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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AUTÔMATO / Alberto Moravia
O AUTÔMATO / Alberto Moravia

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O AUTÔMATO

 

         AS ATARANTADAS

 

A Sra. Cecília era uma mulher muito semelhante a uma ave exótica, pelo corpo minúsculo e pela cabeça enorme e extravagante. Pequena, delgada, mas com a cabeça grande, pálida e nervosa sob a maquilhagem vivaz, os olhos redondos aumentados pelo negro, parecia percorrida continuamente por uma corrente eléctrica de muito alta tensão, que infundia nos seus gestos, e mais ainda na sua conversa, uma agitação irreprimível, excitada, impetuosa. Como a própria Sra. Cecília se exprimia, ela era absolutamente incapaz de "concentrar‑se"; noutros termos, de perseguir, ainda que por poucos minutos, o desenvolvimento da ideia mais óbvia ou a descrição do facto mais simples. As associações de pensamentos, quais moscardos em redor de um cavalo já furioso e enervado, não lhe davam descanso: amontoando‑se sem tréguas na sua mente fatigada, constrangiam‑na, mau grado seu, a encerrar uma conversa há pouco começada e a iniciar outra muito antes de ter aprofundado ou mesmo aflorado a primeira. Normalmente, oprimida por esta velocidade e esta facúndia turbilhonantes da sua mente, a Sra. Cecília fazia uso de toda a sua loquacidade, que, convém dizê‑lo, era demasiado solta; até que, a certa altura, não podendo já desenvencilhar‑se da confusão, apertava a cabeça entre as mãos, exclamando, aflita: "Oh, a minha cabeça... a minha pobre cabeça!" Era a sua maneira, como se diz, de cortar o nó górdio. O interlocutor ficava naturalmente de boca aberta e, por aquela vez, renunciava a saber algo mais.

Naquele dia, a Sra. Cecília tinha uma coisa da máxima importância a comunicar à sua amiga Sofia. Era esta, como ela, uma senhora bastante jovem e graciosa. E, igualmente, atarantada em segundo grau. Mas, enquanto a atarantação de Cecília derivava de ter demasiadas coisas a dizer, a de Sofia procedia da causa oposta: do não ter nada a dizer, porque a todo o momento o pasmo lhe esvaziava a cabeça e a privava até da palavra. Estava sempre perplexa e só se libertava de um espanto para cair noutro. Atarantada, portanto, Cecília por excessiva abundância de assuntos; atarantada Sofia por absoluta penúria dos mesmos.

Ao telefone, depois de ter saudado a amiga, Cecília exprimiu‑se do modo seguinte:

‑ Minha querida, devo dizer‑te uma coisa da maior importância... Não... pelo telefone, não... Trata‑se de uma coisatambém muito delicada... vem já... Não podes? Não tens o carro `?... Ah!, estes carros, sempre na oficina ‑ e aqui uma longa e confusa conversa sobre os defeitos dos automóveis - mando‑te o meu, queres?... Vens com o teu? Mas então não está avariado... Oh!, desculpa, tinha percebido que estava avariado... Oh, a minha cabeça, a minha pobre cabeça!... Em suma, vem, vem já, não percas um só momento.

Sofia, portanto, veio. Eram as primeiras horas da tarde; mas Cecília, não obstante a sua pressa de contar à amiga aquela coisa tão importante, não pôde eximir‑se de a fazer esperar quase três quartos de hora. Tinha comprado, precisamente naquela manhã, um roupão de corte e de cores verdadeiramente assombrosas e queria apresentar‑se com aquela sua nova e originalíssima vestimenta, capaz de provocar na amiga uma lisonjeira surpresa. E, com efeito, quando Cecília, finalmente, entrou, correndo com os braços estendidos e o rosto confuso, exclamando: "Querida, esperaste, sei‑o, perdoa‑me, diz‑me já que me perdoas", Sofia, à vista do roupão, de facto bonito e indescritivelmente original, esqueceu de repente a coisa tão importante que viera saber e, pondo‑se em pé, começou a girar em volta da amiga, elogiando‑lhe a elegância.

Cecília, entretanto, atarefada e perdida, inclinava‑se sobre a mesinha do chá, deitando febrilmente a bebida nas chávenas e juntando‑lhe o açúcar com a pinça:

‑Quer‑lo forte ou fraco?... E açúcar? Dois cubos? Três? Valha‑me Deus, pus cinco... A minha cabeça, a minha pobre cabeça!... Então agrada‑te o meu roupão?... Obrigada, és muito gentil... Imagina que a Iole já o tinha vendido à Sra. Pallotta, ou Pallottola, não recordo já o nome... aquela horrível cotovia. E eu, então, propus‑lhe: "Diga‑lhe que o comprei eu..." A Iole, naturalmente, respondeu‑me: "Mas não posso perder uma cliente..." E eu retorqui: "Esteja tranquila, diga‑lhe que o comprei eu; essa senhora é tão snob que ficará contente que eu me tenha dignado reparar na sua existência, ainda que apenas para lhe levar um roupão"... E assim trouxe o roupão, encomendando ao mesmo tempo um modelo de Dior... sabes, para a festa que dão no Grande Hotel, na Terça‑Feira Gorda.

A pobre Sofia tinha já três coisas em que pensar: no roupão, na conversa que Cecília havia sustentado com a costureira e na festa do Grande Hotel. Por isso, esqueceu uma vez mais a coisa tão importante que Cecília devia dizer‑lhe e agarrou‑se à última das três novidades: a festa. Aquela festa tinha‑a ela, como se diz, na conta de snob, julgando‑a um dos habituais bailes mal frequentados que se dão, nos hotéis, com fins de beneficência. Mas ouvindo Cecília, pessoa normalmente exigentíssima, dizer que ia lá, surpreendeu‑se e, por um instante, não conseguiu já relacionar as ideias, como se lhe tivesse faltado, de repente, o chão debaixo dos pés. Pediu explicações à amiga; e esta irrompeu imediatamente numa torrente de considerações e de apreciações, entre as quais Sofia recolheu duas notícias que a precipitaram de novo na costumada e vertiginosa perplexidade: na festa, segundo parecia, estaria presente uma personagem da realeza do Médio Oriente, um príncipe árabe, ou um xá; na festa seria também premiada a mulher mais elegante da capital. Nesta altura, enquanto Sofia procurava ainda em vão refazer‑se, Cecília deu uma grande palmada na testa, exclamando:

‑ Mas eu devia dizer‑te uma coisa!

‑Sim, é verdade, e então?

‑ Então, saiu‑me da ideia... não consigo recordá‑la.

‑ Faz um esforço...

‑ Impossível... esqueci‑me realmente dela... tenho muitas coisas em que pensar: o vestido, o baile, o xá, a mulher mais elegante da capital... Mas que tolice... é inútil fazer um concurso... todos sabem que a mulher mais elegante da capital é Giovanna.

Ora é necessário saber‑se que Cecília tinha lançado ali aquele nome, de todo improvável, porque estava convencida de ser ela, na realidade, a mulher mais elegante da capital, e esperava que Sofia lho confirmasse. Mas Sofia, demasiado aturdida para alcançar esta subtileza, limitou‑se a indignar‑se:

‑ Giovanna, a mulher mais elegante da capital`? Mas é uma pessoa sem gosto e, além disso, nem sequer é nova...

Cecília interrompeu‑a:

‑ Sei que foi a Lausana, a um especialista... Cortou‑lhe a pele debaixo dos cabelos e puxou‑lhe o rosto para cima... fez o mesmo ao peito... está toda cosida, da cabeça aos pés, como uma bola de futebol.

Desta vez, a surpresa de Sofia estendeu‑se da pessoa de Giovanna aos prodígios da cirurgia estética. Falaram de médicos, de operações, e depois, sem se saber como, dos médicos passaram aos dentistas, e dos dentistas aos dentes de uma tal Clarisse, talvez postiços porque eram demasiadamente bonitos, e dos dentes de Clarisse ao casaco de peles de Clarisse, que, ao que parecia, tinha custado pelo menos 5 milhões de liras, e deste preço à moda dos casacos de peles, que naquele ano se usavam compridos e amplos, à raglan. Entretanto, tinha‑se feito noite e o criado substituiu a bandeja do chá por um shaker de prata e dois cálices. Logo que u criado saiu, Cecília, deixando de agitar por um instante a bebida gelada, exclamou:

‑ Um momento... espera... tenho‑a na ponta da língua.

‑ O quê?... Diz‑me...

‑ Aquilo que devia contar‑te... aquela coisa importante... Espera, dá‑me uma ideia...

‑ Como posso eu dar‑te uma ideia... não sei...

‑ Espera... que maçada... tinha‑a aqui... Mas não, é inútil! A minha cabeça! Oh, a minha pobre cabeça!

Recomeçaram a conversa. Para dizer a verdade, o assunto desta vez era dos mais sérios: se eram ou não bonitas as cuecas compridas, estilo 1890, que este ano os costureiros franceses tencionavam lançar em substituição dos já antiquados pagliaccetti. Cecília defendia com obstinação as cuecas compridas. Sofia, com não menor obstinação, batia‑se pelas curtas, sem sequer saber porquê; se tivesse pensado no caso, teria talvez descoberto que as cuecas curtas só lhe agradavam porque Cecília preferia as compridas. Puro espírito de contradição, portanto; e, de facto, como naqueles duelos das tragédias antigas em que os adversários acabam por trocar as espadas, Sofia encontrou‑se improvisadamente a defender as cuecas compridas, enquanto Cecília optava pelas curtas. As duas amigas desataram a rir; depois consultando o seu relógio de pulso, Sofia pôs‑se imediatamente de pé e exclamou:

‑ Mas é tardíssimo... Roberto espera‑me... fomos convidados para jantar fora... Obrigada, querida... passei uma tarde deveras deliciosa... Até qualquer dia, querida... Depois telefonamos.

Passaram para o vestíbulo, começando por se abraçarem e beijarem várias vezes. Em seguida, retomaram a conversa do jantar para o qual Sofia estava convidada; e quem sabe onde as teria conduzido esta conversa se, inesperadamente, Cecília não tivesse exclamado:

‑ Finalmente!

‑ Finalmente o quê?

‑ Recordei‑me daquilo que queria dizer‑te... a tal coisa importante... Minha querida, é muito simples: teu marido é amante da Ninon.

Ora, Sofia estava casada havia apenas dois meses. O seu espanto desta vez foi enorme e legítimo. Disse, empalidecendo:

‑ Não é possível!

‑ Acredita.

Cecília, com velocidade igual à importância do assunto, contou que Roberto, o marido de Sofia tinha sido visto, por pessoa digna de crédito, no automóvel com a Ninon, em local solitário, a beijá‑la. Levada pelo entusiasmo, Cecília acrescentou que a coisa não a surpreendia. Ninon estava cheia de amantes, de um dos quais, Fabrizio, tinha mesmo tido um filho... E então foi como quando, para acalmar a dor de um dente que se quer arrancar com o rudimentar sistema do fio ligado à porta, se pede a um amigo obsequioso que nos dê um soco na cabeça. O primeiro espanto, provocado pela traição do marido, foi banido pelo segundo, motivado pelo caso do filho da Ninon.

‑ Não me digas! ‑exclamou Sofia.‑Um filho de Fabrizio!.. Cecília sabia tudo: a clínica em Florença onde Ninon tinha ido dar à luz, o sexo do recém‑nascido, o peso, o nome. Enquanto assim falava, a porta de casa abriu‑se e entrou Orazio, o marido de Cecília, homem brusco, de poucas palavras, de modos desembaraçados. Este, sem grandes cerimónias, pôs simplesmente fora da porta a pobre Sofia. As mulheres lançaram uma à outra, através da greta, um último beijo; e depois, Sofia, extenuada pelas muitas surpresas daquela tarde, desceu a escada, entrou no seu carro e, cerrando os olhos, abandonou‑se sobre os assentos.

Mais tarde, em casa, o marido perguntou‑lhe como passou a tarde. Sofia, sentada diante do espelho do toucador, a pentear‑se para o jantar, respondeu:

‑ Estive em casa de Cecília... Uma tarde muito tranquila.. mas o mais engraçado, sim, é que me disse uma coisa muito importante... e eu esqueci‑a... não consigo recordar‑me dela.

‑ Ora vejamos... que coisa era?

‑ É impossível ‑ disse Sofia em tom definitivo e até irritado. ‑ Esqueci‑me dela e é inútil que tu, com a tua habitual curiosidade mórbida, procures sabê‑la... Não me tortures, peço‑te... tenho uma terrível dor de cabeça... esqueci‑me dela e não há nada a fazer.

 

             ENCONTRO NA PRAIA

 

Depois de ter parado o carro numa clareira da mata, à sombra de um pinheiro, Sérgio encaminhou‑se com a mulher, por entre as dunas, na direcção do mar. Clara precedia‑o, correndo alegremente pela areia escaldante; e Sérgio seguia‑a à distância, levando o saco do almoço e os roupões. Subitamente, a mulher desapareceu atrás da orla de uma duna e Sérgio, contente de a ver satisfeita, seguiu‑Lhe o rasto, certo de que, chegado ao cimo da duna, a veria já a saltar no mar. Mas quando atingiu o topo da duna descobriu que a mulher se encontrava parada e que a praia não estava deserta como esperava. Um grupo de pessoas seminuas, ao que parecia pescadores, entre as quais se destacava um homem em uniforme militar, estava reunido, dando mostras de perturbação, diante de alguns ramos espetados na areia. Entre os ramos distinguia‑se uma forma branca.

,Sérgio aproximou‑se, caminhando lentamente, e, uma vez chegado junto dos ramos, perguntou à mulher:

‑ Que é?

‑ Um morto ‑ respondeu ela com ar contristado. Sérgio olhou. Os ramos, já murchos pelo ardor do sol. inclinavam‑se sobre um comprido corpo envolvido num lençol. Acudiram‑lhe à ideia os sarcófagos egípcios, nos museus. O lençol não modelava as formas do morto, mas esboçava‑lhe o perfil, em linhas simples, dos pés à cabeça: adivinhavam‑se os joelhos, os braços cruzados sobre o peito, o queixo revirado para trás. O lençol só não cobria totalmente os cabelos, escuros, brilhantes, jovens, ainda vivos.

‑ Afogou‑se haverá uma hora ‑ disse o homem de uniforme, um sargento dos carabineiros, tirando o boné e enxugando o suor. ‑ Não se sabe quem é... não tinha documentos.

Sérgio, depois de ter lançado um último olhar ao morto, dirigiu‑se para o mar com a mulher.

Viu‑a entrar na água sem profundidade, caminhando devagar, com ar aborrecido, os braços pendentes, o ventre lançado para a frente, ao encontro das pequenas e quentes ondas que pareciam ferver sob o sol ardente. Era o seu primeiro banho, naquele ano; O corpo de Clara estava branco, de uma brancura fria e desagradável, mas, como Sérgio sabia, depressa se tornaria violentamente encarnado, sem jamais escurecer. Não era bem feita; estreita de ancas mas com as pernas grossas, delgada de ombros mas com a cabeça grande, o seu corpo, porém, revelava de tal modo o seu carácter duro, fechado e desconfiado que Sérgio sorriu com afecto e lançou‑se atrás dela para a alcançar. Mas, correndo sobre o fundo arenoso, tropeçou num emaranhamento de algas e caiu sobre ela, arrastando‑a. Clara levantou‑se imediatamente e protestou com rudeza:

‑ Não me agradam as brincadeiras no mar.

‑ Desculpa, tropecei ‑ retorquiu Sérgio.

‑ Peço‑te que não o voltes a fazer ‑ concluiu a mulher. Sérgio, um pouco mortificado, viu‑a afastar‑se. Haviam casado apenas há seis meses e o seu matrimónio não era feliz. Não se entendiam; mas Sérgio atribuía o persistente desentendimento à novidade da vida em comum e esperava em cada dia poder dissipá‑lo.

Tomaram banho em silêncio, circunspectos e mal‑humorados, naquela água quente e baixa que parecia caldo, sob o sol abrasador. No entanto, visto do mar, o litoral era belo: de um lado, deserto a perder de vista, estendendo‑se até à sombra remota de uma antiga fortaleza; do outro, contornava uma costa rochosa, coroada de bosques. O sol ofuscava os horizontes com uma poeira de areia e de calor; os pinhais, sobre as dunas amarelas, desapareciam como que envoltos numa névoa.

‑ É bonito, não é? ‑ perguntou Sérgio de súbito, rompendo o silêncio.

‑ A mim parece‑me horrível ‑ respondeu secamente a mulher.

‑ Mas foste tu que quiseste cá vir.

‑E o que tem? Enganei‑me, pronto... mas isso não significa que o lugar seja realmente bonito.

Sérgio calou‑se, desencorajado. Compreendia que, fosse o que fosse que dissesse, a mulher o contradiria.

Saíram finalmente do mar e caminharam até ao local onde haviam deixado o montão das roupas, a pouquíssima distância do morto. A praia encontrava‑se agora totalmente deserta: não estavam senão eles os dois e o morto debaixo dos ramos. Os pescadores e o sargento dos carabineiros tinham‑se retirado, subindo de novo as dunas.

Direita, em pé, Clara enxugava com ar desdenhoso os braços e as pernas. Sérgio propôs:

‑Não se poderia ir um pouco mais para além?... Há tanto espaço... Estarmos assim ao pé de um morto...

Ela, arremessando ao chão a toalha, respondeu:

‑ Os mortos não me incomodam.

‑ Mas os vivos, sim ‑ arriscou Sérgio.

A mulher retorquiu com aspereza:

‑ Mas porque queres tu discutir sempre? Estamos na praia... temos o prazer do mar... mas não senhor, tens de arranjar questões... Agora queres por força que te diga que me aborreces.

‑ Preferiria que me dissesses o contrário ‑ contrapôs Sérgio, desesperado.

‑ Pois bem, sím, é verdade... aborreces‑me... Quando começas e a contradizer‑me só pelo gosto de me contradizeres, aborreces‑me algo mais do que qualquer morto... Estás contente, agora?

Sérgio, estupefacto por tanta má fé, calou‑se. Clara estendeu‑se de bruços e desapertou as duas peças do bikini, merguLhando o ventre e o peito nus na areia escaldante. Logo que se acomodou, perguntou com voz impaciente:

‑Mas que horas são?

"Porque dirá: mas que horas são`' e não: que horas são?", pensou Sérgio, confusamente surpreendido.

‑ São onze - respondeu.

‑Não é possível - replicou ela, imediata e violentamente.

Sem proferir palavra, Sérgio limitou‑se a pôr‑lhe debaixo do nariz o pulso com o relógio. A mulher, com voz quase dolorosa, disse:

‑ Está bem, está bem.

E Sérgio ficou de novo surpreendido.

O morto, sob os ramos, incomodava Sérgio, que experimentava um surdo desejo de ir aos ramos e tirar o lençol que envolvia o corpo. Sob os ramos, parecia fazer mais calor do que noutro lado; notava‑se uma espécie de fluido subtil no ar, como se fossem as primeiras emanações da decomposição. Sérgio pensou nas moscas verdes e douradas, sob os cadáveres, na guerra; e estremeceu de repugnância. De súbito, disse furiosamente:

‑ Mas, em suma, pode saber‑se porque temos de estar perto deste morto?

A mulher respondeu de dentro da cavidade do braço, onde escondia o rosto:

‑ Tu, se queres, vai‑te embora... eu fico aqui... Não há ninguém a velá‑lo... ao menos estarei eu.

Não havia nada a fazer. O sol batia fortemente e o seu revérbero sobre a praia cegava. Sérgio permaneceu por um instante imóvel, profundamente despeitado; depois, não podendo mais, levantou‑se, correu através da praia e lançou‑se de cabeça na água. O mergulho reanimou‑o, se bem que a água lhe parecesse ainda mais quente do que antes. Erguendo‑se, viu que também a mulher se pusera em pé e girava com ar circunspecto em torno dos ramos do morto. Vista de longe, a figura da mulher agradou-lhe de novo; e, de repente, sorriu‑Lhe a ideia de se mostrar galante com ela. Pensou: "Mas porque será que o nosso casamento vai tão mal... porque será? Agora vou para junto dela e ponho‑me a cortejá‑la como se fosse uma rapariga que tivesse acabado de encontrar... Antes de chegarmos à noite, com toda a certeza, devo‑a ter conquistado." Sorriu, divertido por este seu propósito, e saiu lentamente da água. A mulher, depois de ter vagueado algum tempo em redor do morto, voltara a estender‑se de bruços junto do monte das roupas. Sérgio deitou‑se a seu lado e, passando‑lhe um braço em volta da cintura, sussurrou‑lhe:

‑ Dá‑me um beijo.

A mulher respondeu sem levantar a cabeça:

‑Mas que tens?... És doido?

‑ Diz‑me lá, não posso sequer pedir‑te um beijo?

‑ Não. Agora e aqui, não.

‑ Não somos, porventura, marido e mulher?

‑ Estamos em público... E depois, ao menos, faz isso por respeito ao morto.

‑ Oh, diabo! ‑ disse Sérgio ‑, não te tinha pedido que nos afastássemos?

‑ Eu não saio daqui ‑ respondeu ela com voz amargurada e já sem qualquer ódio. ‑ Vai‑te tu embora... Eu fico.

Sérgio estendeu‑se e, durante uns vinte minutos, ficou ao sol em silêncio. Depois consultou o relógio e viu que era meio‑dia e meia hora.

‑ E se comêssemos qualquer coisa? ‑ propôs com forçada alegria, pegando no saco do almoço.

‑ Ainda não são horas ‑ gritou a mulher de dentro da cavidade do braço, desta vez com voz chorosa. Sérgio, como antes, não disse nada, mas colocou‑lhe o pulso debaixo dos olhos. Ela olhou para o relógio e declarou:

‑ Come tu... eu não tenho fome.

Sérgio abriu um pequeno embrulho, tirou uma sanduíche de salame e começou a comer com apetite. Naquele instante, no cimo da duna, surgiu uma pequena procissão: em primeiro lugar vinha o sargento dos carabineiros; depois, dois homens que pareciam trazer uma padiola; a seguir, algumas mulheres e homens; e, finalmente, um certo número de crianças. A procissão principiou a descer a duna pelo declive arenoso, dirigindo‑se para o morto.

‑ Vêm buscá‑lo ‑ disse Sérgio com a boca cheia de pão e de salame; pôs‑se em pé e encaminhou‑se também na direcção do morto.A mulher apertou apressadamente o bikini,levantou‑se e alcançou‑o com uma corrida.

A pequena procissão,uma vez chegada em frente dos ramos, parou; os que traziam a padiola,que tinha sido improvisada com dois galhos e um pano,pousaram‑na no chão.O sargento, encalmado e aborrecido dava ordens:

‑ Então, força... deitai fora esses ramos...Depois,dois pelas pernas e dois pelos braços,levantai‑o e colocai‑o na padiola...

Vamos,despachai‑vos.

‑ Devemos tirar o lençol?

‑Não,deixai‑o coberto.

Sérgio observava a cena com curiosidade, tendo ainda na

mão aquele pãozinho abocanhado,do qual sentia vagamente

a inconveniência: mas era demasiado tarde para o meter de novo

no saco e demasiado cedo para o engolir de uma só vez.A mulher, que se movia inquieta à volta dos homens da padiola,aproximou‑se sùbitamente de um deles e perguntou com voz áspera:

‑ Mas,afinal,pode saber‑se quem é?

O homem que arrancava com violência os ramos espetados

na areia,respondeu sem se voltar:

‑ Não sabemos,não tinha documentos.

‑ Mas como tinha vindo?

‑ Há uma Vespa... lá em cima,na mata.

‑ Uma vespita ‑ não pôde Sérgio deixar de dizer,irritado

pela atitude da mulher.

‑ Não sejas imbecil ‑ replicou ela em voz alta.

Um dos homens ouviu o insulto e voltou‑se, surpreendido,

a observá‑los.

‑ Então,força ‑ disse o sargento.

Os quatro homens, dois em cada extremidade, levantaram o

branco fardo e depuseram‑no na padiola. Mas com este movimento a cabeça do morto caiu para trás, libertando‑se do lençol,

e Sérgio viu o rosto: moreno, de traços finos, mais ou menos do tipo comum, podia ter a sua idade. A mulher correu para o montão das roupas e lançou‑se de bruços na areia, soluçando.

A procissão pôs‑se em marcha, na direcção da duna, pela

mesma ordem que trazia quando chegou: à frente, o sargento;

depois, os homens da padiola; em seguida, o variegado cortejo

dos pescadores, das mulheres e das crianças. Sérgio, com a sanduíche ainda na mão, aproximou‑se da mulher, que, com o rosto na areia, chorava, e disse:

‑ Por favor, Clara. . . compreendo que te tenha causado

impressão. . . mas, no fim de contas, não era senão um estranho.

Então, da cavidade do braço, chegou‑lhe a voz desesperada da mulher:

‑ Nunca percebes nada. . . nunca perceberás nada. . . Não era um estranho.

‑Eh!. .

‑ Amávamo‑nos. . . Tinha‑lhe marcado um encontro aqui, esta manhã. . . e agora está morto.

 

           DEMASIADAMENTE RICA

 

Quando chegaram à auto‑estrada, a mulher disse‑lhe de modo insinuante e despreocupado, como se estivesse a fazer‑lhe uma proposta perversa:

- Porque não guias tu? Eu estou cansada.

Ao mesmo tempo, o enorme carro americano afrouxou e foi parar na berma da estrada. Lorenzo sobressaltou‑se:

‑ Guiar, eu? Mas não conheço este carro. . .

Ela retorquiu, impaciente:

‑ É muito simples. . . quando quiseres mudar de velocidade, carregas no acelerador. . . O travão é aqui, basta tocar‑lhe e o carro pára.

‑ Vamos lá experimentar ‑ anuiu Lorenzo, olhando‑a.

Ela estava agora sentada de través voltada para ele, com uma perna dobrada sobre o assento. Era magra, elegante, mas com qualquer coisa de burlesco, talvez por causa das calças pretas muito justas. Um lenço multicolor servia de blusa, com um nó sobre o peito liso; o rosto, em cima de um longo pescoço nervoso, era triangular, de feições simples e até rudes, se bem que pálidas, e estava protegida pela sombra de um chapéu de palha seguro na nuca por uma fita. Lorenzo pensou que ela se assemelhava ao carro baixo e comprido, preto por fora e encarnado por dentro; ou melhor, era o seu lógico acessório humano, não destoando das barbatanas niqueladas do porta‑bagagens ou da águia estilizada do capot.

- Então, mudemos de lugar ‑ propôs ela, sorrindo. Sem descer, transpondo as pernas de Lorenzo e dando a sensação de querer sentar‑se por um instante intencionalmente, sobre os seus joelhos, passou para o outro lado. Lorenzo, por sua vez, colocou‑se em frente do volante, engrenou a velocidade e carregou no acelerador. O grande automóvel, com os seus 7 metros de metal rígido pintado de preto, arrancou imediatamente, rápido como um pássaro, com um impulso potente e silencioso. Enquanto o ponteiro do conta‑quilómetros subia de 100 para 120 e depois para 140, a mulher observou:

‑ É muito fácil, é mesmo um pouco monótono, não te parece? Lorenzo respondeu:

‑Sim, é muito fácil.

A mulher acrescentou em tom alegre e pueril:

‑ Se o meu marido soubesse que peguei no seu estimadíssimo carro e que, ainda por cima, o deixei conduzir por ti, estaria arranjada!

‑Porquê, é ciumento?

‑Do seu carro? Muito ciumento.

‑Não, de ti.

‑ De mim? Muito menos.

Lorenzo notava agora que o carro andava mais do que queria. Era muito suave, é certo; mas de uma suavidade cheia de fúria dissimulada, semelhante à de uma fera manhosa com músculos espantosos. Uma leve pressão no acelerador e eis o carro a avançar no asfalto, com impaciente voracidade, como se quisesse sugá‑lo. Lorenzo estava habituado ao seu carro utilitário, duro e ingrato, mas dócil; este, pelo contrário, fugia‑lhe das mãos à mínima provocação. Disse:

‑E, agora, explica‑me por que motivo me acordaste esta manhã e quiseste sair comigo.

Viu‑a encolher os ombros.

‑Foi o tédio. Sentia‑me tão deprimida! Quando acordei, olhei para a piscina através da janela. Foi logo depois do amanhecer. Uma enorme rã de borracha, verde e amarela, flutuava na água. Então, pensei em ti como na única pessoa que desejava ver, e telefonei‑te.

‑Fizeste bem. Mas as coisas, infelizmente, estão como te disse no primeiro dia em que nos encontrámos: entre nós nunca poderá haver nada.

‑ Eu não te peço coisa nenhuma ‑ respondeu ela com voz imperiosa, que parecia querer desmentir aquilo que estava a dizer‑; desejo apenas que sejamos amigos.

‑ A amizade entre nós não é possível ‑ respondeu Lorenzo lentamente ‑, assim como também não é possível a outra coisa.

‑ Mas porquê?

‑Porque é impossível? Poderia responder‑te: porque tens um marido. Mas não seria verdadeiro. A verdade é outra: porque és demasiadamente rica.

Ela retorquiu imediatamente:

‑Que importância tem isso?

‑Muitíssima. O dinheiro tem sempre importância. No teu caso, porque tens muito. No meu, porque tenho muito pouco.

‑ Procura esquecer isso.

‑ Não é possível. És demasiadamente rica. A quanto monta o património do teu marido? Fala‑se de biliões. Os meus honorários, pelo contrário, andam à volta de quantias infinitamente mais modestas. Vês a diferença?

‑Não vejo nada.

Lorenzo prosseguiu:

- Quanto vale este carro`? Sete milhões, dizem; um milhão por cada metro. No dedo tens uma safira: mais milhões. E a tua villa em Cassia? Só a piscina, que te inspirou um tão agudo sentimento de tédio, custou dois milhões, segundo parece. Mas há de mais: tens casa em Paris e em Londres, além da de Roma. As tuas férias chamam‑se Veneza, Cannes, Maiorca. Quanto custa uma vida assim?

‑ Muito ‑ concordou ela, despeitada.

‑ Muitíssimo, de facto. Que deveria eu fazer para estar contigo? Correr atrás de ti? E com que meios`?

‑ Poderia ficar em Roma.

- Deves acompanhar o teu marido. Mas não se trata disso. O dinheiro não está apenas à tua volta, està também dentro de tí.

‑ Dentro de mim não há senão um enormíssimo tédio ‑ exclamou a mulher com sinceridade.

‑ E que julgas que é esse tédio? Dinheiro, nada mais do que dinheiro.

‑ Agora já não te percebo.

O carro parou de novo na margem da estrada, junto de um pequeno pinhal. Sob os pinheiros ‑ de troncos castanhos e delgados, que pareciam flexíveis como juncos, e de copas verdes e que se agitavam no ar azul ‑, o carro ficava bem, assim comprido, cintilante e baixo. E a mulher, bonita, vestida segundo a última moda, condizia com o carro. Lorenzo disse para consigo que a paisagem também se harmonizava, bastante dòcilmente até, com a mulher e o carro, e sentiu quase rancor contra a natureza servil. dei "Uma ilustração a cores de revista americana", pensou. Agora a mulher olhava‑o com ar de súplica.

‑ Não falemos mais de dinheiro, queres`?

‑ Do que falamos então?

‑ De nós os dois.

‑ Já falámos.

‑ Nós os dois ‑ asseverou ela com ênfase ‑ fomos feitos um para o outro. Sabes quando pensei nisto? Ontem à noite, enquanto dançávamos. Disseste‑me muitas coisas que não percebi, mas nem por isso deixaram de me dar prazer. Falaste‑me como nunca ninguém me tinha falado. Obrigada.

Lorenzo corou até às orelhas. Na realidade, na noite anterior, num local nocturno, embriagara‑se um pouco, o que bastava para falar de mais. Respondeu com azedume:

‑ Esquece essas parvoíces.

- Porquê? Não eram parvoíces. ‑ E, dizendo isto, estendeu uma mão a procurar a dele.

Lorenzo disse apressadamente:

- Bem, vamos.

O carro partiu de repente, como que levado por um remoinho de ar. Um momento depois, enquanto a velocidade aumentava, a mulher exclamou:

- Seja como for, agora sou feliz e não me aborreço. Não é já muito?

O carro percorreu fulminantemente uma ligeira subida e ficou diante de uma planície imensa. Ao fundo, para além da orla verde do pinhal, resplandecia o mar. O carro lançou‑se quase com furor pela descida.

Lorenzo viu então, a pequena distância, um camião que vinha em bom andamento, se bem que estivesse carregado de pedra. Atrás do camião vinha um pequeno carro, desconjuntado e coberto de pó, com uma quantidade de mobília atada no tejadilho e cheio de mulheres e crianças. Repentinamente, à entrada de uma casa em construção, o camião afrouxou e quase parou para entrar no pátio. O pequeno automóvel afrouxou também. Lorenzo lembrou‑se da frase da mulher: "Aqui está o travão, basta tocar‑Lhe e o carro pára", e carregou levemente no pedal. Mas o carro não abrandou; pelo contrário, Lorenzo viu com terror que o enorme capot continuava a aproximar‑se em silêncio como um animal que não quer fazer‑se notar pela presa, do minúsculo automóvel e, dentro em pouco, esmagá‑lo‑ia. Impulsionou, então, o pedal até ao fundo, violentamente, e, desta vez, com uma chiadeira ensurdecedora, o carro estacou. O capot, agora, estava talvez a meio metro do pequeno automóvel. Lorenzo, com o rosto pálido, deixou‑se cair para trás, sobre as costas do assento. A mulher, que parecia não ter dado por nada, perguntou:

‑ Mas que tens?

‑ Tenho que o travão não funciona e pouco faltou para eu matar aquela família.

O camião, entretanto, tinha entrado no pátio e o pequeno automóvel recomeçou a sua marcha; Lorenzo, por sua vez, carregou no acelerador. Mas, em seguida, tocando no travão, sentiu‑o solto e sem resistência. Ao mesmo tempo, notou um cheiro a queimado que parecia vir de trás. Premiu de novo o travão, mas este não Funcionava. O carro foi parar, por força da inércia, um pouco mais além. Lorenzo saltou logo para o chão.

Um denso fumo azul saía de uma das rodas traseiras. Lorenzo tocou na roda: queimava. Quando ergueu os olhos, viu o rosto da mulher estendido junto ao seu, com uma expressão que o alarmou:

‑ Que se passa? ‑ Ela teve um feio trejeito de contrariedade e de receio: ‑ Mas que fizeste? A roda, agora, está a escaldar. e, Poderia começar a arder.

‑ Tive de carregar com força no travão, senão...

‑ Agora vai começar a arder. E que dirá meu marido? Mas que fizeste? Que fizeste?

‑ Travei para não bater no carro que ia à minha frente, foi

o que fiz.

‑ Era quase melhor que tivesses batido. Que fizeste? Agora começa a arder. Que fizeste?

Sem se preocupar mais com ele, agitada e apavorada, a mulher correu de súbito para o meio da estrada e começou a agitar os

braços a todos os veículos que passavam. De pé, sobre o longo

asfalto iluminado pelo sol, nas suas calças pretas e justas, parecia mais do que nunca um gracioso, um desnorteado fantoche. Lorenzo baixou os olhos para a roda: o fumo continuava a sair, denso e azul; e ele experimentou uma intensa aversão pelo grande carro traiçoeiro. "E se realmente se incendiasse?", pensou. Observou de novo a mulher, que gesticulava no meio da estrada, e, sùbitamente, compreendeu que, por qualquer motivo que no momento não sabia explicar, o incidente encerrava as relações deles. Este pensamento tranquilizou‑o; vagarosamente, foi sentar‑se num marco da estrada, a alguma distância do carro.

A mulher continuava a agitar os braços no meio da estrada; os automóveis abrandavam de velocidade e os condutores olhavam para o fumo que continuava a sair da roda; depois, retomavam a marcha. Lorenzo tirou um cigarro do bolso, acendeu‑o e,

cabisbaixo, começou a fumar. A mulher voltou‑se e, vendo‑o a

fumar, gritou, com voz já de todo irritada:

‑ Faz qualquer coisa. . . dir‑se‑ia que estás contente.

Ouviu‑se uma chiadeira de travões, aguda. Lorenzo ergueu

os olhos e viu parar um pequeno carro descapotável, vermelho

flamante, cujo condutor, um jovem calvo, de rosto pálido quase

escondido atrás de um enorme par de óculos verdes, começou

a falar, sorrindo, à mulher. Lorenzo não ouvia aquilo que o jovem dizia, mas, pela expressão, concluiu que ele e a mulher se conheciam.

O carro encarnado deslizou até à berma da estrada, parou

e o jovem desceu. Tudo, depois, se desenrolou como se Lorenzo

ali não estivesse. O jovem foi junto do carro e examinou a roda;

em seguida abriu o porta‑bagagens, tirou o macaco e aplicou‑o

ao carro. A mulher, entretanto, seguia‑o ansiosa, mas já aliviada e cheia de gratidão. O jovem tirou a roda e fê‑la rolar para a valeta. O fumo continuava a sair, não menos denso. Lorenzo viu o jovem reflectir por um momento em presença daquele fumo obstinado e, depois, ouviu‑o dizer com voz bem modulada:

‑ Sabes o que fazemos? Agora levo‑te no meu carro e vamos a Roma avisar a garagem.

Ela, impaciente, respondeu:

‑ Eu volto para casa. O motorista tratará de prevenir a garagem e do resto. Leva‑me a casa.

‑ Como queiras, nesse caso levo‑te a casa.

Lorenzo, levantando‑se do marco, aproximou‑se. A mulher fez as apresentações sem o olhar, com voz pressurosa e esquiva. O jovem apertou a mão a Lorenzo e disse:

‑Infelizmente, não tenho senão um lugar no meu carro.

‑ Não tem importância.

Viu‑os subir para o automóvel encarnado, que deu uma meia volta na estrada e, em seguida, partiu a roncar. Então, abeirou‑se do carro e, depois de ter examinado por um momento o fumo que ainda saía, olhou em volta. Agora o quadro tinha mudado, pensou. Privado de uma roda, suspenso e enviesado sobre o macaco, o grande carro de luxo pareciajá um destroço. E não havia pinheiros a emoldurar a violência das formas e a fulguração dos vernizes; apenas a estrada asfaltada ladeada por uma vedação de rede com puas. Para além da vedação, no meio de prados ressequidos e amarelados, viam‑se as ruínas de uma velha casa agrícola. Lorenzo deitou fora o cigarro e encaminhou‑se lentamente na direcção do mar.

 

                 A FUGA

 

Quando chegaram ao sopé da ilha, o motor do barco começou a tossir e, em seguida, calou‑se; o marido pôs‑se em pé para o ligar de novo. A mulher olhava para a confusa massa de edificações amontoadas em vértice na parte mais alta da ilha e, por fim, perguntou:

‑ A que se destina aquele castelo`?

O marido, atarefado em volta do motor, respondeu sem erguer os olhos:

‑ Não é um castelo, é uma prisão.

Ela notou então que, em cima dos vertiginosos contrafortes, se erguia uma parede cinzenta com três filas de janelas que pareciam tapadas:

‑ Porque é que as janelas estão tapadas?

‑ São janelas à boca de lobo.

‑ E o que quer isso dizer?

‑ Quer dizer ‑ respondeu o marido com um leve aceno de impaciência ‑ que quem está dentro das celas não vê senão um pouco de céu, lá muito em cima.

‑ E porquê ?

O marido introduziu o cordel no motor e deu um Forte puxão; mas o motor, depois de ter dado poucas rotações, calou‑se de novo:

‑ Porquê? Para impedir que os presos façam sinais, penso eu. A mulher indagou ainda:

‑ E quem está na prisão?

Esta pergunta pareceu particularmente irritante ao marido, talvez por ser óbvia a sua resposta. Ergueu‑se um pouco, com o cordel na mão, e disse:

‑ Estão pessoas de bem, em férias. . . gente original que prefere a prisão a um bom hotel.

Ela retorquiu:

‑ Estás a zombar de mim.

‑Mas, Laura, quem queres tu que lá esteja? Assassinos` ladrões, criminosos da pior espécie.

A mulher voltou‑se para a ilha, sentando‑se no banco, ofendida, com as pernas entre os braços.

Voltara‑lhe à ideia um encontro do ano anterior: tendo ido à ilha com o marido num pequeno vapor de carreira, vira sair de uma cabina e descer para terra, com os outros passageiros, um jovem de rosto belo mas arrogante, muito pálido, com caracóis pretos em redor da fronte e das têmporas. Estava entre dois guardas e tinha as mãos algemadas. Nessa altura não perguntara quem era aquele jovem, ainda que o adivinhasse; tivera a impressão de que havia um tácito acordo entre ela, o marido e os outros passageiros para não se ocuparem dele e fingirem até que o ignoravam. No entanto, ficara‑lhe na memória, talvez devido ao contraste entre a sua beleza e as algemas de que ia carregado. Agora, pensando nisso novamente, arrependia‑se de não se ter informado: talvez aquele jovem tivesse sido condenado a prisão perpétua; mas ela estava segura de que não podia ter sido por um crime odioso, daqueles que induzem ao desprezo; certamente fora condenado por um delito passional, devido, como é hábito dizer‑se, à fatalidade. Disse subitamente:

‑ Quando tens um motor à tua frente, seja o do automóvel ou o deste barco, tornas‑te intratável.

O marido não respondeu; mas, introduzindo de novo o cordel no motor, deu um puxão mais violento. O motor recomeçou a pulsar e o barco pôs‑se novamente a deslizar sobre o mar calmo, deixando uma esteira ténue que parecia uma renda branca e desvanecente sobre a seda irisada do mar.

Agora, ultrapassada a fortaleza, o barco navegava em frente do porto da ilha. O Sol, daquele lado, não tinha ainda despontado, e as casas vermelhas, amarelas e brancas, alinhadas sobre o cais, estavam ainda mergulhadas na sombra profunda das primeiras horas da manhã, parecendo desabitadas. O barco deixou para trás o porto e contornou o promontório. Não se viam já nem a fortaleza nem o porto; apenas uma costa alvacenta, oblíqua, coroada de vinhas vicejantes, que se ia tornando cada vez mais alta. O barco percorreu uma boa distância ao longo da costa; depois, o motor começou novamente a falhar e çarou. A mulher observava a margem, voltando as costas ao marido, despeitada; e não fez caso da abafada imprecação que ele proferiu quando se levantou para pôr o motor outra vez a trabalhar. Enquanto o marido fazia várias tentativas, ela voltava‑lhe obstinadamente as costas; por fim, o barco partiu de novo em direcção de uma pequena praia apertada entre dois altos rochedos, mas, a pouca distância da margem, parou mais uma vez. A mulher ouviu o marido dizer com voz irada: "Não sei o que seja... deve ser uma avaria... preciso de um mecânico", e respondeu sem se voltar:

‑ Regressemos ao porto... aí encontrá‑lo‑emos.

‑ E depois, se o barco fica no meio do mar?...

- Não, é necessário descer aqui e ir ao povoado ‑ objectou o marido.

Ela não disse nada, habituada como estava a deixar que o marido resolvesse estas coisas; e, além disso, no fundo, não lhe interessava nada que o motor funcionasse ou não. Esta indiferença, que o seu dorso curvado e nu parecia proclamar, exasperou o marido:

‑ Isto não te interessa nada, eh!... Como sou eu que tenho de palmilhar o caminho até ao povoado...

A mulher encolheu os ombros, quase imperceptivelmente, supondo que o marido não o notasse. Mas o marido viu e disse, no auge da irritação:

‑ E não encolhas os ombros!

‑ Não encolhi os ombros.

‑ Sim, encolheste. Há já algum tempo que as tuas maneiras não me agradam.

‑Deixa‑me em paz, imbecil.

Reparou que, inexplicàvelmente, tinha os olhos rasos de lágrimas; e voltou‑se ainda mais para o lado da terra, como se quisesse ver alguma coisa. Viu, de facto, um homem em calças azuis e camisa branca a descer ràpidamente do alto da costa por uma vereda, na direcção da praia. Foi, porém, uma aparição brevíssima; uma vez chegado à praia, o homem desapareceu, como por encanto. A mulher perguntou a si mesma se devia falar ao marido na estranha visão e decidiu que não; mas ao mesmo tempo notou que, sem saber porquê, experimentava um sentimento de culpa.

Entretanto, o marido tinha lançado a âncora; percebeu isso pela manobra e pelo baque na água. Logo em seguida, ele propôs:

‑Então, vamos descer?

Mecânicamente, ela atirou as pernas para fora do barco e deixou‑se escorregar na água até aos joelhos, antes de tocar no fundo arenoso com os pés. Quando pisou o chão saibroso, negro e húmido da margem, viu à sua direita, na parede rochosa, uma gruta escura que parecia profunda; e, de súbito, ficou com a certeza de que o homem entrevisto na vereda estava lá dentro. Mas não disse nada, e experimentou de novo um leve remorso. O marido, entretanto, tinha‑a alcançado e, segurando‑lhe o braço, murmurou:

‑ Desculpa‑me.

‑ Desculpa‑me tu ‑ respondeu ela com uma viva sensação de hipocrisia, voltando‑se e pespegando‑Lhe um beijo na cara. E, ao mesmo tempo, pensava: "Oxalá se fosse embora... me deixasse só. " O marido, de todo tranquilizado, perguntou:

‑ Aborrece‑te esperar‑me?... Vou e volto... Será precisa uma horita.

A mulher respondeu:

‑ Ora essa... isto aqui é tão bonito!...

O marido afastou‑se, subindo o atalho na direcção da costa. Ela, então, foi sentar‑se na margem, a alguma distância da água, de forma a poder vigiar a gruta sem dar nas vistas.

Durante algum tempo ficou imóvel, sentada no chão pedregoso, olhando o mar; em seguida, quase imperceptivelmente, voltou a cabeça para a parte da gruta e surpreendeu‑se que o marido não o tivesse notado: como tinha adivinhado, o homem estava lá, sentado no chão, com as pernas dobradas numas calças azuis e as mãos juntas em torno dos joelhos. O peito e a cabeça não se viam, não só pela sombra espessa, mas também por causa de uma rocha saliente que havia à entrada.

A mulher observou as mãos cruzadas sobre os joelhos e ficou subitamente convencida de que devia ser o jovem algemado em que reparara um ano antes; aquelas eram as suas mãos, reconhecia‑as, as mãos que então vira carregadas de algemas. Perguntou a si mesma se devia falar‑lhe e, com uma segurança que a surpreendeu, decidiu não o fazer. Alguma coisa, pensou, havia começado entre eles a partir do momento em que o tinha visto descer o atalho e não prevenira o marido: alguma coisa que acontecera em silêncio, que continuaria em silêncio e que se concluiria em silêncio. Entretanto, os minutos passavam e o homem não se mexia; a sombra impenetrável que envolvia o rosto dele parecia‑lhe a sombra, misteriosa e quase sagrada, da desventura que os separava e os impedia de se comunicarem. Verificou então que a imobilidade do homem a perturbava, como se houvesse entre eles uma espécie de desafio para ver quem seria o primeiro a mover‑se e a deixar transparecer os seus sentimentos. De súbito, quase contra sua vontade, fez um gesto que lhe pareceu dar um nome à perturbação; sabendo que tinha orelhas bonitas, redondas e pequenas, levantou uma mão e atirou para trás os cabelos, de modo que o homem pudesse vê‑las. Mas o homem não se moveu; e ela experimentou uma sensação de irrealidade e de loucura ao pensar que tinha descido ao ponto de fazer a corte a um criminoso.

Profundamente perturbada, mais já pelos seus sentimentos do que pela presença do homem, voltou a olhar para o mar. Agora estava friamente decidida a atraí‑lo a todo o custo para fora da gruta, mesmo que ele de lá saísse para a agredir ou a matar. Recordou‑se de que no seu saco havia alguns objectos de valor; lentamente, tirou‑os para fora: a cigarreira de ouro com um rubi no fecho e o isqueiro, igualmente de ouro, com que acendeu o cigarro.

E Finalmente, como se estivesse impaciente, revistou a mala e, encontrando o relógio, viu as horas. Este também era de ouro, e ela colocou‑o no chão junto à cigarreira e ao isqueiro.

Aparecia formando um pequenino monte de ouro que, pensou, devia ser tentador para ele. Mas recordando‑se de ter imaginado que o pequeno homem talvez tivesse sido condenado por um crime passional, mordeu os lábios; ele não se deixaria tentar pelo ouro, seria necessária outra coisa qualquer.

O coração batia‑lhe apressadamente, a respiração faltava-lhe, sentia um rubor profundo subir‑Lhe pouco a pouco às faces e levou uma mão ao ombro, segurou entre dois dedos a alça do fato de banho e deseeu‑a lentamente até descobrir um seio quase todo nu. Depois lançou um olhar desesperado na direcção da gruta: o homem continuava lá, silencioso, imóvel. com o rosto invisível. Ela, então baixou os olhos para o inútil montículo de ouro colocado no chão e, em seguida, dirigiu‑os para o mar. O seu olhar, a princípio, errou pelo horizonte; depois, aproximando‑o de novo, viu o barco ancorado na água escura e parada, a pouca distância da margem, e compreendeu finalmente o que o homem estava a espiar, com ansiedade, da sombra densa da gruta. Indolentemente, vagarosamente, pôs‑se em pé e espreguiçou‑se um pouco, juntando as duas mãos sob a nuca e atirando a cabeça para trás. Depois avançou para a água, dizendo mentalmente "Adeus. " Não foi para o barco; pelo contrário, caminhando sobre o fundo arenoso, enquanto a água lhe subia pouco a pouco pelo corpo com uma sensação desagradável, dirigiu‑se para a extremidade da pequena enseada, donde, contornando a rocha, se podia passar para a enseada contígua. Quando a água lhe chegou à garganta, lançou‑se a nado, afastando‑se cada vez mais do barco. Ladeou a roela, pôs os pés no fundo do mar, e, por fim, voltou‑se. Estivera sem olhar não mais de cinco minutos; mas o homem encontrava‑se já no barco; curvado, voltando‑lhe as costas, atarefava‑se em redor do motor. Devia ser entendido em barcos daqueles; quase imediatamente, o motor começou a trabalhar e o barco partiu, descrevendo um semicírculo; mas, por um acaso que Lhe pareceu fatal, tudo aconteceu sem que Lhe pudesse ver a cara. Ela permaneceu onde estava, com a água até ao queixo, muda. sentindo que este silêncio era o último acto de cumplicidade entre eles. Um pensamento a atormentava agora: "Se o motor se avaria novamente, pensará que o quis fazer cair numa armadilha. " Por fim saiu vagarosamente do mar e avançou para o ponto da praia onde tinha deixado o saco.

O Sol tinha despontado atrás da costa e fazia brilhar a terra húmida, o montículo de ouro em que o homem não havia tocado e a superfície azul do mar. A mulher sentou‑se junto do saco e seguiu com os olhos o barco, que parecia apontar directamente para o alto mar. à direita da praia, da parte do promontório, apareceu então uma lancha com três homens a bordo. O barco afastava‑se cada vez mais, mudando de forma, tornando‑se mais pequeno à medida que se afastava; mas ela distinguia claramente o homem sentado na popa, com a mão no leme. Depois, subitamente, onde o mar liso e quase diáfano se tornava encrespado, de um azul violáceo, o barco parou. O homem levantou‑se e agora inclinava‑se de novo sobre o motor. Entretanto, a lancha avançava resolutamente em direcção ao barco. A mulher compreendeu o que ia acontecer e observou com resignação. O homem esteve algum tempo em pé, ocupado com o motor, enquanto a distância entre a lancha e o barco diminuía a olhos vistos; depois, dando a impressão de que ia renunciar, sentou‑se de novo à popa e ficou quieto. A lancha agora estava próxima do barco, tocava‑o. A mulher olhou mais uma vez: entre o criminoso e os três homens da lancha, no meio do mar deserto e resplandecente de luz, parecia haver uma conversa ociosa e tranquila, como entre turistas que se encontram e se conhecem. O sol, a distância, a vastidão do mar e do céu tornavam, no entanto, pensou ela, insignificante, incompreensível e longínquo este encontro. Depois, o homem levantou‑se; viu‑o passar do barco para a lancha. Então baixou os olhos e consultou o relógio: tinha passado quase uma hora; o marido depressa estaria de volta.

 

           PEQUENA E CIUMENTA

 

O pinhal estava deserto, envolto numa atmosfera azulada e nebulosa, na qual os raios vermelhos do Sol, já baixo, pareciam ficar emaranhados e como que incapazes de penetrar até ao interior do bosque; na alameda não estavam senão três automóveis desocupados, parados junto de densas moitas de silvas e de arbustos. Sílvio encostou o carro ao passeio e disse:

‑ Três carros vazios e ninguém em volta... Neste momento estão neste bosque, pelo menos, três pares que dizem entre si as mesmas coisas e se amam mais ou menos da mesma forma. Nós seremos o quarto.

Gostaria que a mulher compreendesse, pelo tom irónico, que ele pensava exactamente o contrário; mas ela sorriu‑Lhe, confiante. Com ela, pensou, tinha de se falar claro e brutalmente: não era inteligente e este era ainda o seu menor defeito. Mas como dizer‑lhe: "A partir de hoje não nos veremos mais"? Sílvio abriu a porta e observou‑a ao descer: baixa mas esbelta, com a saia justa e curta e um enorme casaco de couro; a cabeça grande, avolumada por uma cabeleira preta; o rosto pálido, oliváceo, passional. Recordou a definição sumária que dela lhe tinha dado um seu amigo, quando a viu pela primeira vez: "Pequena e ciumenta"; e suspirou, pensando como era verdade. Mas apercebeu‑se também de que podia já olhá‑la fria e objectivamente, com o olhar liberto de paixão. Recordou que, dantes, quando ainda a amava, a contemplava sem realmente a ver; agora via‑a, como se vê um objecto qualquer, sem a contemplar. Sentiu‑se reanimado por esta reflexão que tornava mais firme a sua vontade de se separar dela. E seguiu‑a por um atalho, entre os pinheiros.

A mulher precedia‑o com passo resoluto, quase correndo para o lugar do bosque, ainda desconhecido de ambos, onde se estenderiam na erva e formariam, como ele tinha previsto, o quarto par a fazer a mesma coisa naquele mesmo momento. Esta determinação, pensou, tempos atrás também o perturbava, como uma característica insólita numa mulher; agora pelo contrário, parecia‑lhe mais um indício da estupidez dela. Caminharam sem falar através do atalho que serpenteava entre a mata cerrada e, por fim, desembocaram numa larga clareira iluminada de sol, toda coberta de papéis inúteis, enegrecidos e amarfanhados.

‑ Os papéis deste Verão ‑ observou ele com perplexidade ‑, não quererás certamente sentar‑te aqui, nesta imundície.

A mulher encolheu os ombros:

‑ Cá para mim é indiferente.

Sílvio respondeu decididamente:

‑Para mim, não.

Entretanto, ocorrera‑lhe uma ideia que Lhe agradava, talvez por ser cruel; antigamente, por norma a procura do lugar conveniente, naquele mesmo pinhal, era longa e meticulosa: tinha de ser um lugar quase plano, fresco no Verão e soalheiro nas outras estações, fechado pela mata aos olhares indiscretos, que não fosse húmido nem demasiado seco e poeirento. Era uma procura agradável, pela premeditação e o tácito acordo que nela punham. Agora, pensou, faria o contrário: recusaria um após outro todos os lugares que a mulher lhe propusesse até que ela se apercebesse de que não desejava lugar nenhum e de que entre eles não havia já qualquer entendimento. Um pouco como o carvalho no qual devia ser enforcado Bertoldo, pensou; o carvalho nunca foi encontrado, exactamente porque era Bertoldo que deveria escolhê‑lo. Satisfeito por esta descoberta, seguiu a mulher, assobiando.

‑ Estás alegre ‑ disse ela, voltando‑se um pouco, com um indício quase de inquietação na voz, como se estivesse com ciúmes da sua alegria.

Sílvio respondeu:

‑Sim, é um belo dia, hoje.

‑Também para mim.

‑ Porquê?

‑Ora, sabe‑lo, porque estamos juntos. E tu, porquê?

‑ Adivinha.

‑Como posso sabê‑lo?

‑ Adivinha.

Agora estavam de novo numa clareira: abrigada, sem papéis, exposta ao sol. Sílvio contudo, notou que era um pouco a descer e tinha pedras espalhadas.

‑ Fiquemos aqui ‑ propôs a mulher.

‑ Aqui? Mas não vês que é a descer? Logo que nos sentemos, começaremos a escorregar.

‑ Está bem, procuremos outro lugar.

A mulher recomeçou a caminhar à frente e disse:

‑ Vejamos, entretanto, se adivinho o motivo por que, para ti, hoje é um belo dia. Diz‑me "quente" ou "frio". ‑ Era, este, um jogo que Faziam muitas vezes. Baixou‑se, colheu uma erva, meteu‑a na boca e acrescentou: ‑ Portanto, para ti, hoje é um belo dia. Motivo?

‑ É boa! Deves tu adivinhar.

‑ Mas dá‑me, ao menos, qualquer indicação.

Sílvio hesitou:

‑ Admitamos que seja porque estou para me libertar de qualquer coisa.

‑Libertares‑te de qualquer coisa? Da tua constipação de ontem?

‑ Frio, frio.

‑ Porque não ficamos aqui? ‑ perguntou a mulher, indicando o chão. Era uma clareira, quase plana e bem abrigada de todos os lados pela mata. Sílvio sacudiu imediatamente a cabeça:

‑ Não vês que é muito poeirenta? Depois, quando nos levantarmos estamos cobertos de pó da cabeça aos pés.

‑ Ufa! Quanto estás difícil, hoje! ‑ retorquiu a mulher com afectação. ‑Bem, vamos mais para diante.

Foram para diante. Agora o pinhal era tão cerrado que não havia já atalhos. à sua passagem, a abundante ramagem do bosque abria‑se com um rumor selvagem; os espinhos prendiam‑se às suas roupas; os ramos deixavam agarradas a eles as folhas amarelas do Outono.

‑ Portanto, tu estás para te libertar de qualquer coisa - recomeçou a mulher. ‑ Vejamos então: de um objecto ou de uma pessoa?

‑ Experimenta dizê‑lo.

‑ De um objecto.

- Frio, frio.

‑ De uma pessoa.

‑ Quente.

‑ De uma pessoa? ‑ Tinham chegado a um ponto para além do qual não parecia que se pudesse avançar. O emaranhamento das silvas e dos arbustos era tão cerrado que o próprio sol parecia chegar lá em farrapos incertos, misteriosos, como se os seus raios tivessem sido rasgados e quebrados à passagem. Mas um grande arbusto, de forma arredondada, abria‑se em baixo revelando uma cavidade ampla, quase uma gruta dentro da folhagem. - Vamos lá para dentro, parece uma sala pequena.

- Lá para dentro? ‑ Sílvio franziu os lábios. ‑ Tínhamos de ir de rastos, sujarmo‑nos.

‑ Nada disso, olha. ‑ Com ímpeto, a mulher lançou‑se de gatas, indiferente aos olhares dele, e, caminhando com as mãos e os joelhos, como um animal, penetrou na cavidade; depois voltou‑se para trás e, rindo, gritou‑lhe: ‑ Vem já... é bonito, aqui dentro.

‑ Não, não ‑ redarguiu Sílvio com acento peremptório - não vou... e tu, faz‑me o favor de sair imediatamente.

A sua voz deve ter soado desagradàvelmente à mulher, porque o riso morreu‑lhe nos lábios; sem dizer palavra, arrastou‑se para fora da cavidade, pondo‑se em pé:

‑ Mas que tens hoje?

‑ Nada, procuremos outro lugar.

Ela pareceu suspirar; mas recompôs‑se imediatamente e, precedendo‑o, disse:

‑Portanto, tu queres libertar‑te de uma pessoa. No teu lugar, sei eu de quem quereria libertar‑me.

‑ De quem?

‑ Da tua criada... Não a posso suportar... olha‑me sempre de soslaio, quando te vou procurar... Só por causa desta criada, gostaria que nos tornássemos noivos... Assim, não teria já nada de que rir. É da criada?

I riu

‑ Então é Gildo.

Gildo era o melhor amigo de Sílvio. A mulher tinha ciúmes dele como de todas as pessoas que encontrara na vida de Sílvio, desde que se haviam conhecido. Sílvio retorquiu com voz perversa:

‑ Frio outra vez... não esperes isso.

‑ Eu não espero nada ‑ disse ela ‑; para mim não é um bom amigo... eis tudo.

‑ Frio, frio, um rio, um mar de gelo.

‑ Está bem ‑ disse ela agastada ‑; não será por acaso a tua mãe?

Também a mãe era uma das pessoas de quem a mulher era ciumenta não só porque não via de bom grado as relações deles, mas também pela única razão de Sílvio lhe ser afeiçoado. Ele respondeu:

‑Frio, naturalmente. Não te parece que estás a exagerar?

‑ Porquê? Tua mãe não me pode suportar a mim e eu não a posso suportar a ela.

‑ Sim, mas de qualquer maneira: frio.

‑ Tens a certeza disso?

Sílvio observou‑a e, de repente, quase teve compaixão dela. Daqueles que o rodeavam, nenhum tinha simpatia por ela; e, agora, também ele lhe voltava as costas. Sobressaltou‑se, ouvindo‑a anunciar, triunfante:

‑ Este é o lugar ideal.

Era efectivamente uma clareira à qual nada se podia objectar: plana, iluminada pelo sol, coberta de caruma, cercada de vegetação.

‑ Eu já não saio daqui - disse a mulher com uma voz simultaneamente agressiva e triste. Sílvio notou este acento insólito e não ousou protestar. O seu olhar errou pela clareira, depois elevou‑se para os arbustos que a circundavam:

- Mas estamos ao lado da alameda! ‑ exclamou. Aproximou‑se dos arbustos: a alameda corria, de facto, mesmo a um passo dali, deserta, a perder de vista e já invadida pela sombra azulada do pôr do Sol. A mulher respondeu com aquela sua estranha voz, melancólica e agreste:

‑ Não me interessa nada disso... Eu fico aqui.

E, dizendo isto, estendeu‑se como pôde, ficando por um momento com as pernas no ar; depois, a custo, foi retomando o equilíbrio. Sílvio compreendeu que não podia já recusar‑se e sentou‑se também, dizendo:

‑ Mas olha que este lugar não me agrada... estamos muito perto da estrada.

A mulher não respondeu. Segurou‑lhe na mão e, fitando‑o nos olhos, perguntou com voz clara:

‑ Sou eu, não é verdade, a pessoa de quem te queres libertar? Sílvio reconheceu que devia responder, mas, não tendo coragem, procurou ganhar tempo. Perguntou, por sua vez:

- Que é que to faz pensar?

‑ Há pouco, no carro, disse: "Que lindo dia! Gostaria de morrer num dia como este. " E tu murmuraste por entre dentes: "Oxalá. " Naturalmente, julgaste que não percebi; mas tenho o ouvido muito sensível. ‑ Sílvio ficou tão desconcertado que não encontrou nada para responder. A mulher prosseguiu com firmeza: ‑ Tu até desejas a minha morte. É triste, isto. Não achas que, neste caso, seria melhor deixarmo‑nos?

Sílvio ergueu os olhos para ela, quase esperando encontrar um pretexto para a resposta que devia dar. Supunha ir ver um rosto desolado, patético, insuportável; ficou, porém, surpreendido ao descobrir que a mulher se mostrava calma e resignada. Ela amava‑o deveras, pensou; de tal modo que estava mesmo disposta a perdê‑lo. Em seguida, notou um pormenor: da mesma forma que o pinhal se animava sob os raios do Sol, assim também, à medida que o olhar dele se deslocava de baixo para cima, o rosto dela adquiria vida. A boca sorria levemente, com o seu melhor e mais sedutor sorriso, um sorriso que ele amava, talvez por ser ambíguo e um pouco cruel; as faces, quase sempre pálidas, pareciam ligeiramente coradas; os olhos, que eram grandes e escuros, davam a impressão de se tornarem mais claros e luminosos. Improvisadamente, veio‑lhe à ideia que, ainda mais do que amar, era importante, ao menos para ele, ser amado. E que a sua decisão não era senão, talvez, um capricho do orgulho, após o que ficaria só com a sua mãe, os seus amigos, a sua criada e todas as pessoas, em suma, que odiavam a mulher, mas que não podiam substituí‑la. Por fim, disse lentamente:

‑ Estás a dizer coisas absurdas... eu não quero deixar‑te.

‑ De verdade?

‑ De verdade.

 

               O FEITIÇO

 

Logo após o casamento, foram viver para os Parioli, para um andar que o sogro de Lívio tinha dado em dote à filha. O andar estava quase vazio, tendo apenas os móveis indispensáveis; mas a mulher disse que não havia pressa: queria decorá‑lo à sua maneira. Assim, pouco a pouco, começou a adquirir, aqui e além, móveis, utensílios, bugigangas e pinturas, segundo um gosto muito moderno que a Lívio, convencido de que ela seguia a moda e não uma preferência ponderada, parecia simultâneamente presunção e snobismo. O feitiço foi descoberto pela mulher na loja de um antiquário um pouco invulgar: um velho americano que tinha montado um negócio para liquidar os objectos por ele acumulados, na sua villa, durante vinte anos de viagens através do mundo. O feitiço era um cilindro de pedra cinzenta da espécie mais comum, alto como um homem, mas muito mais largo, terminando com uma cabeça em forma de cone, de traços fortemente estilizados: não tinha assinalados senão as arcadas supraciliares, o septo nasal e o queixo. Dos dois lados do cilindro, no sítio onde deveriam estar ligados os braços, tinham sido esculpidas duas brochas redondas, semelhantes a dois botões. A escultura, tosca e irregular, ainda que maliciosamente expressiva, tornou‑se logo sobremaneira antipática a Lívio. Não o confessava, mas a razão por que lhe era antipática era exactamente a vaidade da mulher pelo feitiço; uma vaidade entre as muitas que ele reprovava porque não compreendia.

Lívio começou a chamar à escultura "o marciano". Com efeito, assemelhava‑se um pouco aos ridículos bonecos com que os caricaturistas dos jornais humorísticos representam normalmente aquelas imaginárias criaturas celestes: "Esta manhã não te dou o beijo dos bons‑dias: o marciano está a olhar para nós"; "O marciano parece estar hoje de pior humor do que o costume: repara como está carrancudo"; "Esta noite fui à casa de banho, e quem vejo? O marciano a lavar os dentes"; "D. Juan tinha a estátua do Comendador, eu tenho o marciano. Uma ideia: porque não o convidamos para jantar?"

Esta última frase, ao contrário do habitual, obteve uma resposta. Estavam a comer na sala, exactamente em frente do feitiço, que, do seu canto pouco iluminado, parecia olhá‑los fixamente. A mulher disse:

‑ Não falta nada para te tomar a sério; deixo‑te aqui e acabas de comer com ele.

Tinha falado com calma, destacando as sílabas, cabisbaixa; mas com uma hostilidade tão nítida que Lívio experimentou quase uma sensação de medo. Todavia, transportado pelo gracejo, insistiu:

‑ É necessário, antes de tudo, ver se ele aceita vir jantar.

‑ Ou, melhor ‑ recomeçou a mulher, como se não o tivesse ouvido ‑ deixo‑te já. Bom apetite. ‑ Pousou o guardanapo na mesa, levantou‑se e saiu da sala.

Lívio ficou sentado e, durante breves momentos, tentou imaginar como faria o feitiço para deixar o seu canto e, rolando sobre a base circular, aproximar‑se da mesa, sentar‑se e comer. Tinha assistido poucos dias antes a uma representação do Don Juur7, na Ópera; e a coincidência divertia‑o. Mas que voz teria o feitiço? Em que língua falaria? Para que inferno dos Papuas ou Polinésios o arrastaria após o convite?

Estas divagações, todavia, não bastavam para o distrair do gesto da mulher. Esperava que fosse um amuo momentâneo, contava vê‑la reaparecer no limiar da porta; mas nada aconteceu. Agora, depois de o ter divertido, a ideia do feitiço que vinha jantar com ele incomodava‑o. E o próprio feitiço, que o observava do seu canto, na sombra, enchia‑o de embaraço. Por fim, chamou com voz forte: "Alina", mas ninguém lhe respondeu; a casa parecia deserta. A criada entrara com a bandeja da comida. Lívio disse‑lhe que a pousasse na mesa; depois levantou‑se e saiu.

O quarto ficava ao fundo do corredor; a porta estava semicerrada; Lívio empurrou‑a e entrou. Esta divisão também não continha móveis, a não ser a cama e duas cadeiras. Sobre a cama estava uma mala, aberta. A mulher, em pé diante do guarda‑roupa de parede, escancarado, retirava um vestido do cabide.

Lívio ficou por um momento perplexo, sem saber o que dizer Depois pensou que a mulher se preparava para o deixar, dois meses após o casamento; e sentiu um grande calafrio na espinha. Disse:

- Mas, Alina, pode saber‑se o que estás a fazer? ‑ Ao som da voz dele, a mulher largou imediatamente o cabide e sentou‑se na cama. Lívio sentou‑se também, passou‑lhe um braço pela cintura e murmurou: ‑ Mas, Alina, porquê? Que tens?

Esperava uma resposta conciliante, mas, olhando‑a, compreendeu que se enganava. O rosto da mulher, redondo, maciço, de uma palidez lívida na qual se destacavam os olhos cerúleos, parecia obscurecido por uma tenaz irritação. Disse:

‑ Tenho que tu brincas com tudo e eu não posso já suportar as tuas brincadeiras.

‑ Mas é a minha maneira de ser, gosto de brincar, que há de mal nisso?

‑ Não haverá nada de mal, mas eu não posso já suportar essa tua maneira de ser.

‑ Mas porquê, meu amor?

‑ Não me chames "meu amor". Tu nunca falas a sério, fazes espírito com tudo, precisas sempre de demonstrar que és superior a tudo.

‑ Mas vejamos, Alina, não te parece que exageras?

‑ Não exagero, não. Sempre que gracejas, sinto um aperto no coração. Dir‑se‑ia...

‑ Dir‑se‑ia o quê?

‑ Dir‑se‑ia que, não podendo colocares‑te ao nível de certas coisas, procuras, através do sarcasmo, baixá‑las ao teu. Mas não é apenas isto...

‑ Então, que é mais?

-Tu até brincas nos momentos em que nenhum homem brincaria. Durante a nossa viagem de núpcias disseste uma coisa de que me recordarei toda a vida.

‑ Que coisa foi?

‑Nunca ta direi.

Seguiu‑se um breve silêncio. Lívio, sentado a seu lado, continuava a apertá‑la pela cintura. Então, enquanto a olhava, deu‑se conta, com a sensação de fazer uma descoberta importante, de que era a primeira vez, desde que se conheciam, que lhe falava a sério, de maneira sincera e afectuosa, sem esconder por trás a máscara do gracejo. Pensou que fora necessário uma ameaça de abandono para o induzir a mudar de atitude. tom e, de repente, sentiu remorsos. Disse:

‑Vejamos, Alina, vejamos o que aconteceu realmente. Tu compraste aquele feitiço, de que eu não gostava, trazendo‑o para casa. Porque comecei eu a gracejar sobre o feitiço? Não foi, certamente, por ele ser feio, ridículo ou tosco, pois há muitos objectos toscos, feios e ridículos nesta casa. Não: foi porque te envaideceste dele a tal ponto...

A mulher estava a escutá‑lo com uma atenção que parecia fluir de todo o corpo recolhido e pesado para se concentrar na pequena orelha carnosa que lhe despontava sob os cabelos pretos. De súbito, bateu as mãos e voltou‑se para Lívio:

‑ Disseste‑o, disseste‑o, até que enfim.

‑ O quê?

‑Tu não podes suportar aquilo a que chamas as minhas vaidades.

‑Sim, e então?

‑ Mas não vês que aquilo a que chamas as minhas vaidades são os meus sentimentos, os meus afectos, em suma, eu própria?

‑Tu tens um sentimento, um afecto por aquele boneco de pedra?

‑ Poderia tê‑lo, que sabes tu disso? Tenho, ou, melhor, tinha afecto por ti, naturalmente. E tu consideraste esse afecto como uma vaidade minha, lançaste sobre ele o duche gelado dos teus gracejos.

‑ Mas quando foi isso?

‑ Já to disse, durante a nossa viagem de núpcias.

‑ Eu gracejei sobre o teu afecto por mim durante a nossa viagem de núpcias?

‑Sim, e precisamente em Veneza, no quarto do hotel, na primeira noite. E não gracejaste apenas sobre o meu afecto, mas também sobre o meu corpo, exactamente num momento em que nenhum homem ‑ olha que to digo com a maior solenidade! ‑, nenhum homem ousaria fazê‑lo.

‑ Eu gracejei sobre o teu corpo?

‑ Sim, sobre um pormenor do meu corpo.

Lívio, de repente, corou até às orelhas, se bem que não se recordasse efectivamente de ter gracejado naquela ocasião. Disse por fim:

‑ Será verdade, mas não me lembro. Seria necessário, além disso, ver que gracejo foi. Talvez tivesse sido uma coisa inocente, como a que disse esta noite sobre o teu feitiço.

‑ Decerto que era uma coisa inocente, visto que não tinhas conhecimento dela. Para mim, porém, foi como se me tivesses introduzido no decote uma pedra de gelo. Era a nossa primeira noite depois do casamento e tu não notaste que te odiava.

‑ Odiavas‑me?

‑ Sim, com toda a alma.

‑ E agora, odeias‑me?

‑ Agora, não sei.

Lívio calou‑se de novo, observando‑a com atenção. Então, de súbito, teve a sensação de se encontrar diante de uma pessoa completamente estranha, de quem nada sabia, nem o passado nem o presente, nem os sentimentos nem os pensamentos. Esta sensação de estranheza era originada por aquela frase dela: "não notaste que te odiava". De facto, não notara que apertara nos braços uma mulher que o odiava. Recordava tudo daquela noite, até o vento que de vez em quando enfunava ligeiramente a cortina dajanela escancarada sobre a Laguna, mas não o ódio dela. E então. se não notara um sentimento tão importante, quem sabe quantas outras coisas Lhe tinham escapado, quanto dela lhe era desconhecido! Mas era já evidente que a mulher não tencionava partir; que aquela mala aberta sobre a cama fazia parte de uma espécie de ritual do litígio; que agora devia enfrentar a reconciliação, ainda que ela lhe parecesse estranha e desconhecida. Com esforço, segurou‑lhe na mão, dizendo:

- Deves perdoar‑me. Eu sou aquilo a que normalmente se chama um homem ímpio.

‑ Que quer dizer "ímpio"?

- O contrário de "pio". Um homem para quem não existem coisas sagradas. Mas de hoje em diante procurarei corrigir‑me, prometo‑to.

A mulher olhava‑o, ou, melhor, contemplava‑o com aqueles seus olhos azuis e levemente turvos; como se olha um objecto singular e incompreensível. Disse, por fim, com simplicidade:

‑ Bem, agora vai para lá, vou já ter contigo. - E, esticando‑se, vibrou‑lhe um beijo na face.

Lívio gostaria de dizer qualquer coisa, mas não lhe ocorreu nada. Levantou‑se, voltou para a sala e sentou‑se de novo à mesa. Tirou uma costeleta da travessa, pô‑la no prato e procurou comer. Depois deixou cair o talher e olhou para a sua frente.

O feitiço, como antes, estava precisamente diante dele; tinha a testa voltada para baixo como uma viseira sobre os olhos e parecia fitá‑lo com ar ameaçador e exigente. Como se quisesse dizer‑lhe: "Não é senão o princípio. Terás ainda de deixar de brincar diante de muitas outras coisas. "

Lívio recordou‑se de Don Juan e pensou que este, ao menos, tivera a consolação de ser punido por haver zombado dos princípios de uma religião reconhecida e venerada. Ele, pelo contrário, devia respeitar um mundo profano, sem Inferno e sem Paraíso, mudo e absurdo, semelhante ao feitiço de pedra.

. Sobressaltou‑se ao ouvir um leve rumor. A mulher voltara, estando agora de novo sentada à sua frente, Lívio reparou que, em perspectiva o rosto da mulher parecia intimamente acoplado ao rosto estúpido e feroz do feitiço. E, pensando nisso, estremeceu.

 

                 O AUTÓMATO

 

Depois de estar vestido, Guido foi observar‑se ao espelho do guarda‑fato e experimentou, como habitualmente, uma sensação de desagrado. Com efeito, toda a roupa que envergava era nova e de primeira qualidade: casaco novo, de tecido espinhado; calças novas, cinzentas. de flanela; gravata nova com riscas vistosas; meias novas de lã encarnada e sapatos novos de camurça: e, contudo, não era elegante, parecia um manequim na montra de um grande armazém.

Guido saiu do quarto, cuja desordem o incomodava, e entrou na sala de estar. Aqui tudo era limpo, ordenado, luminoso; Guido sentiu‑se de novo tranquilo, ainda que, naquela manhã, desde que acordara, o atormentasse a suspeita de ter esquecido qualquer coisa: um encontro?, um telefonema `?, um pagamento ?, um aniversário? Por fim, sacudindo a cabeça, aproximou‑se do gira‑discos, no canto junto da chaminé. O gira‑discos, de marca americana, era automático; ou seja. carregando um botão, o braço com a agulha levantava‑se, deslocava‑se, baixava e pousava na orla do disco. Guido tirou da discoteca, ao acaso. um disco de música ligeira. colocou‑o e carregou no botão. Aconteceu, então, um facto inesperado: o braço levantou‑se, deslocou‑se, mas não baixou; pelo contrário, continuou a deslocar‑se com um movimento, dir‑se‑ia, ponderado, e, por fim, foi pousar no centro do disco, e não na extremidade. Ouviu‑se um estridor crepitante, o braço saltitou para trás, sobre o disco. levantou‑se e, com um clique sonoro, voltou á posição de repouso.

Guido tirou o disco e examinou‑o à luz da janela: o disco estava estragado, em vários pontos descobriam‑se sulcos profundos. Pela primeira vez, o automatismo não tinha funcionado. Guido, bastante desconcertado, colocou outro disco, mas o braço levantou‑se e baixou regularmente, sem mais falhas. Embora escutando a música, perguntou a si mesmo qual poderia ter sido o motivo do estranho comportamento do gira‑discos, mas verificou que a provável explicação técnica não o satisfazia. Naquele momento entrou a mulher.

Trazia pela mão os seus dois filhos, Piero e Lúcia, ambos com cerca de 5 anos, duas crianças de rostos delicados e sensíveis, sobretudo Piero, que se assemelhava muito a uma fotografia de Guido quando este tinha a mesma idade. A mulher disse às duas crianças:

‑ Vamos. ide dar um beijo ao papá. ‑ E deixou‑se ficar no meio da sala, enquanto as duas crianças, obedientes e afectuosas, corriam a trepar para os joelhos do pai. Guido, por sua vez, abraçou‑as; enquanto as abraçava, olhou, por cima das suas cabecitas encaracoladas, para a mulher e notou, como se a visse pela primeira vez, que era alta, delgada e lisa, que estava mirrada e consumida pelas duas maternidades, privada já de qualquer fascínio feminino. Notou também que trazia óculos e tinha o nariz um pouco encarnado; que vestia uma saia larga, azul, e uma camisola de um azul ainda mais escuro. Afigurou‑se‑lhe, subitamente, que todos estes pormenores deviam ter um significado próprio, um pouco como os símbolos das charadas que, normalmente, se explicam com uma só palavra; mas a mulher não lhe deu tempo para o descobrir.

- Então, vamos ‑ propôs ‑. já é tarde, se nos demoramos mais, arriscamo‑nos a encontrar as estradas apinhadas de carros.

Guido aquiesceu:

‑ Vamos. ‑ E seguiu a mulher, que segurava de novo as crianças pela mão.

O apartamento era no rés‑do‑chão de uma casa nova dos Parioli; à entrada havia um minúsculo jardim com ruazinhas de cimento, canteiros cultivados com tulipas e arbustos cortados em forma de bola e de cone. A família atravessou este jardim e saiu para uma rua estreita, ladeada de prédios novos e apinhada de carros alinhados ao longo dos passeios. Guido, agora, perguntava de novo a si mesmo o que tinha esquecido naquela manhã; com este pensamento permanentemente na cabeça, fez subir para o carro a mulher e as crianças, engrenou a mudança e partiu. O carro desceu ràpidamente a Via Flaminia, atravessou a ponte e continuou a sua marcha através dos Lungoteveri. A meta do passeio era o lago Albano. Como a mulher ‑ que ia sentada atrás com a filha ‑ observou, "era domingo e estava um lindo dia"; era pena, realmente era pena, que não se pudesse fazer um piquenique, mas tinha chovido há pouco e o terreno encontrava‑se ainda húmido. Guido nada respondeu a isto. A mulher continuou a falar ora de uma, ora de outra coisa, com ponderação, dirigindo‑se não só ao marido, mas também aos dois filhos. Guido, por seu turno, concentrou toda a atenção na estrada, que, com o movimento que tinha, e ainda por cima de gente domingueira, exigia mais prudência e habilidade do que habitualmente.

O carro, depois de haver percorrido uma longa extensão da Appia Antiga, tomou a Appia Pignatelli, passando desta para a Appia Nova. Guido mantinha uma velocidade regular, não excessiva, mesmo quando a estrada à sua frente se mostrava desimpedida. Os seus olhos, entretanto, notavam uma série de coisas que pareciam interessantes, mas cujo significado Lhe escapava: a cintilação das niquelagens de um grande carro preto que os precedia, a brancura imaculada, salpicada de luzes de uma bomba de gasolina em forma de cilindro, meio escondida entre as árvores com rebentos primaveris; a alvura calcinada de certas casas; a cor argêntea de um avião que descia em diagonal através do céu para aterrar no aeroporto de Ciampino; o fulgor repentino de uma janela sobre a qual batia um raio de sol; a tinta pastosa das faixas de sinalização pintadas nos troncos dos plátanos, ao longo da estrada. Todas estas coisas brancas, cintilantes, fulgidas, contrastavam, de maneira gritante, com uma grande nuvem negra que invadira o céu e ameaçava estragar aquele belo dia; também o campo, de um verde‑claro e tenro, quase lactescente, destoava do sombrio fundo tempestuoso. Guido perguntou a si mesmo, uma vez mais, qual podia ser o significado deste contraste, mas não encontrou nada: e, contudo, estava seguro de que o havia. A mulher, atrás, falava à filha e o filho, que ia sentado ao lado dele, tinha‑se entretanto ajoelhado no assento e, com as mãos assentes no encosto, intervinha na conversa entre a mãe e a irmã. As vozes frescas, agudas, das crianças, que interrogavam, e a voz calma da mãe, que respondia, escondiam também, certamente, um sentido; mas Guido, como aliás em todas as outras coisas que sucessivamente ia notando, não o conseguia encontrar, embora estivesse convencido da sua existência.

Depois, as crianças calaram‑se. No silêncio que se seguiu, a mulher, parecendo aperceber‑se do mutismo de Guido; perguntou‑Lhe:

‑Que tens? Estás de mau humor?

‑ Não, não estou de mau humor.

‑ Mas também não estás de bom humor...

‑ Estou de humor médio, o meu humor habitual.

‑ É justamente aquilo que mais aprecio em ti, o teu humor médio, como dizes; mas tinha a impressão de que estavas de mau humor.

‑ Porque gostas do meu humor médio?

‑Ora, dá‑me uma sensação de segurança. A sensação de estar com um homem em quem se pode confiar plenamente.

‑ Esse homem sou eu?

‑ Sim, és tu. ‑ A mulher falava tranquilamente, objectivamente, como se se tratasse de uma terceira pessoa. ‑ Eu confio em ti porque sei que és um bom marido e um bom pai. Sei que contigo não pode haver surpresas; que fazes sempre o que é justo. Esta confiança torna‑me feliz.

‑ És feliz comigo?

‑ Bem... sim. ‑ A mulher pareceu reflectir por um momento, com escrúpulo. ‑ Sim, sou feliz, posso sem dúvida dizer que sou feliz. Deste‑me tudo aquilo que eu desejava: uma família, filhos. uma vida desafogada e segura. Agrada‑te que eu seja feliz contigo? ‑ A mulher estendeu a mão e fez‑lhe uma ligeira, afectuosa carícia na nuCa.

- Sim, agrada‑me.

O automóvel agora tinha deixado a Appia Nova e entrado na Estrada dOs Lagos. correndo entre os campos verdejantes,

por onde, aqui e além, se viam tremular as pequenas nuvens brancas oco e rosadas das florescências das árvores de fruto. Depois surgiu uma mimosa amarela perto de uma casa azul; em seguida depararam‑se‑lhes algumas figueiras que tinham os ramos cheios de flores de um vermelho vinoso. Guido disse:

- Não estava de mau humor, vinha apenas a pensar em qualquer coisa que aconteCeu há pouco.

‑ O quê?

Guido referiu o caso do disco e a falha no automatismo do gira‑discOs e concluiu:

‑ Agora o disco está estragado. Mas o que eu não consigo é explicar a mim mesmo como foi possível o gira‑discos não ter funcionado.

A mulher respondeu em tom de gracejo:

- Vê‑se que as máquinas, uma vez por outra, estão cansadas de ser máquinas e querem demonstrar que não o são.

- Sim, será isso.

O filho, que continuava ajoelhado no assento ao lado de Guido,

perguntou inesperadamente à mãe se naquele dia Comeriam morangos. , A mãe explicou então que não havia morangos naquela estação: os morangos eram fruta e, pelo contrário, a Primavera era a estação das flores, como ele podia verificar olhando para o campo. Guido escutou por algum tempo as explicações da mulher e, em seguida, fez uma última e já débil tentativa para recordar aquilo que estava convencido de ter esqueCido naquela manhã, mas não encontrou nada. Talvez uma reunião de negócios para o dia seguinte, que era segunda‑feira: de qualquer mOdo, no escritório, tudo estava escrito na agenda e seria fácil sabê‑lo.

Entretanto, tinham Chegado à estrada que circunda o lago fo Albano; este, contudo, ainda não se via, pois estava escondido pelos jardins das numerosas villus. Depois, numa curva, o lago começou a revelar‑se gradualmente: primeiro os precipícios, cobertos de uma densa camada de erva verde‑escura; depois, mais abaixo, como no fundo de um funil, o lago imóvel e pardacento no qual se reflectiam, com sombras desiguais, as margens altas e o céu nublado. Guido lançou de fugida uma olhadela ao lago e teve de novo a sensação de um significado escondido atrás de numerosos e dispersos pormenores. A estrada agora era a subir, e Guido mudou de velocidade, passando da quarta para a terceira. No cimo da subida avistava‑se um miradouro suspenso contra o céu, para além do qual se adivinhava um salto de algumas centenas de metros.

Repentinamente, Guido teve a sensação de passar de um

lugar subterrâneo para o ar livre, saindo de uma atmosfera compacta e surda para uma outra clara e leve. E, com esta sensação, ocorreu‑lhe um pensamento preciso: impelir o carro a toda a velocidade para aquele vazio que se divisava no cimo da subida e lançar‑se no lago com a mulher e os filhos. O carro daria um salto de 200ou 300metros, caindo directamente no lago; a morte seria instantânea. Guido perguntou a si mesmo se este pensamento era inspirado por ódio seu contra a família, e verificou que não. Pelo contrário, pareceu‑lhe nunca os ter amado tanto como neste momento em que desejava destruí‑los. Mas era realmente um pensamento ou uma tentação? Era uma tentação, quase irresistível, de uma doçura fúnebre, tenaz e semelhante à que inspira uma compaixão que não quer ficar impotente.

O carro desviou‑se para a direita, até roçar na margem da

estrada, subindo ràpidamente na direcção do miradouro. Mas,

superado o ponto mais alto, Guido encontrou‑se perante um

pequeno prado, que não previra; o precipício tinha ficado para trás e, já agora, o momento tinha passado: cair no vácuo teria sido uma coisa natural; retroceder para cair, um crime. Guido parou, puxou o travão de mão e deixou‑se ficar quieto. Não experimentava qualquer sentimento particular; parecia‑lhe apenas ter saído da atmosfera leve e entrado de novo na atmosfera surda e compacta. A mulher, descendo do carro, disse:

‑ Bravo, fizeste bem em parar: vamos dar uma vista de olhos

ao lago.

Quando os quatro chegaram à orla do miradouro e se debruçaram, segurando‑se pela mão, a contemplar o lago, Guido recordou‑se subitamente daquilo que havia esquecido: naquele domingo ocorria o aniversário do seu casamento; tinham falado disso na noite anterior, depois de haverem deitado as crianças; e o passeio fora decidido, exactamente, para festejar o acontecimento.

 

                   O CONTO

 

Logo que chegou, Cláudio, depois de ter deixado a mala no Tinh hotel, aventurou‑se a um primeiro passeio. Nunca estivera na ilha, não conhecia lá ninguém, e sentiu‑se imediatamente intimidado pelo ar de cumplicidade, ou de felicidade, das pessoas que se lhe deparavam à medida que ia caminhando. Eram quase sempre casais, uns jovens, outros de meia‑idade, e outros ainda já velhos; homens sem mulheres, como ele, eram raros; mulheres sós, verdadeiramente, não se viam. Este facto impressionou‑o vivamente: estava só, a sua última história de amor tinha terminado há um par de anos, que viera fazer à ilha? Tinha a impressão de que todos aqueles casais, passando junto dele, lhe diziam: nós somos dois e tu és um apenas; nós sabemos para onde vamos e tu não sabes; nós temos um objectivo na vida e tu não tens. e, Agora, a timidez transformava‑se em pânico; para ganhar ânimo, Cláudio entrou num bar e pediu um café, de que não sentia necessidade.

Também ali estava um casal: ele, um rapaz louro e magro, de rosto afilado, de olhar límpido e inflexível; ela, uma rapariga muito morena, que pareceu atraente a Cláudio. O jovem, inclinado para a frente e com o pé apoiado na barra de latão do balcão, tagarelava, brincando com chaves ou qualquer outro objecto metálico. Bebido o café, Cláudio aproximou‑se da caixa para pagar. Ouviu‑se um tinido no chão; Cláudio, pensando que Lhe tivesse caído do bolso alguma moeda, abaixou‑se e estendeu a mão: a moeda, de prata, de quinhentas liras, estava de facto ali, a dois passos dele, mas o jovem louro disse com voz calma:

‑ Tenho muita pena, mas essa moeda é minha. ‑ E Cláudio só demasiadamente tarde reparou no seu engano. Rubro de absurda vergonha, saiu apressadamente do bar e dirigiu‑se a passo de corrida para o Passeio dos Oleandros, que, no guia, vinha indicado como um dos lugares mais belos da ilha.

Não se via ninguém ao longo do percurso que, sinuosamente, à sombra de grandes árvores frondosas, dava a volta à ilha, a meia encosta, tendo, de um lado, o declive coberto de pinheiros - entre os quais, aqui e além, se descobria a superfície azul e luminosa do mar ‑ e, do outro, uma fila ininterrupta de jardins e de vivendas; ninguém caminhava pelo ladrilhado vermelho, ao longo dos oleandros de flores brancas e rosadas que davam o nome ao arruamento; Cláudio bem depressa se sentiu tranquilizado. Numa curva, viu ao longe uma vivenda de dois pisos, branca, com persianas verdes e um pequeno pórtico neoclássico de colunas caneladas; e pensou que devia ser uma casa antiga, ao menos a avaliar pelo estilo, pelo tamanho extraordinário da glicínia toda florida que lhe cobria a fachada e pelas manchas e gretas do reboco. Tinha acabado de ultrapassar a vivenda quando ouviu uma voz chamar insistentemente:

‑ Sr. Lorenzo! Sr. Lorenzo! ‑ Esta voz pronunciava um nome que não correspondia ao seu, mas parecia chamá‑lo exactamente a ele, como compreendeu ao descobrir uma mão que saía de um portão e lhe fazia sinais. Aproximou‑se e viu, então, para além das barras do portão, uma velha e corpulenta senhora, de rosto avermelhado e cheio, invadido pela penugem, e de olhos intensamente celestes. Cláudio baixou os olhos: a senhora segurava pela coleira um magnífico cão dinamarquês, malhado de rosa e cinzento, o qual uivava e gania, talvez alegremente. A senhora disse: ‑ Sr. Lorenzo, como está? Vê, até o Tigre o reconhece... e, no entanto, era cachorro quando o senhor cá esteve... Entre por um momento... dá‑me muito prazer vê‑lo cá de novo.

Cláudio estava para advertir a senhora do seu erro quando foi dissuadido de o fazer por um instinto de jogo e de aventura: estava só , não conhecia ninguém; graças ao equívoco da mulher, talvez pudesse, sabe‑se lá, encontrar companhia. A velha, entretanto, voltara‑lhe as costas e, precedendo‑o, com passo pesado e lento, passou sob o pórtico, entrou depois num vestíbulo mobilado com cadeiras e poltronas de vime e, daqui, seguiu para uma sala com pouca luz. Viam‑se ali duas poltronas e um duro sofá com bordados nos espaldares; quadros a óleo, representando paisagens marítimas e ramos de flores; quebra‑luzes furados e cobertos de pequeninas pérolas; vasos, cinzeiros, tabaqueiras, fotografias e outras bugigangas sobre mísulas, sobre mesas e sobre armários. A senhora, agora, deixara‑se cair pesadamente numa poltrona e o cão estendera‑se‑lhe aos pés. Ainda um pouco ofegante, disse:

‑ Tudo está como quando o senhor se foi embora... eh! Nada muda em minha casa, há anos... mas também você não mudou realmente, sabe isso?

‑ Não mudei ‑ respondeu Cláudio, que gostaria de saber quando estivera naquela casa ‑ porque, ao fim e ao cabo, não passou muito tempo.

‑ Três anos ‑ objectou a mulher. ‑ Muitos para mim, que sou velha, poucos para si, que é jovem. Sabe que Elena, sempre que me vê, me pergunta por si?

Elena! Portanto, havia também Elena, pensou Cláudio assaz contente. Elena, um belo nome; devia ser uma mulher bonita, jovem, atraente, simpática. Inquiriu:

‑ Elena ainda se recorda de mim?

A senhora lançou‑lhe um olhar que não compreendeu:

‑ "Recordar" não é a palavra exacta. Creio que tem saudades de si.

Cada vez melhor, não pôde deixar de dizer para consigo Cláudio: saudades, portanto possibilidades, através do erro da senhora,de se aproximar de Elena e de se substituir ao imaginário Lorenzo.

‑ Também eu ‑ disse, e a tal ponto se compenetrava agora do seu papel que lhe pareceu não ser de todo insincero ‑, também eu tenho saudades dela.

‑ Em vez de ter agora saudades ‑ retorquiu a senhora ‑ teria feito melhor em ter voltado atrás, então. O senhor não pode imaginar quanto a sua partida magoou Elena. Durante alguns dias não quis sair do quarto e mais não fez do que chorar. Não comia, não dormia; receei que adoecesse. Pode saber‑se porque foi tão mau?

Cláudio respondeu ao acaso:

‑ Não fui mau; foi mais forte do que eu.

A senhora suspirou, ficando por um instante em silêncio, pensativa:

‑ Será. Contudo, naquela noite, alguma coisa deve ter acontecido. No dia seguinte, Elena tinha um olho negro, como se tivesse sido espancada. Mas, Sr. Lorenzo, não sabe que não se bate nas mulheres?

Cláudio sentiu‑se subitamente embaraçado. Pelos vistos, Lorenzo batia na amiga; ele, pelo contrário, nunca tinha tocado numa mulher na sua vida. Respondeu um tanto confuso:

‑ Também dessa vez foi mais forte do que eu.

A senhora, com os olhos celestes fixos no vácuo, parecia reflectir. Observou, depois, com uma entoação estranha, não já tão benévola, antes quase severa:

‑ O senhor deveria ter presente que fugindo daquela maneira, não se comportava bem. Mesmo que Elena fosse daquelas mocinhas que encontram fàcilmente com quem se consolar... Mas Elena era uma mulher que já se encontrava numa idade em que todo o amor pode ser o último da vida. Além disso viúva e com aquele filho depravado que lhe dava tantos dissabores... Não, você, realmente, não agiu bem.

Cláudio, constrangido, agitou‑se na poltrona e lançou um olhar, através da janela aberta, às árvores do jardim. Portanto, Helena não era jovem; pelo contrário, era muito mais velha do que Lorenzo, com um filho já suficientemente crescido para poder ser definido como depravado. Disse, aborrecido:

‑Talvez tenha sido exactamente a diferença de idade entre nós que me levou a fugir.

A senhora brincava agora distraidamente com um par de óculos presos por um nastro à cintura; Cláudio notou, possivelmente por causa do relaxamento dos músculos, que os traços do rosto dela se tinham tornado duros e hostis. Por fim, já sem qualquer cordialidade, disse:

‑Sr. Lorenzo, antes de se aproximar de Elena é que você devia pensar na diferença de idades. A impressão geral, pelo contrário, foi que você não se metera com Elena por amor, mas por interesse. Elena era rica, você não tinha um tostão, e a gente, sabe‑se, não olha muito a pormenores.

Cláudio compreendeu que Lhe tocava agora defender o desprezível Lorenzo, porque, defendendo‑o, defender‑se‑ia a si mesmo. Protestou com um certo calor:

‑Eu não me meti com Elena por interesse. Desde o princípio que senti por ela uma grande atracção e com ela continuei até essa atracção desaparecer.

A velha sacudiu a cabeça:

‑ Isto é, até encontrar aquela americana igualmente madura, mas talvez mais generósa, com a qual foi visto partir no mesmo dia em que abandonou Elena.

‑Não parti com nenhuma americana.

‑ Mas se o viram...

‑ Foi um acaso. Era apenas uma pessoa que conhecia.

‑ Estranho acaso. Já agora, explique‑me este outro acaso. - A senhora levantou‑se inesperadamente e, com o seu passo pesado e vacilante, foi a uma escrivaninha junto da janela. Cláudio viu‑a abrir a escrivaninha, remexer nos papéis de uma gaveta, tirar uma folha e, depois, voltar para a poltrona. A senhora sentou‑se pesadamente e pousou a folha nos joelhos. ‑ Diga‑me então se foi também por acaso que você partiu às escondidas, pela madrugada, sem pagar a conta. Elena não a quis pagar; disse que já tinha despendido bastante consigo e eu, em consciência, não pude deixar de lhe dar razão. Se não o denunciei ‑ concluiu, bastante desagradàvelmente, a mulher ‑, foi por respeito a Elena, que me parecia amá‑lo ainda. Esta conta não paga foi também um acaso?

A senhora pusera os óculos e, aberta a folha, ia‑a observando. Cláudio então compreendeu, ou, pelo menos, julgou compreender,

que a mulher era fortemente míope e confundira‑o com outro em freI por causa da miopia. Durante alguns momentos esperou e, ao mesmo tempo, temeu que a senhora erguesse os olhos para os portões e se apercebesse do erro. Mas não; ela tirou os óculos e deixou‑os cair no regaço. Cláudio, nesta altura, perguntou a si mesmo se não devia desenganá‑la, mas reconheceu que não o podia já fazer. Devia tê‑lo feito no momento em que a senhora julgara reconhecê‑lo; agora, ao prejuízo da conta que ele não pagaria, juntar‑se‑ia o ridículo da comédia absurda que tinha representado. Resolvida a questão da identificação, impunha‑se a da conta. Devia pagá‑la ou não? Se se recusasse a pagá‑la, podia acontecer que a velha exasperada, o denunciasse de facto e, então, a comédia ceria igualmente, mas de maneira mais estranha e mais clamorosa que, se a pagasse, pensou por fim, perderia algum dinheiro, mas castigar‑se‑ia do risco que quisera correr ao assumir a parte de Lorenzo. A senhora, entretanto, esclarecia:

- É a conta da última semana. Não é uma quantia elevada, mas, enfim, você sabe que eu e minha filha vivemos dos poucos quartos que alugamos e, para nós, até as pequenas quantias são importantes.

Cláudio retorquiu com firmeza:

‑ Dê‑me essa conta. Pago‑lha já.

‑ Aí a tem.

Cláudio pegou na conta e observou‑a; era efectivamente uma quantia modesta; o castigo era pequeno. Tirou do bolso a carteira e estendeu o dinheiro à velha, que, recebendo‑o, disse imediatamente:

‑Bem entendido, Sr. Lorenzo, eu nunca acreditei no que se dizia a seu respeito. Mas, de qualquer modo, fez mal em fugir: daquela maneira.

‑ São coisas que sucedem‑respondeu Cláudio, levantando‑se

‑ A propósito, Sr. Lorenzo ‑ disse a mulher, que agora se tornara de novo gentil ‑, você, fugindo, deixou algumas coisas Guardei‑as, aqui estão. ‑ Foi ao fundo da sala, a um armário, e, abrindo‑o, tirou dele um embrulho que deu a Cláudio. ‑ Creio que são um par de cuecas e dois pares de peúgas. Far‑lhe‑ão jeito. - Confundido, Cláudio aceitou o embrulho e seguiu a senhora até debaixo do pórtico. ‑ Sabe o que lhe digo? ‑ acrescentou a velha. ‑Que você devia ir procurar Elena. Está na Pensão Sorriso. Vá lá, verá como o receberá.

Cláudio prometeu fazê‑lo e, cumprimentando a senhora, saiu. Dois passos adiante, o jornal do desajeitado embrulho rasgou‑se e as peúgas, todas amarrotadas e, evidentemente, sujas, caíram no chão. Cláudio deixou cair também o jornal e seguiu em frente; mas uma voz advertiu‑o: "Eh! Olhe, caiu‑lhe qualquer coisa." Era uma mulher, que estava atrás de um daqueles portões. Vencendo com dificuldade a repugnância, Cláudio inclinou‑se, recolheu com a ponta dos dedos as cuecas e as peúgas e, envolvendo‑as de novo no jornal, retomou o caminho. Casais, ora jovens, ora de meia‑idade ou já velhos, vinham agora ao seu encontro, passavam junto dele, ultrapassavam‑no; mas notava que os olhava sem inveja, ou, antes, quase com aversão. Como se a experiência imaginária que acumulara o tivesse saciado e aborrecido. Depois recordou‑se da moeda que, sem ser sua, logo após a chegada, no bar, se inclinara para recolher, recebendo uma fria admoestação do jovem louro, que era o seu dono: e pensou: que, com a velha senhora, lhe sucedera o mesmo, com a diferença de que, neste caso, a moeda, ainda por cima, era falsa. Naquele momento passava diante de um recipiente municipal para o lixo,

pintado de verde e suspenso num poste. Levantou‑lhe a tampa e atirou para lá o embrulho.

 

             O ESPELHO DE TRÊS FACES

 

A criada tinha saído para as compras; a mulher não podia ouvir a campainha porque estava no terraço com o bebé; Giovanni foi abrir a porta e encontrou‑se perante dois homens descamisados que transportavam um objecto embrulhado que parecia um guarda‑vento.

‑ É o espelho ‑ disse um dos dois. ‑ Onde o pomos?

Satisfeito por ter dormido bem e, além disso, por ser sábado e não ter de ir ao escritório, Giovanni, assobiando, precedeu os dois homens e indicou‑lhes um canto do quarto, junto do toucador da mulher. Os dois homens depuseram o espelho no canto e retiraram‑se. Giovanni rasgou o papel que envolvia o espelho, que era de três faces, muito semelhantes aos das modistas, e depois mirou‑se. O seu bom humor, então, desapareceu, pois deu conta de um facto que nunca ignorara mas que, havia algum tempo, quase tinha esquecido: a sua cara não só lhe era antipática como até se lhe revelava totalmente nova, de uma maneira desagradável, de tal modo que custava a crer que uma cara tão antipática pudesse ser sua.

Evidentemente, pensou, voltando‑se de perfil, ele tinha de si mesmo uma ideia diferente, melhor, lisonjeira. Mas qual? Reflectindo nisso, verificou que não tinha na realidade qualquer ideia de si próprio; simplesmente, não queria de nenhum modo reconhecer‑se naquela cara antipática. Pouco a pouco, rodando lentamente, tornou a ver‑se ao espelho, quase na esperança de encontrar, com um exame mais atento, algum motivo de simpatia; mas notou que, quanto mais olhava, mais crescia a sua aversão. A fronte era dura, compacta e assimétrica; o nariz tinha uma forma indecisa e pouco graciosa; aos olhos faltava inteligência; a expressão da boca inspirava enfado; a cor da pele tendia para o encarnado e o luzidio; até partes menos expressivas, como as orelhas e o queixo, despertavam nele uma sensação de repugnância. Atingido de repente por agudo sentimento de infelicidade, Giovanni olhou‑se ainda três ou quatro vezes; depois deixou o espelho e foi para o terraço.

Moravam num andar circundado de terraços, dos quais se gozava a vista do Tevere cor de jade serpeando entre as baixas margens verdes, da Ponte Milvio, de antigas pedras douradas e dos prédios modernos, brancos e amarelos, alinhados do outro lado. Fechando um pouco os olhos por causa do sol luminoso e suave do belo dia de Primavera, Giovanni atravessou o terraço, que com os numerosos vasos e caixotes de flores dispostos ao longo dos parapeitos parecia quase um jardim, e encaminhou‑se para o canto onde a mulher estava sentada, a ler, junto do berço do bebé. Sentando‑se ao lado dela, disse:

‑Chegou o espelho. Desembrulhei‑o.

‑ O psyché - corrigiu a mulher distraidamente, continuando a ler.

‑ Realmente ‑ retorquiu Giovanni ‑ dá‑se o nome de psyché aos espelhos antigos, móveis, montados sobre um suporte. Mas este é um espelho de três faces.

‑ Ora!.. ‑ disse a mulher. ‑ Aos espelhos de três Faces eu chamo psyché.

O sol queimava e induzia ao silêncio. Giovanni, todavia, insistiu:

‑Não é muito bonito. Parece o espelho de um costureiro.

- E é, de facto ‑ confirmou a mulher.

‑ Olhei‑me ‑ prosseguiu Giovanni, esperando que a mulher o tranquilizasse‑, e digo‑te a verdade: não gostei realmente de me ver.

Mas a mulher pareceu não o ter ouvido e não disse nada. Giovanni lembrou‑se de que no dia anterior viera visitá‑los uma velha parente, a qual, logo que viu o bebé, declarara com ênfase que era o perfeito retrato do pai. Naquele momento, esta declaração dera‑lhe muito prazer; mas agora, pensando nisso, reconhecia experimentar quase uma sensação de terror à ideia de que o seu primogénito, por ele tão amado, pudesse realmente assemelhar‑se‑lhe. Era um terror singular que parecia ultrapassar a semelhança física e aludir ao destino. Naquele instante ouviu‑se um débil e nítido choro: o bebé tinha acordado. A mulher levantou‑se imediatamente e acorreu ao berço. Giovanni ergueu‑se também.

Admirou uma vez mais a delicadeza extrema com que a mulher introduzira as duas mãos sob o pequeno corpo enfaixado do bebé, o tirava do berço e depois o levava nos braços para a cadeira junto do parapeito. A mulher apoiou o pé sobre um caixote de flores e acomodou a criança no regaço, sustentando‑a em posição inclinada com o braço esquerdo. Giovanni sentou‑se ao lado dela e olhou embevecido para o filho, que, mal a mãe o tirara do berço, se tinha calado imediatamente. Era na verdade um belíssimo bebé: os cabelos finos e macios faziam lembrar a penugem das nozes de coco logo depois de serem tiradas da sua casca; a fronte era cândida e lisa; os olhos fitavam com duas pupilas de um azul escuro e límpido; a boca rosada tinha uma expressão grave, entre duas faces fenomenalmente sólidas e redondas. Apertava um pé na mãozita e fixava com estática atenção um ponto indeterminável no espaço à sua frente. Giovanni, quase sem reflectir, disse:

‑ Pergunto a mim mesmo com qual de nós se parecerá quando for crescido.

A mulher respondeu convictamente:

‑ Parecer‑se‑á contigo.

- Espero que não ‑ retorquiu Giovanni prontamente.

‑ E porque não?

- Porque me acho antipático.

A mulher afastou com a mão uma abelha que viera zumbir para perto do bebé e, em seguida, declarou afàvelmente:

‑Asseguro‑te que não há nada de antipático em ti. Pelo contrário, de um modo geral, todos te acham muito simpático.

‑ Sim, todos, mas não eu.

A mulher inclinou‑se para o bebé e repetiu em tom afectuoso e didáctico: "Mamã... Mamã. " A criança, largando o pé, estendeu a mãozita ávida para o rosto materno e quase conseguiu agarrar no nariz. Giovanni verificava que a mulher, totalmente devotada ao filho, não se importava com as suas lamentações. Mas continuou:

‑ Eu acho‑me antipático como pode ser antipático um estranho, isto é, alguém que não se conhece. É como dizer que à ideia da antipatia se junta a da estranheza. A primeira coisa que me ocorreu há pouco, quando me olhei ao espelho, foi: é alguma vez possível que eu seja aquele ali?

‑ E contudo ‑ observou a mulher com cruel distracção ‑ não só é possível como é certo.

‑ Por isso, espero que meu filho não se pareça comigo.

A mulher inclinou de novo o rosto para a mãozita da criança, procurando‑lhe a incerta carícia; em seguida levantou‑se e, olhando o marido, pôs‑se a rir:

‑ Sabes que estás a ser ridículo? És o único pai do mundo que não gostaria que o filho se parecesse com ele.

Giovanni ficou por um momento pensativo e, intimamente, foi forçado a reconhecer que a mulher tinha razão. Mas o facto permanecia: sentia aversão por si próprio e receava sinceramente que o filho se parecesse com ele. Ripostou enèrgicamente:

‑ Basta a ideia de que amanhã poderia olhar para o meu filho com a mesma antipatia com que olho para mim próprio para me dar náuseas.

‑ Mas porquê? Vejamos: raciocina.

‑As antipatias não são raciocinadas, de outro modo deixariam de ser antipatias. São antipatias e nada mais.

A mulher ergueu a mão e foi, ao de leve, fazer festas no queixo do menino, que se sorriu imediatamente, ainda que sem modificar a expressão grave do rosto. A mulher contemplou demoradamente este sorriso que provocara, e obtivera, quase com o olhar de um pintor que se detém a admirar o quadro que está a pintar; depois, num acesso de ternura, debruçou‑se sobre o filho, beijando‑o e repetindo com apaixonante fervor:

‑ E ele, no entanto, é simpático; sim, sim, sim, é muito simpático; sim, sim, sim, é simpaticíssimo. ‑ Por fim, depois de ter desafogado o seu amor materno, pareceu recordar‑se do marido e disse apressadamente: ‑ Mas porquê? Tens a mania da autodestruição. Porque te achas antipático`? Examinemos a tua personalidade; vejamos: és um bom advogado. com boa clientela; és um homem fino, distinto, sério, equilibrado, inteligente, culto; ésjovem; és um homem interessante; és também de família rica, o que não prejudica; és estimado e considerado pelos teus colegas; tens numerosos amigos, praticas muitos desportos, tens o gosto das coisas belas; que queres mais? Por que motivo deverias achar‑te antipático? Devo dizer‑te que ficaria muito satisfeita se o nosso filho se parecesse contigo dos pés à cabeça.

A mulher falara tão convictamente que Giovanni se sentiu de súbito com dúvidas. E se estivesse enganado e a mulher tivesse razão? Depois, inesperadamente, recordou‑se de ter lido no jornal, naquela manhã, um anúncio de casamento no qual um homem se descrevia quase com as mesmas palavras utilizadas pela mulher para ele; e recordou‑se também de que, lendo aqueles elogios de tanto por linha, havia pensado: "Sabe‑se lá se, pelo contrário, se trata de um tipo odioso. " Disse acremente:

‑ Fizeste‑me um retrato muito exterior e convencional. Se tivesses pensado um pouco, terias visto que as coisas não são bem assim.

A mulher respondeu com um leve acento de irritação:

‑ Eu vejo‑te assim porque te quero bem. Por mais que pense, não consigo ver‑te diferente. Pensa tu, já que tens tanta vontade.

Giovanni pôs‑se novamente a reflectir, mas não encontrou nada. Sacudindo a cabeça, disse:

‑ Não sei, não encontro nada. Sinto que esta antipatia tem uma razão, mas não sei qual.

A mulher respondeu distraidamente, mas, ao mesmo tempo, triunfante:

‑ Ora vês? Estás em contradição: achas‑te antipático e simultâneamente, não sabes descobrir em ti qualquer defeito o que significa que te consideras perfeito. Em que ficamos?

Giovanni contrapôs:

‑Eu acho‑me antipático como nos são antipáticas certas pessoas que encontramos no comboio, de quem nada sabemos e a quem nada temos a censurar. O facto de eu nada ter a censurar‑me e de me achar, como dizes, perfeito, demonstra apenas que não é uma parcela, pequena ou grande, de mim mesmo que me desagrada, mas o todo. Noutros termos, essa pretensa perfeição, se eu a observasse de um ponto de vista justo, transformar‑se‑ia no oposto, isto é, numa imperfeição completa.

‑ E porque não a observas desse ponto de vista justo?

Giovanni respondeu com amargura:

‑ Porque não existe, ou, pelo menos, não o conheço.

O bebé, entretanto, adormeceu de novo. A mulher levantou‑se lentamente para não o despertar e, depois, com gestos cautelosos, foi depô‑lo no berço. Em seguida voltou para junto do marido, a quem, antes de se sentar, fez uma breve carícia, dizendo:

‑ O que tu tens é que não estás contente contigo próprio, nada mais. Passará.

Giovanni sacudiu a cabeça:

‑ Não, não é assim.

‑Então como é?

Giovanni reflectiu intensamente por alguns instantes, procurando definir e reter em seguida o seu sentimento. Por fim, disse:

‑ É como se entre aquilo que sou e o que mostro ser houvesse uma fraude; ou seja, como se eu me tivesse enganado a mim próprio de uma maneira fraudulenta, continuamente, desde sempre. A antipatia que experimento por mim próprio é semelhante àquela que se experimenta por alguém que fingiu ser aquilo que não era, por motivos de interesse ou, de qualquer forma, pouco claros. Mas eu não sei que fraude é. Sinto‑a, nada mais; está no ar, como um odor, mas não sei dizer mais nada.

A mulher respondeu serenamente:

‑Percebi. Em ti existiram duas pessoas: uma que engana e outra que é enganada. Eu estou com esta última, é a ela que quero bem.

 

               EM FAMÍLIA

 

Era uma família muito unida, mas a maioridade dos filhos e as crescentes dificuldades económicas dos últimos anos faziam pressagiar a sua iminente dispersão. Todos sabiam já que não veriam no próximo Inverno aqueles quartos inalterados desde a infância, outrora lindos e alegres e agora melancólicos e cheios de móveis gastos e partidos: os dois rapazes iriam trabalhar para uma cidade do Norte, a filha mais nova devia seguir para Inglaterra, a fim de obter o diploma de enfermeira, e, finalmente, Leonora, a filha mais velha, casar‑se‑ia. Logo depois das núpcias, os pais, que não esperavam outra coisa, mudar‑se‑iam para uma casa mais pequena.

Entretanto, mesmo nesta atmosfera de abandono e de liquidação, os quatro irmãos continuavam a ser muito unidos porque, não obstante a linguagem violenta e os modos bruscos que entre si ostentavam, se amavam muito, com um afecto profundo, que era ainda o afecto todo natural da inFância e que eles sabiam destinado a acabar mal se saíssem de casa. Naqueles dias, o provável matrimónio de Leonora com um provinciano rico e jovem excitava principalmente o seu sarcasmo. Chamavam a este casamento o negócio da vaca, aludindo assim ao facto de Leonora não se casar por amor, mas, como ela própria reconhecia, por conveniência. De resto, nem Leonora nem os irmãos saberiam dizer com precisão se aquele casamento de interesse os desgostava realmente. A necessidade económica parecia‑lhes, na sua inocência, uma boa justificação; por outro lado, eram todos demasiado jovens para se aperceberem com exactidão daquilo que sentiam.

O pretendente, um certo Moroni, tendo embora declarado particularmente o seu sentimento, não se havia ainda decidido a fazê‑lo com carácter oficial. Quando, depois do jantar, a criada anunciou à família, ainda reunida à mesa, que Moroni estava na sala à espera, Leonora levantou‑se imediatamente, emocionada; e os irmãos alvejaram‑na com os habituais sarcasmos:

‑ O peixe mordeu a isca! Não é para admirar, pois pareces uma linha de pesca! Atira‑te! A "massa" espera‑te.

‑ O bom homem compreendeu finalmente como podia tornar‑se útil.

- Se não se decidir desta vez, chama‑me, que eu tomarei o teu lugar. Asseguro‑te que o farei da melhor vontade. Diacho, com tanto dinheiro! - Isto foi dito pela voz aguda e argentina da irmã.

Leonora gritou:

- Ide para o Inferno!

A mãe, indiferente a este alarido cínico a que estava habituada, aconselhou:

‑ Leonora, devias pôr o vestido verde.

- Mas porquê? Devia, porventura, mostrar‑me nua para o convencer?

‑ A que propósito vem isso? O vestido verde fica‑te melhor.

O pai, chupando no cachimbo, com a cabeça grisalha envolta no fumo azul, observou afàvelmente:

‑ Tua mãe tem razão, Leonora. E, além disso, é necessário obedecer sempre aos pais, mesmo quando estes não têm razão.

‑ Não, não mudarei de vestido ‑ redarguiu subitamente Leonora com despeito, dirigindo‑se para a porta. ‑ E vós ‑ acrescentou, voltando‑se para os irmãos, que continuavam a escarnecer dela ‑, deixai de ser parvos.

Mas, uma vez no corredor, arrependeu‑se e, em lugar de ir directamente para a sala, entrou no seu quarto. Por todo o lado, no papel das paredes, nas cortinas, na cama, viam‑se muitas florezinhas, mas enegrecidas e gastas: aquele quarto garrido da sua adolescência pareceu‑lhe, na iminência do abandono, mais esquálido do que habitualmente. Tirou do armário o vestido verde e enfiou‑o diante do espelho. Era loura, com um corpo esbelto e muito apetexível, o pescoço comprido, o rosto branco e os olhos azuis, enormes; o vestido verde, como foi obrigada a reconhecer com despeito, iluminava‑a como se fosse de luz. Alisando com as unhas os vincos do vestido sobre o ventre cavado e as ancas ossudas, encaminhou‑se apressadamente para a sala, que, por sua vez, também testemunhava a decadência da família: poltronas e divãs de braços sujos e coçados, quebra‑luzes cheios de pó, bibelots antiquados, bricabraque e velharias. Moroni, que estava sentado numa daquelas sórdidas poltronas, levantou‑se imediatamente e tentou beijar‑lhe a mão. Leonora, fingindo não perceber, manteve a mão baixa; depois, enquanto Moroni inclinava a cabeça empastada de brilhantina sobre a sua mão, deitou‑lhe a língua de fora, talvez para ganhar ânimo. Em seguida sentaram‑se; e Moroni começou a falar daquilo que tinha feito nas duas semanas que decorreram após a última vez em que se viram.

Enquanto Moroni falava, Leonora começou a observá‑lo com obstinação: não gostava dele, mas esperava a todo o momento descobrir‑lhe qualquer qualidade que pudesse, ao menos em parte, justificar o casamento. Moroni era um jovem de estatura média, um pouco maciço, com o pescoço curto e ombros largos. Tinha os cabelos fartos e pretos, os olhos salientes, castanhos, brilhantes mas desprovidos de expressão, a cor terrosa, o nariz volumoso, parecendo torto de frente e aquilino de perfil. A boca, principalmente, desagradava a Leonora: túmida mas informe, fazia lembrar uma bolsinha repleta. E, de facto, estava cheia de dentes, os quais, grandes e bastos se acavalavam e se sobrepunham como se a dentadura fosse dupla e tripla como a dos esquilos. "Não", pensou definitivamente desiludida, "não, decididamente tem uma apresentação horrível. "

Moroni começou a conversar com muitos rodeios. Em primeiro lugar descreveu, com excessiva ainda que sincera ênfase, as belezas da terra natal: o mar, os laranjais, os olivais, o céu, os recifes, as montanhas. Leonora pensou que este entusiasmo pela natureza era, no fim de contas, um elemento positivo. "Menos mal", disse para consigo. Da natureza, Moroni passou à sua família, com outra tanta, se bem que diversa, ênfase, mais sentimental e mais afectuosa; falando dos velhos pais, das irmãs, dos irmãos, e exaltando, com expressões quase comoventes, as suas qualidades. Leonora pensou novamente: "Menos mal"; também o amor da família era um elemento positivo.

Depois da natureza e da família, Moroni começou a falar de si próprio. Punha nisso a mesma ênfase, o mesmo entusiasmo, e isto agradou menos a Leonora:

‑Sou exigente, advirto‑a. Sou autoritário, tradicionalista, formalista, agarrado às velhas ideias e aos velhos princípios. Sou, em suma, cheio de preconceitos, nem um sequer me falta. Sou, além disso, um pouco violento, tenho a mão um pouco leve, sou ciumento, exclusivista, intransigente. ‑ Falava com grande prazer dos seus defeitos, como se fossem qualidades. Leonora perguntou a si mesma se o faria para prevenir as críticas ou por pensar que eram realmente qualidades; mas não conseguiu averiguar qual das duas era a hipótese verdadeira. Moroni acrescentou: ‑ E de tudo me saio bem, seja o que for que empreenda. Se se me mete na cabeça obter qualquer coisa, tanto faço que, ao fim e ao cabo, consigo sempre obtê‑la.

Leonora compreendeu que Moroni estava a procurar aludir ao motivo da sua visita e perguntou com simulada ingenuidade:

‑ Por exemplo?

Moroni respondeu:

‑ Por exemplo, não sei: em mil casos. Por exemplo, o processo por causa do qual tive de me demorar na aldeia desta vez. É um processo que me foi movido por um criado meu. Note que a culpa é toda minha e a razão toda dele. Mas, mesmo assim, decidi vencer a questão e, de facto, vencê‑la‑ei.

‑ E como?

‑ Muito simplesmente: comprando testemunhas que deponham a meu favor. Este é um caso, mas poderia citar‑lhe outros.

Moroni continuou a falar; mas agóra Leonora quase não o escutava. mais Estivera tentada a exclamar: "É horrível o que você me diz!", mas Contivera‑se. Concluía que o caso do processo não era uma Cópia daquelas coisas que, por serem as únicas negativas num panorama positivo se podem criticar. Não se podia corrigir. Morom vai apenas naquele ponto, pensou, era preciso refazê‑lo da cabeça aos pés, e isto era manifestamente impossível. Disse para consigo, com convicção: "É um monstro caso com um monstro. " Entretanto, Moroni, como uma ave de rapina que vai apertando as voltas antes de se lançar sobre a presa, acrescentava:

‑ E agora, para Lhe dar outro exemplo, meteu‑se‑me na cabeça obter certa coisa e estou certo de que a conseguirei.

‑ Qual?

‑ Casar consigo.

Leonora experimentou uma viva sensação de despeito perante esta presunção de Moroni; e, antes ainda de reparar no que dizia, perguntou:

‑Tem a certeza, na verdade, de conseguir também isso?

‑ Bem... sim. Seria a primeira vez na minha vida que não conseguiria obter aquilo que pretendo.

‑ E que faria se lhe dissesse que, pelo contrário, desta vez nada obterá?

‑ Examinaria de novo a situação. Procuraria ver onde estava o erro nos meus cálculos.

‑ Pois bem, erro há com certeza. Porque desta vez não obterá aquilo que deseja.

‑ Mas fala a sério?

‑ Como não?

‑ Pretende dizer que não se quer casar comigo?

‑ Exactamente.

Viu‑o tornar‑se um pouco carrancudo e ameaçador; depois pareceu dominar‑se e, levantando‑se, endireitou a gravata:

‑ Cara Leonora, vê‑se que há realmente erro.

Estendia a mão; ela fitou a mão, hesitou e, em seguida, rompeu numa breve risada:

‑ Não, estive a brincar. Não há erro nenhum.

Moroni, que momentos antes estivera convencido de ser repelido, surpreendeu‑se de novo:

‑ Não há?

‑ Eh! Com certeza ‑ disse Leonora, fazendo‑se encarnada e mordendo os lábios.

‑Quer dizer, também obterei de si aquilo que pretendo?

‑Já o obteve.

‑Então, é sim?

‑ Eh! Com certeza ‑ repetiu Leonora, fazendo‑se ainda mais encarnada.

Mas notou que Moroni a olhava agora de uma maneira nova, cupida e obtusa, como um objecto seu, de que podia já Fazer o uso que lhe apetecesse. Como que para retardar este uso, Leonora levantou‑se inesperadamente e, adoptando com desenvoltura o tu, disse:

‑Agora espera‑me aqui. Vou comunicá‑lo aos meus. Volto já, espera‑me e pensa em mim.

Passou junto de Moroni, e como este, desajeitadamente, procurasse prendê‑la pela cintura com um braço, inclinou‑se e deu‑lhe um beijo rápido e leve. Em seguida, saiu e foi directamente para a casa de jantar. Acolheu‑a o habitual clamor dos irmãos. Declarou com solenidade cómica:

‑ Dai‑me os vossos parabéns. Desta vez, foi.

O pai, sem comentar de qualquer modo o acontecimento, sacudiu o cachimbo no cinzeiro, levantou‑se e disse que ia descansar: procurassem, até às quatro, não fazer o barulho do costume com o gira‑discos. A mãe não escondeu a sua satisfação: dois beijos, um em cada face, demonstraram a Leonora que o seu presente alívio era igual à ansiedade que até então experimentara. Os comentários dos irmãos, naturalmente, foram diferentes. Ela enfrentou‑os puerilmente e selvàticamente, berrando, injuriando‑os, batendo‑se com eles, perseguindo até a irmã e crivando‑a de socos.

‑ E agora ide todos para o Inferno! ‑ concluiu, ofegante. Eu volto para junto do meu noivo.

Mas, uma vez no corredor, deteve‑se, angustiada, diante da porta fechada da sala. Sabia que aqueles eram os últimos dias em família; e o coração apertava‑se‑lhe. Como era fiel, previa que seria para Moroni uma boa esposa, ainda que não o amasse; e assim, por força das circunstâncias, seria levada a tornar‑se a sua cúmplice. Dar‑lhe‑ia filhos, partilharia das suas ideias, defenderia a sua conduta. Pensava em todas estas coisas com o coração palpitante, a mão na porta. Depois ganhou coragem e entrou.

 

               EM PAÍS ESTRANGEIRO

 

Chovera durante três dias; despertado pela chuva outonal tépida e abundante, um odor boscarejo elevava‑se dos montões de folhas mortas, na alameda suburbana. Este odor deu‑lhe improvisadamente um desejo de felicidade, que para ele, naquele momento significava ter consciência de fazer coisas que lhe agradassem. No entanto, como pensou ao dirigir‑se para o último prédio ao fundo da estrada, por agora, ao menos, tudo aquilo que fazia ‑ estudos na Universidade para os quais não se sentia talhado, amizades que sentia efémeras e indignas, leituras que o não cultivavam, passatempos que o aborreciam, tudo parecia trazer o signo da esterilidade e da gratuitidade‑ poderia, reconhecia lucidamente, ser substituído sem prejuízo por qualquer outra coisa, diversa ou até contrária. Era, concluiu amargamente, como se tivesse caído num país estrangeiro e se soubesse condenado, pela sua inexperiência e ignorância, a ver as pessoas que não deveria ver, a ir aos lugares onde não deveria ir e a fazer as coisas que não deveria fazer.

Enquanto pensava nisto, subira ao terceiro andar de um prédio muito envidraçado, de madeiras raras e de mármore, de uma modernidade excessiva e quase angustiosa, e agora batia à porta do costume, a mesma onde tinha batido quase todos os dias nos últimos meses. A criada, negra e hirsuta, quase corcunda e quase anã, cuja figura já anunciava o contraste entre a provincialidade e rusticidade da família e a modernidade do ambiente, abriu‑lhe a porta e deixou‑o só, dizendo‑lhe que a senhora o esperava. Lúcio foi para a sala de estar. Era esta um vasto compartimento, mais comprido do que largo, com uma vidraça do lado da rua, fazendo lembrar um ginásio não só pela falta de móveis, mas também por ter o soalho encerado. Ao fundo da sala, porém, havia um grande divã roto, em volta do qual, no chão, se viam muitos objectos que normalmente são colocados sobre os móveis; um gira‑discos, uma bandeja com uma chaleira e uma chávena, discos, algumas revistas, o telefone e a lista telefónica, um cinzeiro cheio de pontas de cigarros sujas de bâton.

Baba estava estendida no divã, com os pés no ar e a cabeça em baixo; mas à entrada de Lúcio levantou‑se, não para o saudar, o que seria contrário às regras da sua conduta, mas sim para ouvir outro disco. Baba tinha uma farta cabeleira preta e crespa, um corpo opulento e um rosto agradável, se bem que cheio e simples. Se não fossem as calças azuis e o pullover encarnado, pensou Lúcio, olhando‑a, pareceria uma boa rapariga do campo. Mas os olhos negros, grandes e fixos, cortados a meio da pupila por pálpebras pesadas e ensonadas, tinham uma expressão estupefacta, drogada e um pouco mentecapta, que estava de acordo com o seu modo de vestir e de se comportar. Sem olhar para Lúcio, disse:

‑ Aviso‑te de que hoje não estou de maré. Sinto‑me estranha. Lúcio suspirou e, acocorando‑se no chão, respondeu:

‑ Quando é que não te sentes estranha? ‑ Baba não respondeu, pôs o disco a girar e, depois, atirou‑se de novo para o divã. Lúcio aproximou‑se, rastejando pelo pavimento, e tentou agarrar‑lhe a mão; mas retirou‑a imediatamente com um abafado grito de dor: queimara‑se num cigarro que Baba segurava entre dois dedos, com a parte acesa escondida na palma da mão. Raivosamente, disse para consigo que era bem feito: cortejava Baba sem convicção, esperando, como em todas as outras coisas da sua vida, que da esterilidade e aridez brotasse subitamente qualquer coisa de natural; mas, pelo contrário, era este o resultado. Entretanto, depois das primeiras notas de guitarra, o disco atirava para o ar uma voz que parecia possuída de uma languidez grotesca, como se o cantor não se recordasse bem das palavras da canção. Lúcio, dando um salto, pôs‑se em pé e foi observar o gira‑discos.

‑ Mas este é um disco de setenta e oito rotações e puseste‑o a trinta e três...

Baba respondeu, com voz arrastada:

‑ Eh, sim...

‑ Mas então porquê?

‑Ora...

A canção arranhava os ouvidos, com uma desafinação significativa, se bem que obscura. Lúcio parou o gira‑discos. Baba gritou:

‑ Porque o paraste? ‑ Ergueu‑se do divã, brandindo ameaçadoramente uma faca de caça que trazia à cintura; em seguida, acalmando‑se, foi esborrachar o nariz contra a vidraça. Um momento depois, com voz angustiada, exclamou: ‑ Vem cá ver uma coisa. ‑ Lúcio levantou‑se contrariado e foi olhar também. Via‑se a alameda coberta de folhas mortas e, ao meio, numa cova do asfalto, uma poça de água onde se reflectiam o céu e as nuvens. Um grande furgão para transporte de mercadorias, amarelo e preto, estava parado do outro lado da estrada, com dois enormes cavalos brancos malhados. O furgão tinha as portinholas escancaradas e três homens descarregavam dele uma feia arca escura, estilo século XIV; entretanto, um dos cavalos raspava com o casco o asfalto e, ao mesmo tempo, satisfazia, a intervalos regulares, uma necessidade natural. Baba insistiu:

‑ Olha aquele cavalo: não é terrível? ‑ Mas Lúcio, pensando que Baba procurava, uma vez mais, ser original, num vazio de interesses e de afectos, nem sequer lhe respondeu. Agora voltara‑lhe à ideia o odor boscarejo da chuva, e perguntava a si mesmo por que motivo, em vez de andar a passear, se encontrava em casa. Quando se voltou para a sala, viu que Baba tornara a sentar‑se no divã e curvada, com a cabeça baixa, procurava fazer uma coisa muito difícil: rasgar em duas partes a lista telefónica. Propôs a Lúcio: ‑ Dizem que é precisa uma força excepcional para rasgar em duas uma lista telefónica. Vamos ver quem tem mais força, façamos a experiência. Eu tentarei rasgar o livro a partir da letra D. Depois experimentarás tu.

Lúcio observou:

‑ Mas a lista telefónica faz falta. Como farás depois sem lista?

‑ Pedirei o número à menina. Ou, então, deixarei de telefonar.

Viu‑a abrir o livro, soletrar: "D'Amico, D'Amico, D'Amore... Pronto, rasgá‑la‑ei a partir de D'Amore", e, em seguida, aberto o livro, tentar em vão parti‑lo.

A porta, ao fundo da sala abriu‑se, e o pai de Baba, um homem baixo, entroncado de aspecto violento, com uma grande cabeça negra e crespa toda filetada de prata, entrou gritando qualquer coisa, com voz irada num dialecto primitivo, quase incompreensível para Lúcio. Baba, sem se descompor e no mesmo dialecto, respondeu‑lhe, como parecia, à letra. Lúcio compreendeu que o motivo da discussão era precisamente a lista telefónica, que o pai, depois de mais algumas invectivas, veio buscar, sem cuidar de responder à sua saudação. Logo que o pai saiu, Baba, com característica distracção, dedicou‑se cuidadosamente à limpeza das unhas, sujas e partidas, com a ponta da sua faca de caça. Acontecia sempre assim, pensou Lúcio. Baba começava uma coisa, depois outra, depois outra ainda, e a seguir cansava‑se pelo caminho, como se se apercebesse da inutilidade e absurdidade daquilo que fazia. Após um momento de silêncio, como com para dar início a uma conversa, disse‑lhe:

‑ A propósito, estou a ler um livro muito interessante.

‑ Qual?

Era verdade: naqueles dias tinha lido um livro de divulgação científica sobre a energia atómica, que o havia impressionado e muito. Assim, quase esquecendo que Baba era pouco menos que analFabeta, começou a explicar‑Lhe, com muito entusiasmo, as propriedades do átomo. Baba escutava‑o, fixando nele os seus olhos meio escondidos pelas pálpebras pesadas, belos e imbecis, nos quais a expressão sonolenta parecia, desta vez, misturada de uma incompreensível curiosidade atónita. Perguntou por fim:

‑Mas porque me dizes essas coisas?

Lúcio, desconcertado, respondeu:

‑Porque julgava que te pudesse interessar.

‑Não me interessam, de facto, e não percebo nada disso.

‑Então diz‑me o que te interessa.

‑ Não sei.

Lúcio reflectiu por um instante e, depois, prosseguiu:

‑Queres ir ao cinema comigo?

‑Não, não tenho vontade.

‑ Queres dar um passeio de carro?

‑ Também não.

‑ Queres ir comer um gelado?

‑ Por favor.

‑Queres que fiquemos aqui?

‑Não, no fundo também não era isso o que eu quereria.

‑ Diz então aquilo que queres.

Viu‑a desembainhar de novo a faca e espetá‑la com força no braço do divã:

‑ Isto! ‑ Eram as suas habituais estranhezas, e Lúcio há muito tinha perdido toda a curiosidade de saber o motivo por que Baba as praticava. Pensou que não havia mais nada a fazer senão cortejá‑la; mas pensou nisso com desespero, porque havia tempos que Baba, se bem que lhe agradasse, o desgostava com as suas ocas excentricidades. Levantou‑se, veio sentar‑se no divã e, quase automaticamente, abraçou a rapariga pela cintura, tentando beijá‑la. Recebeu imediatamente um empurrão tão vigoroso que por pouco não caiu no chão. ‑ Eu digo‑te que me sinto estranha e tu vens falar‑me de amor?! És doido?

Repentinamente, Lúcio reparou que estava a perder a paciência; e pareceu‑lhe que a perdia não tanto por causa de Baba e do beiço recusado, mas principalmente por causa da sua vida, que se assemelhava há demasiado tempo a Baba e às suas relações com ela. Replicou furioso:

‑ Doida és tu!

‑Está bem, sou eu. Mas não tentes beijar‑me outra vez.

‑ Diz‑me então o que queres que façamos.

‑ Façamos um jogo deste género. Eu...

Pela expressão, Lúcio compreendeu que Baba não sabia o que ia a dizer e não a deixou acabar. Ergueu uma mão e deu‑lhe uma bofetada. BHaba respondeu‑lhe imediatamente com outra forte bofetada. Lúcio sentiu então um ódio violento inflamar‑Lhe o peito. Talvez fosse ‑ pensou, agarrando Baba pelos cabelos e arremessando‑a de costas para o divã ‑, talvez fosse exactamente esta a coisa natural que sempre esperara que viesse a surgir desta obtusa e estéril situação. Lúcio, agora, procurava esbofetear Baba, e esta, por sua vez, com ódio não menos violento, procurava arranhar‑lhe a cara e atingi‑lo com o joelho no estômago. Lutaram assim por instantes e rolaram depois pelo chão, batendo‑se sempre selvaticamente; por fim, Baba conseguiu libertar‑se e fugiu da sala, gritando inesperadamente:

‑ Telefona‑me amanhã de manhã!

Lúcio, ainda ofegante, levantou‑se, compôs o melhor possível os cabelos e o fato e foi para o vestíbulo. Estava uma porta entreaberta e ouvia‑se uma voz de mulher, talvez a da mãe de Baba, gritar no habitual dialecto primitivo e vulgar qualquer coisa de incompreensível, com tom irritado. Lúcio saiu para o patamar e fechou a porta atrás de si.

Na alameda suburbana, caminhando ao longo dos plátanos, advertiu de novo o cheiro boscarejo despertado pelas chuvas outonais e reconheceu, por contraste, que era agudamente e estupidamente infeliz. Seria possível, pensou, que a sua vida não se pudesse assemelhar àquele odor tão bom e tão vivo?; que ele estivesse, pelo contrário, condenado a fazer as coisas e a viver com as pessoas que não lhe agradavam? Verificava que não sentia gosto por nada e que nada compreendia; exactamente como um estrangeiro que se encontra em país estranho e que, antes de se orientar, deve forçosamente cometer uma série de erros. Mas esta comparação, que antes lhe parecera desencorajante, consolou‑o agora um pouco. Pensou que, depois dos erros, quem sabe, talvez viessem as coisas certas.

 

           A VIAGEM DE NÚPCIAS

 

Logo que o comboio saiu da estação e começou a correr, a esposa disse que as cerimónias nupciais a tinham cansado muito; era um verdadeiro alívio estarem finalmente sós. Giovanni respondeu em ar de gracejo:

‑O prazer da viagem de núpcias, segundo creio, consiste principalmente em subtrairmo‑nos a todos aqueles que nos querem festejar.

Apenas acabou de pronunciar estas palavras, verificou que eram pelo menos estranhas na boca de quem, como ele, se havia casado um par de horas antes; e pensou em desculpar‑se, de forma afectuosa, com a mulher. Mas não teve para isso tempo, porque, por sua vez, a mulher, sorrindo, observou:

‑Sim, mas desde que os noivos se amem realmente. Acho que muitos, no entanto, gostariam de prolongar o mais possível a festa, a fim de retardarem o momento de se encontrarem sós.

Giovanni não disse nada; levantou‑se e começou a arrumar as malas nos porta‑bagagens. No momento exacto em que erguia os braços para remover a mala maior, a frase da mulher, que já Lhe tinha saído da ideia, voltou‑lhe de novo à memória, ressaltando do silêncio como ressalta uma bola arremessada contra um muro. E ele não pôde deixar de ficar por um instante parado, com os braços erguidos e os olhos fixos num cartaz de publicidade turística representando o lago de Como. "Desde que os noivos se amem realmente. " Porque teria a esposa proferido aquela frase? A quem quereria aludir?

Acabou de arrumar as malas e, depois, sentou‑se de novo em frente da mulher, que, entretanto, tinha voltado a cabeça para ajanela e, segundo parecia, observava o campo nu e escuro, inundado de claro sol invernal. Giovanni estudou por um momento a figura da mulher, e então ‑ tendo a sensação de fazer uma autêntica descoberta, após muitas confusas exaltações‑ verificou, subitamente, que não havia qualquer relação entre eles; ou, melhor, que havia a mesma relação que pode surgir entre um viajante desprovido de curiosidade e uma sua companheira de compartimento, moderadamente atraente e interessante. Notou que a mulher tinha os seus cabelos, louros e finos, penteados de uma maneira nova, para cima; este penteado insólito confirmava a sua sensação de se encontrar perante uma completa desconhecida. Por outro lado, o rosto branco e frio, de traços delicados e caprichosos, aparecia‑lhe destituído de irradiações afectuosas, semelhante a um astro extinto do qual seria inútil esperar luz e calor. Mas reparou imediatamente que atribuía à mulher a sua própria falta de sentimento; ela não era senão um espelho no qual se reflectia fielmente a sua apatia.

Ocorreu‑lhe que devia falar; com as palavras, talvez esta sen sação de incomunicabilidade desaparecesse. Mas o que dizer? A única coisa a dizer, pensou com pavor, era que não havia nada a dizer. Circunvagou o olhar pelo compartimento do vagão‑cama, cheio de madeiras polidas, de metais e de veludos, procurando um pretexto para conversar. Depois olhou para a janela inundada de sol. Disse apressadamente:

‑ Está um lindo dia, não está?

A mulher respondeu, sem se voltar:

‑ Sim, está.

Giovanni perguntou a si mesmo o que tinha tornado a sua frase tão diversa da mesmíssima frase proferida noutras circuns tâncias; e compreendeu, talvez pela primeira vez desde que ele e a sua mulher se conheciam, que quisera dizer apenas aquilo que dissera, nem mais nem menos; isto é, na prática, nada. Outras vezes, pelo contrário, a frase sobre o estado do tempo tinha tido o valor de uma abordagem sentimental, tinha servido, em suma, para estabelecer contacto. Querendo ficar totalmente convencido, recomeçou:

‑ Queres ler o jornal?

‑ Não, obrigada, prefiro olhar a paisagem.

‑ Pouco falta para passarmos pela estação de Civitavecchia.

‑ A que distância fica de Roma?

‑ Julgo que a pouco mais de cinquenta quilómetros.

‑Que há em Civitavecchia? Um porto?

‑ Sim, o porto onde se embarca para a Sardenha.

‑ Nunca estive na Sardenha.

‑ Estive eu, passei lá um Verão.

‑ Quando?

‑ Há quatro anos.

A mulher calou‑se, voltando a cabeça para a janela; e Giovanni, desesperado, perguntou a si mesmo se, por acaso, ela não teria reparado que ele lhe falava de maneira mecânica, usando palavras insensatas, como as que se lêem, seguidas, nas páginas dos dicionários. Depois de reflectir, concluiu que alguma coisa devia ter transparecido; com efeito, havia quase uma obstinação inflexível na forma como ela olhava a paisagem. Além disso, franzia as sobrancelhas e mordiscava o lábio inferior, o que era sinal de contrariedade. Giovanni suspirou, pegou ao acaso numa revista e e folheou‑a. O olhar caiu‑lhe sobre o jogo das palavras cruzadas, que não fazia há muito tempo, e veio‑Lhe à ideia que era uma ocupação totalmente de acordo com o seu actual estado de espírito. Remexeu no bolso à procura de uma caneta e, não a encontrando, pediu à mulher:

‑Por favor, podes emprestar‑me a tua caneta?

Ao mesmo tempo, a mulher, voltando‑se para ele, disse:

‑ Desculpa, podes emprestar‑me o teu canivete?

As duas frases cruzaram‑se e Giovanni pensou que, noutra altura, ambos teriam desatado a rir com esta cómica coincidência;

mas, desta vez, nem ele nem a mulher se riram, como se soubessem que não havia nada de cómico. Na realidade, pensou Giovanni, tinham‑se casado poucas horas antes, em frente do altar, segundo um rito de séculos, que os queria unidos e comunicantes para sempre; e, no entanto, tinham já descido ao ponto de se falarem como nos exercícios linguísticos dos manuais escolares: "A mulher tem uma caneta, mas o marido tem um canivete. " Giovanni estendeu o objecto pedido, perguntando:

‑ Para que queres o canivete?

Por sua vez, a mulher estendeu‑lhe a caneta, respondendo: ‑Para descascar uma laranja. Tenho sede.

Em seguida, calaram‑se. O comboio corria velozmente ao longo do litoral, de um azul cruel e cintilante; Giovanni procurava em vão encontrar uma palavra com cinco letras que significasse uma descoberta científica susceptível de grandiosos progressos;

a mulher descascava a laranja com a cabeça inclinada, numa atitude própria de passageira reservada que não dá nem pede confidências. Giovanni encontrou finalmente a palavra do jogo: "átomo"; e pôs‑se a pensar que esta palavra tinha para ele muito mais sentido do que a palavra "amor", que, em teoria, deveria designar a relação existente entre ele e a mulher. Experimentou dizer mentalmente: "Eu amo minha mulher", e verificou que a frase Lhe soava vazia e arbitrária como uma afirmação que não pode ser demonstrada. Pensou então: "A laranja está na mão de minha mulher", e sentiu imediatamente que tinha formulado um pensamento muito mais consistente e verdadeiro. Ergueu os olhos: a laranja estava de facto na mão de sua mulher, e esta olhava‑o fixamente, com ar consternado. Disse, embaraçado:

‑ Chegaremos a Paris amanhã de manhã, às nove.

A mulher, com voz sumida, respondeu:

‑ Sim. ‑ Levantou‑se e, sem apresentar qualquer justificação, saiu apressadamente do compartimento.

Logo que ficou só, Giovanni notou com espanto que experimentara uma espécie de alívio. Sim, não havia dúvidas, o facto de sua mulher ter saído quase o fazia crer que ela não existia; e esta ilusão inspirava‑lhe um sentimento que não estava muito distante da felicidade. Era uma felicidade negativa, semelhante àquela que alguém experimenta quando uma enxaqueca ou outra dor física cessa repentinamente; mas, de qualquer modo, era a única que tinha sentido desde que entrara no compartimento. Por consequência, pensou ainda com terror, logo que a mulher regressasse, sentir‑se‑ia de novo infeliz. E seria assim durante toda a sua vida, pois, estando casados, já nada havia a fazer

Subitamente, a saída precipitada da mulher, pouco antes, pareceu‑lhe significativa. Evidentemente, ela notara a sua frieza abstracta e mecânica e saíra porque não a podia já suportar. O que havia de estranho? Até um cego notaria isso; e com maior razão uma mulher sensível e inteligente, no primeiro dia de casada, durante a viagem de núpcias.

O comboio emitiu um silvo longo e começou a afrouxar, enquanto o mar azul e resplandecente desaparecia atrás de uma fila de edifícios populares, amarelados. O comboio parou debaixo de um alpendre; uma voz gritou sonoramente: "Civitavecchia!"; as portas começaram a bater, escancarando‑se. Giovanni levantou‑se e, a fim de desanuviar a cabeça no ar gelado, puxou para cima o vidro da janela. Então, para além da multidão que subia ou descia do comboio, para além de um carrinho carregado de revistas e de livros, viu a mulher, reconhecível pelos cabelos louros e pelo tailleur cinzento‑azulado, a encaminhar‑se apressadamente para a porta de saída. Pensou logo que estivesse a fugir: certamente dirigia‑se para o largo da estação, onde apanharia um táxi que a levasse a Roma. Assim se explicava o seu silêncio e a sua saída do compartimento pouco antes. Ao pensar nisto, Giovanni sentiu‑se assaltar inesperadamente por uma ansiedade desesperada; atirou‑se para o corredor, alcançou a porta, saltou para baixo.

Mas quando ergueu os olhos viu a mulher vir ao seu encontro, sorrindo, feliz. Dando‑Lhe o braço, Giovanni não pôde deixar de apertar o braço dela entre o seu. Subiram de novo, pois o comboio, apitando, já começava a arrancar. Uma vez no compartimento, ela lançou‑lhe subitamente os braços ao pescoço, beijando‑o com paixão, Depois, Giovanni ouviu‑a balbuciar:

‑ Se tu soubesses que medo eu tive!... Estava debruçada à janela, ao fundo do corredor, e pareceu‑me ver‑te descer da carruagem e avançar para a saída, como para fugires de mim. Então, corri no teu encalço e agarrei‑te por um braço. Mas não eras tu, era outro parecido contigo e que caiu das nuvens quando lhe falei, chamando‑o pelo teu nome.

‑ Mas porque temias que eu fugisse?

‑Porque há pouco tive uma sensação horrível. Parecia‑me não sentir já nada por ti, não poder sequer falar‑te: e convenci‑me de que te tinhas apercebido disto e que, então, tinhas preferido fugir em vez de ficar comigo.

 

             A CENSURA

 

Uma noite, Tarcísio, entrando mais cedo do que o costume, encontrou a mulher com o amigo Sílvio numa atitude que não deixava dúvidas sobre a natureza das suas relações: sentados no divã, em frente da mesa posta para três, abraçados, com as costas voltadas para a porta pela qual ele espreitava. Tarcísio nunca pensara que a mulher pudesse atraiçoá‑lo; e, assim, não se refez da surpresa nem começou a sofrer senão quando o amigo já tinha fugido e a mulher havia assumido uma atitude mundana, com as pernas cruzadas e o cigarro nos lábios. Imediatamente, ela propôs‑lhe a separação, de maneira precipitada, mas sem qualquer cerimónia, como se quisesse, acima de tudo, evitar qualquer explicação; e Tarcísio, obscuramente, ficou‑Lhe grato por esta sua precipitação também ele sentia que não desejava discutir, analisar, aprofundar, compreender: tudo coisas inúteis, nestes casos. Mas queria ganhar tempo e, por isso, respondeu que iria pensar no assunto, entretanto, como não tinha fome, renunciava a comer; naquela noite dormiria no divã, na sala. A mulher não fez qualquer objecção; levantou‑se, foi ao quarto contíguo e voltou com um par de cobertores e um travesseiro, que depôs sobre o divã. Tarcísio notou que a mulher fazia estas coisas sem manifestar qualquer sentimento, como se estivesse de tácito acordo com ele, e ficou‑lhe novamente agradecido. A mulher retirou‑se; Tarcísio ligou a telefonia e durante um par de horas escutou um programa de cançonetas e de música ligeira. Entretanto fumando um cigarro atrás de outro, não pensava em nada. Passadas assim duas horas, desligou a telefonia, pegou num bocado de pão que estava sobre a mesa e comeu‑o lentamente; em seguida tirou os sapatos e, estendendo‑se no divã, apagou a luz.

Dormiu muito, talvez dez horas; quando acordou e olhou em volta teve a sensação de ter dormido não apenas aquela noite, mas também durante os dois anos do seu casamento e de ter justamente sonhado que era casado e tinha vivido feliz ao lado da mulher que amava. Perguntou a si mesmo a que coisa seria devida esta sensação de sonho e concluiu que era originada por saber que sofria e, ao mesmo tempo, que não experimentava qualquer dor. Em suma, uma dor indolor, pensou finalmente. Agora tinha tomado banho, tinha‑se barbeado, vestido e, sentado no divã, acabava de beber o chá que a criada colocara à sua frente, sobre a mesa. Do lado de lá da porta ouvia‑se a voz da mulher a falar ao telefone, no quarto. Depois a porta abriu‑se e ela apareceu.

Estava em camisa de noite; o seu belo corpo, um pouco maciço, desenhava‑se através do tecido amarrotado, com contornos incertos e indolentes. Disse:

‑ A Sra. Stazi está ao telefone e quer saber o que decidimos sobre o apartamento.

Tarcísio notou que a voz da mulher era neutra, isto é, nem hostil nem tímida, mas também não era normal: era neutra, ou seja, muito semelhante à das personagens que nos falam nos sonhos ‑ e reconheceu que mais uma vez lhe estava grato por isso. Perguntou:

‑ Qual apartamento?

‑ O apartamento que ficámos de ir ver esta manhã. Tarcísio recordou‑se, finalmente: tinham decidido adquirir um apartamento; aquele onde habitavam era demasiado pequeno. Respondeu:

‑Está bem, diz‑Lhe que venha, como ficou combinado. A mulher saiu; e Tarcísio, tirando do bolso a agenda, começou a ler os compromissos para aquele dia. Com efeito, estava tudo ordenadamente anotado: a entrevista com a Sra. Stazi, uma segunda entrevista com o seu corretor e depois, imediatamente antes do almoço, uma entrevista com um misterioso S. T. seguido de um ponto de interrogação. à tarde receberia algumas visitas e, à noite, tinha um convite para jantar. Mas a entrevista com o S. T. prendeu a atenção de Tarcísio. Na realidade, não se recordava de quem poderia ser este S. T. Mentalmente, reconstruiu o dia anterior, na esperança de descobrir a chamada telefónica ou o encontro que o haviam levado a escrever aquelas iniciais, mas não encontrou nada. A entrevista com S. T. devia ter sido anotada muitos dias antes, como lhe acontecia às vezes. De qualquer modo, pensou, devia tratar‑se de alguém que ele considerava ou muito íntimo ou muito antipático: íntimo, porque achara suficiente indicá‑lo com as iniciais; antipático, porque também tinha por hábito anotar daquela maneira os nomes das pessoas que, por qualquer motivo, não gostaria de conhecer nem de frequentar. O ponto de interrogação, portanto, parecia confirmar esta segunda hipótese, denotando dúvidas acerca da oportunidade de receber o misterioso visitante.

Enquanto pensava nisto, ouviu tocar à campainha; depois, a porta da sala abriu‑se e a Sra. Stazi entrou. A Sra. Stazi era bem conhecida de Tarcísio: quase velha, magra e acabada, provàvelmente infeliz, a Sra. Stazi comprazia‑se da felicidade alheia, de uma maneira verbosa, toda sua; e servia‑se deste comprazimento quase vingativo para o seu mister de intermediária na compra e venda de imóveis. Com voz estrídula e desesperada, a Sra. Stazi ilustrava a felicidade de que gozariam os seus clientes logo que entrassem nos apartamentos que ela recomendava; escutando‑a, não se podia deixar de supor que ela vivia num tugúrio sórdido e desprovido de todas as comodidades. A Sra. Stazi, entrando, disse a Tarcísio:

‑ Devia vir às três, mas como às três tinha outro assunto a tratar, combinei com sua mulher vir agora. Espero não o incomodar.

E Tarcísio perguntou a si mesmo se porventura as iniciais S. T. não seriam as duas primeiras letras do nome Stazi. Mas, além de lhe parecer pouco provável ter assinalado um nome com as suas duas primeiras letras, os tempos não concordavam: a hora da entrevista fora alterada naquela manhã e ele tinha certamente escrito as iniciais, pelo menos, dois dias antes. Entretanto, a mulher, já vestida, tinha entrado na sala; e saíram os três de casa.

Na estrada, conduzindo o carro através do Lungotevere escuro e molhado, sob um céu sombrio, ao longo de uma fila de prédios claros, Tarcísio recomeçou a pensar na mulher que ia sentada a seu lado, imóvel e silenciosa. A dor indolor, como que verificava, persistia; e ele temia acima de tudo que se tornasse realmente dolorosa e, portanto, insuportável. Isto, disse para con consigo, aconteceria certamente se pedisse uma explicação: em primeiro lugar, ficaria a saber até onde chegara a traição, que, por agora, ao que sabia, se limitava a um beijo; depois, para se defender ou justificar, a mulher atirar‑lhe‑ia à cara sabe‑se lá que acusações; ele deveria rebatê‑la, acusando‑a por sua vez; e, assim, que viriam à baila uma série de questões que na realidade não existiam, visto eles nunca terem falado nelas. Mas seria possível não falar? Tarcísio observou o rosto da mulher, um pouco cheio, até delicado, com traços finos e caprichosos, emoldurado por leves cabelos louros; e descobriu subitamente que nunca tinham conversado um com o outro; e que, entre as muitas coisas que tinham calado, talvez o adultério não fosse a mais importante. Por isso, e porque haviam de começar a falar exactamente agora, numa altura tão pouco oportuna?

Entretanto, conduzia o carro de maneira quase automática e sobressaltou‑se quando ouviu a voz da Sra. Stazi dizer:

‑ Pronto, volte à direita. Veja que estrada sossegada, familiar, recolhida. Informei‑me sobre as pessoas que aqui habitam e posso garantir‑lhe que é tudo gente de bem.

Tarcísio não disse nada; parou, puxou o travão de mão e, seguindo a mulher e a Sra. Stazi, subiu a escada de um prédio de três andares, de fachada azul e verde. Como através de uma mecha de algodão, a voz da Sra. Stazi chegava agora até ele estrídula e remota:

‑ Apartamentos de luxo... No primeiro andar, um industrial que o senhor certamente conhece... no terceiro, um casal de americanos... Cada apartamento tem a sua garagem, com capacidade para três carros... Esta é a entrada, ampla, com bengaleiro... esta é a sala grande, para receber os amigos numa atmosfera serena, calma, elegante... esta é a sala mais pequena, para a intimidade familiar, a telefonia, a televisão... Aqui está o quarto: não lhe parece, senhora, que já aqui viveu, dormiu, sonhou?... Aqui está uma sala para si, doutor: poderá instalar aqui um escritório, com os seus livros, as suas estantes, a sua mesa de trabalho, o seu sofá, as suas poltronas... E agora vejam esta cozinha e esta casa de jantar... Daqui passa‑se para o quarto dos hóspedes e para os quartos das criadas... E vejam esta casa de banho: não é uma maravilha?... ‑ A voz da Sra. Stazi, triste até à morte, parecia porém a Tarcísio possuída de certa verdade; sim, desde que o quisessem, eles poderiam ser felizes naquele apartamento, não havia qualquer razão para o não serem. ‑ E, agora, a divisão que reservei para mostrar em último lugar: aquela em que dormirão e viverão os vossos meninos; espaçosa, cheia de luz, alegre, com este magnífico terraço cheio de sol, onde, na Primavera e no Verão, as crianças poderão brincar a apanhar ar. - A voz da Sra. Stazi nunca tinha sido tão triste como agora, que falava com entusiasmo dos futuros filhos de Tarcísio.

A visita ao apartamento acabara; Tarcísio disse à Sra. Stazi que lhe daria uma resposta, o mais tardar, dentro de dois dias, e, em seguida, propôs‑se acompanhá‑la a casa. A Sra. Stazi continuou a exaltar as qualidades do apartamento, pode dizer‑se, até ao limiar do portão; exaltação, de resto, supérfula, porque Tarcísio achara, sob todos os aspectos, o apartamento conveniente e pensava comprá‑lo. Logo que deixou a Sra. Stazi, Tarcísio reparou que se tinha feito tarde e que não era já possível o encontro com o corretor. Eram horas do almoço e, normalmente, faziam‑no em casa. Mas Tarcísio, lembrando‑se da entrevista com o desconhecido S. T. , anotada na sua agenda, experimentou subitamente um profundo desejo de não estar em casa quando fosse procurado pelo misterioso visitante. A mulher mostrava‑se agora tranquila e satisfeita; também a ela, segundo parecia, o apartamentu tinha agradado. Tarcísio ligou o motor e, depois, perguntou:

‑ E se fôssemos comer ao restaurante?

‑ Vamos.

‑Onde queres ir?

‑ Onde tu quiseres.

Uma vez no restaurante, sentados lado a lado num baixo sofá, sob um grande espelho, em frente de uma mesa posta, Tarcísio notou que a mulher tinha a mão pousada no estofo e sentiu desejos de lha apertar, em sinal de reconciliação. Mas não seria demasiado cedo? Logo que encomendou o almoço, disse:

‑Escrevi na minha agenda as iniciais de alguém que me deveria procurar precisamente neste momento, antes do almoço. Mas não consigo recordar‑me de quem possam ser.

‑ Que iniciais são?

‑ S. T. Aqui ao lado pus um ponto de interrogação, sinal de que é pessoa que não veria com muito agrado. Quem poderá ser?

A mulher mencionou vários nomes: Severino Tocchi, um carpinteiro; Stefano Terenzi, um decorador; Santina Tipaldi, uma massagista; em seguida, como se estivesse a ler uma lista, sempre com a mesma voz neutra, nomeou o amigo com quem Tarcísio a surpreendera no dia anterior: Sílvio Tommasi. Tarcísio respondeu imediatamente, com perfeita naturalidade:

‑ Não é possível que seja Sílvio. Tê‑lo‑ia escrito com todas as letras. E, além disso, não teria aqui posto um ponto de interrogação. Porquê um ponto de interrogação?

‑ Tens a certeza de que não o escreveste ontem à noite, depois de nos termos visto?

‑ Mas eu não falei com Sílvio.

‑ É possível que tenhas combinado, há alguns dias, um encontro com ele, talvez um convite para almoçar. E naturalmente, ontem à noite, acrescentaste o ponto de interrogação.

‑ Mas eu não me recordo de, ontem à noite, ter tido a agenda na mão.

‑ Pode ser que o tenhas feito sem dar por isso.

Continuaram assim a discutir o caso com um tom que se tornava cada vez mais desafectado, sereno, impessoal, quase científico. Por fim, Tarcísio disse:

‑Bem, de qualquer forma, agora tenho de telefonar para casa para saber se este S. T. apareceu ou não. ‑ E, dizendo isto, levantou‑se e foi à cabina telefónica.

A criada respondeu‑lhe imediatamente que, na verdade, estava uma pessoa à sua espera na sala; não se tratava de um homem, mas sim de uma senhora, de uma mulher. Tarcísio gostaria de lhe dizer: "Pergunte‑lhe quem é, como se chama", mas conteve‑se. Por que motivo havia de saber tais coisas desta misteriiosa visitante, se não quisera saber nada de sua mulher? A concluir, recomendou:

‑Diga‑lhe que não estou em Roma, que estou no estrangeiro e que não sabe quando voltarei.

A criada respondeu‑lhe que o faria; e Tarcísio voltou para a mesa.

Agora parecia‑lhe que podia ter o gesto que o havia tentado pouco antes; e, com a sua mão, foi apertar, em cima do estofo do sofá, a mão da mulher. Ela, por sua vez, apertou a dele.

 

             DORMISTE

 

O portão de ferro estava semiaberto; antes de entrar, a mãe indicou ao pai o cartaz onde se lia que os resgates não se podiam fazer senão de manhã, entre as 10 e as 12.

‑ Absurdo. E se alguém tem o hábito, como eu, de se levantar tarde, como faz?

Girolamo não esperou para ouvir a resposta do pai e, desprendendo‑se da mão deste entrou em primeiro lugar no recinto do canil. Havia um pátio de cimento, de uma brancura opaca; em frente do portão estava o edifício dos escritórios, baixo e amarelado; à esquerda ficavam as janelas onde se encontravam os cães particulares, em observação, e, à direita, as filas das celas em que estavam presos os cães vadios. Girolamo disse ansiosamente à mãe:

‑ Mamã, o grifo preto estava na cela número sessenta.

A mãe não lhe respondeu; mas recomendou ao pai:

‑ É preciso procurar o empregado. Um lourinho. Nós, entretanto, vamos vendo os cães.

O pai, acendendo um cigarro, dirigiu‑se para os escritórios. A mãe, conduzindo Girolamo pela mão, encaminhou‑se para as celas.

O recinto estava imerso num silêncio completo, simultâneamente pesado e suspenso, ao qual o leve odor ferino que se sentia no ar parecia atribuir um significado de expectativa angustiosa. Mas, apenas a mãe e Girolamo se aproximaram da primeira cela, logo um cão, sòzinho a princípio, depois dois, três, todos começaram a uivar. Girolamo notou que eram uivos muito diferentes, como diferentes eram os cães que os emitiam, desde o ganido estrídulo ao latido profundo; pareceu‑lhe, no entanto, que havia uma nota comum naquelas vozes discordantes: a de uma súplica pungente e perfeitamente consciente. Pensando que todos aqueles latidos eram para ele, sentiu desejos de agarrar no cão que havia escolhido e sair dali o mais depressa possível. Puxando a mão à mãe, repetiu:

‑ Mamã, o grifo está na cela número sessenta.

‑ Aqui está a cela número sessenta! ‑ exclamou a mãe.

Girolamo aproximou‑se e olhou. Cinco dias antes, quando vieram de tarde, a cela estava ocupada por um pequeno cão preto e hirsuto, com olhos de carvão e dentes muito brancos, de uma vivacidade impaciente e patética, o qual, logo que Girolamo se aproximara, se precipitara de encontro a ele, ganindo e estendendo‑lhe a pata através da grade. Tinham decidido levar aquele cão; mas fora‑lhes dito que voltassem de manhã, que era a hora em que se podiam fazer resgates. Agora, porém, a cela parecia vazia; ou, melhor, ao fundo, Girolamo viu um pequeno vulpino castanho, enroscado, que o fitava com olhos tristes e apagados, e que de vez em quando era sacudido por convulsões, como se tivesse arrepios penódicos. Girolamo disse com voz já desesperada:

‑Mamã, o grifo não está.

‑ Certamente meteram‑no noutra cela ‑ respondeu a mãe em tom evasivo ‑, a menos que o dono o tenha vindo buscar. Perguntaremos isso agora ao empregado.

Neste instante vindo dos escritórios, chegou o pai:

‑O empregado estará aqui dentro de momentos.

‑Vamos ver os cães, entretanto.

Não fazendo caso de Girolamo, que gostaria de esperar pelo empregado junto da cela número sessenta, os pais começaram a caminhar, observando os cães um a um. Girolamo, como numa névoa de amarga incerteza, ouviu a mãe dizer ao pai:

‑ No outro dia havia também um par de cães de raça. U boxer e um perdigueiro. É estranho, eh!, que esses cães venham cá parar.

O pai respondeu:

‑Perdem‑nos. Ou, então, abandonam‑nos de propósito. Muitos, como não podem abandonar da mesma forma qualquer pessoa que têm a seu cargo, vingam‑se nos cães.

Os cães continuavam a ladrar desesperadamente; e Girolamo perguntava a si próprio se entre todos aqueles ladridos não estaria também o do seu grifo. O pai, em voz baixa, observou:

‑ Sabes... tenho a impressão de que os mestiços fazem um ganido mais doloroso do que os cães de raça pura.

‑ E porquê?

‑ Porque reconhecem que não são de raça e que têm menos probabilidades de se salvar.

A mãe encolheu os ombros:

‑ Mas eles não sabem o que significa ser de raça ou mestiços. São os homens que fazem essas distinções.

‑Não. Sabem que são mestiços porque se vêem tratados de pior maneira; e quem se vê tratado de pior maneira pensa, a princípio, que a culpa é dos outros, mas depois, à força de se repetir a cena, acaba por concluir que a culpa é sua. É claro que o ser mestiço não é em si uma culpa; mas acaba por vir a sê‑lo, por causa do tratamento diverso.

‑ Oh!, lá estás tu com as tuas habituais subtilezas.

Pararam ao acaso diante de uma jaula. Um cachorro, esquisito e feio, malhado de amarelo e branco, com as patas e a cabeça enormes e o corpo minúsculo, precipitou‑se para a grade e, pondo‑se em pé, começou a ganir de modo muito expressivo; ao mesmo tempo, procurava lamber a mão de Girolamo e estendia‑lhe a pata. A mãe leu em voz alta o registo dos sinais: "Mestiço. Capturado na Rua das Sete Igrejas. " E, em seguida, voltando‑se para o pai:

‑ Aqui está um, pobrezinho, que é mesmo feio. Mas onde fica a Rua das Sete Igrejas?

‑ Para os lados da Rua Cristóvão Colombo.

Entretanto, o mestiço uivava e agitava‑se, procurando introduzir a pata na mão de Girolamo, como se quisesse estabelecer um pacto de amizade com ele. Girolamo, por fim, apertou‑lha; e o cão pareceu ter ficado um pouco tranquilizado. A mãe perguntou:

‑Dizem que os mestiços são mais inteligentes do que os cães de raça, será verdade?

‑ Não creio. É uma atoarda posta a circular pelos cães de raça ‑ redarguiu o pai em tom de gracejo.

‑ E porquê?

‑Para depreciar a inteligência em confronto com outras qualidades como a beleza, o faro, a coragem e assim por diante.

Pararam diante de uma outra jaula onde se encontrava um lobo muito escanzelado e talvez velho, do tamanho da jaula e com ar de estar apertado, de pêlo amarelo e ralo, de olhos tristes, sanguíneos, odiosos. Quando Girolamo tentou aproximar‑se, o lobo investiu com uma rosnadela, mostrando os dentes brancos e afiados e dando quase a sensação de se ter tornado subitamente bonito e rejuvenescido com esta sua explosão de furor. Girolamo deu um salto para trás com o medo; mas, ao mesmo tempo, comparando os uivos tão inteligentes e tão pungentes do pequeno mestiço apanhado na Rua das Sete Igrejas com o rosnar obtuso r1n lobo, pareceu‑lhe que este último ‑que nem sequer tinha a consolação de compreender o que lhe estava a suceder ‑ despertava mais compaixão do que o primeiro. A mãe disse:

‑ Este, sim, que é mau. Não estará com raiva?

‑ Não, se a tivesse, não estaria aqui. Protesta porque o prenderam, nada mais.

Girolamo observava o lobo atentamente; mas, interessando‑se por ele, tinha a impressão de se libertar de uma angústia que lhe oprimia o coração. Depois percebeu: pensava no grifo, que ainda não tinha sido encontrado. Perguntou inesperadamente:

‑Mamã, é o grifo?

‑Sabê‑lo‑emos logo que venha o empregado.

Agora estavam diante de uma jaula onde havia um pequeno cão de caça, mestiço, deitado de lado, que respirava com dificuldade e tinha arrepios. Girolamo, sentindo um aperto no coração, perguntou:

‑Que tem? Está doente?

A mãe reflectiu por um instante e, depois, respondeu:

‑Não está doente, está apenas angustiado.

‑ Porquê`?

‑ Não estarias também tu angustiado se te tivesses perdido e te tivessem levado para um lugar estranho, longe da tua família?

‑ Mas o dono virá buscá‑lo.

‑ Sim. decerto que virá.

O pai disse:

‑Ali vem o empregado.

Era um jovem de cabeça loura e rapada. de nariz afilado e de olhos intensamente azuis. Aproximou‑se bamboleando"‑se e, a poucos passos, deu os bons‑dias. A mãe disse:

‑Estamos aqui por causa daquele pequeno grifo preto. Recorda‑se?

‑ Qual grifo?

‑Aquele da cela número sessenta - informou Girolamo, adiantando‑se.

- Tinham‑no visto na cela número" sessenta?- inquiriu o lourinho com acento dialectal, arrastando a voz. ‑ Mas esse já não está.

- Vês, mamã`'!‑ gritou Girolamo.

A mãe fez um sinal ao filho; depois, dirigindo‑se ao empregado: Vieram buscá‑lo ?

‑Não; como tinham passado os três dias do regulamento e mais dois dias, mandámo‑lo... - o lourinho pareceu procurar um eufemismo, mas. por fim, resignou‑se a dizer a verdade‑, mandámo‑lo para a câmara de gás.

‑ Mas tínhamos dito que viríamos buscá‑lo.

‑ A senhora tinha dito isso, mas depois não apareceu. O regulamento é esse.

‑ Quantos eliminam por semana`? ‑ perguntou, nesta altura, o pai, aproximando‑se e oferecendo ao lourinho o maço dos cigarros. O lourinho agradeceu, tirou um cigarro, que pôs atrás da orelha, e respondeu:

‑ Bem. dez, quinze por semana.

Girolamo tinha ficado na dúvida. Por fim, com ansiedade profunda, perguntou à mãe:

‑ Mas o que é a câmara de gás?

A mãe hesitou e, depois, declarou secamente, em tom didáctico

‑ Os cães vadios são mortos porque podem difundir a raiva que é uma doença terrível. Por isso, são metidos na câmara de gás, onde morrem sem sofrer.

‑ Então o grifo está morto?

O pai, pousando uma mão no ombro de Girolamo, disse

‑Receio que sim.

Dirigiram‑se para a saída. A mãe propôs a Girolamo:

‑ Hoje não vi nenhum cão que gostasse de ter. Mas num destes dias voltaremos cá e levaremos um. Está bem?

Girolamo não disse nada. Agora recordava‑se do mestiço que lhe tinha posto a pata na mão; mas parecia‑Lhe já não ser possível salvar aquele nem qualquer outro cão. Sentia que tudo era arrastado por uma confusão e por uma indiferença inexplicáveis. Atravessaram a estrada e encaminharam‑se para o carro. Abrindo a porta, o pai disse:

‑ Fizeram‑me perder uma manhã com esta história do cão. Agora tenho de ir a correr para o escritório.

Entraram e sentaram‑se os três no assento da frente. Subitamente, Girolamo disse:

‑ Eu sabia, mamã, que era preciso virmos cá anteontem E disse‑to, mamã. Fui ao teu quarto, ontem e anteontem, e disse‑to

O tom do filho pareceu surpreender a mãe, que respondeu um tanto rispidamente:

‑ Sim, foste, mas eu não pude sair porque estava cansada e tinha necessidade de repousar.

‑ Mas porquê, mamã, não vieste porquê?

‑ Já to disse. Porque dormi.

‑Sim, dormiste, mamã, dormiste.

Girolamo começou inesperadamente a soluçar de tal maneira que o pai, que ia já com o carro em andamento, travou e disse:

‑Vamos, não chores. Na próxima semana, a mamã procurar‑te‑á outro.

Girolamo repetiu mais uma vez, com uma voz forte que o surpreendia a ele próprio:

‑Dormiste, mamã, dormiste, dormiste.

O pai, ligando outra vez o motor, disse de novo:

‑ Vamos, não chores. Um homem não chora.

A mãe observou:

‑ Este rapaz, há já algum tempo que não anda muito bem. É muito nervoso.

O carro partiu.

 

             O HOMEM QUE ESPREITA

 

Depois do almoço, levantaram‑se da mesa e foram sentar‑se junto da chaminé. Mas Valério, mal se sentou, verificou que não podia suportar por mais tempo a companhia de Lavínia e do advogado Rossi. A misteriosa e desconcertante imparcialidade de Lavínia perante a rivalidade que desde o início se manifestara entre ele e o advogado tinha‑o, a princípio, pasmado, depois, magoado e por fim, indignado: o advogado conhecia Lavínia há poucos dias, ele há dois anos, e iam casar‑se. Assim, levantou‑se precipitadamente e disse que tinha de se ir embora. Pareceu‑lhe que o advogado acolhia a sua partida com alívio e, talvez, com gratidão. Lavínia levantou‑se também para o acompanhar.

No vestíbulo, ela disse‑lhe com doçura:

‑ Fazes bem em ir‑te embora.

‑Ah! E porquê, por favor?

‑Porque quando se é ciumento, como tu, é melhor estar só. ‑ Valério gostaria de responder que, se era ciumento, a culpa não era sua; mas não teve tempo para isso. Lavínia acrescentou: - De qualquer modo, volta dentro de meia hora. Assim, podemos sair e dar uma volta. Quero levar o cão a passear.

Uma vez só no patamar, Valério hesitou por um instante e, depois, tirando do bolso uma chave que Lavínia lhe havia dado tempos atrás, entrou de novo no apartamento. Tinha preparado uma desculpa para o caso de encontrar Lavínia; mas no vestíbulo não estava ninguém. Valério abriu a porta do quarto de Lavínia, contornou a cama baixa e larga e saiu pela porta da varanda, que estava aberta. O pequeno apartamento ficava no último andar, no meio de um imenso terraço. Valério seguiu colado à parede e, chegando à janela da sala, espreitou, a princípio, com cautela e, depois, mais decididamente, para dentro. Lavínia estava sentada com as costas voltadas para a janela e o advogado, sentado ao seu lado, de perfil. Valério notou que nem Lavínia nem o advogado podiam vê‑lo; assim, embora numa posição um pouco lateral, a fim de poder saltar para fora ao primeiro alarme, começou a vigiar.

Verificou imediatamente que a natureza do sentimento que o impelia a espiar, o ciúme, lhe impedia a observação de tudo o que não fosse Lavínia. Os móveis da sala, o pavimento, as paredes, o próprio advogado, pareciam envolvidos por uma atmosfera obscura e imprecisa; apenas Lavínia era visível a seus ulhos e à sua consciência. Estava sentada numa cadeirinha muito satisfeita, de forma que as suas ancas de mulher forte e jovem transbordavam um pouco, comunicando uma viva sensação de murbidez. Da cabeça loura, com cabelos finos e fartos puxados para cima, num penteado oval, parecia descer sobre toda a sua pessoa. vestida de claro, uma luz rOSada e cálida. Lavínia envergava uma saia cinzenta e uma blusa branca que deixava ver à transparência a cor da pele. Tinha a cintura delgada, os ombros largos e o colo alto, com alguns caracóis na nuca. Valério compreendeu que ela, pelo gesto que fez, estava a servir o café. O opulento busto na direcção da mesa. Depois, Lavínia, voltando‑se, estendeu a chávena ao advogado; e, como parecia, começou a Falar. Mas Valério não ouvia as palavras; e assim, após aquele gesto do café, a cena tOrnou‑se para ele misteriosa e incOmpreensível, se bem que envolvida ainda por uma desconfiança pecaminosa.

Que diziam eles? Lavínia voltara‑se um pouco para o advOgado entretanto este falava muito, talvez com demasiado calor, detendo‑se para escutar uma Frase de Lavínia e recomeçando depois De vez em quando, Lavínia tinha um daqueles gestos inúteis e lânguidos que fazem as mulheres: passava a mão branca pela nuca. apenas para apanhar os cabelos; ou, então, pousava a mão sobre os joelhos como para a contemplar ou, talvez, dá‑la a contemplar ao advogado. Por se ter voltado um pouco, viam‑se‑lhe os joelhos; e via‑se também a barriga da sua comprida e elegante perna. Valério, de súbito, verificou que quase sentia desejos que os juelhos de Lavínia tocassem nos do advogado, que não estavam muito distantes. Na realidade Valério suspeitava que havia qualquer coisa entre Lavínia e o advogado. e precisava de uma prova, não já da inocência, mas da culpabilidade da mulher.

Mas a prova não apareceu. Lavínia e o advogado, cada vez mais misteriosamente, conversavam, mexiam‑se nas cadeiras, quase roçavam um pelo outro, mas não se tocavam. não se abraçavam, não se beijavam. Depois de ter estado durante quase vinte minutos a observar esta cena insignificante, Valério começou a aborrecer‑se e, ao mesmo tempo, a envergonhar‑se. Quisera encontrar a culpa dentro da sala; mas agora começava a reparar que a culpa estava fora, no terraço. Ele é que estava em falta. assim furtivo, tenso, congestionado, dominado por mórbida curiosidade; não os outros dois. que discorriam tranquilamente. E, além da vergonha por aquilo que fizera e estava ainda a fazer, assaltou‑o uma sensação de desapontamento, violenta e apaixonada, por Lavínia o não trair nem ter qualquer intenção de o fazer. Estava já a preparar‑se para se afastar quando, por acaso, ergueu os olhos e se viu no espelho que estava por cima da lareira, ao fundo da sala.

O espelho não reflectia senão a sua cabeça, com quase macabro efeito, como se fosse a de um decapitado. De resto, a cabeça tinha também a expressão desvairada, os olhos angustiados, a palidez e o horror do degolado. Pousada, por assim dizer, na mísula de mármore da chaminé, a sua cabeça não podia deixar de ter sido vista por Lavínia, que estava sentada exactamente em frente. Deste modo se explicava, pensou imediatamente Valério, a aparente inocência da cena entre a mulher e o advogado. Lavínia vira‑o, advertira, talvez, o advogado; de qualquer modo, tivera o cuidado de não fazer qualquer gesto imprudente. Valério, ao pensar nisto, sentiu dissipar‑se a vergonha e reaparecer o ciúme.

Mas a meia hora, entretanto, tinha passado. Lavínia levantava‑se; e, com ela, levantava‑se o advogado. Valério teve apenas tempo de percorrer à pressa o pedaço do terraço, atravessar o quarto, sumir‑se do vestíbulo e descer um par de lanços da escada. Ouviu, pouco depois, um rumor de vozes e, em seguida, o zumbido do elevador a subir, um bater de portas, o zumbido do elevador a descer. Então, subiu os dois lanços de escada e foi tocar à campainha.

Foi Lavínia que lhe veio abrir a porta, já pronta, com o cão preso à trela ‑ um pequeno grifo preto e fogoso que, ébrio de contentamento, saltava e latia.

‑ És pontual ‑ observou em tom ambíguo, entre a censura e a ironia ‑; mas, como vês, também eu o sou. Mandei embora o advogado, bruscamente. Vamos.

Alguns minutos depois estava já no campo. Valério, conduzindo o carro, não falava; a seu lado, Lavínia segurava com a mão, pela coleira, o cão, que se pendurava frenèticamente na porta. Por fim, perguntou:

‑ Que tal achas o advogado Rossi?

‑ Imundo ‑ respondeu Valério sem se voltar.

Depois desta pergunta e desta resposta, ficaram de novo calados por longo tempo. O carro percorreu um bom tracto de estrada principal, ladeada de plátanos primaveris, cujos gomos claros, quase lívidos, destoavam do negro céu tempestuoso; em seguida, Valério meteu por uma estrada secundária, entre duas filas de colinas cultivadas com trigo, verdes e sem árvores. Desta estrada rural partiam, aqui e além, atalhos que subiam aos ziguezagues pelas colinas. Num cruzamento, Valério, parando o carro, disse que talvez pudessem caminhar um pouco. Lavínia abriu a porta; e o cão, atirando‑se para fora a latir, bem depressa desapareceu entre o trigo alto. Seguiram os dois pelo atalho acima.

Caminharam durante algum tempo. Lavínia, com a trela na mão, precedia Valério; este deixara‑se ficar um pouco para trás, para a ver melhor. Quando passeavam, procedia sempre assim, porque a amava apaixonadamente e nunca se saciava de a contemplar. Lavínia sabia‑o e comprazia‑se com isso; e, desse modo, caminhava sempre com uma espécie de consciência estética, um pouco como um manequim entre duas filas de espectadores. Quando se lhe afigurou que a tinha contemplado bastante, Valério disse bruscamente: "Vamos por aqui", indicando, a pouca distância, um pequeno prado quase plano, atrás de uma sebe. Obediente, dócil, Lavínia saiu do atalho e encaminhou‑se para o prado

A erva era muito alta, basta e emaranhada; de tal modo que quase lhes chegava à cintura e lhes dificultava os passos.

‑ Sentemo‑nos aqui ‑ propôs Valério quando chegaram junto da sebe. Em pé, entre a erva, Lavínia hesitava:

‑ Este lugar não sei porquê ‑ disse com um arrepio ‑, causa‑me medo. Talvez haja serpentes.

Valério sacudiu a cabeça:

‑ Mas quais serpentes, senta‑te. ‑ E, agarrando‑lhe num braço, quase a obrigou a sentar‑se. Ela, obedecendo de novo, estendeu‑se um pouco desajeitadamente, como o pode fazer uma mulher forte e bonita que queira movimentar‑se com elegância. Por fim, ficaram estendidos um em frente do outro, ambos apoiados sobre o cotovelo, Lavínia com as costas para a sebe.

Durante algum tempo não falaram. Lavínia tinha arrancado um fio de erva e mastigava‑o. Depois ergueu os olhos e sorriu‑Lhe, envolvendo‑o ao mesmo tempo num olhar azul, de uma densidade singular que Valério sentiu imediatamente sobre a sua pele ‑ com repentino efeito calmante e benéfico, como se sente o calor de um raio de sol ou a carícia de uma brisa suave. Depois perguntou‑lhe:

‑Porque és tão ciumento?

‑ E quem não o teria sido? Dir‑se‑ia que, para ti, eu e aquele advogado éramos iguais.

‑ Era uma visita, tinha de me ocupar dele.

‑ A certa altura, tocou com a mão dele numa das tuas.

‑ Não dei por isso.

‑ Tinha quase a certeza de que, debaixo da mesa, te tocava no pé.

‑Mas que disparate! Sabes porque convidei o advogado Rossi?

‑ Porquê?

‑ Para a anulação do casamento. Quero confiar‑lhe o caso: já não acredito no meu actual advogado. Como vês no fundo, convidei‑o por tua causa, se é verdade que depois da anulação nos casaremos.

Entretanto, o cão corria alvoroçadamente pelo trigo, ladrando. Era um cão muito vivo, mas demasiadamente assustadiço. Do céu nublado, por cima das colinas, partiu um trovão, seco e cavo. O cão, assustado, correu logo para eles, vindo refugiar‑se atrás de Lavínia.

Valério, agora, sentia‑se de novo tranquilizado. Lavínia possuía esta qualidade extraordinária de que ele desconfiava, mas à qual não sabia subtrair‑se: uma doçura densa e profunda que lhe inspirava o desejo de se perder e nela se afogar como num sorvedouro. Por fim, disse:

‑Perdoa‑me. Prometo‑te que nunca mais serei ciumento. Viu‑a sorrir‑lhe, mas não falar. O cão, agora, estava atrás dela com o focinho levantado e as orelhas direitas, respirando ruidosamente pelas narinas e fitando qualquer coisa atrás de Valério. Também Lavínia, por um momento, pareceu olhar a sebe, atrás de Valério. Depois viu‑a franzir um pouco os olhos e baixá‑los para o solo. Estendeu então a mão e começou a passar‑lha pela cara, numa carícia que, segundo a sua intenção, deveria acabar num beijo. Com surpresa, viu‑a afastar o rosto e depois segurar‑Lhe a mão e reconduzi‑la à posição anterior. Incompreensivo, tentou então beijá‑la, esticando‑se, mas não conseguiu senão tocar‑lhe no queixo. Lavínia puxou para trás a cabeça e disse:

‑ Não, está quieto!

‑ Mas porquê, já não poderei sequer beijar‑te?

‑Não tenho vontade.

Viu‑a mexer‑se com constrangimento sobre a erva; o cão, atrás dela, continuava atento, com as orelhas em pé e as narinas frementes. Lavínia, inesperadamente, levantou‑se com custo do seu leito de erva, dizendo:

‑ Tenho medo que chova. Vamos para casa. - Valério seguiu‑a, desconcertado, e alcançou‑a no atalho. ‑ Não reparaste ‑ confiou‑lhe ela então, em voz baixa ‑ que havia alguém a espreitar‑nos atrás daquela sebe?

‑Não, não estava lá ninguém.

‑ Estou a dizer‑te que estava lá alguém. Vi‑o.

Valério voltou‑se e, com surpresa, descobriu, a pouca distância da clareira onde estiveram estendidos, uma pequena casa de agricultores. Como era possível não a ter notado? Ao mesmo tempo, uma figura humana destacou‑se da sebe, mostrou‑se por um instante e desapareceu: um rapazola do campo, de rosto moreno, com um boné de ciclista caído sobre os olhos brilhantes

Lavínia disse:

‑ Tinha‑o visto desde o princípio. Agora compreendes porque não quis beijar‑te.

"Sim", não pôde deixar de pensar imediatamente Valério. Lavínia tinha visto o rapazola, desde o início, atrás da sebe, como o tinha visto a ele, pouco antes, também desde o início, sobre o terraço. Sentiu‑se de novo invadido pelo ciúme e, ao mesmo tempo, envergonhado por se assemelhar ao rapaz escondido atrás da moita. Assim, o ciúme não tinha fim; e haveria sempre um espelho para advertir Lavínia da sua presença e fazê‑la ser prudente.

 

                 A REPETIÇÃO

 

No elevador, Giorgia meteu‑se num canto, com os olhos baixos; e Sérgio disse:

‑ Não faças essa cara! Além do mais, aquilo que te peço é uma coisa de nada. Depois deixar‑nos‑emos e não nos veremos mais.

Giorgia respondeu:

‑Não é uma coisa de nada. Também me desagrada que tudo esteja acabado entre nós. Mas fingir recomeçar parece‑me uma crueldade. Só tu podias ter uma ideia dessas.

O elevador parou e eles saíram para o patamar. Sérgio consultou o seu relógio de pulso:

‑São onze. Tu chegaste às onze e cinco deste mesmo dia e deste mesmo mês de Maio. Apenas o ano é diferente: há três anos.

‑ Então que devo fazer?

‑ Espera aqui no patamar e às onze e cinco toca à campainha. Sérgio tirou a chave do bolso, abriu a porta e entrou em casa. O apartamento, que ficava no último andar, não era grande e estava atulhado de livros. Sérgio percorreu o estreito corredor entre duas estantes abarrotadas de volumes e foi para o escritório. Tudo estava como três anos atrás, salvo a janela que tinha a persiana corrida, enquanto, naquele dia de três anos antes, a persiana estava subida e ele recordava ter visto o vento agitar a folhagem brilhante e luminosa da glicínia, no terraço. Puxou a persiana para cima, havia vento como naquele dia, e a glicínia também lá estava. Então foi sentar‑se à escrivaninha e pegou no livro que estava a ler naquela manhã, uma monografia sobre o pintor que tinha pintado o quadro de que devia fazer a peritagem.

A campainha tocou, como naquela manhã, e Sérgio sentiu faltar‑lhe o ânimo. Levantou‑se e, rapidamente, foi ao vestíbulo abrir a porta. A mulher estava no limiar, e era absolutamente a mesma, com o mesmo vestido, os mesmos sapatos, a mesma mala. E talvez também, pensou, com o mesmo olhar intenso nos olhos verdes e a mesma madeixa aguçada de cabelos pretos sobre a testa branca.

‑ Que deseja? ‑ perguntou, começando a repetir a cena de três anos antes.

Giorgia, por sua vez, recitou com esforço:

‑ O Sr. Lanari pede desculpa de não poder vir. Eu sou a sua secretária.

‑ Entre.

Sérgio precedeu a mulher no corredor e, depois, no escritório. Aqui fez exactamente as mesmas coisas que tinha feito naquela manhã. Primeiro foi para trás da escrivaninha, como para se sentar no seu cadeirão; depois, mudando de ideias, foi para o sofá de couro, em frente da janela, dizendo:

‑ Faz favor, vamos para aqui; estaremos melhor.

Giorgia sentou‑se, fitou‑o por um momento e, depois, disse com despeito:

‑ Não, não posso fazê‑lo.

‑ Mas que tens?

‑Tu, naquela manhã, agradaste‑me subitamente, e eu sentei‑me de certa maneira, de forma a poder tocar com os meus joelhos nos teus, na primeira oportunidade. Mas como é possível reconstituir, a frio, certas coisas?

‑ Porque não?

‑ Já não há aquele sentimento que nos levou a fazê‑las, tudo parece ridículo ou enfadonho. Faço‑o, mas sinto‑me envergonhada de o fazer, enquanto naquela manhã, pelo contrário, experimentei uma sensação maravilhosa. ‑ Quase com violência, arrastou‑se um pouco no sofá na direcção dele, cruzando as suas compridas e belas pernas direitas; em seguida recitou com voz lenta e penosa, como a subir uma encosta difícil: ‑ Como lhe disse, o Sr. Lanari teve de ficar no hotel a aguardar um telefonema de Milão. Entretanto, envia‑lhe as fotografias do quadro. Pede‑lhe o favor de as ver e, amanhã de manhã, telefonar‑lhe‑á para marcar um encontro.

Soltou um suspiro de alívio e olhou para a janela. Sérgio disse àsperamente:

‑ Não foi assim. Depois de teres dito essas palavras, fitaste‑me nos olhos.

‑ Como?

‑ Com o olhar mais belo que eu já vi ‑ respondeu Sérgio, mostrando‑se subitamente comovido. ‑ Um olhar, como direi?, simultâneamente de súplica e de mando.

‑ Pudera! ‑ explicou Giorgia, pensativa. ‑ Tinha muito medo que tu me mandasses embora; parecias tão sério, ou, melhor, irritado... Assim, olhei‑te para te fazer compreender que tinhas de encontrar um pretexto para me reter.

‑Então, vamos, experimenta.

‑ Pronto, estou a olhar‑te como naquela manhã.

- Fitaram‑se, e Sérgio sentiu um frémito de angústia. Sim, era e não era o mesmo olhar. Disse em voz baixa:

‑Quer mostrar‑me as fotografias?

‑ Aqui estão.

Sérgio, como naquele dia distante, recebeu das mãos brancas e magras de Giorgia o sobrescrito amarelo e, tirando as fotografias, começou a observá‑las. Recordou‑se de que, naquela manhã, a vista se lhe toldava e as mãos Lhe tremiam, enquanto examinava à pressa as fotografias e concluía, embora confusamente e como que em sonho, que o quadro do Sr. Lanari, rico industrial do Norte, não valia nada, sendo uma simples cópia de um original bastante conhecido que se encontrava numa galeria estrangeira. Disse por fim, como naquela manhã:

‑ Menina, não é preciso que o Sr. Lanari me telefone amanhã de manhã. A peritagem está mais do que feita. Sabe quanto pode valer este quadro?

‑ Quanto?

‑ Tratando‑se de uma cópia, basta avaliar a tela limpa e a moldura. De dez a quinze mil liras.

‑Mas o Sr. Lanari disse‑me que vale cerca de duzentos milhões.

‑ Menina, é uma cópia e, ainda por cima, de um quadro conhecido. Sabe o que é uma cópia? Um pintor de certa capacidade técnica estuda muito bem um mestre do passado e, depois, pinta um quadro, por assim dizer, perfeito, por conta de um negociante pouco escrupuloso que depois o impinge a qualquer Sr. Lanari. Disse perfeito, mas não autêntico. Uma cópia é, portanto, qualquer coisa de perfeito e, ao mesmo tempo, de falso.

‑ O que devo então dizer ao Sr. Lanari?

‑ Que o seu quadro é uma imitação.

Giorgia exclamou:

‑Nesta altura, senti‑me desesperada. Pensei que não te tivesses apercebido do meu olhar e decidi fazer‑me compreender melhor. Por isso empurrei os meus joelhos contra os teus, assim.

Sérgio, perturbado, interrompendo a simulação, perguntou:

‑ Eu agradava‑te assim tanto?

Giorgia respondeu com sinceridade:

‑Sim, terrivelmente. Se tu naquele momento me tivesses mandado embora, creio que desmaiaria antes de chegar à porta.

‑Eu notei isso e, para ganhar tempo, comecei a interrogar‑te sobre o teu trabalho, sobre o Sr. Lanari, e assim por diante. Vamos tentar repetir esta parte da cena?

‑ Tentemos.

Sérgio disse precipitadamente, como naquela manhã:

- Portanto, você é a secretária do Sr. Lanari.

- Sim.

‑ Que faz com o Sr. Lanari`?

- Sou secretária.

‑ Desculpe. Queria dizer, em que consiste o seu trabalho?

‑ Oh!, escrever à máquina os contratos, as cartas de negócios, estenografar as conversas, tomar apontamentos.

‑ Mas você é muito jovem.

- Nem por isso. Tenho vinte e quatro anos.

- E o Sr. Lanari, é novo?

‑Oh!, não, é um senhor já velho, muito respeitável, todo branco, várias vezes avô.

‑ E gosta de quadros, o Sr. Lanari?

‑Não creio. Este quadro foi‑lhe dado em pagamento de uma dívida.

Sérgio reparou subitamente que as palavras eram mais ou menos as mesmas, mas o sentimento era diferente. Três anos antes, enquanto os joelhos dela premiam com força os seus, cada uma daquelas frases tão comuns provocara nele a sensação de dar um salto para o céu da intimidade. Agora, pelo contrário, sentia afundar‑se, cada vez mais, no abismo da mágoa e da impotência. Bruscamente, propôs:

‑ Abreviemos. Eu não sabia já o que inventar, confundia‑me, e por fim disse‑te: "Sabe que tem uns olhos muito bonitos?"

Giorgia perguntou:

‑Agora, realmente, não me lembro daquilo que respondi. Que é que foi?

Sérgio declarou com amargura:

‑ Não respondeste nada. Fitaste‑me em silêncio. E eu ergui uma mão e fiz‑te uma carícia na face assim. ‑ Ergueu a mão e acariciou o rosto de Giorgia, que ficou impassível, olhando‑o fixamente, com olhos muito abertos. Sérgio disse: ‑ Assim, não. Tu baixaste os olhos. Baixa os olhos. Com uma expressão de grande doçura. Agora está bem. ‑ Viu‑a baixar os olhos; e então, como numa espécie de êxtase voluntário e desesperado, teve a sensação de se rever a si mesmo e a Giorgia naquele longínquo momento de três anos atrás; e esperou, esperou intensamente que o momento actual fosse idêntico ao do passado em todos os sentidos, ou, melhor, fosse o mesmo momento reencontrado na corrente do tempo, ressuscitado e colocado tal e qual no presente. Disse com voz grave: ‑ Baixaste os olhos; depois ergueste uma mão, assim, muito bem, pegaste na minha, apertaste‑a por um instante contra o rosto, assim, exactamente, e, em seguida, voltaste‑a e beijaste‑Lhe a palma. Sempre com os olhos fechados.

Recordou‑se de que, nesta altura, se inclinara para a frente, a abraçara e assim tinham começado as suas relações: e esperou de novo que graças àquele momento reconstituído de maneira tão perfeita, tudo se repetisse. como se o tempo realmente nunca tivesse passado. Mas Giorgia repeliu a sua mão e pôs‑se em pé:

‑ Não posso mais, basta, basta, basta. ‑ Também Sérgio, agitado, se levantou do sofá. ‑ Naquela altura, foi bonito; agora, é simplesmente repugnante. Não sei na verdade porque me obrigas a representar esta comédia. Possivelmente, porque esperas recomeçar. Nesse caso, enganas‑te. Não tenho essa intenção

‑ Não ‑ retorquiu Sérgio -, não quero recomeçar. Seria uma coisa diferente e eu, pelo contrário, quero só aquela coisa e nenhuma outra. Fiz‑te representar isto a que chamas comédia porque queria reviver aquele momento, que foi talvez o momento mais belo da minha vida.

‑ Aquele momento passou para sempre e já não volta mais - observou a mulher, em tom menos áspero, enquanto ia à janela e olhava para fora, como se também ela tivesse pena.

- Mas eu não posso admitir que tenha passado. Tenho‑o aqui, na memória, tão vivo, tão verdadeiro! Aquele momento tem de repetir‑se.

A mulher voltou‑se lentamente e fitou‑o com compaixão:

- E és precisamente tu que me falas dessa maneira, tu, que naquele dia me explicaste tão bem o que era uma imitação. Aquele momento, então, valia milhões, biliões, todas as riquezas do mundo não bastariam para o pagar. Mas aquilo que fizemos esta manhã é uma imitação que vale poucas liras. Não é assim? - Afastou‑se da janela e, batendo na perna com as compridas luvas pretas que apertava na mão, dirigiu‑se para a porta. - Eu não sou já a mesma daquela manhã. e tu também não és aquele que eras. Somos duas pessoas diferentes. Por outro lado, tamMém não somos dois actores, dois bons actores, que possam reconstituir perfeitamente uma cena. E mesmo que o fôssemos, para quem recitaríamos? Para nós mesmos? Os actores não recitam para si mesmos, mas para o público. Até à vista.

Sérgio não respondeu e aproximou‑se da janela. O vento de Maio, agradável e impetuoso, agitava a folhagem da glicínia, exactamente como naquela manhã. E tudo poderia ser como naquela manhã. Atrás de si, a porta fechou‑se.

 

           A ANGÚSTIA

 

Lorenzo parou o carro e voltou‑se para o jovem:

‑Então, sobes ou queres ficar aqui?

Viu‑o encolher os ombros, com expressão de impudente apatia

‑ E quem vai lá acima? Nem morto.

Lorenzo observou‑o por um momento, sem falar. O rosto belo e corrompido, muito moreno, de olhos escuros e húmidos, de forma e grandeza femininas, de nariz curto e sensual, de lábios carnosos, luzidios e túmidos, repugnava‑lhe e, mais ainda, surpreendia‑o: como tinha sido possível não se terem os pais apercebido de nada? Aquele rosto falava. Lorenzo, contrariado, disse:

‑ Lionello, se querias tomar esta atitude, era melhor que não viesses ter comigo.

‑ Mas, advogado, que atitude deveria eu tomar?

‑ Mas não vês que podes acabar na cadeia? ‑ O rapaz fitou‑o e acomodou‑se melhor no assento do carro, ficando meio deitado, com a cabeça inclinada para trás e o pescoço redondo e forte fora da camisola de Verão; mas não disse nada. Era a sua maneira de responder às perguntas embaraçosas. Lorenzo insistiu: ‑ Pode ao menos saber‑se porque fizeste aquilo? ‑ Novo silêncio. O olhar do rapaz, filtrado de cima para baixo, através dos longos cílios, irritava Lorenzo: ‑ Mas então porque vieste ter comigo?

Desta vez, lentamente e com desdém, Lionello decidiu‑se a falar:

‑ Vim ter consigo porque pensei que você fosse mais compreensivo. Mas se me faz estas perguntas, então quer dizer que me enganei e que fiz mal.

‑ Fizeste mal em fazer o quê?

‑ Em vir ter consigo.

Lorenzo saltou do carro e bateu violentamente com a porta

‑ Está bem, fica aqui, eu vou lá acima. ‑ Mas quando ia a passar ao lado do carro, viu o rapaz, com a mão, fazer um lânguido gesto de chamamento, sem, porém, modificar a sua posição negligente e recostada. Parou e perguntou, irritado: ‑ E agora, que queres?

‑ Cigarros.

‑ Apanha.

Lorenzo atirou o maço contra a cara do rapaz e, depois, entrou no átrio. Quando chegou diante do elevador, viu, com o rabo do olho, lá fora, na rua, uma figura feminina aproximar‑se do automóvel e falar a Lionello. Reconheceu‑a imediatamente: era a irmã, Gigliola. Enquanto Lionello tinha o tipo e os modos, não se sabia se cultivados ou espontâneos, de um teddy‑boy, Gigliola, por seu turno, com o seu corpo flexível e excessivamente bamboleante, a sua cara pintada e sem testa, os seus olhos muito grandes e a sua boca muito larga tinha muito da personagem feminina correspondente. Lorenzo demorou‑se propositadamente junto do elevador de forma a permitir que ela chegasse. De facto, viu‑a chegar finalmente, caminhando sobre os mármores reluzentes do vasto átrio, seminua, no seu vestidinho que parecia feito de um lenço e que lhe deixava descobertos os braços, as costas, metade do peito e as pernas até acima dos joelhos. Lorenzo notou que o penteado moderno, em forma de alta crista oval, confirmava e sublinhava a extraordinária baixeza da testa, não mais de dois dedos, e a largura e robustez animalesca da parte inferior do rosto. Gigliola, entrando no elevador, perguntou a Lorenzo, sem o cumprimentar:

‑Que tem Lionello? Porque não quer subir? E porque se esconde no seu carro?

Lorenzo entrou por sua vez no elevador e, fechando as portas, disse:

‑ Lionello está em apuros.

‑Fê‑la boa, eh!

‑ Pior do que isso.

‑ Mas que fez ele?

‑ Espertalhona; se to digo, toda a Roma o fica a saber imediatamente.

‑ De qualquer maneira, eu, entretanto, adivinho‑o. Lionello e os outros rapazes diziam sempre que queriam fazer qualquer coisa para quebrar a monotonia da vida.

Proferiu estas palavras como se as citasse de memória, com uma seriedade ingénua e obtusa que, mal‑grado seu, quase fez sorrir Lorenzo:

‑ Ah!, diziam isso?

‑ Sim, e diziam também que haviam de fazer qualquer coisa que obrigasse todos os jornais a falar deles. Eu também queria entrar nisso, mas não me aceitaram. Diziam que não eram coisas de mulheres.

O elevador parou e eles saíram para o patamar, cujos mármores não eram menos reluzentes do que os do átrio. Lorenzo voltou‑se para a rapariga e agarrou‑a por um braço.

- Toma atenção: se queres bem a teu irmão, as coisas que agora me disseste não deveS dizê‑las a ninguém.

- Não direi nada, se você me disSer aquilo quE fez LionEllo. Senão...

Não acabou a fraSe, porque LOrenzO a agarrou pEloS dois braços, exclamando:

‑ Não faças de estúpida! Não deves dizer nada, E baSta.

Apertava‑a com força; viu‑a olhá‑lo cOm expressão nada ofendida e, depOis, exclamar Em tom quase lisOnjeado: "Que maneiras!", e, ao mesmo tempo, eSboçar um movimento para a frente, provOcante, cOm O ventre. EntãO largou‑a imediatamente E diSse à pressa:

‑Em resumo, LiOnellO Está menoS cOmprometido do que os outroS. Se não falares, poderá mesmo livrar‑sE dE sarilhos E não faças de estúpida.

- Que modOs! O advOgadO de família... - motEjOu a rapariga.

A porta abriu‑Se e um criado de caSacO branco mandou‑os entrar para a antecâmara.

Gigliola diSSE:

- Até depOiS, advOgadO - e deSapareceu a cantarolar e a Saltitar na SOmbra de um corrEdOr. O criado introduziu LOrenzo na Sala.

A mãe de Lionello, Giulia, girava pela sala acompanhada de um pequeno homem calvo. O qual Apertou, de fugida, a mão de LOrenzo, dizendo:

- DEsculpE‑mE, tEnhO de tratar cOm o tapeceiro, pOr uns

insStantES, doS estofos para o Verão. Volto já. - LOrenzo perguntou a Si meSmO se lhE cOnviria falar primeiro com Giulia ou cOm o marido: e, pOr fim, pensOu que pOdia Ser útil: no fundo, naquela caSa, tudo dependia dE Giulia. Entretanto, sentara‑se numa pOltrona e, enquanto ela diScutia com o artesão, observava‑a. Era alta, magra, esguia, vestida de cinzento e de preto, de uma elEgância discrEta, própria dE um grande número de mulheres muito ricas e muito caSeiraS. Entre os cabelOs Escuros, penteadOs cOm esmero, havia já algunS fiOs brancoS; os olhos azuis, pequenOs e profundOs, tinham um brilho inquiEtante; O rOsto, dE um Oval pErfeito, parecia um pOuco cheio, talvez pOr causa da exiguidade do nariz.

Giulia despEdiu‑Se finalmente do tapeceiro e, vindo sentar‑se junto dE LOrenzo, comEçou a falar‑lhe, como habitualmente, da família, a que se dedicava infatigàvelmEntE E quE, Segundo as Suas palavras, Lhe dava um trabalho exaustivo. Falava muito à pressa, ligando precipitadamente uma frase à outra, mesmo quando O Sentido o não exigia, à semelhança de certOs fumadores inveterados que acendem um cigarro no outro. Dir‑se‑ia que receava ser interrompida por Lorenzo e que sabia de antemão que ele tinha qualquer coisa de desagradável para lhe contar. Lorenzo tentou várias vezes insinuar a frase que tinha na ponta da língua: "Ouça, Giulia, a propósito dos seus filhos, gostaria de Lhe falar de Lionello... "; mas de todas as vezes embateu num muro de palavras, simultâneamente móvel e intransponível. Enquanto dos raciocínios dela, pensou Lorenzo com estranheza, transparecia a tranquilidade de quem tem a consciência no seu lugar e nada tem de que censurar‑se, a pressa e o quase orgasmo com que falava sugeriam a existência de uma angústia profunda, ainda que, talvez, inconsciente. Começara a falar dos estofos de Verão para os móveis; dos estofos passara às férias no mar e na montanha; das férias saltara para a moda dos iates ou, como ela lhes chamava, dos barcos; dos barcos passara a discorrer sobre os seus dois filhos, que para ela eram "os meus meninos", e que tinham sido convidados exactamente para ir a bordo de um destes barcos; agora, sem qualquer nexo e sem interrupção, começara a descrever, nos mais diminutos pormenores, uma pequena festa que Gigliola e Lionello tinham oferecido aos seus amigos, dias antes, nos terraços da casa:

‑Fizeram também números de variedades. Mas puseram‑nos fora, a Federico e a mim, dizendo: "Desaconselhável para adultos. Exclusivo para menores de dezoito anos". Não acha espirituoso?

A porta abriu‑se e Federico, o marido, entrou vagarosamente, com o passo de quem, ao sair de uma longa e forçada imobilidade, se sente fatigado. Era alto, atlético, mas tinha os ombros um pouco curvados; o rosto, de traços finos e simétricos, estava, em redor dos olhos azuis e da boca ainda jovem, todo marcado por finas rugas; a testa, à primeira vista, dava a impressão de ser ampla e luminosa, mas, com uma observação mais atenta, verificava‑se que era simplesmente calva. Ao contrário de Giulia, que não sabia refrear a sua loquacidade, Federico, como era do conhecimento de Lorenzo, refreava‑se até de mais, reduzindo a conversa a meias frases e sacudidelas de cabeça, nas quais parecia revelar‑se uma angústia não muito diferente, no fundo, da da mulher. Federico aproximou‑se de Lorenzo e, dando a impressão de ignorar ostensivamente a mulher, cumprimentou‑o com uma cordialidade que pareceu custar‑lhe um esforço penoso. Lorenzo observou‑o e compreendeu que o amigo devia ter passado, como habitualmente, uma má noite: sofria de insónia e, como ele próprio dizia, tinha o sistema nervoso em frangalhos. Federico, com voz sumida, propôs sucintamente:

‑ Vamos para o terraço, queres`?

Foram para o vasto terraço, que, na realidade, era um verdadeiro jardim suspenso diante do panorama da cidade. Estava calor, o sol estivo abrasava o pavimento ladrilhado, entre as pequenas sombras das plantas em caixotes. Federico encaminhou‑se para um ângulo do parapeito, do qual se desfrutava uma vista sobre o Tibre e o monte Mário. Caminhava com passos largos, movendo a cabeça de um lado para o outro, aos repelões, como quem se sente sufocar e procura inutilmente o ar. Logo que se encontraram bastante afastados da sala, Lorenzo disse:

‑ Ouve, tenho de te falar.

Federico agora olhava para baixo e parecia observar exactamente o carro de Lorenzo, estacionado junto do passeio, pequeno e solitário no meio de uma grande extensão de asfalto cinzento. Voltando‑se, perguntou:

‑ Falar‑me? Tenho muita pena, mas esta manhã não é possível. Lorenzo arregalou os olhos, surpreendido:

‑Não é possível? Porquê?

Viu Federico contrair o rosto, como se tivesse sentido uma pontada ou outra dor imprevista. Depois respondeu:

‑ É impossível. Não tenho o cérebro suficientemente lúcido. Não preguei olho durante toda a noite, apesar dos soníferos; em resumo, não me sinto bem.

Disse ainda outras coisas do mesmo género; com efeito, o seu rosto estava tenso e contraído, e os seus modos bruscos, aos repelões, eram os de um homem que sofre realmente. Este sofrimento fez pensar a Lorenzo que talvez não fosse prudente falar‑lhe do filho. Todavia, insistiu:

‑ Olha que se trata de uma coisa que não pode ser adiada. Federico voltou a olhar para o carro, em baixo, na rua, dentro do qual Lionello esperava; e respondeu:

‑ Não há coisas que não possam ser adiadas. Parecem sempre muito urgentes, mas depois... Peço‑te, volta amanhã, talvez amanhã de manhã, terei dormido, poderemos falar com calma.

‑ Mas é uma coisa verdadeiramente importante.

‑ Precisamente por ser importante, não a quero saber. Não poderia ocupar‑me agora de uma coisa importante.

‑ Então, queres ou não?

‑Peço‑te que não insistas.

Tinha posto uma mão sobre o ombro de Lorenzo, e, sem parecer, empurrava‑o através do terraço, na direcção da sala. Lorenzo notara que, sempre que falava, Federico contraía o rosto como por um espasmo e decidiu então para consigo não lhe dizer nada. Faria o que pudesse por Lionello; Giulia e Federico, que, cada um a seu modo, não queriam saber de nada, teriam conhecimento dos desatinos do filho através dos jornais ou acabariam mesmo por não ter conhecimento de nada. Declinou um tímido convite de Federico para o almoço, despediu‑se dele e, indo depois apertar a mão a Giulia, passou para o vestíbulo.

Como se estivesse à sua espera, Gigliola surgiu repentinamente na sombra:

‑ Então, falou com o papá e a mamã?

‑ Não, e peço‑te até que não lhes digas nada.

‑ Mas quem é que diz? O senhor, porém, devia convencer-se disso.

‑ De quê?

‑De que a única pessoa a quem se pode dizer tudo, nesta casa, sou eu.

‑Talvez tenhas razão.

Lorenzo fechou as portas do elevador. A cabina começou a descer.

 

           O MISANTROPO

 

O passeio seduzia Guido, ainda que conhecesse mal Cesar, o jovem industrial que o tinha convidado, e nada soubesse das duas raparigas, ambas empregadas numa companhia de aviação que tinham vindo com este. Mas logo que o carro partiu em direcção do lago de Vico, que era a meta do passeio, arrependeu‑se de ter aceitado. Entretanto, a sua vizinha, no assento de trás, não agradava nada. Devia ser muito jovem, tinha uma pele macia e branca como leite, olhos negros e cabelos muito louros, insolentemente oxigenados. Vestia um pullover, de uma alvura brilhante e desagradável, e uma saia azul justíssima, na qual o seu corpo se desenhava com mórbida evidência; Guido achava‑a vulgar de uma maneira irreparável e originária, como se a vulgaridade nela fosse um facto congénito e não um carácter moral. Bem diferente, pelo contrário, parecia a outra rapariga, que Cesar fizera sentar junto de si, no banco da frente: magra, morena, pálida, elegante, com o pescoço alto, o rosto delicado, a boca grande e delgada e dois olhos verdes enormes. Guido pensou se Cesare escolhera para ele a melhor das duas e lhe tinha impingido a pior. Enquanto o carro avançava, a rapariga loura fitava‑o com os seus olhos nocturnos, que pareciam duas contas de vidro circundadas de veludo; finalmente, perguntou:

‑ Quê, é estudante, você?

Guido respondeu:

‑ Sim, estudo Leis.

‑ A lei do mais forte ‑ disse a rapariga comprazendo‑se deste lugar‑comum como de uma frase profundamente originária.

‑ Não, a lei em geral.

‑ Eu chamo‑me lole. E você?

‑ Guido.

A rapariga não disse mais nada, mas Guido teve a impressão que ela continuava a falar, porque mexia a boca. Depois, observando melhor, compreendeu: lole mexia a boca porque estava a mastigar uma pastilha elástica americana. Guido pensou que isso era mais um pormenor em desfavor da rapariga e sentiu novamente inveja de Cesare, que, agora, embora a guiar, conversava com a sua graciosa vizinha. Apontando a nuca franzina da colega, sombreada de pequenos caracóis, perguntou a Lole:

‑ Conhece‑a há muito tempo?

lole, fazendo um trejeito com a boca pintada de um encarnado demasiadamente vivo, inquiriu:

‑ Essa aí? Quem é que a conhece?

‑ Mas não trabalham no mesmo escritório?

‑Somos tantos, não os conheço todos.

‑Como se chama ela?

‑ Acho que se chama Valéria. ‑ E depois, baixando a voz e inclinando‑se para ele: ‑ É condessa, julga‑se não sei o quê. Riu‑se e tirou a pastilha elástica da boca, um comprido fio que se foi tornando cada vez mais fino até rebentar, caindo‑lhe numa garatuja sobre o queixo. Guido, desconcertado e também um pouco aborrecido, pensou de súbito que tinha forçosamente de mudar de lugar e de conseguir que Valéria se sentasse a seu lado. Depois de percorrerem mais alguns quilómetros, exclamou, como por acaso:

‑Ouça, Cesare, importa‑se de parar no primeiro bar que encontrarmos? Apetece‑me extraordinàriamente beber um café.

‑ De acordo.

Chegaram a uma localidade chamada Storta, onde havia uma leitaria rústica com um pequeno pórtico, sob o qual, ao fundo na escuridão de uma sala, se divisava o brilho da máquina do café. Guido foi à caixa pagar e, fazendo um sinal a Cesare, segredou‑lhe:

‑ Gostaria que me fizesse um favor: trocamos as raparigas;, você fica com Lole e eu com Valéria. Não se importa?

‑ Cesare surpreendido, mas sem sombra de despeito, respondeu:

‑ Confesso que julgava ter feito bem. Você tinha‑me dito que gostava das louras!...

‑ Mas aquela é uma morena oxigenada ‑ observou Guido em tom de gracejo.

‑ Está bem ‑ concordou Cesare. ‑ Eu fico com Lole.

Proferiu estas palavras com o ar de quem acha estranha a proposta, mas, pessoalmente, nada tem a objectar. Com efeito, ao dirigirem‑se para o carro, depois de terem bebido o café, disse com indiferente moleza, sem se voltar:

‑ Raparigas, agora muda‑se de parceiros. Lole vai à frente

comigo e Valéria vai atrás com Guido.

lole, levada pela curiosidade, perguntou:

‑ E porquê?

‑ Porque dois não são três.

Entraram; o carro partiu de novo. Guido olhou para Valéria e sentiu um verdadeiro alívio, observando o ar reservado e quase

desdenhoso com que a rapariga se sentava a seu lado, mantendo‑se o mais afastada possível; exactamente o contrário de Lole, que com as suas ancas largas e mórbidas, tinha estado todo o tempo em cima dele. Percorreram alguns quilómetros; Cesare gracejava e conversava com lole; Valéria, porém, não só não dava indícios de lhe falar como nem sequer o olhava. Por fim, Guido perguntou

‑ Como se chama?

A rapariga, sem se voltar, respondeu:

‑ Valéria.

‑ Trabalha também na companhia de aviação?

‑ Sim.

‑ Está um lindo dia, não acha?

‑ Sim.

‑ Conhece Cesare há muito tempo?

‑ Não.

‑Vejo que já esteve na praia. está muito queimada. Onde esteve? Em Fregene?

‑Não, em Portofino.

‑Ah!, um belo lugar. Como está este ano? Há distracções"

‑ Depende das pessoas que se frequentam.

Esta última frase foi para Guido como que um raio numa noite escura. Baixando os olhos para a mão esguia e magra de Valéria, viu que tinha no indicador um grande anel com um castão onde estava gravado um brasão; depois observou os olhos dela nos quais transluzia quase uma espécie de terror, e, finalmente, compreendeu: a rapariga era uma snob; Cesare, convidando‑a, com a vulgar Lole, cometera um erro; e ela aceitara o convitte porque provàvelmente, não tinha nada de melhor para fazer, resolvida, porém, a ter os seus companheiros de passeio à dis tância e a não lhes dar confiança. Para tirar a prova a esta suposição, Guido formulou‑lhe mais algumas perguntas acerca das pessoas que ela frequentava em Portofino e viu que não se enga nara: pela forma como Valéria pronunciava certos nomes; pela gravidade e relutância com que condescendia em lhe responder em alguns lugares‑comuns e frases feitas, próprias da sociedade elegante, que ela parecia pronunciar entre vírgulas, como para lhe fazer compreender melhor com quem tinha de se entender, era a confirmação de um snobismo patológico e, de qualquer modo, demasiado coriáceo para ser dissolvido durante a breve duração de um passeio. Guido, por fim, calou‑se, desencorajado e quase sentiu saudades da vulgaridade de lole; ainda que, depois reflectindo melhor, reconhecesse que também esta não era supor tável. Já não tinha qualquer vontade de falar a Valéria, que, agora já nem sequer lhe parecia mais atraente. Perguntou a si mesmo se lhe daria prazer beijá‑la, e concluiu que não: o snobismo repugnava‑lhe mais do que um defeito físico. Inesperadamente, o carro parou em frente de um alpendre de cimento armado, sob o qual se alinhavam quatro bombas de gasolina pintadas de amarelo e de encarnado.

‑ Encha o depósito ‑ disse Cesare, abrindo a porta e descendo para ir tirar o tampão.

Guido foi lesto a saltar para fora do carro, a aproximar‑se de Cesare e a dizer‑lhe em voz baixa:

‑ Desculpe, mas importa‑se que eu me sente à frente, a seu lado, no lugar de Lole?

‑ É boa! ‑ exclamou Cesare, divertido. ‑ Também não Lhe agrada Valéria?

‑ Não, não é isso, é a trepidação do carro que me provoca náuseas.

Cesare pagou a gasolina e, em seguida, gritou em jeito de ária:

‑lole, pede‑se que vás para trás, com Valéria. Guido quer sentar‑se à frente porque o carro lhe dá volta ao estômago.

Lole exclamou:

‑ Que estômago delicado! ‑ Mas sentou‑se de bom grado junto de Valéria, que, agora, estava ainda mais encolhida no seu canto, assaltada pelo seu terror mundano. O carro partiu de novo.

Guido conhecia mal Cesare, mas tinha simpatia por ele. Agradava‑lhe a cabeça de Cesare, bonita, de olhos grandes e graves, de nariz direito, de boca bem desenhada, que não destoaria num quadro do Renascimento ou numa moeda romana. Começou, portanto, a conversar com Cesare, que, como notou, lhe respondia inteligente e prontamente e com uma curiosa ironia, nada vulgar. Abordaram assim muitos assuntos, todos, porém, por assim dizer, pessoais, ou seja, dizendo respeito aos hábitos, aos gostos e à vida individual. Depois, Guido, encorajado, pôs uma questão, esta do domínio público, que muito o interessava: um processo damoroso que corria naqueles dias contra alguns membros de uma associação criminosa do Sul. O clamor do processo provinha não tanto da gravidade dos crimes, que no entanto eram terríveis, quanto das implicações sociais e políticas. Guido apaixonara‑se por este caso, até porque a sua família era originária do lugar onde tinham sido perpetrados os delitos; e não lhe acudia sequer à ideia que Cesare pudesse ver estas coisas de forma diferente da sua, que era, na sua opinião, a única possível. Assim, ficou muito desconcertado quando notou que o seu interlocutor estava calado, com uma expressão distante e embaraçada que parecia recusar‑lhe obstinadamente aqueles sinais de compreensão e de aprovação que esperara. Por fim, Cesare, em tom decidido, disse:

‑ Para mim são coisas que não existem. Eu penso em trabalhar, e o trabalho não me permite que me ocupe de outros assuntos.

A estas palavras, Guido, por sua vez, emudeceu e, olhando para Cesare com diferente atenção, surpreendeu‑se de ter pensado que ele pudesse compartilhar das suas ideias. Tinha sido o rosto a traí‑lo, pensou mais uma vez, aquele rosto tão bonito e tão nobre que, no entanto, observado mais atentamente, se assemeLhava a uma máscara de traços majestosos mas vazios, atrás da qual se escondia o verdadeiro rosto, bem diferente e destituído de qualquer nobreza. Subitamente, verificou que experimentava por Cesare uma repugnância ainda mais forte do que por lole e Valéria. Como o cepticismo era mais repelente do que a vulgaridade e o snobismo!... Mas que fazer, agora? Tinha já mudado duas vezes de lugar, não havia salvação possível.

Chegaram ao lago de Vico, uma extensão de água de um azul pálido, entre esguios canaviais verdes, com as sombras das colinas irregularmente reflectidas na superfície espelhenta. O carro parou e eles, descendo, dirigiram‑se para o pequeno restaurante, na margem do lago, à sombra de algumas árvores frondosas. Guido afrouxou o passo e, enquanto os outros três iam sentar‑se a uma mesa, alcançou um pequeno embarcadouro que entrava pelo lago com duas pranchas.

Estava profundamente aborrecido e perguntava a si mesmo se não seria preferível fugir e alcançar a estrada principal, apanhando aí a diligência para Roma. O snobismo de Valéria, a vulgaridade de lole e o cepticismo de Cesare pareciam‑lhe insuportáveis; mas ainda mais insuportável se lhe afigurava o sentimento de aversão que os seus três companheiros lhe inspiravam. Em seguida, do embarcadouro onde se encontravam, baixou os olhos para a sua imagem reflectida na água do lago e acudiu‑lhe subitamente à ideia que ainda naquela manhã, olhando‑se ao espelho, tivera um movimento de ira e exclamara para consigo: "Quanto sou antipático! Mas quanto!" Apanhou do chão um comprido ramo seco. Atirou‑o para cima da sua imagem, que imediatamente se quebrou em muitos reflexos líquidos e móveis. Depois encaminhou‑se para o restaurante, onde os outros três estavam já a encomendar o almoço ao criado.

 

             AS PALAVRAS E A NOITE

 

Cerca das 3 da manhã, Giovanni teve o seguinte sonho: parecia‑lhe estar suspenso numa varanda sem balaustrada, no cimo de um edifício altíssimo, densamente rodeado por outros edifícios de igual altura. São casas, ou, melhor, torres de uma fantástica cidade que cresceu toda em altura; cobertas de cúpulas e de coruchéus, dão a sensação de estar em pé por milagre, tão altas e estreitas são. Depois o fragor de um terramoto passa sob a cidade e, de repente, Giovanni vê as casas como num espelho côncavo, isto é, inclinadas para a frente. Os edifícios pendem cada vez mais, como canas dobradas pelo vento, e, depois, quando a inclinação atinge o seu grau máximo, começam a ruir, devagar, ou, melhor, lenta e ordenadamente, principiando pelos pontos mais altos e acabando no chão, no meio de um estrondo crescente. Agora também a casa em que ele estava suspenso começa a inclinar‑se cada vez mais, sempre mais, de modo que, por fim, é obrigado a lançar‑se no vácuo, entre a poeirada das derrocadas anteriores. Atira‑se, de facto, para a frente, de braços estendidos, com um grito, e, gritando, desperta.

Abrindo os olhos, viu que estava na escuridão e que aquele fragor do terramoto e dos desmoronamentos não era senão o barulho dos trovões de um temporal, cujos relâmpagos, entrando pela janela, iluminavam de vez em quando, incertamente, o quarto. O trovão esboçava um primeiro murmúrio distante, em seguida, após uma pausa, roncava mais de perto e mais fortemente e, por fim, explodia com violência, fazendo estremecer os vidros. Logo que o trovão se calava, ouvia‑se o barulho profundo e impetuoso da chuva que caía abundantemente fora da janela.

Giovanni estendeu a mão sob os cobertores e, verificando que o lugar da mulher, na cama, estava vazio, sentiu um momento de pânico. Depois, alongando a mão mais para a frente, notou sob os dedos as pequenas pregas que a camisa fazia no corpo tépido da mulher e compreendeu que ela estava ali, tendo‑se apenas afastado para a extremidade. Um pouco tranquilizado, começou a reflectir sobre o sonho; e então foi subitamente assaltado pelo desconforto. Era certo que tinha sido o trovão a sugerir, por assim dizer, o sonho do terramoto e do desmoronamento; mas, por outro lado, era significativo que, entre tantas imagens possíveis, o trovão tivesse sugerido exactamente a da derrocada de uma cidade. Giovanni notou que experimentava uma angústia profunda, como se, com as imaginárias casas do sonho, tivessem ruído também as suas razões de viver. Quantos anos teriam passado desde que, menino, durante um temporal semelhante, descera precipitadamente da sua cama, correra para junto de sua mãe, que dormia no quarto ao lado, e a procurara no escuro, tacteando com os dedos o tecido da camisa, precisamente como procurara há pouco sua mulher? Trinta anos, mais ou menos. Portanto, disse para consigo, tinham já passado trinta anos, mais de metade da vida. E, quase em voz alta, exclamou:

‑Que horror, a vida!

Da escuridão, a voz tranquila e nítida da mulher perguntou imediatamente:

‑ Porque dizes isso?

Giovanni ficou desconcertado. Julgava que a mulher estivesse a dormir; no entanto, estava acordada e tinha‑o ouvido. Perguntou, por sua vez:

‑Que disse eu?

‑ "Que horror, a vida!"

‑ Não sei porque disse isso.

Calaram‑se. A chuva recomeçara a cair; depois, um relâmpago intenso fez aparecer o quarto com os seus objectos e as suas cores se bem que de todo irreal. O relâmpago apagou‑se e o trovão explodiu logo a seguir, seco e violento. Giovanni disse:

‑ Há algum tempo que todas as noites estala um temporal.

A mulher confirmou:

‑ Eu já estou acordada há uma hora. Com o primeiro trovão, acordei.

‑ E que fizeste?

‑ Nada: abri os olhos e voltei‑os para a janela, que se iluminava de cinco em cinco segundos.

Giovanni estava agora vagamente irritado pela calma que transparecia da voz da mulher. Insistiu:

‑ Nada mais?

‑Sim, pensei em ti.

‑ Pensaste em mim?

‑Sim, parece‑te estranho?

‑ Não, não me parece estranho ‑ respondeu Giovanni com vivacidade, erguendo a voz na escuridão do quarto‑; gostaria apenas que fizesses o favor de me explicar o que queres dizer quando dizes que pensaste em mim.

‑ É uma maneira de falar. Quer dizer que pensei em ti.

‑E que pensaste?

‑ Na realidade, não pensei nada. Pensei em ti.

‑É uma idiotice.

‑Que é uma idiotice?

‑ Uma frase idiota ‑ respondeu Giovanni, parafraseando o verso de Shakespeare ‑ pronunciada por um idiota numa noite tumultuosa e furibunda.

‑ Obrigada.

Ele acrescentou imediatamente:

‑Desculpa, estava a brincar. "Idiotice" é uma palavra própria da gíria de uma classe ou de um grupo social. O teu é um idiotismo pequeno‑burguês.

‑ Eu sou pequeno‑burguesa? ‑ perguntou a mulher.

‑ Talvez não o sejas, mas a frase é‑o.

Seguiu‑se um longo silêncio. A chuva continuava a cair abundantemente; através do seu rumor difuso podiam ouvir‑se os gorgolejos tumultuosos da goteira, que não conseguia tragar a tempo toda a água que nela se precipitava do tecto. A mulher disse:

‑ Ainda não me explicaste porque disseste que a vida é um horror.

Giovanni, de novo irritado, respondeu:

‑ Primeiro que tudo, explica‑me tu o que quer dizer: "pensei em ti".

‑ Quer dizer exactamente aquilo que quer dizer.

‑Pois bem, não percebo.

‑ Deixa‑te disso, percebes muitíssimo bem.

Giovanni perguntou a si mesmo por que motivo a frase da mulher o irritava tanto; e, por fim, pareceu‑lhe compreender: se as palavras não significavam nada, então o sonho tinha razão: tudo ruíra. Retorquiu:

‑ Não, realmente não percebo. Mas vamos por partes. Visto que quando pensaste em mim nada pensaste, diz‑me ao menos que fizeste.

‑ Que fiz?

‑ Sim, que fizeste para, como dizes, pensar em mim.

Calaram‑se por instantes. Depois, a voz da mulher começou lentamente:

‑Enrolei‑me sobre mim mesma, como se dentro de mim houvesse uma labareda e eu me aquecesse àquele fogo. Em suma, concentrei‑me.

‑ E o resultado dessa concentração qual foi?

‑Que pensei em ti.

‑ Isto é, que não pensaste em nada.

‑ Se queres. Mas acariciei‑te com o pensamento.

‑ Devagar. Esse pensamento, que é? Uma mão?

‑ Não, não é uma mão. Diz‑se assim para dizer que se pensa em alguém.

‑ Ou seja, que não se pensa em nada.

‑Mas que necessidade há de pensar sempre em alguma coisa? ‑ exclamou a mulher com certa impaciência. ‑ Sentir, ao menos em certos casos, é importante; pensar, não.

Giovanni disse com profunda amargura:

‑ Na realidade, não sou nada para ti, isto é, não existo. Por isso, é natural que, para ti, pensar em mim signifique não pensar em nada.

A voz da mulher revelou pela primeira vez um tom alarmado:

‑ Mas porque dizes isso? Que tens? Que te aconteceu esta noite?

‑ Não me aconteceu nada. Tive um sonho e acordei. Nada mais.

‑Que sonho era?

‑ Sonhei que um terramoto arrasava uma cidade.

A mulher observou com voz calma e ponderada:

‑ Não vejo o que possa eu ter com esse sonho. E, depois, porque dizes tu que não existes para mim? Juro‑te que, se morresses, ;: atirar‑me‑ia imediatamente pela janela. Estás contente, agora?

Giovanni, reflectindo por um instante, reconheceu que não estava contente:

‑ Queres dizer com isso que me amas?

‑ Sim.

Ele protestou com violência:

‑ Mas que me importa o teu amor, se não o sabes exprimir? Enrolas‑te sobre ti mesma, concentras‑te, acaricias‑me com o

pensamento, atiras‑te pela janela... tudo coisas que não me dizem respeito, que apenas se referem a ti.

‑ E que te diria então respeito?

‑ Que me explicasses de maneira clara e precisa o que queres dizer quando dizes que pensaste em mim.

A mulher, de súbito, começou a rir na escuridão:

‑ Que obstinado tu és! Mas não sabes que há coisas de que não se pode falar?

‑ Eu acho que se pode falar de tudo ‑ disse Giovanni.

‑ E eu, pelo contrário ‑ retorquiu a mulher ‑, acho que as coisas de que não se pode falar, é melhor calá‑las.

 

             O SONHO

 

Quando o telefone começou a tocar, Sílvio já tinha adormecido há algum tempo. Estendeu uma mão fora do lençol, acendeu a lâmpada junto da cabeceira e olhou o relógio sobre a mesinha: eram 3 e um quarto. O telefone continuava a tocar. Sílvio levantou o auscultador e perguntou:

‑ Quem é?

Respondeu‑lhe uma voz de mulher:

‑ Sou eu, Alina, já não reconheces a minha voz?

Sílvio exclamou com alegria:

‑Claro que reconheço! Quando chegaste?

‑ Há meia hora. Fiz tudo numa tirada desde Milão, de carro. Não podia andar depressa porque o carro está em rodagem. Em compensação, é um belíssimo carro, azul. Verás.

‑Em que casa estás?

‑Na do costume, dos meus amigos Federico, aquela onde nos encontrámos.

‑ Vemo‑nos?

‑Certamente; de outro modo, para que estaria eu a telefonar‑te?

‑Estou contente por estares cá.

‑ E eu estou contente por tu estares contente.

‑ Demoras‑te muito?

‑ Infelizmente, não. Regresso depois de amanhã, ou, melhor, amanhã, porque ‑ ouviu‑a rir ‑ amanhã é já hoje. Mas depois voltarei e ficarei mais tempo.

‑ Então quando nus vemos`?

‑ Podemos almoçar juntos ‑ respondeu Alina.

Seguiu‑se uma longa discussão muito particularizada sobre os restaurantes que Sílvio ia propondo e que Alina, por um motivo ou outro, ia recusando. Sílvio não pôde deixar de se surpreender desta minuciosidade, ainda por cima no meio de uma conversa de amor. Por fim, Alina propôs:

‑ Não, sabes afinal do que eu gostaria? Gostaria de comer naquele restaurante onde vais sempre, perto de tua casa. Assim, depois do almoço subimos e ofereces‑me um café.

Sílvio perguntou a si mesmo se esta proposta tão lisonjeira seria premeditada, e ficou na dúvida: tudo tinha um ar natural e ao mesmo tempo preconcebido. Mas respondeu com alegria sincera que, se Alina assim o desejava, ele não pediria melhor. Alina disse:

‑ Bem, agora deixo‑te, morro de sono. Mas primeiro escuta. ‑ Sílvio escutou, chegou‑lhe do auscultador um pequeno rumor; em seguida, a voz perguntou: ‑ Percebeste?

‑ Sim, era um beijo.

‑ Bravo! Então até amanhã, isto é, até logo.

Sílvio pousou o auscultador, apagando a luz, pensou durante algum tempo em Alina e no seu telefonema. Tinha visto esta rapariga bonita e um pouco extravagante uma só vez, um mês antes, numa recepção. Alina, como habitualmente, tinha de regressar a Milão nessa mesma noite; mas alguma coisa muito semelhante ao amor tinha surgido entre eles nas duas horas compreendidas entre o fim da recepção e a partida. Alina prometera‑lhe voltar três dias depois e, de qualquer modo, escrever‑lhe; mas não voltara nem lhe escrevera. Agora, pensando nela, Sílvio verificava que a amava. Revolvendo na memória, misturadas deliciosamente, a recordação do primeiro encontro e a esperança que lhe inspirava o segundo, Sílvio, finalmente, adormeceu.

No dia seguinte saiu de casa quinze minutos antes da hora fixada para o encontro e dirigiu‑se para o restaurante. Habitava no bairro antigo da cidade, nas águas‑furtadas de um velho prédio. O restaurante encontrava‑se numa daquelas ruelas, a pouca distância do seu portão. Então, caminhando e pensando na sua boa sorte, Sílvio não pôde deixar de dizer intimamente que tudo era demasiado belo, ou seja, perfeito, para ser verdadeiro. O seu raciocínio era o seguinte: "Nada que seja humano pode ser perfeito, isto é, no meu caso, conforme os meus desejos; portanto, neste nosso amor deve haver forçosamente qualquer coisa que não está certa, que eu ignoro e que não tardará a manifestar‑se. " Nesta altura perguntou a si mesmo porque seria que a perfeição o fazia suspeitar, e, por fim, compreendeu: havia na perfeição qualquer coisa de excessivo que não era humano e que, por isso, a menos que fosse sobre‑humano, não podia ser senão aparente. Ora a conduta de Alina para com ele era excessivamente favorável; por isso, era de recear que não fosse senão a máscara sorridente de uma realidade bem diversa. Pensando nisto, chegara ao restaurante; abriu a porta e foi sentar‑se na mesa do costume, no canto debaixo da janela. O restaurante era rústico, ou, melhor, de uma rusticidade fingida, com grinaldas de salsichas, cachos de garrafas suspensos do tecto baixo e muitas fotografias de artistas de cinema nas paredes. Não havia lá ninguém e estava quase às escuras. Um criado acendeu a luz e aproximou‑se de Sílvio:

‑ Bom dia, doutor. Está só?

‑ Não, há‑de vir alguém, é preciso outro talher.

‑ Espera, doutor?

‑ Sim, espero.

Sílvio mandou trazer um aperitivo e, para enganar o tempo, começou a contar as fotografias dos artistas de cinema que estavam penduradas nas paredes. O local não era amplo, mas as fotografias eram muitas. Depois de ter contado as fotografias de duas das quatro paredes, ficou subitamente cansado e, consultando o relógio de pulso, reparou que já tinham passado quase vinte minutos. De repente, ficou com a certeza de que Alina já não viria. Estava disso tão certo que se levantou impetuosamente e foi ao telefone, ao fundo da sala. Marcou o número dos Federico, em casa de quem Alina tinha dito que se encontrava; uma voz que não conhecia, uma voz de mulher, mas que não era a da criada, respondeu‑Lhe que a menina não estava: que telefonasse dentro de uma hora, pois devia voltar para o almoço. Sílvio sentiu o sangue fugir‑lhe das faces e perguntou com voz sumida:

‑ A menina vai almoçar aí?

‑ Sim, certamente.

‑ Não lhe consta que tenha ido almoçar fora?

‑ Não nos disse nada.

Sílvio pousou o auscultador, voltou para a mesa e, chamando o criado, disse que lhe trouxesse o almoço. Não tinha fome, experimentava mesmo uma sensação muito dolorosa de náusea; mas, já que tinha a certeza de que Alina não viria, envergonhava‑se de continuar à espera, em frente do criado, que o conhecia e poderia adivinhar a sua desilusão. Pouco depois, o criado trouxe‑lhe o prato que tinha pedido e Sílvio começou a comer lentamente, amargurado por verificar que ‑como sempre sucede quando se tem uma dor pungente ‑ o apetite, em vez de o abandonar, crescia. Entretanto perguntava a si próprio quais poderiam ser os motivos da conduta de Alina. Eliminou imediatamente o caso de força maior, isto é, qualquer acontecimento exterior que a tivesse Impedido não só de vir, mas até de o avisar que não viria: a imperfeição daquela aparente perfeição estava de facto na coisa, não fora da coisa. Chegou assim à conclusão de que entre as 3 e um quarto daquela manhã e o meio‑dia acontecera qualquer coisa que levara Alina a mudar de ideias. Este qualquer coisa ‑ pensou mais uma vez, procurando sobrepor ao azedume do amor‑próprio ofendido a frieza de um exame objectivo ‑ podia ser um escrúpulo moral, ou, melhor, moralístico; um arrependimento devido, no caso mais benigno, à suspeita de não o amar ou não ser por ele suficientemente amada; uma simples distracção ou esquecimento; uma premeditada crueldade, devida ou a vingança por qualquer coisa que ele, inadvertidamente, tinha feito a Alina, ou a maldade gratuita. Embora continuasse a comer diligentemente o segundo prato, Sílvio, amargurado, examinou uma a uma todas estas hipóteses, sendo por fim obrigado a admitir que todas elas eram possíveis: Alina tinha de facto um tal carácter que tudo se podia esperar dela: ora escrúpulos morais, ora um arrependimento, ora um esquecimento, ora uma crueldáde. Tinha efectivamente o ar bastante irrequieto para se lhe atribuir uma consciência escrupulosa ou um temperamento indeciso; por outro lado, a sua condição de rapariga rica, mundana e viciada permitia ima giná‑la estouvada ou cruel. Entretanto, quando acabou de comer já Alina devia ter aparecido há uma hora. Sílvio pagou e saiu.

Voltou a casa pelas mesmas ruelas que percorrera quando se dirigiu para o restaurante e que, agora, após a desilusão sofrida, lhe pareciam ter até mudado de cor. Subiu ao seu apartamento e, logo que entrou, sem tirar o sobretudo, precipitou‑se às escuras para o escritório; às apalpadelas, marcou o número do telefone dos amigos de Alina. A mesma voz feminina disse‑Lhe que Alina tinha chegado, tinha comido muito à pressa e tinha saído de novo. Sílvio acendeu a luz e, começando a despir o sobretudo, ia olhando para a escrivaninha. De súbito, ficou com uma manga desenfiada e outra não; na agenda onde a criada anotava os telefonemas havia um da Sra. Federico, a amiga de Alina, seguido de algumas linhas em que Sílvio era informado de que estava convidado para uma recepção a realizar naquela noite. Sílvio, acabando de despir o sobretudo, foi estender‑se no divã e apagou a luz.

Agora pensava ir à recepção e obrigar a rapariga a justificar de qualquer modo o seu incompreensível comportamento. As atitudes que imaginava assumir para a enfrentar variavam grandemente: iam do amargurado pedido de uma explicação ou de uma fria e cerrada acusação a um par de bofetadas dadas com metódica violência. Com estas fantasias, Sílvio passou a tarde. Por fim, vestiu‑se e foi à recepção.

Encontrou Alina, como previra, na última de uma fila de salas cheias de gente, no terceiro andar de um prédio antigo. O alto gorro de pele tornava‑a quase irreconhecível. Elegante distraída, mundana, sorridente e distante, Alina estendeu‑lhe a mão magra e coberta de anéis, perguntou‑Lhe como estava e, em seguida, voltando‑lhe as costas, retomou a conversa que tinha interrompido. Sílvio vagueou durante algum tempo pelas salas e, finalmente, regressou a casa.

Durante o caminho começou de novo a pensar nos aconteci mentos daquele dia e acudiu‑lhe subitamente à ideia que a sua história com Alina era composta de duas partes que não se ajustavam e que, se tomadas separadamente eram plausíveis, consideradas em conjunto se tornavam absurdas. A primeira parte compreendia o encontro do mês anterior, seguido do silêncio e da ausência e concluído pelo segundo encontro daquela tarde. A segunda parte era representada pelo telefonema daquela noite, durante o qual Alina se tinha mostrado muito terna. Se se suprimisse o telefonema, pensou ele, tudo estava certo: Alina sentira por ele, um mês antes, uns momentos de entusiasmo, depois arrependera‑se, decidira esquecê‑lo e procurara fazer‑lhe compreender isso na recepção, com o acolhimento gentil mas distante. Tudo isto, porém, se tornava absurdo com o telefonema. Mas como era possível suprimir o telefonema, já que realmente tinha sido feito?

Pensou nisto durante algum tempo e, por fim, disse para consigo que só havia uma maneira de o suprimir, isto é, admitir que o tinha sonhado. Atribuindo‑o a um sonho, tudo se explicava. De resto, o telefonema continha pelo menos três características do sonho: tivera lugar entre dois sonos, no coração da noite; era muito preciso nos pormenores (o carro em rodagem, a cor do carro, a hora, o endereço, a discussão sobre os restaurantes, o beijo), como frequentemente acontece nos sonhos; finalmente, não obstante esta riqueza e precisão de pormenores, não tinha razão na realidade, ou seja, era absurdo.

O certo, porém, é que Alina tinha realmente vindo a Roma ^ e que ele a tinha visto em casa dos Federico: aqui, sonho e realidade confundiam‑se. Sílvio, continuando a reflectir, julgou ser também possível dar uma resposta a esta objecção: como quer que fosse a coisa, sonhada ou efectivamente acontecida, era todavia um sonho porque não era susceptível de uma explicação racional. Nem, por outro lado, ele fazia questão de a explicar, justamente porque, tendo todas as características de um sonho, a aceitava como era, como se aceitam os sonhos e, de uma maneira geral, todos os factos que não vale a pena explicar.

 

             A CASA DO CRIME

 

Enquanto o carro corria pela estrada encharcada pela chuva, sob o céu cinzento e húmido, Tommaso observou a sua companheira. Devia ter pouco mais de 30 anos; os cabelos negros, lisos e escorridos caíam ao longo de um rosto pálido e magro, de nariz aquilino e de olhos escuros e brilhantes. Um bâton muito vivo dava à boca grande e sinuosa a aparência de uma ferida. Baixou os olhos: sob a saia verde viam‑se umas botas pretas, luzidias, altas até ao meio da perna. Por fim, ele perguntou:

‑ É ainda muito longe?

‑Não, falta‑nos pouco.

‑ Como se lembraram de construir uma vivenda num lugar tão solitário? Se estivesse junto ao mar, ainda compreenderia. Mas não está.

- Construímo‑la ali porque o terreno era nosso.

- E quando foi construída?

‑ Por volta de 1930, há cerca de trinta anos.

- Habitaram sempre nela, em todos estes anos?

‑Não, estivemos ali até 1933, creio eu. Depois fizemos a vivenda de Ansedonia e não voltámos para lá.

‑ Vinte e sete anos de abandono. Porquê?

- Ora... Provàvelmente já não nos agradava.

‑ E qual é o preço? O intermediário tinha‑mo dito, mas vi tantas vivendas nestes últimos tempos que o esqueci.

‑ Quinze milhões.

‑ Ah!, sim. Segundo parece, é uma vivenda muito grande.

‑ Sim, é grande, mas as divisões são poucas. Uma sala de estar e quatro quartos.

‑ Na opinião do intermediário, seria um óptimo negócio.

‑ Também acho que sim.

‑ A vivenda pertence à senhora?

‑ Não, pertence a meu irmão, a minha irmã e a mim.

‑ Mas não tem pais, você?

‑ Não, morreram.

‑ Seu irmão e sua irmã estão casados`?

‑ Sim.

‑ Vivem com a senhora, em Rorriç?

‑Não, vivem no estrangeiro.

‑ E a senhora, é casada?

‑ Não.

‑ Vive só?

‑ Não. Mas, Sr. Lantieri...

‑ Diga.

‑Desculpe. Eu devo mostrar‑lhe a vivenda, mas não sou obrigada a falar‑lhe da minha vida privada.

‑ A senhora tem mil vezes razão. Desculpe.

Calaram‑se. Mas, caso singular, Tommaso reparou que a brusca resposta da rapariga não o tinha mortificado nem surpreendido. Perguntou a si mesmo qual o motivo desta sua serenidade e, por fim, compreendeu: tanto o preço da vivenda, muito baixo dada a grandeza da construção, como, em geral, o comportamento da rapariga, estranhamente desinteressado e distante, tinham qualquer coisa de misterioso que desculpava, se não justificava até, a sua indiscrição. Olhou para a boca da rapariga e ficou impressionado com a viveza do bâton, que parecia sangue. Do rosto branco, como papel, os seus olhos passaram à estrada

- que corria cinzenta e reluzente contra a paisagem cinzenta e enevoada ‑, e notou então que, como o vermelho dos lábios, outras cores sobressaíam de maneira rara e intensa no acinzentado do dia outonal: o amarelo‑dourado das folhas de uma planta trepadora na fachada de uma casa, o negro apodrecido dos troncos de certas árvores, o verde quase azul das couves de certas hortas, o vermelho dos pequenos cachos de bagos, nas sebes. Era um dia enevoado e chuvoso, pensou, mas era também um belíssimo dia, no qual as cores sobressaíam e ressoavam como vozes num grande silêncio. Perguntou à rapariga:

‑ Há terreno em volta da vivenda?

‑ No preço estão compreendidos dois mil metros quadrados dejardim. Mas o terreno em volta é nosso, e o senhor, se quiser, pode comprar mais.

‑A que preço?

‑ Creio que a mil liras o metro quadrado.

Tommaso verificou de novo que o preço era inferior ao que se praticava normalmente naquela zona; mas desta vez não disse nada. A rapariga mudou a velocidade, e o carro, deixando a Via Aurélia, embocou numa estrada rural, entre dois velhos pilares. A rapariga informou:

‑ A partir daqui começa a nossa propriedade.

‑ É esta a estrada que dá acesso à vivenda?

‑Sim, não há outra.

‑A estrada serpenteava no fundo do vale, entre outeiros redondos, verdes e sem árvores, sobre os quais se viam casas de campo brancas com janelas verdes e telhados encarnados, uma em cada outeiro. Tommaso inquiriu:

‑ Todos estes casais são vossos?

‑ Sim, são nossos.

Entre uma colina e outra havia vales estreitos e profundos, uns cultivados e outros com mato ou transformados em bosque Tommaso contou, à esquerda da estrada, quatro colinas e outros tantos vales; em seguida, o carro girou bruscamente e dirigiu‑se por uma estradazinha secundária para um daqueles vales, no fundo do qual, entre árvores, se distinguia a linha incerta e cin zenta de um edifício.

‑ A vivenda não dá para o mar ‑ disse a rapariga com ar distraído e negligente‑, mas está muito próxima do mar. Em cinco minutos, de automóvel, chega‑se à praia, do lado de lá da Aurélia.

Passaram uma pequena ponte sobre um barranco e, depois, a estradita penetrou no mato, que, pouco a pouco, parecia tornar‑se mais alto e mais espesso. De súbito, o carro parou diantt de uma cancela de madeira, fechada com uma corrente e um grande cadeado, ambos ferrugentos. Para além da cancela distinguia‑se apenas uma parte da fachada da vivenda, porque as árvores a escondiam. Tommaso verificou com surpresa que esta fachada não tinha nada de aprazível e de rústico, como se poderia supor, atendendo ao lugar; era, pelo contrário, uma construção tétrica, quadrada, da cor do cimento, muito semelhante a um templo neoclássico, mas do neoclassicismo que, por volta de 1930, tinha sido designado pelo estilo Novecentos: frontão liso; peristilo com pilares quadrados, sem capitel nem base, brutais e toscos; porta com ombreiras de pedra, semelhante à de um túmulo egípcio. A rapariga, entretanto, saíra do carro e afadigava‑se à volta do cadeado da cancela, que, finalmente, se abriu. Tommaso perguntou

‑ Mas é a primeira vez que vem cá?

‑ Quase. Há anos que cá não vinha.

Os eucaliptos que ladeavam o pequeno arruamento de acesso abriram‑se diante de um espaço lajeado, ao fundo do qual, en plena luz, estava o cubo enorme e tétrico da vivenda. Atrás em volta do edifício havia muitas árvores e atrás das árvores elevavam‑se as encostas das colinas. Tommaso notou um facto estranho: não obstante o abandono de vinte e sete anos, a natureza mantivera‑se à distância da vivenda: as paredes estavam nuas, com manchas e traços de humidade; não se via nenhuma trepadeira; o musgo não enverdecia os degraus desconjuntados e partidos da escadaria; e erva não tinha crescido nas fendas colcantes que se abriram no lajedo do largo. Dir‑se‑ia, pensou, que a natureza tivera repugnância da vivenda. Um rumor fê‑lo estremecer: a rapariga tinha entrado e, agora, estava a puxar para cima uma das duas grandes persianas de enrolar que se viam dos dois lados da porta. Depois entrou ele.

Encontrou‑se na sala de estar, vasta e sobretudo alta, da mesma cor plúmbea e tétrica da fachada. Sobre o pavimento, espalhados, apareciam pequenos detritos e imundícies, em cima dos quais o pó se tinha acumulado com a suavidade de uma nevada; ao fundo da sala havia uma enorme lareira de tijolos, negra e apagada, e, em frente da lareira, um grande divã; não se viam outros móveis. Tommaso, abeirando‑se do divã, descobriu então, entre este e a lareira, uma mesinha baixa sobre a qual estavam pousados dois copos e uma garrafa de uísque, destapada e com a rolha ao lado. O divã tinha o tecido de uma cor já irreconhecível, talvez castanha, talvez lilás, todo cortado, com a estopa a sair das fendas. Tommaso pegou na garrafa: estava vazia, mas como se o líquido se tivesse evaporado ao longo dos anos, com o rótulo amarelado; e sobre a mesa, coberta de pó, ficara um círculo limpo. A rapariga disse:

‑ Esta é a sala de estar.

Tommaso, reparando que uma das paredes estava pintada, foi contemplar o fresco. Representava, no estilo característico da época, uma cena mundana: um grupo de banhistas numa praia. Via‑se o mar, a areia e um grande chapéu às riscas. Em torno do chapéu, em diferentes posições, viam‑se alguns homens e mulheres em fato de banho. Os homens eram todos musculosos, atléticos, com os ombros largos e as cabeças pequenas, e, alguns, traziam monóculo; as mulheres eram muito formosas, com saliências que pareciam explodir dos fatos exíguos. Homens e mulheres tinham rostos altivos, graciosos, imóveis. No meio desta gente robusta e seminua destacava‑se a figura mesquinha de um criado vestido como um macaco adestrado ‑ com o casaco curto, branco, e as calças pretas ‑, o qual oferecia uma bandeja com aperitivos. Não havia nada de indecente neste fresco; mas Tommaso teve a sensação de se encontrar diante de uma ilustração pornográfica. Atrás dele, a rapariga disse:

‑ São ridículos, não? Eram os nossos pais e as nossas mães. Tommaso gostaria de responder: "Quer dizer: seu pai e sua mãe", mas conteve‑se.

Alguma coisa estava agora a querer acudir‑Lhe à memória; como se diz, às vezes, quando uma palavra está na ponta da língua. Tinha a impressão de que o nome de família da rapariga estava ligado a um crime praticado muitos anos atrás, mais ou menos na época em que a vivenda fora construída. Tratava‑se de um caso velho, era ele rapaz quando acontecera, talvez tivesse ouvido falar nele mais tarde. Mas se realmente tinha havido um crime na vivenda, então explicava‑se a modéstia do preço e o estranho, embaraçado, desinteresse da rapariga. Tentando inutilmente recordar‑se do nome do autor do crime, Tommaso seguiu a rapariga, que, agora, o precedia num corredor, mostrando‑lhe de contínuo as outras salas.

Continham, estas, uma mobília do mesmo estilo Novecentos, brutal e sumário, em que fora construída a vivenda: armários, escrínios e mesinhas em forma de cubos, poltronas semelhantes a caixas sem tampa, camas de pés enormes e de cabeceiras quadradas. Tudo isto em nogueira escura, não nogueira maciça, mas sim em contraplacado: o brilho que outrora tinha dissimulado a fragilidade destes móveis, conferindo‑lhe um aspecto sólido, desaparecera e o contraplacado mostrava‑se opaco, coberto de manchas escuras, carcomido e, aqui e além, levantado e desunido Numa destas salas, sobre uma cama, havia ainda um lençol, revolvido e amarrotado, com uma grande mancha no meio, de uma cor indecisa e desbotada, entre o amarelo‑iodo e o rosa‑isabel. Sobre a mesinha via‑se uma pequena caixa. Tommaso leu em voz alta, na respectiva tampa, o nome de um laxativo e, depois, disse:

‑Podiam ao menos mandar dar uma varredela à casa, já que a queriam vender...

‑ Sou eu que a quero vender ‑ retorquiu a rapariga, enfrentando o seu olhar enfadado com ar de desafio. ‑ Meu irmão e minha irmã de nada sabem. E eu não tive tempo de a mandar limpar. Pus o anúncio nojornal, o senhor é o primeiro interessado. - Proferiu estas palavras com um tom de arrogância insultante; em seguida, foi à porta da casa de banho e escancarou‑a: ‑ Esta é a casa de banho. ‑ Tommaso aproximou‑se e espreitou, inclinando‑se para a frente cautelosamente. Era uma casa de banho normal, com as louças sanitárias, brancas, cobertas de pó e as torneiras esverdeadas e sem brilho. Tommaso viu na pia uma coisa preta encrostada na superfície da porcelana e indicou‑a sem dizer palavra à rapariga. Despeitosamente, ela voltou‑Lhe as costas e, saindo do compartimento, abriu uma porta no corredor: ‑ Este deveria ser o quarto da criada. ‑ De súbito, uma coisa escura passou ràpidamente entre os seus pés; ouviu‑se um grito pungente, e Tommaso teve por um momento a rapariga entre os braços e que, repetindo: "Um rato!", tremia toda e lht cravava as unhas aguçadas no pescoço.

Tommaso disse docemente:

‑Acalme‑se, era apenas um rato.

‑ Sim, bem sei, mas os ratos fazem‑me tanto medo...

‑ Tranquilize‑se, já fugiu.

‑ Obrigada, desculpe.

Voltaram à sala de estar. No momento em que a rapariga soltara aquele grito desesperado, Tommaso, instantâneamente, recordara‑se do nome da família envolvida no crime. Não era o nome da rapariga e, por outro lado, também o lugar da vivenda não correspondia. Por isso, na vivenda não houvera qualquer crime, ainda que as aparências parecessem sugeri‑lo. De repente, a rapariga disse nervosamente:

‑Esta é a vivenda, não há mais nada para ver. O senhor deve concordar que quinze milhões é um bom preço.

‑ Sim, é um bom preço. Mas não é o género de vivenda que procurava.

‑Não lhe agrada?

‑Não. Está construída num estilo que realmente não me agrada.

‑Temos uma proposta para instalar aqui uma escola ou qualquer coisa parecida. Acabaremos por aceitar.

‑ Acho que seria uma boa solução.

Saíram da vivenda e caminharam através do largo sob uma chuva miudinha e impertinente.

‑ Como se chama a vivenda? ‑ perguntou Tommaso apenas para dizer qualquer coisa.

‑ Não tem nome ‑ respondeu a rapariga -, mas os camponeses conhecem‑na por uma designação que também lhe posso dizer, uma vez que não a compra. Chamam‑na "a Casa do Crime".

 

               O ALFABETO

 

O encontro era na esquina da rua municipal, onde começava uma estradinha poeirenta, ladeada por duas sebes de sabugo, que levava à aldeia. Girolamo entrou na estrada e parou o carro atrás da sebe. Chovera toda a manhã; o céu estava cheio de nuvens escuras e esfarrapadas, por entre as quais passava uma luz esplendorosa que fazia brilhar as numerosas poças de água espalhadas pela estrada. Girolamo, tirando a carta do bolso, leu‑a de novo. Ao fazê‑lo, não pôde deixar de dizer para consigo que, ao escrever a Ana a sua decisão de a deixar, em vez de Lha anunciar verbalmente, cometia um acto de vileza. Mas justificou‑se com o pensamento de que a culpa era do carácter temível da rapariga. De súbito, a porta do automóvel abriu‑se e Ana quase lhe caiu em cima, dizendo‑lhe apressada e furiosamente:

‑ Pronto, vamos. ‑ Girolamo ligou o motor e o carro partiu. Girolamo meteu pela rua municipal e entrou numa fila de camiões e de automóveis que saíam da cidade na direcção do campo. Embora a conduzir, olhou de soslaio para Ana, como para se certificar da sua vontade de se separar dela; e de novo lhe acudiu à ideia o pensamento que tivera da primeira vez que a vira: um rosto de virgem, de um oval delicado, com dois olhos, porém, nada meigos, mas sim constantemente agitados por um incompreensível furor irracional. Nesta expressão furiosa havia, contudo, qualquer coisa de infeliz; e assim, de todas as vezes que a fitava, Girolamo não podia deixar de experimentar um obscuro sentimento de compaixão.

Sobressaltou‑se ao ouvir a voz dela, que perguntou, áspera:

‑ Onde tens os cigarros?

‑ No tablier.

Viu‑a estender a pequena mão ("mão pequena, mão colérica", recordava‑se de ter lido tempos atrás num tratado de quiromancia) e tentar abrir a portinhola do tablier, sem o conseguir. Depois, rubra de ira, disse:

‑ Abre‑me isto! Não vês que não sou capaz?

‑ Com impaciência nada se consegue ‑ disse ele com afabilidade, estendendo a mão e abrindo a portinhola. ‑ És demasiado impaciente, tu.

Viu‑a bufar, cheia de cólera:

‑ Ufa!... para ti e para os teus discursos. Pareces‑me o meu pai. Olha, hoje não me faças discursos, quando não, eu...

‑Tu, o quê?

‑Abro a porta e atiro‑me para debaixo do carro, imediatamente.

‑ Mas pode saber‑se o que tens?

‑Tenho que, esta manhã, meu pai já me fez o sermão e o resultado foi que arranjei um galo na cabeça.

Girolamo sabia que o pai de Ana, um operário da construção civil, era muito paciente e razoável; e não pôde deixar de se surpreender:

‑Teu pai bateu‑te?

‑ Não, imagina, se me batesse, matava‑o. Não, fui eu mesma que me feri.

‑ E porquê?

‑Porque aqueles seus sermões me desesperavam. Como nunca mais acabava, comecei a berrar, e depois, agarrando a cabeça com as mãos, bati com ela contra a parede. Ora apalpa aqui o alto que eu fiz.

Tirou‑lhe a mão do volante e levou‑a à cabeça, fazendo‑lhe tactear o crânio sob os cabelos bastos e finos. Ele sentiu como era delicada e frágil aquela cabeça de rapariga e surpreendeu‑se que dentro dela pudessem estalar tempestades tão furiosas:

‑ Mas tu és doida.

‑ Mais uns instantes e atirar‑me‑ia pela janela.

‑ Não podes controlar‑te? Vejamos, é necessário tão pouco!...

‑ Ouve, já to disse, não me faças discursos, não é boa altura.

‑ Está bem, está bem, desde que te acalmes.

Girolamo calou‑se, começando a conduzir em silêncio. Agora tinham saído do povoado e corriam por uma tranquila estrada rural, entre os campos. Após um longo silêncio, Girolamo principiou a falar de coisas indiferentes, pois queria que Ana se acalmasse, a fim de receber a carta de rompimento em condições de espírito menos perturbadas. Pôs‑se assim a falar das aulas na Universidade, dos estudos, dos professores, dos colegas. Em seguida, sempre com a intenção de conduzir a conversa para um terreno neutro, referiu‑se a um livro que estava a ler e que tinha naquele momento no carro, sobre o assento. Ana, agora, parecia ter‑se realmente acalmado; e como Girolamo lhe falou do livro, perguntou‑Lhe que espécie de livro era. Girolamo, satisfeito por esta inesperada curiosidade, pegou no volume do assento e, sem dizer palavra, colocou‑lho sobre os joelhos. Era uma história de Itália, com o título em grandes caracteres vermelhos na parte superior da capa. Girolamo viu a rapariga revolver o livro entre as mãos; depois perguntou‑lhe:

‑ Que há neste livro?

‑ Como? Que há?

‑ Que coisa está escrita, dentro?

‑ Não vês? Podes inferi‑lo pelo título. ‑ A rapariga não disse nada: observava o livro, como que incerta. Girolamo acrescentou: ‑ É uma óptima história. Muito interessante.

‑ Mas de quê?

‑ Sabes que estás a ser estúpida? Da Itália, não? Repentinamente, com a habitual subitaneidade selvagem e frenética, ela exaltou‑se:

‑Ouve, não me respondas dessa maneira porque hoje, já to disse, não é dia. E olha, queres ver o que faço ao teu livro? Olha! ‑ Com gestos furiosos, baixou o vidro e atirou o livro pela janela fora.

Girolamo, mais surpreendido do que indignado, parou o carro e perguntou:

‑ Mas, que tens? ‑ E, sem aguardar a resposta, desceu e foi buscar o livro onde ele tinha caído. Naquele sítio, a estrada costeava um campo de aviação, com poucos aviões espalhados aqui e além pela pista, sob um céu nublado. Alguns ociosos, que estavam a observar o campo através do gradeamento, voltaram‑se a olhar com curiosidade enquanto Girolamo corria a apanhar o livro. Inclinou‑se e recolheu o volume; naquele mesmo instante, um avião que chegava passou‑Lhe sobre a cabeça com um ruído ensurdecedor e então, subitamente, veio‑lhe à ideia que o comportamento de Ana era demasiadamente estranho para não ter um significado. Mas qual? Dando voltas a este pensamento, regressou ao carro e, arremessando o livro para o banco, sentou‑se de novo ao lado da rapariga. Mas, em vez de ligar o motor, ficou imóvel, como que a reflectir.

‑ Então porque não continuas viagem? ‑ perguntou ela com um assomo de arrependimento na voz. ‑ Estás zangado comigo? Deves desculpar‑me. Sou feita assim: ou aceitas‑me, ou largas‑me.

"Largo‑te", gostaria de dizer Girolamo. Mas conteve‑se, e respondeu:

‑Realmente, não estou zangado. Mas agora tens de me fazer o favor de ler esta carta.

Tirou a carta do bolso e lançou‑lha para o regaço. Viu‑a baixar os olhos para a carta, sem lhe tocar. Depois, ela perguntou:

‑ Que está nesta carta?

‑ Lê‑a. Escrevi‑a exactamente porque preferia não te dizer de viva voz aquilo que contém.

‑ Mas diz‑me, que há?

‑ Lê‑a.

Ana pegou na carta, tirou a folha do sobrescrito e observou‑a por um momento; depois disse:

‑ Está bem, levá‑la‑ei para casa e lê‑la‑ei com vagar.

De súbito, Girolamo sentiu desejos de que tudo acabasse imediatamente, sem outros aborrecimentos:

‑Não, deves lê‑la aqui, diante de mim, pois deste modo dizes‑me o que pensas e não se fala mais no assunto.

Viu‑a tornar‑se rubra de cólera:

‑ Lê‑la‑ei quando e onde me apetecer.

Girolamo, irritado, estava, por sua vez, para replicar: "Mas porque não a queres ler? Serás porventura analfabeta?", quando, inesperadamente, se apercebeu de que Ana segurava a carta de pernas para o ar, de modo que, mesmo que a quisesse ler, não poderia. A sua irritação desapareceu, já que foi levado a pensar que talvez a rapariga, realmente, não soubesse ler. Disse afàvelmente:

‑Devolve‑me essa carta.

‑ Só ta devolvo ‑ propôs ela, desconfiada e hesitante - se tu primeiro me disseres o que nela está escrito.

Ele vacilou e depois respondeu:

‑ Nada de preciso. Dizia‑te apenas que gostava de ti.

‑ E para mo dizeres, tiveste necessidade de me escrever uma carta?

‑ Bem, para dizer a verdade, escrevia‑te mais qualquer coisa.

‑ O quê?

‑Aquilo a que tu chamas sermão. Dizia‑te que não devias andar sempre tão nervosa, furiosa, irritada com tudo e com todos.

‑ Já to disse: sou feita assim.

Girolamo ligou o motor e depois, enquanto o carro corria de novo entre os campos, disse:

‑Isso não é uma resposta. És feita assim, é verdade, mas podes modificar‑te.

‑ Eu não quero modificar‑me.

‑Na minha opinião, estás sempre assim furiosa porque há muitas coisas que não sabes, que não compreendes. E isto irrita‑te e torna‑te furiosa.

‑ Mas quem diz isso?

‑ Digo‑o eu. Tu atiraste esse livro pela janela, porque... porque há nesse livro qualquer coisa que te escapa, que não podes controlar.

Viu‑a fazer um gesto de impaciência e, depois, bocejar com ostentação:

‑ Bem, basta de sermões. Tenho fome. Vamos comer.

‑ Então, dás‑me a carta?

‑ Toma‑a.

Girolamo pegou na carta e meteu‑a no porta‑luvas. O carro agora desembocara na estrada que contorna o lago de Castelgandolfo, correndo ao longo de uma série de jardins e de vivendas que escondiam o lago. Ele disse:

‑ Vê naquele mapa em que ponto é preciso fazer o desvio para ir a Nemi. Vê onde está escrito: "Rua dos Lagos. "

Era a última prova. Viu‑a pegar no mapa, desdobrá‑lo e, depois, observá‑lo com embaraço.

‑ Não vejo essa Rua dos Lagos.

‑No entanto, deve estar aí. Que está escrito lá em cima?

‑ Onde?

‑ Lá em cima, no alto do mapa.

"Agora, quero ver como descalça a bota", pensou Girolamo, não sem uma pontinha de crueldade. Mas Ana ergueu a cabeça, olhou para fora e disse improvisamente:

‑ Para que havemos de ir até Nemi? É muito longe e eu tenho fome. Olha, vamos ali àquela casa de pasto, já lá estive de outras vezes, come‑se bem.

Girolamo observou:

‑ Sobre aquele portão há um letreiro onde se lê qualquer coisa que não nos permite comer na casa que tu dizes.

‑ O quê?

‑ "Fechada para obras".

A rapariga, desta vez, não disse nada. Após um breve silêncio, Girolamo recomeçou:

‑Mas sobre aquele outro portão, lá em baixo, ao fundo, há uma tabuleta onde está escrito: "Restaurante Belvedere. Especialidade: caça. " Vamos lá?

‑ Vamos onde tu quiseres, desde que se coma.

O carro tinha chegado ao portão. Girolamo afrouxou, voltou; e o carro entrou no jardim do restaurante, passando debaixo da tabuleta, onde, em grandes caracteres amarelos, sobre um fundo verde, estava escrito: " Restaurante do Lago. Especialidade: peixe do lago."

 

             O QUARTO E A RUA0

 

Perto da madrugada, Ricardo teve um pesadelo. Tinha a impressão de estar num túnel de abóbada muito baixa, como de mina, e de caminhar de gatas na direcção de uma saída, que, porém, não se compreendia se estava perto ou longe, por causa da escuridão muito espessa e da densidade sufocante do ar. Avançando com as mãos e os joelhos pelo chão, Ricardo esperava contudo encontrar um largo, uma abertura; no entanto, de repente, reparava que a abóbada do túnel se ia tornando cada vez mais baixa e que, em suma, ele não avançava na direcção da saída, mas sim na direcção do fundo de uma tripa, onde era de supor que o túnel terminasse. Decidia, então, voltar para trás, mas logo verificava que se tinha entranhado demasiadamente para se poder voltar: a estreiteza do cunículo não lho permitia. Esta descoberta enchia‑o de uma angústia terrível, tão insuportável que, por fim, com um longo gemido, acordou.

Reparou imediatamente que estava de gatas, como no sonho; e, pelo contacto com a parede lisa que ia apalpando com as duas mãos, compreendeu também que não estava no seu quarto, mas sim numa sala estranha, dele desconhecida. Mas a razão por que se encontrava fora da sua cama, numa casa que não era sua, essa não conseguia compreendê‑la. A sensação da completa estranheza do lugar inspirava‑lhe uma ansiedade, um pânico irreprimíveis; apalpava furiosamente a parede, e quanto mais a apalpava mais se lhe afigurava desconhecida. Depois, as suas mãos encontraram qualquer coisa que lhe pareceu ainda mais estranho do que a parede: uma superfície lisa, larga, alta, ligeiramente inclinada para ele, suave e peluda ao tacto. Ricardo seguiu os contornos desta poltrona ‑ já que de uma poltrona se tratava e, além disso, forrada de veludo ‑, um objecto que recordava muitíssimo bem não ter no seu quarto; e, por fim, a sua mão, estendida na escuridão, encontrou as pregas móveis e bastas de uma cortina. Atrás da cortina, espasmodicamente, os seus dedos encontraram e agarraram o cordão de uma persiana de enrolar; puxou com força, e a luz do dia inundou a sala.

Era o seu quarto. Por uma espécie de sonambulismo a que sabia ser propenso, Ricardo, durante o sono, levantara‑se da cama e fora aninhar‑se no ângulo entre a janela e a poltrona.

Quanto ao veludo desta, que recordava ter sempre visto coberta com um pano de algodão cor de tabaco, a explicação acudiu‑lhe imediatamente à ideia: na noite anterior, a mulher tinha tirado o pano, já sujo, para o dar a lavar; sob o pano, a poltrona era efectivamente revestida de veludo canelado, verde.

Mas agora, que pensava de novo no caso, impressionava‑o principalmente a sensação de estranheza, forte e precisa, que experimentara, talvez durante dois ou três minutos, depois de ter acordado. Com efeito, não pôde ele deixar de pensar, atónito, bastara‑Lhe acordar fora da sua cama, junto de uma poltrona à qual tinha sido tirado o resguardo, para se iludir de que estava num lugar novo, desconhecido, estranho e pavoroso. Ricardo, sentado na cama desfeita, revolveu durante algum tempo este pensamento na mente, sem chegar a qualquer conclusão. Depois sobressaltou‑se, lembrou‑se de que tinha de ir para o escritório e começou a vestir‑se.

Ricardo, naquele dia, fez a vida habitual, isto é, teve os pensamentos do costume relativamente à vida que levava. No escritório, onde passava dois terços do seu dia, não pôde deixar de notar, como habitualmente, que o seu trabalho não o interessava. Outra observação que não era nova: todas aquelas poucas vezes que, num momento de distracção, se deixava invadir por um fugidio interesse pelo trabalho, descobria que experimentava, logo a seguir, uma sensação de remorso, como por uma traição. Mas traição de quê, visto que ele não sabia fazer outra coisa e não tinha qualquer vocação? Ricardo não saberia dizê‑lo.

Por outro lado, como habitualmente, fez as reflexões do costume sobre os seus companheiros de trabalho: vulgares, grosseiros, miseráveis e, ainda por cima, inconscientes da mediocridade nada dourada do seu destino, antes contentes e, por isso, dados aos mexericos de secção, ao humorismo de escritório. Também com estes colegas, se bem que no fundo do coração os repudiasse, acontecia às vezes a Ricardo ser levado a considerá‑los simpáticos, a rir com eles, a mexericar e revelar banalidades. E todas as vezes que estes mortificantes abandonos se verificavam ele experimentava, como quando se interessava pelo trabalho, uma sensação de remorso como por uma traição. Mas, repetia, traição de quem, de que coisa? Não era porventura aquela a sua sociedade? E, além disso, em que coisa era ele melhor do que os outros? Também para estas perguntas Ricardo não encontrava respostas. Finalmente, os superiores. Ricardo sentia por eles um ilimitado, se bem que, no fundo, injustificado, desprezo. E com eles verificava‑se o mesmo fenómeno que com o trabalho e os colegas: algumas vezes acontecia‑lhe esquecer o desprezo e experimentar um sentimento de simpatia, de reverência, mesmo até de admiração; mas era por breve tempo e, naturalmente, nunca desligado do habitual remorso como por uma traição. Também, neste caso, não saberia dizer quem ou que coisa traía. Os seus superiores eram aqueles, não havia outros, nem lhe constava que pudesse haver.

De qualquer modo, bem ou mal, o dia passou. Findo o trabalho, Ricardo saiu com os colegas e foi apanhar o autocarro do costume, que, em vinte minutos, o levava a casa. Morava há um par de anos num bairro novo, construído sobre a colina. A rua onde se encontrava a sua casa serpenteava em volta da colina e tinha dois acessos; um, em baixo, num largo onde parava o autocarro que Ricardo tomava todas as manhãs a fim de ir para o escritório, e, outro, em cima da colina, num outro largo onde o autocarro terminava o seu percurso. Conquanto possa parecer estranho, Ricardo nunca vira este segundo acesso, pois a sua casa encontrava‑se muito perto do largo situado em baixo e ele nunca tivera qualquer motivo para subir a rua até ao largo situado em cima.

Ora, naquele dia, Ricardo distraiu‑se e deixou passar a paragem habitual sem descer. A sua primeira reacção foi de arrelia, mas depois pensou que desceria na paragem imediata, e isto talvez fosse um bem, pois, assim, seria obrigado a caminhar um pouco, coisa que lhe acontecia fazer cada vez mais raramente. O autocarro, porém, não parou tão depressa; quando Ricardo finalmente desceu, reparou que se encontrava numa parte do bairro que lhe era totalmente desconhecida. Um lugar muito ameno, pensou imediatamente, muito mais bonito, arejado e elegante do que aquele onde habitava.

Duas filas de árvores de folhagem abundante e miúda, talvez pimenteiras, pendiam para o centro da rua, formando assim uma espécie de túnel. Atrás dos portões, no fundo dos jardins, divisavam‑se, entre as árvores, fachadas de vivendas luxuosas. Não passava ninguém; ou, melhor, lá em baixo, ao fundo dos gradeamentos dos portões, uma mulher caminhava lestamente; vestia uma blusa branca e uma saia vermelho‑viva. Era loura e, de acordo com a moda, usava um penteado alto, de modo a formar como que uma espécie de elmo; tinha uma bela e delicada nuca branca, na qual se distinguia, mesmo àquela distância, um só caracol dourado, que brilhava como uma jóia. Tinha os ombros largos e cheios, as costas compridas, a cintura delgada, envolvida por um alto cinturão de couro. Das ancas, à medida que caminhava, comunicava‑se uma ondulação forte e profunda às pregas da saia.

A mulher, como a rua, pareceu também a Ricardo estranhamente sedutora; e justamente porque, como a rua, ela Lhe surgia de uma maneira singela e surpreendente, como coisa nunca antes observada, Ricardo pensou que devia aproximar‑se dela, falar‑lhe; e pensou também que a distracção do autocarro, provavelmente, tinha sido providencial: acontece assim, muitas vezes, que uma vida inteira é modificada por uma bagatela. Este pensamento, por reflexo, fez‑lhe recordar a mulher, que até então julgara amar, e os dois filhos, a quem era muito afeiçoado; e notou com surpresa que, se aquela mulher entrasse realmente na sua vida, ele não hesitaria em abandonar a família.

Talvez a mulher se tivesse apercebido de ser seguida; porque, subitamente, baixou‑se para apanhar uma flor de oleandro que alguém havia arrancado e deixado cair no passeio; levou‑a ao nariz e seguidamente, depois de a ter segurado durante algum tempo entre dois dedos, na extremidade do braço pendente, deixou‑a cair novamente no chão. Ricardo estugou o passo, apanhou a flor e levou‑a aos lábios. A mulher caminhava agora mais lentamente, talvez para lhe dar possibilidade de a alcançar, e, de vez em quando, com a sua mão lisa, branca e grande, apalpava a nuca, como para se assegurar de que o penteado estava em ordem, ou, então, alisava as pregas da blusa, nas costas. Em suma, dava a impressão de saber que era observada e de se preocupar em não parecer mal arranjada.

A rua mudou de direcção; do outru lado já não havia árvores, e a rua parecia mais larga, ainda que não menos atraente nem menos moderna. As vivendas com os portões também tinham cessado; alguns prédios de belo aspecto, de cinco ou seis andares, terminados por águas‑furtadas, alinhavam‑se ao longo dos passeios, a descer. Ricardo pensou de novo, quase involuntariamente, que seria muito melhor viver nesta rua, da qual emanava uma sensação de elegância e de serenidade aristocrática, do que na sua, tão medíocre e tão mesquinha. Era a rua, pensou mais uma vez, onde abordaria a mulher da saia encarnada; e, talvez por isto, parecia‑lhe muito mais agradável do que aquela em que vivia com a esposa.

A mulher afrouxou ainda mais o passo; Ricardo interpretou este abrandamento como um tácito convite, e atirou‑se para a frente, a fim de a alcançar. Precisamente neste momento, porém, ela desapareceu no portão de um daqueles prédios, fazendo tremular pela última vez, como um chamamento, a saia encarnada. Ricardo hesitou e, depois, seguiu‑a.

Viu‑a, ao fundo do átrio, dirigir‑se para a escada, sem utilizar o elevador, sinal de que morava no primeiro andar; mas podia também dar‑se o caso, no entanto, de subir pela escada para ele poder detê‑la e falar‑lhe. Ricardo notou que o átrio, o elevador e a escada lhe eram igualmente estranhos, mas de uma maneira curiosa, ou seja, como certas paisagens que, sendo‑nos embora desconhecidas, temos a sensação de ter visto numa outra vida. Agora, a mulher, dando uma volta, desaparecia de novo; Ricardo, subindo dois a dois os degraus, alcançou‑a, ofegante, exactamente no momento em que ela se virava e dizia com voz tranquila:

‑ Ah!, és tu... Como é possível não nos termos visto?

Ricardo gaguejou:

‑ E como é possível tu... ‑ Gostaria de acrescentar: "Como é possível tu estares aqui, neste prédio desconhecido, a esta hora?", mas conteve‑se, pois reconheceu, sobre a porta em frente da qual tinham parado, a chapa com o seu nome: aquela, portanto, era a sua porta, como a rua que pouco antes havia percorrido era a sua rua e a mulher da saia encarnada a sua esposa. Esta, entretanto, tinha introduzido a chave na fechadura e, à sua pergunta, voltou‑se, sorrindo, e disse:

‑Como é possível estar loura? Tinha‑me cansado de ser morena, nada mais. Que dizes à mudança?

Ricardo apressou‑se a responder que aqueles cabelos louros assim penteados lhe ficavam muitíssimo bem. Entraram. A mulher foi à cozinha para ver se o jantar estava pronto, e Ricardo dirigiu‑se para o seu quarto, onde se lançou sobre a cama, aí permanecendo deitado, de costas, na penumbra do crepúsculo. Agora reparava que entre o pesadelo da noite e a ilusão do dia havia um nexo, mas era‑lhe difícil perceber qual. Muitos elementos eram semelhantes: aos cabelos não já escuros da mulher correspondia a poltrona não já coberta com o pano de algodão; ao terror que o tinha assaltado quando supusera encontrar‑se num quarto estranho, a alegre esperança que experimentara ao iludir‑se que seguia uma mulher desconhecida, numa rua que lhe não era familiar. Além disso, em ambos os casos, havia um pormenor análogo e significativo: tanto o quarto como a rua tinham‑se‑lhe mostrado novos porque ele se havia situado numa posição nova em relação a eles. Com efeito: não acordara na sua cama, mas sim num canto do quarto; não entrara na rua pelo acesso de baixo, mas sim num ponto impreciso, no alto da colina. Seguindo cada vez mais frouxamente o fio destas reflexões, por fim, adormeceu.

 

                 BELO AMOR

 

Dirigiram‑se pelo atalho que tinham percorrido muitas vezes seis anos antes, questionando obstinadamente e com rudeza

‑ Mas que queres tu dizer quando afirmas que poderíamos ter sido muito felizes? Fomos felizes quanto podíamos sê‑lo, nem mais nem menos.

‑ Nunca compreendes nada, és muito inteligente na tua profissão, mas em questões de amor és um cretino.

‑ Cretina és tu!

‑ Queria dizer apenas que poderíamos ter sido muito felizes se tivéssemos reparado que aqueles eram os nossos melhores anos e que devíamos aproveitá‑los. Mas, ao invés, desperdiçámos tudo.

‑ Pronto, lá vens tu com a habitual frase feita! Mas pode saber‑se que coisa desperdiçámos nós

‑ O nosso amor. E não só o nosso amor: tudo.

‑ Como?

‑Sabes muito bem como: zangas, más disposições, grosserias, indiferenças, discussões, injúrias, maus tratos.

‑ Maus tratos não, eu nunca te bati.

‑Sim, bateste‑me naquele dia em que me fechei no meu quarto e não queria sair. Atiraste‑me contra a parede e quase

me partiste a cabeça.

‑Não te bati. Arrombei a porta e, naturalmente, para a arrombar, empurrei com força os batentes. Tu estavas atrás e, sem o querer, atirei‑te contra a parede.

‑Não importa; que interessam os pormenores? A única coisa que sei é que poderíamos ter sido muito, muito felizes, e

não o fomos. E que aqueles que poderiam ter sido os dois melhores anos da nossa vida foram desperdiçados, miseràvelmente desperdiçados.

‑ Muito, muito felizes... Desperdiçados, miseràvelmente desperdiçados... Porquê tantas repetições?

‑ Vai para o Diabo!

Encontravam‑se agora a meio do caminho, entre muros de pedras soltas, limpas e cinzentas, por cima dos quais sobressaíam, pululantes e gesticulantes, as pálidas pás espinhosas das figueiras‑da‑índia. Atrás das figueiras, a encosta da colina era seca, nua, árida, com pequenas e tortuosas oliveiras espalhadas, entre as quais, ao longe, se via o mar de um azul‑claro, luminoso, sorridente, quase enfadonho na sua inalterável serenidade. A mulher parou subitamente e, olhando uma nesga de mar, gritou com uma voz cantada, semelhante a um longo lamento:

‑ Oh!, como poderíamos ter sido felizes! Tínhamos vinte e dois anos cada, havíamos acabado de nos casar, não nos faltava nada. às vezes acordo de noite, enquanto tu dormes, ou, melhor, ressonas, penso nisto e começo a chorar, a chorar, só por me lembrar na felicidade que poderíamos ter tido e que não tivemos.

Pusera na frase uma tal amargura que Sílvio, contagiado, não pôde deixar de experimentar também uma sensação de arrependimento. E se ela tivesse razão? Mas recobrou imediatamente alento e perguntou, irritado:

‑ E, na tua opinião, como deveria ter sido essa nossa felicidade?

A mulher respondeu lentamente, estática:

‑ Amarmo‑nos, sem nunca pararmos um só momento, adorarmo‑nos, não sermos duas pessoas, mas uma só.

Sílvio replicou prontamente:

‑ A tua felicidade é genérica e convencional. Sabes em que coisa me faz pensar?

‑ Em quê?

‑Nos postais ilustrados que se encontram nas tabacarias, aqueles brilhantes, a cores, com o galã de cara de sonso, besuntada e maquilhada, que aperta nos braços a rapariga de olhos pintados. E ao canto há um lindo amor‑perfeito ou uma rosa.

‑ Idiota.

‑Idiota és tu, ao menos a avaliar pela ideia que fazes do amor. Queres saber, porém, o que eu considero a felicidade?

‑Não quero saber nada.

‑ No entanto, tens de me ouvir.

‑ Não, não quero saber nada.

A mulher levou as mãos aos ouvidos e olhou com obstinação na direcção do mar. Furioso, Sílvio agarrou‑a pelos pulsos, afastou‑lhe as mãos dos ouvidos e, torcendo‑a, disse‑lhe precipitadamente:

‑ A felicidade é sermos o que somos, profundamente, sinceramente, sem compromissos, mesmo à custa de sermos infelizes. Percebeste? A felicidade tivemo‑la durante estes dois anos, porque nos amávamos e o amor faz que o homem e a mulher sejam eles mesmos, sem as convencionalidades que tanto te agradam. Exactamente por nos termos maltratado, insultado, por termos questionado, fomos felizes. Percebeste?

‑ Deixa‑me.

‑ E não tapes os ouvidos quando te falo, percebeste? Deves escutar as coisas assisadas que te digo como eu escutei os disparates que tu disseste.

‑ Deixa‑me.

Sílvio beijou‑a no canto da boca, não sabia se com ódio ou com afecto; depois separaram‑se e, como se nada tivesse acontecido, retomaram o caminho. Finalmente, ao fundo do atalho, surgiu o portão da vivenda, imerso numa cascata de trepadeiras de folhas miúdas e de pequenas flores azuis. Por cima do portão via‑se a fachada lateral, branca e simples, com uma cornija direita, e a goteira, que descia até ao chão, além de duas janelas de persianas verdes. Sílvio olhou para aquelas janelas, que, como sabia, eram as do compartimento onde vivera durante dois anos com a mulher, e sentiu, de súbito, um aperto no coração: sim, tinham‑se amado ali em cima, e tinham sido felizes, ainda que de maneira violenta e não da forma convencional que ela sonhava. A mulher disse com impaciência:

‑ Então, vamos para trás.

‑Não, quero entrar.

‑ Mas porquê?

‑ Porque sei que nesta casa nos amámos e quero rever o lugar do nosso amor.

‑ Belo amor.

Sílvio encolheu os ombros; depois puxou a corda, e, imediatamente, ao fundo do jardim, com um som áspero mas amigo, ressoou a campainha bem conhecida. Esperaram durante algum tempo e, depois, alguma coisa se mexeu atrás das espessas trepadeiras do portão; este abriu‑se e apareceu uma rapariguita dos seus 15 anos, pequena e bonita, com uma camisola aderente de decote pronunciado e uma saia muito curta. Tinha um rosto já de mulher, com uns olhos grandes, lânguidos e escuros, de expressão doce e irónica, e os lábios morenos e grossos:

‑ Que desejam? A senhora não está.

‑ Ainda aluga quartos, a senhora?

‑ Sim, aluga.

‑Gostaríamos de ver um.

‑ Mas estão todos ocupados.

‑ Não importa, queremos vê‑los para quando estiverem livres.

‑ Façam favor.

Ali estava o jardim, velho, espesso e abandonado; ali estava a escada exterior, com os degraus de azulejos partidos, as flores, sobre os quais se via, espalhada, caruma dos pinheiros que inclinavam os seus ramos ali para cima. A rapariga disse qualquer coisa sobre uma frigideira que estava ao lume e desapareceu.

Sílvio e a mulher subiram a escada e entraram por uma porta de vidros pintados num grande compartimento com duas janelas.

Era o seu compartimento, tudo permanecera igual: a grande cama com a coberta de cânhamo cor de ferrugem, os móveis rústicos, estilo inglês, os ladrilhos encarnados do pavimento, as paredes brancas e nuas. O quarto devia ser habitado por um casal: aqui e além viam‑se nos cabides, ou sobre as cadeiras, roupas de senhora e de homem; muitos boiões de pomadas e objectos de toilette estavam dispostos em ordem sobre o mármore da cómoda; sob o travesseiro da cama viam‑se as pontas de uma camisa de tule cor‑de‑rosa e de um pijama de homem, azul. Sílvio, mal‑grado seu, ficou comovido e disse em voz baixa, como que falando para si mesmo:

‑ No entanto, sei‑o: aqui dentro fomos felizes.

A mulher teve uma explosão de furor:

‑Deixa‑te disso! Queres ver? Olha o que eu faço da tua felicidade... ‑Inclinando‑se, cuspiu no pavimento.

Sílvio sabia que aquela era a sua maneira de o provocar, bem diferente do idílio que ela dizia sonhar. Ele jurava sempre a si mesmo não se descontrolar, manter‑se calmo; e depois, afinal, deixava‑se arrastar. Desta vez também: antes ainda de poder verificar o que fazia, agarrara‑a com tanta força pelos braços redondos e nus que o peito opulento, impelido de baixo para cima, quase Lhe rebentava a blusa; ao mesmo tempo, soprava‑lhe no belo rosto enfurecido e consternado:

‑ És tu que não sabes amar, tu, que no quarto onde vivemos dois anos, em vez de te comoveres, cospes.

Viu‑a fazer um trejeito cómico e gracioso de raiva impotente e sentiu desejos de a beijar; depois empurrou‑a, atirando‑a para cima da cama, e quando ela aí caiu, de bruços, baixou‑se e deu‑lhe um violento soco nas costas. Em seguida abeirou‑se da janela e olhou para fora. Era o mesmo gesto que fizera muitas vezes, seis anos antes, durante as suas altercações; fazendo‑o, compreendeu que o seu amor não tinha acabado, pois ambos continuavam a fazer as mesmas coisas, exactamente como então. Enquanto, ainda ofegante, notava o habitual contraste entre o jardim imerso no sol e no silêncio e o tumulto do seu espírito, ouviu atrás de si a voz da mulher, que, sarcástica, dizia:

‑ Este seria pois o amor, na tua opinião?

Ele respondeu, sem se voltar:

‑ O amor é uma coisa feroz e tu és a primeira a desejá‑lo feroz.

‑ Olha à tua volta: este é o verdadeiro amor.

Sílvio voltou‑se:

‑ Qual?

‑ O dos dois que habitam agora neste quarto.

‑ Mas como sabes isso?

‑ Sinto‑o, são coisas que se sentem. Um verdadeiro, grande amor.

A porta que dava para a escada abriu‑se e apareceu a rapariguita:

‑ Então, viram o quarto? Os hóspedes vão‑se embora depois de amanhã.

‑ Quem são os hóspedes? ‑ perguntou Sílvio, inesperadamente.

‑ Dois forasteiros.

‑ E... dão‑se bem.

O rosto da rapariga cobriu‑se de espanto:

‑ Que quer dizer com isso?

‑ Gostam um do outro?

‑ Quem é que o sabe?

- Mas vê‑se, não? Quando duas pessoas gostam uma da outra...

A rapariga ficou confundida:

‑ Estes são demasiado velhos, como posso sabê‑lo? Quando têm alguém ao pé, estão sossegados.

- Velhos? Velhos quanto?

- ‑ Não sei: velhos.

- Já percebi ‑ disse Sílvio. ‑ E tu tens namorado?

‑ Sim.

‑Entendes‑te com ele?

‑ Umas vezes entendemo‑nos, outras vezes não.

‑Que queres dizer?

‑ Ele tem um feitio difícil.

‑ E tu?

‑ Ele diz que quem tem o feitio difícil sou eu.

‑ Mas, em resumo, gostais um do outro ou não?

‑Se não gostássemos um do outro, porque nos namoraríamos?

 

               GRACEJOS DO CIÚME

 

Num daqueles dias, Ernesto estava em pé no limiar da sala, em sua casa, observando de longe a esposa e o homem que suspeitava ser o amante dela, um amigo de nome Luca. Ambos estavam sentados num canapé, ao fundo da sala, e falavam com animação, mas em voz baixa, de qualquer coisa que, ao que parecia, os interessava muito. Ernesto, observando‑os, fumava furiosamente; há algum tempo que o ciúme o mantinha acordado de noite e o fazia cair de sono durante o dia; naquele momento não saberia dizer o que preferiria, se dormir ou libertar‑se da ansiedade invencível que lhe inspirava o pensamento da mulher.

O seu olhar fixo, insistente, malévolo, pareceu finalmente incomodar a mulher. Esta, de súbito, levantou‑se e, atravessando a sala, veio ao encontro dele e perguntou:

‑Mas pode saber‑se o que tens para me olhares tão fixamente?

‑ Não tenho nada ‑ respondeu Ernesto, traduzindo, no mesmo instante, um conhecido provérbio inglês ‑, olho‑te, não é um crime: um gato pode olhar a rainha.

‑Sim, mas infelizmente eu não sou rainha. Luca precisa de me falar de assuntos dele. Vai para o escritório e espera‑nos; depois passaremos por lá a chamar‑te para irmos à praia. ‑ Dizendo isto, a mulher apoiou‑lhe levemente a mão no peito e empurrou‑o para fora, para o quarto. A porta fechou‑se.

Bastante contrariado, Ernesto, em vez de ir para o escritório, como lhe havia sido tão amorosamente recomendado, sentou‑se a um canto do quarto e esperou. Mas o ponteiro do seu relógio, no qual tinha fitos os olhos, havia dado apenas cinco voltas ao quadrante dos segundos quando a porta se abriu e a mulher, em saia de baixo, com os braços nus e os pés descalços, se abeirou da porta, atirou o vestido para cima de uma cadeira e desapareceu.

Era claro que não tinha visto Ernesto agachado no seu canto; mas Ernesto, esse, tinha‑a visto até bem de mais: o ímpeto do corpo estendido, na transparência da saia interior, a rapidez do gesto, a excitação do rosto. Assim, pensou com uma dor aguda e ao mesmo tempo amargamente triunfante, tinha agora nas mãos a prova do que procurava há tanto tempo: a mulher e Luca amavam‑se; ou, antes, levavam a afronta ao ponto de se isolarem em sua casa, debaixo dos seus olhos. Que fazer? O primeiro impulso de Ernesto, naturalmente, fora irromper na sala; mas dominara‑se porque, subitamente, surgira‑lhe a ideia vingativa de enganar por sua vez, depois de ter vivido enganado. Não os surpreenderia, mas faria com eles o jogo do gato com o rato; até então, ele ignorara e eles sabiam; de agora em diante, ele saberia e eles ignorariam.

Entretanto, porém, para lhes não provocar suspeitas, convinha‑lhe ir para o escritório, como, com previdente perfídia, lhe havia sido sugerido pela mulher. Ernesto tentou erguer‑se da poltrona em que estava enterrado, e então, com o esforço que fez para se levantar, de repente acordou.

Encontrava‑se, sim, no quarto   mas sobre a cadeira não havia qualquer vestido; e, precisamente naquele momento, a porta abria‑se e a mulher, desta vez toda vestida, debruçava‑se sobre ele, perguntando‑lhe se estava pronto para ir à praia. "Assim, foi tudo um sonho", pensou Ernesto, seguindo‑a. Até então, não obstante a fadiga da insónia, sempre conseguira distinguir o sono e a vigília. Agora, com um sentimento misto de temor e de espanto, reparava que havia passado, sem dar por isso, de um sonho que tinha alguma aparência de realidade a uma realidade que tinha a absurdeza do sonho. Enquanto ia cogitando nisto, desceram até à rua. Subiram para o carro. Ernesto pôs‑se ao volante; a mulher sentou‑se a seu lado e Luca atrás.

Ernesto, durante algum tempo, conduziu sem falar. Mas quando embocaram na Rua Cristóvão Colombo, disse:

‑ Imaginem que, enquanto estive à vossa espera, adormeci; e tive um sonho verdadeiramente ridículo.

‑ Que sonho?

‑ Sonhei que estavas na sala com Luca, e eu observava‑vos; tu, então, punhas‑me fora da sala e fechavas‑me a porta na cara Algum tempo depois, porém, aparecias meio nua, arremessavas o teu vestido para cima de uma cadeira e voltavas a fechar‑te com Luca.

Viu a mulher olhá‑lo de soslaio e em seguida começar a rir, a rir, e ficar corada no seu belo semblante louro. No fim, ela balbuciou:

‑ Mas, meu pobre Ernesto...

‑ Então, que te surpreende?

‑ Mas, meu pobre Ernesto, não era um sonho.

‑Como? Puseste‑me realmente fora da sala, fechaste‑te realmente com Luca, estavas realmente meio nua`I

‑ Devagar. Foi assim: Luca e eu estávamos a conversar; tu importunavas‑me, olhando‑me fixamente, conforme costumas fazer, da porta, como um touro que está para acometer. Por isso, pedi‑te que saísses por um momento. Mas, entretanto, vieram avisar‑me de que tinha chegado a modista para me provar o vestido novo e, então, pedi a Luca que saísse também. Depois da prova, tirei o vestido, que, aliás, me ficava muitíssimo bem, e arremessei‑o para cima da cadeira, no quarto a fim de a criada o guardar. Tudo isto aconteceu realmente. Mas, nesta altura, adormeceste e depois, acordando, supuseste que tinha sido um sonho.

‑ Mas, quando acordei, o vestido já não estava na cadeira.

‑ Pudera! Dormias, e não te apercebeste de que a criada entrava, guardava o vestido e saía. Ela até me disse: "O Sr. Ernesto está a dormir; devo acordá‑lo?" E eu respondi: "Por favor, não o acordes porque não dormiu esta noite. "

‑Obrigado pela atenção.

‑ Mas que tens, estás zangado comigo?

‑Não, quando muito, estou zangado comigo mesmo.

Iam agora na estrada de Castelfusano, entre o pinhal poeirento e emaranhado e o mar cruelmente cintilante. Lá estava o estabelecimento balnear, o parque de estacionamento e todos os carros alinhados em volta, sob os abrigos de canas, com as cromagens a chispar reflexos intensos ao sol de Agosto. Entraram e dirigiram‑se para a cabina, por uma ordem e sobre um fundo que davam a impressão de serem os componentes de um ballet teatral: de um lado, as cabinas verdes, todas iguais, recortadas no céu azul, que pareciam descer na direcção do mar; do outro, um cortejo de banhistas, alternados segundo o sexo, um homem e uma mulher, um homem e uma mulher, que subiam em fila indiana ao longo da passadeira de cimento, na direcção da saída. A acentuar o ar de ballet, os chapéus de sol espalhados pela praia, tendo o mar como fundo, eram todos amarelos, enquanto as figuras seminuas que se distinguiam no horizonte eram castanhas. Uma bola de gomos pretos e verdes, lançada por dois jogadores de calções vermelhos, voava de um lado para o outro. Tudo isto irritava surdamente Ernesto. Como, pouco depois, o irritou a mulher quando, após uma longa preparação, saiu em bikini da cabina.

Era, com efeito, o bikini mais fantàsticamente exíguo e simbólico de toda a praia. O seio opulento excedia em dois terços o soutien, reduzido à largura de um nastro vulgar; do peito ao ventre, o olhar podia descer ‑ através de uma extensão de carne loura, sinuosa, mórbida, ondulante e cariciosa ‑ até um triângulo de tecido ás flores, tão pequeno que bastava a mulher pôr‑se de perfil para que o relevo dourado das pernas o escondesse e ela desse a impressão de estar totalmente nua. Na realidade, pensou Ernesto, a mulher, à semelhança do imperador da fábula de Andersen, estava, por assim dizer, mais nua do que quando estava realmente nua, que, estando de facto nua, julgava, em boa fé, estar vestida, e assim, tinha toda a naturalidade de quem se ilude de não ter nada de que se envergonhar. Ele disse bruscamente:

‑ Ouve, peço‑te, cobre‑te um pouco mais, isso é demasiado.

‑ Mas é o bikini que se usa este ano...

‑ Cobre‑te com um lenço, não é possível, não vês que estás nua?

‑ E se estivesse?

‑ Em resumo, vai à cabina e cobre‑te com qualquer coisa.

‑ Ui!, és tão aborrecido...

A mulher voltou‑se ‑ mostrando‑lhe, com inconsciente ironia, como estava também nua nas costas ‑ e encaminhou‑se para a porta da cabina. Precisamente naquele momento, porém, entrava para lá Luca, que até então havia esperado que a mulher se despisse. Isto não impediu à mulher de entrar com ele. A porta fechou‑se e Ernesto reparou que ficara só.

O sol queimava‑lhe as costas, o furor afogueava‑lhe o rosto. Mais uma vez a mulher se fechava com Luca, e, desta vez, ele não podia realmente iludir‑se de que era um sonho. Feria‑o sobretudo, com particular crueldade, o facto de ela se ter fechado na cabina com Luca, servindo‑se do pretexto que ele próprio Lhe tinha fornecido: o bikini demasiado sucinto. Ernesto não pôde deixar de pensar que, agora, os dois amantes não tinham já qualquer discrição; a traição era clara, manifesta, de uma evidência óbvia. Agora ouvia‑se na cabina um barulho de pés, um rumor sufocado de vozes. Depois de uma demora que lhe pareceu longuíssima a porta abriu‑se e Luca apareceu, tranquilo, satisfeito, apertando o cinto do slip. Sem hesitar, Ernesto deu um salto e agarrou‑o pelo pescoço, bramindo:

‑ Agora basta!

Seguiu‑se uma cena confusa. Luca e Ernesto, lutando, foram parar ao areal, no meio de uma grande nuvem de pó; alguns banhistas separaram‑nos, ofegantes e desgrenhados; acorreu depois a mulher, vinda do mar, toda molhada, e, segurando‑os pelo braço, arrastou‑os até ao bar do estabelecimento. Sentaram‑se a um canto. Luca estava excitado mas sereno, como o homem de quem se suspeita sem razão; Ernesto, sombrio e iracundo; a mulher, como habitualmente, não conseguia manter‑se séria: para ela tudo era motivo de hilaridade. No fim, depois de Ernesto ter contado o sucedido, não se conteve e desatou a rir.

‑ Há pouco de que rir ‑ protestou Ernesto, lúgubre.

‑ Rio ‑ disse a mulher ‑ porque, desta vez, sim, foi tudo um sonho.

‑ Que é que dizes?

‑ Eu entrei em primeiro lugar na cabina e, quando saí, estavas tu a dormir na poltrona de verga que se encontra no estrado. Passei à tua frente e afastei‑me na direcção do mar, continuando tu a dormir. Luca, por sua vez, entrou na cabina, e tu dormias sempre. Assim, sonhaste que me dizias para pôr qualquer coisa em volta das ancas, sonhaste que me fechava na cabina com Luca e, naturalmente, depois de tal sonho, mal Luca te acordou, abrindo a porta, saltaste‑lhe em cima.

‑ Desculpem‑me ‑ disse Ernesto, meditabundo. ‑ Primeiro, troquei a realidade por sonho, agora troquei o sonho por realidade. Há algum tempo que ando com os nervos em frangalhos, ejá não percebo nada.

‑ Mas como podias tu pensar ‑ exclamou a mulher ‑ que eu pudesse fechar‑me com Luca na cabina e, ainda por cima, sob os teus olhos?

‑Pude pensá‑lo porque, esta manhã, te fechaste realmente com ele na sala.

‑ Sim, mas era a sala e eu não estava em fato de banho.

‑ Mas estavas em saia de baixo.

‑ Mas, quando estava em saia de baixo, Luca não se encontrava na sala.

‑E como podia eu sabê‑lo? No entanto, isso pareceu‑me tão monstruoso que admiti que fosse um sonho. Foi talvez por isto que, quando a coisa se repetiu em sonho, julguei que fosse realidade.

‑ Bem, agora vamos tomar banho. Vens connosco?

‑ Ide vós ‑ disse Ernesto, carrancudo. ‑ Vou já ter com vocês.

‑ A água está maravilhosa ‑ gritou a mulher, afastando‑se pelo braço de Luca.

Ernesto viu‑os sobre a passadeira de cimento, enquanto se dirigiam para o mar. Alguém, de uma mesa ao lado, disse em voz alta: "Mas como aqueles dois, juntos, estão bem!... Vê‑se que se amam."

 

               AS PERGUNTAS

 

Fomos sentar‑nos no café, ao fundo de uma longa fila de mesas já quase todas desertas. Perto de nós, numa reentrância do prédio, sentava‑se um freguês de quem apenas se viam as pernas. Era muito tarde e através da rua inutilmente ornamentada de anúncios luminosos não passavam já senão poucos automóveis, que, diante dos cafés despovoados, afrouxavam a sua marcha e, depois, deslizavam rua abaixo, como que desiludidos. Sobre os passeios não se viam já pessoas; apenas um ou outro par pressuroso que regressava a casa e grupos de homens que deambulavam vagarosamente, falando em alta voz. Depois, de súbito, as luzes dos anúncios apagaram‑se, e ficou apenas a luz branca dos candeeiros, alinhados sob as fachadas escuras. A rua, envolvida por uma noite vulgar, surgiu então tal como era: uma rua como todas as outras. Disse a Lúcio:

‑Vou buscar os jornais.

‑ Quais jornais?

‑ Os jornais desta noite.

‑ De ontem à noite, queres tu dizer.

‑ Por favor, manda‑me vir um café. Volto já.

Fui ao quiosque. O vendedor dos jornais, gordo, com calças azuis atadas nos tornozelos e camisola de ciclista com o título de um jornal americano no peito e nas costas, estava a arrumar os suportes das revistas e a empilhar os maços de jornais não vendidos. Sem pressa, demorando‑me a ler os títulos e a observar as fotografias, comprei um jornal da noite, depois uma revista literária, em seguida um semanário e, por fim, outro jornal. Quando voltei ao café, Lúcio encontrava‑se já a conversar com o freguês que estava sòzinho na mesa ao lado. Procurei ver quem era, mas não consegui, porque o ângulo do prédio o escondia. Lúcio, como se prosseguisse uma conversa iniciada, perguntou:

‑ Desculpa, não percebo, não tens o interruptor da luz junto à porta?

‑ Sim, tenho ‑ respondeu o outro com uma voz tranquila e paciente que me pareceu reconhecer. ‑ Mas é o interruptor da lâmpada do tecto, e esta infelizmente, está fundida há alguns anos e eu nunca mais me decido a mandá‑la substituir. Assim, para haver luz no quarto, tenho de caminhar às escuras até à cama e acender o candeeiro da mesinha‑de‑cabeceira. Como já faço isto há anos, vou à confiança, direito como uma espada. Mas pode acontecer o imprevisto: por exemplo, uma cadeira caída no chão, como ontem à noite. E então bato com as pernas, magoo‑me e, irritado, blasfemo como um carreteiro.

‑ E, uma vez acesa a luz, que fazes?

‑ Dispo‑me para ir para a cama. É estranho, não?

‑Muitíssimo estranho, de facto. Aborrece‑te que te faça perguntas?

‑Não, não me aborrece.

‑Então diz‑me, por ordem, como te despes.

Seguiu‑se um breve silêncio; o outro parecia reflectir. Em seguida, respondeu:

‑ Tiro o casaco.

‑ E onde o pões?

‑Ponho‑o, juntamente com as calças e os sapatos, num cabide de rodas e empurro tudo para fora do quarto, para o corredor. Deste modo, Giuseppe...

‑Quem é Giuseppe?

‑O meu criado. Deste modo, Giuseppe, encontrando de manhã o cabide, escova e passa a ferro e limpa os sapatos para Quando me levanto.

‑ Nesta altura estás em peúgas, cuecas e camisa. Que fazes?

O outro pôs‑se a rir, na escuridão:

‑ Strip‑tease. Cada um de nós, todas as noites, faz strip‑tease sem dar por isso, como o Sr. Jourdan, falando, fazia prosa. - Riu, contente por esta sua citação, e depois acrescentou: ‑ Não acreditarás no que te vou dizer, mas tiro apenas uma peúga, a gravata e meia camisa...

‑ Meia camisa?

‑Sim, dispo‑a até meio. E, em seguida, ponho‑me a ler, sentado numa pequena poltrona ao pé da cama.

‑ Que lês?

‑ A primeira coisa que me vem às mãos. As mais das vezes, qualquer coisa que não me obrigue a reflectir. Por exemplo, ontem à noite li algumas páginas do horário do caminho de ferro. Todas as linhas da Sicília. De outras vezes, acontece‑me ler a lista telefónica, páginas e páginas de nomes que começam com a mesma letra. Ou então um jornal. Mas não os artigos políticos ou culturais. Leio principalmente os anúncios: grande negócio, óptimo negócio, casa com quatro divisões, casa com três divisões, tenho urgência, vendo a baixo preço, etc. Mas agradam‑me também as notícias que referem as medidas tomadas pelo intendente dos Abastecimentos contra os leiteiros que misturam água no leite, as chegadas e partidas, as previsões do tempo...

‑ E quanto tempo lês? ‑ O outro pôs‑se novamente a rir. Lúcio perguntou: ‑ Porque ris?

‑ Rio porque me fazes pensar em mim mesmo e acho que é para rir. Leio até sentir frio. Normalmente espirro, e então compreendo que são horas de ir para a cama.

‑Isso está bem no Inverno; mas no Verão, como fazes?

‑Para o Verão encontrei outro sistema. Dobro um pé e sento‑me de certa maneira sobre ele. Quando começo a sentir um formigueiro, deixo de ler.

Lúcio, agora, cada vez mais demoradamente, reflectia antes de formular as suas perguntas. Como se fossem perguntas sucessivamente mais profundas e prementes; mas, na realidade, como eu pensava eram as mais insignificantes que se podiam imaginar. Disse por fim:

‑ Portanto, deixas de ler e vais para a cama. Que acontece então?

‑ Não acontece nada de especial. Estendo as pernas sob os cobertores e acordo o meu gato, que, àquela hora, dorme no fundo da cama. O bicho, invariàvelmente, dá um salto e vai enroscar‑se na poltrona, ali ficando toda a noite.

‑ Que gato é?

‑ Um gato da espécie mais comum, pardo, listrado. !

‑ E como se chama?

O outro pôs‑se novamente a rir:

‑ Parecer‑te‑á estranho, mas dei‑Lhe o meu nome: Maurizio.

‑ E porquê?

‑ Olha: como tenho um pouco o hábito de falar só, quando me acontece fazê‑lo, finjo falar com o gato. Digo por exemplo: "Maurizio, hoje foste um estúpido. " Ou então: "Maurizio, és preguiçoso, estás sempre a dormir. " Tudo verdades, como podes verificar que valem não só para mim como para o gato.

‑ Muito engenhoso. E logo que o gato se acomoda na poltrona, que fazes?

‑ Escolho um ponto no espaço e contemplo‑o.

‑ O quê?

- Estou meia hora, uma hora, com os olhos fixos, sem pensar em nada, como estupefacto, imóvel, olhando o vácuo. Depois, subitamente sem qualquer motivo, apago a luz e deito‑me.

‑Ah!, deitas‑te. De que maneira, quer dizer, que posição dás ao corpo?

‑ Deito‑me sobre o lado esquerdo. Sempre.

‑ Mas o braço esquerdo, onde o pões?

‑ Estendido ao lado do corpo.

‑ E o braço direito?

‑ Dobrado, com a mão sobre o antebraço esquerdo.

‑ E adormeces logo?

‑ Não, penso em qualquer coisa que me acalme e me prepare para o sono.

‑Em que pensas?

‑ Na Lua.

‑Na Lua, porquê?

‑ Talvez porque, há uns tempos a esta parte, se fala muito de astronáutica; imagino que me encontro na Lua, absolutamente só, entre aquelas crateras, naqueles desertos. Outras vezes, penso voar na direcção de Marte. Ou descer sobre Vénus. Imagino estas coisas uma vez, duas vezes, três vezes, sempre do mesmo modo, e por fim adormeço.

‑ Quanto tempo demoras a adormecer, pensando nos astros?

‑ Sei lá. Uma vez, quando já estava quase a dormir, acendi a luz e olhei as horas. Desde que apaguei a luz até ao momento em que a voltei a acender, tinha ido, em pensamento, é claro, até Saturno e voltado; e em tudo isto não havia demorado mais de dez minutos. Mais rápido do que qualquer sputnik. ‑ O interlocutor nesta altura levantou‑se, saindo de trás do ângulo do prédio. Reconheci‑o imediatamente, era Maurizio, um jornalista muito conhecido, especialista em política estrangeira. Espreguiçando‑se, disse a Lúcio: ‑ Mas sabes que com as tuas perguntas me provocaste realmente sono? Boa noite. ‑ Afastou‑se com passo ligeiro, e bem depressa desapareceu ao fundo da rua. Deixei passar alguns minutos e depois perguntei a Lúcio:

‑ Pode saber‑se por que motivo o martirizaste com perguntas tão insignificantes?

Encolhendo os ombros, respondeu:

‑ E que querias tu que eu Lhe perguntasse? As suas opiniões sobre a situação política no mundo? Posso lê‑las amanhã nojornal.

‑Mas porque lhas fizeste?

‑ Não sei, provàvelmente porque estava perto de mim. Isto é, por nenhum motivo.

Calando‑me, comecei a reflectir. Lúcio, no fundo, tinha procedido como certos transeuntes que, deparando‑se‑lhe dois operários a abrir um buraco, param e permanecem ali, talvez horas, a olhar o buraco vazio, que se torna cada vez mais fundo e onde não parece haver outra coisa que não seja terra. Disse‑lho. Ele respondeu:

‑ Pode ser. Mas é sempre preferível contemplar um buraco vazio do que um buraco em cujo fundo apareçam, que sei eu, dois canos de esgotos, ou um cabo eléctrico, ou qualquer outro engenho. O buraco vazio, ao menos, está efectivamente vazio.

‑No fundo de alguns buracos encontraram‑se até estátuas antigas.

‑ Isso já não acontece. Quando aconteceu, no passado, eram sempre cópias da época alexandrina. Nada de autêntico, digo‑te.

O criado, aproximando‑se, avisou:

- Senhores, vamos fechar.

‑ E a propósito ‑ perguntou Lúcio, dirigindo‑se comigo para o automóvel ‑, como te deitas tu?

 

               AS PALAVRAS

 

Sentaram‑se à mesa, um em frente do outro, sem falarem. Uma vez sentados, Ricardo ergueu os olhos e notou que a mulher tinha uma expressão singular, que lhe via pela primeira vez desde que se haviam casado: um sorriso ‑ ou não seria um sorriso?ocioso e, de qualquer modo, idiota, errava‑lhe nos lábios, dando ao seu rosto branco e delicado um aspecto insolitamente inchado, como se ela tivesse dores de dentes ou tivesse enchido a boca de água. Mas tinha os cabelos louros muito bem penteados; e os olhos azuis, imóveis e inexpressivos, não revelavam nada.

A criada entrou com uma bandeja de antepastos; Ricardo viu a mulher servir‑se com abundância, três fatias de presunto e três figos, e experimentou uma sensação de desilusão, atenuada porém pelo pensamento de que ela tinha tido, pouco tempo antes, um esgotamento nervoso e devia por isso alimentar‑se. Esperou que a criada saísse, e depois, com um esforço mental penoso, procurou assumir uma expressão desenvolta, pronunciando com a voz mais alegre e sonora que pôde:

‑ Diz‑me tudo.

Deu‑se porém o caso de, precisamente naquele momento, a mulher introduzir na boca meia fatia de presunto cuidadosamente enrolada sobre meio figo. Com o rosto inchado e sorridente, acenou com a cabeça como para responder que não podia falar por ter a boca cheia. Ricardo perguntou a si mesmo que poderia estar atrás daquele sorriso e, mais uma vez, não chegou a nenhuma conclusão. Então, exaltado, disse:

‑ Eu sei o que pensas. ‑ Viu‑a olhá‑lo, sem falar, com a boca cheia e imóvel, como que esperando. ‑ Tu pensas ‑ acrescentou ‑ que estou assustado, magoado, perturbado, e que me esforço como costuma dizer‑se, por me conter. Nada mais falso. - A mulher não disse nada e recomeçou a mastigar. Ricardo prosseguiu: ‑ Passei toda a noite a pensar, pensar e pensar. Naturalmente, pensava no que acontecera, isto é, nos factos. E quanto mais nisso pensava, mais me desesperava. Depois, subitamente, não sei o que me aconteceu. Talvez me tenha cansado e tenha renunciado a compreender; ou então, talvez tenha compreendido realmente. Foi como ir aos bastidores de um teatro e verificar que a paisagem que serve de fundo à cena não é uma paisagem verdadeira, mas uma construção de serapilheira e madeira prensada. Fui, por assim dizer, atrás dos factos e descobri que, na realidade, eram apenas palavras, ou seja, sons sem significado. Então, em vez de pensar nos factos como factos, comecei a pensar nos factos como palavras e verifiquei que tudo ficava resolvido, tudo.

A mulher, desta vez, não respondeu, porque a criada tinha entrado e mudava os pratos. Mas perguntou à criada, com voz normal:

‑O menino comeu?

‑ Está a comer.

‑ Como come? Com apetite?

‑ Oh! Aquele - respondeu a mulher, rindo‑se ‑ tem sempre apetite. É um autêntico lobo.

A criada saiu e Ricardo recomeçou:

‑ Sim, tudo. E perguntei a mim mesmo: "E se por acaso eu fosse infeliz apenas por causa de palavras, ou seja, de sons? Porque não começo então a comportar‑me como se realmente não fossem senão sons e nada mais?"

A mulher estava a levar o garfo à boca; a estas palavras de Ricardo ficou com o garfo no ar e fitou o marido em silêncio. Continuava a sorrir, mas o sorriso ‑ facto estranho! ‑ tinha‑se concentrado todo no canto esquerdo da boca e por isso agora, a face esquerda estava mais inchada do que a direita. Ricardo disse:

- Tomemos por exemplo a palavra "sequestro". Ao pensar no sequestro, esta noite, sentia‑me desesperar. Via o furgão que levava os móveis, a casa vazia, etc. Mas logo que fui atrás dos factos verifiquei que não havia senão uma palavra, ou seja, um som absurdo e nada mais. Na verdade, e apenas para dar um exemplo, com sequestro ou sem sequestro, aquela cadeira continua a ser uma cadeira, nada muda. Isto é, uma palavra, nem mais, nem menos. ‑ Teve a impressão de que a mulher o olhava espantada; ou talvez ele estivesse a atribuir à mulher o próprio espanto por falar desta maneira. ‑ Imagino a tua objecção ‑ apressou‑se ele a dizer. ‑ A cadeira continua cadeira, é certo, mas, uma vez sequestrada, deixa de ser minha. Também isto nada significa. Meu, teu, dele, tudo sons sem significado. Não se pode possuir nada, como não se pode sequestrar nada. Um objecto é um objecto, não é meu, nem teu, nem dele, hoje está aqui, amanhã estará ali, depois de amanhã noutro lugar. ‑ Ricardo, agora, experimentava uma sensação de embriaguez, como se tivesse reconquistado a liberdade depois de uma longa escravidão. Todavia, o sorriso da mulher, tão ocioso e importuno, inquietava‑o. Acrescentou apressadamente: ‑ Engano‑me ou nos teus olhos há como que compaixão, agora? Talvez penses que o sofrimento me tenha dado volta à cabeça. Pois bem, desengana‑te. Não estou de facto amargurado. Queres ver? ‑ Inesperadamente, desatou numa risada ruidosa que lhe pareceu franca e alegre, e na qual lhe deu a impressão de exprimir toda a alegria pela liberdade finalmente readquirida. ‑ Diz‑me lá se isto é de um homem angustiado. Sim, na opinião geral, deveria estar angustiado; mas não estou. Descobri que me atormentava por causa de palavras, ou seja, por causa de sons, e que, por isso, não devia atormentar‑me, nunca mais.

‑ Margherita ‑ ordenou a mulher, com a sua voz mais calma, à criada, que, entretanto, havia entrado ‑, diga à menina que traga aqui o bebé logo que ele tenha acabado de comer: quero vê‑lo.

‑Sim, minha senhora.

‑Tomemos um outro facto desagradável: a captura. Sim, se penso na captura como facto, não o nego, é para desesperar. Mas se penso nela como palavra, tudo volta ao seu lugar. Quererás talvez saber como faço para transformar a captura num som. Simplicíssimo: aplicando a palavra a mim mesmo e vendo aquilo que acontece. Que acontece? Nada, absolutamente nada; com captura ou sem captura, eu continuo a ser o que era, tal e qual. E continuo a ser o que era, justamente porque a captura é uma palavra sem significado, um mero som. ‑ A mulher voltou a sorrir, mas, desta vez, com o canto direito da boca. Ricardo, afoito, concluiu: ‑ Compreende‑se. Muitos, pelo contrário, dir‑te‑ão que estou mudado, mas que importa? Antes de tudo, deveriam demonstrar‑te que um homem capturado é diferente de um homem não capturado.

Ricardo estava agora lançado e entusiasmava‑se cada vez mais, como um acrobata que consegue realizar, uns após outros, exercícios perigosos. A mulher olhou na direcção da porta e, depois, carregou com o pé no botão da campainha, debaixo da mesa. Apareceu de novo a criada:

‑ O menino?

‑ Vem já, estão a vesti‑lo.

Logo que a porta se fechou, Ricardo disse:

‑E, deste modo, são também palavras insensatas "desfalque", "processo", "prisão", e assim sucessivamente. Tudo sons que deixam as coisas como estão, da mesma forma que as deixa o rumor que faz o vento correndo entre as árvores. Sons: porquê, então, sofrer, se são apenas sons?

Observava a mulher e, subitamente, ocorreu‑lhe uma ideia inquietante: aquele sorriso forçado, ocioso, idiota, que Lhe inchava a face, assemelhava‑se talvez ao sorriso que - ele próprio sentia - Procurava continuamente manter quando falava. Mas não teve tempo de aprofundar este pensamento, porque a porta abriu‑se e entrou uma rapariga do campo, rústica e risonha, toda vestida de branco; trazia ao colo um magnífico bebé, louro, de cabeça perfeitamente redonda: dois terços de faces gorduchas e um terço de finos cabelos dourados. Todo vestido de azul, com mangas e calças muito apertadas, que faziam ressaltar a carne branca dos pulsos e das pernas, o bebé deixou‑se passar da rapariga para a mãe, tranquilo e curioso, erguendo os olhos para o tecto, como para observar o mundo à sua volta. A mãe tomou‑o nos braços e, compondo‑lhe os cabelos, beijou‑o na testa e nas duas mãozitas gorduchas:

‑ Giorgio, como estás, Giorgio?

O bebé sorriu e balbuciou:

‑ Bla, bla, bla.

; ‑ Papaste, Giorgio?

‑ Bla, bla, bla.

‑ Era bom, eh!, não é verdade que era bom?!

‑ Bla, bla, bla.

A mãe fez algumas recomendações à rapariga e, em seguida, entregou‑Lhe a criança. Também desta vez, o bebé deixou‑se passar com completa indiferença, dirigindo o olhar para o tecto; e para os ângulos mais afastados da sala, como para reconhecer ' o mundo em que há tão pouco tempo se encontrava. A rapariga fez meia vénia e saiu.

Ricardo esperou que se fechasse a porta e, depois, disse:

‑As coisas que nos atormentam têm o mesmo significado das palavras, ou, melhor, dos sons que há momentos o nosso filho emitia. "Bla, bla, bla". Porquê atormentarmo‑nos, então?

A mulher fitou‑o; subitamente, pela primeira vez desde que se tinham sentado à mesa, o sorriso que lhe inchava o rosto desapareceu; e os seus olhos encheram‑se de lágrimas que os tornaram feios e pequenos. Pousou o guardanapo na mesa e saiu da sala.

Um momento depois, Ricardo levantou‑se também, abeirou‑se da janela e olhou para fora. Como o apartamento se encontrava no primeiro andar, via‑se o passeio iluminado por branda luz meridiana; o tronco verde e castanho de uma árvore; um carro parado, cor de areia; o asfalto negro e enxuto da rua; as casas em frente, amareladas. Ricardo verificou que todas aquelas coisas, de per si insignificantes, tinham naquele momento, para ele, um incontestável, ainda que obscuro, significado angustioso. Lembrou‑se então da forma como o bebé tinha girado os olhos pela sala e desejou poder olhar assim para a realidade, de modo que o choro da mulher, o asfalto da rua e todas as coisas se tornassem objectos puros e sem sentidos como certamente teriam aparecido ao bebé se os tivesse olhado. Entretanto, porém, era necessário viver. Apoiou a fronte contra o vidro da janela e fechou os olhos.

 

                   NADA

 

às 17 horas, entrando no apartamento já invadido pela sombra acinzentada do crepúsculo, Giovanni sentiu‑se dommado pela solidão. Sem acender luzes, desfez‑se do impermeável no vestíbulo, dirigiu‑se em seguida para o escritório e sentou‑se, como um visitante tímido, numa pequena cadeira junto da porta, com as pernas atravessadas, os braços cruzados e os olhos fixos na escuridão. Ao sentimento angustioso da solidão misturava‑se agora uma obscura surpresa: estivera só todo o dia, mas não sofrera com isso; sòmente agora se apercebia da sua solidão, com uma subitaneidade atroz, como um sonâmbulo que caminha sobre o beiral de um telhado e depois, acordando, descobre repentinamente que está suspenso no vácuo. Para se acalmar, procurou analisar o sentido da solidão, desintegrá‑lo com o pensamento. Disse para consigo que era uma espécie de pânico e que este pânico nascia, por sua vez, do temor de se sentir insuficiente, amputado, incompleto e, por isso, ansioso por se completar, isto é, por encontrar companhia. De resto, era acima de tudo uma angústia física, como a sede e a fome; e, como a sede e a fome, também só podia ser aplacada por um remédio físico, ou seja, pela presença de uma pessoa.

Recordava‑se de ter estado só, em sua casa, outras vezes: acontecia‑lhe isso frequentemente porque tinha chegado a Roma, havia pouco tempo e não conhecia quase ninguém. Mas das outras vezes houvera uma diferença: dentro de uma hora, duas, à noite, quiçá na manhã seguinte, sabia que veria alguém. Desta vez, pelo contrário, não devia ver ninguém, absolutamente ninguém, nem naquele dia, nem no dia seguinte, que era domingo, nem provàvelmente na segunda‑feira. Talvez o pânico o tivesse assaltado, admitiu, por ter inesperadamente descoberto diante de si o deserto de tantas horas solitárias.

Entretanto, porém, era necessário fazer qualquer coisa para aliviar a angústia que o oprimia naquele momento. Por fim, não encontrou nada melhor do que telefonar a alguém. Sempre às escuras, saiu do escritório e, às apalpadelas, foi ao quarto, onde se encontrava o telefone. Era um quarto pequeno; a cama dava para a janela e a janela para um prédio em frente do seu, do outro lado da rua. No cimo daquele prédio havia uma inscrição publicitária, luminosa, com letras gigantescas, alternadamente encarnadas, verdes, roxas e amarelas. A inscrição acendia‑se todos os dias àquela hora e permanecia acesa até à meia‑noite. Mas, da sua cama, Giovanni apenas via uma letra, um u gigantesco, que, como sabia, era a sétima letra da palavra "Calzature". Entrou na sala e, por um momento, ficou confundido, se bem que estivesse habituado àquilo: semelhante a uma enorme borboleta de asas transparentes, a luz verde, intensa e vibrante do reclame publicitário agitava os seus raios entre as quatro paredes brancas. Vencendo a sensação de desolação, Giovanni estendeu‑se de costas na cama, pegou no telefone da mesinha‑de‑cabeceira, pô‑lo sobre o peito e depois, levantando apenas a cabeça, marcou penosamente o número no disco.

Era o primeiro e único número que lhe tinha vindo à ideia e era justamente o número da única pessoa a quem, como reconhecia, não deveria telefonar: uma rapariga bonita mas desagradável, dotada de uma inteligência maligna, mais pronta a notar os defeitos alheios do que as qualidades, que considerava as relações amorosas como uma luta pérfida em que cada um dos dois adversários devia procurar ferir o outro onde ele era mais vulnerável. Giovanni tivera um início de flirt com esta rapariga: depois, inexplicàvelmente, ela cortara as relações, e ele, humilhado, jurara a si próprio nunca mais a ver. E agora, pelo contrário, era precisamente a ela que recorria para aliviar a solidão.

Ao primeiro tinido do telefone, ela respondeu imediatamente, como se estivesse não apenas perto, mas até com a mão no auscultador, pronta a levantá‑lo. Perguntou com voz baixa e artificiosamente calma:

‑ Quem fala?

Giovanni disse o seu nome e acrescentou num tom de forçada desenvoltura:

‑ Que fazes?

‑Nada. E tu?

‑ Nada, também.

Giovanni tinha sido prudente na resposta, pois sabia que a rapariga se agarrava a qualquer pretexto para ser maldosa. Com efeito, após um breve silêncio, ela observou:

‑ Sim, mas entre o meu nada e o teu há uma diferença.

‑ Qual?

‑ Eu não faço nada porque não tenho vontade de fazer nada. É voluntário, o meu nada. É um nada que não me causa aborrecimento, antes me agrada, fui eu que o quis, gozo‑o, saboreio‑o. É um nada cheio de muitíssimas coisas. O teu nada, pelo contrário, é um nada vazio, que não te agrada, que não quiseste, que te amargura, de que gostarias de te libertar.

"Que harpia!", não pôde deixar de pensar Giovanni, quase surpreendido, mal‑grado seu, da perspicácia perversa da rapariga, mas também ferido e ofendido. Perguntou de má vontade:

‑ Que é que te faz pensar isso?

‑Oh!, é muito simples, o tom da tua voz, especialmente se comparado com o meu. Ambos proferimos a palavra "nada", mas proferimo‑la de uma maneira muito, mas muito, diferente. Eu disse "nada", passe a expressão, com todo o meu corpo; tu disseste‑o com a extremidade da garganta. A minha voz era profunda, cheia, calma, sensual, distendida; a tua, estrangulada, incerta, desesperada, débil, trémula, contraída. Não é assim?

Era realmente assim; de tal modo que Giovanni, escutando a voz pérfida que lhe descrevia o seu estado de ânimo, experimentou de novo, mais desalentado, a sensação de isolamento. Protestou, todavia, a custo:

‑ Mas quem te diz que é assim? Também te poderias enganar, não achas?

‑Em primeiro lugar, diz‑mo o meu ouvido, que é muito sensível; e depois, pela voz, reconstituí a tua situação.

‑ Ou seja...

‑Que regressaste a casa só, que tiveste receio da solidão, que não deverás ver ninguém nem hoje nem amanhã e nem mesmo depois de amanhã, que foste invadido pelo pânico, que procuraste febrilmente alguém a quem telefonar, que não encontraste ninguém melhor do que eu e que, por fim, te decidiste a telefonar‑me, pensando: "Telefono à Alice. É uma bruxa, mas é melhor do que nada. " Não é assim?

Ele procurou gracejar:

‑ A única coisa verdadeira de tudo isso é que és uma bruxa, uma verdadeira, autêntica, bruxa.

‑ Não, isso não é verdade; o resto é que é verdade.

Giovanni pensou que era tempo de passar à ofensiva. Disse:

‑ Sabes o que penso?

‑ O quê?

‑Que tu, na realidade, sofres tanto de solidão como eu. Nem mais nem menos. Que nos encontramos, por acaso, nas mesmíssimas condições: "só" eu, "só" tu. E que o teu nada é semelhante ao meu.

‑ Que é que te leva a pensar isso?

‑ Se não outra coisa, o facto de teres sido tão pronta em atender o telefone. Por isso, faço‑te uma proposta: saímos e vamos jantar juntos, falar da solidão em qualquer restaurante.

Respondeu‑lhe uma risada maldosa:

‑Vês como te enganas? Enganas‑te sempre, tu. De facto, não me sinto só e, na realidade, não estou só. Sabes quantas pessoas estão aqui, à minha volta, a escutar o teu interessante telefonema?

Giovanni sentiu‑se corar:

‑Mas como, não estás só?

‑Nunca te disse que estava só. Disse‑te apenas que não fazia nada, o que era verdade. Mas pode não se fazer nada mesmo na companhia de alguém.

A mão de Giovanni estava sobre o telefone; baixou‑a lentamente e interrompeu a comunicação. Depois, deitado de costas, com o telefone em cima do peito, olhou por um instante para o u luminoso do anúncio, que agora era roxo e enchia o quarto de vibrações cor de ametista. Em seguida, o roxo mudou para encarnado; e o quarto converteu‑se num pequeno inferno sanguíneo. Giovanni tirou o telefone do peito, pô‑lo de novo sobre a mesinha‑de‑cabeceira e, levantando‑se da cama, saiu do quarto. Tinha a impressão de enlouquecer; e que as vibrações febris da luz se haviam comunicado ao seu pensamento, que, agora, agitava as asas na sua cabeça como uma grande borboleta aprisionada. Percorreu o corredor às apalpadelas, entrou no escritório e sentou‑se de novo na pequena cadeira junto da porta. Precisamente naquele instante, o telefone começou a tocar.

Correu precipitadamente para o quarto ‑que resplandecia agora de luz amarela e parecia uma caverna dourada‑, lançou‑se de bruços, atravessado, sobre a cama, e levantou o auscultador. Uma voz de mulher o increpou:

‑ Sou eu, Carla, mas o senhor esqueceu‑se de que devíamos ver‑nos há já uma hora; sucedeu‑lhe qualquer coisa; há mais de uma hora que espero; telefonei‑lhe, mas o telefone, a princípio, tocava em vão e, depois, estava impedido; tenho a impressão de que o senhor se esquece de tudo; deveria tomar nota dos encontros, etc. , etc.

Giovanni escutou com enorme espanto aquela vaga de queixumes; depois informou‑se do nome do café onde a rapariga esperava, disse que iria lá o mais depressa possível e pousou o auscultador. Mas levantou‑o logo a seguir, ao ouvir de novo a campainha.

Desta vez era a voz de um homem, um seu colega de universidade, de nome Mário.

‑Olha que para o encontro de amanhã de manhã mantém‑se tudo como estava combinado; simplesmente, em vez de irmos num carro, iremos em dois, e, assim, já poderás ir só com Giulia, como desejavas. Eu irei no outro carro, com Fulvia e Renzo.

Este telefonema também foi rápido. Por fim, Giovanni baixou o auscultador e sentou‑se na cama, com as pernas pendentes, entre as vibrações frenéticas da luz publicitária, que se tinha tornado verde. Assim ‑ não pôde ele deixar de pensar ‑ sentira‑se só, desesperadamente só, para aquele dia e para o dia seguinte, quando, afinal, tinha um encontro com Carla para aquela tarde e um passeio em agradável companhia para a manhã seguinte. Como pudera esquecê‑lo? Acudiu‑lhe de súbito à ideia que poderia agora telefonar à maldosa Alice e demonstrar‑lhe que se enganara, que ele não estava só, pelo contrário. Mas, depois de ter reflectido um instante, renunciou a tal projecto: disse para consigo que Alice, ao fim e ao cabo, talvez tivesse razão. "De facto", pensou, "não está só quem se encontra só; está só quem se sente só.

 

           NÃO TE SENTES MELHOR?

 

Havia uma hora que estava sentado, às escuras, junto da mesinha onde se encontrava o telefone. A princípio, esperara normalmente, estendido numa poltrona, com as luzes acesas, folheando uma revista. Depois reparara que a luz só servia para lhe tornar mais angustiosa a expectativa, aumentando‑lhe o mal‑estar, com a vista dos móveis pesados e, por assim dizer, impregnados de ansiedade, de desilusão e de ódio. Desejaria sobretudo não ver o telefone, tão negro e tão mudo, que lhe recusava obstinadamente o som da voz amada. Assim, acabara por apagar as luzes; e, então, verificara com espanto que a escuridão lhe inspirava um alívio enorme como se, realmente, as cadeiras, as mesinhas, o armário e o divã tivessem estado com ele à espera e ele, fazendo‑os desaparecer na obscuridade, tivesse de algum modo reduzido a angústia que o oprimia. Esta descoberta irritou‑o; ao fim e ao cabo, os móveis não eram senão móveis; era absurdo atribuir‑lhes os sentimentos dele. Distraído com este pensamento, aguardou mais meia hora. Depois, ouvindo a campainha da porta, Giacomo lembrou‑se da visita aborrecida que não tivera coragem de evitar; levantou‑se, foi às apalpadelas até ao vestíbulo e abriu a porta.

‑ Como é possível estares às escuras? ‑ perguntou Elvira, entrando.

‑ Desculpa, estava às escuras para descansar. ‑ Viu‑a encaminhar‑se para o divã e apressou‑se a acrescentar:‑ Olha, é melhor sentares‑te aqui. ‑ E indicou‑lhe uma cadeira perto da mesinha do telefone.

Lançando uma olhadela ao telefone, Elvira disse:

‑Queres estar ao lado do telefone; esperas algum telefonema? ‑ E depois, sem transição: ‑ Pois bem, há novidades, muitas novidades.

‑ Quais?

‑ Nada boas, infelizmente.

Elvira sentou‑se; pôs sobre os joelhos a sua enorme bolsa e, introduzindo nela, até ao cotovelo, o seu bracinho magro, começou a remexer lá dentro. Giacomo notou que o rosto dela, redondo e infantil, com grandes olhos a devorar as faces macilentas, tinha desaparecido sob a maquilhagem viva. Pequena e miúda, perdia‑se sob as abas descidas de um chapéu cónico e dentro das pregas de um impermeável excessivamente largo. Resignado ao seu papel de confidente, Giacomo perguntou:

‑Nada boas, porquê?

Elvira assoou‑se e depois, como que retomando um discurso deixado a meio, respondeu:

‑ Vamos devagar. Ontem de manhã, depois de te ter deixado, tencionava realmente seguir os teus conselhos: estar sossegada, esperar que ele me aparecesse. Mas quando entrei no meu tão triste apartamento não consegui dominar‑me...

‑ Triste, porquê? ‑ perguntou inesperadamente Giacomo, quase contra sua vontade.

‑ Triste, porque ele já lá não está e, no entanto, ainda lá estão os seus casacos, os seus livros, os seus cachimbos, que, sem ele, são muito tristes.

Giacomo mexeu‑se na cadeira, lançou um olhar ao telefone e, depois, disse:

‑ És tu que estás triste, não o apartamento, os cachimbos, os casacos, os livros. O apartamento é um apartamento de certa grandeza, com certo número de divisões, situado de certa maneira; os casacos são de lã ou de outro tecido, de diversas cores e feitios; os cachimbos são de sarça ou de esponjite; os livros são de diferentes formatos e cores. Que há de triste em tudo isto?

‑ Que ele lá não esteja.

‑ Mas és tu que experimentas tristeza, não os casacos, os cachimbos, os livros. Estes objectos nada têm que ver contigo e com a tua tristeza, como de resto também tu nada tens que ver com eles. Não há qualquer relação entre ti e estes objectos, ou, melhor, há uma relação de propriedade, que é pouca coisa. O que te digo parecer‑te‑á ainda mais evidente se, no lugar do cachimbo ou do casaco, eu puser um cão ou um gato ou mesmo uma criança, isto é, um ser vivo a quem não possas impor a tua tristeza, como não a impões, por exemplo, a mim. Então, verias como a tua linguagem é imprópria.

Elvira olhou‑o surpreendida e, depois, disse precipitadamente:

‑Bem, como queiras. De qualquer modo, não consegui dominar‑me e resolvi ali mesmo ir procurá‑lo. Meti‑me no carro e dirigi‑me para Ostia. Era um dia verdadeiramente fúnebre e...

‑ Fúnebre, porquê?

Pareceu novamente surpreendida. Todavia, respondeu:

‑ Chovia a cântaros, o céu estava carregado de nuvens baixas e escuras, soprava vento, numa palavra: fúnebre.

‑ Peço desculpa ‑ interveio Giacomo ‑, mas digamos antes que era um dia de mau tempo, com vento, chuva, nuvens baixas, escassa visibilidade. Em resumo, nada fúnebre.

‑ Está bem ‑ admitiu a mulher com um suspiro ‑ era um dia de mau tempo, como tu queres. Chego a Ostia debaixo de uma chuva fustigante que me inundava o pára‑brisas a ponto de não ver. Tens presente Ostia nesta estação? A desolação dos estabelecimentos balneares com as cabinas fechadas e desertas, alinhadas na praia escura e encharcada, tendo por fundo o mar turvo? A esqualidez das avenidas marginais, negras, lisas, reluzentes, solitárias a perder de vista? A melancolia das ruas, com montes de folhas mortas, amarelas e encarnadas, a escorrer água, sob as árvores nuas? Bem, imagina‑me a procurar um homem que não me ama no meio de toda esta tristeza e terás o quadro completo.

O telefone, finalmente, tocou; Giacomo aproximou‑o do ouvido e uma grossa voz dialectal perguntou:

‑Falo com a leitaria?

Giacomo pousou o auscultador e, depois, corrigiu:

‑ Um quadro falso. Voltas a não ter razão. Ostia não é triste nem alegre, é o que é, ou seja, uma vila balnear onde, de Inverno, reside pouca gente. Analogamente, os estabelecimentos balneares não são desoladores, mas estão apenas fechados, as avenidas não são esquálidas, mas apenas solitárias, as folhas caídas das árvores não são melancólicas, mas apenas murchas e molhadas. E, por outro lado todas estas coisas, Ostia, os estabelecimentos, as avenidas, as folhas têm uma sua existência, uma sua problemática, de que tu nada sabes e que, efectivamente, não te diz respeito.

Elvira explodiu, finalmente:

‑ Mas pode saber‑se o que tens hoje? Porque me interrompes continuamente?

‑ Para te consolar ‑ respondeu Giacomo. ‑ Não vês, de facto, que se disseres que os estabelecimentos balneares estavam fechados, em vez de dizeres que eram desoladores, já te sentes um pouco melhor?

‑ Não tenho necessidade de consolação; quero apenas que me escutes. Procuro a casa dele e, por fim, encontro‑a ao fundo da rua marginal, uma casa sórdida.

‑ Sórdida, porquê?

‑ Ufa! Chamemos‑lhe então uma casa velha, que não é reparada, pelo menos, há quarenta anos!

‑ Bravo! Isso mesmo.

‑ Bem, subo a escada e bato à porta de uma certa Sra. Zampichelli; vem abrir‑me a porta uma velhota de óculos, seca e engeLhada, e eu, com o coração suspenso, pergunto‑lhe se ele está em casa. Responde‑me que não, e eu, então, dizendo‑lhe que sou irmã, peço‑lhe que me deixe esperar no quarto dele. Manda‑me entrar; negligentemente, pergunto‑lhe se ele recebe visitas e ela diz‑me que não lhe consta, mas que também é verdade que ela quase nunca está em casa, pois tem uma loja de quinquilharias. Em seguida afasta‑se, e eu, então, olho em redor. Imagina um quarto nu, mesmo nu...

A campainha do telefone deu um pequeno sinal; Giacomo esperou que tocasse de novo, mas em vão.

‑ Um contacto ‑ disse Elvira com simpatia.

Giacomo, irritado, inquiriu:

‑ Sem cuecas, sem meias, sem camisa?

‑ Mas que diabo dizes tu?

‑ O quarto estava nu, portanto não estava vestido, portanto não tinha meias, camisa, cuecas.

‑Pronto, digamos então que continha apenas os móveis indispensáveis, isto é, a cama, a mesa e a cómoda. ‑ Elvira calou‑se; e, em seguida, entusiasmando‑se de novo: ‑ Ele tinha‑me dito que queria experimentar viver só, sem mim, para se recolher, meditar, reflectir. Eu, pelo contrário, estou convencida de que ele foi para Ostia por causa de uma mulher. E, de facto, aqui está. Remexeu na bolsa e tirou de lá um pequeno invólucro de papel branco, que pousou na mesinha.

‑ Que é?

‑ Uma repugnante travessa feminina.

Giacomo pegou no invólucro e abriu‑o: era de facto uma travessa de falsa tartaruga, muito clara, própria para mulher loura.

‑ Repugnante, porquê?

‑Porque pertenceu sabe‑se lá a que desavergonhada.

‑ Eu não vejo senão uma travessa ‑ disse Giacomo ‑ de falsa tartaruga, clara, usada, sem dúvida, talvez um pouco suja, mais nada.

‑ Mas, tu, que pensas? Achas, realmente, que esta travessa tenha sido deixada ali por qualquer mulher que ele veja em Ostia?

‑Onde a encontraste?

‑Debaixo da cama.

‑ Poderia ser ‑ disse lentamente Giacomo ‑ a travessa de alguma mulher que tenha habitado no quarto antes dele. Não é novidade que os quartos mobilados nunca são muito bem varridos

Silêncio. Algum tempo depois, Elvira recomeçou:

‑ Esperemos que tenhas razão. Mas asseguro‑te que, naquele instante, senti‑me desfalecer. Recordo que me levantei da cama onde estava sentada, fui à janela e, estonteada, olhei para o mar. O sol voltara, o mar sorria à luz solar, e eu, confrontando este mar assim sorridente com o sentimento que...

‑ O mar não sorri ‑ objectou subitamente Giacomo.

‑ Ah!, sim. Também não poderei dizer isto? E porquê, então?

‑Porque o mar não tem boca. Uma boca sorri, ou, antes, entre todas as bocas, só a boca do homem sorri. O mar pode fazer muitas coisas, mas sorrir, propriamente, não.

O telefone tocou de novo, desta vez demoradamente; Giacomo pegou no auscultador e levou‑o ao ouvido. Em poucas palavras a voz bem conhecida da criada informou‑o de que a menina tinha saído de Roma numa excursão e, por isso, não telefonaria nem iria naquele dia. Giacomo repetiu: "Mas onde foi? Um momento, porquê?". Em seguida, ouviu o clique da comunicação interrompida e pousou vagarosamente o auscultador, ficando imóvel, com os olhos fitos no telefone. Finalmente, porém, pareceu‑lhe advertir não sabia que estranheza no silêncio profundo que se sucedera às suas palavras de desapontamento. Ergueu lentamente os olhos e viu que Elvira o fixava com intensa vingativa ironia.

‑ Eu sei o que pensas ‑ disse ela inesperadamente.

‑ Que é?

‑Pensas no telefone, maldize‑lo, afigura‑se‑te um objecto funesto e maligno, que só serve para transmitir más notícias. E, no entanto ‑ a sua voz elevou‑se a um diapasão estrídulo ‑, e, no entanto, da mesma forma que o mar não sorri porque não tem boca, assim também não é funesto nem maligno, mas apenas um objecto vulgar, preto, não muito grande, feito de certa maneira, com um disco, números, fios, etc. Não te sentes melhor, agora?

 

             PASSAR O TEMPO

 

A campainha da porta e o telefone tocaram ao mesmo tempo. Ernesto pensou que, primeiramente, devia correr a abrir a porta, pois era a coisa mais importante: eram efectivamente 5 horas, altura em que Alina, como todos os dias, apareceria no limiar da porta. Quanto ao telefone, deixá‑lo‑ia tocar, talvez nem sequer respondesse: era certamente algum maçador ou, de qualquer modo, alguma coisa que não lhe interessava, pois a única coisa que realmente Lhe interessava, a chegada de Alina, já se dera. Pensou em tudo isto, correndo precipitadamente do escritório para o vestíbulo. Derrubou um banco sobre o qual estavam amontoados alguns cartapácios de engenharia e, ofegante, enquanto o telefone continuava a tocar, abriu a porta.

à sua frente porém, não surgiu Alina, mas sim o rapaz do bar, um garoto de Faces rosadas e de cabeça rapada, com algumas garrafas de licores que, de regresso a casa, ele tinha encomendado pouco antes:

‑ As garrafas.

O telefone continuava a retinir com uma insistência que, subitamente, pareceu a Ernesto significativa. Com o ânimo cheio de desilusão e de pressentimento, disse ao rapaz:

‑ Põe aqui, obrigado. ‑ E correu ao telefone. Era de facto a voz de Alina, que disse imediatamente:

‑ Até que enfim!...

‑ Que há? Não me vais dizer que não podes vir.

‑ Sim, ou, melhor, não. Não posso ir à mesma hora.

Ernesto perguntou com alívio:

‑ E a que horas podes vir?

‑ às cinco. Dentro de duas horas.

‑ Mas porquê? - indagou Ernesto, irritado, já esquecido do alívio de pouco antes.

‑Explico‑te depois. Espera por mim, ver‑nos‑emos dentro de duas horas.

‑ Mas que farei nestas duas horas?

‑Tens tantas coisas para fazer: lê, ouve música, trabalha. Então, adeus. Até mais logo.

Ernesto olhou o auscultador como se quisesse dizer mais alguma coisa; em seguida pousou‑o e voltou para o escritório.

Alina, no fundo, tinha razão: estava cheio de coisas para fazer. Assim, foi à estante dos livros e tirou um romance que ainda não lera; depois colocou um disco de música clássica no gira‑discos; finalmente, sentou‑se na única poltrona que havia no escritório e, ao deixar‑se cair sobre as velhas molas rangentes, emitiu mesmo um suspiro de satisfação, exactamente como alguém que se apresta para passar um par de horas de maneira tranquila, agradável e instrutiva.

Mas era um suspiro falso, como verificou logo a seguir. Com efeito, reparou que, enquanto os seus olhos seguiam mecânicamente as palavras impressas na página, da esquerda para a direita, a sua mente estava noutro lugar e não apreendia o sentido daquilo que, apesar de tudo, ia lendo. Por outro lado, o som do violino que subia do gira‑discos, e se soltava e enrolava no ar como uma planta tropical cheia de linfa ou como uma serpente no amor, chegava‑lhe aos tímpanos, sim, mas não os ultrapassava, permanecendo assim mero rumor, sem conseguir tornar‑se música. Insistiu a ler e a escutar por mais algum tempo; depois, fechou lentamente o livro e, ainda lentamente, levantou‑se, foi ao gira‑discos e parou‑o.

Os olhos caíram‑lhe sobre a mesa onde costumava desenhar. Veio‑lhe à ideia seguir uma vez mais o conselho de Alina: trabalhar. Pensou que talvez o trabalho o prendesse mais do que a leitura e a música: havia no trabalho uma participação mais activa e mais audaciosa do que na distracção. Mas quando acendeu a luz sobre o papel de desenho e se inclinou para a mesa experimentou uma sensação estranha e desagradável: não ser uma, mas duas pessoas. Uma ficara em baixo, na poltrona; a outra inclinava‑se sobre a mesa de desenho. E a que estava na poltrona era a mais importante, a mais verdadeira; enquanto a que se inclinava sobre a mesa não era senão um reles actor, que recitava mal o seu papel. Acendeu um cigarro para fazer qualquer coisa; depois apagou a luz e afastou‑se da mesa.

Ocorreu‑lhe então que, para passar o tempo, lhe convinha, antes de tudo, ater‑se à convenção inscrita no mostrador do relógio. Os tempos da leitura, da música, do trabalho, eram tempos psicológieos, sentimentais, longos ou breves, segundo o interesse do momento. Mas o tempo do relógio, convencionalmente dividido em segundos e em minutos, era o que era: uma ocupação que fosse regulada para aquele tempo duraria exactamente o que devia durar. Mas tal ocupação ‑ que excluía toda a participação de quem a ela se dedicava ‑ tinha de ser completamente mecânica. Portanto, ele devia transformar‑se numa máquina para fazer passar o tempo, abolindo toda a actividade da mente, todo o impulso do sentimento, e reduzindo a sua presença à repetição de um gesto sempre igual.

Circunvagando o olhar pelo escritório apinhado de coisas em desordem, viu um grande embrulho sobre uma cadeira e lembrou‑se de que continha dois livros adquiridos dias antes. Eram dois livros franceses que se relacionavam com os seus estudos de engenharia; recordou‑se de que não estavam encadernados e de que tinham as folhas por cortar. Foi buscar o embrulho e abriu‑o; ali estavam, com efeito, dois calhamaços de setecentas páginas cada um. As folhas estavam dobradas de modo que era necessário cortá‑las não apenas ao alto, mas também de lado; o papel era tão grosso que não se podiam cortar duas folhas de cada vez, mas uma só. Sentou‑se na poltrona e fez um rápido cálculo: a quinze segundos por página correspondia um minuto para cada quatro páginas, isto é, mais de duas horas por livro. Admitindo que quinze segundos eram demasiados e reduzindo‑os a metade, tinha‑se todavia mais de uma hora por livro. Procurou com o olhar um corta‑papel, mas lembrou‑se de que não o possuía. Então pegou numa lâmina de barba que estava sobre a mesa de desenho, e da qual costumava servir‑se para afiar os lápis, voltou a sentar‑se e começou a cortar as páginas do primeiro livro. Não era fácil; a lâmina, por de mais pequena e afiada, de vez em quando saía do vinco e rasgava a página; outras vezes fugia‑Lhe e perdia‑se no fundo do livro. Durante alguns minutos, porém, cortou as folhas com calma, metòdicamente, experimentando quase prazer em fazer deslizar a lâmina pelo livro acima e em sentir o papel a abrir‑se como uma flor. Depois, a um gesto falso, a lâmina saiu do vinco e cortou uma folha a meio. Ernesto levantou‑se, foi buscar fita gomada, partiu um pedaço do comprimento da folha e colou‑a. Mas, quando ia recomeçar a cortar as folhas, reparou que a lâmina desaparecera. Poderia, é certo, continuar com uma faca de cozinha, com um cartão ou com um lápis, mas sentiu que já não tinha vontade. Era verdade: enquanto cortou folhas, a sua mente estivera ausente, os seus sentimentos mantiveram‑se adormecidos; mas, pouco a pouco, tinha advertido no braço e na mão uma indolência profunda; em resumo, houvera como que uma má vontade muscular no seu corpo que lhe fizera olhar com pavor as centenas de páginas que lhe restavam ainda para cortar. Pegou nos dois livros e foi colocá‑los na estante, entre os outros já abertos e lidos.

Pensou, todavia, que a tarefa de cortar as páginas não constituía prova. Cortar as páginas de um livro acabado de comprar era uma daquelas coisas que, nos bons momentos, se fazia com curiosidade, impaciência, entusiasmo. Mas, faltando a avidez da leitura, era natural que interviesse a indolência. Não ‑ pensou de novo ‑, era necessário fazer alguma coisa de absolutamente mecânico e absurdo, que não implicasse qualquer participação, mesmo mínima. Afundado na poltrona, reflectiu durante alguns minutos e, depois, disse para consigo que uma acção assim mecânica e absurda era dificil de encontrar, justamente porque o homem não é uma máquina e não faz de bom grado as coisas absurdas. Depois, subitamente, teve a impressão de a ter encontrado. Levantou‑se e saiu do escritório.

Na pequena cozinha atulhada de louças, junto da janela, em cima de uma mesinha, havia um grande cartucho de mercearia que ele tinha trazido naquele mesmo dia. Era um cartucho de meio quilo, cheio de café em grão: Ernesto costumava beber muito café enquanto trabalhava. Um acto mecânico e absurdo

‑ pensou, olhando com esperança para o cartucho ‑ seria o de contar um a um os grãos de café e metê‑los numa lata. Contar os grãos de café, mesmo de um cartucho de meio quilo, talvez fosse uma coisa mais rápida do que cortar mil e quatrocentas páginas de dois livros; mas, em compensação, seria uma coisa totalmente mecânica e absurda. De resto, uma vez contados os grãos, podia fazer muitas outras coisas do mesmo género para passar o tempo: por exemplo, retalhar um jornal em muitas tiras e as tiras em muitos quadradinhos. Agora, que tinha descoberto a combinação da mecanicidade com a absurdeza, reparava que havia inúmeras coisas que se podiam fazer com certa garantia de servirem para passar o tempo.

Agarrou assim numa cadeira, sentou‑se e despejou o cartucho em cima da mesa. Os grãos de café espalharam‑se em toda a largura, deslizando sobre a superfície do mármore com a sua rotundidade oleosa; depois, continuando o cartucho a esvaziar‑se, amontoaram‑se numa pequena pirâmide escura. Ernesto pegou numa caixa redonda de latão, que tempos antes contivera biscoitos, abriu‑a e colocou‑a a pouca distância da pirâmide dos grãos. Em seguida apanhou o primeiro grão e, dizendo em voz alta "um", atirou‑o para a caixa, onde ele caiu com um tlim discreto. Continuou, assim, a contar e a atirar; os grãos caíam na caixa uns a seguir aos outros; os seus dedos tornaram‑se gordurentos. Depois, de repente, pareceu‑lhe ver‑se absolutamente só, sentado a uma mesa de cozinha a contar grãos de café, e pensou que tinha enlouquecido. Este pensamento da loucura desconcertou‑o de chofre. Com efeito, se uma máquina tivesse consciência de ser uma máquina, pensaria certamente que era louca. E assim, deixando ‑justamente por causa deste pensamento de ser uma máquina, recusar‑se‑ia a agir para além de máquina.

A caixa estava ainda quase vazia. Ernesto atirou mais alguns grãos e trincou um par deles; depois levantou‑se e saiu da cozinha.

De novo no escritório, veio‑lhe à ideia este pensamento aterrador: talvez as duas horas nunca mais passassem, e a verdade é que ele não podia fazer nada, absolutamente nada; mas, se realmente não fizesse nada, o tempo ficaria suspenso, ao menos no que Lhe dizia respeito, e as duas horas não só pareceriam eternas ‑ como é vulgar dizer‑se em semelhantes casos ‑, mas sê‑lo‑iam de facto. Ele ficaria fora do tempo, por absoluta impossibilidade de o fazer passar. Do outro lado, Alina estender‑lhe‑ia os braços, mas em vão; o tempo que não passa, isto é, a eternidade, dividi‑los‑ia para sempre.

Atou as mãos na cabeça, aterrorizado. Depois, subitamente, ouviu o bem conhecido, inconfundível toque de campainha de Alina. Correu precipitadamente a abrir e ‑ surpresa! ‑ ei‑la em pé no limiar da porta, sorridente:

‑ Venho antes da hora. Acabei mais cedo do que esperava.

‑ Mas que tinhas tu para fazer?

‑ Imagina, uma coisa insuportável: estar em casa a vigiar o canalizador enquanto ele arranjava a casa de banho. Nunca mais acabava; depois, de repente, não sei como, disse‑me que

tinha terminado e que se ia embora.

‑ E que fizeste enquanto esperavas?

‑ Parecia‑me uma eternidade. Mas depois encontrei maneira ' de fazer passar o tempo muito bem. Adivinha o que fiz.

‑ Que foi?

‑ Pensei em ti.

Ernesto seguiu‑a até ao escritório. E, seguindo‑a, perguntava a si mesmo com espanto: "E eu, porque não fiz o mesmo, porque não pensei nela?"

 

             AS MEDIDAS

 

Depois de se ter separado da mulher, Giacomo foi viver para uma casa de três divisões, na parte antiga da cidade. No compartimento maior instalou o seu estúdio de engenharia, com a mesa de desenho em frente da janela. Começou a conduzir a mesma vida de quando estava com a mulher: trabalho das 9 às 3, almoço, repouso novamente trabalho das 16 às 20 e, em seguida, o passatempo do cinema, do jantar fora de casa, da conversa com os amigos. Nada tinha mudado, notava‑se apenas a falta da mulher, e ele vivia como um celibatário. Mas nunca pensava na mulher. h'o coração, onde outrora estivera a imagem dela, parecia‑lhe ter agora uma massa silenciosa e espessa: como quando se bate numa parede e esta revela zonas surdas, pelas quais passa um pilar de cimento da estrutura interna da casa.

Notou, porém, que trabalhava de má vontade e que algumas vezes chegava a permanecer uma hora sem fazer nada, empoleirado no seu banco, diante da mesa, com os olhos fixos na janela. A sua casa tinha, em frente, do outro lado da rua estreita, um velho prédio, construído provàvelmente na primeira metade do século XVIII. Era um prédio amarelado, com a fachada coberta de pequenas bossagens rectangulares, as janelas com cornijas neoclássicas e persianas castanhas. A partir do terraço, porém, esta regularidade fria e um pouco mesquinha cedia o lugar a uma desordem arquitectónica que, de modo casual, compunha uma paisagem urbana caótica e bizarra até ao absurdo. Com efeito, tinham sido construídas sobre aquele terraço, em várias épocas, inumeráveis superstruturas, pequenas e grandes: pavilhões, cabinas, paredes, parapeitos, escadas, escadinhas, miradouros, cumeeiras. Estas construções fascinavam Giacomo, sem que ele pudesse explicar o motivo: talvez por constituírem uma espécie de charada, já que a maior parte das vezes era difícil adivinhar‑Lhes a origem e o destino; ou então ‑ como algumas vezes pensava ‑ porque a fealdade, ao contrário da beleza, que tem sempre limites, é ilimitada e inexaurível.

Mesmo em frente da janela estava a balaustrada, de hastes de ferro, redondas, em estilo floreal, como se usavam setenta anos atrás, isto é, com ornamentos em forma de corolas fechadas nas duas extremidades e no meio. A distâncias regulares, a balaustrada era interrompida por um pilar quadrado, rebocado de cinzento e encimado por uma cobertura de pedra cinzenta, talvez piperino. Esta balaustrada era a coisa mais simples e insignificante do mundo; e, contudo, Giacomo não podia deixar de a observar com obstinação, anotando mentalmente as suas medidas e estudando com atenção os seus diversos aspectos. Assim, calculou que a distância entre cada um dos pilares era de cerca de 2 metros, que as hastes tinham 80 centímetros de altura e os pilares 1 metro. Observou também que a balaustrada estava pintada de um branco já sujo e raiado de ferrugem; que o reboco cinzento dos pilares, com o sol e a chuva, se tinha tornado ligeiramente, preciosamente arroxeado; e que manchas esverdeadas, como de musgo, eram, ao contrário, visíveis nas bases dos pilares, onde, alinhados contra a parte inferior da balaustrada, se via uma fila de vasos de barro cheios de terra mas sem qualquer traço de flores ou de plantas. Ao todo, havia sete pilares, distantes 2 metros um do outro, o que dava, para o comprimento do terraço, cerca de 14 metros, ou pouco mais. Atrás da balaustrada erguia‑se um caos de construções que fascinava Giacomo. A mais alta, suspensa no céu como o castelo de popa de um navio, era uma espécie de caixa de tijolo e cimento, pintada de amarelo, toda fechada, tendo apenas duas frestas ou vigias em forma de cruz. Provàvelmente era a cabina dos depósitos da água. Giacomo calculou as medidas, como habitualmente: 2, 5 metros de altura para a parede da frente, 3 metros para a de trás; a cabina tinha um telhado fortemente inclinado. Os depósitos, depois, não podiam ser mais de seis, dispostos em duas filas, três por cada fila; a profundidade da cabina, finalmente, era de cerca de 15 metros ou talvez 80 metros. Do lado esquerdo da cabina elevava‑se uma alta, estreita, ferrugenta chaminé; do lado direito havia uma conduta para tiragem de fumo, encimada por uma carcomida e empenada carapuça de latão. Mais acima, semelhante a teias de aranha do céu, elevavam‑se numerosas antenas da televisão. Giacomo contou, diversamente dispostas, umas mais altas e outras mais baixas, quinze antenas.

Da cabina dos depósitos da água, como da ponte de comando de um navio, descia‑se para o terraço por meio de uma escadinha de ferro, igualmente de estilo floreal e pintada de branco, como a balaustrada. Giacomo procurou contar os degraus, mas não o conseguiu porque a escadinha era em caracol, girando sobre si mesma, e os degraus estavam escondidos pelo parapeito em espiral que acompanhava as voltas dela.

Ao pé da escadinha, no terraço, havia um viveiro de chaminés construídas deste modo: uma base de tijolo e cimento em forma de marco de estrada, ou panettone I, muito larga e grossa, para sustentar um alto e estreito cano ferrugento e negro, encimado por um carapuço e por um abanador, ambos móveis. As bases, de tijolo e cimento, como notou, revelavam que as chaminés tinham sido construídas em épocas diversas: os rebocos eram de várias cores, desde o branco gessoso da massa mais recente ao cinzento violáceo da de cinquenta anos atrás. Os canos expeliam um fumo escuro, mais ou menos denso, que ia tornando negras a escada circular e a cabina dos depósitos da água.

Mais adiante, mesmo em frente da janela de Giacomo, havia três construções. Em primeiro lugar, ao meio, erguia‑se uma espécie de guarita alta e estreita, pintada de ocre amarelo‑carregado, com uma portinhola, como de cofre, de um delicado cinzento‑pérola. Não havia janelas; Giácomo nunca conseguiu compreender para o que podia servir. à esquerda havia, pelo contrário, uma construção bizarra mas reveladora: uma dependência clandestina com quatro paredes e até uma janela, mas sem tecto. Os proprietários, evidentemente, não tinham podido cobri‑la antes de as autoridades intervirem a suspender a construção; assim, haviam‑se resignado a fazer dela um miradouro; através da janela podia de facto ver‑se que continha várias cadeiras de ferro, pintadas de branco, e uma mesa redonda também de ferro, daquelas que se encontram nos jardins. As paredes desta dependência clandestina estavam pintadas de um vermelho pompeiano, escuro, que em vários pontos tinha caído, descobrindo a argamassa branca.

à direita havia um pavilhão quadrado, tosco e amplo, coberto por uma baixa cúpula de ferro e vidro, que, como parecia evidente, servia para proteger a caixa da escada. Através dos pequenos vidros sujos pelo pó de quase um século divisavam‑se as ténues sombras das rodas e dos cabos de um ascensor, e, observando bem, podia até ver‑se o girar das rodas e o oscilar dos cabos sempre que a cabina do ascensor se movia. O pavilhão estava pintado de um amarelo cheio de manchas lilases de humidade; a cúpula, pintada de branco nas partes de ferro, imitava o mesmo estilo floreal da escadinha e da balaustrada.

Atrás destas três construções ‑ a guarita, a dependência clandestina e o pavilhão ‑ erguiam‑se outras misteriosas superstruturas, situadas de vários modos, armadas também de escadinhas e balaustradas, pintadas com vários matizes do amarelo, do vermelho e do cinzento. Giacomo observava esta paisagem urbana durante muitas horas por dia, com uma atenção obstinada, como se quisesse penetrar na sua mais íntima e oculta essência. Mas reconhecia que não compreendia nada e que continuava a olhar precisamente por não compreender nada. Na realidade ‑ como lhe acontecia algumas vezes pensar ‑, aquelas coisas constituíam o fundo imóvel e incompreensível de toda a vida: enquanto a vida se desenrolava, não se viam; mal a vida parava, revelavam‑se.

Mas, enquanto observava o terraço em frente, aborrecia‑o não poder deixar de calcular mentalmente as medidas: tanto de altura, tanto de largura, tanto de profundidade, tanto de extensão, em metros lineares, metros quadrados, metros cúbicos. Esta invencível tendência para medir tudo contribuía não pouco para dar à sua contemplação um carácter de absurdeza. Com efeito, porque havia ele de medir, por exemplo, a altura do pavilhão ou o comprimento do terraço? Ninguém lhe tinha pedido uma avaliação, ou um projecto de alteamento, ou qualquer outro cálculo relacionado com a sua profissão. Em resumo, fornecia a si mesmo medidas de que não carecia e que nada tornava necessárias.

Entre os poucos livros de literatura que se alinhavam na sua estante, ao lado dos manuais de engenharia havia um volume E intitulado A Minha Fuga dos Piombi I, de Giacomo Casanova. Era um extracto das memórias do famoso aventureiro e continha ' apenas o episódio da sua evasão das prisões de Veneza. Num daqueles dias, como não conseguia trabalhar e queria subtrair‑se à contemplação dos telhados, Giacomo pegou no livro e abriu‑o. '! Os olhos caíram‑Lhe na seguinte descrição: "Estas prisões estão distribuídas por baixo do tecto nos dois lados do palácio: três a

poente, entre as quais a minha, e quatro a nascente. A goteira do telhado do lado do poente desce para o pátio; a do lado do nascente desce, pelo contrário, perpendicularmente para o chamado Canal de Palácio. Deste lado, as celas têm muita luz e pode estar‑se em pé o que não é possível na cela onde eu me encontrava, e que é conhecida por "cela da viga", justamente por causa da enorme viga que a priva de luz... " Giacomo continuou a ler com interesse: Casanova iria fugir e, para dar ao leitor a impressão das dificuldades e dos perigos da fuga, alongava‑se em pormenores visuais e nas medidas e informações topográficas. Giacomo notou que havia uma certa semelhança entre as minuciosas e precisas observações de Casanova e as que ele ia fazendo todos os dias, quando olhava para o terraço em frente. Havia apenas uma diferença: as observações de Casanova tinham um objectivo, isto é, a fuga. De outro modo o aventureiro nunca pensaria em dirigir a atenção para uma realidade tão mesquinha e insignificante; as suas, pelo contrário, não tinham qualquer fito, eram mexplicáveis e absurdas. A vida de Casanova sempre decorrera sem interrupções, até ao fim; a sua, pelo contrário, parecia ter parado.

Giacomo leu ainda o livro por mais algum tempo; depois pô‑lo de parte e voltou a olhar o terraço em frente, mais caótico e absurdo do que nunca, sob um nebuloso e esbranquiçado céu de siroco. Começou a pensar que devia, a todo o custo, encontrar forma de se arrancar da obtusa contemplação a que pouco a pouco se havia reduzido a sua vida nos últimos tempos. Mas que fazer`? Por um instante, pensou em pegar na caneta e papel e escrever uma longa carta à mulher; explicar‑lhe‑ia que, desde que se havíam deixado, passava o tempo a observar chaminés ferrugentas e velhos pavilhões, e que isto era, sem dúvida, uma prova de que ainda a amava e não podia viver sem ela. Mas renunciou à ideia, não só por se Lhe afigurar que seria uma carta demasiadamente sentimental, mas também por ter a certeza de que a mulher o não compreenderia e, de qualquer modo, não lhe responderia. Por fim, após demorada reflexão, pegou num lápis e começou a desenhar numa grande folha de papel o perfil das construções do terraço, começando pela cabina dos depósitos da água.

 

           A INSÓNIA EM CONJUNTO

 

Girolamo vinha já a sair a porta quando a mulher o voltou a chamar:

‑ Espera.

‑ Que é?

Estava sentada na cama, encostada às almofadas em desordem, e, contraindo a boca, fitava‑o, hesitante e triste:

‑Porque não dormes comigo?

‑ Sabes bem porquê: sofro de insónia e não te deixaria dormir toda a noite.

‑ Mas eu não quero estar só de noite. É tão bom dormir juntos! Esta noite fica comigo.

‑ É bom dormir juntos, mas não sofrer de insónia juntos. Olha: nem sequer se pode dizer, é uma cacafonia.

‑ Não importa. Estaria acordada também. Mas não quero dormir só.

‑Não será sempre assim. A insónia passar‑me‑á. E, nessa altura, voltarei a dormir contigo.

‑ Mas eu não quero dormir só.

‑ Até amanhã.

Viu‑a fazer uma cara desconcertada e depois, como que reconsiderando, sorrir‑lhe e agitar a mão em sinal de adeus. Girolamo abriu a porta e saiu do quarto.

Foi para o compartimento ao lado, para o escritório, onde há quatro meses dormia, ou, melhor, velava num divã‑cama. Despiu‑se apressadamente e meteu‑se debaixo dos lençóis com a habitual e pertinaz vontade de adormecer, que não servia de nada, como sabia muito bem. Antes de apagar a luz, deu uma olhadela ao relógio: era 1 hora. O sono foi pesado e sem sonhos. Subitamente, deu um salto e sentou‑se na cama, com uma sensação de sufocamento. O coração pulsava‑lhe com força; parecia‑lhe advertir uma respiração como de animal escondido, mesmo ao seu lado. Estendeu uma mão; encontrou uma coisa comprida, tépida e nua, e, no fim do braço, pois tratava‑se de um braço, uma mão que logo apertou a sua e, lentamente, a obrigou a percorrer o caminho inverso até se lhe depararem dois lábios que nela imprimiram um beijo devoto:

‑ Sou eu ‑ disse a mulher, no escuro ‑, dorme agora, procura dormir.

Girolamo acendeu a luz e sentou‑se no divã. A mulher estava deitada junto dele, na borda do leito. Através do tecido verde‑claro da camisa, o seu corpo pálido e magro de adolescente desenhava‑se com linhas longas, indolentes e com convexidades apenas esboçadas. O rosto também era pálido e comprido, com cabelos negros e lisos, o nariz um pouco grande, os lábios grossos e sombreados de penugem. Fixava‑o de baixo para cima, com o brilho dos olhos escuros e estreitos; depois perguntou:

‑ Que tens?

Girolamo sentia a cabeça lúcida e ardente, semelhante‑como pensou ‑ a uma estrada numa noite de Janeiro, quando sopra um vento gélido e violento. Com esta espertina não havia sequer que admitir a hipótese de apagar a luz e procurar dormir. Disse com evidente mau humor:

‑ Está bem, e que fazemos agora?

‑ Estamos os dois acordados.

‑Mas que fazemos?

‑ Que costumas tu fazer quando se apodera de ti a insónia?

‑Não faço nada. Fico deitado na cama. Ou, então, levanto‑me e faço qualquer coisa.

‑ O quê?

‑ Não sei; vou para a janela, por exemplo, e olho para fora.

‑ Está bem, vamos então para a janela e olhemos para fora juntos.

Foram para a janela; ela envolveu‑lhe a cintura com o braço e esmagou o nariz contra os vidros, ao lado dele. O apartamento onde viviam ficava no último andar de um prédio moderno, num bairro dos arredores, e tinha em frente um prado imenso, acidentado e inculto, cheio de covas e de montículos. àquela hora o prado, mal iluminado por raros candeeiros, era um interminável quadrilátero de sombra ‑aqui e além divisavam‑se manchas esbranquiçadas de papéis velhos‑, com as covas mais escuras do que os montículos, pois, enquanto aquelas tinham erva estes estavam nus. Para além do prado, muito ao longe, semelhante à frente de uma geleira diante de um anfiteatro de morcia, descobria‑se uma barreira de casas, com todas as fachadas sumidas e escuras, salvo a janela de um andar onde brilhava uma luz solitária e intensa. Por cima das casas, no céu enevoado, estava suspensa uma pequena foice amarela de lua, circundada por um halo turvo. Um avião de carreira atravessava naquele momento, em diagonal, o céu por cima da Lua, acendendo alternadamente as luzes encarnadas das asas e as verdes da cauda.

A mulher disse:

‑ Olha um avião.

‑ Sim, um avião.

‑ Donde virá?

‑ Sabe‑se lá.

Ela ficou por um instante calada e, depois, prosseguiu:

‑Todas as imundícies do bairro vêm parar a este prado. De dia, jogam aqui os rapazes; de tarde, conversam os namorados. E de noite?

‑ De noite, vagueiam os gatos.

- Achas que construirão aqui casas, um dia?

‑ Sim, certamente.

‑ Nessa altura tirar‑nos‑ão a vista e será melhor irmo‑nos embora.

Comprimia a sua anca ossuda contra a do marido e, de súbito, teve um gesto sentimental: reclinou a cabeça no ombro dele. Mas endireitou‑se quase logo e disse:

‑ Olha, lá em baixo, naquele prédio em frente, há uma janela iluminada. Quem será?

‑ Alguém que não dorme.

- Obrigada pela explicação. Todas as noites está iluminada, aquela janela?

‑ Parece‑me que sim.

‑ Talvez seja alguém que tenha medo de dormir às escuras.

Sem proferir palavra, Girolamo afastou‑se da janela e dirigiu‑se para a porta. A mulher correu‑Lhe atrás:

‑ Onde vais?

‑ à cozinha, fazer um sumo de laranja. O sonífero não me fez dormir, mas secou‑me a boca: tenho uma sede de morrer.

‑Preparo‑te eu, o sumo.

Saíram para o corredor. A casa era pequena, quatro divisões ao todo, duas de cada lado do corredor, além de um vestíbulo. A mulher soltou um grito:

‑ Olha, mas olha!

Girolamo baixou os olhos: sobre o pavimento, de reluzentes ladrilhos amarelos, viam‑se muitas e grandes baratas negras a fugir para os cantos, procurando a sombra. Duas destas baratas, talvez encandeadas pela luz, rodopiavam vertiginosamente sobre si mesmas, como num baile frenético. A mulher gritou ainda:

‑ Mas são tantas! Que nojo, que nojo!

Girolame viu‑a entrar pressurosamente na casa de banho e, depois, sair, segurando na mão uma caixa cilíndrica com uma das bases toda perfurada:

-Pega, mata‑as tu. A mim, causam‑me demasiado nojo.

Metodicamente, Girolamo começou a perseguir as baratas, descarregando‑lhes em cima pequenas nuvens de insecticida amarelo. A caixa do pó, ao ser apertada, fazia um leve rumor, que, para os inseetos ‑ pensou ele ‑, devia ressoar terrivelmente, como a explosão da bomba atómica para os homens. As baratas ainda caminhavam um pouco, cada vez mais lentamente, com o dorso negro coberto de amarelo; depois ficavam quietas e viravam o ventre para cima, com as patas esticadas, mortas. Girolamo, aborrecido, restituiu finalmente a caixa à mulher, dizendo:

‑ Segura aí; para esta noite, basta.

‑ Mas donde vêm? É uma casa nova...

‑ Da pia, provàvelmente.

Girolamo abriu uma portinhola ao fundo do corredor, pegou numa vassoura e, com cuidado meticuloso, reuniu todas as baratas mortas num monte, a um canto. Depois entrou na cozinha. Em pé, diante da mesa, comprimindo o ventre contra o mármore, a mulher espremia com desvelo e energia, para dentro de um copo, quatro laranjas partidas ao meio. Girolamo foi sentar‑se atrás dela, contemplando com indiferença as costas magras e brancas que, sempre que era dada uma volta à meia laranja para lhe espremer o sumo, tinham um ligeiro movimento rítmico, como de dança. A mulher, sem se voltar, disse:

‑Queres que te passe o sumo pelo passador?

‑Não, prefiro‑o assim, sem ser passado.

‑ Toma.

Girolamo levantou‑se e, pegando no copo, bebeu lentamente, junto do frigorífico, o sumo fresco e espesso. A luz deslumbrante da cozinha, que os ladrilhos claros realçavam, obrigou‑o inopinadamente a pensar na sua cabeça, também ela deslumbrante de insónia. A mulher veio junto dele e perguntou‑lhe timidamente:

‑ Tens sono?

‑ Não.

‑ Nem mesmo um pouco?

‑ Não, nem mesmo um pouco.

‑Que horas são?

‑Quatro menos vinte.

‑ Aborreces‑te comigo?

‑ Pelo contrário, esta noite fizemos uma série de coisas interessantes: olhámos para o prado, vimos um avião no céu e uma janela iluminada num prédio, perseguimos as baratas, fizemos um sumo de laranja...

‑Uma ideia: vamos para ali, para o meu quarto, pomos um disco e ouvimos música.

‑ Que música?

‑ Qualquer coisa alegre: por exemplo, um twist.

‑ Acordaremos o prédio inteiro.

‑Não, tocaremos baixo.

Foram para o quarto, que estava em grande desordem: roupas de mulher espalhadas por toda a parte, sapatos e meias sobre o tapete, a cama desfeita, o guarda‑vestidos com as portas abertas. Ela foi a um canto onde estava o gramofone e pôs um disco. Logo que a música se começou a ouvir, avançou para o meio do quarto, estendendo os braços para o marido: '

‑ Vamos dançar.

‑ Sabes bem que não sei dançar.

‑ Ensino‑te o twist; assim, ao menos, a insónia servirá para alguma coisa.

‑Não, não tenho vontade.

‑ Está bem, dançarei eu por ti. Farei como as mulheres no Oriente para os seus senhores, nos haréns.

Viu‑a atirar para a frente os braços com as mãos fechadas, dobrar depois pouco a pouco os joelhos, meneando com as ancas enquanto se dobrava. Era um movimento de acordeão: o corpo dela, ora se contraía sobre si mesmo, até quase tocar no chão, ora se projectava para o tecto, erguendo‑se nas pontas dos pés. Dançava com aplicação - os joelhos unidos, os pés para fora, a cabeça inclinada para a frente, os cabelos caídos. Depois, inesperadamente, correu para Girolamo, que estava sentado na cama, e caiu‑lhe em cima com um pequeno grito, dizendo, ofegante:

- Já chega de dança. Estou cansada.

Girolamo, um pouco ironicamente, propôs:

‑ Porque não experimentas agora dormir um pouco? Deves ter sono, não?

‑ Se ficares aqui comigo, dormirei. Mas não me deixes só, peço‑te.

‑ Está bem.

A mulher ficou por algum tempo calada e, depois, murmurou com voz ensonada:

‑ Sabes que gosto muito de ti? ‑ e cingiu‑se a ele.

Deve ter adormecido de repente, pois Girolamo sentiu quase logo a sua respiração profunda e regular, exactamente como quem dorme. Esperou alguns minutos; depois libertou‑se paulatinamente dela, estendeu‑a na cama, puxou‑lhe o cobertor para cima e saiu

Foi ao escritório, tirou um binóculo de uma gaveta e aproximou‑se da janela. Todas as noites espiava com o binóculo a longínqua janela iluminada, lá em baixo, para além do prado, com a esperança, sempre desiludida, de ver quem estava acordado àquela hora. Mas também desta vez o insone habitante do quarto iluminado não compareceu. Por fim, Girolamo, sentindo‑se fatigado, foi deitar‑se no divã e apagou a luz.

 

             ESTÁ BEM

 

Entraram no elevador. Nora recolheu‑se num canto, colocando entre eles um ramo de mimosas que Sandro pouco antes lhe tinha oferecido. A sua mão, grande, lisa e branca, carregou no botão; logo que a cabina começou a subir, disse:

‑ Olha que te deixo vir cá acima, mas com uma condição: logo que ele telefone, vais‑te embora.

‑ Está bem.

Sandro viu‑a atrás do ramo azulado e amarelo da mimosa irritar‑se subitamente; o seu belo rosto, açoitado por madeixas louras em desalinho, transformou‑se: contraiu a grande boca encarnada e semicerrou as pupilas:

‑Não, não está bem porque sei já antecipadamente que, uma vez lá em cima, começarás a falar‑me do teu grande amor " por mim e, depois, não vais querer ir‑te embora; e eu ver‑me‑ei obrigada a questionar para te fazer sair. Ora eu não quero discussões.

‑Mas porque te irritas?

‑ Irrito‑me porque não queres compreender.

‑ O quê?

‑ Que não te amo e nunca te amarei.

‑ Está bem.

‑ Tu dizes sempre: "Está bem. " Mas que é que, para ti está bem comigo? Nada. Portanto, porque dizes: "Está bem?" - à medida que falava, agora, enfurecia‑se novamente: ‑ Devias, pelo contrário, dizer: "Está mal, está muito mal. "

Sandro inclinou a cabeça e explicou:

‑ Desculpa‑me. Diz‑se: "Está bem", como se diz: "De acordo.

‑ Mas nós não estamos de acordo e nunca o estaremos.

O elevador parou; Nora, saindo impetuosamente, passou diante de Sandro e encheu‑lhe o rosto do pólen da mimosa. Dirigiu‑se para a porta do seu apartamento e, depois, voltando‑se, gritou:

‑ Vamos, que fazes aí dentro? Já que quiseste vir cá acima, entra.

Sandro saiu do elevador e seguiu‑a. De súbito, mal a porta do apartamento se fechou e eles pararam um instante no vestíbulo, às escuras, o telefone começou a tocar numa sala contígua.

Sandro ouviu Nora precipitar‑se na escuridão, embatendo cegamente nos móveis; em seguida, a voz dela, ofegante, disse:

‑ Pronto, quem é, pronto! ‑ E logo depois, aliviada e possuída de uma ternura inesperada: ‑ Ah!, és tu, amor.

O telefonema foi breve. Nora respondia: "Sim, não, sim, não", como temendo que Sandro pudesse compreender o que lhe diziam do outro lado do fio. Depois, com um tom angustiante, ansioso, dócil, implorante, Nora exclamou:

‑ Um momento, espera, diz‑me. ‑ Mas ouviu‑se o clique do telefone a cortar a ligação e, em seguida, fez‑se um profundo silêncio.

Passaram alguns segundos. Em pé no vestíbulo, às escuras, encostado à porta, Sandro ouvia uma torneira a pingar na casa de banho ou, talvez, na cozinha, a música confusa de uma telefonia num apartamento vizinho, a voz ténue e distante de alguém que telefonava no andar de baixo; mas nada ouvia que pudesse fazer supor a presença de Nora no apartamento. Ou, melhor, sim, pareceu‑Lhe advertir, a certa altura, um ligeiro rumor de vestes e de pés descalços. Por fim, decidiu‑se a perguntar:

‑ Então?

A voz de Nora respondeu, sufocada:

‑ Ouve.

‑ Diz.

‑Agrada‑te ficar aqui comigo?

‑Sabes bem que agrada.

‑ Então faz aquilo que te digo: não acendas luzes, nem sequer um fósforo, avança na direcção do meu quarto até encontrares a poltrona que está aos pés da cama, senta‑te e fica quieto e calado.

‑ Mas porquê?

‑Despi‑me e meti‑me na cama. No estado de espírito em que me encontro, preferiria estar só. Mas já que tanto te agrada estar comigo, consinto que fiques. Com a condição, porém, de não abrires luzes nem falares.

‑ Não poderia segurar‑te uma mão?

‑ Não, por favor; se me tocas, grito.

‑Que devo fazer?

‑ Nada, não deves existir, como não existem, nesta escuridão, as cadeiras, a cómoda, os outros móveis.

‑ Mas se não existo, que estou aqui a fazer?

‑Agrada‑te estar comigo? Pois bem, contenta‑te.

Sandro calou‑se e, pouco a pouco, avançou às apalpadelas até à poltrona. Quando a encontrou, passou uma mão pela almofada antes de se sentar. Os seus dedos emaranharam‑se num tecido macio, fino, talvez uma meia; depois sentiu sob a palma da mão as duas caixas de um soutien. Isto significava que, após a ansiosa conversa ao telefone, ela se tinha realmente despido. Tirou a roupa da poltrona e, afundando‑se nela, ficou imóvel.

Seguiu‑se um longo silêncio. Sandro, algum tempo depois, introduzindo com precaução a mão num bolso, procurou e encontrou o maço dos cigarros e a carteira dos fósforos. Mas quando estava para acender o cigarro lembrou‑se subitamente da intimação: "Não acendas sequer um fósforo", e renunciou a fumar. Da cama não vinha qualquer rumor; até a música da telefonia no apartamento do lado e a voz que telefonava no piso de baixo tinham deixado de se ouvir. O silêncio era completo e, precisamente por isso, intolerável. Depois, Sandro voltou a ouvir, com alívio, um rumor como que de lençóis a serem afastados; e a voz de Nora, que, baixa e próxima, pedia:

‑ Diz‑me qualquer coisa.

‑ Onde estás?

‑ Estou em cima da cama.

‑Já não estás debaixo dos cobertores?

‑ Não, sufocavam‑me. Estou atravessada na cama, com os pés na almofada e a cabeça pendente. A minha cabeça não está longe dos teus joelhos, com a boca poderia mesmo tocar neles, os meus cabelos roçam no tapete.

- Queres que acenda a luz?

- Não, estou nua; se o fazes, corro contigo.

Sandro alongou lentamente uma mão sobre os joelhos. Estendeu um dedo, com cautela, e, de facto, sentiu na polpa o prurido vivo e leve de uma mórbida madeixa de cabelos. Perguntou:

‑ Que queres que te diga?

‑ Uma coisa que me distraia, que me faça ter outros pensamentos.

Sandro, pausadamente, objectou:

‑Não sei que dizer.

‑ Como? Declaras que me amas e não sabes que dizer?

‑ Posso dizer‑te que te amo.

‑ Não, por favor, não me fales de amor.

‑ Então do que devo falar?

‑ Fala‑me de qualquer coisa que te agrade.

Sandro reflectiu por um instante e, depois, declarou:

‑ Agrada‑me o mar. Queres que te fale do mar?

‑ Sim, fala‑me do mar.

Sandro concentrou‑se por um instante e, depois, começou:

‑ Agrada‑me remar de manhã cedo, no mar, durante a Primavera. O mar tem um odor fresco a algas verdes e, sobre nós, voam borboletas brancas, aos pares, como sobre os prados. O mar é liso, de um azul de vidro, eu remo devagar, aproximo‑me da costa e começo a remar junto das rochas. De vez em quando, paro e olho. A água sobe e desce, segundo o fluxo e o refluxo: quando sobe, faz um gorgolejo leve, penetrando nas cavidades das rochas; quando desce, faz outro gorgolejo mais rouco, saindo das cavidades. Nas rochas estão enraizadas algas verdes e escuras, algumas bagás‑de‑mar ‑ encarnadas e brilhantes ‑, ouriços roxos e lapas negras. Se observo a água, vejo que é transparente até grande profundidade e posso distinguir pequeninos peixes que nadam à luz do Sol, de um lado para o outro, entrando e saindo das cavidades, coleantes, argênteos, com uma risca negra dentro do corpo de vidro e a bolinha preta do olho na cabeça.

De súbito, ouviu‑se:

‑ Basta, basta, basta!

‑ Basta, porquê? Não te agrada que fale do mar?

‑És um imbecil, nunca compreenderás nada; falaste da única coisa que devias calar.

‑ Mas porquê?

‑ Porque também eu gosto do mar, e gostei principalmente quando lá estive com ele, e tu, falando‑me assim, provocaste em mim a nostalgia. Devias falar‑me de tudo, menos do mar.

‑ Na tua opinião, portanto, de que coisa te devia falar?

‑ Que sei eu? De selos, de futebol, de caça.

‑ Mas eu não faço colecção de selos, não gosto de futebol e nunca vou à caça.

‑ Oh!, está calado, está calado, está calado, peço‑te.

Ouviu‑a mexer‑se de novo e, desta vez, não percebeu realmente onde teria ido. Depois chegou‑lhe a sua voz baixa e furibunda, do vestíbulo:

‑ Agora, fecho‑me na casa de banho, abro a janela e atiro‑me abaixo.

‑ Por favor.

Sandro levantou‑se e correu às escuras até ao vestíbulo, mas, no mesmo instante, a porta da casa de banho fechou‑se e a chave rodou na fechadura. Sandro bateu com o punho na porta fechada, chamando; em seguida correu de novo para o quarto, foi à janela, às escuras, e escancarou‑a. A luz branca do céu, coberta de cirros, deslumbrou‑o, depois de tanta escuridão. Debruçou‑se no peitoril, mas não conseguiu ver a janela da casa de banho, porque estava escondida numa reentrância da fachada. Baixou os olhos: seis andares abaixo viam‑se os tejadilhos dos automóveis e de um autocarro, lentos e bloqueados, avançar sobre o asfalto da rua. Subitamente, atrás de si, soou a campainha do telefone.

Sandro quase não tivera tempo de se voltar e já Nora havia saído da casa de banho e se precipitara para o telefone, levantando o auscultador. Tinha um pano turco enrolado no corpo, e Sandro não pôde deixar de perguntar a si mesmo, surpreendido, como conseguira encontrar também tempo para se cobrir.

Nora, com voz ofegante, começou por dizer:

‑ Está bem. ‑ Depois, com alegria, repetiu: ‑ Está bem. - Ficou por um instante à escuta e, pela terceira vez, com a mesma alegria, mas de maneira conclusiva, disse: ‑ Está bem. ‑ Por fim pousou o telefone e voltou‑se para Sandro: ‑ Tenho muita pena, mas vejo‑me obrigada a recordar‑te o nosso contrato. Tens de te ir embora: ele está para chegar.

‑ Vou‑me embora, está bem.

‑ Sabes o que poderias fazer? Telefonar‑me mais tarde.

‑A que horas?

‑ Bom... , não sei, por volta das oito.

‑ Está bem.

‑ Fecha a porta.

‑ Está bem.

 

             OS OBJECTOS

 

‑ É duas ruas mais à frente, uma destas travessas que ligam a Rua Flaminia ao Lungotevere.

Lívia parecia ansiosa por chegar à rua onde se encontrava o apartamento; demasiadamente ansiosa, pensou Ciro, mesmo tratando‑se do apartamento em que viveriam depois de se casarem. Perguntando a si mesmo o motivo desta ansiedade excessiva, e não o encontrando, Ciro conduziu o carro, debaixo de uma chuva cinzenta e míudinha, pelo asfalto reluzente do Lungotevere até à segunda travessa e, depois, voltou. Surgiu uma das ruas habituais, nem feias nem bonitas, nem velhas nem novas, com duas filas de prédios cor de biscoito, os automóveis estacionados ao longo dos passeios, nenhuma loja. Uma rua sossegada. Sobre uma porta pendia um letreiro encarnado, que dizia: "Aluga‑se. "

‑ É aquele ali ‑ exclamou Lívia com um assomo de alegria na voz.

Ciro parou o carro, desceram e entraram num átrio modesto, com o pavimento de ladrilhos e duas filas de plantas em vasos de barro. No elevador, Ciro perguntou à namorada:

‑ Como fizeste para o encontrar?

‑ Passei aqui esta manhã e vi o letreiro. É a melhor maneira para encontrar uma casa: girar e olhar os letreiros.

‑Subiste lá acima?

‑Não. Informei‑me junto do porteiro e ele disse‑me que o apartamento só podia ser visto das duas às quatro. Pedi‑lhe que mo descrevesse: é exactamente aquilo que nos convém.

‑Mas que tens, estás agitada?

‑Não, não estou agitada. Estou contente. Depois de tanto procurarmos, encontrámos, finalmente.

O elevador parou e eles saíram. Encontraram‑se num patamar onde havia uma única porta, de tipo rústico, com a madeira por aplainar e dobradiças de ferro. Ciro olhou para a placa de metal eleu: "Ippolito." Disse, aborrecido:

‑ Que raio de nome é este? Ippolito, assim, sem mais nada.

‑Ora, que há de estranho? Chama‑se Ippolito.

‑Mas não tem uma profissão, um ofício? Não é médico, advogado? Ippolito é o apelido. E o nome, não tem`?

Viu‑a encolher os ombros; e experimentou, de súbito, um desejo de lhe acariciar o belo rosto afilado, de olhos grandes, nariz aquilino, boca encarnada e pequena. Disse impetuosamente:

‑ Dá‑me um beijo.

‑Temos de ver o apartamento.

‑ Dá‑me um beijo.

‑ Não, agora não.

Lívia carregou no botão da campainha no mesmo instante em que Ciro a agarrava e a beijava. Quase imediatamente, a porta abriu‑se e apareceu um jovem que, no aspecto, fazia lembrar um urso: alto, mas com qualquer coisa de tosco, de maciço e de indolente, com a cabeça grande e arredondada, os cabelos encaracolados e bastos, uma expressão ensonada nos olhos, o nariz chato, a boca grossa. Os dois namorados separaram‑se subitamente: Lívia, como parecia, um pouco confusa, Ciro, impudente e alegre. O dono da casa observou‑os por um momento:

‑ Que desejam?

Tinha uma voz grave e profunda, de baixo; e Ciro experimentou, imediatamente, uma sensação de apreensão e de perigo. Disse, como para se desculpar, mas, na realidade, para afirmar as suas relações com Lívia:

‑Desculpe‑nos, somos dois namorados e beijámo‑nos em frente da sua porta antes de tocar. Precisamente, viemos para visitar o apartamento.

‑ Se me permite, chamo‑me Ippolito ‑ disse o jovem, estendendo a mão, sem comentar de qualquer modo as explicações de Ciro.

‑ Muito prazer. Esta é Lívia.

‑ Muito prazer.

Entraram. Ciro, impelido por uma súbita necessidade de ostentar perante Ippolito a sua qualidade de namorado, perguntou a Lívia:

‑Desculpa, tenho bâton nos lábios?

Ippolito, que estava a fechar a porta, voltou‑se e observou‑o, mas não disse nada. Lívia corou e, depois, respondeu, com voz incolor.

‑ Não, não tens nada.

‑ Mas eu sinto que tenho qualquer coisa.

‑ Não tens nada, eu não tinha bâton nos lábios.

‑ Este é o vestíbulo ‑ disse Ippolito, como a concluir com a sua frase o diálogo entre os dois namorados.

O vestíbulo era pequeno, monástico: paredes caiadas, banco e cadeirões estilo século XV, lustres de ferro forjado.

‑ O senhor é... estudante? ‑ perguntou Ciro a Ippolito.

‑ Não, ocupo‑me de cinema, escrevo argumentos.

Lívia inquiriu com súbito interesse:

‑Também é realizador?

Ippolito, antes de responder, fitou‑a por um instante com os seus olhos entorpecidos. Depois disse com voz profunda:

‑ Decerto, um dia rodarei o meu filme. Por ora, vou adquirindo experiência com os argumentos.

Não sabendo como desafogar a sua hostilidade para com Ippolito, Ciro observou:

‑ Tudo é fácil, ou, pelo menos, parece fácil, no cinema.

‑O senhor, que faz?

‑ Estudo engenharia.

‑ Este é o quarto ‑ disse Ippolito, abrindo uma porta no corredor. Era um quarto pequeno, com uma janela para o terraço, que rodeava toda a casa. Através dos vidros via‑se o céu cinzento e opaco do dia chuvoso. Uma grande cama de casal ocupava todo o espaço. A cama era também em estilo rústico, com a cabeceira cheia de arabescos de ferro forjado. Tecidos artesanais, utensílios de ferro, gravuras de carrinhos sicilianos, ornavam as paredes. Ciro indagou:

‑ Uma cama de casal? Mas o senhor não vive só?

‑ Sim, vivo só, mas gosto de estar à larga quando durmo.

‑ E a casa, o senhor aluga‑a mobilada?

‑ Mobilada ou não.

‑ É um pouco pequena ‑ disse Ciro, olhando para a cama e procurando explicar a si mesmo a persistente sensação de perigo e de ciúme que lhe inspirava Ippolito.

‑ Eu digo que é o ideal para nós ‑ contrapôs Lívia com uma ênfase que pareceu a Ciro excessiva e inconveniente.

‑ É pequena, sim ‑ retorquiu Ippolito pausadamente ‑, mas é o que convém a duas pessoas que se amam.

‑ E nós os dois amamo‑nos ‑ asseverou Ciro, agarrando no mesmo instante Lívia pela cintura. ‑ Não é verdade que nos amamos, Lívia?

Ippolito olhou‑os sem falar: tinha uma maneira insistente, pesada, sonolenta, verdadeiramente ursina, de olhar, que irritava Ciro, o qual, sem reflectir, acrescentou:

‑ Dá‑me um beijo ‑ e ao mesmo tempo beijou Lívia no pescoço. Ippolito disse:

‑ Desculpem, está o telefone a tocar ‑ e saiu à pressa do quarto. Os dois namorados continuaram abraçados: Lívia não se opunha; pelo contrário, parecia secundar o abraço. Mas quando se separaram declarou friamente:

‑Não tens nenhum pudor, não nos devemos beijar diante de um estranho.

‑ És a minha noiva, dentro em pouco serás minha mulher.

‑ Não importa, não se faz.

Ippolito voltou, dizendo:

‑ Se querem ver a sala de estar... ‑ e saiu à frente deles para o corredor. Ciro tentou agarrar a mão de Lívia, mas ela desprendeu‑se com um puxão. Ippolito, escancarando a porta, declarou: ‑ O quarto é pequeno, mas, em compensação, a sala é grande.

Com efeito, a sala de estar era grande e recordava, até por causa da extensão das vidraças, o salão de um navio: pavimento de madeira clara e encerada, sem carpettes; móveis de tipo sueco, de ferro preto e de teca; estantes desmontáveis, de aço; divãs e poltronas de couro vermelho e preto. Sobre uma mesa, perto da vidraça, havia uma máquina de escrever submersa por um mar de folhas brancas. No chão, aos montes, estavam manuscritos e os papéis das personagens de várias peças. Ciro concordou:

‑ Sim, a sala é grande.

‑ A mim, parece‑me estupenda ‑ exclamou Lívia com entusiasmo.

Ciro perguntou:

‑ Onde fica o telefone? ‑ E, em seguida, explicou a Lívia:

‑ Tenho de avisar a pensão de que não vamos almoçar.

‑ O telefone fica no corredor ‑ informou Ippolito. i Ciro dirigiu‑se para o corredor com a sensação de que fazia

mal em deixar a sós Lívia e Ippolito, mesmo por um instante. O telefone estava sobre uma mísula, atrás da porta. Ciro notou, com satisfação, que um espelho pendurado em frente do telefone reflectia toda a parte da sala onde se encontravam Lívia e Ippolito. ' Marcou o número da pensão; e então, com uma sensação nauseabunda de inevitabilidade, viu, no espelho, Lívia aproximar‑se de Ippolito, apoiar‑lhe as mãos no peito, olhá‑lo fixamente, dos pés à cabeça, e, depois, dar‑lhe um beijo estranho, de fugida, rápido e furioso como uma bicada.

Separaram‑se quase imediatamente; os seus vultos escuros tinham por fundo as vidraças cheias de céu cinzento. Ciro renunciou ao telefonema e entrou de novo na sala, dizendo:

‑Temos de ir imediatamente à pensão. Está lá alguém à minha espera.

Ippolito, com a habitual indolência, acompanhou‑os até à porta. No limiar, observou:

‑ Tenho muitos pretendentes, digam‑me alguma coisa dentro de dois dias. Alugarei o apartamento, de preferência, a vocês.

‑ E porquê? ‑ perguntou Ciro, voltando‑se, hostil.

‑ Muito simples. Simpatizei mais com vocês.

Lívia disse:

‑ Até à vista, Sr. Ippolito; telefonaremos.

Uma vez no carro, Ciro, sem dizer palavra, foi até ao Lungotevere e parou junto ao parapeito. A chuva continuava a cair, cinzenta e cerrada, no asfalto escuro; os carros, passando, esparrinhavam água turva.

‑ Porque paras aqui? ‑ inquiriu Lívia.

Ciro puxou o travão de mão, desligou o motor, voltou‑se e disse com voz sufocada:

‑ Então era tudo um truque...

‑Mas qual truque?

‑ Tinhas combinado com o teu amante impingir‑me o apartamento dele. Só Deus sabe porquê: provavelmente, por sadismo.

‑ Mas que dizes?

‑ Que é que tu julgas? Que não vos vi enquanto vos beijáveis? Seguiu‑se um breve silêncio. Depois, ela perguntou tranquilamente:

‑Pensas então que eu e o Sr. Ippolito temos relações?

‑Porque o chamas Ippolito? Chama‑o pelo seu nome.

‑ Qual nome?

‑ Ippolito é o apelido. Chamar‑se‑á Paolo, Pietro, Giovanni, que sei eu? Ou, na vossa intimidade: Cocó, Pepé, Lulu...

Viu‑a sorrir. Ela retorquiu com simplicidade:

‑ Mas eu não o posso chamar de nenhuma maneira porque ignoro o seu nome.

‑ Mas como? Não quererás dizer‑me que não sabes o nome do teu amante.

‑ Mas eu não sou amante de Ippolito.

‑ Que dizes? E o beijo?

Seguiu‑se novo silêncio. Depois, Lívia, reflectida e calma, prosseguiu:

‑ Não só não sou amante de Ippolito como nunca o tinha visto antes. Quando ele abriu a porta e viu que nos beijávamos no seu patamar, quem sabe?, talvez imaginasse que eu era uma mulher fácil. E assim, quando entrámos, sem que tu desses por isso, apertou‑me uma mão. Fiquei indignada e estava para te propor que viéssemos embora. Mas, precisamente naquele momento, veio‑te a ideia de me beijares diante dele. Por isso, quando foste ao telefone, lancei‑lhe os braços ao pescoço...

‑ Mas porque o fizeste? Não te compreendo.

‑Porque me tinhas ofendido, tinhas‑me tratado como um objecto. Naquele momento, da mesma forma que beijei Ippolito, teria até beijado um velho decrépito, um leproso, um monstro. Não o fiz por Ippolito, de quem não me importo nada, nem por ti, que és o que és e não há nada a fazer; fi‑lo por mim.

‑ Por ti?

‑ Sim, para eu própria readquirir a sensação de não ser um objecto, uma propriedade. Ciro ligou de novo o motor e, lentamente, sob a chuva, que agora caía com mais intensidade, pôs o carro em marcha.

‑ Mas voltarás a ver Ippolito? ‑ perguntou um momento depois.

‑ Porque deveria eu voltar a vê‑lo? Servi‑me dele como tu te serviste de mim. Nunca mais o voltarei a ver.

 

             DE NOITE, NO SONO

 

Renzo entrou em casa levando na mão uma pequena telefonia portátil, comprada naquela tarde. Do vestíbulo seguiu directamente para o quarto; acendeu a luz, sentou‑se na cama e pousou a telefonia sobre a mesinha de cabeceira, junto do telefone. Tirou um cigarro de uma pequena cigarreira de couro e acendeu‑o; em seguida rodou o botão da telefonia. Ressoaram as notas de uma música de dança: Renzo escutou durante algum tempo esta música e, depois, rodou de novo o botão; foi a vez de um comentador desportivo. Findo o comentário, ouviu‑se música clássica, violinos e piano, e, depois, de novo uma voz que explicava qualquer coisa. Mais do que escutar, Renzo, agora, olhava a telefonia com expressão cada vez mais distraída. De súbito, inclinando‑se um pouco, apagou a telefonia e marcou ràpidamente um número no telefone. Logo que ouviu a voz da mulher responder: "Pronto", perguntou:

‑ Como estás?

‑ Estou bem.

‑Que estás a fazer?

‑ Estava a preparar‑me para ir para a cama.

‑ Telefonei‑te porque me tinhas dito que o podia fazer.

‑ Dizem‑se tantas coisas... Não devias tomar‑me assim à letra.

‑ Então, não deveria ter‑te telefonado?

‑ Não digo isso, digo apenas que, realmente, não era um convite para me telefonares. Era apenas uma frase gentil, nada mais.

Renzo ficou por um momento calado e, depois, inquiriu:

‑Já estás na cama?

‑Não, ainda não.

Novo silêncio. De súbito, Renzo disse:

‑Vou a tua casa.

‑ Nem é bom falar nisso, já estou despida.

‑ Bem, então quer dizer que dormiremos juntos.

‑ Dormir juntos? Mas és doido?

‑ Sou doido, porquê?

‑ Estamos separados há três meses, eu não te amo e tu não me amas, não temos já quaisquer relações e queres que durmamos juntos?

- Falei em dormirmos juntos e mais nada.

‑ Que quer isso dizer?

‑ Quer dizer que eu irei, deitar‑me‑ei a teu lado e adormecerei imediatamente. Que diferença te faz?

Ficaram em silêncio. Depois, a mulher objectou:

- Que disparate! Além do mais, estou a morrer de sono e nem sequer poderia ir abrir‑te a porta. Dentro de cinco minutos já estarei a dormir.

Renzo respondeu:

‑ Façamos assim. Tu pões as chaves no vaso do lado direito, fora do teu portão. Eu chego, entro e deito‑me a teu lado sem te despertar. De manhã, também sem te acordar, retiro‑me. Pode ser?

‑ Não sei que prazer podes experimentar nisso.

‑ Não te preocupes comigo. Diz‑me só se aceitas.

‑ Está bem. Mas previno‑te de que me encontrarás a dormir e de que por nenhum motivo me deves acordar. Entendido?

‑ Está bem. Até já.

Renzo pousou o auscultador; acendeu outro cigarro, rodou o botão da telefonia e, sentado na borda da cama com as pernas cruzadas, começou a fumar, ouvindo música. Quando acabou o cigarro, desligou a telefonia, levantou‑se e foi para a casa de banho. Esta era comprida e estreita, com uma janela ao fundo, através da qual se via a fachada do prédio, de um azul químico, com muitas varandas de balaústres prateados. Renzo abriu um pequenino armário envernizado e começou a meter numa bolsa de couro tudo aquilo de que precisava para a noite: pente, escova, pasta dentífrica, escova dos dentes, máquina de barbear eléctrica. Tirou do cabide o pijama, enrolou‑o e arremessou‑o com força para dentro da bolsa, puxando depois o fecho. Com a bolsa cheia debaixo do braço, dirigiu‑se para o vestíbulo e baixou a alavanca do quadro da electricidade. Por uns instantes, ficou tudo às escuras. Renzo abriu a porta e saiu para o patamar.

Enquanto o elevador, com um zumbido monótono, ia descendo os andares, Renzo, como habitualmente, leu com muita atenção as instruções para a sua serventia: "Fechar bem as portas; quem usa o elevador fá‑lo por sua conta e risco", etc., e também algumas palavras obscenas que, com qualquer ponta, alguém tinha gravado na madeira encerada. O elevador parou, Renzo atravessou o átrio e saiu para a rua. Sob os prédios cheios de varandas, e com todas as janelas apagadas, os automóveis pareciam fulminados por paralisia, uns estacionados transversalmente, outros em espinha de peixe, outros ainda ao contrário. Não se via ninguém, a rua estava quase às escuras. Renzo, antes de entrar no seu carro, consultou o relógio de pulso e viu que era uma hora e um quarto.

Do seu bairro ao da mulher podia ir‑se sem passar pelo centro da cidade: uma viagem através de ruas e ruas todas iguais, com os mesmos prédios cheios de varandas, as mesmas filas de carros abandonados desordenadamente ao longo dos passeios. Renzo começou a percorrer as ruas apressadamente, com metódica velocidade, descrevendo as curvas sem afrouxar, numa chiadeira que desgastava os pneus. Chegou, finalmente, à praça onde habitava a mulher, uma espécie de poço de cimento com cinco altíssimos edificios inclinados para um minúsculo lago de asfalto. Cada um destes edificios tinha em frente do portão um pequeno jardim, com dois vasos de gerânios à entrada. Renzo encontrou as chaves, entrou no átrio e foi directamente à porta número 3 do rés‑do‑chão. A porta abriu‑se docemente e ele introduziu‑se no apartamento às escuras, ficando depois por um instante quieto, com a respiração suspensa.

O silêncio era profundo; todavia, a escuridão parecia animada por uma presença, invisível mas viva. Renzo baixou‑se, tirou os sapatos e, às escuras, dirigiu‑se para o quarto. O apartamento era em tudo semelhante ao seu, como sabia por lá ter estado algumas vezes para discutir com a mulher a separação; a única diferença era que ele vivia num quinto andar e a mulher num rés‑do‑chão. A porta do quarto encontrava‑se entreaberta; Renzo entrou e ficou à escuta: uma respiração profunda e irregular fez‑lhe compreender que sua mulher estava em casa e dormia. Tinha presente que a cama, uma grande cama quase matrimonial, se encontrava encostada à parede da direita: faltava saber de que lado dormia a mulher. Lentamente, com a mão estendida no vácuo, Renzo avançou às cegas até bater com a canela na borda da cama. Depois inclinou‑se na direcção da almofada e, por fim, sentiu na palma da mão um prurido de cabelos. Concluiu, assim, que a mulher dormia do lado da porta. Na ponta dos pés, Renzo contornou a cama, pousou a bolsa no chão e tirou o pijama e o frasco do sonífero; depois despiu‑se, vestiu o pijama e, metendo o frasco num dos bolsos, levantou os cobertores e introduziu‑se na cama. Durante algum tempo deixou‑se ficar quieto, de costas, estendido na borda da cama, contendo a respiração e tendo o ouvido à escuta. A respiração da mulher era roufenha, violenta, quase irada, ou seja, a respiração de uma mulher jovem que todas as noites, àvidamente e fàcilmente, se restabelece das fadigas do dia. Em que posição dormia? Renzo estendeu uma mão até encontrar o corpo da mulher: estava enrolada sobre si mesma, com o queixo contra os joelhos. De súbito, porém, ouviu‑a soltar um suspiro ruidoso, impaciente, angustioso. Depois, com uma violência quase furiosa, voltou‑se e atirou‑se para cima dele, abraçando‑o com força.

Agora estava sobre ele, com uma perna sobre as suas pernas, um braço atravessado na cintura e a cabeça apoiada no peito. Mas a respiração, regressada ao ritmo habitual, excluía qualquer conhecimento. Dormia; e a afectuosidade desesperada e violenta do abraço era automática. Renzo passou um braço pelos ombros dela e dobrou o outro sob a sua própria nuca.

Permaneceu quieto durante longo tempo, ouvindo a respiração da mulher, ruidosa, infantil, fatigada e, de certo modo, dolorosa. De vez em quando ouvia‑a suspirar profundamente, ou sentia‑a chegar‑se mais a ele; mas os suspiros e os movimentos eram mecânicos, sem intenções. Decorreu assim, talvez, uma hora; depois, Renzo compreendeu que, se queria dormir, devia mudar de posição: um dos pés da mulher pisava‑lhe o tornozelo, de viés, exactamente sobre o osso; a perna que estava sobre as suas pernas acabara por lhe provocar um espasmo fixo e agudo. E a cabeça oprimia‑lhe o peito, pesada como se fosse de chumbo.

Mas quando já estava a desembaraçar‑se da mulher, lentamente, sem a despertar, ela, com a mesma violência cega com que se abraçara a ele, desenvencilhou‑se do abraço e atirou‑se para o lado oposto da cama; ficou, porém, com as costas contra as dele. Este movimento, aparentemente tão deliberado, também tinha sido automático e inconsciente. Ouviu‑a, na nova posição, suspirar angustiosamente duas ou três vezes e, algum tempo depois, retomar a habitual respiração irregular e violenta.

A mulher permaneceu naquela posição oblíqua talvez uma hora; e Renzo, finalmente, adormeceu, mas com um sono leve e lúcido, durante o qual a presença da mulher a seu lado continuava a preocupá‑lo. Depois, inesperadamente, novo e furioso movimento debaixo dos cobertores, e, desta vez, o abraço foi muito mais íntimo do que o primeiro: corpo contra corpo, o rosto no pescoço de Renzo, as mãos juntas sobre o seu peito. Ouviu‑a resmungar uma palavra áspera e rabugenta, semelhante ao seu sono: straccio, ou strazio; depois, estranhamente, mecânicamente, ela procurou‑lhe a mão e apertou‑lha. Mas também neste contacto, como no abraço, Renzo advertiu a ausência de qualquer consciência, o automatismo. De resto, esta atitude assim íntima também durou pouco. Subitamente, um novo e furioso salto projectou para longe dele a mulher, que, desta vez, ficou de costas, com a cabeça afundada no travesseiro, junto à sua. A mão que apertava a dele continuou inerte e, por fim, resvalou‑lhe dos dedos.

Renzo, neste momento, olhou para o mostrador fosforescente do relógio e viu que já eram 4 horas. Em duas horas, a mulher havia‑o abraçado duas vezes e duas vezes se afastara dele: tudo coisas que, estando despertos, não se verificavam já há muito tempo. Mas também era necessário dormir. Renzo tirou do bolso o frasco do sonífero, abriu a tampa, pôs três comprimidos na palma da mão e engoliu‑os. A mulher deu dois suspiros seguidos, como se soluçasse, e procurou de novo a mão dele. Renzo fechou os olhos.

Acordou quatro horas depois e verificou que o lugar junto do seu, na cama, estava vazio. Mas da casa de banho contígua chegava o rumor de um duche. O quarto estava ainda às escuras, mas através das ripas da persiana entravam já alguns fios de luz. Aos pés da cama, numa poltrona, as roupas da mulher estavam em grande desordem, num monte, como as tinha deixado na noite anterior: a saia e o casaco, por baixo, a lingerie e as meias, por cima. A roupa dele estava espalhada no chão, sobre o tapete.

Renzo saltou da cama e começou a vestir‑se apressadamente. O rumor do duche, agora, tinha cessado e, no silêncio, ouviam‑se, através das paredes pouco espessas, os ruídos dos apartamentos vizinhos: choros de crianças, campainhas de telefones, vozes de telefonias, discussões e gritos. Renzo aproximou‑se da porta da casa de banho e bateu duas vezes:

‑ Não posso abrir ‑ gritou de dentro a mulher.

‑Queria despedir‑me de ti.

‑ Adeus, adeus.

‑Obrigado por esta noite.

‑ Nada tens que agradecer. Mas peço‑te...

‑ Diz.

‑ Peço‑te que não me telefones mais.

Renzo fitou por um momento a porta fechada; depois, sacudindo enèrgicamente a cabeça, saiu do apartamento. No átrio, embateu num homem de blusão azul que transportava às costas um saco cheio de lixo. A pequena praça, circundada por prédios altos e estreitos, estava atulhada de autocarros vazios, que ali faziam bicha; os revisores e os motoristas, em grupo, conversavam no meio da praça. Renzo entrou no seu carro e, olhando‑se ao espelho do pára‑brisas, compôs o melhor possível os cabelos, ainda desgrenhados pela cama. Em seguida ligou o motor e partiu.

 

           O POETA E O MÉDICO

 

O encontro era junto do obelisco do Foro Itálico. Chovera na véspera; o céu era de um azul cru e novo, como de verniz fresco; nuvens de algodão cinzento, de orlas violáceas, cheias e pesadas, corriam impelidas pelo vento, que soprava fortemente; o sol brilhante fazia parecer negra a vegetação que cobria Monte Mário, atrás da cúspide de ouro‑claro do obelisco. Giovanni parou o carro perto do obelisco, puxou o travão de mão e saiu; em seguida começou a desatar os laços e a desenfiar os ganchos da capota. Estava um calor sufocante, que talvez pressagiasse um novo temporal; e ele com o sangue a rumorejar‑lhe de bem‑estar nas veias, sentia‑se feliz. Depressa chegaria a rapariga, iriam até ao campo, até qualquer lugar bonito e verdejante, e ficariam aí até à noite.

Mas os ganchos não se deixavam desengatar; a não ser que, simultâneamente alguém puxasse para trás a capota. Enquanto se afadigava inutilmente nesta manobra, ouviu uma voz propor‑lhe:

‑ Quer que o ajude?

Voltou‑se e viu um jovem da sua idade, magro e moreno, de rosto delicado e miúdo, que o fixava com olhos cintilantes, sob espessas sobrancelhas escuras. Antes de ter tempo de agradecer ao recém‑chegado, já este agarrara nos puxadores da capota Os ganchos e os laços foram desatados num instante, a capota descida. Giovanni subiu de novo para o carro e ofereceu um cigarro ao desconhecido. Esperava que o aceitasse e se fosse embora, mas não aconteceu assim. Depois de ter acendido o cigarro no seu, apertando‑lhe a mão com duas mãos que ‑ como Giovanni notou com surpresa ‑ tremiam visivelmente, o jovem apoiou um braço na porta do automóvel; depois levou o cigarro à boca, aspirou o fumo, expeliu‑o pelas narinas e cuspiu uma partícula de tabaco que ficara agarrada nos lábios; e, por fim, com extravagante banalidade, disse inesperadamente:

‑ Belo dia, não é verdade?

Giovanni notou com espanto que não lhe desagradava que o jovem se detivesse e lhe falasse; pelo contrário. Atribuiu esta disposição de espírito à felicidade, e respondeu prontamente:

‑ Sim, realmente está estupendo. ‑ Ficou um momento calado e depois, estranhamente, acrescentou: ‑ Se não fosse este vento, seria um dia magnífico.

O jovem, olhando distante, inquiriu:

‑ Num dia como este é agradável ir até ao campo, não lhe parece?

Tinha uma voz doce, mas de uma doçura tristonha e quase ameaçadora; e ‑ como Giovanni notou ‑ caía de vez em quando numa ligeira tartamudez, não sem certa graça. Giovanni, sentindo subitamente simpatia por ele, respondeu com convicção:

‑ Sim, num dia como este é realmente agradável ir até ao campo.

O outro disse que sim com a cabeça e, por alguns momentos, fumou em silêncio. Depois prosseguiu:

‑ Nestes dias gostaria de sair da cidade, entrar num campo e estender‑me no meio do trigo. Entre as espigas altas estamos como numa alcova verde que tenha por cama as espigas, por paredes as espigas e por tecto o céu azul. Pega‑se numa espiga, esmaga‑se o grão, tenro e cheio de leite, com os dentes, suga‑se o leite e olha‑se para o ar, para o Sol. E bonito, não?

Giovanni disse para consigo que o jovem falava bem, mesmo demasiadamente bem, de uma forma que poderia até parecer‑lhe irritante se, invencivelmente, não tivesse sentido por ele aquele inexplicável sentimento de simpatia. A fim de reconduzir a conversa para um tom menos lírico, perguntou:

‑ Se acha isso tão agradável, porque não vai até ao campo?

O outro aspirou o fumo do cigarro e respondeu:

‑Iria da melhor vontade.

‑ E então, repito, porque não vai?

‑ Não quero ir só.

Giovanni sugeriu com cordialidade:

‑ Pois bem, precisa de encontrar uma rapariga. Que lhe falta? O jovem fez um gesto estranho, quase convulso, com a mão e a cabeça, e não disse nada. Giovanni insistiu:

‑ Eu, por exemplo, a rapariga já a encontrei. Neste momento estou à espera dela. ‑ Tinha falado assim, pensou, para dar a entender ao jovem que depressa o teria de deixar. Mas não só por isto: também, talvez, por vanglória e íntima satisfação.

O jovem, voltando‑se repentinamente, agarrou com as duas mãos na porta do carro e fixou Giovanni com olhos brilhantes. Giovanni melindrou‑se subitamente:

‑ Mas que tem o senhor, para me olhar dessa maneira?

Viu o outro confundir‑se imediatamente, de forma excessiva, precipitada:

‑ Desculpe, faço sempre isto com todos, olho‑os com insistência, desculpe.

‑Oh!, nada, não tem importância. É sempre incómodo olharem‑nos fixamente.

O jovem não disse nada; mas não se mexeu. Giovanni ulhou para o relógio do tablier: a rapariga já deveria ter chegado. ficou surpreendido ao notar que, no fundo, este atraso não Lhe desagradava totalmente. Indagou:

‑Você é estudante?

‑ Sim.

‑ De que Faculdade?

‑ De Letras.

‑ Eu estudo Medicina.

‑ Dois cursos muito diferentes ‑ observou o outro com uma expressão sombria e pensativa.

Giovanni disse:

‑ Pelo modo como falou do campo, devia ter compreendido que o senhor estudava Letras.

‑ Que modo?

‑ Assim... ‑ Giovanni reparou subitamente que corava, sem saber por qual sensação de pudor ‑ assim... literário, poético.

‑ De facto - disse o outro secamente ‑, escrevo poesias, algumas vezes.

Giovanni replicou, conciliador:

‑ Eu também gosto de poesia. Leio‑a frequentemente. Procuro estar actualizado, se bem que tenha pouco tempo, sobretudo quando se avizinha a época dos exames.

Perguntou a si mesmo se devia nomear os dois ou três poetas que preferia; mas o receio de ser mal julgado impediu‑lho. Um instante depois com uma voz doce, triste e meiga, o jovem inquiriu:

‑Agrada‑lhe tanto a poesia?

‑Sim, talvez a compreenda mal mas certos poetas agradam‑me deveras. Mostram‑me o sentido da vida, das coisas.

Giovanni notou que tropeçava nas palavras e calou‑se de novo, embaraçado, fitando o seu interlocutor de baixo para cima e quase receando vê‑lo sorrir de compaixão. Mas o outro permanecera sério, não parecendo, de facto, inclinado a escarnecer dele.

Pelo contrário, perguntou:

‑Qual o poeta de que gosta mais, entre os modernos?

Apanhado de surpresa, Giovanni verificou que não se lembrava do nome de nenhum poeta. Depois, por acaso, aflorou‑lhe um à memória:

‑ Por exemplo, li algumas poesias de García Lorca e pareceram‑me muito bonitas.

‑ Quais?

Giovanni experimentava agora uma timidez quase insuperável. Finalmente, disse:

‑Agora, assim, não me recordo dos títulos, mas recordo que me agradaram muito; que as li e reli. Ah!, sim, uma que fala da morte de um toureiro.

‑ Ah, e as outras?

‑ Não me recordo.

O jovem inquiriu com voz excessivamente doce:

‑Tem muitos livros, o senhor?

‑Como lhe disse, procuro andar actualizado.

‑Tem uma biblioteca?

‑Tenho duas estantes bastante grandes. Numa guardo os livros de medicina. Na outra, os livros, digamos assim, de passatempo.

‑ Quais livros?

‑Não sei, livros de poesia, e, também, romances, contos, ensaios, de tudo um pouco. Mas infelizmente disponho de pouco tempo para ler.

‑ Quando lê?

‑ Bem... à noite, se fico em casa e se não tenho nada de melhor para fazer. ‑ Compreendeu que tinha proferido uma frase incauta, que podia ser interpretada como um indício de escasso interesse pela leitura, e calou‑se, mortificado. Mas o outro parecia não só não ter notado como nem sequer ouvido aquela frase desastrada. Corrigiu, então, pressurosamente: ‑ Quero dizer: se esta rapariga de quem estou à espera não me telefona para sairmos. Ao fim e ao cabo, a vida, não lhe parece?, é mais importante do que os livros.

‑ Nesse caso, a rapariga seria a vida?

‑ Em certo sentido, sim.

‑Saem muitas vezes, à noite?

‑ Quando se oferece a oportunidade.

‑E que fazem?

‑ A maior parte das vezes, vamos ao cinema.

‑Gosta de cinema?

‑ Sim, gosto.

‑Que filmes prefere?

‑ Não lhe sei dizer... os bons filmes.

‑No entanto, alguns filmes agradar‑Lhe‑ão mais do que outros.

‑ Isso sim. Por exemplo, os filmes franceses.

‑ Quais?

‑Agora não me recordo.

‑ E entre os realizadores, quais prefere?

‑ Realizadores de que país?

‑Não sei, realizadores italianos, franceses, alemães, japoneses, americanos.

Giovanni notou subitamente que o jovem falava de uma maneira cada vez mais abstracta e mecânica, com a indiferença do robot ao qual se tenha avariado o mecanismo. Depois viu‑o separar‑se do carro, perguntando: "E os realizadores russos, agradam‑lhe?", e, em seguida, sem aguardar resposta, afastar‑se.

Giovanni ergueu os olhos e espreitou no espelho do pára‑brisas. O jovem caminhava sobre as lajes de mármore branco, na direcção da ponte; naquele momento, reconhecível mesmo ao longe por causa da saia escocesa, verde, preta e encarnada, vinha em sentido contrário a rapariga que Giovanni esperava. Tudo aconteceu num minuto, de tal modo que Giovanni nem pensou sequer em levantar‑se e intervir. O jovem e a rapariga encontraram‑se e falaram durante alguns segundos; depois, o jovem agarrou a rapariga pelo pulso e tentou arrastá‑la. Ela, porém, reagiu violentamente, libertando‑se com um puxão. O jovem levantou uma mão e esbofeteou‑a numa das faces. A rapariga pôs‑se a correr na direcção do carro. O jovem, por sua vez, também começou a correr, mas na direcção oposta.

Ao chegar ao carro, ela abriu a porta e sentou‑se, ofegante e perturbada:

‑ Como está?

Giovanni olhou‑a de soslaio: na face pálida de mulher morena permanecia a mancha encarnada da bofetada, tendo quase a forma de uma mão aberta. Em silêncio, baixou o travão de mão, ligou o motor e, cautelosamente, começou a fazer marcha atrás no largo:

‑ Estou bem.

Viu‑a acomodar‑se melhor no assento, espalhando à sua volta as pregas da saia, enquanto o carro partia.

‑ Onde vamos?

‑Vamos dar uma volta. Vamos estender‑nos num campo de trigo, entre as espigas.

 

             A CARA INCHADA

 

Caminharam em silêncio sobre a margem ervosa de um longo lanço da Via Appia, de um portão ao outro, de encontro aos ciprestes e pinheiros que o céu nublado pelo siroco tornava desbotados e cobertos de pó. A erva queimada pelo calor esfarelava‑se sob os pés; os papéis, os boiões e osjornais dos piqueniques cobriam o chão onde havia a sombra amena de uma grande árvore ou a presença pitoresca de uma ruína. Era a hora mais quente e mais deserta; poucos automóveis passavam, saltando sobre os grandes seixos do pavimento romano. Lívio, olhando de soslaio para a mulher, disse de súbito:

‑ Mas que tens? Estás com a cara inchada como se tivesses dores de dentes...

Era verdade: a face redonda e graciosa da mulher tinha qualquer coisa de inchado, ou, antes, de congestionado e de tumefacto; e não apenas no relevo, mas também na cor morbosamente viva e densa.

‑ Não tenho nada ‑ respondeu ela com os dentes cerrados.

‑Que estás tu a pensar?

Mas, entretanto, chegaram junto do portão rústico da vivenda onde habitava a artista e do pequeno muro com a espessa sebe de roseiras trepadoras, de pequenas flores amarelas. Lívio disse:

‑É aqui - e avançou por um campo dentro, ao longo do muro da vedação. Era um terreno abandonado, com montes de imundície espalhados e que deviam estar ainda frescos porque, com o calor, exalavam um cheiro nauseabundo, forte e ácido. Ao longe, sob o céu escuro, para além da margem de um despenhadeiro, via‑se, iluminada por uma luz lívida, uma faixa clara de prédios de cimento. Lívio seguiu o muro até este fazer um ângulo recto e, aqui, parou, afastou os ramos das roseiras, fazendo um buraco para a objectiva, e controlou a visibilidade; depois disse: ‑ Daqui vê‑se o largo em frente da vivenda. Deve sair, forçosamente. Sairá.

‑E se não saísse?

‑ Deve sair.

Lívio tirou de um dos montes de lixo um velho bidão de gasolina, voltou‑o e sentou‑se em cima dele, tendo a máquina fotográfica sobre os joelhos e a face no buraco, entre duas varas de vedação. A mulher, atrás dele, perguntou:

‑Quantas vezes já vieste aqui?

‑ Esta é a quinta vez.

‑Tens assim tanto interesse, eh!, nesta fotografia? Lívio notou qualquer coisa de maligno e de provocador na pergunta, mas não lhe deu importância e, sem tirar o rosto do buraco, respondeu:

‑ Tenho interesse porque se pode vender muito bem.

‑ Ou é por outro motivo?

Lá estava o largo coberto de areia, ao fundo do jardim. Lívio podia ver a fachada da vivenda, pintada de encarnado, os vasos de limoeiros alinhados ao longo do passeio, a porta com ombreiras de mármore branco, sob um alpendre de telhas. Um pouco à direita da porta divisava‑se a dianteira de um enorme carro americano, preto e com cromagens cintilantes, muito semelhante a um carro fúnebre. Na luz mortiça do siroco, a areia miúda do largo parecia animada por um movimento formigante que fazia tonturas. Lívio desviou a cabeça do buraco e perguntou com súbíta irritação:

‑Mas que outro motivo?

A mulher, agora, andava em volta do monte de lixo, onde ele estava sentado, com a agitação febril e ameaçadora de uma fera na jaula. Depois viu‑a voltar‑se de chofre:

‑Que julgas tu, que não tenha percebido tudo?

‑Mas o quê?

‑Que lhe queres tirar uma fotografia para teres um pretexto de ir ter com ela, de a passares a acompanhar e, depois, pouco a pouco, de te tornares o seu amante.

Lívio ficou de tal forma estupefacto que, durante algum tempo, não encontrou nada para dizer. Por fim, lentamente, indagou:

‑Tu pensas isso?

‑ Decerto ‑ respondeu ela em tom indeciso mas obstinado, como se também tivesse reparado no absurdo da acusação e, todavia, tivesse decidido sustentá‑la a todo o custo.

‑ Pensas realmente que eu, Lívio Millefiorini, reles fotógrafo ou um pobre diabo qualquer, aspire a tornar‑me o amante de uma artista famosa em todo o mundo, fabulosamente rica e, ainda por cima, bem fornecida de marido e de aspirante a marido!

O rosto redondo e infantil da mulher, mais inchado do que nunca, exprimia simultâneamente indecisão e obstinação. Por fim, disse com insolência:

‑ Pois bem, sim, penso isso. ‑ Deu um pontapé num boião e acrescentou: ‑ Que julgas tu, que não notei hoje a tua desilusão quando te disse que queria acompanhar‑te? E a tua alegria nos outros dias quando te dizia que não iria contigo?

‑ Mas, Lúcia...

‑ Queres ter um pretexto para te encontrares com ela. Tiras‑lhe uma fotografia, telefonas‑lhe e, assim, encontrai‑vos e fazeis amor.

Lívio fitou‑a; em seguida, com inesperada precipitação, olhou pelo buraco: parecera‑Lhe ver qualquer coisa a mexer no largo. Mas não era a artista, eram dois grandes cães‑de‑água, de um branco sujo semelhante ao branco da areia, que, depois de se terem rebolado e mordiscado, dispararam para trás da vivenda, desaparecendo. Lívio voltou‑se de novo e disse com profunda convicção:

‑ És doida. Agora compreendo porque tens hoje a cara inchada. Estás inchada de ciúme.

‑Não, não sou doida. E, além disso, aproveito a ocasião para to dizer: estou farta, farta, farta!

Lívio perguntou a si mesmo se, enquanto esperava pela artista que não se via, não lhe conviria tirar qualquer fotografia interessante. Subitamente, notou sobre o degrau mais alto, diante da porta, qualquer coisa que reluzia. Assestou a objectiva e viu que eram dois copos e uma garrafa de uísque. Quem sabe, talvez a estrela e o marido se tivessem sentado naquele degrau, na noite anterior, para beber e contemplar a lua cheia que despontava atrás dos ciprestes da Via Appia. "Um copo de uísque à claridade da Lua, sentados num simples degrau: eis o título", pensou Lívio, disparando a máquina e carregando‑a logo em seguida. Atrás de si, ouviu a mulher repetir:

‑Sim, estou mortalmente farta.

‑ Mas farta de quê?

‑ De tudo e, em primeiro lugar, de ti. Se ao menos gostasses de mim... Mas não gostas; há apenas dois anos que nos casámos e já corres atrás de todas as mulheres.

‑ Mas quando é que foi isso?

‑ Corres atrás de todas as mulheres; e, então, certas coisas que, se tu me amasses, era capaz de aceitar, tornam‑se‑me insuportáveis.

‑ Mas quais coisas?

‑Quais coisas? Digo‑tas todas, olha: o quarto mobilado com a janela para o pátio, sem entrada independente e com a serventia de cozinha. Os autocarros, os eléctricos. As refeições em pé nos selfservices. Os cinemas de reposições. A televisão na leitaria. Queres mais, olha, olha.

Lívio olhou; havia qualquer coisa de fascinante na sua voz desesperada. Direita, em pé sobre um montão de imundície, a mulher tinha levantado um pouco a saia e mostrava‑lhe o folho remendado da combinação e as meias passajadas sobre as pernas magras:

‑Olha: a minha roupa interior está em tiras, trago meias que são teias de aranha, sapatos cambados, este vestido tem dois anos. E o menino está envolvido em trapos e tem por berço uma gaveta. Não te basta?

Lívio franziu as sobrancelhas e tentou raciocinar.

‑Comecei há ainda pouco tempo. Gastei todo o dinheiro para equipar o estúdio. Agora começarei a ganhar.

Mas a mulher já não o escutava:

‑ E depois, devo dizer‑te, o teu ofício não me agrada.

Lívio meteu de novo a cabeça no buraco, entre as roseiras. Agora, a porta de vidro, sob o alpendre de telhas, tinha‑se aberto e aparecera um criado em casaco branco. O criado baixou‑se, recolheu a garrafa do uísque, os dois copos e desapareceu. Lívio tirou mais esta fotografia, carregou de novo a máquina, e depois, voltando‑se, disse com intensa irritação:

‑ Não te agrada o meu ofício? Mas porquê? Não é um ofício como outro qualquer?

‑ Não ‑ gritou ela raivosamente ‑, não é um ofício como outro qualquer. É um ofício desprezível. Passas o dia a importunar pessoas que não te fizeram mal nenhum e que só têm culpa de serem conhecidas. Persegue‑las, enfureces‑te contra elas, não as deixas viver. Não sabes amar e espias o amor daqueles que amam, não vives e procuras retratar a vida daqueles que vivem, és um desgraçado sem vintém e fotografas o luxo e os divertimentos daqueles que têm dinheiro. E digo‑te até que - quando acontecem certas coisas, como na outra noite à porta daquele night‑club, onde aquele actor te correu a pontapés ‑ me envergonho de ti. Porque não reagiste, procuraste apenas fotografá‑lo o mais que podias, e, se te tivesse sido possível, talvez até tivesses fotografado o seu pé no momento em que atingia o teu rabo; e terias ficado feliz. ‑ Rindo‑se desceu do montão de lixo e parou a pouca distância. Lívio deitou um olhar ao buraco e, vendo então que u largo continuava deserto, voltou‑se e gritou:

‑ Arrepender‑te‑ás do que me estás a dizer!

‑ Chegou a hora da verdade ‑ retorquiu ela um pouco enfàticamente. ‑ Estou farta e farta! Farta das tuas fotografias que ninguém compra, farta de te ouvir falar das tuas miseráveis proezas, farta de esperar por dias melhores. Fotografarias tudo, mesmo a nossa intimidade, se isso te pudesse ser útil. Ou, antes, já o fizeste.

- Mas que dizes?...

‑ Sim, já o fizeste, fotografaste‑me no mar em bikini, em pé diante de uma cabina, numa praia deserta; e a fotografia foi publicada com esta legenda: "Maio chuvoso. Mas já há quem pense em banhos. "

Lívio encolheu os ombros:

‑ Mas tu prestaste‑te de bom grado.

‑ Sim, e apanhei uma constipação.

‑ Mas, em resumo, que queres tu de mim?

Viu‑a ficar momentâneamente desconcertada; depois disse:

- Quero que renuncies a esta estúpida emboscada e que nos retiremos daqui.

‑Continuas a estar convencida de que me quero tornar amante da artista?

‑ Continuo.

‑ Pois bem, não quero dar‑me por vencido. Decidi tirar‑Lhe a fotografia e tirá‑la‑ei.

Enquanto falava, tinha‑se distraído. Depois voltou‑se e viu, através do emaranhado das roseiras, que lá em baixo, no largo em frente da vivenda, alguma coisa estava a suceder: a artista, em pessoa, abria a porta de vidro debaixo do alpendre e aparecia no limiar. Lívio reconheceu os cabelos cor de palha, o rosto cheio e polvilhado, os olhos pintados, a grande boca encarnada, o célebre peito opulento, que saía do corpete com duas intumescências salientes. A artista levantou a bolsa até à altura do peito, remexeu nela, tirou um par de óculos escuros e pô‑los. Em seguida, levantou um braço e gritou qualquer coisa. De súbito, uma sombra correu através da objectiva: era o motorista. A artista olhou para baixo e, depois, dirigiu‑se para o carro. Estava vestida de modo ridículo, como uma boneca, com um corpete sucinto cor de turquesa e uma saia de roda, às flores, suspensa sobre as pernas, de uma alvura de gesso.

Ou era naquele momento ou nunca mais, pensou Lívio. Levantou a máquina e começou a seguir a artista, que caminhava através do largo, pronto a disparar a objectiva no instante em que ela subisse para o automóvel. Mas, inesperadamente, desabou sobre ele uma coisa informe e maciça que o fez cair do bidão. Quando se pôs em pé, viu a mulher a fugir pelo campo na direcção da Via Appia, segurando na mão a máquina fotográfica.

Durante algum tempo ficou imóvel, com os olhos rasos de lágrimas, furioso e desiludido. Depois, resignado, encaminhou‑se lentamente na direcção da estrada. Teve, porém, de parar: justamente naquele momento, o grande carro preto da artista passava‑lhe debaixo do nariz; outra fotografia que a mulher lhe tinha impedido de obter. O carro afastou‑se; ele ergueu os olhos e viu a mulher vir ao seu encontro, estendendo‑Lhe a máquina fotográfica. Já não tinha o rosto inchado nem afogueado; tinha ficado aliviada; e sorria‑Lhe. Aproximando‑se, disse:

‑ Tira‑me antes a mim a fotografia. Há tanto que ma prometeste e nunca te decides.

 

             ERA UMA AVENTURA

 

A mulher havia‑Lhe telefonado várias vezes com uma insistência patética e, ao mesmo tempo, reservada: um misto de súplica urgente e de dignidade desdenhosa que, por fim, tinha despertado a sua curiosidade. Pensou que podia ser uma aventura ou qualquer coisa de insólito e de extravagante; e que, em ambos os casos, valia a pena tentar. Assim, ao quinto telefonema, disse:

‑ Está bem. Onde quer que nos encontremos?

‑ O senhor sabe onde é o bar‑restaurante à Flor de Lótus?

‑ Aquele que fica no E. U. R. ?

‑ Sim, exactamente esse. Eu estarei no bar com uma revista na mão. Sou morena, levarei um vestido preto.

‑ Preto, porquê?

‑ Ando de luto por um parente.

No dia fixado, quando chegou junto da colina escalvada onde, solitário, se erguia o restaurante à Flor de Lótus, Lorenzo afrouxou a marcha do carro e olhou para o alto: pálida e redonda como uma hóstia, uma enorme lua cheia estava suspensa atrás do perfil escuro de uma espécie de pagode tendo por fundo o céu esverdeado do crepúsculo. O pagode tinha já as janelas todas iluminadas por uma luz amarela; ao longo da estrada que subia a colina em espiral viam‑se, como pontos, candeeiros de luz encarnada. Parecia uma estampa japonesa, mas das mais comerciais; e o contraste com a fila de arranha‑céus azulados do E. U. R. , ali em frente, era deveras irritante. Lorenzo carregou no acelerador; o carro percorreu rapidamente a subida e foi parar num largo, no meio de outros carros, em frente do pagode.

Um guarda‑vento com flores de lótus pintadas de vermelho e ouro impedia o ingresso. Lorenzo contornou o guarda‑vento e, logo que os seus olhos se habituaram à penumbra, viu a sala baixa, com o tecto de traves encarnadas, as mesas de madeira preta lacada, as cadeiras de bambu, os candeeiros com figuras pintadas. Nas mesas estavam sentados muitos pares, na maioria raparigas e jovens de modesta condição, que talvez tivessem sido atraídos pelo exotismo tosco do lugar. Outros pares moviam‑se, lentos e absortos, no centro da sala, ao ritmo de um juke‑box. Sob uma escada que dava para o andar de cima, com uma balaustrada também em estilo chinês, via‑se o balcão do bar, com a máquina do café cromada e filas de garrafas. Num dos bancos altos estava sentada uma mulher que tinha na mão, bem visível contra a saia preta, uma revista enrolada. Lorenzo aproximou‑se e, antes de lhe falar, observou‑a com atenção.

De perto via‑se que era muito nova e não desprovida de uma beleza rústica. Tinha um rosto redondo, de expressão nobre e autoritária, com cabelos bastos e levantados, olhos um pouco altivos, um pequeno nariz aquilino que parecia o bico de uma ave de rapina, boca grande e orgulhosa. O bâton dos lábios, mal aplicado, sobressaía como uma ferida na palidez do rosto. Os olhos escuros estavam, como era de moda, pintados de negro em volta. Lorenzo disse mecânicamente para consigo:

‑ É uma aventura. ‑ Depois, estendendo a mão, apresentou‑se: ‑ Boa noite. Chamo‑me Lorenzo.

‑ E eu chamo‑me Assunta.

Lorenzo, segurando‑a por um braço e indicando uma mesa isolada, disse com gentileza:

‑ Vamos para ali?

Viu‑a descer imediatamente do seu banco, obediente, notando que, embora baixa, era graciosa e bem feita, e pensou de novo com agradável convicção: "Sim, é mesmo uma aventura. " Sentaram‑se nas incómodas cadeiras de bambu, à luz sanguínea de um candeeiro com um quebra‑luz de papel. Logo que o criado tomou nota do que pediram e se afastou, a mulher, ressentida, disse:

‑ Sabe que já o esperava há meia hora?

Tinha uma voz semelhante à sua pessoa: rústica e agressiva. Lorenzo sorriu e respondeu:

‑ Desculpe, atrasei‑me. Mas agora estou à sua inteira disposição até... ‑ consultou o relógio e acrescentou ‑ digamos, pelo menos, duas horas.

As duas cadeiras estavam muito próximas e os seus joelhos tocavam‑se; mas a mulher parecia não dar por isso. Lorenzo pensou de novo que era indubitàvelmente uma aventura, mas, desta vez, quase com uma espécie de saciedade antecipada. A mulher, bruscamente, observou:

‑Antes de tudo, porém, talvez seja melhor que o senhor saiba quem eu sou.

‑ Diga.

- Sou de P. ‑ e nomeou uma pequena cidade próxima de Roma ‑ e estou casada há um ano. Meu sogro era proprietário de terras, tendo morrido o ano passado. Então, meu marido e eu decidimos transferir‑nos para Roma. ‑ Calou‑se por um instante e, depois, continuou um tanto sombriamente: ‑ Estou enamorada de meu marido e nem por todo o ouro do mundo o atraiçoaria. Isto que fique bem claro.

Lorenzo pensou imediatamente e quase com alívio: "Não é uma aventura. Vejamos, então, o que é. " Perguntou depois com curiosidade:

‑ Porque me diz isso?

‑Porque vocês, os rapazes da cidade, têm ideias estranhas acerca das mulheres.

Lorenzo, sorrindo, retorquiu:

‑ Punhamos de parte as apreciações e vamos ao que interessa. Diga‑me em que Lhe posso ser útil.

A mulher indicou a revista que tinha pousado sobre a mesa:

‑ Nesta revista dizem que o senhor é um homem muito mundano.

Ele lançou um olhar à revista. Era uma ilustração especializada em mexericos; numa pequena fotografia via‑se Lorenzo a dançar num local nocturno, entre muitos outros pares. Declarou:

‑ Não sou um homem mundano. Essa revista faz‑me passar por aquilo que não sou.

A mulher pareceu não o ter ouvido:

‑ Meu marido e eu não conhecemos ninguém aqui em Roma. Já que esta revista fala de si como de um homem que conhece muita gente, eu telefonei‑lhe para lhe pedir um favor.

‑ Qual?

‑Apresentar‑me pessoas. Introduzir‑me no seu ambiente.

Lorenzo pensou: "Não é uma aventura, é uma coisa insensata. Mas pode ser divertido. " Nada transpareceu destas suas reflexões no seu rosto imóvel. Para ganhar tempo, inquiriu:

‑ É possível que não conheçam ninguém, mesmo ninguém?

‑ É verdade ‑ respondeu a mulher com ingenuidade. ‑ Aqui, em Roma, não temos nem parentes nem amigos. Estamos sós.

‑ Onde moram?

‑ Moramos nos Parioli, num apartamento bastante espaçoso, com uma enorme sala de estar; mas nunca recebemos ninguém.

‑E que fazem durante o dia?

‑ Nada.

‑Nada? Devem fazer alguma coisa.

‑De manhã, ocupo‑me da casa; tenho uma cozinheira e uma criada. Depois, almoçamos. Após o almoço, dormimos. De tarde, saímos, ou, melhor, saio eu, porque meu marido não gosta de passear. Saio e ando pela cidade.

‑ Só?

‑ Sim, só.

‑ E que faz?

‑ Nada. Percorro as ruas, observo as montras, as pessoas. ; Depois regresso a casa, jantamos e, à noite, ou vamos ao cinema ou vemos televisão.

‑ Mas seu marido tem uma profissão, há‑de conhecer os colegas da profissão.

‑ Meu marido não tem profissão. É proprietário, como seu pai. Uma vez por semana, vai à aldeia e, aí, naturalmente, conhece gente. Mas em Roma não conhece ninguém.

Lorenzo, por fim, como que a concluir o seu interrogatório, perguntou:

‑ E que espécie de pessoas gostaria você de conhecer?

‑ Pessoas simpáticas, com quem se esteja alegre e se passe bem o tempo.

‑ Fazendo o quê?

‑ Bem... as coisas habituais: passear, ir ao cinema, jantar fora, talvez até jogar às cartas. Meu marido gosta de jogar às cartas.

‑ Como é o seu marido?

; ‑ É novo. É um pouco gordo.

! Lorenzo pensou: "Sim, é uma coisa insensata, daquelas que só a mim acontecem. " Disse afàvelmente:

‑ Desculpe, mas um favor como esse que me pede só se faz a uma mulher que se ame, ou a quem se esteja ligado por pro' funda amizade. No nosso caso, por que motivo deveria eu contentá‑la? Não nos amamos, mal nos conhecemos...

Compreendeu que a mulher não tinha previsto uma objecção tão óbvia, porque a viu ficar calada, com os olhos arregalados. Mas continuou, embora com a sensação de dizer disparates:

‑A senhora é para mim uma estranha; com que pretexto deveria eu, como você diz, introduzi‑la no meu ambiente?

A mulher redarguiu inesperadamente:

‑ Desculpe, vê‑se que me enganei.

‑ Que quer dizer com isso?

‑Vendo a sua cara naquela revista, dissera para comigo que era uma pessoa simpática e que me fazia este Favor sem me pedir nada em troca. Mas enganei‑me. Desculpe ‑ e levantou‑se bruscamente.

Lorenzo corrigiu mais uma vez o seu pensamento: "Não é uma coisa insensata. Talvez seja realmente uma aventura. " Um tanto frouxamente, propôs:

‑Espere. Ainda não disse a última palavra. Sente‑se mais um momento para falarmos.

Mas a mulher parecia agora invadida por uma pressa decepcionada e decidida.

‑ Não, não, deixe‑me ir.

Voltou‑lhe as costas e dirigiu‑se para a saída. Lorenzo seguiu‑a. Já na rua, Assunta teve um momento de hesitação, e Lorenzo aproveitou esse facto para a alcançar e lhe dizer:

‑ Ao menos, permita‑me que a acompanhe a casa.

‑ A casa não. Só até à primeira praça de táxis.

‑Mas porquê? Posso muito bem acompanhá‑la até casa.

‑ Ufa!... a casa não.

Mas, entretanto, subira com desenvoltura para o carro e sentara‑se ao lado de Lorenzo, espalhando a sua larga saia sobre as pernas dele. Inesperadamente, enquanto o carro descia a estrada em redor da colina, perguntou:

‑Quem é aquela rapariga que está a dançar consigo, na fotografia? É a sua namorada?

‑Não tenho namorada. É uma rapariga qualquer.

‑ Eu, no entanto ‑ retorquiu a mulher com estranho e imprevisto ciúme ‑, juraria que não é uma rapariga qualquer.

‑Porque pensa isso?

‑ Pelo modo como dança com ela.

‑ Qual modo?

‑ Face contra face.

O carro, entretanto, tinha chegado junto de um grupo de táxis. A mulher disse:

‑Já cá estou. Deixe‑me descer.

E Lorenzo não pôde deixar de parar e abrir a porta. Viu‑a voltar‑se por um instante e acrescentar: "Desculpe mais uma vez", e, em seguida, afastar‑se, altiva e empertigada, na sombra da noite. Ocorreu‑lhe então de novo que, realmente, talvez fosse uma aventura. Mas pareceu‑lhe um pensamento estulto, e corrigiu: "Era uma coisa insensata."

 

             A VIDA É UMA SELVA

 

Depois das manifestações de familiaridade da noite anterior ‑ no local nocturno onde tinha conhecido as duas raparigas ‑. a voz que estava ao telefone pareceu a Girolamo, inexplicàvelmente, reticente e quase hostil:

‑ Almoçar? Quer que vamos almoçar fora com este calor '

‑ Mas, ontem à noite, tínhamos combinado que esta manhã iríamos almoçar juntos.

‑ Dizem‑se tantas coisas à noite, depois de se ter bebido um pouco...

‑ Realmente, se se recorda, foi você mesma a recomendar‑me que lhe telefonasse para combinarmos o almoço.

‑ Fui eu? Vê‑se logo que estava embriagada.

- Em resumo, que quer fazer?

‑ Espere um momento. ‑ Girolamo ouviu os saltos da rapariga a afastarem‑se no pavimento e, depois, sentiu o rumor de uma discussão excitada e desagradável; mas não distinguiu as palavras. Depois surgiu de novo a voz: ‑ Venha dentro de uma hora.

‑ Vai você só?

‑ Nem pense nisso. Vai também a minha amiga.

Bastante aborrecido, perguntando a si próprio se não valeria a pena procurar um pretexto para se libertar do compromisso, Girolamo passou aquela hora a andar de automóvel, na periferia da cidade, de uma avenida para outra, à sombra de grandes plátanos carregados de folhagem estival. As duas raparigas habitavam nos Parioli; quando Girolamo parou em frente da casa delas ficou surpreendido com o luxo moderno da fachada, toda de vidro e mármore: pela aparência, tinha‑as suposto de modesta condição, talvez duas empregadas. Mas, uma vez no átrio, descobriu que o apartamento ficava na cave. Desceu a escada às escuras, procurou a porta e bateu. A mesma voz grosseira gritou‑lhe de dentro que esperasse na rua. Girolamo pensou que as raparigas, provavelmente, dispunham apenas de um quarto e que este quarto estava em grande desordem. Subiu a escada e foi sentar‑se no automóvel, em frente da porta.

Esperou bastante tempo, debaixo de um sol que abrasava a carroçaria; finalmente, apareceram. Eram assaz diFerentes: uma, pequena, graciosa e mais jovem; outra, alta, feia e mais velha; mas tinham em comum a mesma maquilhagem cadavérica sobre as faces pálidas, o mesmo mortuário círculo preto em volta dos olhos, o mesmo bâton anémico, cor de mucosa, nos lábios. Até o vestuário era semelhante: duas saias verdes, em forma de tulipa, e duas blusas diáfanas, rígidas e transparentes, através das quais, como através de celofane, se podiam ver os robustos soutiens, bem esticados e aderentes, cor‑de‑rosa forte. O cabelo de ambas era de um louro‑palha, que contrastava com os olhos e as sobrancelhas pretas. Aproximaram‑se; a mais pequena meteu a cabeça na porta e disse:

‑Vamos então almoçar. Mas previno‑o de que temos que fazer dentro de meia hora, o mais tardar três quartos de hora.

Girolamo, despeitado, respondeu:

‑ Que pressa!

‑ Tenho muita pena, mas... ou aceita assim, ou então voltamos para casa.

Perguntando a si mesmo o porquê desta vilania, quase mais por curiosidade do que por se sentir ofendido, Girolamo conduziu‑as velozmente a um restaurante perto da Ponta Milvio. Mas quando entraram no jardim viram muitas mesas vazias, à sombra rala e quente das acácias.

‑ Não está ninguém ‑ disse Girolamo ‑, é a festa da Assunção, compreende‑se. Querem ficar aqui ou querem que experimentemos outro lugar?

A mais pequena respondeu rudemente:

‑ Não viemos para nos exibir, mas para comer. Ficamos aqui. Sentaram‑se; veio o criado e a mais pequena começou a ler a lista:

‑ Lagosta. Posso mandar vir lagosta?

Girolamo, espantado, respondeu:

‑ Com certeza, que pergunta.

‑ Nunca se sabe. Contou o dinheiro antes de nos convidar?

O criado, de bloco na mão, esperava, paciente, com ar de quem conhece estas situações e não se surpreende. Girolamo, rindo, mas no fundo irritado, disse:

‑ Contei o meu dinheiro: vá pela lagosta.

‑ Então lagosta - concluiu o criado. ‑ E quanto a vinho?

A mais pequena perguntou de novo:

‑Posso mandar vir uma garrafa de vinho? Ou tenho de beber vinho avulso?

‑ Pode pedir o que quiser ‑ respondeu Girolamo, aborrecido.

A mais alta observou:

‑ Não se irrite, fazemos isto por si. Convidam‑nos muitas vezes e, depois, não têm dinheiro que chegue.

O criado afastou‑se; a mais pequena, malcriadamente, declarou:

‑ A propósito, nem sequer sei como se chama o senhor.

‑ Chame‑me Girolamo.

‑ Não gosto de Girolamo, faz‑me lembrar girarrostro .

‑ E como se chamam vocês?

‑ Ela chama‑se Cloti ‑ disse a mais alta ‑ e eu Maia.

‑ Mas isso são dois diminutivos, não é verdade?

‑ Sim, ela chama‑se Clotilde e eu Mariana.

Girolamo perguntou a Cloti:

‑ Que diminutivo sugere para mim?

‑ Nenhum ‑ respondeu a rapariga bruscamente.

‑ No entanto, tem de me chamar de algum modo. E como Girolamo não lhe agrada...

Cloti respondeu:

‑ Que quer que lhe chame, se dentro de meia hora nos deixaremos e nunca mais nos voltaremos a ver?

‑ Está certa disso?

‑ Oh!, certíssima.

Chegou o criado; começaram a comer a lagosta em silêncio, contemplando as mesas vazias, sobre as quais, de vez em quando, dos ramos das acácias, vinham esvoaçar e pousar alguns pássaros á procura de migalhas. Girolamo, observando furtivamente Cloti, confirmava a sua impressão de que era muito graciosa e de que lhe agradava. Tinha um rosto espalmado, com olhos negros, brilhantes e um pouco salientes; o nariz era minúsculo e achatado, com as narinas descobertas; a boca era caprichosa, obstinada, carnosa, com o lábio inferior dobrado sobre o queixo quase inexistente. Esta cabeça assentava num pescoço belíssimo, redondo, branco, liso e forte. Girolamo, por fim, disse:

‑ Sabe que tem uns olhos muito bonitos?

Cloti, rezingona, respondeu:

‑ É inútil estar a dirigir‑me galanteios. Lembre‑se: não sou pão para os seus dentes.

‑ É para os dentes de quem então?

‑ Não são coisas que lhe digam respeito.

Girolamo voltou‑se para Maia:

‑Pode fazer‑me um favor?

A amiga tinha um rosto cheio e redondo, do qual, como o bico de uma ave, saía um comprido nariz aguçado. Perguntou:

‑ Que favor quer que lhe faça?

‑Diga à sua amiga que seja um pouco mais gentil.

Maia voltou‑se e exactamente como um papagaio, pronunciou:

‑ Cloti, ouviste? Porque não és mais gentil?

‑Quiseram que eu viesse almoçar, vim. Não me peçam mais nada.

‑ Mas Cloti...

‑Oh!, deixa‑me em paz.

Girolamo, suspirando, propôs:

‑ Falemos de outra coisa. Como é que se explica que ainda estejam na cidade, em meados de Agosto? Não vão de férias?

Cloti respondeu:

‑ E o senhor? Porque é que o senhor também ainda cá está?

‑ Gosto de Roma, de Verão.

‑ Olha, também nós gostamos de Roma, de Verão.

‑ Somos empregadas ‑ explicou Maia. ‑ Só iremos de férias no fim do mês.

‑ Onde trabalham?

Cloti interveio imediatamente:

‑Que lhe importa? Pergunto‑lhe eu, porventura, onde trabalha o senhor?

‑ Se mo perguntasse, dir‑lho‑ia.

‑ Mas não lho pergunto, não me interessa.

‑ Mas, Cloti ‑ disse Girolamo, afectuosamente ‑ pode saber‑se porque está a implicar comigo?

Estendeu uma mão sobre a mesa e pousou‑a na mão pequena, um pouco cheia, graciosa, da rapariga. Mas Cloti retirou subitamente a mão, gritando:

‑Não me toque!

‑ Mas que se passa, Cloti, que tem?

‑ E não me chame Cloti.

‑ Como devo então chamá‑la?

‑ Chame‑me "Menina Clotilde".

‑ Oh! Afinal de contas ‑ observou Girolamo, perdendo a paciência ‑, se não queria vir, podia dizê‑lo. Mas, uma vez que aceitou, tem o dever de, ao menos, ser educada.

‑ O dever? O senhor é doido. Porquê o dever? Será por me oferecer o almoço?

‑ Mas, Cloti... ‑ observou a amiga.

‑ Está calada, tu ‑ gritou Cloti ‑, foste tu a convencer‑me de que aceitasse este absurdo convite. Ou, melhor, já que foste tu, fica tu com ele. Eu vou‑me embora. Adeus, adeus.

Levantou‑se e, passando apressadamente por entre as mesas, afastou‑se na direcção da porta.

‑ Agora ‑ disse Girolamo logo que Cloti desapareceu - você tem de fazer o favor de me explicar o comportamento incompreensível, para não lhe chamar outra coisa, da sua amiga.

Viu‑a menear a cabeça:

‑ A culpa é minha, que insisti para que viesse. Ela não queria vir.

‑ Mas porquê?

‑ Não se ofenda: porque não quer perder mais tempo com pelintras.

‑ Mas eu... ‑ objectou Girolamo, profundamente surpreendido ‑ eu não sou nenhum pelintra.

‑O senhor não é pelintra?

‑ Não, realmente não sou pelintra.

‑É estranho. Cloti tinha essa impressão. E até eu, não se oFenda, o juraria.

‑ Mas que foi que as levou a pensar isso?

‑ Olhe, tudo junto.

Girolamo ficou por um instante calado e depois prosseguiu:

‑ Mas já que Cloti tem essas ideias sobre os homens, porque é que, antes de me tratar daquela forma, não se informou, não mo perguntou? Ter‑lhe‑ia dito a verdade: que não sou nenhum pelintra; ela, assim teria sido gentil e teríamos estado bem dispostos.

- Deve desculpá‑la. É o medo.

‑ Medo de quê?

‑Medo de se deixar levar por um pobretana qualquer. O senhor deve compreender‑nos: somos duas raparigas pobres; acha estranho que procuremos conhecer homens que tenham fortuna?

‑ Está bem, mas ao menos informem‑se.

‑ A vida é uma selva ‑ disse a rapariga filosoficamente. - Cloti procura defender‑se, nada mais. O senhor raciocina Fàcilmente, mas quem tem medo não raciocina.

Girolamo não respondeu. O criado trouxe a conta e Girolamo pagou. A rapariga, por fim, disse:

‑ Se quer, amanhã podemos ir até à praia. Falarei eu a Cloti. Girolamo retorquiu:

‑Não creio que possamos ir.

‑ Mas porquê, está ofendido?

‑ Não, mas agora foram vocês que me provocaram o medo a mim.

‑ Medo de quê?

- A vida é uma selva ‑ disse Girolamo, pondo‑se em pé.

 

             A CABEÇA CONTRA A PAREDE

 

Tarcísio concluiu a história escandalosa no meio do silêncio completo do grupo de amigos a quem tinha falado; e assim, após um momento, curvando‑se, acrescentou com voz baixa e intensa:

‑ Que nojo, que nojo! E é este o homem que os jovens seguem e admiram, a quem todos chamam mestre! Que nojo! Digo‑vos a verdade: quando o vejo passar, sinto ferver o sangue. E experimento uma enorme vontade de o enfrentar, de lhe dizer na cara o que penso dele e, depois, de lhe dar um par de bofetadas.

O criado do café aproximou‑se e, em voz alta e cantante, disse:

‑ Meus senhores, são horas de fechar.

Mas o interesse pela história, verdadeiramente desconcertante, contada por Tarcísio, era tão absorvente que ninguém se apercebeu do que o criado dissera.

‑ No seu lugar ‑ declarou uma voz de mulher, fremente de indignação ‑, no seu lugar, fá‑lo‑ia. Iria ter com ele, dir‑lhe‑ia a verdade na cara, esbofeteá‑lo‑ia.

Uma voz masculina, doce e insinuante, que Tarcísio não conhecia, disse:

‑ Mas porquê a violência? Há outros meios mais civilizados para fazer conhecer a verdade. Não somos selvagens. Dispomos, por exemplo, da imprensa. Não há necessidade de bofetadas. Basta escrever.

Tarcísio, cabisbaixo, escutava estes comentários sem falar. No fim, disse:

‑Quero fazer o maior mal possível àquele homem. Tenho de encontrar a forma e encontrá‑la‑ei.

O criado insistiu:

‑ Meus senhores, são horas de fechar.

Desta vez, possivelmente até para dissipar o mal‑estar que o rancor tão manifesto e tão violento de Tarcísio despertara, todo o grupo se levantou e cada um pagou a sua despesa. Em seguida, na noite, ecoaram as habituais saudações: "Boa‑noite, até amanhã, até à vista, boa‑noite. " Tarcísio estava para se afastar, só, quando aquele que tinha falado por último com a voz doce e insinuante, um jovem moreno de grande nariz adunco e olhos negros, pequenos e brilhantes, se aproximou dele, dizendo:

‑ Se me permite, acompanho‑o. ‑ Tarcísio, instintivamente, gostaria de recusar, pois o jovem não Lhe era simpático; mas reflectiu que, no fim de contas, lhe fazia arranjo porque morava longe, e, assim, subiu para o pequeno carro do desconhecido. Este apresentou‑se, estendendo a mão e dizendo: ‑ Com licença, chamo‑me Livi. ‑ Em seguida, depois de o carro ter começado a percorrer com velocidade moderada as ruas desertas da cidade nocturna, recomeçou, sem olhar para Tarcísio:‑A história que o senhor contou interessou‑me muito. Quero fazer‑lhe uma proposta.

‑ Qual?

‑ Eu sou colaborador de uma revista que o senhor certamente conhece ‑e citou o nome de uma revista na realidade pouco conhecida, entre mundana e política. ‑ Há algum tempo que estamos recolhendo material contra a pessoa de que falou. Proponho‑me ir a sua casa e ouvir toda a história. Que diz?

‑ Digo que é uma ideia ‑ pronunciou Tarcísio com voz incerta.

‑ Bem entendido ‑ continuou o jovem com uma calma levemente temperada de deleitada e reflectida perfídia ‑, a história não é verdadeira. Mas as histórias falsas dividem‑se em duas categorias: as que parecem verdadeiras e as que não o parecem. A sua, sendo embora extraordinária, parece verdadeira. A nós basta isso.

Tarcísio, desta vez, protestou:

‑ Não parece verdadeira? É‑ o.

O outro não se desconcertou:

‑ É‑o? Vejamos: o senhor estava presente quando L... fazia aquelas coisas? Viu‑as com os seus olhos?

‑ Não, não as vi com os meus olhos. ‑ Tarcísio rebuscou no bolso, tirou um maço de cigarros e, acendendo um febrilmente, "; acrescentou: ‑ Foram‑me, porém, transmitidas por alguém que as vira

‑ Desculpe, quem é? ‑ Tarcísio revelou o nome. O outro franziu um pouco as sobrancelhas sobre o grande nariz aquilino ' e disse: ‑ Conheço‑o. É um mentiroso incorrigível, absolutamente patòlógico. O senhor não se pode fiar nele.

Tarcísio aspirou uma fumaça, depois outra, depois outra ainda: tinha a garganta seca e o fumo, ao passar nela, incendiava‑a de um ardor acre. Repetiu com voz estrangulada:

‑ É um mentiroso?

‑ O maior que existe. Mas não importa. Como já lhe disse, nós queremos aniquilar L... ; e a sua história, verdadeira ou falsa, convém‑nos. Portanto, está combinado, venho amanhã ter consigo.

Tarcísio deitou fora o cigarro, que, subitamente, se lhe revelara amarguíssimo, e respondeu com custo:

‑ Não, pensei de novo no assunto, é melhor não.

‑Mas porquê? Hesita por temer que L... venha por acaso a saber que foi o senhor a contar a história? Nesse caso, fique tranquilo. A esta hora, L... já sabe tudo.

Tarcísio puxou novamente do maço de cigarros, tirou um com dedos trémulos e meteu‑o outra vez no maço.

‑ Porquê?

‑ Não viu, no grupo, um senhor de meia‑idade, calvo, gordo, sério, que o escutava sem dizer palavra? Sabe quem era aquele senhor?

‑ Sim, sei. ‑ Tarcísio pronunciou o nome.

‑ Mas talvez não saiba que é um amigo de L... , um dos seus amigos mais íntimos. A esta hora já telefonou a L... , já lhe contou tudo.

Tinham chegado. O carro afrouxou e foi parar numa estrada arborizada, em frente de um enorme e modesto portão de um prédio da periferia.

‑ Vamos, então, fazer este artigo ‑ disse o jovem, puxando o travão de mão e voltando‑se para Tarcísio. ‑ Venho amanhã de manhã; numa hora, escrevo tudo. É claro que, se quiser, mostrar‑lhe‑ei depois as provas tipográficas...

‑ Deixe‑me em paz, adeus, adeus. ‑ Com um impulso quase histérico, Tarcísio atirou‑se para fora do carro e, dirigindo‑se ao portão, introduziu a chave na fechadura, entrou e cerrou o portão. Tudo isto sem se voltar, sem olhar para trás, para o pequeno carro e para o jovem moreno.

Subiu os quatro lanços da escada estreita e escura como se tivesse asas nos pés; parou um momento, ofegante, no patamar, onde três baldes de lixo, idênticos, estavam ao lado de três portas também idênticas; abriu a porta de casa e entrou. O odor frio e velho de cozinha aumentou o seu desespero. às apalpadelas, na escuridão, dirigiu‑se para o quarto, acendeu a luz e olhou: a grande cama de casal ocupava quase inteiramente o pequeno compartimento; a cabeça negra da mulher destacava‑se entre o branco dos lençóis e do travesseiro. Estava de costas; parecia dormir. Com ímpeto raivoso, Tarcísio atirou‑se transversalmente para cima da cama, agarrou a mulher pelos ombros e sacudiu‑a:

‑ Clélia, Clélia. ‑ Viu‑a suspirar, mexer‑se um pouco e, depois, fazer menção de se aconchegar de novo debaixo dos cobertores. Então sacudiu‑a novamente, gritando: ‑Acorda, vamos, acorda.

Desta vez, a mulher despertou totalmente, voltou‑se e mostrou‑lhe o rosto, nem jovem nem bonito, com o nariz demasiado comprido e a expressão aflita. Tendo os olhos fechados, disse com voz arrastada e lamentosa:

‑Estava a dormir, pode saber‑se o que queres? Agora já não te chega deixares‑me só todo o dia, queres também que não durma de noite?

‑ És minha mulher, não é verdade? Tens o dever de me escutar.

‑ Mas que queres de mim?

‑ Aconteceu‑me uma coisa muito desagradável. Quero que me digas o que pensas sobre o assunto.

‑ Vamos lá ouvir. - Clélia levantou o seu magro busto e fixou o marido com olhos que o sono tornava pequenos e incertos. - Sou tua mulher. Escuto‑te.

Tarcísio sentou‑se na borda da cama e relatou os acontecimentos daquela noite: a história escandalosa que tinha referido no café a propósito de L... ; a presença muda de um amigo de L... ; a proposta do jornalista; a conversa que se tinha seguido.

‑ Que dizes? ‑ concluiu com ansiedade. ‑ Achas que fiz mal? Afinal de contas, tinha‑me sido assegurado que a história era verdadeira. Achas que me prejudicará?

A mulher, agora, sentada na cama, fitava‑o com uma expressão apatetada em que todavia transparecia como que uma consciência maligna. Por fim, de olhos baixos, com voz monótona e sonolenta, respondeu:

‑ Digo que o teu defeito principal é a inveja. Ou, antes, o teu maior defeito é a tua insensibilidade para comigo, realmente desumana. Mas isto é um assunto que só a mim diz respeito. A tua inveja, pelo contrário, diz respeito a todo o mundo.

‑ Mas eu não sou invejoso.

‑ És, sim, és invejoso. És um falhado, sentes‑te um falhado, gostarias de não ser um falhado. E então invejas todos aqueles que não são uns falhados como tu. L... será mesmo um monstro, não discuto, mas tu embirras com ele sobretudo e apenas porque não é um falhado como tu. Foi a inveja que te fez contar uma história daquelas, que até um cego veria que não pode ser verdadeira.

‑ Mas tu, minha mulher, tu dizes isso?

‑Pediste‑me que te dissesse o que pensava e eu disse‑to.

‑ Eu pedi‑te um parecer, não insultos.

‑Chamas‑Lhe insultos? Na minha opinião, são verdades.

‑ E tu, minha mulher, tu falas‑me assim?

‑ Sim, falo‑te assim porque é a verdade. E agora podes ter a certeza de que o tal amigo de L... , que estava presente, já Lhe contou tudo. E L... vingar‑se‑á.

‑ Que queres tu dizer com isso: vingar‑se‑á?

‑ Não sei ‑ disse a mulher confusamente, como que dominada de novo pelo sono. ‑ L... é poderoso e tu não o és, exercerá represálias sobre ti. O que contaste é coisa para tribunal. Mas L... vingar‑se‑á de outra forma.

‑ E tu, minha mulher, tu falas‑me assim...

‑Não sei que dizer‑te; quiseste que falasse e falei. Agora deixa‑me dormir.

Tarcísio agarrou subitamente a mulher pelo pescoço e gritou mais uma vez:

‑ Tu, minha mulher, tu falas‑me assim? ‑ Depois, repelindo a mulher com violência, apertou as têmporas entre as mãos, levantou‑se da cama e começou a girar pelo quarto, dando com a cabeça contra a parede. O armário, com a sua aresta direita e afiada como a lâmina de uma faca, atraiu‑o; com violência raivosa e deliberada bateu aí com a cabeça. A pancada foi forte, mas Tarcísio quase não deu por ela: pensava em L... que saberia da sua maledicência; pensava que L... se vingaria; experimentava ao mesmo tempo receio e vergonha; e, além disso, estava desesperado porque a mulher lhe tinha dito coisas antipáticas e temia que estas coisas fossem verdadeiras. Depois de haver batido com a cabeça contra a aresta do armário, foi até junto da mulher, cambaleando e tendo uma mão na cabeça, no sítio onde batera; sentiu, então, que a palma da mão se molhava e, retirando a mão, viu que estava vermelha de sangue. Disse com voz trémula:

‑ Olha para este sangue todo. Julgo que me feri.

A mulher soltou um grito, atirou‑se para baixo da cama, segurou Tarcísio pelo braço e conduziu‑o para a cozinha. Entretanto, caminhando a seu lado, beijava‑lhe a mão ensanguentada com angustioso frenesi, um pouco à semelhança do cão que lambe o patrão contra o qual momentos antes ladrou.

Entre as quatro paredes estreitas da cozinha, em frente do lava‑louça de cimento cheio de pratos sujos, Tarcísio estendeu a cabeça sob a torneira. Sentia a mão da mulher, doce, suave, leve, enamorada, alisar‑lhe a ferida com um bocado de algodão: ao mesmo tempo, sentia o cheiro ácido da lavagem dos pratos. O corpo da mulher estava junto do seu; de vez em quando, a anca dela tocava na sua, enquanto ela dizia com voz ofegante:

‑ Não é nada, é um golpezinho.

Então, com a cabeça inclinada, Tarcísio começou a chorar, deixando cair as lágrimas na superfície gordurosa do fundo de uma panela emborcada no lava‑louça.

 

               A BELA VIDA

 

A casa ficava numa rua desempedrada e lamacenta, ao fundo da qual se via o campo ‑ verde‑azul e ondulado ‑ empalidecer até se confundir com o céu branco. Casas em construção ladeavam a rua, havia por todo o lado covas de cal, andaimes, barricas sem fundo, vigas; mas, como era meio‑dia, os trabalhos estavam suspensos, e os operários, sentados em pequenos muros, comiam os seus casqueiros cheios de conduto, sem falar. Ninguém passava, tudo era silêncio:

"Encontrá‑las‑emos à mesa", disse‑me Marco, transpondo com precaução as poças de água, "mas olha que é o único momento em que se pode encontrar pela certa aquela mulher. " Perguntei‑lhe o que fazia ela, e ele respondeu‑me que tinha uma loja de modas na cidade e que fora justamente lá que sua irmã, à procura de trabalho, caíra naquela tirânica amizade. "É uma espécie de mulher de negócios", concluiu, passando a sua mão gigantesca, larga como uma pá, não pela testa, mas por todo o rosto; "de resto, agora vê‑la‑ás."

O apartamento ficava no primeiro andar de um prédio cor‑de‑rosa, com persianas verde‑pistácio. Abriu‑nos a porta uma criadita; deixou‑nos por um instante numa sala minúscula e pobre, não obstante algumas garridices baratas, e voltou de seguida, dizendo que podíamos passar para a casa de jantar. Como Marco previra, as duas mulheres estavam ainda à mesa. Uma luz intensa inundava a sala nua; a vastidão do campo, visível através da janela sem cortinas, produzia um estranho efeito, como se fosse o mar. O que mais me impressionou, juntamente com o cheiro de cozinha, que empestava o ar, foi o aspecto desordenado e materialíssimo da mesa. Cobria‑a uma toalha com nódoas de vinho, migalhas e pratos sujos; os tachos eram grosseiros e estavam besuntados, até às bordas, de azeite e de tomate; em vez da garrafa, via‑se um garrafão maljeitoso no seu invólucro de palha.

Observei as duas mulheres, que, um pouco embaraçadas, tinham parado de comer. Dora, a irmã de Marco, seria bonita se não fosse tão magra: era loura, exangue, branca como a cera, com grandes olhos azuis, encovados e pisados. A Vercelloni era precisamente o contrário: larga, espadaúda, tinha os cabelos curtos e um rosto cheio, sem angulosidades, como de rapaz; os olhos eram negros, tranquilos, e fitavam com uma lentidão não desprovida de uma inconsciente majestade; uma ligeira penugem, decididamente escura, sombreava os lábios sem bâton. Observei também que, enquanto Dora estava correctamente sentada na sua cadeira, a amiga, ou porque tinha bebido um pouco em demasia ou porque isso não lhe importava, estava sentada de través, um tanto recostada sobre o espaldar, com o guardanapo enfiado no colarinho da camisa masculina. Estava vestida de cinzento, com um casaco de corte masculino e uma saia justa; uma gravata vistosa caía‑Lhe sobre o peito.

Não pareceu surpreendida com esta nossa visita, mas um pouco enfastiada, como por uma intervenção que considerava ao mesmo tempo indiscreta e inútil. Sentámo‑nos; e, sem demora, como se a Vercelloni não estivesse presente, Marco, com o seu corpanzil dobrado sobre a cadeira estreita, começou a exortar a irmã a que não quisesse continuar a viver fora de casa, a voltar para o seio da família. Os seus argumentos eram sólidos e simples; aludiu com habilidade ao desgosto da mãe, não teve uma única palavra contra a Vercelloni; evidentemente, não obstante o seu ressentimento, queria parecer moderado e objectivo. Mas a irmã, escutando‑o, tinha uma expressão excessivamente obtusa:

‑ Não ‑ respondeu por fim com o tom de quem repete a lição ‑, não irei contigo... até agora fui demasiado boa, sacrifiquei‑me, mas agora compreendi que devo fazer valer os meus méritos... e, além disso, quero gozar a vida.

A Vercelloni, que não havia mostrado qualquer ansiedade, sorriu sem ostentação, tranquila, mostrando os seus belos dentes regulares, de uma alvura de leite:

‑ Pobre Dora ‑ disse com voz sonora ‑, é compreensível que não queira regressar a casa... com vinte e oito anos completos tinham‑na fechada em casa todo o dia, obrigavam‑na a lavar os pratos, a cozinhar, varrer... ‑ Enumerava, com uma calma superior e protectora, os vexames sofridos pela amiga, e esta escutava‑a com evidente complacência, como um aldeão que ouve pela primeira vez um orador de comício gritar‑lhe que está oprimido, asfixiado por impostos, algemado, e que chegou o momento da revindicta. Depois, mal a Vercelloni acabou de falar, Dora voltou‑se para o irmão e, com expressão estúpida e orgulhosa, explicou‑lhe que aqui tinha um quarto todo para ela e que podia sair quando queria, mesmo só, indo ao cinema, ao café...

‑ Sou como uma patroa ‑ concluiu com ar sagaz. ‑ De manhã, levanto‑me tarde e tomo o café na cama... posso fumar cigarros e beber licores quando quero... Maria leva‑me a passear no seu automóvel, ofereceu‑me vestidos, é muitíssimo minha amiga... e, além disso, posso receber quem eu quero no meu quarto, mesmo de noite...

Esta última frase fez estremecer Marco, mas não proferiu palavra; e eu pensei que ele, supondo sua irmã mais louca do que libertina, não queria, por isso, meter naquela cabeça inocente ideias e suposições de possibilidades ainda insuspeitadas. Respondeu, pelo contrário, com muita doçura, apertando os grossos punhos sob a mesa, que, se voltasse para casa, lhe dariam um quarto todo para ela e que poderia, como aqui, levantar‑se tarde e tomar o café na cama. Mas a rapariga sacudiu a cabeça com obstinação:

‑ Até agora ‑ respondeu ‑ não sabia o que era a liberdade nem quantas vantagens dela poderiam derivar... mas agora sei, e já não me deixo convencer... Vocês falam muito bem, mas não me convencem... Agora sei o que quer dizer gozar a vida. E, ao dizer isto, o seu rosto magro e digno de compaixão cobriu‑se de uma glutonaria alusiva e obstinada.

Durante alguns momentos ninguém falou. A Vercelloni contemplava a rapariga com os seus olhos tranquilos e negros, de belo animal; através da janela, cheia daquele verde irreal do campo, um palidíssimo raio de sol fazia brilhar as louças e os cabelos louros da irmã de Marco. Este sacudia a cabeça com raiva e mordia os lábios. O silêncio foi de novo interrompido pela rapariga:

‑ Levo uma belíssima vida ‑ disse ‑; porque deveria eu voltar convosco? E depois, mesmo que quisesse, não poderia... Maria e eu devemos partir, dentro de poucos dias, para Paris... Em casa quem pensaria alguma vez em levar‑me a Paris?... E, realmente, eu acho que não há nada mais belo do que viajar, ir ver uma cidade tão magnífica e tão cheia de lojas e de diversões como Paris... ‑ E continuou no mesmo tom, comparando Paris à cidade natal, exaltando as vantagens desta sua nova existência. Em seguida, a Vercelloni explicou que ia a Paris para a habitual compra de modelos. Marco esteve a ouvi‑la; e depois:

‑ Faça‑me um favor ‑ disse ‑, mande sair Dora... Gostaria de falar a sós consigo. ;

Foi imediatamente atendido:

‑ Dorina ‑ disse a Vercelloni ‑, sai daqui por um instante... tenho de falar com teu irmão...

A rapariga obedeceu, levantando‑se. Observei então que de corpo não era magra como de rosto, mas bem feita, quase formosa. Envergava um vestido muito curto, levantado atrás por duas nádegas redondas, e calçava pantufas felpudas; as barrigas das pernas, descobertas e grossas, tinham qualquer coisa de impudente. Impressionou‑me também o passo um pouco vacilante com que atingiu a porta, e pensei que a embriaguez era igualmente uma das atracções daquela vida que dizia fazer. Mas fui desviado destas suposições pelo tom violento com que Marco falava à dona da casa.

‑ Você sabe muito bem ‑ dizia ‑ que minha irmã é quase demente e que, se tivéssemos dinheiro, já a teríamos internado numa clínica... Para quê, então, subtraí‑la à família, dar‑lhe volta à cabeça, fazê‑la acreditar que até agora foi sacrificada, martirizada? Eu digo que é inconsciência da sua parte, ou pior...

A Vercelloni sorriu e, tirando do bolso a cigarreira, apresentou‑a aberta a Marco. Este gesto, não sei porquê, enfureceu o gigante, que, com um safanão, fez ir pelos ares a cigarreira e os cigarros.

‑ Tenho mesmo vontade de fumar, eu... ‑ exclamou, irritado. A mulher não se desconcertou, mas advertiu‑o de que, se continuasse assim, o poria fora de casa. Apanhou depois um cigarro que tinha caído em cima da mesa, acendeu‑o e começou a explicar que fora levada a agir daquele modo pelo afecto e pela compaixão que a rapariga Lhe havia inspirado.

‑ É uma verdadeira indignidade ‑ acrescentou ‑ ter segregada uma rapariga tão bonita, com a desculpa de que é desequilibrada... quando é perfeitamente sã de mente... Foram vocês que, à custa de lhe repetirem que é estúpida, a atemorizaram de tal forma que até desaprendeu de falar... E, além disso, é maior e livre de fazer o que mais lhe agrada. ‑ Seguiu‑se um breve silêncio. ‑ Eu quero bem a Dora ‑ acrescentou de súbito, tranquilamente, a mulher ‑, e de nenhum modo a deixarei regressar a casa, onde seria maltratada... ‑ Contendo a custo o seu ressentimento, Marco respondeu‑lhe que a sua família era demasiado pobre para ter possibilidades de custear viagens de Dora a Paris, mas que à irmã nunca faltara nada; e que, de resto, a única vez que a mandaram, sòzinha, de férias, fez tantos disparates que desencorajou para sempre a boa vontade deles. Mas a Vercelloni não pareceu convencida:

‑ Aquilo que o senhor entende serem disparates ‑ disse - é simplesmente a vida normal de todas as pessoas... A pobre Dora contou‑me tudo: parece que se apaixonou por alguém... Não vejo que grande mal haja nisso...

Ouviu‑se neste momento, vindo do quarto contíguo, um ritmo de gramofone. Marco curvou‑se sobre a cadeira:

‑ Em resumo ‑ perguntou ‑, quer deixar ir minha irmã, ou não?

A Vercelloni baixou os olhos, sacudiu a cinza do cigarro e, depois, como um homem de negócios que está a tratar de uma questão financeira, recostando‑se na cadeira, fitou Marco:

‑ Não, de nenhum modo ‑ respondeu simplesmente.

Nada mais havia a fazer. No quarto contíguo, o gramofone continuava a tocar; eu tinha a impressão de ver aquele quarto "todo para ela - que a rapariga aludira, e a própria rapariga

‑ diante da qual se abria a miragem de uma estada em Paris a dançar de satisfação por estar fora dos espartilhos familiares, na nova atmosfera de uma vida sem freios. Pensava também como tudo estava bem engendrado: uma rapariga quase mentecapta, dominada pela influência dourada desta Vercelloni tranquila e segura de si; todas aquelas verdadeiras comodidades, Paris, o automóvel, o café servido na cama; o círculo estava fechado, impossível rompê‑lo. Ao contrário de Marco, sério e preocupado, sentia‑me alegre e quase sorria. Depois, o meu amigo levantou‑se.

‑ Quer despedir‑se de sua irmã? ‑ perguntou a Vercelloni com a solicitude de uma madre abadessa finalmente convencida da vocação até então duvidosa de uma sua noviça. Mas Marco, tristemente, respondeu que não e dirigiu‑se para o vestíbulo. A Vercelloni não nos acompanhou, vi‑a desaparecer na obscuridade do corredor. Saímos. Os operários tinham recomeçado o trabalho; na atmosfera branca e nua da tarde invernal ecoavam golpes de martelo, vibrados nas extremidades de algumas vigas.

‑ Para mim, minha irmã é como se tivesse morrido ‑ disse inesperadamente Marco.

Mas eu não compartilhava desta sua tristeza; a inutilidade dos seus esforços fazia‑me quase sorrir, como aquelas leves angústias que nunca se sabe muito bem se trazem prazer ou sofrimento.

 

                                                                                Alberto Moravia  

 

                      

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