Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BÁRBARO DAS TERRAS ALTAS / Hannah Howell
O BÁRBARO DAS TERRAS ALTAS / Hannah Howell

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Sir Artan Murray tinha razão quando suspeitou que o velho moribundo que lhe pediu para resgatar a sobrinha não conhecia a jovem. A mulher enfurecida diante dele não tem nada de "dócil", e exige que ele a leve de volta à festa de casamento de onde a tirou. Mas Artan não tem intenção de permitir que uma criatura tão especial seja submetida a um casamento sem amor com um brutamontes, apenas para beneficiar seu clã. Ele pretende seduzi-la e mostrar a ela que o verdadeiro amor também proporciona um prazer inesquecível... Cecily Donaldson sabe que um envolvimento forjado pelo perigo e pelo desespero não pode durar. Mas o toque de Artan a deixa sem fôlego, e ela sabe também que essa é sua única chance de viver uma grande paixão antes que um casamento arranjado sele o seu destino. No entanto, é impossível ignorar a paixão... e um amor com a promessa de mudar toda uma vida...

 

 

 

 

                             Escócia Verão de 1480

― Seu aspecto não é de morto, embora eu ache que você esteja tentando cheirar como um. Angus MacReith fez uma careta para o jovem gigante ao lado da cama. Artan Murray, seu primo, além de grande, forte e atraente, estava bem situado na vida, refletiu. Muito melhor do que seus parentes mais próximos que quase não haviam tido filhos ou o tinham deixado com herdeiros como o jovem Malcolm. A careta de Angus tornou-se mais ferrenha ao pensar no rapaz imprestável, covarde e ganancioso. Artan, porém, tinha o sangue dos MacReith e o demonstrava, assim como Lucas, o irmão gêmeo dele. Angus deu-se conta, então, de que o primo estava sozinho.

— Onde está o outro? — indagou.

— Quebraram-lhe a perna — Artan respondeu.

— Foi grave?

— Poderia ser. Eu estava procurando os culpados quando recebi seu chamado.

— Você sabe quem são?

Faço idéia e vou encontrá-los. — Tenho certeza de que sim, rapaz. Devem ter se escondido.

— Sim. Deixei passar algum tempo para que se sentissem seguros de ter escapado. Será um prazer mostrar-lhes como estavam errados.

— Seu raciocínio é admirável, Artan — Angus elogiou.

— Obrigado. Bem, não acho que você esteja à beira da morte.

— Eu não estou bem.

— Pode ser, mas não está morrendo.

— O que você sabe a respeito disso? — Angus resmungou.

— Você se esquece de que sou um Murray? Desde que nasci, vivo rodeado por curandeiras. Você parece adoentado, mas não acho que chegou sua hora, caso se cuide. Você não tem o cheiro de um homem com o pé na cova e sim de um que precisa de um bom banho.

— A morte tem um odor quando se apossa da alma de um homem?

— Acho que sim. E como você não está morrendo, vou voltar a procurar os homens que quebraram a perna de Lucas.

Angus segurou Artan pelo braço, impedindo-o de se afastar.

— Não! Posso morrer, você sabe muito bem. Tenho sessenta anos e qualquer resfriado é capaz de me levar para a cova.

Era verdade, Artan pensou ao observar o homem que o tinha educado e a Lucas durante dez anos. Angus ainda era bem robusto, mas a idade, às vezes, corroia a saúde sem que ninguém notasse. O simples fato de ele estar deitado no meio do dia era sinal de que algo sério o acometia. Imaginou se estava se recusando a reconhecer a velhice de Angus e a possibilidade de sua morte.

— Então, você me chamou aqui para lhe fazer companhia enquanto morre? — indagou, embora duvidasse que Angus lhe pedisse isso.

— Não. Preciso que você faça algo para mim. Esta moléstia que me aflige fez com que eu me desse conta dos poucos anos que me restam, caso me recupere. Então, comecei a pensar no que precisa ser feito para garantir o bem-estar de Glascreag e do clã quando eu não estiver mais aqui.

— Nesse caso, você deveria estar conversando com Malcolm.

— Ah, aquele poltrão malcriado não passa de uma vergonha para o nome MacReith. Sonso, um choramingas miserável. Eu não confiaria nele nem para cuidar de meus cães, muito menos destas terras e das pessoas que vivem nelas. Ele não manteria a propriedade por mais de duas semanas. Não, ele jamais será meu herdeiro.

— Que eu saiba, você não tem outro.

— Ah, tenho, sim, apesar de ter mantido isso em segredo. Minha irmã mais nova deu à luz uma criança vinte e dois anos atrás. Pobre Moira, morreu algum tempo depois em outro parto — Angus murmurou com olhar triste.

— E onde está ele? Por que não foi mandado para cá a fim de ser educado como senhor da propriedade? Por que não está expulsando esse camundongo chamado Malcolm de Glascreag?

— É uma jovem.

Artan abriu a boca para abominar, em alto e bom som, a idéia de uma jovem ser a herdeira de Glascreag, mas a fechou bem depressa. Resistiu à tentação de olhar para trás, a fim de verificar se suas parentes estavam prestes a atacá-lo, a fim de incutir-lhe uma boa dose de bom senso. Elas ficariam muito ofendidas se soubessem o que passava em sua mente. Palavras como fraqueza, sentimentalismo e ingenuidade, características próprias de criaturas feitas para ter filhos e não para comandar exércitos, certamente as enfureceriam.

Porém, Glascreag não era Donncoill, refletiu. No âmago das Terras Altas, era rodeado por paragens acidentadas e população rude. Nos anos em que ele e Lucas tinham sido educados ali, haviam lutado contra outros clãs que queriam se apossar das terras de Angus. Glascreag exigia vigilância contínua e braços fortes para empunhar espadas. As mulheres Murray eram fortes e inteligentes, mas jamais guerreiras. Artan as considerava únicas e duvidava que a sobrinha de Angus se comparasse a elas.

— Se escolher uma mulher como sua herdeira, Angus, todos os que cobiçam suas terras virão atacá-lo. Malcolm, apesar de tolo e irresponsável, é homem, o que faria os atacantes refletirem enquanto se preparassem para lutar. E seus homens o atenderiam mais depressa do que a uma mulher, você bem sabe.

Angus passou a mão pelos cabelos negros, que ainda eram espessos e compridos, mas que apresentavam mechas grisalhas.

— Sei, sim, mas tenho um plano.

Artan sentiu-se inquieto. Os planos de Angus quase sempre implicavam problemas ou, no mínimo, trabalho árduo para ele. A maneira como os olhos do primo, de um azul prateado como os seus, estavam protegidos pelas pálpebras semicerradas o avisava de que Angus sabia que ele não gostaria do tal plano.

— Quero que vá buscar minha sobrinha e a traga para cá, onde é o lugar dela. Desejo vê-la mais uma vez antes de morrer.

Angus suspirou, afundou a cabeça nos travesseiros e fechou os olhos. Mas Artan revelou indiferença quanto ao apelo de simpatia ao sugerir numa voz firme:

— Pois mande que os parentes dela de lá a tragam a Glascreag.

Angus sentou-se depressa e o encarou.

— Já fiz isso. Aliás, escrevo sempre para a menina e até mandei buscá-la quando o pai e o irmão morreram, doze anos atrás. Os parentes do pai se recusaram a entregá-la aos meus cuidados, embora nenhum deles tenha com ela laços tão próximos quanto os meus.

— Por que você, um grande proprietário de terras, não foi até lá e a trouxe? Podia ter alegado que ela era sua herdeira legítima. Teria se livrado do aborrecimento de lidar com Malcolm.

— Eu queria que a menina desejasse vir para Glascreag.

— Pois já passou a época de você tentar convencê-la e aos parentes do pai dela.

— Exatamente! Por isso quero que você vá buscá-la.Ora, rapaz, tenho certeza de que será capaz de fazer isso. Você encanta e ameaça com a mesma habilidade, e conseguirá realizar a tarefa sem fazê-los querer seu sangue. Eu, sem dúvida, provocaria uma rixa de que não preciso. Você tem jeito para lidar com as pessoas, e eu, não.

Os elogios aumentaram a inquietação de Artan. Angus estava aflito não só por querer a sobrinha em Glascreag, como também porque temia que ele se recusasse a ir buscá-la. Por que achava que ele lhe negaria o favor? Não podia ser pelo perigo, pois o primo sabia que apenas alguma tolice suicida o faria, talvez, hesitar. Embora um sem-fim de possibilidades, que iam de ilegalidades a situações aborrecidas, passassem por sua cabeça, decidiu que tinha chegado a hora de parar com as evasivas.

— Fale, Angus. Por que você mesmo não foi buscar a moça? E por que acha que eu me negarei a ir?

— Você se negaria a ajudar um homem à beira da morte?

— Não desconverse, Angus, e fale logo. Ou eu irei embora nesse momento, e você nunca saberá se eu teria dito "sim" ou "não".

— Você dirá "não" — ele resmungou. — Cecily vive em Dunburn, perto de Kirkfalls.

— Kirkfalls?! — Artan exclamou, e depois acrescentou em tom de desdém: — Mas esse lugar fica nas Terras Baixas.

— Bem, apenas uns poucos quilômetros dentro das Terras Baixas.

— Agora eu já sei por que você nunca foi buscar sua sobrinha. Não podia suportar a idéia de ir até lá. No entanto, quer que eu vá àquele buraco do inferno?

— Não é assim tão ruim.

— Tanto quanto se você quisesse que eu fosse a Londres. Pois não vou — Artan declarou, fazendo menção de ir embora.

— Preciso de um herdeiro do meu próprio sangue.

— Então, não devia ter deixado sua irmã se casar com um homem das Terras Baixas. Foi tão errado quanto se você houvesse permitido que ela fugisse com um inglês. Melhor deixar a moça onde está. Já deve ter sido completamente estragada.

— Espere! Você não ouviu o restante do meu plano! Quando Artan abriu a porta, deparou-se com Malcolm, que estava agachado, com o ouvido encostado a ela. O rapaz magro ficou mais pálido do que já era, ergueu-se e, com passos trôpegos, afastou-se pelo corredor. Artan suspirou. Não precisava de mais uma prova da escolha patética de Angus para seu herdeiro.

Deteve-se, instigado pela curiosidade, O instinto o alertava a escapar dali, pois seria um tolo se ficasse para ouvir o que Angus ainda tinha para dizer. Uma voz o avisava de que seu próximo passo mudaria sua vida para sempre. Gostaria muito de saber se seria para melhor. Rezando para que não estivesse fazendo uma péssima escolha, virou-se para Angus, mas não se afastou da porta.

A expressão do primo era presunçosa, o que o fez praguejar mentalmente. O homem idoso tinha escolhido bem sua vitima. A curiosidade sempre havia sido seu ponto fraco, provocando-lhe tantos problemas e ferimentos que ele preferia nem se lembrar. Gostaria que Lucas estivesse ali, pois o irmão era bastante cauteloso. Porém, logo afastou a idéia. Afinal não era mais um adolescente, e sim homem feito, capaz de tomar as próprias decisões com cuidado e sensatez.

— Qual é o restante do seu plano, Angus? — indagou.

— Bem, é muito simples. Preciso de um homem forte para tomar meu lugar quando eu morrer ou decidir descansar. Malcolm não é essa pessoa, e nem Cecily. Contudo, tem de haver alguém com sangue MacReith para isso e, quanto mais próximo, melhor.

— Claro, é assim que deve ser.

— Então, ainda que você tenha sangue MacReith, ele vem de um primo distante. Entretanto, se você se casar com Cecily...

— Casar?!

— Por que essa expressão horrorizada? O tempo corre e já está na hora de você se casar.

— Não tenho nada contra o casamento e pretendo escolher uma noiva algum dia.

Impaciente, Angus resmungou:

— Algum dia pode nunca chegar, rapaz. Sei disso muito bem. Não seja impaciente e me deixe terminar. Se você se casasse com minha sobrinha poderia vir a ser o senhor daqui. Eu o nomearia meu herdeiro, e nenhum de meus homens protestaria. Nem mesmo Malcolm convenceria um deles a fazê-lo. Cecily é minha parente sangüínea mais próxima e você é quase tanto quanto Malcolm. Portanto, case-se com a moça e, um dia, Glascreag será seu.

Artan voltou para dentro do quarto e, devagar, fechou a porta. Angus lhe oferecia algo que nunca esperara ter, a oportunidade de ser proprietário de terras.

Como o segundo dos gêmeos a nascer, ele só seria o senhor de Donncoill se alguma coisa acontecesse a Lucas, no que detestava pensar. Havia apenas uma maneira de mudar seu futuro, que era o casamento com uma mulher cujas terras fizessem parte de seu dote.

Exatamente o que Angus lhe oferecia, refletiu, sentindo-se fortemente tentado, tanto em sua mente quanto em seu coração. Casar-se com Cecily e tornar-se, um dia, senhor de Glascreag, um lugar que ele amava tanto quanto o local onde nascera... Qualquer homem com um pingo de sensatez agarraria a chance com unhas e dentes. Apesar disso, ele hesitou. Embora se considerasse perspicaz e inteligente, indagou-se o porquê da dúvida.

Deu-se conta de que desejava um casamento como o dos pais, dos avós e de tantos outros de seu clã. Queria uma união baseada no amor e na paixão, em laços que durariam pela vida afora. Quando terras, ouro ou alianças uniam o casal, as chances de felicidade diminuíam muito. Recebera numerosas propostas de esposas infelizes que confirmavam essa conclusão. Se a idéia de tomar parte em adultério não o perturbasse tanto, poderia ser um amante muito experiente. Seguramente não queria que a esposa se tornasse uma dessas mulheres, ou ele um daqueles homens que, sem vínculos fortes no casamento, quebravam as promessas conjugais, ou pior, encontravam-se presos a uma união fria e às próprias crenças, incapazes de encontrar paixão com outras pessoas.

Olhou para Angus, que aguardava uma resposta com mal disfarçada impaciência. Embora não aceitasse se casar com uma desconhecida, não importava quão tentador seu dote fosse, não faria mal algum concordar com a proposta. Iria buscar a moça e, depois de conhecê-la, decidiria se a desposaria ou não. Ao voltarem juntos para Glascreag, haveria tempo suficiente para descobrir se ela era a mulher com quem gostaria de compartilhar a vida.

Então, lembrou-se de onde ela vivia havia muitos anos.

— Ela é das Terras Baixas!

— É MacReith também — Angus esbravejou, mais uma vez com ar presunçoso.

Artan ignorou-o, pois o primo estava certo ao pensar que ele talvez o atendesse. De certa forma, era também o que desejava. Tudo dependeria de como a tal Cecily fosse.

— Cecily — murmurou. — Parece nome inglês. Quase sorriu ao ver o olhar furioso de Angus.

— Não é um nome inglês, e sim de uma mártir, seu herege! Minha irmã era muito piedosa e não quis mudar o nome de batismo da criança, como muitas pessoas fazem. Manteve o nome da santa. Eu a trato por Sile, a forma gaélica.

— Porque "Cecily" soa inglês para seus ouvidos — Artan afirmou, sem dar atenção aos protestos do primo. — Quando você a viu pela última vez?

— O pai dela a trouxe com o irmãozinho até aqui um pouco antes de os dois morrerem.

— Como assim, juntos?

— Foram assassinados quando viajavam de volta para casa depois de me visitarem. Assaltantes. A pobre menina viu tudo. Meg, sua criada, conseguiu se esconder com ela. Alguns da escolta escaparam com vida e afugentaram os assaltantes. Depois, levaram Cecily, Meg e os mortos para casa. Quando eu soube da tragédia, mandei buscar a menina, mas seus primos já cuidavam dela e não a deixaram vir.

— O pai dela era um homem de posses, tinha terras?

— Ah, sim. Além das terras, possuía uma bela fortuna. Os primos controlam tudo. Pelo bem da menina, afirmam. Muitas vezes me pergunto a respeito do assassinato. Talvez tenha sido a mando dos parentes dele.

— Mas não se livraram da menina.

— Bem, ela escapou dos assaltantes, foi levada para casa e nunca mais saiu de lá. Os parentes controlam tudo o que é dela agora.

— Isso ajuda a apagar quaisquer suspeitas sobre as mortes.

Angus concordou com um gesto de cabeça.

— É o que penso. E então, você vai a Kirkfalls buscar minha sobrinha?

— Vou. Mas não prometo me casar com ela.

— Nem mesmo para se tornar meu herdeiro?

— Não, por mais tentador que seja. Não vou me amarrar a uma mulher por causa disso. Tem de haver algo mais.

— Ela é uma jovem delicada e bonita, com cabelos vermelho-escuros e grandes olhos verdes.

Sem dúvida, isso era promissor, mas Artan encarou o primo com firmeza.

— Você não a vê desde que ela era criança e não sabe que tipo de mulher se tornou. Uma jovem pode ser linda a ponto de enlouquecer um homem. Mas, depois, ele cai em si e se vê preso à moça que, apesar de bonita, é fria como a neve, ou má, ou outras coisas que tornariam a vida dele num inferno. Não vou prometer agora me casar com sua sobrinha. Apenas garanto pensar no assunto. No trajeto de Kirkfalls para cá haverá tempo de sobra para que eu conheça a moça:

— Muito justo, mas você se convencerá. Ela é meiga, delicada e dócil, uma verdadeira dama educada para proporcionar o bem-estar de um homem.

Artan imaginou o quanto dos elogios era verdadeiro, mas deu de ombros e começou a planejar a viagem.

— Refugo sujo, sapo viscoso, cheio de verrugas, um... um...

Cecily parou de andar de um lado para outro do quarto enquanto tentava encontrar outras maneiras de descrever o homem com quem ia se casar.

— Milady?

Olhou para a porta entreaberta, de onde sua jovem criada a chamava, e forçou um sorriso. Embora Joan estivesse entrando, não parecia muito segura, sinal de que sua tentativa de mostrar-se satisfeita tinha falhado, Cecily refletiu. Paciência. Não sentia a mínima vontade de demonstrar bom humor.

— Vim ajudá-la a se vestir para o início das festas — Joan avisou ao começar a pegar as roupas que, sem dúvida, fora instruída para fazê-la usar.

Com um suspiro, Cecily entregou-se aos cuidados da criada. Tinha de se acalmar antes de enfrentar a família, os convidados e o noivo para o jantar no grande salão. Os primos achavam que a estavam ajudando ao lhe arranjar aquele casamento, e muitas pessoas concordavam. Sir Fergus Ogilvey era influente e rico, além de ainda não ser velho. Havia recebido o título de nobreza como recompensa por serviços prestados ao rei. Ela era órfã de um homem erudito e de uma mulher das Terras Altas. Já estava com vinte e dois anos, tinha fartos cabelos vermelhos e sardas.

Fazia um bom tempo que era um encargo para os primos que, ressentidos, a tratavam com frieza. Ela havia tentado, muitas vezes, conquistar-lhes o afeto e a aprovação, mas sempre falhara. Esta era sua última oportunidade é, apesar da antipatia pelo homem com quem logo se casaria, ergueria a cabeça e o aceitaria como marido.

— Uma pústula na testa do diabo — resmungou.

— Milady? — Joan murmurou.

Pelo olhar da criada, Cecily percebeu que havia expressado o último pensamento indelicado em voz alta. Suspirou. Obviamente, sua mente continuava a arranjar insultos para sir Fergus, e a boca passara a participar do jogo. Seria perigoso se tais comentários caíssem nos ouvidos dos primos. Ela perderia todas as chances de conquistar-lhes o afeto e a aprovação. Com esforço, assumiu uma expressão de arrependimento e embaraço.

— Desculpe, Joan. Eu estava praticando insultos quando você entrou e esse aí escapou sem querer.

— Mas contra quem, milady?

— Ora, para lançar a um inimigo que, por acaso, me assaltasse. Não posso usar espada ou punhal e sou muito pequena para enfrentar uma luta. Então, pensei que seria útil atirar ofensas ao adversário.

Ótimo, Cecily refletiu enquanto Joan a fazia sentar-se num banquinho, a fim de pentear seus cabelos. A criada devia pensar que ela estava louca. Concordava, pois devia mesmo ser demência tentar, durante anos, conquistar o apoio e o amor dos tutores. Porém, ela não desistia. A cada novo fracasso, esforçava-se ainda mais. Achava que lhes devia muito e ansiava agradá-los em retribuição. Desta vez, não falharia.

— Muito bem, Joan. Pode ir embora que eu termino tudo aqui.

Cecily sentiu o mau humor diminuir ao ver Meg entrar no quarto. Apesar da língua afiada, a mulher a queria bem. Os primos a detestavam e a tinham praticamente banido da casa sem motivo aparente. Recebê-la ali, em um momento de tanta necessidade, era uma bênção. Levantou-se do banquinho e abraçou a mulher alta e gorducha.

— É tão bom vê-la, Meg — disse em tom choroso.

— Onde mais eu estaria se a minha pequenina vai se casar? — Meg perguntou enquanto a fazia voltar a se sentar no banquinho.

— Espero que ela não tenha se ressentido — Cecily disse tão logo Joan saiu e fechou a porta.

— Não, a pobre menina tem trabalhado demais e deve se sentir aliviada por se ver livre de, pelo menos, uma tarefa. Seus primos estão se esfalfando para impressionar Ogilvey. Ele não passa de um aproveitador que se considera importante e poderoso. Deve até empinar o nariz comprido quando olha para um anjo do bom Deus.

Cecily riu, mas logo ficou séria e comentou:

— Ele parece gostar muito de si mesmo.

Meg fez uma careta e começou a escovar-lhe os cabelos.

— Ele é tão presunçoso que deveria ser amordaçado. Fala como se estivesse fazendo um favor para você ao desposá-la. Sua família é muito superior à desse vira-lata arrogante.

— Ele recebeu título de nobreza por prestar serviços ao rei — Cecily mencionou, embora não gostasse de defender o noivo.

— O idiota tropeçou diante de uma espada que teria atingido o rei. Ogilvey só se deu conta de que passava por herói quando parou um instante de praguejar e de se lamuriar, depois de voltar a si do desmaio. Todos acharam que ele tinha agido de propósito. O patife dissimulado foi esperto o bastante para se fingir de humilde salvador de nosso rei.

— Como você sabe tanto sobre isso?

— Eu estava lá. Tinha ido visitar minha irmã, e nós todos queríamos ver os nobres e o rei. Por causa de uma discussão tola, dois proprietários de terras desembainharam as espadas. O rei quase foi atingido por uma, exceto que Ogilvey, distraído ao limpar algo na roupa, não viu aonde ia. Tropeçou nos próprios pés e atingiu a glória.

Cecily franziu a testa. — Tudo que ele disse foi que prestou um serviço ao rei. Sempre mostrou humildade a respeito disso. — Ora, ele não pode contar a verdade, uma vez que permitiu que o equívoco persistisse e aceitou o título de nobreza, não é? Portanto, logo se casaria com um mentiroso, Cecily refletiu. Talvez esse fosse um julgamento errado. Podia ter sido impossível para sir Fergus livrar-se do engano. Afinal, quem se atreveria a discutir com o rei? E por que ela se aborrecia arranjando desculpas para o homem?

Porque precisava. Essa era sua última chance de não ser mais um encargo e alvo de caridade. Apesar de ter de se mudar para a casa do marido, os primos pensariam bem a seu respeito e a tratariam como parte da família. Finalmente receberia seu afeto. Sir Fergus não era o homem que gostaria de ter como pai de seus filhos, mas poucas mulheres podiam escolher os maridos. Embora um argumento fraco, a idéia de fazer algo pelos parentes a consolava.

— Você não parece muito feliz, menina — Meg disse enquanto enfeitava o penteado com lacinhos de fita azul que combinavam com o vestido.

— Ficarei — Cecily murmurou.

— O que isso quer dizer?

— Que ficarei feliz com meu casamento. Terei de me esforçar para tanto, mas conseguirei. Logo completo vinte e dois anos. Já está na hora de me casar e ter filhos. Mas rezo para que eles não tenham o queixo do pai — acrescentou, fazendo uma careta ao ouvir Meg rir. — Isso foi indelicado da minha parte.

— Pode ser, mas a verdade nua e crua é que o homem não tem queixo.

— Não mesmo. Nunca vi nada igual. E como se o pescoço dele começasse na boca — Cecily comentou.

— Se você não queria se casar com o idiota, por que concordou?

— Porque Anabel e Edmund queriam muito este casamento.

Quando Meg, de cara feia, se afastou e apoiou as mãos nos quadris amplos, Cecily foi se olhar no espelho para ver se estava apresentável. O espelho era um dos poucos requintes em seu quarto pequeno. Se ficasse um pouco para o lado, podia se ver melhor, apesar da larga rachadura. Sentiu o ressentimento habitual por receber apenas as coisas que Anabel e as filhas não queriam mais ou que já estivessem estragadas. Mas abafou-o. Anabel poderia tê-lo jogado fora como fizera com muitas coisas que haviam sido de sua mãe.

Franziu a testa ao lembrar-se de que precisava dar um jeito de pegar alguns itens no esconderijo. Uma das queixas mais freqüentes de Meg era a respeito de como Anabel jogava fora tantas coisas que haviam pertencido a Moira Donaldson. Talvez já fosse hora de informá-la de que nem tudo tinha se perdido. No início, havia sido sua tristeza infantil que a fizera pegar os pertences da mãe e escondê-los. Com o passar dos anos, aquilo tinha se tornado um ritual e, ela admitia, com pesar, uma forma de rebelião.

O mesmo poderia ser dito sobre seu outro grande segredo, refletiu ao olhar para a caixa de madeira esculpida onde guardava suas fitas e a mísera coleção de jóias que lhe haviam concedido. Anabel se apossara depressa das que tinham pertencido a Moira ou, ao menos, era nisso que acreditava. Escondidas entre os objetos sem valor no fundo da caixa, havia várias peças preciosas de que se negara a abrir mão, dadas a eIa pelo pai após a morte da mãe. Ele prometera dar-lhe as demais assim que fosse mais velha.

Cecily mencionara isso aos tutores apenas uma vez, provocando a fúria aterradora de Anabel. Manter aqueles objetos escondidos havia sido o suficiente para que ficasse calada sempre que via Anabel e as filhas usarem as jóias que tinham sido de sua mãe.

A mulher merecia uma recompensa por cuidar de uma órfã pobre, Cecily disse a si mesma enquanto tentava, em vão, abafar o ressentimento. Embora mal houvesse se olhado no espelho, virou-se para Meg, sorriu e tocou os cabelos.

— O penteado ficou muito bonito.

— Você nem se observou direito, menina. Ficou com expressão sombria e olhar distante. Em que estava pensando?

— Ah, num segredo que guardo faz muito tempo — respondeu em voz bem baixa, aproximando-se dela. — Você se lembra do meu esconderijo preferido?

Meg respondeu no mesmo tom:

— Claro, Aquele quartinho no calabouço. Nunca contei a ninguém, embora devesse. Você poderia ter se trancado lá e, se eu não estivesse por perto, seria seu fim.

— Ora, você sempre me acompanhava, e eu me sentia segura. Mas, por favor, preste atenção, pois vou precisar de sua ajuda. Escondi umas coisas lá que Anabel tinha jogado fora. Eram coisas de que mamãe, papai e até Colin gostavam. — Riu um pouco ao ser abraçada por Meg.

— E quer ter certeza de que essas coisas vão com você quando se casar, não é?

— Isso mesmo. E também aquela caixa de madeira esculpida ali. Meg suspirou.

— Foi seu pai quem lhe deu. Você ficou tão alegre com o presente. Ela tem um pequeno esconderijo dentro, onde você gostava de pôr algo especial. O que tem guardado lá agora?

— Pouco depois que mamãe morreu, papai me deu as jóias mais simples dela e prometeu me dar as outras quando eu crescesse. Mas Anabel ficou com tudo. Disse que as jóias de mamãe e outras coisas de valor eram dela. Então, escondi as que ele me deu. Sei que errei, mas...

— Não é errado uma criança guardar as coisas que a lembram dos pais — Meg afirmou.

— E o que digo a mim mesma quando me sinto culpada.

— Você não tem de se sentir culpada por coisa alguma.

Com delicadeza, Cecily pôs o dedo nos lábios de Meg, pois sabia a longa lista de críticas que ela faria sobre a maneira como seus tutores sempre a tinham tratado.

— Isso não importa. Anabel e Edmund passaram a ser minha família, e eu só lhes causei decepções. Desta vez, desejo agradá-los. Porém, não quero perder as poucas lembranças que tenho de meu irmão, de papai e de mamãe. Preciso que você saiba onde as escondi, caso eu não possa pegá-las. Meg assentiu com um gesto de cabeça e prometeu:

— Se você não conseguir, darei um jeito para que elas cheguem às suas mãos.

— Obrigada, Meggie. Será um consolo tê-las comigo.

— Você vai mesmo se casar com aquele idiota sem queixo?

— Vou. E o que eles querem e, desta vez, não quero desapontá-los. Como eu disse, logo terei vinte e dois anos e nunca fui cortejada, nem mesmo beijada. — Cecily afastou depressa a horrível visão de ser beijada por sir Fergus. — Quero ter filhos e, para tanto, preciso de um marido. Dará certo, tenho certeza.

Meg fitou-a como se a considerasse louca. — Vamos rezar para que os tais filhos não sejam sem queixo como aquele idiota.

— Bem, pelo menos você está apresentável.

Cecily esboçou um leve sorriso para Anabel, decidida a aceitar as palavras ríspidas como um elogio. Forçou-se a desviar o olhar do belíssimo colar de ouro e granadas que ela usava, presente de seu pai para sua mãe após o casamento. Era doloroso lembrar-se do passado e do amor que unira os pais, especialmente quando estava prestes a se casar com um homem a quem não acreditava que conseguiria amar. Correu o olhar pelo salão, prestando atenção a todos os que haviam comparecido à festa. Era o início do que seriam duas semanas de celebrações, que culminariam em seu casamento com sir Fergus Ogüvey. Conhecia pouquíssimos convidados, pois quase nunca tinha permissão para ir a festas e nem mesmo para acompanhar os tutores em visitas.

Suspirou ao avistar o noivo. Ele falava com dois homens, e os três tinham olhar presunçoso. Deu-se conta de que não sentia a mínima curiosidade sobre o assunto da conversa, um mau presságio para seu futuro. Uma boa esposa deveria compartilhar os interesses do marido.

Enquanto Anabel discorria sobre cada convidado e falava da importância de atender aos seus pedidos, Cecily distraiu-se, procurando algo que pudesse apreciar no noivo. Ele não era feio, mas, muito menos, atraente. Além de quase não ter queixo, o nariz era fino e longo demais. Os cabelos, de um castanho opaco, já começavam a rarear. Lembrou-se de que os olhos tinham uma tonalidade bonita, castanho-esverdeada, mas eram pequenos demais e com cílios esparsos. Ele vestia-se bem e exibia boa postura. Sentiu-se aliviada por encontrar algo que pudesse elogiar, caso a situação exigisse.

— Está me ouvindo? — Anabel indagou, brava. — Isto é muito importante, pois você vai passar a conviver com estas pessoas.

Cecily a observou e ficou tensa. Algo a tinha enraivecido outra vez. Em vão, tentou se lembrar de alguma coisa que a mulher havia dito. Surpreendeu-se ao vê-la tentando controlar a raiva e percebeu, de súbito, que Anabel queria o casamento desesperadamente. Alarmou-se ao constatar que, caso não estivesse disposta a se casar para agradar aos tutores, não lhe restaria escolha. Se não se casasse de boa vontade, seria à força. — Eu estava olhando para sir Fergus — ela disse, por fim.

— Ah, uma bela figura de homem. Você terá orgulho dele.

Embora duvidasse, Cecily assentiu com um gesto de cabeça.

— Espero que seja uma boa esposa. Sei que já lhe expliquei como, mas vale a pena repetir, pois você tem a tendência de esquecer tudo e se comportar mal. Uma boa esposa obedece às ordens do marido. É seu dever agradá-lo em tudo, ser submissa, amável e indulgente.

O casamento seria puro tormento, pensou Cecily.

— Você precisa administrar a casa dele com eficiência, mantendo tudo em ordem. Refeições na hora certa e bem preparadas, roupas limpas, criados eficientes e obedientes.

Seria difícil, pois Anabel nunca a ensinara a administrar uma casa. Cecily mordeu a língua para não deixar as palavras escaparem. A custa de punições e de observação, fazia idéia de como cuidar de uma casa. Na verdade, os castigos que suportara tinham lhe dado muitas habilidades domésticas que as damas requintadas com certeza não possuíam. Olhou para sir Fergus e quase franziu a testa. O instinto lhe dizia que aquele homem ficaria horrorizado se descobrisse que a futura esposa sabia lavar roupa e limpar baias.

— Uma boa esposa tolera as fraquezas do marido — Anabel prosseguiu.

Cecily suspeitava que sir Fergus tinha muitas, mas censurou-se depressa. Logo estaria casada com o homem, e estava na hora de descobrir as qualidades dele.

— Uma boa esposa ignora as aventuras do marido com outras mulheres e...

— Que outras mulheres? — indagou, surpresa. Esse ponto nunca tinha sido mencionado nas explicações anteriores e a deixava inquieta.

Anabel revirou os olhos azuis que tanto a deixavam envaidecida.

— Homens são animais libidinosos, menina. Costumam se excitar com qualquer mulher. Uma esposa precisa aprender a ignorar essas coisas.

— Não vejo por quê. Tanto quanto a esposa, o marido fez promessas diante de Deus. E dever dele honrá-las.

Anabel puxou Cecily para um canto mais afastado e vazio.

— Não seja tão ingênua. Os homens não se importam com essas coisas e acham que têm o direito de levar para a cama quem desejarem.

— Meu pai era fiel à minha mãe.

— Como você sabe, se não passava de uma criança? Confie em mim. Você ficará aliviada se o seu marido esgotar a luxúria com outra e só a perturbar de vez em quando. Trata-se de algo desagradável, que dá prazer somente aos homens. Deixe que as camponesas lhes proporcionem isso. Como eles acham que precisam ter filhos, você será obrigada a recebê-lo, com certa freqüência, em sua cama.

— Como assim? Não vamos dormir todas as noites na mesma cama?

— Onde você ouviu essa idéia estranha, menina?

— Meu pai e minha mãe dormiam juntos. Eu era criança, sim, mas sei disso muito bem.

— Estranho — Anabel comentou, mas deu de ombros. — Com certeza, um costume das Terras Altas. São todos uns bárbaros por lá. Você, entretanto, foi criada por pessoas civilizadas, e já está na hora de se livrar dessas idéias e crenças.

Depressa, Cecily abafou a vontade instintiva de defender o povo de sua mãe. Tal atitude só provocaria a raiva de Anabel e, como conseqüência, seria castigada com um trabalho ignóbil, sujo e exaustivo. Sentia que a tutora lhe dizia essas coisas de propósito. Às vezes, parecia que Anabel odiava Moira, falecida havia tanto tempo. Não sabia o motivo dessa reação nem o que sua mãe poderia ter feito para merecê-la. Anabel também criticava seu pai. Cecily não conseguia compreender tamanha animosidade, porém sabia que jamais arrancaria uma explicação da tutora.

Ao pensar na família querida, foi dominada por uma tristeza profunda e baixou o olhar para os pés, a fim de esconder as lágrimas. Logo seria o dia de seu casamento, a data mais importante para uma mulher. No entanto, via-se rodeada de estranhos, de pessoas que, na verdade, não lhe queriam bem. Se Meg conseguisse se esgueirar para a capela ou para alguma das festas, pelo menos alguém que a amava estaria por perto. Sabia que sua família estaria com ela em espírito, em seu coração e nas boas lembranças, porém desejava ardentemente tê-la ao seu lado.

— Sorria, menina — Anabel ordenou.— Um momento atrás, você parecia prestes a se debulhar em lágrimas. Não deixe sir Fergus ver essa expressão. Ele vai pensar que você não está contente por tê-lo como marido.

Algo na voz da tutora dizia a Cecily que essa era a última coisa que a mulher desejava. Se acontecesse, o castigo seria rápido e severo. Embora duvidasse de que fosse capaz de oferecer um sorriso sincero, esforçou-se para disfarçar a tristeza, Quando achou que tinha conseguido, ergueu o olhar para Anabel que, embasbacada, estava virada para a porta de entrada do grande salão. Um rápido olhar ao redor revelou que o mesmo acontecia com todos os convidados. Um silêncio profundo dominava o ambiente.

Apesar da visão fascinante de tantas pessoas de boca aberta e olhos esbugalhados, sua curiosidade a fez olhar para a porta e foi apenas seu orgulho que a impediu de imitar os outros ao ver o homem que se encontrava ali. Ele era esguio, muito alto e musculoso. Os cabelos negros e compridos caíam pelos ombros largos e uma trança fina pendia de cada lado do rosto. A manta xadrez sobre os ombros era verde-escura com listras amarelas e pretas. Ele também usava botas de couro de veado e uma camisa de linho branco, tanto esta quanto aquelas muito empoeiradas, sinal de uma longa viagem. Atrás da cabeça dele, pôde ver o cabo de uma espada larga. Havia outra presa à cintura, e um punhal visível embainhado na bota esquerda.

Cecily sentiu-se aliviada por não ter sido apanhada, naquele preciso momento, na defesa dos habitantes das Terras Altas. Esse homem tinha a aparência gloriosa de um bárbaro, o que se tornava mais evidente pelo que ele segurava. Presos pela parte da frente dos gibões, com os pés balançando acima do chão, estavam dois de seus primos guerreiros. Eles não pareciam estar se debatendo muito, e nem o bárbaro fazendo um grande esforço, ela notou, admirada.

Decidindo que alguém precisava tomar uma atitude, respirou fundo e pôs-se a andar em direção ao homem.

Com um olhar feroz, Artan encarou as pessoas no grande salão que, perplexas, o observavam. Achava difícil controlar a irritação. Desde o momento em que tinha entrado nas Terras Baixas, a viagem se complicara. Havia sido espreitado, evitado e insultado a cada passo do trajeto. A proibição para entrar na mansão dos Donaldson fora a gota d'água, ou assim ele havia pensado. Porém, ser afrontado por todas aquelas pessoas boquiabertas estava rapidamente ultrapassando a tudo aquilo.

Ao perceber, pelo canto dos olhos, alguém se mexer, ficou tenso. Virou a cabeça a fim de se precaver e viu uma jovem pequenina, de cabelos vermelho-escuros, aproximando-se. Enquanto a observava, sentiu que o coração, estranhamente, se acelerava. O andar dela era gracioso, e os quadris moviam-se suavemente a cada passo. O decote do vestido azul revelava a parte superior dos seios que, embora não fossem voluptuosos, eram arrendondados e firmes, atraindo seu olhar.

Quando ela chegou a uma pequena distância, Artan notou que cílios longos e fartos rodeavam enormes olhos verdes. O rosto era oval; a pele alva; e os lábios fartos, um convite aos beijos. O nariz exibia umas poucas sardas, e o queixo firme indicava teimosia temperamental. Se essa fosse a sobrinha de Angus, não faria objeção a se casar com ela.

— Senhor, talvez devesse soltar esses homens. Acho que estão tendo dificuldade para respirar.

Sua voz baixa e melodiosa era tão encantadora que Artan levou um instante para entender o que ela dizia. Observou os dois e percebeu que, de fato, estavam sufocando. Deu de ombros e largou-os. Então, dirigiu o olhar para as pessoas que medrosas, afastaram-se mais.

Cecily reprimiu o riso e agradeceu:

— Obrigada, senhor. Podemos saber quem é e o que o traz à nossa casa?

Quando os olhos azuis a fitaram, Cecily sentiu a cabeça leve e depressa, empertigou-se. Não fazia idéia de por que ele a deixava sem fôlego com um simples olhar. — Sou sir Artan Murray — ele apresentou-se com uma leve mesura. — Vim a pedido de sir Angus MacReith, de Glascreag.

— Tio Angus o enviou? — Cecily perguntou-se por que a possibilidade de esse homem ser seu parente a desagradava tanto.

— Ah, então é lady Cecily Donaldson? — Artan resistiu à vontade de esfregar as mãos de satisfação.

Ela fez um gesto afirmativo e indagou:

— O que meu tio deseja?

— Que eu a leve a Glascreag. Ele está doente e quer muito vê-la antes de morrer. — Artan não acreditava que isso estivesse prestes a acontecer, mas, se o exagero fizesse a moça acompanhá-lo, ele não via mal algum.

— Não! — Anabel gritou, livrando-se do choque inicial e correndo para o lado de Cecily, a quem agarrou pelo braço.

— Mas se meu tio está morrendo...

— Você poderá visitá-lo depois do casamento.

— Quem vai se casar? — Artan perguntou.

— Cecily — Anabel respondeu.

— Angus não foi avisado.

— E por que deveria ter sido?

— Porque é o parente mais próximo dela.

— Bem, nós também somos da família, além de seus tutores. Sou lady Anabel Donaldson e lá está meu marido, sir Edmund. Cabia a nós decidirmos esse casamento, e não ao tio de Cecily.

Artan observou a mulher que ainda agarrava o braço de Cecily com força, provavelmente causando-lhe dor. Os cabelos claros e olhos azuis conferiam a ela uma aparência bonita, mas a expressão era fria. O corpo voluptuoso, que se destacava sob um vestido vermelho, dava a impressão de ser tão gélido quanto o olhar. Havia um laivo de desespero na atitude e na voz, que o fez imaginar o que ela ganharia com o casamento.

Dirigiu, então, a atenção para Cecily. Notou sinais de tristeza em sua expressão, e nenhum traço da alegria e da expectativa típicas de uma noiva. Foi grande a tentação de afastar a mão cheia de anéis de lady Anabel do braço delicado. Esperava estar enganado, mas não conseguia se livrar da impressão de que o casamento não era escolha de Cecily.

— Com quem vai se casar, Sile? — ele perguntou, usando a forma gaélica de seu nome.

— Comigo.

Bastou um único olhar para Artan decidir que não simpatizava com o homem e, muito menos, confiava nele. Num gesto encenado, curvou a cabeça para encarar o sujeito, muito mais baixo do que ele. Divertiu-se ao vê-lo enrubescer. O desgraçado lembrava os lambe-botas que sempre rodeavam o rei. E cheirava como um também, uma mistura de perfume e corpo sujo. Artan fungou.

— E como você é conhecido?

— Sou sir Fergus Ogilvey — o homem respondeu, erguendo o queixo minúsculo a fim de encará-lo.

— Nunca ouvi falar de você. — Sem dar atenção à praga rogada por Fergus em voz baixa, olhou para a mão de Anabel, que ainda apertava o braço de Cecily, perfurando sua pele com as unhas afiadas. — Solte-a.

Cecily respirou aliviada quando Anabel largou seu braço. Viu as manchas de sangue e rezou para que elas não estragassem seu primeiro vestido fino. Olhou do noivo para sir Artan e suspirou ao constatar a diferença marcante entre ambos. O visitante deixava Fergus mais pálido e menor do que era.

— Quando será o casamento? — Artan indagou.

— Dentro de duas semanas. Hoje é o primeiro dia das festividades — Fergus respondeu, cruzando os braços sobre o peito esquelético.

— Nesse caso, é melhor que me levem aos meus aposentos para que eu possa me lavar desta poeira e vir lhes fazer companhia.

— Não creio que tenha sido convidado — Anabel fuzilou.

— Notei sua grosseria, mas a perdôo — Artan afirmou e ouviu Cecily rir.

Ela, porém, ficou séria logo, diante do olhar furioso da tutora.

— Naturalmente, ele deve ficar, minha cara — sir Edmund disse ao juntar-se ao grupo, olhando para a esposa. — Sir Artan foi enviado pelo tio de Cecily do lado materno. Não podemos ofendê-lo, tratando mal seu emissário. — Sorriu para Artan. — Pode ocupar :o lugar de seu senhor e voltar a Glascreag com um relatório completo do casamento da sobrinha dele com este excelente cavalheiro — disse, batendo nas costas de Fergus. Então, acenou para uma criada loira e de seios fartos. — Davida vai levá-lo aos seus aposentos. O jantar será servido dentro de uma hora.

— Estarei aqui — Artan afirmou. Virou-se para Cecily e beijou-a de leve na mão. — Quando eu voltar, conversaremos sobre seu tio.

Ao vê-lo se afastar com Davida, ela pôs as mãos para trás a fim de tocar o lugar do beijo; Jamais recebera uma atenção como aquela de um homem. Tampouco sentira um calor repentino e uma fraqueza nas pernas por causa de um rápido contato. Porém, era a primeira vez que via um homem tão atraente quanto sir Artan Murray. Suspirou ao imaginá-lo sendo admirado por Davida.

A picada do ciúme se fez sentir, pois sabia que a criada leviana logo estaria na cama dele. Não a culpava, pois a mulher, sem dúvida, também nunca tinha visto homem tão fascinante. Porém, parecia-lhe uma grande injustiça a criada ficar com sir Artan enquanto ela teria de suportar sir Fergus.

— Edmund, como você pôde convidar aquele bárbaro para ficar aqui? — Anabel questionou-o.

— Que escolha tínhamos, mulher? — ele indagou, bravo. — Angus é o parente mais próximo de Cecily e, segundo o homem, está doente, talvez até morrendo.

— Por isso mesmo eu deveria ir visitá-lo — Cecily aparteou, mas estremeceu sob os olhares furiosos de Anabel, Edmund e Fergus.

— Você não vai a lugar nenhum. Seu tio nunca a procurou antes — Anabel esbravejou.

Cecily reconheceu que infelizmente, aquilo era verdade, embora sempre tivesse estranhado o fato. Lembrava-se do tio como um homem robusto, de fala rude, mas que a tinha tratado com muito carinho. Mesmo durante aquela visita fatídica, feita para que ele conhecesse Colin, seu irmãozinho, que seria herdeiro dele, o tio também lhe dispensara atenção. Como nas vezes anteriores, deu de ombros e muniu-se de coragem para insistir com Anabel.

— Isso é irrelevante. O que importa agora é a possibilidade de meu tio falecer. Como sua parente mais próxima, não é meu dever acompanhá-lo nesse momento? — Cecily sugeriu.

Ficou tensa quando o noivo pôs o braço sobre seus ombros, pois sabia que não era um gesto de carinho.

— E seu dever, sim, mas você tem um maior, que é ficar aqui e se casar comigo. Seus tutores gastaram muita energia e dinheiro para organizar as celebrações. Depois do casamento, eu a levarei para visitar seu tio.

Cecily tinha vários argumentos a favor da viagem imediata, e o maior deles era o fato de o tio já ter sessenta anos. Nessa idade, até a doença mais branda poderia ser fatal. Esperar o casamento talvez significasse uma visita à sepultura dele. Olhou para os três e percebeu que seria inútil insistir.

— E, como você é sua parente mais próxima, talvez venha a herdar alguma coisa. Iremos mesmo a Glascreag para averiguar — Fergus acrescentou.

— Tem toda a razão — Edmund concordou. — A viagem até lá é longa e penosa, mas poderá proporcionar recompensas.

Enquanto ouvia os três conversarem sobre o que o tio poderia lhe deixar quando morresse, Cecily esforçou-se para manter silêncio. Tentava se convencer de que eles não eram tão mercenários quanto pareciam. Falavam como se sir Fergus fosse quem mais lucraria, e isso a irritava muitíssimo. Não importava se o tio deixasse ou não algo para ela, mas, se o fizesse, seria seu e de mais ninguém.

Então, ocorreu-lhe que Fergus logo seria seu marido e, pela lei, o que era seu seria dele também. Duvidava que o tio aceitasse a idéia de algo seu passar para as mãos de um habitante das Terras Baixas. Havia escrito para ele a fim de comunicar seu casamento, mas ele provavelmente não tinha recebido a carta antes de enviar sir Artan à sua procura. Sê o tio morresse antes de sua visita e sir Fergus se beneficiasse disso, suspeitava que Angus se revirada na cova. Ele sempre deixara bem clara a péssima opinião que tinha sobre os habitantes das Terras Baixas, fingindo não se lembrar de que seu pai era um deles.

Pensava na última vez em que ela, o pai e o irmão haviam estado juntos quando se assustou ao sentir Anabel beliscar seu braço. Ergueu o olhar e não se surpreendeu ao ver a expressão rancorosa da tutora, o que era algo comum.

— Vá limpar as manchas de sangue na manga antes que não saiam mais. Acho bom não estragar esse vestido. E volte depressa. Ficarei aborrecida se você chegar atrasada para se sentar à mesa.

Ao rumar para o quarto, Cecily mal continha a irritação. Anabel achava que a culpa das manchas de sangue era sua? Bem possível. A tutora sempre esperava um pedido de desculpa quando lhe arrancava sangue com surras ou beliscões. Cecily aceitava os castigos pelos erros cometidos, mas jamais se achara merecedora da ferocidade com que Anabel os aplicava.

Bem no momento em que planejava se esforçar mais para ser humilde e obediente, ouviu o riso alegre de Davida. Olhou para a porta pela qual passava e indagou-se por que sentia vontade de abri-la e entrar naquele quarto, a fim de interromper o que a criada e sir Artan faziam. Como Davida tinha conquistado a merecida reputação de libertina, não restava dúvida sobre como os dois se divertiam. Apenas não entendia por que isso a perturbava. Com esforço, seguiu para o próprio quarto a fim de obedecer às ordens de Anabel.

Com um olhar severo, Artan afastou as mãos de Davida. A criada mostrava-se ansiosa e pronta mas, apesar de fazer um bom tempo que ele não apreciava os favores de uma mulher, sentia que não devia ceder. O pensamento e, pelo jeito, o resto do corpo pareciam ter decidido que logo seria um homem casado. Gostara da aparência de Cecily e do som de sua voz. Tinha havido um lampejo de vivacidade em sua atitude ao ser a única pessoa a ir recebê-lo. Precisava descobrir mais a seu respeito, mas seria difícil se ela soubesse que levara Davida para a cama. O instinto lhe dizia que essa criada não era do tipo que mantinha as aventuras amorosas em segredo.

— Se você quer algo além de me ajudar com o banho, é melhor ir embora.

Davida não disfarçou a surpresa.

— Não quer...

— Não quero. Você é uma mulher bonita, mas logo serei um homem casado.

Ela sorriu e recomeçou a passar a mão no abdômen dele.

— Não contarei a ninguém, e o que a moça não souber...

— Eu saberei — Artan a interrompeu e, aborrecido porque o corpo reagia, empurrou-lhe a mão.

— Não parece tão relutante...

— Nós dois sabemos que essa parte do homem não pensa nem tem princípios morais. E não creio que seu senhor a tenha mandado aqui para isso.

— Ah, mandou, sim. E, se não fosse ele, lady Anabel o faria. Acho que a intenção deles é fazê-lo perder parte da festa.

Artan disfarçou o choque, embora soubesse que certas fortalezas contavam com mulheres para oferecer aos hóspedes. O que o espantou foi o motivo pelo qual ela acreditava que a cortesia tinha sido oferecida.

— Você terá problemas por falhar? — indagou e, ao ver-lhe a expressão matreira, acrescentou em voz firme: — A verdade!

Ela suspirou.

— Não. Sir Edmund e lady Anabel pensarão que é tão rápido quanto ele e sir Fergus.

Apesar de a idéia de passar por um amante tão ruim lhe ferir o orgulho, Artan concentrou-se no que Davida acabava de revelar.

— Você deitou-se com os dois? — indagou, entrando no banho.

— Claro, mas admito que eles não valeram o esforço. Sir Fergus gosta de alguma violência, se entende o que quero dizer.

— Sim. Mas ele não pode mais estar levando você para a cama, não durante a celebração do próprio casamento.

Davida riu.

— Engana-se. O homem levou quase todas as criadas daqui para a cama, elas querendo ou não. As que se queixaram para lady Anabel foram repreendidas. Quando sir Fergus está aqui, por estranho que pareça, age como se ele fosse o senhor da propriedade, e não os Donaldson.

— Estranho mesmo. Não posso imaginar lady Anabel curvando-se para alguém -—Artan murmurou pensativo e passou a ouvir a litania da criada sobre a senhora da mansão.

Começou a ficar preocupado. Se acreditasse em Davida, Cecily era tratada como uma parenta pobre que, se não fosse acolhida, morreria de fome. Pelo que Angus lhe contara, o cunhado tinha sido um pai extremoso e não fazia sentido que houvesse deixado a filha sem recursos e à mercê de parentes tão maldosos.

Saiu do banho e, enquanto Davida o enxugava, continuou a remoer os pensamentos sobre o que acabara de ouvir. Pouco depois, já estava vestido e em pé diante da lareira.

Percebeu que havia muitas perguntas a serem feitas, e cada uma com várias respostas possíveis. Sabia que tinha de descobrir a verdade. Mesmo que não se casasse com Cecily, pelo bem de Angus, precisava ter certeza de que ela era bem tratada e estava feliz. Indagou-se por que um objetivo tão louvável não parecia o suficiente para satisfazê-lo. Olhou para Davida que, de joelhos, enxugava o chão.

— É uma decepção pensar que lady Cecily não se importa com a maneira como as criadas são maltratadas em sua casa — comentou numa fingida voz de tristeza.

— Oh, a menina não sabe de nada a esse respeito. E que Deus tenha piedade de quem se atrever a lhe contar — Davida disse ao erguer-se e sacudir a saia. — Acho que lady Anabel teme que ela se recuse a casar com sir Fergus, caso descubra como ele é na realidade. A pobre menina já tem seus problemas e não precisa sofrer com os das outras, nem poderia fazer nada para ajudá-las.

— Então esse casamento não foi escolha dela?

— Por que está tão interessado nisso?

— Seu tio, que está à beira da morte, mandou-me vir até aqui.

— Ah, sim. Bem, não acho que lady Cecily tenha muita opção. Ela parece ter aceitado. — Pôs as mãos nos quadris e franziu a testa. — Nunca entendi por que não deixaram a pobre menina ir morar com o tio. Para quem tem olhos, fica claro que lady Anabel não gosta dela. — De repente, ela corou e baixou o olhar. — Ora, o que sei eu? Não deve me dar ouvidos. Falei do que não é da minha conta.

— Não repetirei uma única palavra. Fique sossegada, moça. O tio dela vai querer saber a verdade e suspeito que não arrancarei nada dos tutores e do noivo de lady Cecily.

— Nem se fossem chicoteados eles revelariam a verdade — Davida afirmou antes de indagar: — Se o tio da menina se importa tanto com ela, por que a ignorou durante esses anos todos?

— Ele não fez isso, pois escrevia para ela com freqüência.

A criada o fitou com incredulidade.

— Ora, a pobre menina nunca recebeu uma única palavra do homem. No início, ela lhe escrevia sempre. Foi de cortar o coração quando ela, finalmente, se deu conta de que ele não ia responder suas cartas e nem vir visitá-la. Então, passou a escrever-lhe só na época da festa de São Miguel. Ela sabe que só lhe restou essa corja de parentes. Não é muito triste? — Suspirou, mas logo voltou a sorrir com um olhar malicioso, revelando que a compaixão por Cecily estava sendo substituída pela luxúria por ele. — Não quer que eu o ajude a acabar de se arrumar?

— Não, eu mesmo farei isso. O suspiro profundo de Davida ao sair do quarto estimulou a vaidade de Artan e o fez sorrir. Mas o bom humor logo evaporou. O que ouvira da criada tinha provocado suspeitas. Não era apenas o fato de Cecily nunca ter recebido as cartas e presentes de Angus. Artan não podia acreditar que o pai dela a tivesse deixado na penúria. Talvez não houvesse previsto como o primo e a esposa tratariam a filha. Se o homem tivesse sido o único com posses na família, Edmund e Anabel teriam se comportado sempre bem na presença dele. Muito do que Davida havia lhe contado sobre a situação em Dunburn poderia ser explicado, mas jamais o fato de Cecily nunca ter recebido nada de Angus. Alguém queria garantir que ela sentisse não ter escolha, não contar com ninguém a quem recorrer. Por quê? Todas as respostas que ocorriam a Artan eram péssimas. Mesmo se ele já não estivesse considerando a sugestão de Angus de se casar com Cecily e herdar Glascreag, sentia-se tentado a ficar em Dunburn e investigar. Havia usado a desculpa de Angus estar à morte para forçar a criada a falar, mas atrás disso existia a verdade. Sem dúvida, ele gostaria de saber o que estava acontecendo com a sobrinha.

Estranho que se sentisse tão ultrajado com a possibilidade de a moça, que acabava de conhecer, estar sendo maltratada ou ludibriada; contudo, aceitava a reação. Aliás, não costumava examinar os sentimentos. Ou os acatava como razoáveis ou os ignorava. Desta vez, o instinto lhe dizia que havia motivo para se sentir ultrajado, mesmo que fosse só por se tratar da sobrinha de Angus. Ficaria em Dunburn, ainda que sua presença fosse indesejável, e descobriria o que ocorria ali. Ao lembrar-se de um par de enormes olhos verdes, admitiu que havia outra boa razão para ficar. Podia muito bem ter encontrado sua companheira.

 

Cecily relanceou o olhar por Fergus, que se sentava do outro lado da mesa. Como seu noivo, deveria ocupar o lugar a sua direita, mas, em vez dele, estava o homem que dera um jeito de usurpar-lhe tal direito. Ela estava com a sensação incômoda de que sir Fergus fora covarde demais para exigir os próprios direitos. Parecia que o noivo, além de queixo, também não tinha pulso firme.

Pelo canto dos olhos, viu Artan servi-la de fatias de ganso assado. Para um homem esguio, ele ocupava um bom espaço no banco. Cada vez que roçava a coxa musculosa na sua, ela se afastava um pouco, e já havia chegado ao fim do banco. Sua impressão era de que acabaria sentada no colo dele. Por que tal absurdo lhe provocava uma estranha onda de calor?, indagou-se.

Devia ser o que se sentia diante de uma tentação, refletiu e resolveu prestar atenção ao tanto de comida que ele lhe pusera no prato.

— Coma tudo, moça, pois vai precisar de energia.

Enquanto mastigava depressa um pedaço de carne, Cecily imaginou o que ele queria dizer. Olhou para o prato cheio e começou a se sentir insultada. Embora não fosse muito grande, não era franzina.

— Por que acha que devo armazenar energia?

— E óbvio que estas festas vão mantê-la ocupada desde o nascer do sol até a noite, durante duas semanas. Então, chegará o dia do casamento, seguido pela noite de núpcias.

A noite de núpcias, Cecily lembrou e estremeceu. Havia se esforçado muito para esquecê-la. Desesperada, tentou pensar em qualquer outra coisa que a fizesse voltar ao estado reconfortante de ignorância abençoada.

— Meu tio se encontra mesmo à beira da morte?

— Ele está doente e já tem sessenta anos.

Cecily franziu a testa e imaginou por que seus olhos se enchiam de lágrimas. Fazia muito tempo que não via o tio, e ele nunca mostrara interesse algum em procurá-la. Nesses anos todos, ela havia feito o possível para se convencer de que isso não importava. Era o que se podia esperar, pois ela, como mulher, não podia ser herdeira dele. Entristecia-se ao pensar que ele talvez falecesse logo, e que ela nunca mais teria a oportunidade de revê-lo.

— É natural um homem desejar ter as pessoas queridas ao seu lado quando pressente o fim da vida — Artan murmurou ao notar sua tristeza, na esperança de aproveitar a situação para convencê-la a partir logo de Dunburn.

— Pessoas queridas?! — ela exclamou numa voz amarga. — Ele não me considera uma. Se me amasse, teria me escrito e vindo me visitar.

— Por que tem certeza de que ele não lhe escreveu?

— Ora, nunca recebi uma única carta. Nem um mísero bilhete. Também não veio me visitar e nem me convidou para ir vê-lo.

Apesar das palavras exasperadas, Artan sentiu sua mágoa profunda e praguejou mentalmente. A menos que pudesse provar que seus tutores a tinham mantido sem contato com Angus de propósito, seria difícil livrá-la das garras deles. E não seria fácil arranjar provas. Pelo menos, refletiu, disfarçando um sorriso, procurá-las lhe daria algo para fazer enquanto ficasse em Dunburn.

— Estranho. Sei muito bem que ele tentou.

— Escrever ou visitar?

— Escrever. Temo que seu tio não viria aqui a menos que você estivesse correndo sério perigo. Ele não gosta das Terras Baixas.

— Afirmação delicada. Ele odeia este lugar e seus habitantes.

— Mas gostava de seu pai, certo?

— É verdade — ela murmurou em voz suave. Uma onda repentina de boas lembranças a fez sorrir. — Tio Angus sempre falava como se meu pai fosse das Terras Altas e, por isso, não se constrangia em criticar os habitantes das Terras Baixas. Acho que apenas os ingleses o enraiveciam mais.

— Os ingleses provocam a raiva de todos. Cecily reprimiu a vontade de rir. O homem tinha falado como se mencionasse uma lei divina. De muitas maneiras, ele se expressava como seu tio. Isso a fez imaginar qual seria a relação dele com Angus MacReith. O tio não designaria qualquer um como seu emissário.

— Qual é seu relacionamento com meu tio? Por acaso é seu parente?

Mais uma vez, Cecily não sabia por que essa idéia a desagradava.

— Sou apenas um primo distante, bem como minha mãe. Malcolm, sim, é primo em segundo grau de Angus.

— Malcolm? Não me lembro de alguém com esse nome — Cecily disse.

— Cabelos castanhos, ralos, rosto comprido e olhos pequenos. Lembra uma fuinha, uma bem covarde.

A descrição rude não reavivou a memória de Cecily, embora pensasse em sua última visita a Glascreag. Surpreendeu-se como muitas lembranças continuavam nítidas depois de tantos anos e com o fim trágico da viagem. Uma delas era bem clara. Houvera uma festa, e muitos parentes estavam presentes. A intenção do tio era que eles conhecessem Colin que, um dia, seria seu herdeiro. Dois deles vieram-lhe à mente, uma mulher gorducha e o filho. Ambos desaprovavam a idéia de tal herdeiro e até ela, ainda criança, percebera a reação.

— Lady Seaton e o filho.

— Exato, Malcolm Seaton. A mãe também era prima de Angus e esperava que o filho fosse seu herdeiro.

— Se bem me lembro, ele era um rapazinho irritante.

— Você está certa. Era e ainda é. Dissimulado, astucioso, débil e desonesto.

— Tio Angus deve estar desalentado com a idéia de tal homem vir a ser o senhor da propriedade.

— Ah, muitíssimo.

Artan tentou encontrar outro assunto sobre o qual conversar, pois esse estava muito ligado à sua vinda a Dunburn. Se pensasse, por um minuto, que a verdade faria Cecily acompanhá-lo a Glascreag, ele a revelaria. Mas o instinto o avisava de que ela não a aceitaria bem. Mulheres tendiam a se ofender com a idéia de que se casavam por causa de terras ou dinheiro que levariam como dote, mesmo isso sendo de praxe. Admitia que estava interessado na posição de herdeiro de Angus, mas não se casaria somente por causa disso. Infelizmente, quando Cecily se inteirasse da combinação com o tio, questionaria seus motivos para querê-la como esposa.

Naturalmente, ainda não tinha certeza de que iria fazer o que Angus queria. Cecily era adorável e apenas ouvir sua voz o agradava e excitava. Porém, um casamento exigia mais do que propriedades e beleza, e ele ainda não estava seguro de que encontraria nela tudo o que desejava em uma esposa. O que precisava fazer era roubar-lhe alguns beijos. Sabia muito bem que um homem podia se excitar com a beleza de uma mulher para depois se encontrar envolvido por braços gélidos.

Ao olhar disfarçadamente para sir Fergus, sir Edmund e lady Anabel, suspeitou que seria muito difícil cortejar Cecily. Não que fosse perito nessa arte, refletiu. A melhor chance de convencê-la a voltar com ele para Glascreag seria provar que os tutores e o noivo não mereciam sua lealdade. Também precisava manter seu interesse para que ela estivesse sempre por perto. Porém, não contava com muito tempo. Quanto mais via aquelas pessoas, mais se convencia de que o melhor para Cecily era ir para junto do tio. Se ela não concordasse em acompanhá-lo e faltasse pouco para o casamento, não haveria alternativa a não ser levá-la à força.

Tendo em mente esse plano, conseguiu relaxar. Achava a companhia péssima, e até irritante, exceto a de Cecily, mas a comida e o vinho eram excelentes. Anabel sentava-se à sua direita e estava furiosa, ele sabia. Quase podia sentir o olhar raivoso penetrar-lhe a pele. As irmãs sempre o acusavam de ser insensível, o que, naquela situação, era algo positivo. Caso fosse suscetível, estaria sofrendo por ser indesejável ali. Quase sorriu ao se servir de mais comida. Se essas pessoas pensassem que ele desistiria e voltaria para Glascreag como um cão enxotado, só porque o tratavam mal, estavam destinadas à derrota.

— Eu não me lembro de vê-lo em Glascreag — Cecily comentou.

— Porque eu não estava mais lá. Meu irmão e eu fomos educados por Angus. Por ocasião de sua visita à propriedade, nós já tínhamos voltado para Donncoill porque nossa avó estava doente.

— Ah, lamento. É sempre triste quando os idosos fraquejam, mesmo sabendo-se que isso deve acontecer. Ela se recuperou?

— Sim, embora tenha sido custoso. Mas você está certa. Ela já tem setenta anos e meu avô, oitenta. O tempo deles está se acabando; devemos agradecer por cada dia em que ainda estão conosco e rezar para que o fim seja fácil. Será uma grande perda para o clã, mas ambos gozaram uma existência feliz.

— Saber disso será um grande consolo — ela afirmou e, depois de hesitar um pouco, perguntou: — Meu tio também gozou uma boa vida?

— Sem dúvida. Como um guerreiro valoroso, defendeu suas terras contra todos os que tentaram invadi-las.

Não era exatamente o que ela queria ouvir, mas percebeu que ele considerava aquilo um grande elogio. Cecily deu-se conta de que, por ter sido educado por seu tio, Artan possuía algumas qualidades dele. Conhecê-lo seria como conhecer seu parente mais próximo.

Distraiu-se observando-o comer. Tinha um apetite prodigioso, mas exibia maneiras excelentes. Ele referia-se de maneira mordaz a cortesãos bajuladores, mas, pela aparência e pelos modos refinados à mesa, poderia enfrentar qualquer um deles. Não entendia por que, de repente, ela sentia que era perigoso conhecê-lo bem. Nesse momento, ele a fitou e sorriu, dando-lhe a sensação de que algo em seu íntimo se diluía. Ali estava o perigo, pois, pela primeira vez na vida, sentia-se atraída por um homem. Ao considerar como ele havia entrado em Dunburn, com um homem quase desfalecido em cada mão, Cecily achava sua reação espantosa.

— Aceita mais alguma coisa? — Artan perguntou, imaginando por que ela parecia tão perplexa.

Ao olhar para o prato vazio, Cecily admirou-se por ter se alimentado tão bem. Fazer uma refeição ao lado dos tutores e do noivo sempre lhe tirava o apetite. Naquela noite, ela não precisaria do prato com fatias de carne, queijo e pão que a bondosa cozinheira sempre levava às escondidas para seu quarto.

— Não, obrigada. Estou satisfeita.

— Que tal uma fruta, maçã talvez? — ele sugeriu quando a sobremesa começou a ser oferecida.

— Ah, sim, maçã por favor.

Ela arregalou de leve os olhos ao vê-lo tirar uma faquinha da manga da camisa e escolher uma enorme maçã na cesta que um pequeno criado segurava. Com movimentos rápidos, cortou a fruta ao meio, tirou as sementes e fatiou-a, colocando-a no prato dela. Depois, repetiu os movimentos, serviu-se e embainhou a faca sob a manga da camisa. Artan Murray era um homem bem armado. Reparou que ele não havia oferecido a mesma gentileza a Anabel. Talvez seus modos não fossem assim tão bons, afinal. Para conter a vontade de rir, enfiou uma fatia de maçã na boca.

— Gostou de ser educado por meu tio? — perguntou depois de engolir a fruta, dizendo a si mesma que a curiosidade se referia ao seu parente, e não a Artan.

— Muito. Meu clã não costuma mandar os filhos para outras propriedades a fim de serem instruídos. Porém, tínhamos muitos rapazinhos, e Angus escreveu à minha mãe para saber se alguns dos meninos Murray gostariam de morar com ele. Preferia que fossem os filhos dela, já que éramos parentes, mas ficaria contente com qualquer um dos jovens. Lucas e eu decidimos ir, bem como meus primos Bennet e Uilliam, filhos de meu tio Eric. Angus ficou muito satisfeito quando se viu com quatro rapazinhos para instruir. Donncoill e as terras de meu tio Eric são um pouco pacíficas demais para alguns meninos. — Piscou para ela.

— Um lugar pode ser pacífico demais?

— Ah, sim, especialmente quando se é um jovem rapaz com a intenção de se transformar em um grande e temível guerreiro.

Cecily teve de sorrir. Havia um toque de ironia na voz profunda que a encantou. Pelo canto dos olhos, viu que Fergus a observava, mas o ignorou. Embora algumas regras de boa conduta houvessem sido relaxadas nessa ocasião, por conta da quantidade de pessoas no local, ainda se considerava impróprio conversar por sobre a mesa. Fergus não tinha quebrado tal barreira, e ela também não viu motivos para fazer isso. Se ele desejava se sentar ao lado dela para conversarem, não devia ter aberto mão de seu lugar tão depressa.

— Se bem me lembro, Glascreag era um lugar agreste, talvez até perigoso, portanto muito adequado para estimular rapazinhos.

— Ainda é, sem dúvida.

Apesar de uma voz em sua mente avisá-la de que pagaria caro por ignorar o noivo e Anabel, Cecily manteve a atenção a Artan. Ele era uma mudança tão marcante de suas companhias às refeições que não podia deixar de aproveitá-la. A maneira com que se referia a Glascreag e a Angus MacReith revelava um grande amor por ambos. Imaginou como seria sentir tamanha ligação com o local em que se vivia e com as pessoas que o habitavam. Tempos atrás, ela havia amado Dunburri e seu povo, mas o afeto morrera com a família. Em vão, tentara recuperar a sensação de pertencer àquele lugar.

Tão logo o banquete terminou, Cecily achou melhor escapar do salão. Não queria enfrentar Anabel e Fergus. Não fizera nada de errado, tinha certeza, e não desejava ser forçada a admitir o contrário e aceitar a repreensão. A sensação de autoconfiança que a dominava era algo raro, e queria apreciá-la.

Não se surpreendeu ao se ver acompanhada por Artan a caminho de seu quarto. Nem mesmo tentou compreender como ele tinha conseguido surgir ao seu lado. Sem dúvida, com a mesma habilidade com que havia usurpado o lugar de Fergus à mesa. O fato de não ter de suportar a admoestação ou um beijo do noivo era razão suficiente para ser grata à esperteza de Artan.

À porta do quarto, ela se virou para desejar-lhe boa-noite e o apanhou fitando-a com um olhar intenso. Crispou as mãos ao longo do corpo para resistir ao impulso de verificar o penteado e o vestido.

— Obrigada por me acompanhar até aqui, sir Artan. Não era necessário, mas eu apreciei muito.

Artan observou os olhos lindos, notou sua incerteza e decidiu que precisava fazer uma última coisa antes de estar seguro do passo seguinte. Colocou as mãos na porta, uma de cada lado de Cecily, e aproximou-se, até quase os corpos se tocarem. Considerou bons sinais o leve arquejar em sua respiração e os olhos arregalados. Enquanto curvava a cabeça, olhou seu rosto. A mudança rápida de expressão revelou que ela sabia o que estava prestes a acontecer. O fato de ela não tentar impedi-lo o encorajou.

No momento em que os lábios dele roçaram os seus, Cecily sentiu uma onda de calor inundar-lhe o corpo com tanta força que ficou atordoada. Os de Fergus não eram tão quentes, suaves e delicados. A única reação que o noivo provocava nela era desinteresse, com laivos de repugnância e medo.

No início, a pressão da língua em sua boca fechada a intrigou. Então, Artan sugou levemente seu lábio inferior, fazendo-a suspirar e experimentar um sem-fim de reações pelo corpo todo. Entreabriu os lábios, e ele invadiu sua boca. Num segundo, ela estremecia sob o vigor das carícias.

Quando ele começou a se afastar, segurou-o pela frente da camisa, tentando puxá-lo de volta. Porém, ao escutá-lo rir com suavidade, recuperou o bom senso e soltou-o rapidamente. Enquanto o fitava, atônita, Artan abriu a porta e, com delicadeza, a fez entrar no quarto. Atordoada, ela o viu sorrir.

— Durma bem, Sile — ele desejou antes de fechar a porta.

Cecily tocou os lábios com os dedos trêmulos. O coração disparado batia com tanta força que ela quase esperava ver o tecido do vestido mexer no mesmo ritmo. Beijar um homem quando estava noiva de outro era um pecado grave. No momento, com o sangue fervendo nas veias, resultado das sensações incríveis, ela não se importava. Apenas esperava que não tivesse de cumprir uma penitência muito grande.

Assobiando baixinho, Artan dirigiu-se ao seu quarto. O beijo compartilhado com Cecily tinha marcado, com clareza, a trilha que ele seguiria. Sob aquela beleza tímida, havia chamas que, com o beijo, tinham crepitado depressa. E, melhor ainda, ela despertara nele as mesmas sensações. Cecily seria sua.

Quando viu sir Fergus Ogilvey à porta de seu quarto, quase lhe comunicou a decisão. Apenas o conhecimento instintivo da existência de enigmas em Dunburn, que tinham de ser esclarecidos, o manteve calado. E não era somente a antipatia por Fergus que o levava a acreditar que o homem fazia parte de tais segredos. Artan parou diante dele, cruzou os braços no peito e o encarou de cima. Ao ver-lhe a transpiração sobre o lábio superior, sentiu uma ponta de satisfação. O fato de ele se manter firme, apesar do medo, mereceria algum respeito, caso Artan não tivesse visto dois sujeitos grandalhões escondidos na sombra, a alguns passos de distância.

— Saia daí, rapaz — ordenou a Fergus. — Quero ir me deitar e você está bloqueando a porta.

— Acho que seria sensato, sir Artan, que fosse embora de Dunburn amanhã cedo — Fergus o aconselhou.

— É mesmo? E por que acha isso?

— Porque lady Cecily Donaldson vai se casar comigo, e eu não vou tolerar sua interferência.

Foi a firmeza da declaração, aliada ao leve ruído de botas arrastando no chão de pedra, que alertou Artan. Quando os homens atacaram, ele estava preparado. A luta foi rápida. Os sujeitos não tinham percebido que ele antecipara a agressão. Artan olhou para o pálido Fergus que, de olhos arregalados, via seus homens caídos.

— Mexam-se — Artan ordenou e, satisfeito, viu os três sumirem.

Tão logo entrou no quarto, trancou a porta. Se fosse ciúme que tivesse provocado a raiva de Fergus, talvez não se importasse, mas pressentia que não havia sido. Isso queria dizer que aquela não seria a única tentativa do sujeito para forçá-lo a ir embora.

Sorriu enquanto se preparava para deitar. Seduzir uma mulher e evitar uma ameaça. Aquela visita a Dunburn tinha melhorado muito, sem dúvida.

— Não quis ir caçar com os outros? — Cecily perguntou a Artan ao sentar-se à mesa e começar a se servir do que tinha sobrado da lauta refeição matinal.

Encontrá-lo ainda no grande salão a surpreendia. Como ansiasse apreciar uns momentos de sossego, havia esperado bastante para ir se alimentar, pois queria ter certeza de que os hóspedes e anfitriões já tivessem saído para caçar. Estranhou não se aborrecer ao vê-lo ali e tentou não enrubescer quando começou a imaginar se ele lhe daria outro beijo. Talvez um mais longo do que o da véspera.

— Não — ele respondeu. — Já vi tais caçadas e as considero matanças nocivas. Muitos dos idiotas não acertam bem no alvo e fazem tanto barulho que afugentam a caça. Seria melhor se uns poucos homens capazes fossem incumbidos de trazer carne para as refeições. Esses cortesãos passariam fome se tivessem de caçar para comer.

Cecily espantou-se. Ele tinha se referido aos caçadores numa voz tão comedida que lhe custara perceber a severidade da crítica. Tudo era verdade, claro, e ela pensava da mesma forma, mas não esperava que um homem compartilhasse sua opinião.

— Alguns bons caçadores também foram — ela informou.

— Sei. Para dar o golpe de misericórdia nos animais que os idiotas feriram.

Ela encolheu-se e quase concordou. Apenas a noção de que estaria insultando os hóspedes, os parentes e o noivo a impediu de fazê-lo. Pela expressão nos olhos de um azul prateado, Artan mostrava que não se espantaria se aquelas pessoas fossem piores do que a maioria.

— Bem, já que ficamos só nós dois aqui, não gostaria de cavalgar comigo? — Artan convidou. — Nunca visitei ás Terras Baixas e duvido que volte algum dia. Eu apreciaria conhecer Dunburn, levado por uma pessoa que conhece bem o local.

— Teremos de ficar fora do caminho dos caçadores.

Cecily sabia que suas palavras indicavam ter aceitado o convite, mas ignorava o que a instigara a fazê-lo. Embora fosse seu dever ajudar a entreter os convidados, duvidava que cavalgar a sós com Artan fosse julgado correto. Anabel era muito severa com ela e as filhas e nunca permitia que ficassem a sós com um homem. Podia pedir a Peter, o rapaz do estábulo, para acompanhá-los, mas duvidava que isso satisfizesse Anabel ou Fergus.

Quase se arrependeu da decisão. Porém, a rebeldia provocou-lhe uma sensação deliciosa e inesperada. Ninguém se importava se ela estava se distraindo ou não. Nenhum dos hóspedes era seu amigo. Logo estaria casada com Fergus e duvidava que, então, se divertisse ou fizesse amizades. Também admitia que não ficaria desapontada se sua conduta provocasse o rompimento do noivado. Pela primeira vez, ia fazer exatamente o que queria. Passearia a cavalo com Artan. Apanhou-se sorrindo várias vezes para ele enquanto terminavam a refeição.

Artan sentia-se satisfeito enquanto a acompanhava para fora do grande salão. Havia temido que sua expressão de incerteza significasse que não cavalgaria com ele. Mas, então, a determinação brilhara em seus olhos verdes e lindos, indicando a resolução favorável. A jovem ainda não estava totalmente domada para aceitar as rédeas curtas de lady Anabel.

Quando se aproximavam do estábulo, Artan notou a sensação estranha ao longo da espinha, que sempre prenunciava perigo. Como o pátio estava quase vazio, dirigiu a atenção ao estábulo. A sensação de perigo aumentou muito. Virou-se para Cecily e sorriu. Se houvesse algo arriscado lá dentro, não queria que ela se expusesse.

— Espere aqui fora, Sile. Trarei seu cavalo.

— Sei encilhar minha montaria e não me importa fazê-lo.

— Parabéns. Isso é muito bom. Mas minha mãe me ensinou a ser cortês e fazer essas coisas para uma dama.

Cecily sorriu e assentiu com um gesto de cabeça. Preferia mesmo ficar ali fora, apreciando o sol e o ar fresco. Depois de Thomas, o chefe do estábulo, ter morrido três anos atrás, a limpeza lá dentro havia declinado bastante.

Enquanto se deliciava com a temperatura agradável, indagou-se o motivo de sua súbita rebeldia. A maneira como estava agindo desde a chegada de Artan não parecia a sua habitual. Ela acreditava que havia se resignado ao casamento arranjado pelos tutores, porém talvez tivesse se enganado. Sempre que olhava para sir Artan Murray, uma voz lhe dizia para fazer o que desejava e não o que deveria, pois logo estaria casada com Fergus.

Uma série de batidas estranhas no estábulo desviou sua atenção dos pensamentos sombrios sobre seu futuro como lady Ogilvey. Franziu a testa e olhou para a entrada do estábulo. Os barulhos se assemelhavam a corpos batendo contra alguma coisa dura, um tipo de ruído que, felizmente, ela ouvira poucas vezes. Não pareciam sons produzidos por uma pessoa encilhando dois cavalos. Embora não imaginasse que espécie de perigo Artan poderia correr lá dentro, sentiu uma ponta de apreensão pela segurança dele e aproximou-se da porta.

— Sir Artan, precisa de ajuda? — perguntou.

— Não, obrigado. Espere aí. Sairei em um instante. Apesar de a voz dele soar vigorosa e animada, Cecily não se acalmou. Decidiu esperar mais alguns minutos e, se ele não aparecesse, iria procurá-lo. Com o olhar preso na entrada do estábulo, tentou arregimentar coragem para o caso de precisar.

Artan olhou para os três homens inconscientes no chão e balançou a cabeça. Reconhecia dois da noite anterior. Pelo jeito, Fergus não desistiria de forçá-lo a ir embora de Dunburn. Enquanto terminava de encilhar os cavalos, percebeu que precisava se esforçar ao máximo para convencer Cecily a partir com ele. Também era essencial descobrir os segredos que seus tutores mantinham. Se Fergus continuasse a aumentar o número de homens para atacá-lo, o idiota conseguiria impedi-lo de se defender.

Ao levar as montarias até onde Cecily o esperava, retribuiu seu olhar preocupado com um sorriso relaxado. Ela o examinou da cabeça aos pés, olhou para a porta do estábulo e tornou a fitá-lo. Sem dúvida estava curiosa sobre os barulhos que devia ter ouvido. Felizmente, as marcas das poucas pancadas de que fora alvo estavam sob as roupas.

— Vamos? — ele perguntou.

— Que barulhos foram aqueles lá dentro? — Cecily indagou curiosa enquanto ele a ajudava a montar em sua égua.

— A que está se referindo?

Artan montou Thunderbolt e rumou para o portão da muralha.

— Batidas. Pareciam muito com corpos se chocando contra a parede.

— Ah... E esse é um barulho que ouve com freqüência?

O instinto lhe disse que ele tentava distraí-la, e Cecily sentiu uma forte vontade de apagar o sorriso daquele rosto atraente.

— Não muitas vezes, mas o bastante para reconhecê-lo.

— Como os coices de Thunderbolt na baia, ansioso para sair, imagino. — Artan deu uns tapinhas no pescoço do garanhão, num pedido silencioso de desculpa por falar mal de seu comportamento.

Cecily estava prestes a questionar a resposta, mas ficou consternada. Quase podia ouvir Anabel gritar para ela que uma mulher jamais duvidava da veracidade das palavras de um homem. A tutora também afirmava que isso não significava que ele estivesse dizendo a verdade, pois os homens raramente o faziam. O que desconsolava Cecily era o fato de ter absorvido o conselho, pois não havia motivo para duvidar dele. Prometendo a si mesma que se livraria dessa opinião maldosa e injusta, passou a mostrar-lhe as terras que o pai tinha amado tanto.

Enquanto as observava, ele notou o tom afetuoso da voz dela e imaginou se Cecily também gostaria das paisagens agrestes das Terras Altas. As de Dunburn eram boas, mas civilizadas demais e não muito bem cuidadas. As ocasionais expressões sombrias que marcavam o rosto lindo de Cecily demostravam que ela notava o abandono crescente das terras. Devia fazer um bom tempo que não cavalgava por ali. Teria sido impedida de fazê-lo?, conjeturou.

Quando pararam à margem de um riacho de águas límpidas e velozes, Artan lembrou-se de tê-lo cruzado na vinda. Ouviu Cecily descrever as muitas horas que havia passado sob as árvores de um bosque ao lado. Sua voz tinha um toque de saudade e tristeza quando contou ter trazido o irmão até ali. Ele desmontou, ajudou-a a fazê-lo e a seguiu até a sombra das copas frondosas.

— Faz tanto tempo que não venho aqui — ela murmurou.

— Porque as lembranças provocam saudades? — ele perguntou ao pôr o braço sobre seus ombros.

— Em parte. Também porque Anabel não permite que eu cavalgue sozinha e qualquer acompanhante designado recebe ordens sobre os lugares por onde devo passar. Acho que a chance de sentir lembranças dolorosas me impediu de reclamar da restrição.

— Podemos ir embora se preferir.

— Não. Mesmo que as recordações de épocas felizes e do pobre Colin causem mágoa, existe mais alegria nelas do que tristeza. E errado agarrar-se ao infortúnio por muito tempo ou tentar apagar reminiscências sobre entes queridos que se foram apenas para nos poupar da dor de pensar neles.

Com os dedos sob o queixo delicado, Artan ergueu-lhe o rosto. Beijou-a de leve, num gesto de consolo. Porém, quando Cecily o enlaçou pelo pescoço e aproximou o corpo esguio do seu, o sentimento de simpatia transformou-se logo no de paixão crescente.

Abraçada a Artan, Cecily entreabriu os lábios para que ele aprofundasse o beijo. Um arrepio percorreu-lhe o corpo ao sentir cada recanto de sua boca ser explorado. Num gesto tímido, tocou a língua dele com a sua, mas um gemido baixo e quase feroz a incentivou a ser mais ousada ao retribuir a carícia.

Artan teve de valer-se de toda a força de vontade para soltar-se do abraço ardente. Deliciou-se com o suspiro de protesto que ela emitiu e com a tentativa de puxá-lo de volta, mas manteve-se firme. Não a possuiria ali sob as árvores, à luz do dia e correndo o risco de serem descobertos. Ela talvez não soubesse que essa seria a conseqüência dos beijos apaixonados.

Enquanto roçava os lábios em sua testa, Artan refletiu que, se fossem surpreendidos rolando nas margens do riacho, seu noivado com Fergus poderia ser rompido. Isso significava que ele não precisaria mais se esforçar para conquistá-la e poderia simplesmente levá-la embora para Glascreag. Então, deu-se conta do quanto ela se sentiria humilhada e de como seria impossível para ele agir dessa forma. Também havia a possibilidade de ela não ser rejeitada pelo noivo, mas sua vida se tornaria um inferno. Nem ele teria a oportunidade de descobrir o que ocorria em Dunburn.

Aquilo tinha de parar imediatamente, decidiu, afastando-se mais um passo da tentação daquela boca.

Ao vê-la perceber o que tinham feito, a vergonha surgindo em seu olhar e o rubor cobrindo suas faces, ele lhe ofereceu seu sorriso mais convencido. Como suspeitara, funcionou com ela, da mesma maneira que, com freqüência, funcionava com suas irmãs. A expressão de vergonha foi logo substituída pela de raiva. Porém, antes que ela tivesse a chance de atacá-lo com um comentário ferino, Artan sentiu algo passar zunindo perto do rosto. Enquanto a puxava para os braços a fim de protegê-la com o corpo, uma flecha cravou-se no tronco da árvore.

— Artan! — Cecily gritou, apavorada de que ele tivesse sido ferido, ou que logo fosse.

Sem responder, ele praticamente a atirou ao chão, deitando-se sobre ela, ao mesmo tempo em que uma segunda flecha cravava-se na árvore. Ele ouviu o tropel de cavalos afastando-se depressa, mas não pôde ver nada. Depois de alguns instantes, ergueu-se de joelhos; sem deixar de protegê-la com o corpo.

Artan não tinha dúvida de que alguém acabava de tentar matá-lo. A única coisa que o intrigava era o fato de fazerem isso quando estava junto a Cecily. Só podia acreditar que sua presença não era esperada. Imaginava que matá-la não traria benefício algum. Porém, tinha que levar em conta que ainda não havia descoberto os segredos escondidos pelos tutores e pelo noivo dela.

Ao se levantar devagar e ajudá-la a também fazê-lo, refletiu sobre a determinação dos tutores de que ela se casasse com Fergus. Embora não houvesse sinais de amor naquela união, estranhava a insistência do noivo para que nada impedisse o casamento. Daria a si mesmo mais três dias para desenterrar a verdade. Então, a levaria embora de lá, concordando ela ou não.

— O grupo de caçadores? — Cecily sugeriu com voz trêmula, abraçando-o, aliviada por ele não estar ferido.

— Talvez. — Voltaram para perto dos cavalos, e Artan procurou sinais de quem havia atirado as setas. — Devem ter percebido o engano quando você berrou meu nome.

— Eu jamais berro. — O riso suave dele amainou um pouco seus temores. — Eles não podem ser caçadores tão ruins. Você não lembra uma caça nem de longe.

— Nós estávamos sob a copa das árvores. Alguém pode ter se confundido.

— Pensando que veados vêm beber água a cavalo?

— Eu não disse que esse alguém não podia ser um completo idiota.

Cecily ia dizer algo mais, porém desistiu. Não acreditava que havia sido um acidente de caçada, e sabia que ele também não. O que mais poderia ser? Ela não tinha inimigos. Talvez Artan os tivesse, mas duvidava que algum deles o seguiria até Dunburn, ficaria à espreita até que ele saísse das muralhas e lhe atiraria flechas. E se houvesse alguém tão persistente e determinado atrás dele, não erraria o alvo... duas vezes.

Havia alguma coisa errada, concluiu, enquanto ele a ajudava a montar e lhe entregava as rédeas. Pela expressão dura no olhar dele, sabia que pensava da mesma forma. Intuía que ele tinha uma ou duas suspeitas, mas que não as revelaria. Ao menos, ainda não, pois não acusaria ninguém sem ter provas.

Não podia explicar como sabia disso; apenas sabia. Talvez outra intuição.

— Quem sabe não seria melhor ir embora de Dunburn — Cecily sugeriu numa voz suave quando já retornavam à fortaleza.

Artan ficou satisfeito ao notar o tom relutante com que ela fez a proposta. Sorriu e perguntou:

— E perder seu casamento?

Apesar do ataque e do medo provocado por ele, Cecily ainda sentia o efeito do beijo de Artan: Nem uma vez, depois do dia em que fora comunicada que se casaria com Fergus, havia sentido tamanha revolta ante a idéia. Após se aconchegar entre os braços fortes de Artan e de provar-lhe o beijo ardente, a perspectiva de se entregar a Fergus a deixava doente. Antes, ela se conformara com seu destino, pois o casamento tinha lhe parecido um dever. Agora, sentia como se marchasse para o purgatório.

— É melhor me contar exatamente o que aconteceu hoje.

Artan piscou, pegou a toalha ao lado da tina e tirou o sabão do rosto. Olhou para a mulher gorducha, de meia-idade, em pé ali perto, com as mãos na cintura e expressão severa no rosto bonito. Não sabia como havia entrado em seu quarto sem que percebesse. Ou ela era perita em ações furtivas, ou ele estava perigosamente perdido em reflexões.

— E quem é você, se me permite perguntar? — indagou.

— Sou Meg. Fui ama de Cecily e muitas outras coisas até a megera da Anabel me expulsar de Dunburn.

— Parece que você não foi longe.

— Quando soube que minha menina ia se casar, voltei. Sei muito bem como entrar e sair deste lugar sem que ninguém me veja.

— Por que lady Anabel a expulsou?

— Eu a peguei batendo na menina até tirar sangue. A desgraçada provou logo que sabia usar a vara, mas que não conseguia suportar alguns golpes. — Fez ar de aprovação ao ver o olhar de fúria do rapaz atraente.

— Disseram que o velho Angus MacReith o mandou para cá.

— E verdade.

— Por quê? Ele nunca se importou com a menina desde que o pai e o irmãozinho foram assassinados.

— Estranho. Ele alega que sempre escreveu para ela, convidando-a para ir a Glascreag. — Artan observou a expressão da mulher passar da confusão à fúria.

— Bem, se você fizer o favor de se virar de costas para eu sair do banho, me enxugar e me vestir, nós poderemos ter uma longa conversa sobre esse assunto.

Quando Artan terminou de se arrumar, a agitação de Meg indicava o quanto estava impaciente. Depressa, ele serviu duas taças de vinho, oferecendo-lhe uma. Entre um gole e outro, revelou suas suspeitas, os ataques sofridos e o que ocorrera perto do riacho. Porém, omitiu os beijos e a barganha proposta por Angus. Aquelas coisas não tinham nada a ver com o problema que Cecily enfrentava no momento e deviam permanecer em segredo. Pela expressão dos olhos escuros de Meg, soube que ela desconfiava que ele não estava revelando tudo, mas, para seu alívio, ela não o pressionou. ;

— Ao que tudo indica, eles não querem um emissário de Angus aqui — ela murmurou. — Esforçaram-se ao máximo para impedir qualquer contato dele com a menina. Está certo ao pensar que escondem alguma coisa. Sempre tive certeza disso. Jamais acreditei que o pai de Cecily não havia deixado nada pára ela. Ele era do tipo de homem que providenciaria instruções precisas a fim de garantir que ninguém da família ficasse à mercê de outras pessoas. Tampouco gostava de Anabel e Edmund ou confiava neles. Então, o que pretende fazer?

— Descobrir os segredos deles.

— Mas eles pretendem casá-la com aquele verme, e você acha que ele tem participação na trama.

Artan assentiu com um gesto de cabeça e afirmou:

— Cecily não se casará com ele.

— Mas quem poderá impedir isso? Você é um homem só.

— Se for preciso, vou amarrar e amordaçar Sile, colocá-la sobre a sela e fugir com ela para Glascreag.

Meg o observou por um instante.

— Se isso for necessário para salvá-la, eu o ajudarei. Artan sorriu e tocou sua taça na dela, num brinde silencioso à nova aliada.

 

― Esse homem simplesmente não vai embora!

Artan parou ao ouvir a voz irritada de Anabel, vinda pela porta entreaberta do solário. Depois de passar quatro dias tentando conquistar a confiança de Cecily e arrancar informações sobre os tutores, finalmente parecia que a sorte o favorecia. Em silêncio e com os ouvidos apurados, aproximou-se da porta na esperança de que Anabel revelasse alguns dos segredos que mantinha. Tomou cuidado para que a própria sombra não passasse pela fresta aberta e esperou que a óbvia raiva que ela sentia a impedisse de ser cuidadosa.

— Tentei forçá-lo a ir embora, Anabel.

Artan não se surpreendeu ao ouvir a voz de Fergus. Suspeitava que ele tomava parte no esquema armado em Dunburn.

— Faz apenas quatro dias, Anabel. Você está muito impaciente — Edmund reclamou.

— Ele não para de fazer perguntas.

— Mas não obtém respostas.

— Por enquanto. Não acredito que seja o bruto idiota pelo qual quer passar.

— Não? Ele é das Terras Altas, esqueceu? — Fergus resmungou.

Artan esperava ter a chance de esfregar o rosto do homem na lama antes de ir embora de Dunburn com Cecily. Na verdade, ia ser um grande prazer roubar-lhe a noiva.

— Esse sujeito das Terras Altas parece ter a habilidade de escapar de suas tentativas de feri-lo. Quantos homens você mandou para espancá-lo da última vez? — Edmund indagou.

— Seis — Fergus murmurou após um silêncio tenso.

— E seus homens tolos quase mataram Cecily quando tentaram atingi-lo com flechas.

— Eles não a viram até ser tarde demais e pararam o ataque quando a reconheceram.

— Melhor eles serem mais cuidadosos. Morta, ela não nos será útil, pelo menos até que se case com você.

— Sei disso muito bem. Vocês não perderão sua vida excelente e confortável. Ela se casará comigo, suas terras e dinheiro logo estarão em meu poder e vocês terão a posse de Dunburn.

— Não sei por que você exige tanto — Anabel resmungou.

— Não sou eu quem tem as mãos sujas de sangue. E, sem mim, vocês nunca poderão reivindicar nada. Vocês não passam dos curadores da fortuna de Cecily. Aliás, nem isso mais desde que ela completou vinte e um anos. Meu casamento com ela e o contrato que nós três assinamos farão com que parte dos bens lhes pertençam legalmente.

— A parte reservada a ela caso fique viúva...

Será minha quando eu me cansar dela e enviuvar. Menos o que lhes foi prometido no contrato de casamento. Se o tio dela tivesse descoberto a verdade, vocês ficariam sem nada. Ora, nem mesmo com suas vidas. Vocês não podem pensar que eu lhes daria mais só porque estão me dando Cecily. Sim, ela me entreterá por alguns meses e talvez eu a mantenha até conseguir um herdeiro, mas não estou interessado na moça. Esse casamento é para encher os meus bolsos. Contentem-se com o fato de eu estar disposto a compartilhar.

— Bem, se você não agir depressa em relação ao homem de Angus, nós três subiremos juntos ao cadafalso — Edmund afirmou.

Artan lutava contra a vontade de invadir o jardim de inverno e quebrar alguns ossos quando alguém o agarrou pelo pulso. Virou-se para o lado e deparou-se com o olhar feroz de Meg. Sem dúvida, a mulher sabia agir furtivamente, pois ele não tinha ouvido ou sentido sua aproximação. Cumprimentou-a com um rápido gesto de cabeça e voltou a prestar atenção à conversa dos três que já considerava inimigos.

— Você é o noivo dela. Talvez deva tratá-la com rédeas curtas. Até agora, só se acovardou todas as vezes que o bárbaro das Terras Altas se aproximou.

— Não vi nenhum de vocês dois enfrentá-lo com firmeza — Fergus esbravejou.

— Não quero provocar um homem que carrega, no mínimo, três armas. E, levando em consideração que ele não só derrotou seis de seus homens como também saiu ileso ao fazê-lo, acredito ser mais prudente agir com cautela perto dele — Edmund declarou.

— Ele não atacará uma mulher.

— Você pode estar certo, Fergus. Portanto, minha cara esposa, você será a melhor pastora de nossa ovelha até que ela seja encurralada e tosquiada.

— Como queira — Anabel respondeu numa voz que não era a de uma esposa submissa.

— Ótimo. Agora, preciso ir, a fim de preparar novo ataque àquele bárbaro — Fergus avisou.

— Esperamos que tenha mais sucesso do que nas outras vezes — Edmund ironizou.

Artan sentiu Meg puxá-lo pelo pulso e permitiu que ela o levasse a um aposento anexo ao solário. Enquanto ela ia até a lareira e pegava um castiçal, cuja vela acendeu, ele lutou contra a fúria que o dominava. Em seguida, ela revelou uma passagem pequena e abriu uma porta secreta. Artan seguiu-a, estremecendo ao ouvir a porta fechar. Detestava lugares pequenos e escuros. A vela, que ele agora segurava por ser mais alto, mal iluminava o caminho.

— Podemos continuar ouvindo daqui — Meg, na ponta dos pés, cochichou em seu ouvido.

Artan viu que ela espiava por uma fresta na grossa parede de pedra. Antes de colocar-se ao seu lado, apagou a vela, pois não queria correr o risco de Anabel e Edmund notarem a fresta iluminada. Sabia que tinha ouvido o suficiente para justificar qualquer atitude sua a fim de libertar Cecily das garras deles. Mas ainda poderiam lhe dar mais provas.

— Eu não confio no homem — Anabel afirmou. — Acho que ele pretende, no fim, nos trair ou tapear.

— Talvez ele tente — Edmund disse numa voz de tédio. — Se você não tivesse lhe mostrado as pernas, ele não teria entrado em seu quarto e encontrado aqueles papéis.

— Ora, quem quer me condenar! Logo você que agarra a primeira saia que avistar.

— Mas nunca deixo segredos importantes em lugares onde qualquer idiota possa achar.

— Tripudie o quanto quiser, se isso o faz se sentir melhor. Quase tudo com que ele quer nos pressionar não passa de conjeturas, e você também se defendeu mal disso. Bem, podemos voltar a refletir sobre o que deve ser feito em relação ao bruto? Saiba que está tentando convencer Cecily a ir embora com ele.

— Então, o melhor é você mostrar a ela o quanto desaprova o homem. Durante anos, você a tem mantido acovardada a tal ponto que ela jamais faz perguntas e tenta muito nos agradar em tudo. Sei que você pode forçá-la a aceitar sua opinião. Fique sempre ao seu lado. Talvez separar o homem de nosso troféu seja suficiente.

— Poderei trancá-la no quarto.

— Isso provocaria muita indagação. Bem como dar-lhe uma sova, caso essa seja sua segunda escolha. Se você quer continuar a viver tão bem quanto nos últimos doze anos, mantenha-se perto da moça para que o bárbaro não possa conversar a sós com ela e enfraquecer sua submissão a nós.

— Isso tornará os próximos onze dias longos demais.

— Pense na corda que nos aguarda se você falhar. Ela talvez possa inspirá-lo.

Artan manteve-se imóvel até ter certeza de que Edmund e Anabel tinham ido embora. Dessa vez, foi na frente e, temendo ser visto com Meg, levou-a ao seu quarto. Lá, serviu uma taça de vinho para cada um. Enquanto bebia, refletiu sobre tudo que ouvira.

— Eles pretendem matar a menina — Meg disse depois de vários momentos de silêncio tenso.

— Sim, e acredito que mataram seu pai e seu irmão, embora isso seja difícil de se provar depois de tantos anos — Artan acrescentou. ― Você chegou lá a tempo de ouvir Fergus dizer que não tinha as mãos sujas de sangue? — Com um olhar furioso, Meg assentiu. — E, no fim, o comentário de Edmund sobre continuar a viver tão bem quanto nos últimos doze anos.

— Cecily podia ter morrido naquele ataque.

— Suspeito que o fato de isso não ter acontecido tenha sido uma grande decepção para eles. Quando ela retornou a Dunburn, tiveram medo de fazer qualquer coisa para se livrarem dela.

— E a maldita valeu-se dos sentimentos da pobre menina e de sua ânsia de ter uma família.

— Isso impediu Cecily de fazer perguntas sobre o fato de Angus nunca lhe escrever — Artan acrescentou.

— E, ao conservá-la na ignorância sobre o tio, Anabel pôde aumentar seu domínio.

— Expulsar você de Dunburn também contribuiu, calculo.

Meg suspirou.

— Eu devia ter me controlado. Tive sorte de não ser enforcada por ter dado uma sova na mulher. Mas, ao me afastarem de Cecily, a pobrezinha ficou mais solitária e carente. — Ela praguejou e balançou a cabeça. — Eu também não fui boa. Nunca indaguei nada e, depressa, me livrei das suspeitas que tive no início. Apenas duvidei, por pouco tempo, que assaltantes tivessem cometido os assassinatos. Também maldisse Angus por ser um velho idiota e só se interessar pelo menino.

— A maioria dos homens é assim. Ter um herdeiro é importante. — Deu um tapinha nas costas dela. — Não se culpe tanto. Sem dúvida, eles não usaram homens de Dunburn ou você teria ouvido alguma coisa. Aconteceu e não se pode mudar o fato. Os únicos culpados são os parentes dela, os que deveriam ter cuidado dela.

— O que vai acontecer agora?

— Preciso tirar Cecily daqui. Não há mais tempo para convencê-la a ir comigo para Glascreag e seria impossível partir daqui com ela abertamente. Isso jamais seria permitido e eu não posso lutar contra todos os homens dos Donaldson e de Ogilvey.

— Pelo que me contou, você já gastou muita energia com eles.

Artan ignorou o comentário.

— Preciso levar Cecily para Glascreag o mais depressa possível. Ela será mais bem protegida lá, o que seria impossível na casa de seus inimigos. Porém, não sei como tirá-la daqui sem que ninguém nos veja.

Meg cruzou os braços.

— Seu maior problema é convencê-la a acompanhá-lo. Sabemos que ela foi roubada do que lhe pertencia por direito e que sua vida corre perigo, porém ela não vai acreditar se lhe dissermos.

— E se contarmos tudo o que acabamos de descobrir?

— Cecily terá algumas dúvidas, mas não o suficiente para partir com você. Embora essas pessoas sejam perversas, ela as vê como sua família e Dunburn, como seu lar. Você é simpático e atraente, porém ela o conheceu quatro dias atrás. Por que acreditaria na sua palavra e não na deles? Quanto a mim, jamais gostei de Anabel ou de Edmund e nunca fiz segredo disso, o que a impedirá de me dar ouvidos.

Artan praguejou baixinho. Meg estava certa. Cecily levaria algum tempo para acreditar neles, mesmo que fosse pela simples razão de não aceitar ter sido enganada durante anos. De fato, as chances de ela ir embora com ele de boa vontade e sem provas concretas do perigo eram mínimas.

— Vou tentar fazê-la se encontrar comigo fora das muralhas e, então, raptá-la — ele disse. — Depois de ouvir a conversa dos três canalhas, não resta mais tempo nem para convencê-la de que os tutores e o noivo são uma ameaça para ela nem para seduzi-la a ir comigo.

— De fato, não resta mais tempo, e eu mal posso acreditar que esteja pensando em ajudá-lo a raptar minha menina. Mas melhor ela ir embora com você do que ficar com esses bandidos. E o que você quis dizer com seduzi-la?

O tom da voz de Meg lembrou o de sua mãe quando o apanhava fazendo algo errado. Pensou em várias respostas plausíveis, mas então fitou-a nos olhos. Havia aquela expressão que, suspeitava, todas as mães usavam para arrancar a verdade dos filhos. Artan ouviu-se contando-lhe sobre a barganha proposta por Angus, sem nem mesmo se surpreender ao fazê-lo.

Meg franziu a testa. Não gostava da idéia de Cecily ser arrancada de um casamento forçado e ser atirada em outro, iludida por palavras bonitas e um rosto atraente. Nenhum dos dois homens parecia se importar com seus sentimentos. Praguejou mentalmente. Fergus pretendia matá-la depois de ter lhe tirado tudo o que ele desejava. Artan também se casaria com ela por interesse financeiro, porém a protegeria. Cecily ficaria magoada quando descobrisse por que esse homem alto e forte tinha se casado com ela, mas, pelo menos, estaria viva para reclamar. Ao levar em consideração que a garota o teria em sua cama, em vez de Fergus, Meg concluiu que a mágoa logo passaria. Decidiu também que, tão logo pegasse as coisas que Cecily escondera, ela mesma as levaria até Glascreag, podendo, assim, verificar se sua menina estava sendo bem tratada.

— Não gosto da idéia de Cecily se casar por causa de seu dote, mas melhor ser com você do que com o trapaceiro do Fergus — ela declarou.

— Não me casarei com ela apenas para herdar Glascreag — Artan afirmou.

— Está querendo me dizer que já ama a menina? O tom de Meg foi tão áspero que Artan quase estremeceu.

— Gosto dela, desejo-a e vou honrar meus votos. Isso não é algo que ela conseguiria de muitos, por causa do ótimo dote.

— Essa é a triste verdade. Portanto, melhor começarmos a planejar quando e como vamos tirá-la daqui.

— Tem de ser esta noite. Acho que Anabel ainda pode hesitar hoje para assumir seu papel de sentinela, porém logo se incumbirá dele e tornará impossível uma fuga. Preciso ficar a sós com Cecily tempo suficiente para convencê-la a ir se encontrar comigo. Como não podemos saber a pressa e a firmeza com que os desgraçados aumentarão a vigilância, será bom pensarmos em como frustrá-los.

Artan passou mancando pelo portão de Dunburn. Uns poucos homens riram, mas a maioria o olhou com medo e respeito. Daquela vez, ele fora forçado a desembainhar a espada, e dois homens não voltariam a Dunburn. Porém, isso tinha lhe dado a desculpa para deixar Thunderbolt preso perto do riacho. Ninguém duvidaria que o cavalo havia escapado durante o ataque, embora ferisse seu orgulho permitir que os tolos pensassem que ele não era capaz de lidar com a montaria. Uma ofensa necessária. Atrair Cecily para fora de Dunburn já ia ser bastante difícil e, se ele saísse a cavalo à noite, daria a ela a idéia de ter ido embora para sempre e de não haver mais o encontro.

Não era mais só Cecily que tinha de escapar. Esse último ataque havia sido muito mais do que mera amolação. Oito homens armados o tinham enfrentado, forçando-o a reduzir o número para afugentar os outros mais facilmente. Ele era um perito lutador, mas nem isso o salvaria se a quantidade de atacantes continuasse a aumentar. Embora detestasse fugir de uma luta, morto não ajudaria Cecily.

Ao se dirigir para seu quarto, um barulho vindo de dentro dos aposentos de Fergus chamou sua atenção. Parecia alguém chorando. Por um momento, pensou que o idiota já ficara sabendo que seus homens tinham falhado mais uma vez, mas, então, ouviu um grito feminino, seguido pelo estalar de tapas. Sem fazer ruído algum, abriu a porta e teve de lutar contra a vontade de matar o sujeito. Sabia que, se o fizesse, precisaria lutar para escapar de lá, deixando Cecily desprotegida.

Fergus prendia uma jovem criada ao chão. Ela não podia ter mais de doze ou treze anos. O vestido estava rasgado e o rosto, bastante machucado. Ainda sem fazer barulho, fechou a porta e aproximou-se dos dois. Agarrou Fergus pelas costas do gibão e o atirou contra a parede. Por um momento, o homem olhou-o horrorizado, mas, em seguida, perdeu os sentidos e escorregou para o chão.

— Vá embora depressa, menina, e fique longe deste animal — ordenou.

— Sim, senhor — ela balbuciou com a voz embargada pelo choro.

Artan aproximou-se de Fergus. Havia sangue na parede, e um filete escorrendo pelo pescoço dele. Verificou-lhe o pulso e ficou aliviado ao constatar as batidas firmes. O sujeito merecia morrer, mas não era o momento e nem o lugar para isso. Porém, tinha certeza de que haveria um vigilante a menos ao lado de Cecily à noite. Fergus levaria algum tempo para voltar a si e, quando o fizesse, estaria se sentindo péssimo. Teria de se satisfazer com isso, refletiu ao sair do quarto.

Cecily percebeu que estava bem mais à vontade. Jantar no grande salão era mais agradável sem Anabel e Fergus dirigindo-lhe olhares de censura o tempo todo. Ambos estavam indispostos, segundo Edmund. Embora ela se sentisse um pouco culpada pelo alívio com a ausência de ambos, pois não desejava doenças a ninguém, não podia negar o bem-estar que a dominava. Edmund estava por perto, mas, como de hábito, a ignorava. Durante o jantar, ele costumava gastar a maior parte do tempo na escolha da mulher que levaria para a cama mais tarde.

Quando Artan pôs algumas fatias de carne de veado em seu prato, Cecily agradeceu com um sorriso. Achava difícil acreditar que um homem tão atraente procurasse sua companhia e seus beijos. Prender-lhe a atenção era algo inebriante e ela se surpreendia por ser a única que o fazia. Muitas mulheres de Dunburn, hóspedes e criadas, tinham se esforçado, mas ele não demonstrara interesse. Achava isso estranho e, ao mesmo tempo, muito excitante.

Quando a refeição terminou, permitiu que ele a levasse até a porta de seu quarto. Vários parentes de Fergus lhe dirigiram olhares de repreensão. Edmund, porém, estava muito ocupado seduzindo lady Helen para notar sua atitude.

Suspeitava que a rara liberdade apreciada nos últimos dias logo terminaria. Ainda podia ouvir a repreensão furiosa de Anabel no dia em que levara Artan para cavalgar pelas terras de Dunburn. Anabel havia insinuado que era culpa sua o fato de alguns idiotas quase os terem matado.

— Sabe que ninguém alega ter estado perto do riacho no dia em que atiraram flechas contra nós? — ela perguntou a Artan quando pararam à porta de seu quarto.

Ao vê-lo colocar as mãos na porta, de cada lado seu, e se aproximar, abafou depressa a vontade de convidá-lo para entrar.

— Calculo. Nenhum caçador jamais admitiria ser tão ruim. Como nenhum de nós dois foi ferido, ele não vê necessidade de contar a verdade, e ninguém acha preciso fazer perguntas.

Distraída, Cecily assentiu com um gesto de cabeça, a atenção à boca de Artan, embora tentasse desviá-la para os olhos. Ansiava pelo beijo dele. Crispou as mãos para refrear o ímpeto de agarrá-lo e estreitá-lo entre os braços. Quando ele roçou os lábios em sua testa, estremeceu, impaciente.

— Sile, vá me encontrar à meia-noite na margem do riacho.

— Sair às escondidas, você quer dizer?

— Isso mesmo. Escapar deste lugar cheio de gente e de olhares curiosos. — Beijou-a na orelha e ouviu-a arfar. Ela era tão sensível, meiga e ardente que o forçava a lutar contra a vontade de levá-la para dentro do quarto e satisfazer o desejo que facilmente lhe despertava. — Não ficamos a sós desde o dia em que fomos cavalgar.

— E quase nos mataram.

Ela estava tendo dificuldade para respirar.

— Será seguro desta vez. Vá se encontrar comigo. A noite está quente e é de lua cheia.

A tentação era tão grande que ela se assustou.

— Mas estou noiva.

Quando Artan beijou-a, toda a sua hesitação evaporou. Enlaçou-o pelo pescoço e entreabriu os lábios para receber-lhe a língua. Ele a fazia se sentir quase selvagem de diversas maneiras. O sangue parecia ferver nas veias, e a respiração tornava-se ofegante. Ele tinha sabor de pecado e a estava tentando a cometer um muito grande. Mas, ao pensar no homem com quem teria de se casar em breve, tomou sua decisão.

— Vá me encontrar, Sile — ele insistiu numa voz rouca e beijou-a no pescoço.

— Está bem, eu vou. À meia-noite, na margem do riacho.

Artan beijou-a rapidamente, abriu a porta e a fez entrar.

— Leve algo para comer e vinho. Assim poderemos fazer uma refeição sob a lua e as estrelas.

Como se não pudesse resistir à tentação, beijou-a mais uma vez e fechou a porta.

Cecily imaginou por que ele pedira que levasse comida. O que queria compartilhar com ele não tinha nada a ver com alimentos. Por um momento, pensou em ir atrás dele e dizer que não iria, mas dominou a covardia. Seria errado, sabia, porém, desta vez, pretendia fazer o que ela desejava. Encontraria Artan e aceitaria tudo o que ele lhe oferecesse, pois, cedo demais, estaria casada com Fergus.

— Você a convenceu? — Meg perguntou quando Artan entrou no quarto.

Ao vê-la sentada bastante à vontade, ele balançou a cabeça num misto de surpresa e irritação.

— Alguma vez você entra em um aposento pela porta certa?

— Anabel poderia descobrir que estou aqui se eu fizesse isso. Por quê? Está com medo de que eu o apanhe com uma das criadas? Quem sabe Davida?

— Ela é bonita e atraente, mas não é para mim. Você sabe muito bem que uma das razões para eu vir para cá era decidir se queria Cecily como esposa. Não é uma ocasião para compartilhar os lençóis com qualquer criada disposta que esteja por perto. E, sim, eu a convenci a se encontrar comigo à meia-noite, na margem do riacho. Nem Fergus nem Anabel apareceram para jantar, e Edmund ocupava-se em seduzir lady Helen. Por isso, Sile não estava sendo bem vigiada. Sei o que aconteceu a Fergus, mas estou curioso quanto a Anabel.

— Pus um purgante no vinho dela.

— Mulher cruel. — Artan riu baixinho, mas logo ficou sério. — Você acha que pode pegar algumas roupas de Cecily?

— Já fiz isso — Meg respondeu ao apontar para um saco perto da cama. — Tempos atrás, mostrei a ela a maneira mais fácil e segura para sair da fortaleza.

— Ótimo. Levarei as roupas quando for. — Com delicadeza, pegou as mãos de Meg e a fez levantar-se. — Agora, preciso dormir um pouco pois, sem dúvida, cavalgarei boa parte da noite.

Ela foi até a porta secreta por onde tinha entrado e, então, o encarou com olhar firme.

— Seja bom para minha menina, ou eu o farei se arrepender de tê-la tocado.

— Serei, não tenha medo.

Artan meneou a cabeça e riu quando a mulher apenas resmungou algo e se foi. Embora ele quisesse dar-lhe maiores garantias, não dispunha de tempo. Tinha uma longa jornada pela frente e o instinto o avisava de que não seria fácil.

Com um arrepio, Cecily começou a transpor a passagem estreita e escura que a levaria para fora das muralhas da fortaleza. Estava chocada com sua atitude e, ao mesmo tempo, excitada com o que a aguardava. Sabia estar dando um passo errado, mas uma voz em seu íntimo negava essa verdade, incitando-a a seguir em frente. Não se importava se muitos considerassem o encontro como um ato de adultério. Os beijos de Artan tinham lhe provocado uma espécie de febre cerebral.

Afastou o pensamento. A escolha era sua. A única culpa dele era ser atraente demais e fazer seu coração disparar cada vez que a beijava. Não houvera mentiras, lisonjas, presentes ou agrados sedutores. Aliás, duvidava que ele soubesse agir assim, e isso a atraía ainda mais. Ele não parecia ser do tipo astucioso.

E ela o queria muitíssimo, como jamais quisera algo na vida. Dentro de dez dias, se ajoelharia diante do sacerdote para unir-se a um homem por quem não sentia nada, nem mesmo simpatia. Tinha, no momento, a chance de se apossar de lembranças preciosas para acalentar durante os anos longos e duros à sua frente e estava determinada a fazê-lo. Por algum tempo, queria se deliciar com a sensação de estar com um homem que ela desejava. Estava cometendo um erro e pagaria um alto preço por isso, mas não se importava.

Quando chegou ao fim da passagem, largou a sacola com os alimentos e, devagar, abriu a portinhola. Foi atingida por uma chuva de folhas secas, galhos e terra. Limpou-se depressa e, tensa com a expectativa de alguém gritar que a tinha encontrado, pôs a cabeça para fora e olhou em volta. Quase se sentiu atordoada com o alívio de não ver ninguém.

Com a sacola na mão, saiu do túnel, fechou a portinhola, espalhou mais detritos sobre ela e marcou bem sua localização. Então, seguiu para o riacho a passos rápidos, ansiosa para se ver longe das muralhas. Se fosse apanhada agora, passaria o restante dos dias anteriores ao casamento no calabouço de Dunburn.

Sua coragem fraquejou um pouco quando chegou à margem do riacho e viu Artan, de costas, atirando pedrinhas na água. O luar permitia admirá-lo bem, ver como era alto, forte e de ombros largos. De repente, deu-se conta de que ele poderia matá-la facilmente com um simples vergar dos pulsos.

Livrou-se do medo no mesmo instante. Nem uma única vez, nesses últimos quatro dias, ele a tinha machucado ou se mostrado agressivo. Quando a estreitava entre os braços e a beijava, o fazia com a máxima delicadeza. Apesar disso, sentiu um pouco de inquietação ao se aproximar dele. Esse homem era um guerreiro e, como tal, podia ser perigoso. Imaginou se esse era um dos motivos para se sentir tão atraída por ele.

Artan ouviu um leve farfalhar do capim. Levou a mão à espada e virou-se, mas relaxou ao ver Cecily aproximando-se timidamente. Ela não representava ameaça. Pelo menos no momento, refletiu. Quando se desse conta do que ele pretendia fazer, a situação poderia mudar.

Sentiu uma pontada de culpa, mas logo a abafou. Ela esperava um encontro amoroso e não um rapto e uma dura cavalgada até Glascreag, porém ele não tinha escolha. Talvez ela demorasse um pouco para acreditar que os tutores e o noivo eram uma ameaça para sua segurança, mas, quando o fizesse, o perdoaria. Cecily era inteligente o bastante para perceber que seria impossível esperar até que ela descobrisse os fatos por conta própria.

Ao lembrar-se de que também escondia o acordo que tinha com Angus, estremeceu. Aquilo poderia ser um problema bem mais complicado do que raptá-la primeiro e, depois, explicar os motivos. A dificuldade seria ele apresentar as razões sem parecer mercenário. Não sabia ao certo se haveria um jeito de evitar essa pecha e maldisse Angus pela proposta. Enfrentaria a questão depois, decidiu ao se aproximar dela e pegar a sacola com os alimentos.

— Pelo peso, vejo que nos trouxe um banquete — disse ao largar a sacola de lado.

— Bem, notei que você tem um bom apetite e temi não trazer o suficiente.

— Tenho mesmo — ele concordou ao puxá-la para os braços.

No mesmo instante, o pulso de Cecily acelerou. Aconchegar-se ao corpo firme era tudo de que precisava para esquecer os temores e as dúvidas. Não se importava que Artan não mencionasse amor e casamento, pois não havia futuro para eles. Estava noiva de outro e, após o matrimônio, jamais deixaria de cumprir os votos, mesmo que Fergus fosse o pior dos maridos. O tempo para usufruir algum prazer com Artan voava e ela não queria desperdiçar um único minuto. Enlaçou-o pelo pescoço e prensou os lábios contra os dele.

Ao retribuir o beijo, Artan praguejou em silêncio contra a própria fraqueza. Não tinha planejado fazer isso; não, se ia levá-la embora à força de sua casa. Mas o calor suave de sua boca o fez decidir dedicar um pouco de tempo para se amarem. A chance de alguém descobrir, antes do amanhecer, que ela se fora, era mínima. Talvez se ele a fizesse experimentar a paixão que podiam compartilhar, sua raiva pela trapaça dele passaria mais depressa.

Não a possuiria ali, prometeu a si mesmo enquanto a deitava na relva. O instinto o avisava de que isso apenas aumentaria sua noção de ter sido traída quando descobrisse o motivo verdadeiro do encontro. Ao acomodar o corpo sobre o dela, foi invadido por um forte desejo e percebeu que precisaria de cada fiapo de força de vontade para não consumar o futuro casamento de ambos ali, na margem do riacho.

A ânsia de fazê-la experimentar as mesmas sensações que ele o dominou. O fato de Cecily ainda ser virgem e ter vindo encontrá-lo sozinha à noite lhe dizia que ela o desejava, porém Artan precisava de muito mais. Queria mostrar a ela que nenhum outro homem jamais poderia lhe proporcionar o mesmo que ele.

Beijou-a no pescoço enquanto desatava o vestido. Um rápido olhar para seu rosto revelou rubor, mas nenhum sinal de rejeição quando ele afastou o tecido e expôs seus seios. O luar que incidia sobre eles deixava a pele luminosa, e ele prendeu a respiração ao admirar o tesouro que havia descoberto. Apesar de não serem grandes, eram cheios e bonitos. As auréolas eram cor-de-rosa e suaves como as pétalas de uma flor. De leve, acariciou-os e encantou-se com a maneira como se ajeitavam nas mãos dele, os mamilos eretos roçando as palmas, marcando-o de uma maneira que ele duvidava um dia entender totalmente. Curvou a cabeça e saboreou um deles. Cecily arquejou, estremeceu e, com as mãos em seus cabelos, puxou-o para mais perto. Artan tomou isso como um convite para fazer o que desejasse e começou a se deliciar com seu corpo, usando as mãos, os lábios e a língua para deixá-la tão excitada quanto ele.

Cecily sentia-se como se estivesse em chamas. As carícias dos lábios e da língua nos mamilos a fizeram arquear o corpo. Queria arrancar as próprias roupas e as dele, para que suas peles se tocassem. Não imaginava de onde essas idéias selvagens e despudoradas surgiam, porém elas não a chocavam, e sim a estimulavam nesse momento em que estava entre os braços de Artan. O instinto lhe dizia que jamais experimentaria paixão tão ardente outra vez, não nos braços de Fergus, certamente.

Quando Artan sentiu que Cecily tentava abrir-lhe a camisa, apressou-se em ajudá-la. Já estava ofegante, como se houvesse terminado uma longa corrida, mas a maneira como ela olhou para o peito nu o deixou mais ainda. Havia uma expressão inequívoca de admiração e desejo em seu rosto que quase o envaideceu. Ao sentir suas mãos delicadas acariciando-o no peito, ele gemeu.

— Tão liso e firme — ela murmurou.

Firme sem dúvida alguma, ele refletiu e, pela primeira vez, a falta de pelos no peito não o perturbou. Ela mostrava apreciá-lo liso como o de um rapazinho, e isso o fez sentir-se bem. Enrijeceu-se ao sentir os mamilos túrgidos pressionados contra o peito.

Quando Cecily mexeu-se, os seios roçando-lhe a pele, ele gemeu de novo e beijou-a. As mãos macias que percorriam seu corpo faziam-no tremer de desejo. Queria penetrá-la e perder-se no calor feminino, mas dominou a tentação. Estimulado como estava, prestes a perder o controle, não precisaria disso para se satisfazer. O mais importante era se controlar e manter a virgindade dela intacta para que seus pecados não parecessem tão grandes quando ela finalmente entendesse por que fora atraída até ali.

Ao sentir a brisa rias pernas, Cecily deu-se conta de que Artan tinha levantado sua saia. Apenas um leve sinal de choque a perturbou ao perceber que ele a acariciava nas coxas. Excitada, não se opôs ao ter sua roupa de baixo removida. Porém, o toque dos dedos dele em sua parte mais sensível era algo que não esperava, e ela se imobilizou.

— Artan? — murmurou.

— Quietinha, Sile. Deixe eu sentir seu ardor, as lágrimas de desejo que seu doce corpo verte por mim. —- Com o joelho, afastou mais suas pernas.— Abra-se para mim, minha Sile. Deixe que eu a leve ao paraíso.

Cecily agarrou-se a ele, sentindo-o massageá-la com os dedos. Abafou uma exclamação de choque e prazer quando um deles penetrou seu corpo. Pouco depois, um segundo dedo a invadia, porém ela já estava além do ponto de se importar com o que ele fazia, desde que não parasse. Instigada pelas exigências do corpo, ela mexia-se no ritmo dos dedos e, em silêncio, implorava por algo que não saberia explicar.

Sentir o calor úmido dela foi o suficiente para Artan quase não se dominar. O plano era fazê-la saborear a paixão que eclodia entre ambos, de forma a suavizar sua revolta mais tarde. Porém, descobriu que o impulso era muito mais ardente e imperioso do que previra. À custa de muito esforço, manteve o último fiapo de controle, o que não queria dizer que necessariamente sairia frustrado daquele abraço.

Embora não tivesse feito isso desde que era um rapazinho de quatorze anos, numa aventura amorosa com Mattie, a filha do ferreiro, Artan prensou a ereção na coxa de Cecily e friccionou-a. Tinha de se contentar com isso, pensou, ao sentir o corpo dela se contrair ao redor de seus dedos. Fizera isso com Mattie por medo de que o enorme pai da garota o cortasse em pedacinhos caso a deflorasse. Desta vez, era para salvar-se do ódio de Cecily. Percebeu que temia mais esse destino do que a fúria do ferreiro naquela época.

Quando sentiu o início do pulsar do clímax de Cecily, fixou o olhar em seu rosto. Ela agarrou-o nos braços e gritou o nome dele. Nunca vira nada tão lindo quanto Cecily nos estertores do êxtase. Ouvir o próprio nome nos lábios dela foi como música aos ouvidos de Artan. Beijou-a enquanto movia a ereção contra sua coxa ê encontrava a satisfação almejada. Não se surpreendeu ao largar o corpo sobre o dela, exausto. Almejava não ter de esperar muito para gozar o prazer pleno dentro de seu corpo. Sorriu, porém ao lembrar-se do que tinha a fazer em seguida, o bom humor evaporou-se.

Bem devagar, Cecily recuperou a percepção do mundo ao redor. Relutava em abandonar o restante do prazer que a dominava. Estava perplexa que Artan, agora com o rosto calmamente aninhado entre seus seios, pudesse ter lhe proporcionado sensações tão incríveis. O corpo inteiro ainda tinia com as ondas de puro deleite que o tinham invadido. Sabia que deveria estar moralmente envergonhada ou, pelo menos, constrangida, mas se sentia feliz demais para se importar com o que permitira que ele fizesse. Na verdade, conseguia apenas pensar em quando poderiam repetir tudo outra vez.

Somente ao perceber que Artan a forçava a se sentar, deu-se conta de ter cochilado e praguejou em silêncio. Esperava que tivesse sido por apenas alguns minutos, pois não queria perder o pouco tempo que podia ficar com ele. Desapontou-se ao ver que ele já havia posto a camisa. Artan tinha um peito muito aconchegante, apesar de musculoso e firme. Quando ele puxou seu vestido sobre os ombros e o amarrou, imaginou quanto tempo teria ficado ali com os seios expostos. Enrubesceu um pouco. Percebeu que ele também pusera a roupa de baixo nela. Franziu a testa. Teria dormido tanto tempo que o encontro já terminava?

Então, deu-se conta de que Artan não a penetrara. Não sabia muito sobre as intimidades que um homem e uma mulher partilhavam, mas não ignorava que aquela parte longa e grossa que ele tinha friccionado contra sua coxa deveria ter ocupado o lugar dos dedos. Levando em consideração tudo que haviam apreciado, não entendia por que ele não tinha feito aquilo. Viera ao encontro preparada, disposta a entregar-lhe a virgindade e sofrer as conseqüências. O fato de Artan não tê-la aceitado a desagradava, o que achava estranho. Começou a se sentir inquieta, como se algo estivesse errado.

— Artan, você não terminou — disse numa voz suave, e a apreensão aumentou ao ver a expressão séria em seu rosto.

— Terminei, sim — ele afirmou enquanto a ajudava a se levantar e a estreitava contra o peito.

Mas o abraço não tinha o calor dos anteriores, e sua ansiedade cresceu.

— De jeito nenhum. Você não penetrou meu corpo.

Cecily já estava tão desconfiada que não se importou em falar com franqueza, apesar de não entender por que insistia nesse ponto. Se considerasse o comprimento e a largura daquela parte que sentira contra a coxa, deveria estar aliviada por ele não ter tentado colocá-la em seu corpo e não descontente, como se tivesse sido ludibriada.

— Você está noiva, Sile.

— Não me esqueci disso quando vim até aqui. Assim como você, ao me convidar.

— Eu não queria que você sofresse as conseqüências do encontro.

— Então, por que me pediu para vir?

— Ah, Sile, eu a desejava tanto que chegava a doer. Mas agora não é uma boa hora para falarmos disso.

— Por que não?

— Porque estou prestes a raptá-la — ele respondeu num rompante.

Atônita, Cecily o encarou, tentando compreender o sentido daquelas palavras. Ficou tão confusa que não o impediu de puxar suas mãos para a frente e enrolá-las num pano até não poder mexer os dedos. Então, ele as amarrou juntas com uma cordinha. Quando ela já se recuperava da surpresa para protestar, ele a amordaçou. Com delicadeza, fez com que se sentasse no chão e, em seguida, atou-lhe os tornozelos juntos.

Enquanto Artan prendia a sacola com os alimentos na sela, Cecily, perplexa, olhou para as cordinhas que a amarravam. Uma parte sua queria acreditar que aquilo não passava de um sonho, e que ela ainda se encontrava entre os braços de Artan, descansando depois de terem feito amor. Porém, a outra parte, a que tentava livrá-la do choque e da estupefação, não se iludia.

Deu-se conta de que tudo havia sido uma mentira. Ele não a atraíra até ali porque nutria algum carinho por ela ou a desejava, e sim para poder raptá-la e levá-la para Glascreag. A dor que a conclusão provocou foi tão aguda que ela curvou-se, como se quisesse proteger o corpo de um golpe.

Fora uma grande tola, de uma infantilidade absurda. O pior era não poder pôr a culpa em gentilezas falsas ou elogios perspicazes que pudessem ter virado sua cabeça. O fato de Artan não ter feito nada disso e de ter percebido que ela não precisava dessas atenções para ficar à mercê dele era um golpe terrível em seu orgulho. Beijos ardentes, um rosto sedutor e o erro terrível de acreditar na honradez dele a tinham atraído até ali.

Por um momento, temeu pela própria vida, mas logo conseguiu dominar o sentimento. Artan havia sido educado por seu tio e mostrava saber bastante sobre ele e Glascreag para ter mentido também sobre isso. Apesar da traição, sabia que ele não era o tipo de homem que pudesse fazer mal a uma mulher.

Apesar de estar claro que ele não tinha escrúpulos para usar a paixão de uma mulher contra ela mesma, concluiu, furiosa. Sua confiança inocente no homem que ele fingira ser a tinha colocado nessa situação terrível. Nunca mais se deixaria ludibriar por ele. Tal determinação não seria útil no momento, mas se agarraria a ela, pois precisava estar pronta para aproveitar qualquer chance que tivesse de escapar.

— Fique tranqüila, Sile — Artan disse numa voz que esperava ser animadora enquanto a carregava até Thunderbolt.

Ele se dirigia a ela como se falasse com um cavalo genioso, Cecily pensou irritada. Quase cedeu à tentação de se atirar de cima da montaria, mas repreendeu-se pela idéia absurda. Só conseguiria se machucar, exceto se caísse em cima dele. Talvez nem assim, com sua estatura pequena.

— Agora podemos soltar os tornozelos — Artan informou depois de montar. Começou a desamarrá-los para que ela pudesse cavalgar. — Só queria impedir que você cometesse a tolice de fugir correndo.

Tarde demais para correr, Cecily refletiu, mais irritada ainda. O momento certo tinha sido quando ele a beijara pela primeira vez. Deveria ter logo relatado o insulto aos tutores e ao noivo. Eles o teriam expulsado de Dunburn depois de espancá-lo. Mas, não. Ela havia ficado fascinada e muito alvoroçada com o beijo de Artan, e as reações tinham se intensificado a cada novo beijo. Só de pensar em como havia sido feita de tola, ficou tão furiosa que tentou insultar-lhe o caráter, a virilidade e os antepassados.

— Agora sei que você está um tanto zangada com este tratamento rude, mas é só até nos afastarmos de Dunbum — Artan disse ao instigar a montaria a partir.

Cecily imaginou se ter visões de um homem estaqueado na terra, sendo vagarosamente estripado, poderiam qualificar sua reação como um tanto zangada. Duvidava. Sentia sede de sangue e estava muitíssimo frustrada por não poder expressar o que pensava devido à mordaça.

Artan não podia ver seus olhos, mas tinha certeza de que ela não estava apenas pedindo explicações. A mordaça tornava suas palavras incompreensíveis, mas o tom não deixava dúvidas. Logo após tê-la amarrado e amordaçado, seu olhar tinha sido de uma mágoa tão profunda que ele quase a soltara. Apenas saber que sua vida corria perigo o tinha impedido de fazê-lo. Raiva era melhor. Ele podia lidar com isso. Porém, achava que lhe devia alguma explicação e decidiu oferecer uma parcial.

— Eu a estou levando a Glascreag. Não podia esperar mais tempo para convencê-la a me acompanhar. Agora, precisamos cavalgar depressa por algumas horas, a fim de nos distanciarmos o máximo possível de Dunburn. Quando pararmos para descansar, eu lhe contarei tudo.

Ele esporeou a montaria para aumentar a velocidade, e Cecily se viu atirada contra seu peito. Ela não queria ir para Glascreag, nem ouvir uma explicação completa. Só desejava estar em seu quarto em Dunburn, chorando pela decepção sofrida. Quando parassem para descansar e Artan removesse a mordaça, ela deixaria isso bem claro.  

E então o mataria.

 

Animal peçonhento! Papão dominador! Como se atreveu a fazer isto comigo? Artan baixou o olhar para a moça furiosa que o insultava de maneira tão pitoresca e pensou se não deveria amordaçá-la de novo. Seus belos olhos verdes brilhavam de fúria, as faces estavam rubras de raiva e os seios lindos arfavam, pois mal podia respirar com a pressa de desacatá-lo. Estava magnífica. Reconhecia o espírito que havia vislumbrado em Dunburn. Ali estava sua companheira. Apressou-se em disfarçar um sorriso, pois isso só a enraiveceria mais. Mas Cecily percebeu e esbravejou: — Você está rindo de mim?

— Não — Artan respondeu, porém ela não acreditou.

— O que você fez não tem graça nenhuma. Vai me levar já de volta para Dunburn e talvez, apenas talvez, eu não exija que o acorrentem às muralhas para servir de alimento aos abutres.

Ao vê-lo sorrir, ela lhe deu um pontapé na canela e sentiu uma dor aguda nos artelhos.

— Brutamontes! —- gritou, pulando num pé só. — Você é feito de pedra e quase me aleijou!

Artan nunca tinha ouvido uma mulher gritar desse jeito. Era o tipo de barulho que faria uma matilha de cães fugir. Resmungou baixinho quando ela bateu em seu peito com as mãos presas, mas deixou-a fazê-lo por um momento, ciente de que merecia o tratamento. Ela fora encontrá-lo para ser sua amante e acabara prisioneira. Se isso tivesse acontecido com ele, tentaria matar o culpado. Quando percebeu que ela enfraquecia, segurou-a pelos ombros e a afastou para trás. Ao mesmo tempo, pensou na melhor maneira de iniciar as explicações.

Cecily encarou-o. Sabia que mágoa ajudava a alimentar sua raiva, mas se recusava a demonstrá-la. O homem a tinha enganado da maneira mais torpe e desprezível. Acreditara na atenção e nos beijos dele, disposta a correr um grande risco apenas para ser acariciada por alguns momentos. Se a mágoa profunda servia de indicação, ela havia permitido que ele invadisse seu coração. Não podia acreditar que houvesse sido uma tola tão cega e crédula.

A facilidade com que ele a mantinha à distância demonstrava também que havia sido uma idiota ao pensar que poderia machucá-lo. Os artelhos doíam e os punhos enrolados latejavam enquanto ele parecia nem ter sentido seu ataque. Muito humilhante.

Não, refletiu. Humilhante era o fato de ela ter consentido que esse homem a tocasse. Mesmo depois de cavalgar a noite inteira, ainda podia sentir o toque das mãos dele no corpo, o calor dos beijos na boca. Permitira que a deixasse fraca e cega de paixão enquanto ele apenas aguardava o momento certo para amarrá-la, amordaçá-la e colocá-la na sela da montaria. Pendurá-lo nas muralhas de Dunburn era um castigo muito brando, ela decidiu.

— Bem, Sile, existe uma boa razão para o que estou fazendo — Artan declarou.

— E evidente que você levou pancadas demais na cabeça — ela ironizou em tom áspero, ainda encarando-o, mas Artan a ignorou.

— Estou fazendo isso para mantê-la a salvo.

— A salvo de quê? Do tédio de me sentar à mesa com Anabel e Fergus?

— Os dois querem muito mais do que aborrecê-la durante as refeições. Ela e Edmund a vêm lesando há muitos anos. Não muito depois de se casar com Fergus, o idiota sem queixo tenciona garantir que você não o impeça, bem como a seus tutores, de viverem com fartura à custa de sua herança.

— Não seja ridículo. Não tenho herança alguma.

— Tem, sim, embora eu não saiba exatamente o que nem o valor. Seja lá qual for, os Donaldson e seu noivo não querem que você jamais usufrua dela.

— Você está apenas tentando justificar o que fez.

— Não, eu ouvi Anabel, Edmund e seu noivo. Seus tutores mentiram para você desde o início. Dunburn e a renda que produz, além da que seu pai possuía, deveriam ser seus, mas eles fizeram todos, inclusive você, pensar que Edmund era o herdeiro.

— Claro que é, pois é o parente homem mais próximo.

— Não precisava ser homem. Apesar de ter terras muito boas, seu pai não era o chefe do clã e poderia deixar a propriedade e o dinheiro a quem escolhesse. Você realmente acreditou que ele a tinha deixado sem nada?

Cecily não havia refletido sobre isso, claro. Era um dos motivos para ter se sentido tão triste quando fora informada de que não passava de uma órfã pobre, dependente da caridade dos primos indiferentes. Apenas achara que o pai não tinha deixado instruções sobre o que deveria ser feito caso ele e Colin morressem. Sentiu uma leve tentação de acreditar, mas logo a abafou. Havia aceitado a questão como era por tanto tempo que não se atrevia a pensar de outra forma e, muito menos, admitir que havia sido a maior das idiotas.

Assim como fora para Artan, pensou, dirigindo-lhe um olhar bravo. O fato de ele estar ali à sua frente era a prova cabal da grande idiota que poderia ser. Embora isso indicasse que ele talvez estivesse dizendo a verdade sobre os tutores a terem enganado e roubado durante anos, também lhe dizia para tomar muito cuidado ao dar ouvidos ao que ele contava.

— Meu pai não calculava que ele e Colin fossem morrer daquela forma. Todos sabiam que meu irmão seria seu herdeiro, mas ninguém disse quem deveria tomar o lugar de Colin caso ele também morresse. Eu ainda era criança para conversar sobre isso com meu pai. Pode muito bem ter havido instruções para Edmund ser meu tutor e de Colin se apenas meu pai morresse.

— Então seu pai gostava de Edmund e confiava nele? Cecily não gostou da pergunta. Apesar de ser criança quando perdera o pai, sabia que ele não gostava do primo e nem confiava nele. Edmund era um homem sem moral. Apenas isso bastaria para seu pai não tolerá-lo, mas talvez não tivesse escolha. Havia poucos Donaldson que eram parentes próximos, e alguém, um homem, teria de ser nomeado tutor das crianças caso o pai falecesse, até elas atingirem a idade para cuidar de si mesmas. Melhor um mau tutor do que nenhum.

— Eu ainda era criança para entender o que meu pai sentia pelos primos.

Artan percebeu que ela mentia e suspirou.

— A maneira com que você tenta ignorar a verdade é a razão pela qual não esperei para lhe contar tudo ou ajudá-la a descobrir os fatos. Tão logo se casasse com Fergus, sua vida correria sério perigo.

— Por que, se sou uma rica herdeira, como você afirma? O homem não vai querer matar sua vaca leiteira.

— Ele vai, se todo o leite da vaca passar a ser do marido.

Ele enfatizou as palavras com um gesto de cabeça ao vê-la empalidecer. Era fácil ver como Cecily lutava contra o medo, tentando descartar a verdade e ater-se à versão na qual acreditava fazia tanto tempo. Era um começo, contudo. O medo, mesmo passageiro, indicava que ela não confiava na inocência do noivo e dos tutores. Inteligente, ela percebia que os três não eram boas pessoas e não tinham caráter, apenas mais um pequeno passo para convencê-la de que eles, certamente, tramavam sua morte.

Decidido a deixá-la pensar em tudo o que havia lhe contado até então, Artan pegou a sacola com a comida. Estendeu um cobertor no chão e, com delicadeza, a fez sentar-se nele. Sem dar atenção ao semblante sombrio, amarrou o tornozelo dela ao seu antes de soltar-lhe as mãos para que ela se alimentasse. Tinha certeza de que não o agrediria outra vez, mas suspeitava de que tentaria fugir correndo se tivesse a chance. Até que a convencesse do perigo que a aguardava nas mãos dos tutores e do noivo, não poderia dar a ela muita liberdade.

O silêncio que reinava enquanto comiam era opressivo, mas ele não o quebrou. Mesmo se ela acabasse acreditando na ameaça das pessoas que considerava sua família, havia ainda a questão de como terminara o encontro amoroso na margem do riacho. Ia levar algum tempo antes de ela perdoá-lo por isso. Esperava que não fosse muito longo, pois a lembrança dos momentos estonteantes vividos sob o luar quase o enlouquecia de desejo por ela.

Cecily se surpreendeu por conseguir comer apesar do medo, da raiva e das dúvidas que a consumiam. Pelo jeito, ser raptada tinha aberto seu apetite, refletiu mal-humorada e suspirou. Também havia a mágoa profunda provocada pelo que considerava uma traição de Artan que, aliás, não a tinha machucado fisicamente. Se de fato acreditasse no que dizia sobre Anabel, Edmund e Fergus, então ele havia pensado somente em sua segurança.

Impossível ser verdade. Eles não eram pessoas boas, porém não podia acreditar que a tivessem roubado durante doze anos e que planejavam matá-la. E como Fergus viera a fazer parte disso se nunca havia sido um amigo próximo de seus tutores? Duvidava que os dois, de repente, depositassem confiança nele. E se de fato, a vinham roubando durante tanto tempo, jamais entregariam parte daquilo, de boa vontade, nas mãos de sir Fergus.

— Afinal, como você ouviu tudo isso? — ela perguntou de repente. — Não posso acreditar que Anabel e Edmund não tomassem o máximo de cuidado para esconder algo assim tão importante.

— Tomaram muito, claro. Tanto é que você nunca ouviu nada, embora morasse com eles havia doze anos.

— E você, no entanto, chegou a Dunburn e, depois de quatro dias, ouviu e soube de tudo?

— Não sei de tudo, mas apenas estava no lugar certo, na hora certa, e os ouvi. Acho que a voz de Anabel poderia atravessar o aço — ele murmurou e notou o olhar um pouco divertido de Cecily. — Eu estava passando pelo solário e a ouvi reclamando de que eu não ia embora. Como eu tinha sido atacado várias vezes desde a minha chegada, fiquei curioso para saber se ela planejava outros meios para me expulsar de lá.

— Como assim, atacado?

— Desde o início, sofri ataques pelo menos uma vez por dia, quase sempre, duas. Da última vez, o número de homens tinha subido para oito.

— Mas nunca vi ferimento algum em você, nem mesmo arranhões.

— Sofri alguns no último ataque, nenhum muito sério. Seu tio me ensinou muito bem a lutar, e os homens que me perseguiram não eram exatamente especialistas nisso.

Artan falou com tal arrogância que Cecily rangeu os dentes. Então, lembrou-se da entrada dele no grande salão na primeira noite e reconheceu que tinha direito de ser arrogante quanto à perícia em lutar. Duvidava que qualquer dos homens dos Donaldson ou de Ogilvey pudesse passar por todos os guardas, erguer dois pelo gibão e, depois, jogá-los no chão com facilidade.

— Mas por que alguém o atacaria a fim de forçá-lo a ir embora? Afinal, Edmund o convidou para ficar.

— Na verdade, ele não queria isso. Cheguei como emissário de seu parente mais próximo e não seria sensato impedir que eu ficasse até o casamento. Uma atitude como essa provocaria indagações por parte de Angus, o que Edmund tentou evitar.

— Não vejo como meu tio se preocuparia com isso. Ele nunca se importou com o que acontecia comigo desde que meu pai e Colin foram assassinados. Decidiu mandar me buscar só porque está à beira da morte.

— Tem certeza disso? — Artan indagou numa voz suave e viu dúvida e mágoa na expressão dela. —- Ele afirma que sempre escreveu e mandou presentes para você. E também que a convidou para ir morar com ele em Glascreag. Você também diz que lhe escrevia, mas ele nunca recebeu suas cartas. Temos que nos perguntar por que os dois afirmam ter feito isso, mas ambos deixaram de receber o que lhes foi enviado.

Cecily quase disse que o tio era um mentiroso, mas reprimiu as palavras. Suas lembranças dele tinham sido sempre muito claras, em parte por estarem ligadas à tragédia do assassinato do pai e do irmão. Angus MacReith era bronco a ponto de ser rude, porém era impossível acreditar que ele mentisse sobre escrever para ela ou receber suas cartas.

Por um momento, quase entrou em pânico e respirou fundo para se acalmar. Mesmo se fosse verdade que Anabel e Edmund a tivessem enganado sobre o tio e a convencido de que ele a esquecera, isso não validaria o resto da história de Artan. Poderia apenas significar que os tutores não queriam a interferência de Angus em sua educação.

Ciente de que tinha atingido um ponto importante, Artan apressou-se em continuar:

— Embora me envergonhe admitir, o último ataque me marcou. — Levantou o kilt xadrez para mostrar o corte na coxa direita. Com certa satisfação, disse: — Aquele homem nunca mais agredirá hóspedes de Dunburn. E o ataque me permitiu deixar Thunderbolt perto do riacho, embora eu deteste a idéia de passar por idiota por não ter impedido a montaria de fugir.

Cecily olhou para o corte na coxa. Sem dúvida tinha sido feito por uma espada, mas, para sorte de Artan, não era fundo e já começava a cicatrizar, pois a longa cavalgada dessa noite não o tinha reaberto.

Tão logo o choque por ver o ferimento começou a passar, ela se viu fascinada pela coxa nua. Apesar da cabeleira farta e longa, além da sombra de uma barba de alguns dias, Artan não era um homem peludo. A camada de pelos sobre as pernas longas e musculosas era rala, o que permitia ver a pele bronzeada. Notou que até os joelhos dele eram bem-feitos. Crispou as mãos para reprimir a vontade de passá-las naquelas pernas bem torneadas.

Quando Artan baixou o kilt, ela lutou para não enrubescer. Sem dúvida levaria algum tempo para se livrar da atração por aquele homem. Depressa, concentrou os pensamentos nas alusões dele à atitude de Angus, bem como aos vários ataques sofridos em Dunburn. Como havia aceitado, mais ou menos, o fato de os tutores terem mantido o tio e ela afastados, supunha também ser possível que tivessem tentado se livrar do emissário de Angus, Isso não significava que houvesse um plano traiçoeiro para roubá-la ou matá-la. Afinal, Artan ainda estava vivo. Informou-o logo do raciocínio.

Ele suspirou, mas conseguiu abafar o aborrecimento diante da incredulidade de Cecily. Ela estava certa. O fato de os tutores a terem mantido afastada de Angus não queria dizer que planejavam, junto com sir Fergus, matá-la e ficar com sua herança. Uma que, aliás, ela não acreditava possuir.

— Sei o que ouvi, menina. Fergus deve se casar com você. Ele assinou contratos de casamento que garantirão a seus tutores a posse legal de Dunburn e os bolsos cheios. Em troca dessa generosidade, ele terá você e uma boa fortuna. Ele pretende que sua parcela de viúva também faça parte do espólio que será repartido entre os três. Quando se cansar de você, ele planeja matá-la. Eu o ouvi afirmar isso.

—Você não pode esperar que eu acredite na intenção de Fergus de cometer um assassinato a sangue-frio.

— Só porque é covarde e incapaz de enfrentar um homem? Até ele pode dominá-la fisicamente, Sile. Uma vez casados, você não terá para onde fugir. E se não acredita no resto, saiba que Fergus é um animal bruto quando lida com mulheres. Davida me contou que ele aprecia violência. Eu mesmo o peguei tentando violentar uma criada de uns treze anos. Seu vestido estava rasgado e o rosto, todo machucado. Foi ontem à noite, antes de eu ir jantar. Atirei o desgraçado contra a parede e foi por isso que ele estava indisposto.

— Como eu nunca soube de nada se ele costuma violentar criadas?

— Na casa de Anabel, isso não é considerado crime — ele disse numa voz suave ao perceber sua agitação crescente, imaginando se havia contado o suficiente no momento. Seria inútil forçá-la a aceitar tudo depressa demais. — Preciso descansar antes de seguirmos a jornada. Nem pense em esperar que eu durma para escapar. Esses nós não são fáceis de desmanchar e eu perceberei se você tentar. Bem como se quiser pegar uma de minhas armas.

Cecily olhou em volta e ficou desapontada ao não ver por perto uma pedra de bom tamanho. Golpeá-lo na cabeça umas poucas vezes ajudaria a minorar sua raiva. Suspirou e acomodou-se o mais longe possível dele, dentro dos limites da corda. Havia mais coisas que ele queria contar, tinha certeza, mas o intervalo era um alívio. Cada palavra ouvida precisava ser analisada, o que a forçaria a refletir muito. Consolava-se por ter dormido grande parte da noite durante a cavalgada encostada a Artan, pois achava que demoraria para conciliar o sono outra vez.

Assombrava-a o fato de enxergar Fergus muito claramente como alguém capaz de agredir e violentar mulheres. Ele mal a beijara, o que não lhe dava base para uma crença como essa. Porém, tinha visto como as criadas agiam perto dele. Davam a impressão de que temiam ser notadas. Como Edmund as selecionava entre mulheres dispostas a oferecer seus favores, Cecily sabia que a aversão delas não se devia ao fato de Fergus querer alguém para esquentar sua cama. Surpreendeu-se ao saber que havia uma jovenzinha dentro da fortaleza.

Imaginou que isso talvez se devesse à necessidade de serviçais extras por causa dos hóspedes.

O que a espantava mais não era Fergus ser um animal bruto, mas os tutores, que não deviam ignorar isso, continuarem a arrastá-la para o altar. Sem dúvida eles não se importavam de casá-la com um homem que não só a envergonharia com suas infidelidades como também a maltrataria. Cecily sabia que Edmund e Anabel não a queriam bem, mas, se Artan estivesse dizendo a verdade, era muito pior. Eles a desprezavam tanto que estavam decididos a entregá-la a um homem perverso, habituado a espancar e violentar mulheres.

Tudo aquilo era demais, pensou, fechando os olhos. Havia sido traída pelo homem a quem decidira aceitar como amante, e ele queria apenas forçá-la a acreditar na falsidade dos tutores, que estavam prestes a fazê-la se casar com um bruto, disposto a matá-la quando se cansasse dela. Apenas tentar concluir o que era verdade embaralhou seu raciocínio. Pelo menos por algum tempo precisava descansar a cabeça.

Do que Cecily se deu conta a seguir foi ser acordada com a pressão da ponta da bota de Artan. Fitou-o com cara feia e esforçou-se para levantar. Sua expressão piorou ao ver uma corda amarrada em volta da cintura, cuja outra ponta prendia-se ao cinturão de couro dele. Fora obviamente um erro dormir perto desse homem.

Quando ela percebeu que precisava se aliviar, quase praguejou em voz alta. Nem sequer indagou se ele lhe permitiria alguma privacidade; apenas se dirigiu ao abrigo de umas árvores. Quando alcançou uma com tronco grosso o suficiente para escondê-la, virou-se para ele e apontou para o lado oposto.

Decidindo que conversar talvez facilitasse a privacidade de ambos enquanto atendiam às suas necessidades, Artan disse:

— Você verá a verdade logo, Sile. É inteligente e, após refletir um pouco, descobrirá coisas de que não sentiu falta até agora.

— No momento, a única coisa de que sinto falta é minha cama.

— Você terá uma bem macia quando chegarmos a Glascreag.

— Você nunca pensou que eu talvez queira me casar com Fergus?

— Ora, ao ir se encontrar comigo perto do riacho, você provou que não quer.

— Seria melhor não falar sobre isso. E desagradável uma pessoa ser lembrada de como foi tola.

— Você não foi tola — ele disse com firmeza e, antes que Cecily discutisse, prosseguiu: — Talvez demore para entender o que mais eu lhe disser. Mas percebi que, antes de repousar, você estava prestes a acreditar na verdade sobre Fergus. E melhor se afastar de Dunburn para evitar que o casamento se realize.

— Não posso evitar isso, a menos que meus tutores o cancelem. Ao ficar longe de Dunburn só os cobrirei de vergonha e posso até mesmo lançá-los numa briga ferrenha.

— Não é mais do que merecem.

Ao sair de trás do tronco grosso, Cecily o encarou.

— Talvez seja verdade o que você diz sobre eles. E, se o que afirma sobre Fergus também for, então duvido que a família dele se ofenda muito se nosso casamento não se realizar. Porém, só tenho sua palavra sobre a veracidade disso tudo.

Artan chegou mais perto para enfrentar seu olhar.

— É claro que só falei a verdade.

— É o que você afirma.

— Meg também afirma a mesma coisa.

— Meg?!

— Exatamente.— Ele apontou para o saco pendurado na sela. — Quem, você acha, que arrumou suas roupas?

Meg sabia o que ele ia fazer e permitiu?, Cecily perguntou-se, chocada com essa possibilidade. Abafou depressa a reação à suposta deslealdade. Meg não concordaria com seu rapto. Porém, lembrou-se do quanto ela detestava Edmund, Anabel e, mais ainda, Fergus. Podia ter ajudado Artan, não porque acreditasse nas acusações dele, e sim para afastá-la de Dunburn e do noivo.

— Só porque Meg o ajudou ao arranjar roupas para mim não quer dizer que acredite no que você diz. Ela jamais gostou de Fergus e queria me tirar do alcance dele. Ainda mais se sabia como ele trata as mulheres.

Artan a segurou pelos braços e a sacudiu de leve.

— Vai chegar uma hora em que terá de aceitar a verdade. Não estou mentindo. Ouvi Edmund, Anabel e Fergus falarem sobre como se livrarão de você e dividirão o espólio.

— Não faz sentido. Mesmo se Edmund e Anabel vêm mentindo sobre minha herança e me roubando durante anos, por que incluíram Fergus na trama? Se nem queriam me dar um pouco do que era meu, por que repartir tudo com ele? Não é parente deles e, muito menos, um amigo próximo.

— Ele é amante de Anabel. Quanto mais próximo você quer que ele seja?

— Anabel tem amantes?!

Artan achou interessante que esse fosse o primeiro ponto a prender a atenção de Cecily, e não o fato de o noivo traí-la.

— Sim, vários, embora seja discreta, ao contrário do marido. Fergus é um deles.

— Ela também o seduziu?

— Não toquei em nenhuma mulher em Dunburn, exceto em você.

— Davida não conta?

— Também não toquei nela. Davida foi mandada ao meu quarto para que me fizesse perder o jantar daquela noite.

Ele parecia estar dizendo a verdade, pois mantinha o olhar fixo no seu. Impaciente, Cecily disfarçou a desconfiança sobre Davida, pois não queria dar a idéia de que estava com ciúme, e continuou argumentando:

— Ora, só porque Fergus e Anabel partilham a cama não quer dizer que o façam com outras coisas. Ela é muito boa, melhor do que Edmund, para guardar segredos.— Alguns podem escapar, mesmo que se tome muito cuidado. Isso basta para alguém juntar indícios.

— E você acha que Fergus juntou alguns e descobriu algo que tem o poder de forçar Anabel e Edmund a fazerem o que ele quer?

— Acho, sim. Ou melhor, tenho certeza.

Cecily esperou um momento, mas Artan não disse mais nada. Então, exigiu:

— E o que mais? Se quer que eu acredite no que está dizendo, é melhor me contar tudo o que ouviu, ou o que pensa ter ouvido. Por que Edmund e Anabel fariam o que Fergus deseja?

— Porque ele descobriu que os dois têm algo a ver com a morte de seu pai e de seu irmão.

Toda a cor esvaiu-se do rosto de Cecily, e Artan aproximou-se para ampará-la. Nesse instante, ele ouviu um ruído que reconheceu muito bem. O zunir do ar quando uma flecha passou rente de sua nuca.

Como Fergus os encontrara tão depressa?

Cravada no tronco da árvore, a flecha ainda tremia quando Cecily se viu carregada por Artan. Não desviou o olhar dela enquanto era levada para o cavalo e posta na sela. Não emitiu som algum quando ele montou e esporeou Thunderbolt a encetar um galope. Rezava pela própria vida e tentava deslindar os pensamentos confusos. Também calado, Artan cuidava da fuga.

Apesar de tê-lo ameaçado, não desejava que ele fosse ferido. Porém, sabia que a vida dele corria perigo. Se Artan hão tivesse se inclinado em sua direção naquele exato momento, a flecha o teria acertado na nuca, em vez de cravar-se na árvore. Teria sido obrigada a ficar lá e vê-lo morrer.

Estremeceu ao ser dominada por um forte pavor. Percebia que a trapaça e a traição de Artan não tinham matado seus sentimentos por ele. Não acreditava em tudo o que ele dissera sobre os tutores e o noivo, mas sabia que não tencionava fazer mal a ela. Artan fora incumbido de levá-la até seu tio, em Glascreag e, apesar de deplorar os métodos que utilizava, ele não merecia morrer por causa disso.

Restavam-lhe duas escolhas. Podia forçá-lo a deixá-la para trás e fugir sozinho para salvar a própria vida, ou ficar com ele até chegarem a Glascreag. Tinha certeza de que não conseguiria convencê-lo da primeira alternativa. Um homem como sir Artan Murray não fugiria, ainda mais depois de tudo que havia feito para raptá-la. E se ele acreditasse, de fato, em tudo que dissera, inclusive que sua vida corria perigo, jamais a deixaria sozinha para enfrentar seus inimigos. Isso queria dizer que ela seguiria para Glascreag. Sabia que não oferecia uma proteção muito eficiente, mas sua presença forçaria os perseguidores a tomarem mais cuidado. Afinal, não queriam que ela morresse.

Tão logo pudessem diminuir a marcha, comunicaria a ele sua decisão. Isso não impediria a perseguição de seus parentes e, suspeitava, dos Ogilvey, mas tornaria as coisas mais fáceis para Artan. Pelo menos, ele não precisaria mais se preocupar em mantê-la presa e, assim, poderia dedicar toda a atenção a protegê-los, levando-os em segurança até Glascreag. Esperava que ele não discutisse quando o avisasse de que sua estadia lá seria bastante curta. Quando os homens dos Donaldson e dos Ogilvey chegassem ao portão de seu tio, sua firme intenção era voltar com eles para Dunburn.

Já estava escuro quando pararam. O único som que Cecily emitiu quando Artan a ajudou a desmontar foi um gemido. Seu corpo doía como se houvesse rolado por um barranco de pedras. Não conseguia nem se sentir grata por ter sido desamarrada. Ao ver um lugar coberto por relva, foi até lá e, com o máximo cuidado, sentou-se. Pôr o peso todo nas nádegas foi mais do que podia suportar. Bem devagar, deitou-se de costas.

Ao olhar para o lado, viu Artan cuidar da montaria. O animal era bem amestrado, veloz e resistente. No momento, porém, ela não era capaz de apreciar isso como deveria. O fato de Artan se mover por ali como se não tivesse passado a maior parte de dois dias em uma sela também não ajudava a melhorar seu humor.

— Nada de fogo? — indagou quando ele se sentou ao seu lado.

— Não. Impossível saber onde eles estão, e não quero que detectem o menor sinal de fumaça que possa trazê-los até nós. Na verdade, fiquei muito surpreso hoje. Não esperava que iniciassem a perseguição tão depressa.

— De fato, é estranho. Não poderiam dar por falta minha antes da refeição matinal. Como descobriram que eu não estava lá? Tenho certeza de que ninguém me viu sair, pois, caso contrário, o alarme teria soado e nós o ouviríamos.

Artan tomou um gole de vinho e, em seguida, passou o odre para Cecily. Não queria revelar o que estava pensando. Alguém tinha ido ao quarto dela e notado que não se encontrava lá. Considerando o que ele havia feito a Fergus, era bem possível que o sujeito houvesse mandado alguém cortar seu pescoço e, em seguida, tivesse ido ao quarto dela para se apossar do que não conseguira da criadinha. O fato de ele ter dedicado tanta atenção a Cecily havia inspirado o verme a agir.

Porém, não interessava como haviam descoberto. O importante era que estavam atrás deles para pegá-los e matá-lo, mesmo que tivessem de ir até Glascreag. Ao pensar no péssimo serviço que tinham feito ao atacá-lo em Punburn, preocupou-se com a segurança de Cecily. Ela poderia ser facilmente ferida ou morta, apesar de eles terem a incumbência de resgatá-la. Infelizmente, havia poucos lugares para escondê-la no caminho, e o acesso a eles exigiria quilômetros extras no trajeto.

Pior, até Cecily acreditar nas ameaças à sua vida, tentaria voltar para Dunburn caso ficasse sozinha.

— Então é uma questão de azar eles começarem logo a nos seguir — ela resmungou. — E o que não tem me faltado ultimamente.

Artan refreou um sorriso e não fez comentários. Ela estava amuada e o culparia por tudo. De certa forma teria razão, pois ele não tinha calculado que a perseguição começasse tão depressa.

— Dormiremos esta noite aqui e partiremos antes de o sol raiar — ele avisou.

— Não cheguei a ver quem nos seguia.

— Homens de seus tutores e de Fergus.

— Quem os conduzia?

— Creio que Fergus.

Cecily não disfarçou a surpresa. O noivo não parecia ser o tipo de homem que pulava sobre a sela a fim de perseguir alguém. Uma voz sugeriu que ele não estava atrás dela, e sim da fortuna que ela representava, mas se esforçou para ignorá-la.

— Tomei uma decisão — confessou.

— É mesmo? Resolveu acreditar em mim?

— Não inteiramente.

— Então, sobre o que é sua decisão?

— Seguirei com você até Glascreag e não tentarei mais fugir. Não que eu tivesse tido qualquer chance de fazer isso até agora.

Artan deitou-se de lado e apoiou a cabeça na mão para observá-la.

— Mas não porque acredite em tudo que eu contei.

— De fato, não. Farei isso porque não vejo razão para você morrer apenas para atender a um pedido de meu tio. Os homens que nós seguem querem lhe fazer mal, è evidente, é não hesitarão em matá-lo.

— E você pretende ser meu escudo? Cecily suspirou ao ouvir o tom de zombaria.

— De certa forma. Sei que não serei um escudo muito eficiente, mas o bastante para forçá-los a tomar cuidado. Se você não estiver certo sobre Fergus, ele não há de me querer morta. E, se estiver, ele só vai querer que isso aconteça depois do casamento.

Artan ia protestar contra a idéia de que precisava ser protegido, mas desistiu. Ela concordara em ir de bom grado até Glascreag, e ele não pretendia discutir.

Afastou-se a fim de pegar algo para comerem. Haviam tido o suficiente para dois dias, mas ele teria de providenciar mais alguma coisa. Caçar era uma possibilidade, porém exigia um tempo que não seria sensato perder. Teriam de despistar Fergus e seus homens para adquirirem suprimentos numa cabana ou numa vila. Não seria difícil conseguir isso por algum tempo. Fergus sabia para onde se dirigiam, mas não conhecia a rota que seguiriam.

— Você acha que chegaremos a Glascreag sem ter um confronto com Fergus e seus homens? — Cecily indagou enquanto comiam um pouco de pão e queijo.

— Há uma boa chance disso. Conheço bem estas paragens, e imagino que ele não.

— Não faço idéia. Isso mostra como conheço pouco o homem com quem vou me casar.

— Você não vai se casar com ele. Portanto, não se preocupe se o conhece mal.

— Se o que me contou sobre ele for verdade, não me casarei mesmo. Mas tenho ainda de decidir no que acreditar.

— Você é muito teimosa — ele reclamou e tomou um bom gole de vinho para aplacar a irritação.

— Não posso acreditar em algo só porque você afirma que é verdade.

— Por que não? Você pode confiar em mim.

— Como fiz quando fui encontrá-lo perto do riacho? — Levantou a mão para impedi-lo de protestar. — Sei que você pensa estar me ajudando. Posso até achar que acredita em tudo que diz. Porém, moro com essas pessoas há doze anos e, embora admita que não tenha sido agradável, não posso imaginar alguma situação que me faça acreditar que eles desejem minha morte.

— Pois acho que você foi mantida bem longe da verdade.

Cecily suspirou e se viu forçada a concordar.

— Pode ser. Sei que não tinha permissão de me misturar com os serviçais ou ir a qualquer lugar. A festa, no dia de sua chegada, foi uma das únicas à qual tive licença para comparecer.

— E você nunca perguntou por que era mantida apartada, como se existisse um grande segredo?

— No início eu achava que era por ser criança e, depois, por não ter bons modos, como Anabel costumava repetir. Nunca me passou pela cabeça que eles pudessem ter tido algo a ver com a morte de meu pai e de meu irmão, ou que planejassem me matar. E ainda custa a passar.

Artan gostaria de poder voltar a Dunburn e estrangular Anabel.

— Isso não é invenção minha. Ouvi os três conversando. Aliás, Meg também ouviu. — Ao ver seu olhar de dúvida, ele suspirou. — Pense bem sobre isto e veja se consegue uma resposta. Se Edmund e Anabel a consideravam um peso, por que não a mandaram para Angus, em vez de se esforçarem tanto para mantê-la afastada dele?

Cecily não queria pensar sobre isso, mas concordou.

— Pensarei enquanto cavalgarmos para Glascreag. Então, se ainda não puder acreditar em tudo que você diz, a visita a meu tio será curta. Voltarei com Fergus quando ele chegar lá. Estou noiva dele e não posso fugir desse compromisso. È muito sério, e não serei eu quem o romperá. A menos que tenha um bom motivo.

— Não acho que você estivesse muito preocupada com esse compromisso quando foi me encontrar à beira do riacho.

Pelo seu, olhar, Artan percebeu que ainda não era sensato lembrá-la disso.

— Para mim, fica claro que estou pagando caro por esse pecado.

Artan revirou os olhos e juntou o resto dos alimentos na sacola, que pendurou na sela. Estava sendo uma luta fazê-la aceitar o que dizia. Ficaria muito ofendido com essa recusa em acreditar em sua palavra, caso não tivesse traído a confiança dela ao raptá-la. Até Cecily acreditar nele, não enxergaria os motivos que o tinham levado a tomar aquela atitude.

-— Você jura por sua honra que não tentará fugir se eu não a amarrar esta noite?

— Juro. Como já disse, apesar do que penso de seus atos e palavras, você não merece morrer por causa deles. Afinal, está fazendo o que meu tio lhe pediu. E talvez você acredite mesmo que esteja salvando minha vida. Ficarei ao seu lado, sem mais protestos, até chegarmos a Glascreag.

Artan assentiu com um gesto de cabeça e a viu afastar-se rumo às árvores. Precisava começar a cortejá-la, se alimentava a esperança de Cecily aceitar se casar com ele quando chegassem a Glascreag. Embora não quisesse usar contra ela a paixão que sentiam, ele o faria. Pelo que podia perceber seria a maneira mais rápida, e talvez a unida, para acabar com a raiva e a desconfiança dela. Pior, não poderia falar da oferta de Angus até conseguir um momento propício para revelá-la.

Talvez não houvesse um. Cecily não o acharia muito melhor que Fergus por também querer se casar com ela pelo que lucraria. Feria-lhe o orgulho pensar em ser comparado àquele animal, mas compreendia por que ela poderia pensar daquela forma. A única vantagem com que contava, além da paixão mútua, era o fato de ela se sentir segura em sua companhia. Apesar do que havia feito, ela obviamente acreditava que ele não a machucaria.

O mais urgente era conseguir ligá-la a ele, decidiu, enquanto arrumava uma cama para ambos na relva. No momento em que Cecily aceitasse o fato de não poder se casar com Fergus, teria de fazê-la aceitar um casamento apressado com ele, e precisaria ter boas razões para tanto. Poderiam se casar em qualquer vilarejo e, quando chegassem a Glascreag, a união seria confirmada por um sacerdote. Tinha certeza de que Cecily não fugiria do compromisso assumido, e então ele teria o tempo necessário para abrandar-lhe a mágoa e a raiva.

Ao vê-la voltar das árvores, respirou aliviado. Embora tivesse aceitado a palavra que ela dera, ainda tinha uma sombra de dúvida. Ele a viu olhar para a cama e franzir a testa. Numa atitude covarde, afastou-se em direção às árvores, pois não queria explicar por que havia arrumado apenas uma.

Depois de vê-lo sumir, Cecily tornou a olhar para a cama. Sabia que não havia muita escolha, pois só tinham dois cobertores. Apesar de ser verão, esfriava durante a noite. Aliás, quanto mais se adentravam pelas Terras Altas, mais isso acontecia. Como não queria passar frio, e calculava que Artan também não, deu de ombros.

Enfiou-se sob o cobertor e ficou à espera dele. Nunca havia passado a noite ao relento antes dessa jornada e não gostaria de fazê-lo sozinha. Infelizmente não tinham uma tenda. Mas deixaria bem claro a Artan que não mais aceitaria o que haviam feito à margem do riacho. Uma onda de calor espalhou-se por seu corpo, desmentindo-a, porém a ignorou.

Ficou tensa quando Artan voltou. Ele livrou-se das armas e as deixou ao alcance das mãos antes de deitar-se sob o cobertor ao seu lado. A tensão de Cecily aumentou ao sentir-lhe os braços na cintura, puxando-a para mais perto, as costas pressionadas a ele.

— Ora, menina, não precisa se enrijecer — ele murmurou. — Não vou fazer nada, exceto dormir.

— Acho bom mesmo — ela respondeu e franziu a testa, certa de que Artan apoiava o rosto em seus cabelos.

— Uma pena, pois pensei que você tivesse gostado do que fiz.

— Gostei até perceber que não passava de um engodo para me raptar.

— Ah, Sile, não foi isso. — Beijou-a na orelha.— Você acha que eu poderia mentir com meu corpo? Não sentiu como eu a desejava?

— O corpo de um homem pode sentir luxúria por qualquer coisa de saia. E sem a necessidade de ser honesto.

Artan mordeu-a de leve na nuca e sorriu ao senti-la tremer entre seus braços, sem tentar se afastar.

— Você desconfia de cada palavra minha?

Cecily não entendia como ele conseguia fazê-la sentir-se culpada. Não acreditava estar sendo muito severa. Se uma mulher tivesse feito com ele a mesma coisa, ele com certeza seria implacável. Por que, então, ele achava que deveria ser mais magnânima do que ele seria, ao perdoá-lo pela traição?

— Não de cada palavra, mas não pense que pode me seduzir com promessas falsas e lisonjas.

— Por que você pensaria que minhas palavras e atitudes, quando estávamos abraçados naquela noite, eram falsas?

— Porque você precisava de mim lá e totalmente enlevada para poder me raptar com facilidade.

Artan suspirou e acariciou-a de leve no ventre.

— Eu não tinha previsto que fizéssemos aquilo. Pensava apenas em beijá-la e prender suas mãos sem que você percebesse. Mas começamos a nos beijar com paixão e esqueci o que deveria fazer. — Percebeu a dúvida que a acometia pela tensão do corpo. — Minha Sile, você acha, realmente, que um homem que estivesse usando a paixão de uma mulher para beneficio próprio, pararia antes de tomar-lhe a virgindade?

Havia esse fato a ser considerado, ela pensou, erguendo os ombros para que Artan não a enlouquecesse com os beijos no pescoço. Não achava que um homem podia fingir estar tão excitado, e ainda assim não completar o ato. Ele sabia que ela o desejava, o que fora revelado pelo simples fato de ter ido ao encontro dele. No entanto, Artan não se apossara do que ela claramente oferecera. Porém, ainda achava que teria preferido que ele a tivesse golpeado na cabeça, em vez de ter feito o que fez.

— Não faço idéia de como os homens pensam — ela murmurou.

— Pois vou dizer como eu penso. Penso que não posso manter minhas mãos longe de você. Penso que você tem o sabor doce das amoras amadurecidas ao sol. Penso que pretendo mantê-la só para mim.

— Para você!?

— Minha, sim. Minha companheira, minha esposa. Cecily ficou tão perplexa que mal podia respirar. Se ele a queria como esposa, por que não tinha mencionado isso na margem do riacho? Uma parte sua queria levantar-se, dançar e cantar antes de dizer "sim". Outra imaginava com que tipo de jogo estava lidando.

— Sua esposa!?

— Isso mesmo, minha esposa.

— Mas sou noiva de Fergus.

— Não por muito tempo. — Parou de beijá-la, pois temia não se controlar mais. — Acredite, menina, o homem é tudo que lhe contei e, sem dúvida, muito pior.

— Por favor, me perdoe por não acreditar que as pessoas cujos cuidados recebi durante anos tenham arranjado meu noivado com um monstro.

— Pois me perdoe, menina, por dizer que tais pessoas jamais cuidaram de você. Firmaram o facão sobre você e sempre a mantiveram reclusa. Até expulsaram Meg, a única pessoa que lhe dava carinho, de Dunburn. Perturbada com as palavras severas, ela murmurou:

— Meg deu uma sova em Anabel, mas, graças a Deus, eles não a enforcaram.

— Você não se surpreendeu por não fazerem isso?

— Claro, mas eu supliquei a eles pela vida dela.

— E eles, bondosamente, pouparam Meg, convencendo-a que sua dívida para com eles tinha aumentado.

Cecily suspirou ao ouvir a dura verdade. De fato, havia se sentido devedora. Sempre que uma ponta de rebeldia se manifestava, ela se lembrava de como haviam deixado Meg viver e dominava a reação. Era difícil acreditar que tivessem planejado aquilo, embora Anabel houvesse se mostrado ansiosa para ver Meg morta.

Percebeu que não havia refletido o suficiente sobre tudo que Artan dissera. Precisava vasculhar as lembranças dos tempos vividos sob o domínio de Anabel. Ainda lutava contra as dúvidas quanto a quererem vê-la morta e quanto à relação deles com o assassinato de seu pai e de Colin. Porém, já era tempo de encarar a questão. Ela havia dito a Artan que pensaria em todas as acusações contra Anabel, Edmund e Fergus, mas ainda não o fizera.

— Você já pensou que reluto em acreditar no que diz porque isso significa que eu vivi durante todos esses anos com pessoas que não se importam comigo e jamais se importarão? Pessoas que lamentam que eu não esteja na sepultura, ao lado de minha família? O que você me pede não é muito fácil.

Artan suspirou e a beijou no topo da cabeça.

— Eu sei, menina. Só não quero que você ignore a possibilidade de eu estar certo, pois isso poderá custar sua vida. E esse, minha Sile, é um preço alto demais para pagar pela lealdade a pessoas que nunca lhe dedicaram nenhuma.

Ele estava certo. E também pondo a mão em seus seios, ela deu-se conta, e logo a afastou.

— Nada disso — esbravejou.

— Eu estava apenas me ajeitando para ficar confortável. — Sorriu ao ouvi-la bufar com zombaria.

Cecily percebeu que se sentia segura e aquecida nos braços dele. Não sabia se queria chorar ou praguejar. O homem a enganara e raptara. Não deveria estar aconchegada a ele, pensando em tolices, tais como o quanto gostaria de dormir daquele jeito todas as noites. Sem dúvida, era uma pobre tola. Só rezava para que Artan não descobrisse como sua força de vontade era fraca.

 

Calor. Ela sentia muito calor. Cecily lutava para acordar e livrar-se do sonho com um homem de maravilhoso peito largo e beijos ardentes. Quando finalmente despertou, estava abraçada a Artan e sendo beijada loucamente. Pior. Ela correspondia com ardor, como tinha feito na manhã da véspera e na anterior. Por um momento, pensou em fingir que ainda dormia, a fim de continuar apreciando a demonstração amorosa sem se sentir culpada. Porém, baniu a idéia absurda e soltou-se dele.

O homem a estava enlouquecendo com aqueles beijos, pensou ao encontrar o sonolento olhar dele. A cada chance que tinha, ele a beijava ou tocava. Já seria terrível a fuga da perseguição implacável de Fergus sem que Artan transformasse tudo em parte de uma sedução contínua. O fato de ela sentar-se por longas horas entre os braços dele enquanto cavalgavam só facilitava tudo para o teimoso. Já estava chegando a ponto de ele deixá-la tonta de desejo com apenas um lampejo dos olhos azul-prateados.

— Não haverá mais disso — ela afirmou pelo que parecia a centésima vez.

— Um homem não pode cortejar a moça com quem pretende se casar? — Artan perguntou ao se sentar e espreguiçar-se.

Pelo canto dos olhos, ele percebeu que Cecily observava seu corpo com expressão ávida. Se ele não sentisse a mesma coisa em relação a ela, se envaideceria. Levantou-se e se espreguiçou mais um pouco, apenas para lhe proporcionar a visão do que ela negava a si mesma. Se Cecily percebesse sua intenção e resolvesse retaliar, ele enfrentaria um sério problema. A simples idéia de vê-la ondular sua beleza esguia o fazia transpirar. Teria de tomar muito cuidado para ela não perceber que eram estímulos propositais, pois seria fácil ser capturado da mesma maneira.

Cecily abafou uma praga e levantou-se. Fez uma careta e massageou as costas da cintura para baixo. Embora já começasse a se acostumar a passar horas na sela, dormir no chão a fazia se sentir, de manhã, uma pessoa idosa. Caminhou para o abrigo das árvores a fim de atender às suas necessidades, na esperança de que andar aliviasse parte da rigidez de seu corpo.

Quando voltou ao acampamento precário, Artan já tinha encilhado o cavalo e lhe entregou um pãozinho de aveia. Cecily rezava para que chegassem logo a Glascreag. Ansiava por uma farta refeição, um banho quente e uma cama macia. Quando se deu conta de que a visão da cama incluía Artan deitado e nu, quase gritou. Nem mentalmente estava livre da sedução dele.

— Se tudo correr bem, deveremos chegar a Glascreag dentro de três dias — ele informou, passando a ela o odre de vinho.

Ela franziu a testa e tomou uns goles.

— Que eu me lembre, a viagem levava mais tempo.

— Imagino que vocês seguiam num passo vagaroso e por trilhas que podiam encontrar. Mas Meg deve tê-la levado de volta para Dunburn pelo mesmo caminho que estamos fazendo, que é mais rápido.

— Não me lembro muito do trajeto com Meg.

— Calculo que não, pois foi numa situação triste e assustadora.

— Muitíssimo — ela concordou e afastou as lembranças deprimentes. — De fato, seguimos num passo vagaroso, mas acredito também que essas viagens são muito enfadonhas para as crianças.

Ele sorriu, assentindo.

— Quando rapazinho, apesar de estar ansioso para iniciar minha educação em Glascreag, me cansei depressa da jornada. Pronta?

— Para montar em Thunderbolt e cavalgar o dia inteiro?

— Isso mesmo — ele respondeu, rindo. — Talvez hoje possamos descansar mais tempo quando o sol estiver a pino.

— Numa vila?

Cecily tinha visto várias à distância e gostaria de ter parado em uma, mas Artan havia cavalgado ao longo delas, preferindo uma rota mais escondida.

— Não, mas há outros lugares bons e mais seguros.

Contudo, se você estiver pronta para se casar comigo, eu me disponho a correr o risco de entrar numa vila. Na próxima.

— Isso é suborno — ela protestou, rindo, mas censurou-se, pois deveria estar brava.

— Sem dúvida.

— Por que você continua a falar em casamento se não estou livre?

— Poderá ficar — ele afirmou, levando a mão ao cabo da espada.

— Você não pode matar Fergus só porque estou noiva dele.

— Para mim é um bom motivo — ele disse ao sentá-la na sela.

Cecily franziu a testa enquanto ele montava atrás dela e pegava as rédeas. Ele falara em tom sério. Seria estonteante se, por um minuto, acreditasse que Artan nutria um ciúme tão grande de Fergus a ponto de querer vê-lo morto. Porém, duvidava que fosse o caso. Talvez houvesse um pouco de sentimento de posse, mas suspeitava de que ele queria matar Fergus por outros motivos. O homem aparentemente estava por trás dos ataques em Dunburn, e Artan parecia certo de que ele tencionava matá-la.

Com o olhar perdido na paisagem, tornou a refletir sobre tudo o que Artan dissera. Não acreditava mais que ele estivesse mentindo a fim de levá-la a Glascreag; estava convencida de que ele lhe contara o que considerava a verdade absoluta. Sua confiança nele se fortalecia a cada dia, e não apenas porque seus beijos a excitavam. Devagar, Artan fazia subir à tona as lembranças de sua vida sob o domínio de Edmund e Anabel, bem como as poucas da convivência com Fergus.

Queria que ele parasse de lhe provocar reminiscências, reflexões e sentimentos enterrados havia tanto tempo. Entendia por que ele fazia isso. Estava tentando forçá-la a ver a verdade por si mesma. Ficava cada vez mais difícil negar tudo aquilo e achar que a verdade era só dele. Quase tudo de que se lembrava dava razão á Artan, o que a impedia de defender ou desculpar os tutores e o noivo. O pior era que isso mostrava o quanto lhe fora negado, as vezes em que mentira a si mesma e o quanto se forçara a ignorar e esquecer. Devagar, começava a ver sua existência triste e miserável durante longos doze anos.

Às vezes ficava brava com Artan, embora soubesse que ele não merecia. As histórias que ele lhe contava sobre a própria vida e a família revelavam o relacionamento afetuoso entre todos os parentes, o que aumentava sua revolta e tristeza. Apesar da morte prematura da mãe, ela havia tido uma vida semelhante ao lado do pai e do irmão, antes de ambos lhe terem sido brutalmente roubados. Começava a se dar conta de que todos em Dunburn, dos criados ao guardador de porcos, tinham sido afastados de seu convívio desde o dia em que Meg a levara para casa, após a tragédia. Meg havia sido a última a lhe ser tirada e, depois disso, passara a viver absolutamente sozinha.

Tinha de haver uma razão para o que acontecera. O que mais a atormentava era não encontrar uma muito boa, que explicasse tudo claramente e provasse que Artan estava errado. Mais e mais, uma voz em sua mente repetia a pergunta: Teria vivido todos aqueles anos com os assassinos de sua família e se curvado a eles? Pensar que isso poderia ser verdade a enregelava até a medula.

Recostou-se a Artan e fechou os olhos, sorrindo ao sentir o beijo no topo da cabeça. A raiva e a mágoa que havia sentido quando ele a raptara tinham praticamente sumido, deixando apenas uma leve desconfiança sobre o desejo dele por ela. Afinal, ele usara a paixão como arma para capturá-la, o que a inquietava cada vez que a atração entre eles recomeçava a ganhar vida. Franziu a testa ao se obrigar a admitir que esse desejo jamais havia se acalmado.

Então por que o negava?, indagou-se. Ele falara em casamento e, portanto, caso seu noivado com Fergus terminasse, ela teria um marido. E um bem melhor do que o escolhido pelos tutores, refletiu. O desejo que sentia por Artan era algo vivo, faminto e exigente em seu âmago. Se ele estivesse certo, ela estava lutando pela própria vida. Então por que recusava a si mesma algo almejado tão ardentemente? Começou a conjeturar se não continuava querendo puni-lo pelo que já parecia uma afronta pequena naquele momento. Ou era isso ou estava castigando a si mesma por desejá-lo em lugar do noivo. Nenhum dos dois motivos era razoável. Por outro lado, desconfiava dos próprios argumentos, temendo estar apenas se convencendo de ser aceitável o que queria.

Decidiu que já estava na hora de parar com essas reflexões. Quanto mais pensava em sua vida, mais se sentia inclinada a tomar o que ela queria e apreciar ao máximo. Artan propusera casamento e, mesmo ainda não tendo conseguido se decidir a respeito disso, poderia aproveitar tudo o mais que ele oferecia. Somente a palavra dada a prendia a Fergus e, embora sentisse uma; ponta de culpa por trair as promessas feitas na cerimônia de noivado, não seria isso que a deteria, tinha certeza.

Embalada pelo ritmo do cavalo e envolvida pelo prazer de estar perto de Artan, relaxou e aconchegou-se mais àquele peito forte. Com os problemas postos de lado, era ali que queria ficar e já estava na hora de parar de lutar contra ele e contra si mesma. Tão logo descansasse um pouco, o deixaria saber que não o afastaria mais. Ao sentir nas costas a já familiar pressão de algo rijo, sorriu. Suspeitava de que não precisaria se esforçar muito para convencê-lo a aceitar sua mudança de atitude.

Artan baixou o olhar para a moça que dormia entre seus braços e imaginou o motivo daquele sorriso, mas achou melhor não saber. A raiva contra ele quase tinha passado. Embora ainda não lhe desse crédito absoluto, não achava mais que estivesse mentindo. Apesar de contraditório, já era mais um passo para que ela admitisse a verdade nua e crua sobre os Donaldson e Fergus.

Seu motivo mais forte para que Cecily aceitasse logo a verdade era que ela pararia de se ater às promessas feitas a Fergus. Detestava a idéia de ela sentir a menor ligação com o sujeito, mas os crimes que o homem cometera tinham pouco a ver com essa reação. Admitia querer que Cecily se sentisse presa só a ele. Queria também que ela o aceitasse como amante e, quanto mais cedo, melhor, pois vivia em estado permanente de ex-citação. Podia esperar um pouco mais para que o aceitasse como marido, mas duvidava agüentar outra noite deitado ao lado dela sem poder satisfazer seu desejo.

Não se surpreenderia se essa situação enlouquecesse um homem.

Suspirou e instigou Thunderbolt a apressar o passo. Para alguém capaz de passar um bom tempo sem mulheres, ele demonstrava ter pouco controle perto de Cecily. Nem ao menos tinha certeza de que o problema se resolveria caso pudessem fazer amor sempre que desejasse. Talvez fosse simplesmente ela quem o mantivesse nesse estado de excitação contínua, e não gostava muito disso. Se ela descobrisse o poder que tinha no corpo delicado, ele ficaria em maus lençóis.

Ao livrar-se da idéia inquietante, lembrou-se, de repente, de uma lagoa pela qual havia passado a caminho de Dunburn. Se tudo corresse bem, deveriam alcançá-la quando o sol estivesse a pino. Era o lugar perfeito para descansarem e, se ele tivesse sorte, fazerem amor. Poderiam banhar-se na lagoa. Nus. Quando seu corpo reagiu, ele tentou pensar na jornada à frente e em como ludibriar seus perseguidores.

Cecily olhou ao redor enquanto se esticava e massageava as costas. Era um lugar lindo. Uma vegetação que incluía flores, moitas e árvores rodeava a lagoa de águas claras. Descalçou as botas, retirou as meias, foi até a margem e molhou os pés. A água fria provocou-lhe um arrepio, mas aliviou o calor. Quando Artan estendeu um cobertor no chão e pôs nele o restante dos alimentos, sorriu para ele.

— Um lugar encantador — elogiou, indo até o cobertor e sentando-se ao lado dele.

— É mesmo — ele concordou, entregando-lhe um naco do último pedaço de pão. Em seguida, dividiu em dois o que sobrara do queijo. — Também achei isso: quando parei aqui na ida para Dunburn. Gostei do lugar para passar a noite e, no dia seguinte, fiz uma ótima refeição com peixe fresco da lagoa. — Franziu a testa e disse: — Talvez eu devesse tentar pescar um.

— Por sua expressão, você acha que isso nos fará perder tempo demais.

— Perdi tempo daquela vez e não quero ficar aqui além do necessário para descansarmos.

Cecily assentiu com um gesto de cabeça, pois mastigava um bocado do pão já meio duro. Quando pôde, ironizou:

— Calculo que não poderemos pegar uma galinha assada na lagoa.

Artan riu.

— Não mesmo. Nem um delicioso pudim de maçã.

— Ah, paciência, mais ainda é uma lagoa linda, apesar de inútil e de água gelada.

— Então você não vai querer nadar? — ele perguntou, lamentando a perda do sonho que alimentara, de ambos o fazerem juntos, nus.

— Não sei nadar. Meu pai ia me ensinar quando voltássemos a Dunburn depois da visita ao meu tio. Alguém tinha lhe dito que eu passava muito tempo na beira do riacho, e ele temia que eu caísse na água e morresse afogada.

— Posso ensiná-la, mas não aqui nem hoje. Em Glascreag há vários lugares bons para nadar.

Ela o fitou e, de repente, sentiu-se muito triste.

— Talvez eu não fique muito tempo em Glascreag.

— Ficará, sim.

— E você diz que eu sou teimosa. Pretendo voltar com os Donaldson e Fergus quando eles chegarem lá.

— Mesmo que você não acredite no que digo a respeito deles e de seus planos para matá-la, por que voltar com tal companhia? Você não gosta nem de seus tutores nem de Fergus, além de não ser feliz em Dunburn.

— É verdade, e acho que vai entender se eu não lhe agradecer por abrir meus olhos. Porém, a menos que eu acredite em todas as suas palavras sobre mentiras, fraudes, roubos e planos de assassinato terei de honrar as promessas feitas e cumprir meu dever.

— E não tem nenhum dever para com o irmão de sua mãe?

— Sim, e começo a acreditar que meus tutores, de propósito, mantiveram meu tio e eu afastados. Meu dever é impedir que isso se repita. Não conheço bem as leis sobre tutela, mas talvez eu cause sérios problemas ao meu tio se ficar em Glasereag. Já me preocupo bastante com os que você e eu estamos levando para lá. Mas esses serão solucionados com minha volta com os Donaldson e Fergus para Dunburn.

— Angus não permitirá isso. Ele será capaz de se levantar da cama só para ter a chance de lutar contra os habitantes das Terras Baixas.

— Lamentarei privá-lo desse prazer, mas não consentirei nessa luta. Pessoas inocentes, que não têm nada a ver com a questão, sairão feridas.

Artan não conteve o riso diante do tom severo. Ela fazia o fato de negar a Angus a chance de lutar soar como se estivesse negando um brinquedo a uma criança.

No entanto, o restante do argumento era válido, e ele até concordaria, mesmo que isso não o impedisse de se unir à luta. Sua concessão diante de situações como essas era fazer o melhor para que nem ele nem qualquer outros homens lutando ao seu lado fossem responsáveis por ferir pessoas inocentes em meio a uma batalha.

A afirmação de Cecily de que iria embora de Glasereag logo após chegarem não o preocupava muito. Esperava que, até então, ela tivesse aceitado a verdade. Caso contrário, a manteria na fortaleza até que o fizesse. Também não pensaria mais no problema caso se casassem, pois ela se sentiria presa a ele pelos votos trocados e não o abandonaria.

Nem mesmo quando descobrisse seu segredo, pensou, maldizendo-se pela covardia. Haviam passado horas falando do passado de ambos e, mesmo assim, ele hesitara em revelar á proposta de Angus. Uma parte dele dizia que aquilo não tinha importância. Muitos homens se casavam pelo que podiam ganhar, sem que os sentimentos interferissem. Nessa circunstância, a oferta havia sido feita pelo próprio bem dela. Angus não podia deixar a propriedade para uma jovem bonita e delicada porque isso seria um convite aos vizinhos para que se apossassem de Glasereag. Ele precisava de um homem forte como o chefe do clã. O casamento resolveria essa necessidade, além de permitir que ele deixasse algo para a sobrinha, um dos poucos parentes próximos que lhe restavam. Tudo aquilo fazia sentido e não deveria perturbá-la ou depreciar o que Artan sentia por ela.

Porém, esse era um raciocínio masculino, e ele não podia confiar que fosse o dela também. Pior, não tinha habilidade com palavras doces para convencê-la de que tinha sentimentos por ela; algo muito superior e além do que poderia ganhar com o casamento.

Afastou a apreensão. Se não conseguisse encontrar o momento certo para falar sobre o acordo com Angus antes de chegarem a Glascreag, ele o faria quando estivessem lá. Teria apenas de tomar cuidado para fazer isso antes que alguém mais o fizesse.

Ciente de que não poderiam ficar muito mais tempo ali, levantou-se e puxou-a para que também ficasse em pé.

— Precisamos ir embora logo, e eu ainda tenciono me lavar desta poeira. Você não gostaria de vir comigo? Sei nadar muito bem, e você não precisa ter medo de se afogar, caso tropece.

— Isso é reconfortante — ela murmurou, franzindo a testa enquanto olhava para a água. Então, assentiu. — Sim, acho que um banho rápido, mesmo na água gelada, vai ser bom. Apesar de achar que talvez seja um pouco de perda de tempo, uma vez que vamos cavalgar até o pôr-do-sol.

Artan riu e começou a descalçar as botas. Lamentavelmente, teve de desistir de seu plano de fazerem amor. Havia uma inquietação crescente dentro de si, um alerta sobre problemas, e ele a acataria. Tomariam um banho rápido e logo partiriam. Tirou a camisa e viu que Cecily tinha se livrado do vestido, mas dominou a vontade de ceder à tentação. Não podia ignorar o instinto, que lhe dizia que não era seguro ficar muito tempo ali.

Cecily soltou um gritinho de choque quando pisou na água fria e riu de Artan ao vê-lo estremecer depois de emergir de um mergulho. Cautelosa, ela deu uns passos para a frente e parou quando a água chegou aos joelhos. Curvou-se um pouco e, devagar, lavou a poeira e o cheiro de cavalo da pele. Logo sua camisa estava ensopada, porém não se importou. Também precisava ser lavada e secaria depressa com o calor do sol.

— Incline a cabeça para trás, menina, e eu lavarei seus cabelos se quiser — Artan ofereceu.

— Ah, sim, eu gostaria muito.

Enquanto o fazia, ele tentou desviar o olhar. Molhada, a camisa fina de Cecily ficara transparente, revelando as belezas de seu corpo. Terminou de lavar os cabelos dela e mergulhou. O efeito da água gelada foi o que ele queria para acalmar o corpo rijo de desejo.

Por alguns instantes, Cecily observou-o nadar. Era fascinante ver os movimentos firmes e precisos, mas logo o frio a fez retornar para a margem. Não ficou surpresa ao vê-lo se juntar a ela. Mesmo sendo forte, ele também não devia gostar da água gelada.

— Preciso ir até o meio das árvores —- ela avisou depois de se enxugar com o cobertor que ele lhe dera.

— Vá, mas não demore — ele recomendou, já se calçando.

Cecily pôs o vestido sobre a camisa molhada e sentou-se para calçar meias e botas. Fez uma careta por causa da sensação desconfortável de usar as peças úmidas sob as secas. Correu para as árvores, ciente de que em breve aquilo seria refrescante sob o sol forte.

Terminava de ajeitar a roupa quando ouviu um barulho estranho. Sem pensar, correu para onde Artan estava. No momento em que saiu de sob as árvores, percebeu que havia cometido um sério erro. Ele estava rodeado por homens armados. Fergus os tinha encontrado.

Recuou alguns passos, pensando no que deveria fazer. A única idéia que lhe ocorreu foi correr até os homens a fim de distraí-los e dar a Artan uma chance de fugir. Porém, duvidava que ele o fizesse. Quando ele deu um grito ensurdecedor e atacou os homens, ela decidiu agir, mesmo que fosse para salvá-lo da própria tolice. Porém, ao dar o primeiro passo, foi agarrada por trás com firmeza. Antes de poder reagir, sentiu uma dor lancinante na cabeça e tudo escureceu.

Alguém gemia. Um segundo depois, Cecily deu-se conta de que esse alguém era ela. A sensação era de um diabinho sentado em seus ombros, golpeando-lhe a cabeça com um tijolo. Teria ela caído da sela? Seria constrangedor, pensou.

Então, as lembranças voltaram, e a cabeça encheu-se com visões que ela gostaria de banir para sempre. A última de Artan provocou-lhe uma tristeza imensa. Ele devia estar morto. Nenhum homem poderia enfrentar tantos outros, dispostos a matá-lo, e sobreviver. Tinha de haver uns dez deles brandindo espadas. Mesmo assim, uma parte sua recusava-se a perder a esperança. Admitiu ser tolice, mas a pequena chama de fé não se apagou.

Com todo o cuidado, entreabriu os olhos e estremeceu quando a luz que a rodeava, embora fraca, fez sua cabeça latejar. Estava numa tenda muito refinada. Ao se sentar, percebeu que tinha os pulsos amarrados, mas isso não era o pior. A outra ponta da corda prendia-se a uma estaca no centro da tenda. Só um homem sem caráter era capaz de amarrar uma mulher como a um animal. O raciocínio fez o alarme ser substituído pelo ódio.

Além de a cabeça latejar, ela sentia outras dores pelo corpo, sinal de que sua vinda para o lugar não havia sido fácil. As roupas estavam rasgadas em vários lugares e imundas. Presa a uma estaca como se fosse uma fera, estava desesperada de sede e ansiava por um gole de água. Queria matar alguém ou, pelo menos, arrancar-lhe sangue.

Fergus entrou na tenda nesse momento, levando-a a concentrar todo o seu ódio nele. De certa forma, não se surpreendia que o homem viajasse com uma tenda digna da realeza. O fato de ele manter a mesma elegância de quando se sentava à mesa do grande salão de Dunburn aumentou seu ódio. Até os cabelos ralos do sujeito estavam bem penteados. Ao vê-lo se servir de uma caneca de vinho, sem lhe oferecer um pouco, e, sentar-se num banquinho a fim de observá-la, Cecily suspeitou que o latejar na cabeça, nesse momento, tinha menos a ver com o fato de alguém tê-la golpeado e mais com a fúria que corria em suas veias.

— Posso cometer a impertinência de indagar o motivo de estar presa a uma estaca? — indagou por entre os dentes cerrados.

A maneira de Fergus arregalar os olhos revelou que sua raiva evidente o surpreendia. Fitou-a com um pouco mais de atenção e deu a impressão de estar mais chocado ainda. Era como se um camundongo mostrasse presas enormes e estivesse prestes a pular na garganta dele. Ao demonstrar tamanha perplexidade diante de sua raiva por ser tratada dessa forma, ele revelava a Cecily tanto sobre ele quanto sobre si mesma. Ela parecera fraca e tímida, uma vítima fácil, e isso a desgostava.

— Eu não poderia deixá-la solta, concorda? Talvez você voltasse correndo para seu amante.

— Não tenho um amante — ela declarou.

Ele mexeu-se mais depressa do que parecia possível e a estapeou no rosto. A força do golpe a fez cair deitada outra vez. Por um momento, permaneceu daquele jeito. A face ardia, mas o choque provocado pelo ataque era pior pois, naquele momento, soube que Artan dissera a verdade.

— Acha que não percebi que foi se encontrar com o montanhês na margem do riacho por vontade própria? — ele gritou e bebeu o vinho. — Você saiu às escondidas, à noite, como uma ladra, para se entregar a ele. Você é minha noiva.

Com a máxima cautela, pois temia ser agredida outra vez, Cecily voltou a sentar-se.

— Como ficou sabendo que saí, com quem e para onde?

— Eu tinha alguém vigiando o sujeito, e você não estava em seu quarto.

— Você foi ao meu quarto?! — ela indagou e, instigada pelo ódio, desistiu do tratamento formal.

— Já era tempo de lembrá-la de que é minha noiva. A resposta revelou claramente por que ele tinha ido procurá-la, e Cecily mal conseguiu refrear um arrepio de repulsa. Sempre havia se esforçado para não pensar no fato de que Fergus, como seu marido, teria o direito de deitar em sua cama e reivindicar seu corpo. Era evidente que ele havia decidido não esperar mais para exigir seus direitos. Suspeitava que isso não tinha nada a ver com luxúria, e sim com a intenção de marcá-la como uma propriedade, o que talvez fizesse Artan afastar-se dela. Ao se lembrar do que ele lhe dissera a respeito de Fergus tentar violar a jovem criada, soube que não importaria sua cooperação ou falta dela. Pior, tinha absoluta certeza dê que os tutores não fariam nada para ajudá-la ou desagravar o insulto.

— Bem, foi bom eu não estar lá, pois já decidi que não estamos mais noivos.

— Você decidiu? Isso não lhe compete, sua rameira. Seus tutores a deram para mim.

— Curioso. Por mais que eu reflita, não entendo por que eles o escolheram. Você não lhes proporcionou uma boa recompensa. Eles poderiam ter escolhido outro entre vários, todos capazes de propiciar um ganho bem mais alto.

— De fato. Mas eu posso mandá-los para a forca.

O olhar presunçoso de Fergus enregelou Cecily tanto quanto admitir a verdade de outras palavras de Artan. Edmund e Anabel haviam providenciado o assassinato de seu pai e do pobre Colin. Se não fosse por Meg e uns poucos homens resolutos, ela também teria morrido com o restante da família. Sentia algum consolo por Meg nunca ter desconfiado do crime secreto de seus tutores. Parte de si sentia-se culpada, como se houvesse traído o pai e o irmão ao viver com seus assassinos e se esforçar tanto para agradá-los.

— Percebo que entende o que quero dizer. Em pagamento por meu silêncio sobre o sangue nas mãos deles, fiquei com você e uma boa parte da fortuna que seu pai deixou. Ele era muito rico. Anabel e Edmund têm vivido por muitos anos à custa do seu dinheiro. Já era hora de eles repartirem um pouco.

— Meu pai os nomeou meus tutores?

— Não, ele escolheu um outro primo, um homem bondoso, que sofreu um grave acidente e morreu. Provocado por quem?

— Deve ser uma fortuna bem grande para você estar disposto a lhes dar Dunburn — Cecily comentou, ignorando as últimas palavras.

— Seu bárbaro conseguiu descobrir vários segredos, não foi? Obviamente ele não é o idiota que aparenta. Não importa. Ele os levou para a cova. Quanto a Dunburn, vou deixar aqueles dois tolos apreciarem o lugar por algum tempo. Não posso agir contra eles depressa demais, pois isso provocaria muitas indagações. Depois de afastar a tristeza provocada pela afirmação de Fergus quanto a Artan ter levado os segredos para a cova, Cecily encarou-o com desdém.

— Nunca pensou que eles talvez planejem para você o mesmo destino?

— Claro. Nunca me permito esquecer que eles já mataram para conseguir Dunburn e sua riqueza, Isso não me preocupa. Sou páreo para eles.

— Pretende matar Anabel da próxima vez que se deitar com ela?

— Anabel não me agradava. A mulher aprecia isso demais.

— Isso sendo um ocasional soco amoroso no rosto?

— Aquele desgraçado falou da criadinha, não? Ele quase me matou — Fergus reclamou, furioso.

— Se ele o quisesse morto, você não estaria aqui, vangloriando-se de seus crimes.  

— Ora, quem é que já ganhou o jogo?

— Serão favas contadas? Eu não estaria tão segura. Você viu o corpo de Artan?

Para espanto seu, ele empalideceu e correu para a entrada da tenda, gritando o nome de alguém.

— Tom já voltou com os homens?

— Não. Estamos à espera deles, mas talvez as sombras do anoitecer tenham dificultado a volta.

Ao responder, o homem não parecia muito seguro de si e, embora Cecily achasse impossível que aquilo acontecesse, Fergus empalideceu ainda mais antes de dispensá-lo. Ela o viu servir outra caneca de vinho e tomá-lo de uma vez só. Artan o atemorizava.

— Está vendo? Nada de corpo ainda.

— Ele está morto — Fergus sibilou, dando-lhe um pontapé na lateral do corpo. — Deixei dez homens lá para fazer o serviço. Ele não poderia sobreviver.

Cecily arrastou-se para fora de seu caminho ao vê-lo ameaçar desferir um novo pontapé. Aliviava a raiva provocá-lo, mas não era sensato. Mesmo enquanto rezava para estar certa em ter esperança, planejava como impedir Fergus de espancá-la ou violentá-la antes que Artan chegasse.

Artan encostou a ponta da espada na garganta do último homem em pé e exigiu:

— Para onde ele levou a moça?

— Ao acampamento em uma clareira, a pouco mais de um quilômetro daqui. Vai ser fácil encontrar. Ele tem uma tenda enorme, com flâmulas em cima.

— Flâmulas?!

— Isso mesmo. Ele as mandou fazer quando foi consagrado cavaleiro.

— E como são elas?

— Têm umas florzinhas azuis e um porco-montês feroz.

— Muito adequado. Você é dos Donaldson, certo?

— Sim. Lady Anabel mandou uns trinta de nós com sir Fergus.

— Você sabe que ela e o animal do marido não são os donos de Dunburn?

O homem não conteve um esgar de medo.

— É a moça, não é?

— Exatamente. Logo Edmund e Anabel terão de pagar pelo roubo e pelo assassinato do pai e do irmão de lady Cecily. — Ao ver o olhar chocado, Artan acrescentou: — Sugiro que você fuja para casa agora.

No momento em que o homem se pôs a correr, ele assobiou para Thunderbolt. O corpo todo doía, e ele sofrerá alguns pequenos ferimentos que ardiam bastante, mas havia sobrevivido a um verdadeiro inferno e sentia-se forte o bastante para ir buscar sua mulher. Ao ouvir um gemido, montou depressa e logo galopou para longe. Alguns dos homens começavam a recuperar os sentidos, e ele não tinha ânimo para lutar outra vez. Com um em fuga, outro morto e dois seriamente feridos, teria de enfrentar seis, mas não queria se arriscar. O mais importante era ir salvar Cecily o mais depressa possível.

As flâmulas foram o que viu primeiro e quase riu.

Havia tanto branco nelas que mais pareciam lanternas nas sombras do anoitecer. Os homens de Fergus deviam amaldiçoar-lhe a vaidade. Em silêncio, chegou o mais perto que se atrevia da parte de trás da tenda. Desmontou e, enquanto seguia até lá, viu um dos Ogílvey que montava guarda diante de um abrigo para pastor. Embora duvidasse que Fergus tivesse deixado Cecily ali dentro, precisava verificar.

Depois de golpear a cabeça do homem com o cabo da espada, escondeu-o. Então, afastou a porta de couro do abrigo e deparou-se com dois rapazes. Apesar do fato de empunhar a espada e de sua aparência revelar sua participação numa luta ferrenha, os jovens sorriram para ele. Provavelmente, estavam satisfeitos de ver um dos deles.

— Ele tem uma jovem lá na tenda? — indagou em gaélico.

— Tem, sim — respondeu um deles na mesma língua. — Ela foi carregada lá para dentro, mas pudemos ver que tem cabeleira vermelha.

— Então, é minha noiva. Acho bom vocês irem embora porque, dentro de alguns minutos, o homem sem queixo vai virar fera e será capaz de matar quem encontrar pela frente.

— Ah, você pretende roubá-la de volta?

— Ela é minha prometida e será minha esposa. Portanto, não é roubar e sim recuperar.

— Já que foi tão bondoso em nos libertar, vamos nos esforçar para que aquele idiota da tenda não possa persegui-lo tão cedo.

— Por que você não o estrangula e acaba com essa história? — o mais baixo sugeriu.

— Uma idéia tentadora, mas é mais importante levar minha noiva para longe daqui.

— Sem dúvida — concordou o outro, cutucando o mais baixo. — Você pode ver que o homem já esteve numa luta, seu tolo. Um grito daquele animal lá, e ele terá de lutar com mais homens do que conseguirá enfrentar. — Tornou a olhar para Artan e disse: — Vá pegar sua noiva. Nós iremos cortar as barrigueiras de uns cavalos antes de fugirmos para as colinas.

Artan sorriu e se afastou da porta para os dois saírem. Seria de grande ajuda que cortassem as barrigueiras. Baixinho, avisou-os qual era a sua montaria. Os dois assentiram com gestos de cabeça e sumiram nas sombras. Artan suspeitou que Fergus ficaria com dois cavalos a menos, além dos sem sela.

Voltou a atenção para a tenda. Ao chegar à parte de trás, usou o punhal para cortar um pedaço pequeno da lona e espiou para dentro. Viu Cecily amarrada a uma estaca no chão e sentiu o sangue ferver de raiva. Quando Fergus deu um pontapé nela, foi preciso muito esforço para não rasgar um bom pedaço da lona, entrar na tenda e matar o animal.

Só depois de respirar fundo várias vezes, acalmou-se e continuou a espiar. Fergus estava perto demais dela, o que exigia uma ação furtiva. Embora não tivesse planejado matar o homem, ele o faria naquele exato momento se tivesse a mínima chance. Porém, o mais importante era tirá-la de lá. Matá-lo seria um inesperado prazer adicional.

Devagar, começou a fazer um corte na tenda, grande o suficiente para ele passar.

Cecily praguejou baixinho quando Fergus, dominado por uma fúria cega, cutucou suas costelas com a ponta da bota. Ela havia parado de provocá-lo, mas isso não fez a mínima diferença. Ainda não havia notícia de Tom e dos homens dele, e a idéia de que Artan pudesse ter escapado da morte outra vez o ensandecia. Era um ódio nascido do medo, mas isso não diminuía o perigo para ela.

— É melhor tomar cuidado, Fergus, pois ainda não quer me matar— Cecily disse ao arrastar o corpo até ficar virada para o lado de trás da tenda.

— Você não morrerá de umas poucas pancadas — ele gritou.

— Ah, talvez. E, nesse caso, você não lucrará nada. Terá de se casar comigo para receber meu dote e, então, a minha parte de viúva.

Ela o viu semicerrar os olhos. A ganância tinha dominado a fúria.

— Você sabe mais do que deveria.

Ela suspirou e, quando voltou a falar, não se surpreendeu com a fraqueza da voz.

— Que importância tem? Você nunca planejou que eu vivesse muito tempo depois do casamento, não é?

— Alguém poderá lhe dar ouvidos, se você ficar repetindo isso.

— Quando alguém me deu ouvidos?

Sua voz mais parecia um lamento, mas o acalmou. Nesse momento, um dos homens dele enfiou a cabeça na tenda e avisou:

— Ainda não há sinal de Tom e de seus homens.

— Não repita mais isso! — Fergus esbravejou. — Não quero ouvir nem mais uma palavra até ele chegar, carregando a cabeça de sir Artan Murray.

— Você mandou que ele trouxesse a cabeça de Artan? — Cecily perguntou numa voz trêmula e horrorizada depois que o homem saiu.

Ele a olhou como se quisesse lhe dar outro pontapé.

— Eles falharam várias vezes. Preciso de uma prova. Aflita, Cecily afastou a visão terrível da mente, pois temia enlouquecer. Preferia alimentar a esperança com o fato de Tom e seus homens ainda não terem voltado. A demora deles tinha assustado Fergus de tal maneira que ela ousava manter uma ponta de otimismo.

Se Artan estivesse vivo, ansiava para que ele chegasse logo. Fergus oscilava entre a fúria e o que parecia luxúria crescente. Temia isso também, embora preferisse uma sova, se pudesse escolher. A simples idéia de Fergus tocá-la intimamente revolvia seu estômago. Poderia se recuperar de pancadas, porém duvidava que se recuperaria caso fosse violentada por ele.

Fergus serviu-se de mais uma caneca de vinho, e ela sentiu a garganta contrair-se por causa da sede. Detestava pedir qualquer coisa a ele, mas a boca estava tão seca que resolveu engolir o orgulho, ainda mais se fosse junto com uns goles de vinho. Depois de observar a corda que a prendia, viu que era curta demais para permitir que ficasse em pé. Então, sentou-se da maneira mais ereta possível.

— Sir Fergus, eu poderia lhe pedir um gole de vinho? — perguntou numa voz humilde, voltando a usar o tratamento formal.

Ele a encarou, fazendo-a pensar que não a atenderia, pois sentia prazer com o sofrimento alheio. Mas logo deu de ombros e se aproximou com a caneca. Com os pulsos amarrados, foi um pouco difícil para ela sorver uns goles, além de detestar pôr os lábios no recipiente que ele utilizara, porém o vinho aliviou sua garganta seca. Fergus afastou-se com a caneca, embora ela houvesse bebido só um pouco. Mesmo assim, aquilo lhe deu forças para suportar as privações.

— Obrigada — ela murmurou, apesar de a palavra quase a fazer engasgar e da vontade de cuspir nele ao vê-lo menear a cabeça, num gesto arrogante, como se tivesse feito um favor.

— Você mudou — ele disse, franzindo a testa.

— Não entendo o que quer dizer.

— Em Dunburn, você sempre se mantinha calada. Não passava de uma pequena sombra que vagava pelos aposentos. Não dava a mínima indicação de seu temperamento e nem da língua afiada. Seria mais sensato se você voltasse a controlá-los.

Uma pequena sombra?, Cecily pensou e fez uma careta. Supunha que tivesse sido. Sua vida era mais fácil se ninguém a notasse, mas a magoava muito pensar assim de si mesma. Fergus estava certo ao afirmar que ela havia mudado. Começara a sentir as mudanças antes de sair de Dunburn. Havia sido a convivência com Artan que as tinha causado. Ele a fazia se sentir segura, e isso permitia que dissesse e fizesse o que queria. Aos poucos, ela havia relaxado a vigilância mantida sobre as palavras e ações. Era interessante admitir que ele a ajudara ao raptá-la. Quanto mais longe de Dunburn e dos tutores, mais ela se sentia como se houvesse sido libertada de uma prisão.

— Fugir de pessoas ansiosas para me ver morta deve ter tido algo a ver com isso. Ser uma pequena sombra não teria me mantido viva — ela murmurou.

Ele deu-lhe um tapa quase com naturalidade. Dessa vez, ela manteve-se firme e não caiu deitada. Por um momento, ficou com a cabeça abaixada, pois sabia que devia disfarçar o ódio antes de voltar a encará-lo.

Quando ergueu o olhar, notou um lampejo na parte de trás da tenda. Baixou as pálpebras para esconder a direção do olhar e observou o lugar até localizar o que tinha visto. A ponta de uma lâmina, bem devagar, cortava a lona. Alguém abria passagem para entrar ali.

Seu pulso disparou enquanto a esperança renascia. Desejava muito que fosse Artan. Mesmo se não fosse, o único motivo para alguém tentar entrar ali de maneira furtiva seria fazer mal a Fergus, o que tornava esse alguém seu aliado. Estava determinada a não deixar que a tal pessoa fosse descoberta até ser tarde demais para que Fergus gritasse por socorro.

Olhou para ele sem disfarçar o desdém, e ele a encarou com ódio ao identificar sua expressão. Um olhar de esguelha para a parte de trás da tenda revelou que quem estava lá fora logo tentaria entrar. Enquanto isso, ela manteria a atenção de Fergus concentrada em si.

— Apenas homens temerosos de que sua virilidade se iguale à de um menino ousam espancar mulheres — ela afirmou e não se surpreendeu ao vê-lo ficar rubro de ódio.

— É melhor tomar cuidado, Cecily — ele avisou numa voz embargada pela fúria.

— Ora, você pretende se casar comigo, roubar todos os meus bens e então me matar para se apoderar do resto. Por que eu deveria tomar cuidado?

— Porque posso transformar o que lhe resta de vida num inferno terrível.

— Você já faz isso ao respirar o mesmo ar que eu, seu cretino covarde.

Apesar de ter se preparado para o ataque, Cecily quase perdeu o fôlego com o impacto brutal. Fergus atirou-se sobre ela e apertou seu pescoço. O homem provava ser bem mais forte do que ela pensara e, depressa, roubava seu ar. Ela já começava a achar que havia cometido um erro sério quando o viu ser retirado de cima de seu corpo e jogado contra o lado da tenda. Ele ricocheteou na lona, sem se machucar, mas caiu no chão e bateu a cabeça em algo duro. Talvez numa pedra rente à tenda, Cecily imaginou. Ergueu o olhar para Artan e viu que ele franzia a testa ao observar o sujeito.

— Não tão bom quanto uma parede sólida, não é?— Cecily comentou enquanto ele lhe estendia mão.

— De fato. Estou meio desapontado.

Ao olhar para a corda que a prendia, ele percebeu que ela não conseguiria se levantar. Vendo a expressão dura, ela pediu:

— Apenas corte as amarras e me tire daqui.

— Eu gostaria muito de matá-lo — ele declarou enquanto a soltava.

Ao ver Fergus se arrastando para a saída da tenda, ela disse:

— Isso vai ter de esperar.

Artan atirou o punhal e sorriu quando a ponta prendeu o gibão de Fergus no chão.

— Não se mexa — ordenou. Em seguida, pegou todos os alimentos e bebidas que encontrou na tenda e os colocou num cobertor, cujas pontas amarrou.

— Ela é minha noiva — Fergus disse ao tentar soltar o gibão.

— Não sou, não. Sou a esposa de sir Artan Murray — Cecily declarou.

Artan a fitou e arqueou uma das sobrancelhas. Ao vê-la fazer um sinal afirmativo, sorriu e disse:

— É sim, e eu sou seu marido.

Fergus arregalou os olhos ao se dar conta do que eles tinham declarado diante de uma testemunha.

— Não! Vocês não podem fazer isso!

— Você tem certeza de que não devo matá-lo? — Artan perguntou a Cecily enquanto a levava para o fundo da tenda.

— Não creio que tenhamos tempo e desconfio que você esteja um pouco cansado depois de lutar contra dez homens,

— Socorro! Socorro! — Fergus gritou.

Dois homens entraram na tenda e arregalaram os olhos ao ver Artan. Ele fez Cecily passar pelo corte na lona e sorriu para os dois. Um terceiro entrou, e ele sentiu Cecily puxá-lo pela camisa.

Finalmente Fergus soltou o gibão e ficou em pé.

— Matem o desgraçado, seus idiotas — berrou.

Quero ir embora já, Artan — Cecily declarou. Ele rugiu para os homens e apontou-lhes a espada.

Enquanto tropeçavam uns nos outros a fim de fugir, ele saiu pelo fundo da tenda e pegou Cecily pela mão, fazendo-a correr até a montaria. Tão logo colocou-a na sela, entregou-lhe a trouxa feita com o cobertor e montou atrás dela. No instante seguinte, Thunderbolt partia a galope do caos que se estabelecia no acampamento de Fergus.

Apenas após duas horas, Artan diminuiu a marcha do cavalo. Cecily curvava o corpo, o que revelava que estava tão tensa quanto ele, pois ambos temiam uma perseguição. Com o braço na cintura delgada, puxou-a para mais perto e beijou-a no topo da cabeça.

— Ele a feriu, Sile? — perguntou numa voz suave, na esperança de ela entender que não se referia às pancadas.

— Não, Limitou-se a tapas e pontapés — ela respondeu enquanto pegava o odre de vinho, preso à sela.

— Também não me deu algo para beber até eu pedir — acrescentou ao tomar vários goles, suspirar de alívio e prender o odre outra vez.

— Você sabe que, ao se declarar minha esposa diante de uma testemunha, nos tornou casados? — ele indagou num tom cauteloso.

— Sei, sim. Meg me explicou isso. — Olhou-o por sobre o ombro. — Fergus jamais contará a alguém, caso você deseje esquecer isso.

— De jeito nenhum, menina. Você não sé livrará de mim facilmente. Vamos parar na primeira vila e procurar uma ou duas testemunhas dispostas a ouvir nossas declarações.

— Será que lá haverá um lugar onde eu possa tomar um banho quente?

— Claro. Bem como uma cama bem larga e macia. Cecily achou mais sensato fingir não ter ouvido isso.

 

Muitas horas depois e já bem tarde, eles chegaram a uma vila. Cecily achou que a pequena estalagem, diante da qual pararam, parecia um palácio. Sabia que ali encontraria uma boa refeição e uma cama macia, além de um relaxante banho quente. Ansiava livrar-se do mau cheiro de Fergus e aliviar as várias contusões angariadas. Por sobre o ombro, olhou para Artan, certa de também querer estar limpa quando se deitasse com ele, como sua esposa, pela primeira vez.

— Você tem certeza de que é seguro pararmos aqui? — perguntou quando ele, depois de desmontar, ajudou-a a fazê-lo.

— Tenho, Sile — ele respondeu enquanto reunia os fardos todos e a pegava pela mão. — Fergus não vai querer ir a lugar algum por umas horas, a menos que deseje perder uma fortuna em selas e cavalgar em pelo.

— Ele jamais irá querer isso!

— E você? Tem certeza de que está bem? — ele perguntou baixinho ao entrarem na estalagem.

— Claro, mas ficaria melhor depois de um banho quente.

Cecily manteve-se calada enquanto ele falava com o estalajadeiro. Porém, quase protestou quando ouviu o quanto o homem cobrava pelo banho. Contudo, o pedido seguinte de Artan a fez esquecer a questão. O homem olhou de um para o outro e sorriu antes de se afastar depressa.

— Por que você precisa de outra testemunha para nosso casamento?— ela quis saber.

— Porque, como você disse, Fergus nunca vai admitir que ouviu nossas declarações. E o idiota, a postos na entrada da tenda, talvez não tenha sobrevivido à confrontação que, com certeza, houve por lá. Não pretendo permitir que Fergus nos impeça.

— Você acha que ele ainda seguirá até Glascreag?

— Sem dúvida alguma. Uma fortuna está em jogo e a ganância pode dar coragem a um verme como ele.

Isso a preocupou, porém ela não teve a chance de argumentar, pois o estalajadeiro retornava com dois homens, pena, tinteiro e papel. Artan escreveu as declarações do casal e as testemunhas imprimiram suas marcas no documento. Terminada a cerimônia rápida, Artan guardou o papel em sua sacola, pagou uma cerveja para os dois homens e pediu ao estalajadeiro para levá-los ao quarto. Em questão de minutos, Cecily se viu sozinha, diante do banho que a aguardava.

Ela achou que nunca havia se despido tão depressa. Por um momento, sentiu-se culpada por não ter perguntado a Artan se precisava se apressar para que ele também pudesse apreciar esse luxo. Mas, então, afundou na água quente, suspirou de prazer e esqueceu-se de tudo o mais, exceto do bem-estar delicioso.

Do lado de fora do quarto que compartilharia com Cecily, Artan praguejou baixinho. Sentia-se nervoso como um rapazinho inexperiente. Fazia um bom tempo que não se deitava com uma mulher, mas sabia que esse não era o motivo para a inquietação. Ele nunca havia deflorado uma virgem. Nunca fizera amor com Cecily. Aquela noite marcaria o início da vida conjugai deles. Sentia a importância desse passo pesar em seus ombros. Nunca em sua vida se preocupara tanto em proporcionar prazer à parceira.

Numa atitude decidida, entrou no quarto. Ao ver Cecily ajoelhada perto do fogo, secando e penteando os cabelos, fechou a porta sem fazer barulho e pôs-se a admirá-la. Estava lindíssima com a cabeleira caída pelas costas em ondas suaves. A camisola e o penhoar eram modestos, mas apenas vê-la pronta para se deitar quase o fez ir até ela, pegá-la e carregá-la até a cama.

Uma batida na porta anunciou a chegada do jantar. Antes de permitir a entrada de quem batia, Artan apressou-se a ficar diante de Cecily para que não fosse vista. Tão logo a refeição foi posta na mesinha perto da janela, ele deu umas moedas ao filho do estalajadeiro e, após sua saída, trancou bem a porta. Então, virou-se para ela e curvou-se, apontando para a mesa.

— Estou com medo de me empanturrar como um leitãozinho faminto — ela disse ao se sentar e sorrir para Artan.

— Pois empanturre-se à vontade. Recomendei ao homem para nos mandar um banquete — ele contou ao sentar-se diante dela.

— E foi atendido. De fato é um — ela comentou ao admirar as comidas apetitosas e fartas.—Preciso pedir-lhe perdão, Artan. Eu devia ter acreditado em você.

— Ah, Fergus confessou tudo o que fez? — ele indagou quando já se serviam.

Entre bocados, Cecily relatou o que o homem lhe contara.

— Indaguei se ele não temia a possibilidade de Edmund e Anabel estarem planejando o mesmo destino para ele, ou seja, eliminá-lo.

— E ele não se mostrou preocupado? — ele indagou enquanto a servia de vinho.

— Nem um pouco. Não posso acreditar que Anabel e Edmund mataram três pessoas, parentes, sendo uma delas criança, por ganância. Isso foi o que mais me chocou, além do fato de eu ter vivido com os assassinos de minha família e me esforçado o tempo todo para agradá-los.

— Ah, Sile, você era uma criança. Não pode se culpar. Ela assentiu com um gesto de cabeça e tomou um gole de vinho para se acalmar.

— Embora eu entenda isso, algo em mim me faz sentir como se eu houvesse, de alguma forma, traído a memória de entes queridos.

— Você não fez isso e vai levar algum tempo para aceitar o fato.

Cecily o fitou por um momento e sorriu.

— Como você sabe que, às vezes, isso me aflige?

— E um sentimento muito freqüente. Homens que deixam pessoas amigas tombadas no campo de batalha têm a mesma reação. Começam a pensar que foram escolhidos por Deus para viver e indagam-se por quê. Ainda mais quando não se sentem merecedores disso. Mas passa.

— Meu pai e meu irmão foram assassinados doze anos atrás.

— Verdade. Mas acho que, desde aquele dia, você se esforçou ao máximo para esquecer a tragédia.

Cecily suspirou e tornou a concordar com um gesto de cabeça. Artan era um homem rude por natureza, mas possuía o dom de compreender as pessoas. Podia ser classificado como humano e bondoso, ela refletiu. Porém, tinha certeza de que ele não apreciaria o elogio. Às vezes, dava a impressão de querer que as pessoas o vissem como um bárbaro musculoso e sem inteligência. Era bom saber algo sobre ele que os outros s ignoravam. Ao vê-lo descascar uma das maçãs para ela, lembrou-se de como aquelas mãos ágeis tinham conseguido despertar a magia em seu corpo. Depressa, desviou o pensamento para algo diferente.

— Não sei que atitude tomar em relação a Anabel e Edmund — disse antes de pôr uma fatia de maçã na boca.

— Deve fazê-los pagar pelos crimes cometidos — Artan declarou. Também saboreou umas fatias de maçã e imaginou se ainda era muito cedo para se deitarem. Com que morosidade se deveria agir com uma virgem?, indagou-se.

— Claro, mas não imagino como. Fergus sabe a verdade, mas não creio que ele me ajude.

Ao olhar para a contusão em seu rosto, ele disse:

— Não mesmo, pois logo estará morto. Ela fez uma careta.

— Embora não tenha tido nada a ver com as mortes de minha família, ele cometeu outros crimes que precisam ser pagos. E há ainda os que planeja cometer.

Incapaz de esperar mais, Artan levantou-se e a puxou pela mão para que também o fizesse.

— Não quero mais falar sobre aquele animal. Nem em seus tutores assassinos e ladrões. Muito menos no destino de Dunburn.

Apesar de se sentir, de repente, muito nervosa, Cecily teve de sorrir.

— Não? Sobre o que você quer falar?

— Sua meiguice — ele murmurou ao tirar-lhe o penhoar e carregá-la para a cama. — Como o calor de sua boca flui para minhas veias. Como posso fraquejar e morrer se não puder torná-la minha muito depressa.

Cecily o abraçou, quando ele se deitou também, e murmurou:

— Ah, não muito depressa, espero.

Artan sorriu. Talvez fazer amor com esta virgem não fosse tão difícil. Havia uma grande reserva de paixão em Cecily, e ele era o felizardo que ia liberá-la. Beijou-a e começou a soltar o laço da camisola.

Ela foi dominada pela timidez que ameaçou arrefecer o desejo, mas, sem pensar duas vezes, colocou-a de lado. Essa era sua noite de núpcias. Embora duvidasse que em breve andaria nua pelo quarto, à luz do dia, não devia retrair-se só porque o marido a ajudava a se despir. Depois da paixão vivida à beira do riacho, não restara nada que Artan não tivesse visto ou tocado.

Apesar do argumento, ficou tensa quando ele retirou sua camisola. Ajoelhado ao seu lado, ele olhava para seu corpo, o que a fez pensar nas imperfeições. Uma, coisa era ficar nua e outra ser observada com tanta intensidade. Devagar, começou a erguer as mãos a fim de se cobrir um pouco.

— Não faça isso, Sile — Artan pediu ao livrar-se da manta xadrez e das roupas. — Não esconda essa beleza dos olhos de seu marido.

Se havia beleza para ser admirada era a dele, Cecily pensou. Jamais deixaria de se surpreender com aquele peito e, ao vê-lo nu, ficou sem fôlego. Ele era perfeito, com nada longo ou curto demais, nem com músculos malformados, sem firmeza. As pernas eram bem torneadas; as nádegas, firmes; as costas e os ombros, um deleite para os olhos.

Apenas não tinha muita certeza quanto à imensa saliência na frente do corpo dele. Não que a achasse feia, pois até gostava de admirá-la. Mas era grande demais. Ela não havia percebido o tamanho quando Artan a prensara em sua coxa na beira do riacho.

Ele a acariciou na lateral do corpo e notou o olhar dela. Pelo jeito, exibir-se nu diante da esposa ainda virgem tinha sido um erro. Decidiu que a deixara sem beijos por tempo demais. Não seria sensato permitir que o desejo dela esmorecesse. Quando a cobrisse com o corpo, e ela percebesse que a diferença de tamanho entre ambos não importava, ele não precisaria mais se preocupar.

Devagar, acariciou cada parte perfeita do corpo delicado. Os seios firmes eram coroados de um rosa pálido. Abaixo da cintura fina, os quadris curvavam-se sensualmente. As nádegas eram arredondadas e firmes; as pernas, esguias; e as coxas, macias. Os segredos femininos escondiam-se sob pelos sedosos e avermelhados. Ele apreciava com avidez aquela beleza intacta. Ao vê-la tornar a tentar se cobrir com as mãos, beijou-a.

O beijo de Artan levou alguns instantes para vencer seu embaraço, mas Cecily logo rendeu-se à magia do contato. Abraçou-o pelo pescoço e correspondeu com paixão crescente. Quando ele começou a acariciar seu corpo, cada toque das mãos fortes afastava mais seu acanhamento. Quando os beijos alcançaram os seios, ela parou de se importar com o que ele via ou fazia, desde que as sensações em seu âmago continuassem.

Acariciou-o nos ombros e ao longo das costas e ouviu-o gemer. As carícias se tornaram mais ardentes, e ela não hesitou ao sentir-lhe a mão passar por entre as coxas e massagear sua parte mais íntima, como tinha feito perto do riacho. Abriu-se para ele e ouviu o próprio suspiro conforme o desejo aumentava.

Apenas quando os beijos alcançaram a parte mais baixa de seu ventre, uma breve hesitação a perturbou. Chocada, arregalou os olhos ao sentir os dedos serem substituídos pelos lábios. Ao se recuperar o suficiente para se mexer, desistiu de fazê-lo. Com as mãos nos cabelos dele, manteve-o próximo a si, em um pedido silencioso para que continuasse fazendo-a experimentar tamanho prazer. Algo em seu ventre contraiu-se, e ela gritou o nome dele. De repente, a contração aumentou e ela tornou a gritar, sacudida por ondas de prazer.

Gritou de novo quando ele a penetrou. Levou um instante para se dar conta de que ele estava parado. Segurou-o pelos quadris. Não tinha certeza do que queria que ele fizesse, mas certamente não era ficar ali parado.

— Artan? — murmurou, acariciando-o nos quadris.

Ele temeu que Cecily estivesse sentindo dor, e quisesse pedir para que parassem. Rezou para que não fosse isso, pois seria muito difícil. Nunca sentira tamanho deleite. A sensação do calor aconchegante em volta de si quase o atordoava e o esforço para não se mexer era enorme. Beijou-a e perguntou:

— Está doendo, minha Sile?

Oh, não. Só imaginei se isto é feito assim. Você tem de apenas ficar aí parado?

Ele riu baixinho e a beijou outra vez.

— Não, minha menina, devo fazer assim — respondeu ao começar a se mover.

Cecily arqueou o corpo.

— Sim, era disto que eu precisava — confessou. Também era daquilo que ele precisava, pensou Artan, sentindo-se grato ao perceber que ela logo acompanhava seu ritmo, e seus corpos atingiam uma harmonia perfeita. Pouco depois, sentiu-a enrijecer-se e atingir o clímax, levando-o junto. Enquanto os gritos e gemidos de ambos ecoavam no quarto, ele admitiu que, mais emocionante do que escutá-la gritar seu nome, era que os dois gritassem juntos, dominados pelo prazer.

Quando ele conseguiu se mexer, levantou-se, pegou uma toalha, molhou-a com a água deixada para a manhã seguinte e limpou-os das marcas da perda da inocência de Cecily. Voltou a se deitar e aconchegou-a entre os braços. Imaginava quanto tempo seria necessário para que ela se recuperasse da primeira união com um homem. Rezava para que não fosse muito, pois já ansiava possuí-la outra vez.

Artan estava orgulhoso. Rompera o hímen da esposa sem causar-lhe lágrimas nem gritos de dor; Houvera apenas prazer. Amá-la com a boca tinha sido uma inspiração provocada pela vontade de beijar cada pedacinho dela, de marcá-la como nunca o fizera com mulher alguma. Havia dado certo, pois a excitara tanto que ela mal havia estremecido ao ser invadida. Ele achava que tinha sofrido mais do que a esposa pequenina e delicada.

Como a cabeça dela estivesse apoiada em seu peito, sorriu sobre os cabelos sedosos, dando-se conta de que gostava de amá-la dessa maneira. E mais ainda de senti-la enlouquecer entre os braços dele, de suspirar e gemer baixinho. Haveria mais desses beijos íntimos, pois o excitavam tanto quanto a ela.

— Artan? — Cecily murmurou numa voz tímida.

— Sim, esposa — ele respondeu, percebendo que gostava do som da palavra.

— Será que devo fazer tantos barulhos?

Ele reprimiu a vontade de rir para não magoá-la.

— Você pode fazer todos os barulhos que quiser. Eu faço e continuarei fazendo.

— Mas não é como Anabel disse que deveria ser.

Ele não gostou da idéia de a tutora tê-la ensinado como se comportar no leito conjugal. — Deve ser como nós queremos que seja. Podemos ter uma cama fria ou uma muito quente. Eu prefiro a quente.

— Bem, quero fazer o que você gosta. Assim, não será preciso você procurar outra mulher.

Artan a segurou pelo queixo e a fez fitá-lo.

— Sou seu marido. Fizemos votos, apesar de ter sido num casamento informal. Mas nós os repetiremos diante de um sacerdote tão logo seja possível, e eu os manterei. Serei fiel.

Cecily sentiu-se felicíssima, mas imaginou se Artan sabia o que estava prometendo.

— Anabel afirma que nenhum homem pode ser fiel.

— Nem ela consegue, parece. — Beijou-a. — Isto é tudo de que precisamos. Homens que dizem necessitar de algo mais, ou detestam as esposas ou procuram desculpas para não cumprir os votos feitos diante de Deus.

— Então, Edmund...

— Não passa de um animal imundo. O homem matou três parentes por amor ao dinheiro. Isso prova que ele não tem moral.

— Claro. Mas vai levar algum tempo até essa verdade se firmar em minha mente e meu coração. É horrorosa demais, e eu me esforço para não pensar nela.

— Então, talvez eu precise encher sua cabecinha com algo mais — ele murmurou ao deitá-la de costas e acomodar-se sobre seu corpo.

— E o que seria? — Cecily perguntou, abraçando-o pelo pescoço.

— Bem, depende do quanto você esteja dolorida.

— Ora, as pancadas de Fergus não me machucaram muito.

Artan tocou a contusão em sua face.

— Eu não me referia a esta maldade.

Cecily enrubesceu e levou um instante para avaliar como se sentia. Surpreendeu-se por estar muito bem.

— Ah! Não, nada.

— Menina, você não acredita como fico contente ao saber.

— Eu também estou bem satisfeita — ela afirmou ao tocar sua ereção.

Artan fechou os olhos, deliciando-se com a carícia.

— Eu estava um pouco preocupado com a possibilidade de machucá-la — murmurou numa voz rouca.

— Não tanto quanto eu — ela disse e sorriu ao ouvi-lo rir. — Como você chama isto?

— O meu — Artan respondeu. — E, agora, o seu.

Sem resistir mais, decidiu amá-la de novo. Da primeira vez, o medo de machucá-la o tinha inibido um pouco, mas, agora a possuiria sem precauções. Logo descobriu que Cecily estava tão ansiosa quanto ele, pois o obstáculo havia sido vencido. Pouco depois, percebeu que não podia esperar mais para penetrá-la. Ela também estava pronta.

Artan deitou-se de costas e acomodou-a sobre ele. Ao ver a expressão confusa, sorriu e mostrou-lhe o que queria. Quando foi acolhido, teve certeza de que sua expressão de prazer igualava-se à dela. Depressa, Cecily aprendeu como satisfazê-lo e não demorou muito para que ambos fossem sacudidos pela força do prazer máximo. Ele abraçou-a ao senti-la cair sobre seu corpo, tão ofegante quanto ele.

Quando começou a ficar sonolento, deitou-a ao seu lado, levantou-se e pegou a toalha molhada para lavá-los. Ao voltar para a cama, aconchegou as costas dela contra o peito dele. Não se surpreenderia se logo achasse difícil dormir sem tê-la nos braços.

— Nossa noite de núpcias terminou? — ela perguntou, também sonolenta.

Ele a beijou no topo da cabeça.

— Temo que sim, minha esposa. Tivemos um dia muito agitado e precisamos reiniciar nossa jornada antes de o sol raiar.

— É verdade, foi um longo dia. Você teve de lutar contra um exército, eu fui raptada por Fergus e, depois, precisamos fugir a galope.

— Não foi um exército, apesar de não ter sido tão simples. Acho que os Donaldson e os Ogilvey não têm homens muito aptos para lutar.

— Não há muita necessidade disso onde eu vivia.

— Bem, funcionou a meu favor. Porém, você insultar Fergus não a ajudou.

— Não, mas, no início, eu estava furiosa. Como também temia que você tivesse morrido, enraivecê-lo era melhor do que pensar nisso. Depois de uns tapas e pontapés, achei mais prudente controlar as palavras. Então, vi seu punhal.

— Você o viu?

— Apenas um breve reflexo na lâmina. Mas ao olhar com cuidado, tornei a ver. Eu esperava que fosse você vindo me resgatar, depois de ter sobrevivido à nova tentativa de Fergus para matá-lo. Pensei que, se fosse outra pessoa tentando entrar furtivamente na tenda, só podia ser para fazer mal a ele.

— E isso fez dessa pessoa, quem quer que ela fosse, seu amigo.

— Pelo menos alguém que pudesse me ajudar. Para impedir que Fergus visse o punhal, mantive a atenção dele em mim.

— Se não fosse eu, você poderia ter sido morta.

— Eu esperava que fosse você e, caso surgisse um ladrão, achava impossível ele permitir que um homem matasse uma mulher indefesa. Na verdade, temia que Fergus me agredisse outra vez, mas não que tentasse me estrangular.

— Bem, você disse a ele que apenas um homem cuja virilidade se iguala à de um menino espanca mulheres. Isso foi o suficiente para enfurecê-lo.

— Achei que era um insulto muito bom. Eu me esforcei bastante para conceber esse e vinha esperando a oportunidade de usá-lo. Pensei que o cretino covarde o merecia, pois soa muito apropriado.

— Você fica imaginando insultos?

— Ora, sou muito pequena para lutar contra alguém e nunca aprendi a usar uma arma, então decidi que precisava de uma boa reserva de insultos. Algo que me deixasse com jeito de audaciosa e agressiva. Também me distraio dessa forma quando estou brava e não posso demonstrar. Isso acontecia muito em Dunburn.

Artan não conteve o riso.

— Brincadeira estranha essa, menina, mas inofensiva. E você tem um bom arsenal deles, se bem me lembro de quando tirei a mordaça depois de raptá-la.

Ela sorriu e fechou os olhos. O marido não a tinha ridicularizado por conta desse seu hábito. Um bom sinal.

Cecily, então, pensou na promessa de fidelidade dele. Queria muito acreditar, e o desdém que demonstrara ao se referir a homens que a quebravam a instigava a fazê-lo. Porém, isso era contrário a tudo que ela havia testemunhado em Dunburn. Esperava que Artan, de fato, fosse diferente de Edmund e dos de sua laia, pois, se o marido se mostrasse infiel, a destruiria.

Artan sentiu o corpo de Cecily amolecer e a abraçou com um pouco mais de força. Ela era uma jovem cuja vida sofrerá desvios e mudanças terríveis que, ele temia, haviam deixado cicatrizes profundas em seu coração. Pelo que lhe contara, tinha sido mantida afastada de todos em Dunburn. Ao voltar para casa, imersa na maior tristeza e apavorada, depois de presenciar o assassinato do pai e do irmãozinho, recebera apenas críticas, mentiras e indiferença por doze anos. Ele se surpreendia por Cecily ter se tornado a moça meiga que era.

E, agora, ela lhe pertencia. Faria outro casamento ser realizado, diante de um sacerdote, assim que fosse possível. O informal era aceitável, mas ele desejava uma união bem firme, que jamais os separasse. Apesar de não compreender bem a importância disso, ele a aceitava. Cecily Donaldson era sua companheira e essa noite fora uma prova cabal disso. Pousou a mão em um dos seios macios e ouviu-a suspirar de prazer, aconchegando-se mais a ele. Era assim que desejava dormir todas as noites, decidiu, sorrindo.

Calor. Ela sentia muito calor. Cecily acordou e viu-se sendo beijada por Artan com paixão. Enlaçou-o pelo pescoço e correspondeu à carícia. A sensação do corpo dele prensado contra o seu a deixava trêmula de desejo. Mesmo após três dias como sua esposa, ela ainda ficava perplexa com o fato de um homem tão maior e mais forte do que ela fazê-la se sentir segura e querida, ao mesmo tempo em que a enlouquecia de desejo.

Empurrou-o pelos ombros até forçá-lo a se deitar de costas. Ao acomodar-se sobre ele e roçar-lhe a ereção, surpreendeu-se com a própria audácia. Já havia sinais do amanhecer e, antes que o sol raiasse, ela queria viver alguns de seus sonhos abrasadores nos quais Artan, nu, ficava entregue a ela. O que ansiava fazer era aspergir carícias sobre o corpo-grande e forte desde os lábios até as pontas dos pés. Esperava não escandalizá-lo, mas, acima de tudo, gostaria que ele não tentasse impedi-la.

Artan gemeu baixinho ao ser beijado na base do pescoço. A esposa pequenina mostrava ser uma amante ardente, e ele estava mais do que disposto a deixá-la fazer o que desejasse. Porém, ao dar-se conta da direção que os beijos tomavam, arregalou os olhos, ficando tenso com a expectativa.

O roçar dos cabelos em sua virilha e os beijos em uma de suas pernas o fizeram estremecer. Quando ela começou a percorrer a outra perna, ele quase exigiu que ela parasse de atormentá-lo e proporcionasse as sensações pelas quais ansiava. Apenas a possibilidade de que Cecily não tencionasse tomá-lo entre os lábios, por ser inocente demais para saber o quanto ele apreciaria a carícia, o manteve calado. Experimentara esse prazer apenas duas vezes, uma com Mattie e a outra porque havia pagado por ele. Não podia esperar isso de sua esposa, que tivera uma boa criação.

Quando sentiu os lábios macios em seu membro rígido, Artan estremeceu, tanto de alívio quanto de paixão.

Entrelaçou os dedos aos cabelos sedosos, mantendo-a onde estava. Tentou dizer o quanto gostava do que ela estava fazendo, mas não conseguiu ser muito coerente. Quando ela lentamente o envolveu com a boca, rezou para não perder o controle e para poder apreciar tamanho prazer por um longo tempo.

Porém, momentos depois, percebeu que não conseguiria esperar mais. Puxou-a para cima, acomodando-a sobre seu corpo. As faces coradas, o olhar turbulento e o calor úmido que ele sentia de encontro à sua ereção demonstraram que ela se excitara ao acariciá-lo daquela forma. Sem perder tempo, penetrou-a.

Apenas muito depois de terem alcançado o êxtase, Artan teve forças para se mexer. Ergueu um pouco a cabeça a fim de olhar para a mulher caída sobre seu peito e sorriu. Com o que havia feito, Cecily corria o risco de torná-lo vaidoso. Nenhuma outra mulher lhe dera a sensação de ser tão querido, atraente e desejável. Fergus era um idiota. Os cofres cheios de ouro ou as terras férteis não eram o tesouro dos Donaldson, e sim a delicada Cecily. Beijou-a no topo da cabeça e deitou-a ao seu lado. Sorriu ao vê-la enrubescer e, acanhada, não conseguir fitá-lo.

— Você não deveria dar tanto prazer ao seu homem de manhã, mulher — ele disse ao levantar-se e se espreguiçar. — Ainda mais quando ele precisa de toda a energia, a fim de cavalgar muitos quilômetros.

Cecily revirou os olhos enquanto começava a se vestir, mas sorriu intimamente. As palavras do marido não eram de amor e paixão, porém afastavam o medo de tê-lo chocado ou desgostado. Isso a agradava, pois fazer um homem como ele tremer sob suas carícias a havia excitado muito e tinha a intenção de repetir tudo aquilo.

Afastou-se para o meio das árvores, a fim de se preparar para mais um dia de cavalgada e tentou livrar-se do desapontamento com a falta de declarações amorosas. Reconheceu que era cedo demais. Sabia que amava Artan, porém homens como ele custavam a admitir os sentimentos. Ele a desejava, sempre a protegeria e confiava em seu julgamento. Artan também havia jurado ser fiel. Tolice sua ressentir-se por ele não proclamar amá-la muitíssimo. A maioria das mulheres levantaria as mãos aos céus para agradecer maridos iguais a esse. Desde que saíra de Dunburn com Artan, ela se sentia cada vez mais forte e corajosa. Não deveria ser ambiciosa.

Quando voltou ao acampamento, Artan lhe deu pão e queijo. Notou que Thunderbolt já estava encilhado. O marido era muito eficiente, reconheceu. Isso facilitava a longa viagem sob vários aspectos. Resultado do treinamento dele, calculava. Ao sentir o braço dele sobre os ombros, ergueu a cabeça e viu que ele sorria.

— Do que está achando graça? — Cecily perguntou enquanto aceitava o odre de vinho, do qual tomou uns goles.

— De nada. Apenas me sinto satisfeito. Devemos chegar a Glascreag hoje, antes do pôr-do-sol.

— Nenhum sinal de Fergus e seus homens?

— Nada, mas duvido que ele tenha desistido e voltado para casa, apesar de não contar mais com muitos homens. A menos que tenha se unido a alguns desta região que não se importariam de prejudicar Angus.

— Meu tio tem inimigos?

— Uns poucos. Mas não se aflija, pois nenhum jamais conseguiu atingi-lo. — Beijou-a rapidamente e colocou-a sobre o cavalo. — Não acredito que qualquer aliança de Fergus com homens daqui dure muito tempo. Mesmo nossos inimigos são espertos o suficiente para ver como aquele nobre sem queixo é covarde e idiota. Não vai levar muito tempo para ele descobrir que os aliados debandaram e o deixaram entregue à própria sorte. Nenhum deles antipatiza menos do que Angus com os habitantes das Terras Baixas — ele disse ao montar e segurar as rédeas.

Cecily quase praguejou.

— Não entendo por que vocês desdenham tanto os habitantes das Terras Baixas — reclamou.

— Simples, minha esposa. Eles são muito próximos dos ingleses.

O argumento absurdo não merecia comentários e, por isso, ela dedicou a atenção à paisagem. Havia uma beleza agreste nela, o que a encantava, embora devesse tornar muito dura a luta de seus habitantes pela sobrevivência. Supunha que um dos motivos do desdém que sentiam pelos que vinham das Terras Baixas devia-se à terra mais amena e dadivosa em que esses viviam.

Acomodou-se melhor contra o peito de Artan e pôs-se a refletir sobre o tio. Fazia doze anos que não o via, e o fato de seus tutores terem evitado qualquer contato seu com ele tornava Angus MacReith um estranho.

Devia pedir a Artan que falasse a respeito dele, e o faria tão logo dormisse um pouco. Ter um marido ardente e insaciável era exaustivo. Com um leve sorriso, fechou os olhos.

Mais uma vez, ela sorria enquanto dormia, Artan observou. Esperava que estivesse tendo um sonho apaixonante com ele. A maneira como havia acordado, tão ardente e animada, o levava a pensar que ela sonhava com o amor esplendoroso que os unia. Isso explicaria o que ela fizera aquela manhã.

Era um homem de muita sorte, refletiu. A esposa não reclamava dos dias cansativos de viagem e não exigia que conversassem o tempo todo. Aparentemente, o perdoara pelo seqüestro antes de descobrir que ele falara a verdade sobre Fergus e os Donaldson. E havia a paixão, pensou, sorrindo satisfeito. Nunca apreciara um relacionamento tão ardoroso e meigo como o que compartilhavam.

Contudo, uma sombra pairava sobre a felicidade dele. Ainda precisava explicar a Cecily a barganha proposta por Angus. Tinha sido um erro não fazer isso logo no início e, agora, não sabia como corrigi-lo. Deveriam chegar a Glascreag antes do pôr-do-sol, e ele achava melhor tratar do assunto quando já estivessem lá. Se Cecily visse o que partilhariam, talvez aceitasse melhor a idéia. Esperava pensar em algumas indiretas que a fizessem refletir e não ficar muito chocada ao se inteirar da história. Isso exigia astúcia, o que ele não possuía, ainda mais em relação a Cecily. Porém, era a única idéia que lhe ocorria e, tão logo ela acordasse, começaria a prepará-la para a verdade.

— Parece muito maior do que me lembro — Cecily comentou quando avistaram Glascreag à distância.

— Estranho. Geralmente as crianças vêem tudo muito maior, e ficam surpresas quando revêem depois de adultas. Talvez você não tenha prestado atenção até ter passado pelo portão.

— Uma grande possibilidade. E tudo isso vai ficar para Malcolm?

— Pois é. Ele é o parente homem mais próximo de Angus.

— Embora não me lembre muito dele, não posso imaginá-lo como senhor da propriedade.

Artan também não. Esperava que ela não se esquecesse dessa opinião ao se inteirar da verdade e também quando ele explicasse que fora a perspectiva de Malcolm se tornar senhor da propriedade que o fizera pensar na oferta de Angus. Essa era a única idéia astuciosa que lhe ocorria, mas muito fraca para conquistar a simpatia dela por ele e por Angus. Porém, era melhor do que nenhuma.

Ao transporem o portão de Glascreag, Artan sentiu a primeira pontada de pânico. O pátio estava atulhado de pessoas. Teria de levar Cecily para o quarto o mais; depressa possível. E, caso não conseguisse revelar a verdade, procuraria Angus e pediria que mantivesse silêncio sobre a barganha por um pouco mais de tempo. Rezou para que o velho homem não tivesse contado a respeito da proposta para ninguém.

Viu Malcolm abrir caminho entre as pessoas e se aproximar enquanto ele desmontava e ajudava Cecily a fazer o mesmo. Quando se virou, deparou-se com o jovem já bem perto. Ia ignorá-lo, mas reparou no olhar de lascívia com que ele admirava Cecily e decidiu que merecia uns murros.

Estava prestes a se dirigir até ele, quando sentiu Cecily apertar sua mão. Parou, relutante, Ficaria feliz em cumprimentar o rapaz com uns sopapos, mas isso certamente não agradaria a esposa. Ela era criança quando estivera ali e deveria se sentir nervosa ao retornar. Não a afligiria mais ao tornar o reencontro com os parentes numa briga.

— Malcolm, esta é Cecily Donaldson. Ela esteve aqui, com o pai e o irmãozinho, doze anos atrás. E sobrinha de Angus — apresentou, decidido a não comunicar o casamento. Certamente, Angus não gostaria que os outros tomassem conhecimento antes dele do importante evento.

— Eu me lembro. Os habitantes das Terras Baixas — Malcolm disse com um risinho maldoso.

Artan olhou para a esposa e quase riu. Ela parecia disposta a agredir o rapaz. Cecily tinha orgulho do pai e do lugar onde nascera, apesar da tragédia e dos problemas enfrentados em sua própria casa. Porém, ela sabia que os montanheses consideravam isso um insulto.

— Detalhe sem importância, Malcolm. Agora, penso que Sile gostaria de tomar um banho e repousar um pouco antes de nos reunirmos para o jantar no grande salão.

— Por que você me apresentou como Donaldson? — Cecily perguntou baixinho.

— Angus não gostaria que anunciássemos nosso casamento aqui no pátio. Ele é o senhor de Glascreag e seu tio.

— Ah, sim, claro. Ele deve ser o primeiro a saber. Artan esperava que ela, mais tarde, também fosse compreensiva. Ordenou a um homem que cuidasse da montaria e a dois rapazinhos que pegassem os fardos na sela e os levassem ao seu quarto. Praguejou mentalmente ao vê-los com largos sorrisos. Sem dúvida, viam Cecily como uma mulher que ele trazia a Glascreag para se divertir. Em vez de marido orgulhoso, passava por malandro.

Dirigiram-se para a fortaleza e, quando ele fez Cecily passar pela porta do castelo, tinha a sensação de que cada MacReith, de quilômetros ao redor, tentara falar com ele, atrasando seus passos.

— Acho que aquelas pessoas estavam ansiosas para falar com você, Artan. Talvez fosse importante. Posso esperar — Cecily disse, perguntando-se por que sentia que ele queria escondê-la o mais rápido possível.

— Não, menina. Se fosse algo urgente, teriam me seguido aqui para dentro. Nenhum deles fez isso.

— Tem razão. Se fosse uma questão de vida ou morte, teriam insistido.

— Agora, vamos para o meu quarto, e eu mandarei preparar um banho para você.

— Excelente! Às vezes sinto que a poeira e a sujeira penetraram em minha pele. Preciso estar limpa quando for ver tio Angus em seu leito.

— Ele não está mais de cama — Artan afirmou, com uma espécie de resignação cautelosa, ao vê-lo descer a escada.

— Aonde ele foi? Meu Deus, Artan, será que aquelas pessoas queriam lhe dizer que ele morreu?

— Isso não aconteceu, menina — garantiu, admitindo com pesar que, dentro de minutos, estaria desejando que o velho homem se encontrasse no fundo da cova.

Pior, temia que sua esposa pudesse desejar-lhe o mesmo destino.

Angus parou a poucos degraus do fim da escada. Ao olhar para Cecily, os olhos brilharam com lágrimas contidas. Desceu mais um degrau e a tocou nos cabelos.

— Você se parece tanto com sua mãe... — ele murmurou. — Sim, você é minha pequenina Moira renascida.

— Obrigada, titio. — Cecily podia sentir a alegria sincera daquelas palavras e seus temores se dissiparam. — Nunca recebi um elogio tão bonito e generoso.

Angus desceu os dois últimos degraus e a estreitou entre os braços. Aliás, braços muito fortes para um homem à beira da morte, ela estranhou. Olhou para o marido e viu que ele observava Angus com um misto de divertimento e irritação. Ora, Artan lhe dissera que tinha ido buscá-la porque o tio estava morrendo. Sem dúvida, Angus havia tramado algo. Ela entendia o suficiente sobre doenças e curas para reconhecer um homem forte e saudável quando via um.

— Angus, será que posso falar com você um momento? — Artan indagou, agarrado a um fiapo de esperança de ainda poder evitar o desastre.

— Mais tarde, rapaz. Seja o que for, pode esperar.

— Impossível. Preciso mesmo falar logo com você.

— Ah, para planejar o casamento?— Angus perguntou ao dar um tapa nas costas de Artan e sorrir para Cecily.

Numa tentativa de silenciá-lo, Artan avisou:

— Nos já nos casamos. Foi uma cerimônia informal numa vila a quatro dias de distância daqui. Agora, por favor, vamos a algum lugar para conversar sobre isso?

— Não há necessidade de nos escondermos. Um casamento informal não é vergonhoso, porém providenciarei para que seja abençoado por um sacerdote. Não permitirei que ninguém levante dúvidas sobre o casamento de meu herdeiro.

Cecily franziu a testa.

— Mas, titio, Malcolm é seu herdeiro, e eu estou casada com Artan.

— Eu sei, menina. E isso faz com que Artan seja meu herdeiro. Nós dois conversamos sobre isso antes de ele ir buscá-la. Agora, Malcolm não é mais meu herdeiro. — Com um sorriso de satisfação, Angus esfregou as mãos. -— Essa notícia aquece o coração deste velho. Já posso descansar em paz, pois, quando eu me for, sei que um homem forte e bom cuidará de Glascreag. Melhor ainda, os filhos que vocês dois tiverem terão mais sangue MacReith do que qualquer pirralho gerado por Malcolm. — Franziu a testa para Cecily. — Você está bem, menina? Empalideceu de repente.

— E mesmo? — ela murmurou.

Não entendia como ainda se mantinha em pé, pois sua sensação era de ter-se estilhaçado em um sem-fim de pedaços. Com esforço, olhou para Artan, seu marido, amante e traidor.

Ele viu a mágoa profunda no olhar dela, e quase a abraçou a fim de amenizá-la, mas o instinto de sobrevivência o impediu.

— Bem, Sile, posso explicar tudo.

— Será? Explicar o quê? Você conversou com meu tio sobre se casar comigo a fim de se tornar herdeiro dele?

Devia haver algo para ele dizer a fim de suavizar a resposta sem ocultar a verdade, mas apenas conseguiu murmurar numa voz rouca:

— Sim.

Cecily calculava ser impossível um sofrimento tão grande, porém não se surpreendeu por Artan provar que estava enganada.

— E quando você pretendia me contar?

— Venho tentando pensar em um meio de fazê-lo desde o dia em que saímos de Dunburn, mas não encontrava as palavras certas.

— Calculo que seja difícil perguntar a uma jovem: "Você aceita se casar comigo porque quero muito me tornar senhor de terras?".

— Não foi assim.

— Não? Você mentiu para mim.

— Não menti. Apenas não lhe contei toda a verdade. Pelo olhar de Cecily, ele percebeu que a afirmação soava tão mal para ela quanto tinha soado para ele. Ela chegou mais perto e disse baixinho:

— Às vezes, sir Artan, omitir a verdade é como mentir. E esta é uma dessas vezes. — Endireitou-se e começou a subir a escada com a impressão de que galgava uma montanha. — Se me derem licença, vou para o meu quarto, a fim de tomar um banho e descansar.

Artan não gostou da ênfase no meu.

— Irei procurá-la mais tarde.

— Não, se pretende ocupar a posição de senhor desta propriedade.

— Acho que sua esposa acaba de ameaçá-lo — Angus disse com um sorriso disfarçado.

Artan suspirou. Sentia-se completamente perdido, sem saber o que fazer. Virou-se para Angus e concordou:

— Tem razão. Vamos até o solário para conversar. Há muita coisa que você precisa saber.

— Não vai atrás da menina para acalmá-la?

— Prefiro lhe dar um tempo para esfriar a cabeça. Passaram-se algumas horas antes de Artan criar coragem para ir ao próprio quarto, que Cecily havia declarado ser o dela. Com a máxima cautela, abriu a porta, aliviado por ela não tê-la trancado, e chamou-a. Abaixou-se a tempo de não ser atingido por uma pesada jarra, que bateu na porta e espatifou-se, encharcando-o com a água que continha. Retrocedeu depressa, admirado com a força da esposa para atirar a jarra cheia. Talvez se passasse uma noite sozinha, ela se disporia a ouvi-lo.

Cecily olhou para a porta, vendo o marido mentiroso e traidor desaparecer depressa. Ela havia passado horas sozinha, chorando até o peito doer. Fora ingênua o bastante para pensar que ele a queria, apesar de pouco lucrar com o casamento. No entanto, ele só pensava em se tornar o senhor de Glascreag. Até conseguir dominar as emoções, não queria vê-lo nem ouvir explicações.

Sabia muito bem com que facilidade o traidor a seduziria, e ela não seria tola outra vez. Precisava ficar longe daqueles olhos azul-prateados e do corpo viril até que se munisse de forças suficientes para tratar as palavras e os beijos dele com o desdém merecido.

Ela também teria de proteger o coração ferido com uma densa parede de gelo.

 

― Você devia ter contado para ela.

— Eu sei — Artan resmungou ao olhar para Angus sentado à cabeceira da mesa, com aspecto saudável demais para um homem que alegara, poucas semanas atrás, estar à beira da morte.

— Não entendo bem por que ela está tão aborrecida. Não deveria se sentir feliz por trazer para o casamento um excelente dote? — Bennet, um primo distante, conjeturou.

— É o que se haveria de pensar — Artan concordou. — Mas eu imaginava que ela reagiria assim e devia ter lhe falado sobre a barganha de Angus. — Logo após terem se casado e feito amor. Então, ele teria garantido que ela não fugisse.

Ela o impedia de entrar no quarto havia duas noites. Na primeira, quando fora procurá-la para dar as explicações devidas, ela atirara a jarra, forçando-o a ir embora e esperar que se acalmasse. Na véspera, tinha sido uma pedra, o que indicava que ela escapara do quarto para recolher do lado de fora uma pilha delas. Mais uma vez, ele tinha ido embora. Sem dúvida, após duas noites sozinha, ela teria se acalmado. Porém, hesitava em ir verificar.

— Talvez você pudesse falar com ela — Artan sugeriu a Angus, que estava se servindo de comida demais para um enfermo. — Poderia argumentar em meu favor antes de voltar para o seu leito de morte. — Quase sorriu diante da expressão de culpa que passou pelo rosto de Angus, mas se esforçou para não rir junto com o primo Bennet.

— Você ficou fora tantos dias que tive tempo de me recuperar — Angus resmungou.

— Ah, sim. Bem, a idéia deste casamento foi sua e também da barganha idiota que provocou o problema. Portanto, por que não vai conversar com ela?

— Já tentei, mas nas vezes em que mencionei seu nome, ela ameaçou me agredir.

Ao ver que Bennet e Angus quase engasgavam de tanto rir, Artan teve vontade de bater a cabeça de um contra a do outro. Não era a raiva de Cecily que o preocupava, e sim a mágoa que sentia. O olhar dela ao se inteirar da verdade o assombrava. Sabia que ela achava que fora traída por ele outra vez e, portanto, precisavam conversar antes que essa idéia criasse raízes.

— Apenas vá até o quarto, leve-a para a cama e a agrade com palavras bonitas — Bennet sugeriu.

— Antes ou depois de ela me atingir com pedras ou jarras? Preciso explicar tudo e não posso fazer isso enquanto me esquivo dessas coisas. Ela tem ótima pontaria.

— Você fala como se tivesse orgulho disso.

— Pois tenho e sei que mereço a raiva dela. Lembrem-se de tudo pelo que passou.

— Você nunca lhe faria mal — Angus afirmou.

— Cecily sabe que não represento uma ameaça. Mesmo assim, eu deveria ter feito escolhas melhores. Enquanto eu dormia na cama fria essa noite,,.

— Por que não pôs mais turfa no fogo? — Angus indagou.

Artan ignorou-o e prosseguiu:

— Pensei em como me sentiria se estivesse no lugar dela. Difícil suportar um golpe no orgulho. Não sei como as mulheres o toleram.

— E você acha que elas não casam por dinheiro ou terras? Algumas podem desejar fazê-lo por amor ou paixão, mas a maioria o faz por nome, alianças, fortuna ou segurança. Algumas não são forçadas a isso. Nenhuma das minhas esposas foi — Angus afirmou e franziu a testa. — Sempre achei que seria ótimo se todos pudessem se casar com os escolhidos pelo coração. Porém, é muito bom unir terras ou clãs, fazer alianças e aumentar as posses. A menina sabe dessas coisas. Acho que teve essa reação porque acreditou ter sido escolhida pelo coração e não pelo dote. Você precisa lembrá-la dessas duras verdades.

— Isso devia ter sido feito logo no início. Ao não contar-lhe a respeito da barganha, eu deixei-a pensar que não haveria ganho para mim com o casamento e, portanto, bem, deixei-a imaginar outros motivos. Tenho de me desculpar por isso, mas não poderei fazê-lo se ela não quer nem falar comigo.

— Você deve tentar, mesmo que seja protegido pela porta.

— É uma idéia, embora eu não goste de saber que todos estão ouvindo o que tenho a dizer. — Fez uma careta. — Ainda mais porque fui eu quem errou. E difícil admitir isso para uma mulher — confessou e sorriu ao ver que os dois balançavam a cabeça, concordando.

— Melhor isso do que não dizer nada — Angus afirmou.

— Ela não pode ficar brava por muito mais tempo — Artan murmurou e detestou o tom de dúvida em sua voz.

Angus deu de ombros e declarou em tom afetuoso:

— Minha sobrinha é teimosa.

Artan terminou o vinho e levantou-se. Estava desesperado o suficiente para fazer outra tentativa. A perspectiva de dormir sozinho outra noite deu-lhe coragem. E não era como se a briga entre eles fosse um segredo no clã. Supunha que deveria estar bravo com ela por isso, mas não ignorava a própria culpa. A porta do salão, virou-se para Angus e indagou:

— Nenhum sinal ainda de Fergus?

— Não, mas dei ordens para que os homens se mantenham atentos.

— Bem, espero que você cuide melhor disso do que fez ontem, ao ver minha esposa recolhendo pedras quando a levou para caminhar um pouco — disse e, notando o olhar de culpa de Angus, satisfez sua curiosidade sobre a origem das pedras.

Ao subir a escada, pensou no que diria a Cecily. Não contara a Angus, mas suspeitava de que ela começava a amá-lo, o que explicaria a expressão devastada quando se inteirara da barganha. A idéia de que ela o amasse lhe agradava muitíssimo, porém significava que o golpe recebido, visto como traição, exigiria muito mais do que palavras bonitas e gestos amorosos para ser compensado. Achava que tinha jeito para estes últimos, mas nenhum com as primeiras. Talvez devesse praticar algumas, como Cecily fazia com insultos. Não que ela ainda precisasse treinar, pensou ao parar diante da porta do quarto e ouvi-la gritar:

— Monturo de animais! Pústula na testa de Satã! Isso foi seguido por uma pancada e um gemido. Com a máxima cautela, ele abriu a porta e espiou. Entrou depressa e a fechou enquanto via a esposa, delicada e linda, bater a cabeça de Malcolm no chão. Depois de apreciar a cena por um instante, notou que o vestido dela estava rasgado num dos ombros e entendeu por que atacava o rapaz. Enfureceu-se, mas acalmou-se depressa. Malcolm sangrava pelo nariz e batia os braços numa tentativa de se livrar da mulher pequenina. Era humilhação suficiente, mas Artan achava que o homem deveria ir embora de Glascreag o mais depressa possível e o aconselharia a fazê-lo, certo do apoio de Angus.

— Quando meu marido souber o que você tentou fazer, vai destripá-lo e jogar suas entranhas aos porcos!

— Acho que, primeiro, devemos deixá-lo se recuperar um pouco, minha Sile — Artan disse ao retirar a esposa das costas de Malcolm e afastá-la para o lado.

Ao vê-lo, o rapaz empalideceu tanto que Artan pensou que ele desmaiaria. Com dificuldade, ergueu-se e balbuciou:

— Ela me entendeu mal. Eu não ia... não pretendia...

— Suma daqui!

Ao ver Artan fechar a porta atrás de um Malcolm esbaforido e se virar, Cecily deu-se conta de estar a sós no quarto com o marido mentiroso e traidor. Não estava preparada e se sentia incapaz de atirar qualquer coisa nele. O tremor nas pernas espalhava-se pelo corpo inteiro. Quando ele a ergueu nos braços e sentou-se numa poltrona perto da lareira, dirigiu-lhe um olhar de desdém, mas acomodou-se naquele colo.

— Ele a machucou, minha esposa? — Artan indagou, massageando-lhe as costas e sentindo que o tremor diminuía.

— Não, ele apenas rasgou um pouco meu vestido. — Ela estremeceu. — Também tentou me beijar.

— E você o empurrou?

— Não, dei-lhe uma joelhada no...

— Entendo. Isso explica por que ele mancava ao fugir correndo. — Começou a passar a mão por seus cabelos e a desfazer a trança. — Quando percebi o que ele tinha tentado fazer, pensei em atirá-lo contra a parede algumas vezes, mas achei que ser dominado por uma jovem pequenina já era humilhação suficiente até para alguém como ele. Porém, se você quiser, posso caçá-lo e quebrar alguns ossos.

— Bondade sua, mas não é necessário. Não creio que ele se atreva a me importunar outra vez.

Artan balançou a cabeça e franziu a testa.

— Confesso que estou surpreso com o ocorrido.

— Bem, ele está muito bravo, pois não é mais o herdeiro.

— E o que isso tem a ver com você?

— Sou a esposa do herdeiro, e nossos filhos serão os próximos. Malcolm pretendia fazê-lo sofrer ao me engravidar. Você teria de reconhecer a criança como seu filho, pois somos casados, e ele o faria perder tudo que lhe tirou.

— O rapaz enlouqueceu.

— Eu disse isso a ele, pois não achei um plano bem elaborado. Também falei que, se estava tão determinado a ter um filho para ser herdeiro de Glascreag, poderíamos ir até o chiqueiro para que ele escolhesse um dos porquinhos nascidos hoje. — Fez uma careta ao ver que Artan sorria. — Foi quando ele rasgou meu vestido.

— Esse era um dos insultos que você guardava para usar na hora certa?

— Não, pensei nele naquele momento. Parece que, quanto mais se usa insultos, mais eles surgem com facilidade.

Cecily sabia que devia se levantar, pois já se acalmara. Aquela era a situação que havia evitado nos últimos dois dias. Porém, não sentia ânimo para deixar os braços dele, nem mesmo quando Artan começou a desamarrar seu vestido.

— O que está fazendo? — indagou, dizendo a si mesma que apreciar o toque leve dos dedos em seu pescoço não ameaçava sua determinação de manter distância dele. Poderia se afastar no instante que quisesse.

— Achei melhor verificar se ele não causou nenhum ferimento que exija unguento.

— Acho que ele está mais ferido do que eu. Artan afastou um pouco o vestido para expor seu ombro e o beijou.

— Senti sua falta — murmurou ao puxar, de leve, seus cabelos até fazê-la inclinar a cabeça para trás e beijá-la na testa.

— Pare — Cecily disse um pouco sem fôlego, em uma voz que não expressava ordem ou ameaça.

— Ah, minha Sile, você não quer dizer isso.

— Quero, sim e devo. Você mentiu para mim — ela murmurou, chorosa, a parede de gelo em volta do coração fina demais para barrar a mágoa.

— Quietinha, doçura. — Artan enxugou suas lágrimas com beijos. — Menti, sim, e achei melhor dizer que ainda não tinha lhe contado a verdade. Mas você está certa, foi uma mentira com outro nome.

— Você se casou comigo para ser herdeiro de Angus, pois quer ser o senhor de Glascreag.

— Você jamais acreditaria em mim se eu negasse desejar ser o senhor daqui. — Abaixou o vestido até a cintura e começou a desamarrar a camisa. — Diga o nome de um homem que não gostaria de ser o senhor de uma propriedade como esta. Porém, não me casei com você para obtê-la. — Inseriu a mão no decote e encostou o rosto no topo da cabeça dela enquanto se deliciava ao tocar os seios e sentir os mamilos eretos. — Pronto, já consigo pensar melhor agora.

Por um momento, Cecily ficou tensa ao sentir a mão de Artan nos seios, porém relaxou com as carícias. Tentou se convencer de que cedia porque ele falava abertamente sobre o problema entre ambos. Mas, no fundo, sabia que também havia sentido falta dele.

Mesmo enquanto chorava sozinha, amargurada com a mentira do marido, era nos braços dele que ansiava se aconchegar e de quem queria receber o consolo tão necessário. E aquela fraqueza a fazia chorar mais. A maneira com que ele, tão amoroso, a abraçava, com uma das mãos sobre os seios, a outra acariciando-a no pescoço, nos ombros e, ao mesmo tempo, beijando-a no rosto todo, provocou-lhe mais lágrimas. Chorava pela perda do sonho ingênuo de que aquele homem forte, atraente e viril quisera se casar com ela, apesar da incerteza de haver um dote. O sonho a fizera acreditar que podia confiar nele, em sua palavra e em sua paixão.

— Agora, vou contar a história toda, desde o início, dessa barganha — Artan disse e o fez, sem omitir nada.

Cecily franziu a testa quando ele terminou, no ponto em que tinha partido de Glascreag. Tudo parecia bastante razoável, e exatamente o que o tio faria, embora ela o tivesse conhecido, de fato, apenas dois dias atrás. Em suas conversas com ele, havia percebido o anseio para ter um herdeiro que não fosse Malcolm. Podia ver a verdade em tudo que Artan dissera e, no entanto, morria de medo de acreditar nele. Não suportaria o sofrimento provocado por uma nova traição.

Artan aninhou seu rosto entre as mãos.

— Menina, foi um erro meu manter tudo em segredo. Tenho consciência disso desde o início.

— Então, por que não me contou?

— Porque achava que você não se casaria comigo se soubesse a verdade. Tinha certeza de que jamais acreditaria no fato de eu não ter a intenção de me casar apenas para me tornar herdeiro de Angus. Eu disse isso a ele e juro ser verdade. A maioria das pessoas se casa para obter certos ganhos, mesmo pequenos. Eu não. Ninguém em minha família se casa para lucrar. Como sabemos que nos uniremos de corpo e alma com quem nos casamos, achamos que deve existir algo mais. Foi por isso que deixei bem claro a Angus que precisaria conhecê-la e ver como você era antes de me decidir. Se eu não a quisesse, apenas tentaria trazê-la a Glascreag para vê-lo.

Cecily suspirou e aconchegou-se mais a ele. Tudo fazia sentido, porém ela continuava insegura o que, sem dúvida, iria persistir durante algum tempo. Vivera rodeada por mentiras e segredos demais para não ser desconfiada. Talvez estivesse sendo injusta com Artan, mas o coração ferido não se importava com justiça no momento. Queria apenas proteger-se contra mais sofrimentos.

Artan acrescentou:

— Ao omitir a verdade, permiti que isso acontecesse. Lamento muitíssimo. Quero deixar bem claro que a perspectiva de me tornar senhor de Glascreag não me fez seu marido, Sile. Você deve saber que existe entre nós muito mais do que terras e a vontade de Angus danos unir.

Ela assentiu com um gesto vagaroso de cabeça.

— Não poderia deixar de haver depois de tudo que enfrentamos.

— Então, tenho permissão para voltar a me deitar ao seu lado?

— Esse é um dos pontos que nos une, Artan?

— Você pensaria de maneira diferente? — ele indagou ao erguer seu rosto e dar-lhe um beijo vagaroso e meigo.

— Acha que a paixão é suficiente para nos manter unidos?

— É um excelente começo e eu não gostei de dormir sozinho numa cama fria.

— Pois deveria ter posto mais turfa no fogo — ela comentou e o fitou ao ouvi-lo rir. — Qual é graça?

— Angus disse a mesma coisa quando reclamei da minha cama fria.

— Meu Deus... Não sei se gosto do fato de dizer as mesmas coisas que meu tio — ela queixou-se.

Ainda rindo, Artan a carregou até perto da cama e a pôs no chão. Despiu-a depressa, sem dar atenção ao seu rubor. Tão logo se viu nua, ela enfiou-se sob as cobertas. Com a mesma rapidez, ele livrou-se das roupas e deitou-se ao seu lado. Ao estreitá-la entre os braços, ele deliciou-se com o calor junto ao próprio corpo e suspirou de satisfação.

— Aqui é seu lugar, menina. E sempre será. Havia tanta sinceridade na voz do marido que ela se sentiu segura quanto a esse aspecto. Artan queria dormir em seus braços. No fim do dia, ansiava enfiar-se sob as cobertas com ela. Já era um começo.

Embora continuasse desconfiada, estava disposta a tentar outra vez. Ele estava certo ao afirmar que poucas pessoas se casavam por vontade própria. Terras, alianças e fortunas estavam sempre envolvidas. De alguma forma, acreditava que Artan não teria se casado com ela apenas para lucrar algo e, portanto, deveria ficar contente. Além disso, não importava como se sentisse, havia algo indiscutível: ele era seu marido e o lugar dele era naquela cama, e não sendo recebido com jarras e pedras. Qualquer outro marido veria nisso motivo para lhe dar uma sova.

Enlaçou-o pelo pescoço e o beijou. Apesar de terem dormido separados por apenas duas noites, descobriu que estava faminta por ele. E ele agia como se também ansiasse por devorá-la. Ele a fez deitar-se de costas e pôs-se a admirar seu corpo, acariciando-o. A impressão que dava era de que o estava descobrindo de novo, o que aumentou ainda mais sua excitação.

A paixão logo se tornou enlouquecedora, ambos agindo como se tivessem passado meses separados, e não apenas dois dias. Quando finalmente atingiram juntos o prazer máximo, seus gritos ecoaram pelo quarto. Artan largou o corpo, meio de lado, sobre o seu, dando a impressão de que estava tão sem forças quanto ela.

— Você ainda acha que me casei somente para ganhar Glascreag? — ele indagou ao acomodar a cabeça sobre seus seios. — Senti falta de meus travesseiros — murmurou.

Cecily sorriu e o acariciou nas costas.

— Não. Acho que você tinha umas duas outras coisas em mente. — Franziu a testa, — Estranho como tudo aconteceu. Eu nunca tinha sido beijada propriamente. No entanto, quatro dias depois de conhecê-lo, aceitei ir encontrá-lo às escondidas, tarde da noite, na beira do riacho.

— Embora aquilo tenha sido maravilhoso, não devíamos comentar.

— Por que não?

— Bem, acabei de conseguir que você parasse de atirar coisas em mim e não quero pensar na outra vez em que ficou brava comigo.

Sorrindo, ela o beijou na testa.

— Não acreditei em você e fiquei furiosa quando me amarrou, me amordaçou e me levou embora de minha casa. Mas mesmo antes de Fergus confirmar tudo que você contou, eu já havia começado a acreditar em alguns pontos. Também tinha certeza de que você acreditava em tudo e, assim, não podia culpá-lo por querer me manter em segurança.

— Não fui muito eficiente. O desgraçado conseguiu pegá-la.

— E você me resgatou. O que eu queria dizer era que minha completa inocência não me salvou de você. Isto, seja lá o que for, estava lá desde o início.

— Ótimo. Eu também estava ávido desde o começo. Cecily riu quando ele esfregou o rosto em seus seios, mas logo ficou séria.

— Ele virá atrás de mim, não é?

— Calculo que sim. Existe uma boa fortuna que ele ambiciona.

— Então, trarei problemas aos portões de meu tio.

— Já apareceram outros antes.

— Mas não eram meus.

— Nem estes são, pois resumem-se à ambição de Fergus. Você não pediu para ficar noiva do idiota. Todos os envolvidos neste caso a usaram para obter o que queriam.

— Você sabe como fazer uma pessoa se sentir melhor — ela ironizou numa voz arrastada.

— Lamento — Artan disse com uma careta exagerada.  

— Não lamente. E a verdade.

— Por que tenho a impressão de que você me incluiu nesse grupo?

Cecily sabia que sua expressão revelava o sentimento de culpa.

— De forma alguma pensei em você como alguém semelhante a eles. Apenas descobrir que vivi rodeada por mentiras e trapaças por tanto tempo, sem me dar conta, me fez desconfiar de tudo.

— Como deveria. — Artan sorriu ao ver a expressão surpresa. — Por culpa minha, perdi sua confiança. Mas estou determinado a reconquistá-la.

Aquilo não deveria deixá-la nervosa, pensou. Porém, Artan beijou-a, impedindo-a de refletir. O fato de ele poder fazer isso era um motivo para ser cautelosa. Porém, ao abraçá-lo, reconheceu outra verdade. Nenhum dos dois conseguia ocultar o desejo mútuo e, apesar de a paixão que os unia ser recente, descobrira ter tanto poder sobre ele quanto ele tinha sobre ela.

Artan estreitou Cecily nos braços, beijou-a no pescoço e tentou ignorar as batidas na porta do quarto. A esposa estava no lugar certo, e ele ansiava por algum prazer matinal. Subiu a mão pelo corpo macio e acariciou-a nos seios. Sorriu quando ela suspirou e roçou as nádegas em suas virilhas. Era assim que um homem devia saudar um novo dia.

— Maldição, Artan! — Bennet gritou. — Levante-se dessa cama! Eles chegaram aos portões!

Artan levou um minuto para assimilar a importância do aviso. Então, praguejou, levantou-se e começou a se vestir. Um olhar para a cama revelou que Cecily, já em pé, também se vestia. Estava pálida, com ar assustado e ele tentou pensar em algo para confortá-la.

— Por acaso veio acompanhado de montanheses? — indagou a Bennet enquanto esperava Cecily acabar de se vestir.

— Dos Maclvor — o primo respondeu quando Artan já abria a porta.

Ele tornou a praguejar e afivelou o cinturão com a espada. Quando Cecily se aproximou, ele a tomou nos braços e a beijou. O fato de Fergus ter estragado seu prazer matinal deixou-o mais ansioso para matar o idiota. Ao soltá-la, notou-lhe o medo no olhar e acariciou-a no rosto.

— Os Maclvor são inimigos de meu tio? — ela perguntou.

— São, mas Fergus vai perceber logo que não são bons aliados. Eles não têm raiva de Angus, apenas cobiçam Glascreag. Acho que pensam em usar os habitantes das Terras Baixas para conquistar estas terras.

— Depressa vão descobrir que fizeram uma péssima escolha — Bennet afirmou.

— Sem dúvida. Você sabe quem é Cat, Sile?

— Sei, sim. Angus me apresentou a quase todos na fortaleza.

— Vá procurá-la. E ela quem prepara as mulheres para fazer sua parte.

— Eu a encontrarei. Você vai tomar cuidado, não vai, Artan? — ela perguntou baixinho, lutando contra a vontade de prendê-lo ali.

— Ora. esta luta ridícula terá terminado antes de o sol se pôr.

Afoito, beijou-a e acompanhou Bennet às muralhas.

Enquanto Cecily trançava os cabelos, disse a si mesma para ter coragem. Artan era um guerreiro, motivo pelo qual Angus queria tanto que ele o sucedesse como senhor de Glascreag. A esposa de um guerreiro tinha de ser forte e ajudá-lo, em vez de se lamentar, amedrontada. Ela não podia ceder à tentação de se enfiar sob as cobertas e rezar até que a luta terminasse. Estava determinada a não envergonhar Artan com demonstrações de fraqueza.

Cecily encontrou Cat na cozinha, gritando ordens para as mulheres reunidas ali. Levou um momento para que a velha senhora a visse e a reconhecesse. Depois de observá-la com cuidado, ela indicou-lhe uma das mesas.

— Corte as ataduras — disse, pondo uma pilha de trapos de linho e um facão diante dela. — Quando terminar, quero que amasse umas ervas.

— É só isso que quer que eu faça? Tem certeza? — Cecily perguntou, pois não eram atividades trabalhosas e nem para serem feitas pela esposa de um guerreiro.

Cat acariciou-a na face.

— Acabou de se casar, não é?

— Sim, mas não entendo por que isso importa — ela respondeu, sem conseguir disfarçar a confusão.

-— Ah, importa muito. Ainda não está acostumada com essas confusões.

Cecily suspirou.

— Não tenho certeza de que um dia vou me acostumar ao fato de os homens se sentirem forçados a brandir espadas uns contra os outros.

A mulher riu.

— São uns tolos. Mas, mesmo se guardassem as espadas, outros as pegariam e os ameaçariam com elas. Nossos homens as empunham para proteger Glascreag e a nós. Não é uma proeza pequena, certo?

— Concordo — Cecily disse, começando a trabalhar. — Farei isto, mas saiba que tenho experiência como curandeira. Foi a única coisa que me ensinaram a fazer e sou muito boa nessa atividade.

Cat a observou antes de indagar:

— O que quer dizer com isso ter sido a única coisa que lhe ensinaram?

— Por razões que nunca entendi, meus tutores nunca me ensinaram a administrar uma casa. Lady Anabel considerava a arte de curar algo servil, próprio para pessoas humildes.

— Sei, e ela queria envergonhá-la.

Cecily percebeu que podia sorrir diante disso.

— Exatamente. Por isso, sempre tomei muito cuidado para não mostrar o quanto eu gostava desse trabalho. Portanto, se precisar de ajuda para cuidar de feridos...

— Mandarei buscá-la depressa.

Quando a mulher se afastou, Cecily continuou a cortar tiras de ataduras. Nesse momento, ficar escondida num canto da cozinha era o melhor para ela. Dali não podia ver os homens se preparar para a batalha, nem as forças que enfrentariam. Havia dito a verdade para Cat. Duvidava se acostumar com o fato de Artan brandir a espada contra homens que tentariam matá-lo, nesta ocasião e em outras futuras. Ela só podia rezar, disfarçar o medo e agradecer a Deus o fato de Angus tê-lo ensinado bem a se defender.

Em pé na muralha, entre Angus e Bennet, Artan observou os homens agrupados do lado de fora. Notou que alguns dos Maclvor discutiam com os Ogilvey e apontavam para a vila, sinal de que debatiam seu destino. Suspeitava que os Maclvor eram contra a idéia de incendiá-la, pois, na esperança de logo conquistarem Glascreag, não queriam reconstruir muita coisa. Como todos os aldeões, bem como grande parte dos animais, já estivessem dentro das muralhas, Artan não se preocupou muito. Já tinham reconstruído a vila antes e tornariam a fazê-lo se fosse preciso.

— Imagino se o velho Maclvor não deixou suas terras mal protegidas — Angus comentou.

— Talvez devêssemos enviar um mensageiro para informar os Duff— Artan sugeriu, fazendo Angus rir.

— Seria uma boa lição para o velho Maclvor: voltar para casa depois de tentar roubar minhas terras e descobrir que perdeu as dele para Ian Duff. Aquele idiota no cavalo branco é Fergus?

Artan observou o homem que se aproximava e respondeu:

— Ele mesmo. E, pelo que vejo, o homem precisava muito dos Maclvor, pois parece que metade dos Donaldson o abandonou.

Ao vê-lo puxar as rédeas a uma certa distância da muralha, Angus indagou, irritado:

— Que idiota pensou em casar uma jovem MacReith com um homem cujo pescoço começa na boca? Ele não tem queixo!

Artan lembrou-se de Cecily ter dito algo semelhante e riu. Angus podia não ter criado a sobrinha, mas havia algo seu nela. Calculava que ele tinha notado um forte traço do sangue MacReith em Cecily, o que o agradava muito.

Bem como a Artan. Ela podia ter sido criada nas Terras Baixas por um casal de ladrões assassinos, mas possuía a alma e o espírito de uma verdadeira montanhesa. Também não se contaminara com a falta de moral, o egoísmo e a maldade deles. Ao manter Cecily afastada dos parentes e amigos, os Donaldson tinham lhe prestado um grande favor. Porém, ao lembrar-se de algumas cicatrizes nas costas dela, ainda queria vê-los enforcados.

— Vim aqui buscar minha noiva — Fergus gritou.

— Será que não podemos matá-lo logo e acabar com essa história? — Angus resmungou.

— Não me tente — Artan respondeu ao olhar para o homem que ansiava matar. — Você não tem noiva alguma aqui, Fergus. Portanto, sugiro que volte para casa antes de ser ferido.

— Cecily Donaldson me foi prometida, e você a roubou na noite do nosso casamento.

— Na verdade, dez dias antes do enlace. Mas não vamos discutir esse ponto e nem o fato de você ser o porco lascivo que suas flâmulas anunciam. Há apenas uma verdade que nos diz respeito. Cecily é minha esposa. Você mesmo nos ouviu declarar isso.

— Não ouvi coisa alguma.

— Como temi que você mentisse, nós nos casamos outra vez, numa vila e diante de três testemunhas que puseram suas marcas no documento. Por isso, enxugue as lágrimas e volte para casa.

— Não, Cecily Donaldson é minha noiva e eu tenciono pegá-la. Se você não tem o bom senso e a honra de entregá-la a mim, seu noivo, derrubaremos o portão e a traremos para fora.

— Tentem à vontade — Angus gritou.

— É mesmo um porco naquelas flâmulas? — Bennet perguntou enquanto Fergus, furioso, se afastava.

— Sim, um porco-montês feroz — Artan respondeu e imaginou se haveria uma batalha ou se ficariam presos ali, durante dias, observando-se e trocando insultos de vez em quando.

Foi arrancado dos pensamentos a respeito de um cerco cansativo pelo grunhir de porcos. Levou alguns instantes para perceber que vinha dos homens de Glascreag, reunidos do lado de dentro das muralhas. Bennet tinha comentado com eles o que havia nas flâmulas de Fergus. Era uma boa provocação, admitiu.

Não levou muito tempo para verificar como era boa de fato. Um furioso Fergus decidiu iniciar a batalha, ou melhor, ordenar a seus homens que o fizessem enquanto, a uma distância segura, na sela do garanhão branco, gritava instruções. Logo ficou claro que Maclvor não aprovava o ataque abrupto e que dera permissão aos seus homens para não tomarem parte na batalha, se preferissem. Alguns se dispuseram a lutar no mal planejado ataque às muralhas bem defendidas. Artan entregou-se à difícil atividade de se proteger contra a saraivadas de flechas e, ao mesmo tempo, defender Glascreag. Imaginava quanto tempo levaria para os homens de Fergus admitirem que não havia honra em morrer por um idiota covarde, que arriscava suas vidas à toa, e então abandoná-lo.

— Lady Cecily, Cat mandou que eu viesse chamá-la para a senhora ir lhe mostrar seu dom de curandeira — uma criada avisou da porta da cozinha.

Antes que Cecily pudesse responder, a moça já tinha ido embora. Largou as ervas e correu ao grande salão, que fora preparado para cuidar dos feridos. Mesmo num canto afastado da cozinha, ela ouvira o início da batalha. O medo gelado continuava a dominá-la. Impossível não pensar que o marido e o tio estavam lá na muralha como alvo das flechas.

Quando entrou no grande salão, ficou arrepiada. O odor de sangue e suor permeava o ar, e vários feridos esperavam para ser atendidos. Mas, ao conseguir chegar perto de Cat, Cecily já tinha visto que a maioria dos ferimentos não era grave. Apenas os de alguns homens inspiravam preocupação, e dois deles pareciam que não resistiriam.

— Quero saber o quanto é boa curandeira, moça — Cat lhe disse.

— Bem, a mulher sábia de nossa vila afirmou que eu era muito boa, até melhor do que ela — Cecily respondeu e enrubesceu, temendo ser vaidosa.

— E ela era boa?

— Pessoas vinham de longe só para receber seus cuidados.

— Muito bem. Então, me acompanhe.

No momento em que chegaram perto de um rapaz deitado numa das mesas, Cecily arrependeu-se de ter apregoado suas habilidades. Ele tinha três ferimentos de flechas, e uma delas parecia ter passado perto do coração. Outra permanecia nele, parte da ponta fora da coxa. Ela reconheceu a marca do artesão dos Donaldson.

— Estou com medo de tirar essa aí, pois ele pode se esvair em sangue — Cat disse baixinho para que ninguém a ouvisse.

Com a máxima atenção, Cecily observou a flecha que havia penetrado na parte alta da coxa.

— Acho que, se a flecha tivesse atingido um lugar onde o sangue corre tão depressa quanto o de uma garganta cortada, o rapaz já teria morrido.

— Sim, talvez tenha razão — Cat disse e estendeu a mão para puxar a flecha, mas se surpreendeu ao ser impedida por Cecily. — Pensei que podia retirá-la.

— Pode, sim, mas primeiro a ponta precisa ser cortada para não causar mais danos.

Cat inclinou-se sobre o rapaz e observou a flecha.

— Agora entendo. Faz sentido. Ao arrancá-la com a ponta, ela poderia atingir algo, o que não aconteceu ao entrar. O que fazer agora?

Depois de lavar as mãos, Cecily lhe mostrou. Fez uma mulher corpulenta manter o rapaz imóvel, empurrou a flecha até que a ponta saísse por inteiro e, então, cortou-a. Limpou bem a área em volta da haste, tirando pedaços de roupa e outras sujeiras. Então, deixou que Cat extraísse a haste. Para alívio seu, embora sangrasse bastante, não era o suficiente para tirar a vida do rapaz. Com a ajuda da velha senhora, deu pontos no ferimento e o enfaixou. Em seguida, verificou os outros para ter certeza de que estavam bem limpos e fez os curativos. Deixaram o rapaz sob os cuidados de uma jovem que parecia enamorada dele.

Antes de se aproximarem de outro ferido, Cecily tornou a lavar as mãos. Curiosa, Cat indagou:

— Por que lava tanto as mãos?

— Mantê-las limpas, bem como os ferimentos, parece evitar a febre e ajudar na cura.

— Foi a mulher sábia quem a ensinou?

— Foi. Ela afirmou que nenhuma boa curandeira ignora o que outras lhe dizem sobre curas. Ela não costumava fazer isso, pois achava todas umas tolas e só seguia os ensinamentos da mãe. Então, ouviu falar de como manter as mãos e os ferimentos limpos evitava febres e infecções. Riu disso, mas algo aconteceu que a fez pensar que talvez fosse verdade, embora ninguém pudesse lhe explicar por quê. — Cecily fez uma pausa antes de prosseguir: — Bem, ela foi chamada para fazer o parto de uma mulher, logo depois de ter tomado seu banho mensal. Segundo me contou, ela sempre tinha muito cuidado para não se sujar nos dias seguintes e, quando chegou à casa da mulher, lavou bem as mãos para tirar a terra que grudara nelas quando havia apanhado umas ervas. A parturiente reclamava muito do fato de a criança ter resolvido nascer nesse dia, pois, na véspera, ela havia limpado a casa toda, lavado as roupas de cama e tomado seu banho. Parecia que um membro importante da família ia chegar para visitá-los.

— Bem, as duas estavam muito limpas. Mas mulheres têm filhos o tempo todo e muitas não morrem de febre de parto — Cat argumentou.

— É verdade, mas essa mulher estava tendo um parto difícil. A criança precisava ser virada.

— Que horror!

— Lorna, a curandeira de minha vila, disse que elas duas sabiam do perigo de a mulher vir a morrer se isso fosse feito ou, no mínimo, de sofrer febre de parto. Muitas curandeiras afirmavam que não se deveria virar uma criança no ventre, pois mulheres não eram ovelhas ou éguas. Mas Lorna dizia que não passavam de umas tolas. Fez isso e a mulher teve um filho forte.

— E quanto a ela?

— Viveu e não teve o mínimo sinal de febre. Lorna decidiu que estaria limpa, lavaria bem as mãos e os ferimentos sempre que tivesse de fazer um parto ou um curativo.

— E então?

— Sua fama espalhou-se, pois seu sucesso aumentou muito.

Cat olhou para as mãos e franziu a testa.

— Sabe, os rapazes Murray estão sempre limpos e nunca me deixam cuidar de seus ferimentos antes de lavar as mãos. Várias mulheres do clã deles também são curandeiras muito boas. — Apontou para um homem grandalhão, com barba, sentado num banco e segurando um trapo sobre um dos braços. — Lá está um fácil de ser cuidado. Trate dele. Voltarei logo.

Quando ela retornou para seu lado, Cecily já tinha limpado, dado pontos no ferimento do homem e o enfaixava. Notou que as mãos de Cat estavam limpíssimas e, pouco depois, descobriu que ela havia mandado as outras mulheres fazerem o mesmo e também limpar bem os ferimentos. Assim, os homens que voltavam para as muralhas tinham curativos e ataduras limpos, rodeados por uma faixa alva de pele.

Enquanto o dia se arrastava, Cecily conseguiu ver Artan apenas poucas vezes e de relance. Chegou a avistá-lo ao lado de Angus, na muralha, ambos empenhados numa conversa um tanto vigorosa. A cena amainou o resto de sua mágoa provocada pela barganha do tio que tornava Artan herdeiro dele, graças ao casamento com ela. O marido podia ter apenas um pouco de sangue MacReith, mas, de várias maneiras, incluindo o amor que sentia por Glascreag, era um filho para Angus. Tudo que seu casamento fizera tinha sido torná-lo aceitável àqueles dispostos a reclamar da escolha de Angus, especialmente os poucos amigos de Malcolm. O fato de ela não ter sido avisada do acordo, como deveria, não era um grande crime. Na verdade, ver Artan e Angus unidos na defesa de Glascreag a fazia sentir que um erro havia sido corrigido, e que o homem certo fora posto ao lado do tio, herdeiro de tudo o que ele havia construído.

E que Fergus ameaçava destruir, refletiu, brava. Enraivecia-se ainda mais por ele ser tão ambicioso e cobiçar uma fortuna a que não tinha direito. O homem não sentia nada por ela. Não conseguia compreender por que ele não voltava para Dunburn e, usando os conhecimentos que possuía, arrancava a fortuna de Anabel e Edmund. Ele agia como uma criança mimada que não se importava com o que lhe fora negado, mas somente com o fato de alguém ter dito "não".

Ao ir verificar como estava o rapaz atingido pelas três flechas, ficou satisfeita por ele não ter sinais de febre. Apesar de Glascreag estar sofrendo o segundo ataque violento, apenas dois homens tinham morrido. Aproximou-se de um menino que havia sido ferido quando o pai o empurrara para perto da muralha, a fim de livrá-lo da nova saraivada de flechas que atingia o pátio. Enquanto Cat dava-lhe algo para comer, ela começou a cuidar dele. Rezava para que aquilo terminasse logo, com Fergus morto e seus homens fugindo o mais depressa possível.

— O homem tem um bom suprimento de armas — Angus comentou.

— Desconfio que isso se deva ao fato de ter se aliado a Maclvor. Embora bem preparado, algo vai faltar logo se ele não mudar de tática: homens — Artan disse.

— E Maclvor não lhe dará muitos se ele continuar a insistir nessa forma de lutar.

Ao olhar para os homens que recolhiam as flechas atiradas ao pátio pelas forças de Fergus, Artan surpreendeu-se por haver tão poucos mortos. Porém, o número de feridos era grande. Logo seria difícil preencher os espaços nas muralhas. A maneira de o oponente conduzir a luta o desfalcava de homens e armas, mas poderia levá-lo à vitória. Artan o observou, bem como a Maclvor e aos homens de ambos antes de dizer:

— Precisamos fazer alguma coisa com o suprimento de flechas que ele está usando contra nós.

— Ah, é? Como o quê? Pedir que ele as reparta conosco? — Angus ironizou.

— Algo parecido.

— Não. Você não pode ir até lá.

— Impossível continuarmos aqui na esperança de as flechas dele terminarem. Isso está nos custando muito caro. Depois do primeiro ataque, Fergus ficou um pouco mais cuidadoso quanto à vida de seus homens. Então, agora nós é que os estamos perdendo.

Mas vamos ficar sentados aqui à espera de quem enfraquece primeiro?

Angus praguejou e passou a mão pelos cabelos.

— Você acha que pode destruir os suprimentos dele?

— Eu os tenho observado todas as vezes em que ouso me levantar e sei onde estão escondidos. — Notou Angus semicerrar os olhos, sinal de ter despertado o interesse dele. — Cinco homens irão comigo tão logo o sol se ponha.

— E você voltará antes de o homem praguejar pela perda das flechas?

— Ele não saberá que estive lá antes de eu ter escapado — Artan vangloriou-se.

— Pois então, prepare-se.

No momento em que saía de Glascreag, Artan refletiu se não deveria ter avisado a esposa de seu plano, em vez de incumbir Angus de fazê-lo. Tarde demais. Apesar de ter se gabado, sabia estar se arriscando muito, mas achava que não tinha escolha. Havia escolhido homens capazes de se confundir com as sombras e caminhar no terreno acidentado sem fazer o mínimo ruído. A melhor providência para garantir as chances de sucesso.

Encontraram as carroças com os suprimentos, silenciaram os guardas e as incendiaram. Artan começou a ter certeza do êxito quando viram cinco homens dos Ogilvey gargalhando enquanto dois deles derrubavam duas mocinhas ao chão. Ao ouvir Ian praguejar baixinho ao seu lado, soube que elas eram de Glascreag. E, mesmo se não fossem, ele não as deixaria entregues à sorte tão cruel.

— Aquelas meninas são filhas do ferreiro — Ian murmurou.

— Por que não estão dentro das muralhas?

— O pai disse que tinham ido visitar os avós no campo e voltariam amanhã. Pobres meninas. O pai vai ficar desolado.

— Preparem-se para correr.

— Cinco deles, seis de nós. Não será preciso correr. Ao olhar para trás, Artan viu os cinco companheiros abaixados, com as espadas desembainhadas.

— Precisa ser feito em silêncio.

Embora lamentasse a matança, Artan admirou a eficiência de seus homens ao executá-la. Porém, as meninas começaram a gritar muito alto, e ele não se surpreendeu ao ouvir a aproximação de mais homens. Por apenas um momento, pensou que escapariam, mas, então, uma das mocinhas caiu. Recomeçou a gritar antes de Ian, o Loiro, mandá-la calar a boca. Os gritos orientaram os perseguidores.

Ao ver quantos homens vinham em direção a eles, Artan percebeu que não escapariam, a menos que algo detivesse os oponentes, nem que fosse por alguns minutos. Com gestos, ordenou a seus homens que pegassem as meninas e continuassem correndo. Mais uma vez, admirou a eficiência deles.

Então, desembainhou a espada e virou-se para enfrentar os inimigos. Havia mais de duas dúzias deles. Percebeu que Fergus finalmente tinha descoberto quantos homens eram necessários para derrubar sir Artan Murray.

Com um urro, ele os atacou, brandindo a espada furiosamente, o que provocou um certo pânico. Alguns homens chegaram a cair e, ao se erguerem, fugiram depressa. Continuou a atacar e, por um breve e glorioso momento, pensou que venceria ou, pelo menos, conseguiria escapar. Porém, algo o golpeou na parte de trás da cabeça. Ocorreu-lhe que realmente deveria ter contado a Cecily o que planejara fazer. No instante seguinte, mergulhou na escuridão.

 

― Ele fez o quê? — Cecily indagou ao olhar para Angus e os cinco homens logo atrás. — Saiu das muralhas e embrenhou-se no campo do inimigo? — Os seis assentiram com um gesto de cabeça. — Se ele escapar vivo de lá, eu mesma o matarei.

Ela gritava para que Angus pudesse ouvi-la acima do choro exaltado das garotas por quem Artan se sacrificara. Já ia mandá-las ficarem quietas quando ouviu o som de dois tapas, seguido pelo silêncio. Cecily olhou por sobre o ombro e viu Cat perto das duas.

— Obrigada — murmurou.

— Foi um prazer. Elas estavam me dando dor de cabeça.

Cecily respirou fundo para se acalmar e voltou a olhar para o tio e para os outros homens.

— Ele foi capturado? — indagou, sem poder pensar em outra possibilidade e, muito menos, mencioná-la.

Um deles, que vira Artan chamar de Ian, o Loiro, fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Fiquei para trás a fim de ver o que acontecia, pois sabia que meu senhor aqui haveria de querer saber tudo. Sir Artan fazia todos tremerem de medo e acho que ele os teria derrotado e escapado, se um covarde não se aproximasse por trás e lhe golpeasse a cabeça com um pedaço de pau. Então, ouviu-se o grito avisando sobre o fogo nos suprimentos de armas, e eles arrastaram sir Artan para longe.

Seu medo diminuiu um pouco.

— O que acha que farão com ele, titio?

— Tentarão uma troca. Você por ele...

Embora a idéia de voltar para Fergus e Dunburn a fizesse se sentir mal, Cecily murmurou:

— Muito bem — murmurou.

— Bem coisa nenhuma, menina. Não fique aí com esse ar de quem está prestes a ser enforcada. Não vamos entregá-la para o idiota.

— Se esse é o preço que ele pede para poupar a vida de Artan, estou disposta a pagá-lo.

— Não. O sujeito sem queixo quer se casar com você para obter o resto da fortuna que os desgraçados a quem você chama de tutores vêm usufruindo durante anos. Por isso, ele não poderá deixar seu marido vivo. Não, você terá de agir como se estivesse disposta a pagar o preço. — Angus passou o braço por seus ombros e começou a levá-la para fora da fortaleza. — Calculo que o idiota logo se aproximará da muralha a fim de propor a barganha. Você o ouvirá, protestara e até o insultará um pouco e, finalmente, aceitará. A troca tem de ser a vida de Artan por seu retorno, e não apenas a retirada deles. — Ao vê-la fazer um gesto afirmativo com a cabeça, ele prosseguiu: -— Isso é tudo o que você tem de fazer, Represente como se fosse obedecê-lo. Eu e os rapazes faremos o resto.

— Ou seja, o resgate de Artan?

— Esse é o plano. Mas não vou lhe contar como será, exceto por sua parte nele. Ouça bem o que terá da fazer para haver chance de tudo correr como queremos.

Enquanto seguiam para o topo das muralhas ao redor da fortaleza, Angus explicou-lhe sua parte. Precisava manter a atenção de Fergus nela, a fim de dar tempo a ele e a seus homens de irem até Artan e libertá-lo. Angus falava como se tudo fosse muito simples, mas Cecily sabia que muitas coisas poderiam dar errado. Afastou essa idéia, decidida a confiar no tio e em sua competência para agir. Só assim conservaria a sanidade.

— Cecily Donaldson, estou com seu amante!

Por um momento, ela quase desmaiou, mas a mão firme de Angus em seu braço a manteve ereta e lhe deu coragem. Aproximou-se da beirada da muralha e olhou para Fergus. O garanhão que ele montava não parecia mais tão branco é as roupas elegantes do homem já estavam bem sujas, o que devia desgostá-lo.

— Sou Cecily Murray agora, Fergus. O homem é meu marido e não meu amante. Portanto, sou lady Cecily Murray, esposa do futuro senhor de Glascreag.

— Isso deve ter posto o velho Maclvor a refletir, como eu esperava — Angus murmurou.

— Por que isso o preocuparia? — Cecily indagou.

— Maclvor é muito cauteloso. Sabe que ainda não nos venceu. Ele não vai querer matar meu herdeiro antes de sentar em minha cadeira no grande salão e beber minha cerveja. — Franziu a testa ao vê-la empalidecer. — Não desmaie agora, menina.

— Então, pare de falar em pessoas que poderiam matar Artan.

— Justo. Agora, preste atenção. O sem-queixo está ignorando Maclvor e quer lhe dizer alguma coisa.

— Eu poderia cuspir nele — resmungou, ignorando o sorriso do tio.

— Você era minha noiva — Fergus vociferou. — Fez promessas, e contratos foram assinados.

— Declarei ambos nulos e inválidos quando descobri que você queria me matar depois do casamento. Percebi que não queria me tratar com carinho e nem me proteger. Além do mais, deitou-se com Anabel, e eu não queria um marido adúltero.

— Ótimo, menina. O velho Maclvor é muito devoto e não tolera adultério — Angus afirmou.

Ao olhar para o homem grandalhão, barbudo, montado num cavalo logo atrás de Fergus, o corpo musculoso coberto de armas, Cecily achou difícil considerá-lo devoto. Também tinha dificuldade em se manter calma e fazer esse jogo de acordo com as instruções do tio.

— Você não podia decidir que não queria mais ser minha noiva — Fergus declarou depois de olhar para a expressão feia de Maclvor logo atrás. — Vou lhe dizer o que terá de fazer se quiser ver sir Artan Murray retornar vivo. Você irá se encontrar comigo, dentro de duas horas, e se entregar a meus cuidados. Só então, permitirei que ele retorne a Glascreag. Se você não vier ao meu encontro nesse tempo, a cada dez minutos que me fizer esperar, eu lhe mandarei um pedaço dele.

— Se ele continuar fazendo essas ameaças, acabarei enjoando — Cecily avisou o tio com voz trêmula.

— Nesse caso, incline-se sobre a muralha e acerte no idiota — Angus aconselhou, massageando suas costas.

— Que provas tenho de que você manterá sua palavra? — ela gritou.

— Você tem minha palavra de cavaleiro do rei. Cecily ia dizer que isso não valia nada quando Maclvor aparteou:

— Você tem a minha palavra, Angus. Está me ouvindo?

— Estou e a aceito.

Depois de ver Maclvor e Fergus cavalgarem para longe, Cecily olhou para o tio.

— Havia uma mensagem naquelas palavras, não havia? Maclvor estava lhe comunicando algo.

— Sim — Angus confirmou enquanto a ajudava a descer da muralha. — Ele me dizia já saber que a palavra de Fergus não vale nada. E, se aquele idiota sem queixo começar a pensar em não cumprir a palavra, o velho Maclvor o matará antes que ele complete o pensamento.

— Então, Maclvor não é um homem mau de fato?

— De jeito nenhum. Na maior parte do tempo, ele não causa problemas. A questão é ambicionar Glascreag como todos os senhores de seu clã que o antecederam. Ele não podia ignorar a chance de esse problema abrir para ele os portões daqui.

No momento em que chegaram ao chão, Cat correu para abraçar Cecily, que se deixou consolar por alguns momentos antes de se afastar. Respirou fundo, pois estava aterrorizada com a situação de Artan. Mesmo pressentindo que Maclvor o protegeria, não sentiu o medo gelado diminuir.

— É claro que Fergus não sabe que as esposas recém-casadas ficam num canto da cozinha até a batalha terminar — comentou, e sorriu de leve ao ouvir a risada de Cat.

— Esta é a minha menina corajosa. — Ela disse, pegando-a pelo braço e conduzindo-a rumo à fortaleza. — Agora, precisamos aprontá-la.

— O que quer dizer? — Cecily indagou.

— Vai usar luto, como se estivesse viúva. Isso será um tapa na cara do idiota. E teremos de esconder bem suas armas.

— Nunca usei uma — Cecily admitiu.

— Não se aflija. O sujeito não vai pensar que as carrega. Você não precisa saber usá-las. Basta chegar bem perto do sem-queixo e enfiar uma faquinha ou duas nele.

Cecily olhou para o tio e indagou:

— Tem mesmo um plano, não tem?

— Claro, menina. Não se preocupe. Tudo o que terá de fazer é convencer o idiota de que ele ganhou o jogo. Impeça-o de pensar que você faz parte da trama contra ele. Eu queria muito ter pensado num jeito de prevenir Maclvor.

— Por quê? Ele é aliado de Fergus.

— Não, Maclvor é aliado de si mesmo e, como eu já disse, não é um mau sujeito. Assim como ele sabe que não ganhará nada, exceto pesar, ao fazer mal a Artan, sei que prejudicá-lo não me ajudará em nada. — Deu de ombros. — Bem, meus rapazes sabem disso tão bem quanto eu, e Maclvor não é tão imbecil quanto parece.

Acho que ele perceberá logo o que está para acontecer e vai sumir ou, pelo menos, permitir que seus homens o façam. Agora, menina, vá com Cat e prepare-se para fazer sua parte.

Artan estremeceu e mexeu um pouco o corpo na tentativa inútil de encontrar uma posição menos desconfortável no chão. Tinham sido necessários muitos homens para levá-lo até ali, algo do que ele se orgulhava. Mas o preço fora alto. Seus vários ferimentos haviam sangrado bastante, enfraquecendo-o, além de exigirem cuidados sem demora, ou se tornariam fatais. Infecção e febre matavam mais homens do que espadas e flechas. Os maus-tratos sofridos nas mãos de Fergus haviam piorado seu estado. Tão logo tinham amarrado seus pés e suas mãos, prendendo-o à mesma estaca em que Cecily ficara, o verme criara coragem para se aproximar. Apenas a intervenção de Maclvor impedira o desgraçado de espancá-lo até a morte.

Ele encarara apenas Fergus quando ele e Maclvor tinham entrado na tenda. Mas a expressão de aversão no rosto do montanhês dera-lhe o primeiro lampejo de esperança. Apesar das tentativas para se apossar de Glascreag, Maclvor tinha noção de honra. A maneira de Fergus tratar um nobre certamente o desgostava. Aquilo não significava que ele o salvaria, mas desconfiava de que não haveria mais espancamentos no prisioneiro ferido e firmemente amarrado enquanto ele estivesse ali.

— É melhor você fazer o que prometeu — Maclvor sugeriu a um furioso Fergus.

— Dei minha palavra, não dei? Maclvor cuspiu aos pés dele.

— Isto por sua palavra, rapazinho. Há muita coisa nesta história que você não me contou. A moça não é uma rapariga das Terras Baixas que fugiu com um homem atraente, certo? Por um momento, pensei que estivesse vendo um anjo na muralha do velho Angus. Então, me lembrei de que Moira MacReith tinha se casado com um homem das Terras Baixas, um sujeito educado e instruído. A moça é sobrinha de Angus.

— E também minha noiva.

— O tio dela assinou os papéis? Ele, ao menos, sabia do compromisso? Não acredito.

— Isso não importa. Os tutores dela me concederam sua mão. São primos de seu pai e, portanto, a vontade deles tem precedência em relação aos desejos de algum parente das Terras Altas.

— Angus é tio e senhor dela, tenho certeza disso. Não conheço os tais primos das Terras Baixas. E a palavra deles não significa que o pai dela teria concordado com esse casamento. Eu só tenho â sua palavra de que ela é sua noiva.

O tom de voz de Maclvor deixava claro que ele não dava crédito à palavra de Fergus, nem nessa questão nem em todas as outras.

— Ela admitiu o compromisso minutos atrás. Você a ouviu.

— Também a ouvi dizer que, por motivos justos ela havia considerado as promessas sem validade.

— Um deles é o fato de ela ser minha esposa — Artan aparteou e praguejou quando Fergus lhe deu um pontapé. No instante seguinte, arregalou os olhos ao ver Maclvor apontar a espada para a garganta do sujeito.

— O que pensa estar fazendo? Somos aliados — Fergus esganiçou.

— Lamento dizer que, de fato, somos, pois empenhei minha palavra e costumo mantê-la. Entretanto, não haverá mais pontapés num homem ferido e amarrado a uma estaca como um animal. Ele é um nobre e o herdeiro de Glascreag. Duvido que você saiba a importância disso, pois é das Terras Baixas, mas ele também é um Murray. Não tenho a mínima vontade de me encontrar do lado oposto de seu clã e de todos os seus aliados.

Fergus dirigiu-se à mesinha e se serviu de vinho. Então, declarou:

— Não há mais necessidade de continuar aqui, Maclvor. Não maltratarei mais o homem e logo ele irá embora. Assim que Cecily chegar, o mandaremos de volta para Glascreag, pois retornarei a Dunburn e me casarei com ela.

— Como poderá fazer isso? A moça é casada com este homem — Maclvor argumentou.

— Raptada e depois unida a ele por um casamento informal. Isso pode ser facilmente anulado.

— Raptada, unida por um casamento informal e vigorosamente possuída muitas vezes — Artan aparteou.

— Esse último ponto não poderá ser ignorado. E, com todas as posses vigorosas, é bem provável que eu tenha gerado um filho em seu ventre.

— É melhor você controlar um pouco suas palavras — Maclvor o aconselhou baixinho ao ver Fergus empalidecer de raiva.

— Se você gerou ou não um filho nela, não me interessa — Fergus esbravejou, mal se contendo.

Ao lembrar-se de que ele pretendia se livrar de Cecily depois de algum tempo e se apossar de sua quantia de viúva, Artan sentiu a raiva crescer. Não podia acreditar que Angus fosse entregá-la àquele desgraçado, não depois de tudo que lhe contara. De repente, sentiu uma pequena chama de esperança brilhar. Sabia que Angus não a entregaria a Fergus e, no entanto, o homem tinha certeza de que ela viria. Isso queria dizer que Angus tinha um plano. Ao olhar para Maclvor, pensou se poderia se aproveitar da antipatia e da desconfiança que o homem já sentia por Fergus. Se conseguisse aumentá-las a ponto de ele lamentar ter feito a aliança, então Maclvor e seus homens iriam embora. Mas talvez ele estivesse preso pela palavra empenhada e ainda alimentasse esperança de se apossar de Glascreag. Mesmo assim, valia a pena tentar, pois a deserção de Maclvor ajudaria qualquer plano de Angus.

— Ah, claro — Artan murmurou. — Eu tinha esquecido seus planos para a moça. Você pretende deixá-la viver por uns meses e depois se livrar dela, a fim de receber sua bela quantia de viúva. Quanto tempo você planeja deixar Anabel e Edmund viverem antes de fazer o que será preciso a fim de requerer a posse de Dunburn em nome de sua falecida esposa?

— Você está louco! — Fergus exclamou e, depois, ofereceu um sorriso fraco ao carrancudo Maclvor. — Ele é capaz de dizer qualquer coisa para ficar com minha noiva e seu dote.

— Você também está ansioso para se apossar de ambos, desconfio — Maclvor afirmou. — Único motivo, a meu ver, para você se esforçar tanto para pegar de volta uma jovem que não o quer.

— É claro que seu dote é importante, mas você viu a moça. Que homem não haveria de desejá-la como esposa?

Maclvor deu de ombros. Foi até a mesinha perto da qual Fergus estava e serviu-se de vinho. Depois, puxou um banquinho e sentou-se. Embora se desapontasse por ele não ir embora, a esperança de Artan aumentou ao notar-lhe a profunda antipatia por Fergus, que parecia já ter perdido o aliado. Como o homem continuasse ali, precisava calcular como ficava a situação. Mais uma vez, tentou arranjar uma posição menos incômoda: Impossível refletir, pois estava muito fraco. Se ao menos pudesse descansar um pouco... Porém, afastou depressa a tentação. Tinha de ficar alerta para ajudar seus salvadores quando chegassem. E pressentia que seria logo. Apenas desejava que Cecily não viesse.

— Dentro de uma hora saberemos o quanto a moça se importa com você — Fergus disse, aproximando-se.

— Como você planeja verificar isso?

— Ela virá para ser trocada por você. Ficará sob meu domínio para que você viva. Caso goste mesmo de você.

— Estou muito fraco para fazer este jogo, rapazinho — Artan declarou, ciente de que o desdém em sua voz o enraivecia. — Se ela gosta ou não de mim não é o que importa.

— Não? O que importa então?

— Se é tola o bastante para acreditar que você manterá suas promessas.

Artan notou o quanto o homem desejava lhe dar um outro pontapé. Ciente de que estava mentindo, Fergus esperava que o aliado não percebesse, pois precisava dele até escapar em segurança para longe de Glascreag.

Artan olhou para os ferimentos e viu que finalmente tinham parado de sangrar. O contrário poderia ser perigoso. Esperava que o socorro chegasse logo, pois estava difícil manter a lucidez. Péssimo sinal. Sentia-se cansado e com frio, outros sinais ruins.

— Então o velho Angus o nomeou herdeiro? — Maclvor indagou.

Artan levou um instante para focalizá-lo. Notou o olhar observador e calculou que Maclvor sabia o que ele estava sentindo. Talvez estivesse tentando ajudá-lo a manter-se consciente. Se ao menos o ajudasse a encontrar uma posição melhor e lhe desse algo para beber, pensou, mas não pediu nada ao responder:

— Sim. Você sabe que, por algum tempo, ele teve de considerar Malcolm como seu herdeiro, já que o rapaz tem um laço sangüíneo forte com Angus.

— Deve ter sido horrível para o velho Angus chamar aquele choramingas imprestável de herdeiro. Porém, laços sangüíneos são importantes. Naturalmente o seu ficou bem forte depois que se casou com a moça.

— Muito mais. Afinal, ela é sobrinha de Angus.

— Solução muito boa para garantir tudo e se livrar daquele fraco. Calculo que você não tenha nada do que reclamar.

— Não, claro.

Artan não conseguiu disfarçar a surpresa quando Maclvor encheu uma caneca de vinho e a levou até ele.

— O que está fazendo? — Fergus questionou ao vê-lo ajudar Artan a beber.

— Garantindo que o rapaz não morra depressa. Um homem ferido precisa beber alguma coisa.

Artan sofreu dores tão fortes ao ser erguido um pouco para sorver o vinho que conseguiu apenas agradecer com o olhar. Enquanto tentava se recuperar da ajuda recebida, um jovem dos Maclvor entrou na tenda. Após um olhar para ele, seguido de um feroz para Fergus, trocou algumas palavras rápidas com seu senhor. Não conseguiu ouvir o que eles diziam. Um instante depois, o rapaz foi embora sem se dirigir a Fergus e, muito menos, curvar-se em sinal de cortesia. A antipatia de Maclvor pelo homem com quem tinha se aliado obviamente contaminara o clã inteiro.

— Então, você foi informado sobre a sobrinha de Angus e a pediu em casamento? — Maclvor perguntou ao voltar a sentar-se à mesinha. — Encontrou-a, casou-se com ela e tornou-se herdeiro de Angus?

— Mais ou menos isso. Angus me fez acreditar que estava à beira da morte — Artan respondeu.

— Não faz muito tempo que você partiu, e Angus parece forte como sempre foi.

— Ele se recuperou — Artan disse e tentou sorrir quando Maclvor gargalhou.

— Isso tem alguma importância? — Fergus indagou numa voz áspera e furiosa.

— Para mim, sim. Não irei correndo para as Terras Baixas quando isto terminar. Preciso ficar aqui em minhas terras, que têm os limites nas de MacReith — Maclvor respondeu. — É sensato compreender seus vizinhos, especialmente se muitos deles são homens muito bem armados.

— Pois entretenha-se com seus mexericos. Tão logo eu tenha Cecily de volta, irei embora daqui e suas pequenas intrigas não me interessarão mais.

Artan tinha a impressão de que Maclvor estava fazendo mais do que bisbilhotar. O instinto lhe dizia que o homem tentava tomar uma decisão e queria o máximo possível de informações. Que decisão seria e como poderia ajudá-lo, ele não tinha mais condições de decifrar. Assim sendo, limitou-se a responder às perguntas, tomando cuidado para não revelar nada além do que Fergus chamara de mexericos. Contudo, no fim da conversa, teve certeza de que Maclvor havia se inteirado bastante da ligação de Cecily com Angus e do quanto o tio dela desejara o casamento deles. Não sabia por que isso importava ao homem e não tinha a energia e a privacidade necessárias para descobrir.

Um dos homens de Fergus entrou na tenda cautelosamente, sem parar de olhar por sobre o ombro.

— Sir Fergus, lady Cecily está chegando — avisou.

— Ótimo. Pode ir. — Fergus virou-se e ouviu seu homem tossir para chamar sua atenção.— Vá embora!

— Mas senhor, acho... bem... preciso lhe falar em particular.

— Mais tarde.

— Então não vai adiantar mais! Penso que...

— Não exijo que você pense! Saia daqui!— Ao ver que o homem ainda hesitava, Fergus atirou-lhe uma caneca, forçando-o a obedecer.

Artan não podia ver a expressão de Maclvor, pois o homem mantinha o olhar baixo. Algo que Fergus desconhecia estava acontecendo, mas ele não conseguia raciocinar bem a fim de concluir o que era. Estava enfraquecendo depressa para se importar com intrigas e isso o afligia. Com o olhar na entrada, ficou à espera de Cecily, desejando que ela não chegasse sozinha.

— Por que todos os Maclvor estão sentados fora do acampamento? — Cecily perguntou a Bennet, que a levava até a tenda de Fergus.

— Um mistério, menina — ele respondeu e, então, sorriu. — Não importa o motivo, mas acho que é para benefício nosso.

— Espero que esteja certo. Não sei qual é o plano de meu tio, porém creio que qualquer vantagem o ajudará a realizá-lo. — Franziu a testa à entrada da tenda quando dois dos Ogilvey pararam Bennet, o desarmaram e não o deixaram entrar. — Ele não está mais armado, então por que impedi-lo de me acompanhar?

— Só a senhora — disse um deles.

— Entre, menina. Não tem importância. Não esperávamos mesmo que eles me permitissem entrar — Bennet afirmou.

Mais uma vez desejando que Angus tivesse explicado o plano para ela, Cecily entrou na tenda. Seus olhos levaram um instante para se acostumar à penumbra e, quando o fizeram, ela procurou Artan. Ao vislumbrá-lo, temeu desmaiar e arruinar o plano do tio. Ele estava com os pés e as mãos amarrados, preso a uma estaca. Apesar da posição do corpo, meio encolhido e de lado, ela podia ver que ele sofrerá vários ferimentos e pancadas. Fez menção de se aproximar, mas um leve movimento da cabeça dele a fez recobrar o bom senso. Cecily dirigiu a atenção a Fergus e o apanhou observando-a. Se tivesse corrido para o lado de Artan como queria e protestado contra seu estado, ele pagaria muito caro. Teria mantido a atenção de Fergus nela como Angus queria, mas às custas de Artan.

— Vejo que sua hospitalidade para com um visitante continua cortês como sempre — ela ironizou numa voz arrastada e teve certeza de ouvir Maclvor rir.

— O homem não é um visitante, e sim um prisioneiro — Fergus contestou.

— Um prisioneiro que você concordou em soltar tão logo eu o procurasse. Pois aqui estou. Portanto, solte-o.

— Não tenho certeza de que devo fazer isso. Pelo menos não até estarmos longe das terras dos MacReith.

Ela mantivera uma leve esperança de que ele cumprisse a palavra e o fizesse sem tentar nenhuma artimanha.

— Você quer dizer que está voltando atrás em sua palavra?

— Não, claro — ele declarou tão depressa que Cecily percebeu que mentia. — Eu disse que o soltaria, mas não quando.

Ela arriscou um olhar para Maclvor e o viu balançar a cabeça para a frente como se acabasse de receber uma resposta ou tomasse uma decisão.

— Ora, Fergus, você sabe que isso não passa de uma trapaça desprezível sua, pois o acordo estipulava a liberdade imediata de sir Artan — Maclvor protestou.

— Não foi culpa minha que sir Angus não tenha sido astuto o suficiente para especificar os detalhes.

— Ora, acredito que você tenha feito o acordo com a moça aqui — Maclvor disse ao levantar-se devagar e se encostar à mesinha.

— Ótimo — Fergus esbravejou. — Nesse caso, ela é quem não foi astuta o suficiente para acertar os detalhes. — Olhou para Cecily. — Por que está vestida como se alguém tivesse morrido?

— Não foi alguém, e sim alguma coisa. Estou de luto por todos os meus sonhos perdidos — Cecily respondeu numa voz suave e suspirou.

— Será melhor que você não tente me enraivecer.

— Existe muito pouca coisa que alguém faça e que não o enraiveça, Fergus.

Cecily percebeu que, de fato, conseguia prender a atenção dele. Enraivecê-lo. Fazia isso com muita eficiência. Contudo, esperava que Angus chegasse logo, pois irritar sir Fergus Ogilvey era o caminho mais curto para apanhar. E duvidava que Maclvor tentasse impedi-lo. Embora agredi-la o mantivesse ocupado, ela preferia que o tio chegasse primeiro.

— Parece que Maclvor decidiu já ter agüentado o sem-queixo tempo demais — Angus comentou ao ver os homens dele sentados fora do acampamento de Fergus.

Ian, o Loiro,também olhou em volta e concordou:

— É verdade, e sei que eles nos viram chegar e não fizeram nada.

— Mas onde estará Maclvor? — Angus conjeturou.

— Talvez ainda no acampamento. Ele lhe deu a palavra de que Artan não seria morto. Deve estar por perto para impedir que isso aconteça e manter a promessa.

— É provável que esteja fazendo isso. Também parece que ele imaginou nosso plano de vir buscar Artan pessoalmente e, por isso, pôs seus homens fora do caminho.

— Sem dúvida algo bom, mas ele deixou todos os das Terras Baixas para enfrentarmos.

— Há falhas na defesa deles, rapaz. Será fácil entrar e tirar Artan e Cecily de lá.

— Sim. Percebi que a moça não queria vir ao encontro do desgraçado sem queixo, porém não ia deixar sir Artan correr perigo. Ela é muito corajosa.

— Ah, é mesmo.

— Senhor, o que está fazendo? — Ian indagou assustado, segurando Angus pelo braço ao vê-lo se aproximar dos Maclvor.

— Confie em mim, rapaz. Eles não vão fazer nada para nos barrar. Conheço bem o velho Maclvor. Somos adversários há anos. Ele não quer ter nada a ver com essa confusão e calcula que estamos vindo pegar o rapaz. Como ficar fora disso e manter a palavra dada? Acredito que tenha mandado seus homens ficarem aqui e nos ignorarem. Afinal, se por algum milagre o sem-queixo vencer, haverá muitas indagações, e os Maclvor dirão que nunca nos viram.

— Muito astucioso. Mas o senhor tem certeza de que é isso mesmo?

— Tanta a ponto de atravessar o acampamento em vez de seguir escondido pelas sombras.

Angus disfarçou um sorriso quando Ian praguejou baixinho, embora o acompanhasse. No momento em que surgiram num espaço aberto, os Maclvor, sentados em volta de fogueiras, baixaram as cabeças e não desviaram o olhar do chão. Angus ficou impressionado com a artimanha de Maclvor. Mesmo o menos mentiroso deles seria capaz de encarar um homem e garantir não ter visto um único MacReith, Ele seguiu rumo ao outro lado do acampamento, com lan ao seu lado, olhando para os homens sentados com as cabeças abaixadas.

— Não posso acreditar — lan murmurou quando chegaram ao outro lado. Os Maclvor ergueram as cabeças, mas não olhavam, nem para a esquerda nem para a direita.

— Isso foi muito astuto. Nunca achei que Maclvor fosse tão inteligente. Subestimei o pobre sujeito — Angus admitiu.

— O pobre sujeito que vem tentando lhe roubar Glascreag a vida inteira e deve estar ensinando os filhos a fazerem o mesmo.

— Imagino que sim. Mas isso tem acontecido desde que os primeiros MacReith e Maclvor assentaram-se nestas colinas.

Quando se aproximaram da tenda, Angus viu Bennet do lado de fora, conversando com dois dos Ogilvey. O rapaz podia fazer amizade com o próprio Satã, pensou aborrecido. Estava considerando o que teria de fazer para lembrá-lo de sua parte no plano quando Bennet afastou-se para o lado da tenda. Não conseguia entender o que ele dizia, mas aquilo serviu para que os dois guardas o seguissem.

Estava ficando velho para esse tipo de ação, pensou, enquanto esperava que Bennet reaparecesse.

Não tinha mais paciência para isso e ficaria aliviado se entregasse, logo, tais deveres a Artan. Já ia ver o que tinha acontecido com Bennet quando o rapaz surgiu, acompanhado de outro MacReith, ambos usando os gibões dos guardas.

Foi então que Angus notou uma pequena falha no plano. Os guardas estavam vigiando um MacReith e, agora, iria parecer que tinham perdido o prisioneiro. Um olhar rápido pelo acampamento revelou que ninguém estava prestando atenção, e ele respirou aliviado. Sentia necessidade de agir depressa, pois poderia haver outras falhas no plano que ele não tivesse previsto. Queria Cecíly e Artan dentro das muralhas de Glascreag antes de alguém perceber.

Conservando-se nas sombras, Angus, seguido por Ian, aproximou-se de Bennet e indagou baixinho:

— Quem está na tenda?

— Artan, Cecily, Fergus e Maclvor.

— Bem, isso vai deixar tudo mais interessante — Angus comentou, fazendo Bennet rir. — Quando eu assobiar...

— É o sinal para sairmos daqui. Sim, eu me lembro. Artan pode precisar de ajuda para chegar a Glascreag.

— Ele está ferido?

— Está, mas com o olhar rápido que pude lançar ao interior da tenda não consegui saber onde nem com que gravidade. Ele está no chão, com as mãos e os pés amarrados e preso a uma estaca.

— Mal posso esperar para matar aquele maldito sem queixo.

— Boa sorte.

Cecily olhou para Artan e não gostou de seu aspecto e nem de como parecia quase inconsciente. Dirigiu-se a Fergus:

— Você não cuidou dos ferimentos dele. Qualquer pessoa trataria melhor um cachorro.

— Ele pode esperar. Estará de volta a Glascreag antes que piorem, porém não precisará mais cuidar deles.

Era uma afirmativa sinistra e, pelo canto dos olhos, Cecily viu que Maclvor ficava tenso. Fergus parecia não perceber o perigo de dizer o que queria. Maclvor havia dado sua palavra a Angus de que Artan voltaria logo e vivo para Glascreag. O que Fergus dizia indicava que não permitiria que ele retornasse tão cedo e, muito menos, vivo. Ao contrário daquele verme, o montanhês era um homem de palavra e ficou furioso ao ouvir o aliado declarar que não pretendia cumprir o acordo.

— Os MacReith o teriam tratado muito melhor, Fergus, e você sabe disso muito bem — Cecily afirmou.

— Isso não quer dizer que eu tenha de ser tão idiota quanto eles. Este homem me ultrajou.

— E você não me ultrajou? Planejava se casar comigo por causa de meu dote, me possuir até se cansar de mim e, então, me matar, a fim de se apossar de tudo que meu pai me deixou. E por que, mesmo sabendo que meus tutores mandaram matar meu pai e meu irmãozinho, além de terem desejado ardentemente que eu morresse com eles, não me disse nada? E também saber de minha herança e não me contar?

— Você não passa de uma mulher e não precisava saber nada disso.

— A herança é minha, e você manteve silêncio porque queria se apossar dela. Mas digamos que, como mulher, eu não devesse me preocupar com ela e o abutre que a cobiçava. Apesar de nosso noivado ter sido curto, você não conseguiu ser fiel a mim. Pior, quebrou suas promessas em minha própria casa.

— Fiel? Que homem o é, criatura ignorante?

— Meu marido me prometeu fidelidade.

— Palavras bonitas para poder levantar sua saia.

— Não, Artan não tem muito jeito para usá-las e é um homem sincero. Ele não cometerá adultério com uma parente minha e jamais tentará violentar uma garotinha.

— Ela estava disposta e parece mais nova do que é.

— E as contusões que ela sofreu foram causadas por pancadinhas amorosas? — Cecily meneou a cabeça. — Não consigo acreditar que quase me casei com você. Pensei que tivesse uns poucos atributos escondidos bem lá no fundo. Como fui tola. Jamais desconfiei que você fosse o canalha ordinário que é. Apenas achei que não passasse de uma criatura enfadonha.

Ela ouviu a já familiar risadinha e percebeu que vinha de suas costas. Maclvor tinha conseguido, aos poucos, dar a volta pela tenda e ficar em pé perto de Artan. Depois de uma pontada de pânico, ela sentiu que ele não representava uma ameaça. Fergus, entretanto, era uma, refletiu ao tornar a observá-lo.

Onde estaria Angus? Parecia-lhe que trocava insultos com Fergus havia horas. Embora soubesse que o tio precisava agir com cautela, e que isso exigia tempo, começava a ficar nervosa.

Outro olhar para Artan só serviu para aumentar sua tensão. O aspecto dele era péssimo. Apesar de ele fitá-la, os olhos um pouco vidrados a assustaram, bem como seu silêncio.

Ao olhar com mais atenção, viu marcas de sangue no chão, em volta do corpo dele, o que a enregelou de medo. Os ferimentos tinham ficado sem cuidados por tempo demais e estava claro que ninguém havia tentado parar o sangramento. Isso diminuiria as chances de recuperação. Com esforço, abafou seus piores temores ao pensar em como ele era forte e saudável. Tudo de que precisava era voltar para Glascreag e receber os cuidados necessários, garantiu a si mesma.

— Se pretende honrar sua palavra, Fergus, você deve mandar Artan já para Glascreag, ou cuidar de seus ferimentos — ela disse.

Depois de olhar para Artan, Fergus voltou a fitá-la.

— Ele ainda respira, o que é mais do que se pode dizer sobre os cinco homens que ele matou antes de ser capturado.

— Esses homens tentavam violentar duas garotas.

— Camponesas despudoradas. Elas gostam de protestar, na esperança de ganhar umas moedas por seus favores. Você viveu protegida em Dunburn e ignora como o mundo é. E seu cavaleiro foi um tolo ao se deixar apanhar por causa de duas rameiras que temiam ter de se entregar de graça.

— Sim, você é mesmo, Fergus, o porco nojento que suas flâmulas indicam.

— É um porco-montês! — ele gritou.

— Não vejo diferença.

— Nem eu, menina.

O som da voz de Angus provocou um alívio tão grande que Cecily estranhou não cair no chão. Depressa, obedeceu-lhe o gesto para se aproximar dele. Ansiava ficar junto a Artan, mas o tio não podia proteger duas pessoas enquanto enfrentava Fergus. A única coisa a fazer era andar ao lado dele até se aproximar de Artan, ainda sob a proteção de Angus. No momento em que ele desse fim à ameaça representada por Fergus, ela alcançaria o marido em poucos passos.

De repente, lembrou-se de Maclvor e o localizou. Ele estava em pé ao lado de Artan, empunhando a espada. Seu sangue gelou nas veias. Olhou para o tio e viu que ele, ciente da atitude do homem, não se mostrava preocupado. Então, tentou se acalmar.

— Você é um idiota ao vir aqui, MacReith — Fergus declarou.— Conseguiu passar por meus guardas, mas jamais sairá. Ainda mais se tiver de carregar sir Artan.

— Percebo. Vejo que você lhe fez muito mal e tornou-se uma grande irritação.

— Só vim buscar o que é meu. Cecily Donaldson.

— Ela não é sua. Acho que nunca foi e jamais teria sido. Você e àqueles dois rebotalhos de gente roubaram muito de minha menina. Mas isso vai terminar aqui.

Ora, pretende lutar comigo, seu velho?

Fergus não tinha a inteligência de uma mosca, Cecily pensou ao ouvir o tom caçoísta e a alusão à idade de Angus. Se prestasse atenção, veria que seu tio ainda era forte, talvez mais do que ele, e bem capaz de lutar contra idiotas. Fergus deveria estar com medo, e não se sentir tão superior e seguro.

— Ele o chamou de velho, Angus — Maclvor murmurou.

— Eu sei, mas já ouvi coisas piores.

— Vai matá-lo?

— Estou bastante tentado a fazê-lo.

— Ah, ele é um desperdício como cavaleiro, com certeza.

Chocado, Fergus olhou para Maclvor.

— Você mudou para o lado deles? Não existe nada nestas terras além de traição? Achei que era homem de palavra, pois me ensurdeceu ao alegar isso durante horas.

— Estou do seu lado, rapazinho. Você é que não tem a intenção de manter sua palavra. Não me ouviu lá nas muralhas? Dei a minha palavra para Angus de que sir Artan voltaria vivo. Tenciono mantê-la. Se isso quer dizer abandonar o seu lado, paciência.

Fergus deu um passo para a saída, mas deparou-se com lan.

— Não, rapazinho, você não encontrará socorro lá fora, onde dois de nós mantêm guarda.

Cecily pôde ver o medo dominar Fergus. Ele dava-se conta de que não tinha aliados e estava preso na própria tenda por Angus e seus homens. Se ele não pretendesse matá-la para satisfazer a cobiça e a Artan por pura raiva, talvez se condoesse do facínora. Porém, não queria vê-lo ser morto. Infelizmente, estava tão presa ali quanto ele. Bem, era esposa de um guerreiro montanhês e, sem dúvida, veria homens serem mortos de tempos em tempos. O melhor seria enfrentar o choque logo.

— Então, você pretende me assassinar, não é? — Fergus indagou.

— Não, rapaz —- Angus respondeu. — Eu não gostaria de nada além de matá-lo pelo que fez ao meu rapaz ali e pelo que pretendia fazer com a menina dele. Mas preciso levar os dois para Glascreag o mais depressa possível.

— Ela não é a menina dele. Ela é minha!

— Você não tem a mínima noção de ter perdido, não é? Aceite isso. Preserve sua vida e vá embora. O dinheiro não tem tanto valor.

— É uma fortuna, velho idiota, e a moça tem de pagar pela humilhação que me infligiu ao fugir com esse montanhês durante as festas de nossas bodas.

— Você não poderá gastar uma fortuna se o seu cadáver ficar apodrecendo nestas terras, não acha?

— Não, mas também não posso deixar que os dois vençam. Planejei tudo cuidadosamente.

— Volte para casa, Fergus. Se é uma fortuna que cobiça, arranque-a das mãos de meus tutores. Eles estavam dispostos a me entregar a você, bem como minha fortuna, apenas para mantê-lo calado. Você ainda pode fazer esse jogo com eles, mas me deixe fora disso — Cecily o aconselhou.

— Não! Não! — ele gritou, balançando a cabeça, dando a impressão de ter enlouquecido. — Fui humilhado. Não vou deixar que esse bárbaro me vença!

Pulou em direção a Artan enquanto desembainhava a espada. Angus, Cecily e lan moveram-se ao mesmo tempo e se chocaram. Quando Angus conseguiu se desvencilhar, Fergus já erguia a arma sobre Artan. Cecily não conseguia se mover nem falar, apavorada por estar prestes a ver o marido ser assassinado.

Nesse momento, Maclvor mexeu-se e rapidamente solucionou o dilema.

 

A cabeça de Fergus caiu aos pés de Cecily. Ela notou os olhos arregalados e pensou em como ele parecia surpreso. Imaginou por que não se sentia enjoada e concluiu que estava em estado de choque. Num minuto, parecia que Fergus conseguiria matar Artan sem que ninguém pudesse impedi-lo; no seguinte, Maclvor estava em pé, com a espada ensangüentada, e a cabeça de Fergus roçava a ponta de seus sapatos enquanto o corpo jazia ao lado de Artan.

— Está tocando meus sapatos — ela murmurou. Angus carregou-a para mais longe e colocou-a no chão.

— Pronto, menina. Agora, respire fundo várias vezes. Ela obedeceu e viu o tio e Ian levarem o corpo de Fergus para longe de Artan, a quem, depois, começaram a soltar. Quando Maclvor, calmamente, limpou a espada no gibão de Fergus, sem se importar que a peça estivesse num corpo sem cabeça, ela concluiu que jamais entenderia os homens. Fergus merecia morrer, e ela não sentia nem remorso nem tristeza em relação ao fato. Apenas espantava-se com a rapidez e a frieza do desfecho e com a maneira como nenhum dos homens se importava em ter o corpo, dividido em duas partes, ali na tenda.

— Como vamos explicar a morte dele? — Angus perguntou a Maclvor.

— Bem, se eu tiver de explicar, direi que você o matou.

— Justo. Eu estava pronto para liquidá-lo. Mas o que você quer dizer com se?

— Não tenciono estar aqui quando os homens dele descobrirem o corpo.

— Imaginei isso. Todos os seus, sentados fora do acampamento, me fizeram pensar que você planejava escapulir daqui. Foi o primeiro passo para isso, não?

— Sim. Eu queria ter ido antes, mas dei minha palavra de que o rapaz iria vivo para casa e fui sincero. O idiota me fez saber que não pretendia cumprir a dele. Sujeito terrível.

— Sem dúvida. De certa forma, não creio que os homens dele vão clamar por vingança. Nem a família.

— Também acho. Um deles tentou avisá-lo de que meus homens tinham saído do acampamento, e o idiota não lhe deu ouvidos e nem permitiu que ele falasse. Diante da insistência, atirou uma caneca na cabeça do pobre que, claro, sumiu. Talvez se Fergus tivesse aprendido a ouvir os outros, não estaria morto agora. Isso me faz pensar em algo.

— Em quê?

— Na maneira como eu e todos os senhores Maclvor que me antecederam cobiçamos Glascreag.

— Balançou a cabeça. — Veja com quem me aliei só para ter a chance de tomá-la de você. Comecei a pensar que isso se tornou uma doença nossa e, na verdade, nem me lembro por que acreditamos ter um motivo para isso.

— Não sabia que você precisasse de um.

— Ah, mas isso está errado, não acha? Bem, leve o rapaz para casa, pois ele precisa de cuidados. O desgraçado não só se recusou a tratar dos ferimentos como também a lhe dar água. Pior, peguei-o espancando-o, amarrado daquele jeito. Pus um fim nisso e lhe dei vinho. Ele é um excelente guerreiro e será um senhor muito melhor do que o matreiro Malcolm. Não foi certo tratá-lo como se fosse um ladrão ordinário.

Artan gemeu de dor quando Ian ergueu-o do chão e colocou-o sobre os ombros. Cecily pegou um cobertor para que o carregassem, tão logo houvesse mais homens para ajudá-los. Ser levado nos ombros de Ian poderia fazer com que o sangramento recomeçasse, e ele já perdera muito sangue, o que o enfraquecera demais.

Para surpresa sua, o corte que Artan tinha feito na lona para salvá-la continuava ali, mas tinha sido fechado com uma cordinha. Angus o reabriu o máximo possível para que Ian passasse com Artan e, depois, os acompanhou. Estava prestes a sair quando se lembrou de que Maclvor recebera apenas uma palavra, resmungada por Angus, de agradecimento. Virou-se e o viu logo atrás.

— Obrigada, milorde — murmurou. Ficou nas pontas dos pés e deu um beijo no pequeno lugar daquele rosto que a barba não cobria. Ouviu, então, o assobio de Angus, sinal para que todos rumassem para casa.

Parecendo confuso, Maclvor disse:

— Avise aquele velho tolo que lhe dou cinco minutos. Ela assentiu com um gesto de cabeça e já ia sair quando Angus a puxou para fora pelo braço.

— Eu só queria agradecer a Maclvor. Ele mandou dizer que lhe dá cinco minutos. — Ao ver que Bennet e outro rapaz se juntavam a eles, deu o cobertor a Angus.

— Use isto para carregar Artan. Acho que será melhor.

— Tem razão — o tio concordou e, com a ajuda dos outros, passou Artan dos ombros de Ian para o cobertor.

— Você vai ter muito trabalho para tratar disto tudo.

— E meu medo — Cecily murmurou ao começar a seguir os quatro que levavam Artan. Quando viu as silhuetas de muitos outros rumando para Glascreag, deu-se conta de que Angus havia trazido um bom contingente e indagou: — Por que tantos homens, titio?

— Para o caso de haver uma luta.

— Acha que haverá retaliação pela morte de Fergus? -— Não. Maclvor porá a culpa em mim se precisar, mas saberá deixar claro para todos que Fergus morreu porque tentou matar um homem ferido, amarrado e preso a uma estaca. Levando-se em consideração o tipo de homem que era, você acha que muitas pessoas lamentarão sua morte?

— Não. Conheci alguns de seus parentes e sei que vai haver uma briga feia para ver quem ficará com a melhor parte dos bens dele.

— Um homem colhe o que semeou.

Isso parecia cruel, mas era verdade, ela refletiu, enquanto se esforçava para acompanhar os passos dos outros. Quando teve certeza de que cinco minutos já haviam passado, ficou à espera de gritos de alarme.

Como não os ouvisse, achou triste a falta de reação. Seu pesar não era por Fergus, e sim pelo desperdício de uma vida, provocado por ele mesmo.

No instante em que se viram dentro das muralhas de Glascreag, Cecily assumiu o comando. Ordenou que levassem Artan depressa para o quarto. Ajudada por Cat, despiu-o e lavou-o. Quase chorou como uma criança ao constatar o estado deplorável daquele corpo grande e forte. Também afligiu-se ao vê-lo tão fraco e inconsciente, mas, por um lado, ficou aliviada por poder fazer os curativos sem que ele sofresse.

Havia três cortes de espada, e todos precisavam de pontos. Apenas um era muito sério. A captura e as pancadas de Fergus o tinham ferido da cabeça aos pés. Ficou surpresa por não encontrar fraturas, pois achava que as costelas tinham sido alvo dos pontapés. Por isso, enfaixou-as bem. Com a ajuda de Cat, até conseguiu fazê-lo engolir umas colheradas de caldo de carne.

— É um belo homem que a senhora tem aí — Cat elogiou.

― Concordo plenamente, mas se você não olhar para o outro lado da próxima vez, terei de matá-la. — Sorriu ao vê-la rir. — Mas a cor dele não está boa.

— Não mesmo. Deve ter perdido muito sangue.

Cecily queria ficar ao lado dele, porém Cat não permitiu e insistiu que ela fosse tomar banho, trocar de roupa e se alimentar. A mulher tinha razão ao afirmar que, apesar de inconsciente, ele estava bem cuidado e confortável. Ela precisava atender às próprias necessidades antes de se acomodar ao lado de Artan para passar o que poderia ser uma noite longa e aflitiva. Talvez muitas.

— Como está o rapaz? — Angus perguntou no instante em que Cecily sentou-se à mesa do grande salão.

— Continua inconsciente como ficou durante o tempo em que o lavamos, demos os pontos e o enfaixamos — ela respondeu enquanto se servia. —- Embora eu me sentisse aliviada por ele não perceber o que estava sofrendo, não gostei. Ele devia ter se mexido um pouco, pelo menos. Rezo para que seja um sono natural e que ele se restabeleça dessa maneira. Cat está sentada ao lado dele agora.

— As poucas vezes em que Artan ficou doente, ou sofreu ferimentos graves, dormiu muito e sempre com um sono pesado. E sem ajuda de qualquer poção — Bennet comentou.

— Ah, fico mais aliviada. Nada como um bom repouso para ajudar na cura de uma pessoa. E até a recuperar a perda de muito sangue — ela afirmou, numa tentativa de convencer tanto aos homens quanto a si mesma. — Apenas o corte de espada nas costas e que atingiu a lateral do corpo foi grave, mas está limpo e não sangra mais. As pancadas de Fergus o deixaram coberto de contusões. Mas não há fraturas, nem de costelas, embora eu as tenha enfaixado bem.

— Notando o sorriso de Bennet, perguntou: — O que você está achando divertido?

— Você é curandeira, não é?

— Bem, sou. Foi só o que me permitiram aprender. Apenas porque convenci Anabel de que detestava isso, e ela achava uma atividade humilhante, própria para aldeãs. —- De repente, ela sentiu medo e indagou:

— Você acha que Artan não vai aprovar? Cat disse que muitas mulheres de seu clã são curandeiras.

— É verdade. Artan vai achar excelente. O engraçado é saber que ele percorreu uma grande distância e acabou encontrando uma jovem tão parecida com as que ele conhece desde criança.

— Cat não para de elogiá-la, menina — Angus disse. — E a mãe do jovem Robbie só falta colocá-la num altar.

— Ele é o rapaz com os três ferimentos de flecha?

— É, sim. Está muito fraco, claro, além de sofrer dores. Mas não há o mínimo sinal de febre e infecção. Mesmo a mãe dele, que não é curandeira, podia ver como dois dos ferimentos podiam ter matado seu filho único. Porém, o melhor de tudo é Nell, a menina que continua ao lado dele, ter convencido o pai severo a deixá-los se casar tão logo Robbie se restabeleça. Para ele, um rapaz pobre, cujo único recurso é empunhar armas, é um privilégio uma união como essa. Ela contará com um baú cheio de roupas e, no fim, herdará dez xelins e a fazendola do pai, bem como os animais de criação. O melhor, porém, é que eles se gostam desde crianças.

Cecily teve de sorrir. O tio falava como se tivesse ajudado que se realizasse o casamento, que, de fato, era muito bom para um rapaz pobre. Ela desconfiava que o trabalho dele na defesa de Glascreag e os ferimentos graves sofridos também tinham influenciado o pai da moça a dar sua permissão.

— Temos de decidir o que fazer a respeito de Edmund e Anabel — Angus disse, mudando de assunto.

— Eu sei, titio, mas não faço idéia do quê. Fergus não me contou detalhes de como descobriu os crimes deles. Anabel parece ter feito ou dito algo para levantar suspeitas, mas não foi esperta o bastante para negar a veracidade. Talvez eles se sintam seguros com a morte de Fergus, mas poderão fugir. Nunca fui próxima das filhas de Anabel, pois não tínhamos permissão para conviver. Porém, elas nunca me fizeram mal algum. Tudo o que penso agora é que elas não deviam estar usufruindo do que é meu, no mínimo porque isso entristeceria meu pai. O problema é provar que aquilo me pertence.

— Tem de haver algo registrado em algum lugar, menina. E disso que precisamos. Com o documento em mãos, poderemos agir contra eles e tirar os sanguessugas de suas costas.

— Eu preferia que não tivesse posto essa idéia na minha cabeça. Vou ter de me esforçar para lembrar quem eram os amigos de meu pai. Meg talvez saiba, e ela logo estará aqui — Cecily disse num tom meio aéreo.

— Meg? A amiga e dama de companhia de minha Moira?

— Ela mesma. Também foi minha ama-seca e, depois, de Colin.

— Uma excelente mulher, se bem me lembro. Ainda é alegre e decidida? Deve ser, pois ainda é jovem. Não deve passar muito dos quarenta anos.

Cecily lembrou-se de que o tio estava com sessenta e conteve-se para não comentar que muita gente considerava quarenta uma idade um pouco avançada.

— É, sim. — Cecily aproveitou a conversa para esclarecer uma curiosidade: — Bem... antes de eu ir me sentar ao lado de Artan, vai me contar por que um homem sem cabelos é chamado de Ian, o Loiro?

Bennet riu, fazendo-a sorrir, pois a risada dele tinha um som agradável. Ele era muito atraente, com longos cabelos claros e brilhantes olhos azuis. Não era de se estranhar que sempre vivesse rodeado por moças.

— Pare de olhar para Bennet. Você é uma mulher casada.

Quando ela nem corou e apenas revirou os olhos para um sorridente Bennet, percebeu que já tinha se acostumado com a falta de tato do tio.

— Eu estava apenas pensando como ele é um rapaz atraente. Os Murray devem ser de um dos clãs onde se pode passar horas admirando o que se tem diante dos olhos.

— Menina má. Você fez o pobre Bennet enrubescer. Agora, vou lhe contar como lan, o Loiro, passou a ser chamado dessa forma. Mas só desta vez. Não falamos muito sobre isso porque ele fica vermelho.

— O homem é tão grande, titio. Sem dúvida nunca enrubesce.

— Engana-se, e não é uma cena bonita. Bem, lan não é calvo, ele raspa os cabelos. — Ao ver sua expressão perplexa, Angus apreciou a chance de lhe contar a história. — Quando era mais jovem, tinha cabelos longos e ondulados que causavam inveja a muitas mulheres. As moças o adoravam por ser um sujeito forte e valente, mas com uma cabeleira linda. lan confundiu-se ao achar que uma delas o queria. A moça apenas apreciava o fato de manter seu interesse, enquanto as outras não conseguiam. Ele mesmo a ouviu afirmar isso.

— Que pena!

— Sem dúvida. lan acabou descobrindo que a moça apenas brincava com ele e tinha a firme intenção de se casar com o toneleiro na primavera seguinte. Homem bom o toneleiro, com um trabalho que paga bem e uma casinha muito jeitosa. Isso magoou os sentimentos ternos dele.

Pensar que um homem forte o suficiente para carregar Artan nos ombros tivesse sentimentos ternos era difícil de acreditar. Mas ela simpatizava com vítimas de frustrações amorosas.

— Então ele raspou os cabelos?

— Sim. Disse que não os deixaria crescer outra vez até encontrar uma jovem sincera.

— Em outras palavras, uma que gostasse dele apesar de a cabeça brilhar como um ovo.

— Exatamente.

— Ele não parece ter ainda trinta anos. Não acha que muitas pessoas aqui devem lembrar quando ele tinha cabelos lindos?

— Eu lhe disse isso uma vez, mas ele não é exatamente sensato em relação ao assunto.

— Imagino. Afinal, ele raspou os cabelos por causa de uma desilusão amorosa na juventude. Mas não deve ser fácil manter a cabeça assim. Bem, espero que ele tenha sorte, embora imagine o que acontecerá quando encontrar o amor verdadeiro, deixar crescer os cabelos e a moça expressar sua admiração.

Cecily terminou a refeição e preparou-se para voltar para o lado de Artan. Relutava em ir e encontrá-lo adormecido, porém preferia isso a vê-lo delirando com a febre provocada por uma infecção. Não obstante, achava aflitivo notar-lhe o vigor ainda visível nas linhas do corpo, mas sem se manifestar sob outras formas. Vê-lo imóvel e sem nem ao menos gemer enquanto ela o banhava e cuidava dos ferimentos a fizera estremecer, tão profundo e gelado era seu temor por ele. ;

Conversar com Angus e Bennet a ajudava a se livrar um pouco do medo. Ela podia até rir um pouco e pensar em Artan apenas dormindo, o que contribuía para a cura. Neste ambiente, era fácil considerar apenas a vitória obtida contra Fergus e a vida preservada de Artan.

O toque da mão calejada do tio na sua a fez lembrar como Edmund e Anabel a tinham privado dos contatos com este homem, o irmão de sua mãe. A raiva a dominou pelos anos perdidos, durante os quais havia ansiado por um toque carinhoso ou um ombro em que pudesse extravasar a tristeza. Sem hesitação, Angus a teria confortado, o que lhe provocava sede de sangue. Precisou se esforçar para não sugerir que fossem armados até Dunburn a fim de dar fim a seus tutores.

— Agora, você parece melhor, menina. Teve um bom pensamento, não foi? Por um momento, você parecia temer algo — Angus comentou.

— Eu estava pensando em como gostaria de ir a Dunburn e dar fim em Edmund e Anabel.

— Um bom pensamento, como eu disse. E perfeito para animá-la.

Cecily riu, levantou-se e se curvou para beijá-lo no rosto.

— Acho melhor ir me sentar ao lado de Artan. Pensar nisso foi o que me fez empalidecer. Não gosto de vê-lo deitado tão imóvel. Ele nunca fica parado.

— De fato, não. Mas logo estará bom, menina. É jovem e forte.

Depois de assentir com um gesto de cabeça, ela seguiu para o quarto. Bondade do tio encorajá-la com aquelas palavras, mas ambos sabiam que ser jovem e forte nem sempre adiantava. Rapazes vigorosos morriam todos os dias.

A possibilidade de Artan morrer a fez tropeçar na escada. Parou um instante e respirou fundo várias vezes.

Apesar da imobilidade preocupante, não havia sinais de que ele sofresse dores. Precisava apenas ser mantido aquecido, limpo e receber colheradas de caldos nutritivos. Além de sua capacidade para fazer isso, sua paciência a ajudaria bastante até ele abrir aqueles olhos lindos de um azul-prateado intenso e sorrir para ela.

— Não parece muito animador, não acha? — Angus ; murmurou depois que Cecily saiu do grande salão.

— De fato, não. Nunca vi antes um homem tão espancado.

— Eu não tinha olhado bem para Artan até Fergus estar morto, ou não teria tentado convencer o porco a desistir e ir embora, e sim matado o maldito sem pensar duas vezes. Não havia necessidade de espancar o rapaz daquela forma brutal.

— Fergus não pensava assim. Ele vinha tentando livrar-se de Artan. desde o momento em que meu primo entrou no grande salão de Dunburn. Cada vez que falhava, enraivecia-se mais. Com certeza, o idiota achou que era Artan quem causava o fracasso dos planos dele para obter uma fortuna. Devia sempre achar que calculara bem. Se algo não desse certo, como pensava, a culpa devia ser de alguém.

— E Artan era esse alguém. Entendo o que você quer dizer.

— Ele vai se recuperar. Eu já o vi assim imóvel antes. Apesar de assustador, é a maneira dele para se curar. E Artan tem muito pelo que viver — Bennet afirmou.

— A menina, você quer dizer?

— Sim, Cecily.

— Então você acha que ele gosta dela?

— Claro! Muitíssimo!

— Ótimo! Eu não gostaria de pensar que os forcei a assumir um compromisso que eles não desejassem. Bennet balançou a cabeça.

— Artan queria isso, sim. Talvez eles levem algum tempo para ver o que eu consigo enxergar com facilidade, mas eles formam um casal ideal.

— E me darão excelentes sobrinhos-netos. Angus sorriu ao ouvir Bennet rir.

Cecily sentou-se numa cadeira ao lado da cama depois de Cat ter ido embora. Artan não tinha se mexido. Inclinou-se para a frente, a fim de ver se ele ainda respirava, mas censurou-se, pois o arfar do peito dele tinha um ritmo firme.

Apoiando-se na beirada da cama, tomou a mão dele entre as suas. Estava com uma boa temperatura, mas flácida. Massageou os dedos, sem conseguir provocar reação alguma. Por um segundo, sentiu á tentação de cutucá-lo com uma agulha, porém afastou a idéia depressa. Sem dúvida, não causaria mais impacto do que os pontos que havia dado nos ferimentos poucas horas atrás. E ele não dera o mínimo sinal de senti-los.

Nem com seus conhecimentos de cura conseguia entender aquela imobilidade, o que a preocupava. Cat tinha lhe dito que ela era a curandeira mais eficiente que já haviam tido em Glascreag ou em qualquer lugar da região. Infelizmente, isso significava que Artan dependia dela para sair desse estado, porém não se sentia à altura da tarefa. Sua única professora havia sido Lorna, e ela nunca lhe explicara o que fazer quando o espírito de uma pessoa parecia ter abandonado o corpo.

— Artan — sussurrou e o beijou de leve nos lábios na esperança de trazê-lo de volta. No entanto, ele não deu sinal de ter sentido a carícia. — Ah, Artan, aonde você foi? Não pode me deixar — disse, tocando-o na testa. Ao não sentir sinal de febre, ficou aliviada.

Talvez devesse ter mandado Bennet ir buscar uma das famosas curandeiras do clã dele, pensou. Deixou a idéia criar raízes e sentiu um certo consolo no fato de poder recorrer a outras pessoas. Falaria com Bennet na manhã seguinte e, juntos, eles decidiriam quando deveriam mandar avisar os Murray. Não era a promessa de uma cura milagrosa, mas ela se sentia mais , calma pelo simples fato de ter um plano.

Subiu na cama, acomodou-se ao lado de Artan e , apoiou a cabeça no peito dele. Ao sentir-lhe o coração bater com firmeza, animou-se um pouco e o abraçou pela cintura. Apesar desse contato, sentia-se muito solitária. Não estava ali o espírito que fazia dele o homem a quem ela amava mais do que a própria vida.

Engano seu, disse a si mesma, ele estava sim, pois o teria sentido abandonar o corpo. Ao pensar no tempo passado na tenda de Fergus, teve certeza do momento em que Artan se entregara a esse sono profundo. Vira a expressão quase sonhadora daqueles olhos lindos, e ele não tinha participado, de forma alguma, do próprio resgate. Os gemidos de dor quando Ian o colocara sobre os ombros tinham sido os últimos sons emitidos por Artan. Naquele momento, ele já estava escapando das dores terríveis.

E quem poderia culpá-lo pela fuga? Não havia uma única parte dele que não estivesse machucada ou que não tivesse levado pontos. Muitos homens estariam gritando de dor.

— Não tenho certeza do que eu posso fazer, Artan — murmurou. — Embora seja assustador, acho que esse sono é melhor para você. Ele o leva para longe das dores, pois seu sofrimento seria imenso caso estivesse consciente. Bem, por algum tempo deixarei que durma e cuidarei deste corpo tão judiado até que você volte para ele. — Beijou-o nos lábios. — Porém, eu o aviso, não vai ser por muito tempo e não porque eu sinta muita falta sua. Mas existe um limite do que eu posso fazer para cuidar do seu corpo antes que comece a enfraquecer. E é aí que se esconde o perigo, meu amor. Cada dia que você dorme, os ferimentos cicatrizam um pouco, mas seu corpo enfraquece. Logo, a carne começará a se soltar dos ossos, pois você não pode ser sustentado apenas com caldos, a única coisa possível de fazê-lo engolir. Portanto, deixarei que descanse nesse lugar ignorado. Mas, quando eu perceber que está se consumindo, mandarei chamar as curandeiras de seu clã para me ajudarem a acordá-lo. Só assim você poderá se alimentar bem e recuperar as forças.

Ela tornou a encostar o rosto no peito dele e suspirou. Sabia que as chances de Artan ouvi-la eram nulas, mas sentia-se melhor por ter mencionado seu plano. Pensou se deveria vestir a camisola, mas se deu conta de que quase já dormia. Não teria ânimo para se levantar e trocar de roupa. Fechou os olhos e rezou para que o marido logo a aninhasse novamente nos braços.

— Onde está ela? Onde está minha menininha?

Angus descia a escada e parou para olhar a mulher que acabava de entrar na fortaleza. Reconheceu-a quase no mesmo instante como Meg, a dama de companhia de sua irmã e ama-seca de Cecily. O corpo bem-feito estava um pouco mais robusto, algumas rugas marcavam-lhe o rosto bonito e uns fios prateados entremeavam-se nos cabelos, mas, definitivamente, era Meg. Apesar da tristeza que o afligia, ele sorriu e desceu depressa o resto da escada para recebê-la. Sentiu o primeiro lampejo de alegria nos últimos e longos seis dias, desde que Artan havia sido trazido para Glascreag.

— Olá, Meg — ele disse, satisfeito por se ver reconhecido em seus olhos escuros.

— Angus? — ela indagou, ao chegar mais perto.

— Sim, sou eu. Um tanto mais velho, meio acabado, mas, sem dúvida alguma, Angus.

— Ouvi dizer que você estava morrendo.

— Apenas doente, porém não fui dessa vez.

— Estou vendo. Mas onde está Cecily?

Ainda azeda como maçã verde, ele pensou e quase sorriu.

— Está fazendo companhia para o marido.

— Então ele se casou com a menina? Ótimo. Eu o achei um bom rapaz e acreditei no que me falava, mas, tão logo partiram, comecei a me preocupar com ela.

— Se Artan lhe disse que se casaria com ela, não estava mentindo. E não foi apenas para se tornar meu herdeiro.

Meg sorriu.

— Eu sei. Nunca imaginei que fosse. Então, onde estão os dois?

— Venha comigo — Angus disse ao pegá-la pelo braço e levá-la rumo ao grande salão. — Você precisa se alimentar primeiro e saber de algumas coisas sobre Cecily antes de ir vê-la.

Quando terminou de contar a Meg tudo que sabia ter acontecido a Cecily e Artan, desde a partida de Dunburn, ela estava pálida, sinal de que gostava mesmo da menina.

— O perigo já passou — Angus garantiu.

— Não, de jeito nenhum. Pelo que você me contou, o rapaz está imerso num sono profundo. Talvez seja a maneira de ele se curar, talvez não. Cecily é uma boa curandeira e sabe disso, embora não confie em outras atividades em que se envolva. Ela também sabe que sono prolongado pode ser perigoso. Pobre menina, deve estar apavorada.

— Então, tenho certeza de que você poderá ampará-la.

— É o que desejo. Ela não pode suportar outra perda, Angus, embora seja muito forte. Acabará se conformando, mas sofrerá muitíssimo. Talvez ainda não tenha admitido que ame o rapaz, e desde o início, tenho certeza.

— Também acho que ela o ama, e qualquer dúvida que tive a esse respeito dissipou-se nos últimos seis dias. Contudo, ela precisa descansar, Meg. Cat tem conseguido fazê-la repousar por períodos breves. À noite, ela se deita ao lado de Artan, e eu cometi o erro de pensar que ela dormia. Numa noite destas, fui verificar como estavam e a apanhei com os olhos bem abertos, o ouvido no peito dele e a mão no pescoço. Falava baixinho como se tentasse convencê-lo a não partir. Bennet, primo de Artan, foi falar com a família a fim de saber se alguém pode nos ajudar. As mulheres lá são curandeiras famosas.

— Uma delas voltará com ele?

— Não creio. Bennet ia lhes contar que Cecily também é ótima curandeira. As de lá mandarão ervas, poções e conselhos que poderão ajudar. Porém, Bennet não acredita que elas saibam algo que Cecily ignore.

— A meu ver, o problema está na cabeça ou no espírito do rapaz. E, nesse caso, as melhores curandeiras não sabem como agir.

Angus passou a mão pelo queixo e contou:

— Cecily acha que o espírito de Artan recolheu-se para ele não sentir as dores terríveis no corpo inteiro.

— E você, o que pensa?

— Que isso faz sentido.

— Concordo. E essa explicação prova como Cecily é uma curandeira de grande aptidão.

— Porque ela pode dizer essas coisas e entendê-las?

— Sim e não. — Meg riu da careta de Angus. — Umas, ela sente, outras, pensa. Neste caso, creio que está sentindo. Isso explicaria por que ela se aconchega ao homem cujo corpo deve ter o calor de um morto no momento.

— Se tanto. — Angus suspirou e passou a mão nos cabelos. — O corpo de Artan está lá, mas ele, não, Meg. Fico vendo-o respirar e tenho vontade de sacudi-lo, fazer qualquer coisa para provocar uma reação. Cecily banhou-lhe os ferimentos, deu pontos em três cortes de espada, e ele nem se mexeu.

— Você teme que, enquanto o observa, ele dê o passo final para se separar dos vivos, não é? — Meg murmurou ao acariciá-lo na mão por sobre a mesa.

— Exatamente. E acho que seja esse também o medo de Cecily.

— Sem duvida. Um verdadeiro pesadelo. O fato de ele ser um homem atraente, forte è jovem só torna mais difícil aceitar a situação. Pessoas como ele não poderiam fenecer vagarosamente.

— Você está certa. Elas deveriam avançar pela vida, derrotando os oponentes. Essa morte vagarosa, essa desistência parece covardia.

— Não, de forma alguma. Só porque um homem é jovem e forte não quer dizer que ele tenha um controle melhor do corpo do que um velho reumático. Você contou que ele foi espancado, recebeu pontapés. Como pode saber o que foi machucado? Há muitos ferimentos capazes de causar esse estado.

— É o que Cecily afirma. — Ao vê-la levantar-se, Angus indagou: — Você sabe o que pode fazer a fim de ajudar a pobre menina?

— Ainda não. Mas saberei quando encontrá-la.

Angus também se levantou e a pegou pelo braço para conduzi-la ao aposento do casal.

— Espero que o rapaz volte para nós e não apenas pelo meu bem. Um homem da vila tinha um irmão que ficou nesse estado depois de cair de um telhado. Ele nos explicou o que devemos observar para saber quando será a hora de mandar buscar a família de Artan para acompanhá-lo em seus últimos dias. Parece que, como podemos lhe dar algum alimento e bebida, ele poderá ficar assim por um bom tempo. O irmão do homem viveu por dois anos.

— Seria triste demais se a mesma coisa acontecesse com sir Artan.

Angus não tinha o que dizer a respeito daquela verdade cruel e, portanto, ficou calado. Ao chegarem à porta do quarto, ele hesitou para mostrar a cena triste a Meg. Cada vez que entrava ali, ele sentia mais e mais como se fosse apenas para se despedir.

— Mais uma coisa — ele disse, franzindo a testa. — Posso ser um velho tolo e mais supersticioso do que pensava, mas a menina conversa com ele.

— Como assim?

— Às vezes, parece que ela mantém uma prosa do início ao fim. E a maneira como fala e faz pausas dá a impressão de que realmente existe alguém ali.

— Ah, pobre Angus. Trata-se da distração de uma criança solitária. Ela costumava fazer isso quando era pequena em Dunburn e usava um trapo ou coisa parecida como brinquedo. Temo que, agora, ela use o pobre e inconsciente sir Artan. Não se pode saber, Angus. Talvez o atinja finalmente.

— Só nos resta rezar por esse milagre. Tente fazê-la se alimentar. Cat deixou-lhe alguma coisa.

— Tentarei. Vá cuidar de seus negócios e me deixe cuidar dos meus. Ah, sim. Há duas carroças cheias no pátio. Trouxe as poucas coisas que Cecily e eu pudemos juntar das que Anabel jogou fora. Explicarei depois. Agora, quero ver como está minha menina.

No instante em que Angus se afastou, Meg entrou no quarto. Levou um minuto para acostumar os olhos à penumbra. Quando vislumbrou Cecily, temeu ter de sair, a fim de dar vazão às lágrimas. Sua menina aconchegava-se à sir Artan com uma das mãos no pescoço dele e o rosto no peito, obviamente ouvindo-lhe o coração.

Observou o homem imóvel na cama e entendeu a atitude dela. Ele parecia morto, mais parado do que qualquer ser vivo que ela já vira. Ouviu, então, os murmúrios suaves que vinham da cama e se aproximou. Embora se sentisse culpada por ouvir algo particular, sabia que poderia descobrir, com isso, uma maneira de ajudar Cecily.

— Amanhã fará uma semana, Artan. Acho que seus ferimentos já não doem tanto quanto no início. Uma dor mais branda, em vez de uma agonia. Como já disse, você não sofreu fraturas. Aquele maldito sem queixo não quebrou nada ao espancar um homem ferido, amarrado e preso a uma estaca.

Meg achou que a raiva contra o homem capaz de tamanha maldade era um bom sinal.

— Você está preocupando Angus. Ele tenta não demonstrar, mas é fácil perceber. Fica em pé perto da cama e o observa como se tentasse ver dentro de sua cabeça, para descobrir o que o mantém dormindo e eliminar isso. Desconfio que seja um sentimento masculino.

Como não se pode lutar contra ele com a espada ou murros, ele provoca fúria.

Para uma jovem que nunca havia tido contato com homens, Cecily possuía uma bela compreensão sobre eles, Meg pensou.

Cecily suspirou e beijou o peito de Artan, acima do coração.

— Faz uma semana que você me fez gritar de prazer. Não sei se posso suportar dormir sozinha por muito mais tempo. Logo, terei de deixá-lo, de vez em quando, para ver se encontro alguém que me faça... ah... cantarolar.

Apoiada nos cotovelos, Cecily soergueu-se, observou-o e, então, praguejou baixinho. Nem mesmo um leve tremer das pálpebras. Talvez ela devesse dançar nua pelo quarto, pensou, porém sacudiu a cabeça. Artan estava inconsciente, não notaria e ela passaria frio em vão. Havia a possibilidade de fazer amor com ele, considerou, e chegou a levantar o cobertor. Mas, então, ouviu o leve roçar de uma saia no chão. Piscou até reconhecer quem estava a dois passos da cama.

— Oh, Meg — sussurrou enquanto se levantava e corria para ela. — Eu tinha tanta esperança de que você viesse.

Meg tomou-a nos braços e estreitou-a contra o peito. Por alguns instantes, deixaria que chorasse e, então, se sentariam para conversar sobre o que tinha sido feito por sir Artan Murray e quais as providências a serem tomadas a seguir. Com o braço sobre os ombros dela, levou-a a uma pequena mesa perto da lareira, fez com que se sentasse e ocupou a cadeira à sua frente.

— O que você fez por ele além de mantê-lo confortável, limpo e alimentado? Ah, e de ter ameaçado procurar outro homem? — perguntou e quase sorriu ao ver a expressão de culpa de Cecily.

— Eu esperava que, se ele ainda estivesse ali, acordaria e me impediria de fazê-lo.

— Sei. Possessivo, não?

— Acho que sim. Mas como você chegou aqui?

— Vim com duas carroças com seus pertences e minha bagagem. Uma que você havia escondido e outra com que eu tinha feito o mesmo. Porém, agora, parece que tudo lá voltará a ser seu.

— Talvez não. Não temos nenhum documento sobre eu ser a herdeira de Dunburn.

— Talvez o padre tenha.

— Que padre? — Cecily indagou, arregalando os olhos.

— O da paróquia a poucos quilômetros do lugar onde fomos atacados. Seu pai me deu o documento antes de partirmos de Glascreag e me disse para deixá-lo num lugar seguro se fôssemos atacados. E fomos! Eu não sabia ler o que estava nele, e só agora avaliei o que havia entregado ao padre.

— Se pudermos encontrar isso, conseguiremos nos livrar de Edmund e Anabel.

Meg cobriu o rosto com as mãos e balançou a cabeça.

— Não posso acreditar que nunca imaginei a importância do papel.

Cecily estendeu a mão por sobre a mesinha e tocou-a no braço.

— Você não podia ler o que estava escrito, e nós corríamos para salvar nossas vidas. Entregar o papel ao padre deve ser a última coisa de que você se lembra daquele dia.

— Na verdade, quando eu pensava no horror vivido, era o pobre Colin que me vinha à mente, e então eu tentava esquecer tudo.

— Eu fazia o mesmo. Magoava muito lembrar;

— A mim também, menina. Mas o pior era o sentimento de culpa que me atormentava o tempo todo. Eu a agarrei e corri, meu bem. Nem olhei para trás a fim de ver se podia pegar o menino também. Por isso, nunca pensei muito naquilo e tentei apagar as lembranças.

— Colin morreu primeiro — Cecily contou baixinho e fez um gesto afirmativo com a cabeça ao ver o olhar chocado de Meg. —Você me carregava, e eu pude olhar para trás. Colin já estava morto quando você começou a correr. — Respirou fundo para se acalmar por ter dito, em voz alta, o que vira em seus pesadelos durante anos. — Ele foi atingido nos olhos por uma flecha. Ainda carrego essa imagem, assim como a de meu pai vendo o filhinho morto aos seus pés. Pouco depois, ele atirou-se contra aqueles homens, uma espada contra dez. Antes, beijou Colin e olhou para ver se nós duas escapávamos. Também ainda posso ver as lágrimas no rosto dele. Mas, então, sorriu e bateu continência como fazia quando recebia alguém ou se despedia. Em seguida, enfrentou os atacantes.

— Você sempre se lembra de tudo tão claramente, Cecily?

— Não, pois não queria.

— E por que agora?

— Bem, venho falando por quase uma semana. Tenho falado e falado e, a certa altura, todo esse horror subiu à tona. Ele nos viu sobreviver, Meg. Foi o que concluí. No último momento, ele viu que um de seus filhos ia viver.

Meg tirou o lenço do bolso e enxugou as lágrimas.

— Não foi para isso que entrei aqui. Cecily sorriu um pouco.

— Meu tio a mandou subir, não foi?

— Não. Quando cheguei, perguntei logo por você, e ele me contou tudo que lhe aconteceu. — Olhou para a cama. — Então, você se casou com o montanhês, certo?

— Bem, foi um casamento informal. Mas haverá o religioso quando meu marido estiver melhor.

Ao ouvir o tom de incerteza de Cecily, Meg apertou-lhe a mão.

— Logo ele começará a melhorar.

— Já faz algum tempo, Meg, e até agora, ele não dá o mínimo sinal de perceber a presença de pessoas aqui. Já fiz de tudo para provocar alguma reação, mas nada. Começo a temer que ele não esteja mais aqui.

— Está vivo e, portanto, continua aqui, apenas imerso em si próprio.

— Procurei o sinal de alguma pancada na cabeça que talvez explicasse isso, mas não encontrei nada. Ele está com uma aparência melhor e os machucados já desincharam. Então por que não acorda?

— Quem pôde dizer, menina? Você deve deixar nas mãos de Deus.

— Eu sei, mas isso me amedronta e, ao mesmo tempo, enraivece, o que não é bom.

— De fato, não. Você o ama, não é?

— Ah, sim, muitíssimo — disse e recomeçou a chorar, sendo imediatamente abraçada por Meg.

— Haveremos de vencer esta fase, menina. Tentaremos encontrar uma maneira para trazer seu montanhês de volta para você.

— Então, o que achou dele? — Angus perguntou a Meg enquanto tomavam vinho perto de uma das lareiras do grande salão, depois de todos terem se recolhido.

— Acho apenas que não é um caso sem esperanças. E que minha menina vai acabar sem voz se ele não acordar logo.

— Cecily está falando demais. Cat leva sempre uma poção com mel para aliviar sua rouquidão.

— O rapaz está perdendo muitos de seus segredos. Vai lamentar isso mais tarde.

— Como poderá, se os ignora?

— Não seja tão esperto. E irritante — ela reclamou e escondeu o sorriso ao tomar um gole de vinho.

— Eu também o quero de volta. Pensei tê-lo escolhido para ser meu herdeiro porque ele tem um pouco de sangue MacReith e é um rapaz forte. Mas saber que ele logo pode ir-se para sempre me fez ver um motivo muito maior.

— Sir Artan é o filho que você nunca teve, certo?

— Sim, e mais do que o irmão gêmeo, embora Lucas também seja um bom rapaz. Mas o coração dele está em Donncoill, o que sempre se interpôs entre nós.

— Bem, não tenho o dom de ver o futuro, porém não posso imaginar o rapaz morrendo.

— Vou sentar um pouco com a menina. Dar um descanso à sua voz.

— Ela disse que já começou a se repetir, assim você poderá poupar-lhe o embaraço, Angus. — Os dois trocaram um meio sorriso, mas a preocupação com Artan era tão intensa que o bom humor esvaiu-se depressa. — Penso sem. parar em coisas que possam quebrar a parede atrás da qual ele parece ter se escondido, mas a menina disse já ter tentado o mesmo.

Depois de um momento de silêncio meio incômodo, Angus indagou:

— E como vai seu marido?

— Falecido. Como vai sua esposa?

— Falecida. Ambas. Casei duas vezes e enviuvei sem ter um filho.

— Bem, desconfio que o rapaz e minha menina logo encherão esta fortaleza com a voz e o riso de muitas crianças.

— É um som que faz falta há muito tempo. Pensei nisso quando Artan chegou com Cecily. Você sabe que escrevi muito para ela e os tais que se intitulam seus tutores?

— Quando eu não o maldizia, Angus, por ser um desgraçado sem coração, capaz de virar as costas para alguém de seu próprio sangue, sentia que algo estava errado. Mas não havia um jeito de eu descobrir o que acontecia. A menina e eu éramos mantidas longe de todos e, depois, fui expulsa de lá.

— Por quê?

— Por arrancar a vara com a qual Anabel batia em Cecily e dar uns bons golpes na maldita.

— Obrigado.

— Não precisa agradecer, pois me senti muito bem. Mas, no fim, a pobre menina ficou completamente sozinha, o que foi muito ruim. — Meg suspirou. — Se estou enganada e o rapaz se for, temo que Cecily volte a se sentir sozinha e com um tipo de solidão que uma velha ama-seca não pode amenizar.

Cecily trançou os cabelos já secos. O banho quente lhe fizera bem e a deixara disposta a enfrentar outra noite de tentativas para trazer Artan de volta ao lar, como passara a encarar a situação. Ainda se sentia tentada a fazer amor com ele, a fim de verificar se esse estímulo o atingiria no âmago do corpo imóvel. Como a idéia persistisse, ela decidiu considerá-la melhor. Como agir? Ainda não havia tido experiência suficiente para ser capaz de fazer tudo sozinha. As poucas vezes em que havia tomado a iniciativa, Artan se mostrara receptivo e até pronto a orientá-la um pouco.

Sentou-se na beirada da cama e observou-lhe o rosto, o que fazia sempre à procura de algum sinal do despertar tardio. Ele parecia tão tranqüilo e continuava atraente. Mas sem um lampejo de vida, as feições tornavam-se estáticas e sem a beleza de que ela sentia tanta falta.

Pensou em algo para dizer que não houvesse mencionado antes e, então, ficou tensa. Concentrou toda a atenção no rosto dele e aguardou, certa de ter visto algo ali, talvez um leve repuxar da pele no queixo ou, quem sabe, um tremor das pálpebras. Subiu na cama e debruçou-se sobre ele com o olhar cravado em seu rosto como se quisesse forçar o movimento a se repetir, a fim de vê-lo bem e avaliar seu valor. O corpo todo começou a doer com a tensão, mas, tão certa de ter visto algo, ela não ousava se mexer nem por um segundo.

— Por favor, Artan — sussurrou. — Por favor, volte. Sei que esteve aqui um minuto atrás. Não fuja. — Como vários minutos se passassem sem que nada acontecesse, apelou a um poder superior. — Por misericórdia, Deus bondoso. Eu me tornarei a esposa perfeita para ele e me curvarei a todas as suas ordens. Apenas, por favor, traga-o de volta. Sei que ele tentou retornar, mas sumiu outra vez. Aprenderei todas as coisas que as boas esposas devem saber, até tecer tapetes. E serei a senhora exemplar de Glascreag. Apenas um leve tremor?

Encostou a testa na dele. Devia ter sido uma visão provocada pela esperança que não deveria mais alimentar. Endireitou o corpo e já ia se levantar da cama quando viu o nariz dele franzir bem de leve, como se fosse espirrar. Repita, repita, ela ordenou mentalmente e fez uma careta de frustração ao não ser atendida. Sabia ter visto aquilo, mas precisava ter certeza antes de dar esperança a todos.

— Por que você está olhando para o meu nariz?

A voz suave e rouca era deliciosamente familiar, e Cecily temeu desmaiar ao ver que Artan a fitava. Os olhos daquele azul-prateado pareciam-lhe mágicos. Existia vida neles outra vez. Pegou a caneca de vinho na mesinha-de-cabeceira e o fez tomar alguns goles.

— Melhor — ele balbuciou, passando a mão pela garganta. — O velho Fergus tentou me estrangular, não foi?

— Não, e sim matá-lo de pancadas uma semana atrás. — Ela assentiu ao ver o olhar chocado. — Você ficou inconsciente por uma semana. Fizemos de tudo, mas não houve uma única reação sua até agora. Acho que seu nariz estava cocando.

— Posso me lembrar de você entrando na tenda,

— Eu tinha de fazer Fergus prestar atenção a mim para que Angus e seus homens pudessem salvá-lo. — Ergueu as mãos dele para mostrar-lhe os pulsos que ainda cicatrizavam. — Ele o espancou, embora você estivesse ferido e amarrado.

— E o que aconteceu com ele?

— Ele estava prestes a matá-lo, num acesso de fúria, quando sir Maclvor decepou-lhe a cabeça.

— Ela rolou e roçou a ponta de seus sapatos. — Artan franziu a testa. — Não me lembro de mais nada depois disso.

— Talvez não se lembre por uns tempos.

Cecily debruçou-se sobre ele e começou a chorar. Naquele momento, Angus entrou no quarto. Pela expressão do velho homem, Artan podia ver que ele realmente o queria bem e comoveu-se. Tentou erguer a mão a fim de acenar para ele ou acariciar a esposa em prantos, mas estava fraco demais. Um minuto depois, Angus chegava ao lado da cama e apertava-lhe a mão.

— Nós pensamos que, de fato, o tínhamos perdido e apenas nos restava mantê-lo aquecido, limpo e bem alimentado.

— Para que eu apodrecesse nesta cama durante anos?

Certa de que a explosão repentina não era contra Angus, Cecily percebeu estar na hora de cuidar das necessidade do marido de maneira mais completa. Saiu do quarto a fim de providenciar certos serviços e surpreendeu-se com a maneira como era obedecida, até por Angus. Quando voltou ao quarto, Artan tinha tomado banho, sido barbeado e deitava-se numa cama com lençóis e cobertas limpas. A umidade na cabeça dele indicava que os cabelos também haviam sido lavados.

— Cama — Artan balbuciou, erguendo um pouco as cobertas, o máximo que sua fraqueza permitia.

Sem perder tempo, ela aceitou o convite. Aconchegou-se bem, sem se importar que ele ainda não conseguisse abraçá-la. A energia dele voltaria e, então, poderia tornar a estreitá-la junto ao peito. E por isso, ela estava mais do que disposta a cumprir sua promessa a Deus. Seria a esposa perfeita tão logo descobrisse as normas a seguir.

— Sile?

Ela ergueu a cabeça para fitá-lo.

— O que, Artan?

— Obrigado

— Pelo que?

— Por conversar comigo.

— Você podia me ouvir? — ela perguntou, tentando se lembrar do que havia dito, embora soubesse ter exprimido tudo que lhe vinha à cabeça ou que guardasse no coração.

— Eu não podia entender bem as palavras, apenas uma aqui e outra ali, mas ouvia sua voz quase sempre.

— Eu ansiava para que você conseguisse. Estava tentando trazê-lo de volta, pois tinha certeza de que estava aí dentro. Então, achei que se continuasse falando, você retornaria.

— Eu sei e o fiz porque queria lhe dizer uma coisa.

— O que, Artan?

— Cale-se.

Por um minuto, Cecily ficou chocada. Depois, sentiu-se dividida entre mágoa e fúria contra tamanha ingratidão. Então, viu aquele lampejo no olhar dele e percebeu que a estava provocando, a fim de descobrir sua reação. O agradecimento sincero no início da conversa revelava os verdadeiros sentimentos dele. Beijou-o de leve nos lábios e murmurou:

— Bem-vindo de volta, Artan.

 

Casar?! Apesar de quase derrubar a bandeja com o jantar, Cecily conseguiu colocá-la na mesa ao lado da cama antes de Artan fazer qualquer comentário. Embora ele tivesse acordado duas semanas atrás, ela ainda achava difícil acreditar. Toda noite, após o despertar milagroso, quando se deitavam para dormir, ela chegava bem perto para ouvir-lhe o coração. E, ao primeiro sinal do amanhecer, esperava ansiosa pelo despertar dele.

— Para que a pressa? Já estamos casados, Artan.

— Não por um sacerdote — ele respondeu enquanto levava a bandeja para a mesa perto da lareira.

Era muito bom andar, embora ainda não se sentisse tão forte quanto desejava. Depois de se sentarem um em frente ao outro, ele a serviu, e depois a si mesmo. Observou-a e ficou satisfeito ao vê-la começar a comer. Cecily havia emagrecido um pouco e, com sua silhueta delicada, ele não achava isso bom.

— Você insiste mesmo que sejamos casados logo por um sacerdote?

— Eu sempre quis e expressei minha vontade. Porém, tivemos de enfrentar Fergus primeiro e, depois, minha sonolência.

Ele chamava aquele estado inconsciente de sonolência. Cecily duvidava de que um dia conseguiria explicar o terror sentido por uma semana e ainda por alguns dias depois. Ouvir o coração dele e vê-lo respirar, mas não ter outros sinais de vida havia sido uma experiência penosa que esperava nunca mais ter.

— E quando será? — ela indagou.

— Amanhã. Já combinei tudo com Angus e Meg. Depois de abafar a irritação provocada pelo fato de não ter sido consultada, ela assentiu com um gesto de cabeça. Ser uma boa esposa estava sendo bem mais difícil do que imaginara. Era num momento como este, em que Artan exibia a arrogância, que ela se via forçada a ser submissa. Mas uma boa esposa curvava-se às vontades do marido, repetiu a si mesma.

Enquanto saboreava um pedaço de pão com mel, Artan imaginou se caso sacudisse bem a esposa, despertaria a antiga Cecily, como a voz dela tinha feito com ele. Começava a se cansar de toda essa docilidade, da atitude submissa e humilde que ela havia assumido. Todo dia, ele podia ver mais de seu fulgor, que ele tanto amava, desaparecer.

Piscou e olhou para o prato. Havia pensado em amava! Sim, admitiu. A expressão do sentimento tinha surgido na mente como se fosse seu lugar e recusava-se a ser afastada. A impressão era que, algum tempo depois de conhecê-la, começara a amá-la profunda e ardentemente. Por nunca ter experimentado essa emoção antes, ele não a reconhecera até esse momento. Supunha que devesse ter imaginado o sentimento. Desde a primeira vez em que haviam se beijado, a considerava sua companheira.

Não era uma revelação que lhe agradava no momento, pois sabia que o afligiria, perturbaria e deixaria ansioso para descobrir como a esposa se sentia em relação a ele. Aquilo era importante, mas primeiro tinha de se casar com sua Sile, sob as bênçãos da Igreja, e, então, descobrir o que estava acontecendo com ela.

Devagar e sem dúvida alguma, Cecily estava mudando e se tornando uma desconhecida, o que o preocupava. Talvez a intenção dela fosse mimá-lo por causa dos ferimentos e do estado de inconsciência que a mantiveram ao seu lado por uma semana. Porém, ele duvidava. Não sabia como questioná-la a fim de receber as respostas que precisava obter.

O que mais o afligia era ela se mostrar tímida e se retrair no quarto. Talvez tivesse assumido uma atitude virginal, pois o relacionamento amoroso entre eles havia ocorrido durante um curto período, antes que os ferimentos o tivessem impedido. Ele a procurara uma semana após haver despertado, mesmo sabendo que ainda estava muito fraco para essa atividade. Sentira-se aliviado dá frustração, mesmo ciente de que algo estava faltando. Sabia, porém, que aquilo não acontecera por ele não estar em sua melhor forma.

Algo faltara no modo como a esposa reagia ao seu toque. A certa altura, tivera a impressão de ela cerrar os dentes para se impedir de gemer, mas não fazia idéia do que a levava a agir assim. Era como se o fogo que compartilhavam bruxuleasse dentro dela, e isso o alarmava. Essa era também uma das razões para ele ter decidido realizar logo o casamento com as bênçãos do sacerdote. Talvez, tão logo a união fosse santificada pela Igreja, a estranha timidez de Cecily a abandonasse e sua Sile reaparecesse. Com a intenção de estar com todo o vigor da próxima vez em que fizessem amor, decidira que esperaria até estarem casados aos olhos da Igreja.

— Muito bem, então está tudo acertado. Nós nos casaremos amanhã — ele disse ao levantar-se e beijá-la de leve no rosto. — Calculo que você queira ir procurar Meg para planejarem a festa.

Cecily viu-o sair do quarto. Ia levar algum tempo para ela dominar a irritação, reassumir o sorriso meigo e voltar a ser a esposa perfeita. Embora soubesse que uma das regras era curvar-se à vontade do maridor ela não havia pensado que isso significava receber ordens como se fosse criança. Não ia ser fácil. Artan tinha uma maneira de lhe dar ordens que a instigava a procurar algo bem pesado para atirar na cabeça dele.

Depois de se acalmar, foi procurar Meg. Encontrou-a na cozinha, acertando os detalhes da festa do dia seguinte com Cat. Após quase vinte minutos sendo ignorada, recebendo ordens e vendo suas decisões serem descartadas e substituídas por outras, decidiu ir ver o que usaria para o casamento.

Cat seguiu-a com o olhar até vê-la desaparecer, e então virou-se para Meg.

— Ela parecia prestes a cuspir fogo.

— Ótimo. A menina tem sido tão delicada e respeitosa com os mais velhos que só nos restava afugentá-la ou atirá-la no poço — Meg declarou.

— Por que ela está sendo tão atenciosa? Não era antes? Ela me parece uma boa menina.

— E é, além de ter um grande coração. Mas essa horrível humildade de não parar de oferecer ajuda é irritante. Foi isso que Anabel tentou ensinar a Cecily. Havia momentos em que a menina seria capaz de perguntar ao carrasco se não precisava de ajuda para colocar a corda em seu pescoço.

Meg sorriu ao ouvir Cat rir e perguntar:

— Mas que lição você está tentando ensinar a ela?

— Que seja o que realmente é e que deixe que os sentimentos a guiem, e não regras determinadas por uma mulher como lady Anabel, uma criatura ansiosa para que todos sejam tão infelizes quanto ela.

— Ah, o tipo de mulher sempre disposta a explicar a uma noiva o que esperar da noite de núpcias, e depois abandoná-la entregue ao maior pavor?

— Exatamente esse tipo de mulher.

— Bem, você acha que nossa atitude de minutos atrás vai fazê-la abandonar essa humildade absurda?

— Ainda não. Apenas pusemos um pouco mais de lenha na fogueira que, por assim dizer, queimará toda essa tolice.

— Ora, Meg, que poético, se você me permite elogiar.

— Claro — ela respondeu e riu com Cat.

Cecily franziu a testa ao ver seus vestidos expostos sobre todos os móveis do quarto. O tio havia sido muito generoso ao pôr à sua disposição os melhores trajes das esposas falecidas: Porém, todos exigiam ajustes, para o que não haveria tempo. Depois de descartar os vestidos que noiva alguma usaria no próprio casamento, restaram poucas opções.

Finalmente, escolheu um verde, deixou-o de lado e guardou os outros na arca. Ia ser difícil parecer uma noiva muito especial ou importante com aquele vestido simples, mas, como não fosse nem uma coisa nem outra, não importava. Era uma pena não ter trazido seu enxoval de Dunburn. Porém, usar as roupas adquiridas para seu casamento com outro homem poderia ser considerado de mau agouro. A única coisa de que não precisava era falta de sorte.

Ao olhar para a caixinha mandada pela mãe de Artan por Bennet, pensou se usar o pingente de granada escura, o presente de casamento dela, seria aceitável. A generosidade da sogra a tinha comovido e a deixara ansiosa para conhecer a família de Artan, embora isso a amedrontasse. Tudo que ele havia contado indicava que a família era numerosa, turbulenta e amistosa. Depois de refletir muito, concluiu que não saberia lidar com pessoas assim, pois tinha vivido isolada em Dunburn.

Abriu a caixinha, admirou o pingente e hesitou entre usá-lo ou não. Admitia que seu grande fascínio pela joia devia-se ao fato de ser um presente. Nunca havia recebido um antes. De repente, notou a ponta de um pergaminho sob o forro de veludo da tampa. Com cuidado, retirou-o e o leu. Em seguida, sentou-se. A mãe de Artan tinha escrito para ela uma carta cordial de boas-vindas à família, cheia de detalhes maternais sobre ele, nem todos muito lisonjeiros.

Enxugou as lágrimas e guardou a carta na caixa. A leitura da mensagem a tinha feito decidir usar o pingente no casamento. Em honra à mãe de Artan, o faria com orgulho. Apenas esperava que também pudesse inspirar o mesmo sentimento à sogra.

— Não creio que deva usar meus cabelos soltos, Cat — Cecily disse ao fazer uma careta enquanto a outra tentava desembaraçá-los.

— Você era virgem quando se casou, não era?

— Claro!

— Nada de claro, menina. Muito mais pessoas do que você imagina, não são.

— Isso não quer dizer que eu deva ignorar a tradição.

— Você se apresentou virgem para o casamento informal. O de agora é o da Igreja. Não passa da mesma coisa, apenas com um homem mais importante para os declarar casados. — Cat observou-a com atenção.

— Você está rindo?

— Não, naturalmente. Pode fazer como quiser, e deixá-los soltos.

— Ficará mais elegante com o vestido verde e a granada.

Meg apareceu, e Cecily desistiu de dar qualquer opinião sobre sua aparência para o próprio casamento. Entretanto, quando elas terminaram de arrumá-la, teve de admitir que estava linda. Não se preocuparia mais se usar os cabelos soltos estava certo ou não. Sentia-se perfeita para o casamento, mesmo sendo o segundo.

De repente, sentiu uma falta imensa do pai. Colin ainda era muito pequeno ao morrer para ter tido uma participação muito grande em sua vida, e a mãe havia morrido antes de seu pai. Desejava que ele estivesse vivo para vê-la como noiva e entregá-la ao marido.

Contava com Angus, disse a si mesma, e ele era um tio excelente. Sabia que o pai gostaria que ela e o tio formassem uma família. Angus tinha muitos primos, mas nenhum parente mais próximo. O mesmo se dava com ela. O parentesco entre ambos era o mais próximo para os dois.

Quando Angus entrou no grande salão e começou a andar em sua direção, Cecily teve de sorrir. Ele era um homem grande, forte e até as mulheres mais jovens o admiravam. Mas quando o mesmo aconteceu na entrada de Artan, ela não achou a mínima graça. Naquele instante, decidiu que alguém deveria estipular uma regra proibindo as mulheres de lançar olhares de cobiça ao noivo durante um casamento. A regra seguinte, caso elas o fizessem, seria um castigo estipulado pela noiva como, por exemplo, uma caixa cheia de aranhas jogada em suas cabeças.

Sentindo-se melhor com essa idéia, virou-se e sorriu para Artan. Ele estava tão bonito e elegante quanto um noivo tinha o direito de ser. De repente, deu-se conta de que era cobiçado por muitas mulheres, e a maioria não consideraria um empecilho o fato de ele possuir uma esposa pequenina, com cabelos vermelhos e sardas. Artan havia dito que seria fiel, e ela não via indícios de o marido ser capaz de olhar e sorrir para cada mulher bonita com quem encontrasse. Porém, elas quase o comiam com os olhos. Na idade dele, era impossível ignorar as tentações. Se, até então as tinha aceitado, seria capaz de rejeitá-las agora? Não queria pensar nisso no dia do próprio casamento, mas, como ele nunca havia proferido palavras de amor, como se livrar do medo súbito que a afligia?

— Você está lindíssima, minha Sile — ele elogiou ao pegar-lhe a mão e beijar a palma sem se importar com os olhares de todos.

Cecily inclinou-se para ele e murmurou:

— Você também está lindo.

O sorriso que ele lhe deu quase a deixou sem fôlego. Queria tanto o amor daquele homem que temia cometer uma tolice. Por um segundo, pensou em sair correndo do grande salão e fugir de Glascreag. Depressa, ergueu bem os ombros. Entre todas as razões para não agir assim, a maior era o tio não merecer tamanha humilhação.

— Vamos, menina. Está na hora de recebermos as bênçãos da Igreja — Artan disse ao levá-la pela mão à mesa sobre um tablado onde o padre os aguardava.

O sacerdote era muito jovem e estava nervoso. Com freqüência, olhava ao redor. Enquanto se ajoelhava ao lado de Artan, Cecily admitiu que não o culpava por isso. O grande salão estava repleto de guerreiros MacReith, que pareciam incapazes de ir a qualquer lugar desarmados. Se inimigos pensassem ser seguro cometer um ataque durante uma ocasião solene, depressa e fatalmente descobririam o engano.

Quando a cerimônia terminou, Artan ajudou-a a se levantar e a beijou. Aclamações ensurdecedoras e permeadas de sugestões um tanto grosseiras eclodiram no ar. Mais altos foram as reprimendas de Angus para que mordessem as línguas. Apesar de os gritos prosseguirem, ela sentiu-se aliviada por terem cessado as sugestões sobre o que ela e Artan deveriam fazer no quarto.

— Sou o senhor da fortaleza por tempo demais, menina — o tio queixou-se ao sentar-se à cabeceira da mesa e fazer um sinal para Meg ocupar o lugar à sua esquerda.

Tanto ela quanto Cecily se mostraram surpresas.

— Acho que isso acontece em todos os casamentos. Nunca fui a um, mas ouvia os comentários depois — Cecily disse.

— Por que nunca foi a um? — Angus quis saber.

— Eu nunca era levada a lugar algum, titio.

— Ora, ao vê-la tão bonita e bem-arrumada, não sei por quê.

— Obrigada, titio. Esse foi um elogio adorável.

— Sorriu ao vê-lo enrubescer um pouco. — Você tem um número considerável de homens sob seu comando. Penso que o padre ficou meio nervoso ao vê-los.

— Ah, notei. Ele é das Terras Baixas e, portanto, devemos compreendê-lo. Nossos costumes não são os dele, e o pobre tem de se habituar a conviver conosco.

— Não foi possível arranjar um padre montanhês? — ela indagou.

— Poucos rapazes se dedicam ao sacerdócio por aqui.

Antes de Cecily indagar por que, Artan murmurou em seu ouvido:

— Se eu fosse você, não faria essa pergunta.

Ela olhou para o tio e reconheceu o brilho no olhar dele.

— Arre, titio! No dia do meu casamento? Você não tem vergonha?

— Nem um pouco — ele respondeu, sorrindo para Meg.

O ambiente da festa estava alegre e animado, muito mais do que o das poucas apreciadas em Dunburn, Cecily pensou. Imaginava como Artan ás tinha suportado. O que havia contribuído para piorar tudo fora o fato de algumas pessoas o considerarem pouco mais que um animal. Ela não era tola de pensar que seria tratada ali com tanta atenção se fosse apenas uma habitante das Terras Baixas. Sua ligação com Angus fazia toda a diferença e a impedia, bem como a Meg, de se sentirem desconfortáveis.

Quando já era tarde o suficiente para se retirarem sem chamar a atenção da maioria, Artan sinalizou para que Meg e Cat levassem Cecily para cima. Ela o enchera de orgulho essa noite. Suas maneiras e delicadeza teriam sido aceitas à mesa do rei. Porém, tinha havido certa reserva em sua atitude. Era como se ela temesse dar um passo errado e tomasse o máximo cuidado com cada um. Aquela era a noite de núpcias deles e, embora não fosse á primeira, ele precisava de uma resposta para o enigma que a esposa se tornara. Precisava daquilo mais do que desejava pular na cama com ela. Quando chegou à porta do quarto, sua curiosidade estava aguçada ao máximo. Queria as respostas, e sem demora.

Meg voltou a sentar-se ao lado de Angus, agradeceu ao pajem por servi-la de vinho e comentou:

— Cecily estava linda.

— Ah, sim. E, às vezes, parecia à vontade, mas a maior parte do tempo, agia como uma estranha, — Angus balançou a cabeça. — Nas últimas semanas, isso vem acontecendo cada vez mais.

— Temo que o alcance de Anabel seja bastante grande — Meg resmungou.

— O que você quer dizer?

— A mão de Anabel era muito pesada quando ensinava a Cecily tudo que as jovens deveriam saber. Uma das razões para eu aceitar Artan e confiar nele era o fato de ele não ser como os cortesãos que infestavam aquela casa. Mas Anabel e Edmund são. Por motivos que só ela pode entender, Cecíly decidiu ser uma dama perfeita. Percebi isso logo depois de Artan melhorar. Desconfio que ela prometeu a Deus se tornar uma boa esposa e uma dama perfeita se Ele permitisse que o marido vivesse.

— E, então, o rapaz abriu os olhos.

— E típico da sorte dessa menina. Ela promete ser algo que detesta e o destino faz sua vontade.

— Bem, não é tão ruim, apenas surpreendente.

— Espere e verá. Não vai levar muito tempo para que um de vocês queira estrangular a menina.

— Se para ser uma dama existem regras detestadas pela maioria das pessoas, por que alguém as segue?

— São abomináveis quando transformam uma boa menina como Cecíly em, uma pessoa estranha e impossível de ser reconhecida. Sem dúvida essa situação é intolerável por ser obra de Anabel, uma víbora.

— Bem, não é realmente um problema meu, certo? — Angus disse e tomou um gole de vinho, disposto a observar os convidados.

Pronto e ansioso para questionar a esposa, Artan abriu a porta do quarto. Ao vê-la com a camisola de cambraia transparente e os longos cabelos vermelhos soltos e caídos em ondas pelos ombros, esqueceu-se de todas as indagações que tinha em mente. Queria apenas livrar-se das. roupas, fazer o mesmo com ela e, então, dar o passo seguinte com rapidez e vigor.

Respirou fundo para se acalmar. De muitas maneiras, Cecily continuava muito inocente. A última coisa que precisava fazer era assustá-la a ponto de ela fugir do quarto. Com a falta de sorte que tinha ultimamente, ele apostava como os convidados para o casamento estariam na hora e no lugar certos para verem o futuro senhor de Glascreag perseguindo a esposa pelos corredores do castelo. Baixou o olhar para si mesmo e percebeu já ter despido a metade das roupas. Todos diriam tê-lo visto seminu.

Aproximou-se de Cecily, e notou que ela parecia mais determinada do que ansiosa. Porém, lembrou-se de que era sobrinha de Angus. Seria preciso mais do que um montanhês nu para assustá-la.

— Você estava adorável com seu vestido para o casamento — murmurou ao tocar a renda no decote da camisola. — Mas agora, parece um anjo.

Se Artan fosse elogiá-la e se mostrar tão interessado, aquilo ia ser bem mais difícil do que ela havia imaginado. Seria mais fácil mostrar-se apenas cumpridora dos deveres se o marido dissesse estar na hora de providenciarem um herdeiro. Mas a atitude dele era muito diferente, revelava paixão, desejo e tudo em seu corpo respondia ao apelo.

Artan tomou-a nos braços e a beijou. Podia sentir o calor dela através da camisa, e desejava que os dois estivessem nus. Não demorou muito pára satisfazer a vontade.

Cecily não tinha certeza de quem havia sido o primeiro a arrancar uma peça, mas acabara com o problema de ser sempre cuidadosa. Em poucos minutos, estavam nus na cama. Tentou mais uma vez controlar os desejos impróprios de uma dama, mas Artan já lhe beijava os seios, e ela se sentiu perdida. Logo a seguir, viu-se lutando para ficar por cima, posição que adorava.

Já saciados e esparramados na cama, Artan imaginou que aquela era uma excelente maneira de terminarem a noite. Porém, queria abraçar a esposa após a união abençoada pela Igreja. Reuniu o resto da energia, virou-se de lado e a estreitou entre os braços. Ela parecia um pouco tensa, apesar do prazer que acabavam de gozar. Ergueu a cabeça a fim de observar-lhe o rosto. As faces ainda retinham o corado da paixão vivida e os lábios, as marcas dos beijos, mas o olhar revelava apreensão.

— Qual é o problema, minha Sile?

— Eu me comportei como um animal — ela murmurou entre excitada e envergonhada.

— Não, você se comportou como uma esposa deve se comportar — ele afirmou, ainda inebriado com tanto prazer. Queria apenas abraçá-la até sentir de novo o vigor retornar.

— É mesmo? Achei um tanto espalhafatoso.

— Ah, bom e espalhafatoso. Meus ouvidos ainda estão tinindo.

— E você acha isso divertido?

— Bem, não exatamente divertido.

— Pois não é a maneira de uma dama delicada se comportar.

— Com os diabos, quem quer uma dama delicada no quarto? Eu quero minha esposa.

Enquanto Artan a puxava contra o corpo e recomeçavam a fazer amor, Cecily lutou contra seus impulsos. Sabia que ainda arquejava e gemia um pouco, pois controlar-se não era fácil. Porém, valia a pena provar a Artan que ela podia ser uma dama e, ao mesmo tempo, uma esposa. Havia prometido a Deus ser ambas e perfeitas e, portanto, não voltaria atrás.

Algum tempo depois, Artan entreabriu os olhos e observou a mulher dormindo em seus braços. Definitivamente, havia idéias estranhas perturbando-lhe a cabecinha inteligente. Aquela conversa sobre damas e a comparação da paixão vivida à de um animal não faziam sentido. Ele havia dito algo tolo, mas não se lembrava do quê.

Porém, ela não esquecera. Houvera algo diferente na segunda vez em que tinham feito amor. Cecily ainda demonstrava paixão, mas ele a sentia esforçando-se para controlá-la. Precisava dormir, mas, na manhã seguinte, tentaria elucidar a questão. Descobriria a tolice que havia dito e a idéia estranha que ela alimentava. Pediria desculpas pela tolice e se esforçaria ao máximo para fazê-la deixar para trás a idéia.

— Angus, vou estrangular sua sobrinha.

— Cecily não é mais apenas minha sobrinha, mas também sua esposa, Artan — ele declarou, erguendo o olhar do brinquedo que esculpia na madeira para encará-lo. —Porém, poderei segurá-la para você, caso queira uma ajuda —-acrescentou.

— Não. Acho que posso fazer isso sozinho. Ela não é muito grande. Por que você está disposto a ajudar?

— Porque talvez a faça recuperar o bom senso perdido.

— Ah! Então você também a está achando irritante?

— Como um estrepe sob a unha do dedo. Se eu ouvir mais "Posso ajudá-lo, titio?", "Tem certeza de que está bem agasalhado, titio?", ou coisa parecida, não vou esperar que você resolva o problema. Eu mesmo o farei. O que você fez para a menina?

— Eu!? Absolutamente nada! Achei que toda a delicadeza, humildade e atenção eram porque eu estava me recuperando daqueles arranhões. Mas depois que fiquei bom e ela continuou com essa pieguice, capaz de fazer um homem ranger os dentes, percebi que havia alguma coisa errada. Cheguei até a dizer e fazer umas poucas coisas para irritá-la.

— Apenas umas poucas? — Angus ironizou, mas foi ignorado.

— Ela não reagiu. Nada de rubor nas faces ou lampejos no olhar. Nem foi capaz de me dirigir um daqueles insultos que ela gosta de proferir. Apenas agiu como se eu estivesse certo e prometeu se esforçar para eu não ter mais queixas no futuro. A tola está se desgastando e corre o risco de adoecer. Sua vivacidade se foi, bem como seus rompantes de braveza. E até no quarto — ele se lamentou.

— Ah! Não quero ouvir nada a respeito disso.

— Você não acha que aquelas crianças, com as quais você sonha, são achadas em pés de repolho, não é? Acho melhor você me ajudar a descobrir o que está fazendo mal à minha Sile ou todos esses brinquedos que anda esculpindo não serão usados. Minha esposa ardente agora tem o brilho de um peixe morto no quarto. É o suficiente para um homem murchar. Se eu tivesse mais experiência, talvez pudesse reavivar a paixão, mas... — Ao ver que Angus o fitava com olhos arregalados, ficou vermelho. — Eu não era virgem, se é o que está pensando.

— Não! Mas é um rapaz atraente e vigoroso.

— E o que isso tem a ver coma questão? Reflita um instante, Angus. Eu não me aproveitava das moças que trabalhavam no castelo, nem das noivas, nem das donzelas. Só contava com viúvas e rameiras. Pode-se adquirir alguma prática com uma viúva, mas uma rameira é uma mulher a quem se paga a fim de sentir um certo alívio. Na verdade, muitas viúvas também são. — Deu de ombros. — Ensinamentos dados por minha mãe e dos quais não me esqueci.

Angus concordou com um gesto de cabeça.

— Lições boas e sensatas. Nunca pensei muito nisso, mas essas regras podem ajudar um rapaz a evitar problemas. Lamento alguém não ter me dado tais conselhos. Tive de aprender essa verdade dura por conta própria.

— Bem, podemos conversar sobre o seu passado amoroso num outro dia. Preciso fazer minha esposa voltar ao que era.

— Então, deveria ter provado à menina que gostava dela como era.

Viraram-se depressa para a voz que vinha da porta do quarto de Angus. O sorriso de Meg mostrou-lhes seu prazer por tê-los surpreendido. Ambos a encararam zangados, porém ela os ignorou.

— Vocês não conseguem entender, seus tolos? A pobre menina está se esforçando para ser uma boa esposa.

— Ela era uma boa esposa antes. Muito animada e com uma língua afiada — Artan afirmou num tom saudoso.

— E você a fez saber que gostava dela dessa forma? Não acredito.

— Eu me casei com ela, levei-a para a cama e me relacionei com vigor. Isso foi uma prova suficiente de que gostava dela.

— Ah, então gostava também das rameiras e viúvas com quem se relacionava, não é?

Zangado, Artan a encarou.

— Não demonstrei vigor com elas.

— Vocês dois podem esquecer o quarto por um momento? — Angus reclamou.

— Impossível. É onde as mudanças da minha mulher me atormentam mais — Artan declarou.

— E deveriam — Meg concordou.

— E o que você entende disso? Afinal, casou-se com Lewis, um sujeito fraco e tolo. Ai, mulher atrevida! — Angus exclamou ao tocar a orelha que ela havia puxado.

— Angus MacReith, não fale mal de meu falecido esposo — Meg o advertiu. — Ele podia não ser tão animado quanto você, mas me deu três filhos fortes e uma filha linda. Os quatro se casaram, e já tenho vários netos.

— Os dois, por favor, parem um pouco de discutir

— Artan pediu e teve de reprimir o riso ao ver Angus e Meg enrubescerem. — Preciso de ajuda para trazer minha esposa de volta. É como se o espírito de uma outra moça a tenha dominado, uma submissa e triste que pensa ser mais escrava do que esposa.

— Ela está tentando ser a esposa perfeita — Meg insistiu.

— Mas era perfeita para mim antes.

— Como venho afirmando, você não deixou isso claro para ela. Preste atenção. Desde que o pai e o irmãozinho foram mortos, Cecily se esforçou para fazer parte de uma família, conquistar algum afeto e respeito dos Donaldson. Ela nunca entendeu por que não obteve êxito. Bem, ela ignorava a verdade sobre eles e sempre lutou para satisfazer a vontade de Anabel. Foi por isso que ia se casar com aquele porco do Fergus. E desde o momento em que isso foi arranjado, Anabel começou a instruí-la para ser a esposa perfeita. Não que ela mesma seguisse as regras. Temo que minha menina esteja mais determinada agora a ser perfeita

— Meg acrescentou com um sorriso triste.

— Tolice — Angus resmungou. — Ela é aceita aqui, claro, pois tem meu sangue.

— Como também dos Donaldson — Artan disse, começando a entender o que Meg dizia.

— A menina não pode acreditar que nós lhe faríamos mal.

— De fato não, seu velho tolo — Meg disse em tom áspero. — Contudo, não podemos culpá-la por ter se tornado desconfiada depois de tudo que lhe aconteceu, inclusive as verdades cruéis com as quais se defrontou. A menina sofreu a perda da família inteira e os poucos que deveriam amá-la nunca o fizeram. Mas, entendam, Cecily precisa fazer parte de uma família. A cada tentativa frustrada de ser querida pelos Donaldson, a carência aumentava. Ela está firmemente determinada a não falhar desta vez.

— Então, devo lhe mostrar que ela faz parte desta família e que não precisa fazer nada, exceto ser o que é na realidade? — Artan indagou e franziu a testa, dando-se conta da tarefa desanimadora. — Eu poderia mandar buscar algumas das meninas Murray para conhecê-la. Logo, ela veria que ser meio indócil e ter uma língua afiada não me importunaria. Mas isso levaria algum tempo e eu quero minha esposa de volta já.

— Nesse caso, você vai precisar ter uma longa conversa com ela e explicar como se sente a esse respeito. Não me olhe com esse ar horrorizado. Não vai doer nada. Afinal, você está conversando sobre isso conosco.

— Vocês não são minha Sile.

— É o que você tem de fazer. Ela pode ser muito teimosa e, agora que decidiu ter de se comportar assim, a fim de conquistar seu lugar aqui, não mudará nem que lhe custe a morte. Já tentei conversar com ela, porém a menina não me deu ouvidos. Você sabe que eu a amo como se fosse minha filha, porém ela pensa que apenas quero consolá-la — Meg lamentou.

— Ela não precisa de consolo, pois é uma criatura muito forte. Ou era. — Artan suspirou. — Bem, o melhor é mesmo eu conversar com minha mulher antes que ela enterre sua antiga disposição tão fundo que seja impossível trazê-la de volta.

Meg assentiu com um gesto de cabeça.

— É meu medo. Com os Donaldson, nunca foi assim tão ruim. Ela não se acovardava completamente. O que sentia por eles era senso de dever e não afeto. Isto agora é muito diferente, pois envolve o coração dela. — Sorriu ao ver o olhar interessado de Artan. — O quê? Você não sabia?

— Como saber se ela nunca me disse nada?

— Disse, sim, mas não com palavras. Ela o fez com aquela atitude que o deixou ansioso para sua animação fogosa reaparecer.

— Sensualidade — Artan murmurou.

— Chega. Não se fala mais nisso — Angus reclamou. Porém, Meg prosseguiu:

— A menina nunca tinha sido beijada antes de você invadir sua vida. Ela não teria se dado conta da sensualidade. Caso o tivesse feito, teria fugido, em inocente confusão. Ainda mais se não alimentasse sentimentos sinceros por você. Porém, ela logo pulou para dentro do fogo. É claro que o ama, seu tolo, e é por isso que está tão desesperada para se tornar a esposa perfeita. Quando observo Cecily aqui, quase posso ouvir as instruções de Anabel sobre deveres e submissão. Quase todos os dias, a mulher lhe enchia os ouvidos com tais ladainhas.

— Eu deveria voltar a Dunburn agora a fim de cobrar-lhe isso.

— Levaria semanas, e você precisa fazer alguma coisa sobre nossa Sile agora — Angus declarou.

Artan assentiu com um gesto de cabeça, embora ainda não soubesse o que dizer à esposa. Não possuía a mínima aptidão para falar sobre sentimentos, ainda mais os próprios, mas sabia ser necessário explicá-los. Sentia-se tentando a esperar para ver se Cecily sairia dessa fase estranha ou a pedir socorro às irmãs. Afastou essas idéias, pois sabia serem inspiradas pela covardia. E não funcionariam tão bem quanto um pouco de honestidade entre eles. Apenas desejava ter jeito com sedução e saber usar as palavras bonitas tão apreciadas pelas mulheres.

— Eu gostaria que você parasse de me olhar como se eu tivesse sugerido que cortasse a própria perna — Meg reclamou.

— Talvez isso fosse menos doloroso — Artan resmungou, mas sorriu um pouco. — Farei isso, Meg, não tema. Apenas não sei se me desincumbirei a contento. Tenho pouco dom de sedução — ele confessou e sentiu-se enrubescer.

— Você não precisa disso, tenho certeza.

— Seria vaidade minha se concordasse. Meg deu de ombros.

— E a pura verdade. Cecily não é como as jovens com quem você se dava no passado. O melhor é você começar a pensar sobre o que vai dizer para fazê-la entender como que ela não precisa ser nada além do que realmente é.

Artan balançou a cabeça e saiu. Precisava galopar por algumas horas. Sempre pensava melhor na sela e tinha muito sobre o que refletir. Não seria fácil recuperar sua esposa, e ele sabia muito bem não ter a aptidão para lutar essa batalha. Gostaria que a irmã e o marido morassem mais perto de Glascreag. Liam Cameron era um homem capaz de seduzir bem uma mulher. Usava palavras bonitas com a maior facilidade. Até o momento, Artan não tinha invejado essa habilidade.

Já montado em Thunderbolt, soltou as rédeas e galopou por quilômetros, deixando o vento e o ritmo da montaria clarearem sua mente. Quando finalmente fez o cavalo diminuir o passo, olhou em volta. Estava quase nos limites a leste das terras de Glascreag. Sorriu e deu uns tapinhas no pescoço do animal. Thunderbolt podia estar envelhecendo, mas ainda conseguia levar o cavaleiro bem longe e depressa.

— Bom companheiro — elogiou ao virá-lo na direção da fortaleza. — Leve o tempo que quiser, pois preciso pensar. Se ao menos uma mulher fosse tão fácil de entender como um cavalo. — Riu quando Thunderbolt relinchou e sacudiu a cabeça. — Ora, sei que você logo se cansaria dessa conversa.

Já estava a meio caminho da fortaleza, mas longe de ter um plano, quando avistou o primo Bennet, que acenou e aproximou-se para cavalgar a seu lado. Artan ressentiu-se da companhia, mas logo achou que poderia ser proveitosa. Com cabelos dourados e olhos azuis, Bennet jamais ficava sem atenção feminina. Embora Artan nunca houvesse notado se ele tinha jeito com palavras bonitas e galanteios, o primo devia saber como fazer a coisa certa para provocar sorrisos nas mulheres.

— Por que você está cavalgando sozinho e com esse olhar sombrio se tem uma esposa tão bonita em casa? — Bennet indagou.

— Pois foi ela quem me fez vir cavalgar a esse passo lento, como um velho.

— Ah, você a enraiveceu?

— Não, e já faz dias. Aí está o problema. Confuso, Bennet franziu a testa.

— Devo estar meio aéreo hoje, já que não compreendo qual é o problema. Você não gostou de sua esposa não ficar brava?

— Não é fácil conviver comigo. — Artan esperou o primo parar de rir para continuar: — Não está certo minha mulher se mostrar meiga e sorridente o tempo todo. Dócil, obediente e virtuosa demais. Obedece cada ordem e se apressa a satisfazer cada mínima necessidade minha.

— A maioria dos homens estaria de joelhos, agradecendo a Deus pela dádiva de uma esposa assim, ainda mais virtuosa.

— Ora, não quis dizer que ela deve sorrir para cada homem que vê — Artan protestou, ríspido.

Bennet balançou a cabeça.

— Começo a entender. Ela é virtuosa a ponto de ter a paixão e a vivacidade de um arenque morto.

Artan sabia estar enrubescendo, pois sentia o calor no rosto. Embora quisesse muito apagar depressa e com truculência o sorriso do primo, ignorou-o. Tinha de trazer sua Sile de volta e, apesar dos conselhos de Meg, ele ainda não fazia idéia de como conseguir isso. Precisava de muita ajuda, o que o mortificava.

— Sile se transformou na esposa perfeita, ou no que a maldita Anabel a ensinou a respeito de como uma deveria ser.

— Por que Sile deu ouvidos a essa mulher?

— Apenas porque a criatura revelou ser uma cadela traidora e não se importava com a menina sob seus cuidados, não quer dizer que cada palavra sua fosse mentirosa. E nós dois sabemos como a educação recebida pode calar fundo em uma pessoa. Segundo Meg, tudo isso é porque Sile anseia fazer parte de uma família.

— Ela faz parte da nossa.

— Eu não disse que isso fazia sentido. Meg afirma que Sile está agindo assim porque não deixei claro que gosto dela como é, atrevida e fogosa. Sile está se desfigurando com a tentativa de ser perfeita.

— De fato. Ultimamente, ela me pareceu meio desconfiada. Diga-lhe que você gosta dela como era.

Artan passou a mão pelos cabelos.

— Não sei a melhor maneira de convencê-la a acreditar em mim e parar com essa loucura. Tentei enraivecê-la, mas não deu certo. Tudo que ela fez foi pedir desculpa e prometer se esforçar mais para ser uma boa esposa.

— Essa atitude não lembra nem de longe nossa Sile.

— Minha Sile, e, de fato, não. Parece que Anabel ensurdeceu a menina com explicações sobre como uma dama deveria se comportar e o que uma esposa digna deveria dizer. E ela reforçava as lições com castigos corporais. Agora, Sile decidiu seguir as regras todas. — Artan meneou a cabeça quando Bennet praguejou, aliviado com o fato de o primo ter entendido seu problema. — Vou ter de falar com ela.

— Percebo a situação agora. Com falar, você quer dizer explicar como se sente e tudo o mais? Dificílimo.

— Impossível. Não sou homem versado em palavras bonitas e não tenho jeito com lisonjas.

— Eu sei. E também não é uma coisa que eu possa ensiná-lo numas poucas horas.

Não era isso que Artan queria ouvir. De repente, pensou que talvez ter aptidão para fazer galanteios e se expressar com palavras bonitas não fossem requisitos necessários para ter êxito com as mulheres ou solucionar o problema surgido entre ele e a de sua escolha. De fato, não. Significava apenas que ele poderia atraí-las para a cama, fazê-las corar e sorrir. E até casar-se, mas não garantir que ele a fizesse feliz.

— Não pode mesmo, Bennet. E, se fosse possível, as palavras que você me ensinaria não soariam verdadeiras. Sile saberia que não eram minhas. Diga apenas o que você faria.

Bennet fez uma careta e cocou o queixo.

— Na verdade, não sei. Diga-lhe como você se sente, imagino. Ou como a apreciava quando ela o enfrentava com firmeza e o chamava de idiota ao vê-lo agir como um.

— Na verdade, ela me chamava de prepotente e arrogante que resmungava mais do que falava. — Ao lembrar-se, Artan sorriu de leve enquanto Bennet ria. — Ah, e uma verruga no nariz de Satã. Eu lhe disse para pensar mais sobre esse insulto, pois não era um de seus melhores.

— Ah, ela concebe insultos?

— Sim, e alega que, por ser pequena demais para se defender fisicamente, precisa deles para atirar contra qualquer antagonista.

— Não creio que tenham sido apenas seus insultos que deixaram Malcolm com um aspecto tão derrotado.

Artan fez um gesto afirmativo com a cabeça. Sentia orgulho da maneira como Cecily enfrentara o sujeito.

— Essa é a Sile que quero. Não a menina dócil, manhosa e débil. Quando a raptei, a primeira vez que lhe tirei a mordaça, ela gritou insultos que o fariam arrancar os cabelos e pulava de tão furiosa. Descobri então, que havia encontrado minha companheira.

— Ela parece perfeita para você — Bennet afirmou e riu quando Artan assentiu com ar sério. — Pois confesse-lhe isso.

— Dizer que a achei adorável enquanto dava pontapés na minha canela e, depois, me maldissesse porque os pés doíam? Isso não me parece nem um pouco lisonjeiro.

— Mas é, além de sincero. E a maneira de você fazê-la ver que a quer realmente como era, a menina com quem se casou, pois a desejava como esposa e mãe de seus filhos.

Artan olhou para Bennet e franziu a testa.

— Eu não deveria dizer como é bonita, ou algo sobre o brilho de seus cabelos e a beleza de seus olhos?

— Não é a aparência que ela está tentando mudar ou com o que está preocupada.

A revelação o atingiu com força e rapidez, e Artan praguejou baixinho. Bennet havia acertado ha mosca. Embora Cecily desse a impressão de não se achar bonita, não parecia preocupada com isso. Apenas algum sinal de ciúme revelava o fato de não se achar bonita o suficiente para o homem que admitira achar atraente. Menina tola, ele pensou, com carinho. Ele' a faria ver como era linda, mas não ainda. Primeiro, teria de convencê-la de que havia se casado com sua mente, sua coragem e orgulho e até com seu temperamento.

— Naturalmente você poderia dizer apenas que a ama ― Bennet sugeriu.

— E por que eu deveria dizer isso? — Artan indagou, irritado.

— Porque é verdade. Notei seu amor no dia em que chegaram a Glascreag, e você se deu conta do quanto ela ficara magoada ao saber de sua barganha com Angus.

— Bem, mas um homem tem seu orgulho. Ela nunca disse que me ama. Não sei por que eu deveria ser o primeiro.

— Sile pode não ter dito com palavras, mas o fez de outras maneiras e deixou claro para todos em Glascreag que o ama. Por que ela estaria se esforçando tanto para ser uma esposa perfeita?

Com expressão vaga, Artan olhou para a fortaleza enquanto os dois se aproximavam do portão. A idéia de que sua Sile o amasse tinha feito seu coração disparar. Havia dito a si mesmo que paixão, respeito e carinho eram suficientes, mas admitia ter enganado a si próprio. Havia restado desassossego no coração, um anseio desconhecido. Identificava-o agora. Necessitava que Cecily o amasse porque ela era sua vida, sua companheira, seu grande amor... Não bastava Bennet ter revelado o sentimento da esposa. Precisava que ela pronunciasse as palavras. A pressa para correr até o quarto e exigir que ela as dissesse quase o dominou, porém controlou-se. Com seu humor atual, ela poderia fazê-lo apenas porque ele exigia. Queria ouvir sua declaração de amor apenas se fosse espontânea.

Quando desmontaram no pátio, Artan tentou se preparar para enfrentá-la. Não adiantaria adiar o momento, pois mais tempo não lhe daria uma idéia melhor sobre como abordar o assunto. Ao perceber que estava se acovardando diante da perspectiva de encarar a mulher pequenina, criou coragem. Se fosse obrigado, enfrentaria um exército armado com as mãos, sem vacilar. Portanto, não hesitaria em conversar com a esposa sobre sentimentos. Com passos firmes, rumou para o castelo.

— Boa sorte! — Bennet gritou.

Artan apenas resmungou uma resposta, pois sabia que ia precisar de muita. Nunca havia dependido tanto de sua capacidade de expressar sentimentos e nunca se dera conta da pouca habilidade que tinha para a missão.

Cecily olhou para a camisa que estava fazendo para Artan. Uma boa esposa devia saber costurar bem, tecer tapetes e fazer almofadas. Sua costura devia ser reta e com pontos miúdos. Tornou a olhar para a camisa. Admitiu que ninguém acharia os pontos pequenos e retos.

Ela teria de desmanchar todos e refazê-los. Respirou fundo e devagar, mas isso não impediu que sua raiva continuasse a crescer. Não fazia sentido se zangar por causa de uma costura malfeita, porém estava furiosa. Durante vários dias, a raiva tinha ameaçado explodir, forçando-a a abafá-la.

Enquanto puxava os pontos, pensou por que tudo estava dando tão errado. Agia como deveria. Com o máximo cuidado, selecionava as regras, entre as centenas determinadas por Anabel, que deveria seguir. Descartava as que tinham sido impostas apenas para atormentá-la, e as restantes eram as ensinadas para a maioria das damas. Segui-las a deixaria feliz, bem como a Artan e ao tio, ou seja, eles viveriam num lar venturoso.

Em vez disso, ela estava totalmente frustrada. Seu corpo doía por tentar ser uma boa esposa no quarto, pois precisava se esforçar muito quando Artan a beijava e acariciava. O marido já começava a parecer tão bravo quanto ela, além de confuso. O tio, às vezes, a olhava como se tivesse vontade de esganá-la. Meg dava a impressão de querer sacudi-la até seus dentes tilintarem. Glascreag não havia mudado muito, mas alguns dos MacReith começavam a observá-la como se ela houvesse apanhado muito na cabeça. Falhara tristemente.

De repente, atirou a camisa no chão e, resmungando cada praga de que se lembrava, pisoteou nela sem parar. Pensou se não deveria ter feito isso antes, pois a fúria em seu âmago começava a arrefecer. Então, deu-se conta de que não estava sozinha.

Em silêncio, Artan fechou a porta e observou a esposa. Ela executava uma dança estranha sobre um pedaço de linho e resmungava umas pragas bem criativas. Uma coisa que ele não levara em consideração sobre sua estranha disposição recente era a possibilidade de ela estar sofrendo de um tipo de loucura ou de febre cerebral.

Depressa, afastou a idéia alarmante e tola. Não havia nada errado com a mente de Cecily, exceto o fato de ser muito sagaz para o conforto de um homem. As vezes, também, ela enfiava na cabeça algumas idéias estranhas, e ele achava que era o que acontecia naquele momento.

Quando ela o viu e o fitou, foi como se alguém apertasse seu coração. Sua Sile parecia tão perdida e desesperada que ele depressa, se aproximou e tomou-a nos braços. A esposa pequenina havia atravessado um período agitado de mudanças ultimamente, além de ter sobrevivido, antes, a verdades terríveis e cruéis. Afinal, vivera doze anos com pessoas que deveriam ter cuidado dela, mas que haviam feito de tudo para esmagar seu espírito e escravizá-la à vontade delas. Não era de se estranhar que, de vez em quando, ela sofresse problemas emocionais.

Ele agradecia a Deus pelos tutores terem falhado. Sua Sile tinha toda a vivacidade e paixão que ele jamais esperara encontrar na esposa. Elas tinham ficado trancadas em seu íntimo, à espera de alguém para libertá-las. Esperava que ela parasse de tentar aprisioná-las novamente. A influência perniciosa de Anabel ainda se manifestava vez por outra e ameaçava sufocá-la. Ele precisava encontrar uma maneira de destruí-la para sempre.

Prestou atenção às palavras que Cecily murmurava contra o peito dele, escolhendo as que pudessem lhe ser úteis. Também esperou, pacientemente, que ela parasse de chorar e contasse qual era o problema.

Ao ouvir uma vozinha dizer que aquele não era o comportamento adequado de uma boa esposa, Cecily tentou se soltar, mas Artan apertou mais o abraço.

— Há alguma coisa que você queira, Artan? — ela perguntou.

— Há, sim. Quero que me conte por que estava dançando em cima de um pedaço de linho.

Cecily olhou para o estado da camisa que tentara fazer e quase recomeçou a chorar.

— Eu não estava dançando, e sim pisoteando o pano.

— E o que é? — Artan quis saber.

— Ia ser uma camisa. Eu estava tentando fazer uma para você. — Ao vê-lo franzir a testa, teve certeza de que ele reconhecia seu péssimo serviço. — Está estragada e já estava antes de eu jogá-la no chão e pisoteá-la. Falhei totalmente. Alguém poderia ameaçar cortar meus dedos um por um e, mesmo assim, eu não conseguiria fazer uma costura reta. As boas esposas sabem costurar bem. Mas eu, não. Você vê almofadas neste quarto?

— Não, nenhuma — ele respondeu depois de olhar em volta.

— Claro, pois não fiz nenhuma.

— Não me importo com a falta de almofadas. E, se precisar de uma camisa nova, mandarei uma das mulheres daqui, que saiba costurar bem, fazê-la. E ela ficará contente por ganhar umas duas moedas.

— Artan começava a se desesperar. Pela expressão de Cecily, ele não havia dito o que deveria. Ela parecia mais triste do que antes de sua tentativa de consolá-la.

— Então, você não conseguiu fazer uma camisa para mim e almofadas para o quarto. Não importa — declarou com firmeza. Então, sentiu-se dominado pela frustração de não ser capaz de falar com ela a respeito do que ela havia se tornado e pela incapacidade de trazer de volta sua atiradora de jarras e pedras. — Quer saber mesmo o que desejo?

Cecily ouviu um leve rosnar na voz dele e o fitou, desconfiada.

— Sim, claro. Uma boa esposa...

— Desejo a minha esposa de volta — ele afirmou numa voz áspera, interrompendo o que, sabia, seria uma lista irritante das regras idiotas ensinadas por Anabel.

— Mas estou tentando ser uma que se comporte como antes de partirmos de Dunburn.

— Não é o que está fazendo. Lá, você não era como está nestes últimos dias, pois vem agindo de maneira muito estranha.

— Como assim?! De forma alguma! Só venho tentando ser uma boa esposa para você e...

— Diabos! Você já era uma esposa muito, muito boa!

— Artan, atirei uma jarra em sua cabeça! Ele sorriu e beijou-a na ponta do nariz.

— E verdade. Com sua boa pontaria, e se eu não tivesse me abaixado, acabaria sendo forçado a explicar um nariz quebrado. Sua pontaria também é boa com pedras.

Ela ergueu o olhar e o fitou.

— Artan, quando você estava morrendo...

— Eu não estava morrendo.

— Tão perto disso quanto eu jamais quero ver de novo — ela retrucou e respirou fundo para se acalmar. — Quando pensei que estivesse morrendo, fiz uma promessa a Deus.

— Não de celibato, espero.

Uma boa esposa não deve golpear a cabeça do marido com um pedaço de pau, ela pensou, irritada.

— Prometi que seria uma esposa perfeita, como você merecia.

— Como eu merecia? E o que é uma esposa perfeita?

— Ela sabe costurar, tecer e administrar uma casa. Faz todo o possível para garantir o conforto do marido e cuida dos parentes idosos que moram com eles.

— Não deixe Angus saber que você o considera idoso — ele aconselhou e não se importou com seu olhar bravo.

— Uma boa esposa é sempre delicada, atenciosa, benévola, comporta-se bem, tem voz suave e temperamento dócil. Uma boa esposa...

Baixou o olhar para a mão dele, que lhe tapava a boca.

— Com quem, por Deus, você aprendeu tudo isso? — Artan indagou ao afastar a mão. — Com a mulher que mandou assassinar sua família, ansiosa para que você também morresse? Que tem vivido à custa do dinheiro e das terras que deveriam ser seus? E que a fez se. sentir como uma órfã pobre a quem ela, bondosamente, criou quando, na verdade, era ela quem não tinha nada? Se você continua dando ouvidos a essa mulher, então eu estava enganado, pois está sofrendo da cabeça, sim.

Cecily não conteve uma exclamação e o encarou.

— Não precisa me insultar. — De repente, ela se viu sem ter o que dizer, sentindo-se completamente perdida, pois Artan estava certo. — Outras pessoas seguem a maioria dessas regras. São as que as mulheres ensinam às filhas.

— Acho bom você não ensinar essas tolices a nossas filhas.

— Não são tolices. — Ela praguejou mentalmente ao sentir vontade de voltar a chorar e não saber por quê. — É assim que uma esposa deve agir.

— Por que você, simplesmente, não é você mesma?

— Porque eu não suportaria se você me rejeitasse — ela murmurou e pôs a mão sobre a boca ao perceber o que acabava de dizer.

Artan quase sorriu, sensibilizado com as palavras reveladoras do carinho por ele, mas forçou-se a manter a atenção ao que discutiam. Começava a entender melhor o problema. Era o que Meg suspeitava. Cecily tentava conquistar sua aprovação como fazia quando era uma criança solitária, forçada a viver afastada da família de que tanto precisava. Por isso, se esforçava daquela maneira e não se dava conta de que contava com a aprovação dele e muito mais, desde o dia em que tinham se conhecido.

— Eu jamais a rejeitaria, minha Sile — ele sussurrou. — De certa forma, é você quem vem me rejeitando nestes últimos dias.

— Eu nunca faria isso!

— Por que não? Você se importa um pouco comigo?

— Não seja tolo. Claro que sim! Eu amo você!

No instante em que as palavras escaparam de sua boca, Cecily desejou que um buraco se abrisse no chão para se esconder. Porém, quando se viu sendo beijada impetuosamente por Artan, seu embaraço cessou. Um homem não podia beijar uma mulher daquela forma se fosse informado de algo que não quisesse ouvir. Não havia a mínima hesitação ali, e sim uma receptividade espontânea. Sentiu-se melhor do que havia se sentido nos últimos dias. Sabia, entretanto, que essa aceitação de seu amor não significava que ele o retribuía.

— Diga outra vez — Artan murmurou em seu ouvido.

— Eu amo você — ela sussurrou e soltou um gritinho quando o marido a ergueu nos braços e a levou para a cama.

Estavam nus e nos braços um do outro tão depressa que ela sentiu-se tão tonta quanto costumava ficar com os beijos dele. Em vão, tentou reavivar a frieza de uma dama, praticada ultimamente. A emoção estava à flor da pele e a paixão dele, tão impetuosa, que bastaram poucos beijos para atordoá-la. Competiu com ele para ver qual dos dois poderia enlouquecer mais o outro de desejo. Retribuía tudo o que recebia, carícia por carícia, beijo por beijo. Quando o aceitou em seu corpo, gritou tanto de excitação quanto de desapontamento, pois aquela união maravilhosa logo terminaria.

Ainda ofegante e trêmula, resultado do êxtase compartilhado, ousou olhar para o marido largado entre seus braços. Embora ela preferisse esse tipo de relacionamento amoroso, em vez do comedido, ele não era próprio de uma dama. Sentiu-se inquieta. Parecia que, nesse ponto, ela também não conseguira ser perfeita.

— Desculpe — ela se ouviu dizer e suspirou.

— Pelo quê? Por deixar seu homem tão satisfeito a ponto de ele não ter ânimo para andar na próxima hora? — Ergueu a cabeça para lhe dar um beijinho e notou seu olhar preocupado. — Nossa união amorosa não agrada você? — Artan sabia que sim, mas algo a perturbava, e ele estava determinado a descobrir o quê. Não permitiria que ela voltasse a se mostrar passiva e fria como a encontrara nas últimas noites. — Não a acariciei nos lugares certos? Não lhe proporcionei prazer? Não a beijei onde queria ser beijada?

— Não é isso, a culpa não foi sua. Você é maravilhoso e me agrada mais do que posso afirmar. A questão resume-se a eu não conseguir me comportar como uma dama quando você me beija.

— Uma dama? Ah, minha Sile, a mulher que encontrei na cama estas últimas noites podia parecer você, mas não era. Muito menos uma dama. Era um cadáver. Tinha a vida e o calor de um arenque morto.

— Artan!

Ele tomou o rosto dela entre as mãos e a fitou nos olhos, sem se importar com seu rubor.

— Se uma pessoa lhe disse que uma dama deve se deitar sob seu homem como um corpo pronto para a mortalha, estava enganada. Imagino se não foi por pura maldade, pois não posso conceber uma maneira mais rápida para um homem ir procurar um par de braços mais quentes.

Cecily percebeu que a raiva recente dele tinha origem no fato de tratá-lo com frieza.

— Mas dizem que um homem não respeita uma mulher que se mostra muito ardorosa.

— Se for a própria esposa meiga, que o arranha nas costas e cujos gritos de prazer lhe ecoam nos ouvidos durante horas, ele não só a respeita como também a deseja. Pelo menos este homem, sim. — Afastou um pouco o corpo e começou a beijá-la nos seios. — Ele gosta de ouvir seus murmúrios suaves enquanto se delicia com seus lindos seios. —Escorregou a mão por seu corpo e pôs-se a acariciá-la intimamente. — Sim, e esse gemido ao tocá-la aqui é música para os ouvidos dele.

Ao ver que o desejo já escurecia o olhar dela, Artan continuou beijando-a por todo o corpo. Sentira muita falta do ardor que compartilhavam e estava determinado a mostrar-lhe como ansiava por isso, além de não ter a intenção de permitir que o privasse dele outra vez. Se, para tanto, tivessem de fazer amor até ele não poder mais andar, estava disposto a enfrentar o sacrifício, pensou com um sorriso.

— Ele gosta de sentir como seu corpo delicado treme a cada beijo e carícia. — Com os ombros, afastou suas coxas, expondo-a aos afagos. — E adora senti-la retorcer-se extasiada quando ele faz isto.

Cecily gritou baixinho ao sentir Artan estimulá-la com beijos. Constrangimento e hesitação ante essa intimidade surgiram e se foram rapidamente. Tentou lutar contra a própria paixão, mas abandonou-se ao prazer que ele lhe proporcionava. Ao perceber o início do êxtase, esforçou-se para abraçá-lo, mas ele a impediu, levando-a às alturas do prazer. Ela ainda gritava com a força das sensações quando Artan penetrou-a, unindo-os naquele momento bem-aventurado.

Passaram-se vários momentos antes de Cecily encontrar energia para falar.

— Então, devo parar de ser um cadáver no quarto? Rindo, Artan ergueu a cabeça para dar-lhe um beijo meigo, e a puxou de encontro ao peito.

— Claro. Nunca mais traga aquela mulher de volta aqui. Correrei o risco de congelar minhas partes, tentando aquecê-la.

— Isso resolve a questão. Nunca a convidarei para entrar neste quarto. A última coisa que quero é danificar suas partes.

Ele sorriu, mas logo ficou sério.

— Você não precisa ser mais do que é, Sile. Aquela menina dada a insultar, a atirar pedras e dar pontapés na minha canela é com quem eu quis me casar. Não me importa se você sabe costurar e fazer almofadas e camisas com pontos perfeitos. Não preciso dessas coisas, e sim da menina que cavalgou de Dunburn a Glascreag sem reclamar, que me chama de idiota quando mereço e que atirou uma jarra na minha cabeça porque eu fui um tolo e feri seus sentimentos.

— Eu não deveria ter feito aquilo, Artan. Poderia tê-lo machucado.

— Eu merecia ser machucado, pois foi o que fiz a você. — Beijou-a na testa e disse baixinho: — Não posso garantir que não repita isso. As vezes, homens são imbecis, falam e agem antes de pensar. Mas prometo me esforçar, pois não agüentarei ver de novo aquele seu olhar magoado. Preferia cortar fora minha perna. Apenas lembre-se de que é minha esposa, minha companheira, meu coração... meu amor.

Sentiu-a ficar tensa entre o braços e temeu ter dito algo errado.

— Seu coração? Seu amor? Você me ama, Artan? — ela indagou numa voz trêmula.

— Amo, sim. — Puxou-a para mais perto e sentiu a umidade das lágrimas no peito. — Isso a faz chorar?

— Só de felicidade. Jamais imaginei que você pudesse me amar, embora eu te ame há tanto tempo.

— Bem, não posso precisar exatamente há quanto tempo sei que amo você. Mas como passei a agir como um idiota assim que a conheci, calculo ter sido desde então: Tão logo a beijei, sabia que você seria minha companheira, mas minha pobre cabeça masculina fixou-se nessa palavra. — Sorriu ao ouvi-la rir e, segurando-a pelo queixo, a fez erguer o rosto para ele. — Eu amo você, minha Sile. Nunca se esqueça disso. Amo você como ê. Não precisava ter tentado mudar para obter minha aprovação, respeito e amor. Já tinha tudo isso e sempre terá.

Cecily beijou-o nos lábios e o acariciou no rosto. Custava a acreditar que aquele homem a amava e a compreendia tão bem. O fato de amá-la apesar de ela ser meio rude às vezes cicatrizava muitas de suas feridas antigas, e ela o amava mais ainda por isso.

— Assim como sou?

— Exatamente como você é. Vislumbrei esse seu espírito quando nos conhecemos em Dunburn. Quanto mais nos afastávamos daquele lugar, mais esse espírito se revelava e mais eu a queria. Eu não precisava de maneiras elegantes, de almofadas macias, de tapeçarias luxuosas, apenas de você. — Sorriu quando ela o abraçou bem apertado. — Temi tê-la perdido, menina.

A voz tinha um tom tão triste que ela o beijou no peito.

— Nunca, E eu jamais tentarei me transformar em algo que o desagrade.

— Ótimo, pois você estava nos levando todos à loucura.

— Todos?!

— Isso mesmo. Seu tio até se ofereceu para me ajudar a estrangulá-la, a fim de lhe incutir bom senso. Concordávamos que você tinha se tornado dócil e atenciosa a ponto de nos fazer ranger os dentes.

— Minha atitude também estava me enlouquecendo um pouco, o que me deixava furiosa — Cecily admitiu.

— Ah, e foi por isso que estava pisoteando a camisa?

— Sim. Ficarei aliviada ao ser o que sou e, se eu tentar agir de maneira diferente só para agradar alguém...

— Eu lhe darei umas boas palmadas.

— Uma admoestação severa será suficiente.

— Muito justo. Seremos felizes, menina. Não se preocupe com isso. Como não poderíamos ser se nos amamos?

— Verdade pura, montanhês.

— Você também é uma, sabia?

— Ora, pois sou. Maravilha! Artan bocejou.

— Bem, parece que vou ter de dormir um pouco antes de fazermos amor outra vez. Você exauriu seu homem, mulher.

— Você sabe como lisonjear uma garota, marido. Mas não desejo cansá-lo. Temos a vida inteira pela frente.

— Ah, sem dúvida. Porém, Angus está ansioso para ter um neto, ou melhor, um sobrinho-neto, embora ele não o chame assim. Você notou todos os brinquedos que ele está esculpindo em madeira?

Franziu a testa ao vê-la ficar tensa e sentar-se devagar. Tentando não se distrair com os lindos seios que apareciam entre os cabelos longos, observou-lhe a expressão. Ela não parecia zangada, preocupada e nem amedrontada, tudo que uma possível gravidez poderia provocar em uma mulher ainda não disposta a enfrentá-la. Ela parecia perplexa, provocando-lhe uma esperança súbita. Tenso, esperou que ela contasse os dedos, mas se impacientou.

— Sile?

— Acho que talvez já tenhamos feito um. Estou... bem, não fiquei... — Fez uma careta, praguejou baixinho e disse: — Estou atrasada.

— Quanto tempo?

— Duas semanas. — Isso é raro?

— Muito. E não posso entender como não me dei conta.

Alvoroçado, Artan tomou-a nos braços.

— Minha meiga e pequenina Sile, você me deixa muito feliz. Não, eu já estava feliz e, agora, estou exultante!

— Quem haveria de pensar que teríamos todas essas alegrias quando você entrou no grande salão de Dunburn com um guarda dos Donaldson pendurado em cada mão?

— Acredito que senti o toque da sorte no minuto em que fitei seus olhos, coração.

— Oh, Artan, você está ficando realmente muito bom com palavras carinhosas. — Beijou-o nos lábios. — Muito bom mesmo.

— Para um bárbaro, você quer dizer?

— Sim, para um bárbaro atraente, forte e bondoso. Meu bárbaro.

— Sempre seu. —. Aproximou os lábios dos dela e murmurou: — Mas vamos deixar o bondoso só entre nós, está bem?

Cecily ainda ria quando ele a beijou.

 

Dunburn, Três anos mais tarde

O que você está fazendo? — Cecily perguntou enquanto Artan amarrava seus pulsos.

— Raptando-a — ele respondeu um instante antes de amordaçá-la.

Sorriu enquanto a punha sobre os ombros, saía do quarto e rumava para a escada. Sem dúvida, a esposa adorável o insultava por trás da mordaça com grande criatividade. Parou um instante para trocar um sorriso com Angus, parado à porta do grande salão com os sobrinhos-netos, um de cada lado. Mesmo aos dois anos, os filhos gêmeos se pareciam com ele, bem como com Angus, até nas caretas.

— Onde mamãe vai? — indagou Aiden.

— Dar um passeio com o papai.

— Bom — Eric disse e voltou para o grande salão. Com expressão séria, Meg encarou Artan por sobre o ombro de Angus, mas os olhos brilhavam com o riso contido.

— Pelos ruídos que faz, parece que ela não quer ir.

;— Vai mudar de idéia quando chegarmos lá — Artan afirmou ao usar de mais firmeza para segurar a esposa, que se retorcia em protesto contra a arrogância dele.

— Espero que sim, ou você vai ter de explicar aos menininhos como o papai quebrou o nariz.

Artan riu e saiu da fortaleza, deixando os filhos sob o cuidado amoroso dos avós. Tinha sido o casamento com Meg que vencera a resistência de Angus em relação à viagem de todos a Dunburn, a herança de Eric. Meg queria ver os filhos e suas famílias que moravam perto e ansiava que conhecessem Angus. Artan suspeitava de que ela queria ver a expressão deles ao conhecerem a pequenina Meghan, filha dela e de Angus por um verdadeiro milagre. Meg já estava perto do fim de seus anos de fertilidade quando a concebera. Tinha sido um parto muito difícil, e Artan sabia que tanto Meg quanto Angus tinham passado a ser muito cautelosos para não arriscar a vida dela com mais uma criança. Meghan estava sendo criada quase como irmã dos gêmeos, pois ninguém ignorava o fato de que os pais dela não viveriam para vê-la crescida.

Artan, por outro lado, não tinha essa preocupação. Os gêmeos estavam com dois anos, quase desmamados, e sua Sile mostrava-se mais do que pronta para ter outra criança. Fora ele quem insistira para esperarem, a fim de garantir que ela não enfraquecesse com gestações seguidas. Nenhum dos dois, porém, temia esse perigo. Até a parteira, com Cat e Meg ao seu lado, tinha expressado surpresa com a facilidade de Cecily dar à luz gêmeos. Aliás, dois meninos bem grandes para recém-nascidos.

As três haviam declarado que ela era do tipo afortunado para ter filhos com tanta aptidão quanto esse milagre penoso permitia. Ele tinha os filhos lindos de cabelos pretos. Agora, queria uma menininha de olhos verdes, cabelos vermelhos e com a mesma vivacidade que fazia da mãe a alegria de seu coração.

No momento em que pôs Cecily no chão, ela arregalou os olhos. Manteve-se imóvel enquanto Artan lhe desamarrava os pulsos. Não tinha certeza das intenções dele, porém não faria nada que pudesse impedi-lo.

— Aqui estamos, mulher — ele anunciou antes de tirar a mordaça.

— Se você está esperando que eu pragueje, temo que a vinda até aqui me fez esquecer a maioria das maldições — ela confessou tão logo Artan o fez.

— Escaparam por seus ouvidos?

Cecily não respondeu e olhou a vegetação densa, perto do riacho, onde a jornada deles havia começado. Desde que tinham chegado a Dunburn, uma semana atrás, ela demonstrara diversas vezes a vontade de vir até ali, más não fora atendida. Isso naturalmente, porque Artan sabia que viriam e queria preparar a visita. Comida e vinho estavam sob as árvores do bosque onde ela adorava brincar quando era criança.

— Um encontro preparado com meu belo cavaleiro montanhês? — ela perguntou, sorrindo.

— Sim, um encontro nosso — ele respondeu ao levá-la pela mão para debaixo das árvores. — Deixei de fazer umas poucas coisas na última vez em que estivemos aqui.

— Quais seriam?

— Tomar sua virgindade.

— Ela se foi. Bons ventos a levaram tempos atrás.

— Seu coração?

— Firmemente em suas mãos muito antes do encontro.

Artan riu e deitou-a na manta que estendera no chão. Fizeram amor devagar sob o calor do sol da tarde. A paixão entre ambos continuava ardente e carinhosa como quando a tinha atraído para aquele lugar. Depois de três anos de casamento e dois filhos, ele ainda não conseguia possuí-la o suficiente. A maneira com que sua Sile retribuía cada carícia e beijo seu, ou como tentava enlouquecê-lo de desejo, da mesma forma com que ele a instigava, lhe diziam que ela sentia a magia que haviam compartilhado brevemente ali antes de ele tê-lo profanado.

Ainda trêmulo com a força do prazer abençoado e do encanto de poder compartilhá-lo com sua Sile, deitou-se de costas e a puxou para os braços. Ela lhe ofereceu o sorriso que sempre exibia depois de terem feito amor, meigo, satisfeito, que revelava resquícios da paixão compartilhada. Era um sorriso que sempre o fazia se sentir como se fosse o melhor amante da face da terra.

Cecily o beijou na ponta do nariz e murmurou:

— Você está me olhando como se esperasse que eu saísse dançando sob as árvores.

— Ah, faria isso?

— Se tivesse ânimo, sim. Artan, alguma coisa o está preocupando?

— Sim, amor, mas não só agora. Entenda, eu sempre me senti culpado pelo que aconteceu naquela noite. Você estava certa ao se sentir traída. Eu pedi que me encontrasse aqui com a intenção de raptá-la, mas fui um fraco por não resistir à tentação de, primeiro, experimentar um pouco de prazer. Eu planejava, sim, me casar com você, pois, em minha arrogância, tinha decidido que você me convinha e que não seria um castigo nos casarmos para que eu herdasse Glascreag.

Foi difícil para Cecily conter o riso, pois o marido não estava revelando nada que ela não tivesse decifrado muito tempo; atrás. Porém, o fato de ele ter se afligido com isso durante esses anos era comovente. Pensou em como tivera uma sorte imensa ao ser amada por um homem tão bom.

— De fato, aquilo foi uma demonstração espantosa de arrogância. Mas Artan, você é o único que ainda se aflige com o que aconteceu aqui. Se tivesse murmurado umas poucas palavras amorosas enquanto me raptava, talvez eu não tivesse ficado tão brava. Contudo, você salvou minha vida naquela noite. Levei algum tempo para perceber isso, mas é verdade. E isso importa muito mais para mim do que o fato de você ter usado sua sedução para eu vir encontrá-lo aqui quando sua intenção secreta era de me salvar do perigo em Dunburn. Na verdade, se eu não fosse tão inocente e levasse uma vida reclusa, saberia que um homem não poderia fazer amor comigo daquela maneira e não sentir nada por mim.

Ele a beijou.

— Eu queria apagar todas as lembranças ruins.

— Bem, você conseguiu, embora houvesse apenas umas poucas. E a maioria pelo fato de eu não me achar merecedora da atenção de ninguém. Portanto, o problema era meu e não seu. — Acariciou-o no peito. — Quase todas as lembranças são boas, graças a você. Uma menina isolada, convencida por outras pessoas a não valer nada, veio a este lugar lindo, banhado pelo luar, e o homem mais bonito que já tinha visto não só a conduziu às alturas do prazer como também a raptou porque ela corria perigo.

— Em sua versão da história, representei o papel de um sujeito audacioso e galanteador.

— Pois é tudo isso. Além de saboroso — ela acrescentou depois de beijá-lo.

Artan não resistiu e a puxou para mais perto. Em instantes, a paixão entre eles tornava a explodir. Acariciaram-se loucamente e, ao perceber que já estavam prestes a gozar o prazer abençoado, ele penetrou-a. Os gritos de ambos, ao alcançarem o êxtase, ainda ecoavam pelo ar quando, ofegantes, largaram-se nos braços um do outro.

—Você sabe qual foi uma das razões para eu trazê-la de volta a Dunburn, não sabe? — Artan murmurou ao encontrar, finalmente, energia para falar.

— Sei. Você queria que eu acreditasse realmente que eles se foram — Cecily murmurou antes de se sentar e começar a ajeitar as roupas. — Você estava certo. Eu sabia, racionalmente, que eles tinham pagado por seus crimes, e até me sentia mal por suas filhas ficarem marcadas pelo fato de os pais terem sido enforcados por assassinato e roubo. Mas, em algum recanto da minha mente, ainda existia o medo de eles retornarem e arruinarem minha vida. Eu precisava banir esses fantasmas.

Artan também se sentou, passando o braço pela cintura delgada.

— Ótimo. Agora posso ter certeza de que nunca mais verei a esposa perfeita.

Cecily riu e roçou os lábios nos dele.

— Não, mesmo. E quanto às lembranças deste lugar? Ah, meu marido, existe uma que jamais esquecerei.

— Minha maneira de amá-la?

— Maravilhosa. Mas não, Artan, sinto muito. Apesar de todas as coisas que possa ter feito de errado naquela noite, há algo de que nunca esquecerei e pelo qual serei sempre grata.

— A que você se refere?

— Você me libertou, Artan. E ainda melhor, você me libertou para ser eu mesma e sua Sile.

— E a arrastei para dentro da minha vida.

— Onde espero que você me mantenha.

— Sim, menina, para sempre.

 

 

                                                                                                    Hannah Howell

 

 

 

              Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades