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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ANJO BRANCO / José Rodrigues dos Santos
O ANJO BRANCO / José Rodrigues dos Santos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ANJO BRANCO

Primeira Parte

 

Quando o quarto e último filho do casal Branco nasceu, a coisa mais invulgar que a todos chamou a atenção foi que o bebé ostentava um pénis enorme.

"Está quase..."

A primeira pessoa a ser honrada com o privilégio de contemplar semelhante prodígio foi Beatriz, uma rapariga do campo contratada para ajudar na lida doméstica, moça franzina, respeitadora da moral e temente a Deus, vinte e cinco anos de vida difícil, parteira nas horas de aflição, como aquelas que a fecharam nesse sábado de 1936 no quarto mais soalheiro da casa, em plena parte alta de Penafiel.

"Já falta pouco."

Desde o final da manhã que Beatriz ajudava dona Amélia na sua agonia parideira, e só agora, já a tarde ia a meio, a parturiente se preparava para dar à luz, entre gritos e gemidos, encharcada de suor naquele dia fresco de Outono. Amélia sentia-se cansada, mas sabia que era chegado o momento que requeria mais energia, o instante final, e não era altura para desfalecimentos.

"Agora, minha senhora!", exortou a criada, a voz já rouca de fadiga. "Agora! Força! Força!"

A dona da casa correspondeu com um derradeiro e supremo esforço, berrando de dor, e a parteira sentiu a cabeça do bebé emergir das entranhas. Beatriz mergulhou as mãos nas profundezas dilatadas de Amélia, agarrou os ombros escorregadios do pequenito e puxou, puxou até o corpo minúsculo deslizar para fora, abandonando o calor protector da mãe e expondo-se enfim à agressão do mundo.

"Está tudo bem?", perguntou uma voz masculina, do outro lado da porta do quarto.

Era o capitão Mário Branco, que aguardava no corredor, com mal contida ânsia, notícias do parto.

Ignorando as perguntas angustiadas e insistentes do marido, Amélia ergueu a cabeça e viu a jovem parteira pegar no recém-nascido, cortar o cordão umbilical, pendurar o bebé pelos pés e sacudi-lo. Só descansou quando o escutou a chorar; era um miado fraco e desamparado, feito de desespero, a lamúria atormentada de um pequeno ser expulso do aconchego protector do útero e atirado para a imensidão fria do desconhecido.

"É menino!", anunciou Beatriz. "É menino!"

"Dê-mo!", gemeu a mãe, exausta. "Beatriz, dê-me o meu bebé!"

"É só um instante."

Vendo a criada limpar o seu filho, Amélia estendeu as mãos para o pedir mas depressa deixou tombar os braços, exausta; sabia que teria de aguardar ainda uns momentos até que a criança lhe fosse para o regaço.

Beatriz usava uma toalha húmida e quente. Enquanto passava o pano pela pele engelhada do bebé foi examinando o minúsculo corpo com prazer, como se apreciasse um troféu, até que o olhar se lhe franziu ao descobrir uma grossa salsicha pendurada entre as pernas do pequenito. Ainda julgou que se tratava dos restos do cordão umbilical e aproximou os olhos, arregalando-os de surpresa quando percebeu que afinal não era o cordão, mas a sua virilidade.

"Credo!", exclamou, pasmada, levando a mão à boca. "Ai que mingalha tão grande!"

"Está tudo bem?", insistiu o capitão Branco, impacientando-se para lá da porta.

Beatriz embrulhou o recém-nascido à pressa num manto amarelo, não fosse ele constipar-se, coitadinho, e depositou-o nos braços da extenuada mãe com um murmúrio carinhoso. Amélia acolheu a criança com alívio, acariciou-lhe a cabeça e espreitou-lhe o corpo; queria confirmar o sexo. Tal como a parteira, momentos antes, também ela ficou de olhos esbugalhados ao deparar-se com o apêndice monstruoso que o bebé ostentava no ventre.

"O que é isto?", perguntou Amélia, levemente assustada.

"É a mingalhinha dele, minha senhora", esclareceu Beatriz, mal contendo uma risada.

"A quê?"

"O pirilau, minha senhora. É o pirilauzinho do menino, coitadinho."

Amélia voltou a fixar os olhos na minhoca gorda, primeiro incrédula, por fim resignando-se à incrível evidência. Aquele monstro era o pénis do bebé.

E que pénis.

"Valha-me Deus!", foi tudo o que conseguiu balbuciar.

Beijou o filho na testa, como se assim o absolvesse dos pecados que aquele instrumento lhe augurava, e aninhou-o entre os braços, mantendo-o quentinho. Esgotada, deixou a cabeça abater-se pesadamente na almofada e, sem querer ralar-se com inquietações prematuras, respirou fundo e repousou.

Vendo o bebé confortado no abraço da mãe, Beatriz limpou as mãos ao avental e dirigiu-se à entrada do quarto, de onde vinham perguntas cada vez mais insistentes.

Abriu a porta e mirou o capitão Branco.

"Parabéns, senhor capitão", exclamou. "Já tem mais um filho."

"É... é menino?"

"Não, senhor capitão, não é menino", sorriu a parteira, corando. "É um homem, benza-o Deus!"

"Um homem?"

"Um homem, senhor capitão. E muito homem, se quer que lhe diga!"

O capitão irrompeu no quarto e foi dar com a mulher estendida sobre a enorme cama, o cobertor a subir e a descer ao ritmo leve da respiração. A luz que jorrava das vastas janelas voltadas para a rua iluminava-lhe o rosto sulcado de fadiga e projectava-lhe um halo resplandecente nos cabelos desmaiados sobre a almofada, fazendo de Amélia um anjo exangue.

Atraídos pelo súbito rebuliço e pelo choro fraco do recém- nascido, os outros dois filhos do casal Branco convergiram para o corredor e, num tropel desordenado, invadiram o grande quarto do fundo, acotovelando-se numa algazarra alegre.

"Pouco barulho!", ordenou o pai, sentado na borda da cama, adoptando a sua voz profissional de comando. "A mãe está cansada."

Os filhos calaram-se de imediato e puseram-se em bicos de pés para espreitar o irmão recém-nascido. À frente plantou-se o mais velho, António, um rapaz orgulhoso e falador, apesar dos seus cinco anos. Depois vinha a primeira das raparigas, Rosa, uma menina de três anos, de traços finos, sensível, e tão responsável pelos irmãos que passara a ser conhecida por Mana. A pequena Lourdes apareceu instantes mais tarde nos braços de Beatriz; era uma bebé de apenas um ano, que a criada inclinou na direcção do recém-nascido, como se Lourdes fosse capaz de discernir os acontecimentos de que era testemunha inadvertida.

"É menina?", perguntou Rosa, sem tirar os olhos do novo irmão.

"Vamos ver", disse o pai, inclinando-se sobre o bebé.

O capitão entreabriu o manto para espreitar o ventre do pequeno, mas Amélia, buscando força onde não sabia que a tinha, estendeu o braço para repelir o marido e voltou a cobrir a criança.

"Não!", disse, apertando o bebé contra o peito.

O marido olhou para a mulher, admirado.

"Então, querida?"

"É menino."

"Mas não podemos ver?"

"Não!", limitou-se a dizer. "Nem pensar em exibir o... o coisinho a toda a gente."

"A toda a gente, querida?", espantou-se o capitão, sem compreender tanto pudor. "Mas nós somos a família, que diabo! Além disso ele ainda é pequenino, não tem mal nenhum."

"Não."

Beatriz percebeu o dilema da patroa e inclinou-se para o patrão.

"Senhor capitão", sussurrou-lhe ao ouvido. "O menino tem uma mingalhinha de homem."

"Como?"

"O menino, senhor capitão. Tem uma mingalhinha de homem."

"Uma quê?"

"O pirilau, senhor capitão." Baixou ainda mais a voz, como se estivesse a blasfemar. "O pirilauzinho do menino, coitadinho. O bebé tem um pirilau de homem e a senhora não quer que as crianças vejam."

O capitão observou o recém-nascido com ar perplexo.

"Ah!", exclamou sem entender, mas suficientemente perspicaz para sentir que, se a mulher levantava objecções num momento como aquele, lá teria as suas razões e ele não deveria insistir. "Depois vejo isso."

As crianças debruçaram-se sobre o peito da mãe para espreitar melhor o irmão; o bebé exibia um ar tranquilo, mergulhado num sono satisfeito, mas tinha os olhos ainda inchados e o rosto avermelhado. Parecia um pato esfolado.

"Boa!", observou António, o mais velho, fazendo sinal para as irmãs. "Ainda bem que é menino! Já estou farto de galinhas!"

"Galinha és tu!", devolveu Rosa, empertigando-se.

"Eu cá sou galo."

"Galinha!"

António empurrou a irmã.

"Não me chamas galinha!"

"Galinha!"

"Quietos!", ordenou o capitão. "Juizinho."

As crianças voltaram a calar-se e a redireccionar as atenções para o irmão.

"Como se chama?", quis saber Rosa.

O capitão hesitou; era uma boa pergunta. Olhou para a mulher com ar de quem ainda não tinha pensado no assunto, mas, ao ver o sorriso ténue de Amélia, percebeu que a questão já estava fechada.

"José", murmurou ela antes de adormecer.

O pequeno José Branco teve umas primeiras semanas difíceis. Nasceu frágil, muito debilitado, magro como um coelho assado; do seu corpinho raquítico apenas se destacava o umbigo, uma cicatriz ensanguentada que demorava a cicatrizar e o pénis enorme, que dona Amélia teve o cuidado de ocultar dos olhares indiscretos. Num esforço de o subtrair aos insistentes esgares coscuvilheiros de amigos e familiares, encobriu-o sob pudicas camadas de fraldas de pano, verdadeiros véus censórios a que recorreu com zelo maternal para resguardar aquele verdadeiro milagre da natureza.

O esforço revelou-se vão, como é bom de calcular, pois a fama do recém-nascido e de tão viril atributo era de tal modo grande, correu tanto e tão longe chegou, que em breve a família em peso assomou em romaria à porta de casa. Mesmo os parentes mais afastados de Passos de Sousa e Castelo de Paiva e Bragança e Alfândega da Fé fizeram peregrinação a Penafiel para contemplar tamanho fenómeno; semelhante predicado só podia ser dádiva dos céus, graça divina que merecia devida glorificação.

"É verdade que o menino foi abençoado por Deus?", chegou a perguntar-lhe uma prima beata.

A moça mal conseguia conter o frémito irrequieto que percorria um grupinho de familiares distantes acabadas de chegar de Trás-os-Montes e que lhe havia invadido a casa.

"Todos os meus filhos foram abençoados pelo Senhor", limitou-se Amélia a retorquir, fazendo-se despercebida.

"Claro, minha querida, claro", assentiu a prima de Bragança, contraindo os músculos faciais com um tique de excitação. "Mas, ainda no outro dia, disse-me a prima Dulce... ela esteve aqui, não esteve? Pois ela disse-me que o bebé... o menino... tem... enfim... sabe, não é? Tem a... a coisinha assim a modos que... que escandalosa, não é?"

"Escandalosa?"

"Bem... escandalosa é modo de dizer..." Soltou um risinho nervoso e esboçou um gesto indefinido, como se buscasse a palavra certa. "Tem... tem atributos de homem, se me faço entender." Sorriu, satisfeita por se ter enfim explicado com suficiente clareza, mas dentro dos limites de pudor que se exigiam de senhora da sua condição. "É verdade?"

"E verdade o quê?"

"Isso, menina."

"Isso o quê?"

"Oh!", exclamou, encolhendo os ombros. "Os atributos de homem, prima, o que haveria de ser? É verdade que o menino os tem?"

"Quem vos anda a dizer essas coisas?"

A prima de Bragança esboçou um gesto pelo ar, como se tal informação não viesse de ninguém em especial e fosse tão do domínio público quanto as notícias na telefonia sobre as sábias decisões do senhor presidente do Conselho.

"Oh, conta-se... Mas é verdade?"

Amélia puxou o bebé mais para si e encostou-lhe a face quente.

"O meu Zezinho é normal!"

Determinadas a contornar a relutância da mãe em dar uma resposta clara às grandes perguntas do momento, todas insistiam em levar o pequeno ao banho, oportunidade única para apreciar de perto tão grandes e badalados atributos. Dona Amélia a tudo resistiu durante alguns dias, ciosa do recato do seu menino, mas com o tempo e o cansaço foi baixando a vigilância e depressa o pequeno Zezinho se transformou num verdadeiro brinquedo; até vizinhas e amigas acorriam para ajudar a pobre senhora a dar banho à avantajada criatura.

"Não é preciso, vizinha. Eu cá me arranjo."

"Oh, valha-me Deus! Onde já se viu uma senhora como a dona Amélia estar assim ao abandono? Tem outros três filhos para criar e nenhuma ajuda. As vizinhas servem para estas ocasiões!"

"Mas eu tenho a Beatriz..."

"A sopeira tem mais que fazer! Sempre são três andares neste casarão, não é verdade? Como pode ela dar conta do recado, coitada, sempre para cima e para baixo? É evidente que o menino acaba por ser negligenciado!"

"Não é verdade. O meu marido ajuda-me."

"Ora, o que percebem os homens de bebés? Eles servem é para os fazer, não para cuidar deles!"

Por mais que Amélia insistisse que a ajuda não era precisa, o mulherio aparecia, persistente, insistindo que a recusa não passava de modéstia; onde já se vira uma mãe com tantos filhos e apenas uma criada em casa a prescindir do precioso auxílio que primas e vizinhas com tanta generosidade lhe ofereciam para esfregar o pirralho?

Todos os dias a romaria se repetia sem descanso. As primeiras vezes, as alcoviteiras subiam ao quarto e, após uma negociação implacável, lá logravam arrancar a criança do berço e carregá-la para a lavagem; ouviam-se gritinhos abrasados quando lhe retiravam a fralda de pano, ao que se seguia um verdadeiro burburinho carregado de comentários a comparar a virilidade do bebé "com a verga do meu homem"; havia até quem tivesse observado que, "se já é assim de tão tenrinha idade, imagine-se o cavalão que vai sair daqui dentro de mais uns aninhos", verificação que se tornou célebre por ter desencadeado uma sinfonia de risinhos e a muitas ter excitado a imaginação para além do recomendável.

Foi intensa e laboriosa, mas durou pouco esta romaria. O capitão Branco, homem de rigor e pose austera, estranhou tamanha excitação sempre que as obrigações no quartel o libertavam antes da hora prevista e chegava a casa mais cedo.

De início nada disse, convencido de que aquela efervescência era coisa própria de mulheres. Mas à terceira vez, estranhando um comentário que captara à distância a propósito do "chourição do petiz", decidiu indagar o assunto e, ao perceber por fim do que se tratava realmente, mandou aferrolhar a porta a parentes afastadas, vizinhas e demais curiosas; o chefe da casa não estava para aturar poucas-vergonhas.

"Essas galinhas que fiquem nas suas capoeiras", vociferou ao encerrar o assunto. "Irra!"

Com o acesso vedado à casa da família Branco, o burburinho foi diminuindo, devagar, até acabar por tombar no silêncio das coisas que se vão esquecendo, a história do bebé com pénis de adulto transformada aos poucos numa memória que, com o passar do tempo, adquiriu nítidos contornos de fantasia e alucinação, exageros por certo de mulheres histéricas cujo mal o capitão havia a seu tempo diagnosticado sem margem para erro.

"Têm falta de homem."O vulto assomou à porta, cortando o halo de luz que flutuava à entrada do quarto, e aproximou-se da cama onde se encontrava o pequeno José. O corpinho de três anos encolhia-se entre as mantas num esforço para reter o calor, os olhos molhados pelas lágrimas que lhe escorriam abundantes pela face. Quando o vulto se inclinou e o beijou na testa, o menino sentiu-lhe o aroma familiar e percebeu que era o pai.

"Que foi, Zezinho? Porque choras?"

O filho choramingou.

"Tenho medo..."

"Medo de quê?"

"Do escuro. A mamã?"

O capitão Branco pegou-lhe na mão gelada, procurando aquecê-lo e confortá-lo.

"Está em Trás-os-Montes a ajudar a tia Joana. Sabes que o tio Luís foi para o Céu e a tia precisa de auxílio."

A criança voltou a choramingar.

"Quero a mamã!..."

O capitão Mário Branco era um homem de pose austera, voz de trovão e postura hirta, imagem dura que contrariava a brandura com que geria os assuntos de casa, em particular no que dizia respeito aos pequerruchos. É certo que entre pais e filhos não permitia intimidades nem carícias; desconheciam-se naquela casa abraços e beijos meigos. Os pequenos cumprimentavam os pais com um respeitoso beijo na mão; era esse o modo corrente e em vigor naquele lar de bons católicos.

Apesar de respeitar com desvelo convenções socialmente aceitáveis, o oficial manifestava com as crianças uma atenção pouco habitual nos homens do seu tempo.

"Queres ouvir uma música?"

O filho mais novo assentiu com a cabeça e engoliu os derradeiros soluços, aprontando-se para o que aí vinha. Os serões musicais eram mágicos, apesar de não entender as palavras que os compunham; parecia-lhe que da boca do pai brotava a língua dos anjos, melíflua e encantada, e admirava-se por ver vocábulos tão misteriosos fundirem-se com tal perfeição nas modulações melancólicas com que ele o enfeitiçava.

José não o podia ainda saber, mas escutava música italiana. O pai era um amante de árias napolitanas, que devorava desde os seus tempos de cadete em Lisboa, quando frequentava o São Carlos. Foi pois com uma ária de ópera italiana, entoada com voz poderosa e o tom vibrante adocicado pela brandura da melodia, que nessa noite adormeceu o filho mais novo na penumbra nocturna que toldava os longos corredores desertos da casa de Penafiel.

 

Celeste Aida, forma divina. Místico serto di luce e fior, Del mio pensiero tu sei Regina, Tu di mia vita sei lo splendor.

Il tuo bel cielo vorrei redarti, Le dolci brezze dei pátrio suol; Un regai sertã sul crin posarti, Ergerti un trono vicino al sol.

 

A canção melancólica parecia destinada à mulher ausente, um grito de saudade que o tempo decerto aplacaria. Mas o próprio tempo o desenganou. Quando Amélia regressou de Trás-os-Montes foi como se não tivesse voltado; a mulher que havia partido regressara uma pessoa diferente.

Desde que Joana enviuvara, Amélia tornou-se distante e encerrada nela mesma. Era como se tivesse morrido, isolada do mundo e remetida para uma outra existência; dava a impressão que se tornara uma figura espectral, pairando como uma sombra pelos cantos da casa.

Sem compreender o que se passava com a mulher, o marido assustou-se e levou-a ao doutor Reis. O médico viu-a e, após a consulta, emitiu o veredicto.

"Uma depressãozita sem importância."

"O que devo fazer, doutor?"

"Não faça nada. Isto passa-lhe."

Mas não passou.

A depressão de Amélia prolongou-se por vários meses, deixando o capitão perdido em mil conjecturas e incapaz de lidar com a questão. Achou a certa altura que o amor que sentia por ela poderia resgatá-la do abismo em que havia mergulhado, mas primeiro teria de entender o problema de modo a perceber como desbravar um caminho que a guiasse para a redenção. Questionou-a com insistência, num esforço de quebrar o mutismo teimoso e persistente que dela se apossara, mas por mais que a interrogasse nada lhe conseguiu arrancar além das lágrimas silenciosas que lhe empalideciam o rosto.

Desesperou, pois o caso parecia-lhe perdido.

A inexplicável situação só se alterou numa manhã de domingo. Após a missa dominical na Igreja do Sameiro, e esgotadas todas as outras soluções, o capitão Branco foi ter com o padre Jacinto e apresentou-lhe o problema.

"Não come, não dorme, chora a toda a hora, já quase nem liga às crianças... Com franqueza, não sei o que lhe hei-de fazer!"

O pároco desviou os olhos para lá do ombro do capitão e cravou a atenção na mulher, que ficara sentada junto à porta, a cabeça a fixar os pés numa postura de tristeza lassa, como se a alma tivesse partido e o corpo não passasse de um invólucro desocupado.

"O senhor capitão vá para casa e volte ao meio-dia para a vir buscar, se faz favor."

O padre Jacinto acolheu Amélia na Igreja do Sameiro. Ouviu-a nessa manhã em confissão e prescreveu-lhe uma longa penitência. Quando o marido a levou para casa, notou nela uma transformação subtil. A mulher mantinha o olhar amargurado, mas havia algo de indefinível que se alterara, como se uma pequena luz se tivesse acendido naquela treva cerrada; era uma chama frágil, mas cintilante.

Essa impressão, para sua surpresa e alegria, confirmou-se nos dias seguintes. Amélia, antes à deriva num recanto da mente onde só ela entrava, tornou-se visita assídua do santuário. O capitão começou então a perceber que a mulher se agarrava à religião com a força do desespero, como se a cruz fosse uma bóia. Amélia passou a assistir a duas missas por dia e a benzer-se amiúde; expressões como "graças a Deus!" e "queira Nossa Senhora!" tornaram-se muletas permanentes das suas conversas. Era uma mudança radical, mas o marido não ficou inteiramente descontente. Afinal viver com uma mulher devota era preferível a ter um espectro lacrimejante a assombrar-lhe a casa.

O problema é que a súbita devoção de Amélia não parou por ali. A Bíblia tornou-se a sua companhia de leitura permanente e a mulher pôs-se a dedilhar o terço sem cessar, rodando-o nas mãos ao ritmo de uma ladainha sussurrada que parecia não lhe largar os lábios trémulos. O fervor religioso revelou-se a certa altura tão intenso que o capitão, embora homem católico e respeitador da Igreja e dos bons costumes, começou a achar tudo aquilo de mais.

"Este padre Jacinto é diabólico", observou certo dia no quartel. "Transformou-me a patroa numa beata!"

No meio das mudanças súbitas e inexplicáveis operadas em Amélia, os filhos acabaram por ser negligenciados. Atento ao problema, o capitão redobrou o zelo protector em relação às quatro crianças e passou a acompanhá-las mais de perto. Mário Branco acreditava firmemente nas virtudes da educação; administrava a casa com a disciplina de um general e educava os filhos com a dedicação de um mestre-escola.

Tornou-se um homem muito paciente. Contrariamente à tradição do seu tempo, era raro bater nas crianças e mostrava-se sempre disponível para falar com elas e responder-lhes às perguntas, até para discutir as notas da escola ou do colégio. A sua voz de trovão intimidava, é certo, o mesmo acontecendo com a severidade que sabia imprimir ao olhar; bastava captar-lhe a expressão para se saber o que estava certo e o que era errado. O seu jeito atencioso, porém, tudo parecia compensar; não se tratava de homem de abraços nem de beijos, mas parecia ter o dom da palavra certa.

A bola vermelha rolou pelo fino tapete verde, ricocheteou no limite da mesa e foi direitinha para o buraco, por onde se meteu a rodar como um pião.

"Caramba!", exclamou o juiz Brandão, cofiando o bigode. "O senhor está hoje imparável!"

O capitão Branco lançou um olhar fugaz ao pequeno José, querendo certificar-se de que o filho mais novo admirara a jogada. Depois assentou o taco na vertical e esfregou um pouco mais de giz na ponta, desviando os olhos para a mesa de modo a estudar a jogada seguinte.

"Faz-se o que se pode, meu caro. Faz-se o que se pode."

Naquele final de tarde, e apesar de se encontrarem na reserva, os militares e o juiz haviam-se juntado como de costume no primeiro andar do clube dos oficiais, revoluteando como borboletas em torno da grande mesa de bilhar que ocupava o centro da sala. O jogo era seguido distraidamente pelo filho, que o capitão levara consigo para o retirar do bocejo em que se transformava a casa quando os irmãos iam para a escola e a mulher definhava em rosários e outras beatices. A sala de jogos do clube estava cheia àquela hora, embora os restantes oficiais se entretivessem sobretudo em partidas de gamão e de xadrez, que decorriam nas mesinhas dispostas em redor da mesa de bilhar. „

Mas o que tornou realmente memorável esse final de tarde foi a entrada de rompante de António, o funcionário dos Correios que àquela hora trazia sempre o jornal encomendado pelo capitão Branco. António vinha esbaforido e agitava na mão o periódico, que todos reconheceram pelo inconfundível cabeçalho, a identificar O Comércio do Porto.

"Ena, Tónio!", admirou-se o capitão Branco. "Que pressa é essa, rapaz?"

"Ah, senhor capitão!", exclamou António, ofegante. "Chegou O Comércio do Porto!"

O rapaz dos Correios fazia dançar o matutino entre uma mão e a outra, como se o papel queimasse. Os oficiais fixaram os olhos no jornal saltitante, sem entenderem toda aquela excitação. Conseguiram perceber que havia um mapa da Europa desenhado no topo da primeira página, mas António abanava tanto o exemplar de O Comércio do Porto que não lograram captar-lhe os títulos.

"Pois isso já eu percebi, Tónio. E então? Vem aí a notícia de que as galinhas já têm dentes?"

Os oficiais riram-se, mas António permaneceu especado diante da mesa de bilhar, os olhos muito abertos.

"Não."

A risada morreu naturalmente.

"Então, rapaz?", perguntou o capitão Branco, sempre de ar bem-disposto. "O que foi?"

António pegou no jornal com as duas mãos e mostrou-lhes enfim a primeira página.

 

"São os Alemães, senhor capitão. Entraram na Polónia."

 

O almoço foi pesado e o capitão Mário Branco decidiu digeri-lo com a ajuda de um copo de vinho do Porto. Espreitou o relógio e constatou que era quase chegada a hora; foi para o sofá, girou a antena para a posição de onda curta, ligou o rádio e aguardou que as vozes distantes rasgassem a estática e lhe dessem notícias do mundo. Não teve de esperar mais de um minuto. O monótono crrrrrrr do éter foi bruscamente interrompido por um sinal, parecia que alguém tinha apitado, e depois por uma pausa repousante; emergindo do súbito silêncio, como se um visitante falasse do fundo do corredor, ouviu-se uma voz ondulada e pausada.

"Daqui Londres. Esta é a BBC."

A escuta das emissões da BBC era um acto proibido em Portugal, mas o capitão Branco, embora católico obediente e patriota acima de qualquer suspeita, não queria saber de interdições absurdas. Não eram os Ingleses os maiores e mais antigos aliados de Portugal? Não haviam estado, os nossos soldados e os deles, lado a lado em incontáveis batalhas e jamais em campos opostos como inimigos? Que disparate era aquele de não se poder ouvir a voz de Inglaterra? Quem seria o inteligente que tomara tão insensata decisão?

Escutar a BBC tornara-se assim um acto de rotina naquela casa, as emissões em onda curta acompanhadas religiosamente duas vezes por dia, uma depois do almoço, outra após o jantar. Não se tratava de uma atitude de desafio; não era essa a postura do capitão. Ele pretendia simplesmente saber o que se passava no mundo, sabê-lo através de uma voz em que confiasse, e não conseguia entender qual o mal de ouvir o que dizia o velho aliado de Portugal. Um informador chegara a denunciar estas escutas ilegais do distinto oficial, mas a hierarquia encolheu os ombros e olhou para o lado; a verdade é que ninguém de bom senso se atrevia a incomodar o capitão Branco por causa de uma ninharia como querer saber as notícias, para mais estando ele já na reserva.

"A BBC fala e o mundo acredita", sentenciou a voz libertada pelo altifalante do rádio.

O oficial reconheceu a dicção pausada de Augusto Silva, o seu locutor favorito, e inclinou o ouvido para o altifalante. Entrou no ar o que parecia uma marcha; tratava-se do separador identificativo da estação britânica.

Foi nesse instante que o pequeno José se aproximou do pai com ar queixoso.

"Ó pai! O mano..."

"Está declarado o estado de guerra entre a Inglaterra e a Alemanha. O senhor Neville Chamberlain..."

"... escondeu o pau que eu..."

"Chiuuuu!", cortou o capitão, os olhos arregalados, mandando-o calar com tal veemência e fúria que José se assustou. "Silêncio!"

Fez-se um súbito vazio em toda a casa; não era hábito o capitão dirigir-se a alguém da família de modo tão brusco. No meio do abrupto mutismo geral, apenas a voz de Augusto Silva permaneceu imperturbável, reverberante no silêncio pesado que ali se instalara, jorrando autoritária do altifalante com notícias de provocar pasmo e medo.

"... leu esta tarde uma comunicação ao país a informar os súbditos ingleses de que o senhor Hitler não aceitou um ultimato entregue ontem de manhã pelo governo de Sua Majestade em Berlim, a exigir que as forças alemãs retirassem imediatamente da Polónia. Em consequência, disse o senhor Chamberlain, a Inglaterra está em guerra com a Alemanha."

O noticiário durou longos minutos, mas pareceram poucos perante o muito que havia para dizer. Apenas a voz de Augusto Silva soava na casa dos Branco, trazendo notícias do inferno mesmo ali às portas. Quando por fim o locutor se despediu, com a solenidade que o momento requeria, apenas se ouviu na sala mais um clique, provocado pelo capitão ao desligar maquinalmente o rádio.

Abateu-se nesse instante por toda a parte um silêncio pesado, aquele silêncio profundo e ensurdecedor que pousa sobre os homens nos momentos de grande gravidade. Era como se uma nuvem negra e densa tivesse assentado sobre o mundo, sinistra e maléfica, asfixiando a luz que o fazia viver, mergulhando-o numa vasta sombra; a vida era o Sol, mas a rádio fora o arauto do crepúsculo, esse efémero instante em que o dia se apaga no fio do horizonte e sobre todos se deita o manto escuro da noite, aos poucos, devagar, como uma chama que se extingue lentamente, até se instalar enfim por toda a parte uma treva opaca e nefanda.

Tlim-tlim-tlim.

O toque da sineta na porta fez Beatriz sair disparada da cozinha e descer as escadas para saber quem era. Instantes mais tarde a figura austera e pançuda do juiz Brandão irrompeu pela sala como se da sua intervenção dependesse o destino do mundo. Atrás dele vinha a sua protegida Joana, que voltara a acolher quando a pobre rapariga enviuvara.

"Ó Branco!", chamou o juiz. "Branco! Você ouviu as notícias?"

O capitão ergueu-se pesadamente do sofá, de onde não saíra desde que, uma hora antes, terminara o noticiário da BBC.

"Então não ouvi?!"

O juiz estacou diante dele e olhou-o com expectativa, como se esperasse que o oficial tivesse o poder de neutralizar um acontecimento tão grave.

"E o que me diz disto?!"

O capitão abanou a cabeça, a fronte carregada de preocupação.

"Olhe, tenho estado aqui a matutar no assunto..?

"E então?"

"Acho que isto é um grande sarilho."

"Acha mesmo?", disparou o juiz, alarmado com a impotência que lia no rosto do oficial.

"É como em 14-18. De um lado a Inglaterra e a França, do outro a Alemanha e a Áustria. Vai ser uma nova calamidade!"

"Mas este Hitler não tem juízo? O que quer ele afinal? Acabar com o mundo? Não chegou a Grande Guerra?"

"Ele é um homem agressivo, meu caro. Uma pessoa correcta, sem dúvida, mas muito agressiva. Foi longe de mais e agora meteu toda a gente num grande sarilho."

A tensão era palpável devido à memória do que fora a Grande Guerra. Ainda a tentar refazer-se do choque, o juiz instalou-se no sofá e o anfitrião, conhecedor dos gostos do visitante, foi-lhe preparar um cálice de vinho do Porto.

Aproveitando a pausa na conversa entre os homens, Joana quebrou o seu mutismo.

"A minha irmã?"

"A Amélia está a descansar no quarto com o Zezinho e a Lourdes."

A cunhada meteu pelo corredor e foi ter com Amélia, deixando os homens a sós. Com a garrafa de porto na mão, o capitão Branco ficou a vê-la desaparecer para além da porta do quarto. Depois encheu o cálice e estendeu-o na direcção do juiz.

"Como vai a sua protegida?"

"Menos mal, menos mal", disse o visitante, pegando no cálice. "Sabe, o mais difícil parece já ter passado. Desde que ela voltou de Trás-os-Montes e se instalou de novo lá em casa que tem andado mais alegre, coitadinha. Depois do que aconteceu a moça não podia ficar sozinha, não é?"

"Além do mais, tem cá a irmã."

"Ah, sim!", concordou o juiz. "Isso é muito importante! Têm ido as duas à igreja e sem dúvida que isso lhes faz bem. Mas às vezes exageram um bocado, não acha?"

O capitão balançou devagar a cabeça, resignado às mudanças que se operavam na sua mulher.

"É melhor que nada."

A sineta voltou a soar no andar de baixo e Beatriz saiu mais uma vez da cozinha para atender. Eram as crianças mais velhas que vinham da escola. As aulas haviam sido suspensas; ninguém se sentia com disposição para trabalhar numa ocasião daquelas. O dia estava a ser de afluência generalizada às igrejas e um rio de gente convergia para o santuário do Sameiro. As notícias da rádio eram demasiado graves e um clima de receio havia-se instalado por toda a parte. Uns buscavam refúgio nas missas, outros nas conversas sobre a situação".

As duas irmãs espantaram-se com tanto alarido e apareceram na sala. Amélia ajudou os filhos a arrumar as coisas da escola enquanto Joana, inteirada do que se passava nas distantes capitais que tão pouco interesse habitualmente lhe despertavam, se sentou ao lado do juiz.

"Ai, valha-me Deus!", disse ela. "Já viu isto? Está tudo maluco."

"Pois está."

"Já convenci a Amélia e vamos ali ao Sameiro rezar vinte avé-marias para que tudo se recomponha."

O juiz esboçou um trejeito impaciente.

"Isto não vai lá com avé-marias..."

"Ah, não diga isso que Nosso Senhor ainda o castiga!"

"Receio que Nosso Senhor tenha mais com que se preocupar do que andar a ver o que andamos ou não a dizer."

"Se rezarmos muito, Ele há-de ouvir-nos e há-de ter piedade de nós. Ele e Nossa Senhora de Fátima, que é uma santa. O padre Abreu, que dá a missa das onze na Igreja da Misericórdia, disse-me no outro dia que..."

"Ó menina...", interrompeu o juiz. Aquela conversa enervava-o. "Vá lá ao Sameiro rezar umas avé-marias e deixe-me aqui a falar com o senhor capitão, está bem?"

Joana fez sinal a Amélia, que tinha acabado de tratar dos filhos.

"Ai mana, vamos já embora!" Voltou as costas e afastou-se, mas ainda virou a cabeça para trás e deixou um derradeiro anúncio. "Desde que ouviu as notícias na telefonia que o senhor está que não se pode. Vou rezar a Deus, Nosso Senhor, para que lhe perdoe..."

O calor de Setembro, denso e asfixiante, atirara o capitão Branco para o seu escritório do piso térreo, um dos pontos mais frescos da casa. O oficial embrenhara-se nas suas contas habituais; dessa vez, a contabilidade estava centrada no cálculo de todo o vinho que teria de armazenar nas adegas após a venda aos clientes do costume. Como os dois filhos mais velhos haviam ido para a escola e Amélia saíra com Lourdes ao colo e com a irmã, Joana, o capitão dera um pião ao pequeno José e levara-o para brincar no chão do escritório.

Quando estudava o orçamento de um novo abastecedor de barris, alguém bateu à porta da rua. Mário Branco foi ver e deu com o rosto gasto do comandante do seu antigo regimento.

"Nosso capitão, dá licença?"

"Meu comandante... por aqui?"

"É verdade. Será que podemos falar um minutinho?"

"Com certeza."

O capitão abriu a porta e deixou o coronel Silvério entrar. Levou-o para o escritório, ofereceu-lhe um cálice de vinho do Porto e sentou-o na cadeira mais dura que ali tinha. O Zezinho continuava a brincar com o pião e o antigo comandante do regimento de Penafiel lançou um olhar à criança, como se pedisse que ela saísse dali. O anfitrião ignorou a sugestão.

"Então como vai o nosso regimento?", perguntou Mário Branco, mais por cortesia do que curiosidade. "A mudança de ares para o Porto fez-lhe bem?"

O comandante abanou a mão.

"Assim-assim."

"Não me diga que veio cá a Penafiel porque estava com saudades..."

O coronel Silvério tirou um maço do bolso e acendeu um cigarro. Uma nuvem de fumo cinzento-azulado ergueu-se do seu rosto e colou-se-lhe ao cabelo.

"Não foram as saudades que me trouxeram cá", disse. "Foi o trabalho." Tirou um papel oficial do bolso interior, passou os olhos por ele e estendeu-o a Mário Branco com um sorriso. "Apresente-se amanhã de manhã ao major Viegas."

O capitão mirou o documento com ar interrogativo.

"O que é isto?"

"É uma ordem do general Gomes. Ele ouviu falar das suas capacidades de organizador e quer que o nosso capitão fique encarregado do racionamento em Penafiel."

"Racionamento?"

"Sim, homem." O comandante riu-se. "Então não sabe que o mundo está em guerra? Os bens vão faltar, meu caro! Toda a economia ficará centrada no esforço de guerra e a produção e o transporte de bens serão gravemente afectados. Até já há submarinos alemães a atacar navios no Atlântico, veja lá! O governo decidiu por isso instituir planos para organizar racionamentos por todo o país, caso tal venha a ser necessário. O nosso capitão terá de ser discreto com isto, não queremos que se instale o pânico entre a população, até porque pode nem vir a ser necessário tomar estas medidas, claro... Mas o seguro morreu de velho, como dizia o outro."

"Desculpe, meu coronel, não percebo." Apoiou a palma da mão sobre o peito, com ar perplexo. "Porquê eu?"

"É que o governo entregou essa operação ao exército e o general Gomes pensou em si para organizar a coisa aqui em Penafiel."

"Mas, meu coronel, eu já não estou no exército."

Silvério levantou-se pesadamente, dando a conversa por terminada. Antes de se afastar, contudo, inclinou-se para a frente e, apoiando a palma das mãos na secretária, cravou os olhos no seu interlocutor e abanou a cabeça.

"Não estava, meu caro capitão. Não estava."Naquela tarde de Setembro de 1940, e como era hábito sempre que o sol brilhava ameno e o tempo se apresentava agradável, o casal Branco instalou a mesinha na varanda das traseiras e acomodou-se para o lanche com vista para o quintal. Amélia lia com inusitado interesse O Comércio do Porto que o marido acabara de lhe trazer do clube dos oficiais quando pousou o jornal sobre a mesinha e pegou na chávena de chá.

"Ó Mário", interpelou ela com ar pensativo, "será que aquilo é mesmo assim tão catita?"

O capitão tentava acender um cachimbo. Aspirou com força e pousou os olhos na página do jornal que a mulher acabara de ler. O título da notícia que dominava essa página mencionava o sucesso que estava a ter o grande evento do ano, inaugurado com vistosa pompa três meses antes.

A Exposição do Mundo Português.

"O quê? A Exposição?"

"Sim." Amélia fez um gesto para a fotografia do jornal a ilustrar a notícia. "O Gonçalves, aquele sacristão do Sameiro, esteve na semana passada em Lisboa e veio de lá maravilhado."A primeira nuvem de fumo aromático ergueu-se com lentidão pelo ar.

"O pessoal no clube dos oficiais diz-me o mesmo."

"Mas, se é coisa assim tão monumental, achas que isso faz algum sentido nestes tempos difíceis? No fim de contas há uma guerra a decorrer..."

"Sabes, isto foi planeado há dois anos. A verdade é que em 1938 o Toninho não tinha modo de prever que a guerra iria rebentar..."

"De qualquer modo! Já viste? Tanta gente a sofrer e nós a festejar a lusitanidade!..."

O capitão voltou a concentrar-se no cachimbo.

"É verdade, querida." Aspirou e libertou nova nuvem perfumada. "Mas o que havíamos nós de fazer? Deitar abaixo a construção? Pois se o dinheiro já está gasto e a obra concluída não achas que o melhor é mesmo seguir em frente? Além disso, a exposição tem a vantagem de aumentar o moral do povo, cimentar o orgulho nacional e a confiança no futuro. Em tempos tão deprimentes, estas coisas ajudam-nos a encarar a vida, não te parece?"

Amélia bebericou o chá e pousou a chávena, pensativa.

"Talvez tenhas razão", concluiu. Pegou no bule e começou a deitar mais chá na chávena, mas interrompeu a operação a meio, o bule suspenso no ar, como se algo tivesse acabado de lhe ocorrer. "Olha lá, e se nós também lá fôssemos?"

"Lá onde?"

"A exposição, Mário. Vamos à exposição!

A mais antiga memória completa de José Branco, aquela em que pela primeira vez reteve os mais ínfimos pormenores de tudo o que viu e sentiu, incluindo cheiros e cores, foi justamente a da emocionante viagem que fez com a família a Lisboa, corria o mês de Setembro de 1940 e ia ele completar quatro anos daí a algumas semanas.

Na zona de Belém, entre o Mosteiro dos Jerónimos e o estuário do Tejo, Salazar mandara arrasar barracões e casas velhas para erguer o grande certame, uma gigantesca montra da lusitanidade, por ocasião dos oitocentos anos da fundação de Portugal e dos trezentos anos da restauração da independência.

O evento abriu portas em Junho, mas o começo não foi auspicioso; além de vários pavilhões ainda não estarem prontos, o dia da inauguração ocorreu vinte e quatro horas depois da capitulação da França e da chegada das tropas alemãs à fronteira espanhola. O ambiente em Portugal tornou-se pesado e temeroso; aproximavam-se os ventos de guerra, eram sinais de uma longínqua tempestade que se adensava no horizonte, imensa e ameaçadora, carregando o céu de sombria preocupação.

A depressão foi, porém, rapidamente enfrentada; em breve a grandiosa exibição de lusitanidade começou a ser encarada como uma ilha pacata naquele mar de tormenta, um fogacho de tranquilidade na noite agitada, uma luz de esperança que se acendera na treva. Organizaram-se grupos, fizeram-se excursões, primeiro algumas centenas de pessoas, depois milhares, a certa altura já dezenas de milhares, centenas de milhares... Chegou ao primeiro milhão o número de portugueses que se juntaram, vestiram as melhores fatiotas, prepararam o farnel e atravessaram o país para apreciar tão espantoso acontecimento.

Os ecos da magnificência da obra percorreram Portugal da costa ao Interior. Não havia jornal, nem rádio, nem café, nem taberna, nem esquina, nem casa, não havia sítio onde, além das notícias da guerra, não se comentasse coisa tão magnífica. Os que chegavam de Lisboa vinham deslumbrados, gabando "obra própria de país do progresso", e os encómios eram tantos e tão entusiásticos que inevitavelmente acabaram por mobilizar o casal Branco.

Toda a família seguiu para o Porto na barulhenta camioneta alugada por Mário Branco à Alberto Pinto. A bordo iam, além do capitão, a mulher e os filhos, Joana e ainda Beatriz, a jovem criada encarregada de vigiar o pequeno José. O juiz Brandão ficara para trás, dizia ele que a grande cidade lhe "fazia espécie", mas outras pessoas da terra aproveitaram a iniciativa e contribuíram com uns tostões em troca de boleia até à capital para visitar a tão badalada exposição.

O percurso de Penafiel ao Porto levou quase três horas, feitas à beira-rio em curvas e contra-curvas, com o fumo acre da camioneta a entrar pelas janelas e a enjoar as senhoras, o cheiro a gasóleo queimado a misturar-se com a brisa fresca que soprava pela manhã ao longo da margem norte. Cruzaram o Douro pela Ponte D. Luís, já perto do meio-dia, e meteram pela Nacional 1 até Lisboa.

Mas a viagem era demorada e incómoda, tão maçadora que depois de Coimbra, já noite dentro, decidiram estacionar na berma da estrada e pernoitar na camioneta. As marmitas foram abertas e José refastelou-se com o repasto trazido de casa; comeu língua afiambrada com bolinhos de bacalhau e carne assada, tudo bem acompanhado por regueifas e um verde tinto ácido que até as crianças degustaram.

Chegaram a Lisboa ao princípio da tarde do dia seguinte e instalaram-se na casa do Pires, um camarada de armas do capitão desmobilizado. Pires vivia em Campolide e certa vez zangara-se com Branco por causa de um tostão. A história tornara-se já lenda de família. Parece que o metódico capitão se recusara a emprestar um tostão ao amigo, alegando que ambos ganhavam o mesmo e que, se o soldo chegava para um, também teria de chegar para o outro; a Pires bastaria saber administrar o que recebia. O incidente ocasionara uma daquelas zangas que acabam numa amizade inquebrável. A reconciliação aproximou-os tanto que o velho companheiro de armas abriu as portas da casa de Campolide à multidão que lhe desaguou da fumegante camioneta da Alberto Pinto, como bárbaros à conquista da capital.

 

Os primeiros dias na cidade foram de grande espanto. Depois de se instalar em casa do Pires, a família Branco foi levada pelo anfitrião num passeio a pé até à Baixa, com intenção de conhecer o grande Rossio; no fim de contas, argumentou Pires, era o centro nevrálgico de Lisboa, o ponto onde a cidade se encontrava para dois dedos de conversa, o sítio onde tudo mexia e a vida palpitava.

"Ó Branco, você vai ver uma coisa incrível", avisou o amigo, caminhavam todos pela Avenida da Liberdade em direcção aos Restauradores. "Prepare-se, que é mesmo de pasmar!"

"O quê?"

"Tenha calma. Já lhe mostro." Olhou para trás e avaliou o resto do grupo. "Não sei é se é espectáculo aconselhável a senhoras e crianças..."

"Está à luz do dia?"

"Claro."

"É permitido pelas autoridades?"

"É pois."

"Então mostre lá isso, homem. Não há-de ser nada de mais!"

O dia nascera quente, tornara-se abafado até. Sentiam o suor crescer por baixo das axilas e correr em pingos pelas costas, mas não podiam fazer nada; camisas, casacos, saias compridas, lenços e chapéus eram requisitos imprescindíveis para as pessoas recatadas, respeitadoras da moral e da ordem, mesmo quando a canícula apertava.

Chegaram aos Restauradores e meteram para o Rossio. Ao entrarem na grande praça deram com uma novidade absoluta: havia mesas e cadeiras espalhadas pelos passeios e os clientes a exporem-se ao olhar dos transeuntes.

"O que é isto, Pires?"

O anfitrião sorriu, quase ufano por mostrar aquelas novidades ao amigo chegado da província.

"São esplanades."

"Espia... quê?"

"Es-pla-na-des", repetiu quase a soletrar, afinando o sotaque francês. "Parece que Paris está repleta delas."

"Mas... e o recato? As pessoas exibem-se assim na rua, sem mais nem menos?"

"É o progresso, meu caro! É o progresso!"

Mário Branco e a família ficaram especados a observar a cena inusitada. O mais curioso é que a inovação parecia estar a ser um êxito; bastava ver como essas esplanades se encontravam apinhadas de clientes e observar o formigar irrequieto em torno das mesas soalheiras e dos balcões protegidos pela sombra fresca.

"Olhem ali para a Suissa", indicou Pires com um sorriso malicioso, erguendo as sobrancelhas. "Ora vejam bem os clientes!"

O capitão analisou melhor os homens que se sentavam à mesa da esplanade da Pastelaria Suissa, com cafés a fumegar e copos de whisky nas mãos, defendidos do sol pelas sombrinhas coloridas; tinham a pele muito pálida, os cabelos aloirados e os olhos claros, e vestiam com elegância, muito limpos e janotas; pareciam actores de uma fita americana.

"São estrangeiros?"

"Claro."

"Ingleses?"

Pires fez um gesto vago com a mão.

"Ingleses, americanos, alemães, italianos, franceses, holandeses, checoslovacos, polacos, eu sei lá! Vêm de toda a parte!"

O capitão esboçou um ar surpreendido perante o desfilar de nacionalidades.

"Mas o que está toda esta gente cá a fazer?"

"Ó homem, não sabe que há uma guerra a lavrar por essa Europa fora?" Fez um gesto teatral na direcção da esplanade. "A maior parte deste pessoal são refugiados. São milhares e milhares, o que pensa você? Vêm a fugir dos tanques alemães e querem ir para a América; vieram apanhar um barco ou o clipper. Estes são os mais endinheirados." Baixou a voz. "Mas há também uns que chegaram aqui com uma mão à frente e outra atrás. Muitos são judeus."

"Há judeus?"

"Ui, tantos! Parece que os Alemães não gostam deles, coitados. Não se vêem muito pela rua. Ouvi dizer que se concentram ali na Cozinha Económica Israelita e estão todos a tentar seguir para a América, dê por onde der, nem que seja a nado."

O capitão contemplou pensativamente aquela gente e por momentos teve a inusitada sensação de ser testemunha de um acontecimento de relevância transcendente.

"Quem diria! Desgraçados, vêm a fugir da guerra!..."

"Bom, a maior parte são refugiados, mas nem todos! Há também por aí muito diplomata, e espiões, oh, parecem moscas! Dizem que o Hotel Aviz está cheio de espionagem, que aquilo é um verdadeiro covil de serpentes, todos a ver se sacam informações ou tramam o parceiro!"

"Como nas fitas americanas?"

"Isso." Pires soltou uma gargalhada. "Só cá falta o Clark Gable!"

Os estrangeiros mostravam um ar aparentemente descontraído, escondendo decerto o tumulto que lhes fervilhava na alma. Uns haviam-se embrenhado num burburinho de conversas, ora a comentar a política e a grave situação internacional, ora a queixar-se das saudades da família ou a lamentar as notícias que lhes chegavam de casa; outros permaneciam calados, metidos consigo, admirando com calma impaciente o rolar morno da lenta tarde lisboeta, talvez a pensar na terra que haviam deixado, quem sabe se a sonhar já com aquela para onde partiam.

"Ó Pires, já reparou que muitos não usam chapéu?"

O amigo riu-se.

"Caramba, Branco! Estava a ver que você não reparava nisso..."

"Mas isto agora é assim? Não se usa chapéu?"

"Parece que é moda lá fora andar de cabeça descoberta, o que quer que lhe diga?" Apontou para um homem sentado ao fundo, a ler um jornal francês. "Olhe para aquele. Olhe só."

O capitão localizou o homem e abriu a boca, surpreendido.

"Mas o tipo é careca!"

"Pois é."

"E não tem chapéu!" Fitou o amigo com ar incrédulo. "Já viu?" Voltou a mirar o homem, como se quisesse garantir que os seus olhos não o tinham enganado. "Não tem chapéu! O homem está a exibir a careca!"

"Ó Branco! E isto ainda não é nada..."

Ouviu-se um gritinho feminino lá atrás. Os dois homens voltaram-se e viram Joana a aproximar-se, afogueada, quase num tropel; vinha com ar de quem tinha visto o Demónio.

"O que é?", perguntou Amélia à irmã, alarmada por vê-la assim aflita. "O que foi?"

"Ai, valha-me Deus, nossa Senhora, Virgem santíssima!"

"O que foi, rapariga?"

"Ai, não me digas nada, mana, não me digas nada que até me falta o ar!" Pôs a mão no peito, como se assim conseguisse conter a violência dos pulos que o coração aí dava. "Ai Jesus!" Respirou fundo e, fechando os olhos, recuperou um pouco da compostura. "Isto é um escândalo!", exclamou por fim. "Um escândalo!"

"O quê? O que é um escândalo?"

Joana fez um gesto com a mão na direcção do outro lado do Rossio. Os rostos voltaram-se para lá e todos perceberam que havia ali uma outra esplanade, esta diante do Café Nicola. Olharam todos excepto a própria Joana, que apontava sem voltar o rosto, como se o que tivesse visto fosse demasiado horrível, demasiado obsceno para se atrever a observar de novo.

"Aquilo! Aquilo!"

Os olhos colaram-se à esplanade do Nicola, perscrutando-a à procura de mais alguma anormalidade.

"O quê?"

"Aquelas... mulheres", soltou Joana, quase com nojo, ainda sem olhar. "Vocês não vêem?"

Acompanhando o olhar do grupo, o capitão lobrigou, de facto, duas mulheres sentadas à mesa. Observou-as melhor e a boca abriu-se-lhe; inclinou a cabeça para a frente e ficou de olhos esbugalhados, vendo e não acreditando.

"Co's diabos!", foi tudo o que conseguiu balbuciar durante momentos.

Amélia pestanejou, atordoada quando enxergou finalmente o que escandalizara a irmã.

"Valha-me Deus!", exclamou com estupefacção. "Vocês já viram aquilo?"

O capitão, ainda embasbacado, abanou afirmativamente a cabeça.

"Estou a ver, estou a ver."

"É incrível, não é?"

Branco voltou-se para Pires e deu com o amigo a mirá-lo com um sorriso malicioso, como se o maior espectáculo não fossem aquelas poucas-vergonhas, mas o choque de quem as via.

"Ó Pires, quem são estas mulheres?"

"Refugiadas."

"E são todas assim?"

"Todas."

"Andam sem chapéu?"

"Andam. Mostram a cabeça todinha. Até têm o cabelo solto."

"Caramba! E sentam-se sozinhas? Assim? Sem ao menos estarem acompanhadas por um cavalheiro?"

"Sim."

"Minha Nossa Senhora!" O capitão observou uma delas a levar um objecto fumegante à boca e quase ficou sem palavras. "Ora esta!", acabou por exclamar. "Elas fumam? As mulheres agora fumam?"

"Fumam, pois."

"Mas assim parecem homens..."

Pires encolheu os ombros.

"Isto faz espécie a toda a gente, mas elas andam assim, o que quer que lhe faça?"

O capitão abanou a cabeça, uma expressão desaprovadora no rosto.

"Está tudo perdido!"

"A princípio custa mais, é verdade", assentiu o amigo. "Mas com o tempo vamo-nos habituando..."

Joana atreveu-se a espreitar outra vez mas depressa tapou a cara, ainda mais horrorizada.

"Ai as pernas, Jesus!"

Branco procurou as pernas das estrangeiras e arregalou de novo os olhos, absolutamente incrédulo.

"Mas... mas elas não usam meias!"

"Pois não", confirmou Pires com o mesmo sorriso a bailar-lhe nos lábios. "A malta toda já reparou." Apontou para um grupo de homens portugueses que se aglomeravam em torno de um dos bancos do Rossio, todos eles de olhos sôfregos voltados para a esplanade do Nicola. "Olhe, está a ver aqueles? Passam o dia todo ali, a apreciar as pernas das estrangeiras. Então quando elas cruzam o pernil, ui!, fazem um alarido que só visto. Até batem palmas!"

"É imoral!", vociferou Joana, abanando a cabeça com incontida indignação. "Isto é imoral! Uma indecência!" Benzeu-se. "Se o padre Abreu visse isto, se ele visse a pouca-vergonha que para aqui vai, ele... ele... olhem, nem sei o que diria! Mas havia de dizer alguma coisa!" Arregalou os olhos. "Muitas coisas! E das boas!"

Pires esfregou as mãos.

"Bem, é para que vejam como isto está." Fez um gesto largo que abarcou toda a esplanade. "E se aqui é assim, então nem queiram saber o que vai nas praias..."

"Nas praias?", quis saber Branco.

"Sim, nas praias. Aquilo no Estoril é uma verdadeira escandaleira. Você sabe lá! Vêem-se homens a andar de tronco nu na areia!"

"O quê?"

"Sim, sim. De tronco nu, digo-lhe eu!"

O capitão abanou de novo a cabeça; cada novidade lhe parecia ainda mais chocante do que a anterior.

"Onde isto vai parar..."

"E as mulheres?" Pires agitou a mão com violência. "Olé, as mulheres!"

"O que têm elas?"

"O que têm elas?", riu-se de novo o amigo. "Olhe, as estrangeiras andam com maillots que nem me atrevo a descrever. Para que tenha uma ideia, basta dizer que essas moças exibem as pernas até quase ao ventre." Mostrou com a mão todas as partes das pernas que ficavam a descoberto. "Vêem-se-lhes as coxas todas!"

"O quê? Isso é permitido?"

"Sei lá!", riu-se Pires. "Eu pensava que não, mas eles e elas andam assim..."

"Uma pouca-vergonha", insistiu Joana, sempre a abanar a cabeça com ar reprovador.

"Isto é realmente um bocado de mais", comentou Amélia, incapaz de tirar os olhos das duas mulheres sentadas na esplanada a fumar. "Mas se calhar é o progresso, o futuro..."

Joana mirou-a com expressão indignada.

"Ó Amélia! Como podes dizer isso? Valha-me Deus!"

Lá atrás, José pediu colo a Beatriz. A criada ergueu-o e o pequeno contemplou a esplanada, tentando perceber a causa de tanto burburinho entre os pais e de tantas risadinhas e comentários dos irmãos mais velhos. Mas nada descobriu de relevante, apenas gente sentada às mesas, por baixo de vastas sombrinhas, a beber um café, a trincar um pastel ou a saborear um cálice de whisky num dia de sol prazenteiro. Até o próprio capitão Branco, que conhecia bem Lisboa dos seus tempos da Escola de Guerra, se mostrou surpreendido com as mudanças que descobriu após palmilhar as ruas nos primeiros grandes passeios pela cidade.

Por toda a parte via construções e projectos a serem lançados; construíam-se pontes, estradas, viadutos, escolas, tribunais, hospitais, bairros sociais e cadeias. Pires começou por levá-los a ver a grande colina de Monsanto, obra que pelos vistos o enchia de orgulho. O espaço para além do vale, quase careca, fora coberto de árvores minúsculas, plantadas pouco tempo antes por ordens do governo.

"Vai nascer aqui uma grande floresta", anunciou o anfitrião, os olhos sonhadores presos à colina.

Mas a atenção de Mário Branco desviara-se para a imagem mais prosaica dos trabalhos que decorriam mesmo ali ao lado.

"E aquilo o que é? Uma ponte para a floresta?"

"Um viaduto", esclareceu Pires. "Vai ligar a cidade a Monsanto. O plano é abrir uma auto-estrada por aí fora, igual àquelas que o senhor Hitler mandou construir lá na Alemanha."O capitão assobiou, impressionado.

"Uma auto-estrada?", exclamou com admiração. "Chegou o progresso, não há dúvida!"

"E sabe o que o viajante vai encontrar no final desta auto-estrada?", perguntou Pires, sempre empolgado. "Um grandioso stadium de estilo helénico! Embora daqui não se veja, esses trabalhos também já começaram. Fui lá espreitar há duas semanas e aquilo vai de vento em popa! Olaré, uma maravilha! O nosso stadium vai fazer o Stadium Olímpico de Berlim parecer uma reles arena de touros!"

A capital dava ares de um imenso estaleiro, o que deveras impressionou os visitantes. Depois de Monsanto fizeram uma grande volta por Lisboa e por toda a parte avistaram construção civil a laborar. O Instituto Superior Técnico, quase pronto, era uma obra monumental, por todos gabada, tal como a magnífica fonte que decorava a Alameda Afonso Henriques. Na zona da Portela era construído, imagine-se, um aeroporto, coisa única, própria de país avançado, prova inequívoca de que Portugal trilhava com abnegação a senda do progresso. O Parque Eduardo VII começava a ser ajardinado e Pires insistia que ia ficar "uma beleza". O cicerone do grupo revelou-lhes que havia até planos para erguer um enorme hospital nuns baldios para lá da Praça de Espanha.

"No projecto chamam-lhe Santa Maria", esclareceu. "Mas pode ser que ainda lhe mudem o nome, nunca se sabe."

Todo este progresso se afigurava esmagador a quem acabava de chegar da minúscula Penafiel, mas havia alguns pormenores bizarros que acharam hilariantes. No cruzamento da Avenida da Liberdade com a Rua Alexandre Herculano, por exemplo, depararam com um poste que mudava de cores e tudo, coisa engraçada que a todos divertiu; o mais caricato é que os carros e as bicicletas lhe obedeciam como se estivessem diante de um polícia.

"Chama-se semáforo!", exclamou Pires com tal orgulho que se diria ser ele o inventor de tão cómico dispositivo eléctrico. "É o primeiro do país." Ergueu a mão com a eloquência de um oráculo a anunciar o futuro. "Mais virão, meus amigos. Mais virão!"

Outra grande emoção foi o Elevador de Santa Justa. Sempre que tinham de voltar para a casa do Pires em Campolide faziam um desvio e, por dois tostões, compravam os bilhetes que lhes permitiam subir ao topo e apreciar Lisboa ao pôr do Sol.

Mas havia mais.

 

"O regime até tem planos, veja-se bem, para a maior obra de todas", anunciou o Pires. "Uma grande ponte sobre o Tejo."

A revelação a todos surpreendeu. Bem vistas as coisas, o projecto só podia ser ambição de sonhadores e poetas, utopistas que viviam no mundo da fantasia; era lá possível erguer uma ponte sobre tão grande estuário?

O pasmo percorria o rosto de cada adulto do grupo, e mesmo das crianças mais velhas, mas todos sabiam que o melhor daquele magnífico passeio ainda estava para vir. A grande exposição.

 

Os quatro guerreiros gigantes protegiam a entrada com o seu ar de sentinelas atentas, os dois pares de espada para baixo, escudo ao peito, cota de malha a descer pelo corpo e capacete enterrado até aos olhos. Tratava-se de reproduções enormes, em relevo, de um grande combatente medieval multiplicado por quatro. As figuras gémeas, alinhadas em colunas, guardavam com rigoroso zelo a Porta dos Cavaleiros, a majestosa passagem por onde se acedia à exposição.

"Quem são aqueles, pai?", quis saber José, apontando para os enormes guerreiros a crescer diante dele.

"É D. Afonso Henriques", revelou o capitão com ar paternal. "Foi o primeiro rei de Portugal, o homem que criou o nosso país, em 1140, faz agora oitocentos anos." Esboçou um gesto circular, englobando toda a entrada. "É por isso que esta porta, chamada dos Cavaleiros, também é conhecida por Porta da Fundação."

Compraram os bilhetes e cruzaram a Porta dos Cavaleiros justamente no ponto onde começava a recém-construída marginal para Cascais. Entraram no recinto da Exposição do Mundo Português e admiraram o arranjo ordeiro do complexo, a pureza das linhas, a elegância dos monumentos, a majestade da arquitectura, tudo tão perfeito e tão sólido que nada parecia erguido em estafe e gesso. Uma animada música de fundo ecoava por todo o perímetro; era uma ópera italiana, composição épica que tudo engrandecia.

Em frente, à esquerda, ancorada na marina, balouçava uma grande caravela, colorida, de varandas trabalhadas e alegres bandeiras a dançar em todos os mastros.

"Oh, que graça!", comentou Amélia. "É a Nau Portugal."

"Pois", hesitou o capitão, consultando a brochura que adquirira à entrada. "Chama-se Nau de São Vicente."

"Vamos lááá!", pedinchou o Zezinho. "Vaaamos!"

"Siiim!", concordaram os irmãos, num coro desafinado, dando saltinhos de excitação. "Vamos!"

Mário Branco leu a brochura com atenção.

"Ó meninos, a nau tem lá um restaurante." Levantou a cabeça e mirou os filhos. "Ainda é cedo para comermos, não acham? Vamos mas é dar uma voltinha por aqui e depois voltamos à nau, está bem?"

Não foi uma decisão popular; no fim de contas a Nau Portugal era a grande atracção da pequenada, mas pai era pai e capitão era capitão, pelo que ninguém se atreveu a contestar a ideia. Admiraram à esquerda o Pavilhão da Formação e Conquista, com a curiosa Esfera dos Descobrimentos na esquina, e avançaram pela grande avenida, contemplando a nau e o Padrão das Descobertas do lado do rio, enquanto o outro lado se abria para a grande Praça do Império, com o seu jardim geométrico e magníficos repuxos de água, o belo rendilhado da longa fachada do Mosteiro dos Jerónimos a prolongar-se lá ao fundo.

"Finalmente Lisboa abraça o rio", comentou o capitão. "Já era hora!"

"O que queres dizer com isso?", quis saber Amélia.

"No meu tempo, quando andei aqui na Escola de Guerra, a cidade vivia de costas voltadas para o Tejo. Cresceu em todas as direcções de forma caótica e sempre a ignorar o rio." Apontou para o espelho azul cintilante que se estendia até à faixa de terra na margem longínqua. "Mas agora não. Lisboa voltou-se enfim para o Tejo."

Ao fundo da avenida entretiveram-se a apreciar as Diversões Náuticas dentro da marina e depois foram passear pelo emaranhado das Aldeias Portuguesas. Contornaram o posto de informações e percorreram a Praça do Império até ao Pavilhão dos Portugueses no Mundo, onde, junto à grande estátua da Soberania, viraram à direita e passaram diante da fachada dos Jerónimos, o capitão à frente, a acelerar o passo com a autoridade de quem comanda um regimento.

"Vamos rápido, vamos rápido!"

"Ó homem, valha-me Deus", protestou Amélia, já afogueada de tanto caminhar. "Porquê tanta pressa?"

"Quero levar-vos a ver uma coisa que vos vai espantar."

"O quê?"

"Vou mostrar-vos África."

Caminharam entre a Porta Sul dos Jerónimos e o Pavilhão da Honra e de Lisboa e entraram enfim na Secção de Etnografia Colonial. Toda a área ultramarina havia sido erguida ao longo do Jardim Colonial e separada por secções. Passaram pela Índia, caracterizada pelos aromas fortes de Goa, e cruzaram o pavilhão de Macau, abrilhantado por uma curiosa rua cheia de tabuletas com caracteres chineses que a todos divertiu.

"Olha, diz ali Alfaiataria Chan Cheong", riu-se António, o mais velho dos irmãos.

"E aquela?", perguntou Mana, apontando para outra tabuleta. "Que palavras tão esquisitas!"

A tabuleta assinalava o Iat Ut Seng e dizia que a loja vendia artigos de electricidade.

"Diabo de nomes!"

Desembocaram por fim no grande Pavilhão de Angola e Moçambique, protegido por dois hipopótamos que ladeavam a escadaria. Ao fundo viam-se umas palhotas e uma multidão curiosa formigava em torno delas.

Aproximaram-se do local e logo o capitão exclamou:

"Estão a ver? Estão a ver? Eu não vos dizia?"

Amélia e Joana abriram a boca de espanto quando espreitaram entre os ombros e as cabeças das pessoas que se acotovelavam em frente, e o mesmo aconteceu com a criada e as crianças.

"Credo!", exclamou Joana, horrorizada. "Ai Jesus!"

"Ora esta!", concordou a irmã. "Realmente, se eu não visse não acreditava!"

António, o mais velho dos filhos, lançou ao capitão um olhar receoso.

"Ó pai, eles comem a gente?"

"Não, que disparate!"

"Comem, comem!", insistiu Lourdes. "Comem que eu sei!"

"Não comem nada."

E ali ficaram todos, embasbacados, num misto de repulsa e fascínio, a contemplar o espectáculo que se desenrolava diante deles, a mirar aquela extraordinária atracção: um homem de tronco nu e tanga e pele escura como carvão, os cabelos encaracolados e o olhar enfastiado, sentado diante da palhota como se estivesse encarcerado numa jaula. Se era homem ou besta ninguém tinha realmente a certeza, o assunto estava aberto a discussão, mas o facto era que ali não passava de uma bizarria exibida em número de circo, apontado a dedo e motivo de grande espanto. Sucediam-se os "ah!" e os "oh!", exclamações que denunciavam o mais absoluto dos pasmos. Todos o viam e cada um o comentava.

Menos o mais pequeno dos espectadores.

"Beatriz! Beatriz!"

A criada, passado o torpor do primeiro impacto provocado pela espantosa cena, reparou no apelo do protegido, de braços erguidos como se pedisse colo, e inclinou-se para o ajudar.

"Anda cá, Zezinho."

Beatriz pegou em José e elevou-o para a posição mais alta que pôde, tão elevada que o pequerrucho conseguiu espreitar por entre o mar de cabeças e enxergar o fenómeno que todos admiravam; era realmente coisa única, prodígio da natureza, visão de assombrar.

"Olha", admirou-se o pequeno. "Um preto."

Foi o primeiro que viu na vida. Puxado pela mão firme da mãe, José desceu a rua calcetada até à Igreja da Misericórdia, corria uma aragem gelada na manhã cinzenta de Outubro de 1943. Diante da Farmácia Oliveira aglomerava-se uma pequena multidão, barulhenta mas tranquila, e foi entre o magote de pessoas que mãe e filho passaram, esgueirando-se pela apertada e concorrida porta de um anexo ao lado da farmácia.

José galgou as escadas encostado à parede, a custo, esforçando-se por acompanhar a mãe. Ultrapassaram os muitos homens e poucas mulheres que aguardavam nos degraus, pacientes, todos em fila à espera da sua vez de chegarem ao topo. Um cheiro azedo a vinho e urina seca impregnava as roupas imundas daquelas gentes do povo, eles com chapéus escuros e a barba por fazer, elas de lenços pretos na cabeça e saias largas até aos pés.

Ainda atrás da mãe, o pequeno alcançou o cimo da escadaria e entrou na sala.

"O seguinte!", chamou uma voz familiar.

Era o pai. O capitão encontrava-se sentado a uma velha secretária no centro da sala, no anexo instalado mesmo por cima da Farmácia Oliveira. Estavam na sede da Comissão de Racionamento de Penafiel, que Mário Branco chefiava, e José observou o pai a distribuir senhas à população, fardado a rigor e ajudado por um ordenança que controlava a fila.

Uma mulher de idade, curvada e amparada numa bengala, aguardava sob a ombreira da porta e avançou quando o oficial chamou pela pessoa seguinte. Branco reconheceu Amélia e o filho e fez sinal com a cabeça de que esperassem; atendeu a idosa, assentou uma informação num caderno coberto de nomes, a lista de todos os que tinham direito às senhas de racionamento, e entregou-lhe as almejadas folhinhas de papel colorido. Quando a velhota se retirou, fez um gesto com a mão na direcção da mulher, pedindo-lhe que se aproximasse.

"O que é, minha querida?", sussurrou, levemente agastado por ver o trabalho interrompido pela família. Detestava misturas entre as funções militares e as questões domésticas. "Passa-se alguma coisa?"

"Passa, passa!", protestou Amélia. "Muita coisa."

"Então?"

"Então não temos açúcar, não temos arroz, não temos leite, não temos manteiga, não temos pão, não temos azeite, não temos..."

"Sim, querida, já sei", interrompeu o capitão com paciência, mantendo a voz baixa para não ser escutado pelos que aguardavam na fila. "E o que queres que te faça?"

Amélia fez um ar espantado.

"O que quero que faças? Ora essa!" Apontou para o filho mais novo. "Estás a ver aqui o Zezinho? Estás a ver? Anda escanzelado que nem um palito, coitadinho! Olha para ele! Olha! Parece um cabrito esfaimado."

O capitão olhou, toda a gente olhou, e José encolheu-se, envergonhado por ser assim exibido em público, um vulgar bezerro exposto à devassa alheia.

"O Zezinho está magro, eu sei", admitiu Mário Branco, voltando a atenção para a mulher. "Mas nos dias que correm anda toda a gente magra, querida. Os tempos são difíceis, a Intendência Geral dos Abastecimentos faz o que pode, mas a verdade é que a guerra provocou esta carência de bens e não temos maneira de resolver o problema!"

"Eu não quero cá saber de coisas! O que sei é que falta comida lá em casa!"

"Faltam coisas, bem sei. Mas olha que estamos melhor do que a maioria das pessoas, uma vez que temos duas quintas."

"Ora, isso só dá vinho, repolhos e hortaliças! Eu estou a falar de bens variados! Eu estou a falar de..."

"Sim, já percebi", retorquiu o capitão. Encolheu os ombros, com uma expressão impotente. "Mas o que queres que te faça? Diz-me!"

Amélia fez um gesto largo com as mãos, girando-as em redor de modo a abarcar toda a sala da sede da Comissão de Racionamento.

"Homessa! Então não és tu aqui o chefe desta chafarica?"

"Sim..."

"Então resolve tu isso!"

"Resolvo como?"

A mulher inclinou-se para a frente, de modo a poder baixar a voz e ser na mesma escutada pelo marido.

"Ora!", sussurrou. "Dá mais senhas à família!"

Mário Branco revirou os olhos e suspirou, dominando a irritação.

"Ó querida, já te expliquei mais de mil vezes que não posso fazer isso! Nós recebemos aqui uma determinada quantidade de alimentos e produtos racionados e eles têm de chegar para toda a gente. Se eu puser mais senhas para a nossa família, estou a retirar senhas a outras famílias, estás a perceber? Achas isso bem? Achas?"

"Mas não és tu o chefe disto?"

"Sou."

"Então faz o que tens a fazer!", insistiu, sempre a sussurrar para não ser escutada pelas pessoas que faziam fila à porta. "Dá mais senhas à tua família!"

"Mas eu estou a dizer-te que não posso fazer isso! Teria de tirar senhas a outras famílias!"

"És mesmo ingénuo!", exclamou Amélia com a expressão de uma mãe a repreender o filho que deixa que os outros lhe vão à frente. "Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é tolo ou não tem arte."

"Não me venhas com provérbios!"

"Não são provérbios, é a verdade!", murmurou com intensidade, exasperada. "Então não sabes que há para aí muito chefe de serviços de racionamento que guarda sempre um pouco mais para si e para a sua família?" Ergueu o indicador de modo peremptório. "E, se queres que te diga, fazem eles muito bem!"

"Isso não sei e não ligo a conversa de pacóvios. O que sei é que tenho os meus deveres e cumpro-os o melhor que posso."

A mulher fez um trejeito nervoso.

"Olha lá, então de que serve seres o chefe desta coisa?"

"Bem... é o meu trabalho..."

Amélia ergueu a voz, a exasperação no limite.

"O teu trabalho? A tua família passa fome e tu, que és pai de filhos e meu marido, preferes dar alimentos aos outros? Então e nós?"

"Mas nós temos tanta comida como os outros, querida. Nem mais nem menos! Temos o mesmo que os outros."

"És um somítico! Vês-nos a passar fome e só nos dás a porcaria de umas senhas que quase não servem para nada! Irra!"

O capitão cerrou os olhos e esperou um instante até responder. Uma nova transformação havia-se operado na mulher e dava-lhe a impressão que Amélia não lhe poderia dar mais surpresas. Parecia-lhe uma rapariga triste quando se tinham casado, depois ficara alegre, mais tarde distante, depois prostrada, a seguir tornara-se uma beata e nesse momento, com a guerra e o seu infindável desfile de dificuldades, transformara-se numa guerreira. E em nada era moderada.

"Amélia", disse por fim, a voz de trovão a denunciar uma falsa calma. "Vai imediatamente para casa! Falamos depois." Virou o rosto para a porta, dando a conversa por terminada. "O seguinte!"

"Mas isto não..."

"O seguinte!", trovejou Mário Branco ainda mais alto, ignorando ostensivamente a mulher.

Não eram dias fáceis para o capitão Branco.

O oficial, chamado da reserva quatro anos antes para preparar planos de contingência para a eventualidade de serem decretados racionamentos, não dispunha de um minuto de descanso na gestão dos parcos recursos alimentares postos à sua disposição para distribuir por toda a população de Penafiel. Quando regressou ao activo, em 1939, o coronel Silvério nomeou-o segundo comandante do regimento; era o mínimo que poderia fazer por um oficial tão prestigiado, que servira o país e se mantivera tão firme na defesa da honra do exército durante os delicados primeiros meses da guerra de Espanha.

Mário Branco começou por fazer um recenseamento da população da cidade, tarefa que lhe consumiu muito tempo e energia, mas, quando terminou a empreitada, os racionamentos não tinham ainda sido decretados. A verdade é que o regime resistiu o mais que pôde à decisão de os instaurar, apesar da permanente deterioração das condições de vida. O país dependia em grande parte das nações beligerantes para o abastecimento de matérias-primas e outros produtos essenciais, e a situação foi agravada quando os Aliados decretaram um bloqueio comercial a Portugal. A medida constituiu uma retaliação pela decisão tomada pelo governo de manter a mais estrita neutralidade, tratando as duas partes em conflito da mesma maneira e mantendo vínculos comerciais intensos com a Alemanha. Os Aliados queriam a neutralidade portuguesa, mas achavam que ela lhes devia ser benéfica, e, como isso nem sempre acontecia, fecharam a torneira ao país.

Os produtos começaram a faltar. Faltavam bens e os que havia eram demasiado caros, inacessíveis à generalidade da população; nas cidades e no campo, a fome espalhou-se, insidiosa primeiro, ostensiva depois. Os salários foram congelados para travar a inflação, mas isso não resolveu o problema da carência de bens de consumo. Surgiram protestos de rua, e depois greves, por fim revoltas de camponeses.

Foi então que Salazar decretou os racionamentos.

"É a única maneira de fazer com que haja produtos para todos", explicou o coronel Silvério quando chamou Mário Branco para que activasse a Comissão de Racionamento de Penafiel. "Se não houver racionamento, só os que têm dinheiro é que podem comprar comida."

Mas o capitão Branco não precisava de explicações; conhecia muito bem a situação e só se admirava por a ordem ter levado tanto tempo a chegar. Logo que saiu do gabinete do seu superior hierárquico foi buscar o livrinho do recenseamento e chamou um ordenança. Em apenas alguns dias conseguiu actualizar a lista de recenseamento e instalar a sede da comissão no anexo por cima da Farmácia Oliveira. O trabalho foi completado com tal presteza que, no momento em que recebeu as primeiras senhas para distribuição, a comissão já se encontrava pronta para iniciar as operações.

Os pedidos para "facilitar" as coisas multiplicaram-se, sobretudo os que vinham das famílias mais abastadas da cidade, levando o chefe da comissão de racionamento a repetir à exaustão a mesma frase:

"Aqui não há cunhas!"

Que o marido não facilitava nas cunhas já o percebera Amélia. Pois se nem a própria família conseguia de Mário Branco mais senhas, quem o conseguiria?

Enervada com a intransigência do marido, Amélia desceu as escadarias da comissão consumida por um sentimento de revolta irreprimível. Trazia o pequeno José pelo braço, mas era como se o tivesse esquecido, o corpo todo ele um motim, a mente atormentada pelo problema de arranjar bens que alimentassem a família.

"Onde é que já se viu isto?", resmungava Amélia para si mesma, absorta no problema que não via como resolver. "Nem à própria família! Nem à própria família!"

Sempre a arrastar o filho, só despertou para o presente no momento em que, percorrendo a rua até à zona do tribunal, entrou na mercearia do Pacheco e se plantou na fila. Tinha três pessoas à frente. Suspirou com impaciência, mas fez um esforço para se acalmar. Desde que, meses antes, se apercebera de que havia menos comida no prato dos filhos que havia abandonado o mundo de missas, eucaristias e sacramentos onde se refugiara. Ainda sentia uma dor dilacerar-lhe o peito sempre que a mente lhe revolvia o passado, mas o luto por tudo o que perdera estava feito e percebeu que chegara a hora de reagir.

Enquanto deambulava pelos caminhos que a sua vida tomara, meteu a mão no bolso esquerdo e extraiu as três senhas que ainda lhe restavam do conjunto semanal a que tinha direito. Eram pequenos papéis rectangulares, picotados no derradeiro quinto para que fosse possível guardar um talão comprovativo do seu uso; pelo meio ostentavam, em maiúsculas e a negro carregado, o nome do produto a que se destinavam.

Uma das senhas que retirou do bolso dizia "batata", a segunda assinalava "carvão, lenha e petróleo" e a terceira "manteiga, queijo e outros lacticínios". Franziu o sobrolho. Tinha ideia de que lhe restava ainda uma senha que lhe dava direito a algo bem melhor. Vasculhou o bolso esquerdo, mas nada encontrou. Depois procurou no bolso direito, novamente sem sucesso. Abriu a mala de mão e esquadrinhou o interior até sentir um papelinho roçar-lhe os dedos.

"Ah!", exclamou em triunfo. "Está aqui o malvado!..."

"O que é, mãe?"

A vozinha relembrou a Amélia a presença do filho. Passou- -lhe a mão pelo cabelo, tranquilizadora.

"Não é nada, Zé. Era eu que andava à procura disto."

Extraiu da malinha de mão um talãozinho pequeno. Mostrou-o ao filho e depois virou-o para si mesma. Sentiu um baque. O talão não dizia o que ela esperava. O papelinho registava simplesmente "carta de racionamento de sabão".

"Meu Deus!"

Alarmada, quase em pânico perante a possibilidade de ter perdido o talão mais precioso de todos, procurou de novo na mala, revolveu o interior até roçar com os dedos num novo papel. Extraiu-o com um movimento brusco, sôfrego até, e devorou com os olhos a referência ao produto a que tinha direito. "Bacalhau." Suspirou de alívio e sentiu um peso soltar-se-lhe do peito. Nesse domingo teriam direito a mais do que a habitual dieta de batatas com vegetais.

A fila entretanto ia avançando e Amélia constatou que só restava um cliente à sua frente. Voltou a passar os olhos pelas senhas e espreitou os bens guardados a granel nos sacos de serapilheira ou exibidos na vitrina atrás do merceeiro. O Pacheco tinha a melhor mercearia de Penafiel, um estabelecimento sempre bem apetrechado com os mais variados bens, incluindo requintes como bolachas, rebuçados e café do Brasil e de Moçambique, e ainda um espaço com brinquedos para a pequenada.

Mas foi ao ver os preços dos produtos que Amélia sentiu o coração dar mais um salto.

"Virgem Maria!"

"O que foi, mãe?"

Passou de novo a mão pelos cabelos do filho.

"Não é nada, Zezinho. Sou eu que estou a ficar cansada."

O que assustara Amélia fora a escalada de preços que via reflectida no preçário galopante que o merceeiro rabiscara nos sacos de serapilheira e nos produtos daquela vitrina. O custo do quilo de batatas havia duplicado e o da manteiga também. Espreitou para os sacos por baixo do armário e verificou que o mesmo acontecia com a fruta e o peixe. O bacalhau ia sair-lhe caro, constatou com desânimo enquanto afagava o talão correspondente. Outros bens essenciais haviam sofrido um forte aumento, como era o caso do arroz, do açúcar, do sabão e do azeite. Todos estes produtos estavam racionados, o mesmo sucedendo com as massas, os óleos alimentares, o leite, o café, o cacau, o grão, os cereais, o pão, as farinhas...

"O seguinte!"

A voz do merceeiro puxou-a para diante do balcão.

"Bom dia, senhor Pacheco."

"Ora viva, dona Amélia! Estou a ver que hoje trouxe o pequerrucho." Sorriu para José. "Então, pirralho, também vens às compras?"

O pequeno deu um passo em frente e colou-se ao balcão, indicando as senhas que a mãe tinha na mão.

"Hoje é bife do lombo."

O merceeiro soltou uma gargalhada.

"É minorca, mas já tem sentido de humor, hem?"

A freguesa fez uma careta resignada e estendeu as senhas ao merceeiro.

"O meu Zezinho é um brincalhão, senhor Pacheco. Haja alguém que se ria, porque as coisas não andam nada fáceis..."

"Lá isso é verdade."

O merceeiro pegou nas senhas que a cliente lhe entregou e inspeccionou-as. Vinham todas numeradas e carimbadas, como era regulamentar. Além disso, estavam destinadas ao chefe de família, com referência completa a morada, profissão e agregado familiar, mas Pacheco sabia que Amélia dispunha de poderes para levantar os produtos em nome do marido.O dono da mercearia pegou na cesta que a freguesa havia pousado sobre o balcão e voltou-se de costas. Tirou os produtos do armário atrás dele, carimbou o talão picotado, guardando-o como prova de que a senha tinha sido utilizada, e devolveu a cesta à cliente.

"Aqui está, dona Amélia! Dá para um banquete!"

A tensão em casa aumentou ainda mais no dia em que o coronel Silvério chamou Mário Branco ao seu gabinete e lhe fez um anúncio inesperado.

"Como chefe da comissão de racionamento, o nosso capitão tem direito a uma regalia especial", anunciou-lhe. "Disporá doravante, e enquanto a comissão existir, de um automóvel com motorista."

A novidade colheu o capitão de surpresa.

"Para que preciso eu de automóvel com motorista, meu coronel? De minha casa até ao quartel são uns meros vinte minutos de passeio higiénico. E é menos ainda se caminhar apenas até à sede da comissão."

"É a dignidade do cargo, meu caro. O senhor é agora uma das pessoas mais importantes da cidade e tem de ter tratamento condigno com a sua posição."

O capitão não se mostrou convencido com a regalia, e as suas reticências não constituíam mera encenação, mas uma objecção de facto. Sempre achara que um dos problemas do país era a proliferação de pessoas "importantes" e, talvez por partida do destino, esse estatuto questionável era-lhe agora atribuído em todo o seu esplendor. Porém, se o comandante insistia, quem era ele para o contrariar?

A novidade foi, não com surpresa, bem acolhida pela mulher quando o capitão falou do assunto à mesa, no momento em que já digeria o jantar com o habitual cálice de vinho do Porto.

"Só agora é que nos contas isso?", questionou Amélia, um sorriso de satisfação a desmentir o tom melindrado da pergunta. "Onde está esse carro e esse chauffeur?"

"Vem amanhã buscar-me para me levar para o trabalho."

A mulher rebentava de orgulho. A regalia significava, na prática, que o marido atingia o estatuto até ali reservado ao presidente da câmara e ao comandante do quartel.

"Se queres saber, acho muito bem!", exclamou com incontida satisfação. "Depois de tudo o que te fizeram na altura da guerra de Espanha, já estava na hora de te tratarem com a dignidade a que tens direito!"

O aparecimento do automóvel e do motorista à porta de casa foi um acontecimento digno de ser registado nos anais da história da Rua Zeferino de Oliveira em Penafiel. Logo pela manhã Amélia mandou discretamente Beatriz alertar a vizinhança e deu o pequeno-almoço mais cedo aos filhos. Sôfregos de excitação, os quatro irmãos engoliram o leite a correr e, ainda não eram seis e meia, plantaram-se na varanda do primeiro andar a espreitar todos os automóveis que passavam diante da casa.

"É este!", exclamou António no instante em que viu o primeiro carro aparecer na rua. "É este!"

"Não é nada, parvo", corrigiu Lourdes. "Este é o do doutor Reis, não vês?"

"É aquele! É aquele!"

As viaturas passavam e, apesar de um fracasso suceder a outro, a expectativa ia aumentando. O único que se começou a sentir cansado foi o pequeno José, que depressa desviou a atenção para outros pontos da rua. Os vizinhos encheram também as suas varandas, já devidamente alertados por Beatriz e atraídos pela excitação dos pequenos.

O olhar de José caiu então sobre uma rapariguinha de cabelo castanho-claro aos canudos que aparecera à varanda dos vizinhos do lado esquerdo; era magra, com pernas altas e uma expressão traquina no rosto, onde cintilavam dois olhos de um verde-esmeralda refulgente. Deveria ter uns sete anos, como ele. Observou-a fixamente, mas desviou o olhar no momento em que ela o notou, a timidez mais forte do que a curiosidade.

"Ó p'rá'quele! Ó p'rá'quele!"

A atenção de José regressou ao que se passava lá em baixo. Viu os olhares convergirem para um Ford negro com um soldado ao volante que fazia a curva ali à direita. A viatura reluzia de tão impecavelmente lavada, até os pneus brilhavam. Entrou na rua com um ronronar majestoso e, mesmo em frente, virou para o lado da casa dos Branco e estacionou tranquilamente aos pés dos espectadores.

Levantou-se todo um bruá nas varandas.

A porta de casa abriu-se e o capitão Branco, pálido de embaraço, dirigiu-se em passo lesto para o automóvel, cuja porta traseira havia sido aberta pelo solícito motorista. Uma salva de palmas reverberou pela rua, acompanhada por assobios e vivas, como se o próprio presidente do Conselho ali estivesse de passagem. Amélia acompanhou o marido com a sua melhor fatiota de domingo e fez tenção de entrar pela porta escancarada da viatura quando a mão do capitão a travou.

"Onde vais?", admirou-se Mário Branco.

"Ora", retorquiu ela, esboçando um trejeito de primeira- dama de Penafiel. "Tenho de ir à Pastelaria Brasil."

"Agora?"

"Pois claro! Se tens carro com cbauffeur, temos de usufruir dele, não é verdade?"

O capitão respirou fundo, num esforço para ocultar o ar contrariado. Sentia os olhares dos filhos e da vizinhança pousados neles, um factor de inibição para que tomasse uma atitude mais severa. A verdade, porém, é que não podia deixar a coisa correr. Olhou para o motorista, que aguardava junto à porta do Ford que ambos entrassem, e indicou o volante.

"Vai andando", ordenou. "Hoje vou a pé."

"Sim, meu capitão!"

O motorista fez continência e meteu-se no automóvel perante o olhar embasbacado de Amélia e a surpresa da multidão que se juntara para testemunhar o grande acontecimento.

"O que estás a fazer?", perguntou a mulher, sem entender o que acontecera. "Porque o mandaste embora?"

O capitão deu-lhe o braço e puxou-a com suavidade, fazendo-lhe sinal de que o acompanhasse. Forçou um sorriso e começaram a descer a rua de braço dado, obrigando os mirones a abrir alas para os deixarem passar. O oficial aligeirou o passo, a compostura em primeiro lugar, e só quando se sentiu longe dos ouvidos indiscretos abriu a boca.

"O carro que me entregaram é do estado e apenas se destina a funções do estado", murmurou sempre com um sorriso. Podia não ser escutado mas era decerto observado. "Só eu posso andar nele e apenas quando estou de serviço. Se eu for ao clube dos oficiais jogar bilhar, tenho de ir a pé. Seria um abuso inaceitável usar esta viatura para fins pessoais, entendes?"

"Mas a Pastelaria Brasil fica em caminho", argumentou Amélia. "O carro não consome nem mais um mililitro de gasolina se me levares contigo..."

"O carro é só para deslocações de serviço."

"Levas-me durante essa deslocação de serviço. Vais à sede da comissão e largas-me a meio. O estado não gasta nem mais um tostão só porque eu também vou lá dentro."

"Não é uma questão de gastar mais ou menos", devolveu o marido num tom quase pedagógico. "É uma questão de princípio. Trata-se de uma viatura oficial e destina-se exclusivamente a uso oficial. Qualquer outro uso não é uso, é abuso."

"Mas toda a gente usa os carros oficiais para outras coisas, Mário. O presidente da câmara, por exemplo. Ainda no outro dia o vi na..."

"Nós não somos toda a gente, Amélia", cortou o capitão. "Este país não se endireita se não houver pessoas que dêem o exemplo. A liderança exerce-se dando o exemplo."

"Mas quem é que se importa com isso?", protestou Amélia, erguendo um tudo-nada a voz. "Ninguém! Só tu! Toda a gente que tem carro do estado faz isso. Se tu fizeres, achas que alguém te condena?"

"Não sei se alguém me condenará, mas sei que eu próprio me condenarei e isso chega-me."

"Oh, que tolice!"

A montra da Pastelaria Brasil cintilava já ao fundo da rua, reflectindo a luz límpida do Sol que se erguia sobre os telhados fronteiros. O capitão ajeitou o casaco e o chapéu antes de se voltar de novo para a mulher.

"Podes dizer o que quiseres, mas o facto é que a viatura que me foi atribuída é do Estado e só pode ser usada em funções de Estado. A apropriação de meios do Estado para fins privados tem nome e esse nome é corrupção. Isso eu não faço."

Desde a famosa manhã do aparecimento do carro de serviço atribuído ao pai que José espreitava amiúde a casa dos vizinhos num esforço de vislumbrar de novo a rapariguinha do cabelo castanho-claro aos canudos e olhar traquina, embora raramente com sucesso e sempre apenas de fugida. Tentava-o de novo nessa tarde, sentado na varanda a espreitar a casa vizinha, quando viu o Ford negro estacionar diante de casa, como se tornara habitual àquela hora, e o pai sair do interior e ir buscar à bagageira um pneu de automóvel.

A visão encheu-o de espanto e curiosidade, pelo que se pôs de pé num salto e se meteu de imediato em casa. Foi a correr até à cozinha, onde encontrou à volta do fogão a mãe e a tia Joana mais Beatriz e a sua irmã Lourdes.

"O pai chegou!", anunciou-lhes.

Como em confirmação, sentiram nesse instante os sons familiares dos passos do homem da casa a galgar as escadas e a calcorrear o soalho da sala de jantar, até que assomou à porta da cozinha e exibiu com ar matreiro o troféu que trazia debaixo do braço.

"Ora vejam lá isto!", exclamou o capitão, erguendo o pneu. "Adivinhem o que é."

Olharam as três mulheres e os dois pequenos para o grande objecto circular de borracha, já velho e gasto.

"Isso é um pneu", constatou Amélia, com o trejeito característico de quem acabou de expor uma evidência. "Ainda por cima imundo. Tira-o daqui!"

O marido riu-se.

"Que isto é um pneu já eu sei", disse, ignorando a ordem. "Mas adivinhem para que serve."

"Ora!", exclamou a mulher, abanando a cabeça e voltando as costas, mais preocupada com a panela ao lume. "Tens cada uma! Para que serve um pneu?"

"Diz lá", insistiu o capitão, fixando a nuca de Amélia.

"Para pôr nas rodas", devolveu ela, encolhendo os ombros. "Ora esta!"

"Pois estás enganada."

A mulher voltou a cabeça.

"Ai um pneu não serve para pôr nas rodas?"

"Não este pneu."

"Ai não? Então serve para quê?"

O capitão pegou na borracha preta, torceu-a e exibiu a câmara-de-ar escondida no interior.

"Quem quer azeite?", perguntou, dirigindo-se a todos os que o observavam na cozinha. "Quem quer azeitinho bom de Alfândega da Fé?"

"Azeite?" Inclinaram-se todas para o pneu, analisando a câmara-de-ar. "Qual azeite?"

"Estão a ver isto?", disse o capitão, apontando para as manchas de gordura no interior do pneu. "Foi aqui dentro que os traficantes esconderam o azeite para vender no mercado negro. Na câmara-de-ar." Ergueu o sobrolho e sorriu. "Hã? Gente danada para a vigarice, não é?"

O pneu alimentou a conversa durante uma semana. A história espalhou-se por toda a parte e tornou-se uma admiração. "Vejam lá a imaginação desta gente!", dizia-se. Fizeram-se nas casas e pela cidade piadas e graçolas em torno dos "azeiteiros dos pneus", com profusos comentários à "propensão para a aldrabice", episódio tão caricato que muitos serões alimentou de gargalhadas.

O capitão Branco, porém, sabia que o sucedido era o sintoma de um mal mais profundo. Com a guerra a apertar e a economia estrangulada, o país dava sinais inequívocos de asfixia. A infância de José Branco, em particular a idade crucial entre os três e os nove anos, foi passada em economia de guerra e vivida debaixo da severa austeridade que marcava os tempos.

Como qualquer criança que tudo encara com normalidade, o pequeno habituou-se ao rigor e à frugalidade deste período. Frequentava a Escola Primária Conde Ferreira, mesmo ao lado do quartel, onde o material era poupado até ao último pedaço. Para não gastar lápis nem papel os alunos rabiscavam as ardósias, a que chamavam "lousas", a giz. Foi o tempo em que José chegava a casa com as mãos secas e o pó branco entranhado nas unhas e nos dedos; tirá-lo no Inverno, com as mãos inchadas de frieiras e usando água gelada, revelou-se uma tortura diária.

Mas o maior suplício em casa eram as refeições à base de produtos alternativos. Como os bens alimentares escasseavam, cozinhava-se com barras brancas que vinham de África e que o merceeiro Pacheco pomposamente anunciava como "gordura de coco". Pela manhã, em vez do tradicional chá, comia-se canja. Já o café com leite foi substituído por uma farinha dissolvida em água, feita à base de banana e cacau, chamada "banacau"."Porcaria!"

José odiava o banacau. Beatriz, a criada sempre zelosa na protecção do mais novo da família, fazia questão de não consumir a sua ração semanal de açúcar. Poupava-a e oferecia-a depois ao seu protegido; sabia que sem açúcar não haveria maneira de o pequeno engolir o maldito banacau. Era com aquela ração poupada com tanto sacrifício pela jovem empregada que José conseguia adocicar a dose diária da estranha bebida.

A vida em Penafiel decorria numa pacatez assustada, pautada pelo ritmo austero e severo de um país voltado sobre si mesmo, transformado numa ilha triste e temerosa, intimidada pelo mar revoltoso do mundo. O ciclo de vida na pequena povoação duriense era marcado pelas intermináveis filas diárias diante da comissão de racionamento e pelo toque tranquilizador dos sinos das suas inúmeras igrejas; a todas as horas soava nas múltiplas torres espalhadas pela cidade um concerto desafinado de chocalhos, mas as batidas mais sonoras vinham do imponente santuário do Sameiro, afinal a igreja mais próxima de casa e aquela onde os Branco se habituaram a comungar.

Os domingos fizeram-se em Penafiel para celebrar missa. Estivesse frio ou chovesse sem interrupção, podia até o vento uivar e arrancar árvores pela raiz, nada disso importava porque Amélia obrigava toda a família a sair de casa com as suas melhores roupas e a abalar monte acima, na direcção da grandiosa estrutura da Igreja do Sameiro.

José assistia às homilias sem entusiasmo; tudo aquilo lhe parecia aborrecido e cansativo, uma interminável lengalenga incompreensível, criada com o objectivo exclusivo de lhe arruinar os domingos. Nos Invernos sentia os pés doerem-lhe com o frio exalado pelo piso duro do templo; era como se o chão de pedra fosse constituído por enormes blocos de gelo, húmidos e glaciais.

A coisa tornou-se, porém, mais interessante quando certo domingo vislumbrou numa das filas do meio da igreja a rapariguinha do cabelo castanho-claro aos canudos e olhos verde-esmeralda. A partir daí as missas passaram a ser um ponto alto da semana, em particular quando as homilias acabavam e os fiéis começavam a dispersar. José recorria então aos mais variados pretextos para se afastar apressadamente da família e descer até casa sozinho, mantendo sempre a jovem vizinha debaixo de olho como um caçador no encalço da presa.

"Ó coiso!", chamou ela inesperadamente ao terceiro domingo, cravando os olhos no seu perseguidor. "Estás a seguir-me ou quê?"

Fora apanhado. O pior era que a interpelação lhe soara a acusação e José, enfim desmascarado, vacilou, indeciso entre responder e fugir. A cautela e um certo atrevimento acabaram por vencer.

"Não", devolveu, fechando o rosto como se se preparasse para o confronto. "Porquê?"

"É que já não é a primeira vez que te vejo a coisar-me no regresso da missa. És o meu vizinho, não és?"

Tinha uma voz de cristal, límpida e delicada, e um sorriso aberto que lhe coloria a palidez láctea do rosto.

"Acho que sim."

"Bem me parecia. Sou a Mimicas."

"Micas?"

A rapariga soltou uma gargalhada sonora e franca.

"Na verdade o meu nome é Mariana, mas desde pequenina, mesmo em África, que todos me coisam por Mimicas."

"Vieste de África?"

"Sim, nasci lá."

A referência às origens da vizinha despertou a curiosidade de José, sempre fascinado pelas coisas exóticas. Examinou a pele da rapariga com cuidado; era nívea, com pelinhos aloirados reluzentes. Tinha lábios finos e os cabelos, não sendo loiros, ostentavam um brilho luzidio que ao sol fazia lembrar a aura de um anjo.

Recuou um passo e contemplou-a, agora com cepticismo, comparando o que via diante dele com as imagens que enchiam os livros da escola e as revistas que consultara lá em casa e ainda com a lembrança do que observara anos antes na passagem memorável pelos pavilhões coloniais da Exposição do Mundo Português.

"Se nasceste em África", perguntou num tom desconfiado, "porque não és preta?"

Como se não bastasse a aventura dos domingos, a tudo se sobrepunha o magno imbróglio da catequese. O pequeno vivia todas as semanas um dilema permanente: tinha de confessar pecados. Poderá parecer coisa de somenos, mas para José tratava-se de uma questão soberanamente grave, tão complexa que lhe chegava a roubar o sono.

É verdade que no sábado à noite se deitava animado pela alegria de saber que no dia seguinte ia ver Mimicas e talvez conversar com ela no caminho até casa. Achava-a cativante, com o seu divertido linguajar cheio de "coisos" e de "coisares", fruto da sua maneira distraída de falar, e sobretudo com as fascinantes histórias de África. A rapariga contou-lhe que havia nascido no Mindelo, algures no meio do arquipélago de Cabo Verde. O pai morrera numa deslocação à Guiné, vítima de uma doença cujo nome não conseguiu fixar mas que era transmitida por mosquitos, pormenor que não esquecera, e a mãe mandara-a para os tios de Penafiel enquanto reorganizava a sua vida.

"Ele morreu porque não havia médicos no sítio para onde foi", explicou ela.

"Não há médicos na terra dos pretos?"

"Não para onde ele foi."

José ficou a matutar no assunto, impressionado com o que escutara.

"Quando eu for grande vou resolver isso!"

Os passeios com Mimicas revelaram-se apaixonantes. O rapaz metralhava-a com as mais diversas perguntas relacionadas com a vida em África. As pessoas iam à igreja? Fazia-se sport em stadiums? Havia banacau? Os pretos comiam gente? Alguma vez um leão lhe entrara em casa? O Tarzan existia mesmo?

O fascínio dos domingos era, no entanto, por vezes antecedido pela angústia de certas quintas-feiras. Acontece que a comunhão decorria na primeira sexta-feira de cada mês, pelo que os rapazes eram forçados a confessar-se na véspera. O embaraçoso engulho é que, a maior parte das vezes, não lhe ocorria nenhum pecado que pudesse apresentar com orgulho ao confessor.

Num dia de maior desespero, angustiado pela vergonha que seria apresentar-se diante do pároco sem nada a maculá-lo, aproximou-se do irmão mais velho, que permanecia de joelhos voltados para o altar, e murmurou-lhe ao ouvido:

"António, tenho vergonha de ir lá."

"Ir onde?"

José fez um gesto com a cabeça, indicando o cubículo de madeira à esquerda.

"Ao confessionário."

"Porquê? Qual é o problema?"

O pequeno encolheu os ombros.

"Não tenho pecados nenhuns."

"Não tens?"

"Não."

"Nada de nada?"

"Nada."

O irmão mais velho ponderou o problema. Assim à primeira vista a coisa parecia séria, mas era possível que ao pequerrucho lhe estivesse a falhar uma qualquer escapadela.

"Olha lá, não disseste nenhuma peta?"

"Não."

"Nem desobedeceste à mãe?"

"Uh... não." Hesitou. "Espera, noutro dia o pai mandou-me ir abrir a porta e eu demorei um bocadinho, assim de propósito." Arregalou os olhos, esperançado. "Achas que isso é pecado?"

António reflectiu um instante, mas acabou por fazer uma careta e abanar a cabeça.

"Não, não me parece." Passou a mão pelo cabelo. "Não fizeste mais nada?"

"Não, nada."

"Então diz isso ao padre Jacinto."

"Digo o quê?"

"Que não tens nenhuns pecados para confessar.-"

O mais novo baixou os olhos e abanou a cabeça.

"Ele não s'acredita."

"Não s'acredita?"

"Não. Da última vez disse-lhe isso e ele respondeu-me que era feio mentir."

António esboçou um trejeito de boca, como quem não tem resposta para tal argumento.

"Ah, bom..."

José permaneceu um instante calado, fitando o altar e o padre prestes a terminar a homilia. Após uma hesitação, voltou a aproximar a boca do ouvido direito do irmão.

"António."

"Sim?"

"Empresta-me os teus pecados."

O pesadelo do confessionário terminou em breve, quando os pecados, aqueles pecados genuínos e praticados com deliciosa intenção, começaram por fim a surgir.

É certo que o primeiro grande pecado não foi lá muito intencional, ou pelo menos planeado. Joana fazia anos a 9 de Abril e o capitão Branco deu ao filho mais novo um punhado de tostões para comprar uns bolinhos e ir oferecê-los à tia. Com aquele dinheiro na mão, José desceu à rua no final da manhã e adquiriu na Pastelaria Brasil meia dúzia de bolinhos de coco, os seus favoritos; de pacote apertado ao peito, foi a saltitar pelo passeio em direcção à casa do juiz Brandão, situada na outra ponta da cidade. Mas aqueles tempos, difíceis como eram, revelavam-se particularmente cruéis para quem tanto gostava de doçuras; o racionamento do açúcar tornava geralmente problemático o acesso às delícias das confeitarias e ter aquele pacote na mão, mais do que uma simples tentação, constituía um suplício infernal.

Não admirou por isso que, volvidos alguns passos, o pequeno começasse a espreitar o embrulho. Primeiro lançou-lhe olhares furtivos, meras espiadelas fugidias e tímidas, mas em breve os esgares tornaram-se abertos, directos, lascivos até. No fim de contas, pensou para si mesmo, meia dúzia de bolos era muita coisa! Certamente a tia não ia comer aquilo tudo. O que lhe importaria a ela que fossem seis ou cinco bolos? Provavelmente nem notaria a diferença.

O raciocínio instalou-se devagar, insidioso, parecia a sombra leve de uma nuvem que se anuncia breve, mas que logo mancha todo o céu; tal como ela, o desejo tudo invadiu e tornou-se gula desenfreada. Depressa a glutonaria se estendeu às mãos e, acto contínuo, os dedos irrequietos puseram-se a desfolhar o embrulho, primeiro a medo, depois com impaciência. Escancarou o pacote com inesperada brutalidade e, tremendo de prazer antecipado, furtou um bolo e devorou-o num impulso voraz, ávido, consumido por uma volúpia já sôfrega e descontrolada.

"Aaaaaah."

O prazer foi imenso.

Mas curto.

Quando a nuvem do desejo incontrolável passou e a chama do êxtase se extinguiu, José caiu em si. Deu-se conta do que fizera e olhou em redor, assustado, os olhos muito arregalados, o coração aos pulos; sentia-se culpado e fechou atabalhoadamente o embrulho. Acelerou o passo, os olhos fixos no chão, incapazes de se erguerem; eram olhos de transgressor, de prevaricador, de culpado.

De pecador.

Acabou por ganhar coragem e levantou-os. Apesar do angustiante flagelo da consciência, ou talvez por causa dele, impôs-se a si mesmo o suplício de enfrentar os seus actos e os olhares reprovadores da imensa multidão que o observara a pecar tão desavergonhadamente. Quando rodou a cabeça e a medo encarou o mundo em redor, todavia, acabou por perceber, surpreendido, que ninguém parecia ter notado; os transeuntes circulavam com indiferença, alheios ao crime hediondo que acabara de ser cometido mesmo diante deles. A verdade, a estranha verdade, é que se comportavam todos como se José não existisse; era como se o crime nem tivesse sido cometido, como se um bolo a menos realmente não tivesse grande importância.

Hesitou.

"Sim, é isso!", murmurou com intensidade. "E mesmo isso!"

Que importaria um bolo a mais ou a menos? Que diferença fazia? Quem se ralaria com tal coisa? Abrandou e acalmou-se. Qual o problema? O coração, momentos antes um batuque imparável, nervoso e descontrolado, voltou à sua batida tranquila. Seis ou cinco bolos era tudo a mesma coisa, ninguém notaria a diferença. Aliás, o mesmo se aplicaria se fossem quatro, não é verdade? Quem toparia a marosca? Quem dava cinco dava quatro. Que diferença fazia?

Enquanto considerava isto, os dedos pareceram ter novamente adquirido vida própria e, sem que a mente lhes tivesse transmitido tal ordem, voltaram ao embrulho, de onde surripiaram um segundo bolo. Quase sem dar por isso engoliu furtivamente a segunda iguaria. Ai!, gemeu, mas logo contrapôs: seis, cinco ou quatro bolinhos, era tudo a mesma coisa!

Voltou a fechar o embrulho e retomou a marcha. Logo ali na esquina, todavia, sentiu a dúvida assaltá-lo. Quem acreditaria que havia comprado quatro bolos? Abanou a cabeça. Ninguém. Ninguém compraria quatro bolos para oferecer a alguém. Ninguém! Quatro bolos era coisa que não se usava! Ainda se fossem três, vá que não vá, a coisa passava, sempre era metade de meia dúzia, um número bonitinho. Mas quatro? Hmm, nem pensar! Três era um número mais convincente, não era? Ou seis ou três. Quatro é que não podia ser. Pois, concluiu, balouçando afirmativamente a cabeça. Tinha de acertar as contas.

Assaltado quase por um sentimento de obrigação, José voltou a meter a mão no pacote, de onde extraiu o terceiro bolo, que desta vez comeu com tranquilidade, sem medo, à vista de todos, exibindo ao mundo o prazer da gula. Não, não estava a cometer nenhuma infracção. Limitava-se a acertar as contas. Claro que era uma maneira agradável de acertar as contas, não era? Mas disso não tinha ele culpa. Olaré! O que importava é que ia apresentar à tia uma conta certa.

Três bolos.

Mas seriam três bolos mesmo uma conta assim tão certa? A dúvida assaltou-o algumas dezenas de metros mais adiante, sacudindo-o com violência. Bem vistas as coisas, para que precisava a tia Joana de três bolinhos de coco? Sempre que ia lá a casa, ela quase não comia nada! Dois bolos não lhe bastariam? Para que raio quereria três? Não, não podia ser. Três eram de mais! A mão tornou-se firme e foi com resolução que a enfiou dentro do embrulho e tirou mais um bolinho. Comeu-o devagar, ao ritmo lento e prazenteiro dos passos que o conduziam inexoravelmente a casa da tia. Quando acabou lambeu os dedos, ergueu o embrulho e contemplou o seu interior. Dois bolos chegavam-lhe perfeitamente, concluiu. Perfeitamente. Eram a prenda ideal.

 

José pôs-se a imaginar a tia a recebê-lo com um grande sorriso e a agradecer-lhe os dois bolinhos de coco. Comeria um, estava visto. Mas o que faria com o outro? O pequeno coçou o queixo. Hmm, provavelmente oferecê-lo-ia a ele. Era mulher para isso, não era? Tia generosa, gostava muito de oferecer coisas, uma mãos-largas, e então com os sobrinhos, uf, nem se falava!, era uma loucura, dava-lhes tudo, tudo. Sim, não havia dúvida, ela ia oferecer-lhe o segundo bolo, não era pessoa para se alambuzar com os dois e deixá-lo sem nada, a ver navios. Coitadinha da tia, era mesmo simpática... Uma santa! E tinha sofrido tanto com a morte do marido, 'tadinha! Como ela não havia muitas. Suspirou. Hmm, pois. Bem vistas as coisas, era até um favor que lhe fazia se comesse já o segundo bolo. Então não era? Assim ia adiantando serviço e a tia ficaria toda contente. Era isso, não havia que hesitar.

Comeu o penúltimo bolo.

Dobrou a esquina do antigo quartel e deu com a casa da tia Joana. Foi nesse instante que voltou a espreitar o embrulho. Ergueu o pacote e sentiu-lhe o peso; constatou que se tornara demasiado leve, pesava menos que um jornal. Que diabo!, pensou. Um embrulho tão grande para levar apenas um bolinho! A constatação deixou-o preocupado. Aquilo já era coisa para dar um pouco nas vistas... Ela iria topar logo que faltavam bolos. Diabo da tia, não lhe escapava nada! Espreitou para o interior do pacote e analisou todo o espaço em torno do único bolo que lhe restava. Não havia dúvidas, aquilo notava-se. Além do mais, o que faria a tia quando visse que só havia um bolo no pacote? Comia-o e deixava o sobrinho a ver? José abanou a cabeça. Hmm, não era pessoa para isso. Se bem conhecia a tia Joana, ela ia oferecer-lhe o bolo. Que bondosa que a tia era! Os olhos fixaram-se-lhe então no derradeiro bolinho de coco. Não havia dúvidas, a tia não o iria comer. Havendo só um bolo, era certo e sabido que lho ofereceria a ele. Não era ela uma santa?

Parado diante do portão, venceu a derradeira hesitação e meteu o sexto bolo à boca. Mastigou-o com violência e engoliu-o à pressa. Ainda a lamber os beiços para apanhar as últimas migalhas de farinha açucarada, cruzou o portão e entrou no quintal.

Bateu à porta.

Ouviu passos a aproximarem-se e a porta abriu-se, revelando a figura esguia e alta da tia Joana, um sorriso a dançar-lhe nos lábios.

"Olha quem aqui está!", exclamou a tia abrindo os braços. "O Zezinho!"

Com as mãos atrás das costas a esconder o embrulho, José baixou a cabeça e mirou o soalho.

"Olá, tia!", saudou, a voz num fio, quase a sumir-se.

"Então, Zezinho? Entra." Joana puxou-o para dentro de casa. "O que te traz por aqui, rapaz?"

Sempre com os olhos voltados para baixo, tirou as mãos de trás das costas e estendeu o pacote.

"Parabéns, tia!", murmurou. "Trouxe-lhe aqui a sua prenda de anos."

Joana pegou no pacote e estranhou o peso, ou a falta dele.

"O que é isto?"

"Comprei meia dúzia de bolinhos de coco para si."

A tia abriu o embrulho, que já vinha meio desfeito, e espreitou para o interior.

"Mas onde estão eles?"

José torceu-se todo, consciente de que o grande dia tinha enfim chegado.

"Comi-os."

Tornara-se um pecador. Os pecados foram-se revelando mais graves com o tempo, graças a Deus, mas nem sempre por livre iniciativa do pequeno José. Por cima do rapaz pairava uma influência poderosa, a atracção de alguém que o dominava e que o arrastava para a transgressão.

António, claro.

O irmão mais velho, por malícia ou puro tédio, aproveitava a modorra do tempo derramado em casa em horas sem rumo para desviar o mais pequeno até ao mundo do interdito. Como passatempo ensinou o irmão a arrancar a ponta das espigas de milho e a triturar os fiapos, a que chamavam barba de milho, enrolando-os em papel de jornal e pegando lume às pontas. Depois colava o papel enrolado na boca e aspirava-o. José engasgou-se da primeira vez, sentindo o gás acre a atravessar-lhe a garganta e a queimar-lhe os pulmões, e quis saber o que era aquilo.

"Um cigarro à minha maneira", explicou António entre duas passas fumarentas.

Tal como José, António era guloso; um mal de família, sem dúvida. Embora a diferença de idades o afastasse do irmão mais novo, o facto é que via em José o instrumento ideal para alimentar a gula; afinal o mais pequeno obedecia-lhe cegamente, mostrava-lhe uma fidelidade canina e ingénua que o tornava uma verdadeira marioneta nas suas mãos. António não hesitava em usar esse poder.

Já perto das férias de 1944, que iria passar com o doutor Reis e família a banhos na Foz, o mais velho lembrou-se um dia de fazer uma inspecção à casa. Percorreu-a de alto a baixo e localizou tudo o que achava de interesse, em particular as rabanadas e os bolinhos de bolina. Ao fim da tarde fechou-se no quarto, no sótão, para comer as amêndoas doces que o senhor Pires mandara de Lisboa para a família Branco. Tornara-se uma tradição: todos os anos o velho amigo do pai remetia para Penafiel um grande pacote de amêndoas, que depois eram divididas pela família em doses iguais.

Como é bom de ver, António e José tudo devoravam de uma assentada; não conseguiam resistir à visão daquelas delícias estendidas diante deles. As duas raparigas, mais pacientes e contidas, tragavam uma ou duas amêndoas e, respeitando os ensinamentos de poupança que lhes vinham do pai, guardavam o resto na gaveta de um armário do quarto. Essa gaveta, claro está, encontrava-se fechada à chave. Era precisamente aí que residia o busílis da questão, o cerne do problema, ou, para utilizar a expressão mais adequada às circunstâncias, a palavra-chave.

A chave.

António sabia onde se escondia a chave.

Enquanto saboreava as derradeiras amêndoas da sua ração, o rapaz ia congeminando um plano de ataque. Seria uma operação eficiente, coordenada, devastadora, uma operação como aquela que a BBC dizia ter sido lançada pelos Aliados na Normandia. Porém, apesar de toda a concentração, de todo o esforço intelectual com que delineou os pormenores do raide que tinha em mente, a verdade é que não foi difícil encontrar o operacional para executar esse plano, uma vez que ele tinha um nome familiar. Chamava-se José.

Naquela noite, quando as últimas lamparinas foram apagadas e a casa dos Branco mergulhou no sono, António foi de pé leve até ao quarto do irmão e sacudiu-lhe o ombro.

"Zé!", chamou, num sopro brusco. "Zé!"

O irmão abanou a cabeça, estremunhado. "Hã?"

"Zé! Acorda!"

O pequeno focou os olhos e, com ar ensonado, mirou António.

"Hã? O que é?"

"Acorda!"

"Já acordei!", quase rosnou, erguendo-se e apoiando o corpo num cotovelo. "O que é?"

"Chiu!", ciciou António, colando o indicador à frente da boca. "Fala baixinho, está tudo a dormir!"

José olhou em redor, atrapalhado, e constatou que de facto a noite se prolongava, escura, e a casa era ainda embalada pelo ritmo do sono.

"Que horas são?"

"Onze da noite."

"Tão tarde?", surpreendeu-se José. "O que é, António? Passa-se alguma coisa?"

"Passa-se que vamos encher o papo", devolveu António com uma ponta de impaciência, puxando-lhe pelo braço. "Anda, levanta-te! Vá!"

Sem nada compreender, José obedeceu ao irmão e saltou da cama. António fez-lhe sinal de que se vestisse. O mais novo pôs as roupas, mas sem calçar os sapatos. Quando terminou, e seguindo ainda as instruções do irmão, sentou-se na cama.

"Então?", foi tudo o que perguntou, com ar expectante.

António fixou-se ao lado e adoptou uma postura condescendente.

"Já ouviste falar no general Montgomery?"

"Quem?"

"O general Montgomery. É o melhor general do mundo. É inglês."

"O pai diz que o melhor é o Archil." "Hã?"

"O pai diz que o melhor general do mundo é o Archil."

A perplexidade no olhar de António prolongou-se por alguns instantes, até o nome ser identificado.

"O Churchill?", riu-se.

"Sim, o Archil."

O mais velho abanou a cabeça.

"Não, esse não é general, palerma. Esse é o que manda nos generais."

"É o dono do mundo?"

"Hmm... mais ou menos. Mas quem é mesmo general, daqueles que andam na guerra, é o Montgomery, percebes?"

"Sim", disse José, evidentemente sem perceber.

António espalmou a mão no peito.

"Ouve bem. Eu agora sou o general Montgomery, estás a ver?" Bateu com o indicador na cabeça. "Tenho aqui preparado o desembarque na doçaria."

"O desembarque na Normandia?", admirou-se José, papagueando a expressão que ultimamente os adultos repetiam à hora do jantar.

"O desembarque na doçaria", repetiu António com ar grave, parecia mesmo que se preparava para tomar decisões de vida ou de morte.

"Que é isso?"

"É a operação que vamos agora lançar." Inclinou a cabeça e aproximou os lábios do ouvido direito do irmão. "Queres comer rabanadas?"

José arregalou os olhos e balançou energicamente a cabeça para cima e para baixo.

"Sim."

"E bolinhos de bolina, também queres?"

"Quero pois. Então não havia de querer?" Cerrou as sobrancelhas, numa expressão desconfiada. "Mas a mãe deixa?"

"Claro que não deixa. É por isso que isto é uma operação secreta."

"Ah", exclamou José, não querendo mostrar ignorância mas ainda sem entender muito bem a ideia. "Que é isso?"

"Uma operação secreta? É... deixa cá ver... é irmos lá às escondidas e gamarmos os doces."

"Ah." Hesitou, incerto quanto à sensatez do projecto. "E se a mãe descobre?"

"Não descobre. Se tu fizeres tudo bem, ela não descobre nada."

"Se eu fizer tudo bem?"

"Sim."

"Eu?"

"Sim, tu, claro. Quem mais querias que fosse?"

"Então e tu?"

"Eu? Eu não. Eu sou o general Montgomery, lembras-te? Os generais mandam os soldados fazer as coisas. Eu sou o general e tu és o soldado, percebes? Eu mando e tu fazes. Não tem complicação nenhuma, é só seguires as minhas ordens e o desembarque na doçaria será um sucesso."

José fez um ar pensativo.

"Olha lá, António, isto não é pecado?"

"Claro que é, ó idiota! É por isso que tens de executar a operação, não percebes?" Apontou-lhe o indicador. "Precisas de pecados para confessar. Se não fizeres isto, o que diabo vais confessar tu no domingo ao padre Augusto?! Que deste uns peidos às escondidas? Que tiraste uns burriés do nariz sem o pai ver?"

O mais novo meditou naquelas sábias palavras. Como sempre, concluiu, o irmão tinha razão. Precisava realmente de facturar uns pecados e tinha diante de si uma oportunidade de ouro, uma daquelas ocasiões que seria um crime desperdiçar.

"Obrigado, António", exclamou com um sorriso. "És mesmo meu amigo." Saltou da cama e pôs-se em pé, endireitando o corpo. "Vamos lá às rabanadas?"

Passaram o Verão em raides cirúrgicos, numa rotina clandestina que se repetia na pacatez das trevas. À noitinha, quando toda a família dormia e a vida se suspendia, António ia despertar José e o pequeno saía à aventura, como um batedor, explorando os cantos da casa. O primeiro alvo, devidamente assinalado pelo irmão mais velho, era o pesado molho de chaves que a mãe guardava no avental. José esgueirava-se pela porta do quarto dos pais e, rastejando, no início, ou caminhando curvado, quando ganhou mais traquejo, mas sempre com infinitas cautelas, abria o armário e apalpava as roupas penduradas nos cabides, passava a mão por todas, ao de leve, até descobrir o avental; fazia deslizar os dedos até aos bolsos, num exercício que só terminava quando identificava a superfície fria e dura do molho, que retirava com suprema lentidão para evitar um chocalhar denunciador do metal.

Com o molho de chaves nas mãos, entregavam-se os dois à orgia das guloseimas. Abriam os armários da cozinha e da sala de jantar, ou entravam na despensa do rés-do-chão, e devoravam duas fatias de rabanadas e um bolinho cada um. Embora se tratasse supostamente de uma orgia, a verdade é que tudo comiam com alguma contenção. Afinal era importante não exagerar; caso contrário a mãe daria pela marosca na manhã seguinte e as coisas complicar-se-iam. Como não podiam arrasar todos os doces, apenas aliviavam os pratos de umas quantas fatias; dias depois a mãe reforçava a dose, sem perceber que as rabanadas e os bolinhos iam desaparecendo aos poucos nas furtivas excursões nocturnas dos dois rapazes.

O problema é que António não se contentou com as rabanadas e os bolinhos de bolina. Cansado já daquela dieta repetitiva, decidiu atacar também as amêndoas das irmãs. Os almejados tesouros encontravam-se trancados numa gaveta cuja chave, por maravilhosa coincidência, se achava igualmente no fatídico molho da mãe. O mais velho decidiu passar à acção na sua última semana antes das férias; para isso bastou-lhe convencer José a lançar um raide decisivo ao quarto das raparigas, operação que, como era de esperar, decorreu com o habitual sucesso. O pequeno voltou com o embrulho das amêndoas doces das irmãs debaixo do braço e logo ambos engoliram duas cada, voltando José a guardar o resto no seu sítio. Na noite seguinte repetiram a operação e na outra noite também, fazendo sucessivas incursões no quarto das irmãs, que se prolongaram até as férias de António começarem.

Só que as amêndoas, ao contrário das rabanadas e dos bolinhos, não eram supríveis. Uma amêndoa comida era uma amêndoa desaparecida, uma vez que o senhor Pires, decerto por avareza, não tinha o elementar cuidado de mandar reforços para substituir aquelas que se sumiam durante a noite. António sabia isso, claro, mas a José nunca ocorrera o problema. Como é bom de ver, o que tinha de acontecer aconteceu.

Foi numa manhã do início de Julho que Lourdes resolveu deliciar-se com uma apetecível amêndoa do senhor Pires. Ao abrir a gaveta descobriu, horrorizada, que só lhe restavam três minúsculos exemplares, por sinal os mais mirrados e miseráveis do lote. Depois de inquirir sobre o paradeiro das restantes amêndoas junto da irmã e da mãe, logo se concluiu que andava por ali mão da rapaziada.

Seguiu-se, claro está, uma manhã de pranto, com Mana e Lourdes a derramarem sentidas lágrimas pelas amêndoas para sempre perdidas.

"Foste tu que tiraste as amêndoas às tuas irmãs?"

O pequeno José foi chamado ao escritório do pai, diante de quem se plantou, trémulo e temeroso, vergastado pelo olhar feito de lei e justiça.

"Foste tu?", repetiu o pai, a voz intensa de autoridade. "Tiraste as amêndoas das tuas irmãs?"

O mais novo dos Branco nem conseguia levantar os olhos. O queixo começou a vibrar e as pálpebras molharam-se. No terror do momento acabou por fazer que sim com a cabeça.

"Só tu? Ou o António também?"

O irmão mais velho, que tudo previra em tempo oportuno e tratara de se pôr a conveniente distância, gozava já na Foz os folgados prazeres da vida a banhos com o doutor Reis e família. José sentiu por isso o peso de toda a injustiça daquele instante, a tortura de enfrentar sozinho as amarguras do momento em que tinha de prestar contas.

"Ele também", confessou num fio de voz.

Sem largar os olhos do pequeno, o pai suspirou e recostou-se na cadeira. Pousou a mão na secretária, tamborilando os dedos pensativamente na madeira, e fez sinal ao filho.

"Anda cá", chamou-o, batendo com a palma da mão na sua própria coxa. "Senta-te aqui."

José ficou momentaneamente desconcertado com a ordem, incapaz de interpretar as intenções do pai. Receava a autoridade que aquela voz firme exprimia, mas o facto é que não se lembrava de alguma vez ter sido sovado, como lhe acontecia na escola às mãos dos professores ou como lhe contavam alguns colegas a propósito dos próprios pais. Seria agora que o seu lhe poria também a mão em cima?

"Anda cá", repetiu o pai no mesmo tom, dando de novo palmadinhas na coxa para assinalar o local. "Senta-te aqui."

Estava fora de questão desobedecer, pelo que, embora esmagado de respeito e quase paralisado de medo, José se aproximou do pai e se acomodou sobre a coxa dele, a face voltada para as inúmeras molduras com fotografias de família pregadas na parede à frente da secretária.

"As amêndoas eram boas?"

A pergunta foi feita com inesperada doçura, tranquilizando José. O momento em que o pai o iria sovar ainda não chegara. Sentiu por isso a confiança regressar e a voz também.

"Eram."

"Andaste portanto na boa vida."

"Sim."

O capitão Branco recuou ligeiramente o tronco, de modo a poder fitar o filho nos olhos.

"Tu ainda és pequeno, mas gostaria que começasses já a pensar nesta pergunta que te vou fazer", disse. "O que é uma vida boa?"

Surpreendido com a pergunta, José pestanejou e devolveu o olhar ao pai. O que era uma vida boa? Que questão seria aquela? Onde queria o pai chegar?

"Imagina que vives muito tempo", retomou o capitão, sentindo a perplexidade do pequeno perante a pergunta que lhe fizera. "Mas um dia todos morremos, não é? Quando morreres, Deus chama-te para o pé dele e pergunta-te: «Tiveste uma vida boa?» Que irás tu responder? «Sim, tive. Comi as coisas dos outros. Roubei, enganei, fui desonesto. Tive uma boa vida.»" Fez uma pausa. "É isso o que Lhe vais responder?"

O filho imaginou a cena, Deus diante dele tão justiceiro quanto o pai, talvez mais ainda, e os actos da sua vida expostos no juízo final. Ficou paralisado de horror, incapaz de responder à pergunta.

"Uma vez conheci no Porto um homem muito rico que me disse que tinha uma boa vida. Possuía um automóvel, uma grande casa na Foz e outra em Lisboa e outra no Rio de Janeiro, grandes propriedades na Régua e em Amarante e fartava-se de viajar. Ia a Madrid, a Paris, a Londres. Mas com tudo isso afastara-se da família e os amigos só o queriam porque ele era rico. Fiz-lhe, por isso, a mesma pergunta. «O senhor anda numa boa vida, mas acha realmente que tem tido uma vida boa?» Ele ficou um longo momento calado e acabou por responder: «Não.» Sabes porquê? Porque andar na boa vida e ter uma vida boa são coisas diferentes. Andar na boa vida é viver no conforto e no luxo, é ter grandes casas e grandes carros, é aproveitar-se das coisas e gozar o momento. Ter uma vida boa é diferente. É ter amor e amigos, é ter valores, é ajudar os outros, é ter carácter e ser honesto, é ser feliz e fazer os outros felizes. Esses são os que têm uma vida boa. Estás a perceber?"

José fez que sim com a cabeça e o pai ergueu um dedo e apontou-o ao rosto do filho.

"Quando comeste as amêndoas das tuas irmãs andaste na boa vida. Mas é importante que saibas que não tiveste uma vida boa. Roubaste as tuas irmãs e enganaste-as. Viveste com um segredo que te sujou. Viver bem não é viver à grande, é viver limpo e feliz."

O filho baixou a cabeça, sentindo-se um miserável.

"Foi um pecado mau?"

"Sim. Muito mau."

"Deus vai-me mandar para o Inferno?"

O capitão Branco respirou fundo, como se essa não fosse a pergunta certa a fazer naquelas circunstâncias.

"Talvez, não sei", retorquiu. "Mas há pessoas que acham que Deus não existe e mesmo assim são boas pessoas. Se nós vivemos uma vida boa não é porque temos medo de ir para o Inferno ou receamos o que os outros possam pensar de nós, mas porque essa é a maneira certa de viver. Entendes?"

O pequeno olhou para o pai, manifestamente confuso. Percebendo que teria de explicar as coisas de outra forma, o capitão lembrou-se de um velho texto de Platão e retirou o anel de casamento que lhe enlaçava o dedo.

"Estás a ver este anel?"

"Sim."

Enfiou o anel de novo no dedo.

"Imagina que quando pões este anel ficas invisível. Nem Deus te consegue ver. Ficando invisível, ninguém poderá saber o que tu fazes, não é? Isto quer dizer que nada do que fizeres te será atribuído. Nem as coisas boas nem as más. Podes roubar uma pessoa e ninguém saberá. Podes salvar outra e ninguém saberá. Que farás nessas circunstâncias? Farás o que farias se te pudessem ver? Ou farás coisas diferentes?"

José ficou um longo instante a imaginar esse poder e o que faria com ele. O exercício de imaginação foi, porém, interrompido pelo pai, que lhe pegou pela cintura e o pôs no chão, indicando desse modo que a conversa terminara.

"É esse o teste das pessoas boas", concluiu. "Comporta-te sempre com honestidade, estejam ou não outros a ver-te, possas ou não ser premiado, e terás uma vida boa."

 

"Aqui Londres. Esta é a BBC."

Tal como a maioria das notícias da guerra, o anúncio do fim das hostilidades também veio pelas ondas da rádio, embora sem grande surpresa para ninguém. A recente notícia da morte de Adolf Hitler tinha criado em todos a impressão de que a guerra iria a qualquer momento acabar na Europa. Daí que, quando a voz solene e pausada de Augusto Silva entrou pela sala depois de almoço com a grande novidade, foi recebida com sorrisos aliviados e não com festa efusiva.

Embora contasse apenas nove anos, José dispunha de suficiente noção dos acontecimentos para discernir a importância do sucedido e celebrar o fim do conflito com o tradicional cálice de vinho do Porto erguido por toda a família logo que a notícia irrompeu da telefonia. Desde que tinha consciência de si que o mundo vivia em permanente estado de guerra, pelo que sempre supusera que ela fazia parte da ordem natural das coisas. A revelação de que as hostilidades haviam acabado deixou nele uma estranha incerteza; não imaginava ser possível respirar sem os noticiários vomitarem novidades envolvendo figuras misteriosas como Hitler, Churchill, Roosevelt ou Estaline e locais exóticos como o Vístula, o Reno, as Ardenas ou monte Cassino.

Restavam, claro, os Japoneses. A guerra prolongou-se ainda algum tempo no Pacífico, estendendo-lhe a ilusão de que continuava a ser a norma. Tudo se desfez no dia em que o pai chegou mais tarde do quartel com uma grande novidade.

"Parece que os Americanos têm uma bomba que pode destruir o mundo", revelou de ar apreensivo. "Atiraram um desses engenhos e os Japoneses renderam-se."

Uma bomba que pode destruir o mundo? A notícia pareceu-lhe aterradora; sobrepunha-se de longe à informação da rendição dos Japoneses. Caramba, e se eles se põem a despejar essas bombas na primeira ocasião? Será que o mundo vai acabar?

José viveu vários dias com medo até de sair à rua, mas como não havia meio de o fim do mundo chegar e inúmeras coisas exigiam entretanto a sua atenção lá fora, designadamente as aulas na escola e as missas ao domingo, a preocupação foi-se desvanecendo.

Os sintomas de mudança tornaram-se gradualmente visíveis a vários níveis. As habituais discussões em casa dos Branco, suscitadas pela falta de batatas ou pela má qualidade do escasso azeite, começaram a espaçar-se no tempo até desaparecerem por completo.

Amélia deu consigo a gerir com eficiência o pouco que havia; era como se, por artes mágicas, tivesse passado a conseguir com facilidade o que antes lhe parecia impossível.

"Para fazer muito com pouco, não há como eu", exclamou, orgulhosa, à mesa do jantar, numa noite fresca da Primavera de 1947. "Até com uma alfacezita arranjo um rico manjar!"

No entanto, meses depois, a desmobilização do capitão Mário Branco foi o sinal inequívoco de que afinal o mérito não era todo seu. Se calhar, alvitraram as que a ouviam, nem nenhum mérito tinha. Pois não se via já mais comida por toda a parte? A verdade é que por essa altura passou a haver produtos variados no mercado. A situação evoluiu de tal modo que as comissões de racionamento foram extintas pelo governo e o Regimento de Infantaria de Penafiel deixou de ter necessidade dos serviços do marido. O oficial voltou para casa.

De facto, as coisas estavam mesmo a mudar e bastava ler nas entrelinhas de O Comércio do Porto para perceber porquê. O governo tinha pegado no ouro e nas divisas acumuladas nos negócios com os Aliados e os Alemães e pôs-se a adquirir bens de consumo importados do estrangeiro, que depois espalhou em postos de venda a preços tabelados. Quase sem se dar por isso, até porque a evolução para melhor se nota menos do que em sentido contrário, acabou-se o açambarcamento e o mercado negro, ao mesmo tempo que a política de racionamento deixou de ser necessária.

A vida regressou por fim à normalidade, um conceito abrangente para José, capaz de abarcar tudo o que a vida lhe dava; até as dificuldades, que tanto perturbavam os adultos, lhe pareciam naturais. Bem vistas as coisas, é uma prerrogativa das crianças; só elas revelam a surpreendente capacidade de aceitar até o inaceitável. Afinal não conhecem melhor e a tudo se habituam depressa. O mais novo dos Branco não passava ainda de uma criança, é certo, embora desse já os primeiros passos na adolescência.

O fascínio que nutria por Mimicas tornou-se devagar uma paixão. Era como se a sua personalidade se dividisse em duas: havia o José tranquilo, metido nas suas coisas e atento às conversas dos adultos como se o instinto lhe dissesse que tudo o que acontecia no exterior podia ter reflexos na sua vida e por isso devia ser seguido com atenção, mas existia um outro José, o adolescente apaixonado, que vivia para os passeios dominicais com Mimicas e as suas conversas sobre África e o seu cabelo claro aos canudos e o linguajar feito de "coisos" que o divertia e o olhar traquina que o desarmava.

"Já viste isto da bomba cómica?", perguntou logo que a topou num domingo à saída da missa. "É um estouro, hã?"

Desde que ouvira o pai mencionar a notícia da bomba que fizera o Japão em fanicos que ardia de excitação por tagarelar com Mimicas sobre o assunto. Na verdade falava mentalmente com ela todos os dias e chegava por vezes a convencer-se de que o diálogo assim entabulado era real, mas no fundo tinha consciência de que a única conversa que valia era aquela"que ambos travavam aos domingos a caminho de casa.

"Qual bomba? A que os Americanos coisaram no coiso?"

"Essa. O que me dizes disso?"

A amiga encolheu os ombros, como alheia ao magno problema.

"Nada."

"Nada?", espantou-se José. "Eles agora podem destruir o mundo, Mimicas. Não tens medo?"

Mimicas abanou a cabeça, com aparente indiferença, o que o deixou decepcionado. A vizinha era por norma uma rapariga espevitada e armada de opiniões sobre tudo, mas nessa manhã parecia estranhamente ausente, como se tivesse a cabeça noutro sítio. José já havia surpreendido aquele olhar vazio no rosto da sua própria mãe. Parecia que o corpo se encontrava ali mas a mente tinha partido de viagem, pelo que presumiu que se tratasse de coisa típica de mulheres e não fez grande caso.

Caminharam assim em silêncio, algo pouco habitual entre eles, e foi só quando chegaram à porta de casa que Mimicas quebrou o mutismo.

"Vou-me embora."

"Está bem", suspirou José, acenando em despedida. "Vemo-nos no próximo domingo."

Mas Mimicas não se mexeu.

"Vou voltar para Cabo Verde."

José caminhava já para casa, mas imobilizou-se a meio de uma passada, como se tivesse embatido numa parede invisível. Virou-se e fitou-a numa interrogação.

"O quê?"

Uma lágrima corria pelo rosto suave da rapariga, grossa e reluzente, como se a saudade a queimasse já com gotas incandescentes de ouro fundido.

"A mamã chamou-me", disse, a voz embargada e um sorriso forçado. "Parto amanhã."

A súbita partida de Mimicas foi um choque de que José talvez nunca se tenha refeito. Foi como se tivesse ficado órfão. Derramou por ela as suas primeiras lágrimas de amor, sem perceber ainda que, a partir daquele instante, seria Mimicas a medida pela qual avaliaria todas as outras.

Passado um primeiro momento de reclusão interior, em que caíra deprimido pelo desaparecimento da amiga, começou aos poucos a emergir do torpor e a canalizar as suas energias para os talentos e interesses que até aí haviam permanecido sublimados. Os primeiros foram os das histórias aos quadradinhos. Começou por ler o suplemento dominical de O Primeiro de Janeiro, que a tia Joana lhe levava para os almoços de domingo, depois da ida à missa, e a seguir passou para O Mosquito, onde brilhava Luis Ciclón, e O Gafanhoto, cujo principal herói era Cuto.

As histórias aos quadradinhos pareciam um interesse exclusivo de José, mas o mesmo não se podia dizer da escuta da telefonia. A rádio era uma antiga paixão da família, com o pai permanentemente sintonizado na BBC. Quando a estação britânica não estava no ar, no entanto, as preferências de toda a gente em casa voltavam-se sobretudo para a Emissora Nacional, embora, aqui e ali, experimentassem a Rádio Porto ou o Rádio Clube Português.

Amélia e as duas filhas, às quais se juntava ainda Beatriz, consideravam sagrada a hora em que passava mais um episódio de As Pupilas do Senhor Reitor; já os rapazes preferiam a galhofa dos Diálogos da Lelé e da Zequinha e de A Parada da Paródia, sem esquecer, claro, o velho O Senhor Doutor, que brilhava no Rádio Clube Português aos domingos e seguia o êxito da revista juvenil. O ponto alto deste programa eram os diálogos entre o menino Tonecas e o professor, conversas repletas de absurdos que desencadeavam gargalhadas em cascata por toda a casa.

"Menino Tonecas", começava a voz que jorrava pela rádio. "Diga o que descobriu Cristóvão Colombo."

"Descobriu um ovo, senhor professor."

Foi também pela rádio que José se tornou um apaixonado do fado. Na altura as grandes estrelas eram Amália, Hermínia Silva e Ercília Costa, embora o mais novo dos Branco, devido à influência do irmão mais velho, que suspirava por estudar em Coimbra, apenas se interessasse pelo fado cantado por vozes masculinas. Talvez por afinidade etária, a verdade é que começou por apreciar sobretudo o estilo de Fernando Farinha, o Miúdo da Bica, embora depressa a sua atenção se tivesse transferido para o grande Alfredo Marceneiro e o seu desconcertante fado castiço.

Começou por ouvir Marceneiro na telefonia; interessou-se por aquela voz atrevida e passou a segui-la, acompanhando os comentários nos jornais e nas revistas e vendo alguns imitadores do estilo que por vezes apareciam em Penafiel para um espectáculo. Empenhado em emular o seu ídolo, José vestia-se de preto e apertava um lenço colorido ao pescoço; era assim arranjado que se punha, às escondidas, diante do grande espelho do armário do quarto dos pais e, de mãos nos bolsos e estilo gingão, cantava A Casa da Mariquinhas e outros grandes êxitos do momento.

 

E numa rua bizarra

A casa da Mariquinhas

Tem na sala uma guitarra

E janelas com tabuinhas.

 

 

Ouvia as letras e a melodia na telefonia, começava por trauteá-las baixinho e, mal ganhava confiança, punha-se a cantá-las em voz alta. A verdade é que decorava tudo com facilidade espantosa.

Numa tarde de preguiça, vivida na cadência pachorrenta das longas horas cinzentas em que tudo parece adormecido, o pó flutua no ar e o passar do tempo é pautado pelo tranquilo tiquetaque cadenciado do grande relógio da sala, José foi atraído por estranhos sons vibrantes que de repente rasgaram o silêncio e encheram de vida a pasmaceira. Ergueu a cabeça e localizou a sua origem; vinham do quarto das irmãs. Eram tlins titubeantes e tlãos que cambaleavam, sons trôpegos que aparentavam ir numa direcção e depois paravam, indecisos, até darem mais um passo noutro sentido e voltarem a tropeçar, num gaguejar hesitante, irresoluto, como se estivessem ébrios e caminhassem aos trambolhões.

Aproximou-se, intrigado, e encontrou a Mana sentada numa cadeira, as pernas cruzadas, de guitarra na mão e uma pauta diante dos olhos. Aprendia a tocar guitarra. O rapaz parou por ali, encostado à porta, debaixo da ombreira, a observar a irmã com atenção, perscrutando a estranha pauta, namorando as curvas voluptuosas da guitarra sensual, sentindo os sons que vibravam nas cordas e lhe ressoavam no peito, sofrendo com a dor suportada pelo instrumento em mãos tão inexperientes, a dimensão da angústia a estremecer no fluxo vacilante das notas musicais que a rapariga arrancava com hesitação. Permaneceu assim a observá-la, calado, mergulhado num misto de placidez e tumulto, o coração a pulsar ao ritmo vertiginoso de sensações contraditórias, fascinado pelas delícias dos timbres, agastado pela forma crua como a guitarra era maltratada. Sentiu ganas de interrompê-la, mas não se atrevia a fazê-lo.

"Que queres?", perguntou enfim a rapariga com irritação, após falhar mais duas notas. Fixou nele o olhar, numa expressão de censura. "Não vês que me estás a desconcentrar?"

"Desculpa."

Mana suspirou e pousou a guitarra no regaço, enchendo-se de paciência.

"Então o que queres tu? Passa-se alguma coisa?"

José encolheu os ombros.

"Nada, Mana. Estava só a ouvir-te."

"Ah", corou. "Achas que toco bem?"

O mais novo sorriu.

"Nem por isso." "Oh!"

"Uh... não tocas mal", apressou-se a esclarecer, diplomático, preocupado em não ofender a irmã. "O problema é que a Mimi é muito melhor."

Mana riu-se. Mimi era uma pequena cantora do programa infantil do Rádio Clube Português, um verdadeiro êxito junto da pequenada.

"Pudera! A Mimi é... é uma artista."

"Eu era capaz de tocar como a Mimi."

A irmã voltou a rir-se.

"Pateta! A Mimi não toca, só canta. Quem toca são outros, percebes? Estão atrás a tocar viola e a Mimi acompanha-os com a voz."

"Então eu toco como os outros. Eu toco e tu cantas. Que tal?"

"Mas tu alguma vez tocaste?"

"Eu não."

"Então como sabes que tocas?"

"Sei."

Mana fez um gesto com as mãos, a chamar o irmão.

"Anda cá", disse. Bateu com a palma da mão no joelho, convidando-o a sentar-se ao seu colo. "Vamos lá a ver se tocas ou não tocas."

José acomodou-se sobre a perna da irmã e começou por dedilhar as cordas da guitarra. Ao fim de alguns minutos a ensaiar sons, arrancou da guitarra a primeira sequência melódica, um extracto da banda sonora de E Tudo o Vento Levou, o filme que fizera furor poucos anos antes, no tempo da guerra, com Clark Gable e Vivien Leigh. O efeito foi tão surpreendente que Mana desatou a bater palmas.

"Ena!", exclamou. "Temos artista!"

A irmã passou uma hora a ensinar-lhe acordes, e em particular a forma como devia pegar na guitarra. Quis mostrar-lhe como ler as pautas, mas essa parte não lhe interessava. A exemplo da generalidade das pessoas naturalmente talentosas, José era preguiçoso; apenas se empenhava no que o divertia, e ler ou escrever pautas não constituía, definitivamente, a sua ideia do que seria uma tarde bem passada.

Começou a procurar música por toda a parte onde ia. Além de se interessar pelas canções na telefonia, acompanhava a família nos passeios de Verão até ao centro da cidade. A banda de Infantaria 6 juntava-se às quintas e aos domingos para um concerto animado no coreto. José não perdia uma sessão, mas preferia os ternos de fanfarra das quintas-feiras, sobretudo fascinado pelo espectáculo dos corneteiros e dos bombos a tocarem a recolher. Em casa, e uma vez que Mana monopolizava a guitarra, agarrou-se a um velho bandolim do pai, que aprendeu a tocar sozinho.

Depois lançou-se num novo desafio, o de um desafinado piano guardado no escritório sob uma fina camada de poeira. Ignorou a sujidade e atacou as teclas com entusiasmo, cantando em altos berros sentidas árias napolitanas, muito populares na Emissora Nacional, em particular a mais velha e romântica de todas.

Ma riatu sole Cchiu' bello, ojè O sole mio Sta 'nfronte a te!

O sole, o sole mio Sta 'nfronte a te! Sta 'nfronte a te!

 

Quando deu por ele, já tinha toda a família em redor, embasbacada com aquele talento emergente a cantar O Sole Mio. Não havia dúvidas, o rapaz tinha ouvido para a música.

"Um artista!", concluiu o pai.

José Branco até podia ser um artista, mas com o tempo revelou-se sobretudo um artista da paródia. Depois da primária foi fazer o secundário para o Colégio do Carmo, onde se tornou amigo de outro folião, o Justino. Passavam as tardes juntos a inventar brincadeiras, em particular as relacionadas com os grandes eventos desportivos da época.

Vivia-se o período dos emocionantes duelos sobre rodas entre José Maria Nicolau, do Benfica, e Alfredo Trindade, do Sporting, cuja acérrima rivalidade era acompanhada através dos relatos galvanizantes da rádio. Recorrendo ao seu talento natural, José desenhava os ciclistas em folhas de cartolina, que Justino recortava com uma tesoura e pintava, de vermelho ou riscas horizontais verdes e brancas, consoante as equipas dos velocipedistas; as figurinhas eram depois dobradas pela base, de modo a aguentarem-se em pé, e serviam para fazer corridas pelo soalho do sótão, José com a bicicleta de Nicolau, Justino com a de Trindade. Tanto se ligaram às duas figuras que, inevitavelmente, o mais novo dos Branco se tornou adepto do Benfica, enquanto o amigo ficou simpatizante do Sporting.

Como é bom de ver, a rivalidade e as brincadeiras estenderam-se ao futebol, embora, por estranho que possa parecer, no início se tenham interessado mais pelos clubes brasileiros. O que tem uma explicação. O tio de José, irmão do capitão Branco, havia emigrado para o Brasil aos quinze anos e tornara-se atleta do Clube de Regatas Vasco da Gama, a agremiação dos portugueses que viviam no Rio de Janeiro. Chamava-se Adão, mas todos o conheciam por Tuja, e entrou na história do futebol brasileiro por ser o primeiro jogador a marcar um golo com as cores do Vasco da Gama, feito que enchia de orgulho todos os parentes de Penafiel. Ciente do seu estatuto de estrela desportiva da família, o tio Tuja enviava regularmente jornais cariocas com informações sobre o futebol brasileiro, em particular sobre o glorioso Vasco da Gama, e também cromos onde figuravam as principais vedetas da bola - entre as quais ele próprio, claro.

Os dois rapazes pegaram nesses cromos e colaram-nos em cartolina para os recortar de seguida, segundo o mesmo método que utilizavam para as bicicletas. Depois de assim fabricarem os jogadores, passaram aos jogos, sempre disputados no sótão, o lugar mais quente da casa. Todas as tardes estendiam uma grande cartolina verde no chão, as linhas do campo de futebol desenhadas a rigor, e disputavam emocionantes partidas entre os dois, com um botão a servir de bola.

As estrelas do Vasco da Gama, cujas cores José defendia sempre com galharda valentia, eram o guarda-redes Barbosa e o temível avançado Ademar, embora a principal figura da equipa fosse, como parece inevitável, o grande Tuja, o maior goleador do campeonato brasileiro que se disputava na casa dos Branco, em Penafiel. Justino, por seu turno, assumia o comando do Olaria, clube que contava com uma mão-cheia de craques de nomes bizarros, entre os quais pontificavam Juraci, Marmurato, Bilulu, Sula, Januário e Adalto, todos eles correspondentes a futebolistas que de facto alinhavam por aquele clube - pelo menos a acreditar nos cromos enviados do Rio de Janeiro pelo tio Tuja.

Mas não eram só as estrelas brasileiras que alimentavam as paixões futebolísticas do miúdo. Iniciado neste desporto pelos cromos remetidos pelo tio Tuja, o mais novo dos Branco começou a interessar-se também pelos clubes da terra. Havia dois em Penafiel, o Sport, que alinhava de preto e vermelho e era o emblema dos comerciantes e dos doutores, e o União, a equipa de verde e branco, que colhia a preferência das camadas mais populares. Uma vez que o Sport ostentava vermelho na camisola, José pendeu para este lado, enquanto, pelo mesmo motivo, Justino preferia o União.

Como não podia deixar de ser, esta paixão pelo futebol rendeu a José mais uns pecaditos para confessar ao padre Augusto, benefício que não era de desprezar. A maior parte das vezes, os pequenos delitos que ia amealhando paulatinamente no seu pecúlio pecaminoso tinham a ver com palavras exaltadas que, no calor da refrega, o rapaz dirigia aos jogadores adversários e até, pasme-se, ao distinto árbitro, incluindo referências desprestigiantes às respectivas mães, senhoras cuja reputação e idoneidade moral o pequeno ocasionalmente punha em causa.

Mas houve uma vez que o delito saiu desta esfera relativamente inocente e se tornou assunto de conversa indignada entre as mulheres da família e as beatas que frequentavam a missa. Jogava-se num domingo de Março um muito esperado Sport - União, partida que a equipa de vermelho se mostrava ansiosa por disputar: afinal tinha de se vingar de uma recente humilhação aos pés do eterno rival. O problema é que Amélia proibiu o excitado José de assistir ao grande embate do ano, com o enervante pretexto de que o filho não podia faltar ao terço.

"Deus é mais importante do que a bola", argumentou a mãe, pondo um ponto final nas súplicas insistentes do pequeno. "Está decidido e não se fala mais nisso!"

José lá partiu para a igreja com ar contrariado. Uma hora depois, Amélia saiu à rua para subir, também ela, ao Sameiro; queria oferecer uma esmola para pagar uma promessa que fizera dias antes. Cruzou-se no jardim, na ponte sobre o lago, com dona Idalina, que cumprimentou de modo acalorado; eram velhas conhecidas da igreja.

A dado ponto da conversa, quando indagada sobre o que fazia ali por essas horas, dona Idalina explicou que vinha do terço, o que levou Amélia a questioná-la sobre o filho, bom rapaz, que também para lá fora em cumprimento das suas obrigações religiosas.

"Ai sim?", admirou-se Idalina com malícia. "Não o vi por lá."

"Pois", devolveu Amélia. "Devia estar no meio da multidão, coitadinho."

"Qual multidão? A igreja estava vazia..."

"Vazia?"

"Sim."

"E não o viu?", admirou-se Amélia. "Ele é muito piedoso, vai sempre para a primeira fila..."

"Pois não estava lá."

"Homessa!"

Acossada por um súbito e terrível sentimento de desconfiança, Amélia despediu-se apressadamente da beata e acelerou o passo escadaria acima. Chegou à igreja e foi de imediato depositar a esmola na respectiva caixinha, após o que se dirigiu ao pároco. O padre Jacinto abençoou-a junto à sacristia e, após algumas palavras de circunstância, confirmou não ter visto o filho por aquelas paragens.

Balbuciando um adeus abreviado, a senhora saiu em fúria e veio monte abaixo a bufar, abespinhada, interrogando-se sobre o que diabo acontecera para o seu José lhe ter desobedecido. Entrou em casa e quis logo saber do pequeno; responderam-lhe que ele ainda não havia chegado. Dez minutos volvidos, ouviu a porta de entrada bater e sentiu-o trepar as escadas; vinha esbaforido, as faces coradas, o olhar excitado.

"Olha lá, ó malandro!", interpelou-o, sem o cumprimentar. "Por onde andaste tu?"

José estacou, atrapalhado. Era evidente que não esperava ser questionado sobre o seu paradeiro e a expressão de culpa denunciou-o irremediavelmente.

"Eu?"

"Sim, tu! Por onde andaste tu, pode saber-se?"

Corou, indeciso. Sabia que devia dizer a verdade, mas havia verdades e verdades e aquela parecia-lhe gratuita por natureza e potencialmente devastadora nas consequências. Não ouvira já numa missa o padre Jacinto falar nas mentiras piedosas?

"Eu fui... fui ao terço."

"Não foste nada!"

"Fui, fui!"

"Mentiroso, tu não foste ao terço! Por onde andaste tu? Vá, diz!"

O rapaz quase se engasgou de atarantação.

"Ó mãe, eu fui ao terço, fui", balbuciou. "Não s'acredita?"

"Mentira!"

"É verdade!..."

"Ninguém te viu lá! Ninguém!"

José abanou a cabeça, confuso.

"Mas eu fui."

"Como, se ninguém te viu?"

"Eu fui, mãe."

"Não foste!"

"Fui, fui", titubeou, a desorientação a tomar conta dele. "Fui direitinho para lá. É verdade. Só que, quando lá cheguei, já estava 3-0."

 

Foi no balneário do Colégio do Carmo, após uma aula de ginástica, que o franzino José Branco percebeu que tinha um pénis consideravelmente maior que os dos colegas. Na altura a descoberta não o encheu de orgulho, como seria legítimo e natural em qualquer macho cioso da sua masculinidade, mas antes de espanto embaraçado, de vergonha até. Seria, aliás, o seu amigo Justino o primeiro a reparar nesse pormenor quando, voltado para o urinol, captou pelo canto do olho um enorme volume que balouçava nas mãos do companheiro e não resistiu a uma fugaz espreitadela.

Ficou abismado.

"Eh, pessoal", gritou em pleno balneário, atraindo as atenções gerais. "Já viram a verga do Zé? Isto não é uma pila, camano. Isto é um chourição!"

Assim postas as coisas, pode imaginar-se a algazarra que se desencadeou naquele balneário logo que palavras tão explosivas foram proferidas. Os miúdos atropelaram-se na disputa da melhor posição para verificar se era mesmo como o Justino dizia, se o tanso do lingrinhas tinha de facto uma verga da grossura de um chourição. O assustado e embaraçado José viu-se de repente arremessado para um canto do balneário, as calças e as cuecas arrancadas das pernas e a virilidade exposta aos olhares indiscretos dos colegas, entre os comentários e as gargalhadas mais inconvenientes.

"Porra!", gritou um com uma risada boçal. "Ó p'ra isto!"

"Que g'anda mangalho!", comentou outro. "Parece um boi, carago!

O pequeno sentiu-se uma bizarria, um enjeitado, transformado numa atracção de feira. O beiço pôs-se-lhe a tremelicar e as lágrimas inundaram-lhe os olhos; chorou de vergonha por se ver assim tratado, por verificar que era diferente dos amigos, por transportar tamanho monstro entre as pernas, por todos já o saberem e por a escola inteira o comentar entre gargalhadas grosseiras, tornando-o o alvo infeliz de todos os olhares, de todas as troças, de todas as brincadeiras.

Porquê eu?, interrogou-se mil vezes nesse dia.

Porquê eu?

Foi para casa vergado pela humilhação. Não disse palavra à hora do jantar e nessa noite, no quarto do sótão, quando as lâmpadas se apagaram e a casa mergulhou no sono, José ajoelhou-se ao lado da cama e rezou a Nossa Senhora, rezou como nunca tinha rezado. Rogou à Virgem que o fizesse como os outros, implorou que a sua verga minguasse, que se tornasse tão pequena e tão normal e tão insignificante quanto as dos amigos. O seu horizonte de sonhos reduzira-se à simples ambição de um dia ter uma pilinha pequerrucha, discreta, uma minhoquinha humilde, jamais um canhão daquele calibre.

No domingo seguinte, quando subiu ao Sameiro para a missa da manhã, passou toda a homilia de joelhos nus sobre a pedra, em sofrimento, a rezar e a implorar, a fazer promessas a Nossa Senhora, sempre com solenidade e fervor piedoso. Jurou que não voltaria a roubar amêndoas às irmãs, afiançou que não mais diria um palavrão na vida, comprometeu-se a ir todas as quartas-feiras à missa, chegou até a assegurar que jamais assistiria de novo a uma partida do Sport. A tudo se mostrou disposto, mesmo aos mais duros sacrifícios, desde que Ela, a bondosa e compreensiva Nossa Senhora, lhe consentisse a Sua Graça e lhe concedesse o milagre de uma virilidade modesta como a de todos os outros. As promessas foram tantas e feitas com tamanho fervor e devoção que José acabou por se convencer de que Maria, Nossa Senhora e Mãe de Deus, não teria outro remédio que não fosse aceder às suas humildes súplicas e minguar-lhe o pirilau.

A vida de José tornou-se, durante um mês, um verdadeiro ritual. O seu primeiro acto ao acordar era erguer a manta e espreitar por baixo das calças do pijama para verificar se a graça lhe fora ou não concedida nessa noite. Recuperava rapidamente da decepção, recriminando-se a si próprio por não ter sido suficientemente devoto nas orações e assumindo o solene compromisso de ser ainda mais fervoroso da vez seguinte. Logo tudo recomeçava, com novas promessas de fidelidade beata e juras renovadas de rejeição do pecado e da tentação.

Chegou ao ponto de ir todos os dias à missa, um zelo tão súbito e rigoroso que levantou as suspeitas de Amélia. A mãe tanto estranhou tamanha piedade que até se plantou de vigia; cheirava-lhe que havia por ali artimanha. Mas não, concluiu depois, compadecida; o rapaz ia mesmo à missa, o vigário confirmava-o diariamente entre profusos encómios ao espantoso despertar daquela devoção. Moço pio mais pio nunca se vira em parte alguma de Penafiel desde que o padre Américo dali abalara para fundar a Casa do Gaiato.

"Ainda acaba papa", gracejou o padre Jacinto, erguendo o indicador para o céu. "Papa, digo-lhe eu!"

A mãe, porém, não interpretou este comentário inocente como um gracejo, um mero dito espirituoso, mas como o arauto de coisas grandes, imensas, maiores do que a imaginação. Essas palavras, achou ela, constituíam uma premonição! A verdade é que a devoção manifestada por José era tanta e tornara-se tão intensa que Amélia começou a alimentar uma hipótese acima de todas as outras. Desde que a irmã perdera o marido que Amélia, num acto em que todos viam a prova da mais zelosa das amizades e solidariedades fraternais, se recolhera ao mundo espiritual. Procurou na alma a resposta para o enigma do sofrimento e pareceu-lhe então que a graça de Deus se manifestava na luz que guiava os passos do seu mais novo até ao altar do Sameiro.

Foi assim que, em segredo, Amélia se pôs a olhar para José e a ver um sacristão. Depois o sonho cresceu e já ali estava um padre, um bispo, um cardeal, ou até... até... quem sabe se o pároco do Sameiro não teria acertado em cheio? Talvez algo de verdadeiramente grandioso, um... um... atrever-se-ia ela a pronunciar a palavra? Sim, um... um papa. Um papa! Ah, suspirou Amélia, embevecida. Como eram misteriosos e belos os desígnios do Senhor!

Amarga foi a decepção.

Tantos sonhos, imensos projectos acalentados, tamanhos desejos de glória, tanta coisa em vão; nenhum milagre se materializou. Nem José se tornou padre, nem Nossa Senhora lhe minguou o pirilau.

Apesar da contrariedade, Amélia soube superar o desapontamento com dignidade louvável e resignação estóica, mas o mesmo não se pode dizer do filho. José Branco não conseguia perceber por que razão Nossa Senhora, vendo-o sofrer tanto e rezar com tal fervor, não se compadecia das suas amarguras. Seria possível que Ela não o tivesse escutado? Era admissível pensar que a Mãe de Jesus, tão poderosa e bondosa, não quisesse resolver-lhe tão minúsculo problema? Seria birra da Virgem? A pequena dúvida, insidiosa e traiçoeira, corroeu-lhe por momentos o espírito, mas depressa a escorraçou, quase indignado. Não, não era possível tal coisa. Quem era ele para duvidar dela? Nossa Senhora estaria certamente a testar a sua fé, a ver até onde ele se manteria fiel na sua devoção. Se ele Lhe desse a prova final, raciocinou com inabalável certeza, o milagre produzir-se-ia inevitavelmente.

O mais pequeno dos Branco escolheu a Páscoa para apresentar a Nossa Senhora a prova da sua devoção e assim colher como prémio o milagre do pirilau minguado. Logo que as festividades começaram, o rapaz multiplicou-se em actividades. Eram tantas e tão variadas que se diria ser ele, e não Ele, o omnipotente e omnipresente. Integrou grande número das procissões que palmilhavam a cidade e percorreu várias igrejas, sempre a acompanhar os serviços pascais que decorriam desde Sexta-Feira Santa. Absteve-se até de se alambazar com os tradicionais doces da Páscoa, substituindo-os antes pelas insonsas hóstias das igrejas, decerto menos saborosas, mas sem dúvida mais puras.

Fez o que pôde para demonstrar a sua devoção a Nossa Senhora e foi tão sincero no seu piedoso compromisso que, na segunda-feira seguinte, ao levantar a manta para inspeccionar o resultado de tantos trabalhos e privações, não lhe ocorreu sequer que o milagre não se tivesse concretizado, tão grande era a sua fé na infinita bondade de Maria; a única dúvida que o corroía naquele supremo instante de realização era saber qual o novo tamanho que a Santa Mãe de Jesus havia escolhido para o pirilau.

A sua fé não resistiu ao devastador embate com a realidade. Quando espreitou para debaixo do cobertor e constatou que o milagre não se produzira, tomou a decisão de não voltar a pôr os pés numa igreja nem a confiar na Virgem Maria.

Por ironia do destino, foi justamente uma rapariga chamada Maria, por sinal já desvirginada, quem restituiu a fé a José. Tudo aconteceu no Outono de 1950, tinha o rapaz acabado de completar catorze anos e começado a experimentar, com inusitada frequência, um crescente e insuportável ardor entre as pernas. Sobretudo à noite.

Tinha dificuldade em adormecer, tão incómodo se revelava aquele ardor, e acordava de manhã com um verdadeiro chumaço dentro das calças do pijama; despertava tão rijo e monstruoso que precisava de aguardar uns bons cinco minutos até poder ir urinar ao quintal. Descobriu que conseguia aliviar o ardor com umas massagens, que fazia vigorosamente com a ponta dos dedos ou despejando álcool entre as pernas, o que lhe provocava uma sensação quente que o descontraía. Mas esses remédios eram temporários, truques para enganar aquela fome inexplicável, formas pecaminosas de lidar com a vontade incontida de explodir entre as pernas e que, no rescaldo do alívio, o deixavam a roer-se de culpa.

Acontece que Beatriz, a empregada da casa que servira de parteira no seu nascimento, teve nesse Outono de se ausentar um mês para ir à terra tratar de um familiar que adoecera. Ao fim de três dias, Amélia queixou-se ao marido de que não dava conta do recado. Não era criada nem nascera para aquilo, nunca na vida lavara tantos pratos. Onde já se vira uma senhora da boa sociedade penafidelense ser obrigada a limpar a cozinha e a encerar o chão? Tudo isso para dizer que precisava de alguém que substituísse temporariamente a fiel empregada. Tão massacrado pela mulher foi o capitão Mário Branco que lá deitou contas à vida e concluiu que, bem vistas as coisas, apertando um pouco ali e cortando acolá, sempre sobrava um dinheirinho para ir buscar uma nova rapariga.

A escolha recaiu em Maria Imaculada, uma moça do campo, dezoito anos de frescura, pele clara e faces avermelhadas. Parecia um pimentão saudável. A jovem camponesa ficou no quarto habitualmente ocupado por Beatriz, e Amélia, sem talvez ponderar o caso com a devida atenção, atribuiu-lhe de uma assentada todas as responsabilidades que pertenciam por hábito à empregada ausente. Ora uma dessas responsabilidades era justamente levar água quente para o banho mensal das duas filhas e do rapaz mais novo. Por fatal coincidência, o primeiro banho ocorreu poucos dias depois da entrada ao serviço da nova empregada.

Maria Imaculada desempenhou as suas funções com presteza e eficiência. Pôs as vasilhas ao lume, no fogão a carvão da cozinha, e, logo que a água ficou quente, desceu por ali fora, a bufar, para a levar ao pátio interno do rés-do-chão, onde as raparigas se juntaram para o banho. Depois de Mana e Lourdes completarem a higiene, foi a vez de José ser chamado pela mãe à ablução mensal, ritual que o rapaz desempenhava sempre com manifesta má vontade e apenas depois de o pai, movido pelos queixumes da mulher, soltar um aviso ameaçador. "Zéééé!..."

Instado pela severa advertência paterna, o mais novo lá seguiu, contrariado mas obediente, para o pátio interno onde habitualmente se tomava banho. Quando sentiu a empregada descer as escadas com a água a fumegar na vasilha, o rapaz despiu-se e meteu-se na banheira de alumínio. O problema é que a criada, sendo nova na casa, desconhecia os pormenores relativos à virilidade inata do menino José, pormenor afamado já até entre os colegas de escola. Não admira por isso que, quando entrou no pátio interno, e ao observar distraidamente o moço na banheira, a rapariga quase tivesse deixado tombar a vasilha. Os seus olhos haviam pousado no que jamais imaginara ver.

"Ah!", exclamou, pasmada. "Meu Deus!"

A empregada corou e procurou recuperar a compostura, disfarçar a surpresa, desviar a atenção; esforçou-se por olhar para a frente, para o chão, para a vasilha, para aqui, para acolá, para qualquer lado, para tudo, tudo, tudo menos para ali. Ali. Porém, o esforço revelou-se inglório; era como se o rapaz tivesse pendurado entre as pernas um magneto potente, um poderoso íman a que os seus olhos não queriam, não podiam, não sabiam resistir.

Nessa noite, conhecendo já o hábito do rapaz de ir à cozinha para beber um copo de água antes de se deitar, Maria Imaculada permaneceu um longo tempo sentada na cama, à escuta, atenta aos ruídos provenientes do andar de cima. Logo que sentiu o movimento abafado de José a descer as escadas, entreabriu a porta do quarto e despiu a camisola de lã, deixando os seios lácteos e arredondados à vista. Pegou na camisa de noite e fingiu que se preparava para a vestir.

Para sua decepção, porém, o rapaz passou de largo e seguiu para a cozinha sem sequer espreitar pela porta entreaberta. Não se dando por vencida, porque não era rapariga para tal e porque a maravilhosa visão dessa manhã lhe ateara o desejo e lhe incendiara as entranhas, a empregada manteve-se sentada na cama de tronco nu, a camisa de noite nas mãos, a luz bruxuleante da lâmpada de petróleo a bailar-lhe no corpo curvilíneo. Num assomo de inspiração, pôs-se a trautear com fingida inocência uma canção que se habituara a entoar com as raparigas do campo.

 

Ao passar a ribeirinha,

Pus o pé, molhei a meia

Pus o pé, molhei a meia

Pus o pé, molhei a meia.

Não casei na minha terra,

Fui casar em terra alheia

Fui casar em terra alheia

Fui casar em terra alheia.

O engodo funcionou.

Atraído pelo som melodioso da voz da rapariga, José espreitou pela porta no caminho de regresso ao quarto. Era para ser uma mirada rápida, mero olhar de circunstância, mas o que viu pela porta entreaberta deteve-o e deixou-o paralisado, sem respiração. Maria Imaculada remexia a camisa de noite, como se pretendesse vesti-la, mas entre o veste e o não veste exibia o tronco nu, as curvas dos seios desenhadas com perfeição, opulentas, a pele tenra colorida de laranja-avermelhado pelo clarão luminoso que a chama da lâmpada de petróleo emitia num pestanejar nervoso. José sentiu o ardor voltar em força, na verdade com uma energia que nunca tivera, dilatando-se como um balão, prestes a explodir diante da primeira mulher desnudada que os seus olhos tiveram o privilégio de ver.

A criada voltou o rosto e esboçou um sorriso ao apanhá-lo a espreitar. Tolhido pela surpresa de passar de mirone a mirado, José recuou, horrorizado, prestes a fugir escada acima. Queria escapar naquele instante, desaparecer antes que ela fizesse um escândalo.

"Olá, Zezinho", murmurou Maria Imaculada num tom quase musical. "Fazes-me um favor?"

A voz tranquila da rapariga travou-o naquele assomo de pânico. Ela falou-lhe como se o tivesse encontrado no corredor, nem parecia ter-se apercebido de que era espiada com os seios à mostra. Na ilusão de que a empregada nada tinha notado, o rapaz forçou-se a um sorriso.

"Sim... o que... o que é?"

"Vais-me buscar um copinho de água?"

José baixou os olhos e voltou à cozinha, afogueado, o coração a ribombar no peito, o espírito mergulhado numa turbulência de sentimentos, sem compreender bem o que se passava, sem saber como reagir, o que dizer, para onde olhar. Pegou num copo, encheu-o de água e regressou ao corredor. Estacou diante da porta do quarto, os olhos colados ao chão de embaraço.

"Está aqui", anunciou, baixinho.

"Entra."

José hesitou, envergonhado. Olhou furtivamente em redor, como se estivesse prestes a ser apanhado a roubar as amêndoas das irmãs; sabia que o passo era interdito, que pisava terreno proibido, mas mesmo assim, quase a cambalear, impulsionado por uma força desconhecida, o corpo a obedecer a ordens que não tinham saído da sua cabeça, deu esse passo em frente, empurrou a porta, entrou no quarto e estendeu o copo, sempre com mil cuidados para não pousar os olhos nos seios tentadores que a criada exibia com despudor.

Maria Imaculada pegou no copo e bebeu um gole. Sentindo-se a mais, a coragem já a desvanecer-se, receando ser visto onde não podia ser visto, José fez tenções de sair, mas a empregada refreou-o com um gesto. Continuou a beber e deixou a água escorregar-lhe pelos cantos da boca e pingar-lhe sobre o peito. Esvaziou o copo e endireitou-se. Sem tirar os olhos do rapaz, passou a mão direita pelos seios, espalhando a água pelos mamilos, fazendo a pele nívea reluzir à luz dançante da chama, como se sobre a textura suave do veludo escorressem lágrimas douradas de mel.

"Nunca viste umas maminhas?"

José abanou a cabeça num gesto mecânico.

"Não", disse, a voz muito sumida, os olhos colados ao chão.

A empregada apalpou o seio esquerdo, espremendo-o como um fruto fofo e sumarento.

"Gostavas de mexer?"

Fez-se um silêncio profundo; José não sabia o que dizer.

"Gostavas de mexer?", repetiu ela, a voz melada.

O rapaz reuniu toda a coragem, todo o atrevimento e, sentindo o rosto enrubescer e o corpo cruzar mais uma barreira proibida, balançou a cabeça afirmativamente.

"Então mexe", disse ela, inclinando o tronco para a frente. "Vá. Mexe! Aperta!"

José ergueu a mão, hesitante, e aproximou-a lentamente do peito arfante da criada. Tocou na pele ebúrnea com a ponta dos dedos, sentiu-lhe a superfície sedosa, quente, ganhou-lhe o gosto e encheu a mão, apanhou-a com a palma toda e contraiu os dedos, apalpando-a com volúpia, espremendo o saco gelatinoso e aveludado. Uma erecção colossal quase lhe irrompia das calças do pijama, crescendo sem parar, como um balão em expansão.

Sentindo a mão a explorar-lhe gulosamente o seio e vendo o volume descomunal agigantar-se diante dela, a rapariga não se conteve mais e apalpou-lhe o inchaço. Cada vez mais excitada, o fogo a arder-lhe no ventre como jamais lhe sucedera, puxou-lhe as calças de pijama para baixo e quase desfaleceu quando se deparou com o gigante; o monstro emergia do seu esconderijo com altivez, um colosso de dimensões tais que teve naquele instante a intuição, a promessa, a certeza de que iria finalmente conhecer o paraíso na Terra.

É que de imaculada aquela Maria apenas tinha o nome. Foram as mulheres que fizerem José perceber que o monstro que transportava entre as pernas não era castigo divino, mas uma bênção dos céus. A descoberta reconciliou-o com Deus e reabriu-lhe os caminhos para as Igrejas. A sua mente, contudo, povoava-se de outros destinos.

Durante aquele mês em que Maria Imaculada ali permaneceu a cobrir a vaga temporária aberta por Beatriz, o benjamim da família teve a sensação de viver um corrupio de emoções. Ora o corpo alcançava o paraíso dos sentidos, ora a alma se despenhava no inferno da culpa. Imaculada revelou-se uma jovem ardente, a fogosidade e a imaginação excitadas pela perspectiva do pleno usufruto de tão volumoso atributo masculino.

Todos os dias José jurava a si mesmo que dessa vez seria forte e não voltaria a pecar, que não cederia à tentação e permaneceria puro e imaculado, que a virtude se imporia aos instintos da carne. No entanto, à noite, quando toda a casa dormia, não resistia ao impulso e deslizava silenciosamente pelo soalho, contornando o ocasional ranger inoportuno da madeira para se abrigar por uma deliciosa meia hora entre os braços quentes e as pernas escaldantes da criada, os gemidos e os arfares abafados de preferência pela boca sôfrega da amante, e, quando isso não era possível, pela almofada ou pelo cobertor.

No primeiro domingo ainda considerou seriamente a possibilidade de confessar tudo ao padre Jacinto, mas a vergonha foi mais forte e no confessionário limitou-se a balbuciar uns pecados irrelevantes, coisas de tal modo menores que se expiaram com apenas três avé-marias e dois pai-nossos. Saiu nesse dia da Igreja do Sameiro fazendo a jura solene de que no domingo seguinte é que seria, quando chegasse a hora da confissão iria mesmo prostrar-se perante o pároco e derramaria sobre ele toda a enxurrada de pecados mortais que o maculavam.

Com o andar do tempo, porém, o sentimento de culpa foi diminuindo, como se o corpo ganhasse aos poucos a batalha à alma, e no domingo seguinte mais uma vez nada confessou sobre as depravações com Maria Imaculada. Depressa deixou de se contentar com as noites e passou a agarrar todas as oportunidades adicionais que se lhe foram oferecendo. Bastava Amélia chamar os filhos para irem com ela comer um bolinho à Pastelaria Brasil ou darem um passeio para ver a tia Joana que José, contendo com dificuldade a excitação, fazia cara de enterro e, quase penitente, abatia a cabeça.

"Tenho de ficar em casa, mãe."

"Ai sim?", espantou-se ela quando pela primeira vez ouviu tal recusa. "Porquê?"

"Preciso de estudar."

Amélia admirou-se com o empenho do seu mais novo, nunca o havia visto tão dedicado aos estudos, mas o facto é que não tinha objecção a levantar a tão louvável comportamento e chegou mesmo a fazer dele um exemplo para os irmãos.

"Estão a ver o Zezinho?", passou a perguntar aos outros filhos sempre que com eles saía à rua. "A estudar assim, ainda há-de ser alguém na vida!"

José estudava, é verdade, embora a matéria se centrasse exclusivamente nas animadas sessões de anatomia feminina.

Foi com a fogosa criada que o adolescente descobriu alguns dos mais importantes segredos do corpo humano e se iniciou na vida adulta. Embora ainda doce, a paixoneta juvenil por Mimicas não passava já de uma lembrança, de um passado de inocência que a voragem do tempo enfim tragara. A pureza de José partira com a sua amiga dos cabelos aos canudos, deixando-lhe a alma entregue ao monstro que Maria Imaculada despertara.

"Já sabem da novidade?"

A pergunta foi feita por Lourdes certa manhã, quando os irmãos saíam de casa para as aulas. Como António seguira já para a universidade, José preparava-se para ir sozinho para o Colégio do Carmo e as raparigas para caminhar de mão dada até às soeurs, umas freiras que durante a guerra de Espanha haviam fugido para Portugal e aberto uma escola numa grande vivenda atrás do Sameiro.

"O quê?"

"A Beatriz chega hoje."

O anúncio deixou José tão consternado que as irmãs julgaram que lhe ia dar qualquer coisa em plena rua. Cambaleou e teve de se sentar no passeio diante de casa. Pensaram que fosse a comoção pelo regresso da criada, longe de imaginarem a verdade desconcertante. Apenas José sabia que, se o coração fraquejara, não fora de alegria pela fiel Beatriz, mas já de saudades da infiel Maria.

As novidades confirmaram-se logo nessa tarde, quando José regressou do colégio e constatou que Beatriz estava já ao serviço. Espreitou o quarto ao lado da cozinha e, com o coração em sobressalto, verificou que eram agora as roupas da antiga empregada que ocupavam as gavetas. Procurou sinais da sua amante secreta, mas não os encontrou. Angustiado, de olhar perdido, imaginando o pior, arrastou-se até à mãe e, esforçando-se por aparentar a maior das indiferenças, indagou por Maria Imaculada.

"Foi ao Pacheco buscar arroz", foi a resposta apática de Amélia, que tricotava umas malhas junto à lareira. "Porquê?"

Não era decididamente a resposta de que o rapaz estava à espera.

"À... à mercearia do Pacheco? Quer dizer que... que não se foi embora?"

"Por causa do regresso da Beatriz? Não, fizemos as contas e decidimos mantê-la. A casa é muito grande e a Beatriz não dá conta do recado, coitada. Está agora encarregada da cozinha e das roupas e a Imaculada fica com as limpezas e as compras." A mãe parou por momentos de tricotar e ergueu o olho desconfiado. "Mas porquê?"

Sentindo-se subitamente dissecado por aquele olhar penetrante, José afastou-se de imediato, num esforço para ocultar o rubor de alívio que lhe coloria as faces.

"Era só para saber."

Os algarismos brancos rasgavam a superfície negra da ardósia, pareciam pinceladas secas de pó, e José suspirou de frustração. A conta não dava certo. Passou a mão irritada pela lousa e desfez os algarismos num borrão esbranquiçado; teria de recomeçar o exercício de matemática do princípio e só quando a computação batesse bem é que a transcreveria para o caderno. Pegou no giz e rabiscou os números e o símbolo da raiz quadrada.

Quando começou a acrescentar à equação os dados seguintes ouviu o soalho ranger e voltou-se para trás. Destrinçou uma sombra a esgueirar-se pelas escadas em direcção ao rés-do-chão, como se um espectro líquido se derramasse pela casa, e percebeu que era Maria Imaculada a descer para o quarto que lhe fora destinado desde o regresso de Beatriz. A imagem excitou-lhe a imaginação, sobretudo depois do susto que fora a possibilidade de a perder. Vê-la baixar para os aposentos fê-lo ansiar pelo calor dos seus lábios trémulos, pelo veludo da sua pele palpitante, pelo ofegar alvoroçado da respiração quando colava o corpo ao dele, pela humidade quente das suas entranhas femininas, pela sensação trémula de transgressão do proibido.

Tinha de a possuir. E quanto mais depressa melhor.

Foi por isso que nessa noite, mal sentiu a casa aquietar-se, saltou da cama e calcorreou os degraus literalmente em bicos de pés, deslizando pela escadaria até ao rés-do-chão. Lançou a manobra talvez um pouco cedo de mais, antes fazia-o mais tarde para garantir que o sono da família era profundo, mas sentia-se consumido pela impaciência e pela ânsia de soltar a tensão que o estrangulara durante o dia. Afogado em desejo, não conseguiu aguardar todo o tempo que a prudência aconselhava.

O chão do piso térreo não era um soalho de madeira, como acontecia nos andares superiores, mas granito. Estava escuro em toda a casa e foi quando sentiu sob os pés nus a superfície fria da pedra polida que soube que havia chegado. Da esquerda veio-lhe o aroma a mosto da adega, mas José meteu à direita pelo corredor, a mão a deslizar pela parede até sentir a primeira porta. Era o quartinho situado ao lado do escritório do pai e para onde Maria Imaculada fora enviada.

Empurrou devagar a porta e mergulhou a cabeça naquela treva opaca que o envolvia como um manto denso e impenetrável.

"Maria", chamou. "Estás aí?"

Sentiu a cama ranger com um movimento.

"Menino Zezinho?"

Já a tiritar de frio, o rapaz deslizou para a cama e foi acolhido pelos braços quentes da empregada. Um cheiro intenso a lixívia e sabão impregnava Maria Imaculada, mas José ignorou o odor forte e deixou-se envolver pela pele sedosa e pelo calor acolhedor de mulher. Mergulhou nela com ímpeto, incapaz já de se conter, mas deteve-se ao fim dos primeiros impulsos, quando escutou um barulho suspeito.

"Que é isto?"

"É a cama", sussurrou ela de volta. "Chia."Riram-se baixinho. A cama, ao contrário da que antes lhes sustinha as refregas amorosas, tinha molas enferrujadas e chiava a cada movimento. Mas os amantes sentiam-se demasiado empolgados para se preocuparem com esses pormenores e recomeçaram a sua dança, unindo-se num movimento sincronizado, enlaçados um no outro, tão esfaimados e gulosos que perderam toda a noção de quem eram e de onde estavam e libertaram os sentidos numa explosão lasciva descontrolada. "Zé!?"

Não conseguiam parar, eram como uma composição em marcha, a locomotiva a acelerar num movimento cadenciado, o taquetaque dos carris transformado no tumba-tumba dos corpos, a chaminé a exalar gemidos e suspiros em vez de fumo, a carne a arder no lugar do carvão. "Zé!"

À segunda vez que a voz cortou o ar, os amantes estremeceram e imobilizaram-se. José viu sombras a bailar na parede e apercebeu-se de que o clarão azulado de um candeeiro de petróleo balouçava no quarto. Foi só nesse instante que registou a voz de homem que atrás deles chamara o seu nome. Estavam a ser observados. Sentiu a rapariga esticar o pescoço, espreitar-lhe sobre o ombro na direcção da voz e soltar um grito de pânico. José virou então a cabeça e reconheceu o rosto que os observava da ombreira da porta.

"Pai!?"

O tiquetaque hipnótico do relógio de parede, tranquilo e pendular, pontuava o ambiente morno e sereno que envolvia o escritório. Rostos a preto e branco enquadrados em molduras e eternizados a sépia no clichet esmerado da Foto Anthony contemplavam a cena com expressões justiceiras, como testemunhas silenciosas a vigiá-los do passado. O pó pairava com preguiça diante dos clarões de luz, tão suspenso como o ar, e apenas o pirilampejar agitado da lamparina de petróleo, cuja chama azulada projectava silhuetas irrequietas nas paredes, conferia vitalidade nervosa àquela salinha perpetuada no tempo.

Havia já alguns anos que o capitão Mário Branco não chamava um filho ao gabinete para lhe passar uma reprimenda. Afinal todos eles já tinham crescido, António tirava Direito em Coimbra e as raparigas terminavam os estudos nas soeurs. Sempre acreditara que os valores que lhes inculcara desde crianças garantiam que os filhos saberiam estar à altura das suas responsabilidades enquanto cavalheiros e senhoras de bem, mas ainda assim tinha a consciência de que poderiam ocorrer situações que requeressem a sua intervenção, e o facto de ter o mais novo sentado naquele instante diante dele era prova disso.

"Costumas pôr o anel?"

A pergunta do capitão fez José erguer o olhar envergonhado e lançar na direcção do pai uma expressão interrogadora.

"Perdão?"

O capitão levantou a mão esquerda e indicou o anel de ouro que lhe cintilava no dedo.

"Lembras-te de uma vez te ter dito que a prova de carácter de uma pessoa é feita através do teste do anel?", perguntou. "Torna-te invisível e faz o que farias se ninguém te pudesse ver. É assim que se pode avaliar o carácter de alguém. Tens posto esse anel?"

O filho remexeu-se na cadeira, inquieto, e voltou a baixar os olhos.

"Não fiz nada de mal", murmurou. "Não roubei, não enganei, não faltei a nenhum dever."

"Então porque estás com ar envergonhado?"

"Porque o pai me apanhou com ela", retorquiu com um leve tremor do corpo, como se o sucedido naquele instante fosse demasiado penoso para ser discutido. "Mas o que estávamos a fazer não era mal nenhum. Tratava-se de uma coisa entre mim e ela, feita de livre vontade. Em que é que isso prejudica quem quer que seja?"

"Achas que não foi nada de mal? Aqui em nossa casa? Com a empregada? Como pensas que eu e a tua mãe nos sentimos?"

José voltou a estremecer, assaltado pela memória do embaraço que vivera naquele momento de suprema humilhação, e encolheu-se ainda mais na cadeira.

"Se calhar devia ter tido mais cuidado, admito-o. Insisto, no entanto, que não quis prejudicar ninguém. Posso ter sido descuidado, mas não fiz por mal. Além do mais, o que faço com o meu tempo livre é comigo e não tem relação com as outras coisas."

"Achas que não?"

"Claro que não."O pai tamborilou pensativamente os dedos na secretária, como se acariciasse as teclas de um piano invisível para lhe arrancar as notas que lhe soavam em pensamento.

"Diz-me, Zé: o que é ser uma pessoa boa?"

O filho pestanejou, tentando coordenar os pensamentos e entender o verdadeiro alcance da questão. Maria Imaculada havia sido sumariamente despedida e esperava que também a ele lhe fosse aplicada uma sanção, mas aquela pergunta não parecia encaminhá-lo nesse sentido. Concluiu que talvez o melhor fosse deixar-se guiar pelo pai.

"É alguém que pratica o bem, suponho."

"Sim, mas o que é o bem?"

Onde quereria o pai chegar?, interrogou-se. Intuiu que as perguntas levavam uma direcção, mas como não a conseguia descortinar com rigor preferiu jogar pelo seguro e manter-se à defesa.

"É... é ajudar os outros, é ser honesto...", titubeou, as palavras a faltarem-lhe. "Enfim, é... é uma série de coisas."

O rosto do capitão abriu-se num sorriso surpreendentemente suave e amigável, mas sempre a evitar a condescendência.

"Todos nós conseguimos reconhecer o bem com facilidade", observou. "Mas já viste como é difícil defini-lo? O que é o bem? E incrível como um conceito tão simples se revela tão difícil de expressar, não é?"

"Bem... sim."

O pai olhou em redor e fixou a atenção numa fotografia pousada no canto da secretária, perpetuando a imagem granulada de um homem de bigodes e ar austero e de uma mulher com expressão serena e o cabelo apanhado sobre a nuca.

"Estás a ver esta fotografia antiga dos meus pais? O que tem ela de comum com... com..." Apontou para um livro com a capa desbotada que se encontrava na estante ao lado da porta. "Com este livro antigo? A resposta é: são ambos antigos." Indicou o soalho e depois a sua própria secretária. "O que têm de comum o chão de madeira e esta mesa de madeira? A resposta é: são ambos de madeira." Inclinou-se para a frente, sinalizando assim a importância da pergunta seguinte. "E o que têm de comum um bom livro, um bom sapato, um bom vinho e uma boa pessoa?"

Deixou a pergunta marinar na mente do filho.

"São todos bons, acho eu", devolveu José.

"Sim, mas o que é isso de serem bons? São bons da mesma maneira que o chão e a mesa são de madeira?"

"Bem... não."

"Claro que não. A dificuldade em definir o que é uma coisa boa é enorme. O que é uma coisa boa? O que é o bem? O que é o mal? Como sabemos que uma coisa está certa e outra está errada? Por que razão mentir é errado? E é sempre errado, em todas as circunstâncias? E tu andares a... a ter contactos carnais? É errado? Se não é errado, isso quer dizer que está bem? Quem define o certo e o errado?"

As perguntas foram metralhadas em catadupa, cada uma tão insolucionável quanto a outra, todas tão simples e tão estranhamente complexas que José teve dificuldade em decidir a qual deveria responder primeiro, e duvidou mesmo que houvesse respostas a dar. Sentiu uma súbita vontade de conhecer depressa a sua punição e sair dali, mas conteve-se. Se o pai lhe falava assim, lá teria as suas razões. Matutou por momentos nas perguntas que lhe foram feitas.

"Talvez seja Deus", arriscou. "Só Ele pode definir o que é o bem e o mal."

Ao escutar a referência a Deus, o pai sorriu com um toque de amargura a manchar-lhe a expressão.

"Isso é o que diria a tua mãe!...", observou. "Há muita gente, como por exemplo ela, que acredita que a moral tem origem em Deus. Não foi o Senhor que nos deu os dez mandamentos? O que são os mandamentos senão regras de boa conduta? Não matarás, não roubarás, não cobiçarás a mulher do próximo... Quem negará que estas ordens apontam o caminho do bem? Uma pessoa que não mate, que não roube, que não engane, que ajude o próximo, que defenda os oprimidos é de certo uma pessoa boa. Ser bom é então comportar-se de acordo com os mandamentos de Deus. Ser mau é actuar de forma contrária a essas ordens. Assim sendo, dirias que o teu comportamento com essa rapariga foi correcto?"

Então era ali que o pai queria chegar, pensou José. Na verdade nunca tivera dúvidas sobre isso. Não fora afinal por causa do incidente da noite anterior que para ali havia sido chamado? Mas o pai era sábio, percebeu. Em vez de usar a força bruta, confrontava-o com os seus actos.

"Incorrecto não foi", argumentou, disposto a dar luta. "Não matei ninguém, não roubei, não cobicei a mulher de outro..."

"Olha que um dos dez mandamentos de Deus é não pecar contra a castidade", lembrou o capitão. "Mas, mesmo aceitando que não pecaste contra a castidade, porque se calhar já nem eras casto, e ela também não, achas que o teu comportamento foi correcto?"

O filho respirou fundo, incapaz de responder directamente à pergunta. Apesar de o mandamento mencionado pelo pai existir realmente, sentia que não havia sido incorrecto. Mas seria isso sinónimo de que tinha sido correcto?

"Se Deus me fez com desejo de mulheres é decerto porque quis que eu desejasse as mulheres", retorquiu, contornando de novo a questão. "Aceito que tenha desobedecido a uma convenção social, mais nada."

"É interessante que não consigas dizer explicitamente que o teu comportamento ali no quarto foi correcto", notou o pai. "O que mostra que a moral de Deus está em ti. De qualquer modo, é verdade que há pessoas que nem acreditam em Deus e, no entanto, são boas e correctas. Isso prova que a moral está para além de Deus. Mas, se a noção de bem e de mal não vem de Deus, vem de onde?"

Era uma boa observação e deixou José pensativo. O pai tentava mostrar-lhe que se comportara de forma indigna, mas disso não tinha ele a certeza.

"Não acha que isto é tudo um pouco relativo?"

"Claro que é relativo", concordou o pai, levantando o dedo para acrescentar mais um adjectivo. "A moral é relativa e subjectiva. Se eu matar uma galinha para comer, isso é bom para mim e mau para a galinha. Ou seja, uma coisa pode ser boa e má ao mesmo tempo de um ponto de vista relativo." Apontou para o livro que se encontrava na estante e que mencionara minutos antes. "Por outro lado, eu posso achar que aquele livro é muito bom e tu que ele é muito mau. Isto é outra maneira de uma coisa ser boa e má ao mesmo tempo, embora aqui de um ponto de vista subjectivo. Portanto, o conceito de bom e de mau é ao mesmo tempo relativo e subjectivo."

"Isso mostra que não há um bem absoluto."

"Não necessariamente", corrigiu o capitão. "O facto de a moral poder em certas circunstâncias ser relativa e subjectiva não quer dizer que seja arbitrária. Há uma certa universalidade em determinados preceitos. Não matarás, por exemplo. Este mandamento divino pode ser encontrado em todas as culturas, mesmo nas mais pagãs. O assassínio é errado na nossa cultura cristã, mas também na cultura de uma tribo de índios da Amazónia ou entre os bosquímanos da Africa do Sul. O mesmo se passa com a proibição de fornicar."

A referência implícita ao sucedido na noite anterior envergonhou José, que baixou a cabeça. Passou a mão pelo cabelo e coçou a nuca, como se isso o ajudasse a limpar-se.

"O pai acha que estou possuído pelo mal?"

"Não tenho respostas finais para o problema do bem e do mal", disse o capitão, sorrindo com a pergunta. "A única coisa que te posso dizer é que te deves guiar pela consciência. Não te quero julgar pelo que aconteceu ontem à noite ali no quarto nem tenho a certeza de que tenhas realmente feito algo de mal. Quero apenas explicar-te que, ao longo da tua existência, espero que sejas uma pessoa boa. Na vida vais decerto encontrar situações difíceis e dilemas dolorosos. Nem sempre a solução mais fácil é a melhor. Por vezes temos de escolher entre um mal que nos facilita a vida e um bem que nos dificulta tudo. Escolhe sempre o bem."

"Mesmo que isso me prejudique?"

O capitão Mário Branco apoiou os cotovelos na mesa e juntou as palmas das mãos, colando os lábios às pontas dos dedos numa pose judiciosa, como um juiz a ponderar uma sentença.

"Se o bem fosse fácil, meu filho, só haveria homens bons."

A frase foi proclamada num certo tom final, como se aquilo fosse tudo o que o pai tinha para lhe dizer sobre o assunto, e José depreendeu que lhe havia sido dada a deixa para se retirar e quase suspirou de alívio. Não tinha sofrido nenhum castigo, mas o pai pusera-o a pensar. Empurrou a cadeira para trás e fez tenções de se levantar.

"Se me dá licença, pai, eu ia então..."

O capitão endireitou-se com um movimento rápido.

"Onde vais?"

O rapaz imobilizou-se, percebendo que talvez se tivesse precipitado.

"Bem, eu... enfim, ia a... a..."

"Senta-te."

José voltou ao seu lugar e ficou a ver o pai desdobrar uma folha de papel que extraíra de um envelope. O capitão passou os olhos pelo conteúdo da folha e torceu a boca de uma forma característica, como fazia sempre que se sentia desagradado com algo. Que mais viria aí? Um castigo? Teria toda aquela conversa sobre o bem e a necessidade de tomar as decisões certas sido apenas um prelúdio a algo de bem pior? A mente do rapaz encheu-se de possibilidades terríveis enquanto o pai não abria o jogo.

O capitão Branco suspirou, como se se preparasse para ir enfim directo ao assunto, e estendeu-lhe o papel.

"Estás a ver isto?"

Com as mãos quase a tremer, o filho pegou na folha e leu as primeiras linhas.

"São as minhas notas!..."

"E não são bonitas", atalhou o pai. "Foste varrido a dez e onze, com um oito a Francês."

"Mas tenho dois dezoitos..."

"Ora, a Música e a Desenho! Não tenho nada contra as artes, mas que eu saiba neste país ninguém vive delas." Voltou a suspirar, como se se sentisse impotente. "O que vamos fazer de ti, rapaz?"

"Não se preocupe que eu cá me desenrasco."

"Antes fosse assim. Mas a vida não é uma paródia e o mundo é um sítio difícil." Exalou um suspiro longo e resignado. "Estive a falar com o doutor Matias, lá do banco, e ele disse-me que estava justamente à procura de alguém que o ajudasse ao balcão. Penso que é uma excelente oportunidade para..."

"O pai quer trancar-me num banco?", cortou José.

O capitão Branco não estava habituado a ver um filho interrompê-lo quando falava, mas condescendeu. Considerando a importância e a delicadeza do assunto, era natural que o rapaz se sentisse nervoso.

"Olha-me para essas notas, Zé", sugeriu, indicando a folha de papel. "Não vais a lado nenhum com classificações destas."

"Mas para um balcão não quero ir."

"Então vais para onde? Que queres tu fazer?"

O filho fitou por momentos a chama azulada que dançava no topo do candeeiro a petróleo, como se estivesse hipnotizado e o baile do lume bruxuleante encerrasse o oráculo do futuro, embora fosse por uma promessa do passado que a sua mente deambulava - a promessa que um dia fizera à sua amiga do cabelo aos canudos quando soube que o pai lhe tinha morrido porque não havia um médico na zona de África para onde fora.

"Quero tirar Medicina."

A afirmação pareceu tão extraordinária que o pai se engasgou e foi assaltado por um ataque de tosse repentino. Levou alguns segundos a recuperar a compostura.

"Deves estar a brincar", disse quando recobrou o fôlego.

"Tu? Médico?"

"Sim."

"Mas tens a noção do trabalho e do nível de exigência que envolve o curso de Medicina?" Voltou a indicar a folha com as classificações. "Se no liceu já é esta... esta desgraça, imagina o que seriam as tuas notas a Medicina! Nem pensar! Seria uma pura perda de tempo e de dinheiro!"

"Mas o pai não quer que eu seja uma boa pessoa e dê uma direcção produtiva à minha vida?"

O capitão hesitou ao ver posta assim a questão, sobretudo à luz de tudo o que havia dito desde o início da conversa.

"Quero, claro."

José dobrou cuidadosamente a folha e estendeu-a na direcção do pai, a face a irradiar um sorriso luminoso e confiante.

"Então deixe-me inscrever em Medicina", exclamou. "Prometo-lhe que serei um homem bom."

 

Os nove estudantes acercaram-se da cama onde o lençol escondia o corpo debilitado do paciente, um velho de rosto ossudo e olhar macilento. Toda a enfermaria exalava um odor característico a éter, mas apesar disso mantinha um certo ar alegre, talvez devido ao sol que invadia as grandes janelas e espalhava pelo chão geometrias luminosas, quadrados de luz que se recortavam como um gigantesco tabuleiro de xadrez.

O professor aproximou-se do paciente com movimentos titubeantes e os estudantes abafaram risadinhas antecipadas.

"Coitado do velho", alvitrou alguém ao ouvido de José. "Acho que não vai entender patavina!..."

O "velho" era o doente que se preparava para enfrentar o professor Ribeiro, cujas aulas de Neurologia e Infecto-Contagiosas eram famosas na Faculdade de Medicina pela dificuldade com que o docente se exprimia, sempre em busca de palavras que lhe escapavam e substituindo-as amiúde por gestos de impotência.

Como a confirmar a expectativa de que se seguiria um diálogo absurdo ao nível da pantomina das aulas, o professor encheu o peito de ar para falar mas só lhe saiu um grunhido, acompanhado por um movimento inconsequente dos braços, e logo algumas risadinhas, antes abafadas, se tornaram audíveis. Ignorando o burburinho, o professor Ribeiro voltou à carga e após um novo esforço lá saiu a pergunta.

"De que se queixa?"

Novas risadinhas; tanto esforço para soltar pergunta tão simples era de facto cómico.

"Ó sô'tor", disse o paciente num cerrado sotaque portuense, "fico à rasca p'ra mijar, carago."

As risadinhas tornaram-se gargalhadas, cortadas pelo olhar fulminante do professor. Os alunos reprimiram o riso e o docente voltou a concentrar-se no velho.

"Tem dores nas costas?"

"Ai, teinho teinho, sô'tor. É uma arreliaçon. Às bezes até me cust'a andar, c'um caneco. Ainda onte beio cá a minha Graziela, 'tadinha, traz-me sempre o farnel, é uma sánta aquela mouça, e um pito 'inda por cima, e atão ela biu-me assim com'um tinhoso e disse: ó home, bê s'andas como gente, canudo, pareces o estafermo d'um marreco!"

O professor encarou o grupo de alunos.

"Diagnóstico?"

Os esgares divertidos morreram e os olhares dos estudantes pareceram ficar desfocados. José ainda considerou a possibilidade de inventar uma infecção na bexiga, afinal estavam numa aula prática de Neurologia e Infecto-Contagiosas, mas não vislumbrou qualquer relação entre a bexiga e as dores nas costas e, prudente, optou por permanecer calado.

O professor fez um novo gesto grandiloquente, encetando novos esforços para falar, mas nada saiu da sua boca além de uns quantos sons incompreensíveis. Dessa vez, porém, ninguém se riu. Todos queriam saber como se poderia extrair um diagnóstico válido apenas daqueles dois sintomas.

"Este homem", conseguiu por fim o docente balbuciar, "tem um carcinoma da próstata com metástases na coluna."

O diagnóstico deixou toda a gente embasbacada. Como se poderia saber tal coisa a partir de tão poucos elementos? O professor fez notar, com visível dificuldade em pronunciar as palavras certas, que a idade do paciente era um elemento decisivo na sua análise, mas mesmo assim permaneceram os olhares cépticos.

Chamou-se então a enfermeira para que ela mostrasse as radiografias e explicasse o quadro clínico do paciente. Para surpresa geral, ela acabou por confirmar a conclusão preliminar.

"O gajo pode ser um tonho a falar", observou José com um sorriso de admiração, "mas o diabo do homem tem um olho danado para os diagnósticos."

A vida de estudante no Porto, marcada por uma liberdade que embriagou José, ampliou-lhe a visão do mundo para horizontes que não sabia existirem. Longe do ambiente provinciano de Penafiel e dos olhares sempre vigilantes da família, o novo aluno de Medicina sentia-se na grande cidade um pássaro selvagem, as asas livres para cruzar a seu bel-prazer o imenso espaço azul da independência.

Por especial insistência da mãe, que se informara junto do pároco do Sameiro sobre o local mais recomendável para acolher o seu menino, instalou-se na Juventude Universitária Católica, uma residência de estudantes em plena Rua de Cedofeita. Todas as manhãs, quando a luz despontava no limiar dos telhados e a cidade despertava para um novo dia, José vestia invariavelmente a capa e batina negras e abalava para a faculdade, situada para os lados do Hospital de Santo António.

O primeiro ano do curso foi passado em grandes anfiteatros apinhados com mais de uma centena de alunos e onde decorriam as aulas, que não se revelaram muito do seu agrado; eram só conversa e teoria. Depois veio o horror dos cadáveres no teatro anatómico e as brincadeiras macabras dos estudantes mais experientes com os caloiros; a José chegaram a esconder uma mão decepada na mala. O curso não era bem o que idealizara, o que contribuiu para semear nele as primeiras dúvidas. Estaria de facto talhado para médico?

Quando no segundo ano o professor de Neurologia e Infecto- Contagiosas os levou para as primeiras aulas práticas nas enfermarias do Santo António, porém, as coisas mudaram. A medicina deixou de ser um arrazoado de palavrões incompreensíveis e de esquemas que tinha de decorar e adquiriu de repente um rosto humano. O velho que o professor Ribeiro havia interpelado naquela primeira aula prática, por exemplo, tornara viva a imensa abstracção a que na sua mente até então se reduziam os carcinomas.

"O segredo da medicina", proclamou o docente no seu característico discurso vacilante, "está no diagnóstico."

A profissão que tinha escolhido, apercebeu-se José nessas aulas práticas, não se limitava a um desfilar de nomes estranhos que era forçado a empinar; revelava-se um verdadeiro trabalho detectivesco, com o aluno, ou o médico, a procurar nos sintomas dos pacientes pistas que lhe permitissem desvendar os mistérios do corpo humano. Haveria trabalho mais apaixonante?

Das cadeiras teóricas, apenas Deontologia Médica lhe interessou. O essencial da matéria incidia na ética enunciada por Hipócrates na Grécia antiga e reproduzida com grande fulgor teatral pelo professor Pina num anfiteatro enxameado de alunos semi-adormecidos.

"Por Apolo, médico, por Asclépio, Hígia e Panaceia e por todos os deuses e deusas, a quem conclamo minhas testemunhas", proclamou o docente de Deontologia Médica a abrir a primeira aula da disciplina, "juro cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue."

A promessa constante nas palavras iniciais do juramento de Hipócrates foi escalpelizada ao longo de todo o semestre, e em particular os deveres de cada médico de jamais recusar ajuda a alguém, estar sempre disponível para ir em socorro de um necessitado fosse qual fosse o local ou a hora do dia ou da noite, nunca fazer mal ao doente, não lhe dar medicamentos que o prejudicassem mesmo que ele os pedisse e até a preocupação de cobrar honorários tendo sempre em atenção as possibilidades económicas dos pacientes.

"A história da ética é, de certo modo, uma busca incessante de resposta a perguntas sobre o bem", explicou o professor Pina. "O que é o bem? O que é uma pessoa boa? A ética dá-nos referências que nos orientam e dá-nos força que nos permite enfrentar dilemas e trabalhar para o bem comum. Aristóteles dizia que uma coisa é boa quando atinge o objectivo a que se destina. Se um livro é escrito para ser interessante e se as pessoas que o lerem o acharem interessante, então o livro é bom. Se uma pessoa quiser ajudar outra e a outra beneficiar desse acto, então podemos dizer que essa pessoa é boa. Mas, atenção, esta definição de Aristóteles levanta alguns problemas. Olhem, por exemplo, para as notícias que apareceram nos jornais e na telefonia sobre a matança dos judeus pelos Alemães. Um alemão tem intenção de matar muitos judeus e mata-os com eficiência, o que leva a que a sua acção atinja o objectivo. Isso faz dele uma boa pessoa e do seu acto um bom acto?"

Para a maior parte dos estudantes a disciplina não passava de uma espécie de aula de moral, bem-intencionada mas risivelmente condescendente e paternalista, quase como se estivessem de regresso aos bancos da catequese. A excepção era José. O aluno de Penafiel sentia-se fascinado por estes temas, talvez por eles entroncarem nas conversas que ao longo de muitos anos mantivera com o pai sobre o que era o bem e o mal. Pareceu-lhe, aliás, que a questão do bem, embora de certo modo sempre presente nessas aulas como um espectro que tudo envolvia mas não se materializava, nunca foi frontalmente encarada pelo professor, como se o pudor o reprimisse.

A inquietação quanto a este tema era água que fervilhava nas entranhas de José, até ao dia, já perto do final do semestre, em que a pressão da curiosidade apertou e se tornou insuportável. Quis então questionar o professor a esse propósito a meio da aula, mas sentiu-se intimidado com a forma jocosa como os colegas lidavam com a matéria e optou por uma abordagem mais discreta.

Quando o docente deu essa lição por concluída e a turma dispersou, José foi no encalço do professor Pina e, já ao abrigo dos olhares indiscretos, interpelou-o à entrada do seu gabinete, questionando-o sobre os motivos pelos quais falava sempre em ética mas nunca no bem.

"A deontologia está directamente relacionada com a prática do bem", observou o docente enquanto inseria a chave na fechadura. "Repara, as regras que eu enuncio nas aulas não se destinam a manter-nos a nós, médicos, livres de sarilhos. Pelo contrário, podem até meter-nos neles." Abriu a porta, mas voltou-se para trás e encarou o estudante, exibindo o punho fechado. "A ética destina-se a mostrar-nos um caminho recto e a dar-nos força para o seguir, custe o que custar. A ética cria força interior, cria força nas relações entre as pessoas e cria força nas comunidades. Uma pessoa ética é uma pessoa que tem força e uma comunidade ética é uma comunidade que tem força."

"Professor", argumentou José, "Hitler tinha força, mas não me parece que fosse uma pessoa lá muito ética..."

"Estou a falar de força moral", explicou, entrando por fim no gabinete. "Anda cá, rapaz." Fez-lhe sinal de que o seguisse e apontou para uma cadeira diante de uma secretária. "Ora senta-te aí!" Ele próprio deixou-se cair na cadeira do outro lado da secretária, as costas voltadas para uma janela suja. "Estás bem instalado?"

"Sim."

"Ora bem", bufou, claramente entusiasmado por encontrar enfim um estudante que mostrava pela matéria o mesmo interesse apaixonado que ele. "O espírito humano procura sobretudo três coisas na vida: verdade, beleza e bondade. É como se não pudéssemos viver sem elas, como se cada uma fizesse parte integrante do nosso ser. Mas quando tentamos definir estes três elementos centrais da nossa espiritualidade as palavras falham-nos. O que é a verdade? O que é a beleza? O que é a bondade?"

O aluno franziu o sobrolho, o olhar carregado de cepticismo.

"O senhor professor não consegue definir a verdade?"

"Tu consegues?"

"Bem, verdade é... é dizer uma coisa que corresponde a realidade, acho eu."

"O que nos remete para o problema da realidade", apressou-se o professor a dizer. "Diz-me, a que espécie pertences tu no reino animal? És um insecto, um gato, um homem... és o quê?"

José riu-se.

"Que eu saiba, sou um homem."

"Ai sim? Imagina então que acordas amanhã e descobres que afinal és um gato que estava a sonhar que era um homem. Quantas vezes não nos acontece, enquanto sonhamos, acreditarmos piamente que o sonho é a realidade? E quem nos garante que não estás agora a sonhar?"

A pergunta intrigou o estudante.

"Quer dizer... acho que não estou." Apercebeu-se de que não tinha parecido suficientemente convicto e corrigiu: "Aliás, tenho a certeza."

"A certeza que tens agora é, presumo eu, a mesma certeza que tens de que, quando estás a sonhar, o sonho é a realidade. Vá lá, sê sincero..."

"Bem...", atrapalhou-se o aluno, "sim, é verdade."

"Então não conseguimos definir a verdade, pois não? Verdade é o que corresponde à realidade. Mas qual realidade?" Fez uma pausa, para deixar a ideia assentar. "O mesmo se passa com a beleza ou com a bondade." Virou-se para trás e indicou uma árvore para lá da janela. "Estás a ver aquele castanheiro? De que cor são as folhas da copa?"

"São verdes."

"Agora imagina que eu sou cego de nascença e tenta explicar-me o que é o verde."

O estudante passou as mãos pelo cabelo, tentando coordenar os pensamentos.

"Quer dizer... o verde é... enfim, não sei bem como explicar..."

"Exacto!", exclamou o professor, quase a saltar na cadeira. "O verde é uma propriedade elementar, mas é impossível de explicar a quem nunca o viu. O mesmo se passa com o calor... ou com a bondade." Fez um gesto largo, englobando todo o seu gabinete. "Há certas coisas na vida que, apesar de existirem, não é possível enclausurar ou exprimir em palavras. São, se quiseres, propriedades intuitivas. Existem, apesar de não podermos descrevê-las com rigor. A sua definição exacta escapa-se-nos e, quando tentamos formulá-la, nunca é pela positiva, mas pela negativa."

José sacudiu a cabeça, sem entender.

"Pela negativa? Que quer dizer com isso?"

O professor Pina apontou-lhe o dedo, à maneira de um acusador na barra do tribunal.

"Não matarás!", ditou, como se ele próprio detivesse as tábuas da lei. "Não roubarás! Não cobiçarás! Não isto e não aquilo!" Abriu os braços, no gesto de que a demonstração estava feita. "É tudo pela negativa, estás a ver?"

"Então não há uma definição positiva para a bondade..."

"A bondade existe, todos sabemos o que é, mas, tal como quando falamos da verdade ou da beleza, não conseguimos captar por palavras a sua essência." Fez com as mãos um movimento vago no ar. "Aristóteles dizia que todos os seres humanos buscam a felicidade. Eu diria que a bondade é o esforço que cada um de nós faz para que todos alcancem a felicidade."

"É a sua definição?"

O professor Pina encolheu os ombros.

"Pode não ser perfeita, mas é a minha", assentiu. "Claro que depois se cria o problema de definir a felicidade, não é? E lá voltamos ao ponto de partida."

"Então não há definições satisfatórias."

"Pois não." Hesitou. "Quer dizer, existe uma outra que também acho curiosa. Não é directa, mas roça a verdade. Queres ouvi-la?"

"Quero pois."

O docente de Deontologia Médica girou na cadeira e contemplou pela janela os estudantes que lá em baixo deambulavam entre as árvores no seu vaivém incansável, como se a simples imagem da faculdade a palpitar de vida fosse por si só uma inspiração.

"Um homem bom gosta das pessoas e usa as coisas", enunciou. "Um homem mau gosta das coisas e usa as pessoas."

Depressa se percebeu que o jovem José Branco gostava de pessoas; era brincalhão e bem-disposto com os colegas, sempre pronto para a farra, mas não havia dúvida de que as suas preferências iam para as criaturas do sexo oposto.

Apesar de os rapazes estarem albergados na residência da Juventude Universitária Católica, o tema de conversa nos tempos livres era, a qualquer hora do dia, "as gajas". Cada um tinha a sua favorita, normalmente uma qualquer paixão platónica alimentada nos corredores da faculdade, mas isso não os inibia de estabelecer comparações entre esta e aquela, sempre com abundantes referências aos seus louváveis "atributos", sendo que por esta palavra, e apesar de se tratar de estudantes de uma residência católica, ninguém se referia propriamente aos predicados espirituais das moças.

Com o tempo José foi ganhando a noção clara de que lhe faltava alguma coisa. Tanto assim foi que se pôs à procura de rapariga para uma relação mais séria; o problema era saber onde encontrá-la.

Apercebeu-se de que a solução poderia estar no seu talento para as artes. A meio do primeiro ano inscrevera-se no Orfeão, onde brilhava a dedilhar a sua guitarra ou a arrancar notas de um piano. Sem nunca largar a capa e a batina, que começavam a ficar roçadas de tanto uso, passou também a escrever textos humorísticos para várias revistas universitárias. Tanta e tão notável actividade artística granjeou-lhe alguma notoriedade e inevitável popularidade entre as estudantes.

Alinhavou várias candidatas e a sua escolha acabou por recair numa morena escultural que também frequentava Medicina, embora um ano atrasada em relação a ele, e com quem se cruzava muitas vezes nos corredores da faculdade. Inquiriu a identidade e disseram-lhe que se chamava Juliana.

Conheceu-a na Confeitaria Suave, em plena Cedofeita, que

ela frequentava para se alambazar com uns pastéis enquanto

estudava. Com a eficiência de um caçador a estudar as rotinas, depressa começou por lhe identificar os hábitos.

Certa tarde, e quando considerou completa a fase de estudo, passou à acção e montou-lhe uma espera na confeitaria. Ela apareceu à hora habitual e sentou-se no lugar costumeiro, perto do balcão. José aguardou que o estabelecimento se enchesse. No momento que considerou propício, foi ter com ela e, a pretexto de não haver mais lugares disponíveis, pediu-lhe licença para se sentar. Apanhada de surpresa, Juliana acedeu.

Foi uma tarde agradável. O rapaz disse umas graçolas, ela achou piada, José "descobriu" que ambos estudavam Medicina, observou que o estudo em conjunto era mais eficaz e, quase no mesmo fôlego, convenceu-a a ir ao cinema. Os encontros na Confeitaria Suave tornaram-se assim uma rotina, e as idas ao cinema também, de tal modo que, à terceira vez, e tirando partido oportuno do adequado ambiente romântico criado pela trama emocionante da fita, um melodrama delicodoce com Audrey Hepburn e Gregory Peck, arrancou-lhe o primeiro beijo na escuridão.

Tornaram-se oficialmente namorados. O que José não sabia é que a coisa seria de curta duração, como uma etapa que se cumpre a caminho de um outro destino. O ambiente dentro da Confeitaria Suave era nesse dia abafado, quase asfixiante, e Juliana sentiu que já não aguentava mais. A rapariga acordara maldisposta, devido aos rigores próprios das mulheres na sua altura do mês, e a atmosfera carregada no interior da pastelaria, onde o tabaco se desfizera numa neblina prateada, ténue mas baça, agravara-lhe a indisposição.

"Zé, vamos embora."

O namorado lia um O Primeiro de Janeiro emprestado pela mesa do lado e queria ficar mais um pouco, mas apercebeu-se da palidez da rapariga e nem discutiu. Largou um tostão sobre o balcão para pagar o café que haviam partilhado, devolveu o jornal e fez sinal para saírem.

O ar na rua pareceu-lhes fresco e revigorante, enchendo-os de renovada energia, e apeteceu-lhes um passeio para namoriscar as lojas. A tarde adormecia cinzenta, embalada pela luminosidade metálica que o céu de cobre projectava nas fachadas e pelas nuvens carregadas que deslizavam baixas, tingindo de sombras a rua mais comercial da cidade.

A Cedofeita fervilhava de gente que acabara de almoçar e seguia nesse momento para os empregos, mas mesmo assim uma importante parte dos transeuntes eram clientes que haviam aproveitado a tarde tristonha para espreitar as concorridas boutiques da Baixa do Porto. As vitrinas exibiam as primeiras novidades desse Outono de 1955, inspiradas directamente nos modelos que faziam a moda em Paris, ou promoviam ainda os saldos das roupas que haviam sobrado do Verão.

Juliana seguia de mão dada com o namorado, distraída a contemplar as vitrinas, quando uma voz interpelou o par.

"Às compras?"

Os dois olharam e viram um rosto conhecido dirigir-se-lhes em plena Cedofeita.

"Ludovina!"

Tratava-se de uma das raparigas do Orfeão e vinha acompanhada por uma amiga. Com um gesto casual, José desviou os olhos para a amiga e ela olhou-o também. Estreitou as pálpebras, perturbado. A acompanhante de Ludovina era uma rapariga alta, de cabelo castanho liso e um olhar provocador por detrás de uns óculos de aros pontiagudos que, enquadrando uns olhos verdes líquidos, lhe concediam uma beleza inesperadamente sofisticada, como a das mulheres inalcançáveis.

Não se lembrava de alguma vez a ter visto, embora se apercebesse de que havia algo de estranhamente familiar naquele rosto; ou a conhecia de algum sítio ou ela fazia-lhe lembrar alguém. Tentou situá-la, procurando contextualizar-lhe a face em ambientes diferentes, mas a identificação escapava-lhe, como uma palavra que se busca e nunca se alcança. Desviou o olhar e aquele rosto delicado ficou a brilhar-lhe na retina, parecia o clarão do Sol que ainda nos encandeia depois de o termos mirado por um breve momento.

"Vimos ali atrás um vestido que era um encanto", observou Ludovina, indicando uma loja no outro lado do passeio. "Mas e o preço? Ui, um horror!"

"Ah, já se sabe como é", concordou Juliana. "Bom e barato não há!"

José esforçava-se por manter a atenção presa em Ludovina, mas a imagem da face da amiga era já um fantasma que se recusava a desaparecer e ele voltou a desviar os olhos na direcção dela, como se a rapariga fosse um poderoso magneto, e tentou freneticamente situá-la nos arquivos da mente. A sensação de que a conhecia não o largava.

Ludovina apercebeu-se desse olhar inquieto e voltou-se, fazendo sinal à sua acompanhante de que se aproximasse.

"Vocês já conhecem aqui a minha amiga?", perguntou. "É uma colega de Farmácia."

A rapariga sorriu e acenou na direcção do par de namorados.

"Olá!", saudou. "Sou a Mariana. Mas lá em Cabo Verde todos..."

José arregalou os olhos, identificando-a por fim.

"... me coisam por..."

"Mimicas?!"

A rapariga desviou para ele o olhar, observando-o pela primeira vez com atenção, estudando-lhe o rosto quadrado, os grandes olhos castanhos, as sobrancelhas que lhe conferiam uma expressão de mau, à Frank Sinatra, e, como se nesse instante tivesse sido atingida por um relâmpago, reconheceu-o também. "Zé?"

Ficaram ambos um longo momento a fitar-se, incrédulos e quase chocados, a estudar traços e a compará-los com as imagens gravadas na memória, cada um a descortinar no outro a pessoa com quem partilhara tantos passeios dominicais da Igreja do Sameiro até casa.

"Vocês já se conhecem?", admirou-se Ludovina. "Valha-me Deus, Zé! Já me tinham dito que te davas com toda a gente, mas sempre pensei que era maneira de falar..."

José achou a sua velha amiga, na verdade a sua primeira paixão, estranhamente igual e familiarmente diferente da rapariga que numa manhã de domingo se despedira dele à porta de casa com uma lágrima grossa a correr-lhe pela face, talvez a imagem mais clara que dela lhe imprimira a memória. O olhar verde maroto ali permanecia, a pele nívea e os lábios bem desenhados também. Mas o corpo era já o de uma mulher, sinuosa e de busto vasto. Os óculos de aros pontiagudos constituíam igualmente uma novidade e o rosto tornara-se mais doce, parecia uma Elizabeth Taylor. Estendeu o braço e, quase sem consciência do que fazia, tocou-lhe no cabelo e experimentou-lhe a textura.

"Tens o cabelo diferente", observou, quase como se estivesse em transe. "Está mais escuro e já não tens os canudos."

Ela ergueu também a mão e passou-lhe o dedo pelo rosto, como se o desenhasse.

"E tu? Perdeste a inocência..."

Tocavam-se assim em plena Cedofeita, como dois escultores a acariciarem as suas criações, maravilhados pelo seu próprio génio, encantados com a obra que as suas mãos haviam concebido, ambos criadores e criaturas.

"Zé, vamos embora!"

A voz de Juliana transmitia uma urgência que José intuía não ser verdadeira. Que ele soubesse não tinham pressa de ir a lado nenhum, nem na verdade era pressa o que a voz da namorada transmitia. Era medo. Mas medo de quê?, admirou-se. Foi quando deu os primeiros passos para a acompanhar e voltou o rosto para trás para se despedir de Mimicas que tudo ficou enfim claro e percebeu o tremor que sentira na voz de Juliana.

Era medo de Mimicas.

O encontro com a antiga paixoneta de infância despertou em José uma avalancha de lembranças que julgara esquecidas e de emoções que pensara ultrapassadas. Descobriu com espanto que não estavam. Encontravam-se era recalcadas e mal resolvidas. Ao soltar inadvertidamente aqueles demónios até ali escondidos da sua consciência, o reencontro com Mimicas revelou-se um momento de epifania, porque tudo trouxe à tona, e também de magia, como se constatava pelo feitiço que dele se apossara.

 

"Então, meu caro?"

A interpelação trouxe José do mundo da fantasia para a realidade da aula. Recentrou a atenção e o rosto delicado de Mimicas esfumou-se, dando lugar às barbas do professor Pina, que o fitava com intensidade. "Hã?"

"Estamos no mundo da Lua, ora estamos? Pois faria melhor em regressar aqui à sala!"

Mas era mais forte do que ele. A emoção do reencontro revelou-se demasiado intensa; era como se tivesse embarcado numa viagem inesperada ao passado. Mergulhou num estado de permanente melancolia, em que cada situação se transformava numa oportunidade para se afogar em sentimentos de quase dolorosa nostalgia, como se tudo fosse um pretexto para regressar aos tempos de inocência perdida com Mimicas, quando o mundo era simples e as escolhas claras e o corpo obedecia ao coração e não ao monstro que lhe enchia as calças.

Acordava com memórias mágicas dos passeios desde a Igreja do Sameiro, estava nas aulas e apenas se lembrava das conversas com a rapariga do cabelo castanho-claro aos canudos, falava com as pessoas e procurava em todos os rostos o olhar malandro e rebelde da amiga de infância.

Ao cabo de alguns dias sem ser capaz de sair desta letargia percebeu que teria de fazer alguma coisa. Ou melhor, uma coisa. Delineou um plano e deu um salto à faculdade de Farmácia para consultar as listas de alunos e os horários das aulas. Já na posse das duas informações de que precisava, e sentindo-se bem melhor desde que passara à acção, deu início à segunda fase do plano.

A emboscada.

Uma chuva leve, prenúncio de um Outono mais agreste, descia sobre a cidade naquele fim de tarde sombrio quando Mimicas saiu da faculdade e se cruzou com José no portão.

"Por aqui?", espantou-se ele.

"Isso pergunto eu", riu-se Mimicas. "O que estás a coisar na minha faculdade?"

"Vim procurar uma sebenta farmacêutica para a minha cadeira de Farmacologia. Não sei se sabes, mas os médicos também lidam com medicamentos..."

A rapariga revirou os olhos.

"Não me digas!", ironizou. "A sério?"

José olhou-a com uma expressão pensativa, como se tivesse acabado de lhe ocorrer uma ideia.

"Mas para que quero eu uma sebenta se te tenho a ti? Importas-te de me dar uma ajuda?"

"Eu? Mas vou agora para casa!..."

O rapaz aproximou-se dela e fez um gesto para a rua, convidando-a a seguir caminho.

"Eu acompanho-te", disse. "Se não te importares, claro."

Mimicas encolheu os ombros, como se a sugestão não a incomodasse, e começou a andar.

"Olha que vou a pé e ainda vai ser uma boa caminhada..."

"Ainda bem. Contigo gosto de conversar a caminhar. Estranho seria se fosse de outra maneira."

A rapariga sorriu perante a referência implícita aos passeios que ambos davam em Penafiel depois da missa no Sameiro; era um facto que todas as conversas da sua infância haviam decorrido da igreja até casa.

"Portanto", observou ela, "parece que estamos de volta aos bons velhos tempos."

"Ora nem mais!", exclamou ele com evidente agrado por Mimicas nada ter esquecido. "Onde vives?"

"No coiso."

"Onde?"

"Ai... na Boavista."

"Tens lá casa?"

Ela soltou uma gargalhada.

"Uma casa na Boavista? Isso queria eu!" Abanou a cabeça. "Não, estou na Casa das Doroteias. É um lar para raparigas ali no Largo da Paz, mas está-se lá muito bem."

Caminhavam os dois lado a lado, já embrenhados na conversa; falavam e nem se apercebiam por onde andavam, guiados por uma espécie de piloto automático.

"Tens saudades de Cabo Verde?"

"Algumas", confessou ela. "Mas a Europa é outra coisa. O que me encanta aqui na Metrópole são as ruas e as estradas. Ai, são tão boas!" Apontou para a rua. "Olha para isto! Que maravilha de pisos! Lá não se coisam estradas assim. É tudo em terra batida e muito poeirento. Puf, um horror!"

José contemplou o empedrado da rua, típico do Porto e da Região Norte. Nunca lhe ocorrera que alguém pudesse apreciar daquele modo algo tão simples como o piso de uma estrada. Não havia dúvida de que só se valoriza o que não se tem.

"Porque te matriculaste em Farmácia?", perguntou. "Queres assim tanto ser farmacêutica?"

Ela corou.

"Na verdade queria era ser médica", murmurou em jeito de confissão. "Mas só de imaginar que tinha de coisar num teatro anatómico!... Valha-me Deus! Nunca vi um morto, nem quero ver!" Virou a cara para ele. "E tu? Não te faz impressão?"

José torceu os lábios.

"Nem por isso."

"Nem um bocadinho?"

"Não", disse com uma expressão condescendente, como se lidar com a morte fosse para ele coisa quotidiana. "É um pouco como entrar no talho..."

"Ai que horror!", exclamou Mimicas, tapando a cara com as mãos. "Como é que consegues?"

"É canja."

"Pois eu não sou capaz! Gostava de ser médica, mas nunca conseguiria fazer Anatomia e foi por isso que me matriculei em Farmácia. Ao menos ali não temos de lidar com cadáveres."

"É a única coisa que fazes aqui no Porto? Estudas Farmácia e mais nada?"

"Ora! Já não é pouco! Que mais querias que estudasse?"

"Não digo estudar, mas podes fazer outras coisas. Por exemplo, eu ando no Orfeão. Não gostavas de te inscrever também?"

"Não sei coisar nenhum instrumento."

"Podias cantar..."

A rapariga soltou uma gargalhada.

"Eu? Cantar? Mas não tenho voz nenhuma, Zé. Ia cantar o quê? O fado da esganiçadinha?"

Mimicas entoou umas notas. A voz, habitualmente cristalina, desafinou de imediato e fraquejou por completo quando as notas subiram dois tons, o que fez o amigo rir.

"Está bem, cantar foi uma má ideia", admitiu. "Temos de pensar noutra coisa. Que tal se escreveres? Nós temos agora um jornal humorístico, O Lamiré, e precisamos de textos novos. Como tu és uma pessoa com graça..."

Ela abanou a cabeça.

"Receio não ter jeito nenhum para as artes. Música, escrita, desenho... sou um zero à esquerda. Adoro ler, não perco um coiso da Agatha Christie, mas a minha escrita é uma nódoa."

"É pena..."

"Tu, para compensar, és um verdadeiro artista", lançou-lhe Mimicas num tom jovial. "Mas quer-me cá parecer que o teu verdadeiro talento está nas artes musicais."

"Achas?"

"Claro", exclamou com uma ponta de veneno na voz. "Desde que nos encontrámos que não tens parado de me dar música!"

"Oh! Porque achas isso?"

"Porque vieste ter comigo a dizer que tinhas umas dúvidas de Farmacologia e ainda não me fizeste uma única pergunta sobre o assunto. Afinal que dúvidas são essas?"

Apanhado de surpresa, o amigo enrubesceu e desviou o olhar para um ponto indefinido na rua. Havia pensado em tudo, mas esquecera-se desse pormenor. Que diabo precisava ele de saber para a cadeira de Farmacologia?

"Eu... enfim, fica para a próxima vez, está bem?"

O olhar dela tornou-se ainda mais provocador que o habitual.

"Primeiro vais procurar a tal sebenta?"

"É isso."

A pressa e o alívio evidente com que José agarrou a deixa arrancaram a Mimicas um novo sorriso.

"Não há dúvida", murmurou a rapariga, falando mais para ela própria que para o amigo. "és um músico".

Uma nova rotina instalou-se na vida de José. Quando as aulas acabavam, Mimicas saía da faculdade e, com a pontualidade que decerto herdara do pai, o rapaz cruzava-se "por coincidência" com ela e cumprimentava-a com um sorriso "surpreendido".

"Olá!", dizia invariavelmente. "Por aqui?"

A farsa tornou-se divertida. Se Mimicas vinha acompanhada por uma ou duas colegas, José seguia em frente e desaparecia ao fundo da rua, alheio às risadinhas das raparigas. Mas se por acaso saía sozinha, ao cumprimento seguia-se uma frase que se tornou ritual nessas circunstâncias.

"Oh, não me digas que estás abandonada! Não te apoquentes, eu faço-te companhia até às Doroteias."

Foi como se os passeios dominicais em Penafiel tivessem sido retomados, agora numa outra cidade, com um itinerário novo e um pretexto diverso. O facto é que os giros dos dois da faculdade até à Praça da Paz, onde se situava o lar, eram sempre animados. Nunca lhes faltava tema e, embora fossem pessoas diferentes, pareciam partilhar interesses e um olhar bem-humorado sobre a vida. As conversas abordavam os mais variados assuntos, mas curiosamente, ou talvez não, a matéria constante em Farmacologia nunca foi um deles.

Ao fim de duas semanas, e numa altura em que já nem sequer fingia que a encontrava por mero acaso à saída das aulas, José achou que o terreno estava suficientemente sólido para dar o passo seguinte. Num dos passeios subsequentes, e quando caminhavam lado a lado já perto da Boavista, encostou a mão à dela. Mimicas não reagiu. Encorajado, fez novo encosto uns passos mais adiante e dessa vez tentou enlaçar-lhe os dedos. A rapariga retirou de imediato a mão, mas teve o cuidado de não mencionar o assunto, como se tudo fosse comunicado sem nada ser dito. Ele percebeu que teria de ser mais paciente e refreou a primeira ofensiva.

Os acontecimentos, todavia, em breve se precipitaram. Num dos passeios a meio da semana seguinte cruzaram-se com Ludovina à saída da faculdade. Trocaram sorrisos e cortesias, mas a amiga, embora mantendo um trato polido, lançou-lhes um olhar desconfiado.

Três dias depois, e num outro ponto do itinerário, voltaram a dar de caras com a mesma Ludovina e dessa vez mal conseguiram ocultar o embaraço por se verem de novo apanhados na companhia um do outro em tão pouco tempo.

"Mau, mau", resmungou Mimicas quando se afastaram. "Já não estou a gostar disto."

"É aborrecido", reconheceu o rapaz. "É a segunda vez que a Ludovina nos apanha juntos."

"Isto vai dar falatório. Se calhar é melhor acabares de me coisar à porta da faculdade."

A sugestão quase o indignou.

"Ora essa! Não vejo porquê!..."

"Mas vejo eu!", cortou ela, ainda irritada por terem sido avistados pela amiga. "É melhor pararmos com isto."

Parar era a última coisa que ocorria a José, que quase entrou em pânico ao ouvi-la falar assim. Seria possível que aqueles passeios na sua companhia lhe fossem indiferentes?

"Porquê? Qual é o mal?"

Mimicas deteve-se à esquina e rodou sobre os calcanhares, fitando-o com uma expressão penetrante.

"Porquê? é preciso ter lata!", exclamou num tom inesperadamente acusador, espetando-lhe o indicador com força no peito. "Tu sabes muito bem porquê!..."

"Não, não sei."

"Porque tu tens um problema que precisas de resolver", vociferou Mimicas, elevando a voz quase em protesto por ter de lhe explicar o que a ela parecia óbvio. "E enquanto não o resolveres não vale a pena vires ter comigo, ouviste?"

Deu meia volta e arrancou em passo apressado, deixando assim claro que não desejava ser acompanhada. José ficou plantado a meio do passeio, tentando perceber se havia dito ou feito algo de errado, e abriu os braços num gesto de perplexidade e impotência.

"Mas que problema?"

Ela estacou e olhou para trás.

"O problema a quem davas a mão quando eu e a Ludovina te encontrámos em Cedofeita."

Retomou a marcha e desapareceu ao virar da esquina.

A interrupção daqueles passeios era mais do que José podia suportar. Pela segunda vez na sua vida fora apartado da companhia de Mimicas e a verdade é que se sentia definhar sem ela. Era surpreendente e aterrador, mas percebeu que não podia passar sem a amiga de infância. Chegou a ir esperá-la de novo à porta da faculdade, mas quando ela lhe perguntou se já tinha resolvido "o problema" e ele baixou os olhos a rapariga ignorou-o e seguiu caminho sem lhe prestar mais atenção.

Doeu de tal forma que, ao fim de alguns dias, José chegou à conclusão de que não tinha mais espaço para protelar o que era inevitável. Sentindo-se encostado à parede, reuniu a coragem que habitualmente falta aos homens nos momentos de ruptura e teve com Juliana a conversa a que não havia modo de escapar. Como seria de esperar, a namorada reagiu mal, com lágrimas em abundância e recriminações cuja justeza ele não podia negar, pelo que foi com um sentimento de alívio e alguma culpa que por fim se separou dela e saiu à rua, agora um homem já descomprometido.

Voltou a aguardar Mimicas à saída da faculdade, o espírito leve e a resolução enfim tomada, e logo que a viu, felizmente sozinha, cortou-lhe o caminho.

"Olá", cumprimentou-a. "Queres ir dar um passeio?"

A rapariga lançou-lhe um olhar perscrutador.

"Sabes bem qual é a minha resposta..."

"Vem e não te arrependerás."

O ar estranhamente confiante de José convenceu-a. Concordou com um aceno de cabeça e deixou-se guiar por ele até a um autocarro que os levou pelas ruas do Porto até à Foz.

Acolheu-os o murmúrio cavado do mar. As ondas eram fortes nesse dia, fustigando as paredes do passeio e babando-as de espuma fervilhante. Os salpicos de água sucediam-se ao deflagrar apoteótico das ondas e enchiam o ar de um aroma salgado a mar, borbulhante e quase picante, um odor tão intenso que lhes penetrava nas narinas como um perfume exótico.

"Está bravo", observou José. "Tens frio?"

"Um bocadinho..."

O rapaz indicou um café do outro lado da rua.

"Anda ali ao Caravela."

O café estava quase vazio, como seria de esperar àquela hora naquele local, pelo que puderam instalar-se à janela num lugar com vista privilegiada para o mar e pediram dois galões com torradas em pão de forma.

"Tenho uma novidade para te dar", anunciou ele logo que se viram a sós. "Acabei o namoro com a Juliana."

Mimicas soergueu o sobrolho.

"Isso quer dizer o quê?", perguntou com cautela. "Que vais voltar a esperar-me ao fim das aulas e coisar-me até casa?"

O rapaz respirou fundo. Tinha passado a véspera a ensaiar o discurso, mas, como sempre sucedia naquelas ocasiões, de repente a garganta havia-lhe secado, o coração disparara e a memória atraiçoava-o. Nos ensaios as palavras escorriam como mel, parecia que fluíam por um ribeiro gorgulhante e límpido, mas nesse momento, em que chegara a hora da verdade, encravavam e encavalitavam-se umas nas outras, transformando o seu discurso num arrazoado hesitante e trapalhão. O melhor, concluiu, era manter a coisa simples.

"Podia dizer-te o que planeei para esta ocasião", balbuciou, engolindo duas vezes em seco e afastando os olhos, talvez demasiado envergonhado para a fitar. "Que sonhei contigo e que quando acordei descobri que estava apaixonado. Podia dizer-te isso e muito mais, e sempre com palavras bonitas. Mas a verdade é que isso não aconteceu." Neste ponto o discurso tornou-se mais escorreito e o olhar deixou de fugir para se cravar nela. "Ou melhor, não aconteceu agora. A verdade é que foste a minha primeira paixão. Avistei-te um dia na varanda de tua casa e foi como se me tivessem roubado o ar. Não descansei enquanto não te voltei a ver e de cada vez que te via tinha mais e mais vontade de te ver outra vez. E quando partiste foi como se tivessem arrancado uma parte de mim. Não o sabia ainda, mas levaste-me o coração. Partiste para África e, sem que eu mesmo o soubesse, o meu coração partiu contigo." Voltou a engolir em seco. "Sempre tive a consciência de que foste a minha primeira paixão. Mas o que eu não sabia, e só agora soube, é que foste também a única." Pôs a mão sobre a mesa, como se pedisse autorização para a aproximar dela, e sentiu o suor brotar-lhe inadvertidamente do topo da testa. "O que eu queria... o que eu quero saber é se... se aceitas que eu... enfim, que nós nos tornemos namorados."

Quedaram um longo momento a fitar-se, ele expectante e nervoso, ela com a expressão marota a bailar-lhe nos olhos, deixando prolongar a dúvida até aos limites do suportável, até ao instante em que o tempo se suspendeu e por fim o sorriso lhe aflorou aos lábios e o braço pousou na mesa para lhe tocar a mão com a mão. Não foi um "sim", mas foi como se fosse. A tarde adormecia cinzenta, embalada pela luminosidade metálica que o céu de cobre projectava na cidade e pelas nuvens carregadas que deslizavam baixas, tingindo de sombras as ruas do Porto. Logo nesse fim de tarde foram os dois avistados no eléctrico sentados lado a lado, comportamento reservado aos casalinhos, e de imediato a notícia se espalhou pela Casa das Doroteias, pelas duas faculdades e pelo Orfeão. José e Mimicas namoravam.

A novidade não caiu muito bem. A rapariga foi acusada de "roubar o namorado" à pobre da Juliana, moça de grandes virtudes e por todos estimada. A acusação doeu a Mimicas, que clamava inocência e repetia a quem se dispunha a ouvi-la sobre o assunto, e sempre sem faltar à verdade, que não, que ele é que se aproximara, que ela lhe dissera que não achava bem aquela aproximação tendo ele uma namorada, que ele é que acabara com a namorada, que ele estava livre quando ela lhe disse que sim, embora na verdade nunca lhe tivesse dito que sim, limitara-se a sorrir e a consentir quando ele a pedira em namoro no Café Caravela e ao lado o mar, ele sim, soprara que sim."Ora querem lá ver isto?", queixou-se ao namorado. "Agora sou vista como uma ladra!..."

O falatório, porém, não incomodou José, cuja mente se ocupava já com o problema seguinte. Desde que Maria Imaculada o despertara para os prazeres da carne que sabia que tinha de alimentar o monstro a quem as suas calças davam apertada guarida. É certo que era Mimicas a verdadeira dona do seu coração, e que os assuntos do coração lhe pareciam de certo modo dissociados dos da carne, mas isso não fazia dela a Virgem Maria, até porque ele se chamava José e tinha responsabilidades bíblicas.

Neste capítulo, contudo, Mimicas revelou-se particularmente difícil. Começou por resistir aos beijos, intimidade que aliás nesse tempo era reservada aos mais afoitos ou às relações mais amadurecidas, o que deixou José consternado. Pois se ela montava tão acirrada resistência a uma coisa tão simples quanto um mero beijo, como seria com o resto?

Para lhe aguçar o desejo adoptou outras tácticas, como abraçá-la de modo que ela sentisse o volume que ele escondia entre as pernas. Depois passou a andar com calças de tal modo apertadas que lhe acentuavam as já de si avantajadas formas masculinas, na esperança de lhe acicatar o interesse.

No entanto, a namorada não pareceu reagir a esses incentivos, o que o deixou deveras intrigado. Estaria ele a perder qualidades? Haveria algo de errado com ela? Porque não se sentiria atraída por toda aquela virilidade que a tantas outras seduzia? Estaria alheada dos prazeres da carne? Com o tempo foi concluindo que a resposta certa a esta última pergunta era a afirmativa, e por uma razão muito simples: Mimicas mantinha-se virgem. Como nunca explorara aqueles territórios da geografia do corpo e do assunto apenas fazia uma pálida ideia, não se sentia tentada. Pior que isso, reagia mal às investidas que ele lhe lançava com crescente despudor.

"Deixa-te dessas coisas", rematava após cada rejeição. "Vai mas é estudar!"

A noite havia sido de festa na Casa das Doroteias e, como sempre nessas ocasiões, cabia às próprias estudantes internas a responsabilidade de, no dia seguinte, proceder a limpezas e arrumações. O regulamento proibia a entrada de rapazes nas instalações, como aliás era de bom-tom e adequado a uma instituição tão respeitável quanto aquela, mas esse dia era uma excepção, até porque havia certos trabalhos que requeriam o músculo masculino.

Foi assim que, nessa ocasião, José acabou por ver-lhe abertas as portas do lar. Perguntou por Mimicas e, seguindo as indicações, foi dar com ela na cozinha.

"Deixaram-te entrar?", admirou-se a rapariga quando o viu.

"Disse-lhes que te vinha ajudar", explicou o namorado. "Foi boa, a festa?"

"Uma maravilha", exclamou com um sorriso alegre, que depressa se transformou numa expressão de comiseração. "Mas comi de mais. Estou tão arrependida..."

"O que estás a fazer?"

A moça exibiu a coluna de pratos sujos que se erguia do lavatório num equilíbrio periclitante, como uma rudimentar Torre de Pisa.

"Estou a coisar a loiça, não vês?"

"Queres ajuda?"

A pergunta suscitou espanto em Mimicas, que lhe atirou um ar desconfiado.

"Tu? Ajudares a lavar os pratos? Desde quando?"

"Desde que tu queiras. Queres ou não?"

"Claro que quero."

Mimicas deu um passo para o lado, abrindo espaço para ele também lavar a loiça, mas o comportamento do namorado deixou-a desconcertada. Em vez de se aproximar, deu meia volta e sumiu-se no corredor. Reapareceu menos de um minuto mais tarde com uma guitarra nas mãos. Pegou numa cadeira da copa e arrastou-a até ao centro da cozinha. Depois pôs um pé sobre o assento à maneira de um conquistador, arregaçou as mangas e, em soberba pose de trovador, começou a tocar.

Eu voooou

Cantaaar .

O Hilário,

Fadinho...

"Olha lá", interrompeu-o Mimicas, as mãos nas ancas em postura indignada. "O que estás a fazer?"

Com o tronco inclinado sobre a guitarra, uma melena castanho-escura a descair sobre a testa e os olhos colados às cordas que dedilhava com mestria, José parou de tocar e alçou até ela a expressão de surpresa que lhe acendia a face, como se a pergunta não fizesse sentido e a resposta fosse por demais evidente.

"Estou a ajudar-te a lavar a loiça."

Cedo Mimicas percebeu que José era um homem do seu tempo e, no que à cozinha e aos deveres domésticos dizia respeito, as suas responsabilidades começavam e acabavam na parte em que fazia de comensal ou se estendia no sofá. Não era pessoa para sujar nem desarrumar, mas também não limpava nem arrumava.

Não que isso incomodasse a namorada, também ela uma rapariga do seu tempo. As divisões de tarefas em função dos sexos revelaram-se um assunto consensual. Ambos se consideravam pessoas modernas e desempoeiradas, mas havia áreas em que a tradição se impunha. As lidas domésticas eram uma delas e neste particular Mimicas não conseguiu mudá-lo. Nem aliás o tentou ou sequer quis.

Se houve influência que exerceu em José foi sobretudo na prioridade dada ao curso. As manhãs de preguiça, as tardes de paródia e as noitadas de fadinho, copos e farra chegaram ao fim, assim como o desleixo nos estudos. E tudo de um momento para o outro, conduzido por Mimicas com pulso de ferro.

O sinal de que neste capítulo as coisas iam mudar foi dado logo na primeira tarde que combinaram passar juntos para estudar. O local acordado foi o Ancora de Ouro, o café preferido dos estudantes do Porto, por ser, segundo se dizia, o melhor sítio da cidade para se "rever a matéria", expressão cujo real sentido parecia diferir em função de ser escutada na boca de um rapaz ou de uma rapariga.

O Âncora de Ouro estava nesse dia, como aliás sempre, repleto de estudantes, tantos que pareciam piolhos, o que de resto valera ao café a alcunha de "O Piolho". Uma nuvem de fumo pairava sobre as mesas, tal como um burburinho incessante, e os dois recém-chegados tiveram de aguardar dez minutos até encontrarem uma mesa livre, no canto junto à parede e ao lado do quiosque, lugar habitualmente reservado aos estudantes de Medicina. Os de Ciências aglomeravam-se à entrada, como era seu hábito, enquanto os de Engenharia e os de Economia se sentavam no outro extremo, próximo do espelho.

Mimicas depositou uma pilha de livros sobre a mesa e logo que o namorado pediu os cafés pegou no primeiro exemplar e começou a folheá-lo com um lápis na mão para as anotações.

"Sabes aquela do Zequinha das Campainhas?", perguntou José.

"Hmm"

"O menino Zequinhas queria muito ser conhecido no seu prédio por Zequinhas das Campainhas. Vivia no terceiro andar e todos os dias, quando descia para ir para as aulas, tocava à campainha do vizinho do segundo, do primeiro e do rés-do-chão. Quando voltava à tarde..." "Zé..."

"... tocava à campainha do vizinho do rés-do-chão, do primeiro andar e do segundo andar. À tarde, à hora de ir pôr o lixo, descia e tocava à campainha do vizinho do segundo andar, do primeiro..." "Zé!"

O tom peremptório da namorada e o seu olhar severo obrigaram José a interromper a anedota.

"Não queres ouvir? Olha que tem graça!..."

"Contas-me à hora do lanche." Voltou a pegar no livro. "Vá, agora está na hora de estudar."

O rapaz ficou uns segundos a vê-la sublinhar palavras no volume que tinha em mãos.

"Não conheces a história da cigarra e da formiga?", quis saber. "Para que a formiga trabalhe é preciso que a cigarra a anime..."

"Já te armaste em cigarra no outro dia, quando eu estava a coisar a loiça. Agora é hora de te transformares em formiga." Fez sinal para os livros. "Vá, estuda."

O silêncio voltou àquele recanto. Mimicas recomeçou a ler e a sublinhar o seu livro, enquanto José tamborilava com os dedos na mesa à procura de algo que o distraísse. Passeou os olhos pelo Piolho e admirou o empregado que ziguezagueava nervosamente entre as mesas a equilibrar em cada mão duas bandejas repletas de chávenas de café.

"Já viste o..."

"Estuda!"

E foi assim, a toque de caixa e com rédea curta, que Mimicas o foi domesticando nos estudos. Quase proibido de falar nas horas em que a namorada estudava, José percebeu que teria de ocupar esse tempo morto, sob pena de ter de aguentar tardes insuportavelmente monótonas, e passou a fazer-se acompanhar das sebentas e dos compêndios de Medicina.

"Qualquer dia", resmungou entre dentes enquanto folheava um manual de Anatomia, "até aprendo a porra do mastoideu!..."

O facto é que a fórmula funcionou e em pouco tempo José adquiriu a disciplina de trabalho que lhe faltava e que o ajudou a ganhar embalo nos estudos. Não que se tenha tornado um aluno exemplar, mas o facto é que os doze e treze valores se tornaram mais comuns do que os anteriores dez e onze, além de que deixou de ter negativas. Por outro lado, transformou-se numa espécie de papa-disciplinas. De apenas sete disciplinas passadas nos dois primeiros anos saltou para as vinte nos dois últimos anos, recuperando completamente o atraso. É certo que as cadeiras eram agora sobretudo práticas, o que ia mais de encontro aos seus interesses, mas isso não impediu que a mudança tivesse sido mirabolante.

O problema é que Mimicas teimava em recusar-lhe os avanços da carne, por mais persistentes que fossem os seus argumentos e imaginativas as suas tentativas.

"Vá lá, só desta vez", dizia sempre que passava mais uma disciplina. "É um premiozinho..."

"O prémio é o curso que vais tirar à custa do estudo."

A resposta de Mimicas tornou-se exasperante e o namorado já não sabia o que havia de fazer à frustração que se lhe acumulava no corpo. O monstro que escondia entre as pernas exigia-lhe aquilo a que se habituara com Maria Imaculada e não reagiu bem à dura provação, sendo que "dura" é decerto a palavra mais adequada para descrever a situação que vivia.

"Mas porquê? Porquê?"

"Já te disse", repetiu ela vezes sem conta. "Essas coisas só depois do casamento."

José já percebera que a namorada era tão inexperiente que parecia ter apenas uma vaga ideia do que a expressão "essas coisas" significava exactamente. Mas isso, longe de o consolar, desesperava-o ainda mais. Ninguém deseja o que desconhece, pelo que não tinha modo de lhe demonstrar que o fruto que naquele instante ela desdenhava era daqueles capazes de levar à loucura qualquer outra. Como fazer-lhe entender isso?

Foi a meio do quinto ano, quando sentiu que já não suportava mais tempo a longa abstinência, que tomou a decisão. Decorria o Inverno e José tinha ensaio no Orfeão durante toda a tarde, pelo que ficou combinado que depois das aulas Mimicas iria ter com ele.

Tudo correu normalmente à hora marcada, com a rapariga a entrar na sala de concertos e a sentar-se num canto do fundo enquanto os orfeonistas terminavam de ensaiar uns fados de Coimbra. A fase final do ensaio não excedeu a meia hora. Mimicas mantinha os ouvidos na música e os olhos na sebenta, espreitando ocasionalmente o namorado para o ver dedilhar a guitarra ou escutá-lo a cantar umas estrofes.

O ensaio terminou por fim e o grupo dispersou-se rapidamente. Já se fazia tarde e a hora do jantar aproximava-se. Mimicas levantou-se do seu lugar e abeirou-se do palco para acolher o namorado. O problema é que José se demorou tanto a guardar a guitarra que só ficou pronto quando os outros saíram. Foi então que fez uma coisa inesperada. A rapariga viu-o varrer a sala com o olhar, aparentemente para se certificar de que se encontravam sozinhos, e depois virar as costas à plateia vazia, como se não tivesse qualquer intenção de abandonar o palanque, e sentar-se ao piano.

"Ó Zé", impacientou-se Mimicas, "o que estás a coisar?"

"É só mais uma musiquinha."

"Despacha-te! Tenho uma fome de lobo!"

"Senta-te e escuta", recomendou ele. "O que vou agora tocar é dedicado a ti."

A rapariga respirou fundo e, enchendo-se de paciência, acomodou-se numa cadeira da primeira fila. Anoitecera e já estava ansiosa por se instalar à mesa para jantar; ainda por cima o ensaio impedira-a de lanchar. O comportamento misterioso do namorado, porém, deixou-a intrigada. Teve uma certa curiosidade de saber que música era aquela que justificava tal encenação.

Com ares de dono do palco, José contemplou um longo momento o imponente piano de cauda, como se o quisesse seduzir e tivesse todo o tempo para o fazer, abriu os braços à maneira de um pássaro que se preparasse para se lançar no vazio e, respirando fundo, baixou devagar as mãos sobre a fileira de teclas macias. Dava a impressão de estar hipnotizado pelo reluzir delicado do marfim que cobria as teclas brancas no contraste com o ébano que adornava as negras. O tronco do rapaz vacilou no derradeiro instante de silêncio, no que parecia um frémito de prazer antecipado, e ao pousar enfim os dedos nas teclas, como se as quisesse acariciar, extraiu delas os primeiros sons, notas fortes e ritmadas de uma melodia solene que Mimicas identificou nos primeiros segundos.

A marcha nupcial.

Casaram-se no Verão. A data foi escolhida para aproveitar a viagem à Metrópole da mãe de Mimicas, funcionária dos Correios no Mindelo que gozava esse ano uma licença graciosa.

A cerimónia decorreu na pequena capela de Singeverga, o mosteiro beneditino de Santo Tirso, cujo abade era o primo Gabriel. Foi este familiar de José, aliás, quem celebrou a missa e consagrou o matrimónio, tudo feito em obediência à tradição, aos bons costumes e aos cânones dos casamentos das boas famílias católicas do Norte de Portugal. A família em peso marcou de resto presença, incluindo os primos afastados que vieram de Trás-os-Montes. A excepção foi a irmã Lourdes, que casara quando José fora para a universidade e entretanto havia seguido para Angola com o marido e os filhos, que lhe começaram a nascer em rajada.

O noivo viveu a cerimónia num estado de excitação latente. Os pruridos vitorianos de Mimicas constituíram uma espécie de voto de castidade que se prolongou por todo o tempo de namoro e que tornaram mais apetecível o prazer supremo de que ela tão zelosamente o privara. Houvera momentos em que José se sentira de tal modo desesperado que considerara até a possibilidade de romper a relação, mas, logo que os calores do monstro arrefeciam, caía em si e rejeitava liminarmente a ideia. A namorada era a sua primeira paixão, na verdade a única que tivera, e intuía que perdê-la seria um desastre do qual jamais conseguiria recuperar. O casamento trouxe-lhe a solução para o problema. Se tinha já percebido que aquela era a mulher da sua vida, porquê adiar o inevitável? De resto, alimentava a mais profunda convicção de que, logo que provasse o fruto que até aí havia tão insensatamente desdenhado, Mimicas despertaria de vez para os prazeres por ela desconhecidos. E esse despertar, não o esquecia em instante nenhum, iria suceder dentro de apenas algumas horas, quando abandonassem o copo-d'água no Mosteiro de Singeverga e fossem para o hotel do Porto onde passariam a noite de núpcias.

A perspectiva do fim do longo jejum deixou o monstro em estado de alerta máximo desde manhã. José não o podia controlar e teve de suportar toda a cerimónia na capela e depois no salão onde decorreu o copo-d'água com um descomunal e embaraçoso chumaço a atrapalhar-lhe o andar, pormenor por demais embaraçoso e evidente para todas as senhoras presentes na capela e objecto de inúmeros sussurros de indignação e não poucos suspiros de cupidez. Se não de observação directa, pelo menos de reputação, quase todas as mulheres presentes estavam a par dos valentes atributos com que o noivo havia sido abençoado pela natureza, ou talvez até pelo próprio Senhor, na Sua infinita munificência.

Muitos foram por isso os olhares de cobiça feminina lançados ao longo das cerimónias do casamento na direcção daquele volume tão inconvenientemente protuberante nas calças do smoking do noivo em hora tão solene. Mas, mais do que cobiça, o que aqueles esgares denunciavam era uma incontrolável inveja da até aí casta Mimicas, a quem a inocência e a candura providencialmente mantinham na ignorância do que a sorte lhe destinara por via daquela união.

O copo-d'água pareceu ao noivo interminável, tão curta era a sua paciência e tão grande a vontade de pôr fim ao longo jejum do corpo. Como era natural e de elementar bom gosto, os convidados evitaram fitar-lhe ostensivamente o ventre dilatado, por maior que fosse a tentação e o efeito de atracção magnética que exercia sobre os seus olhos, e procuraram distrair a mente e enganar a tentação com perguntas sobre os seus planos de vida.

Uns queriam saber se iria estabelecer-se no Porto, outros perguntavam-lhe se planeava abrir consultório em Penafiel, houve até quem sugerisse que fossem para Castelo de Paiva, e a todos se foi esquivando com respostas mais ou menos evasivas.

No entanto, quando foi o pai a lançar-lhe as mesmas perguntas, ou outras do género, não viu modo de se furtar às respostas. O capitão Branco era ainda quem lhe pagava as contas. Além disso era o pai, e como se poderia esquivar às perguntas que o pai tão legitimamente lhe fazia?

"Nem Porto nem Penafiel", retorquiu, abrindo enfim o jogo quanto aos seus planos. "Vou para Lisboa."

"Lisboa?", admirou-se o pai. "Fazer o quê? Não estás melhor aqui no Norte, ao pé da família? Para que precisas tu de ir lá para baixo?"

"Para tirar a minha especialidade", esclareceu José. "Não existe cá no Porto."

O capitão lançou ao filho uma expressão intrigada, até desconfiada.

"Que raio de especialidade é essa que só existe em Lisboa? Preguiçatria?"

"Medicina Tropical."

A desconfiança cedeu lugar ao pasmo.

"Isso não é paludismo e febre-amarela e coisas do estilo? Para que queres tu tirar Medicina Tropical? Que eu saiba essas doenças esquisitas não existem por cá..."

"Pois não. Mas existem no sítio para onde quero ir."

O pai arregalou os olhos, tomando finalmente consciência do que José tinha em mente.

"Não me digas que vais para o Ultramar?!"

O rosto do filho abriu-se num largo sorriso luminoso, como o de uma criança a quem se exibe um caramelo.

"Moçambique."

 

Cortou o ar, ao mesmo tempo alegre e sorumbático, e o casal Branco despediu-se da multidão que acenava do cais. Não que José ou Mimicas conhecessem alguma das centenas de pessoas que se acumulavam em Alcântara para dizer adeus aos que partiam; sempre tinham visto nos filmes americanos as largadas dos paquetes serem feitas de acenos efusivos e não se sentiriam verdadeiros viajantes transatlânticos se não participassem naquele ritual coreográfico.

O casario branco de telhados vermelhos parecia abraçar o vasto lençol de água, sereno e prazenteiro, mas foi ficando mais pequeno à medida que o Infante D. Henrique se retirava com imponência do Tejo e ia deixando Lisboa esfumar-se para trás. Levantou-se então uma brisa salgada, fresca e desagradável, e Mimicas, sempre friorenta, apertou a aba do casaco para se proteger.

"Está frio, Zé", queixou-se. "Vamos lá para dentro."

Por esta altura já a maior parte dos passageiros se havia recolhido ao interior, devidamente aquecido em todos os compartimentos. O casal seguiu-lhes o exemplo e foi explorar o magnífico navio. O Infante D. Henrique era a jóia dos paquetes da carreira de África, embarcação de linhas elegantes e modernas e interior de um luxo nunca visto; o transatlântico acabara de se estrear e revelava-se tão soberbo que havia quem o criticasse por ser "bom de mais".

"Que maravilha!", repetia Mimicas sempre que se deparava com um novo pormenor rutilante do esplêndido navio. "Mas que maravilha!"

O marido havia adquirido bilhetes de primeira classe para celebrar condignamente o virar de página nas suas vidas e ambos fruíram o momento com a consciência de que o deveriam saborear em pleno. O prazer começou logo no vestíbulo da classe, um espaço decorado com uma estátua do infante D. Henrique de bronze revestido a ouro e com uma pintura do planisfério de Mecia de Viladestes como imagem de fundo.

"Sabes o que mais me impressiona?", observou Mimicas ao descer a majestosa escadaria do átrio central. "A estabilidade. Se olhares lá para fora vês que o mar está agitado, não é? Mas aqui... chiça!, até parece que estamos em terra!..."

"É dos estabilizadores", explicou o marido com ar de entendido, embora se limitasse a papaguear o que lera num folheto da Companhia Nacional de Navegação. "É um sistema avançado que neutraliza o balanço da ondulação."

Percorreram o paquete de uma ponta à outra, incluindo os sectores das classes turística A e turística B, e em duas horas visitaram os quatro grandes salões, os três restaurantes, a biblioteca, a sala de escrita e, curiosidade de médico, até o hospital. Por toda a parte o casal se deparou com uma decoração requintada em espaços amplos e bem iluminados, as grandes janelas a abrirem-se para o oceano imenso, como se o mar fosse um quadro e o navio o museu que o exibia.

O passeio prolongou-se até ser interrompido por um esgar de Mimicas.

"Estou com larica...", queixou-se. "Quando é que se coisa?"

O marido consultou o relógio.

"O jantar? É agora."

Depois de uma rápida passagem pelo camarote, situado na segunda vigia a estibordo, para mudarem para trajos mais selectos, subiram ao restaurante e acomodaram-se nos assentos que lhes foram designados para o jantar. Na mesa estavam já os dois casais que lhes fariam companhia ao longo de toda a viagem, uma vez que era política do Infante D. Henrique sentar os comensais sempre nos mesmos lugares; parece que isso facilitava o serviço. Além do casal Branco, aquela mesa juntava o casal Silva e os dois filhos e o casal Rouco.

"Sabem o que isto me faz lembrar?", perguntou o médico depois de se instalar. "Um paquete da linha Cunard!"

"Qual Cunard? A do Titanic?"

O gracejo foi atirado por Domingos Rouco, que com a mulher formava a parelha mais exótica do navio. Domingos era um homem corpulento e tranquilo; vestia um fato de linho claro que, embora de bom corte, lhe acentuava a imensidão do corpo. Já a mulher, Albertina, era uma rapariga pequena e magra, de cabelo curto e com um olhar agitado a saltitar pela mesa. Não poderia haver casal mais contrastante: ele grande e sereno, ela minúscula e nervosa. Mas o que os tornava realmente singulares é que Domingos era negro e Albertina branca.

"Sim", riu-se José Branco. "Mas sem icebergues."

"Nestas águas não há esse perigo", devolveu Domingos, lançando um esgar mordaz na direcção do casal Silva. "Aqui é mais tubarões!..."

Silva estreitou os olhos e espiou Domingos com uma expressão indefinida. Era um homem pequeno de cabelo liso e olhar arguto, talvez até desconfiado, que respondeu por monossílabos evasivos quando o médico quis saber o que fazia na vida.

"Sou polícia."

De si nada mais revelou, a não ser o seu nome próprio, Aniceto, o da mulher, Graciete, e que era nascido no Porto, "mas adepto do Benfica", afinidade importante que encheu as conversas monotemáticas que manteve à mesa o resto da viagem com José Branco.

Como os quatro Silva, os pais e os dois filhos, eram mais de ouvir do que de falar, os Branco aproximaram-se dos Rouco e o que se passou entre os dois casais foi um caso de simpatia à primeira vista.

"Este barco é realmente espantoso", observou Albertina. "Já passaram pela capela?"

A pergunta extraiu uma expressão surpreendida de Mimicas.

"Ai sim? Existe uma capela? Com coiso e tudo?"

"Duas capelas. E, imaginem!, os altares de ambas são feitos com pedra do promontório de Sagres."

"Ah! Que maravilha! Eu e o Zé percorremos o paquete de fio a pavio mas não as vimos. Onde são? Não me digam que é depois do... do coiso."

"Esta noite levamos-vos lá para verem."

"Esta noite não, que há bingo", disse Mimicas. "Que tal amanhã de manhã?"

"Só se for à tarde. De manhã quero ir ao cabeleireiro."

"O quê? Também há cabeleireiro?"

"Não sabia? Ai que não viu bem o paquete! Olhe, se quiser vamos juntas."

Mimicas passou as mãos pelo cabelo, testando-lhe o volume.

"Combinado."

Os dois casais tornaram-se inseparáveis ao longo do resto da viagem. Encontravam-se pela manhã na piscina do paquete, davam à tardinha passeios pelo deck e depois do jantar juntavam-se nas jogatinas que se desenrolavam no salão de jogos.

Pelo fio das conversas percorreram a vida de cada um e foi assim que o casal Branco soube que Domingos Rouco tinha nascido em Inhambane, estudado em Tomar e tirado Direito na Universidade de Lisboa. Havia-se cruzado na faculdade com Albertina, a alentejana com quem casara dias antes de embarcar no Infante D. Henrique, e estava de regresso a casa para ir trabalhar em Lourenço Marques como consultor jurídico do Banco Nacional Ultramarino.

"Existem muitos juristas... uh... moçambicanos?"

A pergunta foi feita por José Branco uma manhã, já depois das escalas no Funchal e no Príncipe, e quando o paquete deslizava pelas águas quentes do golfo da Guiné rumo a Luanda. Mimicas e Albertina tinham ido para a biblioteca e deixaram os dois homens estendidos nas espreguiçadeiras junto à piscina.

"Quando dizes moçambicanos", observou Domingos Rouco com um leve sorriso irónico, "presumo que te estejas a referir a negros."

O médico engoliu em seco; era a primeira vez que aflorava a questão racial nas conversas com o novo amigo.

"Pois... sim, é isso."

Domingos enlaçou as mãos por trás da cabeça e, esticado na espreguiçadeira, fitou o céu. O tempo estava ameno e o imenso azul-claro do firmamento matinal era apenas rasgado por um ou outro farrapo de nuvens.

"Sou o primeiro advogado negro de Moçambique."

"A sério?"

"É verdade. E sou apenas o segundo negro moçambicano a tirar um curso superior."

A revelação deixou José Branco pensativo. Sempre supusera que os africanos eram gente primitiva, à semelhança do primeiro negro que vira na vida, o homem seminu exibido num pavilhão africano da Exposição do Mundo Português. Essa imagem fora reforçada ao longo do tempo pelas fotografias das revistas, pelo cinema e até pela expressão indígena, usada amiúde para descrever os povos de África.

O encontro com Domingos na mesa de jantar da classe no melhor paquete da Companhia Nacional de Navegação obrigou-o a rever o que até ali dava como certo. Os indígenas podiam afinal ser doutores? E porque não? Com base naquele exemplo passou a imaginar que haveria decerto outros casos semelhantes em Moçambique. A constatação forçou-o a retornar à primeira imagem, a do negro seminu da exposição, o que, percebeu, o deixava desconfortável. Domingos era tudo menos um primitivo; revelava-se aliás muito mais inteligente, culto e bem-falante do que a esmagadora maioria dos brancos que conhecia.

"Estás, portanto, a desbravar caminho", observou o médico. "Atrás de ti virão com certeza outros."

Domingos soltou uma gargalhada.

"Talvez alguns. Mas, para ser franco, nunca passaremos de um punhado."

"Não sei porquê."

"Por causa do racismo, Zé."

O médico passou a mão pelo queixo, na dúvida sobre se deveria aceitar aquela afirmação ou contestá-la.

"Sempre ouvi o regime dizer que Portugal vai do Minho a Timor e que todos os seus habitantes, independentemente da cor ou do credo, são Portugueses. Não me parece um conceito racista."

"Digamos que eles alindaram a coisa", observou Domingos. "Mas isso não passa de uma mistificação, claro. Se todos somos igualmente portugueses, por que razão sou apenas o segundo negro moçambicano a tirar um curso superior? E por que razão, se são portugueses como os outros, os negros se vêem discriminados? É óbvio que essa conversa não passa de propaganda barata."

"Há muito racismo em Moçambique?"

O advogado ergueu o tronco, apoiando-se nos cotovelos.

"Oh! Então não há?! De um ponto de vista formal, Portugal não parece ser um país racista. Aceito até que se diga que os Portugueses são o povo menos racista que se pode encontrar na Europa. Mas o racismo existe nos costumes, no tratamento do dia-a-dia e também, de uma forma subreptícia, na própria lei."

"Na lei como?", admirou-se José Branco. "Existe alguma lei, por exemplo, que diga que um branco pode fazer uma coisa e um negro não pode?"

"Não", acedeu Domingos. "Não existem de facto leis especiais para brancos ou negros."

"Mas nos Estados Unidos existem, como sabes. Eles até têm leis raciais e espaços públicos onde os negros não podem entrar."

"Pois, isso não existe formalmente em Moçambique, é verdade. Mas olha que acontece na prática. Há escolas em Lourenço Marques só frequentadas por brancos, por exemplo. De um ponto de vista jurídico, no entanto, a coisa funciona de outra maneira: faz-se a discriminação racial pela via da discriminação por classes sociais."

"Não estou a perceber..."

"É muito simples. Qualquer negro pode ter os mesmos direitos de um branco desde que faça prova de que é civilizado. Chamam-nos assimilados. Um negro tem de provar que goza de estabilidade económica e de um nível acima da média portuguesa. Tem de viver como um europeu, pagar impostos, cumprir o serviço militar e ler e escrever correctamente o português. Se fizer tudo isto, será classificado como assimilado e terá os mesmos direitos que um branco."

"Como acontece contigo."

"Sim, eu sou um assimilado."

O médico esfregou o queixo, considerando o que acabara de ouvir.

"Bem, assim à primeira vista isso até faz sentido. Uma pessoa que vive numa palhota e anda na rua de tanga dificilmente se poderá considerar civilizada, não te parece?"

Domingos sentou-se na espreguiçadeira e ajeitou o boné de modo a garantir que a pala lhe protegia os olhos do sol.

"Achas que sim?", perguntou o advogado em tom retórico, como se fosse de repente transportado para a barra do tribunal e tivesse acabado de apanhar uma testemunha em falso. "Então deixa-me explicar-te uma coisa. Eu tenho vivido estes últimos anos na Metrópole. Estudei em Lisboa, a grande cidade, mas também em Tomar, onde tive contacto com a realidade da província. Sabes o que vi? Um país atrasado. As estatísticas mostram que quarenta por cento dos Portugueses são analfabetos e que o nível de vida de que gozam é o mais baixo da Europa.

Quer isto dizer que, se submetessem os metropolitanos aos critérios civilizacionais que se aplicam em África para reconhecer os assimilados, quase metade dos Portugueses não teria sequer direito ao estatuto de assimilado! Estás a entender isto?"

José Branco esboçou uma expressão desconcertada.

"Pois...", gaguejou. "Quer dizer, visto desse prisma... realmente!..."

"Então porque se aplica a distinção entre assimilado e não civilizado em África?", questionou. "Porque não se aplica a mesma distinção na Metrópole? A resposta só pode ser uma: essa distinção é racial."

O médico assentiu; era a primeira vez que reflectia no problema desse ângulo.

"Admito que sim. De qualquer modo, tens de reconhecer que existe uma influência civilizadora de Portugal em África."

Domingos riu-se.

"Olha, vou contar-te uma história", disse, mudando de tom. "Lá em Inhambane existia um tipo que veio da Beira Interior e que montou uma farme no meio do mato. O gajo trouxe lá das berças a mulher e pôs-se a criar gado em Moçambique. Sabes quem é que lhe lia a correspondência e lhe escrevia as cartas? O criado! O preto tinha estudado numa missão católica e sabia ler e escrever, mas o patrão não."

"A sério?"

"A África portuguesa está cheia disto, Zé! Os colonos metropolitanos não têm cultura, não têm instrução e não têm dinheiro. Se se partir do princípio de que os povos de maior civilização devem colonizar os povos pouco civilizados, então Portugal tem também de ser colonizado! Só por milagre um país assim consegue ter uma influência civilizadora sobre quem quer que seja."

Foi a vez de José Branco se erguer da espreguiçadeira e se sentar.

"Espera aí!", atalhou. "Que eu saiba isso mudou! Não existe uma lei que impede a ida para África de indivíduos que não tenham pelo menos a terceira classe?"

"Existe sim", confirmou o advogado. "A emigração de analfabetos até pode ter diminuído, mas olha que não parou. A questão, porém, é que Portugal é um país atrasado que anda armado em grande civilizador." Encolheu os ombros. "De qualquer modo isso é lateral para o tema do racismo. O problema central é que os negros são discriminados na sua própria terra. Repara: apenas 0,3 por cento da população negra da África portuguesa é considerada assimilada. Os restantes 99,7 por cento são descritos como não-civilizados. Ora o que prevê a lei para os não civilizados? Nada. O que quer dizer que eles têm tantos direitos como... como o gado, por exemplo. A administração colonial pode pegar num não civilizado e forçá-lo a trabalhar, se quiser. Ou pode exportá- lo para a África do Sul como mão-de-obra, como se fosse uma máquina. Com este tipo de comportamento, como se pode esperar que as pessoas não se revoltem?"

Esta última pergunta, embora retórica, ficou a revolutear no ar, carregada de insinuações.

"Estás a referir-te a quê?", perguntou José, admirado. "Houve alguma revolta?"

"Claro que houve uma revolta. As pessoas não podem aceitar certas coisas!.."

"Mas quando é que houve revolta? Onde? Nunca ouvi falar nisso..."

"Nunca ouviste falar porque não convém ao regime que se fale", argumentou Domingos. "Mas aconteceu o ano passado em Moçambique. Os agricultores macondes protestaram lá no Norte, em Mueda, e a tropa portuguesa abriu fogo sobre a multidão. Morreram seiscentas pessoas."

O médico esboçou uma expressão incrédula.

"A tropa matou seiscentas pessoas no ano passado?"

"Sim, senhor!"

"Seiscentas? Contaram os cadáveres um a um?"

A pergunta atrapalhou o advogado.

"Bem... não."

"Então como sabem que morreram seiscentas pessoas?"

"Pela contagem do número de bicicletas abandonadas."

A incredulidade do olhar de José deu lugar a um esgar carregado de cepticismo.

"Desculpa, mas não me parece um método lá muito fiável para contabilizar mortos", observou. "Quantos cadáveres foram efectivamente identificados?"

"Acho que dezassete", admitiu Domingos. "Mas, seja qual for o verdadeiro número, foi uma revolta. E resultou numa matança de civis inocentes."

O amigo assentiu.

"Se é como dizes, foi um crime. E um crime é um crime, independentemente do número de vítimas envolvidas. Mas, apesar de tudo, tens de concordar que é diferente matar dezassete e matar seiscentas pessoas."

"Não discuto", aceitou o advogado. "O que é importante que percebas é que a iniquidade da situação provoca revolta. O que aconteceu no ano passado em Mueda pode voltar a..." Hesitou, o olhar fixo num ponto distante. "Atenção, elas vêm aí."

O médico olhou na mesma direcção e viu Mimicas e Albertina a caminharem pelo deck com dois romances policiais nas mãos. Voltou a estender-se na espreguiçadeira e, sentindo o sol queimar-lhe a face, inclinou o guarda-sol em busca da sombra protectora.

"É melhor mudarmos de conversa", aconselhou José. "Elas podem ficar nervosas."

"Tens razão. Mas, considerando o facto de que vocês vão agora viver para Moçambique, há uma coisa de que preciso de te avisar."

"O quê?"

Domingos avaliou a distância a que se encontravam as duas mulheres. Eram uns vinte metros, não mais. Aliás, já lhes ouvia as vozes tagareleiras, com Mimicas a fazer três referências de rajada ao "coiso". Teria de ser rápido a dizer o que pretendia.

"Vem aí a guerra."

 

A vida de Diogo Meireles mudou no dia em que viu a mãe colada ao jornal com uma expressão de angústia. Tinha dez anos e sempre a conhecera como uma pessoa segura de si, alegre e despreocupada. Mas naquela manhã a mãe pareceu-lhe transtornada, a face lívida e as mãos literalmente agarradas à cabeça.

"Ai meu Deus, meu Deus!", exclamava ela repetidamente enquanto lia e relia a segunda página do matutino. "Que vai ser de nós, meu Deus? Que vai ser de nós?"

Tamanha consternação, por ser coisa nunca vista naquela casa, deixou-o assustado.

"O que foi, mãe?", atreveu-se a perguntar.

"Não é nada, Diogo", retorquiu ela sem sequer levantar o olhar. "Vai brincar com os teus irmãos."

O rapaz afastou-se, sem saber o que pensar. Brincar com os irmãos? O que queria ela dizer com isso? Então não sabia que o Manel e a Mimi tinham ido com o pai para o quartel? O que queria ela que ele fizesse? Que brincasse com o puto Jorge ou com a Gracinha, que ainda estava no berço? Mas que disparate vinha a ser aquele? Para não contrariar a mãe, porém, Diogo optou por se fechar no quarto e esperar que ela se acalmasse.

Se calhar a mãe lera mais um episódio de Fazenda Abandonada, o romance de Ventura Reis que seguia religiosamente no jornal. Só que, ocorreu-lhe logo a seguir, era sexta-feira e o romance só aparecia nos suplementos de domingo. Portanto, os dramas narrados pelo folhetim não podiam ser responsáveis por toda aquela comoção. Então o que seria? A verdade é que não dispunha de pistas, pelo que se resignou à sua ignorância. Estendeu-se na cama e pegou num exemplar da revista Zorro, que folheou para espreitar as mesmas histórias pela enésima vez.

Dez minutos depois sentiu a mãe atravessar o corredor e descer as escadas à pressa. Assomou à janela e viu-a bater à porta da vizinha e envolverem-se as duas numa conversa muito animada. Depois a vizinha fez-lhe sinal de que entrasse e ambas desapareceram dentro da casa. Era tudo muito estranho, concluiu, decidido a tirar o caso a limpo. Esgueirou-se para a salinha e deparou com o jornal caído no chão, amarfanhado aos pés da poltrona como um trapo desamparado; tratava-se de um exemplar de A Província de Angola, presença diária naquela casa.

Pegou no matutino e estudou-lhe a primeira página sem detectar nada de especial. Virou para a segunda e, quase sem querer, fixou a atenção no que lhe interessava, a caixa dos filmes exibidos no cinema. O Cine Tropical anunciava Maldosamente Ingénua, com Sandra Dee e James Darren, que garantia ser "a história apaixonante de uma rapariga que pela primeira vez encontra o amor!" Tretas de meninas, pensou com um trejeito de desdém. Já o Cinema Colonial prometia O Regresso de Robin dos Bosques para as 15.30 do dia seguinte, sábado, coisa que logo lhe despertou a curiosidade. Robin dos Bosques? Era fita a não perder!

Desviou os olhos para a esquerda da página e reparou que havia umas linhas sublinhadas a lápis, presumivelmente pela mãe. A notícia intitulava-se "Novas manifestações da criminosa actividade de agitadores externos contra a ordem pública e segurança das populações", mas a sua curiosidade concentrou-se nas linhas sublinhadas, assim destacadas porque decerto haviam sido as causadoras da perturbação que testemunhara minutos antes.

"Gru... pos de nati...vos capi... ta... niados ou ins... truídos por ele... mentos vin... dos do exte... rior ", murmurou titubeante, "ata... caram pos... tos fron... tei... riços da'Guar... da Fis... cal e da Po... lí... cia."

Pousou o jornal no regaço e desviou os olhos para a janela. Não percebera nada. "Nativos capitaniados?" Que diabo quereria isso dizer? O que havia ali de tão extraordinário que pudesse suscitar tamanha consternação na mãe? Não sabia bem o que pensar, a não ser que tudo aquilo tinha um certo perfume às aventuras de Tarzan.

Sentiu a porta de casa abrir-se e percebeu que ela regressava. Deixou o jornal onde o encontrara e dirigiu-se apressadamente para o quarto, onde se agarrou de novo ao Zorro. Depois sentiu a mãe pegar no telefone e ficou atento.

"Está lá?... O capitão Meireles, pode chamá-lo?... Diga-lhe que é a mulher... Sim, é urgente... Ai não?... Hmm, está bem. Obrigada."

E desligou.

A ansiedade da mãe era contagiante; dava a Diogo a impressão que ela não parava quieta. Circulava com grande agitação pela casa e chegou até a enervar-se com a Gracinha, gritando com a bebé por ter sujado as fraldas. Essa reacção encheu-o de espanto. Tanto nervosismo e irritação nem pareciam coisa da mãe, ela que era sempre tão doce e tranquila.

Sentindo necessidade da presença tranquilizadora do pai, Diogo pousou o Zorro sobre a mesinha-de-cabeceira e foi para a janela espreitar a rua na expectativa de o ver chegar. Viviam no primeiro andar de uma vivenda do bairro militar, no Alto da Maianga; a mancha azul do mar estendia-se lá ao fundo, plácida e apaziguadora. Sentiu-se acalmar. Lembrou-se que o quartel onde o pai prestava serviço militar se situava ali bem perto e naquele instante as ruas pareceram-lhe tranquilas.

Voltou para a cama e pegou mais uma vez no Zorro, convencido de que já se conseguiria concentrar na aventura de Blake e Mortimer no Egipto. Depressa verificou que a tensão da mãe o havia contagiado e, ao contrário do que era habitual, nem conseguiu achar graça à história.

Não passara meia hora quando sentiu o pai escalar as escadas de dois em dois degraus e irromper energicamente pela casa, como aliás era seu timbre.

"Lourdes! Lourdes!"

A mãe saiu à pressa da cozinha.

"Ó Quim, finalmente!"

"Não saíste de casa, pois não?"

"Claro que não. Quando li o jornal fui falar com a dona Olga e depois liguei para o quartel a saber de ti. Disseram-me que não podias atender. Tenho andado tão incomodada!..."

As vozes aproximaram-se e Diogo percebeu que ambos passavam pelo corredor. Logo a seguir viu os irmãos, que tinham entrado atrás do pai, invadirem-lhe o quarto; Manel e Mimi vinham silenciosos e com cara de caso, igualmente atentos à conversa que se transferira para a sala de estar, e sentaram-se à escuta.

"Ninguém pode sair de casa." Era a voz do pai. "Estamos a organizar patrulhas para proteger o bairro."

"Mas o que aconteceu, valha-me Deus? No jornal vem a notícia de que os pretos estão a atacar casas comerciais e fazendas na fronteira e que há oito feridos. A dona Olga diz que parece que houve mais vítimas, mas não se percebe muito bem."

O marido suspirou.

"É infelizmente pior do que isso", murmurou, baixando a voz. As crianças viram-se forçadas a suster a respiração e a aguçar os ouvidos para continuarem a acompanhar a conversa.

"Os pretos pegaram em catanas e desataram a matar toda a malta nas fazendas. Homens, mulheres, crianças... tudo o que é branco é para matar."

"Meu Deus! Isso está a acontecer na fronteira? Achas que pode chegar aqui a Luanda?"

"Tudo é possível. Houve matanças de brancos aqui perto."

Fez-se um breve silêncio na sala de estar.

"O que queres dizer com isso? O jornal diz que a confusão aconteceu em postos fronteiriços." Ouviu-se o som de páginas a serem voltadas. "Está aqui no jornal, ora vê!..."

"Eu sei muito bem o que diz o jornal", atalhou ele. "Houve de facto chatice lá em cima em Cuimba, mas parece que também sucederam coisas por aqui."

"Por aqui, onde?"

"Em Quicabo e em Nambuangongo, por exemplo. Também em Quimbumbe e em Zala."

"Onde é isso?"

"É aqui, no distrito de Luanda."

Ao ouvir o nome da cidade, Lourdes quase entrou em pânico.

"O quê? Em Luanda? Andam a matar brancos em Luanda?"

"Não, mulher, tem calma! Não foi na cidade. A coisa está a passar-se nas fazendas."

Fez-se um novo silêncio e Diogo trocou um olhar horrorizado com os irmãos. Nas férias toda a família ia passar uns tempos a uma das fazendas da região, propriedade dos amigos de um camarada do pai lá do quartel. Lembrava-se de ter estado uma semana numa fazenda com plantação de café e duas semanas numa outra onde se produzia gado; vira até os bois e as vacas serem marcados a ferro, como nos filmes de cobóis do John Wayne nas matinês do Cine Restauração. E agora o pai dizia que os pretos andavam nessas fazendas a matar os brancos?

A voz da mãe voltou num fio, mais temerosa do que nunca.

"Achas que se vai repetir aqui em Luanda o que aconteceu no mês passado?"

"Não sei", respondeu o pai. "É possível."

A referência foi instantaneamente entendida por todos. Diogo lembrava-se muito bem que semanas antes haviam ocorrido incidentes em plena cidade. Na altura fora uma grande agitação. Os pais diziam que os pretos andavam a atacar a polícia e toda a gente sentiu um medo muito grande. Correu então que a polícia dera uma grande lição aos bandidos e a coisa acalmara. Mas e se eles começassem a atacar todos os brancos? O pai acabara de revelar que tinham morto crianças. Ora, e apesar das veleidades que o enchiam depois de ver uma coboiada no Restauração, Diogo considerava-se a si mesmo uma criança, totalmente dependente dos adultos. Quereria isto dizer que o matariam a ele? Estaria ele em perigo? E os irmãos? E os próprios pais? O tom da conversa que do quarto escutava em silêncio parecia-lhe augurar o pior.

"Então que vamos fazer, Quim?"

"Para já, ninguém sai de casa. Aqui o nosso bairro vai ser patrulhado a partir de agora. Mas a situação é muito delicada. A cidade tem cinquenta mil brancos e está rodeada de duzentos mil pretos. Se houver um levantamento geral dos indígenas, acho que não temos meios de nos defender."

"E o exército?"

"Qual exército, Lourdes? Tu sabes quantos soldados brancos existem em toda a província de Angola? Sabes quantos?"

"Sei lá. Alguns, acho eu."

"Mil e quinhentos."

"E não chega?"

O pai soltou uma gargalhada sem humor.

"Mil e quinhentos homens? Isso é o mesmo que nada, mulher! São apenas três regimentos em toda a colónia. E sabes quantos há aqui em Luanda? Só um. Um único regimento para toda a cidade e distrito!"

"Meu Deus! O que faremos se isto der para o torto?"Diogo ouviu o pai respirar fundo antes de responder; claramente, o assunto já havia sido discutido no regimento.

"Vamos todos para o quartel."

Apesar de não ter nascido em Angola, as mais antigas memórias de Diogo Meireles eram as brincadeiras dominicais nos baloiços do Parque Heróis de Chaves, as matinês infantis do Cine Restauração e as manhãs de banho na praia.

A família havia chegado a Luanda em 1957, altura em que o pai, o capitão miliciano Joaquim Meireles, iniciara uma comissão de serviço de quatro anos no Grupo Misto de Artilharia. Até àquela altura a cidade tinha vivido ao ritmo pacato de uma terriola de província, com um estilo de vida aprazível e descontraído, as grandes avenidas soalheiras e as palmeiras à beira-mar a conferirem-lhe um atraente toque exótico. Quando não estava no Colégio Goretti, Diogo ia para o quartel estudar matemática com o pai ou então ficava em casa com o resto da família. A mãe, Lourdes, tornara-se Meireles por casamento, mas o seu apelido original era Branco, o nome da família em Penafiel.

Diogo cresceu magro e calado, alto para a idade e anormalmente ágil. Os seus passatempos predilectos deslizavam pelas páginas do Zorro e sobretudo pelo soalho de casa. De giz na mão, desenhava pistas no chão do quarto para as fabulosas corridas das suas miniaturas da Matchbox, paixão que por contágio lhe despertou o interesse pelo que se passava anualmente no asfalto do Grande Prémio de Luanda. O moço tornara-se um amante das provas de automóveis que animavam o Circuito da Fortaleza, espectáculo repleto de barulho, cores garridas e fumaça a cheirar a óleo que o fazia palpitar de emoção como nenhum outro; ainda no ano anterior vibrara com a vitória do rodesiano John Love no seu espectacular Jaguar, embora na altura tivesse torcido sobretudo pelo Maserati de Álvaro Lopes, o ás angolano que cortou a meta num honroso quarto lugar.

Embora não o pudesse saber ainda, esses tempos tinham acabado. Desde que a mãe lera a notícia no jornal e o pai chegara a casa com as novidades que agitavam o quartel e toda a província, o ambiente em casa e pela cidade mudara radicalmente.

"E a Metrópole?", foi a primeira pergunta que Lourdes fez ao marido quando o viu chegar a casa dois dias mais tarde. "O que dizem da Metrópole?"

"Nem uma palavra", respondeu ele sombriamente. "Não querem saber de nós para nada."

"Mas já chegaram tropas..."

"Sim, uma companhia de paraquedistas. E vêm a caminho quatro companhias de caçadores."

A mulher ergueu os olhos aliviados, como se fizesse uma prece a agradecer aos Céus.

"Ufa! Sempre é alguma coisa."

"Pois, mas o Salazar não diz nada sobre o que se passa por aqui", resmungou o capitão Meireles. "Nada de nada. É o silêncio absoluto. Fingem que está tudo normal."

O tema enchia todas as conversas em casa, no quartel ou por Luanda inteira. Havia pretos a matar brancos em Angola e a Metrópole nada dizia. Como era possível? A indignação generalizava-se, a par do medo. Estariam os brancos de Angola abandonados por Lisboa e entregues à sua sorte? Sentindo a fragilidade da polícia e do exército, os homens contavam armas e combinavam tácticas e modos de actuação em caso de necessidade extrema, enquanto as mulheres se fechavam em casa com as crianças.

Diogo e os irmãos iam acompanhando as novidades de cada vez que o pai chegava do quartel. A informação ia toda dar ao centro de comando militar e o regresso a casa do capitão Meireles era um autêntico momento de noticiário.

"Estamos a organizar a evacuação das fazendas mais isoladas", contou ele ao jantar numa das noites seguintes. "Partiram hoje colunas e aviões para o Norte."

"Aleluia! Já estava na altura de fazerem alguma coisa!"

"Mas não é possível levar auxílio a todo o lado. Os Dembos estão a dar cabo de nós. Estivemos a ver no mapa e não há para lá estradas nem pistas de aterragem. Não sei como vamos lá chegar."

"Ah, coitados!", exclamou a mãe. "Então como se vai ajudar aquela gente?"

"Precisamos de tempo."

Lourdes pôs-se a despejar sopa fumegante nos pratos; era abóbora. Começou no marido e seguiu para os filhos.

"A dona Olga anda uma pilha de nervos", observou ela. "Está transtornada e diz aos quatro ventos que nos vai suceder o mesmo que aconteceu ao Congo Belga. Achas possível?"

"Não sei."

A resposta claramente não agradou à mulher. Lourdes olhou de relance para os filhos, consciente de que havia coisas que não podia dizer diante das crianças, mas não conseguia conter a preocupação.

"Quim", disse ela entre dentes, improvisando uma observação críptica. "No Congo Belga eles andaram a... enfim, com catanas a... tu sabes, não é? Achas que vão fazer o mesmo aqui?"

O pai meteu a colher à boca, engolindo ruidosamente o pedaço de sopa, enquanto matutava na pergunta.

 

"Os sobreviventes vêm aí", murmurou, taciturno. "Vamos ouvir o que eles têm para dizer."As acácias rubras agitavam-se num murmúrio verde e laranja, como abanadores gigantes, protegendo do sol agreste os passeios poeirentos da cidade amarelada. Fazia calor, tanto que o próprio dia parecia derramar suor, e o vento quente que soprava baixo entre as árvores, serpenteando pelas ruas até arrebitar pequenos torvelinhos de pó, era afinal o único alívio que aquela fornalha concedia aos homens. O ar acariciava as peles húmidas de transpiração e refrescava o corpo, mas era só um instante, um bálsamo fugaz; o breve momento de conforto logo se esgotava e então voltava o ardor, um abrasamento intenso e pesado, sufocante, tão escaldante que dava a impressão de queimar o ar.

"Puf, que calor!", desabafou Mimicas enquanto abanava o leque com vigor. "Está que não se pode!"

Os dois casais abandonaram o monumental edifício da Capitania do Porto com três rapazes negros no encalço a carregarem as malas e instalaram-se à sombra de uma acácia para recuperar o fôlego. José Branco sentou-se sobre uma mala, abanando um lenço para se refrescar, e olhou para o casal que os acompanhava."Então, Domingos? Contente por teres finalmente chegado à tua terra?"

O advogado parecia sufocar no seu fato escuro. Aliviou o nó da gravata de cornucópias e passou as costas das mãos pela testa de modo a limpar a transpiração que se acumulava em gotículas.

"Caramba! Já nem me lembrava deste calor!" Espreitou de relance para trás, onde se encontrava o paquete que acabava de ancorar no porto de Lourenço Marques. "Ali é que se ia bem, hem?"

"Lá isso ia", assentiu o médico. "É pena aqui na rua não haver ar condicionado!..."

Riram-se todos, divertidos com o absurdo da ideia. Um grupo de negros começou a chamar e a acenar do outro lado da praça e Domingos abriu-se num sorriso, devolvendo os acenos.

"Já chegou a minha gente!", exclamou. "Vocês têm quem vos venha buscar?"

"Ah, sim. Não te preocupes!"

"Guardaste os nossos contactos, não guardaste?"

José Branco indicou o bolso da camisa.

"Está aqui tudo. Depois ligo para irmos tomar um copo."

"Um copo não", corrigiu Albertina com um olhar cúmplice para Mimicas. "Nós as duas ainda vamos juntas às compras, não é verdade?"

"Ah, pois! Quero coisar umas coisas!..."

O grande homem negro engravatado e a mulher fizeram sinal aos rapazinhos esfarrapados de que pegassem nas suas malas e despediram-se do casal amigo.

"Então vamos andando", disse Domingos. "Divirtam-se em Lourenço Marques!"

José e Mimicas deixaram-se ficar à sombra, sentados sobre as malas a apreciar a rua e a praça que se abria em frente. O grande largo estava bem arranjado, rodeado de árvores, o piso cuidadosamente tratado em calçada à portuguesa com abundantes motivos geométricos; ao longo do perímetro erguiam-se belas construções de ferro ao estilo Belle Époque, no centro um coreto abobadado, ao lado alguns quiosques elegantes, aqui e ali um poste de iluminação e vastos bancos públicos; não fossem os homens e mulheres negros e dir-se-ia estarem na Europa mediterrânica. A única coisa que estranhavam era a condução à esquerda; não entendiam como era possível guiar à inglesa em território português.

"Então?", perguntou Mimicas, impaciente e cansada da longa viagem. "Que fazemos agora?"

José consultou uma carta do Ministério do Ultramar que trazia amarrotada no bolso.

"Não percebo", exclamou, desdobrando a missiva para consultar mais uma vez o conteúdo. "Eles disseram que estariam aqui à nossa espera..."

Um automóvel negro, com a carroçaria coberta de lama e pó, em particular nas rodas e na parte baixa até aos faróis, emergiu da praça e estacionou diante da entrada da Capitania do Porto. Era um velho Studebaker.

A porta do carro abriu-se e do interior saiu um homem magro, de idade, bigode pontiagudo, chapéu branco e fato creme. O desconhecido olhou em redor, como se procurasse alguma coisa; viu o casal instalado por baixo da grande acácia e, vencendo uma ligeira vacilação, dirigiu-se aos dois em passo hesitante, apoiado numa bengala. Chegou ao pé do casal e tirou o chapéu num gesto de deferência.

"Doutor José Branco?"

O médico pôs-se em pé.

"Sim, sou eu."

O homem sorriu.

"Floriano Carvalho, director dos Serviços Provinciais de Saúde." Estendeu a mão ossuda. "Sejam bem-vindos!"

José e Mimicas cumprimentaram o recém-chegado, que fez sinal aos carregadores de que colocassem as malas na vasta bagageira do Studebaker. O casal acomodou-se no carro e Floriano instalou-se ao volante.

"Estava a ver que nos tinham abandonado", observou Mimicas. "Já andávamos até a pensar em coisar um táxi para nos levar para o coiso."

"Peço desculpa pelo meu atraso", disse o anfitrião, olhando pelo retrovisor para se assegurar de que o caminho estava livre. "Pensava que o paquete só chegava ao fim da tarde."

"Não faz mal", devolveu José, conciliador; afinal Floriano era o seu superior hierárquico. "Vamos para longe?"

Floriano riu-se.

"Em Lourenço Marques é tudo perto." Ligou o motor e o carro arrancou. "Está a ver aquilo?" Floriano apontou para as muralhas ao lado da Capitania do Porto. "É a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, o sítio onde há duzentos anos a cidade nasceu." O automóvel passou devagar ao longo da fortaleza, com os ocupantes a espreitarem as muralhas amarelo torradas, dispostas num quadrado baixo. "Foi durante muito tempo a única construção aqui existente."

"Nesta zona?"

"Não, em toda a cidade. No início Lourenço Marques cresceu muito devagar, sabe?" O carro acelerou e entrou no grande largo em estilo Belle Epoque que observaram da sombra da acácia. "Foi para aqui que a cidade começou a desenvolver-se, no século passado. No início chamava-se, creio eu, Praça da Picota e era o sítio onde a malta se juntava."

O Studebaker contornou a praça por completo e voltou ao ponto de partida para meter pela Rua Araújo em direcção à Praça Mac Mahon, num percurso paralelo à Alfândega e à ponte-cais Gorjão. Os recém-chegados seguiam de olhos presos aos edifícios da rua apertada. Por toda a parte admiraram uma arquitectura tropical de encanto singular, com um toque exótico; eram sobretudo casas de alvenaria adornadas por varandas de madeira, muitas delas com comércio à porta. Em alguns casos havia cabarets de porta fechada, à espera da noite para se abrirem à clientela, mas viam-se também chalets e bungalows ajardinados.

A meio da pitoresca Rua Araújo, o automóvel negro abrandou e encostou ao passeio, estacionando junto a uma esquina. Logo apareceram, como se tivessem emergido do nada, dois grooms negros, fardados de dólmen branco com botões dourados e cofió vermelho na cabeça, que se acercaram do carro e abriram as portas.

"Chegámos?", perguntou José, abanando a cabeça com incredulidade.

O carro havia percorrido uma distância muito curta; entre a Capitania do Porto e aquele local não distavam mais de quatrocentos metros.

"Sim, é aqui", anunciou Floriano, apeando-se com esforço. Fez sinal a um dos grooms de que fosse buscar as malas à bagageira e mirou as instalações que dobravam toda a esquina. "É este o vosso hotel."

Tratava-se de um edifício longo, em forma de V; era de um branco entrecortado por madeira exótica nos pilares e nos varandins, com o telhado coberto de telhas cor de tijolo. Havia um piso térreo e um primeiro andar percorrido por uma longa varanda de madeira, onde se debruçavam alguns clientes e na base da qual se encostavam largos vasos com pequenas plantas tropicais. A porta principal situava-se no vértice do V, o topo a anunciar "Central Hotel".

"Quanto tempo vamos ficar aqui?"

"O tempo suficiente para vos arranjar um destino." Floriano contemplou a fachada, que já lhe era familiar, e vacilou, como se as palavras do recém-chegado lhe tivessem levantado uma dúvida. "Não gosta do hotel?"

"Gosto, gosto."

O director dos Serviços de Saúde apontou para um outro edifício de esquina, este de três pisos, situado na mesma rua.

"Veja lá! Se preferir, posso pôr-vos ali no Carlton." Indicou um terceiro edifício de esquina, também ao lado. "Ou ali no Savoy. É como queiram."

"Não, este está bem."

Floriano contemplou a fachada com satisfação.

"Pode ficar descansado que aqui o Hotel Central é muito jeitoso. É asseado e encontra-se muito bem localizado." Indicou o lado de onde vinham, a Praça 7 de Março e a Capitania do Porto. "Como vêem, situa-se na zona comercial, a dois passos do porto." Apontou na direcção oposta. "Ali em frente, trezentos metros adiante, está a Praça Mac Mahon, onde temos a estação de comboios." Depois voltou a mão para outro ponto. "E, duzentos metros para ali, naquela direcção, encontra-se o Mercado Municipal."

Cruzaram a porta e dirigiram-se à recepção com os grooms no encalço.

"Já sabe para onde nos vai transferir?", perguntou José Branco.

"Estamos a estudar várias possibilidades, mas não lhe vou dizer nada enquanto não existir uma coisa concreta. Tenho em vista um sítio que vai perder um médico e pode ser que o doutor seja colocado lá."

"Ai sim? O colega que lá está vai-se embora?"

"Vai."

"Volta a Portugal?"

Floriano fez um gesto largo, abarcando a rua e tudo o que se encontrava em redor.

"A Portugal? Meu caro, Portugal é tudo isto."

"O que eu queria dizer era se ele voltava à Metrópole..."

Com um trejeito um tudo-nada teatral, o superior hierárquico esboçou um ar admirado.

"Voltar à Metrópole? Para quê?"

"Bem", atrapalhou-se José. "Podia não se ter adaptado, sei lá..."

"Oh, doutor! Quem aqui chega já não quer voltar."

"Ora, como pode ter tanta certeza?"

"Porque esta é a terra mais bonita do mundo."

Permaneceram no Hotel Central durante alguns dias, período que lhes serviu para se habituarem à vida em Lourenço Marques.

O casal Rouco deu notícias logo na manhã seguinte e desafiou- os para um passeio pela cidade.

"Primeiro queria tomar o pequeno-almoço", disse Mimicas, eternamente esfaimada. "Mas aqui no hotel coisa-se tão mal!... Não haverá por aí um sítio onde a comida seja boa?"

"Ah, Mimicas!", retorquiu Domingos. "Aqui boa comida é mato!"

Mimicas arregalou os olhos, chocada com a notícia, e pôs a mão escandalizada na boca.

"O quê? Só no mato é que se arranja boa comida? Que horror! Como é que vamos viver assim?!"

Os dois Rouco soltaram uma gargalhada.

"Quando dizemos que uma coisa é mato, isso significa que há muito dessa coisa", explicou Albertina. Apontou para a rua. "Por exemplo: carros é mato. Isto quer dizer que há muitos carros, percebes?"

"Ah, bom!", exclamou a amiga, com alívio. "Ufa! Já estava a ficar assustada!..."

"Se têm fome, vamos então ali ao Scala matabichar", decidiu Domingos. "Depois seguimos para a Pinheiro Chagas. As senhoras dizem que é do melhor para as compras."

"Ai sim? É aqui perto?"

"Não, Mimicas. Temos de apanhar o machibombo."

O casal Branco esboçou um novo esgar interrogativo.

"O quê?"

Os Rouco riram-se de novo e Domingos pousou as mãos nos ombros dos dois amigos.

"Vocês precisam de se habituar aos moçambicanismos, pá", aconselhou ele num tom paternal. "Vamos primeiro tomar o mata-bicho, não é? Depois apanhamos o machibombo porque a Pinheiro Chagas é maningue mato longe." Tirou do bolso uma pequena embalagem vermelha de pastilha elástica. "Vai uma chuinga? Iá, olhem que é naice!..."

Tomaram um pequeno-almoço no Café Scala tão bem servido que no final, e depois de se ter alambazado com quase metade da comida que tinha vindo para a mesa, Mímicas olhou horrorizada para os pratos vazios diante dela e abanou a cabeça.

"Ai, comi de mais", gemeu. "Estou tão arrependida..."

 

Apanharam o autocarro mesmo em frente ao café e ao longo do caminho observaram com curiosidade a catedral, a câmara municipal e depois o casario a desfilar em redor. A cidade parecia-lhes bem ordenada e espaçosa, cheia de luz e amplos espaços verdes; a arquitectura variava entre o estilo colonial e as linhas modernas, o que lhe conferia uma graça singular.

A viagem prolongou-se até chegarem a uma fileira de grandes avenidas. Floriano havia-lhes dito que Lourenço Marques não passava de uma povoação pequena, mas não era isso o que constatavam; embora não fosse maior do que Lisboa, a verdade é que a cidade se revelou de uma dimensão apreciável e manifestamente bem planificada, com longas avenidas paralelas, à americana, e arborizadas.

"É aqui."

Apearam-se na Pinheiro Chagas, uma dessas avenidas largas e compridas, dominada por edifícios enormes. Demoraram um instante a admirar as fileiras de prédios; nunca tinham visto nada daquilo na Metrópole. No entanto, a admiração depressa cedeu lugar às coisas práticas. As senhoras enlaçaram os braços uma na outra e foram ao Salão Girassol arranjar o cabelo, deixando os maridos com um aceno e uma recomendação.

"Portem-se bem!"

A primeira coisa que os dois homens fizeram logo que se viram sozinhos foi comprar no quiosque a edição dessa manhã do Notícias, o principal jornal da cidade. José queria saber pormenores da grande vitória alcançada dois dias antes pelo Benfica diante do Barcelona e que lhe valera a conquista da Taça dos Campeões Europeus. Folhearam o jornal no meio do passeio e vitoriaram a imagem de José Aguas em ombros com a taça nas mãos, mas os sorrisos desvaneceram-se quando, terminada a leitura pormenorizada da página desportiva, passaram os olhos pela primeira página e se depararam com um título sobre o que se estava a passar em Angola.

"Tenho uma irmã a viver em Luanda e ela anda em pânico", observou José, de repente taciturno. "A Lourdes mandou-me uma carta a dizer que a cidade se encontra em estado de sítio e que nem sai do bairro do quartel. Coitada, está muito assustada."

"Eu tinha-te avisado", disse o amigo. "A guerra era inevitável."

"Mas assim? Os tipos andam a matar mulheres e crianças à catanada! Achas que isso está certo?"

Domingos abanou a cabeça.

"Acho que está muito errado", admitiu. "Não me entendas mal. Não aprovo de modo nenhum essas carnificinas. Mas isso não significa que não compreenda. A culpa é o MPLA foram criados em 1956, Zé. Isto significa que existem há cinco anos. Andaram cinco anos a tentar falar com as autoridades portuguesas sobre o futuro de Angola. O que deu essa tentativa?" Fez um "O" com o polegar e o indicador. "Zero." Encolheu os ombros. "Depois admiram-se!..."

Agastado com a notícia, José dobrou o jornal e recusou-se a conversar mais sobre o assunto. O tema perturbava-o, sobretudo porque acabava de chegar a África e já via as coisas a andarem para trás. Observando-o desalentado, e tentando animá-lo com referências à grande vitória do Benfica sobre o Barcelona, Domingos decidiu levá-lo à Casa Bem Fica, uma camisaria situada na Rua Salazar, para adquirir camisas de safari.

"Aqui é melhor vestir coisas leves", aconselhou. "São mais adequadas ao clima tropical do que o fato e gravata que se usa lá na Metrópole." Inclinou a cabeça, num aparte. "Se calhar até já têm camisas com a Taça dos Campeões Europeus cosida ao peito!..."

A visita à Casa Bem Fica serviu para desanuviar o ambiente. O nome da camisaria permitiu a José concentrar-se nas boas notícias, neste caso a vitória do seu clube, em detrimento das novidades sobre a nova guerra. Mas Angola permanecia presente num recanto da sua mente, e foi tanto assim que o tema voltou a aflorar no momento em que, após experimentar vários modelos de balalaica, se decidiu por um deles.

"O branco."

"Branco?", admirou-se Domingos. "Olha que o creme é mais usado. Se queres bizarrias, porque não pedes vermelho?", gracejou. "Sempre serve para comemorar a vitória!"

"Quero o branco."

"Mas porquê o branco?

"Condiz com o meu nome", explicou enquanto se mirava ao espelho. "Além do mais sou médico, não é verdade? O branco é sinónimo de paz e humanidade. É disso que precisamos."

José Branco decidiu-se pelo branco na Casa Bem Fica, uma decisão que reflectia o sentimento que se apossara dele. Que melhor cor poderia escolher no momento em que começava a guerra? De então em diante passou a vestir-se e calçar-se de branco, uma opção que personalizava tudo o que sentia, e foi assim que se apresentou uma hora mais tarde na casa de chá onde haviam combinado o reencontro com as mulheres.

Um burburinho morno enchia o Salão de Chá Veneza. A hora não era muito concorrida e havia inúmeras mesas vagas. As senhoras foram as primeiras a chegar e escolheram um lugar à janela. Dali viram os maridos cruzar a porta e, com gestos frenéticos, fizeram-lhes sinal.

Foi um momento curioso porque José e Mimicas apareceram diferentes diante um do outro; ele todo de branco como uma pomba, ela sem os tradicionais óculos.

"Fico bem?", quis Mímicas saber, piscando os olhos de forma provocadora. "A Albertina levou-me ao Oculista Pilú e comprei estas lentes de contacto. Gostas?"

José Branco sorriu.

"Estás muito chic." Rodou o corpo para exibir os seus novos trajos. "E eu?"

Mimicas deteve-se a observá-lo dos pés à cabeça, apreciando-o com cuidado. Percebeu que a mudança do visual e a escolha do branco tinha um significado mais profundo do que podia parecer, sinalizando a entrada do marido numa nova fase da vida, mas mesmo assim não resistiu ao gracejo.

"Pareces uma freira de calças."

 

Quando acompanhou a mãe ao Quintas & Irmão para espreitar os saldos, Diogo foi direito à secção dos brinquedos entreter-se com os carrinhos da Matchbox que tanto o fascinavam. Havia algum tempo que andava a namorar um Lotus negro em miniatura que se encontrava no topo da prateleira, inacessível como o tesouro mais precioso da loja, e dessa feita reuniu coragem e dirigiu-se ao empregado com a ideia de pedir para o ver. O funcionário atendia nesse momento uma cliente e o rapaz, educado e paciente, sentou-se aos pés da caixa a aguardar a sua vez, tornando-se assim ouvinte inadvertido da conversa.

"a alojar muitos dos refugiados num prédio da Avenida de Lisboa, ao pé do Diário de Luanda, não sei se sabe onde é."

"Sei, pois claro que sei", retorquiu a cliente com grande convicção. "A escola primária do meu filho também já está transformada num albergue de refugiados, o que pensa você? E olhe que não é a única! A número sete encontra-se à pinha com gente acabada de chegar lá do Norte."

"Tem de ser", retorquiu o empregado com uma expressão resignada. "Já são mais de três mil refugiados, dona Aurora! Onde se vai pôr essa gente toda? As escolas e os sindicatos têm de se mobilizar, não há outro remédio!..."

"Os refugiados ainda é o menos, Nuno. Se fosse só isso, estávamos nós bem. Sabe o que verdadeiramente me apoquenta?" A cliente baixou a voz e tornou-se quase conspirativa. "Os mortos."

"Ah, pois..."

"Fala-se em quinhentos ou seiscentos. Um horror!"

"Isso são boatos, dona Aurora!", atalhou o empregado com um esgar céptico. "A boataria que por aí anda é infernal!"

"Mas os jornais dizem muito pouco! Imagine só as coisas que a censura não os deixa publicar... Se não acreditarmos no que ouvimos os nossos amigos dizerem, acreditamos em quê? Acha que é mentira? Acha que não morreu ninguém?"

"Não, claro que morreu. Os próprios jornais confirmam que há mortes de fazendeiros. Sobre isso não há dúvidas."

"Mas não dão números", insistiu a cliente. "Não acha isso estranho? Sabe, a mim disseram-me que os mortos já iam em seiscentos. E olhe que..."

O empregado apercebeu-se nesse instante da presença de Diogo, que continuava sentado junto à caixa a aguardar vez.

"Chiu!", disse ele para a cliente, fazendo-lhe sinal na direcção da criança. Depois sorriu e inclinou-se para Diogo. "Olá, meu maroto. O que queres tu?"

O rapaz apontou para o carro da Matchbox guardado no alto da prateleira.

"O Lotus."

Diogo sentiu o ambiente febril e a comoção que envolvia os pais e a generalidade dos adultos, mas percebeu também que quando havia crianças em redor toda a gente se calava, como se houvesse uma conspiração para simular a normalidade. Todavia, não se deixou enganar. Havia ajuntamentos de pessoas por toda a parte e os rostos fechados indicavam que algo de grave se passava. Que diabo estariam os adultos a esconder?

O ambiente tornou-se de tal modo pesado que Diogo suspendeu a vida de brincadeiras e, inspirado no incidente ocorrido no Quintas & Irmão, tornou-se uma espécie de espião. Sempre que via adultos em conversas conspirativas aproximava-se deles e, fingindo-se distraído ou ocultando-se em qualquer canto, punha-se a escutá-los.

O diálogo mais revelador foi o que surpreendeu no dia a seguir às compras do Quintas & Irmão. Estava Diogo à janela do quarto quando viu a mãe aparecer com a fruta que fora comprar às quitandas do bairro.

"Ó vizinha", chamou dona Olga no momento em que a surpreendeu prestes a entrar em casa. "Já viu o que aconteceu em Madimba?"

A mãe pediu-lhe um instante para ir a casa pôr as compras e Diogo aproveitou para agarrar num carrinho de bombeiros e sair disparado para ir brincar atrás de uma árvore mesmo ao lado da casa de dona Olga. Quando a mãe voltou para falar com a vizinha, o rapaz encontrava-se perfeitamente posicionado para escutar a conversa; aninhava-se ali próximo, mas permanecia invisível.

"Então, dona Olga?", quis saber a mãe. "Há novidades?"

"O meu marido foi à sede do Sindicato dos Motoristas ajudar a instalar umas famílias que vieram lá do Norte, de junto da fronteira com o Congo. Os pobrezitos sofreram um inferno. Os pretos mataram o administrador de Luvaca e a mulher e fizeram ainda pior em Madimba. Apanharam o chefe do posto e mataram-no a ele, a quatro mulheres e a cinco crianças."

"Ai coitados, coitados!..."

"Veja lá! Isto está do pior!"

As duas suspiraram sucessivamente e gemeram de comiseração.

"O meu Quim chegou-me ontem a casa transtornado", disse a mãe. "Sabe, ele tem andado às voltas com os sobreviventes de Nambuca... Nambun..."

"Nambuangongo."

"Isso! Sabe que é a uns cento e cinquenta quilómetros daqui, não sabe?"

"Então não sei, dona Lourdes? Jesus! Desde que isto começou que tenho andado à roda do mapa a calcular a que distância estão eles de nós. Ando toda ralada com Quicabo, onde se fartaram de matar brancos. Olhe que Quicabo fica só a sessenta quilómetros de Luanda..."

"Isto é um horror, um horror! Que vamos nós fazer se a coisa chegar cá?"

"Nossa Senhora há-de proteger-nos."

"Pois olhe que não protegeu estes desgraçados!..."

Mais vagidos de comiseração entre as duas. Diogo mantinha-se encostado ao tronco da árvore, o brinquedo na mão apenas como justificação de ali estar para o caso de a mãe o surpreender.

"Mas a senhora falava de Nambuangongo."

"Ah, sim", retomou Lourdes. "Dizia-lhe eu que o meu Quim tem andado num frenesim com os sobreviventes de Namban... Nanguan... ai!, com os sobreviventes desse sítio. Sabe quantos brancos mataram aí? Mais de trezentos!"

"Que horror!"

"É uma chacina!..."

"Olhe que Nambuangongo também fica aqui no distrito de Luanda..."

"A quem o diz!"

Dona Olga fez um estalido com a língua.

"O meu marido contou-me que já contabilizaram uns trezentos brancos mortos à catanada nas fazendas entre o Dange e Quitexe. Parece que os pretos até retalham as crianças aos bocados!"

"Ai, não me conte isso que fico doente! Fico doente!"

"E eu? Nem durmo só a pensar na mesma coisa."

"Quando me falam das crianças penso logo nas minhas."

"Ah, pois é! Isto é terrível!", exclamou dona Olga, mudando de seguida o tom de voz. "Oiça lá, não quer tomar um chazinho?"

"Ai não. Tenho a minha Gracinha à espera. Daqui a pouco precisa do biberão."

"Quando é que tem de lhe dar o biberão?"

"Daqui por meia hora."

"Então ande daí, venha tomar um chazinho. São só dez minutinhos e vai ver que se sente mais revigorada."

A mãe fez uma pausa para considerar a sugestão.

"Dez minutinhos? Está bem."

"Ora venha. Sabe que o meu marido me disse..."

As duas vozes afastaram-se e emudeceram logo que a porta se fechou. Diogo levantou-se com o carrinho de bombeiros na mão e, apesar do terror que quase o paralisava, voltou em corrida para casa.

Duas noites mais tarde o pai chegou do quartel com um homem que nunca ninguém vira. Era um civil baixo e calvo no topo da cabeça, com o cabelo negro e oleoso atrás das orelhas e penteado para cima, num esforço vão de ocultar a careca; mas o que nele mais se destacava eram as grandes olheiras que lhe escureciam o olhar.

"Lourdes, trouxe o senhor Lopes para jantar", anunciou o capitão Meireles. "Põe os miúdos a comer na cozinha."

"Na cozinha?", admirou-se a mãe. "Homessa! Porque não hão-de os garotos comer connosco?"

"O senhor Lopes veio dos Dembos."

A informação deixou a mãe embatucada. Estudou o convidado dos pés à cabeça, como se o reavaliasse. Depois de o cumprimentar com especial deferência, voltou-se para os filhos e bateu as palmas.

"Ala! Tudo para a cozinha!"

Diogo e os três irmãos foram comer para a copa, enquanto o pai se instalava com o convidado na sala. Logo que despachou os filhos, Lourdes verificou se a bebé dormia, levou a comida para a sala de jantar e fechou a porta.

O tom conspirativo do procedimento não passou despercebido entre os irmãos. Diogo trocou olhares com Manel e Mimi e, com súbita resolução, foi buscar o seu carrinho de bombeiros para ir brincar para o corredor, mesmo aos pés da porta da sala de jantar.

"O que estás a fazer?", quis saber Manel.

Diogo encostou o indicador aos lábios.

"Chiu!"

Encostou a cabeça à base da porta e ali ficou, atento à conversa que decorria à mesa. As frases nem sempre eram integralmente perceptíveis, mas uma ou outra palavra que falhava não impedia que captasse o sentido das frases.

"... primeira coisa estranha foi acordar com o gerente de uma fazenda às seis da manhã", dizia uma voz do outro lado da porta, decerto o convidado. "Pensei: mas que raio me quer o homem? O tipo vinha preocupado. Disse-me que na véspera lhe tinham desaparecido mais de cem homens da propriedade, a fazenda Zalala, e que achava os restantes muito agitados."

"Agitados como?", interrompeu o pai.

"Sei lá, nervosos... O homem parecia preocupado com a maneira como os trabalhadores falavam com ele e como o olhavam."

"Hmm... e então?"

"Bem, o gerente lá regressou à fazenda e eu fiquei a matutar com os meus botões: querem lá ver que há chatice? Decidi percorrer as roças da região. Vesti-me, deixei a minha mulher e os meus filhos a dormir e meti-me no carro. Andei por ali fora e pareceu-me tudo em ordem. A certa altura, quando já me preparava para voltar ao Quitexe, lembrei-me de uma demarcação que tinha sido feita há pouco tempo para uma nova plantação de café. Aquilo era recente e ainda estive vai não vai para não ir. Mas o terreno ficava ali perto e decidi espreitar a coisa. Quando lá cheguei pareceu-me tudo tranquilo. Buzinei para chamar o proprietário, mas ninguém apareceu. Se fosse de manhã cedo, enfim, ainda podia admitir que o homem estivesse a dormir, mas por aquela altura já era final da manhã, por isso não me pareceu normal ninguém responder. Saí do carro e fui até à casa. O que vi logo à minha frente? Um corpo deitado no chão no meio de um charco de sangue. Aproximei-me e percebi que era o fazendeiro, que tinha sido morto à catanada. Peguei logo na pistola e, a tremer, fui inspeccionar o resto da casa. Dei com um preto igualmente morto à catanada; era o empregado. Mais à frente estava a mulher do proprietário, coitada, também morta da mesma maneira."

"E as crianças?"

"Felizmente não tinham filhos. Saí dali a correr e fui em todas as fazendas a alertar para a situação. A certa altura cruzei-me na estrada com um grupo de brancos que reconheci; era pessoal do Quitexe. Onde vai?, perguntaram-me. Ora, vou regressar ao Quitexe. Não vá!, disseram-me; não há ninguém vivo. O quê, não há ninguém vivo?!, admirei-me. Os pretos mataram toda a gente. Senti o coração dar um salto. O quê? Mataram tudo, responderam-me. E a minha mulher? E os meus filhos? Não há ninguém vivo, repetiram. A minha família também? Alguém viu a minha mulher e os meus filhos mortos? Ninguém sabia, tinha tudo fugido à pressa."

"Ai que horror!", murmurou a mãe. "Que horror, que horror!"

"Fiquei transtornado, como devem calcular. O que ia eu fazer? Devia ir ao Quitexe e arriscar-me a ser morto? Devia ficar numa fazenda e ignorar o que acontecera à minha família? Foi a desorientação total, não podem imaginar."

"Imagino, imagino", disse o pai. "O que decidiu fazer?"

"Percebi que teria de arriscar. Trazia uma pistola comigo e precisava de saber o que sucedera à minha mulher e aos meus filhos. De modo que lá me meti pela estrada, a tremer de medo e a chorar por eles."

"Coitado..."

"Quando cheguei ao Quitexe parecia que tinha entrado no inferno. Havia corpos espalhados pelas ruas, tudo morto à catanada. Até o coração se me apertou. Nem parei e fui directo a casa, prevendo o pior. Entrei a medo, apavorado com o que poderia encontrar, mas descobri-a vazia. Não havia vivalma nem, felizmente, nenhum cadáver. Fui ter com o aspirante administrativo que normalmente me ajuda no posto e dei com o corpo dele no quarto de banho. Um outro auxiliar estava morto no posto. Sabe como? Agarrado ao emissor de rádio! Aquilo era dantesco, vocês não podem imaginar. Pus-me a esquadrinhar o Quitexe, mas não encontrei a minha família. Depois lembrei-me de ir a casa do meu criado. Meti pela sanzala e fui dar à palhota. Entrei sem avisar e o que vejo eu? A minha mulher e os meus filhos! Oh, foi uma alegria que não se descreve! Tinham sido salvos pelo criado, o João, que Deus o abençoe."

A mãe soltou uma gargalhada nervosa.

"Ai que alívio!", exclamou. "Estava a ver que isso acabava mal."

"Felizmente que não, no nosso caso. Mas noutras situações foi diferente, sabe? Houve casos em que foram os próprios criados a degolar os patrões. Alguns tinham anos de casa!"

"Que horror!", exclamou a mãe. "E a sua família? Onde está ela?"

"Meti toda a gente esta tarde no Super Constellation. A esta hora estão a voar para a Metrópole, graças a Deus. Depois de arrumar as nossas coisas, também vou. Isto está que não se pode."

Fez-se um silêncio pesado à mesa e, ainda encostado à porta, Diogo ouviu um súbito tilintar de pratos, como se alguém chamasse a atenção para a comida de modo a aligeirar o ambiente.

"Ora coma, coma! Quer a perna ou o peito?"

"O peito", retorquiu o convidado. "Não tem jindungo?"

"Está na cozinha. Vai uma pitada?"

"Agradecia."

O rapaz escutou uma cadeira a arrastar e não esperou mais; levantou-se apressadamente e foi para a outra ponta do corredor. A porta da sala de jantar abriu-se e apareceu a mãe, que ao vê-lo ali lhe atirou de imediato um olhar desconfiado.

"O que estás a fazer aqui no corredor?"

Diogo assumiu o ar mais casual que conseguiu.

"A brincar."

A mãe fitou-o com uma expressão severa.

"Vai brincar para o quarto", ordenou, apontando para a porta. "Andor! Fora daqui!"

O filho levantou-se, contrariado, e arrastou-se cabisbaixo com o carrinho dos bombeiros na mão. Abriu a porta do quarto e viu os irmãos, que se viraram para ele e lhe lançaram um olhar expectante, como quem pede novidades.

Diogo levava muito que contar.

 

A convocatória surgiu na segunda semana, quando um paquete bateu à porta do quarto dos Branco no Hotel Central de Lourenço Marques e entregou a José um envelope remetido pelos Serviços Provinciais de Saúde. Depois de depositar uma gorjeta na mão do rapaz, o hóspede abriu o sobrescrito e constatou que se tratava de uma convocatória do director, Floriano Carvalho, para uma reunião nesse mesmo dia às três da tarde.

Almoçou com a mulher na cervejaria Piripiri e, à hora combinada, o médico apresentou-se na morada da Pinheiro Chagas à qual havia sido chamado. Tratava-se de uma elegante vivenda de traça colonial oitocentista, com um belo jardim à volta e o primeiro andar rodeado por uma vasta varanda, à maneira antiga.

"Oh, caro doutor Branco", saudou Floriano quando o foi receber às escadas. Levou-o para o gabinete e indicou uma cadeira diante da sua secretária. "Faça o favor."

O médico sentou-se e contemplou a sala. Era larga e estava toda revestida a madeira, com um enorme relógio e fotografias emolduradas a ornar as paredes, incluindo uma grande imagem de Salazar atrás da secretária do director.

"Que belo gabinete."

O olhar de Floriano incendiou-se de entusiasmo.

"É, não é?" Apontou para um caixilho na parede. "Está a ver esta fotografia?"

José Branco pousou o olhar na imagem encaixilhada, enquadrando um retrato a preto-e-branco de uma moradia com o espaço vazio à volta; evidentemente um clichet antigo do edifício onde se encontravam.

"É esta casa?"

"Essa fotografia foi tirada em 1914", indicou com um sorriso embevecido. "Trata-se de um dos edifícios mais antigos de Lourenço Marques, construído para ser a residência do director do Hospital Miguel Bombarda. É para que veja como é distinta esta moradia!"

Os olhos do convidado desviaram-se do retrato para as amplas janelas da sala.

"Uma casa cheia de charme, sem dúvida."

O sol jorrava pelos vidros, formando um rectângulo iluminado no soalho de madeira exótica. O pó cintilava no ar, como se milhares de pirilampos minúsculos esvoaçassem diante da luz, e um móvel de madeira rangeu, parecia que protestava contra o calor.

Fez-se um silêncio desconfortável, quebrado pelo pigarrear forçado de Floriano a assinalar a entrada no assunto que o levara a convocar o médico para aquela reunião.

"Já tenho aqui a sua guia de marcha", disse, exibindo um envelope com o carimbo dos Serviços Provinciais de Saúde. "Mas antes de lha entregar gostaria de ter consigo a conversa que tenho habitualmente com todos os médicos que aqui recebo antes de os enviar para os seus postos."

"Vai-me alertar para as especificidades das patologias africanas?", perguntou José. "Não precisa. Ao contrário de muitos colegas que por aí andam, eu tirei Medicina Tropical em Lisboa antes de vir para aqui. Sei muito bem o que me espera."

Os dedos de Floriano tamborilaram distraidamente na mesa.

"Ainda bem!", exclamou o director. "Mas, independentemente disso, queria fazer-lhe uma pergunta. O senhor sabe o que estamos a tentar fazer nesta terra?"

José estranhou a pergunta e ficou incerto sobre o seu sentido.

"Bem, acho que estamos a tentar tratar das populações..."

Floriano ignorou a réplica do médico, evidentemente fora do alvo, e respondeu a si próprio.

"Uma coisa grandiosa." Levantou-se e dirigiu-se à janela voltada para a avenida. "Olhe lá para fora, doutor. Olhe bem." Fez uma pausa, exibindo a paisagem com um gesto grandiloquente. "O que vê o senhor?"

José esticou o pescoço.

"Vejo carros a passar na avenida, pessoas a circular pelos passeios e prédios por toda a parte. Porquê?"

"Há menos de duzentos anos, Lourenço Marques não passava de uma fortaleza, justamente aquela que vos mostrei quando vocês chegaram, e uma casa de madeira construída ao lado. Além das palhotas, claro. Mais nada."

"Há quanto tempo foi isso?"

"No século XVIII, meu caro amigo."

"Mas os Portugueses não chegaram a Moçambique em 1498?"

"Sim, é verdade, foi Vasco da Gama o primeiro branco a pôr o pé nesta terra. Mas isto ficou tudo negligenciado, meu caro. Ninguém queria saber de nada, havia outras prioridades. Os únicos que se interessaram foram alguns mercadores portugueses que, enquanto as caravelas seguiam para a índia, exploraram a costa de Moçambique, atraídos pela lenda do Monomotapa. Dizia-se que havia por aí grandes minas de ouro."

"Como as do rei Salomão?"

"Mais ou menos. Instalaram-se então feitorias em Sofala e na Ilha de Moçambique, mas o resto era paisagem. Durante quatro séculos, a influência portuguesa por estas paragens ficou ao sabor das nossas cíclicas expansões e retracções e do comércio dos escravos, do ferro e do ouro. Até cerca de 1890, Moçambique não era bem um território português, mas um pedaço de terra entregue a intermináveis disputas tribais, com os caciques e os mazungos a guerrearem-se uns aos outros, aliando-se alternadamente aos Portugueses e aos maometanos. Só nominalmente é que isto dependia da coroa portuguesa." Abriu a janela e deixou o ar quente da rua invadir o gabinete. "A coisa estava de tal modo ao deus-dará que os primeiros europeus a instalarem-se neste sítio, onde é agora Lourenço Marques, não foram os Portugueses, mas os Holandeses. Depois vieram os Ingleses e até uma empresa austríaca, veja lá!"

"Mas nós não andávamos por aqui?"

"Por Moçambique?"

"Não, não." Apontou para o chão. "Aqui na zona de Lourenço Marques."

Floriano indicou com a cabeça um ponto indefinido para lá de uma janela.

"Instalámos um entreposto ali na ilha da Inhaca, do outro lado da baía, para o comércio do marfim. Mas só viemos aqui para Lourenço Marques em 1781, quando o pessoal da Inhaca atravessou a baía e se pôs a construir a fortaleza. A coisa manteve-se pequena ao longo de todo o século XIX, mas a descoberta de ouro e diamantes no Transvaal criou a necessidade de se abrir um porto para escoar esses minerais preciosos. Ora o melhor porto do Sudeste africano é o de Lourenço Marques, toda a gente sabe. Está protegido pela baía e dispõe de águas profundas. De modo que se começou a investir por aqui. A linha férrea, essencial para ligar o Transvaal à costa, ficou entretanto concluída e então, aí sim!, Lourenço Marques começou a crescer a sério." Fez um gesto largo com as mãos, afastando-as como se houvesse um objecto a dilatar no meio. "A cidade cresceu tanto, em dimensão e importância, que, em apenas quatro anos, retirou à Ilha de Moçambique o estatuto de capital da colónia. Pode dizer-se que Lourenço Marques é praticamente uma criação do século XX. Tudo o que havia antes por aqui era risível, insignificante."

"Mas já havia Moçambique..."

"Não, não havia. Existiam umas territas mais ou menos administradas por nós, só isso. Muitas partes do território permaneceram nas mãos dos selvagens até 1914, altura em que, então sim, a colónia adquiriu as suas fronteiras definitivas. Mas só eram fronteiras no papel, como deve calcular, porque Portugal não fazia ocupação efectiva. O problema é que os Ingleses e os Alemães começaram a ficar com vontade de nos abocanhar e, como não tinha dinheiro nem gente para ocupar a terra, a coroa voltou-se para empresas privadas estrangeiras e entregou-lhes por cinquenta anos o monopólio da exploração de dois terços do território, a troco de 7,5 por cento dos lucros. Está a ver o negócio?"

"Portanto, alugámos a colónia aos estrangeiros."

"Isso. Criaram-se assim três companhias: a do Niassa, a da Zambézia e a de Moçambique. A contrapartida dada por Portugal foi assegurar o controlo efectivo do território, o que obrigou a desencadear várias campanhas militares, como as de Mouzinho de Albuquerque, que levaram à captura dos reis locais, como o Gungunhana."

José Branco passou as mãos pelo cabelo e fitou o superior hierárquico com uma expressão intrigada.

"Tudo isso é realmente muito interessante", disse da forma mais convicta que conseguiu. "Mas confesso que não vejo bem a relação desse assunto com o meu trabalho..."

O director respirou pesadamente.

"O que estou a tentar explicar-lhe, caro doutor, é que isto era tudo muito negligenciado. Os idiotas da monarquia, e depois os parvalhões da República, estavam demasiado envolvidos nas suas trapalhadas para prestarem a devida atenção às colónias. Os republicanos ficaram todos enxofrados com o ultimato inglês, mas, enquanto governaram, esses fala-barato também nada fizeram." Floriano abandonou a janela e voltou a sentar-se no seu lugar. "Sabe quem é que mudou isto?"

A pergunta suscitou um arquear de sobrancelhas de José; a resposta era previsível.

"O novo regime?"

O olhar do seu superior hierárquico desviou-se para o retrato pregado na parede atrás da secretária.

"Salazar."

Numa reacção quase reflexa, o médico fitou também a figura esfíngica do presidente do Conselho, imobilizada naquela moldura.

"Ah."

Floriano deu uns passos e estacou diante do retrato.

"Salazar foi o primeiro homem a formular uma estratégia coerente para o império. A ideia que ele apresentou, e que estamos a pôr em prática, é fazer com que as províncias ultramarinas sejam auto-suficientes, com a indústria concentrada na Metrópole e a agricultura e as matérias-primas nas colónias. Salazar acabou com as concessões privadas aos estrangeiros e instituiu uma administração central forte. Investiu no algodão e no arroz, e a verdade é que as exportações aqui da província aumentaram mais de quinhentos por cento." Fez uma pausa, para deixar o número assentar. "Quinhentos por cento. Imagina o que isso é?"

"É muito."

"É a diferença entre o nada e o tudo, meu caro. Entre a inexistência e a existência." O director puxou a cadeira e reinstalou-se no seu lugar à secretária. "Mas não ficámos por aqui. O estado está a investir na industrialização, que se centra nesta zona de Lourenço Marques, e também no turismo. A ideia é atrair os bifes que vivem na Rodésia e na África do Sul, para ver se eles vêm cá gastar os seus rands." Apontou o dedo ao subordinado. "E é aqui que você entra."

O médico arregalou os olhos.

"Eu?"

"Sim. Você, eu, todos os colonos que aqui estão. E que, para marcar Moçambique no mapa, o país necessita de quadros qualificados. Temos poucos, como sabe, até porque a Metrópole não pode enviar toda a gente habilitada que para lá anda, se não fica ela sem ninguém. Somos por isso poucos, mas precisamos de dar o melhor uso a cada um." Apontou para o subordinado. "Você é um desses poucos. A pátria exige que dê o seu melhor, apesar das condições adversas que cá existem. A terra é dura, mas as pessoas que vêm para o Ultramar são gente que ergue, que constrói, que abraça o trabalho, que faz das fraquezas forças e transforma o pó em ouro. Para trás fica o Portugal derrotista, preguiçoso e maledicente, das críticas e das invejas, dos que falam e nada fazem. Aqui é o Portugal optimista, trabalhador e construtivo, solidário e positivo, dos que fazem mais do que falam. Estamos numa terra imensa, onde está tudo por fazer, e gostaria que tivesse isso sempre presente quando começar a desempenhar as suas novas funções." Ergueu o dedo. "Quem vem para África vem em missão!"

"Com certeza", assentiu o médico. "Vim cá para trabalhar e sei muito bem que está quase tudo por fazer. Mas confesso que a sua conversa me está a assustar um bocado. Em que diabo de buraco me querem vocês meter?"

Floriano esboçou um sorriso e levantou-se de novo, desta feita para se abeirar de um mapa de Moçambique que se encontrava assente numa estrutura de madeira ao lado da secretária.

"Esteja tranquilo que é um sítio agradável", prometeu, pousando o indicador num ponto do mapa. "Aqui."

José Branco aproximou-se e fixou os olhos no local indicado. Tratava-se de uma cidade situada relativamente perto de Lourenço Marques, apenas alguns quilómetros a norte da capital provincial.

"Xai-Xai?"

O director pegou no envelope com a guia de marcha.

"Esse mapa é antigo", disse, entregando-lhe o sobrescrito. "Agora chama-se João Belo."

O subordinado mantinha a atenção colada àquele ponto do mapa.

"É este o buraco para onde vamos ser desterrados?"

"Qual buraco, doutor? João Belo é uma linda cidade!" Inclinou a cabeça. "Com a vantagem acrescida de não ser muito longe daqui. Temos lá trabalho para si e para a sua mulher. Se precisar de alguma coisa, estarei aqui às suas ordens." Estendeu-lhe o braço, dando a reunião por terminada. "Boa sorte!"

Apertaram as mãos e Floriano acompanhou o médico até à porta do gabinete. Despediram-se mais uma vez e José virou as costas para descer as escadas.

"Doutor Branco?"

Ia já a meio da escadaria quando se deteve e olhou para trás. O superior hierárquico permanecia plantado à porta do gabinete.

"Sim?"

"Tenha cuidado com as más companhias, ouviu?"

Acto contínuo, e sem esperar pela réplica, Floriano fechou a porta e deixou José Branco ancorado entre dois degraus, intrigado com o conselho, a tentar compreender o seu real alcance.

 

Um silvo ondulante soou pelo altifalante do rádio como um assobio desafinado. O capitão Meireles rodou o manípulo, procurando sintonizar a frequência certa. Do éter irrompeu uma voz e o capitão ficou atento por um instante, tentando perceber se havia encontrado o que queria.

"... mais le président De Gaulle, après avoir reçu le premier- ministre Debré, a déclaré que la situation en Algérie est..."

Uma emissora francesa.

"Bardamerda!", vociferou, frustrado.

Mudou imediatamente de frequência e os silvos voltaram. Captou música e parou. Era uma qualquer canção em árabe. Rodou de novo o manípulo, mas, enervado com a minúcia do processo, foi rápido de mais e saltou uma mão-cheia de emissoras.

A mulher, distraída a fazer malhas, ergueu o sobrolho.

"Ó Quim, não é assim", disse, guardando as lãs e aproximando-se do rádio. "Lá em minha casa habituei-me a ver o meu pai procurar a BBC. Isto de sintonizar uma estação de onda curta tem a sua técnica."Lourdes girou o manípulo e, em apenas alguns segundos, todos na sala ouviram uma voz familiar emudecer os zunidos da estática.

"... aos microfones da Emissora Nacional, a emitir em onda curta pelas frequências de..."

Lançou um olhar triunfal na direcção do marido.

"Estás a ver, Quim? Com calma tudo se faz."

Os sons da rádio portuguesa impuseram o silêncio em toda a casa. Diogo consultava a página desportiva de A Província de Angola em busca de novidades sobre as corridas de automóveis que tanto o apaixonavam, mas deixou igualmente a atenção desviar-se para as ondas curtas.

Passados alguns minutos soou o sinal horário a assinalar as nove da noite e começou o noticiário. A Emissora Nacional dava notícias sobre a substituição das chefias militares na sequência de uma intentona contra o governo chefiada pelo general Botelho Moniz e, nas palavras do locutor, "prontamente neutralizada pela imediata intervenção das forças da ordem".

A revelação provocou espanto na sala, mas ninguém articulou qualquer observação com medo de perder uma palavra que fosse do noticiário.

"Na sequência destes graves acontecimentos", acrescentou o locutor, "o senhor presidente do Conselho assumiu ele mesmo a pasta da Defesa. No seu gabinete de trabalho, o professor António de Oliveira Salazar gentilmente acedeu a explicar aos nossos microfones os motivos que o levaram a tomar esta decisão."

Ouviu-se a seguir uma voz esganiçada e sibilante que todos de imediato reconheceram como do chefe de governo.

"Se é preciso uma explicação para o facto de assumir a pasta da Defesa Nacional mesmo antes da remodelação do governo, a explicação pode concretizar-se numa palavra, e essa é: «Angola»", disse a voz familiar. "Andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão."

A declaração foi recebida aos urros na sala de jantar. O capitão Meireles esmurrou o ar com o mesmo vigor com que celebrava os golos do seu FC Porto, no que foi acompanhado pela família.

"Até que enfim!", exclamou a mulher, abrindo-se num imenso sorriso. "Irra! Estava a ver que não!..."

O marido dava saltinhos na sala, agarrando em Diogo e em Mimi e dançando com eles. Incapaz de se conter, abriu a janela e gritou para quem o quisesse ouvir.

"Para Angola, e em força!"

O sol abrasava a pele, apesar da brisa salgada que soprava suave do mar. A multidão comprimia-se em ambos os lados da grande Avenida Paulo Dias de Novais, enchendo os passeios como se fosse uma guarda de honra à magnífica marginal de Luanda. As varandas dos edifícios estavam apinhadas de gente e das janelas pendiam enormes colgaduras; vendiam- se pipocas e gelados e viam-se guarda-sóis coloridos a abrigar a massa humana. O ar trepidava de excitação e cada mirone se esforçava por defender o palmo de passeio que ocupara de modo a garantir o melhor lugar para observar o grande acontecimento.

"Ó Quim", disse Lourdes naquele aperto, varrendo a multidão com o olhar. "Quantas pessoas achas que estarão aqui?"

"Sei lá... umas trinta ou quarenta mil. Eles até fecharam o comércio para permitir que os empregados viessem!..."

Com a bandeirinha portuguesa a tremelicar na mão, Diogo não era dos mais excitados. Sentindo-se cansado com a espera prolongada, o rapaz depressa se desinteressou da marginal, cujo asfalto permanecia estranhamente vazio, e preferiu sentar-se à sombra da fila de palmeiras e estudar o grande navio que atracara logo pela manhã na cidade. Pôs a palma da mão sobre a testa, como se fosse a pala de um boné, e protegeu os olhos para melhor ler a palavra pintada no casco do navio.

"Ni... a... ssa", soletrou. "Niassa."

Voltou a cabeça e viu os pais e os irmãos apertados entre a multidão, mantendo-se firmes no pedaço de passeio que haviam ocupado duas horas antes. Admirou a resistência deles, mas não os conseguia acompanhar, doíam-lhe já as pernas.

O ministro! ministro!"

O alerta dado por um mirone desencadeou um burburinho na multidão. Com a curiosidade atiçada, Diogo levantou-se e furou pela massa de gente até chegar de novo junto dos pais. Espreitou a estrada. O alcatrão da marginal encontrava-se ainda vazio e o espectáculo permanecia nos passeios, onde a mole humana se agitava com os olhos voltados na direcção do porto. Esticou o pescoço e espreitou naquele sentido, tentando destrinçar a fonte do burburinho.

Pela direcção dos olhares da multidão, percebeu que todos fitavam o edifício do Automóvel e Touring Clube de Angola. A descoberta surpreendeu-o, uma vez que aquele local o fascinava; era ali que se organizavam as emocionantes corridas do Circuito da Fortaleza e o aventuroso Rallye Automóvel Leopoldville-Luanda.

Mas as emoções nesse momento pareciam-lhe outras. A varanda do clube estava transformada numa tribuna, com o tal ministro do Tramar no meio. Chiça, que raio de nome tinham posto ao homem! Ministro do Tramar!? Parecia ser gente importante, o que não admirava; um ministro que pelos vistos tanto gostava de tramar os outros era de certeza temível. Aliás, já lá em casa o pai tinha-lhe grande respeito e chamava ao sujeito, Adriano qualquer coisa, "o ministro sem medo".

O toque de uma corneta interrompeu as divagações do rapaz, cujo olhar passeava pela varanda do Touring Clube. Logo a seguir o ar tremeu com o súbito rufar simultâneo de tambores.

"Eles vêm aí!"

A multidão agitou-se, despertando do torpor, e as pessoas adiantaram-se um passo, procurando a melhor posição.

"Viva a tropa!", gritou alguém. "Viva Portugal!"

O berro foi acompanhado de vivas sucessivos e o ambiente incendiou-se. Quem tinha uma bandeira na mão içou-a bem alto, gesto que Diogo imitou, e quem não conseguia um lugar na primeira fila punha-se atrás em bicos de pés, esforçando-se por ver acima do mar de cabeças.

"Ó p'ra eles! Ó p'ra eles!"

O desfile foi aberto por cinco jipes da Polícia Militar, secundados com estrondo pela banda do Comando Militar de Angola. Os primeiros soldados acabados de desembarcar apareceram em formação logo a seguir, marchando com passadas marciais, sincronizadas e ao ritmo da banda, as armas a tiracolo, as botas engraxadas a rigor.

Aquela visão ateou uma corrente eléctrica entre a multidão, que se pôs a ovacionar os recém-chegados. Soaram palmas espontâneas, tão ruidosas que por momentos abafaram a marcha solene das cornetas e dos tambores e das botas militares a bater no alcatrão em uníssono; os mirones gritaram, deram sucessivos vivas aos soldados, a Salazar e a Portugal. Foi um bruá imenso. O céu encheu-se de serpentinas, de flores e de confetti lançados dos prédios como chuva colorida, os soldados sorriram e acenaram de volta, e a multidão pôs-se a entoar A Portuguesa com ardente patriotismo. Algumas mulheres recorriam aos lenços para molhar a emoção e havia homens que saltitavam como crianças; olhavam para os soldados e viam a redenção.

Embasbacado diante da cena, talvez até mais impressionado com a reacção apoteótica da multidão do que com a própria tropa em desfile, Diogo agitou freneticamente a bandeira o mais alto que pôde e, embalado pela emoção, ergueu os olhos para o céu e murmurou uma jura sentida e solene.

"Quando for grande, Deus, faz-me soldado de Portugal!"

 

O Limpopo dobrava-se como uma jibóia, roçando pelo casario na sua curva apertada, manso e majestoso; o Sol despontava na planície e o pipilar solitário de um pássaro ecoava pelo espelho de água. A paisagem respirava tal majestade que o casal Branco apenas se atrevia a sussurrar durante o pequeno-almoço, como se receasse que as vozes perturbassem a natureza. Estavam a comer no quintal de casa, protegidos pela sombra de um limoeiro e ambos virados para o rio. Das águas dóceis sentiram subir uma brisa ainda fresca; não era de admirar, considerando a hora matinal.

Foi quase com pena que concluíram a refeição. Depois de Mímicas dar as últimas instruções ao criado, os dois pegaram nas suas coisas e abriram a porta de casa. A manhã despontara tranquila e João Belo parecia ainda meio adormecida. Um jipe passou com estrépito na rua de terra batida, levantando uma nuvem de poeira avermelhada, mas o movimento limitava-se no essencial a algumas pessoas que circulavam despreocupadamente pelos passeios.

Quando teve a certeza de que a nuvem não os atingiria, José saiu para a rua e passou o dedo pelo capot do Opel parado diante da casa, de modo a avaliar a quantidade de pó que sobre o automóvel se abatera durante a noite. Era uma bela viatura branca com tejadilho azul-turquesa, que ele, inexperiente ao volante e pouco familiarizado com a condução à esquerda praticada em Moçambique, logo no primeiro dia amolgara ao tentar estacioná-la.

"Não queres levar o coiso?", perguntou a mulher numa referência ao carro.

"Fico intimidado quando ando na bomba da senhora directora da farmácia", gracejou José, inclinando-se para lhe dar um beijo. "Até logo, senhora directora."

Mimicas corou e riu-se.

"Parvo!"

Os dois separaram-se, ele rua acima a pé para o hospital, ela dando meia volta e regressando a casa. Havia já três anos que era aquela a sua rotina matinal em João Belo. Devido à falta de quadros, Mimicas fora nomeada directora da farmácia do Estado, cargo que ocupava apesar de ser recém-formada e que lhe dava direito a casa. Na verdade não era uma casa, mas um conjunto de edifícios: a residência, um posto médico e a farmácia do Estado, os três blocos unidos por uma vasta varanda.

Não era comum a mulher ocupar uma posição hierárquica superior à do marido, facto que atraíra já alguns gracejos na boa sociedade de João Belo, mas José sempre levara a coisa na galhofa. Referia-se à mulher em público como "a senhora directora" e desse modo contornava a ideia prevalecente entre os seus contemporâneos de que o homem está sempre acima da mulher. Formavam assim um casal sui géneris: ela era directora da farmácia, ele distinguia-se por andar sempre impecavelmente de branco, como se tornara seu costume desde que chegara a Moçambique.

Foi aliás nas suas tradicionais vestes brancas que nessa manhã seguiu para o trabalho, a mala a balouçar na mão e o olhar atento ao trânsito. Sempre que um automóvel passava pela rua tinha o cuidado de se desviar do inevitável bafo poeirento; vestir de branco obrigava-o a cuidados redobrados, sob pena de ter de ir ao roupeiro buscar as balalaicas de reserva.

Chegou ao hospital à hora habitual, faltavam dez minutos para as sete da manhã. Cumprimentou o enfermeiro Nélson, um tsonga que tirara o curso de Enfermagem em Lourenço Marques, e recolheu ao seu gabinete para se preparar. Vestiu a bata que estava pendurada no cabide e abriu a malinha, extraindo o estetoscópio e pondo-o ao peito. Cruzou a porta e fez sinal ao enfermeiro que o aguardava como uma sentinela.

"Vamos?"

Nélson hesitou.

"Doutor, o senhor director já cá está."

José fez uma careta surpreendida e consultou o relógio, querendo certificar-se de que não se enganara. Os ponteiros confirmavam que eram quase sete da manhã.

"A esta hora?"

O enfermeiro não respondeu e acompanhou o médico até à enfermaria. José foi ter com cada um dos pacientes e interrogou-os sobre a noite, auscultando-os e medindo-lhes a temperatura. Havia um caso de paludismo cerebral que o mantinha preocupado, tendo gasto mais tempo com esse paciente. Sempre que tinha dúvidas questionava Nélson, que havia passado a noite no hospital e o esclarecia de pronto, e assim cumpriu os seus deveres na enfermaria.

As consultas começavam às oito e, quando a hora chegou, apressou-se a caminhar para o gabinete. Apercebeu-se nessa altura de um vulto a esgueirar-se por detrás de uma cortina que separava os doentes e franziu o sobrolho, mas depressa reconheceu a figura furtiva; era o director.

"Bom dia, doutor Abreu!", cumprimentou, intrigado. "Por aqui a esta hora? Caiu da cama ou quê?"

A silhueta permaneceu um instante imóvel, como se não esperasse ser identificada, mas logo deu um passo para o lado, talvez percebendo que era inútil permanecer escondida.

"Hmpf!", grunhiu o director com ar irritado, dando uma resposta incompreensível.

José Branco riu-se para dentro e abanou a cabeça, sem entender aquele comportamento; era mais uma parvoíce do director, pensou. Retomou caminho, apressado; gostava de cumprir horários e via já uma fila de pessoas na salinha contígua à sua porta. Cumprimentou-as com um "bom dia" geral e meteu-se no gabinete, fazendo sinal ao enfermeiro.

"Chame o primeiro."

O primeiro paciente foi, na verdade, um par. Tratava-se de um padre que acompanhava uma freira com um problema bizarro: tinha o ventre dilatado. O médico mandou a freira deitar-se na marquesa, apalpou-lhe a protuberância e auscultou-a com atenção.

"Serão gases, doutor? Nós comemos muitos feijões lá na missão..."

As palavras do pároco foram pronunciadas com uma voz sibilante, à maneira dos beirões, e José levou alguns instantes a responder.

"Não."

"Ai, meu Deus!", ciciou o homem, passando as mãos pela cara com evidente aflição. "E um cancro? Será um cancro? Um linfoma? Um carcinoma?"

Disse-o com expectativa, quase com esperança, o que suscitou a estranheza do médico. Terminado o exame, José recolheu o estetoscópio e regressou em silêncio ao seu lugar, de onde perscrutou os rostos do par que o viera consultar. A freira tinha um ar embaraçado, envergonhado mesmo, e mal se atrevia a cruzar os olhos com o padre. Já o pároco não olhava para ninguém; transpirava em abundância, afogado numa ansiedade que ao clínico pareceu sinal inequívoco de que não era inocente naquela situação.

"Não é um carcinoma", disse por fim José, mantendo o semblante impenetrável. "É um criançoma."

As consultas prolongaram-se até às onze da manhã, altura em que a salinha se esvaziou por completo e José fez a habitual pausa para o café. Esticou os pés sobre a secretária e descontraiu, embora a sua vontade fosse estender-se sobre a marquesa e dormitar um pouco; lidar durante três horas ininterruptas com pacientes deixara-o exausto.

"Pode-se?"

O médico deu um salto na cadeira, entornando o café pela bata e pela balalaica, e olhou para a entrada.

"Domingos!"

O rosto sorridente de Domingos Rouco espreitava pela porta, divertido com a reacção do amigo e sobretudo com as nódoas de café espalhadas pela roupa.

"Lá se foi a balalaica!", exclamou em tom zombeteiro. "Tens de ir ao Bem Fica comprar mais..."

José sacudiu o café que lhe escorria pelos dedos, pousou a chávena na mesa e foi acolher o recém-chegado.

"Por aqui?", admirou-se, apertando-lhe a mão. "Só estávamos à vossa espera este fim-de-semana."

"Pois é, mas recebi um telegrama para vir com urgência a Inhambane e, pimba!, lá vim a correr."

"Que se passa? E coisa grave?"

"Não. Assuntos de família, nada de especial."

O médico fez-lhe sinal de que se sentasse na cadeira habitualmente reservada aos pacientes durante as consultas, mas antes de se lhe juntar lançou uma espreitadela para além da porta.

"A Albertina?"

"Vim sozinho", esclareceu o amigo. "No sábado faço o caminho de regresso e combinámos encontrar-nos no Bilene. Vocês sempre vão, não é verdade?"

José acomodou-se no seu lugar.

"Para o Bilene? Claro! É o que está combinado." Esticou o pescoço na direcção da janela e avistou o Chevrolet do recém- chegado estacionado à porta do hospital. "Olha lá, se vens de Inhambane, o melhor era até passares por nossa casa e íamos juntos. Que te parece?"

"Iá, maningue naice."

O médico indicou-lhe a chávena vazia que havia entornado instantes antes.

"Vai um café?"

Domingos riu-se.

"Onde? Na roupa? Não obrigado." Abanou a cabeça, mudando para um tom ligeiramente mais sério. "Matabichei antes de sair de Lourenço Marques."

"E o trabalho? Tudo bem?"

"Os serviços de contencioso do BNU são sempre maningue movimentados, pá", disse. "Iá, a malta nunca pára." Esboçou uma expressão caricaturalmente confidencial. "Além do mais tenho o trabalho por fora, não é? Os indígenas enchem-me de serviço." Disse indígenas em tom irónico. "E dão-me muita despesa também. Os gajos têm imensos problemas e pouco dinheiro. Mas suponho que é este o preço de ser o único advogado indígena de Moçambique. A malta vem toda bater-me à porta da flat e, como deves calcular, não posso dizer que não."

"Os pides ainda te chateiam?"

"Ui! Nem me fales! Há dois anos que não me largam." Ergueu uma sobrancelha. "Desde que foi criada a Frelimo que andam em cima de mim. Os gajos acham que eu ando envolvido na coisa."

"E não andas?"

O advogado riu-se.

"Não digo que não", admitiu.

"Se a Frelimo diz que quer expulsar os Portugueses de Moçambique e declarar independência imediata e se tu fazes parte da coisa, é natural que os pides te tragam debaixo de olho, não te parece?"

"Eh, pá! Não é bem assim. Quando a Frelimo diz que quer expulsar os Portugueses, isso não é literal. A Frelimo quer é expulsar o regime português. Mas os portugueses que pretendam cá ficar serão bem-vindos, claro. O nosso movimento não é radical. Não te esqueças que o Mondlane se licenciou nos Estados Unidos e que a Frelimo tem o apoio da Ford Foundation. Os países africanos estão todos a declarar a independência e esse processo é apoiado pelos Americanos. Não vejo por que motivo há-de Moçambique ser diferente."

"Não estou a ver o regime ir nessa conversa", observou José. "Se Portugal não ceder, o que achas que vai acontecer?"

"Ó Zé, já uma vez falámos nisso. Se o Salazar não ceder, o caldo vai-se entornar."

"Ou seja, a guerra vai chegar aqui a Moçambique..."

O advogado ficou um instante quieto, mas acabou por assentir com um ligeiro movimento da cabeça.

"Já te avisei, não avisei? Ela já começou em Angola e também na Guiné. Moçambique é o freguês que se segue..."

"E tu? Vais fazer parte dela?"

Domingos respirou fundo e encolheu os ombros num gesto de resignação.

"Não sei", disse. "Mas não estou a ver alternativa."

José desviou o olhar para a janela.

"É essa a vantagem do meu trabalho", considerou com ar pensativo. "Ao contrário dos advogados, os médicos não têm de se meter na política. O nosso trabalho é estritamente humanitário."

O amigo ergueu o dedo, como se o avisasse.

"Estás enganado, Zé. Na vida tudo é política."

José cruzou os braços, com o ar resoluto de quem tinha tomado uma posição e dali não sairia.

"Os médicos são a excepção."

"Isso é o que tu pensas. Por mais que tentemos fintar a política, meu caro, ela acaba sempre por nos apanhar. Vais ver! Mais tarde ou mais cedo, a política prega-te uma rasteira e ali estás tu, forçado a enfrentá-la. Vais ver!"

Mas o amigo não se mostrava convencido.

"Sabes, Domingos, a minha profissão tem certas especificidades com as quais não estás familiarizado. Para começar, o juramento de Hipócrates estabelece muito claramente que..."

José interrompeu a frase no momento em que se apercebeu de um vulto a assomar à porta. Desviou os olhos naquela direcção e reconheceu a figura seca do director do hospital, que de manhã havia surpreendido na enfermaria. O doutor Abreu era um médico à moda antiga, cheio de formalismos e com uma pose austera, pelo que, em sinal de deferência pela hierarquia, José se levantou do lugar, no que foi acompanhado por Domingos.

"Doutor Abreu", disse. "Precisa de alguma coisa?"

O director do hospital nem o encarou. Em vez disso estudou o visitante com uma expressão de desdém, examinando-o lentamente dos pés à cabeça.

"O que está este preto aqui a fazer?"

A pergunta rebentou no gabinete com um fragor surdo, silenciando tudo à sua volta. José ficou um longo instante especado a fitar o superior hierárquico, horrorizado com o que acabara de ouvir e percorrendo mil opções sobre como responder. Deveria fingir que não percebera? Deveria agir como se aquilo que ele dissera fosse normal? Ou deveria berrar com o director? Aplicar-lhe uma murraça, talvez? Como proceder quando o seu chefe dizia uma coisa daquelas a uma pessoa, ainda para mais um amigo?

"Desculpe, doutor Abreu", acabou por murmurar, o coração aos pulos, dividido entre a vontade de o insultar e o receio de apanhar um processo disciplinar por insubordinação; teria de dizer o que pensava, mas precisava de medir as palavras. "O doutor Rouco é meu amigo e está aqui numa visita de cortesia. Os termos e o tom que o senhor utilizou não são, receio bem, os mais adequados e devo dizer que me deixam até envergonhado."

O director continuou a olhar fixamente o visitante.

"Este preto não é um paciente, pois não? Se não é, não está aqui a fazer nada e tem de se pôr na rua. Os únicos selvagens que aqui entram são os doentes." Apontou para a entrada. "O lugar dos outros é lá fora."

"O doutor Rouco não é um selvagem", ripostou José, o sangue já a ferver. "É meu amigo e exijo que o trate com o respeito que merece."

O director insistiu com o braço na direcção da porta de entrada.

"Rua!", ordenou. "Quero este preto na rua! Já! Fora do meu hospital! Fora daqui!"

Domingos e José trocaram um olhar, percebendo que a coisa não se iria resolver.

"Deixa estar, Zé", disse o advogado, pegando nas suas coisas e preparando-se para sair. "Eu vou dar uma volta e encontramo-nos para o almoço, está bem?"

"Isso não é bem assim", disse o amigo, voltando-se de novo para o superior hierárquico. "Se o doutor Rouco sai, eu também saio."

Foi a primeira vez que o director do hospital pousou os olhos no subordinado desde o início do incidente.

"Era o que mais faltava!", rosnou. "O preto sai, mas o senhor doutor fica porque tem deveres a cumprir!"

Era o que José queria ouvir: uma ordem que pudesse desafiar. Arrumou o estetoscópio na malinha, despiu a bata suja e atirou-a para o chão, pegou na mala e saiu do hospital ao lado do amigo.

Fazia calor ao sol. Caminharam os dois em silêncio até ao Chevrolet. Quando entrou no veículo, José sentiu o interior a escaldar como se estivesse a meter-se numa lareira. Domingos instalou-se ao volante, ligou o motor e, com o braço atrás do banco para fazer marcha atrás, encarou o amigo; trazia um sorriso irónico a bailar-lhe nos lábios espessos.

"O que te dizia eu?", perguntou. "A política apanha-nos sempre."

 

No momento em que estacionou à beira da praia da Samba, o minúsculo Austin-Morris Minor parecia uma lata de sardinhas; os ocupantes iam tão apertados que havia pernas e braços a sair pelas janelas. Logo que as portas se abriram, do interior saltaram Diogo, os pais com a bebé, os outros três irmãos e ainda o impedido que servia a família; eram ao todo oito pessoas.

Enquanto durava, a acanhada viagem até à praia no Austin era motivo de galhofa todos os domingos, mas não neste. A euforia provocada pelo desembarque das primeiras tropas havia gerado na família uma reconfortante sensação de segurança, embora com o tempo esse sentimento fosse cedendo de novo lugar à apreensão. Todos os dias o pai chegava do quartel com mais novidades e nem sempre eram as melhores.

A ida à praia era uma tentativa de desanuviar o ambiente pesado, que a todos afectava. A época das chuvas, quando o tempo é mais quente, já havia passado, mas a praia da Samba permanecia apetecível como sempre, as areias douradas a prolongarem-se até à água tépida e translúcida. Os recém-chegados estenderam as toalhas numa crista do areal, tendo o cuidado de proteger do sol os cestos com a comida e o garrafão, e logo todos correram para a água, as crianças à frente a soltar guinchos de excitação.

Ao contrário dos irmãos, porém, Diogo não era um amante dos mergulhos nem das brincadeiras à beira-mar, pelo que cedo se deitou na toalha e ali se deixou tostar. Minutos mais tarde sentiu os pais regressarem também do banho. Falavam à distância, mas as vozes ondulavam pela areia e pela brisa e chegavam a Diogo como se ambos estivessem ao fundo de um túnel.

"A água está uma maravilha", observou a mãe. "Então junto à areia parece mesmo um caldinho."

"É o que isto tem de bom", concordou o pai. "Mas não sei se vamos aguentar muito tempo."

"Homessa! Porque dizes isso?"

"Ora! Porque os ataques não param. Ainda noutro dia a Força Aérea conseguiu pôr fim ao cerco à Mucaba, não foi? Pois os terroristas voltaram ontem a atacar a Mucaba."

"Credo! E não se consegue travar essa gente?"

"Pelos vistos não. Os tipos atacaram também Sanza Pombo e a Damba. Foram dadas ordens para suspender o cultivo do algodão em todas estas regiões."

"Mas quem são esses terroristas?", perguntou a mãe. "O que querem eles? Exterminar-nos a todos?"

"Uns chamam-se UPA e outros MP... qualquer coisa. Dizem que Angola é para os pretos."

"Que disparate!"

"Pode ser um disparate, mas os Americanos dão-lhes razão e os comunistas entregam-lhes armas. E queres saber uma coisa? Até a ONU votou a favor dos terroristas!" Soltou uma gargalhada forçada, que a mulher não acompanhou. "É para rir!"

"Quer dizer que Portugal está sozinho?"

O pai anuiu.

"E incrível, não é? Matam mulheres e crianças à catanada e

o que faz o mundo? Aplaude!"

A abanar a cabeça de reprovação, Lourdes inclinou-se sobre um cesto e extraiu uma sanduíche do interior. Desembrulhou o guardanapo que a envolvia e sentou-se a contemplar o mar. Os filhos brincavam ainda na água e Lourdes acompanhou com atenção os seus movimentos, tentando perceber se de alguma forma estariam perturbados pelo ambiente que se instalara em Luanda. Não deve ter gostado do que viu porque de repente abanou a cabeça e, com súbita resolução, voltou-se para o marido.

"Ó Quim, quando é que disseste que acabava a tua comissão de serviço?"

O marido engoliu o pedaço de sanduíche que tinha na boca antes de responder.

"No próximo mês", indicou. "O coronel Tavares já me perguntou se quero renovar por mais quatro anos."

"E tu, o que lhe respondeste?"

"Que ia pensar."

A mulher voltou a contemplar o mar enquanto mastigava.

Havia barcos de pesca a deslizar na água e um deles, baloiçando nas ondas, aproximava-se da praia já em fecho de faina. Os filhos tinham-se apercebido daquele barco e interceptavam-lhe o caminho para espreitar os peixes aos saltos nas cestas.

"Amanhã vou à Agência Atlas comprar os bilhetes", anunciou Lourdes sem tirar os olhos vigilantes dos filhos. "No mês que vem estamos todos na Metrópole."

 

O relógio assinalava já as onze da manhã e José Branco ainda não fora chamado. Uma dor na região lombar arrancou-lhe um esgar sofrido; encontrava-se havia demasiado tempo sentado naquela cadeira. Já tinham passado duas horas e ninguém lhe dizia nada. Ergueu-se para espairecer e deu um passeio pelo rés-do-chão da elegante moradia do centro de Lourenço Marques. Deparou com uma funcionária que escrevinhava a uma secretária e trocou com ela um sorriso tímido.

"Tenha paciência", disse ela. "O senhor director já o chama."

O médico passeou os olhos pela secretária e vislumbrou o papel ordinário de um jornal a espreitar por baixo do que pareciam relatórios.

"É de hoje?"

A funcionária pegou no periódico, um jornal de páginas enormes, e estendeu-lho.

"Diz aqui 16 de Abril de 1964, como vê", indicou, apontando a data por baixo do cabeçalho. "Quer?"

Era de facto a edição dessa manhã do Notícias. José pegou no matutino e voltou para a cadeira, animado por ter encontrado uma forma de passar o tempo enquanto não era chamado. Na verdade devia ter comprado um exemplar a caminho da reunião, mas a realidade é que nunca imaginara que o director dos Serviços Provinciais de Saúde o faria esperar tanto tempo.

Passou os olhos pela primeira página e constatou que os principais títulos eram desinteressantes. Estava quase a saltar directamente para as páginas desportivas quando reparou, escondida no canto à direita, numa caixa estreita e pequena com um título bizarro: "Notícia falsa sobre Moçambique na Rádio Nairobi". É verdade que não percebia muito de jornalismo, mas se a notícia era falsa porque a publicavam?

Intrigado, leu o interior da caixa. "A estação emissora de Nairobi, no Quénia, difundiu a notícia cujo teor é o seguinte", começava o texto, passando a citar a informação queniana. "«Fontes moçambicanas declararam que as autoridades portuguesas haviam declarado o estado de emergência e mandado 2500 homens para a Província da Zambézia, ao norte do Rio Zambeze. As tropas estão a operar contra os rebeldes que declararam guerra aos portugueses há um mês. A informação veio em cartas entregues por mão, dizendo que até agora nenhum membro das guerrilhas fora capturado, embora tenham feito 'raids' contra diversos postos portugueses»."

Parou a leitura, estupefacto. Estado de emergência? Dois mil e quinhentos homens para a Zambézia? Rebeldes que declararam guerra há um mês? "Raides" contra postos portugueses? Guerrilhas? Mas o que era aquilo? Voltou ao texto. "À notícia acima transcrita - inteiramente forjada - opõe-se formal desmentido, porquanto há calma absoluta em todo o território da Província de Moçambique, não se tendo registado o mais pequeno incidente." O texto prosseguia com a habitual diatribe contra os inimigos de Portugal e não dava mais informações úteis, mas só o facto de o Notícias publicar aquela caixinha em primeira página, mesmo que discreta, pareceu-lhe perturbador. Se tudo era falso, porque difundira essa notícia? E por que razão a comissão de censura a deixara passar?

"Doutor?"

Quais as reais intenções por detrás da publicação de texto tão extraordinário? Seria uma forma encapotada de passar uma informação verdadeira? Não iria isso...

"Doutor?!"

A voz irrompeu ao retardador na mente de José Branco, dissolvendo-lhe os pensamentos. Olhou para a porta e viu uma mulher de meia-idade a observá-lo. "Hã?"

"O senhor director está a chamá-lo", anunciou a mulher. "Faça o favor de subir."

 

O escritório dormitava à meia-luz no rolar morno do final da manhã, o torpor apenas perturbado pelo ranger casual de uma madeira, pelo tiquetaque hipnótico do relógio de parede e pelo ocasional farfalhar de papéis a serem remexidos. José havia cruzado a porta um minuto antes e Floriano Carvalho nem sequer levantou a cabeça. O director lia um documento, aparentemente absorvido no seu conteúdo, embora o visitante ficasse com a distinta impressão de que o superior hierárquico se fingia ocupado.

Floriano deixou prolongar o momento, indiferente ao pigarrear do convidado para assinalar a sua presença, até que acabou por juntar os papéis com algum fragor. Arrumou-os na esquina da secretária, afinou as cordas vocais e mirou por fim o subordinado.

"Doutor Branco", foram as suas primeiras palavras. "Não posso negar que me sinto decepcionado com o seu comportamento."

A declaração de abertura, sem cumprimentos nem preâmbulos, deixou o subordinado apreensivo. Floriano Carvalho, o director que tão bem o recebera três anos antes, acolhia-o agora com alguma frieza. José vacilou, sem saber se deveria dizer alguma coisa ou permanecer calado, mas como o director nada acrescentou àquelas primeiras palavras sentiu que lhe cabia algum tipo de reacção.

"Bom dia", cumprimentou, esperando que Floriano percebesse que se tratava de um remoque pela falta de cortesia do acolhimento. "Dá-me licença que me sente?"

O superior hierárquico fez um gesto imperial a indicar a cadeira que se encontrava diante da secretária.

"Faça o favor."

O médico puxou a cadeira, arrastando-a deliberada e ruidosamente pelo soalho, e acomodou-se. Cruzou a perna, de modo a ocultar a apreensão e dar até a ideia de que, apesar do formalismo polido das suas palavras, não se sentia minimamente intimidado, e encarou o superior hierárquico.

"Lamento que se sinta decepcionado", começou por dizer. "Mas na verdade nada fiz."

"Fez, e o senhor sabe muito bem que fez."

"Eu não tenho..."

"Deixe-me continuar, se faz favor", cortou Floriano num inesperado tom tenso, embora controlado. Ergueu-se da cadeira e caminhou até à janela. "Sabe, doutor, eu tenho um sonho." Estacou, contemplando a paisagem urbana com os braços cruzados atrás das costas. "O meu sonho é a grandeza de Portugal. Se pessoas como eu e o senhor estão aqui é para desempenhar um papel, para cumprir uma missão. Uma missão civilizadora." Fez um gesto, apontando os edifícios para além da janela. "Há cem anos não havia aqui coisa nenhuma. Isto era mato e uns pântanos e umas palhotas. Mais nada. Erguemos esta cidade em pouco tempo e faremos mais e melhor se pudermos e nos deixarem." Indicou-se a si e ao seu convidado com a mão direita. "Eu e o senhor somos ambos os emissários da civilização. Compete-nos a nós reerguer o império, restaurar o orgulho da pátria, afirmar o papel de Portugal no mundo. E isso, caro doutor, faz-se trabalhando." Ergueu um dedo e voltou-se para o médico, a luz do dia a banhar-lhe metade da face. "Essa é a palavra crucial. Trabalhando. É para isso que aqui estamos. Para trabalhar, para fazer coisas, para erguer a civilização, para alargar os horizontes, para honrar a nação." Caminhou devagar para o seu lugar. "Enquanto estivermos ocupados com o nosso trabalho está tudo bem. Fazemos o que sabemos e damos o melhor que temos. O resto não é connosco." Sentou-se. "É por isso que estou decepcionado consigo. É que o senhor doutor fez o que sabe fazer. Mas resolveu também fazer o que não sabe, e aí borrou a pintura toda."

Floriano manteve os olhos fixos no subordinado, como um professor que chegou ao ponto crucial da lição e observa o aluno para se assegurar de que ele assimilou a matéria. José remexeu-se na cadeira, incomodado e esforçando-se por se manter contido.

"Caro senhor director", disse. "Eu faço o meu trabalho o melhor que posso e sei. Creio aliás que ninguém põe isso em dúvida. O que aqui me trouxe... ou melhor, o que o levou a chamar-me não foi a qualidade do meu trabalho, mas um problema de relacionamento pessoal. E, sobre isso, deixe-me ser muito claro: as pessoas têm de saber respeitar se quiserem ser respeitadas. O doutor Abreu não respeitou um amigo que me foi visitar ao hospital. Insultou-o da forma mais degradante possível. Nessas condições, não vejo como possa ele esperar que eu também o respeite."

Até aí com a cabeça na sombra, o director dos Serviços de Saúde debruçou-se para a frente, os cotovelos apoiados sobre a secretária, e deixou a luz que alagava a sala iluminar-lhe o rosto tenso.

"Seria assim, caro doutor Branco, não se desse o caso de o seu amigo estar envolvido em actividades subversivas."

"Actividades subversivas? O meu amigo é advogado no BNU e, tanto quanto sei, permanece um cidadão livre. Se ele está envolvido em actividades subversivas, porque não o detêm?"

O director fez um trejeito impaciente.

"Isso não sei nem me interessa", retorquiu, voltando a recostar-se na cadeira e devolvendo a cabeça à sombra de modo a ficar com o perfil recortado pela penumbra. "Eu não sou polícia. Não passo de um quadro da administração colonial que está a gerir os Serviços Provinciais de Saúde, nada mais. Agora, eu não nasci burro e sei muito bem que o envolvimento com pessoas ligadas à Frelimo é coisa que só pode dar sarilho."

"Desculpe, mas não estou a perceber. Qual é exactamente a natureza do sarilho em que me meti?"

Floriano pegou nos papéis que tinha estado a ler quando o seu convidado entrou e folheou-os, os olhos a saltitar pelos parágrafos.

"O sarilho, caro doutor", disse, mantendo a atenção presa nos papéis, "é que o doutor Abreu fez um relatório sobre um acto de insubordinação da sua parte enquanto estava de serviço no hospital e expôs ainda acontecimentos posteriores relacionados com esse acto, incluindo o comportamento sedicioso do enfermeiro Nélson, claramente influenciado por si." Levantou os olhos para o subordinado. "É esse o sarilho."

José fez um gesto a indicar os papéis.

"O doutor Abreu explicou que chamou preto ao meu convidado?"

O director dos Serviços Provinciais de Saúde arregalou os olhos, claramente apanhado de surpresa, mas logo readquiriu a expressão impassível que exibia desde o início da reunião.

"Não explicou, nem isso interessa."

"Ai interessa, interessa!"

Floriano pousou de novo as folhas na esquina da secretária e cravou os olhos glaciais no seu interlocutor, como adagas a dissecarem uma vítima.

"O que interessa, caro doutor Branco", rosnou com um ranger de dentes, "são quatro factos." Exibiu quatro dedos, como se cada um deles fosse um facto. "Primeiro, o senhor estava a confraternizar no hospital com um elemento subversivo durante as horas de expediente. Segundo, o seu superior hierárquico expulsou esse elemento das instalações, como era aliás o seu dever, e o senhor, num acto público de insubordinação, abandonou o seu posto. Terceiro, o enfermeiro Nélson, claramente influenciado pela sua atitude, recusou-se a trabalhar durante dois dias. Quarto, a sua mulher, que é directora da farmácia do estado e que tem responsabilidades acrescidas por via dessas suas funções, não cumpriu uma ordem do director do hospital para aviar uns medicamentos. Ou seja, por sua causa instalou-se no hospital distrital de João Belo um clima de insubordinação que, como calcula, a administração provincial não pode ignorar nem tolerar."

"No hospital onde eu trabalho não há insubordinação", retorquiu o médico. "Há é prepotência e racismo. "Eu estava a conversar com o meu amigo durante a minha pausa para o café e depois de já ter cumprido as minhas obrigações. Saí do hospital porque, como deve calcular, entre os meus deveres profissionais não consta a obrigação de pactuar com as má-criações do senhor director. O senhor enfermeiro Nélson fez greve? Fez, sim senhor! E fê-lo porque testemunhou um acto de discriminação racista que, além de ser imoral, me parece ilegal. E a senhora directora da farmácia não aviou os medicamentos? Fez ela muito bem! O senhor director, e não inocentemente, deu-lhe a ordem mas não lhe entregou a requisição. Queria que ela aviasse os medicamentos sem requisição? Aí sim, estaria a infringir as regras e acabaria punida por isso."

O superior hierárquico manteve-se quieto a fitá-lo, os dedos enlaçados sobre a secretária.

"Está a insinuar que o doutor Abreu quis montar uma armadilha à sua mulher?"

"Eu não estou a insinuar nada, estou meramente a expor o que aconteceu", insistiu José. "Desde que percebeu que eu era amigo do doutor Rouco que o senhor director tem assumido atitudes que me parecem destinadas a provocar uma ruptura. Na própria manhã em que ele expulsou o doutor Rouco do hospital, vi-o escondido na enfermaria a observar o meu trabalho. Só posso presumir que estava a espiar-me para ver se eu chegava ou não a horas, se cumpria ou não escrupulosamente as minhas obrigações."

Floriano curvou os lábios, num trejeito de quem não via qualquer problema no que acabara de ouvir.

"Acho normal", disse. "Fiscalizar e ter mão no pessoal é, que eu saiba, uma obrigação do director."

"Não digo que não", admitiu o médico. "Mas por que motivo só me controla a mim? E porque só o faz desde que se apercebeu de que eu era amigo do doutor Rouco? E por que razão começou também a implicar com a minha mulher? À falta de melhor explicação, só posso concluir que andava era a ver se me conseguia apanhar em falso."

"Isso não sei nem quero saber", impacientou-se o director dos Serviços Provinciais de Saúde. "Essa conversa, se o senhor a quiser ter, não a tenha comigo, que não sou polícia. Tenha-a com o governador, tenha-a com o ministro, tenha-a com quem quiser, mas não comigo. A mim cabe-me dirigir estes serviços, fazer cumprir os regulamentos, articular-me com os directores dos hospitais e obedecer a ordens superiores."

"Com certeza."

Abriu uma gaveta com um gesto brusco.

"E é justamente por ter recebido ordens superiores que o chamei cá a Lourenço Marques."

Tirou do interior da gaveta uma folha dactilografada.

"Esta é a sua guia de transferência." Estendeu-lhe a folha. "O senhor vai sair de João Belo."

José pegou na folha e olhou de relance para as primeiras linhas; o seu nome encontrava-se referenciado em maiúsculas impressas a tinta vermelha.

"Posso saber com que base é que..."

"São ordens superiores."

O médico assentou a folha no regaço e, como se estivesse distraído, pousou o olhar nas flores alaranjadas que coloriam uma acácia rubra para além da janela.

"E se eu recusar?"

"Não pode recusar. O senhor doutor, quando foi integrado na administração ultramarina, assinou um documento a comprometer-se ir para onde fosse necessário. Com certeza que se lembra disso..."

"Hmm-hmm", assentiu num murmúrio ausente."Também o enfermeiro Nélson será transferido, neste caso para o posto do Guijá."

José permaneceu impassível, com os olhos fixos no exterior, como se tudo aquilo lhe fosse já indiferente. Apesar da pose, porém, fervia por dentro. Ainda ponderou a possibilidade de argumentar, contrapondo com o facto de ter rubricado o documento com um espírito diferente, em que o critério para as transferências era o da necessidade de serviço, não o de uma punição, e quis defender o enfermeiro, que tal como ele se indignara contra a iniquidade do tratamento a que Domingos fora sujeito no hospital. Mas conteve-se; já nada daquilo lhe parecia relevante. O que tinha de acontecer iria acontecer. O mais importante era perceber o que o esperava.

"Vou para onde, posso saber?"

"Tete."

Movendo a cabeça com lentidão, como se despertasse de um sono letárgico, virou o rosto para o mapa que se encontrava plantado ao lado da secretária.

"É lá para cima, não é?"

Floriano voltou a erguer-se do lugar e aproximou-se do mapa.

"Sim, é no Norte." Indicou um ponto a meio do fio azul de um rio. "Aqui mesmo. Nas margens do Zambeze."

O médico deixou os olhos pregados ao ponto que assinalava Tete, ponderando se devia fazer a pergunta que tinha em mente. Esteve para recuar, uma vez que a matéria era sensível, mas acabou por decidir avançar; se iam para o Norte, tinham de saber o que os esperava.

"Não foi nessa zona que decretaram agora o estado de emergência?"

"Quem lhe disse isso?"

"Está no jornal."

O director apontou uma linha azul que serpenteava pelo mapa e desaguava a norte da Beira.

"O Zambeze é aqui", confirmou. "E, que eu saiba, está tudo calmo. O que apareceu no jornal não passa de mentiras propagadas para criar instabilidade entre as pessoas. Nós não temos de nos ocupar com estas coisas; temos é de fazer o nosso trabalho."

O subordinado respirou fundo; essa também era, em boa verdade, a sua opinião. Além disso havia outras preocupações a agitar-lhe o espírito.

"E a minha mulher?"

O director voltou a sentar-se e deitou a mão ao interior da mesma gaveta, que permanecera aberta. Retirou uma segunda folha dactilografada e estendeu-lha; tratava-se evidentemente de uma outra guia de transferência.

"Desta vez ela vai consigo", anunciou com o tom paternal de quem concede uma benesse. "Mas da próxima segue cada um para o seu lado, percebeu?" Estendeu o dedo, à maneira de um professor a admoestar um aluno malcomportado. "Não se voltem a meter em política!"

O ralhete estava dado e o aviso feito. Sentindo-se injustiçado, José teve de fazer um esforço para não protestar. Ainda pensou em dizer que nunca se metera em política nem era sua intenção fazê-lo, mas percebeu que era inútil. Precisava de se concentrar no essencial, e o essencial estava impresso no mapa.

"Porquê Tete?", perguntou, a atenção voltando-se de novo para a carta de Moçambique. "Não é para aí que se envia quem se quer punir?"

O director confirmou com a cabeça.

"É um posto maningue chato." Suspirou, talvez no único momento de compaixão que se permitiu. "Lamento, mas são ordens superiores. Devo preveni-lo, caro doutor, de que Tete goza de facto de uma péssima reputação."

"Em que sentido?"

Floriano fechou a gaveta e ergueu-se do seu lugar, indicando desse modo que a reunião estava a terminar. Ajeitou o casaco e lançou um derradeiro olhar ao mapa.

"Chamam-lhe o cemitério dos brancos."

 

Foi à volta de uma bola de voleibol que Diogo cresceu no Rego da Água, uma lugarejo de Vila Nova de Gaia conhecido por ser o centro social da freguesia da Madalena. Começou a sua vida de voleibolista pouco depois de voltar de Angola, quando se inscreveu na equipa que o Orfeão da Madalena decidira formar. O clube disponibilizou um campo a céu aberto para os treinos do Toneca Melro, o rijo serralheiro que fora colono em Moçambique e que se tornou treinador dos miúdos nas horas vagas depois do trabalho.

Era um grupo formidável, o do Orfeão da Madalena. Os garotos treinavam à noite com afinco num terreno de saibro e Diogo batia com tanta força que a bola voava amiúde para o quintal do Veloso, um canalizador que plantara repolhos atrás de casa.

"Vai buscar!", ordenava-lhe o mestre Melro, sempre em pé junto à rede. "Da próxima quero melhor pontaria!..."

E lá ia Diogo galgar o muro e esgueirar-se pelo quintal do vizinho para recolher a bola, saltarinhando entre as couves e as alfaces do Veloso. Aos treinos sucederam-se os jogos e depressa se tornou claro que as figuras principais do seis-base eram Angelino Melro, o filho do treinador, que primava no passe, e o próprio Diogo, a grande estrela da companhia, graças à capacidade de elevação e remate, que se tornou lendária por aquelas paragens.

Angelino era um rapaz de olhar baço e, tal como Diogo, de poucas falas. Esse traço comum, aliado ao facto de ambos terem vivido em África, criou entre eles um laço que os aproximou; no Rego da Água todos sabiam que onde se via um logo aparecia o outro.

Guiada pelos dois craques e sob a batuta sagaz do mestre Melro, a carreira do Orfeão foi meteórica, com a equipa a impor derrotas aos adversários que sucessivamente lhe apareciam pela frente. Começou com o Santo Tirso e terminou com a Académica de São Mamede. No final, o Orfeão da Madalena tornou-se o inesperado Campeão Regional de Aspirantes e ascendeu ao nível seguinte.

Todos na equipa tinham consciência de que o Campeonato Nacional de Aspirantes se tratava de prova a doer e que os adversários seriam do mais forte que havia. Os mais temíveis eram os nomes maiores do desporto do país, Benfica e FC Porto. Como poderia o pequeno Orfeão da Madalena sobreviver ao embate com tais gigantes? O assunto foi acaloradamente debatido nos quatro cafés do Rego da Água, onde todos se mostravam convencidos de que, pesasse embora o inegável valor do mestre Melro e dos "nossos rapazes", o mais certo era a equipa levar cabazada atrás de cabazada e terminar no último lugar do campeonato.

O sorteio do calendário de jogos era, apesar disso, aguardado com expectativa nas instalações do Orfeão. No grande dia os homens do Rego da Água convergiram para o local e ficaram a aguardar as notícias, os mais novos com garrafas verdes de Sumol a balouçarem-lhes nas mãos, os mais velhos a languescer sobre as mesas enquanto dedilhavam pacientemente copinhos de bagaço que iam esvaziando aos beijinhos. Por volta do meio-dia tocou o telefone e o mestre Melro foi atender. Era o presidente da agremiação, que tinha ido a Lisboa participar no sorteio. Diogo discutia na altura com Angelino qual seria o melhor adversário para a estreia, mas, no momento em que a conversa telefónica começou, todos voltaram para ali a atenção, suspenderam a respiração e, perscrutando o rosto do treinador colado ao aparelho, esperaram o veredicto.

A fisionomia do mestre Melro permaneceu no entanto inescrutável ao longo de toda a chamada. O treinador limitava-se a uns secos "sim, senhor presidente" e "muito bem, senhor presidente", pelo que tiveram de suportar a impaciência que os consumia como lenha em lume brando e aguardar a conclusão do telefonema.

Ao fim de um minuto interminável, o mestre Melro desligou o telefone e encarou os rostos expectantes com a face cerrada.

"É o Benfica."

 

Vista da pequena janela do Dakota em voo de aproximação à pista, Tete não passava de um insignificante aglomerado de casas que o rio, num menear elegante pela savana amarela, contornava como se não quisesse perturbar a cidade. O avião tocou no solo, saltou e estabilizou, rolou pela pista com o nariz voltado para cima, como era imagem de marca dos Dakota, e imobilizou-se na placa diante da pequena torre de controlo.

Só quando a porta se abriu e os passageiros começaram a desaguar para a escada entretanto colada ao aparelho é que o casal Branco percebeu que não haviam chegado a um sítio normal. Um hálito ardente, escaldante como o bafo intenso de um forno, invadiu o interior do avião e desencadeou um coro de suspiros entre os passageiros alinhados no corredor até à porta.

"Não há dúvida", observou um viajante indiano com um sorriso resignado, como se aquela fornalha tivesse uma assinatura inconfundível. "Chegámos a Tete!"

José e Mimicas entreolharam-se, chocados. Já haviam sido avisados de que Tete era quente, mas assim? Não imaginavam que pudesse haver no planeta, e muito menos em Moçambique, um sítio onde as temperaturas fossem as de semelhante fornalha.

"Puf!", bufou Mimicas. "Que inferno!"

O marido sentia-se estupefacto com o calor; parecia-lhe que o ar poderia a todo o momento entrar em combustão e pegar fogo. Saíram do Dakota aos tropeções e sentiram toda a força do impacto do sol a tostar-lhes a pele; era como se uma pilha incandescente os queimasse com o seu fôlego. Apanhado de surpresa, José largou um olhar desconcertado, quase suplicante, na direcção da hospedeira da DETA que se despedia dos passageiros.

"Isto é sempre assim?"

A hospedeira encolheu os ombros e manteve os dentes arreganhados num sorriso profissional.

"Bem-vindos a Tete!"

O fedor a transpiração enchia a apertada sala onde aguardaram as malas. O terminal era incrivelmente quente, mas pelo menos ali estavam protegidos do ardor inclemente do sol. Viram as malas serem transportadas pela pista e despejadas na sala das chegadas. Pegaram nas deles e abalaram para o átrio, onde uma multidão aguardava os recém-chegados; era um mar de rostos inquisitivos, brancos, indianos, mulatos e negros, todos suados à espera que saísse quem vinham buscar.

"Doutor Branco!"

José voltou o rosto na direcção de onde viera a voz que o interpelara e reconheceu o homem que se aproximava; era um sujeito pequeno, com o cabelo curto e pequenos óculos rectangulares a enquadrar-lhe um olhar arguto, gelado e afiado, forjado no fogo de segredos inconfessáveis. Tratava-se do seu companheiro de viagem no Infante D. Henrique, mas já se haviam passado três anos e, apesar do esforço de memória, não conseguiu lembrar-se imediatamente do nome. "Ah! Olá!"

O homem apertou-lhe a mão e cumprimentou Mimicas.

"Lembra-se de mim?"

"Claro. Claro que sim." Abanou a cabeça, como se tentasse sacudir o cérebro e desencravar o nome de uma gaveta da memória. "O benfiquista ilustre que jantava connosco no paquete. Como me poderia esquecer? Mas confesso que o nome... enfim!..."

"Aniceto", apresentou-se. "Inspector Aniceto Silva."

"É isso!", exclamou. "Peço desculpa pelo meu lapso. O senhor é da PSP, não é?"

Os lábios finos de Aniceto esboçaram o fio de um sorriso, não mais do que um esgar sem humor.

"Sou polícia, de facto", confirmou, limpando com um lenço bordado as gotas de transpiração que lhe serpenteavam pela testa. "Mas na altura da nossa bela viagem, e considerando a presença na mesa de um indivíduo relacionado com certos meios da oposição, achei por bem não partilhar mais pormenores das minhas funções profissionais. Mas não pertenço aos quadros da PSP. Sou inspector da PIDE e estou agora responsável pelo posto de Tete."

A revelação apanhou José de surpresa. Sabia que a PIDE, a Polícia Internacional de Defesa do Estado, tinha a responsabilidade de vigiar, intimidar e prevenir quaisquer actos que pusessem em causa o regime. Quem criticasse Salazar ou o governo podia ser preso e maltratado pela PIDE, de que se dizia que, em última instância, chegava a assassinar pessoas. Verdade ou não, o facto é que a sua reputação se tornara temível. Ter um pide à espera num aeroporto não era por isso, e com toda a certeza, das experiências mais desejadas por qualquer viajante.

"Ah!... O senhor é... da PIDE?!", gaguejou. "Há... há algum problema?"

O rosto do homem, até aí amigável, endureceu de um momento para o outro.

"O senhor está preso!"

A ordem foi dada num tom firme e seco. O médico vacilou, abalado com o que ouvira, sem perceber o como nem o porquê. A mulher agarrou-se a ele, como se pudesse impedir o que inevitavelmente se sucederia a uma ordem assim dada por uma pessoa daquelas.

"Sou acusado de... de quê?"

Aniceto soltou uma gargalhada ruidosa e, num gesto apaziguador, pousou-lhe a mão no ombro.

"Eh, pá! Esta resulta sempre!"

"Perdão?"

"O senhor acabou de ser vítima da minha piada favorita, doutor!", revelou o inspector da PIDE com um esgar divertido. "Sempre que digo isto, as pessoas ficam pálidas! Vá-se lá saber porquê!..."

O casal acompanhou a risada com uma gargalhada breve e nervosa, embora sobretudo aliviada.

"Não há dúvida", observou José, balouçando afirmativamente a cabeça. "O senhor é impagável!"

Aniceto ainda se ria.

"É boa, não é? Nunca falha!" Mais gargalhadas. "Vocês haviam de ver a vossa cara!"

Deixando o homem da PIDE gozar o momento, o casal suspirou de calor e alívio e voltou a pegar nas malas. Fizeram ambos tenções de prosseguir caminho, embora não soubessem exactamente para onde. Estaria alguém do hospital à sua espera? Haveria táxis lá fora? Para onde se deveriam dirigir?

"Bem, senhor inspector", disse José. "Vamos andando. Foi um prazer..."

"Espere aí, doutor", travou-o Aniceto. "Eu vim cá para vos levar a casa."

"O senhor?!"

"Sim, eu. Porquê? Não me diga que tem alguma coisa contra mim!..."

"Claro que não", apressou-se o médico a esclarecer; a última coisa que queria era ofender um pide. "Mas estava à espera que houvesse aqui alguém do hospital ou dos Serviços de Saúde. Ser um inspector da PIDE a fazer-nos a recepção... enfim, não é normal!"

"Ó doutor, não estamos na Metrópole!", exclamou o inspector. "Isto é uma terra pequena e temos de nos ajudar uns aos outros. O director do hospital teve de ir ao Zobué e não pôde vir. Vim eu."

O calor era insuportável e desfez qualquer esboço de resistência. O casal só queria sair dali e chegar à sua nova casa.

"Muito bem", aceitou José. "Vamos para onde?"

Aniceto Silva deitou um olhar às malas que os dois carregavam.

"Eh, pá. Isso parece pesado." Voltou-se para trás e ergueu a mão. "Ó Chico! Anda cá!"

Um indivíduo alto e muito encorpado aproximou-se deles; tinha ar de andar pelos quarenta e tal anos, talvez até cinquenta. Percebia-se que se tratava de um homem rude, a face sulcada por rugas de quem já se havia confrontado com o pior da vida.

"Este é o meu melhor operacional", anunciou o inspector quando o matulão se chegou a eles. "O Francisco Latino andou na guerra de Espanha e noutras confusões ainda piores. O doutor já o conhece?"

Francisco fitava José com atenção, como se o estudasse.

"Não", disse o médico. "Nunca tive esse prazer."

"No entanto, o Chico conheceu os seus pais", declarou Aniceto. "Nunca lhe falaram dele?"

A revelação suscitou um esgar de admiração no recém-chegado.

"A sério? Quando é que se conheceram?"

Francisco respirou fundo e mudou de perna de apoio, como se o assunto o deixasse pouco à vontade.

"Foi há muito tempo", disse com secura, manifestamente sem vontade de se alongar no tema. "Histórias antigas, que já não interessam a ninguém."

"Ah, eu cá acho as histórias antigas fascinantes", atalhou o inspector da PIDE. "Aliás, também eu conheci os seus pais."

Mais uma novidade a surpreender José.

"Não me diga!"

"É verdade! Cruzámo-nos em Lisboa e em Penafiel." Indicou o subordinado com a cabeça. "Mas, como diz aqui o Chico, são histórias antigas, que, apesar de curiosas, já não interessam a ninguém." Apontou para as malas. "Chico, arranja aí quem nos traga as malas dos senhores doutores!..."

A viagem do aeroporto, situado em Chingodzi, até Tete foi relativamente curta, mas demorada. A estrada era de terra batida avermelhada. Parecia pó de tijolo, varrida por sucessivas nuvens de poeira que as viaturas erguiam a caminho da cidade, como se os pneus fossem tubos de escape. A paisagem apresentava-se plana e seca, dominada por árvores gigantes com enormes raízes e troncos largos e rudes, que davam a impressão de músculos em esforço. As copas estavam despidas, com os ramos nus espetados em todas as direcções; parecia um emaranhado de arames. Os dois Branco nunca haviam visto coisa igual.

"Que árvores são estas?", quis saber Mimicas.

O inspector fixou a atenção numa árvore monumental mesmo ao lado da estrada.

"Embondeiros."

Além dos embondeiros, plantados como esculturas gigantes até onde a vista alcançava, uma outra característica distinguia a paisagem: ao longo da berma da estrada viam-se ocasionalmente pequenos montes cónicos alaranjados, alguns maiores do que uma pessoa, e que os recém-chegados presumiram tratar-se de construções de formigas.

"Térmitas", corrigiu Aniceto Silva. "Chamam-lhes morros de muchém. Não se metam aí. Noutro dia um gajo passou um tractor por cima de um desses morros e as térmitas saíram lá de baixo aos milhões e comeram-no vivo."

"Está a brincar!..."

"Se eu não tivesse visto o que dele restou, não acreditaria."

Impressionada com a história e incomodada com o calor que a sufocava dentro da viatura, Mímicas abriu a janela e pôs a cabeça de fora. Tentava refrescar-se ao vento, mas o ardor cruel do sol e a poeira asfixiante obrigaram-na a mudar de ideias.

"Que calor horrível!", queixou-se. "Sabe qual é a temperatura?"

O inspector virou a cabeça para trás.

"Estão quase cinquenta graus."

A revelação deixou os dois recém-chegados literalmente boquiabertos.

"Cinquenta?!"

"À sombra", esclareceu Aniceto. "Porque ao sol está muito mais calor." Fez um gesto a indicar a paisagem em redor. "Tete é o ponto mais quente de África a sul do equador. Pior só o deserto do Sara. Às vezes o calor é tanto que penso que o Zambeze está prestes a entrar em ebulição."

"Que horror!"

O inspector da PIDE passeou os olhos pela paisagem seca.

"Iá, as coisas aqui são maningue agrestes", reconheceu. "Mas é um lugar com história. Livingstone passou por Tete. Capelo e Ivens também." Suspirou com nostalgia. "Vocês chegaram à África profunda."

A estrada inclinou-se para baixo e, logo adiante, depararam com vários automóveis estacionados desordenadamente, alguns mesmo à beira das águas serenas e lamacentas do rio. O Land Rover da PIDE imobilizou-se e os ocupantes apearam-se, juntando-se à multidão que aguardava perto dos automóveis ou à sombra das micaias. O largo caudal do Zambeze cortava a estrada, separando os carros do casario que se estendia pela outra margem; evidentemente a cidade de Tete.

"Que se passa?", perguntou José. "O que estamos aqui a fazer?"

O inspector indicou uma estrutura que deslizava pachorrentamente a meio do rio; parecia uma jangada metálica, larga e grotesca, e vinha apinhada de automóveis e com um camião.

"Estamos à espera do batelão", explicou. "É a única maneira de chegar a Tete."

Permaneceram longos minutos na margem a observar a aproximação e a manobra de acostagem do batelão. O ardor ao sol era tão infernal que até o rio parecia transpirar. Uma vez ancorada a estrutura, os automóveis e o camião saíram e os veículos que se encontravam na margem do Matundo, do lado oposto à cidade, entraram para os lugares que vagaram, dispondo-se numa arrumação milimétrica ao longo da plataforma flutuante.

Quando o parqueamento ficou lotado, a passadeira das viaturas foi retirada e a embarcação reiniciou a lenta travessia do Zambeze. O ar tornou-se mais fresco, graças à brisa fluvial que soprava refrescante e rente às águas, e os passageiros aproveitaram aquele bálsamo para se abeirarem das bordas da estrutura e contemplarem a paisagem, tranquila no meio do rio e embalada pelo ronronar monótono e ritmado do motor do batelão.

"Estive a observar a documentação sobre o hospital e reparei numa coisa estranha", observou José. "O director é um cirurgião."

Aniceto Silva assentiu.

"Assim é, de facto. O que tem isso de estranho?"

"Os regulamentos dos Serviços Provinciais de Saúde estabelecem que o director de um hospital é obrigatoriamente um clínico geral. Só na ausência de um clínico geral pode um médico de especialidade assumir a direcção."

"O doutor Martins, embora cirurgião, é o único médico do hospital."

José inclinou a cabeça.

"Era", disse, sublinhando a palavra. "Agora também estou cá eu. E sou de clínica geral."

O inspector da PIDE retirou os pequenos óculos do rosto e lançou um bafo sobre as lentes, humedecendo-as. Depois esfregou-as com o seu pequeno lenço bordado.

"Estou a ver onde quer chegar", murmurou enquanto limpava as lentes. "Acontece que as suas amizades, mais os acontecimentos em João Belo, constituem um obstáculo sério a que, neste caso, se aplique o regulamento. Por instrução superior ficou determinado que o doutor Martins continuará a ser o director, apesar do que o regulamento estabelece." Guardou o lenço e voltou a encavalitar os óculos no nariz. "Espero que não veja inconveniente nisso."

O médico encolheu os ombros.

"Nenhum", disse. "Queria era perceber a situação."

Tete revelou-se uma cidade tão poeirenta quanto os seus arredores. As ruas não eram mais que passagens de terra batida e as pessoas andavam por toda a parte descalças ou de sandálias. Um aroma a erva queimada parecia pairar em permanência no ar, tão omnipresente quanto a poeira fina e o bafo de calor seco e impiedoso.

O Land Rover da PIDE passou pelo cruzamento do Hotel Zambeze e estacionou no início de uma rua que subia em curva. O inspector Silva saltou para fora, fazendo sinal aos recém- chegados e a Francisco de que tirassem as bagagens.

"O hospital e a farmácia são no alto desta rua", revelou. "Como vêem, vão ficar os dois relativamente perto do trabalho."

O casal Branco contemplou o edifício assinalado pelo inspector. Tinha dois pisos, com a fachada em curva ocupada por uma longa varanda. Seguiram o seu anfitrião, que os conduziu por umas escadas do quintal para o primeiro andar.

"É aqui."

O apartamento era pequeno, mas servia perfeitamente. Dispunha de um grande quintal coberto de árvores de frutos, cujas copas forneciam amplas zonas de sombra, e a varanda arqueada tinha uma vista panorâmica para a rua.

"Presumo que se sintam cansados da viagem", observou Aniceto Silva. "Vou deixar-vos instalarem-se e repousar um bocadinho. Depois o que gostariam de fazer? Querem passear ou conhecer o hospital?"

"Não se incomode connosco."

"Não incomodam nada. Prometi ao doutor Martins que, considerando a ausência dele, vos acolheria com todas as regras da hospitalidade e vou cumprir a minha missão até ao fim. Ele deu instruções à enfermeira-chefe de que vos mostrasse o hospital e a farmácia, mas vocês é que decidem o que querem fazer."

Os dois entreolharam-se. A viagem fora cansativa, mas a verdade é que não lhes apetecia nada ficar fechados em casa. Se tinham curiosidade de conhecer os locais onde iriam trabalhar, porque não aproveitar o convite?

"Então está bem", concordou José. "Descansamos uma horita e depois vamos lá espreitar o hospital."

Na ausência do director, Aniceto Silva mostrou-se meticuloso nas suas responsabilidades de anfitrião. Depois de dispensar Francisco, acompanhou-os nessa tarde numa primeira visita ao hospital e à farmácia. Subiram a rua onde já residiam e desembocaram numa rotunda poeirenta no alto da colina.

Um bonito edifício branco dominava a rotunda com uma escadaria central e uma varanda ao longo de toda a fachada, as quinas acima da porta, uma bandeira portuguesa a esvoaçar num mastro e a palavra Hospital acima das armas lusitanas. O Land Rover contornou um círculo ajardinado e estacionou diante da escadaria. No momento em que saíram da viatura viram a figura minúscula de uma freira em hábitos azul-claros descer na sua direcção com um sorriso acolhedor.

"Bien venidos a Tete!", saudou-os ela numa mescla bizarra de português e castelhano. "Chamo-me Lúcia y soy la enfermeira-chefe do hospital. El doutor Martins está no Zobué y pediu-me para hacer las honras da casa. Bien venidos! Espera-vos mucho trabajo."

"Uma espanhola por aqui?", admirou-se José.

"Posso ter nascido en España", empertigou-se a irmã Lúcia, "pêro soy una cidadã del mundo."

A freira espanhola guiou-os pelos corredores do hospital, mostrando-lhes as instalações e as diferentes valências. Por toda a parte cheirava a álcool e éter, odor familiar para quem frequentava aqueles ambientes desde os tempos da faculdade. Começaram pelas enfermarias, passaram pelas urgências e percorreram a radiologia, o laboratório de análises, a estomatologia, a fisioterapia e a reanimação.

José sentia-se surpreendido por ver um hospital português apetrechado com tantas valências numa terriola perdida no meio de África e fez a observação em voz alta.

"verdad", concordou a irmã Lúcia. "Pero ainda vamos tener mais valências."

"A sério?"

"No próximo ano queremos abrir la maternidade."

"Onde fazem agora os partos?"

A freira fez-lhes sinal de que a seguissem pelo corredor.

"Los partos normales são feitos na enfermaria", disse, conduzindo-os a uma sala com uma mesa no centro. "Pero las cesarianas são aqui, em el bloco operatório." A sala cheirava a desinfectante e havia poderosas lâmpadas sobre a mesa de operações. "el único bloco operatório dei distrito", revelou a espanhola com uma mistura de orgulho e desânimo. "El director trabaja aqui."

O médico recém-chegado contemplou a sala, surpreendido com o que vira.

"Sendo até agora o único médico do hospital, o senhor director conseguia responder a todas as necessidades?"

A irmã Lúcia estalou a língua e fez uma careta que lhe enrugou a face larga.

"Dios mio, nem mismo com cien médicos seria posible dar respuesta a todas las necessidades." Fez uma pausa, buscando a palavra que melhor exprimia o que pensava. "El trabajo é colossal."

O jantar decorreu à luz de lanternas no quintal da casa de Aniceto Silva. O director distrital da PIDE convidou para a ocasião as principais figuras de Tete, como o governador, o intendente, o director das Obras Públicas, o director da Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze e o comandante da polícia, mais as respectivas esposas. De todas estas figuras, apenas o chefe da PSP e a mulher eram da idade do casal recém- chegado, pelo que José e Mímicas se aproximaram mais do tenente António Trovão e da sua Carolina, uma rapariga alta e vistosa que não parava de embalar um bebé.

"O meu Nuno nasceu aqui em Tete", disse ela, beijando-o na fronte. "Mas, Deus me perdoe, não me volto a sujeitar a estas condições. Tive o parto na enfermaria!"

"Pois é", assentiu o médico. "Mas disseram-me que no próximo ano vamos estar apetrechados com uma maternidade."

"Mesmo assim! Se tivermos mais algum filho, sabem o que faço? Meto-me no avião e vou a Lourenço Marques dar à luz!"

"Não sei se a DETA deixa uma mulher em estado de gravidez tão adiantado entrar no avião", contrapôs José. "Creio que existem umas regras para essas situações, de modo a impedir partos lá em cima."

O tenente António Trovão, que acompanhava a conversa em silêncio, remexeu-se na cadeira.

"Quem disse que a DETA não deixa?", interveio. "Ai deixa, deixa!", exclamou com um sorriso, puxando dos galões de chefe da PSP. "Nem que eu tenha de dar ordem de prisão ao comandante do avião!"

No final desse longo primeiro dia, e considerando que estava cumprida a sua missão de acolhimento, o inspector Silva levou o casal Branco à sua nova casa. Despediu-se à porta e rodou sobre os calcanhares, metendo-se no carro.

"Espere!", chamou José.

Aniceto Silva ligava já a ignição e espreitou para fora.

"Passa-se alguma coisa?"

O médico inclinou-se sobre a janela do jipe e examinou-lhe a face. Depois apontou-lhe para o meio da testa.

"Tem aqui um sinal de que não estou a gostar nada."

"Um sinal?"

José voltou-se para a mulher.

"Ó Mímicas, já viste isto?"

A farmacêutica aproximou-se e, enfiando a cabeça pela janela, quase colou os olhos preocupados ao rosto do inspector da PIDE.

"Iá, pois é! O coiso está-lhe a coisar a testa!..."

"O que se passa?", inquietou-se Aniceto. "Há algum problema?"

O médico manteve a atenção presa na testa, perscrutando-a com cuidado profissional.

"Ó inspector, já alguma vez foi visto por um oncologista?"

Aniceto Silva arregalou os olhos, o terror a trepar-lhe pelo rosto.

"O quê? Um onco... um oncologista?" Apalpou a área da testa que os seus dois interlocutores observavam fixamente. "Porquê, doutor? Porque... porque diz isso?"

"Não sei não!", murmurou José com uma careta, como se falasse consigo mesmo. "Não é por nada, mas parece-me que isto é um tumor!..."

"Ai é, é!", confirmou Mimicas. "E dos malignos! Já vi pacientes coisarem-se com tumores assim." Abanou a cabeça com uma expressão condoída. "Ah, coitado!"

O marido acompanhou-a no gesto de cabeça.

"Isto é muito mau."

Ainda sentado dentro do Land Rover, Aniceto vacilou no assento, chocado com o que escutava.

"O quê? O quê?"

Com um olhar a transbordar de compaixão, o médico pousou-lhe a mão solidária sobre o ombro.

"Esta resulta sempre."

"Como?"

José piscou-lhe o olho.

"O senhor acabou de ser vítima da minha piada favorita, inspector!", afirmou, saboreando a vingança. "Sempre que digo estas coisas as pessoas ficam pálidas! Vá-se lá saber porquê!..."

 

O dia do jogo foi emocionante no Rego da Água, sobretudo quando os rapazes do Orfeão viram aparecer no cruzamento diante do clube o autocarro vermelho e branco com a grande águia dourada. Era coisa imponente de se ver! Viera da longínqua capital, fizera trezentos quilómetros, andara durante seis horas pela Nacional 1 - tudo para ir ali jogar com a equipa da Madalena. Que emoção!

Ainda mais intimidante foi observar os jogadores da formação adversária a descerem do veículo; vinham altivos e impecavelmente equipados de encarnado-vivo, a águia ao peito a dizer Et pluribus unum! e o símbolo da Adidas ao lado. Que contraste com os do Orfeão, onde tudo era cosido pelas mães em casa e cada um se equipava à sua maneira; uns de amarelo, outros de verde, Diogo de branco.

Mas o que mais impressionou a rapaziada anfitriã foi o equipamento que os jogadores do Benfica traziam nos pés.

"Já viste aquelas sapatilhas?", perguntou Angelino, incapaz de tirar os olhos delas.Os adversários calçavam o último grito da moda na modalidade, sapatilhas de marca tão sofisticadas que apenas se encontravam nas fotografias dos jornais e das revistas da especialidade.

"Então não?", disse Diogo. "Onde as terão arranjado?"

Angelino deu-lhe uma forte palmada nos ombros, que quase o desequilibrou.

"Isto é o Benfica, grande morcão! Eles até têm o Eusébio!"

"Sim, mas onde terão arranjado as sapatilhas? Nunca as vi à venda em parte nenhuma. Nem em Cedofeita!..."

O amigo não tirava os olhos das sapatilhas dos recém-chegados, que se desequipavam já para o aquecimento.

"Isto só há à venda na Alemanha", sentenciou Angelino. "É preciso muita massa para as comprar."

O mestre Melro chamou o seu pessoal e a equipa foi aquecer no outro lado do campo. Os jogadores do Orfeão procederam a corridas e toques de bola, mas ao longo de todo o exercício mantiveram a cabeça voltada para os adversários, intimidados com o seu ar aristocrático, mais o equipamento catita, o que irritou o treinador.

"Porque estais a olhar para ali, carago?", rugiu mestre Melro. "Por acaso vedes entre aqueles paneleiros algumas gajas boas?"

O jogo começou mal. Diogo estava nervoso e falhou alguns blocos defensivos. Também os tempos de salto não lhe saíam bem, perdia ângulo para aplicar as suas poderosas direitas, isto apesar de os passes de Angelino apresentarem a perfeição do costume. Por tudo isto, o Benfica ganhou com facilidade o primeiro set e o craque do Orfeão teve de ouvir uma descompostura do treinador.

"O que tens tu hoje, canudo? Estás com medo daquelas meninas? Faz favor de ir para o campo e jogar o que sabes!"

Mas o segundo set também começou mal, com Diogo a falhar mais dois remates e o Benfica a somar pontos. A cabazada anunciada estava já em curso e os espectadores da casa mergulhavam em depressão. Que vergonhaça! Mas o pior eram os efeitos daquela razia nos próprios jogadores do Orfeão, e em particular no seu maior craque. Além do nervosismo, as dúvidas apoderavam-se do jogo de Diogo, roubando-lhe o que lhe restava da confiança. O adversário acumulava pontos atrás de pontos até chegar ao momento crítico do set.

Nessa altura, mal contendo a frustração pela sequência de passes que o colega de equipa desperdiçava, Angelino voltou-se para trás e cravou os olhos furiosos nele.

"Diogo, vou dar cabo de ti!", rosnou entre dentes. "Os cabrões estão-se a rir da malta!"

Aquela censura ligou um interruptor no jogo de Diogo. Espicaçado pela humilhação e por se aperceber do embaraço dos colegas de equipa e dos espectadores, o rematador do Orfeão soltou de repente o seu voleibol e conquistou uma mão-cheia de pontos até o Benfica, apesar de confrontado com inesperadas dificuldades, conseguir fechar o segundo set a seu favor.

O Orfeão da Madalena perdia por 2-0, mas aquele foi o ponto de viragem do jogo. Primeiro de raiva, depois com crescente confiança e segurança, Diogo guiou a equipa para a vitória no terceiro e no quarto sets, e fechou concludentemente o quinto set perante a incredulidade e a euforia de todos os que enchiam o recinto e mal queriam acreditar no milagre que se produzia diante dos seus olhos. A equipa da terra, os miúdos sem equipamento e que treinavam à noite no anexo coberto de pó de tijolo, haviam vencido o grande Benfica.

A partir daí tudo se tornou possível. Galvanizados pela surpreendente vitória sobre os encarnados, os jogadores do Orfeão acreditaram que podiam fazer o impossível e derrotaram consecutivamente o FC Porto e o Lisboa Ginásio. Perante a estupefacção geral, a equipa sagrou-se Campeã Nacional de Aspirantes em voleibol.

 

O ritual matinal que o casal Branco havia instituído em João Belo foi transferido para Tete. Acordavam ambos pelas seis da manhã e, para aproveitar a única hora relativamente fresca do dia, tomavam o pequeno-almoço na longa varanda do apartamento. Saíam de casa de seguida e metiam-se no Opel branco de tejadilho azul para subir a rua até ao complexo formado pelo hospital e pela farmácia.

Depois de se despedir da mulher, José ia para o seu gabinete vestir a bata e, na companhia da irmã Lúcia, fazia às sete em ponto a visita às enfermarias para saber como os doentes haviam passado a noite e lidar com os casos que requeriam maior atenção. Às oito voltava ao gabinete para as consultas, muito concorridas, por só existirem dois médicos na cidade.

"Hoje tenemos doentes que vieram de muy lejos", anunciava a freira diariamente, procurando sensibilizá-lo para esses casos. "Ay, Dios mio! São muchos."

Além daqueles que viviam em Tete ou nos arredores, muitos pacientes vinham de locais com designações estranhas, como Mucumbura, Caldas Xavier, Furancungo, Fingué, Songo, Zum-bo, Magoe. De início eram apenas nomes que se sucediam em desfile e que ao médico nada diziam, mas um dia José pediu ao engenheiro Pontes, o director da Missão de Fomento do Zambeze, um mapa pormenorizado do distrito e pregou-o na parede do gabinete, assinalando com alfinetes vermelhos os pontos onde existiam pequenos postos de assistência médico-sanitária, como Chioco, Changara, Mandié, Zobué, Vila Coutinho, Furanungo, Fingué e Mutarara.

A partir desse dia começou as consultas com um novo procedimento. Depois de perguntar o nome queria sempre saber qual a terra de origem do paciente. Quando ouvia a resposta levantava-se e ia ao mapa verificar as distâncias em relação ao posto de assistência médico-sanitária mais próximo ou em relação a Tete. Depois voltava a sentar-se e tomava nota num pequeno caderno.

"Eles vêm mesmo de muito longe", observou ao fim de algum tempo, após mais uma manhã de consultas. "Se eu não visse, não acreditava."

"Yo tinha-lhe dito, doutor", exclamou a irmã Lúcia, quase feliz por ver reconhecida a sua razão. "Vêm de muy lejos."

O médico apontou para os alfinetes vermelhos espetados no mapa.

"Mas alguns têm postos de assistência sanitária nas terras onde vivem ou perto delas", observou. "Por que motivo mesmo assim vêm a Tete? Porque não se tratam lá?"

"Eles tratam-se, doutor. Pero existem muchas razões para virem para cá. Algunos desses postos não têm médicos. Solo enfermeiros. Y mismo quando existem médicos esses postos não dispõem de las condiciones adequadas. Por ejemplo, não têm laboratório de análises ou máquina de raio X. Ou necesitan de cirurgia y solo em Tete existe um cirurgião. Ou..."

"Pronto, pronto, já percebi", atalhou José. "Mas como chega esta gente cá?"

"Oh, de todas las maneiras! Algunas veces são los postos médico-sanitários que, percebendo que no tienen meios para lidar com essas situaciones, enviam las pessoas para Tete. Noutros casos são elas próprias que se metem al camino. Vienen de machibombo, de canoa, a pé. Já vi, com os meus próprios ojos, uno que veyo de Caldas Xavier numa ginga."

"Ginga?"

"Bicicleta." Abanou a cabeça. "Ay, pobrecito! Tinha febre- amarela e veio a gingar de tão lejos. Parece impossível, no?"

Este problema impressionou o médico. O ideal seria equipar melhor os postos médicos ou de enfermagem espalhados por todo o distrito, mas tinha plena consciência de que tal era impossível; havia falta de médicos e de enfermeiros por toda a província e, mesmo que esse problema não existisse, só os custos de um tal empreendimento, que teria de incluir investimento em pessoal e em equipamento, seriam exorbitantes e incomportáveis para o orçamento do governo central.

O assunto preocupava-o tanto que decidiu discuti-lo com o director do hospital.

"Porque não arranjar ambulâncias?", sugeriu. "Era uma forma de contornar o problema."

"Nós já temos ambulâncias", observou o doutor Martins.

"São só duas. Precisávamos de mais."

O director olhou para o mapa do distrito de Tete e fez uma careta, nada persuadido com a solução.

"Eu podia convencer Lourenço Marques a dar-nos mais uma ou duas ambulâncias", admitiu. "Mas isso não resolvia o problema. Já viu o tamanho de todo o distrito?" Fez um gesto a indicar o mapa. "Olhe para isto. São cem mil quilómetros quadrados! Isso é equivalente a... sei lá!, à Metrópole, por exemplo! Já viu? E como se estivéssemos em Coimbra e tivéssemos de ir prestar assistência a Faro e a Bragança! E isto num território que só pode ser coberto em picadas!" Abanou a cabeça, enfático. "As ambulâncias estão totalmente fora de questão!"

A conversa com o director do hospital deixou José a contemplar longamente o mapa. Martins tinha razão, percebeu com desânimo. O problema não se resolvia com mais médicos, que não havia; nem com mais postos, que eram caros; nem com mais e melhor equipamento, de custos proibitivos; nem sequer com mais ambulâncias, que não poderiam mover-se pelas picadas esburacadas de um território tão vasto. O distrito era maior do que a própria Metrópole! Como cobrir tal imensidão e trazer de todos os recantos para Tete os casos que requeriam maiores cuidados?

Teve de se render. Por muito que lhe custasse, o problema simplesmente não tinha solução.

Naquela manhã chegou com olheiras ao hospital. Tinha na véspera ido com a mulher a casa do tenente Trovão para uma patuscada que se prolongara para além do previsto, pelo que acabara por se deitar tarde.

Faltavam três minutos para as sete quando entrou no gabinete e, sempre determinado a fazer a inspecção das enfermarias às sete em ponto, vestiu apressadamente a bata. Lançou um olhar à agenda pousada sobre a secretária, aberta nas páginas referentes à última semana de Setembro de 1964, e praguejou baixinho. Vinha aí a época das chuvas, sabia, e seria mais difícil os doentes percorrerem grandes distâncias para receberem ajuda no hospital.

Apercebeu-se nesse instante de que a porta se abria atrás dele e divisou a figura minúscula da irmã Lúcia a esgueirar-se pela entrada.

"Doutor, o senor já sabe de las notícias?"

"Bom dia, Lúcia", disse, como se sublinhasse que os cumprimentos deveriam sempre ser a primeira coisa que se trocava pela manhã. "Está tudo bem?"

"Las notícias, doutor. Já escuchou?"

A insistência da irmã Lúcia na pergunta, e o facto de lhe parecer tão preocupada que nem se dignou devolver a saudação, suscitaram-lhe estranheza.

"Que notícias?"

A freira espanhola espreitou de relance o canto do gabinete onde se encontrava um móvel de rádio.

"É mejor escuchar, doutor."

José ainda vacilou, determinado a cumprir as suas obrigações; fazia questão de iniciar a ronda às sete em ponto, como era seu hábito. No entanto, a expressão do olhar da irmã Lúcia indicava-lhe que talvez fosse melhor seguir a recomendação. Respirou fundo e, resignado, acocorou-se diante do aparelho. Sentiu a freira sair do gabinete, decerto para preparar a inspecção à enfermaria, mas não se importou; preferia ouvir telefonia sozinho. Carregou no botão do rádio e escutou uma voz familiar.

 

... que lavas no rio

E talhas com o teu machado

As tábuas do meu caixão.

Pode haver quem te defenda

Quem compre o teu chão sagrado

Mas a tua vida não.

Embalado pela melodia, ele próprio cantarolou com Amália as estrofes de "Povo que lavas no rio", até que a música acabou e se ouviram duas vozes masculinas a falar sobre um som de fundo que parecia ser o lento marulhar do mar.

"Ontem fui à praia com a Isabel", anunciou a primeira voz.

"Ah sim?", admirou-se a segunda. " então?"

"Ela estava deitada na areia, toda tostadinha", retomou a primeira. "A Isabel mexia a coxa e eu só olhava para ela, ela a mexer-se e eu a olhar. Olha, não aguentei mais: saltei para cima dela e comi-a toda!" "O quê? A Isabel?"

"Claro! É uma galinha das Mahotas Avícola!", concluiu o primeiro. "Avícola das Mahotas: as melhores galinhas, o melhor sabor!"

O segundo anúncio gabava as virtudes da Gazcidla, "uma chama viva onde quer que viva", e o terceiro era aquele que antecedia sempre o sinal horário.

"Que horas são?", perguntou uma voz na rádio em tom casual.

"São horas de beber um copo de Laurentina preta", sentenciou uma segunda voz. "Todas as horas são boas para beber um copo de Laurentina preta!"

Veio o sinal horário e apareceu uma nova voz, esta em directo.

"São sete horas da manhã", anunciou. "Bom dia, está a sintonizar o Rádio Clube de Tete. Agora as notícias."

Seguiu-se o indicativo do noticiário.

"Prosseguem os combates no Congo", anunciou a mesma voz. "Os rebeldes congoleses tentam controlar o acesso a Stanleyville, tendo ontem de manhã..."

"Que está hacendo?"

Era a irmã Lúcia que espreitava à porta do gabinete. A pergunta embatucou o médico.

"Bem, estou a seguir a sua sugestão", explicou. "Não me tinha aconselhado a ouvir a rádio?"

A freira fez com a língua um estalido impaciente e acocorou-se diante do aparelho, rodando o botão de sintonização.

"No es la rádio portuguesa!", disse em tom de repreensão. "Essa nunca conta nada. Es la BBC!"

O receptor emitiu uma sucessão de zumbidos e assobios até se fixar na frequência dos Serviços Portugueses da estação britânica.

"... anunciou ter atacado o posto administrativo do Chai, em Cabo Delgado, no Norte de Moçambique", disse uma voz em tom solene e pausado. "Fonte da Frelimo na Tanzânia disse que esta foi a primeira acção armada lançada pelo movimento para libertar Moçambique do colonialismo português. A mesma fonte revelou que a acção envolveu ainda a destruição de pontes em Mocímboa da Praia, Esposende, rio Mueda, Nangade e Machoma e cortes em linhas telefónicas. Recorde-se que toda a região a norte do Zambeze se encontra em estado de emergência desde Abril, tendo os contingentes portugueses sido reforçados por dois mil e quinhentos homens. No mês passado um outro grupo rebelde matou um padre da Missão de Nangololo e feriu um africano a tiro de canhangulo."

As semanas que se seguiram a estes novos incidentes foram de inquietação, com os boatos a cruzarem-se em todas as direcções. A vida prosseguia com normalidade, é certo, e os jornais e rádios limitavam-se às notícias da actualidade geral, dominada por combates contra os vietcongues a sudoeste de Saigão, pelo anúncio da União Soviética de que não pagaria as operações da ONU no Congo, em Chipre e no Médio Oriente e pela goleada de 4-0 do Benfica ao Sporting, devidamente comemorada com mais uma patuscada em casa do inspector Silva.

Dir-se-ia à primeira vista que nada mudara, mas não era bem assim. As informações orais não confirmadas cruzavam-se nas conversas em voz baixa; havia até quem dissesse que estava iminente um ataque terrorista de grande envergadura contra a cidade de Tete, afirmação na qual ninguém verdadeiramente acreditou até ao dia em que, dois meses depois dos primeiros incidentes, a irmã Lúcia apareceu no gabinete de José Branco com a notícia de que tinha ocorrido um ataque no distrito de Tete, o primeiro de que havia notícia.

"Foi em Mutarara", esclareceu ela. "La noche passada."

"Quem lhe disse isso?"

"Un padre espanol que conheço."

Por esta altura já o médico conhecia quase de cor o mapa que tinha pregado à parede, mas mesmo assim foi espreitá-lo.

"Mutarara é aqui, no Sul do distrito", indicou. "Junto ao Malawi. É evidente que os tipos se infiltraram pela fronteira."

A freira espanhola mordeu o lábio inferior, os olhos a medirem a distância entre Tete e Mutarara.

"Acha que vão atacar nuestra ciudad, doutor?"

José encolheu os ombros.

"Quem sabe?"

Havia, porém, duas pessoas que sabiam. Ou pelo menos se elas não soubessem ninguém mais saberia. Uma era o comandante da PSP, com quem privava habitualmente. Convidou nessa noite o casal Trovão para jantar, mas o tenente não dispunha de muitos pormenores sobre o que sucedera em Mutarara.

"Deram uns tiritos contra o posto de sentinela", limitou-se a dizer. "O nosso pessoal respondeu e os terroristas cavaram."

"Ninguém foi atingido?"

"Não."

Restava a José tentar a segunda pessoa e a oportunidade sorriu-lhe no domingo seguinte. Portugal jogava com Espanha, vencedora do recentemente criado Campeonato da Europa, e o inspector Silva, amante da bola e a exemplo do que fazia nas tardes dominicais de futebolada, convidou-os, a ele e Mimicas e a mais dois casais, para um almoço no quintal ao som do relato da Emissora Nacional.

A refeição foi animada e a tarde coroada com dois golos de Eusébio que garantiram a vitória portuguesa por 2-1, façanha condignamente celebrada no quintal da casa do homem da PIDE com abundantes quantidades de whisky e até de vinho do Porto, em homenagem à cidade onde a partida decorrera.

"A minha Lúcia é que vai ficar chateada por termos dado cabo dos espanhóis", observou José com um sorriso. "Amanhã nem me fala."

"Os gajos não têm que se queixar", contrapôs Aniceto Silva. "Encavámo-los bem. Com este novo seleccionador, o Manuel da Luz Afonso, mais o Otto Glória, somos bem capazes de nos apurarmos para o Mundial."

"Ah, isso já me parece mais difícil..."

"Você duvida, Branco?", escandalizou-se o inspector da PIDE. "Então o Benfica não ganhou duas Taças dos Campeões Europeus? Então nós não derrotámos hoje o campeão da Europa? Com a armada moçambicana, o Eusébio, o Coluna e o Costa Pereira, mais o Torres e o resto da malta, não vejo porque não haveremos de estar em Inglaterra!..."

A satisfação pelo triunfo no relvado criou entre os convidados, e sobretudo no seu anfitrião, o ambiente propício para que José visse ali a oportunidade de suscitar a questão mais imediata que a todos verdadeiramente preocupava.

"Talvez tenha razão", admitiu o médico. "O facto é que derrotámos os Espanhóis. Mas sabe do que precisávamos mesmo? Era de derrotar os terroristas."

Aniceto fez com a língua um estalido contrariado, desagradado por lhe falarem de trabalho em momento tão festivo.

"Ai os turras, os turras!...", exclamou, deixando a voz perder-se na repetição. Era a primeira vez que os presentes ouviam a expressão turra como referência aos guerrilheiros. "Esse, meu caro doutor Branco, é um outro campeonato!"

"Disso ninguém tem dúvidas! A questão é saber como está ele a decorrer. Já viu? Os tipos fizeram agora o primeiro ataque aqui no distrito. Onde irá isto parar?"

O inspector da PIDE respirou fundo, como se ponderasse o que poderia ou deveria dizer diante de toda aquela gente; sabia que era uma pessoa temida na cidade e não estava habituado a ser interpelado em público sobre assunto tão sensível. Por outro lado, porém, tinha de transmitir algumas mensagens, sob pena de deixar que a boataria alarmista se propagasse ainda mais pela comunidade branca de Tete, e aquela oportunidade pareceu-lhe tão adequada como qualquer outra.

"Oiçam, os turras estão a tentar desestabilizar o Norte de Moçambique", reconheceu. "Temos informações, que os senhores farão o favor de manter reservadas, de que o plano deles é criar problemas em todas os distritos a norte do Zambeze: Niassa, Cabo Delgado, Zambézia, Moçambique e Tete. Querem insurreição em toda a parte."

"Ah!", exclamou o médico. "Então sempre é verdade que o estado de emergência foi declarado aqui no Norte!..."

Aniceto Silva esboçou uma careta contrariada.

"Não vou desmentir isso. Mas posso garantir-vos que a coisa só está a pegar no Niassa e em Cabo Delgado. Esta bandidagem não tem hipóteses no resto do território."

"Tem a certeza?"

O inspector estendeu a mão e desligou a voz do rádio, que se alongava já nos comentários ao jogo da tarde.

"É tão certo como nós irmos ao Mundial! Os tipos possuem a ajuda da Tanzânia e podem assim assegurar a retaguarda e o apoio logístico. Além disso, têm os macondes na mão. É por isso que andam tão activos ao longo da fronteira tanzaniana. Mas não conseguem descer devido aos macuas, que estão connosco. Por outro lado, é importante termos presente que eles não dispõem de muitos homens. Terão uns trezentos, no máximo."

"E aqui em Tete?"

"Nas actuais condições parece-me difícil que os gajos nos criem muitos problemas nesta zona. Lembrem-se que Tete não faz fronteira com a Tanzânia. Os turras têm a Zâmbia do seu lado, mas precisam também da colaboração do Malawi para poderem vir até aqui, e aí... azar! O presidente Banda está do nosso lado." Fez um gesto na direcção do aparelho de rádio onde haviam escutado o relato de futebol. "O Banda é o nosso Eusébio!" Inclinou-se para a frente, conspirador. "Vou contar-vos uma coisa: o gajo autorizou-nos a andar pelo Malawi a recolher informações sobre o inimigo!" Endireitou-se e contemplou o efeito que a sua revelação produzira nos presentes. "E só para verem. De modo que, sem o Malawi a ajudá-los, o mais que os turras podem fazer aqui no distrito são umas acçõezinhas da treta, só para dizerem que já chegaram a Tete." Bateu no ombro do médico. "Não se preocupem, meus caros. Está tudo controlado."

Por esta altura instalara-se o mais absoluto silêncio no quintal da casa, com todos os convidados a escutarem o homem da PIDE. O assunto era da mais elevada gravidade e pessoa mais bem informada do que o inspector seria difícil encontrar em Tete. Se ele parecia despreocupado e garantia que não havia problemas, quem poderia duvidar? Um murmúrio de alívio percorreu por isso o grupo e os sorrisos afloraram por toda a parte.

"Portanto", insistiu José, "os terroristas não vão entrar em Tete?"

"Nem pensar."

"E isto que eles estão a fazer, na sua opinião, o que é? São assaltos para roubar coisas?"

Aniceto Silva remexeu-se na cadeira, manifestamente incomodado com a pergunta. Passou os olhos em redor e viu as atenções cravadas nele, aguardando o seu veredicto. Pegou numa garrafa de Johnny Walker red label e despejou o whisky no copo.

"Eu não iria por aí", acabou por dizer, contemplando o líquido dourado a balouçar no vidro baço. "Temos de nos capacitar de um facto: a situação que enfrentamos é igual à de Angola e à da Guiné."

"Acha?"

Com as gotas de transpiração a deslizarem-lhe pela testa, o inspector bebeu o whisky até metade e soltou um longo "ahhhh!" quando pousou o copo. Depois voltou a olhar para os convidados e arreganhou os dentes, como se tentasse sorrir e não conseguisse.

"Estamos em guerra."

E engoliu o resto da bebida.

 

O visitante, homem cerimonioso e bem-educado, só se sentou no sofá quando o anfitrião lhe fez sinal de que o fizesse. Diogo não conseguia tirar os olhos dele. Mal acreditava que tinha em sua casa o treinador do grande FC Porto.

Todavia, sabia que não deveria estar surpreendido, uma vez que a inesperada vitória do Orfeão da Madalena no campeonato fizera disparar a cotação voleibolística dos principais jogadores do clube, e dele próprio em particular. Impressionado com a qualidade dos jovens, o professor Puga viera nessa manhã ao Rego da Água e fora bater-lhes à porta.

A primeira visita havia sido feita ao mestre Melro, que aceitara a transferência do filho Angelino para as Antas. Agora era a vez de o técnico tentar contratar Diogo.

"Quer um cálice de vinho do Porto?", ofereceu Lourdes.

O professor Puga fez um gesto enfático com a mão.

"Nunca fora das refeições."

Joaquim acomodara-se na sua poltrona de chefe de família, colocada bem de frente para o televisor, e remexeu-se, impaciente por ir direito ao assunto. Sabia já da visita do treinadordo FC Porto ao mestre Melro, pelo que estava perfeitamente a par do motivo da presença do professor Puga em sua casa, mas as formalidades eram para se cumprir e as explicações para ser dadas, até porque havia alguns aspectos importantes a limar.

"Então conte lá o que se passa, mister."

Aquele mister era uma expressão que o pai de Diogo lera nos jornais em referência aos treinadores de futebol. Em boa verdade ignorava se ela se aplicava aos técnicos de outras modalidades, mas o facto é que o professor Puga, ou porque a referência era adequada ou meramente por boa educação, se comportou como se achasse natural ser referido naqueles termos.

"Penso que não surpreenderei ninguém se disser que o vosso filho provocou esta temporada uma enorme sensação no campeonato", começou por dizer. "É um rapaz cheio de potencial para o vôlei, devido sobretudo à sua enorme elasticidade e capacidade de elevação. Se ele chegou onde chegou numa equipa como a do Orfeão da Madalena, imaginem o que não fará no FC Porto. Atenção: longe de mim qualquer intenção de beliscar o trabalho do mestre Melro, que foi extraordinário para quem não tem formação específica nesta área. Mas estou convencido que é possível polir o vosso Diogo até à perfeição e fazer dele um dos melhores voleibolistas do país." Abriu a pasta que tinha pousada no regaço e extraiu uns papéis que estendeu na direcção de Joaquim. "Tomei, por isso, a liberdade de trazer comigo um contrato para inscrever o Diogo como jogador do FC Porto." Apontou para a última página. "Se estiverem de acordo, é só assinar aí em baixo."

Joaquim folheou o documento, maravilhado com o logótipo mágico do seu clube do coração. Mas a mulher, com o sentido prático que a caracterizava, arrancou-lhe o contrato das mãos e folheou-o, em busca do essencial.

"Quanto é que pagam?", quis saber.

"Quarenta escudos por mês", respondeu o técnico do FC Porto. "Mais transportes."

Lourdes localizou o valor numa das cláusulas a meio da segunda página, mas torceu o nariz.

"É pouco."

O rapaz, sentado em silêncio ao lado do televisor, baixou a cabeça, desanimado com a resposta. No entanto, o pai, refazendo-se do furto do contrato pela mulher, pigarreou e ergueu o braço, como um aluno a pedir a palavra.

"Eh, lá!", interveio. "Estamos a falar do Porto!"

Lourdes lançou-lhe um olhar de repreensão.

"Pagam pouco, Quim!", insistiu. "O miúdo tem é de ir para a escola, não de andar aos pulos com uma bola. As bolas não educam."

"Mas é o Porto, carago!"

"Nem que seja o Penafiel!..."

Joaquim desferiu uma palmada inesperada na própria coxa, assustando a mulher, o filho e o professor Puga.

"Bardamerda!", vociferou, a alma azul e branca a falar mais alto. "Portista que se dê ao respeito não impede filho seu de ir para o clube! Ainda por cima pagam quarenta paus, carago!... Qual é a dúvida?"

 

 

As consultas da manhã haviam terminado minutos antes e José Branco despia já a bata quando sentiu um vulto espreitar-lhe pela porta. Desviou o olhar naquela direcção e reconheceu o rosto barbudo do doutor Martins, o director do hospital.

"Posso?"

"Entre", disse José, voltando a atenção para o cabide onde pendurava a bata. "Vai almoçar?"

Martins encostou-se à ombreira e cruzou os braços.

"Vou, pois. Mas primeiro tenho aqui uma visita a quem preciso de mostrar o hospital e gostaria que você nos acompanhasse."

"A minha mulher está à minha espera."

"Telefone-lhe e diga que vai chegar mais tarde. Isto tem uma certa prioridade."

O médico encaixou o cabide com a bata na vara do armário e voltou-se para o superior hierárquico, encarando-o com uma expressão interrogativa.

"Porquê? O que se passa?"

"Ó doutor Branco", disse o director com um leve tom de reprovação, "estamos em 1968, o que significa que o senhor já trabalha neste hospital há quatro anos, e ainda me pergunta o que se passa?"

José girou a cabeça em redor, para se certificar de que não lhe escapava nada.

"Sim, o que se passa?"

"Passa-se Cabora Bassa, doutor. Tem seguido as notícias, não tem?"

"Claro. Parece que sempre vamos construir a barragem."

"Parece, não. Vamos mesmo. O acordo com a Africa do Sul está fechado para erguer a barragem em Cabora Bassa e mais trinta no rio Cunene, em Angola."

José encolheu os ombros, indicando que nada daquilo era novidade para ele.

"E então?"

Em resposta, o doutor Martins afastou-se da ombreira e esticou o pescoço na direcção do corredor.

"Nicole, pode chegar aqui, por favor?"

O som de sapatos femininos a clacarem no piso de cimento antecedeu o aparecimento diante do gabinete de uma mulher alta, com um vestido azul, leve e justo, a combinar na perfeição com o cabelo loiro, tão claro que parecia palha; o que nela chamava mais a atenção, no entanto, era o peito amplo, solto por baixo do tecido, indício manifesto de que não usava soutien.

"Sim, doutor?"

O sotaque da mulher tinha uma estranha musicalidade, como de uma inglesa que falasse português do Brasil.

"Este é o doutor Branco", apresentou-os o director. "Doutor Branco, a doutora Nicole Thorn."

A visitante fitou José com os seus grandes olhos azuis ligeiramente amendoados e sorriu, ronronando como uma gata.

"Muito prazer."

"É sul-africana?"

Ela abanou negativamente a cabeça, embora mantendo o sorriso.

"Rodesiana."

"Mas fala português muito bem..."

"Tirei Medicina em Salisbúria, mas fiz uma pós-graduação em São Paulo, no Brasil."

"E o que está aqui a fazer?"

Nicole abriu as mãos, no gesto conformado de quem expõe uma evidência.

"Ora, o que haveria de ser?"

"Cabora Bassa", percebeu José. "Mas isso não é um projecto com os Sul-Africanos?"

O director do hospital meteu-se na conversa.

"O Consórcio ZAMCO, que está encarregado de executar o projecto, é constituído por empresas sul-africanas, francesas, suíças, italianas e portuguesas", esclareceu o doutor Martins. "Mas os rodesianos vão estar envolvidos na área da segurança e na navegabilidade do Zambeze, além de que também irão utilizar a energia da barragem."

"Com isso tudo ainda fico com a impressão que a senhora é engenheira!..."

A rodesiana soltou uma gargalhada.

"Ainda não. Estou aqui fazendo um levantamento das condições sanitárias da região, para saber o que espera os engenheiros e todo o pessoal ligado à obra e determinar as necessidades."

"Estou a ver", disse o médico. "Encontra-se portanto aqui numa visita de inspecção..."

"Chamemos-lhe visita exploratória", corrigiu o director do hospital, fazendo-lhes um sinal de que seguissem pelo corredor. "Vamos? É melhor começarmos a visita."

O périplo pelo hospital culminou num almoço no Zambe, o mais requintado botequim de Tete. O ambiente era agradável, devido sobretudo à acção dos aparelhos de ar condicionado. O restaurante estava mais cheio do que era habitual àquela hora e bastou observar os clientes com atenção para perceber porquê. Aos rostos familiares, como o do inspector Aniceto Silva, que almoçava junto à janela com o seu homem de mão, Francisco Latino, acrescentavam-se muitas caras novas, em especial de homens aloirados de olhos claros e pele avermelhada como camarões, decerto sul-africanos e rodesianos.

"Bifes é mato", constatou José quando se instalaram nos lugares indicados pelo empregado. "Não param de chegar."

O doutor Martins varreu as outras mesas com o olhar.

"A barragem trouxe animação, hem?"

Consultaram a ementa e encomendaram os pratos. Quando o empregado se afastou estabeleceu-se um silêncio desconfortável entre os três e José aproveitou estar num canto, na penumbra, para passear os olhos por Nicole. Era uma mulher atraente, como as que se viam nos filmes americanos, e tão vistosa que atraíra todos os olhares, incluindo dos homens estrangeiros, desde o momento em que os três haviam entrado no Zambe até àquele instante em que se encontravam ali sentados.

"Então?", protestou a rodesiana. "Ninguém bota faladura?"

"Peço desculpa", disse José. "Estava a pensar que conheço poucos bif... ingleses... enfim, sul-africanos ou rodesianos. Aliás, você é mesmo a primeira."

"Ai sim? Não me diga! Para compensar eu estou meio habituada a conviver com portugueses. Quando era mais nova vinha sempre com os meus pais passar férias à Beira. Ainda peguei dois namorados portugueses. Oh, eram tão legais!... Um pouco machistas, é verdade, mas eu não lhes podia resistir." Suspirou. "Acho que foi por isso que tirei a pós-graduação no Brasil e aprendi português."

"Aprendeu português por causa dos seus namorados da Beira?"

Ela fechou-se num olhar enigmático; parecia sedutor, mas talvez fosse apenas nostálgico.

"Tenho uma perdição por homens mediterrânicos", revelou. "Claro que aproveitei quando vinha cá de férias. Mas naquele tempo eu ainda era muito garota e bem-comportada. Não havia nada das coisas que existem agora, está vendo?"

O médico abanou a cabeça, sem compreender.

"Que coisas?"

Nicole soltou uma risadinha comprometida e sacudiu o tronco como se dançasse, abanando os seios opulentos e desprendidos sob o tecido leve do vestido azul.

"Não havia The Beatles a cantar All You Need is Love, não havia a pílula, não havia o LSD..."

Sem que José se apercebesse disso, a imaginação escapou do seu controlo e deu por ele a imaginar como seria uma inglesa na cama. Nunca tivera uma estrangeira entre os braços e sentiu a curiosidade espicaçá-lo. Seria envergonhada ou extrovertida? Já era suficientemente experimentado para saber que entre os lençóis não havia duas mulheres iguais. Se era assim com as portuguesas, por que razão haveriam as bifas de ser diferentes? Analisou Nicole e ela não lhe pareceu ingénua. Mas qual a sua atitude perante um homem? Passiva ou activa? Gemeria? Teria facilidade ou dificuldade em alcançar orgasmos? E como seria em relação a...

Abanou a cabeça, num esforço para afugentar aqueles pensamentos. Era um homem casado e os dias de folia haviam terminado quando casara com Mimicas. Mesmo que assim não fosse, raciocinou, nada lhe garantia que a rodesiana se pudesse interessar por ele. Porém, apercebeu-se que era mesmo essa a impressão que Nicole começava a dar-lhe. Desde que se haviam conhecido, no final dessa manhã, que ela não parara de lhe sorrir. Pensou inicialmente que o fazia por mera cortesia ou até traço cultural. É certo que não lhe constava que os Ingleses fossem especialmente sorridentes ou calorosos, mas que conhecia ele desse povo além dos turistas sul-africanos que observara à distância na marginal de Lourenço Marques e dos rodesianos que vira ao longe na praia da Beira?

Agora que se encontravam ali à mesa do Zambe e falava com ela e a observava com mais atenção, apercebia-se de que raros eram os sorrisos que Nicole lançava na direcção de Martins. Fez um esforço de memória e tomou consciência de que a maior parte das perguntas que a rodesiana havia formulado durante a visita ao hospital não haviam sido dirigidas ao director, mas a ele. Ou talvez o tivesse feito porque achasse que José é que era o operacional e teria porventura mais respostas. Se calhar ela apenas sorria por simpatia e ele, tolo, já se pusera a imaginar coisas. O facto, porém, é que a rodesiana divagava sobre os seus antigos namorados portugueses e os homens mediterrânicos e sobre o amor livre dos Beatles e sobre a pílula e as drogas. Onde quereria ela chegar? Seria tudo aquilo inocente?

"Está todo o mundo bancando de silencioso outra"vez", protestou Nicole de novo, desta feita fazendo beicinho. "Ué, que é isso? Não estão gostando da companhia?"

"A companhia é óptima", apressou-se José a esclarecer. "Estamos talvez um pouco cansados..."

A rodesiana sacudiu o cabelo dourado para trás; não era longo, mal tocava os ombros, mas ondulava como seda, aveludado e abundante.

"Ah, compreendo. Isto da barragem significa que vem aí muito trabalho, não é?"

"Ui, nem imagina."

"Estive lendo informação sobre este projecto em Cabora Bassa e há uma coisa que não estou entendendo", disse ela, pensativa. "A barragem fica a uns meros duzentos quilómetros da Zâmbia, país amigo dos terroristas. Quando ela estiver pronta, a energia terá de ser transportada ao longo de oitocentos quilómetros por território moçambicano, o que exige a construção de uns seis mil postes que estarão vulneráveis a sabotagem. Além do mais essa energia mal poderá ser gasta em Moçambique, que não tem produção industrial que a justifique, nem sequer é indispensável para a África do Sul, que dispõe de fontes alternativas. Ou seja, é um investimento caro, não é imprescindível e está cheio de riscos. Por que razão, nestas condições, se vai construir a barragem?"

José e Martins entreolharam-se e riram-se.

"Tem toda a razão!", exclamou o director do hospital.

"Pois tenho. Mas não responderam à minha pergunta. Porque vão construir esta barragem?"

"Por razões políticas", atalhou José. "E só por isso."

Nicole esboçou uma expressão inquisitiva.

"Não estou a perceber. Que razões políticas poderá haver?"

O médico ajeitou os talheres diante dele, mais para ocupar as mãos do que para corrigir a sua disposição na mesa.

"O projecto de Cabora Bassa é uma espécie de ponta de lança da estratégia portuguesa para a guerra", começou por dizer, falando devagar, como se pesasse cada palavra. "O governo espera que o projecto atraia para o distrito de Tete cerca de um milhão de colonos brancos, alterando assim decisivamente toda a demografia da região. Se o Norte de Moçambique tiver muitos brancos, o inimigo terá dificuldade em movimentar-se." Largou os talheres e cravou os olhos na interlocutora. "Mas o mais importante é que, com este grande investimento internacional, Portugal atrai para o seu lado a alta finança e os interesses do mundo ocidental. Os Estados Unidos têm apoiado os turras, mas terão dificuldade em continuar a fazê-lo se o interesse dos grandes grupos económicos ocidentais estiver do lado português."

"Está dizendo que Cabora Bassa só existe por causa da guerra?"

O empregado aproximou-se da mesa a equilibrar os pratos fumegantes nas mãos. Os comensais inclinaram-se para trás para deixar pousar os pratos, e antes que começassem a comer José deu a resposta.

"Nem mais."

Ao sair do Zambe após o almoço os médicos passaram pela mesa onde se sentavam os dois homens da PIDE e, por cortesia, apresentaram-lhes a sua convidada rodesiana. Aniceto Silva fez uma vénia a Nicole e beijou-lhe a mão, gabando-lhe a beleza com grandes floreados oratórios que arrancaram um sorriso da médica.

"Os homens dos serviços de inteligência sempre foram uns grandes galanteadores", observou ela.

"Serviços de inteligência não", corrigiu o inspector, sempre exigente no bom português. "No sentido dos serviços que presto à nossa causa, a palavra inglesa intelligence traduz-se em português por informação." Inclinou a cabeça, num aparte. "Não é que a inteligência seja despiciente no nosso trabalho, se me é permitido dizê-lo."

"Decerto que sim", assentiu a rodesiana. "Estou segura até que, com tanta gente inteligente, esta guerra está ganha."

"Não diria tanto, minha senhora."

A resposta desconcertou Nicole.

"Porque diz isso? Acha que será perdida?"

"De modo nenhum!", afirmou Aniceto Silva com um gesto enfático. "Os turras apenas nos estão a criar alguns problemas em Cabo Delgado e no Niassa. O resto está controlado."

"Aqui em Tete também, presumo."

"Com certeza. Nestes quatro anos que a guerra leva já houve um ou outro incidente aqui no distrito, mas em geral a situação em Tete permanece tranquila."

"Acha, portanto, que não vai haver problemas com a construção da barragem..."

O homem da PIDE esboçou uma careta, como se essa ideia lhe suscitasse reservas.

"Há quem pense assim, mas eu desconfio."

"Ai sim? Porquê?"

Aniceto Silva bateu com o indicador na ponta do nariz.

"É cá um faro que tenho", disse. "Os turras já anunciaram que vão fazer tudo o que estiver ao seu alcance para travar o desenvolvimento do vale do Zambeze. Consideram que Cabora Bassa é um grande perigo e disseram que travar a construção da barragem é agora a sua prioridade. Portanto, é só fazer as contas." Baixou a voz, num tom de conspiração. "Temos informações seguras de que eles já se estão a movimentar na Zâmbia para meter homens aqui no distrito. Ou muito me engano ou, com Cabora Bassa em marcha, as coisas vão aquecer à séria por aqui. Eu não me chame Aniceto se isso não acontecer."

"Tenho a certeza de que os seus chefes estão sabendo isso..."

"Saber, sabem", assentiu o inspector. "Mas acho que se andam a fiar na Virgem, se é que me faço entender. Os tipos pensam que os turras vão meter aqui apenas uns grupinhos de guerrilha e que a coisa se resolve com a colocação de batalhões no Furancungo e no Bene, para travar as infiltrações da Zâmbia." Voltou a bater com o dedo no nariz. "Cheira-me, no entanto, que o inimigo vai enfiar neste distrito uma data de gente. Se travar a barragem é agora a sua prioridade e se forem verdadeiras as informações de que há grande movimento de homens pela Zâmbia, é melhor prepararmo-nos para o bailarico!"

A médica rodesiana pareceu ficar atordoada com estas afirmações, decerto porque elas lhe abriam a inesperada perspectiva de ir para Moçambique meter-se num vespeiro de guerra. José apercebeu-se da perturbação que aquelas informações lhe provocaram e, acenando em despedida aos dois homens da PIDE, indicou a porta a Nicole.

"Já se faz tarde", disse. "É melhor irmos andando. Até logo!"

Aniceto Silva travou-o com o braço.

"Espere aí, doutor!", exclamou. "Ainda não me comentou a grande novidade!..."

"Qual novidade?"

"Então!... A do... do director."

"Qual director? Está a falar de quê?"

Surpreendido com tanta ignorância, o inspector virou a atenção para o doutor Martins.

"Não lhe contou?"

José voltou-se igualmente para o seu superior hierárquico, percebendo que havia ali alguma coisa que lhe escapava.

"Contou o quê? Que se passa?"

Martins forçou um sorriso e passou os dedos pela barba.

"Vou voltar a Lourenço Marques", anunciou. "A minha transferência já foi autorizada."

"E quem o irá substituir?"

"O novo cirurgião será o Feitor, um colega que deverá chegar a Tete daqui a duas semanas."

Aniceto Silva franziu o sobrolho com uma expressão levemente reprovadora.

"Ó doutor", disse, interpelando de novo Martins. "Ainda não contou tudo. Ora desembuche lá o resto."

"O resto é consigo", devolveu o cirurgião. "No fim de contas, foi o senhor que deu a aprovação final, não foi?"

"Aprovação de quê?", quis saber José. "Do que estão vocês para aí a falar?"

O rosto do inspector da PIDE abriu-se num grande sorriso. Aniceto Silva estendeu a mão na direcção de José.

"Aperte aí o bacalhau, homem!", exclamou num tom efusivo. "Você vai ser nomeado director do hospital de Tete. Parabéns!"

 

 

O pai ganhou o braço-de-ferro e o professor Pulga acrescentou Diogo a Angelino na sua lista de contratações. A vida dos dois rapazes do Rego da Água tomou então um rumo inesperado.

Todos os dias, depois das aulas no Liceu de Gaia, os dois amigos metiam-se no autocarro ou apanhavam uma boleia, coisa muito comum nesses tempos na cidade do Porto, e lá iam até às Antas para o treino do fim da tarde. Regressavam a casa já de noite e Diogo juntava-se aos irmãos para as lições de Matemática e Física que o pai ministrava depois do jantar, ou de Química e Biologia na dona Detinha, a vizinha que era professora no liceu e que dava uma ajuda na educação dos cinco filhos do casal Meireles. O circuito infernal completava-se aos fins-de-semana com os jogos.

O esforço diário de Diogo adquiria facetas sobre-humanas, mas o facto é que a sua carreira no FC Porto estava em fase ascendente. Ao segundo ano foi promovido aos seniores e em breve passou a fazer parte do seis-base do escalão superior, usando sempre nas costas o número 6. Formava com Angelino uma dupla formidável, o amigo no passe, Diogo no remate, um duo de ouro que valeu vitórias sucessivas à equipa e prometia aos dois craques um futuro triunfal.

A vida fintou, contudo, aquela parelha. Numa tarde em que aguardavam o autocarro a caminho das Antas, Diogo reparou que o amigo estava menos loquaz do que o habitual e questionou-o sobre o que se passava.

"O meu pai conseguiu lugar na Companhia dos Caminhos- de-Ferro da Beira", anunciou Angelino sem se atrever a encará-lo. "Partimos daqui a duas semanas."

O anúncio foi tão repentino que Diogo duvidou que tivesse ouvido o que lhe parecera ter ouvido.

"O quê?!"

Angelino, que mantinha o olhar baço perdido no fundo da rua, voltou então o rosto para o amigo e encarou-o por fim.

"Vou-me embora para Moçambique."

O universo do jovem craque do FC Porto alterou-se então radicalmente. A partida de Angelino constituiu uma profunda decepção e deixou-o órfão de amigos. Para compensar a perda, voltou-se ainda mais para os treinos e concentrou-se na actividade desportiva. As vitórias não pararam de aparecer e a sua carreira de voleibolista tornou-se meteórica.

Além de adversários como o Benfica e o CDUL, a equipa cruzou fronteiras para enfrentar formações como o Real Madrid, o Partizan de Belgrado, o Montpellier e o Galatasaray. A adolescência e as exigências do voleibol de alta competição moldaram o desenvolvimento do seu corpo, tornando-o alto e ainda mais elástico, mas também lhe trabalharam a mente, fazendo dele uma pessoa metódica e competitiva. O FC Porto sagrou-se campeão nacional em anos consecutivos muito à custa dos espantosos saltos e fortes remates de Diogo sobre a rede.

Em breve o novo craque do clube vestia a camisola da selecção nacional. A estreia ocorreu em Lisboa a abrir o Torneio da FISEC, a Federação Internacional dos Desportos Escolares Católicos, e o primeiro adversário foi o Líbano.

Essa primeira internacionalização mereceu celebrações com espumante até no Orfeão da Madalena e os ecos da façanha chegaram à distante Beira, cidade de onde Angelino enviou um postal com felicitações e um gracejo.

"Então agora o Líbano é um país católico?"

 

O som do jipe a contornar o largo diante do hospital irrompeu pela janela do gabinete de José Branco. O médico auscultava nesse instante um idoso que viera do Moatize, mas ao aperceber-se da chegada da viatura largou o que estava a fazer e correu até à porta do edifício. O jipe verde tinha os pneus e a parte de baixo enlameadas e uma espessa camada de pó alaranjado a cobrir-lhe o tablier.

O novo director desceu as escadas do hospital e avistou o vulto azul-claro da irmã Lúcia apear-se do grande Austin transformado em veículo-ambulância.

"Então? O nosso homem?"

O rosto da freira estava macilento e sulcado de olheiras. Toda ela tinha um aspecto fatigado.

"Muerto", anunciou a irmã Lúcia num tom desalentado. "Fizemos dez horas para lá e dez horas para cá. Para nada." Indicou displicentemente o jipe atrás dela. "Ainda estava vivo quando llegamos ao Fingoé, pero não resistiu à viaje aqui para Tete. A carretera estava muy mal e ele faleceu na zona do Songo."

O médico estacou e assentou as mãos na ilharga. Ficou a observar os enfermeiros que retiravam o corpo do interior do veículo.

"Porra."

A palavra pareceu ter despertado a irmã Lúcia do seu torpor. A freira pôs as mãos à cintura e lançou ao médico um olhar zangado.

"Dicer 'porra' não resolve nada, doutor!", exclamou com revolta mal contida. "Precisamos de espalhar hospitais por todo el distrito. No podemos continuar assim. Tenemos que hacer qualquer coisa!"

José suspirou, percebendo a fúria da enfermeira-chefe mas sentindo-se impotente para resolver o problema. Deu meia volta e regressou devagar ao seu gabinete para concluir as consultas. Logo que chegara a Tete havia percebido que o distrito era demasiado vasto para a capacidade da assistência sanitária de que dispunham e esse problema começou a pesar-lhe sobremaneira a partir do momento em que, semanas antes, assumira a direcção do hospital.

A responsabilidade inerente às suas novas funções fazia-o voltar uma e outra vez à mesma questão, em particular quando se perdia uma vida que se teria podido salvar se a assistência tivesse sido mais célere. A solução evidente seria aumentar a capacidade do serviço, mas o problema é que isso era incomportavelmente caro. Além do mais, onde encontraria ele pessoal com qualificações suficientes para reforçar os quadros e distribuir em número adequado por todo o distrito? Tudo isso lhe parecia irrealista. Porém, sentia que não tinha o direito de se conformar com aquela situação. Que fazer? Será que poderia...

"Doctor!?"

A voz num inglês nasalado arrancou-o das suas cogitações e trouxe-o de volta ao presente. Encontrava-se no corredor do hospital e uma fila de pacientes aguardava o momento da consulta no seu gabinete. O homem que o interpelara estava a meio da fila de espera e tinha ar de rodesiano ou sul-africano, com cabelo branco e um chapéu à cowboy.

"Diga."

O homem dedilhava o chapéu com movimentos nervosos.

"Doctor, eu sou American e trabalho no Cabora Bassa", apresentou-se, num português trapalhão e com sotaque muito forte. "Apanhei um diarreia e preciso ser vista."

"Com certeza", indicou José. "Quando chegar a sua vez vamos ver isso com cuidado, está bem?"

 

O americano indicou a dezena de pessoas que se encontravam à sua frente na fila.

"Mas eles vão ser vistas primeiro que eu?"

"Chegaram antes de si?"

"Sim, mas... mas são niggers", exclamou, elevando a voz num crescendo de indignação. "Onde já se viu os brancos ficarem atrás dos niggers? Isto no América não é possible! Como podem vocês atender os niggers primeiro que um branco?"

José Branco revirou os olhos. Ainda instantes antes havia aguentado a fúria de Lúcia em luso-castelhano pela cobertura sanitária deficiente do distrito e agora tinha de aturar um camone em luso-bife que queria passar à frente dos restantes pacientes. Que mais lhe reservaria o dia? Respirou fundo e, ignorando o americano, seguiu para o seu gabinete e sentou-se à secretária, de onde pousou o olhar subitamente fatigado no idoso cuja consulta havia interrompido minutos antes.

"Onde íamos nós?"

O calor na rua era uma constante em Tete e, como o interior dos automóveis se tornavam verdadeiros fornos durante o dia, desceu a janela e contemplou o Zambeze. A tomada de posse nas novas funções implicou várias alterações na sua vida, a mais agradável das quais foi a mudança de casa. O casal Branco largou o apartamento na esquina perto do Hotel Zambeze e transferiu-se para a residência do director, uma agradável vivenda no topo da colina onde fora erguido o hospital. Diante da nova casa podia ver-se a cidade lá em baixo e apreciar uma deslumbrante vista sobre o rio.

Ligou o motor e pôs o Opel em movimento. Passou diante do hospital e desceu a rua até ao centro da cidade. O calor era insuportável, pelo que esticou a cabeça para fora. O vento da viatura em movimento bateu-lhe quente na face, como se fosse soprado pelo próprio Sol, mas sempre constituía um alívio para o ardor inclemente que parecia incendiar o ar.

Tinha nessa tarde uma consulta na PIDE, a cujos funcionários dava assistência médica regular, mas antes precisava de satisfazer um compromisso de última hora. Meteu pela Avenida Armindo Monteiro, a estrada junto ao rio, e dirigiu-se ao seu destino, os olhos atentos às direcções, a mente a divagar pelo problema dessa manhã. Havia perdido um paciente porque a assistência sanitária no distrito era uma boa porcaria. A questão obcecava-o, sobretudo desde que assumira a direcção do hospital, mas tinha plena consciência de que não havia solução para ela.

A imagem de um hangar à direita despertou-o dos seus pensamentos. Viu o portão aparecer de repente e enfiou o Opel por ali.

"Então, doutor?", saudou-o o engenheiro Pontes, que o esperava junto ao portão. "Não teve dificuldade em dar com o nosso aeroporto internacional, pois não?"

O médico reagiu à ironia com um sorriso e apeou-se do carro.

"Em Tete não é difícil dar-se com nada", disse, esticando-se para descontrair os músculos. Depois varreu o hangar com os olhos, apreciando a dimensão dos edifícios. "Então é aqui que a Missão de Fomento esconde os seus tecotecos?"

"É verdade", anunciou o director da Missão. "Quer dar uma olhada às nossas instalações?"

"Presumo que o vosso doente tenha pressa de ser atendido..."

Era essa a razão pela qual José havia sido chamado de urgência ao hangar da Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze. A pessoa que lhe telefonara para casa tinha falado em suspeitas de paludismo, mas o engenheiro Pontes não se mostrava particularmente preocupado naquele momento.

"O tipo pôs-se a dormir", disse, puxando pelo braço do médico. "Enquanto o gajo não acorda, venha daí! Ande ver a maravilha que são as nossas engenhocas voadoras."

O braço largo do rio descia ali perto, vasto e majestoso, reflectindo o Sol numa miríade trémula de cintilações, como se o espelho da água fosse coberto por um manto reluzente de jóias. Pisaram o alcatrão da pista e José contemplou vários aparelhos imóveis na placa. Havia dois helicópteros na berma e, mais adiante, dois aviões, um pequeno com um motor no nariz dentro do hangar e no exterior um maior, com dois motores; no seu silêncio e imobilidade pareciam cavalos a dormir de pé.

"Caramba", exclamou o médico. "Isto é que é uma frota! Qualquer dia a Missão de Fomento faz concorrência à DETA e aos táxis aéreos do Guerra, hem?"

"E isto não é tudo", disse o engenheiro. "Temos ainda um outro avião, mas agora está em Chicoa."

"Para que precisam vocês de tanta geringonça?"

Entraram no hangar e o engenheiro conduziu-o na direcção de um pequeno gabinete. Na parede havia um grande mapa a representar o distrito de Tete.

"Por causa das nossas brigadas", respondeu Pontes, aproximando-se do mapa. "Não sei se sabe, mas por causa de Cabora Bassa a Missão vai mudar de nome. Daqui a uns tempos passaremos a ser o GPZ, ou Gabinete de Planeamento do Zambeze. A nossa função é inventariar os recursos existentes no vale e, dada a situação de guerra, reorganizar o povoamento das populações do distrito."

"Não percebo. Que quer dizer com isso?"

"Quero dizer que vamos erguer aldeamentos por toda a parte e meter lá as populações. Os militares dizem que é para as proteger melhor, mas quer-me cá parecer que isso é conversa. O que eles pretendem é controlar o pessoal, está a ver? Mas, enfim..."

"E se as pessoas não quiserem ir para lá?"

O engenheiro encolheu os ombros.

"Isso é um problema dos militares", esclareceu. "A nós compete-nos apenas planear e construir os aldeamentos. Para fazer esse trabalho espalhámos brigadas por toda a parte. Temos malta no Furancungo, em Chicoa, no Chinde... em todo o lado. O chato é que o distrito é enorme, como já deve ter reparado. De modo que arranjámos esta frota para reabastecer as nossas brigadas. Uma vez que as estradas são péssimas e o território gigantesco, os aviões fazem o serviço na perfeição. Levam mantimentos, entregam o correio e transportam todo o material de logística de que o pessoal precisa lá no mato."

Estavam os dois plantados diante da parede do hangar e, quase sem querer, José pôs-se a comparar aquele mapa com o que tinha pregado à parede do seu gabinete no hospital havia já quatro anos. Este era talvez mais pormenorizado.

"Isso é uma valente ideia", disse devagar, os olhos a passearem pelos pioneses espetados nos pontos do mapa onde a Missão de Fomento tinha instalado as suas brigadas. "Sabe uma coisa? Era exactamente disso que... que... que..."

Calou-se, os olhos arregalados a devorarem o mapa. Voltou a cabeça e olhou para o pequeno avião estacionado atrás dele e depois para o mapa outra vez e de novo para o aparelho.

"O que foi?", inquietou-se o engenheiro Pontes. "Que se passa? Aconteceu alguma coisa?"

A mente de José funcionava a grande velocidade, tentando digerir as implicações da ideia que lhe germinara na mente como o clarão de um relâmpago. Não era uma ideia, era uma grande ideia! Grande, grande! E se?... e se?...

Encarou o director da Missão de Fomento e cravou nele com intensidade o olhar cintilante.

"Você usa estes aviões todos... todos os dias?"

A pergunta foi feita com uma dose inesperada de ansiedade, o que suscitou estranheza ao engenheiro Pontes.

"Todos os dias? Porra, claro que não! Temos muito pessoal espalhado por aí, mas a frota é grande e permite-nos fazer rotação dos aparelhos. Umas vezes voam uns, outras vezes voam outros. É consoante as necessidades de serviço."

"Acha que... que me poderia emprestar um destes aviões de vez em quando?"

"Emprestar-lhe um avião? A si? Para quê?"

"Não é a mim", corrigiu José. "Ao hospital, homem. Será que é possível emprestar um avião ao hospital?"

"Bem... quando é que vocês precisam dele?"

"Sei lá, de vez em quando. Quando puderem. Acha que é possível?"

O director da Missão de Fomento olhou para o aparelho estacionado dentro do hangar e voltou-se para o médico diante dele, ponderando a questão. José observava-o com ansiedade indisfarçável. O engenheiro pesou as suas necessidades e os problemas que o pedido levantava, mas acabou por encolher os ombros e abrir os braços, num gesto de entrega.

"Iá", disse. "Não tem problema."

Ao ouvir estas palavras, José Branco não se conseguiu conter e deu um pulo no ar, um pulo tão grande quanto aquele que dera dois anos antes ao ouvir pela rádio o locutor a relatar o quarto golo consecutivo que Eusébio marcou à Coreia do Norte em pleno Mundial de Inglaterra. Pousou estrondosamente no chão e, com um largo sorriso, abraçou, comovido e efusivo, o seu estupefacto interlocutor.

"Ó engenheiro!", exclamou, "se você não fosse tão feio, dava-lhe um chocho!"

 

O piloto ajeitou os Ray-Ban no rosto, mirou-se ao espelho e deu um toque na farda, alisando a pequena faixa com o seu nome, Teixeira, bordado a ouro. Satisfeito com o aprumo, desatou a ligar botões no painel de bordo, desencadeando uma sucessão de cliques e claques secos. Todos aqueles movimentos pareceram inconsequentes até que carregou num botão vermelho e o motor soluçou e se pôs a ronronar e a hélice começou a girar, primeiro devagar, depois mais depressa, num zumbido em crescendo.

"Torre, aqui fala Delta-Charlie-Romeo-Tango-Echo", disse para um intercomunicador, evidentemente o rádio. "Solicito autorização para taxiar."

O rádio estralejou e uma voz metálica respondeu.

"Sim senhor, está autorizado a rolar. Dirija-se à pista 130 e informe-me quando estiver pronto para descolar."

Teixeira verificou indicações e mostradores, destravou uma alavanca e, acto contínuo, o aparelho deu um pequeno salto para a frente, zunindo enquanto rodava pela pista em solavancos suaves. Um olhar para a manga de vento confirmou-lhe que a brisa soprava de facto de norte, pelo que se posicionou no sentido de 130 graus, conforme instruído pela torre. Testou os motores a fundo e verificou o painel; parecia tudo normal.

O piloto olhou para o lado e no seu rosto ossudo e seco apareceu o esboço de um sorriso. Mostrava assim ao passageiro que estava tudo sob controlo e não tinha razão para se sentir preocupado.

"Vamos a isto?"

Encolhido no assento, José Branco observava o que se passava com extrema atenção e curiosidade. O Piper Tripacer da Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze era um aparelho minúsculo, com uma hélice no nariz e apenas dois lugares, o que transformava o passageiro numa espécie de co-piloto. Qualquer pessoa que se sentasse ali teria obrigatoriamente de se preocupar em saber se o piloto era saudável. O que faria se ele adoecesse de repente e perdesse os sentidos? Mas José, sendo médico, não se mostrava particularmente inquieto. Sabia muito bem como proceder em tal situação: não podendo pilotar o aparelho, teria de reanimar o piloto. Como era a primeira vez que tinha oportunidade de se instalar no cockpit de um avião, estava mais interessado em observar os procedimentos de descolagem do que apoquentado com a saúde de Teixeira.

"Força", respondeu José. "Vamos embora."

O piloto efectuou uma verificação final e imprimiu potência ao motor. O zumbido tornou-se intenso e deu até a sensação de que a hélice ia rebentar de tanto esforço. Satisfeito com a resposta do aparelho, Teixeira voltou a colar o intercomunicador à boca.

"Delta-Charlie-Romeo-Tango-Echo pede autorização para descolar."

"Delta-Charlie-Romeo-Tango-Echo está autorizado a descolar", foi a resposta imediata. "Boa viagem!"

O avião acelerou pela pista, rolou com velocidade e, em apenas alguns metros, Teixeira puxou a manche e o aparelho ganhou altitude com uma leveza surpreendente, estremecendo sob a crepitação do motor e sacudindo ao sabor caprichoso do vento, o nariz sempre apontado para o imenso e profundo céu límpido.

José espreitou pela janela e viu o rio curvar pela cidade e o batelão a cruzar o Zambeze no seu vaivém interminável e os pilares da ponte que era entretanto construída como um esqueleto de ferro a erguer-se a meio das águas e o casario a tornar-se mais pequeno e os embondeiros a perder de vista na terra alaranjada e o Matundo ali à direita e o horizonte recortado em montes e farrapos de nuvens a navegar no azul infinito... O vento ali em cima soprava forte e sacudia o pequeno Piper Tripacer de um lado para o outro, mas depressa o aparelho estabilizou em altitude, o motor deixou de zumbir em aflição e passou a zungar num tom monocórdico, tão monótono que se tornou até sonolento, e assentou enfim a direcção para norte.

O lugar do passageiro, na verdade um assento de co-piloto, era apertado, mas José sentiu-se surpreendido por estar a tirar prazer da viagem. Os imponentes Super Constellation ou até os grandes Dakota impressionavam-no, de tal modo que nunca se livrava do medo quando voava neles. O Piper Tripacer era uma formiga ao pé daqueles monstros e qualquer rabanada de vento o fazia bailar nas alturas, mas o que era estranho é que não sentia medo nenhum por voar naquela frágil caixa de fósforos.

Tratava-se de um sentimento difícil de explicar. Nos outros aviões tinha uma impressão permanente de que viajava em caixões voadores e a morte poderia ocorrer a qualquer momento, mas naquela autêntica folha atirada ao vento a sensação era que lhe haviam nascido asas e se tornara totalmente livre. Se o contasse a Mimicas, ela decerto não acreditaria. A verdade, porém, é que deixar-se levar naquela engenhoca delicada não lhe parecia façanha, mas puro entretenimento.

Aterraram numa pista de terra batida no Furancungo, uma povoação situada próximo da fronteira com o Malawi. Dois homens da Missão de Fomento esperavam-nos à porta do avião e, antes mesmo de ajudarem a descarregar os mantimentos e o material, agarraram-se ao correio e verificaram se havia alguma coisa para eles. Ambos tiveram sorte. Um recebeu uma carta da mulher e o outro desembrulhou um exemplar de A Bola que lhe vinha destinado.

"É para ver as notícias do meu Sporting", disse com uma gargalhada. "Aos lampiões nem os deixo cheirar o jornal, que é para aprenderem a não chatear!"

"Veja lá o que diz", atalhou José. "Olhe que sou do Benfica..."

O homem encolheu os ombros.

"Ninguém é perfeito!"

Os primeiros "clientes" do médico foram os funcionários da brigada do Furancungo da Missão de Fomento. Fez consulta a todos, mas os problemas que encontrou revelaram-se negligenciáveis. A maior parte queixava-se de picadas de insectos, pelo que lhes distribuiu umas pomadas para resolver o assunto, e apenas um tinha algo de mais sério, embora nada de especial: uma gastroenterite que resolveu com as soluções adequadas para o caso.

"E agora", anunciou o médico, "a população."

"Qual população?", estranhou o chefe da brigada.

"Eu não sou o médico privativo da Missão", esclareceu José. "Vim aqui prestar assistência sanitária a todas as pessoas que dela necessitam. Onde as posso encontrar?"

Os homens da Missão de Fomento entreolharam-se, surpreendidos. O chefe da brigada esboçou um gesto de resignação, como se achasse o pedido bizarro mas não o quisesse discutir.

"Não sei se o senhor doutor vai encontrar o que quer", disse. "Mas se quer mesmo ir, eu levo-o lá."

O chefe da brigada guiou-o até ao aglomerado de palhotas do Furancungo. A manhã era agradável, como habitualmente naquela região, e os aldeãos sentavam-se à conversa diante das casas de adobe enquanto as mulheres transportavam água ou pilavam com os bebés atados por panos às costas. Havia uma panela de água sobre as pedras carbonizadas de uma fogueira que ardia brandamente no centro de uma clareira e os recém-chegados dirigiram-se ao local, atraindo a atenção dos moradores. Como sempre, José vestia as suas tradicionais camisa, calças e sapatos imaculadamente brancos, destacando-se assim do resto do grupo.

"Atenção a todos!", anunciou o chefe da brigada em voz alta. "Temos connosco um médico para ver as pessoas doentes. Quem tiver uma ferida ou uma dor ou alguma coisa de errado no corpo pode vir ter com ele. O médico é amigo e põe as pessoas boas."

Para garantir que a mensagem era correctamente entendida por todos, o chefe da brigada chamou o seu tradutor e o homem explicou as coisas em nhungué. Os aldeãos ouviram tudo com grande atenção e observaram José com curiosidade, mas quando as explicações terminaram e o médico ficou a aguardar os primeiros pacientes ninguém se mexeu.

O silêncio tornou-se embaraçoso e alguns aldeãos recomeçaram a conversar entre eles, como se tudo aquilo que haviam escutado não tivesse passado de uma interrupção das coisas realmente importantes. Preocupado com salvar a face do seu ilustre visitante, o chefe da brigada repetiu a mensagem e o tradutor também. De novo sem efeito.

"Peço desculpa, senhor doutor", disse o chefe da brigada, "mas, como vê, eles..."

José ergueu a mão.

"Não faz mal." Fez um gesto. "Venham comigo, por favor."

O médico começou a passear pelas palhotas, com o chefe da brigada, o tradutor e Teixeira no encalço. Descobriu uma criança com a perna inchada e ajoelhou-se diante dela para a observar, mas a mãe viu a cena e foi de imediato buscá-la.

"Diga-lhe que não faço mal", indicou ao tradutor. "Esta perna tem de ser vista porque senão ele pode ficar com problemas."

O homem traduziu para nhungué, mas a mãe da criança abanou a cabeça e deu uma resposta curta antes de desaparecer entre as cubatas com o menino.

"Ela diz que o filho não tem nenhum problema e que já vai ficar bom."

O médico suspirou e retomou o passeio pela aldeia. Encontrou mais dois casos que lhe pareceram requerer atenção, mas as pessoas voltaram a esquivar-se e sumiram-se rapidamente no emaranhado de palhotas. Percebeu que os aldeãos tinham medo por verem um estranho a deambular por ali com promessas de curar toda a gente, pelo que decidiu mudar de táctica.

Retomou o passeio pela aldeia, espreitando aqui e ali o interior das palhotas, até que numa delas se deparou com uma mulher estendida sobre uma esteira. O dono da cubata estranhou ver ali um grupo de brancos, e em particular um branco vestido de branco, e aproximou-se, zeloso da protecção da sua família e dos seus bens.

"O que tem ela?", quis saber José.

"Xi, patrão, está a morrer", respondeu o aldeão em português. "É melhor não incomodar."

O médico inclinou-se sobre a mulher e, apontando-lhe uma lanterna, analisou-a melhor. Tinha o corpo coberto de chagas e feridas diversas. O foco de luz desceu-lhe até às mãos e reparou que lhe faltavam alguns dedos. José recuou instintivamente.

"Lepra!"

O resto do grupo de visitantes, que se aglomerara à porta da palhota para ver a paciente, afastou-se de imediato. O médico, todavia, permaneceu no local e retomou a observação.

"Ó doutor!", chamou Teixeira. "Saia daí!"

"Não há problema", retorquiu o médico. "Ajudem-me a levá- la daqui para fora!..."

Os homens entreolharam-se, espantados com o pedido, e ficaram momentaneamente sem saber o que dizer. O primeiro a reagir acabou por ser o dono da cubata.

"Deixa a minha mãe", disse ele, quase implorando. "Deixa ela morrer em paz."

"Que disparate, não deixo nada!", devolveu José no tom de que essa questão nem se punha. "Andem daí, pessoal. Vamos lá, ajudem-me a tirá-la daqui."

O grupo não sabia bem o que fazer e acabou por ser o chefe da brigada quem expressou o receio que se apossara de todos.

"Mas, doutor, ela tem lepra...", argumentou ele. "Isso é maningue contagioso, não é?"

Ao aperceber-se da resistência, o médico saiu da palhota e acocorou-se à entrada, abrindo no chão a malinha que o acompanhava sempre. Retirou do interior o que pareciam dois panos brancos e estendeu-os na direcção dos homens.

"Se estão com medo, ponham estas máscaras", ordenou. "Mas não se preocupem com nada. A lepra é provocada por um microrganismo que só se transmite pela saliva, e mesmo assim dificilmente. Isto significa que a doença apenas é contagiosa quando se vive muito tempo ao pé do paciente em condições de grande promiscuidade, estão a entender?"

Os três homens fizeram que sim com a cabeça, mas ninguém se mexeu.

"Não é o caso de nenhum de vocês, pois não? Alguém aqui partilhou a intimidade com a senhora? Alguém andou a beijá-la?" Apontou para a cubata com um gesto veemente. "Então levem-me imediatamente esta mulher para o posto, seus maricas! Ela tem de ser tratada."

"Mas a lepra tem cura, doutor?"

"Claro que tem. O bacilo da lepra mata-se. Nunca ouviu falar na palavra antibióticos?"

Ultrapassando as derradeiras hesitações, o chefe da brigada mandou buscar uma maca e dois empregados transportaram a leprosa pelo emaranhado de ruelas poeirentas da aldeia em direcção ao posto onde funcionava a Missão de Fomento no Furancungo.

O sol batia forte e Teixeira, que continuava a proteger os olhos com os Ray-Ban, aproveitou um momento em que viu o médico afastar-se um pouco mais para se aproximar discretamente dele.

"Ó doutor", murmurou o piloto, preocupado em assegurar- se de que ninguém mais os ouvia. "O que vamos fazer com esta mulher?"

"Temos de a levar para Tete."

"Mas como?"

"Ora, no avião."

Desde o início que Teixeira suspeitava que era esse o plano, pelo que não mostrou a mínima surpresa. Tirou os óculos, lançou um bafo de humidade nas lentes escuras e pôs-se a limpá-las à camisa.

"E quem fica em terra?"

José franziu o sobrolho.

"O que quer dizer com isso?"

Aproximavam-se já do posto e via-se o aeródromo lá ao fundo, com o avião estacionado junto ao poste com a manga do vento.

"O Piper Tripacer só tem dois lugares, doutor", lembrou o piloto, reassentando os óculos no rosto. "Se ela vai lá dentro, quem fica cá? Eu ou o doutor?"

O médico estacou, desconcertado. Olhou para o avião lá ao fundo e depois para a maca transportada pelos homens, até se voltar enfim para Teixeira, que aguardava uma resposta.

"Vou ficar aqui a fazer um levantamento da situação sanitária", decidiu. "Leve-a imediatamente para Tete e venha buscar-me amanhã de manhã."

As viagens subsequentes mostraram que a resistência da população do Furancungo não era uma excepção. Ao longo das semanas seguintes, José aproveitou a ocasional disponibilidade dos aviões da Missão de Fomento ou do Aero-Clube de Tete para voar até Chicoa, Vila Coutinho e Chinde, onde também se confrontou com a desconfiança generalizada. As pessoas afastavam-se à aproximação do médico e tornou-se difícil ver mais do que um punhado de pacientes em cada viagem.

"São os feiticeiros", opinou Teixeira, os olhos sempre escondidos pelos Ray-Ban. "Metem-lhes medo e dizem que o doutor traz do céu maus espíritos."

A leprosa, que havia sido internada no hospital de Tete, dava entretanto sinais de grande melhoria. As manchas cutâneas desapareceram e a mulher, que até aí vivia num estado de constante debilidade, ganhou energia aos poucos e ao fim de algum tempo começou até a mostrar-se irrequieta; passeava pelo hospital a qualquer hora e pôs-se a perguntar com crescente insistência quando a iam mandar para a sua terra.

Numa manhã de inspecção das enfermarias, José Branco deu com ela a tentar trepar por uma maçaniqueira. Não lhe pareceu comportamento de uma pessoa gravemente doente e mandou que lhe fizessem uma baciloscopia. Quando os resultados vieram do laboratório tirou as últimas dúvidas.

"O leprae foi eliminado", constatou ao consultar o relatório das análises. "Vamos mandá-la para casa."

As reticências das populações locais a serem vistas por um médico branco haviam entretanto produzido o seu efeito junto do director do hospital. José tinha encarado os aviões da Missão de Fomento ou do Aero-Clube de Tete como a resposta perfeita para a cobertura sanitária do distrito, mas começava a ter as suas dúvidas. De que valia o esforço de voar até aos quatro cantos de um território tão vasto se ninguém se deixava tratar? Não seria melhor ficar em Tete? Se calhar devia restringir o uso dos meios aéreos ao transporte de casos urgentes, afinal a preocupação que originalmente o conduzira àquela solução.

Decidiu fazer uma nova tentativa e, por causa da leprosa, escolheu de novo o Furancungo. Se a viagem não servisse para mais nada, pelo menos serviria para se certificar do estado da mulher. Duas semanas depois de lhe ter dado alta e de a ter devolvido à sua terra, voltou a voar com Teixeira até à povoação do planalto junto à fronteira nordeste.

A aterragem decorreu como de costume, com o Piper Tripacer a tocar na pista de terra batida do aeródromo e a dirigir-se aos solavancos para o local habitual de estacionamento. Teixeira desligou o motor e tudo foi ficando tranquilo, com o rumor estrepitante do aparelho a calar-se e o zumbido da hélice a abrandar até se impor o silêncio retemperador. Os dois ocupantes tiraram os cintos e, enquanto o piloto procedia às verificações finais de segurança, o médico abriu a porta e saltou para fora. Sentiu uma dor na região lombar, fruto da posição prolongada no assento, mas depressa o incómodo desapareceu e ele dirigiu-se ao jipe que entretanto os viera buscar.

"Bom dia!", saudou. "Está tudo bem?"

"Maningue naice", retorquiu o chefe da brigada. "Hoje isto anda animado!..."

José pôs o pé no jipe e alçou o corpo para o interior do veículo. Nessa altura reparou num burburinho junto ao portão do aeródromo e desviou o olhar para aquela zona. Uma pequena multidão de aldeãos acotovelava-se no local; era de certeza mais de uma centena de pessoas.

"Que se passa?", perguntou o médico. "Vêm aí os Beatles?"

O chefe da brigada tirou um maço de LM do bolso e acendeu um cigarro.

"O senhor doutor está tramado."

"Eu? Porquê?"

"Lembra-se da leprosa?"

O coração de José disparou. Encarou o interlocutor com uma expressão de alarme.

"O quê? Aconteceu-lhe alguma coisa?"

"Aconteceu pois."

"O quê? O quê?"

"Ficou boa, o diabo da mulher. Até já anda a machambar com a família. Havia de a ver, é um espectáculo!"

O médico ficou momentaneamente desconcertado.

"Então o que se passa?"

O homem aspirou o cigarro e deixou o bafo de fumo sair-lhe lentamente pelas narinas. Depois apontou na direcção da multidão que se acumulara junto ao portão do aeródromo e respirou fundo, quase contrariado.

"O que se passa é que agora toda a gente quer ser vista por si."

 

O sucesso não foi instantâneo, mas seguiu um padrão que se repetiu por todos os lugares que José Branco visitou ao longo dessas primeiras semanas. A chegada do médico que vinha do céu suscitou inicialmente grande desconfiança, mas o tratamento bem sucedido de pacientes considerados pelos aldeãos casos perdidos foi desencadeando a afluência de doentes em massa a cada aeródromo onde o Piper Tripacer aterrava.

"O doutor já é um Beatle", gracejou Teixeira ao aterrar numa pista prestes a ser invadida por uma nova multidão. "Qualquer dia as miúdas começam aos berros e a arrancar cabelos e a mostrar as mamas só de o ver descer do avião..."

O médico revirou os olhos, mostrando um desagrado que não era sincero.

"Engraçadinho!..."

As multidões engrossavam a cada nova visita e mesmo em aldeias que antes pareciam desertas começaram a comparecer grandes massas de gente, como se as pessoas brotassem da própria terra. Depressa se passaram a contabilizar mais de mil pacientes em determinados locais e foi nessa altura que o médico percebeu que estava a ser vítima do seu êxito. Teria de fazer alguma coisa.

Pediu uma reunião com o director da Missão de Fomento e expôs-lhe a situação.

"É demasiada gente", concluiu José no final da exposição. "Não sou capaz de dar vazão a tanto doente."

O engenheiro Pontes esboçou um esgar de impotência.

"Ó doutor, eu percebo isso", disse, "mas o que quer o senhor que eu faça?"

O director do hospital tamborilou os dedos na madeira da secretária, sabendo que o pedido que ali o trazia seria de difícil digestão para o estômago do seu interlocutor.

"Preciso que me empreste o avião mais vezes."

"Mais ainda?", admirou-se o responsável da Missão de Fomento, o tom de voz a roçar o escandalizado. "O senhor doutor já se abotoou com a maquineta uma ou duas vezes por mês!"

"Não chega", afirmou. "Não posso visitar o Furancungo, por exemplo, quando o rei faz anos. Tenho de ir lá todas as semanas. E quem diz Furancungo diz Chicoa ou qualquer das muitas terriolas onde ainda nem sequer pus os pés."

"E os gajos do Aero-Clube? Eles não o ajudam?"

"Claro que sim. Com os aviões deles e com os vossos consigo voar todas as semanas. Mas o serviço é muito procurado e preciso de maior disponibilidade da vossa parte."

Pontes abanou a cabeça.

"Ó doutor, por mais boa vontade que eu tenha, e tenho, há uma coisa que o senhor tem de perceber", disse num registo a roçar o pedagógico. "Ao ceder-lhe o aparelho uma ou duas vezes por mês já estou a correr alguns riscos. Mas se eu lhe der mais... meu Deus, como explico isso? Além disso preciso do avião, não é? Por muito nobre que seja o seu trabalho, a Missão de Fomento também tem as suas obrigações e não pode deixar de as cumprir só para o ajudar." Abanou a cabeça com ênfase. "Não, isso não é possível."

"Não é para me ajudar a mim pessoalmente", contrapôs o médico. "É para ajudar as populações."

O engenheiro respirou fundo, a decisão já tomada.

"É muito louvável o que o senhor está a fazer. Mas, em consciência, não tenho modo de lhe emprestar o avião mais vezes do que já empresto, sob pena de prejudicar o nosso trabalho. Isso não posso permitir."

O médico preparou-se para esgrimir com aquela rejeição, mas conteve-se. Que poderia dizer que não tivesse já dito? Que argumentos haviam ficado por expor? Como conseguiria inverter aquela decisão? Estudou o rosto do seu interlocutor e percebeu nesse instante que já tinha ido tão longe quanto possível. Não era de facto razoável exigir mais do que já lhe era oferecido.

Empurrou a cadeira para trás e ergueu-se com lenta resignação.

"Tem razão", reconheceu, estendendo a mão ao interlocutor. "Agradeço-lhe de qualquer modo a ajuda."

O director da Missão de Fomento apertou-lhe a mão e acompanhou-o até à porta do gabinete.

"E agora, doutor? O que planeia fazer?"

O médico lançou-lhe um derradeiro olhar antes de meter pelo corredor para sair do edifício.

"Vou falar com o governador."

O governador de Tete era um homem baixo e de uma magreza quase cadavérica, conhecido pela parcimónia enquanto orador; tratava-se de pessoa que preferia ouvir a falar. Logo que teve conhecimento de que o director do hospital da cidade telefonara a solicitar uma audiência, acedeu a marcar uma reunião para essa tarde.

A hora combinada recebeu José e ouviu-o sentado no seu sofá predilecto, mesmo diante do aparelho de ar condicionado, de modo a apanhar em cheio o sopro frio que lhe refrescava o gabinete. O médico não alimentava grandes esperanças de obter o apoio das autoridades; sabia que havia outras prioridades e as preocupações sanitárias não se situavam no topo da lista, mas isso não o impediu de tentar. Pôs-se por isso a narrar as suas aventuras com Teixeira no Piper Tripacer pelas aldeias do distrito.

Como era seu timbre, o governador de Tete ouviu a exposição num silêncio impenetrável e só quando o seu convidado por fim se calou é que pronunciou as primeiras palavras.

"Já me tinham falado no grande sucesso em que se transformaram as suas visitas de João Semana", disse devagar, como se ponderasse cada palavra. "Isso é mesmo assim?"

"O senhor governador havia de ver", confirmou o médico com evidente orgulho, procurando por todos os meios contagiar o seu poderoso interlocutor com o entusiasmo que o fazia vibrar. "Chegam a ser mais de mil pessoas. São tantas que às vezes nem sei para onde me virar..."

Um leve sorriso aprovador aflorou ao rosto do governador.

"Mil pessoas, diz o doutor?", perguntou, manifestamente impressionado. "Caramba, isso é mesmo maningue gente!"

"Pois é. É por isso que preciso da sua ajuda, senhor governador. Só com um voo por semana para todo o distrito não tenho maneira de dar resposta a todas estas necessidades."

"Acredito", assentiu o anfitrião, pensativo. Fez uma breve pausa e assentou as mãos nos joelhos, num gesto determinado, como se tivesse acabado de formar opinião sobre o assunto. "Sabe, o seu projecto interessa-me."

"Sim?!", exclamou José, sentindo a esperança espreitar, mas lutando contra o excesso de expectativas. "Está a falar a sério?"

O governador ergueu-se pesadamente do sofá e caminhou até um grande painel com um mapa muito detalhado do distrito de Tete; era a carta que usava para discutir com os chefes militares a situação no terreno.

"Nestas coisas nunca brinco", retorquiu. "Sabe, doutor, temos alguns sinais de que a guerra se poderá alargar aqui no nosso distrito. Os turras já se andam a infiltrar a partir da Zâmbia e espalharam uns quatrocentos homens por diversas bases neste triângulo aqui." Desenhou com a mão um triângulo imaginário entre três pontos a norte do Zambeze, que nomeou. "Chofombo, Cabora Bassa, Furancungo." Voltou-se para o seu convidado. "Os ataques ainda são pontuais, uma vez que estamos naquela fase de aliciamento das populações em que os gajos andam para aí numa grande actividade clandestina, a tentar fazer uma lavagem cerebral às pessoas. Mas eu acho que em breve isto vai mesmo aquecer. E porquê?" Apontou para um ponto no Zambeze. "Por causa de Cabora Bassa, claro. Ainda hoje me pergunto se terá sido boa ideia mandar construir o raio da barragem!" Respirou fundo e fez com as mãos um gesto vago, numa expressão de resignação. "Por isso eu diria que o seu trabalho pode ser de importância crucial. Vejo nele um grande potencial para ajudar a pôr as populações do nosso lado e assim travar a subversão. Como alguns dizem, para ganhar esta guerra temos de lhes conquistar o coração e as mentes."

Estas observações, tão eloquentes em pessoa habitualmente parcimoniosa em palavras, deixaram José inquieto.

"A minha preocupação, senhor governador", apressou-se a esclarecer, "nada tem a ver com a situação política e militar, questão em que entendo que os meus deveres de médico me impõem a neutralidade e na qual não quero nem me devo meter, mas com as dificuldades de assistência sanitária que existem e são estruturais no nosso distrito. As minhas responsabilidades começam e acabam aí."

O governador caminhou para o seu lugar e voltou a instalar- se no sofá.

"Bem sei, bem sei", assentiu ele num tom tranquilizador. "Mas uma coisa não atrapalha a outra, pois não? Que a sua ideia nos convenha é um problema nosso, não seu. Acho até que, se nos convier, melhor para si: mais facilmente obterá o que precisa."

O médico deteve-se a estudar o seu interlocutor, tentando ler-lhe no rosto as intenções."Pois, mas isso, em termos práticos, significa o quê?", quis saber, como se tacteasse às escuras. "Será que o senhor governador podia falar com os responsáveis da Missão de Fomento e convencê-los a emprestarem-me o avião mais vezes? Outra possibilidade seria disponibilizar meios através do Aero-Clube."

O governador sorriu mais uma vez e, inclinando-se para a frente, estendeu-lhe a mão, indicando assim que dava a reunião por concluída.

"Vou fazer mais do que isso", disse em tom de despedida. "Vou remeter o assunto para Lourenço Marques."

 

O vulto azul-claro com um lenço branco na cabeça assomou à porta do gabinete, espreitando para o interior.

"Doutor Branco?"

O médico ergueu a cabeça e reconheceu o rosto sulcado de rugas da freira.

"Sim, Lúcia?"

"Está aqui o hombre dos Correios", anunciou a enfermeira- chefe. "Tiene um telegrama para o senor..."

A freira espanhola afastou-se para deixar entrar um rapaz fardado com as insígnias dos CTT. O carteiro trazia um envelope na mão que estendeu de imediato ao destinatário. O médico pegou no sobrescrito e, em troca, entregou-lhe distraidamente uma moeda de 2$50.

"Toma lá uma quinhenta", disse. "E a bacera para ires tomar uma Coca-Cola."

Nem ouviu o carteiro agradecer. Sabia que raramente os telegramas eram arautos de boas notícias, pelo que, mal contendo a preocupação, rasgou o envelope pela borda e extraiu do interior a folha, que de imediato devorou com os olhos.

"C'os diabos!"

A exclamação e o franzir da sobrancelha provocaram um sobressalto na irmã Lúcia, que ficara a observá-lo para tentar adivinhar pelas feições dele o conteúdo da missiva.

"É grave, doutor?"

A expressão na face de José denunciava uma certa perplexidade, mas abanou a cabeça em resposta à inquietação da sua subordinada.

"Não, grave não é..."

Calou-se para reler o telegrama, o que não contribuiu para tranquilizar a freira.

"Doutor, que pasa? "

O médico lançou um olhar na direcção do calendário das baterias Tudor que tinha pregado à parede.

"Caramba, só passou uma semana!", exclamou com pasmo. "Isto foi rápido!"

"O que foi rápido? No entiendo..."

José estendeu-lhe o telegrama.

"É uma convocatória", explicou, abrindo a malinha de mão para arrumar o estetoscópio. "Tenho uma reunião depois de amanhã com o governador-geral."

Lúcia passou um olhar inquisitivo pelo telegrama.

"Una reunion com o governador? Isso significa o quê?"

O médico fechou a malinha com um gesto rápido e pegou nela, dirigindo-se à porta do gabinete para sair.

"Significa que tenho de ir a Lourenço Marques."

 

Quando as portas do Dakota da DETA se abriram e José Branco pisou as escadas e o ar doce de Lourenço Marques lhe acariciou a face, não deixou de se sentir levemente surpreendido por descobrir que existiam sítios onde a temperatura ambiente era amena. Sempre soubera isso, claro, mas após tanto tempo a viver no distrito de Tete tinha de certo modo acabado por interiorizar que o normal era a fornalha inclemente, não a brandura acolhedora.

Uma vez no terminal do Aeroporto Gago Coutinho, levantou a mala que viera nos porões do avião e seguiu na direcção da tabuleta a indicar "saída". A porta abriu-se e viu um ajuntamento diante dele; eram as pessoas que aguardavam a chegada de familiares e amigos que iam desembarcando dos voos sucessivos. Antes do seu tinha aterrado um avião de Porto Amélia e logo a seguir um aparelho da South African Airways proveniente de Joanesburgo, pelo que os passageiros se misturavam na zona de desembarque.

No meio daquela multidão anónima destrinçou um negro que exibia uma folha de papel com o seu nome rabiscado. Aproximou-se dele e identificou-se."Sou o motorista da Secretaria Provincial de Saúde, doutor", disse o homem, pegando-lhe na mala. "O carro está lá fora."

"Você veio-me buscar?", admirou-se José, sentindo-se lisonjeado mas ao mesmo tempo a achar que aquela atenção era talvez um exagero. "Caramba, não era preciso tanto!..."

O homem exibiu a fileira reluzente de dentes.

"E como ia o doutor para o hotel? De machibombo?"

O motorista conduziu-o pelas avenidas amplas de Lourenço Marques até passarem pelo gigantesco complexo do Liceu Salazar, onde formigavam revoadas de estudantes de bata branca, e desembocarem no Hotel Cardoso, um belo edifício de fachada creme situado na borda da colina. Abaixo estendia-se a mancha azulada do Índico no seu abraço à cidade; de longe as águas pareciam tranquilas, sulcadas apenas por um cargueiro que se abeirava do porto.

O homem ajudou-o no check-in, marcou hora de encontro na manhã seguinte para o ir buscar à porta do hotel e com um aceno desapareceu de regresso à sua vida. "Tá-tá."

A tarde ia a meio e fazia um certo calor. O recém-chegado foi pousar a mala no quarto e, depois de arrumar a roupa nas gavetas, sentou-se à beira da cama e pegou no telefone. Consultou a agenda, procurou o nome de Domingos Rouco e digitou o número que tinha anotado, dois oito nove sete.

Ao terceiro toque atendeu uma voz feminina. Era Albertina.

"Estou sozinha aqui na minha flat", revelou a amiga depois de se cumprimentarem.

"Então o Domingos?"

Fez-se um súbito silêncio no outro lado da linha.

"Ao telefone não", acabou ela por dizer. "Temos de nos encontrar."

Estes cuidados deixaram-no desconcertado. Que mistério seria aquele que não podia ser conversado ao telefone? Teve vontade de insistir, mas presumiu que Albertina tivesse as suas razões e conteve-se.

"Estou no Cardoso. Podes dar um salto até aqui?"

"O Cardoso não pode ser, tem demasiada gente", observou ela. "Além do mais agora também não posso. Que tal às oito da noite no Kanimambo?"

Num gesto quase reflexo, José espreitou o relógio. Faltavam quatro horas.

"Combinado."

Percebeu que dispunha de quatro horas para preencher e hesitou sobre o que fazer. Poderia dar um passeio pela cidade, mas a verdade é que estava muito cansado e o que lhe apetecia era estender-se ao sol. Espreitou pela janela do quarto a piscina do hotel e achou-a incrivelmente convidativa, com a água azul-turquesa cristalina a relampejar entre o edifício e o relvado. Em Tete não havia piscinas assim; a melhor era a do Aero-Clube e mesmo lá a água não tinha aquela transparência.

Despiu a roupa e pôs o fato-de-banho. Nunca fora grande entusiasta de andar de trajo de banho e uma miradela ao espelho recordou-lhe porquê: tinha um gigantesco chumaço entre as pernas que o tecido elástico do fato-de-banho avolumava ainda mais. Para dizer a verdade, era embaraçoso. Mas que podia fazer? Deixar de ir à praia ou à piscina? Ir de calças? Havia situações em que não podia evitar o fato-de-banho e, apesar de se sentir complexado, a verdade era que, se quisesse gozar a piscina do hotel, teria de se submeter.

Desceu até à piscina e pediu um whisky, que depositou na mesinha ao lado da espreguiçadeira onde se alongou. À frente dele, o Índico estendia-se tranquilo aos pés da elegante urbe, resplandecente nas suas características águas azul-claras. De copo na mão, pôs-se a apreciar a magnífica vista sobre o mar, o porto e a Baixa da cidade.

Deu uns mergulhos nas águas tépidas da piscina, embora sem nunca sair da zona onde tinha pé, e secou ao sol até a tarde se aproximar do fim. Fazia ainda calor e, sentindo uma deliciosa languidez entorpecer-lhe os movimentos, ficou a contemplar o esplendoroso pôr do Sol que rasgava o céu com vigorosas pinceladas púrpura, entre clarões dourados e roxos; dizia-se que o crepúsculo no Cardoso era o mais bonito de Lourenço Marques e o soberbo espectáculo celeste que se desenrolava diante dos seus olhos parecia confirmá-lo.

"Puxa, vida! Legal encontrar você aqui!"

A voz feminina com o insólito sotaque anglo-brasileiro fê-lo voltar a cabeça. A fitá-lo estava o rosto sorridente de uma loira enorme, o corpo sardento desenhado como as curvas de uma viola e os seios desproporcionadamente grandes tão apertados no biquini azul que davam a sensação de querer a todo o momento pular para fora.

"Ah!", exclamou, reconhecendo-a. "Olá!"

"Lembra de mim?"

"Como poderia esquecer?", disse ele com um sorriso. Tentou recordar-se do nome, mas não conseguiu. "Você é a... a médica rodesiana."

A loira passou-lhe o olhar pelo corpo e ficou momentaneamente presa ao fato-de-banho dele, como se visse e não acreditasse, mas depressa se recompôs e a face retomou uma expressão luminosa.

"Eu também não esqueci você", murmurou com uma certa malícia. "José, não é? Veio de férias?"

"Trabalho", corrigiu ele. "E você?"

"Fiquei uma semana no Songo e estou indo agora para Salisbúria. Mas como passei por Lourenço Marques pensei para mim mesma: Nicole, cadê o seu espírito de aventura? Porque você não tira uns diazinhos de férias? Esse sítio é legal. E aqui estou eu!"

Chamava-se Nicole, lembrou-se José.

"Isto é realmente agradável", observou ele, exibindo com um gesto o espaço em redor. "Fica cá até quando?"

Nicole esboçou uma careta, como se fizesse beicinho.

"Vou depois de amanhã pegar um voo para a Rodésia", disse, evidentemente contrariada. "Mas quando as coisas arrancarem a sério em Cabora Bassa vou visitar com frequência o Songo. Acha que posso procurar você?"

"Sim, claro. Sempre que quiser."

"Jóia! Assim podemos discutir os... os problemas sanitários, né?"

"Com certeza."

A rodesiana espreitou o relógio.

"Puxa, vida! São quase sete horas!", exclamou. Pousou os olhos azuis no seu interlocutor. "Estou ficando com fome. Você não quer vir jantar comigo?"

A proposta arrancou uma hesitação de José, mas tomou um ar pesaroso.

"Não posso", disse. "Já tenho um compromisso."

Chegou mais cedo ao restaurante Kanimambo e foi instalar- se numa mesa, de onde ficou a vigiar a porta. Achara estranho o tom de mistério de Albertina ao telefone e presumiu que o amigo andava de novo metido em sarilhos com as autoridades. Quando a viu cruzar a porta e lançar-lhe um sorriso indisfarçavelmente triste, porém, percebeu que dessa vez os problemas eram mais graves do que supunha.

"O Domingos está preso", anunciou-lhe ela logo que se sentou. "Meteram-no na Machava."

O anúncio apanhou-o com a força de um murro desferido de surpresa no estômago.

"Preso?", balbuciou, estupefacto. "Mas... porquê?"

Albertina revirou os olhos e suspirou com resignação.

"Ora, porquê? Pelos motivos do costume, claro. Os tipos da PIDE andavam a vigiá-lo e descobriram que o Domingos integrava o núcleo da Frelimo aqui em Lourenço Marques. Ele, o Craveirinha, o Honwana, o Malangatana e toda a malta. De maneira que os acusaram de subversão e prenderam-nos."

"Meu Deus!", exclamou, sem saber exactamente o que dizer. Era a primeira vez que tinha um amigo atrás das grades e não sabia como proceder numa situação dessas. "Como está ele?"

"Vai-se aguentando, considerando as circunstâncias." Esboçou uma careta. "Aquilo é maningue chato. A Machava está a abarrotar de detidos e há celas individuais onde meteram mais de dez reclusos. Parecem atum em conserva. Como nem sequer têm cama para dormir, estendem-se numa manta de algodão."

"O Domingos também?"

"Felizmente não", murmurou ela. "Deixaram-no sozinho numa cela com cama, graças a Deus. Tem um penico e come no chão, mas ao menos está bem melhor do que a maioria."

"Achas que é possível visitá-lo?"

Ela abanou a cabeça.

"Estás maluco? Claro que não!"

"E tu? Como te sentes?"

"Melhor do que ele", observou Albertina com um sorriso fraco. "Além da situação do Domingos, custa-me ver o trabalho destruído. Sabes, ao prender o Domingos e o resto do pessoal, a PIDE conseguiu de uma assentada desmantelar todas as estruturas da Frelimo no Sul de Moçambique. Não sobrou nada de nada."

O amigo fez uma expressão contemplativa enquanto considerava o que acabara de escutar.

"Há aí uma coisa que não percebo", murmurou. "Não achas estranho que o tenham separado dos restantes presos? Quer dizer, se o consideram um subversivo seria normal que..."

"Foi Salazar."

"Perdão?"

"O presidente do Conselho impediu que o maltratassem. Sabes que se encontraram os dois em Lisboa, não sabes?"

José arregalou os olhos, incrédulo.

"O Domingos esteve com Salazar?", perguntou, atónito. "Com o Toninho? Estás a gozar!..."

"Ai não sabias? Foi uns meses antes de a guerra começar. Depois daquela chatice convosco em João Belo, ele foi a Lisboa tratar de umas coisas e, quando quis regressar, a PIDE apreendeu-lhe o passaporte. Como não tinha nada a perder, o Domingos pediu para falar com o presidente do Conselho. Não que alimentasse maningue expectativas, mas pelo menos ficava com a consciência de ter tentado tudo. Agora hás-de imaginar a surpresa que ele teve quando foi chamado para uma reunião com o homem."

"A sério? O Toninho mandou-o chamar?"

"A vida tem destas surpresas", assentiu Albertina. "Salazar recebeu-o no gabinete e tudo."

"Isso é extraordinário! E o que aconteceu?"

"Nada de especial. O Salazar disse-lhe que falasse livremente e o Domingos propôs-lhe que fosse criada imediatamente uma comunidade de estados de língua portuguesa, um pouco como a Commonwealth, de modo a manter as nações que fazem parte do império dentro da esfera lusitana e impedir o"avanço do comunismo em África."

"E o Toninho? O que respondeu a isso?"

"Não se mostrou frontalmente contra a ideia, mas disse que o problema era que os movimentos africanos iam interpretar essa proposta como um sinal de fraqueza e exigiriam logo a independência, e isso não podia ser. Depois convidou o Domingos para ser deputado na Assembleia Nacional, coisa que ele recusou, claro."

Passaram o resto do jantar a falar sobre Domingos, mas depressa se tornou evidente que o tema era obsessivo e a conversa acabou por derivar para a vida em Tete e o projecto de José de usar um avião para levar a assistência sanitária a todo o distrito. O médico contou-lhe peripécias das suas aventuras no mato e Albertina apreciou especialmente o episódio da multidão que se juntou no Furancungo porque o feiticeiro branco tinha ressuscitado a leprosa.

Acabaram a refeição e combinaram reencontrar-se no dia seguinte para almoçar.

"Estou com saudades de ir ao Grego", disse Albertina. "O que achas?"

"Está combinado."

José pagou a conta e saíram do restaurante. No momento em que se despediram à porta do Kanimambo, ela agarrou-o pelo braço e fitou-o com intensidade.

"Quando amanhã te encontrares com o governador", pediu antes de entrar no seu carro, "podes perguntar pelo Domingos?"

"Com certeza", prometeu o amigo. "Farei o que puder."A manhã seguinte acordou amena, coisa a que já não estava habituado após tanto tempo submetido à severidade do clima escaldante de Tete. Saiu do Hotel Cardoso impecavelmente vestido de branco, quase como se fosse prestar assistência médica no mato, e à hora marcada apresentou-se no palácio do governo, onde pediu direcções para o gabinete do "senhor governador".

Mandaram-no aguardar numa salinha refrescada por uma grande ventoinha que rodava no tecto, onde se distraiu a ler o Notícias, o principal matutino de Lourenço Marques, e edições recentes de A Bola, que tinham acabado de chegar da Metrópole com novidades frescas sobre o sensacional apuramento do Benfica para mais uma final da Taça dos Campeões Europeus, desta vez para defrontar o Manchester United em Londres. Leu os artigos duas e três vezes, e ao fim de duas horas, quando já quase se sentia esquecido, ouviu o claque matraqueado de um par de saltos altos de sapatos de senhora a tamborilar pelo chão do palácio. Uma figura feminina, pequena e roliça, assomou à porta e fez-lhe sinal.

"Queira acompanhar-me, por favor."

O gabinete do governador-geral da província de Moçambique era quase um salão. As paredes estavam cobertas de estantes com livros esmeradamente encadernados, belos quadros e soberbas estatuetas africanas em pau-preto, a maior parte de origem maconde. Havia uma grande bandeira nacional, um retrato do presidente da República e outro do presidente do Conselho, uma grande secretária de madeira exótica ricamente trabalhada e sofás elegantes sobre magníficos tapetes.

"Ora viva, doutor Branco!", trovejou uma voz. "Têm-me falado imenso das suas façanhas!"

Reconheceu o rosto que se aproximava dele de muitas fotografias que ao longo do tempo vira publicadas nos jornais. O governador-geral de Moçambique era um homem de meia-idade, com o corpo seco enfiado num fato manifestamente desajustado para o ambiente tropical. É certo que o dia nascera moderado, como era timbre do clima benigno de Lourenço Marques, mas mesmo assim fazia-lhe impressão ver alguém apresentar-se daquele modo.

"Senhor governador, agradeço-lhe a prontidão com que me recebeu..."

"Não tem de quê! Vai um whiskyzinho?"

"Com soda."

Foi só ao penetrar no gabinete que o visitante percebeu por que razão o seu interlocutor estava assim vestido. É que os aparelhos de ar condicionado encontravam-se na potência máxima e fazia ali dentro um frio quase polar. José sentiu a pele eriçar-se-lhe e esteve à beira de pedir um agasalho, mas conteve-se. Não ia dar parte de fraco.

O governador dirigiu-se ao bar e preparou dois copos de whisky com gelo, um regado a soda e outro a água, e entregou o copo borbulhante ao visitante, convidando-o com um gesto a instalar-se no sofá. Havia vários documentos espalhados pela mesinha, entre pratinhos de caju e um cesto com peças de fruta tropical variada.

"O senhor doutor vai-me desculpar o atraso com que o recebi", disse o anfitrião, acomodando-se ele próprio no sofá.

"A subversão de que estamos a ser alvo a partir dos nossos vizinhos do Norte consome-me muita atenção. Ainda há pouco tive uma reunião não agendada com o general Tomé e já estou atrasado para uma cerimónia de recepção de novas tropas marcada para daqui a pouco ali no porto, de modo que, se não vir inconveniente, vou directo ao assunto."

"Com certeza, senhor governador."

"O governador de Tete enviou-me uma exposição sobre o seu caso que muito me interessou. O projecto de expandir a assistência humanitária a todo o distrito de Tete pareceu-me pertinente e oportuno. Sei que o senhor tem usado os aviões da Missão de Fomento e do Aero-Clube de Tete, mas que eles não chegam para as encomendas. Acontece que, como é evidente, não cabe à Missão de Fomento envolver-se na assistência sanitária. As suas responsabilidades são outras. O que nos traz à questão essencial: não haverá outro modo de resolver este problema?"

O médico pousou o copo na mesinha e respirou fundo.

"Haver há, senhor governador", indicou. "O que eu preciso é de um avião que esteja em permanência ao meu serviço. Considerando o volume de trabalho em todo o distrito, só assim poderemos dar resposta cabal às necessidades. Se o aparelho é da Missão de Fomento ou de outro organismo qualquer, isso pouco importa. O importante é que tenha capacidade para levantar voo e aterrar em picadas."

"O Aero-Clube de Tete não pode ajudar mais?"

"Eles já me ajudam e continuarão a ajudar. Mas não estão vocacionados para a assistência sanitária, dispõem de recursos limitados e, como calcula, têm outras preocupações."

O governador-geral pôs a mão no queixo e passeou os olhos pelo gabinete, pensativo.

"O que acha, por exemplo, da Força Aérea?", sugeriu. "Há decerto por aí uns aparelhos disponíveis..."

O médico fez um ar momentaneamente meditativo, enquanto considerava a ideia, mas acabou por esboçar uma careta de reprovação e abanar a cabeça.

"Não me parece, senhor governador", disse. "A Força Aérea é uma instituição envolvida em acções de guerra. Julgo que não é adequado associar um serviço de assistência sanitária a uma instituição dessa natureza. Os militares têm as suas prioridades e os médicos civis têm outras, porventura antagónicas. Além disso, que iriam pensar as populações? E como reagiriam os turras? Não, não me parece adequado utilizar aviões militares."

"Então o que sugere o doutor?"

José encolheu os ombros, entre frustrado e impotente.

"Confesso que não sei", admitiu.

O governador manteve os olhos perscrutadores cravados nele, como se o desafiasse.

"Peça o impossível!"

O médico riu-se, quase desconfortável.

"O impossível? O impossível era comprar um avião, claro. Mas isso..."

Deixou a frase perder-se, consciente de que a ideia era absurda, mas surpreendeu-se ao ver o governador estreitar os olhos, como se levasse a sério a sugestão.

"Quanto custa uma engenhoca dessas?"

A pergunta deixou-o engasgado.

"Um... um avião? Sei lá... muito dinheiro."

"Quanto?"

"Bem... depende do avião, não é verdade? Eu tenho usado um aparelho muito pequeno, um Piper Tripacer. Só tem dois lugares, mas é adequado para aterrar em picadas no meio do mato. Um Piper Tripacer é coisa para uns seiscentos contos."

"Vá lá! Sempre é mais barato do que um Super Constellation..."

O médico soltou uma gargalhada nervosa ao ouvir o governador comparar o minúsculo Piper Tripacer com o gigantesco avião comercial usado pela TAP na carreira de África.

"Lá isso é, não há dúvida nenhuma."

"Portanto esse Piper Tripacer é o seu sonho para essa missão..."

José hesitou.

"Sonho, enfim... não direi."

"Ó doutor", exclamou o governador, como um forcado a atiçar o touro. "Peça o impossível!"

O médico engoliu em seco. Atrever-se-ia?

"Bem, o ideal mesmo era um... um Piper Cherokee. Noutro dia andei num avião desses lá no Aero-Clube e achei-o fantástico! Não sei se conhece, é um monomotor ainda suficientemente pequeno para poder aterrar em picadas, mas já dispõe de seis lugares. Nada mau. Além do mais os assentos traseiros são amovíveis, o que permite abrir espaço para transportar o que for necessário: sei lá, medicamentos, equipamento ou até duas macas com pacientes."

"Quanto custa?"

"É um pouco mais caro", retorquiu José, baixando a voz com medo de assustar. "Uns oitocentos contos."

O governador pegou no copo e começou a rodá-lo na mão, observando o gelo a girar no líquido dourado enquanto ponderava o problema. Deixou-se ficar em silêncio alguns segundos, período durante o qual o seu visitante se manteve calado, consciente de que não deveria interromper os pensamentos do anfitrião.

"Digamos que oitocentos contos me parece um valor acessível", sentenciou por fim o governador. "O Governo-Geral da Província pode entrar com trezentos. Acho que posso arranjar mais cem do BNU e outros cem do Montepio. Ficam a faltar os restantes trezentos, não é verdade? Terá de ser o senhor doutor a arranjá-los."

"Eu, senhor governador?", admirou-se José. "Onde diabo vou eu desencantar trezentos contos?"

O governador inclinou-se para a frente e pousou o copo na mesinha com os olhos presos no seu interlocutor.

"O senhor doutor vai escrever uma carta muito bonitinha ao doutor Victor Sá Machado a expor a sua ideia", disse. "O projecto que o senhor quer erguer em Tete tem uma dimensão humana que decerto irá interessar o doutor Sá Machado."

"O doutor Machado?", interrogou-se José, tentando em vão visualizar um rosto. "Confesso que não estou a ver quem seja..."

O anfitrião espreitou o relógio e, vendo o adiantado da hora, ergueu-se com um movimento enérgico, assinalando assim o fim da reunião.

"Ó doutor, é a Gulbenkian!", exclamou. "A fundação é que lhe vai arranjar o dinheiro que falta!"

O governador acompanhou-o até à porta e estendeu-lhe a mão em despedida. O médico hesitou em apertá-la de imediato; tinha ainda uma derradeira questão a apresentar-lhe.

"Senhor governador", disse, enchendo-se de coragem para suscitar o assunto. "Se me permite, queria-lhe falar sobre um amigo meu que está detido na Cadeia Central da Machava. Trata-se do..."

"Doutor Rouco", atalhou o governador, antecipando o assunto. "Eu sei."

José olhou desconcertado para o anfitrião.

"Sabe?"

"Sei que são amigos e que ele está na Machava", disse. "Mas não posso fazer grande coisa. O doutor Rouco infelizmente envolveu-se em actividades subversivas graves e teve de ser preso. Parece até que já andou a criar problemas na Machava e a incitar outros reclusos à revolta." Suspirou. "Enfim, é uma coisa desagradável."

"Há alguma possibilidade de... de garantir que ele, ao menos, não é maltratado?"

O governador fitou o médico com uma expressão indecifrável.

"O que vale ao doutor Rouco é ter bons amigos", sentenciou, enigmático. "E, com o devido respeito, não estou a falar do senhor. O doutor Salazar tem-lhe dado uma certa protecção e parece que também o professor Marcello Caetano, que foi professor dele na universidade, anda a tentar protegê-lo. Com este tipo de amigos, nada lhe acontecerá." O anfitrião voltou a estender a mão para se despedir. "Fique descansado que ele vai sair em breve da Machava."

A notícia arrancou um grande sorriso a José, que desta feita devolveu o cumprimento e apertou quase efusivamente a mão que lhe era estendida.

"Ainda bem, senhor governador!", exclamou com evidente alívio. "Ainda bem! Não imagina como fico contente."

O governador voltou-se e deu um passo para regressar ao gabinete, mas deteve-se e lançou um olhar ao visitante, despedindo-se com uma derradeira informação.

"O doutor Rouco vai ser transferido para a Metrópole", revelou. "Ficará detido em Peniche."

E fechou a porta.

 

A primeira coisa que José fez quando abandonou o palácio foi descer até ao centro da cidade, entrar no Café Scala e pedir um telefone. Ligou a Albertina para lhe dar a novidade, mas ninguém atendeu e percebeu que a amiga não estava em casa. Saiu do café e foi ter com o motorista que a Secretaria Provincial de Saúde tinha posto ao seu dispor.

"Leva-me à Costa do Sol."

O automóvel percorreu a grande marginal em ritmo de passeio, as janelas abertas para deixar entrar o ar revigorante do mar. A longa mancha azul do Índico enchia o horizonte à direita, apenas recortada pela longínqua ilha da Inhaca. O areal das praias começava junto ao alcatrão e estava semeado de árvores, sobretudo ao lado da marginal. Viam-se revoadas de mulheres que aproveitavam a sombra das copas para se protegerem do calor e venderem capulanas coloridas, enquanto alguns rapazes andrajosos acenavam com sacos de caju e homens fardados de branco aguardavam ao lado de enormes frigoríficos motorizados da Esquimó que lhes comprassem os sorvetes. A marginal desembocou num grande parque de estacionamento onde já havia poucos lugares. O médico saiu do carro, tirou os sapatos e calcorreou o areal da praia até molhar os pés à borda da água. Deu alguns passos com o mar sempre rasteiro e viu cem metros adiante pessoas que tinham a água apenas pela cintura, mas José nunca aprendera a nadar e preferiu voltar para trás e instalar-se à sombra de um pinheiro.

Quando a hora chegou calçou os sapatos e caminhou até ao restaurante, um edifício longo em Art déco, branco como se fosse de cal e com a vasta varanda entremeada por colunas azuis que sustentavam o primeiro andar. O estabelecimento chamava-se Restaurante Costa do Sol, mas todos o conheciam por O Grego, devido à nacionalidade do proprietário. Varreu a varanda com o olhar e não a descortinou. Ainda pensou em voltar mais um bocado para a praia, mas verificou que já havia poucas mesas livres e achou que o mais prudente seria ocupar uma delas.

Albertina chegou atrasada. Não explicou os motivos e o amigo presumiu que houvesse política pelo meio, ou talvez apenas esforços mais ou menos confidenciais para chegar ao marido, pelo que nada lhe perguntou. Pediram um prato de camarões grelhados, especialidade da casa, e duas Laurentinas, e quando o empregado se afastou José deu-lhe a novidade de que o marido ia ser transferido para uma cadeia da Metrópole.

"Não me surpreende nada", disse ela com o rosto fechado. "Fizeram uma lei a permitir transferências de reclusos entre a Metrópole e o Ultramar. Sempre suspeitei que essa lei foi feita a pensar exclusivamente nele."

"Vê a coisa pelo lado positivo", sugeriu o amigo. "Isso significa que se querem assegurar de que nada lhe acontece e é bem tratado. O governador confirmou-me que até o Toninho o protege."

Conversaram sobre o encontro que José tivera nessa manhã e só mudaram de tema quando os camarões foram servidos. Estavam deliciosos, como de costume no Grego, e perceberam que era impossível continuar a falar de desgraças enquanto se lambuzavam com semelhante iguaria. O tom tornou-se assim mais ligeiro.

O médico estava preocupado com a mulher do amigo e sentia uma certa responsabilidade para com ela, em particular naquelas circunstâncias, pelo que a acompanhou todo o dia. Depois do almoço foram passear na Baixa e ver uma fita americana no Cine Varietá.

No fim decidiram ir jantar ao local mais fino de Lourenço Marques. Como era seu hábito, a melhor sociedade laurentina juntara-se no ambiente requintado da esplanada do Hotel Polana. Entre copos de whisky e champanhe servidos por empregados impecavelmente fardados, os frequentadores da esplanada discutiam a vivenda com que sonhavam no magnífico bairro vizinho de Sommerschield, com jardim e piscina azul-turquesa, ou o fim-de-semana espectacular que iriam passar à Ponta do Ouro, ao Bilene ou à ilha da Inhaca, a mesma ilha cujas luzes ténues cintilavam na mancha escura do Indico diante do hotel; pareciam dançarinas a seduzir os refinados frequentadores da esplanada do Polana.

"As pessoas aqui em Lourenço Marques não fazem ideia de que há uma guerra a ser travada em Moçambique", observou Albertina, após uma pausa em que escutaram a conversa numa mesa vizinha. "Acham que existem uns problemazitos de bandidagem lá no Norte e é tudo. Algumas chegam a dizer que é um exagero mandar tanta tropa para lá!..."

Depois de deixar a amiga em casa, José voltou para o Cardoso e combinou com o motorista que o recolhesse logo pela manhã para o levar ao aeroporto. O dia havia sido longo e foi com alívio que chegou diante da porta do quarto. Estava cansado e só queria atirar-se para a cama e dormir. Meteu a chave na fechadura e abriu a porta.

A cama estava feita, como seria de esperar, mas estranhou ver umas jeans dobradas em cima da cadeira. Não usava calças de ganga e estacou, num instante de total perplexidade, até perceber o que acontecera: tinha-se enganado no quarto! Recuou um passo e voltou para a porta, mas ao girar o corpo viu uma mala pousada no chão e reconheceu-a. Era a sua mala. Ou pelo menos tratava-se de uma mala igualzinha à sua. Ficou momentaneamente desconcertado, sem saber o que pensar nem como proceder. Estava ou não no seu quarto? Olhou para o número da chave, 206, e para o número da porta, 206.

"Oi!", exclamou uma voz atrás dele. "Você já chegou?"

O sotaque anglo-brasileiro era inconfundível. Virou-se e viu Nicole aparecer do quarto de banho no meio de uma nuvem de vapor e envolvida numa toalha do hotel; o cabelo loiro molhado parecia palha que lhe descaía sobre os ombros nus e os olhos azuis expressivos apresentavam-se dilatados, como berlindes gigantes.

"O que está aqui a fazer?"

A rodesiana esboçou uma expressão fingidamente infeliz.

"O meu banheiro quebrou", lamentou-se. "Não tinha água e tive de vir aqui tomar um banho. Você não se importa, pois não?"

José olhava-a com incredulidade, ainda sem perceber o que sucedia.

"Mas... mas como?", gaguejou. "Como entrou no quarto?"

"Falei com o mocinho e banquei de distraída. Disse para ele que tinha perdido a chave e que você era o meu namorado e que precisava muito de entrar. Aí ele abriu a porta."

O médico manteve o olhar preso nela enquanto raciocinava. O quarto de banho de Nicole ficara sem água e ela viera para o dele tomar banho? Aquela história não batia certo. Aliás, bastava vê-la enrolada na toalha, descontraída e sorridente, para perceber que nada daquilo tinha sido um acaso.

Teve vontade de a mandar vestir-se e sair, mas apercebeu-se de que o seu corpo vibrava de excitação, alheio à sua vontade. Foi como se a mente se tivesse dividido. Uma voz prudente lembrou-lhe que era um homem casado e que o tempo para aquelas folias já passara, mas depressa outra sublinhou que ele nunca tinha tocado numa estrangeira e que aquela se oferecia toda e Mimicas não estava ali e que teria de ser mesmo um grande tolo e um totó do tamanho da Torre dos Clérigos se não aproveitasse aquela ocasião única para saborear uma mulher tão invulgar quanto esplendorosa.

Sentia-se dividido. Foi como se a rodesiana tivesse intuído o seu conflito interior porque, mesmo no auge da dúvida, quando o dilema o dilacerava e ele procurava ver claro na névoa entorpecedora do desejo, Nicole deixou tombar a toalha aos pés e revelou o corpo sinuoso e os seios desproporcionadamente grandes adornados por mamilos largos e rosados, como chupetas gigantes, e a púbis dourada como José nunca tinha visto nem sabia existir.

"Tenho frio", murmurou ela.

Com um movimento inesperadamente rápido e descarado, apalpou-o entre as pernas e ronronou, obviamente agradada com o que sentia na mão. Aproximou o rosto devagar, os olhos expectantes e a boca entreaberta numa expressão lasciva de gata com cio, e com um novo gesto súbito esticou a língua ardente e lambeu-lhe os lábios. Foi o golpe de misericórdia.

Incapaz de se controlar mais um segundo que fosse, a vontade derretida pelo calor da sedução, José abandonou-se ao monstro que lhe tomou conta do corpo.

 

A vida desportiva de Diogo Meireles adquiriu tons triunfais com a gloriosa camisola azul e branca no corpo. Os campeonatos pelas cores do FC Porto sucediam-se e as internacionalizações também. Num só ano foi juvenil, júnior e sénior, vencendo todas as competições nacionais que disputou.

Assumiu-se como a vedeta da equipa e as suas conquistas, impressionantes nos campos de voleibol, estenderam-se de repente a outras modalidades. Graças ao seu olhar terno e às longas patilhas à Beatles de cabelo castanho rebelde, tornou-se a principal atracção das espectadoras.

É verdade que as raparigas do Liceu de Gaia, com uma ou outra excepção, nunca lhe suscitaram grande interesse; as batas escolares tornavam-nas banais, quase assexuadas. No entanto, as espectadoras dos jogos eram diferentes. Muitas aperaltavam-se para assistir às partidas do FC Porto, exibindo profundos decotes e vestidos justos que lhes acentuavam as formas. No final das partidas, algumas aguardavam-no à saída dos balneários para pedir um simples autógrafo ou até a querer tirar fotografias ao lado dele."Gosto muito de te ver jogar", disse-lhe uma morena, pestanejando os olhos verdes, uma das primeiras vezes que Diogo se viu assediado à porta do balneário. "Tens muito estilo."

Voltou a vê-la no jogo seguinte e, vencendo a timidez, arrancou-lhe o nome.

"Chamas-te Julieta?", admirou-se Diogo, que viu ali pretexto para um piropo. Sentiu-se ruborizar, sem saber se teria coragem para o lançar. "Eu... sabes o que gostaria?"

Ela fitou-o com expectativa, o verde dos olhos a luzir de emoção.

"O quê?"

Atrever-se-ia?

"De ser o teu Romeu."

Não era dos piropos mais originais que Julieta alguma vez ouvira; na realidade o nome de Romeu tendia a vir à baila sempre que ela se apresentava a alguém, mas já se resignara àquela sina shakespeariana e a frase infinitamente batida em nada diminuiu o seu interesse pelo rapaz de olhar sonhador e cabelos revoltos.

Palavra puxa frase e daí a pouco estavam ambos a tomar um cimbalino num dos cafés mais frequentados da zona das Antas. O cimbalino no Café Bom Dia transformou-se numa francesinha para o lanche no Café Velasquez e a sobremesa veio quando Diogo venceu enfim a timidez e lhe saboreou os lábios trémulos e a língua escaldante que lhe soube a doce e lhe abriu o apetite para outras sobremesas.

O pavilhão das Antas estava nessa noite encerrado, mas com a cumplicidade do roupeiro o craque da equipa de voleibol levou a sua Julieta para o balneário das equipas adversárias, onde se sabia à vontade, e entre gemidos e suspiros descontrolados perdeu a virgindade sobre a marquesa das massagens.

A relação com Julieta parecia promissora, até porque se tratava de rapariga meiga e divertida, mas logo três semanas depois uma tal Margarida pediu-lhe um autógrafo à saída do pavilhão de Espinho. A Guidinha, como fez questão de ser chamada, também era morena, mas de olhos castanho-claros e um peito que fez o rapaz sonhar com a Gina Lollobrigida.

Não resistiu à força da dupla argumentação e, após uma refrega intensa no banco traseiro do Vauxball Viva dos pais dela, num recanto escondido entre pinheiros junto à praia de Espinho, decidiu trocar de namorada. Isto, claro, até conhecer a Laura da boca marota no intervalo de um jogo com o Leixões, a meio do mês seguinte.

A verdade é que nenhuma destas relações sucessivas teve consequências duradouras; as moças queriam romance e estabilidade, ele preferia ficar-se pelo sexo e pela novidade. O que lhe valia é que, atrás de cada rapariga vinha sempre uma nova para fruir, elas atraídas pelo esplendor que o galã da equipa irradiava, ele garantindo à custa disso que as experiências novas prosseguiam sem cessar.

As coisas corriam, pois, de feição a Diogo. Até ao dia em que, em vésperas de uma deslocação à Argélia para defrontar a selecção local, chegou a casa e ouviu a mãe chamá-lo da cozinha.

"Diogo?! És tu?"

"Sim, mãe. O que é?"

"Chegou correio para ti."

Pensou que fosse uma carta de Angelino, o amigo não lhe escrevia havia já algum tempo, e apressou o passo até à cozinha. Mas quando cruzou a porta e surpreendeu os olhos húmidos e avermelhados da mãe desconfiou. Tinha estado a chorar. Desviou de imediato a atenção para o envelope que lhe dançava entre os dedos nervosos e sentiu um baque cortar-lhe o ar. Más notícias, percebeu. Teria havido uma tragédia? Teria alguém morrido? Um turbilhão de hipóteses aflorou-lhe à mente em catadupa, cada uma mais terrível do que a outra, como se tivesse mergulhado numa cascata de medos.

"O... o que foi? De quem é essa carta?"

A mãe estendeu-lhe o sobrescrito com uma expressão triste a toldar-lhe o olhar.

"É das Forças Armadas."

 

A rua inclinava-se para cima mas a rapariga não desanimou e continuou a correr em passadas largas, a mente fixa na hora a que terminavam as visitas. Não completou muitos passos porque a inclinação ascendente começou a pesar-lhe nas pernas; as coxas tornaram-se tão pesadas que lhe pareciam cimento e os pulmões ardiam com o ar quente.

"Tenho de chegar antes das três", murmurou de respiração entrecortada, num esforço para se motivar e buscar energias onde as perdia. "Às três fecha." A respiração era já um resfolegar intenso. "Força! Tenho de conseguir!"

A rua parecia inclinar-se ainda mais e a rapariga, olhando para a curva que não parava de subir, sentiu-se desanimar.

"Não posso mais!", expirou. "Não posso..."

Esforçava-se por continuar a correr, por lutar contra o desfalecimento iminente, mas as pernas deixaram de lhe obedecer e, já insensíveis, como pedras que escapam ao controlo, enroscaram-se uma na outra e a rua começou a rodopiar e a rapariga viu-se de repente no chão e a mente num torvelinho e os pulmões exangues e o corpo dorido.Uma dor raspada nasceu-lhe dos joelhos.

"Ai!", gemeu.

Ofegante, ficou um longo instante a tentar regularizar a respiração. Quando sentiu as forças voltarem, olhou em redor e fixou o corpo. Começou a perceber que se estatelara no passeio. Mexeu as pernas e a dor nos joelhos recrudesceu.

"Ai, ai, ai!"

Levantou devagar um joelho e viu-o esfolado, as peles de chocolate rasgadas e o sangue a pingar num vermelho-escuro. Caíra mal. Tentou erguer-se, mas uma pontada no outro joelho fez-lhe ver que teria dificuldades.

Ouviu o som surdo de uma porta a bater e voltou a cabeça. Um Opel branco de capota azul imobilizara-se na berma da rua. Viu uns sapatos brancos a aproximarem-se.

"Então? Caíste, miúda?"

Era uma voz de homem e falava português como os da Metrópole. A rapariga levantou a cabeça e fitou o desconhecido. O homem vestia todo de branco e inclinava-se na sua direcção, os olhos castanhos a avaliarem os joelhos ensanguentados.

"Dói-te muito?"

A rapariga gemeu e assentiu com a cabeça. Depois de estudar a posição do corpo, o recém-chegado pôs-lhe as mãos nos braços e levantou-a com cuidado.

"Anda, vou-te levar ao hospital."

Ao sentir o movimento, a rapariga gemeu com mais força. "Dói!"

O desconhecido de branco suavizou os gestos, mas continuou a erguê-la.

"Eu sei, miúda. Já vamos tratar disso, não te preocupes."

O homem segurou-a bem e encaminhou-a devagar para o Opel. Abriu a porta, instalou-a no assento do passageiro e, contornando a viatura pela frente, foi ele próprio sentar-se no lugar do condutor. Ligou a ignição, fez marcha atrás, posicionou o carro e começou a subir a rua.

"Então? Estás melhor?"

A rapariga cerrou os dentes, num esforço para controlar a dor, e fez que sim com a cabeça.

"Como te chamas?"

"Sheila."

O homem de branco mantinha os olhos na estrada, mas uma vez por outra olhava-a para se certificar de que ela se encontrava bem.

 

"Onde ias tu com tanta pressa?"

"Ao hospital."

Intimidada pelo desconhecido, Sheila respondia por monossílabos. Não estava habituada a lidar com brancos da Metrópole, que habitualmente apenas via à distância e que a deixavam pouco à vontade quando por acaso se aproximavam.

"Bem, para o hospital vais tu agora", disse ele. "Mas o que ias lá fazer, não me dizes?"

"Ia ver a vovó."

O condutor olhou-a de relance com um brilho levemente intrigado.

"A tua avó está no hospital?"

A rapariga confirmou com um gesto rápido da cabeça.

"O que tem ela?"

"Bilharziose."

O homem de branco cerrou o sobrolho enquanto a mente processava a informação.

"Bilharziose, hem?", murmurou, embora fosse claro que a observação era retórica, formulada mais para ele próprio do que para ela. Como se a mente lhe tivesse fornecido a resposta, arregalou os olhos. "Não me digas que a tua avó é a senhora da cama 14..."

Ao ouvir a referência, o olhar da rapariga iluminou-se e assumiu uma expressão admirada.

"Iá", confirmou. "Como sabe?"

O homem de branco sorriu.

"Sou o director do hospital", identificou-se.

Sheila carregou as sobrancelhas, desconfiada. Já ouvira inúmeras referências ao director do hospital e com certeza não era aquele.

"O senhor é o director do hospital?"

Formulou a pergunta numa voz desconfiada, deixando claro pelo tom que sabia muito bem quem era o responsável pelo hospital e que não se deixaria ludibriar pela primeira patranha que lhe contassem.

"Sou pois."

A rapariga abanou a cabeça, desaprovadora. Não gostava que se divertissem com ela.

"Oh, está a brincar! Toda a gente sabe que o director é o doutor Branco."

O homem ao volante voltou o rosto para a frente e, com a rua já a nivelar-se na horizontal, pôs o pé no travão e abrandou diante do portão do hospital.

"E quem pensas tu que eu sou?"

A irmã Lúcia esticou o adesivo, cortou uma faixa e assentou-a sobre o algodão. Repetiu o gesto instantes depois, mas colou a nova faixa de adesivo na perpendicular, em cruz. Apesar de estar ajoelhada perante a jovem paciente, recuou e contemplou o curativo com uma expressão aprovadora.

"Está feito!"

A freira ergueu-se e ajudou a rapariga a descer da marquesa.

"Ainda dói um bocadinho", constatou Sheila.

"Já pasa", disse a irmã Lúcia no seu português espanholado, habituada que estava a coisas bem piores. "Puedes ir para casa."

A rapariga fez beicinho.

"Mas eu quero ver a minha vovó..."

"La hora de las visitas já acabou, minha nina", anunciou a freira. "Vais ter de voltar mañana."

Sheila suspirou, resignada, e andou com cuidado em direcção à porta. A irmã Lúcia ficou a observá-la, tentando perceber se ela estava em condições de fazer caminhadas. O ar dorido da rapariga deixou-a na dúvida.

"Escucha, onde vais?"

"Para casa, claro."

"A pé?"

Sheila pareceu embasbacada.

"Pois... iá, claro."

A freira fez uma careta e, vencendo uma hesitação, esticou a cabeça em direcção ao corredor.

"Doutor Branco!"

"Sim, Lúcia? O que é?"

A voz do director viera do gabinete no fundo do corredor.

"La nina vai para casa, pero mal puede andar."

O médico emergiu da porta e aproximou-se; tinha o estetoscópio ao peito e um semblante interrogador.

"Então, Sheila? Já não queres ver a tua avó?"

A rapariga olhou para a freira espanhola, atrapalhada, e baixou a cabeça.

"A irmã Lúcia disse que a hora das visitas já acabou..."

José Branco parou diante da jovem paciente e passou-lhe os olhos pelos joelhos para se certificar de que os curativos estavam devidamente aplicados. Precaução inútil, sabia muito bem. A minúscula irmã Lúcia era conscienciosa nos seus deveres.

"E disse maningue bem", afirmou. "Mas acho que desta vez podemos abrir uma excepção." Fez um sinal com a cabeça. "Anda daí, vamos lá ver a tua avó."

Sheila arregalou os olhos negros.

"A sério?"

"Ficas cá o tempo que quiseres e, quando tiveres de te ir embora, avisas aqui a irmã Lúcia, ouviste?" O médico virou-se para a freira. "Ó Lúcia, o Luís depois que a leve a casa."

"Muy bien."

O director abandonou o edifício principal com a rapariga atrás dele, atravessou o pátio e entrou numa enfermaria. Percorreu as camas até se imobilizar aos pés da 14. Uma velha de cabelo branco e corpo engelhado fitou-o com curiosidade.

"Dona Aissa, tenho aqui uma visita para si."

Os olhos da velha deslizaram para a figura delgada que apareceu atrás do médico.

"Sheila! O que estás aqui a fazer?"

"Vim visitá-la, vovó."

"A esta hora? O que tens nos joelhos?"

Alheando-se da conversa entre neta e avó, José Branco pegou no relatório clínico da paciente pregado ao gradeamento da cama e estudou-o. O documento era assinado pelo doutor Feitor e referenciava o diagnóstico de bilharziose em Aissa Mussa. Estava-lhe a ser ministrado Ambilhar, medicamento adequado para aquelas situações, mas o director do hospital sabia que aquele fármaco produzia perturbações no sistema nervoso central. Fez um esforço de memória e lembrou-se que tinha sido ele próprio quem dera ordem de baixa à paciente após um episódio em que ela nem a família reconhecera.

Arrumou o relatório e pigarreou, interrompendo a conversa entre as duas.

"Então, dona Aissa? Como se sente hoje?"

A paciente virou o rosto macilento para ele.

"Vai-se andando, senhor doutor. Às vezes tenho umas dorzinhas, mas aguenta-se."

"Ainda deita sangue quando tosse?"

Acto contínuo a idosa tossiu, provavelmente sugestionada pela pergunta. Depois respirou fundo.

"Um pouquinho, sim. Mas já está melhor."

"E as fezes?"

A palavra extraiu uma expressão opaca de Aissa.

"Como diz, senhor doutor?"

"O cocó", esclareceu ele. "Apareceu algum sangue no cocó?"

A mulher olhou de relance para a neta, talvez melindrada por abordar diante dela um assunto tão embaraçoso.

"Também está melhor, senhor doutor", murmurou. "O sangue aparece menos vezes."

"Quando foi a última vez?"

"Ontem depois do almoço. Iá. Mas foi só um pedacito."

O médico aproximou-se da mesinha-de-cabeceira e pegou na pequena embalagem branca de Ambilhar ali pousada.

"Tem-se dado bem com o remédio?"

A mulher fez uma careta.

"Às vezes fico um poucochinho baralhada."

"Não há-de estar assim tão mal", observou José com um sorriso amigável. "Ainda há instantes não teve qualquer dificuldade em reconhecer a sua neta..."

Aissa voltou o rosto para a rapariga, estendeu a mão fraca para lhe tocar no braço e sorriu, exibindo a boca desdentada.

"Hoje não, graças a Deus. Reconheci a minha Sheila maningue bem. Alá é grande!"

"E o resto da família? Tem reconhecido toda a gente quando a vêm visitar?"

"Qual resto da família, senhor doutor?"

Os olhos desconcertados de José dançaram entre Aissa e Sheila, como se procurassem resposta para a pergunta inesperada.

"Bem... sei lá", gaguejou. "Os pais da sua neta, por exemplo. Não vieram ver a senhora?"

A mão fria de Aissa cravou-se com mais força no braço da rapariga a seu lado.

"A Sheila é órfã, senhor doutor. A minha filha morreu quando a Sheila tinha cinco anos e depois faleceu o meu genro. Agora sou eu quem trata dela, coitadinha. Dela e dos irmãos mais novos, o Maomé e o Malaquias. Estão todos ao meu cuidado."

O director do hospital coçou a cabeça.

"Então e agora que a senhora está internada quem cuida dos seus netos?"

Aissa suspirou pesadamente.

"Ai, senhor doutor! Nem me fale nisso! Eles estão entregues a si mesmos, coitadinhos! Ando maningue ralada com isto! Nem imagina!" Fez um gesto vago indicando a cama onde estava deitada. "Mas que posso eu fazer, senhor doutor? Estou aqui internada e não tenho modo de os ajudar..."

"Os seus netos estão entregues a si mesmos?"

"Alá é grande e cuidará deles."

O médico apoiou-se noutra perna, incomodado e repentinamente impaciente.

"Oiça, não é que eu queira duvidar dos poderes de Alá, mas parece-me que isso não chega."

"Que posso eu fazer, senhor doutor?", perguntou ela num queixume. "Foi o senhor mesmo que me internou, sabe muito bem que não posso sair daqui..."

José olhou pensativamente para a rapariga. Sheila era uma moça bonita de pele trigueira, estranha mistura de português e negro, mas com o indiano a dominar; tinha um rosto bolachudo, longos cabelos negros e um olhar vivo.

"Olha lá, Sheila", interpelou-a. "O que sabes tu fazer?"

A rapariga quase se encolheu quando percebeu que era a ela que o director do hospital se dirigia.

"Eu, senhor doutor? Estou a aprender costura."

"E gostas?"

Sheila baixou a cabeça e manteve-se calada, como se tivesse vergonha de falar sobre o assunto. Foi a avó que respondeu no seu lugar.

"Ela não gosta, mas tem de ser. Precisamos que faça uns tostões lá para casa, senhor doutor."

O médico cravou o olhar na rapariga, que se mantinha cabisbaixa, e sentiu uma inexplicável piedade dela.

"Não queres ser costureira?"

Sheila abanou a cabeça quase imperceptivelmente.

"Então o que gostarias tu de ser?"

Ela respirou fundo, como se ganhasse coragem, e olhou timidamente em redor. A enfermaria recortava-se sob a meia-luz metálica do início da noite; um clarão ténue fluía pelas janelas e desenhava com as sombras bizarras figuras espectrais que se estendiam no chão e trepavam pelas paredes. No exterior tinham sido ligadas lâmpadas amarelas, atraindo insectos zumbidores e projectando um halo irreal nos corredores. Alguns pacientes tossiam e outros gemiam de mansinho, os movimentos quebrados sob os lençóis, se calhar alheios, talvez atentos à conversa que se rumorava na cama 14 e que por momentos ficara suspensa.

Vencendo a timidez, Sheila ergueu por fim a cabeça e encarou o director do hospital.

 

 

                                                                                CONTINUA

 

                      

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