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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BOSQUE DOS PIGMEUS / Isabel Allende
O BOSQUE DOS PIGMEUS / Isabel Allende

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A uma ordem do guia, Michael Mushaha, a caravana de elefantes parou. Começava o calor sufocante do meio-dia, quando os animais da vasta reserva natural descansavam. A vida parava por algumas horas, a terra africana transformava-se num inferno de lava ardente e até as hienas e os abutres procuravam a sombra. Alexander Cold e Nadia Santos montavam um macho caprichoso chamado Kobi. O animal afeiçoara-se a Nadia porque, durante aqueles dias, ela se esforçara por aprender as bases da língua dos elefantes e por comunicar com ele. Nos longos passeios que faziam, falava-lhe do seu país, o Brasil, uma terra longínqua onde não havia animais tão grandes como ele, excepto umas antigas criaturas fabulosas escondidas no coração impenetrável das montanhas da América. Kobi apreciava Nadia tanto quanto detestava Alexander e não perdia uma oportunidade de demonstrar esses sentimentos.

As cinco toneladas de músculos e gordura de Kobi detiveram-se num pequeno oásis, sob umas árvores cobertas de pó alimentadas por um charco de água que parecia chá com leite. Alexander tinha desenvolvido um método próprio para se atirar ao chão de três metros de altura sem se magoar muito porque, nos cinco dias de safari, ainda não conseguira a colaboração do animal. Não se deu conta de que Kobi se tinha colocado de tal maneira que, ao cair, o fez aterrar no charco, afundando-se até aos joelhos. Borobá, o macaquinho preto de Nadia, saltou-lhe para cima. Ao tentar livrar-se do macaco, perdeu o equilíbrio e caiu sentado. Praguejou entre dentes, sacudiu Borobá e pôs-se de pé com dificuldade, sem ver nada, porque os seus óculos pingavam água suja. Procurava um pedaço limpo da camisa para os limpar quando recebeu uma trombada nas costas, que o deitou de bruços. Kobi esperou que ele se levantasse para dar meia volta, colocar o seu traseiro monumental em posição e soltar depois uma estrondosa ventosidade diante da cara do rapaz. Um coro de gargalhadas dos outros membros da expedição festejou a graça.

Nadia não tinha pressa de descer, preferiu esperar que Kobi a ajudasse a chegar a terra firme com dignidade. Pisou o joelho que ele lhe ofereceu, apoiou-se na tromba e chegou ao chão com a leveza de uma bailarina. O elefante não tinha estas considerações por mais ninguém, nem sequer por Michael Mushaha, por quem sentia respeito, mas não afecto. Era um animal com princípios claros. Uma coisa era passear turistas em cima do lombo, um trabalho como qualquer outro, pelo qual era remunerado com excelente comida e banhos de lama, e outra, muito diferente, era fazer habilidades de circo por um punhado de amendoins. Gostava de amendoins, não podia negá-lo, mas dava-lhe mais prazer atormentar pessoas como Alexander. Por que embirrava com ele? Não tinha a certeza, era uma questão de pele. Aborrecia-o que estivesse sempre perto de Nadia. Havia treze animais na manada, mas ele tinha de montar com a rapariga; era muito pouco delicado da sua parte intrometer-se dessa forma entre Nadia e ele. Não se dava conta de que eles precisavam de privacidade para conversar? Uma boa trombada e um pouco de vento fétido de vez em quando era o mínimo que aquele tipo merecia. Kobi lançou um longo sopro quando Nadia pisou terra firme e lhe agradeceu, pespegando-lhe um beijo na tromba. Aquela rapariga tinha boas maneiras, nunca o humilhava oferecendo-lhe amendoins.

 

 

 

 

― Aquele elefante está apaixonado por Nadia ― troçou Kate Cold.

Não agradava a Borobá o cariz da relação de Kobi com a sua dona. Observava-os bastante preocupado. O interesse de Nadia por aprender a língua dos paquidermes podia ter consequências perigosas para ele. Não estaria a pensar trocar de mascote? Talvez tivesse chegado a hora de se fingir doente para recuperar na totalidade a atenção da dona, mas receava que ela o deixasse no acampamento fazendo-o perder os passeios magníficos pela reserva. Esta era a sua única oportunidade de ver os animais selvagens e, por outro lado, não convinha afastar os olhos do seu rival. Instalou-se no ombro de Nadia, deixando bem claros os seus direitos e, daí, ameaçou o elefante com um punho.

― E este macaco está ciumento ― acrescentou Kate.

A velha escritora estava habituada às mudanças de humor de Borobá, porque partilhava com ele o mesmo tecto há quase dois anos. Era como ter um homenzinho peludo no seu apartamento. Foi assim desde o princípio porque Nadia só aceitou ir para Nova Iorque estudar e viver com ela se levasse Borobá. Nunca se separavam. Estavam tão agarrados que conseguiram uma licença especial para que pudesse ir à escola com ela. Era o único macaco na história do sistema educativo da cidade que frequentava as aulas regularmente. Kate não se admiraria que ele soubesse ler. Tinha pesadelos nos quais Borobá, sentado no sofá, de óculos e um copo de brandy na mão, lia a secção econômica do jornal.

Kate observou o estranho trio formado por Alexander, Nadia e Borobá. O macaco, que tinha ciúmes de qualquer criatura que se aproximasse da dona, começou por aceitar Alexander como um mal inevitável e, com o tempo, afeiçoou-se a ele. Talvez se tenha dado conta de que, neste caso, não lhe convinha colocar a Nadia o ultimato de «ou ele ou eu», como costumava fazer. Quem sabe qual dos dois ela teria escolhido... Kate pensou que os dois jovens tinham mudado muito nesse ano. Nadia faria quinze anos e o neto dezoito. Já tinham a aparência e a seriedade de adultos.

Nadia e Alexander também tinham consciência dessas mudanças. Durante as separações obrigatórias, correspondiam-se com uma tenacidade demencial por correio electrónico. Passavam a vida a martelar as teclas do computador num diálogo interminável, partilhando desde os pormenores mais entediantes das suas rotinas até às angústias filosóficas próprias da adolescência. Trocavam fotografias com frequência, mas isso não os preparou para a surpresa que tiveram ao ver-se cara a cara e verificar como tinham crescido. Alexander deu um pulo enorme e atingiu a altura do pai. As suas feições definiram-se e, nos últimos meses, tinha de se barbear diariamente. Por outro lado, Nadia já não era a menina mirrada com penas de papagaio enfiadas na orelha que ele conhecera no Amazonas há alguns anos; agora podia adivinhar-se a mulher que seria dentro de pouco tempo.

A avó e os dois jovens estavam no coração de África, no primeiro safari em elefante efectuado para turistas. A ideia partiu de Michael Mushaha, um naturalista africano licenciado em Londres, que achou ser essa a melhor aproximação à fauna selvagem. Os elefantes africanos não se domesticavam facilmente, como os da índia e de outros lugares do mundo, mas, com paciência e prudência, Michael conseguira-o. No folheto publicitário explicava-o em poucas frases: «Os elefantes fazem parte do meio e a sua presença não afasta os outros animais; não precisam de gasolina nem de estradas, não contaminam o ar, não chamam a atenção.»

Quando Kate Cold foi contratada para escrever um artigo a esse respeito, Alexander e Nadia estavam com ela em Tunkhala, a capital do Reino do Dragão de Ouro. Tinham sido convidados pelo rei Dil Bahadur e pela mulher, Perna, para conhecerem o seu primeiro filho e assistirem à inauguração da nova estátua do dragão. A original, destruída numa explosão, foi substituída por outra idêntica, fabricada por um joalheiro amigo de Kate.

Pela primeira vez, o povo daquele reino dos Himalaias tinha a oportunidade de ver o misterioso objecto da lenda, só acessível anteriormente ao monarca coroado. Dil Bahadur decidiu expor a estátua de ouro e pedras preciosas numa sala do palácio real, por onde as pessoas desfilaram para a admirar e depositar as suas oferendas de flores e incenso. Era um espectáculo magnífico. O dragão, colocado sobre uma base de madeira policromática, brilhava à luz de cem lâmpadas. Quatro soldados, vestidos com os antigos uniformes de gala, com os seus chapéus de pele e penachos de penas, montavam guarda com lanças decorativas. Dil Bahadur não permitiu que se ofendesse o povo com uma desnecessária exibição de medidas de segurança.

Acabara de terminar a cerimónia oficial de inauguração da estátua quando avisaram Kate Cold de que tinha um telefonema dos Estados Unidos. O sistema telefónico do país era antiquado e as comunicações internacionais eram uma confusão, mas, depois de muito gritar e repetir, o editor da revista International Geographic conseguiu que a escritora compreendesse a natureza do seu próximo trabalho. Tinha de partir imediatamente para África.

― Terei de levar o meu neto e a sua amiga Nadia, que estão aqui comigo ― explicou ela.

― A revista não paga esses gastos, Kate! ― replicou o editor, a uma distância sideral.

― Nesse caso não vou! ― guinchou ela por resposta.

E foi assim que, alguns dias mais tarde, chegou a África com os dois jovens e aí se juntou aos dois fotógrafos que trabalhavam sempre com ela: o inglês Timothy Bruce e o latino-americano Joel González. A escritora tinha prometido não voltar a viajar com o neto e com Nadia, que lhe tinham feito passar por muitos sustos nas duas viagens anteriores, mas pensou que um passeio turístico a África não representava qualquer perigo.

 

Um empregado de Michael Mushaha recebeu os membros da expedição quando aterraram na capital do Quénia. Deu-lhes as boas-vindas e levou-os ao hotel para descansarem, porque a viagem tinha sido extenuante: apanharam quatro aviões, atravessaram três continentes e voaram milhares de milhas. No dia seguinte levantaram-se cedo e foram dar uma volta pela cidade, visitar um museu e o mercado, antes de embarcarem na avioneta que os levaria ao safari.

O mercado ficava num bairro popular rodeado por uma vegetação luxuriante. As ruelas por pavimentar estavam repletas de gente e de veículos: motas com três e quatro pessoas em cima, autocarros desconjuntados, carroças puxadas à mão. Os mais variados produtos da terra, do mar e da criatividade humana ofereciam-se ali, desde chifres de rinoceronte e peixes dourados do Nilo, até armas de contrabando. Os membros do grupo separaram-se, combinando encontrar-se dentro de uma hora numa determinada esquina. Era mais fácil dizer que cumprir porque na barafunda e na confusão não era possível orientar-se. Receando que Nadia se perdesse ou que a atropelassem, Alexander deu-lhe a mão e foram juntos.

O mercado era uma amostra da variedade de raças e culturas africanas: nómadas do deserto; esbeltos cavaleiros nos seus cavalos engalanados; muçulmanos com turbantes elaborados e meio rosto tapado; mulheres de olhos ardentes com desenhos azuis tatuados na cara; pastores nus de corpos decorados com barro vermelho e greda branca. Centenas de crianças corriam descalças entre matilhas de cães. As mulheres eram um espectáculo: algumas traziam na cabeça vistosos lenços, rígidos de goma, que de longe pareciam as velas de um barco; outras andavam com o crânio rapado e colares de contas dos ombros ao queixo; umas cobriam-se com metros e metros de tecidos em cores brilhantes; outras andavam quase nuas. O ar enchia-se de uma tagarelice incessante em várias línguas, música, risos, apitos, lamentos de animais que matavam ali mesmo. O sangue jorrava das mesas dos carniceiros e desaparecia no pó do chão, enquanto galináceos pretos esvoaçavam a pouca altura, prontos para agarrar nas vísceras.

Alexander e Nadia passeavam maravilhados por aquela festa de cor, parando para regatear o preço de uma pulseira de contas de vidro, saborear um pastel de milho ou tirar uma fotografia com a câmara automática barata que tinham comprado à última hora no aeroporto. De repente foram de encontro a uma avestruz que estava amarrada pelas patas esperando a sua sorte. O animal - muito mais alto, forte e bravo do que imaginaram - observou-os de cima com infinito desdém e, sem aviso prévio, dobrou o longo pescoço e deu uma bicada a Borobá, que ia empoleirado na cabeça de Alexander, firmemente agarrado às suas orelhas. O macaco conseguiu esquivar o golpe mortal e pôs-se a guinchar como um louco. A avestruz, batendo as asas curtas, arremeteu contra eles até onde a corda que a prendia lhe permitia. Por acaso, Joel González apareceu nesse instante e pôde fixar com a máquina fotográfica a expressão de pavor de Alexander e do macaco, enquanto Nadia os defendia do atacante inesperado à palmada.

― Esta fotografia vai aparecer na capa da revista! ― exclamou Joel.

 

Fugindo da altaneira avestruz, Nadia e Alexander dobraram uma esquina e, de repente, deram consigo na zona do mercado destinada à bruxaria. Havia feiticeiros de magia branca e de magia negra, adivinhos, fetichistas, curandeiros, envenenadores, exorcistas, sacerdotes de vodu, que ofereciam os seus serviços aos clientes sob uns toldos suspensos por quatro paus, para se protegerem do sol. Provinham de centenas de tribos e praticavam diversos cultos. Sem largarem as mãos, os amigos percorreram as ruelas, parando diante de animaizinhos em frascos de álcool e répteis dissecados; amuletos contra o mau-olhado e o mal de amores; ervas, loções e bálsamos medicinais para curar as doenças do corpo e da alma; pós para sonhar, para esquecer, para ressuscitar; animais vivos para sacrifícios; colares de protecção contra a inveja e a cobiça; tinta de sangue para escrever aos mortos, enfim... um imenso arsenal de objectos fantásticos para atenuar o medo de viver.

Nadia já tinha visto cerimónias de vodu no Brasil e estava mais ou menos familiarizada com os seus símbolos, mas para Alexander esta zona do mercado era um mundo fascinante. Pararam diante de uma barraca diferente das outras, com um tecto cónico de palha de onde pendiam umas cortinas de plástico. Alexander inclinou-se para ver o que havia lá dentro e duas mãos poderosas agarraram-no pela roupa e puxaram-no para o interior.

Uma mulher enorme estava sentada no chão sob a cobertura. Era uma montanha de carne coroada por um grande lenço cor de turquesa na cabeça. Vestia de amarelo e azul, com o peito coberto de contas coloridas. Apresentou-se como mensageira entre o mundo dos espíritos e o mundo material, adivinha e sacerdotisa vodu. No chão havia um tecido pintado com desenhos a preto e branco; rodeavam-na várias figuras de deuses ou demónios de madeira, alguns molhados com sangue fresco de animais sacrificados, outros cheios de pregos, junto aos quais se viam oferendas de frutos, cereais, flores e dinheiro. A mulher fumava umas folhas pretas enroladas como um cilindro, cujo fumo espesso fez lacrimejar os jovens. Alexander tentou libertar-se das mãos que o imobilizavam, mas ela fixou-o com os seus olhos protuberantes, ao mesmo tempo que lançava um rugido profundo. O rapaz reconheceu a voz do seu animal totémico, aquela que ouvia em transe e emitia quando adoptava a sua forma.

― É o jaguar negro! ― exclamou Nadia ao seu lado.

A sacerdotisa obrigou o rapaz americano a sentar-se diante dela, tirou do decote um saco de couro muito velho e esvaziou o seu conteúdo em cima do tecido pintado. Eram umas conchas brancas, polidas pelo uso. Começou a mastigar alguma coisa no seu idioma, sem largar o cigarro, que segurava entre os dentes.

― Anglais? English? ― perguntou Alexander.

― Vens de outro lado, de longe. O que queres de Má Bangesé? ― replicou ela, fazendo-se entender numa mistura de inglês e vocábulos africanos.

Alexander encolheu os ombros e sorriu nervosamente, olhando Nadia de soslaio para ver se ela entendia o que estava a acontecer.

A rapariga tirou do bolso algumas notas e colocou-as numa das cabaças, onde estavam as oferendas de dinheiro.

― Má Bangesé pode ler o teu coração ― disse a mulheraça, dirigindo-se a Alexander.

― O que há no meu coração?

― Procuras remédio para curar uma mulher ― disse ela.

― A minha mãe já não está doente, o cancro está em remissão... ― murmurou Alexander, assustado, sem compreender como uma feiticeira de um mercado em África poderia ter conhecimento de Lisa.

― De qualquer forma receias por ela ― disse Má Bangesé. Agitou as conchas numa mão e fê-las rodar como dados. ― Não és dono da vida ou da morte dessa mulher ― acrescentou.

― Viverá? ― perguntou Alexander, ansioso.

― Se regressares, viverá. Se não regressares, morrerá de tristeza, mas não da doença.

― É evidente que voltarei à minha casa! ― exclamou o jovem.

― Não tenhas a certeza. Há muito perigo, mas és corajoso. Deverás usar a tua coragem, caso contrário morrerás e esta menina morrerá contigo ― declarou a mulher, apontando para Nadia.

― O que é que isso significa? ― perguntou Alexander.

― Pode-se fazer o mal ou o bem. Não há recompensa por fazer o bem, só satisfação na tua alma. Às vezes, é preciso lutar. Tu terás de decidir.

― O que devo fazer?

― Má Bangesé só vê o coração, não pode mostrar o caminho.

E, voltando-se para Nadia, que se tinha sentado junto de Alexander, pôs-lhe um dedo na testa, entre os olhos.

― Tu és mágica e tens visão de pássaro, vês de cima, da distância. Podes ajudá-lo ― disse.

Fechou os olhos e começou a balançar-se para a frente e para trás, enquanto o suor lhe escorria pela cara e pelo pescoço. O calor era insuportável. Até eles chegavam os cheiros do mercado: fruta podre, lixo, sangue, gasolina. Má Bangesé emitiu um som gutural, vindo do ventre, um longo e rouco lamento que subiu de tom até estremecer o chão, como se proviesse do próprio fundo da terra. Enjoados e transpirando, Nadia e Alexander recearam que as forças lhe faltassem. O ar do minúsculo recinto, cheio de fumo, tornou-se irrespirável. Cada vez mais atordoados, tentaram fugir mas não conseguiram mover-se. Foram sacudidos por uma vibração de tambores, ouviram cães a uivar, a boca encheu-se-lhes de saliva amarga e diante dos seus olhos incrédulos aquela mulher imensa reduziu-se a nada, como um balão que se esvazia e, no seu lugar, emergiu um pássaro fabuloso com uma magnífica plumagem amarela e azul com uma crista cor de turquesa, uma ave-do-paraíso que abriu o arco-íris das suas asas e os envolveu, elevando-se com eles.

Os amigos foram atirados para o espaço. Puderam ver-se a si próprios como dois traços de tinta preta perdidos num caleidoscópio de cores brilhantes e formas ondulantes que mudavam a uma velocidade aterradora. Transformaram-se em foguetes, os seus corpos desfizeram-se em faíscas, perderam a noção de estar vivos, do tempo e do medo. Depois, as faíscas juntaram-se num torvelinho eléctrico e tomaram a ver-se como dois pontos minúsculos voando entre os desenhos daquele caleidoscópio fantástico. Agora eram dois astronautas de mão dada, flutuando no espaço sideral. Não sentiam os corpos, mas tinham uma vaga consciência do movimento e de estarem ligados. Aferraram-se a esse contacto, porque era a única manifestação da sua humanidade; de mãos dadas não estavam completamente perdidos.

Verde, estavam imersos num verde absoluto. Começaram a descer como flechas e quando o choque parecia inevitável, a cor tomou-se difusa e, em vez de se despedaçarem, flutuaram como penas até abaixo, mergulhando numa vegetação absurda, numa flora de outro planeta, suave como algodão, quente e húmida. Transformaram-se em medusas transparentes, diluídas no vapor daquele lugar. Naquele estado gelatinoso, sem ossos que lhes dessem forma, forças para se defenderem ou voz para chamarem, enfrentaram as imagens violentas que surgiram diante deles numa rápida sucessão, visões de morte, sangue, guerra e bosque arrasado. Uma procissão de espectros acorrentados desfilou à sua frente, arrastando os pés entre carcaças de grandes animais. Viram canastros cheios de mãos humanas, crianças e mulheres em jaulas.

De repente voltaram a ser eles próprios, nos seus corpos de sempre e, nessa altura, surgiu diante deles, com a nitidez pavorosa dos piores pesadelos, um ameaçador ogre de três cabeças, um gigante com pele de crocodilo. As cabeças eram diferentes: uma com quatro chifres e uma hirsuta juba de leão; a segunda era calva, sem olhos e deitava fogo pelas ventas; a terceira era um crânio de leopardo com caninos ensanguentados e umas pupilas ardentes de demónio. As três tinham as fauces abertas e línguas de iguana. As garras descomunais do monstro moveram-se pesadamente tentando alcançá-los, os seus olhos hipnóticos cravaram-se neles, os três focinhos cuspiram uma saliva densa e peçonhenta. Os jovens evitaram repetidamente as palmadas ferozes, sem conseguirem fugir porque estavam presos num lodaçal de pesadelo. Esquivaram-se ao monstro por um tempo infinito até se virem, de súbito, com lanças nas mãos e, desesperados, começaram a defender-se às cegas. Quando venciam uma das cabeças, as outras duas arremetiam e, se conseguiam fazê-las retroceder, a primeira voltava ao ataque. As lanças partiram-se no combate. Então, no instante final, quando iam ser devorados, reagiram com um esforço sobre-humano e transformaram-se nos seus animais totémicos: Alexander no jaguar e Nadia na águia. Mas, diante daquele inimigo formidável, de nada serviam a ferocidade do primeiro e as asas do segundo... Os gritos deles perderam-se entre os bramidos do ogre.

― Nadia! Alexander!

A voz de Kate Cold trouxe-os de volta ao mundo conhecido e viram-se novamente sentados na mesma posição em que tinham iniciado aquela viagem alucinante, no mercado africano, sob o tecto de palha, diante da enorme mulher vestida de amarelo e azul.

― Ouvimo-los gritar. Quem é esta mulher? O que aconteceu? ― perguntou a avó.

― Nada, Kate, não aconteceu nada ― conseguiu articular Alexander, cambaleando.

Não conseguiu explicar à avó o que acabavam de passar. A voz profunda de Má Bangesé pareceu chegar-lhes vinda da dimensão dos sonhos.

― Cuidado! ― avisou-os a adivinha.

― O que lhes aconteceu? ― repetiu Kate.

― Vimos um monstro de três cabeças. Era invencível... ― murmurou Nadia, ainda atordoada.

― Não se separem. Juntos podem salvar-se, separados morrerão ― disse Má Bangesé.

 

Na manhã seguinte, o grupo da International Geographic viajou numa avioneta até à reserva natural, onde os aguardava Michael Mushaha e o safari em elefante. Alexander e Nadia ainda se encontravam sob o impacto da experiência do mercado. Alexander concluiu que o fumo do tabaco da feiticeira continha uma droga, mas isso não explicava o facto de ambos terem tido exactamente as mesmas visões. Nadia não tentou racionalizar o assunto; para ela aquela viagem horrível era uma fonte de informações, uma forma de aprender, como se aprende nos sonhos. As imagens permaneceram nítidas na sua memória; tinha a certeza de que teria de recorrer a elas nalguma ocasião.

A avioneta era pilotada pela sua proprietária, Angie Ninderera, uma mulher aventureira e de uma energia contagiante, que aproveitou o voo para dar algumas voltas extra e mostrar-lhes a beleza majestosa da paisagem. Uma hora mais tarde, aterraram num descampado a algumas milhas do acampamento de Mushaha.

As modernas instalações do safari defraudaram Kate, que esperava uma coisa mais rústica. Vários empregados africanos, amáveis e eficientes, com uniforme caqui e walkie-talkies, recebiam os turistas e ocupavam-se dos elefantes. Havia várias tendas, tão amplas como suites de hotel, e algumas precárias construções de madeira, respeitantes a áreas comuns e a cozinhas. Mosquiteiros brancos estavam suspensos sobre as camas, os móveis eram de bambu e havia peles de zebra e de antílope a fazer de tapetes. As casas de banho dispunham de latrinas e de uns duches engenhosos de água morna. Tinham também um gerador de electricidade, que funcionava das sete às dez da noite, o resto do tempo arranjavam-se com velas e candeeiros a petróleo. A comida, a cargo de dois cozinheiros, era tão saborosa que até Alexander, que por princípio rejeitava qualquer prato cujo nome não soubesse soletrar, a devorava. Concluindo, o acampamento era mais elegante que a maior parte dos lugares onde Kate tivera de dormir na sua profissão de viajante e escritora. A avó decidiu que isso tirava pontos ao safari e que não deixaria de o criticar no seu artigo.

Tocava uma campainha às 5.45 da manhã para aproveitarem as horas mais frescas do dia, mas acordavam antes com o som inconfundível dos bandos de morcegos que regressavam aos seus refúgios com o anúncio do primeiro raio de sol, depois de terem voado a noite inteira. A essa hora, o cheiro a café acabado de fazer já impregnava o ar. Os visitantes abriam as suas tendas e saíam para esticar as pernas, enquanto o sol incomparável de África, um grandioso círculo de fogo que enchia o horizonte, se elevava no céu. À luz da madrugada a paisagem reverberava, parecia que, a qualquer momento, a terra, envolta numa bruma avermelhada, se apagaria até desaparecer, como uma miragem.

Depressa o acampamento fervilhava de actividade, os cozinheiros chamavam para a mesa e Michael Mushaha dava as primeiras ordens. Depois do pequeno-almoço reunia-os para dar uma pequena conferência acerca dos animais, dos pássaros e da vegetação que veriam durante o dia. Timothy Bruce e Joel González preparavam as suas máquinas fotográficas e os empregados traziam os elefantes.

Acompanhava-os um bebé elefante de dois anos, que trotava alegremente ao pé da mãe, o único a quem de vez em quando tinham de recordar o caminho porque se distraía soprando borboletas ou tomando banho nas poças e rios.

Em cima dos elefantes, o panorama era soberbo. Os grandes paquidermes deslocavam-se sem ruído, confundidos com a natureza. Avançavam com uma calma pesada, mas faziam, sem esforço, muitas milhas em pouco tempo. Nenhum deles, excepto o bebé, tinha nascido em cativeiro; eram animais selvagens e, portanto, imprevisíveis. Michael Mushaha avisou-os de que tinham de respeitar as normas, caso contrário não seria possível garantir-lhes segurança. A única do grupo que costumava violar o regulamento era Nadia Santos, que desde o primeiro dia estabeleceu uma relação tão especial com os elefantes que o director do safari optou por fazer de conta que não via.

Os visitantes passavam a manhã percorrendo a reserva. Entendiam-se por gestos, sem falar, para não serem detectados pelos outros animais. Mushaha abria a coluna, montado no macho mais velho da manada; atrás iam Kate e os fotógrafos sobre as fêmeas, uma delas a mãe do elefante bebé; seguiam depois Alexander, Nadia e Borobá, montados em Kobi. Fechavam a coluna dois empregados do safari, montados em machos jovens, com as provisões, os toldos para a sesta e parte do equipamento fotográfico. Levavam também um poderoso anestésico para disparar, caso se vissem frente a uma fera agressiva.

Os paquidermes costumavam parar para comer folhas das mesmas árvores sob as quais, momentos antes, descansava uma família de leões. Outras vezes passavam tão perto dos rinocerontes que Alexander e Nadia podiam ver-se reflectidos no olho redondo que, de baixo, os examinava com desconfiança. As manadas de búfalos e de impalas não se alteravam com a chegada do grupo; talvez cheirassem os seres humanos, mas a presença poderosa dos elefantes desorientava-os. Puderam passear entre as tímidas zebras, fotografar de perto uma matilha de hienas disputando a carniça de um antílope e acariciar o pescoço de uma girafa, enquanto ela os observava com olhos de princesa e lhes lambia as mãos.

― Dentro de alguns anos não haverá animais selvagens livres em África, só poderão ser vistos em parques e reservas - lamentou-se Michael Mushaha.

Paravam ao meio-dia sob a protecção das árvores, almoçavam o conteúdo de uns canastros e descansavam à sombra até às quatro ou cinco da tarde. À hora da sesta, os animais selvagens descansavam e a extensa planície da reserva ficava imóvel sob o sol ardente. Michael Mushaha conhecia o terreno, sabia calcular bem o tempo e a distância; quando o disco imenso do sol começava a descer já estavam perto do acampamento e podiam ver o fumo. Às vezes, à noite, saíam novamente para ver os animais que iam ao rio beber.

 

Um bando de meia dúzia de mandris tinha conseguido demolir as instalações. As tendas jaziam pelo chão, havia farinha, mandioca, arroz, feijão e potes de conserva atirados por toda a parte, os sacos-cama despedaçados pendiam das árvores, cadeiras e mesas partidas amontoavam-se pelo pátio. Parecia que o acampamento fora varrido por um tufão. Os mandris, encabeçados por um mais agressivo que os outros, tinham-se apoderado das panelas e frigideiras e usavam-nas como mocas para se baterem uns aos outros e atacar quem quer que tentasse aproximar-se.

― O que lhes aconteceu? ― perguntou Michael Mushaha.

― Receio que estejam um pouco bêbados... ― explicou um dos empregados.

Os macacos rondavam sempre o acampamento, prontos para se apoderarem do que pudessem pôr à boca. À noite metiam-se no lixo e, se não se fechassem bem as provisões, roubavam-nas. Não eram simpáticos, mostravam os dentes e grunhiam, mas tinham respeito pelos humanos e mantinham-se a uma distância prudente. Este assalto era inusitado.

Face à impossibilidade de dominá-los, Mushaha ordenou que lhes disparassem anestésico, mas acertar no alvo não foi fácil porque corriam e saltavam como demónios. Por fim, um por um, os mandris receberam a picada do tranquilizante e foram caindo por terra. Alexander e Timothy Bruce ajudaram a levantá-los pelos tornozelos e pelos pulsos e a depositá-los a duzentos metros do acampamento, onde roncariam sem ser incomodados até o efeito da droga passar. Os corpos peludos e malcheirosos pesavam muito mais do que o seu tamanho fazia prever. Alexander, Timothy e os empregados que lhes tocaram tiveram de tomar duche, lavar a roupa e pulverizar-se com insecticida para se livrarem das pulgas.

Enquanto o pessoal do safari tentava dar alguma ordem àquela confusão, Michael Mushaha averiguou o que tinha acontecido. Num descuido de um dos encarregados, um mandril meteu-se na tenda de Kate e Nadia, onde a primeira tinha a sua reserva de garrafas de vodka. Os símios conseguiam cheirar o álcool à distância, mesmo com as embalagens fechadas. O babuíno roubou uma garrafa, quebrou o gargalo e partilhou o conteúdo com os amigos. Ao segundo gole embriagaram-se e ao terceiro atiraram-se contra o acampamento como uma horda de piratas.

― Preciso do meu vodka para as dores nos ossos ― queixou-se Kate, calculando que teria de guardar como ouro as poucas garrafas que ainda tinha.

― Não pode arranjar-se com aspirina? - sugeriu Mushaha. ― Os comprimidos são veneno! Eu só utilizo produtos naturais! ― exclamou a escritora.

 

Uma vez dominados os mandris e com o acampamento novamente organizado, alguém reparou que Timothy Bruce tinha a camisa ensanguentada. Com a sua tradicional indiferença, o inglês admitiu que tinha sido mordido.

― Parece que um daqueles rapazes não estava totalmente adormecido ― disse, em jeito de explicação.

― Deixe-me ver ― exigiu Mushaha.

Bruce levantou a sobrancelha esquerda. Era a única expressão do seu impassível rosto de cavalo e usava-a para expressar qualquer uma das três emoções que era capaz de sentir: surpresa, dúvida e aborrecimento. Neste caso era a última porque detestava qualquer tipo de alvoroço, mas Mushaha insistiu e ele não teve alternativa senão arregaçar a manga. A dentada já não sangrava, tinha crostas secas nos sítios onde os dentes tinham perfurado a pele, mas o antebraço estava inchado.

― Estes macacos são portadores de doenças. Vou injectar-lhe um antibiótico, mas é melhor ser visto por um médico ― anunciou Mushaha.

A sobrancelha esquerda de Bruce subiu até meio da testa: definitivamente havia demasiado alvoroço.

Michael Mushaha chamou Angie Ninderera pelo rádio e explicou-lhe a situação. A jovem piloto respondeu que não podia voar de noite, mas chegaria no dia seguinte, cedo, para ir buscar Bruce e levá-lo à capital, Nairobi. O director do safari não pôde evitar um sorriso: a dentada do mandril oferecia-lhe uma oportunidade inesperada de ver Angie, por quem sentia uma inconfessável fraqueza.

 

À noite, Bruce tiritava de febre e Mushaha não tinha a certeza se seria por causa da ferida ou de um súbito ataque de malária mas, de qualquer forma, estava preocupado, porque o bem-estar dos turistas era sua responsabilidade.

Um grupo de nómadas Masai, que costumava atravessar a reserva, apareceu no acampamento a meio da tarde conduzindo as suas vacas de grandes chifres. Eram muito altos, magros, bonitos e arrogantes; enfeitavam-se com complicados colares de contas no pescoço e na cabeça; vestiam-se com panos amarrados à cintura e levavam lanças. Julgavam ser o povo escolhido de Deus; a terra e o que esta continha pertenciam-lhes por graça divina. Isso dava-lhes o direito de se apropriarem do gado alheio, um costume que era muito mal visto pelas outras tribos. Como Mushaha não possuía gado, não receava que o roubassem. O acordo com eles era claro: dava-lhes hospitalidade quando passassem pela reserva, mas não podiam tocar num pêlo dos animais selvagens.

 

Como sempre, Mushaha ofereceu-lhes comida e convidou-os a ficar. A tribo não gostava da companhia de estrangeiros, mas aceitou porque uma das suas crianças estava doente. Esperavam por uma curandeira, que vinha a caminho. A mulher era famosa na região, percorria distâncias enormes para curar os seus pacientes com ervas e com a força da fé. A tribo não podia comunicar com ela por meios modernos mas inteirou-se de alguma forma de que ela chegaria nessa noite, por isso ficou nos domínios de Mushaha. E, tal como supunham, ao pôr do Sol ouviram o repicar longínquo das campainhas e dos amuletos da curandeira.

Uma figura esquálida, descalça e miserável surgiu entre o pó avermelhado do entardecer. Vestia apenas uma saia curta de trapo e a sua bagagem consistia numa cabaça, sacos com amuletos, medicamentos e paus mágicos, coroados de penas. Usava o cabelo, que nunca fora cortado, em longos rolos empastados de barro vermelho. Parecia muito velha, a pele pendia-lhe em pregas sobre os ossos, mas andava erguida e tinha braços e pernas fortes. A cura do paciente foi levada a cabo a poucos metros do acampamento.

― A curandeira diz que o espírito de um antepassado ofendido entrou no menino. Tem de o identificar e de o mandar de volta para o outro mundo, onde pertence ― explicou Michael Mushaha.

Joel González riu-se, a ideia de que uma coisa dessas ainda se passasse no século XXI pareceu-lhe divertida.

― Não troce, homem. Em oitenta por cento dos casos, o doente melhora ― disse-lhe Mushaha.

Acrescentou que numa ocasião viu duas pessoas a rebolar pelo chão, mordendo-se, deitando espuma pela boca, grunhindo e ladrando. Segundo os seus familiares, tinham sido possuídas por hienas. Essa mesma curandeira curara-as.

― Isso chama-se histeria ― alegou Joel.

― Chame-lhe o que quiser, mas o facto é que se curaram com uma cerimónia. A medicina ocidental raras vezes obtém o mesmo resultado com as suas drogas e choques eléctricos ― sorriu Mushaha.

― Vamos, Michael, você é um cientista educado em Londres, não me diga que...

― Acima de tudo, sou africano ― interrompeu-o o naturalista. ― Em África, os médicos compreenderam que, em vez de ridicularizar os curandeiros, devem trabalhar com eles. Às vezes, a magia dá melhores resultados que os métodos trazidos do estrangeiro. As pessoas crescem com ela, por isso funciona. A sugestão faz milagres. Não despreze os nossos feiticeiros.

Kate Cold dispôs-se a tomar notas sobre a cerimónia e Joel González, envergonhado por se ter rido, preparou a sua máquina para a fotografar.

Colocaram o menino despido sobre uma manta no chão, rodeado pelos membros da sua numerosa família. A velhota começou a bater os seus paus mágicos e a fazer barulho com as cabaças, dançando em círculos, enquanto entoava um cântico, que rapidamente foi cantado em coro pela tribo. Passado pouco tempo entrou num transe, o corpo estremecia-lhe e os olhos voltaram-se para cima e ficaram brancos. Entretanto o menino no chão ficou rígido, arqueou o corpo para trás e ficou apoiado apenas na nuca e nos calcanhares.

Nadia sentiu a energia como uma corrente eléctrica e, sem pensar, impelida por uma emoção desconhecida, juntou-se ao cântico e à dança frenética dos nómadas. A cura demorou várias horas, durante as quais a velha feiticeira absorveu o espírito maligno que se tinha apoderado da criança e incorporou-o ao seu próprio corpo, conforme explicou Mushaha. Finalmente o pequeno paciente perdeu a rigidez e pôs-se a chorar, o que foi interpretado como sinal de saúde. A mãe pegou-o ao colo e começou a baloiçá-lo e a beijá-lo, diante da alegria dos outros.

Passados uns vinte minutos, a feiticeira saiu do transe e anunciou que o paciente estava livre do mal e que, a partir dessa mesma noite, podia comer normalmente. Os pais, pelo contrário, deviam jejuar três dias para se reconciliarem com o espírito expulso. Como único alimento e recompensa, a velhota aceitou uma cabaça com uma mistura de leite azedo e sangue fresco, que os pastores Masai obtinham através de um pequeno corte no pescoço das vacas. Depois retirou-se para descansar antes de realizar a segunda parte do seu trabalho: tirar o espírito que estava agora dentro dela e mandá-lo para o Além, onde pertencia. A tribo, agradecida, foi passar a noite mais longe.

― Se este sistema é tão eficaz, poderíamos pedir a esta boa senhora que visse Timothy ― sugeriu Alexander.

― Isto não funciona sem fé ― replicou Mushaha. ― Além disso, a curandeira está extenuada, tem de repor a sua energia antes de atender outro paciente.

De modo que o fotógrafo inglês continuou a tiritar de febre na sua cama durante o resto da noite, enquanto, sob as estrelas, o menino africano desfrutava da sua primeira refeição da semana.

 

Angie Ninderera apareceu no safari no dia seguinte, tal como tinha prometido a Mushaha na comunicação pelo rádio. Viram o avião no ar e foram buscá-la num Land Rover ao sítio onde aterrava sempre. Joel González queria acompanhar o seu amigo Timothy ao hospital, mas Kate recordou-lhe que alguém teria de tirar fotografias para o artigo da revista.

Enquanto metiam gasolina no avião e preparavam o doente e a sua bagagem, Angie sentou-se sob um toldo para saborear uma chávena de café e descansar. Era uma africana de pele cor de café, saudável, alta, robusta e risonha, de idade indefinida, podia ter entre vinte e cinco a quarenta anos. O seu riso fácil e a sua beleza fresca cativavam desde o primeiro olhar. Contou que tinha nascido no Botswana e que aprendera a pilotar aviões em Cuba, onde esteve a estudar com uma bolsa de estudos. Pouco antes de morrer, o pai vendeu o rancho e o gado que possuía para lhe dar um dote, mas em vez de usar o capital para arranjar um marido respeitável, como o pai desejava, utilizou-o para comprar o seu primeiro avião. Angie era um pássaro livre, sem ninho em parte alguma. O trabalho levava-a de um lado para outro, um dia levava vacinas para o Zaire, no dia seguinte transportava actores e técnicos para um filme de aventuras nas planícies de Serengueti, ou um grupo de audazes alpinistas para os pés do lendário monte Kilimanjaro. Gabava-se de possuir a força de um búfalo e, para o demonstrar, apostava lutando braço a braço contra qualquer homem que se atrevesse a aceitar o desafio. Tinha nascido com um sinal em forma de estrela nas costas, sinal de boa sorte, segundo ela. Graças a essa estrela tinha sobrevivido a inúmeras aventuras. Uma vez esteve prestes a ser executada à pedrada por uma turba no Sudão; noutra ocasião andou perdida cinco dias no deserto da Etiópia, só, a pé, sem comida e apenas com uma garrafa de água. Mas nada se comparava àquela vez em que teve de saltar de pára-quedas e caiu num rio cheio de crocodilos.

― Isso foi antes de ter o meu Cessna Caravan, que nunca falha ― apressou-se a esclarecer quando contou a história aos seus clientes da International Geographic.

― E como escapou com vida? ― perguntou Alexander.

― Os crocodilos entretiveram-se a mastigar o tecido do pára-quedas e isso deu-me tempo de nadar até à margem e sair dali a correr. Livrei-me dessa vez, mas, mais cedo ou mais tarde, vou morrer devorada por crocodilos, é o meu destino...

― Como sabe? ― inquiriu Nadia.

― Porque me disse uma adivinha que consegue ver o futuro. Má Bangesé tem fama de nunca se enganar ― replicou Angie.

― Má Bangesé? Uma senhora gorda que tem uma barraca no mercado? ― interrompeu Alexander.

― A própria. Não é gorda, é forte ― esclareceu Angie, que era um pouco susceptível a respeito de peso.

Alexander e Nadia entreolharam-se, surpreendidos com aquela estranha coincidência.

Apesar do seu volume considerável e do seu relacionamento um pouco brusco, Angie era bastante vaidosa. Vestia-se com túnicas floridas, enfeitava-se com pesadas jóias étnicas adquiridas nas feiras de artesanato e costumava pintar os lábios com um cor-de-rosa berrante. Ostentava um penteado elaborado com dezenas de tranças salpicadas de contas coloridas. Dizia que a sua área de trabalho era terrível para as mãos e não estava disposta a permitir que as suas se transformassem nas de um mecânico. Usava as unhas compridas e pintadas e, para proteger a pele, esfregava gordura de tartaruga, que considerava milagrosa. O facto de as tartarugas serem enrugadas não diminuía a sua confiança no produto.

― Conheço vários homens apaixonados por Angie ― comentou Mushaha, mas absteve-se de dizer que ele era um deles.

Ela piscou-lhe um olho e explicou que nunca se casaria porque tinha o coração partido. Apaixonara-se uma única vez na vida por um guerreiro masai que tinha cinco mulheres e dezanove filhos.

― Tinha os ossos grandes e olhos de âmbar ― disse Angie.

― E o que aconteceu...? ― perguntaram em uníssono Nadia e Alexander.

― Não quis casar-se comigo ― concluiu ela com um suspiro trágico.

― Que homem tão tonto! ― riu-se Michael Mushaha.

― Eu tinha mais dez anos e quinze quilos que ele ― explicou Angie.  

A piloto acabou o seu café e preparou-se para partir. Os amigos despediram-se de Timothy Bruce, a quem a febre da noite anterior tinha enfraquecido tanto que nem sequer teve forças para levantar a sobrancelha esquerda.

 

Os últimos dias do safari, desfrutando das excursões em elefante, decorreram com enorme rapidez. Voltaram a ver a pequena tribo nômada e comprovaram que o menino estava curado. Ao mesmo tempo ficaram a saber pelo rádio que Timothy Bruce continuava no hospital com uma combinação de malária e mordedura de mandril infectada, rebelde aos antibióticos.

Angie Ninderera foi buscá-los na tarde do terceiro dia e ficou a dormir no acampamento, para sair cedo no dia seguinte. Desde o princípio fez amizade com Kate Cold; as duas eram boas bebedoras ― Angie de cerveja e Kate de vodka ― e ambas dispunham de um nutrido arsenal de histórias arrepiantes para encantar os seus ouvintes. Nessa noite, quando o grupo estava sentado em círculo em volta da fogueira, apreciando o assado de antílope e outras delícias preparadas pelos cozinheiros, as duas mulheres disputavam a palavra para deslumbrar o auditório com as suas aventuras. Até Borobá ouvia as histórias com interesse. O macaquinho repartia o seu tempo entre os humanos, a cuja companhia estava habituado, a vigiar Kobi e a brincar com uma família de três chimpanzés pigmeus, adoptados por Michael Mushaha.

― São vinte por cento mais pequenos e muito mais pacíficos que os chimpanzés normais ― explicou Mushaha. ― Entre eles, são as fêmeas que mandam. Isso significa que têm melhor qualidade de vida, que há menos concorrência e mais colaboração; nesta comunidade come-se e dorme-se bem, as crias estão protegidas e o grupo vive contente. Não é como outros macacos em que os machos formam facções e não fazem outra coisa senão lutar.

― Oxalá fosse assim entre os humanos! ― suspirou Kate.

― Estes animaizinhos são muito parecidos connosco: partilhamos grande parte do nosso material genético, até o crânio é parecido com o nosso. Temos, com certeza, um antepassado comum ― disse Michael Mushaha.

― Nesse caso, há esperança de evoluirmos como eles ― acrescentou Kate.

Angie fumava cigarros que, segundo ela, constituíam o seu único luxo, e orgulhava-se do pivete do seu avião.

― Quem não gostar do cheiro a cigarro, que vá a pé ― costumava dizer aos clientes que se queixavam. Como fumadora arrependida, Kate Cold seguia com olhos ávidos a mão da sua nova amiga. Tinha deixado de fumar há mais de um ano, mas a vontade de o fazer ainda não tinha desaparecido e, ao ver as idas e vindas do cigarro de Angie, tinha vontade de chorar. Tirou do bolso o seu cachimbo vazio, que trazia sempre consigo para esses momentos desesperados, e pôs-se a trincá-lo com tristeza. Tinha de admitir que curara aquela tosse de tuberculosa que antes não a deixava respirar. Atribuía-o ao chá com vodka e a uns pós que Walimai, o xamã do Amazonas, amigo de Nadia, lhe tinha dado. O seu neto, Alexander, atribuía o milagre a um amuleto de excremento de dragão, presente do rei Dil Bahadur do Reino Proibido, de cujos poderes mágicos estava convencido. Kate não sabia o que pensar do neto, antigamente tão racional e agora propenso à fantasia. A amizade com Nadia mudara-o. Alex tinha tanta confiança naquele fóssil, que triturou alguns gramas até os transformar em pó, dissolveu-o em licor de arroz e obrigou a mãe a bebê-lo para combater o cancro. Lisa teve de usar o resto do fóssil pendurado ao pescoço durante meses. Agora era Alexander quem o usava e não o tirava nem para tomar banho.

― Pode curar ossos partidos e outros males, Kate; também serve para desviar flechas, facas e balas ― garantiu-lhe o neto.

― No teu lugar, eu não o poria à prova - replicou ela, secamente, mas permitiu, contrariada, que ele lhe esfregasse o peito e as costas com o excremento de dragão, enquanto resmungava para si própria que estavam ambos a perder o juízo.

 

Nessa noite, em volta da fogueira do acampamento, Kate Cold e o seu grupo lamentavam ter de se despedir dos seus novos amigos e daquele paraíso, onde tinham passado uma semana inesquecível.

― Será bom partir, quero ver Timothy ― disse Joel González para se consolar.

― Amanhã partiremos por volta das nove ― avisou-os Angie, emborcando meia caneca de cerveja e aspirando o seu cigarro. ― Pareces cansada, Angie - insinuou Mushaha.

―Os últimos dias foram pesados. Tive de levar alimentos ao outro lado da fronteira, onde as pessoas estão desesperadas; é horrível ver a fome cara a cara ― disse ela.

― Aquela tribo é de uma raça muito nobre. Antes viviam com dignidade da pesca, da caça e das suas culturas, mas a colonização, as guerras e as doenças reduziram-nos à miséria. Agora vivem da caridade. Se não fossem aqueles pacotes de comida que recebem, já teriam morrido todos. Metade dos habitantes de África sobrevive abaixo do nível mínimo de pobreza ― explicou Michael Mushaha.

―O que significa isso? ― perguntou Nadia.

― Que não têm o suficiente para viver.

Com esta afirmação o guia pôs ponto final à refeição, que já se alongava para além da meia-noite e anunciou que eram horas de se retirarem para as tendas. Uma hora mais tarde, reinava a paz no acampamento.

Durante a noite só ficava de guarda um empregado que vigiava e alimentava as fogueiras, mas algum tempo depois também ele foi vencido pelo sono. Enquanto se descansava no acampamento, nos arredores fervilhava a vida; sob o grandioso céu estrelado rondavam centenas de espécies animais que a essa hora saíam em busca de alimento e de água. A noite africana era um verdadeiro concerto de vozes variadas: o bramido ocasional dos elefantes, latidos longínquos das hienas, guinchos de mandris assustados com algum leopardo, coaxar de sapos, canto de cigarras.

 

Pouco antes do amanhecer, Kate acordou sobressaltada porque julgou ter ouvido um ruído muito próximo.

― Devo ter sonhado ― murmurou, dando meia volta na cama. Tentou calcular quanto tempo tinha dormido. Os ossos rangiam-lhe, doíam-lhe os músculos, tinha cãibras. Pesavam-lhe os seus sessenta e sete anos bem vividos; tinha o esqueleto moído pelas excursões.

― Estou muito velha para este estilo de vida... ― pensou a escritora, mas imediatamente se arrependeu, convencida de que não valia a pena viver de nenhuma outra maneira. Sofria mais com a imobilidade da noite que com a fadiga do dia; as horas dentro da tenda passavam com uma lentidão angustiante. Nesse instante voltou a ouvir o ruído que a tinha acordado. Não conseguiu identificá-lo, mas pareceram-lhe coçadelas ou arranhadelas.

As últimas brumas do sono dissiparam-se por completo e Kate levantou-se da cama, com a garganta seca e o coração agitado. Não havia dúvidas, estava alguma coisa ali, muito perto, separado apenas pelo tecido da tenda. Com muito cuidado, para não fazer barulho, tacteou na escuridão procurando a lanterna, que deixava sempre ao pé. Assim que a teve na mão deu-se conta de que transpirava de medo, não conseguiu ligá-la com as mãos húmidas. Ia tentar novamente, quando ouviu a voz de Nadia, que partilhava a tenda com ela.

― Chhh, Kate, não acendas a luz... ― sussurrou a rapariga.

― O que se passa?

― São leões, não os assustes ― disse Nadia.

A escritora deixou cair a lanterna que tinha na mão. Sentiu os ossos moles como pudim e um grito visceral ficou-lhe atravessado na garganta. Um único arranhão das garras de um leão rasgaria o tecido fino de nylon e o felino cairia em cima delas. Não seria a primeira vez que um turista morria assim num safari. Durante as excursões, tinha visto leões de tão perto que conseguiu contar-lhes os dentes. Decidiu que não gostaria de os sentir na sua própria carne. Passou fugazmente pela sua cabeça a imagem dos primeiros cristãos no coliseu romano, condenados a morrer devorados por aquelas feras. O suor escorria-lhe pela cara enquanto procurava a lanterna no chão, presa na rede do mosquiteiro que pendia da enxerga. Ouviu um ronronar de gato grande e novas arranhadelas.

Desta vez a tenda estremeceu, como se lhe tivesse caído uma árvore em cima. Aterrada, Kate conseguiu dar-se conta de que Nadia também emitia um ruído de gato. Finalmente encontrou a lanterna e os seus dedos trémulos e molhados conseguiram acendê-la. Nessa altura viu a rapariga de cócoras, com a cara muito perto do tecido da tenda, num ronronar embevecido com a fera que estava do outro lado. O grito embargado no íntimo de Kate saiu transformado num alarido terrível, que apanhou Nadia de surpresa e a fez cair de costas. A garra de Kate agarrou a jovem pelo braço e começou a puxá-la. Novos gritos, acompanhados desta vez por pavorosos rugidos de leões, quebraram a quietude do acampamento.

Em poucos segundos, empregados e visitantes estavam cá fora, apesar das instruções precisas de Michael Mushaha, que os avisara milhares de vezes dos perigos de sair das tendas durante a noite. Aos puxões, Kate conseguiu arrastar Nadia para fora, enquanto a rapariga esperneava tentando libertar-se. Meia tenda desmoronou-se durante a algazarra e um dos mosquiteiros soltou-se e caiu-lhe em cima, envolvendo-as; pareciam duas larvas lutando para sair do casulo. Alexander, o primeiro a chegar, correu até lá e tentou soltá-las do mosquiteiro. Uma vez livre, Nadia empurrou-o, furiosa porque tinham interrompido de uma forma brutal a sua conversa com os leões.

Entretanto, Mushaha disparou para o ar e os rugidos das feras afastaram-se. Os empregados acenderam alguns candeeiros, empunharam as suas armas e foram explorar os arredores. Por essa altura já os elefantes se tinham alvoroçado e os tratadores tentavam acalmá-los antes que estes desatassem a correr dos currais e arremetessem contra o acampamento. Frenéticos pelo cheiro dos leões, os três chimpanzés pigmeus guinchavam e penduravam-se ao primeiro que passasse por perto. Entretanto, Borobá empoleirara-se na cabeça de Alexander, que tentava inutilmente tirá-lo de cima puxando-o pela cauda. Naquela confusão, ninguém compreendia o que tinha acontecido.

Joel González saiu a gritar espavorido.

― Serpentes! Um pitão!

― São leões! ― corrigiu Kate.

Joel parou de repente, desorientado.

― Não são cobras? ― hesitou.

― Não, são leões! ― repetiu Kate.

― E por que me acordaram? ― resmungou o fotógrafo.

― Cubra as vergonhas, homem, pelo amor de Deus! ― troçou Angie Ninderera, que apareceu de pijama. Só nessa altura Joel González se deu conta de que estava com pletamente nu; retrocedeu até à sua tenda, tapando-se com as duas mãos.

Michael Mushaha regressou pouco depois com a notícia de que havia pegadas de diversos leões nos arredores e de que a tenda de Kate e Nadia estava rasgada.

― Esta é a primeira vez que acontece uma coisa destas no acampamento. Aqueles animais nunca nos tinham atacado ― comentou, preocupado.

― Não nos atacaram! ― interrompeu-o Nadia.

― Ah! Nesse caso foi uma visita de cortesia! ― exclamou Kate, indignada.

― Vieram cumprimentar! Se não te pusesses a guinchar, Kate, ainda estaríamos a conversar!

Nadia deu meia volta e refugiou-se na tenda, para onde teve de entrar arrastando-se, porque restavam apenas duas esquinas de pé.

― Não façam caso, é a adolescência. Há-de passar, toda a gente se cura disso ― opinou Joel González, que tinha reaparecido embrulhado numa toalha.

Os restantes ficaram a comentar o assunto e já ninguém conseguiu dormir. Atiçaram as fogueiras e mantiveram os candeeiros acesos. Borobá e os três chimpanzés pigmeus, ainda mortos de medo, instalaram-se o mais longe possível da tenda de Nadia, onde permanecia o cheiro das feras. Pouco depois, ouviu-se o esvoaçar dos morcegos anunciando a madrugada e os cozinheiros começaram a coar o café e a preparar os ovos com toucinho do pequeno-almoço.

― Nunca te tinha visto tão nervosa. Estás a amolecer com a idade, avó ― disse Alexander, passando a primeira chávena de café a Kate.

― Não me chames avó, Alexander.

― E tu não me chames Alexander; o meu nome é Jaguar, pelo menos para a família e para os amigos.

― Bah! Deixa-me em paz, fedelho! ― replicou ela, queimando os lábios com o primeiro gole do líquido fumegante.

 

Os empregados do safari carregaram o equipamento em dois Land Rover e acompanharam os forasteiros até ao avião de Angie, a poucos quilómetros do acampamento, numa zona descampada. Para os visitantes era o último passeio nos elefantes. O orgulhoso Kobi, que Nadia tinha montado durante essa semana, pressentia a separação e parecia triste, tal como o grupo da International Geographic. Até Borobá, porque deixava para trás os três chimpanzés com quem fizera excelente amizade; pela primeira vez na sua vida tinha de admitir que havia macacos quase tão espertos como ele.

No Cessna Caravan notavam-se os anos de uso e as milhas de voo. Um letreiro lateral revelava o seu arrogante nome: Super Falcão. Angie pintara-lhe cabeça, olhos, bico e garras de ave de rapina mas, com o tempo, a pintura tinha descascado e o veículo parecia mais uma galinha depenada à luz reverberante da manhã. Todos os viajantes estremeceram diante da ideia de usá-lo como meio de transporte menos Nadia, porque. comparado com a avioneta vciha e ferrugenta com que o pai se deslocava pelo Amazonas, o Super Falcão de Angie era magnífico. O mesmo grupo de mandris mal-educados que tinham bebido o vodka de Kate, estava instalado em cima das asas. Os macacos entretinham-se catando os piolhos uns dos outros com muita atenção, como costumam fazer os seres humanos. Kate tinha visto em muitos lugares do mundo o mesmo carinhoso ritual de tirar os piolhos, que unia as famílias e criava laços entre amigos. Às vezes as crianças punham-se em fila indiana, do mais pequeno ao maior, para coçarem mutuamente a cabeça. Sorriu pensando que, nos Estados Unidos, a simples palavra «piolho» provocava calafrios de horror. Angie começou a atirar pedras e impropérios aos babuínos, mas estes responderam com um desprezo olímpico e não se mexeram até os elefantes estarem praticamente em cima deles.

Michael Mushaha entregou a Angie uma ampola de anestésico para animais.

― É a última que me resta. Podes trazer-me uma caixa na tua próxima viagem? ― pediu-lhe.

― Claro que sim.

― Leva-a como amostra, porque há várias marcas diferentes e podes confundir. É desta que preciso.

― Está bem ― disse Angie, guardando a ampola na caixa de primeiros socorros do avião, onde estaria segura.

 

Tinham acabado de colocar o equipamento no avião quando surgiu de uns arbustos próximos um homem que até essa altura ninguém tinha visto. Vestia calças de ganga, botas gastas até meia perna e uma camisa de algodão imunda. Na cabeça levava um chapéu de pano e nas costas uma mochila de onde pendiam uma panela negra de fuligem e um machete. Era baixo, magro, anguloso, careca, com óculos de lentes muito grossas, a pele pálida e as sobrancelhas escuras e delgadas.

― Bom dia, senhores ― disse em espanhol e depois traduziu o cumprimento para inglês e francês.

― Sou o irmão Fernando, missionário católico ― apresentou-se, apertando primeiro a mão de Michael Mushaha e depois a dos restantes.

― Como chegou até aqui? ― perguntou este.

― Com a ajuda de alguns camionistas e andando boa parte do caminho.

― A pé? De onde? Não há aldeias em muitas milhas em volta!

― Os caminhos são longos, mas todos levam a Deus ― replicou o outro.

Explicou que era espanhol, nascido na Galiza, embora não visitasse a sua pátria há muitos anos. Assim que saiu do seminário enviaram-no para África, onde cumpriu o seu ministério durante mais de trinta anos em diversos países. O seu último destino tinha sido uma aldeia do Ruanda, onde trabalhava com outros irmãos e três freiras numa pequena missão. Era uma região assolada pela guerra mais cruel que se vira no continente; inúmeros refugiados iam de um lado para outro tentando fugir da violência, mas esta acabava sempre por apanhá-los; a terra estava coberta de cinza e de sangue, há anos que não se plantava nada, os que escapavam das balas e das facas sucumbiam vítimas da fome e da doença; pelos caminhos infernais vagueavam viúvas e órfãos famélicos, muitos deles feridos ou mutilados.

― A morte anda feliz por aqueles lados ― concluiu o missionário.

― Eu também presenciei. Morreu mais de um milhão de pessoas, a matança continua e o resto do mundo importa-se pouco ― acrescentou Angie.

― Aqui, em África, começou a vida humana. Todos descendemos de Adão e Eva que, segundo dizem os cientistas, eram africanos. Este é o paraíso terrestre mencionado pela Bíblia. Deus quis que isto fosse um jardim onde as suas criaturas vivessem em paz e abundância, mas vejam vocês no que se transformou pelo ódio e pela estupidez humana... ― acrescentou o missionário num tom de prédica.

― Você veio fugido da guerra? ― perguntou Kate.

― Os meus irmãos e eu recebemos ordens para evacuar a missão quando os rebeldes queimaram a escola, mas eu não sou mais um refugiado. A verdade é que tenho uma tarefa pela frente, tenho de encontrar dois missionários que desapareceram.

― No Ruanda? ― perguntou Mushaha.

― Não, estão numa aldeia chamada Ngoubé. Vejam aqui...

O homem abriu um mapa e estendeu-o no chão para mostrar o sítio onde os seus companheiros tinham desaparecido. Os outros rodearam-no.

― Esta é a zona mais inacessível, quente e inóspita da África equatorial. Ali a civilização não chega, não há meios de transporte além das canoas dos rios, não há telefone nem rádio ― explicou o missionário.

― Como comunicam com os missionários? ― perguntou Alexander.

― As cartas demoram meses, mas eles lá se arranjavam para nos darem notícias de vez em quando. A vida por aqueles lados é bastante dura e perigosa. A região é controlada por um tal Maurice Mbembelé, um psicopata, um louco, uma besta, a quem até acusam de cometer actos de canibalismo. Há vários meses que não sabemos nada dos nossos irmãos. Estamos muito preocupados.

 

Alexander observou o mapa que o irmão Fernando ainda tinha no chão. Aquele pedaço de papel não conseguia dar nem a mais remota ideia da imensidão do continente, com os seus quarenta e cinco países e seiscentos milhões de pessoas. Durante essa semana de safari com Michael Mushaha tinha aprendido muito, mas sentia-se perdido na mesma diante da complexidade de África, com os seus diversos climas, paisagens, culturas, crenças, raças, línguas. O sítio que o dedo do missionário apontava nada significava para ele; compreendeu apenas que Ngoubé ficava noutro país.

― Preciso de lá chegar ― disse o irmão Fernando.

― Como? ― perguntou Angie.

― Você deve ser Angie Ninderera, a dona deste avião, não é verdade? Falaram-me muito de si. Disseram-me que é capaz de voar para qualquer parte...

― Ei! Nem pense em pedir-me que o leve, homem! ― exclamou Angie levantando ambas as mãos na defensiva.

― Por que não? Trata-se de uma emergência.

― Porque o lugar onde você pretende ir é uma região de bosques pantanosos, ali não se pode aterrar. Porque ninguém com um palmo de testa anda por aqueles lados. Porque fui contratada pela revista International Geographic para transportar estes jornalistas sãos e salvos até à capital. Porque tenho outras coisas para fazer e, finalmente, porque não me parece que você me possa pagar a viagem ― replicou Angie.

― Pagá-la-ia Deus, sem dúvida ― disse o missionário.

― Ouça, parece-me que o seu Deus já tem demasiadas dívidas.

Enquanto eles discutiam, Alexander agarrou a avó por um braço e levou-a à parte.

― Temos de ajudar este homem, Kate ― disse.

― Em que estás a pensar, Alex, quer dizer, Jaguar?

― Poderíamos pedir a Angie que nos levasse a Ngoubé.

― E quem cobriria as despesas? ― alegou Kate.

― A revista, Kate. Imagina a reportagem formidável que podes escrever se encontrarmos os missionários perdidos.

― E se não os encontrarmos?

― É notícia na mesma, não vês? Não voltarás a ter outra oportunidade como esta ― suplicou-lhe o neto.

― Tenho de consultar Joel ― replicou Kate, em cujos olhos começava a brilhar a luz da curiosidade, que o neto reconheceu imediatamente.

Joel González não achou uma má ideia, uma vez que ainda não podia regressar a Londres porque Timothy Bruce continuava no hospital.

― Há cobras para aqueles lados, Kate?

― Mais do que em qualquer outro lugar do mundo, Joel.

― Mas também há gorilas. Talvez possas fotografá-los de perto. Seria uma excelente capa para a International Geographic... ― tentou-o Alexander.

― Bom, nesse caso vou com vocês ― decidiu Joel.

Convenceram Angie com um maço de notas, que Kate lhe pôs diante dos olhos, e com a perspectiva de um voo bastante difícil, desafio a que a piloto não conseguiu resistir. Agarrou prontamente no dinheiro, acendeu o primeiro cigarro do dia e deu ordem para colocar a bagagem na cabina enquanto ela verificava os níveis e se certificava de que o Super Falcão funcionaria bem.

― Este aparelho é seguro? ― perguntou Joel González para quem a parte pior do seu trabalho eram os répteis e em segundo lugar os voos de avioneta.

Por única resposta, Angie atirou-lhe uma cuspidela de tabaco para os pés. Alex deu-lhe uma cotovelada de cumplicidade: ele também não achava muito seguro aquele meio de transporte, sobretudo tendo em conta que o pilotava uma mulher excêntrica com uma caixa de cerveja aos pés, que além do mais levava um cigarro aceso na boca, a pouca distância dos bidões de gasolina de reabastecimento.

Vinte minutos depois, o Cessna estava carregado e os passageiros nos seus lugares. Nem todos dispunham de um assento, Alex e Nadia instalaram-se na cauda em cima da bagagem e nenhum deles tinha cinto de segurança, porque Angie os considerava uma precaução inútil.

― Em caso de acidente, os cintos só servem para que os cadáveres não se espalhem ― disse.

A mulher pôs os motores em marcha e sorriu com a imensa ternura que aquele som lhe provocava sempre. O avião sacudiu-se como um cão molhado, tossiu um pouco e depois começou a mover-se sobre a pista improvisada. Angle lançou um grito de comanche triunfal quando as rodas saíram do chão e o seu querido falcão começou a elevar-se.

― Em nome de Deus ― murmurou o missionário, benzendo-se, e Joel González imitou-o.

 

Do ar, a vista oferecia uma pequena amostra da variedade e beleza da paisagem africana. Deixaram para trás a reserva natural onde tinham passado a semana, vastas planícies avermelhadas e quentes, salpicadas de árvores e de animais selvagens. Voaram sobre desertos áridos, bosques, montes, lagos, rios, aldeias separadas por grandes distâncias. À medida que avançavam em direcção ao horizonte, iam retrocedendo no tempo.

O ruído dos motores era um obstáculo sério à conversa, mas Alexander e Nadia insistiam em falar aos gritos. O Irmão Fernando respondia às suas incessantes perguntas no mesmo tom. Dirigiam-se para os bosques de uma zona próxima à linha do equador, disse. Alguns audazes exploradores do século xix e os colonizadores franceses e belgas no século xx penetraram por pouco tempo naquele inferno verde, mas a mortalidade era tão elevada - oito em cada dez homens perecia por febres tropicais, crimes ou acidentes - que tiveram de retroceder. Depois da independência, quando os colonos estrangeiros abandonaram o país, sucessivos governos estenderam os seus tentáculos na direcção das aldeias mais remotas. Construíram algumas estradas, enviaram soldados, professores, médicos e burocratas, mas a selva e as terríveis doenças detinham a civilização. Os missionários, determinados a espalhar o cristianismo a qualquer preço, foram os únicos que perseveraram no objectivo de deitar raízes naquela região infernal.

― Há menos de um habitante por quilómetro quadrado e a população concentra-se perto dos rios, o resto está desabitado ― explicou o Irmão Fernando. ― Ninguém entra nos pântanos. Os nativos garantem que os espíritos vivem ali e que ainda há dinossauros.

― Parece fascinante! ― exclamou Alexander.

A descrição do missionário parecia-se com a África mitológica que ele visualizara quando a avó lhe anunciou a viagem. Teve uma desilusão quando chegaram a Nairobi e deparou com uma cidade moderna de prédios altos e tráfego ruidoso. O mais parecido com um guerreiro que viu foi a tribo de nómadas que apareceu com a criança doente no acampamento de Mushaha. Até os elefantes do safari lhe pareceram demasiado mansos. Quando comentou isto com Nadia, ela encolheu os ombros, sem entender por que se sentira ele defraudado com a sua primeira impressão de África. Ela não esperava nada em particular. Alexander concluiu que se África tivesse sido povoada por extraterrestres, Nadia os teria encarado com a maior naturalidade, porque nunca antecipava nada. Talvez agora, no sítio marcado no mapa do Irmão Fernando, encontrasse a terra mágica que tinha imaginado.

 

Passadas várias horas de voo sem contratempos, excepto o cansaço, a sede e o enjoo dos passageiros, Angie começou a descer entre nuvens finas. A piloto assinalou em baixo um interminável terreno verde, onde podia distinguir-se a linha sinuosa de um rio. Não se vislumbrava qualquer sinal de vida humana, mas a altura a que estavam era ainda demasiada para ver aldeias, no caso de as haver.

― É ali, tenho a certeza! ― gritou o Irmão Fernando de repente.

― Eu avisei-o, homem, ali não há lugar para aterrar! ― respondeu-lhe Angie, também aos gritos.

― Desça para terra, menina, que Deus se encarregará de prover ― garantiu o missionário.

― Mais vale fazê-lo, porque temos de meter gasolina!

O Super Falcão começou a descer em grandes círculos. À medida que se aproximavam do chão, os passageiros verificaram que o rio era muito mais largo do que parecia visto de cima. Angie Ninderera explicou que para o sul poderiam encontrar aldeias, mas o Irmão Fernando insistiu, dizendo que devia dirigir-se antes para noroeste, para a região onde os seus colegas tinham instalado a missão. Ela deu algumas voltas, cada vez mais perto do chão.

― Estamos a desperdiçar a pouca gasolina que nos resta! Vou para sul ― acabou por decidir.

― Ali, Angie! ― apontou Kate, de repente.

Ao lado do rio surgiu, como por milagre, a franja limpa de uma praia.

― A pista é muito estreita e curta, Angie ― avisou-a Kate.

― Só preciso de duzentos metros, mas creio que não os temos ― replicou Angie.

Deu uma volta a baixa altitude para medir a praia a olho e procurar o melhor ângulo para a manobra.

― Não será a primeira vez que aterro em menos de duzentos metros. Segurem-se, malta, que vamos galopar! ― anunciou, com outro dos seus típicos gritos de guerra.

Até esse momento, Angie Ninderera tinha pilotado bastante descontraída, com uma lata de cerveja entre os joelhos e um cigarro na mão. Agora a sua atitude mudou. Apagou o cigarro no cinzeiro colado ao chão com fita-cola, acomodou a sua corpulenta humanidade no assento, agarrou-se ao volante e dispôs-se a tomar posição, sem deixar de praguejar e de uivar como um comanche, chamando a boa sorte que, segundo ela, nunca lhe faltava, porque para isso levava o seu fetiche pendurado ao pescoço. Kate Cold fez coro com Angie, gritando até enrouquecer, porque não se lembrou de outra maneira de descarregar os nervos. Nadia Santos fechou os olhos e pensou no pai. Alexander Cold abriu bem os seus, invocando o seu amigo, o lama Tensing, cuja prodigiosa força mental poderia ser-lhes de grande ajuda num momento como aquele, mas Tensing estava muito longe. O Irmão Fernando pôs-se a rezar em voz alta e em espanhol, acompanhado por Joel González. No fim da pequena praia erguia-se, como uma muralha chinesa, a vegetação impenetrável da selva. Tinham apenas uma oportunidade de aterrar; se falhassem, não teriam pista suficiente para tornar a descolar e chocariam com as árvores.

O Super Falcão desceu bruscamente e os primeiros ramos das árvores roçaram-lhe a barriga. Assim que se viu sobre o aeródromo improvisado, Angie dirigiu-o para o chão, desejando ansiosamente que este fosse firme e não estivesse coberto de rochas. O avião caiu dando tombos, como um passarão ferido, com o caos reinando no seu interior: os pacotes saltavam de um lado para outro, os passageiros batiam no tecto, a cerveja rolava e dançavam os bidões de gasolina. Angie, com as mãos fortemente agarradas aos instrumentos de controlo, carregou nos travões a fundo, tentando estabilizar o aparelho para evitar que as asas se partissem. Os motores rugiam, desesperados, e um forte odor a borracha queimada invadia a cabina. O aparelho tremia na sua tentativa de parar, percorrendo os últimos metros de pista no meio de uma nuvem de areia e fumo.

― As árvores! ― gritou Kate quando estavam quase em cima delas.

Angie nem respondeu à observação gratuita da sua cliente: ela também as via. Sentiu aquela mistura de terror absoluto e fascínio que a invadia quando arriscava a vida, uma repentina descarga de adrenalina que lhe provocava formigueiros na pele e lhe acelerava o coração. Aquele medo feliz era a parte melhor do seu trabalho. Os músculos retesaram-se no esforço brutal de dominar a máquina; lutava corpo a corpo com o avião, como um cowboy montado num touro bravo. De repente, quando as árvores estavam a dois metros de distância e os passageiros julgavam que tinha chegado o seu derradeiro momento, o Super Falcão caiu para a frente, deu uma pancada tremenda e enterrou o focinho no chão.

― Maldição! ― exclamou Angie.

― Não fale assim, mulher ― disse o Irmão Fernando com uma voz trémula, do fundo da cabina onde esperneava, enterrado sob as máquinas fotográficas. ― Não vê que Deus forneceu uma pista de aterragem?

― Diga-lhe que mande também um mecânico, porque temos problemas ― bramou Angie de volta.

― Não nos ponhamos histéricos. Primeiro que tudo temos de verificar os estragos ― ordenou Kate Cold, preparando-se para sair, enquanto os restantes se arrastavam de gatas até à portinhola. O primeiro a saltar foi o pobre Borobá, que poucas vezes na vida estivera tão assustado. Alexander viu que Nadia tinha o rosto coberto de sangue.

― Águia! ― exclamou, tentando libertá-la da confusão de pacotes, máquinas fotográficas e assentos que se tinham soltado do chão.

Quando, finalmente, se encontraram lá fora e puderam avaliar a situação, verificou-se que ninguém estava ferido e que Nadia tivera uma hemorragia nasal. O avião, pelo contrário, tinha sofrido estragos.

― Tal como receava, a hélice entortou-se ― disse Angie.

― É grave? ― perguntou Alexander.

― Em circunstâncias normais, não é grave. Se arranjar outra hélice, eu própria a posso trocar, mas aqui estamos fritos. Onde vou buscar uma de substituição?

Antes que o Irmão Fernando conseguisse abrir a boca, Angie voltou-se para ele com as mãos nas ancas.

― E não me diga que o seu deus a arranjará, se não quiser que eu me aborreça a sério!

O missionário optou por um silêncio prudente.

― Onde estamos exactamente? ― perguntou Kate.

― Não faço a menor ideia ― admitiu Angie.

O Irmão Fernando consultou o seu mapa e concluiu que, com certeza, não estariam muito longe de Ngoubé, a aldeia onde os seus companheiros tinham estabelecido a missão.

― Estamos rodeados pela selva tropical e pântanos, não é possível sairmos daqui sem um barco ― disse Angie.

― Então façamos uma fogueira. Uma chávena de chá e um gole de vodka não nos cairia mal ― propôs Kate.

 

Ao cair da noite, os expedicionários decidiram acampar perto das árvores, onde ficariam mais protegidos.

- Há pitões por estes lados? - perguntou Joel González, pensando no abraço quase fatal de uma anaconda no Amazonas.

- Os pitões não são problema porque se vêem de longe e podem-se matar com um tiro. Piores são a víbora do Gabão e a cobra do bosque. O veneno mata numa questão de minutos - disse Angie.

- Temos antídoto?

- Para essas não há antídoto. Preocupam-me mais os crocodilos, aqueles bichos comem de tudo... - comentou Angie.

- Mas permanecem no rio, não é? - perguntou Alexander.

- Também são ferozes em terra. Quando os animais saem de noite para beber, eles agarram-nos e arrastam-nos até ao fundo do rio. Não é uma morte agradável - explicou Angie.

A rapariga dispunha de um revólver e de um espingarda, embora nunca tivesse tido necessidade de disparar. Visto que tinham de fazer turnos de vigília à noite, explicou aos outros como deveriam usá-los. Deram uns quantos tiros e verificaram que as armas estavam em bom estado, mas nenhum deles foi capaz de acertar no alvo a poucos metros de distância. O Irmão Fernando recusou-se a participar porque, conforme disse, as armas de fogo quem as carrega é o diabo. A sua experiência na guerra do Ruanda tinha-o escaldado.

- Esta é a minha protecção, um escapulário - disse, mostrando uma tira de tecido que trazia ao pescoço presa por um cordel.

- O quê? - perguntou Kate, que nunca tinha ouvido aquela palavra.

- É um objecto santo, benzido pelo Papa - esclareceu Joel González, mostrando um idêntico que trazia ao peito.

Para Kate, educada na sobriedade da igreja protestante, o culto católico era tão pitoresco como as cerimónias religiosas dos povos africanos.

- Eu também tenho um amuleto, mas não creio que me salve das mandíbulas de um crocodilo - disse Angie mostrando um saquinho de couro.

- Não compare o seu fetiche de bruxaria com um escapulário! - replicou o Irmão Fernando, ofendido.

- Qual é a diferença? - perguntou Alex, bastante interessado. - Um representa o poder de Cristo e o outro uma superstição pagã.

- As crenças próprias chamam-se religião, as dos outros chamam-se superstição - comentou Kate.

Repetia esta frase diante do neto sempre que se apresentava uma oportunidade, para lhe incutir respeito por outras culturas. Outras frases favoritas eram: «o que falamos é idioma, o que os outros falam é dialecto» e «o que os brancos fazem é arte e o que fazem as outras raças é artesanato». Alexander tinha tratado de explicar estas frases da avó na aula de ciências sociais, mas ninguém percebeu a ironia.

Estalou de imediato uma discussão apaixonada sobre a fé cristã e o animismo africano, na qual todo o grupo participou, excepto Alexander, que trazia o seu próprio amuleto ao pescoço e preferiu ficar calado, e Nadia, que estava ocupada percorrendo atentamente a pequena praia de cabo a rabo, na companhia de Borobá. Alexander juntou-se-lhes.

- O que procuras, Águia? - perguntou.

Nadia agachou-se e apanhou da areia uns bocados de cordel. - Encontrei vários - disse.

- Deve ser algum tipo de liana...

- Não. Creio que são feitos à mão. - O que poderão ser?

- Não sei, mas significa que alguém esteve aqui há pouco tempo e talvez volte. Não estamos tão desamparados como Angie supõe - deduziu Nadia.

- Espero que não sejam canibais.

- Isso seria muito pouca sorte - disse ela, pensando no que ouvira ao missionário sobre o louco que governava a região.

- Não vejo pegadas humanas em lado nenhum - comentou Alexander.

- Também não se vêem pegadas de animais. O terreno é mole e a chuva apaga-as.

Várias vezes por dia caía uma chuva forte, que os molhava como um duche e que acabava tão repentinamente como tinha começado. Esses aguaceiros mantinham-nos empapados mas não atenuavam o calor; pelo contrário, a humidade tornava-o ainda mais insuportável. Montaram a tenda de Angie, onde teriam de amontoar-se cinco dos viajantes enquanto o sexto ficava de vigia. Por sugestão do Irmão Fernando procuraram excrementos de animais para fazer uma fogueira, única maneira de manter à distância os mosquitos e de disfarçar o cheiro dos seres humanos, que poderia atrair as feras dos arredores. O missionário alertou-os para a existência de percevejos, que punham os ovos entre a unha e a carne. Se essas feridas infectavam, era necessário depois levantar as unhas com uma faca para arrancar as larvas, um procedimento semelhante à tortura chinesa. Para evitar isso, esfregaram as mãos e os pés com gasolina. Também os avisou de que não deixassem comida ao ar livre, porque atraía as formigas, que podiam ser mais perigosas que os crocodilos. Uma invasão de térmitas era uma coisa aterradora: à sua passagem a vida desaparecia e não ficava nada além de terra devastada. Alexander e Nadia tinham ouvido falar disso no Amazonas, mas ficaram a saber que as africanas eram ainda mais vorazes. O entardecer trouxe uma nuvem de minúsculas abelhas, as insuportáveis mopani que, apesar do fumo, invadiram o acampamento e os cobriram até às pálpebras. - Não picam, chupam apenas o suor. É melhor não tentar afugentá-las, depressa se habituarão a elas - disse o missionário.

- Vejam! - chamou a atenção Joel González.

Pela margem avançava uma velha tartaruga cuja carapaça tinha mais de um metro de diâmetro.

- Deve ter mais de cem anos - calculou o Irmão Fernando. - Eu sei preparar uma sopa de tartaruga deliciosa! - exclamou Angie, empunhando um machete. - É preciso aproveitar a altura em que deita a cabeça de fora para...

- Não está a pensar matá-la... - interrompeu-a Alexander. - A carapaça vale muito dinheiro - disse Angie.

- Temos sardinhas em lata para o jantar - recordou-lhe Nadia, também avessa à ideia de comerem aquela tartaruga indefesa. - Não convém matá--la. Tem um cheiro forte que pode atrair animais perigosos - acrescentou o Irmão Fernando.

O animal centenário afastou-se com um andar tranquilo na direcção da outra extremidade da praia, sem desconfiar que esteve prestes a acabar na panela.

 

O Sol pôs-se, alongaram-se as sombras das árvores próximas e, finalmente, a praia ficou mais fresca.

- Não olhe para este lado, Irmão Fernando, porque vou dar um mergulho na água e não quero tentá-lo - disse Angie Ninderera, rindo-se.

- Não a aconselho a aproximar-se do rio, menina. Nunca se sabe o que pode haver dentro de água - replicou secamente o missionário, sem a olhar.

Mas ela já tinha tirado as calças e a blusa e corria em roupa interior na direcção da margem. Não cometeu a imprudência de meter-se na água para além dos joelhos e permaneceu alerta, pronta para sair a voar em caso de perigo. Com a mesma chávena de latão que usava para o café, começou a deitar água na cabeça com um prazer evidente. Os outros seguiram-lhe o exemplo, menos Borobá, que odiava a água, e o missionário, que permaneceu de costas para o rio, ocupado a preparar uma frugal refeição de feijões com sardinhas de lata.

Nadia foi a primeira a ver os hipopótamos. Na penumbra da tarde, confundiam-se com a cor parda da água e só se deram conta da sua presença quando estavam já muito perto. Havia dóis adultos, mais pequenos que os da reserva de Michael Mushaha, molhando-se a poucos metros do local onde eles tomavam banho. Ao terceiro, uma cria, viram-no depois, espreitando entre os traseiros rotundos dos pais. Silenciosamente, para não os provocar, os amigos saíram do rio e retrocederam em direcção ao acampamento. Os pesados animais não manifestaram qualquer curiosidade pelos seres humanos; continuaram a banhar-se tranquilamente durante muito tempo, até ter caído a noite e desaparecerem na escuridão. Tinham a pele cinzenta e grossa, como a dos elefantes, com grandes pregas. As orelhas eram redondas e pequenas, os olhos muito brilhantes, cor de café caoba. Das mandíbulas pendiam-lhes duas bolsas, que protegiam os enormes caninos quadrados, capazes de triturar um tubo de ferro.

- Andam aos pares e são mais fiéis que a maior parte das pessoas. Têm uma cria de cada vez e cuidam-na durante dois anos - explicou o Irmão Fernando.

 

Com o pôr do Sol, a noite deixou-se cair rapidamente e o grupo de humanos viu-se rodeado pela intransponível escuridão do bosque. Só na pequena clareira da margem onde tinham aterrado se podia ver a Lua no céu. A solidão era absoluta. Organizaram-se para dormirem por turnos, enquanto um deles montava guarda e mantinha acesa a fogueira. Nadia, a quem tinham libertado dessa responsabilidade por ser a mais nova, insistiu em acompanhar Alexander durante o turno deste. No decorrer da noite desfilaram vários animais, que se aproximavam do rio para beber, perplexos com o fumo, o fogo e o cheiro dos seres humanos. Os mais tímidos retrocediam assustados, mas os outros farejavam o ar, hesitavam e por fim, dominados pela sede, aproximavam-se. As instruções do Irmão Fernando, que tinha estudado a flora e a fauna de África durante trinta anos, eram para não os incomodarem. Regra geral não atacavam os seres humanos, disse, a não ser que estivessem esfomeados ou fossem agredidos.

- Isso é em teoria. Na prática são imprevisíveis e podem atacar a qualquer momento - rebateu-o Angie.

- O fogo mantê-los-á afastados. Nesta praia julgo que estamos a salvo. No bosque o perigo deve ser maior do que aqui... - disse o Irmão Fernando.

- Sim, mas não entraremos no bosque - atalhou-o Angie.

- Pensa ficar nesta praia para sempre? - perguntou o missionário.

- Não podemos sair daqui através do bosque. A única rota é o rio.

- Nadando? - insistiu o Irmão Fernando.

- Podíamos construir uma jangada - sugeriu Alexander.

- Leste demasiados romances de aventuras, rapaz - replicou o missionário.

- Amanhã tomaremos uma decisão. Para já, vamos descansar - ordenou Kate.

O turno de Alexander e Nadia começou às três da manhã. Seriam eles e Borobá quem veria o nascer do Sol. Sentados costas com costas, com as armas pousadas nos joelhos, conversavam em sussurros. Mantinham-se em contacto quando estavam separados, mas tinham na mesma milhentas coisas para contar um ao outro quando se encontravam. A amizade que sentiam era muito profunda e calculavam que duraria para o resto da vida. A verdadeira amizade, pensavam, resiste à passagem do tempo, é desinteressada e generosa, não exige nada em troca, só lealdade. Sem se terem posto de acordo, protegiam esse delicado sentimento da curiosidade alheia. Amavam-se sem alarde, sem grandes demonstrações, discreta e silenciosamente. Através do correio electrónico partilhavam sonhos, pensamentos, emoções e segredos. Conheciam-se tão bem que não precisavam de falar muito; às vezes uma palavra bastava para se compreenderem.

Mais de uma vez a mãe de Alexander lhe perguntara se Nadia era a «sua miúda» e ele negara sempre com mais convicção do que a necessária. Não era a «sua miúda» no sentido normal do termo. A simples pergunta ofendia-o. A sua relação com Nadia não podia comparar-se à das paixões que costumavam transtornar os seus amigos, ou às suas próprias fantasias com Cecilia Burns, a rapariga com quem pensava casar-se desde que entrara para a escola. O carinho entre Nadia e ele era único, intocável, precioso. Compreendia que uma relação tão intensa e pura não é habitual entre dois adolescentes do sexo oposto, por isso mesmo não falava dela, ninguém entenderia.

 

Uma hora mais tarde, as estrelas desapareceram uma a uma e o céu começou a clarear, primeiro como uma suave claridade e depois como um incêndio magnífico, que iluminava a paisagem com reflexos alaranjados. O céu encheu-se de pássaros diversos e um concerto de trinados acordou o grupo. Puseram-se imediatamente em acção, uns atiçando o fogo e preparando alguma coisa para o pequeno-almoço, outros ajudando Angie Ninderera a soltar a hélice com a intenção de consertá-la.

Tiveram de armar-se com paus para manter à distância os macacos que se atiravam sobre o acampamento para roubar comida. A batalha deixou-os extenuados. Os macacos afastaram-se para o fim da praia e vigiavam-nos daí, à espera de qualquer descuido para atacarem de novo. O calor e a humidade eram opressivos, tinham a roupa colada ao corpo, o cabelo molhado, a pele ardente. O bosque exalava um odor pesado a matéria em decomposição, que se misturava com a fetidez do excremento que tinham utilizado para a fogueira. A sede acossava-os e tinham de conservar as últimas reservas de água engarrafada que traziam no avião. O Irmão Fernando propôs usarem a água do rio, mas Kate disse que lhes provocaria tifo ou cólera.

- Podemos fervê-la, mas com este calor não teremos como arrefecê-la e teremos de a beber quente - acrescentou Angie.

- Nesse caso, façamos chá - concluiu Kate.

O missionário utilizou a caçarola que levava pendurada na mochila para tirar água do rio e fervê-la. Tinha uma cor de ferrugem, sabor metálico e um estranho cheiro adocicado, um pouco nauseabundo.

Borobá era o único que entrava no bosque em excursões rápidas; os restantes receavam perder-se naquela espessura. Nadia reparou que o macaco ia e vinha a toda a hora, com uma atitude que, ao princípio, era de curiosidade mas que, de repente, parecia de desespero. Convidou Alexander e foram ambos atrás dele.

- Não se afastem, miúdos - avisou-os Kate.

- Já voltamos - replicou o neto.

Borobá conduziu-os sem hesitações por entre as árvores. Enquanto ele saltava de ramo em ramo, Nadia e Alexander avançavam com dificuldade, abrindo caminho entre os fetos compactos, pedindo para não pisarem nenhuma cobra ou depararem com um leopardo.

 

Os jovens penetraram pela vegetação sem perder Borobá de vista. Pareceu-lhes que iam por uma espécie de vereda cujo traçado quase não se via a meio do bosque, talvez uma rota antiga, que as plantas tinham coberto e por onde os animais transitavam quando iam beber ao rio. Estavam cobertos de insectos dos pés à cabeça; face à impossibilidade de se livrarem deles, resignaram-se a tolerá-los. Era melhor não pensarem na série de doenças transmitidas pelos insectos, desde a malária até à prostração mortal induzida pela mosca tsé-tsé, cujas vítimas mergulhavam numa letargia profunda até morrerem, presas no labirinto dos seus pesadelos. Nalguns sítios tinham de afastar à palmada as imensas teias de aranha que lhes impediam a passagem; noutros afundavam-se até meia perna num lodo pegajoso.

De repente distinguiram no bulício contínuo do bosque um som semelhante a um lamento humano, que os fez parar em seco. Borobá pôs-se a saltar ansiosamente, indicando-lhes que continuassem. Alguns metros à frente viram de que se tratava. Alexander, que ia a abrir o caminho, esteve quase a cair num buraco aberto aos seus pés, como uma fenda. O choro provinha de uma forma escura, que jazia no buraco e que, à primeira vista, parecia um cão grande.

- O que é? - murmurou Alexander, sem se atrever a elevar a voz e retrocedendo.

Os guinchos de Borobá intensificaram-se, a criatura moveu-se no buraco e nessa altura aperceberam-se de que era um símio. Estava enrolado numa rede que o imobilizava completamente. O animal ergueu os olhos e, ao vê-los, começou a fazer um grande alarido e a mostrar os dentes.

- É um gorila. Não consegue sair... - disse Nadia.

- Isto parece uma armadilha.

- É preciso tirá-lo dali - propôs Nadia.

- Como? Pode morder-nos...

Nadia agachou-se até ao animal aprisionado e começou a falar como o fazia com Borobá.

- O que lhe dizes? - perguntou-lhe Alexander.

- Não sei se me entende. Nem todos os macacos falam a mesma língua, Jaguar. No safari consegui comunicar com os chimpanzés mas não com os mandris.

- Aqueles mandris eram uns desalmados, Águia. Não fariam caso de ti mesmo que te entendessem.

- Não conheço o idioma dos gorilas, mas imagino que será parecido com o de outros macacos.

- Diz-lhe que fique quieto e veremos se conseguimos libertá-lo da rede.

Pouco a pouco, a voz de Nadia conseguiu acalmar o animal aprisionado, mas se tentavam aproximar-se voltava a mostrar os dentes e a grunhir.

- Tem um bebé! - reparou Alexander.

Era minúsculo, não devia ter mais do que algumas semanas e agarrava-se com desespero ao pêlo espesso da mãe.

- Vamos buscar ajuda. Precisamos de cortar a rede - decidiu Nadia.

Voltaram à praia o mais depressa que o terreno permitia e contaram aos outros o que tinham encontrado.

- Esse animal pode atacá-los. Os gorilas são pacíficos, mas uma fêmea com uma cria é sempre perigosa - avisou-os o Irmão Fernando.

Mas Nadia já tinha deitado a mão a uma faca e partia seguida pelo resto do grupo. Joel González quase não acreditava na sua sorte: ia fotografar um gorila, no fim de contas. O Irmão Fernando armou-se com o seu machete e um pau comprido, Angie levava o revólver e o espingarda. Borobá conduziu-os directamente à armadilha onde estava a gorila que, ao ver-se rodeada de rostos humanos, ficou bastante exaltada.

- Neste momento vinha-nos a calhar o anestésico de Michael Mushaha - observou Angie.

- Tem muito medo. Tentarei aproximar-me, vocês esperem atrás - propôs Nadia.

Os outros retrocederam vários metros e esconderam-se entre os fetos, enquanto Nadia e Alexander se aproximavam centímetro a centímetro, parando e esperando. A voz de Nadia continuava o seu longo monólogo para acalmar o pobre animal apanhado. Assim decorreram vários minutos, até que os grunhidos cessaram.

- Jaguar, olha ali para cima - sussurrou Nadia ao ouvido do amigo.

Alexander ergueu os olhos e viu na copa da árvore indicada um rosto negro e brilhante, com os olhos muito juntos e o nariz achatado, observando-o com muita atenção.

- É outro gorila. E muito maior! - replicou Alexander também num murmúrio.

- Não o olhes nos olhos, isso é sentido por eles como uma ameaça e pode enfurecê-lo - aconselhou-o ela.

O resto do grupo também o viu, mas ninguém se mexeu. Joel González tinha as mãos a tremer para disparar a máquina fotográfica, mas Kate dissuadiu-o com um olhar severo. A oportunidade de estar a tão curta distância daqueles símios era tão rara que não podiam arruiná-la devido a um movimento em falso. Passada meia hora ainda nada acontecera; o gorila da árvore permanecia quieto no seu posto de observação e a figura encolhida debaixo da rede mantinha silêncio. Só a sua respiração agitada e a forma como apertava a cria denunciavam a sua angústia.

Nadia começou a gatinhar até à armadilha, observada do chão pela aterrorizada fêmea e de cima pelo macho. Alexander seguiu-a com a faca entre os dentes, sentindo-se um pouco ridículo, como se estivesse num filme de Tarzan. Quando Nadia esticou a mão para tocar no animal sob a rede, os ramos da árvore onde estava o outro gorila balançaram.

- Se atacar o meu neto, mata-o aí mesmo - bichanou Kate a Angie.

Angie não respondeu. Receava não ser capaz de lhe dar um tiro, mesmo que o animal estivesse a um metro de distância. O espingarda tremia-lhe nas mãos.

A fêmea seguia os movimentos dos jovens, num estado de alerta, mas parecia um pouco mais tranquila, como se tivesse compreendido a explicação, repetida incessantemente por Nadia, de que estes seres humanos não eram os mesmos que construíram a armadilha.

- Quieta, quieta, vamos libertar-te - murmurava Nadia como uma litania.

Por fim a mão da rapariga tocou no pêlo negro do símio, que se encolheu com o contacto e mostrou os dentes. Nadia não retirou a mão e, pouco a pouco, o animal acalmou-se. A um sinal de Nadia, Alexander começou a arrastar-se com prudência para se juntar a ela. Muito lentamente, para não a assustar, acariciou o lombo da gorila até ela se familiarizar com a sua presença. Respirou até ao fundo dos pulmões, esfregou o amuleto que trazia ao peito para arranjar coragem e empunhou a faca para cortar a corda. A reacção do animal ao ver o gume do metal rente à pele foi encolher-se como uma bola, protegendo o bebé com o corpo. A voz de Nadia chegava-lhe de longe, penetrando na sua mente aterrorizada, acalmando-a, enquanto sentia nas costas o roçar da faca e os puxões da rede. Cortar as cordas acabou por ser um trabalho mais demorado do que se supunha mas, finalmente, Alexander conseguiu abrir uma brecha para libertar a prisioneira. Fez um sinal a Nadia e os dois retrocederam vários passos.

- Fora! Já podes sair! - ordenou a jovem.

O Irmão Fernando avançou gatinhando com prudência e passou a Alexander o seu bastão, que o usou para picar delicadamente o vulto aninhado sob a rede. Isso provocou o efeito esperado, a gorila levantou a cabeça, farejou o ar e olhou à sua volta com curiosidade. Demorou um pouco a verificar que conseguia mexer-se e nessa altura ergueu-se, libertando-se da rede. Nadia e Alexander viram-na de pé, com a cria ao peito, e tiveram de tapar a boca para não gritar de excitação. Não se moveram. A gorila agachou-se, sustendo com uma mão o bebé contra o peito e ficou a olhar para os jovens com uma expressão concentrada.

Alexander estremeceu ao compreender a proximidade a que estava o animal. Sentiu o seu calor e um rosto preto e enrugado surgiu a dez centímetros do céu. Fechou os olhos, a suar. Quando tornou a abri-los viu vagamente um focinho rosado e cheio de dentes amarelos; tinha os óculos embaciados mas não se atreveu a tirá-los. O hálito da gorila bateu-lhe em cheio no nariz e tinha um odor agradável a pasto acabado de cortar. De repente, a mãozinha curiosa do bebé agarrou-o pelo cabelo e deu-lhe um puxão. Alexander, sufocado de felicidade, esticou um dedo e o macaquinho agarrou-o como fazem os bebés recém-nascidos. À mãe não agradou esta demonstração de confiança e deu um empurrão a Alexander, atirando-o ao chão, mas sem agressividade. Lançou um grunhido enfático, num tom de quem faz uma pergunta e, com dois saltos, afastou-se na direcção da árvore onde o macho a esperava e desapareceram ambos entre a folhagem. Nadia ajudou o amigo a levantar-se.

- Viram? Ela tocou-me! - exclamou Alexander, pulando de entusiasmo.

- Muito bem, miúdos - aprovou o Irmão Fernando.

- Quem terá posto aquela rede? - perguntou Nadia, pensando que era do mesmo material das cordas da praia.

 

De regresso ao acampamento, Joel González improvisou uma cana de pesca com bambu e um arame torcido e instalou-se na margem, na esperança de pescar alguma coisa para comer, enquanto os restantes comentavam a recente aventura. O Irmão Fernando estava de acordo com a teoria de Nadia: havia a esperança de alguém vir socorrê-los, porque a rede indiciava uma presença humana. Os caçadores acabariam por voltar à procura da presa.

- Por que caçam os gorilas? A carne é má e a pele é feia - quis saber Alexander.

- A carne é aceitável se não houver mais nada para comer. Os órgãos são usados em bruxaria, com a pele e o crânio fazem máscaras e vendem as mãos transformadas em cinzeiros. Os turistas adoram - explicou o missionário.

- Que horror!

- Na missão no Ruanda tínhamos um gorila de dois anos, o único que conseguimos salvar. Matavam as mães e às vezes traziam-nos os pobres bebés, que ficavam abandonados. São muito sensíveis, morrem de tristeza, se antes não morrerem de fome.

- A propósito, vocês não têm fome? - perguntou Alexander.

- Foi má ideia deixar fugir a tartaruga, poderíamos ter tido um jantar esplêndido - comentou Angie.

Os responsáveis calaram-se. Angie tinha razão. Naquelas circunstâncias não podiam dar-se ao luxo de ficar sentimentais, a sobrevivência estava em primeiro lugar.

- O que aconteceu ao rádio do avião? - perguntou Kate.

- Enviei várias mensagens a pedir socorro, mas não creio que tenham sido recebidas, estamos muito longe. Continuarei a tentar contactar Michael Mushaha. Prometi-lhe que o contactaria duas vezes por dia. Estranhará, com certeza, não receber notícias nossas - replicou Angie.

- A dada altura alguém dará pela nossa falta e virá procurar-nos - consolou-os Kate.

- Estamos fritos: o meu avião aos pedaços, e nós perdidos e esfomeados - resmungou Angie.

- Mas que pessimista é você, mulher! Deus aperta mas não afoga. Vai ver que nada há-de faltar-nos - replicou o Irmão Fernando.

Angie agarrou no missionário pelos braços e levantou-o alguns centímetros do chão para o olhar de perto, olhos nos olhos.

- Se tivesse feito caso do que eu disse, não estaríamos nesta embrulhada! - exclamou soltando faíscas.

- A decisão de vir aqui foi minha, Angie - interveio Kate.

Os membros do grupo dispersaram-se pela praia, cada qual ocupado com os seus afazeres. Com a ajuda de Alexander e de Nadia, Angie tinha conseguido soltar a hélice e, depois de a examinar a fundo, confirmou o que já suspeitavam: não conseguiriam consertá-la com os meios de que dispunham. Estavam encurralados.

Joel González não tinha esperanças de que alguma coisa picasse o seu primitivo anzol, por isso mesmo quase caiu de costas surpreendido quando sentiu um puxão no fio. Os outros correram a ajudá-lo e, por fim, depois de uma luta demorada, tiraram da água uma carpa de bom tamanho. O peixe deu rabanadas de agonia na areia durante longos minutos que para Nadia foram um eterno tormento, porque não podia ver os animais a sofrer.

- Assim é a natureza, miúda. Uns morrem para que outros possam viver - consolou-a o Irmão Fernando.

Não quis acrescentar que Deus lhes tinha enviado a carpa, como realmente pensava, para não continuar a provocar Angie Ninderera.

Limparam o peixe, envolveram-no em folhas e assaram-no; nunca tinham comido nada tão delicioso. Nessa altura a praia ardia como um inferno. Improvisaram uma sombra com lonas presas sobre paus e puseram-se a descansar, observados pelos macacos e por uns grandes lagartos verdes que tinham vindo apanhar sol.

 

O grupo dormitava, suando sob a sombra precária das lonas, quando de repente saiu do bosque, na outra ponta da praia, um verdadeiro remoinho que levantava nuvens de areia. Inicialmente pensaram tratar-se de um rinoceronte, tal era o alvoroço da sua chegada, mas depressa viram que se tratava de um enorme javali de pêlo eriçado e dentes ameaçadores. O animal arremeteu às cegas contra o acampamento, sem lhes dar oportunidade de empunhar as armas, que tinham posto de lado durante a sesta. Só tiveram tempo de se afastar quando este investiu, batendo contra os paus que seguravam a lona e deitando-os ao chão. Das ruínas do toldo, observou-os com olhos malévolos, resfolegando.

Angie Ninderera foi a correr buscar o seu revólver e os seus movimentos atraíram a atenção do animal, que se dispôs a atacar novamente. Com os cascos das patas dianteiras cavou a areia, baixou a cabeça e desatou a correr na direcção de Angie, cuja corpulência era um alvo perfeito.

Quando o fim de Angie parecia inevitável, o Irmão Fernando interpôs-se entre ela e o javali, agitando um pedaço de lona no ar. O animal parou em seco, deu meia volta e lançou-se contra ele, mas no momento do choque o missionário esquivou o corpo com um passo de dança. O javali tomou distância, furioso, e voltou à carga, enredando-se de novo na lona, sem tocar no homem. Entretanto, Angie tinha empunhado o revólver mas não se atreveu a disparar porque o animal andava às voltas em redor do Irmão Fernando, tão perto que se confundiam.

O grupo compreendeu que presenciava a mais original corrida de touros. O missionário usava a lona como capa, provocava o animal e atiçava-o com gritos de Olé, touro! Enganava-o, punha-se à frente, enlouquecia-o. Passado pouco tempo tinha-o cansado, a ponto de cair, babando-se e com as patas trémulas. Então o homem voltou-lhe as costas e, com a arrogância suprema de um toureiro, afastou-se vários passos arrastando a capa, enquanto o javali fazia esforços para se manter de pé. Angie aproveitou esse instante para o matar com dois tiros na cabeça. Um coro de aplausos e assobios saudou a atrevida proeza do Irmão Fernando.

- Ah, como me consolei! Há trinta e cinco anos que não toureava! - exclamou.

Sorriu pela primeira vez desde que o conheciam e ele contou-lhes que o seu sonho de juventude era seguir os passos do pai, um toureiro famoso, mas Deus tinha outros planos para ele. Umas febres medonhas deixaram-no quase cego e não pôde continuar a tourear. Interrogava-se sobre o que fazer com a sua vida quando soube, através do pároco da sua aldeia, que a Igreja estava a recrutar missionários para África. Acudiu à chamada apenas pelo desespero de não poder tourear, mas depressa descobriu que tinha vocação. Para ser missionário requeriam-se as mesmas virtudes que para tourear: coragem, resistência e fé para enfrentar dificuldades.

- Lidar touros é fácil. Servir Cristo é bastante mais complicado - concluiu o Irmão Fernando.

- A avaliar pela demonstração que nos deu, parece que não se requer boa vista para nenhuma das coisas - disse Angie, emocionada porque ele lhe salvara a vida.

- Agora teremos carne para vários dias. É preciso cozinhá-la para durar um pouco mais - disse o Irmão Fernando.

- Fotografaste a corrida? - perguntou Kate a Joel González.

O homem teve de admitir que, na excitação do momento, tinha-se esquecido completamente da sua obrigação.

- Eu fi-lo! - disse Alexander, brandindo a minúscula máquina fotográfica que trazia sempre consigo.

O único que conseguiu tirar o courato e arrancar as vísceras do javali acabou por ser o Irmão Fernando, porque na sua aldeia tinha visto muitas vezes preparar o porco. Tirou a camisa e meteu mãos à obra. Não dispunha de facas apropriadas, de forma que a tarefa acabou por ser lenta e suja. Enquanto ele trabalhava, Alexander e Joel González, armados com paus, espantavam os abutres que voavam em círculos por cima deles. Passada uma hora, a carne que podiam aproveitar estava pronta. Deitaram os desperdícios ao rio, para evitar moscas e animais carnívoros, que sem dúvida apareceriam atraídos pelo cheiro do sangue. O missionário arrancou as presas do porco selvagem com a faca e, depois de limpá-las na areia, deu-as a Alexander e a Nadia.

- Para levarem como recordação para os Estados Unidos - disse.

- Se sairmos daqui com vida - acrescentou Angie.

 

Durante grande parte da noite caíram aguaceiros breves, que dificultavam a tarefa de manter o fogo aceso. Defenderam-no protegendo-o com uma lona, mas apagava-se com muita frequência e por fim resignaram-se a deixá-lo morrer. Durante o turno de Angie aconteceu o único incidente, que ela depois descreveu como «uma fuga milagrosa». Um crocodilo, frustrado por não ter conseguido agarrar uma presa na margem do rio, aproximou-se da claridade ténue das brasas e do candeeiro de petróleo. Angie, abrigada sob um bocado de plástico para não se molhar, não o ouviu. Apercebeu-se da presença dele quando este estava tão perto que lhe conseguia ver as mandíbulas abertas a menos de um metro das suas pernas. Numa fracção de segundo passou-lhe pela mente a premonição de Má Bangesé, a adivinha do mercado, julgou que tinha chegado a sua hora e não teve a presença de espírito para usar a espingarda, pousada ao lado. O instinto e o susto fizeram-na retroceder aos saltos e lançar uns gritos pavorosos, que acordaram os amigos. O crocodilo hesitou alguns segundos e a seguir atacou novamente. Angie desatou a correr, tropeçou e caiu, rolando para um lado para fugir do animal.

 

O primeiro a acudir aos gritos de Angie foi Alexander, que acabava de sair do seu saco-cama, porque era a vez do seu turno de vigilância. Sem pensar no que fazia, pegou na primeira coisa que encontrou à mão e descarregou uma cacetada com toda a força no focinho do animal. O rapaz guinchava mais do que Angie e repartia pancadas às cegas, metade das quais não acertavam no crocodilo. Imediatamente os restantes foram socorrê-lo e Angie, recuperada da surpresa, começou a disparar a sua arma sem apontar. Algumas balas acertaram no alvo, mas não perfuraram as grossas escamas do sáurio. Por fim, o alvoroço e as pancadas de Alexander fizeram-no desistir do jantar e foi-se embora indignado, batendo com a cauda, em direcção ao rio.

- Era um crocodilo! - exclamou Alexander, gaguejando e tremendo, sem conseguir acreditar que tinha lutado com um daqueles monstros.

- Vem aqui para te dar um beijo, filho, salvaste-me a vida - chamou-o ela, espremendo-o contra o seu volumoso peito.

Alexander sentiu que as costelas lhe rangiam e que o sufocava uma mistura de cheiro a medo e a perfume de gardénias, enquanto Angie o cobria de beijos sonoros, rindo-se e chorando de tão nervosa.

Joel González aproximou-se para examinar a arma que Alexander tinha utilizado.

- É a minha máquina fotográfica! - exclamou.

Era. O estojo de cabedal preto estava destruído, mas a pesada máquina alemã tinha resistido ao duro encontro com o crocodilo sem danos aparentes.

- Desculpa. Joel. Da próxima vez usarei a minha - disse Alexander apontando para a sua pequena máquina fotográfica de bolso.

 

De manhã parou de chover e aproveitaram para lavar a roupa com um forte sabão de creolina que Angie trazia na bagagem e pô-la a secar ao sol. Tomaram um pequeno-almoço de carne assada, bolachas e chá. Estavam a planear a construção de uma jangada, tal como Alexander tinha sugerido no primeiro dia, para flutuarem rio abaixo até à aldeia mais próxima, quando surgiram duas canoas aproximando-se pelo rio. O alívio e a alegria foram tão explosivos que desataram todos a correr lançando gritos de júbilo, como náufragos que eram. Ao vê-los, as canoas pararam a alguma distância e os tripulantes começaram a remar em sentido contrário, afastando-se. Iam dois homens em cada uma, vestidos com calções e camisolas de manga curta. Angie cumprimentou-os aos gritos em inglês e noutros idiomas locais de que conseguiu recordar-se, suplicando-lhes que regressassem, que estavam dispostos a pagar-lhes se os ajudassem. Os homens deliberaram entre si e por fim a curiosidade ou a cobiça dominou-os e começaram a remar, aproximando-se cautelosamente da margem. Verificaram que havia uma mulher robusta, uma estranha avó, dois adolescentes, um tipo magro de óculos e lentes grossas e outro homem que também não parecia de temer; formavam antes um grupo ridículo. Uma vez convencidos de que aquela gente não representava qualquer perigo, apesar das armas nas mãos da senhora gorda, saudaram com gestos e desembarcaram.

Os recém-chegados apresentaram-se como pescadores provenientes de uma aldeia situada algumas milhas a sul. Eram fortes, maciços, quase quadrados, com a pele muito escura, e iam armados com machetes. Segundo o Irmão Fernando, eram de etnia banto.

Devido à colonização, a segunda língua da região era o francês. Acontece que Kate Cold o falava sofrivelmente, perante a surpresa do neto, e assim pôde trocar algumas frases com os pescadores. O Irmão Fernando e Angie conheciam várias línguas africanas e aquilo que os outros não conseguiram expressar em francês, eles transmitiram-lhes. Explicaram o acidente, mostraram-lhes o avião avariado e pediram-lhes ajuda para sair dali. Os bantos beberam as cervejas mornas que lhes ofereceram e devoraram uns bocados de javali, mas não amoleceram até terem acordado um preço e Angie lhes ter oferecido cigarros, que tiveram o poder de os descontrair.

Entretanto, Alexander deu uma vista de olhos às canoas e, como não viu nenhum apetrecho de pesca, concluiu que os tipos mentiam e não eram de fiar. Os restantes também não estavam sossegados.

 

Enquanto os homens das canoas comiam, bebiam e fumavam, o grupo de amigos afastou-se para discutir a situação. Angie aconselhou-os a não se descuidarem, porque podiam assassiná-los para os roubarem, embora o Irmão Fernando achasse que eles eram enviados do céu para os ajudar na sua missão.

- Estes homens levar-nos-ão rio acima até Ngoubé. De acordo com o mapa... - disse.

- Como lhe passa uma coisa dessas pela cabeça! - interrompeu-o Angie. - Iremos para sul, para a aldeia destes homens. Aí deve existir algum meio de comunicação. Tenho de arranjar outra hélice e regressar para buscar o meu avião.

- Estamos muito perto de Ngoubé. Não posso abandonar os meus companheiros, quem sabe por que penúrias estão a passar - alegou o Irmão Fernando.

- Não lhe parece que já temos problemas suficientes? - replicou a piloto.

- Você não respeita o trabalho dos missionários! - exclamou o Irmão Fernando.

- E por acaso você respeita as religiões africanas? Por que tenta impor-nos as suas crenças? - replicou Angie.

- Acalmem-se! Temos assuntos mais urgentes para resolver - apressou-os Kate.

- Sugiro que nos separemos. Os que desejarem vão para o sul consigo, os que quiserem acompanhar-me vão na outra canoa para Ngoubé - propôs o Irmão Fernando.

- De maneira nenhuma! Juntos estamos mais seguros - interrompeu Kate.

- Por que não fazemos uma votação? - sugeriu Alexander.

- Porque a democracia não se aplica neste caso, jovem - sentenciou o missionário.

- Então deixemos que Deus decida - disse Alexander.

- Como?

- Atiremos uma moeda ao ar: cara, vamos para sul; coroa, vamos para norte. Está nas mãos de Deus ou da sorte, como preferirem - explicou o jovem, tirando uma moeda da algibeira.

Angie Ninderera e o Irmão Fernando hesitaram alguns instantes e depois desataram-se a rir. A ideia pareceu-lhes de um humor irresistível.

- De acordo! - exclamaram em uníssono.

Os outros também aprovaram. Alexander passou a moeda a Nadia, que a atirou ao ar. O grupo conteve a respiração até esta cair na areia.

- Coroa! Vamos para norte! - gritou triunfante o Irmão Fernando.

- Dou-lhe três dias no total, homem. Se nesse prazo não encontrarmos os seus amigos, regressamos, entendido? - rugiu Angie.

- Cinco dias.

- Quatro.

- Está bem, quatro dias e nem um minuto a menos - aprovou o missionário de má vontade.

 

Convencer os supostos pescadores a que os levassem para o sítio assinalado no mapa acabou por ser mais complicado do que o previsto. Os homens explicaram que ninguém se aventurava por aqueles lados sem autorização do rei Kosongo, que não simpatizava com estrangeiros.

- Rei? Neste país não há reis, há um presidente e um parlamento, parte-se do princípio que é uma democracia... - disse Kate.

Angie explicou-lhes que, além do governo nacional, alguns clãs e tribos de África tinham reis e até algumas rainhas, cujo papel era mais simbólico que político, como alguns soberanos que havia ainda na Europa.

- Os missionários mencionaram nas suas cartas um tal rei Kosongo, mas referiam-se mais ao comandante Maurice Mbembelé.

Parece que é o militar quem manda - disse o Irmão Fernando.

- Talvez não se trate da mesma aldeia - sugeriu Angie. - Não tenho dúvidas de que é a mesma.

- Não me parece prudente metermo-nos na boca do lobo - comentou Angie.

- Temos de averiguar o que aconteceu aos missionários - disse Kate.

- O que sabe sobre Kosongo, Irmão Fernando? - perguntou Alexander.

- Não muito. Parece que Kosongo é um usurpador, colocado no trono pelo comandante Mbembelé. Antes havia uma rainha, mas desapareceu. Calcula-se que a mataram, ninguém a vê há vários anos.

- E o que contaram os missionários acerca de Mbembelé? - insistiu Alexander.

- Estudou alguns anos em França, de onde foi expulso por confusões com a polícia - explicou o Irmão Fernando.

Acrescentou que, de volta ao seu país, Maurice Mbembelé entrou para o exército, mas também aí teve problemas devido ao seu temperamento indisciplinado e violento. Foi acusado de acabar com uma revolta assassinando vários estudantes e queimando casas. Os seus superiores abafaram o assunto, para evitar que saísse na imprensa, e livraram-se do oficial enviando-o para o ponto mais ignorado do mapa. Esperavam que as febres dos pântanos e as picadas dos mosquitos lhe curassem o mau feitio ou acabassem com ele. Aí Mbembelé desapareceu na mata, juntamente com um punhado dos seus homens mais leais, e pouco depois reapareceu em Ngoubé. Segundo contaram os missionários nas suas cartas, Mbembelé aquartelou-se na aldeia e, daí, controlava a região. Era um bruto, impunha os castigos mais cruéis às pessoas. Até diziam que mais de uma vez comera o fígado ou o coração das., suas vítimas.

- É canibalismo ritual, pensa-se que assim se adquire a cotagem e a força do inimigo derrotado - çsclareceu Kate.

- Idi Amin, um ditador do Uganda, costumava servir aolantar os seus ministros assados no forno - acrescentou Angie.

- O canibalismo não é tão raro como julgamos, vi-o no Bornéu há alguns anos - explicou Kate.

- A sério que presenciaste actos de canibalismo, Kate...? - perguntou Alexander.

- Isso aconteceu quando estive no Bornéu a fazer uma reportagem. Não vi como cozinhavam pessoas, se é a isso que te referes, filho, mas soube-o em primeira mão. Por precaução, só comi feijão em lata - respondeu-lhe a avó.

- Acho que vou passar a ser vegetariano - concluiu Alexander, enojado.

O Irmão Fernando contou-lhes que o comandante Mbembelé não via com bons olhos a presença dos missionários cristãos no seu território. Tinha a certeza de que não durariam muito tempo: se não morressem de alguma doença tropical ou devido a um acidente oportuno, seriam vencidos pela fadiga e pela frustração. Permitiu-lhes construir uma pequena escola e um dispensário com os medicamentos que levaram, mas não autorizou as crianças a assistir às aulas ou os doentes a aproximar-se da missão. Os irmãos dedicaram-se a transmitir conhecimentos de higiene às mulheres até isso ser também proibido. Viviam isolados, sob constante ameaça, à mercê dos caprichos do rei e do comandante.

O Irmão Fernando suspeitava, pelas poucas notícias que os missionários conseguiram enviar, que Kosongo e Mbembelé financiavam o seu reino de terror através do contrabando. Aquela região era rica em diamantes e outras pedras preciosas. Além disso, havia urânio ainda por explorar.

- E as autoridades não fazem nada a esse respeito? - perguntou Kate.

- Onde julga que está, senhora? Pelos vistos não sabe como se resolvem as coisas por estes lados - replicou o Irmão Fernando.

 

Os bantos aceitaram levá-los ao território de Kosongo por uma quantia em dinheiro, cerveja e tabaco, além de duas facas. As restantes provisões foram colocadas em sacos; esconderam as bebidas e os cigarros no fundo, por serem mais apreciados que o dinheiro e poderem ser usadas para pagar serviços e subornos. Latas de sardinha e pêssegos em calda, fósforos, açúcar, leite em pó e sabão também eram bastante valiosos.

- Na minha vodka ninguém toca - resmungou Kate Cold.

- O mais necessário são os antibióticos, pastilhas para a malária e soro contra picadas de serpentes - disse Angie, embalando a caixa de primeiros socorros do avião, que continha também a ampola de anestésico que lhe dera de amostra Michael Mushaha.

Os bantos voltaram as canoas e levantaram-nas com um pau para improvisar dois telhados, sob os quais descansaram, depois de terem bebido e cantado aos gritos até altas horas. Aparentemente não receavam os brancos nem os animais. Os outros, pelo contrário, não se sentiam seguros. Agarrados às suas armas e pacotes, não pregaram olho para vigiar os pescadores, que dormiam a sono solto. Pouco depois das cinco amanheceu. A paisagem, envolta numa bruma misteriosa, parecia uma delicada aguarela. Enquanto os estrangeiros, exaustos, efectuavam os preparativos para partirem, os bantos corriam pela areia dando pontapés a uma bola de trapos num vigoroso desafio de futebol.

O Irmão Fernando fez um pequeno altar rematado com uma cruz feita com dois paus e chamou à oração. Os bantos aproximaram-se por curiosidade e os restantes por cortesia, mas a solenidade que comunicou ao acto conseguiu comover todos eles, até Kate, que vira tantos rituais diferentes nas suas viagens que já nenhum a impressionava.

Carregaram as finas canoas, distribuindo o peso dos passageiros e da bagagem o melhor possível e deixaram no avião o que não puderam levar.

- Espero que ninguém' apareça na nossa ausência - disse Angie, dando uma palmada de despedida ao Super Falcão.

Era o único capital que tinha neste mundo e receava que o roubassem até ao último parafuso.

- Quatro dias não é muito - pensou para consigo, mas sentiu o coração apertar-se cheio de maus pressentimentos. Quatro dias naquela selva eram uma eternidade.

Partiram por volta das oito, da manhã. Penduraram as lonas como toldos nas canoas para se protegerem do sol, que queimava sem piedade por cima deles quando iam a meio do rio. Enquanto os estrangeiros sofriam com a sede e como calor e eram acossados por abelhas e moscas, os bantos remavam sem esforço contra a corrente, animando-se uns aos outros com piadas e grandes goles de vinho de palma, que levavam em embalagens de plástico. Obtinham-no da forma mais simples: faziam um corte em forma de Vña base do tronco das palmeiras, penduravam uma cabaça por baixo e esperavam que se enchesse com a seiva da árvore, que depois deixavam fermentar.

Havia um alvoroço de aves no ar e uma festa de diversos peixes na água; viram hipopótamos, talvez a mesma família que tinham encontrado na margem durante a primeira noite, e crocodilos de dois tipos, uns cinzentos e outros mais pequenos, cor de café. Angie, a salvo na canoa, aproveitou para os cobrir de insultos. Os bantos quiseram laçar um dos maiores, cuja pele podiam vender por bom preço, mas Angie opôs-se, histérica, e os outros também não aceitaram partilhar o reduzido espaço da embarcação com o animal, por mais amarradas que estivessem as patas e o focinho. Já tinham tido oportunidade de apreciar as suas fileiras de dentes renováveis e a força da sua cauda.

Uma espécie de cobra escura passou a roçar por uma das canoas e de repente inchou, transformando-se num pássaro com asas de riscas brancas e cauda preta, que se elevou no ar, desaparecendo no bosque. Mais tarde, uma grande sombra voou sobre eles e Nadia deu um grito de reconhecimento: era uma águia-coroada. Angie contou que tinha visto uma delas erguer-se com uma gazela nas garras. Nenúfares brancos flutuavam entre grandes folhas carnudas, formando ilhas, que tinham de contornar com cuidado para evitar que os botes se prendessem nas raízes. Em ambas as margens a vegetação era espessa, pendiam lianas, fetos, raízes e ramos. De vez em quando surgiam pontos de cor no verde uniforme da natureza: orquídeas roxas, vermelhas, amarelas e rosadas.

 

Navegaram grande parte do dia para norte. Os remadores, incansáveis, não alteraram o ritmo dos seus movimentos, nem sequer na hora de maior calor, quando os outros estavam meio desmaiados. Não pararam para comer; tiveram de dar-se por satisfeitos com bolachas, água engarrafada e um punhado de açúcar. Ninguém quis sardinhas, cujo cheiro lhes revolvia o estômago.

A meio da tarde, quando o Sol ainda estava alto, mas o calor diminuíra um pouco, um dos bantos apontou para a margem. As canoas pararam. O rio bifurcava-se num braço largo, que continuava para norte, e num canal estreito, que penetrava no bosque para a esquerda. À entrada do canal viram em terra firme uma coisa que parecia um espantalho. Era uma estátua de madeira do tamanho de um homem, vestida de ráfia, penas e tiras de pele, tinha cabeça de gorila, com a boca aberta como num grito pavoroso. Nas órbitas dos olhos tinha duas pedras incrustadas. O tronco estava cheio de pregos e a cabeça era coroada por uma incongruente roda de bicicleta em jeito de chapéu, da qual pendiam ossos e mãos dissecadas, talvez de macacos. Rodeavam-no vários bonecos igualmente pavorosos e crânios de animais.

- São bonecos satânicos de bruxaria! - exclamou o Irmão Fernando, fazendo o sinal da cruz.

- São um pouco mais feios do que os santos das igrejas católicas - respondeu-lhe Kate, numa voz sarcástica.

Joel González e Alexander dispararam as suas máquinas fotográficas.

Osbantos, aterrorizados, anunciaram que só iam até aí e, embora Kate os tivesse tentado com mais,d inheiro e cigarros, recusaram continuar. Explicaram-que-aquele altar macabro indicava a fronteira do território de Kosongo. Daí para dentro eram os seus domínios, ninguém podia entrar sem a sua autorização. Acrescentaram que podiam chegar à aldeia antes da noite cair, seguindo um carreiro no bosque. Não estavam muito longe, disseram, apenas a uma ou duas horas de marcha. Tinham de guiar-se pelas árvores marcadas com cortes de machete. Os remadores atracaram as frágeis embarcações na margem e, sem esperar instruções, começaram a atirar os pacotes para terra.

Kate pagou-lhes uma parte do combinado e, recorrendo ao seu mau francês e à ajuda do Irmão Fernando, conseguiu comunicar-lhes que deviam vir buscá-los a esse mesmo local dentro de quatro dias, e nessa altura receberiam o resto do dinheiro prometido e um prémio em cigarros e latas de pêssego em calda. Os bantos aceitaram com sorrisos amarelos e, retrocedendo aos tropeções, entraram nas suas canoas e afastaram-se como se fossem perseguidos por demónios.

- Que tipos tão excêntricos! - comentou Kate.

- Receio que não os tornemos a ver - acrescentou Angie, preocupada.

- É melhor iniciarmos a marcha antes que anoiteça - disse o Irmão Fernando, colocando a mochila às costas e pegando em dois pacotes.

 

O carreiro anunciado pelos bantos era invisível. O terreno acabou-por ser um lodaçal cheio de raízes e de ramos, onde os pés se afundavam comfrequência numa nata mole de insectos, sanguessugas e vermes. Umas ratazanas gordas e grandes como cães fugiam à sua passagem. Felizmente calçavam botas até meia perna que ao menos os protegiam das serpentes. Era tanta a humidade que Alexander e Kate optaram por tirar os óculos embaciados, enquanto o Irmão Fernando, que pouco ou nada via sem os dele, tinha de os limpar de cinco em cinco minutos. Naquela vegetação luxuriante não era fácil descobrir as árvores marcadas pelos machetes.

Mais uma vez Alexander verificou que o clima dos trópicos esgotava o corpo e provocava uma pesada indiferença na alma. Sentiu saudades do frio limpo e vivificante das montanhas cobertas de neve que costumava escalar com o pai e que tanto amava. Pensou que, se ele se sentia acabrunhado, a avó devia estar à beira de um ataque de coração, mas Kate raras vezes se queixava. A escritora não estava disposta a deixar-se vencer pela velhice. Dizia que os anos se notam quando se curvam as costas e se emitem ruídos: tosses, pigarros, estalidos de ossos, gemidos. Por isso ela andava direita e sem fazer barulho.

O grupo avançava quase às cegas enquanto, das árvores, os macacos lhes atiravam projécteis. Os amigos tinham uma ideia geral da direcção a seguir, mas não imaginavam a distância que os separava da aldeia. Imaginavam ainda menos do tipo de recepção que os esperava.

 

Caminharam durante mais de uma hora, mas avançaram pouco. Era impossível apressar-se num terreno como aquele. Tiveram de atravessar vários pântanos com a água até à cintura. Num deles, Angie Ninderera pisou em falso e deu um grito ao sentir que se afundava no barro movediço e que os seus esforços para se libertar eram inúteis. O Irmão Fernando e Joel González seguraram numa das extremidades da espingarda e ela agarrou-se com as duas mãos à outra. Dessa forma a puxaram para terra firme. No processo Angie largou o pacote que levava.

- Perdi o meu saco! - exclamou Angie ao ver que este se afundava irremediavelmente na lama.

- Não importa, menina, o essencial é termos conseguido tirá-la - replicou o Irmão Fernando.

- Não importa, como? Estão ali os meus cigarros e o meu bâton!

Kate deu um suspiro de alívio: pelo menos não teria de cheirar o tabaco maravilhoso de Angie, a tentação era muito grande.

Aproveitaram um charco para se lavarem um pouco, mas tiveram de resignar-se com a lama metida nas botas. Além do mais, tinham a sensação desagradável de serem observados do bosque.

- Acho que nos espiam - disse Kate por fim, incapaz de suportar a tensão por mais tempo.

Formaram um círculo, armados com o seu reduzido arsenal: o revólver e a espingarda de Angie, um machete e duas facas.

- Que Deus nos proteja - murmurou o Irmão Fernando, uma invocação que lhe saía dos lábios cada vez com maior frequência.

Poucos minutos depois saíram cautelosamente da floresta umas figuras humanas tão pequenas como crianças; o mais alto não chegava ao metro e cinquenta. Tinham a pele de um castanho-amarelado, as pernas curtas, os braços e o tronco longos, os olhos muito separados, o nariz achatado, o cabelo aos nós.

- Devem ser os famosos pigmeus do bosque - disse Angie, cumprimentando-os com um gesto.

Cobriam-se apenas com tangas; um deles vestia uma esfarrapada camisola de manga curta que lhe chegava até abaixo dos joelhos. Estavam armados com lanças, mas não as brandiam ameaçadoramente, usando-as antes como bordões. Traziam uma rede enrolada num pau que dois deles carregavam. Nadia deu-se conta de que era idêntica à que tinha aprisionado a gorila no sítio onde aterraram com o avião, a muitas milhas de distância. Os pigmeus responderam à saudação de Angie com um sorriso confiante e algumas palavras em francês, passando depois para uma tagarelice incessante na sua própria língua, que ninguém entendeu.

- Podem levar-nos a Ngoubé? - interrompeu-os o Irmão Fernando.

- Ngoubé? Non... non... ! - exclamaram os pigmeus.

- Temos de ir a Ngoubé - insistiu o missionário.

O da camisola acabou por ser aquele com quem se comunicavam melhor porque, para além do seu reduzido vocabulário em francês, conhecia várias palavras em inglês. Apresentou-se como sendo Beyé-Dokou. Um outro apontou para ele com um dedo e disse que ele era o tuma do seu clã, ou seja, o melhor caçador. Beyé-Dokou fê-lo calar com um empurrão amistoso, mas pela expressão satisfeita do seu rosto parecia orgulhoso do título. Os outros desataram a rir às gargalhadas, troçando dele ruidosamente. Qualquer assomo de vaidade era muito mal visto entre os pigmeus. Beyé-Dokou meteu a cabeça entre os ombros, envergonhado. Com alguma dificuldade conseguiu explicar a Kate que não deviam aproximar-se da aldeia porque era um lugar muito perigoso. Deviam antes afastar-se dali o mais depressa possível.

- Kosongo, Mbembelé, Sombe, soldados... - repetia com expressões de terror.

Quando o informaram de que tinham de ir a Ngoubé a qualquer custo e de que as canoas só viriam buscá-los dentro de quatro dias, pareceu bastante preocupado, conversou demoradamente com os seus companheiros e, finalmente, ofereceu-se para os guiar por uma rota secreta do bosque de volta ao local onde tinham deixado o avião.

- Devem ter sido eles quem pôs a rede onde a gorila caiu - comentou Nadia, observando a rede que dois dos pigmeus transportavam.

- Parece que a ideia de ir a Ngoubé não lhes parece muito adequada - comentou Alexander.

- Ouvi dizer que eles eram os únicos seres humanos capazes de viver na selva pantanosa. Conseguem deslocar-se pelo bosque e orientam-se por instinto. É melhor irmos com eles, antes que seja demasiado tarde - disse Angie.

- Já estamos aqui e continuaremos até à aldeia de Ngoubé. Não foi isso que combinámos? - disse Kate.

- Para Ngoubé - repetiu o Irmão Fernando.

Os pigmeus expressaram com gestos eloquentes a sua opinião acerca do desvario que isso representava, mas acabaram por aceitar guiá-los. Deixaram a rede debaixo de uma árvore e, sem cerimónias, agarraram nos pacotes e nas mochilas dos estrangeiros, puseram-nos às costas e partiram a trote por entre os fetos, com tanta pressa que era quase impossível segui-los. Eram muito fortes e ágeis, cada um levava em cima mais de trinta quilos de peso, mas isso não os incomodava, os músculos das pernas e dos braços eram de betão; enquanto os expedicionários ofegavam, prestes a desmaiar de fadiga e de calor, eles corriam com passos curtos e com os pés para fora, como patos, sem qualquer esforço e falando sem cessar.

Beyé-Dokou falou-lhes das três personagens que tinha mencionado anteriormente: o rei Kosongo, o comandante Mbembelé e Sombe, que descreveu como sendo um terrível feiticeiro.

Explicou-lhes que o rei Kosongo nunca tocava no chão com os pés porque, se o fizesse, a terra tremia. Disse que andava com a cara coberta para que ninguém lhe visse os olhos porque eram tão poderosos que um simples olhar podia matar ao longe. Kosongo não falava com ninguém porque a sua voz era como o trovão: deixava toda a gente surda e aterrorizava os animais. O rei falava apenas através da boca real, uma personagem da corte treinada para suportar a potência da sua voz, cuja tarefa também consistia em provar a comida, para evitar que o envenenassem ou o prejudicassem com magia negra através dos alimentos. Avisou-os que mantivessem sempre a cabeça mais baixa que a do rei. O mais correcto era cair de bruços e arrastar-se na sua presença.

O homenzinho da camisola amarela descreveu Mbembelé apontando uma arma invisível, disparando e caindo ao chão como morto; também atirando lanças e cortando mãos e pés com machete ou machado. A mímica não podia ser mais clara. Acrescentou que nunca deveriam contrariá-lo mas era evidente que Sombe era quem mais receava. O simples nome do bruxo punha os pigmeus aterrorizados.

O carreiro era invisível, mas os seus pequenos guias tinham-no percorrido muitas vezes e, para avançar, não precisavam de ver os sinais nas árvores. Passaram diante de uma clareira onde havia outras bonecas vodu parecidas às que tinham visto antes, mas estas eram de uma cor avermelhada, como ferrugem. Quando se aproximaram, viram que se tratava de sangue seco. Em volta delas havia pilhas de lixo, cadáveres de animais, fruta podre, pedaços de mandioca, cabaças com diversos líquidos, talvez vinho de palma e outras bebidas alcoólicas. O cheiro era insuportável. O Irmão Fernando benzeu-se e Kate recordou ao apavorado Joel González que estava ali para tirar fotografias.

- Espero que não seja sangue humano, mas de animais sacrificados - murmurou o fotógrafo.

- A aldeia dos antepassados - disse Beyé-Dokou apontando para a vereda estreita que começava na boneca e desaparecia no interior do bosque.

Explicou que era preciso fazer um desvio para chegar a Ngoubé, porque não se podia passar pelos domínios dos antepassados, onde rondavam os espíritos dos mortos. Era uma regra básica de segurança. Só um tonto ou um lunático se aventuraria por esse lado.

- De quem são estes antepassados? - perguntou Nadia.

Beyé-Dokou teve alguma dificuldade em entender a pergunta, acabando por compreendê-la com a ajuda do Irmão Fernando.

- São os nossos antepassados - esclareceu, apontando para os seus companheiros e fazendo gestos para indicar que eram de baixa estatura.

- Kosongo e Mbembelé também não se aproximam da aldeia-fantasma dos pigmeus? - insistiu Nadia.

- Ninguém se aproxima. Se os espíritos são incomodados, vingam-se. Entram nos corpos dos vivos, apoderam-se da sua vontade, provocam doenças, sofrimentos e também a morte - respondeu Beyé-Dokou.

Os pigmeus indicaram aos forasteiros que deviam apressar-se porque à noite saíam também para caçar os espíritos dos animais.

- Como sabem se é o fantasma de um animal ou um animal comum? - perguntou Nadia.

- Porque o espectro não tem o cheiro do animal. Um leopardo que cheira a antílope ou uma serpente que cheira a elefante, é um espectro - explicaram-lhe.

- É preciso ter bom olfacto e aproximar-se muito para os distinguir... - troçou Alexander.

Beyé-Dokou contou-lhes que, antigamente, não tinham medo da noite ou dos espíritos dos animais, só dos espíritos dos antepassados, porque estavam protegidos por Ipemba-Afua. Kate quis saber se se tratava de alguma divindade, mas ele corrigiu-a. Tratava-se de um amuleto sagrado que pertencia à sua tribo desde tempos imemoriais. Pelo que conseguiram perceber da descrição, tratava-se de um osso humano e continha um pó eterno que curava muitos males. Tinham usado esse pó uma infinidade de vezes durante muitas gerações, sem que este acabasse. Cada vez que abriam o osso, encontravam-no cheio daquele produto mágico. Ipemba-Afua representava a alma do seu povo, disseram, era a sua fonte de saúde, de força e de boa sorte para a caça.

- Onde está? - perguntou Alexander.

Informou-os, com lágrimas nos olhos, que Ipemba-Afua tinha sido roubado por Mbembelé e que estava agora em poder de Kosongo. Enquanto o rei tivesse o amuleto, eles careciam de alma, estavam à sua mercê.

 

Entraram em Ngoubé já a luz do dia desaparecia e os seus habitantes começavam a acender archotes e fogueiras para iluminar a aldeia. Passaram diante de umas esquálidas plantações de mandioca, café e banana, de alguns altos currais de madeira - talvez para animais - e de uma fileira de palhotas sem janelas, com paredes inclinadas e telhados em ruínas. Algumas vacas de longos chifres mastigavam as ervas do chão e por toda a parte corriam frangos meio depenados, cães famélicos e macacos selvagens. Alguns metros à frente, abria-se uma avenida ou praça central bastante ampla, rodeada de casas mais decentes, palhotas de barro com telhado de zinco ondulado ou palha.

A chegada dos estrangeiros provocou uma gritaria e, em poucos minutos, as pessoas da aldeia acorreram a ver o que se passava. Pelo aspecto pareciam bantos, como os homens das canoas que os tinham trazido até à bifurcação do rio. Mulheres vestidas de andrajos e crianças nuas formavam uma massa compacta num dos lados do pátio, através da qual abriram caminho quatro homens mais altos que a restante população, indubitavelmente de outra etnia. Vestiam calças esfarrapadas do uniforme do exército e traziam espingardas antiquadas e cintos de balas. Um deles tinha um chapéu de explorador enfeitado com penas, uma camisola de manga curta e sandálias de plástico, os outros vinham em tronco nu e estavam descalços; ostentavam tiras de pele de leopardo amarradas nos bíceps ou em volta da cabeça e cicatrizes rituais na cara e nos braços. Eram umas linhas de pontos, como se debaixo da pele tivessem pedrinhas ou contas incrustadas.

Com o aparecimento dos soldados, a atitude dos pigmeus alterou-se. A segurança e a alegre camaradagem que demonstraram no bosque desapareceram repentinamente; atiraram a carga para o chão, agacharam as cabeças e retiraram-se como cães espancados. Beyé-Dokou foi o único que se atreveu a fazer um gesto de despedida aos estrangeiros.

Os soldados apontaram as armas aos recém-chegados e ladraram algumas palavras em francês.

- Boa tarde - cumprimentou Kate em inglês, porque encabeçava a fila e não lhe ocorreu dizer outra coisa.

Os soldados ignoraram a sua mão estendida, rodearam-nos e empurraram-nos com as culatras das armas contra a parede de uma palhota, perante o olhar curioso dos mirones.

- Kosongo, Mbembelé, Sombe... - gritou Kate.

Os homens hesitaram diante do poder daqueles nomes e começaram a discutir no seu idioma. Fizeram o grupo esperar durante um tempo que lhes pareceu eterno, enquanto um deles ia em busca de instruções.

Alexander reparou que a algumas pessoas faltava uma mão ou as orelhas. Também viu várias crianças, que observavam a cena a alguma distância, com úlceras horríveis na cara. O Irmão Fernando disse-lhe que eram provocadas por um vírus transmitido pelas moscas; ele vira a mesma coisa nos acampamentos de refugiados no Ruanda.

- Cura-se com água e sabão, mas pelos vistos aqui nem sequer isso há - acrescentou.

- Não disse que os missionários tinham um dispensário? - perguntou Alexander.

- Estas úlceras são muito mau presságio, filho; significam que os meus irmãos não estão aqui, de outra forma já as teriam curado - replicou o missionário, preocupado.

Decorrido muito tempo, já noite cerrada, o mensageiro regressou com a ordem de os conduzirem à «árvore das palavras», onde se decidiam os assuntos do governo. Indicaram-lhes que agarrassem nas bagagens e os seguissem.

A multidão afastou-se, dando passagem, e o grupo atravessou o pátio ou praça que dividia a aldeia. No centro viram que se erguia uma árvore magnífica, cujos ramos cobriam como um guarda-chuva a largura do recinto. O tronco tinha uns três metros de diâmetro e as grossas raízes expostas ao ar caíam de cima como longos tentáculos e mergulhavam no chão. Ali esperava o impressionante Kosongo.

O rei estava sobre um estrado, sentado num cadeirão de felpa vermelha e madeira dourada com pés inclinados, de um antiquado estilo francês. De ambos os lados erguia-se um par de dentes de elefante colocados verticalmente e várias peles de leopardo cobriam o chão. Rodeavam o trono uma série de estátuas de madeira com expressões assustadoras e bonecos de bruxaria. Três músicos com casacos azuis de uniforme militar, mas sem calças e descalços, batiam uns paus. Archotes fumegantes e duas fogueiras iluminavam a noite, dando à cena um ar teatral.

Kosongo estava enfeitado com um manto inteiramente bordado de conchas, penas e outros objectos inesperados, como tampas de garrafa, rolos de fotografia e balas. O manto devia pesar uns quarenta quilos. Além disso usava um,chapéu monumental com um metro de altura, adornado com quatro chifres de ouro, símbolos de potência e coragem. Ostentava colares de dentes de leão, vários amuletos e uma pele de pitão enrolada na cintura. Uma cortina de contas de vidro e ouro tapava-lhe a cara. Uma bengala de ouro maciço, com uma cabeça dissecada de macaco no punho, servia-lhe de ceptro ou báculo. Da bengala pendia um osso talhado com desenhos delicados; pelo tamanho e pela forma, parecia uma tibia humana. Os forasteiros deduziram que se trataria possivelmente de Ipemba-Afua, o amuleto descrito pelos pigmeus. O rei usava grossos anéis de ouro nos dedos, com formas de animais e grossas pulseiras do mesmo metal, que lhe cobriam os braços até ao cotovelo. O aspecto era tão impressionante como o dos soberanos de Inglaterra no dia da coroação, embora noutro estilo.

Num semicírculo em volta do trono estavam os guardas e ajudantes do rei. Pareciam bantos, como a restante população da aldeia, ao contrário do rei que, aparentemente, era da mesma raça alta dos soldados. Como estava sentado, era difícil calcular o seu tamanho, mas parecia enorme, embora isso também pudesse ser efeito do manto e do chapéu. O comandante Maurice Mbembelé e o bruxo Sombe não se viam em lado nenhum.

Mulheres e pigmeus não faziam parte do círculo real mas atrás da corte masculina havia uma vintena de mulheres muito jovens, que se distinguiam dos outros habitantes de Ngoubé porque estavam vestidas com tecidos de cores vistosas e enfeitadas com pesadas jóias de ouro. À luz vacilante dos archotes, o metal amarelo brilhava contra a sua pele escura. Algumas tinham crianças ao colo e havia vários miúdos brincando à sua volta. Deduziram que se tratava da família do rei e chamou-lhes a atenção as mulheres parecerem tão submissas como os pigmeus. Pelos vistos não tinham orgulho da sua posição social, mas medo.

O Irmão Fernando informou-os de que a poligamia era comum em África e, frequentemente, o número de mulheres e filhos revelava poder económico e prestígio. No caso de um rei, quantos mais filhos tivesse, mais próspera era a sua nação. Nesse aspecto, como em muitos outros, a influência do cristianismo e da cultura ocidental não tinha mudado os costumes. O missionário alvitrou que as mulheres de Kosongo talvez não pudessem escolher o seu destino e tivessem sido obrigadas a casar-se.

Os quatro soldados altos empurraram os estrangeiros, indicando-lhes que deviam prostrar-se diante do rei. Quando Kate tentou erguer os olhos, uma pancada na cabeça fê-la desistir de imediato. E assim ficaram, engolindo o pó da praça, humilhados e trémulos, durante longos e incómodos minutos, até os músicos terem cessado o bater dos paus e um som metálico ter posto fim à espera. Os prisioneiros atreveram-se a olhar para o trono: o estranho monarca agitava um sino de ouro na mão.

Quando morreu o eco do sino, um dos conselheiros aproximou-se e o rei disse-lhe alguma coisa ao ouvido. O homem dirigiu-se aos estrangeiros numa mistura de francês, inglês e banto para anunciar, em jeito de introdução, que Kosongo fora designado por Deus e tinha a missão divina de governar. Os forasteiros tornaram a enterrar o nariz no pó, sem vontade de pôr em dúvida esta afirmação. Compreenderam que se tratava da boca real, tal como Beyé-Dokou lhes tinha explicado. A seguir o emissário perguntou qual era o objectivo desta visita aos domínios do magnífico soberano Kosongo. A sua voz ameaçadora não deixou margem para dúvidas sobre o que pensava do assunto. Ninguém respondeu. Os únicos que entenderam as suas palavras foram Kate e o Irmão Fernando, mas estavam transtomados, desconheciam o protocolo e não queriam arriscar-se a cometer uma imprudência; talvez a pergunta fosse apenas retórica e Kosongo não esperasse resposta.

O rei aguardou alguns segundos a meio de um silêncio absoluto, depois agitou novamente o sino, gesto que foi interpretado pelo povo como uma ordem. A aldeia inteira, menos os pigmeus, começou a gritar e a ameaçar com os punhos, fechando o círculo em redor dos visitantes. Curiosamente, não parecia uma revolta popular mas um acto teatral executado por maus actores; o alvoroço era executado sem o mais pequeno entusiasmo e alguns deles riam-se mesmo dissimuladamente. Os soldados que dispunham de armas de fogo completaram a manifestação colectiva com uma inesperada salva de tiros para o ar, que provocou na praça uma fuga em tropel. Adultos, crianças, macacos, cães e galinhas puseram-se em fuga, refugiando-se o mais longe possível e os únicos que permaneceram sob a árvore foram o rei, a sua reduzida corte, o atemorizado harém e os prisioneiros, deitados no chão, cobrindo a cabeça com os braços, certos de que tinha chegado a sua hora.

 

A calma voltou aos poucos à aldeola. Terminado o tiroteio e dissipado o ruído, a boca real repetiu a pergunta. Desta vez Kate Cold pôs-se de joelhos, com a pouca dignidade que os seus velhos ossos lhe permitiam, mantendo-se abaixo da altura do temperamental soberano, tal como Beyé-Dokou os instruíra, e dirigiu-se ao intermediário com firmeza, mas tentando não provocá-lo.

- Somos jornalistas e fotógrafos - disse, apontando vagamente para os seus companheiros.

O rei cochichou alguma coisa ao seu ajudante e este repetiu as suas palavras.

- Todos?

- Não, Vossa Majestade Sereníssima, esta senhora é dona do avião que nos trouxe até aqui e o senhor de óculos é um missionário - explicou Kate, apontando para Angie e para o Irmão Fernando. E acrescentou, antes que fizessem perguntas sobre Alexander e Nadia: - Viemos de muito longe para entrevistar Vossa Originalíssima Majestade, porque a vossa fama ultrapassou as fronteiras e espalhou-se pelo mundo.

Kosongo, que parecia saber muito mais francês que a boca real, fixou o olhar na escritora com uma expressão de profundo interesse, mas também de desconfiança.

- O que queres dizer, mulher velha? - perguntou, através do outro homem.

- No estrangeiro há uma grande curiosidade pela vossa pessoa, Vossa Altíssima Majestade.

- Como é isso? - disse a boca real.

- O senhor conseguiu impor paz, prosperidade e ordem nesta região, Vossa Absolutíssima Majestade. Chegaram-nos notícias de que é um guerreiro corajoso, conhece-se a vossa autoridade, sabedoria e riqueza. Dizem que é tão poderoso como o antigo Rei Salomão.

Kate continuou o seu discurso, enredando-se nas palavras, porque não praticava francês há vinte anos, e nas ideias, porque não tinha muita fé no seu plano. Estavam em pleno século xxi, já não havia aqueles reizinhos bárbaros retratados nos maus filmes, que se assustavam com um oportuno eclipse do Sol. Calculou que Kosongo estava um pouco fora de moda mas que não era nenhum tonto. Um eclipse do Sol não bastaria para o convencer. Ocorreu-lhe, no entanto, que devia ser susceptível à adulação, como a maioria dos homens com poder. Não tinha feitio para louvar ninguém, mas na sua longa vida tinha verificado que se pode dizer a um homem a lisonja mais ridícula que este, regra geral, acredita. A sua única esperança era de que Kosongo engolisse aquele anzol grosseiro.

As suas dúvidas dissiparam-se rapidamente, porque a táctica de elogiar o rei teve o efeito esperado. Kosongo estava convencido da sua origem divina. Durante anos ninguém questionara o seu poder; a vida e a morte dos seus súbditos dependiam dos seus caprichos. Considerou normal que um grupo de jornalistas atravessasse meio mundo para o entrevistar; estranho era não o terem feito antes. Decidiu recebê-los como mereciam.

Kate Cold interrogou-se de onde viria tanto ouro, porque a aldeia era das mais pobres que ela já vira. Que outras riquezas haveria nas mãos do rei? Qual era a relação de Kosongo com o comandante Mbembelé? Possivelmente planeavam ambos retirar-se para gozar das suas fortunas num lugar mais atraente que este labirinto de pântanos e selva. Entretanto a população de Ngoubé vivia na miséria, sem comunicação com o mundo exterior, electricidade, água limpa, educação ou medicamentos.

 

Com uma mão, Kosongo agitou o sininho de ouro e com a outra ordenou aos habitantes da aldeia, que continuavam escondidos atrás das palhotas e das árvores, que se aproximassem. A atitude dos soldados mudou, inclinando-se até para ajudar os estrangeiros a levantar-se e trazendo uns banquinhos de três pernas, que puseram à sua disposição. A população aproximou-se cautelosamente.

- Festa! Música! Comida! - ordenou Kosongo através da boca real, indicando ao aterrorizado grupo de forasteiros que podiam sentar-se nos banquinhos.

O rosto do rei coberto pela cortina de contas voltou-se na direcção de Angie. Sentindo-se observada, ela tentou desaparecer atrás dos seus companheiros mas na realidade o seu volume era impossível de esconder.

- Acho que está a olhar para mim. Os olhos dele não matam, como dizem, mas sinto que me despem - sussurrou a Kate.

- Talvez pretenda incorporar-te ao seu harém - replicou esta na brincadeira.

- Nem morta!

Kate admitiu para consigo que Angie podia competir em beleza com qualquer uma das mulheres de Kosongo, apesar de já não ser tão nova. Ali as meninas casavam-se na adolescência e, em África, a piloto podia considerar-se uma mulher madura. Mas a sua figura alta e gorda, com os dentes muito brancos e a pele lustrosa era bastante atraente. A escritora tirou da mochila uma das suas preciosas garrafas de vodka e colocou-a aos pés do monarca, mas este não pareceu impressionado. Com um gesto depreciativo, Kosongo autorizou os seus súbditos a desfrutarem da modesta oferta. A garrafa passou de mão em mão entre os soldados. A seguir, o rei tirou um pacote de cigarros entre as pregas do manto e os soldados entregaram um por cabeça aos homens da aldeia. As mulheres, que não eram consideradas da mesma espécie que os varões, foram ignoradas. Também não ofereceram aos estrangeiros, perante o desespero de Angie, que começava a sofrer os efeitos da falta de nicotina.

As mulheres do rei não eram mais consideradas que a restante população feminina de Ngoubé. Um velho severo tinha a função de as manter na ordem, dispondo para isso de uma fina cana de bambu que não hesitava em usar para lhes fustigar as pernas sempre que lhe apetecia. Aparentemente não era mal visto maltratar as rainhas em público.

O Irmão Fernando atreveu-se a perguntar pelos missionários ausentes e a boca real respondeu que nunca houve missionários em Ngoubé. Acrescentou que não eram visitados por estrangeiros há anos, excepto por um antropólogo que chegou a medir as cabeças dos pigmeus e que se pôs a andar poucos dias depois, por não suportar o clima nem os mosquitos.

- Deve ter sido Ludovic Leblanc - suspirou Kate.

Recordou que Leblanc, seu arqui-inimigo e sócio na Fundação Diamante, lhe dera a ler o seu ensaio sobre os pigmeus da selva equatorial, publicado numa revista científica. Segundo Leblanc, os pigmeus eram a sociedade mais livre e igualitária que se conhecia. Homens e mulheres viviam numa estreita camaradagem, os casais caçavam juntos e partilhava-se igualmente o cuidado das crianças. Entre eles não havia hierarquias, os únicos cargos honoríficos eram os de «chefe», «curandeiro» e «melhor caçador», mas estas posições não implicavam poder ou privilégios mas apenas deveres. Não existiam diferenças entre homens e mulheres ou entre velhos e jovens; as crianças não deviam obediência aos pais. A violência entre membros do clã era desconhecida. Viviam em grupos familiares, ninguém possuía mais bens que os outros, produziam apenas o indispensável para o consumo diário. Não havia incentivos à acumulação de bens porque, assim que alguém adquiria alguma coisa, a família tinha o direito de a tirar. Tudo era partilhado. Era um povo ferozmente independente, que não fora subjugado nem sequer pelos colonizadores europeus, mas nos tempos mais recentes muitos deles tinham sido escravizados pelos bantos.

Kate nunca tinha a certeza da percentagem de verdade contida nos trabalhos académicos de Leblanc mas a sua intuição disse-lhe que, no que se referia aos pigmeus, o pomposo professor podia estar correcto. Pela primeira vez, Kate sentia a sua falta. Discutir com Leblanc era o sal da sua vida, era o que a mantinha combativa; não lhe convinha passar muito tempo longe dele, porque o seu carácter podia amolecer. Nada assustava tanto a velha escritora como a ideia de se transformar numa avozinha inofensiva.

O Irmão Fernando tinha a certeza de que a boca real mentia a respeito dos missionários perdidos e insistiu nas perguntas até Angie e Kate lhe recordarem o protocolo. Era evidente que o assunto incomodava o rei. Kosongo parecia uma bomba-relógio pronta a explodir e eles estavam numa posição muito vulnerável.

 

Para homenagear os visitantes, ofereceram-lhes cabaças com vinho de palma, umas folhas com aspecto de espinafres e pudim de mandioca; também uma cesta com ratazanas enormes, que tinham assado nas fogueiras e temperado com jorros de um óleo alaranjado, obtido das sementes de palma. Alexander fechou os olhos, pensando com nostalgia nas latas de sardinhas que estavam na mochila, mas um pontapé da avó devolveu-o à realidade. Não era prudente rejeitar o jantar do rei.

- São ratos, Kate! - exclamou, tentando controlar as náuseas.

- Não sejas aborrecido. Sabem a frango - replicou ela.

- Foi o que disseste da serpente do Amazonas e não era verdade - recordou-lhe o neto.

O vinho de palma acabou por ser uma beberagem pavorosa, doce e nauseabunda, que o grupo de amigos provou por cortesia, mas não conseguiu engolir. Por outro lado, os soldados e os outros homens da aldeia beberam-no em grandes goles até não haver ninguém sóbrio. Diminuíram a vigilância mas os prisioneiros não tinham para onde fugir, estavam rodeados pela selva, pelo miasma dos pântanos e pelo perigo dos animais selvagens. As ratazanas assadas e as folhas acabaram por ser bastante mais sofríveis do que o seu aspecto levava a pensar. O pudim de mandioca, pelo contrário, sabia a pão demolhado em água com sabão, mas estavam todos esfomeados e engoliram a comida sem melindres. Nadia limitou-se aos amargos espinafres, mas Alexander surpreendeu-se chupando com agrado os ossinhos da pata de um rato. A avó tinha razão: sabia a frango. Melhor dizendo, a frango fumado.

De súbito, Kosongo tornou a agitar o seu sino de ouro.

- Agora quero os meus pigmeus! - gritou a boca real aos soldados e acrescentou para proveito dos visitantes: - Tenho muitos pigmeus, são meus escravos. Não são humanos, vivem no bosque como os macacos.

Trouxeram para a praça vários tambores de diversos tamanhos, alguns tão grandes que tinham de ser carregados por dois homens, outros feitos com peles esticadas sobre cabaças ou enferrujados bidões de gasolina. A uma ordem dos soldados, o reduzido grupo de pigmeus, o mesmo que guiou os estrangeiros até Ngoubé e que permanecia à parte, foi empurrado em direcção aos instrumentos. Os homens colocaram-se nos seus postos, cabisbaixos, reticentes, sem se atreverem a desobedecer.

- Têm de tocar música e dançar para que os seus antepassados conduzam um elefante até às suas redes. Amanhã vão caçar e não podem voltar de mãos vazias - explicou Kosongo utilizando a boca real.

Beyé-Dokou deu umas batidas experimentais, para marcar o tom e aquecer, e os restantes juntaram-se-lhe. A expressão dos seus rostos alterou-se, pareciam transfigurados, os olhos brilhavam-lhes, os corpos moviam-se ao compasso das mãos, enquanto o volume aumentava e se acelerava o ritmo dos sons. Pareciam incapazes de resistir à sedução da música que eles próprios criavam. As vozes elevaram-se num canto extraordinário, que ondulava no ar como uma serpente e parava de repente para dar lugar a um contraponto. Os tambores adquiriram vida, competindo uns com os outros, juntando-se, palpitando, animando a noite. Alexander calculou que meia dúzia de orquestras de percussão com amplificadores eléctricos não conseguiria igualar aquilo. Os pigmeus reproduziam nos seus toscos instrumentos as vozes da natureza, algumas delicadas, como a água nas pedras ou o salto das gazelas; outras profundas, como passadas de elefantes, trovões ou galope de búfalos; outras eram lamentos de amor, gritos de guerra ou gemidos de dor. A música aumentava de intensidade e rapidez, atingindo um apogeu, depois diminuía até se transformar num suspiro quase inaudível. Assim se repetiam os ciclos, nunca iguais, cada um deles magnífico, cheios de graça e de emoção, como só os melhores músicos de jazz poderiam igualar.

A outro sinal de Kosongo trouxeram as mulheres, que até essa altura os estrangeiros não tinham visto. Mantinham-nas nos currais de animais que ficavam à entrada da aldeia. Eram pigmeias, todas jovens, vestidas apenas com saias de ráfia. Avançaram arrastando os pés, numa atitude humilhada, enquanto os guardas lhes davam ordens aos gritos e as ameaçavam. Ao vê-Ias houve uma reacção de paralisia entre os músicos, os tambores pararam de repente e por instantes só o seu eco vibrou no bosque.

Os guardas ergueram os bastões e as mulheres encolheram-se, abraçando-se mutuamente para se protegerem. De imediato, os instrumentos voltaram a ressoar com um novo brio. Então, perante o olhar impotente dos visitantes, produziu-se um diálogo mudo entre elas e os músicos. Enquanto os homens fustigavam os tambores expressando toda a gama de emoções humanas, da ira e da dor, ao amor e à nostalgia, as mulheres dançavam em círculo, balançando as saias de ráfia, erguendo os braços, batendo no chão com os pés descalços, respondendo com os seus movimentos e com o seu canto ao chamamento angustiado dos seus companheiros. O espectáculo era de uma intensidade primitiva e dolorosa, insuportável.

Nadia escondeu a cara entre as mãos; Alexander abraçou-a com firmeza, prendendo-a, porque receou que a amiga saltasse para o centro do pátio com a intenção de pôr fim a esta dança degradante. Kate aproximou-se para os avisar de que não fizessem nenhum movimento em falso, que poderia ser fatal. Bastava ver Kosongo para compreender a razão: parecia possesso. Estremecia ao ritmo dos tambores como se fosse sacudido por uma corrente eléctrica, sempre sentado no cadeirão francês que lhe servia de trono. Os enfeites do manto e do chapéu tilintavam, os pés marcavam o ritmo dos tambores, os braços agitavam-se fazendo soar as pulseiras de ouro. Vários membros da sua corte e até os soldados embriagados se puseram também a dançar, seguidos depois pelos restantes habitantes da aldeia. Passado pouco tempo, havia um pandemónio de gente contorcendo-se e pulando.

A demência colectiva cessou tão subitamente como tinha começado. Perante um sinal que só eles perceberam, os músicos deixaram de bater nos tambores e a dança patética das suas companheiras parou. As mulheres agruparam-se e retrocederam na direcção dos currais. Com o silêncio dos tambores, Kosongo imobilizou-se de imediato e a restante população seguiu o seu exemplo. Só o suor que lhe escorria pelos braços nus recordava a sua dança no trono. Nessa altura, os forasteiros repararam que trazia nos braços as mesmas cicatrizes rituais dos quatro soldados e que, tal como eles, tinha braceletes de pele de leopardo em volta dos bíceps. Os cortesãos apressaram-se a endireitar-lhe o pesado manto sobre os ombros e o chapéu, que ficara inclinado.

A boca real explicou que, se não partissem rapidamente, iriam presenciar Ezenji, a dança dos mortos, que se pratica em funerais e execuções. Ezenji era também o nome do grande espírito. Esta notícia não agradou ao grupo, como era de esperar. Antes que alguém se atrevesse a pedir pormenores, a mesma personagem comunicou-lhes em nome do rei que seriam conduzidos aos seus «aposentos».

Quatro homens levantaram o estrado onde estava o cadeirão real e levaram Kosongo em andas rumo à sua casa, seguido das mulheres, que carregavam as duas presas de elefante e guiavam os filhos. Os transportadores tinham bebido tanto que o trono balançava perigosamente.

Kate e os amigos agarraram na sua bagagem e seguiram os dois bantos providos de archotes, que os guiaram iluminando o caminho. Eram escoltados por um soldado com bracelete de leopardo e uma espingarda. O efeito do vinho de palma e a dança desenfreada pusera-os de bom humor; riam-se, brincavam e davam palmadas bonacheironas uns aos outros, mas isso não tranquilizou os amigos, porque era óbvio que os levavam como prisioneiros.

Os chamados «aposentos» acabaram por ser uma construção rectangular de barro e telhado de palha, maior que as outras casas, na outra extremidade da aldeia, mesmo à beira da selva. Tinha dois buracos na parede a fazer de janelas e uma entrada sem porta. Os homens dos archotes iluminaram o interior e, diante da repugnância daqueles que iam passar a noite ali, milhares de baratas correram pelo chão escondendo-se nos recantos.

- São os bichos mais antigos do mundo, existem há trezentos milhões de anos - disse Alexander.

- Isso não os torna mais agradáveis - respondeu Angie.

- As baratas são inofensivas - acrescentou Alexander, embora na realidade não tivesse a certeza disso.

- Haverá cobras por aqui? - perguntou Joel González.

- Os pitões não atacam na escuridão - troçou Kate.

- Que cheiro terrível é este? - perguntou Alexander.

- Pode ser urina de ratazana ou excremento de morcego - esclareceu o Irmão Fernando sem se alterar, porque tinha passado por experiências similares no Ruanda.

- Viajar contigo é sempre um prazer, avó - riu-se Alexander.

- Não me chames avó. Se não gostas das instalações, vai para o Sheraton.

- Morro por um cigarro! - gemeu Angie.

- Esta é a tua oportunidade de abandonar o vício - replicou Kate, sem muita convicção, porque também sentia a falta do seu velho cachimbo.

Um dos bantos acendeu outros archotes, que estavam colocados nas paredes e o soldado ordenou-lhes que não saíssem até ao dia seguinte. Se houvesse dúvidas acerca do significado destas palavras, o gesto ameaçador com a arma dissipou-as.

O Irmão Femando quis saber se havia alguma latrina nas proximidades e o soldado riu-se, achando a ideia bastante divertida. O missionário insistiu e o outro perdeu a paciência e deu-lhe um empurrão com a culatra da espingarda que o atirou ao chão. Kate, habituada a fazer-se respeitar, interpôs-se com grande determinação, postando-se diante do agressor e, antes que este arremetesse também contra ela, meteu-lhe uma lata de pêssego em calda na mão. O homem agarrou no suborno e saiu; passados alguns minutos voltou com um balde de plástico e entregou-o a Kate sem mais explicações. Aquele recipiente desconjuntado seria a única instalação sanitária.

- O que significam aquelas tiras de pele de leopardo e as cicatrizes nos braços? Os quatro soldados têm as mesmas - comentou Alexander.

- Pena não podermos entrar em contacto com Leblanc; poderia com certeza dar-nos uma explicação - disse Kate.

- Julgo que estes homens pertencem à Irmandade do Leopardo. É uma confraria secreta que existe em vários países de África - disse Angie. - Recrutam-nos na adolescência e marcam-nos com aquelas cicatrizes. Assim podem reconhecer-se em qualquer parte. São guerreiros mercenários, combatem e matam por dinheiro. Têm reputação de ser brutais. Fazem um juramento de se ajudarem durante toda a vida e de matar os inimigos mútuos. Não têm família nem amarras de qualquer espécie, excepto a união com os seus irmãos do leopardo.

- Solidariedade negativa. Ou seja, qualquer acto cometido por um dos nossos é justificável, por mais horrendo que seja - esclareceu o Irmão Femando. - É o contrário da solidariedade positiva, que une as pessoas para construir, plantar, nutrir, proteger os fracos, melhorar as condições de vida. A solidariedade negativa é a da guerra, da violência, do crime.

- Vejo que estamos em muito boas mãos... - suspirou Kate, muito cansada.

O grupo dispôs-se a passar uma noite má, vigiados da porta pelos dois guardas armados de machetes. O soldado retirou-se. Assim que se instalaram no chão com a bagagem a fazer de almofadas, as baratas voltaram, passeando-se por cima deles. Tiveram de se resignar às patinhas que se lhes metiam pelas orelhas, lhes coçavam as pálpebras e espreitavam por baixo da roupa. Angie e Nadia, que tinham o cabelo comprido, amarraram lenços na cabeça para evitar que os insectos fizessem aí o ninho.

- Onde há baratas não há cobras - disse Nadia.

Acabara de ter aquela ideia que deu o resultado esperado: Joel González, que até essa altura era uma pilha de nervos, acalmou-se como por encanto, feliz por ter as baratas como companheiras.

 

Durante a noite, quando o sono, finalmente, venceu os seus companheiros, Nadia decidiu agir. Era tanta a fadiga dos outros que iriam dormir pelo menos algumas horas, apesar das ratazanas, das baratas e da proximidade ameaçadora dos homens de Kosongo.

Nadia, no entanto, estava demasiado perturbada com o espectáculo dos pigmeus e decidiu averiguar o que se passava naqueles currais, onde tinha visto desaparecer as mulheres depois da dança. Tirou as botas e deitou a mão a uma lanterna. Os dois guardas, sentados no lado de fora com os machetes sobre os joelhos, não constituíam um impedimento para ela, porque há três anos que praticava a arte da invisibilidade aprendida com os índios do Amazonas. O povo da neblina desaparecia, confundindo-se com a natureza, com os corpos pintados, em silêncio, deslocando-se com leveza e com uma concentração mental tão profunda que só conseguia manter-se por um tempo limitado. Essa «invisibilidade» tinha permitido que Nadia saísse de apuros em várias ocasiões, por isso a praticava amiúde. Entrava e saía das aulas sem que os colegas ou professores se dessem conta e mais tarde nenhum deles se lembrava se nesse dia ela tinha estado na escola. Circulava no metro de Nova Iorque cheio de gente sem ser vista e, para o provar, colocava-se a poucos centímetros de outro passageiro, olhando-o directamente, sem que o afectado manifestasse qualquer reacção. Kate Cold, que vivia com Nadia, era a principal vítima deste treino tenaz, porque nunca tinha a certeza se a rapariga estava ali ou se a tinha sonhado.

A jovem ordenou a Borobá que ficasse quieto na palhota, porque não podia levá-lo com ela. Em seguida respirou fundo várias vezes até acalmar por completo a sua ansiedade e concentrou-se em desaparecer. Quando se sentiu pronta, o corpo deslocou-se num estado quase hipnótico. Passou por cima dos corpos dos amigos adormecidos sem os tocar e deslizou até à saída. Lá fora, os guardas, aborrecidos e intoxicados com o vinho de palma, tinham decidido revezar-se na vigilância. Um deles estava encostado à parede a roncar e o outro perscrutava o negrume da selva um pouco assustado, porque tinha medo dos espectros do bosque. Nadia apareceu no umbral, o homem voltou-se para ela e, por um momento, os olhos de ambos cruzaram-se. Ao guarda pareceu-lhe estar na presença de alguém, mas imediatamente essa impressão se apagou e uma sonolência irresistível obrigou-o a bocejar. Ficou ali, a lutar contra o sono, com o machete abandonado no chão, enquanto a silhueta esbelta da jovem se afastava.

Nadia atravessou a aldeia no mesmo estado etéreo, sem chamar a atenção das poucas pessoas que permaneciam acordadas. Passou perto dos archotes que iluminavam as construções de barro do recinto real. Um macaco insone saltou de uma árvore e caiu-lhe aos pés, fazendo-a voltar ao corpo durante alguns instantes, mas imediatamente se concentrou e continuou a avançar. Não sentia o seu peso, parecia que estava a flutuar. Desta forma chegou aos currais, dois perímetros rectangulares feitos com troncos cravados na terra e amarrados com lianas e tiras de couro. Uma parte de cada curral tinha telhado de palha, a outra metade estava aberta ao céu. A porta fechava-se com uma pesada tranca, que só podia abrir-se do exterior. Ninguém vigiava.

A rapariga deu a volta aos currais tacteando a paliçada com as mãos, sem se atrever a acender a lanterna. Era um cercado firme e alto, mas uma pessoa decidida podia aproveitar as protuberâncias da madeira e os nós das cordas para trepar. Perguntou a si própria por que não fugiam as pigmeias. Depois de dar algumas voltas e verificar que não estava ninguém nos arredores, decidiu levantar a tranca de uma das portas. No seu estado de invisibilidade só podia deslocar-se com muito cuidado, mas não podia agir como o fazia normalmente; teve de sair do transe para forçar a porta.

 

Os sons do bosque povoavam a noite: vozes de animais e de pássaros, murmúrios das árvores e suspiros da terra. Nadia pensou que com razão as pessoas não saíam da aldeia de noite: era fácil atribuir aqueles sons a forças sobrenaturais. Os seus esforços para abrir a porta não foram silenciosos, porque a madeira rangia. Uns cães aproximaram-se a ladrar, mas Nadia falou-lhes no idioma canino e calaram-se imediatamente. Pareceu-lhe ouvir o choro de uma criança, mas, passados alguns segundos, cessou; ela voltou a empurrar a tranca com o ombro, mas esta era mais pesada do que calculara. Finalmente conseguiu tirar a viga dos suportes, entreabriu o portão e deslizou para o interior.

Nessa altura, os seus olhos já se tinham habituado à noite e pôde aperceber-se de que estava numa espécie de pátio. Sem saber o que ia encontrar, avançou silenciosamente até à parte coberta com palha, calculando a sua retirada em caso de perigo. Decidiu que não podia aventurar-se na escuridão e, após uma breve hesitação, acendeu a lanterna. O raio de luz iluminou uma cena tão inesperada que Nadia deu um grito e quase deixou cair a lanterna. Umas doze ou quinze figuras muito pequenas estavam de pé no fundo do aposento, com as costas encostadas à paliçada. Julgou que eram crianças, mas imediatamente se deu conta de que eram as mesmas mulheres que tinham dançado para Kosongo. Pareciam tão aterrorizadas como ela própria, mas não emitiram o mais pequeno som; limitaram-se a olhar para a intrusa com os olhos arregalados.

- Shhht... - disse Nadia, levando um dedo aos lábios. - Não lhes vou fazer mal, sou amiga... - acrescentou em brasileiro, a sua língua natal, e repetiu-o depois em todas as línguas que conhecia.

As prisioneiras não entenderam todas as suas palavras, mas adivinharam as suas intenções. Uma delas deu um passo em frente, embora permanecesse encolhida e com o rosto tapado, e estendeu um braço às cegas. Nadia aproximou-se e tocou-lhe. A outra afastou-se, receosa, mas depois atreveu-se a dar uma olhadela de soslaio e deve ter ficado satisfeita com o rosto da jovem forasteira, porque sorriu. Nadia esticou novamente a sua mão e a mulher fez a mesma coisa; os dedos de ambas entrelaçaram-se e aquele contacto físico acabou por ser a forma mais transparente de comunicação.

- Nadia, Nadia - apresentou-se a rapariga, batendo no peito.

- Jena - replicou a outra.

Depressa as outras rodearam Nadia, tocando-a com curiosidade, enquanto cochichavam e se riam. Uma vez descoberta a linguagem comum das carícias e da mímica, o resto foi fácil. As pigmeias explicaram que tinham sido separadas dos seus companheiros, aos quais Kosongo obrigava a caçar elefantes, não pela carne, mas pelos dentes, que vendia a contrabandistas. O rei tinha outro clã de escravos que explorava uma mina de diamantes um pouco mais a norte. Assim fizera a sua fortuna. Recompensava os caçadores com cigarros, um pouco de comida e o direito de verem as suas famílias por um bocado. Quando o marfim ou os diamantes não eram suficientes, intervinha o comandante Mbembelé. Havia muitos castigos, o mais suportável dos quais era a morte e o mais atroz era perder os filhos, que eram vendidos como escravos aos contrabandistas. Jena acrescentou que restavam muito poucos elefantes no bosque, que os pigmeus tinham de procurá-los cada vez mais longe. Os homens não eram numerosos e elas não podiam ajudá-los como sempre tinham feito. Escasseando os elefantes, o destino das suas crianças era muito incerto.

Nadia não tinha a certeza de ter entendido bem. Supunha que a escravidão tinha acabado há muito tempo, mas a mímica das mulheres era muito clara. Mais tarde, Kate confirmar-lhe-ia que nalguns países ainda existiam escravos. Os pigmeus são considerados criaturas exóticas e compravam-nos para realizar trabalhos degradantes ou, se tivessem sorte, para divertirem os ricos ou ainda para os circos.

As prisioneiras contavam que faziam as tarefas pesadas em Ngoubé, como plantar, carregar água, limpar e até construir as palhotas. A única coisa que desejavam era reunir-se com as suas famílias e voltar para a selva, onde o seu povo tinha vivido em liberdade durante milhares de anos. Nadia demonstrou-lhes por gestos que podiam trepar a paliçada e fugir, mas elas replicaram que as crianças estavam presas no outro curral a cargo de duas avós e que não podiam fugir sem elas.

- Onde estão os vossos maridos? - perguntou Nadia.

Jena disse-lhes que viviam no bosque e só tinham licença para visitar a aldeia quando traziam carne, peles ou marfim. Os músicos que tinham tocado os tambores durante a festa de Kosongo eram os seus maridos, disseram.

 

Depois de se despedir das pigmeias e de lhes prometer que as ajudaria, Nadia regressou à sua palhota tal como tinha saído, utilizando a arte da invisibilidade. Ao chegar, verificou que só havia um guarda, o outro fora-se embora e aquele que ficara ressonava como um bebé, graças ao vinho de palma, o que lhe dava uma vantagem inesperada. A rapariga deslizou, silenciosa como um esquilo, até junto de Alexander, acordou-o tapando-lhe a boca com a mão e, em poucas palavras, contou-lhe o que acontecera no curral das escravas.

- É horrível, Jaguar, temos de fazer alguma coisa.

- O quê, por exemplo?

- Não sei. Antigamente os pigmeus viviam no bosque e tinham relações normais com os habitantes desta aldeia. Nessa altura havia uma rainha chamada Nana-Asante. Pertencia a outra tribo e vinha de muito longe, as pessoas acreditavam que tinha sido enviada pelos deuses. Era curandeira, conhecia o poder das plantas medicinais e dos exorcismos. Disseram-me que antes havia caminhos largos no bosque, feitos pelas patas de centenas de elefantes, mas agora restam muito poucos e a selva engoliu os caminhos. Os pigmeus transformaram-se em escravos quando lhes tiraram o amuleto mágico, como disse Beyé-Dokou.

- Sabes onde está?

- É o osso talhado que vimos no ceptro de Kosongo - explicou Nadia.

Discutiram durante algum tempo, propondo diferentes planos, cada um deles mais arriscado que o anterior. Finalmente concordaram, como primeiro passo, em recuperar o amuleto e levá-lo à tribo, para lhe devolver a confiança e a coragem. Talvez assim os pigmeus pensassem numa maneira de libertar as suas mulheres e crianças.

- Se conseguirmos o amuleto, eu irei procurar Beyé-Dokou ao bosque - disse Alexander.

- Perder-te-ias.

- O meu animal totémico ajudar-me-á. O jaguar consegue orientar-se em qualquer parte e vê na escuridão - replicou Alexander. - Vou contigo.

- É um risco inútil, Águia. Se for sozinho, terei maior mobilidade.

- Não podemos separar-nos. Lembra-te do que disse Má Bangesé no mercado: se nos separarmos, morreremos. - E tu acreditas?

- Sim. A visão que tivemos é uma advertência: nalgum lugar espera-nos um monstro de três cabeças.

- Não existem monstros de três cabeças, Águia.

- Como diria o xamã Walimai, pode ser que sim e pode ser que não - replicou ela.

- Como obteremos o amuleto?

- Borobá e eu trataremos disso - disse Nadia com enorme segurança, como se fosse a coisa mais simples do mundo.

O macaco tinha uma habilidade espantosa para roubar, coisa que se tinha convertido num problema em Nova Iorque. Nadia passava a vida a devolver objectos alheios que o pequeno animal lhe trazia de oferta, mas neste caso o seu mau costume poderia ser uma bênção. Borobá era pequeno, silencioso e muito hábil com as mãos. O mais difícil seria averiguar onde se guardava o amuleto e ludibriar a vigilância. Jena, uma das pigmeias, dissera a Nadia que estava na casa do rei, onde ela o tinha visto quando ia fazer a limpeza. Nessa noite, a população estava embriagada e a vigilância era mínima.

Tinham visto poucos soldados com armas de fogo, só os soldados da Irmandade do Leopardo, mas podia haver outros. Não sabiam de quantos homens dispunha Mbembelé, mas o facto de o comandante não ter aparecido durante a festa da tarde anterior podia significar que estava ausente de Ngoubé. Tinham de agir imediatamente, decidiram.

- Kate não vai gostar nada disto, Jaguar. Lembra-te de que lhe prometemos não nos metermos em confusões - disse Nadia.

- Já estamos metidos numa confusão bastante grave. Deixo-lhe um bilhete para que saiba onde fomos. Tens medo? - perguntou o rapaz.

- Tenho medo de ir contigo, mas mais medo ainda de ficar aqui.

- Calça as botas, Águia. Precisamos de uma lanterna, pilhas de reserva e de, pelo menos, uma faca. O bosque está infestado de serpentes, julgo que precisaremos de uma ampola de antídoto contra o veneno. Achas que podemos levar o revólver de Angie emprestado? - sugeriu Alexander.

- Pensas matar alguém, Jaguar?

- Claro que não!

- Nesse caso...

- Perfeito, Águia. Iremos sem armas - suspirou Alexander, resignado.

Os amigos juntaram aquilo de que necessitavam, movendo-se silenciosamente entre as mochilas e os vultos dos seus companheiros. Ao procurarem o antídoto no estojo de primeiros socorros de Angie, viram o anestésico para animais e, num impulso, Alexander colocou-o no bolso.

- Para que queres isso? - perguntou Nadia.

- Não sei, mas pode servir-nos - replicou Alexander.

Nadia saiu primeiro, atravessou sem ser vista a curta distância iluminada pelo archote da porta e escondeu-se nas sombras. Daí pensava chamar a atenção dos guardas para dar a Alexander a oportunidade de segui-la, mas viu que o único guarda continuava a dormir e que o outro ainda não tinha voltado. Foi muito fácil Alexander e Borobá juntarem-se a ela.

 

A casa do rei era um recinto de barro e palha composto por várias palhotas, dando a impressão de ser transitória. Para um monarca coberto de ouro dos pés à cabeça, com um numeroso harém e com os supostos poderes divinos de Kosongo, o «palácio» era de uma modéstia suspeita. Alexander e Nadia deduziram que o rei não pensava envelhecer em Ngoubé, por isso não construíra nada mais elegante e cómodo. Assim que o marfim e os diamantes acabassem, iria gozar da sua fortuna o mais longe possível.

O sector do harém estava rodeado por uma paliçada, sobre a qual tinham enfiado archotes, com intervalos de mais ou menos dez metros, de modo que estava bem iluminado. Os archotes eram uns paus com trapos embebidos em resina, que expeliam uma fumarada negra e um cheiro penetrante. Diante do cercado havia uma construção maior, decorada com desenhos geométricos pretos e uma porta muito larga e alta. Os jovens calcularam que albergava o rei porque o tamanho da porta permitia que os transportadores passassem com o estrado sobre o qual Kosongo se deslocava. Certamente, a proibição de pisar o chão não se aplicava dentro da sua casa; na intimidade, Kosongo devia andar sobre os seus dois pés, mostrar o rosto e falar sem necessidade de um intermediário, como qualquer pessoa normal. A pouca distância havia outro edifício rectangular, alto e achatado, sem janelas, ligado à residência real por um corredor com telhado de palha, que seria, possivelmente, a caserna dos soldados.

Dois guardas de etnia banto, armados com espingardas, caminhavam em volta do recinto. Alexander e Nadia observaram-nos à distância durante muito tempo e chegaram à conclusão de que Kosongo não receava ser atacado porque a vigilância era uma anedota. Os guardas, ainda sob o efeito do vinho de palma, faziam a sua ronda aos tropeções, paravam para fumar quando lhes apetecia e, ao cruzar-se, paravam para conversar. Viram-nos mesmo beber de uma garrafa que possivelmente continha alguma bebida alcoólica. Não viram nenhum dos soldados da Irmandade do Leopardo, o que os tranquilizou um pouco, porque pareciam bastante mais temíveis que os guardas bantos. De qualquer forma, a ideia de entrarem no edifício sem saber o que iam encontrar lá dentro era uma temeridade.

- Tu esperas aqui, Jaguar, eu irei primeiro. Aviso-te com um grito de coruja quando for altura de me enviares Borobá - decidiu Nadia.

O plano não agradou a Alexander, mas não dispunha de outro melhor. Nadia sabia movimentar-se sem ser vista e ninguém repararia em Borobá, porque a aldeia estava cheia de macacos. Com o coração nas mãos, despediu-se da amiga e esta, imediatamente, desapareceu. Fez um esforço para a ver e por uns segundos conseguiu-o, embora parecesse apenas um véu flutuando na noite. Apesar da tensão do momento, Alexander não pôde deixar de sorrir ao ver como era eficaz a arte da invisibilidade.

Nadia aproveitou o facto de os guardas estarem a fumar para se aproximar de uma das janelas da residência real. Sem qualquer esforço trepou para o parapeito e, daí, deu uma vista de olhos ao interior. Estava escuro, mas um pouco da claridade dos archotes e da lua entrava pelas janelas, que não passavam de aberturas sem vidros ou persianas. Verificando que não estava ninguém, escorregou para o interior.

Os guardas acabaram os seus cigarros e deram outra volta completa em redor do recinto real. Por fim, um grito de coruja quebrou a horrível tensão de Alexander. O jovem soltou Borobá e este saiu disparado na direcção da janela onde tinha visto a sua dona pela última vez. Durante vários minutos, longos como horas, nada aconteceu. De súbito, Nadia surgiu como por magia ao lado do seu amigo.

- O que aconteceu? - perguntou Alex, contendo-se para não a abraçar.

- Muito fácil. Borobá sabe o que tem de fazer.

- Isso quer dizer que encontraste o amuleto.

- Kosongo deve estar noutro lado qualquer com uma das suas mulheres. Estavam alguns homens a dormir no chão e outros a jogar às cartas. O trono, o estrado, o manto, o chapéu, o ceptro e os dois dentes de elefante estão ali. Também vi uns cofres onde imagino que guardam os adornos de ouro - explicou Nadia.

- E o amuleto?

- Estava com o ceptro, mas não pude tirá-lo porque teria perdido a invisibilidade. Borobá fá-lo-á. - Como?

Nadia apontou para a janela e Alexander viu que começava a sair uma fumarada negra.

- Ateei fogo ao manto real - disse Nadia.

Quase de imediato teve início um alvoroço de gritos, os guardas que estavam lá dentro saíram a correr, da caserna surgiram vários soldados e depressa a aldeia acordou e encheu-se de gente que corria com baldes de água para apagar o fogo. Borobá aproveitou a confusão para se apoderar do amuleto e sair pela janela. Passados instantes, reuniu-se com Nadia e com Alexander e os três desapareceram em direcção ao bosque.

Sob a cúpula das árvores reinava uma escuridão quase total. Apesar da visão nocturna do jaguar, invocado por Alexander, era quase impossível avançar. Era a hora das serpentes e dos bichos peçonhentos, das feras à procura de alimento; mas o perigo mais imediato era caírem num pântano e morrerem engolidos pela lama.

Alexander acendeu a lanterna e olhou à sua volta. Não receava ser visto da aldeia porque a vegetação que os rodeava era espessa, mas tinha de poupar as pilhas. Penetraram naquela espessura, lutando com raízes e lianas, evitando charcos, tropeçando com obstáculos invisíveis, envoltos pelo murmúrio constante da selva.

- E agora, o que faremos? - perguntou Alexander.

- Esperamos que amanheça, Jaguar, não podemos continuar nesta escuridão. Que horas são?

- Quase quatro - respondeu o rapaz, consultando o relógio.

- Dentro de pouco tempo já haverá luz e poderemos movimentar-nos. Tenho fome, não consegui comer os ratos do jantar - disse Nadia.

- Se o Irmão Fernando estivesse aqui, diria que Deus há-de prover - riu-se Alexander.

Instalaram-se o melhor possível entre uns fetos. A humidade empapava-lhes a roupa, os espinhos picavam-nos, os bichos andavam por cima deles. Sentiam o roçar de animais que se deslocavam junto deles, asas a bater, o hálito pesado da terra. Depois da aventura no Amazonas, Alexander não fazia nenhuma excursão sem um isqueiro porque sabia que esfregar pedras não é a forma mais rápida de fazer fogo. Quiseram fazer uma pequena fogueira para se secarem e amedrontarem as feras, mas não encontraram galhos secos e, após várias tentativas, tiveram de desistir.

- Este sítio está cheio de espíritos - disse Nadia.

- Acreditas nisso? - perguntou Alexander.

- Sim, mas não tenho medo deles. Lembras-te da mulher de Walimai? Era um espírito amistoso.

- Isso era no Amazonas, não sabemos como são os daqui. Por alguma razão as pessoas os receiam - disse Alexander.

- Se estás a tentar assustar-me, já o conseguiste - replicou Nadia.

Alexander pôs um braço em volta dos ombros da amiga e aproximou-a do seu peito, tentando transmitir-lhe calor e segurança. Aquele gesto, antigamente tão natural entre eles, estava agora carregado de um significado novo.

- Finalmente Walimai reuniu-se à sua mulher - contou-lhe Nadia.

- Morreu?

- Sim. Agora vivem os dois no mesmo mundo. - Como sabes?

- Lembras-te de quando caí naquele precipício, no Reino Proibido, e parti o ombro? Walimai fez-me companhia até teres chegado com Tensing e Dil Bahadur. Quando o xamã apareceu ao meu lado, soube que era um espírito e que agora se pode deslocar neste mundo e noutros - explicou Nadia.

- Era um bom amigo, podias chamá-lo soprando um apito e ele acorria sempre - recordou-se Alexander.

- Se precisar dele, virá, tal como foi ajudar-me ao Reino Proibido. Os espíritos viajam para longe - garantiu-lhe Nadia.

 

Apesar do medo e da incomodidade, depressa começaram a cabecear, esgotados, porque estavam há vinte e quatro horas sem dormir. Tinham sofrido demasiadas emoções desde que o avião de Angie Ninderera se avariara. Não sabiam quantos minutos tinham descansado, nem quantas cobras e outros animais os roçaram. Acordaram sobressaltados quando Borobá lhes puxou o cabelo com as duas mãos, dando guinchos de terror. Ainda estava escuro. Alexander acendeu a lanterna e o seu raio de luz acertou em cheio num rosto preto, quase em cima do seu. Ambos, a criatura e ele, deram um grito simultâneo e atiraram-se para trás. A lanterna rolou pelo chão e passaram vários segundos antes de o jovem a encontrar. Durante essa pausa, Nadia conseguiu reagir e agarrou no braço de Alexander, sussurrando-lhe que ficasse imóvel. Sentiram uma mão enorme que tacteava às cegas e que, de repente, agarrou em Alexander pela camisa e o abanou com uma força descomunal. O jovem tornou a acender a lanterna, mas não apontou a luz directamente para o seu atacante. Na penumbra deram-se conta de que se tratava de um gorila.

- Tampo kachi, felicidade para si...

A saudação do Reino Proibido foi a primeira e a única coisa que Alexander, demasiado assustado para pensar, se lembrou de dizer.

Nadia, pelo contrário, cumprimentou no idioma dos macacos, porque a reconheceu antes de a ver pelo calor que irradiava e pelo cheiro a pasto acabado de cortar do hálito dela. Era a gorila que tinham salvo da armadilha há alguns dias e, tal como nessa altura, trazia o seu bebé agarrado aos pêlos duros da barriga. Observava-os com os seus olhos inteligentes e curiosos. Nadia perguntou a si própria como teria chegado até aqui, devia ter percorrido muitas milhas pelo bosque, uma coisa pouco comum nestes animais.

A gorila soltou Alexander e pôs a mão na cara de Nadia, empurrando-a um pouco, com suavidade, como uma carícia. Sorrindo, ela devolveu o cumprimento com outro empurrão que não moveu a gorila nem meio centímetro, mas estabeleceu uma forma de diálogo. O animal voltou-lhes as costas e deu alguns passos, depois regressou, aproximando de novo a cara, emitiu uns grunhidos mansos e, sem aviso prévio, deu umas dentadinhas delicadas na orelha de Alexander.

- O que quer? - perguntou este, alarmado.

- Quer que a sigamos, vai mostrar-nos alguma coisa.

Não tiveram de andar muito. De repente, o animal deu uns saltos e trepou para uma espécie de ninho colocado entre os ramos de uma árvore. Alexander apontou a lanterna e um coro de grunhidos nada tranquilizadores respondeu ao seu gesto. Desviou a luz imediatamente.

- Há vários gorilas nesta árvore, deve ser uma família - disse Nadia.

- Isso significa que há um macho e várias fêmeas com os seus bebés. O macho pode ser perigoso.

- Se a nossa amiga nos trouxe até aqui é porque somos bem-vindos.

- O que fazemos? Não sei qual é o protocolo entre humanos e gorilas neste caso - brincou Alexander, bastante nervoso.

Esperaram longos minutos, imóveis debaixo da grande árvore. Os grunhidos cessaram. Por fim, cansados, os jovens sentaram-se entre as raízes daquela árvore imensa, com Borobá agarrado ao peito de Nadia, tremendo de susto.

- Aqui podemos dormir descansados, estamos protegidos. A gorila quer pagar-nos o favor que lhe fizemos - garantiu Nadia a Alexander.

- Tu achas que entre os animais existem esses sentimentos, Águia? - duvidou ele.

- Por que não? Os animais falam entre si, formam famílias, amam os filhos, agrupam-se em sociedades, têm memória. Borobá é mais esperto que a maior parte das pessoas que conheço - replicou Nadia.

- O meu cão Poncho, pelo contrário, é bastante tonto.

- Nem toda a gente tem o cérebro de Einstein, Jaguar.

- Definitivamente, Poncho não o tem - sorriu Alexander.

- Mas Poncho é um dos teus melhores amigos. Entre os animais também há amizade.

Dormiram tão profundamente como num colchão de penas; a proximidade dos grandes símios dava-lhes uma sensação de segurança absoluta, não podiam estar mais bem protegidos.

Acordaram horas mais tarde sem saberem onde se encontravam. Alexander olhou para o relógio e apercebeu-se de que dormiram muito mais do que tinham planeado. Já passava das sete da manhã. O calor do sol evaporava a humidade do chão e o bosque, envolto numa bruma quente, parecia um banho turco. Levantaram-se de um salto e olharam à sua volta. A árvore dos gorilas estava vazia e, por momentos, duvidaram da veracidade do que acontecera na noite anterior. Talvez tivesse sido apenas um sonho, mas os ninhos ali estavam entre os ramos e uns rebentos tenros de bambu, o alimento preferido dos gorilas, postos ao lado deles como oferendas. E como se isso não bastasse, compreenderam que, da mata cerrada, vários pares de olhos negros os observavam. A presença dos gorilas era tão próxima e palpável, que não precisavam de os ver para saber que os vigiavam.

- Tampo kachi - despediu-se Alexander.

- Obrigada - disse Nadia, no idioma de Borobá.

Um rugido longo e rouco respondeu-lhes do verde impenetrável do bosque.

- Creio que aquele rugido é um sinal de amizade - riu-se Nadia.

O amanhecer anunciou-se na aldeia de Ngoubé com uma neblina espessa como uma fumarada, que entrou pela porta e pelas aberturas que faziam de janelas. Apesar da incomodidade da palhota, dormiram profundamente e não se aperceberam do princípio de incêndio numa das habitações reais. Kosongo teve pouco que lamentar, porque as chamas foram apagadas de imediato. Ao dissipar-se, o fumo viu-se que o fogo tinha começado no manto real, facto que foi interpretado como sendo de péssimo augúrio, e que se espalhara a umas peles de leopardo, que arderam como palha, provocando uma fumarada densa. Nada disto souberam os prisioneiros até passarem várias horas.

Pela palha do telhado entravam os primeiros raios de sol. À luz da madrugada, os amigos puderam observar o que os rodeava e verificar que estavam numa palhota comprida e estreita, com grossas paredes de barro escuro. Numa das paredes havia um calendário do ano anterior, aparentemente gravado com a ponta de uma faca. Noutra, viram versículos do Novo Testamento e uma tosca cruz de madeira.

- Esta é a missão, tenho a certeza - disse o Irmão Fernando, emocionado.

- Como sabe? - perguntou Kate.

- Não tenho dúvidas. Olhem para isto... - disse.

Tirou da mochila um papel dobrado em várias partes e estendeu-o cuidadosamente. Era um desenho a lápis feito pelos missionários desaparecidos. Via-se claramente a praça central da aldeia, a árvore das palavras com o trono de Kosongo, as palhotas, os currais, uma construção maior marcada como a casa do rei, outra semelhante usada como caserna para os soldados. No ponto exacto onde se encontravam, o desenho indicava a missão.

- Aqui os irmãos deviam ter a escola e atender os doentes. Deve haver uma horta muito perto, que eles plantaram, e um poço.

- Para que queriam um poço se aqui chove de dois em dois minutos? Sobra água por estes lados - comentou Kate.

- O poço não foi feito por eles, estava aqui. Os irmãos referiam-se ao poço entre aspas, como se fosse uma coisa especial. Sempre achei muito estranho...

- O que lhes terá acontecido? - perguntou Kate.

- Não partirei sem averiguar. Tenho de ver o comandante Mbembelé - decidiu o Irmão Fernando.

Os guardas trouxeram-lhes um cacho de bananas e um jarro de leite salpicado de moscas para o pequeno-almoço, depois regressaram aos seus postos à entrada, dando assim a entender que os estrangeiros não estavam autorizados a sair. Kate arrancou uma banana e voltou-se para a dar a Borobá. E, nesse momento, deram-se conta de que Alexander, Nadia e o macaquinho não estavam com eles.

Kate ficou bastante alarmada ao verificar que o neto e Nadia não estavam na palhota com o resto do grupo e que ninguém os vira desde a noite anterior.

- Talvez os miúdos tenham ido dar uma volta - sugeriu o Irmão Fernando, sem muita convicção.

Kate saiu como um energúmeno, antes que o guarda da porta pudesse detê-la. Lá fora a aldeia acordava, viam-se crianças e algumas mulheres, mas não se viam homens porque nenhum trabalhava. Viu de longe as pigmeias que tinham dançado na noite anterior; umas iam buscar água ao rio, outras dirigiam-se para as palhotas dos bantos ou para as plantações. Foi a correr perguntar-lhes pelos jovens ausentes, mas não conseguiu comunicar com elas ou não quiseram responder-lhes. Percorreu a aldeia chamando aos gritos por Alexander e por Nadia, mas não os viu em lado nenhum; conseguiu apenas acordar as galinhas e chamar a atenção de dois soldados da guarda de Kosongo que começavam nessa altura a sua ronda. Agarraram-na pelos braços sem grande consideração e levaram-na pelo ar em direcção ao conjunto das casas reais.

- Estão a levar Kate! - gritou Angie, vendo a cena de longe.

Colocou o revólver à cintura, agarrou na espingarda e disse aos outros que a seguissem. Não deviam agir como prisioneiros, disse, mas como hóspedes. O grupo afastou aos empurrões os dois vigilantes da porta e correu em direcção ao local para onde tinham levado a escritora.

Entretanto, os soldados tinham Kate no chão e preparavam-se para a moer de pancada. Não tiveram tempo de o fazer porque os amigos irromperam pelo recinto aos gritos em espanhol, inglês e francês. A atitude atrevida dos estrangeiros desconcertou os soldados; não estavam habituados a ser contrariados. Existia uma lei em Ngoubé: não se podia tocar num soldado de Mbembelé. Se isso acontecesse por casualidade ou engano, o erro pagava-se com chicotadas; caso contrário, pagava-se com a vida.

- Queremos ver o rei! - exigiu Angie, apoiada pelos companheiros.

O Irmão Fernando ajudou Kate, que estava dobrada com uma cãibra aguda nas costelas, a levantar-se do chão. Ela própria deu dois murros nas costas, tendo recuperado a capacidade de respirar.

Estavam numa palhota grande de barro com chão de terra pisada, sem móveis de qualquer espécie. Nas paredes viram duas cabeças de leopardo embalsamadas e, a um canto, um altar com fetiches de vodu. Noutro canto, sobre um tapete vermelho, havia um frigorífico e um televisor, símbolos de riqueza e de modernidade, mas inúteis porque em Ngoubé não havia electricidade. A cabana tinha duas portas e vários buracos que deixavam entrar um pouco de luz.

Nesse instante ouviram-se umas vozes e imediatamente os soldados perfilaram-se. Os estrangeiros voltaram-se para uma das portas, por onde fez a sua entrada um homem com aspecto de gladiador. Não tiveram dúvidas de que se tratava do célebre Maurice Mbembelé. Era muito alto e forte, com musculatura de halterofilista, pescoço e ombros descomunais, maçãs do rosto salientes, lábios grossos e bem delineados, um nariz partido de pugilista, o crânio barbeado. Não lhe viram os olhos porque usava óculos de sol com lentes espelhadas, que lhe davam um aspecto particularmente sinistro. Vestia calças do exército, botas, um cinto largo de cabedal preto e o tronco nu. Ostentava as cicatrizes da Irmandade do Leopardo e tiras de pele do mesmo animal nos braços. Estava acompanhado por dois soldados quase tão altos como ele.

Ao ver os poderosos músculos do comandante, Angie ficou boquiaberta de admiração; de uma penada a sua fúria esfumou-se e envergonhou-se como uma colegial. Kate Cold compreendeu que estava prestes a perder a sua melhor aliada e deu um passo em frente.

- Comandante Mbembelé, presumo? - perguntou.

O homem não respondeu, limitou-se a observar o grupo de forasteiros com uma expressão impenetrável, como se tivesse uma máscara.

- Comandante, desapareceram duas pessoas da nossa equipa - participou Kate.

O militar recebeu a notícia com um silêncio gelado.

- São os dois jovens, o meu neto Alexander e a sua amiga Nadia - acrescentou Kate.

- Queremos saber onde estão - acrescentou Angie quando se recuperou do baque apaixonado que a deixara temporariamente muda.

- Não podem ter ido muito longe, devem estar na aldeia... - balbuciou Kate.

A escritora tinha a sensação de que se estava a afundar num lodaçal; tinha perdido o pé, a sua voz tremia. O silêncio tornou-se insuportável. Decorrido um minuto completo, que pareceu interminável, ouviram finalmente a voz firme do comandante.

- Os guardas que se descuidaram serão castigados.

Isso foi tudo. Deu meia volta e saiu por onde tinha entrado, seguido pelos dois acompanhantes e pelos outros que tinham maltratado Kate. Iam a rir-se e a comentar. O Irmão Fernando e Angie ouviram parte da piada: os jovens brancos eram mesmo estúpidos: morreriam no bosque devorados por feras ou fantasmas.

 

Visto que ninguém os vigiava nem parecia interessar-se por eles, Kate e os amigos regressaram à palhota que lhes tinha sido atribuída como casa.

- Aqueles miúdos esfumaram-se! Estão sempre a arranjar-me problemas! Juro que vão pagá-las! - exclamou Kate, arrepelando os curtos cabelos grisalhos que lhe cobriam a cabeça.

- Não jure, mulher. Rezemos, que é melhor - propôs o Irmão Fernando.

Ajoelhou-se no meio das baratas, que passeavam tranquilamente pelo chão e começou a rezar. Ninguém o imitou, estavam ocupados fazendo conjecturas e elaborando planos.

Angie era de opinião que a única coisa razoável era negociar com o rei para que este lhes cedesse um bote, uma forma de saírem da aldeia. Joel González achava que o rei não mandava na aldeia, mas o comandante Mbembelé, que não parecia disposto a ajudá-los, de modo que talvez lhes conviesse conseguir que os pigmeus os guiassem pelos carreiros secretos do bosque, que só eles conheciam. Kate não pensava sair dali enquanto os jovens não regressassem.

De repente o Irmão Fernando, que ainda estava de joelhos, interveio para lhes mostrar uma folha de papel que tinha encontrado em cima de um dos pacotes, quando se ajoelhara para rezar. Kate arrebatou-a das mãos e aproximou-se de uma das janelinhas por onde entrava a luz.

- É de Alexander!

Com um fio de voz a escritora leu a breve mensagem do neto: Nadia e eu tentaremos ajudar os pigmeus. Distraiam Kosongo. Não se preocupem, voltaremos depressa.

- Estes miúdos estão loucos! - comentou Joel González.

- Não. Este é o seu estado normal. O que podemos fazer? - gemeu a avó.

- Não me diga para rezarmos, Irmão Fernando. Deve haver alguma coisa mais prática que possamos fazer! - exclamou Angie.

- Não sei o que fará você. Quanto a mim, estou confiante de que os miúdos voltarão. Aproveitarei o tempo para averiguar a sorte dos irmãos missionários - replicou o homem, pondo-se de pé e sacudindo as baratas agarradas às calças.

 

Vaguearam por entre as árvores sem saber para onde se dirigiam. Alexander descobriu uma sanguessuga colada à perna, inchada do seu sangue, e tirou-a sem alarde. Sentira-as no Amazonas e já não as receava, mas ainda lhe causavam repugnância. Na vegetação exuberante não tinham como orientar-se, tudo lhes parecia igual. As únicas manchas de cor no verde eterno do bosque eram as orquídeas e o voo fugaz de um pássaro de plumagem colorida. Pisavam uma terra avermelhada e mole, ensopada de chuva e semeada de obstáculos onde a qualquer momento podiam dar um passo em falso. Havia pântanos traiçoeiros escondidos sob um manto de folhas flutuantes. Tinham de afastar as lianas que nalguns lugares formavam verdadeiras cortinas e evitar os espinhos afiados de algumas plantas. O bosque não era tão impenetrável como lhe parecera anteriormente; havia espaços entre as copas das árvores por onde passavam os raios de sol.

Alexander trazia a faca na mão, disposto a cravá-la no primeiro animal comestível que passasse ao seu alcance, mas nenhum lhe deu essa satisfação. Várias ratazanas passaram-lhe entre as pernas mas eram demasiado velozes. Os jovens tiveram de aplacar a fome com uns frutos desconhecidos e amargos. Como Borobá os comeu, calcularam que não eram venenosos e imitaram-no. Receavam perder-se, como de facto já o estavam; não sabiam como regressar a Ngoubé nem como encontrar os pigmeus. A sua esperança era serem encontrados por eles.

Estavam há várias horas deslocando-se sem rumo determinado, cada vez mais perdidos e angustiados, quando de repente Borobá começou a guinchar. O macaco tinha-se habituado a sentar-se em cima da cabeça de Alexander, com a cauda enrolada em volta do pescoço e agarrado às orelhas deste, porque daí via melhor o mundo do que no colo de Nadia. Alexander sacudia-o lá de cima mas, ao primeiro descuido, Borobá voltava a instalar-se no seu lugar favorito. Por ir montado na cabeça de Alexander, viu as pegadas. Estavam apenas a um metro de distância mas eram quase invisíveis. Eram pegadas de grandes patas, que esmagavam tudo à sua passagem e faziam uma espécie de vereda. Os jovens reconheceram-nas imediatamente, porque as tinham visto no safari de Michael Mushaha.

- É o rasto de um elefante - disse Alexander, esperançado. - Se há um por aqui, com certeza que os pigmeus também estão perto.

 

O elefante tinha sido perseguido durante dias. Os pigmeus seguiam a presa, cansando-a até a enfraquecerem completamente, depois atiravam-lhe as redes e encurralavam-na; só nessa altura atacavam. A única trégua que o animal teve foi quando Beyé-Dokou e os seus companheiros se afastaram para conduzir os forasteiros à aldeia de Ngoubé. Durante essa tarde e parte da noite, o elefante tratou de voltar aos seus domínios, mas estava fatigado e confuso. Os caçadores tinham-no obrigado a entrar em terreno desconhecido, não conseguia encontrar o seu caminho e andava em círculos. A presença dos seres humanos, com as suas lanças e redes, anunciava o seu fim; o instinto advertia-o, mas continuava a correr, porque ainda não se resignara a morrer.

Durante milhares e milhares de anos, o elefante enfrentou o caçador. Na memória genética dos dois está gravada a cerimónia trágica da caça, na qual se dispõem a matar ou a morrer. A vertigem do perigo é fascinante para ambos. No momento culminante da caça, a natureza contém a respiração, o bosque fica em silêncio, a brisa desvia-se e, no fim, quando se decide a sorte de um dos dois, o coração do homem e do animal palpitam ao mesmo ritmo. O elefante é o rei do bosque, o maior e mais pesado animal, o mais respeitável, nenhum outro se lhe opõe. O seu único inimigo é o homem, uma criatura pequena, vulnerável, sem garras nem presas, que consegue esmagar com uma pata, como uma lagartixa. Como se atreve aquele ser insignificante a enfrentá-lo? Mas uma vez começado o ritual da caça, não há tempo para ver a ironia da situação, o caçador e a presa sabem que esta dança só acaba com a morte.

Os caçadores descobriram o rasto de vegetação esmagada e ramos de árvores arrancados de raiz muito antes de Nadia e de Alexander. Há muitas horas que seguiam o elefante, deslocando-se com uma coordenação perfeita, para o cercarem a uma distância prudente. Tratava-se de um macho velho e solitário, provido de dois dentes enormes. Era apenas uma dúzia de pigmeus com armas primitivas, mas não estavam dispostos a permitir que lhes escapasse. Em tempos normais, as mulheres cansavam o animal e levavam-no até às armadilhas, onde eles aguardavam.

Há alguns anos, no tempo da liberdade, faziam sempre uma cerimónia para invocar a ajuda dos antepassados e agradecer ao animal ter-se entregue à morte; mas desde que Kosongo impôs o seu reino de terror, nada era igual. Até a caça, a actividade mais antiga e importante da tribo, tinha perdido as suas características sagradas para se transformar numa matança.

Alexander e Nadia ouviram os longos bramidos e sentiram a vibração daquelas patas enormes no chão. Nessa altura já tinha começado o acto final: as redes imobilizavam o elefante e as primeiras lanças cravavam-se no seu dorso.

 

Um grito de Nadia deteve os caçadores com as lanças erguidas, enquanto o elefante se debatia furioso, lutando com as suas últimas forças.

- Não o matem! Não o matem! - repetia Nadia.

A jovem colocou-se entre os homens e o animal com os braços levantados. Os pigmeus repuseram-se rapidamente da surpresa e tentaram afastá-la, mas nessa altura Alexander saltou para a arena.

- Basta! Parem! - gritou o jovem, mostrando-lhes o amuleto.

- Ipemba-Afua! - exclamaram, caindo prostrados diante do símbolo sagrado da sua tribo que por tanto tempo estivera nas mãos de Kosongo.

Alexander compreendeu que aquele osso talhado era mais valioso que o pó que continha; mesmo vazio, a reacção dos pigmeus seria a mesma. Aquele objecto tinha passado de mão em mão por muitas gerações e eles atribuíam-lhes poderes mágicos. A dívida contraída com Alexander e Nadia por lhes terem devolvido Ipemba-Afua era enorme, não podiam recusar nada àqueles jovens forasteiros que lhes traziam a alma da tribo.

Antes de lhes entregar o amuleto, Alexander explicou-lhes por que razão não deviam matar o animal, que já estava vencido nas redes.

- Restam muito poucos elefantes no bosque, depressa serão exterminados. O que farão nessa altura? Não haverá marfim para resgatar os vossos filhos da escravidão. A solução não é o marfim, mas eliminar Kosongo e libertar de uma vez as vossas famílias - disse o jovem.

Acrescentou que Kosongo era um homem vulgar e comum, a terra não tremia quando os pés dele a tocavam, não podia matar com o olhar ou com a voz. O seu único poder era o que os outros lhe atribuíam. Se ninguém o receasse, Kosongo perdia importância.

- E Mbembelé? E os soldados? - perguntaram os pigmeus.

Alexander teve de admitir que não tinham visto o comandante e que, com efeito, os membros da Irmandade do Leopardo pareciam ser perigosos.

- Mas se vocês têm coragem para caçar elefantes com lanças, também conseguem desafiar Mbembelé e os seus homens - acrescentou.

- Vamos à aldeia. Com Ipemba-Afua e com as nossas mulheres podemos vencer o rei e o comandante - propôs Beyé-Dokou.

Na qualidade de turra - melhor caçador - tinha o respeito dos companheiros, mas não tinha autoridade para impor nada. Os caçadores começaram a discutir entre si e, apesar da seriedade do assunto, desatavam de repente às gargalhadas. Alexander considerou que os seus novos amigos estavam a perder um tempo precioso.

- Libertaremos as vossas mulheres para que lutem convosco. Os meus amigos também ajudarão. A minha avó com certeza se lembrará de algum truque, é muito esperta - prometeu Alexander.

Beyé-Dokou traduziu as palavras de Alexander, mas não conseguiu convencer os seus companheiros. Eles pensavam que aquele patético grupo de estrangeiros não seria muito útil na altura de lutar. A avó também não os impressionava, era apenas uma velha de cabelos eriçados e olhos de louca. Por outro lado, eles contavam-se pelos dedos e só dispunham de lanças e de redes, enquanto os seus inimigos eram muitos e poderosos.

- As mulheres disseram-me que no tempo da rainha Nana-Asante os pigmeus e os bantos eram amigos - recordou-lhes Nadia.

- É verdade - disse Beyé-Dokou.

- Os bantos também vivem aterrorizados em Ngoubé. Mbembelé tortura-os e mata-os se desobedecem. Se pudessem, livrar-se-iam de Kosongo e do comandante. Talvez se ponham do vosso lado - sugeriu a rapariga.

- Mesmo que os bantos nos ajudem e derrotemos os soldados, resta ainda Sombe, o feiticeiro - alegou Beyé-Dokou.

- Também conseguiremos vencer o bruxo! - exclamou Alexander.

Mas os caçadores rejeitaram veementemente a ideia de desafiarem Sombe e explicaram em que consistiam os seus poderes aterradores: engolia fogo, andava pelo ar e sobre brasas ardentes, transformava-se num sapo e a sua saliva matava. Embrulharam-se nas limitações da mímica e Alexander entendeu que o bruxo se punha em quatro patas e vomitava, o que não lhe pareceu nada do outro mundo.

- Não se preocupem, amigos, nós encarregamo-nos de Sombe - prometeu, com excessiva confiança.

Entregou-lhes o amuleto mágico, que os amigos receberam comovidos e alegres. Tinham esperado vários anos por esse momento.

 

Enquanto Alexander argumentava com os pigmeus, Nadia aproximara-se do elefante ferido e tentava acalmá-lo no idioma aprendido com Kobi, o elefante do safari. O enorme animal estava no limite das suas forças; tinha sangue no dorso, onde algumas lanças dos caçadores o tinham ferido, e na tromba, com que batia no chão. A voz da rapariga falando-lhe na sua língua chegava-lhe de muito longe, como se a ouvisse em sonhos. Era a primeira vez que enfrentava seres humanos e não esperava que falassem como ele. Por puro cansaço, acabou por prestar atenção. Lenta mas determinadamente, o som daquela voz atravessou a densa barreira do desespero, da dor e do terror e chegou-lhe ao cérebro. Pouco a pouco, foi acalmando e deixou de se debater sob as redes. Passado pouco tempo imobilizou-se, espreitando, com os olhos fixos em Nadia, sacudindo as suas grandes orelhas. Exalava um cheiro a medo tão forte que Nadia o sentiu como uma bofetada, mas continuou a falar, certa de que ele a compreendia. Perante o assombro dos homens, o elefante começou a responder e depressa ficaram com a certeza de que a menina e o animal conversavam.

- Fazemos um acordo - propôs Nadia aos caçadores. - Em troca de Ipemba-Afua, vocês poupam a vida ao elefante.

Para os pigmeus o amuleto era muito mais valioso que o marfim do elefante, mas não sabiam como tirar-lhe as redes de cima sem morrerem esmagados pelas patas ou trespassados pelos próprios dentes que pretendiam levar a Kosongo. Nadia garantiu-lhes que podiam fazê-lo sem perigo. Entretanto, Alexander aproximara-se o suficiente para examinar os cortes das lanças na pele grossa.

- Perdeu muito sangue, está desidratado e estas feridas podem infectar. Receio que o espere uma morte lenta e dolorosa - anunciou.

Então, Beyé-Dokou agarrou no amuleto e aproximou-se do animal. Tirou um pequeno tampão de uma das extremidades de Ipemba-Afua, inclinou o osso, agitando-o como um saleiro, enquanto outro dos caçadores abria as mãos para receber um pó esverdeado. Por sinais, indicaram a Nadia que o aplicasse porque nenhum deles se atrevia a tocar no elefante. Nadia explicou ao ferido que iam curá-lo e, quando adivinhou que este tinha compreendido, pôs o pó nos cortes profundos das lanças.

As feridas não se fecharam milagrosamente como ela esperava mas, passados alguns minutos, deixaram de sangrar. O elefante voltou a cabeça para tactear o dorso com a tromba, mas Nadia avisou-o de que não devia tocar-se.

Os pigmeus atreveram-se a tirar as redes, uma tarefa bastante mais complicada que colocá-las mas, por fim, o elefante ficou livre. Resignara-se ao seu destino, talvez tenha chegado a transpor a fronteira entre a vida e a morte, e de repente viu-se milagrosamente livre. Deu alguns passos incertos, depois avançou na direcção da selva, cambaleando. No último instante, antes de desaparecer bosque adentro, voltou-se para Nadia e, olhando-a com um olho incrédulo, levantou a tromba e lançou um bramido.

- O que disse? - perguntou Alexander.

- Que o chamemos, se precisarmos de ajuda - traduziu Nadia.

 

Dentro de pouco tempo cairia a noite. Nadia tinha comido muito pouco nos últimos dias e Alexander tinha tanta fome como ela. Os caçadores descobriram pegadas de um búfalo, mas não as seguiram porque eram perigosos e andavam em grupo. Tinham línguas ásperas como lixa e podiam lamber um homem até lhe arrancarem a carne e deixá-lo no osso, disseram. Não conseguiam caçá-los sem a ajuda das mulheres. Levaram-nos a trote até um grupo de palhotas minúsculas feitas de ramos e folhas. Era uma aldeia tão miserável que não parecia possível ser habitada por seres humanos. Não construíam casas mais sólidas porque eram nómadas, estavam separados das familias e tinham de deslocar-se cada vez mais longe à procura de elefantes. A tribo não possuía nada, só aquilo que cada indivíduo conseguia levar consigo. Os pigmeus fabricavam apenas os objectos básicos para sobreviver no bosque e caçar, o resto obtinham-no através de trocas. Como a civilização não lhes interessava, outras tribos julgavam que eles eram como macacos.

Os caçadores tiraram de um buraco do chão meio antílope coberto de terra e insectos. Tinham-no caçado dois dias antes e, depois de comerem uma parte, tinham enterrado o resto para evitar que outros animais o arrebatassem. Ao ver que ainda estava ali, começaram a cantar e a dançar. Nadia e Alexander verificaram mais uma vez que, apesar do sofrimento, era uma gente muito alegre quando estava no bosque, qualquer pretexto servia para brincar, contar histórias e rir-se às gargalhadas. A carne exalava um cheiro fétido e estava meio verde mas, graças ao isqueiro de Alexander e à habilidade dos pigmeus para descobrir combustível seco, fizeram uma pequena fogueira onde a assaram. Também comeram com entusiasmo as larvas, lagartas, vermes e formigas coladas à carne, que consideravam uma verdadeira delícia, e completaram o jantar com frutos selvagens, nozes e água dos charcos do chão.

- A minha avó avisou-nos de que a água suja nos daria cólera - disse Alexander, bebendo com as duas mãos porque estava morto de sede.

- Talvez a ti, que és muito delicado - troçou Nadia -, mas eu criei-me no Amazonas; sou imune às doenças tropicais.

Perguntaram a Beyé-Dokou a que distância ficava Ngoubé mas este não conseguiu dar uma resposta precisa porque, para eles, a distância media-se em horas e dependia da velocidade a que se deslocavam. Cinco horas a andar equivale a duas a correr. Também não conseguiu apontar a direcção porque nunca tinham tido uma bússola ou um mapa, não conheciam os pontos cardeais. Orientavam-se pela natureza, conseguiam reconhecer cada uma das árvores num território de centenas de hectares. Explicou que só eles, pigmeus, tinham nomes para todas as árvores, plantas e animais; as outras pessoas achavam que o bosque era apenas um emaranhado verde, uniforme e pantanoso. Os soldados e os bantos só se aventuravam entre a aldeia e a bifurcação do rio, onde estabeleciam contacto com o exterior e negociavam com os contrabandistas.

- O tráfico de marfim é proibido em quase todo o mundo. Como o fazem sair da região? - perguntou Alexander.

Beyé-Dokou informou-o que Mbembelé subornava as autoridades e dispunha de uma rede de sequazes ao longo do rio. Amarravam os dentes debaixo dos botes de modo a ficarem debaixo de água e transportavam-nos desta forma em plena luz do dia. Os diamantes iam no estômago dos contrabandistas. Engoliam-nos com colheres de mel e pudim de mandioca e, dois dias mais tarde, quando estivessem num local seguro, expulsavam-nos pela outra extremidade, método repugnante mas seguro.

Os caçadores falaram-lhes do tempo anterior a Kosongo, quando Nana-Asante governava Ngoubé. Nessa época não havia ouro, não se traficava marfim, os bantos viviam do café, que transportavam pelo rio até às cidades, e os pigmeus permaneciam a maior parte do ano caçando no bosque. Os bantos cultivavam hortaliças e mandioca, que davam aos pigmeus em troca de carne. Faziam festas em conjunto. Existiam as mesmas misérias, mas ao menos viviam livres. Às vezes chegavam botes trazendo coisas da cidade, mas os bantos compravam pouco porque eram muito pobres e aos pigmeus não lhes interessavam. O governo tinha-se esquecido deles, embora enviasse de vez em quando uma enfermeira com vacinas, ou um professor com intenção de construir uma escola, ou um funcionário que prometia instalar electricidade. Partiam depressa.

Não suportavam a distância da civilização, adoeciam, enlouqueciam. Os únicos que ficaram foram o comandante Mbembelé e os seus homens.

- E os missionários? - perguntou Nadia.

- Eram fortes e também ficaram. Quando eles chegaram, Nana-Asante já não estava. Mbembelé expulsou-os mas eles não se foram embora. Tentaram ajudar a nossa tribo. Depois desapareceram - disseram os caçadores.

- Como a rainha - insinuou Alexander.

- Não; não como a rainha... - responderam, mas não quiseram dar mais explicações.

 

Para Nadia e Alexander aquela era a primeira noite passada totalmente no bosque. Na noite anterior tinham estado na festa de Kosongo, Nadia tinha visitado as escravas pigmeias, tinham roubado o amuleto e incendiado a casa real antes de saírem da aldeia, de modo que não lhes pareceu muito longa; mas esta pareceu-lhes eterna. Debaixo da cúpula das árvores, a luz desaparecia muito cedo e voltava muito tarde. Estiveram mais de dez horas encolhidos nos refúgios miseráveis dos caçadores, suportando a humidade, os insectos e a proximidade de animais selvagens, coisas que não incomodavam os pigmeus que só receavam os fantasmas.

A luz da madrugada surpreendeu Nadia, Alexander e Borobá acordados e esfomeados. Do antílope assado só restavam os ossos queimados e não se atreveram a comer mais fruta porque lhes provocava dores de barriga. Decidiram não pensar em comida. Depressa os pigmeus também acordaram e puseram-se a conversar entre si, durante muito tempo e na sua língua. Como não tinham chefe, as decisões exigiam horas de discussão em círculo mas, assim que chegavam a um acordo, agiam como um só homem. Graças à sua espantosa facilidade para as línguas, Nadia entendeu o sentido geral da conferência. Alexander, pelo contrário, só conseguiu perceber alguns nomes que conhecia: Ngoubé, Ipemba-Afua, Nana-Asante. Finalmente aquela conversa animada terminou e os jovens ficaram a par do plano.

Os contrabandistas viriam buscar o marfim - ou os filhos dos pigmeus - dentro de dois dias. Isso significava que deveriam atacar Ngoubé num prazo máximo de trinta e seis horas. A primeira e mais importante atitude a tomar, decidiram, seria fazer uma cerimónia com o amuleto sagrado para pedir a protecção dos antepassados e de Ezenji, o grande espírito do bosque, da vida e da morte.

- Passamos perto da aldeia dos antepassados quando formos para Ngoubé? - perguntou Nadia.

Beyé-Dokou confirmou que, efectivamente, os antepassados viviam num sítio entre o rio e Ngoubé. Ficava a várias horas de caminho do sítio onde estavam nesse momento. Alexander lembrou-se de que, quando a avó Kate era nova, percorrera o mundo com uma mochila às costas e costumava dormir em cemitérios, porque eram muito seguros, ninguém lá ia de noite. A aldeia dos espectros era o local perfeito para prepararem o ataque a Ngoubé. Aí estariam a pouca distância do objectivo e completamente seguros, porque Mbembelé e os soldados nunca se aproximariam.

- Este é um momento muito especial, o mais importante na história da sua tribo. Acho que devem fazer a cerimónia na aldeia dos antepassados... - sugeriu Alexander.

Os caçadores pasmaram com a completa ignorância do jovem forasteiro e perguntaram-lhe se por acaso no seu país faltavam ao respeito aos antepassados. Alexander teve de admitir que nos Estados Unidos os antepassados ocupavam uma posição insignificante na escala social. Explicaram-lhe que a aldeola dos espíritos era um local proibido, nenhum humano podia lá entrar sem perecer imediatamente. Só lá iam para levar os mortos. Quando falecia algum elemento da tribo, realizava-se uma cerimónia que durava um dia e uma noite, depois as mulheres mais velhas envolviam o corpo em trapos e folhas, amarravam-no com cordas feitas com a fibra de casca de árvore, a mesma que usavam para as suas redes, e levavam-no para descansar com os antepassados. Aproximavam-se depressa da aldeia, depositavam a sua carga e saíam a correr o mais depressa possível. Isto efectuava-se sempre de manhã, em plena luz do dia, após inúmeros sacrifícios. Era a única hora segura, porque os fantasmas dormiam durante o dia e viviam de noite. Se os antepassados fossem tratados com o devido respeito não incomodavam os humanos, mas quando eram ofendidos, não perdoavam. Receavam-nos mais do que aos deuses, porque estavam mais próximos.

Angie Ninderera contara a Nadia e a Alexander que em África existia uma relação permanente entre os seres humanos e o mundo espiritual.

- Os deuses africanos são mais compassivos e razoáveis que os deuses de outros povos - dissera-lhes. - Não castigam, como o deus cristão. Não existe um inferno onde as almas sofrem por toda a eternidade. O que de pior pode acontecer a uma alma africana é vaguear perdida e só. Um deus africano jamais mandaria o seu único filho morrer na cruz para salvar pecados humanos, que pode apagar com um só gesto. Os deuses africanos não criaram os seres humanos à sua imagem e também não os amam, mas ao menos deixam-nos em paz. Os espíritos, pelo contrário, são mais perigosos, porque têm os mesmos defeitos que as pessoas, são avarentos, cruéis, ciumentos. Para os manter tranquilos, é necessário oferecer-lhes presentes. Não pedem muito: um jarro de bebida, um cigarro, o sangue de um galo.

Os pigmeus julgavam ter ofendido gravemente os seus antepassados e por isso padeciam às mãos de Kosongo. Não sabiam qual teria sido a ofensa nem como emendá-la, mas calculavam que a sua sorte mudaria se aplacassem o seu aborrecimento.

- Vamos à aldeia deles perguntar-lhes por que estão ofendidos e o que pretendem que façam - propôs Alexander.

- São fantasmas! - exclamaram os pigmeus, horrorizados.

- Nadia e eu não os tememos. Vamos falar com eles, talvez nos ajudem. No fim de contas, vocês são descendentes deles, devem sentir alguma afeição, não acham?

Inicialmente a ideia foi totalmente rejeitada mas os jovens insistiram e, depois de discutirem durante muito tempo, os caçadores aceitaram encaminhar-se até às proximidades da aldeia proibida.

Ficariam escondidos no bosque, onde preparariam as suas armas e fariam uma cerimónia, enquanto os forasteiros tentavam parlamentar com os antepassados.

 

Caminharam durante horas pelo bosque. Nadia e Alexander deixavam-se conduzir sem fazer perguntas, embora muitas vezes julgassem que estavam a passar pelo mesmo sítio. Os caçadores avançavam com confiança, sempre a trote, sem comer nem beber, imunes à fadiga, mantidos apenas pelo tabaco preto dos seus cachimbos de bambu. Para além das redes, lanças e dardos, aqueles cachimbos eram as suas únicas posses materiais. Os dois jovens seguiam-nos tropeçando a toda a hora, enjoados de cansaço e de calor, até se terem atirado ao chão, recusando-se a continuar. Precisavam de descansar e de comer alguma coisa.

Um dos caçadores disparou um dardo a um macaco que lhe caiu aos pés como uma pedra. Cortaram-no aos bocados, arrancaram-lhe a pele e fincaram os dentes na carne crua. Alexander fez uma pequena fogueira e assou os pedaços que lhe eram destinados e a Nadia, enquanto Borobá tapava a cara com as mãos e gemia; para ele era um acto horrível de canibalismo. Nadia ofereceu-lhe rebentos de bambu e tentou explicar-lhe que, dadas as circunstâncias, não podiam recusar a carne. Mas Borobá, apavorado, voltou-lhe as costas e não permitiu que ela o tocasse.

- Isto é como se um grupo de símios devorasse uma pessoa à nossa frente - disse Nadia.

- Na verdade é uma grosseria da nossa parte, Águia, mas se não nos alimentarmos não conseguiremos continuar - argumentou Alexander.

Beyé-Dokou explicou-lhes o que pensavam fazer. Apareceriam em Ngoubé ao cair da tarde do dia seguinte, quando Kosongo esperava a quota de marfim. Ficaria, sem dúvida, furioso ao vê-los chegar de mãos vazias. Enquanto alguns deles o distraíam com desculpas e promessas, outros abririam o curral das mulheres e trariam as armas. Iam lutar pelas suas vidas e resgatar os seus filhos - disseram.

- Parece-me uma decisão bastante corajosa, mas pouco prática. Acabará num massacre porque os soldados têm espingardas - alegou Nadia.

- São antiquadas - insinuou Alexander.

- Sim, mas continuam a matar de longe. Não se pode lutar com lanças contra armas de fogo - insistiu Nadia.

- Nesse caso, temos de nos apoderar das munições.

- Impossível. As armas estão carregadas e os soldados têm cintos de balas. Como conseguiremos inutilizar as espingardas?

- Não percebo nada disso, Águia, mas a minha avó esteve em várias guerras e viveu durante meses com guerrilheiros na América Central. Tenho a certeza de que ela sabe como fazê-lo. Temos de voltar a Ngoubé para preparar o terreno antes de chegarem os pigmeus - propôs Alexander.

- E como o faremos sem que os soldados nos vejam? - perguntou Nadia.

- Iremos durante a noite. Julgo que a distância entre Ngoubé e a aldeia dos antepassados é pequena.

- Por que insistes em ir à aldeia proibida, Jaguar?

- Dizem que a fé move montanhas, Águia. Se conseguirmos convencer os pigmeus de que os antepassados os protegem, sentir-se-ão invencíveis. Além disso, têm o amuleto Ipemba-Afua, isso também lhes dará coragem.

- E se os antepassados não quiserem ajudar?

- Os antepassados não existem, Águia! A aldeia é apenas um cemitério. Passaremos ali algumas horas tranquilamente, depois viremos contar aos nossos amigos que os antepassados lhes prometeram ajuda na batalha contra Mbembelé. Esse é o meu plano.

- Não me agrada o teu plano. Quando se tenta enganar, as coisas não acabam bem... - disse Nadia.

- Se preferires, vou sozinho.

- Já sabes que não podemos separar-nos. Irei contigo - decidiu ela.

Ainda havia luz no bosque quando chegaram ao sítio marcado pelos ensanguentados bonecos vodu que já tinham visto anteriormente. Os pigmeus recusaram-se a seguir nessa direcção, porque não podiam pisar os domínios dos espíritos esfomeados.

- Não creio que os fantasmas sofram de fome, supõe-se que não têm estômago - comentou Alexander.

Beyé-Dokou apontou para os montes de lixo que estavam nos arredores. A sua tribo fazia sacrifícios de animais e levava oferendas de fruta, mel, nozes e bebidas, que colocava aos pés dos bonecos. Durante a noite a maior parte desaparecia, engolida pelos espectros insaciáveis. Graças a isso viviam em paz, porque quando os fantasmas eram bem alimentados não atacavam as pessoas. O jovem insinuou que as ratazanas com certeza comeriam as oferendas mas os pigmeus, ofendidos, rejeitaram completamente essa sugestão. As velhotas encarregadas de levar os cadáveres até à entrada da aldeia durante os funerais podiam testemunhar que a comida era arrastada até ali. Às vezes ouviam gritos arrepiantes, capazes de provocar um pavor tal que o cabelo embranquecia em poucas horas.

- Nadia, Borobá e eu iremos aí, mas precisamos que alguém nos espere aqui para nos guiar até Ngoubé antes do amanhecer - disse Alexander.

Para os pigmeus a ideia de passar a noite no cemitério era a prova mais contundente de que os forasteiros não estavam bons da cabeça, mas como não tinham conseguido dissuadi-los, acabaram por aceitar a decisão. Beyé-Dokou indicou-lhes a rota, despediu-se deles com grandes demonstrações de afecto e tristeza, porque tinha a certeza de que não voltaria a vê-los mas, por cortesia, aceitou esperar por eles no altar vodu até à madrugada do dia seguinte. Os outros também se despediram, admirados com a coragem dos dois jovens forasteiros.

 

A Nadia e Alexander chamou a atenção o facto de, naquela selva voraz, onde só os elefantes deixavam rastos visíveis, haver um carreiro que ia até ao cemitério. Isso significava que alguém o usava com frequência.

- Por aqui passam os antepassados... - murmurou Nadia.

- Se existissem, Águia, não deixariam marcas e não precisariam de caminho - replicou Alexander.

- Como sabes?

- É uma questão de lógica.

- Os pigmeus e os bantos não se aproximam deste sítio por motivo algum e os soldados de Mbembelé são ainda mais supersticiosos. Esses nem sequer entram no bosque. Explica-me quem fez este carreiro - exigiu-lhe Nadia.

- Não sei, mas investigaremos.

Após uma caminhada de meia hora viram-se de repente numa clareira, diante de um muro circular, grosso e alto, construído com pedras, troncos, palha e barro. Presas ao muro viam-se cabeças dissecadas de animais, caveiras e ossos, máscaras, figuras talhadas em madeira, recipientes de barro e amuletos. Não se via qualquer porta, mas descobriram um buraco redondo, com uns oitenta centímetros de diâmetro, colocado a uma certa altura.

- Julgo que as velhotas que trazem os cadáveres os atiram por este buraco. No outro lado deve haver uma pilha de ossos - disse Alexander.

Nadia não chegava à abertura, mas ele era mais alto e pôde espreitar.

- O que há aí? - perguntou ela.

- Não vejo bem. Mandemos Borobá investigar.

- Como te pode passar isso pela cabeça?! Borobá não pode ir sozinho. Vamos todos ou não vai ninguém - decidiu Nadia.

- Espera-me aqui, volto já - respondeu Alexander.

- Prefiro ir contigo.

Alexander calculou que, se escorregasse através do buraco, cairia de cabeça. Não sabia o que iria encontrar do outro lado; era melhor trepar o muro, uma brincadeira de crianças para ele, dada a sua experiência de montanhismo. A textura irregular da parede facilitava a subida e, em menos de dois minutos, estava encavalitado no muro, enquanto Nadia e Borobá esperavam lá em baixo, bastante nervosos.

- É como uma aldeola abandonada, parece antiga, nunca vi nada semelhante - disse Alexander.

- Há esqueletos? - perguntou Nadia.

- Não, está tudo limpo e vazio. Talvez não metam os corpos pela abertura, como pensámos...

Com a ajuda do amigo, Nadia saltou também para o outro lado. Borobá hesitou, mas o medo de ficar sozinho impeliu-o a segui-la; nunca se separava da dona.

À primeira vista, a aldeia dos antepassados parecia um conjunto de fornos de barro e pedras colocados em círculos concêntricos, numa simetria perfeita. Cada uma daquelas construções redondas tinha um buraco a fazer de porta, fechado com bocados de tecido ou casca de árvore. Não havia estátuas, bonecos ou amuletos. A vida parecia ter parado naquele recinto cercado pelo muro alto. Ali a selva não entrara e até a temperatura era diferente. Reinava um silêncio inexplicável, não se ouvia a algazarra dos macacos e dos pássaros do bosque, nem o repicar da chuva, nem o murmúrio da brisa entre as folhas das árvores. A quietude era absoluta.

- São tumbas. Devem pôr aí os seus defuntos. Vamos investigar - decidiu Alexander.

Ao levantar algumas das cortinas que tapavam as entradas, viram que lá dentro havia restos humanos colocados em ordem, como uma pirâmide. Eram esqueletos secos e quebradiços, que talvez estivessem ali há centenas de anos. Algumas choças estavam cheias de ossos, outras estavam com ossos até metade e algumas permaneciam vazias.

- Que coisa tão macabra! - observou Alexander, estremecendo.

- Não entendo, Jaguar... Se ninguém entra aqui, como pode haver tanta ordem e limpeza? - perguntou Nadia.

- É um mistério - admitiu o amigo.

 

A luz sempre ténue sob a cúpula verde da selva começava a diminuir. Há dois dias, desde que tinham saído de Ngoubé, que os amigos só viam o céu pelas frinchas existentes entre as copas das árvores. O cemitério estava numa clareira e puderam ver por cima um pedaço de céu, que começava a tornar-se azul-escuro. Sentaram-se entre duas tumbas, dispostos a passar umas horas de solidão.

Nos três anos decorridos desde que se conheciam, a amizade entre Alexander e Nadia tinha crescido como uma grande árvore até se transformar no que de mais importante existia nas suas vidas. O afecto infantil do início evoluiu à medida que amadureciam, mas nunca falavam disso. Não necessitavam de palavras para descrever esse sentimento delicado e receavam que, ao fazê-lo, se partisse como cristal. Expressar a sua relação por palavras significava defini-la, estabelecer limites, reduzi-la; não a mencionando, continuava livre e incontaminada. Em silêncio, essa amizade expandira-se subtilmente, sem que eles próprios percebessem.

Nos últimos tempos, Alexander sofria mais do que nunca a explosão das hormonas própria da adolescência, que a maior parte dos rapazes sofre mais cedo; o corpo parecia-lhe um inimigo, não o deixava em paz. As suas notas na escola tinham baixado, já não tocava música, até as excursões à montanha com o pai, que antes lhe eram fundamentais, aborreciam-no. Sofria ataques de mau humor, brigava com a família e depois, arrependido, não sabia como fazer as pazes. Tornara-se desajeitado, enredado num emaranhado de sentimentos contraditórios. Passava da depressão à euforia numa questão de minutos, as suas emoções eram tão intensas que às vezes se interrogava se valeria a pena continuar a viver. Nos momentos de maior pessimismo pensava que o mundo era um desastre e que a maior parte da humanidade era estúpida. Apesar de ter lido livros a esse respeito e de, na escola, se discutir a fundo a adolescência, ele sofria-a como uma doença inconfessável.

- Não te preocupes, passámos todos pelo mesmo - consolava-o o pai, como se se tratasse de uma constipação; mas depressa faria dezoito anos e a sua situação não melhorava. Alexander quase não conseguia falar com os pais, punham-no louco, eram de outra época, tudo o que diziam parecia antiquado. Sabia que o amavam incondicionalmente e estava-lhes grato por isso, mas achava que não podiam entendê-lo. Só com Nadia conseguia partilhar os seus problemas. Na linguagem cifrada que usava com ela por correio electrónico conseguia descrever o que lhe acontecia sem se envergonhar, mas nunca o fizera pessoalmente. Ela aceitava-o tal como ele era, sem o julgar. Lia as mensagens sem dar opinião, porque realmente não sabia o que responder; as suas inquietações eram diferentes.

Alexander pensava que a sua obsessão pelas raparigas era ridícula, mas não conseguia evitá-la. Uma palavra, um gesto, um toque, bastavam para lhe encher a cabeça de imagens e a alma de desejo. O melhor paliativo era o exercício: fazia surf no Pacífico de Inverno e de Verão. O choque da água gelada e a sensação maravilhosa de voar sobre as ondas devolviam-lhe a inocência e a euforia da infância, mas aquele estado de espírito durava pouco. As viagens com a avó, pelo contrário, conseguiam distraí-lo durante semanas. Diante da avó conseguia controlar as emoções e isso dava-lhe alguma esperança; talvez o pai tivesse razão e aquela loucura fosse passageira.

Desde que se encontraram em Nova Iorque no início da viagem, Alexander olhava para Nadia com outros olhos, embora a excluísse totalmente das suas fantasias românticas ou eróticas. Nem sequer conseguia imaginá-la nesse plano. Ela pertencia à mesma categoria das irmãs: unia-os um carinho puro e ciumento. O seu papel era protegê-la de quem pudesse fazer-lhe mal, especialmente de outros rapazes. Nadia era bonita - pelo menos era o que lhe parecia - e, mais cedo ou mais tarde, teria um enxame de apaixonados à sua volta. Não iria permitir que aqueles zângões se aproximassem dela; a simples ideia punha-o frenético. Reparava nas formas do corpo de Nadia, na graciosidade dos seus gestos e na expressão concentrada do seu rosto. Gostava das suas cores, do cabelo louro escuro, da pele morena, dos olhos como avelãs; podia pintar-lhe o retrato com uma paleta reduzida, do amarelo ao castanho. Era diferente dele e isso intrigava-o: a sua fragilidade física, que escondia uma grande força de vontade, a sua atenção silenciosa, a forma como se harmonizava com a natureza. Sempre fora reservada, mas agora parecia-lhe misteriosa. Adorava estar perto dela, tocá-la de vez em quando, mas era-lhe muito mais fácil comunicar com ela à distância; quando estavam juntos baralhava-se, não sabia o que dizer-lhe e começava a medir as palavras, parecia-lhe que às vezes tinha as mãos muito pesadas, os pés muito grandes, a voz muito alta.

Ali, sentados na escuridão, rodeados de tumbas num antigo cemitério de pigmeus, Alexander sentia a proximidade da amiga com uma intensidade quase dolorosa. Amava-a mais do que tudo no mundo, mais do que aos pais e a todos os amigos juntos, receava perdê-la.

- Que tal Nova Iorque? Gostas de viver com a minha avó? - perguntou-lhe, para dizer alguma coisa.

- A tua avó trata-me como uma princesa, mas sinto saudades do meu pai.

- Não voltes para o Amazonas, Águia, fica muito longe e não podemos comunicar um com o outro.

- Vem comigo - disse ela.

- Irei contigo para onde quiseres, mas primeiro tenho de estudar medicina.

- A tua avó diz que estás a escrever sobre as nossas aventuras no Amazonas e no Reino do Dragão de Ouro. Vais escrever também sobre os pigmeus? - perguntou Nadia.

- São só apontamentos, Águia. Não pretendo ser escritor, mas médico. A ideia ocorreu-me quando a minha mãe adoeceu e tomei a decisão quando o lama Tensing te curou o ombro com agulhas e orações. Apercebi-me de que a ciência e a tecnologia não chegam para curar, há outras coisas igualmente importantes. Medicina holística, creio que é como se denomina o que quero fazer - explicou Alexander.

- Lembras-te do que te disse o xamã Walimai? Disse que tens o poder de curar e que deves aproveitá-lo. Creio que serás o melhor médico do mundo - garantiu-lhe Nadia.

- E tu, o que queres fazer quando acabares o liceu? - Vou estudar idiomas de animais.

- Não há institutos para estudar idiomas de animais - riu-se Alexander.

- Então fundarei o primeiro.

- Seria bom viajarmos juntos, eu como médico e tu como linguista - propôs Alexander.

- Isso acontecerá quando nos casarmos - replicou Nadia.

A frase ficou suspensa no ar, tão visível como uma bandeira. Alexander sentiu que o sangue lhe provocava formigueiros no corpo e que o coração lhe saltava no peito. Estava tão surpreendido que não conseguiu responder. Como não se lembrara disso? Tinha vivido apaixonado por Cecilia Burns, com quem não tinha nada em comum. Este ano perseguira-a com uma tenacidade invencível, aguentando estoicamente as suas inconveniências e caprichos.

Enquanto ele agia ainda como um miúdo, Cecilia Burns transformara-se numa mulher feita, embora tivessem a mesma idade. Era muito atraente e Alexander já não tinha esperança de que ela reparasse nele. Cecilia desejava ser actriz, suspirava pelos galãs do cinema e planeava tentar a sua sorte em Hollywood assim que fizesse dezoito anos. O comentário de Nadia revelou-lhe um horizonte que até então ele não contemplara.

- Como sou idiota! - exclamou.

- O que quer isso dizer? Que não nos vamos casar?

- Eu... - balbuciou Alexander.

- Olha, Jaguar, não sabemos se vamos sair vivos deste bosque. Como talvez não nos reste muito tempo, falemos com o coração - propôs ela seriamente.

- É evidente que nos casaremos, Águia! Não há qualquer dúvida - replicou ele, com as orelhas a arder.

- Bom, faltam alguns anos para isso - disse ela, encolhendo os ombros.

E durante uma longa pausa não tiveram mais nada a dizer um ao outro. Alexander sentia-se sacudido por um furacão de ideias e de emoções contraditórias, que iam do receio de voltar a olhar para Nadia em plena luz do dia, até à tentação de beijá-la. Tinha a certeza de que nunca se atreveria a fazer isso... O silêncio tornou-se insuportável.

- Tens medo, Jaguar? - perguntou Nadia, passada meia hora.

Alexander não respondeu, pensando que ela lhe adivinhara o pensamento e se referia ao novo receio que despertara nele e que naquele instante o paralisava. À segunda vez, compreendeu que ela se referia a uma coisa muito mais imediata e concreta.

- Amanhã será preciso enfrentar Kosongo, Mbembelé e talvez o bruxo Sombe... como o faremos?

- Logo se verá, Águia. Como diz a minha avó: é preciso não ter medo do medo.

Sentiu-se grato por ela ter mudado de assunto e decidiu que não voltaria a mencionar o amor, pelo menos até estar a salvo na Califórnia, separado dela pelo largo continente americano. Através do correio electrónico seria um pouco mais fácil falar de sentimentos, porque ela não conseguiria ver-lhe as orelhas vermelhas.

- Espero que a águia e o jaguar venham em nossa ajuda - disse Alexander.

- Desta vez vai ser preciso mais do que isso - concluiu Nadia.

 

Como se respondesse a um chamamento, sentiram nesse instante uma presença silenciosa a poucos passos do local onde se encontravam. Alexander agarrou na faca e acendeu a lanterna. Nessa altura uma figura arrepiante surgiu diante deles enquadrada pelo feixe de luz.

Paralisados de susto, viram a três metros de distância uma velha bruxa, envolta em andrajos, com um cabelo enorme, branco e desgrenhado, tão magra como um esqueleto. Um fantasma, pensaram os dois imediatamente, mas logo a seguir Alexander pensou que devia haver outra explicação.

- Quem está aí? - gritou em inglês, levantando-se de um salto.

Silêncio. O jovem repetiu a pergunta e tornou a apontar a lanterna.

- É um espírito? - perguntou Nadia numa mistura de francês e banto.

A aparição respondeu com um murmúrio incompreensível e retrocedeu, cega pela luz.

- Parece ser uma velhota! - exclamou Nadia.

Finalmente, perceberam claramente o que o suposto fantasma dizia: Nana-Asante.

- Nana-Asante? A rainha de Ngoubé? Viva ou morta? - perguntou Nadia.

Depressa dissiparam as suas dúvidas: era a antiga rainha em corpo e alma, a mesma que tinha desaparecido, aparentemente assassinada por Kosongo quando este usurpou o trono. A mulher tinha permanecido anos escondida no cemitério e sobrevivera alimentando-se com as oferendas que os caçadores deixavam para os seus antepassados. Era ela quem mantinha o local limpo; quem colocava nas tumbas os cadáveres que deitavam pelo buraco do muro. Disse-lhes que não estava sozinha mas em muito boa companhia, a dos espíritos, com quem esperava reunir-se definitivamente dentro de pouco tempo, porque estava cansada de habitar o seu corpo. Contou-lhes que antes era uma nganga, uma curandeira que viajava até ao mundo dos espíritos quando entrava em transe. Vira-os durante as cerimónias e tinha-lhes pavor mas, desde que vivia no cemitério, perdera-lhes o medo. Agora eram seus amigos.

- Pobre mulher, deve ter enlouquecido - sussurrou Alexander a Nadia.

Nana-Asante não estava louca, pelo contrário; aqueles anos de recolhimento tinham-lhe dado uma lucidez extraordinária. Estava informada acerca de tudo o que acontecia em Ngoubé, estava a par de Kosongo e das suas vinte mulheres, de Mbembelé e dos seus dez soldados da Irmandade do Leopardo, do bruxo Sombe e dos seus demónios. Sabia que os bantos da aldeia não se atreviam a lutar contra eles porque qualquer sinal de rebelião pagava-se com tormentos terríveis. Sabia que os pigmeus eram escravos, que Kosongo lhes tinha tirado o amuleto sagrado e que Mbembelé vendia os filhos deles se não lhe levassem marfim. E sabia também que um grupo de forasteiros tinha chegado a Ngoubé à procura dos missionários e que os dois mais jovens tinham fugido de Ngoubé e iriam visitá-la. Estava à espera deles.

- Como pode saber tudo isso? - perguntou Alexander.

- Contaram-me os antepassados. Eles sabem muitas coisas. Não saem apenas de noite, como as pessoas julgam; também saem de dia, andam com outros espíritos da natureza por aqui e por ali, entre os vivos e os mortos. Sabem que vocês lhes pedirão ajuda - disse Nana-Asante.

- Aceitarão ajudar os seus descendentes? - perguntou Nadia.

- Não sei. Vocês terão de falar com eles - decidiu a rainha.

Uma enorme lua cheia, amarela e radiante, surgiu na clareira do bosque. Durante o tempo da lua, aconteceu no cemitério qualquer coisa de mágico que, nos anos vindouros, Alexander e Nadia recordariam como um dos momentos cruciais das suas vidas.

O primeiro sintoma de que alguma coisa extraordinária estava a acontecer foi os jovens conseguirem ver à noite com a maior clareza, como se o cemitério estivesse iluminado pelos focos potentes de um estádio. Pela primeira vez desde que estavam em África, Alexander e Nadia sentiram frio. Tiritando, abraçaram-se, para incutir um ao outro coragem e calor. Um crescente murmúrio de abelhas invadiu o ar e, diante dos olhos maravilhados dos jovens, o local encheu-se de seres translúcidos. Estavam rodeados de espíritos. Era impossível descrevê-los porque não tinham forma definida, pareciam ser vagamente humanos mas transformavam-se como se fossem desenhos de fumo; não estavam nus nem vestidos; não tinham cor, mas eram luminosos.

O intenso zumbido musical de insectos que lhes vibrava nos ouvidos tinha um significado, era uma linguagem universal que eles entendiam, semelhante à telepatia. Não precisavam de explicar nada aos fantasmas, de lhes contar nada, de lhes pedir nada por palavras. Aqueles seres etéreos sabiam o que tinha acontecido e também o que aconteceria no futuro, porque na dimensão em que se moviam não havia tempo. Ali estavam as almas dos antepassados mortos e também as dos seres por nascer, almas que permaneciam indefinidamente num estado espiritual, outras prontas para adquirir forma física neste planeta ou noutros, aqui ou ali.

Os amigos ficaram a saber que os espíritos raramente intervêm nos acontecimentos do mundo material, embora às vezes ajudem os animais através da intuição, e as pessoas através da imaginação, dos sonhos, da criatividade e da revelação mística ou espiritual. A maior parte das pessoas vive desligada do que é divino e não se apercebe dos sinais, das coincidências, das premonições e dos minúsculos milagres quotidianos através dos quais se manifesta o sobrenatural. Deram-se conta de que os espíritos não provocam doenças, desgraças ou morte, como tinham ouvido, e que o sofrimento é causado pela maldade e pela ignorância dos vivos. Também não destroem aqueles que violam os seus domínios ou os ofendem, porque não possuem domínios e não há forma de os ofender. Os sacrifícios, ofertas e orações não chegam até eles; a sua única utilidade é tranquilizar as pessoas que fazem as oferendas.

O diálogo silencioso com os fantasmas durou um tempo impossível de calcular. De uma forma gradual, a luz aumentou e então o recinto abriu-se a uma dimensão maior. O muro que tinham trepado para entrarem no cemitério dissolveu-se e viram-se a meio do bosque, embora não parecesse o mesmo onde tinham estado anteriormente. Nada era igual, havia uma energia radiante. As árvores já não formavam uma massa compacta de vegetação, agora cada uma tinha o seu próprio carácter, nome, memórias. As mais altas, de cujas sementes tinham brotado outras mais jovens, contaram-lhes as suas histórias. As plantas mais velhas manifestaram o seu desejo de morrer rapidamente para alimentar a terra; as mais novas estendiam os seus rebentos tenros, agarrando-se à vida. Havia um murmúrio contínuo da natureza, formas subtis de comunicação entre as espécies.

Centenas de animais rodearam os jovens, alguns cuja existência desconheciam: estranhos okapi de pescoço comprido, como pequenas girafas; ratos-almiscarados, gatos-de-algália, manguços, esquilos voadores, gatos dourados e antílopes com riscas de zebra; formigueiros cobertos de escamas e uma multidão de macacos empoleirados nas árvores, tagarelando como crianças na claridade mágica dessa noite. Diante deles desfilaram, em harmonia, leopardos, crocodilos, rinocerontes e outras feras. Aves extraordinárias encheram o ar com as suas vozes e iluminaram á noite com a sua plumagem atrevida. Milhares de insectos dançaram na brisa: borboletas coloridas, escaravelhos fosforescentes, grilos barulhentos, pirilampos delicados. O chão fervilhava de répteis: víboras, tartarugas e grandes lagartos, descendentes dos dinossauros, que observavam os jovens com olhos de três pálpebras.

Estavam no centro do bosque espiritual, rodeados por milhares e milhares de almas vegetais e animais. As mentes de Alexander e de Nadia expandiram-se novamente e perceberam as ligações entre os seres, o universo inteiro entrelaçado por correntes de energia, por uma rede admirável, fina como seda, forte como aço. Perceberam que nada existe isolado; cada coisa que acontece, de um pensamento a um furacão, afecta as restantes. Sentiram a terra palpitante e viva, um grande organismo embalando no seu regaço a flora e a fauna, os montes, os rios, o vento e as planícies, a lava dos vulcões, as neves eternas das montanhas mais altas. E essa mãe-planeta faz parte de outros organismos maiores, unida aos astros infinitos do imenso firmamento.

Os jovens viram os inevitáveis céus de vida, morte, transformação e renascimento como um desenho maravilhoso no qual tudo acontece simultaneamente, sem passado, presente ou futuro, agora desde sempre e para sempre.

E, por fim, na última etapa daquela fantástica odisseia, compreenderam que as inúmeras almas, assim como tudo o que existe no universo, são partículas de um espírito único, como gotas de água de um mesmo oceano. Uma única essência espiritual anima tudo o que existe. Não há separação entre os seres, não há fronteira entre a vida e a morte.

Em momento algum daquela incrível viagem Nadia e Alexander sentiram medo. No princípio pareceu-lhes que flutuavam na nebulosa de um sonho e sentiram uma calma profunda. Mas à medida que a peregrinação espiritual lhes expandia os sentidos e a imaginação, a tranquilidade deu lugar à euforia, a uma felicidade irresistível, a uma sensação de enorme energia e força.

A Lua continuou o seu passeio pelo firmamento e desapareceu no bosque. Durante alguns minutos a luz dos fantasmas permaneceu no ambiente, enquanto o zumbido de abelhas e o frio diminuíam pouco a pouco. Os dois amigos acordaram do transe e viram-se de novo entre as tumbas, com Borobá agarrado à cintura de Nadia. Durante um bocado não falaram nem se mexeram, para preservar o encantamento. Finalmente olharam-se, perplexos, duvidando do que tinham vivido, mas nessa altura surgiu diante deles a figura da rainha Nana-Asante, que lhes confirmou não ter sido apenas uma alucinação.

A rainha estava iluminada por um intenso brilho interior. Os jovens viram-na tal como era e não na forma com que lhes aparecera ao princípio, uma velha miserável, só ossos e farrapos. Era na verdade uma presença magnífica, uma amazona, uma antiga deusa do bosque. Nana-Asante tornara-se sábia durante esses anos de meditação e solidão entre os mortos; varrera do coração o ódio e a cobiça, nada desejava, nada a inquietava, nada temia. Era corajosa porque não se agarrava à vida; era forte porque a movia a compaixão; era justa porque intuía a verdade; era invencível porque a apoiava um exército de espíritos.

- Há muito sofrimento em Ngoubé. Quando a senhora reinava havia paz, os bantos e os pigmeus lembram-se desse tempo. Venha connosco, Nana-Asante, ajude-nos - suplicou Nadia.

- Vamos - replicou a rainha sem hesitar, como se durante anos se tivesse preparado para esse momento.

 

Durante os dois dias que Nadia e Alexander passaram no bosque, uma série de eventos dramáticos desencadeou-se na aldeia de Ngoubé. Kate, Angie, o Irmão Fernando e Joel González não voltaram a ver Kosongo e tiveram de entender-se com Mbembelé que era, sob todos os aspectos, mais temível que o rei. Ao saber do desaparecimento de dois dos seus prisioneiros, o comandante preocupou-se mais em castigar os guardas por tê-los deixado sair, que com o destino dos jovens ausentes. Não se empenhou minimamente em encontrá-los e quando Kate Cold lhe pediu ajuda para ir procurá-los, recusou-a.

- Já estão mortos, não vou perder tempo com eles. Ninguém sobrevive à noite no bosque, só os pigmeus, que não são humanos - disse-lhe Mbembelé.

- Nesse caso, mande alguns pigmeus acompanhar-me na busca - exigiu-lhe Kate.

Mbembelé tinha o hábito de não responder a perguntas e muito menos a petições, por isso ninguém se atrevia a colocá-las. A atitude de desfaçatez daquela velha estrangeira provocou-lhe mais perplexidade que fúria, não conseguia acreditar em tanta insolência. Permaneceu em silêncio, observando-a através das suas sinistras lentes espelhadas, enquanto gotas de suor lhe escorriam pelo crânio liso e pelos braços nus, marcados com as cicatrizes rituais. Estavam no «seu gabinete», para onde tinha mandado levar a escritora.

O «gabinete» de Mbembelé era um calaboiço com uma desconjuntada secretária metálica a um canto e duas cadeiras. Horrorizada, Kate viu instrumentos de tortura e manchas escuras, que pareciam ser de sangue, nas paredes de barro caiadas. A intenção do comandante ao recebê-la ali era, sem dúvida, a de intimidá-la. E conseguiu-o, mas Kate não estava disposta a revelar fraqueza. Dispunha apenas do seu passaporte americano e da sua carteira profissional de jornalista para a proteger, que de nada serviriam se Mbembelé se apercebesse do medo que sentia.

Pareceu-lhe que o militar, ao contrário de Kosongo, não engoliu a história de terem vindo para entrevistar o rei; o militar suspeitava com certeza que a verdadeira razão da sua presença ali era descobrir o que acontecera aos missionários desaparecidos. Estavam nas mãos daquele homem, mas Mbembelé devia avaliar os riscos antes de se deixar dominar por um arroubo de crueldade, não podia maltratar estrangeiros, deduziu Kate com demasiado optimismo. Uma coisa era maltratar os pobres diabos que dominava com mão de ferro em Ngoubé, e outra, muito diferente, era fazê-lo a estrangeiros, sobretudo se fossem brancos. Não lhe convinha uma investigação das autoridades. O comandante teria de se livrar deles o mais depressa possível; se soubessem de mais, não teria outra alternativa senão matá-los. Sabia que não se iriam embora sem Nadia e Alexander e isso complicava as coisas. Kate concluiu que seria melhor terem bastante cuidado, porque a melhor saída do comandante era os seus hóspedes sofrerem um bem planeado acidente. Não passou pela cabeça da escritora que pelo menos um deles fosse visto com bons olhos em Ngoubé.

- Como se chama a outra mulher do seu grupo? - perguntou Mbembelé depois de uma longa pausa.

- Angie, Angie Ninderera. Ela trouxe-nos no seu avião, mas.. - Sua Majestade, o rei Kosongo, está disposto a aceitá-la entre as suas mulheres.

Kate Cold sentiu que os joelhos lhe fraquejavam. O que não passara de uma brincadeira na noite anterior transformava-se agora numa desagradável - e talvez perigosa - realidade. O que diria Angie acerca das intenções de Kosongo? Nadia e Alexander deveriam regressar rapidamente, conforme dizia o bilhete do neto. Nas viagens anteriores também tinha passado por momentos angustiantes por culpa daqueles miúdos mas, em ambas as ocasiões, tinham voltado sãos e salvos. Tinha de confiar neles. A primeira coisa a fazer seria reunir o grupo, depois pensaria na maneira de voltarem à civilização. Ocorreu-lhe que o súbito interesse do rei por Angie podia servir ao menos para ganharem um pouco de tempo.

- Deseja que comunique a Angie a petição do rei? - perguntou Kate, quando foi capaz de falar.

- Não é uma petição, é uma ordem. Fale com ela. Vê-la-ei durante o torneio que haverá amanhã. Entretanto têm autorização para circular pela aldeia, mas proíbo-vos de se aproximarem do recinto real, dos currais e do poço.

O comandante fez um gesto e de imediato o soldado que montava guarda na porta agarrou Kate por um braço e levou-a. A luz do dia ofuscou por um momento a velha escritora.

 

Kate reuniu-se com os amigos e transmitiu a mensagem de amor a Angie, que a aceitou bastante mal, como era de esperar.

- Jamais farei parte do rebanho de mulheres de Kosongo! - exclamou, furiosa.

- Evidentemente que não, Angie, mas poderias ser amável com ele por alguns dias e...

- Nem por um minuto! Claro que, se em vez de Kosongo, fosse o comandante... - suspirou Angie.

- Mbembelé é um animal! - interrompeu-a Kate.

- É uma piada, Kate. Não pretendo ser amável com Kosongo, com Mbembelé ou com quem quer que seja. Pretendo sair deste inferno o mais depressa possível, recuperar o meu avião e fugir para onde estes criminosos não consigam apanhar-me.

- Se você distrair o rei, como propôs a senhora Cold, podemos ganhar tempo - alegou o Irmão Fernando.

- Como quer que faça isso? Olhe para mim! A minha roupa está suja e molhada, perdi o meu bâton, o meu cabelo está um desastre. Pareço um porco-espinho! - replicou Angie, apontando para os cabelos enlameados que se espetavam em várias direcções.

- As pessoas da aldeia têm medo - interrompeu-a o missionário. - Ninguém quer responder às minhas perguntas, mas já liguei algumas pontas soltas. Sei que os meus companheiros estiveram aqui e que desapareceram há vários meses. Não podem ter ido a parte nenhuma. O mais provável é serem mártires.

- Quer dizer que os mataram? - perguntou Kate.

- Sim. Creio que deram as suas vidas por Cristo. Espero que, pelo menos, não tenham sofrido muito...

- A sério que o lamento, Irmão Fernando - disse Angie, subitamente séria e comovida. - Perdoe a minha frivolidade e o meu mau humor. Conte comigo, farei o que puder para o ajudar. Dançarei a dança dos sete véus para distrair Kosongo, se quiser.

- Não lhe peço tanto, menina Ninderera - replicou tristemente o missionário.

- Chame-me Angie - disse ela.

Passaram o resto do dia à espera que Nadia e Alexander voltassem e a vaguear pela aldeola, tentando obter informações e fazendo planos para fugirem. Os dois guardas que se tinham descuidado na noite anterior foram presos pelos soldados e não foram substituídos, de modo que ninguém os vigiava. Ficaram a saber que os Irmãos do Leopardo, que desertaram do exército regular e chegaram a Ngoubé com o comandante, eram os únicos com acesso às armas de fogo, que se guardavam na caserna. Os guardas bantos eram recrutados à força na adolescência. Estavam mal armados, principalmente com machetes e facas, e obedeciam mais por medo que por lealdade. Sob as ordens do punhado de soldados de Mbembelé os guardas tinham de reprimir a restante população banto, ou seja, as suas próprias famílias e amigos. A feroz disciplina não dava escapatória; os rebeldes e os desertores eram executados sem julgamento.

As mulheres de Ngoubé, que antes eram independentes e participavam nas decisões da comunidade, perderam os seus direitos, foram obrigadas a trabalhar nas plantações de Kosongo e a atender às exigências dos homens. As jovens mais bonitas destinavam-se ao harém do rei. O sistema de espionagem do comandante utilizava mesmo as crianças, que aprendiam a vigiar os seus próprios familiares. Bastava ser acusado de traição, mesmo que não houvesse prova, para perder a vida. No início assassinaram muita gente, mas a população da zona não era numerosa e, ao ver que estavam a ficar sem súbditos, o rei e o comandante tiveram de refrear o seu entusiasmo.

Também contavam com a ajuda de Sombe, o bruxo, a quem convocavam quando os seus serviços eram requeridos. As pessoas estavam habituadas aos curandeiros ou bruxos, cuja missão era servir de ligação com o mundo dos espíritos, curar doenças, realizar encantamentos e fabricar amuletos de protecção. Achavam que, regra geral, o falecimento de uma pessoa era provocado pela magia. Quando alguém morria, o bruxo tinha de averiguar quem tinha provocado a morte, desfazer o feitiço e castigar o culpado ou obrigá-lo a pagar uma retribuição à família do defunto. Isso dava-lhe poder na comunidade. Em Ngoubé, como em muitas outras partes de África, sempre houve bruxos, uns mais respeitados que outros, mas nenhum como Sombe.

Não se sabia onde vivia o macabro feiticeiro. Materializava-se na aldeia como um demónio, e, uma vez efectuada a sua incumbência, evaporava-se sem deixar rasto e não voltavam a vê-lo durante semanas ou meses. Era tão receado que até Kosongo e Mbembelé evitavam a sua presença e ambos se mantinham fechados em casa quando Sombe aparecia. O seu aspecto impunha terror. Era enorme - tão alto como o comandante Mbembelé - e quando entrava em transe adquiria uma força descomunal, era capaz de levantar pesados troncos de árvore que nem seis homens conseguiam mover. Tinha cabeça de leopardo e um colar de dedos que, segundo diziam, tinha amputado às suas vítimas com o gume do seu olhar, tal como decapitava galos sem lhes tocar durante as suas exibições de feitiçaria.

- Gostaria de conhecer o famoso Sombe - comentou Kate quando os amigos se reuniram para contarem uns aos outros o que tinham descoberto.

- E eu gostaria de fotografar os seus truques de ilusionismo - acrescentou Joel González.

- Talvez não sejam truques. A magia vodu pode ser muito perigosa - disse Angie, estremecendo.

 

Na segunda noite na palhota, que lhes pareceu eterna, os expedicionários mantiveram archotes acesos, apesar do cheiro a resina queimada e da fumarada preta, porque ao menos podiam ver as baratas e as ratazanas. Kate passou horas de vigília, com o ouvido aguçado, esperando que Nadia e Alexander regressassem. Como não havia guardas à entrada, pôde sair para apanhar um pouco de fresco quando o peso do ar dentro de casa se tornou insuportável. Angie reuniu-se com ela lá fora e sentaram-se no chão, lado a lado.

- Morro por um cigarro - resmungou Angie.

- Esta é a tua oportunidade de largares o vício, tal como eu fiz. Provoca cancro de pulmão - avisou-a Kate. - Queres um gole de vodka?

- E o álcool não é um vício, Kate? - riu-se Angie.

- Estás a insinuar que sou alcoólica? Não te atrevas! Bebo uns goles de vez em quando para a dor nos ossos, mais nada.

- Temos de fugir daqui, Kate.

- Não podemos ir sem o meu neto e Nadia - replicou a escritora.

- Quanto tempo estás disposta a esperar por eles? Os botes vêm buscar-nos depois de amanhã.

- Nessa altura, os miúdos já estarão de volta.

- E se isso não acontecer?

- Nesse caso vocês vão, mas eu fico - disse Kate.

- Não te deixarei aqui sozinha, Kate.

- Tu irás com os outros pedir ajuda. Terás de entrar em contacto com a revista International Geographic e com a embaixada americana. Ninguém sabe onde estamos.

- A única esperança é que Michael Mushaha tenha recebido alguma das mensagens que lhe enviei via rádio, mas não contaria muito com isso - disse Angie.

As duas mulheres permaneceram em silêncio durante muito tempo. Apesar das circunstâncias em que se encontravam, conseguiam apreciar a beleza da noite sob a Lua. A essa hora havia muito poucos archotes acesos na aldeia, excepto os que iluminavam o recinto real e a caserna dos soldados. Chegava-lhes o rumor contínuo do bosque e o aroma penetrante da terra húmida. A poucos passos de distância existia um mundo paralelo de criaturas que nunca viam a luz do Sol e que agora espreitavam das sombras.

- Sabes o que é o poço, Angie? - perguntou Kate.

- Aquele que o missionário mencionava nas cartas?

- Não é o que imaginávamos. Não se trata de um poço de água - disse Kate.

- Não? Então o que é?

- É o local das execuções.

- O que dizes?! - exclamou Angie.

- É o que te estou a dizer, Angie. Fica atrás da casa real, rodeado por uma paliçada. É proibido aproximar-se.

- É um cemitério?

- Não. É uma espécie de charco ou tanque com crocodilos...

Angie levantou-se de um salto, sem conseguir respirar, com a sensação de ter uma locomotiva no peito. As palavras de Kate confirmavam o terror que sentia desde que o avião chocou na praia e deu consigo presa naquela região bárbara. Hora a hora, dia a dia, foi fortalecendo a convicção de que caminhava inexoravelmente para o seu fim. Sempre achou que morreria jovem num acidente do seu avião, até Má Bangesé, a adivinha do mercado, lhe pressagiar os crocodilos. De início não levou muito a sério a profecia, mas, como teve alguns encontros quase fatais com aqueles animais, a ideia foi-se enraizando no seu espírito e transformou-se numa obsessão. Kate adivinhou o que a amiga estava a pensar.

- Não sejas supersticiosa, Angie. O facto de Kosongo criar crocodilos não significa que sejas o jantar deles.

- É o meu destino, Kate, não posso fugir.

- Vamos sair daqui com vida, Angie. Prometo-te.

- Não podes prometer-me isso porque não o podes cumprir. Que mais sabes?

- Atiram para o poço aqueles que se revoltam contra a autoridade de Kosongo e Mbembelé - explicou-lhe Kate. - Soube-o pelas mulheres pigmeias. Os maridos têm de caçar para alimentar os crocodilos. Elas sabem de tudo o que acontece na aldeia. São escravas dos bantos, fazem o trabalho mais pesado, entram nas palhotas, ouvem as conversas, observam. Andam livres durante o dia, só as prendem à noite. Ninguém lhes liga porque acham que não têm inteligência humana.

- Achas que foi assim que mataram os missionários e que, por isso, não há qualquer rasto deles? - perguntou Angie com um calafrio.

- Sim, mas não tenho a certeza, por isso ainda não o disse ao Irmão Fernando. Amanhã tentarei descobrir a verdade e, se for possível, darei uma vista de olhos ao poço. Temos de fotografá-lo, é uma parte essencial da história que penso escrever para a revista - decidiu Kate.

No dia seguinte, Kate apresentou-se novamente diante do comandante Mbembelé para lhe comunicar que Angie Ninderera se sentia muito honrada com as atenções do rei e estava disposta a considerar a sua proposta, mas precisava de, pelo menos, alguns dias para decidir, porque tinha prometido a sua mão a um feiticeiro muito poderoso no Botswana e, como toda a gente sabia, era muito perigoso trair um bruxo, mesmo à distância.

- Nesse caso, o rei Kosongo não está interessado na mulher - decidiu o comandante.

Kate retrocedeu imediatamente. Não esperava que Mbembelé o levasse tão a sério.

- Não acha que deveria consultar Sua Majestade?

- Não.

- Na realidade Angie Ninderera não deu a sua palavra ao bruxo, digamos que não tem um compromisso formal, compreende? Disseram-me que por aqui vive Sombe, o feiticeiro mais poderoso de África. Talvez ele possa libertar Angie da magia do outro pretendente... - propôs Kate.

- Talvez.

- Quando virá o famoso Sombe a Ngoubé?

- Fazes muitas perguntas, mulher velha, aborrecidas como as mopani - replicou o comandante, fazendo o gesto de afugentar uma abelha. - Falarei com o rei Kosongo. Veremos a forma de libertar a mulher.

- Mais uma coisa, comandante Mbembelé - disse Kate da porta.

- O que queres agora?

- Os aposentos onde nos colocaram são muito agradáveis, mas estão um pouco sujos, há um pouco de excremento de ratazanas e de morcegos...

- E?

- Angie Ninderera é muito delicada, o mau cheiro põe-na doente. Pode mandar uma escrava para limpar e preparar-nos comida? Se não for muito incómodo.

- Está bem - replicou o comandante.

A criada que lhes destinaram parecia uma criança, vestia apenas uma saia de ráfia, media uns escassos metro e quarenta de altura e era magra mas forte. Apareceu munida de uma vassoura de ramos e começou a varrer o chão a uma velocidade surpreendente. Quanto mais pó levantava, pior eram o cheiro e a porcaria. Kate interrompeu-a porque na realidade solicitara a vinda dela com outros fins: precisava de uma aliada. Inicialmente a mulher pareceu não entender as intenções e os gestos de Kate, punha uma expressão parada, como a de uma ovelha, mas quando a escritora mencionou Beyé-Dokou, o rosto dela iluminou-se. Kate compreendeu que a estupidez era fingida, servia-lhe de protecção.

Através da mímica e de algumas palavras em banto e em francês, a pigmeia explicou que se chamava Jena e era a mulher de Beyé-Dokou. Tinham dois filhos, a quem via muito pouco, porque os mantinham fechados num curral, mas por agora as crianças estavam a ser bem tratadas pelas avós. O prazo para Beyé-Dokou e os outros caçadores aparecerem com o marfim era só até ao dia seguinte. Se falhassem perderiam os seus filhos, disse Jena a chorar. Kate não soube o que fazer diante daquelas lágrimas mas Angie e o Irmão Fernando tentaram consolá-la argumentando que Kosongo não se atreveria a vender as crianças tendo um grupo de jornalistas por testemunhas. Jena era de opinião que nada nem ninguém poderia dissuadir Kosongo.

 

O sinistro tantã dos tambores enchia a noite africana, fazendo estremecer o bosque e aterrorizando os estrangeiros, que o ouviam da sua palhota com o coração pesado de maus presságios.

- O que significam estes tambores? - perguntou Joel González, trémulo.

- Não sei, mas não devem anunciar nada de bom - replicou o Irmão Fernando.

- Estou farta de passar o tempo com medo! Há dias que o peito me dói de tanta angústia, não consigo respirar! Quero sair daqui! - exclamou Angie.

- Rezemos, meus amigos - sugeriu o missionário.

Nesse instante apareceu um soldado e, dirigindo-se apenas a Angie, anunciou que se efectuaria um «torneio» e que o comandante Mbembelé exigia a sua presença.

- Irei com os meus companheiros - disse ela.

- Como queira - replicou o emissário.

- Por que tocam os tambores? - perguntou Angie.

- Ezenji - foi a resposta concisa do soldado.

- A dança da morte?

O homem não respondeu, voltou-lhe as costas e foi-se embora. Os membros do grupo conferenciaram. Joel González era de opinião que se tratava da morte deles: seriam eles os actores principais do espectáculo. Kate fê-lo calar.

- Estás a pôr-me nervosa, Joel. Se pretendessem matar-nos, não o fariam em público. Não lhes convém provocar um escândalo internacional assassinando-nos.

- Quem ficaria a saber, Kate? Estamos à mercê destes dementes. Que lhes importa a opinião do resto do mundo? Fazem o que lhes apetece - gemeu Joel.

A população da aldeia, excepto os pigmeus, reuniu-se na praça. No chão tinham desenhado um quadrilátero com cal, como um ringue de boxe, iluminado por archotes. Sob a «árvore das palavras» estava o comandante acompanhado pelos seus «oficiais», ou seja, pelos dez soldados da Irmandade do Leopardo, que se mantinham de pé atrás da cadeira que este ocupava. Ia vestido como sempre, com calças e botas do exército, e trazia os seus óculos espelhados, apesar de ser de noite. Levaram Angie Ninderera para outra cadeira, colocada a poucos passos do comandante, ignorando por completo os seus amigos. O rei Kosongo não estava, mas as suas mulheres apinhavam-se no sítio habitual, de pé atrás da árvore, vigiadas pelo velho sádico com a varinha de bambu.

O «exército» estava presente: os Irmãos do Leopardo com as espingardas e os guardas bantos armados com machetes, facas e bastões. Os guardas eram muito jovens e davam a impressão de estar tão assustados como a restante população da aldeia. Depressa os estrangeiros compreenderam a razão.

Os três músicos com casacos militares e sem calças que na noite da chegada de Kate e do seu grupo batiam com paus, dispunham agora de tambores. O som que produziam eram monótono, lúgubre, ameaçador, muito diferente da música dos pigmeus. O tantã continuou por muito tempo, até a Lua unir a sua claridade à dos archotes. Entretanto tinham trazido bidões de plástico e cabaças com vinho de palma, que passavam de mão em mão. Desta vez ofereceram às mulheres, às crianças e aos visitantes. O comandante tinha whisky americano, certamente obtido de contrabando. Bebeu alguns goles e passou a garrafa a Angie, que a recusou dignamente, porque não queria estabelecer nenhum tipo de familiaridade com aquele homem. Mas quando ele lhe ofereceu um cigarro não conseguiu resistir, não fumava há uma eternidade.

Diante de um gesto de Mbembelé, os músicos rufaram os tambores, anunciando o início da função. Da outra extremidade do pátio trouxeram os dois guardas encarregados da vigilância da palhota dos forasteiros e sob cujos narizes Nadia e Alexander tinham fugido. Empurraram-nos para o quadrilátero, onde permaneceram de joelhos, com as cabeças inclinadas para o chão, tremendo. Eram muito jovens, Kate calculou que teriam a mesma idade do neto, uns dezassete ou dezoito anos. Uma mulher, talvez a mãe de um deles, deu um grito e atirou-se para o ringue, mas foi imediatamente retida por outras mulheres, que a levaram abraçada, tentando consolá-la.

Mbembelé pôs-se de pé, com as pernas separadas, as mãos nas ancas, o maxilar protuberante, o suor brilhando no seu crânio rapado e no seu dorso nu de atleta. Com essa atitude e os óculos de sol que lhe escondiam os olhos, era a própria imagem do vilão dos filmes de acção. Ladrou algumas frases no seu idioma, que os visitantes não entenderam, a seguir voltou a instalar-se reclinado na cadeira. Um soldado entregou uma faca a cada um dos homens que estavam no quadrilátero.

Kate e os amigos não tardaram a perceber as regras do jogo. Os dois guardas eram obrigados a lutar pelas suas vidas e os seus companheiros, bem como os familiares e amigos, eram obrigados a presenciar aquele forma cruel de disciplina. Ezenji, a dança sagrada, que os pigmeus executavam antigamente antes de irem caçar para invocar o grande espírito do bosque, tinha degenerado em Ngoubé, transformando-se num torneio de morte.

 

A luta entre os dois guardas castigados foi rápida. Durante alguns minutos pareceram dançar em círculos, com os punhais na mão, à espera de um descuido do adversário para assestar o golpe. Mbembelé e os soldados incitavam-nos com gritos e assobios, mas os restantes espectadores mantinham um silêncio agoirento. Os outros guardas bantos estavam aterrados porque imaginavam que qualquer deles poderia ser o próximo condenado. As pessoas de Ngoubé, impotentes e furiosas, despediam-se dos jovens; só o medo de Mbembelé e o enjoo provocado pelo vinho de palma impediam que explodisse a revolta. As famílias estavam unidas por múltiplos laços de sangue; os que viam aquele torneio pavoroso eram parentes dos rapazes dos punhais.

Quando por fim os lutadores decidiram atacar-se, as lâminas dos punhais brilharam um instante à luz dos archotes antes de descerem sobre os corpos. Dois gritos simultâneos desgarraram a noite e ambos os rapazes caíram, um deles contorcendo-se no chão e o outro de gatas, ainda com a arma na mão. A Lua pareceu parar no céu, enquanto a população de Ngoubé sustinha a respiração. Durante longos minutos o jovem que jazia por terra estremeceu várias vezes e depois ficou imóvel. Então o outro largou o punhal e ajoelhou-se com a testa no chão, cobrindo a cabeça com os braços, num choro convulsivo.

Mbembelé levantou-se, aproximou-se com uma lentidão estudada e, com a ponta da bota, deu meia volta ao corpo do primeiro. A seguir sacou a pistola que trazia no cinto e apontou para a cabeça do outro jovem. Nesse mesmo instante, Angie Ninderera atirou-se para o centro da praça e pendurou-se ao comandante tão célere e com tanta força que o apanhou de surpresa. A bala bateu no chão a poucos centímetros da cabeça do condenado. Um exclamação de horror percorreu a aldeia: era absolutamente proibido tocar no comandante. Nunca ninguém se atrevera a opor-se a ele daquela forma. O acto de Angie provocou uma incredulidade tão grande no militar que este demorou alguns segundos a recuperar do estupor. Isso deu a Angie tempo suficiente para se colocar diante da pistola, tapando a vítima.

- Diga ao rei Kosongo que aceito ser sua mulher e que quero a vida destes rapazes como presente de casamento - disse a mulher com voz firme.

Mbembelé e Angie olharam-se nos olhos, avaliando-se com ferocidade, como dois pugilistas antes do combate. O comandante tinha mais meia cabeça de altura e era muito mais forte do que ela. Tinha além disso uma pistola, mas Angie era uma daquelas pessoas com uma confiança inabalável em si própria. Achava-se bonita, esperta, irresistível e tinha uma atitude atrevida, que lhe servia para levar avante a sua vontade. Apoiou as duas mãos no peito nu do odiado militar - tocando-o pela segunda vez - e empurrou-o com suavidade, obrigando-o a retroceder. Acto contínuo, fulminou-o com um sorriso capaz de desarmar o mais valente.

- Vamos, comandante, agora sim, já aceito um gole do seu whisky - disse alegremente, como se em vez de um duelo de morte, tivessem presenciado um espectáculo de circo.

Entretanto, o Irmão Fernando seguido por Kate Cold e Joel González, aproximaram-se também e trataram de levantar os dois rapazes. Um deles estava coberto de sangue e cambaleava; o outro estava inconsciente. Seguraram-nos pelos braços e levaram-nos quase arrastados até à palhota onde estavam alojados, enquanto a população de Ngoubé, os guardas bantos e os Irmãos do Leopardo observavam a cena com o mais absoluto assombro.

 

A rainha Nana-Asante acompanhou Nadia e Alexander pelo estreito carreiro do bosque que ligava a aldeia dos antepassados ao altar onde Beyé-Dokou os esperava. O Sol ainda não nascera mas a Lua já tinha desaparecido. Era a hora mais negra da noite mas Alexander levava a lanterna e Nana-Asante conhecia a vereda de cor, porque a percorria amiúde para se apoderar das oferendas de comida deixadas pelos pigmeus.

Alexander e Nadia estavam transformados pela experiência vivida no mundo dos espíritos. Durante algumas horas deixaram de ser indivíduos e fundiram-se na totalidade do que existe. Sentiam-se fortes, seguros, lúcidos; conseguiam ver a realidade de uma perspectiva mais rica e luminosa. Perderam o medo, até o medo da morte, porque compreenderam que, independentemente do que acontecesse, não desapareceriam engolidos pela escuridão. Nunca ficariam separados, faziam parte de um só espírito.

Era difícil imaginar que no plano metafísico os vilãos como Mauro Carias no Amazonas, o Especialista no Reino Proibido e Kosongo em Ngoubé tinham almas idênticas às deles. Como era possível não haver diferença entre vilãos e heróis, santos e criminosos, entre quem faz o bem e quem passa pelo mundo causando destruição e dor? Não sabiam a resposta a este mistério, mas calcularam que cada ser contribui com a sua experiência para a imensa reserva espiritual do universo. Uns fazem-no através do sofrimento causado pela maldade, outros através da luz que se adquire através da compaixão.

Ao voltarem à realidade, os jovens pensaram nas provações que se avizinhavam. Tinham uma missão imediata a cumprir: tinham de ajudar a libertar os escravos e a derrubar Kosongo. Para isso seria necessário agitar a indiferença dos bantos, que eram cúmplices da tirania por não se oporem a ela; em determinadas circunstâncias, não se pode permanecer neutral. No entanto o desenlace não dependia deles; os verdadeiros protagonistas e heróis desta história eram os pigmeus. Isso tirou-lhes um peso enorme dos ombros.

Beyé-Dokou estava a dormir e não os ouviu chegar. Nadia acordou-o suavemente. Quando este viu Nana-Asante à luz da lanterna, julgou estar na presença de um fantasma, arregalou os olhos e ficou cor de cinza, mas a rainha desatou-se a rir e acariciou-lhe a cabeça, para provar que estava tão viva como ele; depois contou-lhe que durante aqueles anos tinha permanecido escondida no cemitério, sem se atrever a sair com medo de Kosongo. Acrescentou que estava cansada de esperar que as coisas se consertassem sozinhas, que tinha chegado o momento de voltar a Ngoubé, enfrentar o usurpador e libertar o seu povo da opressão.

- Nadia e eu iremos para Ngoubé preparar o terreno - anunciou Alexander. - Cá nos arranjaremos para conseguir ajuda. Quando as pessoas souberem que Nana-Asante está viva, creio que terão coragem para se revoltar.

- Nós, caçadores, iremos à tarde. Kosongo espera-nos a essa hora - disse Beyé-Dokou.

Combinaram que Nana-Asante não apareceria na aldeia sem ter a certeza de que a população a apoiava, caso contrário Kosongo matá-la-ia impunemente. Ela era o único trunfo com que contavam neste jogo perigoso e tinham de a deixar para o fim. Se conseguissem despojar Kosongo dos seus supostos atributos divinos, talvez os bantos lhe perdessem o medo e se levantassem contra ele. Restavam, evidentemente, Mbembelé e os seus soldados, mas Alexander e Nadia propuseram um plano, que foi aprovado por Nana-Asante e Beyé-Dokou. Alexander entregou o seu relógio à rainha, porque o pigmeu não sabia usá-lo e puseram-se de acordo sobre a hora e a forma de agir.

O resto dos caçadores juntou-se a eles. Tinham passado uma boa parte da noite a dançar, numa cerimónia destinada a pedir a ajuda de Ezenji e de outras divindades do reino animal e vegetal. Ao verem a rainha, tiveram inicialmente uma reacção bastante mais exagerada que Beyé-Dokou. Primeiro julgaram que era um fantasma e desataram a correr espavoridos, seguidos por Beyé-Dokou, que tentava explicar-lhes aos gritos não se tratar de uma alma penada. Por fim regressaram um a um, cautelosamente, e atreveram-se a tocar na mulher com a ponta de um dedo trémulo. Depois de verificarem que não estava morta, acolheram-na com respeito e esperança.

 

A ideia de injectarem o rei Kosongo com o tranquilizante de Michael Mushaha foi de Nadia. No dia anterior tinha visto um dos caçadores derrubar um macaco utilizando um dardo e uma zarabatana parecidos aos dos índios do Amazonas. Pensou que o anestésico podia ser lançado da mesma forma. Não sabia que efeito teria num ser humano. Se conseguia derrubar um rinoceronte em poucos minutos talvez matasse uma pessoa, mas calculou que, dado o seu tamanho enorme, Kosongo resistiria. O seu grosso manto era um obstáculo quase intransponível. Com a arma adequada era possível perfurar a pele de um elefante, mas com uma zarabatana seria necessário acertar na pele nua do rei.

Quando Nadia expôs o seu projecto, os pigmeus indicaram o caçador com melhores pulmões e pontaria. O homem encheu o peito e sorriu perante a honra que lhe prestavam, mas o orgulho não lhe durou muito porque os outros se começaram imediatamente a rir e a troçar, como faziam sempre que alguém se gabava. Assim que dominou a sua altivez, trataram de entregar-lhe a ampola com o tranquilizante. O humilhado caçador guardou-a sem dizer uma palavra num saquinho que trazia à cintura.

- O rei dormirá como um morto durante várias horas. Isso dar-nos-á tempo para sublevar os bantos e depois aparecerá a rainha Nana-Asante - propôs Nadia.

- E o que faremos com o comandante e com os soldados? - perguntaram os caçadores.

- Eu desafiarei Mbembelé para um combate - disse Alexander.

Não soube por que o disse nem como pretendia levar a cabo tão temerário objectivo; foi, simplesmente, a primeira coisa que lhe passou pela cabeça e disse-o sem pensar. Assim que o disse, a ideia foi adquirindo contornos e compreendeu que não havia outra solução. Tal como teriam de despojar Kosongo dos seus atributos divinos para que as pessoas deixassem de receá-lo, porque, no fim de contas, o medo era o frágil fundamento do seu poder, Mbembelé teria de ser derrotado no seu próprio terreno, o da força bruta.

- Não podes ganhar, Jaguar, não és como ele, és um tipo pacífico. Além disso, ele tem armas e tu nunca disparaste um tiro - argumentou Nadia.

- Será um combate sem armas de fogo, corpo a corpo ou com lanças.

- Estás louco!

Alexander explicou aos caçadores que tinha um amuleto muito poderoso, mostrou-lhes o fóssil que trazia ao pescoço e contou-lhes que provinha de um animal mitológico, de um dragão que tinha vivido nas altas montanhas dos Himalaias antes de existirem seres humanos na terra. Este amuleto, disse, protegia-o dos objectos cortantes e, para o provar, pediu-lhes que se colocassem a dez passos de distância e o atacassem com as lanças.

Os pigmeus abraçaram-se num círculo, como jogadores de futebol americano, falando depressa e rindo-se. De vez em quando, davam umas olhadelas de pena ao jovem estrangeiro que lhes pedia semelhante loucura. Alexander perdeu a paciência, meteu-se a meio deles e insistiu que o pusessem à prova.

Os homens alinharam-se entre as árvores, pouco convencidos e mortos de riso. Alexander mediu dez passos, o que não era simples a meio daquela vegetação, pôs-se em frente deles com as mãos nas ancas e gritou-lhes que estava pronto. Um a um os pigmeus atiraram as suas lanças. O rapaz não moveu um músculo enquanto as lâminas das armas lhe passavam a um milímetro da pele. Os caçadores, perplexos, recuperaram as lanças e voltaram a tentar, desta vez sem risos e com mais energia, mas também não conseguiram tocá-lo.

- Agora ataquem com machetes - pediu-lhes Alexander.

Dois deles, os únicos que dispunham de machetes, atiraram-se para cima dele gritando a plenos pulmões, mas o rapaz desviou o corpo sem qualquer dificuldade e as lâminas das armas cravaram-se na terra.

- És um feiticeiro muito poderoso - concluíram, maravilhados.

- Não, mas o meu amuleto vale quase tanto como Ipemba-Afua - replicou Alexander.

- Quer dizer que qualquer um com esse amuleto pode fazer a mesma coisa? - perguntou um dos caçadores.

- Exactamente.

Mais uma vez os pigmeus abraçaram-se em círculo, cochichando apaixonadamente por muito tempo, até se porem de acordo.

- Nesse caso, um de nós lutará com Mbembelé - concluíram.

- Porquê? Eu posso fazê-lo - replicou Alexander.

- Porque tu não és forte como nós. És alto, mas não sabes caçar e cansas-te quando corres. Qualquer uma das nossas mulheres é mais hábil do que tu - disse um dos caçadores.

- Ora... obrigado...

- É verdade - concordou Nadia, disfarçando um sorriso.

- O tuma lutará com Mbembelé - decidiram os pigmeus.

Apontaram todos para o melhor caçador, Beyé-Dokou, que rejeitou a honra com humildade, em sinal de boa educação, embora não fosse fácil adivinhar até que ponto se sentia agradado. Depois de lhe terem rogado várias vezes, aceitou pendurar o excremento de dragão ao pescoço e colocar-se diante das lanças dos companheiros. Repetiu-se a cena anterior e desta forma se convenceram de que o fóssil era um escudo impenetrável. Alexander visualizou Beyé-Dokou, aquele homenzinho do tamanho de uma criança, diante do imenso Mbembelé.

- Conhecem a história de David e Golias? - perguntou.

- Não - replicaram os pigmeus.

- Há muito tempo, longe deste bosque, duas tribos estavam em guerra. Uma tinha um campeão, chamado Golias, um gigante tão alto como uma árvore e tão forte como um elefante, com uma espada que pesava como dez machetes. A todos inspirava terror. David, um rapaz da outra tribo, atreveu-se a desafiá-lo. A sua arma era uma funda e uma pedra. Juntaram-se as duas tribos para assistir ao combate. David atirou uma pedra que acertou Golias no meio da testa e o atirou ao chão, depois tirou-lhe a espada e matou-o.

Os ouvintes escangalharam-se a rir porque a história lhes pareceu de uma comicidade insuperável, mas não viram o paralelismo até Alexander lhes dizer que Golias era Mbembelé e David era Beyé-Dokou. Pena não terem uma funda, disseram. Não faziam ideia do que aquilo era, mas imaginavam que devia ser uma arma formidável. Por fim puseram-se a caminho para conduzir os seus novos amigos até às proximidades de Ngoubé. Despediram-se com fortes palmadas nos braços e desapareceram no bosque.

 

Alexander e Nadia entraram na aldeia quando o dia começava a clarear. Só alguns cães se aperceberam da sua presença; a população dormia e ninguém vigiava a antiga missão. Espreitaram cautelosamente para dentro da palhota para não sobressaltarem os seus amigos e foram recebidos por Kate, que tinha dormido pouco e mal. Ao ver o neto, a escritora sentiu uma mistura de alívio profundo e vontade de lhe dar uma boa sova. As forças só lhe chegaram para o agarrar por uma orelha e abaná-lo, enquanto o cobria de insultos.

- Onde estavam vocês, fedelhos do demónio? - gritou-lhes.

- Eu também te amo, avó - riu-se Alexander, dando-lhe um abraço apertado.

- Desta vez falo a sério, Alexander, nunca mais viajo contigo! E você, menina, tem muitas explicações a dar-me! - acrescentou dirigindo-se a Nadia.

- Não temos tempo para sentimentalismos, Kate. Temos muito que fazer - interrompeu-a o neto.

Nessa altura os outros tinham acordado e rodeavam os jovens acossando-os com perguntas. Kate fartou-se de mastigar recriminações que ninguém ouvia e optou por alimentar os recém-chegados. Apontou-lhes para as pilhas de ananás, manga e bananas, para os recipientes cheios de frango frito em óleo de palma, pudim de mandioca e vegetais, que lhes tinham trazido de oferta e que os jovens devoraram agradecidos porque tinham comido muito pouco naqueles dois dias. De sobremesa, Kate deu-lhes a última lata de pêssego em calda que lhe restava.

- Eu não disse que os miúdos regressariam? Bendito seja Deus! - exclamava o Irmão Fernando sem parar.

Num dos cantos da palhota tinham instalado os guardas salvos por Angie. Um deles, chamado Adrien, estava moribundo com uma facada no estômago. O outro, chamado Nzé, tinha uma ferida no peito mas, segundo o missionário, que tinha visto muitas feridas na guerra do Ruanda, não havia nenhum órgão vital comprometido e poderia salvar-se, desde que a ferida não infectasse. Tinha perdido muito sangue, mas era jovem e forte. O Irmão Fernando tratou-o o melhor possível e estava a administrar-lhes os antibióticos que Angie trazia no seu estojo de primeiros socorros.

- Ainda bem que voltaram, miúdos. Temos de fugir daqui antes que Kosongo me reclame como esposa - disse-lhes Angie.

- Fá-lo-emos com a ajuda dos pigmeus, mas antes temos de ajudá-los - replicou Alexander. - À tarde os caçadores voltarão. O plano é desmascarar Kosongo e depois desafiar Mbembelé.

- Parece bastante fácil. Posso saber como o farão? - perguntou Kate com ironia.

Alexander e Nadia expuseram a estratégia, que incluía, entre outros pontos, sublevar os bantos, anunciando-lhes que a rainha Nana Asante estava viva e libertar as escravas para que lutassem juntamente com os seus homens.

- Algum de vocês sabe como poderemos inutilizar as espingardas dos soldados? - perguntou Alexander.

- Seria preciso encravar o mecanismo... - sugeriu Kate.

A escritora lembrou-se de que podiam usar para esse fim a resina que se utilizava para acender os archotes, uma substância espessa e pegajosa armazenada em embalagens de lata em todas as casas. As únicas pessoas com livre acesso à caserna dos soldados eram as escravas pigmeias, encarregadas de limpar, acartar água e fazer-lhes a comida. Nadia ofereceu-se para dirigir a operação, porque já tinha estabelecido relação com elas quando as visitara no curral. Kate aproveitou a espingarda de Angie para lhe explicar onde devia colocar a resina.

O Irmão Fernando informou que Nzé, um dos jovens feridos, também os podia ajudar. A mãe dele, tal como a mãe de Adrien e outros familiares, tinham aparecido na noite anterior com ofertas de fruta, comida, vinho de palma e até tabaco para Angie, que se transformara na heroína da aldeia por ter sido a única na história capaz de enfrentar o comandante. Não o fizera apenas de palavra mas chegara mesmo a tocá-lo. Não sabiam como pagar-lhe ter salvo os rapazes de uma morte certa às mãos de Mbembelé.

Esperavam que Adrien morresse a qualquer momento, mas Nzé estava lúcido embora muito fraco. O terrível torneio agitou a paralisia de terror em que o rapaz vivera durante anos. Considerava-se ressuscitado, o destino oferecia-lhe mais alguns dias de vida. Não tinha nada a perder uma vez que estava como morto porque, assim que os estrangeiros partissem, Mbembelé atirá-lo-ia aos crocodilos. Ao aceitar a possibilidade da sua morte imediata, adquiriu a coragem que antes não possuía. Essa coragem foi reforçada quando soube que a rainha Nana-Asante estava prestes a regressar para reclamar o trono usurpado por Kosongo. Aceitou o plano dos estrangeiros para incitar os bantos de Ngoubé a sublevar-se, mas pediu-lhes que, se o plano não resultasse, lhe dessem a ele e a Adrien uma morte misericordiosa. Não queria ir parar vivo às mãos de Mbembelé.

 

Durante a manhã, Kate apresentou-se diante do comandante informando-o que Nadia e Alexander, por milagre, se tinham salvo de perecer no bosque e estavam de volta à aldeia. Isso significava que ela e o resto do grupo partiriam assim que as canoas os viessem buscar, no dia seguinte. Acrescentou que se sentia bastante defraudada por não ter conseguido fazer a reportagem para a revista acerca de sua Sereníssima Majestade, o rei Kosongo.

O comandante pareceu aliviado com a ideia de aqueles incomodativos estrangeiros abandonarem o seu território e dispôs-se a facilitar-lhes a retirada, desde que Angie cumprisse a sua promessa de fazer parte do harém de Kosongo. Kate receava que isso acontecesse e tinha uma história preparada. Perguntou onde estava o rei, porque não o vira. Por acaso estaria doente? Será que o bruxo que pretendia casar-se com Angie Ninderera lhe lançara uma maldição à distância? Toda a gente sabe que a prometida ou mulher de um bruxo é intocável; neste caso tratava-se de um particularmente vingativo, disse. Numa ocasião anterior, um político importante que insistiu em fazer a corte a Angie perdeu a sua posição no governo, a saúde e a fortuna. O homem, desesperado, pagou a uns arruaceiros para que assassinassem o feiticeiro mas estes não conseguiram fazê-lo porque os machetes se derretiam como manteiga nas mãos deles, acrescentou.

Talvez Mbembelé tenha ficado impressionado com a história, mas Kate não conseguiu sabê-lo porque a sua expressão era impenetrável atrás das lentes espelhadas.

- À tarde, Sua Majestade o rei Kosongo dará uma festa em honra da mulher e do marfim que os pigmeus trarão - informou o militar.

- Desculpe, comandante... não é proibido traficar com marfim? - perguntou Kate.

- O marfim e tudo o que aqui existe pertence ao rei. Entendido, mulher velha?

- Entendido, comandante.

 

Entretanto, Nadia, Alexander e os outros levavam a cabo os preparativos para a tarde. Angie não pôde participar, como queria, porque quatro jovens esposas do rei vieram buscá-la e levaram-na ao rio, onde a acompanharam num banho demorado, vigiadas pelo velho da cana de bambu. Quando este fez tenções de ministrar uns açoites preventivos à futura mulher do seu amo, Angie atirou-lhe um sopapo à mandíbula que o deixou deitado na lama. Depois partiu a cana contra o seu joelho volumoso e atirou-lhe os bocados à cara advertindo-o de que, da próxima vez que lhe levantasse a mão, o mandaria reunir-se com os seus antepassados. O ataque de riso das quatro raparigas foi tal que tiveram de sentar-se porque não se sustinham nas pernas. Admiradas, apalparam os músculos de Angie e compreenderam que se aquela robusta dama entrasse para o harém, as suas vidas dariam possivelmente uma reviravolta positiva. Talvez Kosongo tivesse finalmente encontrado um adversário à sua altura.

Entretanto Nadia instruiu Jena, a mulher de Beyé-Dokou, sobre a forma de usar a resina para inutilizar as espingardas. Assim que a mulher compreendeu o que se esperava dela, partiu com os seus passinhos de criança na direcção da caserna dos soldados, sem fazer perguntas ou comentários. Era tão pequena e insignificante, tão silenciosa e discreta, que ninguém se apercebeu do brilho feroz de vingança nos seus olhos castanhos.

O Irmão Fernando inteirou-se por Nzé do destino dos missionários desaparecidos. Embora já suspeitasse, o choque de ver os seus receios confirmados foi violento. Os missionários tinham chegado a Ngoubé com a intenção de espalhar a sua fé e nada conseguiu dissuadi-los, nem ameaças, nem o clima infernal, nem a solidão em que viviam. Kosongo manteve-os isolados mas, pouco a pouco, foram ganhando a confiança de algumas pessoas, o que acabou por atrair a fúria do rei e de Mbembelé. Quando começaram a opor-se abertamente aos abusos sofridos pela população e a interceder pelos escravos pigmeus, o comandante colocou-os com os seus bens numa canoa e enviou-os rio abaixo mas, uma semana mais tarde, os irmãos regressaram mais determinados que nunca. Poucos dias depois desapareceram. A versão oficial foi que nunca tinham estado em Ngoubé. Os soldados queimaram as suas escassas posses e foi proibido mencionar os seus nomes. No entanto, não era um mistério para ninguém que os missionários tinham perecido assassinados e que os seus corpos foram atirados ao poço dos crocodilos. Não restou nada deles.

- São mártires, verdadeiros santos, nunca serão esquecidos - prometeu o Irmão Fernando, limpando as lágrimas que banhavam a sua face magra.

Por volta das três da tarde, Angie Ninderera regressou. Quase não a reconheceram. Vinha penteada com uma torre de tranças e contas de ouro e vidro que chegava ao tecto, tinha a pele a brilhar de óleo, estava envolta numa túnica larga de cores atrevidas e ostentava pulseiras de ouro nos braços, do pulso ao cotovelo, e sandálias de pele de cobra. A sua entrada encheu a palhota.

- Parece a Estátua da Liberdade! - comentou Nadia, encantada.

- Jesus! O que lhe fizeram, mulher! - exclamou, horrorizado, o missionário.

- Nada que não possa tirar-se, Irmão - replicou ela e, fazendo tilintar as pulseiras de ouro, acrescentou: - Com isto penso comprar uma frota de aviões.

- Se conseguir fugir de Kosongo.

- Fugiremos todos, Irmão - sorriu ela, bastante segura de si.

- Nem todos. Eu ficarei para substituir os irmãos que foram assassinados - replicou o missionário.

 

Os festejos começaram por volta das cinco da tarde, quando o calor diminuiu um pouco. Entre a população de Ngoubé reinava um clima de grande tensão. A mãe de Nzé tinha posto a correr entre os bantos que Nana-Asante, a rainha legítima, tão chorada pelo seu povo, estava viva. Espalhou também que os estrangeiros pensavam ajudar a rainha a recuperar o trono e que essa seria a única oportunidade que teriam para se livrarem de Kosongo e de Mbembelé. Até quando iriam permitir que recrutassem os seus filhos para os transformarem em assassinos? Viviam vigiados e sem liberdade para se moverem ou pensarem, cada vez mais pobres. Kosongo levava tudo o que produziam; enquanto ele acumulava ouro, diamantes e marfim, a restante população não dispunha nem de vacinas. A mulher falou discretamente com as filhas, estas com as amigas e, em menos de uma hora, a maior parte dos adultos partilhava a mesma inquietação. Não se atreveram a contar com a participação dos guardas, mesmo que estes fossem membros das suas próprias famílias, porque não sabiam como iriam reagir. Mbembelé fizera-lhes uma lavagem ao cérebro e mantinha-os dominados.

A angústia era maior entre as mulheres pigmeias porque nessa tarde terminava o prazo que lhes permitiria salvar os filhos. Os maridos conseguiam sempre chegar a tempo com os dentes de elefante, mas agora alguma coisa mudara. Nadia deu a Jena a fantástica notícia de que tinham recuperado o amuleto sagrado, Ipemba-Afua, e de que os homens não viriam com o marfim mas com a determinação de enfrentarem Kosongo.Elas também teriam de lutar. Durante anos tinham suportado a escravidão julgando que, se obedecessem as familias, conseguiriam sobreviver, mas a mansidão de pouco lhes servira e as suas condições de vida eram cada vez mais duras. Quanto mais aguentavam, pior era o abuso que sofriam. Tal como Jena explicou às companheiras, quando não houver mais elefantes no bosque, acabarão de qualquer forma por vender os filhos. Mais valia morrer na rebelião que viver na escravidão.                                                

O harém de Kosongo também estava alvoroçado, porque já se sabia que a futura mulher não tinha medo de nada e era quase tão forte como Mbembelé, que troçava do rei e tinha atordoado o velho com um único sopapo. As mulheres que não tiveram a sorte de ver a cena não podiam acreditar. Sentiam terror de Kosongo que as obrigara a casar-se com ele, e um respeito reverencial pelo velho de maus fígados encarregado de as vigiar. Algumas pensavam que em menos de três dias a arrogante Angie Ninderepensavam seria domada e transformada em mais uma das submissas esposas do rei, tal como acontecera com cada uma dela; mas as quatro jovens que a acompanharam ao rio e lhe viram os músculos e sua atitude, estavam convencidas de que não seria assim.

Os únicos que não se davam conta de que alguma coisa estava acontecendo eram precisamente aqueles que deviam estar mais bem informados: Mbembelé e o seu «exército». O poder subira-lhes à cabeça e sentiam-se invencíveis. Haviam criado seu próprio inferno, onde se sentiam confortáveis e, como nunca tinham sido desafiados, descuidaram-se. 

Por ordem de Mbembelé, as mulheres da aldeia encarregaram-se dos preparativos para o casamento do rei. Decoraram a praça com uma centena de archotes e arcos feitos com ramos de palmeira, amontoaram pirâmides de fruta e cozinharam um banquete com o que tinham à mão: galinhas, ratazanas, lagartos, antílope, mandioca e milho. As latas com vinho de palma começaram a circular cedo entre os guardas, mas a população civil absteve-se de beber, tal como instruíra a mãe de Nzé.

Estava tudo pronto para a dupla cerimónia do casamento real e para a entrega do marfim. A noite ainda não tinha caído mas os archotes já ardiam e o ar estava impregnado do cheiro a carne assada. Sob a «árvore das palavras» perfilavam-se os soldados de Mbembelé e as personagens da sua patética corte. A população de Ngoubé agrupava-se de ambos os lados da praceta e os guardas bantos vigiavam nos seus postos, armados com machetes e cacetes. Para os visitantes estrangeiros tinham arranjado banquinhos de madeira. Joel González tinha as suas máquinas fotográficas preparadas e os restantes mantinham-se alerta, preparados para agir quando chegasse o momento. A única que estava ausente era Nadia.

Num lugar de honra sob a árvore Angie Ninderera esperava, impressionante com a sua túnica nova e os seus enfeites de ouro. Não parecia minimamente preocupada, apesar de muitas coisas poderem correr mal nessa tarde. Quando Kate lhe falou dos seus receios pela manhã, Angie replicou que ainda não tinha nascido o homem que conseguisse assustá-la e acrescentou que Kosongo ia ver quem era ela.

- Depressa o rei me irá oferecer todo o ouro que tem para que eu me vá embora para bem longe - riu-se.

- A menos que te atire para o poço dos crocodilos - resmungou Kate, bastante nervosa.

Quando os caçadores chegaram à aldeia com as redes e as lanças, mas sem os dentes de elefante, os habitantes da aldeia compreenderam que a tragédia já tinha começado e que nada conseguiria detê-la. Um longo suspiro saiu de todos os peitos e percorreu a praça; de uma certa maneira as pessoas sentiram-se aliviadas. Qualquer coisa era melhor do que continuar a suportar a horrível tensão daquele dia. Os guardas bantos, perplexos, rodearam os pigmeus esperando instruções do seu chefe, mas o comandante não estava ali.

Decorreu meia hora durante a qual a angústia dos presentes aumentou até níveis insuportáveis. Os bidões de bebida circulavam entre os jovens guardas, que tinham os olhos injectados e se mostravam loquazes e desorganizados. Um dos Irmãos do Leopardo ladrou-lhes alguma coisa e eles, de imediato, deixaram os recipientes de vinho no chão e perfilaram-se por alguns minutos, mas a disciplina não durou muito.

Um rufar marcial de tambores anunciou por fim a chegada do rei. Abria a marcha a boca real, acompanhado por um guarda com uma cesta cheia de pesadas jóias de ouro de oferta para a noiva. Kosongo podia mostrar-se generoso em público porque, assim que Angie passasse a fazer parte do harém, as jóias voltariam ao seu poder. Seguiam-no as mulheres cobertas de ouro e o velho que as vigiava, com a cara inchada e quatro dentes soltos dançando-lhe na boca. Notava-se uma mudança evidente na atitude das mulheres, já não se comportavam como ovelhas mas como uma manada de animadas zebras. Angie fez-lhes um gesto e elas responderam com grandes sorrisos de cumplicidade.

Atrás do harém iam os carregadores levando em andas a plataforma sobre a qual ia Kosongo sentado no cadeirão francês. Ostentava o mesmo traje, com aquele chapéu impressionante e a cortina de contas a tapar-lhe a cara. O manto parecia chamuscado nalguns lugares mas em bom estado. A única coisa que faltava era o amuleto dos pigmeus preso ao ceptro. No seu lugar havia um osso semelhante que, à distância, podia passar por Ipemba-Afua. Ao rei não convinha admitir que lhe tinham roubado o objecto sagrado. Além do mais, tinha a certeza de que não precisava do amuleto para controlar os pigmeus que considerava criaturas miseráveis.

O cortejo real parou no centro da praça, para que ninguém deixasse de admirar o soberano. Antes que os carregadores levassem o estrado para o seu lugar sob a «árvore das palavras», a boca real perguntou aos pigmeus pelo marfim. Os caçadores avançaram e a população inteira pôde verificar que um deles trazia o amuleto sagrado, Ipemba-Afua.

- Acabaram-se os elefantes. Não podemos trazer mais dentes. Agora queremos as nossas mulheres e os nossos filhos. Vamos voltar para o bosque - participou Beyé-Dokou sem que a voz lhe tremesse.

Um silêncio sepulcral recebeu este pequeno discurso. A possibilidade de uma rebelião dos escravos não tinha ocorrido ainda a ninguém. A primeira reacção dos Irmãos do Leopardo foi matar a tiros o grupo de homenzinhos, mas Mbembelé não estava com eles para dar a ordem e o rei ainda não reagira. A população estava perplexa porque a mãe de Nzé não tinha dito nada a respeito dos pigmeus. Durante anos, os bantos beneficiaram do trabalho dos escravos e não lhes convinha perdê-los, mas compreenderam que se quebrara o equilíbrio anterior. Pela primeira vez sentiram respeito por aqueles seres, os mais pobres, indefesos e vulneráveis, que revelavam uma coragem incrível.

Kosongo chamou o seu mensageiro com um gesto e murmurou-lhe alguma coisa ao ouvido. A boca real deu ordem para trazerem as crianças. Seis guardas dirigiram-se para um dos currais e reapareceram pouco depois conduzindo um grupo miserável: duas mulheres de idade, vestidas com saias de ráfia, cada uma delas com bebés ao colo, rodeadas por crianças de várias idades, minúsculas e aterrorizadas. Quando viram os pais, algumas quiseram correr na sua direcção mas foram impedidas pelos guardas.

- O rei tem de negociar, é o seu dever. Vocês sabem o que acontece se não trazem marfim - anunciou a boca real.

Kate Cold não conseguiu suportar mais a angústia e, apesar de ter prometido a Alexander que não ia intervir, correu até ao centro da praceta e postou-se diante da plataforma real que estava ainda sobre os ombros dos carregadores. Sem se lembrar do protocolo que a obrigava a ajoelhar-se, acusou Kosongo aos gritos, recordando-lhe que eram jornalistas internacionais e que informariam o mundo dos crimes contra a humanidade que se cometiam nesta aldeia. Não conseguiu acabar porque dois soldados armados de espingardas a levantaram pelos braços. A velha escritora continuou a discutir enquanto a levavam, esperneando no ar, na direcção do poço dos crocodilos.

O plano traçado com tanto cuidado por Nadia e Alexander desmoronou-se numa questão de minutos. Tinham atribuído uma missão a cada membro do grupo, mas a intervenção de Kate a despropósito espalhou o caos entre os amigos. Felizmente, também os guardas e a restante população estavam confusos.

O pigmeu designado para disparar sobre o rei a ampola de anestésico e que se tinha mantido escondido entre as palhotas, não pôde esperar o melhor momento para o fazer. Pressionado pelas circunstâncias, levou a zarabatana à boca e soprou, mas a injecção destinada a Kosongo bateu no peito de um dos carregadores que seguravam na plataforma. O homem sentiu uma picada de abelha, mas não tinha uma mão livre para afugentar o suposto insecto. Manteve-se de pé durante uns instantes e, de súbito, dobraram-se-lhe os joelhos e caiu inconsciente. Os seus companheiros não estavam preparados e o peso tornou-se insustentável. A plataforma inclinou-se e o cadeirão francês escorregou para o chão. Kosongo deu um grito tentando equilibrar-se e por uma fracção de segundo ficou suspenso no ar, aterrando depois, enredado no manto, com o chapéu inclinado e bramando de raiva.

Angie Ninderera decidiu que tinha chegado o momento de improvisar, uma vez que o plano original estava arruinado. Em quatro passadas chegou junto do rei caído, com duas palmadas afastou os guardas que tentaram detê-la e, com um dos seus longos gritos de índio comanche, agarrou no chapéu e arrancou-o da cabeça real.

O acto de Angie foi tão inesperado e tão temerário que as pessoas ficaram paralisadas, como numa fotografia. A terra não tremeu quando os pés do rei pousaram sobre ela. Com os seus gritos de raiva ninguém ficou surdo, não caíram pássaros mortos do céu nem o bosque se agitou em estertores de agonia. Ao ver o rosto de Kosongo pela primeira vez ninguém ficou cego, apenas surpreendido. Quando caiu o chapéu e a cortina, todos puderam ver a cabeça inconfundível do comandante Maurice Mbembelé.

- Bem dizia Kate que vocês se pareciam demasiado! - exclamou Angie.

Nessa altura os soldados tinham reagido e correram a rodear o comandante, mas nenhum se atreveu a tocá-lo. Até os homens que levavam Kate para a morte largaram a escritora e voltaram a correr para junto do chefe, mas também eles não ousaram ajudá-lo. Por fim, Mbembelé conseguiu livrar-se do manto e levantou-se de um salto. Era a própria imagem da fúria, coberto de suor, com os olhos arregalados, deitando espuma pela boca, rugindo como uma fera. Levantou o seu poderoso punho com a intenção de acertar em Angie, mas esta já estava fora do seu alcance.

Beyé-Dokou escolheu esse momento para avançar. Exigia-se uma coragem imensa para desafiar o comandante em tempos normais; fazê-lo numa altura destas, quando estava indignado, era de uma temeridade suicida. O pequeno caçador parecia insignificante diante do descomunal Mbembelé, que se erguia como uma torre diante dele. Olhando para cima, o pigmeu convidou o gigante a bater-se num combate singular.

Um murmúrio de assombro percorreu a aldeia. Ninguém conseguia acreditar no que estava a acontecer. As pessoas avançaram, agrupando-se atrás dos pigmeus, sem que os guardas, tão pasmados como a restante população, conseguissem intervir.

Mbembelé vacilou, perplexo, enquanto as palavras do escravo lhe penetravam no cérebro. Quando finalmente compreendeu o enorme atrevimento que tal desafio implicava, deu uma gargalhada estrepitosa, que se prolongou em vagas durante alguns minutos. Os Irmãos do Leopardo imitaram-no, porque calcularam que era isso que se esperava deles, mas o riso saía-lhes forçado; o assunto tinha tomado um cariz demasiado grotesco e não sabiam como agir.

Podiam apalpar a hostilidade da população e pressentiam que os guardas bantos estavam confusos, prontos para se sublevarem.

- Evacuem a praça! - ordenou Mbembelé.

A noção de Ezenji ou duelo corpo a corpo não era novidade para ninguém em Ngoubé, porque dessa forma se castigavam os presos e de passagem criava-se uma diversão que o comandante adorava. A única diferença neste caso era Mbembelé não ser juiz e espectador, mas um dos participantes. Evidentemente, lutar contra um pigmeu não lhe causava qualquer preocupação, pretendia esmagá-lo como um verme, mas antes fá-lo-ia sofrer um pouco.

O Irmão Fernando, que se mantivera a uma certa distância, veio agora para a frente revestido de uma nova autoridade. A notícia da morte dos seus companheiros tinha reforçado a sua fé e a sua coragem. Não receava Mbembelé porque tinha a convicção de que os seres malévolos mais cedo ou mais tarde pagam pelas suas faltas e aquele comandante tinha ultrapassado largamente a sua quota de crimes; tinha chegado a hora de prestar contas.

- Eu farei de árbitro. Não podem usar armas de fogo. Que armas escolhem: lança, faca ou machete? - perguntou.

- Nada disso. Lutaremos sem armas, corpo a corpo - replicou o comandante com uma careta feroz.

- Está bem - aceitou Beyé-Dokou sem hesitar.

Alexander apercebeu-se de que o seu amigo se julgava protegido pelo fóssil; não sabia que este só servia de escudo contra armas cortantes e que não o salvaria da força sobre-humana do comandante, que podia esquartejá-lo só com as mãos. Levou o Irmão Fernando à parte para suplicar-lhe que não aceitasse aquelas condições, mas o missionário respondeu que Deus velava pela causa dos justos.

- Beyé-Dokou está perdido numa luta corpo a corpo! O comandante é muito mais forte! - exclamou Alexander.

- Também o touro é mais forte que o toureiro. O truque consiste em cansar a besta - revelou o missionário.

Alexander abriu a boca para responder e nesse instante compreendeu o que o Irmão Fernando tentava explicar-lhe. Saiu disparado disposto a preparar o amigo para a prova tremenda que teria de enfrentar.

 

Na outra extremidade da aldeia, Nadia tinha tirado a tranca e aberto o portão do curral onde mantinham as pigmeias fechadas. Dois caçadores, que não tinham entrado em Ngoubé com ou outros, aproximaram-se trazendo lanças que repartiram entre elas. As mulheres deslizaram como fantasmas por entre as palhotas e colocaram-se em redor da praça, escondidas pelas sombras da noite, preparadas para agir quando chegasse o momento. Nadia reuniu-se com Alexander, que estava instruindo Beyé-Dokou, enquanto os soldados desenhavam o ringue no lugar habitual.

- Não é preciso preocuparem-se com as espingardas, Jaguar. A única arma que não conseguimos inutilizar é a pistola que Mbembelé tem no cinto - disse Nadia.

- E os guardas bantos?

- Não sabemos como irão reagir, mas Kate teve uma ideia - replicou ela.

- Achas que devo dizer a Beyé-Dokou que o amuleto não o pode proteger de Mbembelé?

- Para quê? Isso fá-lo-ia perder a confiança - respondeu ela.

Alexander reparou que a voz da amiga soava quebrada, não parecia totalmente humana, era quase um grasnido. Nadia tinha os olhos vidrados, estava muito pálida e respirava agitadamente.

- O que se passa contigo, Águia? - perguntou.

- Nada. Toma cuidado contigo, Jaguar. Tenho de ir.

- Onde vais?

- Procurar ajuda contra o monstro de três cabeças, Jaguar.

- Lembra-te da previsão de Má Bangesé, não podemos separar-nos!

Nadia deu-lhe um beijo na testa e saiu a correr. Na excitação que reinava na aldeia, ninguém, excepto Alexander, viu a águia branca que se erguia por cima das palhotas e desaparecia em direcção ao bosque.

Numa esquina do quadrilátero, o comandante Mbembelé esperava. Estava descalço e vestia apenas os calções que trazia sob o manto real e um cinto largo de couro com a pistola. Esfregara o corpo com óleo de palma, os seus músculos prodigiosos pareciam esculpidos em rocha viva e a sua pele brilhava como obsidiana sob a luz vacilante dos cem archotes. As cicatrizes rituais dos braços e da cara acentuavam o seu aspecto extraordinário. Sobre o pescoço taurino, a cabeça rapada parecia pequena. As feições clássicas do rosto poderiam ter sido bonitas se não estivessem desfiguradas por uma expressão bestial. Apesar do ódio que aquele homem provocava, ninguém deixava de admirar o seu físico magnífico.

Em contraste, o homenzinho que estava na esquina oposta era um anão que dificilmente chegava à cintura do gigantesco Mbembelé. A sua figura desproporcionada e o rosto bolachudo, com o nariz chato e a testa curta, nada tinha de atraente, excepto a coragem e a inteligência que lhe brilhavam nos olhos. Tinha tirado a sua camisola amarela miserável e estava também praticamente nu e engraxado de óleo. Trazia ao pescoço um pedaço de rocha pendurado num cordel: o excremento mágico de dragão de Alexander.

- Um amigo meu, chamado Tensing, que conhece melhor que ninguém a arte da luta corpo a corpo, disse-me que a força do inimigo é também a sua fraqueza - explicou Alexander a Beyé-Dokou.

- O que quer isso dizer? - perguntou o pigmeu.

- A força de Mbembelé reside no seu tamanho e no seu peso. É como um búfalo, só músculos. Como pesa muito, não tem flexibilidade e cansa-se rapidamente. Além disso é arrogante, não está habituado a que o desafiem. Há muitos anos que não tem necessidade de caçar ou de lutar. Tu estás em melhor forma.

- E eu tenho isto - acrescentou Beyé-Dokou, acariciando o amuleto.

- Mais importante que isso, meu amigo, é que tu lutas pela tua vida e da tua família. Mbembelé fá-lo por gosto. É um rufião e, como todos os rufiões, é cobarde - replicou Alexander.

Jena, a mulher de Beyé-Dokou, aproximou-se do marido, deu-lhe um abraço rápido e disse-lhe umas palavras ao ouvido. Nesse instante, os tambores anunciaram o início do combate.

 

Em redor do quadrilátero, iluminado por archotes e pela Lua, estavam os soldados da Irmandade do Leopardo com as suas espingardas, atrás os guardas bantos e na terceira fila a população de Ngoubé, todos num perigoso estado de agitação. Por ordem de Kate, que não podia desperdiçar a oportunidade de escrever uma reportagem fantástica para a revista, Joel González preparava-se para fotografar o evento.

O Irmão Fernando limpou os óculos e tirou a camisa. O seu corpo ascético, muito magro e fibroso, era de um branco doentio. Vestido apenas com calças e botas, preparava-se para fazer de árbitro, apesar da sua pouca esperança de conseguir fazer respeitar as regras elementares de qualquer desporto. Compreendia que se tratava de uma luta mortal; a sua esperança consistia em evitar que o fosse. Beijou o escapulário que trazia ao pescoço e entregou-se a Deus.

Mbembelé lançou um rugido visceral e avançou fazendo tremer o chão com os seus passos. Beyé-Dokou aguardou-o imóvel, em silêncio, na mesma atitude alerta, mas calma, que utilizava durante a caça. Um punho de gigante saiu disparado como uma bala de canhão contra o rosto do pigmeu, que o esquivou por milímetros, O comandante inclinou-se para a frente, mas recuperou imediatamente o equilíbrio. Quando assentou o segundo golpe, o seu adversário já não estava ali, estava atrás. Voltou-se, furioso, e atirou-se para cima dele como uma fera brava, mas nenhum dos seus murros conseguia acertar em Beyé-Dokou, que dançava nas margens do ringue. Cada vez que o atacava, o outro escapulia-se.

Dada a escassa estatura do oponente, Mbembelé tinha de lutar para baixo, numa posição incómoda que lhe tirava força aos braços. Se tivesse conseguido acertar apenas um dos seus golpes, teria rebentado a cabeça de Beyé-Dokou, mas não conseguia acertar nenhum porque o outro era rápido como uma gazela e escorregadio como um peixe. Depressa o comandante começou a ofegar e o suor caía-lhe sobre os olhos, cegando-o. Calculou que devia moderar-se. Não derrotaria o outro num único round, como tinha pensado. O Irmão Fernando mandou fazer uma pausa e o robusto Mbembelé obedeceu imediatamente, retirando-se para o seu canto, onde o esperava um balde de água para beber e lavar o suor.

Na sua esquina, Alexander recebeu Beyé-Dokou, que chegou a sorrir e dando passinhos de dança, como se se tratasse de uma festa. Isso aumentou a raiva do comandante, que o observava do outro lado lutando para recuperar as forças. Beyé-Dokou não parecia ter sede, mas aceitou que lhe deitassem água pela cabeça.

- O teu amuleto é muito mágico; é o mais mágico que existe depois de Ipemba-Afua - disse, muito satisfeito.

- Mbembelé é como um tronco de árvore, custa-lhe muito dobrar a cintura, por isso não consegue bater para baixo - explicou-lhe Alexander. - Vais muito bem, Beyé-Dokou, mas tens de o cansar mais.

- Já sei. É como o elefante. Como vais caçar o elefante se não o cansares primeiro?

Alexander achou que a pausa era muito curta, mas Beyé-Dokou estava a saltar de impaciência e assim que o Irmão Fernando deu o sinal, dirigiu-se para o centro do ringue, a pular como um miudinho.

Para Mbembelé aquela atitude era uma provocação que não podia deixar passar. Esqueceu a sua resolução de moderar-se e arremeteu como um camião a toda a velocidade. É evidente que não encontrou o pigmeu pela frente e o impulso atirou-o para fora do ringue.

O Irmão Fernando pediu-lhe com firmeza que voltasse aos limites marcados pela cal. Mbembelé voltou-se para ele para o fazer pagar a ousadia de dar-lhe uma ordem, mas uma assobiadela cerrada da população de Ngoubé deteve-o. Não queria acreditar no que ouvia! Nunca, nem nos seus piores pesadelos, lhe passara pela cabeça a possibilidade de que alguém se atrevesse a contradizê-lo. Não chegou a pensar em formas de castigar os insolentes, porque Beyé-Dokou o chamou de volta ao ringue dando-lhe por trás um pontapé numa perna. Era o primeiro contacto entre os dois. Aquele macaco tocara-o! A ele! Ao comandante Maurice Mbembelé! Jurou que ia despedaçá-lo e depois o comeria, para dar uma lição àqueles pigmeus ariscos.

Qualquer pretensão de seguir as normas de um jogo limpo desapareceu nesse instante e Mbembelé perdeu por completo o controlo. Com um empurrão, atirou o Irmão Fernando a vários metros de distância e lançou-se para cima de Beyé-Dokou, que de repente se atirou para o chão. Encolhendo-se quase em posição fetal, apoiado apenas nas nádegas, o pigmeu começou a atirar pontapés curtos, que aterravam nas pernas do gigante. Por sua vez, o comandante tentava acertar-lhe de cima mas Beyé-Dokou girava como um pião, rodava para os lados e não havia maneira de atingi-lo. O pigmeu calculou o momento em que Mbembelé se preparava para lhe assestar um pontapé feroz e bateu na perna que o sustinha. A imensa torre humana do comandante caiu para trás e ficou como uma barata de costas, sem se poder levantar.

Nessa altura o Irmão Fernando já recuperara da pancada, tinha voltado a limpar as suas lentes grossas e estava outra vez em cima dos lutadores. A meio de uma gritaria tremenda dos espectadores, conseguiu fazer-se ouvir para proclamar o vencedor. Alexander saltou para a frente e levantou o braço de Beyé-Dokou, dando gritos de júbilo que todos os outros seguiam menos os Irmãos do Leopardo, que não conseguiam refazer-se da surpresa.

 

Nunca a população de Ngoubé tinha presenciado um espectáculo tão soberbo. Francamente, poucos se lembravam da origem da luta, estavam demasiado excitados perante o facto inconcebível de o pigmeu ter vencido o gigante. A história já fazia parte da lenda do bosque, não se cansariam de a contar de geração em geração. Como sempre acontece com a árvore caída, passado um segundo já estavam todos dispostos a fazer lenha com Mbembelé, a quem ainda minutos antes consideravam um semideus. A ocasião prestava-se a festejar. Os tambores começaram a soar com um vivo entusiasmo e os bantos começaram a dançar e a cantar, sem se aperceberem de que nesses minutos tinham perdido os seus escravos e de que o futuro se apresentava incerto.

Os pigmeus passaram por entre as pernas dos guardas e dos soldados, ocuparam o quadrilátero e levaram Beyé-Dokou em ombros. Durante essa explosão de euforia colectiva, o comandante Mbembelé conseguiu levantar-se, agarrou no machete de um dos guardas e lançou-se contra o grupo que levava Beyé-Dokou triunfalmente. Instalado sobre os ombros dos seus companheiros, este estava finalmente à altura do comandante.

Ninguém viu com clareza o que aconteceu a seguir. Alguns disseram que o machete escorregou nos dedos suados e gordurosos do comandante, outros juravam que a lâmina se deteve milagrosamente no ar a um centímetro do pescoço de Beyé-Dokou e depois voou pelo ar como se tivesse sido arrastada por um furacão. Qualquer que fosse a causa, o facto é que a multidão ficou paralisada e Mbembelé, dominado por um terror supersticioso, agarrou na faca de outro guarda e lançou-a. Não conseguiu apontar bem porque Joel González se tinha aproximado e tirou-lhe uma fotografia, cegando-o com o flash.

Então o comandante Mbembelé ordenou aos soldados que disparassem contra os pigmeus. A população dispersou-se a gritar. As mulheres arrastavam os filhos, os velhos tropeçavam, os cães corriam, as galinhas esvoaçavam e no fim só ficaram os pigmeus, os soldados e os guardas, indecisos entre um bando e outro. Kate e Angie foram a correr proteger as crianças pigmeias, que gritavam, amontoadas como cachorrinhos em volta das duas avós. Joel procurou refúgio debaixo da mesa, onde estava a comida do banquete nupcial e, daí, tirava fotografias sem tempo para focar. O Irmão Fernando e Alexander colocaram-se de braços abertos diante dos pigmeus, protegendo-os com o corpo.

Talvez alguns dos soldados tenham tentado disparar e vissem que as suas armas não funcionavam. Talvez outros, enojados com a cobardia do chefe que até esse momento respeitavam, se tenham recusado a obedecer-lhe. De qualquer forma, nenhum tiro se ouviu no pátio e passados instantes os dez soldados da Irmandade do Leopardo tinham a ponta de uma lança na garganta: as discretas mulheres pigmeias tinham entrado em acção.

Mbembelé, cego de raiva, não se apercebeu de nada disto. Sabia apenas que as suas ordens tinham sido ignoradas. Empunhou a pistola, apontou-a para Beyé-Dokou e disparou. Não soube que a bala não tinha acertado no alvo desviada pelo poder mágico do amuleto porque, antes de conseguir apertar o gatilho pela segunda vez, um animal desconhecido caiu-lhe em cima, um enorme gato preto, com a velocidade e a ferocidade de um leopardo e com os olhos amarelos de uma pantera.

 

Aqueles que viram a transformação do rapaz estrangeiro num felino preto compreenderam que aquela era a noite mais fantástica das suas vidas. A sua língua carecia de palavras para contar tantas maravilhas; nem sequer existia um nome para aquele animal nunca visto, um grande gato preto que se lançou a rugir contra o comandante. O hálito ardente da fera atingiu Mbembelé em pleno rosto e as garras cravaram-se-lhe nos ombros. Podia ter eliminado o felino com um tiro, mas o terror paralisou-o porque se deu conta de que estava perante um facto sobrenatural, um acto prodigioso de feitiçaria. Libertou-se do abraço fatal do jaguar batendo-lhe com ambos os punhos e, desesperado, desatou a correr para o bosque, seguido pela besta. Desapareceram ambos na escuridão, perante o assombro daqueles que presenciaram a cena.

Tanto a população de Ngoubé como os pigmeus viviam numa realidade mágica, rodeados de espíritos, sempre receosos de violar um tabu ou de cometer uma ofensa que pudesse pôr em movimento forças ocultas. Julgavam que as doenças eram causadas pela feitiçaria e que, por isso, se curavam da mesma maneira; que não se podia caçar ou ir de viagem sem uma cerimónia para aplacar os deuses; que a noite era povoada por demónios e o dia por fantasmas, que os mortos se convertem em seres carnívoros. Para eles, o mundo físico era muito misterioso e a própria vida um sortilégio. Tinham visto - ou julgavam ter visto - muitas manifestações de bruxaria, por isso não consideravam impossível que uma pessoa se transformasse numa fera. Podia haver duas explicações: Alexander era um feiticeiro muito poderoso ou então era o espírito de um animal que assumira temporariamente a forma do rapaz.

A situação era muito diferente para o Irmão Fernando que estava ao pé de Alexander quando este encarnou no seu animal totémico. O missionário, que se considerava um europeu racional, uma pessoa com educação e cultura, viu o que acontecera mas a sua mente não conseguiu aceitá-lo. Tirou os óculos e limpou-os nas calças.

- Definitivamente, tenho de mudar as lentes - resmungou, esfregando os olhos. O facto de Alexander ter desaparecido no mesmo instante em que aquele gato enorme saiu do nada podia ter muitas outras explicações: era de noite, na praça reinava uma confusão incrível, a luz dos archotes era incerta e ele próprio estava num estado emocional alterado. Não tinha tempo a perder em conjecturas inúteis, havia muita coisa a fazer, decidiu. Os pigmeus - homens e mulheres - mantinham os soldados ameaçados pelas pontas das suas lanças e imobilizados pelas redes; os guardas bantos hesitavam entre atirar as armas para o chão ou intervir para ajudar os chefes; as pessoas da aldeia estavam amotinadas; havia um clima de histeria que podia degenerar num massacre se os guardas ajudassem os soldados de Mbembelé.

Alexander regressou alguns minutos depois. Só a expressão estranha do rosto, com os olhos incandescentes e os dentes à mostra, indicava o que tinha acontecido. Kate foi ao seu encontro muito excitada.

- Não vais acreditar no que aconteceu, filho! Uma pantera negra saltou para cima de Mbembelé! Espero que o tenha devorado, é o mínimo que merece.

- Não era uma pantera mas um jaguar, Kate. Não o comeu mas pregou-lhe um bom susto.

- Como sabes?

- Quantas vezes tenho de dizer-te que o meu animal totémico é o jaguar, Kate?

- Outra vez com a mesma obsessão, Alexander! Terás de ir a um psiquiatra quando regressarmos à civilização. Onde está Nadia? - Já vem.

 

Na meia hora seguinte o delicado equilíbrio de forças na aldeia foi-se definindo, graças em boa parte ao Irmão Fernando, a Kate e a Angie. O primeiro conseguiu convencer os soldados da Irmandade do Leopardo a render-se, se quisessem sair com vida de Ngoubé, porque as suas armas não funcionavam, tinham perdido o comandante e estavam rodeados por uma população hostil.

Entretanto, Kate e Angie tinham ido à palhota buscar Nzé e, com a ajuda dos familiares do ferido, transportaram-no numa padiola improvisada. O pobre homem ardia de febre, mas dispôs-se a colaborar quando a mãe lhe explicou os acontecimentos dessa tarde. Colocaram-no num local visível e, com uma voz fraca mas clara, falou aos seus companheiros incitando-os a sublevar-se. Não precisavam de ter medo, Mbembelé já não estava ali. Os guardas queriam voltar a uma vida normal junto das famílias, mas sentiam um terror atávico do comandante e estavam habituados a obedecer à sua autoridade. Onde estava? Tinha sido devorado pelo espectro do felino negro? Se dessem ouvidos a Nzé e o comandante voltasse, acabariam no poço dos crocodilos. Não acreditavam que a rainha Nana-Asante estivesse viva e, mesmo que assim fosse, o seu poder não se comparava ao de Mbembelé.

Uma vez reunidos com as suas familias, os pigmeus consideraram que tinha chegado o momento de regressarem ao bosque, de onde não pensavam voltar a sair. Beyé-Dokou vestiu a sua camisola amarela, agarrou na sua lança e aproximou-se de Alexander para lhe devolver o fóssil que, conforme acreditava, o tinha salvo de ser esmagado por Mbembelé. Os outros caçadores também se despediram emocionados, sabendo que nunca mais voltariam a ver aquele amigo prodigioso com o espírito de um leopardo. Alexander deteve-os.

Não podiam partir ainda, disse-lhes. Explicou que não estariam a salvo mesmo que se dirigissem para a selva mais profunda, onde nenhum outro ser humano conseguia sobreviver. Fugir não era a solução uma vez que, mais cedo ou mais tarde, seriam apanhados ou necessitariam do contacto com o resto do mundo. Tinham de acabar com a escravatura e de voltar a ter relações cordiais com as pessoas de Ngoubé, tal como antigamente. Para isso tinham de retirar o poder a Mbembelé e afastá-lo para sempre da região juntamente com os seus soldados.

Por outro lado, as mulheres de Kosongo, que tinham vivido como prisioneiras no harém desde os catorze ou quinze anos, tinham-se amotinado e, pela primeira vez, desfrutavam do prazer de ser jovens. Sem ligar nenhuma aos assuntos sérios que perturbavam a restante população, elas tinham organizado o seu próprio Carnaval; tocavam tambores, cantavam e dançavam; arrancavam os adornos de ouro dos braços, pescoços e orelhas e atiravam-nos ao ar, enlouquecidas pela liberdade.

A isto se dedicavam os habitantes da aldeia, todos na praça, cada grupo ocupado com os seus problemas, quando Sombe fez a sua entrada espectacular, acorrendo ao chamamento das forças ocultas, para impor a ordem, o castigo e o terror.

 

Uma chuva de faíscas, como fogo-de-artifício, anunciou a chegada do poderoso feiticeiro. Um grito colectivo recebeu a temida aparição. Sombe não se materializava há muitos meses e algumas pessoas acarinhavam a esperança de que tivesse partido definitivamente para o mundo dos demónios; mas ali estava o mensageiro do inferno, mais impressionante e furioso que nunca. As pessoas retrocederam, horrorizadas, e ele ocupou o centro da praça.

A fama de Sombe transcendia a região e tinha-se espalhado de aldeia em aldeia por uma boa parte de África. Diziam que era capaz de matar com o pensamento, de curar com um sopro, de adivinhar o futuro, de controlar a natureza, de alterar os sonhos, de mergulhar os mortais num sonho sem retorno e de comunicar com os deuses. Proclamavam também que era invencível e imortal, que podia transformar-se em qualquer criatura da água, do céu ou da terra, e que se metia dentro dos seus inimigos e os devorava a partir de dentro, bebendo-lhes o sangue, pulverizando-lhes os ossos e deixando apenas a pele, que depois enchia com cinza. Dessa forma criava zombis, ou mortos-vivos, cujo horrível destino era servir-lhe de escravos.

O bruxo era gigantesco e parecia ter o dobro da estatura devido ao traje incrível que ostentava. Cobria a cara com uma máscara em forma de leopardo, sobre a qual tinha, como um chapéu, um crânio de búfalo com grandes chifres que, por sua vez, era coroado por um penacho de ramos, como se uma árvore lhe brotasse da cabeça. Nos braços e nas pernas tinha adornos de dentes e garras de feras, ao pescoço colares de dedos humanos e à cintura uma série de fetiches e cabaças com poções mágicas. Estava coberto por tiras de pele de diferentes animais, tesas de sangue seco.

Sombe chegou com a atitude de um diabo vingador, decidido a impor a sua própria forma de injustiça. A população banto, os pigmeus e até os soldados de Mbembelé renderam-se sem uma ameaça de resistência; encolheram-se, tentando desaparecer e dispuseram-se a obedecer às ordens de Sombe. O grupo de estrangeiros, imobilizado de espanto, viu como o aparecimento do bruxo destruía a frágil harmonia que começava a conseguir-se em Ngoubé.

O feiticeiro, agachado como um gorila, apoiando-se nas mãos e rugindo, começou a girar cada vez mais depressa. De repente parava, apontava para alguém com um dedo e imediatamente essa pessoa caía ao chão, num transe profundo, tremendo com terríveis estertores de epiléptico. Outros ficavam rígidos, como estátuas de granito, outros começavam a sangrar do nariz, da boca e dos ouvidos. Sombe voltava à sua rotina de girar como um pião, parar e fulminar alguém com o poder de um gesto. Em poucos minutos havia uma dúzia de homens e mulheres contorcendo-se por terra, enquanto a restante população guinchava de joelhos, comia terra, pedia perdão e jurava obediência.

Um vento inexplicável passou como um tufão pela aldeia e, com um sopro, arrancou a cobertura das palhotas, tudo o que estava em cima da mesa do banquete, os tambores, os arcos de palma e metade das galinhas. A noite iluminou-se com uma tempestade de raios e do bosque chegou um coro de horríveis lamentos. Centenas de ratazanas espalharam-se como uma peste pela praça, desaparecendo imediatamente mas deixando uma fetidez mortal no ar.

De súbito, Sombe saltou para uma das fogueiras, onde tinham assado a carne do jantar, e começou a dançar entre as brasas ardentes, agarrando-as com as mãos nuas e atirando-as sobre a multidão apavorada. A meio das chamas e do fumo surgiram centenas de figuras demoníacas, os exércitos do mal, que acompanharam o bruxo na sua dança sinistra. Da cabeça do leopardo coroada de chifres emergiu um vozeirão cavernoso gritando os nomes do rei deposto e do comandante vencido, que as pessoas, histéricas, hipnotizadas, repetiam em coro, demoradamente: Kosongo, Mbembelé, Kosongo, Mbembelé, Kosongo, Mbembelé...

 

E então, quando o feiticeiro já tinha a população da aldeia na mão e surgia triunfante da fogueira, com as chamas lambendo-lhe as pernas sem o queimar, um grande pássaro branco apareceu a sul e voou em círculos por cima da praça. Alexander deu um grito de alívio ao reconhecer Nadia.

Pelos quatro pontos cardeais entraram em Ngoubé as forças convocadas pela águia. Abriam o desfile os gorilas do bosque, pretos e magníficos, com os grandes machos à frente, seguidos pelas fêmeas com as suas crias. Depois vinha a rainha Nana-Asante, soberba na sua nudez e escassos farrapos, com o cabelo branco eriçado como um halo de prata, montada sobre um enorme elefante, tão velho como ela, marcado por cicatrizes de lanças nos lados.

Acompanhavam-na Tensing, o lama dos Himalaias, que acorrera ao chamamento de Nadia na sua forma astral, trazendo o seu bando de horrendos yetis em trajes guerreiros. Vinham também o xamã Walimai e o delicado espírito da sua mulher, à cabeça de treze prodigiosos animais mitológicos do Amazonas. O índio tinha voltado à sua juventude e transformara-se num belo guerreiro com o corpo pintado e enfeites de penas. E finalmente entrou na aldeia a vasta multidão luminosa do bosque: os antepassados e os espíritos de animais e plantas, milhares e milhares de almas, que iluminaram a aldeia como um sol do meio-dia e refrescaram o ar com uma brisa limpa e fria.

Àquela luz fantástica desapareceram os exércitos malignos de demónios e o feiticeiro ficou reduzido à sua verdadeira dimensão. Os seus andrajos de peles ensanguentadas, os colares de dedos, os fetiches, as garras e dentes, deixaram de ser arrepiantes e pareceram apenas um disfarce ridículo. O grande elefante montado pela rainha Nana-Asante deu-lhe uma pancada com a tromba que fez voar a máscara de leopardo com chifres de búfalo, expondo o rosto do bruxo. Todos puderam reconhecê-lo: Kosongo, Mbembelé e Sombe eram a mesma pessoa, as três cabeças do mesmo ogre.

A reacção das pessoas foi tão inesperada como tudo o que aconteceu nessa estranha noite. Um bramido longo e rouco agitou a massa humana. Os que estavam com convulsões, os que se tinham transformado em estátuas e os que sangravam, saíram do transe; os que estavam prostrados levantaram-se do chão e a multidão foi-se deslocando com uma determinação aterradora na direcção do homem que a tinha tiranizado. Kosongo-Mbembelé-Sombe retrocedeu, mas foi cercado em menos de um minuto. Uma centena de mãos agarraram-no, ergueram-no e levaram-no pelo ar até ao poço dos suplícios. Um grito apavorado agitou o bosque quando o pesado corpo do monstro de três cabeças caiu nas mandíbulas dos crocodilos.

Para Alexander seria muito difícil recordar os pormenores dessa noite, não conseguiria escrevê-los com a facilidade com que descrevera as suas aventuras anteriores. Teria sonhado? Foi dominado pela histeria colectiva dos outros? Ou viu realmente com os seus próprios olhos os seres convocados por Nadia? Não tinha resposta para essas perguntas. Depois, quando confrontou a sua versão dos factos com Nadia, ela ouviu-o em silêncio, deu-lhe um beijo rápido na cara e disse-lhe que cada um tem a sua verdade e todas são válidas.

As palavras da rapariga foram proféticas porque, quando quis averiguar o que acontecera com os outros membros do grupo, cada um lhe contou uma história diferente. O Irmão Fernando, por exemplo, só se lembrava dos gorilas e do elefante montado por uma velhota. Kate Cold julgou ver o ar cheio de seres fulgurantes, entre os quais reconheceu o lama Tensing, embora isso fosse impossível. Joel González decidiu esperar até poder revelar os seus rolos de fotografia para emitir uma opinião: o que não saísse nas fotografias não tinha acontecido. Os pigmeus e os bantos descreveram mais ou menos o que ele viu, desde o bruxo dançando entre as chamas, até aos antepassados voando em redor de Nana-Asante.

Angie Ninderera viu muito mais do que Alexander: viu anjos de asas translúcidas e bandos de pássaros coloridos, ouviu música de tambores, cheirou o perfume de uma chuva de flores e foi testemunha de vários outros milagres. E contou-o a Michael Mushaha quando este apareceu no dia seguinte numa lancha a motor à procura deles.

Uma das mensagens do rádio de Angie foi captada no seu acampamento e, de imediato, Michael pôs-se em movimento para os encontrar. Não conseguiu arranjar um piloto com coragem suficiente para ir ao bosque pantanoso onde os amigos estavam perdidos e decidiu apanhar um voo comercial para a capital, alugar uma lancha e subir o rio à procura deles sem outro guia além do seu instinto. Acompanhavam-no um funcionário do governo nacional e quatro gendarmes, que tinham por missão investigar o contrabando de marfim, diamantes e escravos.

Em poucas horas Nana-Asante impôs ordem na aldeia, sem que ninguém questionasse a sua autoridade. Começou por reconciliar a população banto com os pigmeus e recordar-lhes a importância de colaborarem. Os primeiros precisavam da carne fornecida pelos caçadores e os segundos não podiam viver sem os produtos que conseguiam em Ngoubé. Teria de obrigar os bantos a respeitar os pigmeus e conseguir que os pigmeus perdoassem os maus tratos sofridos.

- O que fará para os ensinar a viver em paz? - perguntou-lhe Kate.

- Começarei pelas mulheres, porque têm muita bondade interior - replicou a rainha.

 

Por fim, chegou o momento de partir. Os amigos estavam extenuados porque tinham dormido muito pouco e estavam todos, menos Nadia e Borobá, com dores de estômago. Além disso, nas últimas horas, Joel González fora picado por mosquitos dos pés à cabeça, inchou, ficou com febre e, de tanto se coçar, ficou em carne viva. Discretamente, para não parecer que estava a gabar-se, Beyé-Dokou ofereceu-lhe o pó do amuleto sagrado. Em menos de duas horas, o fotógrafo voltou à normalidade. Bastante impressionado, pediu que lhe dessem um bocadinho para curar o amigo Timothy Bruce da dentada do mandril, mas Mushaha informou-o de que este já estava totalmente refeito, esperando em Nairobi pelo resto da equipa. Os pigmeus usaram o mesmo pó prodigioso para tratarem Adrien e Nzé, que começaram a melhorar das feridas a olhos vistos. Ao comprovar os poderes do misterioso produto, Alexander atreveu-se a pedir-lhe um pouco para levar à mãe. Segundo os médicos, Lisa Cold tinha vencido o cancro completamente, mas o filho calculou que uns gramas daquele maravilhoso pó verde de Ipemba-Afua poderiam garantir-lhe uma longa vida.

Angie Ninderera decidiu livrar-se do medo dos crocodilos recorrendo à negociação. Debruçou-se com Nadia por cima da paliçada que protegia o poço e ofereceu um acordo aos grandes lagartos, que Nadia traduziu o melhor que pôde, apesar de os seus conhecimentos da linguagem dos sáurios ser mínima. Angie explicou-lhes que poderia matá-los a tiro, se lhe apetecesse, mas em vez disso faria com que fossem levados para o rio, onde seriam postos em liberdade. Em troca, exigia respeito pela sua vida. Nadia não tinha a certeza de que tivessem compreendido, cumprissem a sua palavra ou fossem capazes de estender o acordo aos restantes crocodilos africanos, mas preferiu dizer a Angie que, desde esse momento, já não tinha nada a temer. Não morreria devorada por sáurios; com um pouco de sorte, cumprir-se-ia o seu desejo de morrer num acidente de avião, garantiu-lhe.

As mulheres de Kosongo, agora viúvas alegres, quiseram oferecer os seus adornos de ouro a Angie, mas o Irmão Fernando interveio. Colocou uma manta no chão e obrigou as mulheres a depositar aí as suas jóias; a seguir atou as quatro pontas e arrastou-a até junto da rainha Nana-Asante.

- Este ouro e dois dentes de elefante é tudo o que temos em Ngoubé. A senhora saberá dispor deste capital - explicou-lhe.

- O que Kosongo me deu é meu! - alegou Angie, aferrando-se aos seus braceletes.

O Irmão Fernando fulminou-a com um dos seus olhares apocalípticos e estendeu as mãos. Contrariada, Angie tirou as jóias e entregou-as. Além disso teve de prometer-lhe que deixaria o rádio do avião, para poderem comunicar-se, e que faria pelo menos uma viagem de duas em duas semanas, às suas custas, para prover a aldeia de coisas essenciais. No início teria de lançá-las do ar, até conseguirem limpar uma área de bosque suficiente para uma pista de aterragem. Dadas as condições do terreno, não seria fácil.

Nana-Asante aceitou que o Irmão Fernando ficasse em Ngoubé e fundasse a sua missão e a sua escola, desde que chegassem a um acordo ideológico. Tal como as pessoas teriam de aprender a viver em paz, as divindades teriam de fazer a mesma coisa. Não havia motivos para que os diversos deuses e espíritos não partilhassem o mesmo espaço no coração humano.

 

                                 Dois anos mais tarde

Alexander Cold apareceu no apartamento da avó em Nova Iorque com uma garrafa de vodka para ela e um ramo de tulipas para Nadia. A amiga dissera-lhe que não poria flores no pulso ou no decote para a sua graduação, como todas as outras raparigas. Aqueles corsages pareciam-lhe medonhos. Soprava uma leve brisa que aliviava o calor de Maio em Nova Iorque mas mesmo assim as tulipas estavam desmaiadas. Pensou que nunca se habituaria ao clima dessa cidade e estava contente por não ter de o fazer. Frequentava a Universidade de Berkeley e, se os seus planos se cumprissem, obteria a sua licenciatura em medicina na Califórnia. Nadia acusava-o de ser muito comodista.

- Não sei como pensas praticar medicina nos sítios mais pobres da terra se não consegues viver sem o esparguete italiano da tua mãe e a tua prancha de surf - troçava.

Alexander passou meses a convencê-la das vantagens de estudar na mesma universidade que ele e, finalmente, conseguira-o. Em Setembro ela estaria na Califórnia e não seria necessário atravessar o continente para a ver.

Nadia abriu a porta e ele ficou com as tulipas murchas na mão e as orelhas vermelhas, sem saber o que dizer. Não se viam há seis meses e a jovem que apareceu no umbral era uma desconhecida. Passou-lhe pela cabeça que estava diante da porta errada, mas as suas dúvidas dissiparam-se quando Borobá lhe saltou para cima para o cumprimentar com abraços efusivos e dentadinhas. A voz da avó chamando por si chegou-lhe vinda do fundo do apartamento.

- Sou eu, Kate! - respondeu ele, ainda desconcertado.

Então Nadia sorriu-lhe e imediatamente voltou a ser a rapariga de sempre, que ele conhecia e amava, selvagem e dourada. Abraçaram-se, as tulipas caíram ao chão e ele rodeou-lhe a cintura com o braço e levantou-a com um grito de alegria, enquanto com a outra mão lutava para soltar-se do macaco. Nisto apareceu Kate Cold arrastando os pés, agarrou na garrafa de vodka que ele segurava precariamente e fechou a porta com um pontapé.

- Viste como Nadia está horrível? Parece a mulher de um mafioso - disse Kate.

- Diz-nos o que realmente pensas, avó - riu-se Alexander.

- Não me chames avó! Comprou o vestido nas minhas costas, sem me consultar! - exclamou ela.

- Não sabia que te interessavas pela moda, Kate - comentou Alexander, dando uma vista de olhos às calças deformadas e à camisola de algodão com papagaios que a avó vestia.

Nadia estava de saltos altos, enfiada num tubo de cetim preto, curto e sem alças. É preciso dizer a seu favor que não parecia minimamente afectada com a opinião de Kate. Deu uma volta completa para que Alexander a visse. Parecia muito diferente da miúda de calções e enfeitada de penas de que ele se lembrava. Teria de se habituar à mudança, pensou, embora esperasse que esta não fosse permanente; gostava muito da sua antiga Águia. Não sabia como comportar-se diante desta nova versão da amiga.

- Terás de passar pela vergonha de ir à graduação com este espantalho, Alexander - disse-lhe a avó apontando para Nadia. - Anda, quero mostrar-te uma coisa...

Levou os jovens até ao minúsculo e poeirento escritório, cheio de livros e documentos, onde escrevia. As paredes estavam cobertas de fotografias que a escritora acumulara nos últimos anos. Alexander reconheceu os índios do Amazonas posando para a Fundação Diamante; Dil Bahadur, Pema e o bebé de ambos no Reino do Dragão de Ouro; o Irmão Fernando na sua missão em Ngoubé; Angie Ninderera e Michael Mushaha montados num elefante, e muitos mais. Kate tinha emoldurado uma capa da revista International Geographic de 2OO2, que tinha ganho um prémio importante. A fotografia, tirada por Joel González num mercado em África, mostrava-o a ele, a Nadia e a Borobá enfrentando uma avestruz furibunda.

- Olha, filho, os três livros já estão publicados - disse Kate. - Quando li as tuas notas compreendi que nunca serás escritor, não tens olho para os pormenores. Talvez isso não seja um impedimento em medicina, podes ver que o mundo está cheio de médicos desajeitados. Mas em literatura é fatal - garantiu-lhe Kate;

- Não tenho olho e não tenho paciência, Kate, por isso te dei os meus apontamentos. Tu poderias escrever os livros melhor do que eu.

- Posso fazer quase tudo melhor do que tu, filho - riu-se ela, despenteando-lhe o cabelo com uma palmada.

Nadia e Alexander observaram os livros com uma estranha tristeza porque continham tudo o que lhes acontecera nos três anos prodigiosos de viagens e aventuras. Talvez no futuro não surgisse nada comparável ao que já tinham vivido, nada tão intenso nem tão mágico. Pelo menos era um consolo saber que naquelas páginas estavam preservadas as personagens, as histórias e as lições que tinham aprendido. Graças à escrita da avó nunca as esqueceriam. As memórias da águia e do jaguar estavam ali, em A Cidade dos Deuses Selvagens, O Reino do Dragão de Ouro e O Bosque dos Pigmeus...

 

 

                                                                  Isabel Allende

 

 

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