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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ASSASSINO À CHUVA / Raymond Chandler
O ASSASSINO À CHUVA / Raymond Chandler

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

O ASSASSINO À CHUVA

(os melhores contos de Chandler)

 

                         ÍNDICE

 

                   O Assassino à Chuva    

 

                   O Homem Que Gostava de Cães    

 

                   Quando Cai o Pano

 

                   Procure a Rapariga    

 

 

 

               O ASSASSINO À CHUVA

 

Estávamos sentados num quarto do Berglund; eu na borda da cama, Dravec na poltrona. Era o meu quarto.

 

A chuva batia com força contra as janelas. Estavam fechadas, fazia calor no quarto e eu tinha uma pequena ventoinha a funcionar sobre a mesa. A brisa atingia Dravec na testa, levantando-lhe o cabelo escuro e agitando os pêlos mais longos das grossas sobrancelhas que lhe atravessavam diagonalmente o rosto. Tinha ar de um segurança que fizera fortuna.

 

Mostrou-me alguns dos seus dentes de ouro e perguntou:

 

- Que sabe a meu respeito?

 

Disse isto com um ar importante, como se uma pessoa que soubesse alguma coisa fosse obrigada a saber tudo sobre ele.

 

- Nada - respondi. - Tanto quanto sei, está limpo. Ergueu uma mão grande e peluda e ficou um minuto a

olhá-la fixamente.

 

- Não me percebeu. Um tipo chamado M’Gee mandou-me cá vir. Violeis M’Gee.

 

- Muito bem. E que tal tem passado Violeis? - Violeis M’Gee era um polícia dos Homicídios.

 

Ele olhou para a sua grande mão e franziu o sobrolho.

 

- Não... ainda não me percebeu. Tenho trabalho para si.

 

- Eu já não saio muito à rua - respondi. - Estou a ficar um pouco fraco.

 

Ele percorreu o quarto com os olhos, cuidadosamente, fazendo um pouco de teatro, como um homem que não é naturalmente observador.

 

- Talvez seja por causa do dinheiro - comentou.

 

- Talvez - respondi.

 

Trazia um impermeável de couro com o cinto apertado. Abriu-o de qualquer maneira e puxou duma carteira um pouco mais pequena que um fardo de palha. Saíam notas por todos os lados e quando bateu com ela no joelho produziu um som que era agradável de ouvir. Sacudiu o dinheiro da carteira, escolheu algumas notas do monte, enfiou o resto outra vez lá dentro, deixou-a cair no chão, arranjou cinco notas de cem como se fosse uma mão de póquer e pô-las sobre a mesa, debaixo da ventoinha.

 

Aquilo tinha-lhe dado um trabalhão e fê-lo grunhir.

 

- Tenho muita massa - disse.

 

- Parece que sim. E que devo fazer para receber aquilo?

 

- Agora já me percebe, hein?

 

- Um pouco melhor.

 

Tirei dum bolso interior um sobrescrito e li em voz alta os gatafunhos que estavam no verso.

 

- Dravec, Anton ou Tony. Ex-metalúrgico em Pittsburgh, camionista, «gorila» para todo o serviço. Fez uma asneira e foi dentro. Deixou a cidade e viajou para o Oeste. Trabalhou numa herdade de produção de abacates em El Seguro. Estabeleceu-se com a sua própria propriedade. O boom petrolífero de El Seguro guindou-o às alturas. Enriqueceu. Perdeu bastante. Ainda possui o suficiente. Sérvio por nascimento, um metro e noventa, cento e vinte quilos, uma filha, não se lhe conhece esposa. O registo criminal não indica nada de importante. Nada mesmo desde Pittsburgh.

 

Acendi o cachimbo.

 

- Chiça! - exclamou. - Onde é que foi pescar isso tudo?

 

- Conhecimentos. Qual é o seu problema?

 

Apanhou a carteira do chão e vasculhou-a durante alguns instantes com um par de dedos gordos, de língua espetada entre os lábios grossos. Finalmente extraiu de lá de dentro um cartão castanho e uns pedaços de papel amarrotados. Empurrou-os na minha direcção.

 

O cartão tinha letras douradas, elegantes. Dizia: «Mr. Harold Hardwicke Steiner» e, no canto, num tipo de letra muito pequeno: «Livros Raros e Edições de Luxo.» Não tinha morada nem número de telefone.

 

Os pedaços de papel, em número de três, eram simples notas reconhecendo dívidas, no valor de trezentos dólares cada e assinadas «Carmen Dravec» numa caligrafia irregular e infantil.

 

Devolvi-lhos e perguntei:

 

- Chantagem?

 

Ele abanou a cabeça e havia agora na sua expressão algo de terno que antes lá não estava.

 

- É a minha menina... Carmen. Esse Steiner anda a chateá-la. Ela vai a casa dele, mete-se em pândegas. Suponho que vão para a cama. Não acho graça nenhuma.

 

Acenei com a cabeça.

 

- E quanto a estas notas?

 

- Não quero saber da massa para nada. Ela anda a brincar com ele. Quanto a isso estou-me nas tintas. Ela é doida por homens. Diga a esse Steiner que largue a Carmen. Eu torço-lhe o pescoço com as minhas próprias mãos. Está a perceber?

 

Tudo isto fora dito dum jacto, com o ar inspirado às golfadas. Os seus olhos tinham ficado pequenos e redondos, com uma expressão de fúria. Os dentes quase rangiam.

 

- Porquê eu para lho dizer? Porque não lho diz você mesmo? - perguntei eu.

 

- Posso perder a cabeça e matar o... - gritou.

 

Tirei um fósforo do bolso e piquei a cinza solta no fornilho do meu cachimbo. Observei-o cuidadosamente por alguns instantes, deixando assentar uma idéia que entretanto se formara no meu espírito.

 

- Na, você está é com medo - disse-lhe.

 

Os dois punhos ergueram-se. Elevou-os à altura dos ombros, dois nódulos de ossos e músculos, e sacudiu-os. Depois voltou a baixá-los, soltou um grande suspiro, e disse:

 

- Pois. Estou com medo. Não sei como lidar com ela. Sempre com tipos novos e cada vez mais rufias. Aqui há tempos paguei cinco mil a um gajo chamado Joe Marty para se pôr a andar. Ela ainda está zangada comigo por causa disso.

 

Olhei para a janela, observando as gotas de chuva embaterem nela, esmagarem-se e deslizarem numa onda espessa, como gelatina fundida. O Outono estava ainda demasiado no início para uma chuva daquelas.

 

- Dar-lhes rebuçados não leva a nada - comentei. Podia passar a vida toda nisso. Foi por essa razão que pensou que seria bom se eu pregasse um susto a esse Steiner.

 

- Diga-lhe que eu lhe torço o pescoço!

 

- Não me dava a esse trabalho - respondi. - Eu conheço Steiner. Era eu quem lhe torcia o pescoço, se isso servisse para alguma coisa.

 

Ele curvou-se para a frente e agarrou-me na mão. Os seus olhos tinham uma expressão infantil e uma lágrima cinzenta balouçava em cada um.

 

- Oiça. M’Gee diz-me que você é um tipo fixe. vou contar-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém... nunca. Carmen... não é minha filha. Encontrei-a em Smoky, ainda criança, vagueando pelas ruas. Não tinha ninguém. Se calhar roubei-a, hein?

 

- Assim parece - disse, e tive de lutar para libertar a minha mão. Foi preciso reanimá-la com a outra. O homem tinha uma presa capaz de partir um poste telefónico.

 

- Vou ser franco, então - disse numa voz amarga mas simultaneamente terna. - Vim para cá e portei-me bem. Ela foi crescendo. Eu gosto muito dela.

 

- Pois. Isso é natural - concordei eu.

 

- Você não está a perceber. Quero casar com ela. Fiquei a olhar para ele.

 

- À medida que for crescendo, há-de ganhar algum juízo. Talvez venha a casar comigo, hein?

 

A voz dele implorava, como se essa decisão estivesse na minha mão.

 

- Já alguma vez lhe perguntou?

 

- Não tenho coragem - respondeu humildemente.

 

- Acha que ela tem um fraquinho pelo Steiner, é isso? Ele fez que sim com a cabeça.

 

- Mas isso não quer dizer nada.

 

Pois claro. Levantei-me, abri a janela e deixei que a chuva molhasse o meu rosto durante alguns instantes.

 

- Vamos lá ver se nos entendemos - disse, fechando de novo a janela e regressando para junto da cama. - Posso livrá-lo do Steiner. Não é difícil. Só não vejo é o que isso lhe adianta.

 

Ele fez tenção de me agarrar de novo a mão, mas desta vez eu fui mais rápido.

 

- Você entrou aqui feito duro, a acenar-me com dinheiro. E sai daqui mansinho. Não por alguma coisa que eu lhe possa ter dito. Você já o sabia. Não sou a Dorothy Dix nem sou um idiota assim tão chapado. Mas ponho o Steiner a andar, se é mesmo isso que você quer.

 

Ele levantou-se desajeitadamente, balouçando o chapéu, e pôs-se a olhar para os meus sapatos.

 

- Ponha-o a andar, como disse. De qualquer maneira ele não é o gênero dela.

 

- Pode magoar-se.

 

- Não há problema. É para isso que eu cá estou - respondeu.

 

Abotoou-se, enfiou o chapéu na grande cabeça em desalinho e dirigiu-se para a saída. Fechou a porta com cuidado, como se abandonasse o quarto dum doente.

 

Pensei para com os meus botões que ele era doido varrido. Mas ficara a gostar dele.

 

Pus a massa num lugar seguro, preparei uma bebida e sentei-me na cadeira que ainda estava quente do corpo dele.

 

Enquanto beberricava, pus-me a pensar se ele teria alguma idéia do tipo de gente que eram Steiner e os seus amigos.

 

Steiner possuía uma colecção de livros, uns mais raros do que outros, que alugava às pessoas certas por quantias tão elevadas como dez dólares diários.

 

No dia seguinte choveu sempre. Ao fim da tarde encontrava-me sentado num Chrysler azul estacionado em diagonal no bulevar defronte duma loja de fachada estreita que, do outro lado da rua, anunciava num letreiro de néon verde: «H. H. Steiner.»

 

A chuva saltava nos passeios e enchia as sarjetas. Polícias corpulentos envergando oleados brilhantes como canos de pistolas divertiam-se a ajudar rapariguinhas de meias de seda e pequenas botas de borracha a transpor os sítios piores, com muitos apertões à mistura.

 

A chuva tamborilava na capota do Chrysler e no revestimento do tejadilho, infiltrando-se junto dos botões e formando no chão do carro uma poça para pôr os pés lá dentro.

 

Tinha comigo uma grande garrafa de uísque, que ia utilizando com a freqüência necessária para me manter desperto.

 

Steiner fazia negócio, mesmo com aquele tempo; talvez sobretudo com um tempo assim. Bons carros paravam diante da sua loja e pessoas com bom aspecto entravam com ar furtivo e voltavam a sair com o mesmo ar e com embrulhos debaixo do braço. É claro que podiam ter acabado de comprar livros raros e edições de luxo.

 

Às cinco e trinta saiu da loja um miúdo com sardas, de impermeável de couro, que se meteu por uma rua lateral num passo rápido. Regressou daí a pouco com um coupé creme e cinzento. Steiner saiu da loja e meteu-se no coupé. Trazia um impermeável de couro verde-escuro, um cigarro metido numa boquilha de âmbar e vinha de cabeça descoberta. Àquela distância não conseguia ver o seu olho de vidro mas sabia que tinha um. O miúdo do impermeável protegeu-o com um guarda-chuva enquanto atravessava o passeio e depois fechou-o e meteu-o dentro do carro.

 

Steiner dirigiu-se para oeste pelo bulevar. Eu dirigi-me para oeste pelo bulevar. Depois de atravessar a zona comercial, em Pepper Canyon, rumou para norte e eu segui-o sem dificuldade à distância de um quarteirão. Tinha quase a certeza de que se dirigia para casa, o que era normal.

 

Deixou Pepper Drive e meteu-se por uma via de cimento molhado chamada La Verne Terrace, subindo-a quase até ao cimo. Era uma estrada estreita, com a encosta dum lado e do outro algumas casas em madeira construídas a grandes espaços no declive íngreme. Os telhados não ficavam muito acima do nível da estrada. Por todo o lado se viam árvores encharcadas e a pingar.

 

O refúgio de Steiner tinha à frente uma sebe de altura superior à das janelas. A entrada era uma espécie de labirinto e a porta da casa não era visível da estrada. Steiner meteu o coupé creme e cinzento numa pequena garagem, fechou-a à chave, atravessou o labirinto com o chapéu-de-chuva aberto e depois as luzes dentro de casa acenderam-se.

 

Enquanto fazia isto, eu passara adiante e subira até ao cimo da colina. Aí dei a volta, desci e estacionei defronte da casa que ficava acima da dele. Parecia estar fechada ou vazia, mas não eram visíveis letreiros. Conferenciei com a minha garrafa de uísque e depois limitei-me a ficar sentado.

 

Às seis e um quarto avistei umas luzes que trepavam pela colina acima. A essa hora já estava bastante escuro. Um carro parou diante da sebe de Steiner. Apeou-se uma rapariga esguia e alta que envergava um impermeável. A sebe deixava passar luz suficiente para eu ver que era morena e provavelmente bonita.

 

A chuva trouxe até mim um rumor de vozes e o som de uma porta que se fechava. Saí do Chrysler, desci a colina e, com a minha lanterna, examinei o carro. Era um Packard convertível, provavelmente castanho-escuro. Um cartão indicava que pertencia a Carmen Dravec, 3596 Lucerne Avenue. Regressei ao meu calhambeque.

 

Passou-se, lenta e arrastadamente, uma hora. Não houve mais carros a subir ou a descer a colina. Aquela parecia ser uma zona muito sossegada.

 

Então surgiu da casa de Steiner um clarão de luz branca, como se fosse um relâmpago duma trovoada de Verão. No momento em que a escuridão se voltava a abater sobre a casa, fez-se ouvir de lá de dentro um grito entrecortado que ecoou por entre as árvores. Antes que tivesse esmorecido, já eu estava fora do Chrysler e me pusera a caminho.

 

Não transparecia medo naquele grito. Dava a impressão dum choque não totalmente desagradável, com uma pontinha de embriaguez e um toque de parvoíce à mistura.

 

Reinava um profundo silêncio na residência de Steiner quanto atingi a abertura na sebe, contornei a esquina que encobria a porta de entrada e levantei a mão para bater à porta.

 

Nesse preciso instante, como se alguém tivesse estado à minha espera, ouviram-se três detonações seguidas do outro lado da porta. Depois, um suspiro longo e sufocado, o som abafado de qualquer coisa que caía e passos rápidos afastando-se em direcção às traseiras da casa.

 

Perdi tempo tentando forçar a porta com o ombro, sem para tal tomar o balanço necessário. De cada vez fui atirado para trás como que atingido por um coice de mula.

 

A porta abria-se para uma passagem estreita que, como uma pequena ponte, dava acesso à estrada. Não existia nenhum alpendre lateral, nem forma alguma de chegar rapidamente às janelas. Também não havia maneira de atingir as traseiras, sem ser por dentro da casa ou subindo uma comprida escada de madeira que da alameda que ficava por detrás da casa dava acesso à porta das traseiras. Era nessas escadas que eu ouvia agora um ruído de passos.

 

Isso deu-me alento e fez-me forçar de novo a porta, utilizando o corpo todo. Desta vez a fechadura cedeu e eu caí por uns degraus abaixo, indo parar a uma grande sala fracamente iluminada e num grande desalinho. Não prestei nessa altura muita atenção ao que havia na sala e dirigi-me para as traseiras da casa.

 

Tinha quase a certeza de que havia um morto.

 

Um carro arrancou no preciso momento em que atingi o alpendre das traseiras, rodando a grande velocidade, de luzes apagadas. E foi tudo. Regressei à sala de estar.

 

A divisão estendia-se a todo o comprimento da frente da casa e tinha um tecto baixo com traves de madeira e paredes pintadas de castanho, donde pendiam tapeçarias. Havia umas estantes baixas repletas de livros e um tapete espesso de cor rosada no qual incidia alguma luz proveniente de dois candeeiros de pé com quebra-luzes verdes. No centro do tapete havia uma secretária baixa e uma cadeira preta com uma almofada de seda amarela. A mesa estava coberta de livros.

 

Sobre uma espécie de estrado num dos extremos da sala havia um cadeirão de teca com braços. Uma rapariga morena estava sentada no cadeirão, sobre um xaile vermelho de franjas. Estava muito direita, com as mãos apoiadas nos braços do cadeirão, os joelhos juntos e a cabeça espetada. Tinha os olhos muito arregalados, as pupilas não eram visíveis e mostrava uma expressão demente.

 

Parecia inconsciente do que se passava à sua volta, mas a sua atitude não era a duma pessoa inconsciente. Tinha o ar de quem está a fazer uma coisa muito importante e que a está a levar bastante a sério.

 

A boca dela emitia um som que parecia um risinho mas que não lhe alterava a expressão nem a fazia mover os lábios. Parecia não reparar em mim.

 

Tinha postos uns longos brincos de jade e, à parte isso, estava completamente nua.

 

Desviei o olhar dela para a outra extremidade da sala.

 

Steiner estava deitado de costas no chão, fora do tapete cor-de-rosa e diante dum objecto que parecia um pequeno totem. Este tinha uma boca redonda, aberta, na qual se podia ver a lente duma máquina fotográfica. A objectiva parecia apontada à rapariga sentada no cadeirão.

 

Junto do braço esticado de Steiner, metido numa manga larga de seda, havia um flash. O fio do flash desaparecia na parte de trás do totem.

 

Steiner trazia calçados uns sapatos chineses com solas grossas de feltro branco. Tinha vestidas umas calças de pijama de seda preta e um casaco chinês bordado. A parte da frente estava totalmente coberta de sangue. O olho de vidro brilhava intensamente e era a coisa mais viva nele. À primeira vista, nenhum dos três disparos errara o alvo.

 

O flash provocara o clarão de luz que eu vira sair de dentro da casa e o gritinho meio divertido fora a reacção a isso da rapariga nua e drogada. Os três tiros tinham sido ideia doutra pessoa. Provavelmente a ideia fora do tipo que descera as escadas das traseiras a correr.

 

A sua reacção era, a meu ver, compreensível. Por essa altura achei que não seria má ideia fechar a porta de entrada com a corrente de segurança. A fechadura ficara inutilizada com a minha entrada violenta.

 

Num extremo da secretária, sobre um tabuleiro vermelho laçado, estavam dois copos delgados de cor púrpura. E também um jarro bojudo com qualquer coisa castanha dentro. Os copos cheiravam a éter e láudano, uma mistura que nunca experimentara mas que se adequava perfeitamente à cena.

 

Descobri as roupas da rapariga sobre o divã a um canto. Peguei primeiro num vestido castanho de mangas e dirigi-me até junto dela. Ela cheirava também a éter, a alguns metros de distância.

 

Os risinhos não tinham parado e pelo queixo dela escorria alguma baba. Dei-lhe uma bofetada, sem ser com muita força. Não queria fazê-la sair da espécie de transe em que se encontrava para a ter logo de seguida aos berros.

 

- Vamos lá - disse numa voz animada. - Vamos lá portar-nos bem. Toca a vestir.

 

-V... v... v... rai... arta - murmurou ela sem qualquer emoção visível.

 

Dei-lhe outra bofetada. Ela não parecia ligar nada, pelo que me pus a vesti-la.

 

Ela também não ligou nada a isso. Deixou que lhe levantasse os braços, mas abriu os dedos das mãos como que a fazer-se engraçada. Isso obrigou-me a grandes manobras com as mangas. Finalmente consegui enfiar-lhe o vestido. Calcei-lhe as meias, os sapatos e depois ergui-a.

 

- Vamos lá dar um passeio - disse-lhe. - Vamos lá dar um lindo passeio.

 

E fomos. Umas vezes os brincos dela batiam contra o meu peito, outras vezes parecíamos um par de bailarinos em vias de se separar. Fomos até junto do corpo de Steiner e voltámos para trás. Ela não prestou nenhuma atenção a Steiner e ao seu olho de vidro cintilante.

 

Pareceu achar divertido o facto de não conseguir andar e tentou explicar-me, mas não conseguiu mais do que balbuciar algumas palavras. Deitei-a no divã e recolhi a sua roupa interior, que meti num bolso fundo do meu impermeável; fiz o mesmo com a mala dela. Passei revista à secretária de Steiner e descobri um pequeno caderno de apontamentos azul escrito em código que me pareceu interessante. Também o meti ao bolso.

 

Depois tentei alcançar com a mão a parte de trás da máquina fotográfica a fim de retirar a chapa, mas não consegui encontrar o dispositivo de abertura. Estava a ficar nervoso e pensei para com os meus botões que seria mais fácil arranjar uma desculpa para a polícia se regressasse mais tarde por causa da chapa do que se fosse apanhado agora.

 

Voltei para junto da rapariga, vesti-lhe o impermeável, passei os olhos pela sala a ver se deixara ficar alguma coisa, apaguei uma série de impressões digitais que provavelmente não deixara e de certeza algumas das de Miss Dravec. Abri a porta e desliguei ambos os candeeiros.

 

Passei de novo o meu braço esquerdo em volta da cintura dela, saímos para a chuva e eu enfiei-a no Packard. Não me agradava nada a idéia de deixar ali o meu carro, mas não havia outro remédio. As chaves do carro dela estavam na ignição. Arrancámos e começámos a descer a colina.

 

Não se passou nada na nossa viagem até à Lucerne Avenue, a não ser que Carmen deixou de balbuciar e de emitir risinhos e começou a ressonar. Não consegui evitar que a cabeça dela tombasse sobre o meu ombro. O mais que pude fazer foi impedi-la de me cair no regaço. Tive de conduzir devagar e de qualquer modo o caminho era longo, até atingirmos o extremo ocidental da cidade.

 

A casa dos Dravec era um edifício antiquado em tijolo, de grandes dimensões, situado numa vasta propriedade rodeada por um muro. Um caminho subia do portão de ferro por entre relvados e canteiros de flores até uma grande porta de entrada ladeada por estreitos painéis de vidro chumbados. Por detrás dos painéis havia alguma luz, dando a impressão de que não estava muita gente em casa.

 

Empurrei a cabeça de Carmen para um canto do carro, dispus as coisas que lhe pertenciam sobre o banco e saí.

 

Uma criada veio abrir-me a porta. Disse-me que Mr. Dravec não estava em casa e que não sabia onde se encontrava. Talvez algures na cidade. Tinha um rosto comprido, pálido e uma expressão suave, um nariz pontiagudo e uns olhos grandes e húmidos. Não tinha queixo. Lembrava uma velha e simpática égua deixada num prado depois de muitos anos de bons serviços. Tinha o ar de quem faria por Carmen aquilo de que ela precisava.

 

Indiquei o Packard e disse numa voz áspera:

 

- É melhor enfiá-la na cama. Está cheia de sorte por não a metermos na cadeia... a conduzir naquele estado.

 

A criada esboçou um sorriso triste e eu fui-me embora.

 

Tive de andar cinco quarteirões à chuva até encontrar um bloco de apartamentos com um telefone no átrio de entrada que pudesse utilizar. Depois tive de esperar mais vinte e cinco minutos pelo táxi. Enquanto aguardava a sua chegada, comecei a preocupar-me com aquilo que não concluíra.

 

Ainda tinha de retirar a chapa da máquina fotográfica de Steiner.

 

Apeei-me do táxi na Pepper Drive, defronte duma casa onde havia gente, e subi a pé La Verne Terrace até à casa de Steiner por detrás dos arbustos.

 

Tudo parecia estar na mesma. Entrei pela abertura na sebe, abri a porta cautelosamente e aspirei o aroma de tabaco.

 

Não estava lá antes. Havia uma mistura complicada de cheiros, incluindo o de pólvora, de que me recordava vivamente, mas o cheiro de fumo de cigarro não sobressaía dessa mistura.

 

Fechei a porta, apoiei-me sobre um joelho e pus-me à escuta retendo a respiração. Não se ouvia nada para além do ruído da chuva no telhado.Varri o chão com o foco da minha lanterna. Ninguém tentou alvejar-me.

 

Levantei-me outra vez, encontrei o fio que accionava o interruptor de um dos candeeiros e acendi a luz.

 

A primeira coisa em que reparei foi que tinham desaparecido da parede algumas tapeçarias. Não as contara antes mas os locais onde tinham estado penduradas chamaram a minha atenção.

 

Depois reparei que o cadáver de Steiner desaparecera de defronte do totem com o aparelho fotográfico na boca. Alguém pusera um tapete no local onde ele estivera, já fora da carpeta cor-de-rosa. Não precisei de levantar o tapete para saber por que motivo o tinham posto ali.

 

Acendi um cigarro e fiquei especado no meio da sala a pensar, envolto naquela semiobscuridade. Daí a uns instantes dirigi-me até junto do totem e da máquina fotográfica. Desta vez dei com o fecho. O aparelho não tinha o dispositivo que segura as chapas.

 

Estendi a mão para o telefone cor de amora pousado sobre a secretária de Steiner, mas não lhe toquei.

 

Passei ao pequeno átrio que ficava para lá da sala de estar e revistei um quarto desarrumado que parecia ser de mulher, mais do que de homem. A cama tinha uma coberta debruada. Levantei-a e espreitei com a minha lanterna debaixo da cama.

 

Steiner não estava lá. Não estava em sítio algum da casa. Alguém o levara. Era pouco provável que se tivesse ido embora pelos seus próprios meios.

 

Não tinha sido a Polícia, porque nesse caso ainda lá estaria alguém. Não passara mais de uma hora desde que Carmen e eu deixáramos a casa. E não havia sinais da confusão habitual provocada pelos fotógrafos da Polícia e pelos tipos das impressões digitais.

 

Voltei à sala de estar, empurrei com um pé o flash para detrás do totem, desliguei a luz, abandonei a casa, meti-me no carro e pus o motor a trabalhar.

 

Se alguém queria manter a morte de Steiner em segredo por mais algum tempo, eu não via nisso qualquer inconveniente. Dava-me até a oportunidade de ver se podia relatar o sucedido sem mencionar Carmen Dravec e a sua pose nua.

 

Passava das dez quando regressei ao Berglund. Arrumei a carripana e subi para o meu quarto. Meti-me debaixo do chuveiro, enfiei um pijama e preparei um grogue quente. Olhei várias vezes para o telefone, pensei em ligar para ver se Dravec já chegara a casa e pensei também que talvez não fosse pior deixá-lo em paz até ao dia seguinte.

 

Enchi um cachimbo e sentei-me com o meu grogue quente e o caderninho de apontamentos azul de Steiner. Era em código mas a disposição das entradas indicava que se tratava de uma lista de nomes e moradas. Havia para cima de quatrocentas e cinqüenta. Se era isto a lista de vítimas de Steiner, o tipo possuía uma mina de ouro - sem falar nas possibilidades de chantagem.

 

Qualquer um dos nomes da lista podia ser o assassino. Não invejava nada o trabalho da Polícia quando o caderno lhes fosse parar às mãos.

 

Bebi demasiado uísque tentando decifrar o código. Por volta da meia-noite fui para a cama. Sonhei com um homem de casaco chinês empapado de sangue que corria atrás duma rapariga nua com uns compridos brincos de jade enquanto eu tentava fotografar a cena com uma câmara que não tinha dentro uma chapa.

 

Violeis M’Gee telefonou-me na manhã seguinte. Ainda não me vestira mas dera uma vista de olhos ao jornal e não encontrara nada sobre Steiner. A voz dele tinha aquele tom alegre de alguém que dormiu bem e não deve demasiado dinheiro.

 

- bom, como está o rapaz? - começou.

 

Disse-lhe que estava bem, mas que tivera alguns problemas com o meu Third Reader. Ele riu-se mas percebia-se que estava a pensar noutra coisa. Depois, assumindo um tom de voz excessivamente despreocupado, perguntou:

 

- Esse fulano Dravec que lhe enviei... já fez alguma coisa por ele?

 

- Tem chovido à brava - foi a minha resposta, se é que se lhe podia chamar resposta.

 

- Hmm, hmm. Ele parece ser o tipo de pessoa a quem acontecem coisas. Um carro no nome dele está neste momento à deriva junto à doca do Lido.

 

Eu não disse nada; segurava o telefone com muita força.

 

- Pois - continuou M’Gee alegremente -, um Cadillac novo todo estragado com areia e água salgada... Ah, ia-me esquecendo, está um tipo lá dentro.

 

Deixei o ar sair dos pulmões muito, muito devagar.

 

- Dravec? - sussurrei.

 

- Na. Um miúdo. Ainda não disse nada ao Dravec porque está tudo nas mãos da Polícia. Não quer dar lá um salto e ver aquilo comigo?

 

Eu disse que sim.

 

- Despache-se. Estou no meu buraco - disse-me M’Gee, desligando.

 

Barbeado, vestido e com um pequeno-almoço ligeiro no estômago, estava no edifício da Câmara Municipal daí a cerca de meia hora. Encontrei M’Gee a olhar para uma parede amarela, sentado a uma pequena secretária também amarela sobre a qual não havia nada para além do seu chapéu e de um dos seus pés. Tirou-os de cima da mesa e descemos ao parque de estacionamento privativo, onde nos metemos num pequeno sedan preto.

 

A chuva parára durante a noite e a manhã era toda ela azul e ouro. com um dia assim, a vida até parecia simples e doce se não tivéssemos demasiados problemas com que nos preocupar. Eu tinha.

 

Eram trinta milhas até ao Lido, as primeiras dez através do trânsito da cidade. M’Gee levou cerca de três quartos de hora. Finalmente detivemo-nos diante de um arco de estuque, para lá do qual se estendia um comprido cais. Tirei os pés do chão do carro e saímos.

 

Havia alguns carros e pessoas defronte do arco. Um oficial motorizado mantinha os curiosos à distância. M’Gee mostrou-lhe uma estrela de bronze e avançámos pelo cais, no meio dum cheiro intenso que nem dois dias de chuva tinham conseguido apagar.

 

- Lá está ele... no rebocador - disse M’Gee.

 

No extremo do cais estava atracado um rebocador negro de amuradas baixas. Diante da ponte jazia qualquer coisa grande, verde e prateada que alguns homens rodeavam.

 

Descemos por uns degraus escorregadios para o convés do rebocador.

 

M’Gee saudou um oficial de farda verde e outro homem que vestia à civil. Os três membros da tripulação do rebocador foram para junto da ponte e ficaram encostados a ela a observar-nos.

 

Examinámos o carro. Tinha o pára-choques da frente amolgado, assim como o radiador e um dos faróis. A pintura e os niquelados estavam riscados da areia e os estofos encharcados e negros. À parte isso, o carro até nem estava em mau estado. Era um modelo grande em dois tons de verde, com um friso e alguns pormenores em vermelho-escuro.

 

M’Gee e eu olhámos para a parte dianteira. Um miúdo moreno e magro que em tempos devia ter sido bem-parecido estava deitado sobre o volante, com a cabeça fazendo um ângulo esquisito com o resto do corpo. O rosto apresentava uma tonalidade branco-azulada. Os olhos tinham um aspecto vidrado debaixo das pálpebras semicerradas. Na boca entreaberta eram visíveis vestígios de areia. Na parte lateral do crânio havia restos de sangue que a água do mar não fizera desaparecer.

 

M’Gee afastou-se lentamente, fez um ruído com a garganta e pôs-se a mastigar uma daquelas pastilhas para o mau hálito com aroma de violetas que lhe davam a alcunha.

 

- Como é que foi? - perguntou numa voz calma.

 

O tipo do uniforme apontou para a extremidade do cais. Uma protecção em ripas de madeira pintadas de branco mas muito sujas fora destruída numa grande extensão, deixando à vista pontas de madeira amarelas e brilhantes.

 

- Atravessou ali. Deve ter-lhe batido com muita força. A chuva parou cedo para estes lados, por volta das nove horas, e as ripas partidas estão secas por dentro. O que significa que isto se passou depois de deixar de chover. E é tudo quanto sabemos, a não ser que deve ter caído em muita água para não ficar mais amachucado; eu diria, entre a maré baixa e a maré alta. Nesse caso, teria acontecido logo após a chuva parar. O carro era visível debaixo de água quando a rapaziada veio aqui ao peixe esta manhã. Arranjámos um rebocador para o trazer para cima. Foi então que descobrimos o morto.

 

O outro polícia raspava o convés com a ponta do sapato. M’Gee observou-me pelo canto do olho com aquele olhar de raposa. Eu mantive-me impassível e não disse nada.

 

- O miúdo devia estar a cair de bêbado, - disse ele calmamente. - A fazer habilidades sozinho debaixo daquela chuva toda. Certamente gostava muito de conduzir. Pois é... a cair de bêbado.

 

- Qual bêbado, qual carapuça! - exclamou o tipo à civil. - O acelerador está quase no fundo e o tipo apanhou uma pancada na cabeça. Se querem a minha opinião, acho que foi assassinado.

 

M’Gee fitou-o com um ar bem-educado e depois virou-se para o tipo do uniforme.

 

- Qual é a sua opinião?

 

- Podia ser suicídio. Tem o pescoço partido e podia ter-se ferido na cabeça na altura da queda. E a mão podia ter empurrado o acelerador. Todavia, inclino-me para a hipótese de ter sido assassinado.

 

M’Gee acenou com a cabeça.

 

- Revistaram-no? Sabem quem é?

 

Os dois polícias olharam para mim e depois para a tripulação do rebocador.

 

- Está bem, dispenso essa parte - declarou M’Gee. Eu sei quem ele é.

 

Um homenzinho de óculos e com um ar cansado aproximou-se da ponta do cais transportando uma maleta preta e desceu os degraus escorregadios. Depois escolheu um local razoavelmente limpo do convés e pousou-a. Tirou o chapéu, esfregou a nuca e lançou-nos um sorriso cansado.

 

- Viva, doutor. Está aqui o seu cliente - disse-lhe M’Gee. - Deu um mergulho no cais ontem à noite. É tudo quanto sabemos.

 

O médico legista examinou o morto demoradamente. Pôs-lhe os dedos na cabeça, moveu-a um pouco para um lado e para o outro, apalpou-lhe as costelas. Levantou-lhe um dos braços moles e observou as unhas da mão. Depois deixou-o cair, afastou-se alguns passos e voltou a pegar na maleta.

 

- Doze horas, aproximadamente - declarou. - Pescoço partido, claro. Não creio que haja água dentro dele. É melhor tirarem-no dali antes que comece a ficar rígido. Conto-vos o resto da história quando o tiver sobre uma mesa.

 

Cumprimentou os presentes com um aceno da cabeça, subiu outra vez os degraus e afastou-se. Uma ambulância manobrava nesse preciso instante junto do arco à entrada do cais.

 

Os dois oficiais resmungaram e depois tiveram de se esforçar para arrancarem o cadáver de dentro do carro e o deitarem no convés, do lado do carro que não era visível do cais.

 

- Vamos - disse-me M’Gee. - Termina aqui esta parte do espectáculo.

 

Despedimo-nos e M’Gee ordenou que os oficiais se mantivessem calados até novas ordens suas. Regressámos pelo cais, metemo-nos de novo no pequeno sedan preto e voltámos à cidade por uma estrada lavada pela chuva e ladeada por dunas baixas de areia esbranquiçada com tufos de vegetação no cimo. Ao largo, algumas gaivotas voavam em círculos sobre qualquer coisa e, no horizonte, dois iates brancos pareciam suspensos do céu.

 

Percorremos algumas milhas sem que nenhum de nós abrisse a boca. Depois M’Gee virou-se para mim e perguntou:

 

- Algumas idéias?

 

- Vamos, abra-se - foi a minha resposta. - Nunca tinha visto o tipo. Quem é ele?

 

- Bolas, julguei que me ia explicar isso mesmo.

 

- Abra-se lá, Violets - disse-lhe.

 

Ele resmungou, encolheu os ombros e quase nos fez sair da estrada e ir parar à areia solta.

 

- O motorista do Dravec. Um miúdo chamado Gari Owen. Como é que sei? Tivemo-lo preso há coisa dum ano. Tinha fugido com a tonta da filha do Dravec. Este foi atrás deles e trouxe-os de volta, fazendo com que o metêssemos na cadeia. Depois a rapariga fez ameaças e, no dia seguinte, o velho veio a correr ter connosco pedindo-nos que libertássemos o tipo. Contou-nos que o miúdo pretendia casar com ela, só que ela não queria. Depois, como que por milagre, o miúdo voltou a trabalhar para ele e desde então tem lá estado. Que lhe parece?

 

- Parece-me mesmo coisa do Dravec - respondi.

 

- Pois... mas o miúdo pode ter tido uma recaída. M’Gee tinha cabelo cor de prata, um queixo redondo e

 

uma boca protuberante feita para beijar bebês. Olhei para ele pelo canto do olho e de repente percebi em que estava a pensar. Dei uma gargalhada.

 

- Acha que se calhar foi o Dravec quem o matou? - perguntei.

 

- Por que não? O miúdo fez-se outra vez à rapariga e o Dravec deu-lhe com demasiada força. Ele é um matulão, facilmente lhe partia o pescoço. Depois assustou-se. Levou o carro até ao Lido debaixo de chuva e deixou-o deslizar ao longo do cais, pensando que uma vez na água não seria visível. Ou talvez não tenha pensado em nada. Talvez estivesse em pânico.

 

- Pois claro - concluí. - Depois só teve que percorrer a pé trinta milhas debaixo de chuva.

 

- Continue. Goze lá.

 

- Dravec matou-o, está visto - prossegui. - Mas foi a saltar o eixo. Dravec caiu-lhe em cima.

 

- Já chega de brincadeiras, pá.

 

- Ouça, Violeis - disse eu numa voz séria -, se o miúdo foi assassinado, e você não tem a certeza de que tenha mesmo havido crime, não é o tipo de crime que Dravec cometeria. Ele será capaz de matar um homem num acesso de fúria, mas deixá-lo-ia onde estava, não se daria a todo este trabalho.

 

Andámos junto da berma da estrada enquanto M’Gee pensava.

 

- Que rico amigo - queixou-se. - Arranjo eu uma bela teoria e olhe o que lhe fez. Quem me dera não o ter trazido. Vá para o diabo. Ainda assim vou seguir a pista de Dravec.

 

- Certo - concordei. - Que há-de você fazer? Mas Dravec não matou o rapaz. Ele é demasiado mole para tentar esconder o seu acto desta maneira.

 

Era meio-dia quando chegámos à cidade. Só bebera uísque na noite anterior e comera muito pouco nessa manhã. Apeei-me no bulevar e deixei que M’Gee fosse ver Dravec sozinho.

 

Estava interessado no que acontecera a Cari Owen; mas a idéia de que podia ter sido Dravec que o matara não me parecia interessante.

 

Almocei ao balcão e folheei um vespertino. Não esperava encontrar nada sobre Steiner e assim aconteceu.

 

Depois do almoço percorri seis quarteirões do bulevar e fui dar uma vista de olhos à loja de Steiner.

 

A fachada da loja era dividida com uma joalharia onde se podia comprar a prestações. O joalheiro estava à porta do estabelecimento, um judeu enorme de cabelo branco e olhos negros, com uns nove quilates de diamantes na mão. Um leve sorriso aflorou-lhe aos lábios quando passei por ele e entrei na loja de Steiner.

 

Uma espessa carpeta azul cobria o chão da loja de parede a parede. Havia umas poltronas de couro azul com cinzeiros de pé ao lado. Sobre mesas estreitas dispunham-se alguns livros com encadernações de couro. Os restantes livros estavam metidos em estantes envidraçadas. Uma divisória onde havia uma única porta separava esta parte da loja das traseiras. A um canto, sentada a uma pequena secretária sobre a qual se encontrava um candeeiro, estava uma mulher.

 

Ela ergueu-se e avançou na minha direcção, balouçando umas ancas esguias, metidas num vestido feito dum material negro que não reflectia a luz. Era uma loura platinada, com uns olhos esverdeados sob grandes pestanas postiças. Nas orelhas tinha pendurados uns grandes brincos, e por detrás daquelas o cabelo caía solto. As unhas estavam pintadas de prateado.

 

Ofereceu-me aquilo que na idéia dela era um sorriso de boas-vindas mas que me pareceu um esgar de pessoa tensa.

 

- Quer alguma coisa?

 

Puxei a aba do chapéu para cima dos olhos e mostrei-me inquieto.

 

- Steiner? - perguntei.

 

- Hoje não vem. Posso mostrar-lhe...

 

- Eu venho vender - disse-lhe - uma coisa que ele deseja há muito tempo.

 

As unhas prateadas alisaram o cabelo por cima duma orelha.

 

- Ah, um vendedor... bom, pode passar por cá amanhã.

 

- Ele está doente? Eu podia ir a sua casa - sugeri, num tom de voz esperançado. - Tenho a certeza de que ele gostaria de ver o que tenho para lhe mostrar.

 

Isso abalou-a. Levou alguns instantes a recuperar fôlego, mas quando falou a sua voz continuava suave.

 

- Não... não serviria de nada. Ele hoje saiu da cidade.

 

Eu acenei com a cabeça. Mostrei-me apropriadamente desapontado e ergui um pouco o chapéu. Preparava-me para sair quando o miúdo sardento da noite anterior enfiou a cabeça pela porta existente na divisória. Meteu-a de novo para dentro assim que me viu, mas não antes que eu reparasse nalgumas caixas de livros arrumadas de qualquer maneira que estavam no chão por detrás dele.

 

As caixas eram pequenas, estavam abertas e os livros tinham sido lá metidos à pressa. Um homem com um guarda-pó praticamente novo atarefava-se à sua volta. Uma parte do stock de Steiner estava a ser retirada.

 

Saí da loja, fui até à esquina e depois meti pela viela. Atrás da loja de Steiner estava estacionada uma pequena camioneta azul de caixa aberta protegida lateralmente por grades que não tinham qualquer identificação comercial. As caixas eram visíveis através das grades e, enquanto eu observava a cena, o homem do guarda-pó saiu com mais uma caixa que meteu na viatura.

 

Regressei ao bulevar. À distância de meio quarteirão um rapaz de ar arejado lia uma revista dentro de um táxi estacionado. Mostrei-lhe dinheiro e disse-lhe.

 

- Tenho um trabalho para ti. Trata-se de seguir alguém. Agrada-te?

 

Ele olhou-me de cima a baixo, abriu a porta da viatura e enfiou a revista atrás do espelho retrovisor.

 

- Pois sim, patrão - respondeu com vivacidade. Demos a volta e postámo-nos no extremo da viela, junto a uma boca de incêndio, à espera.

 

Estaria cerca de uma dúzia de caixas na camioneta quando o homem do guarda-pó novo se meteu na cabina e ligou o motor. Desceu a viela rapidamente e virou à esquerda na rua em que aquela desembocava. O meu motorista fez o mesmo. A camioneta encaminhou-se para norte, em direcção à Garfield, e depois para leste. Circulava muito depressa e havia bastante trânsito na Garfield. O meu motorista seguia-o a alguma distância.

 

Estava a dizer-lhe isso mesmo quando a camioneta apontou outra vez para norte, à saída da Garfield. A rua em que virou chamava-se Brittany. Quando a alcançámos não vimos lá camioneta nenhuma.

 

O rapaz que me conduzia emitiu uns ruídos reconfortantes através da divisória do táxi. Subimos a Brittany a dez quilómetros à hora, tentando vislumbrar a camioneta por detrás duns arbustos. Eu não me conformava.

 

Dois quarteirões mais à frente, a Brittany curvava um pouco para leste e encontrava-se com a rua seguinte, a Randall Place, numa língua de terra na qual havia um bloco branco de apartamentos com a fachada para a Randall Place e a entrada para a garagem na cave pela Brittany, um andar mais abaixo. Passávamos nesse preciso instante por ele e o meu condutor estava a dizer-me que a camioneta não podia estar muito longe quando a vi na garagem.

 

Demos a volta até à entrada do prédio e eu saí do táxi e penetrei no átrio.

 

Não havia recepção. Uma secretária tinha sido encostada a uma parede, como se já não servisse para nada. Por cima dela existia um painel com caixas do correio e nomes.

 

O nome que correspondia ao apartamento 405 era Joseph Marty. Joe Marty era como se chamava o tipo que andara com Carmen Dravec até o paizinho dela lhe dar cinco mil dólares para se pôr a andar e ir chatear outra rapariga qualquer. Podia tratar-se do mesmo Joe Marty.

 

Desci umas escadas e empurrei uma porta envidraçada, entrando na garagem que jazia numa semiobscuridade. O homem do guarda-pó novo estava a meter as caixas no elevador.

 

Aproximei-me, acendi um cigarro e fiquei a observá-lo. Ele não gostou, mas não abriu a boca. Passado algum tempo, disse-lhe:

 

- Atenção ao peso, amigo. Ele só leva meia tonelada. Para onde vai?

 

- Marty, quatro zero cinco - respondeu, e depois ficou com ar de quem se arrependera do que dissera.

 

- Muito bem - comentei. - Há aí leitura para muitos dias.

 

Voltei a subir as escadas, saí do edifício e meti-me outra vez no táxi.

 

Regressámos à parte da cidade onde tenho o meu escritório. Dei ao motorista dinheiro a mais e ele ofereceu-me um cartão sujo que atirei para o escarrador de cobre à entrada do elevador.

 

Dravec segurava a parede à porta do meu escritório.

 

Estava um dia soalheiro e quente depois da chuva, mas ele continuava a envergar aquele impermeável de couro com cinto. Estava aberto à frente, tal como o casaco e o colete que trazia por baixo. Tinha a gravata junto a uma orelha. A cara dele parecia uma máscara de betume com alguns resíduos escuros na parte inferior.

 

Tinha um aspecto horrível.

 

Abri a porta, dei-lhe umas palmadinhas no ombro, empurrei-o para o interior e fi-lo sentar-se numa cadeira.

 

A respiração dele era ofegante mas eu mantive-me calado. Tirei da secretária uma garrafa de uísque e enchi dois copos. Bebeu ambos sem dizer uma palavra. Depois abateu-se sobre a cadeira, piscou os olhos, largou um gemido e tirou do bolso um sobrescrito branco de formato quadrado. Pô-lo sobre a secretária, com uma das suas grandes mãos peludas por cima.

 

- Lamento essa história do Cari - disse-lhe. - Estive lá com M’Gee esta manhã.

 

Ele olhou-me de modo inexpressivo. Passado algum tempo, disse:

 

- Pois. Cari era um bom miúdo. Não lhe contei grande coisa acerca dele.

 

Fiquei à espera, olhando para o sobrescrito debaixo da mão dele. Dravec também olhou para ele.

 

- Tenho de o deixar ver isto - balbuciou. Empurrou-o lentamente sobre a secretária e retirou a mão.

 

com aquele movimento parecia estar a despedir-se de tudo quando lhe era querido na vida. Duas lágrimas brotaram-lhe dos olhos e escorreram ao longo das faces ainda por barbear.

 

Peguei no sobrescrito quadrado e examinei-o. Fora-lhe endereçado por alguém que usara caneta e tinha uma caligrafia ampla. Apresentava o carimbo de correio expresso. Abri-o e olhei para a fotografia brilhante que tinha dentro.

 

Carmen Dravec estava sentada no cadeirão de teca de Steiner, com os seus brincos de jade. Os olhos tinham uma expressão ainda mais demente que aquela que eu vira, se tal era possível. Examinei o verso da fotografia, vi que não tinha nada escrito e pousei aquilo de costas para cima sobre a secretária.

 

- Conte-me lá o que se passou - disse cautelosamente. Dravec limpou as lágrimas com uma manga, pousou as palmas das mãos sobre a secretária e olhou para as suas unhas sujas. Os dedos tremiam-lhe.

 

- Um tipo telefonou-me - disse numa voz de morto. Dez mil pela chapa e pelas fotografias. O negócio tem de ficar concluído hoje à noite, caso contrário, oferecem o material a um jornal de escândalos.

 

- Isso é muita massa - comentei. - Um jornal de escândalos não a utilizaria a não ser que fosse para ilustrar uma história qualquer. Qual é a história?

 

Ele ergueu os olhos lentamente, como se lhe pesassem muito.

 

- Isto não é tudo. O tipo disse que por detrás disto há uma história mais complicada. Quer que eu me despache se não quero que a minha menina vá parar à prisão.

 

- Qual é a história? - voltei a perguntar, enquanto enchia o cachimbo. - O que diz Carmen a isto?

 

Ele abanou a cabeçorra.

 

- Não lhe perguntei. Não tenho coragem. Pobrezinha. Toda nua... Não, não tenho coragem... Quanto ao Steiner, você ainda não fez nada, suponho.

 

- Não foi preciso - expliquei. - Alguém chegou primeiro.

 

Ele ficou a olhar para mim de boca aberta, sem compreender. Era óbvio que desconhecia o que se passara na noite anterior.

 

- A Carmen saiu ontem à noite? - perguntei, como quem não quer a coisa.

 

Ele ainda tinha a boca aberta, tentando raciocionar.

 

- Não. Está doente. Estava de cama, doente, quando regressei a casa. Não saiu... O que é que quer dizer com essa história do Steiner?

 

Estendi o braço para a garrafa de uísque e enchi ambos os copos. Depois acendi o cachimbo.

 

- Steiner morreu - expliquei. - Alguém deve ter-se fartado das brincadeiras dele e encheu-o de buracos. A noite passada, enquanto chovia.

 

- Santo Deus - disse numa voz ausente. - E você estava lá?

 

Abanei a cabeça.

 

- Eu não. A Carmen é que estava. É essa a história a que o seu homem se refere. Não foi ela quem disparou os tiros, claro.

 

Dravec ficou vermelho e furioso. Fechou os punhos. Podia ouvi-lo respirar e no pescoço era visível uma artéria que latejava.

 

- Isso não é verdade! Ela está doente. Ela não saiu de casa. Estava deitada quando regressei.

 

- Já me contou isso - disse-lhe. - Isso é que não é verdade. Eu próprio trouxe Carmen de volta para casa. A criada sabe, mas está a tentar encobrir a rapariga. Carmen estava na casa do Steiner e eu vigiava cá fora. Ouviram-se tiros e alguém fugiu. Não vi quem foi. Carmen estava demasiado embriagada para ver quem foi. É por isso que está doente.

 

Ele tentou fixar o olhar no meu rosto, mas os seus olhos estavam vagos e vazios como se a luz por detrás deles tivesse morrido. Agarrou com força os braços da cadeira. As nozes dos dedos ficaram brancas.

 

- Ela não me contou - murmurou. - Ela não me contou nada. A mim, que por ela faria tudo.

 

Não havia emoção alguma naquela voz, apenas exaustão e desespero.

 

Afastou a cadeira ligeiramente.

 

- Vou arranjar a massa - declarou. - Os dez mil dólares. Talvez o tipo não dê à língua.

 

Depois não aguentou mais. A cabeçorra dele caiu sobre a secretária e o corpo foi sacudido por soluços. Levantei-me, dei a volta à mesa e bati-lhe no ombro durante um bom bocado, sem dizer palavra. Finalmente, ergueu o rosto lavado em lágrimas e agarrou-me a mão.

 

- Santo Deus, você é um bom tipo - soluçou.

 

- E você só sabe da missa a metade.

 

Afastei a minha mão e consegui meter um copo na dele. Ajudei-o a levantá-lo e a levá-lo à boca. Depois tirei-lho da mão e pousei-o na secretária. Voltei a sentar-me.

 

- Precisa de arranjar coragem - disse-lhe numa voz sombria. - A Polícia ainda não sabe do Steiner. Eu trouxe Carmen para casa e não abri a boca. Queria dar-lhes tempo, a si e a ela. O que me põe a mim numa situação difícil. Você vai ter que representar o seu papel.

 

Ele fez que sim com a cabeça, pesada e lentamente.

 

- Sim, eu faço o que você disser... tudo o que você disser.

 

- Arranje o dinheiro - continuei. - Tenha-o à mão quando for contactado. Tenho umas ideias e talvez não precise de o usar. Mas não é a altura de nos tentarmos armar em espertos... Arranje o dinheiro, aguarde e mantenha-se calado. Deixe o resto por minha conta. Acha que é capaz?

 

- Sim... - respondeu. - Santo Deus, você é um tipo fixe.

 

- Não diga nada à Carmen - prosseguiu. - Quanto menos recordar quando sair da bebedeira, melhor. Isto - toquei com o dedo no verso da fotografia que estava sobre a secretária - prova que alguém trabalhava com Steiner. Temos de apanhá-lo e apanhá-lo depressa... mesmo que isso nos custe dez mil dólares.

 

Ele ergueu-se devagar.

 

- Isso não é nada. Isso é só massa. Vou agora arranjá-la. Depois volto para casa. Você faça como achar melhor. Eu só faço o que você mandar.

 

Pegou-me de novo na mão, apertou-a e saiu lentamente do escritório. Ouvi o som dos seus passos pesados afastando-se no átrio.

 

Engoli rapidamente dois uísques e lavei a cara.

 

Com o meu Chrysler subi devagar La Verne Terrace até à casa de Steiner.

 

À luz do dia, eram visíveis o declive acentuado e o lanço de escadas de madeira pelas quais o assassino fugira. A rua mais abaixo era quase tão estreita como uma viela. Duas casas pequenas afastadas da de Steiner tinham entrada por esse lado. com o barulho da chuva era pouco provável que alguém tivesse prestado atenção aos tiros.

 

A residência de Steiner tinha um ar sossegado naquela tarde. As ripas do telhado estavam ainda húmidas da chuva. As árvores do outro lado da rua tinham folhas novas. Não se viam carros.

 

Alguma coisa mexia-se por detrás da sebe que encobria a porta de entrada de Steiner.

 

Carmen Dravec, vestindo um casaco aos quadrados verdes e brancos e sem chapéu na cabeça, saiu pela abertura na sebe, estacou e olhou-me atônita, com ar de quem não ouvira o carro aproximar-se. Voltou rapidamente para trás da sebe. Eu continuei e estacionei defronte da casa vazia.

 

Saí do carro e encaminhei-me em direcção à casa. À luz do dia, sentia que me estava a expor e que era arriscado.

 

Entrei pela abertura na sebe e a rapariga estava diante da porta semiaberta, muito direita e calada. Uma mão aproximou-se lentamente da boca e os dentes puseram-se a morder um polegar de aspecto esquisito que parecia um dedo extra. Debaixo dos seus olhos havia umas nódoas negro-violáceas.

 

Empurrei-a para dentro de casa sem dizer nada e fechei a porta. Lá dentro ficámos a olhar um para o outro. Ela baixou a mão lentamente e tentou sorrir. Depois o seu rosto pálido perdeu qualquer expressão e ficou com um ar aparvalhado.

 

Eu pus alguma simpatia na minha voz:

 

- Tenha calma. Somos amigos. Sente-se naquela cadeira junto da secretária. Sou amigo do seu pai. Não se assuste.

 

Ela afastou-se e sentou-se na almofada amarela que estava sobre a cadeira preta junto da secretária de Steiner.

 

À luz do dia, a sala tinha um aspecto decadente e de mau gosto. Continuava a tresandar a éter.

 

Carmen humedeceu os cantos da boca com a ponta duma língua esbranquiçada. Os seus olhos tinham agora uma expressão mais estúpida e espantada do que propriamente de medo. Rolei um cigarro entre os dedos e empurrei alguns livros para me sentar no canto da secretária. Acendi o cigarro, fumei lentamente durante alguns instantes e depois perguntei:

 

- O que está aqui a fazer?

 

Ela pôs-se a mexer no tecido do casaco e não respondeu. Tentei novamente.

 

- O que recorda de ontem à noite? A esta ela respondeu:

 

- Recordar o quê? Ontem à noite estava doente... em casa... - falava numa voz baixa e cautelosa e só a custo a conseguia ouvir.

 

- Antes disso - insisti. - Antes de eu a ter levado para casa. Aqui.

 

Qualquer coisa subiu-lhe pela garganta acima e os olhos abriram-se mais.

 

- Você... foi você? - perguntou numa voz sufocada, recomeçando a roer o polegar.

 

- Sim, fui eu. De que é que se lembra?

 

- Você é da Polícia? - perguntou ela.

 

- Não, eu disse-lhe que era um amigo do seu pai.

 

- Você não é da Polícia?

 

- Não.

 

Finalmente ela encaixou aquilo. Deu um grande suspiro.

 

- Que... que deseja?

 

- Quem foi que o matou?

 

Os ombros dela ergueram-se por baixo do casaco de quadrados e o seu rosto pouco se alterou. Os olhos adquiriram lentamente uma expressão furtiva.

 

- Quem... quem mais sabe?

 

- Sobre Steiner? Não sei. A Polícia não sabe, caso contrário, estaria aqui alguém. Talvez o Marty.

 

Tinha sido um tiro no escuro mas arrancou-lhe um grito súbito e agudo:

 

- Marty!

 

Ficámos ambos calados durante uns instantes. Eu fumando o meu cigarro, ela roendo o polegar.

 

- Não se arme em esperta - disse-lhe. - Foi Marty quem o matou?

 

O queixo dela descaiu um centímetro.

 

- Sim.

 

- Por que motivo?

 

- Não... não sei - respondeu numa voz baça.

 

- Tem-no visto ultimamente?

 

Ela apertou as mãos uma na outra.

 

- Só uma ou duas vezes.

 

- Sabe onde ele vive?

 

- Sim! - ripostou, agressiva.

 

- Que se passa? Julguei que gostava de Marty.

 

- Odeio-o! - exclamou, quase num grito.

 

- Nesse caso, não se importaria que fosse dentro - concluí.

 

Ela não reagiu. Tive de lhe explicar.

 

- Isto é, está disposta a dizer à Polícia que foi Marty? Nos olhos dela surgiu um clarão de pânico.

 

- Se eu fizer desaparecer a pose nua - disse, conciliador. Ela soltou um risinho.

 

Isso pareceu-me suspeito. Se tivesse dado um grito, empalidecido ou mesmo desmaiado, acharia natural. Mas ela limitara-se a soltar um risinho.

 

Comecei a detestá-la. Só vê-la fazia-me sentir drogado.

 

Os risinhos continuavam; deram a volta à sala como ratos. Gradualmente tornaram-se histéricos. Levantei-me da secretária, avancei um passo na sua direcção e dei-lhe uma bofetada.

 

- Tal como ontem à noite - disse.

 

Os risinhos cessaram instantaneamente e o roer do polegar recomeçou. Parecia continuar a não se importar com as minhas bofetadas. Sentei-me de novo na beira da secretária.

 

- Você veio aqui à procura da chapa fotográfica... da fotografia do vestido de aniversário - disse-lhe.

 

O queixo dela começou de novo a andar para cima e para baixo.

 

- É demasiado tarde. Eu procurei-a ontem à noite. Já tinha desaparecido. Provavelmente é Marty quem a tem. Você não me está a enganar acerca de Marty, pois não?

 

Ela abanou a cabeça com força. Lentamente, levantou-se da cadeira. Os olhos dela estavam semicerrados, escuros e tão vazios como uma casca de ostra.

 

- Agora vou-me embora - declarou, como se tivéssemos acabado de tomar chá juntos.

 

Dirigiu-se para a porta e estendeu o braço a fim de abri-la quando se fez ouvir um carro que subia a encosta e estacionou diante da casa. Alguém saiu de lá de dentro.

 

Ela voltou-se e olhou-me com uma expressão horrorizada.

 

A porta abriu-se e um homem entrou e fitou-nos.

 

Era um homem de rosto anguloso que envergava um fato castanho e tinha na cabeça um chapéu preto. O punho da manga esquerda do casaco estava dobrado e preso à parte lateral do mesmo com um alfinete de segurança.

 

Tirou o chapéu, fechou a porta com o ombro e lançou a Carmen um sorriso simpático. Tinha cabelo preto, cortado curto, e uma cabeça ossuda. As roupas ficavam-lhe bem. Não tinha o ar dum duro.

 

- Chamo-me Guy Slade - explicou. - Desculpem ter entrado assim, de qualquer maneira. A campainha não funciona. Steiner está?

 

Ele não experimentara a campainha. Carmen fitou-o com uns olhos inexpressivos, depois olhou para mim e de novo para Slade. Humedeceu os lábios mas não abriu a boca.

 

- Steiner não está cá, Mr. Slade - respondi eu. - Não sabemos onde pára.

 

Ele acenou com a cabeça e tocou com a aba do chapéu no queixo comprido.

 

- São amigos dele?

 

- Viemos por causa dum livro - expliquei, devolvendo-lhe o sorriso. - A porta estava entreaberta. Batemos e entrámos, tal como você.

 

- Estou a ver - disse Slade, pensativo. - Tudo muito simples.

 

Eu não dizia nada. Carmen não dizia nada. Olhava fixamente a manga vazia.

 

- com que então um livro? - continuou Slade e o modo como falara disse-me muitas coisas: talvez ele estivesse a par das actividades da quadrilha de Steiner.

 

Avancei em direcção à porta.

 

- Só que você não bateu à porta - disse-lhe. Ele sorriu, ligeiramente embaraçado.

 

- Tem razão. Devia ter batido. Peço desculpa.

 

- Nós agora vamos andando - disse eu com um ar despreocupado, agarrando num braço de Carmen.

 

- Algum recado... se Steiner voltar? - perguntou Slade.

 

- Não se preocupe connosco.

 

- Que pena! - disse ele com segundo sentido. Larguei o braço de Carmen e afastei-me dela lentamente.

 

Slade continuava com o chapéu na mão. Não se mexeu. Os olhos dele metidos nas órbitas piscaram divertidos. Abri de novo a porta.

 

- A rapariga pode sair - disse Slade. - Mas gostava de ter uma conversazinha consigo.

 

Eu olhei para ele, tentando pôr um ar de pessoa que não percebia.

 

- Você é um brincalhão, hein - disse Slade numa voz simpática.

 

Subitamente, Carmen, que estava a meu lado, emitiu um som e saiu pela porta a correr. Daí a nada ouvi os seus passos descendo a colina. Não vira o seu carro mas devia estar estacionado algures nas redondezas.

 

- Que raio de... - comecei eu.

 

- Cale-se - disse Slade friamente. - Há aqui qualquer coisa que não bate certo. E eu vou descobrir do que se trata.

 

Começou a vaguear pela sala com um ar despreocupado, demasiado despreocupado. Tinha o sobrolho franzido e não me prestava muita atenção. Esse pormenor fez-me pensar. Olhei rapidamente pela janela mas tudo quanto pude ver foi o tejadilho do carro dele do outro lado da sebe.

 

Slade deu com o jarro bojudo e os dois copos esguios de cor violeta. Cheirou um deles. Um sorriso de nojo assomou-lhe aos lábios.

 

- Maldito chulo - disse sem qualquer emoção na voz. Examinou os livros que estavam sobre a secretária, mexeu num ou dois, deu a volta por detrás e postou-se diante do totem. Olhou-o fixamente. Depois o seu olhar desceu e fixou-se no tapete que cobria o lugar onde estivera o corpo de Steiner. Slade afastou-o com um pé e, subitamente, ficou tenso, olhando para o chão.

 

Estava a representar muito bem, ou então tinha um faro que eu gostaria de poder usar na minha profissão. Ainda não decidira qual era o caso, mas estava a pensar no assunto.

 

Baixou-se lentamente, apoiado num joelho. A secretária encobria-o parcialmente.

 

Tirei a arma do sovaco, cruzei ambas as mãos atrás das costas e encostei-me à parede.

 

Slade deu um grito e pôs-se de pé num salto, sacando duma Luger negra e de cano longo. Eu não me mexi. Slade segurava a Luger com as pontas duns dedos pálidos e compridos mas não tinha a arma apontada contra mim ou contra qualquer coisa em particular.

 

- Sangue - disse calmamente com ar sombrio, e os seus olhos profundos tinham adquirido uma expressão dura. Há ali sangue, debaixo do tapete. Muito sangue.

 

Eu sorri.

 

- Já tinha reparado - disse-lhe. - É sangue antigo. Sangue seco.

 

Ele sentou-se de lado na cadeira preta por detrás da secretária de Steiner e puxou o telefone para junto de si com a arma. Olhou para o aparelho, depois para mim e franziu o sobrolho.

 

- Acho que vamos chamar a Polícia - declarou.

 

- Por mim, tudo bem.

 

Os olhos dele estavam semicerrados e tinham uma expressão dura. Não gostou que tivesse concordado com ele. O verniz estalara e tinha diante de mim um tipo duro e bem vestido que empunhava uma Luger. com ar de quem era capaz de usá-la.

 

- Que raio de pessoa é você? - rosnou.

 

- Um detective particular. O nome não interessa. A rapariga é minha cliente. Steiner tem estado a fazer chantagem com ela. Viemos para falar com ele, mas não estava cá.

 

- Com que então limitaram-se a entrar, hein?

 

- Certo. E depois? Acha que abatemos Steiner, Mr. Slade?

 

Ele esboçou um leve sorriso mas não respondeu.

 

- Ou acha que Steiner abateu alguém e se pôs a andar? - sugeri.

 

- Steiner não abateu ninguém - respondeu Slade. - Ele tem menos coragem que um gato doente.

 

- Não vê aqui ninguém, pois não? É possível que Steiner tivesse galinha para o jantar e talvez goste de matá-las na sala de estar - disse eu.

 

- Não percebo... Não percebo. Qual é a sua? Eu sorri de novo.

 

- Ande lá. Chame os seus amigos. Só que não vai gostar da reacção deles.

 

Ele reflectiu sobre isto sem mexer um músculo da cara. Tinha a língua encostada aos dentes.

 

- Por que não? - perguntou por fim, num tom cauteloso.

 

- Eu conheço-o, Mr. Slade - disse eu. - Você é o proprietário do Aladdin Club, nas Palisades. Jogo viciado. Luzes discretas, trajes de cerimônia e serviço de refeições. Você conhece o Steiner suficientemente bem para entrar em casa dele sem bater à porta. A gente do Steiner precisava de alguma protecção de vez em quando. Isso podia ser consigo.

 

O dedo que Slade tinha no gatilho da Luger ficou tenso, depois relaxou. Pousou a arma sobre a secretária, mantendo a mão por cima. A boca abriu-se num esgar.

 

- Alguém apanhou o Steiner - disse em voz baixa, e a sua voz e a expressão pareciam pertencer a pessoas diferentes. - Não foi à loja hoje. Não atendeu o telefone. Vim até cá ver o que se passava.

 

- É bom saber que não foi você quem o matou - disse-lhe.

 

Voltou a erguer a Luger e apontou-a ao meu peito.

 

- Baixe isso - disse-lhe eu. - Você ainda não sabe o suficiente para explodir. Tive de me habituar à idéia de que não sou à prova de bala. Baixe isso. Vou-lhe contar uma coisa... se é que ainda não sabe. Alguém tirou hoje os livros de Steiner da loja dele... os livros com que fazia negócio a sério.

 

Slade pousou a arma sobre a secretária pela segunda vez. Reclinou-se e afivelou uma expressão agradável.

 

- Sou todo ouvidos - declarou.

 

- Também creio que alguém apanhou o Steiner - expliquei-lhe. - Julgo que esse sangue é dele. O facto de os livros estarem a ser retirados da loja explica por que tiraram o corpo dele daqui. Alguém pretende tomar conta do seu negócio e não quer que o descubram até estar tudo em ordem. Quem quer que seja devia ter limpo o sangue. Não o fez.

 

Slade ouvia-me em silêncio. A parte mais elevada das suas sobrancelhas fazia um ângulo agudo contra a tez pálida.

 

- Matar Steiner para lhe ficar com o negócio foi uma idéia estúpida - continuei -, e não tenho a certeza de que as coisas se tenham passado desse modo. Mas tenho a certeza de que quem levou os livros sabe do sucedido e que a loura da loja está muito assustada.

 

- Mais alguma coisa? - perguntou Slade calmamente.

 

- De momento não. Há uma questão de droga que quero resolver. Se a encontrar, talvez lhe conte.

 

- Era melhor se fosse agora - disse Slade apertando os lábios contra os dentes e assobiando duas vezes.

 

Dei um salto. Lá fora abrira-se a porta dum carro. Ouvi passos.

 

Empunhei a arma. O rosto de Slade contorceu-se e ele estendeu a mão na direcção da Luger que estava pousada à sua frente, tacteando com os dedos na coronha.

 

- Não lhe toque! - avisei-o.

 

Levantou-se, tenso, curvado para a frente, com a mão sobre a arma mas sem a empunhar. Passei por ele em direcção ao átrio no preciso momento em que dois homens faziam a sua aparição na sala.

 

Um tinha cabelo ruivo, cortado curto, um rosto magro e pálido e olhos vagos. O outro era claramente um pugilista: um tipo bem-parecido, mas com um nariz achatado e uma orelha do tamanho dum bife.

 

Nenhuma das visitas empunhava uma arma. Estacaram ambos e fitaram-nos.

 

Eu estava por detrás de Slade, no átrio. Slade, curvado sobre a secretária à minha frente, não se mexia.

 

A boca do pugilista abriu-se num rugido, revelando uns dentes brancos e aguçados. O cabeça de cenoura estava com um ar assustado.

 

Slade tinha bastante coragem. Numa voz suave, baixa, mas muito clara, disse:

 

- Este tipo matou Steiner, rapazes. Apanhem-no.

 

O cabeça de cenoura mordeu o lábio inferior e fez tenção de tirar algo de debaixo do braço esquerdo. Não teve tempo. Atingi-o no ombro direito, embora me custasse fazê-lo. Naquela sala fechada, a detonação foi muito violenta. Tive a impressão de que se ia ouvir na cidade toda. O cabeça de cenoura caiu no chão e pôs-se a rodopiar como se o tivesse atingido na barriga.

 

O pugilista não se mexeu. Sabia por certo que não era suficientemente rápido. Slade agarrou na Luger e começou a voltar-se. Eu dei um passo e bati-lhe atrás da orelha. Ele caiu de bruços sobre a secretária e o projéctil da sua arma foi alojar-se entre alguns livros.

 

Slade não me ouviu dizer:

 

- Detesto atingir um maneta pelas costas, Slade. E não tenho a mania de me exibir. Mas você obrigou-me a isso.

 

O pugilista sorriu na minha direcção e perguntou:

 

- Muito bem, amigo. Que fazemos agora?

 

- Gostava de sair daqui, se possível sem mais tiros. Ou posso ficar por cá e aguardar a chegada da Polícia. A mim tanto se me dá.

 

Ele reflectiu calmamente sobre este dilema. O cabeça de cenoura gemia no chão. Slade estava silencioso.

 

O pugilista ergueu ambas as mãos e cruzou-as atrás da nuca. Depois disse vagarosamente:

 

- Não sei do que se trata... mas estou-me nas tintas para onde vai e para aquilo que fizer quando lá chegar. Além de que este não é o local mais indicado para uma troca de tiros. Ponha-se a andar.

 

- Menino bonito. Você é mais sensato do que o seu patrão.

 

Circundei a mesa e encaminhei-me para a porta aberta. O pugilista rodou lentamente, de modo a ficar sempre de frente para mim, com as mãos atrás da nuca. No rosto dele havia um sorriso irónico, quase divertido.

 

Esgueirei-me pela porta, meti-me pela abertura da sebe e subi a correr a colina, esperando a todo o momento ser alvejado. Nada disso aconteceu.

 

Saltei para o Chrysler, subi até ao cimo do monte e afastei-me daquelas redondezas.

 

Passava um pouco das cinco quando parei defronte do bloco de apartamentos da Randall Place. Já havia luz nalgumas janelas e vários rádios estavam a emitir de estações diferentes. Tomei o elevador até ao quarto andar. O apartamento 405 ficava ao fundo dum longo corredor com paredes cor de marfim e uma carpeta verde. Da saída de emergência vinha um vento frio.

 

Ao lado da porta 404 havia um pequeno botão de marfim. Premi-o.

 

Passado um bom bocado um homem abriu a porta alguns centímetros. Era um tipo esguio, com umas pernas longas, e tinha uns olhos castanhos num rosto também muito castanho. O cabelo só lhe crescia na parte de trás do crânio, deixando à vista uma testa igualmente castanha. Os seus olhos examinaram-me friamente.

 

- Steiner? - perguntei.

 

Nada se alterou no rosto do homem. Trouxe um cigarro de detrás da porta e meteu-o lentamente entre os lábios apertados. Uma nuvem de fumo vogou na minha direcção e, atrás dela, palavras numa voz calma, sem pressa, sem entoação.

 

- Quem foi que disse?

 

- Steiner. Harold Hardwicke Steiner. O tipo dos livros... O homem acenou com a cabeça. Reflectiu sem pressa sobre a minha observação. Mirou a ponta do cigarro, e disse:

 

-Julgo que o conheço. Mas ele não vem aqui. Quem foi que o mandou?

 

Eu sorri. Ele não achou graça.

 

- É você o Marty? - perguntei. O rosto castanho endureceu.

 

- E depois? Que quer... ou pretende apenas divertir-se? Avancei o meu pé esquerdo discretamente, o bastante para ele não poder fechar a porta.

 

- Você tem os livros. Eu tenho a lista dos nomes. E que tal se conversássemos os dois? - sugeri.

 

Marty não tirou os olhos de mim. A sua mão direita desapareceu outra vez atrás da porta e, a julgar pelo ombro, devia estar a fazer gestos com a mão. Havia um ruído na casa, por detrás dele, um ruído muito leve. Uma argola de cortina tilintou num varão.

 

Depois abriu completamente a porta.

 

- E por que não? Se acha que tem alguma coisa - disse com muita calma.

 

Passei por ele e entrei no apartamento. Era uma divisão alegre, com boa mobília mas sem ser em excesso. As janelas na parede do fundo davam para um alpendre de pedra no sopé das colinas, que escureciam já com o anoitecer. Próximo das janelas havia uma porta fechada. Outra porta na mesma parede, mas junto da entrada, estava tapada por uma cortina suspensa dum varão de cobre.

 

Sentei-me num sofá encostado à parede onde não havia portas. Marty fechou a porta de entrada e caminhou de lado até junto de uma secretária alta em carvalho com uns pregos de cabeça chata. No tampo descido da secretária havia uma cigarreira em madeira de cedro com fechos dourados. Marty pegou nela sem tirar de mim os olhos e levou-a para uma mesa baixa junto duma poltrona. Sentou-se.

 

Pousei o chapéu a meu lado, abri o botão de cima do casaco e sorri para ele.

 

- Bom... sou todo ouvidos - disse ele.

 

Apagou o cigarro, levantou a tampa da cigarreira e tirou de lá um par de grossos charutos.

 

- Um charuto? - perguntou distraído e atirou-me um. Eu estiquei-me para o apanhar e caí na armadilha. Marty

 

deixou cair o outro na caixa e ergueu-se muito depressa com uma pistola.

 

Eu olhei para a arma com um ar bem-educado. Era um Colt preto da Polícia, calibre 38. De momento não podia discutir com uma coisa daquelas.

 

- Levante-se um instante - ordenou Marty. - Avance dois passos. Sempre apanha um bocadinho de ar enquanto anda - a sua voz era deliberadamente descontraída.

 

Por dentro estava furioso, mas sorri para ele.

 

- Você é o segundo tipo que encontro hoje que julga que uma arma na mão significa o mundo a seus pés. Guarde isso e falemos dos nossos assuntos - disse-lhe eu.

 

As sobrancelhas de Marty juntaram-se e o queixo avançou ligeiramente. Os seus olhos castanhos denunciavam alguma perturbação.

 

Ficámos a olhar um para o outro. Eu procurei não fixar a ponta de um sapato que era visível debaixo da cortina junto à entrada, do meu lado esquerdo.

 

Marty vestia um fato azul-escuro, uma camisa também azul e uma gravata igualmente azul. O seu rosto castanho parecia escuro com aquelas cores.

 

- Espero que me compreenda - disse ele suavemente. Eu não sou um duro, sou apenas cuidadoso. Para começar, nada sei de si. Mas podia muito bem ser um assassino.

 

- Você não é suficientemente cuidadoso - disse-lhe. Aquela história dos livros foi muito mal amanhada.

 

Ele respirou fundo e expirou em silêncio. Depois recostou-se, cruzou as pernas e pousou o Colt sobre o joelho.

 

- Não se iluda, usarei esta coisa se for preciso. O que é que me conta?

 

- Diga à sua amiga dos sapatos pontiagudos que entre disse-lhe eu. - Ela cansa-se de suster assim a respiração.

 

Sem voltar a cabeça, Marty gritou:

 

- Entra, Agnes.

 

As cortinas diante da porta abriram-se e a loura dos olhos verdes da loja de Steiner juntou-se a nós. Não me surpreendia muito vê-la ali. Ela olhou-me amargamente.

 

- Bem sabia que você ia trazer sarilhos - disse zangada. - Disse a Joe que tivesse cuidado.

 

- Chega - ripostou Marty. - O Joe está a ter muito cuidado. Acende a luz para eu poder disparar sobre este tipo, se for necessário.

 

A loura acendeu um candeeiro de pé com um quebra-luz vermelho. Sentou-se debaixo dele, numa grande cadeira de veludo, e ficou a sorrir com um ar tenso. Estava assustada e exausta.

 

Lembrei-me do charuto que tinha na mão e meti-o na boca. Marty não me largou dos olhos enquanto pegava em fósforos e o acendia.

 

Puxei uma fumaça e disse através do fumo:

 

- A lista de que lhe falei está em código. Por isso não consegui ainda ler os nomes, mas são para cima de quinhentos. Você tem uma dúzia de caixas, digamos... trezentos. Há-de haver pelo menos outros tantos emprestados. Talvez uns quinhentos, ao todo, fazendo as contas por baixo. Se for uma lista actualizada e você puder pôr a circular todos os livros, isso renderia um quarto de milhão de alugueres. Ponha o aluguer médio a um valor baixo, digamos... um dólar. É muito pouco, mas suponhamos um dólar. É muito dinheiro nos dias que correm. O suficiente para entusiasmar um tipo.

 

A loura deu um grito agudo:

 

- És doido, se...

 

- Cala-te! - ripostou Marty.

 

A loura calou-se e voltou a encostar a cabeça à cadeira. No rosto dela, a tensão era visível.

 

- Isto não é negócio para patetas - continuei. - É preciso ganhar confiança e mantê-la. Pessoalmente, acho esta questão da chantagem uma asneira. Sou a favor de largar tudo isso.

 

O olhar castanho e frio de Marty não me largava.

 

- Você é um’ tipo engraçado - disse com suavidade. E quem tem este belo negócio nas mãos?

 

- Você - respondi. - Quase. Marty ficou calado.

 

- Você abateu o Steiner para ficar com isto- disse. Ontem à noite enquanto chovia. EstàVa mesmo bom tempo para dar uns tiros. O problema é que ele não estava sozinho quando isso aconteceu. Ou você não reparou :na altura, ou então assustou-se. Fugiu. Mas teve coragem suficiente para voltar atrás e esconder o cadáver algures... de forma a poder tratar dos livros antes que dessem pelo crime.

 

A loura emitiu um som estrangulado e depois voltou a cara para a parede. Enfiou as unhas nas palmas das mãos e mordeu com força os lábios.

 

Marty nem pestanejou. Não se mexeu e o Colt também não se mexeu na sua mão. O seu rosto castanho estava tão impassível como uma escultura em madeira.

 

- Ena pá, você arrisca-se -- disse, por fim, baixinho. Você está é com azar porque eu não matei o Steiner.

 

Eu sorri, sem grande alegria.

 

- Mesmo assim, é capaz de ser acusado disso.

 

A voz de Marty assemelhava-se ao restolhar de folhas secas:

 

- Acha que tem com que me acusar?

 

- Certamente.

 

- Como?

 

- Há uma pessoa que está disposta a contar as coisas como eu as contei.

 

Marty perdeu finalmente a cabeça:

 

- Aquela estuporazinha...! Ela atreve-se... assim... raios a partam.

 

Eu não fiz comentários. Encaixei aqueles comentários. O seu rosto desanuviou-se pouco a pouco e ele pousou o Colt sobre a mesa, mantendo a mão próximo da arma.

 

- Você não soa a duro como outros duros que tenho conhecido - disse lentamente e os seus olhos eram duas frestas brilhantes sob as pálpebras escuras semicerradas. - E não vejo aqui quaisquer polícias. Qual é a sua?

 

Puxei o fumo do charuto e observei a arma dele.

 

- A chapa que estava na câmara de Steiner. Todas as cópias tiradas. Aqui e já. Você tem-nas... porque era a única forma de saber quem lá estivera ontem à noite.

 

Marty rodou ligeiramente a cabeça e olhou para Agnes. Aquela continuava virada para a parede com as unhas espetadas nas palmas das mãos. O seu olhar virou-se de novo para mim.

 

- Quanto a isso, está muito enganado - disse-me. Abanei a cabeça.

 

- Não. Você caiu numa ratoeira, Marty. É muito fácil acusarem-no do assassínio. É de caras. Se a rapariga tiver de contar a história, as fotografias não valem nada. Mas ela está disposta a não contar.

 

- Você é um detective particular? - perguntou.

 

- Hm, hm - murmurei.

 

- Como chegou até mim?

 

- Andava a vigiar o Steiner. Ele estava a pressionar o Dravec e este largou umas massas. Você recebeu parte do bolo. Segui os livros da loja de Steiner até aqui. O resto foi fácil logo que ouvi a história da rapariga.

 

- Ela disse que eu disparei sobre o Steiner? Acenei com a cabeça.

 

- Mas podia ter-se enganado. Marty suspirou.

 

- Ela detesta-me - disse ele. - Eu dei-lhe com os pés. Pagaram-me para o fazer, mas tê-lo-ia feito de qualquer maneira. É demasiado maluca para o meu gosto.

 

- Vá buscar as fotografias, Marty - disse-lhe eu.

 

Ele levantou-se devagar, olhou para o Colt e meteu-o num bolso lateral do casaco. A mão avançou lentamente em direcção ao bolso de cima.

 

Nesse momento alguém começou a tocar à porta, insistentemente.

 

Marty não achou graça àquilo. Mordeu o lábio inferior e as sobrancelhas descaíram para os cantos dos olhos. Ficou com mau aspecto.

 

A campainha continuava a tocar.

 

A loura levantou-se rapidamente. A tensão nervosa desfeava-a e fazia-a parecer mais velha.

 

Sempre a vigiar-me, Marty abriu bruscamente uma gaveta na secretária alta e tirou de lá de dentro uma pequena pistola automática de coronha branca. Passou-a à loura. Ela aproximou-se para lhe pegar, mas via-se que não lhe agradava a idéia.

 

- Senta-te ao lado do detective - disse numa voz ríspida. - Aponta-lhe a arma. Se se fizer engraçado enfia-lhe uns chumbos.

 

A loura sentou-se no sofá a cerca de um metro de mim, do lado oposto, longe da porta. Apontou a arma à minha perna. Não me agradou nada o ar inquieto nos seus olhos verdes.

 

A campainha parou de tocar e alguém começou a bater levemente na porta, denotando impaciência. Marty atravessou a divisão e abriu a porta. Metera a mão direita no bolso do casaco e abriu-a com a esquerda, rapidamente.

 

Carmen Dravec empurrou-o para dentro da sala com o cano dum pequeno revólver que apontara à sua cabeça.

 

Marty afastou-se dela suavemente e depressa. Tinha a boca aberta e uma expressão de pânico nos olhos. Conhecia Carmen muito bem.

 

Carmen fechou a porta e depois avançou com a sua pequena arma. Não olhou para ninguém a não ser para Marty, não parecia ver ninguém senão Marty. Tinha um ar drogado.

 

A loura estremeceu da cabeça aos pés e apontou a pistola automática de coronha branca na direcção de Carmen. A minha mão saiu disparada e agarrou a dela. Fechei rapidamente os meus dedos sobre ela, pus o fecho de segurança em posição e segurei-o aí. Foi uma refrega breve, a que nem Marty nem Carmen prestaram qualquer atenção. Depois peguei na arma.

 

A loura respirou fundo e olhou para Carmen Dravec. Esta olhou para Marty com olhos drogados e disse:

 

- Quero as minhas fotografias.

 

Marty engoliu em seco e esboçou um sorriso.

 

- Claro, miúda, claro - disse ele numa vozinha que não era a que usara comigo.

 

Carmen tinha um ar quase tão demente como quando a vira no cadeirão em casa de Steiner. Mas desta vez controlava a voz e os músculos.

 

- Mataste Hal Steiner - disse ela.

 

- Espere um minuto, Carmen! - berrei.

 

Carmen não voltou a cabeça. A loura regressou subitamente à vida, baixou a cabeça e avançou na minha direcção, como se pretendesse dar-me uma cabeçada, e enfiou os dentes na minha mão direita, aquela que segurava a arma.

 

Berrei de novo. Ninguém pareceu importar-se.

 

- Ouve, miúda, eu não... - disse Marty.

 

A loura largou a minha mão e cuspiu para cima de mim o meu próprio sangue. Depois atirou-se à perna e tentou mordê-la também. Bati-lhe levemente na cabeça com a coronha da pistola e tentei erguer-me. Ela atirou-se às minhas pernas e pôs os braços à volta dos tornozelos. Voltei a cair no sofá. O medo tornara a loura extraordinariamente forte.

 

Marty tentou agarrar o revólver de Carmen com a mão esquerda, mas não conseguiu. A arma fez um ruído pesado e não demasiado forte. Uma bala passou por Marty e partiu um vidro numa das janelas abertas.

 

Marty estava de novo perfeitamente imóvel. Parecia que todos os músculos o tinham deixado.

 

- Baixe-se e deite-a ao chão, seu idiota! - gritei. Depois voltei a bater na cabeça da loura, desta vez com mais força, e ela largou os meus pés e caiu. Libertei-me e arrastei-me para longe dela.

 

Marty e Carmen continuavam a olhar um para o outro como uma imagem e o seu reflexo num espelho.

 

Qualquer coisa muito grande e pesada abateu-se sobre a porta de entrada do lado de fora, que ficou rachada diagonalmente de alto a baixo.

 

Isso fez Marty acordar. Sacou o Colt do bolso e deu um salto para trás. Disparei um tiro em direcção ao seu ombro direito mas falhei, não querendo magoá-lo muito. A coisa pesada voltou a atingir a porta com um estrondo que fez estremecer o prédio todo.

 

Larguei a pistola automática e peguei na minha própria arma, no preciso instante em que Dravec entrou com a porta pela sala dentro.

 

Estava furioso, embriagado, completamente enlouquecido. Agitava os braços. Tinha os olhos arregalados e injectados de sangue e espumava.

 

Bateu-me com força na parte lateral do crânio sem mesmo olhar para mim. Caí contra a parede, entre o sofá e a porta destruída.

 

Estava a sacudir a cabeça tentando pôr-me de pé quando Marty começou a disparar.

 

Qualquer coisa levantou a parte de trás do casaco de Dravec, como se uma bala tivesse passado sem o atingir. Ele cambaleou, endireitou-se imediatamente e voltou à carga, como um touro.

 

Fiz pontaria e disparei contra o corpo de Marty. Ele estremeceu, mas o Colt que tinha na mão continuou a disparar. Depois Dravec estava entre nós dois, Carmen tinha sido desviada do caminho como se fosse uma folha morta e não havia nada a fazer.

 

As balas de Marty não conseguiram deter Dravec. Nada o teria detido. Mesmo que estivesse morto, ainda assim haveria de apanhar Marty.

 

Agarrou-lhe o pescoço no momento em que Marty lhe atirava à cara a arma vazia. Fez ricochete como se fosse uma bola de borracha. Marty soltou um grito agudo e Dravec agarrou-o pela garganta e levantou-o do chão.

 

Durante alguns instantes, as mãos castanhas de Marty tentaram agarrar os pulsos do homenzarrão. Algo se partiu, as mãos de Marty ficaram moles e os braços tombaram. Ouviu-se outro ruído de algo que se quebrava. Só quando Dravec largou o pescoço de Marty é que reparei que o rosto de Marty estava negro-avermelhado. Lembrei-me, naquele instante, de que os homens a quem partem o pescoço engolem por vezes as línguas antes de morrerem.

 

Depois Marty caiu a um canto e Dravec começou a afastar-se, titubeante. Parecia não ser capaz de se manter de pé. Deu quatro passos desajeitados para trás. Depois o seu corpanzil desequilibrou-se e ele caiu no chão de costas, de braços abertos.

 

Da boca saía-lhe sangue. Os seus olhos estavam revirados, como se tentasse a custo ver através da névoa.

 

Carmen Dravec ajoelhou-se a seu lado e começou a gemer como um animal assustado.

 

Havia barulho lá fora no átrio, mas ninguém apareceu junto da porta escancarada. Tinham voado demasiadas balas nos últimos minutos.

 

Aproximei-me rapidamente de Marty, debrucei-me sobre ele e meti a mão no bolso. Tirei de lá de dentro um sobrescrito quadrado que tinha dentro uma coisa dura. Ergui-me com ele e voltei-me.

 

Ao longe, no ar do fim da tarde, ouvia-se o ruído duma sirena, que parecia aumentar de volume. Um homem pálido meteu com muito cuidado a cabeça pela porta. Ajoelhei-me ao lado de Dravec.

 

Ele tentou dizer qualquer coisa que eu não consegui perceber. Depois aquele olhar tenso desapareceu-lhe dos olhos e ele ficou com um ar indiferente, como se estivesse a ver qualquer coisa numa planície, a grande distância.

 

Carmen disse numa voz empedernida:

 

- Estava bêbado. Obrigou-me a dizer para onde ia. Não sabia que me tinha seguido.

 

- Não podia sabê-lo - disse eu numa voz ausente.

 

Levantei-me e rasguei o sobrescrito. Tinha dentro algumas fotografias e o negativo de vidro. Deixei a chapa cair no chão e esmaguei-a com o pé. Comecei a rasgar as fotografias, deixando os bocados voar das minhas mãos.

 

- Hão-de publicar muitas fotos suas agora, minha menina - disse-lhe. - Mas não vão publicar esta.

 

- Não sabia que me tinha seguido - repetiu, e começou a roer o polegar.

 

Ouvia-se agora a sirena no exterior do edifício. Baixou de volume e depois morreu, mesmo na altura em que eu acabava de rasgar as fotografias.

 

Fiquei quieto no meio da sala e perguntei a mim mesmo por que razão me dera a esse trabalho. Agora já não tinha qualquer importância.

 

Com o cotovelo apoiado num canto duma grande mesa de carvalho no gabinete do inspector Isham, e segurando um cigarro aceso entre os dedos, Guy Slade estava a dizer, sem olhar para mim:

 

- Obrigado por me ter metido dentro, detective. Gosto de visitar os rapazes do departamento de vez em quando. Apertou os cantos da boca num sorriso desagradável.

 

Eu estava sentado do lado mais comprido da mesa, defronte de Isham. Este era demasiado magro e alto e grisalho e usava lunetas. Não tinha ar, nem se comportava nem falava como um chui. Violeis M’Gee e um polícia irlandês com um ar alegre chamado Grinnell estavam sentados numas cadeiras de costas redondas de encontro a uma divisória de vidro que criava uma recepção em parte do escritório.

 

- Parece-me que descobriu aquele sangue demasiado depressa - disse eu a Slade. - Talvez que me tenha enganado. As minhas desculpas, Mr. Slade.

 

- Pois. É como dizer que nunca existiu nada. - Levantou-se e pegou numa bengala e numa luva que estavam sobre a mesa. - É tudo quanto quer de mim, inspector?

 

- É tudo por hoje, Slade - respondeu Isham e a sua voz era seca, calma e trocista.

 

Slade pendurou a bengala no braço para abrir a porta. Sorriu a toda a gente antes de sair. A última coisa que os seus olhos fixaram foi provavelmente a minha nuca mas eu não estava a olhar para ele.

 

- Não preciso de lhe dizer como a Polícia encara um encobrimento dum crime como este - disse Isham.

 

Eu suspirei.

 

- Tiros - expliquei. - Um homem morto no chão. Uma rapariga nua e drogada numa cadeira sem saber o que se estava a passar. Um assassino que eu não podia apanhar e vocês também não... então. Por detrás de tudo isto um pobre dum brutamontes de coração despedaçado, tentando fazer o que era mais acertado numa situação difícil. Vamos... acuse-me. Eu não estou arrependido.

 

Isham ignorou tudo isso com um gesto da mão.

 

- Quem foi que matou Steiner?

 

- A loura pode dizer-lhe.

 

- Quero que seja você a dizer-mo. Encolhi os ombros.

 

- Se quer que me deite a adivinhar... o motorista de Dravec, Cari Owen.

 

Isham não pareceu demasiado surpreendido. Violeis M’Gee soltou um grunhido.

 

- O que o leva a pensar assim? - perguntou Isham.

 

- Pensei durante algum tempo que podia ser Marty, em parte porque a rapariga assim o declarara. Mas isso não quer dizer nada. Ela não sabia e aproveitou a oportunidade para atingir Marty. E ele é do tipo que não abandona facilmente uma ideia. Mas Marty não se comportou como um assassino. E um homem tão frio como Marty não teria fugido daquela maneira. Eu ainda não batera sequer à porta quando o assassino se pôs em fuga.

 

«Claro que também pensei em Slade. Mas Slade também não encaixa no tipo do crime. Anda com dois guarda-costas, e ter-me-iam dado mais luta. E Slade pareceu verdadeiramente surpreendido quando encontrou sangue no chão, esta tarde. Slade tinha contactos com Steiner e vigiava-o, mas não o matou, não tinha motivo para o matar e nunca o teria feito daquela maneira, diante duma testemunha, mesmo que tivesse.

 

«Mas Cari Owen tinha. Estivera em tempos apaixonado pela rapariga, provavelmente ainda estava. Tinha oportunidade de espiá-la, descobrir para onde ia e o que fazia. Fez uma espera a Steiner, entrou pela porta das traseiras, viu a pose nua e perdeu a cabeça. Vingou-se do Steiner. Depois ficou em pânico e fugiu.

 

- Fugiu até à doca do Lido e atirou-se do seu extremo disse Isham secamente. - Não se está a esquecer que o Owen tinha uma ferida na parte lateral da cabeça?

 

- Não - respondi. - E também não me estou a esquecer que duma maneira ou doutra Marty sabia o que estava naquela chapa, ou pelo menos tinha uma idéia suficientemente aproximada para ir lá buscá-la e depois esconder um corpo na garagem de Steiner a fim de ganhar algum tempo.

 

- Mande entrar Agnes Laurel para aqui, Grinnell - ordenou Isham.

 

Grinnell saltou da cadeira, foi até ao fundo do corredor e desapareceu por uma porta.

 

- Filho, és formidável! - exclamou Violeis M’Gee. Não olhei para ele. Isham puxou a pele que cobria a sua maçã-de-adão e examinou as unhas da outra mão.

 

Grinnell regressou com a loura. Tinha o cabelo em desalinho acima da gola do casaco. Tirara os brincos. Estava com um ar cansado, mas já não parecia assustada. Sentou-se devagar na cadeira no fundo da mesa onde Slade estivera sentado e cruzou as mãos com as unhas prateadas à sua frente.

 

- Muito bem, Miss Laurel - disse Isham numa voz calma. - Gostávamos de ouvir a sua versão.

 

A rapariga olhou para as mãos cruzadas e falou sem hesitações numa voz serena.

 

- Conheço Joe Marty há cerca de três meses. Tornou-se meu amigo porque eu trabalhava para Steiner, suponho. Pensei que era por gostar de mim. Contei-lhe tudo o que sabia sobre Steiner. Ele já sabia alguma coisa. Tinha andado a gastar dinheiro que obtivera do pai de Carmen Dravec, mas a massa desaparecera e já só tinha meia dúzia de dólares e estava pronto para outra. Decidiu que Steiner precisava dum parceiro e andava a observá-lo para ver se tinha por trás alguns amigos poderosos.

 

«A noite passada estava dentro do carro dele na rua por detrás da casa de Steiner. Ouviu os tiros, viu o rapaz descer as escadas, saltar para dentro dum sedan e arrancar. Joe perseguiu-o. A meio caminho da costa, apanhou-o e empurrou-o para fora da estrada. O rapaz apareceu empunhando uma arma mas estava nervoso e o Joe dominou-o. Enquanto estava desmaiado, Joe revistou-o e descobriu quem era. Quando ele veio a si, Joe fez de conta que era polícia e o miúdo foi-se abaixo e contou tudo. Enquanto Joe pensava no que havia de fazer, o rapaz arrebitou, empurrou-o para fora do carro e arrancou outra vez. Guiava como um louco e Joe deixou-o ir. Regressou a casa do Steiner. Suponho que sabe o resto da história. Quando Joe revelou a chapa e descobriu o que tinha nas mãos planeou uma jogada rápida de modo a podermos sair da cidade antes da Polícia descobrir Steiner. íamos levar alguns dos livros de Steiner e montar negócio noutra cidade.

 

Agnes Laurel parou de falar. Isham tamborilou com os dedos e perguntou:

 

- Marty contou-lhe tudo, não foi?

 

- Hum, hum...

 

- De certeza que ele não matou esse Cari Owen?

 

- Eu não estava lá para ver. Joe não se comportava como um assassino.

 

Isham acenou com a cabeça.

 

- É tudo por agora, Miss Laurel. Queremos tudo isso por escrito. Vamos ter de mantê-la detida, é claro.

 

A rapariga levantou-se. Grinnell acompanhou-a. Ela saiu sem olhar para ninguém.

 

- Marty não podia saber que Cari Owen morrera - disse Isham. - Mas tinha a certeza de que tentaria esconder-se. Quando o apanhássemos, já Marty teria sacado o dinheiro de Dravec e desaparecido. A história da rapariga parece-me razoável.

 

Ninguém abriu a boca. Passados alguns momentos, Isham disse-me:

 

- Você cometeu um erro grave. Não devia ter falado em Marty à rapariga até estar certo de que era o seu homem. Isso resultou na morte desnecessária de duas pessoas.

 

- Hm, hm. Talvez seja melhor eu voltar a trás e fazer tudo de novo - respondi.

 

- Não se arme em duro.

 

- Não sou duro. Eu estava a trabalhar para Dravec, tentando poupá-lo a alguns desgostos. Não fazia ideia que a rapariga era assim tão maluca, ou que passaria uma coisa daquelas pela cabeça do Dravec. Queria as fotografias. Não me interessava muito lixo do tipo do Steiner ou do Joe Marty e da sua namorada, e continua a não me interessar.

 

- Está bem, está bem - concordou Isham impaciente. Não preciso mais de si por esta noite. Provavelmente irão fazer-lhe muitas perguntas quando abrir o inquérito.

 

Ele levantou-se e eu levantei-me. Estendeu a mão.

 

- Mas isso há-de causar mais mal do que bem - acrescentou secamente.

 

Apertei-lhe a mão e saí. M’Gee saiu atrás de mim. Descemos juntos no elevador sem trocar palavra. Quando saímos do edifício, M’Gee deu a volta ao meu Chrysler e entrou.

 

- Há alguma coisa que se beba nesta carripana?

 

- Muito - respondi.

 

Liguei a ignição e rodámos para oeste ao longo da Rua Um, através de um túnel repleto de ecos. Quando voltámos a emergir, M’Gee disse:

 

- Da próxima vez que lhe enviar um cliente, espero que não dê informações acerca dele.

 

Dirigimo-nos ao Berglund. Anoitecia. Sentia-me cansado, velho e inútil.

 

 

             O HOMEM QUE GOSTAVA DE CÃES

 

Estava um De Soto cinzento metalizado novinho em folha defronte da porta de entrada. Circundei-o, subi três degraus brancos, atravessei uma porta envidraçada e subi outros três degraus cobertos com uma carpeta. Toquei a uma campainha embutida na parede.

 

Uma dúzia de latidos de cães começaram imediatamente a deitar a casa abaixo. Enquanto ganiam, ladravam e uivavam examinei um pequeno escritório numa alcova com uma secretária de tampo de correr e uma sala de espera com cadeiras de couro e três diplomas na parede. Sobre uma mesa havia exemplares da Dog Fancier’s Gazette.

 

Do outro lado alguém mandou calar os cães. Depois uma porta interior abriu-se e um homenzinho com uma cara bonita envergando um casacão castanho e sapatos de sola de borracha entrou. Debaixo dum bigode comprido e fino exibia um sorriso simpático. Olhou em volta e para os meus pés e não viu nenhum cão. O seu sorriso tornou-se mais frio.

 

- Pois... - disse eu e dei-lhe o meu cartão. Ele leu-o, olhou para o verso, virou-o de novo e leu a parte da frente outra vez.

 

- Um detective particular - disse numa voz suave, lambendo os lábios húmidos. - bom... eu sou o doutor Sharp. Em que posso ser-lhe útil?

 

- Ando à procura dum cão roubado.

 

Os seus olhos pestanejaram. Apertou a pequena boca macia. Lentamente todo ele ficou vermelho.

 

- Não estou a sugerir que foi você quem roubou o cão de outra pessoa - disse eu. - Qualquer um podia pôr um animal num sítio destes que você não ia pensar que o bicho não lhe pertencia, pois não?

 

- Não me agradaria mesmo nada tal hipótese - respondeu, sério. - Que tipo de cão?

 

- Um cão-polícia.

 

Ele raspou com a ponta do sapato o tapete pouco espesso e mirou um canto do tecto. O rubor desapareceu-lhe das faces, deixando atrás de si uma espécie de palidez brilhante. Depois dum longo silêncio, disse:

 

- Só tenho aqui um cão-polícia, e conheço as pessoas a quem pertence. Por isso lamento...

 

- Então, não se importa se eu der uma olhadela - cortei e avancei para a porta interior.

 

O Dr. Sharp não se mexeu. Continuou a raspar com o pé.

 

- Não sei se isso é muito conveniente - declarou com suavidade. - Talvez mais tarde.

 

- Agora dava-me mais jeito - expliquei, e estendi a mão para o puxador da porta.

 

Ele atravessou rapidamente a sala de espera em direcção à secretária de tampo de correr. A sua pequena mão pousou no telefone que aí se encontrava.

 

- Eu... eu chamo a Polícia, se quiser armar um sarilho disse apressadamente.

 

- Muito bem - ripostei. - Peça o chefe Fulwider. Diga-lhe que tem cá o Carmady. Acabo de vir do gabinete dele.

 

O doutor tirou a mão de cima do telefone.

 

Eu sorri para ele e rolei um cigarro entre os dedos.

 

- Vamos lá, doutor - disse-lhe. - Vamos lá. Seja simpático e talvez eu lhe conte a minha história.

 

Ele mordeu ambos os lábios, um de cada vez, olhou para o mata-borrão castanho sobre a secretária, pôs-se a mexer num canto deste, levantou-se, atravessou a sala, abriu a porta à minha frente e entrámos num corredor estreito e cinzento. Através duma porta aberta vi uma mesa de operações. Metemo-nos por outra porta mais adiante e entrámos numa sala com chão de cimento, um aquecedor a gás a um canto e ao lado uma tigela com água. Ao longo duma parede havia duas filas de jaulas com pesadas portas gradeadas.

 

Cães e gatos olhavam-nos em silêncio, na expectativa, por detrás das grades. Um pequeno chihuahua meteu-se por debaixo dum enorme gato persa vermelho com uma ampla coleira de couro no pescoço. Havia um terrier escocês com cara de mau e um rafeiro a que faltava a pele toda duma perna e um gato angorá dum cinzento muito sedoso e um sealyham e mais dois rafeiros, um fox terrier de extremidades aguçadas com um focinho que parecia uma lata.

 

Todos tinham os focinhos húmidos e os olhos brilhantes e queriam saber para quem era a visita.

 

Observei-os um por um.

 

- Estes são brinquedos, doutor - resmunguei. - Eu estou a falar num cão-polícia. Cinzento e preto, não castanho. Um macho. Nove anos de idade. Todo ele muito bonito, embora tenha a cauda demasiado curta. Aborreço-o?

 

Ele fitou-me nos olhos e fez um gesto que pretendia significar infelicidade.

 

- Sim, mas... - balbuciou. - bom... por aqui.

 

Voltámos a sair da sala. Os animais pareceram ficar desapontados, especialmente o chihuahua, que tentou trepar pela grade e quase conseguiu. Saímos por uma porta traseira para um pátio cimentado para o qual davam duas garagens. Uma estava vazia. A outra, com a porta ligeiramente aberta, era um poço de escuridão no fundo do qual um cão fazia tilintar uma corrente e roçava o focinho numa velha manta que lhe servia de cama.

 

- Tenha cuidado - avisou Sharp. - Por vezes é muito selvagem. Tinha-o lá dentro mas assustava os outros.

 

Entrei na garagem. O cão rosnou. Avancei para ele e deu um salto e fez estremecer a corrente.

 

- Olá, Voss - disse eu. - Aperta aqui a mão. Voltou a pôr a cabeça na manta. As orelhas vieram para a frente. Estava muito sossegado. Tinha olhos de lobo, com os bordos negros. Depois a cauda curva e demasiado curta começou lentamente a bater no chão.

 

- Aperta aqui a mão, rapaz - disse eu e estendi a minha. Na soleira da porta, atrás de mim, o pequeno veterinário

 

aconselhava-me prudência. O cão aproximou-se vagarosamente de mim nas suas patas grossas, voltou a pôr as orelhas na posição normal e levantou a pata esquerda. Eu abanei-a. O pequeno veterinário lamentou-se:

 

- Isto é uma grande surpresa para mim. Mr... Mr...

 

- Carmady - concluí. - Pois, é natural.

 

Dei umas palmadinhas na cabeça do cão e voltei a sair da garagem.

 

Entrei na casa e fui até à sala de espera. Empurrei as revistas para um lado e sentei-me num canto da mesa, olhando o homenzinho bonito de cima a baixo.

 

- Muito bem! - exclamei. - Desembuche. Qual é o nome dos donos dele e onde vivem?

 

Ele reflectiu um instante com ar abatido.

 

- O nome é Voss. Foram para leste e é suposto mandarem buscar o cão quando estiverem instalados.

 

- Que engraçado - comentei. - O cão chama-se boss em homenagem a um aviador alemão. E esses tipos têm o nome do cão.

 

- Você pensa que eu estou a mentir?! - exclamou exaltado.

 

- Hum, hum... Você assusta-se demasiado depressa para ser um patife. Creio que alguém se queria desfazer do cão. Esta é a minha história. Há cerca de duas semanas desapareceu da sua casa em San Ângelo uma rapariga chamada Isobel Snare. Vivia com uma tia-avó, uma velhota simpática, com vestidos de seda cinzentos, e que não é parva nenhuma. A rapariga andava com umas companhias muito esquisitas pelos clubes nocturnos e salas de jogo. À velhota cheirou-lhe a escândalo e por isso resolveu não chamar a Polícia. As suas investigações não levaram a nada até uma amiga da rapariga ter visto o cão no seu estabelecimento. Contou à tia. A tia contratou-me, porque quando a sobrinha desapareceu com o carro tinha o cão com ela.

 

Esmaguei o cigarro com o calcanhar e acendi outro. O rosto miúdo do Dr. Sharp estava branco, da cor da farinha. No seu bigode viam-se gotículas de suor.

 

- Isto ainda não é um caso de polícia - acrescentei com suavidade. - Estava a brincar consigo, quando mencionei o chefe Fulwider. Que tal você e eu mantermos isto em segredo?

 

- O que... o que quer que eu faça? - balbuciou o homenzinho.

 

- Acha que vai ter mais notícias dos donos do cão?

 

- Sim - disse apressadamente. - O homem parecia gostar muito dele. Um verdadeiro amigo de cães. O cão era bondoso para com ele.

 

- Então vai ter notícias - concluí. - Quando tiver, quero que me avise. Qual era o aspecto do tipo?

 

- Era alto e magro, com uns olhos escuros muito vivos. A mulher também era alta e magra como ele. Bem vestidos, com ar sossegado.

 

- Essa rapariga Snare é um ratinho - afirmei. - Por que acha que foi tudo feito tão às escondidas?

 

Ele olhou para os pés e não disse nada.

 

- Está bem - prossegui. - Negócio é negócio. Jogue limpo comigo e não terá dissabores. Combinado? - estendi-lhe a mão.

 

- Alinho consigo - disse suavemente, e pôs uma patinha húmida na minha mão. Apertei-a com cuidado para não a amolgar.

 

Dei-lhe a minha morada e saí para a rua inundada de sol. Andei um quarteirão até ao local onde deixara o meu Chrysler. Meti-me nele e dei a volta na esquina, ficando a uma distância que me permitia observar o De Soto e a fachada do estabelecimento de Sharp.

 

Estive ali uma meia hora. Depois o doutor saiu envergando o seu fato e enfiou-se no De Soto. Virou a esquina e meteu-se na viela que passava por detrás do pátio.

 

Eu liguei o motor do Chrysler e subi o quarteirão pelo lado oposto, postando-me no outro extremo da viela. A umas dezenas de metros ouvi rosnar, ladrar e ganir. Isso durou algum tempo. Depois o De Soto saiu do pátio e avançou na minha direcção. Afastei-me e fui para a esquina seguinte.

 

O De Soto seguiu para sul, no sentido do Arguello Boulevard, e depois rumou a leste. Na parte de trás do sedan estava acorrentado um grande cão-polícia com um açaime no focinho. Àquela distância conseguia ver a cabeça do bicho puxando a corrente.

 

Segui o De Soto.

 

Carolina Street ficava nos limites da pequena cidade junto ao mar. Terminava numa linha interurbana que já não era usada, para lá da qual se estendia uma fábrica de camiões japoneses. Havia apenas duas casas no último quarteirão, por isso resolvi esconder-me atrás da primeira, que ficava na esquina e tinha um relvado cheio de ervas. Na fachada cresciam entrelaçadas uma trepadeira alta vermelha e amarela e uma madressilva.

 

Para lá dela existiam dois ou três talhões queimados em que apenas algumas hastes sobressaíam da erva carbonizada e depois um bangalô cor de lama em mau estado com uma vedação metálica. O De Soto estacionara diante dele.

 

A porta do carro foi aberta violentamente e o doutor arrastou o cão açaimado para fora da viatura, através do portão e pelas escadas acima. Uma grande palmeira impedia-me de vê-lo à porta da casa. Fiz marcha a trás, dei meia volta a coberto da casa da esquina, percorri três quarteirões e virei numa rua paralela à Carolina que também desembocava na linha interurbana. Os carris, que estavam enferrujados e submersos numa floresta de ervas daninhas, atravessavam para o outro lado para uma rua de terra batida e voltavam no sentido da Carolina Street.

 

A rua de terra batida descia e a partir de certa altura não conseguia ver por causa do declive. Quando tinha percorrido o que me pareceram ser três quarteirões, parei, saí do carro, aproximei-me do bordo do declive e espreitei para o outro lado.

 

A casa da vedação metálica ficava a cerca de meio quarteirão. O De Soto continuava estacionado diante dela. O ladrar profundo do cão-polícia agitou o ar da tarde. Apoiei o meu estômago nas ervas e fiquei a vigiar o bangalô, à espera.

 

Não aconteceu nada durante uns quinze minutos, a não ser que o cão continuou a ladrar. Depois os latidos tornaram-se mais fortes e mais violentos. A seguir alguém levantou a voz. De imediato um homem deu um grito.

 

Levantei-me das ervas, atravessei a linha férrea a correr e fui até ao fim da rua. À medida que me aproximava da casa, comecei a ouvir o rosnar cavo e zangado do cão, preocupado com qualquer coisa, e por detrás deste som o tagarelar de uma mulher cuja voz dava mais sinais de fúria do que de medo.

 

Atrás da vedação metálica havia um pedaço de relvado ocupado sobretudo por dentes-de-leão e algumas espécies de ervas. Da palmeira pendia um pedaço de cartão, o que restava dum letreiro. As raízes da árvore tinham estragado o caminho de acesso, levantando pedaços do terreno e dispondo-os em degraus.

 

Atravessei o portão e galguei uns degraus de madeira que davam acesso a um alpendre decrépito. Bati à porta.

 

O rosnar continuava no interior, mas a voz aguda emudeceu. Ninguém me veio abrir a porta.

 

Experimentei o puxador, abri-a e entrei. Lá dentro havia um cheiro forte a clorofórmio.

 

No meio do chão, sobre um tapete amarfanhado, jazia de costas o Dr. Sharp, com sangue saindo-lhe às golfadas do pescoço. O sangue formava uma poça brilhante em redor da sua cabeça. O cão estava deitado longe dele, sobre as patas dianteiras, de orelhas caídas e com uns restos de açaime à volta do pescoço. No fundo da sua garganta era audível um ralo e os pêlos sobre a espinha estavam eriçados.

 

Atrás do cão, a porta dum cubículo estava escancarada contra a parede. No chão, um grande pedaço de algodão exalava ondas de clorofórmio que provocavam náuseas.

 

Uma morena bonita envergando roupas de trazer por casa apontava uma pistola automática na direcção do cão mas não disparou.

 

Por sobre o ombro lançou-me um olhar rápido e começou a voltar-se. O cão observava-a, de olhos semicerrados com círculos negros. Peguei na minha Luger e segurei-a de cano para baixo.

 

Ouviu-se um estalido e um homem alto, de olhos negros e com um fato-macaco azul já desbotado entrou na divisão por uma porta basculante existente no fundo. Trazia nas mãos uma caçadeira de canos cortados. Apontou-a ao meu peito.

 

- Eh, você aí! Largue esse brinquedo - disse zangado. Mexi o maxilar com a intenção de dizer alguma coisa.

 

O dedo do homem no gatilho ficou tenso. A minha arma disparou, sem que eu tivesse muito a ver com isso. O projéctil embateu na caçadeira e arrancou-a das mãos dele. A espingarda caiu pesadamente no chão. O cão deu um salto de cerca de dois metros para o lado e voltou a deitar-se.

 

O homem levantou os braços com um ar de incredulidade:

 

- Não podia perder aquela oportunidade.

 

- Baixe a sua arma também, minha senhora - disse eu. Ela moveu a língua sobre os lábios e baixou a pistola automática, afastando-se do corpo no chão.

 

- Raios! Não o abata - disse o homem. - Eu trato dele. Eu pestanejei e só depois entendi. Receava que eu quisesse abater o cão. Não se preocupara consigo próprio. Baixei um pouco a Luger.

 

- Que se passou?

 

- Esse... tentou pôr-lhe clorofórmio... a ele, um cão de combate!

 

- Pois. Se têm telefone - disse eu -, é melhor chamarem uma ambulância. Sharp não vai durar muito, com aquela ferida no pescoço.

 

A mulher disse num tom de voz neutro:

 

- Julguei que você representava a Lei.

 

Não respondi. Ela deslocou-se ao longo da parede até junto de um assento repleto de jornais que ficava debaixo da janela e pegou num telefone que estava numa das extremidades.

 

Baixei os olhos e olhei para o pequeno veterinário. O sangue parara de escorrer-lhe do pescoço. O seu rosto era o rosto mais lívido que alguma vez vira.

 

- Deixe lá a ambulância - disse à mulher. - Chame a Polícia.

 

O homem do fato-macaco baixou as mãos, apoiou-se num joelho e começou a falar numa voz suave com o cão:

 

- Calma, meu velho, calma. Somos todos teus amigos, agora, todos amigos. Calma, boss.

 

O cão rosnou e abanou um bocadinho a cauda. O homem continuou a falar com ele. O animal parou de rosnar e o pêlo voltou a ficar liso. O homem do fato-macaco prosseguiu, tentando acalmar o cão.

 

A mulher no banco junto à janela pousou o telefone e disse:

 

- Vêm a caminho. Achas que te desenvencilhas sozinho, Jerry?

 

- Claro - respondeu o homem sem tirar os olhos do animal.

 

O cão deitou-se finalmente, abriu a boca e deixou pender a língua. Esta pingava saliva, uma saliva cor-de-rosa misturada com sangue. Os pêlos do focinho estavam manchados de sangue.

 

O homem chamado Jerry disse:

 

- Eh, Voss. Eh, Voss, meu velho. Está tudo bem, agora. Tudo bem.

 

O cão estava ofegante e não se mexeu. O homem endireitou-se e aproximou-se dele, puxando-lhe uma das orelhas. O animal voltou a cabeça e deixou que ele lhe puxasse a orelha. O homem fez-lhe festas na cabeça, desapertou-lhe o açaime roído e tirou-lho.

 

Levantou-se com a ponta da corrente quebrada e o cão pôs-se de pé, obediente. Depois atravessou a porta basculante e passou para as traseiras da casa, seguindo o homem.

 

Movi-me ligeiramente, afastando-me da porta. Jerry podia ter outras armas caçadeiras. Havia algo no rosto dele que me inquietava. Era como se já o tivesse visto algures, não há muito tempo, ou numa fotografia de jornal.

 

Olhei para a mulher. Era uma morena atraente nos seus trinta anos. A roupa caseira que trazia não parecia condizer com as sobrancelhas cuidadosamente desenhadas nem com as mãos longas e macias.

 

- Como foi que aconteceu? - perguntei num tom de voz neutro, como se isso não fosse muito importante.

 

A resposta veio tensa. Dava a impressão que ela estivera a conter-se para não falar.

 

- Estamos nesta casa há cerca duma semana. Alugámo-la já mobilada. Eu estava na cozinha e Jerry no pátio. O carro parou defronte da porta e o homenzinho entrou por aqui dentro como se cá vivesse. A porta não estava trancada, suponho. Abri ligeiramente a porta basculante e vi-o empurrar o cão para o cubículo. Depois senti o clorofórmio. Em seguida, as coisas começaram a acontecer todas ao mesmo tempo e eu fui buscar uma arma e chamei Jerry da janela. Cheguei aqui mais ou menos na altura em que você entrou. Quem é o senhor?

 

- Já tinha terminado, nessa altura? - perguntei. Sharp já tinha sido mordido e estava no chão?

 

- Sim... se Sharp é o nome dele.

 

- Você e Jerry não o conheciam?

 

- Nunca o tinha visto. Ou ao cão. Mas Jerry adora cães.

 

- É melhor alterar um pouco essa parte da história sugeri. - Jerry conhecia o nome do cão: Voss.

 

Os olhos dela apertaram-se e a boca fechou-se numa expressão teimosa.

 

- Creio que está enganado - disse numa voz arrastada. Perguntei-lhe como se chamava...

 

- Quem é Jerry? - insisti. - Já o vi algures. Talvez numa revista. Donde veio a caçadeira? Vai deixar que os polícias a vejam?

 

Ela mordeu o lábio, depois levantou-se bruscamente e foi até junto da arma caída. Deixei que lhe pegasse, reparando que não pusera o dedo no gatilho. Voltou para o banco junto da janela e enfiou-a debaixo duma pilha de jornais.

 

Encarou-me.

 

- Está bem, qual é o preço? - perguntou num tom sombrio.

 

- O cão foi roubado - disse eu devagar. - O dono, uma rapariga, desapareceu. Fui contratado para a encontrar. As pessoas de quem Sharp disse que recebera o cão pareciam-se com Jerry e consigo. O nome delas era Voss. Tinham ido para leste. Alguma vez ouviu falar numa rapariga chamada Isobel Snare?

 

A mulher disse que não num tom neutro e ficou a olhar para a ponta do meu queixo.

 

O homem do fato-macaco regressou através da porta basculante, limpando o rosto com a manga. Não trazia com ele outras armas. Olhou para mim e não tinha um ar muito preocupado.

 

- Podia ajudar-vos com a Polícia - disse eu -, se tivesse quaisquer informações a cerca dessa tal Snare.

 

A mulher olhou para mim e revirou o lábio. O homem sorriu suavemente, como se tivesse na mão as cartas todas. Ouviu-se o chiar de pneus que dobravam uma esquina a grande velocidade.

 

- Oh, desembuchem - disse rapidamente. - Sharp estava assustado. Trouxe o cão de volta para o sítio onde o viera buscar. Deve ter julgado que a casa estava vazia. A ideia do clorofórmio não foi lá grande coisa, mas o tipo estava todo nervoso.

 

Não abriram a boca, nenhum deles. Limitaram-se a olhar para mim.

 

- Muito bem - disse eu, e fui até ao canto da sala. Acho que vocês formam um par esquisito. Se quem quer que seja que se aproxima não for da Polícia, começo a disparar. Não julguem que não sou capaz.

 

A mulher disse num tom de voz muito calmo:

 

- Faça como quiser.

 

Depois um carro aproximou-se a grande velocidade e detevê-se diante da porta. Deitei uma vista de olhos rápida ao interior e vi a luz vermelha no vidro e as letras P.D. nas portas. Dois enormes polícias trajando à civil saíram do carro, atravessaram o portão e subiram os degraus. Um punho bateu na porta.

 

- Está aberta - gritei.

 

A porta abriu-se e os dois chuis entraram de armas na mão.

 

Estacaram, olhando para aquilo que estava no chão. As armas voltaram-se para Jerry e para mim. O que me cobria era um tipo grande de rosto afogueado, e envergava um fato largo cinzento.

 

- Levantem as mãos... e nada de brincadeiras! - disse numa voz de trovão.

 

Eu ergui os braços mas continuei a segurar na Luger.

 

- Calma - disse-lhe. - Foi um cão que o matou, não foi uma arma. Sou um detective particular de San Ângelo. Estou aqui a investigar um caso.

 

- Ai sim? - Ele aproximou-se de mim e apontou-me a arma ao estômago. - Talvez, amigo. Havemos de tirar isso tudo a limpo, mais tarde.

 

Esticou o braço e tirou-me a pistola da mão. Depois cheirou-a, enquanto me apontava a sua.

 

- Disparou, hein? Que beleza! Volte-se.

 

- Ouça...

 

- Volte-se, amigo.

 

Girei lentamente. No momento em que me voltava vi-o meter a arma num bolso e levar a mão à coxa.

 

Isso devia-me ter alertado mas tal não aconteceu. Devo ter ouvido a deslocação do ar provocada pela matraca. De certeza que lhe senti o impacte. De súbito abriu-se um poço escuro a meus pés. Mergulhei nele e caí... caí... caí.

 

Quando voltei a mim o quarto estava cheio de fumo, suspenso no ar em linhas direitas como numa cortina de fitas. Duas janelas pareciam estar abertas numa parede ao fundo mas o fumo não se mexia. Nunca vira aquele quarto.

 

Fiquei deitado uns instantes a pensar antes de abrir a boca e gritar «Fogo!» com toda a força.

 

Depois voltei a cair na cama e desatei a rir. Não gostei do som do meu riso. Tinha qualquer coisa de pateta, mesmo para os meus ouvidos.

 

Ouvi passos algures, uma chave rodou na fechadura e a porta abriu-se. Um homem de casaco branco curto olhou para mim com uma expressão dura. Voltei um pouco a cabeça e disse-lhe:

 

- Não ligue a isso, pá. Fugiu-me da boca.

 

Ele estava arreliado. Tinha um rosto pequeno e olhos papudos. Eu não o conhecia.

 

- Se calhar quer outra vez a camisa-de-forças - disse num tom de voz desagradável.

 

- Estou óptimo, pá - disse eu. - Óptimo. Agora vou dormir uma soneca.

 

- Boa ideia - rosnou.

 

A porta fechou-se, a chave deu meia volta e os passos afastaram-se.

 

Fiquei quieto a olhar para o fumo. Sabia agora que não havia fumo a sério. Devia ser noite porque um pote de porcelana suspenso do tecto por três correntes tinha luz dentro. Junto ao rebordo havia umas pequenas excrescências coloridas, azuis e laranja alternadamente. Enquanto o examinava, eles abriram-se e de lá de dentro saíram cabeças, cabeças pequenas como as das bonecas mas cabeças vivas. Havia um homem com um boné à marinheiro, uma loura de cabeleira farta e um senhor magro de lacinho que perguntava: «Como quer o seu bife? Bem ou mal passado?»

 

Peguei na ponta do cobertor e enxuguei o suor do rosto. Depois ergui-me e pus os pés no chão. Estava descalço e envergava um pijama de flanela. Não sentira os pés quando os pousara. Passado algum tempo começaram a picar-me e ficaram cheios de agulhas e alfinetes.

 

Nessa altura já conseguia sentir o chão. Agarrei-me à borda da cama, ergui-me e dei alguns passos.

 

Uma voz, que provavelmente era a minha, dizia-me: «Delirium tremens... deliriam tremens... deliriam tremens...»

 

Vi uma garrafa de uísque sobre uma pequena mesa branca entre duas janelas. Dirigi-me para lá. Era uma garrafa de Johnny Walker e estava meio cheia. Peguei nela e bebi um golo pelo gargalo. Voltei a pousá-la.

 

O uísque tinha um sabor esquisito. Enquanto pensava nisto reparei num lavatório existente a um canto. Foi o tempo de lá chegar e vomitar.

 

Regressei à cama e deixei-me lá ficar. Vomitar tirou-me as forças, mas o quarto parecia agora um pouco mais real, um pouco menos fantástico. Podia ver as grades nas duas janelas e uma cadeira pesada. Não havia outra mobília, para além da mesa branca com a garrafa de uísque drogado. Havia uma porta que dava para um armário, mas estava provavelmente fechada.

 

A cama era uma cama de hospital e tinha umas cintas de couro dos lados, mais ou menos no sítio onde ficariam os pulsos dum homem. Sabia que estava na enfermaria duma prisão.

 

O meu braço esquerdo começou-me subitamente a doer. Puxei a manga para cima e vi no antebraço uma série de picadas de agulha, cada qual com um círculo azul e negro à volta.

 

Tinham-me dado tanta droga para me manterem sossegado que eu estava a passar um mau bocado para sair daquele estupor. Isso explicava o fumo e as cabecinhas no candeeiro do tecto. O uísque drogado fazia provavelmente parte da cura doutra pessoa.

 

Levantei-me de novo e pus-me a andar. Continuei a andar. Passado algum tempo bebi água da torneira, consegui não vomitar, bebi um pouco mais. Uma meia hora depois estaria em condições de falar com as pessoas.

 

A porta do armário estava fechada e a cadeira era demasiado pesada para mim. Desfiz a cama e arrastei o colchão para um lado. Por baixo havia uma rede metálica, segura nas pontas por molas de cerca de vinte centímetros. Levei cerca de meia hora de muito trabalho para soltar uma delas.

 

Descansei um pouco, bebi mais alguma água fria e fui até junto da porta, do lado das dobradiças.

 

Gritei «Fogo» o mais alto que pude, várias vezes.

 

Esperei, mas não muito tempo. Ouvi passos no exterior. A chave foi metida na fechadura, que deu um estalido. O homem dos olhos duros e do casaco branco entrou furioso, de olhar fixo na cama.

 

Dei-lhe com a mola no queixo e, depois, enquanto caía, na nuca. Apanhei-o pela garganta. Ele debateu-se um bom bocado. Pus-lhe um joelho na cara que me ficou a doer.

 

O homem não disse como se sentia. Tirei-lhe uma matraca do bolso e fechei a porta por dentro. Havia outras chaves na argola. Uma delas servia no meu armário. Vi as minhas roupas.

 

Vesti-me devagar, com os dedos a tremer. Bocejei muito. O homem no chão não se mexeu.

 

Fechei-o à chave e saí.

 

Ao longo dum corredor amplo e silencioso de chão de madeira e com um tapete estreito ao meio, corrimãos lançavam-se em curvas sinuosas em direcção a um átrio de entrada. Havia portas fechadas, portas grandes, pesadas, antiquadas. Não se ouvia nada do outro lado. Caminhei ao longo do corredor, cambaleante.

 

Uma porta de vidro fumado dava acesso a um vestíbulo para o qual abria a porta de entrada. Um telefone pôs-se a tocar quando ali cheguei. Uma voz de homem respondeu por detrás duma porta entreaberta donde vinha luz para o átrio debilmente iluminado.

 

Voltei para trás, dei uma espreitadela junto da porta e vi um homem a uma secretária, falando ao telefone. Esperei que desligasse e entrei.

 

Tinha um crânio ossudo e pálido, com um pouco de cabelo castanho. O rosto era esguio, amarelo e nada alegre. Os olhos dele quase saltaram quando me viu. A mão foi direita a um botão sobre a secretária.

 

Eu sorri e rosnei na direcção dele:

 

- Não faça isso. Sou um homem desesperado, guarda mostrei-lhe a matraca.

 

O sorriso dele era tão parado como o de um peixe congelado. As mãos longas e pálidas gesticulavam sobre a secretária, lembrando borboletas doentes. Uma delas aproximou-se duma gaveta.

 

Ele conseguiu soltar a língua:

 

- O senhor esteve muito doente, muito doente. Não é sensato...

 

Avancei com a matraca em direcção à sua mão. Ele recolheu-a como um caracol recolhe as antenas.

 

- Doente, não, guarda - disse eu. - Apenas drogado. Iam dando cabo do meu juízo. O que eu quero é ir-me embora, e algum uísque sem porcarias. Dê-me.

 

Ele fez gestos vagos com os dedos.

 

- Sou o doutor Sundstrand - declarou. - Isto é um hospital particular, não é uma prisão.

 

- Uísque - resmunguei. - O resto eu descubro por mim. É um estabelecimento particular muito engraçado. Tem um pessoal encantador. Uísque.

 

- No armário dos remédios - disse numa voz exausta.

 

- Ponha as mãos atrás da cabeça.

 

- Receio que se arrependa disto - disse ele pondo as mãos atrás da cabeça.

 

Aproximei-me da secretária, abri a gaveta para a qual estendera a mão e tirei de lá de dentro uma pistola automática. Guardei a matraca, dei a volta à secretária e fui até ao armário dos medicamentos que estava na parede. Havia meio litro de bourbon e três copos. Peguei em dois.

 

Verti duas bebidas.

 

- Você primeiro, guarda.

 

- Eu... eu não bebo. Sou abstêmio... - balbuciou com as mãos atrás da cabeça.

 

Voltei a acenar-lhe com a matraca. Ele baixou uma das mãos e bebeu rapidamente um dos copos. Observei-o. Não pareceu fazer-lhe mal. Cheirei a minha porção e engoli-a. Funcionou. Bebi outro copo e depois meti a garrafa no bolso do casaco.

 

- Pronto - disse-lhe. - Quem foi que me meteu aqui? Despache-se. Estou com pressa.

 

- A... a Polícia, claro.

 

- Qual Polícia?

 

Ele encolheu os ombros, sentado na cadeira. Tinha um ar doente.

 

- Um homem chamado Galbraith assinou a declaração. Perfeitamente legal, pode estar certo disso. Ele é um oficial.

 

- Desde quando é que um polícia pode assinar uma declaração num caso psiquiátrico? - perguntei eu.

 

Ele não abriu a boca.

 

- Quem foi que me deu a droga pela primeira vez?

 

- Não sei. Suponho que isso já vinha a ser feito há algum tempo.

 

Pus a mão no queixo.

 

- Dois dias - disse. - Deviam ter-me abatido. A longo prazo, as conseqüências não eram assim tão más. Adeus, guarda.

 

- Se sair daqui - disse debilmente -, será imediatamente preso.

 

- Não há-de ser só por sair daqui - disse eu com brandura.

 

Quando saí ele ainda tinha as mãos atrás da cabeça.

 

Na porta da entrada havia uma corrente e um cadeado ao lado do fecho. Ninguém tentou impedir-me de abri-los. Atravessei um alpendre antiquado e desci por um caminho ladeado por canteiros de flores. Numa árvore escura um pássaro cantava com um piar trocista. Na rua havia uma cerca de ripas brancas. Era uma casa de esquina, na confluência da Vinte e Nove e a Descanso.

 

Andei quatro quarteirões para leste até encontrar uma paragem de autocarro e esperei que chegasse um. Não houvera qualquer alarme, nem vira nenhum carro à minha procura. O autocarro chegou e eu dirigi-me para a cidade e entrei num estabelecimento de banhos turcos. Fiz sauna, tomei um duche, massagens, depois barbeei-me e bebi o resto do uísque.

 

Achei que conseguia comer. Comi e dirigi-me a um hotel desconhecido onde me registei com um nome falso. Passava das onze e meia. O jornal do sítio, que li enquanto bebia mais uísque e água, informava que um tal Dr. Richard Sharp, que fora encontrado morto numa casa vazia mas mobilada em Carolina Street, continuava a causar dores de cabeça à Polícia, que não tinha ainda pistas quanto ao assassino.

 

A data do jornal indicava que quarenta e oito horas tinham sido retiradas da minha vida sem o meu consentimento.

 

Fui para a cama dormir, tive pesadelos e acordei com suores frios. Eram os últimos sintomas de falta da droga. No dia seguinte estava bem.

 

O chefe Fulwider era um homem atarracado, um peso-pesado de olhos inquietos e com cabelo daquele tom ruivo que parece cor-de-rosa. O cabelo estava cortado muito curto e o crânio rosado brilhava por entre os cabelos cor-de-rosa. Trazia vestido um fato de flanela de cor fulva com bolsos largos, costuras nas lapelas e um corte como não se vêem muitos.

 

Apertou-me a mão, rodou na cadeira lateralmente e cruzou as pernas. Esse movimento revelou-me umas meias francesas de algodão que custavam três ou quatro dólares cada par, e uns sapatos ingleses castanhos feitos à mão a quinze ou vinte dólares, preço de saldo.

 

Pensei para com os meus botões que a mulher dele devia ser rica.

 

- Ah, Carmady - disse ele, apanhando o meu cartão do tampo de vidro da secretária. - com dois ás, hein? Está aqui em serviço?

 

- Tenho um pequeno problema - expliquei. - Você pode resolvê-lo, se fizer o favor.

 

Ele deitou o peito para fora, acenou com uma mão rosada e baixou a voz.

 

- Problemas - disse ele - é coisa que a nossa cidadezinha não tem em grandes quantidades. A nossa cidadezinha é pequena mas muito, muito limpa. Olho pela janela para poente e vejo o oceano Pacífico. Quer coisa mais limpa do que isso? Para norte fica o Arguello Boulevard e o sopé das montanhas. A leste a zona comercial mais maravilhosa que se pode imaginar e, para lá disso, um paraíso de casas e jardins bem tratados. A sul, se eu tivesse uma janela que desse para esse lado, que não tenho, veria a mais bela marina do mundo, e isto num porto tão pequeno.

 

- Eu trouxe o meu problema comigo - expliquei. - Isto é, parte dele. O resto teve origem aqui. Uma rapariga chamada Isobel Snare desapareceu de casa na grande cidade e o seu cão foi visto aqui. Encontrei o cão, mas as pessoas com quem ele estava tiveram um trabalhão ao tentarem dar cabo de mim.

 

- Ai sim? - disse o chefe numa voz ausente. As sobrancelhas deslocaram-se na sua testa. Não tinha a certeza se era eu que estava a brincar com ele ou ele a brincar comigo. Importa-se de fechar a porta à chave? - perguntou. - Você é mais novo do que eu.

 

Levantei-me, dei a volta à chave, sentei-me de novo e puxei dum cigarro. O chefe pusera entretanto uma garrafa com muito bom aspecto, dois copos e uma mão-cheia de sementes de cardamomo sobre a secretária.

 

Bebemos um copo e ele partiu duas ou três sementes. Mastigámo-las, olhando um para o outro.

 

- Conte-me o que se passa - explicou. - Agora já posso ouvir.

 

- Alguma vez ouviu falar num tipo chamado Farmer Saint?

 

- Se ouvi! - Deu uma palmada na mesa que fez voar as sementes. - Há milhares de coisas sobre esse tipo. Um assaltante de bancos, não é?

 

Eu fiz que sim com a cabeça, tentando perceber o que lhe ia por detrás dos olhos sem me fazer notado.

 

- Ele e a irmã trabalham juntos. O nome dela é Diana. Vestem-se como gente da província e atacam pequenas delegações bancárias. É por isso que lhe chamam Farmer Saint. Também há uma recompensa de mil dólares para a irmã. Claro que gostava de lhes deitar a mão - disse o chefe com firmeza.

 

- Por que raio não o fez então? -- perguntei.

 

Ele não foi ao tecto mas abriu tanto o maxilar inferior que julguei que lhe ia cair no colo. Os olhos, de tão esbugalhados, pareciam dois ovos descascados. No canto da boca havia um pouco de saliva. Fechou a boca com força.

 

Tinha sido bem representado, se é que ele estava a representar.

 

- Diga isso outra vez - murmurou.

 

Abri um jornal dobrado que trazia comigo e apontei para uma coluna.

 

- Olhe para esta história do Sharp. O vosso jornal não informou lá muito bem. Diz que um desconhecido chamou a Polícia e que esta encontrou um cadáver numa casa vazia. Isso são tretas. Eu estava lá. Farmer Saint e a irmã estavam lá. Os seus polícias estavam lá quando nós lá estávamos.

 

- Traição! - exclamou bruscamente. - Traidores no departamento!

 

O seu rosto estava agora cinzento. Encheu novamente os copos com uma mão que tremia.

 

Foi a minha vez de partir as sementes de cardamomo.

 

Pousou a bebida sem lhe ter tocado e inclinou-se para uma caixa de mogno sobre a secretária onde tinha um microfone. Ouvi o nome de Galbraith. Atravessei o gabinete e destranquei a porta.

 

Não tivemos de esperar muito tempo, apenas o suficiente para o chefe beber mais dois copos. A cor dele melhorou substancialmente.

 

Depois a porta abriu-se e o chui gordo de cara afogueada que me agredira entrou, com um cachimbo na boca e as mãos nos bolsos. Fechou a porta com o ombro e encostou-se a ela com um ar descontraído.

 

- Olá, sargento - disse eu.

 

Ele olhou-me com vontade de me socar durante muito tempo.

 

- O crachá! - gritou o chefe gordo. - O crachá! Põe-no sobre a mesa. Estás despedido!

 

Galbraith aproximou-se lentamente da secretária, apoiou nela um cotovelo e colocou o rosto a trinta centímetros do do chefe.

 

- Que se passa - perguntou, mal-educado.

 

- Tiveste o Farmer Saint nas mãos e deixaste-o escapar gritou o chefe. - Tu e aquela abécula do Duncan. Deixaste que ele te apontasse uma arma ao estômago e se raspasse. Para ti acabou-se. Estás despedido. Tens aqui tanto a fazer como uma ostra enlatada. Dá-me o crachá.

 

- Que raio de pessoa é esse Farmer Saint? - perguntou Galbraith sem se deixar impressionar, expelindo o fumo para cima do chefe.

 

- Ele não sabe! - lamentou-se este, voltado para mim. Ele não sabe! E é com este material que temos de trabalhar.

 

- Falaste em trabalhar? - perguntou Galbraith com um ar descontraído.

 

O chefe gordo deu um salto como se uma abelha lhe tivesse picado o nariz. Depois fechou um punho carnudo e atingiu Galbraith com o que me pareceu ser uma grande violência.

 

A cabeça de Galbraith afastou-se um centímetro da posição inicial.

 

- Não faças isso - avisou. - Ainda te rebenta uma veia qualquer e depois que há-de ser do departamento? - Olhou-me rapidamente e desviou de novo o olhar para Fulwider.

- Achas que lhe conte?

 

Fulwider fitou-me para ver qual era a minha reacção. Eu tinha a boca aberta e uma expressão vazia, como se fosse um campónio numa aula de Latim.

 

- Pois, diz-lhe - rosnou, agitando as articulações dos dedos.

 

Galbraith pôs uma perna por cima dum canto da mesa, apagou o cachimbo, estendeu a mão para o uísque e usou o copo do chefe para a sua bebida. Depois limpou os beiços e sorriu. Quando sorriu abriu a boca e era uma boca onde um dentista podia meter à vontade ambos os braços até aos cotovelos.

 

- Quando eu e o Dunc entrámos na sala você estava estendido no chão com o tipo magro por cima, armado - disse numa voz calma. - A miúda estava sentada num banco junto da janela, no meio dum monte de jornais. Pronto. O tipo magro começa a contar-nos uma história da carochinha. Nisto, um cão começa a uivar nas traseiras e nós desviamos os olhos para esse lado. Nessa altura a miúda tira uma caçadeira calibre doze de canos serrados de entre os jornais e aponta-a na nossa direcção. bom, que podíamos nós fazer senão portarmo-nos bem? Ela não tinha qualquer hipótese de falar, nós sim. Depois o tipo tira mais armas das calças, ata-nos e ambos nos metem num cubículo onde havia clorofórmio suficiente para nos manter sossegados, mesmo sem as cordas. Passado um bocado ouvimo-los partir em dois carros. Quando nos libertámos só lá estava o morto. Por isso resolvemos aldrabar um pouco para os jornais. Ainda não temos pistas. Como é que isto se liga à sua história?

 

- Não está mal - disse. - Se bem me lembro foi a própria mulher quem telefonou à Polícia. Mas eu podia estar enganado. O resto liga bem com o facto de eu estar no chão inconsciente.

 

Galbraith lançou-me um olhar rancoroso. O chefe examinava o polegar.

 

- Quando recuperei os sentidos - expliquei -, estava numa clínica particular de desintoxicação de alcoólicos e de drogados na Rua Vinte e Nove. É dirigida por um homem chamado Sundstrand. Eu próprio estava tão cheio de droga que não dizia coisa com coisa.

 

- Esse Sundstrand - atalhou Galbraith numa voz pesada -, esse tipo há muito tempo que é uma pulga nas nossas calças. Vamos ter com ele e desfazer-lhe a cara. Está bem, chefe?

 

- É quase certo que Farmer Saint pôs lá Carmady - disse Fulwider numa voz solene. - Por isso tem de haver uma ligação qualquer. Eu diria que sim, e levem Carmady convosco. Quer ir? - perguntou, virando-se para mim.

 

- Quero? - inquiri animadamente.

 

Galbraith olhou para a garrafa de uísque. Depois disse cautelosamente:

 

- Oferecem mil dólares por este Saint e outro tanto pela irmã. Se o apanharmos, como é que vamos dividir o bolo?

 

- Deixa-me de fora - respondi. - Eu estou a receber um salário e tenho as despesas pagas.

 

Galbraith voltou a sorrir. Balançava-se sobre os calcanhares e sorria com uma simpatia forçada.

 

- ’Tá bem. Temos o seu carro na garagem lá em baixo. Um japonês qualquer telefonou por causa dele. Vamos usá-lo para ir até lá. Só você e eu.

 

- Talvez devesses levar mais ajuda, Gal - sugeriu o chefe com um ar de dúvida.

 

- Hum, hum. Só ele e eu é mais do que suficiente. Ele é um rapazinho duro ou não estaria aqui.

 

- bom, está bem - disse o chefe com vivacidade. E vamos beber um copo a isso.

 

Mas ele ainda estava abalado. Esqueceu-se das sementes de cardamomo.

 

À luz do dia era um local agradável. Debaixo das janelas da fachada havia maciços de begónias e os amores-perfeitos formavam um tapete ao redor duma acácia. Uma roseira cobria uma latada dum lado da casa e um pássaro verde-bronze debicava qualquer coisa num tufo de ervilhas-de-cheiro que crescia contra a parede da garagem.

 

Parecia a residência dum casal idoso e sem dificuldades que tivesse vindo viver para junto do mar na velhice a fim de aproveitar ao máximo o sol.

 

Galbraith escarrou para cima do estribo do meu carro, sacudiu o cachimbo, abriu o portão e esmagou o polegar contra a campainha de cobre.

 

Aguardámos. Uma grade abriu-se na porta e um rosto esguio e amarelento mirou-nos de debaixo duma touca de enfermeira.

 

- Abra. É a Polícia - rosnou o enorme chui.

 

Ouviu-se o tilintar duma corrente e um fecho que era corrido. A porta abriu-se. A enfermeira tinha para cima de um metro e noventa, braços longos e mãos grandes, a assistente ideal dum torcionário. Passou-se qualquer coisa no rosto dela e reparei que estava a sorrir.

 

- Mas... é o Mr. Galbraith! - exclamou com vivacidade, numa voz que era ao mesmo tempo estrídula e gutural. Como está, Mr. Galbraith? Queria ver o doutor?

 

- Sim, e rápido - resmungou ele, empurrando-a para o lado.

 

Atravessámos o átrio. A porta do gabinete estava fechada. Galbraith abriu-a com um empurrão, comigo no seu encalço e a enfermeira atrás a tagarelar.

 

O Dr. Sundstrand, o abstêmio absoluto, estava a tomar o seu cordial da manhã duma nova garrafa de quarto de litro. Tinha o cabelo empastelado da transpiração e na sua cara ossuda viam-se rugas que não estavam lá na noite anterior.

 

Tirou a mão da garrafa apressadamente e presenteou-nos com o seu sorriso de peixe congelado. Disse, irritado:

 

- Mas que é isto? Mas que é isto? Julgava que tinha dado ordens...

 

- Ah, meta a barriga para dentro - disse-lhe Galbraith, arrastando uma cadeira para junto da secretária. - Irmã, ponha-se a andar.

 

A enfermeira palrou mais qualquer coisa e saiu pela porta, que fechou de imediato. O Dr. Sundstrand olhou-me de alto a baixo repetidamente. Tinha um ar infeliz.

 

Galbraith apoiou ambos os cotovelos na secretária e segurou o queixo com o punho. Fitava o médico, que estava todo contraído, com um ar venenoso.

 

Depois duma pausa que pareceu durar muito tempo, perguntou com suavidade:

 

- Onde está Farmer Saint?

 

O médico ficou de olhos arregalados. A sua maçã-de-adão andou para cima e para baixo por sobre a gola do casaco. Os olhos verdes tomaram uma expressão biliosa.

 

- Não se engasgue! - atalhou Galbraith com um rugido. - Sabemos tudo sobre o seu negócio do hospital privado, o esconderijo para patifes que dirige, as histórias de drogas e de mulheres. Passou das marcas quando se meteu com este detective particular da capital. Desta vez os seus protectores na cidade não lhe vão valer de nada. Vamos, onde está Saint? E a tal rapariga?

 

Lembrei-me, por mero acaso, que não falara em Isobel Snare diante de Galbraith, se era ela a rapariga a que se referia.

 

As mãos do Dr. Sundstrand borboleteavam sobre a secretária. Uma sensação de puro espanto associara-se ao seu mal-estar, provocando a paralisia.

 

- Onde estão? - gritou-lhe de novo Galbraith.

 

A porta abriu-se e a enorme enfermeira veio-se meter na conversa:

 

- Vá lá, Mr. Galbraith, os doentes. Lembre-se dos doentes por favor, Mr. Galbraith.

 

- Vá dar uma curva - respondeu-lhe Galbraith por sobre o ombro.

 

Ela ficou na soleira da porta. Sundstrand conseguiu finalmente falar. Era apenas um murmúrio. Numa voz cansada, disse:

 

- Como se tu não soubesses.

 

Depois a sua mão mergulhou no casaco com uma rapidez fulminante e reapareceu empunhando uma arma que brilhava. Galbraith atirou-se para o chão. O médico disparou por duas vezes, de ambas errando o alvo. A minha mão tocou na pistola, mas não puxei dela. Galbraith, no chão, deu uma gargalhada. A sua enorme mão direita mergulhou dentro do casaco e sacou duma Luger. Era igual à minha. Disparou um único tiro.

 

Nada se alterou no rosto do médico. Não vi onde a bala o atingira. A cabeça descaiu e bateu na secretária e a sua arma tombou pesadamente no chão. Ficou imóvel com o rosto colado ao tampo.

 

Galbraith apontou a arma na minha direcção e levantou-se. Eu voltei a olhar para ela. Tinha a certeza de que era a minha.

 

- É um método óptimo para obter informações - disse por dizer.

 

- Baixa as mãos, detective. Não queres brincar, pois não. Baixei as mãos.

 

- Lindo - comentei. - Suponho que esta cena foi arranjada para liquidar o doutor.

 

- Ele disparou primeiro, não foi?-

 

- Pois - respondi sem convicção. - Ele disparou primeiro.

 

A enfermeira deslizava ao longo da parede na minha direcção. Não emitira qualquer som desde que Sundstrand fora abatido. Estava quase a meu lado. Subitamente, mas demasiado tarde, vi num relance os nós dos dedos duma mão que era peluda.

 

Esquivei-me, mas não o bastante. Um golpe devastador pareceu abrir-me a cabeça de alto a baixo. Ergui-me contra a parede, com os joelhos cheios de água e o cérebro esforçando-se por impedir a mão direita de sacar a arma.

 

Endireitei-me. Galbraith olhou-me com malícia.

 

- Não foi lá muito esperto - disse-lhe. - Você tem a minha Luger na sua mão. Isso estraga o plano, não é verdade?

 

- Estou a ver que percebeste, detective.

 

A enfermeira tagarela disse, no silêncio que se seguiu:

 

- Santo Deus, o tipo tem uns queixos que parecem uma pata de elefante. ia-me partindo os ossos da mão.

 

A morte dançava nos olhinhos de Galbraith.

 

- E que tal lá em cima?

 

- Foi-se tudo ontem à noite. Experimento outra vez?

 

- Para quê? Ele não sacou da pistola e é demasiado duro para ti, minha linda. Chumbo é o que ele quer.

 

- Devia barbear a sua linda duas vezes por dia para este trabalho - sugeri.

 

A enfermeira sorriu e tirou a touca e a peruca loura, revelando uma cabeça rapada. Depois ela - ou antes ele tirou uma arma de debaixo do uniforme de enfermeira.

 

- Foi em legítima defesa, está a ver? - explicou Galbraith. - Você lutou com o doutor mas ele disparou primeiro. Porte-se bem e Dunc e eu vamos ver o que podemos fazer.

 

Esfreguei o maxilar com a mão esquerda.

 

- Ouça, sargento, tenho tanto sentido de humor como qualquer outra pessoa. Você agrediu-me naquela casa de Carolina Street e não disse nada. Eu também não. Achei que devia ter as suas razões e que me levaria ao tapete no momento oportuno. Acho que sei quais são as razões. Creio que sabe onde está Saint, ou pode encontrá-lo. Saint sabe onde está a rapariga chamada Snare porque tem o cão dela. Vamos lá combinar este negócio de modo a dar para os dois.

 

- Nós temos o nosso arranjinho, seu palerma. Prometi ao Doe que o trazia de volta e que o deixava brincar consigo. Pus o Dunc a fazer de enfermeira para o ajudar a tratar-lhe da saúde. Mas era da saúde dele que nós queríamos tratar realmente.

 

- Muito bem - comentei. - E o que é que eu ganho com isso?

 

- Talvez mais uns minutos de vida.

 

- Pois. Não julgue que estou a tentar enganá-lo - disse eu -, mas olhe para a janela na parede atrás de si.

 

Galbraith não se mexeu nem tirou os olhos de mim. Os seus lábios grossos esboçaram um sorriso.

 

Duncan, o travesti, olhou e deu um grito.

 

Uma pequena janela quadrada de vidro escurecido no alto da parede abrira-se em silêncio. Eu estava a olhar directamente para ela, por cima da cabeça de Galbraith, para o cano escuro duma metralhadora apoiada no peitoril e para os olhos negros e duros que espreitavam por detrás.

 

Uma voz que ouvira pela última vez acalmando um cão disse:

 

- E que tal largar o brinquedo, irmãzinha? E você aí na mesa, esteja quieto.

 

O polícia abriu a boca enorme. Depois todos os músculos do seu rosto se retesaram, e ele voltou-se e a Luger disparou uma única vez.

 

Atirei-me para o chão no preciso instante em que a metralhadora disparou uma rajada curta. Galbraith caiu ao lado da secretária, de costas, com as pernas torcidas. Do nariz e da boca escorria-lhe sangue.

 

O chui com o uniforme de enfermeira ficou da cor da sua touca engomada. Largou a arma. As mãos dele pareciam querer agarrar o tecto.

 

Fez-se um silêncio estranho. Cheirava a pólvora, Farmer Saint falou para baixo com alguém do lado de fora da casa.

 

Ouviu-se o ruído duma porta que se abria e fechava e passos rápidos ao longo do átrio. A porta da nossa sala abriu-se. Diana Saint entrou empunhando um par de pistolas automáticas. Uma mulher alta e bonita, de pele morena e cabelo escuro, com mãos enluvadas que seguravam armas.

 

Levantei-me, mantendo as mãos bem à vista. Ela falou calmamente para a janela, sem olhar para lá.

 

- Está bem, Jerry. Eu tomo conta deles.

 

A cabeça e os ombros de Saint, bem como a metralhadora, desapareceram da janela, revelando um céu azul e, ao longe, os ramos finos de uma árvore alta.

 

Ouviu-se um baque, como se uns pés tivessem saltado duma escada para um alpendre de madeira. Na sala éramos cinco estátuas, duas caídas.

 

Alguém tinha de fazer alguma coisa. A situação pedia mais duas mortes. Do ponto de vista de Saint, não me parecia que pudesse ser outra a solução. Tinha de haver uma limpeza geral.

 

O estratagema não funcionara quando não era um estratagema. Tentei novamente e desta vez era mesmo. Olhei por cima do ombro da mulher, afivelei um grande sorriso e disse numa voz grossa:

 

- Está bem, Mike. Chegas mesmo a tempo.

 

Não a enganei, é claro, mas pu-la furiosa. O seu corpo ficou tenso e ela disparou na minha direcção com a arma da mão direita. Era uma arma grande para uma mulher e ela não aguentou o coice. A outra pistola também disparou, mas não vi para onde fora o tiro. Mergulhei por debaixo das armas.

 

O meu ombro atingiu-a na coxa e ela desequilibrou-se e deu com a cabeça na quina da porta. Não estive com meias medidas para lhe arrancar as armas das mãos. Fechei a porta com um pontapé, ergui-me e dei a volta à chave. Depois esquivei-me dum sapato de salto alto que tentava desesperadamente atingir-me no nariz.

 

- Boa -- disse Duncan e mergulhou em direcção à sua pistola, que estava no chão.

 

- Vigie essa janela se quer viver - gritei-lhe.

 

Depois fui para trás da mesa, arrastando o telefone para longe do cadáver do Dr. Sundstrand, para tão longe da porta quanto o fio o permitia. Deitei-me no chão sobre o estômago e comecei a marcar um número.

 

Nesse instante Diana reanimou-se e gritou:

 

- Apanharam-me, Jerry! Eles apanharam-me!

 

A metralhadora começou a escavacar a porta ao mesmo tempo que eu gritava ao ouvido do sargento de serviço.

 

Pedaços de madeira e estuque voaram em todas as direcções como murros num casamento de irlandeses. Projécteis faziam saltar o corpo de Sunsdtrand, como se ele estivesse a voltar à vida. Atirei o telefone para o lado, peguei nas pistolas de Diana e comecei a disparar contra a porta, do nosso lado. Através duma brecha conseguia ver um pedaço de tecido. Disparei nessa direcção.

 

Não podia ver o que fazia Duncan. Depois percebi. Um disparo que não podia ter vindo do outro lado da porta atingiu Diana no queixo. Ela voltou a cair e não se levantou.

 

Um outro disparo que não atravessara a porta arrancou-me o chapéu. Rolei sobre mim mesmo e gritei na direcção de Duncan. A sua arma descreveu um arco, seguindo-me. Rosnava como um animal. Gritei de novo.

 

Quatro manchas vermelhas redondas apareceram no uniforme da enfermeira em diagonal, à altura do peito. Começaram a alastrar enquanto Duncan caía.

 

Ouvi algures o ruído duma sirena. Era a minha sirena, vinha a caminho, o ruído era cada vez mais forte.

 

A metralhadora calou-se e um pé pontapeou a porta. Esta estremeceu, mas o fecho não cedeu. Disparei mais quatro vezes na sua direcção, para longe do fecho.

 

A sirena tornou-se mais forte. Saint tinha de se pôr a andar. Ouvi os seus passos atravessando o átrio a correr. Uma porta bateu. Um carro arrancou numa viela nas traseiras. Depois o ruído do carro tornou-se mais fraco à medida que o som da sirena se tornava mais intenso.

 

Rastejei até junto da mulher e olhei para o sangue que tinha no rosto, no cabelo e na parte da frente do casaco. Toquei-lhe na face. Ela abriu os olhos lentamente, como se as pálpebras lhe pesassem muito.

 

- Jerry... - murmurou.

 

- Morreu - menti. - Onde está Isobel Snare, Diana?

 

Os olhos fecharam-se de novo. Duas lágrimas brilhavam, as lágrimas dum moribundo.

 

- Onde está Isobel, Diana? - implorei. - Seja boa e diga-me. Não sou chui. Sou amigo dela. Diga-me, Diana.

 

- Pus naquilo toda a ternura de que fui capaz.

 

Os seus olhos abriram-se ligeiramente. De novo, num murmúrio:

 

- Jerry...

 

Depois o murmúrio morreu e os olhos fecharam-se. A seguir os lábios moveram-se mais uma vez e, num sussurro, pronunciaram uma palavra que soou como «Monty».

 

E foi tudo. Ela morreu.

 

Ergui-me lentamente e fiquei a escutar as sirenas.

 

Estava a anoitecer e as luzes acendiam-se aqui e além num edifício de escritórios do outro lado da rua. Passara toda a tarde no gabinete de Fulwider. Contara a minha história vinte vezes. Era tudo verdade... o que contara.

 

Tinham entrado e saído chuis, tipos da balística e das impressões digitais, gente dos arquivos, repórteres, meia dúzia de pessoas da Câmara Municipal e até um correspondente da Associated Press. O correspondente não gostou do comunicado distribuído e declarou-o.

 

O chefe gordo estava suado e desconfiado. Tirara o casaco, tinha os sovacos negros e o seu cabelo curto estava encaracolado como se o tivessem chamuscado. Sem ter a certeza daquilo que eu sabia ou não sabia, não se arriscava a deixar-me sair. Tudo quanto podia fazer era gritar, choramingar e entre ambas as coisas tentar embebedar-me.

 

Eu estava a ficar bêbado e a situação não me desagradava.

 

- Ninguém disse nada de nada! - exclamou numa voz lamurienta pela centésima vez.

 

Eu bebi outro copo, fiz um gesto vago com a mão e afivelei uma cara de parvo.

 

- Nem uma palavra, chefe - disse num tom de voz um pouco ridículo. - Cá o rapaz é que lhe poderia contar. Mas morreram todos muito depressa.

 

Ele segurou no queixo.

 

- Que engraçadinho - rosnou. - Quatro mortos estendidos no chão e você sem uma beliscadura.

 

- Fui o único - expliquei - que se atirou ao chão quando ainda tinha alguma saúde.

 

Ele segurou na orelha direita.

 

- Está aqui há três dias - queixou-se. - Em três dias tivemos mais crimes do que em três anos antes de você chegar. Não é coisa deste mundo. Devo estar a ter um pesadelo.

 

- Não me pode culpar, chefe - resmunguei. - Eu vim até cá à procura duma rapariga. Continuo à procura dela. Não fui eu quem disse ao Saint e à irmã que se viessem esconder na sua cidade. Quando dei com ele, avisei-o. O mesmo não se pode dizer dos seus polícias. Não fui eu quem matou Doe Sundstrand antes que se lhe pudesse arrancar alguma coisa. E continuo sem idéia alguma do que levou a porem lá aquela enfermeira falsa.

 

- Eu também - gritou Fulwider. - Mas o facto de estar crivada de balas é da minha responsabilidade. Tenho tantas hipóteses de me desenvencilhar deste caso que o melhor é ir já à pesca.

 

Bebi outro copo e dei um soluço bem-disposto.

 

- Não diga isso, chefe - protestei. - O senhor limpou a cidade uma vez e pode fazê-lo de novo. Isto não passou dum caso que deu para o torto.

 

Ele deu uma volta completa na cadeira e socou a parede por detrás dele. Depois voltou a pousar as mãos sobre a mesa. Olhou-me furioso, agarrou na garrafa de uísque mas depois não lhe tocou, como se pensasse que era mais eficaz no meu estômago.

 

- Proponho-lhe um negócio - rosnou. - Você volta para San Ângelo e eu esqueço-me de que foi a sua arma que matou o Sundstrand.

 

- Não é bonito dizer isso a um homem que anda a fazer pela vida, chefe. O senhor sabe como foi que as coisas se passaram.

 

O seu rosto voltou a ficar cinzento por um instante. Tirou-me as medidas para mandar fazer um caixão. Depois aquilo passou-lhe e ele deu uma palmada na mesa e disse, animado:

 

- Você tem razão, Carmady. Eu não podia fazer uma coisa dessas, não é? Você continua a ter de encontrar a rapariga, não continua? Está bem, vá para o hotel e descanse um bocado. Eu vou trabalhar neste caso durante a noite e falo consigo amanhã de manhã.

 

Bebi mais um pouco, que era tudo o que restava na garrafa. Sentia-me muito bem. Apertei-lhe a mão por duas vezes e cambaleei à saída do seu gabinete. Flashes explodiram por todo o lado no corredor.

 

Desci as escadas do edifício da Câmara Municipal, dei a volta ao edifício e dirigi-me à garagem da Polícia. O meu Chrysler azul estava de volta. Parei de fazer de bêbado e fui por ruas laterais até junto do mar. Caminhei ao longo do passeio de cimento molhado na direcção dos dois parques de diversões e do Grande Hotel.

 

Estava a anoitecer. Nos cais viam-se luzes acesas. Por detrás do quebra-mar do porto de abrigo para iates eram visíveis luzes nos mastros das pequenas embarcações. Numa barraca pintada de branco, um homem fritava salsichas voltando-as com um longo garfo e anunciava:

 

- Tragam fome, ó gentes. Há aqui belos cachorros quentes. Tragam fome, ó gentes.

 

Acendi um cigarro e fiquei ali a olhar o mar. Subitamente, vi luzes acenderem-se à distância num grande barco. Fiquei a olhar para elas, mas não se mexiam. Fui até junto do homem dos cachorros quentes.

 

- Está ancorado? - perguntei, apontando com o dedo. Ele olhou pelo canto da barraca e torceu o nariz com desdém.

 

- Aquilo é um barco onde se joga. Chamam-lhe o «Cruzeiro Parado», porque não sai dali. Se acha os do Tango demasiado desonestos, então experimente aqueles... Sim, meu caro senhor, aquilo é o Montecito. E que tal um cachorro quente?

 

Pus vinte e cinco cêntimos sobre o balcão.

 

- Coma você um - disse-lhe em voz baixa. - Onde fica a praça de táxis?

 

Não estava armado. Fui ao hotel buscar a minha outra pistola.

 

Ao morrer, Diana Saint falara em «Monty».

 

Talvez não tivesse vivido tempo suficiente para dizer «Montecito».

 

Chegado ao hotel, deitei-me e adormeci como se me tivessem anestesiado. Eram oito horas quando acordei, cheio de fome.

 

Fui seguido desde o hotel, à distância. É claro que aquela cidadezinha limpa não tinha crimes em número suficiente para os chuis serem bons nesse tipo de coisas.

 

Por quarenta cêntimos foi uma viagem longa. O táxi marítimo, um velho barco de corrida já sem grande parte dos acessórios, deslizou por entre os iates ancorados e deu a volta ao quebra-mar. A ondulação começou a fazer-se sentir. Por companhia, para além do cidadão de ar duro ao volante, tinha apenas dois casais de namorados que começaram a beijar-se logo que a escuridão nos envolveu.

 

Olhei para trás, para as luzes na cidade, e esforcei-me por não pensar demasiado no meu jantar. As luzes do barco, inicialmente brilhantes, afastadas umas das outras, aproximaram-se formando uma pulseira no meio da noite. Depois transformaram-se numa mancha amarelo-alaranjada à tona da água. O táxi embatia nas ondas invisíveis e balouçava muito. No ar pairava uma névoa fria.

 

As escotilhas de bombordo do Montecito tornaram-se maiores. O táxi descreveu uma curva larga, aproximou-se fazendo um ângulo de quarenta e cinco graus, e deslizou suavemente até junto duma escada fortemente iluminada. O ruído do motor tornou-se menos intenso e depois cessou.

 

Um rapaz com uns olhos que pareciam abrunhos e uma boca de gangster e que envergava um uniforme azul ajudou as raparigas a sair, depois os seus acompanhantes, e fez-lhes sinal para que subissem. O modo como olhou para mim disse-me alguma coisa sobre ele. O modo como me apalpou o coldre da axila disse-me mais ainda.

 

- Na - disse com uma voz suave. - Na... Levantou o queixo para o homem do táxi que lançou uma

 

corda do barco, rodou um pouco o volante e subiu para a plataforma, postando-se atrás de mim.

 

- Na - ronronou o tipo do uniforme azul. - Não se usam brinquedos destes aqui no barco, mister. Lamento.

 

- Faz parte da minha roupa - tentei explicar. - Sou um detective particular. Eu deixo a arma no vestiário.

 

- Lamento, mas não temos vestiários para este tipo de coisas. É melhor pôr-se a andar.

 

O homem do táxi meteu-me um braço por debaixo do meu braço direito. Encolhi os ombros.

 

- Volte para o barco - rosnou atrás de mim. - Devo-lhe quarenta cêntimos. Vamos.

 

- Está bem - disse para o tipo do uniforme. - Se não querem o meu dinheiro, o problema é vosso. Isto não é maneira de tratar um visitante. Isto é...

 

O seu sorriso suave e silencioso foi a última coisa que vi. O táxi afastou-se e a ondulação fez-se sentir de novo. A ideia de deixar para trás aquele sorriso irritou-me.

 

O regresso pareceu mais longo. Não falei com o motorista e ele não falou comigo. Quando saí para o cais ele disse nas minhas costas, num tom trocista:

 

- Talvez uma noite destas, quando não estivermos tão ocupados, detective.

 

Meia dúzia de clientes esperando a sua vez de embarcar olharam para mim. Passei por eles, saí da sala de espera e dirigi-me para as escadas que davam acesso a terra firme.

 

Um tipo corpulento de cabelo ruivo, com uns sapatos sujos, umas calças manchadas de óleo e um casaco azul rasgado, ergueu-se do parapeito onde estava apoiado e deu-me um encontrão, como que por acaso.

 

Parei e fiquei à espera. Ele disse em voz baixa:

 

- Que se passa, chui? Não teve sorte naquele barco infernal?

 

- Precisa mesmo de saber?

 

- Sou uma pessoa que sabe ouvir.

 

- Quem é você?

 

- Pode chamar-me Red.

 

- Saia do meu caminho, Red. Estou ocupado.

 

Ele sorriu com um sorriso triste e tocou-me no peito, do lado esquerdo:

 

- Esse brinquedo dá um bocado nas vistas debaixo desse fato leve - explicou. - Quer ir a bordo? Não é impossível, se tiver um motivo forte.

 

- E quanto é o motivo forte? - perguntei-lhe.

 

- Cinquenta dólares. Mais dez se for ferido no meu barco. Eu comecei a afastar-me.

 

- Vinte e cinco pela ida - disse rapidamente. - Talvez você regresse com amigos, hein?

 

Afastei-me dele quatro passos antes de dar meia volta e lhe dizer:

 

- Negócio fechado. Depois continuei a andar.

 

No início do parque de diversões havia um estabelecimento iluminado - o Tango Parlour - que já estava cheio de gente àquela hora. Entrei, encostei-me a uma parede e fiquei a olhar para os números que iam aparecendo num indicador eléctrico e para um jogador da casa fazendo batota.

 

Uma forma grande e azul materializou-se a meu lado e eu senti o cheiro do alcatrão. Uma voz suave, cava e triste, disse:

 

- Precisa de ajuda?

 

- Ando à procura duma rapariga, mas quero fazê-lo sozinho. E você, qual é o seu ramo de actividade? - Não olhei para ele enquanto falávamos.

 

- Um dólar aqui, outro ali. Gosto de comer. Estive na Polícia mas fui expulso.

 

Gostei que me tivesse dito aquilo.

 

- Você deve ter-se metido em negócios pouco claros disse-lhe, enquanto observava o jogador da casa fazendo deslizar uma carta sobre a mesa com o polegar sobre o número errado, e o tipo da banca pôr o polegar no mesmo sítio e levantar a carta.

 

Senti que Red sorria.

 

- Vejo que já conhece um pouco da nossa cidadezinha. As coisas passam-se do seguinte modo. Tenho um barco a motor e conheço lá no outro uma escotilha para cargas e descargas que pode ser aberta. De vez em quando faço uns serviços para um sujeito. Não há muitos tipos na ponte de baixo do barco. Serve-lhe?

 

Peguei na carteira, tirei uma nota de vinte e cinco dólares e passei-lha para a mão. A nota desapareceu num bolso manchado de alcatrão.

 

Red disse «Obrigado» em voz baixa e partiu. Deixei que se afastasse um pouco antes de o seguir. Ele era fácil de ver, mesmo numa multidão, por causa do seu tamanho.

 

Passámos pela marina e pelo segundo parque de diversões. Para lá deste as luzes tornaram-se mais escassas e a multidão foi rareando até desaparecer. Um cais escuro e pequeno sobressaía da água e tinha barcos amarrados a todo o seu comprimento. O meu homem encaminhou-se para lá.

 

Parou quase no extremo, junto duma escada de madeira.

 

- vou trazê-lo para aqui - anunciou. - Faz algum barulho a aquecer.

 

- Oiça - disse-lhe com uma certa urgência na voz. Tenho de telefonar a um tipo. Tinha-me esquecido.

 

- Isso arranja-se. Venha comigo.

 

Segui-o ao longo do cais, até junto dum pequeno alçapão. Ele fez tilintar umas chaves numa corrente e abriu um aloquete. Depois tirou lá de dentro um telefone e levou o auscultador ao ouvido.

 

- Ainda funciona - anunciou numa voz divertida. Deve pertencer a uns patifes quaisquer. Não se esqueça de voltar a pôr o aloquete.

 

Red desapareceu silenciosamente, confundindo-se com a noite. Durante dez minutos ouvi a água batendo contra os pilares do cais e o ruído ocasional duma gaivota no escuro. Depois um motor começou a trabalhar a grande distância. Isso durou vários minutos. A seguir o som cessou abruptamente. Outros tantos minutos passaram. Ouvi um baque no fundo da escada e uma voz de lá de baixo disse:

 

- Tudo a postos.

 

Dirigi-me rapidamente até junto do telefone, marquei um número e pedi para falar com o chefe Fulwider. Já tinha ido para casa. Marquei outro número, atendeu-me uma mulher, pedi para falar com o chefe, disse que era do departamento.

 

Aguardei de novo. Depois ouvi a voz do chefe gordo. Parecia ter a boca cheia de batatas cozidas.

 

- Sim? Não se pode comer em paz? Quem é?

 

- Carmady, chefe. Saint está no Montecito. Lamento mas fica fora da sua zona.

 

Ele começou a gritar como um louco. Desliguei-lhe o telefone na cara, voltei a metê-lo no seu cubículo de zinco e fechei o aloquete. Desci a escada de madeira e juntei-me a Red.

 

O enorme barco de corrida negro deslizou sobre as águas cheias de óleo. Não vinha nenhum som do tubo de escape mas a água borbulhava junto ao casco.

 

As luzes da cidade transformaram-se numa mancha amarela indefinida. As luzes do Montecito voltaram a crescer para mim.

 

Não havia holofotes do outro lado do barco. Red reduziu bastante a velocidade e aproximou-se da popa, descrevendo um arco, e deslizou ao longo das chapas cheias de óleo com a elegância dum cavalheiro num átrio de hotel.

 

Por cima de nós eram visíveis portas duplas em ferro, um pouco adiante dos anéis cheios de limos duma corrente. O barco de corrida encostou-se ao velho casco e sob os nossos pés eu sentia a água do mar a chapinhar. A sombra do enorme ex-polícia ergueu-se. Uma corda enrolada subiu no ar, prendeu-se a qualquer coisa e voltou a cair dentro do nosso barco. Red esticou-a e enrolou-a à volta duma peça do motor.

 

- É lá no alto. Temos de subir pelo casco - disse ele em voz baixa.

 

Agarrei no volante e segurei a frente do barco contra o casco escorregadio. Red estendeu o braço para uns degraus de ferro e saltou com um grunhido, segurando-se com dificuldade porque os sapatos escorregavam nos degraus molhados.

 

Passado algum tempo ouvi um estalido mais acima e vi uma fresta de luz amarela surgir no meio do nevoeiro. A silhueta duma porta pesada ficou desenhada contra a luz, assim como a cabeça curvada de Red.

 

Subi os degraus atrás dele. Foi um trabalho muito árduo. Finalmente alcancei, ofegante, um porão malcheiroso repleto de caixas e barris. Ratazanas escondiam-se nos cantos mais escuros. O gigante colou os lábios ao meu ouvido:

 

- Daqui é fácil chegarmos até à passagem na casa das máquinas. Uma das caldeiras há-de estar a funcionar, por causa da água quente e dos geradores. Isso significa que está lá um tipo. Eu trato dele. Por cima ficam as instalações da tripulação. Na casa das máquinas mostro-lhe um ventilador que não tem grade. Leva ao tombadilho. Depois é consigo.

 

- Você deve ter familiares a bordo - comentei.

 

- Deixe isso para lá. Um tipo aprende certas coisas quando está no cais. Talvez eu trabalhe com um grupo que quer dar cabo disto. Você vem-se embora depressa?

 

- Hei-de dar um belo mergulho lá de cima - disse-lhe. Tome lá.

 

Tinha tirado mais notas da minha carteira e meti-lhas na mão.

 

Ele abanou a cabeça ruiva.

 

- Hum, hum. Isso fica para a viagem de regresso.

 

- Estou a pagar-lha já - disse. - Mesmo que não use o barco. Pegue na massa antes que eu me ponha a chorar.

 

- bom... Obrigado, amigo. Você é um tipo fixe. Avançámos por entre as caixas e os barris. A luz amarela

 

vinha duma passagem que ficava mais abaixo. Percorremo-la e fomos dar a uma estreita porta de ferro. Esta dava acesso a um passadiço. Caminhámos ao longo dele, descemos uma escada de aço cheia de óleo ouvindo o silvo lento da caldeira e avançámos em direcção a ele por entre montanhas de ferro.

 

Ao dobrar duma esquina vimos um italiano baixo e de aspecto sujo, envergando uma camisa de seda vermelha, que estava sentado debaixo duma lâmpada numa cadeira de escritório de metal. Estava a ler um jornal, com a ajuda duns óculos de aros metálicos e dum indicador negro.

 

- Olá, minorca - disse Red com suavidade. - Como têm passado os bambinos?

 

O italiano abriu a boca e fez um gesto rápido com a mão. Red agrediu-o. Deitámo-lo no chão e rasgámos-lhe a camisa vermelha para o prender e para improvisar uma mordaça.

 

- Não se deve bater num tipo com óculos - comentou Red. - Mas um tipo aqui em baixo facilmente o ouviria a trepar pelo ventilador. Lá em cima eles não vão dar por nada.

 

Eu disse que era assim mesmo que queria que as coisas se passassem. Deixámos o italiano amarrado no chão e fomos até junto do ventilador que não tinha grade. Apertei a mão de Red e disse que esperava voltar a vê-lo. Depois comecei a subir a escada no interior do ventilador.

 

Estava frio e escuro e a neblina descia pelo ventilador abaixo. A ascensão pareceu levar muito tempo. Após três minutos que pareceram uma hora atingi a abertura e espreitei com cuidado. Próximo dela havia barcos cobertos com lonas. Entre dois dos barcos ouvia-se um rumor de vozes. A música era audível, vinda de baixo. Por cima havia um mastro com uma luz e algumas estrelas brilhavam por entre camadas de névoa fina.

 

Pus-me à escuta mas não ouvi sirenas de barcos da Polícia. Saí do ventilador e acocorei-me.

 

O rumor de vozes vinha dum par de namorados abraçados debaixo dum dos barcos. Não me ligaram nenhuma. Caminhei ao longo do tombadilho e passei por três ou quatro portas de camarotes que estavam fechadas. Por detrás das persianas de duas delas havia alguma luz. Pus-me à escuta mas nada ouvi para além dos gritos e risadas dos clientes no nível inferior.

 

Agachei-me num canto escuro, inspirei fundo e soltei um uivo - o uivo dum lobo cinzento, só e esfomeado, e longe da sua toca. Um uivo suficientemente raivoso para desencadear um grande sarilho.

 

Respondeu-me o ladrar grosso dum cão-polícia. Mais à frente, no convés escuro, uma rapariga deu um grito. Uma voz de homem disse:

 

- Julgava que os bêbados tinham morrido todos. Ergui-me, saquei da pistola e corri em direcção aos latidos.

 

O ruído vinha dum camarote do outro lado do convés.

 

Encostei um ouvido à porta e escutei uma voz de homem tentando acalmar o cão. O cão parou de ladrar, rosnou uma ou duas vezes e depois calou-se. Uma chave rodou na porta a que me tinha encostado.

 

Afastei-me dela e ajoelhei-me. A porta abriu-se alguns centímetros e uma cabeça esguia espreitou. A luz dum candeeiro fazia brilhar um cabelo escuro.

 

Ergui-me e bati numa cabeça com o cano da minha arma. O homem caiu-me nos braços. Empurrei-o para dentro do camarote e deitei-o num beliche.

 

Voltei a fechar a porta e tranquei-a. Uma rapariguinha de olhos muito abertos estava encolhida no outro beliche.

 

- Olá, Miss Snare - disse eu. - Deu-me muito trabalho encontrá-la. Quer voltar para casa?

 

Farmer Saint rolou no beliche e sentou-se, segurando a cabeça. Ficou calado, observando-me com os seus olhos escuros e penetrantes. Tinha nos lábios um sorriso forçado, quase bem-disposto.

 

Corri o camarote com os olhos e não vi o cão, mas vi uma porta de comunicação por detrás da qual ele podia estar. Voltei a olhar para a rapariga.

 

Não era nada de especial, como a maioria das pessoas que criam a maioria dos problemas. Estava aninhada no beliche, com os joelhos dobrados, e o cabelo caía-lhe sobre um olho. Tinha um vestido de malha e meias e sapatos desportivos. Os joelhos eram ossudos. Tinha o ar duma colegial.

 

Revistei Saint em busca duma arma, mas não tinha nenhuma. Ele sorriu-me.

 

A rapariga levantou uma mão e pôs o cabelo para trás. Olhava-me como se eu estivesse a alguns quarteirões de distância. Depois soluçou e começou a chorar.

 

- Casámo-nos - disse Saint em voz baixa. - Ela julga que você se prepara para me matar. O truque do lobo a uivar foi muito bom.

 

Eu não abri a boca. Pus-me à escuta. Não vinha qualquer ruído do exterior.

 

- Como soube que eu estava aqui? - perguntou Saint.

 

- Diana disse-me... antes de morrer- respondi com brutalidade.

 

Os olhos dele tinham uma expressão magoada.

 

- Não acredito, detective.

 

- Você fugiu e deixou-a numa alhada. O que é que esperava?

 

- Pensei que os polícias não disparariam sobre uma mulher e que poderia depois negociar com eles. Quem foi que a matou?

 

- Um dos polícias de Fulwider. Você matou-o a ele. Ele inclinou a cabeça para trás num gesto violento. Por

 

uns instantes o seu olhar exprimia uma grande fúria. Depois olhou de lado para a rapariga e sorriu.

 

- Olá, boneca. Eu safo-te disto. - Voltou-se de novo para mim. - Admitamos que eu me entrego sem luta. Há alguma maneira dela se safar?

 

- O que é que quer dizer com isso da luta? - perguntei num tom trocista.

 

- Tenho muitos amigos neste barco, detective. Isto ainda mal começou.

 

- Foi você que a meteu nesta história - disse-lhe. - Não tem maneira de a safar. É o preço que tem de pagar.

 

Ele acenou lentamente com a cabeça, olhando para o chão entre os pés. A rapariga parou de chorar, o tempo suficiente para limpar as lágrimas do rosto. Depois recomeçou.

 

- Fulwider sabe que estou aqui? - perguntou Saint, falando devagar.

 

- Sim.

 

- Foi você quem lhe disse?

 

- Sim.

 

Ele encolheu os ombros.

 

- Está certo... do seu ponto de vista. Claro. Só que eu não vou dizer nada se o Fulwider me apertar. Se conseguisse falar com o procurador distrital, talvez o convencesse de que ela não tem nada a haver com o meu trabalho.

 

- Também devia ter pensado nisso - disse-lhe num tom de voz sombrio. - Não precisava de ter voltado à clínica do Sundstrand e começado a disparar a sua metralhadora.

 

Ele atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

 

- Não? Suponha que pagava dez mil dólares a um tipo para ter protecção e que ele o enganava e enfiava a sua mulher num falso hospital para drogados e lhe dizia para se pôr a andar e para ir para bem longe, se não queria que o corpo dela desse à costa. O que é que você fazia... sorria ou ia até lá bem armado falar com o tipo?

 

- Ela não estava lá, nessa altura - disse-lhe. - Você estava era doido por matar. E se não tivesse ficado com aquele cão até ele matar um homem, quem o protegia não se teria assustado nem tentado entregá-lo.

 

- Gosto de cães - afirmou Saint calmamente. Quando não estou a trabalhar até sou um tipo simpático, mas não gosto que me pisem os calos.

 

Eu continuava à escuta. Do convés não vinha ruído algum.

 

- Oiça - disse apressadamente -, se você quiser fazer jogo limpo comigo, eu tenho um barco nas traseiras e tentarei levar a rapariga para casa antes que se ponham à procura dela. O que quer que seja que lhe aconteça a si não depende de mim. Por si eu não levantaria um dedo, mesmo sabendo que gosta de cães.

 

A rapariga disse subitamente numa voz estridente de menina pequena:

 

- Não quero ir para casa! Não quero ir para casa!

 

- Daqui a um ano há-de agradecer-me o que fiz por si ripostei.

 

- Ele tem razão, boneca - disse Saint. - É melhor ires com ele.

 

- Não vou - retorquiu numa voz zangada. - Não vou e pronto.

 

O silêncio do convés foi interrompido por uma pancada forte no lado de fora da porta. Uma voz dura gritou:

 

- Abram! É a Polícia!

 

Fui rapidamente para junto da porta, mantendo, no entanto, os meus olhos em Saint. Falei por sobre o ombro:

 

- Fulwider está aí?

 

- Sim - rosnou a voz gorda do chefe. - Carmady?

 

- Ouça, chefe. Tenho Saint comigo e ele está disposto a entregar-se. Está uma rapariga com ele, aquela de que lhe falei. Por isso entre devagarinho, está bem?

 

- Certo - respondeu o chefe. - Abra a porta.

 

Rodei a chave na fechadura e dei um salto encostando-me à divisória no interior do camarote, junto à porta por detrás da qual o cão andava dum lado para o outro, rosnando levemente.

 

A porta abriu-se com violência. Dois homens que nunca vira entraram no camarote de armas em punho. O chefe gordo estava atrás deles. Antes que fechasse a porta, vi uniformes da tripulação do barco.

 

Os dois polícias saltaram sobre Saint, deram-lhe uns safanões e algemaram-no. Depois afastaram-se e ladearam o chefe. Saint sorriu para eles, com sangue a escorrer-lhe do lábio inferior.

 

Fulwider olhou para mim com um ar reprovador, movendo um charuto na boca dum lado para o outro. Ninguém parecia prestar atenção à rapariga.

 

- Você é um tipo dum raio, Carmady. O sítio em que você me foi meter - rosnou.

 

- Não sabia - disse eu. - Pensei que também ficasse fora da sua área de jurisdição.

 

- Que se lixem. Falámos com o FBI. Eles não se metem. Um dos polícias soltou uma gargalhada.

 

- Pelo menos por agora - disse num tom grosseiro. Larga esse brinquedo, detective.

 

- Experimenta tirar-mo - disse-lhe.

 

Ele começou a avançar mas o chefe reteve-o. O outro chui não tirava os olhos de Saint.

 

- Como foi então que deu com ele? - Fulwider queria saber.

 

- Não foi a receber dinheiro para o esconder - retorqui.

 

O rosto de Fulwider não se alterou. A sua voz adquiriu um tom quase preguiçoso:

 

- Oh, oh, com que então tem andado a bisbilhotar disse com suavidade.

 

- Que tipo de palerma é que você e o seu bando pensaram que eu era? - perguntei enojado. - A sua cidadezinha limpa cheira que tresanda. É conhecida como um sepulcro caiado de branco. Um santuário para patifes onde as armas não são usadas, desde que paguem bem e não se metam em sarilhos, e donde eles podem partir para o México num barco de corrida se as coisas se começarem a complicar.

 

- Mais alguma coisa? - perguntou o chefe cautelosamente.

 

- Sim - gritei. - Guardei-a para si durante demasiado tempo. Você drogou-me até eu ficar meio louco e meteu-me numa cadeia particular. Quando isso não deu resultado, planeou com Galbraith e Duncan uma maneira de ser a minha arma a matar Sundstrand, o seu ajudante. Depois faria com que me matassem ao resistir a uma ordem de captura. Saint estragou-lhe o plano e salvou-me a vida. Não era provavelmente essa a intenção dele, mas salvou-me. Você sabia muito bem onde estava Isobel Snare. Ela é a mulher do Saint e você tinha-a presa para o manter na linha. Raios, por que pensa que o avisei de que ele estava aqui? Porque isso era uma coisa que você não sabia!

 

O chui que tentara tirar-me a arma disse:

 

- Então, chefe. É melhor despacharmo-nos. O FBI...

 

O maxilar de Fulwider estremeceu. Tinha a face cinzenta e as orelhas puxadas para trás. O charuto mexia-se na sua boca gorda.

 

- Espera um minuto - disse numa voz espessa para o homem que estava a seu lado. Depois, voltando-se para mim:

- bom... por que foi que me avisou?

 

- Para trazê-lo a um local onde não tem mais autoridade do que Billy the Kid - expliquei -, e verificar se tem coragem para cometer um crime no alto mar.

 

Saint riu-se. Depois soltou um assobio grave por entre os dentes. Respondeu-lhe o rosnar dum animal. A porta ao meu lado foi derrubada como se tivesse sido atingida por um coice de mula. O enorme cão-polícia surgiu na soleira e atravessou o camarote num salto. O seu corpo rodopiou no ar. Uma arma foi disparada mas sem qualquer efeito.

 

- Come-os, Voss! - gritou Saint. - Come-os vivos, rapaz!

 

O camarote encheu-se de tiros. O rosnar do cão misturou-se com um grito sufocado. Fulwider e um dos polícias tinham sido derrubados e o cão abocanhava a garganta de Fulwider.

 

A rapariga soltou um grito e escondeu o rosto numa almofada. Saint deslizou lentamente do beliche e ficou estendido no chão com sangue a escorrer-lhe em ondas do pescoço.

O polícia que ainda estava de pé deu um salto para o lado, quase caindo de cabeça no beliche da rapariga. Depois recuperou o equilíbrio e começou a disparar com fúria contra o corpo cinzento e comprido do cão, sem fazer sequer pontaria.

 

O tipo que estava no chão tentava empurrar o cão, que quase lhe arrancou a mão à dentada. O homem gritou. Ouviram-se passos no convés. Gritos lá fora. Qualquer coisa escorria pela minha cara abaixo e fazia-me cócegas. Tinha uma impressão esquisita na cabeça mas não sabia o que me atingira.

 

A arma na minha mão estava pesada e quente. Abati o cão, embora me custasse fazê-lo. O cão rolou para o lado e pude ver, na fronte do chefe, entre os olhos, o orifício provocado por uma bala perdida.

 

A arma do chui que estava de pé deu um estalido, vazia. Ele começou a recarregá-la, frenético.

 

Eu toquei no sangue que me corria pela cara e olhei para ele. Pareceu-me muito escuro. A luz no camarote estava a ficar mais tênue.

 

A porta do camarote foi subitamente rasgada pela lâmina brilhante dum machado. O corpo do chefe e do outro homem que gemia bloqueavam-na. Vi a lâmina brilhante desaparecer e reaparecer noutro sítio.

 

Depois todas as luzes se apagaram muito lentamente, como quando sobe o pano no teatro. Só quando ficou escuro é que me começou a doer a cabeça. Não sabia então que uma bala me fracturara o crânio.

 

Recuperei a consciência dois dias mais tarde num hospital. Estive lá três semanas. Saint não viveu o tempo suficiente para ser enforcado, mas viveu o bastante para contar a sua história. Deve tê-la contado bem porque eles deixaram Mrs. Jerry (Farmer) Saint voltar para junto da tia.

 

Por essa altura, já os tribunais do condado tinham acusado mais de metade da Polícia da pequena cidade costeira. Ouvi dizer que havia muitas caras novas na Câmara Municipal. Uma delas era um enorme sargento-detective ruivo que dava pelo nome de Nogard e que dizia que me devia vinte e cinco dólares mas que tivera de os usar para comprar um fato novo quando fora readmitido. Eu disse-lhe que ele me pagaria a dívida quando recebesse o primeiro ordenado. Disse-lhe também que faria os possíveis por esperar.

 

                       QUANDO CAI O PANO

 

A primeira vez que vi Larry Batzel estava embriagado à porta do Sardi dentro dum Rolls-Royce em segunda mão. Acompanhava-o uma loura alta com olhos daqueles que não se esquecem facilmente. Ajudei-a a convencê-lo a sair do volante para que ela pudesse conduzir.

 

A segunda vez que o vi não tinha nenhum Rolls-Royce nem nenhuma loura, nem estava a trabalhar em filme algum, todo ele tremia e o fato precisava de ser passado a ferro. .Lembrava-se de mim.

 

Paguei-lhe bebidas em número suficiente para o arrebitar e dei-lhe metade dos meus cigarros. Costumava vê-lo de tempos a tempos, «entre dois filmes». Passei a emprestar-lhe dinheiro. Nem sei bem porquê. Era um brutamontes forte e bem-parecido com olhos como os de um boi onde havia algo de inocente e honesto. Algo que não se encontra com freqüência na minha profissão.

 

A parte mais engraçada é que trabalhara como traficante de bebidas alcoólicas numa quadrilha que não era para brincadeiras antes da revogação da Lei Seca. O cinema nunca deu nada e passado algum tempo deixei de o ver.

 

Um dia, sem que nada o fizesse prever, veio-me parar às mãos um cheque no valor do dinheiro que me devia e uma nota informando-me que estava a trabalhar nas mesas - nas de jogar, não nas de jantar - no Dardanella Club e eu que aparecesse por lá. Foi assim que fiquei a saber que se metera outra vez com tipos desonestos.

 

Não fui vê-lo mas por portas travessas vim a saber que o local pertencia a um certo Joe Mesarvey e que este estava casado com a loura dos tais olhos que estava daquela vez com Larry no Rolls. Mesmo assim não fui vê-lo.

 

Depois, um dia, de madrugada, dei com um vulto de contornos imprecisos postado entre mim e a janela, de pé junto da cama. Os estores tinham sido corridos. Devia ter sido isso que me acordara. O vulto era enorme e estava armado.

 

Voltei-me e esfreguei os olhos.

 

- Está bem - disse, irritado. - Há doze dólares nas calças e o relógio de pulso custou-me vinte e sete dólares e meio. Não lhe dão nada por ele.

 

O vulto aproximou-se da janela, afastou um estore alguns centímetros e observou a rua em baixo. Quando se voltou de novo vi que era Larry Batzel.

 

Tinha um aspecto magro e cansado e estava a precisar de fazer a barba. Vestia ainda as roupas da noite anterior e da lapela do sobretudo pendia uma rosa murcha.

 

Sentou-se e manteve a arma sobre os joelhos um momento, antes de a pôr de lado com uma expressão surpreendida, como se não soubesse de que modo lhe fora parar às mãos.

 

- Vais-me levar de carro até Berdoo - afirmou. - Preciso de sair da cidade. Tenho a cabeça a prémio.

 

- Está bem - concordei. - Conta lá. Levantei-me, tacteei o tapete com as pontas dos pés e acendi um cigarro. Passava um pouco das cinco e meia.

 

- Forcei a tua fechadura com um pedaço de celulóide declarou. - Devias usar o fecho de segurança de vez em quando. Não sabia ao certo qual era a tua enxovia e não queria acordar o prédio todo.

 

- Da próxima vez olha para as caixas do correio - comentei. - Mas continua. Não estás bêbado, pois não?

 

- Quem me dera. Mas tenho de me safar primeiro. Só estou um pouco nervoso. Já não sou o duro doutros tempos. Soubeste do desaparecimento do O’Mara, claro.

 

- Hum, hum.

 

- Então ouve. Se continuar a falar, não rebento. Não creio que me tenham localizado aqui.

 

- Uma bebida não nos pode fazer mal algum - disse-lhe. - O uísque está naquela mesa, acolá.

 

Ele encheu dois copos rapidamente e passou-me um. Vesti um roupão de banho e calcei uns chinelos. O copo tilintava contra os seus dentes enquanto bebia.

 

Pousou o copo vazio e apertou as mãos com força.

 

- Conhecia muito bem o Dud O’Mara. Em tempos, fazíamos em conjunto o nosso negócio a partir de Hueneme Point. Até tínhamos um fraquinho pela mesma rapariga. Ela agora está casada com Joe Mesarvey. Dud casou-se com cinco milhões de dólares. Desposou a filha do general Dade Winslow, uma divorciada um tanto ou quanto pírulas.

 

- Sei tudo isso - disse-lhe.

 

- Pois. Mas escuta. Ela pegou-lhe do mesmo modo que eu pego numa bandeja na cafetaria. Mas ele não gostava daquela vida. Suponho que continuou a ver a Mona. Constou-lhe que Joe Mesarvey e Lash Yeager tinham um negócio paralelo de carros roubados. E eles despacharam-no.

 

- Despacharam-no uma ova - disse eu. - Bebe outro copo.

 

- Não. Escuta. Há somente duas questões. Na noite em que O’Mara se sumiu... não, na noite em que os jornais noticiaram o caso... a Mona Mesarvey desapareceu também. Só que não desapareceu a sério. Esconderam-na num barracão a algumas milhas de Realito, na região dos laranjais. Paredes meias com a garagem dum patife chamado Art Huck, um receptador de carros roubados. Dei com ela. Segui Joe até lá.

 

- E que te levou a meteres-te nessa história? - perguntei.

 

- Continuo a ter um fraquinho por ela. Estou-te a contar tudo isto porque foste em tempos um tipo fixe para comigo. Podes pegar nesta história depois de eu desaparecer. Eles esconderam-na naquele local para dar a impressão que Dud fugira com ela. Os chuis, é claro, foram suficientemente espertos para ir visitar Joe depois do desaparecimento. Mas não encontraram Mona. Eles têm um sistema para os desaparecimentos e jogam segundo as regras.

 

Levantou-se e aproximou-se de novo da janela, espreitando pelo lado do estore.

 

- Está lá em baixo um espada azul que creio já ter visto noutro lado qualquer - comentou. - Mas talvez esteja enganado. Carros daqueles há muitos.

 

Voltou a sentar-se. Eu não abri a boca.

 

- Esse sítio para lá de Realito fica no primeiro desvio para norte de Foothill Boulevard. Não há que enganar. Não existe mais nada, apenas a garagem e a casa ao lado. Há uma velha fábrica de cianeto mais acima. Estou a contar-te isto...

 

- Isso é a questão número um - disse eu. - Qual é a segunda?

 

- O fulano que servia de motorista a Lash Yeager pôs-se a andar há coisa de algumas semanas. Foi para leste. Emprestei-lhe cinqüenta dólares. Estava nas lonas. Contou-me que Yeager fora à propriedade dos Winslow na noite em que Dud O’Mara desapareceu.

 

Eu olhei-o fixamente.

 

- Isso é muito interessante, Larry. Mas não chega para os meter na gaiola. E há sempre as esquadras da Polícia.

 

- Pois. Mas agora junta-lhe isto. A noite passada fiquei bêbado e contei a Yeager o que sabia. Depois despedi-me do Dardanella. Então alguém resolveu disparar sobre mim à porta de casa, no meu regresso. Desde essa altura que ando a fintá-los. Agora levas-me a Berdoo?

 

Levantei-me. Estávamos em Maio mas fazia frio. Larry Batzel parecia enregelado, mesmo de sobretudo.

 

- com certeza - respondi. - Mas descontrai-te. Mais tarde é mais seguro do que agora. Bebe outro copo. Tu não sabes ao certo se eles despacharam o O’Mara.

 

- Se ele descobriu a história da quadrilha de carros roubados, com a Mona casada com o Joe Mesarvey, tinham mesmo de liquidá-lo. Ele era um desses tipos.

 

Ergui-me e dirigi-me à casa de banho. Larry foi outra vez até junto da janela.

 

- Ainda lá está - anunciou, sem se voltar. - Podes apanhar um tiro por me dares uma boleia.

 

- Não tinha graça nenhuma - observei.

 

- És um patife, mas dos bons, Carmady. Vai chover. Detestava ser enterrado à chuva, não achas?

 

- Falas de mais - disse-lhe, e enfiei-me na casa de banho.

 

Foi a última vez que falei com ele.

 

Ouvi-o andar de um lado para o outro enquanto me barbeava, mas depois não, quando me meti debaixo do chuveiro, evidentemente. Quando saí da casa de banho tinha desaparecido. Atravessei descalço a divisão e fui ver na kitchenette. Agarrei no roupão de banho e dei uma espreitadela no corredor. Estava vazio, à excepção dum leiteiro com a sua grade de garrafas que se preparava para descer as escadas de serviço e dos jornais dobrados encostados às paredes.

 

- Ei... - gritei para o leiteiro -, não viu um tipo sair daqui agora mesmo?

 

Ele voltou-se junto à esquina e abriu a boca para falar. Era um rapaz novo e bem-parecido com uns bonitos dentes brancos. Lembro-me perfeitamente dos dentes porque estava a olhar para eles quando ouvi os tiros.

 

Não tinham sido disparados nem muito perto nem muito longe. Nas traseiras do bloco de apartamentos, junto às garagens, ou na viela, pensei. Ouviram-se duas detonações, numa sucessão rápida e seca, e depois o matraquear da metralhadora. Uma rajada, cinco ou seis disparos, o suficiente para uma arma de boa qualidade. Finalmente o roncar dum carro que se afastava.

 

A boca do leiteiro voltou a fechar-se como que movida por uma manivela. Os seus olhos arregalados fitavam-me com uma expressão vazia. Depois, com mil precauções, pousou as garrafas no primeiro degrau e encostou-se à parede.

 

- Pareciam tiros - observou.

 

Tudo isto não demorou mais do que alguns segundos que pareceram meia hora. Regressei ao apartamento, vesti qualquer coisa, peguei em meia dúzia de objectos espalhados pelo escritório e saí disparado para o corredor. Continuava vazio, até o leiteiro desaparecera. Algures próximo dali morria o ruído duma sirena. Um careca a braços com uma ressaca assomou a uma porta e fungou.

 

Desci as escadas de serviço.

 

No corredor inferior encontravam-se duas ou três pessoas. Saí para as traseiras. As garagens formavam duas filas uma em frente da outra, separadas por um pátio acimentado. Ao fundo havia mais duas e uma abertura que dava acesso à viela. Três casas adiante, uns miúdos galgavam uma vedação.

 

Larry Batzel jazia de bruços, com o chapéu a um metro da cabeça e uma mão que se estendia para uma enorme pistola automática negra à distância de alguns centímetros. Tinha os tornozelos cruzados como se tivesse rodopiado na queda. Havia uma camada espessa de sangue no rosto, no cabelo louro e especialmente no pescoço. O sangue era também espesso no chão de cimento.

 

Dois polícias equipados com rádios, o leiteiro e um homem envergando uma camisola castanha e a parte de baixo dum fato-macaco estavam curvados sobre ele. O homem do fato-macaco era o nosso porteiro.

 

Juntei-me a eles, no mesmo instante em que os miúdos saltavam para o pátio. O leiteiro fitou-me com uma expressão estranha, tensa. Um dos polícias endireitou-se e perguntou:

 

- Algum de vocês conhece-o? Ainda lhe resta metade da cara.

 

Não era a mim que ele se dirigia. O leiteiro abanou a cabeça e continuou a observar-me pelo canto do olho.

 

- Não é um inquilino de cá - disse o porteiro. - Talvez um visitante. Embora seja ainda cedo para visitas, não acham?

 

- Ainda traz vestidas as roupas com que saiu ontem à noite. Você conhece esta espelunca melhor do que eu - disse o polícia num tom grosseiro, sacando depois dum bloco de notas.

 

O outro polícia ergueu-se também, abanou a cabeça e dirigiu-se para o prédio, com o porteiro no encalço.

 

O polícia do bloco de notas apontou um polegar na minha direcção e perguntou numa voz áspera.

 

- Você foi o primeiro a aqui chegar depois destes dois tipos. Tem alguma coisa a declarar?

 

Olhei para o leiteiro. Larry Batzel não se havia de importar e um homem tem de fazer pela vida. Assim como assim não era história para um polícia de giro.

 

- Ouvi os tiros e vim a correr - declarei.

 

O chui aceitou aquilo por resposta. O leiteiro levantou os olhos para o céu dum cinzento ameaçador e não disse nada.

 

Daí a pouco regressei ao meu apartamento e acabei de me vestir. Quando peguei no chapéu, que se encontrava na mesa junto à janela ao lado da garrafa de uísque, reparei num pequeno botão de rosa pousado sobre um pedaço de papel onde havia uns gatafunhos.

 

A mensagem dizia: «És um tipo fixe, mas acho que vou nesta sozinho. Dá a rosa à Mona, se tiveres oportunidade. Larry.»

 

Meti ambas as coisas na minha carteira e engoli uma bebida para ganhar coragem.

 

Por volta das três horas dessa tarde encontrava-me no átrio principal da mansão dos Winslow e aguardava o regresso do mordomo. Passara grande parte do dia a evitar o meu escritório e o apartamento, bem como alguém dos Homicídios. Era apenas uma questão de tempo antes de ter de prestar declarações, mas primeiro queria falar com o general Dade Winslow. Ele era um homem difícil.

 

As paredes que me rodeavam estavam cheias de óleos, na sua maioria retratos. Havia algumas estátuas e sobre pedestais de madeira escura várias armaduras com a patina do tempo. Numa vitrina sobre o enorme fogão de sala de mármore, dispostas em cruz, estavam duas flâmulas de cavalaria esburacadas pelas balas - ou comidas pelas traças - e por baixo o retrato a óleo dum homem magro e de aspecto enérgico, de barba e bigodes escuros e com uma farda dos tempos da Guerra do México. Era talvez o pai do general Dade Winslow. O general, embora idoso, não podia ser tão velho.

 

O mordomo regressou e disse-me que o general Winslow estava na estufa das orquídeas e se eu fazia o favor de o seguir.

 

Saímos pelas portas envidraçadas que davam para as traseiras e atravessámos relvados em direcção a um grande pavilhão de vidro que ficava muito para além das garagens. O mordomo abriu uma porta que dava acesso a uma espécie de vestíbulo e voltou a fechá-la atrás de mim. Lá dentro fazia calor. Depois ele abriu a porta interior e fazia ainda mais calor.

 

O ar estava saturado de vapor. As paredes e o tecto da estufa escorriam água. Enormes plantas tropicais estendiam os seus ramos e flores por tudo quanto era lado naquela semiobscuridade, e o cheiro que exalavam era tão sufocante como álcool a arder.

 

O mordomo, que era idoso, magro e muito direito e tinha o cabelo todo branco, ia afastando os ramos das plantas para eu passar. Por fim chegámos a uma clareira no meio daquele lugar. Sobre o empedrado hexagonal fora estendido um grande tapete persa de cor avermelhada. No centro do tapete, sentado numa cadeira de rodas, estava um homem muito idoso com o corpo envolto numa manta de viagem que nos observava.

 

Nada vivia no seu rosto além dos olhos. Olhos negros, metidos nas órbitas, brilhantes, inacessíveis. O resto era uma máscara funerária, baça, umas fontes metidas para dentro, um nariz aquilino, lobos que viravam para fora e uma boca que era apenas uma estreita fresta branca. Estava embrulhado em parte num velho roupão de banho vermelho e em parte na manta. Alguns tufos de cabelos brancos povoavam o seu crânio.

 

- Este é Mr. Carmady, general - anunciou o mordomo. O velho fitou-me durante alguns instantes. Depois ordenou numa voz cortante e maldisposta:

 

- Traga uma cadeira para Mr. Carmady.

 

O mordomo trouxe uma cadeira de verga e eu sentei-me. Pus o chapéu no chão. O mordomo pegou nele.

 

- Brande - ofereceu o general. - Como é que o senhor prefere o seu brande?

 

- Tanto faz - respondi.

 

Ele fungou. O mordomo desapareceu. O general olhou-me de novo fixamente. Voltou a fungar.

 

- Bebo o meu sempre com champanhe - declarou. Um terço do copo de champanhe e tão frio como Valley Forge. Mais frio ainda, se for possível.

 

Emitiu um som que podia ser uma gargalhada.

 

- Não que eu alguma vez estivesse em Valley Forge acrescentou. - Não passei por aí. Pode fumar, se quiser.

 

Agradeci e disse que de momento não me apetecia fumar. Tirei do bolso um lenço e enxuguei o rosto.

 

- Tire o casaco. O Dud tirava sempre. As orquídeas precisam de calor, Mr. Carmady. Como os velhos doentes.

 

Despi a gabardina que trouxera comigo. Parecera-me que ia chover. Larry Batzel dissera que ia chover.

 

- Dud é o meu genro. Dudley O’Mara. Creio que tem qualquer coisa para me contar a respeito dele.

 

- Apenas rumores - disse eu. - Não me quero meter nisto sem o seu consentimento, general Winslow.

 

Os olhos de basilisco fitavam-me.

 

- O senhor é um detective particular. Suponho que pretende que lhe paguem.

 

- Trabalho nesse ramo - disse. - Mas isso não significa que me tenham de pagar cada vez que respiro. Não passa dum rumor que chegou aos meus ouvidos. Talvez o senhor queira transmiti-lo ao Gabinete de Pessoas Desaparecidas.

 

- Estou a ver - disse calmamente. - Um escândalo qualquer.

 

O mordomo regressou antes de eu ter tempo de lhe responder, empurrando um carrinho de chá através da selva. Colocou-o ao meu lado e pôs-me num copo brande e soda. Depois afastou-se.

 

Bebi um gole.

 

- Parece que havia uma rapariga - anunciei. - Ele conheceu-a antes da sua filha. Agora está casada com um tipo duma quadrilha. Parece...

 

- Conheço essa história - cortou ele. - Estou-me nas tintas. O que quero é saber onde está e se está bem. Se é feliz.

 

Fitei-o de olhos esbugalhados. Passado um instante, sugeri sem grande convicção:

 

- Talvez conseguisse encontrar a rapariga ou os rapazes do Gabinete com aquilo que eu lhes podia contar.

 

Ele puxou por uma ponta da manta e deslocou a cabeça alguns centímetros. Creio que estava a dizer que sim. Depois declarou numa voz vagarosa:

 

- Estou provavelmente a falar de mais para a minha idade, mas há uma coisa que quero deixar bem clara. Estou entrevado.   Tenho duas pernas arruinadas e o mesmo se passa com o baixo-ventre. Não como nem durmo grande coisa. Chateio-me a mim próprio e farto-me de chatear os outros. Por isso sinto a falta do Dud. Ele costumava passar muito tempo comigo. Porquê, só Deus sabe...

 

- Bom... - comecei.

 

- Cale-se. Para mim você é um jovem e isso dá-me o direito de ser mal-educado consigo. Dud foi-se embora sem se despedir. Isso não era dele. Um dia à noite pegou no carro e nunca mais se soube nada dele. Se se cansou da pateta da minha filha e do fedelho dela, se queria outra mulher, tudo bem. Passou-lhe qualquer coisa pela cabeça, foi-se embora sem se despedir de mim e agora está arrependido. É por isso que nunca mais soube dele. Encontre-o e diga-lhe que eu compreendo. É tudo... a não ser que precise de dinheiro. Se assim for, pode ter tudo o que quiser.

 

A sua face plúmbea tinha um tom ligeiramente rosado. Os olhos negros estavam ainda mais brilhantes, se tal era possível. Encostou-se para trás muito devagar e fechou-os.

 

Bebi uma porção considerável da minha bebida de um só trago.

 

- Suponhamos que ele está metido numa embrulhada disse eu. - Por causa, digamos, do marido da rapariga. Esse Joe Mesarvey.

 

Ele abriu os olhos e pestanejou.

 

- Nunca um O’Mara - afirmou. - O outro tipo é que estaria metido numa embrulhada.

 

- Está bem. Limito-me então a transmitir ao Gabinete o nome do local onde ouvi dizer que estava essa rapariga.

 

- Claro que não. Eles não fizeram nada. Deixe-os continuar. Encontre-o você mesmo. Pago-lhe mil dólares, mesmo que só tenha de atravessar a rua. Diga-lhe que por cá tudo corre bem. Que o velhote está fino e envia saudades. E é tudo.

 

Não fui capaz de lhe contar. Subitamente não fui capaz de lhe contar aquilo que Larry Batzel me dissera ou o que acontecera a Larry ou qualquer outra coisa. Acabei a minha bebida, levantei-me e voltei a vestir a gabardina.

 

- Isso é muito dinheiro para este trabalho, general Winslow - disse eu. - Podemos falar sobre isso depois. Tenho a sua autorização para representá-lo à minha maneira?

 

Ele premiu uma campainha na cadeira de rodas.

 

- Diga-lhe apenas isso. Quero saber se está bem e quero que saiba que estou bem. Só isso... a não ser que precise de dinheiro. Agora vai ter que me desculpar. Estou cansado.

 

Fechou os olhos. Atravessei de novo a selva. O mordomo esperava-me junto da porta com o chapéu. Enchi os pulmões de ar frio e disse:

 

- O general quer que eu fale com Mrs. O’Mara.

 

O quarto tinha um tapete branco de parede a parede. Das inúmeras janelas pendiam cortinados cor de marfim de altura imensa que tombavam ao acaso sobre o tapete. As janelas davam para os contrafortes escuros das montanhas e o ar do outro lado dos vidros estava escuro também. Não começara ainda a chover mas sentia-se no ar uma certa opressão.

 

Mrs. O’Mara estava estendida num canapé. Descalçara os sapatos de quarto e tinha os pés metidos numa daquelas meias de rede que já não se usam. Era alta e morena, a boca dava-lhe uma expressão de enfado. Agradável de ver, sem ser bonita.

 

- Mas que será que eu posso fazer por si? Já se sabe tudo - disse ela. -Já se sabe de mais. Eu é que não sei quem você é, pois não?

 

- bom, dificilmente - respondi. - Sou apenas um detective particular a fazer o seu trabalhinho.

 

Ela estendeu o braço para um copo em que não reparara ainda mas que em breve procuraria, tendo em conta o modo como falava e o facto de ter tirado os sapatos. Ela bebeu languidamente, exibindo um anel.

 

- Conheci-o num bar clandestino - disse com uma risada aguda. - Um traficante muito bem-parecido, com o cabelo espesso, aos caracóis, e ar irlandês. Resolvi casar-me com ele. Por tédio. Quanto a ele, o negócio do álcool era, mesmo então, incerto... se é que não havia outras distracções.

 

Ficou à espera que eu dissesse que havia, mas com o ar de alguém a quem era relativamente indiferente que o dissesse ou não. Eu limitei-me a perguntar:

 

- Viu-o sair no dia em que desapareceu?

 

- Não. Raramente o via sair, ou voltar para casa. Era assim.

 

Voltou a pegar na bebida.

 

- Hum - fiz eu. - Mas claro que não se zangaram. Nunca acontece, nestes casos.

 

- Há tantas maneiras de as pessoas se zangarem, Mr. Carmady.

 

- Pois. Gosto de a ouvir dizer isso. Claro que sabia da rapariga.

 

- É bom poder ser franca para com o velho detective da família. Sim, sabia da rapariga - respondeu ela encaracolando uma madeixa de cabelo atrás da orelha.

 

- Sabia da sua existência antes de ele desaparecer? perguntei delicadamente.

 

- Certamente.

 

- Como?

 

- Você é muito directo, não é? Por portas travessas, como se costuma dizer. Sou uma apreciadora das formas antiquadas. Ou será que não sabia?

 

- Conhecia a gente do Dardanella?

 

- Já lá estive. - Não tinha um ar sobressaltado, ou sequer surpreendido. - Na verdade, vivi lá praticamente durante uma semana. Foi aí que conheci Dudley O’Mara.

 

- Pois. O seu pai casou bastante tarde, não foi?

 

Vi-a empalidecer. Eu queria-a furiosa, mas não havia meio. Sorriu, a cor regressou-lhe às faces. Puxou uma campainha que ficava junto das almofadas do canapé.

 

- Muito tarde - respondeu -, se é que lhe interessa para alguma coisa.

 

- Não, para nada - retorqui.

 

Uma criada de ar tímido entrou no quarto e preparou duas bebidas numa mesinha. Serviu uma a Mrs. Õ’Mara e pousou a outra ao meu lado. Saiu de novo, mostrando um bonito par de pernas debaixo duma saia curta.

 

Mrs. O’Mara esperou que a porta se fechasse e depois disse:

 

- Esta história deixou o pai de mau humor. Oxalá o Dud mandasse um telegrama ou escrevesse, ou fizesse qualquer coisa.

 

- Ele é um homem muito, muito velho - disse eu pausadamente -, e já com os pés para a cova. Havia algo de muito ténue que ainda o ligava à vida. Essa coisa partiu-se e ninguém parece importar-se. Ele procura dar a impressão de que também não liga. Não chamo a isso mau humor. Chamo-lhe fazer das tripas coração.

 

- Que amável - observou ela, e os seus olhos cuspiam punhais. - Mas você ainda não tocou na sua bebida?

 

- Tenho de me ir embora - respondi. - De qualquer modo, obrigado.

 

Ela estendeu uma mão esguia e de unhas pintadas e eu aproximei-me e apertei-a levemente. Nesse preciso instante ouviu-se um trovão por detrás das montanhas. Ela teve um sobressalto. Uma rajada de vento agitou as janelas.

 

Desci por uma escada de tijoleira para o átrio, o mordomo surgiu da sombra e abriu-me a porta.

 

À minha frente estendia-se uma série de terraços decorados com canteiros de flores e árvores exóticas. Ao fundo havia um gradeamento muito alto com pontas de lanças douradas nas extremidades e uma sebe com dois metros de altura do lado de dentro. Um caminho levava ao portão principal e à casa do guarda.

 

Para lá da propriedade, descia-se em direcção à cidade e aos velhos poços de petróleo de La Brea, transformados agora parcialmente num parque. O resto eram terrenos baldios cercados por uma vedação. Alguns dos derricks1 de madeira ainda se mantinham de pé. Eram eles que tinham feito a fortuna da família Winslow, que depois fugira pela costa acima a fim de estar suficientemente longe do cheiro das fossas mas suficientemente perto para poder olhar pela janela e ver aquilo que a tornara rica.

 

Desci os degraus de tijoleira por entre os terraços relvados. Num deles, um miúdo pálido de dez ou onze anos entretinha-se a atirar dardos a um alvo pendurado numa árvore. Aproximei-me dele.

 

- És tu o jovem O’Mara? - perguntei.

 

Ele encostou-se a um banco de pedra com quatro dardos na mão e fitou-me com uns olhos frios, estreitos, uns olhos de velho.

 

- Chamo-me Dade Winslow Trevillyan - respondeu com ar severo.

 

- Ah, nesse caso, Dudley O’Mara não é o teu pai.

 

- Claro que não - disse com desdém. - Quem é você?

 

- Sou um detective. Vim para descobrir o teu... isto é, Mr. O’Mara.

 

Isto não serviu para nos aproximar. Detectives não significavam nada para ele. Os trovões ribombavam nas montanhas, mais parecendo uma manada de elefantes jogando à apanhada. Tive outra idéia.

 

- Aposto que não és capaz de meter quatro dos cinco dardos no centro a dez metros de distância.

 

Ele animou-se imediatamente.

 

- com estes?

 

- Hum, hum.

 

- Quanto é que aposta? - disparou.

 

1 Torres de sondagem ou de perfuração em poços de petróleo. (N. do E.)

 

- Oh, um dólar.

 

Correu até ao alvo e retirou os dardos, depois regressou e tomou posição junto do banco.

 

Eu sorri e de imediato parei de sorrir.

 

A sua pequena mão lançava os dardos com tal rapidez que me era difícil seguir-lhe os movimentos. Em menos de cinco segundos, cinco dardos estavam no centro dourado do alvo. Ele olhou-me com uma expressão de triunfo.

 

- Santo Deus, tu és muito bom nisto, mestre Trevillyan resmunguei, e saquei de um dólar.

 

A mãozita pegou-lhe como uma truta abocanha um isco. Num abrir e fechar de olhos tinha-o guardado.

 

- Isto não é nada - disse a rir. - Havia de me ver na carreira de tiro que temos atrás das garagens. Quer ir até lá e apostar de novo?

 

Olhando para trás, vi parte dum edifício baixo de cor branca encostado a uma elevação de terreno.

 

- bom, hoje não pode ser - respondi. - Talvez quando vos vier visitar outra vez. com que então Dud O’Mara não é o teu pai? Se de qualquer modo eu o encontrar, não te importa, pois não?

 

Ele encolheu os ombros estreitos e ossudos que uma camisola castanha cobria.

 

- Claro que não. Mas que pode o senhor fazer que a Polícia não faça?

 

- Boa pergunta - retorqui, e afastei-me.

 

Continuei a caminhar ao longo da parede de tijolo até ao fundo dos relvados e depois ao longo da sebe até à casa do guarda que ficava junto ao portão. Estava a meio do caminho quando vi o carro azul do lado de fora. Era um carro pequeno, baixo, de aspecto limpo, mais leve do que uma viatura da Polícia mas aproximadamente do mesmo tamanho. Para lá dele podia ver à distância o meu automóvel estacionado à sombra duma árvore.

 

Quedei-me a observar a viatura através da sebe. No pára-brisas era visível o fumo do cigarro que alguém acendera no seu interior. Voltei-me e olhei para o cimo da encosta. O miúdo desaparecera de vista, talvez para pôr a salvo o seu dólar, embora um dólar não devesse significar grande coisa para ele.

 

Curvei-me, tirei a Luger 7.65 que trazia, nesse dia e enfiei-a de cano para baixo na meia esquerda, dentro do sapato. Podia andar desse modo, se não andasse demasiado depressa. Continuei em direcção aos portões.

 

Mantinham-se fechados e ninguém entrava sem ter sido identificado pelas pessoas da casa. O guarda, que lembrava um cão esquimó, saiu da casa com uma arma debaixo do braço e deixou-me sair por uma pequena porta lateral. Fiquei um minuto a falar com ele através das grades, enquanto observava a viatura.

 

Tudo parecia estar bem. Eu diria que estavam dois homens dentro do carro. Este encontrava-se a cerca de trinta metros de distância, na sombra projectada pelo muro alto do outro lado da rua. A rua era muito estreita, sem passeios laterais. Não tinha muito que andar até à minha viatura.

 

Atravessei a rua num passo curto, meti-me no automóvel e enfiei rapidamente a mão num compartimento sob o banco da frente onde guardava uma arma de recurso. Era um Colt dos da Polícia. Coloquei-o no coldre da axila e liguei o motor.

 

Destravei o carro e pus-me a caminho. Começou de repente a cair uma chuva grossa e o céu pôs-se escuro como breu. Mas não tão escuro que não visse a outra viatura iniciar a marcha e seguir-me.

 

Liguei o limpa-pára-brisas e aumentei rapidamente a velocidade para os sessenta quilômetros. Percorrera já uns oito quarteirões quando eles ligaram a sirena. Isso enganou-me. Estávamos numa rua sossegada, mortalmente sossegada. Abrandei e encostei à berma. O sedan deslizou e imobilizou-se ao lado do meu carro; dei com o cano duma metralhadora apoiado no vidro da porta traseira e apontado na minha direcção.

 

Atrás dele postava-se um rosto esguio de olhos inflamados, com uma boca que não se mexia. Por sobre o ruído da chuva, do limpa-pára-brisas e dos dois motores, uma voz ordenou:

 

- Entra para aqui. E trata de te portares bem, entendido?

 

Não eram chuis. Isso agora já não fazia diferença. Desliguei o motor, deixei cair no chão do carro as chaves e saí. O homem ao volante do sedan não me olhou. O que estava atrás abriu uma porta com um pé e deslizou ao longo do banco, segurando a metralhadora.

 

Entrei na viatura.

 

- Está bem, Louie. Trata de ver se está armado.

 

O condutor saiu do carro e veio colocar-se atrás de mim.

 

Retirou-me o Colt e apalpou-me as pernas, os braços e a cintura.

 

- Limpo - anunciou, voltando a instalar-se na dianteira do carro.

 

O homem da metralhadora estendeu a mão esquerda para receber do condutor o meu Colt. Depois pousou a arma dele no chão e cobriu-a com um tapete castanho. Voltou a recostar-se no canto, suave e descontraído, segurando o meu Colt sobre o joelho.

 

- Está bem, Louie, agora vamos dar uma volta.

 

Rodámos sem destino e sem pressa, com a chuva a tamborilar no tecto do automóvel e a escorrer pelas janelas de um dos lados. Percorremos ruas sinuosas, entre propriedades que se estendiam por muitos hectares em que as casas eram amontoados distantes de empenas molhadas no meio de árvores de contornos indistintos.

 

Sentia no nariz o cheiro acre do fumo de cigarro. O homem dos olhos inflamados perguntou:

 

- Que foi que ele lhe contou?

 

- Pouca coisa - respondi. - Que Mona se pôs a andar quando os jornais falaram do caso. O velho Winslow já o sabia.

 

- Ele não precisava de escavar muito fundo para isso comentou o «Olhos Inflamados». - E que mais?

 

- Disse que o tinham alvejado. Queria que o ajudasse a sair da cidade. No último instante resolveu partir sozinho. Ignoro por que motivo.

 

- Solta a língua, metediço - disse o «Olhos Inflamados» com secura. - É a tua única alternativa.

 

-Já disse tudo o que havia para dizer - retorqui, e olhei pela janela para a chuva que caía incessantemente.

 

- Estás metido nisto a mando do velho?

 

- Não. O tipo é um avarento.

 

«Olhos Inflamados» soltou uma gargalhada. A arma no meu sapato pesava, em posição instável, e parecia estar a grande distância.

 

- É capaz de ser tudo o que há para saber sobre o O’Mara - disse eu.

 

O tipo no banco da frente voltou ligeiramente a cabeça e rosnou:

 

- Onde foi que disseste que ficava o raio da rua?

 

- No cimo de Beverley Glen, estúpido. Mulholland Drive.

 

- Oh, essa! Santo Deus! Não tem sequer um asfalto decente.

 

- Nós vamos asfaltá-la com este bisbilhoteiro - disse o «Olhos Inflamados».

 

As propriedades tornaram-se menos frequentes e a paisagem cobriu-se de vegetação e carvalhos enfezados.

 

- Não és mau tipo - admitiu o «Olhos Inflamados». Mas és avarento como o velho. Não percebes? Queremos saber tudo o que ele disse para decidirmos se temos de te limpar o sebo ou não.

 

- O Diabo que vos carregue - retorqui. - Vocês não acreditariam em mim de qualquer maneira.

 

- Experimenta. Isto para nós não passa de mais um trabalho. Limitamo-nos a fazer o que temos que fazer e toca a andar.

 

- Deve ser um trabalho interessante - comentei. - Enquanto dura.

 

- Um dia ainda te vais arrepender das tuas gracinhas.

 

- Isso já aconteceu... há muito tempo, quando ainda estavas no reformatório. Continuo a sofrer as conseqüências.

 

«Olhos Inflamados» soltou nova gargalhada. Não parecia especialmente agressivo.

 

- Tanto quanto sabemos, estás limpo. E não houve mais gracinhas esta manhã, não é verdade?

 

- Se eu responder que sim, podem-me limpar o sebo já. Não é?

 

- E que tal uns trocos para umas cervejas e tu esqueces-te desta história toda?

 

- Vocês também não iam nessa conversa.

 

- íamos, pois. A ideia é esta. Nós fazemos o nosso trabalho e passamos adiante. Somos uma organização. Mas tu vives aqui, tens fregueses e um negócio. Tu alinhavas.

 

- Claro - respondi. - Eu alinhava.

 

- Nós não despachamos nunca um tipo que está dentro da lei. É mau para o negócio.

 

Recostou-se no canto com a arma sobre o joelho direito e meteu a mão num bolso interior. Abriu sobre o joelho uma carteira castanha de grandes dimensões e pescou duas notas que fez deslizar, dobradas, ao longo do banco na minha direcção. A carteira regressou ao seu bolso.

 

- São teus - disse com ar grave. - Não duras vinte e quatro horas se meteres o pé na argola.

 

Peguei nas notas. Eram duas notas de quinhentos dólares. Meti-as num bolso do casaco.

 

- Certo - disse eu -, deixaria de andar dentro da lei, não é?

 

- Pensa nisso, detective.

 

Sorrimos um para o outro, dois tipos fixes confraternizando num mundo duro e hostil. Depois o «Olhos Inflamados» voltou a cabeça num movimento brusco.

 

- Está bem, Louie. Deixa lá Mulholland e encosta aí. A viatura estava numa zona desabitada a meio da encosta.

 

A chuva deslizava em cortinas cinzentas pelo monte abaixo. Não havia céu, nem horizonte. Não se via nada a quinhentos metros nem se via nada a mexer no exterior do automóvel.

 

O condutor encostou à berma e desligou o motor. Acendeu um cigarro e pôs o braço sobre o banco de trás.

 

Olhou para mim e sorriu. Tinha um sorriso simpático, igual ao dum crocodilo.

 

- Vamos beber a isto - declarou o «Olhos Inflamados». - Quem me dera ganhar mil dólares assim tão facilmente. Apenas por atar os queixos ao nariz.

 

- Tu não tens queixos - observou Louie, e continuou a sorrir.

 

«Olhos Inflamados» pousou o Colt sobre o assento e tirou do bolso uma pequena garrafa de forma achatada. Parecia uma bebida de qualidade, com um rótulo verde, envelhecida como deve ser. Retirou a tampa com os dentes, cheirou-a, e fez um ruído com a boca.

 

- Este não é da zurrapa do Crow McGee - disse. - Este é do que a casa gasta. Toca a beber.

 

Estendeu o braço e passou-me a garrafa. Podia ter-lhe agarrado no pulso mas havia Louie e eu estava demasiado longe do meu tornozelo.

 

Inspirei mas não muito fundo e segurei a garrafa próximo dos lábios. Cheirei cautelosamente. Por detrás do aroma do bourbon havia qualquer outra coisa, muito ténue, um cheiro de fruta que noutro lugar qualquer não me diria nada. De súbito, e sem motivo aparente, lembrei-me duma coisa que Larry Batzel dissera, algo como: «Para leste de Realito, a caminho das montanhas, próximo da velha fábrica de cianeto.» Cianeto. Era esse o cheiro.

 

As minhas têmporas retesaram-se quando levei a garrafa à boca. Senti a pele arrefecer toda e o ar em redor ficar subitamente gelado. Ergui a garrafa bem alto, segurando-a ao nível do líquido, e meti-a à boca durante um bom bocado, com um longo gorgolejar à mistura. Tudo muito confiante e descontraído. Entrou na minha boca cerca de meia colher de chá de bourbon e não ficou lá nenhum.

 

Tossi fortemente e inclinei-me para a frente, sufocado. «Olhos Inflamados» riu-se.

 

- Não me digas que um gole te põe doente, pá.

 

Deixei cair a garrafa e deslizei pelo banco abaixo, com arrancos violentos. As minhas pernas deslizaram para a esquerda, com a perna esquerda para baixo. Sucumbi em cima delas, de braços caídos. Tinha conseguido agarrar a pistola.

 

Alvejei-o por debaixo do braço esquerdo, quase sem olhar. Ele não chegou a tocar no Colt, a não ser para o atirar do banco abaixo. Bastou um tiro. Senti-o vacilar. Disparei para cima, na direcção do sítio onde devia estar Louie.

 

Louie não se encontrava lá. Estava no chão, atrás do banco dianteiro. Em silêncio. O carro todo, toda a paisagem estava silenciosa. Até a chuva pareceu durante instantes ser uma chuva silenciosa.

 

Continuava sem ter tempo de olhar para o «Olhos Inflamados». Larguei a Luger e saquei da metralhadora que estava debaixo do tapete. Pus a mão esquerda no punho da frente e apoiei-a contra o ombro, agachado. Louie não fizera ainda qualquer ruído.

 

- Ouve, Louie - disse suavemente. - Tenho comigo a metralhadora. Que dizes a isto?

 

Um tiro atravessou o banco, um tiro que Louie sabia não ir modificar coisa nenhuma. Fez uma estrela num vidro inquebrável. O silêncio continuou. Louie disse então numa voz sufocada:

 

- Tenho aqui um «ananás». Queres?

 

- Tira a cavilha e segura nele - aconselhei-o. - Há-de dar cabo de nós dois.

 

- Raios! - exclamou Louie com violência. - Ele marou? Eu não tenho «ananás» nenhum.

 

Só nessa altura olhei para o «Olhos Inflamados». Tinha um ar confortável, reclinado no canto do assento. Parecia ter três olhos, um mais vermelho ainda do que os outros dois. Para um tiro que fora disparado por debaixo do braço, era caso para ficar vaidoso. O tiro fora demasiado bom.

 

- Pois é, Louie, ele marou - disse eu. - E nós os dois, se nos entendêssemos? - Ouvia agora a sua respiração ruidosa e a chuva voltara a fazer barulho.

 

- Sai da carripana - rosnou. - Eu raspo-me.

 

- Tu é que sais, Louie. Eu é que me raspo.

 

- Santo Deus, não posso ir a pé daqui para casa.

 

- Não vai ser preciso. Eu mando um carro.

 

- Meu Deus, eu não fiz nada. Limitei-me a conduzir.

 

- Nesse caso hás-de ser acusado de condução perigosa. Vocês podem bem lidar com coisas destas, tu e a tua organização. Sai, antes que eu decida usar este brinquedo.

 

Ouviu-se um fecho de porta que se abria e dois pés pousaram no estribo e depois no pavimento. Levantei-me rapidamente, empunhando a metralhadora. Louie estava no meio da estrada, à chuva, de mãos vazias e com aquele mesmo sorriso de crocodilo.

 

Saí, passando por cima dos pés do morto, recuperei o meu Colt e a Luger e voltei a pousar a pesada metralhadora de seis quilos no chão do carro. Tirei um par de algemas do bolso e avancei em direcção a ele. Louie voltou-se com um ar abatido e cruzou as mãos atrás das costas.

 

- Tu não tens nada de que me possas acusar - queixou-se. - Eu tenho protecção.

 

Fechei as algemas nos pulsos dele e revistei-o com mais cuidado do que ele me revistara a mim. Tinha outra arma, além daquela que deixara na viatura.

 

Arrastei o «Olhos Inflamados» para fora do carro e larguei-o sobre o piso molhado. Voltara a sangrar, mas estava bem morto.

 

Louie olhou-o e disse amargamente:

 

- Era um tipo esperto. Diferente. Gostava destes truques. Olá, chico esperto!

 

Tirei do bolso a chave das algemas, abri uma, puxei-a para baixo e prendi-a ao pulso do morto.

 

Louie ficou de olhos esbugalhados e com uma expressão aterrorizada. O sorriso desapareceu finalmente.

 

- Santo Deus - gemeu. - Santo Deus. Não me vais deixar assim, pá.

 

- Adeus, Louie - foi a minha resposta. - Era um amigo meu aquele que tu liquidaste esta manhã.

 

- Santo Deus - gemeu ele de novo.

 

Meti-me no sedan e arranquei. Guiei até um local onde pudesse dar a volta e regressei pelo monte abaixo, passando por Louie. Estava rígido como uma árvore seca, tinha o rosto branco como a neve e o cadáver aos pés com uma mão algemada à sua. Nos olhos dele reflectia-se o terror dum milhão de pesadelos.

 

Deixei-o ali à chuva.

 

Anoitecia depressa. Estacionei o sedan a alguns quarteirões do meu carro, tranquei-o e meti as chaves no filtro do óleo. Fui até junto da minha viatura e pus-me a caminho da cidade.

 

Liguei para os Homicídios duma cabina telefónica e pedi que chamassem um homem de nome Grinnell a quem contei rapidamente o sucedido. Expliquei-lhe onde poderia encontrar Louie e o sedan. Disse-lhe pensar serem eles os tipos que tinham abatido Larry Batzel. Não lhe falei em Dud O’Mara.

 

- bom trabalho - disse Grinnell numa voz estranha. Mas é melhor apareceres por cá rapidamente. Andam à tua procura por causa daquilo que um leiteiro contou ao telefone há cerca de uma hora.

 

- Estou estoirado - expliquei. - Tenho de comer qualquer coisa. Aguenta isso um bocado que eu já aí vou ter.

 

- É melhor apareceres, meu filho. Desculpa lá, mas é melhor.

 

- bom, está bem - respondi.

 

Pousei o auscultador no descanso e abandonei aquela zona sem demora. Ou era agora ou nunca. Jantei próximo do Plaza e pus-me a caminho de Realito.

 

Por volta das oito horas vi duas lâmpadas amarelas brilhando no céu debaixo da chuva. Um cartaz atravessado na estrada anunciava: «Bem-vindos a Realito.»

 

Casas de madeira bordejando a rua principal. Depois e de súbito, um aglomerado de lojas, as luzes do drugstore da esquina do outro lado dos vidros embaciados, um corropio de carros defronte dum minúsculo cinema e um banco escuro noutra esquina com um magote de homens defronte, à chuva. Era assim Realito. Prossegui viagem e os campos escuros regressaram.

 

Passara já a região dos laranjais. Nada havia para além dos campos desertos, das colinas baixas e da chuva.

 

Percorri uma milha extenuante que mais parecia três antes de dar com um desvio e uma luz ténue numa casa, coada por estores corridos. Nesse preciso momento o pneu esquerdo da frente expirou com um silvo agudo. Que espertos... Logo de seguida o da direita imitou-o.

 

Parei quase em cima do cruzamento. Eram muito espertos, mesmo. Saí do carro, subi um pouco mais a gola do impermeável, saquei duma lanterna e dei com um mar de grossas tachas com cabeças do tamanho de moedas. A cabeça lisa e brilhante duma delas era visível no meu pneu.

 

Dois furos e só um pneu sobressalente. Enfiei o queixo dentro do casaco e comecei a andar em direcção à luz na berma da estrada.

 

Era o tal sítio, de certeza. A luz provinha da clarabóia no telhado da garagem. Na fachada, umas portas grandes duplas estavam fechadas mas a luz passava pelas fendas, uma luz branca intensa. Dirigi o foco da minha lanterna para cima e li: «Art Huck - Reparações de Automóveis.»

 

Por detrás da garagem havia uma casa afastada da estrada lamacenta e escondida por um pequeno maciço de árvores. Também aí havia luz. Diante do alpendre de madeira estava estacionado um coupé com a cobertura puxada para a frente.

 

A primeira coisa era arranjar os pneus, se tal fosse possível e eles não me reconhecessem. A noite estava demasiado chuvosa para andar a pé.

 

Tirei a lanterna do bolso e bati com ela na porta. A luz no interior apagou-se. Fiquei ali especado, a lamber as gotas de chuva do lábio superior, com a lanterna na mão esquerda e a direita no bolso. Voltara a pôr a Luger debaixo do braço.

 

Do outro lado da porta fez-se ouvir uma voz que não parecia nada satisfeita:

 

- Que quer? Quem é você?

 

- Abra - pedi. - Tive dois furos na estrada e só tenho um pneu sobressalente. Preciso de ajuda.

 

- Estamos fechados, mister. Realito fica para leste, a uma milha daqui.

 

Comecei a dar pontapés na porta. Ouvi praguejar lá dentro, e depois outra voz, muito mais suave:

 

- Um chico esperto, hein? Abre a porta, Art.

 

Um fecho chiou e metade da porta abriu-se para dentro. Eu acendi de novo a lanterna e o foco iluminou um rosto macilento. Depois um braço arrancou-ma. A mão que me agredira empunhava uma arma.

 

Baixei-me, apalpando o terreno à procura da lanterna, e fiquei imóvel. Estava quase a sacar da pistola.

 

- Pianinho, mister. Olhe que ainda se aleija.

 

A lanterna estava acesa, enterrada na lama. Peguei-lhe, desliguei-a e ergui-me de novo. Uma luz acendeu-se dentro da garagem, revelando a silhueta dum indivíduo alto que vestia um fato-macaco. Ele recuou, com a arma apontada na minha direcção.

 

- Entre e feche a porta. Fiz como ele disse.

 

- Ao fundo da vossa rua havia tachas por tudo quanto era sítio - expliquei. - Julguei que queriam freguesia.

 

- Não percebe? Esta tarde assaltaram um banco em Realito.

 

- Não sou daqui - respondi, lembrando-me do grupo de homens defronte do banco, à chuva.

 

- Está bem, está bem. bom, pois foi, e os malandros parece que se esconderam algures nas montanhas. com que então você passou por cima das tachas, hein?

 

- Parece que sim.

 

Olhei para o outro homem que estava na garagem.

 

Era baixo, entroncado, com um rosto moreno e frio e uns olhos castanhos e frios também. Vestia um impermeável de couro castanho e tinha o cinto apertado. O seu chapéu castanho, com a inclinação habitual, estava seco. O tipo estava com as mãos nos bolsos e tinha um ar aborrecido.

 

Pairava no ar o cheiro quente e adocicado da tinta de piroxilina. Uma pistola de pintar estava pousada sobre o guarda-lama dum grande sedan preto arrumado a um canto. Era um Buick praticamente novo. Não precisava da pintura que estava a levar.

 

O homem do fato-macaco fez desaparecer a arma que empunhava por uma abertura na parte lateral do mesmo. Olhou para o homem de castanho. O homem de castanho olhou para mim e perguntou numa voz suave:

 

- Donde vem, forasteiro?

 

- Seattle - respondi.

 

- Segue para oeste... para a grande cidade?

 

Ele tinha uma voz suave, suave e seca como o ruído que faz o couro gasto.

 

- Sim. A que distância fica?

 

- Cerca de quarenta milhas. Parece mais longe com um tempo destes. Deu uma grande volta, não foi? Por Tahoe e Lone Pine?

 

- Tahoe, não - retorqui. - Reno e Carson City.

 

- Ainda assim, uma grande volta - admitiu com um ligeiro sorriso nos lábios.

 

- Pega num macaco e arranja-lhe os pneus furados, Art.

 

- Mas ouve, Lash... - o homem do fato-macaco grunhiu e deteve-se, como se lhe tivesse cortado a garganta de orelha a orelha.

 

Era capaz de jurar que estremecera. Fez-se um silêncio de morte. O homem de castanho não mexeu um músculo. Qualquer coisa brilhava nos seus olhos. Depois baixou-os, dum modo quase tímido. A sua voz continuou aquele murmúrio seco e macio:

 

- Leva dois macacos, Art. Ele tem dois furos.

 

O tipo macilento encaixou. Dirigiu-se a um dos cantos, vestiu um casaco e pôs um boné. Pegou num calço e em dois macacos e encaminhou-se para a porta.

 

- De regresso à estrada, não é? - perguntou-me num tom de voz quase terno.

 

- Pois. Pode usar o sobressalente para um deles, se está muito ocupado - disse-lhe.

 

- Ele não está muito ocupado - interveio o homem de castanho, mirando as unhas.

 

Art saiu com as ferramentas. A porta voltou a fechar-se. Olhei para o Buick. Não olhei para Lash Yeager. Tinha a certeza de que ele era Lash Yeager. Não havia certamente dois homens chamados Lash que freqüentassem aquela garagem. Não olhei para ele porque estaria a olhar por cima do cadáver estendido de Larry Batzel e isso seria visível no meu rosto. Por um instante, pelo menos.

 

Ele também dirigiu o olhar para o Buick.

 

- Era para ser apenas um arranjo na carroçaria - disse numa voz lenta e afectada. - Mas o proprietário tem muita massa e o motorista dele precisava duns cobres. Conhece o gênero.

 

- Claro - respondi.

 

Os minutos passaram nos bicos dos pés. Uns minutos longos e arrastados. Depois ouviu-se um ruído de passos no exterior e a porta abriu-se. A luz iluminou fios de chuva que pareciam prata. Art entrou mal-humorado, fazendo rolar dois pneus enlameados. com um pé fechou a porta. Deixou cair um pneu a seu lado. A chuva e o ar fresco tinham-lhe devolvido a coragem. Encarou-me, furioso.

 

- Seattle - rosnou. -: Seattle, uma ova!

 

O homem de castanho acendeu um cigarro como se nada daquilo lhe dissesse respeito. Art despiu o casaco, pendurou o pneu num gancho, abriu-o com uma expressão maldosa e num instante tinha cá fora a câmara de ar. Furioso dirigiu-se até à parede junto da qual me encontrava, pegou numa bomba de ar e encheu a câmara. Depois ergueu-a com ambas as mãos para a meter num tanque com água.

 

Caí que nem um patinho mas o trabalho de equipa dos dois foi excelente. Os seus olhares não se tinham cruzado desde que Art regressara com os pneus.

 

Art atirou a câmara cheia ao ar, displicentemente, apanhou-a com ambas as mãos, examinou-a com maus modos junto do tanque, deu um passo na minha direcção e enfiou-ma pela cabeça e pelos ombros.

 

Num instante estava atrás de mim, empurrando a câmara de ar pelo tronco abaixo, imobilizando-me os braços. Eu conseguia mexer as mãos mas não chegava à minha arma.

 

O homem de castanho tirou a mão direita do bolso e avançou para mim enquanto fazia saltar na mão um cilindro de moedas de cinco cêntimos embrulhadas.

 

Fiz força para trás e depois, subitamente, atirei-me para a frente. com igual rapidez, Art largou a câmara de ar e atingiu-me com um joelho por trás. Desequilibrei-me, mas nunca soube quando caí no chão. O punho com o cilindro de moedas atingiu-me a meio da queda. No instante preciso, com a força necessária e o meu próprio peso a ajudar.

 

Como uma nuvem de pó numa corrente de ar, senti que a minha cabeça se desintegrava.

 

Pareceu-me que havia uma mulher e que estava sentada junto a um candeeiro. A luz incidia no meu rosto e por isso voltei a fechar os olhos, tentando observá-la através das pestanas. Tinha o cabelo tão oxigenado que a cabeça dela brilhava como uma fruteira de prata.

 

Trazia um vestido verde de corte masculino e uma gola branca e larga sobre as lapelas. Aos pés jazia uma mala brilhante de formas angulosas. Estava a fumar e tinha à mão, num copo alto, uma bebida de tom pálido.

 

Abri os olhos e disse:

 

- Ora viva.

 

Os olhos dela eram os olhos de que me lembrava, à porta do Sardi, num Rolls-Royce em segunda mão. Uns olhos muito azuis, muito ternos, encantadores. Não eram os olhos duma pega que andasse metida com os tipos do dinheiro fácil.

 

- Como se sente? - A voz também era terna e encantadora.

 

- Óptimo - respondi. - Só que alguém resolveu construir uma estação de serviço no meu maxilar.

 

- E de que é que estava à espera, Mr. Carmady? Orquídeas?

 

- Vejo que sabe como me chamo.

 

- Você dormiu um bom bocado. Eles tiveram muito tempo para lhe passar revista aos bolsos. Fizeram-lhe tudo. Só não o embalsamaram.

 

- Certo - respondi.

 

Podia mexer-me um pouco, mas não muito. Tinha os pulsos algemados atrás das costas. Havia nisso uma certa justiça poética. Das algemas, uma corda descia até aos tornozelos amarrados, desaparecia depois da vista, debaixo do sofá, e estava presa a qualquer outro lado. Eu estava quase tão neutralizado como se me tivessem metido dentro dum caixão.

 

- Que horas são?

 

Olhou de lado para o seu pulso, por entre uma espiral de fumo de cigarro.

 

- Dez e dezassete. Tem algum encontro marcado?

 

- Esta casa é a que fica ao lado da garagem? Onde estão os rapazes?... A abrir uma cova?

 

- Se eu fosse a si, não me preocupava, Carmady. Eles hão-de voltar.

 

- A não ser que tenha a chave destas pulseiras. Agradecia que me cedesse um pouco dessa bebida.

 

Ela ergueu-se num só movimento e acercou-se de mim, com o copo alto cor de âmbar na mão. Curvou-se e o seu hálito era delicado. Eu bebi alguns goles do copo, erguendo o pescoço.

 

- Espero que não lhe façam mal - disse numa voz distante, afastando-se. - Detesto mortes.

 

- E é você a mulher do Joe Mesarvey. Isso não a perturba? Dê-me mais um gole dessa bebida.

 

Ela estendeu-me de novo o copo. O sangue começava a circular no meu corpo endurecido.

 

- Acho que gosto de si - declarou. - Apesar da sua cara parecer um daqueles tapetes que se usam para amortecer os choques.

 

- Aproveite agora - disse-lhe. - Não há-de durar muito tempo, mesmo neste estado.

 

Ela voltou a cabeça de repente e ficou à escuta. Uma das duas portas estava entreaberta. Olhou na sua direcção. Parecia pálida. Mas o ruído era apenas da chuva.

 

Voltou a sentar-se junto do candeeiro.

 

- Por que foi que veio até cá e arriscou o seu pescoço? perguntou lentamente, com os olhos no chão.

 

O tapete era aos quadrados castanhos e vermelhos. O papel de parede tinha pinheiros dum verde-vivo e as cortinas eram azuis. O mobiliário, ou aquilo que conseguia ver dele, parecia vir dum daqueles sítios que anunciam nos bancos dos autocarros.

 

- Tinha uma rosa para si - expliquei. - De Larry Batzel.

 

Ela levantou qualquer coisa que estava pousada sobre a mesa e fê-la girar lentamente entre os dedos. O botão de rosa que ele lhe deixara.

 

- Tenho-a comigo - disse numa voz suave. - Havia uma mensagem, mas eles não ma mostraram. Era para mim?

 

- Não, para mim. Ele deixou-a sobre a minha mesa antes de sair e apanhar um tiro.

 

O rosto dela desfez-se como numa visão de pesadelo.

 

A boca e os olhos eram crateras escuras. Não emitiu um som. Passados alguns instantes recuperou aquela expressão serena e bela.

 

- Também não me contaram isso - disse em voz baixa.

 

- Dispararam sobre ele - expliquei cautelosamente porque tinha descoberto o que o Joe e o Lash Yeager haviam feito a Dud O’Mara. Despacharam-no.

 

Aquilo não lhe causou qualquer comoção.

 

- Joe não fez nada a Dud O’Mara - disse calmamente. - Não vejo Dud há dois anos. Essa história de eu me encontrar com ele eram disparates dos jornais.

 

- Não veio nos jornais - afirmei eu.

 

- Eram disparates, fosse onde fosse. Joe está em Chicago. Foi ontem, de avião, para vender umas coisas. Se fechar negócio, Lash e eu vamos ter com ele. Joe não é um assassino.

 

Fitei-a.

 

Os seus olhos tinham readquirido aquela expressão sombria.

 

- Larry... ele...

 

- Morreu - declarei. - Foi um trabalho de profissional, com uma metralhadora. Não quero com isto dizer que o tenham feito por questões pessoais.

 

Durante uns instantes, ela segurou o lábio entre os dentes. Podia ouvir o modo lento e esforçado como respirava. Esmagou o cigarro no cinzeiro e levantou-se.

 

- Não foi Joe quem fez isso - ripostou. - Sei muito bem que o não fez. Ele... - Deteve-se, fitou-me, pôs a mão no cabelo e, subitamente, puxou-o. Tinha uma cabeleira. Por baixo, o seu cabelo estava cortado curto, como o dum rapaz, com manchas amarelas e castanho-claras e uma cor mais escura junto das raízes. Não a desfeava de forma alguma.

 

Consegui soltar uma espécie de gargalhada.

 

- Você só veio até cá para mudar de pele, não foi, «Cabeleira Prateada»? E eu que julgava que eles a andavam a esconder... para dar a impressão que fugira com Dud O’Mara.

 

Ela continuava a olhar-me fixamente, como se não tivesse ouvido nada do que lhe dissera. Depois foi até junto dum espelho de parede e voltou a colocar a cabeleira. Endireitou-a e voltou-se para mim.

 

- Joe não matou ninguém - repetiu numa voz baixa e tensa. - É um patife... mas não é desses. Não sabe mais do que eu acerca do paradeiro de Dud O’Mara. E eu não sei nada.

 

- Fartou-se simplesmente da senhora rica e pôs-se a andar - concluí num tom de voz inexpressivo.

 

Ela estava agora junto de mim, as mãos brancas coladas ao corpo que brilhava à luz do candeeiro. Por cima de mim, a cabeça dela encontrava-se quase na penumbra. A chuva caía com força, o meu maxilar parecia grande e quente e um nervo ao longo dele doía, doía.

 

- É do Lash o único carro que aqui está - disse em voz baixa. - Acha que consegue caminhar até Realito, se lhe cortar as cordas?

 

- Claro. E depois?

 

- Nunca me vi envolvida num assassínio. Não era agora que ia ficar. Nem nunca.

 

Saiu do quarto rapidamente e regressou com uma enorme faca de cozinha. Cortou com ela a corda que me prendia os tornozelos, puxou-a e cortou-a no local onde estava presa às algemas. Parou a meio da tarefa e pôs-se à escuta, mas era de novo apenas a chuva.

 

Rolei até me colocar numa posição sentada e ergui-me. Tinha os pés adormecidos, mas isso passava. Podia andar. Podia correr, se fosse preciso.

 

- Lash tem a chave das algemas - explicou numa voz inexpressiva.

 

- Vamos - disse-lhe. - Tem uma arma?

 

- Não. Eu não vou. Ponha-se a andar. Eles podem regressar a qualquer instante. Foram só tirar umas coisas da garagem.

 

Aproximei-me dela.

 

- Vai ficar aqui depois de me libertar? À espera daquele assassino? Você não regula bem. Venha daí, «Cabeleira Prateada». Você vem comigo.

 

- Não.

 

- Admitamos - disse-lhe - que ele matou O’Mara. Nesse caso também matou Larry. Só assim faz sentido.

 

- Joe nunca matou ninguém - ripostou num tom agressivo.

 

- bom, nesse caso admitamos que foi Yeager.

 

- Você está a mentir, Carmady. Só para me meter medo. Saia daqui. Eu não tenho medo de Lash Yeager. Sou a mulher do patrão dele.

 

- Joe Mesarvey é um sentimental e um fraco - respondi no mesmo tom. - Uma rapariga como você só se apaixona pelo tipo errado quando ele é um sentimental e um fraco. Toca a andar.

 

- Saia! - exclamou num tom áspero.

 

- Está bem.

 

Afastei-me dela e atravessei a soleira da porta.

 

Ela passou por mim quase a correr e abriu-me a porta da rua, perscrutando a escuridão molhada. Fez-me sinal para que avançasse.

 

- Adeus - sussurrou. - Espero que descubra Dud. Espero que descubra quem matou Larry. Mas não foi Joe.

 

Aproximei-me dela, quase a empurrando contra a parede com o meu corpo.

 

- Você continua louca, «Cabeleira Prateada». Adeus. Ela ergueu as mãos num gesto rápido e pô-las no meu

 

rosto. Umas mãos frias como gelo. Beijou-me ao de leve na boca com uns lábios frios.

 

- Ponha-se a andar, valentão. Havemos de nos voltar a ver. Talvez no Céu.

 

Atravessei a soleira da porta, desci os degraus de madeira escuros e escorregadios do alpendre e atravessei a gravilha em direcção ao relvado redondo e ao pequeno maciço de árvores. Passei por ele e fui até à estrada, encaminhando-me depois para Foothill Boulevard. A chuva tocava-me no rosto com dedos de gelo que não eram mais frios que os dedos dela.

 

A viatura abandonada continuava no mesmo sítio, ligeiramente inclinada, com o eixo dianteiro na berma alcatroada da estrada. O meu pneu sobressalente e uma jante tinham sido atirados para a valeta.

 

Quase de certeza que o tinham passado a pente fino, mas mesmo assim eu tinha esperança. Entrei no carro de costas, dei com a cabeça no volante e rodei o corpo de modo a conseguir meter as mãos algemadas no meu pequeno compartimento secreto. Os meus dedos tocaram-lhe no cano. Ainda lá estava.

 

Tirei a arma para fora, saí do carro, segurei-a pelo lado certo e fiz-lhe um exame rápido.

 

Apertando-a com força contra as costas a fim de a proteger um pouco da chuva, dirigi-me de novo para a casa.

 

Ia a meio do caminho quando ele regressou. Os seus faróis, mudando rapidamente de direcção quando abandonou a estrada, quase me apanharam. Atirei-me para uma vala, meti o nariz na lama e rezei para que não me visse.

 

O carro passou por mim. Ouvi o som áspero e molhado dos pneus esmagando a gravilha defronte da casa. Depois o motor foi desligado e as luzes apagaram-se. A porta bateu. Não ouvi a porta da casa fechar-se mas pude ver, por entre as árvores, uma ténue fresta de luz no momento em que se abriu.

 

Ergui-me e continuei a avançar. Acerquei-me da viatura, um pequeno coupé já antigo. Tinha a arma ao lado, junto da anca, tanto quanto as algemas o permitiam.

 

O coupé estava vazio. No radiador a água gorgolejava. Pus-me à escuta mas não ouvi qualquer ruído vindo da casa. Nem vozes, nem discussões. Apenas o martelar pesado das gotas de chuva nos algerozes.

 

Yeager estava dentro de casa. Ela deixara-me fugir e Yeager estava lá dentro com ela. Muito provavelmente não lhe ia contar nada. Limitar-se-ia a ficar de pé e a olhar para ele. Era a mulher do patrão. Isso havia de meter um medo dos diabos a Yeager.

 

Ele não se iria demorar, mas não a deixaria ficar, viva ou morta. Devia estar prestes a pôr-se a caminho e ia levá-la com ele. O que quer que fosse que lhe ia acontecer depois era outra história.

 

Bastava-me ter esperado que saísse. Não esperei.

 

Passei a arma para a mão esquerda e curvei-me para apanhar alguma gravilha. Atirei-a contra a janela. Foi em vão, porque pouca gravilha atingiu os vidros.

 

Corri para trás do coupé, abri a porta e vi as chaves na ignição. Agachei-me no estribo, agarrado à porta.

 

As luzes tinham-se apagado dentro de casa, mas não se passara mais nada. Não vinha de lá som algum. Nada feito. Yeager era muito cauteloso.

 

Estiquei uma perna para o interior e dei com o acelerador, depois estiquei uma mão e rodei a chave na ignição. O motor, ainda quente, pegou logo, ficando a ronronar debaixo daquela chuva incessante.

 

Desci do carro e rastejei para detrás dele, onde me acocorei.

 

O ruído do motor é que o apanhou. Não podia ficar ali sem uma viatura.

 

Uma janela escurecida ergueu-se alguns centímetros e só o reflexo da luz nos vidros revelava que se movia. De lá de dentro foi cuspida uma chama^ uma rajada de três tiros rápidos. Ouviu-se um ruído de vidros partidos no coupé.

 

Eu gritei e deixei que o meu grito- morresse num gemido. Estava a tornar-me bom nesse tipo de coisas. Deixei que o gemido desse lugar a um arquejar sufocado. Estava liquidado. Ele tinha-me acertado. bom tiro, Yeager.

 

Dentro de casa um homem riu. Depois fez-se de novo silêncio, cortado apenas pela chuva e pelo ronronar tranquilo do coupé. Em seguida, a porta da casa abriu-se muito lentamente. Uma figura surgiu na soleira. Ela saiu para o alpendre, hirta. A gola branca era visível à volta do pescoço; a peruca também se via, mas não muito. Por detrás dela conseguia vislumbrar Yeager, agachado.

 

Ela começou a atravessar a gravilha. Disse numa voz lenta e sem emoção:

 

- Não vejo nada, Lash. Os vidros estão todos embaciados.

 

Teve um pequeno sobressalto, como se uma arma a tivesse empurrado, e continuou a avançar. Yeager não falava. Podia vê-lo agora, por detrás do ombro dela: o chapéu, parte do rosto. Não era alvo para um homem com algemas nos pulsos.

 

Ela voltou a estacar e a sua voz adquiriu de repente um tom horrorizado:

 

- Está atrás do volante! - gritou. - Dobrado sobre ele.

 

Ele caiu na armadilha. Empurrou-a para um lado e começou a disparar outra vez. O vidro voltou a voar. Um projéctil embateu numa árvore do lado do carro em que me encontrava. Outro silvou algures. O motor continuou a ronronar.

 

Yeager estava agachado no escuro e o seu rosto era uma mancha cinzenta sem forma que parecia reaparecer muito lentamente depois dos clarões dos tiros. Os disparos tinham-no cegado também... por um segundo. Foi o bastante.

 

Alvejei-o quatro vezes, segurando o Colt vibrante contra as costelas.

 

Ele tentou voltar-se e a arma escorregou-lhe das mãos. Esboçou um gesto como se quisesse apanhá-la no ar, depois as suas mãos agarraram o estômago e já não saíram daí. Sentou-se na gravilha molhada e o seu arfar sobrepunha-se a todos os outros ruídos na noite húmida.

 

Vi-o deitar-se de lado, muito devagar, sem tirar as mãos do estômago. A respiração ofegante cessou.

 

Pareceu-me que tinham passado milênios antes que a «Cabeleira Prateada» chamasse por mim. Estava a meu lado, agarrando-me o braço.

 

- Desligue o motor! - gritei-lhe. - E tire a chave destas malditas algemas do bolso dele.

 

- Seu doido varrido - gaguejou. - Por que foi que voltou para trás?

 

O capitão Al Roof do Gabinete de Pessoas Desaparecidas balouçou-se na cadeira e olhou na direcção da janela cheia de sol. Era outro dia e a chuva parara há muito.

 

- Anda a cometer uma série de disparates, amigo - disse ele num tom áspero. - Dud O’Mara sumiu-se simplesmente. Nenhum destes tipos o liquidou. A morte do Batzel não teve nada a ver com isso. Falaram com o Mesarvey em Chicago e parece limpo. O tipo que você prendeu ao morto nem sabe para quem estava a trabalhar. Os nossos rapazes interrogaram-no o tempo suficiente para terem a certeza disso.

 

- Aposto que sim - afirmei eu. - Passei a noite na mesma gaiola e também não tinha grande coisa para lhes contar.

 

Ele voltou-se lentamente e fitou-me com os seus olhos grandes, baços e cansados.

 

- Quanto a matar o Yeager, tudo bem, suponho. E o tipo da metralhadora. Dadas as circunstâncias. Além de que não pertenço aos Homicídios. Não consigo ligar isso com o O’Mara, talvez você consiga.

 

Eu conseguia, mas não o fizera. Ainda.

 

- Não - respondi. - Suponho que não. - Enchi o meu cachimbo e acendi-o. Depois duma noite em branco tinha um travo amargo.

 

- É só isso que o preocupa?

 

- Pergunto-me por que não descobriram a rapariga em Realito. Não havia de ser muito difícil... para vocês.

 

- Não descobrimos. Devíamos tê-lo feito, reconheço-o. Não o fizemos. Mais alguma coisa?

 

Expeli o fumo para cima da sua secretária.

 

- Ando à procura de O’Mara porque o general me pediu para o fazer. Não serviu de nada dizer-lhe que vocês fariam tudo o que podia ser feito. Ele pode pagar a um homem para se dedicar a essa tarefa a tempo inteiro. Suponho que ficou melindrado...?

 

O capitão não achou graça àquilo.

 

- De forma alguma, se ele quer desperdiçar o dinheiro dele. As pessoas que ficaram melindradas estão atrás duma porta que diz Departamento de Homicídios.

 

Pousou os pés no chão com força e apoiou os cotovelos na secretária.

 

- O’Mara levava no bolso quinze mil dólares. É muita massa, mas O’Mara era tipo para possuí-la. A fim de poder dar umas voltas e mostrá-la aos seus velhos amigos. Só que eles não iriam acreditar que eram quinze mil dólares verdadeiros. A mulher dele diz que sim. Noutro tipo qualquer, isso seria sinal de que fazia tenção de desaparecer. Mas não o O’Mara. Tinha-o a rodos.

 

Ele mordeu um charuto e chegou-lhe um fósforo. Abanou um dedo grande.

 

- Está a ver? Eu disse que sim.

 

- Muito bem. O O’Mara tinha quinze mil e um tipo que se some pode manter-se fora de vista apenas enquanto a massa durar. Quinze mil não é mau. Eu próprio era capaz de desaparecer, se tivesse tanto dinheiro. Mas quando acabar, nós apanhamo-lo. Ele há-de levantar um cheque, assinar um papel reconhecendo uma dívida, fazer uma falcatrua num hotel ou numa loja para arranjar dinheiro, dar uma referência, escrever ou receber uma carta. Está numa nova cidade e tem um outro nome, mas continua com os gostos de sempre. Seja de que maneira for, há-de ter de regressar ao sistema fiscal. Um tipo não pode ter amigos em tudo quanto é sítio, e mesmo que os tivesse, alguém, algum dia, haveria de dar com a língua nos dentes. Não acha?

 

- Acho que sim - respondi.

 

- Foi para longe - continuou Roof. - Mas o único preparativo foram os quinze mil dólares. Não tratou da bagagem, nem de reservas num barco, comboio ou avião, nem de arranjar um táxi ou um carro alugado que o levasse até um ponto qualquer fora da cidade. Verificámos tudo isso. O carro dele foi encontrado a alguns quarteirões do local onde vivia. Mas isso não quer dizer nada. Ele conhecia gente capaz de o transportar para centenas de quilómetros de distância e de manter a boca fechada, mesmo perante uma recompensa. Aqui, mas não em todo o lado. Não com amigos recentes.

 

- Mas você há-de apanhá-lo - concluí.

 

- Quando ficar com fome.

 

- Isso pode levar um ano ou dois. O general Winslow é capaz de não sobreviver um ano. Trata-se dum caso sentimental, não de saber se fica um dossier em aberto quando se reformar.

 

- Trate você da parte sentimental, amigo. - Os seus olhos moveram-se e com eles umas sobrancelhas espessas arruivadas. Ele não gostava de mim. Ninguém gostava, naquele dia, no Comando da Polícia.

 

- Tomara eu... - retorqui, e levantei-me. - Talvez eu fosse capaz de ir muito longe por causa desse caso sentimental.

 

- Pois - disse Roof, subitamente pensativo. - bom, Winslow é um grande homem. Se eu puder fazer alguma coisa, não deixe de me dizer.

 

- Podia descobrir quem mandou abater Larry Batzel disse-lhe. - Mesmo que não haja ligação nenhuma.

 

- Faremos isso. com todo o prazer. - Deu uma gargalhada e espalhou cinza pela mesa toda. - Você dá cabo dos tipos que podiam falar e nós tratamos do resto. Gostamos de trabalhar assim.

 

- Foi em legítima defesa - rosnei. - Não pude fazer nada.

 

- Claro. Ponha-se a andar, amigo. Estou muito ocupado. Mas os seus grandes olhos baços piscaram na minha direcção quando saí.

 

Estava uma manhã toda ela azul e oiro e os pássaros nas árvores ornamentais da propriedade dos Winslow cantavam loucamente depois da chuva.

 

O guarda deixou-me entrar pela porta lateral. Subi a pé o caminho de acesso e caminhei ao longo do terraço superior até junto da enorme porta de entrada italiana de madeira trabalhada. Antes de tocar à campainha olhei para baixo e reparei no miúdo chamado Trevillyan, sentado no seu banco de pedra com o queixo apoiado nas mãos, olhando o vazio.

 

Pelo caminho de tijoleira dirigi-me até junto dele.

 

- Hoje não há dardos, meu rapaz?

 

Ele levantou para mim os seus olhos esguios e encovados.

 

- Não. Encontrou-o?

 

- O teu pai? Não, rapaz, ainda não.

 

Ele ergueu a cabeça num gesto brusco. Tinha as narinas abertas e uma expressão furiosa.

 

- Ele não é meu pai, já lhe disse. E não fale comigo como se eu tivesse quatro anos. O meu pai está... está na Florida ou num sítio qualquer.

 

- bom, ainda não o encontrei, seja lá ele pai de quem for - respondi.

 

- Quem foi que lhe deu um soco? - perguntou fitando-me.

 

- Oh, um tipo com um rolo de moedas na mão.

 

- Das de cinco cêntimos?

 

- Pois. É tão eficaz como um punho de ferro. Experimenta um dia, mas não comigo - disse a sorrir.

 

- O senhor não o vai encontrar - afirmou ele com uma voz sucumbida, mirando o meu maxilar. Ele, isto é, o marido da minha mãe.

 

- Aposto que sim.

 

- Quanto é que aposta?

 

- Mais dinheiro do que alguma vez tiveste no bolso.

 

Ele pontapeou a aresta dum tijolo na parede com uma expressão maldosa. A voz continuava sucumbida, mas mais suave. Os olhos tinham uma expressão abstracta.

 

- Quer apostar noutra coisa? Venha até à carreira de tiro. Aposto consigo um dólar em como deito abaixo oito dos dez alvos em dez tiros.

 

Voltei-me e olhei na direcção da mansão. Ninguém parecia ter muita pressa em receber-me.

 

- bom - disse-lhe -, vai ter de ser rápido. Vamos lá então.

 

Caminhámos ao longo da parede lateral da casa, debaixo das janelas. A estufa das orquídeas era visível por detrás dumas árvores frondosas ao longe. Um homem de uniforme polia os cromados dum grande carro defronte das garagens. Passámos por elas e dirigimo-nos para o edifício branco e baixo encostado à colina.

 

O rapaz tirou do bolso uma chave e abriu a porta. Entrámos num ambiente fechado onde ainda se sentia o cheiro da cordite. O rapaz correu um fecho na porta.

 

- Primeiro eu - declarou.

 

O local lembrava uma barraca de tiros numa praia. Havia um balcão com uma espingarda .22 pousada em cima e uma pistola de tiro ao alvo. Ambas estavam oleadas mas cobertas de pó. A cerca de dez metros do balcão havia uma divisória que atravessava o edifício e por detrás dela uma série de alvos de barro e dois alvos de círculos concêntricos brancos e pretos com marcas de chumbos.

 

Os alvos de barro formavam uma fila contínua, e havia por cima uma clarabóia e uma fila de projectores.

 

O rapaz puxou uma corda, fazendo correr um telão que tapou a clarabóia. Em seguida ligou os projectores. Então é que o lugar ficou mesmo igual a uma barraca de tiros na praia.

 

Pegou na espingarda e carregou-a rapidamente com balas de calibre 22 que estavam numa caixa de cartão.

 

- Um dólar se eu acertar em oito dos dez alvos?

 

- Vamos a isso - declarei, pousando o meu dinheiro sobre o balcão.

 

Ele apontou a espingarda quase displicentemente, disparou demasiado depressa para se exibir e falhou três tiros. Mesmo assim, tinha sido muito bom. Atirou a arma para cima do balcão.

 

- Bolas, vá pôr’lá mais alguns. Esta não valeu. Eu ainda não estava preparado.

 

- Não gostas de perder dinheiro, pois não, rapaz? Vai tu pô-los. É a tua carreira de tiro.

 

Uma expressão de fúria surgiu no seu rosto esguio. A sua voz era estrídula:

 

- Vá você! Eu tenho de me descontrair, está a perceber? Tenho de me descontrair.

 

Encolhi os ombros, levantei o tampo do balcão e caminhei ao longo da parede caiada, passando para trás da divisória.

 

Atrás de mim ouvi o rapaz fechar a espingarda que acabara de recarregar.

 

- Baixa isso - disse zangado. - Nunca se pega numa arma quando está alguém na linha de tiro.

 

Ele baixou-a, parecendo ofendido.

 

Eu curvei-me e peguei numa mão-cheia de alvos que estavam dentro duma caixa de serradura. Sacudi-os e comecei a levantar-me.

 

Parei com o meu chapéu acima da divisória. Só o topo do meu chapéu. Nunca soube porque parara. Instinto.

 

A espingarda disparou e a bala aninhou-se no alvo defronte da minha cabeça. O chapéu ficou a tremer no cimo da minha cabeça como se um pássaro tivesse passado por ele na altura de fazer o ninho.

 

Um miúdo encantador. Cheio de manhas, como o «Olhos Inflamados». Larguei os alvos e segurei no chapéu pela aba, erguendo-o alguns centímetros acima da cabeça. A espingarda voltou a disparar. Outro som metálico no alvo.

 

Deixei-me cair pesadamente sobre o soalho, entre os alvos de barro.

 

Uma porta abriu-se e voltou a fechar-se. E foi tudo. Nada mais. A luz forte dos projectores incidia em mim. O sol brilhava pelos extremos do telão. No alvo mais próximo havia dois orifícios novos e no meu chapéu quatro, dois de cada lado.

 

Rastejei até à ponta da divisória e espreitei. O rapaz desaparecera. Podia ver os canos das duas armas sobre o balcão.

 

Levantei-me e regressei ao longo da parede. Desliguei as luzes, abri o fecho e saí para o exterior. O motorista dos Winslow assobiava enquanto prosseguia com o seu trabalho diante das garagens.

 

Segurando na mão o chapéu, regressei ao longo da casa, à procura do miúdo. Não o vi em parte alguma. Toquei à porta de entrada.

 

Perguntei por Mrs. O’Mara. Não deixei que o mordomo tomasse conta do meu chapéu.

 

Vestia qualquer coisa cor de pérola, com pêlo branco nos punhos, à volta do pescoço e em baixo. Ao lado da cadeira tinha uma mesa de rodas com o pequeno-almoço. Estava a espalhar cinza por entre os talheres.

 

A criada tímida das pernas bonitas entrou e levou a mesa de rodas, fechando a porta atrás de si. Sentei-me.

 

Mrs. O’Mara encostou a cabeça a uma almofada, com um ar cansado. O pescoço estava inclinado para trás e ela tinha uma expressão grave e distante. Fitou-me com uns olhos frios e duros onde li uma grande antipatia.

 

- Ontem pareceu-me bastante humano - começou. Mas vejo que não passa dum bruto, como os outros. Um chui bruto.

 

- Vim falar-lhe de Lash Yeager - disse.

 

Ela nem sequer fez de conta que estava divertida.

 

- E por que há-de perguntar-me a mim?

 

- bom... uma vez que viveu uma semana no Dardanella Club... - respondi, agitando no ar o meu chapéu.

 

Olhou fixamente para o cigarro que tinha na mão.

 

- bom, creio que o conheci. Lembro-me desse nome invulgar.

 

- Têm todos nomes assim, os animais - comentei. Parece que Larry Batzel... suponho que também leu nos jornais o que lhe aconteceu... foi em tempos amigo de Dud O’Mara. Não lhe falei nele ontem. Talvez tenha sido um erro.

 

Uma veia começou a latejar-lhe no pescoço. Ela disse numa voz suave:

 

- Suspeito que daqui a nada se vai tornar muito insolente e que talvez tenha de mandar pô-lo fora.

 

- Não antes de eu dizer o que tenho para lhe dizer retorqui. - Parece que o motorista de Mr. Yeager... esses animais têm motoristas para além de nomes invulgares... contou a Larry Batzel que Mr. Yeager viera para estes lados na noite em que O’Mara desapareceu.

 

O velho sangue militar havia de servir para alguma coisa nela. Não mexeu um músculo. Ficou transformada num bloco de gelo.

 

Levantei-me, tirei o cigarro de entre os seus dedos hirtos e esmaguei-o num cinzeiro de jade branco. Pousei o chapéu sobre o seu joelho coberto de cetim. Voltei a sentar-me.

 

Passados alguns instantes, os seus olhos mexeram-se. Baixou-os e olhou para o chapéu. Começou a corar lentamente, ficando com duas manchas vermelho-vivas sobre as maçãs do rosto. Mexia a língua e os lábios.

 

- Eu sei - disse-lhe. - O chapéu não é lá grande coisa. Não lho estou a oferecer como prenda. Mas olhe só para os buracos de bala.

 

As mãos dela voltaram à vida e pegaram bruscamente no chapéu. Os olhos pareciam chamas.

 

Endireitou-o, olhou para os orifícios e estremeceu.

 

- Yeager? - perguntou numa voz débil. A voz era quase inaudível, uma voz de velha.

 

- Yeager não utilizaria uma espingarda de tiro ao alvo calibre vinte e dois, Mrs. O’Mara - disse eu devagar.

 

As chamas morreram nos seus olhos. Eram uns poços escuros, mais negros do que a escuridão.

 

- Você é a mãe dele - afirmei. - O que é que quer fazer?

 

- Meu Deus! Dade! Ele... alvejou-o!

 

- Por duas vezes - informei.

 

- Mas porquê?... Oh, porquê?

 

- A senhora acha-me um espertalhão, Mrs. O’Mara. Mais um tipo duro do outro lado da vida. Nas circunstâncias presentes isso ajudava-me, se assim fosse. Mas eu não sou nada disso. Tenho de lhe dizer por que foi que me alvejou!

 

Ela não abriu a boca. Acenou lentamente com a cabeça. O rosto dela era agora uma máscara.

 

- Eu diria que provavelmente ele não consegue evitá-lo - disse eu. - Ele não queria que eu descobrisse o seu padrasto, para começar. Depois, é um rapazinho que gosta de dinheiro. Parece coisa de pouca monta, mas faz parte da explicação. Ia perdendo um dólar comigo na carreira de tiro. Parece uma coisa insignificante, mas ele vive num mundo pequeno. Acima de tudo, ele é um sadicozinho demente com um dedo irrequieto sempre pronto a disparar.

 

- Como é que o senhor se atreve! - explodiu. Aquilo não significava nada. Ela própria se esqueceu disso instantaneamente.

 

- Como é que me atrevo? Atrevo-me. Não nos preocupemos em descobrir por que motivo disparou sobre mim. Eu não sou o primeiro, não é verdade? Você não saberia do que eu estava a falar, não partiria do princípio que ele o fizera propositadamente.

 

Ela não se mexeu nem falou. Eu inspirei fundo.

 

- Falemos então do motivo por que matou Dud O’Mara

- disse-lhe.

 

Enganei-me se pensara que desta vez ela se ia pôr aos berros. O velho na estufa das orquídeas transmitira-lhe mais coisas do que a altura, os cabelos escuros e o olhar temerário.

 

Meteu os lábios para dentro e procurou humedecê-los; por um instante, tinha o ar duma rapariguinha assustada. Depois as linhas do seu rosto tornaram-se mais duras, a mão subiu como se fosse uma mão artificial movida por fios e agarrou a pele branca que tinha à volta do pescoço, apertando-a até ter os nós dos dedos completamente brancos. Depois ficou a olhar para mim.

 

O meu chapéu escorregou-lhe do joelho para o chão, sem que se tivesse mexido. O som que fez ao cair foi dos sons mais fortes que ouvira na minha vida.

 

- Dinheiro - disse numa voz sufocada. - É claro que quer dinheiro.

 

- Quanto dinheiro é que eu quero?

 

- Quinze mil dólares.

 

Eu fiz que sim com a cabeça, mas tinha o pescoço tão rígido como aqueles gerentes dos armazéns que procuram olhar para trás sem se voltar.

 

- Isso seria a quantia adequada. O valor estabelecido. O dinheiro que ele tinha no bolso e que Yeager recebeu por se desfazer dele.

 

- Você é... demasiado esperto - disse ela numa voz horrível. - Era capaz de matá-lo com as próprias mãos e gostar de o fazer.

 

Esbocei um sorriso.

 

- Certo. Esperto e sem sentimentos. As coisas passaram-se provavelmente assim. O rapaz apanhou O’Mara como me apanhou a mim, com o mesmo estratagema simples. Não creio que tivesse sido planeado. Ele odiava o padrasto mas não estaria propriamente a pensar em matá-lo.

 

- Ele odiava-o - disse ela.

 

- Temo-los, portanto, na carreira de tiro e O’Mara está morto, estendido no chão por detrás da divisória, fora do alcance da vista. Os tiros, é claro, não significavam nada num local daqueles. E havia muito pouco sangue, com um tiro na cabeça e uma bala de calibre pequeno. O rapaz sai, tranca a porta e esconde-se. Mas ao fim de algum tempo é forçoso que conte a alguém. É necessário. Ele conta-lhe a si. Você é a mãe dele. Você é aquela a quem ele pode contar.

 

- Sim - disse ela num sussurro. - Foi isso mesmo que ele fez. - Os olhos dela tinham deixado de me odiar.

 

- Você pensa dizer que se tratou dum acidente. Tudo bem, à excepção dum pormenor. O rapaz não é um rapaz normal e você sabe-o. O general sabe, os criados sabem. Há certamente outras pessoas que também o sabem. E os tipos da lei, embora os ache estúpidos, são muito bons com estes casos anormais. Passam-lhes tantos pelas mãos. E eu suspeito que o miúdo teria falado, suponho mesmo que ao fim de algum tempo se teria vangloriado.

 

- Continue - disse ela.

 

- Você não podia correr esse risco - continuei. - Por causa do seu filho e por causa do velho doente na estufa das orquídeas. Preferia cometer um crime qualquer a arriscar. Foi o que fez. Conhecia Yeager e contratou-o para se desfazer do cadáver. E é tudo... a não ser que o facto de esconderem a rapariga, Mona Mesarvey, ajudou a dar a aparência dum desaparecimento premeditado.

 

- Ele levou-o embora depois de anoitecer, no carro de Dud - disse numa voz oca.

 

Curvei-me e apanhei o chapéu do chão.

 

- E os criados?

 

- Norris sabe. O mordomo. Preferia ser fuzilado a abrir a boca.

 

- Pois. Agora sabe por que liquidaram Larry Batzel e me levaram a dar um passeio, não sabe?

 

- Chantagem - disse ela. - Não se falara ainda nisso mas eu estava à espera. Estava disposta a pagar qualquer preço e ele sabia-o.

 

- Pouco a pouco, ano após ano, ele tinha à mão duzentos e cinqüenta mil dólares muito fáceis de obter. Não creio que Joe Mesarvey estivesse metido nisso. Sei que a rapariga não estava.

 

Ela não abriu a boca. Tinha os olhos fixos em mim.

 

- Por que raio - resmunguei - não lhe tirou as armas?

 

- Ele é pior do que você julga. Fazê-lo teria dado origem a qualquer coisa ainda pior. Eu... eu própria quase tenho medo dele.

 

- Leve-o daqui - aconselhei-a. - Leve-o daqui, de ao pé do velho. Ele ainda é suficientemente novo para se curar, com uma educação apropriada. Leve-o para a Europa. Para longe. O general morreria se soubesse que o seu sangue corre naquilo.

 

Ela levantou-se com dificuldade e arrastou-se até às janelas. Ficou aí imóvel durante um bocado, quase se fundindo com as cortinas. Tinha os braços caídos, imóveis também. Daí a algum tempo voltou-se e passou por mim. Ouvi-a soluçar uma única vez nas minhas costas.

 

- Foi uma coisa horrível. Foi a coisa mais horrível de que alguma vez ouvi falar. E, todavia, fá-lo-ia de novo. O pai não teria procedido assim. Teria dito logo a verdade. Tê-lo-ia, como disse, matado.

 

- Leve-o daqui - insisti. - Ele está escondido lá fora, neste momento. Julga que me acertou. Está escondido algures, como um animal. Vá buscá-lo. Ele não é capaz de deixar de o fazer.

 

- Ofereci-lhe dinheiro - disse ela, nas minhas costas. Não foi bonito. Eu não estava apaixonada por Dudley O’Mara. Isso também não foi bonito. Não lhe posso agradecer. Não sei o que lhe hei-de dizer.

 

- Esqueça isso - disse-lhe. - É a minha profissão. Dedique-se antes ao rapaz.

 

- Prometo. Adeus, Mr. Carmady.

 

Não apertámos as mãos. Voltei a descer as escadas. O mordomo estava à porta, como de costume. O seu rosto reflectia apenas boa educação.

 

- Não vai querer ver o general hoje, sir?

 

- Hoje não, Norris.

 

Não vi o rapaz no exterior. Saí pela porta lateral e meti-me no meu Ford alugado. Depois desci o monte, passando pelos poços de petróleo.

 

Em volta de alguns deles havia ainda pequenos lagos de águas residuais cobertas com uma espuma oleosa, que não eram visíveis da estrada.

 

Teriam uns quatro ou cinco metros de profundidade, provavelmente mais. No fundo existiriam coisas escuras. Talvez num deles...

 

Sentia-me satisfeito por ter morto Yeager.

 

No regresso, parei num bar e bebi uns copos. Não me puseram mais bem-disposto.

 

O único efeito foi fazerem-me lembrar a «Cabeleira Prateada». Nunca mais voltei a vê-la.

 

                       PROCURE A RAPARIGA

 

Eu não tinha nada a haver com aquele grandalhão. Nem então, nem mais tarde. Mas sobretudo naquela altura.

 

Estava na Central, o Harlem de Los Angeles, num dos quarteirões «mistos», onde ainda há estabelecimentos de brancos e de gente de cor. Andava à procura dum barbeirozinho grego chamado torn Aleidis. A mulher queria-o de volta e estava disposta a pagar-me algum dinheiro para que o encontrasse. Era um trabalho tranqüilo. torn Aleidis não era nenhum patife.

 

Vi o grandalhão defronte do Shamey’s, um bar e sala de jogos situado num segundo andar, de aspecto não muito agradável. Ele estava a olhar para o letreiro luminoso e para as letras partidas com a expressão dum emigrante que contempla a estátua da Liberdade, a expressão dum homem que esperou bastante tempo e veio de muito longe.

 

Ele não era apenas grande. Era um verdadeiro gigante. Parecia ter mais de dois metros e vinte e trazia as roupas menos discretas que alguma vez vi num homem realmente grande.

 

Calças de pregas castanhas, um casaco grosso cinzento com uns botões brancos que pareciam bolas de bilhar, sapatos de camurça castanhos com umas enormes manchas brancas, uma camisa castanha, uma gravata amarela, um enorme cravo vermelho na lapela e um lenço da cor da bandeira irlandesa. Estava dobrado de modo a formar três pontas, por debaixo do cravo. Na Central Avenue, não propriamente a rua com as roupas mais discretas do mundo, um homem daquele tamanho e com aquela indumentária passava tão despercebido como uma tarântula em cima dum bolo.

 

Bebemos uísque.

 

- Sabe onde está a Beulah? - perguntou impassível ao barman enquanto lambia o líquido que escorrera pelo lado de fora do copo.

 

- Beulah, é o que diz? - perguntou o barman numa voz débil. - Não a tenho visto por aqui nos últimos tempos. Não, nos últimos tempos não.

 

- Há quanto tempo está aqui?

 

- Há cerca dum ano, suponho. Há cerca dum ano, sim senhor. Mas...

 

- Há quanto tempo é que este sítio é uma espelunca?

 

- Que diz?

 

O gigante cerrou um punho do tamanho dum balde.

 

- Há pelo menos cinco anos - interrompi. - Este tipo não há-de saber nada sobre uma rapariga branca chamada Beulah.

 

O gigante olhou para mim como se eu tivesse acabado de nascer. O uísque não parecia ter-lhe melhorado a disposição.

- Quem foi que o mandou meter-se na conversa?

 

Eu sorri. O meu rosto abriu-se num sorriso grande e fraterno.

 

- Sou o tipo que entrou aqui consigo. Lembra-se? Ele sorriu também. Um sorriso branco, forçado.

 

- Uísque - disse para o barman. - Mexa-se. Queremos ser servidos.

 

O barman pôs-se a andar precipitadamente dum lado para o outro, odiando-nos.

 

O local estava agora deserto, à excepção de nós dois, do barman e do segurança estendido junto à parede do fundo.

 

Ele gemeu e mexeu-se. Rolando sobre si mesmo, começou a rastejar lentamente sobre o soalho, como uma mosca com uma só asa. O gigante não lhe ligou nenhuma.

 

- Não ficou nada do estabelecimento antigo - queixou-se. - Havia um palco e uma banda e uns quartinhos engraçados onde a gente se podia divertir. A Beulah chilreava umas coisas. Era ruiva. Um borracho. Estávamos para nos casar quando me tramaram.

 

Tínhamos diante de nós mais dois uísques.

 

- Tramaram como? - perguntei.

 

- Onde julga que passei os oito anos de que lhe falava há pouco?

 

- Nalgum retiro murado - sugeri.

 

- Certo. - Bateu no peito com um polegar do tamanho dum bastão de basebol. - Steve Skalla. O caso do Great Bend no Kansas. Fui sozinho. Quarenta mil dólares. Deram comigo aqui. Eu era o que... eh!

 

O segurança alcançara uma porta nas traseiras e rolara para o outro lado. Ouviu-se um fecho ser corrido.

 

- Pra onde dá aquela porta? - perguntou o gigante.

 

- Aquilo... aquilo é o escritório de Mr. Montgomery. Ele é o patrão. Tem o escritório nas traseiras.

 

- Talvez ele saiba - atalhou o gigante. Limpou a boca à bandeira irlandesa que lhe servia de lenço e que voltou a meter no bolso depois de cuidadosamente dobrada. - É melhor também não se armar em esperto. Mais dois uísques.

 

Atravessou a sala e encaminhou-se para a porta, por detrás da mesa de jogo. O fecho ocupou-o durante alguns instantes, depois uma parte da madeira foi arrancada e ele entrou, fechando a porta atrás de si.

 

Fizera-se um grande silêncio no Shamey’s. Olhei para o barman.

 

- Este tipo é um duro - disse-lhe rapidamente. - E é capaz de se zangar. Está a ver, não é? Anda à procura duma antiga namorada que trabalhava aqui quando isto era um local para brancos. Tem alguma artilharia aí atrás?

 

-Julgava que tinha vindo com ele - disse o barman desconfiado.

 

- Não pude evitá-lo. Arrastou-me pelas escadas acima. Não me apetecia nada ser atirado por cima de alguma casa.

 

- Claro. Tenho uma caçadeira - disse, ainda desconfiado.

 

Ele começou a curvar-se atrás do balcão e depois estacou, voltando os olhos.

 

Do fundo do bar, por detrás da porta fechada, ouvira-se um soco seco. Podia ter sido uma porta a bater. Podia ter sido uma arma. Só se fez ouvir uma vez. Nenhum outro som se lhe seguiu.

 

O barman e eu hesitámos demasiado tempo, sem saber o que seria aquele som. Não nos agradava pensar no que podia significar.

 

A porta do fundo abriu-se e o gigante saiu num passo rápido. Empunhava uma pistola automática Colt do Exército que, na mão dele, parecia um brinquedo.

 

Correu a sala com os olhos. O seu sorriso era crispado.

 

Tinha o ar dum homem capaz de roubar sozinho quarenta mil dólares do Great Bend Bank.

 

Aproximou-se de nós num passo rápido, quase sem fazer ruído para um tamanho daqueles.

 

- Mãos no ar, preto!

 

O barman, cinzento, levantou lentamente as mãos vazias, erguendo-as bem.

 

O gigante apalpou-me e afastou-se de nós.

 

- Mr. Montgomery também não sabia onde está a Beulah - disse numa voz suave. - Tentou explicar-me... com isto. - Acenou com a arma. - Até à vista, seus nabos. Divirtam-se.

 

Num instante desaparecera escada abaixo, silenciosamente.

 

Eu dei um salto para trás do bar e peguei na caçadeira de canos cortados que estava numa prateleira. Não para usá-la em Steve Skalla. Isso não era comigo. Mas para que o barman não a usasse contra mim. Atravessei de novo a sala e empurrei a porta.

 

o segurança estava estendido no chão com uma faca na mão. Inconsciente. Tirei-lhe a faca e, passando por cima dele, dirigi-me a uma porta com um letreiro que dizia «Escritório».

 

Mr. Montgomery estava lá dentro, por detrás duma pequena secretária muito riscada, junto a uma janela parcialmente tapada com tábuas. Estava dobrado como um lenço de bolso ou uma dobradiça de porta.

 

Do seu lado direito, uma gaveta estava aberta. A arma saíra provavelmente dali. No papel que forrava a gaveta era visível uma mancha de óleo.

 

Aquilo não fora lá grande ideia, mas ele não voltaria a ter ideias melhores.

 

Não aconteceu nada enquanto esperava pela Polícia.

 

Quando chegaram, tanto o barman como o segurança tinham desaparecido. Eu fechara-me dentro do gabinete com Mr. Montgomery e a caçadeira, não fosse o Diabo tecê-las.

 

Foi Hiney quem ficou encarregue do caso. Um tenente-detective de rosto esguio, queixoso, .muito lento, com umas mãos amarelas e compridas que manteve sobre os joelhos enquanto falava comigo no seu cubículo da esquadra central. A sua camisa fora cerzida por baixo das pontas do colarinho antiquado. Tinha um ar pobre, amargo e honesto.

 

Isto passou-se cerca de uma hora mais tarde. Por essa altura já tinham obtido dos arquivos tudo sobre Steve Skalla. Até possuíam uma fotografia de há dez anos que o fazia ter tão poucas sobrancelhas como um pãozinho ao pequeno-almoço. Só não sabiam onde estava.

 

- Dois metros e dezanove - declarou Hiney. - Cento e trinta e dois quilos. Um tipo dessa envergadura não há-de ir muito longe numa roupa daquelas. E não pode ter arranjado outra à pressa. Por que não o agarrou?

 

Devolvi-lhe a fotografia e soltei uma gargalhada. Hiney apontou um dos seus longos dedos na minha direcção e disse numa voz amarga:

 

- Carmady, um detective duro, hein? Dois metros de homem e uns queixos onde se pode partir pedra. Por que não o agarrou?

 

- Começo a ter alguns cabelos brancos - expliquei. E não estava armado. Ele estava. O trabalho que eu andava a fazer para aqueles lados não o pedia. Skalla apanhou-me na rua. Creio que, por vezes, me acham bonito.

 

Hiney lançou-me um olhar faiscante.

 

- Pronto - disse eu. - Porquê discutir? Eu vi o tipo. Era capaz de transportar um elefante no bolso do casaco. E eu não sabia que ele matara alguém. Você há-de apanhá-lo.

 

- Pois - disse Hiney. - É fácil. Mas eu não gosto de perder tempo com este tipo de crimes. Não dão em nada, nem têm direito a espaço nos jornais. Nem sequer três linhas na secção «Precisa-se» dos anúncios. Raios. Em tempos, cinco negros, cinco, note bem, despacharam-se uns aos outros duma só vez na Oitenta e Quatro, Leste. Morreram todos. E os abutres dos jornais nem lá puseram os pés.

 

- Apanhe-o depressa e bem - sugeri. - Caso contrário, ele liquida-lhe uma mão-cheia de marginais. Nessa altura há-de ver que lhe dão espaço nos jornais.

 

- Nessa altura eu também não estaria encarregue do caso - comentou Hiney com sarcasmo. - bom, o Diabo que o carregue. Ficamos de sobreaviso. Nada mais nos resta a fazer senão esperar.

 

- Procure a rapariga - aconselhei-o. - Beulah. O Skalla há-de fazê-lo. É dela que ele anda à procura. Foi assim que tudo começou. Procure-a.

 

- Procure-a você - retorquiu Hiney. - Há vinte anos que não ponho os pés numa casa de passe.

 

- E suponho que acha que eu me sentiria como peixe na água num local desses... Quanto é que me paga?

 

- Chiça, pá, os chuis não contratam detectives particulares. com quê?

 

Enrolou um cigarro com tabaco que extraiu duma lata. Aquele ardeu de um dos lados como se fosse um incêndio numa floresta. Um homem gritava ao telefone no cubículo do lado. Hiney fez outro cigarro com mais cuidado, lambeu-o e acendeu-o. Voltou a cruzar as mãos ossudas sobre os joelhos.

 

- Pense na publicidade - disse-lhe. - Aposto vinte e cinco dólares em como consigo encontrar Beulah antes de você prender o Skalla.

 

- Dez é o máximo - declarou. - E ela pertence-me... propriedade privada.

 

Olhei-o fixamente.

 

- Por esse dinheiro não trabalho - afirmei. - Mas se conseguir fazê-lo num só dia... e se você me deixar em paz... faço-o de graça. Só para lhe mostrar por que razão é tenente há vinte anos.

 

Ele não gostou mais da minha piada do que eu gostara da dele sobre a casa de passe. Mas concordámos e apertámos a mão.

 

Tirei o meu velho Chrysler do parque de estacionamento reservado a viaturas oficiais e regressei à zona da Central Avenue.

 

O Shamey’s fechara, evidentemente. Um homem estava sentado dentro de um carro defronte do estabelecimento e lia um jornal com um olho só. Tratava-se obviamente de um polícia à paisana. Não sei bem por que motivo ali estava. Ninguém naquele sítio sabia alguma coisa sobre Skalla.

 

Dobrei a esquina e estacionei a viatura. Entrei no átrio diagonal dum hotel só para negros chamado Hotel Sans Souci. Duas filas de cadeiras vazias e desconfortáveis defrontavam-se por sobre uma passadeira de fibra sintética. Por detrás de uma secretária, um careca tinha os olhos fechados e as mãos enlaçadas sobre o tampo. Trazia uma gravata larga cujo nó devia ter sido dado em 1880 e a pedra verde do seu alfinete era um pouco mais pequena do que um caixote de lixo. O queixo largo e flácido pendia-lhe sobre a gravata e as suas mãos castanhas tinham um aspecto macio, pacífico e limpo.

 

Uma placa de metal em relevo junto dele dizia: «Este hotel está sob a protecção da International Consolidated Agencies, Inc.»

 

Quando ele abriu um olho eu apontei para a placa e disse:

 

- Sou do HPD e venho saber se há problemas.

 

HPD significa Hotel Protective Department e é uma secção de uma grande agência que detecta pessoas que passam cheques sem cobertura ou que saem pelas traseiras deixando atrás de si malas usadas cheias de tijolos.

 

- Problemas, irmão - disse ele numa voz alta e forte -, é algo que não temos. - Baixou a voz e acrescentou: - Não aceitamos cheques.

 

Curvei-me sobre a secretária e fiz rodopiar uma moeda de vinte e cinco cêntimos sobre o tampo riscado de madeira.

 

- Sabe o que se passou no Shamey’s esta manhã?

 

- Irmão, esqueci-me. - Ele tinha agora os olhos bem abertos e observava a luz que a moeda reflectia enquanto rodopiava.

 

- Liquidaram o patrão - expliquei. - Montgomery. Partiram-lhe o pescoço.

 

- Paz à sua alma, irmão. - Baixou de novo a voz. Polícia?

 

- Particular... num trabalho confidencial. E sei reconhecer um homem capaz de guardar segredo quando o vejo.

 

Ele examinou-me da cabeça aos pés, depois fechou de novo os olhos. Eu continuava a fazer rodopiar a moeda. Ele não resistia a olhá-la.

 

- Quem foi que fez isso? - perguntou em voz baixa. Quem foi que despachou o Sam?

 

- Um duro acabado de sair da cadeia zangou-se porque aquilo não era um estabelecimento para brancos. Fora-o em tempos. Lembra-se?

 

Ele não disse nada. A moeda tombou com um ruído leve e ficou sobre a mesa.

 

- Faça o seu jogo - declarei. - Posso ler-lhe um capítulo da Bíblia ou pagar-lhe uma bebida. Uma coisa ou outra.

 

Dei a volta à secretária, tirei do bolso das calças uma garrafa de bourbon e passei-lha por baixo do balcão. Ele encheu dois copos rapidamente, cheirou o seu com modos de conhecedor e bebeu-o de um trago.

 

- Que quer saber? - perguntou. - Não há uma pedra nesta rua que eu não conheça. Talvez não quisesse contar-lhe. Está em boa companhia mais a sua bebida.

 

- De quem era o Shamey’s antes de ser um lugar para negros?

 

Ele olhou-me, surpreendido.

 

- O nome desse pobre pecador era Shamey, irmão. Eu soltei um gemido.

 

- Em que é que eu tenho andado a usar a cabeça?...

 

- Ele já morreu, irmão. Foi chamado para junto do Senhor. Faleceu em mil novecentos e vinte e nove. Um caso de álcool metílico, irmão. E então ele, que vivia daquilo. - Voltou a erguer a voz. - Nesse mesmo ano os ricos perderam os seus teres e haveres, irmão. - Baixou a voz outra vez. - Eu não perdi nem cinco cêntimos.

 

- Aposto que não. Deite mais. Deixou família? Alguém que ainda esteja vivo?

 

Ele deitou no copo uma pequena quantidade e fechou a garrafa com uma expressão resoluta.

 

- Apenas dois... antes do almoço - declarou. - Obrigado, irmão. A sua forma de actuar não ofende ninguém. Pigarreou. - Tinha uma mulher - acrescentou. - Experimente a lista telefônica.

 

Não quis a garrafa. Voltei a metê-la no bolso. Apertou-me a mão, voltou a cruzar as suas sobre a mesa e fechou outra vez os olhos.

 

Para ele, o caso estava arrumado.

 

Havia apenas um Shamey na lista telefônica. Violei Lu Shamey, 1644, Rua Cinquenta e Quatro, Oeste. Gastei vinte e cinco cêntimos numa cabina telefônica.

 

Depois duma longa espera uma voz meio adormecida atendeu:

 

- Hum, hum... Que... que é?

 

- É Mrs. Shamey cujo marido foi em tempos proprietário de um estabelecimento na Central Avenue... um estabelecimento de diversões?

 

- O... o quê? Santo Deus! O meu marido faleceu vai para sete anos! Quem disse que era?

 

- Detective Carmady. vou já para aí. É importante.

 

- Quem... quem foi que disse... A voz era espessa e embargada.

 

Era uma casa castanha e suja, com um relvado também castanho e sujo à frente. Em volta duma palmeira de ar resistente havia um grande círculo sem relva. No alpendre estava uma cadeira de baloiço solitária.

 

A brisa do fim da tarde empurrava os ramos não podados duma árvore contra a fachada da casa. Num estendal enferrujado num pátio ao lado da casa havia alguma roupa pendurada: amarela, ressequida, mal lavada.

 

Passei adiante e fui estacionar o meu carro um pouco mais à frente, do outro lado da rua. Dirigi-me a pé para a casa.

 

A campainha não funcionava pelo que tive de bater à porta. Abriu-ma uma mulher que se estava a assoar. Tinha um rosto esguio e amarelento e o cabelo desgrenhado e comprido. Um roupão de banho de flanela desbotado escondia as formas do seu corpo. Não passava duma coisa que ela tinha à volta do corpo. Os dedos dos pés eram grandes e ficavam à vista nos chinelos de homem rotos que calçava.

 

- Mrs. Shamey? - perguntei.

 

- É você o...?

 

- Sim. Acabo de telefonar-lhe.

 

com um gesto cansado da mão fez-me sinal para que entrasse.

 

- Ainda não tive tempo de me arranjar - queixou-se.

 

Sentámo-nos em cadeiras de baloiço de aspecto sujo e ficámos a olhar um para o outro numa sala em que tudo era velho e de má qualidade, à excepção dum pequeno rádio novo que estava ligado.

 

- É a minha única companhia - explicou. Depois soltou um risinho agudo. - O Bert não fez nada, pois não? A Polícia não costuma vir visitar-me.

 

- Bert?

 

- Bert Shamey, meu caro senhor. O meu marido.

 

Soltou outro risinho e mexeu os pés para cima e para baixo. Havia qualquer coisa de alcoólico no modo como se ria. Parecia que não me ia safar disso naquele dia.

 

- Estava a brincar, meu caro senhor- continuou. - Ele morreu. Rogo a Deus que haja louras baratas em número suficiente lá para onde foi. As que ia arranjando por aqui nunca lhe chegaram.

 

- Eu estava a pensar antes numa ruiva - disse-lhe.

 

- Suponho que também usou uma ou duas dessas. Pareceu-me que a expressão dos seus olhos não era agora tão vaga. - Não me lembro bem. Alguém em especial?

 

- Sim. Uma rapariga chamada Beulah.. Não sei o apelido. Trabalhou no clube na Central. Ando a tentar localizá-la a pedido da família. O lugar agora é só para gente de cor e as pessoas de lá nunca ouviram falar nela, evidentemente.

 

- Nunca lá fui - gritou a mulher com uma violência inusitada. - Não sei de nada.

 

- Uma artista - precisei. - Uma cantora. Não a conheceu mesmo, hein?

 

Voltou a assoar-se a um dos lenços mais sujos que alguma vez vira.

 

- Constipei-me - explicou.

 

- Você sabe o que é bom num caso desses...? - perguntei.

 

Ela olhou-me de esguelha e declarou:

 

- Deixei-me dessas coisas.

 

- Eu não.

 

- Jesus! - exclamou. - Você não é um chui. Nunca conheci um chui que me oferecesse uma bebida.

 

Tirei do bolso a minha garrafa de meio litro de bourbon e coloquei-a sobre o joelho. Estava praticamente cheia. O empregado do Hotel Sans Souci não era nenhuma esponja. Os olhos cor de alga da mulher animaram-se à vista da garrafa. Percorreu os lábios com a língua.

 

- Homem, isso é que é pinga - suspirou. - Não me interessa quem você é. Segure-a com cuidado.

 

Ergueu-se, saiu da sala num passo incerto e regressou com dois copos de vidro grosso e sujo.

 

- Nada de misturas. É só o que você trouxe - declarou estendendo os copos na minha direcção.

 

Deitei-lhe uma dose que teria dado conta de mim. No meu copo pus uma quantidade menor. Ela engoliu a sua bebida como se estivesse a tomar uma aspirina. Olhou para a garrafa. Enchi-lhe de novo o copo e ela levou-o para junto da cadeira de baloiço. Os olhos dela estavam mais castanhos.

 

- Esta pinga caiu-me bem - disse. - Parece veludo. De que estávamos a falar?

 

- Duma ruiva chamada Beulah. Trabalhou em tempos no estabelecimento. Já se lembra melhor, agora?

 

- Sim. - Engoliu a segunda bebida. Levantei-me e pousei a garrafa na mesa ao lado dela. A mulher bebeu mais um pouco de bourbon. - Fique aí quietinho - ordenou-me. Lembrei-me duma coisa.

 

Ergueu-se, espirrou, quase perdeu o roupão de banho, segurou-o de encontro ao estômago e olhou-me friamente.

 

- Não se ponha para aí a espreitar - disse, abanando um dedo, e depois saiu de novo da sala, esbarrando contra a ombreira da porta.

 

De lá de dentro chegou até mim uma variedade de ruídos. Pareceu-me que uma cadeira fora derrubada. Uma gaveta puxada com demasiada força caiu no chão. Ouvia-a remexer em coisas e praguejar. Passado algum tempo escutei o som dum fecho que se abria e o que me pareceu ser uma tampa de baú que era levantada. O remexer continuou. Mais coisas foram atiradas para o chão. Julguei ouvir o baque de um tabuleiro que caía. Depois uma exclamação de triunfo.

 

A mulher regressou à sala trazendo nas mãos um embrulho atado com uma fita cor-de-rosa desbotada. Atirou-o para o meu regaço.

 

- Dá-lhes uma vista de olhos, boneco. São fotografias. Tiradas para os jornais. Essa gente só lá ia parar quando tinha problemas com a Polícia. É gente do estabelecimento. É tudo o que ele me deixou. Isso e os seus trapos.

 

Sentou-se e estendeu a mão outra vez para o uísque.

 

Desfiz o embrulho e examinei um punhado de fotografias de pessoas em poses profissionais. Nem todas eram de mulheres. Os homens tinham ares matreiros e estavam vestidos como se fossem às corridas. Alguns estavam maquilhados. Bailarinos e cômicos de segunda. Grande parte deles nunca tinha passado para o outro lado de Main Street. As mulheres possuíam umas pernas jeitosas e exibiam-nas demasiado para o gosto de Will Hays. Mas os seus rostos tinham um ar tão gasto como o casaco de um guarda-livros. Todos menos uma.

 

Estava vestida à Pierrot, pelo menos da cintura para cima. O cabelo que lhe saía de debaixo do chapéu cónico branco podia muito bem ser ruivo. Os olhos pareciam estar-se a rir. Não direi que o seu não era um rosto marcado. Não sou bom fisionomista. Mas não era um rosto como os outros. Não tinha levado tantos safanões. Alguém fora bondoso para ela. Talvez um bandido duro como Steve Skalla. Mas que fora bondoso... Naqueles olhos que riam ainda havia esperança.

 

Pus as outras fotografias de parte e levei aquela até junto da mulher de olhos vidrados reclinada na cadeira. Meti-lha mesmo debaixo do nariz.

 

- Esta - perguntei. - Quem é? Que foi que lhe aconteceu?

 

Ela contemplou o retrato com um olhar vago e depois soltou uma gargalhada.

 

- É a miúda do Steve Skalla, boneco. Raios, esqueci-me do nome.

 

- Beulah - disse. - O nome dela é Beulah.

 

Ela fitou-me por debaixo daquelas sobrancelhas castanhas e crespas. Não estava tão bêbada como parecia.

 

- Ah, sim! - exclamou. - Ah, sim!

 

- Quem é esse Steve Skalla? - perguntei.

 

- O segurança do estabelecimento, boneco. - Riu de novo. - Está na gaiola.

 

- Não está, não - retorqui. - Está na cidade. Saiu em liberdade. Eu conheço-o. Acaba de chegar.

 

O rosto dela voou em pedaços como um pombo de barro atingido por um projéctil. Nesse preciso instante fiquei a saber quem denunciara Skalla à Polícia. Dei uma gargalhada. Não me podia enganar. Porque ela sabia. Se não soubesse, não se teria dado ao trabalho de se fazer tão esquecida acerca de Beulah. Não se podia ter esquecido dela. Ninguém podia.

 

Os seus olhos recuaram nas órbitas. Ficámos a olhar um para o outro. Depois tentou arrancar-me a fotografia da mão.

 

Eu dei um passo atrás e guardei-a num bolso interior do casaco.

 

- Beba qualquer coisa - sugeri, e passei-lhe a garrafa. Ela encheu outro copo, ficou a mirá-lo e depois bebeu lentamente, de olhos postos no tapete desbotado.

 

- Pois - disse num sussurro. - Eu denunciei-o mas ele nunca soube. Aquilo era dinheiro em caixa. Dinheiro em caixa, era o que era.

 

- Entregue-me a rapariga - pedi. - E Skalla nunca saberá nada de mim.

 

- Ela está aqui - disse a mulher. - Trabalha na rádio. Ouvi-a uma vez na K.LBL. Mas mudou de nome. Não sei como se chama agora.

 

Tive outro palpite.

 

- Você sabe - disse-lhe. - E continua a chupá-la. Shamey não lhe deixou nada. De que é que vive? Você anda a chupá-la porque ela subiu na vida, a partir de gente como você e o Skalla. É isso, não é?

 

- Dinheiro em caixa - repetiu numa voz sufocada. Cem dólares por mês. Certinho como se fosse uma renda. Pois é.

 

A garrafa estava de novo no chão. Subitamente, tombou sem que ninguém lhe tivesse tocado. Começou a escorrer uísque. Ela não se mexeu para a pôr outra vez em pé.

 

- Onde está a rapariga? - insisti. - Como se chama?

 

- Não sei, boneco. Faz parte do negócio. O dinheiro é depositado. Não sei, juro.

 

- Não sabe uma ova! - rosnei. - Skalla... Ela ergueu-se de repente e gritou:

 

- Saia, seu... Saia antes que eu chame a Polícia. Saia, seu...

 

- Está bem, está bem. - Fiz com a mão um sinal apaziguador. - Tenha calma. Eu não digo nada ao Skalla. Tenha calma.

 

Ela voltou a sentar-se, lentamente, e pegou na garrafa quase vazia. Não valia a pena arranjar uma cena naquela altura. Havia outras maneiras de descobrir o que pretendia.

 

Ela nem sequer olhou para mim quando saí. Lá fora, a luz do Sol era intensa. Meti-me no meu carro. Eu era um tipo fixe, a tentar desempenhar a minha missão. Sim, um tipo fixe. Podia orgulhar-me desta minha faceta. Eu era um tipo capaz de atormentar uma desgraçada duma velha alcoólica para lhe arrancar os seus segredos e ganhar uma aposta de dez dólares.

 

Dirigi-me ao drugstore mais próximo, meti-me numa cabina telefónica e liguei para Hiney.

 

- Oiça --- disse-lhe -, a viúva do proprietário do Shamey’s quando o Skalla lá trabalhava ainda é viva. O Skalla é capaz de lhe fazer uma visita, se tiver coragem.

 

Dei-lhe a morada. Ele disse numa voz amarga:

 

- Estivemos quase a apanhá-lo. Um carro-patrulha falou com um taxista da Rua Sete. Ele descreveu um tipo daquele tamanho e com aquelas roupas. O taxista diz que saiu no cruzamento da Terceira com a Alexandria. O que ele vai fazer é assaltar uma grande moradia quando não estiver lá ninguém. Nessa altura apanhamo-lo.

 

Eu disse-lhe que achava bem.

 

KLBL ficava na zona limítrofe ocidental daquela parte da cidade que se funde com Beverly Hills. Estava instalada num edifício dum piso só, despretensioso, e na esquina do quarteirão havia uma estação de serviço com a forma dum moinho holandês. O nome da estação girava em letras de néon nas velas do moinho.

 

Entrei numa sala que servia de recepção no rés-do-chão. Uma das paredes era de vidro e do outro lado podia ver-se um estúdio de rádio vazio com um palco e filas de cadeiras para o público. Na sala havia algumas pessoas sentadas, tentando parecer muito magnéticas, e a recepcionista loura estava a tirar chocolates duma caixa enorme com unhas pintadas de púrpura.

 

Esperei meia hora e depois fui recebido por Mr. Dave Marineau, director de estúdio. O director da estação e o director da programação estavam ambos demasiado ocupados para me receberem. Marineau tinha um pequeno gabinete insonorizado por detrás do órgão. As paredes deste estavam cobertas de fotografias autografadas.

 

Marineau era um homem alto, bem-parecido, com um ar ligeiramente mediterrânico, um pequeno bigode sedoso, olhos castanhos, grandes e límpidos, cabelo preto brilhante que podia ou não ter sido ondulado com permanente e dedos compridos e pálidos, manchados pela nicotina.

 

Leu o meu cartão enquanto eu procurava sem êxito encontrar a minha rapariga vestida de Pierrot na parede dele.

 

- Com que então um detective particular, hein? Em que posso ser-lhe útil?

 

Tirei do bolso o meu Pierrot e pousei-o sobre o magnífico mata-borrão que tinha em cima da secretária. Era engraçado olhá-lo enquanto observava a fotografia. Aconteceu no seu rosto uma série de pequenas coisas que ele gostaria que passassem despercebidas. O resultado de tudo isso era que ele conhecia a cara e que ela significava alguma coisa para ele. Olhou-me com uma expressão de quem se prepara para discutir preços.

 

- Não é lá muito recente - declarou. - Mas a rapariga é jeitosa. Não sei se poderemos usá-la. São as pernas, não é?

 

- O retrato tem pelo menos oito anos - disse eu. - Em que é que poderia usá-la?

 

- Publicidade, claro. Estamos na coluna da rádio, mês sim, mês não. Ainda somos uma estação pequena.

 

- Porquê?

 

- Quer dizer que não sabe quem ela é?

 

- Eu sei quem ela foi - retorqui.

 

- Vivian Baring, claro. Estrela do nosso programa Jumbo Candy Bar. Não conhece? Uma série trissemanal, de meia hora.

 

- Nunca ouvi falar - respondi. - Para mim, uma série radiofónica é o mesmo que a raiz quadrada de nada.

 

Ele recostou-se na cadeira e acendeu um cigarro, embora já estivesse um cigarro aceso no bordo do seu cinzeiro de vidro.

 

- Muito bem - disse num tom sarcástico. - Deixe-se de conversas e diga-me o que pretende.

 

- Quero a morada dela.

 

- Não lha posso dar, evidentemente. E não a encontrará em nenhuma lista telefónica. Lamento. - Começou a arrumar papéis e foi nessa altura que viu o segundo cigarro e sentiu que estava a fazer figura de parvo. Voltou por isso a recostar-se.

 

- Estou numa embrulhada - expliquei. - Tenho de encontrar a rapariga. E depressa. E não quero que julgue que sou um chantagista.

 

Ele passou a língua pelos lábios carnudos e vermelhos. Não sei bem porquê, tive a sensação que qualquer coisa lhe agradava.

 

- Quer dizer com isso que sabe de qualquer coisa que pode ser prejudicial à senhora Baring - disse ele numa voz suave - e, por extensão, ao programa?

 

- Você pode sempre arranjar um substituto para uma estrela da rádio, não pode?

 

Ele voltou a humedecer os lábios. Depois tentou dar à boca uma expressão dura.

 

- Cheira-me a qualquer coisa muito desagradável - declarou.

 

- É o seu bigode a arder - respondi.

 

Não fora a melhor piada do mundo mas quebrou o gelo. Ele riu-se. Depois gesticulou com as mãos. Inclinou-se para a frente e assumiu os modos conspirativos dos homens que dão palpites nas corridas de cavalos.

 

- Pegámos neste assunto pelo lado errado - disse. É óbvio. Você está provavelmente a dizer a verdade... é a impressão que tenho... por isso vou-me abrir consigo.

 

Pegou num bloco de notas forrado a couro e rabiscou qualquer coisa numa folha que arrancou e me passou por cima da mesa.

 

Li: «1737 North Flores Avenue.»

 

- É a morada dela - declarou. - Não lhe dou o número de telefone sem o seu consentimento. Agora trate-me como um cavalheiro. Quero dizer, no que diz respeito à nossa estação.

 

Meti o papel no bolso e reflecti um instante. Ele levara-me à grande e apelava ao que ainda me restava de decência. Foi então que cometi o meu erro.

 

- Como é que vai o programa?

 

- Prometeram-nos uma emissão a nível nacional. Trata-se duma coisa simples, do dia-a-dia, chamada «Uma Rua na Nossa Cidade», mas é muito bem-feito. Um dia há-de ser um sucesso no país todo. E não vai demorar muito.

 

Passou uma mão pela sobrancelha branca e fina.

 

- A propósito... é Miss Baring quem escreve o próprio guião.

 

- Ah! - exclamei eu. - bom, aqui vai a história. Ela tinha um namorado na cadeia. Isto é, até há pouco. Conheceu-o num estabelecimento da Central Avenue onde em tempos trabalhou. Ele saiu da prisão e anda à procura dela e matou um homem. Espere aí...

 

Ele não ficara branco da cor da cal porque não tinha o tipo de pele adequado. Mas estava com mau aspecto.

 

- Espere aí - continuei. - Não é nada contra a rapariga e você sabe bem que não. Ela não está metida em nada. Vê-se na cara dela. Se a história vier a lume, terá talvez de contra-atacar com alguma publicidade. Mas isso não custa nada. Olhe como eles douram alguns dos patifes de Hollywood.

 

- Isto custa dinheiro - comentou ele. - Nós somos uma estação de rádio pobre. E a audição não teria lugar. - Havia no seu tom qualquer coisa de levemente desonesto que me intrigava.

 

- Não diga disparates - retorqui, inclinando-me para a frente e batendo com a mão no tampo da mesa. - O que importa é protegê-la. Esse tipo, chama-se Steve Skalla, está apaixonado por ela. Mata pessoas só com as mãos. Não há-de querer fazer-lhe mal mas se ela tiver um namorado ou um marido...

 

- Ela não é casada - cortou cerce Marineau, enquanto observava o vaivém da minha mão.

 

- Ele é capaz de lhe torcer o pescoço. O que a envolveria muito mais nesta história toda. Skalla desconhece onde ela está. Anda fugido, o que lhe complica a tarefa. A Polícia é a alternativa melhor, se tiver pedalada para os manter longe dos jornalistas.

 

- Na... - foi a resposta dele. - A Polícia, não. Você quer o trabalho, não quer?

 

- Quando é que precisa outra vez dela aqui?

 

- Amanhã à noite. Hoje à noite não vai para o ar.

 

- Eu encarrego-me de a esconder até essa altura - declarei. - Se estiver de acordo. É o máximo que posso fazer sozinho.

 

Ele voltou a pegar no meu cartão, releu-o e meteu-o numa gaveta.

 

- Saia daqui e encontre-a - disse numa voz ríspida. Se não estiver em casa, espere que ela chegue. vou lá cima conferenciar e depois se verá. Despache-se!

 

Ergui-me.

 

- Quer um sinal? - perguntou no mesmo tom ríspido.

 

- Isso pode esperar.

 

Ele acenou com a cabeça, voltou a gesticular com as mãos e pegou no telefone.

 

Aquele número na Flores devia ficar próximo de Sunset Towers, do outro lado da cidade. O trânsito era intenso mas ainda não percorrera doze quarteirões e já me tinha apercebido que um coupéazul que saíra do parque de estacionamento ao mesmo tempo que eu continuava atrás de mim.

 

Virei à direita e à esquerda umas poucas de vezes de um modo que me pareceu credível e me assegurou que a viatura me seguia. Ia um homem lá dentro. Não era Skalla. A cabeça por detrás do volante ficava trinta centímetros mais abaixo.

 

Prossegui com as minhas manobras evasivas, cada vez mais depressa, e perdi-o de vista. Não sabia quem era e, naquele momento, não tinha tempo para me preocupar com isso.

 

Cheguei à Flores Avenue, dei com o endereço e estacionei o carro na berma.

 

Uns portões de bronze davam acesso a uma propriedade onde se alinhavam duas filas de bangalôs com telhados íngremes que lembravam um pouco as casas que se vêem nas velhas gravuras inglesas.

 

A relva estava excessivamente bem tratada. Havia um caminho amplo e uma piscina de formato oval com azulejos coloridos e bancos de pedra em volta. Um sítio muito agradável. O sol do fim da tarde produzia interessantes efeitos de sombra nos relvados e, à parte o ruído das buzinas, o som do trânsito no Sunset Boulevard não era muito diferente do som que fazem as abelhas.

 

O meu número era o último bangalô do lado esquerdo. Ninguém veio abrir a porta quando toquei à campainha, que ficava no meio da porta e nos fazia pensar como é que a corrente ia ter ao sítio devido. Também isso era interessante. Fartei-me de tocar, e depois fui-me sentar num dos bancos de pedra junto da piscina, à espera.

 

Uma mulher passou por mim num passo rápido, não com um ar apressado mas com o ar de alguém que anda sempre depressa. Era uma morena magra, de feições finas, com uma saia e casaco laranja-torrado e um chapéu preto que fazia pensar no dum pajem. Ligava bem com o conjunto laranja-torrado. Tinha um nariz que devia meter em todo o lado, lábios apertados e levava na mão uma mala.

 

Dirigiu-se à minha porta, abriu-a com a chave e entrou. Não era parecida com Beulah. Dirigi-me ao bangalô e voltei a tocar à campainha. A porta abriu-se imediatamente. A mulher morena de feições finas olhou-me de alto a baixo e disse:

 

- Sim...!

 

- É Miss Baring? Miss Vivian Baring?

 

- Quem? - perguntou como se a tivesse apunhalado.

 

- A Miss Vivian Baring... da KLBL - respondi. - Disseram-me...

 

Ela corou ligeiramente e meteu os lábios para dentro.

 

- Se isto é uma gracinha, não acho graça nenhuma declarou, começando a empurrar a porta em direcção ao meu nariz.

 

- Foi Mr. Marineau quem me mandou... - expliquei eu apressadamente.

 

A frase fê-la interromper-se. A porta voltou a abrir-se. A boca dela tinha a espessura duma mortalha de cigarro, ou estava mais fina ainda.

 

- Eu - disse numa voz muito clara - sou a esposa de Mr. Marineau. Esta é a residência de Mr. Marineau. Não sabia que essa... essa...

 

- Miss Vivian Baring - acrescentei. Mas não fora a incerteza quanto ao nome que a detivera, antes uma fúria imensa e gelada.

 

- ... Que essa Miss Baring - prosseguiu, exactamente como se eu não tivesse dito uma palavra - tinha vindo viver para aqui. Mr. Marineau deve estar com um grande sentido de humor hoje.

 

- Oiça, minha senhora. Isto não é...

 

A porta bateu com tal força que quase provocou ondas na piscina. Fiquei a olhar para ela e depois olhei para os outros bangalôs. Se tinha assistência, esta mantinha-se fora do alcance da vista. Toquei de novo à campainha.

 

Desta vez a porta abriu-se de rompante. A morena estava lívida.

 

- Saia do meu alpendre! - gritou. - Saia antes que mande expulsá-lo.

 

- Espere - rosnei. - Isto talvez seja uma gracinha para ele, mas não é de certeza para a Polícia.

 

Aquela frase tocou fundo. A sua expressão tornou-se suave e interessada.

 

- Polícia? - repetiu.

 

- Pois. O caso é grave. Mete um assassínio. Tenho de encontrar essa Miss Baring. Não que ela, está-me a compreender...

 

A morena arrastou-me para dentro de casa, fechou a porta e encostou-se a ela, ofegante.

 

- Conte-me - disse numa voz entrecortada. - Conte-me. Essa coisa ruiva está metida nalgum crime?

 

Subitamente, abriu muito a boca e os olhos pareceram ir saltar-lhe das órbitas. Tapei-lhe a boca com uma mão.

 

- Calma aí! - supliquei. - Não foi o seu Dave. Não foi o Dave, minha senhora.

 

- Oh! - Ela desembaraçou-se da minha mão, soltou um suspiro e ficou a olhar-me com um ar apalermado. - Não, claro. Por um momento... Bem, quem é ele, então?

 

- Ninguém que você conheça. De qualquer modo, não posso divulgar esse tipo de informação. Preciso da morada de Miss Baring. Sabe qual é?

 

Não me ocorria nenhuma razão por que devesse sabê-la. Ou melhor, era capaz de pensar numa, se me esforçasse o suficiente.

 

- Sim - respondeu -, conheço-a. De facto conheço-a. Esse espertalhão é que não sabe disso. Não sabe tantas coisas como julga. Ele...

 

- A morada é tudo de quanto preciso, de momento resmunguei. - E estou com uma certa pressa, Mrs. Marineau. Mais tarde... - Lancei-lhe um olhar cheio de segundos sentidos. - Tenho a certeza de que vou querer falar consigo.

 

- Fica em Heather Street - informou. - Não sei o número da porta. Mas já lá estive. Já por lá passei. É uma rua pequena, com apenas quatro ou cinco casas e uma só da parte de baixo do declive. - Deteve-se e depois acrescentou:

- Não creio que a casa tenha um número na porta. Heather Street fica ao cimo da Beachwood Drive.

 

- Ela tem telefone?

 

- Claro, mas um número a que nem toda a gente tem acesso. tinha de ter. Todas têm, essas... Se eu soubesse qual era...

 

- Pois - comentei. - Ligava para lá e arrancava-lhe a orelha. bom, muito obrigado, Mrs. Marineau. Tudo isto é confidencial, evidentemente. Mesmo confidencial.

 

- Oh, por quem é!

 

Ela queria prosseguir a conversa mas eu empurrei-a para fora de casa e desci de novo pelo caminho no meio da relva. Senti os olhos dela nas minhas costas e por isso fiz os possíveis por não rir.

 

O tipo das mãos irrequietas e dos lábios carnudos tivera o que ele devia achar uma idéia muito engraçada. Dera-me a primeira morada que lhe viera à cabeça, a sua. Esperava provavelmente que a mulher tivesse saído. Eu não tinha a certeza. A idéia parecia perfeitamente idiota, fosse por que ângulo fosse que se olhasse para aquilo... a não ser que ele precisasse de ganhar tempo.

 

Enquanto pensava no que poderia levá-lo a querer ganhar algum tempo, distraí-me. Não reparei no coupé azul estacionado em dupla fila quase à frente dos portões até ao momento em que saiu de detrás dele um homem.

 

Estava armado.

 

Era um tipo grande, mas nada que se comparasse ao Skalla. Produziu um ruído com os lábios e estendeu a palma da mão esquerda. Qualquer coisa brilhava nela; podia ser um pedaço de latão ou um crachá da Polícia.

 

Havia carros estacionados de ambos os lados da Flores. Devia estar por ali uma meia dúzia de pessoas. Não havia ninguém. Só o grandalhão da pistola e eu.

 

Ele aproximou-se, fazendo ruídos tranquilizadores com a boca.

 

- Apanhei-te - disse. - Entra na minha carripana e trata de conduzi-la como um rapazinho bem-comportado. Tinha uma voz suave e rouca, como a dum galo exausto que tentasse cantar.

 

- Está sozinho?

 

- Sim, mas estou armado - respondeu com um suspiro. - Porte-se bem e está tão seguro comigo como a mulher barbada na Convenção da Legião. Mais seguro ainda.

 

Aproximava-se de mim descrevendo um semicírculo, lentamente, com cuidado. Via agora a tal coisa metálica.

 

- Isso é um crachá especial - disse-lhe. - Você não tem mais direito de me deter do que eu a detê-lo a si.

 

- Entra na carripana, mariola. Ou te portas bem ou ainda deixas aqui as tuas tripas. Cumpro ordens. - Começou a revistar-me cautelosamente. - Oh meu Deus, nem sequer trazes a artilharia!

 

- Deixa-te disso! - rosnei. -Julgas que me levavas se a tivesse trazido?

 

Dirigi-me para o seu coupé azul e sentei-me ao volante. O motor já estava ligado. Ele sentou-se a meu lado e enfiou-me a arma no flanco. Começámos a descer a colina.

 

- Volta para oeste em Santa Mónica - ordenou. - Depois sobes, digamos, de Canyon Drive para a Sunset. Até ao caminho para o hipódromo.

 

Voltei para oeste em Santa Mónica, passei pelo fundo de Holloway, uma série de depósitos de sucata e algumas lojas. A rua alargou-se e depois da Doheney transformou-se num bulevar. Quis deixar o carro ir um pouco mais depressa mas ele não permitiu. Virei para norte em direcção à Sunset e depois de novo para oeste. Nas grandes casas situadas nas encostas começavam a acender-se algumas luzes. O entardecer estava cheio de música de rádio.

 

Abrandei um pouco e olhei para ele antes que ficasse demasiado escuro. Conseguira ver-lhe as sobrancelhas apesar do chapéu pendido sobre os olhos quando rodávamos na Flores, mas queria ter a certeza. Por isso olhei de novo. Eram aquelas sobrancelhas, sim senhor.

 

Eram quase tão densas, regulares e homogeneamente pretas como uma tira de cerca de um centímetro de pelúcia que lhe tivesse sido colado no rosto, sobre o nariz e os olhos. Não havia interrupção no meio. O nariz era maciço e de textura porosa e já sofrera os efeitos da ingestão de demasiadas cervejas.

 

- Bub McCord - anunciei. - Ex-chui. com que então trabalhas agora no ramo dos raptos? Desta vez vais parar a Folsom.

 

- Ah, cala a boca.

 

Parecia ofendido e reclinou-se no seu canto. Bub McCord, apanhado numa teia de corrupção, passara três anos no Quentin. Da próxima vez iria parar à prisão para reincidentes, que no nosso estado é Folsom.

 

Ele apoiou a arma na coxa esquerda e encostou o dorso gordo à porta. Deixei o carro andar um pouco mais devagar e ele não pareceu importar-se com isso. Estávamos numa altura de pouco movimento, após o regresso a casa dos empregados de escritório e antes das saídas nocturnas.

 

- Isto não é nenhum rapto - queixou-se. - Só não queremos sarilhos. Não julgue que pode desafiar uma organização como o KLBL com uma chantagenzita e não sofrer as consequências. Não é razoável. - Escarrou pela janela sem voltar a cabeça. - Toca a andar, mariola.

 

- Que chantagem?

 

- Não sabes de nada, pois não? Não passas dum bisbilhoteiro errante que vê as coisas sem querer, hein? És um anjinho.

 

- com que então trabalhas para o Marineau. Era tudo o que queria saber. Claro que já o sabia, depois de te ter despistado e de tu teres aparecido outra vez.

 

- Foi um bom trabalho, mas presta atenção à condução. Pois é, tive de lhe telefonar. Apanhei-o mesmo ajusta.

 

- Para onde vamos?

 

- Eu tomo conta de ti até às nove e meia. Depois vamos a um sítio.

 

- Que sítio?

 

- Ainda não são nove e meia. Eh, não adormeças nessa curva.

 

- Guia tu, se não estás satisfeito com o meu trabalho.

 

Ele enfiou-me a arma entre as costelas. Doeu-me. Carreguei a fundo no acelerador e fi-lo voltar ao seu canto. Porém, ele não largou a arma. Alguém chamou por alguém no jardim defronte duma casa.

 

Reparei nessa altura numa luz vermelha que acendia e apagava à minha frente e num sedan preto que passava por ela e, através de cujo vidro traseiro eram visíveis dois bonés, um ao lado do outro.

 

- Vais ficar muito cansado de segurar essa pistola - disse a McCord. - E, de qualquer modo, não tens coragem de usá-la. Não és um duro. Não há nada de menos duro que um polícia a quem tiraram o crachá. Não passas dum tipo desonesto. E nada duro.

 

Ainda não estávamos junto do sedan mas eu queria prender a sua atenção. Consegui-o. Ele atingiu-me na cabeça, agarrou no volante e pôs o pé no travão. O carro deteve-se. Abanei a cabeça, meio tonto. Quando voltei a mim, ele já estava de novo instalado no seu canto.

 

- Da próxima vez - disse numa voz fina, apesar da rouquidão - ponho-te a dormir. É só experimentares, pá. É só experimentares. E agora toca a andar... e guarda as piadas para ti.

 

Continuei a conduzir por entre a sebe que bordejava o caminho para cavalos e o parque que ficava do outro lado da estrada. Os polícias no sdan continuavam a rodar, calmamente, prestando pouca atenção ao que o seu rádio transmitia, conversando sobre isto e sobre aquilo. Quase conseguia imaginar aquilo de que estariam a falar.

 

- Além disso - prosseguiu McCord num tom zangado -, não preciso duma arma para tratar de ti. Ainda não encontrei um tipo que não conseguisse dominar desarmado.

 

- Eu encontrei um hoje de manhã - respondi-lhe e comecei a contar-lhe a história de Steve Skalla.

 

Surgiu outro semáforo vermelho. O sedan à nossa frente não parecia ter pressa em avançar. McCord acendeu um cigarro com a mão esquerda, inclinando ligeiramente a cabeça.

 

Continuei a falar-lhe de Skalla e do segurança no Shamey’s.

 

Depois carreguei a fundo no acelerador.

 

A viatura deu um salto para a frente. McCord procurou apontar a arma na minha direcção. Eu guinei o carro para a direita e gritei-lhe:

 

- Segura-te! Vamos bater!

 

Atingimos o carro-patrulha no pára-choques traseiro do lado esquerdo. A viatura rodopiou, aparentemente sobre uma roda, e de lá de dentro veio um chorrilho de imprecações. Derrapou, ouviu-se o chiar dos pneus e o rasgar do metal. O farol do lado esquerdo desfez-se e o depósito de gasolina ficou provavelmente amolgado.

 

O pequeno coupé estacou e estremeceu como um coelho assustado.

 

McCord podia ter-me cortado em dois. O cano da sua arma estava a centímetros das minhas costelas. Mas o tipo não era realmente um duro. Não passava dum polícia caído em desgraça, que já estivera preso, que arranjara uma ocupaçãozita depois de sair e que cumpria ordens que não entendia.

 

Num gesto brusco, abriu a porta do lado direito e saiu.

 

Por essa altura, já um dos polícias estava fora do carro, do meu lado. Encolhi-me atrás do volante. Um foco de luz varreu o cimo do meu chapéu.

 

Não valeu de nada. Ouvi passos e o foco da lanterna incidiu no meu rosto.

 

- Saia daí de dentro - rosnou uma voz. - O que é que pensa que isto é... uma pista de corridas?

 

Saí, obediente. McCord estava acocorado algures atrás do coupé e não era visível.

 

- Mostre cá o seu hálito. Deixei-o examinar o meu hálito.

 

- Uísque - anunciou. - Bem me parecia. Toca a andar, meu lindo, toca a andar - e empurrava-me com a lanterna.

 

Eu andei.

 

O outro polícia tentava separar o seu sedan do coupé com movimentos violentos. Praguejava, mas aquele problema exigia a sua atenção.

 

- Você não caminha como um bêbado - disse o polícia. - Que se passou? Perdeu os travões?

 

O outro polícia libertara o pára-choques e estava a meter-se outra vez no carro.

 

Tirei o chapéu e curvei a cabeça.

 

- Estávamos a discutir - declarei. - Fui atingido. Fiquei tonto durante alguns instantes.

 

Nesse momento McCord cometeu um erro. Começou a correr em direcção ao parque. Saltou o muro e agachou-se. Ouviam-se os seus passos sobre a relva.

 

Aproveitei a oportunidade.

 

- Assalto! - gritei para o polícia que me interrogava. Tinha medo de lho dizer!

 

- Raios...! - gritou ele, sacando a arma do coldre. - Por que foi que não disse? - Deu um salto em direcção ao muro.

- Dá a volta pelo outro lado! Quero aquele tipo! - berrou para o colega que estava dentro do sedan.

 

Saltou o muro. Ouvi-o resmungar e mais passos sobre a relva. Um carro parou a cerca de meio quarteirão dali e um homem começou a sair mas manteve os pés no estribo. Quase não o via por detrás dos faróis.

 

O polícia do carro-patrulha avançou em direcção à sebe que bordejava o caminho para cavalos, recuou furioso e arrancou com a sirena a tocar.

 

Eu saltei para o coupé de McCord e liguei o motor.

 

À distância ouvi um tiro, depois dois, a seguir um grito. A sirena morreu a uma esquina e depois recomeçou.

 

Saí daquela zona conduzindo o coupé o mais rapidamente que podia. À distância, para norte, uma sirena continuava a tocar entre as colinas.

 

Larguei o coupé a meio quarteirão de Wilshire e apanhei um táxi defronte do Beverly-Wilshire. Sabia que podia ser seguido. Isso não era importante. O que era importante era saber daí a quanto tempo.

 

Dum bar em Hollywood liguei para Hiney. Ainda estava a trabalhar e continuava azedo.

 

- Há alguma novidade quanto ao Skalla?

 

- Oiça - disse numa voz amarga -, você foi falar com a mulher de Shamey? Onde está?

 

- Claro que fui - respondi. - E estou em Chicago.

 

- É melhor vir ter comigo. Por que é que foi até lá?

 

- Pensei que conhecesse Beulah, evidentemente. E de facto conhecia. Quer subir a parada daquela nossa aposta?

 

- Deixe-se de brincadeiras. Ela morreu.

 

- Skalla... - comecei a dizer.

 

- Essa é que é a parte mais engraçada -• rosnou. - Esteve lá. Uma bisbilhoteira que vive ao lado viu-o. Só que o corpo dela não apresenta sinais de violência. Morreu de morte natural. Tenho muito que fazer aqui e não pude ir até lá para a ver.

 

- Bem sei que tem muito que fazer - declarei numa voz inexpressiva.

 

- Pois é. bom, o médico ainda não sabe o que causou a morte.

 

- Medo - retorqui. - Foi ela que denunciou o Skalla há oito anos. O uísque deve ter ajudado um pouco.

 

- Ai sim? -- .disse Hiney. - Bem, bem. De qualquer forma já o temos na mão. Está em Girard e dirige-se para norte num carro alugado. Avisámos a Polícia do condado e a estadual. Se for para Ridge, apanhamo-lo em Castaic. com que então foi ela quem o denunciou? Acho que é melhor vir até cá, Carmady.

 

- Nem pensar - respondi. - Beverly Hills quer-me por um acidente seguido de fuga. Também eu agora estou a braços com a lei.

 

Comi qualquer coisa rapidamente e bebi café antes de apanhar um táxi para Lãs Flores e Santa Mónica, e caminhar até junto da minha viatura.

 

Não acontecera nada por ali a não ser que tinha um rapazinho na parte de trás do carro a tocar ukelele1.

 

Dirigi-me para Heather Street.

 

Heather Street era uma fenda numa encosta íngreme, ao cimo da Beachwood Drive. Descrevia uma curva de tal modo que, mesmo à luz do dia, era difícil vê-la de qualquer ponto em toda a sua extensão.

 

A casa que me interessava ficava do lado descendente, suspensa sobre a encosta, com uma entrada abaixo do nível da rua e um pátio no terraço, um quarto ou dois na cave e uma garagem onde era tão fácil de entrar como num frasco de azeitonas.

 

A garagem encontrava-se vazia, mas na berma da estrada estava parado um grande sedan brilhante. Havia luzes dentro da casa.

 

Dei a volta, estacionei o carro e dirigi-me para o sedan ao longo dum passeio com ar de ser pouco usado. Examinei-o com uma lanterna. Estava registado em nome de David Marineau, 1737 North Flores Avenue, Hollywood, Califórnia. Isso fez-me voltar à minha viatura e retirar uma pistola de dentro dum compartimento fechado.

 

Passei de novo pelo sedan, desci três degraus de pedra e fiquei a olhar para a campainha colocada ao lado duma porta encimada por um arco.

 

Não premi o botão, limitei-me a olhar. A porta não estava fechada. Era visível uma nesga de luz. Empurrei-a alguns centímetros. Depois, o suficiente para poder olhar.

 

Pus-me à escuta. Foi o silêncio que reinava na casa que me fez entrar. Era um daqueles silêncios que se seguem às explosões.

 

1 Guitarra havaiana. (N. do E.)

 

Ou talvez eu não tivesse comido o suficiente ao jantar. Fosse como fosse, resolvi entrar.

 

A comprida sala de estar prolongava-se até às traseiras, que não ficavam muito longe porque se tratava duma casa pequena. Nas traseiras havia umas portas envidraçadas e através do vidro era visível o corrimão de metal duma varanda. Da maneira que a casa fora construída, aquela devia ficar a grande altura sobre o declive.

 

Havia candeeiros bonitos, poltronas bonitas, mesas bonitas, um tapete espesso cor de alperce, dois pequenos sofás de aspecto confortável, um voltado para uma lareira, o outro de lado. A lareira tinha uma pedra mármore e sobre ela uma miniatura duma Vitória de Samotrácia. Por detrás duma protecção de cobre havia achas, mas ninguém lhes pegara fogo.

 

Pairava no ar um cheiro agradável e quente. Parecia o tipo de casa onde as pessoas ficavam descontraídas. Numa mesa baixa estavam pousados uma garrafa de Vat 69, alguns copos, um balde de cobre e aperitivos.

 

Deixei a porta na posição em que a encontrara e fiquei à espera. Silêncio. O tempo foi passando, assinalado pelo ruído seco dum relógio eléctrico incorporado num rádio, o buzinar distante dum automóvel em Beachwood, cerca de meia milha mais baixo, o zumbir dum avião voando de noite e o som metálico produzido por um grilo, algures debaixo da casa.

 

Depois, deixei de estar só.

 

Mrs. Marineau entrou na sala pelo outro lado, por uma porta que ficava junto das portas envidraçadas. Uma borboleta não teria feito mais ruído. Continuava com o mesmo chapéu preto e conjunto laranja-torrado, e estes continuavam a ligar muito bem. Tinha na mão uma pequena luva e empunhava uma pistola. Não sabia por que motivo. Nunca vim a sabê-lo.

 

Ela não reparou logo em mim e quando me viu isso não pareceu fazer grande diferença. Ergueu ligeiramente a arma e avançou na minha direcção, com os lábios tão metidos para dentro que nem lhe via os dentes que os seguravam.

 

Porém, também eu empunhava agora uma arma. Olhámos um para o outro por cima das nossas pistolas. Talvez me tivesse reconhecido; a sua expressão não indicava nada.

 

- Apanhou-os, hein? - perguntei.

 

Ela acenou ligeiramente com a cabeça.

 

- Só ele - respondeu.

 

- Pouse essa arma. Acabou-se.

 

Ela baixou um pouco a pistola. Não parecia ter reparado no Colt que eu lhe apontava. Baixei-o também.

 

- Ela não estava aqui - disse ela. A sua voz era seca e inexpressiva.

 

- Miss Baring não estava aqui? - perguntei.

 

- Não.

 

- Lembra-se de mim?

 

Ela examinou-me com mais cuidado mas o seu rosto não expremia qualquer satisfação.

 

- Sou o tipo que andava à procura de Miss Baring expliquei. - Você disse onde me devia dirigir. Lembra-se? Só que o Dave enviou um matulão para me ameaçar com uma pistola e andar comigo às voltas enquanto ele vinha até cá fazer qualquer coisa. Não faço idéia do que se tratava.

 

- Você não é um chui - afirmou a morena. - O Dave disse-me que você era um aldrabão.

 

Eu fiz com a mão um gesto largo e descontraído e aproximei-me um pouco mais dela, sub-repticiamente.

 

- Não sou um polícia da cidade - concordei. - Mas um polícia de qualquer forma. E isso passou-se há muito tempo. De então para cá aconteceram muitas coisas, não é verdade?

 

- Sim - respondeu. - Especialmente ao Dave. Eh! Eh! Não fora uma gargalhada. Não era suposto tratar-se duma

 

gargalhada. Apenas algum vapor saindo através da válvula de segurança.

 

- Eh, eh - repeti eu e ficámos a olhar um para o outro, como um par de malucos fazendo de Napoleão e Josefina.

 

A minha ideia era aproximar-me o suficiente para agarrar a arma dela. Continuava demasiado longe.

 

- Está aqui mais alguém?

 

- Só o Dave.

 

- Bem me parecia que o Dave estava aqui.

 

Não era uma réplica muito inteligente mas serviu para eu dar mais um passo.

 

- Oh, Dave está cá - concordou ela. - Sim. Gostava de vê-lo?

- bom... se não for uma maçada muito grande.

 

- Eh, eh - casquinou ela. - Não é maçada nenhuma. Levantou a arma num gesto brusco e puxou o gatilho. Fê--lo sem que um músculo do seu rosto se mexesse.

 

O facto de a arma não ter disparado surpreendeu-a, dum modo vago. Nada de demasiado importante. Eu já lá não estava. Ela ergueu a arma, sempre com muito cuidado, com a luva enrolada na coronha, e olhou para dentro do cano. Não chegou a conclusão alguma. Abanou a pistola. Depois voltou a aperceber-se da minha presença. Eu não me mexera. Agora já não era preciso.

 

- Suponho que não está carregada - declarou.

 

- Talvez todas as balas tenham sido usadas - disse eu. Pouca sorte. Estas pequeninas só levam sete. As minhas também não servem. Deixe ver se consigo fazer alguma coisa.

 

Ela pôs a arma na minha mão. Depois limpou as mãos uma na outra. Os seus olhos não pareciam ter pupilas, ou ser só pupilas. Não tinha a certeza de qual era o caso.

 

A pistola não estava carregada. A câmara estava vazia. Cheirei o cano. A arma não fora disparada desde a última limpeza.

 

Fiquei confuso. Até então tudo parecera relativamente simples, se conseguisse chegar ao fim sem mais assassínios. Mas isto alterava tudo. Não fazia a menor idéia daquilo de que ambos falávamos.

 

Meti a pistola dela no meu bolso, pus a minha de novo no coldre e fiquei a mordiscar o lábio, a ver o que é que acontecia. Não aconteceu nada.

 

Mrs. Marineau das feições esguias manteve-se quieta, olhando fixamente um ponto entre os meus olhos, como se fosse um turista assistindo a um magnífico pôr do Sol no monte Whitney.

 

- bom - disse eu por fim -, e que tal darmos uma volta pela casa a ver como param as modas?

 

- Está-se a referir ao Dave?

 

- Sim, ele também.

 

- Está no quarto. - Soltou um risinho. - Ele está muito à vontade em quartos.

 

Peguei-lhe no braço e fi-la voltar-se. Ela obedeceu sem protestar, como uma criança.

 

- Mas este é o último quarto em que se sentirá à vontade - concluiu. - Eh, eh.

 

- Pois. Claro... - concordei.

 

A minha voz pareceu-me a voz dum anão. Dave Marineau estava mesmo morto, para o caso de restarem quaisquer dúvidas.

 

Um candeeiro com um globo branco com figuras estava aceso ao lado duma cama larga num quarto todo ele verde e prata. Era a única luz no quarto. A luz que lhe caía sobre o rosto era uma luz coada. Ainda não morrera há tempo suficiente para ter ar de cadáver.

 

Estava estendido sobre a cama, um pouco de lado, como se estivesse de pé diante dela quando fora atingido. Tinha um braço esticado e o outro debaixo do corpo. Os seus olhos abertos brilhavam com uma expressão de quase satisfação. A boca estava ligeiramente aberta e a luz do candeeiro reflectia-se nos dentes do maxilar superior.

 

De início não vi a ferida. Era no lado direito da cabeça, junto à fonte, mas bastante para trás, o suficiente quase para que o osso lhe tivesse atravessado o cérebro. Apresentava queimaduras de pólvora e o bordo era vermelho-escuro. Um fio de líquido escorria-lhe pelo rosto abaixo, ficando mais castanho à medida que se tornava mais fino.

 

- Raios, aquilo é uma ferida provocada por um disparo à queima-roupa - disse eu na direcção da mulher. - Uma ferida de suicídio.

 

Ela estava aos pés da cama e olhava fixamente a parede por cima da cabeça dele. Não parecia haver mais nada que lhe interessasse para além da parede.

 

Levantei-lhe a mão direita ainda mole e cheirei a zona em que a base do polegar se liga à palma da mão. Senti o cheiro da cordite, depois não senti o cheiro da cordite, depois já não sabia se sentira ou não o cheiro da cordite. Não era importante, evidentemente. Um teste com parafina decidiria a questão duma maneira ou doutra.

 

Voltei a baixar a mão, com cuidado, como se fosse um objecto frágil e de grande valor. Depois examinei a zona à volta da cama, ajoelhei-me, meti-me debaixo da cama, praguejei, ergui-me de novo e rolei o morto para um lado, de modo a poder examinar a cama por baixo dele. Havia uma cápsula metálica brilhante, mas nenhuma arma.

 

Parecia-me outra vez assassínio. A ideia agradava-me mais. Ele não era do tipo dos que se suicidam.

 

- Vê alguma arma? - perguntei-lhe.

 

- Não.

 

O rosto dela era tão inexpressivo como uma frigideira.

 

- Onde está essa tal Miss Baring? O que é que você está a fazer aqui?

 

Ela mordeu a unha do seu dedo mindinho.

 

- É melhor eu confessar - declarou. - Vim até cá para matá-los a ambos.

 

- Prossiga - disse-lhe.

 

- Não estava cá ninguém. Está claro, depois de lhe ter telefonado e de ele me ter dito que você era um falso polícia e que não houvera crime nenhum e que você não passava dum chantagista que procurava obter de mim a morada... - Ela interrompeu-se, emitiu um soluço, um soluço quase imperceptível, e os seus olhos desviaram-se para um canto do tecto.

 

As suas palavras tinham nexo, mas ela proferia-as como se fosse um índio numa loja.

 

- Vim cá para matá-los a ambos - repetiu. - Não o nego.

 

- Com uma arma vazia?

 

- Não estava vazia há dois dias. Eu verifiquei. Dave tirou as balas com certeza. Devia estar com medo.

 

- Isso faz sentido - disse eu. - Continue.

 

- Por isso vim até cá. Aquilo fora o último insulto: enviá-lo a si a minha casa para obter a morada dela. Era mais do que eu...

 

- A história - interrompi. - Sei como se sentiu. Conheço isso das fotonovelas.

 

- Pois. bom, ele disse que havia qualquer coisa relativa a Miss Baring e que tinha de falar com ela por causa da rádio e que não era nada pessoal, e que nunca estivera, nem estaria...

 

- Santo Deus! - interrompi de novo. - Também conheço isso. Sei aquilo que lhe deve ter dito. Temos aqui um homem morto e é preciso fazer alguma coisa, mesmo que ele tenha sido apenas o seu marido.

 

- Seu...! - exclamou.

 

- Pois - disse eu. - Gosto mais disso do que daquela conversa toda. Continue.

 

- A porta não estava fechada. Entrei. E é tudo. Agora vou-me embora. E você não me vai impedir de fazê-lo. Sabe onde moro, seu... - Chamou-me outra vez o mesmo nome.

 

- Primeiro vamos ter uma conversa com a Polícia - disse-lhe.

 

Aproximei-me da entrada, fechei a porta, tranquei-a pelo lado de dentro e meti a chave ao bolso. Depois fui até junto das portas envidraçadas. A mulher lançou-me um olhar fulminante mas agora não ouvia os nomes que me chamava.

 

As portas envidraçadas do quarto davam para a mesma varanda que as da sala. O telefone estava num nicho na parede, ao lado da cama. De manhã, podia-se bocejar, estender a mão para o telefone e pedir que enviassem um tabuleiro de diamantes para experimentar.

 

Sentei-me na borda da cama e estendi a mão para o telefone. Uma voz abafada chegou até mim vinda do outro lado do vidro:

 

- Calma aí, pá! Calma aí!

 

Era uma voz grave e suave, mesmo abafada pelo vidro. .Já a tinha ouvido antes. Era a voz de Skalla.

 

Eu tinha o candeeiro mesmo atrás de mim. Mergulhei, ao mesmo tempo que levava a mão ao coldre.

 

Ouviu-se uma detonação e o vidro voou em pedaços atrás da minha cabeça. Não conseguia perceber. Skalla não estava na varanda. Eu tinha verificado.

 

Rolei pelo chão e comecei a afastar-me das portas envidraçadas, a minha única hipótese, dada a posição do candeeiro.

 

Mrs. Marineau resolveu fazer a coisa mais acertada... Arrancou um sapato e começou a bater-me na cabeça com o salto. Agarrei-lhe nos tornozelos, lutámos e ela desfez-me o alto da minha cabeça.

 

Atirei-a para o lado. Não tive muito tempo. No momento em que me erguia, Skalla entrou no quarto a rir. O Colt .45 continuava a caber-lhe folgadamente na mão. As portas envidraçadas e as persianas do lado de fora pareciam ter sido atravessadas por um elefante.

 

- Está bem - anunciei. - Rendo-me.

 

- Parece que ela gosta mesmo de ti, pá.

 

Ergui-me. A mulher estava algures a um canto. Nem sequer olhei para ela.

 

- Vira-te, pá, enquanto te revisto.

 

Não chegara a sacar da minha pistola. Ele pegou nela. Não disse nada em relação à chave da porta, mas também ficou com ela. Devia ter estado a observar-nos de algum lado. Deixou-me as chaves do carro. Examinou a pequena pistola vazia e voltou a metê-la no meu bolso.

 

- Por onde entraste? - perguntei-lhe.

 

- Foi fácil. Subi pela varanda e fiquei pendurado, observando-vos através do gradeamento. Uma brincadeira para um velho artista do circo. Como tens passado, pá?

 

Do alto da cabeça escorria-me sangue pela cara abaixo. Peguei num lenço e limpei-o. Não lhe dei resposta.

 

- Santo Deus, estás mesmo engraçado, sentado na cama com o cadáver por detrás e o telefone na mão.

 

- Muito engraçado - rosnei. - Mas calma aí. É o marido dela.

 

Ele olhou para ela.

 

- Ela é mulher dele?

 

Acenei com a cabeça, desejando não precisar de fazê-lo.

 

- Isso é mau. Se eu soubesse... Mas não pude fazer nada. O tipo estava mesmo a pedir.

 

- Tu... - comecei a dizer, olhando para ele. Atrás de mim ouvi um gemido esquisito da mulher.

 

- Quem mais, pá? Quem mais? Vamos todos voltar à sala de estar. Pareceu-me que havia uma boa garrafa e você precisa de pôr qualquer coisa nessa cabeça.

 

- É uma loucura permaneceres aqui - disse-lhe num tom zangado. - Há um mandato de captura contra ti. A única maneira de saíres deste desfiladeiro é voltares para Beachwood ou atravessares os montes... a pé.

 

Skalla olhou para mim e disse numa voz muito calma:

 

- Ninguém telefonou daqui para a Polícia, pá.

 

Skalla ficou a vigiar-me enquanto eu lavava e punha adesivo na cabeça, na casa de banho. Depois regressámos à sala de estar. Mrs. Marineau, enrolada num dos sofás, olhava fixamente para a lareira apagada. Não abriu a boca.

 

Não tentara fugir porque Skalla a vigiava o tempo todo. Estava resignada, indiferente, como se não lhe interessasse o que pudesse acontecer de seguida.

 

Peguei na garrafa de Vat 69 e enchi três copos. Passei um à morena. Ela estendeu a mão para o copo, sorriu debilmente e caiu do sofá para o chão, ainda a sorrir.

 

Eu pousei o copo, peguei nela e voltei a pô-la no sofá, com a cabeça para baixo. Skalla olhava para ela. Desmaiara e estava fria e branca como uma folha de papel.

 

Skalla pegou na sua bebida, sentou-se no outro sofá e pousou o Colt .45 ao lado. Ingeriu a sua bebida olhando para a mulher, com uma expressão estranha no seu grande rosto pálido.

 

- É duro - disse. - É duro. Mas o bandalho, assim como assim, andava a enganá-la. O Diabo que o carregue.

- Encheu de novo o copo e bebeu-o dum trago. Depois sentou-se junto dela no outro sofá. - com que então és detective - disse.

 

- Como foi que adivinhaste?

 

- A Lu Shamey falou-me dum tipo que fora a casa dela. A descrição condizia contigo. Andei por aqui e examinei o teu carro lá fora. Não fiz barulho.

 

- Bom... e agora? - perguntei.

 

Parecia mais gigantesco do que nunca naquela sala, com a sua roupa desportiva. A roupa dum malandreco. Perguntei a mim mesmo quanto tempo levara a reunir aquelas peças todas. Não podiam ter sido compradas num pronto a vestir. Ele era demasiado grande para isso.

 

Tinha os pés sobre o tapete cor de alperce, bem afastados um do outro, e olhava com uma expressão triste para as manchas brancas no couro dos sapatos. Eram os sapatos mais feios que alguma vez vira.

 

- Que estás a fazer aqui? - perguntou num tom rude.

 

- Ando à procura da Beulah. Pensei que talvez precisasse de ajuda. Apostei com um polícia que a encontrava primeiro do que ele a ti. Mas ainda não a encontrei.

 

- Ainda não a viste, hein?

 

Abanei a cabeça lentamente, com muito cuidado.

 

- Eu também não, pá - disse ele numa voz suave. E ando por aqui há horas. Ela não voltou para casa. Só o tipo que está no quarto é que cá veio. E o que é que se passa com o patrão do Shamey’s?

 

- O mandato de captura é por causa disso.

 

- Pois. Um tipo daqueles. O que é que eu podia esperar? bom, tenho de me pôr a andar. Gostava de levar o morto daqui para fora por causa da Beulah. Não quero deixá-lo aqui, pode assustar-se. Mas suponho que agora já não serve de nada. A morte do outro estragou tudo.

 

Olhou para a mulher a seu lado no outro pequeno sofá. Continuava de olhos fechados e a face dela tinha um tom branco-esverdeado. O seu peito subia e descia.

 

- Se não fosse ela - declarou - arrumava aqui as coisas e mandava-te desta para melhor. - Tocou com a mão na arma a seu lado. - Não te guardo rancor, claro. É por causa da Beulah. Mas da maneira como as coisas estão... raios, não posso despachá-la a ela também.

 

- Que pena - retorqui num tom sarcástico, levando uma mão à cabeça.

 

Ele sorriu.

 

- Acho que vou levar a tua carripana. Para cortar caminho. Passa para cá as chaves.

 

Atirei-lhas. Ele pegou nelas e pousou-as ao lado do Colt. Curvou-se ligeiramente para a frente. Depois meteu a mão num dos bolsos do casaco e retirou lá de dentro um pequeno revólver, provavelmente de calibre .25, com uma coronha de madrepérola. Pô-lo na palma da mão.

 

- Foi com este - explicou. - Deixei o carro que aluguei na rua de baixo, subi a encosta e dei a volta à casa. Ouvi a campainha tocar. O tipo estava defronte da porta da entrada. Não me aproximei demasiado, para que não me visse. Ninguém respondeu. bom, que pensas que o tipo fez? Tinha uma chave! Uma chave da casa da Beulah!

 

A expressão do seu rosto era de fúria. A mulher no sofá já respirava um pouco mais fundo e julguei ver uma pálpebra mexer.

 

- Raios! - exclamei. - Ele podia tê-la obtido duma dúzia de maneiras. É o patrão da KLBL, onde ela trabalha. Podia ter feito uma cópia a partir da chave que ela traz na carteira. Raios, não é obrigatório que tenha sido ela a dar-lha.

 

- Certo, pá. - O seu rosto desanuviou-se. - Claro que não é preciso que tenha sido ela a dá-la àquele... Está bem, ele entrou, e eu fui atrás dele, rapidamente. Mas ele fechara a porta. Abri-a à minha maneira. Depois disso não voltou a fechar tão bem, como deves ter reparado. Estava no meio desta sala, ali, junto da secretária. Via-se que já aqui tinha estado - a expressão de fúria voltou, embora não tão carregada - porque meteu a mão na gaveta e pegou nisto concluiu mostrando a arma com cabo de madrepérola que dançava na sua mão.

 

O rosto de Mrs. Marineau tinha agora uma expressão mais tensa.

 

- Então eu avancei para ele. Ele disparou uma vez. Falhou. Depois assustou-se e fugiu para o quarto, comigo atrás. Disparou outra vez, falhou de novo. Encontrarás as balas algures nas paredes.

 

- Hei-de tomar nota disso - disse-lhe.

 

- Pois. Em seguida, apanhei-o. Raios, o tipo não passava dum patife que vestia fato completo. Se ela quiser acabar comigo, tudo bem, mas tem de ser ela a dizer-me, compreendes? Não recebo lições de tipos como ele. Por isso estava zangado. Mas o tipo tinha uma certa coragem.

 

Esfregou o queixo. Eu duvidava da última parte do relato.

 

- «A minha miúda vive aqui, pá», disse-lhe eu. «Que é que estás cá a fazer?» Ele respondeu-me: «Volta amanhã. Esta noite é minha.» - Skalla fez um gesto largo com a mão esquerda. - Depois duma coisa destas a natureza tem de seguir o seu curso, não é? Agarro-lhe nos braços e nas pernas. Só que enquanto estou a fazê-lo o raio do revólver dispara e ele fica estendido como um... um... - olhou para a mulher e não terminou a frase. - Pois. Morreu.

 

Uma das pálpebras da mulher voltou a mexer.

 

- E depois? - perguntei.

 

- Fugi. É o que um tipo faz. Mas voltei. Comecei a pensar que era duro para a Beulah, com aquele morto na cama. Pensei por isso em voltar atrás e levá-lo para o deserto e meter-me em seguida num buraco durante uns tempos. Depois apareceu esta tipa e estragou tudo.

 

A mulher já devia estar a fingir há um bom bocado. A mover os braços, as pernas e a rodar o corpo a pouco e pouco de modo a ficar numa boa posição, apoiada nas costas do sofá. O revólver continuava na palma da mão de Skalla quando ela se mexeu. Saltou do sofá e mergulhou, como se fosse uma acrobata. Passou de raspão junto dos joelhos dele e apanhou a arma com a mesma facilidade com que um chimpanzé descasca uma banana.

 

Ele ergueu-se e disse um palavrão, enquanto ela rolava a seus pés. Tinha a seu lado o enorme Colt, mas não lhe tocou nem fez tenção disso. Avançou de mãos vazias para dominar a mulher.

 

Ela soltou uma gargalhada antes de disparar.

 

Atingiu-o quatro vezes no baixo-ventre, depois a arma ficou vazia. Atirou-lha à cara e procurou esquivar-se.

 

Ele passou-lhe por cima sem lhe tocar. O seu rosto enorme e pálido não exprimiu nada por um instante, depois apareceram umas linhas de dor que pareciam sempre ter existido.

 

Avançou direito ao longo do tapete em direcção à porta. Eu saltei para o Colt e peguei nele, a fim de a mulher não o alcançar. Começou a cair sangue sobre o tapete quando deu o quarto passo e depois a cada passada.

 

Ele alcançou a porta, pôs a mão nela e ficou assim um momento. Depois abanou a cabeça e voltou para trás. A sua mão esquerda deixou sobre a porta uma mancha ensanguentada.

 

Sentou-se na primeira cadeira que encontrou, curvou-se e segurou o ventre com ambas as mãos. O sangue começou a escorrer lentamente por entre os seus dedos, como se fosse água que transbordasse dum lago.

 

- Aquelas balas pequenas - disse - fazem tantos estragos como as grandes, cá em baixo, pelo menos.

 

A morena avançou para ele como uma marioneta. Ele observava-a sem piscar os olhos, por debaixo das suas pálpebras pesadas e semicerradas.

 

Quando estava suficientemente próxima, curvou-se e cuspiu-lhe na cara.

 

Ele não se mexeu. A expressão dos seus olhos não se alterou. Eu saltei sobre ela e atirei-a para uma cadeira. Não estive com delicadezas.

 

- Deixa-a em paz - grunhiu ele. - Talvez ela gostasse do tipo.

 

Ninguém tentou evitar que eu telefonasse desta vez.

 

Algumas horas mais tarde estava sentado num banco vermelho no Lucca’s, no cruzamento da Cinquenta com a Western, bebendo um Martini e pensando qual seria a sensação de passar o dia a fazê-los sem nunca beber nenhum. Era tarde, passava da uma. Skalla estava no pavilhão para presos do Hospital Geral. Miss Baring ainda não aparecera, mas eles sabiam que apareceria logo que soubesse que o Skalla estava preso e já não representava um perigo.

 

A KLBL, que inicialmente não soubera de nada, fez tudo para abafar o caso. Davam-lhes vinte e quatro horas para decidirem que versão queriam fornecer ao público.

 

O Lucca’s estava quase tão cheio como ao meio-dia. Passado um bocado acercou-se de mim uma morena italiana com um grande nariz e uns olhos que não eram para brincadeiras e informou-me:

 

-Já tenho mesa para si.

 

Levei para lá outro Martini e pedi o jantar. Suponho que o comi.

 

Imaginei Skalla sentado do outro lado da mesa. Nos seus olhos negros havia qualquer coisa para além da dor, qualquer coisa que ele queria que eu fizesse. Passou parte do tempo a tentar dizer-me o que era, e parte do tempo a segurar no ventre e a dizer: «Deixe-a em paz. Talvez ela gostasse do tipo.»

 

Fui-me embora e dirigi-me para norte, para Franklin, e depois para Beachwood. Subi a Heather Street. A casa não estava vigiada, tal era a certeza que eles tinham de que a rapariga ia aparecer.

 

Fui pela rua mais abaixo e olhei pela encosta acima inundada de luar, na direcção da casa que, vista de trás, parecia ter a altura dum prédio de três andares. Era visível a estrutura metálica que suportava o alpendre. Ficava suficientemente elevada para que um homem precisasse dum balão para a alcançar. Mas fora por ali que ele subira. Sempre pelo caminho mais difícil.

 

Podia ter fugido e lutado pelo seu dinheiro ou até ter comprado um sítio para viver. Havia muita gente naquele negócio e não se haviam de meter com Skalla. Mas em lugar disso regressara para lhe subir à varanda, qual Romeu, e ficar com o estômago cheio de chumbo. Da mulher errada, como de costume.

 

Descrevi uma curva tão branca que parecia feita de luar, estacionei o carro e subi a pé a encosta. Levava comigo uma lanterna mas não precisei dela para ver que não estava ninguém na soleira da porta à espera do leite. Não entrei pela frente. Podia haver algum franco-atirador escondido na colina e com binóculos para ver de noite.

 

Subi o declive pela parte de trás, entre a casa e a garagem vazia. Descobri uma janela a que conseguia chegar e parti o vidro sem fazer muito ruído, com a pistola envolvida no chapéu. Os grilos e as rãs calaram-se um instante, mas, à parte isso, não aconteceu nada.

 

Dirigi-me ao quarto e examinei-o com o auxílio da lanterna depois de ter corrido os estores e fechado as cortinas. A luz incidiu sobre uma cama desfeita, manchas de pó-de-arroz, beatas no bordo da janela e marcas de sapatos no tapete. Sobre o toucador havia uma caixa de maquilhagem prateada e verde e no armário estavam três malas. Havia também uma espécie de gaveta na parte de trás que tinha um aloquete e que despertou a minha atenção. Trazia comigo uma chave de fendas, para além da lanterna. Dei cabo dele.

 

As jóias não valiam um milhar de dólares, talvez nem metade disso. Mas valiam muito para uma rapariga no mundo do espectáculo. Voltei a pôr tudo no seu lugar.

 

Na sala de estar, que tinha as janelas fechadas, havia um cheiro esquisito, desagradável, com o seu quê de sádico. As autoridades tinham tomado conta do Vat 69, a fim de facilitar a vida aos homens das impressões digitais. Tive de usar a minha bebida. Arrastei uma cadeira que não estava manchada de sangue para um canto, molhei a garganta e dispus-me a esperar no escuro.

 

Uma sombra esvoaçou na cave ou num sítio próximo. Isso levou-me a molhar de novo a garganta. Alguém saiu duma casa a meia dúzia de quarteirões de distância e deu um grito. Uma porta bateu. Silêncio. As rãs recomeçaram a coaxar, depois foi a vez dos grilos. A seguir o ruído do relógio eléctrico sobrepôs-se a todos os outros sons.

 

Adormeci de imediato.

 

Quando acordei a Lua desaparecera das janelas da frente e um carro estacionara algures. Uns passos leves, delicados, cuidadosos destacaram-se da noite. Estavam do lado de fora da porta da frente. Uma chave foi introduzida na fechadura.

 

Quando a porta se abriu, a luz tênue, proveniente do exterior, revelou uma cabeça sem chapéu. A encosta era demasiado escura para permitir que se visse mais qualquer coisa. A porta fechou-se de novo.

 

Ouvi o sussurro de passos sobre o tapete. Tinha o fio do candeeiro entre os dedos. Dei-lhe um puxão e fez-se luz.

 

A rapariga não emitiu qualquer som. Limitou-se a apontar-me uma arma.

 

- Olá, Beulah - disse eu. Valia a pena ter esperado por ela.

 

Não era demasiado alta nem demasiado baixa. Tinha daquelas pernas compridas que sabem andar e dançar. O cabelo dela era como que um incêndio na noite, mesmo à luz dum candeeiro. Tinha pequenas rugas ao canto dos olhos que lhe davam uma expressão de riso. A sua boca sabia rir.

 

As feições estavam escurecidas e tinham aquele ar cansado que torna certos rostos mais bonitos porque mais delicados. Não lhe conseguia ver os olhos. Eram capazes de ser tão azuis que me fariam dar um salto, mas não conseguia vê-los.

 

A arma parecia ser calibre .32, mas a coronha parecia a duma Mauser, cheia de ângulos rectos.

 

Passados alguns instantes, ela disse em voz baixa:

 

- É da Polícia, suponho.

 

Também tinha uma voz bonita. De vez em quando, ainda hoje penso nisso.

 

- Sentemo-nos e conversemos - propus eu. - Só aqui estamos os dois. Já alguma vez bebeu pela garrafa?

 

Ela não me respondeu. Baixou os olhos para a arma que tinha nas mãos, esboçou um sorriso e abanou a cabeça.

 

- Não vai fazer outra asneira - disse-lhe. - Uma rapariga esperta como você...

 

Ela enfiou a pistola no bolso dum casaco comprido que tinha uma gola de tipo militar.

 

- Quem é você?

 

- Um detective particular ao seu dispor. O meu nome é Carmady. Precisa duma bebida para animar?

 

Estendi a garrafa. O gelo ainda não se quebrara. Fiquei com ela na mão.

 

- Eu não bebo. Quem foi que o contratou?

 

- A KLBL. Para protegê-la do Steve Skalla.

 

- Então eles sabem - disse ela. - Então eles sabem da existência dele.

 

Eu digeri aquilo e mantive-me calado.

 

- Quem é que esteve aqui? - perguntou num tom ríspido. Continuava de pé no meio da sala, com as mãos nos bolsos do casaco e de cabeça descoberta.

 

- Toda a gente menos o canalizador - respondi. - Está atrasado, como de costume.

 

- Você é um desses. - O nariz dela pareceu encurvar-se ligeiramente. - Desses cómicos de café.

 

- Não - disse-lhe. - Não é verdade. É o jeito que apanho a falar com as pessoas com quem tenho de falar. Skalla voltou, meteu-se em sarilhos, foi alvejado e preso. Está no hospital. O caso é sério.

 

Ela não se mexeu.

 

- Muito sério?

 

- Talvez sobreviva se for operado. Mesmo assim, não é certo. Caso contrário, morre de certeza. Tem três nos intestinos e uma no fígado.

 

Ela mexeu-se finalmente e preparou-se para se sentar.

 

- Nessa cadeira não - avisei-a apressadamente. - Sente-se aqui.

 

Ela aproximou-se e sentou-se junto de mim. Os seus olhos brilhavam como duas pequenas girândolas de fogo.

 

- Por que foi que ele voltou? - perguntou ela.

 

- Achou que devia arrumar o assunto. Fazer desaparecer daqui o corpo e o resto. Um tipo fixe, o Skalla.

 

- Você acha?

 

- Minha senhora, mesmo que mais ninguém no mundo pense assim, eu acho.

 

- Creio que vou aceitar essa bebida - afirmou. Passei-lhe a garrafa. Tirei-lha de novo com rapidez.

 

- Santo Deus! - exclamei. - Este material não é para brincadeiras.

 

Ela olhou para a porta que dava para o quarto por detrás de mim.

 

- Levaram-no para a morgue - informei. - Pode lá entrar.

 

Levantou-se prontamente e saiu da sala. Voltou quase de seguida.

 

- O que é que eles têm contra o Steve? - perguntou. Se ele escapar.

 

- Matou um negro na Central esta manhã. Foi mais ou menos em legítima defesa. Não sei bem. Se não fosse o Marineau talvez se safasse.

 

- Marineau? - repetiu ela.

 

- Sim. Você sabia que ele matou o Marineau.

 

- Não seja ridículo - retorquiu. - Fui eu que matei o Dave Marineau.

 

- Está bem - concordei. - Mas não é essa a versão que o Steve quer ver contada.

 

Ela olhou-me fixamente.

 

- Quer dizer com isso que o Steve voltou cá deliberadamente para se incriminar?

 

- Se fosse caso disso, talvez. Creio que pensava realmente levar o Marineau para o deserto e fazê-lo desaparecer. Só que apareceu por cá uma mulher, Mrs. Marineau.

 

- Sim - disse a rapariga numa voz inexpressiva. - Ela julga que eu era amante dele. Aquele tipo nojento.

 

- E era? - perguntei.

 

- Não recomece. Mesmo que eu em tempos tenha trabalhado na Central Avenue - respondeu voltando a sair da sala.

 

Chegou até mim o som duma mala de viagem que era atirada dum lado para o outro. Fui atrás da rapariga. Estava a meter na mala peças de roupa fina com o jeito de quem gosta de ver coisas bonitas bem arrumadas.

 

- Na gaiola não se usam coisas dessas - disse-lhe, encostado à ombreira da porta.

 

Ela fez de conta que não me ouvira.

 

- Ia fugir para o México - explicou. - Depois a América do Sul. Não o matei deliberadamente. Ele foi violento, fez chantagem comigo e eu fui buscar a arma. Lutámos de novo e a pistola disparou por si. Depois fugi.

 

- Exactamente o que Skalla disse que fizera - comentei.

- Raios, não podia ter morto o... intencionalmente!

 

- Lamento, mas não o fiz em seu benefício - disse. Ou de qualquer polícia. É que já passei oito meses em DaIhart, no Texas, por ter roubado um bêbado. E com a Marineau gritando que seduzira o marido e depois me fartara dele...

 

- Há-de gritar muito - resmunguei. - Quando eu contar como cuspiu na cara do Skalla depois de lhe ter enfiado quatro balas.

 

Ela estremeceu. O seu rosto ficou mais pálido. Prosseguiu na sua tarefa de tirar e pôr coisas na mala.

 

- É mesmo verdade que roubou o bêbado?

 

Ela ergueu os olhos para mim, depois baixou-os de novo.

 

- Sim - murmurou. Aproximei-me dela.

 

- Tem algumas nódoas negras ou roupas rasgadas para mostrar? - perguntei.

 

- Não.

 

- É pena - disse, agarrando nela.

 

Os seus olhos lançaram chamas na minha direcção e depois ficaram negros. Arranquei-lhe o casaco, rasguei-lhe uma parte da roupa, apertei-lhe com força os braços e o pescoço e dei-lhe com os nós dos dedos na boca. Deixei-a ofegante. Ela afastou-se de mim a cambalear mas não caiu.

 

- Vamos esperar que as marcas escureçam - expliquei. Depois vamos à cidade.

 

Á rapariga começou a rir. Depois foi até junto do espelho e olhou para ele. Começou a chorar.

 

- Saia daqui enquanto mudo de roupa! - gritou. Vou-me meter em trabalhos mas vou contar a verdade... pelo Steve.

 

- Oh, cale-se e vá-se vestir - disse-lhe. Saí e bati com a porta.

 

Nem sequer a beijara. Podia ao menos ter feito isso. Ela não se haveria de importar mais com isso do que com os outros safanões que lhe dera.

 

Andámos de carro o resto da noite, primeiro em carros separados para esconder o dela na minha garagem, depois no meu. Fomos ao longo da costa e comemos sanduíches com café em Malibu. Continuámos. Tomámos o pequeno-almoço no fundo da Ridge Route, a norte de San Fernando.

 

O rosto dela parecia a luva dum cafcher’ no fim da temporada de basebol. O lábio inferior estava do tamanho duma banana e as nódoas negras nos braços estavam tão quentes que teria sido possível grelhar nelas bifes.

 

Quando o Sol despontou dirigimo-nos ao edifício da Câmara.

 

A Polícia nem pensou em detê-la ou verificar os factos. Praticamente foram eles quem escreveu a declaração. Ela assinou-a de olhos ausentes, pensando noutra coisa. Depois apareceram um homem da KLBL e a mulher para a acompanhar.

 

Não pude por isso levá-la a um hotel. Ela também não conseguiu ver o Skalla nessa altura. Ele estava sob o efeito da morfina.

 

Morreu às duas e meia dessa mesma tarde. Ela segurava um dos seus dedos enormes e inertes mas ele não teria sido capaz de distingui-la da rainha do Sião.

 

’Jogador que no basebol está colocado atrás do batedor (inglês: hatter) para apanhar as bolas que lhe escapam e que usa capacete, máscara, peitilho e luvas especiais.

 

                                                                                Raymond Chandler  

 

                      

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