será melhor voltar a Sherborne e continuar sua vida até ficar uma velha solteirona enrugada, como esta sua ama-seca.

Alyce virou-se e sorriu para a mulher idosa.

— Querida Lettie, a senhora não está nem um pouco enrugada. E ainda vai demorar muito tempo antes que eu permita que a senhora se chame de velha. Nós duas vamos envelhecer juntas.

— Não lhe desejo esse tipo de vida, Allie — Lettie salientou com tristeza. — É importante amar e ser amada. É preciso estender esse amor aos filhos e netos. Mas para que isso tudo acon­teça, o ser humano tem de ter fé no amor em si. E para seu próprio bem é melhor começar a acre­ditar um pouco mais no homem que se tornará seu marido.

Alyce estremeceu e sentiu frio na pele molha­da. Enfiou-se dentro da água e voltou à questão original.

— Mas por que ele não quer me contar sobre a conversa com o rei Ricardo?

— Acho que Milady deveria perguntar-lhe. Ago­ra endireite-se. — Lettie virou-se para um lado, para não encarar a pupila de frente.

Alyce sentou-se, espalhando água para fora da tina.

— Lettie, a senhora sabe de alguma coisa e não quer me dizer?

A bondosa ama sacudiu a cabeça.

— Não exatamente — Lettie hesitou.

— Pois pode ir tratando de contar — Alyce or­denou, de braços cruzados.

.— Allie, para ser honesta, eu não sei de nada. Como eu já lhe disse, sir Thomas está apaixonado por Milady. Isso é mais do que evidente e salta aos olhos de todos.

— Mas então, o que a senhora andou escutando? A hesitação da outra foi bem significativa.

— Bem... tenho de confessar que, ontem à noite, depois da saída de ambos do vestíbulo, houve co­mentários por parte de alguns cavaleiros.

Naquela altura, Alyce já tremia de verdade, em­bora não desse ao fato maior atenção.

— Que tipo de conversas?

— Eles disseram que era uma sorte Sherborne estar em mãos seguras... Sabe, Milady, eu não compreendi bem o significado daquelas palavras. Era conversa de homens.

A expressão de Lettie deixava claro que ela se recusava a prosseguir no assunto, mas Alyce não se deu por vencida.

— A senhora entendeu perfeitamente tudo o que eles falaram. Então, faça o favor de me contar.

Lettie suspirou e alcançou uma toalha.

— Eles asseguraram também que Sherborne, embora seja uma propriedade pequena, serviria como ponto estratégico importante para garantir o noroeste para o príncipe João. É por isso que o castelo interessa tanto ao barão de Dunstan.

Não era difícil imaginar o restante.

— Agora que o rei Ricardo pensa em voltar para o continente — Alyce comentou, em voz calma —, o reino ficará vulnerável, entregue ao príncipe. Nesse caso é melhor Sherborne permanecer sob o comando de um aliado de Ricardo.

Lettie mordeu o lábio.

— Era mais ou menos isso que eles comentavam — a criada admitiu.

— E um partidário bastante confiável como sir Thomas Brand — Alyce concluiu.

— Alyce... — A outra suspirou resignada. — Isso não quer dizer que ele não a ama.

Alyce não respondeu. Lettie ajudou-a a erguer-se, e ela se enxugou, enquanto pensava.

Quando conhecera Thomas, ele viajava arris­cando a vida, sob um nome falso e arrecadava dinheiro para pagar o resgate do rei. Ela com­preendia que a lealdade dele para com o rei era sincera e sujeita a qualquer tipo de prova. Tanto que pretendia submeter-se a um casamento, pois aquilo correspondia aos interesses de Ricardo. So­bre isso, não restava a menor dúvida.

Mas essa teria sido a única razão para ele querer esposá-la? Lettie dizia que ele estava apaixonado e Alyce até concordava com a ama, ao lembrar as demonstrações dele nos momentos mais íntimos.

Recordou a primeira vez em que haviam feito amor, em Sherborne. Haviam sido momentos ma­ravilhosos em que ela experimentara uma proxi­midade com outro ser humano, que lhe era total­mente desconhecida. Mas, de repente, aquela in­timidade fora destruída. Pela conversa sobre a traição de Dunstan e sobre os deveres de fideli­dade de um certo cavaleiro. A discórdia não fora resolvida, e Thomas partira, a serviço de seu se­nhor feudal, o rei Ricardo I.

Alyce saiu da tina e sentou-se na beirada da cama, enquanto Lettie enxugava-lhe os cabelos longos.

— Milady dará uma chance para ele, não é mes­mo? — Lettie perguntou finalmente, depois do si­lêncio prolongado. — Allie, esta é também a sua oportunidade de ser feliz.

Alyce refletiu sobre a tarde que eles haviam passado à beira do rio. Depois de saciados em seu amor, Thomas ficara abraçado com ela durante um bom tempo, segredando-lhe ao ouvido uma balada de amor.

— Eu a amo, Alyce Rose — ele dissera depois, com muita convicção.

Era evidente que não se tratava de nenhuma encenação ardilosa.

— Sim, Lettie. Eu farei o que me pede. Lady Alyce de Sherborne rezou com fervor para que Lettie estivesse certa.

Philip de Dunstan amassou a mensagem e ati­rou-a no chão da sala que reservava para a ad­ministração e contabilidade do castelo. O homem que trouxera a nota ficou em dúvida se corria para recuperar a página para seu senhor ou se a deixava na poeira onde havia caído.

— Quando isto chegou? — ele perguntou ao ra­paz amedrontado.

— Não faz nem uma hora, milorde. O mensa­geiro veio por parte direta do príncipe.

— Ele está tornando-se um covarde — Dunstan escarneceu de seu comandante.

O funcionário arregalou os olhos e hesitou um pouco, antes de concordar.

— Sim, mi... milorde.

Dunstan ergueu-se e bateu cornos, dois punhos na mesa de carvalho.

— Eu lhe disse que ele precisava tomar atitudes imediatas para manter suas forças de prontidão. Assim que Ricardo partir, deveremos estar pron­tos para marchar. Mas o janota deixa-se ficar em Londres para os feriados da Páscoa e recusa-se a ouvir-me. Assim jamais chegaremos a atingir nos­sos objetivos!

— Talvez ele tenha receio de irritar o rei — o jovem aventurou-se a comentar.

— E, deve ser isso mesmo. E talvez ele não mereça a coroa que venho tentando colocar em sua cabeça — Dunstan rugiu, aproximando-se do infeliz. O rosto do barão tornara-se quase tão ver­melho quanto a túnica que vestia. — O tempo que ele desperdiça com frivolidades está me cus­tando uma noiva.

O rapaz recuou, para não ser atropelado por seu enraivecido senhor, que caminhava a passos largos em sua direção.

— Quem sabe se a mensagem não terá sido um engano, milorde. Não se fazem casamentos na igreja durante a Quaresma...

— Foi um noivado e não um casamento! — Dunstan berrou. — O que quer dizer que Thomas Brand deu o primeiro mergulho no pote da deli­ciosa lady Alyce de Sherborne!

O coitado do mancebo encolheu-se, ante a eru­dição religiosa de seu senhor. Afastou-se o mais que pôde para o lado da porta, sem entretanto sair do recinto. Apesar disso, Dunstan continuou avançando.

— Aquela meretriz tinha de ser minha! — o barão continuou, irado, e com o dedo em riste. O tímido servo encolheu-se mais um pouco, devido à figura imponente que assomava a sua frente.

— Sim, milorde.

— E pode ter certeza de que será — Philip de Dunstan concluiu, subitamente calmo. A verme­lhidão sumia de suas faces. Ele endireitou-se, com um sorriso aterrador. — E será — ele repetiu.

O serviçal apavorado inclinou a cabeça várias vezes, em concordância total com o amo. Depois de alguns instantes, diante do gesto dé dispensa do barão, ele saiu correndo do quarto, com um suspiro de alívio.

Não foi difícil manter a promessa feita a Lettie. Perto de Thomas, Alyce esquecia suas dúvidas e temores. Seu coração facilmente se esquecia dos motivos que ele poderia ter para querer se casar com ela. Alyce tinha em sua mente apenas o fator de quanto o desejava. Na verdade, havia se tor­nado quase embaraçoso a evidência de que os dois não podiam ficar muito tempo um sem a compa­nhia do outro. Unia vez juntos, tinham de refu­giar-se em algum lugar seguro e saciar a inevi­tável onda de volúpia de que eram tomados.

— Thomas, nós somos responsáveis pelo maior escândalo de Nottingham — ela declarou, enquanto estavam deitados na cama, na manhã de Páscoa.

Todos os moradores e visitantes do castelo ha­viam ido à igreja, presenciar a abertura do se­pulcro nas comemorações da Páscoa e o retorno da cruz ao altar.

— A corte sempre acha alguma coisa para bisbilhotar — ele comentou, despreocupado, en­quanto se entretinha em fazer uma trança nos cabelos dela.

Ele havia puxado as longas madeixas para a frente, onde elas passaram cobrir os seios nus. Ao fazer o seu trabalho, ele ocasionalmente tocava nos botões róseos e eretos do busto dela.

— Eles dizem que não fazemos mais nada, a não ser ficar deitados na cama o dia inteiro, fa­zendo amor — ela protestou.

Thomas parou de fazer as tranças e encarou-a, sorrindo.

— Eles estão todos mortos de inveja.

— Estou falando sério. Lettie já ralhou comigo mais de uma vez. Ela me disse que o povo pensará que sou uma mulher dissoluta.

— Absurdo. Lady Alyce tem sido a mulher de um homem só e além disso está comprometida com ele. Não há nada de escandaloso nisso,

— E que parecemos... querer a toda hora. Acha isso normal?

Thomas retomou a tarefa, rindo.

— Qualquer homem casado com Alyce Rose, e que não a quisesse o tempo inteiro, não seria normal.

Alyce fechou os olhos e ficou deitada sem se mover. Gostava dos movimentos leves das mãos dele e de seus cabelos de encontro à pele. Os ma­milos endurecidos já mandavam sinais impercep­tíveis para o corpo inteiro. Ela esforçou-se para pensar em outra coisa e ignorar o desejo, já ha­viam feito amor duas vezes naquela manhã. Tal­vez tais excessos fossem normais para um homem, mas ela não tinha muita certeza de que seriam decentes para uma mulher.

Ela abriu o olhos.

— Ouça-me. Esta manhã deveríamos estar na igreja. O que as pessoas dirão de nós?

Ele terminou a trança, sem responder à pergunta.

— Com o que podemos amarrar isso? — ele perguntou, relanceando um olhar ao redor.

— Em cima daquela arca há um elástico.

— Muito longe. — Ele franziu a testa. — Terei de sair desta cama quentinha. — Em vez disso, ele começou a acariciá-la com a ponta dá trança. Primeiro o queixo e depois o nariz. — Está muito frio para levantar.

— Mas o que as pessoas dirão? — ela insistiu preocupada.

Thomas fez um caminho com a ponta das me­chas trançadas, do queixo até o vão entre os seios.

— Agora que a Quaresma terminou, podemos seguir adiante com o casamento. Então ninguém terá o direito de dizer nada.

Os cabelos fizeram cócegas, e Alyce sentiu um frio ligeiro percorrer-lhe a pele nua até os pés.

— O senhor está ansioso para se casar? Alyce teve a impressão de que Thomas prestava pouca atenção à conversa. Naquele momento ele usava o tufo de cabelos para brincar com os ma­milos prontos para estourar.

— Ah, sim — ele respondeu distraído. — Ri­cardo partirá em breve. Será melhor fazermos isso antes da partida.

Melhor para quem?, ela perguntou-se. Para Aly­ce e Thomas começarem uma vida feliz juntos? Ou só para Thomas Brand, leal servidor do rei?

Alyce estremeceu.

Ele riu, abandonou o trançado dos cabelos e tomou-a nos braços.

— Perdoe-me, minha querida, não pretendia fa­zer-lhe cócegas. Agora está com arrepios.

Ele puxou-a para perto de si e enrolou as co­bertas sobre ambos.

— Não me importo — ela falou e tentou afastar da memória o assunto do casamento.

— Não? Então talvez eu encontre outras ma­neiras de torturá-la. — Ele mexeu as sobrancelhas de maneira sugestiva e maliciosa.

Ela riu com a zombaria dele e logo esqueceu completamente o que a atormentava ou qual­quer outro assunto que necessitasse algum tipo de raciocínio.

Uma hora mais tarde, quando eles, relutantes, saíram da cama, os cabelos cuidadosamente tran­çados não passavam de uma mera recordação.

A semana entre a Páscoa e a Pascoela eram dias santos comemorados pelos aldeões da cidade e do condado. O Mercado de Nottingham funcio­nava durante os oito dias. Várias festividades ha­viam sido planejadas, incluindo-se jogos, uma peça encenada por atores e torneios de combates si­mulados com quintanas, que eram os manequins usados como alvos para adestramento. Na Páscoa, várias delegações da cidade traziam ovos de pre­sente para o rei. Ricardo abria o grande salão para alimentar tantos cidadãos proeminentes quantos nele coubessem.

Thomas e Alyce passavam alegremente de uma atívidade para outra, embora encontrassem sem­pre algum tempo para os entretenimentos mais íntimos. Ele não tornara a mencionar o casamen­to, embora já houvesse passado o tempo de proi­bição durante a Quaresma. A essa altura, a ce­rimónia poderia ser realizada em qualquer dia.

Alyce achava ótimo não ter de encarar a ques­tão. Mas com a primavera em flor nos arredores de Nottingham, ela pensava frequentemente em Sherborne. As sementes de aveia, ervilhas, feijões e cevada já deveriam ter sido plantadas. Imagi­nava o que Alfred e Fredrick estariam fazendo na ausência dela. Teria Fredrick dado prossegui­mento aos planos para plantio no sistema de três campos? Teriam florescido o trigo e o centeio que ela havia plantado no início do inverno?

Thomas percebeu-lhe a distração. Eles estavam sentados em uma encosta e observavam as cenas do quadro vivo, onde atores representavam a clás­sica batalha de São Jorge contra o dragão.

— Está cansada, doçura? — ele perguntou-lhe e aproveitou para caçoar. — A culpa é sua por ter-me acordado no meio da noite.

— Podemos disputar para ver quem é que acor­da quem — ela censurou, sorrindo.

Os atores estavam retirando de cena os frag­mentos do dragão derrotado, que não parecia mais nem um pouco feroz, largado em pedaços na relva.

— Se está cansada, podemos voltar ao castelo e descansar durante a tarde — ele sugeriu.

— Hum... Tenho minhas suspeitas sobre suas intenções, sir Thomas.

— A senhora é inteligente. — Ele fez uma careta.

Alyce respondeu com um sorriso triste. Ela ha­via sido muito feliz naqueles dias e se esquecera de tudo que não fossem os novos prazeres apren­didos com Thomas. Mas já era hora de tomar al­gumas decisões. Era responsável por Sherborne e por ela mesma. Se Thomas iria ser mesmo seu marido, ela teria de começar a reconciliar-se com a ideia. Não adiantava mais sepultar o assunto como se ele não existisse. Já era tempo de voltar para casa.

— Quando o rei vai partir? — ela perguntou a Thomas.

Ele pareceu surpreso com a questão.

— Acho que deve ser logo. Ele tem-se afastado diariamente para conversas particulares com os ministros. Não compareceu nem para aproveitar os feriados.

Alyce inspirou fundo.

— E o senhor quer que ele compareça a nosso casamento?

— Sim, eu gostaria muito. Seria uma grande honra. — Ele fitou-a circunspeto. — Embora isso não seja imprescindível. Farei o que a senhora achar melhor. Quero apenas deixá-la feliz.

Ela olhou para baixo da encosta. A clareira de relva que servira de palco estava vazia, exceto por alguns pedaços do rabo do dragão que haviam sido esquecidos.

— O plantio da primavera deve estar termi­nando em Sherborne — ela explicou.

— Ah, imagino que sim. E a senhora de Sher­borne deve estar ansiosa para ver se tudo foi bem feito. — Ele inclinou-se e beijou-a no rosto. — Doçura, sei que negligenciamos nossos deveres nestes últimos dias, mas achei que precisávamos de um tempo para nós dois.

Ela anuiu e alisou a saia, procurando as pala­vras certas.                                                

— Mas como o senhor mesmo disse, até o rei es­colheu as obrigações em lugar dos divertimentos. Não podemos esquecer do resto do mundo para sempre.

— Não, não podemos — ele repetiu e suspirou. — Fui convocado para o conselho de Ricardo de hoje à tarde. Poderá me perdoar?

— Talvez então eu vá dormir... de verdade. Ele levantou-se e estendeu a mão para ajudá-la a fazer o mesmo.

— Bem, então vamos voltar ao castelo. Ah, por que me perguntou se eu queria o rei presente a nosso casamento?

Ela ficou em pé e com as mãos retirou a grama seca da parte de trás do vestido.

— Porque se é o que temos de fazer, então que seja logo — ela afirmou determinada.

Thomas demonstrou claramente sua alegria.

— Juro que desta vez não a pressionei! Não queria arriscar-me novamente a ser atirado fora de minha cama de noivado.

— Prometa que nunca entristecerá meu coração, e prometerei nunca mandá-lo embora de nosso leito.

Ele endireitou os ombros e, indiferente aos muitos aldeões que ainda se encontravam por ali mesmo depois de terminado o espetáculo, bei­jou-a longamente.

— Eu lhe prometo, meu amor. Seu coração es­tará sempre seguro a meus cuidados.

Eles escolheram o vestido túnica feito com fios de ouro. Lettie afirmara ser aquele o único traje adequado a um casamento que contaria com a presença do rei.

Lettie agitara-se ao redor de Alyce a manhã inteira, o que em nada havia colaborado para acal­mar o nervosismo da noiva. Apesar de Thomas haver lhe prometido que jamais iria decepcioná-la, ela se debatia entre as muitas dúvidas que lutara para afastar naqueles dias felizes. Viera-lhe de novo à mente o que Lettie lhe contara. Da im­portância de Sherborne tanto para o príncipe João quanto para o rei.

Deveria ter conversado claramente com Thomas a respeito mas, com sua concordância em casar-se, os acontecimentos transcorreram com muita rapidez e não houvera tempo para diálogos mais prolongados.

Thomas passara a tarde anterior com Ricardo e quando voltara, havia declarado com um sorriso triunfante que o casamento realizar-se-ia no dia seguinte, com a presença do rei e de todos os mi­nistros. Em seguida viera o jantar, com Kenton e Ranulf disputando para ver qual dos dois fazia os maiores brindes para os noivos.

Thomas acompanhou-os em todos os lances, co­rado e feliz. Bem mais tarde, ele e Alyce retira­ram-se para os aposentos, com o noivo um pouco mais do que simplesmente alegre. Thomas mur­murou uma desculpa e adormeceu imediatamente, sem ao menos dar-lhe um beijo de boa-noite.

Ao acordar, ele estava pesaroso, mas também apressado para um encontro com o rei, para estabe­lecer as estratégias finais. Ficara acertado que, logo depois da cerimónia, o casal iria para Sherborne.

Tudo aquilo deixava Alyce confusa e um tanto arrependida de sua decisão. Mesmo assim, per­mitiu que Lettie tecesse suas fantasias românti­cas, como convinha a uma jovem que estava pres­tes a fazer o juramento que iria lhe alterar a vida para sempre.

— Ah, Allie, sua santa mãe deveria estar aqui para vê-la. Iria ficar tão orgulhosa! Seu pai também, é claro. Mas sua mãe iria ficar felicíssima de ver como a filha tornou-se uma mulher bonita e que belo homem ela encontrou para ser seu marido.

O sorriso de Alyce foi triste.

— É, uma jovem sempre gostaria de ter a mãe por perto em um dia como o de hoje. O que pode haver de mais importante para ela de que um casamento lindo como esse?

Alyce levantou-se da cadeira onde estivera sen­tada para Lettie dar-lhe os últimos retoques nos cabelos e deu-lhe um grande abraço.

— Embora eu não possa ter minha mãe comigo, tenho a mulher que foi minha mãe por tanto tem­po, que já nem me lembro a partir de quando. Lettie, querida, eu a amo.

A idosa serva limpou as lágrimas com a ponta da manga.

— E eu também a amo, minha menina sapeca. Não quero outra coisa na vida, a não ser vê-la feliz.

— Eu sou feliz, Lettie — Alyce assegurou-lhe. — Se Thomas me ama de verdade, como a senhora garantiu-me, então seremos felizes juntos.

Com uma fungadela resoluta, Lettie fez os úl­timos arranjos na tiara de pérolas que prendia os cabelos de Alyce e depois afastou-se.

— Está perfeito, Allie. Se sir Thomas não a amar do jeito que Milady merece, ele vai ter de se haver comigo!

— E com a população toda de Sherborne, eu acho — Alyce deduziu, com uma risada. — Sou uma felizarda, por ter tantas pessoas que me apoiam e que torcem por mim.

Elas ouviram uma batida rápida na porta.

— Está na hora — Lettie avisou, novamente com os olhos cheios de lágrimas.

Alyce caminhou até a porta e abriu-a, pensando que Thomas viera buscá-la. Para sua surpresa, viu Ranulf.

— Onde está Thomas? — ela quis saber.

— Está com o rei — Ranulf afirmou, muito sério. — Estão em reunião com os ministros.

— Eles não podem ir para a igreja agora? — Lettie perguntou, de cenho franzido.

Ranulf sacudiu a cabeça, negando. Os olhos dele, tao parecidos com os do irmão, demonstra­vam preocupação.

— Thomas pediu para eu vir buscá-la, lady Aly-ce. Sinto muito, mas acho que não haverá ceri­monia de casamento hoje.

 

Alyce estava aguardando na antecâmara havia mais de uma hora. Ner­vosa, passara o tempo ora andando de um lado para o outro, ora sentada no poial da janela junto de Ranulf. Nenhum dos dois imaginava qual era o assunto tratado atrás das portas fechadas da sala de recepção do rei.

— Tudo o que sei é que Thomas pediu para Kenton procurar-me, com instruções para eu ir buscá-la e dizer-lhe que o casamento teria de ser adiado — Ra­nulf lhe dissera, com um sorriso à guisa de desculpa.

— Kenton está lá dentro com eles?

— Está.

— Do que podem estar falando? Ranulf encolheu os ombros.

— Alguma coisa importante demais para ser levada ao conhecimento de mulheres e de cava­leiros que ainda não ganharam fama.

Alyce percebeu que ele estava tão ressentido quanto ela por ter sido deixado de fora.

— E crucial o suficiente para adiar um casa­mento que seu irmão professava, até há pouco, querer mais de que tudo na vida — ela declarou.

— E quer, Milady — Ranulf confirmou, com simpatia. — E muito. Ele está loucamente apai­xonado pela senhora.

Alyce deu de ombros.

— Todos me dizem a mesma coisa, menos seu irmão.

Ela ergueu-se de novo e recomeçou a caminhar ao longo do comprimento da sala.

Quando a reunião terminou, Alyce já estava irada. Thomas aproximou-se dela imediatamente.

— Perdoe-me, minha querida — ele pediu per­turbado. — A escolha do momento para essa reu­nião importante foi de uma infelicidade atroz.

— Eu sei — ela concordou. — Não o estou cul­pando por isso.

Ele não pareceu notar a raiva de Alyce.

— Estávamos discutindo táticas de invasão. Eu não deveria revelar-lhe nada, pois é mais seguro para a senhora e para os outros que não tome conhecimento do que se passa. Entretanto preciso dizer-lhe uma coisa.

— E o que é? — ela perguntou, com o rosto em fogo.

— Philip de Dunstan apoderou-se de Sherborne. Alyce engasgou e deu um passo atrás. Pensara que os problemas com Dunstan houvessem ter­minado, por estar noiva de Thomas. Mas, pelo jeito, o homem iria atormentá-la pelo resto da vida.

Thomas segurou-a pelo braço.

— Sinto muito. A culpa foi minha. Eu deveria enviado homens para Sherborne, logo depois de nosso noivado. Não podia imaginar que depois da volta de Ricardo... Bem, para ser franco, eu não esperava que Dunstan ainda continuasse a insistir.

— Nem eu — ela teve de admitir. — E quanto a meu povo? Houve violência? Todos estão bem?

Ele assentiu, com um gesto de cabeça.

— Não tivemos notícias de nenhum tipo de re­sistência. Presumo que a senhora não estando lá...

— Foi mais fácil para os homens do barão en­trarem e tomarem conta do castelo — ela concluiu.

— E — Ele estava mal-humorado.

— Vou para casa — ela avisou, resoluta. — Partirei imediatamente.

— De jeito nenhum! — Ele voltou a encará-la. — A última coisa de que precisamos é de seja refém de Dunstan.

— Nessa última investida, quando o barão veio pessoalmente, ele me largou assim que soube do retorno do rei Ricardo. Não acho que tentará al­guma coisa contra mim.

— Não pretendo assumir o risco. Quando foi a Sherborne, ele não tivera tempo de consultar o príncipe João. Agora, sim, houve tempo. E é evi­dente que faz parte da estratégia do príncipe con­solidar seu domínio sobre a Inglaterra.

— É isso que torna um lugar pequeno e remoto como Sherborne tão importante? — ela indagou, mesmo sabendo a resposta antecipadamente.

— Sim. Acreditamos que João está com tudo planejado. Tão logo Ricardo deixe o país, o príncipe não demorará em tomar a coroa.

A cabeça de Alyce latejava, e ela levou as mãos às têmporas.

— Eu não me importo nem com João e nem com Ricardo! Quero somente que deixem Sherborne em paz.

Thomas curvou-se para dar-lhe um leve beijo.

— Assim será, minha querida. Estou indo para lá e cuidarei de tudo. Enquanto isso, procure não se preocupar.

— E como poderia? — ela perguntou desconso­lada. — Acha que eu dormiria em paz, sabendo que as pessoas a quem amo estão correndo perigo?

— Bem... Pelo menos tente. Mandarei notícias o mais breve possível.

— O senhor não terá de mandar-me nenhuma notícia. Pode ter certeza, sir Thomas Brand. Se pretende ir para Sherborne, irei junto.

Ranulf, discreto, permanecia sentado na parte interior da janela, com a intenção de permitir que o casal conversasse em particular. Mas quando viu a expressão do rosto de Thomas, levantou-se e caminhou até eles.

— O que está acontecendo, Thomas? — ele in­dagou, prevendo um contratempo.

— E Dunstan, novamente. Ele apoderou-se do Cas­telo de Sherborne, e minha teimosa noiva está de­terminada a resolver o assunto com as próprias mãos.

— O castelo é dela — Ranulf lembrou concilia­dor. — Acho que lady Alyce tem o direito de ajudar a resolver o impasse.

Alyce agradeceu-lhe com um sorriso.

— Concordo com isso, mas se Dunstan conseguir apanhá-la, é a vida de Alyce que estará em perigo. Ela ficará em Nottingham, em segurança, até que possamos dar uma solução à contenda.

— Não! Eu não vou ficar aqui! — Alyce afirmou categórica, quase soletrando as palavras.

Ranulf fitou os dois que não estavam dispostos a fazer concessões e achou melhor desanuviar o ambiente.

— Então, ainda podemos planejar um casamen­to para esta tarde? -~ ele caçoou.

Não houve nenhum casamento. Alyce partiu com Thomas e os cavaleiros dele rumo ao Castelo de Sherborne.

O rei Ricardo em pessoa decidira o assunto.

— Alyce é a senhora de Sherborne, Thomas — ele dissera com autoridade. — E ela, mais do que ninguém, tem interesse em restaurar as condições de segurança de sua propriedade.

A vitória de Alyce veio à custa da ira de Thomas. Ele mal havia lhe falado, e ela teve certeza de que, se desse o menor motivo, ele a mandaria de volta para Nottingham, de pés e mão atados se fosse preciso. Por isso mesmo, ela permaneceu afastada dele e cavalgou ao lado de Ranulf, a quem Thomas permitira juntar-se à comitiva no último instante, muito a contragosto.

— Alyce, meu irmão só tem a intenção de pro­tegê-la. Ele não faz por mal e nem pretende lhe contrariar — o jovem lhe assegurou, enquanto ca­valgavam atrás do comboio que incluía os cava­leiros de "Havilland" e mais um grande número de soldados do rei Ricardo.

— Eu sei disso e não discuto. Mas tenho o direito de tomar uma decisão quanto ao que me pertence. Ele tem de entender o meu ponto de vista.

Ranulf anuiu com simpatia.

— Ele está acostumado a dizer às pessoas o que elas devem fazer. Além do mais, também sem­pre foi teimoso.

— Turrão, você quer dizer — ela murmurou.

— Acho que Thomas finalmente encontrou uma parceira à altura — ele comentou, fazendo uma careta.

Alyce limitou-se a dar uma imitação de sorriso. Admitia ser ela mesma muito obstinada, mas não se encontrava com disposição para brincadeiras. Estava preocupada com o que poderiam encontrar na chegada a Sherborne.

Depois de uma cavalgada penosa de um dia e meio, eles alcançaram os arredores de Sherborne. Thomas havia enviado alguns homens à frente, com a recomendação de encontrar um lugar isolado para fazer o acampamento. Seria um local para descansar e fazer o reconheci­mento, até que soubessem da situação real de dentro do castelo.

Ele falou pouco com ela, depois da chegada. Ape­nas deu-lhe ciência de que uma barraca fora ar­mada na extremidade do acampamento e que ela poderia utilizá-la se quisesse repousar. Mas Alyce estava preocupada demais para pretender dormir. Durante a tarde, Thomas convocou uma reunião em uma pequena colina próxima ao acampamento, e ela insistiu em comparecer.

— Como o senhor pode ter certeza do que está acontecendo lá dentro? — ela perguntou.

Alyce estava sentada ao lado de Kenton e de mais alguns cavaleiros, longe de Thomas. Ele continuava sem falar com ela até aquele momento, quando a questão proposta não mais permitiu que ele continuasse a ignorá-la.

— Fantierre mandou notícias do que se passava no interior do castelo — ele retorquiu secamente.

— Fantierre ainda está com Dunstan? — ela questionou surpresa. — Achei que ele se reuniria com o rei Ricardo, depois do retorno deste.

Thomas balançou a cabeça.

— Ficou decidido que Dunstan continuaria sen­do vigiado, principalmente porque Ricardo pre­tende partir de novo, sem tardança.

— Ele disse quem são os reféns? — ela fez a pergunta com voz firme, esforçando-se para não demonstrar a aflição que sentia.

As notícias eram de que as forças de Dunstan haviam tomado o castelo pacificamente. Uma tré­gua garantida por força dos prisioneiros feitos pelo barão. Dunstan havia ameaçado com a execução de um dos detidos, caso houvesse qualquer tipo de resistência.

— Há vários — Thomas explicou e suspirou.

— Dois deles são crianças. Um é o despenseiro. Alyce cerrou as pálpebras.

Pobre e querido Alfred. Ele era frágil demais para resistir a uma abordagem violenta.

— Os homens de Dunstan são bons lutadores

— Kenton lembrou a todos. Martin, o Ceifeiro, sorriu, sentado do outro lado de Kenton.

— Não tão bons quanto nós. Eu lhe digo que podemos entrar e subjugar todos.

Thomas não concordou.

— Um ataque irrefletido poderia custar tanto vidas em Sherborne quanto nossas.

— E exatamente com isso que Dunstan e o prín­cipe João estão contando — Kenton analisou. — A Inglaterra está em paz. Ele deve pensar que não cogitamos em iniciar outra guerra civil san­grenta, em voltar aos dias em que saxões e nor-mandos disputavam a hegemonia, por quantas al­deias encontrassem pela frente.

— Ainda que assim fosse, o rei enviou-nos para resolver o problema e não para iniciar uma ba­talha — Thomas retrucou, com calma. — Nesse meio tempo, três outros castelos foram tomados por seguidores de João.

— Eles estão à espera de que Ricardo cruze novamente o canal da Mancha para iniciarem o avanço — Martin interferiu, e vários dos homens "presentes à reunião concordaram.

Alyce sentia-se cada vez mais frustrada com a conversa. Ela não estava preocupada com João ou com Ricardo. Ela só pensava no perigo que seu povo corria. Como estaria Alfred? Quem se­riam as crianças? E ninguém parecia importar-se muito com isso, como também não sabiam o que fazer a respeito.

— Eu mesma falarei com o barão — ela anun­ciou, em voz alta.

Todos os homens sentados em círculo voltaram-se para ela. Alguns sorriram, mas a maioria pa­receu aborrecida.

Thomas nem ao menos se incomodou de comen­tar a oferta de Alyce.

— O rei já enviou tropas para os outros castelos em questão. Nós precisamos de uma estratégia global. Minha opinião é de que Ricardo deveria reunir-se diretamente com o príncipe João. Apesar de tudo, eles são irmãos. Quem sabe se os laços sanguíneos não falarão mais alto?

— Mas desde a infância eles têm sido inimigos — Kenton lembrou.

Thomas ficou em pé.

— Tenho de relatar ao rei o que encontramos. Não podemos fazer nenhum tipo de acordo com João. Só o rei pode fazer isso. — Ele relanceou um olhar ao redor do círculo de homens, passando por Alyce. — Kenton, deixarei o senhor encarre­gado do acampamento. Não saiam daqui. Apenas fiquem tranquilos e esperem até eu voltar com as ordens de Ricardo.

Kenton anuiu, enquanto Alyce pareceu assombrada.

— O senhor vai partir? — ela quase gritou, incrédula.

— Alyce, conversarei com a senhora depois, a sós — ele anunciou.

Tornava-se óbvio que ele não desejava que os outros escutassem a discussão entre ambos.

Os cavaleiros entenderam a indireta. Levanta­ram-se rapidamente e desceram o outeiro, em direção ao acampamento temporário. Dali a instan­tes, Thomas e Alyce estavam sozinhos.

— Como o senhor fala em sair daqui, sabendo que, a qualquer instante, Dunstan poderá tor­turar ou matar minha gente? — ela enfrentou-o, feroz.

Thomas manteve uma expressão inflexível no rosto. Não se parecia em nada com o homem terno e brincalhão com quem ela passara tantas horas fazendo amor, nos últimos dias.

— Não temos escolha. Entrar com a tropa mon­tada certamente faria Dunstan reagir contra os al­deões de Sherborne. Esta é uma hora para diplomacia e por isso mesmo, tenho de voltar a Nottingham.

— Por que não podemos tentar a diplomacia diretamente com Dunstan? O senhor e eu pode­ríamos falar com ele.

— O que lhe daria a oportunidade de fazer mais dois reféns contra Ricardo, desta vez, bem valiosos.

— Meu povo é valioso — ela retrucou, erguendo a voz.

Ele mirou o acampamento na baixada e fez sinal para ela se calar.

— Claro que são, querida. Mas não é caindo na armadilha de Dunstan que iremos ajudá-los. Só iríamos piorar a situação.

O argumento a fez se acalmar um pouco, embora ainda estivesse indignada.

— Thomas, entenda! Não podemos simplesmen­te ficar sentados aqui e esperar.

— Eu preferia mesmo que a senhora não ficasse. Gostaria de levá-la de volta a Nottingham.

Alyce sacudiu a cabeça com energia.

— Não vou a lugar algum! — ela teimou, com toda a convicção de que foi capaz.

Thomas suspirou, resignado.

— Eu já suspeitava disso. Mas, por favor, não vá cometer uma tolice. Recomendarei a Kenton para que tome conta de sua integridade.

— Mas o senhor vai voltar mesmo?

De repente, ela entendeu que, apesar da raiva, a presença dele lhe trazia esperanças. Deixava-a mais forte e corajosa.

Ele segurou-a pelos ombros.

— A única maneira de resolvermos isso é tentar fazer com que Ricardo e João entrem em acordo entre eles. Alguém tem de dizer isto ao rei.

— O senhor poderia mandar Kenton — ela ar­riscou, em tom de voz mais ameno.

— Não. Eu sou o responsável. Eu é que tenho de tentar resolver a pendência. Por outro lado — ele sorriu, sem vontade —, agora sou também res­ponsável por Sherborne. Houve um imprevisto, mas se ainda não perdeu a memória dos últimos acontecimentos, a senhora de Sherborne está para tornar-se minha esposa.

Seria aquele interesse todo apenas o desejo de proteger a propriedade dele?, Alyce perguntou-se, erguendo o queixo.

— Se é imprescindível, então vá — ela aconse­lhou secamente.

— A senhora vai voltar comigo? — Thomas tor­nou a perguntar.

— Não!

Ele permaneceu um bom tempo fitando os olhos azuis de Alyce, embora os seus estivessem inson­dáveis. Ele era mestre em não revelar emoções.

— Alyce Rose, nem pense em tentar uma aven­tura temerária! Eu juro que lhe darei umas pal­madas muito bem aplicadas, daquelas que a se­nhora nunca levou, nesses anos todos, de sua bon­dosa ama.

Ela franziu o nariz para ele.

— Não perco meu tempo com valentões que ameaçam os mais fracos — ela esnobou. — Mas aprendi a lição no Castelo de Dunstan. Prometo não deixar mais nenhum de seus homens em perigo.

Ele anuiu satisfeito. Depois beijou-a intensa, mas rapidamente, e caminhou em direção aos ca­valos amarrados.

Eles estavam esperando havia cinco longos dias, e a comida começava a escassear. Kenton havia mandado Harry, o Robusto, e Martin, o Ceifeiro, até uma cidade próxima, à procura de suprimen­tos. Ranulf permaneceu no acampamento para servir como guardião não oficial de Alyce, embora não houvesse necessidade de proteção contra os "homens do acampamento.

A despeito de sua imensa preocupação com o que pudesse estar acontecendo em Sherborne, Aly-ce não deixava de sorrir e oferecer uma palavra bondosa aos homens que lhe traziam alimento, acendiam o fogo ou que faziam qualquer outro pequeno serviço para deixá-la mais confortável. Andava entre eles, graciosa e bela, com os cabelos compridos e soltos. Passou a ser encarada pelos guerreiros do acampamento como se fosse o anjo da guarda deles.

Embora não precisasse de nenhum guerreiro para sua proteção, Alyce alegrou-se por Ranulf haver permanecido entre eles. Gostava da com­panhia do jovem cavaleiro. De alguma maneira, era como se ela tivesse Thomas perto de si. A semelhança entre eles era grande, e Ranulf também tinha muito do charme do irmão. Porém com Ranulf não havia conflitos nem tensões. Ela não precisava desgastar-se em considerações sobre ca­samentos impostos e assuntos correlatos.

Os dois estavam sentados debaixo de uma ár­vore, um pouco afastados dos demais.

— Admita, Alyce. Milady está tão apaixonada por meu irmão quanto ele pela senhora.

— Se Thomas está assim tão apaixonado — ela sorriu, com tristeza —, por que não está aqui?

— Ele está a serviço, tentando encontrar um meio de tirar Dunstan de Sherborne sem derra­mamento de sangue.

— E... eu sei — ela aceitou, sem muita convicção.

— Ele está, Alyce — Ranulf falou com veemên­cia. — E faz tudo isso pela senhora... pelo amor que tem por Alyce Rose.

— E por Ricardo e, sem dúvida, por si mesmo — ela acrescentou.

Ranulf recostou-se na árvore, com um gemido de desgosto.

— Não acredito que Milady seja tão cética quan­to pretende parecer. Acho que a senhora gosta muito dele e sabe que ele lhe retribui o sentimento com a mesma intensidade. Alyce não pretendia discutir o assunto. A an­siedade e o desconforto de dormir no solo duro deixavam-na cansada e irritadiça. Os dias felizes que ela e Thomas haviam vivido em Nottingham pareciam muito distantes.

— O senhor é um irmão leal e sincero — ela disse para Ranulf, encerrando a discussão.

Eles fitavam a extremidade do acampamento, quando viram a chegada de um homem a cavalo.

— Temos visitas — Ranulf anunciou e levantou-se. Alyce reconheceu o homem de imediato.

— É Fantierre, o francês! — ela deu um grito e levantou-se em um pulo. — E vem de Sherborne!

Ambos desceram a encosta correndo, cruzaram o acampamento e chegaram a tempo de ver Fantierre desmontar.

— Lady Sherborne — ele saudou-a, demons­trando surpresa em vê-la.

Ranulf adiantou-se e estendeu a mão.

— Sou irmão de Thomas — ele apresentou-se. Fantierre cumprimentou-o e inclinou a cabeça.

— A semelhança é extraordinária. — O francês logo mudou de assunto, demonstrando não querer perder tempo com amenidades.

— Thomas voltou para Nottingham? Ranulf concordou, com um gesto de cabeça.

— Onde está Kenton? — Fantierre perguntou, sem delongas.

— Saiu atrás de comida com mais dois homens — Ranulf lastimou.

— Infelizmente não posso esperar. Preciso estar de volta ao castelo antes que dêem por minha falta.

— O que está acontecendo por lá? — Alyce per­guntou. — Diga-nos, Alfred, o velho despenseiro, está bem?

Fantierre deu um ligeiro sorriso tranquilizador.

— Ninguém foi ferido até agora.

— Até agora? — ela repetiu e, nervosa, apertou as mãos.

— Está havendo um problema com um jovem. Creio que é o neto do despenseiro.

— Fredrick?

— Oui. Fredrick. O rapaz tentou soltar o avô e agora está preso também. Dunstan afirma que pretende enforcá-lo, como exemplo para os outros.

— Enforcar? — Ranulf não acreditou. Alyce agarrou o próprio pescoço.

— Sim — Fantierre confirmou carrancudo. — Eu esperava encontrar Thomas aqui.

— Não sabemos dele — Ranulf explicou. — Ele voltou a Nottingham para tentar convencer o rei Ricardo a encontrar-se com o príncipe João. Se os dois irmãos chegarem a algum tipo de acordo, não haverá motivo para Dunstan continuar em Sherborne. Ele acha que seria a melhor solução para todos.

Fantierre encolheu os ombros.

— Talvez ele tenha razão. Só espero que esta concordância chegue a tempo para Fredrick — Fantierre disse para Alyce. — Ele é um rapaz valente.

— Temos de fazer alguma coisa! — Alyce fitou Ranulf.

Ranulf, em geral uma pessoa alegre, evidenciou sua inquietação.

— Milady... Alyce, sinto muito. Mas não pode­mos fazer nada além. de esperar. Thomas deixou ordens estritas.

— Mas não podemos ficar de braços cruzados, enquanto a vida de Fredrick corre perigo. Temos de tomar uma providência urgente!

Alyce virou-se para Fantierre, que tratou de apoiar Ranulf.

— Sem a menor sombra de dúvida, Milady, qualquer movimento de tropas poderia deixar muitas vidas em perigo. O melhor é escutar os conselhos deste jovem Brand.

Alyce olhou de um para outro, incapaz de acre­ditar que eles não ofereciam nenhuma solução para salvar a vida de Fredrick, que estava por um fio.

— Os senhores não pretendem fazer nada? — ela insistiu aflita.

Ranulf disfarçou e pôs os olhos no chão. Fantierre limitou-se a dar de ombros, à francesa.

— Então queiram me desculpar, cavalheiros. Preciso ir. — Ela passou por eles e rumou para o arvoredo próximo, onde os cavalos pastavam.

Fantierre e Ranulf observaram boquiabertos, Alyce chegou perto do soldado que tomava conta dos cavalos e pediu-lhe que encilhasse a montaria.

— Onde ela pensa que vai? — Fantierre não se conformou com a audácia da jovem dama.

Ranulf suspirou.

— Não sei, mas tenho o pressentimento que deve ser para o Castelo de Sherborne.

— Mon Dieul. Sozinha?

Ranulf sacudiu a cabeça e saiu atrás de Alyce.

— Não — ele negou, por sobre o ombro. — Comigo. Fantierre seguiu-o, levando a montaria pelas rédeas.

— Ambos são loucos — Fantierre resmungou, atrás de Ranulf.

Os dois homens aproximaram-se de Alyce. Ela já ajudara o guarda a colocar os arreios no animal e, naquele momento, pedia ao homem para aju­dá-la a montar.

— Milady, o que vai fazer? — Ranulf indagou resignado, sem muita esperança de detê-la.

— Vou pagar uma visita a Philip de Dunstan — ela respondeu, com firmeza. — Quero ter cer­teza de que ele não maltratará nenhum de meus vassalos.

 

Em vão, Fantierre e Ranulf tentaram convencer Alyce de que seria uma te­meridade entrar no Castelo de Sherborne sem ela­boração de um plano prévio. Explicaram que os guer­reiros de Dunstan eram muito bem treinados e ar­mados, e que o barão deveria estar prevenido contra possíveis eventualidades. Ainda havia um fato im­portante a ser considerado. Para Fredrick, aquela atitude teria pouca valia. Philip de Dunstan certa­mente a tomaria como mais uma refém e acabaria por enforcar o jovem servo de qualquer maneira.

— Então me ajudem a equacionar algum outro esquema para ajudá-lo — Alyce implorou aos dois. — Além do mais, não posso assistir passivamente à ação nefasta de Dunstan sobre minha gente.

— Pelo menos deveríamos esperar pela volta de Kenton — Ranulf alegou.

— Eu preciso voltar ao castelo — Fantierre lem­brou. — Se quiserem minha ajuda para elaborar um plano, temos de fazê-lo já.

Ela vinha formulando uma ideia havia dois dias, embora não houvesse contado para ninguém.

— Quando os homens de seu irmão vieram pela primeira vez a Sherborne, eu os envenenei — ela confessou a Ranulf.

— Milady o quê? — Ranulf indagou atónito.

— Bem, na verdade deixei-os apenas doentes. Pensei que eles houvessem sido enviados por Dunstan. Então ordenei a meus cozinheiros que fizessem a comida com carne estragada.

Fantierre caiu na gargalhada.

— Ma chèrie, não é para admirar que Thomas tenha se apaixonado pela senhora.

Ranulf fitou os dois, como se ambos houvessem perdido o juízo.

— Milady poderia ter matado alguém — Ranulf repreendeu-a.

— Mas não matei — Alyce meneou a cabeça, com graça. — Todos se salvaram e estão aí fortes e viçosos, como o senhor mesmo pôde ver.

Alyce apontou para os homens do acampamen­to, uns andando, outros deitados sobre suas man­tas, a maioria aborrecida, esperando por alguma atividade.

— E o que isso tem a ver com a situação presente? — Ranulf indagou. — Não me diga que pretende dar carne estragada para os homens de Dunstan!

Alyce virou a cabeça de um lado para o outro, negando.

— Carne, não. — Ela hesitou, encarou um e depois o outro, com os olhos azuis lançando chis­pas de excitação. — Pretendo adicionar alguma droga à bebida.

Fantierre franziu o cenho.

— Odeio ter de dizer isso, chèrie, mas Dunstan não será tão fácil de enganar como foi Thomas.

O barão está sempre de guarda e se alguma coisa sair errada... — Ele fez o costumeiro encolher de ombros e passou os dedos no pescoço para simular uma garganta cortada.

— Ele ousaria fazer uma coisa dessas, saben­do que ela está sob a proteção do rei? — Ranulf perguntou.

Fantierre anuiu.

— Vejam como c simples. A bela lady Alyce desapareceria e nunca mais seria vista. E nin­guém poderia responsabilizar Dunstan pelo crime.

— Acho que será melhor esperarmos por Thomas — Ranulf assegurou, com veemência.

Fantierre fez um movimento para montar em seu cavalo.

— Oui, é melhor. Preciso voltar.

— Não. Espere — Alyce implorou, segurando o cavaleiro francês pela manga. — Não estou sen­do imprudente. Já imaginei tudo e sei que pode dar certo.

Fantierre sorriu com admiração.

— Ma belle, agora estou definitivamente con­victo dos motivos que levaram meu amigo Thomas a apaixonar-se por Milady.

Alyce não deu muita importância ao cumprimento.

— Há uma mulher no povoado de Sherborne... É a velha Maeve.

— Ah, oui, já ouvi falar dela. Dizem que é uma feiticeira.

— Não sei se é ou não, mas ela conhece pro­fundamente as ervas. Ela tem remédios poderosos que fazem as pessoas dormir durante horas.

Alyce parou para ver se Ranulf e Fantierre estavam prestando atenção as suas palavras. Sabia de antemão que, se tentasse explicar o plano para Thomas e Kenton, eles nem a ouviriam e até sai­riam de perto. Mas Ranulf e Fantierre continua­vam escutando.

— E Milady acha que haverá condições de mi­nistrar essas ervas para os soldados de Dunstan? — Fantierre perguntou.

Alyce anuiu.

— E quando eles estiverem dormindo, a tropa do rei poderá entrar no castelo e prendê-los, sem ferir ninguém — ela concluiu.

— Operações militares sob a ótica de uma mu­lher. — Fantierre mostrou espanto e uma admi­ração prudente. — A loucura é tão grande que até pode haver alguma possibilidade do plano che­gar a um bom termo.

Ranulf não se animou muito.

— Como é que a senhora faria para que eles tomassem a droga?

— Maeve me dirá. Provavelmente seria mistu­rada à cerveja. Ninguém fica muito tempo sem beber. Poderia ser adicionada à bebida da refeição noturna. Por volta de meia-noite todos estariam dormindo como bebes.

— Daríamos a erva para Fantierre, e ele se encarregaria do resto? — Ranulf perguntou.

— Não — Alyce negou, com gestos de cabeça. — Precisaríamos da colaboração de meu povo. Eu mesma terei de ir ao castelo para falar com eles.

— Não posso deixá-la fazer isso, milady — Ra­nulf acudiu imediatamente. — Thomas cortaria fora minha cabeça!

Alyce passou por ele, chegou até a montaria e preparou-se para montar.

— Então pode dizer a ele que não lhe deixei alternativa, Ranulf.

— Eu lhe peço por favor, lady Alyce — Ranulf implorou, infeliz —, espere até termos notícias de Thomas.

— Até lá, meu amigo, Fredrick poderá estar morto. Não se preocupe, Ranulf. Explicarei tudo a Thomas, antes de ele conseguir cortar-lhe o pescoço.

— Duvido de que ele espere por algum escla­recimento, antes de acabar comigo — ele declarou mal-humorado.

Alyce sorriu, de cima do cavalo.

— Diga-lhe que também dei a erva para o se­nhor — ela sugeriu.

Fantierre já tomara uma decisão. Pulou rapi­damente para cima de sua sela.

— Eu irei com a senhora — ele afirmou. — Direi que a achei perambulando pelas redondezas e que a fiz prisioneira. Tentaremos mante-la afas­tada de Dunstan até seu pessoal ter tempo de usar as ervas durante o jantar de hoje.

— Obrigada, Fantierre. No caminho para o cas­telo, pararemos no casebre da velha Maeve. — Alyce voltou-se para Ranulf. — Kenton voltará logo. O senhor e ele poderão reunir os soldados e entrar no castelo esta noite?

— E se as plantas medicinais não fizerem efeito? — Ranulf indagou, nada convencido da racionalidade do projeto.

— Elas darão resultado — Alyce afirmou categórica. — Cheguem à uma hora depois da meia-noite. Abrirei as portas da frente.

Ranulf concordou, obviamente infeliz, e recuou quando Alyce e Fantierre esporearam seus cavalos e dispararam.

Felizmente eles encontraram Maeve em um de seus "bons" dias. Os olhos escuros da velha bri­lhavam com inteligência e, sem perda de tempo, apanhou vários frascos e algumas caixas pequenas e estranhas, daqueles que lotavam as prateleiras da pequena cabana. Misturou com energia, em uma algibeira de remédios, o conteúdo das em­balagens que havia separado e, satisfeita, con­templou a obra terminada.

— Não duvidem, eles dormirão profundamente

— Maeve disse com firmeza. — Até mesmo o maior e o mais forte dos cavaleiros dormirá como uma criancinha.

— E uma caneca de cerveja será o suficiente?

— Alyce indagou.

— Meia caneca já fará o efeito desejado — Mae­ve assegurou.

Alyce fitou Fantierre, que anuiu sua aprovação.

— Milady terá de advertir seu pessoal para que aguente a sede esta noite — Fantierre comentou.

— Ah, sim. — Alyce voltou-se para Maeve. — Isso pode causar algum tipo de mal?

A velha senhora anuiu e sentou-se vagarosa­mente em uma cadeira de braços e pés curvos próxima da pequena lareira.

— Uma dose excessiva pode matar um homem.

— Matar?

— Sim. E uma droga muito poderosa.

Alyce virou-se para Fantierre que, para não fu­gir à regra, deu de ombros.

— E por acaso temos outra opção? Alyce negou desanimada.

— Não quero fazer mal a ninguém. Só pretendo ter meu castelo de volta e meu povo em segurança.

— Dois morrerão — Maeve vaticinou, com a voz subitamente baixa.

Alyce reconheceu pelo olhar embaciado da velha, que ela voltava a apresentar uma de suas revelações. As palavras de Maeve fizeram Alyce gelar.

— Dois haverão de morrer? — Alyce perguntou.

— Soldados de Dunstan?

A velha Maeve fechou os olhos e começou a ba­lançar-se para a frente e para trás.

— Sim... e antes do ocaso da lua de sangue — ela afirmou.

Alyce fitou Fantierre desconsolada.

— Parece que ela entrou em transe — ele disse.

— Isso acontece quando ela tem visões — Alyce explicou. — O que acha que devemos fazer?

— Pessoalmente, não acho que seria uma grande tragédia perder um ou dois dos homens de Dunstan

— Fantierre garantiu. — E se matarmos o próprio barão, faremos um grande favor para o mundo.

Alyce não se deu por satisfeita. Ela ajoelhou-se na frente da velha e pegou-lhe nas mãos. Acari­ciou-as por algum tempo e suspirou.

— Maeve, nós não queremos matar ninguém. Diga-nos a maneira certa de empregar as ervas, para não corrermos esse risco.

Maeve não dava mostras de escutar. Um fio de saliva começou a escorrer-lhe por um dos cantos da boca, enquanto ela continuava a balançar-se. E, mais uma vez, ela começou a murmurar pala­vras ininteligíveis em sua linguagem estranha. Alyce levantou-se.

— Não há nada que possamos fazer neste mo­mento. Ela só voltará ao normal, quando atraves­sar e sair deste encantamento.

Fantierre apanhou a algibeira com as ervas que Maeve havia reduzido a pó,

— Então, iremos prosseguir com o plano de qualquer maneira?

— Não gosto disso — Alyce admitiu —, mas como o senhor mesmo disse, não temos outra alternativa.

— A sorte está lançada, Milady — Fantierre com­pletou. — Agora teremos de levar o jogo adiante. — Ele fitou Maeve. — Vamos deixá-la deste jeito?

— Sim. Não há nada que possamos fazer por ela.

A velha continuou a tartamudear vocábulos es­tranhos, enquanto eles saíam da cabana -e volta­vam a montar os cavalos. No trajeto para o castelo, Alyce manteve-se inquieta. A ameaça a Fredrick fizera com que ela partisse para ação. Mas na­quela altura dos acontecimentos, ela se pergun­tava se não teria sido mais sensato esperar a volta de Thomas. Se as predições da velha Maeve se concretizassem, a partir daquela noite, ela teria duas mortes na consciência.

— Precisamos assegurar-nos de que ninguém beberá demais a cerveja adulterada — ela comen­tou com Fantierre.

— Milady está preocupada com o que a velha feiticeira vaticinou.

Ela anuiu, triste e preocupada ao mesmo tempo.

— Não quero que ninguém morra. Fantierre deu um breve sorriso.

—Ah,, ma belle. Sem dúvida alguma, essa apreensão faz parte de sua herança saxônica. Nós, franceses, encaramos a morte de forma mais sua­ve. Vive-se e morre-se. Pouco importa. É a lei da vida. E a morte nada mais é de que o começo de uma nova aventura.

Alyce suspirou pesarosa e estremeceu.

— E. E até onde meu raciocínio pode alcançar, podemos esperar experiências arriscadas para logo mais. Para ser mais exata, depois desta noite, terei tido aventuras suficientes para lembrar-me por muito tempo.

Se Ranulf não fosse irmão de Thomas, Kenton o teria atingido com um soco no queixo. Como o parentesco era irrefutável, ele contentou-se em censurar o jovem cavaleiro.

— Queria que eu a tivesse amarrado a uma árvore para ela não fugir? — Ranulf perguntou, um pouco receoso de pensar no que o irmão po­deria fazer.

— Exatamente! — Kenton rugiu. — Eu jamais a teria entregue a seus cuidados, se, por um se­gundo, pudesse imaginar que Ranulf Brand seria estúpido o suficiente para deixá-la ir embora!. E para onde? Nada mais nada menos de que para Sherborne!

Kenton andou de um lado para o outro, em fren­te ao rapaz e gemeu agoniado.

— Thomas nos fará limpar estábulos para o resto da vida. E isso, se a trouxermos de volta, sã e salva. Caso contrário, será melhor usarmos nossas espadas em nós mesmos.

— O plano tinha seu mérito — Ranulf argu­mentou. — Fantierre também achou que poderia dar certo.

— Ele é francês, Ranulf — Kenton admoestou exasperado, como se aquilo explicasse alguma coisa.

— E faremos o que ela pediu? Reuniremos os homens para partir?

— Nas atuais circunstâncias, não nos resta ou­tra alternativa. Meu receio é de encontramos lá uma guarnição muito bem armada, cheia de sol­dados acordados. Mas agora, com Alyce nas mãos deles, temos de ir, não importa quais sejam as consequências.

Ranulf permaneceu muito sério. Finalmente compreendera que o plano de Alyce, que lhe pa­recera tão lógico, era na verdade, muito arriscado.

— Tenho receio de que esteja certo, Kenton. Tenho o pressentimento de que João e Ricardo não serão os únicos irmãos em guerra, depois que Thomas descobrir o que eu fiz. Ou melhor, deixei de fazer.

Kenton tinha os olhos presos na estrada, onde um grupo de cavaleiros acabava de aparecer na curva.

— Logo descobriremos isso, Ranulf. A menos que meus olhos estejam me enganando, é Thomas que vem cavalgando ali.

Nenhuma parte do plano transcorrera da ma­neira prevista, Alyce pensou melancólica, presa em seu próprio quarto de dormir.

Fantierre havia planejado ganhar algum tempo, declarando que ela era sua prisioneira. Porém, imediatamente após eles passarem garbosa e co­rajosamente pelos portões do castelo, os guardas de Dunstan fizeram ambos prisioneiros. Ela e Fantierre. A última lembrança que tinha do fran­cês era um de seus sorrisos galantes e um piscar malicioso, enquanto ele era arrastado pelo pátio.

Sorrateira, ela conseguira entregar a bolsinha de couro cheia de ervas em pó a um cavalariço. Mas tinha poucas expectativas de que o rapaz houvesse entendido as instruções apressadas. Mas pelo menos era a última esperança que lhe restava e que a impedia de entrar em estado de desespero profundo.

Ela fitava o sol sumir no horizonte, sem coragem de comer o que lhe haviam enviado. Apesar de não haver nenhum líquido, ela não teria meios de saber se a droga fora usada no alimento.

A sua maior preocupação era com os homens de Thomas. Se eles irrompessem os portões depois da meia-noite, como havia sido combinado, encon­trariam os guerreiros de Philip de Dunstan à es­pera deles, o que poderia custar muito mais vidas de que as duas previstas pela velha Maeve.

Alyce subiu na janela. Havia três pavimentos até o pátio embaixo. Ela calculou se poderia saltar até o chão e avisar Kenton e Ranulf. A área de­baixo de sua janela era pavimentada com lajes, um pulo desses no mínimo quebraria suas pernas e poderia até mesmo matá-la. Ela suspirou e vol­tou para a cama.

Tinha de haver uma solução, alguma coisa que ela pudesse fazer, Alyce insistiu consigo mesma.

A pancada na porta foi tão leve, que ela mal a ouviu. Por que alguém bateria, se a haviam trancado por fora? Nisso, a porta rangeu e abriu-se devagar.

Era Fredrick. Alyce correu para ele, com um pequeno grito, e abraçou-o, deixando o pobre rapaz embaraçado.

— Pensei que o estivessem mantendo como pri­sioneiro — ela cogitou.

— E estavam — ele confirmou, com um sorriso endiabrado. — Entretanto... os guardas de Duns­tan mostraram-se muito cansados esta noite.

Os olhos de Alyce brilhavam de excitação.

— Eles ingeriram a droga? Funcionou?

— Sim, Milady. O cavalariço entregou o saqui­nho aos cozinheiros, que "batizaram" a cerveja e espalharam a notícia para ninguém do castelo to­mar a bebida. Todos participaram do estratagema. Algumas das moças que servem a mesa porém tiveram de beber... sabe como é... para assegurar-se de que os cavaleiros de Dunstan iriam ingerir a cerveja em altas doses.

— Que Deus os abençoe a todos — Alyce expres­sou-se com fervor. — Então os reféns estão livres?

— Sim, e os guardas estão dormindo a sono solto.

— E Fantierre? Fredrick parou de sorrir.

— Sinto muito, Milady.

Alyce sentiu um calafrio de pavor percorrer-lhe a espinha e agarrou o ombro de Fredrick.

— O que aconteceu?

— Acho que Dunstan havia descoberto que Fan­tierre estava trabalhando para Ricardo — o jovem respondeu, balançando a cabeça. — Por isso o apa­nharam, quando ele chegou com Milady esta tarde.

Alyce sentiu um nó na garganta.

— O que fizeram com ele? — ela indagou apavorada.

— Sinto muito, Milady — Fredrick repetiu cons­ternado. — Ele está morto. Dunstan executou-o.

Não era possível! Fantierre, sincero, elegante e galanteador, que durante aqueles meses todos ha­via andado de braço dado com o perigo!

Os olhos de Alyce encheram-se de lágrimas.

— A próxima aventura — ela afirmou, com voz abafada.

— Milady?

Ela, mordeu o lábio.

— E o que ele dizia da morte. Que era a partida para uma nova aventura.

Fredrick fítou-a com simpatia.

— Todos aqui gostavam dele.

Alyce concordou, muito infeliz pelo ocorrido. En­tretanto não podia dar-se ao luxo de lamentar a morte de Fantierre naquele momento. A missão apenas começara. Os guerreiros de Dunstan es­tavam dormindo, e ela ainda teria de abrir as portas para permitir a entrada de Kenton e Ranulf. Tudo teria de ser feito com muita rapidez, antes de que os homens acordassem e tomassem o controle do castelo novamente.

— E o barão? — ela perguntou ao amigo. — Também tomou da cerveja adulterada?

— Ninguém sabe, Milady — Fredrick afirmou seu desconhecimento no assunto. — Ele não es­teve presente no jantar, com os demais soldados. Achamos que nenhum de seus guardas teve tempo de levar-lhe comida, mas não podemos ter certeza.

— Bem, ele é somente um homem. Não devemos preocupar-nos quanto a isso. Temos de ir para o portão da frente. A essa hora, os guerreiros de Ricardo já devem estar do lado de fora.

Thomas não podia lembrar-se de haver ficado tão encolerizado e apavorado ao mesmo tempo. Ele cavalgara de volta para Sherborne triunfante. O príncipe João se convencera da capacidade do rei Ricardo em mobilizar forças nos quatro cantos da ilha de imediato, e se mostrara disposto a con­versar. Em vista disso, os irmãos haviam elabo­rado um acordo com rapidez surpreendente. Se­gundo eles, o rei Ricardo continuaria governando, mesmo depois de sua volta ao continente. Mas se ele optasse por convocar as tropas para uma nova Cruzada, deixaria João como regente, enquanto estivesse na Terra Santa.

Tudo fora resolvido e acordado. Thomas levaria documentos do príncipe João para Dunstan, orde­nando a desocupação imediata de Sherborne. Em­bora Dunstan, por si só, fosse diabólico e ambicioso, Thomas estava convencido de que ele não continua­ria a dominar Sherborne sem o apoio do príncipe. A paz entre os irmãos reais transcendia do sig­nificado iminente da paz. Em consequência da­quela concordância de objetivos, talvez ele e Alyce também pudessem encontrar o próprio caminho. Depois de que tudo voltasse ao normal em Sher­borne, ele contaria a Alyce sobre Lyonsbridge e a levaria para conhecer seus avós.

Entretanto os sonhos agradáveis que o acom­panharam durante o dia desfizeram-se no instante em que ele desmontara no acampamento perto de Sherborne. Pelas expressões do irmão e do lugar tenente, ele havia adivinhado que havia acon­tecido algo de muito grave.

Naquele momento, enquanto ele e seus homens esperavam impacientes no lado de fora do Castelo de Sherborne, ele se recriminava continuamente por haver deixado Alyce sozinha. Para começo de conversa, jamais deveria ter permitido que ela os acompanhasse. E quando retornara a Nottingham, deveria tê-la levado junto.

Ela era uma mulher obstinada, frustrante e cabeça dura, mas não podia imaginar a vida sem ela.

A lua cheia surgira a leste e deixava com aspecto sinistro a muralha rendilhada de ameias do Cas­telo de Sherborne.

Thomas ergueu o pescoço na esperança vã de poder vê-la, andando junto aos muros ou espiando pela janela de uma torre. Qualquer indício de que ainda estivesse viva e não ferida.

— Passaram-se   apenas   alguns   minutos   da meia-noite — Ranulf garantiu-lhe, montado a seu lado. — Ela disse uma hora depois.

Thomas não falara com Ranulf, desde que Kenton relatara o ocorrido. Estava tão furioso com o irmão mais novo que tinha receio de dizer alguma tolice, da qual mais tarde pudesse se arrepender. Mas teve certeza, pelo olhar angustiado de Ranulf, que o irmão estava tão preocupado como ele.

— Eu sei — Thomas retrucou secamente. — Esperaremos uma hora. Se o portão não se abrir, escalaremos a muralha.

Alyce olhava ao redor espantada. Por todos os cantos do grande hall jaziam os corpos dos soldados vestidos com o uniforme de Dunstan, profunda­mente adormecidos. Alguns estavam estirados no chão, outros tinham as cabeças largadas por sobre as mesas, perto dos jarros de cerveja que haviam sido os responsáveis por aquele sono coletivo.

Deus abençoasse a velha Maeve, ela rezou em silêncio.

Alfred estava a sua espera. Por sua provação, até que ele não estava com má aparência. De fato, seu olhar estava iluminado, e havia energia em seu andar.

— Bom trabalho, Milady — ele cumprimentou a senhora de Sherborne com reverência. — Seu pai sempre dizia que a senhora seria capaz de superar dez homens em inteligência. Tenho de convir que ele estava certo.

Alyce abraçou-o, como fizera com Fredrick. Eles eram seus servos, mas também sua família. Todos em Sherborne faziam parte dela e haviam traba­lhado juntos para provar aquilo.

— Alfred, eu não fiz nada além de trazer as ervas de Maeve que provocam o sono. O restante ficou por conta de seu pessoal, que tornou tudo isso pos­sível. — Ela apontou os homens adormecidos.

Ele abriu os lábios finos em um grande sorriso, o que enrugou-lhe ainda mais o rosto.

— É, fizeram mesmo — ele concordou orgulhoso. Entretanto não havia tempo de vangloriar-se do triunfo. Já passava da meia-noite, e ela teria de correr para abrir o portão frontal do castelo. Esperava, com todo o ardor de sua vontade, que Kenton e os cavaleiros estivessem esperando do lado de fora.

Alyce deixou Alfred vigiando os homens ador­mecidos e, rapidamente, tratou de atravessar com Fredrick o pátio deserto. Os archotes que normal­mente iluminavam os muros do castelo não ha­viam sido acesos, porém o luar encarregava-se de clarear o caminho.

Os dois contornaram a pequena construção onde Thomas havia mostrado a ela os baús recheados de moedas para o resgate.

Parecia que isso ocorrera havia muitos anos, ela refletiu. Tanta coisa havia acontecido depois daquele dia!

Quando chegavam ao final da estrutura de pe­dra, uma sombra surgiu atrás deles.

— A senhora pagará caro por isso, sua vagabunda!

A voz grave e sinistra era inconfundível. Ela viu os olhos negros iluminados pelo luar. Era Dunstan.

 

Dunstan avançou sobre Alyce e, antes de ela ter tempo de esboçar qualquer reação, agarrou-a. Fredrick deu um grito e tirou um punhal do cinturão. Mas não houve tempo para nada. Dunstan já havia virado Alyce e segurava-a, com uma lâmina encostada em seu pescoço.

— Solte sua faca, aldeão — ele ordenou ao va­lente Fredrick.

O jovem pareceu hesitar. Dunstan apertou mais o braço ao redor de Alyce e gemeu colérico. Fre­drick soltou a arma, que ressoou no chão de laje.

Dunstan era muito maior e muito mais forte de que Alyce. Ela nem mesmo tentou lutar contra ele.

— Eu teria me casado com a senhora, sua atre­vida — ele grunhiu na orelha dela.

A voz era a de um demente e, no instante em que pôde fitá-lo de viés, Alyce convenceu-se de que ele parecia totalmente enlouquecido. Ela mer­gulhou em uma onda de desespero. A vitória es­tivera tão próxima! E diante do desenrolar dos acontecimentos, era provável que Dunstan conse­guisse despertar alguns de seus asseclas. Se ele o fizesse antes de ela ter a chance de fazer com que Kenton e os outros entrassem, o derrama­mento de sangue poderia ser muito grande.

Urgia tomar uma resolução digna de uma emer­gência, ela refletiu consigo mesma.

Fredrick continuava em pé diante deles inde­ciso. Alyce deu um puxão súbito para trás, com toda sua força.

— Corra, Fredrick! — ela gritou, o mais alto que pôde. — Abra os portões!

Dunstan foi pego de surpresa e perdeu o con­trole sobre ela, por uns instantes. Mas assim que Fredrick disparou para a frente do pátio, ele agar­rou-a novamente, desta vez pelos cabelos.

— Deixe-os entrar — Dunstan rugiu possesso. —- A causa está perdida, mas por Deus que a entregarei de volta para Brand, aos pedaços.

Ele arrastou-a até as estrebarias, onde um enorme garanhão preto estava encilhado, à espera. Ele er­gueu-a facilmente, atirou-a sobre o pescoço do ca­valo, pulou ele mesmo para cima do animal e sen­tou-se atrás dela, com a imponência de sua altura. Dunstan certamente tivera conhecimento do pe­queno portão traseiro, pois sem hesitar, guiou o cavalo naquela direção. A entrada em questão fi­cava normalmente fechada, e isso desde a infância de Alyce. O pai de Alyce tomara aquela providên­cia porque a passagem dava acesso direto ao pre­cipício do velho fosso do castelo. Apesar de sua postura desconfortável sobre o arção dianteiro da sela, Alyce viu que o portão estava aberto. Era evidente que Dunstan já havia preparado a fuga. Ela agarrou-se com firmeza quando Dunstan esporeou o cavalo para a frente, para o encontro dos terrenos traiçoeiros do outro lado. Assim que atravessou o espaço aberto entre os muros, o animal escorregou na inclinação lamacenta e tropeçou. Dunstan segurou as rédeas com firmeza e manteve a cabeça do garanhão para cima. Alyce continuou na posição inicial, por haver-se agarrado ao pescoço do animal. O cavalo, o cavaleiro e a passageira es­corregaram ribanceira abaixo, para a parte mais seca da vala. Quando chegaram ao fundo, o cavalo cambaleou e tentou manter o equilíbrio, enquanto Dunstan lutava para não cair. Alyce aproveitou a oportunidade, deslizou e foi ao solo. Ela caiu de cos­tas e o baque foi dissonante. Rolou rapidamente para o lado e afastou-se dos cascos do cavalo que ameaçavam esmagá-la.

— Volte aqui, sua sem-vergonha! — Dunstan rugiu.

Mas Alyce já começara a escalada barranco aci­ma, rumo à saída posterior do castelo. Dunstan tentou guiar o cavalo para fazer o retorno, mas o animal estava assustado demais pelo mergulho e não obedeceu à orientação do dono.

Um cavaleiro, a galope desenfreado, virou o can­to da muralha. Dunstan o viu e abandonou o pro­pósito de perseguir Alyce. Cutucou a montaria com o salto da bota e incitou-o a escalar a rampa oposta do fosso. O cavalo empacou por um mo­mento e, depois de receber mais um chute violento, iniciou a subida.

— Pare, Dunstan! — o cavaleiro gritou, e Alyce reconheceu a voz de Thomas.

Ela chegou ao topo do barranco e correu, cur­vada, para o portão aberto, arfando.

Dunstan chegou em cima no momento em que Thomas alcançou-o, de espada em punho.

— O senhor não vai a lugar algum, Dunstan! — ele gritou. — O senhor vai enfrentar a justiça do rei pelo assassinato de Henri Fantierre!

Dunstan levantou a mão que empunhava a mes­ma adaga com que havia ameaçado cortar a gar­ganta de Alyce. Ele atirou a arma, mas Thomas se encontrava fora de seu alcance. A ponta pegou no ombro de Thomas e depois caiu no chão.

— Renda-se, Dunstan. Eu não teria o menor escrúpulo em matá-lo, contudo preferiria não fazê-lo em frente de minha noiva.

Dunstan deu um rugido de raiva e esporeou violentamente os flancos do garanhão. O animal, já perturbado, perdeu o equilíbrio. Oscilou na bei­ra do fosso durante alguns segundos interminá­veis, antes de desmoronar sobre um lado e, com estrondo, cair de costas para dentro da vala, le­vando Dunstan junto com ele. Alyce fitou, horro­rizada, o grande animal estatelar-se no fundo, com o barão debaixo de seu corpanzil.

Seguiu-se uma quietude anormal no meio da noi­te. Dali a instantes, o cavalo resfolegou três vezes com força e debateu-se, na tentativa de erguer-se. Thomas desmontou, escorregou pela ladeira e tentou puxar Dunstan debaixo dos cascos enormes. O ga­ranhão, aterrorizado, disparou pelo leito do fosso.

Thomas ajoelhou-se ao lado de Dunstan, que jazia quieto no barro. Alyce deslizou para o fundo.

— Ele está ferido? — ela perguntou.

Thomas ficou em pé e tampou a visão do corpo de Dunstan.

— Não olhe. Ele está morto. Milady está bem? Ela fez um aceno afirmativo com a cabeça e ignorou a intenção dele de proteger-lhe a sensi­bilidade. Deu a volta atrás de Thomas e espiou o que havia sobrado de Philip de Dunstan.

O corpo estava parcialmente submerso em uma depressão da vala cheia de água pelas chuvas re­centes. Ela fitou a cena por algum tempo. Depois sentiu os braços de Thomas ao redor dos ombros.

— Terminou — ele disse. — Vamos embora. Ela não aceitou o convite, os olhos fixos na cena macabra.

— Thomas, olhe!

A poça no fundo do fosso refletia a lua cheia. Em silêncio, eles observaram o sangue manchar a água e a imagem da lua tornar-se escarlate.

— A lua sangrenta — Thomas murmurou.

— Ela mesma.

— Lettie, ele provavelmente não quer mais sa­ber de mim — Alyce analisou, em conversa com a velha ama, enquanto poliam as pratas, sentadas no grande hall. — Pelo menos fico feliz que tudo tenha voltado ao normal em Sherborne. Pelo que sei, Thomas deve ir com o rei para a Normandia.

Já se passara uma quinzena, desde a morte de Dunstan. Lettie chegara de Nottingham alguns dias depois, extremamente aflita para ver se sua pupila estava saudável e sem ferimentos.

Thomas permanecera com sua tropa apenas o tempo suficiente para certificar-se de que os ca­valeiros de Dunstan haviam abandonado o local.

E no pouco tempo de sua estada no castelo, ao lado de seus homens, Thomas não havia dirigido a palavra àqueles que lhe eram mais próximos. Ainda estava furioso com o irmão, por ele ter dei­xado Alyce ir a Sherborne sozinha. Kenton tam­bém não tomara a iniciativa de conversar com o amigo, pois não aceitava o fato de Thomas não fazer as pazes com o irmão e com Alyce. Alyce, por sua vez, amargurada pela culpa da morte de Fantierre, tentara manter-se longe dele. Ele tam­bém não a procurara para nenhum diálogo e nem para um momento de intimidade. Por fim, as des­pedidas foram feitas na frente dos cavaleiros de Brand e dos servos de Sherborne.

Mais uma vez, ela deixara os homens dele em perigo. Dessa feita, com um desfecho trágico que resultara na morte de um homem bom e de um amigo leal. Não era para se admirar que Thomas houvesse deixado Sherborne o mais depressa que lhe fora possível, e Alyce também não se surpreen­deria se não o visse mais, ainda que esse pensa­mento lhe parecesse intolerável.

— Ele voltará — Lettie afirmou.

— Pois eu acho que não. Não desta vez. A se­nhora viu a atitude dele, antes de partir. Nem me olhava direito, quanto mais falar!

Lettie curvou-se sobre a bandeja que estava lus­trando e esfregou furiosamente uma mancha de ferrugem.

— Allie, às vezes os homens são teimosos e orgulhosos. Mas normalmente o amor se sobre­põe a isso. Amor ou desejo — Lettie concluiu enrubescida.

— Pois eu vou seguir os conselhos de meu pai 290

O Amor Não Se Compra

e viverei sozinha! Ele teve toda razão de adver­tir-me durante tantos anos.

Lettie largou a travessa, com um retinido.

— Alyce Rose, se eu escutar novamente essa história de sua boca, juro que a porei de bruços em meus joelhos! §eria a primeira vez que eu faria isso, mas nunca é tarde demais.

Alyce surpreendeu-se com a veemência da ama.

— A senhora escutou meu pai expressar a opi­nião dele um milhão de vezes. E pelo que me recordo, nunca a vi contrapor-lhe os argumentos.

Lettie tomou uma das mãos de Alyce, com muito carinho.

— Minha querida Allie, milady ainda era muito pequena para entender. Seu pái mudou muito de­pois que a esposa morreu. Na verdade, ele nunca se conformou com a morte dela. — Lettie suspirou romântica. — Aqueles dois partilhavam um amor muito grande.

— Sempre compreendi bem o amor deles que, aliás, saltava aos olhos de todos. E por isso, o fato de ele se opor tanto aos homens que me pro­curavam, causava-me uma certa estranheza. Afi­nal ele e mamãe haviam sido muito felizes.

— Eles se completavam. Quando ela morreu, ele quase ficou louco de dor. E foi pior ainda, por­que ele se culpava.

Alyce empertigou-se na cadeira.

— Mas do quê?

— Ela teve muitos problemas quando Milady nasceu e, certamente, ela não deveria tentar um segundo filho.

— Mas meu pai queria um filho varão!

— A verdade é que ele era contra a ideia, mas ela sempre conseguia fazê-lo mudar de opinião. Esta é uma das qualidades que Milady herdou dela — Lettie lastimou, com um sorriso triste.

— Se ela queria o bebé, a decisão de assumir o risco também deveria ser dela — Alyce declarou, identificando-se imediatamente com os sentimen­tos da mãe, de quem mal se lembrava.

— Esta é uma maneira lógica de encarar os fatos — Lettie acrescentou. — Mas seu pai nunca viu a história dessa maneira. Ele culpou-se para o resto da vida.

— Ele recusava qualquer pretendente à mão da filha, porque isso o lembrava de seu próprio amor perdido?

Lettie apertou mais a mão de Alyce.

— Era muito mais do que isso. Acho que ele se apavorava com a ideia de ficar sem a filha, exatamente como ficara sem a esposa. Milady é tão delgada como sua mãe o era.

— Ele tinha medo de que eu morresse de parto? — A ideia pareceu ridícula para Alyce. Ela sempre fora muito saudável.

— Acredito que sim. Ele jamais correria o risco de perdê-la naquelas circunstâncias, se conseguisse convencê-la a ficar morando em Sherborne, solteira e feliz. Eu acho que isso foi um erro da parte dele, além de constituir-se em uma atitude egoísta.

Alyce fitou à tigela reluzente que tinha em seu colo.

— Mas com certeza ele só queria meu bem. Lettie suspirou.

— Não tenha a menor dúvida disso. Ele era um bom homem, embora estivesse errado. Em uma coisa, Milady não se parece com sua mãe. Milady é muito mais forte do que ela era.

A superfície curva da peça de prata reproduzia uma imagem distorcida do rosto de Alyce. Pare­ceu-lhe uma estranha coincidência. Era exatamente dessa maneira que a lembrança da mãe vinha-lhe à mente, quando custava a adormecer. Sua mãe, tão bela, havia arriscado a vida para dar à luz um outro filho.

Alyce deixou de lado o objeto que segurava e estremeceu. Talvez seu pai estivesse certo. Ela não tinha medo do parto e era forte, como Lettie mesmo dissera. Mas, ele devia estar com a razão em desejar-lhe uma vida pacífica em Sherborne. Afinal, era ali que estava seu povo, sua família. Ela poderia muito bem viver sem filhos próprios e sem aquele homem que entrava e saía de sua vida, tão rapidamente como uma nuvem negra de trovoada.

Ranulf estava sentado com os pés apoiados na mesa, enquanto Thomas terminava de escrever uma carta destinada a Lyonsbridge, que um men­sageiro se apressaria em levar.

— Eu lhe disse, Thomas, que a velha era uma bruxa de verdade. Não estou falando das ervas soporíferas, mas de suas profecias. — Ele incli­nou-se um pouco para a frente e falou com voz temerosa. — E o que me diz da lua sangrenta?

Thomas bufou. Depois da morte de Dunstan, os comentários haviam fervilhado em Sherborne, Todos haviam admirado a precisão dos vaticínios da velha Maeve. O acerto lhe valera uma credi­bilidade ainda maior, a partir do incidente trágico.

— Ah, Ranulf, não seja dramático! Tratava-se apenas de uma poça de sangue.

— E as duas mortes? Exatamente como ela pre­disse para Alyce. Dunstan e Fantierre.

Thomas estremeceu. Ainda sentia a mesma angústia, toda a vez em que pensava no francês intrépido.

— Ranulf, o senhor meu irmão não tinha um encontro com o armeiro? Preciso terminar isto aqui. — Ele apontou a carta.

— Nós deveríamos voltar a Lyonsbridge em vez de mandar cartas.

— Se tudo sair conforme o planejado, faremos isso em breve.

— Então o senhor recusou mesmo o pedido de Ricardo para acompanhá-lo ao continente? — Ra­nulf espantou-se.

— Tive de fazê-lo. Tenho outros planos para minha vida.

Ranulf pôs os pés no chão.

" — Acredito e espero que esses planos incluam lady Alyce — o irmão deduziu, com ar matreiro. — Porque, meu irmão, eu juro... que se não o fizer, eu mesmo...

— Nem pense em uma coisa dessas! — Thomas respondeu com determinação.

Ranulf conteve-se para não rir.

— Desculpe-me. Não pensei em fazê-lo ficar com raiva de mim novamente. Reconheço que abusei da condição fraterna para fazer um desafio ab­surdo e impensável.

Thomas olhou-o e sorriu.

— O senhor é mesmo impossível, irmãozinho. E difícil ficar zangado consigo.

— Sorte a minha. — Ranulf fez uma careta engraçada. — Assim poderei participar de suas refeições com certa regularidade.

Ranulf riu da própria graça, mas não se mexeu. Observou o irmão em silêncio, enquanto Thomas rabiscava no pergaminho. Finalmente, o mais ve­lho levantou a cabeça.

— O que pretendo fazer não é de sua conta — Thomas finalmente respondeu.

— Lyonsbridge também é meu lar! — Ranulf afirmou um tanto indignado. — Se há novidades a serem ditas...

— O assunto não tem nada a ver com Lyons­bridge. Estou escrevendo para nossa avó Ellen.

Ranulf ergueu as sobrancelhas surpreso.

— Então para que tão grande segredo? Thomas deu um sorriso tranquilo.

— Estou pedindo para nossa avó ajudar-me em uma proposta financeira. Como eu já lhe disse antes, Ranulf, isso não é de sua conta.

— Eu não conheço nenhuma senhora de Lyons­bridge, Fredrick — Alyce afirmou para o jovem servo, aturdida. — Tenho certeza que não. Onde está seu avô? Ele deve saber se meu pai tinha negócios com Lyonsbridge. Essa propriedade fica no sul, não é?

— A dama explicou que é mais ou menos a metade do caminho daqui até Londres.

— E ela não disse o que veio fazer aqui no norte, tão longe?

— A única coisa que afirma é que o negócio dela é com lady Sherborne e com ninguém mais. E tem mais, Milady. Ela parece ser mais velha de que meu avô. — Fredrick fez o comentário, como se aquilo fosse inconcebível.

— Espero que não tenha feito nenhuma obser­vação a respeito, Fredrick.

— Ah, não. Eu não faria uma coisa dessas. E, para dizer a verdade, ela ainda é bastante bonita. Tem cabelos brancos como a neve e olhos doura­dos. Ela parece... uma rainha, se é que se pode dizer assim.

A visitante, fosse ela quem fosse, havia impres­sionado Fredrick, que normalmente se interessava mais por, métodos agrícolas do que pela aparência das pessoas.

— Ela está esperando no solar? — Alyce perguntou.

— Sim, milady. O criado de lady Lyonsbridge trouxe um baú. Não sei se eles planejam hospe­dar-se aqui.

— Claro, teremos de lhes oferecer hospedagem por quanto tempo quiserem — Alyce concedeu ain­da abismada.

Era muito raro chegarem visitantes a Sherbor­ne, que ficava afastada das principais estradas, embora fosse conveniente ressaltar que no ano anterior as visitas houvessem acontecido em um número bastante razoável de ocasiões.

Como Fredrick dissera, a mulher que a esperava no recinto ensolarado, o lugar favorito de Alyce no castelo, era verdadeiramente majestosa. Seria a úni­ca maneira de descrevê-la. E por algum motivo des­conhecido, Alyce não se sentiu nem um pouco constrangida em frente à outra. Para dizer a verdade, de imediato ela gostou de lady Lyonsbridge.

— Quanta bondade em visitar-nos, Milady — Alyce assegurou, fazendo uma pequena cortesia.

Alyce não sabia qual a posição social da outra, mas teve a intuição de que Lyonsbridge devia ser uma herdade bem maior de que Sherborne. Além do quê, a idade da dama, já seria merecedora de deferências.

A visitante estava sentada no pequeno banco, muito ereta. Os únicos indícios de sua idade eram as rugas finas do rosto e os cabelos brancos, que estavam trançados como uma espécie de coroa ao redor da cabeça.

— Prefiro que me chame de Ellen, e eu a cha­marei de Alyce, se me permitir — a dama falou, com uma voz extremamente jovial.

— Sentir-me-ei muito honrada — Alyce respon­deu, sentando-se em frente da idosa mulher.

Entretanto, a sugestão aumentou o mistério. Por que aquela dama da nobreza teria vindo a Sherborne e por que tratava Alyce como se fossem conhecidas?

Alyce entendeu que não seria exatamente de­licado fazer uma pergunta direta.

— A senhora fez uma longa viagem desde Lyons­bridge. Está de passagem para algum outro destino?

— Não, criança. Eu vim aqui para vê-la. Alyce arregalou os olhos é esperou que a outra continuasse. Como ela não   o fizesse, Alyce adiantou-se.

— Perdoe-me, lady Ellen. Se a senhora teve ne­gócios com meu pai, ele nunca me falou sobre isso.

— Alyce, não tive o privilégio de conhecer seu pai. Esta é minha primeira visita a Sherborne.

A dama a observava, esperando que ela falasse, mas Alyce sentia-se confusa. Não podia atinar com os motivos daquela visita.

— Bem... ficaremos -muito felizes de tê-la conosco — ela comentou. — E uma propriedade mo­desta, mas tenho muito orgulho dela e ficarei feliz em poder mostrar-lhe os arredores.

— Quem sabe, em uma outra hora — a velha dama contornou, com um sorriso gentil. — Com certeza, e bem posso entender o porquê, seria mais de seu agrado eu contar-lhe por que vim parar em seus domínios.

— Sim, sim, isso despertou minha curiosidade — Alyce admitiu, com um suspiro de alívio.

— Minha criança, sou uma dama idosa — Ellen começou e ergueu a mão, ante a insinuação de protesto por parte de Alyce. — Já fui testemunha de muitas mudanças durante minha vida. Mas uma coisa não mudou. Os homens de nosso mundo ainda parecem estar mais no controle da situação, quando se trata do destino de nós mulheres.

Alyce perguntou-se quanto lady Ellen conhecia de sua história. O comentário dela demonstrava que sabia de alguma coisa.

— Sim — Alyce concordou. — Essa tem sido também minha experiência.

— Alyce de Sherborne, por exemplo. — A dama apontou-lhe um dedo enluvado. — Deve casar-se de acordo com a vontade do rei, certo?

Naquela altura dos acontecimentos, quando o noivado dela com Thomas tornara-se sem sentido,

Alyce não tinha muita certeza se o rei Ricardo ainda iria reivindicar o direito de casá-la.

— Sim, de acordo com as leis feudais, o rei tem o direito de escolher um marido para mim.

— A menos que pague a taxa para livrá-la desse dever — Ellen acrescentou.

Alyce anuiu.

— Desculpe uma velha dama por suas dores e seus achaques, Alyce. A tarefa será mais fácil para uma jovem. Poderia fazer o favor de abrir a arca para mim?

A dama tornou a apontar, dessa vez para um baú de madeira que estava a uma pequena dis­tância. Espantada, Alyce levantou-se e deu alguns passos. Recordou-se de uma cena semelhante, ha­via meses, quanto Thomas também a havia con­vidado para abrir uma arca que estava cheia de moedas de ouro.

O seu velho e conhecido instinto lhe dizia que o conteúdo daquela grande caixa era da mesma natureza. Ela puxou a tampa para cima e encarou lady Lyonsbridge intrigada.

— E um presente — Ellen assegurou. — Para pagar seu imposto ao rei. Aqui deve haver o su­ficiente para comprar sua liberdade.

Alyce balançou a cabeça, cada vez mais confusa.

— Mas por que...

— Só assim, minha criança, poderá escolher seu próprio destino. Todos nós temos esse direito. Até mesmo as mulheres.

Alyce fitou as brilhantes moedas de ouro, em­basbacada. Piscou várias vezes. Aquilo não fazia sentido. Por que uma estranha entraria em sua casa e em sua vida para oferecer-lhe aquela enor­me quantia em dinheiro?

— Eu não tenho terras para vender — ela apres­sou-se em dizer.

Lady Lyonsbridge deu uma risada sonora.

— Não vim comprar nada. O dinheiro é todo seu. Livre de qualquer compromisso.

Alyce sentou-se descoroçoada.

— Eu não entendo.

Ellen fitou-a por algum tempo e depois sorriu bondosamente.

— Minha criança, a minha missão era trazer-lhe o dinheiro, sem qualquer outra explicação. Mas eu mudei de ideia.

— Eu não entendo — Alyce repetiu.

— Alyce, acho que merece saber de onde vem esse dinheiro. Isso poderá ajudá-la nas decisões que terá de tomar, daqui para a frente.

— Não é seu? — Alyce perguntou, cada vez mais abismada.

A velha senhora esboçou um sorriso e, de re­pente e apesar da idade, Alyce viu uma seme­lhança indiscutível.

— Não — lady Ellen respondeu. — O dinheiro é do herdeiro de Lyonsbridge, meu neto, Thomas Brand.

 

Alyce ajoelhou-se em frente ao baú cheio de ouro, simplesmente aturdi­da. Na verdade, era uma grande soma de dinheiro, embora não tão significativa para um homem que deveria tornar-se o sucessor do imenso feudo de Lyonsbridge.

Sentiu o sangue subir-lhe ao rosto, quando se lem­brou do que havia pensado sobre ele. Um caçador de fortunas! Imaginara que as atenções de Thomas para com ela fossem devidas ao interesse que ele poderia ter na pequena e modesta propriedade de Sherborne. Sentiu-se uma perfeita idiota.

Lady Ellen estava esperando por uma reação, uma resposta, mas Alyce não sabia o que dizer. O significado daquele presente era óbvio. Depois de todas as dificuldades e dos vários embaraços que ela o fizera enfrentar, Thomas não estava mais interessado em casar-se com a noiva. Alyce entendeu que o dinheiro seria uma maneira de Thomas desculpar-se por libertá-la do compromis­so. Afinal, não era muito comum e nem seria sinal de cavalheirismo um homem desprezar uma mu­lher, depois de consumado um contrato de casamento. Tinha de admitir a imensa bondade e con­sideração por parte dele. Embora não a quisesse mais, ainda tinha a gentileza de permitir que ela não fosse mais forçada a aceitar qualquer outro casamento desagradável.

— A senhora pode dizer a seu neto que ele - não tem obrigações para comigo — Alyce decla­rou obstinada.

Lady Lyonsbridge, bastante descontraída, riu com gosto.

— Desconfio de que ele não concordará com esse ponto de vista — a dama alegou.

As lágrimas vieram aos olhos de Alyce. Ela abai­xou vagarosamente a tampa da arca, ergueu-se e sentou-se em frente a lady Ellen.

Thomas estava tentando fazer uma coisa muito mais do que decente. Ele queria ajudá-la a en­contrar a vida independente que ela tanto alme­java. Porém era também evidente que ele não que­ria mais vê-la. Tanto é que não trouxera o dinheiro pessoalmente. Havia pedido à avó para executar a tarefa.

— Por que ele mandou a senhora?

— Primeiro, porque sou mulher. Depois, por eu ter afinidade com os sentimentos de uma jovem dama que enfrenta as próprias batalhas.

Aquelas palavras pareceram-lhe ser oriundas mais de Ellen de que de Thomas. Alyce achava que Thomas nunca entendera muito sobre as es­pécies de dificuldades que as mulheres tinham de enfrentar em suas vidas.

— Ou quem sabe... ele está apenas agindo com covardia — Alyce comentou, com suavidade.

Lady Ellen deu uma risadinha.

— A maioria dos homens é covarde quando o as­sunto diz respeito aos sentimentos femininos. Mas não se trata disso. Lady Alyce de Sherborne ensinou a meu neto uma grande lição. Acho que desta vez ele quer ter certeza de que a senhora se sentirá absolutamente livre para fazer a própria escolha, em se tratando de um marido. Ele entendeu que cometeu um erro, ao forçá-la anteriormente.

— E foi mesmo — Alyce concordou em voz baixa.

— Pode ser. Mas acredito que aquilo foi feito de bom coração. Os homens sempre acham que sabem o que é melhor para nós.

— É, eu sei.

Alyce lembrou-se de seu pai e suspirou. Ele sem­pre estivera convencido de que fazia um grande benefício para sua filha, afastando-a do amor e de todos os pretendentes.

— Realmente é muita generosidade por parte de Thomas — Alyce continuou. — Mas a senhora pode dizer-lhe que ele não precisa preocupar-se comigo e que eu o liberto de todo e qualquer compromisso.

Lady Lyonsbridge piscou surpresa.

— Será que é mesmo o que está me parecendo? Que já não o ama mais?

Alyce empinou o queixo orgulhosa, mas com os olhos rasos de água.

— E quem disse que eu o amei alguma vez? Como a senhora deve saber, o rei Ricardo obri­gou-me a aceitar o noivado.

Ellen sacudiu a cabeça.

— Alyce, uma mulher velha sabe de muitas coi­sas. E^ de mais a mais, eu não acredito que tenha deixado de amá-lo. Quando pronuncia seu nome, eu vejo a mesma ternura em seu olhar que haverá de ver no meu, toda vez que me ouvir chamar meu marido, Connor.

E Alyce viu. Era uma mistura de calor e orgulho brilhando nos olhos joviais da idosa dama.

— É verdade — Alyce confessou rendida. — Eu amo Thomas. Mas lhe peço, por tudo o que for mais sagrado, para guardar segredo desta minha confissão. Eu lhe causei inúmeros problemas e não o culpo por querer ver-se livre de mim. Não quero mais ser responsável por qualquer tipo de situação perigosa ou constrangedora para ele.

Lady Lyonsbridge endireitou-se na cadeira e cruzou os braços.

— Santa Maria abençoada! Minha criança, o que a faz supor que ele quer se ver livre do noivado?

— Bem... — Alyce vacilou e apontou para o baú cheio de moedas de ouro. — Acho que é bastante claro, não é mesmo? Ele mandou o dinheiro para eu pagar o imposto matrimonial ao rei. Isso me liberta da obrigação de casar-me com Thomas. Nós romperemos o nosso noivado, ele cumpre com seu dever de cavaleiro e...

Lady Lyonsbridge, entre surpresa e sorridente, inclinou-se para a frente e segurou as mãos de Alyce com força.

— Alyce, minha criança. A última coisa no mun­do que Thomas deseja é ver-se livre do compro­misso de noivado. Ele enviou o dinheiro para que a noiva dele pudesse escolher livremente casar-se com ele!

Alyce perdeu o fôlego, ao ver o Castelo de Lyons­bridge. Reconheceu-o imediatamente, pela descri­ção que Ellen lhe fizera, por sua estrutura carac­terística, com uma torre redonda e outra octogo­nal. O séquito fez uma curva e logo divisaram-se, a distância, os contornos do sol no ocaso, delinea­dos contra o céíi cor-de-rosa.

— E magnífico, não. é? — Ellen chamou a aten­ção de Alyce, inclinando-se para fora da liteira. — Nunca me esqueci de minha impressão, quando cheguei aqui, vinda da Normandia. Isso também aconteceu em um dia abençoado com um belo pôr-do-sol como este.

— Ele parece quase dourado — Alyce comentou com admiração.

— É verdade. Também nunca deixarei de lembrar quando vi, pela primeira vez, o estribeiro-mor.

Alyce havia ficado espantada ao saber que o homem a quem ela então se referia, era o que depois se tornara seu marido, o lorde de Lyons­bridge. Com certeza, os ancestrais do saxão Con­nor haviam sido senhores de Lyonsbridge muito antes do pai normando de Ellen tomar posse do feudo.

Alyce aprendera muito sobre a história de Lyonsbridge. No dia anterior, em Sherborne, ela e lady Ellen haviam conversado durante a tarde inteira e parte da noite.

Ellen de Lyonsbridge escutara com simpatia e indignação a narrativa do noivado que Alyce fora obrigada a aceitar. Para a jovem órfã, foi quase o mesmo do que ter a mãe para fazer confidências e também para escutar-lhe os conselhos.

Alyce havia declarado que, apesar do gesto no­bre de Thomas enviando o dinheiro, ele não de­veria tê-la mandado a Nottingham para forçá-la a casar-se com ele, Ellen de Lyonsbridge concor­dara plenamente com os pontos de vista de Alyce. E, durante a noite, enquanto as duas conversaram no solar aconchegante, à luz de velas, Ellen havia convencido Alyce a fazer uma visita a Lyonsbridge. — Não desejo impor-lhe qualquer tipo de com­promisso, minha criança. Eu gostaria que co­nhecesse Connor e terei o maior prazer em mos­trar-lhe meu lar de tantos anos. Se meu neto estiver interessado em vê-la, ele que se locomo­va até lá.

Alyce aceitou a sugestão de Ellen e ficou com­binado que partiriam no dia seguinte, pela manhã. Ellen convidou Alyce para viajar junto dela na liteira. O que foi um ato de grande consideração. Além de Lettie, Fredrick e os primos Hugh e Guelph faziam parte da comitiva de Alyce, pois ela não pretendia chegar à imponência de Lyons­bridge sem escolta.

A despeito das demonstrações de entusiasmo por parte de Ellen, Alyce pôde comprovar o can­saço da viagem no rosto da idosa dama, quando o cortejo subiu a pequena colina e atravessou os portões do Castelo de Lyonsbridge. Mas a exaus­tão pareceu desaparecer, quando lady Elleh virou-se para a figura de um homem alto e idoso que caminhava ao encontro delas pelo pátio.

Connor, o lorde de Lyonsbridge, era um saxão de cabelos tão brancos quanto os da esposa, e cuja pele também mostrava a mesma transparência da idade. Entretanto, tinha a postura ereta de um jovem, e havia um brilho juvenil em seus olhos azuis.

Ele mal ouviu as apresentações de Ellen. Antes de conceder atenção aos visitantes, ele se preocu­pou em saudar a esposa com um beijo terno.

— Meu amor, cansou-se muito nessa jornada? — Connor perguntou, com extremo carinho.

Alyce comoveu-se ao ver a devoção óbvia entre o casal.

A refeição da noite no imenso vestíbulo de Lyonsbridge foi muito festiva. A delegação de Sherborne divertiu-se bastante, apesar da fadiga da viagem. Depois do jantar, Connor apanhou seu alaúde e, sem deixar de fitar Ellen, tocou várias baladas dignas dos melhores menestréis. A maio­ria delas tratava de histórias que entrelaçavam amor e intriga.

Alyce, com os olhos cheios de lágrimas, ob­servou-o dedilhar o instrumento e lembrou-se das mesmas canções que Thomas tocara em Sherborne.

Finalmente, tornou-se claro que lady Ellen che­gava ao fim de suas forças. Ela inclinou-se um pouco na cadeira e apoiou pesadamente os coto­velos na mesa. Connor largou de imediato o alaúde e ajudou-a a erguer-se. Ele esperou a esposa des­pedir-se dos hóspedes e conduziu-a para fora do recinto.

Alyce também sentiu os efeitos da viagem can­sativa e gostou de ser levada ao pequeno aposento privativo que Ellen mandara preparar para ela.

Lettie ofereceu-se para dormir no chão, ao lado do catre de solteiro da pupila, mas Alyce aconse­lhou-a a procurar um lugar mais confortável para descansar. Ela estava acostumada a dormir sozi­nha e, para falar a verdade, até gostaria de não ter de falar com ninguém. Assim poderia tentar encontrar uma solução para seus pensamentos tão confusos.

Alyce estava contente por ter vindo a Lyonsbridge, independente do fato de Thomas vir ou não. A des­peito da grandiosidade da construção de pedra, sen­tia-se muito bem naquele castelo espaçoso. Connor e Ellen deixavam-na à vontade. Eles formavam um casal de qualidades inigualáveis. Deitada de costas, ela sorriu ao lembrar-se da ternura de um para com o outro. Que bênção era poder viver uma velhice feliz ao lado do parceiro que se amava!

Era um tesouro muito mais valioso de que todo o ouro do mundo, ela pensou, gratificada, antes de sucumbir ao sono profundo.

De certa forma, não pareceu nem um pouco estranho acordar e achar-se nos braços de Tho­mas. Ainda meio adormecida, ela murmurou seu contentamento e aconchegou-se de encontro ao peito largo.

Thomas riu à socapa. E foi quando ela deu-se conta de que estava em Lyonsbridge e que Thomas estava ali, sem roupas e deitado ao lado dela, na cama.

— Minha querida, esperei uma hora para acor­dá-la — ele falou e beijou-lhe a ponta do nariz. — Cavalguei a noite inteira para poder vê-la mais depressa.

Alyce piscou duas vezes. Thomas sorria para ela, com os olhos vermelhos por não haver dormido.

— O que está fazendo aqui? — ela indagou, ainda meio tonta.

Ele abraçou-a com mais força.

— Minha avó mandou avisar-me que minha doce Alyce estaria com disposição favorável para ver-me.

Ela afastou-se.

— Duvido de que lady Ellen possa considerar que esta — ela indicou a cama —, seja uma ma­neira apropriada para uma audiência.

Thomas meneou a cabeça e fez uma careta caçoísta.

— Ah, tudo é possível. Minha avó é uma dama corajosa e aventureira, exatamente igual a al­guém que conheço.

Alyce sorriu deliciada.

— Thomas, nós precisamos conversar a sério.

— Muito bem. — Ele fez um ar compenetrado.

— Sobre o que milady gostaria de conversar? Alyce hesitou. Para ser sincera com ela mesma, não tinha a mínima vontade de conversar quando sentia a rigidez do corpo masculino pressionando o tecido fino da roupa de dormir.

— Bem, sobre casamento e.... — a voz de Alyce extinguiu-se.

Thomas percebeu que Alyce já não prestava atenção ao que ela mesma falava. Ele moveu-se ligeiramente, até o ajustamento dos corpos deles tornar-se completo.

— Hum, casamento, sim. Uma nobre instituição — ele comentou, entre beijos. — Meus avós reco­mendam bastante.

— Thomas, eles são pessoas maravilhosas — Alyce animou-se. — Gostei demais deles.

— Todo mundo gosta — ele acrescentou. — Queira Deus que nós todos pudéssemos alcançar tal felicidade.

— Será que nós dois conseguiremos? — ela per­guntou, um tanto melancólica.

Thomas beijou-a, terna e longamente.

— Já conseguimos, meu amor. Só temos de ter a coragem de admitir. E estou pronto para a mudança.

— E por que me mandou todas aquelas moedas de ouro? — Ela queria estar absolutamente certa. — Não foi para se ver livre de mim?

Ele sentou-se de súbito, atordoado.

— Quem lhe falou um absurdo desses?

— Bem... foi o que pensei, a princípio. E que eu já fizera tantas confusões, já havia causado tantos problemas... — Os lábios de Alyce treme­ram. — Pobre Fantierre...

Thomas ficou sério, inclinou-se e beijou-lhe le­vemente a boca.

— Oh, minha querida. Fantierre estava jogando em um campo muito perigoso e sabia dos riscos. Acredito que Dunstan havia descoberto a verdade sobre o duplo papel de Fantierre, antes mesmo de o francês encontrá-la naquela tarde. Seu plano de libertar Sherborne provavelmente nada teve a ver com a morte dele.

— Mas não podemos ter certeza — ela retorquiu.

— Nós nunca saberemos — ele concordou —, mas eu posso garantir-lhe que Fantierre tinha uma grande admiração pelo amor verdadeiro. A última coisa que ele iria querer, seria que sua morte estragasse nossa felicidade.

Eles permaneceram em silêncio por algum tem­po, relembrando os fatos. Depois Alyce fez a per­gunta que a atormentava, desde que lady Ellen revelara a identidade dele.

— Por que não me contou sobre Lyonsbridge naqueles dias após o noivado? O senhor nem mes­mo usava mais o disfarce de Havilland.

— Eu sei disso, mas achei que seria melhor se eu conseguisse persuadi-la a me amar por mim mes­mo, sem levar em conta títulos ou propriedades. Até quando eu falei com Lettie a nosso respeito, ela sentiu-se um pouco insultada com a ideia de eu haver dito que Sherborne era uma posse modesta.

— Conversou mesmo com Lettie a respeito disso?

— Minha querida, eu recebi conselhos de Lettie, Kenton e Ranulf e até mesmo do rei. — Thomas suspirou, com ar de troça. — Nunca imaginei que apaixonar-me fosse uma coisa tão complicada.

— Nem eu — Alyce concordou plenamente. — Claro. Também isso não fora planejado por mim. Eu estava determinada a permanecer sozinha e não me casar jamais.

— O que teria sido uma grande tragédia — ele afirmou, realmente compungido.

Alyce sorriu com ternura e encostou-se ainda mais perto dele, debaixo das cobertas.

— Mas fui convencida a mudar de opinião.

— Por minha avó? — O sorriso de Thomas ace­lerou a pulsação de Alyce.

— Bem, ela foi maravilhosa, mas... foi por uma combinação de elementos.

Thomas empurrou-a para trás com carinho, e ela deitou a cabeça sobre o travesseiro.

— Será que a atrevida Rose teve alguma coisa a ver com isso?

Alyce abraçou-o pelo pescoço.

— Eu acredito que sim — ela respondeu e cas­quinou uns risinhos. — Foi ela quem me mostrou que determinadas partes do processo podem ser...

Thomas começava a beijá-la, interrompendo-a.

— ...bastante desfrutáveis.

Ele passou a língua do queixo até os lábios de Alyce, para depois lhe saborear o interior da boca, em um beijo denso e impetuoso.

— Vou ter de agradecer-lhe algum dia —: ele murmurou com voz baixa e rouca, quanto teve de fazer uma pausa para respirar.

Alyce deu um pequeno gemido e deslizou seu corpo, para debaixo dele.

— Se quiser, pode fazer isso agora. Eu não me importo nem ura pouquinho.

— Temos de nos levantar desta cama, Thomas! Seus avós devem estar pensando que sou uma namoradeira escandalosa.

— Não acho que eles irão julgar-nos tão mal assim — Thomas calculou, dando uma risada. — Lembro-me bem de muitas manhãs em que ne­nhum dos dois aparecia para o quebrar o jejum.

— Não tenho essas lembranças de meus pais

— Alyce comentou, com uma ponta de tristeza.

— Acho que antes de minha mãe morrer, meu pai tinha receio das consequências que poderiam advir para ela, depois dos arroubos amorosos.

— Minha avó diz que viver com medo é o mesmo que não viver.

— Esta é a afirmação de uma pessoa muito corajosa.

— Sem dúvida. Das histórias que tenho ouvido contar, deduzi que muitas vezes meu avô acabava acreditando que teria sido melhor para minha avó, se ela aceitasse a presença saudável de um pouco de precaução.

— O aspecto dela é de quem se beneficiou com essa atitude perante a vida. Chegou a uma idade avançada com muita energia.

Thomas rolou para cima de Alyce e brindou-a com um beijo sonoro.

— A minha querida lady Alyce tem muito em comum com ela. Ainda não falei com meu avô sobre isso, mas tenho de pedir-lhe alguns conse­lhos de como tratar uma mulher que tem opinião própria.

— Acho que o senhor meu noivo já descobriu uma das maneiras — ela afirmou e beijou-o.

— Ah, sim — ele admitiu, com uma risada ma­treira —, mas continuarei a pedir opiniões.

Mais uma vez, eles ficaram em silêncio por al­guns momentos. Thomas fitou o nada, antes de tornar a falar.

— Eu estava pensando que deveríamos fazer uma visita à velha Maeye, quando voltarmos a Sherborne.

Alyce surpreendeu-se.

— Achei que não acreditasse nos poderes dela.

— Eu reconsiderei o assunto.

Ela levantou as sobrancelhas com ar entendido.

— Hum... Aposto que sei qual a previsão que vai solicitar dela. É sobre aquela dúzia de filhos que pretende ter.

Thomas fitou-a, com a expressão mais inocente do mundo.

— Para dizer-lhe a verdade, não havia sequer cogitado disso.

— Então, do que se trata?

— Minha querida — ele deu um grande suspiro —, estou perdidamente apaixonado, mas tenho de admitir que minha noiva e futura esposa tem uma certa tendência para meter-se em apuros ocasio­nais. Fui levado a crer que a velha Maeve poderia fazer-me algumas profecias. Por meio delas eu po­derei estar preparado para a próxima vez em que minha esposa decidir, por exemplo, enfrentar um batalhão de soldados treinados.

Alyce preparou-se para dar-lhe um tapa no braço. Antes de ela poder completar o gesto, ele agarrou-lhe o pulso, prendeu-o na cama e imobilizou-a.

— Sou uma mulher tão preocupante assim? — ela indagou, já com entonação gutural.

Thomas anuiu devagar.

— Alarmante! Mas eu farei o sacrifício. — Antes de que ela protestasse, ele inclinou a cabeça e beijou-a novamente. — Quanto àquelas   doze crianças...

Alyce também o beijou. Mas como ele não ter­minara a frase, ela afastou os lábios e esperou.

— Não precisamos falar com Maeve sobre isso — ele murmurou.

— Tem certeza? E por quê?

Thomas deu uma pequena mordida no queixo da amada.

— Nós daremos muito bem conta do assunto, sem o auxílio dela.

— Eu o amo, Thomas Brand.

Depois de ele tê-la abraçado, Alyce Sherborne nem percebeu que o sol da manhã já começava a descida para o poente.

 

                                                                                Ana Seymour  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Voltar à Página do Autor