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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BASTARDO DA RAINHA / Robin Maxwell
O BASTARDO DA RAINHA / Robin Maxwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

 

PRIMEIRA PARTE

 

Meu pai está morto e a minha mãe é a rainha de Inglaterra.

 

A caligrafia na primeira página do diário de couro azul era vigorosa no traço e de desenho simples. O autor, um homem alto e de porte poderoso, olhava fixamente para lá da vasta imensidão do mar, com o seu cabelo vermelho-dourado chicoteando vivamente à volta de um maxilar de ossos salientes. A cara era profundamente vincada e com um enrugado bonito, com olhos semicerrados negros que brilhavam com uma fina inteligência. À medida que ele equilibrava o volume que segurava em cima dos joelhos, esperava que o oceano permanecesse calmo assim como os ventos, porque não estava habituado a uma tal escrita, e já era bastante difícil entregar os seus pensamentos ao papel sem este navio baloiçante mandando o seu tinteiro em voo ou as páginas a pairar na brisa.

 

Lá ao fundo, a estibordo, um bando de gaivotas em formação irregular atraiu o seu olhar. Provavelmente dirigindo-se às ilhas Canárias, pensou, mas a uma longa distância para as gaivotas estarem longe da terra. Mergulhando a pena no tinteiro apoiado no joelho, começou novamente, avaliando cada palavra antes de a registar na página de velino.

 

O meu nome é Arthur Dudley, escreveu ele. Estas são palavras que soam aos meus próprios ouvidos como estranhas e desajeitadas, mas não obstante são boas e verdadeiras. Aquilo que se segue não é um diário, pois até aos acontecimentos de há vários anos passados, eu pensara tão pouco sobre a minha vida e condição que o conceito de ter um diário não tinha sequer perpassado pela minha cabeça uma única vez. Em lugar disso, este documento constitui os vinte e sete anos da minha história, o melhor que me ocorre deles. Uma memória. É bizarro que uma vida tão simples como a minha seja merecedora de recordação. Mas como disse, sou ofilho de uma rainha e, consequentemente, mencionável.

 

O ranger das velas na mezena à medida que o vento mudava puxou-o rispidamente de volta ao tombadilho, onde àquela hora, o Sol mergulhava no horizonte ocidental. Procurou o bando de gaivotas, mas elas já não estavam a estibordo, nem sequer mais à frente para onde ele pensava que elas se teriam dirigido. Como podia isto ser? As aves estiveram no ar momentos antes. Esquadrinhou o céu à sua volta. Ali! O bando era uma mancha que diminuía ainda a voar baixo, mas a bombordo.

 

- Estive perdido - disse Artur a si próprio -, perdido nas palavras que escrevia.

 

O tempo, percebeu ele num tormento, tinha-se simplesmente esvaído, desaparecido enquanto ele se encontrava na escravidão da memória - um pouco de mágica natural.

 

Arthur Dudley sorriu com este pensamento. Em cada dia da sua viagem para o Novo Mundo podia escrever a sua vida, e durante esses curtos momentos tornar-se-ia um prestidigitador do tempo.

 

- Ele está aqui, Majestade. - A voz de Kat Ashley era grave, e ela não fazia qualquer tentativa para esconder o seu desagrado. A dama de companhia, de cinquenta e dois anos, observava com irritação que a jovem rainha, que agora se enfeitava em frente à mesinha do toucador, se importava igualmente pouco em suprimir o seu agrado. - Se não se importa que eu o diga, Madame...

 

- Mas eu importo-me, Kat, importo-me mesmo muito. Não tenho qualquer necessidade de ser recordada do escândalo à volta da morte de Amy Dudley. Já o conheço bastante bem.

 

Kat Ashley resmungou.

 

- O vosso favorito bem veste o seu preto de luto, mas pavoneia-se de um lado para o outro, um pavão todo fino e a brilhar de boa saúde, como um homem que acaba de voltar dos banhos em lugar de um viúvo vindo de um funeral, para não dizer um suspeito num inquérito de homicídio.

 

- Gostarias então de ver o meu leal amigo com um ar cinzento e doente?

- Nunca, Majestade. - Kat apercebeu-se que vencer uma argumentação com a rainha era impossível. - Nunca em mil anos. Devo fazê-lo entrar no aposento?

 

- Não... é só mais um momento.

 

Isabel verificou-se a si própria no espelho com moldura de prata e rezou para que o seu nervosismo não fosse aparente. Tinha suficiente bom ar. Os três meses de ausência forçada do seu amante - forçada por ela tinham sido um esforço, certamente. Ela tinha sofrido mais do que a sua quota-parte de enxaquecas e dores de cabeça. Mas agora os seus olhos brilhavam, a sua pele estava formosamente pálida e opalescente, e o cabelo vermelho-ouro era uma auréola ondulada à volta do rosto perfeitamente oval.

 

Os longos e graciosos dedos de Isabel procuraram inconscientemente um grande medalhão de prata que usava ao pescoço, um que tinha recentemente adoptado nas suas vestes, e segurou-o para se sentir mais confortável. Não era uma qualquer ninharia vulgar, este, mas sim uma lembrança valiosa. Ninguém sabia que dentro dele se aninhava uma miniatura da sua mãe há muito morta, Ana Bolena, e um caracol do cabelo sedoso dessa senhora.

 

O seu vestido de tafetá negro e brocado aumentava a alvura da carne da Rainha, mas neste dia a escolha de vestuário foi ditada não pela vaidade, mas por respeito pela morta - Amy Dudley   - e pelo regresso à corte do marido de Amy. O favorito de Isabel. O seu mestre-de-picadeiro. O seu amado. Robin Dudley.

 

Isabel levantou-se da sua mesa de toucador. Era alta para mulher, quase anormalmente alta, mas o seu pai, o rei Henrique, tinha sido um homem gigantesco. Era delgada como uma cana, e os fixadores e suportes do seu pesado vestido mantinham-lhe o torso rígido. As únicas tolerâncias para efeitos de graciosidade eram os braços e mãos, o pendor da cabeça, e a rica e modulada voz.

 

- Este será o último dia de vestuário de luto - anunciou ela subitamente a Kat Ashley. - Que Lady Sidney providencie o meu guarda-roupa depois de ter tido um momento para cumprimentar o seu irmão.

 

- Sim, Madame. E que vestido desejará Vossa Majestade utilizar primeiro - perguntou Kat, com a voz ácida de sarcasmo -, o escarlate?

 

- Katherine Ashley! - Os olhos de Isabel faiscavam furiosamente.

 

- Vou mandar entrar Lord Robert - murmurou a dama de companhia impenitente e saiu muito depressa dos aposentos da Rainha.

 

Fora o mais longo período de tempo que Isabel estivera sem ele. Desde a sua subida ao trono dois anos antes, ela insistira que Robin, o seu querido amigo desde os oito anos de idade, estivesse a seu lado continuamente. A sua nomeação como mestre-de-picadeiro tinha garantido a sua companhia de perto, e o caso de amor apaixonado dos dois tinham-no transportado numa grande vaga de engrandecimento pelas mãos dela. Mas conquistara-lhe mais inimigos ciumentos na corte do que amigos. Ele tinha, não obstante, aguentado a sua ascensão com boa natureza e uma espantosa graça, e apesar das setas e críticas vindas de todas as direcções, Isabel nem uma vez havia questionado o seu amor e lealdade.

 

Então a mulher dele Amy morrera em circunstâncias misteriosas, e o odiado cortesão caíra sob suspeita. Com o coração pesado, Isabel banira-o da corte para casa dele em Kew até que o inquérito do magistrado estabelecesse, esperançosamente, a sua inocência para além da dúvida razoável.

 

Isabel aguentara a separação num estado completamente inquieto, pois apenas recentemente havia completado a leitura do diário secreto de sua mãe. Cheio de revelações chocantes para a jovem Rainha, os escritos iluminaram a natureza de homens enganadores e ambiciosos que destruíram Ana Bolena. E pela primeira vez, dúvidas não desejadas mas inegáveis tinham-se erguido na mente de Isabel acerca dos motivos de Robin Dudley.

 

Na sua ausência Isabel visitara a campa rasa da mãe no chão de uma capela na Torre de Londres. Perdida em meditações lúgubres, ela havia imaginado o cadáver, com a cabeça separada do corpo e colocada a seu lado numa rude caixa de flechas - pois era esse todo o cuidado que Henrique tinha tido pela sua outrora amada mulher - e reflectiu sobre a perfídia dos homens. Naquele momento e nos terríveis dias vazios que se seguiram, uma ideia estranha e impensável forjara-se na sua mente, e como a espada branca e quente do ferreiro mergulhada numa tina de água, havia-se endurecido numa solução de aço. Ela nunca casaria com nenhum homem, nem príncipe, nem rei, nem súbdito, nunca renunciaria ao vasto poder que tinha legitimamente herdado de seu pai, Henrique VIII. Era escandaloso, sabia-o. A ordem natural das coisas era que uma mulher casasse, tivesse filhos. E para uma rainha, era imperativo. No pensamento de todos os ingleses de consciência, a única razão para a existência de Isabel era dar à luz herdeiros - príncipes para a sucessão, princesas para serem vendidas em casamentos de aliança.

 

Mas agora, apesar do veredicto de "morte por inforttínio" que libertava Robin de responsabilidade oficial, Isabel não podia ser movida do seu caminho. Podia jogar o jogo de cortejar, fingir a sua intenção de casar, mas nunca cederia. Ninguém sabia da sua decisão. E muito menos Robin Dudley.

 

A porta dos aposentos abriu-se e lá estava ele com o seu gibão e calções pretos, todo ele porte majestoso e grave contenção. Dizia-se de Robin Dudley - mesmo pelos seus inimigos, aqueles que derrisoriamente lhe chamavam Cigano - que ele era o mais reservado homem do seu tempo, e tinha uma capacidade só investigável pelos pesquisadores de corações.

 

Meu Deus, pensou Isabel, quão bonito ele é! Ela desejou nada mais do que voar para os braços fortes e envolventes de Robin. Mas estava determinada neste dia, decidida pela dignidade e contenção. Havia tantos problemas a pesar na sua mente e coração. Problemas de política, diplomacia e religião, algum resultado deste assunto desastroso da morte de Amy.

 

- Majestade.

 

Ele falava calmamente e, a um aceno quase imperceptível da cabeça de Isabel, ajoelhou-se perante a Rainha e beijou-lhe a mão. Então ergueu-se em toda a sua altura - mais de um metro e oitenta, o único dos seus homens que Isabel era obrigada a olhar de baixo.

 

- És bem-vindo de volta à corte, meu senhor - disse ela, desejando que a sua voz soasse calma. Com estas palavras a face de Robin Dudley explodiu num sorriso, e ele puxou instantaneamente Isabel para um abraço ao qual ela resistiu por um momento antes de o retribuir por delicadeza. Permaneceram assim juntos até ele a empurrar à distância do comprimento dos seus braços, a ter olhado fixamente através dos seus olhos e para dentro da sua alma, e beijado avidamente na boca. Ela rendeu-se ao beijo, gemeu com o prazer familiar do toque dele. Mas este som de prazer ouviu-o subitamente como um sinal de alarme, e repeliu-o talvez mais violentamente do que tinha intenção.

 

- Isabel, o que se passa?

 

- O que se passa, Robin - disse ela enquanto se recompunha -, é um desastre. A minha reputação na Europa está manchada para além da imaginação, alguns dizem para além da salvação.

 

- Mas porquê! - perguntou ele fervorosamente. - Eu fui considerado inocente de qualquer influência na morte de Amy. Foi um acidente, assim diz um júri dos homens mais aptos do país. Homens de integridade!

 

- E sabeis vós o que a minha prima escocesa Maria diz? Que a Rainha de Inglaterra vai casar com o mestre do seu cavalo, que matou a sua mulher para arranjar espaço para ela!

 

- Maria é amarga. Ela já não tem lugar na família real francesa desde a morte do marido. E voltando para casa não tem mais do que um bando de nobres protestantes que mais gostariam de ver a sua rainha católica desaparecer. Ela tem todas as razões para vos difamar, Isabel. Ela quer a vossa coroa!

 

- E pode consegui-la se eu não resgatar a minha reputação e fortalecer a minha posição.

 

- Exagerais, Isabel. A rainha dos Escoceses não tem qualquer poder. A sua sogra Médicis livrou-se bem dela e tem demasiados problemas em França para apoiar uma invasão escocesa de Inglaterra. Dizeis disparates.

 

- Eu, dizer disparates! - eriçou-se Isabel. - Quando é que me haveis visto a dizer disparates?

 

- Quando estais zangada comigo - disse ele baixinho, contendo-a com os olhos.

 

Isabel tacteou desamparadamente por uma réplica. Robin estava certo. Ela estava ainda furiosa com ele. Furiosa por destruir o sonho que ela tinha acolhido desde o dia brilhante de Janeiro da sua coroação, enquanto ele cavalgava orgulhosamente a seu lado, até ao momento em que o mensageiro de Cumnor House se tinha ajoelhado perante ela e com uma voz tremente anunciara a morte de Amy Dudley.

 

- Foi encontrada ao fundo das escadas pelos seus criados quando chegaram a casa da feira - dissera o correio. - Tinha o pescoço partido, mas a morte não parece ter sido da queda. O seu toucado nem sequer estava em desordem.

 

Assassinato. E Lord Robert Dudley, escandalosamente enredado com a rainha de Inglaterra para todo o mundo ver, à espera que o seu caminho fosse desimpedido para casar com Isabel, tinha sido o principal suspeito.

 

Talvez, pensou Isabel, ele não tivesse nada de todo a ver com a morte de Amy. Talvez ele estivesse inteiramente inocente desse crime. Mas do crime da ambição, Robin Dudley era inteiramente culpado. Estava-lhe no sangue. Os seus antepassados - avô, pai, irmãos - tinham morrido pelo pecado da ambição, e embora ela soubesse que ele a amava sinceramente, não sabia se amava mais o sonho de se tornar rei de Inglaterra. Tinham-lhe dito que quando Robin, ainda no exílio em Kew, soubera que ela rasgara violentamente a patente que lhe atribuía o prometido título de conde de Leicester, se tiriha enraivecido e trovejado por tal injustiça. Mas agora, apenas grato pelo seu regresso às boas graças da Rainha, ele não mostrou raiva ou amargura.

 

- Enquanto estive banido em Kew conheci apenas a mais profunda infelicidade, Isabel. Senti falta da vossa doce companhia mais do que tudo o resto, mas preocupei-me, também, com a incapacidade de atender às minhas obrigações como mestre-de-picadeiro. Não sabia como seríeis assistida quando cavalgásseis para longe, se seriam escolhidos os cavalos certos, se estáveis a salvo de perigo. Pois ninguém conhece ou assiste à vossa pessoa tão profundamente como eu o faço.

 

Com estas palavras Isabel sentiu a raiva recuar como uma maré a vazar, pois sabia que elas eram verdadeiras e absolutamente sinceras.

 

Ele continuou.

 

- Estes meses longe, esperando o veredicto, senti que estava a viver num estranho sonho do qual não havia acordar. O meu único alívio, e agradeço-vos por ele, eram as visitas do secretário Cecil, que foi, apesar dos sentimentos de mágoa que sei que nutre por mim, muito bom. Quero... Dudley parou como se não conseguisse encontrar as palavras para continuar. - Quero que me perdoeis, Isabel. Isto não é nenhuma admissão de culpa pela morte de Amy. Quero que me perdoeis por vos causar, pela minha própria existência ou circunstância, qualquer infelicidade ou dor. Desejo apenas o melhor para vós, sabei-lo. Desejo que o vosso reinado seja longo e glorioso, e tenho intenção de estar a vosso lado sempre que mo permitais. Sou vosso súbdito e vosso servo, Majestade, mas amo e amar-vos-ei sempre.

 

Os olhos de Isabel tinham-se subitamente enchido de lágrimas, e ela rapidamente se afastou para que ele não as visse.

 

- Muito bem - disse ela com leveza forçada. - Estais perdoado. E com a brusquidão do sol emergindo de trás de uma nuvem negra de tempestade para abrilhantar um dia monótono, Isabel sentiu a alma aligeirar-se-lhe. O seu amor tinha voltado para ela. Ela encarou-o com um sorriso mordaz, - Fiel servo, gostaríeis de ver os vossos novos aposentos?

 

- Tenho novos aposentos? - Os traços de Robin suavizaram-se com a surpresa.

 

- Vinde - disse Isabel levemente.

 

Ele tinha um ar intrigado enquanto ela se dirigia a uma parede com cortinas e puxava o pesado pano de arrás para revelar uma porta. Com a expressão de uma criança assombrada Dudley abriu-a. Uma curta passagem não iluminada estendia-se à sua frente.

 

- Podeis ir à frente, senhor - disse ela provocadoramente. Tomando-lhe a mão, ele dirigiu-se para a escuridão, e antes de andar três metros encontrou uma outra porta.

 

- Abri-a - ordenou Isabel.

 

Robin Dudley ficou parado a olhar para os seus novos aposentos. Não demasiado grandes, estavam, não obstante, sumptuosamente mobilados com uma grande cama de dossel própria de um rei, uma fina tapeçaria de fio de seda representando animais míticos numa parede, e numa outra o brasão da sua família - o campo vermelho e azul sobre o qual se impunham o urso e o bastão. A lareira acesa dava ao ambiente uma sensação de bem-estar.

 

Estava deslumbrado e, por uma vez, sem palavras. Este gesto da Rainha - apartamentos contíguos - ia certamente enfurecer os seus conselheiros e os inimigos dele, para além de escandalizar os coscuvilheiros... e solidificar a posição dele como favorito de Isabel. Não estava ela apenas há um momento a fazer recair sobre ele a sua fúria e a lamentar a sua reputação maculada nas cortes europeias? Em que poderia ela estar a pensar? Mas claro, pensou Dudley, a mutabilidade era o principal ponto fraco de Isabel... ou virtude, dependendo da perspectiva. Levou os seus conselheiros à loucura e manteve os amigos e companheiros de jogo entretidos e sem fôlego.

 

- Isabel, isto é impossível! - gritou ele com óbvio agrado. Voltou-se para dar com Isabel a sorrir maliciosamente para ele.

 

- Eu sou a Rainha, e faço o que quero - disse ela resolutamente, e depois pensou para si própria, posso escolher nunca casar, mas não serei privada do prazer na minha vida.

 

No mesmo instante cada um deu um passo na direcção do outro, e num momento estavam enlaçados. Num êxtase silencioso, Dudley inspirava o perfume natural de Isabel, delicado e quebradiço como o mais raro dos pássaros brancos, e ela o familiar cheiro masculino com laivos de um almíscar de cavalariça. Depois na cama, digna de um rei, de Robin Dudley, ele fez um longamente esperado e apaixonado amor com a rainha de Inglaterra.

 

esta véspera do Ano Novo de 1561, pensou Lady Mary Sidney enquanto dava os últimos retoques na toilette da Rainha, Sua Majestade poderia apenas ser comparada a uma gema preciosa - um diamante de corte fino, brilhante e lustroso, reflectindo nas suas muitas faces toda a luz que a rodeava, mas igualmente ardendo com um fogo interior. Lady Mary, ela própria uma bela mulher com traços tão belos e delicados como porcelana, adorava a sua senhora. O afecto especial de Mary, tinha que admitir, provinha em grande medida do amor que Isabel acalentava pelo seu irmão mais velho, Robin Dudley. Ela e a Rainha partilhavam um laço comum em Robert e gostavam de esbanjar sobre ele todos os tipos de afeição.

 

Mary pensou, também, que gostava da Rainha por ela própria. Era uma alegria assistir intimamente a uma mulher tão magnífica, tão adorável, com a bela pele branca, os agradáveis traços aquilinos, e aquele indisciplinado cabelo semelhante a um rebentamento de luz. Isabel, apesar do seu mau gênio e dos seus humores exasperantemente caprichosos, explodia de vitalidade, era estimulante estar perto dela, e era muito gentil com os seus amigos.

 

- Muito bem, Mary, deixa-me olhar para mim - disse finalmente Isabel. - Mary Sidney afastou-se e a Rainha passou majestosamente para o seu quarto de banho espelhado. Ela gostava deste ritual: vestir-se com as mais opulentas sedas e veludos, brocados e peles, com jóias esplendorosas, leques pintados, e sapatos elegantes, e depois ficar parada no meio dos espelhos que se estendiam do chão ao tecto para admirar a requintada visão de todas as perspectivas.

 

Esta noite, pensou Mary enquanto observava Isabel a examinar-se a si própria, a Rainha tem de perceber que se excedeu bastante a si própria em esplendor.

 

- Sou muito vaidosa, não sou, Mary? - disse Isabel, libertando timidamente mais uma fracção dos seus pequenos e pálidos seios de baixo do corpete de cetim.

 

- Sois de facto, Majestade. Mas vós mereceis ser vaidosa, pois sois muito, muito bela.

 

Isabel sorriu um sorriso rasgado, os seus pequenos dentes a cintilar à luz das velas como pérolas. Ela adorava de facto ser admirada.

 

- Pensará o nosso Robin assim?

 

- Ele ficará subjugado - disse Mary com sinceridade grave. Isabel virou-se e agarrou as mãos da sua dama.

 

- Não é maravilhoso tê-lo em casa, Mary? A corte parecia-me morta, vazia sem ele. Não tenho estado em mim. Sinto que de alguma forma consigo respirar mais facilmente sabendo que ele está aqui.

 

- Eu também, Madame - disse Mary acalentada pelas palavras da Rainha. - Eu também.

 

- Bem deixai-me olhar para vós - disse Isabel, virando o seu olhar para Mary. - Estais adorável esta noite. O vosso marido deve achar-vos muito encantadora. Mas Penso - Isabel regressou ao seu quarto de dormir, onde diversas outras senhoras estavam a arrumar os vestidos e jóias que ela tinha escolhido não usar -, falta-vos qualquer coisa. Vinde aqui, Mary.

 

Mary Sidney seguiu Isabel até uma pequena arca cheia de brincos brilhantes e observou enquanto a Rainha escolhia um par de lágrimas de safira armadas em filigrana de ouro. Isabel segurou-os de encontro ao corpete de veludo azul de Mary.

 

- Uma boa combinação. Tomai, colocai-os.

 

- Obrigado, Majestade - murmurou Lady Mary, profundamente emocionada. Estava consciente dos olhos de todas as outras damas sobre ela, as ondas de ciúme mesquinho normalmente reservadas para o seu irmão agora dirigidas a ela. Mary endireitou as costas, e enquanto apertava os brincos de safira percebeu subitamente como é que Robin era capaz de aguentar o ódio que lhe era dirigido: o amor de Isabel, como uma grande onda purificadora, varria para longe tudo o que era baixo e malicioso, nada deixando a não ser a devoção incondicional daqueles que verdadeiramente gostavam dela. Mary Sidney voltou-se e sorriu graciosamente para o tagarelar de damas carrancudas, depois seguiu Isabel pela porta do seu quarto de dormir.

 

Um grupo festivo estava agora reunido na Sala do Trono - o círculo íntimo da Rainha. Quando Isabel entrou majestosamente, um silêncio assombrado recaiu sobre os convidados. Nesta noite ela estava, como Mary Sidney tinha observado, radiante, na verdade quase de outro mundo. Os homens curvaram-se, as mulheres fizeram a vénia, e Isabel, libertando-os do momento inicial de formalidade, começou a mover-se entre eles. A Rainha estava transbordante de bom humor, genuinamente feliz de ver estes leais amigos e parentes. Moveu-se primeiro na direcção do seu devotado secretário, William Cecil, que se ajoelhou e lhe beijou a mão.

 

- Folgo em ver que haveis deixado as vossas faces sóbrias em casa esta noite, Sir William. Estamos aqui para uma celebração, não estamos?

 

- De facto, Madame. Temos muito para celebrar neste Ano Novo. Uma paz com a França arduamente conquistada, uma moeda reformada, o estabelecimento religioso. Nenhuma façanha desprezível para qualquer monarca.

 

- E especialmente uma mulher, não,

acrescentou ele - provocou Isabel, brincando com o colarinho de Cecil.

 

Virou-se de seguida para o marido de Mary, Sir Henry Sidney, um homem de voz branda e características suavizadas que protegiam uma mente aguçada e um carácter firme e elevado. Amava loucamente a mulher, a qual lhe correspondia. Isabel gostava muito do casal e agora aceitava a reverência de Henry com um cumprimento a Mary pela sua ternura especial na assistência à pessoa da Rainha.

 

Com uma palavra gentil para Kat e John Ashley, os seus guardiães desde a tenra infância, Isabel moveu-se para um grupo que reconhecia como as suas relações do lado Bolena, todos elevados a posições de honra na corte desde a sua leitura do diário secreto de sua mãe. As súbitas e inesperadas elevações de Lord Howard de Effingham, Francis KnoIlys, e o jovem Lord Hunsdon tinham-se mostrado um agradável choque para eles. Até à sua ascensão, Isabel não falara no nome da mãe durante mais de vinte anos. Tinha aceite sempre a aterradora reputação oficial da rainha Ana de traidora e adúltera, e distanciara-se da vergonha da sua morte ignominiosa. Os parentes maternos da Rainha, que pela segurança das suas famílias tinham enterrado a sua ligação e estendido uma capa de silêncio sobre a memória de Ana, eram agora alçados pela mão carinhosa de Isabel ao alto trato. Esta noite os seus cumprimentos à Rainha eram efusivos e dos mais sinceros.

 

Por fim, Isabel aproximou-se do seu amante, que estava de pé com o seu único irmão vivo, Ambrose, uma versão mais leve de Robert Dudley mas igualmente bem-parecido e gracioso, e partilhando a sua reserva digna. Em uníssono os dois irmãos executaram a sua vénia de cortesãos mais profunda e mais teatral, o que arrancou uma gargalhada à garganta da Rainha.

 

- Meus senhores Fric e Frac. Tendes vós uma pequena dança para acompanhar a vossa actuação?

 

- Para Vossa Graciosa Majestade inventaremos uma - replicou Ambrose Dudley.

 

Isabel apanhou e enfrentou o olhar de Robin.

 

- Qual é o vosso segredo, Majestade? - perguntou ele. - De cada vez que eu penso que vós não poderíeis aparecer mais bela, excedeis-vos a vós própria mais uma vez.

 

- Se vos contasse, Robin, já não seria um segredo. Portanto - disse ela, acariciando a bochecha bronzeada dele com os seus longos dedos brancos permanecerei um enigma.

 

Com um gesto galante Robin Dudley ofereceu o braço à Rainha, e juntos conduziram os mais queridos e mais próximos dela para a noite de Ano Novo.

 

A reunião no grande salão estava alegre e cintilante, zumbindo na antecipação da chegada da Rainha. O seu séquito nesta noite incluiria o infame Dudley, um homem mais odiado do que amado, mais temido do que respeitado. A corte Tudor foi sempre um local de diversas intrigas e escândalos, mas esta noite toda a conversa fervilhava à volta de Robin. e Isabel... e da morte de Amy Dudley.

 

Perto do palco, especialmente erguido, em que seria representada dentro em pouco uma peça encontrava-se um grupo de senhoras e cavalheiros, com as cabeças juntas umas das outras, mantendo as vozes discretas.

 

- Dizem que Lady Dudley afastou todos os criados da casa para irem à feira, ficando só - disse Lady Norbert. - Uma coisa estranha da parte de uma mulher tão doente.

 

- Disseram-me que ela tinha uma estranha mente - acrescentou Lord Mayhew. - Para mim é muito suspeito. Cá para mim foi suicídio.

 

- Sim, a sua criada mais próxima, Pinto de seu nome, afirmou que a senhora rezava diariamente de joelhos para que Deus a libertasse do seu desespero - afiançou Mrs. Fortescue, abanando-se furiosamente com o leque como se a coscuvilhice a estivesse a fazer suar.

 

- Havia muito com que estar desesperada - disse Lady Norbert, tão fria quanto Mrs. Fortescue estava sobreaquecida. - O cancro no peito dela. O marido à espera que ela morresse.

 

- Acho que ele não esperou que ela morresse - anunciou o doutor Fortescue, um cavalheiro de porte imponente e faces rubicundas. Dudley é um homem demasiado obstinado na ideia de casar com a Rainha para o ter deixado ao acaso.

 

- Dais-lhe demasiado pouco crédito, Fortescue - insistiu Mayhew.

- Dudley é um homem esperto. Porque haveria ele de arriscar uma tal acusação se a sua mulher estava destinada a morrer mais cedo ou mais tarde?

 

Lady Winter, sussurrando para fazer com que a sua opinião parecesse mais importante, interveio:

 

- Ouvi contar de uma mulher com essa mesma doença cujo pescoço se tornou tão frágil que estalava de cada vez que ela descia um degrau. E Amy Dudley foi encontrada ao fundo de uma longa escada.

 

Do outro lado do grande salão decorria uma discussão bastante mais grave. Estes homens do Conselho Privado da Rainha tinham todos os olhos assentes sobre um príncipe sueco alto, louro, que cintilava numa veste de ouro juncada de pedras preciosas. Estava rodeado pela sua própria delegação bem como por ingleses da corte tentando cair nas suas boas graças.

 

- Agora que Dudley regressou - observou Lord Clinton - o príncipe João já não terá mais sorte na conquista da mão de Isabel do que a teve o seu irmão Eric.

 

- Menos - disse Lord Arundel taciturnamente. - Pois agora o Cigano é livre de se casar, e diz-se que o afecto da Rainha por ele está intacto.

 

- Bem, ela deve casar e deve casar brevemente - insistiu Lord North. Escolherá com certeza um dos arquiduques espanhóis.

 

Com a menção aos hispânicos, todos os olhos procuraram naturalmente o bispo de Quadra, o homem pequeno e atarracado vestido de preto e vermelho, embaixador da corte de Filipe II de Espanha. Ele estava a ouvir com as sobrancelhas bem cerradas uma conversa entre dois embaixadores de Bruxelas. O bispo era um bom ouvinte - alguns eram da opinião de que era demasiado bom. Era sobejamente conhecido que de Quadra era espião de Filipe, e mandava diariamente despachos copiosos ao rei, cheios de espionagem oficial bem como de rumores de bastidores relativamente à totalmente equívoca rainha herética e à sua corte.

 

- Ela é teimosa - afirmou Lord Clinton, retomando a conversa dos conselheiros privados. - Os dois últimos anos provaram-no.

 

- Até ela se deve aperceber da urgência de produzir um herdeiro raciocinou North. - Ela afirma amar a Inglaterra, mas sem um sucessor a ameaça de uma guerra civil, ou pior, Espanha e França lutando em solo inglês, paira sobre as nossas cabeças!

 

- Ela tentará casar com Dudley - resmungou Arundel - e nós sabemos que Dudley morrerá a tentar casar com ela.

 

Norfolk, resplandecente com a nobreza da sua linhagem e título - o único duque vivo de Inglaterra - falava muito calmamente, e toda a gente se inclinava para ouvir.

 

- Não existe nenhum homem em Inglaterra que possa suportar a ideia de Robert Dudley como nosso rei. Digo-vos, se ele não abandona as suas presentes pretensões, pode não morrer na sua cama.

 

Nesse momento houve um sobressalto de murmúrios e cochichos, até algum riso.

 

Lord Suffolk, ele próprio um homem de inquestionável linhagem e não pouca importância, falou com autoridade:

 

- Todos vós sabeis que eu não morro de amores por Robert Dudley. Mas digo que devemos deixar a Rainha escolher segundo o seu próprio afecto. Sabemos que os filhos são mais prontamente concebidos no meio de paixão do que sem ela. E se o que a Inglaterra tão desesperadamente precisa é de uma criança do corpo da Rainha, não vos parece sensato deixá-la tornar um homem à vista do qual se lhe erga o desejo? Essa, digo-vos eu, é a forma mais segura de nos proporcionar um abençoado príncipe.

 

Uma fanfarra de trombetas interrompeu o falatório enquanto a Rainha e os seus íntimos chegavam ao grande salão. Mesmo aqueles que tinham razão para resmungar ficaram deslumbrados pelo esplendor radiante de Isabel nesta noite. Convidados de uma certa idade não conseguiam deixar de comparar a presença e físico da Rainha aos do seu pai. Apenas o mais velho dos seus parentes Bolena se apercebeu de qualquer semelhança com a mãe. Todos e cada um, contudo, deu por si atraído para a sua teia, tecida de inteligência, graça e charme magnético. O ano de 1561 não tinha ainda nascido, mas a sua promessa era tão resplandecente como a própria rainha de Inglaterra.

 

Robin Dudley, ainda com uma camisa de noite de cambraia fina, estava sentado e imóvel enquanto Tamworth rapava a barba castanho-clara do seu senhor. O criado tinha disposto sobre a cama as vestes de trabalho de Lord Dudley prontas a utilizar - calções de camurça, colete de couro, gibão suavizado pelo uso e botas de montar de cano alto, Estava um dia perfeito, pensou Dudley enquanto olhava pela janela

 

com pinázios para a fresca madrugada de Inverno, perfeito para lançar a sua intriga. Embora persistissem reminiscências do feio rumor acerca do seu envolvimento na morte de Amy, o assunto estava real e verdadeiramente acabado. Robin Dudley era agora um homem livre, e mais apreciado nos favores da Rainha do que qualquer cortesão o tinha sido antes. A sua determinação de casar com ela nunca fora tão feroz nem tão aguçadamente refinada. Ele era, assumidamente, demasiado ambicioso e estaria a mentir se afirmasse que não desejava ser rei de Inglaterra. Mas, questionava-se ele, quem melhor para a tarefa? Ele era um inglês de sangue nobre, tinha dado provas como soldado bravo e engenhoso durante o reinado da rainha Maria, e, até os seus detractores tinham que lho conceder, era um administrador brilhante.

 

Mais importante, pensou Robin enquanto se punha de pé e permitia a Tamworth que lhe puxasse a camisa de noite por cima da cabeça, ele amava verdadeiramente a Rainha, até a desejava luxuriantemente. As palavras de afecto que lhe sussurrava em momentos de paixão privada - bem como os seus protestos públicos de devoção - eram absolutamente sinceras. Isabel mexia com ele como nenhuma outra mulher o tinha feito, afectando-o o poderoso intelecto dela tanto como a sua atracção física. Ela não era uma beldade no sentido tradicional. Era demasiado alta, demasiado magra, demasiado angular. Mas o fogo no seu espírito tinha-se tornado o combustível para a própria chama dele, que acreditava totalmente que Isabel Tudor era o seu grande e afortunado destino. Todos os obstáculos que tinham surgido antes, todos os que fossem lançados aos seus pés, eram insignificantes, pois ele e a sua amiga de infância estavam decididamente destinados a tornar-se marido e mulher.

 

Uma batida incisiva na porta do quarto de dormir lançou Tamworth numa correria para a abrir. O cunhado de Dudley, Henry Sidney, vestido para montar, passou rapidamente pelo servo com um cumprimento imperceptível. Sidney era todo negócio nesta manhã. Demasiado agitado para se sentar, caminhava enquanto falava.

 

- Achas que ele vai gostar? - começou Sidney nervosamente.

 

- O bispo de Quadra? Acho que vai ficar intrigado. Eu estou bem cotado junto dos Espanhóis. O rei Filipe tem-me em grande estima pelo serviço militar que lhe prestei nas guerras napolitanas.

 

- Mas para que Filipe lance todo o peso do seu apoio quanto ao teu casamento com a Rainha...?

 

- A recompensa dele seria muito maior do que o seu esforço a meu favor - disse Dudley, erguendo uma perna e depois a outra para que Tamworth pudesse empurrar as botas para cima de cada uma das bem musculadas barrigas das pernas. - Afinal, o que Filipe deseja mais do que tudo é uma Inglaterra mais uma vez sob o seu controlo, um país católico como era quando ele foi casado com a irmã de Isabel.

 

Tamworth prendeu a espada e o punhal de Dudley, fazendo os ajustes finais ao vestuário do mestre-de-picadeiro. Assim vestido, ele era tão viril e belo como nenhum outro homem na corte... e sabia-o.

 

- Trata do meu fato de veludo púrpura para esta noite, Tamworth. Precisarei de roupa interior fresca e de novos calções.

 

- Sim, meu senhor.

 

- Vem, Henry, tenho coisas a tratar nos estábulos antes que de Quadra chegue para o passeio.

 

Enquanto percorriam os corredores do palácio, mantiveram as vozes discretamente baixas, os olhos sempre alerta devido aos que podiam espiar a conversa. Havia homens que pagariam bom preço para estarem a par dos assuntos do favorito da Rainha.

 

- Estás seguro de que tens o consentimento da Rainha para este plano, Robin? Eu pessoalmente não vejo qualquer mal na restauração do catolicismo, e na renovação da autoridade papal, mas Isabel lutou tão ferozmente para estabelecer a Nova Religião em Inglaterra. Deixará ela agora que Filipe dite a política em solo inglês, como o teu plano supõe, ou suprimir a heresia protestante? Isso significa mendigar e adular Espanha, tudo pela honra de se casar contigo.

 

- Sei que soa a loucura - sussurrou Dudley. - Mas pensas que a Rainha me instalou nos aposentos contíguos aos dela por nenhuma razão? Ela ama-me verdadeiramente, Henry.

 

- Não duvido disso.

 

- E disSe-me vezes incontáveis que é a Rainha e fará como lhe aprouver. Quando está nos meus braços jura repetidamente que nunca terá outro homem.

 

- E como todos nós sabemos que ela tem de casar... - acrescentou Sidney.

 

- Casar-se-á comigo! - disse Dudley com uma convicção serena. Tinham chegado a um longo edifício de tijolo que albergava os estábulos reais. Estribeiros e moços de estábulo saltavam em sentido à aproximação do mestre-de-picadeiro, e à medida que passava, Dudley reconhecia todos com um sorriso ou um leve abanar de cabeça.

 

- Mas ao preço da dominação espanhola sobre a Inglaterra? - persistiu Sidney. - Não consigo deixar de pensar...

 

Dudley parou para encarar Henry Sidney firmemente.

 

- É simplesmente a forma de atingir o meu objectivo, Henry. Um meio para atingir um fim. Eu sou protestante no meu coração e não tenho nenhum desejo de ser governado por Filipe ou por Roma. Mas sei que uma vez que Isabel e eu estejamos casados - parecia exacerbado com a ideia - tudo é possível. - Robin caminhou para junto da boxe de uma bela égua cinzenta e entrou, aproximando-se com cuidado do animal e acariciando-lhe o poderoso pescoço. - E além disso - acrescentou ele irreverentemente - os tratados são muito frequentemente quebrados.

 

- Tratados quebrados provocam guerras - insistiu Sidney.

 

- Jackie! - Robin chamou um jovem sujo que espalhava feno no estábulo ao lado -, traz o Great Savoy para Sir Henry, se fazes favor.

 

Dudley começou a escovar a égua com uma escova rígida, e ela encostava-lhe o nariz afectuosamente. O homem tinha de facto um jeito extraordinário com os cavalos, pensou Henry Sidney. A sua nomeação para mestre-de-Picadeiro fora muito ajustada.

 

- Então não falarás a meu favor com o bispo de Quadra, não é? - perguntou Robin, aparentemente imperturbável.

 

- Eu não disse isso. Apenas peço alguma garantia de que não estou a pisar num ninho de vespas. Sabemos que o ferrão da Rainha é comprido e verdadeiramente afiado.

 

- Presumo que a minha irmã ainda está aborrecida comigo devido ao assunto do arquiduque Carlos - disse Dudley.

 

- Mary perdoou-te porque és irmão dela e ela adora-te, mas foi humilhada e mortificada por tu a teres envolvido nas tuas tortuosas intrigas de casamento - disse Sidney enquanto o moço de estábulo voltava com um magnífico garanhão. - É pouco provável que ela se volte a envolver, e não tem sequer ideia do que eu estou prestes a fazer.

 

- Então vais-me ajudar! - gritou Robin, colocando uma mão à volta de Henry Sidney.

 

- Disse que ajudaria e honro a minha palavra. Juro, Robin encantas-me com tanto jeito para com as mulheres.

 

Dudley conduziu ambos os cavalos lá para fora quando o diminuto embaixador espanhol vestido de preto se aproximava.

 

- Bom dia, bispo - disse Robin com uma vénia respeitosa.

 

- Bom dia para vós, Lord Robert, Sir Henry - respondeu de Quadra, com um sotaque espesso como o mel espanhol.

 

- As vossas montadas estão prontas, cavalheiros - anunciou o mestre-de-picadeiro.

 

- Vejo que me haveis dado Speedwell outra vez - disse de Quadra, acariciando o focinho do animal e examinando o músculo retesado da perna direita frontal dela.

 

- Haveis gostado dela da última vez que montaste - disse Robin - e a perna frontal está completamente curada. Tereis uma boa cavalgada. Henry Sidney já tinha montado o seu cavalo, e o próprio Robin deu ao embaixador espanhol uma ajuda para subir.

 

- Bom passeio, senhores! - gritou Dudley enquanto os homens arrancavam num trote rápido. - E boa sorte para ti, Henry - disse depois. Mas o par estava já fora do alcance da voz.

 

Quando já não se avistavam, Robin selou a sua própria montada. Precisava de um sítio para dar livre curso à sua mente, para sonhar com as boas notícias que o seu cunhado traria brevemente acerca do seu destino e futuro. E para Robin Dudley esse sítio era o dorso de um cavalo. Lançou-se graciosamente para o dorso do animal e com o mais simples incitamento - pois a sua comunicação com estes animais era extremamente refinada - partiram, voando num galope acelerado para fora dos portões do Palácio de Whitehall.

 

Era a primeira festa da água da estação e Dudley, grão-mestre das Diversões, tinha-se mais uma vez excedido a si próprio. O tempo obrigara a isso, com o sol de Março a espalhar calor e luz sobre o Tamisa. Centenas de embarcações alegremente ornamentadas vagueavam com a maré num percurso curvo desde Greenwich e através dos campos de juncos aquáticos na direcção do mar. Uma grande frota de cisnes brancos cruzava em escolta majestosa lado a lado com a lancha real, dando à Rainha uma medida extra de deleite num dia já esplêndido.

 

Na proa, Robin estava de pé com Henry Sidney lançando O olhar sobre a água translúcida, que brilhava como um grande cesto de jóias. Os homens sorriam, cheios de confiança, prazenteiros com os resultados dos seus últimos esforços. Incentivado por Henry, o bispo de Quadra tinha escrito ao rei Filipe, e o monarca espanhol indicara o seu apoio para o casamento de Dudley com Isabel. Agora mesmo de Quadra estava sentado com a Rainha no tombadilho da lancha, o convidado especial dela neste dia, para ver os entretenimentos e os jogos aquáticos.

 

- O bispo diz-me que Isabel disse que terá de casar com alguém, e que ela acredita que os súbditos desejam que ela escolha um inglês - disse Henry numa voz baixa e confidencial. - E ainda melhor, o embaixador afirma que Filipe ficaria especialmente satisfeito se o inglês fosses tu, porque sempre gostou muito de ti.

 

Dudley não conseguia evitar balbuciar com satisfação.

 

- Estou tão perto do sucesso - murmurou ferozmente. - Acho que apenas a timidez de Isabel a retrai agora.

 

- Eu digo que deves adoptar o caminho próprio de um homem, rogar à Rainha de uma forma temerária que case contigo antes da Páscoa. Dudley inspirou profundamente.

 

- Deseja-me sorte, então, Henry. É um dia tão bom como qualquer outro. Quando chegou ao tombadilho, Robin pôde ver de Quadra e a Rainha sentados lado a lado, com as cabeças próximas, a partilharem uma gargalhada. Pôde ouvir que eles conversavam em espanhol, uma língua que Isabel falava tão fluentemente como o inglês.

 

- Perfeito - disse Dudley para consigo. - Estão de boa disposição. Deixem-me apenas encontrar uma forma de entrar na conversa.

 

- Lord Robert! - chamou de Quadra cordialmente, vendo Dudley. Continuou a falar em espanhol. - Juntai-vos a nós. Estamos a apreciar muito este vosso entretenimento.

 

- Haveis visto a batalha de escárnio entre sapos e peixes? - perguntou Dudley, referindo-se aos flutuadores coloridos tripulados por figuras aquáticas escandalosamente vestidas.

 

- Se os sapos eram os franceses - perguntou Isabel causticamente - então quem eram os peixes?

 

- Quem ganhou a batalha? - disse Robin, respondendo à pergunta com outra pergunta.

 

- Os peixes - respondeu de Quadra.

 

- Então os peixes eram ingleses, claro - disse Dudley com um sorriso encantador.

 

Todos riram alegremente e, subitamente, Robin Dudley, olhando para a água por cima do parapeito, descobriu que as suas preces tinham sido atendidas. Do grupo de cisnes a estibordo, duas aves destacaram-se, deslizando lado a lado como que liderando uma procissão solene. Dudley agiu rapidamente. Não havia forma de saber por quanto tempo a formação ficaria assim.

 

- Vede o feliz casal - disse ele, direccionando o olhar de Isabel e de de Quadra para os cisnes. - A noiva e noivo e a sua festa de casamento. Isabel olhou para cima para Robin com olhos alarmados. Ele olhou-a

 

descaradamente durante um longo momento, e depois mergulhou para o caldeirão borbulhante.

 

- Bispo de Quadra, vós eu e a Rainha estamos todos presentes nesta já maravilhosa ocasião. Porque não nos casais aqui e agora?

 

Os olhos de Isabel pegaram fogo, e Robin não conseguia discernir se eles faiscavam de fúria ou excitação. Isabel sorriu e tomou a mão de de Quadra na sua.

 

- Meu senhor bispo - disse a Rainha cuidadosamente -, o que pensais vós da proposta do meu doce Robin? Casar-nos-ias?

 

O coração de Dudley batia irregularmente e ele quase não se atrevia a respirar.

 

- Mas pergunto-me - acrescentou ela timidamente - se saberás o suficiente da língua inglesa para desempenhar um tal ritual. E naturalmente, ele tem de ser em inglês.

 

Uma finta inteligente, pensou Robin. Nem um assentimento nem uma rejeição.

 

A sugestão de Dudley num tal momento e num tal sítio tinha alarmado o bispo de certa forma mais do que a Rainha. Então ele ficou sério, e dirigiu-se directamente a ela.

 

- Os heréticos continuam a espoliar a Inglaterra, Majestade. Livre-se deles - instigou ele, apertando a mão dela entre as suas. - Se vós e Lord Robert restaurarem a Verdadeira Religião, Filipe abençoará o vosso casamento, e eu... - Ele quase não conseguia falar, de tão exacerbado que estava com a ideia de que neste momento podia dar ao seu rei o presente que este mais ardentemente desejava: uma Inglaterra católica. - Eu ficarei honrado por ser o padre que presida a essa cerimónia.

 

O sorriso nunca abandonou o rosto de Isabel, mas Robin perguntava-se, enquanto a observava, o que estaria por trás desse sorriso. Ele tinha feito o seu lance tão destemidamente como um homem o podia fazer. A sua petição era apoiada pelo rei de Espanha tão completamente como ele tinha sonhado.

 

- Isabel - gritou Dudley silenciosamente. - Isabel, consente. Faz de mim o homem mais feliz na terra!

 

- Sois muito gentil, bispo. - A Rainha olhou calorosamente para Robin, agarrando na mão dele. - Sabeis dos meus profundos sentimentos para com Lord Robert. Meditarei sobre as propostas de ambos. Ah, olhai ali! - Isabel apontou para uma barcaça coberta de algas que vinha ao lado deles, na qual sereias e tritões se espalhavam rodeando um Posídon entronado. O deus-rei erguia o tridente de ouro fingido na direcção da Rainha, e ela ergueu a sua mão para ele, uma saudação triunfante.

 

- Eu amo de facto os meus súbditos! - exclamou Isabel.

 

Era uma paixão, observava Robert com uma sensação de se afundar, que teria sido bem melhor dirigida se o fosse para ele. A Rainha tinha conseguido mais uma vez ser mais esperta do que ele, fugir-lhe, escorregar-lhe por entre as mãos como uma enguia serpenteante.

 

"Raios a partam, raios a partam!", gritava ele no íntimo. Depois, abrindo um agradável sorriso na sua cara assombrada, Lord Robert Dudley voltou a reunir a sua graça e retomou a intrincada dança de cortesão.

 

Numa manhã escura como o crepúsculo com a melancolia da chuva intensa, a carruagem real percorria com ruído os sulcos da estrada.

 

Os homens da guarda da Rainha resmungavam pragas não contra a água mas contra o frio desta tempestade de Páscoa. O Inverno tinha sido interminável, o Tamisa gelara em diversas ocasiões. Nas semanas anteriores os dias quentes tinham anunciado a Primavera, as árvores em sobressalto com rebentos verde pálido, flores silvestres delicadas a brotarem em manchas de erva suave. E agora isto. Chuva fria e entorpecedora e Sua Majestade recusando-se a adiar a viagem para Mortlake.

 

Dentro da carruagem os ocupantes não sentiam nem a humidade nem o frio nem sofriam a cavalgada de fazer doer os ossos, pois estavam aconchegados em boa e alegre companhia. A Rainha, acompanhada pelos que lhe eram mais queridos - Robin Dudley, Lady Mary Sidney, Henry Sidney, e o filho de sete anos de ambos, Philip - estava de boa disposição. Iam estes cinco tão confortáveis e ruidosamente alegres, com ideias e argumentos a atropelarem-se para fora das suas bocas como água a brotar de uma fonte, que tinham de gritar uns por cima dos outros para se fazerem ouvir, depois riam naturalmente acerca da sua própria rudeza.

 

- John Dee apenas procura a reforma educacional! - gritava Robin Dudley.

- Reforma? O que ele procura é a revolução, Robin! O que ele mudaria, se pudesse, todo o currículo de Oxford e Cambridge, descartando os estudos humanísticos clássicos, impondo as ciências herméticas e, pior, as matemáticas, as quais, como o nosso tutor de infância Roger Ascham diria, são um pouco suspeitas, quem sabe até, diabólicas.

 

- E o meu tutor doutor John Dee - persistia Robin.

 

- E meu - acrescentou Mary Sidney a brincar.

 

- E em breve o meu - lançou o jovem Philip.

 

- O nosso ilustre tutor ensinou-nos - Robin colocou afectuosamente o braço em redor do seu pequeno sobrinho - e irá brevemente ensinar-te, Philip, não apenas as matemáticas mas as aplicações práticas dessa ciência.

 

- Até vós deveis admitir, Majestade acrescentou Henry Sidney de maneiras brandas - que a contabilidade e a manutenção dos livros com a numeração romana é mais trapalhona e demora mais tempo do que com os números árabes.

 

- Não tenho qualquer desentendimento com a matemática prática, Henry, mas Dee e os seus irmãos no hermetismo fazem alegações selvagens de que o "número" é a chave para a própria verdade, que sem ele não se tem qualquer entendimento do universo. Absurdo!

 

Seguro de que as suas próximas palavras iriam provocar uma reacção explosiva, Robin falou directamente para Isabel.

 

- Eu concordo com o doutor Dee, que, de facto, o "número" era um padrão da mente de Deus durante a criação.

 

- Não podeis acreditar nisso, Robin! - disse a Rainha.

 

- Mas acredito - respondeu ele calmamente. - Não tenho senão boa-fé relativamente a John Dee. Ele é a mente mais brilhante de Inglaterra e eu sei que vós concordais.

 

- E concordo, mas...

 

- E estáveis tão ansiosa com a antecipação desta visita a sua casa que nada, nem uma dor de cabeça ontem nem a água tempestuosa hoje, vos conseguiu impedir de a realizar.

 

- Tenho a mais profunda estima pelo doutor Dee. É um grande filósofo e erudito, navegador e cartógrafo. Escreveu uma elegante tradução dos Elementos de Euclides e encontra muitas formas de servir o seu país com os seus conhecimentos. Ainda no mês passado apresentou um interessante plano para reorganizar toda a nossa indústria de pesca. Mais importante - acrescentou ela - tem a mais magnífica biblioteca de toda a Inglaterra. Quatro mil livros! Oxford e Cambridge juntas têm menos de um quarto dessa quantidade. - Então a expressão dela mudou para qualquer coisa perto do desdém. - Mas das suas crenças no ocultismo, nos números apocalípticos, nas fórmulas cabalistas e nas inscrições mágicas, tenho eu sérias dúvidas.

 

- Então não viestes para ver a sua tabela de previsão, e recusareis deixá-lo dizer-vos o vosso futuro? - provocou Henry Sidney.

 

- Quereis dizer o espelho mágico dele, pai? - perguntou Philip Sidney. Ele tem realmente um maravilhoso objecto como esse?

 

- Dizem que sim - respondeu o Sidney mais velho. - E se o tem, iremos todos vê-lo em breve.

 

O rapaz bateu palmas de excitação e os outros sorriram indulgentemente.

 

- Penso que a Rainha aligeira o seu interesse pelas ciências ocultas disse Robin, com a intenção de reavivar a sua discussão. - Ela fez, afinal, com que Dee lhe traçasse o horóscopo para descobrir o dia mais auspicioso para a sua coroação.

 

- Devido à sua instigação insistente! - retorquiu Isabel. - E aliás, dificilmente se pode considerar a astrologia como oculta. É do conhecimento comum que as estrelas afectam o destino e a fortuna do homem. - Isabel, sem o mencionar, pensava em algo que tinha lido no diário de Ana Bolena, uma profecia dada à sua mãe pela semilouca Dama Santa do Kent, uma profecia que tinha marcado o destino de Ana e, consequentemente, também o de Isabel. Foi uma visão que tinha previsto que Ana se tornaria rainha, o nascimento do seu "filho Tudor" e o reinado de quarenta e quatro anos dessa criança. Os dois primeiros aspectos da profecia já eram passado, meditou Isabel, mas qualquer pessoa bem informada desse tempo podia ter adivinhado que a beldade de olhos negros tão fervorosamente perseguida pelo rei Henrique se podia tornar a sua rainha e iria quase de certeza ter um filho. Quanto a ela própria reinar quarenta e quatro anos, Isabel tinha enormes dúvidas. já tinha vinte e sete anos. Uma mulher a reinar ainda como rainha com a idade de setenta anos? Não lhe parecia.

 

- Farias bem em ter mais discernimento acerca destas crenças herméticas, meu caro Robin, e não seguires tão cegamente qualquer palavra que este homem profira.

 

- Acreditais nos ensinamentos de Moisés, Majestade? - perguntou Mary Sidney.

 

- Absolutamente, Mary - respondeu a Rainha, espantada pela pergunta da sua dama de companhia.

 

- O próprio Moisés foi instruído nos textos do Antigo Egipto e Herméticos que dizem que a magia é simplesmente o conhecimento das coisas naturais. Ele era um homem que tinha poder tanto nas suas palavras como nos seus trabalhos, não concordais?

 

Isabel apercebeu-se com um súbito aborrecimento que tinha tropeçado numa armadilha. Mas era tarde de mais. Mary prosseguiu.

 

- Logo se Moisés, que era simplesmente um homem instruído, praticava magia, então por que não haveria de fazer o mesmo um homem instruído como John Dee?

 

Isabel recostou-se para trás no seu assento almofadado, derrotada.

 

- Vocês são quatro e eu apenas uma - resmungou ela. - Nunca vencerei esta discussão.

 

- Mantereis pelo menos uma mente aberta? - instigou Robin Dudley.

- Aceitais a possibilidade de que as matemáticas e o oculto têm um verdadeiro lugar na filosofia?

 

- Quando é que alguma vez me fez falta uma mente aberta, Robin? Darei ao nosso doutor Dee todas as oportunidades para me convencer das suas estranhas ciências.

 

- Olhem! - gritou subitamente o jovem Philip, afastando a cortina. A chuva parou.

 

De facto, a chuva tinha parado e o ar deslizava em torno das suas faces frescas e doces. Podiam ver as árvores ainda a pingar orvalho, e o sol a espreitar através do que restava das nuvens negras. Robin esticou a cabeça para fora da janela do coche durante um momento, e depois virou-se para os seus amigos.

 

- Chegámos a Mortlake - anunciou com um sorriso. - A aventura começa.

 

Uma casa de quinta antiga e irregular de muitas divisões e diversos pisos, todos ligados entre si fortuitamente, entrou no campo de visão. Esperando à porta para se encontrar com os seus hóspedes estava o grande homem em pessoa, a sua mulher Katherine e o filho mais velho de ambos, Arthur, de treze anos. A carruagem parou com ruído e Isabel teve um vislumbre de Dee, espadaúdo, de meia-idade, com a sua longa barba triangular e penetrantes olhos azuis. Os homens da Rainha desmontavam para assumirem posições perto da entrada e os peões abriam as portas da carruagem, ajudando os passageiros a sair.

 

Houve uma agitação de tagarelice excitada e abraços calorosos em profusão entre os Dudley e os Dee. À Rainha, os seus anfitriões ofereceram a sua mais sincera vénia. Mas Isabel, alegremente informal com a sua companhia anterior, desejou estender essa mesma informalidade aos Dee, e assim estavam todos de boa disposição quando entraram na casa da quinta, toda a fadiga da viagem esquecida, e fecharam a pesada porta de madeira atrás deles.

 

O jantar de empada de carneiro e codorniz assada foi servido quase imediatamente a seguir à chegada, pois estava planeado que deviam ter o máximo possível de horas de luz para vaguear por entre as bibliotecas e laboratórios do doutor. A conversa e discussão continuaram durante a refeição como na carruagem - vívida, barulhenta, de boa disposição. Para Isabel isto era uma especial delícia, estar longe do rígido protocolo da corte, o constante falatório malicioso, as responsabilidades infindáveis. Aqui estava ela como uma rapariga na sala de aulas novamente, sem qualquer necessidade de impor a sua vontade ou de ter sempre as coisas à sua maneira. Era, concluiu ela, um grande encontro de mentes nesta mesa - homens brilhantes, mulheres inteligentes, até crianças interessantes, todos a participar, trocando informações e ideias.

 

O jovem Philip Sidney e Arthur Dee tornaram-se rapidamente amigos a partir do momento em que assentaram olhares um no outro. Philip, meia dúzia de anos mais novo e ainda uma bela criança com cabelo negro ondulante e olhos castanhos perscrutadores, tinha uma atenção afinadíssima, repleto de fascínio e antecipação do dia seguinte. Arthur estava autopossuído pela sua idade, naturalmente de maneiras brandas e já transpirando o ar inquisitivo de um erudito. Decerto que estava com receio da Rainha sentada à mesa da sua família, mas o jovem demorou pouco tempo a perceber que podia falar no que pensava tão livremente como com os seus.

 

- Ainda nem há sessenta anos - disse Arthur Dee gravemente - pensávamos que a circunferência de todo o mundo era de vinte mil milhas, que podíamos ir à índia navegando para oeste, e que o Sol e todo o Universo rodavam em torno da Terra.

 

- Presumo, então, que subscreveis os ensinamentos de Copérnico, Arthur - disse a Rainha com igual gravidade. - Que nem a evidência bíblica, nem a própria voz de Deus a falar através da sua Igreja provam que a Terra é o centro do Universo? Que o firmamento se move porque a Terra tem um movimento de rotação?

 

- Acredito de facto completamente nas teorias de Copérnico, Majestade - afirmou ele firmemente. - Os cálculos dele mostrando o movimento de rotação da Terra sobre o seu eixo, e os planetas a rodarem em torno do Sol, são muito lógicos.

 

- De facto - disse Isabel com um sorriso - vivemos em tempos maravilhosos. Primeiro a forma do mundo é colocada em questão, e agora a forma dos próprios céus. Devemos ser muito corajosos para ir de encontro ao futuro, pois temos pouca ideia acerca do que as nossas explorações nos podem trazer.

 

- Eu rezo para que elas não nos tragam mais destruição como a das visitas do Senhor Cortez aos povos conquistados do Novo Mundo - resmungou John Dee. - Os Espanhóis queimaram as antigas bibliotecas dos Maias, dizendo que os livros nada continham a não ser superstições e falsidades sobre o diabo. Pensai no que se perdeu para nós nesse único acto de idiotia.

 

- Imperdoável. Como os Turcos quando queimaram a Biblioteca de Alexandria - acrescentou Mary Sidney.

 

- Oh, oooh - gemeu Dee, parecendo quase em sofrimento físico só com a ideia. - O que poderíamos ter aprendido com esses textos...

 

- Vá, John - trauteou Katherine Dee suavemente. - O que está feito está feito. Vais perturbar o teu estômago a chorar sobre bibliotecas perdidas.

 

- Por falar em bibliotecas - disse Robin Dudley com jovialidade determinada - podemos começar os nossos prazeres da tarde na vossa, doutor?

 

- Sim, sim - disse Dee, empurrando para trás o seu banco e recuperando a boa disposição. - Acrescentei uma nova divisão às outras, devem ter reparado quando chegaram.

 

Todos se colocaram de pé, Philip quase que deitou abaixo o seu banquinho com a excitação.

 

- Realizei - deveria dizer Arthur e eu realizámos - uma grande quantidade de trabalho na nossa colecção, não foi, rapaz? - Arthur Dee resfolegou de orgulho silencioso em resposta à aprovação do seu pai. - Separámos os livros e manuscritos em filosofia, ciência, matemáticas, ciências hermetistas... - Dee, vibrando com entusiasmo, estava já numa porta através de uma passagem em arco com cortinas para outra divisão quando Robin Dudley ofereceu o braço à Rainha. Com uma cintilação de antecipação nos olhos, Isabel tomou-o e juntos caminharam para dentro do mundo fantástico do doutor Dee.

 

Mesmo no pico da tarde a luz era fraca nas salas bafientas da maior biblioteca de Inglaterra, pois o doutor tinha, para além das filas impecáveis de livros em ordem nas prateleiras, tantos volumes amontoados em mesas ou em pilhas no puído tapete turco que as pequenas janelas estavam quase bloqueadas por eles.

 

Os sentidos de Isabel foram de imediato acordados pelo bafio de velino, couro e tinta nas suas narinas, os tons baixos e sussurrantes muito naturalmente assumidos na presença de tal esplendor, as cores em surdina da madeira e do papel, os tamanhos e formas dos livros - alguns suficientemente pequenos para caber na mão de uma senhora, outros que quando abertos cobriam o tampo de uma mesa. Aqui estava um manuscrito medieval com iluminuras aberto para ser estudado, acolá um rolo de pergaminho com textos em hebraico, com as suas extremidades enroladas seguras por pedras egípcias talhadas, mais além um mapa de marinheiro da costa africana.

 

A biblioteca não era uma câmara vasta, antes um sem-fim de pequenas salas e alcovas e bancos de janela, todos repletos de livros. John e Arthur Dee andavam atrás dos seus convidados como sombras, segurando velas espelhadas para dar mais luz enquanto erravam entre os montes lendo calmamente títulos, talvez escolhendo um para ser tirado das prateleiras e reverentemente colocado sobre uma mesa para exame.

 

Para Isabel, e ela sabia que também para os outros, um local como este conjurava memórias de infância da sala de aula, os primeiros momentos brilhantes da vida de aprendizagem de jovens mentes - procurar, estar ávido, alimentar-se cupidamente de palavras e ideias dos grandes mestres, antigas linguagens. Mesmo agora Isabel passava diariamente uma hora ou mais a traduzir textos gregos e latinos como um passatempo divertido. Aqui entre um tão vasto tesouro das maiores obras do homem ela sentia-se não uma poderosa rainha mas uma criança intimidada.

 

Por cima do topo do volume que segurava, Isabel olhou para John Dee a ajudar Lady Mary, agora anichada num banco de janela, com a tradução de uma passagem de Homero. Ocorreu-lhe então que este era um homem que ela deveria manter perto de si, pois quer ela secundasse todos e cada um dos seus estudos ou não, Dee era uma pessoa de poder e recursos eminentes, e um verdadeiro amigo de Inglaterra.

 

Agora Robin tinha-se juntado à sua irmã e a Dee, e os três conversavam cada vez mais animadamente. Os olhos de Mary cintilavam, Dee gesticulava largamente enquanto explicava o seu ponto de vista. A curiosidade de Isabel era demasiada para aguentar, e ela restituiu o volume que estava a ler ao seu lugar na prateleira e moveu-se silenciosamente até ao banco de janela.

 

- Não é de admirar que tenhas coleccionado tantos inimigos, John, tanto protestantes como católicos - observava Robin -, se é verdade que os textos herméticos glorificam o homem como mago e, em virtude do seu intelecto divino, o igualam a Deus.

 

- Sim, sim! - gritou Dee. - Só pelo intelecto o homem pode realizar feitos maravilhosos! A ordem divina já não é o homem debaixo de Deus, mas Deus e o homem ombro a ombro.

 

- Sois um mistério para mim, doutor - interrompeu Isabel. - Sois tão pio e cheio de humildade cristã quanto um homem pode ser e, no entanto, sois inteiramente arrogante nas vossas alegações de igualdade com Deus e nas vossas crenças na magia.

 

- Na filosofia hermética, Majestade, o homem é elevado a observador aterrado das maravilhas de Deus para se tornar alguém que utiliza a energia e poder ocultos do cosmos em seu próprio proveito. - Os olhos de Dee ficaram subitamente desfocados e ele pareceu como que ausente. - A energia é manifestada em raios circulares - sussurrou, com as mãos a demonstrarem inconscientemente as suas palavras. - Emitidos a partir de tudo no universo... raios circulares... - A voz dele diminuiu de intensidade.

 

- E é através do trabalho com esta "energia oculta" que realizais as vossas maravilhas, John? - indagou Isabel.

 

A pergunta parecia trazê-lo de volta até junto deles. Dee virou-se para a Rainha.

 

- Vós ireis realizar maravilhas no vosso reinado, Majestade - proferiu ele portentosamente -, através da coligação de forças naturais dentro da vossa imaginação. Vede a coisa na vossa mente primeiro! - ordenou-lhe ele. Vede muito claramente e, eventualmente, isso tornar-se-á realidade, sim!

 

Isabel sentiu-se tonta, totalmente despojada de palavras. Robin e Mary olhavam fixamente e maravilhados para Dee, este homem que ousava falar com tal audácia com uma rainha. Ele continuou, com a voz a elevar-se:

 

- Deveis construir uma grande marinha, sim! Avançar a exploração e a expansão para novos territórios a oeste. Haveis examinado as minhas cartas genealógicas sublinhando as pretensões históricas da vossa família. Através do vosso pai, rei Henrique, vindes de Cales e descendeis da linhagem do Grande Rei Artur, Majestade. É vosso dever sagrado construir um império britânico como ele outrora fez! Dee tremia de emoção. - A vossa pretensão às terras atlânticas a que os Espanhóis chamam América, essas terras são vossas - terminou, com a voz a elevar-se ainda mais.

 

- Pai - disse Arthur Dee, e colocou uma mão aquietadora no braço de john Dee.

 

- Perdoai-me, Majestade - murmurou Dee. Caiu de joelhos perante Isabel e segurou a mão dela na sua, beijando o anel de coroação e baixando a cabeça. - Perdoai-me.

 

- Não há nada para perdoar, John. Haveis falado simplesmente com o vosso coração e a vossa mente, e eu gosto do que dizeis. O meu pai construiu os grandes estaleiros em Newport e Plymouth. Talvez eu lhes deva dar um melhor uso. Vinde, erguei-vos.

 

John Dee levantou-se e Isabel tomou o seu braço. Juntos percorreram uma passagem em arco a caminho da colecção de ciência. Robin e Mary sorriram de alívio, ouvindo a Rainha a conversar sobre o seu homem, Francis Drake, e a sua primeira viagem bem sucedida ao Novo Mundo.

 

- Uma calamidade afastada, querida irmã - sussurrou Dudley. - Mas que aventuras nos esperam esta noite neste antro de idolatria pagã?

 

A tarde tinha passado sem mais animação. Estavam todos aninhados confortavelmente entre os grandes livros, felizes nos seus calmos prazeres. John Dee, num dos seus laboratórios práticos, enaltecendo as virtudes da ciência aplicada, tinha demonstrado o conceito de energia invisível com um grande magnete, e a importância da óptica, que fazia com que coisas bem longe parecessem estar perto e com que coisas pequenas parecessem grandes. Mas tinha recebido olhares de descrença até mesmo dos seus mais ardentes apoiantes quando descrevia como o vácuo, e o ar bombeado a partir de um caldeirão, podiam ser utilizados para manter um homem debaixo de água durante algum tempo.

 

A chuva tinha começado depois de um jantar leve, mas uma vez que o grupo se iria albergar em Mortlake naquela noite não havia razão para alarme, e o serão prosseguiu a um ritmo prazenteiro.

 

Os rapazes deitaram-se, John Dee aclarou a garganta ruidosamente. Com um esgar quase malicioso mostrando os seus longos dentes de marfim, os dedos ossudos a tamborilar no peito, perguntou:

 

- Desejareis experimentar um pouco das artes mágicas?

 

Onde os amigos se haviam sentado poucos momentos antes não havia agora senão bancos vazios, pois tinham-se erguido como se fossem um só e, com tal entusiasmo, que havia grande riso em todos eles. Voltaram a percorrer o labirinto de salas de biblioteca e reuniram-se junto da porta fechada de uma câmara ainda inexplorada. Dee destrancou a porta e, com um candelabro de doze braços na mão, conduziu os seus convidados para dentro do seu famoso laboratório de magia.

 

Esta estranha divisão tinha cinco lados iguais, o chão pintado com linhas de canto a canto numa estrela de cinco pontas. A divisão estava desprovida de mobília ou livros, excepto um volume de tamanho desmesurado que jazia aberto num pedestal e parecia antigo e bem gasto. Bem no centro da sala, dentro do pentágono formado pelas linhas da estrela, estava um objecto quadrado com quatro pés, à altura da cintura, completamente coberto por um pano de seda preta com símbolos místicos pintados a vermelho.

 

- A magia que eu pratico, Majestade - começou Dee, ignorando os olhares inquiridores do grupo em direcção ao objecto -, a magia hermética, é nada mais do que a ciência do divino. É uma revelação directa de Deus, deveis compreender e, consequentemente, não pode de forma nenhuma ser diabólica. Podereis não saber que Hermes Trismegisto, o mais pio dos padres egípcios que viveu antes de Cristo, e cujos tratados originais formam a base da tradição hermética, prognosticou realmente a vinda da Cristandade, sim! - Dee estacou apenas o tempo suficiente para inspirar. - Como haveis notado, Majestade, eu sou um homem religioso, e deveis saber que o principal objectivo que eu procuro através da minha magia-,é a salvação através de capacidades divinas... se bem que sem a intervenção da Igreja e apenas com a ajuda de Deus.

 

Isabel absteve-se de responder, de reconhecer a apologia de Dee, ou de falar de outra forma, pois sabia que esta era a palestra de um grande professor, e ela sentia-se humilde perante ele.

 

- É do conhecimento comum - prosseguiu ele - que as estrelas influenciam tudo na Terra, banhando tudo nas suas emanações celestes. O mago realiza as suas muitas maravilhas através da manipulação dessas emanações. Um mágico como eu podia, teoricamente, mudar as próprias estrelas, até controlar o poder celeste, sim!

 

Isabel ficou assombrada com o atrevimento da afirmação de Dee mas obrigou-se a si própria a permanecer em silêncio.

 

- O meu corpo, contudo, seria completamente destruído com a tentativa - acrescentou ele com um sorriso enviesado -, por isso me vou abster de tal experiência nesta noite.

 

Com esta afirmação houve uma agitação de risos aliviados, e agora o homem dava propositadamente grandes passadas para o centro da sala onde, com um grande gesto largo, fez voar o pano de seda preto de cima do objecto que estava escondido debaixo dele. Ouviram-se suspiros baixos a toda a volta, pois nos muitos anos de amizade e ensino prodigalizados à família Dudley nunca lhes fora permitida a visão dos aprestos mágicos do doutor Dee.

 

O objecto era uma mesa de quatro lados com pés em forma de garras e altura normal, embora fosse aí que terminava a normalidade. Pintada num espantoso caleidoscópio de cores brilhantes - vermelhão, azul-real, verde-ervilha, violeta - os seus lados trabalhados estavam cobertos de caracteres, hieróglifos e nomes esotéricos todos escritos em amarelo-vivo. Tinha sido colocado um selo debaixo dos quatro pés em forma de garras, e um grande selo estava disposto no centro da mesa. O próprio tampo da mesa estava coberto de seda vermelho brilhante, e por cima do selo central encontrava-se uma suave e perfeitamente redonda bola de contemplação de cristal.

 

Enquanto toda a gente estava de pé e de boca aberta à volta da mesa, Dee acendera uma quantidade de velas colocadas à volta do perímetro da sala, de forma que agora a bola de cristal resplandecia com um reflexo brilhante.

 

- Afastem-se... por favor - disse o doutor Dee para os seus convidados enquanto puxava dois bancos para lados opostos da mesa. - Madame indicou a Isabel para que se sentasse num banco e, sem qualquer cerimónia, sentou-se no outro. Então alcançou-a e prendeu as mãos dela nas suas.

 

A sala estava subitamente calma, com os presentes com relutância em sequer respirar demasiado pesadamente. Havia prodígio no ar, pois a rainha de Inglaterra estava sentada perante o maior mágico na terra, conjurando visões do rei Artur e do seu mago Merlin. Robin conseguia ver as pontas redondas dos peitos leitosos de Isabel elevando-se ritmicamente, e uma única gota de suor formando-se na sua têmpora. Ela mordeu o lábio para o impedir de tremer.

 

John Dee fechou os olhos e começou a matraquear em verso medido um cântico hebreu numa voz estranha, baixa e gutural que não tinha qualquer semelhança com a dele. Uma vez após outra cantou as palavras. Elas corriam juntas e o balbuciar ininteligível enchia a cabeça dos ouvintes com um som infindável, um som infindável... Lá fora, os trovões ribombavam à distância. As pálpebras tornavam-se pesadas. As de Isabel foram as últimas a fechar-se.

 

Quando John Dee voltou a falar, não era nem a sua voz normal nem a gutural do cântico hebreu. Era claramente a voz de uma jovem mulher. Primeiro houve uma grande exalação, quase um grito - eee! - Então as palavras, claras e simples: "Seguro as mãos de uma rainha."

 

Fez-se silêncio. Robin. Dudley, Mary e Henry Sidney, meio assustados com a entoação feminina emanando da boca de Dee, esperaram mais elocuções, pois as próprias palavras tinham sido até agora vulgares - uma simples afirmação de um facto.

 

Mas os olhos de Isabel abriram-se de repente quando um raio aterrorizador de reconhecimento a abanou, de corpo e alma. Estas eram as palavras, as mesmíssimas palavras proferidas pela Dama Santa do Kent, quando Ana Bolena a procurou para ouvir o seu futuro no Convento do Santo Sepulcro, quase trinta e quatro anos antes! Como? Como podia ser que este homem soubesse, conseguisse proferir com aquela voz uma profecia dada à sua querida mãe há tantos anos? As primeiras palavras da mesmíssima visão que impeliria Ana a colocar o seu destino nas mãos do rei Henrique e a conduziria à perdição? Ninguém as conhecia, além de Isabel e da idosa Lady Sommerville, que tinha trazido o diário a Isabel. E essa senhora... não, era impossível! A Rainha olhou em redor para os outros nas sombras da luz das velas, com os olhos ainda fechados. Ninguém dera pela sua perturbação. Não conseguiriam eles ouvir o coração dela a bater selvaticamente no seu peito?

 

O mago expirou uma vez mais, longa e lentamente. Isabel susteve a respiração, terrificada com o que Dee diria em seguida. Deveria impedi-lo de continuar? Não, não podia. O homem, o mago, estava certamente envolvido com a manipulação das emanações celestes, raciocinou Isabel. Se o interrompesse num tal momento, não seria o seu corpo destruído? Não poderia nunca ser responsável por uma tal coisa!

 

Mas John Dee tinha-se acalmado. Talvez, pensou Isabel, tivesse acabado com a sua visão. Talvez tivesse conferido demasiada importância às simples palavras que ele tinha proferido. Ele estava, de facto, a segurar as mãos de uma rainha. E a voz de mulher jovem... quem era Isabel para dizer que era a voz da Dama Santa do Kent? Ela estava simplesmente num estado de grande agitação.

 

Mas agora a sala começara a mudar. O ar tinha-se de certa forma adensado. Parecia haver um estranho murmúrio, embora Isabel não conseguisse perceber se era dentro da sua cabeça ou vindo de uma longa distância. E subitamente as suas narinas foram assaltadas com a fragrância inconfundível de flores frescas, a fragrância delicada e picante de rosas... rosas Tudor.

 

Mas a sala estava fechada. E não existiam quaisquer rosas em flor. Isabel começou a desfalecer. John Dee estava ainda cego para o mundo. Olhou para Robin, que estava de pé a balançar ligeiramente o corpo, com os olhos ainda fechados. Havia um ar quase inquiridor na sua bela cara. Estaria ele a cheirar as rosas também?

 

- Ahhh - gemeu John Dee.

 

Isabel virou-se e viu um sorriso a suavizar a cara do mágico.

- Uma vida - sussurrou ele. - Uma alma.

 

Qual era o seu significado?, perguntava-se ela.

 

- Dentro de ti, Isabel - ele respondeu à questão silenciosa dela -, uma criança está a crescer.

 

O coração dela sobressaltou-se. Não, ele não podia querer dizer... Impossível! Ela não se atreveu a procurar os olhos de Robin.

 

- Um filho - gritou Dee. - Um filho, sim!

 

- Chega! - gritou Isabel, arrancando as suas mãos das de Dee, sem se importar agora com o quebrar de um feitiço celestial. Era um embuste, este mágico! Robin e Mary Sidney correram para junto da Rainha, segurando-lhe nas mãos e tentando confortá-la. O mago, embora com os olhos vidrados e alarmado com o seu súbito regresso à realidade, parecia intacto quanto ao resto.

 

Isabel tentou recompor-se. Tinham os outros ouvido? Será que o próprio Dee se lembrava de que, um momento antes, tinha anunciado que a rainha de Inglaterra estava grávida de um filho ilegítimo?

 

Ela empurrou a cadeira para trás e lançou um olhar irado para John Dee e para a sua infernal bola de cristal. Ele estava consciente de que algo tinha corrido terrivelmente mal. Podia ver que a Rainha estava muito, muito zangada. Mas impotente e momentaneamente fraco, tudo o que ele podia fazer era erguer a mão numa súplica silenciosa de perdão.

 

- John Dee - disse ela finalmente. - Aceitei a vossa graciosa hospitalidade ao longo de todo este dia e estou grata por ela. Sois um amigo dos meus amigos e de Inglaterra também. Mas não aprovo as vossas magias, pois são falsas, e fazem com que faleis falsamente em seu nome. Boa noite para todos vós. Virou-se e, empurrando a porta, desapareceu.

 

Com um olhar para os seus companheiros aturdidos, Robin seguiu-a. Alcançou-a quando ela marchava através da biblioteca escurecida.

 

- Isabel!

 

- Não desejo a tua companhia.

- Ouve, por favor.

 

- Ouvir? O quê? Mais mentiras? Não estou grávida, Robin. Não posso nunca estar grávida. Eu não sangro como as outras mulheres. Tu sabes isso.

 

- Sim, eu sei. Onde vais, Isabel? - Ela dirigia-se para a porta principal da casa da quinta.

 

- Vou para Greenwich.

 

- Esta noite? Estás louca? A tempestade está no auge. Não te deixarei ir!

- Não me podes obrigar a ficar.

 

Ele pôs-se de pé em desafio a bloquear-lhe a passagem.

 

- Chama a minha carruagem ou chamá-la-ei eu própria. Mandarei um coche para vos vir buscar a todos amanhã.

 

- Porque é que isto te incomoda tanto? Se dizes que não estás grávida, então não estás. Era uma falsa visão, meu amor, é tudo. Não é preciso ir embora assim tão enfurecida. O pobre John está fora de si. Ele não desejava mal algum!

 

Isabel sentiu-se subitamente fria e Robin, que pressentia as suas disposições e temperaturas com precisão, lançou os braços gentis à volta dela e embalou-lhe o corpo tremente.

 

- Fica, por favor, fica, Isabel. Tenho andado a sonhar com esta noite confortável deitado contigo, debaixo de nenhum telhado real, nenhuns olhares de desaprovação a espiar-nos, coscuvilhando. Acordar só contigo numa doce manhã de Primavera no campo rodeado de amigos, oh fica!

 

- Eu não estou grávida - disse ela calma, mas firmemente.

- Tu não estás grávida - replicou ele respeitosamente.

 

- E não voltaremos a falar nisso.

- De acordo.

 

- Apresentas as minhas desculpas aos outros? - disse ela mais calma. Estou subitamente cansada.

 

- Não é preciso. Eles compreenderão. Anda, deixa-me levar-te ao teu quarto. - Ele sorriu com o sorriso desonesto que ela tanto gostava. - O nosso quarto.

 

Isabel sentiu os bons humores a fluirem de volta através das suas veias num afluxo quente. Seria de facto adorável estar na cama com o seu amor esta noite.

 

- Vem, Robin - disse ela pegando na mão dele. - Mostra-me o caminho.

 

- O queixo um pouco mais alto, Majestade.

 

Isabel rolou os olhos irritada com Mestre Thomas Rhys, o tímido jovem artista de retratos que Robin a tinha convencido a contratar, e depois lançou o queixo na direcção do céu num ângulo extremo.

 

- Assim? - motejou Isabel.

 

O pobre homem completamente desorientado pela Rainha pouco cooperante, tinha cuidado em refrear-se de falar impertinentemente.

 

- Está um pouco... alto, Madame.

 

Isabel combateu a tentação de colar o seu queixo ao peito e incomodar mais o pintor, com o pincel suspenso impotente no ar, mas conteve-se e baixou o queixo até ao ângulo de altura perfeita que sabia que ele desejava.

 

- Lindo, lindo! - gritou Rhys entusiasticamente e com alívio óbvio. Isabel sentiu-se corar com o cumprimento e ficou de súbito contrita. Sabia que recentemente andava irritável e irracional ao extremo. Todos os seus servos e conselheiros, até Robin, se mostravam cautelosos na sua presença, todavia ela não tinha feito qualquer tentativa para mudar o seu comportamento e continuava a agir como uma criança mimada. Kat e Lady Mary Sidney, sentando-se silenciosamente num dos lados com semblantes plácidos a olhar em frente, nem se atreviam a trocar olhares quando Isabel estava com uma disposição dessas.

 

Com uma pancada incisiva a porta da Sala do Trono abriu-se. Sir William Cecil e Sir Nicholas Throckinorton avançaram e apresentaram-se à Rainha. Secretário Cecil. - Ele fez um aceno de cabeça, e ela então fixou

 

Throckrnorton com o olhar. - E como vai o meu embaixador na corte francesa? - A pergunta de Isabel era afiada como uma lança.

 

Bem, Majestade. Com muitas notícias para relatar.

 

É claro a partir dos serviços secretos de Sir Nicholas que devemos prestar muita atenção à vossa prima Maria, Majestade - lançou Cecil. Ao contrário dos seus homens e damas, William Cecil não mostrava nenhum receio de Isabel, mesmo nos seus momentos mais difíceis, tendo-a servido desde os primeiros dias do seu reinado, e sendo detentor dos instintos mais admiravelmente aguçados de todos os seus conselheiros. Ele era digno de confiança, leal, em geral imperturbável.

 

- Agora que o marido da rainha Maria morreu e ela é meramente rainha viúva em França - continuou Cecil - é muito mais perigosa para vós do que anteriormente. Um caso bicudo. Pois ela é ainda rainha da Escócia e pode, na sua viuvez, ser orientada numa de muitas direcções.

 

- Falai comigo, Throckrnorton - disse Isabel, virando-se para o seu embaixador. - Contai-me as boas notícias primeiro.

 

Throckmorton hesitou, sabendo muito bem que estava a encaminhar-se para uma emboscada, sendo Isabel o grupo de assalto. Pois o que para a Rainha eram boas ou más notícias dependia inteiramente da sua disposição, e a sua disposição, ele não podia deixar de o saber, era inteiramente má. Simulou um tom optimista e começou:

 

- Desde a morte do jovem rei Francisco...

 

- Uma morte não esperada - interrompeu Isabel impertinentemente. Estava sempre débil, sempre enfermiço. Uma criatura patética, atrofiado no crescimento, uma criança a quem a sua mãe Médicis estava sempre a lembrar de assoar o nariz. Ele não era, dizem-me, um homem capaz ao tempo em que desposou a minha prima.

 

- Os rumores eram de que o casal era íntimo, Majestade. Estais consciente de que eles eram amigos de infância, cresceram na mesma casa. Amavam-se um ao outro com carinho. Mas não, ele era, de acordo com todos os relatórios, ainda não tinha... sido capaz. Dizia-se que Maria poderia ter tido muitos, muitos filhos, mas não de Francisco.

 

Amigos de infância, meditou Isabel, como ela própria e Robin Dudley, e no entanto Maria e a sua educação tinham sido tão diferentes quanto era possível. A sua própria juventude sem mãe tinha sido infeliz. Isabel, rejeitada como uma bastarda pelo pai e pela corte, fora privada do seu título de princesa e banida para um lar pobre e distante. E apesar do seu grande charme e inteligência, tinha sofrido a sensação esmagadora de ser indigna, mitigada apenas pelo constante e bendito amor e devoção dos seus criados Kat e John Ashley, dos Parry, e finalmente da sexta e última mulher do seu pai, Catharine Parr. Não podia impedir-se de comparar esta educação com a da sua prima Maria. A própria sobrinha-neta de Henrique VIII, coroada rainha da Escócia apenas aos nove dias de vida, era, de acordo com alguns padrões - os católicos -, mais merecedora da Coroa inglesa do que Isabel, filha da grande prostituta Ana Bolena. Henrique tinha, de facto, tentado conseguir a mão da infanta Maria para o seu próprio filho, Eduardo. Tivessem os nobres escoceses consentido no casamento, e tivesse o seu querido irmão Eduardo vivido, pensou Isabel com igual quantidade de alívio e arrependimento, e Maria, rainha dos Escoceses teria sido a sua própria soberana.

 

Prometida em casamento, com a idade de quatro anos, ao delfim, herdeiro do trono francês, Maria tinha sido educada na sumptuosa corte Valois, mimada, agradada, abraçada como membro da família real, adorada pelo seu jovem futuro marido e amada, sempre amada. A pequena rainha havia navegado em bem-aventurança através da infância em nuvens de algodão, confortável no seu lugar no mundo. Quando o pai de Francisco, o rei Henrique 11, morrera súbita e tragicamente, o jovem casal ascendera ao trono sem qualquer esforço. Maria, pensou Isabel com uma dor crua de ciúme, nunca tivera que lutar simplesmente para sobreviver como acontecera com ela própria.

 

- Continuai, Throckmorton - ordenou a Rainha. - Dizíeis que a morte de Francisco...

 

- Sim, a rainha viúva começou aparentemente a ter as suas próprias ideias sobre assuntos...

 

- Como não as tinha anteriormente, aceitando toda a orientação da família da sua mãe, bem como da sua sogra Médicis - interrompeu Isabel novamente.

 

- Ela tinha, afinal, apenas dezasseis anos, o seu marido quinze. Mas agora ela mostra a maior modéstia e uma excelente sensatez para a sua idade.

- Como assim? - perguntou Isabel.

 

- Por não se julgar demasiado sábia, e aceitar o bom conselho de anciãos instruídos sobre o assunto de se voltar a casar... uma grande virtude numa rainha, Majestade.

 

Ninguém estava preparado para o violento ataque de Isabel quando ela pulou da cadeira e deu uma volta em redor de Throckinorton, quase o deitando ao chão.

 

- Contradizei-vos a vós próprio notoriamente, embaixador! Primeiro falais da rainha a pensar pela sua própria mente, e um momento depois afirmais que ela não se acha muito sábia. Que já não aceita conselho de uns, mas agora aceita conselho de outros. Então, como é?

 

- Peço desculpa, Majestade - resmoneou Throckmorton.

 

- E a vossa avaliação de que a muito modesta rainha dos Escoceses é sensata em aceitar conselho sobre assuntos do seu novo casamento é um comentário acerca da recusa da vossa não modesta rainha em fazer o mesmo?

- Não, Majestade, nunca!

 

Throckinorton manteve-se hirto para controlar a tremura que o ataque de Isabel produzira nele. Os outros pareciam desaparecer para dentro das paredes, esperando que a ira da Rainha não se virasse nas suas direcções.

 

- Parece-me - prosseguiu Isabel, caminhando pela sala, olhando ferozmente para o seu retrato inacabado quando passava por trás do artista, agora a tremer na sua pele - que Maria é uma tola. Ela é rainha indisputada por duas vezes, e no entanto está ansiosa por entregar o poder a homens abaixo dela. Bem, com quem está ela a pensar casar?

 

- Os pretendentes são muitos - respondeu o embaixador. - Dom Carlos de Espanha, o herdeiro de Filipe, é a primeira escolha.

 

- Dom Carlos! - gritou Isabel ultrajada. - Dom Carlos é um idiota, um imbecil mais lamentável do que o primeiro marido dela! Pequeno, corcunda, amaldiçoado com a epilepsia e um ceceio! É conhecido por cair em raivas maníacas e tentar o assassinato! Está ela louca?

 

- Não sei, Majestade. Posso apenas presumir que coloca as considerações dinásticas à frente das pessoais.

 

- Quem mais?

 

- O conde de Arran...

 

- Um escocês - cuspiu Isabel. - Ela nunca casará com um escocês.

- O cunhado Valois dela, Carlos.

 

- A Médicis nunca o permitiria. Há-de livrar-se da sua querida nora tão depressa como convém, disso podeis estar seguro.

 

- E Lord Darnley, Majestade.

 

- O meu primo, o filho de Lady Lennox? - perguntou Isabel, perplexa.

- Ele tem um lugar longínquo mas definido na sucessão, Majestade acrescentou Cecil calma mas firmemente.

 

- Por amor de Deus! - gritou Isabel. - Será que Maria acredita que duas pretensões longínquas ao meu trono fazem uma forte? Então, ela ainda exige que eu a nomeie minha sucessora?

 

- Exigír talvez seja uma palavra demasiado forte, Majestade...

 

- E ela ainda se recusa a ratificar o Tratado de Edimburgo que Cecil negociou em Julho passado?

 

- Declinou apenas até poder consultar o seu Conselho na Escócia, mas indicou que a sua resposta vos será então favorável. Ela deseja acima de tudo, Majestade, encontrar-se convosco pessoalmente para discutir as vossas diferenças e solidificar a vossa afeição como primas e amigas.

 

- Quer? A minha prima, Maria. Ouvi dizer que ela é demasiado grande para uma mulher. Um gigante - disse Isabel - com grandes orelhas de abano.

 

- Tem quase um metro e oitenta de altura, Majestade, mas com ossos delicados e graciosa.

 

- Graciosa... E é tão adorável como se diz, Throckrnorton? Dizei-me a verdade.

 

O embaixador deu por si subitamente sem palavras. Enquanto os seus relatórios prévios tinham enfurecido profundamente a Rainha, ele sabia que uma discussão genuína dos atributos físicos da sua prima mais nova iriam levar Isabel a paroxismos de fúria, pois era amplamente sustentado que Maria era a mais bela rainha na Europa. Throckmorton escolheu as palavras com extremo cuidado.

 

- O cabelo dela é de um tom vermelho-ouro como o vosso, Madame, e os olhos são da cor do âmbar. A pele é muito pálida. Dizem que era mais branca do que o véu branco do luto aquando da morte do marido.

 

- Os seus traços, Throckmorton.

 

- Alguns dizem que o nariz é demasiado longo. - O embaixador estava satisfeito por poder dar essa informação. - E, como dizeis, as orelhas dela são bastante grandes. Os olhos inclinam-se um pouco para cima, e a boca... Throckmorton tinha-se aventurado em território perigoso.

 

- Continuai.

 

- A boca é bem formada, com uma bela curva, e a voz - continuava ele sem possibilidades de fuga - é considerada de facto muito doce.

 

- Ao contrário da voz da vossa rainha bruxa!

 

- Majestade - interrompeu Cecil. - Estais a agir muito irracionalmente com o vosso bom embaixador. Pedistes um relatório verdadeiro...

 

- E o que recebi... - Isabel parou a meio da frase com um ar subitamente confuso a espalhar-se pela cara. Tinha ficado mais pálida do que o seu normal tom de pele alabastrino. A sua mão tacteou cegamente em busca de apoio, encontrando-o no braço de Cecil. Kat e Mary Sidney tinham-se levantado de imediato e estavam agora de volta da Rainha, Mary abanando-a vivamente com o leque e Kat dando-lhe palmadinhas na bochecha.

 

Os lábios de Isabel estavam comprimidos um contra o outro e Kat Ashley conseguiu perceber que a Rainha estava a lutar contra a náusea. Talvez isto fosse a investida de uma das enxaquecas da Rainha.

 

- Vinde, Isabel - trauteou Kat suavemente. - Deixai-nos levar para a vossa cama. - Mas antes de conseguir dar mais do que um ou dois passos em direcção à porta, a Rainha, desmaiada, caiu redonda no chão.

 

- Não! - gritou a Rainha, dando palmadas nas mãos amigas de Kat. Eu não estou grávida!

 

A dama de companhia mais velha estava sentada imóvel como uma pedra à cabeceira de Isabel, com a expressão quase tão horrorizada como a da sua patroa. Mary Sidney estava de pé a alguns passos de distância apertando as mãos em silêncio, mas de resto o quarto de cama real estava vazio, tendo todas as damas de companhia sido enviadas para longe, onde não podiam ver nem ouvir.

 

- Vi demasiadas mulheres grávidas para estar enganada, Majestade. Tendes todos os sinais.

 

Uma Isabel de olhos esgazeados olhou para Lady Mary procurando uma certeza de que Kat estava de alguma forma enganada, mas Mary manteve-se firme, encontrando e mantendo o olhar suplicante da Rainha.

 

- John Dee predisse-o, Madame. E os sintomas estão aí - disse ela.

 

- Para o diabo com os sintomas! - gritou Isabel, e então, subitamente, com uma mão a tapar a boca, gesticulou para Kat a pedir a bacia. A Rainha vomitou prodigamente, depois deitou-se nas almofadas e começou a choramingar.

 

- Avisei-vos, Isabel - ralhou Kat severamente. - Avisei-vos vezes sem conta de que nenhum bem viria desta paixão inconveniente. Agora é demasiado tarde, e tudo aquilo por que haveis lutado toda a vida, tudo o que vós e eu, o meu marido, os Parry, sacrificámos e quase perdemos as nossas vidas para assegurar, está perdido!

 

- Perdido, não - soluçou Isabel, limpando a boca.

 

- Não? E como supondes que podereis salvar a vossa coroa? Correr para o casamento, como se tal fosse possível, com o príncipe da Suécia, ou o arquiduque Fernando? Fingir que o bebé é prematuro e rezar para que ele não se pareça demasiado com o vosso amante?

 

- Não casarei com eles, nenhum deles - sussurrou Isabel.

 

- Ah, então a rainha de Inglaterra dará à luz um bastardo. Isso deve fazer maravilhas pela já de si manchada reputação que ela tem - sibilou Kat. Os seus leais súbditos ficarão sem dúvida deliciados por terem uma tal rainha meretriz...

 

- Silêncio! - trovejou Isabel, súbita e novamente em controlo. - Não falarás à tua rainha num tal tom outra vez, Katherine Ashley, ou verás a tua cabeça espetada numa lança na Torre de Londres!

 

E fez-se silêncio. Mary Sidney ficou de pé a tremer de horror com as palavras de Isabel. Kat limitou-se a olhar incrédula para a Rainha. Em todo o tempo junto de Isabel, desde os primeiros dias da infância quando Kat tinha sido o único ser humano que se preocupara em saber se a pequena rapariga vivia ou morria, ao longo de todos os anos de opiniões assumidas e do ralhar impertinente de Kat, Isabel nunca falara tão bruscamente. E agora isto, por se limitar a afirmar a verdade.

 

- Então irás fazer com que me decapitem, é isso? Os intestinos estripados da minha velha barriga? Arrastada e esquartejada também? - Kat fungou com indignação e levantou-se da cama.

 

- Kat... - Isabel agarrou a mão da sua dama, imediatamente contrita. Como podia ter proferido uma tão terrível ameaça à sua amiga e guardiã mais querida? Mas a sua dama de companhia tinha sem saber tocado numa ferida dolorosa na alma de Isabel, a memória de sua mãe, com a reputação de rainha meretriz de Inglaterra, na verdade uma mulher obstinada e honrada que lutara corajosamente contra todas as contrariedades de forma a que Isabel pudesse um dia usar a coroa de Santo Eduardo. - Perdoa-me, Kat. Estou fora de mim com a preocupação, Por favor, senta-te. Mary... - Isabel olhou para Mary Sidney, que ainda não se tinha mexido, quase nem respirara durante alguns minutos. - Vem para perto de mim. Preciso do teu conselho amigo, também. - Mary aproximou-se da cama, sentou-se aos pés de Isabel. - Temos que pensar, ser razoáveis.

 

As três mulheres ficaram silenciosas durante um longo momento. Quando Kat falou novamente a voz dela era tão baixa que Isabel teve que se inclinar para ouvir.

 

- Posso falar com TreadwelI, o boticário. Ele não precisa de saber nunca para quem se destina a poção.

 

- Não - disse Isabel. - Eu não me desfarei desta criança. Faço tenção de ter o meu bebé.

 

- Mas, Isabel... - gemeu Kat.

 

- Posso falar, Majestade? - disse Mary Sidney. Isabel fez um aceno de cabeça a dar consentimento. Não estais a esquecer o meu irmão? - Mary conseguia sentir Kat a ficar rígida ao lado dela, mas continuou. - Ele ama-vos, das profundezas da sua alma... e vós amai-lo. Ninguém seria para vós um melhor marido do que ele. E existe já algum apoio para uma tal união, tanto aqui como no estrangeiro. Tendes nada menos do que a bênção do rei Filipe para um casamento com Robin. Até de Lord Suffolk se diz que o apoia. Robin é um inglês e o verdadeiro pai desta criança. A cerimónia podia ser realizada rapidamente de forma a que as aparências fossem preservadas, a criança concebida imediatamente depois do casamento, nascida prematuramente. Podeis até anunciar que estivestes casada secretamente durante algum tempo. Já existem rumores disso. Não vejo melhor solução para o vosso dilema, Majestade.

 

- Deixai-me pensar, deixai-me pensar! - gritou Isabel.

 

Era uma rainha cristã, Chefe Suprema da Igreja de Inglaterra. A sua reputação de força bem como de piedade iriam no futuro determinar a medida de poder que ela exerceria entre os monarcas da Europa. Reflectiu com um estremecimento de medo que nestes dias e época as mulheres governavam uma vasta porção do mundo conhecido - a Médicis em França, Maria na Escócia, ela própria em Inglaterra e na Irlanda. Uma criança nascida fora do matrimónio agora marcaria Isabel uma vez e para sempre como uma prostituta, um príncipe mal adequado para reinar... uma mulher fraca.

 

Porém, o que fazer da promessa que ela tinha feito a si própria na campa de sua mãe, de que nunca se iria casar? O que fazer da percepção que dar a um marido o seu poder arduamente conquistado, não interessa quão amado, não interessa quão digno de confiança, era tão bom como uma sentença de morte? Se não morte do corpo, pensou Isabel, então morte do espírito. Para aquela parte dela que vivia para o seu país e para os seus súbditos, o casamento e a renúncia aos seus deveres como rainha eram tão mortais como o pecado ou a traição.

 

Mas ela era ainda jovem, pensou Isabel. Não podia permitir que o mundo conhecesse os verdadeiros meandros da sua mente. Os seus súbditos pensariam que ela era louca. Rebeliões e guerras civis ferveriam para fazer cair a rainha lunática que se recusava a casar e dar herdeiros. Perder-se-iam alianças externas cruciais. Robin, o seu querido Robin, podia abandoná-la.

 

Era chegado agora o momento - e John Dee tinha-o previsto - em que a Inglaterra deveria navegar em frente para o futuro, não como a dócil e pequena nação insular que sempre tinha sido mas como um barco poderoso prestes a conquistar o mundo. E ela, Isabel, de pé, sozinha ao leme, devia ser o seu capitão. Para que isto acontecesse deve dizer a todos que continuem a acreditar que ainda poderia casar. Deve jogar para ganhar tempo. Sim, isso era o que ela precisava mais do que tudo. Tempo.

 

Isabel olhou primeiro para Kat Ashley e depois para Mary Sidney, que estava sentada com os olhos cabisbaixos, permitindo a Isabel a privacidade dos seus próprios pensamentos. Esquemas loucos e grandiosos, pensou ela, de uma rainha louca, grávida de uma criança ilegítima. O filho dela. O filho de Dudley. Um filho do seu corpo. A ideia era desconcertante.

 

- Majestade, por favor - começou Kat. - Temos de pensar no que fazer.

- Eu sei o que temos de fazer - respondeu Isabel, forçando-se a permanecer aparentemente calma.

 

- Dizei-nos, Majestade - disse Mary Sidney. - O que tendes na ideia?

- A viagem oficial - disse ela. - Faremos a nossa viagem oficial de Verão como esperado. E tudo será então revelado.

 

Deus abençoe o meu avô Henrique Tudor - declarou Isabel, recostando-se no assento de couro vermelho do seu coche. - Estas estradas ainda estão excelentes, cinquenta anos passados desde a sua construção.

 

- Sim - concordou Kat Ashley, ela própria visivelmente satisfeita com a viagem suave. - Nem a mais acolchoada das almofadas consegue salvar um traseiro dos sulcos de uma má estrada.

 

Isabel, sempre apaixonada quando o tópico era o seu reino ou o seu povo, agarrou-se ao tema como um cão a um osso.

 

- Ao contrário do meu pai, o meu avô nada tinha para se vangloriar. Fez pelo seu país o que era bom e sábio com pouco dispêndio.

 

Kat lançou um olhar de esguelha à Rainha. Era a primeira vez em todos os anos que haviam passado juntas que ela ouvia dos lábios de Isabel a mínima crítica ao seu pai.

 

- Sabeis - Isabel continuou - que quando o meu avô morreu legou duas mil libras para a construção e reparação destas estradas e pontes entre as principais casas dele? - Lançou a cabeça e ombros bem para fora da janela para ver melhor, e teve de gritar para ser ouvida. - Olhai para isto, Kat, quão bem e substancialmente as valas estão feitas de ambos os lados, quão bem está colocada a gravilha e como está erguida até uma boa altura! E na maioria dos sítios podem passar duas carruagens uma pela outra com facilidade!

 

- Isabel, vinde para dentro! É impróprio para a rainha de Inglaterra estar pendurada na janela da sua carruagem como uma tartaruga fora da sua concha.

 

Isabel meteu-se para dentro, a cara congestionada e húmida.

- Impróprio para quem - replicou Isabel -, os carneiros?

 

De facto, a carruagem real, mais quatrocentas pesadas carroças e carretas sobrecarregadas com sacas e bagagem, e todo o complemento de toda a corte de Isabel - a viagem oficial de Verão da Rainha - atravessavam agora os prados selvagens e as silenciosas águas estagnadas e pantanosas da Inglaterra rural, habitadas mais densamente por manadas de gado e bandos de martins-pescadores do que por seres humanos.

 

Kat espreitou para fora para a paisagem desolada tornada ainda mais melancólica pelos céus cinzentos e ameaçadores.

 

É um sítio árido e inóspito como quando César o encontrou, diria eu. É lindo para mim, Kat.

 

Espero que os nossos alojamentos esta noite sejam longe de qualquer terra pantanosa. Estas são insalubres, alojando vapores venenosos. Alimentam a peste. Não percorremos todo este caminho desde Londres para...

 

- Silêncio, Kat, as tuas queixas fazem-me dores de cabeça. Os relatórios do meu arauto dizem que a casa é grande e irregular, com salas doces e arejadas com vista sobre um parque que a rodeia. E a aldeia, alega ele, está livre da peste. Não tenhas receio algum, estamos bem cuidadas. Agora esperemos que comece a chover.

 

Kat resmungou silenciosamente ao derradeiro comentário de Isabel. Chovia, de facto. Fazia tudo parte do mais fantástico e secreto estratagema da Rainha para ocultar a sua gravidez - um estratagema, Kat era forçada a admitir, que até agora tinha funcionado extremamente bem, Poucos estavam inteirados do plano - ela própria, o secretário Cecil, Robin Dudley, a sua irmã e cunhado, os Sidney. Isabel insistira que era elegantemente simples e à prova de descuidos desde que fosse seguido à letra. Kat achou-o angustiantemente complicado e imaginativo - e crivado de oportunidades para ser exposto. Bastaria apenas um passo em falso, um olhar inesperado da parte de um par de olhos não amistosos, um minúsculo grão de má sorte. Mas, abençoadamente, a sorte tinha até agora estado do lado deles.

 

Depois de apenas um mês de náusea, que foi atribuída ao fluxo, Isabel tinha reconquistado a sua boa saúde e disposição alegre. Uma vez que ela nunca tinha sangrado com o ciclo lunar, as suas damas de companhia menos próximas não haviam dado por nada. A ideia tinha sido a de começar a viagem oficial em fins de junho, indo para estadas de uma quinzena ou mais nas diversas residências da Rainha - Oatlands, Richmond, Eltham, Hampton Court - e também para as mansões e casas de campo mais próximas, propriedade dos nobres mais importantes. Aqui ela tinha-se mostrado publicamente, nos primeiros tempos da sua condição de grávida, antes que esta se tornasse aparente.

 

Kat recordava-se do entusiasmo quase infantil de Isabel à medida que se aproximavam do Palácio Richmond, com as suas torres e pináculos a erguerem-se como um castelo de conto de fadas de uma nuvem de flores cor-de-rosa pálido, pois o pomar de cerejeiras que o rodeava era enorme. Tinham passado pelo aviário dourado cheio de aves exóticas de muitas terras, e chegaram ao portão frontal resplandecente com decorações heráldicas para um alegre cortejo de boas-vindas com música e dança acompanhado por flautas e tamborins.

 

O entretenimento em Richmond tinha sido magnífico, com a já de si fabulosa residência real aprovisionada para o puro prazer. Das casas de arrumação saíram armações de cama em mármore e ouro, vestidos de ouro os cortinados de janela gradeados com diamantes e prata. Cada refeição era mais luxuriante do que a anterior. Um simples prato podia ser constituído de galinhas, pombos, tarambolas, abecoinhas, gaivotas, pastéis vários e ostras. A comida aparecia em formas elaboradas - castelos, animais, até formas humanas. E o vinho era abundante. Isabel, que normalmente participava com grande moderação, apreciava a comida com grande satisfação, surpreendendo e deliciando os cozinheiros do castelo.

 

Porém, o mais mágico - e o que Isabel gostava acima de tudo, uma recordação da infância - eram as dúzias de torres do palácio, cada uma encimada por uma cúpula em forma de bolbo de cebola e um alto cata-vento, que, juntos e com vento forte, se tornavam como as cordas de uma harpa eólica. A Rainha tinha acordado todas as manhãs da sua estada ansiando por uma tempestade, e foi-lhe finalmente concedido esse desejo numa tarde escura em Julho. À medida que a chuva aumentava, Isabel tinha-se apressado a sair pelo portão frontal e, apesar das súplicas de Kat e Mary Sidney, ficara de pé, com o cabelo e as saias a esvoaçar selvaticamente à volta dela, debaixo do maravilhoso instrumento feito das torres do castelo, a ouvir a música estranha e sobrenatural, completamente extasiada.

 

Isabel era esguia, e a sua barriga quase não tinha inchado até ao sexto mês. Usando um enchimento inteligente no peitilho, e outras roupas de baixo aparelhadas normalmente utilizadas pelas damas esperando esconder a sua delicada condição, Isabel fora capaz de manter a aparência de normalidade, embora privando-se dos exercícios de maior esforço, até Agosto estar bem avançado.

 

A segunda fase do esquema começou então. A Rainha, com a assistência de Robin Dudley, delineara o seu percurso de viagem com a maior precisão. De Agosto em diante, ela limitaria o número dos seus acompanhantes para os poucos escolhidos. Evitava tanto quanto possível as casas grandes, aquelas cujos senhores e damas a conheciam intimamente e poderiam ver o comportamento dela como estranho ou incorrecto. Felizmente, a natureza da viagem era tal que um arauto real podia cavalgar até uma grande propriedade ou uma residência mais humilde e anunciar a chegada iminente da Rainha no dia seguinte. Com tão escasso aviso, os igualmente honrados e horrorizados hospedeiros eram então obrigados a realizar apressadamente os preparativos para deitar, alimentar e entreter com luxúria o enorme séquito da Rainha. Salvo algumas poucas excepções notáveis, ninguém no reino realmente esperava a sua chegada, por isso ela podia vaguear a seu gosto através do campo, fazer preparativos e cancelá-los, compensando os seus hospedeiros desapontados e sem dúvida alguma recompensados com uma generosa oferta. Quando era forçada a aparecer pessoalmente numa acomodação, uma grande comoção e doença fingida quando da chegada podiam fazer desaparecer a Rainha para os seus aposentos sem muito esforço. Por vezes, Mary Sidney, com a roupa de Isabel e sapatos de salto alto para se aproximar da altura de Isabel e envolvida em véus, fazia de procuradora enquanto a Rainha noutro local procurava alojamento como uma simples dama acompanhada do seu marido, Robert. Felizmente, a maioria das estadas eram apenas de um dia ou dois.

 

Fez muito uso de uma carruagem coberta mas de lados abertos na qual podia andar, acenando aos seus súbditos, através de aldeias alegremente decoradas, assistir a uma dança campestre, ou a um espectáculo de rua apresentado por uma vila de tecelões, ouvir arrebatadamente um recital de versos por uma criança, ou sentar-se a assistir a uma peça de moralidade mórbida. Ninguém suspeitou nunca que esta graciosa e amada rainha carregava no ventre uma criança.

 

À medida que a sua gravidez se tornava inegável, e porque o percurso planeado não conseguia evitar diversas grandes propriedades de altos pares, a terceira e mais perigosa fase do estratagema da Rainha foi colocada em acção. Hoje, pensou Kat com excitação, Isabel seria recebida em Fulham House, onde se esperava que se alojasse com Lord Clinton e a sua família durante duas semanas. Era um plano temeroso e audacioso, e o seu sucesso dependia inteiramente do tempo ficar chuvoso. Embora o céu estivesse ameaçador, faltavam demasiado poucas milhas para alcançarem Fulham, e a chuva ainda não tinha aparecido. Kat espreitou suplicante para o céu e depois para Isabel, incapaz de esconder a sua preocupação.

 

- Eu sei Kat, eu sei - disse ela mitigadoramente. - Mas ainda nos faltam algumas milhas para chegar.

 

- Mas e se não chove!

 

Isabel suspirou em exasperação.

 

- Então eu pararei a viagem e convocarei um piquenique. Então muito seguramente que choverá! Vá, Kat, ficai por favor de boa-fé. Tudo correu bem e continuará assim.

 

- Como estais sempre tão segura de que as coisas correrão à vossa maneira?

- Porque - respondeu Isabel calmamente - esta criança está destinada a nascer. Estava escrito nas estrelas, e foi prognosticado por um grande mágico. O meu filho...

 

A voz de Isabel diminuiu de intensidade, mas Kat Ashley não pressionou a Rainha a continuar, pois não desejava ouvir quaisquer detalhes do estranho fado e futuro desta criança bastarda - alguma intriga louca para a mandar para longe da corte para ser criada pelos parentes distantes mas da confiança de Isabel, para viver secretamente e desconhecida até ao momento em que a Rainha julgasse seguro e de boa política que ela fosse dada a conhecer e reconhecida. Bom Jesus, estavam todos a uma batida de coração de distância do desastre!

 

O coche parou subitamente, e de imediato Robin Dudley montado a cavalo estacou ao lado da janela de Isabel.

 

- A guarda avançada de Fulham chegou para nos escoltar o resto do caminho até aos nossos aposentos, Majestade. Duzentos cavaleiros de libré. Na casa de Lord Clinton está tudo preparado. - Fez um sorriso conspiratório para a Rainha. - E a chuva começou a cair mais à frente.

 

- óptimo. Estão a vossa irmã e cunhado prontos para que a representação comece? - perguntou-lhe ela com um esgar malicioso.

 

- Tal como desejais, Madame. - Dudley inclinou-se para baixo impulsivamente e beijou a mão de Isabel.

 

Kat olhou noutra direcção, extremamente aborrecida. Estavam todos a agir como crianças extremosas a jogar um jogo perigoso. Estavam a divertir-se. Bem, pensou Kat Ashley, este jogo podia não ter quaisquer vencedores felizes. Ela teria que ter mão nestas crianças indisciplinadas.

 

A chuva estava a cair em lençóis de água através da paisagem quando o cortejo se aproximou de Fulham House. Embora Isabel soubesse que as boas-vindas alagadas de Lord Clinton iriam ser decepcionantes para ele, estava muito grata que o tempo estivesse a agir de acordo com os seus bem definidos planos.

 

Lord Clinton, a sua família e dependentes, e um coro de crianças canoras estavam de pé por baixo de dosséis sustentados por criados de libré à medida que a guarda real da Rainha, um regimento de palafreneiros, e uma dúzia de carruagens transportando os seus camareiros, conselheiros privados e o arcebispo de Cantuária com cinquenta dos seus próprios cavaleiros se aproximavam e passavam o portão principal. Seguia-se um coche com Cecil e os Sidney. E, por fim, assistida pelo mestre-de-picadeiro Robin Dudley, a própria carruagem de Isabel parou com ruído em frente dos seus anfitriões.

 

Robin desceu da sua montada e, quando um pajem abriu a porta do coche real, tinha a mão a postos quando a Rainha emergiu num capote de chuva volumoso e com capuz. Houve uma agitação de actividade enquanto Henry Sidney e William Cecil desciam da sua carruagem e ajudavam Mary Sidney a descer, cada dama usando um capote de chuva semelhante ao da Rainha, como se fosse uma nova moda.

 

Com apenas um ligeiro aceno de cabeça para um Lord Clinton mortificado, Isabel e o seu séquito passaram rapidamente a ponte do fosso para dentro do pátio de Fulham. Era uma casa de tijolo suficientemente agradável com a confusão de torres, empenas e grupos de chaminés típica dos Tudor, mas Isabel passou apressadamente pelo pessoal da casa amontoado sob as lonas enceradas, através da porta principal, e para dentro do vestíbulo,

 

Baixando o capuz mas mantendo o capote, Isabel esperou por Lord Clinton e família, que se reuniram junto da Rainha num chorrilho de cumprimentos calorosos e obediência cortês.

 

- Majestade, damos-vos as boas-vindas mais sinceras a Fulham! - Clinton esticou a sua mão para agarrar na de Isabel para beijá-la, mas ela puxou-a tão prontamente que ele ficou assombrado.

 

- As minhas maiores desculpas, meu Lord Clinton, mas receio não estar bem - disse Isabel com uma expressão de sincero pesar.

 

- Não estais bem? - gritou Lady Clinton, uma robusta mulher de cara vulgar cujas ricas vestimentas nada podiam fazer para melhorar a sua aparência. - Selby! - O camareiro da casa apareceu instantaneamente ao lado dela. - Chamai o doutor Williams imediatamente. Majestade, o nosso físico pode ser um homem rural, mas é bem conhecido pela sua...

 

- Não compreendeis, boa senhora. Os meus sintomas assemelham-se a varíola.

 

Houve uma inspiração geral e afinada no vestíbulo. Isabel podia ver diversas pessoas a dar discretamente um passo atrás para longe dela. Admiravelmente, Lord e Lady Clinton mantiveram-se onde estavam, embora as suas caras tivessem ficado subitamente pálidas e contraídas.

 

- Infelizmente devo pois ordenar a todos que evacuem esta casa com prontidão - anunciou Isabel. - A minha gente cuidará de mim. Desejai-me saúde e parti o mais depressa que conseguirdes. As minhas desculpas pelo vosso incómodo.

 

- Mas, Majestade, não poderemos de forma nenhuma deixar-vos...

 

- Lord Clinton, não quero ser responsável por qualquer doença no vosso lar. Mandai o vosso camareiro mostrar-nos os nossos quartos e as vossas cozinhas aos nossos cozinheiros. O meu séquito alojar-se-á em tendas no exterior.

 

As pálpebras de Isabel tremiam e vacilavam ligeiramente, alcançando a mão pronta de Robin Dudley.

 

- Por favor, tenho que descansar agora.

 

- Claro, claro - murmurou Clinton, arqueando-se e movendo-se para trás para longe da Rainha. - Se houver alguma coisa que possamos fazer...

 

Porém, Isabel e os seus próximos estavam já a subir a grande escadaria.

 

- Rezai a Deus para que ela não morra aqui - resmungou Lady Clinton para o marido. - Que maldição que isso seria.

 

- Mas se ela viver, será uma bênção - disse o marido -, pois lembrar-se-á desta casa com afecto.

 

Lady Clinton inclinou-se mais de perto e sussurrou de tal forma que mais ninguém pudesse ouvir.

 

- Pouparemos cinco mil libras só nos entretenimentos - disse ela. Enquanto a família e os criados dispersavam para reunir as suas coisas e partir, Lady Clinton reparou num olhar solene e distante que enevoava a cara do marido.

 

- O que se passa, John? - perguntou ela.

 

- Se Isabel morrer - respondeu ele - morre sem um herdeiro. As coisas ficarão feias para a Inglaterra. Muito feias mesmo. Reúne a família na capela imediatamente, Margaret. Temos de rezar pela vida da Rainha.

 

- Muito bem, Majestade! - gritou Mary Sidney enquanto tirava o capote de Isabel, que tinha escondido admiravelmente a agora proeminente protuberância da barriga de Isabel.

 

O séquito real por trás das portas fechadas dos apartamentos do andar de cima estava a preparar-se para descansar da longa jornada do dia, prostrado mas aliviado depois da inegavelmente polida actuação da Rainha.

 

- Convoquem o meu físico! - gritou Isabel com um gemido teatral. Fiquei cheia de manchas!

 

- Pobre Lady Clinton - disse Mary Sidney, incapaz de suprimir um sorriso. - Ficou com um ar bastante preocupado.

 

- Achais? Eu aposto que ela está a contar o dinheiro poupado nos entretenimentos e festins com os quais não nos vai brindar - disse Robin, fazendo uma vistoria ao espaçoso quarto de cama, verificando as suas janelas e portas, procurando cuidadosamente qualquer compartimento secreto ou passagens ocultas.

 

- Vinde, Isabel - disse Kat. - Sentai-vos ou, ainda melhor, deitai-vos na cama para um repouso adequado.

 

- Não estou minimamente cansada, Kat. Sinto-me maravilhosamente respondeu Isabel.

 

- Sois uma mulher grávida e tivestes um dia fatigante. Descansareis, Madame, nem que eu tenha que me sentar em cima de vós e segurar-vos.

 

Robin e os Sidney rebentaram em gargalhadas com a familiaridade rude de Kat, sabendo que a Rainha lhe perdoava tais insolências. Por fim, Isabel enterneceu-se e entregou-se às lides de Kat.

 

- Cavalheiros, deixai-nos. Estou prestes a ser despida e mandada para a cama pela minha dama Ashley. Tratai do nosso jantar, Robin. Pede ao cozinheiro algo simples: algumas aves e uma empada fria.

 

Robin e Henry beijaram a mão de Isabel, fizeram a vénia, e deixaram a Rainha com as suas camaristas. Quando começaram a desatar e desabotoar o vestido dela, Isabel olhou para o volume extra pendurado na sua barriga proeminente e sorriu.

 

- Um filho do meu corpo - disse Isabel num sussurro silencioso. Mesmo que ela tivesse dito as palavras mais alto duvidava que Kat ou Mary Sidney as ouvissem, pois estavam profundamente adormecidas nas suas enxergas aos pés da sua cama, exaustas depois da longa jornada desse dia até Fulham House. Mas a Rainha quase não estava cansada. De facto, ultimamente recebera uma infusão de vitalidade espantosa, uma vigília sempre presente e uma claridade de mente tal que todos à volta se questionavam acerca dela. Mas Isabel percebia. Era a coisa que John Dee tinha visto na sua bola de cristal negra: uma vida, uma alma, crescendo dentro de si, que fazia dela algo mais do que ela própria. Ela era, neste corpo, duas pessoas, e isso dava-lhe uma força renovada.

 

Muitos meses antes, quando Dee predissera que ela iria ter um filho, Isabel recusara, esquivara-se à verdade do facto por medo que isso a marcasse para sempre como uma libertina ou, se fosse forçada a legitimar a criança, a encurralasse num casamento indesejado. Qualquer uma das eventualidades podia enfraquecer irrevogavelmente a posição dela, arrancar-lhe das mãos o arduamente conquistado poder monárquico.

 

Mas nos meses que se seguiram à revelação do vidente, à medida que o bebé crescia dentro dela, também crescia uma nova determinação, uma força de vontade. E assim foi-se desenvolvendo um amor que não conhecia limites, um amor sobre o qual a Rainha, que tinha há muito dominado as suas emoções, não tinha qualquer controlo. Ela sabia que era irracional. Irracional, também, era a sua crença inabalável de que sobreviria ao parto, que esta criança estava destinada a nascer e viver por muito tempo. Tantas mulheres perdiam os seus filhos, tantos bebés e mães morriam durante o nascimento ou pouco tempo depois. A sua própria mãe abortara três vezes.

 

Onde, outrora, nos primeiros dias depois da revelação, tinham germinado a confusão e a preocupação com a decisão de ter o filho de Robin Dudley, um dia no princípio do Verão, quando sentiu a criança a mexer-se dentro de si, a mente ficou-lhe subitamente calma. Começara a ganhar forma um plano, como uma complexa estratégia de batalha se poderia formar nos sonhos de um grande general. O destino, apercebia-se ela, havia marcado a gravidez para os meses da sua viagem oficial de Verão. Tivesse sido de outra forma e Isabel, a invernar nos rígidos limites da sua corte, não teria conseguido escondê-la. Assim, o seu plano delineado com precisão funcionara com brilho. Naturalmente tinha requerido ajuda considerável da sorte e dos amigos. Mas esta tinha-se materializado infalivelmente - se nem sempre, no último caso, completamente do coração. Enquanto Robin e os Sidney o grupo da profecia de John Dee - se tornaram participantes voluntariosos no seu estratagema, Kat e William Cecil lutaram com unhas e dentes contra ele. Isabel tinha sido forçada a utilizar toda a sua força de soberana, até poderes tirânicos, para ter a criança.

 

Era afinal um estratagema louco, até Isabel tinha de o admitir. Bastante difícil era levar a bom cabo uma gravidez secreta durante cinco meses de viagens extenuantes. Mas depois tinha ainda de fazer desaparecer o seu filho para longe da corte para o santuário das suas relações para ser criado calmamente, e arranjar de forma a ver a criança tão frequentemente quanto possível até ao momento em que se sentisse suficientemente forte para reconhecê-lo e proclamá-lo seu sucessor.

 

Era esta última parte do estratagema que tornava Kat e Cecil mais cépticos. De facto, Isabel podia de certa forma ocultar a gravidez através da utilização de representações, doença fingida e desaparecimentos nas profundezas rurais. Mas como manter um bastardo real no segredo durante anos? Requereria uma lealdade profunda e infalível da parte de demasiadas pessoas e durante muito tempo. As intenções podiam ser boas, mas um sem-número de coisas - uma conversa escutada por um criado descontente, uma das entrevistas secretas da Rainha com a criança observada e questionada - podia levar à revelação do segredo.

 

A confiança de Isabel no seu plano era baseada, como a de Kat ou a de Cecil nunca poderia ser, na sua crença no destino. Como o seu próprio nascimento tinha sido previsto pela Dama do Kent, o do seu filho fora similarmente profetizado por John Dee. O monge tinha visto que o "sol" de Ana Bolena iria brilhar durante duas vintenas de anos e mais quatro, e quando outrora duvidara que iria reinar tanto tempo, sabia agora no seu coração que assim seria. Viveria e seria uma velha mulher poderosa que governaria um vasto império para lá do mar ocidental, como John Dee tinha dito, e nesse tempo ela iria conquistar o poder que precisava para tornar público e proclamar este filho do seu corpo como herdeiro. Ela teria o poder. Disso estava certa.

 

Isabel estava deitada a tremer de exaltação, as mãos em cima da sua enorme barriga. De repente a mente esvoaçou-lhe para pensamentos sobre o seu doce Robin, voou tão suavemente como um milhafre de Londres poderia voar até à segurança do seu ninho em cima de uma torre do castelo. Pois só com Robin estava o coração dela verdadeiramente a salvo. Apenas na sua presença era Isabel outra coisa mais do que rainha. Era, simplesmente, uma mulher.

 

Gemeu por dentro ao pensar no seu amor, pai desta criança, voluntariamente unido ao seu estratagema na ignorância da verdadeira natureza do seu papel. Ele acreditava, pois Isabel jurara, que uma vez que o filho deles tivesse nascido e vivido ela iria, a seu tempo, casar com ele, torná-lo rei, proclamando ao mundo que tinham estado casados em segredo, como o pai dela tinha casado com a sua mãe depois de Ana ter ficado grávida. No entanto, Isabel não iria casar com Dudley. Não podia. O coração doía-lhe de dor e de medo de que ele a abandonasse uma vez que fosse conhecida a verdade. Como podia censurá-lo? O único desejo claro da vida dele - casar com ela e ser rei de Inglaterra - parecia finalmente ao seu alcance. No entanto, a sua doce devoção à futura esposa e ao filho assentava completamente numa ilusão, uma conjuração amarga, um engano cruel às mãos da sua amada. Era um plano frio, forjado na mente de uma rainha dura e maquinadora, pensou ela pesarosamente. Duro e cruel, mas necessário. Pois Isabel deve governar sozinha. Nada a podia demover desta convicção. Nem dor, nem culpa. Nem amor. Ela e a Inglaterra eram uma só e, quando morresse, o seu filho Arthur, descendente como era do grande e lendário rei, governaria gloriosamente sucedendo-lhe. Ela tinha que reunir as suas forças e coragem, pois a estrada que era o seu destino era longa, árdua e perigosa até à morte.

 

Tinha sido uma corrida contra o tempo extremamente desgastante, pensou Kat Ashley enquanto rasgava lençóis limpos em tiras largas - manobras tortuosas como ela nunca tinha tido que realizar anteriormente na sua vida, e esperava que nunca mais. Sentada fora do quarto de cama da Rainha, dentro do qual Mary Sidney assistia a Isabel, Kat sorriu ao pensar como ela os enganara a todos, espertos como eram Isabel, Dudley, Mary e Henry Sidney. A qualquer momento, Cecil, o seu único aliado na conjura, estaria de regresso com a parteira, Agnes Hodgeson.

 

Um raio de luz trespassou a escuridão do céu da tarde, e Kat preocupou-se que os caprichos do tempo pudessem pôr em perigo os seus planos bem delineados. Um ribombar de trovão quase imediato anunciou a proximidade da tempestade.

 

Kat lembrou-se do momento, apenas duas semanas antes, em que descobrira como é que podia assumir o controlo desta medonha caricatura na qual Isabel se embrenhara, e salvar a sua mal orientada senhora da tragédia.

 

Nessa agradável quarta-feira de fim de Verão, Kat dera ordens ao coche que fosse à aldeia mais próxima para comprar algumas ameixas doces que Isabel tinha pedido. Para Kat, acostumada a estar sempre ao lado da Rainha para realizar os seus desejos, tinha sido excelente sair sozinha, passando pela praça do mercado efervescente de actividade com as suas lojas e tendas garridas, vendilhões apregoando frutos silvestres maduros e vegetais, aves domésticas vivas a grasnar penduradas em gaiolas de cana, pilhas de pães saloios e arrufadas, barricas de cerveja. Crianças vadias roubavam maçãs de um barril, e um pastor embriagado, de cara negra, conduzia um rebanho de ovelhas pela via principal, deitando abaixo uma dúzia de carretas e tendas. Kat tinha saído do coche e ido de bom grado a pé, com o cesto enfiado debaixo do braço como uma boa mulher do campo e não como a primeira dama da rainha de Inglaterra.

 

Ali numa mesa tosca do lado de fora de uma casa de boticário parte em madeira ela ouviu duas mulheres a falar, e parou por perto, fingindo examinar umas sandálias de couro. Eram ambas parteiras, ou assim parecia, a engelhada mulher mais velha, Agnes, regalando a mais nova com alguma sabedoria sobre o incitamento do parto e os seus benefícios.

 

- Se no oitavo mês o petiz for grande e a mãe pequena nos seus sítios, então é melhor que se lhe ofereça um parto prematuro. De outra forma ela pode ficar tão magoada que nada podes fazer senão observá-la a sangrar e morrer. O bebé talvez viva, mas de que serve ele sem uma mãe? - disse a velha.

 

- E qual é a poção, então - perguntou a parteira mais jovem - e que quantidades se deve dar para provocar o parto?

 

Enquanto eram trocadas medidas de ervas e preparados de nomes estranhos que nada significavam para os ouvidos não treinados de Kat, ela deu por si a reflectir que Isabel se estava a aproximar do seu oitavo mês de gravidez. Ela estava mesmo agora à espera da chuvada seguinte, na qual iria colocar o seu grande capote de couro, lançar a Lord e Lady Clinton um até à vista, agradecendo-lhes pela sua confortável casa na qual passara pela varíola com, Deus fosse louvado, nenhuma cicatriz feia, e seguir caminho para o destino final de Cumberland Manor. Aí alguns parentes maternos distantes, Bolenos ou Howard que Isabel tinha por leais e dignos de confiança, iriam dirigir o parto e acolher o seu filho bastardo.

 

Kat tinha ficado mais certa em cada dia que passava que uma vez que o bebé tivesse nascido e saído das suas mãos, o desastre seguramente se seguiria. Os Bolenos e os Howard eram tudo menos dignos de confiança. Eram tão ambiciosos e coniventes como qualquer família em Inglaterra. As suas mulheres - Ana Bolena e Katherine Howard - tinham sido rainhas de Henrique VIII e ambas tinham morrido por actos de traição e adultério. Kat sempre acreditara, secretamente, que o sangue selvagem de Isabel e a sua tendência para o estouvamento eram de sua mãe. Se ela ao menos pudesse tomar a criança nas suas próprias mãos, entregá-la a alguém verdadeiramente digno de confiança, verdadeiramente leal, alguém sem quaisquer ambições excepto uma vida calma e temente a Deus...

 

As duas parteiras tinham-se levantado da sua mesa na praça do mercado e lançaram uma à outra um bom-dia quando Kat se aproximou da mais velha das duas com um sorriso amigável.

 

- És mesmo a mulher de que eu preciso - disse ela, agarrando nos braços de Agnes com suavidade. - Há algum sítio calmo onde possamos falar?

 

Enquanto Kat estava sentada fora do quarto de cama de Isabel agora a lembrar-se desse dia, percebeu que os relâmpagos e trovões não se tinham acalmado mas sim piorado. Com a escuridão veio um vento feroz. Ouvindo uma agitação no pátio, espreitou pela janela do andar de cima para ver que todos os membros da viagem oficial de Verão estavam a ser introduzidos apressadamente em Fulham House. As tendas devem ter caído com o vento, pensou Kat. Entravam todos apreensivos. A varíola era uma ameaça muito mais terrível do que uma boa chuvada. Ainda assim, precisavam de abrigo. Ficaria um salão desagradável com tantos corpos a monte. Agora, atrás do último dos criados, Kat podia ver os cavalos a serem reunidos no pátio. Devia ser uma tempestade mais furiosa do que ela conseguia discernir do seu posto de observação protegido dentro de casa.

 

- Deus do céu! - afirmou Kat num murmúrio. A corte inteira mesmo por baixo deles durante o nascimento. Isabel podia chorar ou gritar com a dor, ou o bebé quando nascesse... Bom Jesus, iria a sua própria falsificação dos Destinos conduzir ao resultado que ela tinha trabalhado tão assiduamente para evitar? Onde raio estavam Cecil e a parteira!

 

Tinha sido quase insuportável esperar por notícias de Agnes Hodgeson a dizer que as suas maquinações podiam começar a ter lugar e, também, pela chuva seguinte. Mas no fim da manhã deste dia, assim que se tornou aparente de que uma tempestade se estava a aproximar, Kat administrara a poção para provocar o parto de Isabel. Tinha misturado as ervas no molho da empada de carne favorita da Rainha e observara-a a comer, sustendo a respiração com receio de que Isabel, cujo apetite se tornara grande mas cujos sentidos estavam não obstante afinados, pudesse dar por alguma coisa estranha. Ela sempre achara repugnantes os cheiros e sabores fortes. Na sua própria coroação recuara com aversão com o fétido odor dos santos óleos com os quais tinha sido ungida, e insistira em banhar-se cuidadosamente antes de se vestir para o festim. Mas Isabel tinha comido a sua empada de carne neste dia com grande agrado, talvez demasiado ocupada a gritar ordens para a partida imediata de Fulham para dar por isso.

 

Kat e Lady Mary estavam a meio de empacotar as arcas da Rainha, Isabel a pairar sobre elas com constantes instruções maçadoras sobre como as coisas dela deviam ser guardadas, quando as dores de parto começaram.

 

- Meu Deus! - gritou Isabel, sufocando um súbito grito de dor e agarrando-se à coluna da cama com uma mão, à sua grande barriga com a outra. Olhou para as suas damas de companhia, na cara uma máscara de terror. Mas é demasiado cedo.

 

- É cedo, Madame - disse Kat suavemente enquanto ajudava Isabel a deitar-se -, mas não perigosamente cedo. Mary, ide dizer a Cecil e a vosso irmão que começou.

 

Enquanto Kat tirava uma camisa de noite de uma arca meio cheia, Mary dobrou-se e sussurrou ao ouvido dela:

 

- Nós não estamos preparados nesta casa, Kat. Quem irá...?

 

- Não te preocupes, filha. Eu na verdade preparei-me para esta eventualidade. Existe uma parteira na aldeia que Cecil irá buscar. A nossa rainha tem estado tão segura dos seus grandes planos, mas nem tudo pode ser deixado ao acaso. Ide rapidamente agora!

 

- Sim, Kat.

 

- E esquadrinhai os armários em busca de lençóis de linho limpos e peças de musselina. Se não as houver aqui tereis de procurar na lavandaría. Mary Sidney acenou com a cabeça e saiu a correr.

 

- Kat - gemeu Isabel -, segura a minha mão, tenho medo.

 

- Não há necessidade, minha querida. Tudo vai correr bem. A criança será mais pequena, é verdade, mas o nascimento será mais fácil para vós.

- Mas ele tem de viver...

 

- Isabel, isso está nas mãos de Deus, apenas nas mãos de Deus.

 

Kat tinha sorrido para a Rainha com uma segurança calma, mas o sorriso dela tinha igualmente sido de prazer secreto. Após tantos anos de serviço a Isabel, Kat Ashley era novamente quem mandava.

 

Mas à medida que a tempestade crescia em fúria fora da janela, o sorriso desvaneceu-se e apenas a preocupação vincava a face de Kat. E se Cecil não conseguisse encontrar a parteira? E se a velha mulher se tivesse escondido com medo? Agnes sabia que iria assistir à rainha de Inglaterra não havia forma de esconder isso. Talvez o pagamento pelos seus serviços e ainda mais para manter a sua boca fechada ainda não fossem suficientes. Uma vez que o negócio tinha sido firmado - sendo a recompensa da parteira o suficiente para a manter confortavelmente até ao fim dos seus dias - Kat, com uma frieza que não sabia que possuía, selara as negociações com uma ameaça. Se alguma vez viesse a conhecimento público notícia deste nascimento, jurou ela, a parteira iria conhecer uma morte terrível. Teria a ameaça assustado a mulher? E se Isabel...? Não, tinha de parar com esta ruminação insensata imediatamente. Isabel não morreria, não podia morrer!

 

Com um clarão de relâmpago que iluminou o quarto como se fosse meio-dia, e um rebentamento de trovão que parecia abanar as próprias paredes, a porta abriu-se. William Cecil, completamente encharcado, acompanhando uma figura encoberta num dos capotes encapuçados de couro, entrou e fechou a porta atrás de si. Kat suspirou de alívio enquanto Agnes Hodgeson tirava a capa e se mostrava, franzindo as sobrancelhas e praguejando, carregando duas grandes bolsas de tecido, uma das quais abaulava e ressoava com as ferramentas do seu mister.

 

- Alguém notou a chegada dela? - perguntou Kat a Cecil.

 

- Naquele pesadelo malcheiroso lá em baixo? Está uma tal confusão e tão pouco espaço que é difícil sequer encontrar um sítio para sentar. Um condutor reconheceu de facto o capote e mandou-vos cumprimentos, mas isso foi tudo.

 

- Vou precisar de água quente e lençóis limpos rasgados em tiras ordenou a parteira a Kat. Ela não era uma pessoa de grande delicadeza, pensou a dama de companhia com irritação. Mas também não o era a senhora Ashley para ser mandada por esta velha engelhada maldisposta.

 

- Está feito e pronto - disse Kat, apontando de forma expedita para a pilha de faixas impecavelmente dobradas e uma chaleira a ferver por cima de um braseiro. Aproximou-se e sussurrou ao ouvido da parteira. - Trouxeste...

 

- Tenho tudo o que preciso - respondeu Agnes abruptamente. - Instalai-me um biombo ali junto da porta, com uma mesa por trás dele, uma bacia, e outro braseiro. Colocai lá também uma pilha de faixas.

 

- Onde está Robin? - gritou Isabel sumidamente. - Porque não veio ele?

- Não consegui encontrá-lo, Majestade - respondeu Mary Sidney, agarrando a mão da Rainha. - Talvez ele esteja a ajudar a colocar os cavalos em local seguro, pois a tempestade está a piorar e não há espaço suficiente nos estábulos.

 

- Encontra-o, encontra-o! - lamentou-se Isabel roucamente. Então mesmo quando ela gritava mais uma vez de dor, a porta do quarto de cama abriu-se bruscamente e Robin Dudley, seguido pelo seu cunhado, entrou e dirigiu-se rapidamente para junto de Isabel. Os braços dela rodearam-no, abraçando-o, como se nunca se quisesse libertar dele.

 

- Podereis vós por amor de Deus tirar todos estes homens para fora daqui, e já! - ordenou Agnes a Kat com um rosnar impaciente. - Trata-se de um nascimento, não de uma dança de celeiro! - As palavras dela foram pontuadas pela explosão de trovão mais assustadora até então.

 

Robin mal conseguia ser arrancado ao seu abraço a Isabel e de beijar a face dela banhada em lágrimas e suor por Henry Sidney.

 

- Rezarei por ti, meu amor, por ti e pelo nosso filho - gritou ele.

- Robin!

 

Enquanto os homens abandonavam o quarto de cama, Cecil, o último a sair, trocou um olhar carregado com Kat.

 

- Preparai-vos - sussurrou ela. - E rezai para que tudo corra bem.

 

- Deixai-a gritar, porque não a deixais? Far-lhe-á bem - murmurou Agnes para Kat, que, com os maxilares cerrados determinadamente, colocou um rolo limpo de ligaduras entre os dentes de Isabel para abafar os seus guinchos. Pressionou um pano molhado e frio na testa da Rainha. A pele dela estava quase tão branca como os lençóis, e ela gemia em delírio.

 

- Faz apenas o teu trabalho, mulher, e guarda as opiniões para ti interrompeu Kat, desejando ter encontrado uma qualquer outra parteira no mundo inteiro que não esta bruxa velha e lamurienta que agora trabalhava entre as coxas bem abertas de Isabel.

 

- Sim, as partes dela são pequenas - disse Agnes, nitidamente ignorando a ordem de silêncio de Kat. A parteira sabia que se podia dar ao luxo de uma palavra mordaz ou duas, pois neste quarto era ela e apenas ela que se encontrava entre a vida e a morte para a Rainha e o seu filho. - Ainda bem que nós...

 

Kat deu à mulher um beliscão traiçoeiro na parte mole do seu antebraço para a silenciar, pois apesar de Isabel não conseguir ouvir, Mary Sidney pairava por perto e nunca poderia saber o que Kat tinha conspirado com esta mulher.

 

- Ali está a coroa dele. Está a vir agora. ó Jesus ajudai-nos, creio que começou uma hemorragia! - Agnes lançou um olhar para Kat e gesticulou com os olhos na direcção de Mary Sidney.

 

- Mary - disse Kat com urgência -, corre à lavandaria em busca de mais lençóis. E diz ao teu irmão para ir buscar aquele médico de que Lady Clinton falou. Podemos ter necessidade dele.

 

Havia pânico nos olhos de Mary, mas ela manteve-se corajosamente firme. Antes de partir agarrou a mão de Isabel e beijou-a, depois saiu.

 

- Robin, Robin - gemia Isabel, apenas meio consciente.

 

Quando a porta se fechou e Kat a trancou por trás de Mary, Agnes sorriu um sorriso de dentes podres.

 

- Fizestes a vossa parte bem, senhora. Agora ela tem de fazer a dela. Espreitou para Isabel por entre os seus joelhos angulosos. - Vossa Majestade... - Isabel apenas rosnou em delírio. Para Kat a parteira disse: - Deveis esbofetear-lhe a cara, trazê-la de volta. Preciso que ela faça força, agora.

 

Kat foi para junto de Isabel, cerrou os dentes, e deu uma bofetada com força à Rainha em cada uma das bochechas. Os olhos dela voltearam e abriram-se. Estavam enevoados de dor e exaustão.

 

- Isabel, é o momento. O bebé está a chegar, mas deveis fazer força quando Agnes vos disser. - Então, levantando as saias dela, Kat Ashley escalou para a cama e agachou-se por trás da cabeça de Isabel. - Vá, dá-me as tuas mãos.

 

Isabel obedeceu, erguendo os braços acima da cabeça e agarrando-se aos de Kat.

 

- Muito bem - disse Agnes com determinação feroz. - Vamos trazer esta criança cá para fora.

 

Quer tenha sido devido aos conhecimentos de Agnes, ao tamanho diminuto do bebé prematuro, ou simplesmente ao destino a cooperar mais uma vez, o filho de Isabel e Dudley emergiu com um chorar enérgico do corpo da Rainha menos de cinco minutos depois da partida de Mary Sidney para a lavandaria. Embora a hemorragia tivesse sido um mero pretexto para conseguir privacidade, e Isabel tivesse passado pelo nascimento com poucos danos ou dilaceramentos estava, não obstante, morta de cansaço e dores. Nunca questionou a parteira enquanto ela cortava e atava o cordão umbilical e se retirava com a criatura ensanguentada para trás do biombo. Isabel conseguiu fazer um fraco sorriso enquanto Kat lhe limpava a cara com um pano.

 

- É bonito, Kat? - murmurou.

 

Kat apertou a mão de Isabel, e lágrimas inundaram os olhos da mulher mais velha. Este era o momento que ela tinha planeado tão diligentemente e receara tão terrivelmente. Por um momento pensara que não conseguiria ir em frente com aquilo, que não tinha a força necessária. Como se atrevia ela a perpetrar um acto tão malicioso sobre a doce mulher que confiava nela tão completamente? Mas agora Agnes tinha saído de trás do biombo com uma trouxa minúscula nos braços e estava a encaminhar-se para a cama, com um olhar lúgubre na sua cara enrugada. Demasiado tarde, pensou Kat. Agora é demasiado tarde.

 

Isabel viu a expressão da parteira e voltou-se para Kat, os olhos abertos subitamente com alarme.

 

- Estou tão desolada, Majestade, mas o rapaz nasceu morto.

- Não, não nasceu! Ouvi-o chorar quando nasceu!

 

- Não, eram os vossos próprios gritos que haveis ouvido.

- Kat, ouviste-o! Não o ouviste?

 

Kat lutou para impedir que a sua cara se desfizesse com a agonia da mentira. Abanou a cabeça lentamente, mas não confiou na sua voz para falar.

 

- Deixa-me pegar nele! - exigiu Isabel à parteira, ainda sem acreditar. Agnes colocou a trouxa nos braços da Rainha.

 

Lentamente Isabel puxou os lençóis para revelar a minúscula cara, a cara enrugada e doce tão quieta e pacífica. Tocou na bochecha de veludo com a ponta do dedo. Estava quente. Isabel começou a chorar lágrimas desesperadas e amargas.

 

- Tomai a criança, Agnes - conseguiu Kat dizer, mas Isabel afastou as mãos da parteira batendo-lhes.

 

- Não! Não, quero segurá-lo. Devo segurá-lo até que o pai dele... Oh, onde está Robin, onde está o meu amor...?

 

Kat nunca tinha visto lágrimas tão copiosas vindas de Isabel, nem na morte do seu pai, do seu amado irmão Eduardo, da única mulher a que ela tinha chamado mãe, Catharine Parr. Estava a partir o coração de Kat ver Isabel tão destroçada, e rezou a Deus que lhe desse forças para terminar o seu plano. Era - disse ela a si própria uma vez atrás da outra numa litania solene - para o próprio bem dela, para o próprio bem dela, para o próprio bem dela...

 

Através dos corredores e escadarias obscurecidos de Fulham House apressava-se William Cecil, segurando junto ao seu corpo a trouxa sangrenta que conseguia ouvir a choramingar debilmente por entre o invólucro de musselina. Momentos antes, de pé do lado de fora do quarto da Rainha, tremendo com a antecipação diante deste acto louco no qual tinha sido persuadido por Kat Ashley a representar um papel, tinha ouvido a batida do lado de dentro e abriu a porta. Agnes Hodgeson confiara-lhe a trouxa sem-cerimónias e voltara à sua mesa por trás do biombo alto. Tinha-a a visto a erguer o corpo de um recém-nascido morto da sua segunda bolsa e colocá-lo na bacia de água quente para aquecer a sua pele fria. Olhando para cima para encontrar Cecil a olhar fixamente, a parteira tinha-o despedaçado com uma expressão de desaprovação ralando a aversão antes de lhe fechar a porta na cara.

 

Graças a Deus o vento começara a abrandar, mas a chuva continuava a cair em dilúvio. Cecil chapinhou através do pátio passando OS Celeiros, estábulos, matadouro e ferraria, e encontrou de pé debaixo da torre do fosso uma mulher sozinha, grosseiramente vestida, com as botas enlameadas até aos tornozelos. À medida que se aproximava conseguia distinguir a outrora bela mas prematuramente envelhecida cara da mulher, os indescritíveis olhos tristes. Ela seria a mãe do bebé morto, a mulher mãe do bebé morto cujo nascimento Agnes tinha esperado para fazer sinal a Kat, e, durante as semanas seguintes, ama de leite para a criança que ele tinha nos braços. William Cecil entregou à mulher do campo o bastardo da Rainha e, sem uma palavra, ela voltou-se e desapareceu na noite tempestuosa.

 

Robin. estava deitado ao comprido ao lado de Isabel, com os seus braços a embalá-la. Quando a alvorada surgiu doce e clara depois da terrível tempestade, eles tinham finalmente permitido a Kat Ashley que levasse o corpo do seu filho dos seus abraços. Isabel e Dudley tinham ambos tido muitas perdas nas suas vidas, tragédias inumeráveis. As suas famílias tinham sido dizimadas por mortes violentas e por vezes desprovidas de significado. E no entanto, hoje, apesar da sua longa experiência de dor e do entendimento comum de que o nascimento tão frequentemente acabava mal como bem, estavam inconsoláveis.

 

Enquanto as velas que Isabel tinha exigido que fossem acendidas à volta da sua cama tremeluziam, pouco falaram, e nem sequer choraram. Apenas tinham colocado cuidadosamente a criança entre eles e desembrulhado a musselina para revelar o seu corpo minúsculo. Enquanto acariciavam o cabelo sedoso na cabeça dele, seguravam os membros delicados nas suas mãos, examinavam os minúsculos tocos de dedos das mãos e dos pés, sabiam que esta não era a forma como os homens e as mulheres choravam a morte dos seus filhos. A morte entre recém-nascidos e infantes era demasiado comum, demasiado esperada. Os pais acostumavam-se a ela. Mesmo se a criança vivia, as mães e os pais frequentemente evitavam qualquer afeição até o bebé ter atingido a idade de um ou dois anos.

 

Mas o filho deles, Arthur, enquanto crescia e vingava no útero de Isabel, não tinha sido nenhuma criança vulgar. Tinha sido um sonho tornado carne. Uma promessa trazida à vida. Uma ponte entre um homem e uma mulher. Um archote para iluminar o futuro de Inglaterra. E agora estava ali morto e frio na sua mortalha.

 

- Dizem - disse Robin por fim quando os primeiros raios de sol escorregavam através do chão do quarto de dormir - que foi a tempestade mais medonha que Inglaterra alguma vez conheceu. Que o mundo estava no fim, e os dias do Juízo Final tinham chegado. Torrentes de água levaram casas. Os ventos derrubaram velhas árvores. Os aldeões reuniram-se em busca de protecção na igreja da aldeia até que um raio atingiu o campanário, que se partiu e fez desmoronar o telhado. Morreram algumas pessoas.

 

- O meu povo - munnurou Isabel. Ela tinha, apesar de si própria, sido arrastada pelos relatos de Robin. - Súbditos meus morreram nesta tempestade.

- E então, lembrando-se do corpo sem vida que tinha estado entre eles, olhou para cima para os olhos de Robin Dudley. - Para alguns o apocalipse já chegou.

 

- Isabel... - Robin colocou a sua mão em concha à volta da cara pálida dela. - Não é o fim. Podemos ter outro.

 

- Não, meu amor. Esta era a criança com a qual o destino nos presenteou e que achou por bem tirar-nos.

 

- Então eu desafio o destino! - gritou ele, puxando Isabel para um abraço esmagador, enterrando a sua cabeça no suave e húmido cabelo do pescoço dela. Ela sentiu o corpo dele a erguer-se uma vez, depois outra e outra, e soube que ele estava a chorar. A chorar pelo doce e impossível sonho que tinham juntos e perderam e que nunca poderia, apesar das suas mais fervorosas orações ou esforços diligentes ou ordenações reais, ser encontrado outra vez.

 

Isabel pousou a sua cabeça sobre a de Robin e chorou com ele.

 

Bem, meu bom secretário, vejo pelos teus despachos que a minha prima Maria finalmente regressou de França para aquele traseiro gelado do mundo a que chama casa.

 

Sempre desesperado com a linguagem vulgar de Isabel, William Cecil franziu as sobrancelhas enquanto observava a Rainha, ainda em camisa de noite, folheando rapidamente papéis de Estado na mesa de tampo de prata no seu quarto de dormir. Estava preocupado com a saúde de Isabel, que tinha piorado desde o seu parto dois meses antes. Estava magra como um pau de virar tripas, a pele tão pálida e delicada que estava quase transparente, e as tentativas óbvias de manter controlo sobre as suas emoções instáveis tinham falhado miseravelmente. Mesmo o seu afecto normalmente inquebrantável por Robin Dudley esmorecera bastante.

 

- Regressou, Majestade - respondeu Cecil calmamente. - A chegada de Maria a Edimburgo foi celebrada com grande júbilo pelos seus súbditos escoceses, tanto católicos como protestantes, embora eu tenha sérias dúvidas de que os senhores dos grandes clãs sejam sinceros nas suas boas-vindas.

 

- De facto - disse Isabel. - Esses homens são os verdadeiros senhores da Escócia, e não a sua rainha, pois é aos líderes dos clãs que os vis facínoras desse país dão a sua fidelidade. É estranho para mim como é que cada ambição e destino particular familiar obscurecem tudo o resto, mesmo o protestantismo pelo qual lutaram e conquistaram. Pode ser a maior fraqueza da Escócia.

 

Cecil nunca deixara de se surpreender com a apreensão por Isabel de cada um e todos os pormenores da sua governação. Ela prosseguiu:

 

- Vejo que Maria assiste à missa na sua capela privada, uma vez que não o pode fazer em público. E ainda assim o povo queixa-se disso.

 

- Queixam-se - concordou ele - embora Maria, sendo ela própria ardentemente católica, pareça ser afável e acomodar-se com respeito às crenças religiosas dos seus conterrâneos.

 

- Tem ela escolha, se quiser manter a coroa? - perguntou Isabel.

 

- Vossa Majestade ficará satisfeita por saber que Maria recebeu uma visita do nosso bom amigo John Knox.

 

Isabel riu-se alto e bom som do gracejo sardónico de Cecil, e o conselheiro foi agraciado com o primeiro sorriso da sua Rainha em muitas semanas. Os olhos dela brilhavam com satisfação enfraquecida.

 

- Dizei-me, Cecil, o que disse o nosso fanático antipapista à nossa muito católica prima?

 

- Foi muito atrevido, Madame. Disseram-me que ele se comportou como se estivesse frente à encarnação do Diabo e não a uma jovem de dezoito anos.

 

- Uma do seu "monstruooso regimento" de mulheres monarcas que ele tanto despreza. O que é que foi que ele escreveu para nos descrever? Isabel procurou na sua memória e num momento extraiu a citação do tomo de Knox tão habilmente como uma apanhadora de cerejas podia apanhar uma fruta madura da árvore. - Criaturas fracas, frágeis, impacientes, débeis e tontas que governam, contrariamente a Deus e repugnando à natureza. Isabel soltou um riso abafado. - E agora uma delas está sentada no trono do próprio país dele.

 

- Aparentemente Knox concordou em tolerá-la por agora, desde que o reino não seja prejudicado pela sua feminilidade, e permitir-lhe-á governar, desde que ela não "conspurque as suas mãos mergulhando-as no sangue dos santos". Depois proclamou o direito dos seus súbditos para se erguerem contra qualquer governante indigno que se opusesse à palavra de Deus.

 

- Meu Deus! E qual foi a resposta dela a este derramamento de veneno?

 

- Disseram-me que ela derramou algumas lágrimas, mas que no fundo se desenvencilhou orgulhosamente e com acutileza de espírito. A vossa prima é astuciosa, Majestade, e a minha opinião é que não deveis nunca subestimá-la.

 

A porta do quarto de cama abriu-se e Kat Ashley entrou carregando a roupa fresca de Isabel. Trabalhava silenciosamente enquanto Isabel e Cecil continuavam a audiência matinal, mas quando observou uma pausa natural nas lides deles aproximou-se de Isabel e fez uma pequena vénia.

 

- Sim, Kat, o que é?

 

- Imploro-vos a vossa dispensa, Madame - disse calmamente a dama de companhia.

 

- Implorar-me a minha dispensa? Para quê? - Isabel parecia tão admirada como incomodada.

 

- A minha tia em Suffolk está muito doente e sinto como meu dever cuidar dela. Ela é muito idosa e não tem ninguém, Majestade.

 

Isabel reprimiu um grande suspiro.

 

- Por quanto tempo tenho eu de estar sem ti? - perguntou ela, mantendo a sua voz calma mesmo enquanto sentia o pânico a envolvê-la. Kat, mesmo mais do que Mary Sidney ou Robin Dudley, tinha sido a sua principal consolação nas semanas a seguir à tragédia em Fulham House.

 

- Um mês, talvez mais, dependendo das estradas. As chuvas começaram cedo.

 

Isabel olhou directamente nos olhos de Kat. O brilho da juventude há muito que tinha desaparecido, mas esta era a primeira vez que a Rainha notava um marasmo remeloso neles. Rezou a Deus que Kat não estivesse ela própria doente.

 

- Tens a minha dispensa, mas apenas com a promessa de que...

 

- Regressarei tão depressa quanto for capaz, Majestade. Podeis ficar segura de que o farei.

 

- Tens de ir imediatamente? Kat fez que sim com a cabeça.

 

- Vai, então. Diz a Mary Sidney que me assista de perto na tua ausência.

- Fá-lo-ei, Majestade, embora ambas saibamos que ela não precisa que lho digam.

 

Lutando contra lágrimas súbitas, Isabel voltou aos papéis de Estado. Não reparou, consequentemente, no olhar conspiratório que foi trocado fugidiamente entre William Cecil e Kat Ashley antes desta ter recuado até à porta.

 

- Que o Senhor me perdoe pelo que fiz - disse Kat a si própria enquanto olhava desolada para fora da janela do coche que percorria com ruído a estrada na direcção da costa este de Suffolk. A sua culpa era aumentada em igual proporção pelo conforto da carruagem que Isabel tinha providenciado especialmente e pelos choros robustos do infante enrodilhado nos braços da ama de leite, Ellen, sentada em frente a Kat.

 

- É um doce rapaz, lá isso é, e a criança mais esfomeada que eu alguma vez conheci - disse Ellen. - Juro que quase não tenho leite suficiente para ele. Kat mal conseguia olhar para ele ou até dizer o nome dele silenciosamente: Arthur - Arthur Dudley. Tinha o cabelo avermelhado da mãe e do pai e a pele clara da mãe. Os olhos azuis de recém-nascido tinham rapidamente passado a castanho profundo, quase pretos com algumas luzes, e as bochechas eram rosadas e rechonchudas, um tributo a esta mulher das classes baixas que o amamentara tão diligentemente em lugar do seu próprio filho morto.

 

Havia ainda a oferenda sinistra da avó de Arthur, Ana Bolena. Kat recusava-se a pensar nisso. A criança estaria em breve longe das suas vidas.

 

- Não consigo evitá-lo, minha senhora - disse Ellen subitamente. - Afeiçoei-me muito ao pequeno, na verdade. - A ama de leite olhou para cima e Kat viu-lhe lágrimas a caírem dos cantos dos olhos. - Serei colocada entre a espada e a parede para desistir dele. - Acariciou os caracóis vermelhos dele. - Doce rapaz - arrulhou ela.

 

- Vá, Ellen, irás para casa e o teu marido dar-te-á outro filho. Esquecerás este muito depressa - disse Kat, tentando manter o aborrecimento longe da sua voz. Kat lembrou-se que Ellen, embora soubesse apenas que a mãe do rapaz era uma senhora das classes altas, tinha sido paga quase tão generosamente como Agnes Hodgeson pelo seu sacrifício e silêncio.

 

Observava o bebé agora a mamar com contentamento no peito de Ellen, a mulher sem se atrever a olhar para ele, como se estivesse a colocar distância entre eles mesmo enquanto estavam ligados naquele mais íntimo dos abraços.

 

Kat Ashley pensou naquilo que as esperava mais à frente na estrada, e em quem as esperava - e o coração dela começou novamente a doer. Haveria alguma vez fim para a dor que o nascimento desta criança inocente lhes provocara a todos - lhe provocara a ela? Ela devia, dentro de uma hora, enfrentar o homem que tinha outrora amado e perdido, Robert Southem.

 

Oh, há quanto tempo tinha isso sido. Ela era apenas uma rapariga Katherine Champemoune, com quinze anos de idade - quando aquela alma gentil, aquele rapaz sorridente e de cara aberta lhe roubara o coração. Sem a atenção das suas famílias, Robert e Kat tinham-se cortejado, atingidos e cegos pelo amor. Tinha vindo como um raio de um céu azul, logo, quando John Ashley, o homem que os pais dela tinham escolhido para ela se casar, apareceu com o chapéu na mão em casa de seu pai. Kat, ainda não suficientemente forte para resistir, e Robert, com nada que o recomendasse em fortuna ou família, tinham-se dobrado à vontade dos pais dela e à tradição. Mas não sem lágrimas. Muitas lágrimas. E um voto que tinha sido o seu único desafio - que iriam de qualquer forma, e em segredo se preciso fosse, permanecer bons amigos para a vida inteira.

 

Pela sua parte Kat tinha sido afortunada. O seu casamento com John Ashley fora feliz. Ele era um homem brando, e depois de diversos anos juntos ela tinha-lhe confidenciado o término doloroso da sua infortunada corte com Robert Southem. Conhecendo bem o carácter de Kat, sabendo que ela nunca o trairia, John Ashley deu-lhe autorização para escrever ocasionalmente ao homem que Kat chamava de seu "amigo eterno".

 

Robert não tinha tido tanta sorte nos caminhos do coração. Terceiro filho de um pequeno proprietário rural, não herdara quase nada, e o seu trabalho de aprendiz com um criador de gado não lhe deu dinheiro com o qual conseguir uma esposa. Tinha, contudo, uma misteriosa vocação para a criação de animais, alegando com um toque de auto-escárnio que se sentia mais confortável com os animais do que com os homens - ou mulheres.

 

A sorte de Robert Southem mudara de um dia para o outro quando o seu senhor morrera viúvo e sem filhos, deixando a quinta e gado ao seu, por esta altura, amado aprendiz. Robert tinha trabalhado e prosperado grandemente, nunca perdendo os seus modos humildes, agradecendo sempre a Deus por lhe ter entregue alguma propriedade sua. Há apenas seis anos Kat tinha recebido uma carta de Robert anunciando que ele, durante tanto tempo solteiro, tinha tomado uma esposa, Maud. Agora havia três crianças.

 

Robert Southem, pensou Kat enquanto corriam para o seu destino, era a única pessoa no mundo para além dos seus parentes e amados na corte em quem ela confiava em pleno.

 

Robert Southem conduzia uma carruagem aberta muito mais rude do que o transporte em que Kat Ashley viajava. Com as costas direitas como uma vara, tinha a mesma expressão lúgubre que a velha amiga que ia agora a seu encontro no cruzamento de Drury. Ele não cruzava olhares com Betsy, a jovem mulher sentada a seu lado. Ela era apenas uma meretriz, uma "porca" como lhe chamaria a sua mulher, uma pobre rapariga solteira que tinha engravidado e misericordiosamente perdido o bebé no parto. Ela não era, pensou Robert pesarosamente, assim tão diferente das suas vacas leiteiras, pois esse era o seu propósito em breve - amamentar esta criança que Kat trazia para a sua vida.

 

- Bom Cristo, em que me fui eu meter? - perguntou a si próprio, estalando as rédeas para apressar a sua parelha para chegarem mais depressa ao destino. Ele tinha jurado amizade leal para com Katherine Champemoune Ashley mais de trinta e cinco anos antes, mas nunca nos seus sonhos mais estranhos esperara que lhe pedissem um favor como este. Um favor que, ele sabia-o tão seguramente como o dia era longo, ia fazer cair a devastação sobre a sua própria casa.

 

Em defesa de Kat, raciocinou ele, ela não podia antecipar os acontecimentos recentes em que se envolvera. E ele nunca incomodara Kat com a verdade acerca de Maud. Tinha apenas dito, nas suas cartas ocasionais para a mulher que se tornara na primeira dama da Rainha, que a sua mulher era bonita, que a sua quinta era florescente, e que os seus filhos vingavam. Como podia Kat saber do seu infortúnio - o recente aparecimento da febre do gado e a morte de mais de um terço da sua manada? Acima de tudo, como podia ela saber do fosso que o separava de Maud? Por vezes as diferenças entre eles pareciam um abismo cada vez mais amplo, do tipo dos que num pesadelo se abrem perante nós, completamente impossível de transpor com um salto. Era irónico, pensou ele taciturnamente, pois o fosso era feito da substância mais simples - a ambição dela, a falta que ele tinha dela.

 

Sete anos antes, por fim suficientemente próspero para chamar a si próprio um homem-bom e para poder tomar uma mulher, Robert, com a ajuda de uma casamenteira - pois ele não tinha família para o propósito - vasculhara a paróquia em busca de uma rapariga adequada. Várias com dotes decentes tinham sido oferecidas, mas num domingo de Primavera depois da missa, enquanto os homens mais novos se aglomeravam rude e atabalhoadamente no jogo de futebol fora do pátio da igreja, os cavalheiros, homens-bons, camponeses mais pobres, e todas as suas esposas a conversarem ao sol, bonita, de cabelo negro, olhos castanhos, Maud Copely tinha apanhado - o olhar de Robert. Ele tinha sido apanhado, e apesar dos rogos urgentes da casamenteira, que dizia que a rapariga não tinha dote e iria "casar acima", Robert nunca conseguiu desde então deixar de estar apanhado.

 

Maud casara com o próspero leiteiro de bom grado. Ele era velho, é verdade, mas não decrépito. E, como Robert descobriu mais tarde, ela tinha planos, muitos planos. Quando trocaram os votos ele mal a conhecia, nunca se havia apercebido o que estava a levar com aquela rapariga esperta, talvez demasiado faladora, mas encantadora e um feixe de energia. Maud, descobriu ele, tinha andado na escola de gramática. Sabia ler. Era ainda mais esperta com números.

 

Ela estava desde cedo determinada a tornar-se a ajudante de Robert Southem, pegar na sua quinta próspera, e torná-los ricos. Uma vez ricos, sonhava ela - oh, como sonhava - iriam mudar-se para Londres. Viver uma vida de mercadores ricos na cidade de Londres. Talvez serem convidados para a corte. Conhecer a Rainha. Não era verdade que ele outrora tinha tido uma amiga no círculo da Rainha?

 

Maud via-se a si própria, disse ela a Robert numa tarde de Inverno, a sonhar acordada em frente à lareira, vestindo um vestido de fino brocado com mangas bordadas a prata, fazendo uma vénia a Sua Majestade, e a Rainha pedindo-lhe que se erguesse para cumprimentar os seus olhos brilhantes. E talvez, quem sabe, a Rainha pensasse: Que coisa bonita para ter como minha dama de companhia. Quando Robert perguntou o que lhe aconteceria a ele numa vida tão grandiosa, Maud acrescentara rapidamente que é claro que Robert deveria também ir para Londres. Teria um bom leque de roupas para se encontrar com a Rainha. "Mas o que faria eu em Londres?", persistia ele. "Sou um homem que conhece e trabalha melhor com os animais."

 

Zangada, Maud abanara a sua bela cabeça e dissera furiosamente: "Existem animais em Londres! Cavalos, galinhas, porcos. Tem que haver animais!" Tinha-se enfurecido, os seus sonhos comprometidos por um marido rústico.

 

Pouco tempo depois disso Maud começara a ter filhos. Primeiro tinha sido um rapaz, e apesar dos seus esquemas grandiosos a criança, John, tinha trazido grande alegria a Maud bem como a Robert. Sucederam-se duas fortes raparigas que mantiveram Maud ocupada. Ela insistia sempre, como se esperava que fizessem as mulheres dos homens-bons, e da pequena nobreza, que se contratassem amas de leite para amamentar os seus filhos. Por isso, Maud, entre as suas tarefas do lar, instruindo os seus filhos, ensinando-lhes as letras e números, e supervisionando os criados, arranjara tempo para instalar uma fábrica de queijo na quinta, produzindo grandes rodelas de queijo rico que ela com os seus métodos inteligentes conseguia vender com imenso lucro do outro lado do Canal. Nunca abandonara o seu sonho inteiramente. Apenas o tinha adiado. Alargado, até. Apenas Deus e Maud sabiam em que grande mansão londrina nas margens do Tamisa a rapariga os tinha instalado, quais os grandes senhores e damas que tinham sido por ela convidados para jantar. O sonho permanecera intacto. Até agora.

 

A febre do gado afundara os planos de Maud tão seguramente como uma grande onda do mar podia afundar um pequeno esquife, pensou Robert. Todos os lucros estavam perdidos enquanto eles se agitavam freneticamente para evitar irem completamente ao fundo.

 

E então chegou a carta confidencial de Kat.

 

Ele tinha agradecido ao Senhor por Maud estar noutro lugar quando Roger, o correio de Kat, a tinha trazido, mas à medida que lia a missiva o coração batia-lhe cada vez com mais dificuldade no peito. Kat pedia-lhe que acolhesse o filho bastardo da rainha Isabel com Lord Robert Dudley. Uma criança que a própria Rainha, graças às maquinações de Kat, pensava estar morta.

 

Era uma loucura, pensou Robert Southem, até mesmo traição. Mas ainda pior do que o terror de uma morte de traidor, era a ideia da raiva de Maud. Kat tinha especificado que ninguém, nem sequer a mulher dele, podia conhecer a linhagem da criança. Não que Robert desejasse contar a Maud, pois se ela soubesse a identidade dos pais da criança, isso apenas iria alimentar os seus sonhos inatingíveis. Mas quando ele trouxesse uma criança estranha e a sua ama de leite para casa exigindo - pois teria que o exigir que o rapaz fosse aceite sem perguntas, o que poderia Maud pensar? Que era o filho bastardo do próprio Robert, claro. Nenhuma espécie de explicações, nenhuma conversa acerca de um membro da família em apuros – pois Maud conhecia toda a sua escassa família - iriam ser suficientes. Senhor, logo agora!

 

Robert gemeu alto, e Betsy virou-se para ele com um olhar preocupado.

- Não estais bem, senhor Southem?

 

- Não, não, estou bem.

 

- Estamos quase lá, então? - perguntou ela, fazendo da mão uma pala sobre os olhos para olhar para o fundo da estrada estreita que cortava terras pantanosas planas pontilhadas com ovelhas e vacas.

 

- Vês lá à frente, Betsy, onde a estrada se encontra com outra estrada? A placa foi tirada, parece, mas aquela é a estrada para Londres.

 

- Londres? Vem o bebé de Londres, então?

 

Robert amaldiçoou-se a si próprio em silêncio. Betsy tinha demonstrado uma curiosidade considerável acerca da sua posição com a família do leiteiro desde a sua contratação clandestina, e ele desejava que ela soubesse o menos possível. Ele nem sequer a teria trazido ao seu encontro com Kat Ashley, mas a criança precisava de alguém que cuidasse dela uma vez feita a troca. Além disso, reconhecia-o, Betsy não poderia ter forma nenhuma de saber quem era Kat, esta rapariga que nunca tinha abandonado os confins da sua aldeia rural nos seus dezasseis anos de vida.

 

O vagão do leite parou ruidosamente na encruzilhada, e esperaram. Não deveria demorar muito. Kat estimara o tempo que demoraria desde a estalagem da noite anterior até ao ponto de encontro como sendo de menos de quatro horas.

 

Pode ser, pensou Robert Southem com uma réstia de esperança e culpa combinadas, que a criança tenha morrido, que Deus guarde a sua pequena alma, e que Kat chegasse sozinha para dizer, "Obrigado, meu amigo, por concordares neste favor mas, ai de mim, o bastardo da Rainha foi ao encontro do seu Criador". Entretanto sentar-se-iam amigavelmente, dariam as mãos enquanto conversavam, trocariam boatos indolentes como os amigos fazem, e deixar-se-iam um ao outro com um casto beijo de despedida.

 

Os seus devaneios esperançosos foram cortados pelo distante mas inconfundível ruído de uma carruagem aproximando-se vinda da estrada de Londres.

 

O coche em que Kat Ashley vinha era grande e elegante, um transporte que iria seguramente incitar falatório. Não era o coche de nenhum senhor ou pequeno nobre local, e no dia seguinte todos na aldeia saberiam da fina carruagem vinda de Londres e quem se tinha encontrado com ela na encruzilhada. Mas Robert planeara o encontro deles tão longe da sua própria casa que, mesmo que este fosse visto, a aldeia que ficaria em polvorosa com o falatório não seria a aldeia dele. E a não ser que a sorte estivesse completamente contra ele, Maud nunca ouviria como ou quando é que ele tinha adquirido a criança.

 

Enquanto o coche parava a cerca de cem passos da carruagem do leite, Robert Southem respirou fundo, endireitou o casaco, e desceu. Estava estranhamente consciente de que a estrada debaixo dos seus pés era dura e irregular, e sentiu, com menos mau agouro do que imaginava, que estava a caminhar para o seu destino. Talvez isto fosse boa fortuna para todos eles, e que se danassem as consequências! Ele lidaria com Maud, acalmaria os receios dela. Adoptaria esta criança real, muito como Sir Ector, séculos antes, tinha criado Artur como seu próprio filho até ao dia em que o rapaz havia tirado a Excalibur da pedra e fora proclamado rei de toda a Inglaterra. Tudo ficaria bem, disse ele a si próprio quando se aproximava da carruagem, tudo ficaria bem...

 

Kat e Robert não se atreveram a demorar-se muito tempo. Ela tinha imediatamente mandado sair Ellen para entregar a criança aos cuidados de Betsy. Kat não desejou ser testemunha da cena e endureceu o seu coração contra a dor de Ellen ao perder a criança que tinha, durante muitas semanas, suavizado a dor sentida pelo seu próprio bebé nascido já morto.

 

Kat e Robert sentaram-se no fino coche em frente um ao outro e falaram

- não ao contrário do que ele imaginara - docemente, sociavelmente, tentando encaixar demasiados anos separados numa meia hora. Ele não tinha, contudo, percebido o quão ávido estava de a ver, como lhe buscava a cara, agora vincada com finas rugas, como se fosse um mapa de estradas do passado deles e talvez, também, do futuro dele com o rapaz.

 

Não falaram, a princípio, da criança. Os pormenores tinham sido tratados por carta. Mas o momento de partir aproximava-se e era normal que se trocassem algumas palavras sobre esta estranha trouxa que era passada para dentro da vida dele. No entanto não vieram palavras algumas, nenhumas questões se formavam na mente de Robert Southem. Ele tacteou num silêncio agonizante e Kat, boa e velha amiga como era, pressentiu a confusão dele.

 

- O nome dele... - disse ela por fim.

 

- O nome dele? - disse Robert sem compreender. Desejava ela saber que nome daria ele à criança? - Oh, claro. Como se chama?

 

Kat olhou para fora da janela do coche, talvez recordando aquela terrível noite de tempestade, a dor, o sangue, a traição...

 

- A Rainha chamou-lhe Arthur.

 

Kat agarrou a mão de Robert súbita e ferozmente. Ele mudou para o assento ao lado, com os braços à volta dela. Enquanto ela se inclinava para eles e chorava amargamente, Robert Southem pensava no destino que tinha mais uma vez reunido estes dois amantes, e que havia trazido uma nova criança para a vida dele - uma criança real chamada Arthur.

 

Maud Southem quase não conseguia conter a excitação. Tinha terminado as suas tarefas diárias - supervisionar a preparação da refeição do jantar pela cozinheira, coser as mangas do novo vestido de domingo de Meg, repreender os trabalhadores da queijaria pelo seu ritmo lento, e regatear com os mercadores de Plainfield sobre o preço do seu melhor queijo. Sim, estava esgotada, mas como uma abelha a zumbir a sua ideia maravilhosa esvoaçava-lhe de um lado para o outro dentro da cabeça, e até parecia fazer com que o coração lhe batesse mais depressa quando pensava nela. oh, onde estava Robert! Ela estava a tremer com a antecipação do momento em que iria demonstrar-lhe o plano, observar aquela sempre sóbria contenção a metamorfosear-se num surpreendido sorriso de júbilo.

 

Viu-se a si própria sentada na mesa da queijaria em frente a ele pormenorizando o seu plano para vender a vacaria agora, antes que mais vacas adoecessem e morressem e eles perdessem ainda mais bens. Ela espalharia perante ele o dinheiro que tinha secretamente amealhado com a sua operação de queijaria, e descreveria como estabelecera contratos com queijeiros locais de Suffolk, e com outros do outro lado do Canal em França e nos Países Baixos com quem negociara importar queijos em lugar de os exportar.

 

A família mudar-se-ia para Londres, para uma morada modesta, e abriria uma loja de carnes brancas vendendo ovos, manteiga e queijo, com queijos importados de toda a Inglaterra e da Europa. A amiga de Robert no círculo da Rainha ajudá-los-ia a conseguir a licença que precisariam para o negócio. Seria ao princípio uma pequena operação. Seriam mercadores menores, é verdade, mas as notícias dos seus finos produtos espalhar-se-iam a todas as partes de Londres e mais além, e seguramente chegariam à atenção da Rainha. Iriam subir no mundo, tornar-se grandes mercadores com uma melhor morada na Milk Street e talvez uma casa separada da loja. O jovem John teria a melhor educação e as raparigas grandes dotes. A família erguer-se-ia da classe dos homens-bons para a da pequena nobreza. John tornar-se-ia um homem de substância, talvez estudasse direito, talvez fosse nomeado para um cargo público. Oh, seria excitante, uma vida em Londres, sociável e satisfatória! Como poderia Robert recusar?

 

Maud subiu rapidamente as escadas e espreitou para o quarto das crianças onde a sua criada Barbara estava sentada a amamentar a sua filha mais nova, a bela Alice, apenas com dois anos. Meg, que brincava silenciosamente com o seu novo gatinho, era a número três. Parecia-se com a mãe, com olhos escuros a combinar com o cabelo, e era uma criança bonita. Meg não teria qualquer dificuldade em encontrar um bom marido, com a sua aparência e um pai mercador rico. Podia até casar acima da sua condição. E o que estava, de facto, "acima" da pequena nobreza? Maud sorriu com contentamento e virou-se na direcção do quarto que partilhava com Robert.

 

A cama, a melhor peça de mobília da casa, era de bom tamanho, com um dossel e até alguns entalhes na cabeceira. Os lençóis de algodão eram os melhores que eles podiam por agora pagar, embora ela sempre se tivesse perguntado como seria dormir entre finos lençóis de linho. Bem, iria saber bem depressa.

 

Maud chegou-se ao pequeno espelho para ver o seu aspecto para o regresso de Robert e vislumbrou John, quase com cinco anos, através da janela. O rapaz estava a perseguir galinhas à volta do celeiro e a guinchar de deleite com o bulício que estava a provocar. Tinha a aparência que ela imaginava que teria Robert com a idade dele, os mesmos caracóis claros a enquadrar a mesma testa alta, o sorriso cheio de dentes, grandes orelhas para as quais nunca cresceria o suficiente. John era o seu primogénito e Maud adorava-o, contente por ele ter herdado a sua boa disposição, e não a seriedade calma do pai.

 

O rapaz parou o que estava a fazer, e dirigiu-se para o portão da quinta. Maud espreitou para o espelho, entalando uma madeixa de cabelo teimosa por trás da orelha, e mordeu os lábios para os enrubescer. Apesar dos três filhos em poucos anos, ela ainda mantinha a sua beleza de rapariga. Mas agora tinha de parecer impecável e profissional - como a orgulhosa mercadora que se iria apresentar.

 

Maud enviou os criados a correr atrás das crianças, para que quando Robert Southem entrasse pela porta da queijaria eles estivessem sozinhos. Estava sentada por trás da mesa de madeira, erecta, as mãos dobradas unidas impecavelmente à sua frente. O seu sorriso atrevido e enigmático murchou ligeiramente com a primeira visão da cara do marido. Sempre sério, ele estava nesta tarde muito sombrio, com o que parecia ser uma expressão perplexa. Maud decidiu que deveria prosseguir de qualquer forma.

 

- Robert. Estive a pensar um bom bocado na nossa situação aqui na quinta, vacaria e afins, e na minha fábrica de queijo. Pensei, também, sobre as vacas e a sua doença, e em como nós dependemos tanto delas para o nosso festim ou fome.

 

- Maud, temos de falar os dois.

 

- Eu sei isso, Robert. Mas digo-te que conversei um bom bocado comigo mesma, por vezes como se estivesse a falar contigo, por isso...

 

- Não percebes, Maud.

 

- O que é que eu não percebo? Porque é que entraste aqui dentro com uma cara tão comprida como uma corda? Não morreu mais gado, morreu? - perguntou ela, subitamente alarmada.

 

- Não, não morreu nenhum gado, e ninguém que nós conheçamos morreu.

 

- Bem isso é um alívio, então. O que é que se passa, Robert? Diz-me rapidamente, porque eu estou a rebentar para te contar as minhas novidades.

 

Quando ele não respondeu, Maud seguiu-lhe o olhar para fora da janela da queijaría e viu a rapariga sentada no vagão do leite segurando uma trouxa junto ao peito. Maud olhou de esguelha.

 

- Quem é aquela lá fora no carro? Parece-me a... Betsy Newman. Olhou para Robert inquisitoriamente, mas ele ainda não tinha encontrado as palavras para começar. - Não é ela a vaca que pariu um pequeno bastardo na semana passada? - Maud espreitou mais de perto pela janela. - Mas ela está a segurar um bebé nos braços, e eu ouvi dizer que a criança morreu. Porque está ela sentada no carro do leite no nosso pátio, Robert?

 

- É a Betsy Newman, de facto - disse ele numa voz nervosa.

 

Maud esperou que Robert continuasse. Depois perguntou em desafio: Trouxeste aquela vaca para uma visita à nossa casa?

 

É um bebé o que ela segura nos braços... embora não seja o dela, pois o dela realmente morreu - disse por fim Robert. Conseguia ver que Maud estava a ficar muito alarmada, mas apenas conseguia empurrar as palavras cá para fora uma a uma. - Não é tanto a Betsy Newman... que veio para nossa casa... mas mais a criança.

 

- A criança? De quem é a criança? E porque é que foi trazida para aqui? Robert, estou a começar a sentir-me muito zangada, por isso peço-te que fales comigo como deve ser, agora.

 

- É o filho de um amigo - mentiu ele, a primeira mentira que alguma vez tinha dito à sua mulher -, embora eu não te vá dizer qual amigo. E quero que nós acolhamos esta criança no nosso lar, com a Betsy Newman como sua ama de leite.

 

- O que é que estás a dizer? Não temos dinheiro para um protegido nesta casa. O dinheiro mal chega para os nossos filhos e criados. E o que queres dizer com isso de não me dizeres qual amigo! - A face de Maud tinha ficado vermelha e manchada com fúria crescente.

 

- Não quero que a criança seja um protegido...

- Espero bem que não - lançou Maud.

 

- Quero que nós... o adoptemos como se fosse nosso.

 

Maud sentou-se à mesa da queijaria, com os olhos a fitar o chão, mordendo os nós dos dedos enquanto tentava tirar sentido das palavras insensatas do marido.

 

- Ouviste-me, Maud? Quero que a Betsy traga o rapaz para dentro agora. Está frio e ainda mais lá fora.

 

- Não - disse ela calmamente.

- Maud...

 

- Não, eu não quero outra criança. E de quem é esta! É o teu bastardo, Robert?

 

- Não, Maud, eu juro que não é meu filho.

 

- Não vamos ter mais nenhuma criança agora, Robert. Vamo-nos mudar para Londres. Era isso que eu te queria dizer esta noite. Vamos vender a quinta e...

 

- Que disparates estás a dizer, mulher? Não temos planos nenhuns desses.

 

- Temos, temos. Eu tenho! - Maud moveu-se por fim da sua cadeira. Correu até ao armário, abriu-o de rompante, e tirou uma pequena arca. Os movimentos dela eram agora tão selvagens que abriu a arca com força antes de a pousar, e assim o conteúdo espalhou-se pelo chão e no tampo da mesa. Os olhos de Robert ficaram a olhar sem compreender para as moedas e notas de crédito.' Estavam tão confusos os seus próprios pensamentos, não conseguia sequer perceber Maud.

 

- Uma loja de carnes brancas, Robert, em Londres, com queijos importados de todo o lado, e vendidos à própria Rainha! Viste o sucesso que eu fiz do negócio aqui. Farei o mesmo em Londres. Dirigirei a loja, farei comércio com os retalhistas, manterei as contas. Sair-nos-emos bem, juro pelos céus que sim! Mas temos que ir em breve. Não podemos deixar que morra mais gado. A vacaria nunca se venderá!

 

Ela estava a ficar delirante. Robert sabia que tinha de se mexer, trazer a criança para dentro para longe do frio, mas quando saiu pela porta, Maud deslizou até ele e barrou-lhe a passagem como uma mulher louca.

 

- Não, Robert!

 

Nota: No original a autora refere-se a coin and paper, ou seja moeda e papel. No entanto, o papel moeda não era ainda utilizado na época em que se desenrola a acção, por isso se opta por traduzir por notas de crédito, de uso bastante vulgarizado nesta época. (N. do T.)

 

Ele fixou-a com um olhar que ela nunca antes tinha visto, um olhar que falava de transgressões passadas da parte dela - maus humores, ataques de mau gênio, vexações irracionais - com as quais ele tinha escolhido lidar com brandura e aquiescência. Mas agora ele era um homem decidido, e não seria demovido. Tão gentilmente quanto era capaz, empurrou Maud para o lado e abriu a porta.

 

- Betsy - chamou ele -, trá-lo para dentro.

 

Imóvel, Maud observava a vaca, a ranger os dentes, e um qualquer bastardo sem nome passando a soleira da sua casa. A ama de leite olhou para Robert à espera de instruções, e ele apontou para uma porta que levava à sala grande.

 

- Aqueçam-se ali dentro por agora - disse ele numa voz amável. Betsy arriscou um pequeno sorriso em direcção a Maud e foi recompensada com um antipatia mais fria do que uma noite de Novembro.

 

- Sim, senhor - disse Betsy, e desapareceu com a sua trouxa silenciosa.

 

Maud estava rígida, recusando-se a olhar para Robert, pois tinha sido claramente batida por ele pela primeira vez em todo o tempo que durava a sua vida de casados. E não sabia porquê. Como podia ele conceber um tal plano sem a consultar? E quem tinha tanto poder sobre ele que pudesse arriscar a felicidade do seu coração e lar?

 

Robert também tinha permanecido em silêncio, a organizar os pensamentos.

 

- Maud... eu não desejo que fiques zangada, e sei que o estás. Talvez gostes do resto disto.

 

- Há mais? perguntou ela com terror na voz.

 

- Sei que desejas ser erguida à pequena nobreza. Maud ouvia, com medo de respirar.

 

- Com esta adopção - continuou Robert - vem uma recompensa. Uma posição. Vamo-nos mudar...

 

- Para onde?

 

- Para mais perto de Londres - disse ele cuidadosamente.

- Quão perto?

 

- Dois dias de viagem. É ainda o campo!

 

Eu sei, Maud, mas eu serei o encarregado de uma grande coutada, a Coutada de Enfield, um bom parque. Uma que a própria Rainha vai visitar e caçar nela. Não teremos mais vacas, Maud, mas lindos cavalos e caça selvagem a toda a nossa volta.

 

- É ainda o campo, cheio de rústicos e de loucos desordeiros!

 

- Pensas tu que Londres não tem rústicos nem loucos desordeiros? Então és tu uma louca, Maud Southem!

 

- Como é que vem esse posto com esta criança? Um dos teus altos amigos, é?

 

- Não falaremos disso, Maud. já disse, e falei a sério.

 

Ela teve um assomo de cólera. Os punhos fecharam-se, como o maxilar. Robert pensou então que se uma pessoa pudesse explodir, Maud poderia fazê-lo agora. Ele estava subitamente com medo, pois tinha visto uma vez um homem zangado assim e a rebentar de raiva, que caíra com um ataque e morrera.

 

Robert colocou uma mão apaziguadora no braço de Maud.

 

- Por favor, Maud. Pedi-te muito pouco ao longo do nosso casamento. Dei-te liberdade para os teus pensamentos e acções. Acolhi as tuas ambições. Nunca te bati, nem uma vez. - Olhou para o outro lado. - Mas tens de me deixar ficar com este rapaz, e tens de vir comigo como minha mulher para o meu novo posto. E nunca... nunca me perguntar sobre isso outra vez. Faz estas coisas, e irás em breve dar por ti como uma fidalga. Dar-te-ei licença algumas vezes para ires a Londres se quiseres, embora eu pessoalmente tenha pouco amor pelo sítio. Talvez, até, John possa frequentar uma escola lá quando for mais velho.

 

Maud observou o marido como se estivesse a grande distância. Ele estava a esmagar em pedaços a bela confecção que ela tinha criado, e exigindo que ficasse grata pelas migalhas que agora espalhava à sua frente. Supôs que ele estivesse à espera que ela amasse esta criança, este bastardo de alto nascimento, destruidor da ambição de toda a sua vida. Bem, pensou Maud enquanto se virava para enfrentar o seu futuro frouxo como esposa do campo, Robert Southem faria melhor em pensar outra vez.

 

Desde que me consigo lembrar Era um cavalo cujo afecto me mantinha na sita escravidão

 

Pobre poema, esse, mas o único verso que eu confesso alguma vez ter escrito. Pobre, mas um sentimento verdadeiro, de qualquer forma. Um cavalo e um rapaz juntos - a história da minha vida.

 

Qual era a minha idade? Qual desses bons amigos foi o primeiro? Não o sei dizer, mas eu era muito pequeno, isso eu sei. Não me lembro bem do nome do animal nem da sua cor ou marcas, se era um garanhão, égua, castrado. Aquilo de que me lembro é de estar escarranchado nas costas largas, vendo à minha frente a cabeça orgulhosa e erguida, o pescoço musculado, respirando o rico almíscar, ouvindo o doce som do galope e do sopro. Acima de tudo recordo-me do gracioso balanço e ritmo que mitigava os meus sentidos, todo o tempo trazendo-os aguçadamente ao de cima. Os meus minúsculos dedos estão abertos à volta do arção de couro, a mão grande do meu pai por cima da minha mais pequena. Ele e eu estamos a cavalgar através do bosque, um lento clop, clop, clop, eu aninhado para trás contra o corpo grande e confortável dele, olhando nesta e naquela direcção, pois nós somos os protectores dafloresta e de todos os seus habitantes selvagens.

 

Este Céu na Terra no qual eu estava, com a minha família, tão feliz por nele residir, era a Coutada de Enfield. Era uma concessão e licença real dada ao meu pai, e com a sua aquisição veio uma grande elevação dos destinos da nossa família, logo a seguir ao meu nascimento. A propriedade era uma grande extensão arborizada, bem fornecida de cervos e gamos - a caça favorita dos nobres. Eram importados javalis de França. As lebres, caçadas por fidalgos e homens-bons, corriam em círculos mais pequenos do que os veados e eram mais lentas, mas, de qualquer forma, eram boas presas com a sua astúcia e davam aos cães uma boa corrida. As raposas abundavam, mas consideravam-nas presas inferiores, não melhores do que vermes.

 

O término longínquo da coutada dava para os pântanos, e aí havia numerosos patos, patos-reais e gansos que eram caçados. Em alguma terra de cultivo no lado sul da propriedade, os nossos rendeiros cultivavam aveia, trigo, centeio e feno que preparavam como ração para alimentar o gado. As árvores eram muitas delas antigas, mas havia novas plantações que mostravam a saúde da floresta. As árvores eram espessamente plantadas, embora todo o bosque fosse cruzado por caminhos suficientemente velhos e usados para tornar as viagens dentro dele - mesmo a cavalgada rápida - o mais agradável possível.

 

Na propriedade havia uma pequena casa senhorial que eu sempre pensei que era muito grandiosa, embora a minha mãe se queixasse acerca da sua idade e humidade, e da sua proximidade do celeiro e estábulos que ela dizia que davam à casa um fedor a animais. Isto não era falso, embora eu e o meu pai ríssemos juntos em privado, como nós gostávamos daquele cheiro de longe mais do que dos perfumes franceses que ela aspergia por todo o lado.

 

Pois foram, desde tenra idade, os estábulos mais casa para mim do que a casa senhorial alguma vez seria. Tínhamos trinta montadas - Cavalos Grandes Ingleses, Árabes, Espanhóis, Barbados. E mais do que apenas a sua manutenção para serem alugados para as caçadas e falcoaria e diversos para corridas, amansávamos e treinávamos jovens potros, e ensinávamos equitação a fidalgos locais, às suas esposas e filhos. Todos esses deviam ser cavaleiros aptos, pois a cavalaria - cavalgar segura e perfeitamente - fazia parte da educação de todas as pessoas gentis e nobres.

 

Não devo esquecer os mastins corredores que criávamos e mantínhamos, mas devo admitir que embora sentisse uma simpatia por cães, eles nada eram na minha mente quando comparados com os cavalos, mas meramente os necessários companheiros de caça. Eu via, no entanto, como havia um grande laço entre os dois - os cães inspirados pelas passadas dos cascos, e o uivo agudo dos cães incitando a perseguição dos cavalos. A música da caçada.

 

As minhas tarefas enquanto rapaz eram estrumar os estábulos, alimentar os cavalos e escová-los, até coser sacos de ração ocasionalmente. Depressa aprendi as diferenças das raças, os seus temperamentos e defeitos - embora deva admitir que raramente chamei a qualquer comportamento num cavalo um defeito. Era apenas a maneira de ser própria daquele corcel. Via, mesmo enquanto criança - se bem que ninguém que eu alguma vez tenha conhecido até hoje concorde -, que cada cavalo nascia com uma mente. Mesmo que não seja a mente de uma pessoa, seguramente que é uma mente, apesar de tudo. O temperamento e comportamento de um cavalo selvagem antes de ser quebrado - essa ciência cruel que tem de ser suportada por todas as montadas de prazer e de caça - mudava e tornava-se diferente depois dele ter sido selado, a sua mente quebrada e refeita para a civilidade, agora mais a de um homem do que a de um cavalo.

 

Enfield Towne ficava a dois dias de viagem de Londres. Alguns citadinos faziam a viagem, pois a nossa coutada era largamente conhecida pela sua beleza, bosques muito densos e belos cavalos. Uma boa estalagem conhecida como Stags Head, na aldeia, tornava a estada dos visitantes mais confortável. Vinham, também, grandes senhores de casas senhoriais a um dia de viagem, e nobres e pequenos nobres locais, e todos eles partilhavam da dádiva da Coutada de Enfield. Juntamente com as rendas recolhidas junto dos nossos camponeses rendeiros, a fortuna do meu pai cresceu. Vivíamos bem, embora a minha mãe tivesse o hábito de resmungar que a Rainha nunca vinha caçar a Enfield, mas o meu pai dizia que ela apenas saía quando ia em viagem oficial e não tinha ainda considerado adequado vir para a nossa parte do país, mas que viria dentro em breve, tinha a certeza.

 

O meu irmão John era quatro anos mais velho do que eu, e o favorito da minha mãe. Isso era como devia ser, amando muito grandemente o seu primogénito, ela sempre disse, mas para descontentamento dela ele não era também o favorito do meu pai.

 

- John é o teu herdeiro - ouvia-a eu dizer quando via o meu pai a ser meramente gentil para mim.

 

- Eu sei isso, Maud - dizia ele -, John é o herdeiro legítimo da Coutada de Enfield perante a lei, mas eu pretendo providenciar para ambos os meus filhos. O jovem Arthur precisa de aprender um ofício, e dá-se bem com o meu, por isso se eu o mantiver perto de mim e lhe ensinar a criação de animais e a manutenção de caça é o mais natural, por isso por favor não interfiras.

 

- O filho de Satã! - resmungava ela numa maldição em voz baixa, e o meu pai ficava vermelho de fúria.

 

- Ele não é nada disso! Uma pequena protuberância de carne extra na parte de fora da mão dele não é nada...

 

- Existe uma unha nela, John. É um dedo extra! A marca de uma bruxa, sabes tão bem como eu.

 

- Se eu tivesse tendência para a superstição talvez, mas não tenho. Não é mais uma marca de bruxa do que o grande quisto castanho na tua coxa.

 

- Eu digo para trazermos cá o cirurgião - disse ela, ignorando o raciocínio do meu pai -, e deixemo-lo que o extraia.

 

- E eu digo que te metas nos teus assuntos, mulher, e deixa o rapaz em paz.

 

Para cobrir o dígito ofensivo - uma coisa estranha certamente - eu tinha sempre que usar uma pequena luva. A minha mãe instruiu-me a dizer aos curiosos que me tinha queimado gravemente na mão durante um fogo, pois desejava esconder a minha desfiguração. A luva era para mim uma parte muito natural da minha ornamentação, e pensei pouco nisso à medida que os anos passavam.

 

Pela parte de John, ele era um irmão razoável nos meus anos mais jovens. Claro que sentia a amargura da nossa mãe para comigo, mas era apenas um simples rapaz com poucas inclinações em particular. Aprendeu as suas letras e números suficientemente bem mas não lhes ligava muito. Cavalgava, mas também todos os jovens fidalgos o faziam, Pescava nos pântanos, jogava aos dados e a outros jogos de azar. Nenhuma paixão o agitava, mas também isso não era uma coisa necessária, pois ele iria, inquestionavelmente, e apesar do seu comportamento, herdar toda a Coutada de Enfield aquando da morte do nosso pai. Era a lei da progenitura.

 

As minhas irmãs Meg e Alice, doces raparigas, amavam-me loucamente. A minha ama de leite deixara o nosso serviço quando eu tinha dois anos de idade, e para meu grande proveito as minhas irmãs - apenas dois e três anos mais velhas - foram as minhas pequenas mães e eu fui a pequena boneca delas. Elas lamuriavam-se e choramingavam naquelas vezes em que o meu pai me sonegava do quarto das crianças para me levar a montar, alegando que ele lhes tinha tirado o brinquedo favorito. A nossa mãe tratava Meg e Alice bem se não amorosamente. Vestia-as com vestidos bonitos, escovava os seus cabelos, falava infindavelmente acerca dos bons casamentos que um dia lhes faria, os bons dotes que o pai iria providenciar-lhes.

 

Há muito tempo que perdoei à minhamãe os espancamentos que me deu, aqueles que ela me proporcionou com a chibata, cabo de vassoura, tira de couro ou punho cerrado. Mas lembro-me que quando eles eram prontamente dirigidos ao terno rapaz que eu era, eram de facto cruéis. Magoavam a minha carne, penso, menos do que o meu espírito emergente, e no entanto ajudaram a formar o homem em que me tornei. Pois, raciocinava eu, se eu era espancado por alguém que amava, nunca conseguiria então espancar alguém que amasse. E como eu amava cavalos, aprendi uma espécie de comunicação amigável com eles partilhada por poucos homens e desdenhada por muitos.

 

Na minha família eu era o único filho a atrair a fúria da minha mãe. Ficava perplexo, pois o meu comportamento via-o como não muito diferente do do meu irmão John. Mas aceitava todo o castigo estoicamente, e da maneira que as crianças por vezes o fazem, cheguei a acreditar que era merecedor deles, que tinha de alguma forma errado, que quando fosse mais velho iria conseguir compreender. Pois os pais são sagrados, pequenos deuses para uma criança e não podem errar. Via a minha mãe nesses momentos como um anjo - ela era bastante bonita para mim - cujos humores violentos eram provocados por um espírito diabólico a habitar temporariamente o corpo dela, sussurrando coisas más sobre mim ao seu ouvido. Pois quando a minha mãe era boa, era-o verdadeiramente. Astuta e esperta como uma boa lâmina, brilhante e ofuscante à luz do Sol.

 

Lia-nos as Escrituras duas vezes por dia com uma voz cheia de significado, não o zumbido monótono que eu tinha ouvido nas casas de Deus. Instruiu-nos bem, ensinou-nos a distinguir o bem do mal em todas as coisas, ensinou-nos os nossos números e letras, e era paciente com o meu irmão e duas irmãs, embora menos comigo. Mas como já disse eu via-a como tendo uma boa desculpa para me bater, e na instrução ainda mais. Apesar de eu não ser lento, tinha pouco interesse na aprendizagem de sala de aula. Desejava apenas estar lá fora com o meu pai, ajudando-o a cuidar da Coutada de Enfield, aprendendo todos os métodos da criação de animais, tratando de animais doentes, construindo torres de tiro e esconderijos para as companhias de gente nobre que vinham caçar no nosso pequeno paraíso.

 

E montar o meu cavalo - isso mais do que tudo.

 

Com o ritmo rápido de uma galharda francesa a ressoar nos ouvidos, Isabel deu por si no ar durante um breve e brilhante momento a olhar de cima para o seu parceiro de dança. Então os mesmos

 

braços musculados que a tinham lançado para cima apanharam-na na queda. No momento em que os sapatos dela tocaram o solo James Melville fez rodopiar a Rainha a toda a volta, e ela aterrou com um grito quando a galharda acabava. Melville estava a rir, reluzente com o esforço como estavam todos que, na pista do grande salão, tinham partilhado a dança e a excelente música de gaita e tamborim.

 

- Por Deus, por Cristo, e pelas muitas partes do seu corpo glorificado, eu amo a dança! - gritou ela.

 

- Vós saltais tão lindamente como uma jovem cabra, Majestade - respondeu Melville com uma vénia profunda.

 

- E vós tão alto como um cabrito-montês, Sir James.

 

Oferecendo a Isabel o seu braço, Melville caminhou com ela para fora da pista, mas a Rainha declinou sentar-se. Embora ela desejasse dançar a dança seguinte, conseguia ver que Sir James desejava conversar. O embaixador escocês neste serão tinha prestado atenção ao seu conselho para se divertir apenas, e tinha-se afastado de assuntos sérios. Mas ele apreciava claramente, tanto como ela, duas mentes inteligentes e educadas recentemente reunidas, descobrir através de gracejos leves territórios até agora inexplorados. Na última semana Isabel e o rude, bem-parecido e imperturbável emissário da corte de Maria, rainha dos Escoceses, que se destacava dos seus pavões cortesãos num kilt de xadrez desmaiado do seu clã, tinham coberto muitos e variados assuntos. Embora ela soubesse que o propósito dele era a penetração da mente dela, e a retransmissão da informação aí descoberta à sua soberana, Isabel sorria interiormente sabendo que tinha igualmente penetrado na mente dele. Para além de indagações acerca da rainha dos Escoceses, desde os boatos triviais até assuntos de Estado sérios, ela tinha-lhe perguntado quais os livros que ele gostava de ler e tinha-o questionado acerca dos países por onde viajara - pois ela própria nunca abandonara a Inglaterra - e das pessoas que tinha tido a sorte de conhecer neles.

 

Estava a namoriscar com Melville?, perguntava-se Isabel, aceitando uma taça de vinho oferecida por ele e respirando fundo pela primeira vez no que pareciam horas. Gostava deste homem. Tinha-o admitido desde o momento em que o encontrara, e fora cumprimentada pela escolha de embaixadores de Maria, certa de que a decisão tinha sido cuidadosa e inteligentemente tomada. Melville provara ser não apenas um poço de informação acerca da sua misteriosa prima mas, sábio, gentil e totalmente sincero. Ele nada mais desejava a não ser que a sua senhora e Isabel, jovens primas de sangue, se encontrassem finalmente e chegassem a um feliz acordo, especialmente no que dizia respeito à sucessão. Mas a Rainha também pressentia que Melville sentia uma estima genuína por ela, e iria sem dúvida transmitir o mesmo a Maria.

 

- Dizem-me que Maria gosta de dançar tanto como eu.

 

- Sim, ela alega uma competição cerrada entre os seus passatempos favoritos: tocar música, dançar e caçar.

 

- Ela monta bem, então? - perguntou Isabel.

 

- Oh, é uma cavaleira feroz, Majestade. Regressou recentemente de Balmoral, onde numa manhã mil highlanders foram para bater os arbustos à procura de veados, com os quais ela e os seus cavaleiros fizeram desporto ao longo de todo o dia. - Dobrou-se para sussurrar a Isabel, pois era alto bem como musculado: - Digo-vos, Majestade, vós duas sereis boas amigas no fim do primeiro dia em que se encontrarem.

 

Isabel sorriu recatadamente.

 

- Defendeis bem o vosso caso, Melville. De alguma forma haveis conseguido extrair o ferrão da minha recalcitrante prima recusar-se ainda a assinar o Tratado de Edimburgo, e da sua infindável insistência de que é a verdadeira rainha de Inglaterra. Estou quase inclinada a concordar com esse encontro. Mas eles - acrescentou ela conspiratoriamente, indicando um bando de ministros mais velhos e barbados no outro lado da sala - têm dúvidas acerca da validade desse encontro. Alguns receiam-no. De qualquer forma seria um grande empreendimento, a viagem mais longínqua que eu alguma vez realizei, e ainda agora regressei a casa da minha viagem oficial de Verão. Viajar dessa forma é um assunto complicado.

 

- Então fazei-o de outra forma, Majestade.

 

- Outra forma, Sir James? - disse Isabel, com a curiosidade espicaçada.

 

Melville sussurrou ainda mais silenciosamente:

 

- Disfarçai-vos de rapaz, o meu pajem. Acompanhai-me de regresso à Escócia. Atravessai a fronteira e entrai no Castelo de Holyrood sem que ninguém saiba.

 

Isabel soltou um riso abafado, mas deu por si a contemplar silenciosamente o plano escandaloso.

 

- São todos os escoceses tão arrojados como vós sois, Sir James? - disse ela, brincando com o lóbulo da orelha dele.

 

- Vinde à Escócia e eu vos mostrarei um molho de homens arrojados e uma rainha arrojada para vos servirem.

 

Lord Clinton chegara-se perto de Melville e implorava uma palavra. Enquanto Isabel fazia sinal dispensando-o da sua companhia, espiou Robin Dudley a convidar a bonita prima dela, Lettice Knollys, para a dança seguinte, e deu por si incomodada por emoções confusas.

 

A dor atingiu a parte de trás dos olhos dela com a clara recordação do seu pobre filho e de Dudley deitado entre eles, e o sonho de Isabel de uma vida com o seu amor a esfriar, ao mesmo tempo que o corpo do bebé adoptava o frio da morte. Foi atingida, também, por uma terrível culpa. Apesar da ligação continuada dela e de Robin, apesar do amor muito real e do carinho que ainda partilhavam, apesar das grandes honras e propriedades, licenças e pensões que ela tinha concedido a Robin, tornando-o num poderoso Homem Novo, sabia que ele se recusava a acreditar, escolhia ficar cego à verdade dos motivos dela.

 

Menos de um mês antes tinha havido um incidente com o embaixador sueco. Quando ele fora cortejar a Rainha em nome do rei Eric, Robin lançara obstáculos no seu caminho para chegar a ela, ameaçando o homem com a prisão, até mesmo com danos físicos. Quando Isabel ouviu falar do desgraçado incidente, enfureceu-se violentamente com Robin perante todos os nobres reunidos, amaldiçoou-o por interferir com a sua diplomacia, e gritou que nunca iria casar com ele. Ele tinha sido humilhado publicamente e injuriado em privado. Numa discussão ardente ele tinha-lhe pedido autorização para abandonar a corte, para ir para o continente curar as feridas. Isabel tinha-lhe concedido dispensa, acreditando que a separação seria o mais sábio a fazer. Ela esperava que a injúria ao orgulho dele, o forçasse finalmente a acabar com as suas actividades até agora fiéis mas sem esperança no sentido de casar com ela. Mas não. Tinha pensado ser melhor mudar-se para fora da corte quando se sabia em desfavor, e depois de uma reunião cheia de lágrimas e apaixonada, Robin renovara os seus esforços para casar com ela com estratagemas ainda mais astuciosos.

 

Era ela má?, perguntava-se, observando Robin e Lettice - um belo casal - a rodopiar, a fazer vénias e a marchar com passos elegantes e medidos. Como podia ela continuar a deixá-lo acreditar que ainda podia vir a casar com ele? Como podia mantê-lo amarrado invejosamente a ela própria? Ah, pensou Isabel, a resposta dentro da pergunta. Ciúmes. Ela não podia suportar a ideia dele nos braços de outra mulher. Ele era só dela, desde a infância, e apesar do casamento dele com Amy Robsart, Isabel tinha sempre possuído o coração dele, e ele o dela.

 

Havia piores destinos para Robin, pensou ela de súbito. Pior do que aparecer como o favorito da Rainha, prendado com castelos, honras, riquezas e poder - poder nunca antes detido por um simples súbdito, filho e neto de traidores da Coroa. Existiam de facto piores destinos. Não, ela não se iria casar com ele, apor sobre ele a coroa matrimonial, embora o pudesse levar a acreditar que um dia o faria. Ela era Isabel, rainha de Inglaterra, e tinha um reino para governar - para governar bem. Isso estaria acima de tudo nos seus pensamentos, embora nunca banisse completamente o seu prazer.

 

Isabel agarrou na sua culpa vagarosa com ambas as mãos e lançou-a a voar sobre as cabeças dos dançarinos. Quando a música acabou, deslizou imperiosamente através da pista e aproximou-se decididamente para encarar Robin. Ele sorriu-lhe então, tanto com a ternura dos seus muitos anos juntos como com o fogo de um amante novinho em folha. E ela ficou dominada mais uma vez. Sem palavras, tomou o braço dele e enquanto os tambores e gaitas começavam a sua melodia Isabel e Dudley, em perfeita e alegre harmonia,

começaram a dançar.

 

O grupo de falcoaria da Rainha apressava-se através dos campos abertos por trás de Hampton Court, correndo no chão por cima do qual a grande ave pairava em perseguição silenciosa da sua presa. O falcão-vermelho tinha sido um belo presente da sua prima Maria, entregue no princípio da semana por Melville, que agora galopava ao lado dela. Robin, o seu irmão Ambrose e Henry Sidney vinham atrás. O chão tremia debaixo de tantos cascos poderosos. Isabel montava segundo a nova moda para uma dama, uma prática iniciada pela Médicis, com o joelho direito em gancho à volta do arção. O ar frio da manhã a fustigar-lhe a cara, flanqueada pelos seus favoritos, Isabel sabia-se tãopreenchida e contente como não o estava há muitos meses.

 

Tinha partilhado a cama de Robin na noite anterior. Antes de ter discretamente desaparecido do quarto de Robin, Tamworth enchera o quarto com braseiros de pedras quentes vermelhas contra o frio do Inverno, e o sítio tinha incandescido com um agradável calor de forma que tinham podido ficar completamente nus à vista um do outro. Toda a tristeza e receio tinham sido banidos, e a sensação das mãos e lábios dele no seu corpo fora exuberante. Gritara quando ele entrara em si, e agarrara as costas duras e os flancos tensos enquanto cavalgavam juntos, acasalados no ritmo e no prazer.

 

Nesta manhã, outra vez a Rainha, com as rédeas firmemente na mão, renovara as conversações diplomáticas com Melville sobre o tema da sua prima Maria e estava, embora ninguém a não ser o embaixador o soubesse, verdadeiramente a contemplar o esquema audacioso dele para levar Isabel disfarçada através da fronteira norte.

 

Com a cabeça virada para o céu, Isabel viu a veloz morte em pleno voo. Fez parar o seu cavalo e esperou, com o braço enluvado esticado, enquanto uma leve chuva das penas da presa flutuavam vindas de cima. Um momento mais tarde o falcão virou para baixo e, com as patas com garras eficazes como punhais primeiro, e as asas maciças esticadas para fora depois, pousou graciosamente na pesada luva de couro de Isabel. Ela tirou o pombo inerte do seu poderoso bico e entregou-o a Melville. Procurando os olhos da magnífica criatura apenas por um momento, a Rainha puxou o pequeno capuz emplumado por cima da cabeça.

 

- Podeis dizer à minha prima que eu gosto da oferta dela quase tanto como gosto da sua escolha de embaixadores - disse Isabel.

 

Mas Melville foi impedido de dar a sua resposta cortês pela visão de um homem solitário da guarda real da Rainha a galope a grande velocidade em direcção ao grupo. Quando chegou ao pé deles e parou, Isabel deu ao mensageiro sem fôlego permissão para falar.

 

- O duque de Guise ordenou, de acordo com relatos, às suas tropas que disparassem sobre uma reunião de oração protestante, Majestade. Morreram quatrocentos. Os huguenotes estão a reunir-se para retaliarem. A França está à beira da guerra civil.

 

Isabel estava sentada direita e quieta na sua sela. Tomou subitamente consciência do frio nas suas bochechas, e sentia-se neste momento como se, através das acções de um único homem assassino num continente tão longe dela, toda a sua vida tivesse subitamente, irrevogavelmente mudado.

 

- Sir James, - disse ela por fim ao escocês, que estava ele próprio claramente engalfinhado com as terríveis implicações destas notícias -, lamento profundamente que não possa mais considerar um encontro com uma soberana cujo tio prontamente assassinou quatrocentos dos seus inocentes conterrâneos. - Virou-se para Robin, Ambrose e Henry Sidney: - Vinde, temos muitos assuntos a que dar seguimento. - Então esporeou o cavalo e dirigiu-se a galope para Hampton Court.

 

Nem uma hora tinha passado desde que Isabel encapuçara o falcão nos campos. Ainda tinha vestidas as suas roupas de montar enquanto ela e o Conselho Privado, juntamente com os irmãos Dudley, debatiam a intenção e consequências das acções do duque de Guise, e a resposta de Inglaterra às mesmas. Os conselheiros privados estavam circunspectos com a presença dos seus companheiros casuais, mas Isabel tinha sido inflexível acerca da inclusão deles na reunião.

 

Apesar da sua falta de experiência no círculo íntimo em que se fazem políticas, Robin falou arrojadamente.

 

- No momento em que aos huguenotes franceses é concedida tolerância religiosa pela Casa de Valois são chacinados como animais - disse ele com seriedade. - Não temos escolha a não ser dar apoio aos nossos irmãos protestantes quando a facção de Guise está claramente a planear o seu extermínio.

 

- Ai é assim? - perguntou Isabel, picando Robin com os olhos. Ela podia amá-lo apaixonadamente, mas ele não estava isento do seu sarcasmo contundente. - É curioso ao extremo, meu senhor, que vós não há assim tanto tempo estivésseis disposto a sacrificar os recursos do nosso país pela causa católica. Pergunto-me se estais agora a tratar com os huguenotes pelo apoio deles ao nosso casamento.

 

Isabel viu com satisfação que Robin Dudley ficou vermelho debaixo do seu bronzeado. Bem, se ele queria ser incluído no traçar da política tinha de aprender a aguentar o ferrão afiado do seu sarcasmo, como todos os seus conselheiros privados eram forçados a fazer.

 

- O que dizeis vós, secretário Cecil? - inquiriu Isabel mais brandamente.

 

- Sinto-me inclinado a concordar com o vosso mestre-de-picadeiro respondeu Cecil, colocando ênfase no título mais baixo de Robin. Cecil estava profundamente ofendido de que Isabel incluísse o homem numa decisão de tal importância, pois por muito sinceramente que tentasse, Cecil não conseguia suportar o amante da Rainha. - Se Guise se sente à vontade para assassinar huguenotes em França, e se então consolida a sua posição, temo que Inglaterra seja o seu próximo alvo. Ele fará tudo o que estiver ao seu alcance para colocar Maria, rainha dos Escoceses, no vosso trono e depois casá-la com um dos filhos de Filipe. Logo, os protestantes franceses que se opõem a Guise devem ser apoiados pelos seus confrades ingleses.

 

- E como supondes que devemos ajudá-los? - perguntou Isabel, lançando a questão a todos os seus conselheiros.

 

- Devemos proteger as nossas fronteiras a norte contra uma invasão a partir da Escócia - lançou Lord Clinton. - Afinal, a vossa prima Maria é ela própria uma Guise. Proponho que o duque de Norfolk, talvez Northampton e Rutland, com vários batalhões se dirijam para a fronteira escocesa.

 

- Bom - disse Isabel. - Que os meus primos Hunsdon e Huntingdon os acompanhem. Que mais, meus senhores? - olhou à volta para os seus homens.

 

- Posso sugerir utilizar isto como uma oportunidade para Vossa Majestade recuperar dos Franceses a nossa cidade portuária de Calais? - acrescentou Cecil, sabendo que a sugestão, embora audaciosa, iria agradar sinceramente à Rainha. A perda do último posto avançado de Inglaterra no continente pela sua meia-irmã Maria tinha sido sempre uma espinha atravessada na garganta de Isabel.

 

- Como sabeis, nunca cobicei nem lutei por quaisquer territórios que não os meus - disse Isabel. - Mas Calais pertence de direito a Inglaterra, e reconquistá-la, iria certamente proteger a nossa costa oriental de uma invasão francesa.

 

- Não nos comportemos demasiado apressadamente, Majestade. Acredito que devemos tentar a mediação primeiro - disse Throckrnorton.

 

- A intervenção militar é a solução mais clara - interrompeu Robin insistentemente. - Combater a força com a força. Eles que vejam que nós não permitiremos que nenhuma agressão fique sem resposta.

 

- Devo concordar com Lord Dudley - anunciou Isabel. Então como ele sorrisse triunfantemente, ela acrescentou: - por isso nomeio o irmão mais velho dele, Ambrose, Lord Warwick, como capitão-general da expedição.

 

Houve um longo momento de silêncio enquanto as implicações - o alçar de Ambrose, a pouca atenção para com Robin e a magnitude da entrega por Isabel da força militar - se enquadravam e reenquadravam nas cabeças dos conselheiros.

 

O silêncio vindo de Robin, observou Isabel, era completo, e a sua coibição quase sobre-humana. Ela sabia-o furioso, magoado, desnorteado. No entanto tinha agido por necessidade. É claro que ele desejava, como todos os homens, distinguir-se no campo de batalha - era a forma mais segura de conquistar o respeito dos seus pares. Mas ela precisava de Robin em casa, ao lado dela para lhe dar bons conselhos. Igualmente, se fosse inteiramente honesta consigo própria, estava relutante em mandá-lo combater. Conseguia sobreviver à fúria devastadora dele em privado, mas nunca conseguiria aguentar a ideia dele ferido. A ideia dele morto.

 

- Então, meus senhores, está decidido. Falai entre vós. Mandem aos huguenotes um enviado e deixai-me ouvir os pormenores dos vossos planos. - Dirigiu-se para a porta, e virou-se novamente para os seus conselheiros. - E garantam que Sir James Melville tenha salvo-conduto para atravessar a fronteira norte. Cecil, enviar-lhe-eis os meus desejos de felicidades, e transmitir-lhe-eis o meu pesar por não o ver antes da sua partida? É uma pena terminar as nossas negociações tão abruptamente - disse Isabel. - Ele era tão apto como cavalheiro como eu alguma vez vi.

 

As portas da câmara privada abriram-se e Isabel deslizou passando por eles, desaparecendo num grande murmúrio de saias.

 

Ambrose Dudley quebrou o silêncio.

 

- Calais - disse ele com força e deliberação. - Falemos da reconquista de Calais.

 

Robin Dudley percorreu rapidamente os longos corredores de Hampton Court e subiu dois a dois os degraus das amplas escadas de pedra que levavam ao andar de cima. Estava rígido das dezasseis horas sem intervalo em que o Conselho Privado tinha acabado de se reunir. Tinham sido levadas refeições à câmara privada, vindas das cozinhas da cave enquanto as maiores mentes de Inglaterra planeavam o futuro do reino. Tinham sido discutidos e formulados planos para colocar uma guarnição militar na cidade portuária francesa de Le Havre com Lord Warwick à cabeça e mandar três mil soldados para ajudar a defender os huguenotes.

 

No momento em que a reunião se concluíra, Robin tinha explodido para fora da câmara, a fúria reprimida a surgir através dos seus membros, a necessidade de confrontar Isabel com a sua perfídia acima de tudo na sua cabeça. Quando ele falara tão arrojadamente acerca de resistir aos franceses, tinha claramente visado para ele próprio o comando das tropas na galante refrega. Passaram muitos anos desde que vira uma batalha, a qual era a forma mais segura de um homem atingir maior glória.

 

Robin passou de rompante pelos guardas na antecâmara de Isabel, mas foi detido de repente pela visão da sua irmã, Mary Sidney, saindo pela porta do quarto de dormir da Rainha com um ar pálido e assustado. Quando ela o viu, começou de imediato a chorar.

 

- O que é, irmã? O que se passa? Mary abafou os soluços.

 

- A Rainha... - Não conseguia continuar.

 

- O que tem ela? Mary, fala comigo. Diz-me o que aconteceu!

 

- Quando regressou da reunião do conselho, disse que se sentia inquieta e pediu um banho quente. Depois disse que se sentia melhor, então insistiu em vestir-se outra vez e fazer exercício no pátio. Kat implorou-lhe que ficasse e descansasse, mas sabes como é a Rainha. Não consegue ficar quieta muito tempo. Quando regressou lá de fora vinha a arder em febre.

 

- Febre... - suspirou Robin com alívio. - Por Cristo, por momentos alarmaste-me. Isabel tem tido muitas febres.

 

- Robin! - Ela agarrou o braço dele. - Ela tem todos os sintomas de varíola!

 

- Varíola?

 

- A irritação ainda não apareceu - continuou Mary - mas vai aparecer em breve. Ela está muito, muito doente.

 

- O conselho não foi informado - disse ele, desnorteado. - Acabo de chegar de junto deles.

 

- Ela não nos deixou passar palavra. Disse que estavas muito envolvido em negociações sérias e que não devias ser incomodado.

 

- Oh, Isabel! - ele dirigiu-se para a porta do quarto de dormir. Mary bloqueou-lhe a passagem.

 

- Ela não deseja ver-te, Robin. As ordens foram muito específicas. Ela ama-te demasiado para arriscar a tua infecção. Deves voltar, para informar o conselho.

 

- Eles ficarão loucos. Ela nunca nomeou sucessor. Se ela morresse...

- Ela não morrerá, Robin - disse Mary Sidney, com os olhos a espelhar uma determinação de ferro. - Eu não a deixarei morrer.

 

Robin puxou a sua irmã para ele. Abraçou-a com um abraço feroz e tremeram com medo e infelicidade partilhados.

 

- Tenho que manter a minha cabeça fria - disse Robin para si -, pensar no que é melhor para Inglaterra. O reino sem um governante... todos os medos do conselho a tornarem-se realidade... facções, lutas, guerra civil... desastre total. - Mas enquanto caminhava vindo da antecâmara reconstituindo os seus passos pelos longos corredores, ia surgindo muito inexoravelmente em Robert Dudley o instinto de autopreservação.

 

O Conselho Privado reunia-se agora ao longo da maior parte da semana. A condição da Rainha continuara a deteriorar-se. Tinha-se passado para um estado de inconsciência na noite anterior, embora não tivesse havido demonstrações das furiosas manchas vermelhas, o curso natural da doença. A disposição estava particularmente lúgubre nesta manhã, pois notícias de que a condessa de Bedford havia morrido de varíola nesse dia tinham chegado a eles precisamente quando Cecil e os outros estavam a ocupar os seus lugares à volta da comprida mesa do conselho. A morte de Isabel parecia iminente, e eles não tinham avançado mais nas suas deliberações do que quando tinham começado.

 

Os candidatos à sucessão eram de facto sombrios. Lady Catherine Grey tinha sido discutida mais acaloradamente, uma vez que a sua pretensão era a mais clara. Ela era irmã da desventurada Lady Jane Grey, peão desamparado de cortesãos ambiciosos com apenas catorze anos de idade, que tinha usado a coroa durante nove dias e perdera a cabeça devido à perfídia deles. Jane e Catherine Grey tinham sido incluídas no testamento de Henrique VIII, e nomeadas sucessoras da sua própria prole se estes morressem sem filhos. Mas Catherine tinha-se recentemente desgraçado ao casar sem o consentimento do conselho e tinha tido um filho do seu marido enquanto lhes faltavam provas legais do seu casamento. Fora feita prisioneira na Torre com este marido fictício e, impenitente, tinha por uma segunda vez ficado grávida dele.

 

A pretensão do primo distante de Isabel, Lord Huntingdon, era fraca, e a única coisa em que o conselho tinha concordado unanimemente até agora era que Maria, rainha dos Escoceses, não deveria sob quaisquer circunstâncias suceder. A única consolação de Cecil neste terrível enredo era a de que Robin Dudley tinha estado estranhamente ausente. O secretário presumiu que o amante da Rainha, incluído no conselho de guerra original, se iria insinuar a si próprio - embora não fosse um membro do Conselho Privado nas negociações delicadas sobre a sucessão. O conselho teria hesitado em expulsar o favorito por medo de incorrer na ira de Isabel se esta sobrevivesse à doença. Os receios de Cecil tinham-se provado infundados à medida que dia após dia Dudley se abstinha de se intrometer.

 

- Temos de chegar a alguma conclusão satisfatória hoje, meus senhores - anunciou Cecil gravemente - embora cada escolha seja mais desastrosa do que a anterior. Certamente que Londres é firmemente protestante, mas mais para norte os católicos são abundantes, e podem sublevar-se contra nós para colocar a rainha dos Escoceses no trono.

 

A porta da câmara privada abriu-se e um homem da guarda pessoal de Isabel dirigiu-se rapidamente para junto de Cecil, entregando-lhe uma carta selada. Houve silêncio enquanto Cecil olhava para o manuscrito dobrado, relutante em abri-lo, receando o pior. Perscrutou as caras dos conselheiros privados antes de quebrar o selo e ler. Os seus olhos abriram-se com a surpresa, e os grandes senhores de Inglaterra souberam pela expressão de Cecil que a Rainha ainda não tinha falecido, mas que as notícias eram de certa forma tão terríveis como encorajadoras.

 

- Dizei-nos o que se passou - exigiu Lord Clinton. Este nobre tinha estado, desde o anúncio da doença da Rainha, num estado de grande confusão, pois durante a sua estada em Fulham House no ano anterior durante a sua viagem oficial, ela alegara estar a sofrer então de varíola. Uma vez atingida por essa doença, como todos sabiam, uma pessoa não sucumbia uma segunda vez. Embora ele e a sua mulher tivessem discutido a estranheza destas circunstâncias entre eles, Clinton ainda não tinha revelado o comportamento curioso de Isabel aos seus amigos conselheiros. Cecil não tinha ainda falado, os seus lábios a moverem-se enquanto ele tentava tirar sentido daquilo que estava a ler.

 

- O que é que diz, Cecil! - impacientou-se Lord Clinton.

 

- Robin Dudley - disse ele lentamente e sem compreender - reuniu no espaço de cinco dias um exército de seis mil soldados para defender a Rainha de todos os usurpadores.

 

- Sangue de Cristo! - resmungou Lord North. - Amaldiçoamos o homem ou louvamo-lo?

 

- Essa agora, não existe ninguém no reino como ele. Ninguém com uma ambição maior - disse Lord Arundel.

 

- Ninguém - acrescentou Cecil, que se ressentia com este reconhecimento - que ame mais a Rainha.

 

- Como conseguiu ele tal coisa? - exigiu saber Lord North. - De onde vêm seis mil homens armados leais a Robin Dudley?

 

- Essa, meus senhores - respondeu Cecil -, é uma questão sobre a qual seria sensato ponderarmos.

 

- Graças a Deus que ele está ao nosso lado - acrescentou Lord Clinton. William Cecil juntou as mãos para impedir que tremessem enquanto proferia num tom grave:

 

- Saibam isto e nunca o esqueçam. O único lado em que Lord Robert Dudley está e sempre estará... é o seu.

 

O doutor Burcot andara de um lado Para o outro diante da porta do quarto de dormir da Rainha durante diversas horas à espera de poder entrar. Tanto Kat Ashley como Lady Mary Sidney tinham saído para discutir com ele o estado da Rainha, mas Sua Majestade, que ainda não sofrera a irritação das lesões que acompanham a varíola, tinha no seu semidelírio recusado ser vista pelo físico. Ele desejava fervorosamente que lhe fosse permitido auxiliá-la, pois em meses recentes tinha tido bom sucesso com um novo tratamento, e dizia-se da Rainha que estava à beira da morte.

 

Por fim, a porta abriu-se e Mary Sidney fez-lhe sinal para que entrasse. Pegando no grande embrulho a seus pés, Burcot entrou no quarto de dormir da Rainha. Não conseguiu deixar de ficar intimidado com a magnificência do lugar - a enorme cama de dossel talhada, as sumptuosas tapeçarias, cortinas de janela entremeadas com filamentos de prata, guarda-loiças carregados de pratos de ouro. Mas toda a sua atenção deve agora ser direccionada para salvar a vida da sua Rainha. Ela está deitada com ar de fantasma e magra como uma vara por baixo dos lençóis, o famoso cabelo vermelho dourado espalhado à volta da cabeça como um grande halo. Quando se dobrou sobre os lábios dela ouviu apenas a mais leve das respirações. Ergueu a sua ainda imaculada mão branca e colocou dois dedos em busca de pulsação. Então virou-se para Katherine Ashley, que, embora o rumor fosse de que era sempre uma torre de força, agora aparecia pequena e encolhida pelo terror de que a mulher de que tinha cuidado desde a idade de quatro anos estivesse a morrer.

 

- Senhora Ashley - disse Burcot -, por favor coloque vários troncos na lareira e bata-lhes até arderem com grande calor.

 

O comportamento confiante do médico espicaçou Kat a uma obediência imediata.

 

- Lady Mary, podeis assistir-me? Desejo que descubrais o corpo da Rainha completamente.

 

Mary olhou interrogativamente para o físico, mas a expressão dele compelia à obediência. Puxou para baixo os lençóis para revelar o corpo imóvel da Rainha numa simples camisa de noite branca. Abrindo o seu embrulho, Burcot removeu uma grande peça de flanela vermelho vivo e, com a ajuda de Mary, embrulhou o corpo da Rainha da cabeça aos pés no tecido, deixando-lhe apenas a cara e os antebraços desembrulhados.

 

- Preciso de um colchão macio ou de várias almofadas compridas ao lado da lareira - anunciou ele.

 

Com uma troca de olhares, Mary e Kat trouxeram cobertas da cama e fizeram um suave sítio para deitá-la em frente à lareira, que estava agora incandescente com o calor.

 

- Vinde senhoras, ajudai-me a erguê-la.

 

Com as indicações e mãos fortes dele a conduzir, os três moveram cuidadosamente o corpo de Isabel no seu casulo vermelho para a cama improvisada perto do fogo.

 

Apressando-se de volta ao seu embrulho, removeu então diversos frascos e garrafas e colocou-os na mesa de tampo de prata de Isabel, forçando-se a ignorar os gemidos de dor da Rainha. Kat e Mary tremiam num pânico mitigado, pois tinham instigado o auxílio deste homem, e não sabiam se ele curaria a Rainha ou se a mataria. Se ele a matasse, a culpa podia recair sobre as suas cabeças. Ajoelhadas ao lado da Rainha, as senhoras observavam enquanto Burcot entornava e misturava pós e líquidos viscosos numa taça. Mexeu a poção com uma vareta de metal, primeiro numa direcção doze vezes, e depois na outra. Quando pareceu satisfeito com o preparado aproximou-se e ajoelhou-se entre as damas da Rainha.

 

- Majestade - murmurou ao ouvido dela -, acredito que em alguma parte de vós podeis ouvir-me. Estais muito fraca e doente, e a infecção está presa dentro do vosso corpo, recusando-se a mover-se para fora para a vossa pele.

 

Com estas palavras, Isabel gemeu, comoventemente, e o doutor pareceu entender os seus gritos mudos.

 

- Eu sei, eu sei que receais as borbulhas e as marcas, mas se não as conseguirmos trazer à superfície seguramente morrerás. E o que é que, Majestade, são umas poucas manchas e cicatrizes comparado com a vossa vida? Imploro-vos, bebei o que tenho nesta taça. Deixai-me erguer a vossa cabeça. - Fez isto com o maior cuidado, colocando a taça contra os lábios ressequidos de Isabel. Ela obedeceu ao doutor, os olhos a abrirem-se febrilmente para espreitar para a cara dele enquanto o fazia. Mary avançou enquanto a Rainha tomava as últimas gotas do líquido, e pareceu-lhe ouvir Isabel proferir as palavras "muito confortável". Burcot deitou-a novamente e incitou-a a fechar os olhos, descansar, e deixar o calor e o remédio fazerem o seu trabalho.

 

Acenou às duas mulheres para que se aproximassem e sussurrou:

 

- Ficarei de vigília, por agora. Se quereis ser úteis quando a Rainha passar para a fase seguinte da sua doença, deveis estar alerta, e vejo que vós estais ambas delirantes e completamente exaustas. Descansem, boas senhoras, e quando se deitarem, rezem pela Rainha, pois o destino dela está seguramente nas mãos de Deus.

 

Dez horas depois do doutor Burcot ter entrado no quarto de Isabel os homens do Conselho Privado, Mary e Henry Sidney, e Robin Dudley agitavam-se impacientemente junto à porta do seu quarto de dormir, conversando em tom baixo e nervoso. Tinham, na verdade, sido convocados pela própria Rainha. Ela passara, laboriosamente, da sua condição estuporada para um estado de consciência no momento do rebentamento das furiosas manchas vermelhas da varíola. Embora o doutor Burcot parecesse prudentemente satisfeito com os resultados do seu tratamento, a condição da Rainha era, de facto, ainda grave e ela tinha insistido em falar com o seu conselho sobre a hipótese de sucumbir.

 

A porta do quarto de dormir abriu-se e Kat chamou o grupo. Juntaram-se em volta da cama em que Isabel estava de novo deitada. Era doloroso para todos eles vê-la numa tal condição, a pele outrora perfeita inflamada com vergões a começarem a supurar - manchas que todos eles sabiam que podiam transformar a sua adorável cara numa máscara grotescamente desfigurada. A voz dela estava tão fraca que foram forçados a aproximar-se. Embora cada um deles sentisse algum receio pelas suas próprias vidas, não obstante, permaneceram dignos enquanto se esforçavam para ouvir as palavras de Isabel.

 

- Perdoem-me, meus senhores, por conselho tão inconveniente, mas receio que o fio da minha vida esteja breve e possa partir, e ainda não vos dei indicações no caso da minha morte.

 

Cristo seja louvado, ela está finalmente a nomear o seu sucessor, pensou Cecil, respirando tão fundo num suspiro de alívio que se preocupou se eles não o teriam todos ouvido. O peso da decisão, fosse sábia ou louca, devia de direito recair sobre os ombros da Rainha e não dos homens no Conselho Privado.

 

- Desejo nomear - aclarou a garganta e respirou fundo e irregularmente antes de continuar - Lord Robert Dudley como regente do Reino. Não houve uma única alma no quarto, incluindo o próprio Dudley, que

 

não se tivesse engasgado ou começado a pestanejar de incompreensão com o pronunciamento da Rainha. Ela continuou, não sabendo ou não se importando com a grande tempestade de emoções que produzira nos corações dos que ali estavam reunidos.

 

- Dai-lhe um título. Dai-lhe uma pensão de vinte mil libras por ano, e ao criado dele, Tamworth, quinhentas por ano para o resto da vida.

 

Isto era, para William Cecil, demasiado para aguentar. Foi forçado a virar a cara para compor os seus traços. Isabel, mesmo na sua condição medonha, não pôde deixar de reparar.

 

- William, meu fiel secretário. Meu bom amigo - sussurrou ela. Vinde, olhai para mim.

 

Cecil esforçou-se para acalmar a fúria raivosa que lhe chocalhava o corpo e fazia as lágrimas vir a seus olhos. Obrigou-se a si próprio a virar-se de novo para a Rainha.

 

- Sei que estás zangado comigo, Cecil. - E continuou, deslocando os seus olhos à volta para as outras caras que a rodeavam. - Mas digo-vos, meus senhores, com Deus como minha testemunha, que embora eu tenha amado Robert Dudley com o meu coração e alma, nada de impróprio alguma vez se passou entre nós.

 

William Cecil tinha a cabeça a andar à roda. Aqui estava uma mulher, uma rainha que ele de facto amava e admirava e a quem tinha servido com lealdade. Uma mulher que todos neste quarto sabiam, inquestionavelmente, ser a amante do homem que ela, momentos antes, num acto escandaloso, nomeara regente do Reino. E então, como se para acrescentar o insulto à injúria, tinha legado uma pensão inacreditável ao criado de quarto do seu amante, guardião das suas mais secretas idas e vindas. Tomava-os ela a todos por tolos? Isabel Tudor estava ali deitada no seu leito de morte e, com Deus como testemunha, mentia de uma forma tão descarada que Cecil pensou que podia ele próprio ficar mudo para o resto dos seus dias. Durante um momento fugaz ocorreu-lhe que este era o seu castigo por ter feito desaparecer o filho de Isabel e Dudley e tê-lo substituído por um morto.

 

Mas então um novo pensamento desalojou o primeiro - que mesmo in extremiS Isabel, rainha de Inglaterra, era de facto um inquestionável príncipe e homem de Estado. Ela sabia que muito tempo depois dos homens neste quarto estarem reduzidos a pó, a história iria recordar as suas palavras para toda a posteridade como verdadeiras. Ela, como o seu pai Henrique VIII, tinha-se a si própria, se não acima de Deus, então ombro a ombro com ele, e atrevia-se destemidamente a mentir em nome dele. A sua vontade, em qualquer circunstância, seria cumprida, e na morte seria lembrada como desejava - como boa e virtuosa, a Rainha Virgem.

 

Cecil estava tão distraído por estes pensamentos desobedientes que nem ouviu Isabel recomendar o seu primo Bolena, Lord Hunscion, à gentileza do conselho, bem como todos os membros da sua casa. Então pediu que rezassem por ela, despediu-se, dizendo-lhes que os amava a todos, e mandou-os embora - todos, excepto Robin Dudley.

 

Os conselheiros privados saíram em fila, com os ombros descaídos do choque e derrota. Kat e Mary podiam, igualmente, ver que a Rainha desejava um momento em privado com Dudley. Ela tinha erguido o braço enfraquecido na sua direcção e proferira o nome privado que tinha para ele, os seus Olhos.

 

Enquanto se dirigia para o lado de Isabel cruzou-se com a irmã. Ficaram de pé perto um do outro, comungando em dor silenciosa. Subitamente os olhos de Dudley abriram-se alarmados. Mary Sidney viu o olhar dele a passar ligeiramente para a testa dela, depois para a sua bochecha direita. Um calafrio atravessou-a, e sem que o irmão proferisse uma palavra ela soube a verdade. A varíola tinha-a atacado.

 

Dudley teve a intenção de abraçar Mary, mas ela recuou.

 

- Não, não - sussurrou, com a voz a tremer de medo, medo que não havia conhecido em todos aqueles dias que tratara da Rainha. - Protege-te, Robert, pois és o regente de Inglaterra se ela...

 

- Ela não morrerá, Mary. E tu também não. - Ele dirigiu-se à porta do quarto de cama, chamou o doutor Burcot e sussurrou: - Bom doutor, a minha irmã foi infectada. Colocai-a na cama e fazei tanto por ela como fizestes pela Rainha, pois a Rainha ama-a tanto como eu.

 

- Robin - a Rainha estava a chamar com voz rouca da cama. - Meus Olhos, meus Olhos ...

 

Colocando Mary gentilmente sob os cuidados de Burcot, ele fechou a porta do quarto de cama e dirigiu-se para a cabeceira de Isabel para ficar em vigília.

 

Uma ocasião muito gloriosa, pensou Robin. Dudley na abertura do Parlamento. Uma manhã brilhante com trombetas a retinir, multidões a ovacionar, ele montando o seu grande alazão branco atrás de Isabel - tão reminiscente do dia da sua coroação. Ela, contudo, não vinha numa liteira através das ruas festivas de Londres como o tinha feito então, mas montava, resplandecente nas suas vestes carmesim, alta e orgulhosa no dorso do cavalo para todos verem que vivia e vingava apesar da sua dança de perto com a Morte. Enquanto Isabel ultrapassara o seu cerco largamente incólume à varíola desfiguradora, a bonita irmã de Robin Mary ficara monstruosamente cicatrizada e marcada com inflamações gotejantes, de forma que implorara a licença da Rainha para se ir embora da corte e permanecer em retiro o resto dos seus dias.

 

- Robin! - ouviu ele Isabel gritar por cima da algazarra. Ele avançou com o seu cavalo para ficarem lado a lado, e ela agraciou-o com o seu sorriso provocador. - O que dizeis de tudo isto, meu senhor, cavalgar tão alto ao lado da vossa Rainha?

 

- Por isso estou mais grato do que, Vossa Majestade, possa imaginar.

- E deveis está-lo, pois eu ultrapassei a morte por vós, e provei a todos como vos tenho na mais alta estima.

 

- E nunca um homem esteve mais orgulhoso do amor de uma mulher do que eu estou do vosso, Isabel.

 

Ela virou-se tão repentinamente que Dudley ficou confuso. Seguramente que não tinha havido nada na troca de palavras ou no cumprimento que tivesse provocado a ira dela.

 

Mas a razão para a evasão da Rainha dos olhos de Robin não era uma falha dele, era a falha de vaidade dela própria. Desde a sua recuperação miraculosa ele tinha-se mantido firme nos seus protestos de que a sua beleza estava intocada, que estava tão adorável para ele como sempre tinha estado. Mas apesar dela acreditar que a beleza se encontrava nos olhos de quem vê, também o seu espelho não mentia. A sua pele outrora de um branco imaculado, macia como a pétala de uma rosa Tudor, estava, desde a doença, manchada e áspera. Pela primeira vez na sua vida Isabel ordenara às suas criadas que moessem uma mistura de casca e clara de ovo em pó, alúmen e bórax, e que com ela lhe pintassem a cara. Embora esta fosse verdadeiramente a moda entre as damas novas e velhas, o propósito de Isabel era, no fundo, ocultar imperfeições, intoleráveis na sua cabeça. No entanto, sempre que dava por si a afundar-se em autocomiseração, pensava envergonhada em Mary Sidney. Isto, claro, aumentava-lhe a infelicidade, visto que infectara a sua amiga.

 

Com um grande sopro de trombeta e um rufo de tambores, Isabel chegou à Capela de Santo Estêvão onde os Comuns se reuniam. Grandiosas ovações ergueram-se por todo o lado enquanto ela era apeada do seu cavalo por Robin. Os conselheiros privados, todos inchados de importância, cumprimentaram-na e fizeram-na entrar.

 

O vestíbulo já estava apertado e cheio do suor de tantos cavaleiros e burgueses eleitos, que agora se esforçavam para deitar uma olhada ao seu monarca. Muitos deles odiavam o facto de uma mulher os governar, e desesperavam pela forma como a deviam tratar. A subserviência era-lhe devida enquanto rainha, mas eles, especialmente a pequena nobreza, eram pouco avessos a opor-se-lhe.

 

De cabeça erguida, expressão grave e firme, Isabel caminhou pela coxia central até ao extremo da sala, sem olhar para ninguém. Quando alcançou o trono, virou-se e ficou a admirar o mar de caras, tentando ler as suas expressões. Estavam o presidente e os conselheiros privados à sua direita, bispos, juízes e oficiais do Estado à esquerda. Os membros menos importantes estavam de pé diante dos seus bancos esperando um sinal para se sentarem. Isabel pegou na sua cadeira e com um grande roçagar de tecido, desde os melhores tafetás dos nobres ao mais rude fustão dos burgueses, sentaram-se e o Parlamento iniciou a sessão.

 

Quando Isabel falou, a voz forte e dominante, alguns dos membros mais velhos ficaram maravilhados com a parecença da filha com o pai. Foi feito um relatório das graves notícias vindas de França, onde a guarnição de Ambrose de Lord Warwick em Le Havre, apoiando os protestantes, tinha sido derrotada. Numa rara demonstração da unidade francesa, os belicosos católicos e protestantes tinham entendido que odiavam o seu antigo inimigo, a Inglaterra, ainda mais do que se odiavam uns aos outros. juntando forças, expulsaram as tropas de Isabel das suas costas. Pior ainda, rebentara a peste na guarnição inglesa. Forçada a admitir que a sua primeira incursão no estrangeiro fora um desastre incontestável, Isabel ordenara a Warwick e sua tropa que regressassem a casa. As discussões prosseguiram acerca de um subsídio para a marinha real. Sempre que dirigiam a palavra a Isabel ou que esta era cumprimentada por um cavaleiro do Parlamento, ela erguia-se do trono e dobrava-se numa vénia profunda de requintada graciosidade, ou então executava um grande e estatal gesto largo com os braços, tendo ambas as acções o efeito de paralisar a congregação com o seu encanto feminino e poder magistral. Parecia a Isabel que conseguira estabelecer um bom equilíbrio de controlo e afecto recíproco com os seus homens.

 

Ficou, portanto, estupefacta quando um certo Thomas Norton se levantou sem ser apresentado e, fazendo uma vénia profunda, disse: "Nós, do Parlamento, com todo o respeito devido a Vossa Majestade, apresentamos-vos uma petição para que seja nomeado um comité para determinar a sucessão."

 

O seu sorriso gracioso ficou logo transtornado, e ela sentiu-se como a vítima de uma emboscada se deve seguramente sentir. Embora isso não tivesse sido explicitamente levantado por Norton, o verdadeiro tópico eram os planos de casamento dela - um assunto intrincado e irrevogavelmente ligado a qualquer discussão acerca da sucessão. Ficou muito quieta, quase sem respirar, parecendo estar a reunir todas as suas forças dentro de si. Então falou:

 

- Meus senhores e cavalheiros. - A voz saiu carregada de paixão fria e algum drama. - Quando estive doente não há muito tempo, a morte possuiu quase todas as partes de mim. Mas eu estava, em cada hora de consciência, preocupada no meu coração e consciente da minha grande responsabilidade para com a Inglaterra.

 

Sentiu todos aqueles olhos virados para si, todos os homens a intimá-la, a desafiá-la a hesitar. A mente dela corria, pois sabia sem qualquer dúvida que nunca poderia permitir ao Parlamento legislar sobre a sucessão. Se o fizessem, iriam certamente excluir a pretensão da sua prima Maria, e neste momento Isabel inclinava-se para a rainha dos Escoceses.

 

- Como - perguntou ela, movendo o seu olhar de cara em cara - tomarei eu uma tal decisão? Se escolher um pretendente protestante, ou se o meu sucessor for um católico, arrisco-me a perder a unidade religiosa por que tanto lutei para firmá-la no meu reinado? Como posso saber o que está certo? Se escolher erradamente, arrisco-me a perder não apenas o corpo mas a alma, pois, ao contrário de vós, sou responsável perante Deus. E sei, pois vi-o, anteriormente, em reinados de outros monarcas, que acções loucas acompanham a escolha de um herdeiro no tempo de vida desse monarca. Ouvi-me agora, tenho pouco desejo de escolher rapidamente o meu sucessor, pois ao fazê-lo serei forçada a pendurar a minha própria mortalha perante os meus olhos! Deus colocou-me neste trono e confiou-me a carruagem da justiça e assim, cavalheiros, vós deveis fazer o mesmo!

 

Após isto, Isabel pôs-se de pé e, não aceitando qualquer ajuda das muitas mãos que se lhe ofereciam, desceu do trono e percorreu o corredor. Já algo distante, não chegou a ouvir a explosão de frustração e discussão que começou quando a grande porta se fechou com força atrás dela.

 

Era um dia pelo qual Robin Dudley esperara longa e pacientemente, e acreditava totalmente que merecia como nenhum outro homem no reino o grande título que lhe seria em breve concedido. Banhava-se agora numa banheira de cobre em frente à lareira, permitindo a Tamworth que lhe esfregasse todo o corpo dos pés à cabeça com um pano rugoso, o que lhe enrubescia a pele que ficava com um brilho rosado. Este era, pensou Robin Dudley enquanto o vapor lhe pairava à volta da cabeça numa nuvem perfumada, um banho ritual - que iria lavar todos os vestígios da sua vida anterior como fidalgote menor, o bafo remanescente de escândalo acerca da morte de Amy e o fedor teimoso da reputação repugnante da sua família como um bando de traidores. Com a sua elevação a par de Inglaterra, e com a oferta da Rainha do nobre Castelo de Kenilworth e dos seus fabulosos cem acres de lagos e campos, Isabel anunciara a todos que Robin Dudley era de facto um dos grandes e leais homens do reino. Mais importante, chegara a acreditar, e o novo título era um sinal seguro de que assim era, depois de toda a sua hesitação e indecisão, que a Rainha se preparava para casar com ele. Fechou os olhos e teve uma visão que ia além da investidura como conde - o momento em que seria coroado rei.

 

Um súbito borrifo de água a subir-lhe pelo nariz trouxe Robin de volta ao mundo, preparado para protestar com Tamworth pela sua falta de cuidado. Mas quando os seus olhos se abriram deu por si frente a frente com a face sorridente do irmão Ambrose, que se parecia muito com uma criança traquina cuja partida havia sido extremamente bem sucedida.

 

- A sonhar com a Coroa de São Eduardo nessa tua cabeça gorda outra vez? - disse Ambrose com um sorriso de gozo. Robin, atingido pela verdade da acusação, salpicou-o de volta, e por pouco ensopava o gibão amarelo de Lord Warwick com a água do banho. Ambrose riu-se enquanto se desequilibrava e depois saltitou ao pé-coxinho com a sua bengala de ponta de ouro até à cama. A ferida que sofrera durante o fiasco de Le Havre sarara mal, e Robin temia que o seu normalmente robusto irmão coxeasse o resto da vida. Bem, pelo menos ele estava vivo, lembrava-se Robin a si próprio. Quase metade dos soldados da guarnição inglesa tinham contraído a peste negra, e muitos morreram. O embaixador espanhol, o bispo de Quadra, encontrava-se entre os que tinham morrido.

 

- Eu - entoou Robin com gravidade fingida - tenho demasiados assuntos de peso sobre os ombros para estar a sonhar acordado.

 

- Irá o em-breve-grande conde de Leicester dignar-se discutir esses assuntos de peso com o seu pobre irmão? - inquiriu Ambrose com igual gravidade.

 

- Sim - disse Robin, caindo num sotaque escocês enrolado. - Disseram-me que a Rainha tem estado encerrada com o musculoso Melville desde a chegada deste há uma semana. Dizem-me que ela o tem recebido no seu próprio quarto de cama, mostrando um retrato em miniatura da minha pessoa, e acenando com um grande rubi em frente ao nariz, com belas promessas de que ele, e todo o resto do reino, serão um dia de Maria.

 

- O que eu ouvi é que os planos de casamento de Maria estão em grande desordem - disse Ambrose, massajando a coxa dorida por baixo dos calções cor de mel. - Ela ainda fala ansiosamente da aliança com Dom Carlos de Espanha, apesar da loucura dele se tornar mais evidente cada dia que passa. Acho que deve estar ainda mais sedenta de poder do que a nossa querida Rainha.

 

Robin levantou-se da banheira e a água escorreu da sua nudez elegante e musculosa, permitindo a Tamworth que lhe esfregasse a pele com uma tira de musselina grossa.

 

- Ouvi dizer - disse - que os súbditos e conselheiros de Maria tentam envolver-se na escolha do marido dela tal como os nossos conterrâneos fazem com Isabel, e que a rainha dos Escoceses fica igualmente aborrecida com a interferência deles. - Robin tirou o lençol de seda a Tamworth e puxou-o por cima da cabeça. - Maria faria bem em aceitar a orientação da prima sobre este assunto, pois apesar de toda a severidade com que o Parlamento de Isabel a tem assediado sobre o assunto, ela esquivou-se e foi mais esperta do que eles sempre que tal aconteceu.

 

- Estive presente num prodigioso duelo de argumentação entre o escocês e a Rainha. Sabes, irmão - acrescentou Ambrose astutamente -, acho que a tua Isabel gosta demasiado deste Melville. Vejo a forma como ela sorri de lado para ele.

 

- Continua a tua história - interrompeu Robin, mais ciumento e irritado do que desejava parecer. - O que ouviste?

 

Enquanto Tamworth começou a vestir o seu senhor com um rico manto de azul real, Ambrose deitou-se na cama, a cabeça apoiada na almofada dos seus braços, e relatou com grande deleite a informação que havia reunido.

 

- Bem, em primeiro lugar, Melville exigiu saber se Isabel estava, de facto, a acenar com a promessa de sucessão perante os olhos de Maria, com a condição de esta se submeter docilmente à escolha do seu marido pela Inglaterra. Isabel fingiu que a ideia a horrorizava, depois contrapôs a acusação de que Maria maquinava uma chantagem com as suas ameaças de se casar com um marido católico e incitar à guerra civil em Inglaterra. Melville deve ter pressentido que estavam a caminhar em terreno perigoso, por isso rapidamente citou a observação sarcástica do embaixador Throckmorton que desejava ardentemente que uma das rainhas fosse um homem para se poderem casar uma com a outra!

 

Dudley e Ambrose riram com gosto desta observação, mas rapidamente Robin ficou sério.

 

- Parece-me que devemos manter os nossos olhos assentes sobre Lady Lennox e o seu filho pernalta e com cara de mulher, Darnley. Estou espantado com os esquemas tão explícitos dela para casar Maria com o filho disse Robin - implorando a permissão de Isabel para mandá-lo à Escócia de forma a que ele possa ser exibido perante os olhos da rainha dos Escoceses.

 

- Maria e Darnley têm a mesma idade, são ambos católicos, e ele de facto tem uma pretensão razoável ao trono de Inglaterra, pois é neto de Henrique Sétimo - argumentou Ambrose.

 

- É verdade - disse Robin, deslizando para dentro de um par de botas de couro marroquino macio. - E Lady Lennox não perde nenhuma oportunidade para fazer gala disso mesmo perante Isabel.

 

- E Isabel considerou o arranjo, sem dúvida, embora hoje diga que tais conversas são traiçoeiras. Acho que Lady Lennox deveria refrear a língua ou ter cuidado com o pescoço.

 

- Por falar em pescoços - disse Robin, agora magnificamente vestido na sua roupa de investidura - como pensas que vai ficar o manto de par sobre o meu?

 

- Orgulhosamente - respondeu Ambrose Dudley, erguendo-se da cama para admirar o irmão em toda a sua glória, - E sem dúvida ganho com dificuldade.

 

Fora admitido quinhentas vezes na Sala do Trono, mas agora, enquanto esperava do lado de fora da porta flanqueado por dois eminentes nobres do reino, Robin Dudley sentia que o coração lhe batia na garganta. De repente, as portas abriram-se, permitindo-lhe ver Isabel mesmo à sua frente, regiamente sentada no trono por baixo do pálio do Estado. Estava flanqueada pelo embaixador francês e por James Melville, que vestira para a ocasião um fino gibão castanho ao estilo inglês, em substituição do kilt. Aí, estava também William Cecil, segurando nas mãos um manuscrito enrolado. Todos eles tinham em si olhares de acordo com o mais grave decoro, e até a Isabel lhe faltava o seu habitual sorriso.

 

Enquanto Dudley e os companheiros entravam e se deslocavam por entre as duas filas de espectadores ao som de uma marcha séria de uma única trombeta, Lord Hunsdon apareceu perante ele carregando nos braços esticados o manto de par, uma capa de veludo escarlate alinhavada com arminho de um branco puro. Do canto do seu olho, Dudley conseguia ver num lado o alto e esguio Lord Darnley, segurando a Espada do Estado. De pé, atrás dele, estava a mãe, Lady Lennox, cujo carácter astuto e conivente se espelhava na sua esperta contenção. Do lado oposto a Darnley encontrava-se Ambrose, segurando orgulhosamente outra espada e cinturão cerimonial.

 

No momento em que Dudley entrou, Isabel fixara os olhos sobre ele. Parecia que os globos oculares eram como dois grandes magnetes a puxá-lo para ela, arrastando-o para o seu destino. Quando ajoelhou perante ela, e a entoação solene da cerimónia começou, Robin Dudley perdeu qualquer percepção de tempo e espaço. Embora tenha visto William Cecil a mover-se para o lado da Rainha, tenha ouvido o secretário a ler a patente e estivesse consciente de que Lord Hunsdon trouxera até ele a capa, todos os movimentos à sua volta eram vagos e desvanecidos, as monótonas frases latinas a correrem juntas numa longa bênção.

 

- Creavimus Lord Denbigh. - As palavras eram subitamente aguçadas e claras: Criámos Lord Denbigh.

 

Robin olhou para cima para os olhos de Isabel enquanto ela erguia o pesado manto e o apertava à volta dos ombros dele. Havia ainda cerimónia absoluta na sua cara, mas antes das suas mãos o terem deixado sentiu para deleite e surpresa os dedos dela a fazerem-lhe cócegas no pescoço. Reprimiu um sorriso, embora pudesse ver pelas expressões que os embaixadores francês e escocês tinham testemunhado o gesto afectuoso, que Isabel nem sequer se dera ao trabalho de esconder. Ao aceno dela, Lord Warwick deu um passo em frente com a espada que segurava e apresentou-a à Rainha. Agora, enquanto Cecil lia novamente o manuscrito, nomeando Robin Dudley conde de Leicester, Robin perguntava-se quais poderiam ser os pensamentos sombrios do secretário naquele momento - pensamentos acerca desta elevação, e também da nomeação recente de Robin. para o Conselho Privado. Isto só poderia causar ressentimentos.

 

Agora vinha a cincturum gladií, o prender da espada. Movendo-se cuidadosamente com a pesada lâmina no cinturão, Isabel colocou-a junto do pescoço de Robin, a ponta segura por baixo do braço esquerdo dele. Finalmente, após colocar junto dele a capa e a coroa, e entregar-lhe o manuscrito enrolado das duas patentes, permitiu-se a si própria um meio sorriso. Robin mal teve tempo de o retribuir antes de uma dúzia de trombetas começarem a tocar. A Rainha levantou-se, Robin afastou-se para o lado, e ela deslizou grandiosamente para fora da Sala do Trono, com todos a fazerem vénias profundas à sua passagem.

 

Agora num grande burburinho todos rodeavam o recém-nomeado conde de Leicester para lhe dar os parabéns. Tanto amigos como inimigos, cada um sabia que este arrojado e arrogante senhor era, para melhor ou pior, a criatura da Rainha, e um homem com o qual seriam forçados a lidar.

 

O jantar foi servido na câmara privada no dia da sua elevação a conde. Ele sentou-se à direita de Isabel e Melville à esquerda, Fora uma refeição esplêndida, digna de um rei... e da sua Rainha, pensou Leicester, já acostumado ao nome que iria doravante ostentar. A conversa, entre os muitos pratos ricos, havia sido ao mesmo tempo leve e extravagante, para depois balançar, a jeito de pêndulo, para assuntos pesados e políticos. Finalmente, era inevitável, a conversa mudara para os planos de casamento de Maria, rainha dos Escoceses. Sem grande alarido, Isabel chocara a sala que ficara em silêncio com uma revelação anunciada em alta voz de que tinha sabido desde o dia da chegada à corte do embaixador Melville das negociações secretas com Lady Lennox em relação ao casamento de Damley com Maria. Robin Dudley suprimiu um sorriso de prazer enquanto o normalmente imperturbável Melville empalidecia de embaraço, e Lady Lennox encolhia de medo. Num movimento totalmente inconsciente, os dedos dela rodearam o seu próprio pescoço num gesto de protecção. Mas Isabel ainda não tinha acabado.

 

- Enquanto estiveram a maquinar e a planear nas minhas costas, embora felizmente não longe da minha vista e ouvido, encontrei um marido eminentemente adequado para a minha prima Maria, um que ela não pode deixar de achar atraente quer como homem quer como mais-valia política.

 

Isabel parou e olhou à volta da sala para as caras dos seus convidados, todos ficaram intrigados, pois todos os candidatos possíveis tinham sido discutidos, mais do que isso tinha-se discutido sobre eles até ao infinito. A quem na terra se poderia ela referir? Robin mais uma vez suprimiu o sorriso, sabendo que Isabel, a sua brilhante Isabel, iria espantá-los a todos com a perfeição, ou pelo menos o escândalo, da sua escolha. Quando falou, a voz estava forte e segura, embora o olhar parecesse concentrar-se em ninguém em particular:

 

- Eu nomeio para a consideração da minha prima Maria, com a minha bênção total e apaixonada... o muito honrado conde de Leicester!

 

Leões e rosas, pensou Kat Ashley enquanto olhava para cima para o lado de dentro do dossel da cama da Rainha. Ou seriam grifos?, perguntava-se ela. Em todos os anos que tinha cuidado de Isabel,

 

nunca vira o dossel desta perspectiva. Deitada sem se mexer dentro dos finos lençóis de linho e dos cobertores de veludo, os olhos fixos nas antigas imagens gravadas acima dela, desejava dizer alto o quão belas lhe pareciam, o quão adorável deveria ser acordar e ver uma tal coisa todas as manhãs. Mas o ataque que sofrera tinha-a a tornado muda. Todas as palavras e ideias que podia formar dentro de si tornavam-se numa algaraviada sem sentido quando passavam através dos seus lábios.

 

No caos do colapso durante uma reunião das criadas, e depois com uma frenética Isabel convocada para a sua cabeceira, Kat tinha estado totalmente consciente e inteiramente sem dor. Ouvira as instruções lapidares da Rainha para que deitassem a sua dama na grande cama de Estado, e os sussurros chocados das damas de companhia de que tal coisa nunca antes tinha sido feita. Kat sentiu as muitas mãos a erguerem gentilmente o seu corpo flácido, embora não tivesse qualquer sensação do lado direito. Os médicos reais tomaram-lhe o pulso e sombriamente transmitiram as suas opiniões.

 

A velha criada da Rainha sabia que estava a morrer, mas enquanto estava deitada contemplando o motim de bestas míticas interligadas, gavinhas e grinaldas de rosas Tudor sobre ela, percebeu com doce surpresa de que não tinha qualquer medo da morte. Tinha vivido uma boa vida de privilégio, primeira dama da câmara de Isabel, cujo reinado, depois de um começo vacilante, parecia estar a estabilizar-se. O casamento de Kat com John Ashley fora um bom casamento, e ela frequentes vezes pensara que era bom que eles nunca tivessem sido abençoados com filhos, pois a sua união era inteiramente dedicada no serviço à Rainha.

 

A sua Isabel... os pensamentos de Kat flutuavam sem esforço através de um longo corredor dos anos juntas. Descobriu que podia olhar para quartos enquanto pairava como um fantasma passando pelas portas abertas, observando momentos como eles tinham sido apanhados no tempo - o primeiro dia em que o rebento de olhos tristes fora depositado ao seu cuidado, as audiências de partir o coração que Isabel passara com o pai, Henrique, a sala de aula em Hatfield Hall onde a criança confundira Kat e os tutores com a sua mente brilhante, e a estranha paixão que partilharam por Thomas Seymour, marido da rainha viúva Catharine Parr.

 

A criança tornara-se, mais do que o fardo de Kat, o seu dever. Ela tinha-se-lhe rapidamente afeiçoado, a criança que nunca tinha tido, o maior amor da sua vida. John, abençoado fosse, tudo suportara sem ciúme. Um homem menor poderia ter-se sentido traído. Traído. No momento em que esta palavra lhe cruzou a mente, o estado sonhador de Kat desfez-se numa centena de pedaços. Pensamentos e juízos de culpa rebentaram em desordem na sua mente, fazendo-a contorcer-se debaixo da roupa de cama e gemer tristemente. Lady Rochford apressou-se até ao seu lado e pegou-lhe na mão com ruídos calmantes, mas Kat estava exacerbada com a emoção.

 

O único acto perturbador da sua prática ao serviço de Isabel fora a substituição do filho dela e de Dudley por uma criança morta. Os argumentos e garantias que Kat dera a si própria na altura tinham soado como suficientes. Fizera-o em nome do bom senso, pelo bem de Inglaterra. A existência do bastardo iria, apesar dos melhores esforços da Rainha, um dia vir à luz do dia e destruiria para sempre o que ainda houvesse da reputação de Isabel e das suas oportunidades de casar adequadamente como, naturalmente, teria de fazer. Mas agora, enquanto Kat estava deitada desamparada nesta cama à espera da Ceifeira, esse acto parecia a mais baixa das traições. Mantivera a carne e sangue da Rainha longe dela. Seguramente que esse era o domínio de Deus e apenas d'Ele. O que tinha ela feito! Tinha de reparar este mal. Não era demasiado tarde. Tinha de dizer a Cecil que se apressasse a ir a Enfield e trouxesse o rapaz de volta para junto de Isabel. Então ela e o secretário implorar-lhe-iam perdão. Tinha de falar com Cecil! Tentou chamar pelo nome dele, mas os seus lábios e língua desobedeceram-lhe, e apenas emergiram sílabas ininteligíveis. Encurralada na mortificação e culpa que não podia confessar, contorceu-se com frustração.

 

A porta abriu-se e Isabel entrou no seu quarto de dormir. Com um gesto afastou do quarto damas de companhia e físicos, e colocou-se ao lado de Kat. A sua cara era uma máscara de infelicidade, e ocorreu a Kat que a expressão anteriormente preocupada da Rainha se tornara em resignação total.

 

- Lord Cecil... - começou Isabel.

 

Kat agarrou o braço de Isabel com a ainda funcional mão esquerda e tentou mais uma vez, sem sucesso, falar. A cara de Isabel torceu-se de angústia.

 

- Lord Cecil está com a mulher no campo. Ele foi chamado, Kat. - Ela olhou para baixo para a mulher com um ar tão frágil sob os cobertores. - Podes dar-me um sinal de que estás confortável? - Kat apertou a mão que Isabel segurava com uma força que provocou um sorriso de surpresa na Rainha. - Bom, bom. - Isabel sentou-se na cama e depois reclinou-se contra a cabeceira, enrolando gentilmente o seu braço à volta da cabeça e ombros de Kat, aninhando-a. Assim esta não podia ver a cara da Rainha, mas apenas ouvir as palavras que ela estava a desfiar-lhe - uma voz suave ao ouvido.

 

- Não posso acreditar que te estou a perder - disse. - Estiveste sempre presente na minha vida desde antes de eu me conseguir lembrar claramente. - Isabel ficou em silêncio durante um longo período antes de recomeçar. - Deus tem sido bom para mim, Kat. Tive três mães. Catharine Parr salvou-me do esquecimento e da bastardia. Era mais gentil do que se poderia imaginar e deu-me educação real, e em retomo eu traía-a, desejando-lhe o marido. Por muito jovem e ingénua que eu possa, não obstante, ter sido, não tinha qualquer desculpa para isso. - Ficou silenciosa outra vez durante muito tempo, e quando falou a sua voz estava enrolada e vacilante. - Eu cheguei a conhecer a mãe que me deu a vida. - Kat tentou tirar sentido disto. Ana Bolena tinha dado a Isabel a vida. Ana Bolena morrera antes de Isabel ter três anos. - Durante tantos anos nada soube dela - continuou a Rainha, como que a responder às perguntas silenciosas de Kat. - Não me conseguia recordar da sua cara nem da voz nem o tempo que partilhámos quando eu era ainda muito pequena. Mas pouco depois de eu ter subido ao trono uma velha mulher, talvez te lembres dela, Lady Sominerville, trouxe-me o diário de minha mãe, um diário secreto que ela manteve toda a sua vida... até ao dia em que morreu. - Mais silêncio, como se Isabel tivesse dificuldade a encaixar as palavras coerentemente.

 

- Ela era uma boa mulher, Kat. Não a vil criatura e bruxa que todos acreditámos que era. Nunca teve aqueles homens nem os seus irmãos como amantes, o crime carnal pelo qual todos eles morreram. Ela estava inocente, e o meu pai sabia que assim era. Mas queria-a morta. E porquê? Porque... porque eu nascera rapariga e não o filho que ele pretendia. Com tudo o que o adorei, procurei agradar-lhe, revelei na minha parecença com ele, o meu pai nunca me amou, Kat. Mas a minha mãe, sim. Amava-me. Morreu por mim. - Kat conseguia sentir o corpo de Isabel a tremer, ouvir a respiração pesada de forma a reter as lágrimas.

 

- Mas de todas as minhas mães, Kat, tu foste, de longe, a mais fiel. Agora era Kat a tentar reter as lágrimas, mas descobriu que não conseguia. Começaram a correr em silenciosos ribeiros pelas bochechas abaixo enquanto Isabel continuava. - Tu estavas lá para mim, Kat, sempre lá. Deste-me banho, vestiste-me, esgravataste por mim nos anos que não tínhamos dinheiro do meu pai. Cuidaste de mim com ternura nas minhas doenças, sofreste comigo, exultaste comigo. Puseste o meu bem-estar sempre à frente do teu. Sob ameaça de tortura foste leal para comigo, Kat. Nunca me traíste.

 

Kat tinha estado perdida na litania afectuosa de Isabel até à elocução daquela terrível palavra. Rezou para que a Rainha voltasse para as verdades confortáveis do seu amor uma pela outra, deixasse este assunto venenoso, mas ela não o fez.

 

- Quando eu perdi o meu filho - continuou ela - algo dentro de mim definhou, alguma parte suave da minha feminilidade, e eu fiquei completamente dorida. Apenas tu me deste o conforto de que eu precisava para continuar a viver. Apenas tu. Assim de todas as minhas mães, Kat, és aquela que eu mais amei. E não consigo aguentar... - Isabel estava agora a chorar, o corpo a tremer com grandes soluços. - Não consigo aguentar perder-te.

 

Kat quis com toda a sua vontade e força falar. Isabel sentiu a mulher em tensão nos seus braços, e moveu-se de forma a que pudesse ver a sua cara, entender a sua comunicação. Os lábios moviam-se e sons fracos emanavam de facto da garganta de Kat. Mas todos os seus valorosos esforços provaram-se infrutíferos. Isabel teve de interpretar as elocuções desesperadas o melhor que podia.

 

- Eu sei que também me amas, Kat. Eu sei que me amas.

 

Mas as palavras, se a Rainha tivesse sido de alguma forma capaz de decifrá-las, ou se Katherine Ashley as tivesse pronunciado mais adequadamente, teriam passado a mensagem desesperada que ela verdadeiramente tinha intenção de fazer passar.

 

- Perdoa-me, Isabel - teria ela dito. - Em nome de Deus, perdoa-me.

 

No ano em que eu tinha oito anos todos nós suspeitámos que a minha mãe estava a ficar louca, e a visita da Rainha à Coutada de Enfield durante a sua viagem oficial de Verão para um dia de caça parecia destinada a comprovar os nossos receios. Desde o momento em que recebemos a carta do conde de Leicester anunciando a intenção de Sua Majestade inspeccionar e usufruir dos incomparáveis bosques e rica caça da sua real propriedade, cada membro do nosso lar esteve envolvido em preparativos fervorosos para fornecer à nossa amada Monarca uma visita que ela iria recordar por muito tempo. E enquanto todos apreciávamos a honra com gosto, e nos esforçávamos ao nosso modo para criar um espectáculo digno, minha mãe girava selvática e incontrolavelmente como um pião, com uma mão invisível a dar-lhe corda uma e outra vez sem parar.

 

Os seus preparativos foram frenéticos e infindáveis. Comandos e ordens às crianças, marido, criados não eram ditos mas gritados. Movia-se como um furacão pelo seu domínio - a casa senhorial, o pátio, a cozinha, a queijaria e lavandaria, dando chutos nas infortunadas galinhas que se cruzavam no seu caminho, chagando uma criada pela mais leve imperfeição na dobra de um guardanapo, ou uma cozinheira pela formação de grumos num molho. Dormia pouco, comia menos. Os seus olhos cintilavam com um brilho não natural, e as bochechas faziam uma cova. Os vestidos que usava começaram a pendurar-se-lhe no corpo escanzelado. Contratou uma costureira local para costurar vestidos para o seu corpo esquelético, proclamando estridentemente que esta era a moda, que a própria Rainha era magra como um junco.

 

Eu ganhei mais do que a minha quota-parte de castigos, pois a mãe estava mais insistente em ter as crianças a brilhar perante a Rainha como pedras preciosas de fino corte. Sua Majestade amava a música, por isso as raparigas iriam tocar alaúde e flauta, cantando igualmente um dueto. O meu irmão John e eu iríamos recitar - John uma passagem de Eurípides e eu um verso qualquer, abençoadamente em inglês, pois eu não mostrara nem facilidade nem interesse na leitura em latim ou grego. Este facto, que a minha educação estava em franca necessidade de expansão, nunca antes provocara consternação na minha mãe, pois eu era o segundo filho e, igualmente, ofilho que ela menos amava. Mas nesta ocasião, quando o nosso desempenho se iria reflectir directamente nela, prevaleceu sobre mim para representar com uma intensidade assassina. E eu não conseguia nunca agradar-lhe. Tropeçava nas palavras, gaguejava e não conseguia proferi-las suficientemente alto para ser ouvido. Quando eu falhava debaixo do seu olhar cruel ela gritava comigo, injuriando a minha ignorância e dando-me carolos na cabeça. Também gritava com John e as raparigas e uma vez deu um estalo na Meg quando ela se atreveu a desculpar-se por não ter praticado devido a duas cordas do alaúde se terem partido.

 

Fomos afortunados pelo menos na medida em que a minha mãe tinha outros assuntos para tratar nesta grande preparação. Um festim para ser planeado e executado, a casa senhorial com novas tapeçarias penduradas, recuperação de almofadas, mobiliário pouco sólido para ser reparado, cada superfície esfregada até não ter qualquer mancha, Todos nós largávamos um grande suspiro de alívio quando a mãe lançava as mãos para cima em desespero connosco, crianças, e saía do quarto de brincar para ver os outros trabalhos. Mas então, enquanto John e as minhas irmãs preparavam os seus variados ensaios, eu escapulia-me para os meus preparativos privados.

 

O pai tinha-me dado um cavalo e Charger foi o nome que eu lhe dei. Era um garanhão baio - a cor mais perfeita para um cavalo - com uma bonita espiral de branco entre os olhos e outra na base da cauda. Era pequenino, apenas catorze palmos de altura, mas eu só tinha oito anos e assim sentava-me devidamente. O meu pai avisava sempre os cavalheiros que vinham em busca do seu conselho para nunca montarem um cavalo demasiado pequeno, Que por muito bem-parecido ou magnificente que um homem fosse, um cavalo pequeno iria fazê-lo parecer insignificante. Cavalgar um cavalo alto mostrava a qualidade e superioridade de um homem.

 

Charger era um animal vivaz, são de pés e membros com boa velocidade e maleabilidade. Era dócil, corajoso e possuía uma boa boca. Eu, claro, achava-o muito inteligente. Melhor que tudo via no Charger uma sincera vontade de me agradar, uma generosidade de espírito. Não o tínhamos domado nos Estábulos de Enfield, e o meu pai acreditava que esta quebra devia ter sido feita por uma mão gentil e temperada e não da maneira habitual.

 

Era um trabalho cruel, domar e treinar jovens potros. Primeiro escavava-se um fosso circular num campo sulcado, e o cavalo era posto a andar no ringue. Por vezes afundava-se na lama e era preso a uma rédea comprida, castigado para andar às voltas e batiam-lhe entre as orelhas com um pau. Nos animais de maior coragem batia-se com mais severidade. A este castigo chamava-se correcção. Uma vez que toda a desobediência tivesse sido anulada, o treinador tentava montar. Se o cavalo resistisse, a voz era utilizada para repreender e gritar ameaças, com mais batidas duras na cabeça.

 

E havia pior. Se um cavalo se recusasse teimosamente a andar em frente, podia ser-lhe pendurada na cauda uma barra de ferro com ferrões, a qual passava entre as pernas ligada a uma corda. Quando era necessária a correcção o engenho puxava-se para cima para provocar dor. Por vezes uma corda com nós era amarrada aos testículos do cavalo, e alguns treinadores deitavam fogo às partes mais tenras da anatomia dos pobres animais. Arreios desagradáveis guarnecidos com espigões eram nada menos do que instrumentos de tortura na boca de um cavalo, e focinheiras feitas de ferro torcido atormentavam e laceravam a tenra cartilagem, gastando-a até ao osso.

 

Podia-se sempre distinguir um cavalo que tivesse sido cruelmente utilizado pelo olhar de resignação nos seus olhos, e um nervosismo ou mau humor que ocasionalmente afligia um animal normalmente manso, como se o fino véu de habituação e treino tivesse momentaneamente sido levantado e memórias provocadoras o tivessem substituído.

 

Charger não erafelizmente um desses cavalos, mas mantinha a natureza orgulhosa com a qual tinha nascido. Ele tinha as costas côncavas e adaptava-se bem à sela. O porte da sua cabeça era alto e imponente quando em trote, mas numa fuga ou galope o pescoço e cabeça esticavam-se numa grande e longa seta. Sentir aquela máquina muscular a correr em alto ritmo entre as minhas coxas, o vento a chicotear a minha cara, era a mais pura e doce das sensações, e era ali e apenas ali que eu sentia a mão de Deus no mundo.

 

O meu cavalo e eu treinávamos e praticávamos diariamente. Na verdade se eu não tivesse sido obrigado a comer e dormir, estudar e completar as minhas tarefas, não teria feito mais nada na minha vida senão montá-lo. Às vezes montava durante tanto tempo que os quadris me doíam ferozmente, e John tinha que me ajudar a entrar na cama. Outras vezes levava-o para longe onde ninguém podia vir à minha procura e retirava a sela do Charger e os meus próprios calções e cavalgava nu sobre o dorso. A minha pele endurecia com um tal hábito e eu descobri com a prática e algum bom suor tanto do Charger como meu - o melhor sítio para me agarrar nos flancos do meu cavalo.

 

Eu também trabalhava nas aptidões de um cavaleiro - ou no que eu pensava que essas aptidões seriam. Tornei-me um soldado a cavalo de outros tempos, outras terras. Um cruzado a lutar contra os turcos numa pesada armadura que eu fazia a partir de metal inutilizado que tirava da lixeira do ferreiro, amarrados com tiras de couro cru. Tornei-me um cabeludo Cavaleiro do Templo que, sob a mais estrita supervisão, não podia sequer atar as correias do seu cavalo sem a autorização do seu superior. Atirei dardos por cima do ombro como um bárbaro franco, e cavalguei para casa vitorioso com as cabeças dos meus inimigos penduradas do arção da sela.

 

Mas, à medida que se aproximava o dia da visita da Rainha, o treino tornou-se inteiramente sobre a prática de picadeiro. Era uma arte, dizia o meu pai, uma difícil mas satisfatória forma de equitação cujo mais alto propósito era cavalgar no melhor espectáculo possível perante um príncipe. Para o Charger, que até então não tinha sabido nada a não ser acerca da mais comum forma de cavalgar, o picadeiro era um tipo curioso de exercício. No primeiro dia desse treino ele ficou quieto e petrificado, e todos os meus estranhos comandos pareciam estar a cair em orelhas moucas. Uma vez empertigou a cabeça com tanta consternação que eu me ri bem alto. Mas com muita gentileza e carinho, toques e confiança da minha parte, depressa aprendeu os movimentos e conseguiu estar em grande união comigo. Até parecia ter prazer naquilo.

 

O meu pai não tinha nenhuma dessas aptidões, sendo um criador de gado de ofício, e apenas o guardião da coutada e estábulos através de uma concessão real. Mas tinha ao seu serviço um cavaleiro chamado Barlington que outrora vivera em França e aí tinha aprendido a arte de picadeiro. Barlington tinha muito pouco tempo nos seus dias de instrução de equitação e de condução das caçadas para ensinar a um rapazinho um tão preciso mester. Mas eu implorei-lhe e ele acedeu. Eu era como um tecido suave colocado num líquido, embebendo cada palavra, cada movimento estudado, e fechava-o à chave de forma a que nunca tivesse que ser ensinado outra vez.

 

A arte de picadeiro era ensinada com a voz - palavras de incitamento "ei, ei" ou "agora agora"; palavras de ajuda - "para trás, rapaz, para trás"; palavras de carinho - "bom rapaz" e "olá olá". A língua era utilizada para dar estalidos contra o palato para encorajar o parar ou virar. O pingalim era utilizado gentilmente, tocando no cavalo em partes diferentes do seu corpo como um sinal - nas suas pernas dianteiras para recuar, perto do seu olho para virar, ou o chicote a ser volteado no ar para dizer a um cavalo para acelerar o passo.

 

Charger e eu aprendemos o volteio, dar a volta num círculo sobre os quadris, a curveta, um erguer altivo e de cabeça levantada da pata dianteira em meia traseira enquanto se empina em cadência atrás, as coreografias do oito, e o que Barlington chamava "os ares acima do chão". Estes eram verdadeiramente movimentos difíceis de realizar, na medida em que todas as quatro patas do cavalo tinham de estar, quando adequadamente cumprido, completamente fora do chão. Obrigava-se um cavalo a conter o seu medo de forma a que pudesse erguer a pata dianteira, e também para dar um sacão, que era dar coices com as duas pernas para trás. Quando praticado junto o animal saltava para cima, com ambas as patas a sacudir-se num salto tipo cabra - a cabriola.

 

Eu estava destinado e determinado a demonstrar os nossos talentos heróicos - meus e do Charger - perante a Rainha, mas na verdade era outro quem eu desejava mais fervorosamente impressionar com as nossas habilidades, o mestre-de-picadeiro da Rainha, o conde de Leicester. Ele era o mais famoso cavaleiro em toda a Inglaterra, com renome pelo seu conhecimento de cavalos, a sua força e virilidade na sela. Noite após noite eu visualizava o momento em que iria cavalgar perante ele e a Rainha para empinar, saltar, dar coices e voltear com toda a graça e brilho de um cavaleiro nobre. Ela iria bater palmas deliciada, e ele dirigir-se-me-ía de homem para homem com toda a dignidade e respeito.

 

Assim a minha vida tornou-se a prática com Charger, e aprender a ficar fora do campo de visão da minha mãe, porque sempre que ela me apanhava encontrava algo - uma tarefa inacabada, um verso pobremente ensaiado para me castigar.

 

O meu pai, entretanto, fazia calmamente os seus preparativos para a visita. A sua administração da coutada tinha sido sempre tão diligente que pouco trabalho extra era necessário. Desde a primeira vez que vira o parque que o meu pai encontrara o seu amor. O gado e a vacaria tinham sido a sua profissão desde os dias de aprendiz, mas os grandes bosques em redor, a graça e beleza da caça selvagem, tínham-lhe satisfeito a alma e aligeirado um pedaço do espírito nunca antes despertado. Ele glorificava o seu papel como Guardião da Floresta, e protegia os seus habitantes dos caçadores furtivos com uma ferocidade que eu não via em mais nada do seu ser.

 

Era bom para mim, mais gentil e generoso do que um pai era suposto ser para um segundo filho. Permitia-me as minhas fraquezas e glorificava as minhas forças. Encontrávamos prazer partilhado no estudo da criação de animais, e eu tornei-me no seu voluntarioso aprendiz. Embora John fosse, pela lei, herdar a Coutada de Enfield, o meu pai alegava que as minhas aptidões iriam levar-me longe, e com o tempo e com sorte seria um dia o guardião de um outro parque.

 

Sobre o abuso da minha mãe para comigo ele pouco dizia. Foi algo que eu nunca percebi bem. Ele era um verdadeiro homem, e mantinha a sua mulher no lugar em todas as outras coisas. Mas quando via uma tempestade a formar-se entre mim e a minha mãe parecia dissolver-se no ar, desaparecer de forma a que nunca via os espancamentos, nunca ouvia os meus gritos, embora eu saiba que ele sabia deles. Apenas uma vez me viu incorrer na sua completa e furiosa ira devido a alguma transgressão imaginária.

 

Enquanto ela caía sobre mim com um cabo de vassoura, e antes de ele sair discretamente pela porta fora, vi-lhe na cara o que posso apenas descrever agora como resignação misturada com culpa. Era a história da família, todos nós sabíamos que a infelicidade da mãe tinha sido amplamente alargada com a mudança da vacaria para a coutada, e que até mesmo a sua elevação da classe dos homens-bons para a pequena nobreza nunca tinha aumentado o seu contentamento campónio. Mas porque é que eu havia de atrair a sua fúria em particular, e porque é que o meu pai, noutras coisas forte e de mente justa, permitia um tal comportamento, foi sempre algo que me escapou.

 

O dia da visita da Rainha amanheceu cinzento e ameaçador, o que serviu para alimentar o furor da minha mãe até ficar num fogo selvagem. Ela temia agora que a chuva matasse o seu perfeito dia de festividades, e certamente que a caçada não poderia realizar-se com uma chuvada. Tinha escrito uma grande lista de preparativos finais no nosso quadro da sala de aula e andava apressadamente pela casa senhorial a gritar ordens e apressando os criados. Quando me escapuli para os estábulos para escovar o Charger, passei sem barulho por ela na cozinha enquanto ela dava um encontrão na nossa fiel e velha cozinheira que suava sobre uma dúzia de chaleiras, minimizando-lhe os esforços e insistindo que podia fazer ela própria um trabalho melhor.

 

Quando às nove o arauto veio a galopar através dos portões com notícias de que o séquito real chegaria dentro de três horas, o sol começava a expulsar as nuvens escuras do céu. Isto deveria ter apaziguado numa certa medida os receios da minha mãe, mas na verdade o aparecimento do arauto tornou a visita da Rainha mais real, e as tarefas inacabadas dela mais perturbantes. Começou a correr de sala em sala chamando pelo meu pai que estava ocupado noutro local, e enfureceu-se por ele a ter deixado para se arranjar por si própria.

 

E então chamou as crianças para o ensaio final das nossas representações. Meg e Alice, já vestidas nos seus bonitos vestidos, e John tolerando mas com dificuldade - a sua investidura em veludo e gola de tufos engomados, fizeram fila e passaram pela inspecção. As raparigas agarrando nos seus instrumentos estavam bonitas e nem a mãe conseguiu encontrar defeitos na sua aparência ou no seu dueto. Então virou-se para John que estava rigidamente de pé com o Eurípides na mão, e naturalmente esperava encontrar-me com ele. Eu não estava. Quando ela inquiriu sobre o meu paradeiro, a doce lealdade deles manteve-os em silêncio ao princípio, mas com as ameaças da minha mãe de os arrastar e esquartejar se não lhe dissessem a verdade - ameaças que aquelas crianças acreditavam completamente que seriam realizadas - John balbuciou por fim: Os estábulos.

 

Eu tinha quase acabado um escovar vigoroso do Charger cujo pêlo agora brilhava ricamente, quando senti uma dor aguda na minha orelha. Fui subitamente virado por esse sensível apêndice para enfrentar a Medusa em pessoa.

 

- Como te atreves a desafiar-me! - gritou ela, a cara distorcida por uma raiva aterradora. - Olha para ti, imundo como um biltre! - Pegou nas minhas mãos. - Vai durar horas apenas para tirar a porcaria de baixo das tuas unhas! - Deu-me uma estalada com força e então os olhos dela caíram sobre o Charger. Comecei a tremer pois sabia que enquanto conseguia aguentar os abusos físicos dela, se me tirasse os privilégios com o meu cavalo eu iria certamente definhar e morrer. Nunca esperei as palavras que ela então proferiu da sua boca odiosa. - É este teu cavalo ossudo que põe o Diabo em ti, sim, bem vejo que assim é.

 

- Não, mãe! - gritei eu. - O Charger é um bom amigo. Não há nada de mau nele, juro.

 

- Ai agora juras, não é? - Ela deitou um olhar ao meu cavalo mas graças a Deus ele permaneceu calmo, olhando de volta com os seus doces olhos castanhos. - Então como é que ele te mantém longe das tuas tarefas e oraçõesfamiliares e de outros trabalhos de Deus? - perguntou ela. - Que poder tem este cavalo para te manter ocupado quando a Rainha chega dentro de duas horas! Eu digo que ele é o Diabo em pessoa! - Estava a gritar agora e os rapazes das cavalariças tinham todos desaparecido. Rezei para que Barlington ou o pai aparecessem, mas sabia que eles estavam a fazer uma ronda final dos caminhos do bosque e que eu não tinha salvador.

 

Sem aviso a minha mãe pegou numa pá que estava encostada à parede e antes que eu pudesse colocar as mãos de forma a detê-la, ela balançou-a para atingir a cabeça de Charger. A reacção dele foi rápida e a pontaria dela diminuta. A lâmina da pá embateu contra a porta da estrebaria com tal força que a desequilibrou e caiu pesadamente num monte de estrume recentemente tirado de uma estrebaria. Ficou ali sentada com um olhar de surpresa durante apenas um momento antes de se levantar num salto e me agarrar pelo cabelo. Desta forma arrastou-me para fora dos estábulos e através do pátio até à casa, resmungando a sua intenção de mandar esquartejar o Charger numa centena de pedaços.

 

Lá subimos as escadas da casa senhorial, os meus joelhos a bater nos degraus, a cabeça a arder com o cabelo arrancado pelas raízes. Recordo-me vagamente de ver as caras das minhas horrorizadas irmãs e irmão enquanto era arrastado até ao quarto das crianças. Aí ela mandou-me baixar os calções e dobrar-me sobre a mesa. Nunca vi qual era o instrumento de castigo, mas a chicotada parecia ser de finas tiras de couro - talvez ela tivesse apanhado alguma rédea quando vínhamos a sair dos estábulos. A dor era excruciante, e ela não media em nada a sua força. Deve-se ter esquecido na sua loucura que eu era uma criança de oito anos e não um qualquer rufia possuído pelo Diabo que alegava serfilho dela.

 

Foi apenas através da bravura do meu irmão e irmãs que não me espancou até à morte. Eles correram para o quarto das crianças e puxaram-na com o corpo da tarefa dela. Quando os viu reunidos à sua volta todos vestidos nos seus adornos acalmou-se subitamente. Então Meg disse:

 

- Mãe, é tempo de te vestires. A Rainha vem aí. Vem, deixa-me ajudar-te. Pentearei o teu cabelo da maneira que gostas. - Conduzíram-na para fora do quarto, nunca deixando os olhos dela caírem sobre mim: um rapaz patético e imundo enrolado a choramingar no chão.

 

Ali fiquei pelo que pareceu serem horas, e apenas John espreitou para me ver, furtivo e com medo de ser apanhado. Não obstante, vendo a minha condição, apressou-se a entrar e ergueu-me cuidadosamente, inspeccionando os meus pobres e sangrentos flancos e tremendo à visão destes. Ele disse que a mãe tinha ficado estranhamente dócil, até boa, e que o pai, finalmente, chegara da inspecção à floresta para se banhar e vestir, mas que as crianças tinham ordens estritas para não mencionarem o meu castigo. Eu não podia, sob quaisquer circunstâncias, mostrar a minha cara perante a Rainha, sendo a desculpa a de doença.

 

A agitação no pátio anunciou a guarda avançada da viagem real, e John deixou-me relutantemente na minha infelicidade solitária. Estiquei o pescoço e arrisquei um olhar para a ruína das minhas nádegas. A pele estava muito magoada, esfolada até à carne em muitos sítios. Conseguia mexer-me, mas apenas rigidamente e com grande sofrimento. Chorei então, embora as lágrimas caíssem menos pela dor das minhasferidas do que pela injustiça do meu "correctivo", e pela frustração de que todos os esforços de treino com o Charger no picadeiro tivessem sido desperdiçados, e porque o conde de Leicester nunca iria testemunhar a nossa virtuosidade.

 

Um grande ruído de cascos de cavalos e o chiar de muitas rodas, gritos de condutores e criados encheu o pátio. Coxeei até à janela que dava para o pátio e vi um espectáculo que podia nunca na minha vida voltar a ver - a corte da Rainha, finos coches, montadas esplêndidas ajaezadas em ricos tecidos e selas de couro trabalhado a ouro e prata a cintilarem, grandes senhores e damas, duques e arcebispos, todos a descer à minha porta. Conseguia ver a minha família e os nossos criados de pé na entrada a dar as boas-vindas.

 

Todos os olhos se direccionavam para os portões, e agora a mais rica de todas as carruagens - pintada de vermelho, em talha dourada, com uma parelha de palafréns brancos a combinar com capacetes com plumas brancas - passou rapidamente pelos portões e parou. Os lacaios galgaram o degrau até à porta e ajudaram a rainha Isabel a sair.

 

Ela foi uma visão que ficou para sempre marcada na minha memória - a pele pálida fantasmagórica, o cabelo vermelho brilhante torcido e trançado em formas e empilhado em cima da cabeça. O sorriso largo e os dentes perlados, a extrema graça e majestade dos seus movimentos, os longuíssimos dedos brancos que estendia para serem beijados. E, inesperado, o olhar de pura alegria por ser tão acolhida pelos seus súbditos. O vestido que usava não se parecia com nada que eu pudesse alguma vez ter imaginado, seda amarela e laranja toda bordada com desenhos intrincados. A minha cabeça andou à roda e na visão assombrosa da minha Rainha, esquecí-me momentaneamente daquela outra personagem nobre que capturara a minha imaginação - o conde de Leicester.

 

Mas agora ele aí vinha a cavalgar, um cavaleiro solitário no garanhão mais magnífico em que eu alguma vez tinha posto a vista - enorme, negro como azeviche, e a sela ao estilo espanhol, couro marroquino negro com arreios prateados. Também o homem estava aparelhado todo de preto, uma figura mais arrojada e elegante do que alguma vez vira em todos os meus sonhos.

 

Fiquei subitamente cheio de uma fúria tão aguçada e brilhante que me cegou. Um nó apertado tinha-seformado no meu estômago e eu dei pelo meu punho cerrado prestes a desfazer o vidro da janela. Mas contive-me, pois uma convicção estava a crescer na minha cabeça como uma semente de primavera debaixo de um sol quente. Vi que tinha incorrido em mais do que suficientes injúrias para um dia e precisaria de tantos dos meus membros em boas condições quantas conseguisse. Saí da janela e obriguei-me a olhar para o espelho. A figura que espreitava de volta para mim era uma visão dolorosa de facto. Olhos vermelhos e com olheiras, cara imunda e sulcada pelas lágrimas, cabelo desgrenhado, camisa rasgada, pernas nuas a pingar sangue.

 

Dirigi-me à banheira de cobre em que o meu irmão e irmãs tinham tomado banho e dei com a água ainda tépida. Desabituado a imergir o meu corpo - apenas uma vez antes desta tínhamos tomado banho desta forma entrei cautelosamente na banheira e baixei-me. Decidi que tinha de ignorar a dor, porém, embora a minha determinação fosse forte agonizei quando a água me tocou a carne crua. Uma vez lá dentro mergulhei a cabeça e esfreguei-a bem com o sabão de lixívia e escovei o cabelo. Lavei o corpo rapidamente e não tardei na banheira nem mais um momento do que o necessário, depois agarrei num lençol da cama e enxuguei-me. Descobri o fato de tecido, calções e sapatos que a minha mãe tinha mandado fazer para esta ocasião, muito cuidadosamente, vesti-me - excepto os sapatos de veludo. Em vez disso coloquei as minhas melhores botas de montar de cordovão, aquelas com que o meu pai me tinha presenteado no anterior Ano Novo. Eu tinha crescido tanto que já me estavam apertadas, mas teriam de servir - as minhas botas de todos os dias estavam uma desgraça.

 

Agora a imagem que espreitava de volta no espelho era uma visão melhor do que antes. O meu cabelo vermelho brilhava e os olhos estavam limpos de lágrimas. Na verdade, reluziam como a obsidiana ao sol. O gibão de veludo azul cingia-me o torso esguio na perfeição. Por fim, coloquei a minha melhor luva de couro para cobrir a mão deformada. O quadro estava quase bem... mas algo faltava ainda. Um sorriso. Sabia que as crianças deviam ser sóbrias, mas eu desejava agora ser arrojado. E a Rainha tinha sorrido. Eu também podia sorrir. Pensei em mim como um belo e elegante rapaz, pronto para qualquer desafio. Mas quando virei as costas ao espelho a dor disparou por todo o meu corpo em todas as direcções. Engoli em seco, voltei a ser corajoso e dirigi-me para a porta do quarto.

 

Conseguia ouvir por baixo de mim uma multidão silenciosa, o fim do dueto das minhas irmãs, e aplausos entusiásticos. Então a minha mãe anunciou que eram todos bem-vindos ao grande salão onde um repasto leve seria imediatamente servido. Era perigoso, concluí eu, descer as escadas, por isso dirigi-me à janela do quarto e sem pensar duas vezes saí por ali. Tinha muitas vezes escapado pela hera da gelosia, e apenas uns quantos lacaios e condutores aborrecidos estavam ali para testemunhar a minha descida.

 

Rapidamente cheguei ao chão e corri atabalhoadamente para a segurança dos estábulos. Os moços de estrebaria e os palafreneiros cumprimentaram-me com a sua habitual amizade, misturada com espanto, pois eu tínha-os há pouco deixado como o piedoso e aterrorizado prisioneiro da minha mãe. Agora parecia um belo e jovem cavalheiro, e aumentei a incredulidade deles fazendo uma vénia a cada um e todos eles com uma cortesia exagerada e altiva que osfez rir e escarnecer com boa disposição.

 

Mas havia pouco tempo a perder. Fui rapidamente até junto ao Charger na estrebaria, que me cumprimentou com uma série de pancadas suaves com o focinho e um bater aprovador com o casco no chão. Tomando cuidado para não sujar a roupa, acabei de escová-lo efiz-lhe uma trança na cauda sedosa, depois coloquei-lhe o freio, selei-o e conduzi-o para fora da estrebaria.

 

Os palafreneiros todos ocupados com preparativos de última hora para a caçada que iria seguir-se ao jantar, pararam o trabalho e ficaram a olhar enquanto eu conduzia o orgulhoso Charger pela álea. Cada um deles, à minha passagem, baixava a cabeça em respeito silencioso para comigo. Um deu um passo em frente e ajudou-me a subir. Quando atingi a sela senti a dor mas como que à distância. Haveria, pensei eu comigo próprio, tempo suficiente amanhã para a dor, mas este dia seria para o Charger e para mim todo ele de glória. Saímos para o dia perfeito, pois o velho Sol tinha banido completamente as nuvens. Com um estalido da minha língua e a pressão mais suave das coxas nos flancos, o Charger disparou do pátio dos estábulos numa grande e provocadora nuvem de pó.

 

Esperei escondido por trás da cozinha, com a porta principal da casa senhorial no meu campo de visão. O grupo da Rainha tinha decidido que para aproveitarem ao máximo o parque. iam abdicar de uma caçada estacionária, disparando de um esconderijo. Em vez disso iriam seguir os mastins em busca de veados e terminariam o dia com uma perseguição desenfreada. A refeição do meio-dia foi, consequentemente, leve e bastante breve, e no entanto a espera pareceu interminável. À medida que a hora chegava, as carruagens reais foram levadas e os nossos palafreneiros vinham conduzindo os nossos melhores cavalos para o pátio todos vestidos para a cavalgada. O nosso tratador de cães libertou a matilha de mastins a ladrar para o meio deles, e assim começou a grandiosa e alegre algazarra da caçada. O meu coração começou a galopar, e logo me deitei sobre o pescoço confortável do Charger, sussurrando palavras de encorajamento ao ouvido dele. Ele parecia entender, permanecendo tão calmo e quieto, o que ajudou a acalmar os meus próprios sentidos.

 

Porfim, a porta abriu-se. Sua Majestade e o conde de Leicesterforam os primeiros a sair, seguidos pelos nobres e damas da corte todos a vibrar de excitação com a caçada que se iniciava e fazendo concursos e apostas, sem dúvida acerca do desempenho dos seus cavalos mas também da perseguição desenfreada. Tinham mudado para roupas de montar, a Rainha num vestido de veludo violeta de cintura cingida, simples e sem frivolidades à vista. Moveram-se directamente para as montadas para examinar e comentar os belos cavalos. Então vi a minha família seguir o grupo de caça pela porta fora, mas nenhum deles parecia muito feliz. O meu pai estava calmamente a repreender a minha mãe, ela a olharfixamente para afrente recusando-se a olhá-lo nos olhos. Os meus irmãos e irmãs deitavam uns aos outros olhares de esguelha, e eu sabia que o meu pai exigia saber do meu paradeiro. Mas ele não tinha tempo para prosseguir com isso pois todos escolhiam as suas montadas e era o dever do meu pai estar na primeira linha. Ele caminhou até junto da Rainha e do conde de Leicester e começou a falar dos cavalos de forma a que eles pudessem decidir qual deles montar na caçada de hoje.

 

Este era o meu momento, antes de eles partirem para a caçada. Sentei-me hirto na sela e incitando o Charger com o mais pequeno dos sinais, disparei do meu esconderijo para o pátio da casa senhorial. O repente da aproximação apanhou-os a todos de surpresa e quando o Charger ergueu as suas patas dianteiras numa grande elevação, deixou escapar um relincho de grande entusiasmo que parecia falar por nós dois. À medida que começávamos o programa de equitação elegante, progredindo de uma manobra intrincada para outra, eu arrisquei olhares para a Rainha e o seu mestre-de-picadeiro. Ela estava a sorrir novamente, os olhos a cintilarem com deleite, e o conde acenava em forma de encorajamento silencioso, pois conhecia muito bem a dificuldade dos nossos movimentos. O Charger quase nem precisava de indicações. O toque mais leve do meu pingalim perto do seu olho provocava uma imediata meia volta e elevação. Executámos uma apertada e perfeita coreografia de oito, e seguimos de imediato com uma curveta e pirueta. Ele empinou-se elegantemente nos quartos traseiros durante um meio minuto bem contado andando à roda e à roda, dando patadas no ar como um dançarino. O grande final - os "ares acima do chão" - foi uma espectacular série de saltos altos e coices certeiros que provocaram gritos de encorajamento ainda mais altos e aplausos entusiastas. Quando descíamos da última cabriola, o Charger virou-se para encarar a Rainha, ajoelhou-se e mergulhou o nariz no chão numa vénia graciosa que provocou gritos e mais palmas. Com isto saltei do dorso do Charger e sem fôlego devido ao esforço fiz a minha própria vénia de cortesia a Sua Majestade.

 

Ergui-me para ver a Rainha a rír deliciada. Estava flanqueada por Leicester e pelo meu pai, que estava fora de si com a felicidade do meu aparecimento de surpresa.

 

- Posso apresentar-lhe... o meu filho Arthur, Majestade? - A voz dele tremia de paixão enquanto falava, e eu fiquei de pé um pouco mais alto nas minhas botas.

 

- É esta a criança que está doente? - perguntou a Rainha incrédula. Quando o meu pai começou a gaguejar a sua resposta ela continuou: Pois se ele é assim quando está doente, eu ficaria muito contente de conhecê-lo quando ele estiver bom. Diz-me, Arthur - disse ela fixando-me com os seus olhos - qual é o nome deste magnífico animal?

 

- Charger, Majestade. - Arrotei a palavra tão alto e depressa que me preocupei se não me teria enganado. Mas então ela sorriu outra vez e repetiu o nome. Vindo dos lábios dela soava como uma bênção, e eu subitamente pensei que era adequado que a primeira palavra que dirigia à minha Rainha fosse o nome do meu cavalo... e meu melhor amigo.

 

Senti de súbito um braço a assentar no meu ombro e virei-me para ver que era o conde de Leicester.

 

- Muito bem, rapaz. És muito novo mas vejo que já falas a linguagem do cavalo.

 

Dei por mim completamente exacerbado, ouvindo da boca do meu herói o maior elogio que ele alguma vez me poderia ter oferecido.

 

- Vem junto a nós na caçada - acrescentou, referindo-se a si próprio e à Rainha, e então montou graciosamente um garanhão branco do estábulo do meu pai.

 

- Posso, meu senhor? - gaguejei, exaltado, e quase sem acreditar na honra.

 

- Assim ordeno - disse a Rainha. Estava a olhar para baixo da sua montada, e eu vi para meu espanto que ela se sentava com uma perna para cada lado e não de lado como as outras damas.

 

Foi o meu pai que me deu uma ajuda para subir para o Charger outra vez, efoi então que ele reparou no sangue calcinado nos meus calções. Cerrou os dentes com um olhar severo, mas nada disse, apenas agarrou a minha mão com força durante um breve momento antes de se virar e montar o seu próprio cavalo.

 

Aquela tarde de Verão foi a melhor da minha jovem vida. Ali cavalguei eu, flanqueando a Rainha com Lord Leicester enquanto passávamos pelo parque, o ladrar extasiado dos cães a ecoar nas matas verdes. Conhecendo os caminhos do bosque tão bem como a palma da minha mão por vezes tomei a liderança para mostrar a Sua Majestade um atalho e dar-lhe vantagem. Outras vezes vi-a a cavalgar contra mim efui de encontro ao desafio dela, galopando rápida e impiedosamente, e com fintas e curvas enganava-a, só me lembrando depois que tinha vencido a minha Rainha. O conde era uma visão bela montado - forte e maleável na sela, tão bom cavaleiro como a sua reputação afirmava. Vi como, num cavalo que lhe era estranho, Leicester manejava o animal tão seguramente como se os dois fossem bons velhos amigos.

 

Quando após diversas horas o veado perfurado pelas setas caiu, e parecia que a caçada estava acabada, os cavalos robustos e verbosos do meu pai, incentivados por estes nobres com apetite insaciável, começaram diligentemente a perseguição desenfreada atrás de uma lebre. Cavalgámos então através dos campos no estilo de seguir o líder. A Rainha ou Leicester conduziam sempre a perseguição e eu, não muito longe, podia ver o jogo que eles jogavam muito alegremente, um com o outro, como se muitas vezes o tivessem

jogado antes. Ela tomava a dianteira, mantendo uma mão dura sobre o cavalo, fazendo-o galopar suavemente com grande à-vontade. Mas então o conde avançava de trás e cavalgava tão perto que a cabeça da sua montada tocava no traseiro da montada da Rainha tentando ultrapassá-la, e à vista disto ela esporeava o flanco do seu cavalo e virava-o subitamente em meia volta para a direita para malograr a tentativa. A seguir, facilmente o deixava passar e liderar a perseguição.

 

Quando voltámos para o festim da minha mãe as montadas estavam bem cansadas e mal conseguiam colocar uma pata em frente à outra. Mas eu conhecia estes animais, sabia bem como é que o tratador deles e meu pai os tinha alimentado e exercitado, e como dentro de duas ou três horas eles estariam tão frescos e corajosos como se nunca tivessem sido trabalhados desta forma. A minha mãe, num vestido novo diferente, cumprimentou os seus convidados à porta da casa, e todos os nobres e damas da corte, aturdidos do prazer da exaustão, desmontaram e entraram. Ainda no dorso do Charger, consegui sentir os olhos da minha mãe dardejando furiosos e ameaçadores. Mas então vi o olhar do meu pai sobre mim - um olhar de puro triunfo em minha honra - antes que ambos se virassem e entrassem.

 

Também a Rainha tinha entrado e os palafreneiros conduziam agora os cavalos dois a dois do pátio que assim se esvaziava. Só restava o conde de Leicester que estava de pé a falar calmamente com Barlington enquanto acariciava com gosto o pescoço da montada que tinha utilizado. Viu-me então e veio até junto de mim. De forma a não ficar mais alto do que um alto nobre vi-me forçado a desmontar, mas isso não fOi facilmente conseguido, pois as minhas feridas que até agora tinham estado esquecidas, tornaram-se subitamente demasiado presentes. A dor e rigidez dos meus quartos traseiros levaram-me a cair graciosamente para fora da sela, e não tivessem os fortes braços do conde apanhado o meu corpo e eu teria caído estatelado na poeira aos pés dele.

 

Ele não conseguiu evitar ver a agonia na minha expressão mas graciosamente se conteve de inquirir acerca da sua fonte, em vez disso regalando-me com um louvor às minhas aptidões, afirmou que no seu próprio entender eu tinha "ganho as minhas esporas". Ele não poderia ter sabido o que tais palavras significavam para mim, que mais do que a minha dor odiosa essas palavras estavam perto de trazer lágrimas aos meus olhos. Leicester continuou para me dizer as suas ideias acerca das virtudes morais da cavalaria. Era a melhor maneira de empregar a mente, formar o corpo e acrescentar graça eforça à actividade e carácter. Os homens, dizia ele, eram melhores quando cavalgavam, mais justos e compreensivos, mais alerta e à vontade consigo próprios, e esse conhecimento íntimo dos cavalos provava ser um bálsamo para a saúde de um homem e da sua alma.

 

Devo ter parecido um cretino, a olhar para cima para aquele grande homem sem nada de meu para acrescentar, mas então ele perguntou-me acerca da minha educação e eu dei por mim, pior do que silencioso, a gaguejar. Não podia mentir. Disse-lhe que era um estudante fraco, não por falta de entendimento mas por falta de desejo de aprender as lições dos livros. Tudo menos os cavalos me aborrecia de morte.

 

Ele riu-se então, o que muito me surpreendeu e horrorizou, pois acreditei que se estava a rir de mim. Mas ele viu pela minha cara o que eu estava a pensar e rapidamente replicou:

 

- Arthur, ouve-me. Eu já tive oito anos de idade e também detestava os meus trabalhos na escola e só desejava passar o tempo a cavalgar. Como tu, era a única coisa de que gostava. Mas eu vinha de uma tal família e posição que me era requerido que fizesse os meus trabalhos na sala de aula. E fui abençoado com bons tutores. Um deles foi o mesmo que educou a própria Rainha. E assim aprendi o grego e latim de má vontade, matemáticas com um pouco mais de alegria. Foi um teste de coragem tanto como aprender com um cavalo a saltar barreiras... - Olhou para o outro lado: ... ou manter-se em batalha quando gravemente ferido. - Quando olhou novamente para mim os seus olhos estavam a brilhar como que com uma nova ideia. De facto, subitamente deu uma pancada no meu braço e disse-me para esperar onde estava.

 

Vi o conde a caminhar para uma carruagem que estava empilhada até acima com a bagagem da Rainha. Localizou uma grande arca gravada, abriu-a e vasculhou pelo meio dos pertences que lá se encontravam tão casualmente que eu determinei que a arca era dele e não da Rainha. Fechou-a com grande estrondo e, com um sorriso, aproximou-se novamente de mim, agora segurando um pequeno volume.

 

Quando mo entregou eu pude ver que era, de facto, velho e muito gasto. Mas as palavras na capa estavam escritas em caracteres gregos.

 

- Sabes o suficiente para ler o título? - perguntou ele. Eu olhei de soslaio para o livro e fiz o meu melhor.

 

- A... - era o quanto eu conseguia ler.

 

- Bem, já é qualquer coisa - disse Leicester maliciosamente.

- Não, não - gritei eu - esta palavra, não é "arte"?

 

- É - concordou ele.

 

- A Arte... de... - eu não conseguia perceber a última palavra. O meu grego era muito deficiente.

 

- Cavalaria - finalizou o conde por mim.

 

- A Arte da Cavalaria? - ecoei eu estupidamente.

 

- Escrito por um general de cavalaria grego chamado Xenofonte, há mil e novecentos anos. É o melhor livro sobre equitação alguma vez publicado. - Eu tínha-o aberto e estava a olhar maravilhado para as palavras sem significado nas suas páginas quando ele acrescentou. - Estou a dar-to.

 

Olhei para cima para ele, e tão enorme era a minha gratidão e igual assombro que ele se riu outra vez.

 

- Certo! Terás de aprender grego de forma a poderes lê-lo.

 

- Obrigado, meu senhor - conseguiu eu finalmente dizer. - Assim farei. Aprenderei grego, latim e matemáticas...

 

- Devagar - brincou ele. - Não quero que ignores os teus cavalos.

- Não, meu senhor, isso eu nunca farei!

 

A cara de Leicester suavizou-se então, mais do que eu imaginara num homem tão masculino.

 

- Vai e trata das tuas feridas, Arthur. A tua presença fará falta ao jantar, mas eu apresentarei as tuas desculpas à Rainha por ti. Ela entenderá.

- Obrigado, meu senhor - disse eu, as palavras a prenderem-se-me na garganta. - E obrigado pelo livro.

 

Ele tinha-se dirigido para a porta, depois virou-se e chamou-me:

 

- Quando fores crescido vem ver-me se quiseres. Arranjarei um lugar para ti na guarda montada da Rainha. - Antes que eu pudesse responder, se na verdade tivesse podido encontrar palavras para o fazer, ele tinha desaparecido do lado de dentro. Caí para trás contra o Charger, depois virei-me para ele deitando a minha cabeça contra o seu bafo quente e chorei de alegria.

 

O que se seguiu nesse fim de tarde tornou a doçura do dia ainda mais suave. Eu levara o meu cavalo de volta para os estábulos para escová-lo depois dos seus esforços mas Barlington, vendo a minha exaustão e dor, ofereceu-se para instalá-lo para a noite, oferta que aceitei com gratidão. Subi as escadas ouvindo o ruído do festim por baixo de mim no grande salão e arrastei-me até ao quarto das crianças. Sozinho, visto que todos os criados serviam lá em baixo, cuidadosamente, despi os calções cheios de sangue calcinado e colados à minha carne torturada, tentando não chorar outra vez pois já tinha havido, pensei eu, suficiente choro para um dia, independentemente da causa. Nu da cintura para baixo e sem me restarem forças para tratar das minhasferidas, mesmo que tivesse sido capaz de alcançá-las, deitei-me com a cara para baixo na cama e adormeci instantaneamente.

 

Não sei quanto tempo passou até ser acordado por uma mão gentil a afastar-me o cabelo da testa. Pensei vagamente que era a minha irmã Meg. Mas quando a minha visão aclarou vi o meu pai sentado na cama junto de mim, com os olhos fixos no meu traseiro flagelado.

 

- Estou tão orgulhoso de ti, Arthur - disse ele calmamente. - E tenho sido um cobarde. Perdoa-me, filho. Perdoa a minha fraqueza. A tua mãe... Parou nesta palavra, um olhar peculiar e desconfortável nos seus olhos. Ela nunca mais te vai tocar, Arthur. Nunca. Por Deus, juro-o.

 

O festim de Maud decorrera esplendidamente, ela na sua glória como anfitriã, sentada na mesa carregada de iguarias junto da Rainha e de Leicester. A música e os jograis que providenciara para entretenimento pareciam agradar bastante aos convidados. Robert Southem, à direita da Rainha, observava a sua mulher, com o queixo altivo erguido enquanto estalava os dedos para chamar os criados como se tivesse sido uma grande dama toda a sua vida.

 

Ele viu a boa disposição e a clareza de mente a escapulirem-se à medida que os pratos finais de doces e digestivos eram servidos e a partida do grupo real se aproximava inexoravelmente. Quando a Rainha se levantou, agradecendo aos seus anfitriões por um dia de muito excelente desporto e divertimento, Robert pôde ver uma estranha mistura de orgulho e pânico nos olhos da mulher. Mas ficou impassível frente ao desconcerto dela. Conduziu os nobres e as damas para fora do salão, acenando-lhes adeus e desejando-lhes felicidades para a viagem.

 

No pátio iluminado com tochas foram ajudados a subir para as carruagens que os esperavam, e Robert observou como um a um, eles saíram pelo portão. Ficou então espantado por encontrar William Cecil silenciosamente de pé ao seu lado.

 

- Meu senhor - disse Robert. - Pensei que já se tinha ido embora.

 

- Eu não - respondeu ele. - Desejo-vos falar em privado. - Havia uma estranha hesitação no secretário da Rainha com a qual Southem se maravilhava, pois este era um dos maiores homens do reino, recentemente elevado a par do reino.

 

- Vamos para um sítio mais sossegado - ofereceu Robert, e conduziu Cecil para o extremo da casa senhorial dobrando a esquina. Não havia tochas aqui, e na noite sem lua eles estavam a coberto do manto de escuridão, embora o ruído da corte que partia ainda pudesse ser ouvido no local onde se encontravam.

 

- As minhas condolências pela perda da vossa querida e velha amiga Kat Ashley - começou Cecil.

 

- Obrigado, meu senhor - respondeu Robert com surpresa. Ele não tinha ideia de que Cecil tivesse sequer sabido da sua amizade com Kat. Mas nesse mesmo momento, observando a figura sombria e inquieta de Cecil na escuridão, Southem soube inquestionavelmente que o mais próximo conselheiro da Rainha estava a par do segredo que tinha ligado Kat e ele próprio nos últimos anos da vida dela. Robert esperou que Cecil continuasse. O desconforto do secretário era tão evidente, contudo, que o par se manteve em silêncio durante um longo e embaraçado período de tempo.

 

Finalmente, Cecil falou.

- O vosso filho...

 

- Arthur - respondeu rapidamente Robert para assegurar ao homem que estavam a percorrer o mesmo caminho mental, pois que ele não supunha que Cecil se referia ao seu primogénito, John.

 

- Sim, Arthur - disse Cecil. Robert pensou que a voz dele estava tão assombrada como os seus olhos estariam, se houvesse luz suficiente para vê-los. - Eu ajudei Kat Ashley a... remover a criança de... da Rainha... Não conseguiu continuar.

 

- Não tendes razão para temer pelo seu bem-estar, meu senhor. Tudo isto - Robert Southem indicou a coutada com um gesto largo da sua mão foi-me oferecido como recompensa por eu o ter adoptado, e eu estou mais que grato.

 

- Ele parece bem e feliz - disse Cecil - é um verdadeiro artista em cima de um cavalo.

 

Robert Southem estremeceu com a memória recente das feridas sangrentas de Arthur, e um raio de dor culpada disparou dentro dele.

 

- Mas... ele sente-se de alguma forma... diferente? - perguntou Cecil.

- Algo nele sabe que é diferente de nós na nossa família. E à medida que crescer penso que esse conhecimento irá fortalecer-se. Mas asseguro-vos de que nada sabe acerca da sua verdadeira linhagem.

 

- Eu tenho um filho chamado Robert - disse Cecil quase melancolicamente. - Ele está a ser treinado para servir a sua Rainha. A mãe dele e eu amamo-lo mais do que a própria vida.

 

- Meu senhor - disse Robert Southem gentilmente -, sabei que o Arthur foi uma grande dádiva para mim. Eu amo deveras o rapaz como se ele fosse da minha própria carne.

 

O braço de Cecil passou em torno do ombro de Southem, e mesmo no escuro Robert conseguiu sentir a gratidão a correr como um grande rio fluindo entre eles.

 

- Tendes de me manter informado acerca dele - disse Cecil. - Se houver qualquer coisa de que ele precise...

 

- Obrigado, meu senhor. Faz bem ao meu coração saber que existe mais alguém neste mundo que se preocupa com Arthur.

 

Enquanto os dois homens regressavam ao pátio iluminado por tochas não disseram, mas seguramente sentiram, que Kat Ashley, apesar de todos os seus defeitos e fraquezas e do pecado de ter tomado a vontade de Deus nas suas próprias mãos, tinha de facto escolhido sabiamente e saíra-se bem com o filho bastardo da Rainha.

 

Todos os membros do séquito tinham finalmente partido. Maud estava no grande salão de pé junto dos criados, a gritar ordens para porem a sala como estava. Robert entrou e com uma voz calma ordenou aos trabalhadores que se retirassem por esta noite, agradecendo-lhes do coração pelo grande esforço que tinham feito naquele dia. Eles não perderam tempo e bateram em retirada rápida antes que Maud os conseguisse deter.

 

- Robert! - disse ela irritada. - Eu queria isto feito esta noite! Não admitirei...

 

- Esta gente está exausta, Maud, não vês isso? Deixa-os descansar e acabarão amanhã.

 

- Bem, não serás tu a ter de olhar para a porcaria amanhã. Estarás lá fora no teu bosque. - Ela cuspiu estas últimas palavras como se fossem veneno na sua boca. Então começou furiosamente a dobrar os longos tapetes que tinha colocado nas mesas assentes sobre cavaletes, utilizando a unha para raspar bocados de comida entornados neles. Havia algo de frenético nos seus movimentos, e a voz tinia-lhe com ácido. - Digo-te uma coisa, Robert Southem. O teu filho Arthur está num cadinho de água quente agora. Como se atreve ele a desafiar-me? Como se atreve ele a humilhar-me perante a Rainha e fazer de mim uma mentirosa! Castiguei o fedelho pela sua desobediência, mas há mais de onde aquela veio, é bom que acredites em mim. E da próxima vez que eu o mandar para o quarto ele ficará lá nem que eu tenha de atá-lo aos pés da cama!

 

Maud estava tão absorvida nas suas palavras e trabalho que nem sequer reparou no marido de pé como uma grande montanha, escuras nuvens de tempestade a acumularem-se à volta do seu pico.

 

-E aquele cavalo dele. Eu não o admitirei...

 

- Maud. - Foi uma simples palavra proferida pelo meio de uma corrente peçonhenta de invectivas, mas o tom de Robert era tal que a mulher parou com o trabalho subitamente e virou-se. Ficou espantada de ver que ele estava agora a agigantar-se sobre ela. Robert Southem estava imóvel enquanto reunia os pedaços da sua fúria e força, algumas de há muitos anos atrás, outras dos mais profundos rios da sua alma. - Vou falar contigo calmamente, Maud, e claramente de forma a que saibas o que quero dizer e que nunca tenha de proferir estas palavras outra vez. O Arthur pode não ser o teu filho, mas é meu.

 

- E enfeitiçou-te, essa é a verdade. Pensas muito pouco naquele dedo extra dele. Mas eu vejo o Diabo naquele rapaz, e ele cegou-te!

 

Robert Southem esticou a mão e agarrou no cabelo de Maud pela nuca e puxou a cara dela para junto da sua.

 

- Temo que não estejas ainda a entender-me, Maud. O que eu quero que saibas é que de hoje em diante, por cada vez que assentes a tua mão naquele rapaz, eu assentarei dez iguais sobre ti.

 

- Não o farias - disse ela com desprezo.

 

- Oh, acredita que sim - disse ele, e apertou-lhe o cabelo, torcendo-o até ela chorar de dor. - Então, estamos conversados, Maud?

 

Os olhos dela faiscaram com ódio pela sua impotência.

- Estamos conversados?

 

- Estamos - disse ela por fim através dos dentes cerrados, e Robert libertou-a. Lágrimas furiosas encheram-lhe os olhos, mas não se atreveu a falar. Em vez disso, olhando-o de frente em desafio, endireitou o seu vestido e cabelo, virou-se e saiu do quarto.

 

Robert Southem ficou de pé e sozinho no grande salão de Enfield Manor, sentindo-se pela primeira vez na sua vida um homem verdadeiramente honrado.

 

Ao tempo do meu décimo quarto ano eu era, se não um estudante entusiasta, pelo menos regular. Na vila de Enfield havia uma escola de gramática gratuita, e apesar da minha mãe desejar contratar tutores particulares para nós, o meu pai pensou que um tal plano era demasiado grandioso e que a escola de gramática era uma instituição suficientemente boa para a educação dos seus rapazes. Suficientemente boa de facto! Éramos obrigados a falar apenas latim durante todo o dia, desde as seis até às onze da manhã, e da uma até às cinco da tarde. Eu aprendi a escrever com boa letra, a trabalhar com os números e afazer contas. Tínhamos todos os dias as nossas orações e um bom bocado de estudo das Escrituras, lendo da Bíblia do rei Henrique, e argumentando com fervor calvinista as suas passagens e doutrina. Estudámos os seus mapas e descrições da Terra Santa e do jardim do Éden, e então lá comecei eu a sonhar com o dia em que pudesse viajar para terras distantes e exóticas.

 

O mestre-escola, um tal Jarrett, nomeou-me com desagrado o melhor em línguas, dando o crédito a uma qualquer capacidade inata, uma vez que a minha diligência no seu estudo era, na melhor das hipóteses, pouco digna de nota. O meu dom era, disse ele, tão distinto e o meu ouvido tão aguçado que me ensinoufrancês e também espanhol.

 

A minha única alegria em toda essa educação era o grego, pois permitia-me ler, como o conde de Leicester tinha prometido, o melhor livro alguma vez escrito acerca de equitação. Encontrei em Xenofonte, aquele homem dos tempos antigos, um sentimento de parentesco tal que lamentei nunca o ter conhecido em pessoa. Pois ele acreditava como eu, que a gentileza com um cavalo era o caminho para um grande sucesso. Sê firme e não duro, e nunca percas a paciência. Recompensa o animal quando ele seguir os teus desejos, e admoesta-o - mas

nunca duramente com um chicote - quando desobedecer. O medo de determinados objectos, dizia, era apenas aumentado pelo chicote, e o cavalo poderia vir a associar a dor com esse objecto que temia.

 

Xenofonte ensinava acerca da arte da cavalaria, não apenas as manobras adequadas de batalha e os cuidados a ter com as montadas em campanha, mas uma forma de pensar, tanto para o homem como para o cavalo. Por vezes, na sua sabedoria sobre o que poderia alarmar um cavalo e a forma de acalmá-lo, falava com uma tão estranha autoridade que parecia conhecer as mentes destes animais tão bem que eu acreditava que ele tinha em tempos sido um cavalo.

 

Infelizmente a minha leitura de Xenofonte era o que mais próximo me chegava ao meu fiel amigo Charger, na medida em que tinha quase todos os dias escola, excepto quando o montava nas idas e vindas das aulas, e quando rapidamente o alimentava, escovava e arranjava a sua estrebaria à noite. Mas aos sábados e domingos, depois dos serviços religiosos, nunca nos perdíamos de vista um ao outro. Eu era todo dele e ele meu, e exultávamos no treino das artes militares ao estilo grego.

 

Cavalgávamos através dos campos como se perseguíssemos o inimigo nunca, claro, em retirada -, praticávamos saltando ribeiros, valas e pequenos muros de pedra, cavalgando a grande velocidade para cima e para baixo em montões de terra e encostas íngremes. Com o meu capacete e armadura leve feitos em casa praticávamos escaramuças e combate a cavalo. O Charger trotava até cerca de quinze jardas do inimigo e detinha-se enquanto eu lançava o dardo, virava-se ao contrário e permitia à minha guarda de apoio imaginária avançar efazer o mesmo.

 

Praticávamos cargas até casa num galope total e a espada na mão, quer segura bem alto, ou com o meu corpo colado ao pescoço do Charger, a lâmina baixa na horizontal. Tornei-me proficiente em "tirar uma cabeça". Como inimigo utilizava a cabeça de um porco enfiada numa estaca. Galopando em velocidade máxima furava-a com uma lança ou disparava sobre ela com uma pistola. A luta com espadas em cima do cavalo praticava-a com o meu irmão John, embora ele estivesse na maioria das vezes ocupado com outras coisas, e eu fosse forçado a lutar com o ar.

 

Tinha-me na conta de um grande soldado mas, ai de mim, não havia qualquer guerra para se lutar pela Inglaterra. É verdade que havia uma guerra sangrenta de religião em França, e eu ouvi dizer que alguns dos meus conterrâneos, soldados de fortuna mercenários, lutavam no lado protestante, e outros pelos católicos. Mas eram poucos, esses soldados, pois os Franceses detestavam-nos fervorosamente. Era um velho ódio, aprendi eu com Mister Jarrett, entre os Ingleses e os Franceses. Os Franceses, dizia ele, acreditavam sinceramente que os Ingleses nasciam com caudas, e os Franceses acreditavam que os Ingleses eram as pessoas mais porcas em todo o mundo.'

 

Nota: No original encontra-se desta forma. A autora quereria com certeza dizer que "os Franceses acreditavam que os Ingleses nasciam com caudas e que os Ingleses acreditavam que os Franceses eram as pessoas mais porcas do mundo", pois é esta ainda a crença transmitida por alguma tradição popular. [N. do T.)

 

Teria de boa vontade lutado pela minha Rainha e país se tivesse havido necessidade, pois amava-a verdadeiramente como súbdito. Desde aquele dia em que nos tínhamos conhecido eu tinha acalentado um sentido profundo de fidelidade e honra, e teria de bom grado morrido mil vezes ao seu serviço, sonhando com o dia em que iria aceitar a oferta do conde e juntar-me à sua guarda real. Ouvia os meus pais e o meu professor, também, falar do reinado da Rainha, agora dezasseis anos depois da sua ascensão. Como ela os surpreendera a todos com a sua força de governo, boa economia e aversão a guerra. Como ela tinha, inexplicavelmente, trazido a paz a campos religiosos há muito em guerra. Ela tinha, de alguma forma, encantado os homens e mulheres da sua corte com o seu comportamento altivo e majestático, isto apesar das imprecações vulgares e escandalosas e do hábito de esmurrar as orelhas dos seus conselheiros quando zangada. Dizia-se que era mais temida do que a sua irmã Maria, a Sangrenta, e que governava tão absolutamente como o seu pai Henrique. E tudo isto vindo de uma mulher. Isso é que era chocante. Ninguém pensava que uma mulher, solteira e tudo, conseguisse alguma vez governar esta ilha e governá-la bem.

 

Alguns ainda se irritavam com ela. Havia aqueles que se opunham a que ela cortasse as florestas de carvalhos para construir grandes navios. Muitos - sobretudo católicos - falavam depreciativamente do tratamento que ela dava à rainha dos Escoceses. Mas a maioria dos ingleses acatavam as leis dela, pois elas eram tais que apenas fortaleciam a Inglaterra, tal como utilizar chapéus de feltro para ajudar a respectiva indústria, e comer peixe às quartas-feiras, sextas-feiras e sábados para manter a indústria pesqueira sã.

 

Entretanto a vida no lar dos Southem continuava, e apesar do meu destino ter melhorado desde o dia da visita de Sua Majestade e de Leicester, e do fortalecimento da resolução do meu pai, a mania da minha mãe tinha atraído outras vítimas. Quando da sua partida, a Rainha tinha proferido algumas palavras fatídicas: "Espero regressar um dia à vossa graciosa casa e hospitalidade." Todos, excepto a minha mãe, aceitaram a frase como nada mais do que um sentimento educado. Maud, contudo, interpretou-a com tanta seriedade como um bom cristão acredita que o Evangelho é a Palavra de Deus e, consequentemente, determinou que a casa senhorial deveria ser completamente renovada antes da próxima visita real ou a família cairia em desgraça para além de qualquer resistência.

 

- Se não melhorarmos a nossa propriedade, a Rainha pensará que somos vulgares! - gemia a minha mãe, apontando para os nossos lugares gastos nas tábuas de madeira do chão e chamando a atenção para o facto de que a casa era feita de taipa e adobe, e não em tijolo disposto em espinha.

 

- Nós somos vulgares - respondia calmamente o meu pai, lembrando-a de o quão acima da sua condição a família se tinha já erguido. Mas ela não o ouvia. Apesar do nosso passado, éramos finalmente pequena nobreza como deve ser. Tínhamos recebido a visita da própria Rainha. Os Southem eram agora uma grande família, declarava ela, e devem afirmar a sua importância com ricas tapeçarias e um bom bocado mais de mobília - pelo menos uma mesa desdobrável, não uma mera prancha colocada sobre cavaletes, e seis bancos articulados. Ela queria apainelamento a carvalho nas paredes do grande salão, vidraças em todas as janelas, um banco almofadado perto da janela. Até exigiu que se construísse uma nova ala para que os criados pudessem dormir separados da nossa família. E tapetes. Esfregar o chão com esfregões e ervas já não servia. Exigia tapetes turcos e colchões de palha entrançada, e era assim mesmo. Não iria ser humilhada da próxima vez que a Rainha a visitasse, ela não! O meu pai fez-lhe as vontades apenas moderadamente, pois apesar de termos sido em classe erguidos à pequena nobreza estávamos, não obstante, no extremo mais baixo dessa classe, e o rendimento do meu pai das suas propriedades não era mais alto desde a visita da Rainha.

 

Quando o seu palavreado falhou em conseguir os tapetes, mobília e tijolos dispostos em espinha, a minha mãe virou as suas atenções para as suas filhas, as quais estava disposta a casar ambas "acima" da sua condição. O sucesso dela foi questionável no caso da Meg. Com certeza que o fidalgo Crenwick era um cavalheiro local com alguma propriedade, mas não era nenhum nobre como a mãe tinha sonhado. Era um homem velho e surdo como uma porta. Mas Meg sabia bem que não valia a pena discutir com a mãe efoi obedientemente para o casamento como um cordeiro para o matadouro, e o seu dote quase deu cabo das nossas contas familiares.

 

A Alice era a seguir, e apesar de ter ido de bom grado para a sua escola privada para damas, aprendendo as artes do bordado, os passos de dança, contralto e cravo, para além de todas as tarefas de esposa, rebelava-se secretamente - apenas comigo - contra o seu infeliz futuro.

 

Num sábado ao fim da tarde ela voltou a Enfield Manor depois de uma visita de um dia à sua irmã casada em Crenwick Hall. Tinha trazido o cavalo e a carruagem para o estábulo onde eu estava a preparar o Charger para a noite. Enquanto eu escovava o corpo ainda elegante dele, ela começou uma litania de angústia, não sua mas da irmã. O velho com que Meg se tinha casado estava demasiado decrépito para andar como deve ser e apenas se arrastava de um lado para o outro em chinelos de pele, mas uma vez debaixo das roupas de cama o devasso exigia todos os seus direitos maritais. Meg tinha-se queixado em lágrimas a Alice que ele cheirava mal - pés, hálito e corpo - e que o cabelo dele estava repleto de piolhos suficientes para fornecer uma paróquia, e que quando ela gritava de dor ou desagrado durante o acto marital, a surdez dele impedia-o de ouvi-la. A única esperança dela agora era que talvez estivesse grávida, pois durante esses nove meses os deveres nupciais ficavam suspensos. Falava de amamentar a criança ela própria uma prática rara entre as damas - sabendo que isso prolongaria o período de abstinência até o bebé estar desmamado. Pobre Meg. Era uma rapariga infortunada em todos os sentidos.

 

A sua triste história tinha provocado uma tão grande efusão de simpatia, desgosto e receio em Alice e em mim a que se seguiu um diálogo - de rara profundidade e pormenor sobre um assunto pouco falado entre irmão e irmã. Mas nós conhecíamo-nos bem e éramos curiosos, e cada um tendo alguma inteligência acerca da natureza dos nossos sexos, e sabendo muito bem que não receberíamos a mesma dos nossos pais, concordámos em falar abertamente. Eu ainda nunca me tinha deitado com uma mulher e tinha apenas conhecido o prazer, como todos os rapazes conhecem, dentro da palma da minha mão. E claro que Alice era virgem. Assim, enquanto a luz se esvanecia eu acendi uma lanterna e coloquei um cobertor de sela no chão do estábulo. Sentámo-nos lado a lado e puxámos mais cobertores para cima de nós e falámos em sussurros como crianças diabólicas, ou a rirmo-nos arrojadamente como uma dupla de alcoviteiras.

 

Comecei por lhe falar sobre um livro que um rapaz tinha levado clandestinamente para a escola. Chamado A Obra-Prima de Aristóteles ou o Segredo da Geração, estava escrito em grego, e por isso o rapaz trouxe-o para mim, o melhor tradutor dessa língua, e eu, consequentemente, conhecia todo o seu conteúdo. O meu relatório a Alice, infelizmente, foi o de que esse antigo escolástico ou não sabia, ou se recusava a partilhar os métodos e variedades de prazeres antes do acto, posições coitais e formas de melhorar o nosso prazer. É verdade que dava grandes pormenores e descrições do órgão sexual masculino as quais tinham pouca utilidade para os rapazes, tendo a protuberância real entre as nossas duas pernas. Era dada mais atenção à descrição das partes femininas e a algo chamado clitoris, que Aristóteles dizia ser o centro de todo o prazer venéreo nas mulheres, e sem o qual elas nem desejavam nem apreciavam os encontros nupciais. Naquele estábulo a meia-luz juro que vi a minha irmã corar, o que foi a confirmação da verdade disso.

 

Também Alice tinha tido ocasião de ver um manual de saber erótico, mas o dela era italiano e por isso útil. Chamado Posturas, por Aretino e Romano, estava cheio de textos gráficos, ilustrações numerosas e bastante explícitas, não deixando nada a imaginação das raparigas de escola. Quando Alice tentou seriamente explicar-me algumas dessas posturas, acabámos por cair redondos no chão a rir. Estávamos, não obstante, os dois assombrados com a vastidão de possibilidades num tema em que, antes de ela ter lido o livro e mo contar, tínhamos ambos sofrido de um engano comum aos mais novos - que o encontro sexual não tinha mais do que uma ou duas variações simples.

 

Ela rapidamente acrescentou, e resolveu que eu deveria saber claramente, que não era apenas o homem que requeria satisfação mas que as mulheres sofriam também de falta dela. Estas notícias interessavam-me de facto, e assim pressionei-a pelo que ela me chocou, com a informação de que uma mulher pode ser satisfeita uma vez após outra num curto espaço de tempo.

 

- Era isso - perguntei eu - o que Wythorne queria dizer quando disse "Embora uma mulher seja um navio mais fraco não deixa de ultrapassar dois, três ou quatro homens na satisfação dos seus apetites carnais"?

 

- Wythorne - respondeu Alice mordazmente - pode ser um óptimo músico, mas é alguém que odeia o gênero feminino, assim o diz a minha tutora Miss Hopewell. A verdade é que, se um homem for sábio nas coisas do amor, a sua mulher não precisará de mais nenhum. - No silêncio enquanto eu analisava esse pensamento ela continuou, mas timidamente: - Assim, irmão, parece, pelo que dizes, que ainda não te deitaste com uma rapariga. Era a minha vez de corar e gaguejar.

 

- Eu... eu... bem... a verdade é que, bem vês...

 

- Suponho que reparaste que a nossa mãe contrata apenas criadas feias, de forma a não tentar o seu marido efilhos, embora eu deva dizer que uma rapariga menos bonita nunca deteve um rapaz que tivesse suficiente gosto nisso. - Vendo que eu estava ainda mirrado com embaraço por ter sido descoberto ser um inexPeriente virgem, ela continuou: - Não te preocupes, Arthur. Ainda és novo. Há tempo suficiente para te divertires. O John tem dezoito anos e só a perdeu o ano passado.

 

- Pois, e tem estado em greve de buraco desde então - acrescentei eu com toda a seriedade.

 

Alice desatou a rir com a verdade tanto como com a vulgaridade das minhas palavras e, subitamente, pôs-se de pé, atirando para longe a nossa camuflagem e tirando o pó de si própria.

 

- Antes morrer solteirona do que casar-me com um homem como o Crenwick - anunciou ela.

 

- Ou podias casar para agradar à nossa mãe e arranjar um amante sugeri eu.

 

- Essa é a sugestão mais tola que alguma vez fizeste, querido irmão disse Alice dando-me um carolo a brincar na cabeça. - Um marido cornudo é um homem perigoso, pois se for encontrado com os cornos à mostra é punido tão atrozmente como a sua mulher. A honra dele desaparece, a sua virilidade é questionada, o nome difamado. Lutarei, se não por amor sincero no meu casamento, pelo menos por um homem que seja um companheiro. Vem, a mãe deve estar a perguntar-se onde andaremos nós.

 

Pela hora de jantar de terça-feira, John ainda não tinha chegado a casa e a nossa mãe estava fora de si. Ficava mais brava e mais chorosa a cada hora que passava, chorava sobre o seu cabelo e mastigava a parte de dentro do lábio até este estar em carne viva e inchado como uma ameixa púrpura.

 

Alice e eu passámos um sinal, olho a olho, à mesa do jantar e depois das orações - estas em grande parte a minha mãe a lamentar-se alto a Jesus, para que John regressasse são e salvo - encontrámo-nos nos estábulos, uma pequena reunião secreta para pensar num qualquer esquema para trazer John para casa. A minha informação, colhida quando regressava a casa da escola nessa tarde, era a de que o nosso irmão não estava e não tinha estado desde domingo de manhã na nossa casa pública local que se sabia que ele frequentava. Perguntei-me alto se ele teria ido para casa com alguma prostituta sebenta, se se teria embebedado como um tonto com cerveja, e se agora não estaria deitado a balbuciar completamente ébrio na cama dela. Mas Alice, que tinha de John a maior quota de afecto em toda a família, disse que ele tinha falado de uma viagem a Maidstone, uma cidade do condado de bom tamanho e indústria a umas seis horas de caminho de Enfield. Ali, dizia ele, tinha ouvido dizer que podia encontrar alguns passatempos e prazeres indisponíveis nos nossos rústicos arredores.

 

Assim com algum ranger de dentes - pois sabíamos que a minha ausência iria alarmar ainda mais a nossa mãe - decidiu-se que eu iria buscar John. Quando regressámos à casa senhorial eu disse que estava fatigado e fui para cima para a cama. Reunindo alguns artigos de roupa para me aquecerfui ao quarto de Alice onde ela me presenteou com os poucos xelins que tinha. Acrescentados aos meus, deram de facto muito pouco. Mas ela roubara alguma comida da despensa e tinha-a empacotado num saco de pano para mim. Com um beijo da minha irmã saí de casa sem barulho como o tinha feito no dia da visita da Rainha - descendo a gelosia da parede exterior do quarto das crianças - e utilizando as sombras do pátio para minha protecção numa noite de lua quase cheia, cheguei aos estábulos, escuros e sossegados. À luz de uma simples vela sussurrei os meus planos ao sempre pronto Charger e rapidamente o selei. Como se entendesse a necessidade de segredo saiu com passos leves e silenciosos para a noite, para fora do portão e pela estrada do campo.

 

Foi uma doce e solitária jornada debaixo das estrelas. Os meus receios de salteadores assassinos nunca se cumpriram. Na verdade não vi nas primeiras quatro horas da viagem vivalma. Estava grato pela lua brilhante e pelo céu sem nuvens, efiquei tão habituado ao escuro que era tão confortável para os meus olhos como o dia. Nunca tinha ido tão longe assim antes, e dei por mim em diversas encruzilhadas necessitando saber por onde prosseguir. Mas a cidade de Maidstone era tão grande que os sinais apontavam o caminho a uma grande distância dela.

 

Enquanto o sol nascia para um belo dia comecei a cruzar-me com camponeses e as suas carretas a arrastarem-se na direcção do mercado de Maidstone. Algumas carregavam abóboras e melões, outras cenouras

e chirivias. Outras levavam grandes cargas de galinhas a debaterem-se em jaulas de madeira. Os maiores transportes carregavam lúpulo, pois a cidade era famosa pela sua fabricação de cerveja.

 

O velho e altivo pináculo da igreja podia ser visto a apontar para o céu, e por esta altura a multidão de camponeses na estrada a chegarem a Maidstone era um grande rio, eu e o Charger uma mera gota de água no meio da enchente. À medida que nos aproximávamos senti o bater do coração a acelerar com a novidade de tudo aquilo, Tinha rezado para conseguir encontrar o John no fim da minha jornada, mas agora com a cidade a fervilhar perante mim, importava-me menos com a minha missão original do que com a grande aventura que lá me esperava.

 

Passei pelo pesado portão da cidade, estendendo o pescoço para ver dois guardas locais posicionados bem alto sobre as torres em cada um dos lados. Eles observavam de perto todos os que entravam, supus eu que em busca de vadios, personagens repugnantes ou criminosos procurados pela lei.

 

Devo admitir que nos primeiros momentos depois da entrada naquela grande cidade, cavalgando alto na minha sela como um belo e jovem cavalheiro, através da rua principal da feira, os meus olhos se esbugalharam como se estivessem a crescer, com tudo o que via. Os meus ouvidos latejavam com a pouco habitual cacofonia de ruídos citadinos, e as minhas narinas foram tomadas de assalto por odores tanto maus como apetitosos. Ao contrário da nossa pequena aldeia, a rua aqui era pavimentada. As lojas e casas, muitas delas de pedra, dispunham-se em longas filas, todas com dois ou três andares de altura e unidas por paredes comuns. Depois de muitas casas uma outra rua pavimentada cruzava-se com aquela em que eu estava. Se olhasse para um lado ou para o outro para o fundo dessa artéria via aí edifícios tão longe quanto a vista humana alcançava. Tantas lojas! Todas elas tinham tabuletas pintadas e janelas de vidro mostrando os seus variados artigos. Mercadores de tecidos, merceeiros, ourives, carpinteiros. E as pessoas eram tão numerosas como formigas num formigueiro. Havia, claro, os camponeses com os quais eu tinha entrado na cidade mas outros que supus serem residentes. Estavam de pé parados em grupos de dois ou três falando sociavelmente em frente a uma padaria, uma loja de tecelão flamengo ou uma fábrica de sabão, vendo a multidão a passar. Vi um oficial de canil a arrastar duas cadelas tinhosas para um destino infeliz, e uma mulher cansada de tanta labuta carregando um belo bebé nas ancas enquanto puxava um pequeno carro empilhado com pastéis, ainda a deitar vapor quente no arfrio da manhã.

 

Passei por vários edifícios imponentes, um muito grandioso com colunas e gravuras esculpidas e muitas janelas que supus ser uma casa do governo da região, e algumas adoráveis residências privadas, embora tenha ficado admirado pela forma como estavam mesmo a par com outras muito mais pobres. Ouvi, igualmente, muitos dialectos e diversas línguas estrangeiras. Havia pedintes velhos e andrajosos, damas muito finas e homens que julguei serem oficiais da cidade pela forma como iam daqui para ali com determinação. Mas sobretudo havia homens novos. Supus que eram, como eu, os filhos mais novos de famílias vindos para a cidade para tentarem a sua fortuna, que não podiam encontrar nas suas casas de campo.

 

Era tempo, pensei, de começar a procurar o meu irmão. Estava agora a descer a High Street, completamente dedicada a comerciantes de víveres de todos os tipos. Vi e cheirei pastelarias espalhando o doce cheiro de pão de gengibre, passei por queijarías, lojas de carnes brancas e talhantes com todos os tipos de carcaças mortas penduradas na montra. Numa esquina vi uma fila de mulheres do lado de fora da porta de uma loja sem tabuleta, cada uma esperando pacientemente com um cesto debaixo do braço. Desci do Charger, atando-o a um poste, testei os meus joelhos vacilantes - pois havia estado muito tempo em cima da sela - e aproximei-me da fila de mulheres. Cada uma carregava no seu cesto um quarto de carne crua ou diversos peixes amanhados, ou uma pilha de legumes não cozinhados, mas cortados, como se fosse para um cozido. Achei isto curioso e então na minha voz o mais educada possível perguntei a uma jovem, a qual pelo seu vestido pensei ser uma simples dona de casa, porque é que ela e todas as outras traziam a comida para esta loja de tal forma. Respondeu que era uma "loja de cozinhar", que nem todas as casas nesta cidade tinham fogões para cozinhar as refeições das suas famílias, e que este sítio prestava serviço a muitos vizinhos. Era suficientemente amigável, e por isso eu perguntei-lhe onde podia encontrar uma cervejaria. Olhou para mim com um olhar de desprezo e virou-se de costas com grande arrogância.

 

Por agora, sentindo o estômago a dar horas, tendo há muito consumido o que Alice preparara, e sentindo todos os artigos de comida à minha volta, decidi oferecer-me a mim próprio algo para comer e, ao mesmo tempo, descobrir onde havia estalagens e tabernas na cidade. Conduzi o Charger pela rua abaixo até que vi um vendedor de víveres que parecia ser o mais apinhado de clientes e assim, pensei eu, tendo a melhor comida. Vários trabalhadores estavam a sair com a sua refeição do meio-dia num saco quando eu entrei, e por isso o caminho ficou desimpedido para poder chegar ao balcão, empilhado com empadas de carne, peixe salgado inteiro, fatias de bacon cozinhado num prato, algumas metades de pão e um círculo de queijo duro e amarelo já sem algumas fatias.

 

Antes de avançar dei uma olhadela à volta, vendo toda a cena, reparando nos detalhes das vestimentas de um homem ou mulher, no dialecto que podiam estar a falar, escutando as suas conversas, cheirando até o odor que emanava das suas pessoas. Destas observações iria moldar uma pequena fantasia, uma história da vida daquele homem ou daquela mulher. No campo havia pouca variedade por onde escolher, uma vez que conhecia todas as pessoas da casa senhorial e da aldeia demasiado bem. Mas isto era um festim para a minha imaginação!

 

Tinha acabado de inventar uma história libidinosa acerca de um cavalheiro bem-vestido e um padre quando senti que estava a ser empurrado rudemente por trás. Três jovens, não muito mais velhos do que eu, estavam a forçar a entrada pela porta da loja. Ouvi o suficiente da conversa verbosa deles para saber que conheceriam todas as cervejarias desta cidade, e quando iriam abrir. Assim enquanto eles escolhiam a sua comida informei-me junto deles.

 

- ó ó! - gritou um deles baixo e rijo, com o largo sorriso a mostrar dois dentes partidos à frente. Um zaragateiro, pensei eu comigo enquanto ele continuava: - Ele não quer saber apenas de uma taberna mas de todas!

- Colou a cara dele junto à minha e eu senti o odor de cebolas cruas no seu hálito. - Uma não satisfará a tua sede? E talvez uma dúzia de bordéis para o vosso prazer, também! - Toda a gente na loja se virou para olhar para mim e o vigário lançou-me um olhar verdadeiramente fulminante. Os rapazes riram-se por eu corar de vergonha. Mas achei-os de boa natureza e disse-lhes que andava à procura do meu irmão.

 

- Bem, é um bom sítio para procurares - disse o alto e magro com cabelo comprido e liso -, pois nesta cidade existem nada menos do que vinte e seis cervejarias e nove estalagens respeitáveis.

 

- Verdade? - perguntei com o que deve ter sido uma tal inocência que todos eles rugiram de riso.

 

- E não precisas de esperar para começar, igualmente - disse o terceiro jovem que tinha mais ou menos o meu tamanho e de corpo robusto -, pois todas elas abrem à alvorada.

 

- Queres companhia para as tuas voltas? - perguntou o rapaz esguio. - Sendo novo aqui, não saberás onde ir.

 

- Ah! - gritou o de Dentes Partidos para o seu companheiro. - Que bom samaritano. Ou estarás a pensar em começar cedo a tua própria volta diária, agora?

 

- Nada disso - respondeu ele. - Este jovem cavalheiro podia dar uso a uns quantos guias na nossa bela cidade e isso é uma verdade. Não é? Virou-se e olhou para mim.

 

- Sim, é - foi a minha resposta rápida, pois parecia uma boa coisa ter amigos numa cidade desconhecida, mesmo que eu não pudesse confiar neles tanto como os podia reprovar.

 

- Vamos embora então - disse o Cabelo Liso, colocando dois pence no balcão para pagar a comida. - Temos três dúzías de tabernas para visitar e quatro estômagos para encher.

 

Tivesse eu tentado procurar os melhores guias para os estabelecimentos lamacentos desta bela cidade, e nunca teria encontrado melhores que estes, que tinham sido a minha sorte. Pensando juntos fizeram um plano para cobrir toda a Maidstone, secção por secção, rua a rua, de forma que cada estalagem e cervejaria fosse devidamente visitada na sua vez, não deixando nenhuma por investigar. Avisaram-me com grande seriedade que não tinham forma de adivinhar as idas e vindas do meu irmão, e que podíamos visitar uma taberna onde ele não tivesse sido visto, e depois partir para a seguinte apenas para ele chegar sem o nosso conhecimento à primeira e não o encontrar sequer. Respondi com igual seriedade, dizendo que podíamos apenas dar o nosso melhor, e que se falhássemos eu não os responsabilizaria. Além disso, teria pelo fim do dia a distinção de ter visitado todos os estabelecimentos de bebidas em Maidstone, e pensava que isso era uma realização suficientemente boa. Concordaram de todo o coração. Por esta altura estava a dívertír-me completamente, feliz por estar na companhia de fulanos tão afáveis e não sentado curvado sobre as páginas poeirentas de Ovídio.

 

E assim prosseguimos.

 

Porque eu não tinha excluído a possibilidade do John poder ter encontrado o seu conforto nas zonas mais pobres da cidade, e porque eles acreditavam que essas vizinhanças insalubres eram mais seguras antes de escurecer, os meus amigos começaram a nossa visita à cidade por aí. Belas ruas pavimentadas davam lugar a caminhos sulcados e lamacentos em que casas decadentes de dois e três andares, cada andar lançando-se mais dois pés sobre a rua do que o de baixo, não permitiam que qualquer luz do Sol caísse sobre as nossas cabeças. Na verdade, tudo o que vinha de cima era lixo, sobras e excrementos lançados pelas janelas destas residências humildes. Havia montículos de porcaria por todo o lado e a esguichar debaixo das nossas botas também. Para a concentração geral dos cidadãos pobres na rua havia ainda um sem-número de cães mordidos pelas moscas, gatos vadios, porcos e até um pequeno bando de gansos que eram os mais perigosos para os peões, uma vez que bicavam viciosamente as canelas quando se passava por eles. O fedor daquilo tudo era, em certos locais, insuportável e fascinante na sua variedade.

 

As primeiras cervejarias visitadas eram tão más que duvidei' que John tivesse viajado de tão longe para se entreter em tão baixas condições. De tal forma que uma cabeça a espreitar pela porta de uma das casas mais pobres era suficiente. Pelas dez da manhã cada uma das tabernas estava pelo menos meio cheia e pelo meio-dia à bebida acrescentava-se - apesar de a lei o proibir - todos os tipos de jogo: dados, cartas, jogo de disco.

 

- Mas beber - disse o Cabelo Liso dando à voz a entoação de um grande filósofo enquanto emborcava num longo gole uma caneca de cerveja, como ele e os seus amigos tinham feito em cada um dos estabelecimentos que tínhamos visitado -, sim, beber é o maior desporto em Inglaterra. Pelo que tinha visto não tinha qualquer razão para duvidar dele.

 

Houve em todos os momentos ao longo da nossa visita um comentário colorido e mordaz dos meus alegres companheiros sobre tudo o que víamos, mas particularmente acerca das pessoas com que nos cruzávamos. Uma jovem de cara suave era "a rainha das natas e cremes", noutras palavras uma simples rapariga do campo vinda para o mercado. Dum capelão rechonchudo com um nariz porcino e bochechas rosadas e gordas, apressando-se com um grande livro de contas debaixo do braço, diziam que tinha violado todos os jovens rapazes da congregação. Um rapazinho com menos de seis anos de idade era o carteirista mais competente da cidade.

 

Acho que me mostraram todos os bordéis de Maidstone, "casas de boa camaradagem" como o Dentes Partidos gostava de lhes chamar, e perguntava-me se John estaria dentro de algum deles. Mas considerei insensato acrescentar esses locais ao meu itinerário, sabendo que de qualquer forma não me deixariam entrar sem dinheiro. Em cada casa de folguedo, a mais notória das rainhas comuns era assinalada, geralmente de pé à porta esperando pelos seus cavalheiros. Por vezes eram-me fornecidos pelos meus amigos comentários indecorosos acerca das suas aptidões, com piscadelas de olho e assentimentos de cabeça entre eles.

 

Pouco depois do meio-dia, quando a maioria das pessoas parava para o jantar, sentámo-nos no parque da cidade, um belo sítio rodeado em três dos lados por ricas casas e no quarto lado por uma antiga catedral, aquela cujo campanário se avistava a milhas de distância. Havia muita gente a comer na relva, e todos os tipos de desportos viris - jogo do pau, bowling, disco voador, luta. Diversas jovens senhoras dedicavam-se ao tiro com arco. Observámos, enquanto um jogo de bola demasiado agitado que se tinha espraiado para uma rua apinhada, era disperso pelo corpulento estraga-prazeres da cidade. Contemplámos esta criatura patética, perguntando a nós próprios porque é que um homem quereria assumir uma ocupação tão detestada. O Robusto proclamou que tinha conhecido em tempos um estraga-prazeres cuja infelicidade no trabalho e o ódio que este provocava contra a sua pessoa o tinham levado a enforcar-se. Então, o Robusto enfiou a melhor parte da empada de carne que tinha comprado mais cedo, na goela e mastigou ruidosamente.

 

Vimos de seguida a Rua do Mercado, e embora os camponeses tivessem já começado a arrumar as suas mercadorias para regressarem a casa, as ruas estavam ainda apinhadas. Na Carver Street havia a Estalagem do Anjo, um belo sítio com quartos no andar de cima gabando lençóis de tela que o proprietário, de pé com as mãos na cinta à porta da frente, alegava ruidosamente serem lavados depois da estada de cada cliente. Perto encontravam-se diversas cervejarias, mas o meu irmão não estava em nenhuma delas. Perguntei por ele em todas, mas como podiam os patrões ajudar-me a encontrá-lo, num sítio tão grande como este, um estranho sem nada que o distinguisse dos outros e que se chamava John? O que é que me tinha passado pela cabeça para ter pensado que conseguiria encontrá-lo?

 

Pelo fim da tarde tínhamos visitado mais de metade das estalagens e cervejarias da cidade, agora cheias de homens bêbados como cachos, valentes cavaleiros de torneio e trabalhadores acabados de chegar dos seus afazeres para gastarem os ordenados alegremente. Os meus companheiros, tendo emborcado uma caneca de cerveja em quase todos os estabelecimentos que tínhamos visitado, eram eles próprios uma visão mais do que alegre. Estavam agora a guiar-me no sentido do extremo ocidental da cidade onde me tinham prometido a maior concentração de boas estalagens nas quais podíamos continuar a busca.

 

Enquanto descíamos uma larga rua pavimentada surgiu um rebuliço. Uma grande multidão, com mais do que a sua quota de clérigos e, dentre eles, precedia um cavalo a arrastar uma carroça rude. À medida que passavam perto comprimimo-nos contra a parede para os deixar passar. E embora eu conhecesse o que via - uma cena de penitência pública - não sabia a razão dela. As caras na multidão estavam sombrias e algumas zangadas. Amarrados eforçados a caminhar atrás da carroça estavam um homem e uma mulher todos vestidos de branco, embora o homem estivesse despido até à cintura, e ambos carregavam bastões brancos nas mãos. Um fabriqueiro vinha atrás deles, chicoteando-lhes as costas, talvez mais cerimoniosamente do que dolorosamente, embora pela cara dos penitentes conseguisse ver que a humilhação era extrema.

 

- O quefizeram eles? - sussurrei eu para os meus amigos.

 

- Apenas o pior dos pecados venéreos - disse o Robusto, ele próprio com um ar profundamente casto.

 

- Incesto? - perguntei eu.

 

- Não - respondeu o Dentes Partidos. - Este homem e mulher foram condenados não uma mas duas vezes por gerarem bastardos.

 

Eu fiquei sem fala, mas a minha mente começou instantaneamente a andar à roda da história destas duas almas apaixonadas encurraladas num pecado pior do que a sodomia, pior que a bestialidade. Para uma família, ter a sua linha de sangue manchada, a sua continuidade questionada, ameaçava de facto a sacratíssima lei da progenitura.

 

- Vem, então - gritou o Cabelo Liso, empurrando-me para longe da cena. - A noite está à nossa espera, e umas valentes goladas também.

 

À medida que a noite avançava, os cidadãos, um a um, acendiam lanternas do lado de fora das suas portas criando um bonito brilho pelas ruas. À nossa frente a rua acabava sem qualquer saída num edifício enorme e branco, a Estalagem da Coroa, que estava isolada, com a sua grande tabuleta pintada a ranger com a brisa que se levantara pouco tempo antes. Era uma noite cheia na Coroa com homens, mulheres, até crianças a fluírem pela porta da frente. Nenhum dos meus amigos queria ficar cá fora a cuidar do Charger, com tanta excitação a passar-se lá dentro, por isso tiraram à sorte e o Dentes Partidos perdeu.

 

Os restantes de nós entrámos para descobrir que esta era uma estalagem em estilo pátio. Dentro do pátio tinha sido erigido um palco. Alguns homens em fatos exóticos estavam a trabalhar nele, pregando pranchas de madeira e afins. Eu sabia que eram actores, pois tinha visto uma trupe itinerante semelhante que passara por Enfield uma vez, mas nunca vira um palco tão elaborado como este. Pensar que acrescentada a todas as maravilhas do dia iria haver uma representação por actores no pátio de uma boa estalagem! Alice morreria de ciúmes, pensei eu enquanto sorria comigo mesmo.

 

Mas a representação era, pelo aspecto, só daí a algum tempo, e os meus companheiros embriagados alegavam uma grande sede. Assim, entrámos na sala das bebidas. Foi então que o vi, o meu irmão john com uma roliça prostituta sentada no colo, os braços à volta do pescoço, os peitos dela completamente nus; e um dos mamilos firmemente plantado entre os lábios dele. Os olhos dele estavam fechados e ainda bem, pois a rapariga não era nem nova nem bonita, o seu sorriso lascivo revelava uma fileira de cutelos amarelos e podres.

 

Fiquei primeiro paralisado de indecisão, não sendo versado na forma adequada de um irmão extrair uma prostituta das garras amorosas do seu irmão mais velho e obrigá-lo a regressar a casa. Sabia bem que provocar-lhe embaraço podia causar-me a mim um par de bofetões bem dados, senão pior. Mas não tinha percorrido todo este caminho para o perder outra vez se ele por acaso abandonasse esta estalagem a caminho de um bordel ou outro estabelecimento de bebidas.

 

Os meus companheiros estavam subitamente ao meu lado com um copo de cerveja na mão, e um para mim igualmente. Tentando parecer imperturbado, apontei para o meu irmão que estava agora em delírio agarrado ao outro mamilo da prostituta.

 

- Oi, foi a Phoebe que lhe pôs as garras em cima! - gritou o Robusto, com os olhos a saltarem convenientemente das órbitas à visão dos peitos soltos da mulher. Isto levou-me a acreditar que estes rapazes, apesar dos seus ares de conhecedores, tinham pouco mais experiência com o sexo oposto do que eu.

 

- Espero que ele saiba como manter a bolsa enquanto ela lhe segura o caralho, pois é famosa por mergulhar nos bolsos dos cavalheiros e limpá-los completamente - disse o Cabelo Liso.

 

- Pelo ar dele não parece importar-se se ela o fizer - disse eu. - Receio que esteja tão colado à prostituta que não lhe vou conseguir arrancar uma palavra a bem.

 

- Não há problema - disse o Robusto. - Phoebe! - gritou ele mais alto do que o barulho.

 

Mas a puta estava demasiado decidida para ser afastada do assunto em mãos. Enquanto eu observava, os dedos dela meteram-se por entre as pernas do John, e a outra mão vasculhava-lhe o bolso, sob o disfarce de carícias apaixonadas.

 

- Phoebe! - tentou o meu amigo outra vez. - É melhor que venhas imediatamente, a tua casa está a arder!

 

A puta soltou-se do abraço do meu irmão, voltando a enfiar os seus grandes peitos no corpete, e saiu pela porta num piscar de olhos. Eu não perdi tempo em apresentar-me a ele, mas com o choque da perda recente, o cérebro encharcado em cerveja e o meu aparecimento completamente fora de contexto, não me reconheceu de imediato.

 

- John - disse eu. - Sou eu, o Arthur. O teu irmão.

 

- Arthur - respondeu ele, olhando para mim com um ar intrigado.

 

- E aqui estão alguns amigos - disse eu, indicando o Cabelo Liso atrás de mim com o Robusto. Ocorreu-me apenas então que não sabia os nomes deles, para além das alcunhas que lhes tinha atribuído.

 

- Puxem uns bancos - disse-lhes eu - e podem celebrar connosco. Descobrimos que tínhamos salvo John de muito pouco às mãos de Phoebe. Os bolsos dele estavam já limpos, pois ele tinha bebido e gasto com meretrizes e jogado todos os xelins desde a anterior noite de domingo. Se eu não tivesse vindo buscá-lo, dizia ele, de qualquer forma ele estaria em casa no dia seguinte. Mas passámos uma noite agradável a dançar jigas, embriagados, ao som de uma gaita-de-foles e de uma rabeca desafinada. Mais tarde anunciou-se o início da peça.

 

Ocupámos os nossos lugares nos bancos no pátio abaixo do palco com todos os tipos de pessoas - mercadores da cidade e as famílias, criados públicos, simples cidadãos e aprendizes. Os assentos cobertos nas galerias permanentes estavam reservados para cavalheiros endinheirados, todavia nós estávamos satisfeitos com os nossos lugares. É claro que todos os actores eram homens, e que rapazes representavam os papéis femininos. Mas quando o director subiu ao palco para se desculpar por um atraso no início da peça, uma vez que "a Rainha se estava a barbear", produziu tais gargalhadas e alegria que continuaram sem parar, de tal modo que a peça, uma história dramática chamada "Rei João", só pôde começar a ser representada passados cinco minutos, uma vez que a audiência não conseguira conter-se. Porém os actores, desejando agradar o público, resolveram representar em lugar dela uma comédia obscena chamada "Uma Saca Cheia de Novidades", que era mais ao gosto da audiência. Era uma coisa tão tola que rimos até às lágrimas e caímos dos nossos bancos agarrados à barriga.

 

Mais tarde, John ordenou-me quefosse para casa com a promessa de que ele regressaria no dia seguinte, pois não estava em condições de viajar e já tinha pago uma cama na Coroa para essa noite. Ele ter-me-ia pedido para ficar, mas tinha esperanças de mais uma noite de prazeres carnais, embora eu duvidasse que ele encontrasse grande coisa com a bolsa vazia. Assim, despedi-me dele com Martin e Paul, cujos nomes descobrira havia pouco.

 

Apenas quando estávamos a sair do local é que o meu estômago se embrulhou com um pensamento terrível. Com toda a excitação tínhamo-nos esquecido de Harry - este era o Dentes Partidos - que tinha ficado a tomar conta do Charger. E de facto quando o encontrámos ele estava a dormir profundamente e a ressonar como um serrote na madeira. O Charger havia desaparecido.

 

Acordámo-lo com uma boa abanadela e muitos gritos, exigindo saber onde tinha ido o meu cavalo. Ele ficou bastante mortificado, alegando que quando começara a ficar com sono amarrara a rédea à volta do tornozelo, de forma a que qualquer movimento que o animalfizesse o acordasse. De facto o extremo da rédea estava ainda firmemente atada à volta da perna dele, com o outro extremo cortado como um testemunho da estupidez ou bebedeira, talvez ambas, do jovem.

 

Espalhámo-nos e inquirimos freneticamente qualquer pessoa que pudesse ter visto o crime, mas aqueles cidadãos que pairavam do lado de fora da Coroa tinham relutância em falar, mesmo que o tivessem visto, pois o roubo de cavalo era um crime tão odioso como o assassinato e punido com a marcação a ferro ou enforcamento. Ficámos, consequentemente, reduzidos a vasculhar as ruas nós próprios, cada um acalentando o receio secreto de encontrarmos o cavalo nas mãos não de um ou dois vis pedintes, mas de um bando de perigosos malfeitores e degoladores. Na verdade, os meus companheiros podiam ter aproveitado a oportunidade para se despedirem de mim - podiam ter fugido e eu nunca os voltaria a encontrar. Mas embora fossem pobres e rudes e não estivessem muito sóbrios, tinham corações honrados, apesar de tudo, e prometeram ficar comigo até o cavalo ser encontrado.

 

O nosso primeiro golpe de sorte deu-se ao avistarmos um polícia da cidade percorrendo as ruas escuras com uma alabarda e lanterna. Inquirimo-lo e ele disse que tinha visto três homens em três cavalos não muito antes, e que apenas reparara neles porque duas das montadas estavam calmas e tratáveis, e uma insubmissa. O seu cavaleiro era forçado a bater nela, visto que o cavalo queria virar-se na direcção contrária à que eles levavam.

 

O meu coração deu um salto efiquei desolado. Alguém estava a bater no Charger pelo desejo dele de regressar para mim. Qual era o sentido em que viajavam, exigi eu saber do polícia, e a que velocidade e há quanto tempo tinham passado? No sentido dos portões da cidade, num passo sem pressas, e nem há dez minutos, respondeu ele. Gritei os nossos agradecimentos enquanto partíamos a correr como o diabo pela rua pavimentada abaixo. Enquanto corria sentia-me como um Mercúrio alado, deixando os meus amigos bem para trás, pois era um pedaço do meu coração que tinha sido roubado, e pelo desejo do meu próprio senso comum de que ele se tinha ido embora. Rezei enquanto corria para conseguir apanhá-los antes de eles alcançarem o portão da cidade, pois uma vez no campo podiam adoptar um passo mais rápido, e o Charger estaria perdido para sempre.

 

Então vi-os. Três homens adultos, o que estava montado no Charger uma coisa grande e pesadona, aproximando-se do portão. De facto, o meu cavalo estava irrequieto, precisando do chicote para o manter direito e estável, pois eu mantinha o freio mais suave na boca dele, e deve ter sido duro para um homem mesmo tão abrutalhado como este dar conta dele. Nunca perdendo um passo enquanto corria, lancei um olhar para trás para ver os meus amigos a correrem ao mesmo passo mas claramente sem fôlego. Eles não serviriam de nada numa luta, pensei eu, mesmo que chegassem a tempo. Olhei para cima para encontrar as sentinelas nas torres do portão, mas o que vifez o meu coração afundar-se - a silhueta em cada uma das torres estava caída e a dormir no posto. Pensei em gritar e acordá-los, mas preocupei-me que os cavaleiros, ouvindo-me, arrancassem num galope e me deixassem a morder pó.

 

Numa corrida como um raio cheguei perto da traseira deles, sem que ouvissem os meus passos devido ao barulho de uma dúzia de cascos no pavimento. Trinta jardas, vinte. Percorri a distância e quando consegui ver a espiral branca na base da cauda do Charger gritei o mais alto que consegui: ó, Charger!

 

Ele virou-se tão violentamente com o som da minha voz que o pescoço do cavaleiro gordo levou um bom sacão. Quando me viu, o ladrão de cavalos com todo o seu peso eforça e esporas pontiagudas tentou virar o Charger e cavalgar com ele dali para fora. Os dois rufiões que o acompanhavam não estavam dispostos a deixar um mero rapaz desmontar o seu companheiro que lutava com a montada indomável, batendo-lhe sem misericórdia. Atiraram-se a mim, com o diabo nos olhos e mocas a malhar. Resguardei-me dos golpes o melhor que consegui, mas um aterrou certeiramente na minhaface esquerda, e logo senti um esguicho de sangue quente a descer pela cara. Então vi à minha volta os meus três camaradas e, todos ao mesmo tempo, iniciámos um adequado turbilhão com grandes gritos, grunhidos e socos, e depois um grito quando o Robusto enterrou os dentes na coxa de um dos malfeitores. Agora os guardas do portão estavam acordados e gritavam também. Eu sabia que tinha de desmontar o gordo, e então gritei por cima da confusão: Charger, elevar, hup, hup!

 

O meu cavalo, que Deus lhe abençoe a alma, obedeceu instantaneamente à ordem erguendo-se bem alto nos quadris, lançando as patas dianteiras para o ar relinchando bem alto em desafio. O ladrão, apanhado absolutamente de surpresa desequilibrou-se, foi lançado para trás, os pés arrancados dos estribos e lançado para o chão. Aterrou com força de costas, recebendo a sua cabeça um bom golpe nas pedras do pavimento.

 

Eu saltei para o dorso do Charger e chamei os meus amigos: Martin, Paul, Harry, recitem, recitem! E como um esquadrão bem treinado obedecendo ao seu comandante eles afastaram-se dos três cavalos. Então reunindo todos o meu talento, e com a força conquistada pela união com o meu melhor e muito confiado amigo, arremessei-me para a acção. Não tinha qualquer arma a não ser o Charger, mas nós éramos de facto formidáveis. Com uma animada série de recuos e voltas rápidas, utilizando os cascos dianteiros dele como punhos e rápidos sacões para trás, desmontámos mais um rufião e imobilizámos o outro rapidamente. O homem gordo estava ainda deitado, inconsciente, e quando os guardas do portão conseguiram chegar cá abaixo a correr para nos ajudar, a escaramuça estava acabada, os inimigos caídos e a cuidar das suas feridas. Com um olhar para as caras deles as sentinelas puxaram dos seus cadeados e correntes, pois estes eram homens procurados por roubos de todo o tipo, e certamente habilitados para entrarem no cárcere da cidade.

 

Com agradecimentos a nós e abraços especiais ao meu galante cavalo, os guardas despediram-se e levaram os malfeitores para o seu merecido destino. Era altura de nos dirigirmos a casa, por isso eu disse adeus aos meus companheiros cujo dia de divertimento e aventura tinha sido tão bom como o meu. Embora não pudesse prometer que nos fôssemos encontrar outra vez, disse sinceramente que nunca iria esquecer a sua bondosa ajuda para localizar o meu irmão, bom companheirismo e brava acção na luta. Devolveram-me os cumprimentos alegando que eu era o cavalheiro mais capaz que eles alguma vez tinham conhecido, agindo não demasiado grandiosamente para pessoas como eles, que apreciava uma boa gargalhada, e especialmente que era um excelente cavaleiro. Com muitas carícias e afagos disseram ao Charger como ele era um animal de grande coração e, assim, enquanto eu trotava no meu imponente cavalo para fora dos portões de Maidstone o meu espírito estava tão leve como o de um anjo; senti-me mais homem do que alguma vez o tinha sentido antes. Catorze anos, e a minha vida estendida à minha frente como uma estrada, Dei-lhe as boas-vindas com os braços bem abertos.

 

Não estava a mais de duas horas de casa e a minha disposição encontrava-se ainda em alta apesar do rasgão na cara, agora a latejar dolorosamente. Pensei na sorte que tinha tido por o olho não ter saltado, mas em lugar disso ter sido deixado com uma boa e viril cicatriz, um testemunho da minha bravura. Tínhamos na viagem passado uma boa quantidade de viajantes a cavalo, camponeses em carroças e a pé.

 

Mas agora mais à frente via uma boa carruagem puxada por dois cavalos, e uma dama às rédeas. Fui atraído primeiro pela sua cintura delgada, o porte erecto enquanto suportava os altos e baixos da estrada esburacada com uma espécie de graça. Eu não conseguia ver a cor nem o estilo do cabelo dela, pois estava todo amontoado sob um chapéu. A minha mente logo fervilhou com imaginação, pintando-lhe o retrato do rosto. Era jovem e doce, a filha de um mercador rico que tinha roubado a carruagem do seu pai para fugir, pois ele era cruel e espancava-a sem misericórdia. Estava determinada a nunca mais sentir o chicote dele. Uma jovem senhora desacompanhada nestas estradas era um convite para os biltres e violadores, mas morrer era preferível à casa do pai, alegaria ela.

 

Pela altura em que eu decidira que o nome dela era Anabelle, e que o seu destino era a casa de uma amável irmã em Londres, Charger tinha chegado

junto da carruagem. Ela virou-se para olhar para mim e o meu coração pareceu parar completamente de bater. Quando recomeçou batia o dobro das vezes, pois esta rapariga não tinha de todo uma cara doce. Era nada mais do que requintada. Era de facto nova, talvez da minha idade ou um ano mais velha, e a pele ainda tinha a frescura da infância, mas os olhos claros cor de avelã transportavam um conhecimento para além dos anos. De lado mantinha o meu olhar estavelmente, e como eu não tentei passar mas continuei a seu lado, aquele olhar partilhado tornou-se verdadeiramente muito longo.

 

- Bom dia - arrotei eu por fim. Os seus lábios arqueados cor-de-rosa curvaram-se num sorriso que não lhe revelavam os dentes. Um breve pensamento, como um sapo escorregadio a escapar-me pela mão, fez com que os dentes por trás do bonito sorriso todos pretos e podres fossem uma piada para mim. Mas quando ela respondeu "bom dia", a cara virou-se completamente para mim, vi que os dentes eram perfeitos na forma e brancos como a asa de um cisne. Eu não sabia onde ir, mas sabia com segurança que fosse para onde fosse teria de ser ao lado desta rapariga.

 

- Tendes um golpe mau, Sir. Caístes... ou estivestes a lutar? - perguntou ela com uma franqueza pouco comum para uma estranha.

 

- A lutar - anunciei eu com igual franqueza, agradado ao extremo por não ser mentira. Ela sorriu outra vez e desta não foi o meu coração que reagiu violentamente, mas um órgão corporal situado um pouco mais abaixo. - Um homem roubou-me o cavalo em Maidstone esta manhã e eu fui forçado a retirar-lho por meios mais marciais do que pacíficos, embora eu seja - acrescentei rapidamente não querendo que ela me julgasse um rufião um sujeito normalmente pacífico.

 

- Espero mesmo que não tenhais sido ferido de outra forma - disse ela. Descobri que cada palavra que abandonava a sua boca perfeita provocava uma pequena pulsação no meu pênis, endurecendo-o e engrossando-o a cada pulsação. Movi as mãos que seguravam as rédeas para cobrir o membro crescente.

 

- Dizeis que percorrestes o caminho todo desde Maidstone esta manhã? - perguntou ela com um olhar incrédulo que me deixou com a impressão indistintamente agradável de que a minha condição e a exploração da noite anterior podiam provar-se interessantes e excitantes para esta rapariga... talvez até estimulantes. Que eu sequer tenha tido um tal pensamento foi um choque para mim, mas rapidamente recuperei' a consciência, e perguntando se podia ir ao lado dela, comecei a relatar a minha história.

 

Deleitei-a com as descrições de cada uma das visões e cheiros que pude saborear e de que me lembrava. Algumas das frases inteligentes dos meus companheiros fi-las minhas, e até embelezei vários dos voos de imaginação que tinha conjurado, transformando-os em factos. Deu para uma boa história, esse meu dia. Quando cheguei à parte em que encontrei o meu irmão na Estalagem da Coroa, com a meretriz ao colo dele, incluí todos os pormenores medonhos sabendo que se ultrapassasse os limites ela me olharia fixamente com um olhar indignado, soltaria as rédeas e ir-se-ia embora com um queixo altivo no ar. Isto nunca aconteceu. Contrariamente, quando eu disse como o John tinha os seus lábios plantados à volta do mamilo da Phoebe como um bebé de mama, vi a boca da jovem dama a abrir-se ligeiramente e o próprio peito de fêmea a começar a erguer-se e a baixar um pouco mais depressa. Mas foi quando relatei o roubo do Charger e a refrega como o conseguira de novo, enviando três criminosos procurados para o cárcere, que ela se virou para mim com um olhar de tal enamoramento e temor que eu juro que se não me tivesse esforçado para manter o cavalo entre as minhas pernas teria caído da sela.

 

- Que homem corajoso vós sois - disse ela com toda a sinceridade. Um homem, chamou-me um homem, pensei eu, o meu coração a bater desenfreadamente. Não via ela que eu só tinha catorze anos? Eu sabia que era alto entre os rapazes da minha idade, e bastante musculoso devido aos exercícios marciais. E de facto, recentemente, tinha-me envolvido em numerosas perseguições viris. De que serviria dizer-lhe que era na verdade apenas um rapaz?

 

- Quem sois, e de onde? - perguntou ela de súbito. - Conheço toda a vossa história e no entanto não sei nem o vosso nome nem posição.

 

- Arthur Southem de Enfield - respondi eu. - O meu pai é o encarregado da coutada de lá.

 

- Ora essa, eu estive lá quando era rapariga! O meu próprio pai levou-me a caçar uma vez nessafloresta. Nunca a esqueci.

 

- Então devemos seguramente termo-nos encontrado antes, visto que eu sou o ajudante do meu pai. Posso ter-vos ajudado a subir para a sela, ou ter conduzido a vossa família através dos bosques. - Via-lhe o sorriso largo agora, claramente agradada por afinal talvez não sermos estranhos. - E qual é o vosso nome? - perguntei eu, finalmente, lembrando-me das minhas boas maneiras.

 

- Mary Willís. - Virou a cara de repente e olhou fixamente em frente para a estrada. - Lady Willis.

 

Se tivesse dito que era filha de Lúcifer eu não teria ficado mais surpreendido. Era uma mulher casada! Durante um momento demasiado longo fiquei sem fala, quando momentos antes jorrara uma verdadeira torrente de palavras. Ela não podia deixar de reparar na minha consternação e, de súbito, puxou as rédeas dos cavalos e fê-los parar. Puxei o Charger também, e ficámos imóveis em silêncio pelo que pareceu ser um momento infindável. Quando, finalmente, falou, à sua voz faltava o anterior arrojo.

 

- Sou apenas casada com Sir Howard Willis faz agora um ano.

 

Meu Deus, pensei eu para mim próprio, o coração a afundar-se com pena, um tipo velho para marido - como a Meg.

 

- Ele tem uma grande propriedade e uma bela casa senhorial. Os seus filhos estão todos crescidos... todos eles mais velhos do que eu.

 

- Como é que ele vos deixa andar por aí sozinha? - perguntei eu.

 

- Estive de visita à minha tia solteira em Oxted uma semana, mas o criado que me acompanhou partiu uma perna ontem, e a minha tia não tinha criados que pudesse dispensar. Ela implorou-me que esperasse, mas o meu marido fica muito zangado quando estou longe demasiado tempo, e então trouxe isto comigo. - Levantou um pano ao lado dela no banco e eu vi uma pistola enrolada nele. - Se vós tivésseis comportando desonrosamente lá atrás ter-vos-ia feito um grande buraco na cabeça. - Sorriu outra vez com aquele sorriso absolutamente namoriscador.

 

Pensei com pena que a história verdadeira desta rapariga era bastante mais excitante do que aquela que eu tinha inventado.

 

- Quanto falta para chegardes a casa? - perguntei eu, sem saber o que dizer. Ela tínha-me deixado, em certa medida, mais apaziguado.

 

- Eu estou em casa - anunciou ela surpreendendo-me outra vez. Esta é a extrema da terra do meu marido. A casa senhorialfica poucas milhas mais adiante. - Eu continuava com a língua atada ao extremo. - Arthur Southem - disse ela subitamente. - Gostaríeis de ver o meu canto preferido no mundo? Não é longe daqui.

 

Uma voz na minha cabeça estava a gritar "perigo, perigo!", incitando-me a declinar e a ir-me embora com um educado "bom dia". Mas uma voz igualmente vibrante que não dizia palavras mas cantarolava uma melodia romântica - a "Greensleeves" talvez - intrometeu-se, afogando a que era sensível.

 

- Vinde ver - incitou ela. - Ninguém lá vai excepto eu. - Os seus olhos cor de avelã cintilavam ao sol, o arco virado para cima dos seus lábios eram um convite irrecusável.

 

Não me lembro de ter dito que sim, que iria. Apenas me lembro de a seguir quando ela conduziu a carruagem para uma mata de árvores que a escondiam da estrada. Saltou tão rapidamente que eu não tive tempo de desmontar para a ajudar, mas ela veio de imediato para o lado do Charger, deu-me a mão, e eu puxei-a para trás de mim na sela. Com os seus braços à volta da minha cintura, sentí-lhe os peitos a saltarem nas minhas costas, o hálito quente no meu pescoço, Seguindo as suas indicações chegámos a uma mata espessa de antigos carvalhos com ramos nodosos e sem veredas visíveis. Mas Mary conhecia o caminho e pouco depois ouvi o barulho de água a correr, demasiado alto para um mero ribeiro.

 

De facto, o seu sítio secreto era umafloresta verde e musgosa que dava perfeitamente, pensei eu, parafadas e ninfas, com uma queda de água sobre as pedras e um lago de água doce por baixo. Ajudei-a a descer e enquanto o Charger bebia ela olhou em redor e começou a respirar profundamente, como que para inalar a beleza do sítio para o seu corpo. Pensei que lhe via na cara o mesmo tipo de prazer que eu sentia depois de uma cavalgada dura com o Charger. Então ela levou as mãos à cabeça e retirou a touca revelando o seu cabelo castanho-escuro, que lhe caía espessamente à volta dos ombros e costas. Com o cabelo assim solto, o rosto parecia-me ainda mais adorável do que antes, e eu mal conseguia afastar os meus olhos dela.

 

- Deixai-me ver esse golpe - disse e sem esperar pela minha resposta mergulhou a bainha da saia na água límpida. - Vinde, Arthur, eu não vos mordo. - Cheguei-me mais perto e descobri que era uma torre junto daquele pequeno corpo. - Vá, dobrai a cabeça um pouco. - Então, lavou o golpe meticulosamente, embora não me lembre da dor que isso provocava. Apenas me lembro que quando acabou os seus braços subiram, enrolando-se à volta do meu pescoço, e os meus lábios encontraram os dela. Eram a coisa mais suave que eu alguma vez conhecera, e a boca tinha um sabor muito doce. Num determinado momento lembro-me do sabor do sal a misturar-se com o doce, mas se o reconheci como sendo as lágrimas dela não parei no entanto de a beijar. A sensação de uma mulher junto a mim nos meus braços era tão pura e arrebatadora como o ritmo de um cavalo a galope por baixo de mim. Desejei sondar terna e lentamente os muitos mistérios de Mary Willis - a pele dos seus pequenos e perfeitos seios e das suas coxas com cheiro a mulher tão suaves, os sovacos sombreados entre os braços, a pequena e sagrada escuridão do umbigo, a fenda entre as nádegas, a penugem suave do pescoço. Mas fiquei impossivelmente estimulado, e assim fui levado por essa parte dura de mim a apressar-me, deixando para trás a ternura, e ligar o seu corpo ao meu. Fiz isto, dando rédea livre à minha mente tal como ao corpo, numa revelação de paixão. Depois explosão. Depois paz.

 

No meu regresso destas aventuras fui recebido com muito desagrado pelos meus pais, pois estavam alarmados com o meu desaparecimento súbito sem permissão prévia. Pior, voltei num estado desgrenhado, a roupa imunda e rasgada, com nódoas negras e um grande golpe na face para atestar o meu comportamento de rufião. Nem tinha atingido o objectivo que utilizei como a minha melhor desculpa para a ida - trazer o John para casa comigo. Ele não voltou logo, na verdade, como tinha prometido, mas sim passados dois dias.

 

Eu caíra em desgraça, e fui castigado vendo todos os meus privilégios de montar revogados durante um mês. Fuiforçado, humilhantemente, a ir a pé para a escola. Não eram permitidas sessões de fim-de-semana com o Charger, e a minha mãe fiscalizava-me a rotina diária, acrescentando-lhe mais orações e estudos das Escrituras e até algum trabalho feminino que me mantinham em casa o dia todo. Senti-me como um grande estúpido.

 

Quando o filho devasso regressou apenas com um pequeno arranhão, e depois de uma leve repreensão fez o que quis da minha mãe que, como sempre, lhe perdoou tudo. O meu pai, no entanto, estava verdadeiramente desgostoso com o seufilho devasso, aos dezoito anos um bêbado e um libertino. O meu pai temia que quando John herdasse a Coutada de Enfield esta caísse em decadência e ruína sob uma mão tão negligente. Ele via-me o perfeito senhor da terra do seu querido paraíso - afastado dela pela lei para construir o meu próprio caminho num mundo frio. Se o meu pai fosse mais rico de seu próprio direito, teria constituído uma provisão para mim, mas como, se a nossa riqueza era ilusória. Vivíamos bem na casa senhorial, rodeados pelos vastos segredos da Natureza, mas não havia qualquer herança excepto a coutada e esta era, irrevogavelmente, para o John.

 

Sobrevivi ao castigo em melhor forma do que se poderia imaginar, visto que tive mais voos de fantasia do que alguma vez acontecera. Revivi e embelezei as memórias do meu dia e noite em Maidstone, a batalha vitoriosa com os ladrões de cavalos e, sobretudo, o meu encontro secreto com Mary Willis.

 

Esta última memória foi o maior bálsamo para a minha alma e orgulho masculino, embora me sentisse um impostor, pois ela nunca soube que eu não tinha senão catorze anos. Não tive qualquer oportunidade para aplicar as lições que a Alice me tinha dado, de uma mulher ter satisfação repetida no acto sexual. Na verdade não sabia se Mary tinha sido satisfeita sequer uma vez. Depois da minha própria explosão de prazer ela tinha começado a chorar, e eu segurei-a gentilmente nos braços enquanto me contava como o marido nunca lhe tocava, como tinha perdido completamente a sua virilidade com a idade, e apenas desejava uma governanta para o lar - uma cara bonita para a qual olhar durante o jantar, não um traste velho e enrugado como ele. Mary era mais infeliz do que alguma vez pensara ser possível antes do dia do casamento, e estas poucas horas comigo, disse, tinham sido um presente precioso. Tínhamo-nos separado tristemente sem esperança de nos voltarmos a ver. Mas na verdade ela esteve comigo nos meus sonhos e imaginações todos os dias durante muitas semanas depois do nosso encontro.

 

Assim, foi para mim um grande choque quando alguns meses depois numa tarde tempestuosa um cavaleiro desconhecido apareceu a galope pelos portões e se deteve à porta da casa de Enfield. Eu estava a atravessar o pátio vindo dos estábulos e vi um mensageiro coberto de lama a entregar à minha mãe uma carta selada, e depois ouvi o homem proferir as palavras "Sir Howard Willis". Apressadamente deu de beber ao cavalo e pedindo desculpa pela sua pressa, pois desejava estar de regresso a casa antes de escurecer, partiu a galope.

 

Entrei e fiquei de pé a olhar fixamente para a carta em cima da mesa por abrir, até que a minha mãe apareceu e me gritou que eu lhe estava a pingar o chão. Um por um, subi os degraus com uma sensação de destruição a pairar sobre mim. Sabia que o meu pai estava fora na aldeia numa reunião da igreja e não iria ler a carta nas próximas horas. Mas também sabia que quando o fizesse a minha vida na Coutada de Enfield iria chegar a um tumultuoso fim. Pois eu tinha certamente engravidado Mary Willis, e o marido saberia que ofilho não era dele. Ela deve ter quebrado sob o seu interrogatório cruel - arrepiei-me com a ideia de ele lhe provocar dor - e revelara a verdadeira paternidade do filho.

 

Esta era uma ideia que durante meses havia pairado furtivamente na minha mente, mas a que eu a toda hora lhe negara a entrada nela. Não precisava agora das minhas fantasias. Mary e eu seríamos julgados por um tribunal eclesiástico pelo crime de adultério e eu sabia, pela minha memória daquela terrível procissão nas ruas de Maidstone, que destino e castigo nos esperavam. O marido podia, ocorreu-me, ir mais além com a justiça mandando matar o infractor.

 

Tão calmamente quanto me era possível pesei e medi as minhas escolhas. Podia ficar e arcar com as responsabilidades, mas vi qual a retribuição que tivera pela minha ausência de casa sem permissão por dois dias. Sabia também que a minha feliz posição na Contada de Enfield estava limitada aos anos remanescentes na vida do meu pai, depois dos quais eu poderia ser autorizado pelo meu irmão a ficar, mas seria na melhor das hipóteses um convidado no lar dele, um empregado ao seu serviço. Embora tivesse aprendido e bem a profissão de encarregado da coutada, sabia nas profundezas do meu coração que esta não era nem a minha paixão nem a minha vocação. Eu era um soldado, um soldado de cavalaria, e tanto podia começar essa profissão agora como mais tarde. Se esperasse, pensei, Howard Willis podia-me matar ou mutilar e acabar com os meus belos sonhos para sempre.

 

Escolhi, em vez disso, viver.

 

Desperdicei pouco tempo, empacotei algumas coisas - acima de tudo o meu exemplar de Xenofonte - e escrevi uma carta explicativa para o meu pai. Contei-lhe dos meus planos, embora não o meu destino, e implorei-lhe perdão pelo meu acto cobarde de fugir, e pela vergonha e escândalo que iriam seguramente recair sobre a nossa família. Mas como acreditava que ele me queria vivo mais do que morto achei o meu plano prudente, e escrever-lhe-ia do campo de batalha. Não sabia naquele momento qual campo de batalha ou qual guerra seria. Teria, supus, de me contentar com a vida de soldado mercenário, não tendo a Inglaterra nenhuns inimigos presentemente.

 

Alice ficou desolada quando eu fui ao quarto dela e em sussurros lhe disse que me ia embora. Ela não tinha quaisquer aliados a não ser eu e iria ser forçada a combater a sua batalha sozinha. Quando me perguntou como é que ia pagar a minha viagem respondi-lhe com um olhar inexpressivo, pois não tinha qualquer dinheiro meu, e nada de valor excepto o meu cavalo que não podia, naturalmente, vender. Foi até uma caixa que tinha escondida debaixo da cama e tirou dela um anel, uma granada embutida em ouro.

 

- Parte do meu dote - disse ela. - Pode ser que se eu não tiver nada valioso nenhum marido me queira. Toma, leva.

 

Eu não discuti pois não tinha escolha. Disse-lhe que gostava muito dela, beijei-a e com o meu alforge de tecido lançado por cima do ombro, desci as escadas principais. Com um olharfinal para a carta de Willis que selara o meu destino, saí porta fora. O meu percurso estava delineado.

 

Meia hora depois o Charger e eu estávamos na estrada e dirigíamo-nos ao nosso destino - uma aldeia no Sul do País de Gales no extremo do grande mar Ocidental, um lugar que era a casa de uma escola de treino de cavalaria. Enquanto voávamos pela estrada fora na direcção de um pôr do Sol diminuído pela chuva fervilhava de pensamentos acerca do lugar. Dizia-se que havia campos de parada e uma escola de equitação interior. Os homens aprendiam sobre armamento e equitação, com treino especial no salto sobre muros e valas. Todas as habilidades, pensei eu a sorrir, nas quais já estava treinado. Imaginei-me a apresentar-me ao comandante da escola, aumentando a minha idade para combinar com o meu tamanho, e depois pedindo licença para demonstrar as minhas aptidões como cavaleiro. Iria montar o Charger e em poucos momentos o comandante não só me concederia a entrada na escola como me promoveria a instrutor.

 

Os quilómetros e os dias passaram a voar. A terra mudou de pântanos planos e pastagens para colinas onduladas com aldeias chamadas Swindon e Stroud, até quefinalmente passei para Gales com as suas grandes montanhas e cidades com nomes como Caerdydd e Merthyr Tydfil. Dormia onde podia - em celeiros ou estábulos ou, se tivesse a sorte de fazer algum bom conhecimento na estrada, numa cama. As minhas maneiras e roupas de cavalheiro, e um tão belo cavalo como o Charger, deram-me igualmente entrada em algumas grandes casas. Nunca tive medo de morrer de fome, acreditando sempre que iria conseguir chegar ao meu destino.

 

E assim foi. Seis dias depois de deixar Enfield alcancei os arredores da aldeia de Milford Haven. À medida que me aproximava senti uma estranha fragrância que era, de facto, mais do que um odor, umafrescura pesada no ar. Era o mar que eu estava a cheirar, e incitei o Charger a continuar, o coração a bater com antecipação como quando entrara pelos portões de Maidstone. Subimos uma pequena elevação e enquanto o olhar se espraiava com a visão do cinzento e agitado mar Ocidental, a respiração abandonou-me o corpo com o terror e subitamente desejei, ou antes ansiei por estar mesmo na beira dele.

 

Charger também o sentiu, pois não precisou de qualquer incitamento mas apenas de um afrouxar das rédeas, e mergulhou a galope por uma rua abaixo feita tanto de areia como de terra barrenta. De repente, o som dos cascos no chão emudeceu e o caminho amaciou, pois era só areia debaixo dos cascos dele, e de repente era tudo mar. Montanhas de agua encimada por espuma branca enrolavam-se e inchavam, depois despenhavam-se na margem de uma extensa baía. Gaivotas altaneiras rodavam e guinchavam por cima de mim. Uma, depois outra e outra, deitadas sobre as asas e como uma seta a cair do céu mergulhavam atravessando o mar picado e desapareciam.

 

Inspirei o ar estimulante em grandes golfadas e senti o vento salgado a ferir-me as bochechas. Estava no extremo do mundo e cada onda ribombante que rebentava aos pés do Charger parecia uma mensagem, um chamamento de longe, que eu estava destinado a abandonar as costas de Inglaterra, a ver outras terras para além do mar.

 

Desci da sela e conduzi o Charger para sul ao longo da beira-mar. Lá ao longe uma figura estava sentada inclinada na areia olhando o oceano. À medida que nos aproximávamos vi que era um homem velho, um pescador dobrado sobre uma rede que lhe cobria o colo como um avental de cânhamo. Ele estava a remendá-la com os dedos tão nodosos como um ramo de carvalho, já não muito ágeis mas seguros na sua tarefa. Estávamos muito perto quando ele olhou para cima e nos viu; abanou a cabeça sem sorrir, mas os olhos na sua cara bem gasta pelo tempo piscaram, por isso achei-o sociável e sentei-me perto dele.

 

Não falou durante muitos minutos e eu permaneci igualmente silencioso, contente por estar a olhar para o meu destino. Assim, quando ele falou assustou-me.

 

- É uma bela praia, esta - pronunciou solenemente.

 

- É primeira que vejo - disse eu - e acho-a mais do que bela.

- Mais do que bela, é? Porquê, o que vês aqui?

 

- Beleza, para começar - respondi eu rapidamente.

- Sim, isso é verdade. Que mais?

 

Perscrutei o horizonte.

 

- A maior força que alguma vez conheci. Ainda superior ao mais feroz trovão e raio.

 

Ele riu-se.

 

- Bem, então devias ver este oceano em tempestade. Aterroriza os corações dos homens mais valentes.

 

- Quando olho para ali - aventurei-me eu - vejo o meu futuro.

 

- O teu futuro? - Os dedos dele nunca paravam o seu delicado trabalho. - São os novos que vêm a este sítio e vêem o futuro. Talvez sejam apenas os velhos que ainda se preocupam com o passado.

 

- Passado? - Os meus ouvidos arrebitaram subitamente com a ideia de um velho a narrar um conto fantástico. Eu tinha muitos da minha própria lavra, mas este era um presente que não tinha sido procurado.

 

- Este sítio tem história?

 

Tive esperança de não ter sido demasiado ambicioso, pois sabia que alguns homens eram avarentos com o seu fiar de contos e partilhavam-nos a seu próprio gosto. Mas este não era um homem desses, descobri eu. Talvez fosse a sua única história, amada, mas com poucas oportunidades de ser contada, pois quando ele começou, as palavras tropeçavam e pairavam e por vezes rebentavam como as ondas.

 

- Há cem menos dez anos, Henrique Tudor desembarcou com as suas tropas rebeldes nesta mesma praia de Mllford Haven, com a intenção de retirar a coroa da cabeça do rei Ricardo o Terceiro. Olha ali - apontou com um dedo torcido para a margem norte da baía. - Três mil homens, alguns normandos franceses, outros escumalha saída dos cárceres que desejavam mais lutar do que ser enforcados, e alguns dos apoiantes de sempre de Henrique há muito no exílio com ele. Essas eram as tropas dele. Uma vez em terra aumentou as suas fileiras com os seus conterrâneos galeses, dois mil bravos, e então Henrique... - O velho olhou para o mar e disse com uma voz tremente: - ... sem poder, sem reputação e sem direito, marchou para Bosworth e arrebatou a Inglaterra para si.

 

Eu vi o desembarque então. Vi os barcos agregados a abanarem na rebentação violenta, homens e cavalos a tentarem chegar ao areal plano e estável, reunindo as suas forças em companhias de marcha. Vi o próprio Henrique Tudor a chegar à margem num pequeno barco a remos, o fogo da vitória a arder-lhe nos olhos e então, montado, tomando a liderança dos seus homens. Vi como a marcha nada deixara para trás a não ser as ondas a rebentarem na areia, agora marcada e revolvida pelas pegadas dos invasores, em breve senhores da terra.

 

- Eu ainda não era nascido quando o galês se fez a si próprio o sétimo rei Henrique de Inglaterra. Mas vi o filho dele governar. Sim, Grande Harry chamávamos-lhe nós. Casou-se com uma espanhola, depois com uma puta inglesa. A filha da puta está agora sentada no trono de Inglaterra.

 

Fui abalado pela fúria nas palavras do homem. Isabel, a minha própria e amada soberana, vilipendiada por um rude pescador.

 

- Ela recusa-se a agir decentemente e casar-se. Ela governa... uma mulher! - Ele cuspiu a palavra. - Quando morrer sem filhos, tudo aquilo pelo que Henrique Tudor lutou e conquistou estará perdido para Deus sabe que sucessor. É um crime contra o reino. Traição, digo eu!

 

Eu tinha de falar.

 

- Eu conheço a Rainha! - disse eu subitamente.

 

- Conhece-la? - O velho homem olhou fixamente para mim com os seus olhos cintilantes.

 

- Sim, cavalguei junto a ela e a Lord Leicester numa caçada na coutada do meu pai. Ela é... - não sabia o que dizer em defesa dela. - Linda. E boa. Ama a Inglaterra e não é nenhuma traidora como diz. Pode ainda casar. - Ouvira o meu pai e mãe a discutirem este mesmo assunto. É ainda suficientemente jovem para ter filhos.

 

- Claro, como a irmã dela, Maria, era "suficiente jovem". Ela também casou com um espanhol, depois inchou com a gravidez e deu à luz um tumor negro no seu ventre, e morreu dele. Não, esta nossa rainha quer governar como um homem. E um homem sem descendência é o que é. Amaldiçoo o dia em que ela nasceu.

 

Eu nunca antes tinha ouvido tanto veneno lançado contra a nossa Rainha. Supus que ele não podia ser o único homem a pensar assim. Mas antes que pudesse defender mais Isabel, senti uma curiosa vibração perto do sítio onde estava sentado. Não era o tremer da terra devido ao poder das ondas que rebentavam à minha frente. Vinha de trás. Nos momentos antes de me virar reconhecí-o como muitos cascos de cavalo, mas fiquei, não obstante, espantado por ver uma patrulha de soldados armados a dirigirem-se a nós.

 

Pus-me de pé para ficar frente a eles enquanto chegavam. Pensei que talvez, por artes mágicas, a escola de cavalaria me tivesse encontrado antes de eu o conseguir. Pois o que mais poderiam estes soldados em elegantes uniformes querer de um velho pescador e de um rapaz?

 

- Arthur Southem? - disse o capitão da guarda.

 

Devo estar a sonhar. Era tudo um sonho. A praia, as gaivotas que mergulhavam, o pescador que olhava para cima para os cavaleiros surpreendido e para mim intrigado, pois eu sabia que ele nunca acreditara que eu conhecia a Rainha.

 

- Você é Arthur Southem? - repetiu o oficial.

 

Se isto era um sonho eu podia muito bemfalar, como frequentemente falamos em sonhos, e assim fiz.

 

- Sou aquele que procurais. O que quereis de mim?

 

- Temos ordens para vos levar para casa do vosso pai - respondeu ele com brandura oficial. - Montai e vinde connosco.

 

- De quem são essas ordens? - gritei eu completamente desconcertado. - Posso ser novo mas não sou nenhum tolo, Sir, e não irei de boa vontade até que me tenhais dito de onde víndes.

 

- Londres. Somos guardas do Conselho Privado. Agora vem, rapaz, ou levar-te-emos à força.

 

A minha mente redemoinhava, voando como folhas levantadas por um vento circular. De alguma forma as minhas fantasias tínham-se esbatido e a realidade havia tomado a dianteira, tornando-se mais estranha efantástica do que os meus sonhos. Como um sonâmbulo dirigi-me para o Charger e montei-o. Os soldados rodearam-nos, e assim prisioneiros do Conselho Privado - porquê, nunca eu poderia aprofundar - fomos escoltados até casa em Enfield e para a custódia do meu pai.

 

- A memória está um pouco enevoada. Lembro-me, sim, que a carta de Sir Willis não era mais do que um pedido para uma caçada de um dia na Coutada de Enfield com a sua mulher e filhos, e que quando eles de facto vieram, Mary Willis e eu trocámos muitos olhares ansiosos nos quais mais ninguém reparou. Mas nunca conseguimos arranjar tempo para falar em privado do nosso apaixonado encontro antes de ela se ter ido embora da minha vida para sempre.

 

O meu castigo por ter fugido para me juntar à cavalaria foi menos severo do que por ter ido a Maidstone buscar o John, e todas as minhas perguntas sobre como é que o Conselho Privado poderia saber da minha fuga ou importar-se com isso esbarraram num silêncio tumular. Por fim, a importância da resposta desvaneceu-se à medida que eu regressava à minha vida na Coutada de Enfield e esperava pelo dia em que iria cavalgar para o meu grande destino.

 

Então, meus senhores, estão a sugerir que execute a minha própria prima Maria Stuart a sangue-frio?

 

Isabel olhava com um olhar penetrante para William Cecil, agora barão Burleigh, para Francis Walsingham, recentemente nomeado chefe do seu serviço secreto, e para Robert Dudley, conde de Leicester, que se tinha distinguido nos últimos anos como um constante e confiado conselheiro privado não menos do que antes um amante fiel. Este triunvirato dos seus mais próximos e dignos conselheiros atrevia-se neste momento a devolver o olhar à Rainha.

 

- Na sua falsidade e esquemas, a rainha Maria ter-vos-ia mandado matar, teria invadido a Inglaterra com um exército de soldados espanhóis sedentos de sangue, e ter-se-ia ela colocado no vosso trono - respondeu Cecil, com os olhos frios como uma manhã em pleno Inverno.

 

- Ela já fomentou uma rebelião católica em seu nome em solo inglês. Dar-lhe-ias permissão para começar outra? - perguntou Walsingham.

 

- Não me importaria - respondeu Isabel calmamente - se a segunda revolta falhasse tão miseravelmente como a primeira. A minha prisioneira não encontraria nenhuns apoiantes para se lhe reunirem, apesar de toda a sua lendária beleza e charme e de ter dois dos mais altos nobres de Inglaterra a conspirar com ela.

 

Isabel virou o olhar para Robert Dudley, que afagava o queixo barbado com toda a gravidade de um velho académico.

 

- Desejo saber a vossa opinião, Lord Leicester, quanto ao que se deverá fazer com o cúmplice mais próximo dela. Concordais com os vossos colegas que o duque de Norfolk também deverá ser enforcado? - A voz dela era particularmente sarcástica, e não podia negar que tirava alguma satisfação da aspereza com que se dirigia ao homem que amava. Sabia que Robin nunca iria, considerando as suas maquinações passadas em relação a Norfolk, responder à questão clara ou facilmente, e desejava neste momento vê-lo a contorcer-se como estes três conselheiros a obrigavam agora a fazer.

 

- Claramente não existe solução fácil para este dilema - disse Robin suavemente. - Como poderíamos nós alguma vez ter adivinhado em que posição insustentável Maria se iria colocar?

 

- Suponho que me culpais por ter permitido ao jovem Darriley viajar até à Escócia, sabendo o quão maldosamente Lady Lennox maquinou o casamento do filho com Maria.

 

- Não vos culpamos a vós, Majestade - disse Walsingham. - Não havia forma nenhuma de prever o quão desesperadamente a vossa prima se iria apaixonar pelo rapaz.

 

- Suponho que exista algo de irresistivelmente romântico em cuidar de um jovem durante um caso de sarampo - disse Isabel com indisfarçável sarcasmo.

 

Walsingham e Cecil abafaram uma risada mas Leicester estava de cara fechada. Estava sem dúvida, pensou Isabel, ainda a matutar acerca do esquema dela para casá-lo com a rainha dos Escoceses, um plano que ela nunca tinha seriamente planeado levar a cabo, mas que concretizava diversos objectivos políticos ao mesmo tempo.

 

- Eu de facto percebo o amor obsessivo, meus senhores - disse Isabel.

- Vi a minha sábia e sensata madrasta Catharine Parr perder completamente os sentidos devido ao Grande Almirante Lord Seymour. Mas o castigo dela foi relativamente suave e indolor. Morreu a dar à luz. O castigo de Maria tem sido uma agonia prolongada. Casa com Darnley impetuosamente e nomeia-o rei da Escócia e em poucos meses ele tornou-se num bêbado sifilítico que se mete com mulheres de alta e baixa condição e conspira abertamente para lhe roubar a coroa. Grávida de sete meses, é forçada a assistir ao triste espectáculo do seu querido amigo e secretário Riccio a ser espancado e apunhalado até ficar feito num bolo pelos rufiões bárbaros que são os seus mais altos nobres. Então o próprio Darnley é estrangulado na cama talvez pelos mesmos homens.

 

Isabel sentiu-se a estremecer, perguntando-se se a razão seriam os horrores que estava a descrever ou o doloroso tormento de ciúmes que sentia sempre que pensava no filho que Maria tinha dado à luz - Jaime. Mais uma ameaça ao seu trono, e uma lembrança da criança que ela tinha perdido.

 

- Os meus espiões em Edimburgo - disse Walsingham - dizem-me que Lord Bothwell foi quase de certeza a cabeça por trás do assassinato de Darriley.

 

- Ele é tão odiosamente feio como se diz, Walsingham? - perguntou Isabel, com a curiosidade sinceramente espicaçada. - Ouvi dizer que lhe chamam "um macaco em púrpura".

 

- Nunca me encontrei com o homem, Majestade, mas deve haver algo que tenha atraído a vossa prima para ele. Sei que não é um homem muito alto, mas é muito forte.

 

- Tremo quando penso em Maria raptada por ele. - Olhou para o outro lado para longe dos conselheiros. - Violada por ele. - Isabel deu por si a apressar-se em defesa da sua prima. - Ela não tinha opção honrada depois da desonra a não ser casar com ele.

 

Mas lembrai-vos, Majestade - interrompeu Leicester -, ela protegeu então Bothwell, apoiou-o contra os seus detractores. Perdeu claramente a razão.

 

- De facto! Dizem que perdeu a cabeça completamente. E quem não a perderia, em tais circunstâncias? Uma alta rainha de França, uma rainha da Escócia, reduzida a uma impotente prisioneira numa fortaleza numa ilha no meio de um lago! Conseguiu afinal recompor-se, levar o meu jovem primo, e arranjar uma forma de escapar à prisão, liderar uma rebelião.

 

- Tristemente, pela altura em que o amor do seu povo e a lealdade dos seus nobres estavam irremediavelmente perdidos - disse Cecil.

 

- Que tipo de gente são os Escoceses? - perguntou Isabel enfurecida. Assassinam o rei, e preferem colocar uma criança no trono no lugar da sua rainha de direito!

 

- São um bando de bestas, Majestade - disse Walsingham. - A uma grande distância dos Ingleses. Vós mostrastes uma extraordinária bondade para com a vossa prima.

 

- Bondade? Chamais bondade a aprisionar Maria numa casa erma no extremo norte de Inglaterra! - Isabel lembrou-se do dia em que o mensageiro tinha chegado sem fôlego com as notícias de que Maria, fugida da sua rebelião falhada, desembarcara nas costas inglesas vestindo roupas emprestadas pela sua criada, com o seu outrora lindo cabelo ruivo rapado para se disfarçar.

 

- Não tivestes escolha - insistiu Leicester. - Como poderíeis em boa consciência trazer para Londres a mulher que ainda afirmava ser a rainha por direito de Inglaterra?

 

- Ele tem razão, Majestade - concordou Walsingham. - Maria era a mais feroz competidora pelo vosso trono, e a Inglaterra é ainda um país dividido pela religião. Sabeis que a vossa instituição religiosa é considerada tão branda que nem os católicos nem os protestantes estão felizes.

 

- E agora que haveis sido excomungada pelo papa... - acrescentou Cecil.

 

- Basta! - gritou Isabel.

 

- Não - disse Leicester. - Ainda não acabámos. Ainda temos de decidir o que será feito com esta aranha católica que passou todo o seu encarceramento em Inglaterra a tecer teias de engano e conspirações para vos mandar matar!

 

Isabel tinha de admitir que era verdade. O serviço secreto de Walsingham interceptara dúzias de despachos de Maria tentando reunir apoios nas suas costas. No fim, contudo, tinha sido o seu próprio duque de Norfolk, e o seu esquema maquiavélico com a rainha dos Escoceses, e o banqueiro italiano Ridolfi, que tinham irrevogavelmente apertado as correntes do cativeiro de Maria. Isabel desejava ser misericordiosa com a causa da sua prima, mas...

 

- Majestade - interrompeu Leicester -, creio que Norfolk mostrou as suas verdadeiras cores, as cores de um traidor. E deve pagar por isso adequadamente.

 

- Eu não ponho de lado a cumplicidade de Norfolk na conspiração de Ridolfi - concedeu ela -, mas não estou convencida da de Maria.

 

- De que mais precisais para vos convencer? - perguntou Walsingham.

- As cartas escritas por Maria para Ridolfi continham instruções incriminadoras e promessas de comissões financeiras para ele. A mulher planeou trazer as tropas mais assassinas do rei Filipe através do Canal vindas da Holanda para invadirem a Inglaterra e vos deporem!

 

- Majestade - disse Robin, advogando com sinceridade -, nós os três somos os vossos mais leais conselheiros e acreditamos verdadeiramente que a Inglaterra será melhor servida com a execução de Maria, antes agora do que mais tarde, pois não temos forma alguma de saber que mal ela vos poderá fazer no futuro.

 

Isabel suspirou pesadamente e ergueu os olhos para o céu.

- A minha prima Maria, a filha da contenda...

 

Ela enfrentava agora os seus conselheiros privados com firmeza.

 

- Eu não a mandarei executar. É minha parente e uma princesa soberana. Se lhe fizer algum mal, isso dará claramente aos outros legitimidade para me fazerem mal a mim. - Isabel pensou, mas não disse, o quão inteiramente repugnante era a ideia de perpetrar violência à sua própria família da mesma forma que o seu pai tinha feito a duas das suas mulheres. A maioria das pessoas acreditava que Isabel era a filha do seu pai no temperamento, mas ela não podia, não iria, seguir os passos ensanguentados dele.

 

- Maria deve naturalmente ser castigada - continuou a Rainha, esforçando-se para se manter composta. Mas estava zangada, muito zangada, com estes homens, com Maria, com o destino. Pois Isabel acalentara um grande desejo, apesar dos avisos dos seus ministros contra ele, de desafiar a tendência familiar para a crueldade ciumenta e, na sua própria morte, colocar a Coroa de Santo Eduardo na cabeça de Maria Stuart. Mas a rainha dos Escoceses transformara o belo desejo de Isabel em cinzas, e a grande tempestade de controvérsia e ódio entre os seus súbditos ingleses espalhara essas cinzas pelos

quatro cantos do mundo. - Assim - continuou ela com o tom oficial na pronúncia -, Maria, rainha da Escócia, está consequentemente para sempre excluída da sucessão no meu trono. Agora deixai-me. Todos!

 

Os homens reuniram os seus papéis sem palavras e abandonaram a câmara privada. Isabel ficou só. Se os seus corpetes o tivessem permitido ela ter-se-ia deixado cair sobre a cadeira de costas altas, mas o espartilho e o peitilho mantinham-na rígida como uma tábua de barrela. Ah, estava cansada. Em momentos como este sentia muito agudamente a perda da sua querida Kat. Quando a morte chamara a sua velha companheira Isabel chorara imparavelmente durante semanas antes de ser capaz de continuar com os assuntos do governo. Nunca mais ela teria uma amiga que amasse os seus baixos defeitos tanto como a sua grande força. Agora sem Kat ou a doce Mary Sidney a seu lado, Isabel parecia andar à deriva num mar de estranhos que duvidosa e impessoalmente lhe ministravam as suas mais íntimas necessidades. Eram todos jovens e belos, e a sua mera presença fazia com que ela ficasse excessivamente zangada.

 

Estava farta do eterno peso do governo que assentava como um pesado manto sobre os seus ombros, um manto que ela sabia que nunca na sua vida seria removido. Amava a Inglaterra. Adorava ser rainha com toda a glória que rodeava a sua pessoa, tornando-se mais esplêndida a cada ano que passava. Mas embrulhada como estava neste assombroso manto de responsabilidade, era cada vez menos fácil ir desembaraçadamente até junto do calor da cama de Robin Dudley, ficar deitada nua nos braços dele, proferir as ternas e íntimas palavras de amor. Em cada ano que passava sentia-se de alguma forma menos humana, menos mulher, menos um ser de carne e osso e sangue, e mais um ícone congelado que podia, como o gelo quebradiço, partir-se em fúria extrema, ou derreter-se se a emoção a acometesse com demasiado ímpeto.

 

Amava Robin Dudley mais profundamente do que nunca. Ele tinha-se tornado algo mais profundo do que o seu amigo, do que o seu amor, do que o seu favorito. Tornara-se, como ela própria, uma roda dentada na máquina que era o governo de Inglaterra. E embora ela sentisse falta do que outrora partilharam tão livre e frequentemente, a presença fiel como conselheiro ao lado dela teria simplesmente de ser o suficiente.

 

Robert Dudley, conde de Leicester, resistira a bater com a porta do Conselho Privado e tentou manter um olhar benigno no rosto enquanto percorria os largos corredores e subia as escadas para os seus aposentos. Foi forçado a passar por muitos cortesãos e damas e desejou não lhes dar causa alguma para falatório, para o escarnecerem, para terem pena dele, para encontrarem prazer no seu desprazer. Pois Leicester sabia que era ainda o homem mais desprezado na corte, mais do que anteriormente, agora que detinha verdadeiro poder, que era um dos mais proeminentes homens do governo.

 

A reunião de hoje deixara-o frustrado, contrariado. É verdade que o perigo iminente da danada rainha dos Escoceses e dos seus fanáticos apoiantes católicos tinha sido temporariamente afastado. Mas se Isabel acreditava realmente que um mero pronunciamento negando a sucessão a Maria iria pôr um fim às tentativas da sua prima para lhe roubar o trono de Inglaterra, estava redondamente enganada. Uma coisa, e apenas essa, iria deter as intrigas assassinas de Maria - a morte.

 

Leicester conhecia bem Isabel, conseguira ver a linhas de dor a cruzarem-lhe a testa quando falaram em executar a sua parente. Sabia como ela resistia à imagem sedenta de sangue da sua família Tudor, o quão ardentemente ela ansiava reinar não apenas como uma gentil e beneficente governante mas também como o príncipe mais glorioso de Inglaterra. Talvez, pensou Leicester, esta fosse a razão pela qual as suas mais recentes propostas de casamento com Isabel tivessem sido recebidas com uma tal frieza. Ele tinha sentido a Rainha a distanciar-se dele dentro da relação íntima de ambos, procurando a sua união sexual com cada vez menos frequência e, ao mesmo tempo, tornando-se cada vez mais dependente dele como conselheiro político. Ele era, crescentemente, os olhos dela, mantendo Isabel no conhecimento das intrigas maiores e menores da corte, ao mesmo tempo que Walsingham expandia a sua rede de espiões ao continente e a mantinha informada dos assuntos estrangeiros.

 

Leicester observara o apetite da Rainha por manobras políticas perspicazes e pelos trabalhos de governação do dia-a-dia tornar-se numa espécie de voracidade e percebeu que, se queria permanecer próximo e importante na vida dela, seria forçado a partilhar essas preocupações. E assim tinha feito. Estava orgulhoso de, apesar do desdém continuado de Cecil para com a sua pessoa, eles serem os dois únicos conselheiros privados que nunca faltavam a uma reunião. E em anos recentes o conde de Leicester adoptara a religião protestante da sua infância com um novo fervor, tornando-se o líder do Partido Puritano.

 

Mas não era o sufiCiente. O sonho dele de se casar com Isabel e reinar ao lado dela como rei era demasiado antigo e persistente para ser abandonado agora. Ele sabia que Isabel, apesar da pouca frequência dos seus encontros ardentes, ainda o amava. E apesar das negociações matrimoniais em andamento com uma miríade de príncipes estrangeiros, e dos irritantes namoricos com cortesãos ingleses como aquele incomodativo Christopher Hatton, ele sabia sem sombra de dúvida que no seu coração de mulher Isabel o desejava acima de todos os homens.

 

Tão perdido estava Leicester nos seus pensamentos que de repente deu por si nos apartamentos da Rainha, que eram contíguos aos seus, quase colidindo com o boticário do palácio, um homem alto e magro chamado Treadwell que cheirava bastante desagradavelmente ao seu laboratório. Ambos recuaram com uma vénia cortês. Enquanto Leicester se virava para prosseguir no sentido da sua porta, viu Treadwell a ser admitido nos apartamentos da Rainha pela sua dama de quarto, Clarice Hartly.

 

Estaria a Rainha doente? Porque é que não lhe tinham dito? Mas ele acabara de estar na sua presença, ela parecera-lhe bastante bem. Um momento mais tarde o boticário abandonou os apartamentos reais e passou com celeridade por Leicester com um aceno de cabeça, espalhando os cheiros de meimendro e artemísia-dos-boticários.

 

Robin entrou nos seus aposentos para encontrar Tamworth com todos os pares de botas do seu senhor alinhados diante de si, polindo-as com um vigor pouco comum.

 

- Boa tarde, meu senhor - disse ele e cuspiu numa biqueira de couro polida antes de continuar a escovar. - Querereis mudar de fato para esta noite? Vou só acabar isto...

 

- Não há pressa, Tamworth, continua o teu trabalho - disse Leicester enquanto tirava as botas que tinha calçadas. Apenas com as meias dirigiu-se ao fundo do quarto chegando a uma parede com cortinas e, puxando-as calmamente para trás, revelou a porta privada que conduzia ao quarto de Isabel. Ignorando o olhar interrogativo de Tamworth, Leicester abriu-a e atravessou em bicos de pés a passagem escura. Com muito cuidado empurrou até se abrir a porta para o quarto de dormir de Isabel e ficou imóvel por trás dos cortinados que a escondiam. Não conseguia ver as senhoras Hartly e Wingfield, mas pelo murmúrio suave que acompanhava as vozes delas adivinhou que estavam a trabalhar no guarda-roupa da Rainha, talvez a dobrar roupas interiores ou preparando o seu vestido para os entretenimentos dessa noite. Estavam também, como ele ardentemente esperava, a coscuvilhar acerca do embrulho que o boticário tinha acabado de entregar.

 

- Ela cada vez precisa menos da poção, parece-me - disse Clarice.

- Não precisava dela sequer quando se tornou rainha, pois então não sangrava como as outras mulheres.

 

- Eu nunca soube isso.

 

- É verdade. Todos nós a julgávamos estéril. E ela brincava tão descuidadamente com Robin Dudley quando chegou ao trono que também deve ter pensado isso.

 

- Acreditas mesmo que as ervas de Mestre Treadwell podem provocar um aborto, então?

 

As palavras, ditas tão casualmente, atingiram Robin. com a força de uma lança de Júpiter. Ele tinha sempre acalentado a esperança de que iria haver outra criança, que da próxima vez Isabel seria obrigada a reconhecer...

 

- Não tenho qualquer dúvida - respondeu Lady Wingfield. - Lucy Clark, sabes, a mais nova das mulheres da seda, e Lady Simms usaram ambas a poção, e foi um fim rápido para os problemas delas.

 

- Ainda assim eu digo que a Rainha tem pouco com que se preocupar, sangrando adequadamente ou não. Leicester já quase não partilha a cama dela.

 

- Talvez o jovem Lord Hatton venha ocupar o lugar do-conde entre os lençóis dela.

 

Enquanto as duas damas davam risadinhas, Leicester recuou para a passagem escura e, silenciósamente, fechou a porta. No entanto, não voltou imediatamente para o seu quarto. Ficou encostado à parede a tremer de humilhação. Ele e a Rainha tinham sido, desde o início do reinado dela, o objecto de falatórios indecorosos, mas as conversas tinham sempre celebrado a sua masculinidade e virilidade. Agora a Rainha maquinava secretamente contra ele para assassinar os filhos de ambos e a coscuvilhice da corte conhecia a pouca frequência das suas noites juntos.

 

A passagem era escura e cheirava a mofo, mas para Leicester tinha uma privacidade reconfortante. Aqui ele conseguia pensar, planear, reorganizar os seus próprios pensamentos longe de olhos indiscretos. Ele conhecia Isabel melhor do que qualquer outra pessoa. E ela ainda o amava. Quando ele se sentia doente cuidava dele com as suas próprias mãos. Quando faziam amor, mesmo que fosse raro nos últimos meses, ela mantinha por momentos uma paixão incandescente. Partilhavam a dor de um filho perdido, e ele sabia tão seguramente como estava vivo que se iriam ligar um ao outro por todos os dias que se estendiam à frente deles. Mas como podia demovê-la do seu estado de espírito presente, que o colocava na posição de conselheiro de confiança e amante ocasional, para ser seu marido e rei? Como, perguntava-se ele a si mesmo, pode uma mente ser tão alterada?

 

Subitamente soube. Havia uma resposta - na verdade, a única resposta. Era um jogo e dos perigosos, mas o seu poder era enorme e completamente absoluto. O conde de Leicester iria arranjar outra amante.

 

O rei de Espanha, sentado sozinho à comprida mesa do conselho, estudava o documento, que estava perante ele, com assombro e uma raiva fulminante. As margens do relatório de campo vindo da Holanda e enviado pelo duque de Alba tinham sido escurecidas por anotações copiosas na caligrafia irregular de Filipe. Era seu hábito - alguns consideravam-no uma obsessão, que ele admitia dar-lhe quase prazer físico

- de pegar em cada parágrafo, em cada frase, das centenas de documentos que lhe chegavam todas as semanas vindos de todos os cantos do seu vasto reino e governo, e comentá-las ou questioná-las ao mais minucioso dos pormenores. Também gostava de escrever cartas de enorme comprimento, fervilhando de instruções e opiniões complexas, para os seus ministros, generais e família.

 

Mas o conteúdo deste comunicado era tão perturbador, tão enfurecedor, que o rei teve dificuldade em continuar a ler, na verdade, em respirar como deve de ser. O príncipe Guilherme de Orange pegara em armas contra ele nos Países Baixos. O amigo de infância, o jovem ao qual seu pai, o imperador do Sacro Império Romano-Germânico Carlos, que se tinha literalmente inclinado na sua cerimónia de abdicação, tivera agora o atrevimento de desafiar o rei de Espanha. Filipe, um homem sempre reconfortado pela sua auto-imposta tirania de costumes e moral, sabia com certeza que os homens traíam outros homens. Ele não tinha sido inconsciente, nem mesmo na sua juventude, das forças perigosas de Guilherme - forças que ameaçavam as próprias fraquezas de Filipe. Mas que o príncipe de Orange escolhesse desafiá-lo a ele no reinado da fé era insuportável.

 

Filipe, com apenas uma excepção, era devotado exclusivamente à preservação da Verdadeira Religião. Ele era, claro, rei de Espanha e das províncias italianas e governador dos Países Baixos, fiscalizando o seu governo com uma exactidão que desafiava a imaginação. Mas mesmo antes destes deveres, acreditava na missão da sua alma, tinha de obedecer a Deus que lhe confiara a ele e só a ele a preservação da Verdadeira Fé, e utilizar quaisquer meios para o conseguir. Preferiria, tinha-o recentemente anunciado ao seu conselho, não reinar a ter de fazê-lo sobre heréticos.

 

E agora Guilherme de Orange, príncipe do território da Holanda na posse de Espanha, reunindo à sua volta as desprezíveis herdas de serpentes inspiradas por Satã, os chamados calvinistas, desafiara-o para a guerra pelo direito de cada um escolher a sua própria fé. Guilherme dizia acreditar que a religião residia no coração, e que cada homem deveria adorar como o seu coração lhe mandava. Tinha exigido a saída da Inquisição de Filipe dos Países Baixos, e que os heréticos não mais fossem perseguidos, nem queimados nos fogos purificadores dos autos-de-fé. Ridículo!, pensou Filipe indignado. O próprio Guilherme era um católico. Tinha ele esquecido a exortação de São João? "Se um homem não habitar em mim, é lançado para o chão como um ramo e murcha, e os homens reúnem-nos e lançam-nos para a fogueira e eles são queimados."

 

E agora as dezassete províncias da Holanda, sempre aborrecidamente independentes, estavam a exigir governar-se a si próprias. É certo que eram ricas, com as suas magníficas cidades como Antuérpia e Bruxelas, a sua florescente indústria têxtil e um activo comércio marítimo. Mas eram dele, de Filipe, herdadas sob a lei de Deus. Guilherme sabia-o. Os outros grandes senhores que se rebelavam a seu lado sabiam-no. Talvez o rei devesse avisar o "Duque de Ferro" da sugestão de Alba, um exigente mas bem merecido castigo para os rebeldes aristocratas - cortar-lhes as cabeças. Pôr fim a esta idiotice, este desperdício criminoso do precioso ouro que era embarcado em direcção a Espanha vindo do Novo Mundo. Os seus melhores soldados estavam a ser enviados para lutar contra um levantamento nas suas próprias terras!

 

O grande lábio inferior em forma de pêndulo de Filipe estremeceu de emoção enquanto observava o relatório de Alba - os calvinistas dos Países Baixos invadindo as suas igrejas e mosteiros, a esmagar e a conspurcar os seus quadros sagrados, imagens, altares. Alguns dos nobres holandeses reuniram-se em bandos, vestindo fatos escandalosos de frisa cinzenta com sacolas e tigelas de pedinte, armaram vinte e quatro navios, e transformaram-se em piratas que tinham já feito danos consideráveis nos rendimentos de Filipe resultantes do comércio. Os Pedintes do Mar eram o terror dos oceanos, e o rei não tinha nenhuma boa forma de detê-los. E Isabel de Inglaterra tinha dado abrigo seguro nos seus portos a estes criminosos, encorajando-os ainda mais.

 

Pelo menos Guilherme, pensou o rei, não alegava qualquer identificação com estas odiosas criaturas. Porém, ele e os seus exércitos de escumalha tinham apelado aos corações e mentes da população dos Países Baixos de todas as classes, e tinha-se tornado o seu herói rebelde. Ambição e apenas ambição, pensou Filipe, guiava o traidor Guilherme de Orange, pois o homem nunca no seu coração poderia acreditar que a sua causa lamentável era justa.

 

Filipe suspirou taciturnamente, sentindo o peso de todo o mundo católico a apoiar-se pesadamente nos seus ombros frágeis. Os huguenotes tinham desafiado a Verdadeira Religião, em França, e agora ameaçavam auxiliar os protestantes dos Países Baixos na sua luta. A mais católica rainha da Europa, Maria da Escócia, estava prisioneira da herética Isabel há já vários anos. Teria toda a gente ficado louca?

 

Uma batida levíssima na porta, quase inaudível, provocou um sorriso em Filipe. Era na melhor das hipóteses um leve encurvar dos seus lábios, mas ele largou instantaneamente a pena e começou inconscientemente a endireitar as roupas, sentando-se mais erecto. Ele desejava, como sempre o desejara nestes momentos, ser mais belo e mais alto, e não possuir a deformidade dos Habsburgos - um maxilar inferior e um lábio bolboso que se projectavam consideravelmente além do superior. Ainda assim, Isabela parecia olhar para ele com boa vontade... com amor. E para além do amor de Deus e da Verdadeira Fé, não havia ninguém a quem ele fosse, ou alguma vez tivesse sido, mais devotado. Ele nunca tinha sonhado, quando com o propósito de cimentar o acordo de paz de Cateau-Cambrésis se casara com a princesa da sua antiga inimiga, a França, que esta criança de doce natureza lhe traria tanto prazer. Os seus dois casamentos dinásticos anteriores tinham sido tão ocos e frios como um túmulo, não tendo as mortes prematuras das suas esposas inspirado nele o mais ligeiro traço de dor.

 

- Entra, minha querida - disse ele.

 

As portas da câmara do conselho de Filipe abriram-se de par em par para dar entrada à sua jovem mulher. Num rio de lágrimas, saias a roçar o chão e mãos torcidas ela procurou o conforto imediato dos braços dele e começou a soluçar.

 

- Isabela, diz-me, o que aconteceu?

 

Ela demorou vários minutos a recompor-se. Limpou as lágrimas das suas faces congestionadas e olhou para os olhos azuis aguados de Filipe. Por muito pequeno que ele fosse, Isabela era ainda mais pequena do que ele, fazendo-o sentir mais masculino e protector do que nunca.

 

- Dom Carlos... - começou ela, mas não conseguiu continuar, pois as lágrimas voltaram a inundar-lhe a face.

 

Filipe sentiu o seu próprio corpo a encolher com a menção do nome do seu filho mais velho. Que atrocidade teria ele cometido desta vez? Que actos odiosos e impensáveis seriam acrescentados à sempre crescente litania de violações indecentes? O único rebento do seu casamento com Maria de Portugal, Carlos, começara, adequadamente, a sua vida roubando a da própria mãe - uma morte sangrenta no parto. Ele tinha crescido e tornara-se num jovem de cabeça enorme e baixo com uma forma pouco natural e um ombro maior do que o outro. O rei, ele próprio abençoado com pouca beleza física, teria de qualquer forma encontrado algo no seu filho para amar e acarinhar, tivesse Dom Carlos mostrado uma parcela mínima de virtude. Mas a sua mente, tornou-se evidente, era tão deformada como o seu corpo.

 

Aos dezoito anos caíra por um lanço de escadas de pedra quando perseguia uma mulher da qual tencionava abusar, e abriu a cabeça. O cérebro inchara-lhe e o cirurgião fora obrigado a abrir-lhe o crânio para aliviar a pressão. Filipe fizera tudo o que era possível para salvar a vida do filho, mandando até desenterrar o corpo de um monge beatificado para o deitar na cama com Dom Carlos durante a sua recuperação. O rapaz sobrevivera, mas desse dia para a frente a insanidade e perversão tinham florescido nele como os ramos de uma árvore putrefacta em flor. Era isto, perguntou-se Filipe pela talvez milionésima vez, um legado do seu próprio sangue? A terrível tendência familiar para a depressão mantivera a sua avó Joana nas suas garras durante quase quarenta anos antes de ter ido ao encontro de Deus. Filipe rezou para que ele próprio fosse poupado, e que na sua velhice a loucura, como um qualquer cavalo a respirar fogo vindo do Inferno, não o acometesse.

 

Agora, contudo, via-se obrigado a enfrentar novamente a verdade de que Dom Carlos se tornara um monstro com um coração assassino. Havia morto, torturado e violado cidadãos, conselheiros reais, damas de alta condição, machos da criadagem e animais. Deleitava-se com os actos mais cruéis e regularmente era acometido por raivas selvagens e incontroláveis, aterrorizando a corte. O herdeiro do trono de Espanha era inteiramente incapaz para o herdar. Filipe não conseguia perceber a injustiça de tudo aquilo. Porque é que o céu lhe dera uma tal abominação como filho? Ele tinha rezado diariamente durante mais de vinte anos, implorado por orientação, paz de espírito e perdão - qualquer coisa com a qual pudesse entender um castigo tão vingativo do Deus que tão devotamente servia.

 

- O que fez ele, Isabela? Tens de te acalmar e contar-me. Conta-me agora - ordenou Filipe à mulher.

 

Ela recusou-se a olhá-lo nos olhos, olhando em lugar disso pela janela na direcção do pátio lá em baixo.

 

- Eu estava na minha pequena capela a rezar, e ele veio e ajoelhou-se ao meu lado. Pensei que podíamos rezar juntos, pedir perdão pelos nossos muitos pecados. Tinha acendido algumas velas quando de súbito me caiu aos pés e jurou que me amava... como mulher.

 

A cara de Filipe torceu-se com irritação. Sabia que havia mais na história de Isabela e que seria bem pior do que estas primeiras palavras que ela proferira. Não desejava ouvir mais, mas ela continuou:

 

- Ele disse coisas, Filipe, coisas terríveis que podia fazer-me, ao meu corpo nu...

 

- Pára, Isabela. Não digas mais.

 

- Não posso parar, pois deves saber. O teu filho pôs-se então de pé e agarrou-me, tocou-me. Eu tentei gritar mas ele empurrou-me contra o altar e cobriu a minha boca com a sua fedorenta...

 

- Chega! Vai para os teus aposentos, minha querida. Mandarei os guardas escoltar-te. Estarás a salvo de Dom Carlos de hoje em diante.

 

Isabela não se mexeu do seu lugar, como se estivesse paralisada, ou talvez não acreditasse na promessa do marido.

 

- Ele violou-te?

 

- Não, mas eu estou de qualquer forma manchada, conspurcada por ele - disse. - Como pôde ele... na casa de Deus?

 

- Olha para mim, Isabela. - Ele forçou-a a finalmente, olhá-lo nos olhos. - Manda as tuas damas preparar-te um banho. Mandarei o padre Miguel trazer água benta para te ungir.

 

- Sim - disse ela, com o alívio a inundar-lhe a alma abalada com a sábia sugestão do marido. - Vou-me banhar.

 

- E eu trato de Dom Carlos - disse Filipe.

 

O rei dobrou-se para beijar a boca da mulher, mas ela virou a cara com vergonha e dirigiu-se às portas duplas. Quando elas se abriram de par em par, Filipe moveu-se quase imperceptivelmente e os dois guardas nos seus postos ladearam a rainha, escoltando-a para fora. Dois outros guardas substituíram-nos instantaneamente.

 

O rei, tão pequeno e insignificante na porta da grande e esplêndida câmara, ficou de pé por um longo momento, muito quieto, com a respiração curta e superficial. Ordenou então aos guardas que lhe trouxessem o seu capitão. Passado pouco tempo, o oficial apareceu e seguiu o rei até à sala do conselho. Permaneceu silencioso, com os olhos a fitar o chão, esperando pelas suas ordens.

 

- Capitão, é minha vontade... - Filipe deu por si a mexer os lábios, formando as terríveis palavras que desejara ardentemente nunca proferir. É minha vontade que o meu filho seja mantido trancado nos seus aposentos.

 

O capitão da guarda fez a continência e, não olhando sequer os olhos do soberano, marchou, com a espada a tinir, pelas portas fora. Filipe dirigiu-se como que a sonhar para a mesa do conselho e olhou para baixo para o relatório de campo que tinha, uma hora antes, despedaçado a sua paz de espírito. Mas a importância da patética revolta de Guilherme na Holanda diminuía como um cavaleiro ligeiro a galopar suavemente para além da vista, à medida que o peso morto da ordem que ele acabara de dar se despenhava sobre a sua cabeça.

 

O seu mundo nunca mais seria o mesmo. O filho, herdeiro do trono, nunca reinaria. E a vontade de Deus, apesar da dor e desagrado do rei de Espanha, seria cumprida.

 

Robin Dudley estava deitado, nu, olhando para a mulher que dormia a seu lado. Ela era seguramente a criatura mais celestial com que ele se deitara. Cuidadosamente afastou o lençol de linho que a cobria, e o brilho do sol de fim de tarde transformou-lhe os membros e torso em marfim polido. Tudo em Douglas Sheffield, pensou Dudley enquanto lhe olhava para o corpo, era maduro e arredondado - desde os círculos perfeitos dos mamilos rosados às pequenas nádegas roliças, a luxuriante curva de pele macia e firme na sua minúscula cintura, as suas cheias e bem moldadas barrigas das pernas. A cara refinada era também um estudo de curvas, a boca de lábios luxuriantes agora ligeiramente abertos... Ele sentiu um estímulo entre as pernas, um endurecimento que não era mal-vindo enquanto continuava a olhar para ela. Não havia nela um único ângulo excessivo. Nem um osso saído a empurrar a carne deformada...

 

Isabel, pensou ele com súbita angústia. Estou a compará-la com Isabel. Foi salvo, contudo, da onda de culpa que ameaçava submergir a sua paixão crescente quando Douglas Sheffield abriu os olhos, grandes e lânguidos, cor de mel escuro.

 

- Mmm - foi tudo o que ela conseguiu dizer primeiramente. Olhou para cima para a cara de Robin Dudley com preguiça. - Tão bom... adormeci. - Ela estendeu a mão, fê-la correr pelos músculos rígidos do peito dele e passando a barriga, ainda tesa e enrugada. Olhou descaradamente para o sexo dele e sorriu. - Vejo que ainda vos agrado depois de todos estes meses, meu senhor - disse ela.

 

- Como podias não me agradar, Douglas? És a mulher mais bonita que eu alguma vez conheci.

 

- Mais bonita do que a Rainha? - perguntou ela com o que ele percebeu ser um trejeito coquete. Mas não teriam as coquetes, pensou Dudley com irritação, mais sentido do que exigir uma resposta a uma pergunta tão perigosa? Ainda assim, ele não desejava ofender a amante, por muito oca de cabeça que ela pudesse ser. O que ele desejava mais do que tudo naquele momento era voltar a mergulhar profundamente na suavidade dela, sentir-lhe a carne rica viva debaixo do seu toque. Colocou uma mão em cima do seu peito e seguiu-lhe as curvas do torso através da barriga como ela lhe tinha feito a ele.

 

- Diz-me que eu sou mais bonita do que a Rainha, Robert.

 

Ele sabia que não devia trair Isabel de uma tal forma, mas tinha caído sob o feitiço desta mulher cujo espírito era tão fraco como o corpo, enfim a doce sedução personificada. Que o aceitou completamente e lhe queria desesperadamente. Igualmente, ela era casada e, consequentemente, uma ligação segura. Para um homem que aguentara as recusas e rejeições embaraçosas da Rainha durante tanto tempo, uma mulher como Douglas Sheffield era irresistível.

 

Ele inclinou-se e fez um círculo à volta de um dos seus mamilos rosados com a língua, e então sussurrou:

 

- Tu és a mais bela mulher que eu alguma vez conheci... sem excepção.

 

- Lady Sheffield! - A batida na porta do quarto de dormir era frenética e insistente. - Lady Sheffield! - Era a voz da criada e agora Douglas estava sentada na cama, alarmada.

 

- O que é, Millie? - disse ela.

 

- Lord Sheffield, minha senhora. Está a descer a rua. - Houve uma pausa. - Atravessou o portão. Tendes que vos levantar!

 

Robin começou a vestir atabalhoadamente as roupas.

 

- Não percebo. Ele devia demorar uns dias - exclamou Douglas. Millie, entra!

 

A criada abriu a porta de repente e entrou apressada, ignorando o meio vestido Dudley a lutar com os botões dos seus calções.

 

- Deveis ter algum tempo, madame - disse a criada enquanto lançava a roupa interior de Douglas por cima da cabeça da senhora e alcançava o rígido espartilho. - Ele geralmente vagueia de um lado para o outro lá em baixo antes de subir para os vossos quartos. Senhor... - virou-se para Robin.

- No fundo do corredor na direcção das traseiras da casa estão as escadas da criadagem. Podeis chegar aos estábulos sem atravessar o pátio.

 

Dudley franziu as sobrancelhas. Era indecoroso e ridículo ser obrigado a escapar da cama da sua amante como uma qualquer personagem de um conto pernicioso. Mas ele não tinha, parecia, escolha. Com o casaco numa mão, as botas na outra, virou-se para Douglas:

 

- Escreverei.

 

Mas após ele falar a porta abriu-se com força, embateu na parede e lançando um espelho em voo despenhou-se no chão. Todos congelaram à visão de Lord Sheffield, de cara lívida e ofegante, a sua silhueta grande e volumosa a encher o vão da porta. Ele não desperdiçara tempo nenhum no andar de baixo, mas antes tinha vindo directa e propositadamente ao quarto da sua mulher. Numa mão estava amarrotada uma carta.

 

- Escrever? - disse ele com um tom lamentoso. - Parece-me a mim que já haveis escrito o suficiente, Lord Leicester.

 

Dudley pôde ver que a missiva nas mãos de John Sheffield era uma que ele tinha escrito a Douglas nas primeiras angústias de abandono lúbrico. Mas por que raio de carga de água ela tinha chegado às mãos de Sheffield? Dudley lançou um olhar cauterizador à amante, que lho devolveu com os olhos de uma corça encurralada.

 

- Perdi a carta em casa da irmã de John - disse ela. - Tentei desesperadamente encontrá-la. Ele deve ter...

 

- Explicas-te a ele! - trovejou Sheffield. Empurrou Dudley ao passar na direcção da sua mulher. - E eu! Eu não mereço uma explicação!

 

- Tu nunca estás em casa - disse ela petulante. - Tenho-me sentido sozinha. - Então, com mais desafio: - E eu não te amo.

 

Sheffield olhou para a mulher com um olhar de espanto total, e começou então a rir. Era, pensou Robin Dudley, um riso sincero. Cruel e sarcástico, mas também verdadeiramente divertido. Por fim, Sheffield compôs-se e disse:

 

- Esqueces-te, Douglas. És a minha mulher. O amor não tem absolutamente nada a ver com isso. - Então virou-se para Dudley: - E vós, meu senhor, desviaste-vos perigosamente para longe do colchão real. - Olhou de volta para Douglas com um olhar neutro. Toda a fúria o tinha abandonado e apenas permanecia amargura. - Hoje dormimos em camas separadas, madame. Amanhã eu irei a Londres e conseguirei o divórcio.

 

Douglas recuperara a dignidade.

 

- óptimo - disse ela na sua voz mais fria. - Tende uma boa viagem. Agora abandonai o meu quarto.

 

John Sheffield virou-se e marchou pela porta fora, batendo com ela com força atrás de si. A criada Millie, que durante o encontro se tinha cozido a uma parede e fizera tudo menos ter desaparecido, largava agora um grande suspiro de alívio.

 

Robin Dudley virou-se para Douglas, meio vestida e com um ar bastante aparvalhado. Ele próprio se sentia entontecido, pois a sua única ligação segura acabara de se tornar num assunto de facto complicado.

 

Esta passagem é algo que desejei nunca ter de escrever. Que temia escrever. Não existe nenhuma forma fácil de recordar a morte violenta. Mas tenho de recordar, pois a minha história não pode prosseguir sem esta narração. Em consequência da morte veio a minha lição sobre abraçar o ódio e a tristeza, e continuar em frente com a minha vida. Tinha dezasseis anos, já não era um rapaz e ainda não era um homem.

 

Talvez completamente crescido de corpo, mas com uma alma tão tenra como a erva verde da Primavera. A minha mãe tornara-se uma religiosa fanática e vivia em medo abjecto do Diabo. Ele perseguía-a, dizia, perseguia-a incessantemente e a única protecção que ela tinha contra ele eram as Escrituras. Fomos todos obrigados a aguentar não apenas as nossas habituais orações matinais e nocturnas, mas outras mais todos os dias, decidindo ela a hora precisa para cada uma utilizando um relógio de sol, o Livro dos Números e uma lógica numérica de inspiração divina que apenas ela entendia.

 

A sua Bíblia tinha-se tornado um apêndice tal como um braço ou uma perna. Ela corria pela casa e pátio, e muitas vezes por dia para o relógio de sol do jardim, o livro na sua mão branca e nodosa, trauteando números e trechos de salmos, uma litania de anjos celestes e caídos, e exortações para o Diabo se ir embora do lugar para onde ela ia.

 

O meu pai, Alice e eu tolerávamos-lhe a mania, pois parecia bastante inofensiva. Era, afinal, a palavra de Deus e para além disso conseguíamos dormir após alguns momentos do seu ministério, Maud lendo do livro transida e arrebatada, cega para o mundo à volta. O meu pai tinha feito uma qualquer paz estranha com ela, e apesar de ainda partilharem a cama, não me parece que aí tivessem prazer.

 

Nesse Outono, pouco tempo depois de os dias terem ficado mais curtos e do primeiro ar de tristeza fria se ter abatido sobre a coutada, a medida e frenesim do seu fervor religioso cresceu assustadoramente. Ela andava com uma frigideira de ferro na mão que não carregasse com a Bíblia, proclamando que apenas com estas duas armas estaria a salvo de Belzebu e dos seus agentes. E começou a olhar para mim com um ar suspeito, observando e ouvindo cuidadosamente para ver se eu proferia todas as sílabas de todas as orações. Obrigando-me a ficar de pé enquanto verificava o meu couro-cabeludo e corpo em busca de sinais do Diabo. E não me deixava tocar-lhe com a minha mão de seis dedos.

 

Na Véspera do Dia de Todos-os-Santos os seus receios tornaram-se tão selvagens que o meu pai procurou mantê-la fechada em segurança na casa senhorial, frente à lareira e com a família à volta para guardá-la. Ela começou a ler do Livro de Génesis ao pôr do Sol, e mesmo quando a noite já ia adiantada, continuou o seu zumbido sem parar. Os meus olhos começaram a ficar pesados, e antes de os fechar vi que o meu pai estava já a dormitar. Alice estava atenta ao seu trabalho com as agulhas e parecia entediada, mas, não obstante, alerta.

 

Foi Barlington a gritar que nos acordou, pois até Alice tinha, finalmente, sucumbido. Olhando à volta meio entorpecidos todos nós vimos que Maud tinha desaparecido, levando a Bíblia com ela. Mas o mais alarmante era o grito de Barlington.

 

- Fogo! Fogo nos estábulos!

 

Todos nós corremos porta fora e atravessámos o pátio para encontrar uma cena caótica. Fumo a erguer-se em vagas pela porta do comprido edifício juntamente com palafreneiros cobertos de fuligem emergindo com cavalos em pânico. Formou-se uma corrente de baldes, mas imediatamente constatámos que era uma causa perdida. O telhado de colmo estava já em chamas. O meu pai agarrou um rapaz que retirava dois cavalos dofogo.

 

- Onde é que está a minha mulher! - gritou ele.

 

- Lá dentro, meu senhor! - gritou o rapaz, acenando por cima do ombro para os estábulos. - Ela entrou a correr sem avisar, senhor, acenando com a Bíblia e gritando que o cavalo de Arthur era o Diabo em pessoa e que devia arder no Inferno. Eu ví-a a agarrar uma lanterna e dirigir-se à boxe do Charger lá ao fundo, mas a meio caminho a lanterna ficou presa num prego e o óleo logo se espalhou. Pegou tão depressa, a palha e as estrebarias de madeira...

 

Olhámos os três uns para os outros, todos nós aterrorizados. Alice cobriu a cara com as mãos. O meu pai e eu dirigimo-nos imediatamente, correndo para a porta. Barlington veio a correr ao nosso lado carregando duas pistolas. Eu gemi por dentro com o entendimento súbito da utilidade delas.

 

Já lá dentro e através do fumo espesso conseguíamos ver que de facto a secção central do estábulo com paredes de pedra estava totalmente perdida, com as chamas a lamber do chão ao telhado. E enquanto os cavalos da frente tinham sido todos resgatados - com as suas boxes em ambos os lados da comprida álea abençoadamente vazias - o fogo estava a correr no sentido do fim do estábulo. Cavalos encurralados nas suas boxes soltavam relinchos de terror e dor, lançando-se contra as paredes, algumas boxes sinistramente sossegadas, apenas o fogo a erguer-se onde outrora se encontravam animais vivos.

 

E agora através das chamas e fumo conseguíamos ver a minha mãe, lá ao fundo da álea perto de Charger e da sua boxe. O fogo ainda não os havia alcançado, ela a gritar para o cavalo com uma voz terrível, um exorcista com uma criatura possuída, e ele a escoicear selvaticamente com as patas traseiras na porta da boxe, uma vez e outra e outra e outra...

 

Um grande estampido no meu ouvido. Barlington tinha acabado com o sofrimento de um cavalo torturado e estava a apontar para outro.

 

- Maud, Maud! - gritou o meu pai impotente e então, como num sonho, vímo-la virar-se ao som daquela voz. Ouve um olhar de surpresa na cara dela quando viu a parede de chamas que a separava do marido e do filho, como se estivesse completamente inconsciente do holocausto que acabara de provocar.

 

- Ele deve morrer! - gritou-nos, erguendo a Bíblia na direcção do Charger. - Não vês, Robert, o Diabo deve arder nas chamas do Inferno!

- Charger! - gritei eu. Não sei se ele ouviu a minha voz por cima do ruído, mas pareceu-me que os coices na porta da boxe se tornaram subitamente mais frenéticos e, de repente, começou a lascar a madeira.

 

- Charger, Charger, deita-a abaixo, rapaz, deita-a abaixo!

 

Mais lascas. Outro tiro, enquanto Barlington encontrava um segundo alvo de misericórdia, e o meu pai a agarrar-me, gritando "Maud, Maud, Maud...

 

E então com um som ribombante mais terrível do que eu me quero lembrar uma grande placa de colmo caiu das vigas do telhado numa descida a bem dizer oportuna, cobrindo todo o comprimento da álea com fogo. O bafo do calor e o fumo tipo fornalha empurraram-me a mim e ao meu pai e a Barlington para trás até à porta do estábulo. E então tive uma visão que com alegria e horror misturados revisitarei nos meus sonhos para sempre. Era o Charger explodindo das ondas de fumo e chamas, galopando, ou antes voando como se o próprio Diabo estivesse nos seus calcanhares. A sua crina e cauda estavam a arder, os olhos loucos de medo e ele não parava, apenas saiu como um trovão para fora do estábulo pela noite dentro. Eu segui-o, gritando o nome dele uma vez após outra. Saltei para cima de um cavalo resgatado e corri atrás dele.

 

Não tinha ido longe quando o encontrei de pé, quieto como uma estátua, ao luar. Abrandei, saltei da minha montada e dirigi-me cuidadosamente até junto dele. Conseguia ouvir a respiração forçada dos pulmões queimados, sentia o cheiro nauseabundo de pêlo e carne queimados, via-lhe o branco dos olhos aterrorizados. Quando me aproximei caiu, subitamente, sobre as patas dianteiras, e eu consegui ver outra vez o dia glorioso em que ele se ajoelhara dessa mesma maneira aos pés da Rainha e recebera a bênção dela. E agora o meu orgulhoso e lindo cavalo estava a morrer. Caiu pesadamente para o lado e a respiração tornou-se-lhe mais torturada. Pus as mãos no focinho dele, inclinei-me e sussurrei - não sei o que sussurrei, algumas palavras de conforto sem significado de que estava ali com ele, e o amava, e que ele não estava sozinho. E então o meu pai estava ao meu lado com uma pistola na mão e gentilmente ergueu-me e afastou-me e não perdeu tempo em libertar o meu amigo da sua agonia. Então abraçámo-nos os dois, o meu pai e eu, e chorámos como crianças até não haver mais lágrimas para chorar.

 

Mesmo quando a sua barca roçou o cais e parou na doca de madeira, o conde de Leicester conseguia já sentir o manto lúgubre que pairava sobre o Castelo de Greenwich. Ele vestia, adequadamente, todo de preto como os nobres e damas da corte, os guardas, palafreneiros, lavadeiras. Embora o sol de Outono brilhasse, estava um dia desagradável, e ninguém por quem ele tenha passado se atreveu a um sorriso, mas apenas o cumprimentaram com acenos de cabeça sombrios. Pois a morte envolvia-os em grandes pântanos sangrentos. Na passada véspera da noite de São Bartolomeu, seis mil irmãos protestantes em Paris tinham sido arrastados das suas camas e chacinados pelos seus vizinhos católicos tal como cabeças de gado. A chacina, desencadeada mais pela vontade da rainha-mãe Médicis do que pelo seu cobarde filho Carlos, tinha-se espalhado por toda a França nas semanas seguintes, e a quantidade de mortos huguenotes atingira números assombrosos. Todas as conversações acerca do casamento de Isabel com o filho mais novo da Médicis foram instantaneamente suspensas enquanto a corte inglesa descia ao mais profundo estado de luto. Dizia-se que Filipe de Espanha, ao relatarem-lhe o ultraje, começara a rir, pois toda a preocupação acerca da assistência huguenote aos rebeldes holandeses fora extinta com as vidas dos protestantes.

 

A religiosidade outrora suave de Leicester com as notícias do massacre da noite de São Bartolomeu, coagulara por fim num fervor de rectidão. Alguns achavam que a sua súbita devoção puritana encaixava mal com um homem tão ambicioso, tão aparentemente insincero, e tão apegado aos esplendores da vida na corte. Mas no seu coração, e surpreendentemente até para ele, Leicester tinha descoberto que a conversa diligente com cavalheiros e damas religiosos era estranhamente entusiasmante e, ao mesmo tempo, reconfortante. Enquanto a Espanha continuava a perseguir os seus calvinistas e a França os seus huguenotes, o conde metamorfoseara-se num falcão de guerra em defesa da sua fé recentemente descoberta. A outra vantagem destas inclinações, pensou ele enquanto subia os degraus do palácio, era que agora se encontrava, finalmente, no mesmo lado dos princípios de William.

 

Cecil. Um respeito de má vontade pelo outrora detestado novo-rico dominara o homem mais velho.

 

Deus, matutou Leicester, colocara perante os aderentes à Nova Religião um desafio poderoso e Isabel, que resistia a tomar partido contra a Espanha a todo o custo, pois ela ainda acreditava fervorosamente que o custo último de uma guerra seria o amor do seu povo, deve ser gentil mas firmemente levada a apoiar os protestantes no estrangeiro. Falaria com ela hoje na pacatez dos seus aposentos. Sabia que ela estava tão consternada com os protestantes holandeses se atreverem a revoltar-se contra o seu rei soberano, como pela perseguição da parte de Filipe que lhes era feita às mãos do duque de Alba. A separação recente de Isabel e Leicester enquanto ele estivera a supervisionar as obras de ampliação do Castelo de Kenilworth, e agora o seu regresso, pensou ele com um sorriso satisfeito, iria sem dúvida suavizar a disposição da Rainha na questão da religião.

 

Mas à medida que se aproximava dos seus apartamentos contíguos, Leicester reparou, com alarme crescente, numa total ausência de actividade, como se a mão da morte tivesse de alguma forma varrido este corredor. Não havia quaisquer cortesãos ou damas à espera agitando-se de um lado para o outro nas suas errâncias diversas, nenhum peticionário - nem mesmo, mais espantoso de tudo, guardas reais em posição na porta da Rainha.

 

Enquanto alcançava a porta que conduzia para o ninho de apartamentos reais, apercebeu-se de que nunca antes tinha aberto aquela porta com a sua própria mão, sendo o pequeno serviço invariavelmente desempenhado por um porteiro de libré. Entrou na câmara privada e, ainda sem observar uma única alma, atravessou-a e chegou à câmara de recolhimento. Ninguém. Agora estava de pé perante a porta do quarto de cama de Isabel. O silêncio estranho enervou-o tanto que por um momento considerou voltar-se, ir-se embora. Seguramente que a Rainha não podia estar no seu quarto tão flagrantemente desacompanhada. Mas o mistério impelia-o a avançar.

 

Ela estava sentada direita como um fuso no seu assento de costas altas e madeira trabalhada que fora colocado bem no centro do quarto frente à porta. Fechada numa armadura de seda de preto de luto Isabel estava pálida como um fantasma, os olhos em brasa com um fogo frio, os seus longos dedos enrolados em jeito de garras à volta das extremidades dos braços da cadeira. Olhava fixamente para Robin Dudley com uma intensidade tão assustadora que ele deu por si paralisado. Uma exalação rouca escapou dos lábios dele e por fim compôs-se o suficiente para proferir: - Vossa Majestade.

 

Ao verificar que Isabel não respondia nem com palavras nem com gestos ou o mais leve pestanejar ele avançou, sentindo as suas articulações rígidas como as de um fantoche. Ajoelhou-se perante ela, um comum suplicante e não o seu amante de há muitos anos. O alarme aumentou quando ela nem sequer lhe ofereceu a mão para beijar. Esta fúria gelada, esta raiva, era dirigida não à Médicis ou a Filipe de Espanha, não a Alba pelas suas atrocidades na Holanda, nem sequer a Deus por permitir que tais ultrajes fossem cometidos em Seu nome. Era ele próprio o objecto desta fúria aterrorizadora. Isabel, percebeu ele de súbito, tinha mandado toda a gente embora dos seus aposentos para que ninguém assistisse à tempestade que se aproximava.

 

Robin Dudley, sempre um homem de bravata incessante e pronta eloquência, descobriu que estava a tremer e completamente sem fala. O silêncio entre eles - o primeiro da sua longa e íntima amizade - era destruidor, e ele sabia que os devastava igualmente.

 

- Porquê?

 

As sílabas ficaram a ressoar entre eles como o toque numa corda de harpa. Era apenas uma palavra, mas não mais do que o necessário para que Leicester entendesse. Todas as respostas calculadas que ele preparara para este momento inevitável, todo o seu raciocínio e argumentos, soube ele de imediato serem fátuos e estouvados.

 

- Ela nada significa para mim - proferiu por fim, mas a sua voz quebrou a meio da frase como a de um rapaz imberbe.

 

- Se isso é verdade, Robin - disse Isabel como que a pisar cuidadosamente numa crosta de neve quebradiça -, então arrancaste o meu coração, ainda a bater-me no peito... para nada. - Ela juntou as mãos no colo, colocando uma por cima da outra. Estavam muito quietas e brancas. - Douglas Sheffield - disse calmamente - é uma mulher de beleza rara com o cérebro de um ouriço-cacheiro...

 

- Isabel...

 

A Rainha cortou-lhe a palavra exigindo um silêncio absoluto e ele pressentiu que se a interrompesse outra vez ela, iria abri-lo ao meio com a lâmina da sua fúria. Ele descobriu que não conseguia desviar os olhos das suas mãos pálidas e imóveis.

 

- Quando o marido de Lady Sheffield descobriu que tinha sido encornado por ti - recomeçou ela - enfureceu-se e disparou para Londres em busca de um divórcio. Está correcto?

 

- Bastante - respondeu Dudley, com o seu tom e postura adoptando o mau humor de uma criança a ser disciplinada.

 

- Mas Lord Sheffield nunca chegou a Londres - continuou Isabel. Adoeceu e morreu subitamente, sob circunstâncias misteriosas. Muitos dos seus amigos acreditam que foi envenenado.

 

Finalmente ela permitia um espaço para Leicester responder.

 

Ele sentiu alguns dos seus sentidos a regressarem-lhe. Ficou de pé, e respondeu à pergunta com outra pergunta.

 

- Porque iria eu, pois presumo que estás a contestar a minha inocência, assassinar o homem a não ser que desejasse casar com a viúva? E porque iria eu, ainda julgado por muitos como assassino da minha própria mulher, colocar-me na mesmíssima posição pela segunda vez? Posso ser arrogante e vangloriar-me, Isabel, mas supões-me realmente assim tão inexoravelmente estúpido?

 

- Então não tens intenção de casar com Lady Sheffield? - perguntou a Rainha, escolhendo dirigir-se à primeira questão dele.

 

- Não.

 

- O que será então da criança de que ela está grávida? É o teu filho, não é?

 

Era a voz da Rainha que agora se quebrava e, no entender de Leicester, estava dilacerantemente vencida. Ele nunca tinha tido intenção que o seu caso com Douglas, começado apenas para provocar ciúmes, durasse tanto tempo como durara. Lady Sheffield era de facto uma criatura deslumbrante e fora uma conquista fácil, mas à medida que ele se aquecia no calor e devoção inqualificada com a qual ela o cobria, acabara por gostar sinceramente dela.

 

Com aborrecimento súbito, Dudley apercebeu-se de que Douglas Sheffield o perseguira tanto como ele a ela - a presa a montar uma armadilha para o caçador. Ela apanhara na sua armadilha um grande prêmio, nunca considerando uma única vez as consequências de roubar o amante da Rainha. Deste dia em diante, Douglas iria descobrir que a sua vida na corte estava acabada. Leicester nunca desejara, contudo, por muito descuidado que se tivesse tomado, um filho dela. Descobrindo que estava grávida, Lady Sheffield exigira que Leicester se casasse com ela, alegando com verdade que rejeitara muitas propostas de casamento e que o queria apenas a ele. Até lhe ocorrera a ele que tinha sido ela quem tinha mandado envenenar o marido, deixando o caminho desimpedido para Dudley casar com ela.

 

O conde sentiu a boca a tremer com tudo o que não era proferido. Isabel não conseguiu deixar de reparar na agitação dele.

 

- Diz o que pensas, Lord Leicester - disse ela, os seus lábios carmesim acentuando uma linha fina e cruel que lhe dividia a cara -, pois pode ser a tua última oportunidade de o fazeres.

 

- O que é isso, Isabel? - disse ele lapidarmente. Tinha finalmente encontrado a voz e as palavras saíam livremente, enchendo o quarto com uma fúria igual à da Rainha. - Tens planos para me banir? Executar-me! Apanhou-te assim tão completamente de surpresa que eu não mais conseguisse viver com as tuas rudes recusas? Acreditavas que eu não tinha sentimentos? Que a minha masculinidade podia sofrer as tuas rejeições exangues para sempre!

 

- Eu nunca te rejeitei! - gritou ela.

 

- Rejeitaste sim, Madame. Implorei-te infindavelmente que casasses comigo e tu viraste-me as costas uma vez atrás da outra. Ofereceste-me, sem o meu consentimento, à tua prima Maria como um assado de carne numa bandeja! Eu sou motivo de riso, Isabel, sou a tua concubina!

 

- Ah, não te respeitei. - O sarcasmo dela mordia como um vento de Janeiro vindo do Tamisa. - E tu não aceitaste de bom grado toda a fama, riqueza, honra e títulos que esta coroa gentilmente te conferiu. - Ela sentou-se para trás na sua cadeira, satisfeita como se tivesse demonstrado o seu ponto de vista perfeitamente.

 

- Eu amei-te, Isabel - disse Robin Dudley com simplicidade. - Eu amei-te.

 

Com isto toda a contenção magnificente da Rainha pareceu subitamente desmoronar-se. Os seus traços rígidos descaíram, deixando-lhe finas rachas na máscara esbranquiçada da cara, com o queixo caído sobre o peito, derrotada, pois ela não tinha qualquer forma de negar estas palavras.

 

- Tivemos um filho, tu e eu - continuou Leicester -, e Deus na sua sabedoria insondável achou adequado levá-lo de junto de nós. Mas então, enquanto nunca me mandaste embora da tua cama, tu e o teu boticário certificaram-se que nunca mais irias ter um filho meu. - Isabel estremeceu, mas não tinha qualquer argumento. - Eu não sou um homem como outro qualquer, Isabel? Não devo eu desejar uma verdadeira mulher e um filho legítimo para continuar a linhagem de sangue da minha família? Sabes que o meu irmão e a mulher dele são estéreis. Se eu morrer sem filhos os Dudley estão acabados.

 

Com esta última frase, Isabel ergueu lentamente a cabeça.

 

- Um filho legítimo, é isso o que desejas de mim acima de tudo o mais? Dudley sentiu o chão a ceder por baixo dele. Subitamente deu-se conta de que tinha falado do único tema que, infalivelmente, levava Isabel a espasmos de raiva. O seu pai, com um tal desejo levado ao extremo, tinha executado a mãe dela. Mas Leicester não podia agora retirar.

 

- Casa comigo, Isabel - disse ele com calma firme.

 

- Fazer de ti rei de Inglaterra? - respondeu ela com voz de escárnio.

- Casa comigo, Isabel!

 

- Abrir-te a ti o meu poder, o meu país, a minha alma?

 

Ele agarrou-lhe nos ombros e encostou-a com força contra as costas da cadeira, obrigando-a a olhá-lo nos seus olhos dominantes e manter-se assim.

 

- Casa comigo - sussurrou ele ferozmente.

 

Viu os olhos de Isabel a cintilar, a suavizar-se, a boca dela a tremer. Por fim, ela falou, cada palavra um punhal encontrando o seu alvo na macieza do coração de Dudley.

 

- Desaparece da minha vista.

 

Uma longa exalação, um suspiro, escapou-lhe. Então Robert Dudley, conde de Leicester, curvou-se, não rígida ou desastradamente como um homem dispensado e desgraçado poderia fazer, mas com a graça de um orgulhoso cavaleiro prestando homenagem à sua amada soberana.

 

- Como desejardes, Majestade - disse ele, e nunca tirando os seus olhos da cara enlutada da Rainha, recuou lentamente para fora do quarto.

 

Céus cinzentos de lousa imperavam na tarde de Inverno. Um vento amargo varria tudo vindo da serra de Guadarrama na direcção da planície desolada lá em baixo. Era um dia que espelhava com exactidão a alma do maior rei do mundo. Envolto de preto, a capa a agitar-se à volta do rosto fustigado pelo vento, Filipe de Espanha estava sentado sozinho, empoleirado como um corvo num trono talhado em pedra e colocado na encosta da colina. Espalhada perante ele estava a obra da sua vida a construção de um mosteiro de pedra espraiado que quando completado serviria como seu palácio e casa. Há dez anos que os operários o construíam, mas levariam ainda mais dez para acabarem o edifício que ele criara. Chamado El Escorial, o maciço monumento esverdeado de granito dispunha-se na forma de uma grade - o instrumento de tortura no qual o patrono do rei, São Lourenço, o Mártir, tinha sido morto. Mas o edifício proibitivo era mais do que um mero palácio ou mosteiro. Como alguns faraós egípcios ao envelhecerem, Filipe estava a supervisionar a construção do seu próprio túmulo. De facto, iria ser não apenas o seu próprio local de enterro, mas aquele no qual reuniria os restos mortais de toda a família, e os colocaria para o descanso final. Agora ele estava a ficar mórbido a pensar nas suas mortes.

 

O seu pai, o imperador, o mais magnificente governante que o mundo tinha alguma vez conhecido, acabara a sua vida numa cela espartana no mosteiro de Yuste. Morrera louco, falhando na sua tentativa de unir o mundo na cristandade. Filipe havia adorado o seu pai, o seu professor, a sua inspiração - e ao mesmo tempo odiava esse gigante cuja lendária grandeza Filipe nunca poderia ter esperança de igualar.

 

Quanto a Dom Carlos, o prisioneiro de Filipe, afundara-se ainda mais profundamente na loucura. Recusara-se a comer até ficar um esqueleto vivo, depois dormia nu numa cama de gelo no calor abrasador do Verão. O único filho do rei morrera de modo violento, delirante e impenitente. Seria colocado para descansar em paz ao lado da amada Isabela, mulher de Filipe, que tinha seguido Dom Carlos para a sepultura em apenas alguns meses.

 

Se, pensava Filipe taciturnamente, ele não tivesse um trabalho tão importante para levar a cabo - o trabalho de Deus - desejaria ele próprio a paz de uma morte prematura. Morte na qual se reuniria à sua família. Mas por agora, o rei de Espanha teria de se consolar com trazê-los todos para aqui para enfrentar a eternidade.

 

Embora o frio da rocha trespassasse a sua túnica de lã, Filipe não se mexeu para aconchegar a capa por baixo dele, pois sentia que a dor do frio lhe era própria. Um castigo adequado para o pecador que, apesar das suas muitas orações, sacrifícios e mortificações da carne, sabia que iria permanecer até morrer. Sim, ele era um pecador - mas não tão grande como Isabel, a puta escarlate de Inglaterra.

 

Quando ela, com vinte e três anos e ainda bonita, viera entregar-lhe Maria, a mulher inglesa dele, Filipe cortejara a sua cunhada. Maria estava gasta e velha, demasiado velha para dar à luz o seu primeiro filho. Podia morrer, tinha ele pensado, e a aliança Espanha-Inglaterra teria naturalmente de ser preservada. Se Maria morresse ele casaria com Isabel, tinha decidido todos esses anos antes. Isabel. Tinha sido tão bela. Ninguém sabia como ele a desejara.

 

Agora enquanto Filipe estava sentado no seu frígido trono de pedra estremecia só com a ideia. Pois a rainha herética - o seu inimigo mais vil na terra, pior ainda do que o transviado Guilherme de Orange - era filha de Satã e inimiga amaldiçoada da Verdadeira Religião. Ele, Filipe, fora escolhido pelo Todo-Poderoso para levar o Seu castigo aos infiéis ingleses. Quando morresse e voasse para o céu, pensou, com um sorriso parco a animar finalmente os seus traços severos, iria encontrar a recompensa sentado no lado direito de Deus.

 

O homem que cavalgava à minha frente numa velocidade infernal, eu sabia, com certeza, ser um caçadorfurtivo, pois tinha-o surpreendido no coração dafloresta e parte das suas presas roubadas caíra-lhe da montada quando começara a perseguição. O meu pai, com dores e sem fôlego, ficara para trás, deixando a perseguição comigo. O caçador furtuito ou era um excelente cavaleiro ou estava excessivamente desesperado, pensei eu. já tinha talvez roubado nestes caminhos antes, pois parecia conhecer os desvios e curvas da Coutada de Enfield suficientemente bem para se manter à minha frente.

 

Vi à frente do homem uma bifurcação arborizada e rezei para que ele virasse para a esquerda, pois sabia que nessa direcção havia um carvalho recentemente abatido que bloqueava completamente o caminho. Sim! Ele seguiu pela esquerda e em poucos momentos eu ouvi um relincho aterrorizado e um grito de surpresa. Cheguei a uma cena de confusão - o homem projectado do cavalo para um emaranhamento de ramos partidos, a montada a bater nervosa e violentamente com os pés no chão mas nãoferida. Um par de codornizes penduradas da sela junto de um arco e uma aljava de setas, e uma lebre meia de fora de um saco de caça de pano.

 

Eu saltei da Beauty e fiquei de pé enquanto o ladrão, uma massa de arranhões furiosos, uma ferida púrpura a começar a florescer-lhe na fronte, desembaraçava ramos de árvore torcidos dos seus próprios membros. Apontei-lhe a pistola.

 

- Fica onde estás - disse consciente do absurdo da ordem visto que o homem não tinha para onde fugir, encurralado já numa prisão de ramos de carvalho. - Estás preso pelo críme de caça furtiva na floresta da Rainha. Diz-me o teu nome. - Eu não era estranho a estes procedimentos pois tinha, desde os meus quinze anos, assistido ao meu pai no mais consequente e mais odiado de todos os deveres de um encarregado de Coutada Real: a aplicação das leis contra a caça furtiva.

 

O homem era de meia-idade e estava pobremente vestido, claramente não era nenhum caçadorfurtivo como aqueles que nós frequentemente tínhamos de prender. A cara dele, excluindo as suasferidas actuais, estava marcada com a preocupação e medo da pobreza. Olhava-me com olhos tristes e com olheiras e respirava com dificuldade devido à exaustão. Estava totalmente desesperado quando disse o nome.

 

- Conheces a lei? - perguntei-lhe eu.

 

- Sim - respondeu. Os olhos caíram-lhe então nas presas roubadas penduradas da sela e a sua expressão pareceu querer dizer: Cristo no Céu, perdi a minha vida por um par de codornizes e um coelho.

 

Era nessa altura que eu deveria ter prendido e escoltado o criminoso até ao xerife, mas subitamente senti-me incapaz, de alguma forma sem vontade de me mover na direcção da destruição deste pobre homem.

 

- Porque fizeste isto - disse eu - dado que sabes como todos os homens, qual o castigo que te espera?

 

Ele levantou-se na sua jaula de ramos e olhou fixamente para mim.

 

- Porque me fazeis uma tal pergunta, senhor, quando sabeis já a resposta? Não é verdade que todos os ladrões de fraco nascimento quando apanhados em flagrante clamam pobreza, alegam uma mãe doente ou filhos esfomeados, e imploram por misericórdia que nunca lhes é dada?

 

Senti uma vaga súbita de vergonha e pena.

- Tens uma mãe doente? - perguntei.

 

- Não interessa, senhor - disse ele, os braços pendurados desleixadamente ao longo do corpo. - Acreditai-me, não interessa.

 

Baixei então a pistola, e o peso dela puxou o meu próprio braço. Depois virei-me e dirigi-me ao seu cavalo. Meti a lebre, impecavelmente perfurada na base do crânio, no saco dele, dirigi-me à Beauty e montei-a.

 

- Regressa à bifurcação - ordenei ao homem, nunca o olhando nos olhos - e vira para a direita da ponte. Deixa a floresta pelo pântano. E que eu nunca mais te apanhe aqui ou pagarás por quebrar as leis da Rainha. Batendo no flanco da Beauty com o calcanhar vírámo-nos efomo-nos embora a trote. Ouvi apenas os grunhidos do homem enquanto lutava para se libertar da sua prisão de carvalho.

 

Quando regressei a casa o meu pai estava instalado exausto e a ressonar frente à lareira, as pernas erguidas num banco. Não tinha tirado as botas lamacentas, que estavam a sujar a almofada bordada laboriosamente por Alice no ano antes de se casar. O marido dela - um homem que não amava

- era, embora nem velho nem odorífero como o marido de Meg, tão excessivamente rígido e pio que a juventude dela era completamente desperdiçada. Alice não encontrara qualquer alegria na sua união a não ser pelos trêsfilhos que lhe tinha dado em rápida sucessão.

 

O pesadelo ardente da véspera de Todos-os-Santos tinha-nos cobrado a sua quota. Nós, as crianças, chorámos a morte da nossa mãe, mas eu confesso agora que não senti verdadeiramente pesar por ela. Na verdade dei por mim durante mais de um ano consumido com uma raiva incessante relativamente, se não a ela, então à loucura que a mantivera na sua garra de morte e provocara um terrível fim para o meu Mais Verdadeiro Amigo.

 

Com as raparigas fora de casa, o meu pai e irmão e eu caímos numa vida caseira rude de homens que vivem sem mulheres. John raramente estava em casa, os seus hábitos dissolutos a crescer a cada ano que passava. O meu pai dependia de facto de mim para todas as suas alegrias diárias que eram na verdade escassas, e o fardo de ocupar essa posição cada vez mais enrijecia a minha alma. O meu hábito de infância de fantasiar morrera lenta mas estavelmente depois da minha prisão em Milford Haven. Durante algum tempo eu sonhara que a própria Rainha, depois do nosso encontro quando eu tinha oito anos, havia secretamente concebido uma importante posição dentro do seu Serviço Secreto para mim, e estava a observar de perto o meu crescimento para a idade viril, enviando a sua Guarda quando parecia que eu me tinha desviado demasiado. Mas esse sonho desvaneceu-se quando alguns anos depois a sua viagem oficial de Verão passou perto de Enfield mas ela escolheu não visitar a coutada... ou o seu jovem agente Arthur Southem. Nem o Conselho Privado veio outra vez para me salvar de quaisquer trabalhos. Assim pelo meu décimo oitavo ano de idade a atracção da vida de um homem fora de Enfield tinha-se tornado insuportavelmente forte, os laços com o meu pai e a coutada a esticarem-se quase até partirem.

 

Os cavalos ainda reinavam supremamente na minha pequena existência no campo. Tinha morrido mais do que um bocadinho quando o Charger abandonou esta vida. Acreditava que mais nenhum animal de quatro patas iria alguma vez ocupar o lugar do bravo garanhão. A égua preta que eu agora montava, oferecida pelo meu pai, era tão esperta como bonita e forte. Dizem que os cavalos pretos não têm boa boca - e isso é verdade no caso da Beauty - mas serem assustadiços e desleais como dizem que são, disso nunca vi prova. Sei que ela nunca me serviu por amor mas, ao invés, por dever e por bom hábito.

 

Com o meu pai lento e fraco como se estava a tornar, e com o meu irmão quase completamente ausente, eu era felizmente deixado com a tarefa de quebrar e treinar todas as novas montadas que chegavam ao estábulo. Nem um homem na paróquia concordava ou aprovava o meu estranho método - renunciar à tortura, e levar um cavalo à concordância com os meus desejos através de uma dança gentil que eu tinha criado entre o animal não domesticado e eu próprio, uma dança de postura e atitude, de acordo arrojado olhos nos olhos. Para consternação dos meus vizinhos todos os cavalos a meu cuidado aprendiam a dança e muito rapidamente se submetiam embora nunca - mesmo que eu permitisse que o dissessem - quebrassem.

 

O meu pai mexeu-se na cadeira e acordou, aclarando a garganta e peito, e perguntou-me se o ladrão tinha sido apanhado e adequadamente tratado. Eu menti tão destramente, alegando que ele conseguira de alguma forma escapar-me, que senti um tormento de consciência por isso, perguntando-me se Deus me iria castigar pelas duas coisas. Por terfalhado no meu dever para com a Rainha, bem como pela mentira escandalosa que tinha proferido. O meu pai pareceu, contudo, menos preocupado com a minha falha do que eu supus que ficaria. Ficou apenas a olhar para mim, os olhos a suavizarem-se como se a própria visão de mim o completasse. Vi súbita e claramente que a causa do desinteresse dele pelo destino do caçador furtivo era um cansaço profundo, o lento desenrolar da sua alma. Tirei-lhe as botas e massajei-lhe os pés entre as minhas mãos. Ele grunhiu com prazer.

 

- És um bom rapaz, Arthur - disse ele e sorriu ligeiramente. - Um bom rapaz. Meufilho.

 

Nessa noite fui até à cervejaria da aldeia, como ultimamente se tornara meu hábito. A Sows Belly era pequena e fedia a mijo e cerveja velha, e era escura como uma cona de bruxa. Mas no coração de Enfield Towne era o sítio mais animado que se podia encontrar num raio de muitas milhas. Sabia que encontraria o meu irmão lá, os olhos injectados de sangue e desfocados, refastelado na sua bebedeira em cima de uma mesa, demasiado fora de si para jogar e apostar.

 

Ultimamente tinha começado a adorar os dados, e os meus amigos já lá estavam instalados num canto, dando vivas e gritando enquanto os dados feitos de osso batiam e se esmagavam contra a parede. Eram todos filhos de quinteiros, todos jovens que eu conhecera na inspecção do condado no ano em que eu me tornara apto para o serviço militar. Lado a lado, no largo da aldeia, vestidos com armaduras trazidas de casa, tínhamos praticado o tiro de arcabuzes desajeitados e aprendêramos a marchar em boa formação, tentando arduamente não nos rirmos alto do inspector-mestre. Ele era um juiz de paz alto e de óculos noutras alturas, mas naquela semana tinha sido nomeado pela Coroa para arregimentar os homens da região dos dezasseis aos sessenta anos numa força militar.

 

Nós, os rapazes, voltámos da inspecção amigos e um amor partilhado pelos dados. Consequentemente conspirámos para nos encontrarmos na Sows Belly, tão frequentemente quanto as nossas tarefas o permitissem. Enquanto bebíamos, como todos os homens faziam, éramos moderados nos nossos hábitos e refreávamo-nos de comportamentos grosseiros, embora se uma desordem geral surgisse nós não nos abstivéssemos ao prazer de uma pequena luta.

 

Nesta noite tinha jogado e perdido muito consistentemente e por isso separei-me dos meus amigos para beber uma caneca de cerveja num canto solitário. Pouco tempo depois entraram dois estranhos na taberna. Todos os olhos caíram sobre eles suspeitosamente, até que aproximando-se do bar pediram as suas bebidas e mostraram-nos claramente que não eram estrangeiros mas sim ingleses.

 

Os visitantes eram raros em Enfield e eu conseguia ver as perguntas a fermentarem nos olhos de todos os patrícios locais. Quem eram estes dois? Eram irmãos ou simplesmente companheiros de viagem? Eram cavalheiros ou de condição menor? Vi o Harold Morton a espreitar pela janela para examinar os cavalos em que eles viajavam. De onde eram? Porque é que passavam por esta aldeia? Quanto tempo tinham intenção de ficar? E para onde se dirigiam?

 

Eu endireitei-me na cadeira quando percebi com grande surpresa que os estranhos, de copos na mão, se dirigiam ao meu banco e mesa. Sorriram de uma forma amigável e eu sorri de volta e com um gesto convidei-os a sentar. Depressa descobri que eles viajavam - pois eram tão faladores e de boa natureza como é possível os homens serem - para serem soldados na Holanda.

 

Fiquei encantado a ouvir as suas histórias, muito especialmente as de Hirst que já tinha estado na guerra uma vez como voluntário, tinha sido ferido, enviado para casa e agora regressava para servir com o seu bom amigo Partridge. Este homem tinha um nome adequado, pois era rechonchudo e com traços suaves, e os seus olhos redondos tipo pássaro pareciam nunca piscar.

 

- Pois é dura, a vida de soldado - proclamou Hirst, um homem alto e irrequieto com maxilares angulosos e cabeça cheia de cabelo dentro do qual rastejava uma grande companhia de criaturas minúsculas. Emborcou a cerveja num longo trago. - E ainda mais dura nos Países Baixos, pois é frio como um raio e húmido no Inverno. A vigilância é um tédio de morte, e a comida tão ruim quando consegues tê-la, que quase não a manténs no estômago.

 

Conseguia ver os olhos de Partridge a crescerem ainda mais com a descrição de Hirst da sua vida futura. Estava ele a perguntar-se, tal como

 

Nota: Em inglês partridge significa perdiz, daí o jogo com o nome da personagem. (N. do T.)

 

eu, porque é que se ser soldado era tão brutal, mas Hirst falava disso com muito zelo.

 

- Trabalhamos arduamente e labutamos em colinas e bosques e vastas planícies, pois os Holandeses têm roubado muita da sua terra ao mar. Patinhamos através de rios gelados, deitamo-nos em campos à chuva, ao vento, à geada e à neve. Mas aventurar-se contra o inimigo, sim, rapazes, aí está o sentido disso tudo. O melhor de tudo. O pior de tudo. Os membros arrancados, as vidas perdidas, fazendo dos nossos corpos uma barreira Para afastar os tiros de canhão. O barulho e o fedor de um campo de batalha. O sono exausto é bom depois de uma escaramuça ter sido ganha.

 

Enquanto ele falava eu via aquela luta, ouvia-a, sentia-a, cheirava-a. Inclinei-me para a frente e agarrei a minha caneca. Hirst não podia deixar de ver o efeito que estava a ter sobre a minha alma.

 

- Recebi uma bala espanhola na coxa, num sítio tão alto que não deixo de agradecer a Deus pela minha virilidade até hoje. Bem, ela infectou, por isso mandaram-me para casa para me curar.

 

- E agora vais voltar? - perguntei eu incredulamente. - Para o mesmo?

 

- Sim, mas desta vez levando aqui o meu amigo Partrídge, para partilhar a alegria daquilo. - Ríram-se com vontade e eu juntei-me a eles.

 

- Mais cerveja para esta mesa! - disse Hirst. Não me lembro se alguém veio encher os nossos copos, pois estava demasiado embrenhado na conversa. Mas, de alguma forma, pela hora de fecho eu estava completamente bêbado juntamente com os meus companheiros.

 

Discutimos ferozmente os méritos relativos do arco contra as armas de fogo. Hirst propôs para minha consternação que os dias da cavalaria armada tinham acabado. As armas, dizia ele, eram a causa disso. Todos nós lamentámos a perda daquele regimento cintilante de cavaleiros, a beleza simples e brava forma de um homem dentro de uma armadura sobre um cavalo também ele numa armadura. Mas as balas modernas furavam facilmente as armaduras, e as pesadas cotas de malha tornavam os cavalos mais lentos quando a velocidade era mais necessária do que nunca. Tudo o que restava da cavalaria, dizia Hirst, eram os meios-lanceiros e cavaleiros ligeiros. Era o suficiente para mim, pensei eu, aliviado.

 

- Como é que te tornaste recruta? - perguntei a Hirst, a minha língua espessa com mais bebida do que alguma vez antes tinha consumido.

 

- Ele era um ladrão de gado, ia ser enforcado - respondeu Partrídge por ele. Hirst olhou ferozmente para o seu amigo que estava demasiado bêbado para reparar. - O juiz na nossa cidade recrutou todos os malfeitores da sua prisão. Disse que podia matar dois pássaros com uma cajadada, livrando as ruas da ralé - a escumalha sem mangas, chamou-lhes ele - e assim ajudando a preencher o serviço militar.

 

Hirst tinha rapidamente superado a sua irritação com Partrídge por ter revelado o seu passado manchado.

 

- Na prisão conheci muitos homens que adoptaram uma vida de crime apenas para poderem ser recrutados. Era um abrigo mais seguro no exército do que andar afazer malfeitorias através de Inglaterra.

 

- Agora eu... - anunciou Partridge com um orgulho de bêbado -, eu vou juntar-me ao exército da Rainha de minha livre vontade... - Lançou um sorriso absurdo a Hirst. - Respondendo ao chamamento do pífaro e do tambor...

 

Uma pancada na cabeça vinda de Hírst silenciou Partridge. Ele caiu num breve dormitar enquanto eu e Hirst continuávamos.

 

- Tomo-te por um cavalheiro de qualidades - disse-me ele.

- De qualidades - respondi eu divertido.

 

- É claro que ninguém a não ser os nobres podem ser general - continuou Hirst. - É impensável que um homem comum comande, Mas os cavalheiros voluntários podem por vezes chegar a capitão.

 

- Ah, sim? - perguntei, os meus olhos de pálpebras pesadas a abrirem-se amplamente.

 

Agora Hirst inclinava-se Por cima da mesa e sussurrava conspiratoriamente, embora eu não saiba porque é que ele sussurrava, pois com certeza nenhum dos clientes restantes àquela hora de fecho se importava minimamente com o que ele dizia.

 

- Sei de cavalheiros que serviram no estrangeiro e por habilidade e experiência fizeram-se notar no Conselho Privado. São eles que dão as comissões. Apenas por mérito esses belos sujeitos chegaram tão perto do topo quanto homens da sua condição poderiam sonhar. Foram-lhes atribuídos comandos - acrescentou ele com respeito.

 

Eu estava sem fôlego, pois sabia que tinha em mim um líder de homens.

- Digo-te - continuou ele -, esses homens são de longe melhores comandantes do que a maioria dos nobres de um raio que não conseguem distinguir um arcabuz do seu próprio olho do cu.

 

Rimo-nos com tanto gosto que acordámos Partridge. Saímos aos tropeções juntos para a noite sem lua. Lembro-me de ver os cavalos deles amarrados do lado de fora da taberna perto da BeautY, e perguntar-me se eles seriam roubados ou legalmente adquiridos, mas não me lembro de mais do que isso.

 

Quando acordei à primeira luz, grogue e procurando um sítio perto para vomitar, estávamos os três estatelados no largo da aldeia. Acordei os meus companheiros que me amaldiçoaram imediatamente, mas vieram-se embora comigo de boa vontade, alarmados pelo meu relatório de um polícia da aldeia vicioso que gostava de arrastar rufiões e vagabundos para a cadeia e deitarfora a chave. Pois Hirst e Pariridge temiam muito qualquer interrupção da sua viagem. Estavam destinados à glória no campo de batalha e eu, com escassa incitação para os acompanhar montei o meu cavalo e sem olhar para trás saí de Enfield para o mundo vasto para procurar a minha fortuna e encontrar aventura.

 

Hirst, Partridge e eu viajámos por terra até ao campo de treino em que o mais recente regimento de voluntários ingleses estava a ser preparado para passar para o outro lado e servir a Espanha. Era um vasto mar de tendas polvilhado de fogueiras, cheio de jovens soldados, campos pisados faziam de zonas de marcha e alvos de artilharia a toda a volta. A primeira visão do sítio fez o meu sangue correr mais quente, mas levou Partridge a gritar: "Oi, chega para mim, vou-me embora, companheiros!", e virou o cavalo para se ir embora. Hirst apanhou-o e deu-lhe uma palmada amigável, então juntos entrámos no campo.

 

Encontrámos uma recepção calorosa, o tenente ávido de homens para se juntarem à sua companhia. Foram-nos dadas camas, equipamento e um número ao acaso de uniformes que eram, censurou Hirst, tudo menos uniformes. A Rainha não tinha exército fixo e, na verdade, não havia naquele tempo uma obediência real à Inglaterra, não tendo passado assim tanto tempo desde que os homens serviam senhores feudais em guerras estrangeiras.

 

Por isso andávamos em bando, uma multidão de patífes pobres e mal preparados, cada um dos quais Hirst gostava de descrever enquanto nos esforçávamos nos nossos exercícios e treinos. Cockburn era "um homem com pernas como alfinetes, tão magro que o inimigo bem podia disparar para a ponta de um canivete". E Masters era "uma pomba brava e furiosa". Aprendemos a disparar com armas tão pequenas como uma torneira e tão poderosas como um canhão, como apresentar a nossa arma, apontar e mandar uma descarga ao mesmo tempo que os nossos camaradas. Foi-nos ensinada a importância de uma bucha bem calcada e disparada pelo cano abaixo, afim de que a arma não expluda, e quando e como dar um empurrão com a baioneta.

 

Aprendemos a marchar ao som do tambor, mantendo a nossa posição na linha, e comandos como "avançar baionetas!" e "tripliquem as posições em ambos os flancos!" Aprendemos as formações em S e em D, os quadrados, as cunhas e as perpendiculares. Era um trabalho duro. Dormíamos como mortos até ao nascer do Sol e logo recomeçávamos.

 

Os nossos cavalos provaram-se uma vantagem no alistamento. Ofereceram-nos uma opção à chegada - vender as montadas ao exército por uma boa soma que foi o que Hirst e Partridge fizeram, ou aderir à cavalaria que foi o que eu fiz. Achei o comandante da minha companhia um bom cavaleiro, sem ser óptimo, e ele escarnecia do treino da Beauty na arte de picadeiro, dizendo que num exército não havia tempo para "antiguidades".

 

Hirst, manejando o seu charme rude como uma moca, tornou-se amigo do mestre de ordenança, um tipo pretensioso com olhos esbugalhados e dentes podres, convencendo-o a dar-nos pólvora de graça, pela qual de outra forma teríamos de pagar dos nossos magros salários. Entretanto Partridge adquiria uma paixão pela arte de cifrar, imaginando-se a si próprio como um futuro espião ao serviço da Rainha apesar de o seu baixo posto e mente preguiçosa tornarem uma tal ocupação quase inconcebível. Em momentos estranhos na nossa rotina exaustiva ele sentava-se e meditava sobre um panfleto que tinha roubado da tenda de informações do campo, todo cheio de estranhos símbolos e cífras. Olhava para eles tão de esguelha que eu pensei que dificilmente devia ter aprendido os seus significados. Ainda assim, como tínhamos escassos prazeres naquele campo de treino, não o dissuadimos da sua fantasia.

 

Quanto a mim, estava em glória. Isto era tudo o que eu tinha querido para a minha vida. Não havia qualquer medo, qualquer preocupação. Com o nosso casaco e dinheiro de circulação na mão partimos para o porto de embarque. Não existe muito a dizer sobre Harwich. Apenas que os homens que não embolsavam os seus ordenados de viagem e desertavam do serviço da Rainha iam ao encontro de maiores privações nessa cidade, pois o mestre dos navios mercantes colocava obstáculo atrás de obstáculo em colocar-nos sobre a água para a nossa viagem para a Holanda.

 

O tempo tinha ficado mau, o vento a mudar de direcção de hora a hora. O desenhador que fazia as correias para os cavalos não tinha ainda chegado a Harwich com a sua necessária carga, e os mercadores locais recusavam as ofertas medianas feitas pelas suas mercadorias para abastecerem o nosso navio. Atraso em cima de atraso e então a disentería atingiu a tropa. Os humores desgastaram-se como os trapos de um pedinte. Desencadearam-se lutas e motins. A deserção rivalizava com a doença no emagrecimento das nossas outrora robustas fileiras. As pessoas da cidade gritavam em fúria e medo contra as más condições trazidas para as suas casas, mas, finalmente, fomos obrigados a embarcar, apesar do tempo manhoso.

 

O mar a toda a minha volta era uma coisa terrível de ver. Grandes ondas a rugir como montanhas em movimento erguiam-se subitamente, formando torres mais altas do que o mastro mais alto, depois desapareciam apenas para serem substituídas por outras. O Canal era uma coisa viva um monstro marítimo - e nós no nosso pequeno navio éramos um parasita na sua pele ondulada.

 

A nossa travessia, que em boas condições poderia ter demorado seis horas, chegava agora ao seu quarto perigoso dia. Hirst e Partridge haviam embarcado noutro navio uma hora depois do meu, mas tínhamo-los perdido de vista na tempestade e apenas podíamos rezar a Deus pela sua chegada a salvo, como rezávamos pela nossa.

 

Nunca anteriormente eu tinha estado no mar e a longa e apertada reclusão abaixo do convés com os meus camaradas soldados mostrou-se tão indizível que eu pensei que iria desafiar o tempo. Enquanto estava de pé na escada não conseguia, ao princípio, abrir a porta da cabina, pelo que pensei que estivesse encravada. Mas por fim ela abriu-se de repente, não, foi sugada para dentro pela força do vendaval quando mudou de direcção, e uma poderosa massa de água do mar encharcou-me instantaneamente até aos ossos. Se era a visão daquelas montanhas cinzentas em movimento ou o som da fúria dos deuses no vento gritante, isso não sei. Mas eu fiquei de repente cheio de um pavor imenso, e por isso empurrei a porta e fechei-a, depois colei-me a tremer à parede da escada. Tinha visto a Morte lá fora e era um fim mais aterrorizador do que as dores violentas agonizantes da disenteria que tinha cobrado já as vidas de vários soldados, ou a ideia do campo de batalha e os seus castigos sangrentos. Esta morte - ser engolido inteiro pelo monstro e afogar-me sozinho nas suasfrias e escuras entranhas punha-me doente. Todas as preces fugiram da minha mente. O meu corpo não conseguia parar de tremer. Eu tinha visto a Morte a erguer-se tipo monstro a toda a volta do navio, e se eu nunca mais colocasse o meu pé fora daquela porta, a Morte não obstante estaria ali à minha espera.

 

Pensei de repente na Beauty lá em baixo no porão, presa por cordas e arreios de tela tal como as dúzias de outros cavalos da cavalaria, oscilando tudo à sua volta. A simpatia invadiu-me. Devia ser um martírio, suspensos como estavam todos para segurança na travessia, com os pés a nunca tocarem o chão, os gritos de confusão e terror dos companheiros. Eu era um cobarde. Não conseguia aguentar visitá-la, tentar reconfortá-la. E também não podia ficar lá fora no convés para enfrentar a minha própria morte. Com apenas os aposentos fedorentos do general e a cozinha - agora congestionada com uma companhia de soldados enjoados - para ir, pensei que podia de facto passar o resto da travessia exactamente onde estava, nas escadas.

 

Como tinha eu vindo parar a este sítio? Seria castigo por deixar o meu pai, abandoná-lo a um fim solitário na sua casa assombrada? Que tipo de filho maldito era eu, pensei, para desaparecer sem aviso e apenas uma carta vergonhosa de explicações enviada quando estava a meio caminho da costa?

 

Mas não. Não havia agora nada a fazer, pensei, e causa alguma para dor. Eu era um adulto sem futuro na Coutada de Enfield. Não tinha havido escolha senão ir para o estrangeiro e procurar uma vida para mim. Mesmo com a minha educação de cavalheiro eu iria chafurdar. Em Inglaterra posição e dinheiro eram tudo, e eu não tinha nem uma nem outro. Talvez, como Hirst tinha sugerido naquela noite na Sows BeIIY, eu pudesse elevar a minha condição junto dos militares.

 

Então um marinheiro rude passou por mim aos tropeções com uma maldição murmurada, abriu a porta da cabina sem nenhum cuidado e mergulhou de cabeça para o abismo gritante. Quando a porta se fechou, eu dei por mim em movimento - para baixo passando pela galeria repleta, pelos aposentos, que estavam escuros com a excepção de pequenas lanternas de velas penduradas em diversos beliches. Ouvi os ruídos de dois homens a conversar, alguém a gemer, outro a vomitar. Procurei a minha cama - se podemos chamar a umas quantas tábuas e uma enxerga infestada de pulgas uma cama - e deitei-me com a cara virada para a parede.

 

Enquanto estava deitado no meu beliche amaldiçoando o exército que me tinha trazido a este vil momento, a condição mais miserável em que eu alguma vez tinha estado, senti uma estranha leveza a invadir-me. Fui súbita e forçosamente iluminado pela razão. Este navio não podia de forma nenhuma afundar-se, pois se assim acontecesse eu seguramente morreria. E eu não podia morrer agora, pois ainda não tinha vivido. O meu futuro, que eu tinha visto estendido perante mim na praia de Milford Haven cruzar o mar e explorar o mundo - estava apenas a começar. Senti-me de imediato seguro e aconcheguei-me no meu beliche, o medo todo a dar de si como a maré a esvaziar. Lentamente virei-me e fiquei deitado de costas. Inspirei profundamente. Mas o ar viciado e a escuridão fechada das camaratas, ainda a rebolar violentamente num coro de tábuas a ranger que até agora me tinha enchido de pavor, parecia apenas um lado da moeda com a qual eu tinha jogado toda a minha vida. Sol, doce vinho e tardes balsâmicas enrolado nos braços de uma bela mulher era o outro. Eu tê-los-ia a todos. Ambos os lados da moeda. E assim encorajado por esta grande iluminação abri os braços e abracei o meu destino.

 

O meu sonho de juventude tinha-se realizado - atravessara a água para uma nova terra e tornara-me um soldado de cavalaria, se bem que escondido atrás das muralhas da cidade de Haarlem na minha guarnição, onde passara vários meses sem ainda ter visto uma batalha. Desde a minha chegada à Holanda eu tinha tido a consternação de saber que a maioria da guerra nestes dias e época era uma questão de cerco - as tropas espanholas do duque de Alba cercavam uma cidade fortificada, e os residentes dessa cidade tinham uma guarnição de soldados que resistiam valentemente em isolamento durante meses, por vezes mais de um ano. Haarlem, numa das províncias mais a norte, não tinha ainda sofrido as mazelas da guerra.

 

O combate em campo aberto era escasso e muito menos excitante do que as magnificentes batalhas das fantasias da infância - milhares de soldados treinados em formações gigantescas, estandartes coloridos a esvoaçar, grandes cargas de cavalaria com reis e generais observando-as de uma alta colina. Tudo o que podíamos esperar eram escaramuças ou incursões súbitas, emboscadas que ocasionalmente se podiam desenvolver num envolvimento mais completo.

 

Pela altura em que o nosso exército voluntário desembarcou em Flushing, depois daquela maldita travessia, muitos cavalos tinham morrido no mar e outros em fracas condições foram forçados a uma marcha extensa quase de imediato, sem tempo para descansar ou acalmar os seus terrores. A Beauty foi uma campeã entre eles, talvez devido à sua excelente saúde e cuidados antes da viagem. A sua rápida recuperação e reunião comigo deram-me uma larga vantagem no começo da minha vida como soldado. Igualmente, o meu conhecimento do tratamento de animais e estudo dos métodos de Xenofonte dos cavalos em tempo de guerra mantiveram-me nas boas graças dos meus comandantes de cavalaria, a maioria dos quais era de alta condição, mas verdes, e nenhum deles sabia mais do que eu. Na marcha da costa para a nossa guarnição fui rapidamente destacado como estafeta, transportando mensagens de comandante para comandante.

 

Partridge, Hirst e eu voltámos a reunir-nos no desembarque, mas eles eram homens de infantaria e por isso fomos separados em companhias diferentes.

 

Iríamos, não obstante, ficar bons amigos que, em momentos fugazes, jogavam, bebiam e frequentavam prostitutas juntos. Eles eram toda a família que eu tinha nesta terra estranha.

 

E se ela me pareceu estranha ao início! Ao contrário de Inglaterra com a sua terra sólida de colinas, florestas e pastagens delimitada tão rigidamente por penhascos e praias, a Flandres parecia ser toda ela rios, brejos e pântanos, embora nós tenhamos de facto passado por algumas florestas de urze, pinheiros e vidoeiros. E eu nunca antes tinha visto dunas, montanhas majestosas de areia por vezes com sessenta metros de altura que se mantinham juntas devido à erva e canas que se espalhavam ao longo da costa do Canal desde uma cadeia de ilhas no Norte até Calais no Sul.

 

Ainda mais estranhos eram os diques - estruturas de granito, madeira, torrão e terra, construídas pelas tropas romanas de Júlio César e pelos primeiros holandeses para se protegerem contra o seu inimigo, o mar.

 

Haarlem, onde terminou a nossa marcha, erguia-se por trás de muros antigos e torres a desfazerem-se, embora quanto ao resto fosse uma bela e próspera cidade. Delimitada por dunas do mar do Norte a oeste, havia uma floresta de faias para sul. A este via-se um enorme lago - ao qual as pessoas da cidade chamavam um mar - e no lado oposto, à distância, encontrava-se a cidade de Amesterdão.

 

Depressa soubemos porque é que nós, os Ingleses, estávamos ali nos Países Baixos, e não era tanto naqueles tempos para defender os nossos parceiros de há muito no comércio das cruéis hordas espanholas, mas antes para proteger o nosso próprio comércio. Não obstante, os Holandeses receberam-nos de braços abertos, e nós éramos livres de ir e vir dentro da cidade desde que obedecêssemos às regras da nossa guarnição que atribuía grandes multas a bebedeiras, ao jogo, a praguejar, ou à pancadaria. Abusar de mulheres com crianças, idosos, jovens virgens ou bebés era estritamente proibido. Pelo crime de abandono da vigilância, o castigo era a perda de ambas as orelhas e ser banido, e por roubar armas, deserção ou motim, a morte. Éramos cada um e todos os soldados obrigados a rezar na igreja duas vezes por dia e não nos permitiam quaisquer mulheres excepto esposas, embora todos os homens que eu conhecesse arranjassem maneira de contornar essa regra.

 

Era um triste facto, percebemos nós, que os nossos capitães fossem homens de virtude corrompida. Eles eram a ligação entre a companhia e o comando mais alto no que diz respeito a armar, alimentar e vestir os seus homens. Recebiam o dinheiro deles "por homem" e por isso quantos mais homens, mais dinheiro. E estes capitães encontraram muitas maneiras de fazer parecer que tinham alistado mais homens do que realmente acontecia. Podiam dispensar um homem de forma a embolsar o ordenado dele. Pior, podiam mandar um homem de que não gostavam em missões perigosas e desesperadas, sabendo que ele não regressaria. A esta prática chamávamos "paga dos mortos", mas não tínhamos qualquer recurso, nenhuma opção a não ser obedecer às ordens. Achei os Holandeses tão industriosos e incansáveis como eu nunca tinha conhecido ninguém. Era estranho ver as mulheres a transportar bens sobre as suas cabeças e costas, e ainda mais estranho vê-las com as suas cangas de madeira nos ombros erguendo fardos de que um homem inglês se afastaria envergonhado. Eram pessoas sóbrias e sensíveis, talvez demasiado para o meu gosto, na medida em que franziam o sobrolho ao teatro de que eu de facto gostava. Mas a sua natureza austera tornara a cidade segura e ordeira, nas ruas da qual um homem ou mulher podiam andar sozinhos de dia ou de noite sem recearem pelas suas vidas ou membros.

 

Num belo domingo de Primavera, depois do serviço religioso, não consegui demover Partridge e Hirst de procurarem prostitutas, e decidi ir eu próprio num passeio decente pela cidade de Haarlem. A guarnição dos meus companheiros espraiava-se pelo lado do mar da muralha da cidade e assim eu parti em direcção da Grande Igreja cujo pináculo me levou ao centro da cidade. Parecia-me que era tudo água e tijolos vermelhos, com tantos canais como avenidas, largos e estreitos e muitas pontes baixas e extensas em arco. As pontes eram de tijolo vermelho como o pavimento das ruas, e as casas também. Os canais nesse domingo estavam mais sossegados do que durante a semana, quando se encontravam cheios com sumacas e barcaças de pesca com as suas mercadorias, as mais coloridas repletas de tulipas. Os Holandeses eram tão loucos pelas suas tulipas que por vezes um bolbo de uma cor rara podia atingir o preço de uma casa, ou o dote de uma rapariga rica.

 

Dirigí-me à praça da cidade que fervilhava de humanidade próspera e saudável. Era difícil acreditar que se combatia não longe daqui. De todos os belos edifícios apenas a Câmara Municipal e a Grande Igreja, com a sua torre de campanário moldada em forma de bolbo de tulipa, estavam abertas. Os serviços religiosos há muito que tinham acabado, por isso eu entrei na igreja para a encontrar tão branca e despida quanto as nossas catedrais inglesas estavam ornamentadas, com um tecto de madeira de cedro ligeiramente cheirosa, e uma escada que me levou à torre do campanário.

 

Olhando para baixo, dali via toda a cidade de Haarlem desde a praça. Olhando à volta vi o mar do Norte encapelado do qual eu quase não tinha escapado com vida, a grande floresta e o lago na outra margem onde e à distância conseguia ver os campanários de Amesterdão.

 

De volta à praça, lá em baixo vagueei, passando por belas lojas todas fechadas neste domingo mas, para grande curiosidade minha, cada uma, a alardear ramos de folhas verdes pendurados nas soleiras das portas. Eu tinha acabado de parar para ponderar sobre esta estranha decoração quando me apercebi de um rebuliço vindo do fundo da avenida a dirigir-se a mim. Lembrei-me daquela procissão de adúlteros em Maidstone e esperei que esta não fosse uma tão solene incursão que me viesse estragar ofeliz dia.

 

Para gáudio meu não o era, embora fosse algo tão estranho para mim que me ri alto quando soube da sua natureza. Era uma parada de manifestantes e músicos rodeando um coche elegante puxado por seis cavalos, cheio de arenque até às janelas! Um grande ramo das mesmas folhas verdes que decoravam as soleiras das lojas decorava o topo do coche de peixe. Enquanto ele rodava de volta para a praça eu segui-o.

 

Dois jovens entre esta multidão prenderam-me o olhar, pois eram idênticos na forma e traços. Os mesmos olhos a combinar com a luz serena do céu azul, as mesmas bochechas rosadas, pequenos narizes, bocas amplas e agradáveis. O mesmo cabelo louro. No entanto um era um rapaz e a outra uma rapariga, talvez com quinze anos. Falei-lhes em holandês, aquelas palavras que eu tinha aprendido desde a minha chegada à Holanda, e a rapariga deu uma risadinha ao ouvir a minha pronúncia. O irmão, Para minha surpresa, respondeu-me em inglês - um belo inglês, aliás. Eles eram Dirk e Jacqueline Hoogendorp, residentes de Haarlem. Ficaram tão satisfeitos de me conhecerem como eu de os conhecer a eles, e prosseguiram explicando-me que a procissão na qual todos tomávamos parte - bem como as folhas que decoravam as soleiras das portas das lojas - honrava a primeira pesca da estação do precioso arenque, agora a ser entregue com grande pompa e circunstância na Câmara Municipal.

 

Eram mais do que amigáveis, estes dois. Para além de me obsequiarem com informações sobre a sua cidade e a importância do arenque na sua cultura - os Holandeses são apaixonados no que toca a este peixe, quer ao natural, branco ou vermelho, fumado, seco, salgado, em escabeche ou cozido - convidaram-me para casa deles para o jantar de domingo, e eu aceitei imediatamente.

 

A uniformidade das ruas residenciais, a semelhança das filas de estreitas casas de tijolo, com três andares e três janelas em cada andar, encheu-me de interrogações sobre como é que eles conseguiam distinguir entre elas a sua própria casa. E a cidade era limpa, tão limpa que eu me maravilhei com isso, com as donas de casa mesmo no Dia do Senhor a varrerem os seus bem esfregados terraços com impecáveis pares de socas de madeira alinhados junto à porta.

 

Tagarelando o tempo todo, Dírk e Jacqueline levaram-me finalmente ao número 24 da Blancken Stadt numa serenafileira de casas do lado oposto a um canal de três vias. Tirámos os sapatos e subimos por uma escada escura e estreita para darmos por nós numa sala luminosa de um lar holandês confortável mas simples, belíssimos cheiros de comida a chegarem em lufadas vindos da cozinha. Fui convidado a sentar-me e, momentos depois Jacqueline voltou segurando a mão de uma matrona de avental, toda coberta por uma nuvem de farinha de bolos, muito rechonchuda com os mesmos olhos azul-céu que os seus filhos, e uma gargalhada alegre. Era a mãe dos gémeos. Deu-me as boas-víndas calorosamente em holandês, e Jacquelíne traduziu, dizendo que era bom ter outro jovem à sua mesa, uma vez que três dos seus outros filhos tinham ido para a guerra, tendo apenas restado Dírk que era demasiado jovem.

 

A sala de jantar por trás da sala principal era sombria, e mesmo durante o dia alumiada por velas, uma vez que as únicas janelas na casa comprida e estreita eram as da frente. lá sentado no extremo da mesa estava Jan Hoogendorp, um homem alto e seco com mangas enroladas à volta dos seus bem musculados braços, possuindo a ampla boca dos seus gémeos. Estando todos nós sentados a mesa estava ainda apenas meio cheia, e eu conseguia facilmente imaginá-la a transbordar com os seus robustos filhos. Fui convidado a sentar-me, e a minha boca aguava à medida que a mãe e Jacqueline traziam pratos de arenque, couves e tortas pálidas a deitar vapor.

 

Jan era, como vim a saber, um pescador, proprietário de vários barcos que percorriam as águas do mar do Norte. Só essa informação me levou a olhar para ele, noutros aspectos inofensivo, homem com temor respeitoso. Pensar que alguém iria uma vez após outra por opção para a barriga daquele terrível monstro fazia-me tremer. Admiti para com Jan o meu medo do mar e minha aversão a ele.

 

- Aqui na Holanda a água é o nosso elemento - disse ele em bom inglês, que aprendera para o seu negócio, vendendo centenas de barris de peixe salgado para o estrangeiro. - Vivemos dele, morremos nele. Mas sobretudo aprendemos a dominá-lo. Esta terra que vês a toda a tua volta, roubámo-la ao mar.

 

Dirk interrompeu:

 

- Aqui dizemos: "Deusfez o mar, os homens da Holanda a margem."

- Sim - continuou o seu pai. - É um país artificial feito por holandeses que apenas pela sua vontade o preservam. Mas como o arenque, não é para o gosto de todos. - Pegou num peixe frito inteiro e encheu a boca com ele.

 

- O rei Filipe chama à Holanda o país mais perto do Inferno - disse-me Dirk com um ar sério.

 

- E ele deve saber - acrescentou Jacqueline, pois é o Diabo em pessoa.

- Filipe - disse a Mãe irritada, com o próprio nome a soar como uma blasfémia. Ela tinha porfim tomado o seu lugar à mesa e começava a encher o seu próprio prato de comida. Embora não falasse inglês conhecia o nosso tema e estava ansiosa de comentá-lo em holandês, com a sua cara rosada transformando-se numa violenta sombra de vermelho à medida quefalava. Jacquelíne traduziu as palavras da mãe para mim.

 

- Ele representou problemas desde o dia da abdicação do seu bom pai. Filipe odiava os Países Baixos. Não veio cá senão duas vezes em toda a sua vida e queria transformar-nos a todos em espanhóis. E quando lhe dissemos não, à sua fedorenta Inquisição e aos seus autos-de-fé, enviou o seu monstruoso duque e o seu exército assassino para nos destruir. Executou doze mil dos nossos cidadãos e dois dos nossos mais altos dignitários! Tudo o que desejamos é governarmo-nos a nós próprios e rezar à nossa maneira. Se me perguntarem, digo-vos que ele é uma minhoca arrogante, de lábios gordos que nem sequer gosta de comida! - disse amãe, espetando uma torta. Nunca se deve confiar numa pessoa que não aprecia comer.

 

Verdadeiramente, eu estava a encontrar uma nova educação nesta mesa de jantar.

 

- Então Filipe governa a Holanda a partir de Espanha? - perguntei eu.

 

- A tia, Margarida de Parma, é a governadora-geral dos Países Baixos, mas ela age completamente sob as ordens do rei - respondeu Jan.

 

Vi os gêmeos a rir entre eles e exigi saber o que é que tinha tanta piada.

- Margarida de Parma tem um bigode - disse Jacqueline por entre o riso como resposta.

 

- E uma barba peluda - acrescentou Dirk, acariciando o queixo.

 

- Mas o que não tem piada" proclamou Jan -, é o que o rei fez ao homem que nos salvaria de toda esta perseguição. Guilherme de Orange foi em tempos um príncipe próspero e amado por todos. Agora, porque desafia Filipe, é um fugitivo, sem dinheiro, tendo vendido as suas terras e possessões para sustentar a nossa rebelião.

 

A mãe abanava a cabeça veementemente, ao ouvir o nome de Guilherme.

- Pai da Pátria - conseguiu ela dizer atabalhoadamente, e todos aplaudiram os seus esforços no inglês. Então ela regressou ao holandês.

 

- Este pobre homem que deu tudo pela liberdade dos seus conterrâneos sofreu tanto - traduziu Jacquelíne. - A sua primeira mulher era uma megera terrível, e uma bêbeda também, que fugiu com outro homem. Essa é a verdade de Deus! E então o duque de Alba, a efígie do Diabo, raptou o filho único de Guilherme e mandou-o como prisioneiro para Espanha onde ainda vive hoje. Imaginem, ele pode nunca mais ver o filho. Ah, ele sofreu tanto! Quando o seu exército foi derrotado pela primeira vez e ele foi transformado num fora-da-lei na sua própria terra, Guilherme percorreu o país num velho e triste cavalo e foi obrigado a escrever à mãe para lhe encontrar um par dos seus calções velhos afim de estar apresentável quando fosse as cortes estrangeiras pedir dinheiro para a causa. Pobre homem! Pelo menos tem a alegria da sua nova mulher. Lady Charlotte, é o nome dela. Sabias que ela foi em tempos a abadessa de um convento católico que fugiu com ele e renunciou à fé para se tornar uma calvinista? É muito bonita, diz-se. E eles têm três raparigas. Queres mais torta, Arthur?

 

Bem, eu comi mais tortas e mais arenques e bebi mais cerveja até pensar que ia rebentar. Toda a tarde a ouvir as histórias da mãe e a tradução de Jacquelíne, comecei a interpretar a língua holandesa de uma forma nova, e aprendi uma grande quantidade de palavras novas e o seu significado. O senhor Jarrett tinha razão. Eu de facto tinha ouvido para as línguas. Era um dom, e fiz um voto silencioso de lhe dar uso.

 

Então Jacqueline perguntou abruptamente:

 

- Porque é que usas apenas uma luva, Arthur?

 

- Cobre uma mão deformada - respondi-lhe. Sem pensar, pela primeira vez não tinha utilizado a mentira sobre as cicatrizes de uma queimadura grave.

 

- Posso ver? - perguntou ela sem maldade.

- Jacqueline! - exclamou Jan severamente.

 

Mas eu sentia-me confortável com esta família e, de repente, a deformidade pareceu-me trivial, pois sabia que não seria julgado por causa dela. Tirei a luva e coloquei a minha mão sobre a mesa. Jacquelíne sobressaltou-se de deleite.

 

- Um dedo extra! - exclamou ela.

 

- Quase não é um dedo - argumentou o irmão -, só um bocado de carne - e dirigindo-se-me perguntou: - Porque a cobres com uma luva, Arthur? Eu não respondi de imediato. Nunca tinha pensado nisso, tinha simplesmente usado sempre a luva. Mas sabia agora que era por vergonha. A vergonha da minha mãe.

 

- Não vos é desagradável à vista? - perguntei eu.

 

- De forma nenhuma! - exclamou Dirk. A gémea concordou veementemente.

 

- Então não usarei mais a luva - anunciei, surpreendendo-me até a mim próprio.

 

- Posso ficar com ela então? - perguntou Jacqueline a colocar a luva e desta vez a horrorizar a sua mãe.

 

Com gravidade fingida, entreguei-lhe o símbolo da minha dor de infância e pensei que não haveria um guardião mais perfeito para ela do que esta jovem rapariga de coração doce e aberto.

 

Tínhamos começado a devorar um rico pastel de manteiga e mel quando Dirk pediu ao pai permissão para se juntar à resistência. Mas a visão da cara jovial da mãe a ruir num charco de lágrimas, e Jan a dizer, "E então quem me vai ajudar com os barcos?", suprimiram qualquer discussão, embora eu pensasse que tinha visto um estranho cintilar nos olhos da irmã quando Dirk expôs a sua petição apaixonada. Parecia também que a própria Jacqueline desejava lutar contra os Espanhóis, embora naturalmente isso fosse a bem dizer impossível, pois ela era uma mulher. Ninguém além de mim tinha visto a cintilação e eu não pensei mais nisso, julgando que tinha sido apenas um reflexo da luz das velas nuns belos olhos azuis.

 

Quando me despedi dos Hoogendorp fui obrigado a prometer que regressaría sempre que possível, e que pensaria na casa deles como a minha própria casa numa terra estranha. Juro que nunca soube o verdadeiro significado da hospitalidade até esse dia ou como seria o amor maternal. Fiquei de repente aquecido e entristecido, pois a minha própria mãe pouco mais me tinha mostrado do que as costas da sua mão durante toda a minha vida.

 

Depressa deixei de ter tempo para pensar nisso. Alba estava de novo em movimento.

 

Um dos seus mais recentes alvos tinha sido a cidade de Leyden. O cerco durara seis meses, com os cidadãos desesperados e a morrer de fome, os espanhóis a cercá-los por terra em fortes que haviam construido, e afrota holandesa ancorada, impotente, do lado de fora dos diques. Guilherme de Orange, sem outra forma de os salvar, incitara as pessoas da cidade a abrirem os seus diques, a abrirem as comportas de forma a que a terra ficasse inundada, permitindo a entrada dos navios dos Pedintes do Mar. As pessoas gritaram que os seus ricos pólderes ficaríam arruinados pela água salgada, mas Guilherme insistira dizendo: "É melhor uma terra afogada do que uma terra perdida." Por fim ganhara o desespero e assim se fez. O dique foi aberto subitamente e o mar entrou apressadamente, os navios holandeses passando também pela brecha. Diz-se que estes marinheiros eram de facto uma visão temerosa, foras-da-lei do oceano dançando selvaticamente nos conveses, rosnando, com caras negras de fuligem, sabres presos nos dentes, e os seus gritos de guerra, "Melhor turcos que papistas!", ecoando na superfície deste novo mar.

 

O embate final deu-se no meio de uma terrível tempestade à meia-noite, com alguns navios espanhóis a navegarem ao encontro dos zelandeses cujos navios de fundo chato navegavam melhor nas águas pouco profundas. Dizem que a batalha foi travada por entre a brilhante incandescência dos tiros de canhão e grandes raios de luz, tudo isto entre as copas das árvores e os telhados de casas submersas, os marinheiros holandeses a saltarem para a água e a empurrarem os seus navios apenas alimentados pela fúria humana. Os espanhóis, que nunca tinham visto nada assim, ficaram paralisados pelo terror, os seus navios abordados e queimados, e as fortalezas capturadas por piratas gritantes que os despachavam com arpeus de abordagem e espadas sangrentas, e os lançavam de cabeça para o oceano. As tropas de Alba eram assim expulsas de Leyden e a vitória alcançada. Mas esta era uma entre muitas derrotas, e os espanhóis dirigiam-se outra vez para norte.

 

No pico do Verão foi enviado um despacho aos nossos comandantes em Hatirlem dizendo que os espanhóis tinham construido um forte perto de Gotida, a cinco dias de viagem para sul da nossa guarnição. Foi tomada a decisão de atacar, e com grande consternação dos burgueses de Haarlem, quase todas as fileiras inglesas iriam participar. Juntos éramos uma força de mil e quinhentos homens, infantaria e cavalaria combinadas - ou foi isso o que o inspector disse e o que foi dito ao Alto Comando, embora na realidade não fôssemos mais do que mil e duzentos, se tanto. A discrepância, resultado de abusos de corrupção e da paga dos mortos, parecia de pouca importância quando partimos em boa disposição e formação, os uniformes engomados, as botas engraixadas e polidas, os carros de artilharia a ribombarem pelas ruas de tijolo vermelho de Haarlem abaixo e para fora dos antigos portões.

 

Na direcção do sul passámos pelos campos branqueados com milhas de panos da Holanda - belos lençóis brancos - espalhados como um perfeito mar branco debaixo do sol abrasador. Então atravessámos uma espessa floresta de faias que me proporcionou os meus primeiros sobressaltos de saudades de casa, pois os amplos caminhos e a verdejante e luxuriante abóbada de árvores, o cheiro a terra húmida, musgo e cogumelos, o som de um cantar de pássaro, tudo evocava a Coutada de Enfield e a minha agridoce infância. Agora eu estava na companhia de homens a marchar para a guerra, e à medida que ultrapassávamos a floresta familiar e entrávamos na paisagem holandesa que era tão estranha aos meus sentidos, eu senti algo em mim a morrer, embora a morte nãofosse nem dolorosa nem aterrorizadora. Sentado no meu alto cavalo olhei para trás uma vez e vi atrás de mim o bosque do qual tínhamos emergido, e deslizando dele parafora como uma comprida serpente o exército do qual eufazia parte. Nesse instante renasci como soldado.

 

Estávamos a dois dias de caminho quando a estupidez natural do nosso capitão, o jovem Lord Holcomb, se manifestou. Ao meio-dia mandou parar a nossa companhia e anunciou que íamos agora praticar formações. Os homens dele, de pé em sentido debaixo de um sol tórrido esperando mais ordens, observaram enquanto o nobre míope - elegante no seu gibão engomado de fustão com face de tafetá azul - esquadrinhava através dos seus óculos com aros de latão um pequeno volume que eu reconheci como sendo o livro de textos militares de Leonard e Thomas Digges, Stratioticos. Eu tinha frequentemente visto Holcomb debruçado sobre este tratado que calculava várias formações de marcha e batalha através da álgebra e aritmética, e perguntava-me se a falta da sua experiência prática, juntamente com a expressão perplexa no rosto quando contemplava a passagem em Digges, não iriam representar problemas para a nossa companhia.

 

- Muito bem então - disse ele na sua voz mais autoritária que, ainda assim, ciciava com nervosismo. - Iremos executar a Manobra do Anel. Assim com um olho no livro conduziu-nos a marchar em fila única à volta numa série de círculos cada vez mais pequenos em cujo centro, para consternação dele e divertimento abafado dos seus homens, deu por si subitamente encurralado. - Para trás, para trás, ordeno! Dêem-me luz para ver o meu livro! - gritou ele com irritação. Então, completamente nervoso, abriu caminho com os cotovelos para fora da espiral de humanidade e gritou petulantemente: - Em formação, armas ao ombro, em frente marche!

 

Mas esse não foi o fim dos nossos problemas. Os camponeses tinham abandonado os seus pólderes, levando consigo as suas vacas e provisões de cereal, por isso depressa começámos aficar sem rações - uma eventualidade que o nosso inepto intendente não tinha sequer levado em linha de conta. Os nossos cavalos estavam melhor alimentados do que nós, e os sons dos homens rabugentos e dos estômagos a rugir era ouvido por todo o lado.

 

Na manhã do quarto dia fui chamado perante Lord Holcomb. A tenda dele era muito boa, fornecida de baixela de prata e com pesadas tapeçarias penduradas para afastar o frio da manhã, peles no seu amplo alpendre. Um ajudante estava sentado a polir a espada do capitão enquanto Holcomb e dois outros líderes de companhia, Billings e Medford - ambos mais velhos e esperava eu, que mais sábios - estavam de pé a olhar para um mapa da Holanda. Holcombfez o seu melhor para parecer estar a comandar, embora eu pensasse que ele não estava muito diferente do nervoso cativo do seu próprio exercício de formação circular.

 

- Sir - disse eu chamando a atenção.

 

- Precisamos de um cavaleiro rápido e de um cavalo são - disse ele evitando os meus olhos para admirar as suas unhas que estavam muito mais limpas do que as minhas.

 

- Sou eu, Sir, e o meu cavalo está em boa forma - respondi eu.

 

- As nossas companhias prosseguirão no sentido de Gouda, e o general Morely prometeu reforços da guarnição de Amesterdão. Irás localizar o quartel-general dos rebeldes que nós pensamos ser algures nesta área. Colocou os dedos sobre uma secção do mapa que em Inglaterra compreenderia uma paróquia inteira, embora eu soubesse que não valia a penafazer-lhe mais perguntas, pois se ele soubesse a localização da resistência holandesa ter-me-ia dito. Os outros dois capitães, apesar de mais velhos, não se mostraram mais conhecedores ou interessados do que este verde rapaz, e por isso esperei.

 

- Encontrarás Guilherme, príncipe de Orange - disse ele.

- Sir - disse eu, incapaz de conter a minha excitação. Ele continuou no que pareceu um tom de tédio.

 

- Informá-lo-ás dos nossos movimentos e da nossa proposta de cerco do forte espanhol perto de Gotida, e dos reforços de Amesterdão.

 

- E que mensagem quereis de volta da parte dele, Sir?

 

- Não precisamos de uma resposta, soldado Southem, Se ele desejar conceder o apoio do seu "exército" - Holcomb trocou olhares de desdém com os seus colegas oficiais -, é muito bem-vindo.

 

Subitamente ocorreu-me que estes homens mais velhos, embora corressem rumores de que tinham boa experiência de campo, estavam mais abaixo na hierarquia civil do que Holcomb, e que ainda não tinham reunido a coragem da sua igualdade militar com um homem de tão alta condição, por isso deixavam-no comandar.

 

- Traz-nos notícias da posição dele quando o tiveres encontrado continuou Holcomb - e exige saber os movimentos dele nos próximos meses.

 

- Peço perdão, Sir... posso eu exigir uma tal informação a um príncipe? Holcomb respondeu-me com um olhar fulminante.

 

- Vai imediatamente e não voltes enquanto não o tiveres encontrado. Está claro?

 

- Está, sim, Sir - disse eu, e virando-me rapidamente nos calcanhares das minhas botas empurrei o pano da tenda e saí para a manhã húmida. Fiz as malas leves com as minhas coisas para criar espaço para a comida extra da Beauty, atei' aos lados da sela as duas pistolas entregues aos cavaleiros e analisei o meu equipamento. Os oficiais não o tinham dito, mas eu sabia que era uma missão perigosa, um soldado inglês solitário a cavalgar em campo aberto - um alvo fácil para as armas espanholas. Assim enquanto me propus cavalgar com o gibão e a sotaina de tela da minha companhia, e de capacete de metal, escondi debaixo delas o trajo que um mercador holandês poderia utilizar para uma viagem até Amesterdão.

 

Antes de me ir embora procurei Hírst e Partrídge no acampamento deles. Fui dar com Hirst ocupado, preparando-se para carregar as armas naquele dia - uma tarefa de facto entediante.

 

- Onde está o nosso rechonchudo Partridge? - perguntei eu, saltando da sela.

 

- Lá dentro ainda. Um raio de um maníaco, é o que ele é, com o seu livro de cifras.

 

- Oh, um maníaco, é o que eu sou? - disse o nosso amigo enquanto carregava para fora da tenda um arcabuz e uma braçada de equipamento...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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