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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BOTEQUIM DA LIBERDADE / Fernando Dacosta
O BOTEQUIM DA LIBERDADE / Fernando Dacosta

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A ÚLTIMA GRANDE TERTÚLIA DE LISBOA QUE MARCOU CULTURAL E POLITICAMENTE VÁRIAS DÉCADAS PORTUGUESAS - TEVE LUGAR NO BOTEQUIM, BAR DO LARGO DA GRAÇA CRIADO E PROJECTADO POR NATÁLIA CORREIA.

Nele fizeram-se, desfizeram-se revoluções, governos, obras de arte, movimentos cívicos; por ele passaram presidentes da República, governantes, embaixadores, militares, juízes, revolucionários, heróis, escritores, poetas, artistas, cientistas, assassinos, loucos, amantes em madrugadas de vertigem, de desmesura.

Costa Gomes, Ramalho Eanes, Manuela Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio, Maria José Ritta, Francisco Sá Carneiro, Snu Abecassis, Maria de Lourdes Pintasilgo, Amália Rodrigues, José Saramago, Isabel da Nóbrega, José Cardoso Pires, Baptista-Bastos, José Craveirinha, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Ruth Escobar, José Aparecido de Oliveira, Melo Antunes, Otelo Saraiva de Carvalho, Vítor Alves, Laborinho Lúcio, D. Maria Pia, Maria João Pires, Eunice Muñoz estiveram sentados, e cúmplices, e divertidos na sua saleta de músicas e cetins, intrigas e exultações.

A magia do Botequim tornava-se, nas noites de festa, feérica. Como num iate de luxo, navegava-se delirantemente (é uma viagem assim que neste livro se propõe) em demanda de continentes venturosos, de ilhas de amores a encontrar.

O futuro foi ali como em nenhuma outra parte do País, festivamente antecipado nunca houve, nem por certo haverá nada igual entre nós.

 

 

 

 

Um pequeno Volvo escuro contorna o Largo da Graça, vidros abertos, música solta, e pára junto do Botequim, o mítico bar pontificado por Natália Correia.

Snu Abecassis, das mulheres mais sofisticadas de então, deixa o volante, dá a volta ao carro e retira um gigantesco ramo de rosas brancas, ajudada por Francisco Sá Carneiro, que a acompanha.

À porta, a anfitriã recebe-os. Do interior, vêm notas de piano, tinir de copos, odores de canela. Entre veludos, pratas, louças da Índia, flores, os convidados são acolhidos para uma Ceia da Poesia. Regularmente, festas do género dilatam-se ali, que os pretextos não faltam, nem a vontade - nem a necessidade de, através delas, compor receitas.

Início de estações do ano, celebração de obras culturais, passagem de datas angulares, concretização de avanços artísticos, políticos, ideológicos, científicos, humanistas, tudo merece comemoração e memória, alegria e partilha. Nunca tão minúsculo espaço foi tão gigantesco entre nós.

Com o avançar da noite, com o avançar dos anos, os grupos sucedem-se, diversificam-se, que imensos são, serão, os atraídos, os contagiados por aquelas noites - «noites brancas» lhes chamou a poetisa Júlia LeIlo.

Agora é um Boca de Sapo grená que se aproxima conduzido por Helena Cantos, figura de destaque pelas suas colecções camonianas (possui o único retrato existente do autor de Os Lusíadas) e pelos seus cozinhados (sobretudo doçarias) que Natália, sua amiga, «quase uma irmã», diviniza.

Logo se estendem mãos a tomar-lhe os tabuleiros cobertos de toalhas e perfumes, cuidadosamente imergidos para lá do balcão encimado por candeeiro de belíssimas campânulas coloridas.

Chegam, irão chegando, Maria de Lourdes Pintasilgo e Teresa Santa Clara Gomes, Eunice Muñoz, Maria João Pires, José Saramago e Isabel da Nóbrega, Helena Roseta e Fernanda Mestrinho, Luiz Francisco Rebello e Mariana Vilar; e depois Baptista-Bastos, e Otelo Saraiva da Carvalho, e MeIo Antunes, e Vítor Alves, e Mouta Liz.

Mais tarde emergirão José Manuel dos Santos, Carlos Avilez, Isabel de Castro, David Mourão-Ferreira, D. Maria Pia, Fefé (Fernando Ferreira da Costa, príncipe de uma tribo de São Tomé e professor de uma universidade de Lisboa); e mais tarde ainda, Rui de Sousa, Adalberto Alves, José Anes, Mello e Castro, Henrique Neto, Maria Lúcia Lepecki, Eduardo Luiz Cortezão, Laborinho Lúcio, António Vitorino de Almeida, Moisés Espírito Santo, Graça Lobo, António Vilhena, Ângela Almeida e tantos, tantos dos melhores que havia nesse tempo no País.

Ramalho Eanes e Manuela Eanes, Jorge Sampaio e Maria José Ritta serão presenças especiais, como Costa Gomes, Mário Soares, Amália Rodrigues, Zeca Afonso. De outros continentes passam José Craveirinha, Alda Espírito Santo, Lygia Fagundes Telles, José Aparecido de Oliveira, Dina Sfat, Nélida Piñon, Ruth Escobar. A todos Natália senta, sentará, com júbilo entre cristais e cetins, cenário arroxeado de envolvências inesquecíveis.

Jorge Brum do Canto, sempre exuberante, avisa Snu que os mínimos do Volvo estavam acesos. Ela sai a desligá­los, deixando Sá Carneiro a ouvir críticas de um militante (discordante) seu. No largo, cruza-se com José Cardoso Pires, acabado de estacionar (mal) o desamparado Mazda que há anos o traz do refúgio que conserva na Caparica.

«Então .. quando vem para a minha editora?», pergunta-lhe. «Irei com muito prazer, é uma questão de negociarmos», responde-lhe ele - ele mudaria, com efeito, para a D. Quixote, mas no tempo de Nelson de Matos, já Snu havia morrido.

Natália, que aparece à porta, taça de champanhe na mão, é abordada por um homem completamente entornado (não de champanhe) que a desafia: «Olha lá, essa pinga não presta, eu pago-te um copo de tinto, vem daí. Mas eu estou a conhecer a tua cara, quem és tu?»

Natália fica possessa: «Seu energúmeno, desapareça, não está em condições de falar com uma senhora!»

O energúmeno, rápido: «Mas tu és uma senhora?»

José Cardoso Pires fá-lo desarvorar. Snu observa a cena com ironia.

«Nunca tive paciência para bêbados», justifica-se a ofendida: «Fui muito traumatizada em criança pelos comportamentos do meu pai quando bebia».

O travar de um Honda Civic faz esquecer o incidente.

Isabel da Nóbrega desliga o motor e retoca o cabelo; a seu lado, José Saramago pousa o boné no banco traseiro e abre a porta. Saem sorridentes.

Ela encontrava-se no cume da sua carreira, tornada, pelo refrescante romance Viver com os Outros, uma das mais destacadas escritoras da época; ele, quase desconhecido, estava a quilómetros da internacionalização, do Nobel- e de Pilar.

Colaboravam ambos no suplemento literário do Diário de Lisboa, do qual Saramago seria, até ao 25 de Abril (quando transitou para o Diário de Notícias), editorialista. Discretamente, iniciara o romance Manual de Caligrafia, a que sucederam, depois do 25 de Novembro, Levantado do Chão e Memorial do Convento.

Os dois formavam, pela sua distinção e cultura, um par de destaque nos meios intelectuais oposicionistas, presença glamorosa em espectáculos, debates, lançamentos, recepções.

Alvo de um certo «racismo» intelectual (por não ser universitário, por não ter obra relevante), Saramago ascendia com dificuldade numa esquerda então bastante preconceituosa e arrogante. Valeu-lhe Isabel da Nóbrega, socialmente admirada, que o foi impondo e sofisticando, Pigmalião decisivo para o voo que os deuses a ele reservavam.

 

A magia do Botequim tornava-se, nas noites de festa, feérica.

Como num iate de luxo, navegava-se delirantemente em demanda de continentes venturosos (ilhas de amores) que nunca se encontravam.

«O importante não é alcançá-los, mas procurá-los», incitava Natália, sobre ondas de fantasia e desmesura.

As tertúlias proporcionam a «comunhão com pessoas de espírito e ousadia», vincará ela, «por isso são fundamentais para se evitar a cultura desvivenciada, pois só quando se está muito na vida se pode transmiti-la aos outros». As reverberações das músicas, das luzes, dos vinhos, dos fumos, tudo faziam possível, apetecível.

Portugal via chegar, com a liberdade, a sua hora, as profecias tocavam à porta, «bem-vindo, senhor Bandarra», «bem­vindo, senhor Pessoa», o futuro roçagava-nos a pele, bebia-se por cristais, cantava-se, exultava-se, acreditava-se.

No cenário da política e da cultura portuguesas das últimas décadas do século XX, o bar ocupou um espaço angular. Por ele, pelas suas fabulosas madrugadas, passaram projectos exaltantes de artes, de utopias, de convívios, de generosidades, de cumplicidades; pela sua saleta de músicas e cetins, estratégias de revoluções, de governos, de diplomacias, de socialismos, foram feitas, desfeitas, sem desânimo nem culpa.

Romances e filmes, peças e canções, viagens e homenagens, generais e presidentes, embaixadores e vadios, loucos e amantes, sentaram-se, saudaram-se às suas mesas sob a luz, a energia, a clarividência, a natalidade de Natália, que dele, Botequim, fez um casulo, um «sol nas noites e um luar nos dias» - título do seu último livro (colectânea) de poesia.

Só ela pressentiu que duas décadas depois os cisnes iriam deixar de cantar entre nós - que entre nós apenas restariam silêncios húmidos e frios.

Miradouro alado

Em certas noites, garante Natália, quando os garajaus cantam e o vento se detém, D. Sebastião, Camões, padre António Vieira, Garrett, Antero, Raul Brandão, Pascoaes, Pessoa, Florbela, Vitorino Nemésio, todos os que ela ama, evolam-se sem pressa, sem geografia, das suas cornucópias aladas e levitam sobre o largo do Botequim, entre sorrisos de pétalas e vibrações de maresias.

«Vamos celebrá-los!», incita ela, madrugada alta, caminhando em frente, para o miradouro da Graça, para a Lua que, convocada, retarda-se a desaparecer. O miradouro parece uma nave pousada no casario de Lisboa, nas linhas do Castelo, do Terreiro do Paço, da ponte, de Cacilhas, do Bugio, flutuando em ondulações de fremência cósmica.

Então Natália detém-se, abre as mãos e exclama: «Nós te saudamos ó Lua Quente, a misteriosa, a que se encontra entre a Lua Nova e a Lua Crescente.» Não dizia Quarto Minguante nem Quarto Crescente, «as hospedarias é que têm quartos, não a Lua!», ripostava.

Desconhecida de astrónomos, cosmólogos, astrólogos, essa misteriosa fase (a quinta) decorre num hiato de vinte horas, após a Lua Nova - daí a sua imperceptibilidade para os comuns. O seu tempo de duração pode ser dilatado pelos iniciados, capacidade (dizia) só acessível a criadores, a apaixonados, a assassinos. Shakespeare, que se lhe afeiçoou, deixou sucumbir Romeu e Julieta sob os seus eflúvios azuis, que as sombras da tragédia não ousaram coar.

Na noite que antecedeu Alcácer Quibir, fazia Lua Quente, em Arzila; como a fazia na véspera de as naus de Gama levantarem âncora, no Tejo; e na de 1 de Novembro e 1755, em Lisboa; e na de 25 de Abril de 1974; e ...

«É melhor não prosseguir, para não se ser imprudente», interrompia Natália.

Luar nos dias

Outras fases da Lua existem, incontáveis, segundo antiquíssimas civilizações orientais. Zodíacos primitivos apontam vinte e oito casas, uma para cada dia do seu ciclo, onde se acolhem «os falecidos de boa índole» antes de passarem à «segunda morte, a morte das almas, a morte que antecede a ressurreição».

Percebendo-nos perplexos, Natália especificará: «Há ainda a Lua Gibosa, a Lua Balsâmica e a Lua Cinérea, a Lua Azul, a Blue Moon imortalizada por Shakespeare em quinhentos e vinte e oito poemas.»

Quando Neil Armstrong, Edwin Aldrin e Michael Collins pousaram no nosso satélite (em 20 de Julho de 1969), foram seguidos por naves desconhecidas durante todo o tempo da expedição. Testemunham-no fotos que mostram, reflectida na viseira espelhada de Armstrong, a imagem nítida, magnífica, de um ovni - antes de os diligentes laboratórios da NASA a terem apagado.

Em visionamento restrito (ocorrido escassos anos após a alunagem), o adido militar dos Estados Unidos em Portugal passou-nos, top secret, um vídeo (subtraído, dizia, aos cofres do Pentágono) documentando-o.

Para excitação dos presentes, o filme revelava, ainda; a existência de discos voadores, que Hitler ultimava para vencer os Aliados. Os seus planos seriam enviados para os Estados Unidos quando estes, adiantando-se aos soviéticos, levaram da Alemanha, em segredo, Von Braun e os seus cientistas, artífices da espectacular viagem dos norte-americanos à Lua.

Com Natália Correia nem sempre havia fronteiras entre ficção e realidade.

 

Não se tornava fácil compreendê-la, nem amá-la. Fazê-lo, exigia sentimentos, disponibilidades especiais. Era um ser tocado pelo sagrado, um desses seres que não cabem no espaço que lhes foi destinado, nem no corpo, nem nas normas, nem nos modelos, nem nos sentimentos. Chegava a assustar.

Os que a não aguentavam, combatiam-na não pelas suas ideias, mas pelos seus tiques, não pela sua criação, mas pela sua distracção, tentando reduzi-la a anedotários de efeitos fáceis e falsos.

Ao mesmo tempo forte e desprotegida, imponente e indefesa, egoísta e generosa, arguta e ingénua, dissimulada e frontal, sentia-se, ante as coisas rasteiras (e as pessoas, e as acções), perdida; só as grandes a tocavam, galvanizando-a.

Então, toda ela ganhava golpe de asa, vertigem.

Era esplendoroso vê-la a entrar nos templos de chicote em punho, isto é, de palavra viva, zurzindo os vendilhões, os traficantes, os hipócritas, os videirinhos; era magnífico acompanhá­la nas suas estradas de Damasco em direcção à utopia, ao amor, à justiça, à criatividade, à elegância, levando pelo braço poetas e amantes, perseguidos e ostracizados, loucos e solitários.

Poeta, dramaturga, romancista, ensaísta, cronista, conferencista, deputada, oradora, editora, tradutora, Natália Correia marcou transversalmente várias gerações e identidades. A literatura (através da poesia, da ficção, do ensaio, do teatro), a comunicação social (dos jornais, da rádio, da TV; do cinema), a política (de intervenções parlamentares, de campanhas eleitorais, de comícios avulsos), o convívio (de colóquios, debates, simpósios, tertúlias), foram os campos onde se afirmou, se excepcionalizou.

«Cidadã irreverente, profundamente afectiva e independente, não se deixa nunca submeter pelo poder, benesses (mesmo camufladas) ou quaisquer grupos de pressão», caracterizá-la-á Manuela Eanes.

Teresa Sá e Melo, investigadora a quem ela muito procurava, via-a «ora clarividente, ora secreta», muitas vezes «difícil de traduzir em palavras».

«Escorraçava os petulantes e os débeis, mas amparava os fracos e fascinava-se com marginais. Não se vergava perante nenhuma fatalidade», precisará, certeira, Helena Roseta.

A ilha (Natália nasceu em São Miguel, Açores) imprimiu-lhe o gosto mágico pela vida. «Onde vos retiver a beleza de um lugar, há um deus que vos indica o caminho do espírito», advertia: «Ela é a mãe, é a fatalidade dos insulares.

Mesmo os mais desgarrados, como aparentava ser Antero, escolhem-na como túmulo, ou seja, berço para reviver.»

Energia fulgurante

Privilegiada pelo destino (com o talento, com a sedução), pelos íntimos (com o amor, com a entrega), pelos amigos (com a lealdade, com a dádiva), Natália viu a vida ir ter consigo, enleando-a, dilatando-a.

A paixão pelo superior adiantou-a, desde criança, ao seu meio. Entre a realidade que lhe coube partilhar e a ficção que lhe coube volte ar, foi ardendo nas margens da maior imprevisibilidade.

Dominou naturalmente a técnica da improvisação e da imposição, do convencimento e do envolvimento. Como todos os criadores de excepção, tinha a capacidade de se transfigurar, isto é, de fazer acreditar no que acreditava.

A admiração dos seguidores apaziguava-a, a vibração dos opositores revitalizava-a. Uma energia surpreendente parecia, com frequência, distendê-la, como se algo, que só ela vislumbrava, a impelisse - a palavra a quebrar indiferenças, a gerar fascínios, a disseminar ressonâncias.

Sedutora de gesto, fantasista de imaginação, Natália Correia cresceu distante e destacou-se, fulgurante; o fim da adolescência abriu-lhe o início de uma espiral que, em poucos anos, a projectou como um dos nossos grandes criadores e pensadores.

Em situações-limite, em fios de navalha, atingirá comportamentos de excepcionalidade, jogando-se inteira nas utopias de acreditar.

Apanhava como ninguém as coisas pela intuição, desenvolvia-as pela inteligência, comunicava-as pela crença - daí o singularíssimo fenómeno gerado à sua volta.

Paixão pelos rituais

Bate-se pela recuperação do sagrado, do politeísmo, do feminismo, do barroco, do diferente, e pelo repúdio da crucificação, do consumismo, do descontrolo demográfico, da arrogância indiferenciadora.

«Como atingir a paz com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas pela nossa fé na vitória sobre a fé dos outros?» interrogava-se.

Os grandes mitos portugueses encontraram nela uma celebrante incomum: o mito do Andrógino (o ser completo, uno e plural), do Desejado (o que contém a resistência, não a desistência), de Pedro e Inês (a paixão, a volúpia pela morte), da Ilha (o espaço da esfinge, da iniciação), do Espírito Santo (metáfora de um socialismo de raiz portuguesa), a todos dedicando obras próprias, reformuladas à dimensão do futuro.

As causas, as pessoas do coração e do sonho, e da fé, tinham-na do seu lado; as causas, as pessoas da manipulação, do utilitarismo, da serventia, conheciam-lhe a cólera, o chiste, a indignação. Sabia indignar-se com grandeza - e indignar os outros à sua altura.

Muitas vezes perdia a cabeça connosco e nós com ela.

Sufocava-nos. Muitas vezes apetecia-nos fugir. Não aguentávamos a sua lucidez, a sua exigência, o seu empenhamento, a sua implacabilidade. Muitas vezes tentámos matá-la em nós para sermos nós - até nisso nos ajudou. Era uma mulher inigualável. Nos caprichos, nos excessos, nas iras, nas premonições, nos exibicionismos, na sedução, na coragem, na esperança. Cantava, dançava, declamava, improvisava, discursava, polemizava como poucos entre nós alguma vez o fizeram, o somaram.

 

A zona da Graça - que o Botequim projectou para lá da cidade - é um bairro, como todos os típicos de Lisboa, luminoso e acre.

Quando não há acidentes que lhe quebrem a rotina (zaragatas de vizinhos, estampanço de automóveis, roubo de incautos, actos de poucas-vergonhas), a existência cumpre-se nele quente e pícara. As pastelarias enchem-se, as conversas cruzam-se, as coisas banais, televisão, doenças, carestia de vida, futebol, obras nas ruas, má-língua, generalizam-se.

O seu estilo de vida vem de muitas épocas e lugares, de árabes e judeus, de galegos e africanos, de senhores feudais e operários migrados, de ordens religiosas e sociedades secretas. Pela sua concentração, fez-se uma cebola sedimentada de condimentos picantes e saborosos - foi isso que levou Natália a abrir ali o Botequim.

A partir do seu centro destacam-se, harmonizam-se, palacetes aristocráticos e pátios populares, igrejas abertas (a da Senhora dos Passos, com meio milénio) e teatros fechados (o da Graça, fruto da paixão de Carlos Fernando), cadeias e feiras (da Ladra), ervanárias de oportunidade e restaurantes de luxo.

Na ilharga do Botequim dominam A Voz do Operário (património maçónico, republicano e revolucionário) e as «vilas», típicas habitações de um andar, varandim de ferro e frisos de azulejos, em becos de invulgar resguardo e convívio.

Fialho de Almeida, que habitava perto, dizia, cínico e snobe, que elas eram «cloacas sem beleza nem graça», a que «tarde ou cedo vai ser preciso deitar fogo». Ninguém de juízo lhe deu, felizmente (ele até queria arrasar Alfama, Mouraria, Castelo), ouvidos.

Duas grandes poetisas impuseram-se no local: Natália Correia e Sophia de Mello Breyner, frequentadora dele a primeira, moradora a segunda. Outros nomes, Gomes Leal, José Gomes Ferreira, José Rodrigues Miguéis, Alfredo Guisado, Leopoldo de Almeida, Manuel Mendes, Mário Cesariny, Mário Sério são-lhe referências irrecusáveis.

 

As divisões da casa onde Natália viveu e morreu eram harmoniosas, amplas, quinto andar sóbrio, sólido, paredes e decoração espessas, paralelo à Avenida da Liberdade, junto ao Marquês de Pombal.

Ecos de vozes no exterior, estalidos de madeiras no interior, reposteiros de veludo, estantes de vibrações, objectos de memórias, davam-lhe uma sedução inesquecível - a da passagem do tempo, da finitude.

«Um dia vim aqui visitar uns amigos e a sua atmosfera atraiu-me logo», conta-me. «Eles foram-se embora e este espaço esteve muito tempo devoluto, como que à espera de eu me casar e o alugar.»

Casou-se e alugou-o. Deixou o andar onde residia com a mãe, a irmã, uma criada, a menina Esmeralda, Vera Lagoa e o filho, e mudou-se.

Hóspede e amigo da mãe, Cardoso Mata, um bibliófilo afamado, ceder-lhe-ia a sua gigantesca biblioteca (avaliada em mais de dez mil contos na época), que Natália compraria e enriqueceria imparavelmente.

O centro da casa situava-se na zona de estar (biblioteca, escritório, área de comer, de receber, de festejar, de preguiçar), espaço grandioso forrado a livros, a quadros, a fotos, a referências, a recordações, a símbolos, mesa gigantesca ao centro, mármore negro, pés esculpidos de oiro, tinteiro de cobre, candeeiro de haste, poltronas de rebordos, televisão sem som, telefone sem fios, recordações sem negrumes.

Criadores de gado

Nele estiveram vultos universais, Henry Miller, Ionesco, Claude Roi, Michaux, nele representou-se Sartre (clandestinamente) pela primeira vez em Portugal.

A sua peça Huie Clos, proibida pela Censura, foi traduzida por Natália e, com encenação de Carlos Wallenstein, representada em casa da poeta - que a protagonizou.

Assistiram-lhe, entre outros, Almada Negreiros, Urbano Tavares Rodrigues, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sousa Tavares, Fernando Amado, Augusto de Figueiredo, Isabel Meirelles, Isabel da Nóbrega, Gaspar Simões, Maria Germana Tânger e Martins Correia. Os jornais da época noticiaram com ênfase o acontecimento, considerado um marco na vida cultural de então.

Franjas mais empenhadas no neo-realismo, a grande escola então dominante, criticam-na acidamente. Natália riposta-lhes: «Os que se reclamam de criar obras literárias e artísticas tendo apenas como horizonte os pastos socioeconómicos não passam de criadores ... de gado.»

«Aqui sentimo-nos ou no século XVIII ou no ano dois mil», exclamou Henry Miller depois de assistir a uma discussão sobre o amor. «Foi preciso eu vir a Portugal para encontrar uma verdadeira pitonisa», exclamou referindo-se à anfitriã.

Na sala, as atenções convergiam para um quadro sobre a lareira ao alto, notável auto-retrato que ela fizera; duas décadas atrás entregara-se durante meses exclusivamente à pintura.

«Pintei como terapia. Ferida, nessa altura, pela notícia da morte da minha mãe, que estava no Brasil, agarrei-me rangendo de dor, aos pincéis e fechei-me num quarto durante um ano.»

 

A parte mais secreta da biblioteca, dispersa por todas as divisões, estava em estantes descomunais, num corredor que abria com um quadro de Bual, em tons azuis e verdes. Telas valiosas seguiam-se-lhe pelos cantos à espera de serem encaixilhadas e penduradas.

«Se um dia fosse obrigada a deixar esta casa, seria a minha desgraça. Só sei escrever aqui», repetia.

Um escultor visionário, Júlio, tomou-a por um ser mítico, um ícone índio, e fixou-a em busto de pedra. Comovida, Natália colocou-o em local nobre, junto a uma menina­girassol, lindíssima, de Cesariny.

Um fotógrafo de sensibilidade, Sampaio Teixeira, imaginou-a deusa grega e retratou-a, esplendorosamente nua, em cenários dionisíacos - mais de vinte slides inéditos deixados (por testamento) a Helena Vaz da Silva, que o Centro Nacional de Cultura resguarda, invioláveis, intocáveis.

«Sou da Ilha das línguas de fogo. Com elas aprendi a metrificar o Espírito. O indizível. O religioso é uma ideia que anda no ar mesmo para as pessoas que não têm capacidade para a ver, nem coragem para a agarrar.»

As recordações dos Açores eram-lhe, amiúde, pontes para um tempo, o da infância, um espaço, o das ilhas, mágicos. Natália Correia precisava desse apego à infância e às ilhas, lugares de ligação ao mistério que a habitava.

«Os deuses só nos pedem que estejamos na vida com a mesma naturalidade com que as flores estão na haste. Os homens só serão unidos quando acreditarem em todos os deuses.»

Atraía como um íman os desvairados, os místicos, os assassinos, os ladrões, os vagabundos, os dementes. Todos a ouviam, a tocavam. Todos a fascinavam: «Temos de recuperar o seu sofrimento porque eles estão mais próximo do oculto», repetia-nos.

A percepção que Natália Correia tinha do mistério - fonte da sua criatividade -levou-a a voltar-se desde muito cedo para os universos do inexplicável. A alquimia significava para si não a obtenção do oiro, mas a obtenção da androginia.

Desses universos provinham-lhe (subtis cordões umbilicais) a energia, a vidência, que a faziam - como a Camões, como a Pascoaes, como a Patrícia, como a Pessoa - ser de genialidades.

«É a irracionalidade que conduz o pensamento do que se escreve. Daí o pensar o impensável ser a substância da escrita», afirmará E. M. Melo e Castro, um dos poetas mais inovadores da língua portuguesa - e mais ouvidos por Natália.

Os poderes que ela detinha tornavam-na, por vezes, inquietante. Contactos com mortos e extraterrestres, controlo de elementos da natureza, cumprimento de rituais iniciáticas, eram-lhe irreprimíveis. Entidades de outras dimensões e planetas, espíritos de mortos e de deuses tinham, exclamava-me, angustiada, «tendência para baixar» nela. Por isso, nunca estava sozinha em casa.

Em certas alturas, energias estranhas irrompiam de si, comunicando-se aos que a envolviam - pessoas, animais, objectos, árvores, águas, nuvens; outras irrompiam sobre si, dilatando-a, transfigurando-a. Forças indizíveis tomavam-na, tomavam-nos. Tornava-se, então, uma vidente, uma médium de assombros. Vi-a fazer parar a chuva, retroceder agressores, imobilizar loucos, animais, crianças, ventos.

 

Como o Partido Socialista se transformara numa «maquineta destrambelhada», expressão de Natália Correia, bem fazia Jorge Sampaio «em procurar outras aragens», como as da Praça do Município, primeiro, e as de Belém, depois.

A sua candidatura à presidência da Câmara de Lisboa encontrou, por isso, receptividades e apoios generalizados no Botequim.

Botequim onde, certa noite, ele, a mulher e o assessor de imprensa, António Manuel, se dirigiram para convidar os presentes a acompanhá-los ao teatro.

Ela exultou: ali estava um político «com preocupações culturais decentes!»

Depois perguntou: «Que peça escolheram?»

Afogueadamente respondem-lhe: a que está na Casa da Comédia, What Happened to Madalena Iglésias?, do Filipe La Féria.

Natália, que era alfinetada no espectáculo, bramiu: «O quê? Nem pensem, eu não vou, não perco tempo com frivolidades dessas!»

Amuada, viu-nos partir para um music-hall delicioso que marcaria, com incrível êxito, o teatro ligeiro português. Os seus caprichos davam forte, mas passavam depressa. De La Féria apreciaria depois, divertidíssima, a charge que ele lhe fez num programa da RTP para a passagem do ano de 1992 para 1993, com uma irresistível Maria Dulce a caricaturá-la em cheio.

A Jorge Sampaio regressaria no sábado seguinte, no encerramento da sua campanha autárquica, num comício no Campo Pequeno. Mobilizámo-nos todos.

A chuva e o vento fustigaram-nos, porém, desalmadamente, descoroçoando alguns de nós: «Ora, é apenas o brincalhão do Marcelo (Rebelo do Sousa) que se vinga mandando-nos mau tempo. Não liguem. Ele tem a mania da água, primeiro a do rio Tejo, agora a das nuvens!», animava ela.

Concorrente também à presidência da Câmara de Lisboa, o professor (por quem Natália nutria, pelo seu humor, inteligência, elegância, fair-play, irresistível interesse) tinha iniciado a sua campanha eleitoral com um banho no rio Tejo - originalidade que a conquistara.

Ancorados num camarote da praça do Campo Pequeno, víamos pequenos grupos hesitar, retroceder, contagiando desânimos e desistências. Então, Natália segreda-me: «Veja se me protege com o guarda-chuva.» Tento fazê-lo. Ela ajoelha-se, ergue os braços e entoa uma lengalenga incompreensível, a lembrar as das velhas índias e mães de África. Era um esconjuro (contra intempéries) que uma feiticeira da Fajã de Baixo lhe ensinara em garotinha. Daí a nada a chuva parou, as nuvens abriram, o sol resplandeceu - e Sampaio galvanizou. Resfriados, estafados, regressámos ao Botequim. Tanto ritual popular, tanta inflamação democrática, excediam-nos. Reconfortada por copo e meio de gasoil (uísque com cerveja, metade por metade), Natália antecipa: «Ao escutar o Jorge Sampaio esta tarde percebi que não era a presidência da Câmara, mas a da República, que o espera .. » O seu dom premonitório cumprir-se-ia, como sempre.

Um estupor

A caminho de Toledo, pouco depois, para um encontro de escritores ibéricos, somos apanhados por violentíssima tempestade. A chuva, uma vez mais, acabrunha-nos.

O BMW de Francisco Baptista Russo desacelera, sem visibilidade, os limpa-pára-brisas e os faróis a quererem ceder a todo o momento.

Um emaranhado de auto-estradas não nos deixa distinguir sinalizações nem desvios - o GPS (para automóveis) estava ainda por inventar. .

Natália quebra o silêncio: «Francisco, veja se encontra um sítio onde possamos parar, de outro modo perdemo-nos.»

Baptista Russo lobriga uma zona ajardinada e detém o carro. De seguida, volto a vê-la a erguer os braços, a compenetrar­se, a recitar a toada da feiticeira açoriana, volto a ver a chuva a parar, as nuvens a abrirem-se e (substituindo o Sol) a Lua a resplandecer, cheia, gloriosa. Logo o BMW retoma o andamento, veloz, a caminho da magnífica Toledo, onde chegamos a horas do encontro poético.

À entrada do hotel, a borrasca estatela-se outra vez sobre a terra. De soslaio, Natália olha-nos com sorriso de Gioconda.

Na Assembleia da República, em debate sobre políticas culturais, ela desentende-se, certa vez, com Santana Lopes, secretário de Estado delas, políticas culturais.

Nessa noite, chegam flores ao Botequim. «Ele é um estupor, mas eu perdoo-lhe, pois sabe tratar uma senhora como deve ser», exclama, volteando o cartão que acompanha o vistoso ramo de rosas brancas. «Este rapaz», acrescenta, «ainda chega a primeiro-ministro.»

 

Eufórica, Natália dá-nos a novidade: Ievetuchenko, o (então) famoso poeta russo, vem a Portugal trazido pela D. Quixote, a sua editora.

«As autoridades», acrescenta, «tiveram receio de recusar o pedido de Snu nesse sentido. Diz-se que foi o próprio Salazar a dar a autorização.»

A notícia fervura os círculos culturais e informativos do País. Obras do poeta são traduzi das a todo o vapor.

Impassível, a Censura continua, porém, a cortar as referências ao visitante. Meio mundo (literário) é, entretanto, mobilizado para acompanhar, comungar, celebrar o poeta durante a sua curta estada entre nós.

Vedeta mundial, ele ombreava, nessa altura, com os ídolos da canção, do cinema, do desporto, da moda - para proveito do regime soviético.

Surpreendida, Natália ouvirá Snu dizer-lhe que Ievetuchenko quer ir a ... Fátima, já que a sua deslocação coincidia com o 13 de Maio e com a vinda do Papa Paulo VI à Cova da Iria. Essa tinha sido, aliás, uma das razões que o levavam a visitar o nosso País.

As hastes intelectuais de esquerda paralisam. Informado, o presidente do Conselho desagrada-se: não gosta do poeta (Rosa Casaco levara-lhe, em edição francesa, um livro dele), não gosta do Sumo Pontífice (por não ter condenado a invasão da Índia), não gosta do circo informativo montado na zona das aparições - de cuja veracidade (aparições) ele sempre duvidara.

Os jornais são, entretanto, impedidos de publicar um comunicado de Salazar, distribuído pelas estruturas oficiais, determinando que «ninguém deve dar um único passo ou ter um gesto que o Papa possa interpretar como significando interesse da nossa parte em que ele venha cá».

Dou uma cópia a Natália e a Snu. O desconcerto é grande, pois todos tinham, nessa época, a ideia (falsa) de o chefe do Governo ser um beato, um serventuário fidelíssimo da Igreja.

Ievetuchenko chega na véspera de Paulo VI e logo parte para o Centro do País. Poetas, escritores, jornalistas, encabeçados por Natália, peregrinam na sua peugada.

Não autorizado a aterrar na Portela, o avião do líder católico (vindo a convite da diocese de Leiria, não do Estado português) aterra no aeródromo militar de Monte Real.

O dirigente português acabará por ceder aos insistentes pedidos dos seus amigos António Leite Faria (embaixador no Vaticano) e Franco Nogueira (ministro dos Negócios Estrangeiros) e ir cumprimentar o Santo Padre.

«Era muito negativo para nós que ele o não fizesse», comentar-me-á Leite Faria: «Havia centenas de jornalistas de todo o mundo para cobrir a vinda do Papa, que, naturalmente, iriam especular com essa ausência.»

Aborrecido, Salazar deixa-se conduzir para o local. Ao aperceber-se, porém, da dimensão da cerimónia (cerca de um milhão de pessoas), ao ver a atenção que o visitante dedica à Irmã Lúcia (de quem ele não gostava), ao saber da corte à volta do escritor soviético, quer regressar imediatamente a Lisboa. Será com enorme esforço que os mesmos Franco Nogueira e António Faria o demovem.

Paulo VI utiliza toda a capacidade persuasiva para, no encontro com ele, o cativar. Consegue-o. A duração da audiência, prolongada para lá do previsto, causa grande surpresa. Ninguém sabe, no círculo da comunicação social presente, como interpretá-la.

Natália lança a confusão: «O verdadeiro milagre de Fátima deu-se agora, o Papa estrafegou Salazar!» Há risos e apreensões. Nisto, à distância, surgem os dois a despedirem­se, sorridentes, afáveis. Nenhum parecia beliscado.

No regresso, no automóvel, o presidente do Governo contará aos dois amigos: «Tratei o Sumo Pontífice por Vossa Santidade. Sabem como ele me tratou a mim? Por Vossa Eternidade» - relato que ambos, Franco Nogueira e António Leite Faria, me confirmariam.

Bom diplomata, Paulo VI, sabendo da natureza do dirigente português (e do seu fino sentido de humor), resolveu utilizá-lo para, dessa maneira, quebrar a crispação existente.

Desconcertado, Salazar baixaria as resistências e, divertido, entraria no seu jogo.

Em Lisboa, no Teatro Capitólio do Parque Mayer, Ievetuchenko dará pouco depois (a PIDE não interferiu) um memorável recital, interpretando a sua poesia em russo. Ao ser-lhe proposto um intérprete, recusou dizendo: «Esta é uma ocasião única para me ouvirem na minha língua, mesmo que a não compreendam.»

«Bravo!», aplaudiu, rendida, Natália. Foi electrizante.

 

Se o livro desaparecer «dar-se-á um grande retrocesso no pensamento humano, na criação artística, na comunicação, na liberdade, porque a escrita tornou-se o grande baluarte da resistência», empolga Natália, num debate sobre os suportes (futuros) da literatura: «Os audiovisuais são muito mais controláveis, manipuláveis, pelos poderes do que a escrita. Daí a cultura estar a ser transformada em beberete de festarolas e futilidades, até as passagens de modelos e os cozinhados são tidos por cultura. Isso não quer dizer, porém, que não se os apreciem, mas noutro plano. Pessoalmente tenho até em grande conta o gosto da mesa, sobretudo o de cear. Considero a ceia a refeição em que se acendem os candelabros do ritual da nossa tão peculiar maneira de estar no mundo.

Maneira congenitamente bissexual, pois a nossa história é feita de transes de passividade e agressividade, transes que geraram, por exemplo, as descobertas marítimas e a cobrição dos povos que submetemos à erecção imperialista.»

A complexidade que Natália apreende nos outros sabe-a em si, e não se lhe furta. Cultiva-a mesmo como elemento identificador, enriquecedor.

Seres de acrescentamentos, não de exclusões, como ela, os portugueses conciliam tudo, somam tudo, e, e, e, não ou, ou, ou - assim se miscigenaram, miscigenando o mundo.

«Não tenho uma religião, um partido, um clube, uma escola literária, não sou de associações mas de convívios, não sou de exclusões mas de acrescentamentos, tudo o que existe deve ser compreendido, pois faz parte da natureza, por mais estranho e diferente que possa parecer..»

Natália fala para três jovens que a procuram no Botequim, querem lançar um movimento que defenda os desintegrados. Esquecendo-se de si mesma, mais uma vez se volta para os outros, para a esperança nos outros, ardendo por eles, com eles.

 

Natália chegou a ter na juventude «uma vida tripla: de intelectual, de política e de mulher de sociedade. Ia jogar brídege no Estoril com as senhoras bem, e na roleta do casino (clandestino) existente no hotel do marido. Foi a mãe que a introduziu nos meios da oposição», contar-me-á, uma semana antes de falecer, Tomás Ribas, o maior e mais antigo, e fiel, e crítico, e profundo amigo da poeta.

«A Natália, que casara muito jovem com Álvaro dos Santos Dias Pereira, esteve para se consorciar com o senhor Machado pouco depois de o ter conhecido. Chegou até a dar uma festa de despedida de solteira, mas quando pensávamos que era ele o noivo, apresentou um americano que acabara de encontrar, chamado Billy. Conheço-a da pré-história, isto é, de antes de ela se ter projectado publicamente», ironiza Tomás Ribas: «Houve sempre uma grande duplicidade, uma grande autenticidade, entre nós. Eu era o único dos que então a rodeavam, assediavam, homens e mulheres, que não queria ir com ela para a cama.»

Radicando-se em Lisboa com a mãe e a irmã, em 1934, frequenta o Liceu Filipa de Lencastre, após o que se torna colaboradora do semanário O Sol e do Rádio Clube Português (instalado na Parede) onde trabalha com a irmã - e onde são conhecidas como as Meninas Balalaikas.

Relaciona-se com Ferreira de Castro, Maria Archer, António Sérgio, Manuel da Fonseca, Jaime Cortesão, Manuel de Lima, Cesariny, Rogério Paulo, Almada, fazendo-se a partir daí, presença irrecusável entre intelectuais, artistas e políticos.

«Acusavam-me continuam a acusar-me de tanta coisa, de ser promíscua, de ter relações com homens e mulheres ... o problema é que eu quase não tenho libido. Mesmo em nova, o sexo nunca representou grande coisa para mim.

Sempre gostei, por outro lado, de homens mais velhos do que eu ... ora nesta altura com a idade que eles têm, já não funcionam» confidenciava com indisfarçável pudor – era aliás muito pudica no que dizia respeito à sua intimidade.

Não se despia ante os médicos que consultava; não vestia, por exemplo, fato de banho quando (na juventude) ia à praia «a massificação do espectáculo praiante enoja-me», justificará.

«A maior parte das pessoas apenas via em mim a fêmea, o corpo», acrescenta, «só depois percebiam que eu tinha ideias, talento. Isso maçava-me imenso, e revoltava-me mesmo. Daí ter-me dado sempre com homossexuais, eles são os meus melhores amigos, os que melhor me compreendem.

As pessoas de sexualidade não linear revelam-se, de uma maneira geral, mais ricas, mais sensíveis, mais imaginativas do que as outras.»

Depressa deixará de se preocupar com o corpo. A beleza e a elegância perdidas não pareciam melancolizá-la. «Uma vez por semana a cabeleireira ia arranjá-la a casa», pormenoriza Helena Cantos: «Não comprava roupas e os vestidos eram feitos pela porteira. Quando morreu, houve até dificuldade em escolher um em bom estado, para a amortalharmos.

Levou o azul-escuro, de veludo, que envergava nas ocasiões de maior cerimónia.»

Um ícone

Madalena Braz Teixeira, directora do Museu do Traje, sintetiza com grande expressividade a encenação dessa personagem: «Lembremos que Natália nasceu nos Anos Loucos, em 1923, num tempo de euforia e de liberdade, sobretudo em relação à emancipação da mulher. Dessa época, retém o gosto pelo tabaco e pelas écharpes, que usou de forma imperial e dramática. A écharpe presta-se a alongar os braços, a emitir posturas aladas e requebros gestuais de expressividade feminina. A boquilha representou o seu acessório mais característico. Teve várias, de diferentes formatos e feitios, usando-as como prolongamento da mão, em gestos ensaiados e sedutores, lânguidos e exuberantes. Boquilhas de promessas, de desejos, de espavento, de afirmação e até de mistério, na medida em que o fumo continha a névoa da distância entre ela e os outros.»

Continuando a referir a maneira como Natália se apresentava, Madalena Braz Teixeira sublinha que as pessoas passaram «a temer-lhe o verbo, a escandalizarem-se com as suas atitudes e maneiras, a invejar-lhe a beleza, procurando destruí-la como mulher».

Apesar disso, contra isso, «estabeleceu uma vaga de fundo nos anos sessenta que perdurará e que veiculou uma postura de contestação à mentalidade e moda burguesas, e à própria política governamental. O assombro da sua presença, a força da sua palavra e talento, tiveram mais impacto sobre a mudança de mentalidades que propriamente a rebeldia dos estudantes, cujas greves se desenrolaram a partir de 62».

Com a idade, Natália «demarca-se decididamente da moda, enveredando por ficar acima e transversal às evoluções do gosto, embrenhando-se na vida política como numa paixão.

Torna-se num verdadeiro ícone do pós-25 de Abril. Poder­se-á mesmo acrescentar que ela integra e constitui a mulher mediterrânica por excelência, no seu mais profundo significado e na variante civilizacional portuguesa supra-estrutural».

Dela, que conheceu desde a juventude e a quem acompanhou até ao fim, Mário Soares guardará «a pose, a voz, o riso, a irreverência do olhar, num misto de desafio e fragilidade, não deixando ninguém indiferente. Teve apaixonados defensores e grandes amizades desinteressadas; mas não menos insistentes detractores».

 

Semanas depois de Natália ter falecido, alguém da RTP convida-me para fazer um programa para a rubrica «Letras e Artes» sobre a sua vida. Dias volvidos, a mesma pessoa contacta-me, envergonhada: os responsáveis da estação opunham-se, Natália continuava-lhes (mesmo morta), insuportável.

Detestada e detestando grandes vultos, viu crescer os inimigos na mesma proporção que os amigos. Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner e Agustina Bessa-Luís eram-lhe, no mundo literário, ódios de estimação - nunca me perdoaria o eu ser admirador, venerador deles.

Agustina Bessa-Luís distanciou-se sempre de Natália Correia («não é que não gostasse dela», sibilava-me a autora de Sibila, «mas nunca concordava com o seu comportamento»), coisa frequente, como se sabe, entre oficiais do mesmo ofício e da mesma craveira.

Acompanhei Agustina em diversos eventos mundano­culturais, como digressões pelo Brasil, esquina das de conferências, debates, colóquios, cocktails, entrevistas, autógrafos, «intercâmbios de inútil reciprocidade», no seu certeiro sarcasmo.

Pacheco, o abjeccionista

Autor de duas das novelas mais notáveis da literatura portuguesa, A Comunidade e Um Libertino Passeia por Braga, Luiz Pacheco, misto de escritor e editor, de anarquista e arranjista, impôs-se entre nós a partir da década de sessenta cultivando com igual estardalhaço «o abjeccionismo pessoal, o caceteirismo crítico, a intriga terrorista e a manipulação intelectual», na caracterização de Natália Correia.

Ganhou cedo, e rápido, um estatuto exótico «entre o bobo e o perverso» a quem (palavras de Fernando Namora) «se atiravam notas de vinte para o ver ferroar o semelhante» - coisa que ele fazia com volúpia.

Aparecia em redacções de jornais de galinha presa a um nagalho, vendendo livros por escrever, cravando, hipotecando piedades, misérias, filhos.

Os filhos eram uma espécie de chaga, que exibia para obter ajudas: a Amélia Rey Colaço vi-o uma vez sacar quinhentos escudos à pala do mais velho da prole, a finar-se, no seu palavreado, de maleita galopante, quinhentos escudos logo derretidos em cervejolas e graçolas geladas contra a actriz.

Ex-semicensor (trabalhara para a Direcção dos Espectáculos do antigo regime), passar-se-ia para o Partido Comunista ante palmas ruidosas de muitos da esquerda desfeitos, depois, por ele.

«Só os que não têm estatuto para serem atacados é que o reverenciam, lhe acham gracinha», escarnecia a seu respeito Jorge de Sena.

Tocha incendiária

Alguns dos primeiros livros de Natália foram editados por Luiz Pacheco, na Contraponto. Entre eles destaca-se o volume Comunicação (poesia) saído no dia em que ardeu a Igreja de São Domingos, em Lisboa - paróquia de frades inquisidores -, o que o levaria a dizer «que fora o poema da Natália a tocha incendiária».

Os sarcasmos com que a visava (com que visava toda a gente) tornaram-se correntes: «Ela foi ontem para o Porto com uma grande trupe de amantes dos dois sexos parir um livro» (Cântico do País Emerso), comentará, velhaco e insidioso.

Continuando velhaco e insidioso, volta a dardejar Natália (que apresentara O Menino das Mãos de Ouro, de Mário Cesariny, em sua casa), desdenhando-a: «O Cesariny leu muito bem, mas depois a maluca da Natália quis exibir-se, arrancou-lhe o livro e leu muito mal.»

Escalope congelado

Mário Cesariny, a quem Pacheco chamava «escalope congelado» (que lhe retribuía rotulando-o de «sacrista -chupista»), entraria mais tarde em ruptura com os dois, Natália e Pacheco, apesar dos muitos anos de amizade e dos muitos projectos de partilha.

Numa primeira fase, os três dão-se bastante bem.

Pacheco edita-os e Natália defende-os em tribunal. Tão bem se dão que se tratam por «compadres» e se jogam em provocações e ousadias.

Com o assentimento dos dois, Pacheco enfatizará: «Quanto mais progressista é a esquerda, mais sacripanta se torna em questões que bulam com o sexo.»

As fricções entre eles acentuam-se quando Natália acolhe em casa um filho do libertino e este começa a dizer que ela gosta mais do gato do que do petiz - o que deve ter sido verdade.

Indignado, o papá jura vingar-se. De madrugada vai por diversas vezes ao quinto andar da Rua Rodrigues Sampaio defecar à porta da «comadre». Fula, esta atirará o garotinho, o progenitor e o cocó para as profundezas dos nojos. Nunca mais se falaram.

Com Cesariny as coisas foram menos melodramáticas: ido para França e Inglaterra, o poeta afastou-se e esfriou­se da vida portuguesa, mantendo-se mesmo distanciado da Revolução dos Cravos - que o não entusiasmou.

Tinham os três egos demasiado afirmativos para se poderem conciliar no mesmo poleiro.

Voz genuína

«Personalidade incomum, este autor é das poucas vozes genuínas da ficção portuguesa, completamente rebelde a enquadramentos estéticos», escreverá Natália Correia (foi dos primeiros intelectuais a fazê-lo) sobre o livro de estreia de Luiz Pacheco.

A irreverência deste constituiu desde logo «uma pedrada no charco», continuou Natália, ou seja, num «meio literário transformado em feudo de meia dúzia de barões, que preferem apodrecer no trono da sua glória a sofrerem os safanões das mudanças».

Luiz Pacheco seria (involuntariamente) culpado pela expulsão do jornalista Luís Pereira de Sousa, referência na rádio portuguesa, ao chamar, numa entrevista em directo na RDP, «sacana» a Ramalho Eanes, Presidente da República.

O tom de Pacheco não era, porém, ofensivo, pelo contrário, traduzia uma certa afectuosidade (à sua maneira) pelo Chefe do Estado, o que a tutela não levou em consideração.

Vendo fecharem-se-lhe as portas, Pereira de Sousa só não emigrou para o Canadá porque a RTP lhe aceitou, entretanto, colaborações avulsas que o catapultariam para o plano das suas vedetas. Ramalho Eanes nunca soube do sucedido.

Tasqueira da Graça

As incompatibilidades de Natália Correia cresceram com os anos e os desenganos que a foram cercando. Duraram-lhe, depois de assumidas, toda a vida. Curiosamente, centraram­se em pessoas com quem estabelecera relações de amizade, cortadas por motivos (pretextos) quase sempre fortuitos.

Entre as figuras de destaque em que tal se verificou, salientam-se o casal Sophia de Mello Breyner e Francisco Sousa Tavares (seu advogado), por questões administrativas;

Amália Rodrigues, por ciumeiras devido às cortes que ambas cultivavam; Agustina Bessa-Luís, por embates de posicionamentos políticos; Jorge de Sena, por megalomanias literárias;

Vasco Pulido Valente, por menosprezo para com a obra dela;

Eduardo Prado Coelho, idem; José Hermano Saraiva, por divergências em interpretações da história; Ary dos Santos, por desníveis de carácter.

Em virtude de ser ou amigo ou admirador dos visados, passei a apanhar com piadas cerradas de Natália, que não se continha em calá-las. As mais frequentes alvejavam Jorge de Sena, Amália, Agustina e Ary, personalidades com quem eu mantinha laços de apetecida proximidade.

Para Natália, Jorge de Sena era o «vaidosão americano» (ela detestava os Estados Unidos, onde o poeta se radicara), Amália, a «beata horrenda» (por a fadista afirmar o seu catolicismo), Agustina, a «bruxa da Areosa» (por ser daquela zona), Ary, o «Arycoffee português» (pela sua dependência da bebida).

Eles retribuíam com idêntico empenho: Sena chamava-lhe «vaca açoriana», Amália «devassa insuportável», Agustina «tasqueira da Graça», Ary «jiboia bufona».

«A certa altura «Ary difamou-me, dizendo que eu era da PIDE, mas Álvaro Cunhal, um verdadeiro príncipe, veio logo a público defender-me e desmenti-lo, criticando-o por essa infâmia», revelou-me a visada.

Velhas gaiteiras

Ary era useiro em comportamentos afins. Além de Natália, traiu (a seguir à revolução) Amália e Fernanda de Castro, três mulheres a quem, até aí, tratava por «tias do meu coração».

Na manhã de 25 de Abril, «ele telefonou-me a dizer: titi, há uma revolução na rua, se os teus ganharem, tu proteges-me, se os meus ganharem, eu protejo-te. Nunca mais me contactou», revelar-me-á Fernanda de Castro.

Com Amália e Natália teve reacções do género, passando a referi-las por «velhas gaiteiras».

Num encontro literário no Solar do Vinho do Porto, Ary e Dórdio (ainda solteiro) entornam-se ruidosamente rebolando, gordinhos, aos sopapos, aos insultos, ante o gáudio (mal) dissimulado dos presentes e o gozo de Natália - causadora de tão pífio duelo entre álcoois marados.

Os comportamentos pitorescos de Ary faziam-se, entretanto, cardápio de gozos no Botequim - e na cidade. Numa madrugada cruza-se, no Rossio, com um jovem a quem convida para o acompanhar. Entrados em casa, rés-do­chão junto à Sé, o desconhecido tira da carteira um cartão: inspector da Judiciária.

Num ápice, Ary escancara as janelas e, carregando no vozeirão, grita: «Socorro, tenho aqui um polícia que é bicha, acudam, socorro!»

Ao visado só restou fugir a sete pés, ante o acordar da vizinhança, que saiu para a rua em defesa do seu poeta.

Sonoro bofetão

Brasileira, fim de tarde: Ary sai devagar, prolongando coscuvilhices avulsas. Ao chegar à porta, dá de caras com um opulento poeta a quem arrasara o último livro. Este, sem uma palavra, levanta a mão e zás, bofetão sonoro nas bochechas do confrade. Instantaneamente, Ary ajoelha, abraça as pernas do agressor e berra: «Perdoa-me, juro que nunca mais te roubo nenhum marinheiro, prometo-te, perdoa-me». Ante o gargalhar geral, o outro desarvora Chiado abaixo para nunca mais ser visto.

Até Salazar, no seu soturno São Bento, se riu quando Jorge Pablo lhe contou a picardia. Por mais de uma vez, o ditador, guloso de escândalos do gênero, lhe perguntava: «Então, o seu amigo Ary tem cumprido a promessa, tem?»

Ramalho Eanes, Presidente da República, conseguirá mais tarde que Natália aceite (com indisfarçáveis reservas) as desculpas de Ary.

O espólio deste, no qual figurava, dizia ele, um inédito de memórias, arrasador, foi integralmente deixado ao Partido Comunista.

Contacto Ruben de Carvalho, do PCP, para publicação (eu integrava nessa altura os quadros de O Jornal) do referido manuscrito. Elegantemente, Ruben de Carvalho confidencia-me o incómodo do seu partido, pois o falecido não deixara sequer uma linha escrita, o livro não passara de um muitíssimo vago projecto dele. «Estamos um pouco constrangidos, pois corremos o risco, ao dizermos a verdade, de ser acusados de censurar o Ary com medo das suas revelações», confidencia-me.

Justa, Natália Correia destacará, sempre que se proporciona, o talento poético, a ousadia social de Ary. Rendida às suas Tourada e Desfolhada, que o País levou à Eurovisão, considerá-las-á «das mais notáveis canções que conhecia», afirmando que Simone de Oliveira era «a melhor voz feminina da actual música ligeira portuguesa».

 

«A diversidade sexual contém comportamentos múltiplos, por vezes indefinidos e inexplicáveis», defende Natália: «O ser humano caminha para a androginia, daí a quebra da natalidade, resultante da sua evolução, daí também o reconhecimento de novos tipos de família, fora dos estereotipados modelos homem-mulher, casamento-reprodução; novos tipos de família que não vão colidir com o modelo tradicional, pelo contrário, vão enriquecê-lo, pluralizá-lo reforçando o seu papel nuclear nas nossas relações.»

A ciência, o conhecimento, favorecem essa abertura a um futuro diferente, a uma humanidade diferente - «onde os estados e as igrejas deixarão, finalmente, de meter-se, pois trata-se de assuntos do foro íntimo de cada um, que cada um deve gerir em liberdade».

Natália, Amália, Amélia Rey Colaço, Fernanda de Castro, Maria Lamas, Vera Lagoa, Helena Vaz da Silva tinham (como Palmira Bastos, Irene Lisboa, Luzia Maria Martins, Natércia Freire, Sophia, Vieira da Silva, Laura Alves, Beatriz Costa) o mesmo húmus, a mesma força, a mesma energia. Ultrapassaram com largueza condicionalismos sociais, sexuais, culturais, comportamentais; fizeram-se mátrias-frátrias mutantes de difícil, altiva, distinção.

«Quando as mulheres são grandes, são superiores aos homens porque são mulheres e homens ao mesmo tempo.

Isso dá-lhes sabedorias, recursos excepcionais», defende Natália Correia: «O mundo só se salvará se elas tomarem conta dele. O homem está cansado de ter de fingir que é homem. D. Juan é um impotente mascarado de fruidor. Segundo a biogenética, há uma tendência potencial para, no grande futuro que há-de vir, a junção dos sexos, isto é, para a androginia.»

O célebre psiquiatra Eduardo Luiz Cortezão, assíduo no Botequim, secundava-a: «O homem actual está a viver uma crise de identificação masculina, com medo das mulheres e das disfunções sexuais secundárias. A violência é uma forma de ele descarregar a libido: bate em vez de amar; em vez da luta amorosa, a luta física. Os maus tratos que inflige às mulheres com quem vive, fenómeno entre nós medonho, não passa de um álibi (inconsciente) com que disfarça a sua falta de desejo por elas. Os jovens, por exemplo, rebentam coisas, carros, motos, pessoas, porque não podem rebentar hímenes.»

Natália Correia provoca sensação ao falar num colóquio sobre homossexualidade. É a primeira vez, a seguir ao 25 de Abril, que o tema se aborda publicamente entre nós.

As correntes mais jovens e libertárias (anarquistas e independentes) esgotam o espaço, duas salas, um hall e uma escadaria, do Centro Nacional de Cultura.

O êxito - a fazer lembrar o provocado pelas conferências de Almada, vestido de fato-macaco, no cinema que havia no outro lado da rua - torna-se retumbante.

 

Ex-seminarista, ex-acólito de Cerejeira, ex-revolucionário, o jovem caíra no goto de Natália Correia, que logo lhe improvisava, ao aparecer no Botequim, lugar na sua mesa e no seu convívio.

Trocara a carreira de sacerdote pela de professor e esta pela de operário; desiludido, porém, com o cristianismo e o marxismo, aconchegara-se ao regaço de um banqueiro extravagante - dado a paixões e a sonetos obsessivos.

Atraída por tudo o que ultrapassava o comum, Natália fez-se-lhe, sem esforço, protectora. E incentivadora: cardeais, bispos, núncios, capelães (sectores que ela quase desconhecia) deixavam, nas revelações do visitante, de ter vidas secretas, sequer discretas.

O jovem, que frequentava Cerejeira no palacete onde se retirara, na Buraca, reproduzia, enlevado, as observações mais atentas do prelado. Homem de cultura, astúcia, reflexão, vivência invulgares, atravessou incólume a revolução por ter sabido resignar antes dela e intuído as vantagens que o seu desandar traria, no futuro, à Igreja.

Salazar não fora pera doce para ela, Igreja, e Marcello não a entusiasmara. As esquerdas não iriam, por sua vez, aguentar, num país como Portugal (a Primeira República demonstrara-o bem), ateísmos militantes. Bons ventos haveriam, asseverava Cerejeira, de soprar de novo sobre o rebanho domesticado com tanta persistência por si.

Magnificamente vestido, o Patriarca recebia, dialogava, escutava (em saraus de irresistível sedução) como um príncipe. De Pessoa a Marx, de Herberto Hélder a Sartre, de Lopes-Graça a Mozart, de Vieira da Silva a Picasso, todos ele conhecia, admirava, discordava, questionava.

Ao fim do chá, tomado entre bolos e versos, respondia aos que se inquietavam com a revolução: «Ora, meus filhos, revoluções sempre as houve, esta passará como as outras, não vai ter importância!» E, convicto, sentava-se ao piano a tocar extractos de Chopin - que interpretava (quase) divinamente.

 

«Continuamos muito infantilizados, a perversão da liberdade, proibida pela ditadura, primeiro, imposta pelos militares, depois, impediu-nos de crescer. Ora a liberdade não se tira nem se dá, constrói-se, conquista-se, senão é apenas formal», pormenoriza-nos a psiquiatra Gracinda Ribeiro, particularmente admirada por Natália Correia.

«Somos uma sociedade matriarcal, propensa a maternalizar os líderes», esmiúça: «Salazar, que o sabia, utilizou as mulheres e os frades como esteios da sua política.

O dizer-se que o nosso é um país de marialvas é um papão que se agita para desviar atenções. Para que as crianças, que somos, sintam a presença do poder paterno - quase inexistente.»

Povo mais de sombras do que de luz, de lua do que de sol, de mar do que de terra, encontrámos no oceano pulsões que nos apaziguam, nos abrem à criatividade. Daí cultivarmos o saudosismo, o messianismo, o fatalismo, daí lavarmo-nos em lágrimas, deleitarmo-nos em desgraças, adiarmo-nos em esperas - a solidão das distâncias acrescentou a nossa tristeza, dando-lhe mágoa e ausência, névoa e infinito.

A costela patriótica de Natália crispava-se frequentemente contra os «enojados de Portugal», os que, vivendo nele (e dele), passam o tempo, rastejantes, a denegri-lo sem pudor: «Se eu não gostasse do meu País pegava na mala e partia, não andava cá a enfastiar os outros. Eu vivo aqui por opção, por amor!»

Desdenhar da terra a que se pertence é, por vezes, pior do que odiá-la - os fortes de carácter atacam, não humilham.

Ela não perdoava, por isso, a António Sérgio e a Almada Negreiros, de quem fora profundamente amiga, o terem vergonha de haverem nascido na Índia, o primeiro, e em São Tomé, o segundo, dizendo-se ambos naturais de Lisboa. Em idêntica linha de pensamento, Agostinho da Silva, secundando-a, lamentava o mesmo aos mesmos.

A expressão cidadão do mundo, com que muitos gostam de autoprojectar-se, é típica «de mentalidades pseudo­cosmopolitas, logo provincianas». Ninguém é, com efeito, globalizado a esse ponto, pois «todos somos cidadãos circunstanciais, e é no sê-lo que reside a nossa genuinidade», proclamava a autora de Descobri que Era Europeia.

Com frequência lembrava Norton de Matos a propósito das raízes de cada um: «A vida de um homem deve contar-se a partir de vinte e cinco anos antes do seu nascimento, pois o ambiente em que ele nasce forma-se por uma série de acontecimentos anteriores que criam a atmosfera moral onde o seu espírito se molda e evolui.»

 

Natália Correia considerava Baptista-Bastos «um dos maiores estilistas da língua portuguesa», cujos artigos e romances lia atentamente pela «recriação que ele fazia da palavra escrita».

B-B retribuía-lhe na admiração e no carinho: «Eu frequentava o Botequim», sublinhará, «onde se jantava, bebia, conversava, cantava, dizia atoardas e recitava poesia até altas horas. Foi a última tertúlia literária e política, animada por ela e pelo seu extraordinário talento. O Manuel da Fonseca, que tinha casa na Penha de França, telefonava-me, eu morava mais abaixo, em Alfama, e encontrávamo-nos lá. Pouca ou nenhuma ideia se faz hoje do alvoroço que se vivia naquele espaço de cordialidade, de crítica e de mal-dizer.»

O que em Natália mais o fascinava era a crença «na força imperiosa do amor», e isso justificava «muito do seu comportamento e das suas acções. Relacionava-se com pessoas de todos os quadrantes políticos e de todos os azimutes estéticos. O conformismo e a quietude de espírito não eram notas do seu piano».

Alta gritaria

Natália gostava de invectivar B-B pela sua «postura machista»: É um traste com as mulheres», exclamava, «não merece a que tem a Isaura, uma grande senhora, extremamente elegante e carismática, que o atura com paciência infinita. Adoro ouvi-la, mas ele, como reles marialva que é, não a traz ao Botequim! Com o Zé (Cardoso Pires) forma uma parelha de galifões de pacotilha.»

Sobre Natália, B-B conta: «Cá em casa recordamo-la com frequência. A minha mulher e ela conversavam muito, trocavam ideias sobre o mundo, a família e o que estava a acontecer. Ela, gesticulante e em alta grita, previa negros dias para todos nós. A mediocridade e o compadrio, o nepotismo e os malabarismos do poder, que começavam a surgir às claras, sem pudor, sem escrúpulo e sem vergonha, mereciam-lhe arrochadas verbais, que não esqueciam, sequer, os seus próprios amigos. Era um regalo ouvi-la falar do mundo e dos homens. Nunca as suas palavras eram destituídas de significado nem vazias de sentido. E usava-as com sabedoria, entendimento e fulgor. Certa ocasião, a um conhecido crítico e ensaísta que a cumprimentara reverente, depois de quase a insultar num texto inclassificável, Natália sacudiu-o pelas abas do casaco e gritou-lhe: "Um verme nunca saúda uma senhora!"»

 

Noite de pianistas: Maria João Pires entra no Botequim «vestida de nuvens», anota Natália. «Senta-se ao piano e, num exercício mediúnico, põe a falar os anjos de Mozart. O bar desliza para as proporções de uma catedral e eleva-nos aos altos sons das coisas puras. Chega depois o António Vitorino de Almeida, lá dos confins da sua infância, e engalfinha-se logo nas teclas como um vendaval. Respira-se uma atmosfera violácea de fim.»

No romance Madona, que José Rodrigues Miguéis considerou uma obra-prima da nossa literatura, Natália Correia dá-nos o universo feminino, artístico, amoroso, transgressor de um certo Portugal do Estado Novo. Portugal de jovens cultos e independentes, belos e carismáticos, audaciosos e cosmopolitas, que circulavam, sobretudo nos anos sessenta, por Paris e Londres, pelo surrealismo e o anarquismo entre ervas, camas, interditos, utopias, subversões, decepções.

Foi o tempo-espelho juvenil da autora, mais tarde substituído pelo da procura das raízes, do húmus da origem.

A republicação das obras de Natália - inteligentemente coordenada pela professora Fernanda Abreu, por incumbência do editor Alexandre Manuel- marcaria a actualidade literária de então.

Natália reconhece (em entrevista ao seu conterrâneo e escritor Eduardo Jorge Brum) que se fala «muito da minha personalidade, transformando-a num espectáculo para abafar a minha obra».

O barroco é para si «a magnificência das formas», um «estilo que reflecte o divino», e por isso «se esgota na impossibilidade de distinguir entre o sonho e a realidade». O surrealismo, que cultuou por igual, tornou-se-lhe fascinante por ser «a última expressão do romantismo. Foi nesse meio que se estabeleceu a minha maior cumplicidade».

Certa noite, num serão literário em casa de Fernanda de Castro, Natália e Ary pegam-se resfolegadamente, sem surpresa para os presentes - entre os quais David Mourão-Ferreira, Germana Tânger, Bernardo Marques - habituados aos seus ruidosos caprichos.

«Não digo nem mais uma palavra enquanto este homem aqui estiver!», ribomba Natália, logo abafada pelo troar de Ary: «E eu não digo nenhum verso enquanto essa criatura permanecer entre nós, aliás, não sei o que está aqui a fazer, este não é um lugar para ela!»

Eram homéricas as espadeiradas entre os dois, altivas as dela, javardas as dele disparadas em qualquer altura e situação, disputas de primas-donas a roçarem, frequentemente, o cabotinismo.

Muitas vergonhas passei a seu lado, já que não respeitavam, por exemplo, filas de espera, distribuição de lugares, vez de intervenção, matreiros no sobrepor-se, no evidenciar­se - demasiado grandes para se harmonizarem.

Com alguma emoção vejo (ouço, leio) personalidades de destaque lembrarem hoje ideias que Natália antecipou com singularíssima vidência.

 

Natália Correia criou relações de cordialidade com diversas figuras que foram apoiantes do Estado Novo. Adversária frontal do regime anterior ao 25 de Abril, não recusou conviver, depois do seu colapso, com elementos prestigiados dele - pela inteligência, talento, elegância, abertura, cultura.

António Quadros, Franco Nogueira, Adriano Moreira, Fernanda de Castro, Natércia Freire, foram alguns desses vultos.

A António Quadros, de quem era amiga e, em vários campos, cúmplice, votava especial admiração. Figura superior da nossa cultura, era um homem de profunda discrição e sensibilidade, influenciando Natália (e deixando-se influenciar por ela) em questões como as da identidade, as da lusofonia, as da mitologia, as do ibericismo, as do sebastianismo. Filho de António Ferro e Fernanda de Castro, pai da escritora Rita Ferro, António Quadros deixou uma obra vastíssima, na qual se destaca o antológico volume Portugal, Razão e Mistério - uma referência de Natália. O convívio desta com a família Ferro/Castro/Quadros durou décadas e gerações.

A gratidão dos jovens

Natália fica comovida quando António José Brás, um estudante de História, lhe relata, no Botequim, a intenção de organizar uma exposição sobre a vida e obra de Fernanda de Castro, para assinalar as suas bodas de diamante.

Prontamente aceita escrever um texto a propósito da efeméride e a fornecer documentação sobre a sua grande amiga.

Fará mesmo, adianta, «um poema alusivo ao acontecimento».

António Brás conquistara, tempos antes, a atenção de Natália ao convidá-la para lugar de honra numa mostra evocativa de Laura Alves, que organizara na então Escola Industrial Machado de Castro, em Lisboa, onde ele e a actriz haviam estudado.

Anuíra à deferência mais pela gentileza do gesto do que por admiração à evocada - a quem apreciara o talento, mas não o reportório.

O reconhecimento, a gratidão dos novos para com os seniores, sensibilizavam-na de maneira especial, merecendo­lhe aderências irrecusáveis.

«Assinalar as bodas de diamante da minha querida Fernanda, que bela ideia», exclamou.

Tocantes dedicatórias

Fernanda de Castro havia-me falado, emocionada, da iniciativa, manifestando o desejo de ajudar à sua concretização.

Apresentou-me António Brás, a quem ofereceu originais seus com tocantes dedicatórias, caso do manuscrito de Espada de Cristal, que ele generosamente doou, após a morte da autora, ao Museu Nacional do Teatro, onde se encontra.

Fernanda de Castro pretendia mesmo que se leiloassem peças do seu espólio para ajudar nas despesas, o que seria feito através de Edith Arvelos, poetisa moçambicana (autora do livro Um Longo e Lúcido Olhar) a viver, há décadas, em sua casa com funções de secretária, acompanhante e assistente.

Visitando-a com frequência, assisti ao empenho que punha no evento - do qual dei notícia no jornal Público - e ao reconhecimento que votava ao seu jovem admirador. Mil novecentos e noventa e quatro iria ser o ano Fernanda de Castro. A doença (morreu meses depois de Natália) inviabilizaria, porém, todo o projecto.

O seu último romance, Tudo é Princípio (o título original era A Esperança é de Graça), saborosa crónica de Lisboa da primeira metade do século XX (na qual uma das personagens se chama, homenageando-o, Brás Simões), seria publicado, em 2006, pelo Círculo de Leitores. Natália Correia leu-o no original, que Fernanda de Castro me cedeu a fim de lhe darmos opiniões isentas. Não chegámos a dar.

Opiniões isentas demo-las, depois, a António Quadros quando nos mostrou, antes de editado, o primeiro romance da sua filha Rita Ferro, Um Nó na Garganta. «Vai ser uma grande escritora», exultou Natália, corroborando a minha apreciação - eu seria, aliás, o primeiro a divulgar na comunicação social a importância do livro e da autora.

 

Num colóquio promovido por estudantes é levantada a questão do posicionamento dos intelectuais ante o Estado Novo e, sobretudo, a censura.

«Como é que a ditadura a controlava?», perguntam a Natália.

Esta ergue-se de supetão: «Nunca ninguém me controlou Nem antes nem depois do 25 de Abril, que totalitaristas existem em todos os regimes, e opositores a eles também.

Metam isso na cabeça.»

Regressa à cadeira: «Mas não sou nenhuma dessas vítimas profissionais do fascismo e da PIDE ... repugna-me, aliás, que se cobre pelas opções feitas, fazem-se, assumem-se, pronto!»

A sua energia emudece os presentes: «Ao contrário do que se conta, tornava-se por vezes exultante enfrentar os opressores, sentíamo-nos vivos, unidos, ao fazê-lo. O meu caso foi, porém, diferente dos da maioria, a minha família não era da situação, não defendia os valores vigentes, ideológicos, culturais, religiosos, pelo que eles não me foram impostos, pelo contrário, a minha mãe, que era uma pessoa muito culta, cedo me sensibilizou para a liberdade, para a independência. A longa noite do fascismo não foi para mim nenhuma longa noite porque não deixei que o fosse, pessoalmente até me diverti bastante nela ... As pessoas que pertenciam aos meios da oposição e da cultura não se deixavam deformar, por isso é que elas (oposição e cultura) são valiosíssimas. Não se deve atribuir um significado absoluto aos relatos que se ouvem sobre esse tempo. Aliás, no Estado Novo havia liberdade de expressão para quem quisesse correr os riscos de exprimir a sua liberdade interior. Eu fi-lo e sofri as consequências, eram as regras do jogo. Devo dizer que a censura fascista foi o paraíso terrestre dos que não tinham liberdade interior.»

À ênfase de um jornalista sobre a liberdade trazida pelo 25 de Abril, ela provoca: «Como convencer um democrata de que a liberdade de expressão é um truque burguês com que a democracia, para satisfazer o seu economismo insaciável, fomenta as piores submissões? Já não posso com o beatério das liberdades democráticas. O actual progresso técnico acarreta o obscurantismo espiritual, que perverte a lucidez.»

E perante o bruaá da assistência, aprofunda: «Tão censurante é impedir de dizer, ou escrever, como obrigar a dizer, ou a escrever.»

Silêncio e chinfrim

A missão de criar, de comunicar, foi sempre, segundo o seu raciocínio, complexa e manipulável, frágil e desprotegida, conhecendo, por via disso, coacções frequentemente mutantes.

Nas ditaduras predominam as de natureza ideológica,nas democracias, as de natureza mercantil; nas primeiras, censura-se pelo silêncio, pela violência; nas segundas, pelo chinfrim, pela sedução.

O resultado não é muito diferente. Os profissionais da comunicação social são orientados pelos órgãos a que pertencem a actuar segundo modelos que, amiúde, violentam os outros, os violentam a eles próprios - para encherem x páginas de papel, x minutos de emissão com factos, notícias, directos, especulações de oblíqua credibilidade. Impedir esses profissionais de informar, ou pressioná-los a fazê-lo, acaba por revelar-se comportamentos afins, embora de sentido contrário.

Com volúpia, Natália prossegue no desmanchar de conveniências: «Vários dos nossos intelectuais passaram-se directamente do fascismo para o comunismo, alguns até, como certos jornalistas, da PIDE para o PCP.»

Sangue no bico

Notando saídas da sala, Natália dilata-se, altiva: «Tenho perdido o melhor do meu tempo com seres que execram o que os liberta e exaltam o que os enche de imundície. O cio autoritário dos psicopatas no poder traz sede de sangue no bico. Portugal é um país de castrados pelo terrorismo verbal.

Não presto para as suas revoluções»

Quem se surpreender com estas afirmações poderá confirmá-las (agudizadas) em livros como Não Percas a Rosa - Natália Correia não era pessoa de equívocos nem ambiguidades.

«Vai ser preciso passarem duas décadas, ou mais, sobre a minha morte para começarem a compreender o que escrevi», desalenta -se.

Nessa noite, anotará: «Eu não sou deste mundo. Então de qual/Planeta absurdo me acontece a vida / Que o carimbo me põe de original / E a minha vida dá como perdida.»

O 25 de Abril não quis «pensar, repensar Portugal, como urgia fazer», observa. Ao Portugal (profundo) preferiu-se a Europa (light), perdendo-se uma ocasião decisiva para o fazer. Os pilares da nossa sustentabilidade - agricultura, pescas, conservas, minérios, têxteis, pecuária, reparação naval - ver-se-iam destruídos no afã liberal de seguirmos estruturas alheias, caindo em humilhantes dependências e sujeições.

Seguidora de Gonçalo Ribeiro Telles, Natália Correia não se cansa de enaltecê-lo - por mesas do Botequim, artigos de jornal, polémicas parlamentares, conferências públicas.

«Como aguenta o ambiente dos jornais?», pergunta-me. «Dando-lhe a importância que merece», respondo-lhe.

Nessa altura, tentava acreditar no entusiasmo dos meus colegas imersos no lançamento do Público com o qual queriam revolucionar a imprensa portuguesa, criando leitores, em número e exigência, como os da França e Alemanha, ou seja, os da Europa onde Portugal ascendia.

Tanto cosmopolitismo fez torcer o nariz e a ironia a Natália: «Dizem que vão vender cem mil exemplares? Ora, se venderem metade já é muito bom.» Porque a ilusão fora excessiva, excessiva se tornaria a desilusão - o costume.

Natália cirandou sempre por jornais, rádios e televisões.

Não se encantou, porém, com essas experiências por não lhe estar no feitio nivelar-se às securas qualitativas neles existentes. Esse foi um dos seus problemas: planar acima dos horizontes do jornalismo, da política, do pensamento, da cultura, da literatura, vigentes.

 

Um indivíduo (incisivo e estranho, escovado pelos hábitos do lá fora anglo-saxónico», na caracterização de Natália) surpreende o Botequim com interpretações conspirativas do 25 de Abril.

Segundo ele, havia três golpes para essa altura: o primeiro, pretendido por forças fiéis a Marcello Caetano (com a conivência de parte da PIDE/DGS) para derrotar América Thomaz e a extrema-direita; o segundo, pelo Clube de Bilderberg, mais CIAJ mais Internacional Socialista, mais Maçonaria; o terceiro (o concretizado), por correntes comunistas através de facções dos capitães e do MFA.

Questionado directamente pela anfitriã, ele pormenoriza: «Membros do Clube de Bilderberg reuniram-se, no dia 24 de Abril de 1974, no hotel suíço Mt. D' Arbois, feudo dos Rotschild», a fim «de combinarem a queda do regime português. Entre cerca de cem pessoas, contavam-se emissários de Mitterrand e de Giscard e os jornalistas A. Fontaine, do Le Monde, e Claude Mounier, do Journal de Genéve. Nessa conferência foi tomada a decisão de fazer deflagrar o golpe militar».

Apesar do cepticismo dos que o ouviam («não passa», alguém exclamou, «de um blagueur»), Natália incluiu O seu depoimento no livro Não Percas a Rosa.

Mais tarde, em conversa com Costa Gomes, a quem contará o sucedido, ela ouve (ouvimos) do marechal um comentário equívoco: «Tudo isso são partes da verdade, sim, mas não é a verdade toda!»

Os Illuminati

Mais tarde ainda, um economista (e poeta) espanhol sugestiona Natália com teorias urdidas por «um poderoso e restrito grupo de banqueiros (predominantemente judeus) e elementos das casas reais (predominantemente europeias) que, reunido após o fim da Segunda Grande Guerra no Hotel Bilderberg, na Holanda decidiu impor, não pelas armas mas pela economia, uma nova ordem mundial». Clube de Bilderberg, emanação dos Illuminat, é o seu nome.

Uma língua comum (o inglês), um exército comum (o das Nações Unidas), uma moeda comum (o euro), uma cultura comum (de modelo internacionalista,, uma informação comum (a anglo-saxónica) são objectivos seus em curso.

A queda do bloco do Leste, a explosão tecnológica, a emergência do Terceiro Mundo, o soçobrar dos impérios coloniais, favoreceram os intentos do referido grupo, que passou a dominar, além da economia, a política, a comunicação, a educação, a moda, etc. «Os seus interesses passaram a privilegiar a banca, a bolsa, a informática, deixando as indústrias de mão-de-obra intensiva ao Terceiro Mundo - por muitíssimo mais barata nele. Quando conseguirem tais (propósitos deixarão de interessar-se pela classe média, que se tornará excedentária. A sua proletarização (extinção?) dar­se-á a seguir, por insolvência. Desempregada, verá serem-lhe confiscados bens e rendimentos, a que se juntarão penhoras fiscais, cortes na saúde, na assistência, nos direitos adquiridos até ao seu esvaziamento final.»

Natália Correia, que tira apontamentos do que ouve, revela: «A primeira pessoa a falar-me nesse clube foi a Snu Abecassis. Ela era uma mulher muito bem informada, lembro-me de ouvi-la dizer que quem actualmente influencia os grandes acontecimentos mundiais é o círculo de Bilderberg.

Quase ninguém ocupa hoje cargos importantes se não tiver o seu apoio.»

Natália adorava mistérios, enredos «que estimulam a imaginação, pois revelam facetas obscuras da natureza humana, pouco importando a sua veracidade.»

O outro lado das pessoas e dos acontecimentos fascinava-a. Por isso, ao Botequim ancoravam com frequência aventureiros e alucinados, que ela cumpliciava coloridamente.

 

Sem conseguir dormir, Natália Correia levanta-se e, febrilmente, põe-se a escrever. O tempo que a oprime (Novembro de 1975) vai trazer, sente-o, viragens surpreendentes.

O Verão, nesse ano, fez-se imprevisivelmente longo. Veio cedo, em princípios de Março, foi-se tarde, em fins de Novembro - nove meses de gestação de uma utopia desmesurada.

O golpe do 11 de Março, o assalto ao República, o cerco ao Executivo pelos deficientes de guerra, a manifestação no Terreiro do Paço, o rebentamento da Rádio Renascença (pelo Governo), o sequestro da Assembleia Constituinte, o 25 de Novembro, são actos sinalizadores, balizadores, desses meses de Primavera, Estio e Outono - que ficaram na história como o Verão Quente de 1975.

«Nunca acreditei na possibilidade de haver um regime comunista em Portugal», confia-nos Costa Gomes, num Botequim trespassado de veemências: «O presidente da União Soviética tinha-me dito, aliás, que o nosso País não lhe interessava, apenas lhe interessava África. Tentei, por isso, evitar a sublevação de Novembro, mas os pára-quedistas insistiram em fazê-la. Foi pena, sofreram muito, e eram as melhores forças que tínhamos.»

O assalto e a destruição, pouco antes, dos edifícios da Embaixada de Espanha (no Salitre) e da residência do embaixador (em Palhavã) seria um ritual de vertigens. Não encontrando dispositivos policiais ou militares de vigilância, os populares (que protestavam contra o garroteamento de membros da ETA por Franco) tomaram os dois palacetes saqueando-os, esventrando-os, incendiando-os, perante a crispação de Natália.

A sua reconstrução custou ao erário público (em obras de arte, quadros, baixelas, livros, tapeçarias) mais de um milhão e meio de contos.

«Comecei a ouvir rumores de que iria fazer-se uma manifestação se o Caudilho não comutasse as penas dos cinco espanhóis condenados à morte», pormenoriza Costa Gomes, em resposta a interrogações de Natália: «Como estava de partida para a União Soviética, preveni o Otelo, comandante do Copcon. Ele, porém, não actuou. Quaisquer que sejam os motivos invocados, a destruição é sempre, como o terrorismo, seja de Estado, de grupo ou individual, uma estupidez.»

Fracturas irreversíveis

A impunidade tinha-se feito néctar embriagador. Nas ruas, os desfiles tornaram-se permanentes, nas empresas, as assembleias diárias. O país das sombras dissolvia-se e em seu lugar irrompiam, sob luzes ofuscantes, cenários dilatadores da imaginação e do caos.

«Portugal reintroduz a desordem na Europa do pós-Maio de 68», comenta Natália Correia.

As multidões forçam a história impelidas por um anarquismo voluptuoso, o que fará empalidecer as multinacionais de todas as formações - políticas, económicas, militares, religiosas, culturais, informativas.

Álvaro Cunhal declara a Oriana Falacci (que no-lo confirmou pessoalmente) jamais vir a existir parlamentarismo entre nós. Os socialistas, vencedores das eleições, as primeiras em liberdade, entram em ruptura com os comunistas e a extrema-esquerda. As divergências ideológicas causam fracturas irreversíveis.

Políticos e militares agem com dificuldade. As águas soltas submergem todas as instituições: Presidência da República, Parlamento, Governo, ministérios, tribunais, Forças Armadas, polícias, banca, escolas. Estratégias de assaltos ao poder e de resposta a esses assaltos entram em concorrência.

Vozes exigem publicamente a «ditadura do proletariado», a «morte dos fascistas», a «queda dos burgueses». Simulam-se fuzilamentos de adversários. As prisões políticas são reactivadas. Os interrogatórios, as torturas, as sevícias, as iniquidades, ressurgem. A maioria dos Capitães de Abril mantém-se, porém, vigilante. O seu objectivo de instaurar uma democracia nos moldes ocidentais não será, afiançam, alterado. Ramalho Eanes (o futuro primeiro Presidente eleito depois do fascismo), Melo Antunes, Vasco Lourenço, Jaime Neves, preparam, a nível operacional, os dispositivos para isso; a nível civil, Mário Soares polariza apoios dentro e fora do País. Em Belém, o Presidente neutraliza, com extrema habilidade, tensões de radicalismos ondulantes.

Excelente laboratório

Naquela altura «havia vários grupos que tinham ideias muito articulares de como a situação devia evoluir», referir-nos-á Costa Gomes. «Esses grupos eram influenciados por elementos que vieram até cá para provocar agitação. Portugal tornara-se-lhes um excelente laboratório. Queriam aproveitar-se da liberdade geral para instituir regimes totalitários.

Como o não podiam fazer por via pacífica, isto é, pelo voto, tentaram a via insurreccional. Recordo-me de que recebia todos os dias, no Forte de São Julião, até de madrugada, seis, sete núcleos do género. A todos avisava: os primeiros que saírem para a rua terão de enfrentar-se com as forças do Estado. Passei dias de grande aflição. Estava em contacto directo com as guarnições do País, que me garantiram sempre obediência. Tive essa sorte. O próprio Copcon, comandado pelo Otelo, nunca deixou de cumprir as minhas ordens.

Mesmo nas situações desesperadas, Otelo pôs sempre as suas estrelas à minha disposição. E tivemos várias situações dessas, como a do 28 de Setembro, em 1974, e a do 11 de Março, em 1975. No 11 de Março, estivemos muito mal.

As actuações de Spínola (que nos garantira não se demitir de Presidente da República) e de Cunhal (que lhe dissimulou a ratoeira em que caiu) tornaram-se altamente nefastas.

Fase deveras angustiante ocorreu, por exemplo, quando da retirada dos portugueses de África. Deu-me muito trabalho lidar com o embaixador Carlucci, porque precisava da ajuda americana para uma ponte aérea que os trouxesse. Ele prontificou-se, mas fez-me sentir que o seu país punha reservas por haver um governo pró-comunista em Lisboa. Isso levou-me a antecipar a demissão de Vasco Gonçalves, que estava, aliás, a levantar demasiados problemas. A gigantesca operação (a TAP teve nela um trabalho notável) efectuou-se logo a seguir com grande eficácia.»

Natália tornara-se de grande atenção com o ex-presidente da República - que encontrará nas evocações que nos faz lenitivos de apaziguamento.

«Nos tempos complicados do PREC, chegaram a utilizar o meu filho para me manipular. Ele militava então na Juventude Comunista, fervia em pouca água, era muito ingénuo, romântico também. Para o não decepcionar fingia ceder às estratégias que apresentava ... os do seu grupo diziam, convictos, de que me tinham na mão, divertia-me a alimentar-lhes essas fantasias. Aliás, muitos outros, partidos, organizações, etc., julgavam o mesmo, era tudo tão caricato, tão irresponsável, tão dramático!»

Discurso cálido

O nome de Melo Antunes entrou no Botequim pela voz de Carlos Plantier, seu amigo e venerador. Natália não lhe prestou importância: «Ora, mais um soldado!», exclamou. Jornalista de afabilidades, Plantier sorriu - e insistiu.

Sempre que se falava de política, de movimentações militares, ele destacava o major, insistindo em lembrar ser «descendente de açorianos». Foi por aí, por essa ligação ao (seu) arquipélago, que Natália lhe reteve a graça.

Certa noite, Plantier mostrou uma carta que enviara ao amigo, antes do 25 de Abril, muito desiludido com o arrastar da Guerra Colonial: «Porque não larga a farda e muda de carreira? Vejo-o melhor a ensinar filosofia do que a dar ordem de fogo», sugeria-lhe. Melo Antunes não largou a farda nem mudou de carreira.

Quando o conheceu, Natália anotou: «Tem um discurso cálido e penetrante», com «sublinhados ora sergianos, ora gramscianos». «A sua reputação de ideólogo do MFA foi ganha a partir de muitas leituras», «é um literato do marxismo alinhado no doutrinal do MES», com «ressonâncias esquerdistas do salazarismo». Nutre «óbvio desapreço pela partidocracia. »

Inequívocas galhardias

O suceder dos acontecimentos após o 25 de Abril depressa tornou o Botequim uma referência na luta (civil) pela democracia.

Natália, que a liderava entre os escritores, tornou-se centro de atenções especiais por parte dos capitães contrários à esquerdização em curso.

Daí eles passarem a contactá-Ia, noites seguidas, discutindo estratégias em planificação - Melo Antunes, fascinado por ela, e Vasco Lourenço, e Vítor Alves, e alguns civis de idêntica inquietação, apoiados por jornalistas de A Luta (sucessora do República), do Jornal Novo (dirigido por um brilhante Artur Portela Filho), de O Jornal (decisivo no pender da balança), de O Dia (fundado pelos saneados políticos do Diário de Notícias), nos quais Natália colaborava após ter sido censurada no vespertino A Capital.

Faíscas de guerra civil adensavam-se à volta. H. Oliveira Marques, então director da Biblioteca Nacional, lembrava a imensa história do País para alentar os que lutavam pela democracia.

Mário Soares, Salgado Zenha, Francisco Sá Carneiro, Diogo Freitas do Amaral, Gonçalo Ribeiro Telles lideravam os seus partidos na peugada do Grupo dos Nove. Entre eles, sobre eles, Natália aspergia mitos, músicas, poemas, veemências, discursos, seduções, desmesurada em delírios e magnificências.

Também em radicalismos e injustiças: a maneira como, no Verão Quente de 1975, tratou Costa Gomes, OteIo, Cunhal, Luiz Francisco Rebello, José Saramago, só não lhe provocou remorsos porque todos lhe mostraram (mais tarde) inequívocas lealdades. Deles, apenas Cunhal não frequentou o Botequim. Teve sempre, porém, grande cordialidade com ela, que ela retribuía, aproveitando ambos, sempre que se encontravam, para se alfinetarem em cascatas de ironia e apreço.

«Das poucas coisas que me agradam nas recepções é encontrar a Natália Correia e poder provocá-la. É uma mulher muito corajosa e inteligente!», comentar-me-á, a propósito, o líder dos comunistas.

Jogral da revolução

Capitães de Abril exteriores ao PCP tornam-se críticos do rumo do País - então sob a direcção governativa de Vasco Gonçalves. Melo Antunes, Vítor Crespo, Vítor Alves, Vasco Lourenço e Sousa e Castro são, deles, os mais decididos.

O lançamento de um manifesto separador de águas entra em execução. O Documento dos Nove, designação por que se tornará conhecido, sai do Botequim («nicho dos esconjurados» como, à época, era designado) para os jornais, provocando uma reviravolta na revolução, no País.

«Bom, isso dos nove só é verdade no que diz respeito à sua primeira versão. Houve outros autores, praticamente todos os militares antigonçalvistas intervieram nele.

Dezassete assinaram uma dessas versões do texto, entre eles Ramalho Eanes, Jaime Neves, Tomé Pinto, Loureiro dos Santos, Garcia dos Santos e eu.» O eu pertencia ao major Aventino Teixeira, «quebra-louças nos plenários do MFA manipulados pelos pregadores da cruzada fardada por Moscovo», no dizer de Natália, que nutria por ele (antes de se desentenderem) grande fascínio, designando-o mesmo por «o jogral da revolução».

Falsos fuzilamentos

Um militar vindo com Melo Antunes conta, ante o constrangimento de Natália, estarem detidos, nessa altura, «mais de um milhar de presos políticos (quando se libertou Caxias, a 27 de Abril, havia oitenta), muitos sem culpa formada, sujeitos a interrogatórios de trinta e mais horas seguidas, de tortura do sono e da estátua, de choques eléctricos, de ameaças com armas de fogo, de simulação de fuzilamentos e estrangulamentos ... »

Basta, basta, gritam-lhe, em agonia, alguns dos presentes.

Para Natália isso não constituía, porém, surpresa: «A um jovem próximo dos meus familiares anunciaram que ia ser fuzilado», revelará: «Vendaram-lhe os olhos, encostaram-no a um muro e dispararam para o ar. A sua mente, brutalmente abalada, mergulhou numa insânia de que ainda hoje não despertou. Esses comportamentos vão ser, no futuro, fatais para a esquerda!»

Luís de Sousa Holstein, duque de Palmela, foi vítima de três falsos fuzilamentos na parada de Caxias. Quando a sua mulher, Maria Teresa Palha, conseguiu ser recebida pelos militares, diz-lhes: «Não venho pedir nada, venho só saber porque é que o meu marido está preso.»

Um deles interrompe-a com a pergunta: «Oiça, porque é que o seu marido é duque?»

Ela respondeu, comentando: «Ah, então é isso, estão a querer esmagar as famílias tradicionais do País.»

A mãe do duque, que fora embaixatriz em Londres na década de quarenta, receberá telefonemas regulares da rainha Isabel II, preocupada com a situação do detido. A monarca, bem como alguns dos seus familiares, fez questão de visitar os Palmelas na sua quinta do Calhariz, em Sesimbra, quando se deslocou a Portugal. Libertado (meio ano depois) Luís de Sousa Holstein ficou irremediavelmente afectado, falecendo a seguir.

O episódio foi contado por Fernanda Leitão. Amiga de Natália Correia, de Edite Soeiro, de muitos de nós, aquela jornalista afastou-se no Verão Quente, para mágoa dos que lhe queriam, radicalizando-se (ideologicamente) à extrema­direita. Inconformada, fixou-se para sempre no Canadá.

Nessa altura, Natália recebia quase diariamente ameaças escritas e telefonadas, além de insultos em lugares públicos. «Por três vezes», anota, «subiram ao meu quinto andar perguntando, numa velada tentativa de ocupação, quantas divisões tinha a minha casa. Apanharam sempre com a porta na cara. Da última, respondi-lhes: "São poucas para a minha biblioteca e, se não sabem o que é isso, vão aprender a Ier?»

Na mesma altura, Jorge de Sena manifesta-me a sua «repugnância por uma comissão de mulheres que, duas vezes seguidas, tentou assaltar e ocupar a minha casa do Restelo.

Só o não conseguiu porque os vizinhos e conhecidos da zona se opuseram à infâmia.»

Em assembleias realizadas nas Belas-Artes e na Sociedade Portuguesa de Autores, Natália é escarnecida sem pudor. Nos programas de ensino, Camões e Pessoa vêem-se censurados por «imperialistas»; Amália é apodada de «fascista»; Miguel Torgal Vitorino Nemésio, David Mourão-Ferreira, António José Saraiva, Fernando Namora, Vergílio Ferreira apanham com o labéu de «reaccionários»; Amélia Rey Colaço (a maior figura do teatro português do século XX) sente-se apunhalada por muitos que se diziam seus. A demência crepita.

Astúcia de general

Noutros planos o tecido do País rasga-se fragosamente.

A guerra civil (evitada pela astúcia de um general na presidência da República Costa Gomes) parece iminente. Os secretariados do PS, do PSD e do CDS abandonam a capital. O mesmo preparam alguns jornais, como A Luta. Parte da Assembleia da República irá para o Palácio da Bolsa, no Porto (tutelado pelo brigadeiro Pires Veloso, o Vice-Rei do Nortes, local para onde passarão as emissões da RTP a 25 de Novembro.

Portugal parece uma caçarola ao lume. Solicitada, Natália Correia corre sobre fios de navalha de um lado para o outro: «A estupidez dos que me chamam marginal, reaccionária, etc., é não perceberem que tanto se me dá que me chamem isto ou aquilo. Porque eu só dou pelo nome do que sou. E o que eu sou avança pelo meio dessa gente com pernas que não tremem, ao encontro do que me horroriza para que o horror não me governe.» Do Norte, telefonemas amigos chamam-na insistentemente - para seu resguardo. Ignora-os.

Não Percas a Rosa, diário que Natália escreveu sobre o chamado Verão Quente de 75, tornou-se uma premonição do fim do 25 de Abril, da queda do bloco de Leste, da supremacia liberalista da ditadura mercantilista, da perversão globalizadora.

A génese do livro surgiu-lhe, num findar de tarde, em Tomar. Quando se sentia inquieta ela procurava, para se recolher, o convento daquela cidade. Ao descer a escadaria do monumento, uma mulher idosa, vestida de negro, aproximou-se e, enigmática, estendeu-lhe uma rosa rubra, dizendo­lhe: «Toma, não a percas!» E, rápida, desapareceu.

Natália ficou durante muito tempo silenciosa. Depois, murmurou: «É um sinal que o Destino me envia para continuar.»

 

Em silêncio, Ramalho Eanes tece, juntamente com outros operacionais, fios de eficaz (como se verificou) actuação. «Ele foi-me apresentado por Álvaro Guerra», evoca Natália, «na ressaca da crise da TV de que era presidente e se afastou num exemplar horror pela guincharia daquele então jardim zoológico.»

O povo português «é horizontal, psiquicamente efeminado, capaz de raivas feminis, se o deslocam dessa posição.

É o que está a acontecer. Por isso ele está a afiar as facas para defender a sua postura horizontal - de espera», anota em letra febril, após cear com Eduardo Luiz Cortezão, que se agrada no acompanhá-la.

Mudando rapidamente de registo, ela destaca: «Em Portugal, tudo é ameno. O fascismo era turístico. As touradas são a arte de promover sem cumprir a liturgia do sangue. As revoluções são banquetes de cravos que produzem arrotos aromáticos. O que muitos antifascistas abominam na PIDE é o ela não ter feito deles anjos de asas ensanguentadas.»

Taconero ordinário

Ao piano, a actriz Maria Paula cantava enfáticos versos de Fernando Teixeira (médico analista de Natália) com músicas de zarzuelas, ridicularizando Otelo Saraiva de Carvalho: «Donde vas taconero ordinário?»

Alguns dos presentes, igualmente enfáticos, acompanhavam-na, «taconero ordinário, ordinário, donde vas?», o que abriria fissuras irremediáveis no Botequim.

As intervenções televisivas de Francisco Pereira de Moura faziam gargalhar a ala direitista do bar, provocando cantorias igualmente chistosas, como «Ai, olariloleia/ Como este não há nenhum/ Karl Marx e água benta / Resultado: trinta e um».

Natália tentava pôr água na fervura, batendo com a boquilha (deixaria de fumar dez anos depois) nos mais exaltados. Sem êxito. A ruptura acabaria por dar-se levando-os, capitaneados por Maria Paula, para outros pianos.

Limite da rotação

Deserto o Botequim, Natália mostra-me uma carta daquele que considera ser o seu Mestre - cuja identidade não revela, porém. «Quando a revolução marxista se deteve em Lisboa», comunica-lhe ele, «viu-se que a roda do mundo atingiu o limite da rotação, antes de desandar. Na economia misteriosa da história, Portugal foi o peso minúsculo que fez inclinar todo o conjunto.» Pouco depois a URSS desmoronava-se.

A seriedade intelectual de Natália levava-a a não omitir erros (injustiças, desvarios) cometidos pelos que lhes eram próximos. Não hesitou, por isso, em distanciar-se, no ano de 1975, da (sua) esquerda, de demarcar-se do feminismo que, a Primeira República, levou as mulheres a apoiarem Afonso Costa na trágica decisão de atirar Portugal para o matadouro da primeira Guerra Mundial.

«Incompreensível essa atitude, sobretudo por parte de vultos como Ana de Castro Osório, que criou a Comissão Feminina pela Pátria, ou como Adelaide Cabete que lançou a Cruzada das Mulheres Portuguesas em apoio de tamanha infâmia. E isso depois de Afonso Costa ter impedido as mulheres de votar, uma vergonha! Elas comportaram-se, afinal, de maneira não muito diferente da das senhoras do Movimento Nacional Feminino, que actuaram nas guerras coloniais do fascismo».

A seu lado, o historiador Oliveira Marques sorria. Saltando sobre o tempo, logo Natália investia contra as mulheres que, em cargos de decisão, «se comportam hoje pior do que os homens», ultrapassando-os no que eles «têm de mais brutal».

Em vez de «praticarem a superioridade do feminino, como a afectuosidade, a sensibilidade, não, parecem travestis! Vejam-se, por exemplo, as atitudes implacáveis das que dirigem departamentos de recursos humanos em empresas com processos de despedimentos de trabalhadores. Grotescas!» As «carpideiras do vitimismo feminino» irritavam-na igualmente.

«Se quiserem extrair da minha poesia uma teologia do feminino», contrapunha, «não estão longe da verdade. Repito, no entanto, que esse feminino não é exclusivo da mulher, mas também qualidade do homem tal como miticamente está representado no ser bissexuado da unidade primordial - a androginia.»

 

Álvaro Cunhal torna-se para Natália uma personagem de ficção. Admira-lhe a coerência, sedu-la a elegância, mas rejeita-lhe a implacabilidade.

O dirigente comunista (que o sabe) explora isso nos encontros com ela. Encontros em ocasiões sociais, sobretudo recepções político-mundanas, normalmente propícias a jogos do género. Natália provoca-o com gosto, com garridice.

Chama-lhe «príncipe», ele adora), gaba-lhe os fatos (idem), esgrime opiniões literárias, artísticas, que Cunhal, por norma, contraria para a irritar. Os seus duelos são magníficos de inteligência, ironia, afectuosidade, admiração mútua.

«Cunhal agarra-se a uma juventude tardia», afirma ela, «para se defender do cepticismo da maturidade. Daí a composição desportiva da sua aparência (camisa aberta sobre o peito) fabricada para enganar o peso dos anos. O contraste entre o guarda-roupa juvenil e a bela cabeleira branca, que romanticamente lhe emoldura as feições de pedra funerária, imprime-lhe uma forte sedução erótica. Ele põe as pessoas a roer as unhas.

Roem-nas até deixarem o sabugo em sangue. Depois chamam­lhe vampiro. O Dr. Cunhal hipnotiza, investe, espatifa - destrói!»

Um dirigente de extrema-esquerda revelará no Botequim (ante uma Natália estupefacta) que o então seu partido, já extinto, andou durante algum tempo a estudar o «tipo de mulher» preferido por Álvaro Cunhal. O grupo pretendia infiltrar uma jovem na intimidade do dirigente Comunista para lhe obter informações e confidências que permitissem atacá-lo. O estudo feito revelou que ele era «especialmente sensível» a «mulheres magras, angulosas, de seio frágil e temperamento forte». Nenhuma militante da associação aceitou, porém, representar o papel proposto.

Chá de Cunhal

Natália Correia será, com Agostinho da Silva, Miguel Torga e Álvaro Cunhal, dos que, entre nós, mais se surpreendem com «a leviandade dos responsáveis pelo PS, PSD e CDS ao imporem-nos a CEE».

No bar do Parlamento, o líder comunista, que nos oferece um chá, apoia-a nas suas tiradas contra a arrogância, o desprezo dos governantes ao amarrarem os Portugueses, sem os consultar, «à fatídica adesão».

Natália não se detém: «A nossa entrada vai provocar gravíssimos retrocessos no País, a Europa não é solidária com ninguém, explorar-nos-á miseravelmente como grande agiota que nunca deixou de ser. A sua vocação é ser colonialista.»

Quando Cunhal paga as nossas bebidas, Natália acicata-o: «Mas um comunista apoia vícios burgueses?»

Fingindo-se sério, ele responde-lhe: «E quem lhe disse que o chá é um vício burguês, proibido aos comunistas? Fique sabendo que no Kremlin se toma excelente chá!»

«Melhor do que no Vaticano?», atalha ela.

«Tudo no Kremlin é melhor do que no Vaticano», responde-lhe, sem se perturbar, Álvaro Cunhal.

 

Nas suas deslocações pelo interior, a seguir ao 25 de Abril, Natália Correia depressa se apercebeu das alterações surgidas na paisagem do País. Comércios, cafés, restaurantes, odores, músicas, jovens de pele e olhar quentes, logo surpreendiam os que passavam. Ela foi das primeiras vozes (nos meios intelectuais) a evidenciá-lo: «Este é o grande fenómeno da actualidade. A debandada dos que habitavam o império, que não foram protegidos como deveriam ter sido, constitui o maior êxodo da segunda metade do século XX a nível mundial.»

E alerta para «o que poderá passar-se depois do período da integração» dos retomados - chamava-lhes deslocados - se é que ela (integração) foi real. «A sua influência na sociedade portuguesa não vai sentir-se apenas agora, embora seja já imensa», antecipou: «Vai dar-se sobretudo quando os seus filhos, hoje crianças, crescerem e tomarem o poder. Preparem-se porque vão fazê-lo. Essa será uma geração bem preparada e determinada, sobretudo muito realista devido ao trauma da descolonização, que não compreendeu nem aceitou, nem esqueceu. Os genes de África estão nela para sempre, dando-lhe visões do País diferentes das nossas. Mais largas mas menos profundas. Isso levará os que desempenharem cargos de responsabilidade a cair na tentação de querer modificar-nos, por pulsões inconscientes de, sei lá, talvez vingança Será um fenómeno crucial daqui por uns trinta anos.»

 

Natália apreciava a afabilidade e a cultura de Franco Nogueira, o poderoso ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar. Ouviam-se com cordialidade e frequência nas recepções que frequentavam - com razoável gosto.

«Não me surpreenderia se daqui a duas décadas muitas pessoas, hoje de esquerda, puserem em causa o 25 de Abril e lamentem a perda do império», exclama ele: «Aliás, nós estávamos convencidos da implosão do império soviético, o que anularia a ajuda russa aos movimentos africanos, ajuda que começara, aliás, a enfraquecer. Nos princípios da década de setenta, os guerrilheiros lutavam já com falta de armas, de munições, os problemas internos da URSS multiplicavam-se, Afeganistão era um poço sem fundo. Os americanos, por sua vez, e apesar do Vietname, iam cair no sorvedouro do Médio Oriente. Aos dois blocos interessava, assim, resolver rapidamente a questão portuguesa, e a maneira mais eficaz e barata de o conseguirem era fazer colapsar o regime a partir de Lisboa. Os capitães de Abril foram oiro sobre azul. Se o chefe do Governo português fosse outro tinha-se aproveitado da conjuntura negociando uma autonomia progressiva conducente a independências mistas. Tudo podia ter sido diferente, estaríamos hoje, nós e os africanos, noutra situação, com outras perspectivas, com outro presente e outro futuro. Assim, vamos atravessar períodos terríveis por causa da CEE, Portugal pode não sobreviver.»

Fervorosos revolucionários

Francisco Pereira de Moura, prestigiado economista e bandeira (antes do 25 de Abril) do CDE, decepciona Natália, e muitos no Botequim, ao afirmar, pela RTP que de cada cem escudos (e exibe, triunfante, uma nota dessa importância), «sessenta iam para a manutenção da Guerra Colonial. Agora que ela acabou ficam no bolso dos Portugueses.»

Economistas presentes no bar (antigos alunos seus) cobrem a cara pelo que ouvem. Natália não se contém: «Este homem, que eu tanto admirei, para dizer o que diz foi objecto de chantagem, só pode!»

Era frequente pessoas (públicas) serem pressionadas a apoiar certos grupos por estes terem subtraído das instalações da PIDE/DGS as suas fichas com inconvenientes «manchas» pessoais. No mundo da comunicação social, isso tornou-se mesmo vulgar.

Revelo a Natália identidades de informadores da polícia nos jornais de esquerda (nomes inimagináveis) que Raul Rego me confidenciara.

Com a nobreza que a caracterizava, ela nada afirmou, e alguns eram frequentadores do bar - além de fervorosos revolucionários.

 

Certa noite, uns sujeitos engravatados e graves entram e sentam-se a uma mesa isolada, junto ao piano. Natália segue­os com o olhar, surpresa por não a terem reverenciado.

De soslaio, passa a observá-los e a detestá-los.

«Esquisitos, parecem polícias!», exclama entre pequena fúria e grande curiosidade - a curiosidade matava-a.

Não se contendo, levantou-se em voo largo e picou sobre Carlinhos, pedindo-lhe música branda.

Um dos estranhos ergueu-se e dirigiu-se-lhe: «Senhora Dona Natália, nós somos juízes e queríamos ... »

Ela fulminou-o: «Juízes? Eu não gosto da gente dos tribunais!»

O seu interlocutor corrigiu: «Mas nós somos dos Estudos Judiciários ... »

Ela voltou a fulminá-lo: «Da Judiciária!»

«Não, dos Estudos Judiciários», exclamou.

«Ora, é tudo a mesma coisa!», e virou-lhes as costas.

Com paciente ironia, Laborinho Lúcio deixou passar a espuma do vagalhão nataliano e, certeiro, disparou: «Bom, não vai ficar, por certo, indiferente se lhe dissermos que no nosso curso há dezenas de pessoas a estudarem a sua peça Uma Estátua para Herodes»,

Sem o deixar acabar a frase, ela volta-se e, num ápice, aproxima-se da sua mesa, sorriso largo, olhar prazenteiro «ah, mas isso é muito interessante», e abanca com eles, que se levantam, «sentem-se, afinal são uns cavalheiros!»

«Eu sabia como dar-lhe a volta», dirá mais tarde Laborinho Lúcio.

Mais tarde, Natália irá, entusiasmada, ao Centro de Estudos Judiciários, onde, sala a abarrotar, será ouvida, questionada, apaparicada, numa inesquecível sessão-conferência que a vingou «do que os juízes do execrável Plenário» a fizeram passar antes do 25 de Abril.

Ela fora, como se sabe, processada pelo Governo de Marcello Caetano por ter organizado uma antologia de poesia portuguesa erótica e satírica. O seu advogado, Palma Carlos, conseguiria com grande custo demovê-la de ler, no julgamento, um longo (e memorável) poema contra os juízes («é doida varrida, se o tivesse feito levava uma talhada que não se endireitava!», exclamou aquele causídico), juízes que lhe aplicariam três anos de pena suspensa. Valeu-lhe o 25 de Abril.

Laborinho Lúcio depressa se tornou uma das personalidades que Natália mais admirava, pela sua cultura e inteligência, lucidez e afectuosidade - «e por escrever e falar muito, muitíssimo bem».

Com irresistível sentido de humor ele contará que quando, anos depois, foi convidado para Ministro da República nos Açores, hesitou: «De noite, porém, acordei com a voz da Natália a ordenar-me, peremptoriamente, que aceitasse. E aceitei!»

Será incansável, como o foram Mota Amaral (presidente da Assembleia da República) e Berta Cabral (presidente da Câmara de Ponta Delgada), no apoio às grandiosas homenagens que Ângela Almeida promoveu em São Miguel (enquadradas por excepcional exposição) em memória da autora de Armistício. Manuela Eanes, Dórdio Guimarães, António Vitorino de Almeida, José Anes, António Gonçalves, Rui de Sousa, António Vilhena, Victor Meireles (eu próprio) integraram, entre outros, esse tributo que, nos Açores, lhe foi prestado.

 

Incluída no grupo, Mãe Verdades, célebre astróloga e médium angolana, emergiu em Ponta Delgada para contactar o espírito de Natália na terra onde nasceu, a fim de saber através dele informações sobre o futuro do seu país.

Os que, como nós, estavam habituados ao universo da desaparecida não estranharam a presença da exótica vidente ali entornada de um filme de Fellini.

Acompanhava-a uma secretária pessoal, obedientíssima, silenciosíssima, a quem o Miguel Galvão Telles apelidou, mordaz, de Escrava lsaura, e de quem nunca se soube se teria (outro) nome. Vestiam ambas sumptuosos trajes encimados por turbantes adiamantados (sim, de diamantes), que as tornavam, naquele ambiente, ficções encantatórias.

Francisco Baptista Russo depressa se fascinou com Mãe Verdades, que se sentava a seu lado na sala de jantar do hotel, caindo na imprudência de lhe revelar que Natália desconfiara de ele trazer, encostada, uma entidade perniciosa, causa dos seus problemas - o que logo levaria a arguta sacerdotisa a enleá-lo em teias de habilidosa, proveitosa, sedução.

         Igreja em Algés

Não conseguindo sintonizar Natália no além («o estar em ponta Delgada não facilitou o contacto, ao contrário do que eu pensava», justificou), a angolana convenceu Baptista Russo a participar numa sessão especial que iria realizar, para o efeito, na sua igreja, em Algés: «É preciso anular o mau olhado que o afecta, mas antes necessito de consultar o espírito da nossa amiga. Depois disso, liberto-o, serão apenas precisos dez contos.»

O apelido Baptista Russo saiu sempre caro ao Francisco.

A mim, sabendo-me pelintra, não incomodou. Regressados a Lisboa, acompanhei-o uma manhã a Algés. «Não se esqueça de trazer uma fotografia recente de Natália Correia para ela se sentir atraída e nos falar», recomendou.

A igreja era uma cave incaracterística em torre de apartamentos, cheia de fiéis dormentes. De foto numa mão e duas notas de cinco mil escudos noutra, Baptista Russo desceu, retraído. Desembocámos numa sala com cadeiras de plástico alinhadas em filas, sob odores de incenso e luzes de velas electrificadas.

Numa poltrona estava esparramada a Mãe, que, sorrindo, nos fez sentar em mesa onde se espalhavam pagelas de santas e santinhas. Pegando no retrato de Natália, misturou-o nelas, que logo volte ou como cartas de baralho desirmanado.

Depois, disse-me: «Pode utilizar o gravador, como me pediu.

Se a nossa amiga baixar até pode registar a sua voz.» Não baixou.

Do além apenas se distinguiriam impropérios de um missionário do século XVII defenestrado no Brasil por índios irritados com a sua mania de os querer converter ao catolicismo.

O jesuíta, que ainda era familiar (afastado) do Francisco, segundo disse, ficara furioso por estar a ser questionado na presença do parente.

A Mãe contorcia-se guinchando silvos nada elegantes, enquanto punha os olhos em alvo, isto é, nos ponteiros do relógio e nas notas do banco.

De repente, outro espírito atravancou-se-lhe, enxotando o do padre. Mais prático e cúmplice, o segundo indicava à Mamã como passar sem riscos, na sua próxima deslocação a Luanda, as pedras preciosas que lhe asseguravam a subsistência e o poder.

Tentando aliciar a carteira do (estupefacto) Francisco para investimentos, ela contou que a entidade acabada de pousar era a de um antigo sócio abatido por Savimbi (Savimbi executara já uma filha sua), que a ajudava agora a vingar-se do líder do Galo Negro.

A vingança consistia em surripiar diamantes à UNITA e vendê-los na Europa, cabendo ao falecido engendrar do lado de lá truques para fintar as alfândegas do lado de cá. Nessa mensagem, ele indicava que a Mãe deveria introduzir diamantes numa (grande) laranja e fingir que a descascava quando, nos aeroportos, passasse pelas autoridades.

Ela assim faria - assim fez com toda a naturalidade, contou-me semanas depois, num telefonema às seis da manhã, após transpor o aeroporto da Portela: «Quer uma laranja?

Custa dois mil contos, vale dez vezes mais em Amesterdão.»

Natália nunca respondeu às invocações ali feitas. Francisco Baptista Russo desistiu de tudo, ficando apenas com a cassete - e a maldição do antepassado pregador. De Natália, nicles!

Mais tarde Dórdio contar-nos-ia que a mulher evitava a Mãe Verdades por achar pouca verdade nela - daí nunca ter respondido às suas convocações.

A exposição de Ponta Delgada, intitulada «Mãe Ilha», estivera antes em Lisboa, no Palácio Galveias, onde mais tarde se realizaria uma outra (também notável) mostra, «As Colecções de Arte do Espólio de Natália Correia e Dórdio Guimarães», impulsionada por Helena Roseta e Luiz Fagundes Duarte - que fariam um excepcional trabalho na preservação dos bens da poeta. Os dois ligar-se-iam, em 2003, a uma exposição na Livraria Parlamentar da Assembleia da República em memória de Natália Correia.

Diversas outras iniciativas, caso das conferências realizadas na Universidade do Porto, por iniciativa da professora Cristina Marinho, e das sessões e tertúlias multiplicadas pelo País, homenagearam então a desaparecida.

 

Na tarde de 14 de Julho de 1976, Natália Correia segue atentamente a investidura no cargo de Chefe do Estado de um oficial do Exército português recém-promovido a general pelo seu papel na democratização do País.

Com 61,5 por cento de votos e auréola de herói, António Ramalho Eanes - de quem ela se faria amiga intocável ­ tornava-se, aos quarenta e um anos, no mais jovem, mais grave, Presidente da República.

Natália começou a apreciá-lo quando ele, destacado para a RTP restituiu o programa «Se bem me Lembro» a Vitorino Nemésio, que forças de esquerda haviam saneado sob a acusação de reaccionário. Forças essas que levariam o próprio Eanes a, tempos depois, bater com a porta na televisão.

Ele fora chamado por Spínola (encontrava-se no Norte de Angola) para coordenar a Comissão ad hoc da Imprensa, no Palácio Foz, de onde transitou para os estúdios do Lumiar.

Os primeiros embates com os jornalistas foram, no entanto, algo crispados, levando (a indomável) Edite Soeiro a contestá-lo por o considerar «censor dos capitães revolucionários». Natália depressa a faria mudar de opinião, e a render-se à «espessura ética e humanista» do «esquivo militar»·

Grande firmeza

Apoiante e subscritor do Grupo dos Nove, Eanes passaria a ser referência no Botequim, onde Melo Antunes, Vítor Alves, Vasco Lourenço, Aventino Teixeira e, mais tarde, Costa Gomes lhe destacavam qualidades de liderança e rectidão, coragem e persistência excepcionais - até Sá Carneiro e Mário Soares, antes de se zangarem com ele, o elogiavam.

A Ramalho Eanes se deve a estratégia-base que culminou no 25 de Novembro, evitando a guerra civil e abrindo Portugal à normalidade do modelo democrático ocidental.

Com grande firmeza impediu então vinganças e perseguições que seriam trágicas para o País. O Conselho da Revolução escolheu-o um ano depois (ele votou contra si mesmo) para candidato à Presidência da República. A partir daí, Natália Correia será uma das vozes que mais empenhadamente estarão a seu lado - o que ele retribui com inigualável lealdade.

Temido e amado

A memória era-lhe um património intocável. Saído da Academia Militar, desembarca em Goa (episódio exultante para Natália) com Os Lusíadas debaixo do braço - e apaixona-se para sempre pelo Oriente. «O conhecimento de uma realidade histórica, como o Império Português, foi muito enriquecedor para mim», dirá.

Macau, Moçambique, Guiné, Angola ser-lhe-ão depois palcos de comissões repetidas, multiplicadas: «Na guerra assisti a homens que morriam suplicando-me que lhes desse a vida, que os não deixasse sucumbir. Era a atracção pelo abismo, pela morte, a vida entre Thanatos e Eros.»

Aos trinta e cinco anos, interrompe a estada na Guiné para casar. «Conhecemo-nos», contará Manuela Eanes a Natália Correia, «quando o António era coordenador dos Serviços Culturais da Academia e eu andava na Faculdades.»

Notável apreço

Na Guiné, torna-se perito em acção psicológica - como Otelo; e próximo de Spínola - como Otelo. De Otelo dirá (no prefácio de um livro citado amiúde por Natália) que «é uma personagem apaixonante. Para ele a vida era muito um sonho. Só é racional em situações-limite. Fora delas é um afectivo, um romântico, com manifesta necessidade de ser amado. Não sendo o actor único, ele foi o actor principal do 25 de Abril».

As relações que aprofunda com as pessoas das letras, das artes, do espectáculo, da cultura, da comunicação, tornam­se de grande apreço. As suas presidências (bem como as de Mário Soares e Jorge Sampaio) marcam períodos de grande dignificação entre a chefia do Estado e a intelligentzia do País.

A literatura, a pintura, a escultura, a música, representam para si, desde jovem, refúgios apetecidos. Como o teatro: «Gosto muito de ler teatro, apaixonam-me os diálogos, os rituais cénicos. Quando o leio interpreto para mim próprio as personagens que me interessam, posso ser eu e elas ao mesmo tempo, é fascinante.»

«Ele parece, por vezes, saído de uma peça grega. É um ser que transporta o mistério, por isso muitos são os que ou idolatram, ou o amesquinham», comenta Natália.

Uma ameaça

«A política tem de ser feita», pormenoriza Eanes, «respeitando uma moral, a moral da responsabilidade. Eu quis, como Presidente, que fosse também respeitada a moral da convicção.

Exagerei. Ao privilegiar a convicção fiz com que algumas pessoas se crispassem e dissessem: com aquele tipo, que era eu, não se pode sequer negociar. Penso que prejudiquei muitos dos seus interesses, até sem o saber. Por isso, fui olhado como um perigo, uma ameaça.»

Há pessoas que «me detestam por motivos pessoais», afirma, «por antipatia, por preconceitos, porque a certa altura resolvi ajudar a fazer um partido que era um pouco antipartido. Não foi por apego ao poder que o fiz, se me sentisse seduzido por ele não teria resistido a alguns convites extremamente interessantes que me foram feitos e que o perpetuariam pela minha vida fora».

Muitos são os comportamentos ilógicos, incompreensíveis que alguns (no Botequim) lhe atribuem. «Ele esteve no poder num período atribuladíssimo, dificílimo, da vida portuguesa», contrapõe a autora de Madona: «A sua actuação não pode ser julgada como se julga a dos outros presidentes.»

Eanes é o primeiro a ter consciência da sua atracção para o (politicamente) fatal. Não recua, porém, mesmo que Outros sejam arrastados: «Senti a marginalização e tentei viver fora dela. Reagi, como tímido, liderando.»

Ante o sorriso enigmático de Natália, Vítor Alves graceja: «Ele assume o defeito de ser injusto com os amigos.»

«É verdade, deixei cair muitos amigos», reconhece o visado. «Tentei sempre que o exercício da função tivesse apenas a ver com os imperativos da mesma, não com as amizades, não com as relações familiares. Nunca tive na Presidência da República nenhum familiar, alguns tinham habilitações e gosto em estar lá.»

Para a maioria, Eanes surgiu (ungido) de cima para baixo, do mistério para o poder; não de baixo para cima, não dos partidos para a presidência. Quando o público o fixa, é já um herói, um mito em ascensão.

O povo, num misto de temor e amor, fascina-se com o imperscrutável que dele emana - e constrói-o à medida dos seus desejos, das suas aflições.

A sua postura grave e densa, o seu perfil seguro e penetrante apanharam, segundo Natália Correia, «a recta final dos dois modelos dominantes no imaginário político português: o do Poder-Pai (Sidónio, Carmona, Salazar, Eanes) e o do Poder-Mãe (D. Carlos, Thomaz, Pintasilgo, Soares), que se têm sucedido, alternado, com indesmentível sucesso. Outro modelo vai surgir, o do Poder-Irmão, menos vincado e impositivo. Isso levou-me a acrescentar ao paradigma da Pátria e da Mátria (o termo Mátria foi, como se sabe, criado pelo padre António Vieira, não por mim), o da Frátria. Tenho muita curiosidade em saber se funcionará!»

Uma ficção

O poder é «uma ficção», «uma encenação», destaca Eanes: «Vivi um período em que tinha o poder formal, mas não tinha poder real. Foi em 1980, antes de ser reeleito, quando os partidos e os políticos me hostilizaram. Foi uma grande experiência para mim, um despertar. Percebi que muitos dos que se diziam meus amigos não o eram. Eram amigos apenas dos seus interesses. Ora a lealdade é fundamental, a sua negação causou-me várias decepções, vários dissabores.

Houve alguém muito conhecido no nosso meio que só numa semana me escreveu três cartas: na primeira manifestava­me o seu apoio, na segunda retirava-mo, na última voltava a reafirmá-lo. Queimei-as porque tive vergonha por ele. Quem as lesse ficava a pensar que o seu autor era um canalha. Mas não, tinha era medo. Toda a gente tem direito de ter medo.»

Ele próprio o sentiu. Rapidamente, porém, o venceu: «Sentia mais raiva do que medo», precisa.

O direito de roubar

De extrema afabilidade, quase humildade, torna-se curioso vê-lo sair do Mercedes em que se transporta e avançar disponível para os outros. Alguns dirigem-lhe palavras, fazem-lhe pedidos (a sua imagem continua a transmitir poder), desdobram-lhe queixas, desesperos.

«É necessário que a solidariedade seja encarada politicamente, culturalmente, de outra maneira. Se os desempregados, os excedentários, não forem assistidos vamos ter aumentos de suicídios, de divórcios, de violências. Um homem com fome tem o direito de se apropriar do que precisa para sobreviver, isto é, tem o direito de roubar. O homem que está neste mundo é, pelo facto de estar, senhor dos bens deste mundo. Se lhos retiram, deve assenhorear-se deles, é-lhe um direito natural fazê-lo. A revolução proletária não se esgotou com a morte do comunismo estalinista. Os deuses que criámos tornaram-se, desde o deus-ciência ao deus-ideologia, monstros. Monstros que estão a adoecer, a morrer. Temos de retomar, à medida que desaparecem, alguns dos valores de outrora, das utopias de outrora. Quando entrei na política pensava que tudo era possível. Se as pessoas querem, porque não hão-de conseguir? O tempo da euforia passou, porém, e veio o da descrença. É nele que estamos agora.»

«A coisa mais bonita que o António me disse até hoje», confidencia Manuela Eanes a Natália Correia, «é que eu lhe dava paz. Creio que sim. O mais importante para nós é ter paz». «É ter chão», acrescentará Natália.

Três histórias de humor

Ramalho Eanes tem um sentido de humor excepcional, de que a maior parte das pessoas, dado o seu ar (exterior) de sisudez, de distanciamento, não suspeita - o que o diverte.

Com a maior naturalidade conta-nos três situações irresistíveis:

Primeira - «Um rapaz que mora aqui na zona quis mostrar a um amigo com quem ia que era familiar da minha casa. Parou, eu estava no jardim, sem ser visto, e pôs-se a cumprimentar os papagaios. Apesar de um deles falar, e muito bem, nesse dia, nada. Para não deixar o miúdo malvisto, respondi, imitando o bicho: "Bom dia." Depois disse mais umas coisas por monossílabos. No final, o rapaz despediu-se: "Até logo." E eu: ''Até logo." Ao afastar-se, satisfeito, comentou para o amigo: "Estás a ver como o filho da puta do pássaro é esperto?»

Segunda - «Durante uma campanha eleitoral na Nazaré, uns catraios começaram a fazer provocações à minha passagem.

Fingi que não ouvia. Então, as mulheres que me levavam pelo braço e tratavam por querido, por filho, intimaram­me violentamente: "Vá, responde-lhes, responde-lhes já, meu cabrão”!»

Terceira - «Em Troia, há dois anos, estava de férias na Comporta e fui comprar fruta. Pedi ao meu filho que escolhesse uns melões e fiquei no carro a observar. O vendedor era tão hábil que me aproximei, curioso. Ele olhou para mim e perguntou: 0 senhor é de cá? Parece-me que estou a conhecê-lo." "É natural", respondi, passo aqui muitas vezes."

Quando me despedi, exclamou: «"Ah, já sei, você é muito parecido com o sacana do Eanes, só que é um bocado mais baixo!"»

 

Natália Correia tinha no Jornal do Fundão leitura obrigatória e em António Paulouro, seu director, referência ética.

Foi com contentamento que aceitou participar nas Jornadas da Beira, promovidas por eles (jornal e director) esse ano, nas idílicas Termas de Monfortinho. Partimos cedo para elas (uma vez mais no BMW de Baptista Russo) aonde não chegaríamos, porém, devido ao braseiro em que se transformara a serra.

«Estes fogos são um aviso, não se pode continuar a agredir a natureza como aqui se faz!», exclamou ao atravessarmos as Portas do Ródão.

Em breve, as chamas cortavam-nos a estrada. Mal parámos, logo ela se precipitou do carro e logo pegou num ramo de oliveira e se atirou a bater a vegetação incandescida, incentivando-nos a fazer o mesmo. Pouco depois, ficou enfarruscada, o vestido rasgado, os bombeiros siderados pela sua energia, alucinação contra as línguas à volta, mãos frenéticas, boca mordendo as faúlhas, magnífica, sublime no horror e na desmesura.

Horas mais tarde, as chamas começaram a diminuir, a recuar, e ela, brava, a gritar-lhes, «para trás, malignas, ordeno-vos que vos retireis!», indiferente ao coro, «cuidado ar Senhora Dona Natália, olhe que é muito perigoso, afaste-se, ar amor de Deus!» Quando a tarde declinou éramos fantasmas sob cinza, suor, sombras, exaustão. «Não estamos em condições de ir, não acham?», pergunta-nos. Não estávamos.

Regressámos. No caminho, sob opus de Chopin por Maria João Pires (os preferidos de Francisco Baptista Russo), Natália enternece-se com o amor de António Paul ouro por aquelas terras: «Vou telefonar-lhe assim que chegar a casa, e ao nosso amigo Aires, que nos convidou para ficarmos em Alpedrinha.»

Ainda muito novo, António Paulouro compreendeu que o seu reino não iria limitar-se ao mundo que via circundá-lo.

Determinado, pôs-se a caminho com bússolas e mapas inventados, entre utopias e dúvidas, temores e deslumbramentos.

O sorriso do seu olhar tornou-se-lhe ex-líbris encastoado em porte elegante, aristocrático - Príncipe da Beira o cognominou Natália. Jornalista maiúsculo, esteve sempre de pé com honra, com frontalidade. Tomando o seu semanário numa mão e a sua terra noutra, Paulouro projectou-se, projectando-os (ao semanário e à terra) por dimensões impensáveis.

Algum do melhor jornalismo em língua portuguesa ficou para sempre nas páginas do Jornal do Fundão, semanalmente largado do interior do País sobre populações que, em crescendo, o extravasaram. Sem desistências nem azedumes, António Paulouro navegou largo, refilão, no disfarçar de decepções e ludíbrios.

«É da raça dos meus!», exclamará Natália.

 

Telefonema de Natália: «Venha esta noite sem falta ao Botequim. Vamos fazer o lançamento de um génio da poesia brasileira, um rapaz muito jovem e muito criativo.» Esqueceu-se de me dizer o nome.

Generosíssima com as pessoas talentos as, jogava-se na sua divulgação, sem limites nem reticências. Vezes sem conta atravessámos o País para ir apresentar primeiras obras de desconhecidos a quem ela detectara horizontes de futuro.

A sua disponibilidade fazia-se contagiante, levando outros autores a jornadearem por bibliotecas, universidades, prisões, câmaras, cafés, livrarias, auditórios, agremiações - saltimbancos sem lantejoulas nem bilheteiras.

As despesas suportávamo-las nós, deslocações, refeições, aflições, ingénuos no deixar-nos ser manipulados por estratégias autárquicas, escolares, cooperativas, religiosas, culturais, comerciais, assistenciais, etc., etc., etc.

Uma vez, em cidade do Interior-Norte, após concorrida sessão literária para professores, o vereador cultural dirige­se-nos: «Bom, agora temos de ir ao edifício da Câmara cumprimentar o senhor presidente.»

Os rugidos de Natália paralisam-no: «O quê? Mas esse ordinarão é que tinha o dever de vir aqui cumprimentar-nos, nós é que lhe fizemos um favor, e você, você desapareça-me, gentinha ignóbil»

O infeliz não chegou a aperceber-se da sua tremenda deselegância.

Noutra cidade, também do Interior-Norte, outro vereador cultural, igualmente infelicíssimo, justifica-se-nos: «Desculpem, mas a Câmara não tem verbas disponíveis para pagar a vossa despesa .. , na semana passada esteve cá o Marco Paulo a cantar, um êxito extraordinário, que nos cobrou de cachê dois mil contos, pelo que ficámos lisos.»

Três professoras convencem-nos, a Natália e a mim, a irmos à sua escola (no Interior-Norte, mais uma vez) falar de livros e memórias. Tínhamos de lá estar, porém, às oito e meia da manhã.

«Fazemos uma directa, vamos do Botequim para lá», decide Natália. Assim sucedeu. Para combater o sono acelero, Magnífico, sem trepidações, o Nissan Primera desliza a cento e oitenta quilómetros.

«Acho bem que vá devagar, temos tempo», comenta­me ela. «Sim, vamos a oitenta, como pode ver», respondo-lhe. Inclina a cabeça para o velocímetro: «Óptimo, oitenta quilómetros está bem, odeio velocidades!» - confundiu, feliz, cento e oitenta com oitenta.

Chegados, somos simpaticamente recebidos pelas professoras. Numa sala, dezenas de adolescentes olham-nos com desprezo. Uma das anfitriãs empurra-nos para a secretária e dispara: «Aqui estão os alunos cheios de interesse em ouvir­vos, leram os vossos livros e têm muitas perguntas preparadas, Agora vamos embora, temos coisas para fazer, voltamos ao fim da manhã.» E, sem mais, sumiram-se, Natália olha-me, espantada. Tento serená-la: «Não se irrite, eu resolvo isto.»

Dirijo-me aos mafarricos: «Está um dia bonito, vocês não preferem ir dar uma volta por aí?»

Grunhem em uníssono: «Siiiiim!», e logo desandam em tropel.

Natália faz a viagem de regresso, não indignada, mas humilhada.

Alice Vieira, a grande escritora infanto-juvenil, batidíssima em encontros escolares e afins, dá uma gargalhada quando lhe contámos o sucedido: «Mas essas cenas são o pão nosso de cada dia, vocês são muito ingénuos, os escritores existem para ser explorados!»

Olhos esbugalhados

No Botequim, o «poeta-prodígio» apresenta-se, impante de livros e salamaleques.

Tudo decorria normalmente quando ele, pomposo, avisa Natália: «O senhor embaixador do Brasil dá-nos a honra de vir aqui, ao seu bar, deve aparecer a todo o momento ... »

Ela levanta-se e, sem o deixar acabar a frase, dispara: «Eu é que lhe dou a honra de o receber, além disso, o bar não é meu, eu não tenho negócios, você não passa, afinal, de um ordinarão, ponha-se na rua!»

De olhos esbugalhados, o ex-génio sai carregando a livralhada, o espanto - e a ironia mal disfarçada de alguns dos presentes.

Maria Lúcia Lepecki, adorada professora, conversadora, ensaísta, cronista, faz-me sinal e, discretamente, saímos no encalço do expulso - que encontramos sentado no passeio entre as suas obras e a sua perplexidade.

Compatriota dele, Maria Lúcia depressa conseguiu, com o excepcional calor humano que a caracterizava, atenuar a brutalidade de Natália: «O menino deve entender que os criadores nem sempre têm todos os parafusos, aliás você, como um deles, de certeza que sofrerá do mesmo mal.» Riu-se. Rimos.

No Botequim, o embaixador Costa e Silva, acabado de chegar (também ele poeta, também ele carenciado de «parafusos»), diverte-se com o contado, recordando que «sofrera partidas muito maiores» dos maiores (escritores) do seu Brasil.

Culto da androginia

Detenho-me à entrada do Botequim: Natália está sentada entre dois jovens formosíssimos, um loiro, camisa branca de folhos, à direita, outro moreno, cabelos pelos ombros, à esquerda, ambos ajoelhados a seus pés, ambos a recitarem-lhe versos com ênfases de oração. Eram dois poetas ali idos, da Finlândia, o primeiro, de Espanha, o segundo, para ofertarem rimas à deusa - sua. Que ela, coquete, aceitava, recostando-se com volúpia na cadeira de pau e veludo. As toadas, em finlandês e castelhano, escapavam-nos, ininteligíveis de sentido, mas não de emoção.

Natália sussurra: «Eles estão apaixonados um pelo outro, foi a minha poesia que os juntou. Como vê, continua a haver milagres. Vamos celebrar!»

Pede champanhe. O senhor Bandola traz uma garrafa.

Natália ergue-se e proclama: «Este espumante não é para primatas machões, mas para pessoas delicadas, apreciadoras da androginia.»

José Cardoso Pires olha-a, desconfiado. «Nem penses que vais beber, não passas de um reles marialva, fica-te pelo uísque que é o que mereces!»

E, sorrindo-nos, começa a encher taças, que entrega a quem entende. Excelente, o Mõet & Chandon!

A poesia fizera-se, no Botequim e na vida de Natália um ex-líbris. Tudo girava à sua volta, política, cultura, sentimentos, convívios, tudo se medindo em função, em enaltecimento dela. Um belíssimo busto representando-a, esculpido por Martins Correia, tornou-se sacrário no Botequim, a reverenciar, a interiorizar. É das poucas coisas que, volvidos vinte anos, ali continua visível.

Ao lado de José Saramago, Natália indigna-se com a proibição de o livro (dele) O Evangelho segundo Jesus Cristo, concorrer a um galardão literário europeu, por decisão do subsecretário de Estado da Cultura, António Sousa Lara, escandalizado com as «blasfémias» do volume.

Maria Lúcia Lepecki e eu fazemos parte do júri da Associação Portuguesa de Escritores que irá atribuir o Grande Prémio de Romance e Novela desse ano. Uma parte dos seus (cinco) elementos opta pela obra censurada, a outra, pela de Mário Ventura, Évora e os Dias da Guerra.

O defensor mais entusiasta da segunda é precisamente Maria Lúcia Lepecki.

Por portas e travessas, Natália sabe do empate - e da minha indecisão. Vejo-me alvo, então, de sofisticadíssimas pressões da sua parte (e não só) para optar pelo Evangelho.

Opto. Desconfortado, distancio-me do Botequim por algum tempo - foi a primeira e única vez que o fiz.

O livro de Saramago conheceu sucesso internacional, o de Mário Ventura esquecimento geral, apesar de Maria Lúcia, sempre que tinha ocasião, o enaltecer: «É um dos melhores romances portugueses das últimas décadas, com uma escrita e um entrecho notáveis.» Ninguém lhe deu ouvidos.

Anos depois releio O Evangelho, para escrever sobre ele, e caio na dúvida. De imediato, repego nos Dias da Guerra e deslumbro-me: como foi possível a minha indecisão-decisão?

Encontro Mário Ventura Henriques, querido companheiro da Europa-Press e do grupo Empatados de Vida, conto-lhe o sucedido e peço desculpa, que ele, habituado a injustiças, a incompreensões, afectuosamente aceita.

Quase na mesma altura janto com Saramago e Natália, a quem manifesto a minha má consciência. Com incrível lealdade, ele confidencia: «Eu próprio não fiquei inteiramente satisfeito, precisava de mais uns meses para trabalhar melhor o livro.»

Natália: «Ora, com o estatuto que tens, não se percebe porque o não fizeste ... »

Ele interrompe: «Estão enganados, sou objecto de pressões tremendas por parte das editoras para cumprir prazos.»

Natália: «Mas tu é que assinas os livros, não são os editores!»

Saramago: «É verdade, sim ... bom, mas já escalei o Evereste, agora posso escalar montanhas mais pequenas.»

Felizmente subiria cordilheiras ainda mais elevadas, como a do Nobel da Literatura e a desse genial (espero não enganar-me de novo) Ensaio sobre a Cegueira - que Natália já não conheceria.

 

Ana Maria Adão e Silva, filha do advogado e deputado Adão e Silva, tornou-se uma das maiores e mais desenvoltas companheiras de Natália Correia.

Mulher da alta sociedade, cedo se destacou pela cultura, inteligência e relacionamentos internacionais. Preocupada com a amiga, prestou-lhe atenções inexcedíveis - quase sempre retribuídas: «Senhora de uma hospitalidade fulva, a Ana é o eixo perfumado e louro de uma infinidade de personagens», defini-la-á Natália.

A convivência entre elas manteve-se incólume ao longo dos anos e das situações, com a poeta a visitá-la em inesquecíveis fins-de-semana na belíssima vivenda de Ana Maria sobre a enseada de Castelo de Bode, lugar de êxtases e sagrados únicos.

A natureza (as árvores, a água, as flores) tinha um efeito invulgarmente apaziguador em Natália. Ali escreveu alguns dos seus Sonetos Românticos - que igualam os melhores da lírica de Camões.

Outras casas de Ana Maria serviram-lhe de igual refúgio, como a de Londres (em Hyde Park Gate), onde viveu Virginia Woolf e, defronte, Winston Churchill. Esse tempo inglês constituiria uma das melhores (e menos conhecidas) recordações de Natália Correia.

 

Foi em ida a Coimbra, depois de caloroso debate no bar da Universidade, que desconhecidos nos desafiaram a acompanhá-los a local onde se «mantinha a verdadeira cultura da cidade», que «ia além do fado dos estudantes».

Curiosa, Natália deixou-se rumar às catacumbas dessa arte longínqua, acastoadas no rés-do-chão de um restaurante afamado em açorda de marisco e cabrito no forno, vinho do Oeste e cantadores populares, divino tudo, açorda, cabrito, vinho, músicas e cantadores.

Aí deslumbraria com a força de Samaritana versos (do folclore local) que a empolgavam, com que empolgava.

«Ela tinha uma grande paixão por Coimbra» destacará António Vilhena, «admirava os seus poetas, os músicos, os cantores, o seu imaginário romântico, preferia uma tertúlia ao som da guitarra à lição de um lente.»

Natália tornara-se um ícone para certas camadas de jovens, aceitando sê-lo com indisfarçável coqueteria; habituara-se, aliás, desde muito cedo a reverências à sua excepcionalidade.

Grandes vultos da cultura (como António Sérgio), das artes (Almada Negreiros), da literatura (Aquilino Ribeiro), da poesia (Fernanda de Castro), do teatro (Rogério Paulo), do cinema (Jorge Brum do Canto), do jornalismo (Norberto Lopes), da oposição (Humberto Delgado), concessionaram­lhe admirações profundas - e recíprocas.

«A liberdade era um conceito que se impunha a cada esto de Natália. A cada verso, a cada livro», exclama, referindo-se-lhe, o poeta Mário Máximo.

Outro notável poeta, Adalberto Alves, dirá que ela «Tomou asas de lenda, cada instante, / E ao beber a cicuta embriagante / Teve a cruz e a glória da poesia».

Procriar com requinte

A passagem dos anos apurou-lhe o carisma e a energia. «Estes jovens», referia-se aos estudantes de Coimbra, «gostam de mim e são sinceros porque comungam aquilo que eu defendo: a liberdade, a ousadia, a paixão, a beleza, a cultura, a justiça, o sensual, o espiritual», ia enumerando enquanto subíamos ao terceiro andar de uma velha república, escadas de madeira esburacada, para um jantar, a convite dos seus residentes, de favas com chouriço, deliciosas, e tinto do Dão trazido por um finalista de Medicina.

Natália assenhoreou-se, mal entrou na sala, da melhor (única, aliás) cadeira, deixando para nós bancos de pau e ráfia.

No centro da mesa, um tacho gigantesco, pão regional, garrafas empoeiradas, talheres de plástico e, em círio de cobre, uma lindíssima rosa branca, a flor fetiche da convidada.

Esta depressa se distende: «Semelhante manjar só pode ter sido preparado por um deus!»

E fixando um jovem saído de Caravaggio, pergunta: «Foi você, lindíssimo guardião deste olimpo, quem cozinhou?»

A cursar letras, o rapaz era filho de um deputado Com quem Natália se pegara na Assembleia. «Pois perdoo a seu pai, ele afinal, reconheço, tem talento para alguma coisa: procriar com requinte!»

Ninguém lhe disse que as favas haviam sido preparadas pela cozinheira da casa. Meses depois, António Vilhena (a quem Natália foi apresentar um livro de poemas) levou­nos a cear à República dos Kágados. Há lá uma fotografia (nossa) desse inesquecível convívio.

Grande observadora, ela intuía nos comportamentos (de superfície) dos outros, as suas (profundas) zonas secretas. Exímia no fazê-lo, resguardava-o, porém, por pudores que muito poucos lhe detectavam.

A provocação, celofanizada em ironia, era-lhe vício incontrolável: «Dizem-me que a comunidade estudantil mais afectuosa e delicada não está nem em Lisboa nem no Porto, mas em Coimbra.»

«O Jorge de Sena tinha a mesma opinião», respondo­lhe. A curiosidade desmancha-a: «Ah, sim? Ele percebeu isso?»

Tenta confidências. Finjo não ouvi-la. Usa, então, estratégias de aranha: «Compreende-se, são jovens desenraizados, nos quais as famílias põem grandes expectativas, vêem-se um pouco perdidos, condicionados por praxes violentas, marialvas, isso gera pulsões nem sempre controláveis ... a maior parte é de esquerda, da esquerda da província, uma esquerda muito reaccionária, como a própria Universidade, em termos de costumes. Saídos daqui têm de cumprir papéis estereotipados, casar, engendrar prole, gastar a vida na profissão, nos partidos, nos cargos, nas respeitabilidades, ficar barrigudos, carecas ... os únicos oásis da sua vida foram as transgressões feitas aqui, sob as sombras do Choupal.»

Fito-a divertido: «Isso pode dar-lhe um excelente ensaio,» Entupida, muda de assunto.

Não sendo costume contrariá-la, ao sê-lo (ao aceitar sê-lo) Natália ficava deliciosamente desarmada.

«É uma criança, rezingona mas desprotegida, a precisar de muito carinho», prevenia-nos, enternecido, o senhor Machado.

 

Era discreto o eco das festas de Santo António no Botequim.

Natália gostava, no entanto, de assinalá-las pelas transgressões - chinela em pé pagão e folgazão - que soltavam na cidade.

Cantigas e bebidas (não havia assadores de sardinhas no bar) multiplicavam-se, misturando quadras sobre políticos e governantes com piadas a casamentos, a «bacanais» sob sotainas de Santo António.

Uma noiva dita do Santo, jovem com vagas inclinações poéticas distende-se no Botequim em vésperas da boda - a colectiva. Acompanha-a a namorada, acompanhadas ambas pelos respectivos noivos, namorados, por sua vez, um do outro.

Sem, à época, casamento reconhecido entre pessoas do mesmo sexo, os amantes (do mesmo sexo) deitavam mão, para se proteger, de todos os álibis possíveis.

Foi o que resolveram fazer os dois casais (inscreverem­se no casório santo-antonino) a fim de obter casa camarária, mobílias gratuitas, roupas, pecúlios, contas em bancos el com sorte, empregos de aconchego cristão - negócio excelente para eles e elas, a braços com as dificuldades da sua juventude.

«A paixão, mais do que a necessidade, aguça o engenho!» exclama Natália, deliciada com o ardiloso estratagema.

Incentivados com o apoio do Botequim, os nubentes contaram como haviam preparado tudo em pormenor: frequência de cursos religiosos, prática de boas caridades, serviços ao senhor pároco da Sé, comportamentos morais (públicos) irrepreensíveis, decência nas palavras e nos actos - não nos pensamentos nem nas camas.

No dia das farfalhudas núpcias, os quatro cumpririam (cumpriram,) todos os rituais e, à noite, ele recolheu-se com ele a uma das casas, e ela com ela a outra (os apartamentos eram contíguos), assim ficando felizes sob a asa da Santa Madre Igreja e o sorriso ambíguo de Frei António, que sempre adorou adiantar-se a Roma.

A partir daí, Natália passou a olhar com malícia o Santo e os seus casamentos, ficcionando-lhes histórias de bem contar, isto é, excitar. Ou seja, a partir daí Natália passou a privilegiar o Santo António de Lisboa ao Santo António de Pádua - e a lembrar, amiúde, o seu exemplo de matreirice.

 

As músicas altas, as conversas estrídulas, as correrias guinchadas das crianças, desatinavam Natália, que, por via delas, saía frequentemente de restaurantes e encontros. Se o não podia fazer, reclamava até as músicas serem emudecidas, as conversas desaparecidas, as correrias inibidas.

Tinha uma maneira muito peculiar (e metódica) de dominar as criancinhas mais irritantes. Primeiro, sorria-lhes para elas acelerarem os distúrbios e para ver a reacção dos pais. Estes, por norma, não interferiam, pois desconheciam o que era ser educador - e educado.

Na fase seguinte, fixava os «pequenos monstros», abrindo-lhes os olhos a fim de os dardejar de energia paralisante.

Acto contíguo, os «selvagenzinhos» paravam e, choramingas, corriam para junto dos progenitores.

Última fase: voltava-se para nós e, em voz alta, acelerava

contra a falta de civismo de quem transporta rebentos para restaurantes, não se importando de incomodar os outros, de estragar as refeições aos outros.

«Eu, por exemplo, nunca levo sequer a minha cadelinha quando vou jantar fora!», concluía, concluindo a chazada aos circundantes. Estes ou fingiam não perceber serem os visados (alguns, cúmulo da desfaçatez, até sorriam e concordavam), ou saíam rosnando impropérios contra os «arrogantes intelectuais de esquerda», que desprezam os simples e, sobretudo, os seres sagrados que são as crianças.

«Estupores», triunfava-lhes, à distância, Natália, impiedosa com a rasquice da natureza humana.

Foi pelo fogo, na paixão e na morte, que Francisco Sá Carneiro atingiu a dimensão de mito no imaginário português.

Tudo começou num simples e vibrante caso de amor: o de um político (casado), ele, por uma editora (divorciada), Snu Abecassis, que uma amiga (poeta), Natália Correia, intuiu e juntou. Quatro anos depois, tudo terminava, porém, num avião consumido pelas chamas ao levantar voo em Lisboa.

A paixão de um pelo outro constituiu uma das histórias mais empolgantes do século XX português. A que as circunstâncias (meios políticos e religiosos hostis, razões de Estado e de famílias, morte dramática e enigmática) deram contornos de excepcionalidade.

Situações inexplicáveis concentraram-se, aliás, nesse sentido. O mistério da queda do aparelho (acidente?, sabotagem?) fez-se um enigma; a repetição dos inquéritos em vez de clarificá-lo, adensou-o; o retraimento dos investigadores em vez de esvaziá-lo, enovelou-o.

O poder - direcção partidária primeiro, chefia governativa depois - levou as normas instituídas a interferirem na privacidade do estadista.

A mulher com quem se consorciara, anos antes, negava­lhe o divórcio; a Igreja a que se votara recusava-lhe o apoio; militantes que o incensaram traíam-no; adversários que o respeitaram achincalhavam-no. Isso, porque ele assumira com naturalidade, com transparência, em vez de os dissimular, os seus sentimentos. Bispos, governantes, políticos, intelectuais, jornalistas fizeram da circunstância arma de arremesso.

 

«Sá Carneiro teve o maior acto revolucionário depois do 25 de Abril: impôs a amante à sociedade», repetirá Natália Correia, apopléctica com os preconceitos surgidos.

Alguns dos que os atacaram eram visita de sua casa.

Jantavam lá, estavam a par de tudo, sem equívocos, sem subterfúgios. Magoou-os muito ouvi-los referirem-se à sua relação como uma coisa pecaminosa.

Sá Carneiro informou, aliás, o PSD da sua situação pessoal pondo o lugar, se ela fosse considerada incompatível, à disposição do partido. As bases de imediato se lhe renderam, como fez, tocada pela grandeza dos dois amantes, a generalidade do público.

É frequente entre nós esse tipo de comportamento. As razões do coração tornaram-se-nos, ao longo da história, mais valiosas do que as das conveniências. A simpatia vai-nos, de acordo com uma lógica sentimental muito própria, para os réus, não para os juízes, para as vítimas, não para os algozes, para os pecadores, não para os moralistas.

O tiro saiu pela culatra aos que dispararam contra Snu e Francisco - que rapidamente se tornam entes excepcionais.

Paixão, poder, inteligência, sensibilidade, elegância, cultura, dinheiro, carisma, tudo tinham, tudo dividiam. Quatro anos depois, o destino retirava-os, porém, imprevistamente de cena. «Estavam adiantados no tempo», exclama Natália Correia.

Fez história

Social-democrata convicto, Francisco Sá Carneiro emergiu dos sectores católicos progressistas do Porto, logo se revelando mais interessando na política do que no Direito, nas intervenções ideológicas do que nas da advocacia - que exerceu.

A apetência pela acção leva-o a candidatar-se à Assembleia Nacional, onde integra um grupo de jovens deputados designado por Ala Liberal, quando Marcello Caetano tenta, numa brevíssima Primavera, abrir o regime.

O papel que esse grupo desempenhou fez história.

Rapidamente Sá Carneiro (como Francisco Pinto Balsemão) ascende ao primeiro plano da vida política nacional. O 25 de Abril permite-lhe criar e dirigir um partido centrista, que passa a disputar, alternar, com o PS a liderança governativa.

A sua carreira baliza-se, a partir daí (com recuos por motivos de saúde), entre a chefia da oposição e a do Executivo.

Reivindica, para concretização dos seus projectos, uma maioria, Governo, Parlamento e Presidência da República, triângulo que não veria, porém, concretizado.

Os eleitores portugueses preferiram, na altura, a diversidade à unicidade nos poderes, não pondo «todos os seus ovos no mesmo cesto».

A primeira tentativa feita nesse sentido - candidatura do general Soares Carneiro, em 1980, apoiada pelo PPD/CDS/PM - fracassaria com o desaparecimento súbito dos seus promotores e com a derrota do seu candidato.

 

Senhor de um «arrebatamento frio», com «mais idiossincrasia de chefe do que de diplomata», Francisco Sá Carneiro entra (tangencialmente) na órbita de Natália Correia quando desalinha o Parlamento marcelista.

Rápida, ela comenta: «Há duas assembleias, a do Sá Carneiro e a dos só carneiros.» «Franzinamente obstinado» possui uma «capacidade invulgar para aglutinar descontentamentos».

A sua característica mais subtil encontra-a Natália na capacidade revelada «de cortejador da presença feminina, que festeja mais esteticamente do que sensualmente». Isso leva-o «a enfastiar-se com a pândega da política lisboeta», e «a descobrir que Bach é mais importante do que a fanfarra governativa».

Para Francisco Sá Carneiro, as mulheres tornaram-se, desde criança, seres de apaziguamento. Viveu sempre entre elas, precisou sempre delas. Eram-lhe um esteio de onde partia, aonde se acolhia.

Uma, a mãe, abriu-lhe a vida, outra, a amante, comungou-lhe a morte. Entre as duas, várias o acompanharam, o acrescentaram. Como Isabel Carneiro, com quem casou muito novo e de quem teve cinco filhos; como Conceição Monteiro, secretária no partido, no Governo, na memória; como Natália Correia, preceptora da sua projecção cultural e libertária, que representaria um papel charneira na transmutação do futuro primeiro-ministro.

«Para tornar-se um líder moderno, cosmopolita, ao nível de Mário Soares e Álvaro Cunhal, os seus rivais políticos, tem de renascer», acrescenta a escritora. «O que só pode dar-se através de uma grande, grande, paixão.»

A grande paixão surgiria pouco depois quando Snu Abecassis o convida a escrever um livro para um conjunto de obras assinadas pelos líderes dos principais partidos políticos.

Os Cadernos D. Quixote, colecção de ensaios de natureza política que ela lançou com enorme êxito (tinha um instinto infalível para escolher o que as pessoas queriam ler», puseram, «pelos seus temas, o regime em alvoroço», especifica João Lopes, o seu director.

Snu Abecassis, Ebra Marete Seidenfaden de seu nome completo, divorciada do economista Alberto Vasco Abecassis (primo de Krus Abecassis, presidente da Câmara de Lisboa), que a trouxe para Portugal, pertencia a uma poderosa família nórdica (mãe sueca, pai dinamarquês) com ligações ao mundo dos jornais, da literatura e do Prémio Nobel.

A táctica de Snu «perante as autoridades portuguesas era a de comportar-se como uma senhora da alta sociedade europeia, de um país do Norte no qual as convicções do Estado Novo eram indignas de um estado civilizado», descreve a sua mãe, Jytte Bonnier.

Essa postura resultou em cheio. O ser cosmopolita, elegante, bela, rica, independente, jovem, o mover-se pelas grandes capitais, o conviver com elites internacionais inibiu Os censores do regime - e diversos vigilantes da oposição.

No pequeno mundo cultural de Lisboa, vésperas do 25 de Abril, cedo se destacou pelo seu glamur e requinte, excepcionalizando-a, inacessibilizando-a. Natural, por isso, que ela e Natália se cruzassem, se confidenciassem - por via dos livros, da insubmissão e da liberdade, alicerces de ambas.

Rapidamente se tornam amigas, passando férias em propriedades de Snu na Dinamarca e na Suécia. A D. Quixote edita, reedita, todos os títulos da autora de Madona.

Sá Carneiro, que a não conhece pessoalmente, contacta Natália Correia. Esta ouve-o e, de súbito, dispara: «Ela é uma princesa que jaz adormecida num esquife de gelo à espera do príncipe que a desperte com um beijo de fogo. O príncipe é você. Telefone-lhe e convide-a.» A seguir, liga para Snu: «Menina, o príncipe encantado por que esperavas vai aparecer-te.»

Snu aceita o pedido de Sá Carneiro para almoçarem.

Rindo, contam um ao outro as palavras de Natália. À sobremesa percebem, de repente, que estão apaixonados. Para sempre.

O último chá

Era tocante observá-los nos últimos dias de vida, os últimos da campanha eleitoral de Soares Carneiro à Presidência da República. Apareciam isolados, fora das caravanas do candidato, no pequeno Volvo dela.

Nos comícios, quando Sá Carneiro ia para os palcos, Snu distanciava-se. Gostava de o ouvir discursar de longe, entre o povo que a não reconhecia, e vê-lo depois chegar, sorrindo, pegar-lhe na mão e partirem como namorados, sós pelas estradas.

Vi-os pela última vez no Alentejo, três dias antes do fim. «porquê Soares Carneiro?», perguntei-lhes. «É um mau candidato mas vai ser um bom Presidente, verá», respondeu-me ele. «Vai ser o seu Américo Thomaz?». Deram uma gargalhada.

Off de record conta-me que o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, criticara (quando o contactou a pedir apoio) a sua candidatura a Belém por causa de Snu. Desiludido, ouviria mais tarde Amaro da Costa falar-lhe no general. Anuíra.

Se Soares Carneiro perdesse as eleições (Snu nunca acreditou na possibilidade da sua vitória), Sá Carneiro deixaria o Governo e iria para a Assembleia a fim de ajudar a fazer a revisão constitucional. Esperaria quatro anos para perfazer os seis necessários à obtenção do divórcio e, depois de regularizada a sua situação conjugal, candidatar-se-ia a Belém.

«Acompanhei-os», evoca Maria João Sande Lemos, amiga e confidente do casal, «até quase ao fim. Ao despedir­me, Snu brincou com as minhas apreensões pela viagem por causa do tempo. Antes de rumarem para o aeroporto foram a casa, para tomarem uma chá. A Snu não atinava com o género das palavras.»

O protocolo internacional quis, caso do inglês, impor regras às visitas oficiais do então primeiro-ministro português. De imediato, porém, este fez saber que só aceitava convites com Snu ao lado: «Se ela não puder ir, eu também não vou. Se a não receberem, também não me recebem a mim.» A Rainha Isabel II, que levantara problemas, acabou por acolher ambos no Buckingham Palace.

Deitados no chão

«Saíamos muito para jantar, para jogar golfe, para irmos a exposições, a cinemas. Ele adorou o filme 2001 e ela detestou. Víamo-nos quase todos os dias», pormenoriza Sande Lemos. «Levantavam-se cedo, ela ia para a editora, ele para o partido, ou para São Bento. Costumavam almoçar em casa.

O Francisco estava farto de restaurantes, frequentara-os durante anos seguidos, desde que viera para Lisboa até que fora viver com a Snu.»

Passavam muito tempo na residência, decorada com excepcional bom gosto, um lindíssimo duplex no último andar do número dezasseis da Rua D. João V. A maior parte dos almoços e jantares políticos decorria lá. Natália tornou-se-lhes assídua.

O casal, apreciador (e comprador) de artes plásticas, frequentava regularmente galerias e ateliês. Cesariny recebeu-o várias vezes no seu, à Graça, em trânsito do Botequim.

Discretos, Sá Carneiro e Snu Abecassis sabiam ouvir, gostavam de ouvir.

A música clássica era-lhes uma paixão. Passavam tardes deitados na alcatifa da sala, janelas abertas, a escutar Bach.

O aproveitamento da situação amorosa de Sá Carneiro pelos seus opositores indignou Natália Correia, levando-a a apoiá-lo veementemente. Sem hesitar, mas sem se filiar, tornou-se sua deputada, averbando popularidades, irreverências, polémicas, ousadias, subversões, grandezas, como ninguém conseguiu na Assembleia da República.

Nariz comprido

«Snu foi sempre uma mulher tranquila, suave, muito simples, muito disponível», evoca Conceição Monteiro. «Adorava sair de Lisboa, ir para junto do mar, conduzir. O Francisco também gostava de conduzir, mas em altas velocidades, voava baixinho. Ela apreciava muito Portugal, mas detestava a nossa desorganização, a nossa falta de pontualidade. Dizia que éramos todos doidos. Ambos possuíam grande sentido de humor. Ele brincava até com o facto de ser pequeno e ter o nariz comprido.»

Quando decidia a formação do seu último Governo, Sá Carneiro revela a Natália Correia - que o invectivava a não ceder ao canto de sereia dos tecnocratas - que acabara, precisamente, de arranjar um: «É um jovem muito competente, especializado em finanças, por Londres, se ganhar gosto pela política, do que eu duvido, pode ser um bom líder.» E, ante o olhar desdenhoso da escritora, acrescenta: «Chama-se Aníbal Cavaco Silva, conhece?»

Um foco de perigo

Os rituais fúnebres de Snu decorreram na Igreja dos Ingleses, acompanhados pelo Quarteto Haydn. Separada de Francisco (cujo corpo, por ter funeral de Estado, fora para os Jerónimos), só no dia seguinte repousarão juntos no Alto de São João - anos mais tarde foram trasladados para o cemitério do Lumiar, onde se encontram em jazigo próprio.

Se Natália Correia toma a defesa de Snu Abecassis, que dilata, Agustina Bessa-Luís toma a de Isabel Sá Carneiro, que desoculta. As suas posições radicalizam-se.

Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis não chegaram a saber que «dois dias antes da tragédia, Isabel Sá Carneiro decidira conceder o divórcio ao marido. Ela veio ter comigo a minha casa e conversámos muito», revela-me a autora de Sibila. «Estava combalida, as pressões para formalizar a separação surgiam-lhe de todos os lados. A sua situação ficara muito difícil. Snu era, porém, uma substituta na vida de Sá Carneiro. Não acredito na paixão dele por ela. Dela por ele houve apenas uma fixação. A Isabel tinha-se afastado muito decepcionada por causa da política. Não foi ele que a deixou, como muitos dizem, foi ela. Ele, que nunca recuperou disso, estava inseguro e só quando conheceu a Snu. Se não tivesse morrido, iria cansar-se e voltar para a Isabel. Snu foi uma vítima de uma situação. A política tornou-se uma maneira de Sá Carneiro dar significado à existência. Mas ele não era um grande líder, não era sequer um grande político. Sempre que Sá Carneiro se deslocava ao Porto, Snu impelia-o a levá-la consigo. Como se no Porto houvesse um foco de perigo. Foi o que aconteceu no dia 4 de Dezembro de 1980. A única coisa boa que ficou disso tudo foi a pensão que a Isabel passou a receber como viúva de primeiro-ministro.»

Candidato a Belém

Ante o túmulo de Snu, a mãe dirá: «Ela amou Francisco dando-lhe tudo o que tinha para dar e, através dele, tudo dando, também, a Portugal.»

Num livro publicado posteriormente, afirma: «Ele conhecia a realidade portuguesa, a minha filha os regimes democráticos da Europa. Sá Carneiro tornou-se na sua grande aposta. Tinha as qualidades necessárias para colocar Portugal entre os estados modernos». Ajudá-lo, «fez-se a missão dela, a obra dela».

Conceição Monteiro pormenoriza que Francisco e Snu «não chegaram a viver em democracia plena, pois quando morreram ainda havia o Conselho da Revolução. Órgão que fazia, por norma, a vida num inferno ao primeiro-ministro.

Daí o seu sonho de ter um Presidente, um Governo e um Parlamento».

Morreram abraçados

Ao pressentirem o fim, Sá Carneiro e Snu Abecassis abraçaram-se. As chamas que queimaram o pequeno avião em que seguiam não os desenlaçaram. Nem a queda. Nem a fragmentação do aparelho sobre uma ruela de Camarate. Com quarenta e seis anos, ele, trinta e nove, ela, muito futuro, muito sonho, os esperava. O factual do seu caso cedeu, a partir daí, lugar ao ficcional, projectando-o para fora do tempo e da realidade.

As nossas figuras identitárias são ou amantes funestos (Pedro e Inês, Soror Mariana Alcoforado, Sá Carneiro e Snu), ou idealistas exacerbados (Nuno Álvares Pereira, D. Sebastião, Humberto Delgado), dependendo o seu resplendor dos poetas que os cantam e do povo que os projecta.

Sequiosos nos revelámos em todas as gerações e regimes, deles - amantes funestos e idealistas exacerbados. «A morte dos mitos significa a morte da cultura», exclama Natália.

 

Natália torceu o nariz ao slogan lançado por Sá Carneiro de «uma maioria, um governo e um presidente», que galvanizou a direita e (secretamente) agradou ao PS. No fundo, todas as formações partidárias sentiram enlevos pela ideia - desde que ela tivesse a sua cor política.

Natália objectava ser essa situação «uma antecâmara para totalitarismos», pois sem crítica, sem contestação, «pilares da liberdade», não há democracia.

A passagem pela Assembleia da República depressa a desiludiria das formações políticas existentes entre nós. Interesses lobistícos, jogos pessoais, disciplina partidária, rigidez burocrática, não se coadunavam com as suas posturas de defesa da liberdade, da cultura, do bem comum - o PSD moveu-lhe mesmo dois processos disciplinares por desrespeito dos estatutos.

O seu nome não demorou, como consequência, de deixar de interessar aos partidos - que se esquivaram a voltar a incluí-la nas suas listas. As suas finanças pessoais ressentiam-se disso até porque, abandonadas as funções de deputada, não tinha rendimentos certos.

Os direitos de autor revelavam-se pífios (os seus livros vendiam-se mal) e os pedidos de colaboração (em jornais e televisão) escasseavam. Valeu-lhe, na gestão dos haveres, o ainda seu parente Emanuel de Sousa, poeta e economista que ela muito apreciava - e solicitava. Com grande discrição, ele tentou lançar uma editora a ser dirigi da por Natália, que, entusiasmada, elaborou listas de obras a publicar e de autores a revelar. O projecto não chegaria, porém, a ser concretizado.

 

Aceradamente crítica em relação ao que a envolvia, Natália Correia multiplicava discordâncias com os que, na esquerda, se jogavam, nos abrasados meses de 1975, na conquista do poder.

Indómita contra totalitarismos, recusava pactuar com quem intentava (de intentonas) repintá-los com outras paletas.

Juntando-se a grandes vultos da literatura - Miguel Torga, Vitorino Nemésio, David Mourão-Ferreira, António José Saraiva, Fernando Namora, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luís -, não hesitou em levantar-se às investidas ensaiadas, saindo-lhes ao caminho sem recuos nem resguardos.

O desandar da revolução voltá-la-á, depois, contra os avanços dos neoliberalistas e contra as falácias dos aderentes de Portugal à CEE.

Esfumado o 25 de Novembro, a esquerda, novamente na oposição, reaproxima-se, planando, e para sempre, de Natália Correia - não seria ela, com efeito, a mover-se, mas os pêndulos partidários da época.

Tempos volvidos, o Botequim voltava a ver sentados às suas mesas, e às suas exultações, bebendo, gargalhando com estapafúrdia, elementos do PCP e da extrema-esquerda, em sonora união coral, como nos uníssonos tempos de combate ao caetanismo, depois substituído pelo cavaquismo.

Figuras zurzidas por Natália no estio de 75 retomam lugares e afectos nas suas atenções. Outras, em sentido contrário - como a actriz Maria Paula, inabalável cantante anti­comunista -, batem com a porta sobre o bar, a revolução, a reconciliação.

 

José Saramago, José Cardoso Pires, Baptista-Bastos, Luiz Francisco Rebello, Carlos Eurico da Costa, Costa Gomes, Mário Tomé, Otelo, Mouta Liz, passam, entre outros, a merece especiais acolhimentos.

Longe, longe, ficará para todos o livro Não Percas a Rosa, pessoalíssima interpretação nataliana, a roçar o esoterismo, da Revolução dos Cravos, que ninguém lerá, como à maioria das grandes obras suas.

Cenas deliciosas nimbam o Botequim: duas viscondessas açorianas, riquíssimas, reaccionaríssimas, engalfinham-se com Otelo em discussões de política, de patriotismo, valentes e coe entes até o embatucarem, ante uma Natália seraficamente esfíngica.

Mil vezes mais aprazível do que o Parlamento, o Botequim faz-se ilha central no arquipélago que a poeta delimitara para si e para os seus, em águas de sedução únicas no País.

Aos fins-de-semana, pôs-se em prática um «plano antibalão», gizado por Natália, devido a persistentes operações stop montadas, nessa altura, pela polícia em várias zonas de Lisboa, nomeadamente na do Botequim.

Saíam primeiro os que haviam bebido menos (nem sempre fáceis de apurar), descendo a colina por ruas diferentes.

Verdadeiros «batedores de chuis», se os topavam ligava para cima (ainda não havia telemóveis) a indicar o seu poiso. Com essa carta de navegação, os restantes esgueiravam-se, contornando com total êxito o perigo fardado, até porque a praça estava bastante bem servida de acessos - característica que pesara (fuga a eventuais investidas da PIDE) na sua escolha para localização do bar.

 

«Ibericista», «femininista», «politeísta», na sua autodefinição, Natália abria-nos espaços surpreendentes. «Onde vos retiver a beleza de um lugar, há um deus que vos indica o caminho o espírito.»

Ibericista (não iberista) como Agostinho da Silva, ela preconizava a formação, num futuro próximo, de uma península de países independentes, comunidade das actuais regiões autonómicas, republicanas ou monárquicas, consoante o quisessem ser.

O seu livro Todos Somos Hispano é um ensaio desafiador e inovador nesse sentido. Alguns independentistas idos ao Botequim apontavam que tal será possível quando o Rei Juan Carlos falecer.

Agostinho da Silva avançava, entretanto, com a sugestão de se transformar Olivença no centro coordenador dessa comunidade, por ser «um território politicamente neutro e culturalmente simbólico» da Ibéria.

De estrutura espiritual afim, Natália e Agostinho movia-se por campos prosseguidos em paralelo: «É preciso cuidado na divulgação das coisas importantes, pois as pessoas podem não estar preparadas para conhecê-las», advertiam.

O destino de Portugal tornara-se-lhes um desses campos de reflexão, dado o alheamento cultural dos novos responsáveis políticos. Por reticente (Natália) e indiferente (Agostinho) em relação à CEE, viram-se alvo de acerados remoques dos arautos do contentismo europeísta. Agostinho provocava­os, porém: «A CEE não passa do departamento de secos & molhados da Europa. Não tem outra importância.»

Numa passagem de ano, alguém levantou um brinde pelo (anunciado) ingresso de Portugal na CEE. Logo Natália baixou a sua taça e explodiu: «Puta que pariu a CEE!):

 

Singularíssimo arquipélago rodeado de água, terra e sonho, Portugal tem na ilha uma utopia do paraíso por reencontrar e, na Ilha dos Amores, uma metáfora da sua identidade.

«A cultura portuguesa é feminina, insular e rural», sintetizava Natália. Para ela, os Açores eram, juntamente com o Alentejo e Trás-os-Montes, «o último reduto da portugalidade, onde os iniciados conseguem visionar a aurora da Terceira Idade ou do Quinto Império», como perspicaz, anota Ângela Almeida.

Ângela Almeida revelará (e estudará) um inédito de Natália intitulado A Minha Biografia. Trata-se «de um texto poético autobiográfico ou uma autobiobibliografia poética», como o designa, fundamental para perspectivar o universo da autora de Sonetos Românticos.

Referência no mundo académico, literário e editorial, Ângela Almeida desoculta no trabalho por si realizado alguns dos pensamentos mais profundos e originais (e futuristas) da sua conterrânea.

Natália sublinhava que ela «era-lhe consanguínea por família, por ilha, por talento, por sensibilidade, por energia.

Gosta a que lhe fosse entregue, como herdeira espiritual minha O facho que me coube assumir para ela o avançar.

É das poucas a poder fazê-lo, pois vai ser uma das mátrias do século XXI».

Com admirável dedicação, Ângela Almeida aceitou esse desígnio, magnífica no cumpri-lo por colóquios, seminários espectáculos, exposições, edições, estudos - culminados na brilhantíssima tese de doutoramento (a primeira sobre Natália Correia), que defendeu na Universidade Autónoma de Lisboa, ante a presença de Ramalho e Manuela Eanes e Laborinho Lúcio, orientada por Urbano Tavares Rodrigues.

Nela, lembra que «Natália leu tudo de tudo, tudo subvertendo, tudo reinventando», «não existindo recurso estilístico que não utilizasse».

Por entender que «a poesia ou a literatura não depende da natureza sexual de quem escreve», Natália reivindicava-se poeta, não poetisa.

Universidade de Coimbra, outro poeta, António Vilhena, grande amigo da escritora, escolheu também como de tese de doutoramento a obra literária de Natália.

Sal na comida

«Portugal vai entrar num tempo de subcultura, de retrocesso cultural, como toda a Europa, todo o Ocidente», dirá a escritora. «Como não se encontraram respostas racionais para os grandes problemas da humanidade, a pobreza, a doença, a solidão, a guerra, a injustiça, a desigualdade, as pessoas entraram em processo de negação da ciência, da cultura, da política... »

«Menos do amor, espero, é a última coisa que nos resta do sagrado», interrompe Cesariny em ida (raríssima) ao Botequim.

Sabia-se que ele não gostava de «bares intelectuais», referia os chungas, a cheirar a maresia e marinheiros - caso o fabuloso (e perto dali) Rei Mar; sabia-se que detestava literatos e políticos, e gente (dita) bem, fauna assídua nas noites da antiga carvoaria da Graça, daí a distância deles se lhe ter feito regra.

De Natália ele gostava «desde que o seu convívio fosse, temperado», «como o sal na comida», «ela pesa, é vampírica, suga-nos energias, é preciso resguardarmo-nos».

Frequentara-lhe com gosto as ceias quando, em tempos folgados, o seu salão se abria a cortes de apetites, de Iisonjas, de invejas, de má-língua.

«Quem nasce inquieto jamais se livra da inquietação», sussurra Natália: «Onde a filosofia não alcança, começa a poesia. Cheguei a ela muito jovem, como se chega a um mistério.

Fitar o indemonstrável é a minha paisagem preferida Santo Agostinho já dizia que o tempo vem do futuro, passa pelo presente e dissolve-se no passado. Não há diferenças nele, tempo, é sempre o mesmo, nós é que não.»

Onde Natália estivesse, «estava sempre uma liturgia», exultará Manuel Alegre. «A tribo reunia-se à sua volta, esperando que ela esconjurasse as forças maléficas ou convocasse as forças benfazejas.»

Contra os canhões dos bem-pensantes na política, na inteligência, na comunicação, o Botequim marchava, marchava (sentado), ironia em riste, garboso, glorioso.

 

Unidos por pacto de grande exigência - visando um comunitarismo, uma espiritualidade, uma solidariedade, coerentes consigo próprios =, um grupo de jovens católicos, em dissidência com a ordem estabelecida (religiosa, política, cultural), achou que necessitava de um meio próprio de comunicação social para actuar, a fim de os seus elementos poderem, sem peias nem imposições, exprimir-se.

«Durante três anos não pensámos noutra coisa», evoca António Alçada Baptista no Botequim, em debate animado por Natália Correia a propósito da revista O Tempo e o Modo, de que ele foi proprietário e director.

Oriundo de famílias abastadas da Beira Baixa, Alçada (criador da Morais Editora) propiciará o lançamento, em Janeiro de 1963, da publicação. Edita-a Pedro Tamen, chefia-a Bénard da Costa, participam-na (como redactores principais) Nuno Bragança e Alberto Vaz da Silva.

O seu espaço, na editora e livraria que a impulsionou (na Rua da Assunção), tornar-se-á um ponto de encontro, por vezes uma verdadeira tertúlia, de opositores à ditadura, entre os quais os futuros dirigentes do Partido Socialista (Mário Soares e Salgado Zenha), os líderes da geração de sessenta dois (Jorge Sampaio, Medeiros Ferreira, Sottomayor Caria, Manuel de Lucena, Vasco Pulido Valente), vários escritores, artistas e jornalistas, como Sophia de Breyner Andresen, Jorge de Sena, Alexandre O Neill Belo, José Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, Almeida Cristóvão Pavia, Helena Vaz da Silva, José Escada, Luís Sousa Costa, Frei Mateus Cardoso Peres. Natália Correia, integrou o grupo, colocaria, sem hesitações, O Tempo e o Modo entre as referências culturais mais importa época, atribuindo aos católicos progressistas uma intervenção angular.

Voz de liberdades

O dirigismo redutor do Estado Novo transformara a sociedade civil num campo ressequido, à espera de ser germinado.

Tentá-lo incentivou rebeldias - e utopias.

Dois números especiais farão, por iniciativa de Helena Vaz da Silva, furor: um dedicado a Deus, outro ao casamento; o primeiro será apoiado por um colóquio no Centro Nacional de Cultura, o segundo ver-se-á apreendido pela polícia ao chegar às bancas.

O regime estremece por vibração de um dos seis pilares mais aconchegantes: a Igreja. O bispo de Porto vê-se exilado depois de uma carta de afrontamento a Salazar, e o padre Felicidade Alves é retirado, pelo cardeal Gonçalves Cerejeira, da paróquia de Belém, onde se afirmara voz de contestações - Natália foi ouvir algumas das suas homilias.

A expansão da Guerra Colonial, o estreitamento da Censura, a acutilância da PIDE, a ambiguidade do Patriarcado, tornam-se, internamente, torniquetes crescentes à liberdade Maio de 68 irá emergir em França, a descolonização africana, sensibilizar o Vaticano. Bussolado por este, o grupo congrega contestadores e dissidentes. A intelectualidade e o operariado observam-no com emoção.

As contradições geradas acabam por reflectir-se no País - e, com o tempo, na revista, impotente para as ultrapassar.

Em 1969, Ruy Belo («o mais lucidamente melancólico poeta da sua geração», na síntese de Natália Correia) apelida os companheiros de jornada de «Os Vencidos do Catolicismo».

O seu movimento foi, porventura, «o último reflexo do espírito das Cruzadas», sublinhará João Bénard da Costa: «Se rejeitávamos o chavão católicos progressistas, assumíamos, no entanto, e publicamente, o de católicos de esquerda.»

Cada vez mais opaco, o ambiente político português provoca o abandono, por António Alçada Baptista, do Tempo e o Modo, cuja direcção passa (até 1972) para João Bénard da Costa, «caindo a seguir», segundo a expressão de Alberto Vaz a Silva, «nas mãos dos maoístas», que lhe alteram a linha editorial e convivencial. As convulsões deflagradas pelo 25 de Abril extingui-lo-ão pouco depois.

Natália Correia, referindo-se aos protagonistas do movimento, comentará: «Eles partiram de um catolicismo que se tornava cada vez mais político e menos religioso, abrindo-se a todas as correntes de cultura, incluindo as da contracultura.

Tiveram em curtos anos uma evolução comparável a meio século.»

 

Um pequeno grupo de grandes actores portugueses, com destaque para a nossa adorada Carmen Dolores, surpreendia, na década de sessenta, o mundo cultural do País ao apresentar num cinema de Lisboa peças de ( superior) reportório em manhãs de domingo. Fez história, embora a sua duração tivesse sido, por obstáculos do regime, fugaz.

A qualidade e a luminosidade, a ousadia e a energia que inculcou no público tornaram-no, para sempre, uma referência na memória afectiva dos que o partilharam.

De acordo com o seu nome, Teatro Moderno de Lisboa, a preocupação dos responsáveis foi a de revelar dramaturgos contemporâneos de referência, objectivo que a Censura acabaria, no entanto, por amputar.

Dada a excepcionalidade do projecto, o público de imediato correspondeu, sugerindo a realização de sessões aos domingos, pelas onze da manhã (nos outros dias efectuavam­se ao fim da tarde), o que constituiu, à época, um aliciamento incomum.

As representações nesse horário tornar-se-iam, aliás, as mais concorridas e vibrantes (pela atmosfera cúmplice que criavam), chamando gente nova (muitos estudantes) ao espaço onde ocorriam - no caso, o gigantesco Cinema Império, na Avenida Almirante Reis, mais tarde transformado em igreja de seita brasileira.

Os trabalhos de maior projecção seriam, por coincidência, o primeiro e o último, isto é, as peças de inauguração e encerramento, O Tinteiro, do espanhol Carlos Muñiz (inesquecivelmente protagonizado por Armando Cortês), e o Render dos Heróis, de José Cardoso Pires, superiormente encenado por Fernando Gusmão.

Vimo-las com deslumbre. A última, a insistências de Natália, por duas vezes, talo impacto provocado.

(Foi ao assistir-lhe que tive a ideia de escrever O Encoberto. Como ficaria feliz se ele tivesse sido representado pelo TML!»

 

Num Dia Mundial do Teatro, Natália Correia e Luiz Francisco Rebello ceiam no Botequim após terem assistido a uma sessão comemorativa da efeméride.

Ceiam e conversam sobre a sua paixão pela dramaturgia portuguesa, de que se tornaram criadores de referência; ceiam e conversam deplorando a crónica indiferença dos poderes políticos, económicos, intelectuais, informativos, etc., para com o teatro. A democracia não mostrara afinal, maior entusiasmo do que a ditadura por ele.

Autores, os dois, de várias peças representadas com êxito (A Pécora havia tido grande sucesso internacional), não conseguiam aceitar o apagamento dos textos portugueses nos nossos palcos.

Natália e Francisco Rebello coincidem em críticas e denúncias, correcções e perspectivas para o sector. Os políticos, que nunca disfarçaram os ciúmes pelo teatro, intensificaram, com a conquista da liberdade, a sua marginalização para ocuparem, por inteiro, o proscénio que ele tinha na visibilidade pública. A seguir à revolução, o teatro mais subsidiado passou, consequentemente para o dos comícios partidários e o das campanhas eleitorais Assim continua.

Reagindo a lamentos do seu companheiro a propósito do crescente, na sua óptica, desinteresse do público Natália contrapõe: «Estás enganado, os Portugueses gostam até muito de teatro, o que se passa é que querem estar todos no palco não nas plateias, por isso elas estão vazias.»

Obra horrenda

Natália escandaliza o mundo cinéfilo ao arrasar, no Jornal Novo, o filme de Manoel de Oliveira Amor de Perdição, transmitido ( em episódios) pela RTP.

Chama-lhe «uma fantochada» e apelida o realizador de «palerma» por ter traído «o genial estilista» que foi Camilo.

Indignado João Bénard da Costa dardeja-a no Diário de Notícia: «Uma escritora menor chama a um cineasta maior fantoche, perante a apatia de quase todos.»

Nem todos. Vários amigos dela - para quem o filme e o realizador se revelam excepcionais - fazem-lhe sentir a sua discordância. Com candura, Natália justifica-se: «É que eu venero Camilo, ele e Dostoiévski são para mim os maiores romancistas do século XIX. Ora o cinema e a TV aviltaram­lhe a força da paixão.»

Mais tarde confidenciará o seu deslumbramento por Vale Abraão, do mesmo cineasta, que visionámos em projecção privado: «Empolgou-me, talvez por ele ter destruído, na sua adaptação, a obra da Agustina, que é horrenda!

 

As fúrias de Natália Correia contra Vasco Pulido Valente nunca abrandaram. Tendo ela posto grande empenho na representação dos seus Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente - obra de notável arquitectura cénica sobre as inquietações de Camões no regresso da Índia, não se conformou com a decisão de Pulido Valente, secretário de Estado da Cultura, ao desfazer a programação do Teatro D. Maria II todo o trabalho ali em curso. Como consequência, foi anulada a encenação daquela obra e dissolvida a companhia que o Nacional criara no Teatro da Trindade.

Em carta enviada a Ana Maria Adão e Silva, Natália golpeia: «Ele [VPV] proibiu a representação do texto com as palavras: "Só por cima do meu cadáver." O energúmeno não gosta de mim!»

Anos mais tarde, o «energúmeno» dir-me-á que «só se arrependia» de não ter «fechado de vez os teatros» em Portugal, tal «a sua atroz indigência».

A obra Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente seria depois encenada, por Carlos Avilez, no Centro d! Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, constituindo um dos grandes acontecimentos culturais da temporada.

O Luís Vaz nela retido é um poeta dilacerado pelos enganos da vida, do amor, da justiça, da Pátria, das crenças acreditadas, tudo a desfazer-se como ele, como o País após Alcácer Quibir.

Soberbo sepulcro

Atenta às observações do dramaturgo Mário Sério - que a alertava para pesquisas suas sobre Camões e D. Sebastião-, Natália Correia pensou alterar, em futuras reedições da peça, as pulsões amorosas do seu protagonista.

«Alma minha, gentil que te partiste», o poema mais dorido e dúplice da nossa lírica, «foi inspirado», asseverava Mário Sério, «pela morte de D. António de Noronha, jovem fidalgo-cavaleiro caído em peleja contra os mouros no Magrebe».

Adolescente de rara beleza, tivera Camões como preceptor, em Lisboa, «tendo-se o poeta apaixonado por ele»; por ele «apaixonara-se também o príncipe D. João (pai de D. Sebastião), o que levou os progenitores do rapaz (os condes de Linhares) a mandá-lo, a fim de o subtrair à incomodidade da situação, para o Norte de África», na versão de Mário Sério.

Teria sido, assim, esse o verdadeiro motivo da partida do autor de Os Lusíadas para o Extremo Oriente.

Ao saber, já na Índia, do desaparecimento do seu pupilo, Camões contactou a família de D. António no sentido de lhe ser erigido um monumento no local onde expirara.

Décadas depois, uma irmã do cavaleiro traria os seus restos mortais para Lisboa, colocando-os, em soberbo sepulcro, no Convento do Beato, onde se encontram.

A primeira pessoa a aperceber-se do ocultado foi Carolina Michaelis, que, num dos seus estudos, sugere pistas - discretas para não chocar os camonistas - no sentido de se confirmar tal versão. Versão que continha todos os ingredientes para exultar Natália: «Merece uma peça de teatro, um poema épico, uma sinfonia!», exclama.

E, solene, recita: «Alma minha gentil que te partiste / Tão cedo desta vida, descontente, / Repousa lá no Ceú, eternamente / E viva eu cá na terra sempre triste», que Carlinhos acompanha ao piano, emocionando todos os presentes.

A voz de Natália é empolgante a falar, a recitar, a orar, a cantar, a desafiar. Mário Sério levanta-se, aplaudido, os que estão à volta fazem o mesmo - embora cépticos com o revelado.

Camões e D. Sebastião

Apoiados em Manuel Severim de Faria (cónego de Évora, século XVII), em Pascoaes (no genial Poetas Lusitanos), Oliveira Martins, Costa Pimpão, Carolina Michael etc., Natália Correia e Mário Sério faiscavam descobertas deduções que «esmagarão, ao serem comprovadas», os «empertigados camonianos da nossa praça» - nem essas descobertas seriam, porém, comprova as, nem os camonianos esmagados!

Na versão de Pascoaes, o poeta percebeu, ao desembarcar da nau que o trouxe da Índia, e ao ver o sombrio palácio do Santo Ofício, ao fundo do Rossio, que o seu livro apenas seria publicado se tivesse a chancela de EI-Rei, o jovem D. Sebastião, com cujo pai ele havia, anos atrás, privado e conflituado.

Rumou, por isso, a Sintra, local (na altura) da corte fugida à peste, onde foi recebido pelo monarca, admirador dos seus versos.

Camões teria ficado surpreendido com a pujança física e a energia mental de D. Sebastião, e seduzido com a licenciosidade dos adolescentes que o acompanhavam. Leu-lhes em tardes de dilatados delírios (graças a boas ervas), Os Lusíadas, que só o Rei, ao que parece, teria (parcialmente) entendido.

Luís Vaz sentiu-se, ali, renascer. Os planos para a heróica jornada no Magrebe entusiasmaram-no, só não a integrando porque e o Monarca o proibiu, pois preferia-o em Lisboa, a escrever (a imortalizar) a sua gesta, do que a ser-lhe empecilho em África. A tença que lhe atribuiu destinar-se-ia a apoiá-lo nesse sentido.

Camões teria iniciado mesmo um poema épico intitulado Sebastianeida, que destruiu após a hecatombe de Alcácer Quibir.

Ambígua, Natália comenta: «É estranha a atracção de Camões por essa família ... apaixonou-se pela matriarca, a D. Violante, pela filha, D. Joana, e pelo rapaz, D. António. Pare e o filme O Teorema, do Pasolini!»

Logo decide: «Iremos pôr rosas brancas nos seus túmulos, o Mosteiro dos Jerónimos e no Convento do Beato.»

Não fomos.

 

Natália entoa Samaritana, e blues, e folclore (açoriano), e quadras de maldizer, e poemas seus, voz solta, magnética - na América, teve convites para se profissionalizar como intérprete de jazz, não aceitou, só a escrita lhe interessava.

Quando a mãe morreu, no Brasil, pintou durante um ano, sobretudo retratos (magnífico o que fez de Urbano Tavares Rodrigues), que levaram Almada a querer que ela se dedicasse prioritariamente às artes plásticas.

«Sim, ele insistiu comigo, mas não lhe dei ouvidos, fiz mal, pois como pintora ter-me-ia governado muito melhor do que como escritora, provavelmente estava hoje rica, com motorista, o que me fazia muito jeito. Mas não era o meu caminho.»

Lamentava, amiúde, as incomodidades das muitas deslocações que tinha de fazer, sem mão já para o seu desmantelado Carocha, nem recursos para táxis, dependente dos outros, cada vez mais, e mais. «Nem sei como consegui tirar a carta, era muito nova ... hoje não seria capaz, detesto máquinas.»

Apesar disso comprou um Fiat 127 novo, logo espatifado junto às Portas do Ródão, com ferimentos de gravidade no senhor Machado e no Dórdio. Não nela.

Passado o susto, regressou ao fiel Carocha displicentemente abandonado (o stand só lhe dava cinquenta contos, que recusou) debaixo de uma árvore, pejado de caganitas de pássaros, ao fundo da sua rua. Pegou, ao rodar-lhe a ignição, à primeira.

Nós, que lhe dávamos boleias assíduas (memorável a disponibilidade de Francisco Baptista Russo), passávamos calafrios com ela, sentada sempre à frente, no lugar do morto refilona, mandona, recusando-se a pôr o cinto de segurança, a deixa -nos ir a mais de cem à hora, a permitir-nos ligar o ar condicionado por causa da bronquite e da camada do ozono, a impor-nos que a acompanhássemos em cantorias, que entrássemos em zonas de serviço quando lhe dava a fome, que fôssemos bisbilhotar jornais para lhe saciar curiosidades, que seguíssemos direcções malucas, estafadelas arreliantes, empolgantes - inesquecíveis sempre, oh, sempre!

Cidade irreal

Descemos a Avenida da Liberdade. São cinco da madrugada.

No rádio do carro, Amália canta, de Camões, Erros Meus.

Natália acabara de estrear, inspirada no mesmo poema, Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, uma das melhores peças do teatro português.

Lentamente estaciono à porta do seu prédio. Lágrimas correm-lhe pela face. «Errei todo o discurso de meus anos... »

O soneto de Luís Vaz, a música de Alain Oulman, a voz de Amália, tornam, na aquosidade do novo dia, a cidade irreal.

«E se errámos todo o discurso de nossos anos?», interroga. «Onde está o mundo mais justo, mais humano, mais harmonioso, mais livre, que andámos, há décadas, a prometer? E se o futuro for o oposto disso, como receio que seja, mais desigual, mais pobre, mais violento, mais infeliz? Tenho medo!»

Era frequente, quando regressava, ficar sentada no carro a prolongar, a adiar a saída - para a solidão de si mesma (ainda não casara com Dórdio), das sombras que a perseguiam.

Pedia-me que esperasse: se a empregada, a Fátima, estivesse em casa (o que nem sempre acontecia), ficava; senão, voltava para trás e ia dormir a um hotel no outro lado da rua.

 

Natália Correia e Amália Rodrigues eram excessivamente grandes e egocêntricas para conviverem uma com a outra nos mesmos espaços. Conheceram-se facilmente, relacionaram-se dificilmente.

Fernanda de Castro apresentou-as em sua casa, no magnífico salão literário, artístico, filosófico, musical, teatral, que era o primeiro andar da Rua dos Caetanos, Soviete dos Caetanos lhe chamavam, onde habitava e recebia (Fernando Pessoa e Florbela Espanca estiveram nele) até à sua morte, poucos meses depois da de Natália, cuja presença era requestada por meia Lisboa, aceitou o convite de Amália para os serões no seu palacete da Rua de São Bento, célebres na segunda metade da década de sessenta, onde se destacavam os seus amigos Ary dos Santos e David Mourão-Ferreira.

Foi lá poucas vezes, porém. As oportunidades de se evidenciar, como gostava, eram ali diminutas, dada a personalidade de Amália.

Natália e Amália tiveram vidas amorosas desniveladas, desconvencionais, como sucede aos que não saem à procura da paixão porque sabem que estão fora dela. Cedo perceberam que a felicidade conjugal lhes seria morna, excluídas que foram, pela excepcionalidade transportada, da sua função.

Dúplices, ver-se-iam transformadas em ícones de grupos exuberantes, papéis que velavam com indisfarçável deleite ­ Amália (predominante) nos grupos femininos, Natália, nos masculinos. A solidão intelectual (mais do que afectiva) que sentiam asfixiava-as, exacerbava-as por vezes até à insuportabilidade.

Demasiado voluntariosas e caprichosas, as duas depressa desconvergiriam: «Está uma beata horrenda», exclamava-me, de Amália, Natália; «tornou-se uma herege insuportável», contrapunha-me, de Natália, Amália.

Curiosamente, o período em que conviveram foi o mais pujante das suas carreiras. Amália revolucionou o mundo musical cantando Camões, Natália desafiou o regime escrevendo O Homúnculo (peça sobre Salazar), entre escândalos, polémicas, inquirições e debates públicos.

«Eu não me sinto com uma idade, uma cor, um sexo só», diziam-me uma e outra, sem saberem do dizer de uma e outra. Frases, reminiscências, pensamentos idênticos repetiam-se nas suas reflexões com grande pudicia e imprevisibilidade. «A vida está muito mais no passado que no presente», «considero muito as pessoas que preparam a sua morte», «enquanto houver morte a vida é absurda», eram lhes, por exemplo, exemplos de obsessões comuns. A ligação ao indizível, ao inexplicável, tornou-se uma teia que as enovelou, macerou permanentemente.

Escrever e cantar fizera-se a sua salvação - escrever e cantar entre pequenas cortes de algodão em rama com que tentavam aquietar o mistério inculcado nelas pelo, destino.

Morreram da mesma maneira, em fuga dos seus quartos de madrugada, as veias rasgadas pelo magma que as habitava as desmesurava.

Os deuses deram-lhes alturas de incenso, mas a sua vida não. Entre o entregar-se e o negar-se ao destino, queimaram a alma, a existência. Tocadas pelo absoluto, necessitavam no seu quotidiano de pessoas chãs que lhes restituíssem o equilíbrio psicológico para se sentirem apaziguadas.

Declaração farfalhuda

Acompanhada por Maluda, Amália Rodrigues entra no Botequim. A noite é de chuva e pesar, pesar pela morte de Pedro Homem de Melo, poeta a quem a cantora devia alguns dos maiores êxitos da sua carreira, como Povo que Lavas no Rio, O Rapaz da Camisola Verde (o primeiro fado assumidamente gay) e Havemos de ir a Viana.

Natália felicita-a por no funeral, realizado no Minho, ela se ter insurgido contra as insídias de Eugénio de Andrade, que chamou ao falecido «um poeta menor». Amália invectivou-o publicamente, surpreendendo o País com a sua esplendorosa indignação.

«O Eugénio tem por vezes mau génio, deixa-se levar pela vaidade, pelas tricas do meio», desdramatiza Natália.

Noite dentro haverá músicas, evocações, champanhe, celebrantes da presença da fadista. A anfitriã improvisará jogos para a divertir, como o da «Verdade ou Consequência», então na moda.

O seu picante traduzia-se na obrigatoriedade de quem perdia cumprir o que lhe era ordenado pelos que ganhavam. Entusiasmada, Natália obrigou Gil Cantos (prestigiado médico analista, marido de Helena Cantos) a fazer, de joelhos, uma declaração a Amália. «Foi a declaração de amor mais farfalhuda que recebi!», gargalhava a fadista. Mais tarde comentaria: «Seduziu-me nele a sua paixão por Camões ... tem um retrato do autor de Os Lusíadas, único no mundo, e primeiras edições do poema.» Foi a segunda (e última) vez que a Amália esteve no Botequim. O ambiente do bar não a seduzia, a presença de Natália, confidenciou-me não a apaziguava.

Conviveram (embora mal) nas recepções da sua mansão de São Bento, onde as duas chegaram a gravar, antes do 25 de Abril, um long-playing com Vinicius de Moraes, David Mourão-Ferreira, Ary dos Santos, a cantarem e a declamarem, a dizerem pilhérias e a conterem emoções, serão magnífico que daria origem a um emocionado musical de Filipe La Féria.

Nos finais dos anos sessenta, Natália Correia - falidas as opíparas ceias em sua casa - abandona as idas às dos outros, como a de Amália, e abre, no Botequim, um espaço que marcará a história da política, da cultura, da arte, do convívio, da irreverência do País, como nenhum outro jamais somou.

 

Vultos da aristocracia atravessavam com assiduidade o bar. D. Maria Pia (Maria Pia de Saxe-Coburgo-Gotha e Bragança que se afirmava filha bastarda do Rei D. Carlos e por isso, pretendente ao trono de Portugal (reivindicação a correr nos tribunais, fizera de Natália confidente íntima e do Botequim porto ameno.

Era uma mulher transbordante de sedução (Rita Hayworth, a designava Natália, voz cristalina, ideias suaves, quem apetecia estar, a quem apetecia provocar.

Numa noite de galhofa anti-salazarista, a infanta - tomemo-la, pois, como tal - evocou a sua prisão pela Pide e a sua passagem por Caxias (era apoiante de Humberto Delgado) numa madrugada em que acordou, tal o seu chinfrim, meio presídio. Embatucados, os agentes apressaram-se a pô-la com dono, isto é na fronteira, episódio deliciosamente evocado por Mário Soares no livro Portugal Amordaçado.

Mário Soares tornar-se-á, tempos depois, seu advogado amigo, relacionamento espicaçante da curiosidade de Natália.

«Como é ele na intimidade?», pergunta-lhe ela, certa vez, de chofre. Espontânea, a visada exclama: «oh, é um Tarzan, um Tarzan lusitano!»

Tarzan lusitano passaria a ser, durante algum tempo, a designação do ex-Presidente da República num (restrito) grupo do Botequim.

Natália pediu-me que, sempre que possível, desse boleia a D. Maria Pia. Fi-lo com prazer.

A sua vivência, a sua história, a sua utopia, o seu charme (foi jornalista, romancista, pintora, compositora), eraram fascinantes. Ficava no carro a ouvi-la, defronte das residenciais onde se hospedava, altiva e humilde, crente e céptica, sábia e ingénua, lúcida e alheada.

Na véspera de regressar a Itália, diz-me, ao despedir-se: «Gostava de oferecer-lhe algo de pessoal... aceita um título?» Comovido, conto a Natália. «É uma querida, a mim quis fazer-me duquesa.»

Mal de finanças, D. Maria Pia ver-se-ia impelida a vender os seus direitos ao trono de Portugal a um equívoco Don Rosário de Poidimani.

Renovada a conta bancária, casou-se na Grã-Bretanha, em tórrida paixão, com um jovem português ali radicado (antes fora consorciada com um aristocrata espanhol e com um general italiano), o que fez as delícias de Natália - incorrigível em exaltações amorosas.

As coisas não lhe correram, porém, de feição, o que a levou, tempos depois, a desfazer a transacção da coroa e das núpcias.

O fim ser-lhe-ia pungente: internada no Hospital de Verona, faleceu pobre, cega, abandonada, sem glória nem notícia.

Fífias republicanas

Uma recepção em honra dos soberanos da Holanda, em visita oficial ao nosso País, leva-nos ao Palácio da Ajuda. Acompanhamos D. Duarte de Bragança, por quem Natália nutre especial cordialidade, e ele por ela. Vamos a convite de Mário Soares divertidos com as alfinetadas entre o republicanismo cáustico da poeta e o monarquismo brando do herdeiro da coroa. Toda a Lisboa do regime está presente.

A fanfarra da Guarda toca os hinos nacionais dos dois estados - e desafina no português. Fleumático, D. Duarte ironiza: «Se fosse uma banda real não dava tantas fífias!» Natália sorri. Surge o anfitrião acompanhado pelos homenageados. Reverências de todos os lados, que a costela monárquica não nos desapareceu no Terreiro do Paço.

Natália vira-se para D. Duarte e segreda-lhe: «Desista, meu caro, o rei é ele, não há outro igual!» Sem suspeitar dos nossos prazenteiros duelos, Soares apresenta-nos, majestático, a Suas Majestades visitantes, após o que D. Duarte se rende: «Têm razão, reconheço, ele é o rei ideal para esta República!»

Sujeito inconveniente

Em viagem a Marrocos organizada por Helena Vaz da Silva - «a grande ministra da Cultura que Portugal», no dizer de Natália, «não quis» -, vemos juntarem-se-nos (temporariamente) em Rabat (tinham ido no barco Creoula), D. Duarte, José Hermano Saraiva e os filhos de Cavaco Silva.

Durante alguns dias, o príncipe viajará a meu lado no autocarro, revelando-se um ser de tocante dimensão humanista e cultural. O seu despretensiosismo depressa desilude porém, algumas senhoras da alta sociedade que integravam o sofisticado grupo do CNC para quem ele. «não tinha modos aristocráticos», era até «envergonhante!»

Aviso-o da conjura das snobes. Ao pararmos, a meio da tarde num café perto de Fez, D. Duarte pede, alto, «um chá por favor, não o tomei em pequenino, pode ser que ainda vá a tempo!»

À partida da cidade de Mazagão, onde ficámos duas noites, o gerente do hotel vai ter com Helena Vaz da Silva e repreende-a: «A senhora deve ter cuidado, pois há no seu grupo um sujeito muito inconveniente, veja lá que ontem quis enviar um fax para o palácio de Sua Majestade Hassan II, felicitando-o pelo seu aniversário. Disse-nos que era o herdeiro do trono português. Claro que não deixámos seguir a mensagem ... » Helena desconcerta o sujeito: «Mas ele é o herdeiro do trono português faça favor de enviar o fax e de lhe pedir desculpa!»

 

A secretária de O Jornal comunica-me mal entro na redacção: «A Natália Correia pede para a contactar, já ligou quatro vezes. Aquela hora da manhã ela devia (e eu) estar a dormir.

Telefono-lhe: «Veja o Diário de Notícias, leia o artigo do Moisés Espírito Santo.»

Assim faço. Sob o título «O Tempo em que Deus Era Mulher» aquele sociólogo lembra o valor da cultura matriarcal entre nós, bem como a importância da mulher-mãe nas sociedades primitivas, teorias defendidas por Natália - sem, até aí, suporte científico.

0 aval que lhe dava Moisés Espírito Santo, destacado professor da Universidade Nova de Lisboa (e investigador de prestígio internacional, tornava-se assim, decisivo para a credibilidade dos trabalhos de Natália Correia. Num ápice, ficaram amigos. Pouco depois, ela passaria, inclusive a ir assistir a aulas dele de Sociologia Rural.

«Sentava-se muito discreta e atenta entre os alunos.

Fazia perguntas, tomava notas, a sua presença era muito estimulante para nós», lembra Moisés Espírito Santo, que se lhe tornaria companheiro de cumplicidades e ousadias!

E provocações - foram figuras de destaque no grande Congresso Luso- Marroquino, patrocinado por Durão Barroso, então secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, e assíduos nos congressos de medicina popular organizados pelo padre Fontes.

Os dois rasgam normas religiosas, culturais, comportamentais instituídas, atraindo seguidores que se multiplicam por colóquios, entrevistas, debates, escritos.

Enfastiados com os radicalismos de certas feministas, lançariam, entre outras, a ideia de um movimento em defesa do homem - logo rejeitado, porém, pelo Botequim.

 

Necessitando de dar um jantar de cerimónia em sua casa, Natália Correia pediu a criada de uma amiga emprestada.

A mulher foi, mas a sua cadela de estimação (a Paloma) embirrou com a intrusa e mordeu-a numa perna com tal fúria que ela teve de ser levada às urgências de São José.

Os médicos quiseram saber se o animal estava vacinado. Contactada pelo telefone, Natália exclamou: «Sei lá, mas que interesse tem isso?»

«É que a rapariga pode correr riscos, se não se souber…» responderam-lhe.

E a cadelinha?», interrompeu Natália. «A cadelinha é que me preocupa, já me inspirou um poema e uma crónica, por sinal muito interessantes, agora a criada não, nunca me inspirou nada, nem um verso!»

 

«Os homens inventaram o marialvismo para sobreviver ao matriarcado», enfatiza Natália: «Seres mais fortes ao que eles, em paciência, sabedoria, engenho, as mulheres, deixaram-nos pensar que as dominavam para mais tarde os dominarem. Hoje eles estão cansados do exercício do poder, do fingimento da virilidade. O modelo construído está a ruir.

Um dos grandes fenómenos da actualidade é o da desistência do macho - que acarreta, felizmente, a alteração da estrutura da família, pois a ciência encarregar-se-á da reprodução do ser humano melhor do que se for ele a fazê-la. Patéticas se tornam, por isso, as imposições das igrejas e dos sequiosos da natalidade.»

Natália faz anos e oferece um jantar. Intima-me: «Apareça às sete, mas não traga presentes» - maneira de o exigir.

Flores, rosas brancas, eram recurso seguro. Antes de premir a campainha, ouço, entre notas de piano e cordões de gargalhadas, Natália repetir que o único homem que amara fora Alfredo Machado, seu terceiro marido, industrial de hotelaria, responsável pelo Hotel Império, depois Britânia na Rua Rodrigues Sampaio, a mesma onde passaram a residir.

Não se tornou, porém, fácil o seu entendimento: Os planos de vida em comum foram interrompidos por ela ao decidir, sem explicações, casar-se com outro, o norte-americano William Hyler, técnico de meteorologia no aeroporto de Lisboa.

«Casei com o Bill a chorar como um vitelo desmamado. A pensar no Alfredo», enfatiza.

A lua-de-mel foi passada em Tânger, de onde o casal partiu para os Estados Unidos, país que ela detestou, tendo-lhe dedicado até um (curiosíssimo) livro, tipo diário, intitulado Descobri que Era Europeia.

Ao tomar o avião, à saída de Marrocos, receosa de um desastre aéreo, Natália pediu ao embaixador naquele país, João Hall Themido, que, se acontecesse «um acidente e não sobrevivesse», conta aquele diplomata, «fosse procurar Alfredo Machado e lhe dissesse que era dele que ela gostava».

Meses mais tarde, abandonou-os, ao marido e aos Estados Unidos, retomando (aliviada) a vida de Lisboa e do senhor Machado. O casamento de ambos proporcionou-lhe «a estabilidade necessária para escrever, o bem mais importante para mim!» A estada nos EUA fê-la valorizar Portugal e os Açores, cuja cultura (sobretudo a literatura) passou a defender apaixonadamente.

Dórdio Guimarães, que Natália conheceu nos anos sessenta, muito jovem, muito tímido, apaixonou-se por ela, passando a segui-la como uma sombra, até ser-lhe uma sombra. A poeta viu nele um pajem fiel e doce, sem exigências nem ousadias.

Apena súplicas.

«É um esposo-irmão», justificará aos que a interrogam. «O nosso é um casamento casto», acrescentará de imediato.

Os amigos concentram-se (na sua celebração) no Botequim para um brinde de felicidade, uma taça de champanhe, uma mirada de picardia.

A cerimónia torna-se farfalhuda. O piano ouve-se alto, as canções repetem-se ininterruptas, a curiosidade irrompe, indisfarçável. Um grupo de ecologistas traz, numa gaiola, um casal de pombos para serem soltos após a boda.

O seu simbolismo comove Natália. Todos saem para a rua, a caminho do jardim e do céu livre. O trânsito desmancha-se em caos incontrolável. Então, a sua voz ergue-se: «Só a pomba será libertada. O pombo, esse machista, terá de continuar preso.»

Os jovens entreolham-se: como saber qual é uma e outro? Divertido, digo-lhes que soltem o que der mais jeito, tanto faz, ninguém ali sabia distinguir sexos de pássaros. Palmas acompanharão, depois, uma das aves a abrir as asas, a elevar-se até lhe perdermos a vista e a direcção.

Quartos de casal

Natural da mesma ilha de Natália Correia (São Miguel) António Valdemar, jornalista, escritor, conferencista, cruzou-se com ela na recepção do Hotel Sheraton, do Porto, no início de um encontro de açorianos ali realizado. E conta, em crónica no Diário de Notícias: «A grande afluência de hóspedes esgotara os quartos disponíveis, irritando Natália, a quem haviam reservado um de casal.

"Mas eu quero dois quartos", exige ela.

O recepcionista justificava-se: "Vossa Excelência desculpe mas o quarto não é para Vossa Excelência e este senhor?"

Ela fulminou-o: "Não, é só para mim!"

“Mas este senhor não é o seu marido?"

“É!”

" Então Vossa Excelência não quer dormir com ele?"

"Não!"

"Nem sequer uma noite?"

"Nem uma noite. O meu é um casamento de cúpula, não de cópula!"

Eduíno de Jesus, poeta açoriano, sacrificou-se, cedendo a Dórdio a sua reserva e indo para outro hotel.»

Cenas dessas foram testemunhadas por mim quando, na marcação de pernoitas, sucediam equívocos do género. Natália não tolerava ninguém nos seus aposentos - que tinham de ser hermeticamente isolados da luz e do barulho, o que gerava, nas viagens, delírios inesquecíveis.

Aos que a inquiriam por não ter filhos, respondia que a sua maternidade era «universal, não biológica. Casei as vezes que me apeteceu e isso de filhos e netinhos não é comigo porque fui muito cedo prevenida sobre os futuros efeitos nefastos do aumento populacional, que são hoje um pesadelo para a humanidade. Não tenho condescendências com o enfadonho espírito da conjugalidade».

Bateu-lhe à porta

Quando Dórdio Guimarães teve a certeza de que o espólio de Natália Correia e o seu estavam preservados, respirou fundo. Entre goles de uísque recostou-se e silenciou. Desde o desaparecimento da mulher que consegui-lo se tornara o seu grande objectivo.

«Tínhamos um amor até ao fim do mundo», evocará.

«Mas uma manhã a Natália despertou-me de súbito, asfixiada e em pé, semi-sentando-se numa poltrona, já sem forças. Em quinze minutos absurdos despediu-se da vida. Disse-me num sopro: "Dórdio, não vejo nada ... " E as luzes estavam acesas.

Partiu de olhos abertos.»

O primeiro encontro entre eles foi proporcionado pela poetisa Maria Teresa Horta, admiradora de Natália - e companheira de lutas, de utopias comuns. «Fui eu que lhe apresentei o Dórdio. Ele perguntou-me se eu a conhecia.

Telefonei-lhe, falando-lhe dele, e perguntando-lhe se ela se importaria que ele fosse lá a casa porque gostava muito de a conhecer. Ela disse que sim, e ele bateu-lhe à porta.

E ficou.»

Foi Teresa Horta quem decidiu (fazia parte do júri) a atribuição do Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores a Sonetos Românticos. A ela se deverá, anos depois, um dos mais simbólicos actos culturais registados entre nós: a recusa de receber um prémio de literatura (pelo seu notável romance sobre a Marquesa de Alorna) das mãos de Passos Coelho, primeiro-ministro de um dos governos menos sensíveis à cultura entre nós. Natália ter-se-ia orgulhado do seu gesto. A doença (contra a qual não lutava) atirou Dórdio Guimarães, pouco depois, para os serviços intensivos de um hospital, onde expirou - coração, fígado, estômago, rins, pulmões, bexiga, desfeitos por álcool, fumo, infecções, subnutrição, desistência.

«Nunca tive um doente com tamanha vontade de morrer como ele», exclamou-me um dos médicos. Aos mais íntimos, avisava que desapareceria assim que o legado de Natália estivesse salvaguardado.

Cineasta e poeta, Dórdio Guimarães deixou-nos filmes como Santo Antero, séries televisivas como Mátria, livros como Cyntia, todos tutelados por Natália Correia. Neles revela-se um autor de raríssima sensibilidade, com um estilo criativo de excepcional vibração.

Saga passional

A sua relação é um dos casos mais surpreendentes da história das nossas sagas passionais: ao ver pela primeira vez Natália, numa cerimónia cultural, caiu-lhe fascinado para sempre, aos pés. Abdicou de si próprio, da sua carreira, da sua autonomia da sua liberdade, da sua vontade - para se lhe ofertar.

Nascido no Porto em 1938, filho do realizador e pintor Manuel Guimarães, construiu para si mesmo o mito da amada como faziam os cavaleiros românticos da Idade Média ao elegerem platonicamente as suas damas. Natália acolheu com ternura, com garridice, a imolação. No ocaso da vida, aceito desposá-lo, «como um irmão», sublinhava.

O desinteresse das televisões, dos jornais, das editoras, das produtoras, pelo seu trabalho acentuou-lhe a melancolia.

O álcool fez-se-lhe uma fuga.

No Botequim, foi-se reduzindo a observador discreto e irónico do ocaso dos revolucionários, do avanço dos tecnocratas, da apatia dos intelectuais. Sabia-se sem espaço, sem futuro sem sonho - sem saída.

A morte de Natália, nos seus braços, será, subitamente, uma invocação da parte (ainda) viva de si. Viúvo, passa a ter (pelo vazio da mulher) estatuto próprio.

Cinzas juntas

Com subtileza, com volúpia, encena, através de disposições testamentárias, a sua imagem ao lado de Natália: as cinzas de ambos irão para São Miguel, especifica, anichadas num monumento a construir no jardim perto da casa (a ser transformada em museu) onde ela nasceu, na Fajão de Baixo - o que não foi cumprido.

Os livros, os quadros, os manuscritos, os filmes, os vídeos, ficarão em salas próprias nas bibliotecas de Ponta Delgada e Lisboa, e das Belas-Artes do Porto - alguns ficaram.

Dórdio cuida ao pormenor do seu próprio funeral: cinquenta e quatro horas, no palácio do Grande Oriente Lusitano, em Lisboa, sede da Maçonaria portuguesa, de que fazia parte. Esquece-se, porém, de salvaguardar a sobrevivência de Maria de Fátima de Jesus, a governanta que os serviu durante anos. Imerso na sua obsessão, depressa desistirá do que fica, dos que ficam - e de si.

 

A insensibilidade dos nossos responsáveis para com o património da lusofonia crispava por igual Natália Correia e Agostinho da Silva. O que deveria constituir-nos «um plano» era menosprezado com arrogância, com cegueira, levando à perda de oportunidades únicas para o fortalecimento de uma comunidade de língua comum. O impasse dos PALOP é expressivo disso.

«O Brasil e Angola podem deixar de precisar de Portugal», dirá mais tarde António Ramalho Eanes, um dos maiores defensores do projecto. Outro grande entusiasta dele, o ex-embaixador do Brasil em Lisboa, José Aparecido de Oliveira, tornou-se presença estimulante, quer no Botequim, quer em casa de Agostinho da Silva, de quem fora aluno na Universidade da Baía.

Ante o embevecimento de Natália, o diplomata contou como germinara a ideia da lusofonia, dilatada pelo professor após a sua ida para o Brasil, no início da década de quarenta.

Detendo-se no tropicalismo de Gilberto Freire, Agostinho logo o ultrapassa - e o diverge.

Antes de ser expulso de Portugal pela PIDE, o filósofo encontrou-se regularmente, entre Dezembro de 1934 e Novembro de 1935, com Fernando Pessoa, no Martinho da Arcada.

Admiradores um do outro, abordaram em profundidade, e ousadia, a questão do império, perspectivando-a a partir de textos de Pessoa, como os publicados na imprensa, sobretudo em O Jornal. Num deles, o autor de A Mensagem afirmava que, para o futuro que antevia para o nosso País, «as colónias não só não são precisas para nada como se mostravam um peso inútil», isso, sublinhe-se, dito numa altura em que todos, monárquicos e republicanos, situacionistas e reviralhos, intelectuais e analfabetos eram, na sequência do Ultimato inglês, colonialistas.

Foi num desses encontros - Pessoa jantava quase sempre um copo de aguardente e um ovo estrelado, «sol frito» lhe chamava - que a célebre frase «a minha Pátria é a língua portuguesa» ganhou várias reformulações.

Nenhum pessoano conhecia, o que enlevou Natália, esses factos - que me haviam sido, aliás, revelados pelo próprio gostinho da Silva.

 

Tocado pela grandiosidade do que os Portugueses construíram fora do seu território, o professor realiza uma demorada viagem por África, Ásia e Oceânia, com paragens em Angola, Moçambique e Timor.

No regresso, o Brasil faz-se-lhe o centro do mundo, do mundo arquitectado no mármore da pequena mesa do Martinho de Lisboa, sob o olhar de Pessoa e o resguardo do café.

Fascinada, Natália toma notas. À sua maneira ela era também argonauta dessa nave de futuros, pois cedo se iniciara na demanda de um graal para a sagrada Lusitânia, húmus de uma língua de prodigiosas alquimias que, como poeta, dilatava em paixão.

Na Cachoeira

À ilharga da Baía, no deslumbrante vale da Cachoeira! (a lembrar o de Barca de Alva, da sua infância no Alto Douro ) Agostinho da Silva funda um centro de estudos afro-luso-brasileiros, que contagia a outros núcleos, nomeadamente à Universidade de Brasília, de que será um dos criadores.

Três jovens destacam-se então entre os seus alunos: Jânio Quadros, Juscelino Kubitscheck de Oliveira e José Aparecido.

Os dois primeiros serão presidentes da República, o terceiro ministro da Cultura e embaixador.

As ideias que dali se divulgam atravessam regimes e continentes. Aristides Pereira, Senghor, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Eduardo Mondlane, Samora Machel, em África; Adriano Moreira, Franco Nogueira, Salazar, em Portugal, interessam-se por elas, mas de maneiras diferentes.

De todos chegam sinais a Agostinho da Silva. Franco Nogueira faz-lhe saber que Salazar gostaria de ouvi-lo - e pergunta se estaria disposto a aceitar um convite do Governo português para se deslocar a Lisboa. Teria, porém, de entrar clandestinamente no País, pois o seu nome integrava as listas negras da PIDE.

Divertido com a situação, Agostinho voa para a Portela, com nome falso, desembarca e é imediatamente preso pela polícia.

Franco Nogueira tem de interromper um banquete nas Necessidades para ir, vestido de fraque, explicar aos zelosos agentes que o detido vinha, em segredo, a convite do seu ministério.

«Mas é uma notável cena de ficção!», exclama Natália, entre o espanto e o riso.

Agostinho da Silva situou-se desde sempre acima do plano político da sua época, num futuro em que as colónias, unidas pela lusofonia (que não poderá, nunca, tornar-se neocolonialista, repetia), se afirmarão sociedades independentes e democráticas, pacíficas e harmoniosas.

«Essa evolução será irreversível», especificava, afagando um dos seus gatos. «o grande desastre que aconteceu foi a maneira como ocorreu a descolonização. Ao expulsarem os portugueses, os africanos cometeram o mesmo erro, trágico erro, que os Portugueses quando expulsaram os judeus. O nosso País ainda não se recompôs disso. Angola e Moçambique vão, porém, emendar a mão, recebendo-os de novo, o que irá intensificar-se a partir do século XXI, quando a comunidade Europeia entrar em derrapagem, até porque nessa altura já a paz será efectiva naqueles jovens países. Por outro lado, serão eles a salvar-nos economicamente sobretudo Angola, um dos territórios mais ricos do mundo. Tem tudo, até água.»

Acordo traiçoeiro

A ideia de um acordo ortográfico começa (década de oitenta) a borbulhar - e a irritar. Debates, polémicas, discordâncias, artigos, conferências, multiplicam-se, ricocheteando no Botequim.

Defensores e opositores engalfinham-se entre cervejas e uísques, que o tema é (como se verá vinte anos mais tarde) de radicalismos transbordantes, transtornantes.

Indecisa no início (em 1967, Vitorino Nemésio propusera «uma unificação ortográfica com a queda das consoantes mudas e da grafia dupla», Natália pede-me que ausculte a opinião do professor.

Nessa época, a literatura e a imprensa Portuguesas conheciam um salto qualitativo (editorial, empresarial, redactorial, económico, tecnológico) notável com a projecção (externa) da obra de José Saramago e o surgimento (interno) do Público - do qual fui um dos fundadores.

Diversos temas abordados pelo novo diário nasceriam.

nas mesas do bar, ante o entusiasmo de Teresa de Sousa, sua (notabilíssima) redactora política.

Seiva dessa vitalidade, a língua portuguesa começou a ser objecto de interesse por parte de políticos e empresários que pretenderam sensibilizar especialistas para uma nova formatação sua.

Transmito as dúvidas de Natália a Agostinho da Silva. Encolhendo os ombros, este perguntará, displicente, se as pessoas «não têm nada de mais importante com que preocupar-se».

E acrescenta: «Portugal necessita de ser discreto, não deve impor nada, deve, pelo contrário, aguardar que as antigas colónias façam as suas opções e só depois pronunciar­se, apoiando-as, quando houver consenso, nessas opções.

Se todas elas quiserem um acordo ortográfico, nós devemos, então, aceitá-Io. O Brasil criou uma matriz própria para a língua portuguesa, mas os africanos seguiram, até agora, a nossa matriz. Faz parte, aliás, do seu estatuto social falar e escrever bem o português de Portugal, como sucedia entre nós há cinquenta anos. Mexidas na ortografia sem a sua concordância serão consideradas traições. Ex-colonizador, o nosso País deverá guardar, em coisas destas, muita prudência.» As circunstâncias deixarão, pouco depois, cair e adiar o obtuso projecto.

 

Natália Correia percorre as Amoreiras no fim de uma mesa­redonda na TSF, então sediada naquele edifício. Vai segura mas não serena, pois agastou-se, durante o debate, com Eduardo Prado Coelho, que amesquinhara, aos microfones, a dramaturgia portuguesa.

A sua relação com ele era, aliás, bastante crispada (como fora a tida com o pai, Jacinto Prado Coelho), sobretudo a partir da Europália, exposição que Eduardo comissariara. Importante evento sobre a cultura portuguesa (com destaque para a poesia) realizado em Paris, ignorara ostensivamente Natália Correia, não a figurando sequer na lista dos autores nacionais de referência.

Anos mais tarde, no Café Astória, da Parede à mesa com Henrique Barrilaro Ruas e Camacho Costa, Prado Coelho reconhecerá que, embora não apreciando nem a obra nem a personalidade de Natália, a sua ausência da Europália «foi infeliz», aliás, «mais acidental do que propositada».

«Foi pena não lhe ter dito isso», respondi.

A irritação de Natália foi-se desvanecendo ao ver-se reconhecida por muitos dos que cirandavam pelas Amoreiras e paravam para a reverenciar.

Começou a reparar nas montras, nas decorações, no sol sobre a cúpula envidraçada e nos jovens: «o homem português está a ficar, à medida que assume a sua feminilidade, muito esbelto», comentou.

O centro comercial, concebido por Tomás Taveira, acabou por a agradar. A livraria, os restaurantes (sobretudo O Madeirense), os antiquários, caíram-lhe no goto - como lhe caíram, no exterior, as linhas arquitectónicas de inspiração medieval portuguesa.

Na véspera, no Botequim, havia perorado contra os centros comerciais, ao saber que a rádio aonde iria se situava. Rabujou.

Um jovem arquitecto, em mesa ao lado, contrariou-a:

Os seus construtores buscaram nas catedrais de outrora as dimensões do não-limite, dadas pela altura das abóbadas e colunas, pelas riquezas dos oiros e tecidos, pelas reverberações das joias e iluminuras, pelo odor dos incensos, pela rarefacção dos vitrais.

Os sucedâneos dos altares desses templos estão agora em megaespaços comerciais, em vitrinas-relicários, em modas-paramentos, em cúpulas-zimbórios, em objectos-divindades.

Proles completas de famílias, grupos ritualizados de jovens (vindos sobretudo das periferias) são os seus fiéis, insaciáveis de montras, escadas, gelados, pipocas, dichotes, evasões, seduções.

Palácio dos Pobres

Atiro o nome de Agustina (Bessa-Luís) para lhe desviar de vez a fúria de Prado Coelho: «Ela dizia-me, num centro comercial do Rio de Janeiro (aonde me arrastou quando estivemos lá numa bienal do livro), que, ao contrário de certos intelectuais, «adorava as grandes superfícies, eram os palácios dos pobres, sem chuva, sem calor, com comida, com gente, reformuladores do passeio público, do largo das igrejas, do convívio, da transgressão ... »

«O que é que ela comprou?», interrompe-me com desagrado, «não sabe vestir-se!»

Ignoro-lhe a ferroada:

«Uma lindíssima écharpe. Aliás, e ao contrário do que diz, ela tem muito bom gosto.»

«Bom gosto, essa bruxa?»

Disfarço o riso e continuamos, agora pelo piso das antiguidades, de que ela é grande apreciadora e conhecedora teve até uma loja (delas) junto à Rua do Salitre, que, naturalmente, faliu.

Atravessou o último piso das Amoreiras com indisfarçável curiosidade. À saída perguntou: «Este edifício é que é do Tomás Taveira?»

A razão do seu interesse não estava na arquitectura do centro, mas no frisson do seu autor, nessa altura protagonista de um escândalo sexual de grandes repercussões.

Natália fora envolvida indirectamente nele, por a magistrada que o apreciava ser assídua no Botequim, onde pedia opiniões e fazia confidências, espicaçando a insaciável gula de Natália.

Tomás Taveira havia posto um processo judicial contra uma revista que publicara fotos suas em intimidades generosas com raparigas que tentaram chantageá-lo. Uma beleza.

Natália exultava ante as performances do fogoso arquitecto (a juíza mostrara-nos filmes dos bacanais), passando a defendê-lo e a culpabilizar a «sofreguidão» das partenaires, umas piranhas, pobre homem!»

A revista foi condenada a pagar dez mil contos ao queixoso, o que a levou à falência, tendo o bedelho de Natália influenciado a sentença.

 

Excitação no Botequim: um diplomata de Cuba, homem com queda para a lírica rimada e para a Macieira envelhecida, incita Natália a visitar, com os amigos, o seu país.

Consultam-se calendários e agências, elaboram-se listas e itinerários, apuram-se programas e custos, fervilham-se utopias e socialismos.

Excitação, pois, no Botequim. Parte da trupe exulta, parte retrai-se. As prisões políticas de Castro, os (na altura) sidatórios (abomináveis campos de concentração para doentes de sida, a perseguição aos homossexuais, a continuação dos militares cubanos em Angola, etc., esquivam a maioria do projecto.

Imperturbável, Natália persiste no arregimentar de excursionistas, mais interessada na cultura popular de Havana do que no regime autoritário de Fidel. Ela nutria, aliás, esfumado o Verão Quente de 75, um fraquinho não definido, nem assumido, por ditadores (Castro, Saddam, Eduardo dos Santos, Machel, Tito, Mao) ditos de esquerda.

Íntimo de Fidel

A minha reacção de retraimento leva-a a questionar-me. Revelo-lhe: tempos antes o actor Rogério Paulo havia-me contactado para ser representada em Havana, dirigida por ele, a minha peça Um Jipe em Segunda Mão, sobre a Guerra Colonial - censurada por militares, políticos, governantes, programadores portugueses.

Rogério Paulo refere a actualidade do texto - Cuba tinha tropas a combater pelo MPLA - e, sobretudo, a total liberdade de expressão naquele país.

«Se for preciso, falo com Fidel Castro, de quem sou amigo íntimo!», exclamou. «Só há um problema, não pagamos direitos de autor.»

Ironizo: «Que bela consideração para com os trabalhadores!» Ele sorri: «Bom, podemos convidar-te a ires lá passar duas semanas, aquando da estreia.» Anui.

Cerca de um mês depois telefona-me: «o Comandante odiou a peça e proibiu-a. Proibiu também a tua entrada em Cuba!»

Lívido, o diplomata perdeu a prazenteirice, levantou­se e, sem dizer palavra, saiu - para nunca mais aparecer no Botequim.

 

Resultado diferente teria a estratégia dos responsáveis pelo MPLA para levarem Natália, e outros intelectuais e deputados, a Luanda, com deslocações a zonas controlados pelo seu partido.

A iniciativa inscrevia-se numa resposta à propaganda da UNITA que, nessa altura, multiplicava convites a jornalistas, fotógrafos, escritores, políticos, para visitarem o Bailundo (quartel-general de Savimbi) e divulgarem a vida na Jamba, o seu território-chave.

Grandes órgãos de comunicação social, portugueses e estrangeiros, começaram, assim, a transmitir visões idílicas dessa até aí (quase) desconhecida parte de Angola.

Natália aceitou, partindo com corte sedosa e lustrosa, onde sobressaíam Dórdio Guimarães, Fernanda Mestrinho, Edite Estrela, Elisa Damião, António Braga, Fernando Ferreira da Costa.

O sofrimento pela tragédia da guerra civil, devastadora da terra onde nasci, inibiu-me de os acompanhar.

Feérica foi a sua digressão entre escoltas espampanantes, tratamentos VIP, iguarias exóticas, deslumbres artificializados e Moêt & Chandon servido por pretos de luvas brancas - «Uns verdadeiros cavalheiros, os dirigentes do MPLA, cultos, bons conhecedores da minha poesia», propagandeava Natália.

Opíparo banquete

No interior, a caravana rumou para Cuíto Cuanavale, região das mais perigosas do país.

«A última fase do percurso teve de ser feita dentro de Chaimites», evoca a jornalista e jurista Fernanda Mestrinho, «com a Natália a berrar ao Dórdio para a ajudar a encafuar-se no blindado, enquanto mísseis passavam por cima. Contei três. Imperturbáveis, os nossos anfitriões conduziram-nos depois para um acampamento a um quilómetro dos confrontos e das trincheiras. Nesse acampamento havia um opíparo Banquete à nossa espera, com marisco e, tinha de ser, champanhe gelado. Não perdendo a oportunidade, Natália, exuberante com a situação, provocou os altos comandantes dizendo-lhes que conhecera pessoalmente Jonas Savimbi em Rabat, Marrocos, mas que, embora achando-o simpático, não concordara com as suas ideias. Ela afirmava essas coisas para arcar a sua distância, a sua independência. Lembro que, Huíla, Lopo do Nascimento enumerava-nos vitórias sobre vitórias do seu partido. Natália, que tomava notas num aderno, era a única pessoa a fazê-lo, parou de súbito e, irónica, observou-lhe: "Seria melhor darem-nos uma fotocópia com esse relato." Ele sorriu e, cúmplice, comentou, retribuindo a ironia: "Temos a fotocopiadora avariada!»

De Angola, Natália apenas vira (fingira ver) cenografias e fantasias.

 

As passagens de ano no Botequim fizeram-se rituais de tocante envolvimento. Os reveillons, constituídos por duas partes, contavam, na primeira, com os Idos pata partilhar o bater das vinte e quatro horas e, na segunda, com os chegados depois dos seus compromissos pessoais - familiares sobretudo.

Ao embevecimento de Natália juntavam-se o requinte de Helena Cantos (nos doces, nos cozinhados, nas decorações, nas atenções), a prontidão do senhor Bandola, a pianística de Carlinhos, os presentes dos presentes, melancolias a imergirem o aveludado da alegria.

Eu pertencia ao grupo dos que chegavam na «segunda parte». Passava pela casa do Fernando Diogo, em Benfica, e rumávamos à Graça por uma Lisboa semiespectral e gótica, após a rufada estrídula da meia-noite, com odores a açúcar queimado e ecos de gargalhadas fumegantes.

Natália gostava especialmente de Fernando Diogo, apreciando-lhe «a contenção, a cultura, a personalidade, a elegância», segundo (e por essa ordem) as suas palavras. Formado em economia, destacara-se, porém, como jornalista político de quem ela acatava, embevecida, as opiniões - e com quem nunca (espantoso!) recalcitrou por via delas.

Inês Pedrosa, que publicaria no Expresso, quando da morte da poeta, um corajoso perfil biográfico seu, caíra-lhe igualmente no goto, o que se traduzia em lugares de honra, para eles, à sua mesa no Botequim.

Parte da obra mais luminosa e íntima de Natália Correia continua por conhecer. Universidades, jornais, fundações, editoras, não se aperceberam ainda da sua existência nem da sua excepcionalidade.

Trata-se do conjunto de cartas de paixão que ela, num período breve mas vertiginoso, escreveu (trocou) com o seu jovem primo José António Correia, na altura mobilizado para a Guerra Colonial, na Guiné.

Intermediadas por uma amiga íntima, Branca Rodrigues, constituem um acervo (em poder do destinatário) de altíssima qualidade na epistolografia amorosa da nossa literatura, à dimensão das de Soror Mariana ao Cavaleiro de Chamily.

Mereciam, por isso (Inês Pedrosa foi a primeira a percebê-lo e a publicar um exemplar delas), ser divulgadas e conhecidas, e reflectidas - neste tempo de desvalorização humana.

Inês Pedrosa reter-lhe-ia confidências de expressiva revelação: «Eu pareço entusiástica, exuberante, mas é só por fora. É a minha forma de me libertar das tensões que as pessoas mordem dentro de si. Interiormente, tenho a imobilidade de um ídolo oriental. Mas não sou fria. Sou até um ser profundamente afectivo.»

Tango na Apolo

Nesse ano Natália dança o tango. Na Sociedade Alunos de ApoIo, das mais antigas colectividades de Lisboa (para onde nos aliciou), todos se entregam aos acordes da música argentina, ritmados por passes que, em alguns, atingem virtuosismos comovidos.

Ela ondula entre eles, com eles, castelã magnífica rodando, volte ando devagar em ritual criado por si (para si que faz dádiva aos que a seguem para lá dos focos de luz.

Uma mulher ainda jovem entra na pista e, concentrada, dança com um bebé ao colo, ternamente apertado nos braços, sorrindo ao sorriso da criança, que a olha de chupeta e pezinho a balouçar, a balouçar.

Maravilhada, Natália reclina-se e dá um beijo na testa do petiz, a mulher (a mãe) pára, e os pares detêm-se e, de súbito, todos a aplaudem, e dão-se as mãos, e deslizam em grupo, e soltam olhares de contentamento, como se deixasse, finalmente, de haver solidão na Terra. Todos se falam, se compartilham - por farnéis, bebidas, chistes, afecto, todos reverenciam Natália, a deusa, a mátria, a feiticeira, a companheira ali emergida de luminosidades lunares.

Ao fundo, a pequena orquestra - pianola, acordeão, guitarra, saxofone - torna a Apolo uma nave a deslizar, a levitar.

Natália era ávida de voos assim. Pelos seus mistérios levantava-se a meio das noites, a meio dos interditos, e subia, como oficiante deslumbrada, a todos os seus chamamentos.

 

Remorsos vi-lhos quando me contou as causas do distanciamento entre ela e a marquesa de Jácome Correia, a Marquesinha, amiga açoriana de décadas, mulher de fortuna e cosmopolismos, que afrontou a sociedade da época ao assumir as suas extravagantes relações sentimentais e ao publicar as suas célebres Memórias de Uma Cadela Pura, que a ostracizara, sobretudo nos Açores.

Grande paixão de Vitorino Nemésio (foi António Valdemar quem deu o nome ao livro e lhe fez a revisão), a sua relação com o escritor encontrou desde logo ilimitadas exaltações, em Natália Correia.

Anos mais tarde, sem Nemésio (que falecera), sem mansões (que vendera), sem fortuna (que perdera), a Marquesa restringiu viagens, luxos, extravagâncias, passando a dispor, como resguardo em Ponta Delgada, de um discreto andar residencial - que ofereceu a Natália para, em deslocação São Miguel, o utilizar.

«lmpulsivamente respondi-lhe que não, que estava habituada a ficar em palácios, não em pindéricos apartamentos. Ela pensou que, como deixara de ser rica, eu deixara de a considerar. Quando me apercebi da grosseria, já era tarde. Fiquei muito constrangida, estou arrependidíssima de a ter magoado, pois gostava muito dela. Este meu feitio provoca, às vezes, situações assim!» Provocava.

Natália liga-me, é Verão, para O Jornal: «Venha até minha casa tomar uma bebida, quero que conheça um jovem, um verdadeiro deus grego que está aqui a fazer-me estantes...»

«Um carpinteiro?», pergunto-lhe, tentando contorná-la mais às suas extravagâncias.

Nãaaooo, não é nada disso, é uma surpresa, nem imagina de quem ele é filho.»

«De Zeus?»

«Venha e verál»

Quando lhe davam os entusiasmos o melhor era não a driblar.

Fui e vi: um rapaz atlético, cabelos compridos, tronco nu, sorriso largo, suava copiosamente entre tábuas, serrotes, escadote, latas de tinta, papéis de embrulho, cercado, no chão, por livros, revistas, bibelôs, tudo imerso na melopeia dela, extasiada com o caos do aprendiz de marceneiro a encaixar, tarde fora, prateleiras e suportes, e descaramentos, e canções - tinha uma guitarra, que dedilhava encantatoriamente.

«É o Francisco, filho do marechal Costa Gomes», atirou-me Natália. Para logo acrescentar: «E um militante entusiástico do Partido Comunista. Decidiu renegar a burguesia, fez muito bem, e tornar-se operário, carpinteiro como São José, ofício muito nobre ... dado eu ter necessidade de mais estantes, nunca há espaço para os livros, aproveitei a oferta que me fez. Começa aqui a sua vida de operário, é histórico, temos de celebrar.»

Mais um a ir na sua conversa, pensei enquanto bebíamos Dão gelado que a Fátima, pressurosa, trouxera.

O Botequim seria um salto que ele empreendeu num ápice - ápice a trocar a estafa da carpintaria pelo enlevo da cantoria, já que possuía voz envolvente em toadas de protesto e amor.

Foi rápido a fazer sucesso. Em poucas noites, o Chiquinho, como o tratavam, passou a ser admirado, cobiçado, suscitando paixões e perdições - era, aliás, mais deus grego a interpretar baladas do que a serrar barrotes. «É um Don Juan como o pai, que sempre perdeu a cabeça com mulatas. A sua paixão por África, onde passou grande parte da vida, era mais carnal do que patriótica», provocará, divertida, Natália.

Confidências surpreendentes Costa Gomes começou a aparecer, curioso com os feitos do seu rebento. Chegava discreto, um pouco distante, bebia sumo de laranja, retribuía amabilidades - e, se houvesse gente de confiança, contava situações, esmiuçava bastidores, interpretava acontecimentos. Levávamo-lo depois a casa, defronte dos Quartetos (dispensara o carro e o motorista a que tinha direito militar, não como ex-Presidente da República por não ter sido eleito), ficando por vezes a conversar até amanhecer, impelido pelas questões colocadas por Natália, inesgotável no pô las.

Foi no meu Primera que ele fez revelações surpreendentes do que vivera, sobre Salazar («ouvia-me nos momentos críticos», sobre Humberto Delgado («demasiado imprudente», sobre Spínola («um megalómano»,, sobre Cunhal («tão autoritário como Salazar», sobre Mário Soares («imbatível e intuição»), sobre Sá Carneiro («antiamericano em excesso»), sobre Ramalho Eanes (pessoa íntegra»), sobre Otelo («fantasista mas corajoso», sobre Vasco Gonçalves («fora da realidade»), sobre Agostinho Neto («sempre obstinado»), sobre Samora Machel («incrivelmente carismático»).

A certa altura afirmou: «Devia-se rever o papel de Marcello Caetano. Hoje penso que não é verdadeira a imagem de político indeciso que ficou dele. Foi um homem lúcido, actual e em vários planos, fazendo esforços desesperados para desbloquear a situação no que dizia respeito às guerras coloniais. Oficialmente afirmava que elas não se discutiam, para agradar à extrema-direita, mas nos bastidores tentava abrir diálogo com os movimentos de libertação, esforços sempre sabotados. Esses movimentos, em público, diziam querer conferenciar, mas na prática esquivavam-se. Tenho muita provas disso. A posição portuguesa estava condenada, pois o Estados Unidos e a URSS, também a China, coincidia no correr connosco de África para dividirem as suas matérias-primas. Kennedy foi o impulsionador do processo e Kissinger a alma negra. Os movimentos de libertação, lá, e as oposições, aqui, incentivados por esses blocos, e por outra forças como a Internacional Socialista, a Maçonaria e o Clube de Bilderberg, ajudaram nos ataques a Portugal, coroados pelo levantamento dos capitães. Marcello Caetano, que o sabia, lutava em segredo até porque, e ao contrário de Salazar, não podia aguentar por mais tempo a guerra. Uma vez, em conversa com ele, sugeri-lhe que nomeasse Agostinho Neto governador de Angola, Samora Machel, de Moçambique. Olhou-me, espantado: «Acha que os ultras o permitiriam?" Depois, contou-me que Américo Thomaz havia-lhe prometido, aquando da sua reeleição, em 1973, que resignaria em Outubro de 1974, pois estava cansado do lugar, dando-lhe, desse modo, tempo para preparar eleições para a Assembleia Nacional e para a Presidência da República. Isso parecia, a ser verdade, interessante. Marcello ou convidava, então, o Spínola para a chefia do Estado, que era o que ele queria, ou candidatava-se ele próprio ao lugar, que ganharia facilmente, chamando depois um jovem, talvez um elemento da SEDES, para chefiar o Governo, jovem esse que teria outra liberdade em negociações com Africa. O 25 de Abril, nesse ano de 74, inviabilizou, porém, o projecto precipitando a nossa expulsão dos territórios do ultramar e onde podíamos, perfeitamente, ter continuado. Foi uma tragédia para nós e para e eles. Aliás, os povos e África gostariam que nós continuássemos nas suas terras.»

Natália interrompe-o: «Mas o senhor não procedeu, quando Presidente, de acordo com o que está a dizer, pelo contrário!»

Evitar a guerra

Costa Gomes imerge em silêncio. Depois confia-nos: «Nessa altura, a minha grande preocupação, em Belém, era evitar a guerra civil. Para isso foi preciso ceder, tenho pavor às guerras civis, são as mais bárbaras que existem, conheci a espanhola, horrível! A situação descontrolava-se cada vez mais, o poder não tinha poder. Em circunstâncias dessas o que há a fazer é não tomar medidas que não possam ser cumpridas a fim de ninguém o perceber, senão dá-se o caos. Organizar a ponte aérea foi outra enorme aflição. Era preciso evacuar rapidamente milhares de portugueses. Fui ter com Frank Carlucci, embaixador dos Estados Unidos, e pedi-lhe ajuda.

Ele ouviu-me, disse que, pessoalmente, me apoiava, mas que Washington não, por Portugal ter na chefia do Governo um comunista, o Vasco Gonçalves. Ah, ele é isso?, pensei com os meus botões, então vou já resolvê-lo - e o Vasco Gonçalves substituído pelo Pinheiro de Azevedo, após o que os anos passaram, de facto, a ajudar-nos.»

Natália, rápida: «E estivemos nós nas mãos desses doidos!»

Sufocado de dor

De súbito, o inesperado: madrugada alta, na zona de Cascais, o Chiquinho dispara uma arma contra si, morrendo fulminado. Atónita, Natália ouve contar que o jovem, repelido por uma namorada, pusera, desse modo, termo à vida.

Faz-se silêncio durante varias noites no Botequim. Costa Gomes recolhe-se, cerra as janelas e recusa sair de casa. Visito-o. Cabisbaixo, culpabiliza-se por não ter dado a devida assistência à família, ausente em comissões sucessivas, anos fora, e agora ... agora chegara ao fim, o desaparecimento do filho, um cancro no pulmão, não podia fazer nada - e havia muito a fazer, pois estava convencido, repetia-nos, de que o seu rapaz não se suicidara, fora abatido.

Não dispunha, porém, de condições para apurar a identidade dos responsáveis, e «os que o podiam fazer não estão interessados nisso, nunca se saberá o que se passou».

A relação entre eles era muito afectiva. Ao ir para Presidente da República, o seu filho passara a ser envolvido pelo PCP a que aderira com entusiasmo. O partido tentava pressioná-lo para ele influenciar o pai de acordo com os seus interesses.

«Eu divertia-me a fingir que não percebia o jogo, confidencia-nos Costa Gomes: «Fingia mesmo que me deixava manipular pelo Chiquinho para o deixar bem visto entre os amigos e os correligionários. Era tão ingénuo, o meu querido filho!»

Natália, que tanto o atacou, tanto o ridicularizou nos idos de 75, não disfarça lágrimas pelo moribundo Marechal, a seu lado, sufocado de dor.

 

Natália pega-se com José Saramago por causa de um artigo dele no Diário de Lisboa sobre a excelência do trabalho.

«Vocês comunistas, são uns beatos da rentabilidade, piores do que os capitalistas», atira-lhe.

E continua: «Não sabes que a obrigação de produzir aliena as faculdades para a actividade criativa? Que a produtividade não passa do nome eufemístico dado ao trabalho forçado. E socorre-se de Nietzsche: «o operário actual tem uma existência menos segura e feliz do que o escravo de outrora.»

Habituado aos excessos dela, Saramago sorri e encolhe os ombros. O seu texto no DL surgira na evocação de «Um trabalho para a Nação», iniciativa do PCP que levou, 5, inúmeros intelectuais e artistas aos campos alentejanos para ajuda nas fainas agrícolas.

«Um horror!», exclamava Natália: «Uma revolução que de libertar as pessoas as escraviza está perdida.»

A exaltação do ócio (criativo), não do lazer (narcotizante) tornara-se-lhe uma cruzada) contagiando de imediato, e de convicção, os madraços (como eu) ferrenhos do descanso da disponibilidade).

Agostinho da Silva ajudava, por sua vez, à festa advertindo que «o trabalho é pior do que a sida», que «não se deve fazer hoje o que se pode adiar para amanhã»; e que tivéssemos cuidado, pois «a cultura estava a ser transformada pelos produtivistas em mercadoria, em comércio, metendo-a no mesmo saco da animação, da gastronomia, das roupas, das instalações».

Recuperar o valor da preguiça fez-se-nos, assim, cruzada épica. Uma trabalheira, porém, tais as exigências (em pesquisa, em rigor) impostas por Natália. À pergunta para que serve trabalhar, ela respondia: «Para nada! A questão deve ser, para que serve criar?»

Apego ao descanso

No princípio era o Éden, o reino da Preguiça, da não produção, da não-reprodução. Ao castigar o homem expurgando-o dele, Eden, Deus condenou-o a ganhar o pão com o suor do rosto e a crescer, multiplicando-se - penas malvadas na óptica do Criador.

Os seus representantes na Terra (caso dos sacerdotes) ver-se-iam, depois, bastante atrapalhados ao terem-se apresentar como entusiasmantes tais desígnios.

Inconformados com eles, os humanos mais expeditos lançaram-se, entretanto, no fabrico de máquinas meios (informática, pílula) atenuadores das penas sofridas. Contrariando o Pai, Jesus Cristo deu aos calões uma excelente ajuda: não arranjou emprego, não constituiu família, não fez filhos, não andou em escolas, não pagou impostos, não cumpriu tropa, não votou em políticos; em certa ocasião, avisou até que «quem deitar mão do arado não é digno de entrar no reino dos céus» .

Puxas o futuro

O direito à preguiça - que os anarquistas do Maio de 68 reformularam magnificamente - é o direito, afinal, à disponibilidade para podermos realizar-nos dignamente, ou seja, o direito a recusarmos ser escravizados, robotizados, infantilizados, insensibilizados, infelizados.

Natália lembrava que a governanta de Alexandre Herculano dissera, certa vez, a um jornalista: «O meu patrão não trabalha, passa o tempo sozinho a ler, a escrever, é um grande preguiçoso!»

A história (real) sintetiza bem o preconceito criado à volta os que não executam tarefas medíveis pela mentalidade produtivista. O pensar, o criar, o sonhar, o desejar, formas superiores (anteriores) de fazer, não são compreendidas nem aceites como construtivas.

Todas as acções, todos os actos têm, na verdade, atrás de um sonho, um desejo; sonhar, desejar, não é desperdiçar tempo, é semear iluminações, puxar o futuro, invocar o superior, maneira de sermos deuses, pequenos e ternos deuses de ficção.

« Se eu fosse poder, pagava a meia dúzia de sujeitos que conheço para estarem de papo para o ar sem fazer nada, apenas a pensar, a imaginar. Só através da disponibilidade, da preguiça, se atingem as grandes ideias que fazem avançar o mundo», metaforizava Agostinho da Silva, que logo advertia: «Deviam ser as cigarras a tomarem a direcção de Portugal.

Uma das nossas desgraças é que fomos sempre governados pelas formigas, quando estas deveriam ser simples fornecedoras da empresa.»

Balouçar a perna

A mística da produtividade não tem, no entanto, conhecido (historicamente) grandes entusiastas entre nós. «Nunca vingou aqui, ao invés do que sucedeu nos países calvinistas, a valorização doutrinária do dinheiro, do poder» lembrava António José Saraiva.

Por instinto, menosprezamos o trabalho e os valores que se lhe associam, sabemos que não é a trabalhar que se obtêm êxitos, riquezas, mandos, hierarquias.

Sempre que se pergunta, por exemplo, a um português o que faria se lhe saísse a sorte grande, imediatamente ele responde: deixava de trabalhar.

Preferimos, com efeito, a sensualidade à acção, transcendente ao concreto, o diverso ao linear, o transgredido ao instituído; metemo-nos ao oceano porque era mais interessante balouçar a perna em convés de naus do que calejar as mãos em lavra de terras.

A Igreja, mais uma vez, ajudou: «É mais fácil um camelo entrar no fundo de uma agulha do que um rico no reino dos céus.»

«Foi depois da Segunda Guerra Mundial que começámos a interessar-nos pelo sucesso», lembrava Natália.» O ter dinheiro e poder deixou, por influência dos Norte-Americanos, de ser imoral, a pobreza prescindiu de ser uma honradez..»

Alienar os jovens aos novos valores faz parte da estratégia dos poderes produtivistas e consumistas. Perversos procuram atraí-los (aos jovens) para os seus campos, integrá-los nas suas engrenagens, cumpliciá-los nas suas hipocrisias, para, neutralizados lhes esvaírem a capacidade subversora.

Os executivos dão-lhes miragens de poder, os partidos distorcem-nos nas suas antecâmaras de juniores, os trusts normalizam-nos nos seus organogramas, as universidades robotizam-nos, a comunicação social massifica-os, as modas apatetam-nos - venerando-os, enaltecendo-os, maneira subtil de os cloroformizar.

Os que ficam de fora soçobram na droga, forma (descomprometida) de aniquilamento: para as instituições são preferíveis adolescentes a rastejar por um grama de pó do que a manifestar-se por exigências de direitos incumpridos.

Destruir pessoas

«A nossa preguiça tem sido, no fundo, a nossa salvação», provoca Natália: «Impediu-nos de, através do trabalho, produzir máquinas e aparelhos que só têm servido para destruir pessoas, aviltar ideias, corromper a natureza. Mais de oitenta por cento do que fazemos não serve para nada.

E ainda querem que trabalhemos mais. Para quê? Além disso, a produtividade hoje não depende já do esforço humano, mas da sofisticação tecnológica. Aumentar as horas de trabalho é uma imbecilidade.»

Ao não atingirmos os padrões impostos pelos modelos do produtivismo, entramos em desvalorização; ao não vermos reconhecidos os valores que nos formaram, ao assistirmos mesmo à vitória dos seus contrários, caímos na inacção.

O direito ao fracasso, gémeo do direito à preguiça, entrou, por arrastamento, em desvalorização. Figuras destacáveis aparecem a dizer que «perder nem a feijões», sem que ninguém cuide de explicar-lhes que a diferença entre sucesso e derrota se revela mínima, acidental, que os vencedores de hoje podem ser os vencidos de amanhã, e vice-versa, que ganhar e perder são elementos fundamentais de valorização humana.

Insidiosamente fomentados, os sentimentos de culpa espalham-se. As vítimas são feitas responsáveis pela sua situação - porque vivem acima das suas possibilidades (o que significa isso?), se conformam com actividade ruinosas e tarefas condenadas, não se actualizam, ficam fora de moda, perdem dinamismo, envelhecem. Devido à frustação gerada, caímos em apatia, em descrença, agredimo-nos, suicidamo-nos (somos um povo de suicidados), deglutimo-nos.

Tornamo-nos escarnecedores e infelizes.

 

A imitação do alheio, a subserviência a tudo quanto vem do exterior, o desprezo por tudo quanto vem do interior, a inveja para com os que se evidenciam, adoeceu-nos.

Europa será, dentro de escassos anos, dominada pelo quarto mundo, um mundo composto por três gigantescas maiorias de anatematizados: a dos idosos, a dos desempregado! e a dos migrantes. «A união delas constituirá o maior fenómeno sociológico, cultural, político, económico do Século XXI», avisava Natália.

As pressões que exercerão mudarão profundamente as estruturas de trabalho, lazer, produtividade, previdência, saúde, assistência, convívio, transporte, urbanismo; provocarão uma nova revolução (depois da grega, da industrial e da Francesa) no Velho Continente.

Os detentores dos poderes julgam que a vida se resolve com produtividade, com quantidade. O problema actual do homem não é, porém, esse: é o da desumanização, o do cansaço, o da falta de desejo, tanto a nível individual como colectivo. Passa-se fome por questões políticas, não técnicas, por problemas de distribuição, não de produção.

Precisamos de inventar novas preguiças para criar novas sobrevivências. O presente está a ser marcado pela neocolonização das nações. Aos velhos impérios coloniais sucedem­se, com efeito, os novos impérios multinacionais. Impérios de ditaduras privadas, que se globalizam, se sobrepõem aos estados, às identidades, às diferenças, tudo descaracterizando.

Com a sua cultura internacionalista, os seus opinion makers, os seus criadores de tops, de best-sellers, de modas, de desejos, de fastios.

Não faz sentido, na verdade, estarem cada vez menos de nós a trabalhar (mais) para cada vez mais de nós não fazerem nada. É uma injustiça para uns e outros.

Ser preguiçoso é reformular a utopia (um povo, um individuo, sem utopia não sobrevive), é descentralizar a vida e a cultura, corrigir o desenvolvimento e o consumo, deter a desertificação e a exclusão.

«A suprema vitória obtém-se imóvel», incentiva Natália.

À formiga (a produção) e ao coelho (a reprodução) temos de opor a cigarra (a libertação).

José Saramago não voltou a defender o trabalho – como ideologia.

Rebeldia silenciosa

Alguns retraem-se ao ouvir Natália Correia duvidar de que, «só por si, o progresso melhore o ser humano»; que, «só por si, a quebra da natalidade implique a decadência dos povos». Pelo contrário. «Daí ser importante que as pessoas recusem isso.»

A diminuição dos nascimentos, particularmente expressiva em Portugal (e na Europa, e na China), tornou-se já «uma reacção de rebeldia silenciosa e irreversível nesse sentido.»

O mundo tem gente em excesso, é urgente diminuir o seu número para se preservar a natureza (o ser humano é o maior poluente dela), até porque hoje vive-se mais e, no futuro, vai viver-se ainda mais. O grave não é envelhecermos é envilecermos.

A continuarem as presentes taxas mundiais e procriação, serão precisos, lá para 2050, dois planetas como a Terra par sustentar as necessidades de tamanho atravancamento de seres.

O necessitarmos de mais jovens no mercado para equilibrarem (com os seus impostos) a segurança social não passa de argumento falacioso, pois não há sequer (nem jamais haver) emprego para eles. Daí que uma parte tenha de abandonar o País, onde não se encontra lugar, e outra de aceitar-se sustentada por familiares reformados - e não «sustentá-los» a eles como se quer fazer crer.

Natália lembrava (provocava) que «Portugal fora grande quando contava apenas com dois milhões e meio de habitantes». Depois «desatou a parir, atingiu os dez milhões e caiu na decadência conhece».

Secundando Natália, António Gedeão sublinhava:

«Enquanto houver excesso de população a poluição é imparável. E o desemprego. E a pobreza. O dramático é que os poderes instituídos não querem pôr em causa uma questão destas. Veja-se como a Igreja continua a opor-se à redução das populações, como O Vaticano prega aos miseráveis para se reproduzirem. Não tenho esperança no futuro desta sociedade. Entramos, devido a esta mentalidade, num beco sem saída.»

Reabilitação de Herodes

As necessidades básicas (alimentação, água, espaço para infraestruturas e para vegetação) dos cerca de sete mil milhões de habitantes da Terra ultrapassam já a capacidade desta para as satisfazer.

No Botequim, o general Costa Gomes paralisa os, presentes ao afirmar: «Tenho mais medo do perigo da explosão demográfica do que da explosão nuclear.»

Os «fundamentalistas da natalidade», como os designava Natália, enervavam-na, sobretudo se eram mulheres jovens com insuportáveis «ânsias parideiras».

Várias abandonaram o Botequim corridas por «excessos de embevecimento maternal», umas, e por (incontida) indignação, outras, ante os horrores ali ouvidos.

De vez em quando, alguém trazia exemplares de uma Estátua para Herodes, peça escrita por Natália de «reabilitação» do exterminador dos bebés bíblicos - uma orgia dramatúrgica jamais representada.

«O ser humano só será dignificado», não se cansava ela de repetir, «quando escassear.» Os que lucram com a sua excedentarização (políticos, igrejas, estados, exércitos, empresários, patrões, proxenetas) são os que se empenham em explorá-lo, degradá-lo, a fim de terem corpos fáceis e fartos para as suas empresas, seus comércios, seus serviços, seus altares, suas camas..

Pobres e esfaimados (de comida, de afecto, de dignidade), os humanos multiplicam-se em ciclos suicidários, enaltecidos por culturas, religiões, ideologias, economias sem vergonha nem limites.

«Os neoliberais vão tentar destruir os sistemas sociais existentes, sobretudo os dirigidos aos idosos», inquietava-se, inquietava, Natália: «Só me espanta que perante esta realidade haja pessoas a pôr gente neste desgraçado mundo e votos neste reaccionário centrão.»

Com a sua incrível perspicácia, ela antecipava o que iria suceder aos nossos jovens e idosos no século XXI: «Quando as pessoas perceberem os engodos em que caíram será tarde.

Tudo se evitava se houvesse uma planificação demográfica eficaz!»

Tínhamos por vezes (nós, os que lidávamos com ela) dificuldade em compreender as suas antevisões, imersos que andávamos no desenvolvimentismo caleidoscópico dos três «ãos» da época, o betão, o alcatrão e a televisão, que desgraçariam a economia do País.

O dinheiro fácil nas mesas do Botequim, a ênfase perdulária de alguns - alguns ligados ao Governo (mais tarde suspeitos de corrupção) - desconfortavam, amedrontavam, Natália.

O bar sobrevivia, em termos financeiros, de celebrações (Noite da Primavera, Noite da Poesia, Noite da Mulher, Noite da Fraternidade, etc.) criadas por apertos de contabilidade.

Natália dava-lhes glamur, deslizando champanhes e pratas, euforias e magias - até ao mirífico equilíbrio da contabilidade.

Tem de haver música no Titanic, afundemo-nos em grande!», exclamava em certas noites de festim - de fim.

 

Rodamos devagar pela Marginal. Natália abre a janela e respira com volúpia o odor da maresia. Entardeceu. Passámos parte do dia num restaurante do Guincho com Vaclav Havel, Presidente da República Checa, convidado de Mário Soares. Em visita oficial ao nosso País, ele encontrou-se ali com um pequeno grupo de escritores portugueses, convívio de gentilezas, de amenidades, características inexcedíveis no anfitrião.

Havel falou mais de teatro (é um excelente dramaturgo) do que de politica (é um líder de circunstância). A excelência do peixe grelhado, do branco seco, do sol langoroso, dos ouvintes VIP insuflaram Natália a, num francês (e inglês) irrepreensível, estimular a conversa por planos de diversa dimensão.

«Ela tem estofo para chefe de Estado», segreda-me, entre o admirativo e o irónico, Vergílio Ferreira.

«Vamos ver o pôr do Sol?», propõe-me Natália, no regresso.

Acostamos à esplanada do Saísa, em Oeiras, toldados para a névoa do Bugio. «Foi um dia muito tocante, este, graças ao Mário [Soares]. Por certo, não voltarei a ter outro assim.»

Muda de tom: «Ninguém acredita, mas estou seriamente doente sinto que não vou viver muito mais tempo o Também já não há espaço para mim, a solidão intelectual torna-se, à medida que envelhecemos, cada vez maior. Há a cultura, a fé, o amor, a solidariedade que será, porém, de Portugal quando eixar e ter dirigentes que acreditem nesses valores?»

Num dez de Junho, em Viseu, ela tinha (como oradora convidada por Ramalho Eanes, Presidente da República) estremecido os que a entenderam: «Quando a crise não é geradora de grandes audácias, mais indicado é dar-lhe o nome de agonia.»

General do trânsito

No parque de estacionamento, à partida, somos abordados por um homem idoso, pomposo, envergando peças de uniformes díspares, com insígnias metálicas, cordões medalhados, divisas róseas, luvas, pingalim, boné, botas de assustar.

Ao ver Natália, perfila-se, faz continência e, curvando­se, segura-lhe a porta do carro: «Muito boa noite a Vossa Excelência Senhora Poeta!» Ela abre-se em sorriso sonoro: «Obrigada, senhor general, general, presumo?» Em aparte: «Com um monóculo parecia o Spínola!»

O ancião faz nova continência: «Saiba, Senhora Dona Natália Correia, que eu não sou militar, sou Guardião do Trânsito da Linha do Estoril, para a servir com toda a honra, e aos seus amigos.»

Inclina-se novamente. Acenamos-lhe e arrancam ele chamou-me poeta, não poetisa, é perspicaz!»

Conto-lhe: «Eu venho aqui algumas vezes. É um que, depois de perder o emprego, tornou-se arrumador de carros. Orgulhoso, porém, e para preservar a dignidade a si e os outros, ficcionou um cargo farfalhudo, daí a condecorações, a respeitabilidade, o conhecimento soas importantes ... »

Inclina-se para trás, cativada: «Tenho de voltar, ele dá um poema, vou escrevê-lo.» Não voltou. Não escreveu.

Velório assombroso

Para Natália, os defuntos tornavam-se, ao serem-no entidades intocáveis - mesmo se em vida a houvesse infernizado.

Desaparecidos, passavam a outra dimensão, dimensão onde não nos era lícito interferir por ser domínio dos deuses.

O grande cometimento de cada um neste mundo avalia-se, aliás, pela maneira como cada um se prepara o outro - se acredita na sua existência. Ela acreditava. Demoradamente foi-se-lhe preparando, sempre arrimada poética, até porque poeta significa profeta, profeta rios por haver, que em si confluíam de maneira assombrosa.

As exéquias eram-lhe afloramentos do transcendente cumprir com solenidade e minúcia - como aconteceria, em 1993, nas suas.

O assombroso velório que a amortalhou, na Casa dos Açores de Lisboa, durou quarenta e oito horas, exactos, o «tempo de que a alma necessita para se desprender do corpo e vogar em toda a plenitude».

Ondas de flores chegaram, então, de todo o País, e de músicos, e de cantores, e de ranchos folclóricos, e de tunas, e de estudantes em serenatas - com o Presidente da República, ministros, embaixadores, intelectuais, artistas, desportistas autarcas, astrólogas, videntes, espíritas, sacerdotes, prostitutas, vadios, a olharem o esquife aberto, ela no centro, serena e branca, finalmente ungida deusa pagã.

Nunca existiu nada assim nas margens da cidade, de tão intenso, tão belo, tão desapossado, tão comovedor. Daí seguiria, ao terceiro dia, para o forno crematório (apavorava-a a ideia de ser enterrada viva) do cemitério do Alto de São João.

 

Natália pôs sempre empenho em acompanhar defuntos (ou restos deles) com quem abrira afinidades. Seguia junto às urnas, compenetrada e grave, comungando os rituais como se fossem seus. E eram.

Foi assim, por exemplo, nas trasladações de António Boto, no Alto de São João (tão pouca gente, senhor), e na de Fernando Pessoa (quase clandestina), dos Prazeres para os Jerónimos. Nestes, nos claustros, em sóbrio monumento do escultor Lagoa Henriques, a escassos metros de Camões e de D. Sebastião (ou o que por eles ali se guarda), jaz, (secretamente), incorrupto, o autor de A Mensagem. Os que lhe abriram o ataúde no cemitério recuaram, ao fazê-lo, estupefactos: o corpo não se decompusera.

Nas esferas do Governo decidiu-se, então, silenciar o ocorrido, negando-o mesmo por receio de movimentos de «santificação» do poeta. A sua preservação física deveu-se a medicamentos tomados para o fígado e não a influências divinas, apressaram-se a explicar os entendidos nas ciências médicas.

«Não se sabe, não se sabe», interrompia Natália no ateliê de mestre Lagoa, que nos revelaria ter alterado o sarcófago inicial de maneira a receber não um simples saco de ossos carcomidos, mas um corpo quase intacto de homem, por sinal razoavelmente alto.

Durante muito tempo, Natália refilou: a projecção de Fernando Pessoa merecia que se tivesse aproveitado a ocasião para estudar, investigar, fotografar, recolher ADN e demais elementos de um dos maiores génios da humanidade. Mas não. O pudor dos socialistas, no poder, foi mais forte.

Bala para Natália

Excelente repórter de rádio e jornais, Jorge Trabulo Marques emergiu no Botequim, gravador em riste, a colher comentários sobre acontecimentos avulsos.

Dado a extravagâncias, embiocaria, insuflado por Natália, a registar marginalidades ferventes de paixões, sangue, infâmia, delírios.

Paciente na investigação delas, depressa reteve confidências e desvairados, assassinos, ladrões, violadores, homens com dezenas de crimes de morte e de anos de cárcere, como Manuel Alentejano, figura mítica no mundo delinquente, autor de, calcula-se (nunca se soube ao certo quantos), cerca de meia centena e assassínios. Entrado na casa dos trinta, figura de galã, loiro, sedutor, inteligente, o jovem presidiário concederá a Trabulo Marques notável entrevista e, surpreendentemente, ceder-lhe-á três agendas, nas quais escrevera um (fabuloso) diário íntimo.

Natália exulta ao lê-lo. Estando eu nessa altura associado a uma editora, a Relógio d'Água, na qual dirigia os Cadernos de Reportagem, publicaram-se neles, com a entusiástica ajuda da poeta, os textos de Manuel Alentejano, tendo por título a sua declaração: «Quando mato alguém fico um pouco deprimido.)

A edição esgotou e em alguns círculos culturais logo surgiu um movimento, encabeçado por Mário Cesariny, no sentido da sua libertação - à semelhança do sucedido em França com Jean Genet, amnistiado por De Gaulle após uma gigantesca petição, que Sartre patrocinou.

Foi então que Natália, arrefecendo as fervuras gerais, impôs bom senso ao lembrar, consultado o psiquiatra Eduardo Luiz Cortezão, que era demasiado perigoso soltar um preso com as características psicológicas, comportamentais e humanas do visado. O grupo esvaziou-se a contragosto.

A certa altura, Manuel Alentejano foi a tribunal responder por mais um assassínio que a polícia, entretanto detectara. Seduzida, a juíza deu-lhe uma precária nesse fim-de­semana.

E nesse fim-de-semana, estava o Botequim vazio (Natália fora ao Porto), Manuel Alentejano entrou e perguntou por ela. Ao saber que não se encontrava nem iria aparecer, saiu, dirigiu-se a um restaurante próximo, sentou-se e pediu a ementa do jantar. Como o empregado demorasse, ele, subitamente irritado, levantou-se, puxou de uma pistola e alvejou-o, saindo a seguir.

A bala, única, era (disse-se) para Natália. Andou a monte vários meses sem ser localizado até que voltem à prisão onde, inesperadamente, se tornou um preso exemplar: apaixonara-se e isso, revelara Trabulo Marques, mudara-o por completo.

«Ao passar a amar deixou de precisar de matar!», sentenciou Natália.

 

«O excesso de marialvismo significa escassez de virilidade», ironizou ela, beliscando José Cardoso Pires: Só vês as mulheres como fêmeas, as tuas personagens femininas reflectem isso.»

O autor de O Delfim (obra notável da nossa ficção) olha-a divertido. Sabe que aquelas palavras são de «ternura provocatória», expressão certeira para definir o registo por ela utilizado com pessoas de quem gostava, mas a quem comprazia desfeitear.

Quando Cardoso Pires ganhou o Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores com A Balada da Praia dos Cães, derrotando o Memorial do Convento, de José Saramago (desgosto de que o futuro Nobel dificilmente se recompôs, atirou-lhe: «Foi uma tremenda injustiça, comparar o teu livro com o do Saramago é como comparar um Opel com um Mercedes!»

Extravagante editor

Um ano antes do desaparecimento de Natália Correia morre Fernando Ribeiro de Mello, extravagante e ousado (e falido) editor, que marcou o mundo literário de então com a modernidade, a qualidade das suas edições - graficamente inovadoras, tematicamente perturbadoras, publicitariamente provocadoras. Compreendendo que esse era o triângulo do êxito no seu ramo, Ribeiro de Mello desenvolveu-o, revolucionando-o de maneira inigualável.

A empatia entre ele e Natália foi imediata e inquebrável, através de cumplicidades permanentes na afirmação da liberdade e da exigência.

«Émulo de Salvador Dali», na caracterização de alguns amigos (pela extravagância da pose, dos bigodes, dos desafios), deve-se-lhe o lançamento de obras como o Kama-Sutra, - Manual do Erotismo Hindu (1965), a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1966), de Natália Corneia, e a A Filosofia na Alcova (1966), do Marquês de Sade, o que lhe valeu vários processos judiciais por «ultraje aos bons costumes»; bons costumes que Ribeiro de Mello questionaria antes e depois do 25 de Abril, através dos livros que publicou, das posições que tomou, dos reveses que enfrentou - nisso era siamês de Natália.

 

Viajar com Natália Correia era uma aventura ora apaixonante ora desesperante, tais os imprevistos, os incidentes, os caprichos, as exaltações, os temores, que a possuíam.

Uma a noite, vínhamos de Tróia de um encontro de escritores ibéricos, ela dispara-me enquanto atravessávamos o Sado num ferry-boat: «Não posso passar por Setúbal». Porquê, pergunto-Ihe, estupefacto. «Uma cigana disse-me que este mês não devia entrar em nenhuma cidade com rio, além de Lisboa.»

Ironicamente, afianço-lhe: «Mas não passamos por lá. Há uma auto-estrada à saída do barco que nos leva por outro lado.»

Não havia - só bastantes anos mais tarde seria construída Percorremos calmamente Setúbal sem que ela, na sua incomensurável inocência, se apercebesse de nada.

«É boa esta auto-estrada, tem casas à volta, nem parece auto-estrada», comentou.

«Apetece-me champanhe para o almoço!», exclama num fim de manhã de domingo. Regressávamos a Lisboa depois de um emocionante deslocação a Coimbra para apresentar um livro do poeta António Vilhena. Na véspera, estudantes proporcionaram-nos, em barcos engalanados de flores e dosséis, um passeio pelo Mondego - que a deslumbrou.

Jovens vestidos à época de Pedro e Inês tangem alaúdes e guitarras. Natália, uma mão aberta na frescura da água, outra fechada na haste de uma rosa, entoa (possuía uma voz magnífica) versos de cantigas de amigo. Populares acenam-lhe das margens sorrisos e simpatias.

Toda a natureza - pessoas, rio, peixes, vegetação, pássaros -, parece unir-se-lhe em sinfonia única, cósmica.

No Choupal, sentada num banco de pedra, lançará, após dizer poemas exaltando amantes trágicos, a ideia de um ciclo sobre poetas suicidados.

«Os grandes criadores acabam por desistir de viver.

A inveja, o ciúme, a maldade, o cinismo, a hipocrisia, que os cerca amargura-os a tal ponto que lhes apressa a morte, lhes faz apetecer a morte. O José Régio foi um dos que sucumbiram, tal a campanha de ofensas que lhe moveram. Ele será o primeiro homenageado!»

Pressentindo que lhe poderia acontecer o mesmo, Natália tentava, dessa maneira, esconjurar, combatendo-as, as forças negativas que, à distância, a rondavam.

Um estudante grava numa árvore, ante o silêncio comovido do grupo, as palavras: «Ciclo dos poetas suicidados.»

O desaparecimento, pouco depois, de Natália Correia «suicidar-nos-á», por muito tempo, a todos nós.

Príncipe inquieto

«Apetece-me champanhe», repete ela. «Não há dinheiro para essas extravagâncias», respondo-lhe. Natália abre a janela do carro: «Vá devagarinho, por favor», pede.

Entrámos em Leiria. Cabeça de fora, ela perscruta, nos locais dos restaurantes, as aglomerações dos carros estacionados. De súbito, ordena: «Pare, pare. É aqui que vamos almoçar.»

A sua figura atrai sobre nós os olhares da sala, onde um grupo festeja ruidosamente o aniversário de um jovem.

Natália encomenda cozido à portuguesa, que adorava e devorava. A sua gula aconselhava a que não se escolhesse nunca o mesmo que ela; que se pedissem mesmo coisas de que não gostasse, como peixe, sob o risco de o seu garfo surripiador levar o melhor de todas as travessas.

Quando, ao fundo, entram nos brindes, Natália vira-se para o homenageado e dirige-lhe uma quadra de felicitações - pelos seus anos e pela sua beleza de «príncipe inquieto» à espera «da paixão que não tardará a fazê-lo voar». «Só não lhe ergo uma taça porque a não tenho!»

Ainda não havia acabado e já a mesa se nos enchia de garrafas, doces, ofertas, palmas e champanhe. O número seria, aí em diante, repetido com oportunidade e proveito.

Carros nos jardins

Vamos agora, é manhã de Outono, ao Jardim da Estrela para uma cerimónia de homenagem a Antero de Quental, junto à estátua que dele ali existe, presidida por Mário Soares.

Poetas, escritores, políticos, açorianos, são mais que muitos.

Queixando-se de uma perna, Natália rezinga. Ao desembocar os no largo da basílica, ela determina: «Entre no jardim, pois tenho dificuldade em andar!» Olho-a de soslaio.

Um polícia muito jovem fita-nos, curioso. Digo a Natália que lhe peça autorização. Paramos à sua frente, ela abre a janela e, dengosa, explica-lhe o pretendido. E acrescenta:

«Deve compreender, senhor guarda, deixe que lhe diga que é um rapaz muito bonito, mas a minha perna prega-me às vezes partidas, até o Senhor Presidente da República está preocupado comigo, já me telefonou hoje duas vezes ... »

O Jovem olha-a com ironia e, mansamente, comenta: «Mas, senhora deputada, eu sou apenas um simples agente da autoridade que tem de fazer cumprir a legislação. Porque não apresenta na Assembleia uma proposta de lei no sentido de os automóveis poderem circular nos jardins?» Foi a primeira vez que a vi embatucar.

Mercedes de casamentos

Natália e o Botequim tornaram-se um imenso guarda-sol de protecção, de promoção, para faunas penduradas na disponibilidade dela e dos seus amigos.

Desapareceriam, céleres, quando o convés da antiga carvoaria começou a adernar, isto é, Natália a empalidecer - na visibilidade, na influência, na intervenção, na energia, na saúde.

Eram por vezes tristes as noites na Graça. Começou a faltar tempo para a esperança e espaço para os projetos. Na véspera do fim, estivemos até tarde a delinear saídas para esse mês de Março, uma apresentação em Vila Real, um colóquio em Évora, uma tertúlia em Faro, um debate em Ovar, deslocações no Alfa, para o Porto (adorava comboios), e, para o Sul, no BMW do Francisco Baptista Russo e, no meu Primera (troquei-o depois do seu desaparecimento).

Só se deslocava em bons automóveis, apesar de os dela (o decrépito Carocha e o infeliz Punto) estarem longe de o ser.

Uma tarde, no Norte, puseram-lhe um Panda para a transportar para Lisboa. Fez um berreiro medonho só se calando quando um motorista fardado, de boné na mão, lhe abriu a porta de um luxuoso (alugado) Mercedes de casamentos.

Veio refastelada e palradora, a opinar todo o caminho sobre as delícias da vida no campo (para os outros), impondo para paragens junto de pastores a quem exultava o seu «nobre mister» de «guardadores de rebanhos autênticos, não dos de pessoas, como fazem certos ditadorzecos da nossa democracia».

Eles sorriam enlevados (e aparvalhados) acenando a cabeça e a mão à sua partida sem perceberem nada do que ouviam a tão simpática senhora - devia ser, pelo carrão e pelo motorista, muito importante -, que se dignara falar-lhes daquela maneira tão fina e bonita.

Fascinado por ela, o condutor satisfez-lhe todos os caprichos desvios de percurso, interrupções, esperas, atrasos, aproveitados por Dórdio (o único de juízo) para dormitar regaladamente.

 

À mesa do Botequim, Natália escreve: «De onde veio esta gente minúscula que nos quer comandar, feita não de sangue mas de números, não de nervos mas de fórmulas? São todos iguais, saídos de forma única, bonitos, apetecíveis por fora, medonhos, repelentes, por dentro. Cimentados a egoísmo, habita-os o gelo, impele-os a implacabilidade ... »

Desiste do texto - para crónica de jornal. Depois, fica-se a olhar a mesa onde pousou a ira que a crispava e o drinque que a reconfortava.

A chuva cai forte, lá fora. Há mais de uma semana que é assim. Ela melancoliza-se com a falta de sol, não que goste de se lhe expor, detesta-o mesmo (odeia praia e montanha), mas porque gosta de o sentir à distância, sobre a cidade, as árvores, o rio, o riso dos outros. Ia, pois, excessivamente chuvoso esse Inverno. Prédios desmoronavam-se em cascatas pelas ruas de Lisboa.

Isso afligia-a: «O declínio de uma civilização reflecte-se na maneira como trata o antigo, pessoas e edifícios.» A devastação dos idosos, do ambiente, do património, da cultura, da identidade, tomara-se-lhe sinal, aviso, de retrocessos catastróficos.

«As primeiras décadas do próximo milénio serão terríveis» ecoa, «miséria, fome, corrupção, desemprego, violência abater-se-ão aqui por muito tempo. A Comunidade Europeia vai ser um logro. O Serviço Nacional de Saúde, a maior conquista do 25 de Abril, o Estado Social e a independência nacional sofrerão gravíssimas rupturas. Abandonados, os idosos vê-os definhar, morrer, por falta de assistência e de comida.

A esperança média de vida cairá. Espoliada, a classe média declinará, só haverá muito ricos e muito pobres. A indiferença que se observa ante, por exemplo, o desmoronar das cidades e o incêndio das florestas é uma antecipação disso, de outras derrocadas a vir. Não é só uma parte de Lisboa que colapsa, é um parte de Portugal, direi mesmo, da nossa civilização!

O menosprezo pela identidade cultural, visível na própria literatura, crispava-a igualmente: «Os novíssimos escritores que alguns críticos saúdam por se terem voltado para temáticas globais, fazem-no apenas para serem traduzidos e vendidos lá fora, ou seja, por marketing. Os seus romances tanto podem situar-se na América como na Patagónia, trocam o genuíno pelo estandardizado, por modelos internacionalistas sem húmus, sem raízes. O próprio Saramago também caiu no preconceito de segmentar a literatura por idades de autores, fê-lo ao criar um prémio com o seu nome destinado a jovens com menos de trinta e cinco anos, o que é surpreendente, pois ele afirmou-se já numa fase adiantada da vida. Os criadores não têm bilhete de identidade.»

O silenciamento a que a comunicação social votava os escritores nacionais era-lhe outra ferida: «A publicação de livros de estrangeiros tem páginas inteiras nos jornais portugueses, a de portugueses é pura e simplesmente ignorada.»

O olhar ausenta-se-lhe. Pede-nos, a Francisco Baptista e a mim, que a levemos a zonas de prédios desabadosa fim de levantar essa indignidade na Assembleia da República - fomos, mas não levantou: os grupos parlamentares não se interessaram.

Serpente na parede

«A cidade parece, nestas alturas, um bolo a esfarelar-se», exclama. Sob a humidade; bocados dela apodrecem logo que piora o tempo, desabam por toda a parte. Prédios no chão, famílias nas ruas, queixumes nos jornais não provocam já surpresa; apenas dor (nos atingidos) e cansaço (nos socorristas); apenas lamúria (nas autoridades) e demagogia (nos opositores delas). É assim há muito. Houve uma semana em que caiu um edifício por dia em Lisboa. Dez mil encontram-se em risco de ruir e dezenas em situação desesperada; setenta por cento apresentam gravíssimas falhas de segurança.

Por eles, Natália vai compungida, Bairro Alto, Almirante Reis, Madragoa, São Paulo, Mercês, sucedem-se, repetindo pedidos de acudimento lancinantes.

«Os prédios têm um ritual próprio para se dar, sabiam?», interroga-nos. «Eu conheço-o. O edifício o onde vivíamos, a minha mãe, a minha irmã e eu, na Rua Soares dos Reis, pouco depois de termos vindo dos Açores, era antigo e mal conservado. Passámos muitas aflições, uma madrugada acordámos com um ruído muito esquisito, pareciam tremor de terra….acendemos as luzes e vimos uma fissura a abrir-se na sala, como se fosse uma serpente a subir pela parede. Assim que voltava o mau tempo, passávamos a ouvir os boletins meteorológicos, a medir de manhã, com reguazinhas de plástico, a largura das fendas, quatro, seis milímetros, os bombeiros punham-lhes fitas adesivas com data do dia dez, dia vinte.»

Parte da capital desfaz-se, assim. Dentro de centenas de edifícios seus chove, faz vento, apodrecem paredes encrespa-se a Insegurança, filtra-se o pânico.

Inviabilizada a socialização dos solos e a capacidade das cooperativas, bloqueada a recuperação dos imóveis envelhecidos, as políticas de habitação passaram a menosprezar toda a racionalidade.

"Para algumas famílias, perder a casa é pior do que perder filho. Filhos têm elas com frequência, arranjam-nos com facilidade. Uma casa, não. É terrível afirmar isto, mas é verdade, algumas mães já mo têm dito!», desabafará, ante o espanto de Natália, uma assistente social da Santa Casa da Misericórdia.

Estrelava ovos

No segundo andar de um prédio da Rua Latino Coelho (onde viveu Duarte Pacheco), um ancião de noventa e três anos e uma filha de sessenta passam os dias sentados defronte das frestas que lhes rasgam a cozinha; a chaminé caiu e destruiu o fogão o estuque desprendeu-se e partiu as loiças, as paredes abaularam e começaram a esventrar-se.

«Já não temos forças para apanhar a caliça e as pedras, fica os com medo de ser atingidos. Deixámos de cozinhar, pràqui estamos sozinhos sem saber o que fazer.»

Sem pudor ante Natália Correia - e ela ante eles. As lágrimas deslizam-lhes. Um vizinho teve de ser internado em clínica psiquiátrica, outro de ser assistido em unidade cardíaca.

A casa é senhoril, aposentos largos, móveis escolhidos. «Sempre tivemos muito cuidado com a sua valorização, todo o nosso dinheiro, subsídios de férias, de Natal, economias, investimos nela, milhares de contos afinal para quê?»

Do lado esquerdo, um prédio inteiro caiu já: as traseiras desabaram, escadas de serviço, cozinhas, casas de banho, ruíram de repente, uma mulher que estrelava ovos ficou de frigideira estendida sobre o vácuo, um inquilino que guardava joias numa arca congeladora, com medo dos ladrões, viu-a soterrada para sempre.

Incúria e ganância

No Botequim, arquitecto amigo conta que certa manhã de Agosto uma equipa de operários da construção civil tocou à campainha do quarto andar de uma rua perpendicular à Avenida da Liberdade. O morador, prédio com mais de setenta anos, sentiu-se feliz: o senhorio mandava, finalmente, fazer obras. O seu desespero ia, pensou, acabar.

Dois meses depois, porém, surge o inimaginável: a chuva começou a desabar em cântaros, alagando, de piso em piso, todo o edifício - os operários idos no Verão tinham andado a destelhar, a abrir empenas, a fender canos e escoadouros.

O próprio Estado, a própria autarquia (que é o maior senhorio da cidade), têm procedido com a mesma safadeza, utilizado os mesmos processos, cometido as mesmas ilegalidades dos particulares.

«A incúria, a ganância, são-nos raízes de apodrecimento. Há séculos que as interiorizámos com lentidão, quase deleite», comenta Natália.

Por incúria e ganância, lembrará, aparelhámos (mal) as naus de regresso das Índias, carregadas, manobradas, até à imprudência - em vinte anos, entre 1582 e 1602, por exemplo, sobraram vinte e oito navios naquelas rotas.

Por incúria e ganância estropiamo-nos, matamo-nos todos s dias em acidentes de viação; somos mesmo o país da Europa (pior parque automóvel) com maior número deles.

«A história trágico-marítima do passado está a encontrar paralelismo na história trágico-rodoviária e trágico-habitacional do presente», sintetiza.

 

«O ciclo das chuvas, fase da água, liga-se ao ciclo dos incêndios, fase do fogo. Estes estão a tornar-se cada vez mais gravosos em Portugal. Os nossos bosques, um património precioso, poderão ficar em perigo.» Natália avança projectos para os revisitar. Iremos por eles no começo da Primavera, depois da festa do equinócio, a celebrar no Botequim.

Ela quer partir cedo. Encontrámo-nos na Smarta, pastelaria no rés-do-chão do seu prédio, famosa por rissóis de pescada e empadas de vitela, e logo nos pusemos (ela) Dórdio, Francisco Baptista Russo, com o seu BMW, e eu) a caminho.

Primeiro destino, o Buçaco, onde almoçámos divinamente a convite do director do hotel, admirados ambos por Natália - o director e o hotel. A viagem é preenchida com dissertações sobre botânica, florestas, história, poesia, política, canções, fofocas e birras.

Portugal tem, em termos míticos, dos mais fascinantes bosques (talvez por não possuir florestas) que se conhecem: Sintra, Buçaco, Gerês, Choupal, Leiria, a que se juntam outros igualmente gentis, como os do Caramulo, da Arrábida, de Mafra, de Monsanto, do Curral das Freiras (Madeira), da Terra Nostra (Açores). A sua importância não vem da sua extensão, vem da sua fantasmagoria; não vem da sua opulência, vem da sua vivência.

«Quando nos sentimos exaustos, é à natureza que eles guardam que o nosso imaginário vai buscar energias», lembra Natália.

Raúl Brandão tornar-se-nos-á, uma vez mais, referência.

«Não posso ver uma árvore sem espanto.» Foram as caravelas das suas madeiras que nos levaram ao exterior de nós, foi o eco do seu recolhimento que nos levou ao interior do que de melhor existe em nós.

Um claustro

Há quem considere o Buçaco único na Europa. Subi-lo devagar, vencer as suas fronteiras (a entrada faz-se-lhe por sete portas), percorrer o Vale dos Fetos, sentir a frescura dos ciprestes e dos freixos, beber na bica da Samaritana, afagar o cedro de São José (plantado em 1644), parar na Varanda de PiIatos, junto às estátuas de terracota, é uma experiência transfiguradora.

A musicalidade atinge nele ressonâncias de salmos de David, de sinfonias de Haydn. À distância, o Grande Hotel parece um transatlântico a vogar sob acordes de Siegfried em oceano de verdura. O seu perfil de ópera (o arquitecto que o construiu, Luigi Marini, era coreógrafo em São Carlos) agiganta-se como uma Belém fantástica, sob torreões, estátuas, cornijas, chaminés, painéis, ribaltas.

Escritores, artistas, reis, presidentes, escolheram-no lugar de eleição - de reflexão. «Antero ia a pé de Coimbra, mais de trinta quilómetros», evoca Natália, «e embrenhava-se na mata como num claustro. Ajoelhava-se junto das capelas, pregava aos que passavam, esquecia-se do tempo.» Ramalho Ortigão, Júlio Dantas, Teixeira de Pascoaes, Miguel Torga, José Saramago, Suzanne Chantal, Carolina Michaélis, Bulhão Pato, testemunharam em páginas de deslumbre o êxtase nele sentido.

«A redescoberta da natureza, das árvores, dos rios, das termas, das fontes, do silêncio, é a grande alternativa à massificação, ao ruído, ao exibicionismo, ao efémero, que engodam a sensibilidade das pessoas», comenta Natália.

Nos (dois) dias seguintes repetiremos os mesmos gestos, os mesmos encantamentos, pinhal de Leiria (semeado por D. Dinis para impedir que a areia entrasse na cabeça dos Portugueses), Choupal («o bosque do romantismo») ,e Gerês - o parque dos animais livres, lobos, martas, corças lontras, veados, javalis, cavalos serranos, cães-pastores, águias-reais, açores, milhafres, falcões, répteis. Até ao século XVII nele ursos-castanhos. «Se a minha condição não fosse mulher mas a de bicho, era aqui que eu gostaria de exclama Natália.

«Pensei que fosse no parque da Terra Nova, a sua ilha», respondo-lhe, espicaçando-a. «Lá não há animais selvagens como aqui, mas havemos de ir à Terra Nostra.»

 

«Havemos de ir à Terra Nostra!», repete. Fomos. Em viagem a São Miguel, desviámos ao vale das Fumas, aos seus cozidos, cascatas, fumarolas, lagoas, antecâmara de uma Terra Nostra aromatizada, à distância, por túlipas e camélias, hortênsias e nenúfares.

Nela tudo parece fora do conhecido, sem tempo, sem infelicidade; a partir dela tudo parece intocável, símbolos de consagração desprendem-se, a ilha respira coroas, altares, ceptros, mantos - a pomba, o banquete, a púrpura, o pão, a carne, o sangue, o fogo, os anéis, os registos, as festividades evolam-se lentamente.

A religiosidade faz-se névoa cerrada. Dois (dos três) grandes cultos açorianos, o do Santo Cristo e o dos Romeiros, nasceram de tremores de terra terríficos, cujo temor os mantém imperturbados; o do Espírito Santo, enraizado nas nove ilhas do arquipélago pelos colonos iniciais, é oposto a eles em alegria, em liberdade.

Santo Cristo, Romeiros e Espírito Santo constituíram-se pilares da fé local, tríptico de uma genuinidade, de uma vibração, únicas.

Dedicado ao Pai (Ecco Homo) , o primeiro, à Mãe (a Nossa Senhora), o segundo, ao Supremo Espírito, o terceiro, os seus ritos combinam admiravelmente o católico e o pagão, o espiritual e o sensual, o exuberante e o íntimo, o pobre e o rico, o jovem e o idoso, o masculino e o feminino, o intelectual e o analfabeto.

Xaile nos ombros

O culto do Santo Cristo (que Natália enjeita) assenta em templo de pedras e p:drarias; o do Espírito Santo (que Natália venera) em «impérios» de amor e flores; o dos Romeiros (que Natália acolhe) em espaços sem catedrais nem joias.

O primeiro pede imobilismo, o segundo, partilha, o terceiro, romagem, romagem de romeiros (homens) em círculo, o símbolo da terra repousada.

Único no mundo, o seu ritual chega a congregar cem participantes, que percorrem, lenços vermelhos na cabeça, bordão de conta na mão direita, rosário de preces na esquerda, xaile de mulher nos ombros, aconchego de pão e queijo na sacola, o perímetro de São Miguel, trezentos quilómetros (há quem o faça há quarenta e três anos) dobrados com uma fé, uma humildade, uma entrega, uma alegria, emocionantes.

A jornada começa às quatro da manhã e pára às sete da tarde, no interior das igrejas onde se acolhem e aonde os naturais das terras os vão assistir. Comem e bebem do que lhes dão, dormem, se não os acolherem em casas particulares, ao relento ou em instituições públicas.

O seu convento é a ilha, o seu altar, as capelas a Nossa Senhora, em grande número, todos os anos peregrinadas pela Quaresma, quadra exigente de meditações, de arrependimentos - de penitências cumpridas no sentido dos ponteiros do relógio, durante oito dias, sob o silêncio a frugalidade, a maceração.

«A minha mãe fazia questão em assisti-los com comida e confortos quando eles pernoitavam na igreja junto à nossa casa, na Fajã», evoca Natália.

As festas do Espírito Santo, essas, têm um cunho primaveril e alegre, de boda, de partilha, de prazer, de sonho.

O sonho do poder puro (simbolizado pela brancura da pomba e pela coroação da criança), da liberdade inicial (simbolizado pela abertura das cadeias), da igualdade fraterna (simbolizado pela doação de alimento e agasalho). Empurrado para fora do continente, resiste há séculos nos Açores (e no Penedo, e em Tomar, e em Torres, e no Brasil), com grandeza, com maravilhamento.

Ele reveste-se, na verdade, de sinais altamente subversivos e subversores - o Governo entregue a uma criança, a comida partilhada gratuitamente, a liberdade instituída-, daí a marginalização (ou o controlo) que lhe moveram os poderes, todos os poderes, político, religioso, militar, económico; daí a importância, a nível da utopia, que lhe conferia Natália Correia.

A fantasia que povoa o arquipélago (nos lagos, nos picos, nas caldeiras, nas lavas, nos enxofres, nas chamas) abre espaços para vidências indizíveis, ora oníricas, ora espectrais.

A pôr do Sol, o horizonte enche-se, ali, de seres míticos, ninfas, duendes, centauros, dragões, lobisomens, atravessam imaginários delirosos de poetas e de loucos, de feiticeiros e de amantes. A beleza, de tão intensa, dói; a melancolia, de tão profunda, adoece.

Reflectindo as estrelas, e um avião que pisca para a, América, surge-nos, no desfazer de uma curva, a lagoa do fogo. O seu deslumbre corta a respiração. Se há altares ao absoluto no mundo, este é um deles.

Estamos acima da Terra, próximo do Olimpo e dos deuses. Erupções apocalípticas aconteceram aqui antes la chegada do ser humano. Bocados da sua lava deram às costas do Minho, no Norte do Portugal, de África e da América.

«A grande alma portuguesa sobrevive intacta nos Açores, à espera do Armistício que há-de cobrir no futuro o País», sussurra Natália. Ajoelhada, murmura preces ao Mistério (pronuncia-o com maiúscula) que a dilata, a transforma.

Retrocedemos. O luar faz com que não sejam precisos faróis para ver a estrada. Não há, coisa rara, névoa, nuvem sequer.

Na distância, uma voz ecoa: «Sapateia, sapateia, Sapateia que já disse / Enquanto solteira, alegre / Depois de casada, triste.»

Rebanhos de cabras dormem na estrada que desce a montanha. São dezenas, aninhadas sobre o asfalto indiferentes à proximidade dos veículos. Não têm pastor, guardador, perto. Necessitam de ser acordadas e empurradas, uma a uma (dança irreal, fantasmática) para se abrir passagem.

«A lagoa do Fogo só deve ser visitada às três da madrugada, altura em que se desoculta aos iniciados.» Natália suspende-se: «Sempre que vier a São Miguel, depois eu ter morrido, suba à lagoa do Fogo a essa hora, eu estarei lá.»

Vitorino Nemésio, dizia que os Açorianos tinham uma dupla natureza, eram «de carne e de pedra. Os nossos ossos mergulham no mar».

Para Natália, que o cita amiúde, «a ilha é a mãe, é a fatalidade dos insulares. Mesmo os mais desgarrados, como aparentava ser Antero, escolhem-na como túmulo, ou seja berço para reviver».

Cinzas adiadas

Ela acarinhava a ideia de, no final da vida, deixar Lisboa e acolher à residência onde nascera, se o Governo Regional a adquirisse e a transformasse em casa-museu com o seu nome.

Apetecia-lhe o refúgio da Fajã de Baixo, da pequena igreja onde fora baptizada, do jardim onde brincara em criança. Nele gostava que fossem depositadas, sob um busto que Martins Correia lhe modelara, as suas cinzas.

Percorremos o local acompanhados por João Carlos Macedo presidente da Junta de Freguesia, amigo e seguidor de Natália - dos poucos que, após a sua morte, se esforçaram por cumprir os desejos por ela formulados com tanta vibração.

As autoridades comprariam, de facto, o edifício («construção do início do século XIX que antes de residência e escola terá servido», na precisão de João Carlos Macedo, «de entreposto comercial de laranjas»,, mas instalar-lhe-iam um «centro de actividades de tempos livres com carácter intergeracional» - apesar de o Governo da região ter recebido vultos herança da falecida em espólios, obras de arte, contas bancárias e antiguidades.

Há hipótese de no futuro o local ser agregado ao Centro de Humanidades Maria José Oliveira (nome da mãe de Natália), a funcionar na Junta de Freguesia da Fajã de Baixo.

As cinzas, essas, continuam, vinte anos depois (altura em que escrevo), a aguardar, juntamente com as de Dórdio Guimarães, no cemitério dos Prazeres, de Lisboa (no Panteão dos Escritores), que São Miguel as receba.

General e cavalheiro

Sempre que tinha oportunidade, Natália deslocava-se com indisfarçável emoção aos Açores - em apoteose, quando viu ser estreada, em Ponta Delgada, a sua peça O Encoberto, encenada por Carlos Avilez e interpretada por Ruy de Carvalho; em humilhação, quando, no ano de 1975, foi expulsa, juntamente com uma amiga, de um restaurante de São Miguel por ser comunista.

A presidência aberta que Mário Soares realizou no arquipélago confirmar-lhe-ia, reafirmar-lhe-ia, por fim, o protagonismo - atravessado, no entanto, de (imensas) gafes, (permanentes) excessos, (contínuas) megalomanias.

De partida para a Horta, o avião espera na pista de Angra pela sua chegada. Quando entra, Soares acalma-lhe os ímpetos provocados pela desorganização nos oranos e nas reservas: «Querida Natália, não se preocupe, não íamos partir sem si, sabe que mantém um lugar no meu coração.»

«Ora, prefiro manter um lugar no seu avião!», responde­lhe ela. E olhando à volta, logo ocupa o primeiro assento livre, duas filas atrás do Chefe do Estado, justificando-se:

«Estou muito mal de uma perna, fico aqui!»

Era a cadeira do general Carlos Azeredo, chefe da Casa Militar de Belém, que ultimava pormenores da descolagem.

Ao perceber a situação, este faz-lhe continência e adverte-a: «Minha senhora, esse lugar é meu, há outros lá atrás, é só procurar.»

Altiva, Natália dispara: «É seu, não, é meu, meu porque já estou sentada nele. Além disso, o senhor não jurou fidelidade e obediência à Pátria?»

«Jurei, sim, minha senhora», responde-lhe. «Então também deve fidelidade e obediência à Mátria, e a Mátria sou eu!»

Carlos Azeredo volta a perfilar-se e, fazendo de novo continência, exclama: «As ordens de Vossa Excelência!»

Com garridice ela inclina a cabeça, sorri e não aperta o cinto. O general faz a viagem nos fundos do aparelho.

Na véspera, provocara rebuliço ao anunciar que a conferência que iria proferir versaria o sexo do Espírito Santo, que é feminino, não masculino. «O seu nome em aramaico é Ruah Kadesh, e Ruah nas línguas semitas é feminino.»

«Feminino?», surpreende-se Mário Soares e quase toda a comitiva, sobretudo D. Aurélio Granado, o bispo dos Açores, que recusa ir ouvi-la.

«Trata-se do mito do divino Paráclito, sabem o que é?», contrapõe Natália: «Vocês não entendem nada, são uns ignorantes, leiam ao menos o Vitorino Nemésio ... "Uma insígnia de rebeldia numa bandeira vermelha com pomba de mansidão?»

Padre Melícias desabafa para António Valdemar: «Depois disto se me falta ouvir dizer que o Espírito Santo é gay!»

Traição à Pátria

Líder do movimento independentista surgido nos Açores após o 25 de Abril - que tantas crispações provocou na altura -, José de Almeida tornou-se, nas deslocações a Lisboa, familiar no Botequim.

Natália estava com ele - escreveu o hino do arquipélago («a sua gravação fez furor», comentou Mota Amaral) _ tal como Vitorino Nemésio, apresentado como candidato, a dar-se a independência, a Presidente da República. Várias discussões sobre o futuro das ilhas rolaram nas mesa do bar.

Homem culto e inteligente, muito comunicativo, José de Almeida atraía com facilidade as simpatias dos outros, ouvindo, com igual facilidade, as dúvidas dos outros·

Em tribunal (onde foi acusado, e absolvido, de traição à Pátria) surpreenderia ao dizer: «Ser independentista é continuar a Pátria. Por isso, nunca concordámos com a palavra separatismo. Ser independente é diferente de ser separatista. Como independentistas reconhecemos a importância da Pátria-Mãe.»

Natália, que rejubilou com a argumentação, lembrou a tradição libertária dos Açorianos, que não se entregaram a Espanha quando do domínio filipino, e acolheram os liberais de D. Pedro, permitindo a derrota dos miguelistas.

O conflito ilhéu foi sendo progressivamente esvaziado, para o que contribuíram os encontros, as discussões,' as pontes, as músicas do bar do Largo da Graça - e a inteligência, na chefia do Estado, de António Ramalho Eanes.

O historiador, também açoriano, Carlos Melo Bento revelará que «Natália acudiu-nos sempre que foi chamada», até porque «sonhava com um mundo sem esconderijos, sem reservas, sem medos, sem perseguições, sem intolerância».

As suas ligações aos Açores são viscerais, «constituem-se essencialmente em evocação da infância», sublinha a professora Cristina Marinho.

 

Em Coimbra, na casa de Miguel Torga, que visitávamos sempre que acedíamos à cidade, Natália Correia perturba-se.

O escritor abeira-se do fim. Deitado num divã, junto à janela do escritório onde nos recebe, sidera-nos com o seu desespero branco: «Ainda bem que vou morrer, não assistirei à agonia de Portugal. Portugal vai desaparecer nesta CEE, a sua cultura, a sua economia, não aguentara o os embates que lhe vão ser impostos. Onde estão os políticos, os intelectuais, que não vêem isso? É catastrófica a sua falta de lucidez». Ele não acreditava que «o País sobrevivesse integrado na Comunidade Europeia», repetia, repetia - qual Camões após Alcácer Quibir. «Portugal está a ser destruído por dentro, pelo centrão que o sequestrou através do voto para o roubar, enganar, aviltar», arquejava, olhando para lá dos vidros da saleta onde o corpo se lhe desfazia.

Preocupado com a tosse de Natália (a doença tomara-a já), levantou-se, foi buscar um estetoscópio e obrigou-a a deixar-se consultar. «Não esta nada bem», sussurraria sentou-se à secretária e prescreveu-lhe uma receita. A última que passou. «Em vez de a aviar numa farmácia vou guardá-la como recordação, um tesouro», decidiu ela, comovida.

O destino de Portugal tem-nos sido, ao longa dos tempos, «uma obsessão permanente, que vai intensificar-se, pois a sua sobrevivência estará em perigo num futuro muito próximo», adverte Natália. As visões catastróficas e míticas de negação e exultação do País alternam pendularmente, renovando-se, radicalizando-se, fendendo-se sem cessar ao longo a gerações.

Os grandes escritores, sobretudo os grandes poetas oscila entre a exaltação de Portugal e o seu oposto. O sentimento do desmesurado, na descrença e no enaltecimento, na decadência e na ousadia, deu à nossa cultura iluminações cénicas ímpares. «Os povos só atingem a maturidade quando são capazes de se recriar pela escrita - e o nosso foi-o (como e tão a ser os de língua portuguesa) desde muito cedo.

A literatura é a expressão mais evoluída e genuína da nossa cultura, alenta-se o autor dos Bichos.

 

Revelam-nos que Miguel Torga manteve até ao fim da vida uma secreta e longa, e platónica, paixão por uma vizinha e amiga» nunca identificada. Pouco compensado no casamento (queixa-se disso nos Diários), solitário na doença idem), o poeta encontrou nessa relação o afecto que, desce criança, o carenciava.

A senhora em causa, professora liceal pertencente a famílias prestigiadas no País, acompanhou-o discretamente ao longo de anos, tornando-se-lhe na fase final amparo de apaziguamento.

Revelam-nos ainda que ele, lúcido, percebia que piorava pela maneira como era tratado. Alguém o viu, quase moribundo, voltar-se para a companheira (clandestina) afagar-lhe as mãos, e ela, sorrindo de olhos marejados, inclinar-se e beijá-lo - o único beijo que deram. Depois, foi o silêncio.

Natália dissera-lhe uma vez, provocando-o «Tem de arranjar uma amante, só uma grande paixão o pode salvar!»

Enigmático, ele sussurrou: «Eu sei, eu sei!»

Cada palavra, cada angústia, suas eram novelos a apertar o coração de Natália, de tão cerzido que rebentou numamadrugada de Lua Quente - desarticulado pela agonia da sua Mátria.

«Oh, Pátria minha tão bela e perdida», irrompe no auto, de regresso a Lisboa, o coro do Nabucco de Verdi.

Então, ela eleva a voz, abre a janela e canta, e leva-nos a cantar, lágimas e entoações soltas ao infinito: «Oh, mia Patria si bella e perduta, si bella e perduta, Patria mia perduta ...»

O carro oscila e, alado, ergue-se da estrada, deixando as luzes o casario de Coimbra para baixo, para baixo, e, por eternidades, voga à altura do Va Pensiero, à altura da paixão de Torga e Natália pelo país que os almou para sempre.

Nem uma flor

Nessa tarde tínhamos ido ao cemitério dos Olivais, nos arrabaldes da cidade, depor orquídeas na campa de Vitorino Nemésio. Se não fosse, porém, a solicitude do coveiro, não a teríamos encontrado: nem uma cruz, nem uma placa, nem um nome, nem uma data, nem uma flor, nem uma saudade.

Apenas cascalho sobre o cascalho. O esquecimento.

«Estamos a perder a memória, o País caminha para o vácuo», cicia Natália.

Não voltou a ser a mesma. Aos poucos, perdeu intervenção, influência. A RTP ignorou-lhe propostas para programas - apesar do êxito de Mátria; jornais esquivaram-lhe colaborações r por a considerarem fora de moda; companhias de teatro esqueceram-lhe peças - embora A Pécora tenha sido êxito internacional; editoras derraparam- e originais – por o público não lhes acorrer; o PS sacudiu-a das suas listas inviabilizando-lhe (faltavam poucos meses para a receber) a reforma.

Amigos de várias jornadas começaram, entretanto, a morrer, a morrer-lhe. A década de noventa foi terrível, parecendo querer levar, com o final do século XX, alguns dos melhores de nós: Amélia Rey Colaço, David Mourão-Ferreira, Miguel Torga, Manuel da Fonseca, Rogério Paulo, Maluda, Agostinho da Silva, Vieira da Silva, Mariana Vilar, Vergílio Ferreira e, cerrando o País de crepes negros Amália.

No Botequim, que continuou por algum tempo mais, a desagregação tornou-se irreversível.

 

Estupefacta, Natália Correia vê ser depreciada de um dia para o outro a memória de padre Alberto (a quem sempre apreciara a integridade) devido a comportamentos íntimos revelados pelos investigadores do homicídio que, pouco antes, o vitimara.

Caldeado por reacções do género, um velho inspector da Judiciária, assíduo no Botequim, ciciou-lhe: «Os assassinos não são só os que matam, são também os que consentem que se mãe que o siIenciam.»

O abate, a tiro, numa mata dos arredores de Setúbal do sacerdote fez estremecer o País. Para os que o conheciam, a consternação tornou-se total.

O ter cedido a capela que paroquiava, a do Rato, para uma vigília pela paz (no tempo de Marcello Caetano) tornou-o o elemento de referência. Referência na denúncia da Guerra Colonial, no exercício da solidariedade, na abertura ao diálogo, na humanização do Evangelho, da ideologia, da criatividade, da liberdade.

Na passagem de ano de 1972 para 1973 um grupo de católicos decide, após a missa da tarde, ficar na igreja para orar, jejuar e reflectir sobre a guerra de África. Teotónio Pereira, Luís Moita, Avelino Rodrigues, Mário Murteira, Manuela Silva, Pereira de Moura são alguns deles. Padre Alberto movia-se, frequentemente, na linha de risco: «As opressões a derrubar não são apenas», sublinhava, «as da política, as da economia, as da família, as dos partidos, as das religiões.»

Rosto esfacelado

Impressionado com os efeitos da droga que, a partir aos anos setenta, devasta milhares de jovens, o sacerdote desenvolve esforços incansáveis junto dos por ela atingidos. A gravidade do problema perturba-o. Está, percebe, perante um fenómeno incontrolável, uma guerra impossível de ganhar.

Os adolescentes que o cercam surgem-lhe, sob o efeito das substâncias que não dominam, feridos de morte. Espirais de inquietação apoderam-se dele: «Ando em baixo, cada dia se enraíza mais em mim a convicção de que não sei ser sacerdote», confidencia.

Sente-se aguilhoado. Vai de férias para o Algarve onde é visto em Armação de Pêra com jovens no carro, "apartamento, nos cafés. Alguns dos que o acompanham são negros - África era-lhe um fascínio.

Na véspera de desaparecer, diz que vai a Rio de Mouro celebrar um casamento. No dia seguinte, os participantes da boda esperá-lo-ão durante horas. «Três dias conta-nos Armindo Garcia, padre da Igreja António do Estoril, «recebo, era meia-noite, um telefonema da Judiciária de Setúbal. Havia sido encontrado um cadáver com as suas características. Fiz o reconhecimento do corpo. Uma bala disparada por detrás da nuca esfacelara-lhe o rosto. De Setúbal liguei para o Vaticano, onde estava na altura, o cardeal e alguns bispos portugueses.

  1. António Ribeiro antecipou o regresso para participar nas exéquias.»

As cerimónias fúnebres reúnem os mais altos representantes da Igreja e do Estado. O Presidente da República (Mário Soares) e o primeiro-ministro (Cavaco Silva) enaltecem a figura do extinto. Milhares de pessoas, entre as quais muito políticos, intelectuais, artistas, desportistas, desfilam defronte da urna - o falecido fora conselheiro espiritual de personalidades como Helena Roseta, José Leitão, bispo Albino Cleto, Fernando Belo, Miguel Lobo Antunes, José Nuno Martins, José Barata Moura, Nuno Miguel, Jorge Wemans e José António Feu. O carro do sacerdote, um Peugeot 205 branco, é localizado uma rua de Portimão uma semana depois. «Tinha paixão pelos automóveis, gostava deles pequenos, potentes, bons para ultrapassagens e ralis, onde entrava com frequência», pormenoriza-nos um amigo seu no Botequim. Outras paixões eram-lhe a música (introduziu-a nos rituais religiosos), a poesia e o teatro - defendera a peça A Pécora de Natália Correia ante ataques contundentes de uma parte da Igreja Católica.

«O que parecia ser um problema simples, complica-se. Fizemos um trabalho exaustivo, inclusive rusgas em locais suspeitos do Algarve. Recuperámos imensas coisas, até armas, mas não encontrámos quaisquer pistas», descrever­nos-á Ilídio Luís, director da Judiciária de Setúbal: «Este tipo de casos, pensamos que o crime foi cometido por uma pessoa só, conhecida da vítima, podem resolver-se muito rapidamente, ou não se resolver.»

A morte provocada por «descontrolo de um parceiro sexual de ocasião», a mais plausível, foi, quando posta, abruptamente rejeitada pela hierarquia religiosa. Amigos e admiradores de padre Alberto reagiram na mesma linha. Em vez de respeitada como um direito, a sexualidade do sacerdote torna-se um opróbrio - a esconder, a anatematizar.

A partir daí, o silêncio, o embaraço, fazem-se para sempre véus sobre a memória do desaparecido. Elementos da Judiciária não disfarçam, aliás, a incomodidade pelo sucedido. Impedidos de avançar, limitar-se-ão a afirmar que o processo mudou de mãos várias vezes) que se tratou de «um total fracasso» seu.

«Talvez fosse bom para a imagem da Igreja que nós falhássemos», comentou o velho inspector, olhando, irónico, para Natália.

 

De acordo com as normas das (boas) tertúlias, as do Botequim não separavam sexos, idades, credos, ideologias, opções, atraindo facilmente os que sentiam afinidades com o seu ambiente de ficção - e expelindo rapidamente os que o fracturava, se lhe fracturavam. Quer dizer, ou se gostava muito dele (ambiente) ou se o detestava, tal como sucedia em relação a Natália Correia e às extravagâncias das suas cortes.

João Rubus entusiasma o Botequim ao citar um velho índio sioux: «Só quando a última árvore for cortada, o último rio envenenado e o último peixe morto descobriremos que não podemos comer dinheiro.»

Profundo conhecedor da obra de Natália Correia, o jovem (suave e belo cavaleiro verde», como ela o definia) postou se ao serviço da sua dama, a quem passou, com inigualável entrega, a inventariar espólios, ordenar inéditos, recuperar originais, catalogar recortes, seleccionar escritos, muitos deles espólios, inéditos, originais, recortes, escritos, há muito perdidos por ela.

A sua dedicação levou a autora de Armistício a acolhê-lo em sua casa, território de caos à espera de alguém capaz de o mapear. «Como é que um rapaz tão novo tem tanta sabedoria?», pergunta alguém a Natália. Ela responde: «A sabedoria não é dada pela vivência mas pela reminiscência.»

Quando a doença, que lhe seria fatal, se declarou, ele deixou de aparecer, humilhado com o desconforto que o seu estado provocava. Natália entrou em pânico. A gravidade da situação depressa fez reagir (mal) Dórdio e Fátima, que, crispados de ignorância e preconceito, impuseram a saída de casa de João Rubus.

Discreto como sempre, deixou Lisboa. A última vez que o vi foi no funeral de Natália, quase moribundo, encostado ao vidro do crematório do Alto de São João onde o corpo dela se desfazia lentamente. Não aguentou: um táxi desapareceu-o para sempre.

 

As figuras infelizes feitas por algumas mulheres irritavam Natália. «A maior parte delas são perfeitas galinhas», provocava.

«Veja-se a maneira reaccionaríssima como educam os filhos, são as grandes responsáveis, juntamente com a Igreja, pela mentalidade retrógrada existente entre nós. Mas as que se libertam desse modelo em número crescente, felizmente, revelam-se seres superiores. Quando dominarem, o que não demorará, as sociedades, darão um grande salto em frente. Antes, terão, porém, de vencer a fase o travestismo que vestiram e que as leva a quererem ser, no poder, mais homens do que os homens.

Em vez de o feminilizarem, masculinizam-no ainda mais. Por isso, é que deixei de ser feminista para ser feminista!»

A diferença está, na sua óptica, em que «as feministas reividicam a igualdade» (algumas a superioridade) dessas «mulheres em relação aos homens», (os) feministas reivindicar «a valorização do feminino que existe tanto nas mulheres como nos homens», por ser a parte criativa, afectiva, harmoniosa, futura do ser humano.

Num debate no Instituto Franco-Português de Lisboa, Natália é insidiosamente interpelada por uma jovem repórter sobre a sua simpatia sá-carneirista. Furibunda, interrompe-a e desfá-la-á como ninguém: se atreveria a fazer: «Você não passa de uma ignorante, não esta preparada para me questionar, estou farta de semelhante marabunta vaginal!» E não se justificou.

Num debate televisivo sobre cultura conduzido por Carlos Pinto Coelho - em directo entre Portugal, Brasil, Angola e Moçambique -, Natália viu-se interrompida por ele. «Vamos passar agora a emissão para São Paulo a fim de outro nosso convidado, professor. .. » Vociferante, ela curto-circuitou-o: «Qual quê, esse senhor é que deve ouvir-me, olha o desaforo!» Pinto Coelho atropela-se, a emissão desconjunta-se e Natália perora, indomável, magnífica.

Igualmente indomável e magnífica se afirmará num telejornal onde foi falar, também em directo, sobre o lraque, que acabara de visitar. A jornalista, muito jovem e empertigada, corta-lhe a palavra uma, duas vezes; à terceira ela, dá uma valentíssima palmada na mesa, que faz estremecer o microfone (de secretária, na altura), e berra: «Cale-se, sua fedelha, oiça o que tenho a dizer e veja se aprende alguma coisa!»

Aterrorizada, a «fedelha» perdeu o pio e Natália só se calou quando se fartou.

Momentos sublimes

Os jovens - se educados, talentosos, cultos, bonitos - despertavam nela incontidas curiosidades. Perdia (com eles) a pose de diva intocável, passando a observar-lhes, interessada, a maneira como se expressavam, se posicionava: «fundamental que eles estejam no contrapoder, o seu papel é o de contestarem o status quo existente, o de reivindicarem mudanças, é a sua energia que torna dinâmicas as sociedades.

Os regimes que em vez de a fomentarem a esvaziam, chamando para a sua área os que os deviam combater, entram em declínio. Foi assim que caiu o Império Romano».

Encostado à parede do lado direito, quando se entrava, o era o piano um objecto que pouco se via, mas muito se ouvia.

Natália - geração em que as meninas-família o tocavam por chiquismo - recusara-lhe a aprendizagem, mas não a sonoridade. Maria João Pires interpretou várias vezes, no Botequim, Chopin, Mozart, Debussy, com Eunice Munoz a dizer poemas de Florbela, Sá-Carneiro, António Barahona, Natália, momentos sublimes que deram ao bar alturas irrepetíveis.

 

«Este rapaz tão gentil é técnico de computadores, essas máquinas horrendas? Quem diria!»

Natália metera conversa com Nuno Eduardo Ferreira, sentado à sua frente, sem suspeitar ser ele uma barra em informática. Julgara-o, pelos modos envolventes (mais) um poeta em início de carreira. Não era. A conversa inflectiu para a política, as artes, as viagens, os Açores (o Nuno fizera tropa em São Miguel), Tomar (de onde eram as suas raízes e onde Natália tinham âncoras, a economia, o jornalista, a má-língua.

«Não imaginava que um técnico de computadores tivesse tanta sensibilidade e conhecimentos», comenta. «Não imaginava que houvesse uma Natália tão redutora», exclamo-lhe.

Ela olha-me, envergonhada.

 

Organização, pontualidade, profissionalismo, eram características de Natália que muito poucos percepcionavam. Para lá do comportamento caótico em que parecia (por fora) a sua vida, a nível interior revelava um racionalismo, um rigor, de suspender.

Planificava o dia-a-dia com clareza: a manhã reservava-a para, descalça no quarto (de uma arrumação medonhamente desarrumada), escrever em cadernos garatujados a caneta de tinta permanente - que depois lhe passavam à máquina (comutador era ficção científica) antes do martírio das inacabadas revisões tipográficas.

A tarde destinava-a a compromissos avulsos, entrevistas, artigos de jornal, pesquisas; às tarefas (quando deputada) na Assembleia da República, a participações políticas, a lançamentos de livros, exposições, debates. Solicitada para eventos afins, via-se condicionada pelos transportes, lamento o «não ter um automóvel com motorista!» Chocava-a parafernália deles (automóveis e motoristas) ao serviço de qualquer enfatuado burocrata, enquanto ela balanceava por boleias avulsas e táxis irregulares, cada vez mais caros.

Quando não tinha compromissos ao fim da tarde, sentava as amigas à volta da banheira, peça de referência na sua vida, para cavaqueira de intimidade, imersa em espuma e essências, e risos, tépido gineceu de confidências que a discrição aconselha a omitir.

«Ela dizia que não deviam usar-se perfumes, pois alteravam o odor natural da pele», recorda Helena Cantos.

Presente em alguns desses húmidos rituais, a marquesa de Jácome Correia, a companheira de Vitorino Nemésio, escreverá nas suas memórias que quando esteve, devido à morte dele, «muito doente, Natália veio a minha casa, fez-me as malas e levou-me consigo para a sua casa. Era uma mulher muito culta, de uma inteligência multifacetada, tendo por vezes uma ingenuidade que me deslumbrava».

Chegava a ser, na verdade, fascinante a sua ingenuidade. A criança que fora continuava-lhe incólume, sempre ávida do mundo circundante, sempre maravilhada com o espectáculo esplendoroso, mesmo quando doloroso, do ser humano.

 

A noite: a noite era a glória do dia para Natália Correia. A aquosidade da luz («os candeeiros da Avenida parecem luas suspensas das árvores», os ruídos coados da cidade, a lentidão nos movimentos («temos de voltar a viver devagar»), disponibilidade dos olhares, faziam-na renascer.

Entrava no Botequim, quando não tinha espectáculos ou sessões, por volta das dez horas. O senhor Bandola servia-lhe rosbife (o melhor rosbife de Lisboa) e taça de tinto (Lavrador) - e os amigos as últimas novidades, que ela, normalmente, já conhecia.

As discussões depressa levantavam fervura. Depois, invertia-se a situação: com o avançar das horas e dos habitués, era aos que chegavam que se pediam novidades e opiniões desempatadoras das ali emperradas. Às três da manhã o Botequim estava derreado e ela, vampírica, cheia de euforia - e apetite. Outro rosbife chegava, pousado com prontidão e esmero.

Reconfortada, previa: «A queda dos impérios vai entrar em cascata. O português foi o detonador. Agora temos o da URSS, depois o dos EUA, a seguir o da CEE. A transição para a nova era, a chegar depois do século XXI, será tremenda.

O início de um tempo promissor demorará, mas vai dar-se, tal como há quinhentos anos, quando, pela mão dos Portugueses, a Europa chegou a continentes venturosos, que não suportou e destruiu, pois aos poderes que a dominavam, sobretudo à Igreja, não convinha a existência de paraísos nesses continentes, isto é, na Terra.»

A frustração dos três mitos da segunda metade do século XX (controlo da guerra, da doença e da miséria) gerará, na sua perspectiva, «grandes alterações. Pragas incontroláveis (conflitos étnicos, fundamentalismos, sida, droga, fome, desapiedade, excedentarização, escravidão) vitimizam cada vez mais de nós».

A mudança das hegemonias mundiais - implosão da URSS, derrapagem dos EUA, emergência da China e da Índia -, o aprofundamento do terrorismo sob véus religiosos de martírios salvíficos, a profusão descontrolada do armamentismo nuclear, «abrem espaços crescentes ao irracionalismo, ao medo do desconhecido, o pior dos medos. Se a insegurança, as desigualdades, as explorações, os abandonos, continuarem a multiplicar-se, entraremos numa fase demencial».

Mudando frequentemente de registo, consoante se sucediam os interlocutores, passava, rápida, da pilhéria à inquietação, magnetizando os que a ouviam, a seguiam, nas suas flutuações de imprevisibilidade e temeridade.

«Daqui por duas décadas, a Europa, não só Portugal, atravessará uma crise medonha, transformações terríveis ocorrerão, fazendo perigar a existência de alguns países, inclusive o nosso!»

Uma psiquiatra alarma Natália ao revelar-lhe ter pacientes «com mais medo do desemprego do que da morte». Mundializa-se a miséria, não a riqueza.

«A pobreza urbana aumenta de intensidade retalhada por três grupos crescentes: o dos pensionistas, o dos sem trabalhos, o dos sem voz nem disponibilidade de agir», alerta Helena Roseta - que ajudou a refundar o Botequim, tornando-se com Francisco Baptista Russo, uma das suas sócias após a morte do senhor Machado.

 

A insegurança económica avassalava Natália. Desprovida de recursos, entrou em período de indisfarçável angústia. «Resta-me vender livros, quadros, objectos valiosos», confidenciará: «Só espero não viver muito mais, estou a ficar cercada, os sinais multiplicam-se.»

Amigos tentam-lhe saídas. José Manuel dos Santos, o notável assessor cultural das presidências socialistas, conta, com o seu inigualável humor, que Mário Soares admitira arranjar-lhe um lugar de conselheira em Belém, com estatuto semelhante ao dos deputados. Mas, acrescentava Soares, «se a meto lá quem é que passa a ser o Presidente, eu ou ela?»

Ramalho Eanes e Manuela Eanes tentam, confirmando dedicações inquebráveis, que lhe seja concedida uma pensão de mérito, espécie de reforma criada após o 25 de Abril para figuras da cultura em situações económicas difíceis.

Grandes vultos têm, devido a esse justíssimo reconhecimento, visto a sua situação minorada no final da vida - como Amália Rodrigues, Amélia Rey Colaço, Mariana Rey Monteiro, Sophia de Mello Breyner, Maria Keil, Mário Cesariny de Vasconcelos, etc.

O saber de tais diligências, Natália Correia toma uma atitude e surpreendente: «Se o Estado português entende que eu a mereço, aceito e agradeço, mas pedi-la não, não peço.

Quando Presidente da República, Eanes encarregou-a por mais de uma vez, de o representar em cerimónias oficiais de destaque. Embaixadas, Ministério da Cultura, direcção do Teatro Nacional, foram, entre outros, cargos que, nesse período, ela recusou.

Num país onde todos tentam encostar-se ao erário público, a sua reacção é uma pedrada no charco. O sentido de independência da poeta mostra-se mais uma vez superior ao da própria sobrevivência. Com ela não havia hipotecas de honra, de liberdade - tinha de ser neutralizada.

«A pobreza é a grande arma de domínio utilizada pelos ricos», comentava, «mas eu prefiro desaparecer a submeter­me». Desapareceu e não se submeteu.

A solidariedade, a lealdade, não tinham limites em si.

Nunca a vi consentir que dissessem mal dos seus amigos; nunca a vi virar costas a quem lhe estendesse a mão, o sofrimento, o medo.

Constitucionalistas observaram, entretanto, que as reformas de mérito podiam ser igualmente requeridas (em substituição dos próprios) por grupos de conceituados cidadãos.

Quando se pensava estar, assim, contornado o problema, Natália Correia morre.

 

Ao escrever Solstício de Inverno, Natália comentou melancólica:, «Sinto que esta é a minha última peça de teatro.

Vou dá-la ao Carlos Avilez. Fi-la para ele; pois ele privilegia, como eu, o intuitivo ao racional, característica decisiva para o conhecimento da natureza humana.» Terminada, assim o fez. E ele guardou-a, aguardou-a - e estreou-a.

Encenador de O Encoberto e de Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (obras da escritora anteriormente postas em cena por si), o responsável do TEC- Teatro Experimental d, Cascais, tornara-se o director mais nataliano do nosso meio cénico.

«Só não encenei A Pécora, que o João Mota dirigiu na Comuna com imenso êxito, porque o texto mexeu muito comigo, com as minhas convicções religiosas, pois, como sou crente, não fiquei à vontade para pegar nele», revela-me.

Desmontando os milagres de uma Nossa Senhora (a de Fátima?), a Pécora (personagem magistralmente interpretada pela actriz Manuela de Freitas) teve grande repercussão no Festival de Avinhão.

As reacções de desagrado que provocou nós meios católicos foram, porém, monumentais - levando ao corte de relações com a autora de várias personalidades suas amigas, caso Amália Rodrigues, que nunca mais lhe falou.

Erotismo popular

Aos que perguntavam a Natália o motivo da escolha de Solstício culto pagão a lembrar o do Espírito Santo, ela respondia: «Temos de recuperar o húmus de que somos feitos para enfrentar a mundialização que nos ameaça. Só assim poderemos resistir. Esmagámos as nossas estruturas romântico-barrocas, melhor, as nossas infra-estruturas peninsulares, e fomos buscar além-Pirenéus o racionalismo que passou a pesar sobre a nossa literatura, o nosso teatro e o nosso pensamento.»

Abordado numa perspectiva satírica, campo em que Natália Correia se afirmou única, Solstício do Inverno revela­se uma obra cáustica, de travos invulgarmente demolidores sobre a política, a democracia, a justiça, a moral, o jornalismo, a filantropia, a demagogia.

Trata-se de uma singularíssima incursão pelo universo mágico do imaginário popular do Norte do País - no caso as festas pagãs dos Caretos, na aldeia transmontana de Ousilhão (Vinhais), realizadas na quadra do Natal.

Com séculos de existência, elas têm a particularidade de os seus intervenientes usarem máscaras e roupas próprias, e de incluírem distribuições gratuitas de pão e vinho, acompanhadas por leilões de produtos doados, desfiles e «julgamentos» públicos, numa emanação de comunitarismo e erotismo únicos entre nós.

relações com a autora de várias personalidades suas amigas, caso de Amália Rodrigues, que nunca mais lhe falou.

 

Natália olha com sarcasmo os que entram carregados de embrulhos e contentamentos - pelas festividades da Páscoa.

A alguns não se coíbe de perguntar: «Esse entusiasmo todo é por saberem Cristo mais uma vez assassinado?» Estupefactos, não sabem responder-lhe.

«Engolem tudo!», exclama ao vê-los ir, enrolados em sorrisos e gestos amarelos. «Continuamos, dois mil após a ignomínia da Via Sacra, a celebrá-la, a utilizá-la consoante os sentires (os interesses) vigentes», escreverá em Armistício, e ousadíssima reflexão poético/ensaística sobre o tema.

Permitir a matança de Jesus para O ressuscitar e abater a seguir, em ciclos repetidos demencialmente (até à aceitação, à interiorização), é um caminho que levará ao holocausto.

A filosofia do suplício conduz à passividade, a passividade à desistência, a desistência à resignação - e esta à imolação.

Cimento das religiões monoteístas, o terror encontrou na cruz o símbolo do supremo domínio sacrificial. Daí a urgência do seu banimento (Pai, afasta de mim esse cálice), a fim de serem recuperadas, antes da hecatombe, a alegria e a fraternidade pentecostal.

Natália recusa o monoteísmo e a crucificação. Aceitá-los, sobre do à crucificação, é aceitar a catástrofe – atómica, demográfica, ambiental, tecnocrática.

Torna-se, assim, cada vez mais urgente subir ao monte arrancar o Filho do madeiro e trazê-Lo para junto dos outros deus, porque Ele é divino, e dos outros homens, porque Ele é humano.

Para que, depois, reentre, chicote em punho, nos templos começar pelos que o dizem cultuar) e varra de vez os bezerros de oiro dos vendilhões liberalizóides que andam a matar a dignidade à vida.

Torna-se, assim, decisivo recuperar o romantismo, o barroco, o anárquico, o profético, o periférico, o utópico, valor profundamente portugueses; e religar o racional e o intuitivo, o masculino e o feminino, o novo e o antigo, o conservador e o inovador, assinando um Armistício connosco próprios - Armistício é o título de um dos seus livros mais perturbadores.

«Creio nos anjos que andam pelo mundo / Creio em amores lunares com piano ao fundo / Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes / Creio que tudo é eterno num segundo / Creio num céu futuro que houve dantes / Creio nos deuses de um astral mais puro / Na flor humilde que se encosta ao muro / Creio na carne que enfeitiça o além / Creio no incrível, nas coisas assombrosas / Na ocupação do mundo pelas rosas / Creio que o Amor tem asas de ouro, Ámen», exalta em Sonetos Românticos.

Religião significa religação, não segregação; não segregação como a que o Vaticano exerce sobre os que sofrem aborto) os que reivindicam relações seguras) os que se amam indistintamente de sexos e procriações.

Pisá-los «é pisar a sombra do divino que existe em todos os entes concebidos pelo Criador», sintetiza Natália, a poeta da liberdade.

Presa por engano

Durante algum tempo, o pintor Júlio Caldeireiro exercera em jovem essa profissão, picou nas mesas do Botequim. As manhãs eram-lhe passadas na Brasileira, as tardes no ateliê e as noites no bar. Aparecia aquecido de álcoois e provocações) implicando só pelo gozo de fazer explodir Natália - que lhe ribombava medonhos raspanetes.

Certa noite ela entrou acompanhada por Zita Namora, recém-viúva de Fernando Namora, ida ao bar pela primeira vez. Alta, loura) efusiva, Zita sentou-se numa cadeira onde Júlio havia posto um envelope) imperceptível na penumbra do ambiente.

Os berros do pintor abalaram-nos de imediato: «Sua vaca, não vê onde põe esse cu gordo, levante de imediato as banhas!» Estupefacta) a visada olhou para Natália que logo vozeirou: «Ponha-se na rua) seu javardo, não o quero nunca mais aqui, rua!»

O «javardo» não se mexeu nem incomodou: Ela é que tem de ir para a rua) deu cabo do meu desenho) de propósito, deu cabo do marido e agora quer fazer o mesmo comigo, não saio!»

«Sais e é já, Dórdio, põe-no lá fora.» Dórdio fingiu não ouvir. Possessa, ordenou então ao senhor Bandola que chamasse a polícia.

Chamou. A polícia veio. Um agente picuinhas entrou e de imediato deu voz de prisão a Natália, pensando ser ela a zaragateira - o que até nem fora mal deduzido, tal o seu afogueamento.

Safado, o artista, um verdadeiro artista, esgueirou-se divertido com os impropérios chovidos sobre o agente a persistir em engaiolar a queixosa, Duas noites depois, Júlio Caldeireiro estava lá de novo caído, até que rebentou de cirrose e, diz-se, de velhacaria.

Zita Namora entregara-nos uma cópia da exposição em papel selado que o marido fizera ao ministro das Finanças, Lopes, a solicitar que uma dívida sua fosse paga em prestações.

Na petição, o romancista tenta sensibilizar o governante para a situação do escritor em Portugal: «Quanto mais o autor se esforça, mais pesado é o tributo fiscal. A sua actividade, de indiscutível incidência comunitária e de que a sociedade se aproveita e, por fim, até se apropria, não é reconhecida, em termos de apoio, pela Segurança Social nem pelo Fisco.

Tende-se a esquecer que, em regra, o rendimento que se aufere tem por trás uma via-sacra de sacrifícios, de desgaste em tarefas simultâneas a que a vida obriga, quando não se nasceu em berço de ouro.»

Enviada a 8 de Janeiro de 1985, a carta não obteria, sequer, resposta.

A cobrança de impostos sobre os direitos de autor começara a ser acelerada.

O Prémio Literário Círculo de Leitores (mil contos, que recebo pelo romance O Viúvo, é-me esbulhado em mais de metade pelos sôfregos da Fazenda.

Natália Correia, na Assembleia da República, insurge-se contra amanha barbárie, pois as Finanças - que não reconhecem a profissão de escritor - recusam deduzir as despesas feitas aos que a exercem.

A injustiça revela-se de tal modo gritante que Teresa Patrício Gouveia, secretária de Estado da Cultura, toma a iniciativa de encontrar-lhe uma solução.

Natália Correia (como deputada) e Luiz Francisco Rebello (como presidente da Sociedade Portuguesa de Autores) assumem papel importante nas diligências da titular da Sec.

No Botequim, concebem-se estratégias, juntam-se legislações, apuram-se argumentos, planeiam-se contactos, multiplicam-se apoios. De súbito, um balde de água gelada cai sobre nós: o director-geral dos Impostos argumenta: «Os escritores apenas precisam de um caderno e de um lápis, não têm outras despesas.»

Francisco Rebello explica-lhe que têm, que necessitam de fazer pesquisas, deslocações, compras de livros, etc., ao que ele contrapõe: «Então a SPA deve elaborar uma lista dos escritores que efectuam pesquisas e mandar-ma para os nossos serviços fazerem a sua confirmação.»

Natália levanta-se, os que a acompanham seguem-na e viram-lhe costas. Com gente assim não se ia a lado nenhum.

Procuram-se outros interlocutores.

Miguel Cadilhe, na altura titular das Finanças, ouve Natália e Rebello nos Paços Perdidos. E promete-lhes (ele tinha especial apreço por ela) estudar o assunto. Pouco depois contacta-os. Em grande parte dos países da Comunidade Europeia, cinquenta por cento dos direitos de autor não são tributáveis, Concordariam com uma decisão dessas? Concordou­se - e foi assim que a medida começou a vigorar entre nós.

«Devemo-lo à Teresa Patrício Gouveia e ao Miguel Cadilhe!», sublinhará em conferências, declarações, e entrevistas, depoimentos, Natália Correia, granítica na lealdade e no reconhecimento.

Duas décadas depois, governos socialistas, sociais-democratas e democratas-cristãos rapinaram vergonhosamente a aplicação deste acordo.

Passámos, nos últimos anos, os fins-de-semana a cirandar pelo País. Para participar em debates, proferir conferências, presentar livros, desenvolver encontros, prometer obras.

Íamos quase sempre à nossa custa, ora no meu carro ora no de Francisco Baptista Russo - um dos amigos de Natália mais sensíveis e disponíveis de sempre.

Dotada de intuição notável para detectar talentos ela abria-se-lhes com generosidade, com quixotismo, apoiando-os, impulsionando-os, divulgando-os, amando-os.

Sensível à projecção da literatura, o poder autárquico começava a utilizá-la em bibliotecas, feiras de livros, encontro de escritores, ciclos temáticos de razoável efeito divulgador.

O egoísmo de pessoas ligadas ao meio cultural bloqueava, porém, frequentemente Natália Correia, sem grande jeito para se lhe esquivar.

O ambiente literário é vezeiro na lisonja, no ardil, na hipocrisia. Os críticos, esses, ora ajudavam à festa (nos então poderos suplementos culturais), ora tentavam pôr água na fervura.

Os pedidos dos outros impulsionavam Natália, mas quando os percebia manipuladores, derrubavam-na. Uma senhora do Sul, professora e poetisa, contacta-a no Botequim para lhe pedir uma opinião sobre versos que acabara de apurar.

«Diga sinceramente o que acha, mesmo que não os considere bons», insistia, envolvente, a autora. «Eu digo sempre o que penso», ripostou-lhe a interpelada.

Dias depois, novo contacto: «Podia escrever umas palavrinha ... com a sua referência na capa o editor publicava o livro.» Foram redigidas.

Dias depois, outra vez ela: «Estou tão feliz que, se concordasse, punha o que escreveu como prefácio, bastavam mais umas linhazitas.» Foram as linhazitas.

 

Dias depois, ao telefone: «o livro ficou uma maravilha, todos dizem que só a Natália o pode apresentar, pode?»

Pôde. Lá fomos, despesas à nossa custa, ao Sul.

Semanas mais tarde: «A edição está quase esgotada, aconselham-me agora a procurar uma grande editora que lance a minha obra além-fronteiras, mas como não tenho contactos lembrei-me, se não for abuso, que a minha boa amiga podia dar uma palavrinha a ... »

Natália desligou a chamada. Depois berrou, gesticulou.

A indignação nela era por vezes apoteótica. Passada, porém, voltava a repetir tudo - e nós com ela.

 

Nas localidades por onde passamos (em apresentações, lançamentos, tertúlias, debates), aparecem sempre pessoas a oferecer-nos livros seus, sóbrias edições pessoais feitas     quase sempre à custa de sofridos pés-de-meia; em vez de deixarem aos herdeiros bens sólidos, casas, terrenos, legam-lhes volumes de papel impresso, para si mais valiosos do que casas e terrenos, por serem do domínio do não material, do quase sagrado - que os referidos herdeiros, por norma, desprezam.

AI uns desses autores mostram-nos apreciações amáveis às suas obras feitas por grandes nomes da literatura por ali passados (Natália lê-as, curiosa), como Eugénio de Andrade, Fernando Namora, Urbano Tavares Rodrigues, José Saramago, Vergílio Ferreira, Faure da Rosa, AIves Redol, Manuel da Fonseca, Baptista-Bastos, Mário Ventura, frases gentis ciosamente conservadas, ostentadas.

Ao partir, vamos ajoujados de simpatias e livros - que fazer com eles? «Não tenho tempo para os ler nem espaço para os guardar», desabafa Natália: «As pessoas são tão amáveis m s tão irrealistas, convencem-se de que somos privilegiados com facilidades, em disponibilidades »

O carro vai atulhado. «Que fazer?», repete: «Como temos de ficar no hotel, podemos pedir para nos guardarem lá estes embrulhos e depois ... »

Interrompo-a e conto-lhe a táctica engendrada por José Saramago. Revelou-ma numa viagem ao Brasil com, entre outros, Alçada Baptista, Óscar Lopes, Agustina, longo roteiro por cidades do interior, em promoção literária dinamizada por Estrela, o dedicado editor/divulgador (através da Livraria Camões) de autores portugueses naquele país.

Ante o nosso desconforto pela carga de intermináveis ofertas a alombar por malas e aviões, Saramago logo nos adverte: «Não pensem em deixá-los aqui. As obras que nos oferecem numa cidade só devem ser abandonadas a cidade seguinte, não na mesma, pois, se forem na mesma, os empregados do hotel podem contactar os autores e devolvê-Ios, o que será muito deselegante. Na cidade seguinte, já não há esse risco.»

Assim se fez. «O Saramago ainda vai ganhar o Nobel da Literatura!», exclama Natália. Quando ganhou, já morrido.

Matar a morte

Natália canta, «a mim a morte não me mata / Quem mata a morte sou eu», a voz avoluma-se nas últimas palavras, em desafio, em esconjuro, «quem mata a morte sou eu». Do folclore açoriano, é uma das toadas mais ouvidas o Botequim, notavelmente acompanhada à guitarra bo Duarte Brás.

Também açoriano, ele proporciona-nos com frequência recitais inesquecíveis de música das suas ilhas, entrecortados de composições satíricas (escárnio e maldizer) irresistíveis (como a Pomba de Mata Amaral e As Velhas).

Raramente se riu tão inteligentemente em Lisboa como nesses convívios de admirável intensidade, intencionalidade.

Eduardo Luiz Cortezão fascina Natália: «O sexo e a morte anulam por igual o eu, pois pertencem à mesma ordem do indefinido. O que desfalece no amor (com homem ou mulher ganha ao fazê-lo, tal como o que morre, uma expressão de inexplicável intocabilidade.»

A apoteose da paixão e da morte é de idêntica natureza, envolve os momentos mais extraordinários da vida. Os amantes e os moribundos atravessam o mesmo êxtase - vislumbre permitido pelos deuses aos por si escolhidos

 

A Maria de Lourdes Pintasilgo custou aceitar a derrota nas eleições presidenciais, tal como a secundarização que, a partir daí, a relegaram os poderes emergidos no Governo, na comunicação social, nos fóruns culturais, diplomáticos, políticos, ideológicos.

Em algumas publicações, os seus artigos chegaram a ser depreciados e adulterados, causando-lhe impotências dificilmente silenciadas. A sua expressão de aberta foi-se apagando, quebrada ante rasteiros golpes sofridos.

Certa vez no Botequim, para a animar, Natália, Correia perorou sobre a inconsistência da política, a fluidez dos votos, a precariedade dos cargos decisórios. Percebendo-se inútil na sua intenção, a poeta virou-se para ela (que não reagia) e disparou: «Sabe que mais? Quem devia ter-se candidatado à Presidência e estar no seu lugar não era você, era eu. Eu nunca ficaria nesse estado devido a meras derrotas nas urnas e insídias de velhacos!»

Lourdes Pintasilgo riu, finalmente, contagiando os que a cercavam, a amavam.

Primeira primeiro-ministro e primeira candidata à Presidência da República, Maria de Lourdes Pintassilgo foi, oficial ente, a terceira mulher no poder (depois das rainhas D. Maria I e D. Maria II) ao longo da história de Portugal. O seu comportamento torná-la-ia um património identitário nosso.

Sem aviso, o coração retirou-a quando a viu desprotegida uma noite, no apartamento que habitava defronte dos Capuchos, em Lisboa. O corpo ficou-lhe (não teve luto nacional nem exéquias de Estado) num gavetão do cemitério dos Prazeres. A política, a cultura, a intervenção, a solidariedade foram campos privilegiados na sua afirmação feita, quase sempre, por ciclos incisivos e decisivos.

Demasiado avançada

Nascia em Abrantes numa família abastada, veio com o irmão o jornalista José Manuel Pintasilgo, já falecido) para Lisboa onde frequentou o Liceu Filipa de Lencastre e, na Faculdade, o curso de Engenharia.

Beneficiou desde muito cedo da influência de um tio militar, homem de grande cultura e sentido de independência (anticlerical, anti-regime), que a levou a contactar meios intelectuais, literários, criativos, políticos, tertúlicos de relevância a época. Aos quatro anos já recitava de cor diversos poetas e afirmava ousadias imbatíveis. A escolha de Engenharia então pouco própria para mulheres, seria uma delas.

Diploma (com altos valores) na mão, aceita emprego na CUF, maior império industrial português, onde se torna a primeira mulher engenheira a trabalhar, e onde descobre o universo do operariado, com as suas múltiplas associações e reivindicações.

Descobre também o mundo da Igreja Católica e os movimentos internacionais (fizera-se uma viajante incansável) que, a partir da Segunda Guerra, emergem no Ocidente. Em 1957, introduz nos círculos femininos que frequenta a ideia de criar entre nós uma associação religiosa de Graal, em expansão na Europa. Gonçalves Cerejeira recusa-se a reconhecê-la por a achar «demasiado avançada». 0 mesmo não pensam, porém, os bispos de Coimbra e Portalegre, que a acolhem (Teresa Santa Clara Gomes afirma-se uma das suas maiores impulsionadoras) nas dioceses que coordenam - levando o cardeal a recuar.

Cem dias

Aceita integrar, no consulado de Marcello Caetano, Câmara Corporativa (1969-1974) e, depois do 25 de Abril, executivos provisórios, como a Secretaria de Estado dos Assuntos Sociais, primeiro, e a tutelaridade do mesmo ministério, depois.

Medidas como o alargamento da previdência e assistência a sectores até aí excluídos delas popularizam. O seu nome, que passa a ser um ângulo na democracia nacional.

Embaixadora na UNESCO, vê-se convidada por Ramalho Eanes, Presidente da República, a chefiar, em 1979, um Executivo de transição ( entre eleições), conhecido como «Governo dos cem dias».

Seis anos depois, cabe-lhe ser candidata à chefia do Estado, desafio que aceita - e que perde para Mário Soares.

Defensora de uma «diplomacia humanista», uma «fraternidade social», uma «cidadania activa», Pintasilgo atingiu estatutos, em várias áreas, altamente inovadores.

Só um pé

Juntamente com José Saramago será uma das primeiras vozes a convoca-nos para a urgência de reinventar a democracia (a fim de não perdermos) e a solidariedade (a fim de não nos perdermos).

O futuro Nobel era, a seu lado e do de Natália, notável de persistência: «Esta democracia não passa de uma caricatura, porque e não é uma democracia cultural nem económica, não passa de uma democracia totalitarizante, comandada pelos mercados, em quem ninguém vota.»

Os cidadãos só podem interferir «no sector da política através do voto, porque nos outros sectores, como o económico, o financeiro, da justiça, o das Forças Armadas, o da comunicação social, não metem prego nem estopa», aprofundava o autor do Ensaio sobre a Cegueira: «A nossa sociedade lembra uma mesa de vários pés, dos quais apenas um, o político, é democrático, foi nos restantes não temos qualquer interferência».

Natália sentia-se exuberante ao ver confirmado o que, primeiro do que todos, antevira. «Os democratas de aviário vão dar cabo da democracia», exclamava, surpreendida com a corrupção a crescer, impune e descarada, sob o chapéu protector dos partidos do centrão que, passado o 25 de Abril, sucedeu à União Nacional de outrora.

Derradeira gargalhada

A desoras, Maria de Lourdes Pintasilgo telefonava-me de diversos pontos da Europa (não se apercebia das diferenças dos fusos) quando lhe adulteravam, lhe desregulavam a periodicidade dos artigos e colaborações.

Jamais esquecerei uma chamada sua de Paris, eram três da manhã, a inquirir-me, despedaçada, porque lhe e pagavam menos de metade do que a outros colunistas a moda e no benefício de o estar. Teriam os seus escritos perdido qualidade? Os temas que abordava estavam ultrapassados?

Tornara-se maçadora para os leitores? Deveria desistir de comunicar com O público, perguntava em catadupa e em desespero.

Ela (como Eduardo Lourenço, que nunca se apercebeu da sua exploração) auferia sessenta mil escudos por texto (depois subidos para noventa mil), enquanto outros, mercê de cumplicidades particulares com as direcções, arrecadavam cento e cinquenta contos por artigo. A discriminação ficou-lhe para sempre, ao percebê-la, uma afronta insuportável.

Em torrente, as suas palavras traziam-nos vibrações inesquecíveis. Da decepção ao encantamento circulavam sem hiatos, flutuantes, cantantes.

A voz era-lhe, aliás, uma distinção, uma imposição - mulher incrivelmente superior e frágil, confiante e temente, perplexa e decisiva.

De chofre, diz-nos, surpreendendo Natália: «Estive a jantar, há dias, com um grupo onde se encontrava a Manuela Ferreira Leite, que não conhecia pessoalmente e de quem não tinha nada boa impressão. Ouvi-a e foi uma surpresa pela sua dimensão humana, conhecimentos, integridade ... pode vir a ser, no futuro, uma excelente primeira-ministra.»

Provoco-a: «Ora, isso é a senhora a puxar a brasa ao mulherio no poder ... sou muito céptico em relação aos políticos.» «Também em relação a mim?», interrompe, irónica.

«Sobretudo a si!» Solta, com gosto, uma sonora gargalhada.

Foi a derradeira que lhe ouvimos.

«A Maria de Lourdes acredita nas coisas simultaneamente por fé e por álgebra», justificava-a Natália Correia:

«É uma engenheira de utopias.»

 

Maria de Lourdes Pintasilgo, chefe do Governo no qual Sousa Franco detinha a pasta das Finanças) revela em noites de Botequim) que era ele e não ela a dominar as reuniões do Executivo.

Ante a curiosidade de Natália, explica: «Ele estava quase sempre calado, ouvindo semidistraído e semi-irónico, as intervenções dos outros ministros. Todos apresentavam grandes projectos, reclamando meios para os concretizar.

Quando os entusiasmos estavam no auge, a sua voz irrompia:

"E com que dinheiro? Tenham mas é juízo, deixem-se de fantasias! Os meus companheiros olhavam para mim, eu para ele, que logo rabujava: "Não pode ser nada." Quando ficávamos sozinhos o seu comportamento mudava por completo, sentia-se aflito por não poder apoiar os outros, fragilizava-se, às vezes chorava encostando a cabeça ao meu ombro, sucumbindo à contradição entre o seu catolicismo, o seu economicismo, ao ter de fazer o oposto do que desejava.

Um primeiro-ministro que não seja economista tem muita dificuldade em governar pois está nas mãos do seu ministro das Finanças. Os economistas formam, por sua vez, um lóbi fechado, como são de vários partidos revezam-se no de acordo com o que ganha as eleições. Esse é talvez o maior problema de quem chefia entre nós um Executivo. Sá Carneiro e Mário Soares foram, pelas suas personalidades, excepção.»

Dirigente de instituições religiosas, universitárias, políticas, económicas, governativas, António Luciano de Sousa Franco tornou-se uma referência de ética e civismo incomum entre nós.

«Ele vai desaparecer cedo porque pertence, como eu, à estirpe dos indomados, dos indomáveis, e a esses o destino retira-os a tempo», predizia Natália Correia quando via Sousa Franco arremeter sobre os moinhos de vento que o moviam.

«Hei-de lutar até ao fim da vida contra os maquiavéis de pacotilha que por aí abundam. Quando aprenderão os portugueses o diálogo e desaprenderão a intriga?», interrogava.

Acusado de traição

A Acção Católica Portuguesa «foi para mim uma escola social» recordará. Ingressado na sua estrutura aos onze anos, ascende-lhe a secretário-geral e a presidente. Na década e sessenta, acompanha os que ambicionam transformá-la em partido político, tipo democracia cristã, «que evitasse, nas suas palavras, «a penetração do espírito fascista e do espírito liberal e capitalista» entre nós. Salazar travou, porém, essa utopia dos então chamados católicos progressistas.

Participa, depois do 25 de Abril, na génese do CDS, mas filia-se no PPD, formação onde desempenhará o cargo de presidente quando Sá Carneiro se afasta por doença. No regresso deste, quatro meses depois, é acusado de traição, o que o leva a sair, com outros militantes conhecidos por Inadiáveis, do partido e do Parlamento.

Maria de Lourdes Pintasilgo convida-o para a pasta das Finanças do seu Governo de transição. Em 1979, ajuda a fundar a ASDI, aliando-se ao PS de Mário Soares, juntamente com a UEDS de Lopes Cardoso. Essa frente será derrotada nas urnas, remetendo Sousa Franco (que se proclama «enojado» com a política) apenas para a vida académica. Sete anos depois não resiste e surge como apoiante de Freitas do Amaral a Belém, contra Soares. De novo a derrota bate-lhe, à porta.

Casa-se com Matilde Pessoa de Figueiredo (Sobrinha de António Sérgio), após um namoro de seis anos - tempo que demorou o processo canónico de nulidade do seu anterior matrimónio.

Depois de Pintasilgo, outro primeiro-ministro (igualmente católico), António Guterres, alicia-o para as Finanças onde lidera a adesão ao euro. E onde volta a «chatear-se» deixando, inclusive, de ir às sessões ministeriais. Não funcionava de manhã, devido ao seu biorritmo, só se sentindo «perfeitamente acordado depois do meio-dia».

João Soares, do PS, propô-lo-á como independente ao Parlamento Europeu. «Aceitei porque estamos demasiado deprimidos», justifica-se, «sendo mais importante o estado de espírito, a alma dos Portugueses do que a economia. Portugal devia ter uma política activa de integração na retoma europeia, em vez de ficar à espera na estação do comboio.»

Morrerá subitamente durante uma acção de campanha num mercado do Norte.

A sua postura grave e densa (embora fosse, em privado, «folgazão e comilão») corresponde ao que o imaginário popular espera de um político respeitável.

Natália Correia invectiva-o (acabara de saber do seu entusiasmo pela moeda única europeia), preocupada: «Olhe que isso vai ser trágico para Portugal, levar-nos-á à ruína, se for para frente, não ouça só economistas e políticos, ouça o Torga, ouça o Agostinho da Silva ... »

Sousa Franco sorriu e não retorquiu. Era surdo. Passou à história como o «pai do euro» e o «pai do Tribunal de Contas» Um «pai tirano», comentarão companheiros seus, tal o empenhamento que pôs nessas tarefas.

Aos opositores, que o apelidavam de ser (também) o «pai do défice», replicava que «a primeira prioridade não era o défice, mas o relançamento da economia e a criação de um clima e confiança».

Era tempo, para si, de denunciar frontalmente «o apodrecimento do jogo político, pois o simples silêncio é conivência», assinala, preocupado com «a degradação crescente do regime democrático. As pessoas estão tão habituadas ao contínuo dizer-se e desdizer-se dos políticos que nem entendem que um deles faça realmente aquilo que diz. Eu costumo fazer o que digo».

Uma das suas últimas intervenções, provocará notícia ao afirmar que a economia portuguesa não só estagnou como se enfiou «num buraco, a andar para trás. Mais dois anos assim e estamos no Estado Novo. Portugal corre o risco de ser uma colónia do capital estrangeiro, sujeito a um capitalismo

Pai Tirano

selvagem, que agrava as desigualdades na repartição ao rendimento nacional», avisa.

Dias antes, protagonizaria o noticiário da actualidade ao ser apontado como presumível candidato à presidência da República - o que Natália Correia havia, numa (longínqua) noite de exaltações no Botequim, vaticinado. Morreu sem saber da sua premonição.

 

Indisciplinada mas rigorosa, autónoma mas exigente, Natália Correia marcaria a sua passagem pela Assembleia da República com inesquecíveis intervenções, ora jocosas e demolidoras, ora graves e fracturantes.

O poema de escárnio que dirigiu ao deputado Morgado, do CDS, por este preconizar (a propósito do aborto) que as relações sexuais dum casal deviam visar apenas a procriação, pôs o País a rir, da direita à esquerda, tal a sua contundência:

«Já que o coito, diz Morgado,

tem como fim cristalino,

preciso e imaculado

fazer menina ou menino,

e cada vez que o varão

sexual petisco manduca

temos na procriação

prova de que houve truca-truca.

Saindo pai de um só rebento,

lógica é a conclusão

de que o viril instrumento

só usou - parca ração!

 

Estes versos (Morgado eclipsar-se-ia, depois deles, para sempre) pertencem há muito ao historial do nosso Parlamento - e da nossa melhor poesia satírica.

Muitíssimo rigorosa

Correu bastidores outra sua reacção: incumbida de defender o programa do PSD (partido a que pertencia) relativo à cultura parou, já a caminho da tribuna, repeliu o texto que lhe haviam entregue e desatou a criticá-lo veementemente, ante o espanto gargalhado de todo o hemiciclo.

As intervenções de Natália Correia foram, no entanto, muito além das que o anedotário fixou. Algumas afirmaram-se peças notáveis de oratória, de cultura, de pensamento.

«Ela era muitíssimo rigorosa», lembra o jurista e escritor José Manuel Mendes, presidente da Associação Portuguesa de Escritores, na altura deputado pelo PCP: «Procurava-me com frequência para a esclarecer, sobretudo sobre matérias jurídicas que não dominava. Preparava-se bem antes de se pronunciar sobre os temas agendados, era uma grande parlamentar, embora nem sempre obedecesse às regras usuais na Assembleia.»

Portugal começou a decair «com a expulsão dos judeus, o advento da Inquisição e o apartar dos jesuítas, escreve Natália: «A cultura, a ciência, a educação, a criatividade, foram gravemente afectadas, o que gerou o desprezo pelo que é nosso e a submissão ao que é alheio. Hoje assistimos ao nivelamento por baixo, ao eclipse das elites, ao recuo da crítica, d exigência, da imaginação.»

As massas, os mercados, «dominam-nos com o seu gosto pindérico, acrescenta, «futebol, telenovelas, literatura light, música pop, passagens de modas, gastronomia, viagens, tudo açucarado, tudo servido como cultura, como modernidade.

O gosto da burguesia e o do proletariado confundem-se num plebeísmo degradante. Burguesia e proletariado caminham, aliás, juntos, e sem o perceber, para precipícios em que vão cair dentro de poucas décadas!»

Depois, Natália precisa: «Caímos já numa mediocridade terrível, estamos muito subservientes aos padrões de eficácia europeísta. Não somos um País de grandes voos capitalistas, se o quisermos ser caímos. Portanto, devíamos cultivar as pequenas e médias empresas e deixarmo-nos de ambições que nos alcem aos grandes padrões europeus.»

Cabisbaixa, adoentada, Natália ouvirá pouco depois Franco Nogueira contar-nos (durante a apresentação da revista Época, dirigida por Wilton da Fonseca, ocorrida nos claustros dos Jerónimos) que Salazar desistira de aderir à CEE depois de ter iniciado auscultações nesse sentido, por a achar prejudicial aos interesses portugueses, preferindo-lhe a EFTA.

«Mas a Comunidade aceitava uma ditadura?», questionámo-lo. Sorrindo, O ex-ministro replicou: «Os meus amigos estão a esquecer-se de que o cimento da política é a hipocrisia. Claro que aceitava, a oposição é que sempre escamoteou isso!»

 

Ao saber que a PIDE não a prendera, na sequência da publicação da peça O Homúnculo, ferocíssima sátira sobre Salazar, porque o presidente do Conselho o impedira, Natália ficou surpresa; e mais ficou ao contarem-lhe que quando Silva Pais, director da polícia política, informou o presidente do Conselho da apreensão do texto e da iminente detenção, da autora, aquele lhe disse: «Sim, fizeram bem em retirar, mas não toquem nela, é uma mulher muito, muito inteligente.»

Aos poucos, foi-me pressionando a revelar-lhe encontros que, como jornalista, tive com Salazar e, sobretudo, com a sua governanta, D. Maria de Jesus Caetano.

O ambiente de São Bento, o interior do palacete, as relações dos seus habitantes, hábitos, gostos, posturas, tiques fascinavam-na. Ela tornou-se, aliás, das primeiras pessoas (juntamente com Jorge de Sena e Agostinho dia Silva) a incentivarem-me a publicar relatos memorialista sobre essa (excepcional) experiência - mas só depois de haver condições políticas para isso.

«Tenha cuidado», avisou-me, «os novos democratas apenas costumam dar liberdade aos outros para concordarem com eles. Previna-se sobretudo dos vira-casacas e dos historiadores, ciosos das suas quintazinhas.»

Já os três haviam morrido quando saíram as Máscaras de Salazar - para sempre devedoras do seu despreconceito e lucidez.

 

«Como fazia para os contactar?», perguntou-me a certa altura.

«Bom, Salazar costumava interromper o seu trabalho por volta das cinco da tarde. Saía do gabinete e asseava no jardim, detinha-se na pérgula que ali existe, nas capoeiras onde chegou a haver duzentas galinhas ... eu passei a aproveitar isso, isto é, pouco antes das cinco chegava a São Bento, tocava a sineta e dizia aos pides que queria falar com a Senhora D. Maria. Eles, que lhe tinham verdadeiro terror, imediatamente a contactavam. "É o rapazinho do Alto Douro? Que entre, que entre", respondia - era assim que me tratava, por ter vindo daquela região do País.»

Mal subia o pequeno declive que conduz às traseiras do palacete, logo ouvia a sua voz a aproximar-se, rezingando, barafustando contra tudo e todos, as mulheres da praça onde se abastecia, as criadas, os polícias - detestava o inspector Rosa Casaco por ter fotografado os devaneios de Salazar com Christine Garnier - embirrava com as mulheres dos ministros, com as senhoras do Movimento Nacional Feminino (umas fiteiras) e desconsolava-se com o próprio presidente do Governo, porque «trabalhava de mais, comia de menos e deixava-se enganar por todos», apesar «de ter a mania que era muito esperto».

Aproveitava os brevíssimos intervalos na sua lengalenga para lançar as questões que me haviam levado ela - a que não respondia, porém. Mas quando Salazar surgia, no seu passeio habitual e se nos dirigia, logo o interpelava com os temas que eu lhe havia largado. Percebendo o estratagema, ele sorria, sempre um instante, sempre amável, sempre enigmático. Não me atrevia claro, a questioná-lo. Uma vez teve uma tirada bastante curiosa: «O que me irrita na oposição não é a ideologia, mas a demagogia. Anda a prometer às pessoas coisas que não silo possíveis de concretizar por falta de recursos. Não podemos viver acima das nossas possibilidades.»

Natália não se contém: «Mas isso é o que dizem os políticos de hoje», exclamou. «Sem saberem a quem pertence a frase», comento, tentando desviar a conversa. Quando estávamos sós logo voltavam, porém, as suas perguntas, as suas curiosidades sobre o ditador e a governanta.

«EIe admirava mesmo o Hitler?», pergunta-me. «Temia-o, sobretudo, receava muito uma invasão alemã, daí o cuidado que tinha com ele .. .»

«Mas mandou pôr a meia haste, durante três dias, a bandeira portuguesa quando da sua morte.»

«O embaixador António Faria disse-me que o fez não para homenagear o Führer, que desprezava, mas para afrontar os norte americanos, que haviam ordenado aos Aliados que não assinalassem o acontecimento, coisa que deixou Salazar furioso. Ele não permitia que estrangeiros mandassem em Portugal.»

 

A inclinação de Natália pelos partidos políticos por onde circulou (PPD, PS, PRD), sempre como independe até, não se deveu aos seus programas ideológicos, mas aos seus líderes, Francisco Sá Carneiro, Mário Soares e Ramalho Eanes, de quem se tornou de uma lealdade invulgar. Eles retribuíram-lhe, considerando-a como não é comum suceder entre políticos e escritores. Ramalho Eanes e a mulher foram-lhe inexcedíveis, sobretudo na última fase, quando a vida começou a fechá-la.

O fim aproxima-se-lhe subterraneamente. Natália sabe-o e di-lo, e repete-o, mas ninguém a ouve, a quer ouvir porque todos a crêem imortal.

Em momentos cabisbaixos, ela perguntava, perguntava­se se as posições (políticas) que tomara em 1975 não tinham sido, face ao que estava a suceder no País, e ao que se avizinhava, «ingénuas»?

Dórdio Guimarães contribuiu para essas dúvidas. Mais radical do que a mulher assumiria, por exemplo, candidatura pela UDP à Assembleia da República, com a convicção, incentivado por Mário Tomé.

Perspicaz, este, observará que a visão de Natália, «limpidamente humanista, primordialmente transgressora, começou a tornar-se insuportável para os partidos da AD (PSD e CDS) no poder» - e para os outros.

Parecido fisicamente com Estaline (o que lhe motivava frequentes pilhérias), Dórdio entrou com gosto na campanha legislativa, ante o cepticismo crescente de Natália.

«Quase nada vale a pena mesmo que a alma não seja pequena», afirma a um jornal: «Só a alma grande é capaz de escolher o pouco que vale muito a pena.»

A obra de Natália Correia não é fácil para leitores avulsos. A profundidade (a originalidade, a complexidade) do seu pensamento, expresso em linguagem muito elaborada e barroca distanciaram-na do tempo em que viveu. Os inovadores, vejam-se Camões, Pascoaes, Pessoa, Brandão, carregam essa sina.

A juntar a isso, houve a imagem que se popularizou sobre si deformando-a frequentemente, amesquinhando-a pontualmente. É pecha portuguesa, isso: quando não conseguimos enfrentar os outros, tentamos ridicularizá-los, desprestigiá-los.

O anedotário à volta de Natália Correia, que ela alimentou com poses extravagantes e comentários provocadores, reduziu-a por vezes a caricaturas de si própria, impedindo a percepção da sua autenticidade.

Carlos Eurico da Costa, o poeta, será o único a perceber o irremediável. Uma semana antes do desaparecimento de Natália, no Botequim, sussurra-nos, aterrado, depois de lhe observar as linhas da mão: «Ela vai morrer em breve)

 

A sua era uma luz que nem todos conseguiam suportar, até porque não permitia filtros aos que a fitavam. O tempo foi, entretanto, mudando, mudando-a, isolando-a. A força da palavra, a sua arma, enfraqueceu. A cultura e o espírito, a imaginação e a utopia, depreciaram-se. Tentou resistir: «Não, não me mato / Antes me zango até ficar um cacto. / Quem me tocar, maldito / Que se pique.»

A vitória do liberalismo selvagem, da tecnocracia desumanizante, da globalização colonialista, amputou-a. «Pela primeira vez na sua vida tenho medo», confidencia-me.

«As forças do mal estão a ganhar terreno, a perverter a democracia, a solidariedade. Vamos regredir.»

Vivia pobre sem saber que era rica, que as suas colecções de arte, de manuscritos (tinha um de Voltaire), de originais, de pintura, valiam centenas de milhares de contos.

A miséria passou a assustá-la, sobretudo a partir do momento em que o PS não quis recandidatá-la ao Parlamento.

Natália perde rapidamente saúde e, espaço, influência, energia, esperança. A década de noventa cerca-a!

«Os dias que aí são mesquinhos e feios, não me apetece ter de os vive exclama-me.

«A partir de agora, se alguém me quiser encontrar, procure-me», escreve, «entre o riso e a paixão. Adeus, espero­vos no Templo.»

Ao raiar madrugada de 16 de Março de 1993, deixa-nos.

 

«O Fernando é que podia escrever um livro sobre o Botequim», diz-me (inesperadamente) Natália.

A noite vai pastosa, com pouco movimento. Carlinhos aproveita ocasiões assim para tocar trechos clássicos, Préludes de Debussy, Opus de Chopin, que interpreta maravilhosamente.

«Mas o título não podia ser O Botequim de Natália, ou algo de parecido, pois ele nunca foi meu», prossegue, «foi do meu marido.»

Sorri: «Podia talvez ser O Botequim da Felicidade».

«Mas a felicidade existe?», pergunto.

«Se acreditarmos que sim, existe, por isso não se deve destruir a crença das pessoas, como está a suceder em Portugal. Vai ser devastador porque não sabemos viver sem ela, o ultraliberalismo que aí vem será tão medonho para nós como foi a Inquisição.»

Tento esquivar-me: «O nosso amigo António Telmo diz que só Deus pode pronunciar-se sobre Deus ... só a Natália pode abordar a Natália!»

«Por isso, falei-lhe no Botequim, não em mim», subtiliza.

Finjo ignorar o artifício: «Nunca pensei num livro assim .. )

«Então quer pensar?»

«Não com esse título.»

«Talvez, então, O Botequim da Liberdade?

«Está mais de acordo ... »

«Óptimo, promete?»

Não respondo. De súbito, percebo que apenas conseguiria descrever as minhas próprias memórias do Botequim e de Natália. Não outras, não de outros. Curiosamente, quase todos o seus amigos afirmam, convictos, terem sido eles os únicos «a conhecer a verdadeira Natália, mais ninguém!»

Ela dir-me-á uma frase intrigante: «Para que se justifique a nossa vida é preciso que alguém a invente em nós.»

Duas semanas depois morria. Recebo, então, um estranho telefonema de Fernanda de Castro, a pedir que vá a sua casa, pois tinha uma mensagem para mim. Vou.

Companheira de Natália de tertúlias, de artes, de recitais, de viagens, de espiritualidades, fala-me de um jacto:

«A nossa amiga apareceu aqui há dois dias. Estava muito bonita, vestida de negro. Conversámos durante cerca de vinte minutos. Mostrou-se comovidíssima com as provas de apreço que lhe têm prestado. Pediu-me para contactar os mais íntimos e dizer-lhes que não sofram, pois encontra-se muito bem, infinitamente melhor do que quando estava entre nós.

Do lado de lá tudo se passa como ambas imaginávamos, a vida lá é muito melhor do que esta ... é uma felicidade morrer!

Assim que eu terminar uns trabalhos que tenho entre mãos vou partir também. Ah, já me esquecia, ela pediu-me que lhe lembra e a promessa de um livro sobre um bar, não percebi.»

Natália Correia imergiu, a partir daí, numa espécie de limbo. Limbo é (apesar da Igreja o ter recentemente eliminado) o local onde, dizem, repousam as almas dos grandes inocentes e as dos grandes perversos - que ele lera em excesso.

Passadas duas décadas, eis, com grande vulnerabilidade minha (quase todos os seus intervenientes morriam já), O Botequim da Liberdade - ainda terá espaço?

Volto ao bar. Nas suas cadeiras e mesas, já não há porém, sombras de amigos meus - nem de Natália.

 

 

                                                                  Fernando Dacosta

 

 

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