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O CAMAROTE VAZIO / Josué Montello
O CAMAROTE VAZIO / Josué Montello

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CAMAROTE VAZIO

 

Seguido pelo carregador que lhe levava a mala de couro - a imponente mala de couro inglês, com fechos de metal e cantoneiras também de metal - Benevenuto chegou ao cais do porto, no seu paletozinho de xadrez rachado atrás, muito antes da hora marcada para a saída do navio.

Mesmo assim, já havia ali uma confusão de vozes, em espanhol, em inglês, em francês, em italiano e em português, entre turistas que se abraçavam, que riam alto, que se acenavam, uns com máquinas fotográficas a tiracolo, outros com sacolas de compras e bolsas espaçosas, trajando roupas sumárias, com vestidos cavados e coloridos, calças apertadas, camisas esportivas, já deixando sentir o frenesi do carnaval.

E o Benevenuto, já no primeiro degrau da escada do porta-ló, olhando alarmado os grupos de americanos barulhentos e efusivos e vendo o carregador subir a escada da popa, inclinado para a frente, com a sua bela mala nas costas:

- Felizmente esses gringos vão ficar aqui mesmo. Se fossem também para Santos, eu desistia da viagem.

Embora ainda faltassem duas semanas para o carnaval, já havia, ali no Rio de Janeiro, na Praça Mauá, na Avenida Rio Branco, na Cinelândia, na Avenida Getúlio Vargas, com os enfeites carnavalescos tomando as faixas, adornando os postes e as fachadas, atravancando a entrada do Teatro Municipal, um ambiente de festa coletiva, prenunciando os cordões, os carros alegóricos, os ranchos, as escolas de samba, os blocos de mascarados que se espalhariam pela cidade, de sábado gordo à quarta-feira de cinzas.

Quase no meio da escada, Benevenuto perguntou a si mesmo como tinha coragem de sair do Rio para ver uma tia velha, quase à morte, no interior de São Paulo, perto de Santos, se também gostava de pular e dançar, fantasiado, mascarado, quando não preferia participar dos desfiles de fantasias de luxo, competindo com rivais terríveis, que lhe tiravam o sono.

Subiu outros degraus, suspirando:

- Ano que vem, já com as jóias da Tia Eudóxia, tiro a forra, ganhando o primeiro prêmio do Teatro Municipal com a minha fantasia de Luís XIV. Vou abafar a banca e botar pra quebrar. O Evandro que se cuide. Vai ficar de cama, depois do desfile.

O médico, dias antes, lhe havia recomendado um pouco de descanso, no seu corre-corre de todos os dias, nos pregões da Bolsa. E era como se lhe ouvisse a voz, grave, rouca, vagarosa:

- Este ano, nada de carnaval. O senhor é um emotivo, leva tudo a sério, convém fazer uma pausa, pelo menos agora.

E como a fantasia de Luís XIV, imponentíssima, tão rica quanto o traje verdadeiro, nos calções, no peito bordado a ouro, no manto, no cetro, na cabeleira em caracóis, ainda precisava de arremates, com vidrilhos e paetês sobre as sedas e os veludos, Benevenuto baixou a cabeça, aceitando o descanso forçado como uma penitência:

- Doutor, eu só quero que Deus tome nota de meu sacrifício.

E como encontrara no apartamento, ao voltar do médico, um novo recado da Tia Eudóxia, que lhe pedia fosse vê-la com urgência, tornou a suspirar, desolado:

- Um infortúnio nunca vem só. Deus quer e manda, faça-se a vontade de Deus.

E mandou que o mordomo trouxesse do depósito de velharias do edifício o seu malão de viagens marítimas:

- Depois do susto que levei, na última viagem de avião, com aqueles sobressaltos entre Rio e Belo Horizonte, como se estivesse no Triângulo das Bermudas, prefiro ir de navio.

Não tinha sido fácil conseguir um lugar nos poucos navios de passageiros que ainda tocavam nos portos do Rio de Janeiro e Santos, vindos de Liverpool, do Havre, de Lisboa, com destino a Buenos Aires ou Valparaíso. Dias e dias empenhara-se para obter uma vaga no Pasteur, que fazia a sua penúltima viagem à América do Sul. E de repente, no seu escritório, o telefonema efusivo de seu amigo Nagibe, da agência de viagens:

- Benevenuto querido, você nasceu mesmo com o bumbum para a lua. Seu camarote, no Pasteur, está arranjado, tanto para a ida quanto para a volta. No Havre, quando já ia embarcar para Santos, um casal de franceses cancelou a viagem, e o camarote deles vem vazio. E seu. Para ir e para voltar. Parabéns.

E como a conjugação de astros, nos mapas astrológicos, lhe era favorável, naquele meado de fevereiro, prometendo continuar assim até o começo de março, Benevenuto foi também avisado de que o camarote era bom.

Radiante, depois de uma risada boa, Benevenuto agradeceu ao querido Nagibe a grande notícia, e logo bateu na madeira, fazendo uma figa, para evitar os maus-olhados - mesmo do Nagibe.

E este, ainda loquaz, antes de desligar o telefone:

- Mas te prepara para pular a bordo. O Comandante do Pasteur, mesmo sendo francês, adora carnaval, como qualquer brasileiro. Há sempre festa a bordo.

E o Benevenuto, numa promessa que sabia de antemão não iria cumprir:

- Vou ficar no camarote, fechado, lendo e dormindo. Tanto na ida quanto na volta.

Mas recomendou ao mordomo, quando este subiu do depósito com o malão:

- Pelo sim, pelo não, põe nas minhas roupas a fantasia de Pierrrô com que tirei o prêmio do Baile do Copacabana, ano passado. Aquela que fez o Evandro desmaiar.

De fato, o camarote amplo, de dois beliches, com a vigia aberta para o mar, pareceu-lhe excelente, bem no meio do navio. Mesmo que o navio jogasse, batido pelos vagalhões de alto-mar, suportaria o mareio, sabendo que seria muito pior no camarote de proa, como acontecera na viagem à África, a bordo do Príncipe Perfeito. Jamais esqueceria o arremesso das ondas, à altura do Cabo da Boa Esperança, a caminho de Moçambique, quando o navio subia por cima da vaga, fendendo-a de proa, para cair logo depois, como se despencasse para afundar de uma vez, e ele, Benevenuto, ali,na casca de nós, olhando tudo, sentindo tudo, com a impressão de que seu crânio ia estourar, pressionado de dentro para fora.

E gemia, com o lenço na boca, salivando:

- Em que foi que me meti, meu Deus!

E só se consolava em reconhecer que, no ar, dentro de um avião, a debater-se com as sacudidelas de um temporal, entre relâmpagos, teria sido pior. Crispava as mãos, contraía o ventre, entregava-se às mãos de Deus, com o suor frio a lhe descer pelas costas, sempre que a proa do navio, à sua frente, tornava a subir, tornava a descer. Seus dentes batiam, a respiração lhe faltava.

No centro do navio, seguindo a linha do litoral, não arrostaria os mesmos contratempos. Pela vigia, só descortinaria o oceano, sem a sensação de olhar a proa cortando as ondas, e ora a empinar-se, ora a cair, mergulhando no abismo.

Aliviado, voltou a respirar fundo:

- O camarote não podia ser melhor, Comissário. No lugar ideal, no meio do navio. Obrigadíssimo.

E o Comissário, vermelho, a exibir no sorriso largo o seu canino de ouro:

- É o que se quer. Desejo-lhe uma boa viagem. Sempre ao seu dispor, Comissário Jacques.

E inclinando levemente a cabeça que o boné do uniforme branco realçava, com os caracóis de cabelo vermelho saindo para os lados:

- O Comandante manda-lhe dizer que o espera na sua mesa. O senhor fará as refeições conosco.

Apanhado pela surpresa do convite, Benevenuto pensou em esquivar-se, livrando-se da maçada da mesa destacada; mas já o Comissário tinha deixado a chave na fechadura do camarote, e tornava a inclinar a cabeça simpática, com a mão tocando a pala do boné. Benevenuto inclinou-se também, e agradeceu, pedindo que dissesse ao Senhor Comandante que se sentia muito honrado em compartilhar de sua mesa.

Reconheceu logo que o convite do Comandante era uma astúcia a mais do amigo Nagibe. Sem imaginar o suplício que lhe infligia, tirava-o do bem-bom do camarote espaçoso, onde pensara jantar, tomar café e almoçar, chupando deitado as suas pastilhas de hortelã, com um novo romance da Agatha Christie diante dos olhos, e ouvindo velhos tangos argentinos no toca-fitas de seu rádio de pilha.

E eis que lhe aparecia, gentil, maneiroso, o convite irrecusável, com a chateação supletiva da gravata borboleta, do smoking e da camisa de peito engomado, além da meia preta e do sapato de verniz.

Por Benevenuto, nada disso teria vindo no seu malão. Só o velho mordomo, que também herdara de seu pai, se lembraria de pôr ali semelhante uniforme, com a justificativa de sempre:

- Uma pessoa como o senhor não pode ser apanhada de surpresa por um compromisso de última hora. O smoking é indispensável.

E ele, Benevenuto, já quase à hora de descer para tomar o carro que já estava à porta do edifício, à sua espera:

- Que compromisso de última hora pode me aparecer, Elesbão, a bordo de um navio, para dois dias de viagem, já perto do carnaval?

E ali estava a resposta.

Tirou do malão a roupa, pendurou-a no cabide, e foi meter-se no chuveiro, para tirar do corpo o suor das emoções da partida, com gente a acenar, com turistas atirando para o cais fios de serpentina, com a orquestra de bordo a tocar a Cidade Maravilhosa por entre os derradeiros sucessos de Edith Piaff; e o navio a afastar-se vagarosamente da orla de cimento e pedra, com a âncora a enrolar a corrente na roldana da popa, e o pessoal de bordo a deslocar-se pelo convés e o portaló, subindo escada, descendo escada, entre trilos de apito, gritos, ruído de passos precipitados, enquanto um velho senhor de preto tirava reverentemente o chapéu de copa alta para o Cristo do Corcovado.

Ao sair do chuveiro, enxugou-se com rapidez, vestiu a calça de mescla e a camisa esportiva, pôs na cabeça o boné de xadrez, instalou no nariz os óculos de vidro enfurnado, e foi ver o navio sair para fora da barra, na mais bela baía do mundo.

Instalou-se no convés, com o binóculo nas mãos jubilosas, e todo ele se alvoroçou, vendo ilhas, montanhas, lanchas, barcas, entre o Rio de Janeiro e Niterói, até perceber que o navio passava agora defronte da Ilha Rasa e do Forte de Copacabana, sob a última luz da tarde.

E não podendo mais conter-se:

- Lindo, lindo. Deus caprichou quando fez esta baía.

E o orgulho de ter nascido debaixo daquele céu, com o Cruzeiro do Sul a brilhar e sob a proteção do Cristo Redentor, fê-lo pensar na pobre da Tia Eudóxia, que o queria a seu lado, como objeto de todos os seus mimos e agrados, e a quem, por fim, como legado de solteirona, deixaria as jóias de família, as famosíssimas jóias que sempre guardara debaixo de chave, sem mostrá-las a ninguém, ciumentamente decidida a defendê-las com as mãos em garra, o nariz adunco e os olhos de águia solitária.

Lamentou-a:

- Pobre Tia Eudóxia, sempre azeda e resmungona, mas gostando de mim, como se eu fosse o filho único que ela não teve!

Com receio de cochilar e adormecer, e para não correr o risco de atrasar-se para ocupar o seu lugar à mesa do Comandante, ele se vestiu a rigor com muita antecedência, passou o pente nos cabelos, aparou com a tesourinha os pêlos do nariz e das orelhas, sempre meticuloso; perfumou-se, olhou-se da cabeça aos pés, e instalou-se na poltrona do camarote, com a luz do abajur à sua esquerda, pernas cruzadas, a dosezinha de uísque ao alcance da mão, na mesa de centro, à sua direita, o ouvido atento ao aviso da sineta do salão de jantar.

Como tornara a limpar as lentes de contato, a página do romance de Agatha Christie lhe pareceu muito nítida, muito clara, e logo ficou à espreita do astuciosíssimo Poirot, que não tardou a aparecer-lhe, páginas adiante, com seu cachimbo inglês e sua experiência de detetive que nunca se enganava.

E já o interesse da leitura começava a crescer-lhe, transferindo-o do camarote do navio para uma ruazinha de Londres, sob a luz de um lampião quase apagado, quando ouviu retinir, por cima de sua cabeça, o badalo da sineta de bordo, chamando para o jantar.

Olhou-se ao espelho, espevitou na botoeira o distintivo do Lion 's Clube, corrigiu o cabelo à altura das têmporas, alteou o peito, olhou-se de lado para ver melhor o efeito da risca do penteado, e saiu dali lépido, contente, assobiando.

Os camarotes da primeira classe, de um lado e de outro, entre as escadas que subiam ao convés ou baixavam ao salão de jantar, davam a impressão de compor uma rua longa de portas sucessivas, com uma plaqueta e um número por cima da fechadura reluzente. Reinava ali o cheiro inconfundível do óleo da limpeza misturado ao odor da comida de bordo, predispondo ao mareio.

A meio caminho, admirou de relance o salão recolhido da capelinha de bordo, toda branca, com a estantezinha do Missal no altar de mármore, entre os castiçais de prata maciça, finamente trabalhados, e que erguiam verticalmente os três círios por acender. Ao longo da nave, sob a claridade discreta, as duas orlas de bancos.

Como não queria ser o primeiro a chegar, parou um momento no alto da escada, simulando interesse pela gravura da parede, que representava uma cena de caça na floresta, com os cavalos galopando entre árvores imensas, enquanto os cães corriam perseguindo um coelho, já com dois cavaleiros assestando a espingarda para o tiro.

Aproximou-se, como interessado em saber agora o autor da gravura, mas não tardou a endireitar a cabeça, começando a descer para o salão, ao sentir que outros passageiros vinham descendo, a roçagar a seda e a musselina dos vestidos longos, enquanto os smokings rescendiam a naftalina e a guarda-roupa, às suas costas.

O maitre, magro, alto, muito parecido com o Papa Paulo VI, parecia comprazer-se nessa semelhança, como a pedir desculpas, à entrada do salão, com os olhos fundos, muito pálido, por estar de casaca, e não de branco, na veste talar de Sua Santidade.

E foi ele que prontamente adivinhou, ao ver o Benevenuto a olhar por cima das mesas, como à procura de seu lugar:

- Mesa do Comandante, Excelência?

- É como diz - confirmou Benevenuto. E o maitre, passando-lhe à frente:

- Faça o favor.

Ao fundo do salão, de pé, por trás do espaldar da cadeira de braços, o Comandante Cohen, gordo, vermelho, peito alto, de uniforme branco, estendeu-lhe a mão por cima da mesa, ao ver o Benevenuto aproximar-se:

-       Muito prazer. Estávamos à sua espera.

Já a mesa estava quase completa, com o Comandante ao centro, os dois Comissários nas extremidades, o médico de bordo, e mais treze passageiros, entre os quais quatro velhotas francesas, rescendendo a pó de arroz, decotadas, pelancudas e sorridentes, espalhadas entre seis brasileiros, um espanhol e um argentino, além de um português bigodudo, mais alto que o comandante, calvo, com a gravata torta e a camisa a tufar-lhe no peito colossal.

Não obstante todo o esforço do Comandante e dos Comissários, auxiliados pelo médico de bordo, as conversas somente se animaram, à mesa do jantar, quando os garçons encheram generosamente as taças de champanha, depois de ter sido servido o prato especial de vitela, que o maitre de chapéu alto, preparou ali mesmo, diante das chamas que lambiam a frigideira.

E o Benevenuto, loquaz, apresentando-se, após saber que os brasileiros eram pessoas abastadas, residindo em São Paulo, em Minas Gerais e no interior do Rio de Janeiro, e que o espanhol vinha de Paris, onde morava, e que uma das francesas era Marquesa de alguma coisa, que o português vendia vinhos chilenos e que o argentino, exilado político ao tempo dos militares no poder, estava afinal de volta a Buenos Aires, a chamado do governo:

- Não me levem a mal, se eu lhes digo, lealmente, sinceramente, que eu, rico, folgado, solteiro, pintor nas horas vagas, jogador de pólo, sou apenas um filhinho de mamãe, criado com muitos mimos, já órfão, e a caminho da fazenda da Tia Eudóxia, que se queixa de que vai morrer, desde o ano passado, e agora me prometeu que morre mesmo, assim que eu chegar à cabeceira de sua cama e ela me entregar as jóias da família.

E ante o riso e o espanto dos circunstantes, sobretudo do Comandante e do médico de bordo, que o fitavam de modo interrogativo, com a boca entreaberta:

-       E como sei que minha tia vai viver por muitos anos, sendo bem capaz de me enterrar, e aos outros sobrinhos, e filhos de sobrinhos, aqui vou eu, sabendo que, se trouxer as jóias de família, como espero, hei de pular como nunca neste carnaval.

As palmas soaram, enquanto o português, alto, ombrudo, mão imensa, estendia o braço por cima da mesa:

- Meus parabéns, se trouxer as jóias, e meus pêsames, misturados a parabéns, se a D. Eudóxia morrer como promete.

Um dos Comissários, que falava fluentemente o castelhano, dirigiu-se ao Benevenuto, depois de ouvir o Comandante, que ainda ria forte, batendo palmas:

- O Comandante Cohen lhe propõe pular aqui mesmo, na volta do navio, quando haverá a bordo, entre Santos e Rio de Janeiro, uma grande festa de carnaval, com a presença de quase todos os que estão nesta mesa.

E Benevenuto, que deixava sentir no brilho dos olhos esverdeados o efeito do champanha:

- Combinado, Comandante. Pularei aqui, na volta do navio.

Dali, a convite do Comandante, e depois de tomarem o café, que o maitre louvou previamente, com a mão para cima, juntando dois dedos, como numa bênção papal, subiram para o Salão de Festas, que o convés superior rodeava, com seu espaço largo para as caminhadas higiênicas e a orla de cadeiras de lona para o relax dos banhos de sol.

Ao subirem, o Pastem começara a balançar. Estaria a percorrer agora um trecho de ondas mais fortes? Ou enfrentaria, lá fora, as surpresas de um temporal? O certo é que, na subida da escada, a Marquesa pediu ao Benevenuto, antes de galgar o primeiro degrau:

- Subimos juntos?

E o Benevenuto, solícito, já com o braço preparado para levá-la escada acima:

- Para mim é uma honra, Marquesa.

E a velhota, com a nova camada de pó-de-arroz da toalete retocada ao saírem da mesa:

- O meu bom amigo é muito gentil.

E subindo devagar, com o corpo a deixar boa parte de seu peso no braço pressuroso:

- Já fez trinta anos?

- Trinta? Suba, Senhora Marquesa. Suba. Passe os quarenta, faça uma pausa nos quarenta e três. Quarenta e três anos. Com direito a ter mais, porque a família, do lado da Tia Eudóxia, que é o lado de minha mãe, é longeva. Vai aos noventa sem precisar dieta. E com a cabeça clara, o que é ainda melhor. Aos quarenta e três, é como se eu tivesse vinte e cinco. Descontada a dor na coluna, que de vez em quando me belisca, nas horas em que eu daria tudo para não me lembrar que ela exista.

E a Marquesa, subindo com lentidão:

- Console-se com as minhas pontadas, aqui do lado direito, e com as minhas enxaquecas, que de vez em quando me atormentam. E peça a Deus que o livre do reumatismo, que é a pior doença do mundo.

E arregalava os olhos pulados, horrorizada.

Lá no alto, pararam, deixaram passar outros pares, outros casais. Um dos garçons que havia servido à mesa do Comandante, e era magérrimo, com umas costeletas brancas contrastantes com o negror do resto da cabeleira abundante e fofa, pálido, no tom do marfim antigo, também passou, levando a bandeja repleta de garrafas e copos:

- Por favor.

E orientou-se no sentido do Salão de Festas, logo contido pela Marquesa, que lhe disse, chamando-o com a ponta do leque:

- René, não te esqueças de minha infusão. Entre o patamar da escada e o salão, não era grande a distância. Dali já se ouviam os primeiros acordes de um sambinha brasileiro que a orquestra começara a tocar.

E a Marquesa, mais vagarosa, como se quisesse retardar a caminhada perlongando o navio:

- Fiquei muito interessada em conhecer as jóias antigas de sua Tia Eudóxia. Eu me interesso muito por jóias. Uma por uma, conheço as da Rainha da Inglaterra. O falecido Rei Faruk, sempre que comprava jóias novas para as suas amantes, ia à minha casa, em Versailles, para que eu as visse e dissesse o que valiam. Sua Majestade, logo depois, consultava um joalheiro da Praça Vendôme, muito seu amigo, e pessoa de toda a sua confiança. O próprio joalheiro me telefonava: - Marquesa, a sua avaliação foi perfeita. Parabéns.

E parando, como se a caminhada a houvesse fatigado:

- Na certa, as jóias de sua família têm uma história: ou todas, no seu conjunto, ou cada uma, de per si. Não há jóia antiga sem história. E umas trazem sorte; outras, malefícios. Convém separar. E só usar as que dão sorte.

O Benevenuto sorriu largo, desprendido:

- E a Senhora Marquesa acredita nessas histórias?

- Como acredito no senhor, aqui na minha frente. E como não sou menina, já vi muito caso realmente assombroso. Tenho um anel de ametista realmente estupendo. Ninguém pode usá-lo. Um de meus sobrinhos, moço bonito, esportivo, tanto me azucrinou o ouvido, a propósito desse anel, que eu, para me ver livre da insistência dele, dei-lho, com estojo e tudo, no dia de seu aniversário. 31 de julho. Meu sobrinho pulou, de contente. Jade anel no dedo. Felicíssimo.

Um silêncio.

E a Marquesa, com um semblante consternado:

- Primeiro, o Lucas teve um desastre de automóvel, na estrada, entre nossa casa e o seu hotel. Segundo, como se não bastasse o desastre, em que quase perde a vida, meteu-se num rolo com marginais perigosíssimos. Resumindo tudo: não voltou para o hotel. Dali mesmo, morto, foi levado para a capela.

A entrada do salão, Benevenuto passou adiante, escancarou a porta, ficou parado esperando a Marquesa entrar, e a levou à poltrona que ela própria indicou com o leque:

- Ali.

E esparramou-se na cadeira, ancha, a seu gosto, com as pernas estiradas, um pé em cima do outro.

Já instalada, segurou o punho do Benevenuto, que distribuía cumprimentos, olhando em volta:

- Como o senhor vai voltar conosco, tomando o navio em Santos para descer no Rio, terei tempo de olhar suas jóias. Faço questão de vê-las.

Se quiser, posso avaliá-las.

E baixo, puxando-o mais para perto:

- O senhor gordo, e calado, que sentou à mesa ao lado do senhor, é joalheiro. Em Genebra. E a senhora Aubin, que sentou à direita do Primeiro Comissário, fabrica jóias. Em Lausanne.

Encheu o papo, alteando os seios, e logo se formalizou, séria, prendendo a respiração, como se escolhesse as palavras antes de volver a falar. Por fim, decidindo-se, abriu e fechou o seu leque espanhol, tornou a sorrir e inclinou a cabeça, com os olhos no Benevenuto:

- Isso quer dizer que o meu bom amigo tem, aqui a bordo, quem possa apreciar as suas jóias.

E ele, ainda alegre, com uns restos de animação que lhe subira à cabeça no derradeiro gole de champanha:

- É uma razão a mais para trazê-las comigo, na volta do navio. Sem elas, não saio da casa da Tia Eudóxia. E com elas, triunfante, entro neste salão.

A Marquesa tornou a segurar-lhe o braço, chamou-o mais para perto. E numa voz sussurrada, ao pé da orelha:

- Aqui, não. Não faça essa loucura. No seu camarote. E para poucos amigos. Com jóias antigas, toda cautela é pouca.

Por volta da meia-noite, graças aos golinhos de licor com que prolongou a sua vigília no Salão de Festas, sem muito interesse pelo jogo de prendas de que até o Comandante Cohen participava, a Marquesa anunciou, depois de um bocejo longo, que ia recolher-se ao seu camarote.

Benevenuto, solícito, ofereceu-lhe o braço:

- Posso levá-la?

- Senão se importa de fazer a corte a uma velha senhora...

- Pelo contrário. E com muito gosto.

A caminhada longa e vagarosa, depois de descerem a escada de dois lances, foi divertida. A sonolência da Marquesa como que se desfez no passo lento, de início perlongando o convés, depois seguindo pela ala de camarotes sucessivos, na direção da proa.

E Benevenuto, alarmado:

- A proa não lhe faz mal aos nervos, Marquesa, com o navio subindo como se fosse voar e descendo como se fosse naufragar?

E ela, risonha:

- Pelo contrário, anima-me. Anima-me e dá-me sono. Gosto de sentir o perigo. Relaxa-me. Depois vem o sono. O sono sereno, profundo, repousante. Só viajo em camarote de proa. De preferência em alto-mar. Quando o navio joga, sinto-me no meu elemento. Já experimentou passar de navio pelo Triângulo das Bermudas? Não sabe o que perdeu. É uma viagem inesquecível. Dizem que, de avião, há também surpresas boas, como os vácuos repentinos, os remoinhos de vento, as tempestades. Não digo que não. Mas acho que de navio a emoção é mais forte. O abismo está ali, debaixo de nossos pés. E com o mar rugindo e o navio a pular como um cabrito. Estive lá ano passado. Ano que vem, vou voltar.

E parando um momento, para olhar o Benevenuto com a cabeça inclinada, como em desafio:

- Quer vir comigo?

E Benevenuto, alarmado:

- Com a Senhora Marquesa, eu viajarei sempre com muito gosto, mas não para passar pelo Triângulo das Bermudas. Só de pensar em semelhante aventura, meu coração se acelera.

A Marquesa riu forte, ao mesmo tempo em que se firmava mais no braço do Benevenuto, segurando-se contra o balanço do navio, e toda ela como que se reanimou, desfazendo-se da sonolência:

- Só assim meu sono ia embora.

E como estavam no topo da escada que descia para o começo da orla dos camarotes de primeira classe, ela sustou a descida, amparando-se no corrimão do patamar, e perguntou ao Benevenuto, ainda rindo:

- Vai dormir? Ou ainda podemos conversar? Aqui? Ou no meu camarote? A escolha é sua. Se preferir o camarote, tem lá uma boa poltrona, à sua espera. Na minha idade (e voltou a rir), não se corre mais perigo de ser mal falada.

E Benevenuto, galante:

- Não corra esse risco, Senhora Marquesa. Olhe que eu, nestes meus quarenta e três, ainda sou de fácil combustão. É com rapidez que me inflamo.

A velha dobrou a risada:

- E olhe que lenha velha queima sempre mais depressa.

Mas, no camarote, já com o Benevenuto instalado na poltrona, à cabeceira de um dos beliches, ela se instalou de novo na sua idade e na sua condição de velha fidalga, embora houvesse trocado os sapatos pelos chinelinhos da noite, enquanto derramava em dois cálices o licor da garrafa bojuda que sempre a acompanhava nas viagens.

E passando um dos cálices ao Benevenuto:

- Vai gostar deste licor. É de minha quinta, em Portugal.

E como se tentasse avivar a própria memória:

- Já lhe disse que tenho uma quinta em Portugal? E verdade: tenho: uma bela quinta, que me deixou meu marido, no Algarve. Nunca deixo de ter comigo este licor.

E Benevenuto, sorvido o primeiro gole:

- Não é apenas bom, Senhora Marquesa: é divino.^

- É divino - concordou ela, sorvendo todo o seu cálice de uma vez, com uma luz mais viva nos olhos pestanudos.

E sentando-se na borda do beliche:

- Sabe que fiquei muito curiosa de saber alguma coisa da sua Tia Eudóxia. Eudóxia, não? E assim mesmo que se pronuncia o nome dela? Mais velha que eu? Não esqueça que já fiz setenta anos. Mas não há muito tempo.

- Minha Tia Eudóxia é exatamente o contrário. Fez setenta anos há muito tempo. Está chegando aos oitenta. Mas não sei se chega lá. Pela voz dela, pelo tom de sua última carta, acho difícil. Ela mesma disse que está nas últimas. Que eu, se não chegasse depressa, iria encontrá-la no cemitério. Ou com a vela na mão.

E Benevenuto concluiu, passando rapidamente do tom pesaroso ao tom jovial, depois de sorver novo gole do licor:

- Agora, é possível que sim. Ou uma coisa, ou outra. Mas também pode ser que nem uma coisa, nem outra. Porque a Tia Eudóxia, assim como se mete na cama para morrer, também se levanta para saber como vai a colheita de seus cafezais.

E a Marquesa, alteando a cabeça curiosa:

- Ela é então muito rica. Além da coleção de jóias antigas, é fazendeira de café. E tem filhos? E marido?

Benevenuto sacudiu a cabeça, negando. Não, não tinha filhos. Nem se casara. Ou melhor: tivera os seus casos, mas sem se casar. E quanto a filhos...

E o Benevenuto, cruzando as pernas:

- Eu.

E emendando, depois de uma risadinha:

- Filho de criação, Senhora Marquesa. Porque foi a Tia Eudóxia que me criou, que me educou, que me fez estudar na Europa, que me mandou para os Estados Unidos. Quando voltei, não me deixou ir para a fazenda. Achou que eu era educado demais para ser fazendeiro. Instalou-me no Rio de Janeiro, na Avenida Atlântica. Fez de mim seu procurador, para as ligações internacionais de seus negócios de café. E agora, mais uma vez, sentindo que está nas últimas, quer que eu traga da fazenda as jóias da família.

Ele próprio tornou a servir-se do licor:

- Com a sua licença, Marquesa.

E após sorver outro gole:

- Na minha família, as jóias sempre couberam ao solteiro mais velho. Ou solteira. Tanto faz.

Pôs a mão no peito, inclinou a cabeça:

- Depois da Tia Eudóxia, ficarão comigo. Minhas duas irmãs (que moram em São Paulo), meus primos (que estão em toda parte, porque a família é grande) e meus sobrinhos, além de mais novos do que eu, estão casados. O solteiro teimoso sou eu. Eu e minha tia.

E a Marquesa, passado um silêncio:

- E são muitas essas jóias?

E o Benevenuto, como se exagerasse:

- Encha um armário, e mais outro. Ouro e prata. Platina. Pedra preciosa. E um brilhante de fazer cair o queixo do joalheiro mais rico do mundo.

A Marquesa aumentou os olhos ao máximo. E exibindo perto da lâmpada do beliche o brilhantão que tinha no dedo:

- Maior que este, que me deu o Faruk?

Benevenuto ficou de pé. E reprimindo o bocejo na costa da mão:

- Sim, sim. Quase o dobro.

Na manhã seguinte, quando desceu ao salão para o café, Benevenuto só encontrou à mesa do Comandante o português alto, ombrudo, peitudo, cabeludo, e que lhe contou, retardando ainda mais a lentidão com que dobrava o guardanapo, já servido:

- A Senhora Marquesa esperou até há pouco pelo bom amigo. Só não esperou mais porque va mos descer em. Santos logo depois do meio-dia e ela foi se preparar para o desembarque.

E com o guardanapo dobrado, enxugando os cantos da boca:

- A Senhora Marquesa passou toda a noite em claro apensar nas jóias antigas que o meu caro amigo vai receber de sua tia moribunda. Disse ela que não conseguiu dormir, mesmo com tranqüilizante.

E dois de nossos companheiros, patrícios do senhor, confirmaram o alto valor das jóias, que já teriam sido expostas em Petrópolis, no Museu Imperial.

Benevenuto corrigiu:

- Uma parte apenas. A mais valiosa, talvez.

Mas apenas uma parte.

E envaidecido:

- Creio que só a Rainha da Inglaterra terá uma coleção mais rica que a da Tia Eudóxia.

- Acredito - aquiesceu o português, entrelaçando os dedos em cima da borda da mesa.

E assim que o garçom se afastou:

- Posso lhe dar um conselho? Não me leva a mal? Redobre os cuidados com as suas jóias. Toda cautela é pouca. O mundo está cheio de gananciosos e invejosos. Recate-se. Num navio como este, repleto de passageiros, podem vir ladrões internacionais. Podem. Perfeitamente. O verdadeiro ladrão é um mágico. Furta-nos ou rouba-nos com extrema habilidade. Sem deixar rastro. Sem que a vítima perceba. Quando percebe, já está roubada.

A notícia de que o senhor vai ao interior de São Paulo receber jóias de família já se espalhou pelo navio. É verdade: já se espalhou. Como, não sei.

Mas todo mundo, aqui, sabe que, na volta do navio, o senhor levará para o Rio de Janeiro as jóias de sua Tia Eudóxia. Sabe quem me falou sobre isso? O meu camaroteiro. O homem que limpa o meu camarote.

Benevenuto, que ia rindo, recolheu o riso, ficou uns momentos de boca entreaberta, a olhar para o português.

E conseguindo reagir à surpresa:

-       Se não foi o Comissário de bordo que deu com a língua nos dentes, foi o próprio Comandante. Falei aos dois, logo depois de nossa partida. Eu queria saber como deveria proceder, no meu regresso, quando trouxesse comigo as jóias que estou indo buscar. O Comissário me respondeu, com bom humor: - Trazendo-as num malão igual ao que entrou aqui com a sua bagagem. - E o Comandante, com ar de espanto: - E são muitas, cavalheiro? - Sim, - respondi. E ele, compreendendo aonde eu queria chegar: - Neste nosso navio, desde que assumi o Comando, nada desapareceu. - E para me tranqüilizar: - Não seria agora que ia desaparecer.

O português, que parecia ir arredar a cadeira para levantar-se, continou sentado, como se quisesse dizer alguma coisa a mais ao Benevenuto, que se comprazia em pôr na fatia de pão uma camada de manteiga, calmo, senhor de si.

E decidindo-se:

- Releve-me se lhe dou um conselho: confie, desconfiando. Não sou tão otimista quanto o nosso Comandante. Rouba-se a bordo como se rouba em terra firme, desde que venha no navio, ou como passageiro, ou como tripulante, ou como clandestino, um ladrão competente.

E o Benevenuto, com a boca cheia:

- O senhor, no meu caso, como faria?

- Primeiro, não diria a ninguém que ia pôr a bordo, na minha volta ao Rio, um baú de jóias. Segundo, iria ao Comandante, já embarcado,e entregaria a ele, na presença do Comissário, esse baú. Entregaria mediante recibo, com as jóias conferidas, uma por uma.

E como o maitre se aproximava, com seu ar de santidade, exibindo na luz do salão a sua semelhança com Paulo VI, logo o português se calou, fazendo ao Benevenuto um rápido sinal para que mudassem de assunto. Inútil. Benevenuto, cheio de si, sempre mastigando, lançou ao português um olhar divertido:

-       E se o Comandante, que é, aqui, senhor absoluto, se recusasse a assumir a responsabilidade das jóias no seu navio?-perguntou-lhe, sabendo que o confundiria.

E o outro, assim que Paulo VI se afastou:

- Faria voltar o navio. I-me-di-a-ta-men-te.

Benevenuto, que tinha dado outra mordida na fatia de pão repleta de manteiga, olhou o companheiro, com ar divertido, enquanto refletia: - Como este camarada é burro. Fazer voltar o navio, como? Ou será que ele pensa, com essa cara vermelha, esse cabelo de escova, bigodudo, peitudo, espadaúdo, que lhe basta dar um berro no Comandante para o navio dar marcha à ré? Tinha graça. E quando pôde falar:

- E se o Comandante lhe sorrisse em vez de lhe atender?

- Segurava-o de frente, com toda a força de que sou capaz. E fazia o navio voltar, ou por bem, ou por mal.

Benevenuto quase se engasgou com o pedaço de pão que acabara de mastigar. E ia continuar a rir, olhando a cara do português, quando reparou que este, com ar feroz, parecia estar abotoando o Comandante, com a intenção lusitana de atirá-lo ao mar. Depressa, recolheu de novo o riso. E sério, olhando para ò resto da fatia de pão:

-      Não leve a mal o que lhe vou dizer. Sempre fui um homem franco, aberto, e que nada tem para esconder. Tudo às claras. Nada de sombras nem de penumbras. Um livro aberto. Sou como sou. Se as jóias de minha Tia Eudóxia passaram a ser minhas, e se vou no navio com elas, metidas num baú (se couberem), e fechadas com chave de segredo, ponho a chave no bolso, fecho a porta do camarote, guardo também no bolso essa outra chave, e quero ver quem é que põe a mão nas jóias da Tia Eudóxia, por mais fino e malandro que seja.

E tornando a erguer o olhar para o português, que se limitou a replicar-lhe, já de pé, por trás da cadeira:

- Cada um de nós sabe o que faz. E afastando-se:

- Melhoras para a senhora sua tia. Benevenuto ergueu do assento da cadeira as nádegas contentes, com uma expressão feliz no semblante descontraído:

- Que os anjos lhe digam: amém.

O carro da Tia Eudóxia, com que se fazia a ligação entre a fazenda e a cidade, era um Ford pré-histórico, de carroceria alta, motor de manivela, aberto, sem proteção lateral, e contra o qual investiam os cães, ao longo da estrada, como se estivessem a latir para um fantasma. Ou melhor: contra dois fantasmas, quando levava a própria Tia Eudóxia, repimpada no assento traseiro, com seu vestido no meio das pernas finas, magra e seca, um lenço estampado na cabeça.

Na direção, com seus imensos bigodes e seu chapéu de couro, o fiel Frederico, cinqüentão robusto, dedicadíssimo, pronto para todo serviço, e homem de confiança da velha, a quem esta podia entregar tranqüilamente um cheque em branco, sabendo que ele somente lhe sacaria da conta bancária o que fosse estritamente necessário para cobrir as despesas que lhe ordenava. Pelo sim, pelo não, embora soubesse que toda gente protegia Tia Eudóxia, nas muitas léguas em redor da fazenda, sempre pronta a sair em sua defesa, trazia ele, no assento do banco, ao alcance da mão resoluta, o seu velho revólver de cano longo, sempre limpo e azeitado, com o qual seria capaz de acertar uma mosca voando diante de seus olhos.

E foi ele que o Benevenuto viu no cais do porto, à sua espera, de braços cruzados, a olhar para cima, assim que o navio se aproximou do armazém em que iria atracar. Não vendo ali a Tia Eudóxia, nem perto nem longe, concluiu que a velha, de fato, já estaria com o pé na sepultura.

- Desta vez ela não está fingindo - admitiu, com uma ponta de piedade, e de pesar, reconhecido ao muito que lhe devia e a que jamais se lembrara de retribuir.

E suspirando, para desculpar-se:

- É a lei da vida: uns vão, outros ficam. Chegou a hora da Tia Eudóxia. Como também chegará a minha. Só espero em Deus que custe a chegar.

E para o português, que lhe batera no ombro:

- Eu estava à sua procura. Para me despedir do bom amigo. E lhe dizer que, no Rio, ou aqui, pode contar comigo, se precisar. Aqui tem meu cartão de visita, com endereço e telefone, no Rio.

E apressado, já com a máquina fotográfica a lhe pender do ombro, pronto para descer, perguntou-lhe se tinha visto a Marquesa.

- Sim - confirmou o português.- E ela também me perguntou pelo amigo. Deixei-a lá em baixo, com o Comandante.

Benevenuto tornou a apertar-lhe a mão, expansivo, borbulhante, repetindo a despedida, e correu na direção da escada que levava ao portaló. Pelo caminho, sempre efusivo, foi apertando a mão de outros passageiros. E quando avistou a Marquesa, acelerou o passo, parou, bateu palmas, e foi para ela de braços abertos:

- Eu não ia desembarcar enquanto não a encontrasse.

Apertou-a contra o peito, sentindo-lhe os seios grandes, moles, por trás da seda do vestido e dos colares, mal contidos pelo sutiã folgado, e mais a carne mole dos braços, em contraste com a pele espichada do pescoço e da papada.

E ela, como a abandonar-se nos braços dele, enlanguescendo os olhos, deixando-se apertar:

- E eu a procurar o meu bom amigo, como uma louca, subindo escada, descendo escada. Quero-lhe falar. Para lhe fazer um pedido.

E como houvesse muita gente no portaló, já com o navio bem perto do cais, levou-o para outro lado do convés, deu aos olhos pintados uma expressão suplicante:

- Não me leve a mal o que lhe vou dizer. Primeiro, uma pergunta: vai voltar mesmo conosco?

- E no mesmo camarote, Marquesa. Com a passagem aqui no bolso.

E ela, alvoroçada, baixando a voz, depois de olhar em volta para se certificar de que ninguém mais a ouvia:

- E trazendo as jóias da senhora sua tia?

- Para isso estou aqui. E só mesmo um motivo assim me faria deixar de participar do desfile de fantasias de luxo, no carnaval do Rio, este ano, sabendo que ninguém me tomaria o primeiro lugar, quando eu aparecesse no meu traje de Luís XIV. Transferi minha vitória para o próximo ano. Agora, para mim, o importante é receber as jóias de minha Tia Eudóxia, que está nas últimas, só esperando por mim para atender ao chamado de Deus, lá em cima.

E Benevenuto, ora sério, ora risonho, ora pesaroso, ora gaiato, segurava agora as mãos da Marquesa, com a cabeça inclinada para um lado, os olhos mais vivos.

A Marquesa pareceu espevitar-se, depois de um momento de apreensões em que tornou a olhar em volta, para certificar-se bem de que estavam sós, enquanto a orquestra de bordo emendava canções francesas:

- Posso lhe dar um conselho? Conselho de amiga? E de amiga que sentiu, de ontem para hoje, que você e eu fomos postos no mundo para nos entendermos, para nos ajudarmos. Como se fôssemos velhos amigos. Ouça bem: não fale mais nas suas jóias. A ninguém. Você falou demais. Hoje, à mesa do café, só se falou nas suas jóias. E eu fiz questão de admitir que, no meu modo de entender, com o pleno conhecimento dos homens, sobretudo dos homens sul-americanos, você não vai trazer jóia nenhuma. Que tudo quanto você nos disse não passa de uma fantasia.

E Benevenuto, melindrado, largando as mãos da Marquesa:

- Oh, Marquesa! Que é que está me dizendo? Mentir, eu? Jamais. Sou muito cioso do que digo. Se disse que vou trazer as jóias de minha família, vou trazer as jóias de minha família.

A Marquesa segurou-lhe as mãos:

- Espere. Não ferva com pouca água. Não há razão para irritar-se. Mas você, embora traga as jóias, vai dizer que não as trouxe. Que sua Tia Eudóxia melhorou e que as jóias da família, por isso mesmo, continuaram com ela.

E séria, grave, numa voz sussurrada:

- Eu tenho interesse nas suas jóias. Tenho. Um imenso interesse. Podemos fazer uma fortuna com elas. Conheço o mercado. Sei a quem podemos vendê-las. Sem impostos. Caladinhos. E como vou trazer comigo, de Buenos Aires, um sobrinho meu, que é joalheiro competentíssimo, embora moço como você, ele nos vai dizer, com o rigor de um expert, de um profissional, o quanto vale, neste momento, cada uma das jóias de sua tia.

E aproximando mais o rosto:

- O essencial é ficar calado. Nada de falar. Segredo absoluto. Mesmo porque, aqui para nós, eu desconfio de muita gente, aqui no navio. E de nossa própria mesa. A começar pelo Comandante. Sim, pelo nosso próprio Comandante, com quem estive conversando há pouco, antes que você chegasse. Também gosta de jóias antigas.

Meia hora depois, quando já ia descer do navio, acompanhando o fiel Frederico, sempre de chapéu desabado na cabeça, e do carregador que lhe levava o baú de viagem, Benevenuto apertou com efu-são a mão papuda do Comandante, esperando que este lhe dissesse alguma coisa sobre as jóias:

- Até a volta, meu bom amigo. Grato por tudo. E o Comandante, olhando-o nos olhos:

- Não se esqueça de nosso baile à fantasia. E o Benevenuto, leviano e serelepe:

- Mesmo que a velhinha morra, hei de pular. Ela, lá em cima, saberá me compreender. Conte comigo.

E ambos riram alto, gostosamente, enquanto Benevenuto ia descendo a escada do portaló.

Lá embaixo, seca, magra, com o eterno lenço na cabeça a lhe esconder o cabelo ralo, Tia Eudóxia, em pessoa, estava à sua espera:

- Boa viagem, Benevenuto?

E ele, ainda espantado:

- Melhor ainda, quando vejo a senhora, aqui, à minha espera.

- Melhorei, e vim te buscar. Podia ser que te arrependesses de ter vindo, e daqui mesmo qui-sesses voltar. Pelo sim, pelo não, agora não te deixo me escapar.

E para o Frederico, que afinal tirara o chapéu, depois de lhe pedir licença, submisso:

- Vamos embora.

E ela mesma deu ordem ao carregador para que pusesse no carro, do outro lado da estação, o baú do sobrinho.

Segurou o Benevenuto pelo braço, impelindo-o para a frente. E ele, reconhecendo-lhe a força e a energia:

- Afinal de contas, que é que a senhora teve?

Ela esteve a ponto de melindrar-se:

- O que é que eu tive ou o que é que eu tenho? O que eu tenho são os meus oitenta anos, a completar no próximo domingo. Tu, com a tua boa vida, não virias aqui, se eu não usasse de astúcia para te trazer, com os dois telegramas que te passei, assinados pelo Frederico. Se demorasses mais um pouco, ias ter outro telegrama, assinado por mim, com a notícia detalhada de meu enterro - para te pôr em brios, já que não levas muito a sério tuas obrigações de família.

Benevenuto protestou:

- Não diga isso, minha tia. Por favor, faça-me justiça. Nunca deixe de dar o merecido valor ao carinho que devo ter para com a senhora. Deus, lá em cima, e que me está ouvindo, sabe que estou dizendo a verdade.

E a velha, defronte do calhambeque:

- Benevenuto, olha bem para mim. Vieste à festa de meus setenta anos? Não. À festa dos sessenta? Também não.

E ele, justificando-se:

- Eu estava em Boston, acabando meu curso de economia, e ia fazer uma prova dificílima, quando a senhora me chamou para a festa dos seus sessenta anos. No dia, antes da prova, passei-lhe um telegrama.

E a velha, instalando-se dentro do carro:

- Telegrama esse que só chegou às minhas mãos uma semana depois, e com o agravante de que tu o havias passado na véspera, sem falar que já tinhas transferido a passagem para um de teus amiguinhos americanos, que veio ao Rio, foi a São Paulo, e nem ao menos me telefonou, para agradecer a viagem que havia feito com o meu dinheiro. Benevenuto não se deixou vencer:

- O pobre do Spencer tinha perdido o padrasto, e eu lhe proporcionei a viagem para consolar o coitado. Disse-lhe isso mesmo, detalhadamente, numa longa carta.

E ela, completando:

- Carta essa que nunca me chegou às mãos e de que, só agora, estou tendo conhecimento.

E para passar uma esponja no passado:

- Esquece isso, Benevenuto. O importante, agora, é que estás aqui, para os meus oitenta anos. E para te dar uma má notícia: não vai haver festa. Aos oitenta anos, convém não comemorar: dá na vista, desperta a ira dos invejosos. O melhor mesmo é restringir a comemoração. Eu, com a prudência que me caracteriza, e que sempre deu certo, só vou comemorar os meus oitenta anos contigo e com o Frederico. Mais ninguém. E reduzindo tudo a um bonito bolo, que eu mesma vou preparar e confeitar, com oito velinhas: uma para cada dez anos.

E o Benevenuto, entusiasmando-se:

- E fique sabendo que vou cantar o Parabéns pra você como nunca cantei. A mesa da fazenda. Com voz forte. Para se ouvir em Santos.

Embora desapontado com a boa saúde da velha, Benevenuto conseguiu compor a sua cara de circunstância, dizendo-lhe o que não pensava:

- Só eu sei a alegria que estou tendo em ver a senhora tão bem disposta. Confesso-lhe que vinha preparado para chorar. Estou vendo agora, com imenso alívio, que a senhora está ótima.

E a Tia Eudóxia, com a famosa risadinha que lhe soava no fundo da garganta, sem lhe mostrar os dentes:

- Eu acredito no que estás me dizendo como se fosse verdade. Obrigada, Benevenuto.

E repetiu a risadinha, logo acompanhada pela risadinha dele, que ele mesmo prontamente reprimiu:

- Hoje, com o adiantamento da medicina, só morre quem quer. Basta ter um bom médico, em dia com os progressos da medicina, para a vida se prolongar indefinidamente, com os remédios adequados. Se depender de mim, a senhora ficará para semente. E eu também, que também sou filho de Deus e me sinto muitíssimo bem nesta vida e neste mundo.

Entretanto, a cada instante, só lhe vinha à consciência este pensamento teimoso: "Pelo visto, vou voltar da fazenda com as mãos abanando, sem levar das tais jóias de família um anel, uma pulseira, um brochezinho mixuruca. Esta só a mim acontece".

E resignando-se:

- Seja tudo o que Deus quiser.

E a velha, que continuava a ouvir de modo realmente assombroso:

- Deus quer que eu continue viva, e bem disposta, e eu vou fazendo a vontade de Deus, que é também a minha e a tua, Benevenuto.

E tornou a repetir a risadinha do fundo da garganta, como se fosse um cacarejo demorado.

E ele, mentindo, para tentar sondar a velha sobre as jóias da família:

- Conheci a bordo, na viagem para cá, uma senhora muito fina, muito culta, muito elegante, e bonita, além de ser fidalga, e que gostou muito de mim. Imagine que se trata de uma Marquesa. Marquesa. Eu nunca tinha falado com uma Marquesa. Pensei que Marquesa só existia nos velhos romances e nos livros de história. Agora, sei que existe mesmo. Bonita, beirando os cinqüenta anos. Não me largando. Agora, ouça: tem uma coleção de jóias antigas, como a senhora.

E a Tia Eudóxia, com rapidez:

- Viste as jóias dela?

Benevenuto aumentou a negativa:

- Nã-nã-nã-o. Mas é como se tivesse visto. Fiquei até com medo de que suplantasse as da senhora.

Tia Eudóxia espetou nos olhos do sobrinho o seu olhar duro e perfurante:

- Duvido muito.

E sacudindo para longe a conversa:

- Vamos mudar de assunto, para eu não me aborrecer. Fica sabendo que a minha coleção, com jóias de uma única família, no correr de três séculos e meio, é única do mundo. Sem rival. Quem disser o contrário só diz isto para me chatear.

Benevenuto encolheu-se no fundo do carro, humilde:

- Não está aqui quem falou. Desculpe.

Agora, como ia ser quando voltasse ao navio? Diria que a Tia Eudóxia tinha mudado de idéia, resolvendo não morrer? Ou simplesmente confessaria que as tais jóias de família, de que a tia tanto falava, lhe tinham parecido tão ordinárias, tão vulgares, apesar de velhas, que achara melhor deixá-las mesmo na fazenda?

E reconhecia:

- Vou acabar passando por mentiroso.

E com que cara sentaria novamente à mesa do Comandante? Eram em que davam as astúcias excessivas de seu amigo Nagibe. Porque o culpado de tudo era o Nagibe. Se tivesse viajado como outros passageiros, sentando-se numa mesa discreta, não teria dado com a língua nos dentes, exagerando o valor e a antigüidade das tais jóias de Tia Eudóxia.

De esguelha, por entre as sacudidelas do fordeco teimoso na estrada de terra, olhava para a velha, ali ao seu lado, dura, tesa, e cochilando, de boca entreaberta, olhos cerrados, sem sentir as sacudidelas do calhambeque nas valas e nos buracos do caminho. E rematava, irritado:

-       Não sei como é que ela, como as velhas feiticeiras, não prefere ao automóvel de museu o cabo de vassoura, para ir da fazenda à cidade e da cidade à fazenda. Além de ser mais rápido, como transporte, não devia sacudir tanto quanto este camelo.

Mas tinha de tirar o chapéu à velha senhora: estava preso na ratoeira, só podendo voltar no domingo, depois de cantar o Parabéns pra você, diante das oito velas acesas. E que ia fazer, na monotonia da casa grande, durante o tempo que ali ia passar? Sem gosto para a vida no campo, odiando boi e vaca, tendo um grande medo de cobras, alérgico a banhos de rio, odiando coalhadas e leite mugido, e sendo vítima predileta de mosquitos e carapanãs, antevia o suplício dos longos dias de cárcere privado, com a Tia Eudóxia a lhe servir de carcereira, e a lhe repisar as velhas histórias de bailes e de caçadas de seu tempo de moça, que ele já sabia de cor.

E suspirava:

- Era só o que me faltava. Esta só a mim acontece.

De repente uma solução lhe acudiu para seu regresso: em vez de voltar no Pausteur, com tanta gente a lhe cobrar as jóias da família, tomaria outro navio, ainda que tivesse de ficar mais uns dias em Santos, num quarto de hotel. E acharia outro navio? Ou optaria por ir de trem até São Paulo, para tomar ali o expresso noturno que o devolveria ao Rio de Janeiro?

Consolou-se, como se afagasse o próprio pêlo:

- Quanto mais depressa eu voltar, melhor.

Doía-lhe terrivelmente o carnaval perdido. Perdido o desfile de fantasias de luxo, no Rio. Mas lhe doía perder também o baile de bordo, no Pastem. E ainda perder, nos três dias de Momo, os blocos de mascarados da Rua Miguel Lemos, a dois passos de seu apartamento, em Copacabana, na Avenida Atlântica. E mais o desfile das escolas de samba, a que nunca faltara, desde que voltara dos Estados Unidos. Era demais!

E quase a gritar, no auge da raiva e do desespero:

- E tudo por culpa desta velha, que me preparou a armadilha em que caí como um pato, como um bestalhão!

A estrada, por fim, se tornara mais suave, com a sua terra batida, o seu renque de velhas árvores, os seus estirões de mata densa, por onde corria, fresca, constante, a viração da tarde.

E Tia Eudóxia, como se a notícia da aproximação de seus domínios lhe entrasse pelas narinas:

- Já estamos chegando - reconheceu, sorvendo o ar puro como se tomasse um vasto copo de água fresca da cascata.

De fato, após uma subida, já se podia ver a casa branca, de janelas verdes, voltada para o nascente, entre gordas árvores tranqüilas, um boi preguiçoso pastando na relva, o moinho a girar com a força da água que vinha do rio, e dois cães a latirem, arremetendo na direção do carro.

Tia Eudóxia, ouvindo-lhes o latido, deu ao rosto engelhado um novo semblante, menos duro, menos severo, e sussurrou para o sobrinho, depois de um breve cacarejo:

- Estamos em casa, Benevenuto. Não sei porque é que não vens morar aqui. Continuas com a eterna mania da cidade, cheirando fumaça de automóvel, ouvindo buzinas nervosas, correndo, falando alto, arriscando-se a ser atropelado e morto, em vez de vir para cá e viver nesta paz, neste silêncio, neste ar puro. Fica sabendo que, aqui, enterro todos vocês, e vou tranqüilamente aos cem anos. Vou. Por que não?

E Benevenuto, alarmado, de si para si:

- É capaz, é capaz.

E querendo justificar-se, a recordar depressa o desfile de fantasias no carnaval, as tardes do Flamengo e do Fluminese no Maracanã, o cooper no calçadão da Avenida Atlântica, os bons filmes, as boas peças de teatro, a penumbra das boates, tratou de falar alto... E quase numa desculpa:

- Cada um se acostuma onde nasceu, Tia Eudóxia. A senhora teve a sorte de nascer aqui. Eu, não. Para mim, ou Rio, ou Paris.

E a velha, a ponto de exaltar-se:

- Não me venhas dizer que, se eu te passar as jóias da família, vais te mandar para Paris. Por favor: previne-me em tempo!

E ele, sentindo a ameaça:

- Paris para passear, para gozar umas férias, nunca para morar. Para morar, nossa terra. O Rio. São Paulo. A Bahia. Esta fazenda. Por que não? Concordo com a senhora: nada como esta paz, este silêncio.

A velha resplandeceu:

- Estou gostando de te ouvir, Benevenuto. Tomara que o que estás dizendo não seja da boca para fora. Tomara.

Ele ensaiou formalizar-se:

- Por quem é, Tia Eudóxia. Só digo o que sinto.

Na casa rústica, de imensa varanda escancarada, sob o alpendre de telha-vã, as sombras da noite iam baixando, com uma lâmpada triste a mostrar as samambaias e as cadeiras de vime, já acesa na última claridade do dia, por entre o coaxar das rãs na lagoa, o cri-cri dos grilos, o zumbido dos primeiros mosquitos rondando as orelhas do Benevenuto.

E ele, forçando o entusiasmo, enquanto perguntava a si mesmo se o motor da luz elétrica iria passar a noite com'aquela mesma zoada teimosa, tem-tem-tem, tem-tem-tem, que o punha nervoso:

- Aqui deve-se dormir esplendidamente, minha tia. Eu custo a vir aqui; mas, quando venho, gosto. Gosto mesmo, não estou exagerando.

E para si mesmo, animando-se:

- Ela já falou nas jóias. Bom sinal.

A chuva forte parecia querer atravessar a noite, batendo no telhado, caindo dos beirais, fustigando as árvores. De vez em quando um relâmpago abria no espaço o seu clarão instantâneo. Os trovões não tardavam, estremecendo a casa, por cima do pleque-pleque das goteiras. Duas vezes seguidas o motor da luz havia parado, deixando a casa às escuras. A própria Tia Eudóxia acendera o resistente candeeiro petromax, e este deu a impressão de que, apagado durante o largo tempo, voltava com mais força de sua longa letargia, espalhando em volta uma claridade lívida que endoidecia as mariposas.

E ela, contente com a luz ressuscitada:

- Aqui, para tudo se dá um jeito, Benevenuto.

E durante o jantar copioso, com todos os pratos postos na mesa de uma vez, uma crioulinha risonha, cria da velha, agitou uma ventarola chinesa para espantar mariposas e mosquitos, enquanto os dois cães, farejando agrados e comida, ora roçavam a cabeça nervosa pela saia de Tia Eudóxia, ora erguiam o focinho para o Benevenuto aflito, que só pensava em que um deles o iria morder.

A velha, enérgica, ralhando:

- Quietos. Já. Fora daqui.

E lá se foram os cães para o alpendre, de rabo caído e orelhas murchas, parando adiante, no vão da porta, e alongando para o Benevenuto um longo olhar suplicante.

- Para fora! - ordenou a velha, ríspida. E ela, ao fim da sobremesa:

- Já te mostrei as nossas jóias, Benevenuto? Ele, com rapidez, quase a engasgar-se com a fatia de pudim:

- Nunca.

- Hoje, vais ver comigo o que são elas. Não podes fazer uma idéia. Riquíssimas. Lindíssimas.

E após o cafezinho quente, tomado na cadeira de balanço, cacarejou, pigarreou, tossiu, e levantou-se, munida de uma lamparina para a eventualidade da luz tornar a apagar:

- Vem comigo.

Diante de uma porta fechada, entregou ao Benevenuto a lamparina, desprendeu do cinto da saia o molho de chaves, abriu uma porta, abriu outra porta, mais outra, e acendeu a lâmpada do quarto pequeno onde havia, a um canto, enorme cofre de ferro, com o ar de ter pertencido a algum bandeirante. Noutro canto, uma mesa redonda, com duas cadeiras, e mais um canapé pequeno.

Ela, do lado de dentro, chamando o sobrinho:

- Entra.

E passou a chave na porta, assim que o Benevenuto entrou, um pouco assustado e muito curioso.

- Senta-te ali - ordenou a velha, mostrando uma das cadeiras.

Primeiro, abriu o cofre. Veio de lá com uma caixa grande que deixou sobre a mesa, diante do Benevenuto. Este, de coração acelerado, parecia ter subido aos olhos; já não sabia conter-se, mudando de posição na cadeira, estalando os dedos entrelaçados. E confessou, vendo a lentidão com que a velha voltava ao cofre para trazer a terceira caixa:

- Me sinto nervoso, Tia Eudóxia.

Ela, a ponto de arreliar-se:

- Pára com teus fricotes. Do contrário, não te mostro nada.

Ele aquietou-se, com um ar de susto, e ela, instalando-se na cadeira à sua frente, com as mãos na tampa da primeira caixa:

- Estas são as mais antigas. Pertenceram ao Capitão-mor de que descende nossa família. Vieram de Lisboa com ele, numa caravela.

As mãos magérrimas, de longos dedos afilados, e unhas escuras, ergueram a tampa, exibindo na luz viva os correntões de ouro, os diamantes, as safiras, as opalas, as ametistas, os topázios, as turquesas, enquanto a voz grossa, levemente molhada, ia falando, à medida que o polegar e o indicador retiravam cada jóia ou cada pedra dos envelopes e papéis que as protegiam:

- O Capitão-mor, teu tetravô, foi o primeiro, em nossa família, que teve o gosto das jóias. As pedras mais raras eram dele.

E exibindo na ponta dos dedos uma pedra verde, com um losango ao centro:

- Sabes o que é isto? Não podias saber. E um muiraquitã. A pedra das amazonas que teu tetravô foi buscar nas cabeceiras do rio Negro, lá em cima.

Trouxe a pedra preciosa, mas também apanhou a sezão que o despachou daqui para a misericórdia de Deus, deixando todo o seu tesouro para tua tetravô, que eu conheci, gorda e com um bigode maior do que o meu.

E com o risinho miúdo que não lhe alterava a gravidade do rosto:

- Estás rindo? Não rias não, que o caso é sério. Foi por causa deste meu buço que não me casei. Só me apareciam maridos feios, e marido feio eu não queria. Preferi ficar com as jóias da família, dadas por minha mãe, que as havia recebido de minha avó, e esta, de meu bisavô.

Outro risinho cacarejado. E a velha, abrindo outro envelope:

- Foi minha mãe que instituiu na família a tradição de que estas jóias deviam passar do solteiro mais velho de uma geração ao solteiro mais velho da geração seguinte. Às vezes penso que ela fez isso para me consolar. E acertou em cheio. Sozinha, aqui na fazenda, nas noites de chuva como a de hoje, sempre gostei de me trancar nesta sala, para ver minhas jóias, uma por uma. Estás vendo a letra de cada envelope? É minha. Como fui eu também que fiz esta relação de todas as peças, em três folhas de papel almaço, no tempo em que se escrevia com pena Malat, caneta, tinta de tinteiro e mata-borrão. Hoje, tudo mudou. Também não se usam mais as jóias de antigamente. Os belos brincos cravejados de brilhante. Os colares de muitas voltas. As pulseiras de ouro e diamante. As gargantilhas. As pulseiras que se punham nos tornozelos, e eram de ouro, com esmeraldas, com rubis, com crisólitas. Os broches lindíssimos, verdadeiras obras de arte. Olha bem este colar. Fazes uma idéia de quem foi? Da Marquesa de Santos. Como chegou à nossa família, não sei. Sei que foi dela. Olha esta rosa, com pétalas de ouro cravejadas de brilhantes azuis. Abriu a outra caixa. E com uma fivela na mão:

- De ouro, Benevenuto. Para sapato. Vê este diadema. Tem uma história. Foi um caso de amor de teu trisavô com uma mulata baiana. Morreu tuberculoso, antes de entregar a jóia. E o diadema ficou na família, com todas estas ametistas. A mulata soube da jóia, e foi à casa de meu bisavô para recebê-la. Deram-lhe um grito. O grito que eu também sei dar, nas minhas horas de ira, e a mulata sumiu.

Um suspiro fundo.

E a velha, começando a guardar cada jóia:

- Como tudo isto se acumulou em nossa família, ignoro. Como também ignoro como tudo foi conservado, sem se dispersar. Minha morta mãe, tua avó, quando me entregou este tesouro, já estava viúva. Não queria que ninguém soubesse que tudo isto estava com ela. Se lhe falavam de jóias antigas, desconversava, ou então negava que tivesse uma simples roseta, um anel, um brinco. Fiquei espantada quando vi todas estas jóias juntas, pela primeira vez, como nas vitrinas de um museu. Tu sabias deste tesouro. Sabias. Várias vezes te falei dele. Por alto. Mas falei. Dando a entender que um dia seria teu. Senti que te assanhavas. Me calei. Vejo agora, por teus olhos estrábicos e por tuas mãos abobalhadas, que ficaste tonto, Benevenuto. Pegas uma jóia, pegas outra, e estás que nem menino em loja de brinquedo. Cada jóia tem a sua história. Escrita por mim. Vais ter com que te distrair, em noites como a de hoje. Podes ter todos os defeitos, mas uma qualidade eu não te nego. Tens o gosto e o orgulho de tua família. Como eu. É e por isso que tua casa, na Avenida Atlântica, no Rio, é um pequeno museu. Retratos, quadros, diplomas. Tudo nosso. Assim é que deve ser. A família é a família.

E de vista baixa, recolhendo outra jóia ao envelope correspondente:

- Com os altos e baixos de minha saúde, posso chegar aos cem anos. Mas também posso não chegar. Depois dos oitenta, ninguém pode responder pelo dia de amanhã. E os meus estão chegando. Sábado que vem, sopro as oito velinhas. Há quinze dias, tive uma dor aqui do lado e que me subia pela garganta, sem querer passar. Pensei que minha hora da verdade tinha chegado. Mandei que o Frederico te telefonasse. Não estavas em casa. Deixou o recado. Não me falaste. Fiquei com raiva. Quase corto o fio do telefone para não ter uma nova tentação de ligar para ti. Depois, amansei. E recorri aos telegramas patéticos, que deram bom resultado. Se não viesses aqui, eu ia distribuir estas jóias. Uma por uma. Aos parentes. Aos amigos. Para ti, nada. Como vieste, não serás castigado. Pelo contrário: vou te dar tudo isto.

Benevenuto, com enorme esforço, e ainda com um resto de dúvida, reuniu todas as forças de que era capaz, e perguntou, num fiozinho de voz trêmula, segurando com fervor as duas mãos da velha:

- E tudo isto é meu, Tia Eudóxia? Meu mesmo? E a senhora não vai se arrepender de me ter dado todo este tesouro? Para lhe ser franco, uma coisa me dizia, aqui por dentro, que eu ia receber agora estas jóias. Cheguei a pensar que era um sonho alto demais para a minha ambição. A senhora está transformando o meu sonho em realidade. Com esta diferença: eu pensava que tudo isto seria meu, depois que Deus a chamasse. Não foi preciso. Melhor assim.

Levantou os braços para o teto, levantou também os olhos:

- Graças te dou, meu Deus, por esta graça alcançada.

E foi dobrando os joelhos, para beijar, contrito, os pés da velha, reverente, reconhecido. Ela, com rapidez, susteve-lhe o gesto. E no tom severo com que o repreendia, nos seus momentos mais veementes:

- Lá vens tu com os teus exageros.

Recolhido à imensidão do quarto, o corpo estirado ao longo do colchão de capim, numa cama de ferro que gemia e rangia se mudava de posição, e apenas iluminado pela vela assustada que clareava o crucifixo de cima da cômoda, Benevenuto reconheceu que não iria dormir. Apesar da exaustão da viagem no fordeco saltitante, e que ainda o amolecia e atordoava, persistia no seu espírito, suplantando-lhe o cansaço, a emoção de ter visto com seus olhos e pegado com as suas mãos, finalmente, as famosas jóias da Tia Eudóxia.

- Parece mentira: foi preciso chegar aos quarenta e três anos, já de cabelos grisalhos, e este começo de barriga, para ver e pegar o tesouro da família, de que ouvi falar desde menino.

E agora, além do mais, as jóias eram suas, embora ainda guardadas no grande cofre de ferro, no lugar mais seguro da fazenda. Quando fosse dali, elas iriam com ele. Com ele subiriam ao navio, em Santos. Com ele desceriam do navio, no Rio de Janeiro.

Lá fora, entrando-lhe pelo quarto, o tuco, tuco, tuco do motor da luz elétrica, como a lhe martelar a cabeça, ali dentro, com as portas e as janelas fechadas contra a chuva e as mariposas. De vez em quando, como uma explosão silenciosa, a faiscação instantânea dos relâmpagos; depois, longe, estremecendo a casa, o rolar dos trovões. E sempre a chuva a cair, enervante, repetindo infindavelmente o ratáplã das goteiras na bacia do corredor e insistindo em sacudir as árvores e em bater na rótula das janelas sobre o quintal.

De repente, sempre insone, Benevenuto sentou-se na cama. Tia Eudóxia lhe teria dado todas as antigas jóias da família? Ou algumas, e as mais raras e vistosas, ela teria passado adiante, numa hora de aperto (a hora de aperto que todo mundo tem ) ? Sim, sim, e por que não? Ou seria que a Tia Eudóxia, espertíssima, conservaria consigo, manhosa-mente, uma parte delas (certamente as melhores), subtraídas ao conjunto?

E Benevenuto, com os pés nos chinelos:

- É preciso confiar desconfiando.

A velha era famosa por sua esperteza. Em matéria de dinheiro e de negócios, ninguém a enganava, estava para nascer quem a passaria para trás. Sempre de olho vivo. Passada na casca do alho.

E Benevenuto, levantando-se:

- Se é assim, por que, desta vez, não quereria me enganar?

De tanto ouvir falar, desde menino, nas jóias da família, guardadas pela Tia Eudóxia, ele esperava agora que formassem um conjunto bem maior. Decepcionara-se, passado o primeiro momento de emoção. As maravilhas eram mesmo aquelas? Eram só aquelas as tais jóias do Capitão-mor? Diante do espelho da penteadeira, interrogou-se:

- Não estás sendo bigodeado, Benevenuto? Abre os olhos.

E logo se pôs a rir baixinho, quase só para si, como se a sua imagem, no reflexo do espelho, estivesse a chamá-lo à ordem:

- Estou sendo injusto. Injusto e ingrato.

Tia Eudóxia podia fazer das jóias o que bem quisesse. Eram delas, somente a si própria teria de dar satisfação. Dera-as a ele, como podia ter dado a outro parente. Mas a que parente, se todos estavam casados, ou descasados, depois de mal casados? Ou viúvos? Ou desquitados?

E argumentando, sério:

- Solteiro mesmo, só eu.

Quando tornou a se deitar, ouvindo de novo os protestos das molas da cama e os gemidos do colchão duríssimo - uma verdadeira pedra! - Benevenuto voltou a fixar-se na exigüidade das jóias, aborrecido, revoltado, como se fosse protestar:

- Agora, com que cara vou aparecer no navio, para a Marquesa, para o Comandante, para o Comissário, para o português, para os outros idiotas da mesa, depois de ter dito a todos eles que as jóias da tia Eudóxia eram muitas, além de verdadeiras obras de arte, únicas no mundo? Sai dessa agora, Benevenuto. Só quero ver, na hora, o jeitão da tua cara. E é merecido o castigo. Por que deste com a língua nos dentes?

E suspirando alto:

- Sempre me dando mal com esta minha eterna mania de grandeza. Sempre. E não me emendo. Na hora da fantasia, quero ser Napoleão, quero ser Luís XIV, quero ser Pedro I, quando sou apenas Benevenuto, sobrinho da Tia Eudóxia! Ora bolas! Ora sebo! Para mim, chega!

E mudou de posição, no travesseiro.

E como o sono afinal lhe veio, profundo, repousante, despertou na manhã seguinte com outra disposição e outras idéias, lembrando-se do muiraquitã, do colar da Marquesa de Santos, das esmeraldas, dos brilhantes, de dois broches realmente sensacionais, dos brincos, das pulseiras de ouro cravejadas de rubis, das gargantilhas, dos três diademas incomparáveis, para acabar reconhecendo, enquanto escovava os dentes na bacia cheia de água, que não ia fazer má figura, na hora em que fosse mostrar no navio, em alto-mar, as jóias da Tia Eudóxia.

A mesa do café, assim que se instalou na cadeira espaçosa, com o seu apetite, com seu ar descansado e com a sua boa disposição para entender o mundo, confessou à velha, que já esperava por ele, à cabeceira, magra, espigada e exigente, com seu prato de coalhada e seu pote de mel:

- Custei a dormir, minha tia. De olhos fechados, eu continuava vendo as nossas jóias. Colares, rosetas, placas, broches, tudo faiscando diante de mim. Juntas, nunca vi tantas. Nem nas exposições de jóias, em Londres, em Paris. Nem mais belas e mais ricas. Parecia que eu ia atravessar o resto da noite acordado, só em pensar que todo o nosso tesouro vai ficar comigo.

A velha atalhou, parando no ar a colher grande cheia de mel:

- Se está com medo, deixe as jóias aqui. Aqui, comigo, enquanto eu for viva, não me metem medo nem correm perigo. Com você, tenho agora minhas dúvidas.

E Benevenuto, alarmado:

- Fique tranqüila. Eu, no começo, tenho medo, reconheço. Mas, na hora da decisão, sou uma fera. Como a senhora. Com o mesmo sangue. A mesma determinação de defender o que é meu.

Tia Eudóxia, ainda ríspida, meteu na boca a colher repleta, engoliu o mel.

Havia momentos em que o desejo do Benevenuto era apoderar-se do fordeco antidiluviano, girar-lhe a manivela do motor, e arrancar dali, sem olhar para trás - fugindo do tédio que o sufocava, sem nada que fazer na monotonia da vida na fazenda.

Tia Eudóxia, ao vê-lo assim, impaciente, mudando de posição na cadeira, olhando o relógio, alongando o olhar para o portão distante, vinha ao seu encontro, como desentendida:

- Eu, no teu lugar, me mudava para cá. A cidade não dá mais segurança a ninguém. Roubos, as saltos, agressões a todo momento. Ninguém tem mais garantia. Aqui, não: tudo seguro, tudo em ordem, tudo em paz. Ninguém me desobedece. Só se faz o que eu quero ou o que eu aprovo.

E para animar o Benevenuto:

- Aqui, em seis dias de descanso, já engordaste uns seis quilos. No mínimo. Chegaste aqui com uma palidez que me preocupou. Hoje, estás vendendo saúde, nessas bochechas felizes, nessa bela cor, nesse apetite formidável. Se queres, mando o Frederico a Santos, e cancelamos tua viagem. Passas aqui toda a quaresma, para voltar na Páscoa. E o Benevenuto, assustado:

- E os meus negócios no Rio? E os meus compromissos? E as providências que tenho que tomar? A senhora não sabe o que é, ali, a minha vida. Porque eu também me viro, me mexo, me rebolo. Não fico deitado, de papo para o ar, tomando fresco. Antes ficasse. E a verdade é que, me virando, me mexendo, me rebolando, estou contente. Encho o meu tempo, ocupo minhas energias, torno-me útil e necessário.

E a velha, depois de cacarejar:

- Quem te ouve e acredita em ti, fica pensando que és mesmo isso que estás dizendo. Deixa-te de exageros, Benevenuto. Nasceste com o bumbum para a lua, isto sim. Não tens mulher, não tens filho. A tua sorte é que eu gosto de ti. Mais da conta. Porque tu, por teu lado, só pensas no que podes receber de mim, quando eu espichar as canelas.

Benevenuto suspirava:

- Não diga semelhante barbaridade. Por favor, Tia Eudóxia.

E ela, teimando:

- Digo, sim. Por que não? Todo mundo reconhece, na família, que eu passo a mão por tua cabeça, que gosto muito de ti, que passei a vida a fazer vista grossa para todas as tuas maluquices. Tirando o teu gosto da família, o teu pendor para antigüidades e fantasias de carnaval, que é que tens nessa tua cabeça, Benevenuto? Nada que se aproveite.

E resoluta, embalando-se na cadeira, a um canto da varanda:

- Se ficasses aqui, como eu sempre quis, eras outro homem. Homem mesmo. Enérgico. Decidido. Útil. Olha que ainda está em tempo. Nunca é tarde para pôr alguém no caminho certo.

E passando da aspiração ao programa:

- Em vez de eu ter o Frederico na direção do meu carro, que iria comigo, daqui para Santos, de Santos para cá, daqui para São Paulo, de São Paulo para a fazenda, gordo, bem-disposto, com essas bochechas rosadas, eras tu, Benevenuto. O motor da luz era contigo. Contigo ficariam as entregas de café, a administração da colheita, a fiscalização das sacas, a correspondência com os fregueses. E sabes o que isso te daria, do pé para a mão, enquanto o diabo esfrega um olho ? Te daria o prazer de meter a mão no bolso e encontrar ali uma bolada. De dinheiro vivo. Sem apertos. Sou tua amiga. Mais do que tua tia. Muita gente vai me censurar quando souber que te confiei as jóias da família. Vai. E eu com isso. Ah, não gostaram? Fiz o que me deu na veneta. E é verdade. Gostas de antigüidades. Teu maior sonho era ter contigo as nossas jóias. Fiz-te a vontade. Mas não me iludo contigo. Com todo o teu gosto das antigüidades, vais vender uma jóia hoje, outra amanhã, outra mais depois de amanhã, contanto que não te f ai te o dinheiro para a cabeleira de Luís XIV, o manto de Pedro I, a fivela de prata no sapatão do Marquês de Pombal. E quando isso acontecer - porque vai acontecer - já estarei no bem-bom de minha cova, dormindo o sono eterno por sinal que bem merecido.

E Benevenuto, assim que a velha se calou e ficou a olhá-lo por cima dos óculos, divertidamente:

- Acabou? Posso falar?

E recorrendo ao tom patético:

- Lembra-se do que eu lhe disse, no dia de seus anos, na hora em que ia apagar as oito velas daquele imenso bolo? Quando confessei, na presença do Juiz, do Vigário, do Delegado de Polícia, da diretora do grupo escolar, do agente dos Correios, do Dr. Pascale (seu médico), do Alonso (seu farmacêutico), e de outros amigos de que não sei o nome, e todos que trabalham na fazenda,a começar pelo Frederico, que a senhora sempre foi para mim, não uma tia nem uma amiga, mas uma verdadeira mãe, e mãe como poucas, mãe como Nossa Senhora? Lembra-se? Fiquei tão emocionado que cheguei a chorar. Isso quer dizer que, em vez de falar ligado com a cabeça, falei ligado com o coração. Eu sei o que lhe devo. Sei o que a senhora é, como bondade, como sensibilidade, como força humana. Posso ser distraído. Um pouco boêmio. Mas ingrato, não. Se a senhora, agora, neste momento, me disser, com toda a franqueza: - Benevenuto, eu preciso de tua vida.-Eu dou um passo, resoluto: - Tia Eudóxia, minha vida é sua. Onde e quando devo morrer? - Não sei se diria isso mesmo à minha verdadeira mãe. Acho que não. Só à senhora. Quer mesmo que eu fique aqui? Eu fico.

Tia Eudóxia enxugou os olhos com a costa da mão:

- Benevenuto, pára com isso. Agora, quem está chorando sou eu.

E deixou que ele a abraçasse e lhe beijasse a barra da saia, afagando-lhe a cabeça:

- Exagerado. Sempre exagerado.

E tentando desfazer o aperto da garganta:

- Estás mesmo contente com as jóias que te dei? Contente mesmo? Eu também, Benevenuto. Volta para teu apartamento, no Rio. Volta. Mas não te esqueças de vir aqui de vez em quando. Não quero te prender. És bom demais. Deus te abençoe.

Barbeado, penteado, perfumado, metido no costume azul-claro que se ajustava bem à sua cor morena, aos seus lânguidos olhos levemente anilados, Benevenuto se preparou bem cedo para a viagem de volta, no calhambeque pré-histórico que o levaria a Santos, naquela segunda-feira de carnaval, quieta, tranqüila, ajustada à sua condição de homem realizado.

A própria Tia Eudóxia, que às cinco horas da manhã, antes de bater o relógio da varanda, já estava de pé, para tomar o seu copo de leite no curral, fez questão de preparar-lhe a mala das jóias, ao fim da madrugada.

Prudente, astuciosa, ela o advertira:

- Nada de mala aparatosa, que dê na vista. Sei que, por teu gosto, ia tudo num malão tauxiado, de cantos de metal, alças vistosas, fechadura reluzente, como se fosses para o palácio da Rainha de Sabá. Mas era um erro: chamava a atenção alheia, dava na vista. Nestes casos, quanto mais discrição, melhor. Uma boa mala, simples, discreta, é que te convém. Não atrai os ladrões.

Ele quis replicar-lhe, levemente aborrecido:

- É um engano seu, Tia Eudóxia. Para ladrão, tanto faz mala simples quanto mala vistosa. O que faz o ladrão é o faro, o sexto sentido. Daqui para Santos, não corro perigo, com o Frederico na direção, caladão, ar de poucos amigos, debaixo do chapéu mexicano. No navio, muito menos. Em alto mar, sem poder nadar para alcançar uma praia do litoral, não há ladrão que se arrisque. Posso até dormir com a porta do camarote escancarada.

Mas, em vez de contrapor-se à velha, Benevenuto prontamente concordou com ela:

- A senhora tem toda razão, Tia Eudóxia. O seguro morreu de velho. Eu próprio, se for preciso, seguro a mala pela alça, entro no navio, com o malão maior à frente, na cabeça do carregador, e quero ver quem é que desconfia que vou carregando comigo, lépido, contente, feliz, as jóias de nossa família.

Assobiou, rodopiou, vendo a tia diante do cofre aberto, com a mala a dois passos, em cima da mesa redonda, a acomodar os envelopes das jóias, um por um, meticulosamente:

- Por favor, Benevenuto, não faças cerimônia comigo. Se tiveres algum aperto, me fala. Para tudo se dá um jeito. Por favor, nunca penses em te desfazer destas jóias. Nunca. Enquanto eu estiver viva, conta comigo. Sei que sou ríspida, fervo com pouca água, mas, no fundo, sou tua tia, passo a mão por tua cabeça.

Fechou a mala, entregou a chave ao Benevenuto, fechou o cofre. E ao ver que ele, risonho, cheio de si, como se não coubesse dentro da roupa bem cintada, de paletó aberto atrás, erguia a mala pela alça de couro:

- Não carregues mala nenhuma. Põe, também ela, na cabeça do carregador. E fica perto, de olho aceso nela. É mais seguro. Se dispões de um carregador, que poderia levá-la, e és tu que a carregas, a conclusão é só uma: ali dentro vai coisa de valor.

Benevenuto pôs-se a rir:

- A senhora pensa em tudo, Tia Eudóxia. Com a senhora, ninguém pode. Eu que o diga.

E na sala contígua, desprendido, entregou a mala das jóias ao Frederico, ordenando-lhe:

- Põe esta junto do malão. E gira a manivela do carro para esquentar o motor. Obrigado.

Na véspera, tinha saído pelos arredores, a despedir-se de cada caseiro ou agregado. Na volta, como visse a Tia Eudóxia, de joelho, na capelinha da fazenda, ajoelhou-se também, fingindo que também rezava, com a cabeça baixa, contrito, segurando a testa.

A mesa do jantar, parecia mesmo emocionado, com seu grande ar de despedida vistosa, compungido, falando baixo, e pouco. Mesmo assim, temendo que a tia não reparasse, adiantou-lhe:

- Hoje, por meu gosto, não saía daqui. Vou sentir falta da senhora, deste silêncio, do tuco-tuco do motor da luz, do mugido do gado, do latido dos cachorros. De tudo, minha tia. De tudo.

E ela, atalhando:

- E quem é que te obriga a ir embora?

- O dever - replicou ele, desconfiando que houvesse entrado por um caminho errado, com a sua mania de dourar todas as pílulas.

E mais veemente:

- Chego ao Rio na terça-feira; na quarta, de pois do meio-dia, já tenho uma entrevista marcada, no Centro da Cidade, com o Presidente de um grande banco de Nova Iorque, para ajudá-lo numa grande obra social em favor de nossas favelas.

E a velha, em tom de censura, olhando-o por cima dos óculos:

- Isso está me cheirando a mentira, Benevenuto. Não tens entrevista com Presidente nenhum nem vais te meter em obra social. Tudo fantasia. A única coisa real, em tudo quanto falaste, é mesmo a favela.

Ele cruzou os fura-bolos diante dos lábios, para beijá-los. E querendo ficar sério e temendo o riso derramado:

- Se a senhora quiser que eu jure, por esta luz que nos alumia, eu juro. Deus, lá em cima, está me escutando.

E beijou os dedos em cruz.

Meia hora depois, já no carro, ao lado do Frederico, tornou a descer, abraçou de novo a velha, que lhe acenava no batente do alpendre:

- Mais um, mais um. Até a volta.

Lá adiante, ao deixar para trás a porteira da fazenda, voltou-se, acenou de novo para a Tia Eudóxia, e ordenou ao Frederico, que assumira o seu papel de motorista, com o peito mais alto, a cabeça mais levantada, o chapelão desfraldado:

- Por mim, pode correr.

Ao despedir-se do Frederico, ao pé da escada do navio, não se esqueceu de recomendar-lhe, depois de agradecer a longa viagem de carro, na estrada repleta de buracos, sem que houvessem parado pelo caminho:

- Diga à Tia Eudóxia que eu, até o último momento, me lembrei dela. E que este ano, sem falta, o meu Natal vai ser na fazenda, com ela. Com ela - repetiu.

Logo correu atrás do crioulo imenso, de andar gingado, passos indolentes, e que já ia entrando pelo cais do porto, empurrando um carrinho de mão, levando-lhe as duas malas.

- Até a volta, Frederico.

Em vez de subir pela escada do portaló, do lado da proa, preferiu subir também pela prancha, do lado da popa, para não perder de vista o carregador. Este, deixando ao pé da prancha o carrinho de mão, ia agora com a mala menor na mão e a outra na cabeça, andando depressa, como a equilibrar-se na rapidez das pernas.

Lá em cima, já no navio, o crioulo lhe disse, deixando as malas no convés:

- O senhor esqueceu de me dar o número do camarote.

Benevenuto, apressado:

- Me espere aqui mesmo. Vou buscar a chave.

E enquanto seguia pelo convés, para alcançar a cabine do Comissário, do outro lado do navio, reconheceu ter cometido uma imprudência. Não devia ter deixado com o crioulo a mala das jóias. E se ele descesse com ela, enquanto ia buscar a chave? Ele próprio tratou de acalmar-se:

- Tudo vai dar certo.

Não demorou dez minutos, à espera do Comissário, que falava ao telefone, lendo os nomes de uma lista de passageiros. O tempo lhe parecia infinito. Afinal, conseguiu falar-lhe, o Comissário prontamente o reconheceu, deu-lhe a chave, e Benevenuto se projetou para o convés, com a chave na mão, agarrando-se mentalmente com São Judas Tadeu, de quem era devoto, para segurar o crioulo, se este quisesse fugir.

De longe, viu o carregador sentado sobre a mala grande, e respirou, tranqüilizado. Abrandou o passo, para que o crioulo não desconfiasse de sua pressa. E à frente dele, interrompendo-lhe o cochilo:

- Podemos ir. Agora, vou eu na frente.

Baixou por uma escada, entrou pelo corredor comprido, que acompanhava a orla de camarotes, passou depressa rente à porta entreaberta do camarote da Marquesa, sem que esta o visse, e tratou de correr para seu próprio camarote, seguido de perto pelo carregador, que ora batia num lado, ora noutro, curvado para a frente, oscilando, com a mala grande às costas.

- Aqui - avisou Benevenuto.

Assim que entrou no camarote, deu com umas rosas frescas, no jarro azul ao pé do espelho, acompanhadas por estas palavras, no cartão da Marquesa: "Seja bem-vindo. Sentimos muito a sua falta." Sobre o mármore, o convite do Comandante para o baile à fantasia, à noite, com esta recomendação, numa letra espaçosa e firme: "Queremos aplaudir o seu Pierrô."

Sorriu, feliz, pleno de si mesmo, e só então se lembrou do crioulo, já dentro do camarote, e que lhe perguntava, numa voz agastada:

- E eu vou ficar aqui, carregando esta mala?

- Desculpe, amigo. Ponha-a aqui, por baixo do beliche. E a outra, neste descanso.

Meteu a mão no bolso, tirou dali uma cédula, passou-a ao crioulo, que olhou para a nota amarfanhada, ainda arreliado, continuando com a mão estendida.

E o Benevenuto, compreendendo que o pagamento era pouco:

- Foi isso que paguei a outro carregador, aqui mesmo, quando cheguei.

E o crioulo, zangado:

- Mas não era segunda-feira de carnaval, como hoje, e havia muito carregador para trabalhar. Hoje, são poucos. E eu, para receber só isso, prefiro trabalhar de graça.Tome de volta o seu dinheiro. Não precisa me pagar.

Benevenuto preferiu ser pródigo:

- Tem razão, patrício. Tem toda razão. E pouco. E aqui tem mais.

Deu-lhe outra cédula, mais outra, mais outra, mais outra, e foi vendo que a cara gorda do crioulo, mais aberta, aumentava as bochechas, resplandecendo. E sustando a prodigalidade:

- Agora, ponto final.

E o crioulo, ainda risonho:

- É como diz. Boa viagem, patrão. Voltando, estamos aqui.

Benevenuto acompanhou-o até o corredor, fechou a porta, tornou a aspirar o perfume das rosas, olhou o mostrador do relógio de pulso, para ver se tinha tempo para um banho de chuveiro, que lhe tirasse do corpo o cheiro de leite, de capim e de bosta de boi, que ainda lhe entrava pelas narinas. Diante do espelho, correu a mão pela barba. Como ia pintar-se para o baile da noite, na fantasia de Pierrô, aumentando a boca, os olhos, as sobrancelhas, convinha raspá-la de novo, já que, pela madrugada, ao fazê-la, ouvindo o tuco-tuco do motor da luz elétrica, tinha raspado quase às cegas, sem distinguir direito o rosto estremunhado num velho espelho carcomido. E decidindo-se:

- Depois, um bom banho de chuveiro!

Tirou os sapatos, a roupa, ficou em cueca, e caprichou na barba, antegozando o que ia ser a sua entrada no salão de festas, tinindo os guizos, pulando, sacudindo os braços, com a cabeça a emergir da imensa gola fofa, os pés nas sapatilhas.

Debaixo do chuveiro, no banheirinho do camarote, pôs-se a saltar, cantarolando, com a certeza de que a noite seria sua. E assim como conseguira suplantar o Evandro, o Clóvis, o Nelito, o Peixotinho, seus eternos rivais dos carnavais passados, não deixando que lhe passassem à frente no concurso de Pierrôs do Copacabana Palace, suplantaria qualquer outro competidor, mesmo o português, mesmo os três casais de brasileiros da mesa do Comandante, e também este, e o Comissário, e o médico do navio, e também a Marquesa, ainda que esta aparecesse de Maria Antonieta, coberta de jóias!

E saindo do chuveiro, a respingar:

- Sim, as jóias! E eu que me tinha esquecido de minhas jóias!

Deveria usar uma delas, para fazer melhor figura? E para quê, se apenas seu Pierrô de luxo lhe bastaria? Não, nada de jóias!

E enquanto se enxugava, correndo pelo corpo molhado a grossa toalha de felpo, firmou no espírito a determinação sensata de nada dizer aos amigos quanto às jóias da Tia Eudóxia. E se lhe perguntassem por elas? Diria que tinham ficado na fazenda, onde estariam mais seguras. E argumentava, como se estivesse a responder:

- A velha melhorou, está quase boa, achei melhor deixar as jóias com ela.

E mudaria de assunto.

Mas o gosto de exibir-se, de escancarar aos olhos alheios os brincos, as pulseiras, os diademas, as placas, as gargantilhas, os colares, para dizer à Mar.

Como havia a bordo um velho fotógrafo, que se encarregava de fixar com a sua máquina vigilante os momentos mais destacados da viagem, para depois vender os flagrantes aos passageiros, exibindo-os a um canto da Sala de Estar, foi ele que fixou a chegada do Benevenuto, no momento em que este entrou no salão de jantar-vestido de Pierrô.

A idéia acudira subitamente ao Benevenuto assim que ouviu, no seu camarote, o badalo da sineta. Por que não aparecia no salão já preparado para o baile? Assim, em vez de trocar de roupa depois do jantar, já ali apareceria devidamente fantasiado. E como anteviu com precisão a surpresa de sua entrada assim vestido, foi rápido ao trocar o smocking pela fantasia, só deixando para a volta ao camarote a pintura do rosto, com o carmim nas bochechas, o batom nos lábios, o traço de carvão prolongando os olhos e as sobrancelhas.

Depressa conseguiu vestir-se, pôs as sapatilhas, e foi reunindo os guizos do Pierrô que desceu a escada que levava ao salão - sem esquecer de pôr ordem no camarote, cada coisa no seu lugar, fechada a mala das jóias, esvaziados os cinzeiros repletos, espichada a cobertura do beliche onde a Marquesa se havia instalado para olhar as jóias, ao lado do sobrinho joalheiro que havia trazido de Buenos Aires.

Benevenuto parecia pouco para todo o seu júbilo. Vira a cupidez, o espanto, a admiração de todo o grupo que viera com a Marquesa. Felizmente, depois que todo o grupo se fora, pensando no jantar, pensando no baile de carnaval, ele, Benevenuto, pudera conferir cada envelope, cada invólucro de papel de seda, após olhar a jóia respectiva.

Pouco antes de sair, a Marquesa lhe dissera, retardando o passo vagaroso, apoiada com vigor pelo joalheiro:

- Vamos fazer uma belíssima exposição de suas jóias em Paris, no Museu Carnavalet.

E o sobrinho, mais exigente:

- Ou no Jacquemart André.

E a Marquesa, concordando:

- Sim, Jacques, tens razão: melhor no Jacquemart. É mais fino, mais requintado.

E para o Benevenuto, que parecia ter aumentado o volume do pescoço com o máximo de orgulho:

- Deixe isso comigo.

E quando ele irrompeu à porta do salão, recebido pelo espanto do maitre, que levantara para a vasta calva as sobrancelhas assustadas, houve no recinto um movimento geral de atenção e surpresa, e muita gente ficou de pé, para admirar o Pierrô que havia parado de propósito, ainda no limiar, para que o vissem e aplaudissem.

- Bravos! - gritou o Comandante, com seu vozeirão jubiloso.

E veio buscá-lo, saindo da mesa.

Tinindo os guizos, movendo a cabeça agradecido, quase às lágrimas com tantos aplausos à sua volta, Benevenuto acercou-se da mesa, com o Comandante a segurar-lhe o braço. E foi assim que a mesa, de pé, o recebeu, batendo-lhe palmas, elogiando-lhe o Pierrô.

E o Comandante, comandando, a mostrar ao Benevenuto a cadeira vazia, quase ao seu lado:

- Aqui, aqui.

Mas a verdade é que, no salão, outros passageiros tinham tido a mesma inspiração do Benevenuto. Muita gente já estava ali fantasiada, inclusive a Marquesa, com seu vistoso traje de odalisca, e também seu sobrinho, num fofão escarlate.

A mesa havia sido aumentada, com mais seis passageiros, entre os quais um senhor taciturno, alto, forte, que suplantou facilmente o tipo espadaúdo do português, e mais um velhote moreno, que se distinguia pelo modo de olhar - sempre contraindo as pálpebras, como se toda a gente em redor fosse algo que devesse ser olhado de perto, com olhos de míope. As duas novas senhoras eram chilenas; uma, acompanhada pela filha, levemente estrábica; outra, trazendo consigo o marido, bem mais velho que ela, e sorridente, como se pedisse desculpas por já ter feito setenta anos.

No correr do jantar, a despeito do entusiasmo com que ali havia sido acolhida a fantasia do Benevenuto, não foi do Pierrô que se falou, o mais do tempo, e sim das jóias da Tia Eudóxia, verdadeiras maravilhas.

O casal de brasileiros que Benevenuto já havia encontrado a bordo vindo do Recife de avião, e embarcado, como ele, no Rio de Janeiro, quase o irritou, quando ela ponderou, subindo a vozinha cantada:

- Em Pernambuco, com as nossas jóias, não ficamos atrás.

E Benevenuto, reagindo:

- Tantas quanto as minhas, Madame?

- Talvez. Mas as suas são mais ricas. Têm mais pedras preciosas. Principalmente o diadema maior. Nunca vi outro tão bonito.

E Benevenuto, reconhecido:

- Obrigado, Madame.

A Marquesa, sempre assessorada pelo sobrinho, que estava à sua frente, do outro lado da mesa, suplantou o entusiasmo de todos:

- Vou fazer um livro sobre suas jóias, Benevenuto. Com a reprodução de todas. Sobretudo daquela pedra verde das amazonas.

E o sobrinho, aplaudindo a idéia:

- Para ser lançado na exposição de Paris, minha tia.

- Isso mesmo - ela concordou, movendo a cabeça de odalisca para um lado e para outro, como se o livro já estivesse pronto.

E logo o Comandante, levantando-se, já no fim do café, e falando pelo microfone do salão:

- Nosso baile vai começar às dez horas em ponto. Todo mundo de máscara, não esqueçam. Quem não tiver máscara, o navio fornece, à entrada do Salão de Festas. Podemos levantar.

Benevenuto voltou ao camarote com a impressão de que tudo estava saindo a seu favor naquela viagem. E enquanto retocava a maquilagem diante do espelho, aumentando os olhos, alongando as sobrancelhas, repuxando a boca, já com o ruge nas bochechas e o batom nos lábios, sem esquecer um sinal de beleza na face direita, ia recordando tudo de bom que lhe havia acontecido, numa sucessão harmoniosa de acontecimentos felizes.

E batendo na madeira do beliche para conjurar os maus-olhados:

- Primeiro, a insistência de Tia Eudóxia em me chamar. Eu, para fazer corpo mole, quis vir de navio, crente que não encontraria passagem no cruzeiro do Pasteur. Se telegrafei ao Nagibe, foi por desencargo de consciência. Logo o querido, o grande, o incomparável Nagibe providenciou tudo. E mais: me mandou a passagem. De graça. E com as recomendações especiais ao Comandante e ao Comissário. A bordo, trataram-me como um príncipe; na volta, agora, como um rei. Tia Eudóxia, além de me fazer o favor de não morrer (se morresse, olhem eu aí de preto, com missa de sétimo dia, luto demorado, recebendo condolências, agradecendo telegramas), teve o bom gosto de me dar de vez todas as jóias da família, além de continuar no gozo feroz da melhor saúde física e mental, aos oitenta anos bem vividos. Agora, os aplausos que estou recebendo. E todo mundo maravilhado - comigo, com as minhas jóias, com a minha fantasia.

E olhando para cima, com os olhos lânguidos e reconhecidos:

- Deus, obrigado.

E mais, como se tudo não bastasse: a exposição em Paris, o livro da Marquesa, e badalado em todos os jornais, por ser o dono da mais bela coleção de jóias do mundo!

E tornou a revirar os olhos:

- Mil vezes obrigado, meu Deus. Por tudo. Por tudo.

E como havia acabado a pintura do rosto, e posto o gorro do Pierrô, e dado a sua mijadinha higiênica, e tomado o seu copinho de água para conjurar a sede, antes da dosezinha de uísque (do bom, do legítimo), Benevenuto cedeu, mais uma vez, ao seu espírito ordeiro e organizado, e olhou em volta, para ver se o camarote estava mesmo a gosto, admitindo, com um sorriso malicioso:

- De repente, alguém pode querer vir aqui, comigo, e eu não vou querer fazer má figura.

Ao aproximar-se do Salão de Festas, não quis acreditar: uma animação perfeita, com todo mundo saltando, pulando, cantando, a acompanhar a orquestra, que só tocava música de carnaval, como no Copacabana Palace, como no Monte Líbano, como nos antigos bailes do Teatro Municipal, como nos melhores tempos do João Caetano, no baile dos Enxutos.

À entrada do salão imenso, quase repleto, o próprio Comissário ia dando as máscaras a quem não as tinha. E eram máscaras de todos os feitios, grotescas, risonhas, zangadas, narigudas, graciosas, e só a ele, Benevenuto, tocou uma meia-máscara negra, que se ajustava esplendidamente ao seu Pierrô, e com a qual entrou no salão, já pulando e cantando, com a sensação de que o carnaval estava mesmo no seu sangue, fazia parte de sua pessoa, ajustava-se perfeitamente à sua condição.

Viu a Marquesa, correu para ela, abraçou-a, rodopiou com ela, e foi saltando, e foi cantando, enquanto sentia que todo o seu ser se realizava no frenesi, no tumulto da sala.

Ali, só o velho relógio de pé, imenso, pêndulo tranqüilo, mostrador redondo com algarismos romanos, parecia imune à loucura geral, rodando com o mesmo vagar a agulha de seus ponteiros. Até o Comandante, travestido, com uma saia rodada que lhe caía aos pés, parecia ter perdido a austeridade e a cabeça abanando-se com uma ventarola, de bigode, seios volumosos, braços nus e musculosos, e um vasto nariz à Cirano, vermelho, a um palmo do rosto, e que lhe dava um ar ainda mais gaiato.

Benevenuto desfez os pares, criou o cordão, e deu várias voltas no salão, animado, senhor do navio, senhor da festa, sem deixar que a orquestra parasse, e escolhendo as marchas, os sambas, os maxixes, obrigando a Marquesa a deixar a poltrona em que se instalara, a um canto, com seus bombons e seus copázios de cerveja gelada.

- Ai, Marquesa, isto está divino. Só em Versalhes, no tempo de Maria Antonieta. Ou então no tempo de Napoleão, com a Josefina mandando. Ai, meu Deus, tornei a ter vinte anos.

E repunha a Marquesa na poltrona, enquanto ia em busca de outra companhia, sem esquecer o Comissário, nem o companheiro português, e mais o senhor taciturno, que só fazia sorrir e mover a cabeça, com um bigodão de mandarim, um rabicho, um casaco de cetim cintilante por cima do paletó e da gravata (obra e sugestão do Comandante), sempre que o Benevenuto volteava em seu redor, batendo um pandeiro, sacudindo um maracá.

Pouco depois da meia-noite, ao recolher os votos dos foliões para a melhor fantasia da noite, com direito a uma nova viagem entre o Havree Valparaíso, passando pela Terra do Fogo, o Comandante acercou-se do microfone, e anunciou:

- Pierro de luxo, primeiro lugar.

Benevenuto, perto do relógio, quase desmaiou.

Depois, no segundo lugar, a filha da senhora chilena, com uma fantasia típica de seu país, e em terceiro, sempre com aplausos gerais, a odalisca da Marquesa, que se emocionou às lágrimas e saiu beijando cada companheiro de viagem, enquanto a animação prosseguia, revigorada pelo chope gratuito que o Comandante fez questão de oferecer, como cortesia da tripulação.

E foi pela exaustão, já com a luz da manhã querendo entrar no salão, e a faxina do convés se iniciando, e os músicos da orquestra reduzidos apenas ao pianista, e a Marquesa adormecida na poltrona, sem sentir o barulho à sua volta, que o Comandante deixou o Salão de Festas, tirando a saia e o nariz, e foi ver, do lado de terra, a linha verde do litoral brasileiro que se ia acentuando, enquanto dizia ao Comissário:

- Outra festa, agora, à fantasia, só no próximo Carnaval.

À mesa do café, apesar do repetido chamado da sineta de bordo, só o português e o senhor taciturno apareceram, este já preparado para descer no Rio de Janeiro, aquele na camisa esporte e na calça bermuda com que se defenderia do calor brasileiro, no rigor do estilo, ali a bordo, com o vento a soprar do mar para terra.

E o português, à falta de outro interlocutor:

- O amigo é brasileiro?

E o outro, quase à sua frente, no lado oposto da mesa:

- Não, mas vivo aí há muitos anos.

- E mora mesmo no Rio?

- Não.Tenho uma propriedade, entre Petrópolis e Teresópolis, e é aí que resido, e me dou bem.

E daí em diante, a cada nova pergunta do português, o senhor caladão, metido consigo, sempre de vista baixa, limitou-se a responder, ou com a cabeça, para confirmar, ou com o movimento do dedo indicador da mão esquerda, para negar.

Afinal, cansado de respostas evasivas, o português continuou em silêncio o seu pequeno almoço, mastigando devagar, sorvendo devagar o seu café-com-leite, regalando-se com o mel de abelha francês, mas terminou por indagar ao outro, no esforço teimoso para obrigá-lo a soltar a língua:

- Gostou do baile? Eu gostei.

O homenzarrão ondulou no ar a mão espalmada, para dizer que lhe parecera assim, assim, mas sem falar, enquanto o português, cedendo à sua tagarelice impulsiva, dava com a língua nos dentes, loquacíssimo:

- Eu gostei, e muito. Pulando, fiquei até o fim.

Quando parei de pular, baixei ao camarote. Mascarado. E era tanto o meu sono, com as pálpebras a fecharem, como se tivessem chumbo, dormi de máscara - a máscara bestial apache que me arranjou o Comissário e que, modéstia aparte, me assentou como uma luva. Sei que a pagodeira acabou de manhã. A nossa Marquesa, coitada, dormiu no próprio Salão de Festas, fantasiada de odalisca.

Quem esteve estupendo, do princípio ao fim do baile, foi o nosso Comandante. Pelo menos até o momento em que me retirei, esbarrando com as paredes, bêbado de sono. Mas o meu camaroteiro, que trabalhou no bar até de manhã, e ainda teve disposição para me acordar na hora do costume, me garantiu que o Comandante se esbaldou como um rapazinho, mesmo vestido de mulher, e com aquele narigão - sem música!

Devagar, dobrou o guardanapo, enxugou os cantos da boca, balançou as pernas, sorveu o restinho de café-com-leite que ficara na xícara, e atirou a derradeira pergunta, decidido a ir embora, se não conseguisse destravar a língua do outro:

- Viu as jóias do nosso Pierrô? Gostou? Eu gostei. O senhor também? Magníficas. Parte daquelas jóias são portuguesas. Meu país tem uma bela tradição de ourives e plateros. Conhecia? Logo vi. Eu, na minha casa, tenho uma caravela de ouro realmente soberba. Está vendo este meu relógio? É de ouro, com um brilhante.Não chega a ser uma jóia. Um bom relógio. Suíço. Mas não é uma obra de arte.

E levantou-se:

- Vou lá para fora. Quero ver a entrada da barra. Com a sua licença.

E subindo a escada:

- Que camarada difícil. Passou o tempo todo a mexer a cabeça, a mexer a mão, a mexer o ombro, sem mexer os beiços, sem querer falar. Ainda bem que ele vai descer no Rio. Se continuasse a viagem, eu pedia desculpas ao Comandante, e mudava de mesa.

Lá no alto, no convés ainda úmido da faxina matinal, um marinheiro passava óleo nos metais, enquanto outro, mais adiante, repunha as cadeiras compridas em fileira, tomando boa parte do espaço livre, para a preguiça das horas de leitura ou dos banhos de sol. Longe, quase na proa, perto do Salão de Festas, o velho fotógrafo havia pendurado para secar as fotografias do baile, e eram duas ou três centenas, com os instantâneos mais divertidos.

Foi para lá que se orientou o português, sentindo o vento forte do mar bater-lhe nas pernas nuas. Perto, saudou o fotógrafo:

- Lembra-se de mim? Ontem, fui mandarim, com bigode e rabicho. Já tem minhas fotos?

E logo deu com elas, aqui, ali, mais adiante, misturadas às demais, no pandemônio da noite de carnaval:

- Com a sua licença.

Retirou quatro, depois outra, mais outra, rindo, achando graça em si mesmo e nos outros, sobretudo no Comandante e na Marquesa, que lhe pareciam os mais gaiatos da festa.

E o velho, rindo também:

- E há mais, senhor. Muito mais. Quase o dobro. Gastei muito filme, mas valeu a pena. Tirando a música, olhando tudo isto a frio, quem é que diz que a Senhora Marquesa é uma grande dama? E que este Pierrô não é um brasileiro distinto? E que o Senhor Comissário é um homem sério, que vive a gritar com os marinheiros? Já o dia raiando, quando vi o nosso Comandante saindo da festa compasso arrastado, ainda de nariz postiço, tive vontade de lhe bater na barriga. Há cinco minutos ele passou de novo por aqui. Queria que o senhor o visse. Banhado, barbeado, penteado, metido no uniforme branco, novamente na sua pele de Comandante. Até me perfilei quando ele me cumprimentou.

Riu, voltou a ficar sério, e ria agora o português, novamente divertido com as fotografias:

- Olhe este gordo ajoelhado aos pés de um árabe. Veja os olhos dele, languidos, suplicantes. E esta moça quase nua. É a primeira vez que eu vejo o carnaval autêntico. Uma loucura. Uma rematada loucura. Mas gostei. Não vou mentir. Gostei.

E dobrando a risada:

- Sabe quem é este aqui, com uma máscara de velha? Um sobrinho da Marquesa. Senta-se comigo à mesa do Comandante. A hora em que eu saí, ele também saiu. Devia estar um pouco alto. Com uma máscara de velha. Sim, senhor: esta mesa que aqui está. Quando andou pelo convés, amparando-se nas paredes, tirou a máscara, jogou-a ao mar, dizendo um palavrão. Fez-me rir, mesmo caindo de sono.

E o fotógrafo, pendurando outros instantâneos:

- Com o dia amanhecendo,e já sem música, houve quem saísse pulando e dançando, com toda a animação do baile.Outros, como este aqui, com ar sério e compenetrado. Veja este senhor de braço dado com a mulher, como quem vai para a missa. Mas de barba postiça. Bati outra foto dele quando a mulher lhe tirava a barba.

O português olhou outras fotos, sempre rindo alto, por entre exclamações divertidas:

- Mas isto tudo é formidável, meu bom amigo. Se eu disser, na minha quinta, em Portugal, que houve isto tudo, aqui no navio, num baile de carnaval, vão dizer que estou mentindo.

E de repente, decidindo-se:

- Eu vou querer que o senhor faça para mim uma coleção completa destas fotos. Para eu mostrar ao pessoal. Vou me divertir com elas o resto da vida.

Até o meio-dia, quando o navio atracou no Cais Mauá, debaixo de um sol muito vivo e causticante, os foliões da véspera, no baile à fantasia, como que só tinham um propósito: recompor em si mesmos a austeridade dos outros dias, no convés, na sala de estar, no portaló, até que a Praça Mauá, sobre a qual o Pasteur se debruçava, estendeu até ele a animação de seus blocos, ranchos e mascarados, ao som dos sambas e das marchas que os alto-falantes ensurdecedoramente ampliavam, e então voltou o navio a animar-se, mas de modo comedido.

Assim que os passageiros tiveram ordem de descer, muitos dos turistas que tinham vindo do Havre, de Lugo ou de Lisboa, e também de Tenerife, trataram de baixar ao cais, para os passeios até a praça, e mesmo Avenida Rio Branco acima, enquanto crescia o bulício das bagagens e dos passageiros que ali mesmo interromperiam a viagem.

A velha Marquesa, que acabara por ir dormir mesmo no camarote, já ao meio da manhã, exibia agora os olhos estremunhados e os braços nus, passeando pelo convés, fresca, amável e superior, sacudindo a ventarola sobre o colo empoado. De vez em quando, reanimada pelas músicas dos alto-falantes, ensaiava dançar, sem interromper a caminhada, e sacudia as nádegas, e balançava os seios, como se os compassos buliçosos, no ritmo estrondante das batucadas, tivessem o dom de acordar na grave senhora a odalisca da véspera. E confessava, saracoteando-se:

- Vou acabar caindo no samba, ali na rua.

E ria, e aplaudia-se, no frenesi de um novo pandemônio, para logo corrigir-se, continuando a caminhada, no seu passo descansado, gorda, ancha, com uma leve camada de suor na testa e no pescoço.

Foi ela que primeiro perguntou pelo Benevenuto ao Comissário, ao subir para o convés. E ele:

- Não o vi. Deve continuar dormindo no camarote. Como o navio só vai sair amanhã à noite, vamos deixar que descanse ali mesmo, para se refazer da animação de ontem.

Também o português não o tinha visto. Tampouco o casal chileno. E a Marquesa:

- Ele vai acordar com estas músicas. Daqui a pouco aparece aqui para se despedir. Vou sentir a falta dele. Eu só, não: todos nós. Um companheirão. Meu sobrinho ficou impressionado com as jóias dele. E eu também. Vão dar mesmo uma linda exposição. Nunca imaginei que, por aqui, sem uma vida social refinada, houvesse tantos adereços, tantos colares, tantas pulseiras de ouro, cravejadas de pedras preciosas. Da gente ficar de olhos arregalados.

Lá embaixo, a olhar para o navio, sempre de olho na escada do portaló, o fiel Elesbão, compenetrado de seu papel de mordomo, tentava em vão avistar o Benevenuto, para lhe dizer, tranqüilizando-o, que estava ali, pronto para recebê-lo. E mais: tinha trazido consigo outro homem de confiança, além do motorista, o Elisiário, para que lhe dessem a necessária cobertura, com tanto bandido na rua se fingindo de folião, para o transporte das jóias da Tia Eudóxia, entre a Praça Mauá e a Avenida Atlântica.

A própria Tia Eudóxia, na véspera, tinha telefonado ao Elesbão:

-       O Benevenuto já está indo para aí. Vai buscá-lo. E leva contigo mais alguém. Estás me entendendo, não? A carga é preciosa. O Benevenuto confia em todo mundo. Vai buscá-lo no navio. Nessas horas, com tanto assalto, tanto roubo, todo cuidado é pouco.

Houve um momento em que o Elesbão supôs que era o patrão que vinha descendo a escada devagar. Correu para perto do navio, chamou o Elisiário, que tinha o olhar num bloco de sujos, na Avenida Rodrigues Alves:

-       Aqui, aqui. Do meu lado. Grudado em mim. Sem arredar.

Mas o homem, com o mesmo corpo do Benevenuto, o mesmo jeito gracioso, e também moreno, só tinha dele o feitio, e era vesgo, e tinha um ar debochado. Elesbão, que havia acenado para ele, olhou-o por cima do ombro, já ao meio da escada, e voltou a ficar ao sol, com a vista levantada para o portaló do navio:

-       Se esse não era ele, Elisiário, o outro, que vier, é, com certeza. Continua perto de mim.

Pela manhã, não contente de ter telefonado na véspera, Tia Eudóxia tornara a lhe falar, abafando a voz:

- Uma pergunta, Elesbão: você, aí, mandou reforçar a fechadura da porta? O apartamento tem sinal de alarme? Como é que não tem, Elesbão? Onde é que você tem a cabeça?

E ele, tranqüilizando-a:

- Durma sossegada. O edifício é uma verdadeira fortaleza. Só entra aqui quem a gente quer. Tudo é controlado pelo olho mágico. Lá embaixo, na portaria do prédio, há um segurança, dia e noite. Até o elevador tem fechadura própria: só abre quem for do apartamento. Sim, sim, conheço o doutor como a palma de minha mão. Muito ordeiro, muito organizado, mas confiando em todo mundo. Eu, aqui, tomo conta dele. Sou eu que fecho e abro o apartamento. Muito segredo de gaveta só eu sei. O Doutor não se cansa de dizer que, comigo no apartamento, ele dorme e viaja sossegado.

E quase a ponto de deixar sentir à velha que não estava gostando:

- A senhora também precisa confiar em mim. Confiança total.

Agora, ali no Cais do Porto, vendo o tempo passar sem que o patrão aparecesse, bem vestido, bem penteado, Elesbão começava a inquietar-se. Tia Eudóxia, com seus receios, teria tido alguma premonição? Seria possível, meu Deus? Não, não, tudo daria certo. E numa determinação imediata:

- O melhor que eu faço é ir ao navio. Subo, falo com o Comandante, e ponho tudo em pratos limpos. Em cinco minutos, o Doutor aparece.

- Aparece.

- Por que não?

Identificou-se ao pé da escada, e foi subindo. Perto do último degrau, alarmou-se. E se o Doutor, em vez de esperar por ele, tivesse ido para Copacabana, logo que o navio atracara? Apressou a subida, aflito. E tornando a dominar-se já agora no patamar:

- Antes do navio atracar, já eu estava aqui. Por esta escada, ele não desceu.

Teria descido pela prancha da popa, por onde os carregadores subiam e desciam as bagagens? Sim, podia ser. Enquanto ele, Elesbão, olhava para a escada do portaló, por onde desciam os passageiros, o Dr. Benevenuto, com certeza, havia descido pela prancha, acompanhando o carregador com a bagagem.

E aborrecido, enquanto cocava a nuca:

- E eu aqui, bestando.

O Comissário, por trás do balcão da cabine, procurou tranqüilizar o Elesbão, que parecia nervoso, querendo tirar a limpo se o seu patrão tinha desembarcado ou se ainda estava no navio:

- Deve estar aqui. Muita gente, hoje, deixou de ir à mesa do café e à mesa do almoço, para continuar dormindo, depois da festa de carnaval, na noite de ontem.

E olhando o painel das chaves:

- Se ele tivesse desembarcado, a chave do camarote estava ali. Não está. E que é que isso quer dizer? Que o seu patrão continua dormindo, sem se dar conta de que o navio j á está no Rio de Janeiro.

E tirando do bolso da calça o chaveiro onde trazia a chave-mestra:

- Vamos lá.

Tranqüilo, rodando no dedo indicador a corrente do chaveiro, adiantou ao Elesbão, que parecia mais aflito, na expectativa de um contratempo mais sombrio:

- Ele sabe que o navio vai permanecer aqui até amanhã à noite. Pode dormir à vontade.

À porta do camarote, olhou para o Elesbão com ar de riso, tardando introduzir a chave no orifício da fechadura:

- O carnaval, aqui, parece que está mais animado este ano do que no ano passado. E as músicas são mais bonitas.

Enfiou a chave, rodou-a. E antes de torcê-la de novo, para retrair a lingüeta do trinco:

- O senhor, pelo jeito, não gosta de carnaval. E o Elesbão, nervoso:

- Não, não gosto.

O Comissário descerrou a porta, empurrou-a para dentro do camarote, chamou pelo Benevenuto, quase ao mesmo tempo em que o Elesbão, desconfiado, aflito, lhe passava à frente, guiado pela claridade da lâmpada subitamente acesa. E vendo o camarote arrumado e limpo, com a mala grande sob o beliche, o costume cinza do patrão pendente do cabide do guarda-roupa, disse ao Comissário, alarmado, que também olhava em volta, sem compreender:

- Não está o Doutor, não está também aqui a mala das jóias!

E patético, como diante do irremediável:

- Uma coisa me dizia, dentro de mim, que alguma coisa grave ia acontecer com o Doutor. E agora, Comissário? Chame a Polícia, manda examinar todo o navio, com a maior urgência, para ver se ele está aqui, se há uma pista qualquer para sabermos onde ele está. E depressa. Não podemos perder tempo! E o Comissário, cauteloso:

- Não toque mais em nada, por favor. Vou chamar a Polícia imediatamente. Não saia daqui.

E com um lenço aberto, que lhe resguardava a mão nervosa, postou-se à entrada do camarote, fez sair o Elesbão, puxou a porta, girou-lhe a chave, intrigado, atônito, e seguiu corredor afora, para dar conhecimento do fato ao Comandante, chamar a Polícia, saber o que se havia passado, examinar as hipóteses do crime de morte ou do seqüestro, tirar a limpo o sumiço da mala, levantar todo o seu conteúdo, ouvir os passageiros e a tripulação, como a debater-se de repente com as rajadas e os rodopios de um vendaval.

Na subida da escada, suspirou, passou a mão na cabeça, apoiou-se no corrimão, galgando depressa os degraus, tomado de uma súbita amargura, que acentuou no seu rosto o sulco das rugas:

- Tudo ia tão bem, sem um problema a bordo, e agora, sem quê nem mais, este mistério, este caso absurdo, depois de uma noite descontraída em que tudo deu certo! Já sei que vou me aborrecer. Há dez anos, tivemos aqui um problema parecido, com a senhora que apareceu morta na piscina de bordo, e só eu sei as dores de cabeça que tive, só porque eu tinha sido a última pessoa com quem ela conversou.

O Elesbão, à noite, ligou para a velha Eudóxia:

- Estou muito aborrecido, D. Eudóxia. E só lhe telefono porque sei que é meu dever. A propósito de seu sobrinho.

Tia Eudóxia, que viera ao telefone de mau humor, a indagar a si mesma o que é que o burro do Elesbão quer comigo, ergueu a voz, apreensiva, quase num grito:

- E houve alguma coisa com ele, Elesbão?

Elesbão fez um silêncio, como se buscasse as palavras mais adequadas à má notícia:

- Infelizmente houve, D. Eudóxia. Eu sinto muito lhe dizer. Mas não posso deixar de dizer tudo à senhora, mesmo sabendo que estou falando com uma pessoa que já fez oitenta anos.

Tia Eudóxia ergueu a voz com tal furor que por pouco se faria ouvir, de sua fazenda ao Rio de Janeiro, sem recorrer ao telefone:

- Diga logo o que houve, seu idiota, em vez de me deixar aqui em cima de brasas, com esses seus mistérios. O Benevenuto matou-se? Ou foi morto?

E o Elesbão, em tom pesaroso:

- Sumiu, D. Eudóxia! E a velha, exaltada:

- Mas sumiu como, Elesbão? Outro silêncio.

A velha, noutro berro:

- Fala, idiota! Ou eu vou daqui e te racho a cabeça com um pau!

Elesbão soube ser compreensivo:

- Pode dizer o que quiser, D. Eudóxia. A gente está neste mundo para sofrer. E eu estou sofrendo como um desesperado. Fui ao Cais do Porto receber o Doutor. Eu e um amigo, que conhece também o Doutor. Qual não foi a minha surpresa quando todos os passageiros desceram do navio, menos o seu sobrinho. Fui lá em cima falar com o Comandante. Acabei falando com o Comissário. O Comissário foi comigo ao camarote do Doutor. Mas o Doutor não estava lá. Só estava a mala grande, que ele levou daqui. Armei um rolo dos meus. E exigi do Comandante: - O senhor tem de dar conta de meu patrão. Isso não pode ficar assim. E eu não saio daqui enquanto o senhor não me disser o que aconteceu com ele. -Aí veio a Polícia. Lá fora, o berreiro do carnaval. E no salão do navio, eu, o Comandante, o Comissário, o Delegado, mais dois homens da Polícia. Tudo quanto se apurou, até a hora em que eu vim para casa chorar, foi o depoimento de um marinheiro, que ouviu uma coisa cair na água, ti-bum!, em plena madrugada, quando havia a bordo um baile de carnaval.

Outro silêncio.

E Tia Eudóxia, falando devagar:

- Ainda estou no telefone, Elesbão. Tenho uma pergunta muito importante a te fazer. Não me disseste nada sobre a mala das jóias. Sumiu também, Elesbão?

E o Elesbão, após outro silêncio:

- É como diz, D. Eudóxia. Sumiu o Doutor e sumiu amala das jóias. Como, não se sabe até agora.

Tia Eudóxia foi rápida na sua decisão:

- Eu vou até aí, Elesbão. Amanhã cedo estou chegando.

Elesbão, na manhã seguinte, foi apanhar pessoalmente o jornal na banca da Rua Constante Ramos. E não esperou voltar ao apartamento para ler, na primeira página, em destaque, a longa reportagem sobre O mistério do camarote vazio, em que figurava seu nome.

Parou na esquina da Avenida Atlântica fruindo a emoção daquela glória imprevista. Sim, era ele mesmo, Elesbão, nascido no Crato, mordomo, cinqüenta e três anos, que ali estava, como a pessoa que havia denunciado o fato e alertado a Polícia. O repórter acentuava: "Sem a ação enérgica deste nosso patrício, visivelmente revoltado com o descaso a que estava relegado o duplo crime -, com a morte ou seqüestro de uma conhecidíssima figura de nossa sociedade e mais o roubo de toda uma riquíssima coleção de jóias antigas -, o navio estrangeiro já teria zarpado de nosso porto, como se nada houvesse acontecido".

Voltou à banca de jornal, comprou mais quatro exemplares: um, que guardaria consigo; outro, que mandaria para os parentes, no Crato; outro mais, para passar às mãos de Dona Eudóxia, e outro mais, como reserva suplementar, prevendo a hipótese de ter de mandá-lo a mais alguém que, no momento, não sabia ainda quem fosse.

Na portaria de seu edifício, já o porteiro tinha lido a reportagem:

- Foi o nosso síndico que leu primeiro. Leu, e me fez ler. Parabéns, Elesbão. Há males que vêm para bem.

E como o síndico ia chegando da praia, no seu fresco calção de banho, e outros moradores iam também saindo ou voltando, Elesbão sentiu à sua volta um círculo de curiosos, entre os quais o sisudo general do quarto andar, que lhe pediu contasse o que se havia passado.

E o Elesbão, instalado de repente na sua importância:

- Vi logo que havia ali qualquer coisa estranha que era preciso esclarecer. Meu anjo da guarda me dizia: - Fala grosso, Elesbão. - E eu reclamei: - Quero saber onde está o Doutor. Vocês, aqui, têm de dar conta de meu patrão. Nem que eu tenha de ir ao fim do mundo.

E o dentista do nono andar, que sempre tinha uma objeção ou um problema novo nas reuniões do condomínio:

- E você entendia o francês do Comissário, Elesbão?

- O francês, não; mas o espanhol, sim. Trabalhei onze anos na casa de um argentino, e arranho bem o meu espanhol. Além disso, sou vivo. Ninguém me passa para trás.

E por mais de hora contou o longo tempo em que, ouvindo as cantigas de carnaval da Praça Mauá, ficara à espera da Polícia Marítima, depois da outra Polícia, e do depoimento que tivera de repetir, e tralálá, minha Nossa Senhora, um horror, e olham falando de cima, e grosso, para confundir os gringos, para pôr tudo em pratos limpos.

De modo que, por volta do meio-dia, quando a Tia Eudóxia, ainda maravilhada com a viagem de avião, na Ponte Aérea entre o Rio e São Paulo, entrou no apartamento do sobrinho, havia ali um rebuliço de pessoas estranhas, de luzes acesas, de máquinas assestadas sobre o Elesbão maquilado e importante, no próprio gabinete do Benevenuto, e que estava sendo ouvido para um programa de televisão.

Dizia ele, repimpado na cadeira alta:

- Camarote vazio é exagero: havia ali a mala grande do Dr. Benevenuto, como foi dito no jornal. O que não disse é que, no guarda-roupa do camarote, havia também o costume cinza que eu mesmo havia separado para ele descer aqui no Rio.

E lembrando-se:

- E uma coisa que eu não disse e estou me lembrando agora: por uma vista rápida da mala, com uma chavinha igual à do Dr. Benevenuto, e que está neste meu chaveiro, dei por falta da fantasia de Pierrô, que ele naturalmente vestiu para o baile de fantasia que houve no navio.

E o repórter, nervoso com o detalhe importante:

- Espera um momento, meu chapa. Repete isso devagar.

Foi nesse momento que, pela porta que dava para o elevador, entrou ali Tia Eudóxia, magra, olhos pisados, carregando a sua vasta bolsa, e que logo parou, como se estivesse em apartamento errado.

E ao dar com o Elesbão, no escritório do Benevenuto, como se fosse o dono da casa, gritou para ele, exaltada:

- Que confusão é esta, Elesbão? E em que país estamos para que te instales na cadeira do Benevenuto como se fosses agora o dono da casa? Acaba já com isto. Põe daqui para fora toda esta gente. Lava a cara e vem conversar comigo.

Mas já as câmaras de televisão convergiam sobre ela, ofuscando-a, irritando-a, confundindo-a, e ela enrijeceu, dura, ao fundo da sala, com a cólera a lhe subir ao rosto enrugado:

- Não quero ninguém aqui. Ponham-se daqui para fora. Já e já.

E a despeito dos flashes que se repetiam, e da câmara que continuava a convergir sobre a sua figura magra e ríspida, a velha reagiu, postou-se na porta, sempre aos gritos, protestando, e foi esvaziando a sala, com a mesma energia, com a mesma voz de mando, até que só ela e o Elesbão restaram no apartamento fechado.

E ele, a esfregar uma toalha no rosto para desfazer a maquilagem:

- Eu, por mim, não queria falar para a televisão, Dona Eudóxia. Deus é testemunha. Mas jornalista é teimoso. Tanto teimaram comigo pelo telefone, que eu tive de ceder. Deu nisso. Desculpe.

A velha, enquanto tratava de controlar-se, ocupando as mãos dinâmicas a esvaziar os cinzeiros repletos:

- Vai te vestir, Elesbão. Temos de ir ao navio agora mesmo. No caminho, vais me dizer as novidades. Prepara um dos quartos para o Frederico, que vem a caminho daqui, com o meu automóvel. Tudo rápido. Já.

Tia Eudóxia, na sala de estar do navio transformada em sala do inquérito, com o Delegado, os detetives, os guardas, o escrivão, e mais o advogado do Consulado francês, e o próprio Cônsul, não conteve a sua irritação:

- E o senhor vai deixar este navio sair do Rio de Janeiro sem que o Comandante me devolva o meu sobrinho, ou diga ao menos onde ele foi parar?

O Delegado afastou as mãos, erguendo o olhar para a velha:

- Nada foi apurado contra o Comandante e a tripulação, minha senhora. Nada. Rigorosamente nada. A hipótese a que chegamos até agora, depois de ouvir vários passageiros, depois de ouvir o pessoal de bordo, depois de examinar meticulosamente o camarote, é que seu sobrinho, que tinha um gênio extravagante, com o gosto de fantasias de luxo, com inclinação para ser diferente, de se fazer notado, teve outro acesso de paranóia e decidiu matar-se, atirando-se ao mar e levando com ele as jóias da família, para criar todo este rebuliço, que está hoje nos jornais, nas revistas, nas rádios, nas televisões do mundo inteiro, como um enigma, como um mistério. E a velha, intransigente:

- E o senhor não acha, Delegado, que tudo quanto me disse é rematada besteira? Pois se não acha, fique sabendo que é. Meu sobrinho era meio tanta, reconheço, mas não era tão maluco a ponto de jogar a vida fora, com o tesouro que eu lhe botei nas mãos. Não, não era. Tinha meu sangue. Sabia onde punha o nariz.

Levantou-se para ir embora. E de pé, retardando o primeiro passo:

- No fim de tudo, perco o meu sobrinho, perco as minhas jóias, e estou vendo que perdi meu tempo e meu latim em querer ajudar a Polícia, em conversar com o Comandante, em olhar o camarote, em fazer também o meu inquérito, para dar nesta água de barrela: o navio liberado para ir embora, o meu sobrinho sumido, sumidas as minhas jóias, e eu que volte para a minha fazenda de mãos abanando.

O Delegado replicou, em tom sereno:

- Mas o inquérito ainda não está encerrado. Vou mandar fazer outras diligências, vou novamente esmiuçar tudo, vou apelar para a Polícia francesa, vou levar o caso à Interpol para ver se há uma pista, uma dúvida, um fio que se possa puxar.

A velha sobraçou a bolsa. E estendendo a mão firme:

- Eu, por meu lado, não vou sossegar. Vou também me mexer. Vou prosseguir nas minhas dúvidas. Até pôr o preto no branco. Até agarrar o bandido pela gola. Porque, em tudo isto, há um bandido que os senhores não descobrem, e que eu vou descobrir. Vou.

O Delegado, também de pé, retendo-lhe a mão por um momento:

- E conte conosco. Já lhe dei meu telefone. Me fale.

Tia Eudóxia recolheu o braço e foi saindo devagar, pesarosa, revoltada, não sabendo o que fazer de si mesma. Naquele dia mesmo voltaria à sua fazenda. Para se consolar, de noite, nas suas vigílias, com o cri-cri dos grilos, a tabuada dos sapos nas margens do rio, o tuco-tuco do motor da luz elétrica.

E suspirando:

- Para meu fim de vida, não há dúvida: é um remate meio besta. Pensando bem, eu merecia coisa melhor.

No convés, o velho fotógrafo de bordo, que em parte lhe ouvira a conversa com o Delegado e se compadecera da senhora de oitenta anos, que sabia teimar, lutar, discutir, sem que o tempo lhe houvesse atenuado as energias, aproximou-se dela, amável, afetuoso:

- Posso-lhe fazer presente destas fotos, minha senhora? São as fotos de seu sobrinho, anteontem, aqui no navio.

Tia Eudóxia recebeu as fotografias, afastou a mão para olhar melhor, reconheceu o Pierrô com que o pobre do Benevenuto havia ganho o primeiro prêmio do concurso de fantasias de luxo, no penúltimo carnaval do Rio, no baile do Copacabana Palace, e se emocionou.

E ia agradecer a gentileza do fotógrafo, depois de outro suspiro, quando o homem lhe perguntou:

- Gostou, senhora?

- Sim, gostei. Obrigada.

E ele, solícito:

- Tenho um maço de fotografias de toda a festa. Do começo ao fim. E há outras com o mesmo Pierrô. Preparei uma coleção completa para um passageiro, e posso-lhe ceder. Só cobro o material.

E Tia Eudóxia, hesitando em aceitar:

- E que é que o senhor vai dizer ao passageiro que lhe encomendou a coleção?

- Faço outra para ele.

E ela, ao fim de um silêncio:

- Se pode ser assim, fico com a coleção.

Ao pé da escada do navio, aceitou a mão solícita que o Elesbão lhe estendia. Trazia agora na bolsa, em forma de fotografias, a derradeira noite do pobre do Benevenuto.O tempo haveria de consolá-la pela morte do sobrinho. Só não a consolaria pela perda das jóias da família.

E disse ao Elesbão, que em silêncio caminhava ao seu lado, com ar pesaroso:

- Amanhã mesmo volto para a minha fazenda. Aqui não tenho mais o que fazer. Isto é a vida, Elesbão.

Embora não chovesse, havia lá fora uma ventania de temporal. Iria chover, certamente, no correr da noite. Por enquanto, só se ouvia o gemido das árvores torcidas pelo vento. E este mesmo vento, por arrancadas súbitas, sibilava por baixo das portas, sacudia a fileira de janelas da imensa varanda, assobiava pelo vão dos beirais, esfuziante, agressivo, enquanto o motor da luz elétrica continuava o seu tuco-tuco teimoso, à revelia do mau tempo.

- Vai chover, e muito - vaticinou Tia Eudóxia, olhando a noite escura por trás da vidraça, e sem disposição para o jogo de paciência com que distraía a vigília antes de seu sono chegar.

Passara boa parte do dia a lembrar-se do Benevenuto. Menino, correndo naquele quintal. Rapazinho, no sofá da sala, de pernas cruzadas, nas férias do internato, em Lausanne, no mesmo colégio misto em que ela própria estudara, no fim do outro século. Depois, já homem feito, e com a teimosa mania das fantasias de luxo, pelo carnaval.

Nunca pudera atinar de onde viera no sobrinho esse pendor extravagante, que o levava a entender de bordados, de mantos, de paetês, às voltas com alfaiates e costureiras, tecidos finos, adornos, enciclopédias, livros de história, tudo para acabar nos desfiles do Teatro Municipal, no Rio de Janeiro, ou, também no Rio, no Clube do Monte Líbano, no Teatro João Caetano, com direito a ser capa de revista, sempre que alcançava o primeiro lugar, deixando de cama os seus rivais.

E ainda olhando a noite, com a impressão de que a chuva começara a cair, fustigando as folhas das árvores, em volta da casa:

- É curioso: e tudo para acabar numa festa de carnaval, dentro de um navio, como se o carnaval representasse a sua glória e o seu fim.

Já não tinha esperanças de ver elucidado o mistério do desaparecimento do sobrinho, nem tampouco - o que profundamente lhe doía - o de suas ricas jóias. Dias antes, o Elesbão lhe mandara o recado do Delegado: nenhuma pista, nenhuma esperança, e com respostas evasivas, tanto da Scotland Yard, em Londres, quanto da Interpol, na Europa e nos Estados Unidos, e ainda da Polícia francesa, em Paris, em Marselha e Lyon. Todas estavam atentas a vendas de jóias antigas, a exposições, a desfiles de moda. Nada. Rigorosamente nada. Debalde a Interpol, reunindo cento e vinte cinco polícias de todo o mundo, havia acompanhado, até a última semana, os passageiros e a tripulação do navio, incluindo o próprio Comandante.

E a velha, recriminando-se:

- A culpada mesmo sou eu. Que é que eu tinha de chamar aqui o Benevenuto? E por que motivo lhe confiei minhas jóias?

E dando as costas à janela, ouvindo, mais forte, o ruído da chuva:

- Agora é tarde, Inês é morta. Não adianta passar a tranca na porta depois da casa arrombada.

E já ia recolher-se ao seu quarto, para ouvir no toca-fitas um de seus concertos prediletos, quando se lembrou da coleção de fotografias que comprara ao fotógrafo, no navio. Onde as deixara? Trouxera-a na bolsa até a fazenda. E depois?

- Já sei, já sei. Estão no gavetão da cômoda.

E a saudade do sobrinho, e mais a tristeza de se ver sozinha naquela noite de chuva, e ainda uma ponta de magoada revolta por nada ter feito para encontrar o culpado, levaram Tia Eudóxia a entrar no quarto, a abrir o gavetão, a tirar dali o pacote das fotografias para se distrair com elas, melancolicamente, sozinha, na noite friorenta e comprida, já agora clareada pelos relâmpagos repentinos.

Pensou em espalhá-las na mesa do cofre de ferro onde por tantos anos guardara as jóias, e reagiu:

- Não, aquela mesa é pequena. Preciso de uma mesa grande.

E tornou à varanda, reanimada por uma ponta de cólera contra a maldade humana - que mata e rouba, sem remorsos, como se o crime fosse um prêmio ou uma recompensa.

Ali, na vasta mesa de vinte e quatro lugares, onde outrora reunia os fazendeiros dos arredores, para festejarem a alta do café, espalhou as fotografias, sob o lustre aceso, e ficou a rir e a sorrir, às vezes a contrair o rosto, como no esboço de uma censura, até que teve a sua atenção despertada pelo grande relógio do Salão de Festas, presente em todas as fotografias, graças à sua posição privilegiada dominando todo o recinto.

Por ele podia ver o momento exato em que o Benevenuto, no seu Pierrô premiado, havia chegado. Depois, o Benevenuto num cordão; o Benevenuto com a Marquesa; o Benevenuto com o Comandante; o Benevenuto ao receber o prêmio do navio; o Benevenuto dançando; o Benevenuto segurando o nariz postiço do Comandante; o Benevenuto com uma taça de champanhe; o Benevenuto com um copo de uísque, alegre, risonho, feliz, sem imaginar que, pouco depois, estaria morto. E quem o teria matado? Quem o teria matado para lhe roubar a mala das jóias? Quem?

E redobrando de atenção, curvada sobre as fotografias:

- Quem o matou deve estar aqui. E há de ter descido no Rio de Janeiro, trazendo a mala. Sim, trazendo a mala, no tumulto da descida confusa, com as músicas de carnaval nos alto-falantes da Praça Mauá, com o frenesi dos turistas querendo ver o carnaval, com os carregadores entrando e saindo, na prancha de madeira da popa. Sim, devia ter descido ali. Do contrário, se fosse um tripulante, se fosse outro passageiro, a mala teria sido encontrada, nas várias buscas por todo o navio, camarote por camarote, sem esquecer os porões, e até mesmo as cabines do Comandante, do Comissário e dos dois pilotos. Tudo vasculhado. O criminoso, antes que o Elesbão houvesse posto a boca no mundo, dando por falta do patrão, teria desembarcado com toda a calma, com a sua mala, com a mala das jóias, e desaparecido na confusão da cidade, sem que ninguém desconfiasse ou maliciasse. E o baque que um dos tripulantes dissera ter ouvido pela madrugada, como de uma coisa lançada ao mar? E a velha, alvoroçada:

- Muito simples, muito simples: matou o Benevenuto pelas costas, atirou-lhe o corpo na água depois de tirar-lhe a chave do camarote, e foi buscar a mala, que passou para o seu próprio camarote.

E como a inteligência de Tia Eudóxia, despertada pela iluminação de seu raciocínio terrivelmente lúcido e lógico, ainda fosse mais adiante, a velha deu um murro na mesa:

- E foi um homem forte, decidido, capaz de pôr o Benevenuto nas costas e atirá-lo do convés do navio!

Tudo claro, clarinho, como se ela estivesse a ver a seqüência do crime, e tornando às fotografias, selecionou os homens fortes, separou-os do conjunto, até que se lembrou de ordenar as fotografias obedecendo à sucessão do tempo marcado pelo relógio. E ia dizendo, à medida que as punha no mesmo bloco:

- Estas, às dez e trinta. Estas, às dez e quarenta. Estas, às dez e quarenta e cinco. Estas, às onze horas. Estas, à meia-noite.

Uma por uma, aglutinou-as no momento respectivo. E com outro murro na mesa, querendo rir:

- Aqui está o Benevenuto saindo da festa: duas horas e oito minutos. Logo depois, às duas horas e nove minutos, está saindo este homem forte, espadaúdo, com uma máscara de rinocerante.

Nas demais fotografias, o Benevenuto não aparecia. Não aparecia também o homem forte. Mas este voltava, às três e dois minutos.

E Tia Eudóxia, querendo rir, querendo gritar:

- Foi ele, foi. E matou o Benevenuto entre as duas horas e nove minutos e três horas e um minuto!

A casa, isolada, com sete palmeiras imperiais à frente, da mesma altura, com os mesmos leques verdes, era guardada por cinco cães negros, que latiam e arremetiam ao menor ruído estranho.

Cá embaixo, precedendo o caminho de pedras que levava à casa de dois pavimentes, circundada por um varandão espaçoso, o portão de madeira de lei, sempre fechado, dispunha de um sino de bronze, com uma corrente de ferro para vibrar-lhe o badalo sempre que alguém queria entrar. Logo os cães saltavam para o portão, arremetendo, ladrando, até que aparecia alguém da casa para atender.

E foi essa corrente que Tia Eudóxia puxou com força, logo que desceu de seu carro pré-histórico, na estrada sinuosa e deserta que liga Petrópolis a Teresópolis.

Na véspera, assim que chegara ao Rio de Janeiro, tinha ido ver o Delegado, que logo viera ao seu encontro, sem notícias para lhe dar.

E ela, eufórica:

- Eu, ao contrário, tenho notícias para o senhor. Mas devagar. Primeiro, preciso de sua ajuda para uma diligência que eu mesma quero fazer. Só lhe peço que me dê a necessária cobertura. E ele, animando-se:

- Esclareceu o mistério, Dona Eudóxia?

- Estou no caminho.

E ela, mostrando-lhe a fotografia que tirara da bolsa:

- Lembra-se deste senhor? Foi passageiro do Pasteur, com o meu sobrinho. Penso que desceu aqui no Rio.

- Sim, sim, me lembro perfeitamente. Ele já havia desembarcado, com outros passageiros que saltaram aqui, quando iniciamos o processo. Não cheguei a entrevistá-lo. Ele próprio veio aqui, dois dias depois, para qualquer esclarecimento que se fizesse necessário. Prestou-me um depoimento de rotina, e foi embora. É estrangeiro, não sei se polonês ou sueco. Está no Brasil há muitos anos. Ainda hoje, não fala direito o português. Tem uma casa entre Petrópolis e Teresópolís. Quando moço, teve neurose de guerra, disse-me ele. Deixou-me o cartão de visita e o telefone. Para o caso de ser preciso voltar aqui.

E resumindo:

- O que ele me disse não esclareceu nada. Disse que ficou na festa do navio até de manhã. Saiu um pouco, para ir ao camarote tomar um remédio. O remédio que sempre toma para a neurose. Voltou às três horas, pouco mais ou menos. De vez em quando faz uma viagem. Quase sempre no Pasteur. O Comandante, que o conheceu a bordo, gosta dele. E o põe na sua mesa, sempre que ele viaja. Caladão. Uma semana depois de ter vindo aqui, tornou a me falar, dessa vez por telefone. Para saber se eu o tinha chamado. Eu lhe disse que não. Ele agradeceu e desligou.

Tia Eudóxia ficou um momento calada, olhando para o Delegado, como a ponderar, a refletir. E prosseguindo na determinação que a trouxera até ali:

- Eu vou à casa desse homem. Pode ser que essa história do remédio para a neurose de guerra seja apenas uma desculpa. O que desejo do meu bom amigo é que me dê dois ou três homens, bem armados, para a eventualidade de eu precisar do serviço deles. Se a casa aonde vou fosse perto de minha fazenda, eu não pedia nada. Lá, tenho gente de minha confiança. Aqui, o caso muda de figura.

E o Delegado, oferecendo-se:

- Nesse caso, quem vai sou eu.

- O senhor, não - recusou a velha. - O homem já o conhece. Vou como uma estranha. Para não dar na vista. E no meu velho carro, com o meu próprio motorista. Amanhã, pela manhã. Cedo.

Agora, ali estava, vendo os cinco cachorros pularem à sua frente, do outro lado do portão. Na volta da estrada, fizera parar a patrulhinha com os três policiais muito bem armados. O fordeco pré-histórico viera até ali, com o Frederico na direção, debaixo do seu velho chapéu mexicano.

E a velha, para o homem de pernas tortas que a olhava em silêncio, atendendo ao badalar do sino, cercado pelos cães:

- É esta a casa do Senhor Petersen?

E o próprio Senhor Petersen, grandalhão, forte, aproximando-se, mais atraído pelo carro velho que pela velha senhora:

- Sim, esta mesma. E o Senhor Petersen sou eu.

Tia Eudóxia, serena, procurou representar com perfeição o seu papel, alongando o braço para dentro do portão:

- Muito prazer, Senhor Petersen. É bem possível que eu venha a ser sua vizinha. Mais adiante daqui, na direção de Teresópolis, há uma propriedade à venda. Estou pensando em comprá-la. Mas não vou vê-la nem fecho o negócio sem antes ouvir um vizinho como o senhor.

E o Petersen:

- Já sei qual é a propriedade. É uma velha casa, com escadaria na frente, dois pavimentos, um belo terreno, com um riozinho por trás. É boa, mas é cara. Faça uma oferta menor.

E a velha, recolhendo o olhar cauteloso:

- O senhor, pelo que vejo, tem mesmo uma belíssima casa. Falaram-me dela em Petrópolis. Um dia destes, posso lhe pedir para vê-la?

E Frederico, de cabeça descoberta, torturando a aba do chapéu:

- Peça para ver agora, Dona Eudóxia. O Senhor Petersen não lhe vai dizer não.

E para o Senhor Petersen, que se limitara a ouvi-lo:

- Não me leve a mal, senhor. Conheço bem minha patroa. Se ela não olhar a sua casa agora, não vai mudar de assunto até vir de novo aqui.

E o Petersen, enquanto o homem das pernas tortas continha os cães, segurando dois pela coleira:

- Posso olhar primeiro o seu carro? Gosto desses carros antigos. São ótimos. Motor simples, não enguiçam nunca. Quando moço, tive um carro igual a esse. Aqui, tenho feito tudo para ver se compro um, mas não encontro à venda. Quem tem, não quer vender.

E a velha, com ar contente:

- O meu, pelo tempo, não é mais um carro - é uma pessoa da família. Está comigo há quarenta e dois anos. Firme. Bom de estrada. Pouco consumo de gasolina. Perfeito. Herdei de meu pai. E é com ele que espero ir à missa de meu centenário.

E o Petersen, abrindo a folha do portão:

- E vai. Fique certa que vai.

- Deus o ouça, Senhor Petersen.

E esperou, no portão, olhando as árvores, as palmeiras, as capistranas do caminho, que ele olhasse o Ford uma vez, duas, três, até que, de volta, após felicitá-la pelo carrinho, propôs-lhe:

- Se algum dia quiser se desfazer dele, me fale. Lá em cima, vou lhe dar meu telefone. Basta me falar para eu ir ter com a senhora.

E passando à frente:

- Agora, venha olhar minha casa.

Ela olhou a varanda, a sala, os corredores, admirando os velhos móveis, os velhos quadros, os tapetes antigos, como se estivesse a voltar atrás, na marcha do tempo. Aqui, uma arca do século XVII. Ali, um consolo do tempo do Príncipe Regente. No bengaleiro, as bengalas do Padre Feijó, de José Bonifácio, do primeiro Imperador. Tudo bem cuidado, como nas dependências de um museu. Noutra sala, relíquias da época de Napoleão Bonaparte. Mais adiante, uma cadeira de Luís XVI. Em perfeito estado, um oratório atribuído ao Aleijadinho, com a pintura da época.

E a velha, entusiasmando-se:

- Estou maravilhada, Senhor Petersen. Sou capaz de fazer aqui, se for mesmo sua vizinha, a festa do meu centenário, incluindo a missa.

E ele, feliz:

- Sabe que tenho aqui uma linda capela? Venha vê-la.

Não era mais o morador carrancudo, refratário à admiração alheia. Mas o colecionador desvanecido, que recolhe o elogio alheio como uma prova de identidade.

Foi ele que abriu a porta da capela, e pôs-se a louvar o teto, a via sacra, o altar, as imagens, enquanto a velha resvalava o olhar pela sacristia pequenina, toda em mármore róseo, e em cuja parede central se alinhavam cinco catacumbas, duas das quais com inscrição em latim. A quinta, perto do chão, sem inscrição funerária, parecia ter sido utilizada em data recente, com o mármore da futura lápide a exibir o cimento branco que a fechara. E Tia Eudóxia, sempre maravilhada:

- Gabo-lhe o gosto, Senhor Petersen. Nunca vi nada igual ou parecido. Sua casa é um pequeno palácio. E esta capelinha - soberba!

Na descida da rampa, perguntou-lhe:

- Aqui, com este clima, com esta paz, com este ar puro, vai-se aos cem anos sem dificuldades. A coisa mais difícil de ser vista, para estas bandas, é um enterro.

E o Petersen, entusiasmando-se:

- Desde que aqui estou nunca fui ao enterro de ninguém.

E a velha, despedindo-se:

- Meus parabéns, Senhor Petersen.

E no carro, para o Frederico, assim que este se orientou na direção da patrulhinha:

- A mala de minhas jóias está naquela catacumba.

Frederico riu alto, levantando na frente a aba do chapéu. Mas recolheu depressa o riso, ao ver que a velha Eudóxia, ao seu lado, ia beijando, emocionada, o crucifixo de prata de seu terço.

Afinal, depois de tantos dias de interrogatórios, de depoimentos, de acareações, o mistério chegava a seu termo, devidamente elucidado, e com a Tia Eudóxia na posse das jóias da família.

Sem querer, ficara famosa, falando aos jornais, falando à televisão, comentada, discutida, louvada por sua astúcia e por sua intuição, admirada também por sua energia e por seu destemor, sem se lembrar de seus oitenta anos, e ela própria ria alto, no apartamento da Avenida Atlântica, ao reparar no ar de assombro com que o Elesbão a olhava, não querendo acreditar que aquela velha magrinha, sequinha, estava de pé às cinco horas da manhã, batendo-lhe à porta, para que fosse comprar os jornais, acentuando:

- Todos, Elesbão.

E o porteiro da noite, lá embaixo, ao reparar na cara de sono do velho mordomo:

- Madrugando, Elesbão?

- É a patroa que me põe para fora da cama. A velha não dorme. Deita à meia-noite, fica vendo a televisão ou ouvindo rádio, e às quatro da manhã já está no banheiro se arrumando. E ainda grita comigo, me chamando de preguiçoso. A mim, que não sei ficar parado.

Quanto mais nervosa, mais Tia Eudóxia se fazia autoritária. Telefonava, ouvia, dava ordens, ralhava, sempre em movimento, como se não soubesse ficar quieta. Só houve um dia em que se mostrou vagarosa, com os olhos arroxeados pelas olheiras, uns restos de bocejo na costa da mão, demorando servir-se à hora do café da manhã:

- Não dormi pensando no Petersen. Apesar do que fez, é digno de pena. Confessou tudo, chorando. Sim, foi ele que matou o Benevenuto, sabes com quê? Parece mentira: com um alfinete de chapéu de mulher, aqueles grandes, que se usavam no meu tempo de moça, e que alguém deixou cair ao chão, na festa do navio. De repente, andando por trás do Benevenuto, enfiou-lhe o alfinete pelas costas, à altura do coração. Inteiro. Sem discutir com o Benevenuto. Sem nada lhe propor. Sabendo que, só assim, teria as jóias que tinha visto no apartamento dele, levado pela Marquesa. Sim senhor. Estupidamente. Desvairadamente.

E vendo o ar abobalhado do Elesbão, a ouvi-la:

- O Delegado não precisou apertar com ele. Pôs-se a chorar, contou tudo. Contou depois como havia escondido as jóias na catacumba, único lugar que lhe parecia seguro. E eu matei a charada, Elesbão. Eu, Eudóxia, uma velha de oitenta anos.

Cacarejou, cortou um pedaço de queijo. E deu-lhe a boa notícia:

- Hoje vou receber minhas jóias. Amanhã me mando para a minha fazenda. Isto aqui, com todos os progressos, com todos os confortos, também cansa. Já estou com saudade dos mosquitos de minha casa.

E na manhã seguinte, na primeira claridade do novo dia, subiu ao seu carro antediluviano, esperou que o Frederico ligasse o motor, girando lá fora a manivela.

Já ia longe, a caminho de São Paulo, quando de repente, rodando os polegares, perguntou a si mesma o que ia fazer das velhas jóias de família, postas na mala do carro. Já estava na reta dos noventa anos. Lúcida, enérgica e rija. E depois? Quem é que sabe o dia de amanhã? E que destino daria àqueles anéis, àquelas pulseiras, àqueles colares, àquelas placas, àqueles adereços, com tanto ouro, tantas pedras preciosas? Se não usara as suas jóias quando moça, menos ainda as usaria quando velha, e bem velha, com a sua bengala, o seu pigarro e o seu reumatismo. Também não as levaria no caixão quando Deus a chamasse.

E sempre rodando os polegares:

- Não, não levo.

Assim, por que iria levá-las de volta à fazenda? Para dormir sobressaltada, temendo os ladrões? Para que o prefeito insistisse em visitá-la, tossindo muito, cheirando a cebola, só para ver se ela lhe dava um brinco, uma pulseira, um anel, para as suas famigeradas tômbolas de Natal? Ou para que insistissem em convidá-la para madrinha de casamentos e batizados, com o pensamento na jóia que poderia dar como presente de nascimento ou de boda? E reagindo:

- Não, isso não. As jóias das baronesas, das condessas, das açafatas do Paço? A pulseira de ouro que Dom Pedro II deu à minha avó? O terçozinho de prata que D. Leopoldina tinha na mão quando morreu? O muiraquitã que todo mundo queria ver e pegar? Não, isso não!

E ali mesmo uma idéia generosa encheu-lhe a consciência, apoderou-se de seu espírito, alvoroçou-lhe o raciocínio, fê-la mexer-se no assento de couro, como se fosse levantar-se com falta de ar.

O Frederico, sempre vigilante, assustou-se:

- Está sentindo alguma coisa, D. Eudóxia?

- Sim - confirmou a velha.

E no seu tom autoritário:

- Vamos voltar, Frederico. Entra no primeiro retorno. Conheces o caminho de Petrópolis?

E com ar feliz, libertando-se de sua nova angústia:

- Vou levar minhas jóias para o Museu Imperial. O lugar delas é lá.

E o Frederico, passado um silêncio, só para puxar por ela:

- E se o Diretor do Museu não quiser ficar com elas?

Tia Eudóxia mexeu-se na cadeira. E enérgica, inflexível:

- Dou-lhe um berro, dos meus, e ele fica.

Frederico entrou no retorno, passou por cima da ponte. Adiante, com outro giro da direção, entrou na estrada de Petrópolis.

 

                                                                                Josué Montello  

 

                      

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