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O AMOR NOS TEMPOS DE CÓLERA / G. G. Marquez
O AMOR NOS TEMPOS DE CÓLERA / G. G. Marquez

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O AMOR NOS TEMPOS DE CÓLERA

Parte I

 

Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas recordava-lhe sempre o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino sentiu-o assim que entrou na casa, ainda mergulhada em penumbra, onde fora de urgência para tratar um caso que, para ele, já tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado antilhano, Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e o seu mais tolerante adversário de xadrez, tinha-se posto a salvo das inquietações da memória com um defumador de cianeto de ouro.

Encontrou o cadáver coberto com uma manta, no catre de campanha onde sempre dormira, ao lado de um tamborete onde estava a pequena tina que lhe tinha servido para vaporizar o veneno. No chão, preso aos pés do catre, o corpo estendido de um Grand-Danois negro de peito alvo e, junto dele, as muletas. O quarto, sufocante e caótico, que servia ao mesmo tempo de quarto de dormir e de laboratório, mal começava a iluminar-se com o resplendor do amanhecer na janela aberta, mas bastava essa luz para reconhecer imediatamente a autoridade da morte. As outras janelas, bem como qualquer fresta da divisão, estavam amordaçadas com trapos ou seladas com cartões negros, e isso aumentava a sua densidade opressiva. Havia um escaparate atulhado de frascos e boiões sem rótulos e duas tinas de peltre meio escacarado sob uma lâmpada vulgar coberta de papel vermelho. A terceira tina, a do líquido fixador, era a que estava ao lado do cadáver. Havia revistas e jornais velhos por toda a parte, pilhas de negativos em placas de vidro, móveis partidos, mas encontrava-se tudo preservado do pó por mãos diligentes. Ainda que o ar da janela tivesse purificado o recinto, ficava, porém, para quem o soubesse identificar, o cheiro morno a amores infelizes das amêndoas amargas. O doutor Juvenal Urbino tinha pensado mais de uma vez, sem intenção premonitória, que aquele não era um lugar propício para morrer na graça de Deus. Mas, com o tempo, acabou por supor que a sua desordem obedecia talvez a uma determinação cifrada da Divina Providência.

Tinham-se-lhe adiantado um comissário da Polícia e um estudante de Medicina muito jovem que fazia a sua prática forense no dispensário municipal, e foram eles que arejaram a sala e cobriram o cadáver enquanto o doutor Urbino não chegava. Ambos o cumprimentaram com uma solenidade que, desta feita, tinha mais de condolência que de veneração, pois ninguém ignorava o grau da sua amizade com Jeremiah de Saint - Amour. O eminente professor apertou a mão aos dois, como desde sempre o fazia a cada um dos seus alunos antes de iniciar a aula diária de Clínica Geral, e logo segurou na orla da manta com a ponta do indicador e do polegar, como se fosse uma flor, destapando o cadáver, palmo a palmo, com uma parcimónia sacramental. Estava completamente nu, hirto e retorcido, com os olhos abertos, o corpo azul, e como se tivesse mais cinquenta anos que na noite anterior. Tinha as pupilas diáfanas, a barba e o cabelo amarelecidos e o ventre atravessado por uma cicatriz antiga, cosida com nós de embrulho. O tronco e os braços tinham a envergadura dos de um remador, devido ao esforço com as muletas, mas as pernas inermes pareciam as de um órfão. O doutor Juvenal Urbino contemplou-o durante um instante com o coração apertado como raras vezes naqueles seus longos anos de luta estéril contra a morte.

- Idiota - disse-lhe. -’ O pior já tinha passado.

Voltou a cobri-lo com a manta e recuperou a sua compostura académica. No ano anterior tinha celebrado os seus oitenta anos com um jubileu oficial de três dias, e, no discurso de agradecimento, resistiu mais uma vez à tentação de reformar-se. Dissera: «Terei tempo de sobra para descansar quando morrer, mas essa eventualidade não se encontra ainda nos meus projectos » Ainda que ouvisse cada vez menos do ouvido direito e se apoiasse numa bengala com castão de prata para disfarçar a incerteza dos seus passos, continuava a usar com o garbo da mocidade o fato completo de linho com o colete atravessado pela corrente de ouro. A barba à Pasteur, nacarada, e o cabelo da mesma cor, muito bem penteado e de impecável risco ao meio, eram expressões fiéis do seu carácter. A erosão da memória, cada vez mais inquietante, compensava-a até onde lhe era possível com apontamentos rápidos em papelinhos soltos que acabavam por misturar-se em todos os bolsos, da mesma maneira que os instrumentos, os frascos de remédios e tantas outras coisas desarrumadas, na maleta atulhada. Não só era o médico mais antigo e esclarecido da cidade como também o mais sensato dos homens. No entanto, a sua sapiência demasiado ostensiva e o modo nada ingénuo como manobrava o poder do seu nome tinham-lhe valido menos afectos que os merecidos.

As instruções ao comissário e ao estudante foram rápidas e concisas. Não era preciso fazer autópsia. O cheiro da casa bastava para determinar que a causa da morte tinham sido as emanações do cianeto activado na tina por meio de qualquer ácido dos utilizados em fotografia, e Jeremiah de Saint-Amour sabia o suficiente do assunto para poder fazê-lo por acidente. Perante as reticências do comissário, deteve-o com uma estocada típica da sua maneira de ser: «Não se esqueça que sou eu quem assina a certidão de óbito.» O jovem médico ficou desiludido: nunca tinha tido a sorte de estudar os efeitos do cianeto de ouro num cadáver. O doutor Juvenal Urbino tinha-se surpreendido por não o ter visto na Escola de Medicina, mas compreendeu-o logo pelo seu rubor fácil e pelo sotaque andino: era talvez um recém-chegado à cidade. Disse: «Não lhe faltará por aqui algum louco de amor que lhe ofereça essa oportunidade um dia destes.» E só quando o disse se deu conta de que, entre os incontáveis suicídios que recordava, aquele era o primeiro com cianeto que não tinha sido causado por um infortúnio de amor. Algo se alterou então nos hábitos da sua voz.

- Quando o encontrar, repare bem - disse ao estagiário -, costumam ter areia no coração.

Depois falou com o comissário como se o fizesse com um subalterno. Ordenou-lhe que procedesse a todas as diligências para que o enterro se realizasse nessa mesma tarde e dentro do maior sigilo. Disse: «Falarei depois com o alcaide.» Sabia que Jeremiah de Saint-Amour era de uma austeridade primitiva e que ganhava com a sua arte muito mais do que precisava para viver, de modo que em alguma das gavetas da casa devia haver dinheiro de sobra para as despesas do enterro.

- Mas se não o encontrarem, não faz mal - disse. - Eu encarrego-me de tudo.

Mandou dizer aos jornais que o fotógrafo tinha morrido de morte natural ainda que pensasse que a notícia não lhes interessava de modo algum. Disse: «Se for necessário, falarei com o governador.» O comissário, um empregado sério e humilde, sabia que o rigor cívico do professor exasperava até os seus amigos mais íntimos, e estava surpreendido com a facilidade com que saltava por cima dos trâmites legais para apressar o enterro. A única coisa a que não acedeu foi em falar com o arcebispo para que Jeremiah de Saint-Amour fosse sepultado em terra sagrada. O comissário, mortificado com a sua própria impertinência, tentou desculpar-se:

- Estava convencido de que este homem era um santo disse.

- Era algo ainda mais raro - respondeu-lhe o doutor Urbino. - Um santo ateu. Mas isso são assuntos de Deus.

Remotamente, do outro lado da cidade colonial, fizeram-se ouvir os sinos da catedral chamando para a missa. O doutor Urbino pôs os óculos de meia-lua com aros de ouro, consultou o relogiozinho de corrente, que era quadrado e fino, e cuja tampa se abria por uma mola: estava quase a perder a missa de Pentecostes.

Na sala havia uma enorme máquina fotográfica como as dos jardins públicos e o quadro de um crepúsculo marítimo pintado com tintas artesanais. As paredes estavam atapetadas por retratos de crianças nas suas datas memoráveis: a primeira comunhão, a fantasia de coelho, a festa de aniversário. O doutor Urbino tinha visto a paulatina cobertura das paredes, ano após ano, durante o concentrado matutar das tardes de xadrez, e muitas vezes pensara com um estremecimento de desolação que nessa galeria de retratos casuais se encontrava o germe da cidade futura, governada e pervertida por aquelas crianças duvidosas, e na qual já não restariam nem as cinzas da sua glória.

Na secretária, junto a um recipiente com vários cachimbos de lobo-do-mar, estava o tabuleiro de xadrez com uma partida por concluir. Apesar da sua pressa e do ânimo sombrio, o doutor Urbino não resistiu à tentação de estudá-la. Sabia que era a partida da noite anterior, pois Jeremiah de Saint-Amour jogava todas as tardes da semana e, pelo menos, com três adversários diferentes, mas chegava sempre ao fim e depois guardava o tabuleiro e as peças na sua caixa, e guardava a caixa numa das gavetas da secretária. Sabia que jogava com as brancas, mas era evidente que daquela vez ia ser derrotado sem apelo nem agravo em quatro jogadas. «Se tivesse sido um crime, aqui estaria uma boa pista», disse para consigo. «Só conheço um homem capaz de preparar esta armadilha de mestre.» Não teria podido viver sem averiguar mais tarde por que aquele soldado indómito, acostumado a bater-se até à última gota de sangue, tinha deixado por acabar a guerra final da sua vida.

Às seis da manhã, quando fazia a sua última ronda, o guarda-nocturno tinha visto o letreiro cravado na porta da rua: «Entre sem tocar e avise a Polícia.» Pouco depois chegou o comissário com o estagiário, e ambos tinham feito uma busca à casa, à procura de algum indício contra o odor inconfundível das amêndoas amargas. Mas nos breves minutos que demorou a análise da partida interrompida, o comissário descobriu, entre os papéis da secretária, um sobrescrito dirigido ao doutor Juvenal Urbino, protegido com tantos selos de lacre, que foi preciso fazê-lo em pedaços para tirar a carta. O médico afastou a cortina preta da janela para ter mais luz, deu primeiro uma vista de olhos rápida às onze folhas escritas dos dois lados com uma caligrafia esmerada e mal leu o primeiro parágrafo compreendeu que tinha perdido a comunhão de Pentecostes. Leu com a respiração agitada, voltando atrás em várias páginas para retomar o fio à meada e quando acabou parecia regressar de muito longe e de há muito tempo. O seu abatimento era visível apesar do esforço para o impedir: nos lábios tinha a mesma coloração azul do cadáver, e não pôde controlar a tremura dos dedos quando voltou a dobrar a carta e a guardá-la no bolso do colete.

Então lembrou-se do comissário e do jovem médico, e dirigiu-lhes um sorriso que lhe assomava da bruma do seu abatimento.

- Nada de especial - disse. - São as suas últimas instruções.

Era uma meia verdade, mas eles julgaram-na completa porque os mandou levantar um ladrilho solto do chão e aí encontraram um caderno de contas muito usado onde se encontravam as chaves para abrir a caixa-forte. Não havia tanto dinheiro quanto pensavam, mas era mais do que o necessário para cobrir as despesas do enterro e outros compromissos menores. O doutor Urbino estava então consciente de que não conseguiria chegar à catedral antes do Evangelho.

- É a terceira vez que perco a missa de domingo desde que tenho o uso da razão - comentou. - Mas Deus compreende. E, assim, preferiu demorar-se mais uns minutos para deixar esclarecidos todos os pormenores, ainda que mal pudesse suportar a ansiedade de partilhar com a sua mulher as confidências da carta. Comprometeu-se a avisar os numerosos refugiados das Caraíbas que viviam na cidade, para o caso de quererem prestar as últimas homenagens a quem se tinha comportado como o mais respeitável de todos eles, o mais activo e radical, mesmo depois de se ter tornado por de mais evidente que tinha sucumbido aos espinhos do desencanto. Também avisaria os seus comparsas de xadrez, entre os quais se contavam desde insignes profissionais a operários anónimos e outros amigos menos assíduos, mas que talvez quisessem assistir ao enterro. Antes de conhecer a carta póstuma, tinha resolvido ser o primeiro, mas depois de a ler já não tinha a certeza de nada. De qualquer maneira mandaria uma coroa de gardenias, para o caso de Jeremiah de Saint-Amour ter tido um último minuto de arrependimento. O funeral seria às cinco, que era a hora adequada nos meses de mais calor. Se precisassem dele, estaria, a partir do meio-dia, na casa de campo do doutor Lácides Olivella, o seu discípulo amado, que celebrava, nesse dia, com um almoço de gala, as suas bodas de prata profissionais.

O doutor Juvenal Urbino tinha uma rotina fácil de seguir, desde que ficaram para trás os anos atribulados dos primeiros embates e que conseguiu uma respeitabilidade e um prestígio que, na província, não tinham igual. Levantava-se com os primeiros galos, e a essa hora começava a tomar os seus medicamentos secretos: brometo de potássio para lhe levantar o moral, salicilatos para as dores nos ossos em tempo de chuva, gotas de bagas de centeio para as tonturas, beladona para dormir bem. Estava sempre a tomar qualquer coisa, às escondidas, porque na sua longa vida de médico sempre foi contra receitar paliativos para a velhice: era-lhe mais fácil suportar as dores alheias do que as suas próprias. No bolso trazia sempre uma almofadinha de cânfora, que aspirava profundamente quando ninguém o estava a ver para se livrar do medo de tantos remédios misturados.

Estudava durante uma hora, preparando a aula de Clínica Geral, que deu na Escola de Medicina todos os dias, de segunda-feira a sábado, às oito em ponto, até à véspera da sua morte. Era também um leitor atento das novidades literárias, que o seu livreiro de Paris lhe mandava por correio, ou das que o livreiro local lhe mandava vir de Barcelona, ainda que não se mantivesse tanto ao corrente da literatura de língua castelhana como da francesa. Em qualquer dos casos, nunca as lia de manhã, mas sim depois da sesta, durante uma hora e, à noite, antes de adormecer. Terminado o estudo, fazia quinze minutos de exercícios respiratórios na casa de banho, em frente da janela aberta, respirando sempre para o lado donde cantavam os galos, que era donde vinha o ar fresco. A seguir, tomava banho, arranjava a barba e engomava o bigode com um soluto saturado de água-de-colónia, da legítima, de Farina Gegenúber, e vestia-se de linho branco, com colete e chapéu mole com polainas de pelica. Aos oitenta e um anos conservava os modos afáveis e o espírito prazenteiro de quando regressou de Paris, pouco depois da grande epidemia de cólera-morbo, e o cabelo bem penteado com o risco ao meio continuava a ser igual ao da juventude, excepto pela cor metálica. Tomava o pequeno-almoço em família, mas com uma dieta pessoal: uma infusão de flores de absíntio, para o bem-estar do estômago, e uma cabeça de alho, cujos dentes descascava e comia, um a um, mastigando-os conscienciosamente com pão caseiro, para evitar os apertos de coração. Raras eram as vezes em que, depois da aula, não tinha um compromisso relacionado com as suas iniciativas cívicas ou com as suas militâncias católicas, ou com as suas promoções artísticas e sociais.

Almoçava quase sempre em casa, dormia uma sesta de dez minutos, sentado na varanda do quintal, ouvindo, em sonhos, as cantigas das criadas sob a folhagem das mangueiras, escutando os pregões da rua, o fragor dos motores e o fedor dos óleos da baía, cujas emanações adejavam em volta da casa como um anjo condenado ao apodrecimento. Depois lia durante uma hora os livros recentes, especialmente novelas e estudos históricos, e dava lições de francês e de canto ao papagaio doméstico que desde há muitos anos era uma atracção local. Às quatro ia visitar os seus doentes, depois de beber um grande jarro de limonada com gelo. Apesar da idade, resistia a receber os pacientes no consultório e continuava a atendê-los nas suas casas, como sempre o fez, desde que a cidade se tornara tão doméstica que se podia ir a pé a qualquer lado.

Quando chegou da Europa, pela primeira vez, andava no landó familiar com dois alazões dourados, mas inutilizando-se este, trocou-o por uma vitória de um só cavalo, e continuou sempre a usá-la com um certo desdém pela moda, quando já os coches começavam a desaparecer do mundo e os únicos que restavam na cidade só serviam para passear os turistas e transportar as coroas nos funerais. Ainda que se negasse a reformar-se, estava consciente de que só o chamavam para tratar de casos perdidos, mas ele considerava que também essa era uma forma de especialização. Era capaz de saber o que tinha um doente só pelo aspecto e cada vez desconfiava mais dos medicamentos comerciais, assistindo alarmado à vulgarização da cirurgia. Dizia: «O bisturi é a maior prova do fracasso da medicina.» Pensava que, de um ponto de vista rigoroso, todo o medicamento era veneno e que setenta por cento dos alimentos vulgares apressavam a morte. «De qualquer modo», costumava comentar nas aulas, «a pouca medicina que se conhece só é do conhecimento de alguns médicos.» Dos seus entusiasmos juvenis tinha passado para uma posição que ele próprio definia como um humanismo fatalista: «Cada um é dono da sua própria morte, e a única coisa que podemos fazer, chegada a hora, é ajudá-lo a morrer sem medo e sem dor.» Mas, apesar destas ideias extremistas que já faziam parte do folclore médico local, os seus antigos alunos continuavam a consultá-lo mesmo depois de já serem profissionais estabelecidos, pois reconheciam-lhe isso a que então se chamava «olho clínico». De qualquer modo, foi sempre um médico caro e elitista: a sua clientela esteve sempre concentrada nas casas solarengas do Bairro dos Vice-Reis.

O seu quotidiano era tão metódico que a esposa sabia sempre onde lhe mandar um recado, se surgisse alguma urgência durante a tarde. Quando jovem, demorava-se no Café da Paróquia antes de voltar para casa e assim aperfeiçoou o seu xadrez com os cúmplices do sogro e com alguns refugiados das Caraíbas. Mas desde os alvores do novo século que não voltou ao Café da Paróquia e começou a organizar torneios nacionais patrocinados pelo Clube Social. Foi essa a altura em que veio Jeremiah de Saint-Amour, já com os joelhos mortos mas ainda sem o ofício de fotógrafo de crianças. Em menos de três meses já era conhecido de todos quantos soubessem mover um bispo num tabuleiro, porque ninguém tinha conseguido ganhar-lhe uma partida. Para o doutor Juvenal Urbino foi um encontro milagroso, numa época em que, para ele, o xadrez se tinha convertido numa paixão incontrolável e em que já não restavam muitos adversários para saciá-la.

Graças a ele, Jeremiah de Saint-Amour pôde ser o que foi entre nós. O doutor Urbino converteu-se em seu protector incondicional, no seu fiador para tudo, sem se dar sequer ao trabalho de averiguar quem era ou o que fazia, ou de que guerras sem glória chegava naquele estado de invalidez e desconcerto. Por fim, emprestou-lhe dinheiro para instalar o seu estúdio de fotógrafo, que Jeremiah de Saint-Amour lhe pagou com rigores de pobre soberbo até ao último tostão, a partir do momento em que fotografou a primeira criança assustada pelo relâmpago do magnésio.

Tudo por causa do xadrez. A princípio jogavam às sete da noite, depois do jantar, com alguma vantagem para o médico devido à notável superioridade do adversário, mas cada vez com menos vantagem até que ficaram ela por ela. Mais tarde, quando Dom Galileo Daconte abriu o primeiro salão de cinema, Jeremiah de Saint-Amour foi um dos seus clientes mais assíduos, e as partidas de xadrez ficaram reduzidas às noites em que não se estreava nenhuma fita. Já nesse tempo se tinha tornado tão amigo do médico, que este o acompanhava ao cinema, mas sempre sem a esposa, por um lado porque ela não tinha paciência para seguir o desenrolar dos argumentos difíceis e por outro porque sempre lhe pareceu, por mero olfacto, que Jeremiah de Saint-Amour não era uma boa companhia para ninguém.

O seu dia diferente era o domingo. Assistia à missa solene na catedral e voltava logo para casa, onde ficava a descansar e a ler na varanda do quintal. Poucas vezes saía para visitar um doente num dia santo, a não ser que fosse da maior urgência e há muitos anos que não assumia nenhum compromisso social que não fosse obrigatório. Naquele Dia de Pentecostes, por uma coincidência excepcional, tinham ocorrido dois acontecimentos invulgares: a morte de um amigo e as bodas de prata de um discípulo eminente. Não obstante, em vez de regressar a casa sem mais delongas, como se propusera depois de atestar a morte de Jeremiah de Saint-Amour, deixou-se arrastar pela curiosidade.

Assim que subiu na carruagem reviu rapidamente a carta póstuma e ordenou ao cocheiro que o levasse a uma morada difícil no antigo bairro dos escravos. Aquela decisão era tão estranha aos seus hábitos, que o cocheiro quis certificar-se de que não havia nenhum engano. Não havia: a morada era clara, e quem a escrevera tinha motivos de sobra para a conhecer muito bem. O doutor Ur bino voltou então à primeira folha e mergulhou novamente naquele manancial de revelações indesejáveis que teriam podido modificar-lhe a vida, mesmo na sua idade, se tivesse conseguido convencer-se a si mesmo de que não eram os delírios de um desesperado.

O humor do céu tinha começado a descompor-se desde muito cedo e estava enevoado e fresco, mas não havia risco de chuva antes do meio-dia. Na tentativa de encontrar um caminho mais curto, o cocheiro meteu-se pelas vielas empedradas da cidade colonial, tendo que parar muitas vezes para que o cavalo não se espantasse com a desordem dos colégios e das congregações religiosas que regressavam da liturgia do Pentecostes. Havia grinaldas de papel nas ruas, música e flores, raparigas com sombrinhas coloridas e folhos de musselina, que assistiam, das varandas, ao passar da festa. Na Praça da Catedral, onde só se distinguia a estátua do Libertador entre as palmeiras africanas e os novos candeeiros de globos, havia um engarrafamento de automóveis provocado pela saída da missa e não havia nenhum lugar disponível no venerável e ruidoso Café da Paróquia. O único carro puxado a cavalos era o do doutor Urbino, que se distinguia dos escassos que ainda havia na cidade porque sempre manteve o brilho da capota de charão e tinha ferragens de bronze para que o salitre não as carcomesse, as rodas e os varais pintados de vermelho com frisos a dourados, como nas noites de gala da Ópera de Viena. Além de que, enquanto as famílias mais afectadas se satisfaziam com cocheiros que usassem uma camisa limpa, ele continuava a exigir ao seu a libré de veludo soturno e a cartola de domador de circo, que além de serem anacrónicas eram tidas como uma falta de misericórdia na canícula das Caraíbas.

Apesar do seu amor quase maníaco pela cidade, e de a conhecer melhor que ninguém, o doutor Juvenal Urbino tinha tido muito poucas vezes um motivo como o de aquele domingo para se aventurar sem reticências na mixórdia do antigo bairro dos escravos. O cocheiro teve de dar muitas voltas e perguntar várias vezes para encontrar a morada. O doutor Urbino reconheceu depressa o ambiente pesado dos pântanos, o seu silêncio fatídico, aqueles ares estrangulados que em tantas madrugadas de insónia subiam até ao seu quarto, misturados com a fragrância dos jasmins do quintal, e que ele sentia passar como um vento de ontem que não tinha nada a ver com a sua vida. Mas aquela pestilência, tantas vezes idealizada pela nostalgia, transformou-se numa realidade insuportável quando a carruagem começou a dar saltos pelo lodaçal das ruas, onde os galináceos disputavam os restos do matadouro que iam sendo arrastados pelo mar em retirada. Ao contrário da cidade vice-real, cujas casas eram de alvenaria, ali eram feitas de madeiras descoradas e telhados de zinco, assentando a sua maioria sobre estacas para que não entrassem os dejectos dos esgotos abertos herdados dos Espanhóis. Tudo tinha um aspecto miserável e abandonado, mas das tabernas sórdidas saía o trovão da música de pândega sem Deus nem lei do Pentecostes dos pobres. Quando por fim encontraram a morada, o carro ia seguido por enxames de garotos nus que troçavam dos apetrechos teatrais do cocheiro, e este tinha de os enxotar com o chicote. O doutor Urbino, preparado para uma visita confidencial, compreendeu demasiado tarde que não havia candura mais perigosa que a da

sua idade.

O exterior da casa, sem número, não tinha nada que a distinguisse das menos felizes, a não ser a janela com cortinas de renda e um portão retirado de alguma antiga igreja. O cocheiro fez soar a aldraba, e só quando se certificou de que era a morada correcta ajudou o médico a descer da carruagem. O portão tinha-se aberto sem ruído, e na penumbra interior estava uma mulher madura, completamente vestida de preto e com uma rosa encarnada na orelha. Apesar dos anos, que não eram menos de quarenta, continuava a ser uma mulata altiva, de olhos dourados e cruéis, e o cabelo ajustado à forma do crânio como um capacete de palha-d’aço. O doutor Urbino não a reconheceu, ainda que a tivesse visto diversas vezes através da neblina das partidas de xadrez no estúdio do fotógrafo e numa ou noutra ocasião em que lhe receitara uns pacotinhos de quinino para as febres terçãs. Estendeu-lhe a mão e ela tomou-lha entre as suas, menos para o cumprimentar do que para o ajudar a entrar. A sala tinha o clima e o murmúrio invisível de uma floresta. Estava atulhada de móveis e de objectos delicados, cada um no seu sítio próprio. O doutor Urbino recordou sem amargura a loja de um antiquário de Paris, certa segunda-feira de Outono do século passado, no número 26 da Rua de Montmartre. A mulher sentou-se à frente dele e falou-lhe num castelhano difícil.

- Estou às suas ordens, doutor - disse. - Não o esperava

tão cedo.

O doutor Urbino sentiu-se traído. Observou-a com o coração, notou o seu luto intenso, a dignidade da sua angústia, e compreendeu então que aquela era uma visita inútil porque ela sabia melhor do que ele tudo quanto dizia e justificava a carta póstuma de Jeremiah de Saint-Amour. Assim era. Ela acompanhara-o até muito poucas horas antes da morte, como o acompanhara durante metade da vida, com uma devoção e uma ternura submissa que se pareciam por de mais com o amor e sem que ninguém o soubesse nesta sonolenta capital de província, onde até os segredos de Estado eram do domínio público. Tinham-se conhecido numa hospedaria de viajantes em Port-au-Prince, onde ela nascera e onde ele tinha passado os seus primeiros tempos de fugitivo, seguindo-o até aqui passado um ano para uma breve visita, ainda que ambos soubessem, sem o terem combinado, que vinha para ficar para sempre. Uma vez por semana era ela quem mantinha a limpeza e a ordem no laboratório, mas nem os vizinhos pior intencionados confundiram as aparências com a verdade, porque supunham, como toda a gente, que a invalidez de Jeremiah de Saint-Amour não era só para andar. O próprio doutor Urbino o supunha por razões médicas fundamentadas, e nunca teria acreditado que tivesse uma mulher se ele próprio não lho tivesse revelado na carta. De todas as maneiras, era-lhe difícil compreender que dois adultos livres e sem passado, à margem dos preconceitos de uma sociedade fechada em si mesma, tivessem elegido o risco dos amores proibidos. Ela explicou-lho: «Era assim que ele queria.» Além do mais, a clandestinidade partilhada com um homem que nunca foi totalmente seu e na qual conheceram, por mais de uma vez, a explosão instantânea da felicidade, não lhe pareceu uma condição indesejável. Pelo contrário: a vida tinha-lhe demonstrado que talvez fosse exemplar.

Na noite anterior tinham ido ao cinema, cada um por sua conta e em lugares separados, como costumavam fazer pelo menos duas vezes por mês desde que o imigrante italiano Dom Galileo Daconte instalou um salão a céu aberto nas ruínas de um convento do século XVI. Viram um filme baseado num livro que estivera em moda no ano anterior, e que o doutor Urbino tinha lido com o coração desolado pela barbárie da guerra: A Oeste nada de Novo. Logo a seguir encontraram-se no laboratório e ela achou-o distraído, nostálgico, e pensou que era por causa das cenas brutais dos feridos moribundos na lama. Tentando distraí-lo, convidou-o a jogar xadrez, ao que ele acedera para lhe agradar, mas jogava desconcentrado, com as brancas, claro, até descobrir antes dela que ia ser derrotado em quatro jogadas, rendendo-se sem honra. O médico compreendeu

1 Filme americano realizado em 1930 por Lewis Milestone e baseado na obra homónima do romancista alemão Erich Doria Remarque (1898-1970) (AT, do E.)

então que o adversário da última partida tinha sido ela e não o general Jerónimo Argote como supusera. Murmurou assombrado:

- Era uma partida de mestre!

Ela insistiu que o mérito não lhe pertencia, pois Jeremiah de Saint- Amour, já perdido entre as brumas da morte, movia as peças sem amor. Quando interrompeu a partida, por volta das onze e um quarto, pois já tinha acabado a música dos bailes públicos, pediu-lhe que o deixasse sozinho. Queria escrever uma carta ao doutor Juvenal Urbino, a quem considerava o homem mais respeitável que jamais conhecera, além de um amigo do peito, como gostava de dizer, apesar de terem por única afinidade o vício do xadrez, compreendido como um diálogo da razão e não como uma ciência. Foi então que ela soube que Jeremiah de Saint-Amour tinha chegado ao termo da agonia e que não lhe restava mais tempo de vida que o necessário para escrever a carta. O médico não podia acreditar naquilo.

- Então, você sabia! - exclamou.

Não só o sabia, confirmou ela, como o tinha ajudado a suportar a agonia com o mesmo amor com que o tinha ajudado a descobrir a felicidade. Porque isso tinham sido os seus últimos onze meses: uma cruel agonia.

- O seu dever era revelá-lo - disse o médico.

- Não podia fazer-lhe isso - respondeu ela, escandalizada. - Amava-o de mais.

O doutor Urbino, que julgava já ter ouvido de tudo, nunca tinha ouvido nada igual, e dito de uma maneira tão simples. Olhou-a de frente, com os cinco sentidos, para fixá-la na sua memória como era naquele momento: parecia um ídolo dos rios, impávida no seu vestido negro, com os olhos de serpente e a rosa na orelha. Muito tempo antes, numa praia solitária do Haiti, onde jaziam os dois, nus depois do amor, Jeremiah de Saint-Amour dissera, num suspiro repentino: «Nunca hei-de ser velho.» Ela interpretou-o como um propósito heróico de luta contra os estragos do tempo, mas ele foi mais explícito: tinha a determinação irrevogável de acabar com a vida aos sessenta anos.

Cumprira-os, com efeito, no dia 23 de Janeiro desse ano, e tinha então fixado como último prazo a véspera de Pentecostes, que era a festa principal da cidade consagrada ao culto do Espírito Santo. Não houvera nenhum pormenor da noite anterior que ela não tivesse conhecido antecipadamente, e falavam sobre isso com frequência, sofrendo juntos a torrente imparável dos dias que já nem ele nem ela podiam deter. Jeremiah de Saint-Amour amava a vida com uma paixão sem sentido, amava o mar e o amor, amava o seu cão e ela e, à medida que a data se aproximava, ia sucumbindo ao desespero, como se a sua morte não tivesse sido uma decisão sua mas um destino inexorável.

- Ontem à noite, quando o deixei sozinho, já não era deste mundo - disse ela.

Tinha querido trazer o cão consigo, mas ele viu-o a dormitar junto às muletas e acariciou-o com a ponta dos dedos. Disse: «Sinto muito, mas Mister Woodrow Wilson vai-se embora comigo.» Pediu-lhe a ela que o prendesse aos pés do catre enquanto ele escrevia, e ela atou-o com um nó falso para que pudesse soltar-se. Tinha sido esse o seu único acto de deslealdade, e estava justificado pelo desejo de continuar a recordar o dono nos olhos invernais do seu cão. Mas o doutor Urbino interrompeu-a para lhe contar que o cão não se tinha soltado. Respondeu-lhe: «Então foi porque não quis.» E ficou satisfeita porque preferia continuar a evocar o amante morto como ele lho pedira na noite anterior, quando interrompeu a carta que já tinha começado e a olhou pela última vez.

- Recorda-me como uma rosa - disse-lhe.

Tinha chegado a casa pouco depois da meia-noite. Estendeu-se na cama, a fumar, vestida, acendendo o cigarro com a beata do outro para dar tempo a que ele terminasse a carta que ela sabia ser longa e difícil, e pouco antes das três, quando começaram a uivar os cães, pôs ao lume a água para o café, vestiu-se de luto carregado e cortou no pátio a primeira rosa da madrugada. O doutor Urbino dera-se conta já há algum tempo quanto ia repudiar a recordação daquela mulher irredimível, e pensava conhecer a razão: só uma pessoa sem princípios podia ser tão complacente com a dor.

Ela deu-lhe mais argumentos até ao final da visita. Não iria ao funeral, pois assim o prometera ao amante, ainda que o doutor Urbino pensasse perceber o contrário num parágrafo da carta. Não choraria uma lágrima, não desperdiçaria o resto dos seus anos a cozer-se em lume brando no caldo das larvas da memória, não se sepultaria em vida a costurar uma mortalha dentro destas quatro paredes, como era tão bem-visto que o fizessem as viúvas nativas. Pensava vender a casa de Jeremiah de Saint-Amour, que passava agora a ser sua com tudo o que tinha dentro, segundo estava disposto na carta e continuaria a viver como sempre, sem se queixar de nada neste morredouro de pobres onde tinha sido feliz.

Aquela frase perseguiu o doutor Juvenal Urbino durante todo o caminho de regresso a casa: «Este morredouro de pobres.» Não era uma qualificação gratuita. Pois a cidade, a sua, continuava a ser igual à margem do tempo: a mesma cidade ardente e árida dos seus terrores nocturnos e dos prazeres solitários da puberdade, onde se enferrujavam as flores e se corrompia o sal, e à qual nada sucedera em quatro séculos, a não ser envelhecer devagar entre loureiros murchos e pântanos pobres. No Inverno, umas chuvadas repentinas e arrasadoras faziam transbordar as latrinas e transformavam as ruas em lamaçais nauseabundos. No Verão, um pó invisível, áspero como greda de giz ao rubro, metia-se até pelos recantos mais protegidos da imaginação, revolto por uns ventos alucinados que destelhavam as casas e levavam as crianças pelos ares. Aos sábados, toda aquela miséria mulata abandonava tumultuosamente os bairros de lata e cartão das margens dos pântanos, com os seus animais domésticos e os seus tarecos de comer e beber, e iam tomar, num assalto de júbilo, as praias pedregosas do sector colonial. Alguns, entre os mais velhos, até ainda há poucos anos, levavam a marca real dos escravos, gravada a ferro incandescente no peito. Durante o fim-de-semana dançavam sem tréguas, apanhavam bebedeiras de morte com álcoois de alambiques caseiros, davam livre curso aos seus amores nos matagais de icaqueiros, e, à meia-noite de domingo, desbaratavam as suas próprias festas com rixas sangrentas de todos contra todos. Era a mesma turba impetuosa que no resto da semana se infiltrava nas praças e nas ruelas dos bairros antigos, com bancas de tudo que fosse possível comprar e vender, infundindo à cidade morta um frenesim de feira humana a cheirar a peixe frito: uma vida nova.

A independência do domínio espanhol e depois a abolição da escravatura precipitaram o estado de decadência honrosa em que nasceu e cresceu o doutor Juvenal Urbino. As grandes famílias de antanho afundavam-se no silêncio dos seus alcáceres desguarnecidos. Nos socalcos das ruas empedradas, que tão eficazes tinham sido em guerras e desembarques de bucaneiros, as ervas caíam pelas varandas e abriam gretas nos muros de cal e pedra mesmo nas mansões melhor conservadas, cujo único sinal vivo, às duas da tarde, eram os lânguidos exercícios de piano na penumbra da sesta. Lá dentro, nos quartos frescos saturados de incenso, as mulheres protegiam-se do sol como de um contágio indigno e até nas missas de madrugada cobriam a cara com a mantilha. Os seus amores eram lentos e difíceis, perturbados amiúde por presságios sinistros, e a vida parecia-lhes interminável. Ao anoitecer, no momento opressivo da passagem para as sombras, erguia-se dos pântanos uma tempestade de pernilongos carniceiros e uma terna baforada de merda humana, quente e triste, remexia no fundo da alma a certeza da morte.

Pois a vida própria da cidade colonial, que o jovem Juvenal Urbino costumava idealizar nas suas melancolias de Paris, era, então, uma ilusão da memória. O seu comércio tinha sido o mais próspero das Caraíbas no século XVI, sobretudo pelo ingrato privilégio de ser o maior mercado de escravos africanos nas Americas. Foi, além do mais, a residência habitual dos vice-reis do Novo Reino de Granada, que preferiam governar daqui, diante do oceano do mundo, do que na capital distante e gelada, onde os salpicos dos séculos lhes transtornava o sentido da realidade. Várias vezes por ano concentravam-se na baía as frotas dos galeões carregados com os mananciais de Potosi, de Quito, de Vera Cruz, e a cidade vivia então aqueles que foram os seus anos de glória. Na sexta-feira, 8 de Junho de 1708, às quatro da tarde, o galeão San José, que acabava de zarpar rumo a Cádis com um carregamento de pedras e metais preciosos no valor de meio milhão de pesos da época, foi afundado por uma esquadra inglesa diante da entrada do porto, e dois longos séculos mais tarde ainda não tinha sido resgatado. Aquela fortuna a jazer entre fundos de corais, com o cadáver do comandante a flutuar de lado no posto de comando, costumava ser evocada pelos historiadores como emblema da cidade afogada em recordações.

Do outro lado da baía, no bairro residencial de La Manga, a casa do doutor Juvenal Urbino estava noutro tempo. Era grande e fresca, de um só piso, e com um pórtico de colunas dóricas na varanda da frente, donde se dominava o reservatório de miasmas e escombros de naufrágios da baía. O chão estava revestido de ladrilhos axadrezados, brancos e pretos, da porta de entrada até à cozinha, e a isto se tinha atribuído mais de uma vez a paixão dominante do doutor Urbino, sem ninguém recordar que esta era uma debilidade comum aos mestres-de-obras catalães que, nos princípios deste século, construíram aquele bairro para novos-ricos. A sala era ampla, de tectos muito altos como toda a casa, com seis janelas de sacada sobre a rua, e estava separada da sala de jantar por uma porta envidraçada, enorme e pintada com ramagens de parras e cachos de uvas, e donzelas seduzidas por flautas de faunos numa floresta de bronze. Os móveis da entrada, até o relógio da sala que mais parecia uma sentinela viva, eram todos originais ingleses do fim do século XIX, e os candeeiros pendurados eram de pingentes de cristal de rocha, havendo por todo o lado jarrões e floreiras de Sèvres, e estatuetas de ídolos pagãos em alabastro. Mas aquela coerência europeia acabava-se no resto da casa, onde os cadeirões de vime se misturavam com cadeiras de baloiço vienenses e tamboretes de couro do artesanato local. Nos quartos, além das camas, havia magníficas redes de San Jacinto, com o nome do dono bordado em letras góticas a fios de seda e franjas coloridas nas orlas. O espaço, originalmente concebido para os jantares de gala, ao lado da casa de jantar, foi aproveitado para uma pequena sala de música onde se davam concertos privados quando vinham intérpretes célebres. Os ladrilhos tinham sido atapetados com carpetas turcas compradas na Exposição Universal de Paris para melhorar o silêncio da divisão, havia uma grafonola de modelo recente ao lado de uma estante com discos bem arrumados, e, a um canto, coberto com um pano de Manila, estava o piano que o doutor Urbino não tocava já há muitos anos. Em toda a casa se notava o bom senso e o zelo de uma mulher com os pés bem assentes na terra. No entanto, nenhum outro lugar revelava a solenidade meticulosa da biblioteca, que foi o santuário do doutor Urbino, até a velhice o levar. Ali, em volta da secretária de nogueira, que fora de seu pai, e das poltronas de couro acolchoado mandou revestir as paredes e até as janelas com prateleiras de vidro, e colocou numa ordem quase demente três mil livros idênticos, encadernados com pele de cordeiro e com as suas iniciais a ouro na lombada. Ao contrário das outras divisões, que estavam à mercê dos malefícios e dos maus cheiros do porto, a biblioteca teve sempre o recolhimento e o odor de uma abadia. Nascidos e criados sob a superstição das Caraíbas, de abrir portas e janelas para chamar uma aragem que, na realidade, não existia, o doutor Urbino e a esposa sentiram-se, a princípio, com o coração oprimido por estar tudo fechado. Mas acabaram por convencer-se das qualidades do método romano contra o calor, que consistia em manter as casas fechadas durante o torpor de Agosto para que o ar ardente da rua não entrasse, e abri-las de par em par para receberem os ventos da noite. A sua foi, a partir daí, a mais fresca sob o sol bravo de La Manga, e era uma benesse dormir a sesta na sombra dos quartos e sentar-se, à tarde, no pórtico a ver passar os cargueiros de Nova Orleães, pesados e cinzentos, e os navios fluviais de roda de madeira, com as luzes acesas ao entardecer, que iam purificando com um rasto de música aquela esterqueira encalhada da baía. Era também a mais bem protegida de Dezembro a Março, quando os alísios do norte destruíam os telhados e passavam as noites rondando a casa como lobos esfaimados à procura de uma fresta por onde entrarem. Ninguém pensou nunca que o casal que se fixara sobre tais alicerces pudesse ter algum motivo para não ser feliz.

Em todo o caso, o doutor Urbino não o estava naquela manhã, ao regressar a casa, antes das dez, transtornado pelas duas visitas, que não só lhe tinham feito perder a missa de Pentecostes como ameaçavam modificá-lo numa idade em que já tudo parecia consumado. Queria dormir um bocado, como um cão, enquanto não chegava a hora do almoço festivo do doutor Lácides Olivella, mas deu com a criadagem num desassossego a tentar apanhar o papagaio, que voara para o ramo mais alto do tronco da mangueira quando o tiraram da gaiola para lhe cortarem as asas. Era um papagaio depenado e maníaco, que não falava quando lhe pediam mas sim nas ocasiões mais impensáveis, fazendo-o, então, com uma clareza e um raciocínio que não eram muito comuns nos seres humanos. Tinha sido amestrado pelo doutor Urbino pessoalmente, e isso trouxera-lhe privilégios que ninguém da família teve, nem sequer os filhos quando eram pequenos.

Estava naquela casa fazia mais de vinte anos e ninguém soube quantos vivera antes. Todas as tardes depois da sesta, o doutor Urbino sentava-se com ele na varanda do quintal, que era o lugar mais fresco da casa. Tinha apelado para os recursos mais árduos da sua paixão pedagógica até que o papagaio aprendeu a falar francês como um académico. Depois, por mero vício da virtude, ensinou-lhe a acompanhar a missa em latim e alguns excertos escolhidos do Evangelho segundo São Mateus, tentando, sem sorte, inculcar-lhe uma noção mecânica das quatro operações aritméticas. Numa das suas últimas viagens à Europa trouxe o primeiro gramofone de manivela, com muitos discos da moda e os seus clássicos favoritos. Dia após dia, uma e outra vez durante vários meses, arranjava maneira de o papagaio ouvir as canções de Yvette Gilbert e de Aristide Bruant, que fizeram as delícias de França no século passado, até aprendê-las de cor. Cantava-as com voz de mulher, se eram as dela, e com voz de tenor, se eram dele, terminando com umas gargalhadas libertinas que eram o espelho magistral das que as criadas soltavam quando o ouviam cantar em francês. À fama das suas graças tinha chegado tão longe, que, por vezes, pediam autorização para o ver alguns distintos visitantes que chegavam do interior nos navios fluviais, e, numa ocasião, tentaram comprá-lo por qualquer preço uns turistas ingleses dos muitos que passavam naquela época nos barcos bananeiros de Nova Orleães. Porém, o dia da sua maior glória foi quando o presidente da República, Dom Marco Fidel Suárez, com todos os ministros do seu gabinete, vieram àquela casa para comprovar a verdade da sua fama. Chegaram por volta das três da tarde, sufocados pelas cartolas e sobrecasacas de algodão que não tinham tirado durante os três dias da visita oficial, sob o céu incandescente de Agosto, mas tiveram que ir-se embora tão intrigados quanto tinham chegado, porque o papagaio negou-se a soltar um ai que fosse durante duas horas de desespero, apesar das súplicas, das ameaças e da vergonha pública do doutor Urbino, que tanto tinha teimado naquele convite temerário, apesar das sábias advertências da esposa.

O facto de o papagaio ter mantido os seus privilégios depois daquele descaramento histórico tinha sido a prova real do seu foro sagrado. Nenhum outro animal era autorizado em casa, excepto a tartaruga, que voltara a aparecer na cozinha passados três ou quatro anos, quando já se julgava perdida para sempre. Mas a esta não a tinham na conta de um ser vivo. Era mais como um amuleto mineral para dar sorte, sem nunca se saber exactamente por onde andava. O doutor Urbino recusava-se a admitir que detestava animais, e disfarçava sob uma capa feita de todo o tipo de fábulas científicas e pretextos filosóficos, que convencia muita gente mas não a sua mulher. Dizia que quem gostasse excessivamente deles era capaz das piores crueldades com os seres humanos. Dizia que os cães não eram fiéis, mas sim servis, que os gatos eram oportunistas e traidores, que os pavões eram arautos da morte, que as araras não eram mais que estorvos ornamentais, que os coelhos fomentavam a cobiça, que os macacos contagiavam a febre da luxúria e que os galos eram malditos porque se tinham prestado a que negassem Cristo três vezes.

Pelo seu lado, Fermina Daza, sua mulher, que tinha então setenta e dois anos e já perdera o porte de gazela doutros tempos, era uma idólatra irracional das flores equatoriais e dos animais domésticos, e nos primeiros tempos de casada tinha-se aproveitado da novidade do amor para ter em casa muitos mais do que aconselhava o bom senso. Os primeiros foram três dálmatas com nomes de imperadores romanos, que se mataram entre si pelos favores de uma cadela que fez honra ao seu nome de Messalina, pois demorava mais a parir nove cachorros que a conceber outros dez. Depois foram os gatos abissínios com perfil de águia e ares faraónicos, os siameses vesgos, os persas palacianos de olhos alaranjados, que se passeavam pelos quartos como sombras fantasmagóricas e que alvoraçavam as noites com o alarido das suas queixas de amor. Durante alguns anos atado pela cintura à mangueira do pátio, houve um macaquinho amazónico que provocava uma certa compaixão porque tinha o semblante preocupado do arcebispo Obduhlio y Key, a mesma candura dos seus olhos e a eloquência das suas mãos, mas não foi por isso que Fermina Daza se desfez dele, mas sim pelo mau hábito que tinha de se comprazer em honra das senhoras. Havia todos os tipos de pássaros da Guatemala nas gaiolas dos corredores, alcaravões premonitórios, garças dos pântanos de longas patas amarelas e um jovem cervo que espreitava pelas janelas para comer os antúrios das jarras. Pouco antes da ultima guerra civil, quando se falou pela primeira vez duma possível visita do Papa, tinham trazido da Guatemala uma ave do paraíso, que demorou mais a chegar do que a regressar a sua terra quando se soube que a notícia da viagem pontifícia tinha sido uma patranha do Governo para assustar os conspiradores liberais. Noutra ocasião compraram, nos veleiros dos contrabandistas de Curaçau, uma gaiola de arame com seis corvos perfumados, iguais aos que Fermina Daza tivera em pequena na casa paterna, e que queria continuar a ter depois de casada Mas ninguém conseguiu suportar os contínuos adejos que infestavam a casa com as suas emanações de coroas funerárias. Também tiveram uma anaconda de quatro metros, cujos suspiros de caçadora inveterada perturbavam a escuridão dos quartos, ainda que tivessem obtido dela o que queriam que era espantar com o seu hálito mortal os morcegos, as salamandras e as numerosas espécies de insectos indesejáveis que invadiam a casa nos meses de chuva Para o doutor Juvenal Urbino, tão solicitado nessa altura pelas suas obrigações profissionais e tão absorvido com as suas iniciativas civis e culturais, era suficiente imaginar que, no meio de tantas criaturas abomináveis, a sua mulher não só era a mais bonita das Caraíbas, como também a mais feliz. Mas em certa tarde de chuva, ao fim de um dia esgotante, encontrou em casa um

desastre que o fez cair na realidade. da sala de visitas até onde a vista podia alcançar, havia um rio de animais mortos a boiar numa poça de sangue. As criadas, em cima das cadeiras, sem saberem o que fazer, mal conseguiam refazer-se do susto da matança.

O caso foi que um dos mastins alemães, enlouquecido por um ataque repentino de raiva, tinha atacado quantos animais se lhe atravessaram no caminho, fosse qual fosse a sua espécie, até que o jardineiro da casa vizinha teve a coragem de lhe fazer frente e matou-o à catanada. Não se sabia quantos tinham sido mordidos ou contaminados pela sua espumarada verde, de modo que o doutor Urbino mandou matar os sobreviventes e incinerar os corpos num campo afastado, e pediu aos serviços do Hospital da Misericórdia uma desinfecção a fundo da casa. O único que se salvou, porque ninguém se lembrou dele, foi a

tartaruga que dava sorte.

Fermina Daza concordou com o marido, pela primeira vez, num assunto doméstico e durante muito tempo evitou falar mais de bichos. Consolava-se com as ilustrações a cores da História Natural de Lineu, que mandou emoldurar e pendurar na sala, e talvez tivesse acabado por perder a esperança de ver outra vez algum animal em casa se, certa madrugada, os ladrões não tivessem forçado uma das janelas da casa de banho e levado um serviço de prata herdado por cinco gerações. O doutor Urbino pôs cadeados duplos nas argolas das janelas, reforçou as portas por dentro com trancas de ferro, guardou as coisas de mais valor no cofre de valores e adquiriu o extemporâneo hábito de guerra ao dormir com o revólver debaixo da almofada. Mas opôs-se à compra de um cão de guarda, vacinado ou não, preso ou à solta, mesmo que os ladrões os deixassem em pêlo.

- Nesta casa não entrará nada que não fale - disse. Disse-o para pôr termo aos argumentos da mulher, novamente empenhada em comprar um cão, e sem imaginar que aquela generalização apressada havia de custar-lhe a vida. Fermina Daza, cujo carácter impetuoso se tinha atenuado com os anos, levou à letra as palavras do marido: meses após o roubo voltou aos veleiros de Curaçau e comprou um papagaio-real de Paramaribo que só sabia dizer blasfémias de marinheiro, mas que as dizia com uma voz tão humana que bem valia o preço exorbitante de doze centavos.

Era dos bons, mais leve do que aparentava, com a cabeça amarela e a língua preta, única maneira de o distinguir dos papagaios das plantações que não aprendiam a falar nem com supositórios de teribintina. O doutor Urbino, que sabia perder, vergou-se ante o engenho da esposa, e ele próprio se surpreendeu com a graça que achava aos progressos do papagaio desafiado pelas criadas. Nas tardes de chuva, quando se lhe desatava a língua, de alegria pelas penas encharcadas, dizia frases de outros tempos que não tinha podido aprender lá em casa e que também faziam pensar que era mais velho do que parecia. As últimas reticências do médico desapareceram uma noite em que os ladrões tentaram entrar outra vez por uma clarabóia do terraço e o papagaio os espantou com uns latidos de mastim, que não teriam sido mais verosímeis se tivessem sido reais, e gritando «Gatunos, gatunos, gatunos», duas graçolas salvadoras que não tinha aprendido naquela casa. Foi então que o doutor Urbino o tomou a seu cargo e mandou construir, debaixo da mangueira, um poleiro com um recipiente para a água e outro para as sementes, além de um trapézio para as acrobacias. De Dezembro a Março, quando as noites arrefeciam e a ventania era insuportável devido à aragem de norte, levavam-no para passar a noite nos quartos, dentro de uma gaiola coberta com uma manta, apesar do doutor Urbino suspeitar que o seu mormo crónico podia ser perigoso para a boa respiração dos humanos. Durante muitos anos cortavam-lhe as penas das asas e deixavam-no à solta, andando à sua vontade com aquele seu andar abaulado de cavalo velho. Mas um dia pôs-se a fazer as suas acrobacias nas traves da cozinha e caiu na panela do cozido, no meio da sua própria gritaria náutica de salve-se quem puder, e com tanta sorte que a cozinheira conseguiu tirá-lo com uma concha, escaldado e sem penas, mas ainda vivo. Desde esse dia deixaram-no na gaiola mesmo durante o dia, contra a crença popular de que os papagaios esquecem o que aprendem quando estão engaiolados, e só o tiravam pela fresca das quatro para as lições do doutor Urbino na varanda do quintal. Ninguém se apercebera a tempo de que tinha as asas muito compridas, e quando, naquela manhã, se dispunham a cortar-lhas, fugiu para o cimo da mangueira.

Passadas três horas ainda não tinham conseguido apanhá-lo. As criadas, ajudadas por outras da vizinhança, haviam recorrido a todo o tipo de artifícios para o fazerem descer, mas ele continuava teimosamente no seu lugar, gritando, morto de riso, «Viva o Partido Liberal, viva o Partido Liberal, carago», um grito atemorizante que tinha custado a vida a mais de quatro bêbados felizes. O doutor Urbino mal conseguia distingui-lo entre os ramos e tentou convencê-lo em espanhol e em francês, tentou mesmo em latim, respondendo-lhe o papagaio nas mesmas línguas e com a mesma ênfase e timbre de voz, mas sem arredar pé do ramo. Convencido que ninguém o conseguiria a bem, o doutor Urbino mandou que se fosse pedir ajuda aos bombeiros, que eram o seu mais recente brinquedo cívico. Com efeito, até há pouco tempo, os incêndios eram apagados por voluntários com escadas de pedreiros e baldes de água trazidos donde se pudesse, e era tal a desordem do sistema que frequentemente este causava mais estragos do que os incêndios. Desde o ano anterior, porém, graças a um peditório promovido pela Sociedade de Melhoramentos Públicos, da qual Juvenal Urbino era o presidente honorário, havia um corpo de bombeiros profissionais e um camião-cisterna com sirene e sino, e duas mangueiras de alta pressão. Estavam tão na moda que até as escolas interrompiam as aulas quando se ouviam os sinos das igrejas tocar a rebate, para que as crianças os fossem ver a combater o fogo. No princípio era tudo quanto faziam. Mas o doutor Urbino contou às autoridades que tinha visto, em Hamburgo, os bombeiros ressuscitarem uma criança que encontraram congelada num sótão, depois de um nevão que durara três dias. Também os vira, numa viela de Nápoles, a descer um morto dentro do caixão, da varanda de um décimo andar, pois as escadas do edifício eram tão sinuosas que a família não tinha conseguido tirá-lo para a rua. Foi assim que os bombeiros locais aprenderam a prestar outros serviços de emergência, como arrombar fechaduras e matar serpentes venenosas, tendo-lhes facultado a Escola de Medicina um curso especial de primeiros socorros para acidentes menores. De modo que não era despropositado pedir-lhes o favor de tirarem da árvore um papagaio distinguido com tantas honrarias como um cavalheiro. O doutor Urbino disse: «Digam-lhes que vão da minha parte.» E foi para o quarto vestir-se para o almoço de cerimónia. A verdade é que, nesse momento, entristecido pela carta de Jeremiah de Saint-Amour, a sorte do papagaio não o preocupava.

Fermina Daza vestira um camiseiro de seda, amplo e solto, cortado pela anca, pusera um colar de pérolas legítimas de seis voltas grandes e desiguais, e uns sapatos de cetim, de saltos altos, que só usava em circunstâncias muito solenes, pois os anos já não lhe permitiam tantos abusos. Aquele fato moderno não parecia adequado a uma venerável avó, mas ficava-lhe muito bem ao corpo de ossos largos, ainda delgado e direito, às suas mãos flexíveis sem um só sinal de velhice, ao seu cabelo azul-prateado, cortado em diagonal à altura das faces. Do seu retrato de casamento apenas lhe ficavam os olhos de amêndoas diáfanas e a altivez de nascença, mas o que lhe faltava por causa da idade era-lhe compensado pelo carácter e sobrava-lhe pela presteza. Sentia-se bem: para longe iam ficando os tempos dos espartilhos de ferro, as cintas apertadas, as ancas levantadas com artifícios de pano. Os corpos libertos, respirando a seu bel-prazer, mostravam-se como eram. Mesmo aos setenta e dois anos.

O doutor Urbino foi encontrá-la sentada diante do toucador, sob as pás lentas da ventoinha eléctrica, a pôr o chapéu com um enfeite de violetas de feltro. O quarto era amplo e luminoso, com uma cama inglesa protegida por um mosquiteiro de fio rosado, com duas janelas abertas que davam para as árvores do quintal, onde se refugiava o alarido das cigarras aturdidas pelos presságios de chuva. Desde o regresso da viagem de núpcias que Fermina Daza escolhia a roupa do marido segundo o tempo e a ocasião e arrumava-a de véspera, em cima da cadeira para que ele a encontrasse preparada ao sair da casa de banho. Não se lembrava desde quando começara também a ajudá-lo a vestir-se e, por fim, a vesti-lo, e tinha consciência de que, a princípio, o fizera por amor, mas há uns cinco anos que o tinha de fazer de qualquer maneira, porque ele não conseguia vestir-se sozinho. Acabavam de festejar as bodas de ouro e não sabiam viver, nem um momento, um sem o outro, nem sem pensarem um no outro, e cada vez o sabiam menos à medida que se agravava a velhice. Nem ele nem ela podiam dizer se essa dependência recíproca se fundia no amor ou na comodidade, mas nunca se tinham interrogado com a mão sobre o coração, porque, desde sempre, ambos preferiam ignorar a resposta. Ela tinha descoberto, a pouco e pouco, a incerteza dos passos do marido, as suas mudanças de humor, os seus lapsos de memória, o hábito recente de soluçar a dormir, mas não os interpretou como sinais inequívocos da oxidação final, mas sim como um regresso feliz à infância. Por isso não o tratava como a um velho difícil mas como a um menino senil, e esse engano foi providencial para os dois, porque os salvou da compaixão.

Outra coisa bem diferente teria sido a vida para eles, se tivessem sabido a tempo que era mais fácil ultrapassar as grandes catástrofes matrimoniais que as misérias minúsculas do dia-a-dia. Mas se alguma coisa tinham aprendido juntos era que a sabedoria só nos chega quando já não nos serve para nada. Fermina Daza suportara dificilmente, durante anos, o despertar radiante do marido. Agarrava-se aos últimos fios de sono para não enfrentar o fatalismo de uma nova manhã de presságios sinistros, enquanto ele acordava com a inocência de um recém-nascido: cada novo dia era mais um dia que se ganhava. Ouvia-o despertar com os galos, e o seu primeiro sinal de vida era uma tosse sem motivo nem razão, que parecia propositada para a fazer acordar também. Ouvia-o rezingar, só para a incomodar, enquanto tacteava à procura das pantufas que deviam estar ao pé da cama. Ouvia-o encaminhar-se para a casa de banho às apalpadelas no escuro. Ao fim de uma hora no escritório, quando ela tinha voltado a adormecer, ouvia-o regressar para se vestir, ainda sem acender a luz. Houve uma vez em que, num jogo de salão, lhe perguntaram como se definia a si próprio, ao que respondera: «Sou um homem que se veste às escuras.» Ela ouvia-o, sabendo de antemão que nenhum daqueles ruídos era indispensável e que ele os fazia de propósito ainda que fingisse que não, do mesmo modo que ela estava acordada e fingia não estar. Os motivos dele eram válidos: nunca precisava tanto dela, viva e lúcida, como nesses minutos de confusão.

Não havia ninguém mais elegante do que ela para dormir, com um trejeito de dança e uma mão sobre a testa, mas também não havia ninguém mais feroz quando lhe perturbavam a sensualidade de julgar-se adormecida quando já não o estava. O doutor Urbino sabia que ela ficava à escuta de cada ruído que ele fizesse, que até lho teria agradecido para ter alguém a quem deitar a culpa de a acordar às cinco da manhã. E era tanto assim que, nas poucas ocasiões em que tinha de tactear às escuras por não encontrar as pantufas no lugar do costume, ela dizia com voz ensonada: «Ontem à noite deixaste-as na casa de banho.» A seguir, com a voz acordada de raiva, maldizia: «A pior desgraça desta casa é que não se pode dormir.»

Então, voltava-se na cama, acendia a luz sem a menor clemência para consigo, feliz com a sua primeira vitória do dia. No fundo, era um jogo entre eles, mítico e perverso, mas, ao mesmo tempo, reconfortante: um dos muitos prazeres perigosos do amor doméstico. Mas foi por um desses jogos triviais que os primeiros trinta anos de vida em comum estiveram a ponto de se acabar, porque um belo dia não havia sabonete na casa de banho.

Começou com a simplicidade rotineira. Nos tempos em que ainda tomava banho sem ajuda, o doutor Urbino tinha voltado ao quarto e começou a vestir-se sem acender a luz. Ela estava, como sempre a essa hora, no seu tépido estado fetal, de olhos fechados, a respiração ténue, e esse braço de dança sagrada sobre a cabeça. Mas estava, como sempre, meio a dormir, e ele sabia-o. Ao fim de um demorado rumor de roçar de linhos engomados na penumbra, o doutor Urbino disse para consigo:

- Já há uma semana que tomo banho sem sabonete. Então ela acordou de vez, lembrou-se, ficou furiosa contra o mundo, porque, de facto, se tinha esquecido de repor o sabonete na banheira. Tinha notado a falta três dias antes, quando já estava debaixo do chuveiro e pensou repô-lo logo a seguir, mas depois esqueceu-se até ao dia seguinte. No terceiro dia sucedera-lhe o mesmo. Na verdade, não tinha passado uma semana, como ele dizia, para lhe agravar a culpa, mas sim três dias imperdoáveis, e a fúria de se ver apanhada em falta acabou por fazê-la sair dos eixos. Como sempre, defendeu-se atacando.

- Pois eu tenho tomado banho todos estes dias - gritou fora de si - e houve sempre sabonete.

Ainda que ele conhecesse de sobra o seus métodos de guerra, dessa vez não os pôde suportar. Foi viver, sob um pretexto profissional, para os quartos dos internos do Hospital da Misericórdia, e só ia a casa para mudar de roupa ao fim da tarde, antes das consultas ao domicílio.

Quando o ouvia chegar, ela ia para a cozinha, fingindo fazer qualquer coisa e aí ficava até ouvir na rua os passos dos cavalos da carruagem. Cada vez que, nos três meses que se seguiram, tentaram resolver a discórdia só conseguiram atiçá-la. Ele não estava disposto a voltar enquanto ela não admitisse que não havia sabonete na casa de banho, e ela não estava disposta a recebê-lo enquanto ele não reconhecesse que tinha mentido propositadamente para a atormentar.

Como é óbvio, o incidente deu-lhes oportunidade para evocarem outras, muitas outras discussões insignificantes de outros tantos despertares turvos. Uns ressentimentos remexiam com outros, reabriam cicatrizes antigas, tornavam-nas feridas novas, e ambos se assustaram com a desoladora conclusão de que em tantos anos de lidas conjugais não tinham feito muito mais do que apascentar rancores. Ele chegou a propor que se submetessem juntos a uma confissão aberta, com o senhor arcebispo se fosse necessário, para que fosse Deus quem decidisse, como árbitro final, se havia ou não sabonete na saboneteira da casa de banho. Então ela, que tão boas estribeiras tinha, perdeu-as por completo com um grito histórico:

- Merda para o senhor arcebispo!

O impropério fez estremecer os alicerces da cidade, deu origem a historietas que não foi fácil desmentir, e foi adoptado pela linguagem popular com ares de zarzuela: «Merda para o senhor arcebispo!» Consciente de que tinha passado das marcas, ela antecipou-se à reacção que esperava da parte do marido e ameaçou-o de que se mudaria sozinha para a antiga casa do pai, que ainda lhe pertencia, encontrando-se, porém, alugada a repartições públicas. E não eram bravatas: queria mesmo ir-se embora, sem se importar com o escândalo social. Porém, o marido deu-se conta a tempo. Não teve coragem para desafiar os seus preconceitos: cedeu. Não no sentido de admitir que havia sabonete na casa de banho, pois isso seria uma falta à verdade, mas no de continuarem a viver na mesma casa, ainda que em quartos separados e sem se dirigirem a palavra. Assim comiam, contornando a situação com tanta destreza que mandavam recados pelos filhos, de um lado para o outro da mesa, sem que estes se dessem conta de que não se falavam.

Como no escritório não havia casa de banho, descobriram a fórmula de resolver o conflito dos ruídos matinais, porque ele ia tomar banho depois de ter preparado a aula e tomava precauções reais para não acordar a mulher. Muitas vezes coincidiam, e então faziam turnos para escovarem os dentes antes de dormir. Ao fim de quatro meses, ele deitou-se a ler na cama conjugal, enquanto ela não saía da casa de banho como acontecia frequentemente, e adormeceu. Ela deitou-se ao lado dele, com descuido suficiente para que ele acordasse e saísse dali. Com efeito, quase acordou, mas em vez de se levantar, apagou a luz e acomodou-se na almofada. Ela sacudiu-o pelo ombro para lhe lembrar que devia ir para o escritório, mas ele sentia-se tão bem por estar outra vez na cama de penas dos bisavós, que preferiu capitular.

- Deixa-me ficar aqui - disse-lhe. - Sim, havia sabonete. Quando recordavam este episódio, já no remanso da velhice, nem ele nem ela podiam crer na verdade assombrosa de que aquela discussão fora a mais grave de meio século de vida em comum, e a única que lhes deu aos dois vontade de desistir e começar uma vida diferente. Mesmo quando já eram velhos e tranquilos evitavam falar dela, porque as feridas acabadas de cicatrizar voltavam a sangrar como se fossem de ontem.

Ele foi o primeiro homem a quem Fermina Daza ouviu urinar. Ouviu-o na noite de núpcias no camarote do barco que os levava a França, quando se deitara por causa do enjoo, e o som daquela torrente de cavalo pareceu-lhe tão potente e investido de tanta autoridade que aumentou o seu temor pelos estragos que receava. Aquela recordação vinha-lhe frequentemente à lembrança, à medida que os anos iam debilitando a torrente, porque nunca conseguiu resignar-se a que ele deixasse molhada a borda da sanita cada vez que a usava. O doutor Urbino tentava convencê-la com argumentos fáceis de compreender para quem os quisesse compreender, que aquele acidente não se repetia todos os dias por descuido seu, como ela insistia, mas sim por uma razão orgânica: a sua torrente de jovem era tão certeira e directa, que no colégio tinha ganho torneios de pontaria a encher garrafas, mas, com o correr dos anos, foi descaindo, até se tornar quase oblíqua, ramificava-se, tornando-se, por fim, numa fonte de fantasia impossível de controlar, apesar dos muitos esforços feitos para a dirigir. Dizia: «A sanita deve ter sido inventada por alguém que não sabia nada de homens.» Contribuía para a paz conjugal com um acto diário que era mais humilhante do que humilde: secava com papel higiénico as bordas da sanita cada vez que a usava. Fermina sabia-o, mas nunca dizia nada enquanto os vapores amoniacais não se tornassem demasiado evidentes na casa de banho, e então proclamava-os como se tivesse descoberto um crime: «Está tudo empestado como uma toca de coelhos!» Nas vésperas da velhice, o próprio revés do corpo lhe inspirou a solução final: urinava sentado, como ela, o que deixava a sanita limpa para além de o deixar a ele em estado de graça.

Já nessa altura tinha grandes dificuldades em bastar-se a si mesmo, e uma escorregadela na banheira, que poderia ter sido fatal, alertou-o contra o chuveiro. A casa, por ser das modernas, não tinha a banheira de peltre com patas de leão, que era vulgar nas mansões da cidade antiga. Tinha mandado tirá-la com um argumento higiénico: a banheira era uma dessas muitas porcarias dos Europeus, que só tomavam banho na última sexta-feira de cada mês, e ainda por cima tomavam-no na água suja pela mesma sujidade que pretendiam tirar do corpo. De modo que mandaram fazer uma bacia grande, por medida, em pau-santo maciço, onde Fermina Daza dava banho ao marido com o mesmo ritual com que o dera aos filhos recém-nascidos. O banho prolongava-se por mais de uma hora, com águas tratadas, onde tinham fervido folhas de malva e cascas de laranja, o que tinha para ele um efeito tão calmante que, às vezes, até adormecia dentro da perfumada infusão. Depois de lhe dar banho, Fermina Daza ajudava-o a vestir-se, deitava-lhe pó-de-talco entre as pernas, untava-o com manteiga de cacau nas assaduras, punha-lhe as cuecas com tanto amor como se fosse uma fralda, e continuava a vesti-lo, peça a peça, das meias até ao nó da gravata com o alfinete de topázio. As manhãs conjugais apaziguaram-se, porque ele voltou a assumir a infância que os filhos lhe tinham tirado. Ela, pelo seu lado, acabou por se harmonizar com o horário familiar, porque também para ela passavam os anos: dormia cada vez menos e antes de completar os setenta acordava primeiro que o marido.

No Domingo de Pentecostes, quando levantou a manta para ver o cadáver de Jeremiah de Saint-Amour, o doutor Urbino teve a revelação de algo que lhe tinha sido negado até então nas suas divagações mais lúcidas de médico e de crente. Foi como se depois de tantos anos de familiaridade com a morte, depois de tanto a combater e manusear pelo direito e pelo avesso, aquela tivesse sido a primeira vez em que se atrevera a olhá-la de frente, e também ela olhava para ele. Não era o medo da morte. Não: o medo estava dentro dele há já muitos anos, convivia com ele, era outra sombra da sua sombra, desde aquela noite em que acordou perturbado por um pesadelo e que se consciencializou de que a morte não era apenas uma probabilidade permanente, como sempre tinha achado, mas uma realidade imediata. Pelo contrário, o que tinha visto naquele dia era a presença física de algo que até então não tinha sido mais que uma certeza da imaginação. Agradou-lhe que o instrumento da Divina Providência para aquela revelação surpreendente tivesse sido Jeremiah de Saint-Amour, a quem sempre teve como santo que ignorava o seu próprio estado de graça. Mas quando a carta lhe revelou a sua verdadeira identidade, o seu passado sinistro, o seu inconcebível poder de simulação, sentiu que algo de definitivo e de irreparável sucedera na sua vida.

No entanto, Fermina Daza não se deixou contagiar pelo seu humor sombrio. Não que não o tivesse tentado, imediatamente, enquanto ela o ajudava a meter as pernas nas calças e lhe apertava a longa fila de botões da camisa. Mas não o conseguiu porque Fermina Daza não era facilmente impressionável e ainda menos com a morte de um homem de quem não gostava. Sabia apenas que Jeremiah de Saint-Amour era um inválido de muletas a quem nunca tinha visto, que fugira de um pelotão de fuzilamento numa das muitas insurreições de alguma das muitas ilhas das Antilhas, que se fizera fotógrafo de crianças por necessidade, chegando a ser o mais solicitado da província, e que tinha ganho uma partida de xadrez a alguém que ela recordava como Torremolinos, mas que na verdade se chamava Capablanca.

- Pois não era mais que um evadido de Caiena, condenado a prisão perpétua por um crime atroz - disse o doutor Urbino.

- Imagina que até tinha comido carne humana.

Deu-lhe a carta cujos segredos queria levar consigo para o túmulo, mas ela guardou as folhas dobradas no toucador, sem as ler, e fechou a gaveta à chave. Estava acostumada à insondável capacidade do marido para se surpreender, aos seus preconceitos excessivos que, com os anos, se tornavam mais arrevesados, a uma estreiteza de critérios que não se compadecia com a sua imagem pública. Mas daquela vez tinha ultrapassado os seus próprios limites. Supunha que o marido não apreciava Jeremiah de Saint-Amour não pelo que este tinha sido antes, mas sim pelo que começou a ser a partir do momento em que chegou sem quaisquer haveres além da sua mochila de exilado, e não conseguia perceber porque o consternava daquela maneira a revelação tardia da sua indentidade. Não percebia porque lhe parecia tão abominável o facto de ele ter tido uma mulher escondida, se esse era um atavismo dos homens da sua classe, até dele num momento ingrato, além, de que lhe parecia uma extraordinária prova de amor o facto de ela o ter ajudado a consumar a sua decisão de morrer. Disse: «Se tu te decidisses também a fazê-lo por razões tão sérias como as que ele tinha, o meu dever seria fazer o que ela fez.» O doutor Urbino deu uma vez mais consigo na encruzilhada da pura incompreensão que o exasperara durante meio século.

- Não percebes nada - disse. - O que me indigna não é o que foi nem o que fez, mas o engano em que nos manteve a todos durante tantos anos.

Os olhos começaram a marejar-se-lhe de lágrimas fáceis, mas ela fingiu ignorá-lo.

- Fez bem - replicou. - Se tivesse dito a verdade, nem tu nem essa pobre mulher, nem ninguém daqui o teria estimado tanto como o estimaram.

Prendeu-lhe o relógio de corrente na botoeira do colete. Rematou-lhe o nó da gravata e pôs-lhe o alfinete de topázio. Depois, enxugou-lhe as lágrimas e secou-lhe a barba molhada com o lenço humedecido de água florida, e pôs-lho no bolso do peito com as pontas abertas como uma magnolia. As onze badaladas do relógio de pêndulo ressoaram por toda a casa.

- Despacha-te - disse ela, puxando-lhe pelo braço. - Vamos chegar atrasados.

Aminta Dechamps, esposa do doutor Lácides Olivella, e as suas sete filhas, qual delas a mais diligente, tinham providenciado tudo para que o almoço das bodas de prata fosse o acontecimento social do ano. A residência familiar, em pleno centro histórico da cidade, era a antiga Casa da Moeda, desfigurada por um arquitecto fiorentino que passou por aqui como um vento nefasto de renovação e transformou em basílicas de Veneza mais de quatro relíquias do século XVI. Tinha seis quartos e duas salas, de jantar e de visitas, amplas e bem ventiladas, mas insuficientes para os convidados da cidade, além das notáveis individualidades que viriam de fora. O pátio era igual ao claustro de uma abadia, com um repuxo de pedra que cantava no meio e canteiros de girassóis que perfumavam a casa ao entardecer, mas o espaço das arcadas não chegava para tantos e tão grandes apelidos. De modo que decidiram oferecer o almoço na casa de campo da família, a dez minutos de automóvel pela estrada real, que tinha um alqueire além dos enormes loureiros-da-índia e dos nenúfares no rio de águas mansas. Os homens da Estalagem de Dom Sancho, orientados pela senhora de Olivella, montaram toldos de lona colorida nos espaços sem sombra e armaram, sob os loureiros, um rectângulo com mesinhas para cento e vinte e dois talheres, com toalhas de linho e ramos de rosas desse dia na mesa de honra. Construíram também um estrado para uma banda de instrumentos de sopro, com um programa limitado de contradanças e valsas nacionais, e para um quarteto de cordas da Escola de Belas-Artes, que era uma surpresa da senhora Olivella para o venerável professor do seu marido, que presidiria ao almoço. Ainda que a data não correspondesse rigorosamente ao aniversário da formatura, escolheram o Domingo de Pentecostes para enaltecer o sentido da festa.

Os preparativos tinham começado três meses antes, por receio de que algum detalhe indispensável ficasse por fazer por falta de tempo. Mandaram vir galinhas vivas do Pântano de Ouro, famosas em todo o litoral, não só pelo seu tamanho e sabor, mas porque nos tempos coloniais andavam à solta a debicar pelas terras de aluvião e encontravam-lhes pedacinhos de ouro puro na moela. A senhora de Olivella, em pessoa, acompanhada por algumas das filhas e pelas criadas, subia a bordo dos transatlânticos de luxo para escolher o que de melhor viesse de todo o mundo a fim de honrar os méritos do marido. Tinha previsto tudo, excepto que a festa se realizava num domingo de Junho num ano de chuvas tardias. Deu-se conta de tal risco na manhã do próprio dia, ao sair para a missa e ao assustar-se com a humidade do ar e ao ver que o céu estava denso e baixo sem se conseguir ver o horizonte do mar. Apesar desses sinais aziagos, o director do observatório astronómico, com quem se encontrou na missa, lembrou-lhe que na tão azarada história da cidade, mesmo nos Invernos mais rigorosos, nunca chovera no Dia de Pentecostes. Não obstante, ao soar o meio-dia, quando já muitos dos convidados tomavam o aperitivo ao ar livre, o ribombar de um trovão isolado fez tremer a terra, um vento de borrasca descompôs as mesas, levou os toldos pelo ar e o céu desabou numa tremenda chuvada.

O doutor Juvenal Urbino conseguiu chegar a grande custo, no meio da desordem causada pela tempestade, com os últimos convidados que encontrou pelo caminho, e pretendia ir com eles, dos carros à casa, saltitando de pedra em pedra pelo pátio lajeado, mas acabou por aceitar a humilhação de ser levado em braços pelos homens de Dom Sancho sob um pálio de lona amarela. As mesas separadas foram novamente dispostas o melhor que se pôde, dentro de casa, até nos quartos, e os convidados não faziam o menor esforço para disfarçarem o seu humor de naufrágio. Fazia um calor de caldeira de navio, pois tiveram de fechar as janelas para evitar que a chuva entrasse açoitada pelo vento. No pátio, cada lugar da mesa tinha um cartão com o nome do convidado, estando previsto um lado para os homens e outro para as mulheres, como era costume. Mas, dentro de casa, os cartões com os nomes misturaram-se, e cada um sentou-se conforme pôde, numa promiscuidade de força maior que, por uma vez, contrariou as nossas superstições sociais. No meio do cataclismo, Aminta de Olivella parecia estar em todo o lado ao mesmo tempo, com o cabelo ensopado e o magnífico vestido salpicado de lama, mas suportava a desgraça com o sorriso invencível que aprendera com o marido para não dar esse prazer à adversidade. Com a ajuda das filhas, forjadas na mesma fibra, conseguiu, até onde lhe foi possível, manter os lugares da mesa de honra, com o doutor Juvenal Urbino no centro e o arcebispo Obdulio y Rey à sua direita. Fermina Daza sentou-se ao lado do marido, como era costume, por receio de que este adormecesse durante o almoço ou entornasse a sopa na lapela. O lugar em frente foi ocupado pelo doutor Lácides Olivella, um cinquentão com ares femininos, muito bem conservado, cujo espírito alegre não tinha qualquer relação com os seus diagnósticos acertados. O resto da mesa ficou completo com as autoridades provinciais e municipais e a rainha de beleza do ano anterior, que o governador levou pelo braço sentando-a ao seu lado. Ainda que não fosse habitual que nos convites se exigisse um traje especial e menos ainda para um almoço campestre, as mulheres usavam vestidos de noite com adereços de pedras preciosas e a maioria dos homens vestia de escuro com gravata preta, alguns levando até sobrecasaca. Só os muito acostumados aos acontecimentos sociais é que vestiam os seus fatos de todos os dias. Em cada lugar havia uma cópia da ementa, impressa em francês e com vinhetas douradas.

A senhora de Olivella, assustada com os efeitos do calor, deu uma volta pela casa insistindo para que tirassem os casacos para almoçar, mas ninguém se atreveu a dar o exemplo. O arcebispo chamou a atenção do doutor Urbino para o facto de aquele ser, em certa medida, um almoço histórico: aí estavam pela primeira vez juntos à mesma mesa, cicatrizadas as feridas e dissipados os rancores, os dois partidos das guerras civis que tinham ensanguentado o país desde a independência. Este pensamento coincidia com o entusiasmo dos liberais, principalmente dos jovens, que tinham conseguido eleger um presidente para o seu partido após quarenta e cinco anos de hegemonia conservadora. O doutor Urbino não estava de acordo: um presidente liberal não lhe parecia uma figura especialmente diferente de um presidente conservador, apenas pior vestido. No entanto, não quis contrariar o arcebispo. Ainda que tivesse gostado de o informar de que naquele almoço não estava ninguém pelos motivos que pensava mas sim pelos méritos da sua estirpe, que sempre se manteve acima dos jogos da política e dos horrores da guerra. Visto desta maneira, com efeito, não faltava ninguém.

A chuvada parou tão depressa quanto começara e o Sol incendiou-se imediatamente no céu sem nuvens, mas a tempestade tinha sido tão violenta que arrancou algumas árvores pela raiz e o ribeiro transbordou, enlameando totalmente o pátio. O pior desastre acontecera na cozinha. Tinham montado com tijolos vários fogões de lenha, nas traseiras da casa, ao ar livre, e os cozinheiros mal tinham tido tempo de salvar os panelões da chuva. Perderam algum tempo com a emergência, pondo ordem na cozinha inundada e improvisando novos fogões no corredor lá de trás. Porém, à uma da tarde, estava tudo resolvido e só faltava a sobremesa, encomendada às freiras de Santa Clara, que se tinham comprometido a mandá-la até às onze. Receava-se que o ribeiro da estrada real tivesse saído do leito, como acontecia num ou outro Inverno, e nesse caso podia-se contar que a sobremesa teria um atraso de duas horas. Assim que a chuva cessou, abriram as janelas e a casa refrescou com o ar purificado pelo enxofre da tempestade. Deram logo ordens para que a banda executasse o programa de valsas no terraço do pórtico, o que só serviu para aumentar a ansiedade, porque a ressonância dos metais dentro de casa obrigava a que se conversasse aos gritos. Cansada de esperar, com um sorriso à beira das lágrimas, Aminta de Olivella mandou servir o almoço.

O grupo da Escola de Belas-Artes iniciou o concerto, no meio de um silêncio formal conseguido para os compassos iniciais de La Chasse de Mozart. Apesar das vozes cada vez mais altas e confusas e do estorvo dos criados negros de Dom Sancho, que passavam à justa por entre as mesas com as travessas fumegantes, o doutor Urbino conseguiu manter um canal aberto para a música até ao fim do programa. O seu poder de concentração diminuía ano após ano, ao ponto de ter de anotar num papel cada jogada de xadrez para saber onde ia. Não obstante, ainda conseguia manter uma conversa sem perder uma nota de um concerto, claro que sem chegar ao extremo de um seu grande amigo e maestro alemão que nos seus tempos de Áustria lia a partitura de Don Giovanni enquanto ouvia Tannhàuser.

A segunda peça do programa, A Morte e a Donzela de Schubert, pareceu-lhe executada com um dramatismo fácil. Enquanto se esforçava por ouvi-la através do novo ruído dos talheres nos pratos, fixava o olhar num rapaz de rosto rosado que o cumprimentou com uma inclinação de cabeça. Tinha-o visto em qualquer parte, sem dúvida, mas não conseguia lembrar-se onde. Sucedia-lhe com frequência, principalmente com o nome das pessoas, mesmo as mais conhecidas, ou com uma melodia de outros tempos, o que lhe provocava uma angústia tão grande que certa noite preferira morrer a ter de a suportar até de manhã. Estava prestes a atingir esse estado quando uma luzinha caridosa lhe iluminou a memória: o rapaz fora seu aluno no ano anterior. Ficou surpreendido por o ver ali, no remo dos eleitos, mas o doutor Olivella recordou-lhe que era filho do ministro da Higiene e que tinha vindo preparar uma tese de medicina legal.

O doutor Juvenal Urbino acenou-lhe alegremente com a mão e o jovem médico pôs-se de pé respondendo com uma reverência. Mas nem então nem nunca se deu conta de que esse fora o estagiário que tinha estado com ele, nessa manhã, em casa de Jeremiah de Saint-Amour.

Descontraído por mais essa vitória sobre a velhice, abandonou-se ao lirismo diáfano e fluido da última peça do programa, que não conseguiu identificar. Mais tarde, o jovem violoncelista do conjunto, que acabava de chegar de França, disse-lhe que era o quarteto de cordas de Gabriel Fauré, de quem o doutor Urbino nunca ouvira falar apesar de estar sempre muito atento às novidades que vinham da Europa. Preocupada com ele, como sempre, mas principalmente quando o via absorto em público, Fermina Daza parou de comer e pôs a sua mão terrestre sobre a dele. Disse-lhe: «Não penses mais nisso.» O doutor Urbino sorriu-lhe do outro lado do êxtase e foi então que voltou a pensar no que ela receava. Lembrou-se de Jeremiah de Saint-Amour, a essa hora dentro do caixão com o falso uniforme de combatente e as condecorações de lata, sob o olhar acusador das crianças dos retratos. Voltou-se para o arcebispo para dar-lhe a notícia do suicídio, mas ele já a ouvira. As pessoas tinham comentado muito o caso no fim da missa, e até recebera um pedido do coronel Jerónimo Argote, em nome dos refugiados das Caraíbas, para que fosse sepultado em terra santa. Disse: «O próprio pedido me pareceu uma falta de respeito.» Depois, num tom mais humano, perguntou se se sabia a causa do suicídio. O doutor Urbino respondeu-lhe com uma palavra correcta, convencido de que a tinha inventado nesse momento: gerontofobia. O doutor Olivella, ocupado com os seus convidados mais próximos, abandonou-os por uns instantes para participar na conversa do seu mestre. Disse: «É uma pena que ainda se nos deparem suicídios que não sejam por amor.» O doutor Urbino não se surpreendeu por reconhecer os seus pensamentos nos do discípulo predilecto.

- E pior ainda - disse. - Foi com cianeto de ouro. Ao dizê-lo sentiu que a compaixão voltara a prevalecer sobre a amargura da carta, e não o agradeceu à mulher, mas sim a um milagre da música. Então falou com o arcebispo desse santo leigo que conhecera durante os lentos fins de tarde de xadrez, contou-lhe como consagrara a sua arte à felicidade das crianças, a sua invulgar erudição sobre todas as coisas do mundo, os seus hábitos espartanos, e ele próprio se surpreendeu com a pureza de alma com que o afastara, tão rápida e completamente, do seu passado. Falou então com o alcaide sobre a conveniência de comprar o arquivo de chapas fotográficas, para conservar as imagens de uma geração que porventura não voltaria a ser feliz fora daqueles retratos, e em cujas mãos estava o futuro da cidade. O arcebispo escandalizara-se por um católico praticante e culto se ter atrevido a pensar na santidade de um suicida, mas concordou com a iniciativa de arquivar os negativos. O alcaide quis saber a quem tinha de os comprar. O doutor Urbino sentiu a língua a arder com o fogo do segredo, mas conseguiu suportá-lo sem trair a clandestina herdeira dos arquivos. Disse: «Encarrego-me eu disso.» E sentiu-se redimido pela sua lealdade para com a mulher que repudiara cinco horas antes. Fermina Daza notou-o e obrigou-o a prometer em voz baixa que iria ao funeral. Claro que iria, disse aliviado, não faltava mais nada.

Os discursos foram breves e fáceis. A banda dos instrumentos de sopro iniciou uma modinha popular que não estava prevista no programa, e os convidados passeavam pelos terraços à espera que os homens da Estalagem de Dom Sancho acabassem de tirar a água do pátio, para o caso de alguém se animar a dançar. Os únicos que continuavam na sala eram os convidados da mesa de honra, comemorando o facto de o doutor Urbino ter bebido de um só trago, no brinde final, meio copinho de brande. Ninguém se lembrava de que o tivesse feito antes, excepto com um copo de vinho de grande qualidade para acompanhar um prato muito especial, mas o coração pedira-lho naquela tarde, estando a sua debilidade bem recompensada: mais uma vez, ao fim de tantos, tantos anos, tinha vontade de cantar. E com certeza que o teria feito, a pedido do jovem violoncelista que se ofereceu para o acompanhar, se não fosse um automóvel dos novos ter atravessado o lamaçal do quintal velozmente, salpicando os músicos e alvoroçando os patos nas capoeiras com o soar da sua buzina, e parando diante da porta da casa. O doutor Marco Aurélio Urbino Daza e a esposa desceram, mortos de riso, levando em cada mão uma bandeja coberta com um guardanapo bordado. Bandejas iguais estavam sobre os outros assentos e até em baixo, aos pés do motorista. Era a sobremesa atrasada. Quando cessaram os aplausos e os apupos de cordial zombaria, o doutor Urbino Daza explicou, agora a sério, que as clarissas lhe tinham pedido o favor de levar a sobremesa ainda antes da tempestade, mas que se tinha desviado da estrada real porque alguém lhe disse que havia fogo em casa dos pais. O doutor Juvenal Urbino chegou a assustar-se sem esperar que o filho acabasse o relato. Mas a esposa recordou-lhe a tempo que fora ele mesmo quem chamara os bombeiros para apanharem o papagaio. Aminta de Olivella, radiante, decidiu servir a sobremesa nos terraços, mesmo depois do café. Mas o doutor Juvenal Urbino e a mulher saíram sem a provar porque havia apenas tempo para ele dormir a sua sesta sagrada antes do funeral.

Dormiu, mas pouco e mal, porque de regresso a casa verificou que os bombeiros tinham provocado estragos quase tão graves como os do fogo. Ao tentarem assustar o papagaio, tinham desfolhado completamente uma árvore com as mangueiras de pressão, e um jacto mal orientado entrou pelas janelas do quarto principal, provocando danos irreparáveis nas mobílias e nos retratos de avós desconhecidos, pendurados nas paredes. Os vizinhos acudiram ao ouvirem o sino do carro dos bombeiros, julgando que era um incêndio, e se piores estragos não houve, ficou-se a dever ao facto de ser domingo e os colégios estarem fechados. Quando se deram conta de que não apanhariam o papagaio nem com as escadas extensíveis, os bombeiros começaram a cortar os ramos à machadada e só a oportuna chegada do doutor Urbino Daza impediu que a mutilassem até ao tronco. Deixaram recado que voltariam depois das cinco, caso os autorizassem a podá-la, e, ao passarem, enlamearam o jardim interior e a sala e rasgaram um tapete turco, que era o preferido de Fermina Daza. Desastres inúteis, aliás, porque a impressão generalizada era que o papagaio tinha aproveitado a desordem para fugir para os jardins vizinhos. Com efeito, o doutor Urbino andou à procura dele nas copas das árvores, mas não obteve resposta em nenhuma língua, nem com assobios nem com canções, de modo que o deu por perdido e eram quase três horas quando se foi deitar. Antes usufruiu o prazer da fragrância de jardim secreto da sua urina purificada pelos suaves espargos.

A tristeza acordou-o. Não a que sentira de manhã diante do cadáver do amigo, mas essa névoa invisível que lhe saturava a alma depois da sesta, e que ele interpretava como uma notificação divina de que estava a viver os seus últimos fins de tarde. Até aos cinquenta anos não se apercebera do tamanho nem do peso nem do estado das suas vísceras. Pouco a pouco, enquanto jazia de olhos fechados, depois da sesta diária, tinha começado a senti-las, uma a uma, sentindo até a forma do seu coração insone, do seu fígado misterioso, do seu pâncreas hermético, e tinha começado a descobrir que até as pessoas mais velhas eram mais novas do que ele e que tinha acabado de ser o único sobrevivente dos lendários retratos de grupo da sua geração. Quando se deu conta dos seus primeiros esquecimentos, apelou para um recurso que ouvira a um dos seus professores na Escola de Medicina: «Aquele que não tem memória faz uma de papel.» No entanto, foi uma ilusão efémera, pois tinha chegado ao extremo de esquecer o que queriam dizer as mnemónicas que metia nos bolsos, dava a volta à casa à procura dos óculos que tinha no nariz, voltava a dar a volta à chave depois de ter fechado as portas e perdia o fio da leitura porque se esquecia das premissas dos argumentos ou da filiação dos personagens. Mas o que mais o inquietava era a desconfiança que tinha do seu próprio raciocínio: pouco a pouco, num naufrágio inevitável, sentia que estava a perder o sentido da justiça.

Por mera experiência, ainda que sem fundamentos científicos, o doutor Juvenal Urbino sabia que a maioria das doenças mortais tinha um cheiro próprio, mas nenhum era tão específico como o da velhice. Sentia-o nos cadáveres abertos na mesa de dissecação, reconhecia-o até nos pacientes que melhor dissimulavam a idade, e no suor da sua própria pele, na respiração tranquila da esposa adormecida. Se não fosse ser o que no fundo era, um cristão à moda antiga, talvez tivesse estado de acordo com Jeremiah de Saint-Amour quanto à velhice ser um estado indecente que devia ser evitado a tempo. A única consolação, mesmo para alguém como ele que tinha sido um bom homem de cama, era a extinção lenta e piedosa do apetite venéreo: a paz sexual. Aos oitenta e um anos era suficientemente lúcido para dar-se conta de que estava preso ao mundo por laços tão ténues que se poderiam quebrar sem dor com uma simples mudança de posição durante o sono, e se fazia o possível por mante-los era pelo terror de não encontrar Deus na escuridão da morte.

Fermina Daza tinha estado ocupada a arranjar o quarto devastado pelos bombeiros, e um pouco antes das quatro mandou levar ao marido o copo diário de limonada com gelo picado, lembrando-lhe que devia vestir-se para o funeral. Nessa tarde, o doutor Urbino tinha dois livros à mão: O Homem, Esse Desconhecido de Alexis Carrell e O Livro de San Michele de Axel Munthe. Este último ainda não estava aberto e pediu a Digna Pardo, a cozinheira, que lhe levasse a faca de papel de marfim de que se esquecera no quarto. Mas quando lha levaram já estava a ler O Homem, Esse Desconhecido na página marcada com o sobrescrito de uma carta: faltavam-lhe muito poucas para o acabar. Leu devagar, avançando por entre os meandros de um princípio de dor de cabeça que atribuiu ao copinho de brande do brinde final. Nas pausas da leitura, bebia um gole de limonada ou ficava-se a trincar um pedacinho de gelo. Tinha as meias calçadas, a camisa sem o colarinho postiço e os suspensórios elásticos de riscas verdes caídos de cada lado da cintura, e aborrecia-o só a ideia de ter de mudar de roupa para o funeral. Passado pouco tempo deixou de ler, pôs o livro sobre o outro e começou a balançar-se muito devagar na cadeira de vime, contemplando as árvores no pântano do pátio, a mangueira despida, as formigas-de-asa de depois da chuva, o esplendor efémero de outra tarde a menos, que se ia para sempre. Esquecera que uma vez tivera um papagaio de Paramaribo, a quem quis como a um ser humano, quando o ouviu subitamente: «Papagaio louro!» Ouviu-o muito perto, quase ao seu lado e depois viu-o no ramo mais baixo da mangueira.

- Desavergonhado - gritou.

O papagaio respondeu-lhe com voz idêntica:

- Mais desavergonhado serás tu, doutor.

Continuou a conversar com ele sem o perder de vista, enquanto calçava as pantufas com muito cuidado para não o espantar, e enfiando os braços nos suspensórios desceu ao quintal ainda enlameado, tacteando o chão com a bengala para não tropeçar nos três degraus do terraço. O papagaio não se mexeu. Estava tão baixo que lhe ofereceu a bengala para que se empoleirasse no castão de prata, como costumava, mas o papagaio esquivou-se. Saltou para outro ramo, um pouco mais alto, mas de acesso mais fácil, onde estava encostada a escada lá de casa antes de chegarem os bombeiros. O doutor Urbino calculou a altura e pensou que subindo dois degraus podia apanhá-lo. Subiu o primeiro, cantarolando uma canção de cúmplice para distrair a atenção do arisco animal que repetia as palavras sem a música, mas afastando-se no ramo com passinhos laterais. Subiu o segundo degrau sem dificuldade, agarrado à escada com as duas mãos, e o papagaio começou a repetir a canção completa sem mudar de lugar. Subiu o terceiro degrau e logo o quarto, pois tinha calculado mal a altura do ramo, e segurando-se bem à escada com a mão esquerda tentou apanhar o papagaio com a direita. Digna Pardo, a velha criada que o vinha avisar de que se estava a fazer tarde para o funeral, viu o homem de costas montado na escada e não podia acreditar que era quem era, não fossem as riscas verdes dos suspensórios elásticos.

- Santíssimo Sacramento! - gritou. - Ai que se mata!

O doutor Urbino agarrou o papagaio pelo pescoço com um suspiro de triunfo: «ça y est.» Mas soltou-o logo porque a escada escorregou-lhe debaixo dos pés e ele ficou por um momento suspenso no ar, dando-se então conta de que morria sem comunhão, sem tempo para se arrepender de nada nem se despedir de ninguém, às quatro horas e sete minutos da tarde de Domingo de Pentecostes.

Fermina Daza estava na cozinha a provar a sopa do jantar quando ouviu o grito horrorizado de Digna Pardo e o alvoroço da criadagem e logo o da vizinhança. Atirou a colher para o lado e tentou correr como podia com o invencível peso da sua idade, aos gritos como uma louca sem saber ainda o que é que se passava sob os ramos da mangueira, e o coração partiu-se-lhe ao ver o seu homem estendido ao comprido na lama, já morto em vida, mas resistindo ainda um último minuto ao golpe final da morte para dar-lhe tempo a chegar. Chegou a reconhecê-la no meio da confusão, através das lágrimas da dor única de morrer sem ela, olhou-a pela última vez para todo o sempre, com os olhos mais luminosos, mais tristes e mais agradecidos que ela jamais lhe vira em meio século de vida em comum, conseguindo dizer-lhe com o último suspiro:

- Só Deus sabe quanto te amei.

Foi uma morte memorável, e não sem razões. Assim que acabou os seus estudos de especialização em França, o doutor Juvenal Urbino ficou conhecido em todo o país por ter esconjurado a tempo, com métodos novos e drásticos, a última epidemia de cólera-morbo que assolou a província. A anterior, estava ele ainda na Europa, tinha causado a morte à quarta parte da população urbana em menos de três meses, incluindo o seu pai, que também fora um médico muito apreciado. Com o prestígio imediato e uma boa contribuição do património familiar, fundou a Sociedade Médica, a primeira e a única nas províncias das Caraíbas durante muitos anos, e foi o seu presidente vitalício. Conseguiu a construção do primeiro aqueduto, do primeiro sistema de esgotos e do mercado público coberto, que permitiu sanear a podridão que era a baía das Animas. Foi ainda presidente da Academia da Língua e da Academia de História. O patriarca latino de Jerusalém fê-lo cavaleiro da Ordem do Santo Sepulcro pelos serviços prestados à Igreja e o Governo de França concedeu-lhe a Legião de Honra no grau de comendador. Foi um animador activo de quantas congregações religiosas e cívicas existiram na cidade, e em especial da Junta Patriótica, constituída por cidadãos influentes sem interesses políticos, que pressionavam os governos e o comércio local com iniciativas progressistas demasiado audazes para a época. Entre estas, a mais notável foi o ensaio de um balão aerostático, que levou, no voo inaugural, uma carta até San Juan de Ia Ciénaga muito antes de alguém pensar em correio aéreo como uma possibilidade racional. Também foi sua a ideia do Centro Artístico, que fundou a Escola de Belas-Artes na mesma casa onde ainda hoje funciona, e patrocinou durante muitos anos os Jogos Florais de Abril.

Só ele conseguiu o que durante um século parecera impossível: a restauração do Teatro da Comédia, convertido em recinto de luta de galos desde os tempos da colónia. Foi o culminar de uma campanha cívica espectacular que envolveu todos os sectores da cidade, sem excepção, numa mobilização de multidões que muitos consideraram digna de melhor causa. Mesmo assim, o novo Teatro da Comédia inaugurou-se sem ter ainda cadeiras nem lâmpadas, levando os espectadores onde se sentarem e com que se alumiarem nos intervalos. Impôs-se a mesma etiqueta das grandes estreias da Europa, em que as senhoras aproveitavam para exibirem os seus vestidos compridos e os casacos de peles na canícula das Caraíbas, mas tiveram de autorizar também a entrada aos criados que levavam as cadeiras e as lâmpadas e quantas coisas de comer acharam necessárias para resistir aos programas intermináveis, um dos quais se prolongou até à hora da primeira missa. A temporada abriu com uma companhia francesa de ópera, cuja novidade era ter uma harpa na orquestra e cuja inesquecível glória era a voz imaculada e o talento dramático de uma soprano turca que cantava descalça e com anéis de pedras preciosas nos dedos dos pés. A partir do primeiro acto, mal se conseguia ver o cenário e os cantores perderam a voz por causa do fumo de tantas lamparinas de óleo de palma, mas os cronistas da cidade souberam muito bem apagar estes pormenores mínimos e exaltar os memoráveis. Foi, sem dúvida, a iniciativa mais contagiosa do doutor Urbino, pois a febre da ópera contaminou até os sectores menos informados da cidade, dando origem a toda uma geração de Isoldas e Otelos, Aidas e Sigefredos. Não se chegou nunca, no entanto, aos extremos que o doutor Urbino desejara, e que seria ver italianizantes e wagnerianos confrontando-se à bengalada, pura e simples, durante os intervalos.

O doutor Juvenal Urbino nunca aceitou os cargos oficiais que frequente e incondicionalmente lhe ofereciam, e foi um crítico encarniçado dos médicos que se valiam do seu prestígio profissional para obterem posições políticas. Ainda que tenha sempre sido tomado por liberal e costumasse votar nas eleições pelos candidatos desse partido, era-o mais por tradição que por convicção, e foi talvez o último membro das grandes famílias a ajoelhar-se na rua quando passava a carruagem do arcebispo. Definia-se a si mesmo como um pacifista natural, partidário da reconciliação definitiva entre liberais e conservadores para bem da pátria. A sua conduta pública, porém, era tão autónoma que ninguém o tinha como seu: os liberais consederavam-no um bárbaro das cavernas, os conservadores diziam que só lhe faltava ser mação, e os mações repudiavam-no como a um clérigo disfarçado ao serviço da Santa Sé. Os seus críticos menos ferozes pensavam que não passava de um aristocrata extasiado com as delícias dos Jogos Florais, enquanto a nação se esvaía em sangue numa guerra civil interminável.

Só dois gestos seus pareciam dissonantes desta imagem. O primeiro foi a mudança para uma casa nova num bairro de ricos recentes, saindo do antigo palácio do marquês de Casalduero, que, durante mais de um século, fora a mansão familiar. O outro foi o seu casamento com uma beleza lá do sítio, sem nome nem fortuna, de quem troçavam as senhoras de apelidos longos, até se convencerem, à força, de que as metia a todas num chinelo, pela sua distinção e personalidade. O doutor Urbino levou sempre em grande conta esses e muitos outros percalços da sua imagem pública, e ninguém estava tão consciente quanto ele de que era o último protagonista de um apelido em extinção. Os filhos eram dois fins de raça sem qualquer brilho. Marco Aurélio, o rapaz, médico como ele e, como todos os primogénitos de cada geração, não fizera nada digno de nota, nem sequer um filho, ao fim de cinquenta anos. Ofélia, a única filha, casada com um bom empregado bancário de Nova Orleães, tinha chegado à menopausa com três filhas e nenhum rapaz. No entanto, apesar de lhe doer a interrupção do seu sangue na corrente da história, o que mais o preocupava em relação à morte era a vida solitária de Fermina Daza sem ele.

Em todo o caso, a tragédia foi uma comoção não só entre os seus, mas afectou, por contágio, a arraia-miúda, que saiu à rua na ilusão de conhecer, mais que não fosse, o esplendor da lenda. Proclamaram-se três dias de luto e, nos edifícios públicos, foi posta a bandeira a meia haste. Os sinos de todas as igrejas dobraram a finados ininterruptamente até ser selada a cripta no jazigo de família. Um grupo da Escola de Belas-Artes fez a máscara mortuária do cadáver para servir de molde a um busto em tamanho natural, mas desistiram do projecto porque a ninguém pareceu digna a fidelidade com que ficou retratado o pavor do último instante. Um artista de renome, que por acaso se encontrava aqui de passagem, pintou uma tela gigantesca de um realismo patético, onde se via o doutor Urbino montado na escada no momento fatal em que estendia a mão para agarrar o papagaio. A única coisa que contrariava a verdade crua da história era que, no quadro, em vez de trazer a camisa sem colarinho e os suspensórios de riscas verdes, tinha um chapéu de coco e a labita preta de uma gravura que aparecera na imprensa nos anos da cólera. Este quadro foi exposto poucos meses depois da tragédia, para que ninguém ficasse sem o ver, na enorme galeria de El Alambre de Oro, uma loja de artigos importados por onde desfilava a cidade inteira. Depois esteve nas paredes de quantas instituições públicas e privadas se julgaram no dever de prestar homenagem à memória do insigne patrício, e, finalmente, foi pendurado, com uma segunda homenagem fúnebre, na Escola de Belas-Artes, donde os próprios estudantes de pintura o tiraram muitos anos mais tarde para o queimarem na Praça da Universidade como símbolo de uma estética e de uma época obsoletas.

Desde o primeiro minuto de viuvez que se viu que Fermina Daza não estava tão desamparada quanto o marido receara. Foi inflexível na determinação de não autorizar que o cadáver do marido fosse utilizado em benefício de causa alguma, e foi-o, inclusive, com o telegrama de pêsames do presidente da República, que ordenava que o expusessem em câmara-ardente na sala de sessões do governo provincial. Com igual serenidade se opôs a que fosse velado na catedral, como lho pediu o arcebispo pessoalmente, e só aceitou que aí estivesse durante a missa de corpo presente da cerimónia fúnebre. Até perante a mediação do filho, perturbado por tantos e tão diversos pedidos, Fermina Daza manteve-se firme na sua noção rural de que os mortos não pertencem a mais ninguém além da família, e que seria velado em casa, com café torrado e almojávenas, podendo cada um ter a liberdade de o chorar como quisesse. Não haveria as tradicionais nove noites de vela: as portas fecharam-se depois do enterro e não voltaram a abrir-se a não ser para as visitas íntimas.

A casa ficou sob o regime de morte. Todos os objectos de valor tinham sido guardados a bom recato, e nas paredes nuas ficaram apenas as marcas dos quadros apeados. As cadeiras da casa e as emprestadas pelos vizinhos estavam encostadas às paredes, da sala até aos quartos, os espaços vazios pareciam imensos e as vozes tinham uma ressonância espectral, porque os móveis grandes tinham sido removidos excepto o piano de cauda, que jazia no seu canto debaixo de um lençol branco. No jentro da biblioteca, em cima da secretária que fora do pai, estava deitado, sem caixão, aquele que fora Juvenal Urbino de Ia Calle, com o último espanto petrificado no rosto, e com a capa negra e a espada de guerra dos cavaleiros do Santo Sepulcro. A seu lado, de luto carregado, trémula mas muito segura de si, Fermina Daza recebeu as condolências sem dramatismo, mal se mexendo, até às onze da manhã do dia seguinte, hora em que, da porta de sua casa, se despediu do marido dizendo-lhe adeus com um lenço.

Não tinha sido fácil recuperar esse autodomínio desde o momento em que ouviu o grito de Digna Pardo no quintal, e encontrou o velho da sua vida a agonizar no lamaçal. A sua primeira reacção foi de esperança, porque tinha os olhos abertos e um brilho de luz radiante que nunca lhe tinha visto nas pupilas. Suplicou a Deus que lhe concedesse pelo menos um instante para que ele não se fosse sem saber o quanto ela o tinha amado, ultrapassando as dúvidas de ambos, e sentiu um ímpeto irresistível de começar a vida com ele outra vez desde o princípio para se dizerem tudo quanto lhes tinha ficado por dizer, e voltar a fazer bem qualquer coisa que tivessem feito mal no passado. Mas teve de se render ante a intransigência da morte. A sua dor decompôs-se numa cólera cega contra o mundo, e contra si própria, e isso infundiu-lhe o domínio e a coragem para enfrentar sozinha a sua solidão. A partir daí não teve um momento de tranquilidade, mas preveniu-se contra qualquer gesto que parecesse um alarde da sua dor. O único momento algo patético, involuntário, aliás, foi às onze da noite de domingo, quando levaram o esquife episcopal, a cheirar ainda a madeira de navio, com pegas de cobre e forro de seda acolchoada. O doutor Urbino Daza mandou-o fechar imediatamente, pois o ar da casa estava rarefeito pela exalação de tantas flores no calor insuportável, e parecia-lhe ter visto as primeiras sombras arroxeadas no pescoço do pai. Uma voz distraída fez-se ouvir no silêncio: «Com essa idade já se está meio podre em vida.» Antes de fecharem o caixão, Fermina Daza tirou a aliança de casamento e pô-la ao marido morto, cobrindo-lhe a mão com a sua, como sempre o fez quando o surpreendia a divagar em público.

- Ver-nos-emos muito em breve - disse-lhe.

Florentine Ariza, invisível entre a multidão de notáveis, sentiu uma pontada no peito. Fermina Daza não o tinha reconhecido na confusão dos primeiros pêsames, ainda que ninguém viesse a estar mais presente nem viesse a ser mais útil do que ele nas emergências daquela noite. Foi ele quem pôs ordem nas cozinhas a transbordar para que não faltasse o café. Conseguiu cadeiras suplementares quando já não bastavam as dos vizinhos e mandou pôr no quintal o resto das coroas quando em casa já não cabia mais nenhuma. Providenciou para que não faltasse o brande para os convidados do doutor Lácides Olivella, que tinham tomado conhecimento da má notícia no auge das bodas de prata e vieram de rompante continuar a pândega sentados em círculo sob o tronco da mangueira. Foi o único que soube reagir a tempo quando o papagaio fugitivo apareceu, à meia-noite, na sala de jantar, de cabeça levantada e asas abertas, o que provocou um arrepio de estupefacção na casa, pois parecia o cumprimento de uma penitência. Florentine Ariza agarrou-o pelo pescoço sem lhe dar tempo a gritar alguma das suas insensatas opiniões, e levou-o para a cavalariça dentro da gaiola coberta. E assim tratou de tudo, com discrição e eficácia tais, que não ocorreu a ninguém pensar que era uma intromissão nos assuntos alheios, mas sim o contrário, uma ajuda inestimável naquela hora má.

Era o que parecia: um velho, prestável e sério. Era de corpo direito e ossos salientes, a pele parda e sem pêlos, os olhos ávidos por trás dos óculos redondos com aros de metal branco e um bigode romântico de pontas engomadas, um pouco fora de moda para a época. Penteara para trás as últimas madeixas da frente e colava-as com brilhantina no meio do crânio reluzente, como último recurso para uma calvície total. A sua gentileza natural e os seus modos lânguidos cativavam imediatamente, mas também eram tidos como duas virtudes suspeitas num solteirão empedernido. Tinha gasto muito dinheiro, muito engenho e muita força de vontade para que ninguém lhe notasse os setenta e seis anos que cumprira em Março último e, na solidão da sua alma, acreditava que amara, em silêncio, muito mais do que alguém jamais amara no mundo.

Na noite da morte do doutor Urbino encontrava-se vestido como quando o surpreendeu a notícia, que era como estava sempre, apesar do calor infernal de Junho: de fato escuro com colete, laço de seda no colarinho de celulóide, chapéu de feltro e o guarda-chuva de cetim preto que também lhe servia de bengala. Mas quando começou a clarear, desapareceu por duas horas, regressando com os primeiros raios do Sol, fresco, bem barbeado e perfumado com loção de barba. Tinha vestido uma labita preta das que só já se usavam em enterros e cerimónias da Semana Santa, um colarinho mole, com o plastrão de artista em vez da gravata, e um chapéu de coco. Também levava o guarda-chuva, mas, dessa vez, não apenas pelo hábito, pois tinha a certeza que choveria antes do meio-dia, participando-o ao doutor Urbino Daza, caso fosse possível antecipar o enterro. Tentaram-no, com efeito, porque Florentine Ariza pertencia a uma família de armadores, sendo ele próprio presidente da Companhia Fluvial das Caraíbas, o que permitia supor que percebia de previsões meteorológicas. Mas não conseguiram conciliar a tempo as autoridades civis e militares, as corporações públicas e privadas, a banda militar e a das Belas-Artes, as escolas e congregações religiosas que já se tinham posto de acordo para as onze horas, de modo que o enterro, previsto como um acontecimento histórico, acabou numa debandada devido ao violento aguaceiro. Foram muito poucos os que, chapinhando na lama, chegaram até ao jazigo de família, protegido por uma ceiba, cujos ramos se prolongavam por cima do muro do cemitério. Sob essa mesma árvore, mas na parcela exterior destinada aos suicidas, os refugiados das Caraíbas tinham sepultado na tarde anterior Jeremiah de Saint-Amour, e o cão ao lado dele, de acordo com a sua vontade.

Florentino Ariza foi um dos poucos que ficaram até ao fim do enterro. Ficou ensopado até à roupa interior e chegou espavorido a casa com medo de apanhar uma pneumonia depois de tantos anos de cuidados minuciosos e precauções excessivas. Mandou preparar uma limonada quente com um golo de brande, e tomou-a na cama com duas aspirinas, suando as estopinhas embrulhado num cobertor de lã até o corpo recuperar a temperatura ideal. Quando regressou ao velório sentia-se como novo. Fermina Daza tinha assumido novamente a orientação da casa, que já estava varrida e em estado de receber, e tinha posto no altar da biblioteca um retrato do falecido esposo pintado a pastel, com um fumo na moldura. Às oito horas estava tanta gente e o calor era tão intenso como na noite anterior, mas, depois do terço, alguém pôs a correr o pedido de que se saísse cedo para que a viúva descansasse pela primeira vez desde a tarde de domingo.

Fermina Daza despediu-se da maioria das pessoas junto do altar, mas acompanhou o último grupo de amigos íntimos até à porta da rua, para a fechar ela própria como sempre o tinha feito. Dispunha-se a fazê-lo com o último alento, quando viu Florentino Ariza vestido de luto no meio da sala deserta. Alegrou-se, porque fazia muitos anos que o apagara da sua vida e era a primeira vez que o via, efectivamente, passado pelos filtros da memória. Mas antes de ter tempo de lhe agradecer a visita, ele levou o chapéu ao coração, trémulo e digno, e rebentou o abcesso que fora o amparo da sua vida.

- Fermina - disse-lhe. - Esperei esta ocasião durante mais de meio século, para repetir-lhe uma vez mais o juramento da minha fidelidade eterna e do meu amor para sempre.

Fermina Daza ter-se-ia julgado diante de um louco se não tivesse tido motivos para pensar que Florentino Ariza estava, naquele momento, inspirado pela graça do Espírito Santo. O seu impulso imediato foi amaldiçoá-lo pela profanação daquela casa, quando ainda estava quente no túmulo o cadáver do seu esposo. Mas impediu-lho a dignidade da raiva. «Desaparece-me da frente!», disse-lhe. «E que eu não te torne a ver nos anos que te restam de vida.» Voltou a abrir por completo a porta da rua que começara a fechar, e concluiu:

- Que espero sejam muito poucos.

Quando ouviu que se apagavam os passos na rua solitária, fechou a porta muito devagar, com a tranca e os ferrolhos, e enfrentou sozinha o seu destino. Nunca, até esse momento, tinha tido plena consciência do peso e do volume do drama que ela própria provocara quando tinha apenas dezoito anos, e que a perseguiria até à morte. Chorou pela primeira vez desde a tarde do desastre, sem testemunhas, que era o seu único modo de chorar. Chorou pela morte do marido, pela sua solidão e pela sua raiva, e quando entrou no quarto vazio chorou por si, porque muito poucas vezes dormira sozinha nessa cama desde que deixou de ser virgem. Tudo quanto pertencera ao esposo redobrava-lhe o pranto: as pantufas de pompons, o pijama debaixo da almofada, o espaço sem ele no espelho do toucador, o cheiro dele na sua pele. Um pensamento peregrino fê-la estremecer: «As pessoas que se amam deviam morrer com todas as suas coisas.» Não quis ajuda de ninguém para se deitar, nem quis comer nada antes de dormir. Angustiada sob o peso da dor, rogou a Deus que lhe mandasse a morte nessa noite durante o sono, e nessa ilusão se deitou, descalça mas vestida, adormecendo logo. Dormiu sem o saber, mas sabendo que continuava viva no sono, que lhe sobrava metade da cama e que estava deitada de costas do lado esquerdo, como sempre, mas que lhe fazia falta o contrapeso do outro corpo no outro lado. Pensando em sonhos, pensou que nunca mais poderia dormir assim e, em sonhos, começou a soluçar sem mudar de posição no seu lado, até muito depois de terem acabado de cantar os galos, e acordou-a o sol indesejável da manhã sem ele. Só então se deu conta de que tinha dormido muito sem morrer, soluçando durante o sono e que enquanto dormia soluçando pensava mais em Florentine Ariza que no marido que morrera.

Florentine Ariza, pelo seu lado, não tinha deixaddo de pensar nela nem por um instante desde que Fermina Daza o recusou sem apelo nem agravo ao fim de um namoro longo e contrariado, e desde então tinham passado cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias. Não teve necessidade de deitar contas à memória fazendo um risco diário nas paredes de uma cela, porque não passara um dia sem que sucedesse qualquer coisa que o fizesse recordá-la. Na altura do rompimento vivia sozinho com a mãe, Trânsito Ariza, numa parte de casa alugada na Rua das Janelas, onde esta teve desde muito nova uma loja de miudezas, onde também desfiava camisas e trapos velhos que vendia como ligaduras para os feridos de guerra. Foi o seu único filho, nascido de uma ligação casual com o conhecido armador Dom Pio Quinto Loayza, um dos três irmãos que fundaram a Companhia Fluvial das Caraíbas e que através desta deram um novo impulso à navegação a vapor no rio de la Magdalena.

Dom Pio Quinto Loayza morreu quando o filho tinha dez anos. Embora sempre se tivesse encarregado das suas despesas nunca o reconheceu como seu perante a lei nem lhe assegurou o futuro, de modo que Florentine Ariza ficou com o único apelido da mãe, se bem que a sua verdadeira filiação fosse do domínio público. Depois da morte do pai, Florentine Ariza teve de renunciar ao colégio para se empregar como aprendiz nos Correios Centrais, onde o incumbiriam de abrir os sacos, ordenar as cartas e avisar o público da chegada do correio, içando na porta das instalações a bandeira do país de procedência.

O seu bom senso chamou a atenção do telegrafista, o emigrado alemão Lotario Thugut, que era também o organista nas cerimónias solenes da catedral além de dar lições particulares de música. Lotario Thugut ensinou-lhe o código Morse e o manejo do sistema telegráfico. Bastaram as primeiras lições de violino para que Florentino Ariza começasse a tocar de ouvido como um profissional. Quando conheceu Fermina Daza, era o jovem mais pretendido do seu meio social, o que melhor dançava a música da moda, recitava poesia romântica e estava sempre à disposição dos amigos para ir fazer serenatas de violino às suas noivas. Desde então que o seu ar era macilento, o cabelo de índio amestrado com brilhantina e os óculos de míope que aumentavam o seu ar de desamparo. Além do defeito da vista, sofria de prisão de ventre crónica, o que o obrigou a aplicar clisteres purgantes durante toda a vida. Tinha um só fato de cerimónia, herdado do falecido pai, mas Trânsito Ariza tratava tão bem dele que todos os domingos parecia novo. Apesar do aspecto mirrado, da sua timidez e da fatiota sombria, as raparigas do seu grupo faziam rifas em segredo para sortearem quem ficava com ele, e ele brincava aos namorados com elas, até ao dia em que conheceu Fermina Daza, e perdeu a inocência.

Vira-a pela primeira vez numa tarde em que Lotario Thugut lhe mandou levar um telegrama a alguém de que não se conhecia a morada e se chamava Lorenzo Daza. Encontrou-o no pequeno Parque dos Evangelhos, numa das casas mais antigas, meio em ruínas, cujo pátio interior mais parecia o claustro de uma abadia, com os canteiros cheios de ervas e um repuxo de pedra sem água. Florentino Ariza não conseguiu ouvir qualquer ruído humano enquanto seguiu a criada descalça sob os arcos do corredor, onde se encontravam caixotes de mudanças ainda por abrir, ferramentas de pedreiro entre restos de cal e sacos de cimento arrumados, pois estavam a restaurar completamente a casa. Ao fundo do pátio havia um escritório provisório, onde, sentado à secretária, dormia a sua sesta um homem muito gordo de patilhas frisadas que se misturavam com o bigodé. Chamava-se, de facto, Lorenzo Daza, e não era muito conhecido na cidade porque chegara há menos de dois anos e não era pessoa de muitas amizades.

Recebeu o telegrama como se fosse a continuação de um sonho aziago. Florentino Ariza observou os olhos lívidos com uma espécie de compaixão oficial, reparou nos dedos incertos a tentarem descolar o papel, o aperto de coração que vira inúmeras vezes em tantos destinatários que ainda não conseguiam pensar em telegramas sem os relacionar com a morte. Ao lê-lo recuperou a calma. Suspirou: «Boas notícias.» Estendeu a Florentino Ariza os cinco reais da praxe, dando-lhe a entender, com um sorriso de alívio, que não lhos teria dado se as notícias tivessem sido más. Despediu-se com um aperto de mão, o que não era habitual com um funcionário dos correios, e a criada acompanhou-o até ao portão da rua, não tanto para o orientar mas sim para o vigiar. Percorreram o mesmo caminho pelo corredor das arcadas, mas desta vez Florentino Ariza ficou a saber que havia mais alguém em casa, porque a claridade do pátio se enchia de uma voz de mulher que estava a receber uma lição de leitura. Ao passar defronte da sala de costura viu pela janela uma mulher de certa idade e uma rapariguinha, sentadas em duas cadeiras muito juntas, ambas seguindo a leitura pelo mesmo livro que a mulher tinha aberto no colo. A situação pareceu-lhe estranha: a filha ensinava a mãe a ler. A observação era só em parte incorrecta, porque a mulher era tia e não mãe da rapariga, ainda que a tivesse criado como se o fosse. A lição não foi interrompida, mas a menina levantou os olhos para ver quem ia a passar pela janela, e esse olhar casual originou um cataclismo de amor, que meio século mais tarde ainda não tinha acabado.

A única coisa que Florentino Ariza conseguiu saber sobre Lorenzo Daza foi que viera de San Juan de Ia Ciénaga com a única filha e a irmã solteira, pouco depois da peste da cólera, e quem os viu desembarcar não teve dúvidas de que viera para ficar, pois trazia tudo quanto fazia falta para mobilar bem uma casa. A esposa morrera quando a menina ainda era muito pequena. A irmã, que se chamava Escolástica, tinha quarenta anos e estava a cumprir uma promessa, vestindo o hábito de franciscana quando saía à rua, mas em casa usava só o cordão à cintura. A menina tinha treze anos e o mesmo nome da mãe que morrera: Fermina.

Supunha-se que Lorenzo Daza era homem de recursos, porque vivia bem sem que se lhe conhecesse profissão e comprara, com dinheiro à vista, a casa no Parque dos Evangelhos, cuja restauração lhe deve ter custado, pelo menos, o dobro dos duzentos pesos ouro que pagou por ela. A filha andava a estudar no Colégio da Apresentação da Santíssima Virgem, onde, há quase dois séculos, as meninas da sociedade aprendiam a arte e o ofício de esposas atentas e submissas. Nos tempos coloniais e durante os primeiros anos da República só recebiam as herdeiras de apelidos importantes. Mas as velhas famílias, arruinadas pela independência, tiveram de se submeter às realidades dos novos tempos e o colégio abriu as portas a todas as candidatas que o pudessem pagar sem se preocupar com pergaminhos, mas sob a condição essencial de que fossem filhas legítimas de casais católicos. De qualquer maneira, era um colégio caro, e o facto de Fermina Daza lá andar era, por si só, um indício da situação económica da família, mesmo que não o fosse da sua condição social. Florentino Ariza sentiu-se animado com estas notícias, pois eram sinal de que a bela adolescente de olhos amendoados estava ao alcance dos seus sonhos. No entanto, a disciplina rígida do pai cedo se revelou como um obstáculo inultrapassável. Ao contrário das outras alunas, que iam para o colégio em grupos ou acompanhadas por uma criada mais velha, Fermina Daza ia sempre com a tia solteira e pelo seu comportamento se podia ver que não lhe autorizavam nenhuma distração.

Foi desta maneira inocente que Florentino Ariza iniciou a sua vida sigilosa de caçador solitário. A partir das sete da manhã sentava-se no banco menos visível do parque, fingindo ler um livro de versos à sombra das amendoeiras, até ver passar a donzela inatingível, com o uniforme de riscas azuis, as meias com ligas até aos joelhos, as botinas masculinas de atacadores cruzados, e uma só trança larga, com um laço na ponta, que lhe caía pelas costas até à cintura. Andava com uma altivez natural, de cabeça erguida, o olhar fixo, o passo rápido, o nariz fino, segurando com os braços em cruz a pasta dos livros contra o peito e com um andar de gazela que parecia imune à gravidade.

A seu lado, marcando passo com dificuldade, a tia com o hábito pardo e o cordão de São Francisco não dava a menor hipótese para que ele se aproximasse. Florentino Ariza via-as passar na ida e na volta quatro vezes por dia, e uma vez, aos domingos, à saída da missa solene, contentando-se em vê-la. Aos poucos e poucos começou a idealizá-la, a atribuir-lhe virtudes improváveis, sentimentos imaginários, e ao fim de duas semanas já só pensava nela. E assim decidiu mandar-lhe um bilhete escrito dos dois lados com a sua óptima letra de escrivão. Mas teve-o vários dias no bolso, sem saber como lho entregar, e, enquanto pensava, ia escrevendo mais algumas folhas antes de se deitar, de tal modo que a carta original se foi convertendo num dicionário de galanteios, inspirados pelos livros que aprendera de cor à força de tanto os ler durante as esperas no parque.

Tentando arranjar uma maneira de entregar a carta, fez por conhecer alguma aluna do Apresentação, mas estavam muito longe do seu mundo. Além de que, depois de muito pensar, não lhe pareceu prudente que alguém ficasse a conhecer as suas pretensões. Porém, conseguiu saber que Fermina Daza tinha sido convidada para um baile de sábado, dias depois de ter chegado e que o pai não a tinha deixado ir com uma frase conclusiva: «Cada coisa a seu tempo.» A carta já tinha mais de sessenta folhas escritas dos dois lados quando Florentino Ariza, sem conseguir suportar por mais tempo a opressão do seu segredo, se abriu sem reservas com a mãe, a única pessoa com quem se permitia algumas confidências. Trânsito Ariza comoveu-se até às lágrimas pela ingenuidade do filho em questões de amor, e tentou orientá-lo. Começou por convencê-lo a não entregar aquele calhamaço lírico, pois apenas conseguiria assustar a menina dos seus sonhos, já que a supunha tão verde quanto ele em coisas do coração. O primeiro passo, disse-lhe, era conseguir que ela se desse conta do seu interesse, para que, ao declarar-se-lhe, não a apanhasse de surpresa e dar-lhe algum tempo para pensar.

- Mas sobretudo - disse-lhe - a que tens de conquistar primeiro não é a ela, mas sim a tia.

Ambos os conselhos eram sábios, sem dúvida, mas chegavam tarde. Com efeito, no dia em que Fermina Daza se distraiu por um momento da lição de leitura que dava à tia e ergueu os olhos para ver quem é que passava no corredor, Florentine Ariza tinha-a impressionado pela aura de abandono que o envolvia. À noite, durante a refeição, o pai falara do telegrama e foi assim que ela soube o que Florentine Ariza tinha ido fazer lá a casa e qual era a sua profissão. Estas novidades espicaçaram-lhe o interesse, pois para ela, como para tanta gente nessa época, o invento do telégrafo tinha qualquer coisa a ver com magia. Por isso reconheceu Florentine Ariza logo da primeira vez que o viu a ler debaixo das árvores do parque, embora não sentisse a mais leve perturbação até que a tia lhe fez ver que ele se postava ali já há várias semanas. Depois, quando o viram também aos domingos, à saída da missa, a tia convenceu-se de uma vez por todas que tantos encontros não podiam ser obra do acaso. Disse: «Não será por minha causa que se dá a tantos trabalhos.» Pois apesar da sua conduta austera e do seu hábito de penitente, a tia Escolástica Daza tinha um instinto da vida e uma vocação de cumplicidade que eram as suas melhores virtudes, e só a ideia de que um homem se interessasse pela sua sobrinha provocava-lhe uma emoção incontrolável. Mas Fermina Daza estava ainda a salvo até da mera curiosidade do amor, e a única coisa que Florentine Ariza lhe inspirava era uma certa piedade, porque lhe pareceu que estava doente. A tia, contudo, disse-lhe que era preciso ter vivido muito para conhecer a verdadeira índole de um homem e que estava convencida de que aquele que se sentava no parque para as ver passar se estava doente era de amor.

A tia Escolástica era um refúgio de compreensão e afecto para a filha solitária de um casamento sem amor. Tinha-a criado desde a morte da mãe e, em relação a Lorenzo Daza, comportava-se mais como cúmplice do que como tia. De modo que o aparecimento de Florentine Ariza foi para elas mais um dos muitos divertimentos privados que costumavam inventar para entreterem as horas mortas. Quatro vezes por dia, ao passarem pelo Parque dos Evangelhos, ambas se apressavam a descobrir, com uma olhadela rápida, a sentinela esquálida, tímida, o zé-ninguém, quase sempre vestido de preto apesar do calor, que fingia ler debaixo das árvores. «Lá está ele», dizia a que primeiro o visse, reprimindo o riso, antes de ele levantar os olhos e ver as duas mulheres severas, distantes da sua vida, que atravessavam o parque sem sequer olhar para ele.

Coitadinho - dissera a tia. - Não se atreve a aproximar-se porque vou contigo, mas um dia vai tentar fazê-lo, se as suas intenções forem sérias, e então entregar-te-á uma carta.

Prevendo todo o tipo de contratempos, ensinou-lhe a conversar por gestos, que era um recurso indispensável aos namoros proibidos. Aquelas travessuras inconsequentes, quase pueris, traziam a Fermina Daza uma curiosidade nova, mas, durante vários meses, nunca lhe ocorreu que passasse disso. Nunca soube em que momento a diversão se tornou ansiedade e o sangue se lhe transformava em espuma com a necessidade de o ver, acordando uma noite espavorida porque o viu a olhar para ela por entre a escuridão, aos pés da cama. Então desejou com toda a sua alma que se cumprissem as previsões da tia, e nas suas orações rogava a Deus que ele tivesse coragem para lhe entregar a carta, só para saber o que nela dizia.

Mas as suas súplicas não foram atendidas. Antes pelo contrário. Isto acontecia na mesma altura em que Florentine Ariza se abriu com a mãe e esta o dissuadiu de entregar as setenta folhas de galanteios, de modo que Fermina Daza continuou à espera até ao fim do ano. A sua ansiedade convertia-se em desespero à medida que se aproximavam as férias de Dezembro, e interrogava-se sem descanso como iria fazer para o ver e para que ele a visse durante os três meses em que não iria ao colégio. As dúvidas permaneciam sem solução na noite de Natal, quando se sentiu estremecer pelo pressentimento de que ele estava a vê-la entre a multidão da Missa do Galo, e essa inquietação fez-lhe cair o coração aos pés. Não se atreveu a virar a cabeça porque estava sentada entre o pai e a tia, e teve de soerguer-se para que eles não se apercebessem da sua perturbação. Mas no meio da desordem da saída, sentiu-o tão próximo, tão nítido naquela confusão, que uma força irresistível a obrigou a olhar por cima do ombro ao sair do templo pela nave central e então viu, a dois palmos dos seus olhos, os outros olhos de gelo, o rosto pálido, os lábios petrificados pelo susto do amor. Transtornada pela sua própria audácia, agarrou-se ao braço da tia Escolástica para não cair, e esta sentiu o suor glacial da mão através da mitene de renda e reconfortou-a com um sinal imperceptível de cumplicidade incondicional. No meio do estrépito dos foguetes e dos tambores, das lanternas coloridas nos portais e do clamor das multidões ansiosas de paz, Florentine Ariza vagueou como um sonâmbulo até ao amanhecer, assistindo à festa através das lágrimas, aturdido pela alucinação de que era ele e não Deus quem nascera naquela noite.

O delírio aumentou na semana seguinte, à hora da sesta, quando, sem esperança alguma, passou por casa de Fermina Daza e viu que ela estava sentada com a tia debaixo das amendoeiras do portal. Era uma repetição do estranhíssimo quadro que tinha visto na primeira tarde na sala da costura: a menina a dar lições de leitura à tia. Mas Fermina Daza estava diferente sem o uniforme escolar, pois vestia uma túnica de linho com muitas pregas que caíam a partir dos ombros como um peplo, e trazia na cabeça uma grinalda de gardenias naturais que a faziam parecer uma deusa coroada. Florentine Ariza sentou-se no parque, onde tinha a certeza de ser visto, não recorrendo então à simulação da leitura, mas ficando com o livro aberto e de olhos fixos na donzela sonhada que não lhe devolveu nem um olhar caridoso.

Ao princípio pensou que a lição sob as amendoeiras era uma alteração acidental, devida talvez às obras intermináveis da casa, mas nos dias que se seguiram compreendeu que Fermina Daza estaria ali, ao alcance dos seus olhos, todas as tardes à mesma hora durante os três meses de férias, e essa certeza deu-lhe uma alma nova. Não ficou com a impressão de ter sido visto nem se apercebeu de nenhum sinal de interesse ou de rejeição, mas na indiferença dela havia um fulgor diferente que o animava a persistir. Passado pouco tempo, numa tarde dos fins de Janeiro, a tia pôs o bordado na cadeira e deixou a sobrinha no portal, no meio do tapete de folhas amarelas caídas das amendoeiras. Animado pela suposição irreflectida de que aquela oportunidade tinha sido preparada, Florentine Ariza atravessou a rua e pôs-se diante de Fermina Daza, e tão perto dela que se pôde aperceber das pausas da sua respiração e o hálito floral com que passaria a identificá-la pelo resto da vida. Falou-lhe de cabeça levantada e com uma determinação que só voltaria a ter meio século depois, e pelo mesmo motivo.

- A única coisa que lhe peço é que receba uma carta minha - disse-lhe.

Não era a voz que Fermina Daza esperava dele: era nítida e com uma segurança que não tinha nada a ver com os seus modos

71 languidos. Sem tirar os olhos do bordado, respondeu-lhe: <Não posso recebê-la sem autorização do meu pai.» Florentino Ariza estremeceu com o calor daquela voz, cujas inflexões graves não esqueceria no resto dos seus dias. Mas manteve-se firme e retorquiu imediatamente: «Obtenha-a.» Suavizou logo a ordem com uma súplica: «E um assunto de vida ou de morte.» Fermina Daza não olhou para ele, não interrompeu o bordado, mas a sua decisão entreabriu uma porta por onde entrava o mundo inteiro.

_ Volte todas as tardes - disse-lhe - e espere até eu mudar de cadeira.

Florentine Ariza não compreendeu o que ela queria dizer ate à segunda-feira da semana seguinte, quando, do banco do parque, viu a mesma cena de sempre com uma só variante: quando a tia Escolástica entrou em casa, Fermina Daza levantou-se e sentou-se na outra cadeira. Florentine Ariza, com uma camélia branca na lapela do casaco, atravessou então a rua e parou diante dela. Disse: «Este é o momento mais importante da minha vida.» Fermina Daza não levantou os olhos para ele, mas observou os arredores com um olhar circular e viu as ruas desertas no torpor da estiagem e um remoinho de folhas secas arrastadas pelo vento.

- Dê-ma - disse.

Florentine Ariza tinha pensado levar-lhe as setenta folhas que nessa altura podia recitar de memória de tanto as ter lido, mas, por fim, decidira-se por um pequeno bilhete sóbrio e explícito, onde só prometia o essencial: a sua fidelidade a toda a prova e o seu amor para sempre. Tirou-o do bolso interior do casaco e colocou-o em frente dos olhos da bordadeira perturbada que ainda não se tinha atrevido a olhar para ele. Viu o sobrescrito azul a tremer numa mão petrificada pelo terror, e levantou o bastidor para ele pôr a carta, pois não podia admitir que também se lhe notasse a tremura dos dedos. Então aconteceu: um pássaro sacudiu-se na folhagem das amendoeiras e a sua cagadela caiu mesmo em cima do bordado. Fermina Daza afastou o bastidor para que ele não se desse conta do sucedido e olhou-o, pela primeira vez, com a cara em chamas. Florentine Ariza, impassível com a carta na mão, disse: «Dá sorte.» Ela agradeceu-lho com o seu primeiro sorriso e quase lhe arrancou a carta das mãos, dobrando-a e escondendo-a no corpete. Então ele ofereceu-lhe a camélia que levava na lapela, que ela recusou: «É uma flor de compromisso.» Depois, dando-se conta que o tempo estava a esgotar-se, voltou a refugiar-se na sua compostura.

- Agora vá-se embora - disse - e volte só quando eu lhe disser.

Quando Florentine Ariza a viu, pela primeira vez, a mãe já o descobrira antes que ele lho contasse porque perdeu a fala e o apetite, e passava as noites em branco às voltas na cama. Mas quando começou a esperar a resposta à sua primeira carta, a ansiedade complicou-se-lhe com diarreias e vómitos esverdeados, perdeu o sentido de orientação começando a padecer de desmaios súbitos. A mãe entrou em pânico, pois o seu estado não se parecia com os desarranjos provocados pelo amor mas sim com os efeitos da cólera. O padrinho de Florentino Ariza, um antigo homeopata que tinha sido o confidente de Trânsito Ariza desde os seus tempos de amante escondida, ficou também alarmado, à primeira vista, com o estado do doente, porque tinha o pulso fraco, a respiração difícil e os suores pálidos dos moribundos. Mas o exame revelou-lhe que não tinha febre nem lhe doía nada e que a única coisa que sentia concretamente era a necessidade urgente de morrer. Bastou-lhe um interrogatório insidioso, primeiro a ele, depois à mãe, para comprovar mais uma vez que os sintomas do amor são idênticos aos da cólera. Receitou infusões de flores de tília para acalmar os nervos e sugeriu uma mudança de ares para que se consolasse à distância, mas o que Florentino Ariza desejava era exactamente o contrário: gozar o seu martírio.

Trânsito Ariza era uma mestiça livre com uma intuição nata para a felicidade, apenas contrariada pela pobreza, e comprazia-se nos sofrimentos do filho como se fossem seus. Fazia-o beber as infusões quando o sentia delirar, agasalhava-o com cobertores de lã para iludir os arrepios, mas ao mesmo tempo encorajava-o a alimentar a sua prostração.

- Aproveita agora que és novo para sofreres o mais que puderes - dizia-lhe -, porque estas coisas não duram toda a vida.

Claro que nos Correios não pensavam o mesmo. Florentino Ariza abandonara-se à inércia e andava tão distraído que trocava as bandeiras com que anunciava a chegada do correio, e numa quarta-feira içava a bandeira alemã quando o barco que tinha chegado era da Companhia Leyland com o correio de Liverpool, e outro dia qualquer içava a dos Estados Unidos quando o barco que chegava era da Compagnie Générale Transatlantique com o correio de Saint-Nazaire. Aquelas confusões de apaixonado provocavam tantos transtornos na distribuição e originavam tantos protestos do público que se Florentino Ariza não ficou desempregado foi porque Lotario Thugut o pôs no telégrafo e o levou para tocar violino no coro da catedral. Tinham uma aliança difícil de compreender devido à diferença de idades, pois podiam ser avô e neto, mas entendiam-se tão bem no trabalho como nas tabernas do cais, onde iam dar os noctívagos, sem pruridos de classe, desde os pedintes bêbados até aos meninos-bem, vestidos a rigor, que se escapavam das festas de gala do Clube Social para irem comer lebre frita com arroz de coco. Lotario Thugut costumava passar por lá depois do último telégrafo e muitas vezes a manhã encontrava-o a beber ponche da Jamaica e a tocar acordeão com as tripulações de loucos das escunas das Antilhas. Era corpulento, atarracado, de barba dourada e com um barrete frígio que usava quando saía à noite e só lhe faltava uma réstia de sininhos para ficar igual ao Pai Natal. Pelo menos uma vez por semana ficava com uma pega, como ele lhes chamava, das muitas que vendiam amores de emergência em qualquer casa de passe para marinheiros. Quando conheceu Florentino Ariza, a primeira coisa que fez com um certo prazer magistral foi iniciá-lo nos segredos do seu paraíso. Escolhia para ele as pegas que lhe pareciam melhores, discutia com elas o preço e o esquema, e oferecia-se para pagar adiantado com o seu dinheiro o serviço. Mas Florentino Ariza não aceitava: era virgem e não estava disposto a deixar de o ser sem que fosse por amor.

O hotel era um palácio colonial em decadência, com os grandes salões e aposentos de mármore divididos em cubículos de Papelão com furinhos feitos por alfinetes, pois tanto se alugavam para fazer como para ver. Contavam-se histórias de mirones a quem tinham vazado um olho com agulhas de tricotar, de um outro que reconheceu a sua mulher na que estava a espiar, de cavalheiros que entravam disfarçados de rameiras para se aliviarem com os imediatos que se encontravam de passagem, e de outros tantos contratempos entre observadores e observados, que, para Florentino Ariza, só a ideia de chegar perto do quarto era assustadora. Portanto, Lotario Thugut não conseguiu convencê-lo de que vê-lo e deixar-se ver eram requintes de príncipes europeus.

Ao contrário do que a sua corpulência dava a entender, Lotario Thugut tinha uma pilinha de querubim, que parecia um botão de rosa, mas este mal vinha-lhe por bem, pois as pegas mais batidas disputavam-se a sorte de dormirem com ele e os seus berros de degoladas estremeciam os alicerces do palácio, e faziam tremer de espanto os seus fantasmas. Diziam que usava uma pomada feita de veneno de víbora que excitava a sela turca das mulheres, mas ele jurava não ter outros recursos além dos que Deus lhe dera. Costumava dizer, morto de riso: «É só amor.» Foi preciso que passassem muitos anos para Florentino Ariza perceber que talvez o dissesse com razão. Convenceu-se de vez numa altura mais adiantada da sua educação sentimental, ao conhecer um homem que levava uma vida regalada a explorar três mulheres ao mesmo tempo. As três prestavam-lhe contas ao amanhecer, humilhadas aos pés dele para que ele lhes perdoasse as cobranças exíguas e desejando, como única gratificação, que ele se deitasse com a que levasse mais dinheiro. Florentino Ariza pensava que só o terror podia induzir a semelhante indignidade. No entanto, uma das três raparigas surpreendeu-o ao revelar-lhe o contrário.

- Estas coisas - disse-lhe - só se podem fazer por amor.

Não foi tanto pelas suas virtudes de fornicador como pela sua graça pessoal que Lotario Thugut tinha chegado ao ponto de ser um dos clientes mais apreciados do hotel. Florentino Ariza, por ser tão calado e escorregadio, também ganhou o apreço do dono, e na época mais difícil dos seus quebrantos costumava fechar-se a ler versos e folhetins chorosos nos quartinhos sufocantes, onde os seus sonhos iam deixando pelas varandas ninhos de escuras andorinhas, rumores de beijos e bater de asas nos marasmos da sesta. Ao entardecer, quando diminuía o calor, era impossível deixar de ouvir as conversas dos homens que vinham descontrair-se do dia de trabalho nuns amores rápidos. Era assim que Florentino Ariza tomava conhecimento de muitas inconfidências e de alguns segredos de Estado que os clientes importantes e até as autoridades locais confiavam às suas efémeras amantes, sem terem o cuidado de evitar ser ouvidos nos quartos vizinhos. Foi também desta maneira que ficou a saber que a doze milhas marítimas a norte do arquipélago de Sotavento se encontrava afundado desde o século XVI um galeão espanhol carregado com mais de quinhentos mil milhões de pesos em ouro puro e pedras preciosas. A história impressionou-o, mas só tornou a pensar nela alguns meses mais tarde, quando a loucura do seu amor lhe revolveu o espírito na ansiedade de resgatar a fortuna submersa para que Fermina Daza pudesse tomar o seu banho em banheiras de ouro.

Passados vários anos, quando tentava recordar-se como era na realidade a donzela idealizada na alquimia da poesia, não conseguia dissociá-la dos fins de tarde despudorados daqueles tempos. Mesmo quando a espreitava sem ser visto, naqueles dias de ansiedade em que esperava resposta à sua primeira carta e a via transfigurada no esplendor das duas da tarde sob a chuva de flores das amendoeiras, onde era sempre Abril em qualquer altura do ano. Mas, então, o único motivo por que lhe interessava acompanhar Lotario Thugut ao violino no mirante privilegiado que era o coro, consistia em poder ver como ondulava a túnica dela na brisa dos cânticos. Mas o seu próprio desvario acabou por tirar-lhe o prazer, pois a música mística parecia-lhe tão ineficaz para o seu estado de alma que tentava condimentá-la com valsas românticas, e Lotario Thugut viu-se obrigado a despedi-lo do coro. Foi por essa altura que cedeu aos desejos de comer as gardenias que Trânsito Ariza cultivava nos canteiros do pátio, ficando assim a conhecer o sabor de Fermina Daza. Foi também nessa época que encontrou, por mero acaso, num baú da mãe, um frasco de litro da água-de-colónia de contrabando que vendiam os marinheiros da Hamburg American Line e não resistiu à tentação de prová-la para descobrir outros sabores da mulher amada. Continuou a bebê-la até de manhã, embriagando-se de Fermina Daza com goles ardentes, primeiro nas tabernas do cais e depois contemplando o mar no molhe, onde faziam amores de consolação os apaixonados sem tecto, até que sucumbiu à inconsciência. Trânsito Ariza, que o esperara até às seis da manhã com o credo na boca, procurou-o nos cantos mais impensáveis, e passava pouco do meio-dia quando o encontrou a contorcer-se num charco de vómitos fedorentos, numa reentrância da baía onde costumavam ir dar os corpos dos afogados.

Aproveitou a pausa da convalescença para repreender-lhe a passividade com que esperava a resposta à carta. Lembrou-lhe que os fracos não entrariam jamais no reino do amor, que é um reino inclemente e mesquinho, e que as mulheres só se entregam a homens decididos porque esses lhes incutem a segurança tão ansiada para enfrentar a vida. Florentine Ariza talvez tenha assimilado a lição bem de mais. Trânsito Ariza não conseguiu dissimular o sentimento de orgulho, mais concupiscente que maternal, ao vê-lo sair da loja com o fato de algodão preto, o chapéu e o laço lírico no colarinho de celulóide, e perguntou-Ihe a brincar se ia a um funeral. Ele, com as orelhas muito vermelhas, respondeu-lhe: «E quase a mesma coisa.» Ela apercebeu-se de que mal podia respirar de medo, mas que a sua determinação era invencível. Fez-lhe as últimas advertências, deu-lhe a sua bênção e, a rir, prometeu-lhe outro frasco de água-de-colónia para comemorarem juntos a conquista.

Desde que tinha entregue a carta um mês antes, já quebrara várias vezes a promessa de não voltar ao parque, mas tomara todas as precauções para que não o vissem. Tudo continuava na mesma. A lição de leitura sob as árvores terminava por volta das duas da tarde, quando a cidade acordava da sesta, e Fermina Daza ficava a bordar com a tia até diminuir o calor. Florentino Ariza não esperou que a tia entrasse em casa e atravessou a rua com passadas marciais que lhe permitiram superar o desalento dos joelhos. Porém, não se dirigiu a Fermina Daza, mas sim à tia.

- Faça o favor de me deixar por uns instantes a sós com a menina - disse-lhe. - Tenho uma coisa importante para lhe dizer.

- Seu atrevido! - indignou-se a tia. - Não há nada na vida dela que eu não possa ouvir.

- Então não lho digo - disse ele -, mas aviso-a de que será responsável pelas consequências.

Mão era esse o comportamento que Escolástica Daza esperava do noivo ideal, mas levantou-se assustada porque teve pela orimeira vez a surpreendente sensação de que Florentino Ariza falava inspirado pelo Espírito Santo. Por conseguinte, entrou em casa para trocar de agulhas e deixou os dois jovens sozinhos à sombra das amendoeiras do portal.

Na verdade muito pouco era o que Fermina Daza sabia daquele pretendente taciturno que surgira na sua vida como uma andorinha de Inverno e do qual não teria jamais sabido nem sequer o nome se não tivesse sido a assinatura da carta. Desde então averiguara que era filho de pai incógnito e de mãe solteira, trabalhadora e séria, mas irremediavelmente marcada a fogo pelo estigma de um único mau passo juvenil. Informara-se que não era boletineiro, como ela supusera, mas sim um auxiliar bem qualificado, com um futuro promissor, e pensou que tinha sido ele a levar o telegrama ao pai apenas como pretexto para a ver. Essa ideia comoveu-a. Sabia também que era um dos músicos do coro, e ainda que nunca se tivesse atrevido a levantar os olhos, durante a missa, para se certificar, certo domingo teve a revelação de que enquanto os outros instrumentos tocavam para todos, o violino tocava só para ela. Não era o tipo de homem que ela teria escolhido. Os seus óculos de enjeitado, a postura clerical, os seus misteriosos recursos tinham-lhe suscitado uma curiosidade a que era difícil resistir, mas nunca imaginara que a curiosidade fosse mais uma entre tantas outras ciladas do amor.

Nem ela conseguia explicar a si mesma por que razão aceitara a carta. Não se recriminava, mas o compromisso cada vez mais premente de responder tornara-se num estorvo para a sua vida. Cada palavra do pai, cada olhar casual, os gestos mais triviais pareciam-lhe pejados de armadilhas para descobrir o seu segredo. Andava tão alarmada que evitava falar à mesa com receio de que um descuido a pudesse trair, e até se tornou evasiva com a tia Escolástica, apesar desta partilhar da sua ansiedade reprimida como se fosse sua. Fechava-se na casa de banho a qualquer hora, sem necessidade, e voltava a ler a carta na tentativa de descobrir um código secreto, alguma fórmula mágica escondida entre as trezentas e catorze letras das suas cinquenta e oito palavras, na esperança de que dissessem mais do que diziam. Mas não encontrou mais nada além do que tinha compreendido na primeira leitura, quando correu a fechar-se na casa de banho com o coração enlouquecido e rasgou o sobrescrito na ilusão de que fosse uma carta longa e febril, dando apenas com um bilhete perfumado cuja determinação a assustou.

A princípio não se tinha dado conta de que estava obrigada a dar uma resposta, mas a carta era tão explícita que não havia maneira de evitá-la. Entretanto, atormentada pelas dúvidas, surpreendeu-se a pensar em Florentino Ariza com mais frequência e maior interesse do que queria permitir-se, chegando mesmo a interrogar-se, apoquentada, por que razão não estaria ele no parque à hora do costume, sem se lembrar de que fora ela quem lhe pedira para não voltar enquanto ela pensava na resposta. Assim acabou a pensar nele como nunca imaginara que se poderia pensar em alguém, pressentindo-o onde não estava, desejando-o onde não podia estar, acordando de repente com a sensação física de que ele a contemplava na escuridão enquanto ela dormia, de modo que na tarde em que ouviu os seus passos resolutos nas folhas amarelecidas do parque custou-lhe convencer-se de que não se tratava de outra partida da sua fantasia. Mas quando ele lhe exigiu a resposta com uma autoridade que não tinha nada a ver com a sua languidez, conseguiu sobrepor-se ao espanto e decidiu refugiar-se na verdade: não sabia o que lhe responder. Porém, Florentino Ariza não metera o barco ao mar para se ficar pelo caminho.

- Se aceitou a carta - disse-lhe - é falta de educação não responder.

Esse foi o fim do labirinto. Fermina Daza, senhora de si, desculpou-se pela demora e deu-lhe a sua palavra de que teria uma resposta antes do fim das férias. Cumpriu. Na última sexta-feira de Fevereiro, três dias antes da reabertura dos colégios, a tia Escolástica foi ao telégrafo perguntar quanto custava um telegrama para a povoação de Piedras de Moler, que nem sequer constava da lista, e consentiu ser atendida por Florentino Ariza como se nunca se tivessem visto, mas, ao sair, fingiu esquecer sobre o balcão um breviário encadernado em pele de lagarto, dentro do qual estava o sobrescrito de papel de linho com vinhetas douradas. Perturbado pela felicidade, Florentino

Ariza passou o resto da tarde a comer rosas e a ler a carta, ilrndo letra por letra uma e outra vez e quanto mais ha mais rosas havia comido que a mãe teve de segura-lo como se fosse um vitelo para o fazer engolir uma poção de óleo de rícino.

Rosas ia comendo, e à meia-noite já a tinha lido tanto e tantas

rosas havia comido que a mãe teve de segurá-lo como se fosse um vitelo para o fazer engolir uma poção de óleo de rícino.

Foi um ano de namoro encarniçado. Nem ele nem ela viviam para mais nada que não fosse pensar no outro, sonhar com o outro esperar as cartas com a mesma ansiedade com que as respondiam. Nem naquela Primavera delirante nem no ano seguinte tiveram oportunidade de se falarem de viva voz. Mais ainda: desde que se viram pela primeira vez até ao momento em que ele reiterou a sua determinação meio século mais tarde, nunca tinham tido a possibilidade de se encontrarem a sós nem de falarem do seu amor. Mas, nos primeiros três meses, não passou um dia em que não se escrevessem, e a certa altura até duas vezes por dia, até que a tia Escolástica se assustou com a voracidade da fogueira que ela própria tinha ajudado a atear.

Depois da primeira carta, que levou ao telégrafo com uma sombra de vingança contra a sua própria sorte, que permitira a troca de mensagens quase diárias em encontros de rua que pareciam acidentais, mas não teve coragem para patrocinar uma conversa, por banal e momentânea que fosse. No entanto, ao fim de três meses, compreendeu que a sobrinha não estava à mercê de um capricho juvenil como lhe parecera no princípio, mas que a sua própria vida estava ameaçada por aquele incêndio de amor. À verdade era que Escolástica Daza não tinha outro meio de subsistência do que a caridade do irmão e sabia que o seu carácter tirânico jamais lhe perdoaria semelhante ultraje à sua confiança. Mas no momento da decisão final não teve forças para causar à sobrinha a mesma infelicidade irreparável com que ela teve de viver desde a juventude e autorizou-a a utilizar um recurso que lhe deixava uma ilusão de inocência. Foi um método muito simples: Fermina Daza colocava a sua carta num esconderijo qualquer do percurso diário entre a casa e a escola, indicando a Florentino Ariza nessa mesma carta, onde esperava encontrar a resposta. Florentino Ariza fazia o mesmo. Desse modo os conflitos de consciência da tia Escolástica foram transferidos, no resto do ano, para os baptistérios das igrejas, os buracos das árvores, as gretas nas fortalezas coloniais em ruínas. Às vezes encontravam as cartas empapadas pela chuva, enlameadas, amarrotadas pela adversidade, perdendo-se algumas por diversas razões, mas sempre encontravam maneira de reatar o contacto.

Florentine Ariza escrevia todas as noites sem se dar tréguas, envenenando-se letra por letra com o fumo das candeias a óleo de palma na parte de trás da loja e as suas cartas tornavam-se cada vez mais extensas e lunáticas à medida que se esforçava por imitar os seus poetas preferidos da Biblioteca Popular, que nessa época já atingia os oitenta volumes. A mãe, que com tanto ardor o tinha incitado a comprazer-se no sofrimento, começou a recear pela saúde dele. «Vais gastar os miolos», gritava-lhe do quarto ao ouvir cantar os primeiros galos. «Não há mulher que mereça tanto.» Pois não se lembrava de ter conhecido ninguém em tal estado de perdição. Mas ele não ligava. Às vezes chegava ao emprego a dormir, com os cabelos desgrenhados pelo amor, depois de ter deixado a carta no esconderijo previsto para que Fermina Daza a encontrasse ao passar por lá a caminho do colégio. Ela, por sua vez, sujeita à vigilância do pai e ao policiamento vicioso das freiras, mal conseguia acabar meia página de caderno escolar fechada na casa de banho ou fingindo tomar apontamentos nas aulas. Mas não só devido às pressas e sobressaltos mas também pelo seu carácter, as cartas dela iludiam qualquer referência sentimental e limitavam-se a contar incidentes da sua vida quotidiana no estilo leve de um diário de bordo. Eram cartas de diversão, destinadas a manter o fogo vivo mas sem lá meter as mãos, enquanto que Florentino Ariza se incendiava em cada linha. Ansioso por contagiá-la com a sua própria loucura, enviava-lhe versos de miniaturista gravados com a ponta de um alfinete em pétalas de camélias. Foi ele e não ela quem teve a audácia de meter uma madeixa de cabelo dentro de uma das cartas, sem nunca receber a resposta ansiada, que era uma pequena meada completa da trança de Fermina Daza. Pelo menos conseguiu que desse mais um passo, porque foi a partir dessa altura que ela lhe começou a enviar nervuras de folhas secas entre as páginas dos dicionários, asas de borboletas, penas de pássaros mágicos, e, pelo seu aniversário, ofereceu-lhe um centímetro quadrado do hábito de São Pedro Claver, dos que se vendiam nesses tempos, às escondidas, a um preço exorbitante para uma colegial da sua idade. Certa noite, sem qualquer aviso, Fermina Daza acordou assustada por uma serenata de uma valsa só em solo de violino. Fê-la estremecer a clarividência de que cada nota era uma acção de graças pelas pétalas dos seus herbários, pelos momentos roubados à Aritmética para escrever as cartas, pelo medo dos exames em que pensava mais nele do que nas Ciências Naturais, mas não se atreveu a acreditar que Florentino Ariza fosse capaz de tamanha imprudência.

Na manhã seguinte, durante o pequeno-almoço, Lorenzo Daza não conseguia resistir à curiosidade. Em primeiro lugar, porque não sabia o significado de nenhuma peça em linguagem de serenatas e, em segundo, porque, apesar da atenção com que a escutou, não tinha conseguido perceber em que casa fora. A tia Escolástica, com um sangue-frio que devolveu a alma à sobrinha, disse que tinha visto através das cortinas do quarto que o violinista solitário estava do outro lado do parque e adiantou que, em todo o caso, uma peça única era um aviso de rompimento. Na carta desse dia, Florentino Ariza confirmou ter sido ele quem fizera a serenata e que fora ele quem compusera a valsa, à qual dera o nome que Fermina Daza tinha no seu coração: A Deusa Coroada. Não voltou a tocá-la no parque, mas sim, em noites de lua cheia, em sítios escolhidos de propósito para que ela o escutasse do quarto, sem se assustar. Um dos locais preferidos era o cemitério dos pobres, exposto ao sol e à chuva numa colina miserável onde dormiam os galináceos e onde a música ganhava ressonâncias sobrenaturais. Posteriormente, aprendeu a conhecer a direcção dos ventos, e assim tinha a certeza de que a sua voz chegava onde devia.

Em Agosto desse ano, uma nova guerra civil das muitas que assolavam o país há mais de meio século ameaçou generalizar-se e o Governo impôs a lei marcial e o toque de recolher às seis da tarde nos estados do litoral caraíba. Ainda que já tivesse havido vários distúrbios e que a tropa cometesse todo o tipo de abusos de autoridade, Florentino Ariza continuava tão alheado que nem se apercebia do estado das coisas e uma patrulha militar encontrou-o numa madrugada a perturbar a castidade dos mortos com as suas provocações amorosas. Escapou por milagre a uma execução sumária, acusado de ser um espião que enviava as suas mensagens em clave de sol para os navios dos liberais que rondavam pelas águas vizinhas.

- Mas qual espião qual nada, cum caralho! - disse Florentine Ariza. - Eu não passo de um pobre apaixonado.

Dormiu três noites, acorrentado pelos tornozelos, nos calabouços da guarnição local. Mas quando o soltaram sentiu-se defraudado pela brevidade do cativeiro, e ainda nos tempos da sua velhice, quando muitas outras guerras se lhe confundiam na memória, continuava a pensar que era o único homem da cidade e, talvez do país, que tinha arrastado grilhões de três quilos por uma causa de amor.

Tinham-se passado quase dois anos de correspondência frenética quando Florentino Ariza, numa carta de um só parágrafo, fez formalmente a proposta de casamento a Fermina Daza. Nos seis meses que a antecederam, tinha-lhe enviado uma camélia branca em diversas ocasiões, mas ela devolvia-lha na carta seguinte, para que ele soubesse que estava disposta a continuar a escrever-lhe, mas sem a gravidade de um compromisso. A verdade é que sempre encarara as idas e vindas da camélia como um galanteio de namorados sem nunca lhe passar pela cabeça que o devia tomar como uma encruzilhada do seu destino. Mas quando chegou a proposta formal sentiu-se ferida pelo primeiro arranhão da morte. Em pânico, correu a contar à tia Escolástica, que assumiu a consulta com a valentia e a lucidez que não tivera aos vinte anos quando se viu forçada a decidir a sua própria sorte.

- Responde-lhe que sim - disse-lhe -, mesmo que estejas morta de medo, mesmo que te venhas a arrepender, porque, de qualquer maneira, vais-te arrepender durante toda a vida se lhe responderes que não.

No entanto, Fermina Daza estava tão confusa que pediu um prazo para pensar. Pediu primeiro um mês e depois outro e outro ainda e, quando passara o quarto mês sem resposta, tornou a receber a camélia branca, mas, ao contrário das outras vezes, não vinha sozinha dentro do sobrescrito, e sim com a notificação peremptória de que essa era a última: ou agora ou nunca. Dessa feita foi Florentino Ariza quem viu o rosto da morte nessa mesma tarde ao receber um sobrescrito com uma folha de papel arrancada pela margem a um caderno escolar

com a resposta, escrita a lápis numa só linha: «Está bem, caso-me consigo se me prometer que não me obrigará a comer beringelas.»

Florentino Ariza não estava preparado para essa resposta, mas a mãe estava-o. Desde que ele lhe falou pela primeira vez da sua intenção de se casar, seis meses antes. Trânsito Ariza tinha iniciado as diligências necessárias para alugar a casa toda, que, até então, compartilhava com mais duas famílias. Era um edifício público do séc. XVI, de dois andares, onde funcionou o Monopólio do Tabaco, sob o domínio espanhol, e cujos proprietários, arruinados, tiveram de alugar aos pedaços por falta de recursos para o manter. Tinha uma parte que dava para a rua, onde funcionara a secção de expedição, uma outra ao fundo de um pátio calcetado onde estivera a fábrica e uma cavalariça muito grande, que os actuais inquilinos utilizavam para lavar a roupa e pô-la a secar. Trânsito Ariza ocupava a primeira parte, que era a que melhor servia e a que se encontrava mais conservada, mas também era a mais pequena. Na antiga secção de expedição estava a loja, com um portão que dava para a rua e, ao lado, o antigo armazém, que tinha uma clarabóia como única ventilação, onde dormia Trânsito Ariza. A parte de trás da loja era na metade da sala, dividida por um biombo de madeira. Tinha uma mesa com quatro cadeiras que servia para comer e escrever e era aí que Florentino Ariza pendurava a rede quando a manhã não o surpreendia a escrever. Era um espaço que chegava para os dois mas insuficiente para mais uma pessoa, e ainda menos para uma menina do Colégio da Apresentação da Virgem Santíssima, cujo pai restaurara uma casa em ruínas até a deixar como nova, enquanto as famílias com sete títulos se deitavam com medo que os telhados das mansões lhes caíssem em cima durante o sono. De modo que Trânsito Ariza conseguira que o proprietário lhe permitisse ocupar também a galeria do pátio, com a condição de manter a casa em bom estado durante cinco anos.

Tinha recursos para isso. Além dos proventos que lhe deixavam a loja e as ligaduras hemostáticas, que lhe teriam chegado para a vida modesta que levava, multiplicara as economias emprestando-as a uma clientela de novos pobres envergonhados que aceitavam os seus juros exagerados por causa da sua discrição. Senhoras com ares de rainhas desciam das carruagens à porta da loja de miudezas, sem amas nem criados incómodos, e fingindo comprar rendas holandesas e fitas de debruar, empenhavam entre dois soluços os últimos ouropéis do seu paraíso perdido. Trânsito Ariza livrava-as de apuros com tanta consideração pela sua estirpe, que muitas saíam mais agradecidas pelo respeito que pelo favor. Em menos de dez anos conhecia como se fossem suas as jóias tantas vezes resgatadas e outras tantas empenhadas com lágrimas, e os lucros convertidos em ouro de lei estavam enterrados numa bilha de barro debaixo da cama, quando o filho tomou a decisão de se casar. Então fez as contas e não só descobriu que podia fazer o negócio de manter de pé a casa alheia durante cinco anos como ainda que, com a mesma astúcia e um pouco mais de sorte, talvez a pudesse comprar antes de morrer para os doze netos que desejava ter. Florentine Ariza, por seu lado, tinha sido nomeado, interinamente, primeiro-ajudante do telégrafo, e Lotario Thugut queria deixá-lo como chefe de repartição quando se fosse embora para ir dirigir a Escola de Telegrafia e Magnetismo, prevista para o ano seguinte.

Desta forma estava resolvido o lado prático do casamento. No entanto, Trânsito Ariza achou que seriam prudentes duas últimas condições. A primeira, averiguar quem era na verdade Lorenzo Daza, cujo sotaque não deixava qualquer dúvida sobre a sua origem, mas de cuja identidade e meio de vida ninguém sabia nada ao certo. A segunda, que o noivado fosse longo para que os noivos se pudessem conhecer bem através do trato pessoal e que se mantivesse a mais estrita reserva até ambos estarem bem certos dos seus sentimentos. Sugeriu que esperassem até a guerra acabar. Florentine Ariza concordou com o segredo absoluto, tanto pelas razões apresentadas pela mãe como pelo hermetismo que lhe era peculiar. Também concordou com a longa duração do noivado, mas a data aprazada pareceu-lhe irreal, já que em meio século de vida independente o país não tinha passado um só dia de paz civil.

- Ficaremos velhos de tanto esperar - disse.

O padrinho dele, o homeopata, que por acaso participava na conversa, não achou que as guerras fossem uma inconveniência. Acreditava que não passavam de arrufos de pobres subjuados como bois pelos senhores da terra contra soldados descalços subjugados pelo Governo.

- A guerra está nos montes. Desde que me conheço que nas cidades não nos matam com tiros mas sim com decretos.

Em todo o caso, os pormenores do noivado foram resolvidos nas cartas da semana seguinte. Fermina Daza, aconselhada pela tia Escolástica, aceitou o prazo de dois anos e o sigilo absoluto, e sugeriu que Florentine Ariza pedisse a sua mão quando ela acabasse a escola secundária nas férias de Natal. Na altura devida combinariam o modo de formalizar o compromisso de acordo com o grau de aceitação que ela conseguisse obter do pai. Entretanto, continuaram a escrever-se com o mesmo ardor e a mesma frequência, mas sem os sobressaltos de antes, e as cartas começaram a manifestar um tom familiar que já parecia de esposos. Nada perturbava os seus sonhos.

A vida de Florentine Ariza modificara-se. O amor correspondido tinha-lhe dado uma segurança e uma força que nunca conhecera e foi tão competente no seu trabalho que Lotario Thugut conseguiu sem esforço que o nomeassem seu ajudante efectivo. Nessa altura o projecto da Escola de Telegrafia e Magnetismo tinha fracassado e o alemão consagrou o seu tempo livre à única coisa que de facto gostava: ir para o porto tocar acordeão e beber cerveja com os marinheiros, indo tudo acabar na casa de passe. Passou-se muito tempo até Florentino Ariza se dar conta de que a influência de Lotario Thugut naquele sítio de prazer se devia ao facto de que ele acabara por se tornar dono do estabelecimento, além de empresário das pegas do porto. Tinha-o comprado a pouco e pouco, com as economias feitas ao longo de muitos anos, mas quem dava a cara por ele era um homenzinho magro e deformado, de cabelo cortado à escovinha e um coração tão manso que ninguém compreendia como podia ser tão bom gerente. Mas era-o. Pelo menos assim parecia a Florentino Ariza quando o gerente lhe disse que dispunha de um quarto permanente no hotel, não só para resolver os seus problemas do baixo-ventre, quando se decidisse a tê-los, mas também para que pudesse dispor de um local mais tranquilo para as suas leituras e cartas de amor. De modo que enquanto decorriam os longos meses que faltavam para a formalização do compromisso passou mais tempo aí do que no escritório e em casa, havendo mesmo alturas em que Trânsito Ariza só o via quando ia mudar de roupa.

A leitura converteu-se para ele num vício insaciável. Desde que o ensinara a ler que a mãe lhe comprava livros ilustrados de autores nórdicos, que eram vendidos como histórias infantis, mas que na verdade eram as mais cruéis e perversas que se podiam ler em qualquer idade. Florentino Ariza aos cinco anos já os recitava de cor, tanto nas aulas como nos saraus da escola, mas a familiaridade com eles não lhe aliviou o terror. Pelo contrário, aumentava-o. Daí que o salto para a poesia foi como uma bonança. Já na puberdade consumira, por ordem de aparecimento, todos os volumes da Biblioteca Popular que Trânsito Ariza lhe comprava nos livreiros de ocasião do Portal dos Escrivães, que tinham de tudo, desde Homero ao menos meritório dos poetas locais. Mas ele não fazia distinções: lia o volume que chegasse, como uma ordem da sina, e não lhe chegaram todos os anos de leituras para ficar a saber o que era bom e o que não o era no muito que tinha lido. A única coisa que não lhe levantava problemas era que entre prosa e versos preferia os versos, e, nestes, os de amor, que decorava, ainda que sem intenção, a partir da segunda leitura, o que lhe era tanto mais fácil quanto melhor fosse a rima e a medida, e maior o sofrimento.

Esta foi a fonte originária das primeiras cartas para Fermina Daza onde apareciam tiradas completas e sem condimentos dos românticos espanhóis, e assim foi até que a vida real o obrigou a preocupar-se com assuntos mais terrenos do que as dores de coração. Já nesses tempos tinha avançado mais um passo nos folhetins trágicos e noutras prosas ainda mais profanas desses anos. Tinha aprendido a chorar com a mãe quando ela lia os poetas locais que eram vendidos nas praças e pelas portas em folhetos de dois centavos cada. Mas simultaneamente era capaz de recitar a mais selecta poesia castelhana do Século de Ouro. De uma maneira geral lia tudo o que lhe viesse parar às mãos e pela ordem em que lhe aparecia, até ao extremo de, muito depois daqueles penosos anos do seu primeiro amor, quando já não era jovem, vir a ler da primeira à última página os vinte volumes do Tesouro da Juventude, o catálogo completo dos clássicos dos Irmãos Garnier, traduzidos, e as obras mais fáceis publicadas por Vicente Blasco Ibánez na Colecção Prometeu.

Em todo o caso, as aventuras da sua mocidade na casa de oasse não se reduziram à leitura e à redacção de cartas febris, nois também o iniciaram nos segredos do amor sem amor. A vida naquela casa começava depois do meio-dia, quando as negas suas amigas se levantavam como vieram ao mundo, de modo que quando Florentino Ariza chegava do emprego dava com um palácio povoado por ninfas em pêlo que comentavam aos gritos os segredos da cidade, conhecidos devido às inconfidências dos próprios protagonistas. Muitas exibiam na sua nudez as marcas do passado: cicatrizes de punhaladas no ventre, ferimentos de balas, sulcos de facadas de amor, costuras de cesarianas feitas por carniceiros. Algumas mandavam levar-lhes durante o dia os filhos mais pequenos, frutos infelizes de despeites ou descuidos juvenis, e tiravam-lhes as roupas mal entravam para que não se sentissem diferentes no paraíso da nudez. Cada qual cozinhava a sua comida e ninguém comia melhor do que Florentino Ariza, quando o convidavam, porque escolhia o melhor de cada uma. Era uma festa diária que durava até ao entardecer, quando, nuas, desfilavam cantarolando para as casas de banho, pediam emprestado o sabonete, a escova de dentes, a tesoura, cortavam o cabelo umas às outras, vestiam-se com as roupas que trocavam entre si, pintalgavam-se como palhaças lúgubres, e saíam à caça das primeiras presas da noite. A partir de então a vida da casa tornava-se impessoal, desumanizada e era impossível partilhar dela sem pagar.

Não existia lugar onde Florentino Ariza se sentisse melhor depois de ter conhecido Fermina Daza, porque era o único onde não se sentia sozinho. Mais ainda: acabou por ser o único onde se sentia com ela. Seria talvez pelos mesmos motivos que aí vivia uma mulher de idade, elegante, com uma bela cabeça prateada, que não participava da vida natural das despidas e por quem estas manifestavam um respeito sacramental. Um noivo prematuro levara-a para ali quando era jovem e depois de se aproveitar dela durante algum tempo abandonou-a ao seu destino. No entanto, apesar do seu estigma, conseguiu fazer um bom casamento. Já muito mais velha, quando ficou sozinha, os dois filhos e as três filhas queriam que ela lhes desse a alegria de ir viver com eles, mas a ela não lhe ocorreu outro lugar mais digno para viver do que aquela casa de galdérias meigas. O seu quarto permanente era toda a sua casa, o que a identificou imediatamente com Florentino Ariza, de quem dizia que chegaria a ser um sábio conhecido em todo o mundo, pois era capaz de enriquecer a sua alma com a leitura no paraíso da luxúria. Florentino Ariza, pelo seu lado, chegou a ter-lhe tanto afecto que a ajudava a fazer as compras no mercado e costumava passar algumas tardes a conversar com ela. Achava-a uma mulher sábia no amor, pois deu-lhe muitos esclarecimentos sobre o seu, sem que ele tivesse de lhe revelar o seu segredo.

Se antes de conhecer o amor de Fermina Daza não tinha caído em tantas tentações que tivera à mão, muito menos o faria sendo ela já a sua noiva oficial. Florentino Ariza convivia, pois, com as raparigas, partilhava das suas alegrias e misérias, mas nem a ele nem a elas lhes passava pela cabeça ir mais longe. Um imprevisto demonstrou o rigor da sua determinação. Certo dia, às seis da tarde, quando as raparigas se estavam a vestir para receber os clientes da noite, entrou no quarto dele a mulher da limpeza daquele andar: uma jovem, mas envelhecida e macilenta, como uma penitente vestida entre a glória da nudez. Todos os dias a via sem sentir que ela o via: andava pelos quartos com a vassoura e um pano especial para apanhar do chão os preservativos usados. Entrou no cubículo onde Florentino Ariza se encontrava a ler, como sempre, e como sempre varreu com todo o cuidado para não o incomodar. Subitamente, passou perto da cama e ele sentiu a sua mão morna e terna no ventre, sentiu-a procurá-lo, sentiu-a encontrá-lo, sentiu-a desapertar-lhe os botões enquanto a respiração dela ia enchendo o quarto. Ele fingiu ler até que não pôde mais e teve que esquivar o corpo.

Ela assustou-se, pois a primeira advertência que lhe fizeram para lhe darem emprego como mulher da limpeza foi que não tentasse deitar-se com os clientes. Não precisavam de lho dizer porque ela era das que pensavam que a prostituição não consiste em deitar-se por dinheiro, mas sim deitar-se com desconhecidos. Tinha dois filhos, cada um de um marido diferente, não porque fossem aventuras casuais mas sim porque não tinha conseguido amar alguém que voltasse depois da terceira vez.

Tinha sido, até então, uma mulher sem urgências, preparada pela natureza para esperar sem desesperar, mas a vida daquela casa era mais forte do que as suas virtudes. Começava a trabalhar às seis da tarde e passava a noite inteira de quarto em quarto, a varrê-los com quatro vassouradas, a apanhar os preservativos, a mudar os lençóis. Não era fácil imaginar as coisas que os homens deixavam depois do amor. Deixavam vómitos e lágrimas, o que lhe parecia compreensível, mas também deixavam muitos enigmas da intimidade: charcos de sangue, montes de excrementos, olhos de vidro, relógios de ouro, dentaduras postiças, relicários com caracóis dourados, cartas de amor, de negócios, de pêsames: cartas de tudo. Alguns vinham buscar às coisas perdidas, mas a maioria delas ficava ali, e Lotario Thugut guardava-as à chave, pensando que mais tarde ou mais cedo aquele palácio caído em desgraça, com os milhares de objectos pessoais esquecidos, seria um museu do amor.

O trabalho era duro e mal pago, mas ela fazia-o bem. O que não conseguia suportar eram os soluços, os lamentos, os queixumes das molas das camas que se lhe iam sedimentando no sangue com tanto amor e tanta dor, que de manhã não conseguia suportar a ansiedade de se deitar com o primeiro mendigo que encontrasse na rua ou com um bêbado solitário que lhe fizesse o favor sem mais pretensões nem perguntas. O aparecimento de um homem sem mulher como Florentino Ariza, jovem e limpo, foi para ela uma dádiva do céu, porque desde o primeiro momento que se deu conta que ele era igual a ela: um carente de amor. Mas ele foi insensível aos seus avanços. Mantivera-se virgem para Fermina Daza e não havia força nem razão deste mundo que o fizessem afastar-se do seu propósito.

Essa era a sua vida quatro meses antes da data prevista para a sua formalização do compromisso, quando Lorenzo Daza apareceu às sete da manhã no telégrafo à procura dele. Como ainda não tinha chegado, ficou à espera sentado no banco até às oito e dez, a tirar de um dedo e a pô-lo noutro o pesado anel de ouro, coroado por uma opala nobre, e quando o viu entrar reconheceu-o logo como o empregado do telégrafo e pegou-lhe pelo braço.

- Venha comigo, rapazinho - disse-lhe. - Você e eu temos que falar cinco minutos, de homem para homem.

^Florentine Ariza, verde como um cadáver, deixou-se levar. Não estava preparado para esse encontro porque Fermina Daza não tinha tido nem oportunidade nem maneira de o prevenir. O caso era que no sábado anterior, a Irmã Franca de Ia Luz, superiora do Colégio da Apresentação da Santíssima Virgem, tinha entrado na aula de Noções de Cosmogonia com o sigilo de uma serpente e ao espiar as alunas por cima do ombro, descobriu que Fermina Daza fingia tomar apontamentos no caderno quando estava na realidade a escrever uma carta de amor. A infracção, de acordo com o regulamento do colégio, era motivo para expulsão. Chamado de urgência à reitoria, Lorenzo Daza descobriu a goteira por onde ia escorrendo o seu regime de ferro. Fermina Daza, com a sua integridade congénita, admitiu a culpa da carta, mas negou-se a revelar a identidade do noivo e tornou a negar diante do Tribunal de Ordem, que, por esse motivo, confirmou o veredicto de expulsão. Não obstante, o pai passou uma busca ao quarto que até então tinha sido um santuário inviolável, e num fundo falso do baú descobriu os pacotes de três anos de cartas, escondidas com tanto amor como tinham sido escritas. A assinatura era inequívoca, mas Lorenzo Daza não pôde acreditar, nem então nem nunca, que a filha não soubesse mais acerca do seu noivo oculto a não ser que tinha o ofício de telegrafista e gostava de violino.

Convencido de que uma relação tão difícil só era compreensível com a cumplicidade da irmã, não lhe concedeu a esta nem a graça de uma desculpa e embarcou-a, sem apelo, na escuna de San Juan de Ia Ciénaga. Fermina Daza nunca se recompôs da sua última recordação, na tarde em que se despediu dela no portão, a arder em febre no seu hábito pardo, magra e cinzenta, e a viu desaparecer entre os chuviscos do parque com a única que lhe restava na vida: a sua trouxa de solteira e o dinheiro para sobreviver durante um mês, embrulhado num lenço por dentro do punho. Assim que se libertou da autoridade do pai, mandou-a procurar por todas as províncias das Caraíbas, perguntando por ela a todos quantos pudessem conhecê-la e só encontrou notícias do seu rastro quase trinta anos depois, ao receber uma carta que tinha passado por muitas mãos durante bastante tempo, onde lhe informavam que morrera no lazareto de Agua de Dios. Lorenzo Daza não previu a ferocidade com que a filha reagiria ao castigo injusto de que fora vítima a tia Escolástica a quem sempre identificara com a

mãe que mal recordava. Trancou-se no quarto sem comer nem beber e quando ele conseguiu, por fim, que abrisse a porta, nrimeiro com ameaças e depois com súplicas mal disfarçadas, viu-se diante de uma pantera ferida que nunca mais voltaria a ter quinze anos.

Tentou conquistá-la com todo o tipo de mimos. Tentou que ela compreendesse que o amor na sua idade era uma ilusão, tentou convencê-la, a bem, a devolver as cartas, a voltar ao colégio pedindo perdão de joelhos, e deu-lhe a sua palavra de honra de que seria o primeiro a ajudá-la a ser feliz com um pretendente digno. Mas era o mesmo que falar para uma parede. Derrotado, acabou por perder as estribeiras durante o almoço de segunda-feira e, enquanto se engasgava com impropérios e blasfémias à beira da comoção, ela colocou a faca da carne no pescoço, sem dramatismos mas com o pulso firme, e com uns olhos atónitos, que ele não se atreveu a desafiar. Foi então que decidiu aceitar o risco de falar cinco minutos, de homem para homem, com esse forasteiro nefasto que não se lembrava de ter visto nunca e que em tão má hora se havia atravessado na sua vida. Por mero hábito pegou no revólver antes de sair, mas teve o cuidado de o levar escondido sob a camisa.

Florentine Ariza ainda não tinha recuperado o fôlego quando Lorenzo Daza o levou pelo braço pela Praça da Catedral até à galeria de arcos do Café da Paróquia e o convidou a sentar-se na esplanada. A essa hora não havia mais clientes e uma matrona negra esfregava os ladrilhos do enorme salão com janelas de vidros partidos e cheios de pó, cujas cadeiras ainda estavam de pernas para o ar sobre as mesas de mármore. Florentine Ariza vira ali Lorenzo Daza muitas vezes a jogar e a beber vinho de barril com os asturianos do mercado público, enquanto discutiam em grande gritaria por outras guerras crónicas que não eram as nossas. Muitas vezes, consciente do fatalismo do amor, perguntava-se como decorreria o encontro que mais cedo ou mais tarde teria com ele e que nenhum poder humano haveria de impedir, porque estava desde sempre escrito no destino dos dois. Imaginava-o como uma discussão desigual, não só porque Fermina Daza o tinha prevenido nas cartas quanto ao carácter intempestivo do pai, mas também porque ele próprio se apercebera que os seus olhos pareciam coléricos mesmo até quando se ria às gargalhadas na mesa de jogo. Tudo era um tributo à vulgaridade: a pança vil, a fala enfática, as patilhas de lince, as mãos gordas com o anelar sufocado pelo engaste da opala. O seu único traço enternecedor, que Florentino Ariza reconheceu desde a primeira vez que o viu andar, era que tinha o mesmo andar de gazela da filha. No entanto, quando lhe indicou a cadeira para que se sentasse não o achou tão rude quanto parecia e recuperou o fôlego quando o convidou a tomar um cálice de anis. Florentine Ariza nunca o bebera às oito da manhã, mas aceitou-o agradecido porque estava a precisar urgentemente dele.

Lorenzo Daza, com efeito, não demorou mais do que cinco minutos a expor as suas razões , e fê-lo com uma sinceridade tão desarmante que confundiu Florentine Ariza de vez. Ao morrer-lhe a esposa, tinha-se imposto o propósito único de fazer da filha uma grande dama. O caminho era longo e incerto para um negociante de mulas que não sabia nem ler nem escrever, mas cuja reputação de ladrão de gado não estava tão provada quanto isso, mas muito difundida por toda a província de San Juan de Ia Ciénaga. Acendeu um charuto de arrieiro e lamentou-se: «A única coisa pior do que não se ter saúde é ter má fama.» No entanto, disse que o verdadeiro segredo da sua fortuna era que nenhuma das suas mulas trabalhava tanto nem com tanta determinação como ele próprio, mesmo nos tempos mais difíceis das guerras, quando as povoações acordavam no meio de cinzas e de campos devastados. Ainda que a filha não tivesse estado nunca ao corrente da premeditação do seu destino, comportava-se como uma cúmplice entusiasta. Era inteligente e metódica, ao ponto de ter ensinado o pai a ler assim que ela própria aprendeu, e aos doze anos já tinha um conhecimento da realidade que lhe teria bastado para governar a casa sem precisar da tia Escolástica. Suspirou: «É uma mula de ouro!» Quando a filha completou a escola primária, com cinco em todas as disciplinas, e menção honrosa no acto de encerramento, ele deu-se conta que o meio de San Juan de Ia Ciénaga era demasiado pequeno para as suas aspirações. Então vendeu as terras e os animais e mudou-se, com um novo ânimo e setenta mil pesos ouro, para esta cidade em ruínas e com as suas glórias roídas pelas traças, mas onde uma mulher bela e educada à antiga ainda tinha a possibilidade de voltar a nascer de novo com um casamento rico. A irrupção de Florentine Ariza tinha sido um obstáculo imprevisto naquele plano determinado. «De modo que lhe vim fazer uma súplica, disse Lorenzo Daza. Molhou a ponta do charuto na aguardente de anis, deu-lhe uma chupadela sem fumo e concluiu com a voz embargada:

Afaste-se do nosso caminho.

Florentine Ariza tinha-o escutado entre goles de aguardente de anis, e tão absorto estava na revelação do passado de Fermina Daza que nem sequer se perguntou que diria quando tivesse de falar. Mas, chegado o momento, compenetrou-se de que fosse o que fosse que dissesse comprometeria o seu destino.

- O senhor falou com ela? - perguntou.

- Isso não lhe diz respeito - respondeu Lorenzo Daza.

- Pergunto-lho porque me parece que quem tem de decidir é ela.

- Nada disso - disse Lorenzo Daza. - Isto é um assunto de homens e resolve-se entre homens.

O tom tinha-se tornado ameaçador e um cliente de uma mesa próxima voltou-se para os observar. Florentine Ariza falou com a voz mais ténue mas com a determinação mais imperiosa de que foi capaz:

- De todos os modos - disse - não lhe posso dar qualquer resposta sem saber o que ela pensa. Seria uma traição.

Então, Lorenzo Daza encostou-se para trás na cadeira com as pálpebras avermelhadas e húmidas, e o olho esquerdo girou na sua órbita e ficou torcido para fora. Também baixou a voz.

- Não me obrigue a dar-lhe um tiro - disse. Florentino Ariza sentiu que as entranhas se lhe enchiam de

uma espuma fria. Mas a voz não lhe tremeu porque também ele se sentiu iluminado pelo Espírito Santo.

- Dê-mo - disse, com a mão sobre o peito. - Não há maior glória que morrer por amor.

Lorenzo Daza teve de olhá-lo de lado, como os papagaios, para o encontrar com o olho trocido. Não pronunciou as três palavras, pois mais pareceu que as cuspiu sílaba a sílaba:

- Fi-lho-da-pu-ta!

Naquela mesma semana levou a filha para a viagam do esquecimento. Não lhe dando qualquer explicação, irrompeu pelo seu quarto com os bigodes sujos pela ira misturada com o tabaco mastigado e ordenou-lhe que fizesse as malas. Ela perguntou-lhe onde iam ao que ele respondeu: «Para a morte.» Assustada com aquela resposta que se parecia de mais com a verdade, decidiu fazer-lhe frente com a mesma coragem dos dias anteriores, mas ele puxou do cinto com fivela de cobre maciço e deu uma chicotada na mesa que ressoou por toda a casa como o disparo de uma espingarda. Fermina Daza conhecia muito bem até onde podia ir a sua própria força e quando a devia utilizar, de modo que fez uma mala com duas esteiras e uma rede, e meteu em dois grandes baús todas as suas roupas, com a certeza de que esta era uma viagem sem regresso. Antes de se vestir, fechou-se na casa de banho e conseguiu escrever a Florentine Ariza uma breve carta de despedida numa folha arrancada do rolo de papel higiénico. Depois, cortou pela nuca uma trança completa com a tesoura de podar, enrolou-a dentro de um estojo de veludo bordado a fio de ouro e enviou-o juntamente com a carta.

Foi uma viagem de loucos. Só a primeira etapa, numa caravana de arrieiros andinos, durou onze dias, em cima de uma mula, pelas cornijas da serra Nevada, embrutecidos por sóis abertos ou ensopados por chuvas horizontais de Outubro e quase sempre com a respiração petrificada pelo vácuo dormente dos precipícios. No terceiro dia de caminho, uma mula enlouquecida pelas picadas dos tavões despenhou-se com o seu ginete, arrastando atrás de si quantas lhe seguiam e o alarido do homem e dos sete animais atados uns aos outros continuava a ressoar por vales e escarpas, várias horas depois do desastre, e continuou a ressoar durante anos e anos na memória de Fermina Daza. Toda a sua bagagem se despenhou com as mulas, mas no instante de séculos que durou a queda, até se extinguir lá no fundo o grito do pavor, ela não pensou nem no pobre homem morto nem na recua despedaçada, mas sim na desgraça de que a sua própria mula não estivesse também amarrada às outras.

Era a primeira vez que montava, mas o terror e as incontáveis dificuldades da viagem não lhe teriam parecido tão amargas se não fosse a certeza de nunca mais voltar a ver Florentino Ariza nem ter o consolo das suas cartas. Desde o começo da viagem que não voltara a dirigir a palavra ao pai, e este encontrava-se tão perturbado que apenas lhe falava quando era de todo indispensável ou mandava-lhe recados pelos muleteiros. Quando tinham sorte encontravam uma taberna qualquer no meio das veredas, onde serviam refeições campestres que ela se recusava a comer, e alugavam camas de lona entranhadas de suores e urinas rançosas. O que era mais frequente, porém, era passarem a noite em povoados de índios, albergarias públicas ao ar livre, construídas à beira dos caminhos com fiadas de forquilhas e tectos de palma, onde quem quer que chegasse tinha direito a ficar até de manhã. Fermina Daza não conseguiu dormir uma noite completa, suando de medo, sentindo na escuridão a azáfama, dos viajantes sigilosos que amarravam os seus animais nas forquilhas e penduravam as redes onde podiam.

Ao cair da tarde, quando chegavam os primeiros, o lugar era espaçoso e tranquilo, mas pela manhã ficava transformado numa praça de feira, com um monte de redes penduradas a diferentes níveis e anhumas a dormir de cócoras, e a berraria das cabras amarradas e o alvoroço dos galos de luta nas suas cestas de faraós, e a mudez ofegante dos cães monteses ensinados a não ladrar devido aos riscos da guerra. Aquela penúria era familiar a Lorenzo Daza, que tinha feito os seus negócios por aquela região durante metade da sua vida e quase sempre encontrava velhos amigos ao romper do dia. Para a filha, era uma agonia perpétua. O fedor dos carregamentos de peixe salgado, somado ao fastio próprio da saudade, acabaram por estragar-lhe o hábito de comer, e se não enlouqueceu de desespero foi porque sempre encontrou alívio na recordação de Florentino Ariza. Não duvidou que aquela fosse a terra do esquecimento.

Outro terror constante era o da guerra. Desde o princípio da viagem que se falara do perigo de encontrar patrulhas isoladas e os arrieiros tinham-nos instruído sobre as diversas formas de saber a que partido pertenciam para poderem agir de acordo com isso. Era frequente encontrar um grupo de soldados a cavalo sob as ordens de um oficial, que recolhiam os novos recrutas laçando-os como se fossem novilhos numa corrida. Abatida por tantos horrores, Fermina Daza tinha-se esquecido de coisas que lhe pareciam mais lendas do que ameaças de verdade, até que uma noite em que uma patrulha sem filiação conhecida sequestrou dois viajantes da caravana e os enforcou num sino a quilómetro e meio do povoado. Lorenzo Daza não tinha nada a ver com eles, mas mandou-os baixar e deu-lhes sepultura cristã em acção de graças por não ter tido a mesma sorte. Não era para menos. Os assaltantes tinham-no acordado com o cano de uma espingarda encostado à barriga, e um comandante em farrapos com a cara pintada de negro de fumo, iluminando-o com uma lanterna, perguntou-lhe se era liberal ou conservador.

- Nem uma coisa nem outra - disse Lorenzo Daza. - Sou súbdito espanhol.

- Que sorte! - disse o comandante, e despediu-se dele com a mão ao alto. - Viva o rei!

Dois dias depois desceram para o vale luminoso onde ficava a alegre povoação de Valledupar. Havia lutas de galos nos pátios, música de acordeões pelas esquinas, ginetes em cavalos de boa raça, foguetes e sinos. Estavam a montar um castelo de fogo-de-artifício. Fermina Daza nem sequer foi poupada ao festim. Hospedaram-se em casa do tio Lisúnaco Sanchez, irmão da sua mãe, que tinha vindo recebê-los na estrada real, à frente de uma buliçosa cavalgada de parentes juvenis montados nos animais de melhor raça de toda a província e conduziram-nos pelas ruas da povoação no meio da algazarra dos fogos-de-artifício. A casa ficava em plena Praça Grande, ao lado da igreja colonial, várias vezes remendada, e dava mais a impressão de uma feitoria de fazenda com os seus aposentos amplos e sombrios e o corredor a cheirar a garapa quente, dando tudo para um pomar.

Assim que desmontaram, os salões de visita ficaram a transbordar de parentes desconhecidos que fustigavam Fermina Daza com as suas efusões insuportáveis, pois estava impedida de gostar de mais alguém neste mundo, escaldada pela montada, morta de sono e com o estômago vazio, e apenas ansiava por um sítio isolado e tranquilo onde pudesse chorar. A prima, Hildebranda Sanchez, dois anos mais velha do que ela e com essa mesma altivez imperial, foi a única a compreender o seu estado mal a viu pela primeira vez, pois também ela se consumia nas chamas de um amor temerário. Ao anoitecer levou-a para o quarto que preparara para compartilhar com ela e não conseguiu perceber como podia estar viva com as chagas vivas que tinha nas nádegas. Ajudada pela mãe, uma mulher muito doce e tão parecida com o marido como se fossem gémeos, preparou-lhe um banho de assento e aliviou-lhe o ardor com compressas de arnica, enquanto os trovões do castelo de pólvora faziam estremecer os alicerces da casa.

Por volta da meia-noite foram-se embora as visitas, a festa popular escoou-se em vários grupos dispersos, a prima Hildebranda emprestou a Fermina Daza uma camisa de noite de algodão para dormir e ajudou-a a deitar-se numa cama de lençóis limpos e almofadas de penas que lhe infundiram imediatamente um instantâneo sentimento de felicidade. Quando por fim ficaram sozinhas no quarto, fechou a porta com a tranca e tirou de debaixo da esteira da sua cama um sobrescrito lacrado com os emblemas do Telégrafo Nacional. A Fermina Daza bastou-lhe ver a expressão de malícia radiante da prima para que lhe assomasse à memória do coração o perfume pensativo das gardenias brancas, antes de triturar com os dentes o selo de lacre e ficar a chapinhar até de manhã no charco de lágrimas dos onze telegramas proibidos.

Foi então que o soube. Antes de empreender a viagem, Lorenzo Daza tinha cometido o erro de a anunciar por telegrama ao cunhado Lisímaco Sanchez, e este, por sua vez, tinha mandado a notícia à sua vasta e complicada parentela, espalhada por variadíssimos locais e caminhos da província. De maneira que Florentine Ariza não só pôde informar-se do itinerário completo como também tinha podido formar uma grande irmandade de telegrafistas para seguir o rastro de Fermina Daza até ao último povoado do Cabo de Ia Vela. Isso permitiu-lhe manter com ela uma comunicação intensa assim que chegou a Valledupar, onde ficou três meses, até ao fim da viagem em Riohacha, ano e meio depois, quando Lorenzo Daza teve por certo que a filha tinha esquecido finalmente, e decidiu voltar Para casa. Talvez nem mesmo ele estivesse consciente do quanto tinha relaxado a sua vigilância, distraído como estava com as cortesias dos parentes por afinidade, que, ao fim de tantos anos, tinham deposto os seus preconceitos tribais e o receberam de coração aberto como a um dos seus. A visita foi uma reconciliação tardia, ainda que essa não tivesse sido a intenção. Com efeito, a família de Fermina Sanchez tinha-se oposto a todo o custo a que ela se casasse com um imigrante sem origem, falador e rude, que estava em todo o lado de passagem, com um negócio de mulas selvagens que parecia demasiado simples para ser limpo. Lorenzo Daza jogava tudo por tudo, porque aquela que pretendia era a mais apreciada de uma família típica da região: uma cáfila intrincada de mulheres bravas e homens de coração terno e gatilho fácil, perturbados até à demência pelo sentido da honra. No entanto, Fermina Sanchez instalou-se no seu capricho com a determinação cega dos amores contrariados, e casou-se com ele a despeito da família, com tanta pressa e tantos mistérios que pareceu que o não fazia por amor mas para cobrir com o manto do sacramento algum descuido prematuro.

Vinte e cinco anos depois, Lorenzo Daza não se dava conta de que a sua intransigência com os namoricos da filha era uma repetição viciada da sua própria história e queixava-se da sua desgraça aos seus cunhados que se lhe haviam oposto, como estes se tinham queixado outrora perante os seus. Mas o tempo que ele ia perdendo em lamentos ganhava-o a filha em amores. Assim, enquanto ele andava a castrar novilhos e a domesticar mulas nas terras bem-aventuradas dos seus cunhados, ela passeava-se à rédea solta num tropel de primas comandadas por Hildebranda Sanchez, a mais bonita e afável, cuja paixão sem futuro por um homem vinte anos mais velho, casado e com filhos, se conformava com olhares furtivos.

Depois da prolongada permanência em Valledupar prosseguiram viagem pelas ladeiras da serra, através de pradarias floridas e mesetas de sonho, e em todas as localidades foram recebidos como na primeira, com música e foguetes, com novas primas confabuladas e mensagens pontuais nas agências telegráficas. Fermina Daza deu-se conta bem depressa de que não fora a tarde da sua chegada a Valledupar que tinha sido diferente, mas sim que naquela província fértil todos os dias da mana eram vividos como se fossem de festa. Os visitantes ?nrmiam onde a noite os surpreendesse e comiam onde os encontrasse a fome, pois eram casas de portas abertas onde semí,rr havia uma rede pendurada e um cozido de três tipos de rarne a ferver no fogão, para o caso de alguém chegar antesdo telegrama que o anunciava, como acontecia quase sempre. HilHebranda Sanchez acompanhou a prima no resto da viagem, orientando-a com pulso alegre atravésTlos carrascais de sangue até às suas fontes de origem. Fermina Daza reconheceu-se, sentiu-se dona de si pela primeira vez, sentiu-se acompanhada e protegida, com os pulmões dilatados por um ar de liberdade que lhe devolveu o sossego e a vontade de viver. Mesmo nos seus últimos anos havia de evocar aquela viagem, cada vez mais recente na memória, com a lucidez perversa da nostalgia.

Uma noite regressou do seu passeio diário perturbada pela revelação de que não só se podia ser feliz sem amor como também contra o amor. A revelação alarmou-a, porque uma das suas primas surpreendera uma conversa dos pais com Lorenzo Daza, na qual este tinha sugerido a ideia de concertar o casamento da filha com o único herdeiro da fabulosa fortuna de Cleofás Moscote. Fermina Daza conhecia-o. Tinha-o visto a reviravoltear nas praças os seus cavalos perfeitos, com arreios tão ricos que pareciam ornamentos de missa, e era elegante e hábil, e tinha umas pestanas de sonhador que faziam suspirar as pedras, mas ela comparou-o com a sua recordação de Florentine Ariza sentado sob as amendoeiras do parque, pobre e esquálido, com o livro de versos ao colo e não encontrou nenhuma sombra de dúvida no seu coração.

Naqueles dias, Hildebranda Sanchez andava delirante de ilusões depois de visitar uma pitonisa cuja clarividência a deixara deslumbrada. Assustada pelas intenções do pai, também Fermina Daza a foi consultar. As cartas anunciaram-lhe que não havia nenhum obstáculo no seu futuro para um casamento longo e feliz, e aquela previsão fê-la suspirar de alívio, pois não podia conceber que um destino tão venturoso pudesse ser com um homem diferente daquele a quem amava. Exaltada por essa certeza, assumiu então o comando do seu arbítrio. E foi assim que a correspondência telegráfica com Florentino Ariza deixou de ser um concerto de intenções e promessas ilusórias tornando com isso. Era frequente encontrar um grupo de soldados a cavalo sob as ordens de um oficial, que recolhiam os novos recrutas laçando-os como se fossem novilhos numa corrida. Abatida por tantos horrores, Fermina Daza tinha-se esquecido de coisas que lhe pareciam mais lendas do que ameaças de verdade, até que uma noite em que uma patrulha sem filiação conhecida sequestrou dois viajantes da caravana e os enforcou num sino a quilómetro e meio do povoado. Lorenzo Daza não tinha nada a ver com eles, mas mandou-os baixar e deu-lhes sepultura cristã em acção de graças por não ter tido a mesma sorte. Não era para menos. Os assaltantes tinham-no acordado com o cano de uma espingarda encostado à barriga, e um comandante em farrapos com a cara pintada de negro de fumo, iluminando-o com uma lanterna, perguntou-lhe se era liberal ou conservador.

- Nem uma coisa nem outra - disse Lorenzo Daza. - Sou súbdito espanhol.

- Que sorte! - disse o comandante, e despediu-se dele com a mão ao alto. - Viva o rei!

Dois dias depois desceram para o vale luminoso onde ficava a alegre povoação de Valledupar. Havia lutas de galos nos pátios, música de acordeões pelas esquinas, ginetes em cavalos de boa raça, foguetes e sinos. Estavam a montar um castelo de fogo-de-artifício. Fermina Daza nem sequer foi poupada ao festim. Hospedaram-se em casa do tio Lisímaco Sanchez, irmão da sua mãe, que tinha vindo recebê-los na estrada real, à frente de uma buliçosa cavalgada de parentes juvenis montados nos animais de melhor raça de toda a província e conduziram-nos pelas ruas da povoação no meio da algazarra dos fogos-de-artifício. A casa ficava em plena Praça Grande, ao lado da igreja colonial, várias vezes remendada, e dava mais a impressão de uma feitoria de fazenda com os seus aposentos amplos e sombrios e o corredor a cheirar a garapa quente, dando tudo para um pomar.

Assim que desmontaram, os salões de visita ficaram a transbordar de parentes desconhecidos que fustigavam Fermina Daza com as suas efusões insuportáveis, pois estava impedida de gostar de mais alguém neste mundo, escaldada pela montada, morta de sono e com o estômago vazio, e apenas ansiava por um sítio isolado e tranquilo onde pudesse chorar. A prima, Hebranda Sanchez, dois anos mais velha do que ela e com ,a mesma altivez imperial, foi a única a compreender o seu tado mal a viu pela primeira vez, pois também ela se consumia nas chamas de um amor temerário. Ao anoitecer levou-a nara o quarto que preparara para compartilhar com ela e não conseguiu perceber como podia estar viva com as chagas vivas aue tinha nas nádegas. Ajudada pela mãe, uma mulher muito doce e tão parecida com o marido como se fossem gémeos, preparou-lhe um banho de assento e aliviou-lhe o ardor com compressas de arnica, enquanto os trovões do castelo de pólvora faziam estremecer os alicerces da casa.

Por volta da meia-noite foram-se embora as visitas, a festa popular escoou-se em vários grupos dispersos, a prima Hildebranda emprestou a Fermina Daza uma camisa de noite de algodão para dormir e ajudou-a a deitar-se numa cama de lençóis limpos e almofadas de penas que lhe infundiram imediatamente um instantâneo sentimento de felicidade. Quando por fim ficaram sozinhas no quarto, fechou a porta com a tranca e tirou de debaixo da esteira da sua cama um sobrescrito lacrado com os emblemas do Telégrafo Nacional. A Fermina Daza bastou-lhe ver a expressão de malícia radiante da prima para que lhe assomasse à memória do coração o perfume pensativo das gardenias brancas, antes de triturar com os dentes o selo de lacre e ficar a chapinhar até de manhã no charco de lágrimas dos onze telegramas proibidos.

Foi então que o soube. Antes de empreender a viagem, Lorenzo Daza tinha cometido o erro de a anunciar por telegrama ao cunhado Lisímaco Sanchez, e este, por sua vez, tinha mandado a notícia à sua vasta e complicada parentela, espalhada por variadíssimos locais e caminhos da província. De maneira que Florentino Ariza não só pôde informar-se do itinerário completo como também tinha podido formar uma grande irmandade de telegrafistas para seguir o rastro de Fermina Daza até ao último povoado do Cabo de Ia Vela. Isso permitiu-lhe manter com ela uma comunicação intensa assim que chegou a Valledupar, onde ficou três meses, até ao fim da viagem em Riohacha, ano e meio depois, quando Lorenzo Daza teve por certo que a filha tinha esquecido finalmente, e decidiu voltar para casa. Talvez nem mesmo ele estivesse consciente do quanto tinha relaxado a sua vigilância, distraído como estava com as cortesias dos parentes por afinidade, que, ao fim de tantos anos, tinham deposto os seus preconceitos tribais e o receberam de coração aberto como a um dos seus. A visita foi uma reconciliação tardia, ainda que essa não tivesse sido a intenção. Com efeito, a família de Fermina Sanchez tinha-se oposto a todo o custo a que ela se casasse com um imigrante sem origem, falador e rude, que estava em todo o lado de passagem, com um negócio de mulas selvagens que parecia demasiado simples para ser limpo. Lorenzo Daza jogava tudo por tudo, porque aquela que pretendia era a mais apreciada de uma família típica da região: uma cáfila intrincada de mulheres bravas e homens de coração terno e gatilho fácil, perturbados até à demência pelo sentido da honra. No entanto, Fermina Sanchez instalou-se no seu capricho com a determinação cega dos amores contrariados, e casou-se com ele a despeito da família, com tanta pressa e tantos mistérios que pareceu que o não fazia por amor mas para cobrir com o manto do sacramento algum descuido prematuro.

Vinte e cinco anos depois, Lorenzo Daza não se dava conta de que a sua intransigência com os namoricos da filha era uma repetição viciada da sua própria história e queixava-se da sua desgraça aos seus cunhados que se lhe haviam oposto, como estes se tinham queixado outrora perante os seus. Mas o tempo que ele ia perdendo em lamentos ganhava-o a filha em amores. Assim, enquanto ele andava a castrar novilhos e a domesticar mulas nas terras bem-aventuradas dos seus cunhados, ela passeava-se à rédea solta num tropel de primas comandadas por Hildebranda Sanchez, a mais bonita e afável, cuja paixão sem futuro por um homem vinte anos mais velho, casado e com filhos, se conformava com olhares furtivos.

Depois da prolongada permanência em Valledupar prosseguiram viagem pelas ladeiras da serra, através de pradarias floridas e mesetas de sonho, e em todas as localidades foram recebidos como na primeira, com música e foguetes, com novas primas confabuladas e mensagens pontuais nas agências telegráficas. Fermina Daza deu-se conta bem depressa de que não fora a tarde da sua chegada a Valledupar que tinha sido diferente, mas sim que naquela província fértil todos os dias da anã eram vividos como se fossem de festa. Os visitantes forniam onde a noite os surpreendesse e comiam onde os enntrasse a fome, pois eram casas de portas abertas onde semC ré havia uma rede pendurada e um cozido de três tipos de arne a ferver no fogão, para o caso de alguém chegar antes do telegrama que o anunciava, como acontecia quase sempre. Hildebranda Sanchez acompanhou a prima no resto da viagem, orientando-a com pulso alegre através Tios carrascais de sangue até às suas fontes de origem. Fermina Daza reconheceu-se, sentiu-se dona de si pela primeira vez, sentiu-se acompanhada e protegida, com os pulmões dilatados por um ar de liberdade que lhe devolveu o sossego e a vontade de viver. Mesmo nos seus últimos anos havia de evocar aquela viagem, cada vez mais recente na memória, com a lucidez perversa da nostalgia.

Uma noite regressou do seu passeio diário perturbada pela revelação de que não só se podia ser feliz sem amor como também contra o amor. A revelação alarmou-a, porque uma das suas primas surpreendera uma conversa dos pais com Lorenzo Daza, na qual este tinha sugerido a ideia de concertar o casamento da filha com o único herdeiro da fabulosa fortuna de Cleofás Moscote. Fermina Daza conhecia-o. Tinha-o visto a reviravoltear nas praças os seus cavalos perfeitos, com arreios tão ricos que pareciam ornamentos de missa, e era elegante e hábil, e tinha umas pestanas de sonhador que faziam suspirar as pedras, mas ela comparou-o com a sua recordação de Florentino Ariza sentado sob as amendoeiras do parque, pobre e esquálido, com o livro de versos ao colo e não encontrou nenhuma sombra de dúvida no seu coração.

Naqueles dias, Hildebranda Sanchez andava delirante de ilusões depois de visitar uma pitonisa cuja clarividência a deixara deslumbrada. Assustada pelas intenções do pai, também Fermina Daza a foi consultar. As cartas anunciaram-lhe que não havia nenhum obstáculo no seu futuro para um casamento longo e feliz, e aquela previsão fê-la suspirar de alívio, pois não podia conceber que um destino tão venturoso pudesse ser com um homem diferente daquele a quem amava. Exaltada por essa certeza, assumiu então o comando do seu arbítrio. E foi assim que a correspondência telegráfica com Florentino Ariza deixou de ser um concerto de intenções e promessas ilusórias tornando-se metódica e prática, e mais intensa do que nunca. Fixaram datas, combinaram esquemas, empenharam as suas vidas na determinação comum de se casarem sem consultarem ninguém, fosse onde fosse e como quer que fosse, assim que se voltassem a encontrar. Fermina Daza considerava tão sério este compromisso que na noite em que o pai lhe deu autorização para assistir ao seu primeiro baile de adultos, na povoação de Fonseca, a ela não lhe pareceu decente aceitá-la sem o consentimento do noivo. Florentine Ariza estava naquela noite na casa de passe a jogar cartas com Lotario Thugut, quando o informaram de que tinha uma mensagem telegráfica urgente.

Era o telegrafista de Fonseca, que tinha reunido sete estações intermédias para que Fermina Daza pedisse autorização para ir ao baile. Mas, uma vez obtida, não se conformou com a mera resposta afirmativa, pedindo uma prova de que era mesmo Florentine Ariza quem estava a operar o manipulador no outro extremo da Unha. Mais admirado do que satisfeito compôs uma frase de identificação: «Diga-lhe que lho juro pela deusa coroada.» Fermina Daza reconheceu o santo e a senha e esteve no seu primeiro baile de adultos até às sete da manhã, hora a que foi mudar de roupa a correr para não chegar atrasada à missa. Mas por essa altura tinha no fundo do baú mais cartas e telegramas do que quantos o pai lhe tirara e havia aprendido a portar-se com os modos de uma mulher casada. Lorenzo Daza interpretou aquelas alterações da sua maneira de ser como uma prova de que a distância e o tempo a tinham restabelecido das suas fantasias juvenis, mas nunca lhe apresentou o projecto de casamento combinado. As relações entre eles tornaram-se fluidas, dentro das reservas formais que ela lhe impusera desde a expulsão da tia Escolástica, e isto permitiu-lhes uma convivência tão cómoda que ninguém duvidaria de que se baseava no carinho.

Foi por esta época que Florentine Ariza decidiu contar-lhe nas cartas que estava empenhado em resgatar para ela o tesouro do galeão submerso. Estava decidido e tinha-lhe ocorrido como um sopro de inspiração, numa tarde de luz em que o mar parecia calcetado de alumínio pela quantidade de peixes trazidos à tona pelo verbasco. Todas as aves do céu se tinham alvoroçado com a matança e os pescadores tinham de as espantar com os remos para que não lhes disputassem os frutos daquele milagre proibido. O don do verbasco, que só adormecia os peixes, estava sancionado pela lei desde os tempos coloniais, mas começou a ser uma prática comum em pleno dia entre os pescadores das Caraíbas, até que foi destruído pela dinamite. Um dos divertimentos de Florentino Ariza enquanto Fermina Daza andava em viagem, era ver, dos molhes como os pescadores carregavam as canoas com as enormes redes cheias de peixes adormecidos. Ao mesmo tempo, um enxame de crianças, que nadavam como tubarões, pediam aos curiosos que lhes atirassem moedas para irem resgatá-las ao fundo da água. Eram os mesmos que iam a nado ter com os transatlânticos com o mesmo objectivo e sobre os quais se tinham escrito tantas crónicas de viagem nos Estados Unidos e na Europa, pela sua mestria na arte de mergulhar. Florentine Ariza conhecia-os desde sempre, desde antes até de conhecer o amor, mas nunca lhe ocorrera que talvez fossem capazes de trazer à tona a fortuna do galeão. Ocorreu-lho essa tarde e a partir do domingo seguinte até ao regresso de Fermina Daza, quase um ano depois, teve um motivo mais de delírio.

Euclides, uma das crianças nadadoras, entusiasmou-se tanto quanto ele com a ideia de uma exploração submarina, depois de conversarem menos de dez minutos. Florentine Ariza não lhe revelou a verdade do seu empreendimento, mas informou-se a fundo sobre as suas faculdades de mergulhador e de navegante. Perguntou-lhe se conseguiria descer até vinte metros sem ar, e Euclides respondeu-lhe que sim. Perguntou-lhe se havia possibilidades de ele levar sozinho uma canoa de pescador para o mar alto no meio de uma tempestade, sem outros instrumentos além do seu instinto, e Euclides respondeu-lhe que sim. Perguntou-lhe se seria capaz de localizar um ponto determinado a dezasseis milhas marítimas a noroeste da maior ilha do Sotavento, e Euclides respondeu-lhe que sim. Perguntou-lhe se era capaz de navegar de noite, orientando-se pelas estrelas, e Euclides respondeu-lhe que sim. Perguntou-lhe se estava disposto a fazê-lo pela mesma diária que lhe pagavam os pescadores por ajudá-los na pesca, e Euclides respondeu-lhe que sim, mas com um acréscimo de cinco reais aos domingos. Perguntou-lhe se sabia defender-se dos tubarões, e Euclides respondeu-lhe que sim, pois tinha artifícios mágicos para os espantar. Perguntou-lhe se sabia guardar um segredo mesmo que o pusessem nas máquinas de torturas da Inquisição, e Euclides respondeu-lhe que sim, pois a nada respondia que não e sabia dizer que sim com tanta propriedade que não havia hipóteses de duvidar dele. Por fim, fez a conta das despesas: o aluguer da canoa, o aluguer do remo, o aluguer dos apetrechos de pesca para que ninguém suspeitasse da verdade das suas incursões. Era preciso levar, além da comida, um garrafão de água doce, uma lamparina, um pacote de velas de sebo e um corno de caçador para pedir auxílio em caso de emergência.

Tinha uns doze anos e era rápido e astuto, falava sem parar, com um corpo de enguia que parecia feito para passar rastejando por qualquer escotilha. O clima curtira-lhe a pele a um ponto tal que era impossível imaginar qual a cor original, e isto fazia parecer ainda mais radiantes os seus grandes olhos amarelos. Florentine Ariza decidiu imediatamente que este era o cúmplice ideal para uma aventura de tal natureza e empreenderam-na sem mais delongas no domingo seguinte.

Zarparam do porto dos pescadores ao amanhecer, bem equipados e melhor dispostos. Euclides, quase nu, apenas com a tanga que usava sempre, e Florentine Ariza com o casaco, o chapéu preto, os botins de verniz e o laço de poeta no colarinho e um livro para se entreter durante a travessia até às ilhas. Deu-se conta a partir do primeiro domingo que Euclides era tão bom navegante como mergulhador. Era espantosamente versado sobre a natureza do mar e a quinquilharia da baía. Podia contar com os mais rebuscados pormenores a história de cada casco de navio carcomido pela ferrugem, sabia a idade de cada bóia, a origem de cada escombro, o número dos elos da corrente com que os Espanhóis fechavam a entrada da baía. Receando que também soubesse qual o propósito da sua expedição, Florentine Ariza fez-lhe algumas perguntas maliciosas e assim pôde ter a certeza de que Euclides não tinha a menor suspeita quanto ao galeão afundado.

Desde que ouviu pela primeira vez a história do tesouro na casa de passe, Florentine Ariza informara-se de tudo quanto lhe foi possível sobre os hábitos dos galeões. Soube que o San José não estava sozinho nos fundos de coral. Com efeito era a nau capitânia da Frota de Terra Firme, e chegou aqui depois de Maio de 1708, procedente da lendária feira de Portobello, no Panamá, onde carregara parte da sua fortuna: trezentos baús com prata do Peru e Vera Cruz e cento e dez baús de pérolas, reunidas e contadas na orla de Contadora. Durante o longo mês que aqui permaneceu, os dias e noites foram de festas populares, carregaram o resto do tesouro destinado a tirar da pobreza o reino de Espanha: cento e dezasseis baús de esmeraldas de Muzo e Somondoco, e trinnta milhões de moedas de ouro.

A Frota de Terra Firme era constituída por nada menos de onze embarcações de diferentes tamanhos e zarpou deste porto com a escolta de uma esquadra francesa muito bem armada, que, não obstante, não conseguiu salvar a expedição perante os tiros certeiros dos canhões da esquadra inglesa, sob a chefia do comandante Carlos Wager, que a esperou no arquipélago de Sotavento, a saída da baía. De modo que a San José não era a única nau afundada, ainda que não houvesse uma certeza documental de quantas tinham sucumbido nem de quantas tinham conseguido escapar ao fogo dos Ingleses. Não havia porém quaisquer dúvidas quanto ao facto de ter sido a nau capitânia uma das primeiras a ir a pique, com toda a tripulação e o comandante impávido no seu posto, bem como quanto a ser essa a nau que transportava o maior carregamento.

Florentine Ariza tinha verificado a rota dos galeões nas cartas de navegação da época e estava convencido de que havia determinado o sítio do naufrágio. Saíram da baía por entre as duas fortalezas da Boca Chica, e ao cabo de quatro horas de navegação entraram nas águas interiores do arquipélago, em cujo fundo de corais se podiam apanhar à mão as lagostas adormecidas. O ar era tão leve e o mar tão sereno e diáfano que Florentine Ariza se sentiu como se fosse o seu próprio reflexo na água. No outro lado daquelas águas tranquilas a duas horas da ilha maior, aí estava o sítio do naufrágio.

Congestionado pelo sol infernal dentro daquela roupa fúnebre, Florentine Ariza pediu a Euclides que descesse a vinte metros e trouxesse o que encontrasse no fundo. A água era tão clara que o viu a movimentar-se lá em baixo como um tubarão mais entre os tubarões azuis que se cruzavam com ele sem lhe tocar. Logo a seguir viu-o desaparecer num matagal de corais e precisamente quando pensava que ele já não podia ter mais ar ouviu-lhe a voz atrás de si. Euclides estava de pé, com os braços levantados e a água pela cintura. Portanto, decidiram ir em busca de sítios mais profundos, sempre para norte, navegando por cima das raias lentas, das lulas tímidas, das roseiras tenebrosas, até que Euclides percebeu que estavam a perder tempo.

- Se não me diz o que quer que eu encontre, não sei como é que o hei-de encontrar - disse-lhe.

Mas ele não lho disse. Então Euclides propôs-lhe que se despisse e descesse com ele, mesmo que fosse só para ver esse outro céu sob o mundo que eram os fundos de corais. Mas Florentine Ariza costumava dizer que Deus tinha feito o mar só para que o víssemos pela janela e nunca aprendeu a nadar. Pouco depois a tarde enevoou-se, o ar tornou-se frio e húmido e escureceu tão depressa que tiveram de se guiar pelo farol para encontrar o porto. Antes de entrar na baía, viram passar muito próximo deles o transatlântico da França com todas as luzes acesas, enorme e branco, que ia deixando um rastro de guisado tenro e de couves-flores cozidas.

Nisto perderam três domingos e teriam continuado a perdê-los todos se Florentine Ariza não tivesse resolvido partilhar o seu segredo com Euclides. Este modificou, então, todo o plano das buscas, e dirigiram-se para o antigo canal dos galeões que se encontrava a mais de sessenta milhas marítimas a oriente do lugar previsto por Florentino Ariza. Não tinham ainda passado dois meses, quando, certa tarde de chuva no mar, Euclides permaneceu muito tempo no fundo e a canoa derivara tanto que teve de nadar quase meia hora para a alcançar, pois Florentino Ariza não conseguiu aproximar-se dele com os remos. Quando finalmente a pôde abordar, tirou da boca e mostrou, como se de um triunfo da perseverança se tratasse, dois adereços de mulher.

O que então contou era tão fascinante que Florentino Ariza prometeu aprender a nadar e a mergulhar até onde fosse possível, só para o poder comprovar com os seus próprios olhos. Contou que naquele sítio, a apenas dezoito metros de profundidade, havia tantos veleiros antigos naufragados entre os corais, que era impossível contá-los sequer, e encontravam-se espalhados por uma área tão vasta que se perdiam de vista. Contou que a coisa mais surpreendente era que, de todos os cascos de barcos que se encontravam a flutuar na baía, nenhum estava em tão bom estado como os das naus submersas. Contou que havia várias caravelas ainda com as velas intactas e que as naus afundadas eram visíveis no fundo, como se se tivessem afundado com o seu espaço e com o seu tempo, de modo que ali continuavam iluminadas pelo mesmo sol.

Hás onze da manhã do sábado, dia 9 de Junho, em que se foram a pique. Contou, engasgando-se com o próprio ímpeto da sua imaginação, que o mais fácil de distinguir era o galeão San José, cujo orne se podia ler na popa a letras douradas, mas que ao mesmo tempo era a nau mais danificada pela artilharia inglesa. Contou que vira lá dentro um polvo, velho de mais de três séculos, cujos tentáculos saíam pelas seteiras dos canhões, mas crescera tanto na sala de jantar que, para o libertar, seria preciso desmantelar a embarcação. Contou que tinha visto o corpo do comandante com o seu uniforme de guerra a flutuar de lado dentro do aquário da ponte de comando, e que se não tinha descido aos porões do tesouro foi porque o ar que tinha nos pulmões não lhe chegava. Aí estavam as provas: uma arrecada com uma esmeralda e uma medalha da Virgem com o seu cordão carcomido pelo salitre.

Esta foi a primeira menção ao tesouro feita por Florentino Ariza a Fermina Daza numa carta que lhe enviou para Fonseca pouco antes do seu regresso. A história do galeão afundado era-lhe familiar porque muitas foram as vezes que dela falara Lorenzo Daza, que perdeu muito tempo e dinheiro a tentar convencer uma companhia de mergulhadores alemães, que com ele se associaram, para resgatar o tesouro submerso. Teria persistido na empresa se vários membros da Academia da História não o tivessem convencido de que a lenda do galeão fora inventada por algum vice-rei de más contas que dessa forma açambarcara os bens da Coroa. Em todo o caso, Fermina Daza sabia que o galeão se encontrava a uma profundidade de duzentos metros, onde nenhum ser humano podia chegar, e não a vinte metros como dizia Florentino Ariza. Mas estava tão habituada aos seus exageros poéticos que recebeu a aventura do galeão como um dos melhor concebidos. No entanto, ao continuar a receber mais cartas com pormenores ainda mais extraordinários e escritos com tanta seriedade como as suas promessas de amor, teve de confessar a Hildebranda os seus receios de que o seu alucinado noivo tivesse perdido o juízo.

Nessa altura, Euclides já tinha vindo à tona de água com tantas provas da sua história, que não fazia mais sentido continuar a debicar arrecadas e anéis desirmanados entre os corais, mas sim capitalizar uma grande empresa a fim de resgatar a meia centena de naus com a fortuna babilónica que tinham dentro delas. Aconteceu então o que mais tarde ou mais cedo teria de acontecer, e foi que Florentino Ariza pediu ajuda à mãe para levar a bom porto a sua aventura. A ela bastou-lhe morder o metal das jóias e observar a contraluz as pedras de vidro para se aperceber de que alguém se estava a aproveitar da candura do filho. Euclides jurou de joelhos a Florentino Ariza que não havia nada obscuro no seu negócio, mas não voltou a deixar-se ver no domingo seguinte no porto dos pescadores, nem nunca mais em parte alguma.

A única coisa com que Florentino Ariza ficou depois daquele descalabro foi o refugio de amor do farol. Tinha chegado até lá na canoa de Euclides, certa noite em que a tempestade os surpreendeu no alto mar, e desde então que costumava ir, à tarde, conversar com o faroleiro sobre as incontáveis maravilhas da terra e da água que o faroleiro conhecia. Esse foi o início de uma amizade que sobreviveu às muitas mudanças do mundo. Florentino Ariza aprendeu a alimentar a luz, primeiro com fardos de lenha e depois com bidões de óleo, antes de termos energia eléctrica. Aprendeu a orientá-la e a aumentá-la com espelhos e em várias ocasiões em que o faroleiro não o pôde fazer ficou a vigiar da torre as noites do mar. Aprendeu a conhecer os barcos pelas vozes, pelo tamanho das suas luzes no horizonte, e a perceber que algo lhe chegava deles de volta nos relâmpagos do farol.

Durante o dia o prazer era outro, sobretudo aos domingos. No Bairro dos Vice-Reis, onde viviam os ricos da cidade velha, as praias das mulheres estavam separadas das dos homens por um muro de argamassa: uma à direita e outra à esquerda do farol. De modo que o faroleiro tinha instalado um óculo com o qual se podia observar a praia das mulheres, mediante o pagamento de um centavo. Sem se saberem observadas, as meninas da sociedade exibiam-se o melhor que podiam dentro dos seus fatos de banho de grandes folhos, com sapatilhas e chapéus, que ocultavam os corpos quase tanto quanto a roupa de passeio e, além do mais, eram menos atraentes. As mães vigiavam-nas da margem, sentadas ao sol em cadeiras de baloiço de vime com os mesmos vestidos, os mesmos chapéus de plumas, as mesmas sombrinhas de renda com que tinham ido à missa solene, com receio de que os homens das praias vizinhas as seduzissem debaixo de água. A realidade era que através do óculo não se podia ver nada mais nem mais excitante do que se podia ver na rua, mas eram muitos os clientes que acorriam em cada domingo e que disputavam o telescópio pelo mero prazer de provar os frutos insípidos do quintal alheio.

Florentine Ariza era um deles, mais por tédio que por prazer, pois não foi esse atractivo adicional que o fez tornar-se tão bom amigo do faroleiro. O verdadeiro motivo foi que depois do desaire de Fermina Daza, quando contraiu a febre dos amores correspondidos para tentar substituí-la, só mesmo no farol viveu horas felizes e encontrou consolo para as suas desditas. Foi esse o seu lugar mais amado. Tanto, que durante anos andou a tentar convencer a mãe, e mais tarde o seu tio Leão XII, para que o ajudassem a comprá-lo. Pois os faróis das Caraíbas eram então propriedade privada e os respectivos donos cobravam o direito de passagem para o porto segundo a dimensão dos barcos. Florentino Ariza pensava que essa era a única maneira honrada de fazer um bom negócio com a poesia, mas nem a mãe nem o tio pensavam o mesmo e quando ele o pôde fazer com os seus próprios meios já os faróis tinham passado a ser propriedade do Estado.

No entanto, nenhuma dessas ilusões foi vã. A lenda do galeão e depois a novidade do farol foram-lhe aliviando a ausência de Fermina Daza, e quando menos a esperava chegou-lhe a notícia do seu regresso. Com efeito, depois de uma estada prolongada em Riohacha, Lorenzo Daza tinha decidido regressar. Não era a época mais favorável do mar, devido aos alíseos de Dezembro, e a escuna histórica, a única que se arriscava à travessia, podia acordar de manhã de volta ao porto de origem, arrastada por um vento contrário. Assim foi. Fermina Daza tinha passado uma noite de agonia, vomitando a bílis, atada ao beliche de um camarote que parecia uma retrete de cantina, não só pela estreiteza opressiva como também pela pestilência e o calor. O balanço era tão forte que por várias vezes teve a impressão de que as correias do beliche se iam rebentar, do convés chegavam-lhe retalhos de gritos doloridos que pareciam de naufrágio, e os roncos de tigre do seu pai, no beliche contíguo, eram mais um elemento de terror. Pela primeira vez, em quase três anos, passou a noite em claro, sem pensar nem por um momento em Florentino Ariza, que, por sua vez, gastava a sua insónia, na rede da parte de trás da loja, a contar um a um os minutos eternos que faltavam para que ela regressasse. De manhã, o vento cessou de súbito e o mar amainou, e Fermina Daza deu-se conta de que tinha dormido apesar dos estragos do enjoo, porque a acordou o estrépido das correntes da âncora. Então, retirou as correias e espreitou pela escotilha com a esperança de descobrir Florentine Ariza no tumulto do porto mas o que viu foram as tabernas entre as palmeiras douradas pelos primeiros sóis, e o cais de pranchas podres de Riohacha, donde a escuna zarpara na noite anterior.

O resto do dia foi como uma alucinação, na mesma casa onde tinha estado até à véspera, recebendo as mesmas visitas que se tinham despedido dela, falando do mesmo, e aturdida pela impressão de estar a viver de novo um pedaço de vida já vivido. Era uma repetição tão fiel, que Fermina Daza tremia só com a ideia de que também o fosse a viagem na escuna, que a apavorava só de se lembrar. No entanto, a única possibilidade alternativa de voltar a casa eram duas semanas de mula pelas cornijas da serra e em condições ainda mais perigosas do que da primeira vez, pois uma nova guerra civil, começada no estado andino do Cauca, estava a ramificar-se pelas províncias das Caraíbas. Por isso, às oito da noite foi outra vez acompanhada até ao porto pelo mesmo cortejo de parentes barulhentos, com as mesmas lágrimas de adeuses e os mesmos embrulhos com presentes de última hora que não cabiam nos camarotes. No momento de zarpar, os homens da família despediram-se da escuna com uma salva de tiros para o ar e Lorenzo Daza correspondeu-lhes do convés com cinco disparos do seu revólver. A ansiedade de Fermina Daza dissipou-se muito rapidamente, porque o vento foi favorável durante toda a noite e o mar tinha um perfume a flores que a ajudou a dormir bem sem as correias de segurança. Sonhou que voltava a ver Florentine Ariza e que este se havia retirado o rosto que ela sempre lhe tinha conhecido, porque, na verdade, era uma máscara, mas o rosto real era idêntico. Levantou-se muito cedo, intrigada com o enigma do sonho, e encontrou o pai a beber café com brande no barzinho do comandante, com o olho torto por causa do álcool, mas sem o menor indício de preocupação quanto ao regresso.

Estavam a entrar no porto. A escuna deslizava em silêncio no labirinto de veleiros ancorados na enseada do mercado posto quie a pestilência se sentia a muitas léguas de distância no

ar e a alva estava saturada de uma chuva miudinha que depressa se tornou num aguaceiro dos grandes. Encostado ao balão do telégrafo, Florentino Ariza reconheceu a escuna quando atravessava a baía das Animas com as velas desalentadas por causa da chuva e ancorou diante do cais do mercado. No dia anterior tinha esperado até às onze da manhã, quando tomou conhecimento, acidentalmente, do atraso da escuna devido a ventos contrários, por um telegrama e tinha voltado a esperar naquele dia desde as quatro horas da madrugada. Continuou à espera sem tirar os olhos das chalupas que conduziam até à margem os raros passageiros que decidiam desembarcar apesar da tempestade. A maioria deles tinha de abandonar a meio do caminho a chalupa encalhada e chegavam ao cais chapinhando no lodaçal. As oito, depois de esperar, em vão, que a chuva parasse, um carregador negro com água pela cintura recebeu Fermina Daza na amurada da escuna e levou-a nos braços até à margem, mas estava tão encharcada que Florentino Ariza não conseguiu reconhecê-la.

Ela própria só teve consciência de quanto tinha amadurecido durante a viagem, quando entrou na casa fechada e deitou as mãos imediatamente à tarefa heróica de voltar a torná-la habitável com a ajuda de Gala Placidia, a criada negra, que saiu da sua antiga sanzala mal a avisaram do regresso. Fermina Daza não era mais a filha única, simultaneamente mimada e tiranizada pelo pai, mas sim a dona e senhora de um império de pó e teias de aranha que só podia ser resgatado pela força de um amor invencível. Não se assustou porque se sentia inspirada por um alento de levitação que lhe daria até para empurrar a Terra. Na própria noite do regresso, enquanto tomavam chocolate com almojávenas na mesa grande da cozinha, o pai delegou nela a autoridade para o governo da casa, e fê-lo com uma formalidade sacramental.

- Entrego-te as chaves da tua própria vida - disse-lhe.

Ela, com dezassete anos feitos, assumiu-a com pulso firme, consciente de que cada palmo da liberdade ganha era para o amor. No dia seguinte, depois de uma noite de maus sonhos, sofreu pela primeira vez o mal-estar do regresso ao abrir a janela da varanda e voltar a ver a chuva miudinha e triste do parque, a estátua do herói decapitado, o banco de mármore onde Florentino Ariza costumava sentar-se com o livro de versos. Já não pensava nele como no noivo impossível, mas sim como no esposo certo a quem se dava completamente. Sentiu quanto pesava o tempo desperdiçado desde que partira, quanto custava estar viva, quanto amor lhe faria falta para amar o seu homem como Deus mandava. Surpreendeu-se por ele não estar no parque, como tantas outras vezes, apesar da chuva, e por não ter recebido qualquer sinal dele por algum meio, nem sequer por um pressentimento, e então abalou-a a ideia de que teria morrido. Mas logo afastou esse mau pensamento, porque no frenesim dos telegramas dos últimos dias, ante a iminência do regresso, tinham-se esquecido de combinar uma maneira de continuarem a comunicar-se quando ela regressasse.

A verdade é que Florentino Ariza tinha a certeza de que não regressara, até ao momento em que o telegrafista de Riohacha lhe confirmou que havia embarcado na sexta-feira, na mesma escuna que não chegara na véspera por causa dos ventos contrários. Assim passou o fim-de-semana a tentar descobrir qualquer sinal de vida em casa dela, e desde o anoitecer de segunda-feira que viu pelas janelas uma luz ambulante que pouco depois das nove se apagou no quarto da varanda. Não dormiu, vítima das mesmas ansiedades de náuseas que perturbaram as suas primeiras noites de amor. Trânsito Ariza levantou-se com os primeiros galos, alarmada porque o filho não voltara a entrar desde que à meia-noite saíra para o pátio, e não o encontrou em casa. Tinha saído e vagueado pelos cais, esteve a recitar versos de amor contra o vento, chorando de júbilo, até que, por fim, amanheceu. Às oito, estava sentado sob os arcos do Café da Paróquia, transtornado pela vigília, tentando conceber uma maneira de fazer chegar os seus votos de boas-vindas a Fermina Daza, quando se sentiu sacudido por um tremor de terra que lhe dilacerou as entranhas.

Era ela. Atravessava a Praça da Catedral acompanhada por Gala Placidia, que levava as seiras para as compras, e pela primeira vez ia vestida sem o uniforme escolar. Estava mais alta do que quando partira, mais direita e intensa, e com a beleza depurada por um domínio de pessoa adulta. A trança tinha voltado a crescer, mas não a levava solta nas costas, mas sim enrolada sobre o ombro

esquerdo e aquela simples alteração tinha-a despojado de qualquer mico infantil. Florentino Ariza permaneceu atónito no seu lugar, até que aquela aparição acabou de atravessar a praça sem tirar os olhos do seu caminho. Mas o mesmo poder irresistível que o paralisava obrigou-o depois a precipitar-se atrás dela, quando dobrou a esquina da catedral e se perdeu no tumulto ensurdecedor das ruelas em socalcos do comércio.

Seguiu-a sem se deixar ver, descobrindo os gestos quotidianos, a graça, o amadurecimento prematuro do ser a quem mais amava no mundo e a quem via pela primeira vez no seu estado natural. Espantou-o a fluidez com que abria caminho por entre a multidão. Enquanto Gala Placidia andava aos encontrões e se lhe enredavam as seiras e tinha de correr para não a perder, ela navegava na desordem da rua num espaço próprio e num tempo diferente, sem tropeçar em ninguém, como um morcego nas trevas. Estivera muitas vezes nas lojas com a tia Escolástica, mas tinham sido sempre compras miúdas, pois era o pai quem se encarregava de abastecer a casa, e não só de móveis e comida mas até das roupas de mulher. Assim, para ela, aquela primeira saída foi uma aventura fascinante idealizada nos seus sonhos de menina.

Não prestou atenção às investidas dos vendedores de banha da cobra que lhe ofereciam o elixir para o amor eterno, nem às súplicas dos mendigos deitados pelos saguões com as suas chagas fumegantes, nem ao índio falso que lhe tentava vender um caimão amestrado. Deu um longo e minucioso passeio sem rumo previsto, com demoras que não tinham outro motivo senão o prazer sem pressa no espírito das coisas. Entrou em todas as portas onde estivessem a vender o que quer que fosse e em todo o lado encontrou coisas que lhe aumentavam a sua ânsia de viver. Deliciou-se com o hálito de vetiver que exalava das roupas dentro das arcas, enrolou-se em sedas estampadas, riu-se do seu próprio riso ao ver-se disfarçada de manola com uma peineta1 e um leque de flores pintadas diante do espelho de

Manola: mulher madrilena das classes baixas que tem uma forma de vestir e uma desenvoltura próprias. Do seu traje vistoso e de folhos consta a grande avessa (peineta) que lhe segura os cabelos, o xaile longo e o leque estampado com grandes motivos. (N. da T.)

corpo inteiro de El Alambre de Oro.Na loja dos artigos importados destapou um barril de arenques em salmoura que lhe lembrou as noites do Nordeste, quando era muito pequenina em San Juan de Ia Ciénaga. Deram-lhe a provar uma morcela de Alicante que sabia a alcaçuz e comprou duas para o pequeno-almoço de sábado, além de umas postas de bacalhau e de um frasco de groselhas em aguardente. Na loja das especiarias, pelo simples prazer do olfacto, apertou nas palmas das mãos folhas de salva e de orégãos, e comprou uma mão-cheia de cravinhos-da-índia e outra de anis estrelado e mais duas de gengibre e de zimbro, e saiu lavada em lágrimas de tanto rir e espirrar com os vapores da pimenta de Caiena. Na capelista francesa, enquanto comprava sabonetes de Reuter e água de benjoim, puseram-lhe atrás da orelha um toque do perfume que estava na moda em Paris, e deram-lhe uma tablette desodorizante para depois de fumar.

Andava a brincar às compras, é verdade, mas aquilo que lhe fazia mesmo falta comprava-o sem mais delongas, com uma autoridade que não dava azo a que se pensasse que o fazia pela primeira vez, pois tinha consciência de que não comprava apenas para ela mas também para ele, doze metros de linho para as toalhas de mesa dos dois, o percal para os lençóis de núpcias com o orvalho dos humores de ambos ao amanhecer, o mais requintado de cada coisa para desfrutarem juntos na casa do amor. Pedia desconto e sabia fazê-lo, regateava com graça e dignidade até obter o melhor, e pagava com moedas de ouro que os lojistas testavam pelo simples prazer de as ouvir cantar sobre o mármore do balcão.

Florentino Ariza espiava-a, maravilhado, perseguia-a sem fôlego, tropeçou diversas vezes nas seiras da criada que respondeu às suas desculpas com um sorriso, e ela tinha passado tão perto dele que ele chegou a sentir a brisa do seu aroma, e se então não o viu não foi porque não o pudesse mas pela altivez do seu modo de andar. Parecia-lhe tão bela, tão sedutora, tão diferente da gente vulgar que não compreendia por que motivo ninguém se transtornava como ele com as castanholas dos seus saltos no empedrado da rua, nem sentia o coração alterado com o ar e os suspiros dos seus folhos, nem se enlouqueciam todos de amor com os ventos da sua trança, o voo das suas mãos, o ouro seu e o do seu riso. Não perdera um gesto dela, nem um sinal do carácter, mas não se atrevia a aproximar-se por receio de desfazer o encantamento. Porém, quando ela se meteu no bulício do Portal dos Escrivães, deu-se conta de que estava a arriscar-se a perder a oportunidade tão ansiada durante anos.

Fermina Daza partilhava com as suas companheiras de colégio a ideia peregrina de que o Portal dos Escrivães era um lugar de perdição, vedado, logicamente, às meninas decentes. Era uma galeria de arcadas diante de uma praceta onde estacionavam os carros de aluguer e as carroças de carga puxadas por burros, e onde se tornava mais denso e buliçoso o comércio popular. O nome vinha dos tempos de colónia, porque aí se sentavam desde então os escrivães taciturnos de casacos de algodão e manguitos, que escreviam de encomenda todo o tipo de documentos a preços de pobre: petições de agravo ou de súplica, alegações jurídicas, postais de felicitações ou pêsames, bilhetes de amor em qualquer das suas idades. Com certeza que não fora por eles que aquele ruidoso mercado herdara a má reputação, mas sim de bufarinheiros mais recentes que ofereciam por baixo do balcão todo o tipo de artifícios equívocos que chegavam de contrabando nos barcos da Europa, desde postais obscenos a pomadas revigorantes, até aos célebres preservativos catalães com cristas de iguanas que se movimentavam quando era caso disso, ou com flores na extremidade para que abrissem as pétalas segundo a vontade do utente. Fermina Daza, pouco habituada a andar pela rua, meteu-se pelo portal sem reparar por onde ia, à procura de uma sombra de alívio para o sol bravo das onze.

Submergiu na algaraviada quente dos engraxadores e dos vendedores de pássaros, dos alfarrabistas, dos curandeiros e das doceiras, que anunciavam aos gritos por cima da confusão os sumos de coco e ananás para o rapaz, os de coco para os loucos e os de canela para a Micaela. Mas ela ficou indiferente ao troar, imediatamente cativada por um papeleiro, que estava a fazer demonstrações de tintas mágicas de escrever, tintas vermelhas com o aspecto de sangue, tintas com reflexos tristes Para as mensagens fúnebres, tintas fosforescentes para se ler às escuras, tintas invisíveis que se revelavam com o brilho do lume. Ela queria-as a todas para brincar com Florentino Ariza, para o assustar com o seu engenho, mas ao fim de várias tentativas decidiu-se por um frasquinho de tinta de ouro. Depois foi ter com as doceiras sentadas por trás das enormes redomas e comprou seis doces de cada qualidade, apontando-os com o dedo através do vidro, porque não conseguia fazer-se ouvir no meio da gritaria: seis papos-de-anjo, seis de leite, seis de gergelim, seis de iúca, seis chocolate, seis piononos1, seis de goiaba, seis deste e seis daquele, seis de tudo e ia-os deitando na seira da criada com uma graça irresistível, totalmente alheia ao tormento das revoadas de moscas sobre a calda de açúcar, alheia à algazarra contínua, alheia ao bafo de suores rançosos que se reflectiam no calor mortal. Despertou-a do feitiço uma negra feliz com um pano colorido na cabeça, redonda e formosa, que lhe ofereceu um triângulo de ananás espetado na ponta de uma faca de cortador. Ela pegou-lhe, meteu-o inteiro na boca, saboreou-o e estava a saboreá-lo com o olhar errante pela multidão, quando uma emoção a paralisou naquele lugar. Nas suas costas, tão perto da sua orelha que só ela a pôde escutar no tumulto, tinha ouvido a voz:

- Este não é o lugar indicado para uma deusa coroada. Ela virou a cabeça e viu, a dois palmos dos seus olhos, os outros olhos glaciais, o rosto lívido, os lábios petrificados de medo, tal como os vira entre a multidão da Missa do Galo da primeira vez que ele esteve tão perto dela, mas, ao contrário de então, não sentiu a emoção do amor mas o abismo do desencanto. Num instante revelou-se-lhe a magnitude do seu próprio engano e perguntou-se, aterrada, como tinha podido incubar durante tanto tempo e com tanta crueldade semelhante quimera no coração. Só conseguiu pensar: «Meu Deus! Pobre homem!» Florentino Ariza sorriu, tentou dizer qualquer coisa, tentou segui-la, mas ela apagou-o da sua vida com um gesto da mão.

- Não, por favor - disse-lhe. - Esqueça.

Nessa tarde, enquanto o pai dormia a sesta, mandou-lhe por Gala Placidia uma carta de duas linhas: «Hoje, quando o vi, apercebi-me que o que se passou connosco não foi mais do que uma ilusão.» A criada levou-lhe também os telegramas dele, os

1 Bolo típico da região. (N. da T.)

versos, as camélias secas, e pediu-lhe que devolvesse as cartas e as prendas que ela lhe tinha mandado: o missal da tia Escolástica, as nervuras das folhas dos seus herbários, o centímetro quadrado do hábito de São Pedro Claver, as medalhas de santos a trança dos seus quinze anos com o laço de seda do uniforme escolar. Nos dias que se seguiram, à beira da loucura, ele escreveu-lhe numerosas cartas de desespero assediando a criada para que as levasse, mas esta cumpriu as instruções terminantes de não receber mais nada além das prendas devolvidas. Insistiu com tanto afinco que Florentino Ariza enviou tudo menos a trança, que não queria devolver enquanto Fermina Daza não o recebesse pessoalmente para conversar nem que fosse por um instante. Não o conseguiu. Temendo uma determinação fatal do filho, Trânsito Ariza desceu do seu orgulho e pediu a Fermina Daza que lhe concedesse a ela a graça de cinco minutos, e Fermina Daza atendeu-a, por um momento, no saguão da sua casa, de pé, sem a convidar a entrar e sem um pingo de fraqueza. Dois dias depois, após uma discussão com a mãe, Florentino Ariza desprendeu da parede do seu quarto o nicho de vidro empoeirado onde tinha em exposição a trança como se fosse uma relíquia sagrada, e a própria Trânsito Ariza a devolveu no estojo de veludo bordado a fio de ouro. Florentino Ariza nunca mais teve oportunidade de se encontrar a sós com Fermina Daza, nem de falar a sós com ela nos muitos encontros das suas tão longas vidas, senão cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias depois, quando lhe repetiu o juramento de fidelidade eterna e de amor para sempre, na sua primeira noite de viúva.

O doutor Juvenal Urbino tinha sido, aos vinte e oito anos, o solteiro mais pretendido. Regressava de uma longa permanência em Paris, onde fez estudos superiores de Medicina e Cirurgia e, assim que pisou terra firme, deu mostras esmagadoras de que não perdera um minuto do seu tempo. Regressou mais atinado do que quando partira, mais dono da sua índole, e nenhum dos seus companheiros de geração parecia tão rigoroso e tão sábio quanto ele na sua ciência, mas também não havia nenhum que dançasse melhor do que ele a música em moda, nem que melhor improvisasse ao piano. Seduzidas pelas suas graças pessoais e pela certeza da sua fortuna de família, as raparigas do seu meio tiravam à sorte e em segredo para ver quem ficaria com ele, e ele também brincava aos namoricos com elas, mas conseguiu manter-se em estado de graça, intacto e tentador, até que sucumbiu, sem resistência, aos encantos plebeus de Fermina Daza.

Gostava de dizer que aquele amor tinha sido o fruto de um engano clínico. Ele próprio não conseguia acreditar que tivesse acontecido, e ainda menos naquele momento da sua vida, quando todas as suas reservas pessoais se concentravam na sorte da sua cidade, da qual tinha dito com demasiada frequência e sem pensar duas vezes que não havia no mundo outra igual. Em Paris, passeando de braço dado com uma namorada ocasional num Outono tardio, parecia-lhe impossível conceber a felicidade mais pura do que a daquelas tardes douradas, com o cheiro rústico das castanhas nas braseiras, os acordeões lânguidos, os namorados insaciáveis que se beijavam interminavelmente nos terraços abertos e, no entanto, ele tinha dito, com a mão sobre o coração, que não estava disposto a trocar por tudo isso um só instante das suas Caraíbas em Abril. Era ainda demasiado jovem para saber que a memória do coração elimina as más recordações e exalta as boas e que, graças a esse artifício, conseguimos suportar o passado. Mas quando voltou a ver, do convés do barco, o promontório branco do bairro colonial, os galináceos imóveis em cima dos telhados, as roupas dos pobres estendidas a secar nas varandas, só então compreendeu até que ponto tinha sido uma vítima fácil das ratoeiras caridosas da saudade.

O barco abriu caminho pela baía, através de uma colcha flutuante de animais afogados é a maioria dos passageiros refugiou-se nos camarotes, fugindo daquele cheiro nauseabundo. O jovem médico desceu pela ponte do barco vestido de alpaca impecável, com um guarda-pó sobre o fato, uma barba juvenil à Pasteur e o cabelo separado ao meio por uma risca direita e pálida, e com suficiente autodomínio para disfarçar o nó na garganta, que não era de tristeza mas de terror. No cais quase deserto, patrulhado por soldados descalços sem uniforme, esperavam-no as irmãs e a mãe com os seus amigos mais dilectos. Achou-os macilentos e sem futuro, apesar dos seus ares mundanos, e falavam da crise e da guerra civil como de algo remoto e alheio, mas todos tinham um tremor evasivo na voz e uma incerteza nas pupilas que atraiçoavam as palavras. Quem mais o comoveu foi a mãe, uma mulher ainda jovem que se tinha imposto na vida com a sua elegância e o seu dinamismo social e que, agora, murchava a fogo lento na aura de cânfora dos seus crepes de viúva. Deve ter-se reconhecido na perturbação do filho, pois antecipou-se a perguntar-lhe, em defesa própria, porque tinha aquela pele translúcida que parecia parafina.

- É a vida, mãe - disse ele. - Em Paris tornamo-nos verdes.

Pouco depois, ao lado dela, sufocando de calor no carro fechado, não conseguiu suportar por mais tempo a inclemência da realidade que entrava aos borbotões pela janelinha. O mar parecia de cinzas, os antigos palácios dos marqueses estavam a Ponto de sucumbir à proliferação dos mendigos e era impossível descobrir a fragrância ardente dos jasmins por detrás dos defumadores mortíferos dos esgotos abertos. Tudo lhe pareceu mais pequeno do que quando partira, mais indigente e lúgubre, e havia tantas ratazanas esfomeadas no esterqueiro das ruas que os cavalos do carro tropeçavam assustados. Pelo longo caminho do porto até casa, no coração do Bairro dos Vice-Reis, não viu nada que lhe parecesse digno das suas saudades. Derrotado, virou a cabeça para que a mãe não o visse e desatou a chorar em silêncio.

O antigo palácio do marquês de Casalduero, residência histórica dos Urbino de Ia Calle, não era o que se conservava mais altivo no meio do naufrágio. O doutor Juvenal Urbino descobriu-o com o coração apertado quando entrou pelo saguão tenebroso e viu o repuxo, repleto de pó, do jardim interior, e os canteiros sem flores por onde andavam as iguanas, e apercebeu-se de que faltavam muitos ladrilhos de mármore e que outros estavam partidos, na larga escadaria com corrimões de cobre que levava aos aposentos principais. O pai, médico mais abnegado do que eminente, morrera durante a epidemia de cólera asiática que assolara a povoação seis anos antes, e com ele morrera o espírito da casa. Dona Blanca, a mãe, sufocada por um luto previsto para ser eterno, tinha substituído por novenas vespertinas os célebres serões líricos e os concertos de câmara do falecido marido. As duas irmãs, contra as suas graças naturais e a sua vocação festiva, eram carne para convento.

O doutor Juvenal Urbino não dormiu nem por um momento na noite da sua chegada, assustado com a escuridão e com o silêncio, e rezou três terços ao Espírito Santo e quantas orações recordava para esconjurar calamidades e naufrágios, e todo o tipo de armadilhas nocturnas, e, entretanto, uma saracura que entrara pela porta encostada, cantava a todas as horas, à hora em ponto, dentro do quarto. Atormentaram-no os gritos alucinados das loucas no manicómio vizinho da Divina Pastora, o gotejar inclemente do cântaro na bacia com uma ressonância que invadia toda a casa, os passos pernilongos da saracura perdida no quarto, o seu medo congénito da escuridão, a presença invisível do pai falecido na enorme mansão adormecida.

Quando a saracura cantou às cinco, com os galos da vizinhança, o doutor Juvenal entregou-se de corpo e alma à Divina Providência, porque não se sentia com forças para viver nem mais um dia na sua pátria em ruínas. No entanto, o afecto dos seus, os domingos campestres, os desvelos constantes das solteiras da sua classe acabaram por mitigar as amarguras da primeira impressão. A pouco e pouco foi-se habituando ao ar abafado de Outubro, aos cheiros exagerados, aos juízos prematuros dos seus amigos, ao «Amanhã logo se vê, doutor, não se preocupe, até que acabou por se render aos feitiços do hábito. Não tardou a arquitectar uma justificação fácil para o seu abandono. Era aquele o seu mundo, disse para consigo, o mundo triste e opressivo que Deus lhe tinha posto à frente e a ele se devia.

A primeira coisa que fez foi tomar conta do consultório do pai. Manteve nos mesmos sítios os móveis ingleses, rígidos e sérios, cujas cadeiras suspiravam com os frios do amanhecer, mas mandou para o sótão os tratados de ciência vice-real e de medicina romântica, e arrumou nas prateleiras de vidro os da nova escola francesa. Tirou das paredes as gravuras descoradas, excepto a do médico que disputava à morte uma doente despida, e o juramento de Hipocrates impresso em letras góticas e, nos seus lugares, pendurou, ao lado do único diploma do seu pai, os muitos e muito variados que ele tinha obtido com classificações óptimas nas várias escolas da Europa.

Fez por impor novos critérios no Hospital da Misericórdia, mas não foi assim tão fácil quanto lhe parecera nos seus entusiasmos juvenis, pois a rançosa casa de saúde empenhava-se nas suas superstições atávicas, como a de colocar os pés das camas dentro de potes de água para impedir que as doenças subissem ou a de exigir roupa de cerimónia e luvas de camurça na sala de cirurgia porque se tinha por assente que a elegância era uma condição essencial da assepsia. Não podiam suportar que o jovem recém-chegado saboreasse a urina do doente para descobrir a presença de açúcar, que citasse Charcot e Trousseau como se fossem seus companheiros de quarto, que nas aulas fizesse advertências severas contra os riscos mortais das vacinas e que por outro lado tinha uma fé suspeita em relação ao novo invento dos supositórios. Tropeçava com tudo: o seu espírito renovador, o seu civismo maníaco, o seu sentido de humor sub-til numa terra de imortais sensaborões, tudo o que constituía na realidade as suas virtudes mais apreciáveis suscitava o receio dos seus colegas mais velhos e as troças, à socapa, dos jovens.

A sua obsessão era o perigoso estado sanitário em que se encontrava a cidade. Apelou às mais altas instâncias para que fechassem os esgotos espanhóis, que eram um imenso viveiro de ratazanas e se construíssem, em seu lugar, esgotos subterrâneos, cujos detritos não desembocassem na enseada do mercado, como acontecia desde sempre, mas sim num vazadouro distante. As casas coloniais bem equipadas tinham latrinas assépticas, mas dois terços da povoação, amontoada em barracas à beira dos pântanos, fazia as suas necessidades ao ar livre. As fezes secavam ao sol, convertiam-se em pó e eram respiradas por todos com regozijos natalícios nas frescas e bem-aventuradas brisas de Dezembro. O doutor Juvenal Urbino queria impor, na Municipalidade, um curso obrigatório que permitisse aos pobres aprender a construir as suas próprias- latrinas. Lutou em vão para que os lixos não fossem deitados nos mangais, transformados há já muitos anos em recintos de putrefacção, e para que fossem recolhidos pelo menos duas vezes por semana e queimados nas zonas despovoadas.

Estava consciente da ameaça mortal que era a água de beber. Só a ideia de se construir um aqueduto parecia fantástica, pois os que a poderiam ter impulsionado dispunham de cisternas subterrâneas onde iam ficando armazenadas sob uma espessa camada de limo as águas chovidas durante anos. Entre os móveis mais apreciados na época encontravam-se as talhas de madeira lavrada, cujos filtros de pedra gotejavam noite e dia para dentro de bacias. Para impedir que alguém bebesse pelo mesmo jarro de alumínio com que se tirava a água, este tinha a borda dentada como a coroa de um rei momo. A água era vítrea e fresca na penumbra do barro cozido, e deixava na boca um sabor a floresta. Mas o doutor Juvenal Urbino não incorria nestes enganos de purificação, pois sabia que, mau grado tantas cautelas, o fundo das talhas era um santuário de vermes. Tinha passado as lentas horas da sua infância a apreciá-los com um espanto quase místico, convencido, como tanta gente dessa altura, que esses vermes eram espíritos da natureza, umas criaturas sobrenaturais que cortejavam as donzelas, nos sedimentos das águas paradas, e que eram capazes de furiosas vinganças de amor. Tinha visto em criança os destroços da casa de Lázara Conde, uma professora que se atreveu a subestimar os espíritos da natureza e tinha visto a quantidade de vidros partidos na rua e o montão de pedras que atiraram durante três dias e três noites contra as janelas. De modo que se passou muito tempo até aprender que os vermes eram na realidade larvas de pernilongos, mas aprendeu-o para não o esquecer nunca mais, porque desde então se apercebeu que não só esses como muitos outros espíritos malignos podiam passar intactos através dos nossos ingénuos filtros de pedra.

A água das cisternas foi atribuída durante muito tempo e com muita honra a hérnia do escroto, que tantos homens da cidade suportavam não só sem pudor como ainda com uma certa insolência patriótica. Quando Juvenal Urbino ia à escola primária não conseguia evitar um arrepio de horror ao ver os herniados sentados à porta das suas casas nas tardes de calor a abanarem o testículo enorme como se fosse uma criança que lhes tivesse adormecido entre as pernas. Dizia-se que a hérnia emitia um pio de pássaro lúgubre nas noites de tempestade e que se retorcia com uma dor insuportável quando queimavam por perto uma pena de galináceo, mas ninguém se queixava daqueles precalços, porque uma hérnia grande e bem conservada ostentava-se como um apanágio de homem. Quando o doutor Juvenal Urbino regressou da Europa já conhecia muito bem a falácia científica destas crenças, mas estavam tão arreigadas na superstição local que muitos se opunham ao enriquecimento mineral da água das cisternas por temerem que isso lhes tirasse a sua virtude de provocar uma hérnia honrável.

Tanto quanto com as impurezas da água, o doutor Juvenal Urbino andava alarmado com o estado higiénico do mercado público, uma vasta área num descampado diante da baía das Animas, onde atracavam os veleiros das Antilhas. Um ilustre viajante da época descreveu-o como sendo um dos mais variados do mundo. Com efeito, era rico, exuberante e ruidoso, mas talvez também o mais assustador. Estava assente no seu próprio esterqueiro, à mercê das veleidades da maré e era aí onde os arrotos da baía devolviam à terra as imundícies dos esgotos. Era também para aí que se atiravam os desperdícios do matadouro contíguo, cabeças esquartejadas, vísceras podres, restos de animais que ficavam a flutuar ao sol e ao relento num pântano de sangue. Os galináceos disputavam-nos com as ratazanas e os cães numa contenda perpétua, entre os veados e os capões saborosos do Sotavento pendurados nos beirais dos barracões, e os legumes primaveris de Arjona expostos sobre esteiras no’chão. O doutor Juvenal Urbino queria sanear o lugar, queria que fizessem o matadouro noutro lado, que construíssem um mercado coberto com cúpulas de vidro como o que tinha conhecido nas antigas feiras de Barcelona, onde as provisões eram tão viçosas e limpas que dava pena comê-las. Mas até os mais complacentes dos seus ilustres amigos se compadeciam com a sua paixão ilusória. Eram assim: passavam a vida a proclamar o orgulho da sua origem, os méritos históricos da cidade, o preço das suas relíquias, o seu heroísmo e beleza, mas eram cegos ao caruncho dos anos. O doutor Juvenal Urbino, por sua vez, tinha por ela amor suficiente para a ver com os olhos da verdade.

- Que nobre é esta cidade - dizia - que há quatrocentos anos que estamos a tentar dar cabo dela e ainda não o conseguimos.

Estavam prestes, no entanto. A epidemia da cólera-morbo, cujas primeiras vítimas caíram fulminadas nos charcos do mercado, tinha causado em onze semanas a maior mortandade da nossa história. Até então, alguns mortos ilustres eram sepultados sob as lajes das igrejas, na vizinhança esquiva dos arcebispos e dos dignitários, e os outros, menos ricos, eram enterrados nos pátios dos conventos. Os pobres iam para o cemitério colonial, numa colina ventosa, separada da cidade por um canal de águas áridas, cuja ponte de argamassa tinha um alpendre com um letreiro esculpido por ordem de algum alcaide clarividente: «Lasciate ogni speranza voi ch’entrate.» Nas duas primeiras semanas de cólera o cemitério ficou a transbordar e não restou um sítio disponível nas igrejas, apesar de terem passado para o ossário comum os restos carcomidos de numerosos notáveis sem nome. O ar da catedral ficou rarefeito com os vapores das criptas mal seladas e as suas portas só voltaram a abrir-se três anos depois, pela época em que Fermina Daza viu pela primeira vez Florentino Ariza na Missa do Galo. O claustro do Convento de Santa Clara ficou repleto até às alamedas na sua terceira semana e foi preciso preparar como cemitério a horta da comunidade, que era duas vezes maior. Ali escavaram sepulturas fundas para enterrar em três níveis, depressa e sem caixões, mas tiveram que desistir delas porque o solo, demasiadamente cheio, tornou-se como uma esponja que transpirava uma sanguinolência nauseabunda. Ficou então decidido que se continuariam os enterros em La Manos de Dios, uma fazenda de gado de engorda a menos de uma légua da cidade, que mais tarde foi consagrada como Cemitério Universal.

Depois de se ter proclamado o anúncio público da cólera, no quartel da guarnição local foi disparado um tiro de canhão cada quarto de hora, de dia e de noite, de acordo com a superstição cívica de que a pólvora purifica o ambiente. A cólera foi muito mais encarniçada com a população negra, por ser a mais numerosa e pobre, mas na realidade não olhou nem a cor nem a linhagens. Cessou de repente tal como começara e nunca se conheceu o número dos seus estragos, não porque fosse impossível calculá-lo mas porque uma das nossas mais habituais virtudes era o pudor das desgraças próprias.

O doutor Marco Aurélio Urbino, pai de Juvenal, foi um herói civil daquelas jornadas infaustas e também a sua vítima mais eminente. Por determinação oficial concebeu e dirigiu pessoalmente a estratégia sanitária, mas por sua própria iniciativa acabou por intervir em todos os assuntos de ordem social até ao ponto de, nos momentos mais críticos da peste, parecer não existir autoridade alguma acima da sua. Anos depois, ao rever a crónica daqueles dias, o doutor Juvenal Urbino constatou que o método do seu pai tinha sido mais caritativo que científico e que, sob muitos aspectos, era contrário à razão, de modo que tinha favorecido em grande medida a voracidade da peste. Comprovou-o com a compaixão dos filhos, aos quais a vida foi a pouco e pouco convertendo em pais dos pais, e, pela primeira vez, doeu-se por não ter estado com o seu na solidão dos seus erros. Mas não lhe regateou os méritos: a diligência e a abnegação, e, sobretudo, a sua coragem pessoal, mereceram-lhe as muitas honras que lhe foram prestadas quando a cidade se restabeleceu do desastre e o seu nome ficou com justiça entre outros tantos nomes célebres de outras guerras menos recomendáveis não viveu a sua glória. Quando reconheceu em si os transtornos irreparáveis que tinha visto e que o tinham compadecido dos outros, não tentou sequer uma batalha inútil e afastou-se do mundo para não contaminar ninguém. Fechado, sozinho no quarto de serviço do Hospital da Misericórdia, surdo à chamada dos colegas e à súplica dos seus, alheio ao horror dos mortíferos que agonizavam pelo chão dos corredores a transbordar escreveu à mulher e aos filhos uma carta de amor febril, de gratidão por ter existido, na qual se revelava o quanto e com quanta avidez tinha amado a vida. Foi um adeus de vinte páginas cheias onde se notavam os progressos do mal pela deterioração da escrita e não era necessário ter conhecido quem as escrevera para saber que a assinatura fora escrita com o último fôlego. De acordo com as suas disposições, o corpo cinzento confundiu-se no cemitério comum e não foi visto por ninguém que o amara.

O doutor Juvenal Urbino recebeu o telegrama três dias depois em Paris, durante um jantar de amigos, e fez um brinde com champanhe à memória do pai. Disse: «Era um homem bom.» Mais tarde recriminar-se-ia pela sua falta de maturidade: iludia a realidade para não chorar. Mas três semanas depois recebeu uma cópia da carta póstuma e então rendeu-se à verdade. Subitamente revelou-se-lhe a fundo a imagem do homem a quem conhecera antes de qualquer outro, que o tinha criado e educado, que dormira e fornicara durante trinta e dois anos com a sua mãe e que, no entanto, nunca antes dessa carta se lhe tinha mostrado tal como era em corpo e alma, por timidez pura e simples. Até então, o doutor Juvenal Urbino e a sua família tinham concebido a morte como um acidente que acontece aos outros, aos pais dos outros, aos irmãos e cônjuges alheios, mas não aos seus. Eram pessoas de vidas lentas, às quais não se via tornarem-se velhas, nem adoecer nem morrer, mas que se iam desvanecendo a pouco e pouco no seu tempo, tornando-se recordações, brumas de outra época, até serem assimiladas pelo esquecimento. A carta póstuma do pai, mais que o telegrama com a má notícia, atirou-o de bruços contra a certeza da morte. E, não obstante, uma das suas recordações mais antigas, teria talvez uns nove anos, ou talvez onze, era de certo modo um sinal prematuro da morte do pai. Ambos tinham ficado no escritório da casa numa tarde de chuva, ele a desenhar passarinhos e girassóis no lajedo do chão com giz de cor, e o pai a ler contra a luz da janela, com o colete desabotoado e ligas de borracha nas mangas da camisa. Passado pouco tempo interrompeu a leitura para coçar as costas com um coçador de cabo comprido que tinha uma mãozinha de prata na ponta. Como não conseguiu, pediu ao filho que o coçasse com as unhas, e ele fê-lo com a estranha sensação de não sentir o seu próprio corpo a ser coçado. No fim, o pai olhou para ele por cima do ombro com um sorriso triste.

- Se eu agora morrer - disse-lhe - só te lembrarás de mim quando tiveres a minha idade.

Disse-o sem nenhum motivo aparente, e o anjo da morte flutuou por uns instantes na penumbra fresca do escritório e voltou a sair pela janela, deixando à sua passagem um monte de penas, mas o menino não as viu. Tinham passado mais de vinte anos desde então, e Juvenal Urbino estava prestes a ter a idade que o seu pai tivera naquela tarde. Sabia-se idêntico a ele, e à consciência de o ser somava-se agora a consciência angustiante de ser tão mortal quanto ele.

A cólera tornou-se numa obsessão. Dela não sabia muito mais do que aprendera na rotina de algum curso marginal, e parecia-lhe inverosímil que apenas trinta anos antes tivesse causado em França, inclusive em Paris, mais de cento e quarenta mil mortos. Mas depois da morte do pai aprendeu tudo quanto se podia aprender sobre os diversos tipos de cólera, quase como uma penitência para apaziguar a sua memória, e foi aluno do epidemiólogo mais destacado do seu tempo e criador dos cordões sanitários, o professor Adrien Proust, pai do grande escritor. De modo que quando regressou à sua terra e sentiu, ainda no mar, a pestilência do mercado e viu as ratazanas nos esgotos e os garotos nus a chapinhar nos charcos das ruas, não só compreendeu que a desgraça tivesse ocorrido como teve a certeza de que se repetiria a qualquer momento.

Não passou muito tempo. Em menos de um ano os seus alunos do Hospital da Misericórdia pediram-lhe que os ajudasse com um doente, recolhido por esmola, que tinha uma estranha coloração azul em todo o corpo. Ao doutor Juvenal Urbino bastou vê-lo da porta para reconhecer o inimigo. Mas teve sorte: o doente tinha chegado três dias antes numa escuna de Curaçau e tinha ido à consulta externa do hospital pelos seus próprios meios, não parecendo provável que tivesse contagiado alguém. Em todo o caso, o doutor Juvenal Urbino preveniu os seus colegas, conseguiu que as autoridades dessem o alarme nos portos vizinhos para que localizassem a escuna contaminada e a pusessem de quarentena, e teve que moderar o chefe militar da praça que queria decretar a lei marcial e aplicar imediatamente a terapêutica dos tiros de canhão de quarto em quarto de hora.

Economize a sua pólvora para quando vierem os liberais - disse-lhe de bom humor. - Já não estamos na Idade Média.

O doente morreu ao fim de quatro dias, sufocado por um vómito branco e granuloso, mas nas semanas seguintes não se descobriu mais nenhum caso apesar do estado de alerta constante. Pouco depois, El Diário dei Comercio publicou a notícia de que duas crianças tinham morrido de cólera em lugares diferentes da cidade. Comprovou-se que uma delas tinha disenteria comum, mas a outra, uma menina de cinco anos, parecia ter sido, com efeito, vítima de cólera. Os seus pais e três irmãos foram separados e postos em quarentena individual, e todo o bairro foi submetido a uma estrita vigilância médica. Uma das crianças contraiu cólera mas recuperou muito rapidamente, e toda a família regressou a casa passado o perigo. Registaram-se mais onze casos ao longo de três meses, e ao quinto houve um recrudescimento alarmante, mas ao fim do ano considerou-se que os riscos de uma epidemia tinham sido esconjurados. Ninguém pôs em dúvida que as exigências sanitárias do doutor Juvenal Urbino, mais que a suficiência dos seus pregões, tinha feito com que o prodígio fosse possível. Desde então e até já estar bem adiantado este século que a cólera foi endémica não só em quase todo o litoral das Caraíbas e da enseada de La Magdalena, mas não voltou a alastrar como epidemia. O alarme serviu para que as advertências do doutor Juvenal Urbino fossem ouvidas com mais seriedade pelo poder público. Na Escola de Medicina impos-se a cátedra obrigatória da cólera e da febre-amarela e compreendeu-se a urgência de fechar os esgotos e de construir um mercado afastado da esterqueira. Porém, o doutor Juvenal Urbino não se preocupou então em reclamar a sua vitória nem se sentiu com ânimo para prosseguir as suas missões sociais, porque ele próprio estava com uma asa quebrada, estonteado e distraído, e decidido a mudar tudo e a esquecer-se de tudo o mais da vida devido ao relâmpago de amor de Fermina Daza.

Foi, com efeito, o fruto de um erro clínico. Um médico amigo, que julgou vislumbrar os sintomas premonitórios da cólera num paciente de dezoito anos, pediu ao doutor Juvenal Urbino que a fosse visitar. Foi nessa mesma tarde, alarmado com a possibilidade de que a peste tivesse entrado no santuário da cidade velha, pois até essa altura todos os casos tinham surgido nos bairros marginais e quase todos entre a população negra. Encontrou outras surpresas menos ingratas. A casa, à sombra das amendoeiras do Parque dos Evangelhos, parecia do lado de fora tão destruída quanto as outras da zona colonial, mas do lado de dentro havia uma ordem de beleza e uma luz atónita que parecia de outra idade do mundo. O saguão dava directamente para um pátio sevilhano, quadrado, e recentemente caiado, com laranjeiras em flor e o chão empedrado com os mesmos azulejos das paredes. Havia um rumor contínuo de água invisível, canteiros de cravos nas cornijas e gaiolas de pássaros raros nas arcadas. Os mais raros, numa gaiola muito grande, eram três corvos que, ao sacudirem as asas, saturavam o pátio com um perfume estranho. Vários cães, presos nalgum sítio da casa, começaram logo a ladrar, enlouquecidos pelo cheiro do estranho, mas um grito de mulher fê-los calar de imediato e numerosos gatos saltaram de todos os lados, e foram-se esconder entre as flores, assustados com a autoridade da voz. Então fez-se um silêncio tão diáfano que através da desordem dos pássaros e das sílabas da água na pedra se sentia o alento desolado do mar.

Perturbado pela certeza da presença física de Deus, o doutor Juvenal Urbino pensou que uma casa como aquela era imune à peste. Seguiu Gala Placidia pelo corredor dos arcos, passou em frente da janela do quarto da costura onde Florentine Ariza viu pela primeira vez a Fermina Daza, quando o pátio ainda estava em ruínas, subiu a escada de mármore novo até ao segundo andar e esperou que o anunciassem antes de entrar no quarto da doente. Mas Gala Placidia voltou a sair com um recado:

- A menina diz que não pode entrar agora porque o seu paizinho não se encontra em casa.

Por isso voltou às cinco da tarde, segundo a indicação da criada, e Lorenzo Daza em pessoa abriu-lhe o portão e conduziu-o ao quarto da filha. Ficou sentado na penumbra com os braços cruzados e esforçando-se em vão por controlar a respiração ruidosa enquanto durou o exame. Não era fácil saber quem estava mais inibido, se o médico com o seu tacto pudico ou a doente com o seu recato de virgem em camisa de seda, mas nenhum olhou o outro nos olhos, perguntando ele com voz impessoal e respondendo ela com voz trémula, os dois atentos ao homem sentado na penumbra. Por fim, o doutor Juvenal Urbino pediu à doente que se sentasse e abriu-lhe a camisa de dormir até à cintura com um cuidado requintado: o peito intacto e altivo, de mamilos infantis, resplandeceu por um momento como um clarão nas sombras da alcova antes de ela se apressar a cobri-lo com os braços cruzados. Imperturbável, o médico afastou-lhe os braços sem olhar para ela, e fez-lhe a auscultação directa com a orelha de encontro à pele, primeiro no peito e depois nas costas.

O doutor Juvenal Urbino costumava contar que não experimentara nenhuma emoção quando conheceu a mulher com quem havia de viver até ao dia da sua morte. Recordava a camisa de noite azul-celeste debruada a renda, os olhos febris, o longo cabelo solto sobre os ombros, mas estava tão concentrado na questão da erupção da peste na zona colonial que não reparou em nada do muito que ela tinha de adolescente em flor, mas sim no mínimo pormenor que pudesse ter de empestada. Ela foi mais explícita: o jovem médico de quem tanto ouvira falar a propósito da cólera pareceu-lhe um pedante incapaz de se interessar por alguém que não fosse ele próprio. O diagnóstico foi uma infecção intestinal de origem alimentar que cedeu com um tratamento caseiro de três dias. Aliviado com a confirmação de que a filha não tinha contraído a cólera, Lorenzo Daza acompanhou o doutor Juvenal Urbino até ao estribo do carro, pagou-lhe o peso ouro da visita, que lhe pareceu excessivo mesmo para um médico de ricos, mas despediu-se dele com desmesuradas mostras de gratidão. Estava deslumbrado com o resplendor dos seus apelidos e não só não o dissimulava como teria feito qualquer coisa para o ver outra vez e em circunstâncias menos formais.

O caso pôde dar-se por encerrado. Mas, na terça-feira da semana seguinte, sem ser chamado e sem se anunciar, o doutor Juvenal Urbino voltou lá a casa à importuna hora das três da tarde. Fermina Daza estava no quarto de costura, a ter uma lição de pintura a óleo com duas amigas, quando ele apareceu à janela com o fato branco, imaculado, e o chapéu alto igualmente branco, e lhe fez sinal para que se aproximasse. Ela deixou o bastidor na cadeira e dirigiu-se à janela andando nas pontas dos pés com a saia de folhos levantada até aos tornozelos para evitar arrastá-la. Levava um diadema com um engaste pendurado sobre a testa, cuja pedra luminosa tinha a mesma cor esquiva dos seus olhos e tudo nela exalava uma aura de frescura. O médico achou curioso que se vestisse para pintar em casa como se fosse para uma festa. Do lado de fora da janela, tomou-lhe o pulso, disse-lhe que deitasse a língua de fora, examinou-lhe a garganta com uma espátula de alumínio, examinou-lhe a parte de dentro da pálpebra inferior e de cada vez fez um gesto de aprovação. Estava menos inibido do que na visita anterior, mas ela estava mais porque não percebia a razão daquele exame imprevisto, se ele próprio lhe dissera que não voltaria a não ser que o chamassem, caso houvesse alguma novidade. E mais: não queria voltar a vê-lo nunca mais. Acabado o exame, o médico guardou a espátula na maleta repleta de instrumentos e frascos com remédios e fechou-a com um gesto seco.

- Está como uma rosa recém-nascida - disse ele.

- Estou-lhe graças a Deus - disse ele, e, mal, citou São Tomás -: Lembre-se que tudo quanto é bom, venha donde vier, procede do Espírito Santo. Gosta de música?

Perguntou-lho com um sorriso encantador e de forma muito natural, mas ela não lhe correspondeu.

- A que propósito me pergunta isso? - perguntou por sua vez.

- A música é importante para a saúde - disse ele. Acreditava de facto nisso e ela iria saber, muito em breve e

para o resto da vida, como o tema da música era quase uma fórmula mágica que ele usava para propor uma amizade, mas naquele momento interpretou-o como uma farsa. Além disso, as duas amigas, que tinham estado a fingir que pintavam enquanto eles conversavam à janela, emitiram uns risinhos abafados e taparam a cara com os bastidores, o que acabou por irritar Fermina Daza. Furiosa, fechou a janela com uma pancada. O médico, perplexo diante das travezinhas da janela, lá fez por dar com o caminho do portão, mas enganou-se na direcção e na sua perturbação tropeçou na gaiola dos corvos perfumados. Estes lançaram uns pios sórdidos, adejaram assustados e as roupas do médico ficaram impregnadas de um perfume de mulher. O trovão da voz de Lorenzo Daza apanhou-o ali mesmo.

- Doutor, espere-me aí.

Tinha assistido a tudo do andar de cima e descia as escadas a abotoar a camisa, inchado e meio roxo, ainda com as patilhas despenteadas pelo mau sono da sesta. O médico tentou dominar a pungência da situação.

- Disse à sua filha que está como uma rosa.

- Assim é - disse Lorenzo Daza -, mas com demasiados espinhos.

Passou ao lado do doutor Urbino sem o cumprimentar. Empurrou as duas portadas da janela do quarto da costura e ordenou à filha com um grito áspero:

- Vem pedir desculpas ao senhor doutor.

O médico tentou intervir para o impedir, mas Lorenzo Daza não o atendeu. Insistiu: «Despacha-te.» Ela olhou para as amigas num pedido fundo de compreensão e replicou ao pai que não tinha motivos para o fazer, pois só fechara a janela para evitar que o sol continuasse a entrar. O doutor Urbino apressou-se a dar por boas as suas razões, mas Lorenzo Daza insistiu na ordem. Então, Fermina Daza voltou para a janela e, pálida de raiva, adiantando o pé direito enquanto levantava a saia com a ponta dos dedos, fez ao médico uma reverência teatral.

- Peço-lhe as minhas mais sinceras desculpas, cavalheiro disse.

O doutor Juvenal Urbino imitou-a de bom humor, fazendo com o seu chapéu de copa alta uma mesura de mosqueteiro, mas não conseguiu o sorriso de piedade que esperava. Lorenzo Daza convidou-o então a tomar, no escritório, um café de desagravo, e ele aceitou, satisfeito, para que não houvesse qualquer dúvida de que não guardava na alma nenhum resquício de ressentimento.

A verdade era que o doutor Juvenal Urbino não tomava café, a não ser uma chávena em jejum. Também não bebia álcool, excepto um copo de vinho à refeição em ocasiões solenes, mas não só bebeu o café que lhe ofereceu Lorenzo Daza como também aceitou um copinho de licor de anis. Depois aceitou outro café com outro copo de anis e em seguida outro e mais outro, apesar de ainda ter de fazer algumas visitas. No princípio escutou atentamente as desculpas que Lorenzo Daza lhe continuava a dar em nome da filha, a quem definiu como uma menina inteligente e séria, digna de um príncipe daqui ou de qualquer outra parte e cujo único defeito, segundo disse, era o seu carácter de mula. Mas depois do segundo copo julgou ouvir a voz de Fermina Daza ao fundo do pátio e a sua imaginação foi atrás dela, perseguiu-a pela noite recente da casa, enquanto acendia as luzes no corredor, fumigava os quartos com a bomba de insecticida, destapava no fogão a panela de sopa que ia comer essa noite com o pai, ele e ela sozinhos à mesa, sem levantar os olhos, sem sorver a sopa para não quebrar o encanto do rancor, até que ele acabasse por se render e pedir-lhe perdão pela severidade dessa tarde.

O doutor Urbino conhecia as mulheres o suficiente para dar-se conta de que Fermina Daza não passaria pelo escritório enquanto ele não saísse, mas demorava-se porque sentia que o orgulho ferido não o deixaria viver em paz depois de se terem enfrentado naquela tarde. Lorenzo Daza, já quase bêbado, não parecia notar a sua falta de atenção, pois bastava-se a si próprio com a sua verbosidade indomável. Falava desenfreadamente, mastigando a ponta do charuto apagado, tossindo aos berros, escarrando, acomodando-se com grande dificuldade na poltrona giratória, cujas molas soltavam lamentos de animal com cio. Tinha bebido três copos por cada um que tomara o seu convidado e só fez uma pausa quando se apercebeu de que já não se viam um ao outro, levantando-se para acender o candeeiro. O doutor Juvenal Urbino olhou-o de frente com a nova luz, viu que tinha um olho torcido como ó de um peixe e que as suas palavras não correspondiam ao movimento dos lábios e pensou que eram alucinações suas por abusar do álcool. Então, levantou-se com a sensação fascinante de estar dentro de um corpo que não era o seu, mas de alguém que continuava sentado no assento onde ele estava e teve de fazer um grande esforço para não perder a razão.

Passava das sete quando saiu do escritório precedido por Lorenzo Daza. Estava lua cheia. O pátio idealizado pelo anis flutuava no fundo de um aquário e as gaiolas cobertas com trapos pareciam fantasmas adormecidos sob o aroma quente dos botões das flores de laranjeira. A janela do quarto da costura estava aberta. Havia um candeeiro aceso em cima da mesa de trabalho, e os quadros por acabar estavam nos cavaletes como numa exposição. «Onde estás que não estás», disse o doutor Urbino ao passar, mas Fermina Daza não o ouviu, não o podia ouvir, porque estava a chorar de raiva no seu quarto, deitada de bruços sobre a cama e à espera do pai para o fazer pagar a humilhação dessa tarde. O médico não renunciava à ideia de se despedir dela, mas Lorenzo Daza não lho porpôs. Relembrou a marcha inocente do seu pulso, a sua língua de gata, as suas amígdalas ternas, mas desmoralizou-o pensar que ela não o queria ver nunca mais nem haveria de consentir que ele tentasse vê-la. Quando Lorenzo Daza entrou no saguão, os corpos acordados sob os lençóis soltaram um grito fúnebre. «Tirar-te-ão os olhos», disse o médico em voz alta, pensando nela, e Lorenzo Daza voltou-se para lhe perguntar que dissera.

- Não fui eu - disse ele. - Foi o anis.

Lorenzo Daza acompanhou-o até ao carro, insistindo para que recebesse o peso ouro da segunda visita, mas ele não lho aceitou. Deu instruções correctas ao cocheiro para que o levasse a casa dos dois doentes que ainda lhe faltava ver e subiu para a carruagem sem ajuda. Mas começou a sentir-se mal com os solavancos nas ruas empedradas de modo que mandou o cocheiro alterar a rota. Olhou-se por um momento no espelho da carruagem e viu que também a sua imagem continuava a pensar em Fermina Daza. Encolheu os ombros. Por fim, soltou um arroto, inclinou a cabeça contra o peito, adormeceu e, no seu sonho, começou a ouvir os sinos do luto. Ouviu primeiro os da catedral e depois os de todas as igrejas, um após o outro, até o som de metal rachado de São Julião Hospitaleiro.

- Merda - murmurou adormecido. - Morreram os mortos.

A mãe e as irmãs estavam a tomar café com leite e a conter almojávenas na mesa de cerimónias da casa de jantar principal quando o viram aparecer à porta com o rosto transido, e todo ele desmoralizado pelo perfume de putas dos corvos. O sino maior da catedral contígua ressoava pelos espaços imensos da casa. A mãe perguntou-lhe alarmada onde se havia metido, porque o tinham procurado por toda a parte para que fosse ver o general Ignacio Maria, último neto do marquês de Jaraíz de Ia Vera, que tinha sido derrubado nessa tarde por uma congestão cerebral: era por ele que dobravam os sinos. O doutor Juvenal Urbino escutou a mãe sem a ouvir, agarrado à maçaneta da porta e depois deu meia volta tentanto chegar ao seu quarto, mas caiu de bruços numa explosão de vómitos de anis estrelado.

- Maria Santíssima - gritou a mãe. - Deve ter acontecido qualquer coisa de muito estranho para chegares a casa nesse estado.

O mais estranho, porém, não tinha acontecido ainda. Aproveitando a visita do conhecido pianista Romero Lussich, que tocou um ciclo de sonatas de Mozart, logo que a cidade se recompôs do luto do general Ignacio Maria, o doutor Juvenal Urbino mandou subir o piano da Escola de Música numa carreta de mulas e levou a Fermina Daza uma serenata que fez época. Ela acordou com os primeiros compassos e não precisou de se chegar às tabuinhas da varanda para saber quem era o autor daquela homenagem insólita. A única coisa de que teve pena foi de não ter a coragem de outras donzelas zangadas que tinham despejado o vaso de noite na cabeça do pretendente indesejado. Lorenzo Daza, por sua vez, vestiu-se depressa enquanto durou a serenata e, no fim, fez entrar na sala de visitas o doutor Juvenal Urbino e o pianista, ainda ataviados com os fatos de cerimónia do concerto, e agradeceu-lhes a serenata com um copo do melhor brande.

Fermina Daza deu-se conta muito cedo de que o seu pai estava a tentar suavizar-lhe o coração. No dia a seguir à serenata tinha-lhe dito de maneira acidental: «Imagina como se sentiria a tua mãe se soubesse que és pretendida por um Urbino de Ia Calle.» Ela replicou secamente: «Voltaria a morrer dentro do caixão.» As amigas que pintavam com ela tinham-lhe contado que Lorenzo Daza recebera um convite para almoçar no Clube Social da parte do doutor Juvenal Urbino, e que este tinha sido hjecto de uma notificação severa por quebrar as normas do regulamento. Só então ficou também a saber que o seu pai tinha solicitado por diversas vezes a sua entrada no Clube Social e que em todas elas fora recusado com uma quantidade de bolas pretas que não tornavam possível uma nova tentativa. Mas Lorenzo Daza assimiliava as humilhações com bons fígados e continuava a fazer malabarismos de engenho para se encontrar por acaso com Juvenal Urbino, sem se aperceber- que era Juvenal Urbino quem fazia mais do que os possíveis por deixar-se encontrar. Por vezes passavam horas a conversar no escritório, e a casa ficava entretanto como que suspensa à margem do tempo, porque Fermina Daza não permitia que ninguém desse livre curso à sua vida enquanto ele não se fosse embora. O Café da Paróquia foi um bom porto intermédio. Foi aí que Lorenzo Daza ensinou a Juvenal Urbino as lições básicas do xadrez, e este foi um aluno tão aplicado que o xadrez se converteu num vício incurável até ao dia da sua morte.

Uma noite, pouco tempo depois da serenata de piano, Lorenzo Daza encontrou uma carta com o sobrescrito lacrado no saguão da sua casa, dirigido à filha e com o monograma de JUC impresso no lacre. Deslizou-o por debaixo da porta ao passar diante do quarto de Fermina, e ela não conseguiu compreender como tinha chegado até ali, pois parecia-lhe inconcebível que o pai se tivesse modificado tanto ao ponto de lhe levar uma carta de um pretendente. Deixou-a sobre a mesinha-de-cabeceira e aí ficou, fechada, durante vários dias, até certa tarde de chuva em que Fermina Daza sonhou que Juvenal Urbino voltara lá a casa para lhe oferecer a espátula com que lhe tinha examinado a garganta. A espátula do sonho não era de alumínio mas de um metal apetitoso que ela tinha saboreado deleitada noutros sonhos, de modo que a partiu em duas partes desiguais e lhe deu a ele a mais pequena.

Ao acordar abriu a carta. Era breve e bonita, e a única coisa que Juvenal Urbino lhe solicitava era que lhe permitisse pedir ao pai licença para a visitar. Impressionou-a a simplicidade e a seriedade dele, e a raiva cultivada com tanto amor durante tantos dias apaziguou-se de imediato. Guardou a carta num cofre que não estava a uso no fundo do baú, mas lembrou-se que também tinha sido aí que guardara as cartas perfumadas de Florentine Ariza, e tirou-a do cofre para mudá-la de lugar, com um tremor num acesso de vergonha. Então, pareceu-lhe que o mais decente era dá-la por não recebida e queimou-a na lamparina, vendo como as gotas do lacre rebentavam em borbulhas azuis sobre a chama. Suspirou: «Pobre homem.» Caiu em si de repente ao aperceber-se que era a segunda vez que o dizia em pouco mais de um ano e por uns segundos pensou em Florentine Ariza, surpreendendo-se a si própria por ver como estava longe da sua vida: pobre homem.

Em Outubro, com as últimas chuvas, chegaram mais três cartas, a primeira acompanhada por uma caixinha de pastilhas de violetas da Abadia de Flavigny. Duas tinham sido entregues no portão da casa pelo cocheiro do doutor Juvenal Urbino, e este cumprimentara Gala Placidia da janela do carro, primeiro para que não houvesse dúvida de que as cartas eram dele, e depois para que ninguém lhe pudesse dizer que não tinham sido recebidas. Além do mais estavam ambas seladas com o monograma de lacre e escritas com as garatujas crípticas que Fermina Daza já conhecia: letra de médico. Ambas diziam substancialmente o mesmo que a primeira e estavam estruturadas com o mesmo espírito de submissão, mas no fundo da sua decência, começava a avistar-se uma ansiedade que nunca foi evidente nas cartas parcimoniosas de Florentine Ariza. Fermina Daza leu-as mal foram entregues, com duas semanas de diferença, e, sem conseguir explicá-lo nem a ela própria, mudou de ideias quando estava prestes a deitá-las ao fogo. No entanto, nunca pensou em responder-lhes.

A terceira carta de Outubro tinha sido introduzida por debaixo do portão e era em tudo diferente das anteriores. A escrita era tão pueril que fora, sem dúvida, feita com a mão esquerda, mas Fermina Daza só se deu conta disso quando o próprio texto provou o seu anonimato infame. Quem o escrevera dava como certo que Fermina Daza tinha encantado com os seus filtros o doutor Juvenal Urbino, e dessa suposição tirava conclusões sinistras. Terminava com uma ameaça: se Fermina Daza não renunciasse à sua pretensão de namorar com o homem mais cobiçado da cidade seria exposta à vergonha pública.

Sentiu-se vítima de uma grave injustiça, mas a sua reacção não foi vingativa, mas exactamente o oposto: gostaria de descobrir o autor anónimo para o dissuadir do seu erro com tantas licações quantas fossem necessárias, pois estava certa de que nunca, por motivo algum, seria sensível às pretensões de Juvenal Urbino. Nos dias que se seguiram recebeu outras cartas sem assinatura, tão pérfidas como a primeira, mas nenhuma das três parecia ter sido escrita pela mesma pessoa. Ou era vítima de uma conjura, ou a falsa versão dos seus amores secretos tinha chegado mais longe do que podia supor-se. Inquietava-a a ideia de que tudo aquilo fosse consequência de uma simples indiscrição de Juvenal Urbino. Ocorreu-lhe que talvez fosse um homem diferente da sua aparência digna e que talvez se lhe desatasse a língua durante as visitas e fizesse alarde de conquistas imaginárias, como tantos outros da sua classe. Pensou em escrever-lhe para o recriminar pelo ultraje da sua honra, mas logo desistiu desse propósito, porque talvez fosse isso o que ele quisesse. Tentou saber mais alguma coisa através das amigas que iam pintar com ela no quarto da costura, mas a única coisa que elas tinham ouvido eram comentários simpáticos sobre a serenata de piano. Sentiu-se furiosa, impotente, humilhada. Ao contrário do que sucedera no princípio, quando quisera encontrar-se com o inimigo invisível para o convencer dos seus erros, agora só queria fazê-lo em pedaços com a tesoura de podar. Passava as noites em claro, analisando pormenores e expressões das cartas anónimas, na ilusão de encontrar o consolo de uma pista. Foi uma ilusão vã: Fermina Daza era, por natureza, alheia ao mundo interior dos Urbino de Ia Calle e tinha armas para se defender das suas boas intenções, mas não das más.

Esta convicção tornou-se ainda mais amarga depois do pavor da boneca negra que lhe chegou por aqueles dias sem qualquer carta, mas cuja origem lhe pareceu fácil de imaginar: só o doutor Juvenal Urbino lha podia ter mandado. Tinha sido comprada na Martinica, segundo a etiqueta original, e tinha um vestido primoroso e os cabelos encaracolados com filamentos de ouro, e fechava os olhos quando a deitavam. Fermina Daza achou-a tão divertida que passou por cima dos seus escrúpulos e deitava-a na sua almofada durante o dia. Habituou-se a dormir com ela. Ao fim de algum tempo, porém, depois de um sonho esgotante, descobriu que a boneca estava a crescer: a magnífica roupa original, que chegara com ela, deixava-lhe os joelhos à vista e os sapatos tinham-se rebentado com a pressão dos pés. Fermina Daza tinha ouvido falar de feitiços africanos, mas de nenhum tão pavoroso como esse. Por outro lado, não podia conceber que um homem como Juvenal Urbino fosse capaz de semelhante atrocidade. Tinha razão: a boneca não havia sido levada pelo cocheiro mas por um vendedor ocasional de camarões, de quem ninguém pudera dar uma descrição acertada. Tentanto decifrar o enigma, Fermina Daza pensou por um momento em Florentine Ariza, cuja condição sombria a assustava, mas a vida se encarregou de a convencer do seu erro. Nunca se esclareceu o mistério e só o facto de o evocar provocava-lhe um arrepio de pavor até muito depois de estar casada e ter filhos e se julgar uma eleita do destino: a mais feliz.

A última tentativa do doutor Urbino foi a mediação da Irmã Franca de Ia Luz, superiora do colégio da Apresentação da Santíssima Virgem, que não se podia negar ao pedido de uma família que tinha favorecido a sua comunidade desde os tempos em que se estabelecera nas Americas. Apareceu acompanhada por uma noviça às nove da manhã, e tiveram as duas que se entreter com as gaiolas dos pássaros enquanto Fermina Daza acabava de tomar o seu banho. Era uma alemã viril, com um sotaque metálico e um olhar imperativo que não tinham qualquer relação com as suas paixões pueris. Não havia nada neste mundo que Fermina Daza odiasse mais do que ela e tudo o que tivesse que ver com ela, pois só a lembrança da sua falsa piedade lhe provocava uma comichão de escorpiões nas entranhas. Foi-lhe suficiente reconhecê-la da porta da casa de banho para reviver, de uma vez só, todos os suplícios do colégio, o sono insuportável da missa diária, o terror dos exames, a eficiência servil das noviças, a vida inteira pervertida pelo prisma da pobreza de espírito. A Irmã Franca de Ia Luz cumprimentou-a, por seu lado, com uma alegria que parecia sincera. Ficou surpreendida ao ver quanto tinha crescido e amadurecido, e louvou-lhe o zelo com que governava a casa, o bom gosto do pátio, as árvores floridas. Mandou a noviça esperá-la ali, sem se aproximar muito dos corvos, que num descuido lhe podiam arrancar os olhos e procurou um lugar afastado onde se pudesse sentar para conversar a sós com Fermina. Ela convidou-a para a sala. foi uma visita breve e áspera. A Irmã Franca de la Luz, sem dar tenpo com preâmbulos, ofereceu a Fermina Daza uma reabilitação honrosa. O motivo da expulsão seria apagado das actas como da memória da comunidade, o que lhe permitiria acabar os estudos e obter o diploma de bacharel em Letras. Fermina Daza, perplexa, quis saber qual o motivo.

É o pedido de alguém que merece tudo, e cujo único desejo é fazer-te feliz - disse a freira. - Sabes quem é?

Então compreendeu. Perguntou a si mesma com que autoridade servia como emissária do amor uma mulher que lhe tinha prejudicado a vida por causa de uma carta inocente, mas não se atreveu a dizer-lho. Disse, porém, que sim, que conhecia esse homem, e por isso mesmo sabia que ele não tinha qualquer direito de se imiscuir na sua vida.

- A única coisa que te pede é que lhe concedas que converse contigo durante cinco minutos - disse a freira. - Estou certa que o teu pai concordará.

A raiva de Fermina Daza tornou-se mais intensa com a ideia de que o pai fosse cúmplice daquela visita.

- Vimo-nos duas vezes quando estive doente - disse. Agora não há nenhuma razão.

- Para qualquer mulher com dois dedos de testa esse homem é uma prenda da Divina Providência - disse a freira.

Continuou a falar das suas virtudes, da sua devoção, da sua consagração ao serviço dos que sofrem. Enquanto falava, tirou da manga um terço de ouro com o Cristo talhado em marfim, passando-o pelos olhos de Fermina Daza. Era uma relíquia de família, antiga de mais de cem anos, talhada por um ourives de Siena e benzida por Clemente IV.

- é tua - disse.

Fermina Daza sentiu a torrente do sangue a atropelar-se-lhe nas veias e então atreveu-se.

Não consigo entender como a senhora se presta a isto disse - se para si o amor é pecado.

A Irmã Franca de Ia Luz fingiu passar por alto aquele reparo mas incendiaram-se-lhe as pálpebras. Continuou a balançar o rosário à frente dos seus olhos.

- E melhor que te entendas comigo - disse - porque depois de mim pode vir o senhor arcebispo, e com ele as coisas são diferentes.

- Que venha - disse Fermina Daza.

A Irmã Franca de Ia Luz escondeu o terço de ouro na manga. Depois tirou da outra um lenço muito usado, feito numa bola e conservou-o apertado no punho, olhando para Fermina de muito longe com um sorriso de comiseração.

- Minha pobre filha - suspirou-, ainda continuas a pensar naquele homem.

Fermina Daza mastigou a impertinência olhando para a freira sem pestanejar, fitou-a bem nos olhos, mastigando em silêncio, até que viu com uma complacência infinita que os seus olhos de homem se marejaram de lágrimas. A Irmã Franca de Ia Luz secou-as com a bola do lenço e pôs-se de pé.

- Bem diz o teu pai que és uma mula - disse.

O arcebispo não foi. De modo que o assédio teria terminado naquele dia, e só não terminou porque Hildebranda Sanchez veio passar o Natal com a prima e a vida modificou-se para as duas. Receberam-na na escuna de Riohacha às cinco da manhã, no meio de uma turba de passageiros agonizantes por causa do enjoo, mas ela desembarcou radiante, muito mulher, e com o espírito alvoroçado pela má noite no mar. Vinha carregada de cestos com perus vivos e de quantos frutos se davam nos seus prósperos pomares para que não faltasse de comer a ninguém durante a sua visita. Lisímaco Sanchez, o pai dela, mandava perguntar se faziam falta músicos para as festas de Natal, pois ele tinha os melhores à sua disposição e prometia mandar, mais lá para diante, um carregamento de fogos-de-artifício. Além disso, anunciava que não podia ir buscar a filha antes de Março, de modo que havia tempo de sobra para se viver.

As duas primas começaram imediatamente. Tomavam banho juntas desde a primeira tarde, nuas, fazendo-se abluções recíprocas com a água do tanque. Ajudavam-se a ensaboar, catavam as lêndeas uma à outra, comparavam as nádegas, os seios imóveis, cada uma remirando-se no espelho da outra para apreciar com que crueldade as tratara o tempo desde a última vez que se tinham visto nuas. Hildebranda era grande e maciça, de pele dourada, mas todo o cabelo do seu corpo era de mulata, irto e encaracolado como palha de aço. Fermina Daza, pelo seu lado tinha uma nudez pálida de linhas longas, de pele serea de pêlos macios. Gala Placidia tinha-lhes dito para porem duas camas iguais no quarto, mas de vez em quando deitavam-se numa delas e conversavam com as luzes apagadas até ser manhã. Fumavam uns charutos de salteadores que Hildebranda havia levado escondidos no forro do baú e depois tinham de queimar folhas de papel da Arménia para purificar o ar de tugúrio que deixavam no quarto. Fermina Daza fizera-o pela primeira vez em Valledupar e tinha continuado a fazê-lo em Fonseca, em Riohacha, onde se chegavam a fechar até dez primas num quarto para falarem de homens e fumarem às escondidas. Aprendeu a fumar ao contrário com a brasa dentro da boca, como fumavam os homens nas noites das guerras para que não os atraiçoasse o lume do charuto. Mas nunca tinha fumado sozinha. Com Hildebranda na sua casa fê-lo todas as noites antes de dormir e, desde então, adquiriu o hábito de fumar, ainda que sempre às escondidas, mesmo do marido e dos filhos, não só porque era malvisto que uma mulher fumasse em público mas porque tinha o prazer associado à clandestinidade.

Também a viagem de Hildebranda fora imposta pelos pais, que tentavam afastá-la do seu amor impossível, ainda que a tivessem feito acreditar que era para ajudar Fermina a decidir-se por um bom partido. Hildebranda aceitara com a ilusão de enganar o esquecimento, como o fizera a sua prima, e tinha feito um acordo com o telegrafista de Fonseca para que lhe mandasse as mensagens no maior sigilo. Por isso foi tão amarga a sua desilusão quando soube que Fermina Daza havia repudiado Florentine Ariza. Além disso, Hildebranda tinha uma concepção universal do amor, e pensava que qualquer coisa que acontecesse a alguém afectaria todos os amores do mundo. No entanto, não renunciou ao projecto. Com uma audácia que provocou em Fermina Daza uma crise de espanto, foi sozinha ao telégrafo disposta a ganhar os favores de Florentine Ariza.

Não o teria reconhecido, pois não possuía nenhum traço que correspondesse à imagem que ela tinha formado através de Fermina Daza. À primeira vista, pareceu-lhe impossível que a sua prima tivesse estado a ponto de enlouquecer por aquele empregado quase invisível, com ar de cão escorraçado, com um fato de rabino na miséria e com uns modos tão solenes que não poderiam alterar o coração de ninguém. Mas logo se arrependeu da primeira impressão, pois Florentine Ariza pôs-se incondicionalmente ao seu serviço sem saber quem era: nunca o soube. Ninguém a compreenderia melhor do que ele, de modo que não lhe exigiu que se identificasse nem lhe pediu morada alguma. A sua solução foi muito simples: ela passaria às quartas-feiras da parte da tarde pelo telégrafo para que ele lhe entregasse as respostas em mão, e mais nada. Por outro lado, ao ler a mensagem que Hildebranda levava escrita, perguntou-lhe se aceitava uma sugestão, e ela concordou. Florentino Ariza fez primeiro umas correcções entre linhas, suprimiu-as, voltou a escrevê-las, ficou sem espaço e, por fim, rasgou a folha e escreveu totalmente uma outra mensagem que a ela lhe pareceu enternecedora. Quando saiu do telégrafo Hildebranda estava à beira das lágrimas.

- É feio e triste - disse a Fermina Daza -, mas todo ele é amor.

O que mais chamou a atenção de Hildebranda foi a solidão da prima. Parecia, disse-lhe, uma solteirona de vinte anos. Acostumada a uma família numerosa e dispersa, em casas onde ninguém sabia ao certo quantos viviam nem quem iria lá comer a cada refeição, Hildebranda não conseguia imaginar uma rapariga da sua idade reduzida ao claustro da vida privada. Assim era: desde que se levantava às seis da manhã até que apagava a luz do quarto consagrava-se a perder tempo. A vida impunha-se-lhe do exterior. Primeiro, com os últimos galos, o leiteiro acordava-a com a aldraba do portão. Depois tocava a peixeira com o caixote de pargos moribundos num leito de algas, as vendedeiras ambulantes sumptuosas com as hortaliças de Maria Ia Baja e as frutas de San Jacinto. E depois, durante todo o dia, tocavam todos: os mendigos, as raparigas das rifas, as irmãzinhas de caridade, o amolador com a gaita de capador, o garrafeira, o que comprava ouro partido, o que comprava papel de jornal, as ciganas falsas que se ofereciam para ler o destino nas cartas, nas linhas da mão, nas borras do café, nas águas dos alguidares Gala Placidia passava a semana a abrir e a fechar o portão para dizer que não, «Venha outro dia» ou a gritar da Porta com o humor alterado: «Não incomodem mais, porque já comprámos tudo o que fazia falta.» Tinha substituído a tia Escolástica com tanto fervor e com tanta graça, que Fermina confundiu-a com ela até para gostar mais dela. Tinha bsessões de escrava. Assim que tinha uns momentos livres ia para o quarto de serviço, passar a ferro a roupa branca, deixando-a perfeita e guardando-a nos armários com flores de alfazema, e não só passava e dobrava a que acabava de lavar como também aquela que perdera o seu viço por falta de uso. Com o mesmo cuidado continuava a tratar do vestuário de Fermina Sanchez, a mãe de Fermina, falecida há catorze anos, mas era Fermina Daza quem tomava as decisões. Ordenava o que se havia de comer, o que tinha de se comprar, o que havia de se fazer em cada caso e assim determinava a vida de uma casa que, na realidade, não tinha nada que determinar. Quando acabava de lavar as gaiolas e de pôr a comida dos pássaros, de zelar para que nada faltasse às flores, ficava sem rumo. Muitas vezes, depois de ter sido expulsa do colégio, adormecia à hora da sesta e só acordava no dia seguinte. As aulas de pintura não passavam de mais uma maneira entretida de perder tempo.

As relações com o pai careciam de afecto desde o exílio da tia Escolástica, ainda que ambos tivessem encontrado maneira de viverem juntos sem se estorvarem. Quando ela se levantava, já ele tinha saído para os seus negócios. Poucas vezes faltava ao ritual do almoço, ainda que quase nunca comesse, pois bastavam-lhe os aperitivos e os petiscos galegos do Café da Paróquia. Também não jantava. Deixavam-lhe a sua parte na mesa, toda num único prato e coberta com outro, ainda que soubessem que ele só a comeria, aquecida, no dia seguinte, ao pequeno-almoço. Uma vez por semana dava à filha dinheiro para as despesas, que ele calculava muito bem e que ela administrava rigorosamente, mas prestava-se com gosto a qualquer pedido que ela lhes fizesse para despesas imprevistas. Nunca lhe regateava um tostão, nunca lhe pedia contas, mas ela comportava-se como se as tivesse de prestar perante um Tribunal do Santo Ofício. Nunca lhe havia falado da natureza nem do estado dos seus negócios, nem nunca a tinha levado a conhecer os seus escritórios do porto, que estavam num local vedado a meninas decentes mesmo que fossem acompanhadas pelos pais. Lorenzo Daza não chegava a casa antes das dez da noite, que era a hora de recolher nas épocas menos críticas das guerras. Ficava até essa hora no Café da Paróquia, a jogar ao que quer que fosse, porque era especialista em todos os jogos de salão, e, além disso, bom professor. Chegou sempre a casa no seu perfeito juízo, sem acordar a filha, apesar de tomar a sua primeira pinga de anis ao acordar e continuar a mastigar a ponta do charuto apagado e a beber durante todo o dia. Uma noite, porém, Fermina sentiu-o entrar. Ouviu os seus passos de cossaco nas escadas, o peso do seu corpo enorme no corredor do segundo andar, as pancadas da palma da sua mão na porta do quarto. Abriu-lha e, pela primeira vez, assustou-se com o seu olho torcido e o entorpecimento das suas palavras.

- Estamos arruinados - disse ele. - Completamente arruinados, ficas a saber.

Foi tudo quanto disse e nunca mais o voltou a dizer nem aconteceu nada que lhe indicasse que tinha dito a verdade, mas depois daquela noite, Fermina Daza teve consciência de que estava sozinha no mundo. Vivia num limbo social. As suas antigas companheiras de colégio estavam num céu que lhe era proibido, e muito mais ainda depois da desonra da expulsão, mas nem por isso ela era vizinha dos seus vizinhos, pois estes tinham-na conhecido sem passado e com o uniforme da Apresentação da Santíssima Virgem. O mundo do pai era de traficantes e de estivadores, de refugiados de guerras no albergue público do Café da Paróquia, de homens sós. No último ano, as aulas de pintura tinham-na aliviado um pouco da sua reclusão, porque a professora preferia dar aulas colectivas e levar outras alunas para o quarto da costura. Mas eram raparigas de condição social variada e mal definida. Para Fermina Daza não eram mais do que amigas emprestadas e cuja afeição terminava com o fim de cada aula. Hildebranda queria abrir a casa, ventilá-la, trazer os músicos, os foguetes e os fogueteiros do seu pai, e organizar um baile de Carnaval, cujas folias arrasassem o humor bolorento da prima, mas depressa se deu conta de que os seus propósitos eram inúteis. Por uma razão muito simples: não havia com quem.

Em todo o caso, foi ela que a apresentou à vida. A tarde, depois das aulas de pintura, fazia com que ela a levasse à rua para conhecer a cidade. Fermina Daza mostrou-lhe o caminho que fazia diariamente com a tia Escolástica, o banco do parquezinho onde Florentine Ariza fingia ler à espera dela, as ruelas por onde a seguia, os esconderijos das cartas, o palácio sinistro onde esteve a prisão do Santo Ofício, que depois tinha sido restaurada e convertida no Colégio da Apresentação da Santíssima Virgem, que ela odiava com toda a sua alma. Subiram a colina do cemitério dos pobres, onde Florentino Ariza tocava violino segundo a direcção dos ventos para que ela o ouvisse na cama, e daí viram toda a cidade histórica, os telhados quebrados e os muros carcomidos, as ruínas das fortalezas entre moitas, a fileira de ilhas da baía, as barracas miseráveis em volta dos pântanos, as Caraíbas imensas.

Na noite de Natal foram à Missa do Galo na catedral. Fermina ocupou o lugar onde melhor lhe chegava a música confidencial de Florentino Ariza e mostrou à prima o local exacto onde numa noite como aquela tinha visto de perto pela primeira vez os seus olhos espantados. Arriscaram-se sozinhas até ao Portal dos Escrivães, compraram doces, entretiveram-se na loja de papéis de fantasia e Fermina Daza indicou à prima o lugar onde descobriu de repente que o seu amor não passava de um reflexo. Ela própria não se dava conta de que cada passo seu de casa ao colégio, cada sítio da cidade, cada momento do seu passado recente não pareciam existir senão graças a Florentino Ariza. Hildebranda fez-lho notar, mas ela não o admitiu, porque jamais admitiria a realidade que Florentino Ariza, para bem ou para mal, tinha sido a única coisa que acontecera na sua vida.

Por esses dias veio um fotógrafo belga que instalou o seu estúdio na parte alta do Portal dos Escrivães e todo aquele que tivesse com que lhe pagar aproveitou a ocasião para tirar um retrato. Fermina e Hildebranda foram as primeiras. Esvaziaram o roupeiro de Fermina Sanchez, dividiram entre si as roupas mais vistosas, as sombrinhas, os sapatos de festa, os chapéus, e vestiram-se de damas do meio do século. Gala Placidia ajudou-as a apertar os corpetes, ensinou-as a movimentarem-se dentro das anquinhas das saias de balão, a calçarem as luvas, a abotoarem os botins de salto alto. Hildebranda preferiu um chapéu de abas largas com plumas de avestruz que lhe caíam pelas costas. Fermina pôs um mais recente, enfeitado com frutos de gesso pintado e flores de crinolina. No fim riram-se de si próprias quando se viram no espelho tão parecidas com os daguerreótipos das avós e saíram felizes, mortas de riso, para que lhes tirassem a fotografia das suas vidas. Gala Placidia viu-as da varanda a atravessar o parque com as sombrinhas abertas, equilibrando-se conforme podiam em cima dos saltos e a empurrarem as anquinhas com todo o corpo como andadeiras de crianças, e deu-lhes a sua bênção para que Deus as ajudasse nos seus retratos.

Havia uma multidão diante do estúdio do belga, porque estavam a fotografar Beny Centeno, que recentemente tinha ganho o campeonato de boxe no Panamá. Estava em calções de combate, com as luvas postas e a coroa na cabeça, mas não foi fácil fotografá-lo, porque tinha de permanecer em posição de combate durante um minuto, respirando o menos possível, mas assim que armava a guarda, os seus fãs irrompiam em ovações e ele não conseguia resistir à tentação de lhes fazer a vontade, exibindo as suas artes. Quando chegou a vez das primas, o céu tinha-se enevoado e a chuva parecia iminente, mas elas deixaram que lhes empoassem as caras com polvilho e apoiaram-se com tanta naturalidade a uma coluna de alabastro que conseguiram permanecer imóveis durante mais tempo do que parecia racional. Foi um retrato eterno. Quando Hildebranda morreu, quase centenária na sua propriedade de Flores de Maria, encontraram uma cópia fechada à chave no armário do quarto, escondida entre as dobras dos lençóis perfumados, juntamente com o fóssil de um pensamento numa carta apagada pelos anos. Fermina Daza guardou sempre o seu durante muitos anos na primeira folha de um álbum de família, donde desapareceu sem que se soubesse como nem quando, e chegou às mãos de Florentine Ariza por uma série de acasos inverozímeis, quando os já dois tinham mais de sessenta anos.

A praça que ficava em frente do Portal dos Escrivães estava apinhada de gente até nas varandas quando Fermina e Hildebranda saíram do estúdio do belga. Tinham-se esquecido de que estavam com as caras brancas de polvilho e os lábios pintados com uma pomada da cor do chocolate, e que as roupas que levavam não eram próprias nem para a hora nem para a época. A rua recebeu-as com um apupo de troça. Estavam a um canto tentando escapar ao escárnio público quando surgiu o landó dos alazões dourados. Os apupos cessaram e os grupos hostis dispersaram-se. Hildebranda nunca mais esqueceria a primeira visão do homem que apareceu no estribo, com o casaco de cetim o colete de brocados, os modos sábios, a doçura dos seus olhos, a autoridade da sua presença.

Embora nunca o tivesse visto reconheceu-o logo. Fermina Daza tinha-lhe falado dele, quase por acaso e sem qualquer interesse, numa tarde do mês anterior em que não quis passar pela casa do marquês de Casalduero porque o landó dos cavalos de ouro estava estacionado diante do portão. Contou-lhe quem era o dono e pôs-se a explicar-lhe as razões da sua antipatia, ainda que sem dizer uma palavra quanto às pretensões. Hildebranda esqueceu-o. Mas, ao identificá-lo na porta do carro como uma aparição de história de fadas, com um pé em terra e o outro no estribo, não percebeu os motivos da prima.

- Façam o favor de subir - disse-lhes o doutor Juvenal Urbino. - Levo-as aonde ordenarem.

Fermina Daza iniciou um gesto reticente, mas Hildebranda já tinha aceitado. O doutor Juvenal Urbino pôs o pé em terra e, com a ponta dos dedos, quase sem lhe tocar, ajudou-a a subir no carro. Fermina, sem outra alternativa, subiu depois dela, com o rosto afogueado pelo rubor.

A casa ficava a apenas três quarteirões. As primas não se aperceberam de que o doutor Urbino tivesse feito um acordo com o cocheiro, mas deve ter sido assim porque o carro demorou mais de meia hora a chegar. Iam sentadas no assento principal e ele em frente delas, de costas para o sentido do andamento do carro. Fermina voltou a cara para a janela e afundou-se no vazio. Hildebranda, pelo seu lado, estava encantada, e o doutor Urbino ainda mais encantado com o seu encantamento. Assim que o carro começou a andar, ela sentiu o cheiro suave do couro natural dos assentos, a intimidade do interior almofadado e disse que lhe parecia um lugar bom para ficar a viver nele. Quase inediatamente começaram a rir, a trocar piadas de velhos amigos e daí passaram para um jargão inventado que consistia em intercalar entre cada síbala uma síbala convencionada. Fingiam acreditar que Fermina não os entendia, ainda que não só soubessem que entendia como também que estava a dar-lhes toda a sua atenção, e por isso insistiam. Passado um bocado, depois de muito rir, Hildebranda confessou que não podia suportar por mais tempo o suplício dos botins.

- Nada mais fácil - disse o doutor Urbino. - Vamos lá a ver quem acaba primeiro.

Começou a desatar os atacadores das botas e Hildebranda aceitou o desafio. Não lhe foi fácil porque aquele estorvo do corpete de varetas não a deixava inclinar-se, mas o doutor Urbino demorou-se propositadamente até ela tirar os botins de debaixo das saias como uma gargalhada de triunfo, como se acabasse de os pescar num tanque. Olharam então os dois para Fermina e viram-lhe o magnífico perfil de verdilhão mais aprumado do que nunca de encontro ao incêndio do entardecer. Estava três vezes furiosa: pela situação imerecida em que se encontrava, pela conduta libertina de Hildebranda, e pela certeza de que o carro dava voltas sem sentido para retardar a chegada. Mas Hildebranda estava sem freio.

- Agora me dou conta - disse - que o que me estorvava não eram os sapatos mas esta gaiola de arame.

O doutor Urbino compreendeu que se referia às anquinhas e respondeu à letra. «Nada mais fácil», disse. «Tire-a.» Com um movimento rápido de prestidigitador tirou o lenço do bolso e vendou os olhos.

- Eu não olho - disse.

A venda realçou-lhe a pureza dos lábios entre a barba redonda e negra e os bigodes de pontas afiadas, e ela sentiu-se sacudida por uma chicotada de pânico. Olhou para Fermina e, desta vez, não a viu furiosa mas aterrorizada com a ideia de que ela fosse capaz de tirar a saia. Hildebranda pôs-se séria e perguntou-lhe em letras feitas com as mãos: «Que fazemos?» Fermina Daza respondeu-lhe no mesmo código que se não fossem directamente para casa se atiraria da carruagem em andamento.

- Estou à espera - disse o médico.

- Já pode olhar - disse Hildebranda.

O doutor Juvenal Urbino achou-a diferente ao tirar a venda e percebeu que o jogo acabara, e que tinha acabado mal. A um sinal seu, o cocheiro fez a carruagem dar uma volta inteira e ntrou no Parque dos Evangelhos no momento em que o acendedor municipal acendia as luminárias. Todas as igrejas deram o angelus. Hildebranda desceu depressa, um pouco perturbada por ter aborrecido a prima e despediu-se do médico com um aperto de mãos sem cerimónias. Fermina imitou-a, mas quando ia a retirar a mão com a luva de cetim, o doutor Urbino apertou-lhe com força o dedo médio, o do coração.

Estou à espera da sua resposta - disse-lhe.

Fermina deu então um puxão mais forte e a luva vazia ficou pendurada na mão do médico, mas não esperou que lha devolvesse. Deitou-se sem comer. Hildebranda, como se não tivesse acontecido nada, entrou no quarto, depois de jantar na cozinha com Gala Placidia e comentou com a sua graça natural os incidentes da tarde. Não disfarçou o seu entusiasmo pelo doutor Urbino, pela sua elegância e simpatia, mas Fermina não lhe correspondeu com nenhum comentário, estava, porém, refeita da contrariedade. A dado momento Hildebranda confessou: quando o doutor Juvenal Urbino vendou os olhos e ela viu o brilho dos seus dentes perfeitos entre os lábios rosados, tinha sentido um desejo irresistível de o comer com beijos. Fermina Daza voltou-se para a parede e pôs fim à conversa sem intuito de ofender, até um pouco sorridente, mas com todo o coração:

- Que puta me saíste! - disse.

Dormiu em sobressalto, vendo o doutor Juvenal Urbino por todo o lado, a rir, a cantar, a deitar chispas de enxofre pelos dentes com os olhos vendados, a troçar dela numa língua sem regras fixas numa carruagem diferente que subia a colina do cemitério dos pobres. Acordou muito antes de amanhecer, exausta, e ficou acordada, de olhos fechados, a pensar nos anos incontáveis que ainda lhe faltavam viver. Depois, enquanto Hildebranda tomava banho, escreveu uma carta, a toda a pressa, dobrou-a, a toda a pressa, meteu-a a toda a pressa no sobrescrito, e antes que Hildebranda saísse da casa de banho mandou-a por Gala Placidia ao doutor Juvenal Urbino. Era uma carta das suas, sem uma letra nem mais nem menos, na qual só dizia que sim, que falasse com o pai dela.

Quando Florentine Ariza soube que Fermina Daza ia casar com um médico da alta sociedade e de fortuna, educado na Europa e com uma reputação rara para a sua idade, não houve nada capaz de o tirar da sua prostração. Trânsito Ariza fez mais do que os possíveis para consolá-lo com atenções de noiva quando se deu conta de que tinha perdido a fala e o apetite, e passava as noites em branco a chorar sem descanso. Ao fim de uma semana conseguiu que voltasse a comer. Falou então com o senhor Leão XII Loayza, o único sobrevivente dos três irmãos e, sem lhe contar as razões, suplicou-lhe que desse ao sobrinho um emprego, um lugar qualquer na empresa de navegação, desde que fosse num porto perdido nessas terras amargas de La Magdalena, onde não houvesse correios nem telégrafo, nem visse ninguém que lhe contasse coisa alguma desta cidade de perdição. O tio não lhe deu o emprego por consideração para com a viúva do irmão, que não suportava sequer a mera existência do bastardo, mas conseguiu-lhe o lugar de telegrafista na Vila de Leyva, uma cidade de sonho a mais de vinte dias de viagem e a quase três mil metros de altitude acima do nível da Rua das Janelas.

Florentino Ariza nunca teve uma noção clara daquela viagem terapêutica. Recordá-la-ia sempre, como tudo o que aconteceu naquela época, através das lentes difusas da sua desventura. Quando recebeu o telegrama da nomeação não pensou em levá-lo sequer em consideração, mas Lotario Thugut convenceu-o com argumentos alemães de que o aguardava um futuro radioso na administração pública. Disse-lhe: «O telégrafo é a profissão do futuro.» Ofereceu-lhe um par de luvas forradas por dentro com pele de coelho, um gorro das estepes e um sobretudo com gola de pelúcia já posto à prova nos Janeiros glaciais da Baviera. O tio Leão XII ofereceu-lhe dois fatos de casimira e umas botas impermeáveis que tinham sido do irmão mais velho, e deu-lhe uma passagem com camarote para o próximo navio. Trânsito Ariza arranjou a roupa à medida do filho, que era menos corpulento do que o pai e muito mais baixo que o alemão, e comprou-lhe meias de lã, e ceroulas para que não lhe faltasse nada nos rigores das alturas. Florentino Ariza, calejado por tanto sofrimento, assistia aos preparativos da viagem da mesma maneira que um morto teria assistido aos preparativos das suas exéquias.

Não disse a ninguém que se ia embora, não se despediu de ninguém, com o mesmo hermetismo férreo que fez com que revelasse apenas à mãe o segredo da sua paixão reprimida, mas, na véspera da viagem, cometeu conscientemente uma última loucura do coração que bem podia ter-lhe custado a vida. Vestiu à meia-noite o seu fato de domingo e tocou sozinho debaixo da varanda de Fermina Daza a valsa do amor que compusera para ela, que só eles os dois conheciam e que foi, durante três anos, o emblema da sua cumplicidade contrariada. Tocou-a murmurando a letra, com o violino lavado em lágrimas e com uma inspiração tão intensa que logo aos primeiros compassos começaram a ladrar os cães da rua e depois os da cidade, mas logo se foram calando a pouco e pouco com o feitiço da música e a valsa terminou no meio de um silêncio sobrenatural. A varanda não se abriu nem se chegou ninguém à janela, nem sequer o guarda-nocturno, que quase sempre acorria com a sua candeia tentando melhorar a sua situação com as migalhas das serenatas. O gesto foi um exorcismo de alívio para Florentino Ariza, pois quando guardou o violino no estojo e se afastou pelas ruas mortas sem olhar para trás não sentia já que se ia embora na manhã seguinte, mas que já tinha partido há muitos anos com a decisão irrevogável de não regressar nunca.

O navio, um dos três iguais da Companhia Fluvial das Caraíbas, tinha sido rebaptizado em homenagem ao fundador: Pio Quinto Loayza. Era uma casa flutuante de dois andares de madeira sobre um casco de ferro, largo e chato, com um calado máximo de cinco pés, que lhe permitia manobrar melhor nos fundos variáveis do rio. Os navios mais antigos tinham sido construídos em Cincinnati em meados do século, seguindo o modelo lendário dos que faziam o percurso de Ohio e do Mississipi, e tinham de cada lado uma roda propulsora movida por uma caldeira de lenha. Como estes, os navios da Companhia Fluvial das Caraíbas tinham no convés inferior, quase à tona de agua, as máquinas de vapor e as cozinhas, bem como uns enormes galinheiros onde as tripulações penduravam as redes de dormir, entrecruzadas em diferentes níveis. Tinham no piso de cima a cabina de comando, os camarotes do comandante e dos oficiais, uma sala de recreio e a casa de jantar, onde os passageiros ilustres eram convidados, pelo menos uma vez, para jantar e Jogar às cartas. No andar intermédio tinham seis camarotes de primeira classe, de ambos os lados de um corredor que servia de casa de jantar comum e, na proa, uma sala de estar aberta sobre o rio com varadins de madeira trabalhada e pilastras de ferro, onde, à noite, os passageiros da plebe atavam as suas redes. Mas, ao contrário dos mais antigos, estes navios não tinham as pás de propulsão dos lados, mas sim uma enorme roda à popa com pás horizontais debaixo das retretes sufocantes do convés dos passageiros. Florentino Ariza não se tinha dado ao trabalho de explorar o navio ao subir a bordo, num domingo de Julho, às sete da manhã, como o faziam quase por instinto os que viajavam pela primeira vez. Só se consciencializou da sua nova realidade ao entardecer, quando navegavam diante do casario de Calamar, ao ir urinar na popa e ver, pela vigia da retrete, a gigantesca roda de tábuas a girar debaixo dos seus pés com um estrondo vulcânico de espumas e vapores ardentes.

Nunca tinha viajado. Levava um baú de lata com roupa para aquelas altitudes, os romances ilustrados que comprava em folhetins mensais e que ele próprio cosia com capas de cartão e os livros de versos de amor que recitava de cor e que estavam quase a pulverizar-se de tanto serem relidos. Deixara o violino, que se identificava de mais com a sua desgraça, mas a mãe tinha-o obrigado a levar o petate, que era um acessório muito popular e prático para dormir: uma almofada, um lençol, uma baciazinha de peltre e um mosquiteiro de renda, e tudo isto embrulhado numa esteira amarrada com duas cordas para pendurar uma rede em caso de urgência. Florentino Ariza não o queria levar, pois achava que seria inútil num camarote onde havia serviço de camas, mas logo na primeira noite teve de agradecer mais uma vez a boa ideia da sua mãe. Com efeito, à última hora, subiu a bordo um passageiro com fato de cerimónia que chegara de barco, da Europa, naquela madrugada, e vinha acompanhado pelo governador da província em pessoa. Queria seguir viagem imediatamente com a esposa e a filha e mais o criado de libré e os sete baús de debruns dourados que com grandes dificuldades lá couberam nas escadas. O comandante, um gigante do Curaçau, conseguiu tocar as cordas sensíveis do patriotismo dos crioulos para acomodar os passageiros imprevistos. Explicou a Florentino Ariza, numa salada de castelhano e papiamento1, que o homem de fato de cerimónia era o novo ministro plenipotenciário de Inglaterra, que se deslocava para a capital da república, lembrou-lhe que aquele reino tinha contribuído de forma decisiva para a nossa independência do domínio espanhol e, consequentemente, qualquer sacrifício seria pequeno para fazer com que uma família de tão nobre excelência se sentisse em nossa casa melhor do que na sua. Florentino Ariza, evidentemente, renunciou ao camarote.

No início não o lamentou, pois o caudal do rio naquela época do ano era abundante e o navio navegou sem acidentes durante as primeiras duas noites. Depois do jantar, às cinco da tarde, a tripulação distribuía pelos passageiros umas camas articuláveis, em lona, e cada um abria a sua onde podia, arranjava-a com os trapos do seu petate e armava por cima o mosquiteiro. Os que tinham redes, penduravam-nas no salão e os que não tinham nada dormiam em cima das mesas da casa de jantar, tapados com as toalhas que não eram mudadas mais de duas vezes durante a viagem. Florentino Ariza permanecia de vela a maior parte da noite, julgando ouvir a voz de Fermina Daza na brisa fresca do rio, apascentando a solidão com a sua lembrança, ouvindo-a cantar na respiração do navio que avançava, com passos de animal corpulento, pelas trevas, até que surgiam as primeiras franjas rosadas no horizonte e o novo dia eclodia de repente sobre pastagens desertas e pântanos de bruma. A viagem parecia-lhe, então, uma prova mais de sabedoria da sua mãe e sentiu-se com ânimo para sobreviver ao esquecimento.

Ao fim de três dias de boas águas, porém, a navegação tornou-se mais difícil, entre bancos de areia intempestivos e turbulências enganosas. O rio tornou-se turvo e foi-se estreitando cada vez mais por uma selva emaranhada de árvores colosssais, onde só de vez em quando se encontrava uma choça de palha junto às pilhas de lenha para a caldeira dos navios. A algaraviada dos papagaios e o alvoroço dos macacos invisíveis pareciam aumentar os calores do meio-dia. Mas de noite tinha de se amarrar o navio para dormir e, então, era insuportável até o Dialecto falado em Curaçau (N. da T.}

simples facto de estar vivo. Ao calor e aos pernilongos somava-se o mau cheiro das peças de carne salgada postas a secar na balustrada do navio. A maioria dos passageiros, principalmente os europeus, deixava os camarotes nauseabundos e passavam a noite a andar pelos conveses, enxotando todo o tipo de insectos com a mesma toalha com que enxugavam o suor incessante e surgiam exaustos e inchados por causa das picadas ao romper da manhã.

Além disso, naquele ano rebentara um novo episódio da guerra civil entre os liberais e os conservadores, e o comandante tomara medidas muito severas quanto à ordem interna e a segurança dos passageiros. Tentando evitar equívocos e provocações, proibiu a distracção favorita desses tempos, que era disparar contra os jacarés que se aqueciam ao sol nas praias. Mais adiante, quando alguns passageiros se dividiram em dois grupos inimigos na sequência de uma discussão, mandou confiscar todas as armas sob o compromisso da sua palavra em como as devolveria no fim da viagem. Foi inflexível até com o ministro britânico, que logo no dia a seguir à partida apareceu vestido de caçador, com uma carabina de precisão e uma espingarda de dois canos para matar tigres. As restrições tornaram-se ainda mais drásticas passado o porto de Tenerife, onde se cruzaram com um navio que levava hasteada a bandeira amarela da peste. O comandante não conseguiu obter qualquer informação sobre aquele símbolo alarmante porque o outro navio não respondeu aos seus sinais. Mas nesse mesmo dia encontraram outro que estava a carregar gado para a Jamaica, e este informou-os que o navio da peste levava dois doentes com cólera e que a epidemia estava a fazer estragos no trecho do rio que ainda lhes faltava atravessar. Então ficou proibido que os passageiros abandonassem o navio nos portos seguintes e mesmo nos lugares ermos onde lançava âncora para carregar lenha. De modo que durante o resto da viagem, que durou seis dias, os passageiros ganharam hábitos prisionais. Entre esses, a contemplação perniciosa de um pacote de postais pornográficos holandeses que circulou de mão em mão sem que ninguém soubesse donde tinham saído, ainda que nenhum dos veteranos do rio ignorasse que eram tão-somente uma pequena amostra da lendária colecção do comandante. Mas até essa distracção inconsequente acabou por aumentar o tédio.

Florentine Ariza suportou os rigores da viagem com a paciência mineral que desconsolava a sua mãe e exasperava os amigos. Não trocou impressões com ninguém. Passava os dias com facilidade, sentado em frente da amurada, a ver os jacarés ao sol nos areais, imóveis de fauces abertas para apanharem borboletas, a ver nos pântanos os bandos de garças assustadas, que logo levantavam voo, os manatins que amamentavam as crias com as suas grandes tetas maternais e surpreendiam os passageiros com os seus choros de mulher. Num só dia viu passar a flutuar três corpos humanos, inchados e verdes, com vários urubus em cima deles. Passaram primeiro os corpos de dois homens, um deles sem cabeça, e depois o de uma menina de poucos anos, cujos cabelos de medusa ficaram ondulando na esteira do navio. Nunca soube, porque nunca se sabia, se eram vítimas da cólera ou da guerra, mas aquele horrível cheiro nauseabundo contaminou na sua memória a recordação de Fermina Daza.

Era sempre assim: qualquer acontecimento, bom ou mau, tinha alguma relação com ela. De noite, quando amarravam o navio e a maioria dos passageiros se punha a caminhar desconsoladamente pelos conveses, ele revia quase de cor os folhetins ilustrados sob o candeeiro de carboneto da casa de jantar, que era o único aceso até de manhã, e os dramas tantas vezes relidos recuperavam a sua magia original quando ele substituía os protagonistas imaginários por pessoas suas conhecidas da vida real e reservava-se para si e para Fermina Daza os papéis de amores impossíveis. Noutras noites, escrevia cartas angustiadas, cujos pedaços espalhava depois pelas águas que corriam, sem cessar, para ela. Assim se passavam as horas mais duras, encarnando, as vezes, um príncipe tímido ou um paladino do amor e outras vezes a sua própria pele escaldada de amante no esquecimento, até que se levantavam as primeiras brisas e ia dormitar sentado nas poltronas da amurada.

Numa noite em que interrompeu a leitura mais cedo do que era habitual, dirigia-se ele distraidamente para as retretes, quando uma porta se abriu à sua passagem na casa de jantar deserta e uma mão de falcão o agarrou pela manga da camisa e o fechou num camarote. Só chegou a sentir o corpo sem idade de uma mulher nua nas trevas, empapada num suor quente e com a respiração desordenada, que o empurrou para cima do beliche, lhe abriu a fivela do cinto, lhe desapertou os botões e se rasgou a si própria encavalitada em cima dele, despojando-a sem glória, da virgindade. Caíram os dois agonizantes no vazio de um abismo sem fundo a cheirar a maresia de camarões. Ela ficou depois um instante sobre ele, resfolegando sem ar, e deixou de existir na escuridão.

- Agora, vá-se embora e esqueça - disse. - Isto nunca aconteceu.

O assalto tinha sido tão rápido e triunfante que não podia ter-se na conta de uma loucura súbita provocada pelo tédio, mas como fruto de um plano elaborado com todo o vagar e até nos seus pormenores mais minuciosos. Esta certeza deleitosa aumentou a ansiedade de Florentine Ariza, que, no auge do gozo, tinha sentido uma revelação em que não podia crer, que se negava mesmo a admitir, e era que o amor ilusório de Fermina Daza podia ser substituído por uma paixão terrena. E foi assim que se empenhou em descobrir a identidade da violadora mestra, em cujo instinto de pantera encontraria, quem sabe o remédio para a sua desventura. Mas não o conseguiu. Pelo contrário, quanto mais aprofundava a sua pesquisa mais longe se sentia da verdade.

O assalto tinha ocorrido no último camarote, mas este comunicava com o penúltimo por uma porta intermédia, de modo que os dois se convertiam num quarto familiar de quatro beliches. Aí viajavam duas mulheres jovens, outra bastante mais velha, mas de muito bom aspecto, e um miúdo de poucos meses. Tinham embarcado em Barranco de Loba, que era o porto onde se recebia a carga e os passageiros da cidade de Mompox desde que esta ficou à margem dos itinerários por causa das veleidades do rio, e Florentino Ariza tinha reparado nelas porque levavam o bebé adormecido dentro de uma gaiola para pássaros.

Viajavam vestidas como nos transatlânticos em moda, com anquinhas sob as saias de seda, com golas de renda e chapéus de abas grandes enfeitados com flores de crinolina, e as duas mais novas mudavam de roupa e acessórios várias vezes por dia, de modo que pareciam levar com elas uma certa atmosfera primaveril enquanto os outros passageiros sufocavam de calor. As três eram hábeis no manejo das sombrinhas e dos leques de plumas, mas com os propósitos indecifráveis das raparigas de Mompox desta época. Florentino Ariza nem sequer conseguiu precisar qual a relação existente entre elas, ainda que sem dúvida fossem da mesma família. De início pensou que a mais velha pudesse ser mãe das outras, mas logo se apercebeu que não tinha idade suficiente para o ser, além de guardar um meio luto não partilhado pelas outras. Não lhe passava pela cabeça que alguma delas se tivesse atrevido a fazer o que fez enquanto as outras dormissem nos beliches contíguos e a única suposição razoável era que tivesse aproveitado um momento casual ou talvez premeditado, em que ficasse sozinha no camarote. Pôde comprovar que, por vezes, saíam duas para apanhar ar, até muito tarde, enquanto a terceira ficava a tomar conta do bebé, mas numa noite de maior calor saíram as três juntas com o menino a dormir na gaiola de vime coberta por um toldo de gaze.

Apesar daquele imbróglio de indícios, Florentino Ariza apressou-se a afastar a possibilidade de que a mais velha das três fosse a autora do assalto, e a seguir absolveu também a mais nova, que era a mais bonita e atrevida. Fê-lo sem razões válidas, só porque a vigilância ansiosa das três o tinha levado a dar por certo o seu desejo íntimo de que a amante instantânea fosse a mãe do menino engaiolado. E esta suposição seduziu-o tanto que começou a pensar nela com mais intensidade do que em Fermina Daza, sem se importar com a evidência de que aquela mãe recente só vivia para o bebé. Não tinha mais de vinte e cinco anos e era esbelta e dourada, com umas pálpebras portuguesas que a faziam parecer mais distante, e qualquer homem se teria dado por feliz apenas com as migalhas da ternura que ela prodigalizava ao filho. Desde o pequeno-almoço até à hora de se deitar que tratava dele no salão, enquanto as outras jogavam às damas, e quando conseguia adormecê-lo, pendurava no tecto a gaiola de vime do lado mais fresco da amurada. Mas nem mesmo quando estava a dormir deixava de cuidá-lo, baloiçando a gaiola e cantando entre dentes canções de noiva, enquanto os seus pensamentos voavam por cima das misérias da viagem. Florentino Ariza agarrou-se à ilusão de que mais tarde ou mais cedo se trairia nem que fosse só por um gesto. Vigiava até as alterações da sua respiração no ritmo do relicário que levava pendurado ao peito sobre a blusa de cambraia, observando-a, sem disfarçar, por cima do livro que fingia ler, e incorreu na impertinência calculada de mudar de sítio na casa de jantar para se ir sentar em frente dela. Mas não conseguiu nem o mais leve indício de que fosse ela a depositária da outra metade do seu segredo. A única coisa que lhe ficou dela, porque a sua companheira mais nova a chamou, foi o nome sem apelido: Rosalba.

No oitavo dia, o navio navegou com muita dificuldade por um estreito turbulento encaixado entre escarpas de mármore, e depois do almoço lançou âncora em Puerto Nare. Aí deviam ficar os passageiros que seguiam viagem para o interior da província de Antioquia, uma das mais afectadas pela nova guerra civil. Meia dúzia de choças de palmeira e um armazém de madeira com telhado de zinco era tudo o que constituía o porto, protegido por várias patrulhas de soldados descalços e mal equipados, pois tinham tido notícias de um plano dos insurrectos para saquear os navios. Por detrás das casas, erguia-se até ao céu um promontório de montanhas agrestes com uma cornija em ferradura talhada à beira do precipício. Ninguém a bordo dormiu descansado, mas o ataque não ocorreu durante a noite e o porto amanheceu transformado numa feira de domingo, com índios que vendiam amuletos de marfim e elixires de amor no meio das recuas de mulas preparadas para empreender a subida de seis dias até às selvas de orquídeas da cordilheira central.

Florentino Ariza tinha-se entretido a ver o navio ser descarregado às costas dos negros, tinha visto descer as grades com os serviços de loiça, os pianos de cauda para as solteiras de Envigado, e só demasiado tarde se apercebeu que entre os passageiros que desembarcavam estava o grupo de Rosalba. Viu-as quando já iam montadas à amazona, com botas e sombrinhas de cores equatoriais, e então deu o passo que não se tinha atrevido a dar nos dias anteriores: disse adeus com a mão a Rosalba e as três lhe responderam da mesma maneira, com uma familiaridade que lhe fez doer as entranhas pela sua audácia tardia. Viu-as dar a volta por trás do armazém, seguidas pelas mulas rregadas de baús, de caixas de chapéus e a gaiola do menino,

pouco depois viu-as subindo como uma fila de formiguinhas tarefadas à beira do abismo, e desapareceram da sua vida. Então sentiu-se só no mundo e a recordação de Fermina Daza, que tinha estado à espreita nos últimos dias, abraçou-o mortalmente nas suas garras.

Sabia que ela se ia casar no sábado seguinte, num casamento de arromba, e o ser que mais a amava e que havia de a amar para sempre não teria nem o direito de morrer por ela. Os ciúmes, até então afogados no pranto, tornaram-se donos da sua alma. Rogava a Deus que a centelha da justiça divina fulminasse Fermina Daza quando esta se dispusesse a jurar amor e obediência a um homem que só a queria para esposa como um adorno social, e extasiava-se na visão da noiva, sua ou de ninguém, estendida sobre as lajes da catedral com as flores de laranjeira embranquecidas pelo orvalho da morte e a torrente de espuma do véu sobre o mármore funerário de catorze bispos sepultados diante do altar-mor. Contudo, uma vez consumada a vingança, arrependia-se da sua própria maldade e via então Fermina Daza levantar-se com a respiração intacta, alheia mas viva, porque não lhe era possível imaginar o mundo sem ela. Não tornou a dormir e se, às vezes, se sentava à mesa a debicar qualquer coisa era pela ilusão de que Fermina Daza estivesse sentada também à mesa, ou então, ao contrário, para lhe negar a honra de jejuar por ela. Às vezes consolava-se com a certeza de que na embriaguez da festa das bodas, e mesmo nas noites febris da lua-de-mel, Fermina Daza havia de sofrer um instante, um pelo menos, mas um de qualquer maneira, em que se erguesse na sua consciência o fantasma do noivo troçado, humilhado, cuspido, e que lhe estragasse a felicidade.

Na véspera da chegada ao porto de Caracolí, que era o fim da viagem, o comandante ofereceu a tradicional festa de despedida, com uma orquestra de sopro constituída pelos elementos da tripulação, com fogo-de-artifício colorido lançado da cabina de comando. O ministro da Grã-Bretanha tinha sobrevivido à odisseia com um estoicismo exemplar, caçando com a máquina fotográfica os animais que não lhe permitiram matar com a espingarda e não houve noite que não o vissem vestido a rigor na sala de jantar. Mas na festa final apareceu com o fato escocês do clã dos MacTavish, e tocou com gosto a gaita-de-foles, ensinando todos quantos quisessem dançar as suas danças nacionais, mas antes de romper a manhã tiveram de o levar quase de rastos para o camarote. Florentino Ariza, prostrado de dor tinha ido para o canto mais afastado da coberta onde não lhe chegavam sequer os ecos da paródia, e deitou-se em cima do casaco de Lotario Thugut tentando resistir ao arrepio dos ossos. Acordara às cinco da manhã, como acorda o condenado à morte na madrugada da execução, e durante todo o sábado não fizera mais que imaginar minuto a minuto cada um dos momentos do casamento de Fermina Daza. Mais tarde, quando regressou a casa, deu-se conta de que se enganara nas datas e de que tudo tinha sido diferente do que ele imaginara, tendo até o bom senso de se rir da sua fantasia.

Mas em todo o caso foi um sábado de paixão que culminou com uma nova crise de febre, quando lhe pareceu que seria aquele o momento em que os recém-casados fugiam em segredo por uma porta falsa para se entregarem às delícias da primeira noite. Alguém que o viu a tiritar de febre avisou o comandante e este abandonou a festa com o médico de bordo, receando que fosse um caso de cólera, e o médico, por precaução, mandou-o de quarentena para o camarote com uma boa dose de brometos. Contudo, no dia seguinte, quando avistaram os promontórios de Caracolí, a febre desaparecera e tinha o espírito exaltado, porque no marasmo dos sedativos havia resolvido, de uma vez por todas e sem mais delongas, que mandava à merda o radioso futuro de telegrafista e que regressaria no mesmo navio à sua velha Rua das Janelas.

Não lhe foi difícil fazer com que o levassem de regresso em troca do camarote que ele tinha cedido ao representante da rainha Vitória. O comandante também o tentou dissuadir com o argumento de que o telégrafo era a ciência do futuro. E era tanto assim, disse-lhe, que já se estava a inventar um sistema para o instalar nos navios. Mas ele resistiu a todos os argumentos e o comandante acabou por levá-lo de volta, não pela dívida do camarote mas porque conhecia os seus verdadeiros vínculos com a Companhia Fluvial das Caraíbas.

A viagem da descida fez-se em menos de seis dias e Florentino Ariza sentiu-se de novo em casa própria mal entraram de madrugada na lagoa de Mercedes e viu a fieira de luzes das canoas de pesca a ondular na ressaca do navio. Era ainda noite quando atracaram na enseada do Menino Perdido, que era o último porto dos vapores fluviais, a cinquenta quilómetros da baía, antes de dragarem e porem a funcionar a antiga passagem espanhola. Os passageiros teriam de esperar até às seis da manhã para abordarem a frota de chalupas de aluguer que os levaria ao seu destino final. Mas Florentino Ariza estava tão ansioso que se meteu muito antes na chalupa do correio, cujos empregados o reconheciam como um dos seus. Antes de abandonar o navio cedeu à tentação de um gesto simbólico: atirou à água o petate, e seguiu-o com os olhos por entre as tochas dos pescadores invisíveis, até o ver sair da lagoa e desaparecer no oceano. Tinha a certeza de que não iria precisar dele até ao fim dos seus dias. Nunca mais, porque nunca mais abandonaria a cidade de Fermina Daza.

A baía era um remanso ao amanhecer. Por entre a bruma flutuante, Florentino Ariza viu a cúpula da catedral dourada com as primeiras luzes, viu os pombais nas açoteias e, orientando-se por eles, localizou a varanda do palácio do marquês de Casalduero, onde supunha que a mulher da sua desventura ainda dormitava apoiada no ombro do esposo saciado. Essa suposição dilacerou-o, mas não fez nada por reprimi-la, antes pelo contrário: deleitou-se na dor. O sol começava a aquecer quando a chalupa do correio abriu caminho por entre os veleiros ancorados, onde os incontáveis cheiros do mercado público, misturados com a lixeira do fundo, se confundiam numa única pestilência. A escuna de Riohacha acabava de chegar e os grupos de estivadores, com a água pela cintura, recebiam os passageiros na borda e transportavam-nos ate à margem. Florentino Ariza foi o primeiro da chalupa do correio a saltar para terra e, a partir daí, deixou de sentir o ar fétido da baía para só lhe chegar o odor pessoal de Fermina Daza em toda a cidade. Tudo cheirava a ela.

Não voltou ao telégrafo. A sua única preocupação pareciam ser os folhetins de amor e os volumes da Biblioteca Popular que a mãe continuava a comprar-lhe e que ele lia e tornava a ler deitado numa rede até os aprender de cor. Nem sequer perguntou onde estava o violino. Restabeleceu os contactos com os amigos mais próximos e, por vezes, jogavam bilhar ou conversavam nos cafés ao ar livre, sob os arcos da Praça da Catedral, mas não voltou aos bailes de sábado: não podia concebê-los sem ela.

Na mesma manhã em que regressou da sua viagem inacabada soube que Fermina Daza estava a passar a lua-de-mel na Europa e o seu coração aturdido aceitou como um facto que ela ficaria a viver por lá, se não para sempre, pelo menos por muitos anos. Esta certeza infundiu-lhe as primeiras esperanças de a esquecer. Pensava em Rosalba, cuja recordação se ia tornando mais ardente à medida que se acalmavam as outras. Foi nessa época que deixou crescer o bigode com pontas engomadas, que não raparia durante toda a vida e que lhe alterou a personalidade. E a ideia da substituição do amor meteu-o por caminhos imprevistos. O odor de Fermina Daza foi-se tornando menos frequente e menos intenso a pouco e pouco e, por fim, só ficou nas gardenias brancas.

Andava ao sabor da corrente, sem saber por onde continuar a vida, certa noite de guerra em que a célebre viúva de Nazaret se refugiou, aterrada, em sua casa porque a dela tinha sido destruída por uma bala de canhão durante o cerco do general rebelde Ricardo Gaitán Obeso. Foi Trânsito Ariza quem agarrou a oportunidade com as duas mãos e mandou a viúva para o quarto do filho, sob o pretexto de que no seu não havia lugar, mas, na verdade, com a esperança de que outro amor o curasse daquele que não o deixava viver. Florentino Ariza não tinha voltado a fazer amor desde que fora desvirginado por Rosalba no camarote do navio e pareceu-lhe natural, numa noite de emergência, que a viúva dormisse na cama e ele na rede. Mas já ela decidira por ele. Sentada à beira da cama onde Florentino Ariza estava deitado sem saber que fazer, começou a falar-lhe da sua dor inconsolável pelo marido morto três anos antes e, enquanto isso, ia despindo e atirando pelos ares os crepes da viuvez, até que não lhe ficou em cima nem sequer a aliança do casamento. Tirou a blusa de tafetá com bordados de missanga e atirou-a pelo quarto, para cima da poltrona do canto, despiu o corpete por cima do ombro, que foi parar ao outro lado da cama, arrancos com um só puxão a saia comprida com o saiote de folhos, a faixa de cetim das ligas e as fúnebres meias de seda, e espalhou tudo pelo chão até o quarto ficar atapetado com os últimos farrapos do seu luto. Fê-lo com tanto alvoroço e com umas pausas tão bem medidas, que cada gesto seu parecia aplaudido pelos tiros de canhão das tropas de assalto que abalavam a cidade até aos alicerces. Florentino Ariza quis ajudá-la a desapertar o fecho do soutien mas ela antecipou-se-lhe com uma manobra hábil, pois em cinco anos de devoção matrimonial aprendera a bastar-se a si própria em todos os passos do amor, incluindo os seus preâmbulos, sem ajuda de ninguém. Em último lugar tirou as calcinhas de renda, fazendo-as escorregar pelas pernas com um movimento rápido de nadadora, e ficou completamente nua.

Tinha vinte e oito anos e parira três vezes, mas a sua nudez conservava intacta a vertigem de solteira. Florentino Ariza não compreenderia nunca como umas roupas de penitente tinham podido esconder os ímpetos daquela potra montesa que o despiu, sufocada pela sua própria febre, como não o pudera fazer com o marido para que ele não a julgasse uma viciosa, e quis saciar num só assalto a abstinência férrea do luto, com o delírio e a inocência de cinco anos de fidelidade conjugal. Antes dessa noite e desde a hora abençoada em que a sua mãe a parira que nunca tinha estado na mesma cama com outro homem que não fosse o seu falecido marido.

Não se permitiu o mau gosto de um remorso. Pelo contrário. Sem sono por causa das bolas de fogo que passavam a zumbir sobre os telhados, continuou a evocar até de manhã as virtudes do marido, só lhe recriminando a deslealdade de haver morrido sem ela, e redimida pela certeza de que ele jamais fora tão seu como agora, dentro de um caixão cravejado com doze cravos de três polegadas e a dois metros debaixo da terra.

- Sou feliz - disse - porque só agora sei com certeza onde está quando não está em casa.

Tirou o luto naquela noite, de repente, sem passar pelo intervalo ocioso das blusas de florinhas cinzentas, e a sua vida encheu-se de canções de amor e de trajos provocantes com papagaios e borboletas pintados, começando a partilhar o corpo com todo aquele que lho quisesse pedir. Derrotadas as tropas do general Gaitán Obeso, ao fim de sessenta e três dias de cerco, ela reconstruiu a casa destruída pela bala do canhão e fez-lhe um belo terraço que dava para o mar, onde, em dias de borrasca, se assanhava a fúria das vagas. Esse foi o seu ninho de amor, como ela lhe chamava sem ironia, onde só recebeu quem era do seu gosto, quando quis e como quis sem nunca cobrar a ninguém um tostão, porque achava que eram os homens que lhe faziam um favor. Em casos muito especiais aceitava uma prenda, desde que não fosse de ouro, e tão grande era a sua habilidade que ninguém poderia mostrar nenhuma prova efectiva da sua conduta imprópria. Só numa ocasião esteve à beira do escândalo público, quando correu o boato de que o arcebispo Dante de Luna não morrera por acidente com um prato de cogumelos venenosos, mas que os comeu sabendo muito bem o que fazia, porque ela ameaçou degolar-se se ele insistisse nos seus assédios sacrílegos. Ninguém lhe perguntou se era verdade nem nunca lhe falaram disso, nem nada se modificou na sua vida. Era, segundo ela dizia a rir à gargalhada, a única mulher livre da província.

A viúva de Nazaret nunca faltou aos encontros ocasionais com Florentino Ariza, nem mesmo quando andava mais atarefada, e sempre sem pretensões de amar nem de ser amada, ainda que sempre na esperança de vir a encontrar qualquer coisa que fosse como o amor, mas sem os problemas do amor. Às vezes era ele que ia a casa dela e então gostavam de ficar ensopados na espuma de salitre do terraço do mar, contemplando no horizonte o amanhecer de todo o mundo. Ele pôs todo o seu empenho em ensinar-lhe as safadezas que tinha visto outros fazerem pelos furos nas paredes da casa de passe, assim como as fórmulas teóricas apregoadas por Lotario Thugut nas suas noites de farra. Convenceu-a a deixar-se ver enquanto faziam amor, a mudar a posição convencional do missionário pela da bicicleta de mar, ou do frango assado na grelha, ou do anjo esquartejado, e estiveram quase a perder a vida quando se partiram as cordas da rede enquanto tentavam inventar qualquer coisa diferente. Foram lições estéreis. Pois a verdade é que ela era uma aprendiz temerária, mas não tinha o mínimo talento para a fornicação orientada. Nunca percebeu os encantos da serenidade na cama, nem teve um momento de inspiração, e os seus orgasmos eram inoportunos e epidérmicos: um coito triste. Florentino Ariza viveu muito tempo no engano de que era ele o único e a ela agradava-lhe que ele acreditasse nisso, até nue teve a pouca sorte de sonhar alto. Pouco a pouco, ouvindo-a dormir, foi refazendo a carta de navegação dos seus sonhos e meteu-se por entre as numerosas ilhas da sua vida secreta. Assim ficou a saber que ela não pretendia casar-se com ele, mas que se sentia ligada à sua vida pela gratidão imensa por tê-la pervertido. Disse-lho muitas vezes:

Adoro-te porque fizeste de mim uma puta.

Dito de outra maneira, não lhe faltava razão. Florentino Ariza tinha-a libertado da virgindade de um casamento convencional, que era mais perniciosa do que a virgindade congénita e do que a abstinência da viuvez. Tinha-lhe ensinado que nada do que se fizer na cama é imoral se contribuir para perpetuar o amor. E outra coisa que havia de ser a partir daí a razão da sua vida: convenceu-a de que cada um vem ao mundo com um número determinado de coitos, e os que não se usam por qualquer razão, própria ou alheia, voluntária ou forçosa, perdem-se para sempre. O mérito dela foi o de tomá-lo à letra. No entanto, porque julgava conhecê-la melhor do que ninguém, Florentino Ariza não conseguia perceber por que razão era tão pretendida uma mulher de recursos tão pueris, que, além do mais, não se calava na cama com a sua ladainha pelo marido morto. A única explicação que lhe ocorreu e que ninguém pôde desmentir, foi que à viúva de Nazaret lhe sobrava em ternura o que lhe faltava em artes marciais. Começaram a ver-se com menos frequência à medida que ela alargava os seus domínios e à medida que ele explorava os seus na tentativa de encontrar alívio para os seus velhos achaques noutros corações solitários e, por fim, esqueceram-se sem dor.

Foi o primeiro amor de cama de Florentino Ariza. Mas em vez de ter tido com ela uma união estável, como a sua mãe sonhava, ambos a aproveitaram para se atirarem à vida. Florentine Ariza desenvolveu métodos que pareciam inverosímeis num homem como ele, taciturno e esquálido, que se vestia como um velho de outros tempos. Tinha, porém, duas vantagens a seu favor. Uma era uma vista certeira para conhecer ”mediatamente a mulher que o esperava, mesmo que fosse no meio de uma multidão, e ainda assim cortejava-a com cautela, POIS sentia que nada provocava maior vergonha nem era mais humilhante do que uma negativa. A outra vantagem é que elas o identificavam imediatamente como um solitário necessitado de amor, um mendigo da rua com uma humildade de cão batido que as submetia sem condições, sem pedir nada, sem esperar nada dele, a não ser a tranquilidade de consciência de lhe terem feito um favor. Eram as suas únicas armas e com elas combateu batalhas históricas mas em segredo absoluto, que foi registando com um rigor de notário num caderno cifrado, reconhecível entre muitos com um título que explicava tudo: Elas. A primeira anotação foi feita com a viúva de Nazaret. Cinquenta anos mais tarde, quando Fermina Daza ficou livre da sua sentença sacramental, tinha uns vinte e cinco cadernos com seiscentos e vinte e dois registos de amores continuados, à parte as incontáveis aventuras fugazes que não mereceram nem um apontamento caridoso.

O próprio Florentino Ariza estava convencido, ao fim de seis meses de amores libertinos com a viúva de Nazaret, que tinha conseguido sobreviver ao tormento de Fermina Daza. Não só o acreditou como o comentou por diversas vezes com Trânsito Ariza durante os quase dois anos que durou a viagem de núpcias, e continuou a acreditá-lo com um sentimento de libertação sem fronteiras, até que num domingo de má sorte a viu subitamente, sem nenhum aviso do coração, quando saía da missa solene pelo braço do marido e assediada pela curiosidade e pela adulação do seu novo mundo. As mesmas damas de alta estirpe que antes a menosprezavam e troçavam dela por ser uma forasteira sem nome desvelavam-se para que se sentisse como uma das suas, e ela embriagava-as com o seu encanto. Tinha assumido a sua condição de esposa mundana com tanta propriedade que Florentino Ariza precisou de um instante de reflexão para a reconhecer. Era outra: a compostura de pessoa adulta, os botins altos, o chapéu com o veuzinho de rede e uma pluma de cores de algum pássaro oriental, tudo nela era correcto e fácil, como se tudo fosse seu desde que nascera. Achou-a mais bela e juvenil do que nunca, mas irrecuperável, como nunca, ainda que sem compreender a razão até ver a curva do seu ventre sob a túnica de seda: estava grávida de seis meses. No entanto, o que mais o impressionou foi que ela e o marido formavam um par admirável e ambos manejavam o mundo com tanta fluidez que pareciam flutuar por cima dos escolhos da realidade. Florentino Ariza não sentiu ciúmes nem raiva, mas sim um grande desprezo por si mesmo. Sentiu-se pobre, feio, inferior, e não só indigno dela como de qualquer outra mulher sobre a terra.

Lá estava ela de volta. Regressava sem nenhum motivo para se arrepender da reviravolta que dera à sua vida. Pelo contrário: cada vez teve menos, sobretudo depois de sobreviver aos íngremes primeiros anos. Mais meritório ainda no caso dela que havia chegado à noite de núpcias ainda com a neblina da inocência. Tinha começado a perdê-la durante a sua viagem pela província da prima Hildebranda. Em Valledupar percebeu por fim porque é que os galos corriam atrás das galinhas, presenciou a cerimónia brutal dos burros, viu nascer os vitelos e ouviu as primas falarem com naturalidade sobre quais os casais da família que continuavam a fazer amor e quais e quando e porquê tinham deixado de o fazer ainda que continuassem a viver juntos. Foi então que se iniciou nos amores solitários, com a estranha sensação de estar a descobrir algo que os seus instintos sabiam desde sempre, primeiro na cama, com a respiração amordaçada para não se trair no quarto partilhado commeia dúzia de primas e depois com as duas mãos, deitada descuidadamente no chão da casa de banho, com o cabelo solto e a fumar os seus primeiros cigarros da carroceiro. Sempre o fez com algumas dúvidas na consciência que só conseguiu apagar depois de casada e sempre num completo segredo, ao passo que as primas alardeavam entre elas não só a quantidade de vezes durante o dia, mas também a forma e duração dos seus orgasmos. Não obstante, apesar do feitiço daqueles ritos iniciais, continuou a arrastar a crença de que a perda da virgindade era um sacrifício sangrento.

De modo que a sua festa de casamento, uma das mais faladas dos últimos anos do século passado, decorreu para ela nas vésperas do horror. A angústia da lua-de-mel afectou-a muito mais que o escândalo social do seu casamento com um galã como não havia outro igual nesses anos. Assim que começaram a correr os banhos na missa solene da catedral, Fermina Daza tornou a receber bilhetes anónimos, alguns com ameaças de morte, mas mal lhes prestava atenção, pois todo o medo de que era capaz estava ocupado pela iminência da violação. Era a maneira correcta de tratar os anónimos, ainda que ela não o fizesse de propósito, numa classe habituada pelas reviravoltas históricas a baixar a cabeça ante os factos consumados. Por isso tudo quanto lhe era adverso ia sendo posto de parte à medida que o casamento se ia tornando irrevogável. Ela notava-o pelas mudanças graduais no cortejo de mulheres lívidas, degradadas pela artrite e pelos ressentimentos que um dia se convenciam da inutilidade das suas intrigas e apareciam sem se anunciar no Parque dos Evangelhos, como se fosse em sua própria casa, carregadas de receitas de cozinha e de prendas antecipadas. Trânsito Ariza conhecia aquele mundo, ainda que só dessa vez o sofresse na própria carne, e sabia que as suas clientes reapareciam nas vésperas de festas grandes para lhe pedirem o favor de desenterrar as suas bilhas e lhes emprestar as jóias empenhadas, só por vinte e quatro horas, mediante o pagamento de um juro adicional. Há muito tempo que não acontecia como dessa vez, em que as bilhas ficaram vazias para que as senhoras de apelidos compridos abandonassem os seus santuários de sombras e surgissem radiantes, com as suas próprias jóias emprestadas, num casamento como não se viu outro de tanto esplendor até ao fim do século, e cuja glória suprema foi o apadrinhamento do doutor Rafael Núnez, três vezes presidente da República, filósofo, poeta e autor da letra do Hino Nacional, segundo então se podia aprender nalguns dicionários recentes. Fermina Daza chegou ao altar-mor da catedral pelo braço do pai, a quem o fato de cerimónia lhe deu, por um dia, um ar equívoco de respeitabilidade. Casou-se para sempre diante do altar-mor da catedral, durante uma missa concelebrada por três bispos, às onze da manhã da sexta-feira gloriosa da Santíssima Trindade, e sem pensamento caridoso para Florentine Ariza, que, a essa hora, delirava com febre, a morrer por ela, na intempérie de um navio que não havia de o levar ao esquecimento. Durante a cerimónia, e depois, na festa, manteve um sorriso que parecia colado com alvaiade, um gesto sem alma que alguns interpretaram como o sorriso de troça da vitória, mas que, na verdade, era um pobre recurso para disfarçar o seu terror de virgem recém-casada. Por sorte, circunstâncias imprevistas, juntamente com a compreensão do marido, resolveram as suas três primeiras noites sem dor. Foi providencial. O barco da Compagnie Générale Transatlantique, com o itinerário alterado devido ao mau tempo das Caraíbas, anunciou com apenas três dias de antecedência que antecipava a saída vinte e quatro horas, de modo que não zarparia para La Rochelle no dia seguinte ao casamento, como estava previsto há seis meses, mas na própria noite Ninguém acreditou que aquela alteração não fosse mais uma das muitas surpresas elegantes do casamento, pois a festa acabou depois da meia-noite a bordo de transatlântico iluminado, com uma orquestra de Viena que estreava naquela viagem as mais recentes valsas de Johann Strauss. De modo que os vários padrinhos, encharcados em champanhe, foram arrastados para terra pelas esposas atribuladas, quando já andavam a perguntar aos empregados se não haveria camarotes disponíveis para continuarem a paródia até Paris. Os últimos a desembarcar viram Lorenzo Daza diante dos bares do porto, sentado no chão no meio da rua e com o fato de cerimónia em farrapos. Chorava em altos berros, daquela maneira como os Árabes choram os seus mortos, sentado numa poça de águas podres que bem podia ter sido um charco de lágrimas.

Nem na primeira noite de mar bravo, nem nas seguintes de navegação tranquila, nem nunca na sua muito longa vida matrimonial ocorreram os actos de barbárie temidos por Fermina Daza. A primeira, apesar do tamanho do barco e dos luxos do camarote, foi uma repetição horrível da escuna de Riohacha, e o marido foi um médico solícito que não dormiu nem um instante para a consolar, que era a única coisa que um médico demasiado eminente sabia fazer contra o enjoo. Mas a tempestade amainou ao terceiro dia, depois do porto de La Guayra, e já nessa altura tinham estado tanto tempo juntos, haviam conservado tanto que se sentiam amigos de longa data. Na quarta noite, quando ambos reataram os seus hábitos normais, o doutor Juvenal Urbino surpreendeu-se com o facto da sua jovem esposa não rezar antes de dormir. Ela foi sincera com ele: a hipocrisia das freiras tinha-lhe criado uma aversão contra os Atuais, mas a sua fé estava intacta e tinha aprendido a conserVa-la em silêncio. Disse: «Prefiro entender-me directamente com Deus.» Ele compreendeu as suas razões e desde aí cada um praticou a sua religião à sua maneira. Tinham tido noivado breve, mas bastante informal para a época, pois o doutor Urbino visitava-a em casa, sem serem vigiados, todos os dias ao fim da tarde. Ela não lhe teria permitido nem que ele lhe tocasse na ponta dos dedos sem a bênção episcopal, mas ele também não o tinha tentado. Foi na primeira noite de mar calmo, já na cama mas ainda vestidos, que ele iniciou as primeiras carícias, e fê-lo com tanto cuidado que a ela lhe pareceu natural a sugestão para que vestisse a camisa de dormir. Foi trocar de roupa na casa de banho, mas antes apagou as luzes do camarote e, quando saiu com a camisa de noite, calafetou com trapos as frinchas da porta para deixar a cama na mais completa escuridão. Enquanto o fazia, disse de bom humor:

- Que queres, doutor? É a primeira vez que durmo com um desconhecido.

O doutor Juvenal Urbino sentiu-a deslizar junto a ele como um bichinho assustado, tentando afastar-se tanto quanto possível, num beliche onde era difícil estarem dois sem se tocarem. Pegou-lhe na mão, fria e crispada de terror, entrelaçou-lhe os dedos, e quase como num sussurro começou a contar-lhe as suas recordações de outras viagens por mar. Ela estava novamente tensa, porque, ao voltar à cama, deu conta que ele se despira completamente enquanto ela estava na casa de banho, e isto reavivou-lhe o pânico do passo seguinte. Mas o passo seguinte demorou várias horas, pois o doutor Urbino continuou a falar muito devagar, enquanto se ia apoderando milímetro a milímetro da confiança do seu corpo. Falou-lhe de Paris, do amor de Paris, dos namorados de Paris que se beijavam na rua, nos transportes públicos, nos terraços floridos dos cafés abertos ao hálito de fogo e aos acordeões lânguidos do Verão e que faziam amor de pé nos cais do Sena sem que ninguém os incomodasse. Enquanto falava na sombra, acariciou-lhe a curva do colo com as pontas dos dedos, acariciou-lhe a penugem sedosa dos braços, o ventre evasivo, e quando sentiu que a tensão tinha cedido fez uma primeira tentativa para lhe levantar a camisa de dormir, mas ela impediu-lho com um impulso típico do seu carácter. Disse: «Sei fazer isso sozinha.» Tirou-a, com efeito, e depois ficou tão imóvel que o doutor Urbino teria pensado que já não estava ali se não fosse o calor solarengo do seu corpo nas trevas.

Passado um bocado voltou a pegar-lhe na mão e então sentiumorna e solta, mas ainda húmida de um orvalho terno. Ficaram outro bocado calados e imóveis, ele à espreita da ocasião para o passo seguinte, e ela à espera dele sem saber donde, enquanto a escuridão se ia dilatando com a sua respiração cada vez mais intensa. Ele largou-a então e deu o salto no vazio: humedeceu com a língua a ponta do dedo anelar, tocou-lhe ao de leve no mamilo desprevenido e ela sentiu uma descarga de morte como se lhe tivesse tocado num nervo vivo. Ficou contente por estar às escuras para que ele não visse o rubor intenso que a estremeceu até às raízes do crânio. «Calma», disse-lhe ele, muito sereno. «Não te esqueças que os conheço.» Sentiu-a sorrir e a sua voz foi doce e nova nas trevas. Lembro-me muito bem - disse - e ainda não me passou a raiva.

Então ele soube que tinham dobrado o cabo da boa esperança, e voltou a pegar-lhe na mão grande e fofa e cobriu-a de beijinhos órfãos, primeiro o metacarpo áspero, os longos dedos clarividentes, as unhas diáfanas, e depois o hieróglifo do seu destino na palma suada. Ela não soube como foi que a sua mão chegou até ao peito dele e tropeçou com alguma coisa que não conseguiu decifrar. Ele disse-lhe: «É um escapulário.» Ela acariciou-lhe os pêlos do peito e depois agarrou no matagal todo com os cinco dedos para o arrancar pela raiz. «Com mais força», disse ele. Ela tentou até onde sabia que não o magoava e depois foi a sua mão que procurou a mão dele perdida nas trevas. Mas ele não a deixou entrelaçar-lhe os dedos e agarrou-lhe a mão pelo pulso e foi-lha conduzindo ao longo do corpo com uma força invisível mas muito bem dirigida, até que ela sentiu o sopro ardente de um animal em carne viva, sem forma corporal, mas ansioso e arvorado. Ao contrário do que ele imaginou, até mesmo ao contrário do que ela teria imaginado, não retirou a mão, nem a deixou inerte onde ele a pôs, e, encomendando-se de corpo e alma à Santíssima Virgem, apertou os dentes com medo de se rir da sua própria loucura, e começou a identificar pelo tacto o inimigo encabritado, a conhecer o seu tamanho, a força do seu braço, a extensão das suas asas, assustada com a sua determinação mas compadecida da sua solidão, fazendo-o seu com uma curiosidade minuciosa que alguém menos sabedor que o seu marido teria confundido com carícias. Ele apelou para as suas últimas forças para resistir à vertigem do escrutínio mortal, até que ela o soltou com uma graça infantil como se o tivesse atirado para o lixo.

- Nunca consegui perceber como é esse aparelho - disse. Então ele explicou-lho a sério com o seu método magistral enquanto lhe conduzia a mão pelos sítios que ia mencionando é ela deixava-o levar-lha com uma obediência de aluna exemplar. Ele sugeriu, num momento propício, que tudo aquilo era mais fácil com a luz acesa. Ia acendê-la, mas ela deteve-lhe o braço dizendo: «Vejo melhor com as mãos.» Na verdade queria acender a luz, mas queria fazê-lo ela e sem que ninguém lho mandasse, e assim foi. Ele viu-a então em posição fetal, além de estar coberta pelo lençol, sob a claridade repentina. Mas viu-a segurar outra vez sem afectações o animal da sua curiosidade, virou-o do direito e do avesso, observou-o com um interesse que já começava a parecer mais do que científico, e disse em conclusão: «E tão feio, tão feio que ainda é mais feio que o das mulheres.» Ele concordou e assinalou outros inconvenientes mais graves do que a fealdade. Disse: «É como o filho mais velho: passa-se a vida a trabalhar para ele, a sacrificar tudo por ele, e na hora da verdade acaba por fazer o que lhe der na real gana.» Ela continuou a examiná-lo, perguntando para que servia isto para que servia aquilo e quando achou que estava bem informada tomou-lhe o peso com as duas mãos, para concluir que nem pelo peso valia a pena e deixou-o cair com uma careta de menosprezo.

- Além do mais, acho que lhe sobram demasiadas coisas disse.

Ele ficou perplexo. A proposta original para a sua tese de licenciatura tinha sido essa: a conveniência de simplificar o organismo humano. Parecia-lhe antiquado, com muitas funções inúteis ou repetidas que foram imprescindíveis para outras idades do género humano, mas não para a nossa. Sim: podia ser mais simples e, por essa razão, menos vulnerável. Concluiu: «É uma coisa que só pode ser feita por Deus, é claro, mas de qualquer maneira seria bom deixá-lo estabelecido em termos teóricos.» Ela riu-se divertida, de um modo tão natural que ele aproveitou a ocasião para a abraçar e deu-lhe o primeiro beijo na boca. Ela correspondeu-lhe e ele continuou a dar-lhe beijos

muito suaves nas faces, no nariz, nas pálpebras, enquanto deslocava a mão por debaixo do lençol, e acariciou-lhe o púbis rendo e ralo: um púbis de japonesa. Ela não lhe afastou a mão,

mas conservou a sua em estado de alerta para o caso de ele Dançar mais um passo.

Não vamos continuar com a aula de medicina - disse.

Não - disse ele. - Esta vai ser de amor.

Então, tirou-lhe o lençol de cima e ela não só não se opôs como o atirou para longe do beliche com um movimento rápido dos pés, porque já não aguentava o calor. O seu corpo era ondulante e elástico, muito mais do que quando estava vestida, e com um cheiro próprio a animal do campo que permitia distingui-la entre todas as mulheres do mundo. Indefesa em plena luz, uma onda de sangue a ferver subiu-lhe à cara e a única coisa de que se lembrou para o ocultar foi pendurar-se ao pescoço do seu homem e beijá-lo profundamente, até gastarem no beijo todo o ar que tinham para respirar.

Ele tinha consciência de que não a amava. Tinha casado com ela porque gostava da sua altivez, da sua seriedade, da sua força, e também por um grão de vaidade, mas, enquanto ela o beijava pela primeira vez, teve a certeza de que não haveria nenhum obstáculo para que inventassem um grande amor. Não falaram disso nessa primeira noite em que falaram de tudo até amanhecer, nem haveriam de falar disso nunca. Mas, com o decorrer do tempo, nenhum dos dois se enganou.

Ao amanhecer, quando adormeceram, ela continuava virgem, mas não havia de o ser por muito tempo. Na noite seguinte, com efeito, depois dele lhe ter ensinado a dançar as valsas de Viena sob o céu sideral das Caraíbas, ele teve de ir à casa de banho depois dela e quando voltou ao camarote encontrou-a nua na cama à espera dele. Então foi ela quem tomou a iniciativa e entregou-se-lhe sem medo, sem dor, com a alegria de uma aventura de mar alto, e sem mais vestígios de cerimónia sangrenta além da rosa da honra no lençol. Ambos o fizeram bem, quase como um milagre, e continuaram a fazê-lo bem de noite e de dia e cada vez melhor durante o resto da viagem, e quando chegaram a La Rochelle entendiam-se como velhos amantes.

Ficaram dezasseis meses na Europa, com base em Paris e fazendo viagens curtas pelos países vizinhos. Durante esse tempo fizeram amor todos os dias e, mais de uma vez, nos domingos de Inverno, quando ficavam até à hora de almoço a brincar na cama. Ele era um homem de bons ímpetos e, além disso, bem treinado, e ela não fora feita para perder com ninguém, de modo que tiveram de se conformar com a partilha do poder na cama. Ao fim de três meses de amores febris, ele apercebeu-se que um dos dois era estéril e ambos se submeteram a exames rigorosos no Hospital de Ia Salpêtrière, onde ele fizera o seu internato. Foi uma decisão difícil mas infrutífera. No entanto, quando menos o esperavam, e sem nenhuma intervenção científica, aconteceu o milagre. Nos finais do ano seguinte, quando regressaram a casa, Fermina estava grávida de seis meses e tinha-se na conta da mulher mais feliz da terra. O filho tão desejado por ambos, que nasceu sem novidade sob o signo do Aquário, foi baptizado em honra do avô que morrera de cólera.

Era impossível saber se fora a Europa ou se fora o amor que os tornara diferentes, pois as duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. E ambos estavam mudados, e profundamente, não só para com eles próprios como com toda a gente, como o sentiu Florentine Ariza ao vê-los à saída da missa duas semanas depois de terem voltado, naquele domingo da sua desgraça. Voltaram com uma concepção nova da vida, cheios das novidades do mundo e prontos para mandar. Ele, com as novidades da literatura, da música e sobretudo as da sua ciência. Trouxe uma assinatura de Lê Figaro, para não perder o fio da realidade e outra da Revue dês Deux Mondes para não perder o fio da poesia. Além disso fizera um acordo com o seu livreiro de Paris para receber as novidades dos escritores mais lidos, entre eles Anatole France e Pierre Loti, e dos que mais lhe agradavam, entre eles Remy de Gourmont e Paul Bourget, mas em nenhum dos casos Émile Zola, que lhe parecia insuportável, apesar da sua corajosa intervenção no julgamento de Dreyfus. O mesmo livreiro se comprometeu a enviar por correio as novidades mais sedutoras do catálogo de Ricordi, principalmente música de câmara, para manter o título merecidamente ganho pelo seu pai de primeiro promotor de concertos na cidade.

Fermina Daza, sempre contrária aos rigores da moda, trouxe seis baús com roupas de tempos variados, pois as grandes marcas não a convenceram. Tinha estado nas Tulherias, em pleno Inverno, para o lançamento da colecção de Worth, o ineludível tirano da alta costura, mas a única coisa que conseguiu foi uma bronquite que a fez ir à cama durante cinco dias. Laferrière pareceu-lhe menos pretensioso e voraz, mas a sua decisão mais sábia foi a de comprar tudo o que mais lhe agradava nas lojas de saldos, apesar do esposo jurar aterrorizado que eram roupas de defuntos. Mesmo assim trouxe grandes quantidades de sapatos italianos, sem marca, que preferiu aos afamados e extravagantes de Ferry, e trouxe uma sombrinha de Dupuy, vermelha como os fogos do inferno, que deu muito que escrever aos nossos assustadiços cronistas sociais. Só comprou um chapéu de Madame Reboux, mas em troca encheu um baú com cachos de cerejas artificiais, ramalhetes de quantas flores de feltro conseguiu encontrar, feixes de plumas de avestruz, barretes de penas de pavão, caudas de galos asiáticos, faisões inteiros, colibris e uma incontável variedade de pássaros exóticos dissecados em pleno voo, em pleno grito, em plena agonia: tudo quanto tinha servido durante os últimos vinte anos para que os mesmos chapéus parecessem outros. Trouxe uma colecção de leques de diversos países e um diferente e apropriado para cada ocasião. Trouxe uma essência perturbadora, escolhida entre muitas na perfumaria do Bazar de Ia Charité, antes que os ventos da Primavera dispersassem as suas cinzas, mas usou-a só uma vez, porque não se conheceu a si mesma com o perfume trocado. Trouxe também um estojo de cosméticos, que era a última novidade no mercado da sedução, e foi a primeira mulher a levá-lo às festas, quando o simples acto de se retocar em público era considerado indecente.

Traziam também três recordações inesquecíveis: a estreia sem precedentes dos Contos de Hoffmann1, em Paris, o incêndio pavoroso de quase todas as gôndolas de Veneza diante da praça de São Marcos, a que eles assistiram com o coração des

Opera do compositor francês nascido na Alemanha, Jacques Offenbach (1819-1880), estreada em Paris, em 1881, após a sua morte. (N. do E.)

feito, da varanda do hotel, e a visão fugaz de Oscar Wilde no primeiro nevão de Janeiro. Mas no meio dessas e de tantas outras recordações, o doutor Juvenal Urbino conservava uma que sempre lamentou não partilhar com a esposa, pois vinha dos seus tempos de solteiro em Paris. Era a recordação de Victor Hugo, que aqui gozava de uma celebridade comovedora, e alheia aos livros, pois alguém disse que ele tinha dito, sem que ninguém o tivesse ouvido na realidade, que a nossa constituição não era para um país de homens mas sim de anjos. Desde então renderam-lhe um culto especial e a maioria dos numerosos compatriotas que viajavam até França, morria por vê-lo. Uma meia dúzia de estudantes, entre eles Juvenal Urbino montaram a guarda à sua residência na Avenida Eylau durante algum tempo, e nos cafés onde constava que iria sem falta e onde nunca foi. Por fim, tinham-lhe pedido por escrito uma audiência privada, em nome dos anjos da Constituição de Rionegro. Nunca receberam resposta. Num dia qualquer, Juvenal Urbino passou por acaso em frente do Jardim do Luxemburgo e viu-o sair do Senado com uma mulher jovem e bela que ia de braço dado com ele. Achou-o muito velho, andando com grande dificuldade, a barba e o cabelo menos impressionantes do que nos retratos, e dentro de um casaco que parecia de alguém mais corpulento. Não quis estragar a recordação com um cumprimento impertinente: chegava-lhe essa visão quase irreal que lhe bastaria para o resto da vida. Quando voltou a Paris, depois de casado, em condições de o ver de um modo mais formal, já Victor Hugo tinha morrido.

Como consolação, Juvenal e Fermina traziam a recordação partilhada de uma tarde de neve em que um grupo que desafiava a tempestade diante de uma pequena livraria do Bulever dês Capucines os intrigou: era Oscar Wilde que estava lá dentro. Quando, finalmente, saiu, bastante elegante, mas talvez demasiado convencido disso, o grupo rodeou-o pedindo-lhe que lhes autografasse os livros. O doutor Urbino tinha parado apenas para o ver, mas a sua impulsiva esposa quis atravessar a alameda para que lhe autografasse a única coisa que lhe parecia apropriada, à falta de um livro: a sua magnífica luva de pele de recém-casada. Tinha a certeza de que um homem tão requintado apreciaria aquele gesto. Mas o marido opôs-se-lhe firmemente e quando ela o tentou fazer, apesar das suas razões, ele não se julgou capaz de sobreviver à vergonha.

___ Se atravessares essa rua - disse-lhe - quando voltares aqui dás comigo morto.

Era uma característica natural nela. Em menos de um ano de casada movimentava-se pelo mundo com a mesma desenvoltura com que o fazia em pequenina no morredouro de San Juan de Ia Ciénaga, como se já o soubesse ao nascer e tinha uma facilidade de trato com os desconhecidos que deixava o marido perplexo, além de um talento misterioso para se entender em castelhano fosse com quem fosse e em que sítio fosse. «É preciso conhecer os idiomas quando se vai vender alguma coisa», dizia com risinhos trocistas. «Mas quando se vai comprar, todas as pessoas nos compreendem.» Era difícil imaginar alguém que tivesse assimilado tão rapidamente e com tanta alegria a vida quotidiana de Paris, que aprendeu a amar nas recordações apesar das suas eternas chuvas. No entanto, quando regressou a casa, incomodada por tantas experiências juntas, cansada pela viagem e meio adormecida por causa da gravidez, a primeira coisa que lhe perguntaram no porto foi como é que lhe tinham parecido as maravilhas da Europa, e ela resumiu dezasseis meses de felicidade com quatro palavras da sua gíria caraíba:

- Muita parra, pouca uva.

No dia em que Florentine Ariza viu Fermina Daza no adro da catedral, grávida de seis meses e com perfeito autodomínio da sua nova condição de senhora de sociedade, tomou a decisão feroz de ganhar nome e fortuna para a merecer. Nem sequer se deteve a pensar na inconveniência de ela ser casada, porque simultaneamente decidiu, como se dependesse dele, que o doutor Juvenal Urbino tinha de morrer. Não sabia nem quando nem como, mas tomou-o como um acontecimento inevitável, e estava resolvido a esperá-lo sem pressas nem arrebatamentos nem que fosse até ao fim dos tempos.

Começou pelo princípio. Apresentou-se sem se anunciar no escritório do tio Leão XII, presidente da Junta Directiva e director-geral da Companhia Fluvial das Caraíbas e comunicou-lhe a disposição de se submeter à sua decisão. O tio estava ressentido com ele pela maneira como desperdiçara o bom emprego de telegrafista na Vila de Leyva, mas deixou-se levar pela sua convicção de que os seres humanos não nascem para sempre no dia em que as suas mães os dão à luz, mas que a vida os obriga uma e outra vez ainda a parirem-se a si mesmos. Além disso, a viúva do irmão morrera no ano anterior, com o rancor à flor da pele mas sem deixar herdeiros. Por isso acabou por dar

o emprego ao sobrinho errante.

Era uma decisão típica do senhor Leão XII Loayza. Dentro daquela capa de comerciante sem alma tinha escondido um lunático genial, que tanto podia fazer correr um rio de limonada no deserto da Guajira como inundar de prantos um funeral religioso com o seu canto lancinante de Inquesta tomba oscura. Com a cabeça frisada e a boca de fauno, só lhe faltava a lira e a coroa de louros para ser igual ao Nero incendiário da mitologia cristã. As horas que lhe ficavam livres entre a administração dos seus navios decrépitos, que flutuavam ainda por pura distracção do destino, e os problemas cada vez mais cruciais da navegação fluvial, consagrava-as a enriquecer o seu repertório lírico. Nada lhe agradava mais que cantar nos enterros. Tinha uma voz de remador de galé, sem nenhum grau académico, mas capaz de registos impressionantes. Alguém lhe tinha contado que Enrico Caruso conseguia fazer em pedaços uma jarra de flores só com a força da sua voz, e durante anos andou a tentar imitá-lo até com os vidros das janelas. Os amigos traziam-lhe as jarras mais finas que encontravam nas suas viagens pelo mundo e organizavam festas especiais para que ele conseguisse finalmente realizar o seu sonho. Nunca o conseguiu. No entanto, por trás do seu trovão, havia uma luzinha de ternura que gretava o coração dos seus ouvintes como as ânforas de cristal do grande Caruso e era isto que o tornava tão venerável nos enterros. Excepto num, em que teve a boa ideia de cantar When wake up in Glory, um canto fúnebre da Luisiana, belo e comovente, e em que o capelão o mandou calar, pois não podia compreender aquela intromissão luterana na sua igreja.

Assim, entre os bises das óperas e as serenatas napolitanas, o seu talento criativo e o seu invencível espírito empreendedor converteram-no no personagem mais ilustre da navegação fluvial na sua época de maior esplendor. Tinha vindo do nada, como os dois irmãos já falecidos, e todos haviam chegado onde tinham querido, apesar do estigma de serem filhos naturais, e ainda com a agravante de nunca terem sido reconhecidos. Eram a nata do que então se chamava a aristocracia de balcão, cujo santuário era o Clube do Comércio. Porém, mesmo quando podia dispor de recursos para viver como o imperador romano que parecia ser, o tio Leão XII vivia na cidade velha por comodidade de trabalho, com a mulher e os três filhos, de uma maneira tão austera e numa casa tão simples que nunca se livrou de uma injusta reputação de avarento. Mas o seu único luxo era ainda mais simples: uma casa de praia, a dez quilómetros dos escritórios, sem mais mobília além dos seis tamboretes artesanais, o filtro de água e uma rede no terraço para se deitar a pensar aos domingos. Ninguém o definiu melhor que ele próprio quando o acusaram de ser rico:

RiCO não - disse. - Sou um pobre com dinheiro, o que não é a mesma coisa.

Esse estranho modo de ser, que alguém elogiou certa vez num discurso como uma demência lúcida, permitiu-lhe ver imediatamente aquilo que ninguém via nem antes nem depois em Florentine Ariza. Desde o dia em que este se apresentou a pedir-lhe emprego nos seus escritórios, com aquele aspecto lúgubre e os seus vinte e sete anos inúteis, pô-lo à prova com um regime de quartel muito duro, capaz de vergar o mais valente. Mas não conseguiu amedrontá-lo. o que o tio Leão XII nunca suspeitou foi que essa têmpera do sobrinho não lhe vinha da necessidade de subsistir nem de uma certa inércia animal herdada do pai, mas sim de uma ambição de amor, que contrariedade alguma deste mundo ou do outro conseguiria esmorecer.

Os piores anos foram os primeiros, quando o nomearam escriturário da Direcção-Geral, que parecia um trabalho feito por medida para ele. Lotario Thugut, antigo professor de Música do tio Leão XII, foi quem o aconselhou a nomear o sobrinho para um cargo em que fosse preciso escrever, porque era um consumidor incansável de literatura a granel, ainda que não tanto da boa como da pior. O tio Leão XII não lhe deu ouvidos à indicação da má qualidade das leituras do sobrinho, pois também dele, Lotario Thugut, dizia que tinha sido o seu pior aluno de canto, e, no entanto, até fazia chorar as lápides dos cemitérios. Em todo o caso, o alemão tinha razão naquilo em que menos pensara: Florentine Ariza escrevia qualquer coisa com tanta paixão que até os documentos oficiais pareciam de amor. Os manifestos de embarque saíam-lhe rimados por muito que se esforçasse em evitá-lo e as cartas comerciais de rotina tinham uma toada lírica que lhes retirava a autoridade. O tio apareceu-lhe em pessoa certo dia no escritório com um pacote de correspondência que não tinha tido a coragem de assinar como sua e deu-lhe uma última oportunidade para se salvar.

- Se não és capaz de escrever uma carta comercial vais para o cais apanhar o lixo - disse-lhe.

Florentine Ariza aceitou o desafio. Fez um esforço supremo para aprender a simplicidade terrestre da sua prosa mercantil, imitando os modelos dos arquivos notariais com tanta aplicação como antes o fizera com os poetas em moda. Era essa a época em que passava os seus tempos livres no Portal dos Escrivães ajudando os namorados analfabetos a escrever os seus bilhetes perfumados, para libertar o coração de tantas palavras de amor que lhe ficavam por usar nos relatórios de alfândega. Mas, ao fim de seis meses, por muitas voltas que lhe desse, não tinha conseguido torcer o pescoço ao seu cisne empedernido. De modo que quando o tio Leão XII o repreendeu pela segunda vez, deu-se por vencido, mas com uma certa altivez.

- A única coisa que me interessa é o amor - disse.

- O pior - disse-lhe o tio - é que sem navegação fluvial não há amor.

Cumpriu a ameaça de o mandar apanhar o lixo no cais, mas deu-lhe a sua palavra de que o faria subir degrau a degrau pela escada dos bons serviços até que encontrasse o seu lugar. E, assim foi. Nenhum tipo de trabalho o conseguiu derrotar, por muito duro e humilhante que fosse, nem o desmoralizou o ordenado miserável, nem perdeu por um momento a sua impavidez essencial ante a insolência dos seus superiores. Mas também não foi ingénuo: tudo quanto se atravessou no seu caminho sofreu as consequências de uma determinação arrasadora, capaz de qualquer coisa, sob aquele aspecto desvalido. Tal como o tio Leão XII o previra e desejara, para que não ficasse sem conhecer nenhum segredo da empresa, passou por todos os cargos em trinta anos de dedicação e tenacidade a toda a prova. Desempenhou-os a todos com uma capacidade admirável, estudando cada fio daquela trama misteriosa que tanto tinha a ver com os trabalhos da poesia, mas sem conseguir a medalha de guerra que mais desejava, que era escrever uma carta comercial aceitável. Sem se ter proposto a isso, sem o saber sequer, demonstrou com a sua vida a razão do pai, que repetiu até ao último suspiro que não havia ninguém com mais sentido prático, nem pedreiros mais obstinados nem gerentes mais lúcidos e perigosos do que os poetas. Isso foi pelo menos o que contou o tio Leão XII, que costumava falar-lhe do pai durante os ócios do coração, e que lhe deu dele uma ideia mais parecida com a de um sonhador do que de um empresário.

Contou-lhe que Pio Quinto Loayza utilizava os escritórios mais para seu lazer que para o trabalho e arranjou sempre maneira de sair de casa aos domingos, com o pretexto de que tinha de receber ou de despachar um navio. Mais ainda: tinha mandado instalar no pátio das mercadorias uma caldeira inútil com uma sirene a vapor que apitava com códigos de navegação, para o caso da esposa estar atenta. Fazendo contas, o tio Leão XII tinha a certeza de que Florentine Ariza fora concebido em cima da secretária de algum escritório mal fechado, numa tarde quente de domingo, enquanto a esposa de seu pai ouvia em casa os adeuses de um navio que jamais partiu. Quando o descobriu já era tarde para fazer pagar a infâmia, pois o marido já tinha morrido. Viveu muito mais anos que ele, desfeita pela amargura de não ter um filho e pedindo a Deus nas suas orações a maldição eterna para aquele bastardo.

A imagem do pai perturbava Florentino Ariza. A mãe falava-lhe dele como de um homem sem vocação comercial, que acabara nos negócios do rio porque o irmão mais velho tinha sido um colaborador muito próximo do comodoro alemão Juan B. Elbers, precursor da navegação fluvial. Eram filhos naturais de uma mesma mãe, cozinheira de profissão, que os tivera de homens diferentes e todos usavam o apelido dela depois do nome de um papa escolhido ao acaso no santoral, excepto o do tio Leão XII, que era o nome do que reinava quando ele nasceu. O que se chamava Florentino era o avô materno de todos, assim que o nome tinha chegado até ao filho de Trânsito Ariza saltando por cima de toda uma geração de pontífices.

Florentino guardou sempre um caderno onde o pai escrevia versos de amor, alguns inspirados por Trânsito Ariza, e as páginas estavam enfeitadas com desenhos de corações feridos. Surpreenderam-no duas coisas. Uma era a personalidade da caligrafia do pai, idêntica à sua, apesar de ele a ter escolhido por ser aquela a que mais lhe agradara entre as muitas do manual. A outra foi deparar-se-lhe uma sentença que ele julgava sua e que o seu pai escrevera no caderno muito antes de ele nascer: «A única pena que tenho de morrer é que não seja por amor.»

Tinha visto também os únicos dois retratos do pai. Um tirado em Santa Fé, muito jovem, com a idade que ele tinha quando o viu pela primeira vez, com um sobretudo que era a mesma coisa como estar metido dentro de um urso, e encostado a um pedestal de cuja estátua só ficavam as polainas decepadas. O garoto que estava ao lado dele era o tio Leão XII com o bonezinho de comandante de navio. Na outra fotografia estava o pai com um grupo de guerreiros, quem sabe em qual de tantas guerras, e tinha a espingarda maior e uns bigodes, cujo cheiro a pólvora’se exalava da imagem. Era liberal e mação, tal como os irmãos, mas apesar disso, queria que o filho entrasse no seminário. Florentine Ariza não sentia as parecenças que lhes atribuíam, mas, no dizer do tio Leão XII, também a Pio Quinto lhe recriminavam o lirismo dos seus documentos. Em todo o caso, nem nos retratos se parecia com ele> nem concordava com as suas recordações nem com a imagem que a mãe pintava, transfigurada pelo amor, nem com a que despintava o tio Leão XII na sua graciosa crueldade. Mas Florentine Ariza descobriu essa parecença muitos anos depois, quando se penteava ao espelho, e só então compreendera que um homem sabe quando começa a envelhecer porque começa a parecer-se com o pai.

Não se lembrava dele na Rua das Janelas. Julgava saber que numa dada altura dormiu lá, muito no princípio dos seus amores com Trânsito Ariza, mas que não a voltou a visitar depois do seu nascimento. A certidão de baptismo foi durante muitos anos o nosso único instrumento válido de identificação, e a de Florentine Ariza, registada na paróquia de Santo Toribio, só dizia que era filho natural de outra filha natural solteira que se chamava Trânsito Ariza. Não constava dela o nome do pai, que, no entanto, zelou em segredo pelas necessidades do filho até ao último dia. Esta condição social fechou para Florentino Ariza as portas do seminário, mas também lhe permitiu escapar-se do serviço militar, na época mais sangrenta das nossas guerras, por ser o filho único de uma mãe solteira.

Todas as sextas-feiras, depois da escola, ia sentar-se em frente dos escritórios da Companhia Fluvial das Caraíbas, folheando um livro de estampas de animais, tantas vezes folheado que se estava a desfazer em bocados. O pai entrava sem olhar para ele, vestido com os fatos de casimira que Trânsito Ariza adaptaria mais tarde para ele, e com uma cara igual à do São João Evangelista dos altares. Quando saía, ao fim de muitas horas e fazendo tudo para que nem o seu cocheiro o visse, dava-lhe o dinheiro para as despesas da semana. Não se falavam, não só porque o pai nem sequer o tentava como também porque ele lhe tinha um medo pavoroso. Certo dia, depois de esperar muito mais tempo do que era costume, o pai deu-lhe as moedas dizendo-lhe:

Tome e não volte mais.

Foi a última vez que o viu. Mas com o tempo havia de saber que o tio Leão XII, que era aproximadamente dez anos mais novo, continuou a levar o dinheiro a Trânsito Ariza e foi quem se preocupou com ela quando Pio Quinto morreu de uma cólica mal tratada, sem deixar nada escrito e sem ter tido tempo de providenciar qualquer coisa em favor do filho único: um filho da rua.

O drama de Florentine Ariza, enquanto foi escriturário da Companhia Fluvial das Caraíbas, era que não podia iludir o seu lirismo porque não deixava de pensar em Fermina Daza e nunca aprendeu a escrever sem pensar nela. Depois, quando o passaram para outros serviços, sobrava-lhe tanto amor por dentro que não sabia que fazer com ele e oferecia-o aos namorados analfabetos escrevendo para eles cartas de amor gratuitas no Portal dos Escrivães. Era para aí que ia depois do trabalho. Despia o casaco com os gestos parcimoniosos e pendurava-o no espaldar da cadeira, punha os manguitos para não sujar as mangas da camisa, desabotoava o colete para pensar melhor e, por vezes, ficava até de noite, já bem tarde, a reanimar os sofredores com umas cartas enlouquecedoras. De vez em quando encontrava uma pobre mulher que tinha um problema com um filho, um veterano de guerra que insistia em reclamar o pagamento da sua pensão, alguém que tinha sido roubado e que queria apresentar a sua queixa ao Governo, mas por mais que se esmerasse não conseguia agradar-lhes, porque a única coisa com que conseguia convencer alguém era com cartas de amor. Aos novos clientes nem sequer lhes fazia perguntas porque lhe bastava olhar para os olhos para se dar conta do seu estado, e escrevia folha após folha de amores ardentes, segundo a fórmula infalível de escrever a pensar sempre em Fermina Daza e em nada mais do que nela. Ao fim do primeiro mês teve de organizar um sistema de reservas antecipadas para conseguir dar vazão às ânsias dos apaixonados.

A sua recordação mais grata daquela época foi a de uma rapariguinha muito tímida, quase uma criança, que lhe pediu a tremer que lhe escrevesse uma resposta a uma carta irresistível que acabava de receber e que Florentino Ariza descobriu ter sido escrita por ele na tarde anterior. Respondeu com um estilo diferente, de acordo com a emoção e a idade da menina e com uma letra que também parecesse dela, pois sabia fingir uma caligrafia para cada ocasião segundo a personalidade de cada um. Escreveu imaginando o que Fermina Daza lhe teria respondido se o amasse tanto quanto aquela criatura desamparada amava o seu pretendente. Claro está que dois dias depois teve de escrever também a réplica do noivo, com a caligrafia, o estilo e o tipo de amor que lhe atribuíra na primeira carta e foi assim que acabou envolvido numa correspondência febril consigo próprio. Não fazia um mês quando ambos foram, cada um por seu lado, agradecer-lhe pelo que ele próprio tinha proposto na carta do noivo e aceitado com devoção na resposta da rapariga: iam casar-se.

Só quando tiveram o primeiro filho se aperceberam, por um acaso no meio de uma conversa, que as cartas dos dois tinham sido escritas pelo mesmo escriturário e, pela primeira vez, foram juntos ao portal para pedir-lhe que fosse o padrinho da criança. Florentino Ariza entusiasmou-se tanto com a evidência prática dos seus sonhos que arranjou o tempo que não tinha para escrever um Secretário dos Namorados, mais poético e maior do que aquele que até aí se vendia a vinte centavos de porta em porta, e que meia cidade sabia de cor. Ordenou as situações imaginárias em que Fermina Daza e ele se pudessem encontrar e, para todas elas, escreveu um modelo para quantas alternativas de ida e volta lhe pareceram possíveis. No fim, tinha umas mil cartas em três volumes tão quadrados quanto o dicionário de Covarrubias, mas nenhuma tipografia da cidade se arriscou a publicar-lhos, e acabaram nalgum desvão da casa, com outros papéis do passado, pois Trânsito Ariza foi inabalável ao recusar desenterrar as bilhas para desperdiçar as economias de toda a sua vida numa loucura editorial. Anos depois, quando Florentino Ariza teve meios próprios para publicar o livro, custou-lhe muito aceitar a realidade de que as cartas de amor já tinham passado de moda.

 

                                                                                CONTINUA

 

                      

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