Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CALIFA DO DESERTO / Violet Winspear
O CALIFA DO DESERTO / Violet Winspear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CALIFA DO DESERTO

 

Um pálido raio de sol outonal incidiu sobre os cabelos loiros da jovem que folheava uma revista, sentada na cadeira de vime da varanda.

De repente, seu olhar distraído concentrou-se num dos parágrafos da seção que publicava pequenos anúncios, tais como, venda de casacos de peles de segunda-mão, perucas de cabelos verdadeiros e objetos de decoração e uso doméstico.

"Precisa-se de jovem, nascida na Inglaterra, para exercer o cargo de dama de companhia, na residência de senhor de posses, vivendo no exterior."

Carla ficou atônita. Aquilo parecia um anúncio da época da rainha Vitória, quando os ricos fazendeiros das colônias inglesas solicitavam moças para fazerem companhia às suas esposas e filhas.

Agora, na era dos jatos supersônicos, as jovens trabalhavam em mil e uma atividades, inclusive naquelas exercidas antigamente apenas pelos homens. Mas não na ocupação mencionada no anúncio: aquilo não estava mais em moda. Podia parecer uma piada, não fosse o fato de aquela revista ser tradicionalmente séria, não se prestando a brincadeiras do gênero.

Solicitavam uma jovem para ir viver no exterior, mas não diziam onde. As interessadas deveriam escrever para um determinado número de caixa postal, aos cuidados dos editores da revista, em Bride Lane, Londres.

Os olhos verdes de Carla Innocence tornaram-se meditativos. O que mais seduzia naquela oferta de emprego era a menção de que a pessoa interessada tinha posses. Mas só alguma garota na miséria, desesperada, que não se importasse com os riscos que correria indo morar numa casa estranha, fora do país, é que cairia naquela armadilha.

O sol já estava se pondo no horizonte quando uma mulher de uniforme branco e azul apareceu à porta da varanda.

— É hora de se recolher, Carla — falou com a solicitude própria das enfermeiras bem treinadas para trabalharem numa clínica particular de luxo como aquela. — Não queremos que depois de tudo que já penou ainda por cima apanhe um resfriado.

Pela entonação, até parecia que estava falando com uma criança, e não com uma adulta de vinte e quatro anos, que tinha acabado de passar por uma crise emocional e física arrasadora.

A vida havia sido muito boa para com Carla, mas agora precisava abrir os olhos para a dura realidade: estava desempregada e numa situação financeira periclitante. Depois que pagasse a conta da internação e dos serviços médicos, iria ficar sem dinheiro algum. Para sobreviver, precisaria começar a vender as coisas caras e bonitas que havia comprado para seu apartamento, até surgir uma nova oportunidade de trabalho.

Carla levantou-se da cadeira e seguiu a enfermeira. As flores da mesinha-de-cabeceira estavam começando a murchar, e o entardecer dava um aspecto melancólico ao seu quarto, onde, durante as últimas semanas, ela padecera horrores.

— O que pretende fazer quando nos deixar?   — perguntou a enfermeira.

— Oh... Estou pensando em ir trabalhar no estrangeiro.

A enfermeira se espantou e Carla retribuiu o olhar com um leve sorriso irônico. Todos, no hospital, já sabiam que ela estava acabada como manequim profissional, e que tinha terminado o noivado com Peter Jameson. Aquela mesma enfermeira a surpreendera aos prantos, depois de ouvir o veredicto do cirurgião que a operara. Também havia sido ela quem apanhara o anel de noivado do chão, depois de seu acesso de cólera contra o noivo.

"Um anel de jade e pérolas, para combinar com a cor de seus olhos e de sua pele", dissera Peter, tempos atrás, ao pedi-la em casamento e jurar amor eterno.

O mais patético é que Carla tinha sofrido o acidente — uma queda violenta do cavalo — justamente na casa de campo de Peter. O cavalo a atirara de encontro ao tronco de uma árvore e ela recebera ferimentos graves. Após várias intervenções cirúrgicas, havia conseguido sair com vida, mas ficara com um defeito no pé, que não mais lhe permitiria desfilar pelas passarelas. Uma modelo profissional manca? Seria um despropósito.

— Não fique tão admirada — disse Carla. — Ser manequim, ou esposa de Peter Jameson não são as únicas ocupações deste mundo! Existem outros campos e neles eu vou plantar as minhas sementes.

— Oh, Senhor! — A enfermeira pressionou os lábios com a mão. — Só espero que não vá estragar a sua vida, fazendo alguma loucura. Mas você está brincando comigo, não está?

— Nunca falei tão sério. Durante seis anos andei desfilando e posando por aí. Consegui ganhar um bom dinheiro, que já gastei. Trabalhei duro, mas também me diverti. Agora a festa acabou e estou na pior. Portanto, preciso me mexer para viver, e vou agarrar com unhas e dentes qualquer oportunidade que surja para me afastar da Inglaterra. Ossos quebrados podem ser recuperados, mas um coração despedaçado é bem mais difícil de consertar. Quando se tem uma profissão como a rainha, ou de cantora ou atriz, a pessoa é avaliada de acordo com o seu último desempenho. Eu não me importaria de ter rompido o tendão do tornozelo e de ficar manca se... — Carla se calou na metade da frase e seus lábios começaram a tremer.

Se... Se ela, ao menos tivesse sido amada! Mas Peter Jameson havia saído de sua vida e, na verdade, ela não o queria de volta. Não queria um homem que não tivera um mínimo de compaixão com ela no momento em que mais precisava de apoio e solidariedade. A única coisa que ele realmente amara fora seu corpo esguio, seu porte elegante, seu andar gracioso. Depois do que tinha acontecido, ele a jogara fora, como se fosse uma boneca quebrada.

Os olhos verdes tiveram um lampejo de rancor, o que não alterou a beleza daquele rosto de maçãs pronunciadas, dando-lhe a aparência que os fotógrafos de propaganda tanto buscavam: o ar sensual e misterioso de Greta Garbo, a pureza e a inocência de uma gazela.

Que Peter e toda a sua raça fossem para o inferno! Um amor que não resistira, nem por um segundo, ao primeiro percalço, era para tornar qualquer criatura descrente. Nunca mais deixaria que as emoções fizessem parte de qualquer relacionamento seu com outro homem.

Tornou a pensar no anúncio.

Um senhor bem de vida estava precisando de uma dama de companhia, a milhares de quilômetros de distância do lugar onde seu futuro tinha desmoronado. Não queria ficar ali, em Londres, como espectadora, vendo outra moça ocupar seu lugar na passarela e em frente às câmeras fotográficas. Não era inveja, não. Era pura mágoa de ver seu mundo ruir por causa de uma maldita queda de cavalo.

Dali por diante, sua situação financeira e seu estado físico só lhe permitiriam ir morar em alguma pensão de subúrbio. Teria que voltar para o martírio de uma máquina de costura, cosendo roupas alheias, até que seus olhos ardessem e seus ombros se dobrassem pelo cansaço. Então, sentiu-se como quando tinha dezoito anos e largara aquela vida pobre e de sacrifícios, para aventurar-se no mundo da moda. Era um desafio, e seu sangue de londrina da classe baixa, uma cockney, voltou a ferver.

Em que parte do mundo viveria esse cavalheiro desconhecido responsável pelo anúncio? Estaria ele precisando de alguém que fizesse companhia a uma esposa inválida, de alguém que lesse para ela e a entretivesse, comentando os últimos acontecimentos do país de origem? Sim, porque deveria ser algum inglês morando no exterior. Tudo bem. Carla teria muito assunto para conversar, e essas pessoas não fariam questão de que ela não pudesse mais andar com a pose e o desembaraço de uma manequim.

Tornou a pensar no ex-noivo, que, depois de convidá-la para um fim de semana em sua casa de campo, lhe dera para montar um animal tão traiçoeiro quanto ele próprio. Que se danasse! Tinha ficado com tanto ódio dele que acabara rasgando sua fotografia em pedacinhos. Que fim mais deprimente para um romance! Nunca mais haveria de se apaixonar!

— Jamais me passou pela cabeça que estivesse pensando em ir trabalhar no exterior — disse a enfermeira. — Nesses últimos dias, me pareceu que você estava aflita com o seu futuro, mas não que tivesse um projeto como esse. O tal trabalho tem alguma coisa a ver com moda?

— Tem muito pouco a ver. Mas, se eu conseguir esse emprego, tenho certeza de que me sairei a contento. Nada mais me prende à Inglaterra e não acho que este meu pé defeituoso possa me deter.

— Espero que não. Estou mais tranqüila em saber que o rompimento do seu noivado com Peter Jameson não lhe tirou o ânimo.

Carla deu uma risada sarcástica.

— Pelo menos ele me serviu de lição. No futuro, não pretendo mais ser uma tola romântica.

— Amor e casamento não estão mais em seus planos?

Até aquela enfermeira eficiente e forte era sujeita a sonhos românticos, e o fato de uma moça tão linda fechar seu coração para o amor a entristecia.

— Risquei a palavra casamento do meu dicionário — respondeu Carla, enfática. — Os homens não estão interessados no que existe dentro do corpo da mulher. E quando esse corpo não é mais perfeito, então, pobrezinha dela! Ah, mas agora já estou calejada. Se me julgarem novamente um brinquedinho sem alma e quiserem tirar vantagem de mim, eu vou mostrar a língua afiada que tenho!

Carla se reclinou no travesseiro e passou o braço por cima da cabeça. O olhar tinha um brilho que mostrava a vontade de esganar o primeiro homem que aparecesse diante dela com aquela conversa fiada que Peter havia usado. Era bonita demais para ficar sozinha e precisava de alguém para tomar conta dela. Pois sim!

— Não quero voltar a ser uma costureirinha do East End. Não suportaria mais aquele tipo de vida, depois de ter sido uma modelo. Sim, enfermeira, eu era isso no passado: uma costureirinha! Foi minha avó quem me pôs diante de uma máquina de costura, aos dezesseis anos. Penei por dois anos, mas já naquela época eu tinha ambição e ideais. Sabia que outras moças cockneys haviam tido êxito como manequins. Tive sorte e vim a conhecer um fotógrafo profissional que achou que eu tinha os predicados para me tornar uma delas. Por dois anos fiz sucesso. E foi num dos coquetéis oferecidos por um ateliê de alta costura que acabei conhecendo o covarde Peter. Sabe que ele chegou a jurar que me adorava? E a trouxa aqui acreditou. Eu me sentia a própria Cinderela. Mas o sapatinho de cristal não cabe mais no meu pé aleijado, e o príncipe encantado se foi!

Carla ficou em silêncio por um momento, vendo, pela janela aberta, a escuridão caindo lá fora, e sentindo um calafrio de medo diante do futuro obscuro. A querida e rabugenta avó já estava morta. Ninguém mais se preocupava com ela, e os únicos parentes que tinha moravam na Escócia. Carla nem os conhecia. Eram primos distantes por parte de pai, que morrera bem antes de a mãe apanhar aquela pneumonia fatal.

— Então, quer dizer que me tomou por alguma grã-fina de sociedade? — perguntou para a enfermeira.

— Sim. Quero dizer, pelo jeito como fala e se comporta, você parece mesmo uma lady. Carla Innocence... Esse é o seu verdadeiro nome? Desculpe perguntar, mas é um nome um pouco raro.

— Sim. É meu nome verdadeiro. O fotógrafo que me ajudou a escalar os degraus da fama me aconselhou a conservá-lo. Ele foi um amigão, assim como Jane, sua mulher. Ensinaram-me a falar corretamente e a ter boas maneiras. Jane foi atriz das produções teatrais de Stratford-on-Avon e tinha uma dicção perfeita. Sempre serei grata a ambos.

— E eles não poderiam ajudá-la neste momento difícil? Parecem ser gente boa. Por que não os procura antes de fazer alguma coisa de que possa se arrepender mais tarde?

— Assim como ir para outro país e tentar ganhar o meu sustento? — Carla sacudiu com os ombros, num jeito displicente. — Jane e Harry têm problemas demais com o próprio filho, e não quero ser mais um transtorno para eles. De qualquer maneira, com esse meu defeito no pé, Harry não poderia fazer mais nada pela minha carreira.

— Mas você tem lindos cabelos. Por que não posa para anúncios de xampu?

— Não. No meu caso, o que valia era a maneira como eu me movimentava. Meu modo de andar é que vendia os produtos. Agora que manco, tenho que enfrentar as conseqüências. Ou volto para a máquina de costura, ou trabalho para alguém que não se importe que eu não seja uma perfeição física.

— Não fale assim, Carla! — A mulher parecia sinceramente penalizada. — Você é uma moça com tanta classe, tão linda e adorável... Todos nós admiramos a coragem com que enfrentou essa situação toda.

— Ora! Não sou assim tão maravilhosa, enfermeira. Sou até muito fraca e humana, e confesso que fiquei arrasada com tudo o que aconteceu.

— É compreensível. Mas tudo tem solução, desde que a pessoa deixe o barco correr e conserve a fé.

— Gostaria de acreditar nisso — disse Carla, com uma expressão cínica no rosto. — Sempre achei que, se alguém quer alguma coisa, precisa perseguir o seu ideal. No momento, tudo o que eu quero é fugir.

— E acha que esse trabalho no exterior vai ao encontro dos seus desejos?

— Espero que sim.

— De que nacionalidade é esse seu empregador?

— Não sei.

— Carla! Pense muito antes de tomar qualquer atitude. Muitas coisas estranhas acontecem nesses países desconhecidos. Seria bem melhor ficar na Inglaterra e arrumar um emprego por aqui mesmo. Com esse rostinho lindo, não vai ter dificuldade. Num escritório do centro, por exemplo.

— Para isso é necessário preparo e certa experiência. E para trabalhar como balconista é preciso ficar o dia todo de pé, atendendo a clientela. Do jeito que estou não vou poder fazer isso.

— E em matéria de dinheiro, você está mesmo a zero? — A enfermeira olhou para os caros objetos de toalete que estavam enfileirados na penteadeira e para o sofisticado relógio da mesinha-de-cabeceira. — Certamente deve ter algumas economias. Ouvi dizer que as modelos profissionais ganham bem mais do que enfermeiras.

— Como já lhe disse, ganhei muito dinheiro, mas gastei, investindo em mim mesma. Agora, se eu quiser comer, preciso sentar-me à mesa de algum ricaço, e isso, se tiver a sorte de ser escolhida para esse emprego. Puxa, enfermeira! Não me olhe desse jeito! Já lhe contei que não sou uma dessas filhinhas de papai que vivem de papo para o ar. Ou, quando têm alguma ocupação, trabalham em pequenas e elegantes butiques, só para fazer hora, até que apareça outro filhinho de papai rico que as sustente. — Carla ergueu o queixo, num desafio. — Não lenho outra opção, senão usar os recursos que Deus me deu para poder viver. Não pretendo terminar os meus dias como minha pobre mãe, uma operária que se acabou no trabalho. De tanta chuva e sereno que apanhou ao voltar para casa tarde da noite, contraiu uma pneumonia dupla. Farei qualquer coisa, menos seguir o exemplo dela. Qualquer coisa!

Ou olhos verdes tinham agora um brilho de audácia.

Antigamente, as mulheres não iam trabalhar para pessoas e em lugares que nunca tinham visto antes? Realmente, era um risco enorme, mas ela não se deixaria intimidar pelas advertências alheias. De agora em diante, guardaria segredo de seus planos e não diria a ninguém que pretendia responder àquele anúncio. Era problema dela, e não de outros.

— Tome cuidado — voltou a aconselhar a enfermeira. — Você acabou de passar por uma experiência traumatizante e está deprimida.

— A senhora é uma mulher bondosa — retrucou Carla. — Mas eu não sou mais uma adolescente deslumbrada. Pode deixar, que saberei me cuidar. Não me deseja boa sorte?

A enfermeira ficou olhando, pensativa.

— O que a preocupa agora? — perguntou Carla, com um sorrisinho travesso.

— Estava pensando que, afinal, o seu sobrenome, Innocence, combina com você.

— Sou uma pobre inocente, é isso?

— Talvez ache graça, mas acho que é verdade.

— Lembre-se de que fui manequim, e não uma freira enclausurada.

— Isso não quer dizer nada. Não altera o fato de que ainda é ingênua e infantil. Você... Bem... Não andou se expondo por aí, não é mesmo? — A enfermeira mordeu o lábio, antes de acrescentar: — Quero dizer, nós, enfermeiras, sabemos dessas coisas... Sabemos com quem estamos lidando quando tratamos de uma paciente na intimidade...

— Está querendo dizer que eu ainda sou virgem?

— Pois é...

— E é tão surpreendente assim?

— Bem... É que a vida de uma manequim deve ser muito agitada, e, com a sua aparência, deve ter sido muito assediada pelos homens.

— Por incrível que pareça, a maioria dos homens me considera intocável. Só estive na mira das objetivas das máquinas fotográficas. Todo o meu charme era usado nas capas de revistas ou nos vídeos de televisão. Beleza não é documento. Talvez eu até tenha um coração de pedra, pois cheguei a odiar todos aqueles pseudo-admiradores, inclusive Peter, que deram o fora quando souberam do veredicto do médico: aleijada! Até parecia que ele tinha dito que eu estava leprosa! — Carla olhou intencionalmente para o dedo anular. — E pensar que usei o anel que ele me deu, crente de que iria ser sua esposa. Talvez eu amasse apenas a sua linda e confortável casa de campo. O amor, quando é verdadeiro, é também eterno. Não se fala assim?

— Quando se trata do homem certo.

— Não me diga! — Carla sorriu apenas com os lábios, pois seus olhos pareciam duas pedras de gelo. — Nunca pensei que enfermeiras pudessem ser sentimentais. Elas estão sempre em contato com o lado pior do ser humano. Testemunhar gritos, gemidos e dores deveria lhes afetar a sensibilidade.

— Agora você está sendo cínica — interveio a enfermeira. — Seja como for, está quase na hora do seu jantar e vou deixá-la à vontade para tomar banho. Use aquela camisola cor-de-rosa. Fica tão bem em você.

— E depois de ficar toda lindona, vou fazer a minha refeição solitária nesta clínica que mal posso pagar? É verdade! É o que me resta fazer, a não ser que alguma alma piedosa se lembre de que eu existo e venha bater um papo comigo.

— É por sua culpa que as pessoas deixam de visitá-la. Você costuma bater com o telefone na cara quando tentam uma aproximação...

— É que são todos uns falsos, e, no fundo, detestam entrar num quarto de hospital. Se o fazem, é por obrigação, e não por simpatia, que eu não posso mais dançar no ritmo acelerado da música deles. Aos olhos dessa gente, não passo de uma inválida, e, de tanto ser encarada dessa forma, começo a acreditar que sou mesmo.

— Se é assim que se sente, então é melhor se isolar — ponderou a enfermeira. — Saboreie o seu jantar e depois se distraia com um dos seus livros de Agatha Christie. Você gosta tanto dela!

— É porque me apaixonei pelo personagem central, o detetive Hércules. É um nome estrangeiro muito charmoso. Será que o meu empregador tem um nome tão sonoro assim? Ficou chocada, enfermeira? Vá cuidar dos seus pacientes mais dóceis e esqueça que eu existo.

— Como se eu pudesse esquecer!

A enfermeira sorriu com desencanto. Uma moça tão boa, mas tão machucada e solitária, sem um parente, sem um amigo leal, com uma carreira de sucesso cortada e um futuro incerto pela frente. Só esperava que ela não tornasse a cair nas mãos de algum homem tão cruel e egoísta como aquele noivo, que a tinha deixado depois do acidente.

Carla se preparou para mais uma noitada de reclusão. Lavou o rosto pálido, escovou os dentes perfeitos como pérolas, penteou os cabelos e passou uma leve camada de batom nos lábios ainda descorados pelo recente sofrimento.

Ao se mirar no espelho, os olhos de esmeralda tinham um lampejo de medo. Andou um pouco pelo quarto com seu passo incerto, pensando em quanto a vida era injusta. Então concluiu: talvez não fosse injustiça, mas apenas o destino.

Rememorou aquela fatídica sexta-feira em que Peter lhe telefonara:

— Alô, garota! Alguns amigos meus vêm passar o fim de semana comigo e eu gostaria que eles a conhecessem. O pessoal adora cavalgar de manhã cedo, para abrir o apetite. Traga as botas e umas malhas de cashmere. Ainda bem que você tem uma boa figura para amazona. Sua figura...

Seu porte altivo e elegante na sela de um cavalo. Esses eram os requisitos, importantes para Peter Jameson. Ele tinha até passado por cima de sua origem humilde, cm consideração à sua beleza. Mas agora que estava aleijada, não havia mais nada para considerar.

Estava ciente de que não passava de uma cockney, nascida num bairro pobre de Londres. Mas havia experimentado o gosto pelas coisas da vida, pelo luxo, e não se conformava em voltar para a obscuridade.

Tinha chorado muito quando ainda estava fraca e abalada pelas múltiplas operações cirúrgicas. Por fim, suas lágrimas haviam se cristalizado e ela voltava a usar o espírito de luta dos humildes para enfrentar o futuro.

Depois do jantar e de uma breve visita de uma das freiras do hospital, foi reler o intrigante anúncio da revista.

Finalmente, armou-se de firme determinação, pegou papel e caneta e escreveu uma carta se candidatando ao cargo, juntou uma foto recente de quando posara para um anúncio. No retrato, usava um lindo vestido de seda, uma estola de peles passada pelos ombros, e os cabelos presos por uma tiara. Ao pescoço, exibia um estonteante colar de pérolas negras que pertenciam à coleção de jóias de uma duquesa. As pérolas do príncipe Negro. Diziam os boatos que aquelas contas haviam sido roubadas de uma dama sarracena, no tempo das Cruzadas, por um dos cavaleiros do rei Ricardo Coração de Leão.

Carla olhou para a foto como se fosse o retrato de uma estranha. Aquela moça tão glamourosa e bem vestida seria até uma concorrência desleal às velhas solteironas que se candidatavam ao emprego do anúncio. Contraditoriamente, sentiu medo de que a chamassem.

Após colar o selo, deixou o envelope fechado sobre a mesinha-de-cabeceira, num ato displicente, e se recostou na cama.

Teve um sono breve e agitado e acordou no silêncio e na obscuridade do quarto, remoendo mais uma vez os seus sofrimentos.

Lembrou-se da queda e das dores que sentira ao ser jogada para fora da sela de Grey Lady. Repassou a maneira brutal como Peter Jameson tinha encerrado o romance, anunciando que iria partir para um safári e que, dali por diante, seriam apenas bons amigos.

— Fique com o anel, garota — dissera ele. — Vale uma pequena fortuna e poderá ajudar a pagar as despesas do hospital.

— Não quero este maldito anel — ela rebatera, reassumindo o sotaque e os modos de uma cockney. — Muito obrigada, mas as contas são problema meu. Como vai aquela égua temperamental? Ainda não quebrou o pescoço de alguém ou o dela própria?

— Grey Lady tem o temperamento de um cavalo puro-sangue e só aceita cavaleiros com a experiência dos que nasceram numa sela.

— Pois eu nasci numa cama com colchão de palha — dissera ela, muito exaltada. — E já que, apesar disso, sou eu quem vai pagar a tal conta, saia deste meu apartamento caríssimo e leve este anel de araque!

— Araque? Olhe quem fala! Uma pobre suburbana, metida a grande dama!

Aquilo fora mesmo demais. Fazendo jus à acusação, ela acabara perdendo as estribeiras e atirando, furiosa, o anel na cara dele.

— Saia! Desapareça da minha frente!

Quando a enfermeira entrou no quarto, encontrou-a aos prantos. Carla exigiu que o anel fosso colocado numa caixinha e entregue, em mãos no apartamento do ex-noivo. O dinheiro que ela poderia levantar com a venda do anel iria lhe fazer falta, mas o orgulho falou mais alto.

Graças àquele orgulho, Carla se mantivera sempre integra, ao contrário de muitas colegas suas. Talvez por isso Peter a pedira em casamento. Era a única forma de possuí-la. Nesse ponto, ela seguira ao pé da letra os conselhos da avó.

— Cuidado, minha menina. O dia em que os homens perderem o respeito por você, estará perdida. Evite cair na conversa desses conquistadores que só querem se divertir.

Mais o desejo parecia que tornava os homens mentirosos. Eles diziam coisas que realmente não sentiam, como havia acontecido com Peter.

— Cortaria um braço por você — dissera ele certa vez, e ela, tonta, tinha acreditado.

Se algum outro homem viesse com essa conversa de novo! Iria ouvir poucas e boas!

O amor era uma cruel armadilha, uma ilusão passageira. Ainda bem que ela descobrira isso a tempo. Nunca mais iria ser ferida... Nunca mais passaria por idiota.

Tornou a adormecer, exausta de tanto pensar e, quando acordou novamente para tomar o chá da noite, notou que o envelope selado tinha sumido do criado mudo.

Seu coração disparou pelo susto. Na verdade, achava que no dia seguinte iria raciocinar melhor e destruiria aquela carta, pensando numa solução mais ajuizada para o seu problema.

Mas alguém devia ter entrado no quarto enquanto dormia e, vendo o envelope selado, havia tomado a iniciativa de colocá-lo na caixa do correio.

E se o anunciante fosse algum sádico, um maníaco sexual que usava daquele recurso para atrair mulheres desprevenidas? E se, na melhor das hipóteses, fosse um homem sozinho, e não tivesse nem esposa, nem filhos?

Carla tomou seu chá, tentando esquecer a carta. Nos dias que se seguiram, pouco pensou no assunto, até que o cirurgião que a havia operado veio lhe fazer uma visita.

— Você tem demonstrado muita bravura — disse ele. — Posso garantir-lhe que esse pequeno inconveniente não vai afetar sua vida como mulher. Portanto, não se deixe abater quando tiver que enfrentar o mundo lá fora novamente.

Carla poderia ter respondido que aquele "pequeno inconveniente" afetava, e muito, a sua vida profissional. Mas preferiu não esticar o assunto com lamúrias.

— Vou tentar. E obrigada por tudo o que fez por mim, doutor.

— Foi uma satisfação tratar de uma moça como você e procurar minimizar as conseqüências do acidente. Tem algum plano para o futuro?

— Alguns — disse ela vagamente. — Um deles, com toda a certeza, é manter distância de cavalos.

— Ah, mas você não deve ter medo daquilo que a magoou. Ao contrário, deve impor-se um desafio. Só assim perderá esse complexo. Equitação é um esporte saudável, e posso até imaginar como você deve ficar elegante numa sela. Já lhe dei alta. Pretende deixar a clínica amanhã cedo, não é?

Ela confirmou, sentindo um aperto dentro do peito. A vida, lá fora, não seria mais aquela sucessão de desfiles de moda, filmagens de comerciais de tevê, festas e coquetéis, danças nos clubes noturnos e nos iates de luxo ancorados às margens do Tamisa. Uma mudança radical de vida a esperava fora daquelas paredes. E Carla, claro, tinha medo.

— Eu lhe desejo boa sorte — disse o médico. — Naturalmente, antes, de mais nada, seria bom tirar umas férias para ajudar na recuperação.

— Vou ver o que posso fazer — respondeu ela, sabendo de antemão que não estava em condições financeiras para o luxo de umas férias.

Na verdade, a primeira providência a tomar seria se desfazer do apartamento onde morava, num prédio de bom nível, com vista para St. James Park, pois não poderia mais pagar um aluguei tão caro.

— Faça mesmo o possível para tirar essas férias — insistiu o cirurgião. — Bem, vou me despedindo por aqui, pois amanhã cedo estarei operando. Volte ao meu consultório dentro de umas seis semanas, para que eu dê uma olhada nesse seu tornozelo. Como se sente ao andar? Ainda dói muito?

— Um pouco, mas não tem nem comparação com o que doía antes. A junta é que ficou dura. Dá para qualquer um perceber.

— Bobagem! Mal dá para notar. Pior seria se tivesse quebrado a espinha e precisasse passar o resto da vida numa cadeira de rodas.

— Isso lá é verdade — comentou ela, pouco consolada.

— Então, continue a ser corajosa como tem sido até agora. Esqueça seu tornozelo e faça muito exercício ao ar livre.

Já na porta, o médico deu-lhe um último sorriso encorajador. Ele nunca poderia entender o que ela sentia. Era um homem com a vida definida, um homem triunfante, que nenhum tornozelo defeituoso poderia destronar do lugar que havia conquistado.

 

Carla passou o restante do dia ocupada em arrumar seus pertences. À noite, tomou dois comprimidos para dormir. Precisava um sono repousante para enfrentar o dia seguinte, que começou com a visita de uma das secretárias da clínica, trazendo os comprovantes das despesas hospitalares. Preencheu um cheque, ciente de que conta bancária tinha ficado com um saldo mínimo.

— Espero que tenha apreciado ficar conosco esses dias todos, srta. Innocence — disse a secretária, como se a clínica fosse um hotel de luxo. — Está contente em voltar para casa?

— Oh... Sim, estou.

Carla ergueu a cabeça e procurou controlar o tremor das pernas. Não estava mais usando os elegantes sapatos de salto alto, mas um modelo sem salto, de ilhoses com cordões amarrados, que uma das enfermeiras havia comprado para ela. Era como se tivesse perdido os sapatinhos de cristal de Cinderela para sempre.

Distribuiu cumprimentos e gorjetas para toda a equipe que a tinha atendido e, quando foi apanhar o táxi, seus olhos verdes pareciam duas folhas orvalhadas de lágrimas.

Deu o endereço do apartamento ao motorista, sabendo que ninguém estaria lá, à sua espera, para lhe dar as boas-vindas.

Quando girou a chave de casa na fechadura, a primeira coisa que viu foi um envelope que havia sido introduzido por baixo da porta. Pelo endereço do remetente, soube que a carta vinha de Bride Lane, onde a revista tinha a sua sede.

Certamente, era a resposta à sua louca carta, candidatando-se àquele emprego mirabolante.

De início, sua intenção foi a de não abrir. Mas, num segundo impulso, rasgou o envelope e encontrou um bilhete sucinto, muito bem datilografado num papel de carta de certo hotel famoso de Piccadilly.

Pediam seu comparecimento ao referido hotel, precisamente às dez horas da manhã da próxima terça-feira, recomendando pontualidade.

Assinava o bilhete um tal de Sidi Kezam Zabayr. Nome estranho! Que fosse pontual! Já estavam dando ordens. Até parecia que já estava empregada.

 

Tudo foi muito formal e solene.

Encontraram-se no luxuoso saguão do Hotel Fitzroy e aquele árabe distinto, vestido com um impecável terno cinza-chumbo, foi logo encomendando ao garçom um café para dois e salgadinhos sortidos.

Ao sentar-se defronte a Carla, num recanto mais discreto, ele a fitou por alguns segundos, com olhos sagazes.

— Sim... Você é muito igual à fotografia — disse, por fim. — Deve ser uma moça de muito boa família. Possui belos e nobres traços faciais e, pelas mãos, nota-se que nunca precisou trabalhar.

— Mas eu... — começou a dizer Carla, mas as palavras de esclarecimento morreram na garganta.

E, por que não? Se ele a tomava por uma dessas grã-finas, que mal poderia haver se ela fingisse que era? Afinal, aquilo não passava de uma brincadeira, pois não tinha a mínima intenção de levar seus propósitos adiante e, na primeira oportunidade, faria uma retirada estratégica. Viera apenas para satisfazer uma curiosidade e nada mais. O garçom voltou para servir o café e os salgadinhos, muito atencioso e polido.

— Aceita um salgadinho? — perguntou o anfitrião, depois que o garçom encheu as xícaras de porcelana branca, filetadas a ouro, com um aromático café. — Ou você é como a maioria das européias, que vive fazendo regime para manter a linha?

— Nunca precisei fazer regime — respondeu Carla, com sinceridade.   — Queimo muitas energias e consigo me conservar magra naturalmente. Sou uma privilegiada mane... — interrompeu a frase e, para disfarçar, espetou com o garfo um apetitoso doce de pêssego.

Era terrível e embaraçoso, mas não conseguia capacitar-se de que não era mais uma manequim famosa. Agora, não passava de um bichinho inútil, de pata quebrada. E logo que os olhos de Sidi Rezam Zabayr notassem o defeito, ela seria dispensada e sairia do Fitzroy mancando, diretamente para o ponto de ônibus, pois não podia desperdiçar dinheiro em táxis.

— As mulheres de meu país são loucas por doces. — Ele tomou um gole de café, olhando-a por cima da borda da xícara. — Aliás, era costume no harém engordarem as recém-chegadas. Já esteve no Marrocos?

— Marrocos? Oh, nunca! Deve ser um lugar fascinante.

— É um país extenso, mas em algumas regiões ainda mantém hábitos feudais, como nos velhos tempos dos piratas bárbaros — explicou ele, de um jeito que Carla considerou acintoso, como se, de alguma forma, estivesse querendo testá-la. — Você é uma moça moderna e atualizada, se é que se pode julgar alguém apenas pela maneira de se vestir e pentear. A cor dos seus cabelos é natural ou usa alguma tintura?

— Oh, não! — Carla não gostou da pergunta. — Meus cabelos são mais do que naturais!

— Ótimo! Só espero que nada seu seja artificial. Hoje em dia, com os recursos da estética moderna, é difícil avaliar a anatomia feminina. Você parece ter um corpo bem proporcionado. Talvez um pouco esguia demais.

— Detestaria ser gorda — ela revidou.

— Pelo brilho desses seus olhos verdes, nota-se que realmente você odiaria pesar um só grama a mais. Parece que, entre os europeus, a magreza é sinal de formosura.

— Pelo menos os homens preferem as mulheres magras às obesas.

— O fato é que o homem que eu estou representando na contratação de uma dama de companhia não é europeu. Já deve ter chegado a essa conclusão por conta própria, não é mesmo?

— Eu... Eu não tinha muita certeza, Ele é um marroquino?

— É um bérbere, tal como eu.

De repente, aquele homem de voz profunda, que dominava perfeitamente a língua inglesa e se vestia à moda européia, lhe pareceu um ser de outro planeta.

— Nós, que temos sangue bérbere, nos consideramos uma tribo à parte das raças diferentes que povoam cidades como Rabat, Casablanca, Fez, Meknes e outros centros urbanos. Possuímos nossa própria cultura e nossa história, e o fato de vivermos apartados no deserto fez com que não sejamos influenciados por outras culturas e costumes. Compreende?

— Bérbere — ela repetiu meditativa. — Não seria um sinônimo de bárbaro?

Os olhos escuros e penetrantes como os de uma águia brilharam perigosamente, e Carla teve a nítida impressão de que não estava mais no hall de um hotel central de Londres, mas a quilômetros de distância, sob o calor tórrido de um céu sem nuvens.

— Exato — ele sussurrou, entre dentes. — Quer dizer que andou lendo sobre o deserto, apesar de nunca o ter visitado?

— Imagino que muitas mulheres andaram lendo sobre o deserto, ou através de romances de ficção, ou em reportagens de jornalistas que fizeram a cobertura daquelas regiões. De minha parte, me parece que tive conhecimento do assunto através de um livro de Burton, o explorador inglês. Ele viveu por uns tempos no deserto, à maneira árabe, não foi?

— E não só ele. Certamente já ouviu falar de outro inglês famoso, Lawrence da Arábia. Era um valente soldado, de olhos muito azuis e angelicais, mas que degolava os inimigos de guerra sem piedade.

Carla chegou a sentir um calafrio na espinha, Comparecera àquele encontro a título de brincadeira, mas agora não estava achando graça alguma naquilo tudo. Sua vontade era pegar a bolsa e dar o fora dali preferindo enfrentar a multidão de pessoas que transitavam pelo centro, mas que, pelo menos, estavam atarefadas com ocupações mais corriqueiras do que massacres e degolas.

Falar de Burton e Lawrence e de seus feitos novelescos a transportava para um outro mundo, um mundo distante, cruel e misterioso, que a apavorava.

Apertou a alça da bolsa e fez menção de levantar-se.

— Está querendo fugir? — caçoou Sidi. — Uma mulher de cabelos dourados como os seus não deveria deixar-se atemorizar por esses fantasmas ingleses legendários, que não temiam o deserto, nem os perigos que os esperavam lá.

— E o que me espera no deserto?

— Não sou um bruxo vidente. Só posso lhe antecipar que a espera um cargo de dama de companhia na casa do califa de Beni Zain. Mesmo assim, não posso garantir nada, pois a escolha final será de meu amo e senhor.

— Se... Se esse homem é tão poderoso, por que precisou colocar um anúncio para conseguir alguém para um cargo desses?

— E por que foi que você, uma moça tão bonita e bem dotada, respondeu a um anúncio desses?

— Eu... Bem, foi mais por gozação — confessou Carla.

— Gozação?

— Por brincadeira. Por que não é uma coisa para ser levada a sério, concorda?

— Pois eu acho que, no fundo, sentiu-se atraída pela perspectiva de trabalhar a serviço de um homem poderoso e rico. Vamos lá, srta. Innocence, diga a verdade. Você quis valer-se de toda essa beleza que tem para dar e vender.

— E acha que eu iria vendê-la num bárbaro leilão de escravas? Porque essa tal seleção não passa disso.

— Chame-a assim, se preferir. O caso é que, nos nossos lados da África, existem poucas mulheres atraentes, espirituosas e chiques. As turistas que visitam as cidades imperiais não são propriamente expoentes do seu sexo, e, além do mais, vêm sempre acompanhadas dos maridos. Seja como for, não têm os predicados exigidos pelo meu amo Zain Hassan, todo-poderoso senhor de Beni Zain, e supremo legislador e comandante de uma tribo bérbere do deserto. Foi idéia dele publicar o anúncio numa sofisticada revista inglesa, e foi com muito senso de humor que ele comentou, na ocasião: "Pode ser que nos apareça alguma solteirona velha, com cara de cavalo, ou uma loira aventureira".

— E vocês conseguiram, mesmo, uma aventureira loira — ironizou Carla. — Admito que estou mal de finanças. Para ser franca, estou nos meus últimos centavos e tenho planos de sair da Inglaterra. Mas não dessa maneira, muito obrigada. Não para ir morar na casa de um velho califa de uma tribo selvagem do deserto. Seria apelação demais!

— Velho? — Kezam Zabayr arqueou as negras sobrancelhas. — O califa Zain Hassan é um homem em pleno vigor, um homem de uma atividade e força física extraordinárias, tão ocupado com sua alta missão, que escolheu esse método de seleção pouco ortodoxo por absoluta falta de tempo. Além do fato de ter grande admiração pelo sistema de educação britânico. Ele considera as mulheres de seu país com uma inteligência acima da média. Passou-me a incumbência de selecionar uma moça inglesa para lhe apresentar. E agora que a encontrei, é a você que vou apresentar. Simples, mademoiselle.

— Simples? — Carla olhou-o, pasmada. — Quando me candidatei ao cargo, nem sonhava que fosse tão complicado.

— Complicado por quê? Não consigo entender seu ponto de vista. A mulher que ocupar esse posto deverá considerar-se honrada. Toda a tribo irá respeitá-la, como respeita a todas as decisões tomadas pelo califa sob sua tenda.

— Ele vive numa tenda? — Ao fazer a pergunta, ela visualizou um daqueles acampamentos de nômades do deserto, enfumaçados e cheios de crianças maltrapilhas brincando em torno das barracas.

— Só quando ele vai para o deserto. Mas a residência oficial em Uni Zain é um kasbah — ele informou, solene. — Na Inglaterra, vocês o chamariam de castelo. Não é assim que chamam as fortalezas dos lordes?

Carla levou a xícara de café aos lábios, achando que estava vivendo um dos episódios das Mil e Uma Noites. Então aquele senhor de posses não passava de um bárbaro, e ela não pôde deixar de desconfiar que ele estava era com intenção de incluir uma jovem de pele branca em seu harém particular. Estar em pleno vigor físico podia significar que a idade dele variava entre quinze e setenta anos, pois significar era sabido que os homens orientais mantém o interesse pelo sexo oposto até a velhice avançada. Minha Nossa Senhora! Onde ia se meter?

— Parece que a fiz perder o fôlego, srta. Innocence — disse Kezam Zabayr, sorrindo.

— É uma maneira otimista de descrever o que estou sentindo, monsieur.

Carla não sabia que tratamento lhe deveria dar. Afinal, ele era o emissário de um potentado.

O pé esquerdo começou a doer, lembrando que aquele homem, afinal, estava lhe oferecendo bem-estar e segurança, e apesar de tudo aquilo lhe parecer fantástico e fora de época, não deveria ser tão ruim quanto ir morar numa pensão de terceira categoria.

Oh, Senhor! Será que Eva sentira o mesmo que ela sentia, ao ouvir a voz tentadora da serpente?

— A idéia de ir trabalhar no Marrocos é assim tão fora de cogitação, srta. Innocence? O que chama de complicação é o fato de ter um emprego na região do deserto, e de seu futuro patrão ser um bérbere? Por acaso essa tal gozação, como chamou há pouco, tomou um aspecto sinistro?

— O senhor não se constrange em fazer uma moça corar, não é mesmo?

Carla abriu a bolsa para tomar um dos comprimidos contra a dor. Sidi interpretou aquele gesto como se ela estivesse em busca de cigarros, e logo ofereceu-lhe um, abrindo sua cigarreira de ouro.

— Não, obrigada, eu não fumo.

Tornou a fechar a bolsa, lembrando-se a tempo de que não deveria tomar o comprimido na presença do emissário. Ele poderia pensar que ela era viciada em drogas, ou que era uma moça doentia. Não podia tomar o analgésico se realmente tinha uma vaga esperança de ser aceita para aquele emprego.

— A senhorita está nervosa — observou Sidi Kezam, sacudindo os ombros, tolerante, e tirando um dos cigarros de ponta dourada para si.

Ao acender o cigarro com um isqueiro cravejado de pedras preciosas, procurou soprar a fumaça para o lado, de forma a não incomodar. Só por esse detalhe dava para notar que era um homem de boa educação.

— É compreensível que esteja perturbada — continuou ele. — Apesar de que já devia saber de antemão que iria tratar com gente de outra raça. A carta de convocação para esta entrevista tinha meu nome assinado, um nome genuinamente árabe. Vamos, mademoiselle, não foi por mera brincadeira que veio até aqui. O caso é que se habituou às boas coisas da vida e quer continuar tendo-as.

— É claro que estou em busca de um trabalho bem remunerado — admitiu Carla — Eu... Eu seria dama de companhia da esposa do califa, ou melhor, das esposas?

Sidi fez uma careta divertida, diante daquela correção.

— O califa é viúvo, mas tem irmãs, e gostaria que elas tivessem contato com alguém... Como eu diria? Com alguém atualizado, que tenha vivido fora dos muros de um kasbah.

— Irmãs? E elas vivem trancafiadas num harém, apartadas do mundo? — perguntou ela, abismada.

— Elas ocupam uma ala do kasbah, o harém, onde ficam as mulheres, mas têm liberdade para circular pela casa toda. E olhe que espaço é o que não falta naquele palácio. Levaria uma semana para ser visitado inteiramente.

Apesar de todos os receios, a curiosidade de Carla estava atiçada.

— E elas andam de véu, que tapa seus rostos, e são obrigadas a ser subservientes? — inquiriu Carla. — Se for este o caso, temo que a minha influência não seja benéfica, não acha?

— Pode ser que não. — Kezam Zabayr olhou-a como se estivesse reconsiderando sua decisão de apresentar Carla ao califa. — Vou pensar melhor no seu caso.

— Por quê? O califa é um tirano que não suporta qualquer manifestação de personalidade do sexo oposto?

Dessa vez os olhos negros se estreitaram e perderam a expressão jocosa.

— Esse é o maior problema das européias. Elas têm línguas afiadas demais e mentes deturpadas. Realmente, sou de opinião que você não vai servir para o cargo e o melhor seria encerrarmos esta discussão por aqui mesmo.

— Engraçado! Um homem como Zain Hassan, que é um líder entre outros homens, tem receio de não poder dominar uma frágil mulher? — ela instigou. — E pensar que foi idéia dele contratar uma européia para fazer companhia às irmãs! Se ele pretende que as irmãs continuem ignorantes e submissas, não deveria nem cogitar de levar uma mulher emancipada para o seu kasbah. Seria o mesmo que permitir a um gato introduzir-se na toca dos ratos.

— De fato, você tem olhos de gata — zombou Sidi Kezam. — Será que se submeteria a ser dominada por ele? Os mandamentos do Alcorão dizem que uma mulher tem que ser submissa, modesta, obediente e meiga.

— E o que diz dos homens? A eles dá a liberdade de serem arrogantes, prepotentes, violentos e até cruéis?

— Se um homem não se assemelhar a um tigre, quem o respeitará?

— Se um homem é um tigre, quem se atreverá a se aproximar dele?

— Uma mulher inteligente é capaz de fazer um tigre ronronar em vez de rugir.

— Em resumo, o senhor quer dizer que Zain Hassan não é um homem fácil de lidar? É isso?

— Certo.

Carla ficou imaginando como seria a figura daquele bérbere dominador e arrogante. Devia ter narinas muito abertas no nariz adunco e olhos cruéis de ave de rapina. Devia vestir uma túnica drapejada, que esvoaçava à sua passagem pelos compartimentos do castelo, onde ditava ordens e leis e era obedecido cegamente, mesmo quando essa ordem consistia em arranjar uma dama de companhia para as irmãs.

— Ele é muito rico? — perguntou Carla, num tom casual.

— Bastante, mademoiselle. Você gosta de coisas boas, mas discretas. Seu vestido é simples, mas elegante. Suas mãos são bem tratadas. Seu perfume tem uma fragrância suave. E os brincos que está usando são de jade legítimo e, por sinal, combinam bem com a cor de seus olhos. É uma pena que seja tão audaciosa na maneira de falar.

— Esta é uma maneira de dispensar-me polidamente?

Ele enrugou a testa, pensativo. Positivamente, aquele devia ser um homem que preferia que as mulheres fossem apenas vistas, nunca ouvidas.

— A verdade é que você compareceu apenas por curiosidade e nunca teve intenção de ser dama de companhia de ninguém —respondeu ele.

— A verdade é que nunca pensei em servir a um potentado árabe. Presumi que essa pessoa, morando no exterior, fosse algum fazendeiro vivendo num país tropical, entre plantações de bananeiras e rebanhos de gado zebu. Acho que andei lendo romances demais ultimamente.

— Desculpe que eu lhe diga, srta. Innocence, mas você não me parece uma dessas intelectuais que passam a vida com o nariz afundado nos livros. Ainda não sei por que respondeu ao anúncio.

— É que eu ando entediada, desiludida e também falida.

Só não confessou que andava nervosa e angustiada com as negras perspectivas de seu futuro. Aquele emprego, pelo menos, iria sacudi-la do marasmo. Era um desafio que lhe proporcionaria uma mudança radical de vida. E dinheiro suficiente para sobreviver decentemente.

— Você é virgem?

A pergunta incisiva e indiscreta a pegou de surpresa.

— Oh... Sim, eu... — Olhou para ele, chocada. — Que mal lhe pergunte, mas o que o senhor tem a ver com isso?

— É que a companheira das irmãs do califa tem que ser uma moça de bons costumes. Você poderia jurar que está dizendo a verdade?

— Posso! — Os olhos verdes fuzilaram, mas ela engoliu as palavras malcriadas que pretendia dizer a seguir, e apenas acrescentou: — Sim, naturalmente.

— Não é tão natural assim, quando se trata de uma moça européia emancipada — disse ele, com certo desdém. — A virgindade constitui um tesouro inestimável para uma jovem com sua bela aparência e estou propenso a acreditar na sua palavra. Sua finalidade maior é manter-se pura, até que apareça um homem rico em sua vida?

Era verdade. Por isso se entusiasmara e aceitara a proposta de casamento de Peter Jameson.

— E por que não? É crime que uma moça que tenha dotes físicos almeje ter uma vida melhor do que a de uma prostituta?

— Prostituta? — Kezam Zabayr arqueou mais uma vez suas negras sobrancelhas, dessa vez mais pronunciadamente. — E o que você sabe sobre a vida de uma prostituta?

— O que sei é que, quando uma moça de boa aparência deseja ter uma vida fácil e confortável e não se dá o devido valor, pode querer vender seus encantos para qualquer Tom, Dick ou Harry endinheirado que lhe apareça pela frente. O que não é o meu caso.

— Mas você não faz objeção em trabalhar para um ricaço. Claro que não! Senão não estaríamos aqui discutindo se vale a pena apresentá-la ao califa. Esse detalhe de você ter conservado sua pureza é um forte argumento a seu favor, srta. Innocence.

— Obrigada — respondeu Carla, com frieza. — Mas não foi de caso pensado. Não sou uma calculista, nem um robô sem sentimentos.

— Realmente? Para um árabe, a mulher é um objeto de prazer, destituído de alma.

— Que coisa mais interessante! — ironizou Carla. — Quer dizer e a mulher é considerada uma boneca para ser guardada no baú quando não precisam mais dela?

— A mulher é algo para ser mimado, protegido e muito considerado se gerar um filho homem. Se uma mulher se torna mãe, nunca será desprezada pelo marido, mesmo que ele se encante com outra mulher. Entendeu?

— Sem sombra de dúvida! — Fez a afirmação num tom gélido e desdenhoso, e, se tivesse coragem e dinheiro, teria corrido dali como o diabo da cruz. Mas alguma coisa a prendia àquela cadeira. Carla continuou a ouvir Sidi Kezam.

— O que precisa compreender, antes de mais nada, é que o meu senhor vai exigir que respeite sua autoridade. Vai conseguir se submeter a isso?

Não, desejou responder. Iria esbravejar como uma possessa!

— Acho... Acho que sim — respondeu ela, com falsa doçura na voz. — Só espero que o confinamento não seja muito rígido. Poderei sair para fazer compras nas lojas? Poderei passear um pouco por conta própria?

— Por certo. Não será considerada uma prisioneira. E por ser européia, serão feitas concessões, a fim de tornar você mais... Mais mansa.

O olhar malicioso que acompanhou a frase demonstrava que ele percebera o esforço que elas fizera para se mostrar meiga e dócil.  

— Então, tenho alguma chance? — ela perguntou, já ansiosa.

— Talvez. Você é jovem e certamente sabe ser encantadora quando lhe convém. Além disso, pode ser que as irmãs do califa venham a gostar muito de você.

— Onde e quando será feita essa apresentação?

— O encontro será em Beni Zain e a apresentação será feita em conjunto com as outras candidatas.

— Outras? Quantas são?

— Uma meia dúzia.

— O tal leilão de escravas! Pensei que tivesse sido a única moça a candidatar-me.

— Presunção sua.

Então, ela iria ser exposta, lado a lado com outras mulheres, para a avaliação do califa, como se ele tivesse que escolher uma égua para as suas cavalariças?

— Não! Esse tipo de coisa não faz meu gênero!

—Tive o pressentimento de que iria ter uma explosão temperamental. Aliás, vim observando o seu nervosismo desde que nos sentamos aqui. Posso adiantar que você tem muitas chances de chamar a atenção do califa. Com esses olhos, essas feições, esses cabelos, não tem confiança em seu poder de atração?

— O senhor fala como se eu fosse entrar no concurso para miss Universo. Será que uma dama de companhia precisa ter uma beleza estonteante? De qualquer forma, tudo isso me soa como uma barbaridade. Seis mulheres enfileiradas para serem examinadas por um homem! Quem ele pensa que é?

— O chefe tribal de uma região maior do que muitos países europeus. Seria uma aventura e tanto. Não acha?

Sidi Kezam Zabayr reclinou-se em sua poltrona e ficou calado, observando apenas.

Uma aventura, repetiu Carla mentalmente.

Como poderia uma garota capenga competir com todas aquelas candidatas, escolhidas a dedo, de todas as partes do mundo? Mulheres que deviam ter um preparo bem melhor do que o dela, que abandonara a escola aos dezesseis anos. Valeria a pena enfrentar uma jornada tão longa, se aquele califa exigia alguém tranqüilo e dócil, qualidades que ela sabia não possuir?

Seria difícil esconder seu temperamento voluntarioso, assim como seria impossível esconder o fato de que ela mancava ao andar.

— Pagaremos sua passagem até Casablanca e será levada de carro do aeroporto até a estação ferroviária, onde tomará o Expresso Marroquino para a Província de Beni Zain. Se não for aprovada. Pagaremos também sua passagem de volta. Até que uma viagem dessas, com tudo pago, não seria má idéia, mesmo que não fosse a encolhida, hein?

O sangue nas veias de Carla entrou em efervescência quando ele disse aquilo. Conhecer aquele deserto longínquo e misterioso, onde não era nada de anormal um chefe bérbere enviar representantes para escolher uma mulher pelo mundo, era realmente uma idéia tentadora.

— E se o califa gostar de mais de uma candidata, o que acontecerá?

Sidi Kezam Zabayr olhou para a ponteira dourada do cigarro e aquele brilho sagaz voltou a iluminar seus olhos.

— Somente uma dama de companhia está sendo requisitada. E ela precisará ser a melhor de todas.

— Entendo... Eu gostaria de perguntar uma coisa: toda essa seleção, ultra criteriosa, não seria para aumentar o harém do seu chefe?

— Meu amo Zain Hassan não possui harém, srta, Innocence — respondeu ele, ofendido. — Primeiramente, porque ele é um dirigente que coloca o bem-estar de seu povo acima dos seus prazeres pessoais, um segundo, porque é um guerreiro nato e prefere as asperezas da luta contra os inimigos do que as amenidades de uma alcova. É um homem que trabalha muito. Existem somente alguns assuntos que ele coloca em minhas mãos, porque está sempre muito ocupado com os interesses do seu povo.

— O senhor deve ser muito competente.

— As pessoas da confiança de Zain Hassan precisam ser competentes. Ele não tem paciência com os medíocres.

— Deve ser um homem duro e intolerante. O senhor disse que ele é viúvo. Que eu saiba, as leis muçulmanas permitem a um homem ter três esposas.

— É verdade. Mas nosso chefe não teve tempo disponível para casar-se com mais do que uma, e esta única, infelizmente, morreu. É por isso que ele quer alguém para fazer companhia às irmãs. Se, por acaso, Zain Hassan olhar novamente para uma mulher, será com a finalidade de procriar, para a prosperidade de Beni Zain. Ser mãe dos filhos dele seria um privilégio para qualquer mulher!

— Quer dizer que essa mulher perderia seu tempo se quisesse ser amada por ele?

Era uma pergunta muito audaciosa para ser feita naquelas circunstâncias, mas Carla não resistiu à tentação de conhecer mais particularidades sobre os costumes daquele povo estranho.

Sidi Kezam Zabayr nem se deu ao trabalho de responder. Seu olhar dizia tudo.                                                                

Carla limpou os lábios com o guardanapo. Ouvir tudo aquilo era realmente inacreditável, Quando chegasse em casa, iria dar umas boas risadas daquela história, e acabaria se esquecendo de uma vez por todas do emprego no exterior!

O emissário do califa abriu uma carteira de pelica e tirou dela um envelope.

— Aqui está uma passagem aérea da Air Marroc para Casablanca. O avião sai de Londres amanhã à tarde. Quer ficar com ela, srta. Innocence?

Quando Carla olhou para o envelope, seu coração disparou. Aquela passagem era a maçã oferecida pela serpente. Se a mordesse, talvez voasse para o Éden...

— O senhor está me tentando. Deve conhecer bem as minhas fraquezas.

— Em geral, consigo descobrir facilmente as fraquezas alheias. O que você mais deseja neste momento é sair do seu país, e esta passagem de avião é o meio para realizar o seu desejo. Só estou cismado sobre o seu passado. O que a faz querer sair da Inglaterra? Algum homem lhe partiu o coração?

— Não só o coração como também a autoconfiança — Carla respondeu, com sinceridade. — Só espero que o chefe Zain Hassan não invente de me escolher. Gostaria muito de conhecer seu país, mas na verdade, não acredito que eu possa corresponder às suas expectativas. Confesso que o meu temperamento não é muito submisso para ocupar um cargo desses.

— Gosta de jogo, mademoiselle?

— Joguei cartas algumas vezes.

— E nos jogos de azar, tem tido sorte?

— Cheguei a ganhar algum dinheiro no bacará. Mas não é sobre dinheiro que estamos falando.

— E só um modo de falar. Já me perguntou se o califa era rico. Isso significa que está em busca da segurança que o dinheiro pode proporcionar. Esta passagem aérea pode ser seu passe para a independência econômica.

— O senhor vai me considerar uma sentimental se eu lhe disser que uma mulher só se sente segura quando é amada por um homem. Mas eu digo que já perdi as esperanças de encontrar essa coisa ilusória que chamam de amor. Então, o senhor vai acabar me considerando uma cínica, caso eu aceite essa passagem.

O emissário lhe estendeu o envelope.

— Nem uma coisa, nem outra. É um desafio — disse.

— Vou aceitar. Mas não posso garantir nada sobre qual será minha reação, caso o califa me escolha.

— Deixe tudo nas mãos do destino. Maktoub é o que dizemos nós, mulçumanos. Somos um povo fatalista. Deixe que esse bilhete seja o seu tapete voador, que a levará aos Jardins de Alá.

— Por acaso, são jardins suspensos?

— São penhascos elevados, onde as manhãs gloriosas iniciam seu alvorecer.

— O senhor fala como um poeta.

— Muitos dos habitantes do deserto são poetas. Nunca tinha ouvido falar nisso?

— Poetas guerreiros, que gostam mais da luta do que das estrofes, essa é a verdade.

— E você, também não gosta de lutar? Não tenha tanta certeza de que Zain Hassan deseja uma mulher dócil.

— Mas foi o senhor mesmo quem disse que tudo o que ele quer é uma mulher submissa, que obedeça às suas ordens, sem discussão.

— O que eu disse é que nossas tradições mandam que uma mulher seja obediente e meiga. Na verdade, meu amo é um enigma até para as pessoas que convivem com ele. Digamos que herdou esse prazer pela guerra do seu velho pai que foi um homem realmente destemido e feroz. Logo que meu amo nasceu, seu pai estrangulou a esposa.

— O quê? O pai de seu chefe assassinou a mulher? — Carla arregalou os olhos, apavorada.

— Ela cometeu adultério e a punição, nesses casos, é muito severa.

— Severa! Muito mais do que isso: bárbara.

— É a justiça do deserto. Então, vai aceitar a passagem para Casablanca?

O bom senso de Carla dizia-lhe para deixar o envelope onde estava e sair dali depressa. Mas o corpo não obedeceu ao comando da razão.

Sidi Kezam levantou-se da poltrona e fez uma ligeira reverência.

— Vai me desculpar, mas tenho outros assuntos a tratar. Fique à vontade. Pedirei ao garçom para trazer um bule de café fresco. Nós nos veremos novamente, srta. Innocence? É claro que sim!

Carla ficou sozinha com seus pensamentos e dúvidas. E também com a passagem aérea jogada sobre a mesa.

Quando se encaminhou para o ponto do ônibus, com a passagem dentro da bolsa, ficou imaginando o que diria a sua velha avó se soubesse que a neta iria partir para um lugar tão distante e perturbador, de costumes tão estranhos, para fazer parte de um leilão de escravas.

Isso mesmo: leilão de escravas! Afinal, que outro nome poderia ser dado àquela estapafúrdia seleção?

 

O ar estava tão quente como se tivessem aberto a porta de um grande forno, quando Carla desembarcou do avião com os outros passageiros. Com passos rápidos, caminhou até o saguão do aeroporto.

Lá fora, numa fila de táxis, os motoristas falavam muito e sorriam, exibindo brilhantes dentes postiços de prata. Eram muitos, aguardando os fregueses que se dirigiam para o centro de Casablanca.

Carla pegou a mala e a frasqueira e se plantou em frente ao prédio, suando em bicas e consciente de que a meia de náilon da perna esquerda estava desfiada. Usar meias naquele clima era um absurdo e ela invejou uma jovem nigeriana, que, ao seu lado, esperava por um táxi. Parecia tão fresca e descansada em seu vestido longo e folgado de algodão colorido, com uma abertura lateral que ia até a coxa! Alguns homens que transitavam por ali a olhavam como se ela fosse uma miragem. Mas ninguém prestava atenção em Carla, que tinha escondido os cabelos com um lenço e usava enormes óculos de sol, tapando os olhos verdes. Só esperava não ser invisível à pessoa que tinha a incumbência de conduzi-la até a estação ferroviária.

O telegrama dizia que um carro estaria esperando por ela, mas os minutos se passavam e ninguém aparecia. Até o estacionamento pegado ao aeroporto ficou vazio. Todos os passageiros daquele vôo já tinham tomado seu rumo. Só ela havia sobrado.

Carla começou a ficar ansiosa e arrependida de ter concordado com aquela louca aventura. Abrigou-se à sombra de uma estranha palmeira, que mal a protegia do sol. Sentia muita sede.

O calor, a impaciência e o cansaço já estavam se tornando insuportáveis, quando uma sombra movimentou-se a seu lado. Olhou rapidamente para cima e chegou a engolir em seco de surpresa, ou melhor, de susto.

Um homem alto e forte, com incríveis olhos azuis e sobrancelhas negras retintas, olhava-a atentamente. Na cabeça, levava um shemagh branco, atado por finas cordas, e vestia uma túnica de linho entreaberta no peito moreno, culotes pretos e botas, que lhe davam o aspecto de um domador de tigres.

Antes que Caria pudesse controlar seus impulsos, já tinha recuado dois passos, afastando-se daquela estranha figura, como se estivesse sendo acuada por um assaltante.

Os olhos azuis a fitaram, percorrendo-lhe a roupa amassada pela viagem e depois retomando para o rosto. Parecia fazer uma análise da sua aparência.

Talvez ele tivesse notado o seu defeito no pé, e Carla sabia, por experiência própria, o quanto aquilo podia impressionar mal a um homem. Principalmente um homem tão imponente quanto aquele árabe.

— Presumo que seja a srta. Innocence. Estou certo?

Ao fazer a pergunta, esboçou uma expressão de desdém e Carla notou que ele falava um inglês perfeito, mas com uma entonação ameaçadora e impaciente.

— Sou eu quem irá acompanhá-la a estação para tomar o trem até Beni Zain — anunciou ele.

— É o emissário de Sidi Kezam Zabayr? — perguntou Carla, para se certificar de que estava falando com alguém realmente confiável.

Podia ser que ela não fosse o tipo dele, mas circulavam muitas histórias sobre mulheres brancas, viajando sozinhas, que haviam sido raptadas por malfeitores. E sumido para sempre no deserto. Alguma coisa naquele homem lhe abalava os nervos e a fazia se manter na defensiva.

— Não sou um mercador de escravas brancas, se é isso que a preocupa — disse ele, num tom sarcástico. — Sei de tudo a seu respeito, mas, francamente, você está longe de ser o que eu imaginava para uma dama de companhia de duas jovens isoladas.

— Você é bem audacioso para um simples criado! — revidou Carla, com raiva. — Se veio até aqui para levar-me até o trem, cumpra logo a sua tarefa e vá cuidar de sua vida!

— A moça é também temperamental! — O tom de voz era de gozação. — Outra característica pouco recomendável para o cargo que pretende ocupar. Kezam Zabayr não está sendo muito prudente em recomendá-la ao nosso amo. Só posso concluir que você foi a única inglesa a se candidatar.

— Devo ter sido mesmo a única maluca!

Carla ergueu o queixo tão bruscamente que os óculos quase caíram sobre seu nariz. Recompôs-se com um gesto de tédio estudado. Já estava ficando saturada com os comentários mordazes daquele homem. Porém, o ar imponente dele não deixava de condizer com sua atitude. Ele era muito alto, tinha maxilares voluntariosos, a pele morena e o queixo com uma fenda que parecia ter sido cortada a machado. Só os olhos azuis destoavam do conjunto. Talvez algum de seus antepassados fosse fruto de uma aventura amorosa de um dos cruzados de Ricardo Coração de Leão com uma dama sarracena. Aquele era um rosto pagão. Isto lhe pareceu uma análise perfeita.

— Se sou mesmo a única candidata vinda das ilhas Britânicas, é porque a maioria das inglesas tem mais juízo do que eu — continuou Carla, depreciativa. — Não sei onde eu estava com a cabeça quando tomei aquele avião ontem à noite, para vir participar de um leilão de escravas.

— É assim que você chama essa seleção? Nota-se que andou dando asas à imaginação. Diga-me uma coisa, roumia, se suspeitava que fosse assim, por que não ficou em Londres, em vez de arriscar-se a ser vítima de intenções malévolas de bérberes como eu? Ou não resistiu à fascinação que os homens selvagens do deserto exercem sobre as mulheres civilizadas das grandes cidades?

— Você deve estar brincando... Por acaso, pensa que vim para o Marrocos em busca de algum sheik que me seqüestre à força e me carregue para a sua tenda?

Ele apenas lançou-lhe um olhar enigmático e Carla teve vontade de lhe virar as costas e ir embora. Não estava mais suportando aquele homem, que olhava para as pessoas como se elas fossem transparentes e não conseguissem ocultar nenhum segredo que ele não desvendasse.

— De fato, você não foi ajuizada em vir para cá, roumia. Já vi algumas das outras candidatas e elas são bem mais velhas e experientes do que você. A não ser que esteja querendo se expor a ser violentada

Carla levou um choque e ficou pálida. Teria entendido bem o que ele dissera?

— Não vá desmaiar, minha pombinha! Você não está acostumada com tanto sol. É melhor que me acompanhe antes que caía no chão como uma camélia murcha.

O desconhecido segurou Carla pelo braço com firmeza, ergueu a mala do chão e começou a atravessar a rua em direção a uma limusine preta. Ele andava depressa e, para acompanhá-lo, Carla deixou patente que mancava.

Tão logo ele abriu a porta traseira do carro, ela se deixou cair sobre o assento. A mala foi posta a seu lado e, depois de ter fechado a porta, aquele bérbere insolente foi se sentar no lugar do motorista. Logo deu a partida.

Carla só recuperou o fôlego quando a limusine começou a andar.

— Deixe-me descer! Eu não vou com você!

— Se sair com o carro em movimento, vai se machucar seriamente. E eu não quero entregar uma mercadoria danificada ao califa. — O homem disse isso ao entrarem numa alameda jardinada, com palmeiras enfileiradas, tais como silenciosas e bem disciplinadas sentinelas.

— Mudei de idéia — insistiu Carla. — Não vou tomar trem algum! Eu quero voltar para casa!

— É um pouco tarde para mudar de idéia. Além do mais, estou cumprindo ordens. E você não desejaria que eu levasse uma reprimenda do meu feroz patrão, não é verdade?

— Adoraria que levasse! — retrucou ela, agressiva. — E agora volte com este carro para o aeroporto.

— Poupe o seu fôlego. Não existe nada menos atraente do que uma mulher exaltada e suada. Passe um pouco de pó-de-arroz nesse nariz e se acalme.

— Quanta arrogância! Eu não vim para cá para ser julgada por você, que deve ser do tipo que aprecia aquelas bailarinas de dança do ventre. Já lhe disse que não vou tomar esse maldito trem. Não pretendo continuar com essa palhaçada nem por mais um minuto!

— Fui prevenido de que você era... Bem... Um pouco difícil, mas não pensei que fosse tanto — disse ele, enquanto passavam por um aglomerado de casas que pareciam cubos de açúcar reluzindo ao sol. — Esse é o grande problema das mulheres dos países ditos desenvolvidos. Elas nunca sabem se querem dominar ou ser dominadas. Se topam com um homem fraco, sentem-se frustradas. Se o homem for autoritário, logo entram em luta contra ele. Pelo menos, essas bailarinas da dança do ventre sentem-se satisfeitas em agradar a seu público, e têm mais dignidade em sua arte do que as mulheres européias quando se metem a imitar as danças africanas nos clubes noturnos.

Carla nunca se sentira tão furiosa na vida. Sua vontade era esbofetear o rosto daquele homem. Pouco se importava se levasse uma surra em troca. Ela até que merecia um castigo pela doidice que havia cometido vindo para o Marrocos. Se estivesse viva, sua avó iria ficar uma fera. E até aprovaria que Carla levasse uma boa reprimenda.

Tão logo chegassem à estação, ela tomaria um táxi de volta para o aeroporto e embarcaria no primeiro avião que saísse para Londres. Estava decidido. Nesse momento, lembrou-se que o dinheiro que tinha na carteira não dava nem para pagar a metade da passagem aérea. Seu coração quase parou. Toda a excitação que sentira ao se meter naquela aventura evaporou. Afundou no banco de veludo, cheia de medo e desespero.

Era bem-feito ter que ouvir todas aquelas críticas de um bárbaro petulante que arrasava com seu orgulho britânico. Como poderia censurá-lo? Se ele a tomava por uma leviana, uma cavadora de ouro, só podia censurar a si mesma.

O petulante rapaz, na qualidade de um dos empregados do califa, estava se arriscando muito com aquele tipo de comentário. Arriscando? Que risco? Ele devia saber, tão bem quanto ela, que o todo-poderoso Zain Hassan bin Hamid iria descartá-la como se ela fosse uma migalha de pão sobre a mesa de um banquete.

Afinal, ela fora levada até ali apenas para preencher as exigências da seleção — mulheres de todas as raças e cores — e sua pele clara representava os espécimes femininos das ilhas Britânicas.

Tirou os óculos e passou uma camada de pó compacto sobre o nariz, aproveitando a parada da limusine num sinal de trânsito,

— Por uns tempos você vai achar nosso clima insuportável — disse o motorista.

Era a primeira vez que ele a via sem o escudo dos óculos escuros. Carla o olhou, desafiadora.

— Não pretendo ficar por aqui tanto tempo assim. Nós dois sabemos que não serei a escolhida. Digamos que eu vim para o Marrocos só para dar um passeio diferente.

— Na nossa terra, costumamos dizer que não é aconselhável ler o livro antes de abri-lo. Você está encarando esta viagem como se estivesse passando férias. Na verdade, nunca teve intenção de se tornar uma dama de companhia. Ou desistiu de seus propósitos depois que soube que iria trabalhar para um bérbere?

— Você faz perguntas demais para um mero motorista. Não tenho obrigação de ficar respondendo. O sinal já está verde! Toque para frente!

— Para a estação ferroviária? — caçoou ele. — Será que chegou à triste conclusão de que está falida e não pode pagar a passagem de volta? Ora, vamos, srta. Innocence! Sei de tudo a seu respeito. Você não tem alternativa senão submeter-se ao que chama de "leilão de escravas".

Carla estava mesmo num beco sem saída. Pensava nisso quando o carro chegou à estação. Ele saiu do automóvel e foi abrir a porta traseira.

— Venha. O nosso trem sai dentro de poucos minutos.

Ela continuou imóvel. O bérbere lhe estendeu o braço e a puxou com força para fora.

— Você está me machucando! — protestou Carla. Ele tinha uns modos prepotentes, uma tal frieza de coração, que ela se sentia mais ressentida do que com o próprio Peter Jameson. — Já fui manequim profissional — disse, com orgulho. — Tive amigos às dúzias e não admito ser tratada como uma prostituta!

— Então foram eles que a magoaram tanto. — Largou-lhe o braço. — Desculpe se eu também a machuquei, sem querer.

— Pois eu acho que você sente prazer em machucar os outros. O que quis dizer com nosso trem? Não me diga que vou ter que viajar com você até Beni Zain...

— Vai. E, se não se apressar, a viagem terá que ser feita no lombo de um camelo. Por acaso achou que iria viajar sozinha? Lembre-se de que não estamos na sua Inglaterra. Vamos, depressa!

Carla teve de aceitar o pedido. Ou melhor, a ordem. Andando o mais rápido que seu pé defeituoso lhe permitia, caminhou até a plataforma, onde o trem estava prestes a sair. Chegaram quando o guarda-trilhos levava o apito à boca para dar o sinal de partida.

— Vamos logo — apressou-a com seu acompanhante, alçando-a pela cintura e colocando-a no vagão.

Pouco depois, estavam entrando num dos compartimentos da primeira classe.

— Teremos que ficar juntos durante todo o percurso? Vai ser uma viagem e tanto... — ironizou Carla.

— Fico contente que pense assim! — ele redobrou o sarcasmo.

— Não será luxo demais para um criado viajar de primeira classe? Aposto que está tirando vantagem do seu patrão.

— E por que não? — Ele sacudiu os ombros largos e musculosos. — Se um homem é tão imbecil que pensa em contratar uma ex-modelo para dama de companhia das irmãs, merece ser explorado. Ele não deve estar em seu juízo perfeito, não acha?

— Você está sendo muito desrespeitoso para com seu patrão — disse Carla, sentindo a maciez daquele assento confortável e o refrigério do ar-condicionado. Sob certo aspecto, não podia condenar aquele demônio atrevido por ter conforto. Mas, mesmo assim, não pôde refrear a tentação de fazer pilhéria. — Se eu reportasse tudo o que está dizendo a Sidi Kezam Zabayr, que, pelo que pude entender, tem um relacionamento muito estreito com o Califa, você se veria em maus lençóis.

Diante daquela observação, ele se pôs a rir descaradamente. Não de uma forma alegre, mas sim contida, cínica e desdenhosa.

— Além de ser tola, você também é maldosa? Saiba que, aqui, a palavra de uma mulher vale menos do que um grão de areia do deserto.

— Deve ser uma maravilha viver num país onde as mulheres só se sentem seguras e respeitadas se conseguem presentear seus consortes com um filho do sexo masculino. — Ao contra-atacar, Carla lhe enviou um olhar de desprezo, embora por dentro estivesse com muito medo. Mesmo antes de viajar já sabia que, naquela parte do mundo, os homens eram senhores absolutos. — Zain Hassan bin Hamid é um déspota, não? E assim mesmo você está querendo mostrar poder, como se ele não tivesse nenhuma ascendência sobre a sua pessoa. Aposto que banca o valentão só comigo. Com ele, você deve ser tão subserviente como todos os demais servidores dele.

— Quanto está valendo essa aposta? — perguntou o bérbere, mais zombeteiro do que nunca. — Está mesmo pensando que eu rastejo perante quem quer que seja?

— Você é um lacaio pago por ele, não é? Recebe ordens e cumpre as tarefas que ele lhe dá. Assim como, por exemplo, me buscar no aeroporto. Comigo você pode ser arrogante e malcriado. Porque, a seu ver, eu não passo de uma mulher. Mas se o califa é tão poderoso quanto Kezam Zabayr deu a entender, com ele você deve ser bastante servil. Um potentado é uma espécie de divindade aos olhos do seu povo, não é mesmo? Agora, aos meus olhos você não passa de um reles criado dele. Só gostaria de saber o que você faria se eu fosse a felizarda escolhida para o cargo, e pudesse, portanto, conviver com o califa. Acho que ele deve ser suficientemente humano para dar ouvidos às denúncias de uma mulher, e também acho que ele não gostaria de saber que um dos seus servos se comporta com tanta petulância e irreverência.

Nunca em sua vida Carla tinha ameaçado alguém, nem quando era modelo e vivia num ambiente altamente competitivo, um verdadeiro vale-tudo, e nem mesmo Peter havia conseguido levá-la a um ponto tão extremo. Aquele árabe a tirava do sério. Fazia com que ela levasse às últimas conseqüências o secular antagonismo entre os dois sexos.

Nesse momento, o trem entrou num túnel escuro e os olhos dele pareciam dois tições acesos sob o shemag branco.

— Confesse. Você, agora, gostaria de me matar com um punhal — disse o bérbere. Quando o trem saiu novamente para a claridade do dia, ele continuou: — Apesar de tudo, você tem certas características que poderão ser do agrado do califa. Talvez ele seja um déspota, como você diz, mas nem por isso aprecia pessoas bajuladoras e servis.

— Verdade? — Não obstante a raiva que sentia, Carla não podia deixar de notar as linhas incrivelmente bem traçadas daquela boca dominadora, nem a expressão altiva daqueles olhos azuis. Certamente, o azul dos olhos dele era uma herança genética dos cruzados, em suas passagens clandestinas pelos haréns sarracenos. — Pois eu pensei que os homens de seu país preferissem que as mulheres se mantivessem de joelhos o tempo todo, muito amorosas e lânguidas, felizes de serem macios capachos para os pés de seus senhores.

— Não me diga que acredita em tudo o que essas escritoras feministas frustradas relatam em seus romances. Se os sheiks do deserto passassem o tempo todo reclinados nos divãs, junto de mulheres lânguidas e amorosas, como você diz, as regiões que eles governam se transformariam num caos e sofreriam um colapso econômico. Eles próprios enfraqueceriam seu caráter e sua força física. — Ele sorriu diante do quadro que acabava de descrever e esticou as longas pernas. — É evidente que você tem muita curiosidade em saber como é Zain Hassan. Por isso vou contar um pouco. A maneira de ser dele, bint, não é precisamente igual à de seus compatriotas, e suas preferências não se amoldam às dos outros homens da tribo. O que o torna poderoso e respeitado é a dureza e firmeza de seu caráter. Os bérberes admiram essas qualidades e exigem que um líder seja assim. Um homem vulnerável e complacente não conseguiria manter a unidade e coesão de seu povo. Logo a tribo se dispersaria pelas cidades, adquirindo hábitos não-condizentes com a vida do deserto. O povo de Beni Zain pertence ao sol e às estrelas, ao vento e à chuva. As crianças de Beni Zain são filhas dos elementos da natureza e é missão do califa manter a tradição. Ele é o mestre e guardião do seu povo.

— Um mestre que jamais abdica do seu chicote!

— Mesmo assim, não deixa de ser uma missão excitante e importante para um homem.

0 acompanhante de Carla tinha olhos perturbadores, que revelavam uma grande força interior. Era compreensível que o califa tivesse um homem desses ao seu serviço, alguém que não se deixava intimidar por nada.

— Está tão certa assim, srta. Innocence, de que a sua presença nesse trem é apenas uma mera brincadeira, em vez de ser o caminho que a está levando ao seu destino? Maktoub, como dizemos no deserto. Nós acreditamos que tudo está escrito e nenhuma de nossas ações é executada em vão. Pense nisso. Acha que estaria aqui, longe de sua pátria, sem uma finalidade? Acha que sofreu uma quebra traumatizante em sua rotina de vida sem nenhum motivo? Você deve estar em dúvida se estou dizendo tudo isso apenas por suposição, ou se andei tirando informações sobre o que levou uma jovem inglesa a responder a um anúncio tão incomum, não é verdade?

— Quer dizer que sabe realmente tudo a meu respeito?

Carla sentiu-se ressentida e vasculhada, como se lhe tivessem arrancado o véu com que cobria o rosto, à maneira das mulheres árabes. Aquele homem devia ser algo mais do que um servo, um motorista. Talvez um ajudante-de-ordens do califa, alguém de sua inteira confiança, para saber tanto sobre o passado dela.

A maneira como ele a estava observando lhe deu a sensação de estar nua diante de seus olhos. Ela o odiou por isso.

— Acredita mesmo que iriam trazê-la para cá, sem nenhuma investigação? Tudo bem. Mas é estranho uma mulher bonita como você correr atrás de um emprego como esse. O que foi que aconteceu afinal? Por que está aqui? Está fugindo de alguma coisa? É uma bonequinha de luxo, que tem medo de ser apenas uma mulher?

— Seus comentários não têm propósito. Para sua informação, eu não sou uma bonequinha de luxo.

— Mas um certo cavalheiro achou que era...

— Você sabe mesmo de tudo, não é?

Carla cravou as unhas no couro da bolsa, furiosa por ele saber que, por trás daquela máscara de audácia, desenvoltura e autoconfiança, havia uma pobre moça insegura, uma criança enjeitada, e não uma mulher vivida e corajosa.

Ela apontou seu pé defeituoso. E, escolhendo as palavras, disse:

— Mas se tivesse sabido "disso" antes, não estaria aqui, não é verdade? Como vai explicar ao seu Senhor todo-poderoso que os assessores dele viajaram quilômetros para buscar uma mercadoria danificada? Sim, porque eu não manco só porque torci o tornozelo. Isso que você está vendo é um defeito e não tem remédio. E eu não acredito que seu amo queira incluir em seu estoque de escravas uma mulher manca. Como vai se sair dessa? Seu emprego de ajudante-de-ordens vai estar em perigo, não vai?

Se Carla pensava causar ao rapaz algum abalo, enganou-se redondamente. Ele apenas olhou para o seu pé esquerdo e advertiu, calmamente:

— Sua meia de náilon está desfiada. Está tão mal de vida que não pode comprar outro par?

— Vá para o diabo que o carregue! — explodiu Carla, vermelha de cólera. — Pensando bem, acho que você e seu patrão são farinha do mesmo saco. Igualzinhos.

— Kezam Zabayr bem que me advertiu de que você tinha uma língua afiada. Mas ele estava tão empolgado com a sua beleza que preferiu ignorar seu temperamento intempestivo.

— Como vocês agem num caso desses em Ben Zain? Talvez de forma parecida com a que castigam as adúlteras, mandando cortar a língua. Não é assim?

— No seu caso, até que seria uma boa solução — disse ele, com um sorriso sarcástico.

Durante sua carreira de modelo profissional, Carla havia aprendido a não ficar encabulada. Afinal, freqüentemente se submetia a platéias exigentes. Muitas vezes, abarrotada de homens. Mas naquele momento era diferente. Era, sem dúvida, uma verdadeira invasão à sua privacidade.

— Não precisa se assustar — ponderou ele. — Nesses casos, nós ensinamos as mulheres a se manterem em seus devidos lugares.

— Debaixo de seus calcanhares! Se pensa que vai poder me subjugar, terá uma bela surpresa! Vou me rebelar até a última gota do meu sangue!

— Não duvido nada, mas acontece que você não me foi destinada, bint. É o califa quem deverá dar a palavra final.

— Ele nunca me escolherá. Já lhe disse: eu sou aleijada. — Carla odiava aquela palavra. Era horrível. Doía muito no seu orgulho de modelo cobiçada. Uma crueldade do destino, pensou consigo mesma.

— Eu a observei quando saiu do Aeroporto de Casablanca. Notei que mancava, mas assim mesmo você está aqui, viajando comigo para Beni Zain.

— Você não é o califa — replicou ela, ainda colérica. — Só ele pode decidir se andar mancando é importante ou não.

— E se fosse eu a decidir? Que tal? É uma hipótese fascinante. O que você faria se fosse colocada ao lado de mais seis candidatas, de todas as nacionalidades, para que eu desse a minha palavra final? Teria um ataque de nervos?

— Eu me jogaria agora debaixo desses trilhos!

— Seria uma infantilidade. Nenhum homem merece que um corpo belo seja estraçalhado sob as rodas de um trem. Talvez você até gostasse de ser minha kadine. Muitas mulheres que compartilharam de minha tenda no deserto gostaram. E muito.

— Não duvido nada, mas não tenho qualquer ambição de entrar para o seu time. Prefiro tentar com o próprio califa. E não com os seus subalternos.

— Tem tanta certeza assim de que vai agradar ao califa? Você tem um rosto encantador. E é certo que sabe disso. Mas, em nosso país, dizemos que a beleza só é perfeita quando é plácida e tranqüila como a água de uma lagoa.

— Lá vem você com suas poesias. Então, é esse o tipo que o califa quer para fazer companhia às irmãs? Uma mulher bela de ser vista, mas quieta e sem movimento como uma água parada?

— Você adora expressar as suas opiniões, não é? — perguntou o bérbere, com um sorriso enigmático, no momento em que ouviram uma batida na porta do compartimento. — Entre — ordenou ele.

O homem de túnica branca que apareceu à porta começou a falar em árabe e Carla não entendeu uma palavra. Ainda assim notou que o outro tratava seu acompanhante com extremo respeito.

Ele respondeu no mesmo idioma e o homem fez uma reverência, antes de desaparecer no corredor.

— Mehmed vai nos trazer um lanche. Você deve estar com fome. — E olhou-a inquisitivamente, com aqueles olhos incríveis que contrastavam com o moreno da pele e os ângulos retos e másculos do rosto.

— Confesso que estou faminta. Quem era aquele homem?

— Um membro da comitiva que está viajando conosco para Beni Zain. Na Inglaterra, vocês provavelmente diriam que Mehmed é um mordomo. Só que esse é também muito eficiente empunhando uma carabina. Não deve esquecer, srta. Innocence, que estamos no deserto e que, atrás de cada duna, de cada rochedo, pode estar escondido um inimigo. Pode ser uma fera. Ou então, um homem. Sempre há perigo. — Ao terminar a frase, apontou o braço em direção à janela, num gesto de demonstração.

Carla notou que ele trazia no dedo um anel antigo, com uma insígnia gravada.

— É curioso... — disse ela, meditativa. — Sempre pensei que o deserto fosse um enorme lençol de areia, mas é mais do que isso. O deserto me parece algo vivo, que respira e vibra, assim como, o mar.

— Você é muito perceptiva para uma jovem que passou uma vida fútil, entrando e saindo de salões de beleza. Mulheres bonitas, em geral, têm cabeças ocas.

— Certos homens pensam que uma mulher, para ter alguma inteligência, precisa ter a cara de um cavalo.

— Os cavalos não são tão inteligentes assim — retorquiu ele, com a segurança de um conhecedor. — Eles são treinados intensivamente, mas, muitas vezes, não correspondem às expectativas.

— Como no caso das mulheres bonitas?

Conversando sobre cavalos, Carla lembrou-se de Grey Lady, que a atirara de encontro àquele tronco de árvore. Nunca mais teria coragem de cavalgar. De maneira alguma. Mesmo que o médico a tivesse aconselhado.

Carla não olhava diretamente para aquele bérbere alto e irônico, que devia gozar da confiança total do califa. Porém, ela sentia os olhos azuis mirando-a insistentemente, De vez em quando, não resistia à tentação e lançava um olhar para a túnica entreaberta, que mostrava aquele peito forte e moreno.

Por alguns minutos os dois ficaram em silêncio, apenas trocando olhares esparsos. Até que Mehmed reapareceu com uma cesta contendo umas iguarias, uma garrafa térmica de café e uma grande variedade de frutas, inclusive apetitosas tâmaras secas. Era realmente um mini banquete, e Carla não pôde deixar de comentar:

— Pelo visto, você gosta de se cuidar, hein?

— Quando se viaja de trem, tudo é agradável. Mas as coisas são diferentes quando é preciso viajar no dorso de um camelo. Nesse caso, a refeição é feita ao ar livre, à sombra de algum rochedo. Então, esta saborosa salada de queijo e pimentões pode acabar coberta de grãos de areia e moscas-varejeiras.

Carla chegou até a sentir um embrulho no estômago, mas continuou comendo com o mesmo apetite. Aquele bérbere não iria lhe tirar o prazer de comer um lanche tão gostoso.

— Fico satisfeito em ver que você não é dessas mulheres fricoteiras, que só ficam beliscando a comida, como passarinhos — disse ele. — As pessoas devem saber apreciar as boas coisas que Alá nos concede. A vida é para ser vivida plenamente, sem as pesadas grades das convenções e preconceitos.

— Você tem orgulho da vida que leva, dá para se perceber.

— Eu seria um idiota, bint, se não me aproveitasse da vantagem de ser muito íntimo do califa.

— O que quer dizer bint? — ela quis saber, pois ele quase sempre chamava assim. — Você diz isso como se fosse algo pejorativo. Sei que não simpatiza comigo, mas. . .

— Quer dizer apenas “garota” — ele a interrompeu. — Só isso. Você ainda é uma garotinha em muitos sentidos. Kezam me contou que, inclusive, é uma flor que não foi colhida.

— Uma flor o quê? — Arrependeu-se de ter perguntado, pois, mesmo sem conhecer o sentido daquela expressão, intuiu o que ele queria dizer, e ficou rubra até o último fio de cabelo. — Você sabe demais! — disse, antes que ele respondesse. — Creio que tudo que eu falei naquela bendita entrevista é do seu conhecimento. Vocês tomam informações por tabela? Por que seu amo não se inteira pessoalmente desses detalhes? Isso seria mais uma amolação para ele?

— Mais uma amolação? — ele repetiu a pergunta.

— O califa também deixa a seu cargo a procura de mulheres para a cama dele? Como você não me parece um eunuco, devo chegar à conclusão de que os gostos de ambos são semelhantes. Por certo, você deve ter livre trânsito no harém do califa.

— Quem sabe? Ainda bem que você é uma bint inocente e ingênua, senão não teria se arriscado a vir para um lugar onde, até bem pouco tempo, os prisioneiros eram jogados às feras. Depois suas cabeças decapitadas eram penduradas nos palácios dos tiranos. E tem mais: os mercados de escravas eram públicos e as mulheres mais bonitas eram resgatadas a preço de ouro. Mas os hábitos, no fundo, não mudaram muito. Este é um reduto da barbárie, onde os últimos corsários sarracenos levantaram seus kasbahs. Jamais se esqueça disso.

— Se pensou em me seqüestrar, não vai lucrar muito com isso — disse Carla, provocadora. — Não tenho ninguém na Inglaterra que tenha interesse em me resgatar das mãos de um bárbaro como você.

— Nem aquele cavalheiro inglês?

— Muito menos ele. — Carla não pôde evitar de baixar os olhos para o pé defeituoso. — Eu não significo mais nada para ele. E vice-versa.

— Então, quer dizer que você é sozinha e que ninguém dará pela sua falta depois que deixar de freqüentar os lugares onde era conhecida? Veio para o Marrocos sem informar a ninguém sobre o seu paradeiro?

— Não estava com disposição para fazer confidências, e o pouco que andei dizendo foi taxado de loucura. As pessoas conhecidas alertaram que eu iria me meter em encrencas. — Carla interrompeu-se bruscamente ao se dar conta de que aquele bérbere desconhecido parecia muito contente com as encrencas em que ela poderia se meter.

Instintivamente, levou a mão à garganta, sentindo um sufoco e tomando a consciência de que nunca deveria ter confessado que ninguém sabia que ela estava no Marrocos. E havia escolhido para as suas confidências justamente aquele homem, que parecia tão mal-intencionado.

— Posso ler em seus olhos, srta. Innocence, que está arrependida por não ter dado ouvidos aos seus conhecidos.

Havia um sorriso sarcástico em sua boca quando ele se inclinou sobre ela, como que brincando com o terror estampado nos olhos verdes.

 

Sem poder suportar a crueldade e a malícia que lera naqueles olhos azuis, Carla desviou a cabeça para a janela do trem, olhando para o céu, de um azul cintilante, da cor daquelas pupilas que teimavam em observá-la. Com raiva, pensou: Maldito Lúcifer!

Aquele homem era satânico, e tinha o mesmo poder de sedução infernal que se atribui ao demônio.

— Marfim branco — ela o ouviu murmurar. — É assim que chamam as mulheres de pele alva.

— Você não me amedronta! — revidou Carla, com um olhar desafiador. — Aquele homem que trouxe o lanche e os outros que estão com ele na comitiva sabem que eu estou aqui com você!

— Claro que sabem! — disse ele, sem se alterar. — Não quer mais um pouco deste delicioso café árabe?

A garganta de Carla estava seca e apertada pelo medo, e ela não recusou o oferecimento. Contudo, ao levar a xícara aos lábios, sua mão tremia tanto que quase derramou o café. Aquilo provava o quanto sentia insegura e perturbada diante daquele homem. As intenções dele não deviam ser as melhores. E Carla sabia que, apesar do defeito físico, era uma mulher atraente. Mas também desprotegida.

O bérbere se mexeu na cadeira, e ela ficou de prontidão. Tudo o que ele fez, porém, foi tirar do bolso do culote um charuto fino e comprido, cuja ponta cortou com os dentes alvos.

— Tire sua jaqueta e fique à vontade — ele aconselhou. — Ainda temos algumas horas de viagem pela frente, e eu vou me distrair um pouco fumando. O fumo não a incomoda, não é?

— Mesmo que incomodasse, que diferença faria?

Foi um alívio tirar aquela jaqueta, pois, apesar do ar-condicionado, ela estava fervendo. Pelo menos por dentro.

Ele deu uma tragada no charuto e soltou a fumaça pelas narinas. O cheiro de fumo se misturou ao aroma do café, resultando num odor másculo e excitante, o que a alarmou ainda mais.

Na verdade, ela se sentia como uma borboleta cativa, que estivesse sendo cloroformizada antes de ser transpassada pelo alfinete mortal.

— Coma uma fruta — sugeriu ele. — Estas uvas parecem saborosas e vão refrescar sua garganta.

Carla estava mais do que satisfeita, mas arrancou alguns bagos de um cacho de uvas que repousava sobre uma espécie de pão chato e redondo.

— Esse tipo de pão é chamado kesrah. Faz às vezes de prato e poupa o tempo para lavar a louça. — Tudo o que ele dizia, mesmo as coisas mais corriqueiras, parecia demonstrar suas misteriosas intenções em relação a ela. — As mulheres são como as uvas — continuou o bérbere. — Se comermos um bago que ainda não está maduro, é dor de barriga na certa.

— Que filosofia mais elevada! Posso até jurar que essa frase tão romântica é de sua autoria.

— Constato que está aprendendo a me conhecer. Essas uvas são quase da cor dos seus olhos sob a luz do sol. Que tonalidade terão esses olhos, sob a luz do luar?

— Você tem uma imaginação fértil, caro poeta. Mas, por favor, não precisa me elogiar. Eu passo melhor sem seus elogios.  

— Talvez esteja querendo dizer que se sente mais segura sem eles. Tente usar também a imaginação e sinta-se sob o luar do deserto, num dos jardins reclusos a que chamamos zarlba, gozando o encantamento das sombras noturnas, repletas de pássaros. Não existe nada mais evocativo do que os jardins mouriscos que foram feitos para a meditação, e para sussurrar palavras que perderiam o significado se pronunciadas à luz do dia.

— Pensei que preferisse a liberdade e a amplidão do deserto do que a reclusão de um jardim mourisco — disse ela, imprimindo à voz a maior frieza possível.

Não queria, de jeito algum, dar demonstrações de que aquelas, frases poéticas mexiam com seus nervos. Não gostava dele nem um pouco, mas tinha que reconhecer que aquele homem exercia um estranho fascínio, tinha um carisma do qual era difícil se esquivar. Ele possuía duas faces contrastantes. Uma, arrogante, atrevida, inescrupulosa; outra, culta, sensível e educada. Mostrava esse seu segundo rosto quando enunciava frases poéticas, dominava idiomas estrangeiros, e fazia galanteios cativantes. Se de um lado era um bárbaro, de outro era um homem civilizado.

— Digamos que quando cavalgo pelo deserto não gostaria de estar em qualquer outro lugar. Mas se estou descansando sob o frescor da sombra de uma palmeira, cercado de fontes de águas cantantes e cristalinas, prefiro apagar da memória à lembrança da aridez do deserto. A natureza de todos os homens tem duas facetas. Uma delas luminosa. A outra, obscura.

— E as mulheres? Todas elas são transparentes para você?

— Como já disse, bint, elas são como as uvas. Aparentemente são transparentes. Mas é só experimentando que se vai saber se são doces ou azedas.

— Pensei que um povo supersticioso como o seu acreditasse em toda sorte de mitos e magias, quando se tratasse de alguma coisa difícil de compreender, como é o caso do íntimo de uma mulher.

— A cultura e a educação são inimigas da superstição. Talvez eu tivesse sido um homem bem melhor, se não me tivessem feito estudar. Chego a invejar alguns dos homens da tribo de Beni Zain, pela maneira simplória como encaram a vida. Eles apenas se casam, se reproduzem, vivem com despreocupação, sem fazer muitas perguntas o que é bom ou mau, certo ou errado. Eu já sou mais complicado, mais difícil de satisfazer. Talvez isso esteja no meu sangue. Maktoub!

Será que ele tinha alguma mistura de sangue? Para um bérbere, era estranho que tivesse uns olhos tão incrivelmente azuis, parecendo duas safiras, em contraste com o tom moreno de sua pele.

— Pelo menos, você não é um homem comum.

Sim, era verdade. Kezam Zabayr, em seu bem talhado terno ocidental, parecia muito mais um árabe convencional. Mas esse outro era diferente.

Ele jamais poderia usar roupas ocidentais sem causar espanto e constrangimento. Era um indomável.

— Ah... Agora a senhorita resolveu retribuir os elogios! — disse ele, algo brincalhão.

— Não quis fazer um elogio. Você sabe muito bem que é diferente de Kezam Zabayr e de Mehmed.

— Só por causa dos meus olhos, bint? — Suas palavras tinham agora um tom cortante. — Olhos azuis não são assim tão raros entre os berberes das montanhas Atlas.

— Não são seus olhos. São as suas maneiras. Você não teme ninguém, não é mesmo?

— Você quer dizer que eu não me rebaixo perante ninguém?

— É isso mesmo. O orgulho de Lúcifer, como se costuma dizer.

— Lúcifer... O braço direito do Todo-poderoso, que caiu em desgraça por seu orgulho e sua ambição. Você está querendo insinuar que estou na mesma situação, me arriscando a perder as boas graças do califa devido às minhas maneiras?

— Já deve ter acontecido, pois você não me parece um homem que goste da função de mero mensageiro, a mando de outra pessoa.

— Procurador, seria a palavra mais adequada à minha função.

— Você é um procurador? Desculpe. Às vezes falo sem pensar.

— E também age sem pensar. Não fosse assim, jamais estaria aqui, neste trem, rumo ao desconhecido.

— Gostaria realmente de ser menos impulsiva. Eu vim para cá na esperança de me tornar independente. No entanto, neste momento cortaria um braço para poder trocar de lugar com uma dona-de-casa suburbana. Pelo menos, elas sabem onde estão, e o noticiário da televisão lhes assegura que o perigo está a quilômetros de distância de seus lares medíocres.

— Você odiaria estar numa situação dessas.

— Desde o aeroporto você notou que sou manca. Por que não me despachou logo de volta, em vez de me fazer passar por tudo isso? Sente prazer em me humilhar?

— Por que você associa humilhação com o seu tornozelo?

— Ora, não queira me dizer que os homens gostam de moças que mancam. Já tive uma boa amostra da reação de um homem diante de um pé aleijado!

— O tal cavalheiro inglês, não é?

— Não quero falar sobre ele. Já o risquei de minha vida. Foi a desilusão causada por ele, depois do acidente, a razão principal que me trouxe até aqui. Ajude-me. Se você tivesse um mínimo de sentimento, providenciaria para que eu pudesse voltar para Casablanca.

— E o que faria por lá? Já admitiu que está com pouco dinheiro e, mesmo que recorresse ao Consulado Britânico, levaria dias até que o cônsul pudesse auxiliá-la.

— Ora, esqueça. Sou uma perfeita idiota! Você é tão insensível que não teria piedade do seu próprio pé, caso ficasse preso numa armadilha.

— Autopiedade é pura perda de tempo. Minha filosofia diz que, quando se começa uma jornada, se vai até o fim. Mesmo num jogo de azar, é preciso saber aproveitar as chances. Diga a verdade: você não ficaria com a curiosidade insatisfeita se voltasse agora, no meio do caminho?

— Já sei, por antecipação, qual é o final desse caminho.

Suponhamos que saiba. Mas, no caso de as suas previsões serem corretas e você não ser aprovada pelo califa, receberá o dinheiro para voltar para a Inglaterra. Pense nesse dinheiro, bint. Foi por causa de dinheiro que você veio para cá, não foi?

Carla titubeou, pois, do jeito que ele expunha a situação, ela parecia uma mercenária.

— Bem... Creio que não há ninguém como um oportunista para entender o outro. Você deve odiar, tanto quanto eu, esse negócio todo, mas está metido nele. E suponho que será bem recompensado pelo califa!

— Com prostitutas ou concubinas? — ele caçoou. — Nunca lhe ocorreu que o califa possa querer me recompensar, pelos bons serviços que presto, com uma jovem de olhos verdes e cabelos cor de ouro?

Carla ficou horrorizada. A palidez que tomou conta de seu rosto fez ressaltar ainda mais o verde de seus olhos. O que tinha mesmo vontade de fazer era sair gritando pelos corredores, para que o trem parasse. Mas estava numa terra estranha, onde os homens tinham suas próprias leis e eram solidários uns com os outros. Será que aquele homem estava com más intenções desde que a conhecera, no aeroporto?

Mesmo com a cabeça conturbada pela dúvida, ela conseguiu raciocinar friamente. Então, levantou-se de repente, com a intenção puxar a alavanca de alarme que faria o trem parar. Caso, é claro, conseguisse alcançá-la.

De nada adiantou. Ele foi mais rápido que seu pensamento e logo ficou de pé, segurando-a com seus braços poderosos.

A proximidade era tanta que Carla sentiu o odor daquela pele morena uma mistura de café, tabaco, couro e cavalo. Nada podia ser mais másculo do que aquele cheiro, e ela começou a se debater, tentando escapar do seu domínio.

— Quietinha! Não faça tolices! Este trem só vai parar em Beni Zain.

Ele a ergueu nos braços, como se ela fosse uma pluma, e a atirou a um canto do assento. E ficou ali, de pé, plantado diante dela.

Carla se encolheu como uma gazela acuada, o coração disparado diante do reconhecimento de sua fraqueza e impotência.

— Vá para o inferno!

— Vou — respondeu ele, sem se perturbar. — Mas preferiria ir com você para o paraíso.

— Paraíso! — repetiu ela. — Para ir para o paraíso, é preciso morrer antes... Até que você me deu uma boa idéia! — Olhou para a portinhola do compartimento que abria diretamente para fora, com a clara intenção de empurrá-la e se atirar.

— Eu não faria isso — disse ele, como se estivesse lendo seu pensamento. — Na velocidade em que estamos, você iria parar debaixo dos trilhos. Fique boazinha e continue a viagem comigo.

O maldito tinha razão! Carla fechou os olhos e se recostou no banco, ouvindo o ritmo das rodas do trem.

"Venha comigo... Venha comigo...", elas pareciam repetir. "Venha comigo... Venha..." Ficou ouvindo, até que conseguiu fugir, através do sono, encolhendo-se num canto do assento como um gatinho desprotegido, ao relento.

 

Carla acordou repentinamente, ainda tonta, sendo envolvida por um manto de lã árabe. Antes que algum grito de protesto lhe saísse dos lábios, o capuz foi abaixado e Carla foi carregada para fora da cabine do trem.

Sentiu braços fortes em torno do seu corpo. Pelo trajeto, percebeu que caminhava pelos corredores do trem. Alguns passos na escada. Devia ter chegado à estação. O capuz lhe foi tirado do rosto.

Só então viu uma porção de camelos à sombra de um muro branco, sendo atiçados para que se levantassem. A cena lhe pareceu um episódio de alguma fábula árabe. Estaria sonhando ou aquilo era real?

— Viajaremos o restante do percurso em camelos. — Os olhos azuis se fixaram nela. Mais uma vez perturbadores. — Já vi que está pronta para reclamar, mas é melhor economizar sua saliva.

— Eu nunca andei de camelo na minha vida! — Mesmo divertida, ela protestou.

— Você viajará num haudaj — explicou ele, e indicou um camelo cor de café com leite, que levava no lombo uma espécie de casinha acortinada.

— Oh, não! — Carla começou a se debater, tentando se desvencilhar do manto. O bérbere continuava seguindo com ela no colo. Não sou nenhuma favorita de um harém para ser escoltada até a sua linda no deserto! Não vou!

— Teria preferido o lombo de um cavalo?

— Vim com você porque pensei que fosse me levar para o castelo do califa, mas as suas intenções são bem outras, não são? — E, livrando a mão dos panos do manto, ela se ergueu, pronta para lhe desferir uma bofetada.

Ele foi mais rápido, segurando o pulso de Carla em pleno ar.

— Que intenções, sua tonta! Não estou assim tão desesperado por mulheres a ponto de precisar seqüestrar uma. Mesmo que seus olhos de esmeralda, sua pele de marfim e seus cabelos cor de ouro sejam uma tentação. Quem você pensa que sou? Algum rapazinho imberbe, louco para saborear seu primeiro fruto proibido? Olhe bem para mim, srta. Innocence. Pareço um adolescente?

Ele parecia tudo, menos um adolescente. Aquele rosto marcante, como que esculpido em rocha, era o rosto de um homem. E de um homem duro e vivido.

Com relutância, Carla sacudiu a cabeça numa negativa, com a impressão nítida de ter passado por uma tola. Ele lhe deu um breve sorriso e acrescentou:

— Você tem lido novelas demais sobre sheiks sedentos de amor e suas rebeldes heroínas. Eu e meus homens vamos conduzi-la para Kasbah, nas colinas de Beni Zain. Este lugar é um dos limites da região, mas o poder do califa se estende pelos quatro cantos da província. E sua severidade é bem conhecida por todos esses homens, para que alguém se atreva a causar qualquer dano à mulher que poderá ser escolhida para um cargo de confiança do palácio. Agora, para ser um pouco mais dócil e compreensiva e se acomodar no haudaj? Posso garantir que é bastante confortável.

— Creio que não tenho escolha — ela respondeu, desanimada. — Vai me dar a sua palavra de que me levará para o kasbah?

— Minha palavra de honra! Tenho a impressão de que você enfiou nessa sua cabecinha de vento que o califa é uma pessoa bem mais cordial e amável do que... Como é que você me chama mesmo? Ah, ajudante-de-ordens! Só espero que não sofra uma chocante decepção!

— É o que eu também espero. Pelo menos, acredito que ele seja um cavalheiro que não me carregaria para fora do trem como se eu fosse uma trouxa de roupas sujas.

— Eu não queria que os outros passageiros a vissem. Poderiam ficar muito curiosos. O que os olhos não vêem o coração não sente. Compreendeu?

— Isso é só uma maneira de dizer. Duvido muito que todas as outras candidatas tenham sido carregadas dessa forma inusitada à presença do califa. Dá para desconfiar das suas intenções, não acha?

— As outras mulheres não são como você. E chega de conversa. Vá tomando o seu lugar.

O camelo que a transportaria ainda estava ajoelhado, à espera da passageira, e o bérbere impulsionou Carla para dentro do cubículo. Em seguida, fez com que o animal se levantasse.

— Não olhe para baixo, enquanto estiver em movimento, senão poderá ficar enjoada do estômago. Lembre-se de que você é marinheira de primeira viagem! — ele recomendou.

Em seguida, cada um foi montar em seu camelo. E começou a jornada.

A paisagem do deserto era incrivelmente fascinante e aquelas areias ondulantes davam a Carla a impressão de estar flutuando sobre as ondas do oceano. A descrição mais acurada dos escritores não trazia a beleza e a imponência daquela imensidão. Apesar de se sentir como um passarinho na gaiola, ela não pôde deixar de ficar fascinada com aquele cenário.

Seu acompanhante vestira um burnous por sobre a túnica, que drapejava ao vento, à medida que avançavam. Seu rosto ficara tapado, só deixando à mostra aqueles perturbadores olhos azuis. Ao vê-lo naqueles trajes excêntricos, o coração de Carla bateu desordenadamente, numa estranha excitação.

Quando o cirurgião lhe recomendara férias, referira-se a alguma praia de veraneio. Por certo, o médico cairia de costas se a visse balançando no dorso de um camelo, em pleno deserto marroquino.

Carla não tinha noção de quantos quilômetros já haviam percorrido, quando o sol começou a se esconder rapidamente e as estrelas deram o ar de sua graça.

A comitiva se aproximou de uma muralha rochosa natural, parecendo uma fortaleza, e uma voz de comando ordenou que todos parassem. O camelo que transportava Carla seguiu o exemplo dos outros e foi se ajoelhando com cuidado, como se soubesse que levava uma carga diferente, preciosa.

Carla se preparou para saltar, mas a posição forçada, mantida por tanto tempo, lhe provocou uma câimbra. Sentiu um repuxão e uma dor aguda na perna esquerda, que se encolheu quando seu guardião a segurou nos braços para retirá-la do camelo.

Ao perceber a situação, ele a colocou sobre a areia e começou a massagear vigorosamente a perna dolorida e encolhida pela câimbra.

— Não faça isso! — protestou ela, envergonhada por exibir tão de perto seu defeito físico.

— Ora, deixe de fricotes! No deserto não se pode ter esses orgulhos bobos. Todos estão sempre expostos a perigos e sujeitos a saírem machucados. Por isso, nos ajudamos mutuamente. Este é um lugar inóspito e desapiedado. É o jardim de Alá e, ao mesmo tempo, o seu inferno. Venha, os meus homens vão acender o fogo para fazer café e preparar a comida, pois é aqui que descansaremos por algumas horas.

Carla ficou de pé e o seguiu. Desejava lhe dar um safanão. Mas a altura descomunal daquele homem, combinada com seu andar imponente e gestos autoritários, lhe tirava qualquer iniciativa. Até aqueles homens rudes e másculos da comitiva o olhavam com admiração e respeito. Nada mais lhe restava fazer senão obedecer. Foi com timidez que ela pediu:

— Eu... Bem... Se fosse possível, gostaria de tomar um banho. Sei que a água é escassa no deserto, mas vi que um dos camelos veio carregando um tonel.

— Escassa ou não, eu seria um bruto se recusasse aquilo que, neste momento, é o seu maior desejo.

Carla nem podia acreditar que ele fosse tão altivo, a ponto de desperdiçar o precioso líquido com um simples banho.

— Oh, serei muito grata!

— Não seja tão grata. Um "bárbaro" como eu pode interpretar sua gratidão de outra forma.

Andando com a graça e elasticidade de um leopardo, ele se dirigiu a um dos seus homens e falou com ele, no próprio idioma, por alguns minutos. Carla ficou só observando. Logo houve uma movimentação, e os homens começaram a descarregar os camelos, empilhando vários fardos no chão.

— Daylis providenciará para que você possa tomar seu banho com privacidade. Eles vão armar uma tenda e arrumar uma pipa que sirva de banheira. Será tudo muito improvisado e primitivo, mas espero que aprecie assim mesmo, tendo em vista as circunstâncias.

Carla sabia que ele estava sendo sarcástico, mas, de qualquer maneira, ela poderia se refrescar e trocar de roupa. Sentia-se pegajosa, com areia pelo corpo todo.

— Vou precisar da minha mala. Obrigada. Foi muita bondade sua conseguir tudo isso para mim.

— Bondoso é coisa que eu não sou. Mas compreendo que, sendo uma mulher, enfrentando sua primeira jornada sob o calor do deserto, deseje sentir-se limpa e asseada. Meus homens é que estranharam. Nós usamos estas túnicas largas e arejadas, justamente para proporcionar ventilação ao corpo. Mas as nossas peles já estão curtidas pelo sol e habituadas ao atrito da areia. A sua pele é bem mais sensível e delicada,

Os olhos azuis percorreram avidamente as partes expostas de seu corpo, agora salpicadas por grãos de areia. Carla estranhou que aquele bárbaro pudesse demonstrar tanta compreensão pela sua vontade de se lavar. Até aquele momento, apesar de seus temores, ele não havia demonstrado ser afoito com as mulheres, mas logo ela se lembrou de que a religião maometana lhe permitia ter três esposas e quantas concubinas pudesse sustentar. Com tantas mulheres à disposição, não se justificava que se impressionasse com uma só. Ainda mais sendo manca...

Em pouco tempo foi montada uma barraca, que os homens tiveram o cuidado de forrar com tapetes de pele de carneiro. Uma enorme tina de água fresca foi colocada no meio da tenda. Armada de toalha, sabonete e roupa limpa, Carla se jogou naquela água por mais de meia hora. Vestiu uma prática calça comprida, uma blusa leve, e prendeu os cabelos num coque improvisado. Ao sair da tenda, sentiu um aroma de carneiro grelhado e de café. O apetite, que já estava sentindo, virou fome.

Olhou em torno, à procura de seu acompanhante e, para sua surpresa, o viu sair de uma barraca semelhante à sua, trajando um kaftan e calçando chinelos marroquinos de ponta virada para cima. Naqueles trajes descontraídos, ele parecia bem mais acessível. Quer dizer, então, que ele também havia tomado um banho, mesmo depois de dizer que os homens do deserto não necessitavam de tanto asseio. Carla sorriu sem querer. Aquele bérbere civilizado deveria exigir que seus homens levassem uma vida austera e primitiva, mas ele, por sua vez, se cuidava, e agora que havia uma mulher no acampamento, não queria cear ao lado dela cheirando a suor e a camelo.

— Adorei o meu banho. E você gostou do seu? — ela perguntou de propósito, dando a entender que tinha percebido a sua manobra.

— Um cavalheiro precisa comportar-se de acordo com as circunstâncias. Principalmente quando está com uma bint que julga um homem pela quantidade de banhos que toma, e não pelas orações que reza.

— Não é verdade. A coisa que mais detesto é uma mente suja, pois não há água e sabão que a possam lavar.

— Acha que eu tenho uma mente suja em relação a você, bint?

Ele se encaminhou para junto da fogueira. Mas ela não deixou a conversa esfriar.

— Acho que tem uma mente cínica. Para você, as mulheres não passam de um esporte, não é?

— Cada coisa tem seu tempo. Posso apreciar a caça, tanto quanto aprecio uma mulher que esteja nos meus braços. Neste momento, por exemplo, prefiro comer uma boa costeleta de carneiro com a ajuda dos dedos.

Mostrou uma pele de cabra estendida no chão, para que ela se sentasse, e se acomodou a seu lado.

A comida estava com um ótimo aspecto. Com a fome que sentia, Carla não iria não fez cerimônia.

— Mulher de Deus! — exclamou ele, quando a viu limpar o prato. — Você é um bom garfo, hein? Quem diria! Do jeito que você come, deve ser uma "falsa magra", mas com carnes rijas. — Nesse momento, viram no céu uma estrela cadente, e ele comentou: Uma alma que vai para o Purgatório! Talvez mais um demônio sendo expulso do Paraíso. Que caiu em desgraça por ser muito ambicioso — completou — Os heróis e os deuses não escapam às fraquezas humanas. Nem as mulheres. Veja o quanto você se arriscou só porque aquele anúncio dizia que um homem rico precisava de uma dama de companhia,

— Você continua achando que sou uma mercenária! Pode ser que lhe interesse saber que quando saí daquela clínica, depois das operações, fiquei a zero e sem esperanças de ganhar qualquer dinheiro, pois a minha carreira como manequim estava encerrada.

— E o seu rico admirador perdeu o interesse por você, hein?

— Isso foi o menos importante. O pior é que perdi meu emprego. Concordo que vim para cá porque havia um bom dinheiro envolvido. Não sou nenhum anjo, assim como você não é nenhum santo, portanto, pare de me julgar.

— Acha que a estou julgando?

— Acho. Você me olha como se eu tivesse duas caras, e você estivesse tentando descobrir o outro lado da medalha. Está com receio que o califa goste de mim e que eu não seja suficientemente digna para as irmãs dele?

Ele acendeu um de seus charutos finos e, depois de tirar uma baforada, a encarou com os olhos quase fechados.

— Os homens podem ser enganados por um rostinho bonito, bint. A voz doce de uma mulher é capaz de destilar veneno. Mãos longas e macias são capazes de empunhar um punhal. Um chefe do deserto não pode confiar incondicionalmente nas pessoas, pois se arrisca a levar uma cascavel para o seio de sua tribo.

— E o califa confia em você?

— É difícil ter certeza disso. Zain Hassan nunca tem muita certeza se não estão armando um complô às suas costas, se não será vítima de um atentado contra á sua vida. O sangue que corre nas veias dos homens do deserto é quente, e tanto pode ferver por ódio... Como por amor. Beni Zain é uma grande província, que precisa ser mantida sob controle com energia e pulso firme. Mas o califa não é um tirano, se é isso que está pensando. Só é cuidadoso. E se um dia ele decidir ter uma segunda esposa, precisará ter certeza de que ela não faz parte de algum plano subversivo, e também que tenha um ótimo desempenho no leito conjugal.

— Será possível uma coisa dessas em nossos dias? — Carla estava assustada com o que ouvira e aquela explicação a faria entender, cada vez mais, a brutalidade da vida no deserto. — E o amor não entra nessa história?

— Amor! — Ele sacudiu a cinza do charuto com um gesto impaciente. — O amor pode acontecer por sorte. Mas geralmente a motivação das mulheres nesse tipo de casamento é mais política ou mercenária.

— Como podem ser tão frias?

— Por quê? Você se julga romântica? Mesmo com a desilusão que sofreu com o seu ex-noivo inglês?

— Fiquei magoada porque pensei que ele fosse sincero. E pare de falar desse homem de uma vez por todas! Qual é a sua intenção? Martirizar-me?

— Talvez. E você veio em busca do amor nesta terra árida, onde até os corações são secos?

— Não! E, se quer saber de uma coisa, não estou disposta a ouvir você.

Carla ficou sobre os joelhos, pronta para se levantar, mas ele a puxou de volta, e ela tornou a cair sentada na pele de cabra.

— Aonde você pensa que vai? Não tente escapar de mim. Mesmo que quisesse cometer a loucura de fugir sozinha por essa imensidão, eu estaria alerta. Os homens do deserto dormem com um olho fechado e outro aberto.

— Deve estar sonhando se pensa que vou dormir com você!

Ele jogou a cabeça para trás e riu alto.

— E quem disse isso? Depois você diz que sou eu que tenho a mente suja!

— Você é odioso! Parece que sente prazer em me espezinhar.

— Nada disso. Só quero protegê-la. O califa pode mandar cortar minha cabeça se eu permitir que você se perca no deserto. Fui claro?

— Como um cristal! Além de escravo, motorista, ajudante-de-ordens e procurador, você é também um protetor das mulheres de seu patrão?

Carla esperava que ele lhe desse um tapa por tanto atrevimento, mas, como resposta, ouviu apenas uma risadinha cínica.

Meia hora depois, Mehmed trouxe um grande tapete e uma colcha, feita com peles de lobo, para perto da fogueira.

— Agora durma! — ordenou seu acompanhante e, sem a menor cerimônia, estendeu-se ao lado dela. Sentindo que ela se encolhia, ele advertiu: — Não costumo me aproveitar de uma mulher, e não vai ser agora que vou começar, bint. Relaxe, feche os olhos ou, se preferir, conte as estrelas, até pegar no sono. Mas pare de esticar os músculos. Poderá ter outra cãimbra. Amanhã quero que se apresente ao califa com o rosto descansado, e não como um trapo!

Apesar de seus temores, da proximidade perturbadora daquele homem detestável, Carla não resistiu ao cansaço da longa viagem e, poucos minutos depois, adormecia sob o manto das estrelas e das peles de lobo.

 

A estranha construção era feita de pedras calcárias de formatos irregulares, amontoadas umas sobre as outras, formando vários blocos. Dava a impressão de ser o castelo de um mago, uma casa encantada, dentro da qual histórias misteriosas de toda espécie deviam acontecer.

Pelas altas paredes, erguiam-se trepadeiras, como se fossem cobras verdes subindo até os telhados.

Era o kasbah de Zain Hassan bin Hamid, senhor supremo de Beni Zain, comandante e chefe de uma vasta região. Um homem extravagante, rico e totalitário a ponto de mandar publicar um anúncio numa revista inglesa e promover um leilão de mulheres, para o qual ela, Carla, acabara se inscrevendo.

Um camelo a tinha trazido até Beni Zain, mas Carla sentia-se aturdida, como se tivesse sido transportada por um tapete mágico.

Olhou ao redor, pelo pátio descomunal, e depois para seu acompanhante. Ele não havia mentido. Seguira as ordens do califa e aquela arrogância toda não passava de um blefe. Afinal, ele também se dobrava sob o facão do chefe supremo.

Mas mesmo no kasbah ele não perdera a imponência, nem o porte viril e altivo de comandante. Notando que Carla o observava, comentou:

— Missão cumprida! E você, que pensava que eu tinha outras idéias a seu respeito...

Com efeito, Carla já não o temia, pois o conhecia. Mas que dizer do califa, ainda um estranho? Que surpresas o todo-poderoso da tribo bérbere lhe reservaria?

Não me deixe sozinha! Estou morta de medo e sei que a qualquer momento você irá embora, sem sequer se despedir desta boboca que o acompanhou até aqui, teve vontade de dizer. Mas engoliu as palavras, com receio de parecer ridícula e inoportuna. Ele cumprira direito sua tarefa e agora merecia “um repouso de guerreiro” nos braços das mulheres cor de mel de sua própria raça.

— Não é preciso arregalar os olhos desse jeito, como se a sua cabeça fosse rolar. Tudo que vão fazer é levá-la para a ala onde ficam as escravas e deixá-la por lá até que seja solicitada. Você pediu por isso, não pediu?

— Mas não pedi para que me fosse jogado na cara, a toda hora, que fui uma débil mental! Fale sério. O que vai acontecer agora? Alguém vai tomar conta de mim?

— Sim. Você será levada para o harém e lhe darão uma fatima para ficar à sua disposição. Par sua informação, fatima quer dizer escrava. Porque está tremendo tanto?

E, num gesto inesperado, abraçou-a pela cintura com o longo chicote que trazia atado ao pulso, puxando-a para perto e baixando sobre seu rosto aqueles olhos azuis, belos e expressivos. Mesmo que nunca mais visse, Carla jamais esqueceria aquele olhar.

— Não tente se debater, pois o couro poderá cortá-la — ele advertiu, e continuou, com ar malicioso: — Nunca se sabe. Se o califa não a quiser, talvez eu possa dar um bom lance pela "moça de olhos verdes"!

— Você não pode fazer isso! — protestou Carla, com medo, sentindo o atrito do chicote através da leve seda da blusa. — Se ele não me aprovar, vou ser mandada de volta para casa. Foi o que me prometeram.

— Promessas nem sempre são cumpridas...

— O que quer dizer com isso?

— Ainda não se deu conta, srta. Innocence, da imprudência de ter dito que nenhum dos seus amigos e conhecidos sabe do seu paradeiro?

— Significa que você poderá me manter aqui, contra a minha vontade?

— Já aconteceu com outras mulheres, e há um ditado que diz que "a história se repete". Nunca ouviu dizer que ao norte da África pode-se obter um bom preço por uma mulher européia? Na verdade, todos os homens da tribo apreciam mulheres européias. Mas você é jovem, virgem e tem cabelos da cor do ouro, maravilhosos.

Carla estava apavorada. Ele dissera uma verdade terrível, que só agora ela encarava de frente. Tinha ouvido boatos de que naquelas regiões existia o comércio de escravas brancas, e que muitas moças européias haviam desaparecido, sem que nada pudesse ser feito. Alguns dos raptores usavam e abusavam das moças, para depois as venderem para as casas de prostituição.

— Pode tremer à vontade, bint. Aprenda a lição, para nunca mais ser levada por um impulso inconseqüente, com o risco de cair sob o domínio de um homem que nem conhece.

— Você é um demônio de crueldade!

Avançou para ele, de punhos fechados, mas ele apertou mais o laço, e ela gritou.

— Sinta o meu chicote e se lembre sempre da minha advertência.

Em seguida, desapertou o laço e se dirigiu para trás de umas palmeiras, de onde surgiu Mehmed. Após trocar com ele breves palavras em árabe, desapareceu nas sombras.

— Siga-me! — disse Mehmed.

Carla não teve outro remédio senão ir atrás dele pelo labirinto do kasbah. Por fim, atravessaram um enorme portão de jacarandá, que dava para uma escada em círculos. Ela sentiu-se como uma prisioneira que ia ser trancada em alguma torre, e seu medo se confirmou quando entraram num quarto apertado, bem no topo da escada. O cômodo tinha um formato circular e era rodeado de pequenas janelas, cujas venezianas eram de madeira recortada como uma renda.

Carla olhou em torno, em parte fascinada por aquela pitoresca arquitetura, em parte amedrontada, relembrando as coisas terríveis que aquele satanás de olhos azuis andara dizendo.

Fincou as unhas nas palmas das mãos para controlar o nervosismo que sentia ao pensar que estava ali, presa naquele estranho quarto, à espera do encontro com um homem desconhecido, um homem cujo poder era absoluto naquele lugar.

Mehmed depositou a mala ao lado de uma cama ampla e retirou-se pela porta ovalada.

Carla ficou nervosa, na expectativa de ouvir uma chave girando na fechadura, que a trancaria ali dentro. Mas seu receio não tinha fundamento. O kasbah ficava bem no coração do deserto, e, se ela tentasse fugir, o máximo que poderia fazer seria percorrer as ruelas intrincadas e os becos sem saída, que formavam a cidadela, semelhante a uma enorme colméia. Fora daquele lugar, só a esperavam as areias escaldantes do deserto.

Por enquanto, o melhor era conformar-se com aquele quarto amplo e fresco. O teto era decorado com rosetas douradas. A iluminação era feita por meio de lampiões de vidro azul, pintados com os mesmos arabescos das venezianas e suspensos ao teto por correntes. No chão, espalhavam-se tapetes de lã tecidos à mão, nos mais variados padrões e cores. Um armário e uma penteadeira estavam encostados à parede, e mesinhas baixas de ébano e enormes almofadões de couro trançado nas cores azul, vermelho e dourado tinham sido espalhados pelo quarto.

Nem acredito que estou num lugar desses! Disse Carla para si mesma, olhando, assustada, para todo aquele deslumbramento.

Sentindo a garganta seca, procurou em torno até que viu uma garrafa de cristal contendo um líquido rosado. Sem titubear, encheu um copo. Experimentou um gole e chegou a fechar os olhos de satisfação. Era delicioso! Pelo sabor, devia ser um suco de damasco, com umas gotas de limão, adoçado com mel. Virou o copo como uma criança gulosa. Bebeu até a última gota.

Depois de saciar a sede, tudo à sua volta lhe pareceu menos terrível. Entre dois panos pendurados nas paredes, viu uma arca cravejada de taxas douradas. Não se conteve: sua curiosidade foi mais forte do que tudo. Abriu a tampa e um perfume de sândalo se espalhou pelo ambiente.

Dentro da arca, encontrou uma variedade de trajes orientais, manufaturados com tecidos finíssimos — sedas, veludos e gazes. Tirou de dentro uma túnica de seda e um casaquinho de veludo verde tão macio quanto o pêlo de um gato angorá. Levou-os de encontro ao corpo. Eram lindos!

Aquela arca continha um enxoval completo, com peças dignas de uma princesa. Por que estariam naquele quarto? Teriam sido postas ali para que ela as usasse?

Recolocou a túnica e o casaquinho no lugar e fechou a tampa. Mesmo que aquelas roupas fossem tentadoras, afinal, ela era uma moça inglesa e não podia perder a própria identidade vestindo-se como uma odalisca. Já tinha feito bobagens demais, permitindo ser trazida até aquele lugar distante pelo arrogante ajudante de ordens do califa.

Soltou um gritinho ao tropeçar num daqueles almofadões espalhados pelo chão. Seu tornozelo ainda estava fraco e dolorido pela viagem, e ela caiu sentada sobre o pufe, cerrando os dentes de dor e chorando, com dó de si mesma.

Ficou ali por algum tempo, sem ter noção das horas, pois seu relógio de pulso tinha parado durante a travessia do deserto. Começou a bocejar, desconfiando que naquele líquido havia algum outro ingrediente, além de damascos, limão e mel. O que teriam posto naquela bebida? Seria algum entorpecente? A sonolência era irresistível.

Não! Não queria se entregar ao sono. Mas seu corpo cedeu involuntariamente e Carla acabou se deitando num dos tapetes.

Maktoub: as mãos do destino! Pois bem, vou me entregar àquelas mãos, pensou, ao se abandonar ao sono que a dominava. Ao menos teria uma cara melhor quando chegasse a hora de ser apresentada ao califa.

Ao esticar a perna esquerda para acomodá-la melhor, percebeu que já não estava mais deitada no chão, e sim, em cima da cama.

Será que caíra num sono tão rápido e profundo que nem percebera? Seu coração começou a bater, descompassado. Quem teria entrado ali? Será que aquele homem alto, de olhos azuis, ficara observando-a enquanto dormia, esperando que acordasse para dizer que iria ser escolhida para ser a companheira... Dele mesmo?

Mas o quarto redondo estava vazio e as luzes dos lampiões azuis estavam acesas.

Lá fora, a escuridão era completa. Deviam ter colocado algum comprimido naquela bebida rosada para ela dormir tantas horas seguidas e ser transportada para a cama sem se dar conta.

Voltou a ter medo e, erguendo-se do leito, começou a procurar, muito aflita, pelos sapatos que alguém retirara de seus pés. Encontrou-os a um canto da cama e os calçou apressadamente. Depois abriu a porta do quarto.

Apoiando-se no corrimão, começou a descer a escada, sentindo uma ligeira vertigem. Ao chegar lá embaixo, atravessou as arcadas que davam para o pátio. Não tinha intenções de fugir, mas precisava encontrar alguém para perguntar o que iria acontecer com ela.

Ao chegar ao último arco, notou um clarão vermelho e um murmúrio de vozes grossas, que soavam de forma diferente aos seus ouvidos europeus.

Escondeu-se por trás de uma coluna, e ficou olhando o pátio, procurando suster a respiração para não ser percebida.

Uma enorme fogueira ardia ao lado de uma arena, onde dois lutadores muito fortes, de peito nu, lutavam sob as vistas de um grupo de homens que formavam uma platéia barulhenta.

Eu devia ter adivinhado, murmurou ela para si mesma, ao ver aquele gigante erguer o adversário com os braços musculosos, reluzentes de suor, e jogá-lo em cima de um acolchoado.

Quando o vencido caiu estendido, o vencedor colocou um pé em cima de seu peito, numa atitude de triunfo. Por todos os lados, as vozes gritaram:

— El Zain, baraka, baraka!

Carla não podia acreditar em seus próprios ouvidos nem em seus olhos, mas era verdade. O homem que saíra vitorioso da luta corpo a corpo olhou em volta, atendendo à aclamação, e soltou uma risada muito conhecida dela. Em seguida, saiu de arena e, apanhando uma ampla capa, jogou-a por cima de seus ombros.

Carla sentiu-se pregada ao chão, muito assustada, e, apesar dele vir caminhando em sua direção, não conseguiu dar um passo.

Estava vivendo um verdadeiro pesadelo, rememorando todos os desaforos que dissera àquele homem durante a viagem pelo deserto, o homem que, tudo indicava, era o próprio califa!

— Então, não teve paciência de me esperar? Precisou vir à minha procura? Como é? Dormiu bem?

— Puseram alguma droga naquela bebida, não foi? — perguntou Carla. E pensar que ela havia feito tantos comentários indiscretos sobre sua vida e sua maneira de ser. Mais do que nunca, odiou aquele bárbaro que a enganara. — Você gosta de jogos sujos, hein, El Zain? Tanto no que se refere a uma mulher, quanto ao que considera ser um entretenimento para os homens de sua tribo.

— Gosto de fazer troças e de luta livre. Preciso de distrações como qualquer um. Charadas são uma das diversões preferidas dos orientais, e eu sou oriental até a raiz dos cabelos.

Enquanto andavam, Carla pôde notar o vigor dos músculos do antebraço e sentir o odor másculo que emanava daquele corpo ainda marcado, em alguns pontos, pelas mãos do lutador vencido.

Lembrou-se de tudo o que fora dito sobre o califa: que ele comandava seu povo com grande força; que já tivera uma esposa; que, logo após o nascimento dele, sua mãe fora estrangulada, pois o filho que gerara, com aqueles olhos azuis, era uma prova de sua infidelidade.

Por que o haviam poupado? Teria seguido o mesmo destino da mãe se fosse uma menina?

— Você é mesmo um enigma — disse ela, diante daquelas reflexões.

— Ambos somos. Venha. Preciso tomar um banho e trocar de roupa. Você vai jantar comigo, nos meus aposentos.

— Antes de mais nada, quero saber de uma coisa. Afinal, vou ficar aqui? O que vai acontecer comigo?

— Claro que vai ficar! Sobre isso, não resta a menor dúvida — disse ele, decidido.

— Quer dizer que vou ser a dama de companhia das suas irmãs? É isso?

— A dama de companhia já foi escolhida. É a viúva de um médico egípcio, uma mulher bem mais culta e preparada do que você, bint, que poderá enriquecer a inteligência daquelas duas garotas.

— E eu?

Carla se encostou a uma das colunas, sentindo o coração saltar em seu peito.

— Você? — Ele deslizou a mão pelos cabelos loiros, até as orelhas, causando-lhe um arrepio. — Você, minha pequena mercenária... Você vai ser minha esposa.

Carla deu um pulo, como se tivesse sido baleada, e ficou sem fala quando ele a segurou pelo braço e começou a percorrer aquele labirinto de arcadas e corredores, Por fim, conseguiu balbuciar:

— Eu... Ora... Pare de brincadeiras comigo. Você... Você pode manipular seu povo à vontade, mas... Mas acontece que eu sou inglesa!

— Não é uma sorte? É justamente o que eu quero. Misturar um pouco de sangue inglês ao meu, para gerar um filho com as qualidades de ambas as raças: frieza, coragem, inteligência e vigor físico. E com a vantagem de que você é uma mulher temperamental e voluntariosa, com a qual terei prazer de lutar, e não um objeto passivo, feito apenas para ser acariciado.

— Você deve estar louco varrido! — respondeu Carla, com rebeldia e audácia. — Como poderá casar-se comigo contra a minha vontade?

— Aqui, em Beni Zain, eu posso fazer o que bem entendo.

Ao dizer isso, a forçou a entrar através de uma porta que dava para uma espécie de salinha, que não tinha nenhum móvel, com apenas uma fonte de mármore ao centro.

Havia outra porta para além da fonte, e Carla percebeu que era a entrada para o apartamento particular dele. Só entraria ali à força, se ele a puxasse pelos cabelos, como no tempo das cavernas!

— Ah, você também gosta de uma luta corpo a corpo!

Num segundo, ele a imobilizou, prendendo seus braços por trás das costas. Carla não pôde fazer nenhum movimento e seus olhos verdes lançaram chispas de ódio.

— Eu o detesto! — gritou. — Você é o diabo em pessoa, mas não pense que tenho medo, como os outros. Prefiro me atirar do alto do telhado a cair nos seus braços!

Mas aqueles braços eram poderosos demais, e ela se conscientizou de que suas palavras, suas intenções, sua inteira liberdade poderiam ser anuladas pela força e vontade daquele homem.

Foi com voz suplicante que perguntou:

— Por quê? Por que logo eu, El Zain?

— Qualquer um poderia pensar que você está querendo elogios. É bem verdade que neste momento você está parecendo um trapo. Mas esses olhos de jade, essa pele tão suave, esses cabelos cor de ouro, não valem nada? Preciso mesmo esclarecer por que eu quero que seja a minha kadine? — E olhou para ela como se a quisesse engolir viva.

— Mesmo do jeito que eu sou? Sou aleijada, El Zain. Ando mancando e estou longe de ser a perfeição que o senhor de Beni Zain pretende que eu seja.

— No Oriente, temos um ditado, bint. Dizemos que nada deve ser perfeito para não provocar a inveja do diabo. Os dois magníficos tapetes de Bokhara que você tem sob seus pés possuem uma falha em sua textura. Esses lampadários mouriscos que você vê sobre sua cabeça, cada um deles tem um vidro trincado. Esses painéis de damasco que estão pendurados nas paredes podem parecer deslumbrantes, mas alguns dos fios de prata e ouro foram partidos propositalmente. Somos um povo supersticioso, bint.

— Eu também! — disse ela, fitando diretamente aqueles olhos azuis, para que ele entendesse que, há pouco, ela se sentira nua, pois o olhar dele continha muito desejo.

Ele inclinou a cabeça, de um jeito irônico, como se estivesse aceitando sua acusação.

— Não faz a mínima diferença o que você pensa ou deixa de pensar de mim. O que sei é que você não foi muito prudente quando mandou aquela fotografia junto com a carta, candidatando-se ao emprego do anúncio. A foto foi despachada para mim, em Casablanca, e eu logo me apressei em mandar uma mensagem ao meu emissário. Quer saber que mensagem era essa? Pois bem. Eu mandei dizer: "Verifique se ela é virgem". Kezam Zabayr é um homem experiente para esse tipo de avaliação, e me garantiu que você tinha um corpo intocado, apesar de sua mente estar danificada pela ambição do dinheiro.

— Você! Seu demônio maldito! Você e seus assassinos, planejando tudo na surdina! Mas não pense que vai se sair bem dessa! Eu tenho amigos que vão dar pela minha falta. E começarão a fazer investigações.

— Pode ser que com o tempo sua ausência seja notada, srta. Innocence. Mas, até lá, já será a esposa de Zain Hassan. E não haverá mais nada a fazer. Não existe lei que possa tirar você da minha custódia. A não ser que seus amigos queiram entrar em guerra comigo.

— Você está delirando! Então acredita mesmo no seu poder absoluto?

— É melhor que você também comece a acreditar, bint. Eu não desperdiço meu fôlego com causas perdidas. Nosso casamento, em termos, já é um fato consumado. Seu vestido de noiva já está sendo feito e suas jóias estão sendo escolhidas. Você terá aulas sobre as palavras que deverá pronunciar durante a cerimônia. E um dos anciões da tribo vai lhe ensinar as frases em árabe. Estou sendo suficientemente claro?

— Não quero escutar mais nada!

Num gesto infantil, Carla tapou os ouvidos com as mãos, o que não impediu que ouvisse a risada estrondosa, no instante em que ele a ergueu do chão, como se ela fosse uma pluma, e a levou até um gigantesco divã, com almofadas negras e douradas.

— Se pretende desmaiar, pelo menos terá mais conforto assim. De fato, você tem todo o jeito de ser virgem. É assim que eu quero. Nunca teria um filho com uma mulher que tivesse sido usada por outros homens.

Carla ficou estupefada.

— Então, consegui ludibriar o seu emissário? Ele acreditou mesmo em mim, quando eu disse que era virgem? Claro que eu tinha um amante! Pensa que não andei dormindo com o meu noivo?

Ele a agarrou brutalmente pelos cabelos e lhe segurou a cabeça, fazendo que, com isso, ela não pudesse evitar de fitar seus olhos azuis.

— As armas de uma mulher são sempre traiçoeiras. Mas eu posso tirar a prova de sua falsidade agora mesmo, bint. Posso provar que você é tão pura quanto minhas duas irmãs adolescentes, que passaram suas vidas trancadas num harém.

— Mas eu não vivi uma vida vigiada — ela argumentou. — Para começar, nasci num bairro pobre e super habitado de Londres. E depois fui trabalhar numa profissão que obriga a um constante contato com homens. E vivia sendo assediada por admiradores que me ofereciam presentes e dinheiro. Você mesmo disse que tenho um caráter mercenário.

— O que eu digo, bint, é que você está se enredando numa teia de mentiras. Quer que tire a limpo isso agora mesmo? Quer? — Ao dizer isso, ele colocou um joelho sobre o divã e começou a se deitar sobre ela.

A sensualidade daquele homem era sufocante, Exalava por todos os poros de seu corpo moreno e forte. Carla se retraiu como um animal acuado, cheia de terror.

— Nenhuma mulher realmente vivida ficaria com esse olhar aterrorizado — disse ele, seguro de si.

— Um bárbaro! Isso é o que você é!

Carla teve desprezo por si mesma ao sentir que seus lábios tremiam. Nunca, ninguém a tinha acovardado tanto quanto aquele bérbere atrevido. Até as dores do acidente com o cavalo ela havia suportado com coragem.

— Que garotinha mais boba! Eu poderia levar minha ameaça até as últimas conseqüências. Mas você ficaria desonrada, não é mesmo? Pelo menos, com o casamento a sua virtude não será manchada. Olhe só! Você está corando! — Soltou uma sonora gargalhada. — Você fica vermelha só de sentir minhas mãos, só de me ver de peito nu! E pensar que, no Ocidente, as praias vivem cheias de homens seminus. Aqui no deserto as coisas mudam de figura. Tudo tem mais intensidade, mais emoção. Quando oramos, sentimos no fundo da alma cada palavra que dizemos; quando lutamos, o fazemos com desprendimento, sem temer a morte; quando fazemos amor, podemos prolongar o momento por uma noite inteira ou por toda a eternidade. Mas, se formos desonrados, não teremos mais razão para viver.

Agora, as mãos dele a seguravam pela nuca e Carla só encontrou um meio para se livrar daquele contato,

— Kezam Zabayr me contou que você é viúvo. O que aconteceu com sua mulher? Por acaso arrumou um amante e você a mandou executar?

Um silêncio assustador pairou no ar. O mesmo silêncio que antecipa o bote mortífero de um leopardo. Em vez de retirar a mão, ele começou a lhe apertar a garganta, como se quisesse estrangulá-la,

— Eu seria capaz de matar qualquer outra pessoa que dissesse uma coisa dessas! Mas você foi trazida para cá com uma finalidade e não quero desperdiçar tanto trabalho e tempo à toa! — Zain Hassan abrandou o aperto e continuou: — Sim, eu tive uma esposa, a minha doce e amada Farah! Ela estava com apenas dezessete anos quando nos casamos. Era linda, esbelta, com a pele cor de mel e olhos que pareciam amêndoas. Era a minha alegria de viver, minha felicidade! Mas dizem que a felicidade plena não é deste mundo e ela morreu ao dar à luz o nosso filho. Seu último desejo foi ser sepultada nas areias do deserto, junto ao kasbah. Quando galopo num cavalo até a exaustão, ou luto corpo a corpo com um companheiro, ou mesmo decido ter alguém como você, é para preencher a falta que ela me faz. — Ele se levantou do divã. — Se eu casasse novamente com uma mulher bérbere, ela me traria recordações dolorosas do tempo em que Farah me olhava amorosamente com aqueles olhos de gazela. Ela morreu há doze anos. Parece uma eternidade!

Carla levou a mão à garganta, os olhos fixos naquela máscara de sofrimento.

— Se você ao menos tivesse um filho... — começou a dizer, mas ele a interrompeu.

— Eu tive um filho, bint. Ele tinha apenas quatro anos quando, brincando na areia, foi picado por um escorpião. Ele era tão lindo e adorável quanto a mãe! O veneno atingiu diretamente a veia e o menino morreu nos meus braços. Foi enterrado ao lado da mãe, para que ficassem juntos e eu pudesse ter perto de mim os dois seres que mais amei na vida acima de você, roumia. Você será minha e conceberá outro filho para a glória de Beni Zain. Estamos entendidos?

Nem por um segundo Carla duvidou da veracidade daquela história incrível.

Há muitos anos passados, ele havia enterrado seu coração junto com uma moça chamada Farah, e agora queria casar-se novamente apenas para ter outro filho, um varão que pudesse imperar futuramente sobre a tribo, mas que nunca seria amado como aquele menino de quatro anos que morrera tragicamente, enquanto brincava na areia. Aquele segundo casamento seria apenas uma conveniência política.

— Não! — Carla se revoltou. Sua intenção era gritar, mas a negativa foi apenas um sussurro. — Não, por favor! — suplicou, escondendo o rosto entre as mãos.

— Por que não? — disse ele, implacável. — Você me contou que não pode continuar com a sua carreira, e eu poderei lhe proporcionar um padrão de vida e uma posição social ainda mais altos do que o cavalheiro inglês lhe iria dar. Era por isso que você ia se casar com ele, não era? Para se tornar uma mulher rica e de projeção social. Não se esqueça de que sou o chefe supremo de Beni Zain, e a mulher que eu escolher para esposa terá criados e, se desejar, sua própria guarda de segurança, para poder ir aonde quiser. Poderá até ir passear na Medina e cultivar amizades femininas. De uma certa forma, Carla, você terá sua própria vida.

— Não! — Dessa vez ela gritou abertamente. — Não desejaria ser sua esposa, nem que você fosse o último homem sobre a Terra!

— Porque sou um bérbere? Porque sou um homem com pele e crença diferentes das suas? Porque, aos seus olhos, não passo de um bárbaro?

— Não é por nada disso. É somente porque eu não amo você.

— Nem eu te amo, bint — disse ele, com igual desprezo. — O que tem isso a ver com o nosso negócio? Porque esse casamento não passa de uma transação comercial, onde cada um dos sócios levará a sua vantagem. Você terá boas roupas, jóias, conforto; e eu, um filho varão. Sempre admirei sua raça e quero que ele tenha sangue inglês nas veias. Foi para isso que você veio cair em minhas mãos!

Em suas mãos! Aquelas três palavras a apavoraram mais do que tudo, e ela se atirou para fora do divã, sem sequer se preocupar com a fraqueza do pé defeituoso, numa tentativa frustrada de alcançar a porta.

— Não faça isso comigo! — pediu, suplicando, quando ele a reteve. — Você não entende? Como poderia ter um filho seu, se não sinto nada por você?

— É só se entregar nos meus braços e me conhecer mais intimamente, como nunca conheceu a nenhum outro homem — disse El Zain, intencionalmente.

— Você não tem coração!

— Nisso você tem razão, bint. Meu coração jaz num túmulo, enterrado nas areias do deserto. Mas você é bela e excitante, e o restante do meu corpo ainda está intacto.

— Você é um monstro e tenho certeza de que não hesitaria em me bater se eu começasse a gritar.

— Tenho outro sistema para tratar de mulheres histéricas!

— Casamento não é a palavra adequada para aquilo que você quer. A palavra certa é libertinagem!

— Eis uma palavra sonora! Mas, se eu quisesse ser apenas libertino, não teria proposto casamento. Você é contraditória, mulher! — Deu um puxão em Carla de encontro ao seu peito e lhe sussurrou ao ouvido: — De minha parte, a perspectiva de gerar um filho com você não tem nada de desagradável. E eu até poderia lhe ensinar a sentir um certo prazer em ser a minha kadine.

— Preferia ser estraçalhada pelas garras de um tigre! — E, num gesto impensado, Carla arranhou as costas nuas dele. O sangue escorreu.

— Sua pequena shaitana! — ele anunciou, de dentes cerrados. — Sente-se melhor agora?

— Eu me sentiria melhor se tivesse uma faca para cravar-lhe no peito!

— De nossa união só poderá sair um filho homem. Agora, tenho certeza. Na próxima lua cheia os anciões de Beni Zain testemunharão nossas bodas. Você ficará linda em seu traje nupcial, bordado a prata, levando uma tiara de pérolas nesses seus cabelos de ouro. Tenho dever de dar ao meu povo o futuro Hassan bin Hamid. E posso garantir-lhe que será um dever muito prazeroso! Meu sol do deserto... Minha alva camélia dos Jardins de Alá... Minha escrava branca! — As palavras eram doces, mas o tom, zombeteiro,

— Fugirei para o deserto, nem que seja para ser devorada pelos abutres!

— Deste momento em diante, até que se torne minha mulher, um guarda ficará vigiando sua porta dia e noite — advertiu ele.

— Seu traidor, mentiroso, que me enganou o tempo todo! Mereço o nome que tenho. Sou mesmo uma inocente. Acreditei até que você fosse um dos criados do califa!

— Você presumiu isso por conta própria. Pensou que eu fosse um servo, um motorista, um ajudante de ordens, um procurador e até o alcoviteiro do califa. Espero não ter errado a seqüência.

— E ficou rindo às minhas custas, esse tempo todo!

— Foi você quem pediu por isso.

— Até parece que foi por minha culpa que fiquei inutilizada para a profissão, e que, por necessidade, respondi àquele falso anúncio.

— O anúncio não tinha nada de falso, bint. Era até muito autêntico, e seu único erro foi mandar sua fotografia no envelope. Não pude resistir à tentação de conhecer o original.

Ao dizer isso, os longos dedos morenos deslizaram pelo rosto de traços perfeitos, numa suave carícia, mas Carla não se deixou enternecer.

— Você é um sádico! — esbravejou,

— Eu sou Zain Hassan bin Hamid, a espada vigilante do meu povo. Se posso dominar uma tribo inteira de homens sem medo, se posso matar a faca um leopardo do deserto, se posso combater meus ferozes inimigos, por que não poderei domar uma tigresa como você?

— Se ainda se pergunta, é porque não tem muita certeza.

— Pois eu tenho certeza de que você gostará de ser domada por mim. Mesmo que não me aprecie muito, saberei como lhe dar prazeres nunca antes experimentados.

Suspendeu-a suavemente do chão e, com extremo cuidado, a deitou sobre o divã.

— Agora vou tomar um banho, bint. Fique aí, quietinha, e não se atreva a tentar escapulir durante a minha ausência. Tenho dois guardas postados no vestíbulo, e sinto muito lhe informar que eles não a deixarão sair daqui. — Dito isso, ele desapareceu por um cortinado que levava à sala de banho.

Ela devia estar sonhando! Aquilo era um pesadelo ou uma alucinação?

Infelizmente, era a realidade, e Carla afundou a cabeça entre as almofadas, soluçando.

Oh, meu Deus! Como poderia se casar com um estranho, um bárbaro, um homem sem coração como Zain Hassan bin Hamid? Alguém que só queria procriar com uma mulher para ter um herdeiro?

O pior é que essa mulher era ela!

Era inacreditável!... Mas, apesar disso, precisava acreditar.

Amaldiçoou aquele demônio de olhos azuis e amaldiçoou a imprudência que cometera por ter aceitado aquela passagem aérea que a trouxera para o seu inferno!

 

O sheik Moulay parecia uma figura lendária, extraída de um conto árabe. Foi o encarregado de ajudar Carla a decorar as palavras que seriam ditas, em árabe, durante a cerimônia do casamento.

Pouco a pouco, o ancião foi ensinando partes do difícil idioma, até ela conseguir pronunciar palavras soltas e até frases inteiras.

— O que querem dizer essas palavras na minha língua? — perguntou Carla, pois o velho sheik falava inglês.

Ele coçou as longas barbas brancas e a fitou com aqueles olhos tranqüilos, cheios de sabedoria.

— Querem dizer que você, minha filha, deverá ser humilde e obediente às vontades de seu marido; que lhe será fiel em todos os sentidos; que será seu conforto e seu consolo nas horas amargas; que não olhará para nenhum outro homem, mantendo os olhos postados no chão quando algum deles cruzar seu caminho; que será uma boa mãe e educará seus filhos dentro das leis do Alcorão.

— Mas eu não sou muçulmana, sheik Moulay!

— Isso não tem importância, sitt. — Pousou suas mãos sobre um raro exemplar do livro sagrado, impresso em pele de gazela e encadernado com o mais fino couro marroquino. — O que importa é que você foi escolhida pelo califa.

— O grande senhor todo-poderoso! — ela exclamou, num tom de desprezo, sabendo, por intuição, que o sheik Moulay era velho e prudente demais para se escandalizar diante de suas rebeldias.

Carla era jovem, virgem, e o califa a queria. Era tudo o que interessava ao povo de Beni Zain. Ao menos, ele se decidira casar novamente, e aquele evento era bem-vindo por todos. Não adiantava espernear, mas, assim mesmo, Carla se atreveu a suplicar:

— Por favor, não deixe que ele faça isso comigo!

— Um casamento desses seria um motivo de orgulho para qualquer mulher. Já se deu conta disso? Saiba que as filhas de alguns dos mais importantes cádis do país foram criadas na esperança de um dia se tornarem a esposa de Zain Hassan e a mãe de seus herdeiros.

Só falavam em esposa, em obediência, em herdeiros, sem a ternura que pudesse aquecer o frio que ia na sua alma, toda a vez que pensava naquilo que a aguardava.

— Ele disse que não se casaria com outra bérbere para não se lembrar da primeira mulher. O senhor a conheceu, sheik Moulay? Ela era mesmo muito amável e muito amada?

— Ah... era linda como um pôr do sol no deserto, doce como um favo de mel...tinha o coração sereno como as águas calmas de um lago. Temos uma crença que diz que o diabo não tolera a perfeição. Ah... Farah era adorada pelo jovem califa, mas, agora que ele está mais maduro, aprendeu que a felicidade total não é deste mundo e que devemos aceitar que a amargura se misture com a doçura.

— Tenho certeza de que o senhor já percebeu que ele está me forçando a esse casamento.

A descrição dos dotes de Farah tinha atingido o amor próprio de Carla. Ninguém da tribo, nem o próprio califa, parecia esperar doçura e alegrias na segunda esposa. Tudo o que o califa queria daquela roumia mercenária — como ele a chamava — era um corpo intocado, que pudesse conceber um filho, um varão de olhos claros, para liderar Beni Zain no futuro. Ela era apenas um instrumento, e não a mulher amada, que receberia e daria felicidade a seu companheiro para ao seu povo.

— Não acredito que o conselho de anciões de Beni Zain aprove que ele se case com uma estrangeira — argumentou Carla.

— Não cabe a nós julgar as decisões do califa — disse o velho, com severidade. — Ele sabe o que faz e, afinal, trata-se apenas da escolha de uma mulher.

— Uma criatura sem alma — respondeu ela, irritada. — Uma prisioneira que tem sempre um guarda nos seus calcanhares,

— É uma providência prudente, para evitar que você se perca no deserto. Lá fora, poderia apanhar uma insolação ou ser atacada pelos nômades, e eles não seriam muito bonzinhos para com você. Entende o que quero dizer, sitt?

— Entendo. — Carla teve um calafrio. — O deserto não é propriamente um paraíso para mulher nenhuma, nem mesmo para as mulheres dos tuaregues, que têm que arrumar água, trabalhando de um poço para outro, e dar à luz os filhos sobre a areia. No caso da esposa do califa, ela tem que ser mantida em reclusão e deverá obedecer cegamente às suas ordens arrogantes. O senhor sabe que eu não amo esse homem! Não suporto a maneira como ele me trata! Ele zomba de mim o tempo todo. O que faria seu povo se eu enlouquecesse e o apunhalasse? Para vocês, o califa pode parecer uma divindade, mas, para mim, ele é feito de carne e osso, e não creio que vá permitir a presença de um guarda no quarto matrimonial.

Os olhos suaves do sheik Moulay ficaram subitamente duros como duas pedras de granito.

— Arranque um só fio de seu cabelo, sitt, e você será estrangulada!

— Pensei que essa fosse a punição para as adúlteras. No caso de enfiar um punhal em seu precioso coração, o castigo deveria ser, no mínimo, o esquartejamento, com os membros amarrados às patas de cavalos selvagens.

— Não é impossível — disse o ancião, muito sério. — Zain Hassan provou ser um líder de pulso forte, mas também muito dedicado ao povo de Beni Zain. Se uma mulher o ferir, será condenada ao inferno, mesmo antes de morrer. Sob certos aspectos, o tempo parou no deserto. Os costumes do passado ainda persistem. E quem ouviria seus gritos nessa imensidão de areias silenciosas?

Com certeza, ninguém. Nem ali, naquele mundo selvagem, nem mesmo na civilizada Grã-Bretanha. Se ela desaparecesse de circulação, iriam pensar que fora morar com os parentes, na Escócia, ou que se casara com algum rapaz da classe média e montara seu lar no subúrbio.

Ninguém, nem em sonho, iria imaginar que ela estava no Marrocos, sob a custódia de um poderoso califa, tendo que decorar, em árabe, o texto de seu casamento, presa num castelo, à espera de ser desvirginada por um homem chamado El Zain.

— O senhor conheceu a mãe dele? — perguntou Carla de repente.

— Sim, mas ela nunca é mencionada, nem por ele, nem por ninguém. E agora, vamos. Repita comigo os votos, e tente pronunciar corretamente as palavras que lhe ensinei.

— Por que ela não pode ser mencionada? — persistiu Carla. — Que pecado tão imperdoável ela cometeu, se afinal o filho dela foi criado para ser o governante de Beni Zain? Por que o pouparam?

— Por que... Bem, eu não deveria lhe contar isso... Por que o pai da criança era um homem muito considerado pelo califa daquela época. Ele era um heróico e valente soldado. Mas não vou dizer mais nada. Zain Hassan ficaria furioso comigo se soubesse que andei falando sobre esse assunto. Vamos voltar à nossa aula.

— Por quê? Ele se envergonha do que sua mãe fez?

— Ele cresceu como se fosse filho do próprio califa, mas sempre soube da sua verdadeira origem.

— Esse soldado era um europeu? — Carla precisava perguntar, queria saber a qualquer custo. — Conte-me a verdade e eu prometo que nunca deixarei escapar uma só palavra sobre o que me disser.

— Você já viu os olhos dele, sitt, e pode chegar à sua própria conclusão. Mas o nome desse homem nunca é mencionado, pois era um herói muito reverenciado por sua coragem e não querem que um fato escandaloso manche a sua memória. Uma mulher tola e fútil foi a culpada desse escândalo, e ela pagou o erro, conforme merecia. Não que ele fosse um mulherengo, mas daquela vez foi tentado. Quando o menino nasceu, ninguém cogitou em tirar-lhe a vida, pois ele trazia o sangue de um herói, de um líder, conforme ficou comprovado quando El Zain se tornou um homem. Agora, ele é a nossa espada protetora.

— Mas a pobre mulher foi morta. — Carla não pôde evitar um tremor na voz. — Foi uma crueldade, pois, afinal, era a mãe dele.

— Ela foi infiel, e naquele tempo a infidelidade era considerada um crime punido com pena de morte.

— Por quê? Hoje em dia não é mais? E se eu...

— Aconselho a não falar dessa maneira! — interrompeu o mestre, muito chocado. — É vergonhoso só pensar numa coisa dessas, sitt, e eu vou fazer de conta que não ouvi nada. Agora, vamos à lição!

— Só me diga mais uma coisinha, e juro que não farei mais perguntas. Por favor! — pediu Carla, com um olhar suplicante. — Esse tal soldado, o verdadeiro pai de Zain Hassan... O que aconteceu com ele? Ficou testemunhando tranquilamente a morte da mulher com quem fizera amor?

— Na época em que a criança nasceu, o pai já tinha falecido. Não sei bem, mas talvez tenha sido uma forma de justiça. Ele morreu na Inglaterra, vítima de um acidente de carro. Agora, não me pergunte mais nada. Tudo isso aconteceu há muito tempo, e o melhor é deixar que os mortos descansem em paz.

Carla soltou um suspiro. Tudo aquilo era muito triste e confuso. Mas a conclusão era que aquele homem que pretendia se casar com ela à força tinha metade de sangue inglês, pois não havia mais dúvidas de que pai dele fora um oficial britânico.

— Nunca abra a boca sobre isso com o califa — recomendou o ancião. — Ele venera a memória daquele que o gerou e...

— Mesmo sabendo que esse homem foi o causador da morte da própria mãe?

— Mesmo assim. Os bérberes são um povo muito antigo e ainda seguem fielmente os velhos costumes. As adúlteras, conforme diz a própria Bíblia de vocês, eram apedrejadas. Só que eles preferiam o estrangulamento, por ser uma morte mais rápida e humana.

— Humana! — Carla sentiu um frio percorrer sua espinha. — E eu vou ter que me casar com um chefe bérbere que acha humano estrangular uma mulher!

— É desejo de Alá que seu nome seja glorificado!

— É o desejo de Zain Hassan, e o senhor sabe bem disso. Só que a sua lealdade para com ele o impede de dizer que está tudo errado. — Seus olhos se tornaram sombrios e acusadores. — Se eu fosse uma moça bérbere, sheik Moulay, seria diferente. Mas sou inglesa e estou acostumada à minha liberdade, a ser dona dos meus atos. O senhor está sendo cúmplice de um crime contra os direitos humanos. Garanto que está!

— Silêncio, minha filha! Você está vendo fantasmas onde não existem. Meu amo Zain Hassan não é um monstro. Ele será bom para você, à maneira dele. O certo é que ele precisa se casar para perpetuar sua liderança.

— Mas ele é um líder tão extraordinário assim? Pode ser que leve o sobrenome do antigo califa, mas para mim ele não passa de um...

— Não diga essa palavra! Um homem é um líder quando dá provas de sua força e autoridade. E Zain Hassan se fez respeitar pelo seu povo.

— E também se fez amar? Isso já é mais problemático, pois medo e amor nunca andam juntos.

— Você está revoltada, mas é mulher — disse o velho, pacientemente.— E a compaixão é um dos predicados do coração das mulheres. Será que não sente um pouco de piedade por um homem que perdeu seu filho único quando ainda era uma criança? O tempo pode cicatrizar as feridas, mas as marcas permanecem,

— Foi realmente trágico. Mas o que lhe aconteceu no passado não o terá transformado num homem sem sentimentos? Acontece com certas pessoas. A dor tem o poder de fechar seus corações.

— Gostaria que Zain Hassan abrisse o coração para você?

— Não... Sim... Bem, o suficiente para permitir que eu pudesse viver a minha vida.

— Aquilo que está escrito no livro do destino não se altera, Nourmahal.

— Nourmahal? — ela repetiu. — O que quer dizer isso?

— Luz do harém. É o que você será quando chegar o dia das bodas.

— Não quero ser luz alguma! Quero só que me esqueçam, que me devolvam a liberdade, — e implorou: — O senhor não pode me ajudar? Eu me sinto tão infeliz!

   — Você só está um pouco receosa, como toda noiva às vésperas do casamento.

— Não compreende, sheik Moulay, que tudo seria diferente se eu o amasse? Mas só sinto repulsa por ser tratada como um objeto, sujeita a seus gostos e vontades. O senhor não poderia me ajudar a fugir? Arrume um camelo e um haudaj para mim... E um guia!

O velho sacudiu a cabeça,

— Seria uma temeridade, minha filha. Zain Hassan tem olhos de lince, e eu me arriscaria a perder a cabeça se ele descobrisse que colaborei com a sua fuga. Conforme-se com o destino. Você é uma moça bonita e já estava escrito que um dia pertenceria a um homem. Zain Hassan é um homem excepcional, e, se você almeja ser amada, saiba que o amor é uma emoção que muda, que tira a paz das pessoas. Dê filhos a El Zain, e você não se arrependerá. Prometo.

— Oh, não duvido que ele me encherá de sedas, jóias e perfumes, tão logo eu fique grávida, Mas, e se nascer uma menina?

— Ele a aceitará, na esperança de que da próxima vez você tenha um menino. — O sheik sorriu diante do ar desconsolado de Carla. — As mulheres nasceram para ser mães, e isso tem suas compensações. Porque se atormenta tanto? Pare de perturbar sua mente com tantas reflexões e viva a vida como ela é. Pelo menos aqui não se sentirá tão solitária como no seu próprio país. Porque foi a solidão que a trouxe até nós, não foi?

— Sim. Eu me sentia sozinha, mas, quando vim para cá, pensei que fosse ser a companheira das...

— Pois será uma companheira, sitt, mas dele, e não das irmãs. Acho até mais atrativo.

— O senhor está caçoando de mim, sheik Está achando que sou uma idiota por fazer tanto barulho em torno desse casamento. É que eu sou uma pessoa, e não apenas um corpo. Tenho meus direitos e quero que sejam respeitados, coisa que ele não faz. Por isso eu o odeio tanto!

— Temos um ditado que diz que o amor e o ódio são duas estrelas gêmeas que foram criadas numa noite de tempestade, e estão condenadas a andarem eternamente juntas, lançando centelhas de luz uma contra a outra. Tome cuidado, pois, onde estiver vendo ódio, pode ser que seja uma centelha de amor.

— O senhor tem um bom repertório de provérbios que são muito pitorescos, mas pouco realistas. Não sei como era o califa quando estava casado com Farah, mas sei perfeitamente que ele me apavora. Eu não suporto aquela pose toda!

Oh, sim! Ele era um prepotente sem cura. Uma de suas últimas exigências fora proibir que ela usasse calças compridas.

— Já mandei fazer roupas apropriadas para você, e sua fatima a ajudará a se vestir — dissera ele. — E não adianta me mandar para o inferno, nem com palavras, nem com esses olhares. Se você se recusar a se deixar vestir pela sua fatima, e não abandonar essas calças masculinas, eu mesmo me encarregarei do seu guarda-roupa. Para sua informação, bint, não gosto de rapazinhos.

Aquele velho bondoso e tolerante nunca poderia entender o que lhe ia na alma, e muito menos a ajudaria a fugir. Tudo o que ele podia fazer era prosseguir pacientemente com suas lições.

Lá pelo meio-dia, o calor estava no auge. Carla se levantou, enxugando o suor do rosto com um lenço de cambraia, e o sheik tomou sua posição, inclinando-se para frente na direção de Meca, para fazer suas orações.

— Voltaremos a nos ver amanhã, minha filha. Pense bem no que conversamos e acalme seu coração.

— Vou tentar, sheik Moulay. — E, com um ligeiro cumprimento, à moda oriental, Carla se encaminhou para o jardim, onde uma fonte jorrava sem parar.

Aquele cumprimento saíra espontâneo e combinava melhor com as roupas que estava usando, um leve kaftan de seda pura e babuchas vermelhas bordadas a ouro, com as pontas viradas para cima. Era um traje estranho, mas muito confortável.

O jardim, com suas palmeiras, pimenteiras e canteiros de magnólias e lilases persas, era um verdadeiro paraíso. Porém, um paraíso reservado só aos homens, pois as mulheres do kasbah, àquela hora, estavam ocupadas com seus afazeres domésticos.

Carla aspirava com satisfação o perfume dos cedros, quando viu reluzir o metal de um punhal. Devia ser um dos guardas incumbidos de vigiá-la, para evitar que fugisse. Mas ela não seria boba de se aventurar pelo deserto sem estar acompanhada por um guia, e sem levar água e provisões suficientes para a longa jornada.

Da varanda de seu quarto, tinha uma vista do deserto em sua alarmante imensidão e quietude. Às vezes, um ou outro homem cortava aquele horizonte, no dorso de um camelo, e ela ficava imaginando se realmente teria desejado ir embora dali, no caso de ser apenas dama de companhia das duas formosas meias-irmãs do homem que a escolhera para sua futura esposa.

Quando pensava em casamento, Carla só conseguia visualizar o quadro que fizera sobre sua vida matrimonial ao lado de Peter Jameson. Uma bela casa de campo situada num belo recanto da Inglaterra... Uma lareira acesa... O chá das cinco... Cães perdigueiros latindo pelas alamedas repletas de árvores... Passeios pelos bosques... E amigos fazendo visitas nos fins de semana.

Era o sonho dourado de uma moça pobre, que havia trabalhado para garantir seu lugar ao sol, e que conseguira atrair a atenção de um cavalheiro de boa posição, tanto social, quanto financeira.

Mas ser a "luz do harém" de um califa, nos confins daquele deserto, morando num kasbah, nunca havia passado pela sua cabeça, Podia até ser que ele tivesse sangue europeu nas veias, mas era um bérbere. E haveria de possuí-la como um bérbere — de uma forma brutal e selvagem, com uma paixão animal, cuja finalidade era uma só: procriar. Conceber um filho varão, que tomasse o lugar daquela criança que ele tanto havia amado, por ser filho de Farah, a mulher amada.

Passou por uma velha roda d'água que espalhava respingos por entre os gerânios, as hortênsias e as ramagens pendentes das varandas. Borboletas coloridas esvoaçavam ao redor. Respirou fundo, erguendo o olhar para a folhagem de uma alta palmeira, no momento em que um falcão cruzava os ares com as asas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro.

Não podia negar que aqueles jardins eram lindos e que o próprio kasbah exercia uma estranha fascinação sobre ela, com seus corredores, suas arcadas, onde camaleões procuravam abrigo entre as frestas. Eram impressionantes aquelas muralhas de pedra, aquelas portas de madeira colossais, com o dobro da altura de um homem.

Era impossível não desfrutar, às vezes, de um certo prazer naquele lugar fantástico, principalmente quando Carla resolvia levar seu almoço numa cesta e fazer um piquenique numa das escondidas zaribas.

Eventualmente, convidava o guarda que a acompanhava para partilhar com ela as fatias de rocambole de carne, temperadas com cebolas, o hômus espargido sobre as rodelas de pão chato, os pêssegos aveludados e os figos frescos. Não seria de se esperar que ela fizesse uma coisa dessas, razão pela qual sentia maior prazer em transgredir as regras.

Raschid era sempre muito polido e formal e nunca tirava proveito de seus convites, mas Daylis não fazia tantas cerimônias e aceitava aquelas iguarias de bom grado.

Nenhum deles entendia uma só palavra do que ela dizia, mas Carla sentia-se feliz em poder contrariar as ordens do califa, ainda mais na companhia de Daylis, um jovem que deixava qualquer artista de cinema no chinelo. Era um homem de rara beleza e devia se sentir entediado com aquela enfadonha missão de lhe seguir os passos por onde ela fosse. E Carla costumava andar bastante por aquelas vielas calçadas de pedras que levavam aos lugares mais surpreendentes, como aquelas lojinhas de artesanato que mais pareciam covas escondidas abaixo do nível da rua.

Freqüentemente, cruzava com moças árabes, trajadas com longas vestes que lhes chegavam até os pés, e tendo o rosto tapado por panos que só deixavam à mostra olhos sensuais e amendoados, caprichosamente delineados com khol. Notou que elas andavam mexendo os quadris de maneira muito provocante.

Será que Farah era parecida com aquelas moças de andar sensual e olhos de gazela?

Certa noite, Carla aplicou khol nos olhos, depois de ter encontrado um vidrinho dourado do cosmético em cima da penteadeira. Completou o efeito tapando o nariz e a boca com uma longa echarpe de chiffon que comprara no souk, com a ajuda de Daylis.

Quando Zain Hassan a viu assim, seus olhos azuis tiveram uma expressão de espanto, e ela chegou a ficar vermelha. Depois ele soltou uma alta risada, que balançou de vez com suas estruturas.

— Sabe o que parece? Que você vai a um baile de máscaras!

— Mas foi você mesmo quem fez questão de que eu usasse roupas orientais — ela rebateu, raivosa,   arrancando a echarpe do rosto. — Só quis lhe demonstrar que, por mais que eu faça, nunca terei a aparência dessas moças bérberes, de pele cor de mel. Elas têm um andar sensacional, não acha?

Os olhos verdes, maquiados de khol, adquiriram uma expressão melancólica e ressentida. No passado, ela também havia andado com tal graça que as pessoas chegavam a se virar na rua para admirá-la.

Agora, prejudicada pelo pé defeituoso, seu modo de andar a tornava ainda mais ridícula aos olhos do homem que a tinha obrigado a usar aquelas roupas extravagantes. Sentia-se uma verdadeira palhaça.

— Você está tentando imitar uma gazela? — caçoou ele, pegando um dos seus charutos prediletos de uma caixa de cobre.

— Pareço mais um coelho saltador, não é? Eu ando aos solavancos!

E vendo que ele a olhava por entre as espirais de fumaça, sentiu-se realmente como um coelho indefeso, alvo de um tigre sanguinário.

Certamente ele crescera com a obsessão da infidelidade da mãe, e se tornara duro e inflexível para mostrar a todos que merecia o posto que lhe haviam confiado, apesar da evidência de seu sangue impuro estar marcada na cor de seus olhos.

Carla tinha certeza de que mesmo o amor que ele sentira por Farah não suavizara seu coração. A morte da mulher apenas o endurecera ainda mais.

Meu Deus! Aqueles olhos tão belos e angelicais podiam ser tão cruéis quanto os de um demônio!

Naquela noite, cearam no solário particular, sob a claridade prateada da lua crescente. Aquela fase da lua a fez lembrar-se de que logo o disco de prata estaria em sua plenitude, e ela não mais seria escoltada de volta para seu próprio quarto de dormir, após o jantar. Permaneceria o restante da noite ali, com ele, entre aqueles tapetes tecidos à mão, com desenhos de animais selvagens, orquídeas, luas e estrelas.

O próprio solário era mobiliado com almofadas douradas, mesas para café de ébano, incrustadas de madrepérolas, e um divã redondo, quase tão grande quanto seu próprio quarto de dormir.

Ao longe, sob a luminosidade das estrelas, se podia ouvir uma música dolente... A canção do deserto, certamente, uma canção de amor.

— No que está pensando, minha gazela?

Ele deslizara pelos tapetes como um felino, e Carla chegou a estremecer de susto, quando aqueles dedos ágeis lhe tocaram os ombros por cima da seda, produzindo uma espécie de choque elétrico.

— Estava pensando que, se o deserto não fosse tão vasto e perigoso, eu fugiria para bem longe de você! — respondeu, sentindo os olhos dele postos em seus cabelos, que estavam presos.

— Sei disso, bint. A cada dia, a lua aumenta de tamanho e o coração da gazela bate mais forte, sentindo que o caçador está se aproximando. Você parece mesmo uma dessas corças que fogem do perseguidor em desabalada carreira, até que seu coração estoure. Não faça isso, Carla, pois assim você me corta o prazer de sua companhia.

— O prazer de me atazanar — ela revidou, ressentida. — Você está sempre me mostrando como fui tola e como foi fácil me apanhar na sua armadilha.

— Acredite, Carla, você não haveria de gostar de ser a dama de companhia de duas garotas adoráveis, mas bobinhas e fúteis. Você nasceu para ser a companheira de um homem, se seu coração sabe disso. Essa sua beleza toda seria desperdiçada com minhas irmãs. Tenho grande afeição por ambas, mas será bem melhor elas serem tuteladas por essa senhora que deverá chegar do Egito em breve.

— E você não leva em consideração que eu preferiria ficar com Lallou e Belkis? Gosto de ambas e, infelizmente, não posso dizer o mesmo de você. Sem dúvida, elas tiveram uma mãe melhor do que a sua.

Carla não pretendia ir tão longe, mas ele tinha o poder de tirá-la do sério. Esperou que ele tivesse uma explosão de ira, mas El Zain apenas lhe enviou um olhar gélido.

— Como lutadora, você não respeita as regras do jogo. Gosta de dar golpes baixos. Mas não abuse comigo, bint, pois eu conheço todos os truques sujos e sei dar coices como um camelo, quando é preciso.

— E teria coragem de dar um coice em alguém menor e mais fraco do que você, e, ainda por cima, deficiente físico?

Carla levantou o nariz, com petulância. El Zain segurou-a então pelos cabelos, fazendo-a curvar o pescoço para trás, até que as pernas começaram a doer.

— Se eu não fizer algo drástico, esse bendito defeito vai atormentá-la até a hora da morte! Amanhã vamos passear a cavalo pelo deserto!

— Não! — Os olhos verdes se abriram pela dor e pelo pânico. — Isso não, pelo amor de Deus! Nunca mais quero chegar perto de um cavalo, e os seus são garanhões selvagens. Sempre os ouço relinchando, furiosos, e outro dia....

— Já sei. Outro dia eles se pegaram a dentadas. É que aqui é uma província do deserto, e não uma vila campestre da Inglaterra. Não costumamos castrar nossos garanhões, tirando-lhes a beleza e a impetuosidade tão famosas nos cavalos árabes. Você vai voltar a montar, sim, senhorita. Não há maior prazer do que um belo galope ao amanhecer, quando a atmosfera ainda está fresca e agradável. Faço questão de que você experimente essa sensação. Além do mais, não gosto de mulheres medrosas, e o tipo de medo que você sente é facilmente curável.

— Não posso! Não posso! — gritou ela, já antecipando o terror de ser arremessada para fora da sela pela segunda vez. — Não vou fazer uma coisa que me causa pavor e lhe dá o prazer de ser cruel!

— Deixe de ser criança! Posso entender seus temores, mas você precisa superá-los, e a única maneira de conseguir isso é voltando a montar. Freqüentemente viajo para outras áreas de Beni Zain, a fim de visitar as pastagens dos criadores de gado, camelos e cabras, e gostaria que você me acompanhasse nessas peregrinações, montada em seu próprio cavalo. A não ser que prefira ficar guardada, em cativeiro, durante todo o tempo em que eu estiver ausente. Você gostaria?

Ficar na pasmaceira de um harém de escravas, vigiada dia e noite pelos guardas, para não seguir o exemplo da mãe dele e procurar consolo nos braços de um amante!

Carla enviou-lhe um olhar provocante, que o khol tornava ainda mais audacioso.

— Você sabe muito bem o quanto detesto ser uma prisioneira nesta sua fortaleza de pedra, El Zain, e assim mesmo não tem um pingo de consideração pelos meus sentimentos. Para você, não passo de um mero objeto que se descarta quando não tem mais utilidade. Será que essa sua cabeça não consegue imaginar o que eu poderia fazer durante suas longas ausências? Os guardas que você escolheu para me vigiar não são de jogar fora, você sabia?

Os olhos azuis faiscaram perigosamente.

— Eu torceria esse seu pescoço branco de cisne como se fosse o de uma galinha, e você sabe que sou bem capaz disso — murmurou ele, em voz baixa e rouca.

— Talvez eu preferisse esse destino do que ser a escrava de um homem que enterrou seu coração ao lado dos restos mortais de Farah; de um homem que quer me obrigar a cavalgar novamente, contra a minha vontade. O que pretende fazer? Jogar-me em cima de uma sela como se eu fosse um saco de batatas?

— Se for necessário, é isso mesmo que vou fazer. Mas, seja como for, você vai cavalgar comigo. Reconheço que você é diferente de Farah. A mesma diferença que existe entre um favo de mel e uma pimenta ardida. Ficar presa seria um purgatório para você, não é verdade?

Só de pensar nisso, Carla sentiu um calafrio na espinha. E tornou a se arrepiar quando se imaginou na sela de um daqueles cavalos árabes, que certamente empinaria, aos relinchos, atirando-a ao solo. Mas não tinha escolha: ou a reclusão, ou aquilo que seria uma cura impiedosa para o seu complexo.

— Você é quem decide, Carla: ou a liberdade do deserto, ou a prisão do castelo!

— Quer dizer que agora você é El Hakim, o grande médico capaz de curar meus complexos? — disse Carla, irritada. — Que sujeito mais versátil! Não é à toa que o povo de Beni Zain se curva diante de você!

— Como você é agressiva, bint!

Subitamente, ela se viu suspensa por aqueles braços fortes e transportada para o enorme divã. Ele a pressionou com seu próprio corpo contra as almofadas, e Carla sentiu seus lábios ardentes como fogo lhe percorrerem a curva sinuosa do pescoço.

— Não faça isso! — protestou, fracamente.

Mas nem as palavras, nem a tentativa infrutífera de se debater a livrou de uma verdadeira avalanche de beijos. Quando conseguiu libertar a boca daquela invasão brutal, ela gritou:

— Você é desumano! Deleita-se com a bestialidade!

— Como pode dizer uma coisa dessas, estando nos meus braços, com a pele queimando pelos meus beijos? Será que esses lábios, que sabem dizer tantas coisas ofensivas, não são capazes de dizer palavras carinhosas num momento desses?

— Se espera de mim palavras carinhosas, vai esperar pelo resto da vida. Se quiser ouvir doces mentiras, vá procurar uma das suas bailarinas da dança do ventre!

— Você acha que uma mulher precisa mentir quando está na minha companhia? — Ergueu uma sobrancelha ameaçadoramente. — Se eu quisesse, bint, até você cairia aos meus pés, louca de amor. Quer que faça uma demonstração?

— Como assim? — perguntou ela por perguntar, preocupada com a expressão de desejo que tornava aqueles olhos límpidos de um azul mais escuro e opaco,

— Preciso ser mais claro? — E lhe acariciou as faces coradas pelo embaraço com suavidade e mestria. — Uma verdadeira mulher conhece a linguagem dos sentidos, sem ser necessário usar palavras. Mas eu começo a desconfiar que você vai precisar ser muito treinada e amaciada. Até que será divertido despertar a sua sensualidade!

E aquelas mãos fortes e experientes começaram a lhe percorrer as partes mais sensíveis do corpo com incrível habilidade. Carla quis se negar, mas uma grande fraqueza se apoderou dela. Sentiu as pernas bambas, uma contração no estômago e o coração começou a bater loucamente. Soltou um gemido de prazer, e aquela boca ávida a emudeceu com um beijo tão longo que parecia não ter mais fim. Saiu daquele êxtase, estonteada, como se tivesse acabado de cair de uma nuvem.

— Viu? Até você pode gozar a sensação de ser beijada e acarinhada.

— Se pensa que gostei, está muito enganado! Você me forçou a isso!

— Foi como um remédio que tem que ser tomado de olhos fechados? — Levantou-se e deixou Carla inerte sobre as almofadas. — Chame a isso de divina selvageria do desejo, bint. Dói menos do que arrancar um dente.

Carla sentiu a pele do corpo inteiro se inflamar sob aquele olhar. O olhar de um homem que conhecia todos os segredos da arte de fazer amor e que devia ter percebido o quanto ela era ainda inocente.

— Agora, sente-se, Carla, pode se recompor. Meus criados vão entrar a qualquer momento para servir o jantar, e você está com o aspecto de quem acabou de aprender a diferença que existe entre um homem e uma mulher.

Bateram na porta e Mehmed entrou com uma enorme bandeja de prata.

— Coloque aqui, Mehmed — ordenou ele, indicando uma das mesinhas próximas ao divã.

O servo depositou a bandeja no lugar indicado, sem levantar os olhos. Ela era a mulher do califa, e, na presença do amo, ninguém deveria se atrever a olhá-la.

Carla sentiu-se grata por aquela regra de respeito, pois naquele momento estava com uma aparência realmente constrangedora — os cabelos desarrumados, os olhos manchados de kohl, a roupa amassada, as faces coradas, e uma das chinelas havia caído a um canto do divã. Parecia que ela acabara de ser violentada.

Com uma reverência, Mehmed desapareceu.

— Aceita um pouco de cuscuz? — perguntou Zain Hassan, erguendo a tampa de uma das travessas de prata.

 

— Esse é um convite que eu não recuso — disse Carla.

Apesar de tudo pelo que passara há pouco, o aroma delicioso vindo daquelas baixelas de prata conseguiu despertar seu apetite.

Com a ajuda de um daqueles pães árabes, ela começou a se servir. Comer com as mãos era um dos hábitos bérberes que já aprendera. Só não conseguia enrolar aquelas bolinhas de semolina com a destreza de seu companheiro.

Apesar da comida soberba, Carla não podia deixar de se sentir contrariada com a intimidade que aquele jantar a dois propiciava. O tempo todo estava consciente da proximidade daquele corpo, de cujos músculos ela já sentira a força.

— Bom, hein? — perguntou ele, olhando-a de lado.

— Muito bom — concordou ela, enquanto mordiscava uma cenoura crua, pensando no que diriam seus amigos se a vissem naquele momento, vestida como uma odalisca, comendo como um moleque, na companhia de um potentado árabe.

Seria tudo muito extraordinário e até divertido, não fosse o roçar constante do braço de El Zain, toda vez que ele levava os alimentos à boca.

— No que está pensando? — ele quis saber, vendo-a compenetrada.

Carla quase confessou que estava imaginando a cara assombrada dos amigos se a vissem naquelas circunstâncias. Em vez disso, ironizou:

— Não sabe, El Zain? Pois eu pensei que você, além de poderoso, fosse adivinho.

— Então reconhece que tenho poder? Não estou dizendo isso por arrogância, mas como constatação de um fato inegável.

— Que fato? O fato de poder arrastar uma mulher para a sua caverna, como faziam os homens primitivos da pré-história?

— É assim que você me considera? Um homem das cavernas? No mundo em que vivo, não há lugar para fraquezas, nem mesmo nas mulheres. Não que elas precisem usar os músculos. Elas usam outros recursos. Encantamento, beleza e sedução.

— Você está querendo me elogiar indiretamente? Pensei que eu fosse uma simples mercenária. Nunca imaginei que eu tivesse essas qualidades.

— As suas qualidades não são comuns, e veja que não estou só me referindo à sua beleza física. Ora!   Não me olhe como se eu estivesse falando em árabe! Sabe muito bem que é bonita. Aquele homem de quem você era noiva devia ser um imbecil, se desmanchou o noivado só por causa de um defeitinho à toa do seu pé. E você amava um homem dessa espécie?

— Não é da sua conta!

Carla procurou disfarçar o tremor das mãos, e as escondeu debaixo da almofada. Aquele tipo de conversa, em que ele investigava minuciosamente sua alma, a perturbava mais do que quando ele a atormentava com comentários maldosos, ou lhe dava ordens com autoridade, ou mesmo fazia tentativas para lhe desnudar o corpo.

— Não, você não sentia um amor verdadeiro por um homem tão sem personalidade. — Ele mesmo respondeu à pergunta, sem titubear. — Apenas ficou deslumbrada por ter sido pedida em casamento por alguém pertencente a uma família de sangue azul. Não foi assim?

— Parece que se tornou um hábito para mim perder a cabeça por causa de títulos de nobreza. Veja só o seu caso! Sempre pensei que os potentados árabes vivessem folgadamente, levando a vida sem fazer nada, cercados de odaliscas sensuais. Você estragou a imagem que eu fazia deles.

— Pois eu acho que a melhorei. — Reclinou-se sobre o divã e começou a descascar uma laranja. — Se eu me deixasse enfraquecer pelo luxo e prazer, não poderia ser útil ao meu povo. Meu pai adotivo, o califa Hassan Hamid, me passou esse comportamento responsável e austero, e até você deve reconhecer que possuo algumas virtudes.

— Não duvido que a sua maior virtude seja colocar sempre seu povo em primeiro lugar. Até no meu caso. Minha liberdade me foi cortada porque os interesses de sua tribo predominam sobre os meus desejos, e até sobre os seus. Você teria se casado uma segunda vez, se não fosse por dever?

Ele estudou a fisionomia dela em silêncio, enquanto espremia um gomo de laranja entre os dentes.

— Você pensa demais, bint. Já é hora de dedicar mais tempo às sensações do que a razão. Aqui, no nosso país, costumamos dizer que uma mulher não deve ser sábia como um velho profeta. A sabedoria causa rugas muito cedo.

Carla não pôde responder à altura, pois estava com a boca cheia. Mesmo que pudesse falar, não iria adiantar nada, já que não conseguiria mudar a maneira de pensar daquele homem teimoso como uma mula.

— As mulheres bérberes são ensinadas, desde meninas, a agradar ao homem. — E ele prosseguiu, dando um sorriso. — Não é uma coisa tão má que elas cultivem a harmonia, em vez da discórdia.

Enquanto fazia suas divagações, o olhar dele vagava pelos cabelos de Carla, pelas linhas delicadas de seu rosto, pela sua vestimenta.

Não me olhe assim! Ela desejou gritar. Era incrível! Tantos homens já a tinham olhado, admirado, analisado, mas aquele era diferente. Seu olhar, seu toque, o mínimo movimento que ele fazia tinham o poder de lhe transtornar os sentidos e a mente.

— Coitadas das mulheres orientais! Quando não estão se curvando diante de seus amos e senhores, estão suportando o fardo de todas as culpas e pecados assinalados no Livro Sagrado. Sem contar com uma sina pior; a de serem mães dos próprios homens que mais tarde as vão escravizar. Nunca lhe ocorreu que você não estaria aqui, nessa pose toda, a se vangloriar da sua masculinidade, se não fosse pela participação de uma mulher?

— Claro! Aliás, essa é uma idéia fixa na cabeça do todo homem viril.

Não adiantava ela querer falar sério. Ele sempre tinha uma resposta, com duplo sentido, na ponta da língua.

— Vamos, garota! Deixe de fazer beicinho e coma sua sobremesa. Mandei fazer esse doce de amêndoas, especialmente para você! Não se sente tentada?

— Minha tentação era lhe atirar essa tigela de doce na cara!

— Se isso ajuda a relaxar suas tensões de franco atiradora, pode jogar! — E se levantou, muito ágil do divã, postando-se diante dela, o queixo empinado. — Atire agora para não sujar o divã, senão o pobre do Mehmed vai ter o trabalho de limpar.

Ao ver aquele homem portentoso desafiando-a, em toda a sua altura, Carla se acovardou. E o odiou por ser tão dono de si mesmo... E dela!

— Se quer um conselho, não desperdice esse doce. Coma! — ordenou ele. — Ou vou ter que enfiar na sua boquinha, às colheradas, como se faz com os bebês?

— Não se atreva a fazer isso!

— Então, coma sozinha!

Carla não teve alternativa, senão obedecer. Já conhecia de sobra a força daquela vontade e daqueles músculos.

O doce de amêndoas estava realmente uma delícia e ela chegou a raspar a tigela, sem notar que El Zain acompanhava todos os seus gestos com um olhar brincalhão,

— O nenê merece um prêmio por ler comido tudo! — disse ele, num tom de gozação, tão logo ela terminou de comer.

Foi até uma das mesinhas e apanhou um estojo de pelica. Abrindo a tampa, atirou o conteúdo do estojo no regaço de Carla.

Era um enorme topázio preso a uma corrente de ouro, e Carla olhou para a pedra preciosa como se ela fosse o olho mau de uma serpente.

— Coloque no pescoço — disse El Zain, mas Carla não se mexeu. — Vamos, coloque! Você sabe que não gosto de repetir minhas ordens!

Aquela palavra "ordem" mexia com seus nervos.

— É autêntico? — perguntou ela, erguendo a jóia com desprezo e deixando-a cair no chão. — Não gosto de nada falso, muito obrigada.

— Pegue isso imediatamente! Detesto crianças birrentas. Pegue!

— E se eu não pegar? — Esticou-se preguiçosamente no sofá, e o olhou com rebeldia. — O que fará Vossa Alteza? Vai me aplicar as sete chibatadas tradicionais?

— Até que me sinto tentado, mas acho que sete beijos seriam mais eficientes como castigo. Agora, apanhe o colar e o coloque no pescoço. Quero ver se o topázio combina com a cor de sua pele.

— Pois eu não vou querer — declarou Carla, admirada de sua própria coragem. — Quem me garante que não foi roubado de alguma das mulheres que vocês andaram seqüestrando?

— Que imaginação fértil, Carla! — Ele deu dois passos à frente, e ela ficou tensa. — Para dizer a verdade, comprei esse topázio num souk ao sul do país, para dar de presente a uma de minhas irmãs. Mas achei que não iria realçar numa pele morena. Uma jóia como essa vai melhor no pescoço de uma mulher clara. Quero que o use como um talismã contra os perigos do deserto.

Ele mesmo tomou a iniciativa de pegar o colar do chão e, passando a corrente pelo pescoço dela, aproveitou para dar um abraço por trás.

Carla ficou rígida como uma estátua de gelo, o que não impediu que ele a obrigasse a se virar e lhe queimasse os lábios com um beijo quente.

— O que vou fazer com uma mulher dessas! — disse, maldosamente, quando a soltou.

— Sobre isso, não restam dúvidas. Vai querer me escravizar e pisotear pelo resto da vida. Será que nunca poderei ter vontade própria?

— Sua tolinha! Não tenho intenções de contrariar sua vontade e seu espírito, mas, normalmente, quando um homem presenteia uma mulher com uma jóia tão valiosa, espera que, ao menos, ela seja grata e não revide uma gentileza com insultos. — E passou os dedos morenos pelo colo de marfim. — Queria só enfeitar este seu pescoço de cisne com uma jóia preciosa, à altura de sua pele alva e macia como uma pétala de lótus. Gosto de sua coragem, do seu caráter impulsivo, mas não exagere, para que eu não seja forçado a usar de brutalidade para dominá-la. — Os olhos azuis pareceram se suavizar. — As mulheres são a porta do paraíso na terra. Por que as combater? Devemos é amá-las.

— Você está se referindo à posse física — afirmou ela, sem poder evitar o rubor. — Pensa que gosto de ser apenas um objeto de prazer ante seus olhos, tal como este topázio que me obrigou a usar?

— Preferiria ser apagada, passar despercebida, viver na sombra? Não você, Carla. Se assim fosse, não teria desfilado pelas passarelas, e não teria ficado tão revoltada porque um dos seus atributos físicos ficou prejudicado por causa de um acidente. Por acaso a desprezei por causa de um defeito no pé? Nem por isso deixei de querer você nos meus braços, e que fosse minha esposa!

— Qualquer mulher serviria para seus propósitos, El Zain. Você precisa ter um filho, eu estou à sua mercê, e, afinal, não sou tão repugnante assim!

— Um filho...

Logo a fisionomia de El Zain tornou-se melancólica e sombria. Ele se afastou dela e foi até a sacada, acender um charuto. Seu olhar se perdeu pelo espaço, enquanto soltava espirais de fumaça pelas narinas. Devia estar a léguas de distância, junto a seus fantasmas queridos.

Os dedos de Carla apertaram nervosamente o topázio. Não podia suportar aquele olhar ausente. Estaria com inveja de Farah, por ela ter sido tão amada?

Carla nunca fora amada por ninguém, pelo que era, por si mesma. Desde que a avó morrera, sempre se sentira desejada, nunca amada. Peter Jameson nem sequer conhecia o sentido da palavra amor, e, para El Zain, ela era apenas um espécime reprodutor. Pelo menos, aquele bérbere linha uma vantagem: não a iludira, não mentira, não declarara ter sentimentos que não possuía.

Depois de alguns minutos de completa imobilidade, que o fazia parecer uma estátua de bronze, ele tirou mais uma baforada do charuto e se virou para Carla.

— Pode voltar para o seu apartamento. Não quero retê-la. Mas não se esqueça de que vamos cavalgar amanhã, bem cedo. Mehmed ficou incumbido de chamá-la de madrugada e de providenciar as roupas de montaria.

Agora a voz dele era fria e distraída, e Carla se apressou em levantar do divã.

— Boa noite — cumprimentou ela, secamente, dirigindo-se para a porta.

— Você está sempre pronta para me deixar, hein, emshi besselma?

 

Ao subir as escadas, Carla teve novamente a sensação de ser uma prisioneira de um homem sem coração. E se ele ainda tinha coração, fora partido em dois: uma metade estava na sepultura da mulher amada, e a outra pertencia a seu povo. Para ela, nada havia sobrado.

Antes de entrar em seus aposentos, cumprimentou Rashid, que estava de plantão, junto à porta. O guarda era sempre muito educado e distante, e Carla sabia por intuição que ele seria leal ao seu amo até a morte. Nunca poderia contar com ele para uma tentativa de fuga, porém, às vezes, ela acreditava que Daylis poderia ajudá-la.

Mas não era hora para pensar nisso. Estava exausta, e tudo o que queria era se deitar e poder dormir. Mas não conseguia ter sossego. Sua mente estava agitada, relembrando os momentos em que aquele bérbere selvagem a mantivera subjugada pela força de seu desejo e sua paixão. Ainda sentia os lábios ardentes e as faces quentes. Peter Jameson nunca conseguira lhe causar tanta perturbação. Quis lembrar-se dos beijos do ex-noivo, mas tudo era tão distante... Tão apagado... Como tinha sido frágil aquele relacionamento! Se ela o tivesse amado de verdade, não iria se esquecer tão facilmente. Um amor profundo persistiria durante anos. Tivera a comprovação, ao testemunhar, há poucos momentos, a tristeza e a saudade de El Zain. Santo Deus! Além de ser forçada a se casar com um homem que não a amava, ainda teria que conviver com um fantasma!

Tirou a corrente com o topázio do pescoço e olhou a jóia, na palma da mão. Era deslumbrante. Mas tinha sido dada sem carinho. Serviria apenas para enfeitar um corpo de mulher destinado a ser objeto de prazer. Nem sequer fora comprado para ela. El Zain o havia adquirido para uma de suas irmãs.

Valeria muito dinheiro? Examinou a pedra artisticamente cortada, e novamente lhe veio à memória a figura de Daylis. Poderia subornar o servo com aquela jóia? Pensando melhor, acho que o guarda não se arriscaria a ajudar uma insignificante mulher, conhecendo bem o temperamento do amo.

Era quase impossível fugir do seu destino.

Caria atirou a jóia contra a penteadeira e começou a tirar a roupa. No dia seguinte, teria mais uma aula que lhe ensinaria a ser obediente e submissa diante daquele demônio arrogante. Num gesto de rebeldia, atirou contra a parede uma das chinelas que calçava e começou a escovar os cabelos com fúria.

Aquelas eram tarefas que não lhe competiam. Bastaria tocar uma sineta de prata, e logo a sua fatima correria para ajudá-la a se preparar para dormir.

— Não quero ter ninguém sempre grudado em mim — havia dito ao califa, quando ele lhe designara uma camareira particular. — Já me senti suficientemente inútil naquele maldito hospital!

— Faça como bem entender — ele respondera. — A criada estará sempre à sua disposição quando você precisar de ajuda.

Que fossem ele e a criada para o inferno! Não queria se transformar numa criatura preguiçosa como a irmã mais velha do califa, que não mexia um dedo, nem para apanhar uma revista de cima da mesa.

Lallou era a preguiça personificada e, com apenas dezoito anos, já começava a ficar gorda. Devia ter se casado no ano anterior, mas o noivo que lhe era destinado morrera numa batalha no deserto e ela agora passava a maior parte do tempo se empanturrando de doces e bombons, com o nariz enfiado em revistas francesas e americanas. Carla preferia Belkis, cujo nome queria dizer "garota de mel", combinando com seu aspecto: olhos castanhos caramelados e a pele cor de açúcar queimado. Estava com dezessete anos e dava a impressão de que a alegria de sua mocidade era quebrada por alguma tristeza íntima. Carla imaginava que a mocinha devia revoltar-se diante do fato de o irmão ser responsável pela escolha do seu futuro marido, algum estranho que ela só iria conhecer no dia do casamento, conforme os costumes locais.

Era uma verdadeira barbaridade que uma moça iniciasse sua vida sexual nos braços de um homem que nunca tinha visto antes. Não era à toa que Belkis andava sempre cabisbaixa, com olheiras fundas, como se aquela perspectiva lhe tirasse a alegria de viver.

Carla se estendeu sobre o sofá, sentindo-se deprimida e solitária. Pela janela aberta, viu a lua crescente anunciando que brevemente ela perderia sua virgindade e sua independência. Afundou a cabeça no travesseiro, sentindo mais intensamente aquele perfume de sândalo que predominava no ambiente. Parecia que já não era mais Carla Innocence, mas a kadine de um chefe bérbere, que esperava que ela fosse a mãe de seus filhos. Nunca em sua vida estivera tão perdida e amedrontada.

A brisa noturna soprava lá fora, levantando redemoinhos de areia. Teve a impressão de que aquela areia lhe entrava pelos olhos, fazendo-a ter sono. As pálpebras se fecharam e ela, finalmente, adormeceu.

Carla acordou assustada, vendo aquela mão morena mexendo no mosquiteiro. Sua fatima sorriu e lhe serviu uma xícara de café fumegante. Enquanto saboreava a bebida, ainda com sono, viu a criada colocar sobre a mesa a roupa de montaria que iria usar. Seu coração se acelerou. El Zain iria cavalgar com ela logo mais, e aquela perspectiva a fazia entrar em pânico.

— Fique — pediu ela à fatima, que sabia umas poucas palavras de inglês. — Vou precisar de sua ajuda para me vestir.

A criada lhe deu auxílio. Meia hora depois, Carla já estava trajando um culote, uma leve malha e botas de cano alto. Na cabeça, levava um pequeno turbante de linho branco para proteger os cabelos. A criada lhe entregou um chicote com cabo de marfim, e ela foi se olhar no espelho.

— Então, Analita, estou parecendo uma moça bérbere?

A mulher balançou a cabeça num sinal positivo.

— A sitt parece mais um menino, um menino muito bonito.

— Não sei se o todo-poderoso vai gostar — disse Carla, batendo com o chicote no cano das botas.

Precisava disfarçar o nervosismo diante da criada. Afinal, o que pretendia Zain Hassan? Queria-a na sela de um cavalo, ou simplesmente tencionava expô-la à humilhação?

Como num flash, apareceu diante de seus olhos a cena em que Grey Lady desembestara, atirando-a de encontro a uma árvore.

Não vou conseguir, pensou, desesperada, mas logo Mehmed apareceu, sem lhe dar chance para uma recusa.

Aquele maldito tirano iria ver só! Se pensava que ela iria rastejar, pedindo clemência, estava muito enganado. Ela montaria aquele cavalo, mesmo arriscando a vida, só para não dar ao califa a satisfação de testemunhar seu fracasso.

Ao chegarem ao pátio externo, Carla viu as montarias. Uma delas resfolegava, presa pelas rédeas, por um dos cavalariços, e a outra estava segura pelo próprio Zain Hassan.

— Você fica muito bem nesses trajes — disse ele, logo que a viu. — Bom dia, Carla. Como é? Está disposta a dar um galope?

— Bom dia, El Zain — respondeu ela secamente. — Meu cavalo é esse que está segurando?

Ele inclinou a cabeça, dando um sorriso irônico.

— Seu cavalo se chama Firebird. É um animal lépido e gracioso, e bem melhor amestrado do que aquela égua que a derrubou. Venha. Acaricie o seu focinho e deixe que ele a fareje e a conheça. Venha!

Era uma ordem educada e bem-intencionada, mas não deixava de ser uma ordem.

Carla sentiu as pernas bambas e mancou de forma mais acentuada ao caminhar em direção ao cavalo. O coração batia tanto que parecia querer saltar pela boca.

Quando chegou perto, o cavalo resfolegou como se estivesse ansioso para ganhar a liberdade do deserto.

— Pelo menos, desta vez terei a vantagem de cair na areia — comentou Carla, com dificuldade, tentando desatar o nó que fechava a sua garganta.

— Desta vez você não será jogada para fora da sela — disse ele. — Vamos! Coloque a mão no pescoço de Firebird e façam amizade,

— Eu... Eu não posso!

Carla começou a recuar, de costas, sem se dar conta de que ia de encontro ao garanhão preto que o cavalariço ainda segurava pelas rédeas. O cavalo empinou, relinchando, e ela se virou justo a tempo de ver aqueles dois cascos mortíferos no ar, prestes a pisoteá-la. Ficou petrificada, imóvel, mas, numa fração de segundo, duas mãos poderosas a arrebataram, acabando com o perigo.

Já a salvo, as mesmas mãos a sacudiram pelos ombros e ela ergueu os olhos, entre assustada e chocada, vendo aquelas pupilas azuis que a perfuravam como dois estiletes.

— Você está querendo quebrar o pescoço? Eu estava sendo otimista demais, esperando que alguém como você se comportasse sensatamente.

— Alguém como eu? É isso mesmo! Sou uma idiota de uma inglesa branquela que caiu na sua armadilha e não está achando a saída. Mas acabarei encontrando, posso garantir! Enquanto ainda houver tempo, tenho esperança de me livrar das suas garras.

— Tempo? O que não lhe falta é tempo, pois o deserto é eterno, e assim permanecerá até o final dos séculos. Agora, vamos. Já está mais calminha?

— Ora! Largue-me! — desvencilhou-se de El Zain com surpreendente facilidade, sem notar que era ele quem afrouxava o aperto. — Pois vou mostrar a você e a toda a sua raça do que é capaz esta inglesa branquela!

Corajosa, andou até Firebird e montou num só impulso, com uma agilidade surpreendente.

Já na sela, sentiu-se muito à vontade, pois, com o pé defeituoso amparado pelo estribo, readquiriu a confiança na elegância de sua postura. Ainda estava atônita com que tinha acabado de fazer, quando uma risada ecoou junto dela.

— Bravo! Que filho sensacional nós dois vamos ter, Carla! Um garoto de olhos cor de turquesa, orgulhoso, obstinado e valente! Oh, sim — ele continuou. — Porque os ingleses são um povo valente, não é mesmo?

— Você deve saber melhor do que ninguém...

Os olhos azuis examinaram, apreciativos, a maneira segura e altiva como ela se mantinha na sela, segurando as rédeas com firmeza, as costas eretas, a cabeça erguida.

Peter Jameson dizia que ela era uma boa amazona, mas naquele tempo sua postura elegante era uma conseqüência natural de seu trabalho como manequim. Agora, precisava lutar contra o medo e o espectro da dor!

Quando deixaram o palácio para trás e Carla viu a amplidão do deserto, sob a luz difusa do alvorecer, não pôde deixar de exclamar:

— Lindo!

Zain Hassan ouviu o comentário e logo virou a cabeça para observar a maneira extasiada como ela olhava para aquele interminável mar de areia.

— É uma beleza ilusória, Carla. Dentro de uma hora tudo estará mudado e o deserto ficará insuportável quando o sol estiver no alto. Foi por isso que fiz questão de sairmos bem cedo: para que você pudesse admirar a face mais bela do deserto, sob o sol nascente. Fico contente que você o tenha apreciado.

— Pensei que a seus olhos o deserto tivesse todas as virtudes, e, no entanto, você o chamou de ilusório.

— E é. O deserto é imprevisível. Assim como um tigre... Ou uma mulher. Às vezes, tal como agora, é acessível e hospitaleiro, mas, em outras ocasiões, quando o vento varre estas areias sem fim, se torna cruel e agressivo. Mas basta que o vento amenize, e a noite o cubra com seu manto estrelado, para que ele volte a ser um belo espetáculo.

Ergueu o rosto moreno para o sol, que ainda não estava tórrido, e Carla notou o quando ele venerava aquela região. Podia até compará-la a um tigre, mas a verdade o que não a temia. Zain Hassan tinha verdadeira paixão por aquele espaço infinito. O deserto nem mesmo era silencioso, pois se ouvia um constante ulular, como se ele fosse povoado de fantasmas,

— Não vai me perguntar por que comparei o deserto com uma mulher? — Havia uma expressão matreira e provocante naqueles olhos.

— É que o deserto é temperamental — respondeu ela. — Ele tanto pode ser amoroso, como malévolo. Não sou tão boba assim, El Zain. Sei que as mulheres são criaturas extremistas.

— Ou amam ou odeiam, não é mesmo? Ou sorriem ou mordem.

— O que não quer dizer que os homens sejam uns santinhos — ela emendou.

— Que olhos você tem, Carla! Lindos como um campo de hortelã. Na nossa língua, dizer isso é um grande elogio.

— Seu povo também não diz que, quando a boca destila mel, é porque está pronta para morder?

Carla fazia ironia; no fundo, porém, sentia-se lisonjeada. Mas estaria ele usando a mesma tática de Peter, enredando-a com falsos elogios?

— Prefiro quando você me atormenta com as suas ferroadas, El Zain. Não confio nada nessa sua fala mansa. É só outro dos seus truques para que eu caia na sua rede!

— Como você é desconfiada, Carla. Pensei que aqui, sozinhos, nesta paz toda, poderíamos chegar a um bom relacionamento.

— Nunca poderei chegar a um acordo com você. Reconheço que sou uma britânica temperamental. E você é um bérbere arrogante. Para nós não existe um ponto de encontro, mesmo que no seu caso... — Interrompeu a frase bruscamente, ao se lembrar das recomendações do sheik para nunca mencionar o fato de ele ser meio inglês. — As paralelas nunca se encontram, não é assim que dizem por aí?

— Dizem isso? E, no entanto, estamos aqui unidos, Carla. Os dois hemisférios estão juntos, e não é a primeira vez que isso acontece. Quer dizer que você andou fazendo perguntas a meu respeito? Era, inevitável, mas esse é um assunto que não discuto com ninguém, nem mesmo com você. O essencial é que pertenço a esta região de corpo e alma. Faço parte do deserto como os falcões que cortam os ares, como as palmeiras que afundam suas raízes no solo, como as águias que derrubam as tartarugas sobre as pedras para devorarem suas vísceras.

— Posso constatar que você pertence ao deserto — disse ela. — Sei que é vital para você ser o comandante supremo de sua tribo. Mas já pensou em mim? Já me levou em consideração como pessoa?

— Eu a considero apenas como uma mulher. Se isso lhe parece arrogância, que assim seja. Quando vi a sua fotografia, quis conhecê-la pessoalmente. Podia acontecer que, debaixo daquela aparência de rainha, houvesse uma boneca desmiolada, fútil e sem personalidade. Nesse caso, eu a teria despachado de volta, sem maiores problemas. Mas você tem caráter, tem opinião própria, e eu gosto disso. O deserto não será um entrave para você, desde que procure conhecer as suas várias faces. E ele tem infinitos aspectos, tal como você, bint. Só posso encará-la como saiyd Carla, que, traduzido para o seu idioma, quer dizer princesa Carla.

O coração dela deu um salto quando ele disse aquilo. Era inacreditável que, pela união com Zain Hassan, ela seria elevada a tal posição. Quando fosse sua esposa, se transformaria automaticamente numa princesa marroquina. Em vez de calçar o sapatinho de cristal que Peter Jameson lhe oferecera um dia, teria à sua disposição um sapatinho de ouro. Mas ela tinha medo de calçá-lo.

— Não creio que eu possa ser uma boa esposa para você. Se, ao menos, tivéssemos algo em comum! Mas somos totalmente diferentes. Você foi criado para ser um dirigente, E eu sou de uma família de classe operária de Londres. Não sou uma lady, como talvez pense.

— Uma lady, Carla, é uma mulher que tem grande respeito por si mesma como ser humano e abre seu caminho na vida, sem violar seu corpo ou abrir mão de seus princípios morais.

— No entanto, você me chamou de mercenária, que só liga para as coisas materiais. Se fosse assim, eu o agarraria com unhas e dentes, com todo o seu poder e sua riqueza!

— Todavia, você foge de mim, como o diabo da cruz — ele caçoou..

— Melhor teria sido se você se fizesse passar por uma ordinária interesseira. Teria se livrado de mim facilmente, pois eu lhe proporcionaria todos os meios para sair de Marrocos. Quando a chamei de mercenária, foi por provocação, para que pudesse provar que não era. No momento em que você atirou aquela jóia preciosa no chão, seu destino foi selado.

— Selado? Quer dizer que você me forçará a esse casamento, mesmo contra a minha vontade?

— Exatamente.

Carla olhou em volta, desesperada, em busca de uma saída, de um caminho que a levasse para longe dele.

— Não faça isso. Você poderia partir a galope por aí, sem rumo, mas o deserto está cheio de beduínos malandros. Prefere cair nas mãos deles, do que nas minhas?

Instintivamente, ela olhou para aquelas mãos que seguravam as rédeas — morenas, fortes e impecavelmente limpas. Lembrou-se das carícias que elas lhe tinham leito, com perícia e sensualidade.

Uma sensação de queimação percorreu lodo o seu corpo e a gota d'água que lhe caiu no rosto pareceu-lhe gelada.

— Será que vai chover? — perguntou, enquanto enxugava a gota de chuva, que parecia uma lágrima escorrendo por sua face.

— Conforme lhe disse, Carla, o deserto é imprevisível. É melhor voltarmos, antes que caia um aguaceiro.

— Oh, eu não ligo para a chuva — disse ela, rindo. — Os ingleses estão acostumados a se molharem.

— É que você nunca enfrentou uma tormenta no deserto. Que tal um galope, para experimentar a velocidade de Firebird?

Foi um desafio que Carla aceitou. Os dois cavalos partiram numa corrida desenfreada, cortando o vento e a chuva, que, agora, caía pesada.

Chegaram ao kasbah ensopados e arquejantes.

— Odeio tempestades — disse ele, inesperadamente.

— Pois eu pensei que as achasse excitantes.

Nunca antes Carla vira aqueles olhos azuis tão melancólicos e sombrios.

— Meu filho morreu durante uma tormenta, sob o estrondo de um trovão. — Os dedos que seguravam o chicote ficavam brancos, tão fortemente ele o apertou. — Não suporto esse som cavernoso!

Carla sentiu-se impelida a consolá-lo, mas o cavalariço tinha chegado e El Zain lhe entregou a montaria, retirando-se em seguida, sem ao menos convidá-la a entrar.

Era um alívio e ao mesmo tempo uma frustração ter que tomar seu café sozinha. Ele só queria a sua companhia, a sua presença, para uma única finalidade: gerar um filho, e só a levara para cavalgar porque gostava de gente corajosa e ficara irritado com o medo que ela havia demonstrado. Mas, naquela manhã, Carla mudara sua imagem. Fora, de fato, valente.

El Zain poderia começar a admirá-la. Talvez um dia pudesse até chegar a gostar dela.

Era a esperança que toda mulher esconde dentro do coração...

 

Nem por um momento Carla duvidou que Zain Hassan governasse a Província de Beni Zain com mãos de ferro e plenos poderes. Apesar de ser assessorado por uma eficiente equipe de conselheiros, economistas e secretários, a palavra final era sempre dele. Carregava nos ombros a responsabilidade do bem-estar geral de sua tribo, tanto do lado financeiro, como do político, e até mesmo interferia nas questões particulares. Todo e qualquer habitante da região tinha o direito de expor pessoalmente seus problemas, para que ele tomasse resoluções a respeito.

Fora Belkis, a irmã mais nova de El Zain, quem a esclarecera sobre essas particularidades, pois a caçula era mais interessada do que Lallou no que se passava fora das paredes do palácio.

Após ter entregado Firebird nas cocheiras, Carla se encaminhou para os aposentos das duas irmãs, onde, às vezes, costumava tomar o café da manhã. Chegou justamente na hora em que estava sendo servido.

— Cheguei a tempo! Posso participar? — perguntou, da soleira da porta, segurando o shesh que levara para proteger os cabelos, agora molhados e desfeitos pela chuva.

Belkis olhou, surpreendida, para aquela figura que mais parecia um rapazola, naqueles trajes de montaria.

— Quase não a reconheci, Carta.

Ambas as jovens tinham aprendido inglês com o sheik Moulay, por sugestão do irmão.

— Você está parecendo mais um cavaleiro do que uma amazona — disse Lallou, com aquela voz arrastada e indolente com que sempre falava. — Então, nosso irmão a convenceu a ir cavalgar com ele? Eu sabia que ele conseguiria, apesar de você ter jurado por todos os santos que não iria se submeter a tal coisa. Ele é mesmo onipotente. Sabe até ser misericordioso, mas, se for o caso, é capaz de condenar uma pessoa à morte. Ele não lhe contou que, dentro de uma hora, alguém vai ser transpassado pelo fio do seu punhal justiceiro?

— O que está me dizendo, Lallou?

Carla não entendera bem o sentido daquelas palavras e foi se acomodar num divã para se servir de café e de um biscoito de amêndoas, recheado com geléia de damasco.

— Não vamos falar de coisas desagradáveis — interferiu Belkis. — Prefiro que Carla nos conte alguma coisa sobre Londres.

Mas Carla, que não tinha entendido muito bem o que a irmã mais velha dissera, queria tirar suas dúvidas a limpo.

— Seu irmão nunca me conta nada do que se passa em Beni Zain. Você falou em condenação à morte... E punhal justiceiro... Por acaso, é o que estou pensando?

— É o que você está pensando. — A mão gordinha de Lallou segurava um pãozinho com creme de amendoim, e os enormes olhos castanhos estavam postados em Carla, com uma ligeira expressão irônico. — Um dos homens da tribo, numa briga, acabou matando com punhal um de seus vizinhos. Meu irmão vai ter que condenar o culpado à morte, ou a família da vítima se sublevará contra ele e tentará fazer justiça com as próprias mãos. Isso poderá provocar uma carnificina. — E, vendo o olhar assombrado de Carla, completou: — Não fique tão chocada. Lembre-se de que estamos no Marrocos e aqui se segue a lei de Talião, "olho por olho, dente por dente''.

— E qual será a forma de execução?

— Ele será morto pela lâmina de um punhal, da mesma forma como matou o vizinho.

— Será rápido. — Belkis foi para junto de Carla e lhe segurou a mão, num gesto de consolo. — Sei que em seu país as coisas são diferentes, mas as nossas leis têm que se adaptar à região em que vivemos, senão esta província vira uma anarquia.

— Numa linguagem mais clara: o nosso povo tem sangue quente — disse Lallou, com um sorrisinho, mostrando dentes miúdos, mas perfeitos, ainda não estragados pelo excesso de açúcar. — Você é do norte e consegue ser mais fria. Além do que, em seu país existem grandes penitenciárias, para onde são enviados os malfeitores e criminosos.

— Por que você teve que mencionar uma coisa dessas, Lallou? — recriminou Belkis. — Agora Carla poderá pensar que nosso irmão é um homem cruel.

— Quanto a isso, sempre tive certeza. Vocês duas estão sabendo que ele me prende aqui, contra a minha vontade, na suposição de que, sendo mulher, eu devo até me sentir honrada com isso.

— E você não se sente? — caçoou Lallou. — Bem lá no fundo, apesar das nossas diferenças de raças e idéias, somos todas mulheres, e você deveria sentir orgulho por Zain Hassan ter até se indisposto com alguns dos cádis só por sua causa. Eles teriam preferido que o califa escolhesse uma mulher muçulmana para casar, alguém que soubesse se manter em seu devido lugar, sem esperar pelos benefícios excepcionais que serão incluídos no contrato de casamento, em consideração à sua nacionalidade.

— Eu não quero nem casamento, nem benefícios — respondeu Carla, irritada. — Tudo o que quero é a minha liberdade. Desejo voltar para a minha terra, nem que seja para viver na pobreza e no esquecimento.

— A boba está com medo dele! — Lallou começou a rir, fazendo tilintar os brincos de pingentes que balançavam junto a seu rosto gorducho, maquilado com khol. — Veja o nosso exemplo! Por acaso ficamos nos lamentando porque ele controla as nossas vidas? Ele não é homem de usar o chicote com as mulheres, nem mesmo com os cavalos. Você devia se dar por feliz! Ao menos, teve a sorte de conhecer com antecedência o homem que será seu marido. Minha irmã e eu vamos ter que casar no escuro, talvez com algum velho de barbas brancas.

— Não fale assim — pediu Belkis. — Você sabe que não suporto nem pensar nisso! — Levou as mãos aos ouvidos, chacoalhando as inúmeras pulseiras penduradas nos braços cor de café.

Carla percebeu que ela se revoltava diante da perspectiva de vir a compartilhar o leito nupcial com um estranho, imposto pela vontade do irmão. Podia ser que ela admirasse muito El Zain, mas, obviamente, não aprovava aquele tipo de imposição.

— Se o velho barbado for bastante rico, já será um consolo — disse Lallou, pegando um bolinho de creme. — Afinal, o que é o casamento senão uma outra forma de ser protegida e amparada?

— Nossa única contribuição é ter filhos, É um baixo preço para garantir nossa segurança futura. Veja. Carla, nós aqui damos mais valor à segurança do que vocês, ingleses. Fale com franqueza, Carla, você pretende realmente passar toda a sua vida sem um homem a seu lado, que se responsabilize pela sua sobrevivência e seu bem-estar?

— Talvez eu não queira levar a vida toda sem... Ser amada. — Ao dizer aquilo, Carla sentiu que estava vermelha, pois a afirmação parecia pieguice de sua parte.

— Carla! — Lallou soltou uma risadinha maliciosa. — Amor é o que não vai lhe faltar. Meu irmão é um homem com "H" maiúsculo. Todos sabemos que ele ficou muito abalado com a morte da primeira mulher, mas nem por isso vai chorar a vida toda sobre o seu cadáver. Tanto assim que se dispôs a atender aos pedidos dos conselheiros de Beni Zain, para se casar novamente e ter herdeiros.

Lallou se reclinou sobre as almofadas e ficou estudando as reações faciais de Carla, que não parecia muito convencida com aquela explicação. Ao contrário, parecia ainda mais deprimida. Estaria a futura cunhada invejando o relacionamento que existira entre Farah e El Zain?

— O que você entende por ser amada, Carla? Pensa, por acaso, em ocupar o lugar vazio que Farah deixou no coração de meu irmão?

— Não! — disse Carla, com veemência. — Eu sou eu. Ela é ela. Nunca poderia ser uma escrava submissa, seguindo a sombra de seu irmão, respirando o mesmo ar que ele respira, vivendo a vida dele!

— Quanta contradição! Na minha opinião, o amor é justamente isso!

Diante daquela conversa, Belkis tinha se levantado do divã e agora estava parada, com o olhar vago, como se refletisse sobre as palavras que haviam sido ditas. A expressão sonhadora de seu rosto tinha algo de intrigante, algo que Carla não soube definir, mas apenas intuir.

Olhando para o velho relógio de pulso, Carla teve um sobressalto. Naquela hora, alguém estava sendo executado com uma lâmina de aço, sob as vistas de um homem moreno, de rosto duro e inflexível em suas decisões. O choque foi tamanho que ela chegou a derrubar sua xícara de café no tapete.

— Não posso! Não vou mais ficar aqui nem um minuto! — Carla se levantou bruscamente. — Alguém precisa me ajudar. Quem poderia correr esse risco?

— O risco de ter o mesmo fim de um criminoso? — acrescentou Lallou, enquanto Belkis deixava o lugar de meditação e corria para Carla, os olhos esbugalhados de medo.

— Ele nunca vai permitir que você vá embora, Carla! — ela alertou, muito aflita. — A entrada no harém é proibida a estranhos e quem cometer uma ousadia dessas será punido de uma forma terrível!

Carla notou que a reação de Belkis fora motivada por algo que pouco tinha a ver com sua ameaça de fuga. A moça devia ter algum problema particular que a apavorava.

Então, mansamente, Carla passou o braço pelos ombros dela.

— Desculpe se a enervei — disse, sem tentar lhe arrancar uma confidência.

Sabia que Belkis não se abriria diante da irmã, pois Lallou era obviamente leal ao irmão e não titubearia em relatar a ele tudo o que ouvisse dentro daquelas quatro paredes. Esse procedimento estava escrito nos grandes olhos castanhos, que agora a olhavam, desafiadoramente.

— Pode ir contar a ele tudo que acabei de dizer — instigou Carla. — Você vai dar com os burros n'água, pois El Zain está cansado de saber o que eu penso a respeito dele. Não costumo medir as minhas palavras quando falo com seu irmão. Ele já está ciente de que eu gostaria de fugir, caso tivesse chance.

— Então você é uma boba total — retrucou Lallou. — Meu irmão poderia ter escolhido uma esposa entre mais de cem mulheres que se sentiriam honradas com isso. É um mistério que ele tenha preferido você. Talvez o sangue dele tenha falado mais alto. Nós não temos permissão de tocar nesse assunto, mas você mesma já deve ter constatado que ele não é um bérbere de raça pura, e a inclinação que tem por essa sua pele branca e esses seus cabelos loiros é justificável. Além disso, o fato de você ter um defeito no pé, que para alguns homens poderia ser um motivo de rejeição, para ele é uma qualidade. Pense só na sorte que você tem, roumia.

— Você está sendo inconveniente, Lallou — repreendeu-a Belkis, olhando para Carla. — Não faça caso dela, Carla. Ele está com ciúme porque Zain vai se casar, mas eu estou contente com isso. Quero que você seja minha nova irmã. Acho você um amor e sinto muito que Lallou lhe tenha falado sobre as coisas que Zain foi obrigado a fazer, por força do dever. Com o tempo, você vai entender melhor a nossa mentalidade.

— Vai levar um século para que eu entenda!

— Ou apenas uma noite... De núpcias! — acrescentou Lallou, com ar malicioso.

— Lallou! Por que você fala desse jeito? — Belkis lançou um olhar fulminante sobre a figura balofa da irmã. — Você não leva em consideração que Carla pode ser tímida. E pare de comer! Logo, logo, você vai ficar gorda como uma leitoa!

— Segure a língua e mude o tom de voz — replicou Lallou. — Os homens gostam de açúcar na voz, e não de vinagre. Não sei o que lhe aconteceu ultimamente. Talvez fosse melhor que eu soprasse aos ouvidos de Zain Hassan que está na hora de lhe arrumar um marido, antes que você azede de vez.

— Veja se cuida da sua vida! — revidou Belkis, possessa. — Para você é que deveriam providenciar um marido urgente, antes que fique uma baleia e ninguém mais a queira!

— E daí que eu fique gorda, irmãzinha? Os homens gostam mais da lua cheia do que do quarto minguante. — Os olhos zombeteiros fitaram a figura esguia de Carla. — E você, seja ajuizada e procure agradar Zain Hassan, para não fazer inimigos em Beni Zain. Se o casamento for um fracasso, vão pôr a culpa em cima de você, e não nele, pois todos já estão sabendo que, no contrato, ele está abdicando do direito de ter outras esposas, conforme permite a lei maometana. Você também sabe disso, não é? Ter três esposas é uma maneira de garantir muitos herdeiros. E o que vamos esperar de você, uma mulher fria, vinda das regiões gélidas da Grã-Bretanha? Está vendo? Só de falar nisso, você já fica toda arrepiada!

De fato, Carla não podia evitar de se arrepiar diante da argumentação de Lallou, Continuavam a considerá-la uma reprodutora, e não um ser humano. Essa é que era a verdade!

— Não fui eu quem exigiu de Zain Hassan que ele abrisse mão dos seus direitos — disse. — Até andei sugerindo que seria bem melhor se ele se casasse com uma moça bérbere. Ele só me escolheu por que sou o contrário de Farah e não lhe trago recordações dolorosas. Mas o que pode ser justo para ele é injusto para mim. Afinal nenhuma mulher aceitaria se casar com um homem só para que ele pudesse cumprir com uma obrigação perante terceiros. Eu sou gente! Dá para entender isso, Lallou? Não há dinheiro no mundo que pague a minha liberdade. Vou ser desta opinião até o fim, até a hora em que o sacerdote desate o nó e que a espada de prata caia sete vezes sobre a porta do nosso quarto nupcial. Oh, sei bem como é o ritual. O sheik Molay me ensinou. Mas não sei se agüentarei tudo sem gritar por socorro. Estou me sentindo como se estivesse sendo emparedada viva. Tijolo por tijolo!

— Oh, você não deveria dizer uma coisa dessas — Belkis falou, com ressentimento. — Será que se sente tão infeliz assim, Carla? Você odeia tanto meu irmão?

— O que odeio é ser obrigada a ficar aqui, sem enxergar uma porta aberta na minha frente!

— Como se isso fosse possível! — intrometeu-se Lallou. — E para onde iria? Quer morrer sob o sol escaldante do deserto? Devia era ser grata pelas concessões que lhe foram feitas por um homem que não tinha nenhuma necessidade nem obrigações para com você. Mas ele vai permitir que você saia pela cidadela para passear, fazer compras, e vai deixar que o acompanhe nas visitas que faz às regiões mais remotas da província. Além disso, você será a única mulher na vida dele. Belkis e eu bem que gostaríamos de gozar de todas essas regalias quando nos casarmos.

— Vocês duas foram educadas para esse tipo de vida, desde crianças. Para mim, é bem mais duro ter que aprender agora, na idade adulta. — E Carla sorriu. Ela nunca aprenderia a se curvar diante de Zain Hassan, nem a se comportar como se fosse a sua cadelinha de estimação.

— Entendo como você se sente — disse Belkis, com compreensão. — O amor é uma chama preciosa, que só pode se manter acesa quando existem duas bocas unidas para assoprar.

— Que poética! — brincou Lallou, mas o olhar que lançou à irmã era mordaz. — Você aprendeu essa frase de algum livro, ou dos lábios de algum homem?

— E como poderia? — perguntou Carla, em defesa de Belkis. — O harém está muito bem vigiado!

— Sim, pelos guardas — disse Lallou, vendo o rosto cor de mel da irmã se tingir de vermelho. — Não vá fazer alguma bobagem, irmãzinha. Lembre-se do que aconteceu à mãe de Zain! Os guardas do kasbah não são eunucos, como antigamente. Quanto a você, Carla, é bom que saiba que nosso irmão não é o selvagem que pensa que é. É até muito humano e civilizado. Quando nosso pai morreu, que Alá o tenha, ele aposentou todos aqueles pobres diabos balofos e contratou alguns dos homens da tribo para montarem guarda em seus domínios. Alguns deles são até muito másculos e atraentes. Daylis bin Bedari é um exemplo. Ele tem um tipo físico que chama a atenção. Mas, apesar de sua bela aparência, não passa de um homem pobre, de baixo nível social, e não está sendo pago para erguer os olhos acima do seu nível. Ele poderia se meter em sérias encrencas. Você sabe disso, não sabe, Belkis?

Belkis olhou desconsoladamente para a irmã, e Carla temeu que a jovem estivesse empolgada por aquele guarda charmoso e desinibido que ela própria já tinha notado. Certamente, não passava de um namorico, mas Belkis estava numa idade perigosa, quando as moças começam a alimentar sonhos românticos. Só que as irmãs do califa não tinham o direito de sonhar, pois estavam destinadas a se unir a homens poderosos, que fossem de interesse financeiro e político para a província de Beni Zain.

— Vamos, Belkis. Vamos lá fora. Lá está mais fresco — convidou Carla.

Levou a caçula para o jardim, onde as duas ficaram andando a esmo, pelos arbustos floridos. Num impulso, Carla arrancou um galho repleto de florzinhas brancas e o levou junto à face. Foi um gesto tolo e impensado.

Uma enorme abelha africana saiu de dentro das flores, zumbindo, e lhe deu uma ferroada no lábio inferior. Carla gritou de dor.

Belkis também se assustou e correu em direção aos cedros, por trás dos quais apareceu uma figura alta com um punhal na cinta.

Ao sentir a ardência se espalhar como fogo por todo o rosto e o medo aumentar, Carla viu que Raschid vinha em seu socorro.

— Foi picada, sitt? — Ele fez a pergunta em inglês, com forte sotaque árabe, e Carla olhou-o, muito admirada, pois ele nunca falara com ela naquele idioma.

O rosto moreno, de barbas negras, tinha uma expressão apreensiva, quando conseguiu soltar-se das mãos de Belkis, que lhe seguravam o braço, possessivamente. Sem hesitar, ergueu Carla do chão, anunciando:

— Vou levá-la para o hakim com urgência! Essas abelhas africanas são venenosas!

À medida que percorria aquele labirinto de corredores do kasbah, no colo de Raschid, Carla foi sentindo a boca inchar e as faces latejarem. Belkis os seguia, correndo desajeitadamente naquelas babuchas de pontas viradas.

Carla pensou com seus botões: é este. É de Raschid que ela gosta.

Quando ele a depositou no divã de um grande aposento, a dor aumentou ainda mais. Ouviu um murmúrio de vozes, falando em árabe. Não entendeu palavra alguma, mas pôde compreender que hakim era o médico. E que Belkis estava muito preocupada.

Num gesto de solidariedade, a jovem lhe apertou a mão e Carla percebeu que ela tremia.

— Foi só uma mordidinha de abelha — disse Carla, tentando acalmar Belkis.

— Zain — ouviu a voz de Belkis chamando.

E viu a moça correr em direção de alguém que estava entrando no quarto. Olhos celestes a fitaram, apreensivos, quase em desespero.

— Por Alá! O que você foi fazer? — ele perguntou, com muita calma. Em seguida, mudando o tom de voz, que se tornou alto e forte, começou a dar ordens em árabe.

Alguém arregaçou a manga do seu vestido, e ela sentiu a picada de uma agulha no braço. Logo, tudo escureceu à sua volta.

Lembrava-se vagamente de ter tentado se erguer e de ter balbuciado alguma frase incompreensível. Mais tarde, lhe contaram que tinha desmaiado pelo choque produzido pelo forte antídoto que haviam injetado em sua veia.

Carla acordou do desmaio, já deitada em sua cama. A gaze do mosquiteiro lhe deu uma sensação de isolamento e privacidade, provocando-lhe uma espécie de cansaço.

Não queria recordar a perigosa experiência por que havia passado, mas sua mente insistia em lhe devolver as imagens daquele jardim, do ramo perfumado de jasmins, cujo aroma ainda persistia em suas narinas. Teve receio de tocar suas faces, mas, quando o fez, sentiu que já não estavam inchadas e deformadas.

Oh, Deus! Não fora à toa que Zain Hassan a havia olhado com aquela expressão preocupada. Ela devia estar parecendo um monstro!

Pensando naquilo, soltou um gemido, e, imediatamente, a sua fatima postou-se ao lado da cama. Depois de observá-la por um instante, a criada perguntou:

— A sitt está com sede?

Carla acenou afirmativamente, e ela a ajudou a se levantar para que pudesse tomar um suco de frutas.

— Por que será que estou me sentindo tão fraca? — perguntou Carla. — Foi aquela injeção que me deram?

— É um remédio muito forte. — A fatima afastou uma mecha de cabelos de seu rosto. — O hakim disse que a senhorita tem o sangue muito bom e forte.

Carla sorriu debilmente por causa do lábio ferido. Pediu um espelho de cabo e se olhou atentamente. O lábio inferior ainda tinha as marcas da ferroada, mas o rosto já havia voltado ao normal. Estava só muito pálida e com olheiras.

— Que coisa mais boba que eu fui fazer! Imagine! Beijar um ramo de flores! O que tenho mesmo é sangue impulsivo. E o califa? Ele ficou muito aborrecido?

— Aborrecido, sitt? — A jovem criada a olhou de uma forma enigmática, — O que eu soube é que ele estava terrivelmente preocupado, pois a picada desses insetos venenosos pode ser fatal. Veja o que aconteceu com o filho dele, o pequeno príncipe.

Carla sentiu o coração dar um salto e novamente veio à sua memória o desespero que havia lido naqueles olhos azuis. Naturalmente, vendo-a naquele estado, ele havia se lembrado da agonia por que passara ao ver o sangue de seu sangue morrer em seus braços, em conseqüência da picada de um escorpião. No caso dela, fora uma abelha africana, e tivera a sorte de Raschid haver tomado providências imediatas para socorrê-la.

Raschid e Belkis... Oh, não havia mais dúvidas de que se gostavam, depois que Carla testemunhara como eles se entreolhavam, enquanto a atendiam. A doce Belkis, enamorada de um dos guardas do irmão, sabendo que aquele era um amor impossível. Seria inútil alimentar ilusões a respeito daquele homem rústico do deserto. Carla não se admirava que Belkis tivesse se apaixonado por ele. Apesar da origem humilde, tinha maneiras nobres e altivas, que podiam facilmente impressionar uma garota que vivia em reclusão. Aquele porte marcial, a vestimenta, a adaga que levava à cinta... Era realmente uma figura bonita.

Quantas vezes eles teriam se encontrado à sombra dos cedros? Até quando aqueles encontros secretos poderiam perdurar?

Lembre-se do que aconteceu com a mãe de Zain, dissera Lallou, e o eco de sua voz ainda ressoava nos ouvidos de Carla.

— A senhorita precisa dormir e deixar que o remédio faça efeito — recomendou a fatima, muito prestativa. — Está se sentindo bem?

— Fisicamente, sim — disse Carla. — Mas a minha mente não tem sossego e eu não consigo ter paz de espírito. Você poderia cantar para mim, Analita, como se eu fosse uma criancinha? Estou precisando ser mimada. Acho que é carência afetiva.

— Se a senhorita quiser, poderei cantar, mas não conheço canções inglesas.

— Quero ouvir uma canção do deserto, Analita. Uma dessas canções lentas. Sabe do que estou falando?

— A sitt está tristonha, e, no entanto, deveria estar agradecida por Alá lhe ter salvado a vida.

— Oh, mas eu estou. Só estou triste pelos outros. Se eu tivesse o dom de fazer com que só o amor fosse importante na vida das pessoas! Oh, Analita, eu devo estar delirando!

A fatima sentou-se a seu lado, de pernas cruzadas, e começou a entoar velhas canções que havia aprendido na infância e que falavam dos três reis magos que seguiram uma estrela no céu até chegarem a uma manjedoura.

A música era melancólica, mas relaxante, e em pouco tempo Carla sentiu as pálpebras pesadas e caiu numa espécie de sono.

Mas, após alguns minutos, começou a se agitar e a balbuciar palavras desconexas.

— Vovó! Oh, avozinha, não me abandone! O que quer que eu faça? Quer que eu seja uma boa menina, vovó? Oh, sim, prometo que vou ser.

O delírio continuou e Carla debatia-se. As palavras que ela murmurava não faziam sentido para a fatima e a jovem se alarmou. Saiu apressadamente do quarto e não voltou mais.

Em seu lugar, apareceu a figura inconfundível de El Zain. Fechando a porta atrás de si, ele se aproximou do leito, pé ante pé, e, após observar Carla por alguns instantes, se inclinou sobre ela, segurando-a pelos ombros suavemente, mas com firmeza, sussurando-lhe junto ao ouvido:

— Você pode voltar para a sua casa, Carla. Vou providenciar os preparativos para que deixe Beni Zain tão logo esteja em condições de enfrentar a viagem. Está me ouvindo, minha criança? Nunca mais será forçada a fazer nada... Nada que não queira fazer. Está me entendendo, bint?

Carla abriu os olhos devagar, pestanejou e fitou aquele rosto que sempre lhe causara tanto medo. Só que, dessa vez, a fisionomia tão temida teve o dom de acalmá-la.

— Pronto! Então era isso que você queria, hein? — continuou ele, vendo-a mais tranqüila. — As portas serão abertas para você, Carla. Quando melhorar, poderá ir embora para sempre.

— As portas do kasbah? — ela murmurou.

— E... As portas de sua prisão. Está contente?

Carla olhou-o, sem acreditar, mas o mais estranho é que sua vontade naquele momento era passar as mãos pelas faces morenas, pelo corte do queixo, pelas negras sobrancelhas. Queria apalpá-lo, saber se ele era real. Mas a pior realidade é que a liberdade que ele lhe concedia estava lhe provocando uma opressão, uma dor no peito, pior do que a que sentira quando a avó morrera, deixando-a numa casa vazia, onde não havia mais ninguém ranzinza para exigir que ela fosse uma boa menina. Um soluço lhe subiu à garganta.

— Está bem. Irei embora quando você quiser.

— Não sou eu quem quer. Estou apenas satisfazendo a sua vontade. Agora que está mais sossegada, procure dormir e descansar.

— Mas não é nada disso que eu quero!

Por que havia dito aquilo? Instintivamente, mordeu o lábio inferior, e a dor inesperada a fez soltar um grito.

Logo, dois braços protetores a envolveram, e ela sentiu as fortes batidas daquele coração que lhe parecera tão insensível e que, agora, palpitava acelerado.

— Beijando as flores... — disse ele, roçando os lábios nos cabelos loiros. — Por que não a mim? Pelo menos, o meu beijo não é venenoso. É isso que você pensa de mim? Que sou um veneno?

Carla sentiu-se embalada como uma criancinha, e, num impulso incontrolável, se aconchegou junto àquele peito moreno e musculoso. O que estava fazendo? Afinal, o que queria ela?

— Acho que ainda estou delirando — sussurrou. — Aquela abelha me deixou meio zonza. Nada disso deve estar acontecendo...

— Você gostaria que acontecesse, Carla? — Afastou-se um pouco dela para ver a expressão dos seus olhos verdes. — Minhas irmãs me contaram que a única coisa que você queria que acontecesse é que as portas do kasbah lhe fossem abertas. Você chegou a suplicar pela sua liberdade, achando que eu era um tirano porque não a deixava ir embora. Não sou bem um tirano hilwa, apesar de que, às vezes, faço coisas que a contrariam. Mas ao ver essa carinha tão pálida e desfeita pelo sofrimento, ao ler tanto pavor nesses seus olhos lindos, logo que o hakim disse que você estava fora de perigo, fui para a mesquita e, de joelhos, jurei ao Nosso Pai que iria satisfazer o seu maior desejo. E ambos sabemos qual é esse desejo, não é verdade?

Carla voltou a ver em seus olhos azuis aquela tristeza e melancolia que vira quando ele falara sobre a morte do filho.

— E qual é esse desejo, meu amo?

— Abandonar-me — ele respondeu, resumindo.

Abandono... Que palavra mais triste! Dava uma sensação de solidão... De desesperança... Um tremor lhe sacudiu o corpo.

— Pois eu estou pronta para satisfazer o seu desejo — disse ela, segurando-lhe as mãos morenas junto ao seio.

— E qual é o meu desejo, srta. Innocence?

— Ter um filho. Um menino que tome o lugar daquele que você perdeu. Pelo menos isso eu sei que posso lhe dar.

— Só isso? E seu coração, você não pode dar? — As mãos morenas sentiram aquele coração bater aceleradamente, através da fina seda da camisola. — Seu coração está batendo tão forte! É porque você tem medo de mim?

Carla sacudiu a cabeça e tornou a se aconchegar junto dele, de forma que ele pudesse lhe beijar o pescoço, os cabelos, as orelhas. Um calor que não era da febre invadiu todo o seu corpo.

— Não sei o que está acontecendo comigo — ela sussurrou. — Estou tão confusa!

— Mas está gostando? — Os lábios dele baixaram até o decote da camisola. — Você é uma boa menina, Carla. Pena que tenha receio de deixar que o seu coração se aqueça.

— Meu receio é que ele se aqueça inutilmente. Sempre que você olha para mim, sei que está pensando em Farah. Quando o seu olhar vagueia pelo deserto, sei que está procurando o túmulo de Farah. Tudo o que você sente por mim é o desejo que um homem sente por uma mulher.

— Você pensa assim? — Segurou-a pelos cabelos, dessa vez sem machucá-la. — Não nego que amei Farah e que me lembro dela com carinho e gratidão. Mas a vida continua, bint, e eu estou aqui, vivo, para servir e comandar meu povo. É uma missão espinhosa e cansativa, e existem dias em que eu gostaria de estar junto de uma mulher carinhosa, de olhos verdes e cabelos loiros, que viesse para mim de braços abertos e me fizesse esquecer as preocupações e até as crueldades que sou obrigado a cometer para manter a ordem. Quando fui buscá-la em Casablanca, tinha esperança de que desse certo. Às vezes, fico rindo sozinho ao pensar naquela viagem que fizemos juntos. Você estava apavorada, achando que eu era um seqüestrador, com intenções de carregá-la para a minha tenda no deserto. Bem que eu teria gostado, bint. Quantas coisas haveria de lhe ensinar sobre o amor.

A boca sequiosa lhe pressionou os lábios. Carla não se importou com a dor que sentia. Aqueles beijos famintos, devastadores, provavam o quanto ele a queria. E aquele homem devia querê-la loucamente, pela sofreguidão com que a acariciava e, por sua vez, a fazia enlouquecer.

Todos os temores de abrir seu coração se foram. Foi com relutância que Zain Hassan se desprendeu dela e a fitou, penalizado.

— Seu lábio machucado! Oh, me perdoe!

— Pode me machucar! Pode me bater! Eu mereço! Como tenho sido cega e idiota! Mande fechar os portões, Zain, e me prenda aqui, junto de você, para sempre.

— Depois que a espada de prata baixar sete vezes, que eu desfiar, uma a uma, as cem pérolas de seu vestido de noiva, que eu desmanchar seus cabelos e beijar a sola dos seus pés, só espero que você não chore pela liberdade perdida. Você já aprendeu as palavras do Alcorão?

—Seja humilde. — Ela lhe beijou um dos olhos, e depois, o outro. — Seja modesta, obediente, e agrade sempre seu amo e senhor. Sim, eu já aprendi as palavras, El Zain.

Ele sorriu, benévolo, e naquele instante vieram à lembrança de Carla as figuras de Belkis e de Raschid. Quando chegasse a ocasião oportuna, haveria de interceder por eles.

— Seja simplesmente Carla — ele respondeu. — A minha Carla destemida e temperamental, como os lobos do deserto.

— Com prazer, meu senhor!

Ao abraçá-lo, ela viu pela janela aberta que a lua já estava se transformando num disco redondo e luminoso. Pouco faltava para que repetisse, diante do sacerdote e do conselho de anciões, os votos da cerimônia do casamento. Aquele homem altivo, orgulhoso e autoritário seria só dela. A mão do destino a tinha levado seus braços.

— Nourmahal — ele sussurrou. — Luz do Harém!

 

                                                                                Violet Winspear  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Voltar à Página do Autor