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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CARTEIRISTA QUE FUGIU A TEMPO / Moita Flores
O CARTEIRISTA QUE FUGIU A TEMPO / Moita Flores

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                         A RUÍNA DE FRED ASTAIRE  

Era mais do que evidente. A invenção do cartão de crédito desgraçou a carreira de Fred Astaire. Uma carreira brilhante, cumprida pelo trabalho e com talento. A vida inteira a ensaiar, anos a fio esforçados para a conquista da suavidade e da elegância, e de um momento para o outro, sem que nada o fizesse prever, multiplicam-se os sinais de alarme.

Era coisa do Diabo, por certo, pois que, sendo a inveja património valioso do espólio nacional, ninguém podia invejar assim. Até ao ponto de mostrar a morte antes de provocá-la. Uma caixa multibanco aqui, outra ali, passados dois anos florescia por todas as esquinas, supermercados e vãos de escada. Ainda pensou que fosse uma moda passageira. A Lisboa daquela época era volúvel, aberta ao fémero, mulher de fracas convicções e de homens e paixões tão violentas como passageiras. Eis a conclusão que Fred Astaire retirou deste vendaval de caixas mágicas que, a troco de números secretos, compravam e vendiam sem que uma única nota passasse debaixo do nariz dos seus servidores. Magias que lhe reduziram a vida a pó, os projectos a papel de embrulho.

 

 

 

 

Há vidas assim. Esvaem-se como o fumo de um cigarro, sem deixar rasto e com um destino incerto e tão invisível que não há pedaço de memória com força suficiente para as recordar. Tu és pó e em pó te transformarás, e este foi o problema dilacerante do bailarino de mãos mágicas. Era poeira antes do desenlace final, homem transformado em anjo sepulcral antes do tempo que marca o tempo da intemporalidade. Um anjo despojado das asas brancas que o fizeram voar em busca de todas as vitórias que dia após dia acumulava em cima da mesinha-de-cabeceira quando chegava a hora de fazer contas. Conforme cresciam as malditas caixas automáticas as contas eram cada vez mais fáceis de fazer até que chegou o dia em que já não havia nada e o tampo da sua secretária de tantos anos, chegadinha ao pé da cama, estava tão nua e tão pobre que deixou de se sentir anjo e perdeu todas as dúvidas de que era mais uma vítima das revoluções tecnológicas que atravessam os nossos tempos.

Aproximemo-nos mais deste personagem. Fred Astaire tinha sessenta anos e era carteirista. Uma vida de artista. Quarenta dedicados à arte. Aprendera no Limoeiro, casa de grandes tradições para a vagabundagem de Lisboa.

- Filho, os teus dedos têm de parecer nuvens. Atravessam o corpo e não se sentem! – recomendava mestre Pulgas enquanto vestia o casaco e desafiava Fred Astaire a meter outra vez as mãos.

E o mestre encasacado abria um jornal e representava um leitor atento, ele que não sabia ler nem escrever, apenas assinar, corpo atento à manobra do discípulo.

- Pára. Senti outra vez.

E o aluno desesperado:

-. Porra, porra! Não sou capaz. É arte de mais para mim.

Pulgas ria do desespero de Fred.

- Não percebo porque se está a rir de mim. Eu sou ladrão, não sou artista como o senhor!

- O verdadeiro artista é o ladrão que nunca se deixa fazer pela polícia. Estão lá fora uns milhares valentes de artistas, alguns a quem a bófia até faz continência. Gente importante, que não precisa das mãos para gamar. Bastam-lhe as meninges. Nem é o teu caso nem o meu. Um homem para se fazer à vida tem de dar o corpo ao manifesto e pronto! Quando é arrecadado acabam-se as fantasias. Portanto, sou tão artista como tu. Estamos os dois presos e é tempo de aprender. Não te esqueças deste aviso. Cada vez que fores preso faz os possíveis por aprender mais. É esta a nossa escola. Percebeste?

- Percebi. Acho que percebi.

- Então, vamos começar outra vez.

Para ser bem feita a coisa tem de ser quase um milagre. Os dedos médio e indicador tornam-se num instante em algodão, desaparecem entre o casaco e o corpo do otário e, sem que haja tempo para dizer ai, a carteira já cá canta escondida na muleta. Tem de ser quase milagre e dedos assim não são de homem deste mundo, mas de anjo disfarçado de pessoa a andar entre os mortais. Depois não é preciso ser mentiroso como os políticos nem alarve como os gatunos. Tudo é suavidade e elegância, simpatia e fraternidade. Explico-me melhor. Um carteirista que se preze trabalha com secretário. Na gíria dos entendidos em tão profundos quantos mágicos segredos, trabalha com a muleta. Não precisa de estudos de profundidade. A escolaridade obrigatória chega para a função. Acompanha o artista com uma gabardine no braço ou jornal dobrado, se possível um jornal economia para dar ares de intelectual. O artista trabalha. Os dedos desfazem-se em vento para entrar na algibeira do otário, a carteira salta e à velocidade da luz cai nas mãos do muleta, cuja missão é desaparecer dali o mais depressa que puder. Fica demonstrada a função menor do muleta. Um pintas, na verdadeira acepção do conceito pintas, palavra pouco usada em salão de chá e sem préstimo para literatura erudita, mas muito usual em prisões, esquadras de polícia, escolas secundárias e universidades. Um pintas é um tipo com a mania que é esperto mas não passa de um totó, indivíduo moinante, chavalo com fraco futuro, ladrãozeco de urinol. Pintarolas é diminutivo afectivo. É o muleta. Pega na carteira e desaparece num ápice e é então que o artista pode brilhar a grande altura.

Com mais ou menos bucha metida conforme a qualidade dos actores, o drama desenrola-se sempre da mesma forma.

Otário: Ai, que fui roubado! Acudam que me roubaram mesmo agora!

Carteirista: Ó cavalheiro, mesmo agora ponto e vírgula. Eu sou a pessoa deste autocarro que está mais perto de si e não lhe roubei nada. Se quiser reviste-me.

Otário: A minha carteira! Quando entrei na paragem do Marquês tinha-a comigo. O senhor esteve sempre ao pé de mim.

Carteirista: Estive mas não lhe roubei nada. Reviste-me por favor. Esta é a minha carteira, o molho de chaves da minha casa, o meu cartão de sócio do Atlético, está a ver? Não tenho mais nada. Quer que me dispa?

Otário: Tinha acabado de levantar cinquenta contos. Levaram-me a carteira e o dinheiro.

Carteirista: É uma vergonha. Já não há respeito por ninguém.

Alguém da assistência: Ia um tipo com uma gabardina no braço que estava ao pé de si e saiu apressado na última paragem.

Otário: Com uma gabardina? Não reparei. Ai a carteira da minha alma.

Carteirista: O melhor é irmos à polícia apresentar queixa. Uma pessoa não pode andar descansado nesta cidade. O amigo quer que vá consigo ou sabe onde é a esquadra?

Otário: Não vale a pena, obrigado. Eram os meus últimos cinquenta contos. Como é que me vou governar o resto do mês?

Fred Astaire ouviu esta lamúria vezes sem conta. Saía condignamente do autocarro ou do metro, desejando as maiores felicidades ao otário e aceitando todos os pedidos de desculpas por terem desconfiado dele, e subia até ao café da esquina onde combinara encontrar-se com o muleta. Faziam partilhas. Vinte por cento para o     otário, o resto para si.

Por vezes as coisas não corriam bem. Acidentes de trabbalho. Como naquele dia de final da Taça de Portugal, no Jamor. Sentou-se ao lado do muleta. Mesmo à sua frente um adepto entusiasmado, que quando abria os braços deixava que espreitasse uma carteira gorducha como se fosse alimentada a notas e pão-de-ló. Fred Astaire fez sinal ao muleta e o milagre das mãos transformadas em asas deu-se. No momento em que Osvaldo Silva cruza para Yazalde e este voa para a bola, enquanto os dedos voam para a carteira e quase no mesmo instante o Sporting marca o golo do empate. Um acidente do destino. A mão ligeira como uma andorinha em direcção à carteira gorducha e o adepto a saltar de alegria. Então deu-se o desastre. A andorinha ferida na asa embate na pança do otário e, de súbito, o som desapareceu do estádio, um silêncio tão infinito que só podia ser o vazio do inferno, e o artista olha a mão e não sabe explicar porque tinha uma algema no pulso.

O adepto transformou-se em bófia e, em vez de aplaudir o golo, rosnou:

-A gamar a chata a um bófia? Tu não tens vergonha?

Implorou desculpas. Que não, que não. Que também saltou para festejar o golo. Que era do Sporting e viu que o senhor também era adepto e abraçou-o. Mas era só alegria, pura amizade sem intenção.

O pasma ainda hesitou mas o muleta estragou tudo. Em vez de se calar e fazer de conta que nada daquilo era com ele, discursou:

- Pela sua rica saúde, senhor agente, aqui este amigo só estava a festejar o golo!

- Como é que tu sabes?

A pergunta estava minada de desconfianças. O tira conhecia a técnica do muleta de cor e salteado e fisga-o pelo pescoço. Sacode-o e o secretário parecia a árvore das patacas. Caíam carteiras de todos os bolsos. O produto de um dia de trabalho.

Mas desta vez a prisão não era tão negra como no tempo em que conhecera Pulgas. Alguns dias depois descobriu porque eram as cores mais garridas. Tinha ganho o estatuto de carteirista. Na hierarquia da cadeia estava sentado bem lá no alto, onde apenas se sentavam os eleitos sem sobrar lugar para os escolhidos. Uma espécie de deus dos deuses, ladeado por assassinos e assaltantes à mão armada, a fazerem de arcanjos. A seus pés uma corte de anjos: arrombadores de cofres, raptores, sequestradores, burlões. Já bem distante deste altar de marmanjos, querubins de barba por fazer: gatunos de esticão, ladrões de automóveis, proxenetas carregados de anéis e tresandando a brilhantina. Finalmente, no inferno deste céu, bem longe da divina figura de Fred Astaire, a matilha de violadores, contrabandistas de carne branca e traficantes de droga.

Admirava-se Fred Astaire. Mas nós não nos podemos admirar. Há uma ordem marginal que se ergue sobre os escombros da ordem social que o nosso herói desconhecia. Um panteão de divindades onde simpáticos empreiteiros se irmanam na mais cristalina amizade franciscana com prestimosos traficantes de mão-de-obra clandestina, ministros serviçais, prestimosos deputados, voluptuosos banqueiros e seráficos dirigentes desportivos. A nobreza dos novos tempos servida por uma multidão de escravos e servos vazios de sonhos, pois que até isso lhes tiraram em negócio de cambão. Neste mar de tanto sargaço, ele não era criminoso, mas um artista de mãos divinas e só não podia aspirar à santidade porque não era rapaz de missas, confissões e comunhões. Mas era crente. Não havia um dia que fosse que começasse a trabalhar sem invocar o Altíssimo e quando regressava altas horas para o descanso do guerreiro dirigia sempre um pensamento agradecido para o Senhor.

Fred Astaire era tão fino de mãos como ligeiro de pés. A alcunha, melhor, o nome, que do próprio já não se lembrava, ganhou-o nos bailes dos Alunos de Apolo e na Feira Popular, quando a cidade ainda puxava o pé para a valsa, o tango e o charleston. As mulheres caíam como pardais, que não havia mais destro e elegante bailarino a pisar as pistas de todos os clubes recreativos até Alcabideche e para lá da Azambuja. Então, quando ecoava um dos tangos de Gardel, o corpo de Fred Astaire chispava, o olhar dardejava, a firmeza com que cingia as moças para as fazer voar até às estrelas e aos ninhos dos sonhos punha em chamas os corações mais gelados. Ouviu declarações de desejos incontidos ao som de pasos dobles, dedos a rasgarem-lhe a carne entre um bolero e um fox-trot, mas Fred Astaire, romântico da mais genuína cepa, só se declarava quando tocava a valsa. Era o deus das carteiras e o rei das pistas de dança. As mãos de éter e os pés com asas de águia. E assim nasceu uma estrela na cidade donde já não partiam caravelas, deixando a Judy Garland a pão e laranjas. Nesse, tempo partiam emigrantes para França e soldados para as colónias. As duas faces da mesma guerra que deixava o país deserto de homens, aqui e ali salpicado de velhos, mulheres e crianças.

Diga-se desde já que Fred Astaire era também um cidadão exemplar. Nunca se dedicou à política. Não se pode dizer que tenha sido bom chefe de família mas também não foi mau. Aliás, nunca teve família. A mãe entregou a alma ao criador durante a última epidemia de tifo e o pai morreu sem glória engasgado com uma espinha de bacalhau, ali, numa tasca para os lados de Alfama, mesmo no final da rua que sobe para o Castelo. Também nunca foi homem de escolas. Sabia assinar e ler os títulos dos jornais. O único professor da sua vida fora Pulgas para lhe ensinar a arte com que deveria vingar na vida. Podemos ir até mais longe. Quando irrompeu a democracia através dos buracos negros da ditadura, nunca Portugal viu melhor e maior exemplo de democrata. Esteve em todas as manifestações, participou em todos os comícios da direita para a esquerda, sacou com o mesmo à-vontade a carteira do proletário e a carteira do banqueiro. Campo Pequeno, Parque Eduardo VII, Fonte Luminosa, por todos os cantos da cidade onde se anunciasse comício ou manifestação Fred Astaire lá estava com a sua militância inquestionável, fazendo voar nas suas mãos de vento as carteiras dos mais entusiasmados com o partido e pouco atentos ao vaivém do muleta. Embora esses tempos não fossem os melhores para as benfeitorias da religião e as virtudes da fé, continuou zelosamente a acompanhar todas as procissões da cidade desde a Senhora da Saúde até à Sexta-Feira da Paixão. Entre terços e paisnossos fazia dez a quinze carteiras por cada evento, ainda por cima comovido, que Fred Astaire emocionava-se com os compassos das filarmónicas e as crianças vestidas de anjinhos.

Aliás, foi esta costela religiosa que o levou aos píncaros da glória. Exactamente no dia em que terminou a sua quarta prisão, agora em Vale de Judeus. Apanhou o comboio no Cartaxo a caminho de Santa Apolónia e logo à sua frente sentou-se o padre da prisão. Era indelicado mudar de lugar. Aguentara-lhe as prédicas, os sermões e as descomposturas durante três anos, não vinha mal ao mundo por aturá-lo mais uma hora e o bom do sacerdote não se fez rogado. Começou logo a desancá-lo.

- Vê se desta vez ganhas juízo, Fred. - Vou ganhar, senhor padre.

- É uma vergonha um homem ainda novo já ter estado preso quatro vezes. Já reparaste que tens quase cinquenta anos e ao todo passaste quinze na cadeia? Quinze anos é uma vida, homem de Deus!

- Lá isso...

- Precisas de assentar, arranjar uma mulher que cuide de ti e um emprego seguro.

- Tem razão.

Mas nesta altura Fred Astaire já não o ouvia. Descobrira o vulto grosso da carteira escondido na batina. Não sei se deverei dizer vício ou simplesmente falar de virtudes. A verdade é que o cérebro do ex-presidiário trepidou como as bielas de um automóvel disparado a muitos quilómetros à hora para além da velocidade permitida por lei. Como iria conseguir? É que a batina tinha dezenas de botões, que apertavam o corpo do padre do cabeção até à biqueira dos sapatos. Era um cofre-forte. A carteira guardada em betão, uma batina-fortaleza que sustinha todas as investidas de qualquer inimigo ou herege que se desse à pouca-vergonha de despir o padre.

Mas o talento, quando é talento a sério, mostra-se superior a qualquer obstáculo, por maior que seja.

O capelão da penitenciária arengava e Fred Astaire pensava com tanta rapidez que era para admirar que o calor das meninges não saísse em fumo pelas orelhas.

-A prisão é um lugar bem triste para um homem tão saudável como tu.

E se eu lhe metesse as mãos pelas mangas? São tão largas!

- Sou capelão vai para vinte anos e tenho o coração despedaçado de ver tanto jovem que desgraçou a vida por causa da droga.

Pela manga não dá. Porra, a falta que me faz o muleta!

- Vá lá, ao menos não te meteste na porcaria da cocaína ou da heroína. Mas essa história das carteiras... é uma vergonha, filho, uma vergonha.

Tem que ser pelos botões. Deixa ver, quantos botões tenho que abrir?

-Até porque agora, com as máquinas multibanco, as pessoas já não andam com dinheiro como andavam. O máximo cinco contos. Ora vale a pena voltar para a prisão por cinco contos?

Cinco, seis, sete. Não, seis botões chegam.

O comboio parou em Vila Franca de Xira e o padre calou-se enquanto os passageiros, cansados de um dia de trabalho, entravam e saíam desalentados. Uns logo a dormir, outros folheando jornais desportivos e revistas cor-de-rosa. Quando a máquina guinchou para tornar a partir, Fred Astaire pôs o plano em prática.

- Com licença, senhor padre. Vou à casa de banho.

Não sei descrever esta oitava maravilha do mundo. O que posso testemunhar com estes dois que a terra há-de comer é que Fred Astaire aproveitou o solavanco para roçar ao de leve a batina e quando entrou no corredor da carruagem dois estavam desabotoados. Mal se notava no meio daquela procissão de botões. O padre distraído a olhar a paisagem a que Alves Redol deu alma, raiva, pranto e luto, e Fred regressa da casa de banho, toca outra vez levemente no santo homem e pronto! Mais dois botões fora do lugar. Apenas faltavam os dois do meio.

- Devias aprender a ler melhor, Fred.

- Mas eu aprendi na prisão, senhor padre. Faltam dois botões. Faço o otário à saída em Santa Apolónia.

- Os livros ensinam-nos a sonhar. A gostar das pessoas.

Agora o artista já não ouvia nem pensava. Apenas contava os minutos, as estações e apeadeiros até ao final da linha, enquanto se concentrava na função. A voz do sacerdote soava-lhe ao longe e a carruagem parecia habitada por fantasmas que dormiam encostados uns aos outros. A voz do velho capelão ganhou tons libidinosos enquanto indicava bibliografia de encantar.

- Se um dia lesses o padre António Vieira ou Eça. Ou Raul Brandão. Ias sentir-te muito melhor.

- Eu vou ler, senhor padre. Prometo que vou mudar de vida. Juro!

- Deus te guie, meu filho. Que Deus te guie.

Os travões relincharam despertando os passageiros. Começaram a levantar-se, puxando de embrulhos e lancheiras, e Fred afirmou solícito:

- Eu levo-lhe a mala para fora do comboio, senhor padre.

Agradeceu e deu alguns passos trôpegos, esfregando a barriga na barriga de Fred. Desceram para o cais e recebeu a mala das mãos do seu companheiro de viagem.

- Eu estou com pressa, senhor padre. Saio por esta porta que tenho o autocarro à espera.

- Vai, filho, e não te esqueças do que te disse. Não quero voltar a ver-te na prisão.

- Obrigado pelo seu conselho, senhor padre. Que Deus o guarde.

Fred Astaire desapareceu e o capelão arrastou a mala e as pernas inchadas de varizes até à saída principal. Sentia-se cansado e bendisse a Deus por não haver bicha na praça de táxis. Excepcionalmente o motorista era simpático. Saiu para o ajudar a pôr a mala no porta-bagagens e quando a fechou falou envergonhado:

- Desculpe-me chamar-lhe a atenção, senhor padre, mas tem vários botões da farpela abertos. Vê-se a camisola interior.

Foi então que reparou na desordem das vestes. Levou a mão ao peito e o coração deu-lhe um baque:

- A minha carteira! Roubaram a minha carteira!

Por acaso não foi um golpe proveitoso. O velho capelão era um pobre asceta. Rendeu dois mil escudos. Mas a insignificância do dinheiro teve pouca importância para Fred Astaire. Sentiu-se sentado no tecto do mundo quando contou a façanha a Pulgas, agora já numa cadeira de rodas, vedeta esquecida num asilo para os lados de Sacavém, e o mestre esbugalhou os olhos de espanto.

- Comeste a estália a um abade?

- Meti-lhe os baios pela batina.

- Jesus! Não há no mundo coisa igual. Nem eu consegui tamanho feito.

- Mas foi graças a si, que me ensinou a arte.

- Eu sempre disse que irias longe. Eu sabia.

- Nunca lhe vou poder agradecer o que fez por mim.

- Escreve para os americanos. Têm lá um livro.

O Guinness Book onde põem as coisas mais espantosas feitas pelos homens. O teu nome merece lá estar. - O mestre acha?

- Filho, comi carteiras por essa Europa fora. Em África, conheci os maiores artistas do mundo. Havia um inglês, o Beckford, que era famoso por roubar com o dedo mindinho. Mas um padre vestidinho das goelas até à biqueira dos sapatos?! Escreve aos americanos, Fred. Escreve aos americanos que sabem apreciar quem tem valor.

Ainda hesitou, mas lembrou-se do conselho do padre sobre os livros. O homem gostava tanto de ler que ainda lhe caía nas mãos esse livro americano e lá ficava a saber quem lhe papou a nota de dois contos. Desistiu e foi por essa altura que o negócio começou a minguar. Já não eram apenas as caixas multibanco a multiplicarem-se como no milagre dos pães. Agora até as lojas em vez de dinheiro aceitavam o cartão. Uma miserável couve de trezentos escudos era paga com cartão. A margarina. A pílula e os xaropes para a tosse. Até os bilhetes de autocarro.

A renda atrasou-se. Deixou de encontrar muleta que trabalhasse por vinte por cento de nada e o artista de mãos de fada acordou um dia a pedir esmola nas escadinhas da Sé. Foi aqui que conheceu Gaby das Mamadas.

 

                                OS SONHOS DE GABY

Era uma mulher a quem a vida marcou o rosto. Olheiras fundas, nariz recurvado à maneira das aves predadoras, embora os olhos azeviche denunciassem uma beleza escamoteada no sofrimento. Fred Astaire achou que ela daria uma boa ministra das Finanças. Austera, poupadinha e palradora. Não se precisava de falar com ela para se perceber que aquele corpo franzino e nervoso havia passado muitas noites sem conhecer o sono.

Ao contrário de Fred Astaire, homem de poucas palavras e gestos seguros, Gaby gesticulava e falava, falava, falava.

- Só venho fazer as Escadinhas da Sé durante o Verão. Há mais turistas e gostam de ver os pobres estendendo a mão à caridade. E tu, vens aqui há muito tempo?

Fred teve vergonha de dizer a verdade.

- Mais ou menos - respondeu, evasivo.

- Dinheiro a sério ganha-se arrumando carros. Aí

sim. Conheço um, o Chico Porcalhão, sabes quem é o Chico Porcalhão? É um tipo que anda a arrumar a Guerra Junqueiro. Era bancário. Daqueles que vestem umas roupas muito finas e gravatas a condizer. Meteu-se na droga e lixou-se. As gravatas todas no prego. A mulher pôs-lhe um par de cornos e mandou-o à vida. Agora arruma mesmo ao pé da Mexicana. Ganha mais do que no tempo em que estava no banco. Dá-lhe para a dose e ainda lhe sobra. Jáme levou a jantar à Portugália. Bife com ovo a cavalo e pagou. Pagou que eu vi, sim senhor. E pagou-me a visita. Não fez nada, coitado. Esta gente da droga fica sem força na verga. Eu fiz-lhe de tudo o que se faz na praça, mas ele nada. Acabou a noite a chorar, abraçado a mim. Só pagou a visita mas acabámos por ficar toda a noite juntos. Uma pessoa tem de ser para os outros, não é? Prontos, seja como for, o Chico Porcalhão não se endireita, mas que ganha bom dinheiro, lá isso.

Fred Astaire não respondeu. Um grupo de japoneses saía da igreja disparando a eito as máquinas fotográficas. Quatro ou cinco interessam-se pelo grupo de mendigos que estendia a mão, mas na religião dos japoneses não há essas coisas da fé, esperança e caridade. Substituíram-nas por computadores, máquinas fotográficas e calculadoras.

O velho carteirista escondeu o rosto. Não queria que o seu retrato andasse no Japão passando de mão em mão como se fosse peça de artesanato. Mas os orientais, que riam aos guinchos e falavam ao mesmo tempo, emitindo sons que pareciam de um xilofone desafinado, não tiveram tempo de disparar para os bonecos. Gaby saltou. Mão na anca e a outra estendida avisou-os em bom português:

- Ó filhos, se querem fotografias têm que cagar uma nota. O que é que julgam? Ou há dinheiro ou vão fotografar o Camões. Era o que faltava. Chegavam aqui, serviam-se e ia uma pessoa a caminho do Japão a fazer de artesanato português à borla?! Vá, o papel para cá!

O xilofone japonês desafinou ainda mais enquanto olhavam com curiosidade para Gaby. Por fim, um pareceu ter compreendido e tirou uma nota de mil escudos.

A mulher agarrou logo e decidiu carregar no acelerador.

- Tu podes servir-te, filho. Mas esses cabrões que vêm contigo ou arrotam uma igual a esta ou podem meter a máquina fotográfica no olho do cu.

Talvez não tivessem compreendido as palavras, mas perceberam os gestos. Só um não quis pagar.

A mulher olhou-o com rancor.

- Japonês filho da mãe. Não queres pagar o suvenir. Fica a saber, meu grande coirão, que pobres destes não encontras mais por essa Europa fora. Talvez te safes na Turquia, mas valerá a pena ires daqui até ao cu de Judas para fotografares um turco?

Calhou uma nota a Fred Astaire e deu graças a Deus por ter conhecido Gaby das Mamadas. Perguntou-lhe:

- Porque é que te chamam Gaby das Mamadas?

Riu. Olhou-o com curiosidade e havia ironia na voz.

- Não adivinhas?

Sejamos sérios. Não se pode dizer que tivesse esta mulher vida fácil. Aos dezoito anos apaixonou-se pelo professor de Inglês. Não admirava. Os outros rapazes da vila onde Gabriela nasceu e aprendeu inglês tinham alcançado rapidamente a monotonia dos mais velhos. Discutiam futebol e embebedavam-se. Punha-se-lhe um corpo de mulher à disposição e tinham a habilidade de um hipopótamo sentado frente a um piano. Nem sexo nem projectos. Nem vontade de viajar pelos sonhos. Apenas vinho e futebol. Ninguém era feliz na vila. Nem a própria vila cada vez mais envelhecida, cada vez mais distante das rotas que levavam à aventura e à conquista. Os homens falavam entre si de futebol enquanto bebiam. As mulheres discutiam e amavam no amor fingido da telenovela ou sonhavam nas ilusões vendidas em revistas cor-de-rosa.

O professor de Inglês caiu na vila como uma estrela-cadente num deserto vestido de negro. Ensinava, por isso amava. Shakespeare não era um autor mas o esplendor da paixão, a descoberto das emoções mais profundas, as viagens que Gabriela inventou nas noites de maior insónia, e apaixonou-se definitivamente quando Romeu e Julieta morreram para viver na intemporalidade do amor.

Depois os lábios dele eram quentes. Passeavam-lhe pelo corpo e Gabriela descobriu que nele havia estrelas. Percebeu que ele estava dentro de si quando se sentiu leve, trepidou como trepida a terra quando um vulcão começa a rugir e o céu ficou tão perto de si que tocou uma nuvem com a mão. Decidiu. Em vez da universidade escolheu o amor que jurou eterno. Ainda não sabia que juramentos desse tamanho não se fazem quando a vida inteira está ainda por descobrir e a eternidade acabou no dia em que terminaram as aulas. O professor de Inglês partiu com Shakespeare e Oscar Wilde debaixo do braço e Gabriela, com aquela idade chamava-se Gabriela, não conseguiu suportar a solidão da aldeia e partiu para Lisboa. A mãe chorou, o pai ainda a encerrou em casa com a proibição de pôr os pés na rua quanto mais fora da vila, mas a rapariga tinha sete fôlegos. Habitava-lhe o peito um mundo por descobrir e mil viagens inventadas por todos os caminhos do destino. O professor de Inglês deixara-lhe em testamento os desejos de aventura e Lisboa, que era cais de todas as partidas, abriu-se de par em par à chegada de Gabriela.

Oito dias depois estava empregada. Servia copos numa discoteca no Cais do Sodré.

Havia de construir o seu mundo ali em Lisboa, onde os homens eram diferentes dos alarves da sua vila. Talvez encontrasse o professor de Inglês, ou outro cavalheiro andante tão quente e tão doce que voltasse a acreditar nos juramentos de amor eterno.

Porém, no Cais do Sodré não há ninho para os sonhos. É um apeadeiro barulhento onde desembocam destinos sem rumo certo e, quando deu por si, Gabriela estava na cama do Jorge, estudante de Filosofia nas horas vagas e cocainómano a tempo inteiro. Quando lhe falou de Heidegger e Popper, a rapariga resplandeceu de júbilo. O seu professor de Inglês aparecia envolto em trapos de filosofia.

- É preciso inventar uma nova filosofia, Gabriela, uma nova filosofia! - gesticulava o excitado Jorge depois de ter chutado duas linhas de coca. - Tu vê bem!

Começava sempre assim. Gestos largos, palavras febris. A redescoberta do mundo numas águas-furtadas para os lados da Calçada de Carriche e a rapariga, corpo moidinho de servir cervejas e uísques com gelo, a cambalear de sono enquanto o seu Jorge construía teorias que nem se percebia como é que as pessoas conseguiam viver sem andar pelo menos com uma delas na algibeira.

- Tu não vais às aulas?

A pergunta era natural. Um estudante de Filosofia que dorme durante o dia, poisa no Bairro Alto a partir das dez da noite, saca a dose de coca e durante o resto da noite bebe cerveja no Cais do Sodré e inventa a nova filosofia é coisa estranha.

- São uns atrasados mentais. Não ensinam nada e, para levar uma tareia de Aristóteles ou de Platão, prefiro trabalhar em casa.

Quem conhece a miséria da universidade penderá para dar razão ao rapaz. Não era o caso de Gabriela.

- Mas eu não te vejo trabalhar. O dinheiro que ganhamos não dá para comermos e comprar esse pó que metes pelas ventas acima e com que inventas a nova filosofia todos os dias.

As conversas azedaram e Gabriela descobriu de repente que os estudantes de Lisboa não eram diferentes dos homens da sua vila na noite em que o Jorge, desvairado por não haver dinheiro para o pó, a culpou de todos os males da sociedade, desde a falência do marxismo até à invenção da bomba atómica, e a desancou. Foi uma tareia apocalíptica. Duas costelas partidas, um braço ao peito e fim do emprego, que negócio é negócio e a discoteca não podia parar só porque Gabriela se desentendeu com Jorge.

Respondeu ao anúncio de jornal. Rapariga nova, boa apresentação para cuidar de bebé.

O telefone era da Quinta da Marinha.

- São ricos, filha! - garantiu Isabel, antiga colega de trabalho e agora companheira de águas-furtadas para repartir a renda.

- Ricos, porquê?

- Da Quinta da Marinha, filha. Aparecem em todas as revistas e são famosos.

- Famosos, porquê?

- Por nada. São ricos. Tiram fotografias mostrando as casas e pronto! As revistas tornam-nos famosos. Não fazem mais nada do que ser famosos.

Fred Astaire soltou uma gargalhada, coisa rara que lhe iluminou o rosto, que raramente sorria.

- O Édredon devorava essas revistas.

- O Edredon?

- Um tipo que esteve comigo na prisão. Gatuno de residências. Gamava através dessas revistas. Comprava-as aos molhos e passava o tempo a recortar e a mandar aos intrujas para ver se estavam interessados neste vaso ou naquela jarra.

- Tu estás a falar a sério?

- O Édredon era ladrão profissional. Não brincava com coisas sérias.

Apresentou-se. Apareceu-lhe Cocó com a cara toda pintada de branco, rolos na cabeça e despidinha como Deus a pôs no mundo. Ainda por cima falava com as mãos esticadas, soprando o verniz que acabara de colocar.

- Não olhe, querida. A casa está um horror mas as crianças não deixam nada parar quieto. Um horror! A minha empregada sumiu, tá a ver? Sumiu de todo e há uma semana que estou aqui como se fosse uma mulherzinha vulgar a cuidar dos diabretes.

As palavras saíam-lhe em turbilhão mas Gabriela não a ouvia, encantada com a beleza do salão por onde a mulher nua deambulava de dedos esticados e cara barrada de massa branca. Quadros lindíssimos - veio mais tarde a saber que valiam fortunas - cercavam estatuetas, tapetes que só de pisar a rapariga convenceu-se de que andava pelas nuvens, um piano tão grande e tão elegante que, por certo, estaria prenho de música celestial.

Gabriela ganhou o emprego por duas razões principais. A primeira é que reconheceu Cocó. A patroa chamava-se Corina, mas avisou logo que detestava o nome e odiava que a tratassem por senhora. Era a Cocó e pronto! E ali estava num enorme quadro a fotografia dela com o Senhor Doutor numa festa qualquer, ela abrilhantada de jóias, ele distinto no smoking preto. Reconhecera a fotografia da capa de uma revista que comprara no quiosque do senhor Silva, perto de sua casa, e ficara impressionada pelas jóias da mulher que agora falava sem cessar, cara de palhaço rico e mãos com unhas de leopardo. Cocó ficou impressionada com o facto de a candidata a cuidar dos "piquenos" ter comprado tão importante revista. A segunda razão foi a impossibilidade de Cocó passar mais um dia que fosse a aturar os "piquenos".

-Aviso-a. São de todo insuportáveis.

Ficou ainda a saber que o nome do marido era Senhor Doutor, que jantavam sempre sozinhos e que querum,, quer outro tinham uma vida de loucos. O Senhor Doutor repartia-se de manhã até à noite pela clínica, consultório e hospital e Cocó vivia sem saber como, cumprindo horários rigorosíssimos de massagem, sauna, ginásio, cabeleireira, manicura, artes marciais e hás compras com as amigas. Aliás, foram as amigas que mereceram a mais séria advertência:

- São umas intriguistas. A menina está proibidíssima de falar com elas e contar-lhes seja o que for sobre a nossa vida. Sobretudo à Quicas, que se atira ao Senhor Doutor descaradamente!

Que não admirava. O marido da Quicas passava o tempo no estrangeiro e não havia ninguém em Cascais que não soubesse do que ela precisava. Que toda a gente sabia que não prestava na cama, pois a Filó, outra amiga do grupo da Cocó, não era criatura de grandes segredos e contava tudo. A Filó era uma virtuosa. Ela e o marido, o Zeca Cunha, que a menina já deveria ter ouvido falar por ser montes de apaixonado por automóveis, tinham uma relação aberta, pronto! Não mentiam, tá a ver? A Filó contava-lhe tudo. Dos amantes novos, do que cada um deles gostava de fazer, e o Zeca Cunha fazia o mesmo. E a Quicas não passou da estreia, imagine! Um autêntico pão sem sal.

Uma das virtudes de Cocó era falar depressa. Apresentação da candidatura e admissão ao novo emprego não demorou a Gabriela mais de cinco minutos, e ainda estava atordoada com o turbilhão de informações complementares já Cocó tinha envergado um fato de treino, pegado nas chaves do carro, apressadíssima para regressar aos seus afazeres. Foi em jeito de despedida que atirou:

-Ah, os "piquenos" estão na sala dos brinquedos, no andar de cima. Costumo fechá-los à chave para não me porem a casa em pantanas.

E saiu. E Gabriela conseguiu respirar.

João e Cristina eram um encanto. O rapaz era o mais velho. Tinha cinco anos e uma fome insaciável de histórias. Cristina faria quatro daí a um mês e o grande drama da sua vida era o medo dos foguetes. Quando a cumplicidade entre os três aumentou e Gabriela já inventara todos os contos que a imaginação alcança, em noites de trovoada, a menina corria-lhe para a cama, chorando com medo dos foguetes, e dormiam abraçadas até o Sol madrugar.

Foram os tempos mais felizes de Gaby. Era mãe de uma maternidade roubada, é certo, mas as duas crianças passavam semanas sem outros pais que não fossem Gaby e os contos que inventavam e por onde marchavam os três, enfrentando ladrões e cavaleiros andantes, princesas encantadas e piratas que navegavam por todos os céus e por todos os mares do mundo.

Foi uma enxaqueca de Cocó que estragou este tempo de risos, correrias, histórias e mergulhos na piscina.

Nesse fim-de-semana, os patrões não saíram. Gaby foi encontrar a patroa enfiada na cama com a cabeça enfeitada com um saco de gelo. Hesitou antes de entrar no quarto. Embora a voz parecesse a do Senhor Doutor, as palavras não eram dele. Falava sempre pouco. Sorria discretamente e havia sempre um faz favor e um obrigado por cada copo de água ou charuto ou conhaque que Gaby lhe servia. Para a rapariga, o Senhor Doutor era a delicadeza e a boa educação, pelo que nem queria acreditar no que ouvia pela porta entreaberta.

- Não passas de uma bebedolas!

- Serafim, por favor.

- Bebedolas e puta! Se ontem à noite não te tivesses metido na merda da coca com o miúdo que engataste na discoteca, não estavas assim. Ainda por cima à minha frente e dos nossos amigos.

- Serafim, tu não me obrigues a falar dos teus engates. Tu não me obrigues, que eu passo-me.

- Os meus engates não são para aqui chamados. Não dou espectáculo nem me meto na merda das drogas. Ou paras com a porra da cocaína ou eu vou-me embora com os miúdos e depois vamos ver se arranjas outro corno que te ature a maluquice e as ressacas.

- Deixa-me em paz, por favor. Estou com a cabeça a estoirar! Vai-te foder, ouviste? Vai-te foder!

- Puta!

A voz estoirou carregada de desprezo e saiu do quarto. Foi então que Gabriela ganhou forças para entrar com a bandeja onde tremelicava o comprimido e o copo de água, e o que viu, deixou-a estupefacta.

Cocó já estava a falar ao telemóvel com Dadinha, explicando porque não iria ao ténis. Uma enxaqueca horrível, coisa que lhe acontecia com frequência quando o tempo mudava. A sinusite dava-lhe logo sinal. E ria das perguntas que a outra fazia. Depois desviou o

telefone e segredou para Gaby.

- É horrível esta criaturinha. Está montes de tempo nas fofocas. Hoje, não saímos. Prepara um almoço

ligeiro ao Senhor Doutor.

Enxotou a rapariga com um gesto e tornou ao telefone.

- Sim, sim, estou a ouvir, querida. Foi a empregada que me veio trazer um comprimido. Mas diga-me. Era giro o miúdo, não era? E louco. Fizemos coisas de loucos!

Gaby ouviu as gargalhadas que lhe chegavam do quarto e ficou tranquila. A doença de Cocó não era assim tão grave.

O Senhor Doutor não quis comer. Estendeu-se numa cadeira junto à piscina, observando os filhos que brincavam com a rapariga e, de súbito, os olhares de ambos cruzaram-se e Gaby sentiu-se despida e um rubor vaidoso aqueceu-lhe o corpo.

Fred Astaire sorriu.

- Já sei o que vais dizer. Esse tal Senhor Doutor cornudo abusou de ti.

Gabriela respondeu que não.

- Não? Mas tu disseste que...

-Abusar é um querer e o outro não estar para aí virado. Eu queria. Juro que queria mais do que ele. Uma mulher não é de ferro e o Senhor Doutor tinha voz de mel. Só de o ouvir ficava toda molhada, Virgem Santíssima. Ainda hoje estou para saber como é que a Cocó, com um naco daqueles em casa, andava como uma doida atrás de rapazinhos. É o que eu digo. São tão ricos que nem sabem gozar a fortuna que têm nas mãos.

A partir de então, Gabriela começou a repartir a cama. Ora com os filhos do Senhor Doutor ora com o Senhor Doutor. Uma noite contava histórias de embalar que falavam de magos e fadas que viajavam pelas estrelas. Na noite seguinte era ela quem embarcava nos braços dele e julgava tocar as estrelas. Cocó descobriu mas não se importou. Estava mais interessada em ir à caça com a Dadinha e a Quicas. Penduravam estudantes universitários à cintura como se fossem perdizes, para no dia seguinte passarem horas infindáveis aos telemóveis gargalhando disparates. Até lhe dava jeito o Senhor Doutor andar distraído com a criada e as coisas nunca se teriam complicado se, durante uma das habituais discussões matinais, os insultos não tivessem ido longe de mais. Os gritos do Senhor Doutor ecoavam até ao quarto dos meninos.

- Nem mais um tostão! - berrava ele. - Nem mais um tostão.

- Tu não me digas isso, Licas! Tu não queres que eu me passe...

- Como se não bastassem as massagens e os cabeleireiros, os putos e as farras com as tuas amigas, agora é pó. Cocaína. A mulher de um médico snifa coca! Deve ser lindo se alguém na clínica descobre.

- Responde-me: tu não me vais dar o dinheiro, não é verdade? Tu não me vais dar o dinheiro?!...

- Não!

- Então... - tomou fôlego antes de abrir fogo com a artilharia pesada -, então, se é essa a tua decisão, fica a saber que sou eu, eu mesma, esta que tu vês aqui à tua frente, que hoje mesmo vai entrar pela clínica dentro e dizer a toda a gente, desde o director à mulherzinha da limpeza, que o Senhor Doutor Serafim Ornelas dorme com a ama dos seus filhos, dos nossos filhos!

Ficou passada, como mais tarde disse quando telefonou à Dadinha. O marido encolheu os ombros.

- Faz o que quiseres. Se tiver de escolher entre ti e a Gabriela, fico com ela. Trata bem os nossos filhos, coisa que nem sabes o que é, e na cama é cem vezes melhor do que tu.

Cocó não se sentiu humilhada nem desprezada. Apenas um pânico negro como as trevas. Foi o terror que despediu Gabriela.

- Medo? - Fred Astaire não percebia.

- Se o Senhor Doutor se cagasse nela, em vez de me teres conhecido a pedir esmola nas Escadinhas da Sé, o mais certo era conheceres a Cocó. Nunca ajudou o marido, mal conhecia os filhos, nunca mexeu uma palha, eu é que era a escrava para todas as porcarias, até para lhe apanhar o vomitado quando entrava em casa toda fanada dos copos. Puta! Pôs-me na rua com medo de ficar desempregada. Mulher de doutor. Uma grande profissão, Fred, uma grande profissão.

O velho acendeu um cigarro. Nunca conhecera o mundo dos ricos. Nem como otários, porque rico, verdadeiramente rico, não anda de metro, não entra em autocarro e não se penitencia de velinha nas procissões da Senhora da Saúde, cantando orações e deixando-se roubar. Rico manda. É patrão de tudo. Uma espécie de

deus, que, em vez de ser espírito, caga moedas, notas e ordens. Rico manda em tudo. Até no governo. E só não manda no governo dos céus porque há um São Pedro, lixado como o caraças, que antes de uma pessoa entrar não pergunta se é rico ou pobre, mas se se portou bem ou mal. Ora rico, rico de verdade, nunca pode entrar nos céus. Pelo simples facto de que para arrotar tanto carcanhol só pode tê-lo comido à má fila.

Era a tese de Fred Astaire. Gabriela ficou em silêncio. Se o companheiro tivesse razão, São Pedro corria com ela a pontapé. Nem rica nem bem-comportada.

Dois autocarros pararam junto ao antigo Limoeiro. Era uma excursão de um lar de terceira idade e a mulher ficou a observar os velhos que tropegamente desciam. Continuava sem resolver a velha curiosidade, ainda dos tempos em que vivia na vila, que levava as mulheres idosas a passear de braço dado.

- Têm os ossos cheios de ferrugem. Assim amparam-se umas às outras.

Fred não concordou.

- É a necessidade de calor.

- Calor? Está um sol do cacete.

- Calor humano. Partilha. Trocar o calor do corpo. Já reparaste que as pessoas quando se cumprimentam, trocam partes do corpo? Ou são apertos de mão ou beijos ou abraços?! Quando nos aproximamos da morte, o corpo vai ficando mais frio. Só pode ser isso.

Fred Astaire calou-se. Conhecia esse frio há muitos anos. Gabriela não sabia que o frio que nasce nos ossos não tem a ver com a idade mas com a solidão. Era bem novo, ainda do tempo do reformatório, quando experimentou pela primeira vez esse gelo tão gelado que queima as entranhas. Quando chega não há nada que seja nosso. Até a alma fica negra, um negro de invernia que dissolve os sentidos e deixa uma pessoa como se fosse um deserto.

- É isso a solidão?

A rapariga procurava nos recônditos da memória coisa igual por onde já tivesse caminhado. Mas achava que nunca chegara tão longe. Mesmo quando deixou a casa de Cocó e a vida a levou para a vida pela mão de Colhambanas.

- Ficas rica. Não deixes que os gajos te cubram

sem camisa. E beijos na boca nem pensar. Um cabrão

faz-te um linguado e emprenha-te com cuspo. Só que,

em vez de te fazer um menino, ficas carregada de bi

chos. Bactérias, vírus, coisas dessas. Sei lá o que são bactérias e vírus. São uma bicharada do carago que te come o corpo por dentro, uma espécie de chatos do interior. Então, se te especializares em mamada, ganhas o dinheiro que queres.

- Broche?

- É rápido, faz-se em qualquer sítio, ninguém precisa de se descascar. Tás a ver? Não há tira que chateie nem empata que tope seja o que for. Mas sempre de camisinha. Conheces a Custódia? Foi uma das putas mais importantes do Cais do Sodré. Fazia dez e doze cabritos por noite. Agora está toda marada, só ataca na estrada. Mas despacha uma mamada num minuto. É uma questão de embocadura, tás a ver? Um minuto e duas notas do lado de cá. É uma mina, sou eu quem to diz!

Colhambanas deu os conselhos, apresentou-a às pessoas certas e durante anos Gaby chupou de tudo. Até fome. Mas nunca entrara naquele deserto feito de frio de que falava Fred Astaire.

- Éramos amigas umas das outras. Nunca estávamos sozinhas.

Pensou em voz alta e, de repente, descobriu porque é que as velhas da excursão iam de braço dado. No deserto de que falava o velho carteirista, não havia um pingo de afecto.

- Fred Astaire, tu nunca amaste?

- Não sei. Acho que não.

- És rabo?

- Não!

- E nunca amaste uma mulher?

- Vivi com algumas.

- Mas amar. Gostar tanto que até dói quando não se toca e não se ouve?

- Não.

A resposta foi tão seca que Gaby percebeu que ele estava a mentir. Só que Fred não lhe queria falar de Inês. Seis meses de amor tão intenso que o desejo crepitava nas mãos quando lhe corria o corpo desnudado e tão entregues um ao outro que Fred não sabia onde terminava nem onde começava o corpo da amada. Noites de frémito redimidas na noite em que pela primeira vez lhe desabotoou o vestido. A luz estava apagada, mas a lua entrava, curiosa, pelas frinchas da barraca que nessa altura Fred tinha no sopé da Curraleira. Um fio de prata escorreu pelo seio de Inês, tocou-lhe, trémulo, com a ponta da língua e o seio ficou rijo, transformando o fio de prata em rio de ouro que escorria pelos cabelos longos de Inês. Juraram tudo o que havia para jurar e amaram-se sem horas nem lugar porque o amor é essa totalidade ucrónica cravada na alma da utopia.

Seis meses de amor durante uma vida não são nada. Melhor fora que não existissem, pois que futuro tão longo é mais doloroso porque uma vez houve esse bocadinho do passado. Um grão de areia no deserto de frio.

Fred Astaire e Gaby passearam sem rumo certo. Aproveitaram as notas dos japoneses para comer uma travessa de miúdos de frango na tasca que liga a Igreja de São Domingos e o Teatro Nacional. Foi então que viram Porcalhão, que comia camarões na companhia de um amigo. Feitas as apresentações, Gaby soube que aquele era Messias e ainda comeram o que restava do marisco.

 

                                       A CHEGADA DE MESSIAS

Messias era apelido e verdadeiro. O primeiro com direito a genealogia que entra nesta história. Curiosamente, o pai chamava-se José e era carpinteiro, mas a coincidência bíblica só chega até aqui. Este viera de África e era negro. O que podia ser coincidência ou não, pois que ninguém sabe se o Outro era tão louro e branquinho como querem fazer crer os postais que se vendem às portas das sacristias. Mas este não nascera em palhinhas e não pregou no deserto. Antes correu muitos dias pelas matas do Huambo fugindo aos canhões assassinos da guerra civil. A mãe ganhou nome na praça dos comes e bebes, a Jaquina dos Coiratos. Vivia do futebol. Não havia melhor banca de venda de pele de porco à entrada dos estádios de Lisboa. Ainda hoje a podemos ver nos domingos pares às portas da Luz e, nos ímpares, por debaixo da Segunda Circular, embicada aos portões de Alvalade. Vende sandes de coiratos antes e depois de cada jogo e, embora ela considere uma cortesia, há muito adepto que lhe confessa, com a boca a regurgitar de gordura, que só foi ver a bola por causa dos seus coiratos.

Foi na ajuda à mãe e num dia em que o Sporting recebia o Real Madrid que Messias, ainda rapaz, tomou a decisão da sua vida.

- Gostava tanto de ir ver o jogo. A mãe não me arranja dinheiro para o bilhete?

- Tu estás doido, Messias? O preço de uma lateral não ganho eu aqui esta noite vendendo coiratos a estes alarves.

- Mas é o Real Madrid...

- Ainda por cima espanhóis. Era o que faltava. Fartar-se uma pessoa de trabalhar para dar de comer a esses gulosos. Era o que faltava!

Jaquina blasfemava enquanto virava os coiratos sobre o carvão e fazia trocos e vendia minis à freguesia excitada.

- Qual é o problema em serem espanhóis?

- Com a espanholada é sempre pela medida grossa. Esta noite, o Sporting leva quatro ou cinco. Acredita no que a mãe te diz, que ando nestas coisas da bola há muitos anos. No tempo do Eusébio, vá que não vá. Mas depois disso só cá vêm para dar cabazadas. Era o que faltava. Ficar sem o lucro da noite para tu ires assistir a essa pouca-vegonha.

Messias choramingou.

- Gostava tanto de ver o Real Madrid.

- Vais quando ganhares um ordenado e, se fores esperto, em vez de gastares fortunas em bilhetes arranjas uma profissão em que possas entrar à borla.

- À borla? Mas como?

- A polícia entra de graça. Reparaste nos dois clientes que saíram daqui com quatro sandes de coiratos em cada mão? São tiras. Já lá estão dentro e aposto que à porta nem disseram boa noite.

-A bófia entra à borla? Messias não queria acreditar. - Pergunta a quem tu quiseres.

Por acaso até perguntou e nesse dia tomou uma decisão. Quando fosse grande, haveria de ser polícia.

E foi.

Mas Deus é assim. O que hoje dá com uma mão, amanhã tira com a outra. Ia no segundo ano de giro, ainda só gozara meia dúzia de borlas entre a Luz e Alvalade, quando teve o azar de estar de piquete naquele dia maldito. A central de operações chamou. Dois tipos com meias de senhora enfiadas na cabeça e pistolas-metralhadoras tinham entrado num banco. Um dos clientes desatou aos gritos e foi abatido, enquanto os alarmes guinchavam, assustando os ladrões, que se entrincheiraram fazendo doze reféns.

Messias ligou a sirena, pôs em movimento os pirilampos do carro e, assinalando a marcha, meteu-se pelo trânsito de Lisboa, convencido, na sua boa-fé de autoridade, que era o suficiente para que o trânsito, obediente, desse prioridade à viatura que assim se deslocava pelos seus próprios meios. Constava no relatório, que mais adiante pormenorizava: "Eis que, no cruzamento já perto do banco, automóveis suspeitos, em vez de respeitarem o sobredito sinal de marcha de urgência, não pararam no verde e a colisão deu-se conforme o croquis em anexo, sendo que todos os suspeitos que se atravessaram em frente à nossa viatura sem respeito pelos sinais de emergência foram capturados, com excepção dos assaltantes materiais do banco, porque morais serão muitos mais, que se puseram em fuga levando consigo o produto do crime. Eis o que levo à consideração de V Ex. para os fins que tiver por convenientes." E o que o chefe achou por conveniente foi o seguinte:

- Umas bestas. Não passam de umas bestas!

- O chefe, o senhor não vê que...

- Eu vejo até bem de mais. Suspeitos? Um bando de faroleiros a conduzir em Lisboa, que se estão nas tintas para a autoridade, para os sinais de emergência, para todos em geral, são suspeitos de quê?

- Mas eles não respeitaram os pirilampos e a sirena. Ainda por cima as nossas sirenas fazem um cagarim do catana Atravessaram-se de propósito, só pode ter sido.

- Oiça lá, ó seu camelo. Desde quando é que em Lisboa há um automobilista que respeite o código? Você é polícia ou é parvo? Ninguém respeita nada. Nem semáforo nem traço contínuo ou você anda na rua e anda cego?

- Mas chefe...

- Desprendam imediatamente os suspeitos e peçam-lhes desculpa, vá.

- Desculpa? Mas eles não respeitaram a...

O chefe estava com a mosca e berrou mais alto:

- Que se lixe. Daqui a pouco temos aqui as televisões, os jornais, as rádios, cada um dizendo o que lhe vem à cabeça, o inspector a cagar postas de pescada, a Amnistia embirrando e o comando a querer saber que folclore é este. Ponto final. Tudo na rua, ninguém presta declarações e vocês os três nem põem o nariz fora da esquadra. Ah, e preparem-se para pagar o arranjo do carro da polícia.

Messias baqueou.

- Pagar? Mas o carro ficou sem conserto.

- Pior para vocês. Pagam um carro novo. É do regulamento. A corporação é pobre.

E foi assim que a polícia arruinou Messias. Depois veio o gozo nos jornais, o inspector foi a todos os noticiários dizer mal dos rapazes e jurou processos disciplinares terríveis, e o ministro aproveitou a ocasião para dizer que a polícia que ele estava empenhado em modernizar não contava com artolas.

Um assalto que arruinou o jovem guarda e o colocou na lista dos artolas, coisa que o ministro renegava. No bar, os colegas ainda tentaram animá-lo.

- Não desanimes, pá. Cá na casa ou somos artolas ou calhordas. Espertos só lá em cima.

- Anima-te, Messias. Talvez ainda surja por aí um rei mago para te ajudar.

Mas este não tinha direito a reis magos. A porcaria do assalto estragara tudo. Tudo. Até as borlas aos jogos.

As sandes de coiratos outra vez no seu horizonte de polícia desempregado. E foi então que Porcalhão se atravessou na sua vida.

- Tu és passado, meu. Um tipo com quase dois anos de bófia vai trabalhar? Mas como é que é? - E depois?

- E depois nada, meu. Se não aprendeste a conduzir, ao menos aprendeste a gamar. Ou não deste a cana a nenhum gatuno?

- Lá isso, arrecadei alguns.

- E não aprendeste como é que se faz? Então do que é que estás à espera? Serves o Estado e o Estado, na hora de te pôr uma mão por baixo, enfia-te a pata na corneta e ainda te enterra mais. Vais à roda, os piscas ligados e o mono ganindo, arriscando a vida, vem um moinante na ganga da moina, estampa-se contra os bófias e ou morres ou pagas o carro?! É uma roubalheira, ó meu! A tua vida vale menos que um carro, meu? Se queres voltar a aturar a velha e a vender coiratos, é problema teu, mas que o Estado é mais gatuno que todos os gatunos juntos que eu conheço, lá isso...

Messias era pessoa de pouca fé. Diga-se a verdade que vender coiratos não estimula crenças e a carreira de polícia não será a escola de virtudes por onde um homem, ainda por cima fraco de vontade, encontra o caminho da santidade. A hesitação foi o primeiro passo. Ao segundo passo já Messias alombava com televisores às costas furtados de um contentor distraído ali para os lados de Xabregas. E pronto! Ninguém se deve espantar de Gaby o encontrar com o Porcalhão encharcando-se de mariscos à porta da Igreja de São Domingos. Eram homens de negócios, como gostava o antigo bancário de se mostrar.

 

               QUANDO UM GRUPO SE TRANSFORMA EM QUADRILHA

Fred Astaire nunca soube a razão por que seguiu os rapazes. A mais velha era Gaby, e andava pelos trinta, e, segundo anteciparam na apresentação, Doses tinha feito vinte a semana passada. Viviam todos numa casa abandonada entre Santa Marta e o Torel, um palacete que outrora deveria ter sido belo, com varandas de ferro que ainda se adivinhavam trabalhadas, por debaixo da podridão ferrugenta que vagarosamente destruíra por completo a frontaria. Através das janelas do primeiro andar via-se o céu devido ao abatimento do tecto, enquanto o rés-do-chão era um amontoado de destroços e lixo acumulado desde que o prédio morrera. Foi por esse labirinto de pedaços de cimento, barrotes podres e ervas daninhas que eles entraram até uma sala ampla, embora mal iluminada, com paredes tintas das humidades e onde através das brechas cresciam musgos. O chão era uma feira. Tarimbas com cobertores velhos, copos e pratos sujos em pilhas desajustadas, garrafas vazias, velas espetadas no gargalo de outras garrafas e, na parede, um calendário já sem uso onde uma mulher de seios nus anunciava uma marca de electrodomésticos.

- Há ali um quartinho ao lado que pode ser só para ti.

Gabriela pegou na mão de Fred Astaire e levou-o ao cubículo que em tempos teria sido a despensa. Fazia lembrar a sua cela de Vale de Judeus, embora menos iluminada. No chão havia palha velha, que sugeria um arremedo de cama.

- Eu dantes dormia aqui. Mas depois achei que não valia a pena e juntei-me a eles. Até porque, se quisessem abusar de mim, não tinham problemas. Não há portas.

A rapariga riu e Fred Astaire não se conteve:

- E algum deles abusou de ti?

Soltou outra gargalhada:

- São uns desgraçados. Se alguma vez acontecer, sou eu que vou abusar deles. E tu tem cuidado. Tens cabelo branco e papinhos debaixo dos olhos, mas eu não desgosto. Quando menos esperares, abuso de ti.

Saiu rindo e Fred Astaire deixou escapar um sorriso. Olhou em volta e sentou-se num caixote de fruta. Ouviam-se os outros a falar no quarto ao lado e era Doses quem berrava mais alto.

- Outro mangas? Vocês acham que já somos poucos?

Porcalhão atalhou: - É um velho baril.

E Messias concluiu:

- E fala pouco, ao contrário de ti, que pareces um cantante.

-Aqui o problema não é saber quem fala mais ou menos, mas quem entra com o guito para a despesa.

- Qual despesa? Por acaso pagas a renda, água e luz? Deixa-te de merdas, ó Doses, o velho não empata ninguém.

Foi Gaby quem trouxe o tempero de mistério à discussão.

- É o Fred Astaire.

A entoação foi de tal maneira grave que a olharam curiosos.

- Quem?

- Fred Astaire? Esse nome diz-me qualquer coisa. Jogador de futebol, não é?

- Bailarino. Também actor mas melhor bailarino.

Doses era cinéfilo. A paixão pela representação já o levara a ser figurante em duas ou três novelas. Mas, antes que os outros começassem com perguntas parvas, rematou a conversa:

- E já morreu. Portanto, esse gajo chama-se tanto Fred Astaire como eu me chamo Luís de Camões.

- Pelo menos tens nome de poeta. Mas esse Luís de Camões também já morreu.

- Mas eu não disse que...

- Quando entrei para a polícia, houve um professor que leu umas poesias do homem. Coisa complicada, coisa complicada.

- Por acaso só te conhecia por Doses. A porcaria do pó desfez-te a mona mas ao menos deu-te um nome. Doses! É mais fácil de dizer do que Luís de Camões.

Fred Astaire ouvia em silêncio e não podia deixar de dar razão a Doses. Nos outros tempos, quando ainda nem se sonhava com caixas multibanco, até alugara três assoalhadas na Brandoa. Não faltavam carteiras nem dinheiro todas as noites na sua mesinha-de-cabeceira quando chegava a hora do acerto de contas do dia. Chegou a trabalhar com dois muletas. Um para os transportes colectivos e outro para o futebol, procissões e romarias. As notas jorravam como vinho de um odre roto. Depois foi a caminhada até ao calvário. O velho professor, o Pulgas, a fazer tijolo no Alto de São João, Inês que fugiu com um vendedor ambulante de ouro, cansada de ter a polícia à porta e com o coração dorido de tanto sobressalto.

- Pensava que te tinham levado para o Governo Civil. Quando chegas mais parece que endoideço.

Foi tão breve essa sensação de ser esperado. De haver alguém do outro lado da porta, de uma qualquer porta, com um abraço à espera de outro, que bastava a recordação desses dias para doer e ao mesmo tempo sentir o sabor doce que esses momentos lhe marcaram na memória.

Fred amou sofregamente Inês. Pressentia o fim de tudo no início de cada beijo, a premonição do desastre nos tremores do corpo desnudado. Fred Astaire não se libertava da suspeição de que cada vez que mergulhava entre as pernas da amada a possuía pela última vez, um amor de despedida tão total como definitivo.

- Eu não sei viver com um ladrão.

- Foi a vida que me levou para isto. Não sei fazer mais nada.

-A desculpa é sempre a má sorte da vida.

- Que posso eu fazer, Inês? Já não tenho idade para aprender uma profissão.

-A profissão vem depois. Roubar é antes de tudo não respeitar a dignidade dos outros. É o mal que ganha ao bem.

- Eu não roubo. Não faço mal a ninguém. Ser carteirista é uma arte.

- Por favor, Fred.

- Não acreditas?

- Não.

- Nunca tratei mal ninguém.

- Fred! O homem que me abraça com tanta paixão não pode ser tão insensível. Já pensaste no que cada um dos otários, como tu lhes chamas, sente ao perceber que lhe desapareceu a carteira, com o dinheiro, com os documentos, se calhar com a fotografia da mulher e dos filhos?

- Eu sou profissional. Nunca destruo os documentos a ninguém.

Eram duas linguagens tão diferentes, denunciavam mundos tão distantes que o encontro de ambos só podia ser sonho. Quando Fred quis perceber já o tempo

escorrera entre os dedos de ambos e Inês estava longe. E Fred nunca mais amou.

Ao terceiro dia na companhia dos novos parceiros, armou-se uma tal zaragata que o velho carteirista temeu que o resto do palácio arruinado viesse abaixo, sepultando-os naquela fossa transformada em vala comum. Doses e Porcalhão estavam ao rubro.

- Mas eu já te disse que não te roubei o limão, meu! Eu até nem meto pó na veia. Só fumo. Para que haveria de querer a merda do limão?

-Agora não tenho ácido pró corte. Eu mato o cabrão que me gamou a merda do limão. Porcalhão, jura que não foste tu. E não cruzes os dedos enquanto juras!

- Eu juro, meu! Tás a ver? Os dedos todos à mostra.

- Messias!?

- Há? Eu? Deixa-me em paz, mano. Não tenho pachorra para aturar ressacas.

- Outro dia gamaste-me uma pastilha elástica. - Estava colada no caixote, pensava que não querias mais.

- E o limão? E agora o limão? Gaby entrou no baile.

- Devias dar graças a Deus. É a forma que Ele encontrou para não te picares.

- Deus nem sabe que eu existo.

Tinham tocado na principal dúvida existencial de Porcalhão. Perguntou a Messias, enquanto Doses agora desafiava Gaby.

- Será que Deus existe mesmo?

- Não sei. Mas Nossa Senhora de Fátima existe. - Há?! O que é que tu queres dizer com isso?

- O que disse. Não precisas do limão para nada.

Nem de limão nem da merda do pó.

- Como é que tens a certeza de que Nossa Senhora de Fátima existe?

- Porra, pá! Tu vais dizer-me que vão milhões de pessoas a Fátima ver uma coisa que não existe? - Não sei, pá. Não sei.

- Existe. Deus talvez não exista. Mas a Senhora? Até falou com os três manos que andavam numa de pastar gado. Claro que existe.

- Tu conheces-me, Gaby. Eu não ia discutir a merda do limão se não tivesse mesmo um limão.

- E quem é que daqui ia roubar-te o limão? Ainda se fosse coisa doce. Mas um limão?

- Não pode ser, isto não pode ser.

- Estás todo janado, é o que é. Janado! Deixa a merda do pó, Doses!

- Uma vez fui com a minha mãe a Fátima. Íamos por três dias e logo na primeira noite ficámos sem coiratos.

- Algum peregrino que os gamou.

- Chegam esganados, mano. Correm o país em cima dos calcantes para irem rezar. E comer. Chegam com os patins cheios de bolhas e a boca do estômago colada ao olho do cu. Muito comem aquelas almas.

- Não chores. Não é por chorares que o limão aparece.

- Passo fome. Às vezes dias sem comer para ter as coisas prontas quando vem a ressaca e depois fico sem limão. Não é justo. Eu devia morrer e acabar com tudo isto.

Porcalhão desinteressou-se de Deus.

- E porque é que não morres?

- Não me provoques, Porcalhão. Tu não me provoques!

- Vocês vão morrer todos de fome.

A voz de Fred Astaire parou os gritos e foi um silêncio curioso que olhou para ele, que, serenamente, aspirava o fumo de um cigarro.

- Há?

- O quê?

-Afinal o velho tem língua.

Gaby pediu:

- Deixem o Fred Astaire falar.

Alisou com os dedos os cabelos ressequidos. Sentou-se numa caixa, apagou o cigarro e disse:

- Vocês não são nada. Apenas entulho. Ou discutem por causa de uma pastilha elástica ou quase andam à porrada por causa de um limão. Precisas de um limão? Então, em vez de estares para aí aos berros que pareces uma vaca que perdeu uma cria, vai procurá-lo. Comprá-lo, pedi-lo emprestado, roubá-lo, sei lá, faz qualquer coisa. Mas não fazes. Nem tu nem os outros. Vão todos morrer de fome.

Porcalhão levantou-se, desafiador.

- Posso peidar-me? Já posso peidar-me?

- Calma. Deixem o velho falar. E, por acaso, tu fazes alguma coisa?

- Fui obrigado a reformar-me. Sou ladrão profissional. Carteirista. Os cartões de crédito deram cabo da minha vida. Mas sou ladrão. Aquilo que vocês gostariam de ser, mas não passam de uns fatelas ranhosos.

- Conversa de merda.

- O velhadas pifou, meu. Diz que é ladrão como se fosse coisa boa.

- Se roubar é coisa boa ou má, discute-se na igreja ou na escola. Não é esta casa podre e malcheirosa o sítio indicado para falar de moral.

Fred Astaire duvidou se a equipa de moinantes que estava à sua frente percebia o que ele estava a dizer. Messias deu-lhe razão.

- E se acabasses com o engonhanço e explicasses ao maralhal porque é que resolveste abrir a boca, hoje? Logo hoje, quando o Doses está com um ataque de ressaca?!

- Pelo que tenho visto e ouvido nestes últimos dias, só há duas portas para sair. Uma vai direita à morte ou à polícia, o que é a mesma coisa. Homem não se fez para estar preso. A outra porta pode-nos levar ao céu.

Porcalhão peidou-se.

- E nesse teu céu posso cagar-me à vontade?

Gabriela estava atenta e não deixou que a conversa fugisse do sítio onde estava. Fred estava a dizer coisas que ninguém ali sabia dizer. Nem pensar.

- E que céu é esse, Fred?

- Roubar a sério. Ficar rico.

Doses estava a tremer da ressaca. Transpirava. Riu aos soluços.

- Rico? Deixa-te de merdas, velho. Pelintras como nós nunca hão-de ficar ricos.

- Se continuares agarrado ao pó, não enriqueces de certeza absoluta.

- Mas qual é o truque, meu? - agora Porcalhão interessava-se.

- Não é truque. É organização e disciplina. Messias desatou às gargalhadas.

- É o que nos diziam na polícia. Organização, respeito pela hierarquia e respeitinho ao nosso Principal. Estás aqui estás a dizer que para se ser bom ladrão é preciso entrar para a polícia.

- É preciso responder-lhes com a moeda que usam. A cara é organização, a coroa é disciplina. Gaby interveio.

- Esperem, esperem. Se com organização e disciplina é possível ficar rico, então eu quero. Estou farta desta desgraça.

- Falta a ideia, Gaby.

- A ideia? Mas qual ideia? - Para ficarmos ricos.

Riu nervosa. Nunca tinha pensado nisso. Quer dizer, tinha sonhado coisas, mas uma ideia para levar por aí fora, não.

- E tu tens alguma ideia?

Olharam uns para os outros. Estavam vazios. Fred reconhecia que assalto para fazer fortuna de vez também não via como. Sabia da história do comboio-correio em Inglaterra, a coisa dera brado e os bandidos ficaram ricos que nem ameixas sumarentas, sempre ouvira falar do Alves Reis que tinha encharcado o país de ponta a ponta com notas de quinhentos, passado a perna ao Banco de Portugal e gozado que nem um nababo, mas eram coisas do passado. Hoje nem havia comboios-correio distraídos nem se conseguiam fazer notas como se fossem papelinhos de Carnaval por isso rematou:

- É preciso pensar. Tem que ser coisa grande para não nos preocuparmos mais com a vida.

E saiu da sala deixando um frémito de excitação.

- Se gamássemos um avião?

- Nem penses. Não é o filho da minha mãe que entra num animal desses. Coisa de bruxedo.

- O Porcalhão tem razão. Depois não tínhamos sítio para aterrar.

- Podíamos raptar um ministro. Depois pedíamos uma porrada de arame.

- Estão em saldo. Para ganharmos algum dinheiro, tínhamos que raptar o governo todo.

- E dizermos que pomos bombas? Ou dava dinheiro ou púnhamos bombas?

- Messias...

- Pronto, está bem. Já sei que é um disparate.

- E se fôssemos dormir e amanhã discutíamos a coisa com mais calma? Estou roto. Passei todo o dia a arrumar carros na Guerra Junqueiro. Roubar mesmo, se pudéssemos, era roubar a equipa toda do Benfica e depois pedir caroço aos adeptos. São mais do que as mães e todos entravam. Mas, pronto, já sei que é disparate. O Porcalhão só diz merdices, pronto. Não se fala mais nisso e toca a dormir. Talvez o Fred tenha razão. Precisamos de ficar ricos depressa. Pelo menos, vou sonhar que sou rico.

E sonhou.

Uran das Doses acordou de súbito. Deu um salto e gritou:

- O Fred tem razão. Já que é para nos irmos a eles, assaltamos um banco.

Porcalhão cambaleou.

- Os bancos estão cheios de pasmas e buzinas ligadas a todas as esquadras das redondezas. Tu estás todo janado, meu!

- Porcalhão, não chateies, pá! Se não for um banco, o que é que vamos roubar? A loja dos trezentos? Vai um homem teso e ainda sai mais teso com um penico de plástico numa mão e a outra cheia de fitinhas de enfeites. Dinheiro, bago, arame é coisa de bancos, tás a ver? De bancos!

- Lá isso! - sentenciou o Messias, e via-se pela expressão que estava já abraçado a quilos de notas, embora uma sombra lhe toldasse o rosto. Não conseguia esquecer que fora por causa de um assalto a um banco que se lhe haviam acabado as borlas no futebol.

- Eu só conheço de ouvir dizer. Mas que há muito dinheiro, há! Eu tive não sei quantos clientes que estavam à frente de bancos e pagavam sempre e a horas. E notas novas.

Gabriela aderiu desta maneira ao golpe, embora, como mais tarde confessou, nunca tivesse frequentado um banco. Porcalhão ia deixando cair o queixo de tanto espanto.

- Tu nunca entraste num banco?

- Não. Porquê?

- Porque não se acredita. Um banco é mais importante que uma igreja. Vai lá toda a gente, crentes e não crentes, além de que banqueiro é mais importante que padre.

- Pois seja, filho. Mas quando eu andava na vida fazia o serviço durante a noite e dormia à hora de expediente. Além de que o dinheiro que ganhava ia logo para as mãos do chungas do Narciso, que nem queria ouvir falar em bancos.

- Nunca percebi como é que as tipas como tu, que andam no engate, precisam de um chulo atrás. Comem-vos o dinheirinho todo. São uns velhacos! - A costela de polícia do Messias estava ali a dar palpites e também um niquinho de ciúmes.

- Olha, filho, se não for o chulo, é o banco, é o governo, é essa tropa que anda por aí toda a roubar enquanto uma mulher dá o corpo ao manifesto. Gastou-o, que lhe fizesse bom proveito. O que interessa é o nosso. Como é que vamos fazer?

Logo ali ficou decidido que Fred Astaire faria o plano do assalto, muito embora Doses fosse contra todos os planos em geral e contra os do assalto ao banco em particular.

- Não se passa filme nenhum em que o maralhal não faça um plano que não caia logo nas mãos da bófia. A táctica deve ser tudo ao molho e fé em Deus.

Era a bocarra de um impaciente, como comentou Porcalhão, e coube a Fred Astaire a organização do assalto por ser unanimemente considerado o mais inteligente. Retirou-se para o quintal da casa. Havia uma mesa de pedra no meio das ervas daninhas que servia à vontade para trabalhar, enquanto no vão das escadas a conversa redobrava de energia.

- Vocês estão marados, manos. Um tipo entra num banco e nem tem tempo de dizer bom dia, vai logo de cana. Eu sei como é que é. Fartei-me de fazer gratificados, eu sei como é!

Messias remetia esta sabedoria para os seus tempos de polícia. Naquela época, chamavam-se gratificados porque era feio dar gratificações a polícias. Um homem passava quatro horas a fazer de conta à porta do banco e no fim do mês lá vinha o pagamento do aluguer à hora. Messias sabia que aquilo estava cheio de botões de alarme, guizos, buzinas e chocalhos por tudo o que é sítio. Ao menor descuido era a morte do artista. E depois era uma berraria traiçoeira. Quem está por perto não ouve nadinha, é como se o banco estivesse morto, mas não há gabinete, desde a polícia, passando pelos bombeiros até chegar à Protecção Civil e à igreja da paróquia, em que não comecem logo a grasnar besouros a torto e a direito. Com ele acontecera duas vezes. Rompia já o sol sobre a cidade, Messias a segurar-se ora num pé ora no outro, que quatro horas a olhar para a madrugada só é bonito para os poetas, e quando dá por si uma algazarra de sirenas dos carros-patrulhas, metralhadoras a passear por todo o lado como se fossem ramos de flores e, de repente, descobre-se que era rebate falso. A mulher da limpeza, esmerada no serviço, resolvera polir o botão de um dos alarmes. Pronto. As autoridades todas em polvorosa defendendo os carcanhóis do banqueiro.

Da segunda vez foi mesmo assalto. Mas iria lá o desgraçado do Messias, ex-vendedor de sandes de coiratos e amante de borlas no futebol, descobrir que aqueles dois senhores bem vestidos, que até o cumprimentaram à entrada, iam ali com tão tresloucados propósitos. Acho que um deles ainda disse:

- Venho levantar este cheque!

Meteu a mão no casaco. Em vez do cheque saiu um revólver 38 e o caixa nem disse ai. O dinheiro tirado de uma só vez e eis que os dois saem com a mesma naturalidade com que entraram. Ainda hoje se lembra de que um lhe desejou boas festas e Messias admitiu que havia cidadãos simpáticos, embora não compreendesse porque lhe davam as boas-festas em Agosto. Só percebeu quando o gerente, vermelho de cólera, saiu da agência, mangas arregaçadas, lhe apareceu pela frente longe daquela cortesia de verniz com que todos os dias o cumprimentava:

- Você não viu os assaltantes? Mas que merda de polícia é você que passam dois ladrões pela frente e nem lhe dá o cheiro?

O gratificando ainda quis explicar que os ladrões não se conhecem pelo cheiro, mas o gerente das duas, uma. Se era o tal homem dos sorrisos afáveis com que comia os carcanhóis aos clientes, representava agora um grande papel, pois ninguém pode ser tão doce e tão ordinário ao mesmo tempo.

- Paga o banco uma porrada de massa em gratificados para ter à porta um cacete. Um cacete, está a ouvir? Cum caralho! Você não viu os gatunos, caralho? Mesmo agora saíram, passaram pelas suas trombas e você ainda está de mãos atrás das costas. Mas que vida filha da puta! Desapareça-me daqui, caralho, desapareça-me daqui que eu nem já o consigo ver direito.

Por acaso, Messias nem ficou muito ofendido. Estava habituado. Era assim que o seu chefe lhe dava os bons-dias, mas aquela de ele cheirar os bandidos era ofensiva. Há cães que cheiram. Mas só conhecia os que cheiram droga, agora cheirar gatuno era coisa que só um gerente bancário sem nenhuma formação policial podia inventar. Aliás, conforme mais tarde explicou ao chefe, foi um alívio não ter visto os gatunos.

- Um milagre, chefe! Se, com a autoridade que me está distribuída, tivesse percebido que eram gatunos, teria de fazer uso da força muscular que me está distribuída e era um sarilho. Partia as trombas a algum deles e amanhã era o principal herói dos telejornais onde animal e javardo seriam os melhores elogios distribuídos à minha pessoa, enquanto os meliantes apareciam como os maiores coitadinhos do mundo. Um milagre!

Aliás, era prática comum naquele tempo qualquer; polícia começar a assobiar para o ar ou, se fosse noite, fingir-se distraído à procura da Estrela Polar quando estoirava sarilho na vizinhança. Aparece um bando de rapazes ainda com penugem na cara e vá de tratar a autoridade abaixo de cão. Não dá jeito. Uma pessoa apetece-lhe logo afiambrar umas cacetadas para aprenderem a gozar com o paizinho deles, e o pasma fica feito num oito com a fronha espetada em tudo o que é escaparate mostrando que já não se pode ser jovem, alegre, rebelde, coisas que se ensinam na catequese e que revelam inteligência, que não apareça logo farda a distribuir porrada.

- Onde é que arranjamos os fugantes? - perguntou Porcalhão.

- Há?!

Gabriela quando ouvia falar em armas levantavam-se-lhe os cabelos.

- Ninguém em seu perfeito juízo assalta um banco sem ir munido de fusca, olha que porra!

- Doses, tu não me fales em coisas dessas que vai-se-me logo a vontade.

- Então como queres fazer? Levantas a saia, mostras a perna e dizes ao caixa, olhe aqui o pernão enquanto o meu amigo mete os garfos na caixa do guito? Mas tu sabes o que dizes? Aqueles rançosos bem-cheirosos cagam-se todos quando olham para a fusca, minha! Tás a ver? Eu quero uma igual à do Dirty Harry, que dá cá uns tiraços que um homem até pula. Messias, tu é que foste pasma. Onde é que encontramos as armas?

Estava distraído e a resposta foi infeliz, embora se deva reconhecer que foi formalmente correcta.

- Primeiro temos de fazer um requerimento à polícia de uso e de porte de arma. Precisamos de duas fotografias tipo passe, certidão do registo criminal e...

- Não admira que fosses corrido da autoridade, meu - interrompeu Porcalhão: - E o que é que punhas no requerimento? Solicito a Vossa Excelência que me seja concedido o uso e porte de arma para assaltar um banco... era isto? Precisamos de fuscas maradas, meu. Daquelas de que não há registo nem título de propriedade.

Messias despertou. Era vulgar ainda raciocinar como se estivesse envergando a farda que legalmente lhe estava distribuída.

- Pois é!

- E então?

- Então, o quê?

- As fuscas, os fugantes, onde é que apanhamos uma coisa dessas em bom estado de conservação?

Pensou durante uns segundos e acalmou o nervosismo de Doses.

- Conheço uns ciganos que vendem. Quando chegar a hora, trato da coisa.

Gabriela estava visivelmente incomodada com a conversa. Tivera um chulo, o Felisberto Manequim, homem de toiros e segurança de personagens importantes, que usava sempre duas pistolas. Metidas no cinto como os xerifes americanos, e que não largava dia e noite. Dormia com as suas queridas, como ele lhe chamava, debaixo da almofada. Um dia entrou em casa, estava Gabriela nua, banho tomado, preparando-se para mais uma noite de faina no Intendente e a nudez arrebatou o garanhão que vivia dentro dele. Agarrou-a sem tirar as armas do cinto, abraços, nomes feios que o Felisberto excitava-se insultando-a, coisa que, confessava ela, também a desnorteava, e vá de meter mãos por aqui, apertar por ali, enquanto se arrastavam para a cama e Gabriela se esforçava por lhe despir o casaco e tirar a gravata. Ninguém ainda hoje sabe como é que foi. Mas uma das pistolas enfiadas no cinto disparou e o tiro foi direitinho às partes do Felisberto.

- Santa Maria, que eu nem acreditei no que vi quando abri os olhos depois do estrondo. Pelo cano das calças caíram-lhe os tomates no chão. Eram duas castanhas de caju e o Felisberto berrava como um bezerro desmamado.

Messias desconfiou:

-Afinal deu um tiro nos tomates ou nas castanhas de caju?

- Ó Messias, vê-se mesmo que pertenceste à bófia. Claro que foi nos tomates!

- Então porque é que a Gabriela falou nas castanhas de caju? É a primeira vez que oiço chamar semelhante coisa às partes de um homem.

- Filho, se isso te incomoda tanto, acabou-se. O Felisberto ficou sem os tomates e ponto final.

- E depois? - quis saber Doses.

- Foi para o hospital. Coseram-lhe o que sobrou das peles e agora fala fininho que parece a mulher da fava-rica.

- Tornou-se rabo? Sem eles e com a voz fina só pode ter sido.

- Qual é o problema? Um tipo por ter a voz fina não quer dizer que seja da larilada. Conheço muitos marmanjos que têm voz de violino e gostam da fruta pra cacete.

-A voz fina, não digo. Mas sem tomates... - insistia Porcalhão.

Gabriela despachou a conversa.

- Olha filho, conheço por aí muito garanhão que quando está no emprego berra com os empregados por tudo e por nada, vai para o ginásio fazer músculos e anda com um cabedal que faz inveja, e depois, quando chega a hora da verdade, baixa as cuequinhas e volta logo o pacote para ser entubado. Mas que o Felisberto ficou capado e com a voz fininha é verdade, e cá ao pé de mim nem falar de pistolas. Deus me livre!

A conversa ficou por ali e Messias com a incumbência de arranjar os fugantes, pois acabara de entrar Fred Astaire, ar circunspecto, um papel pardo na mão e a ponta do lápis tocando nos lábios.

- Preparei aqui uma coisa que não sei...

Os outros olharam-no e ficaram em silêncio. Fred Astaire também. Continuava a ponderar sobre o caso.

- E então?

Doses não continha a curiosidade. Afinal fora ele o criador da ideia, talvez da primeira ideia que tivera nos últimos anos.

- Então, o quê?

- Porra, o assalto, pá! Estás enfiado há que tempos no quintal a pensar, que um homem não pode ir urinar nem nada, e chegas aqui e dizes que preparaste uma coisa que não sabes? Não sabes como? Há assalto ou não há? Vamos fazer a porra do banco ou continuamos a ouvir a Gabriela a contar histórias dos gajos que comeu e que ficaram sem tomates?

Fred Astaire estacou, surpreendido.

- Gabriela, comeste as partes de algum desgraçado?

- Não é nada disso. Palermices do Doses. E o banco?

- Isto só lá vai se trabalharmos como se fôssemos uma equipa de futebol.

Porcalhão não deixou passar a oportunidade para logo aplicar os seus conhecimentos de treinador.

- E como é que vai ser a táctica? Homem a homem e o resto para a frente, ou pontapé para o alto que enquanto estiver lá em cima não chateia a malta cá em baixo?

- O que queres dizer com isso?

A pergunta de Doses sintetizava o pensar dos outros. Ninguém percebera a gracinha e Porcalhão ficou amuado.

-A coisa é simples - começou a explicar o Fred. - Precisamos de uma pistola. Até pode ser de alarme, que a coisa é só para assustar. A Gabriela entra e vai para a bicha de uma das caixas. Quando estiver só com uma pessoa à sua frente, entro eu para preencher papéis, como se fosse depositar dinheiro.

Porcalhão não se conteve:

- Como é que podes ir depositar dinheiro se estás teso que nem uma cavala?

- Faço de conta. Não percebes que se pode fazer de conta que se tem dinheiro? É o que mais se vê por aí. Há tipos mais mijos do que nós e que toda a gente jura a pés juntos que estão fartos de bago. E estão mijos, estás a ouvir?

- Como?

- Não interessa. A coisa é assim. Antes de chegar à caixa a Gabriela tem um ataque. Dá-lhe uma coisa e cai. Mas tens de gritar, Gabriela. Gritar para as pessoas olharem para ti e, quando começar a gritaria, o Messias chega à porta do banco e faz dois disparos. Bastam dois disparos para fazer estrondo, e pronto! O resto é comigo, com o Doses e o Porcalhão.

Ficaram boquiabertos.

-Assim? Só isso?

Fred não permitiu mais comentários. Era pegar ou largar porque tinha mais que fazer.

- Mas tu não fazes a ponta de um corno! - protestou Doses, porém Fred nem se dignou responder.

-Alinham ou não alinham?

Pese o facto de Fred Astaire não ter consentido que houvesse período de perguntas e respostas. Não podia explicar o plano com minúcia. Não perceberiam e armar-se-ia a confusão de sempre com todos a fazerem perguntas ao mesmo tempo sem que ninguém se ouvisse. Mas a coisa era simples. Enquanto Gaby estrebuchava e berrava no chão, Fred puxaria de uma Bíblia qual pastor de igreja instalada em vão de escada e, transtornado de fé, aproveitaria o ataque da rapariga, o estrondo dos tiros, a gritaria normal dos presentes, o susto dos empregados, para berrar castigos apocalípticos e profetizar a chegada do reino das trevas face à sanha vingadora do Senhor devido à maldade dos homens. A confusão permitiria a Porcalhão e a Doses saltarem o balcão, servirem-se da massa mais à mão, pirarem-se e no fim tudo acabar com Gaby a recompor-se e o pessoal a expulsá-lo da agência, que aquilo não é lugar para malucos. Não era assalto a mão armada, não podiam acusá-lo de furto, até podia dizer que, cansado da vida do crime, se redimira e se tornara pastor de almas, tudo se resumiria a furto por descuido, infracção sem dignidade para pôr a polícia em alvoroço.

Os preparativos do ataque começaram nessa noite. Messias procurou Gaby. Ainda não dormia. Abriu os olhos e viu a cara do outro junto à sua cara.

- Que foi? - a voz já estava sonolenta.

- Deixa-me dormir contigo, Gaby.

- Messias!? Com tanta noite para me pedires uma coisa dessas e logo hoje? Tu não sabes que precisamos de nos levantar cedo?

- Tenho medo, Gaby. Um assalto a um banco é sempre coisa ruim. Pode haver mortes.

- É preferível a morte a esta vida sem esperança, Messias.

- Eu sei. Se morrer, paciência. - Então, qual é o teu medo?

A voz murmurante baixou ainda mais. Tornou-se num sussurro:

- Nunca estive com uma mulher. Gaby soergueu-se entre os cobertores. - Não é verdade!

- Juro.

- Um polícia virgem?

Messias não respondeu. Não havia raparigas interessadas em vendedores de coiratos e a polícia não lhe ensinara o caminho da conquista. Talvez por isso mesmo nunca tivesse sido um tira a sério, pois os outros colegas, os operacionais que saltavam de pistola em punho catando ladrões nos intestinos da cidade, descansavam depois de mil lutas nos braços de amantes sôfregas em todos os bairros da esquadra. Messias nunca foi capaz de dar o passo em frente. Os camaradas de armas gozavam-no, e ele cada vez mais medroso de enfrentar gatuno ou mulher.

Gaby sorriu. Acariciou-lhe os cabelos e ciciou:

- Vem.

Na manhã seguinte, quando o Sol despertou em Lisboa e o bando se preparou para o assalto, Messias ainda não pregara olho, mas sentia-se o homem mais valente do mundo. Ouviu o velho com atenção explicar qual a missão de cada um. O ex-polícia tinha na algibeira uma pistola de alarme comprada na Feira da Ladra. Tinha sido mais barata do que as outras que os ciganos vendiam e para fazer barulho não era preciso nada do outro mundo.

O plano de Fred Astaire era simples. Ele e Gaby encarregavam-se do espectáculo. Messias trataria do medo, enquanto Doses e Porcalhão rapavam a massa. E assim arrancou a mais rápida operação de assalto a bancos de que há memória.

Fred entrou. Debaixo do braço, uma Bíblia. Quase de seguida, Gaby passou as portas, dirigindo-se à fila que estava à espera de ser atendida. Ele preenchia documentos como se fosse fazer um depósito, enquanto olhava para a porta, esperando que Messias se aproximasse. Viu o rapaz a espreitar e ficou tranquilo. Porcalhão e Doses deviam estar a aparecer. Se fosse um filme, chegara a hora do sonoplasta montar na banda sonora um coração a bater forte e rápido, sem outros sons nem música de fundo. Aliás, Fred estava convencido de que os clientes escutavam as batidas do seu. Não era o território de acção do velho carteirista, sentia-se deslocado, como se tivesse entrado numa festa sem ser convidado, sem conseguir prever os momentos seguintes. Só a aflição da miséria obrigava a tanto improviso. E a tanta loucura. Quando faltava um cliente para a rapariga ser atendida, ele deu o sinal. Gaby soltou um pequeno grito, depois outro mais forte, até caiu esperneando e berrando como se tivesse sido possuída por coisa má. Os clientes presentes olham surprendidos, há dois ou três que acodem à mulher, e nesse instante já Messias, à porta do banco, dispara o primeiro tiro e começa o banzé. As pessoas que socorriam Gaby assustaram-se. O tiro sugeriu a iminência do assalto, correm aos gritos cada uma em sua direcção e irrompe Fred Astaire evangelizador, qual, missionário dos novos tempos, que sobe para uma cadeira, de Livro Sagrado em punho, perorando profecias terríveis que ribombavam pela agência: Meu senhor, és tu quem o sabe! Ele, então, me explicou: estes são os que vêm da grande tribulação: lavaram as suas vestes e alvejaram-nas no sangue do Cordeiro, recitava e fazia sinais a Messias para dar o segundo tiro, pousou o pé direito sobre o mar, o esquerdo sobre a terra, e emitiu um forte grito, como um leão quando ruge. Ao gritar, os sete trovões rimbombaram suas vozes, e Messias não disparava, dando saltos por razão que se desconhecia e de Porcalhão e de Doses nem sinal, Quando os sete trovões ribombaram, eu estava para escrever, mas ouvi do céu uma voz que me dizia guarda em segredo o que os sete trovões falaram, não o escrevas, e não continues o assalto, acrescentou Fred para com os seus botões, pois que naquele preciso momento uma velha, temente a Deus e tremente de medo, saltou-lhe para o colo, pedindo que a salvasse. A pistola encravara. O fulminante do primeiro disparo não fora ejectado e, para agravar a coisa, Porcalhã amparava Doses, ofegantes, caídos a poucos metros da entrada da agência, sem forças para o último im pulso de energia. Não admirava. Doses, com medo de dar bronca e não conseguir gamar por descuido a cai xa bancária, resolveu picar-se. Só que, em vez de ficar desperto, passara-se e, por mais que Porcalhão lhe desse estalos para o acordar, Doses sorria de gozo olhos revirados, babava-se. Quando o gerente do banco surgiu para saber o que se passava e acalmar os mais exaltados, já Gaby desmaiara mesmo, pontapeada por um homem assustado que, em vez de fugir do banco, fez do corpo dela trampolim para se esconder atrás do balcão, e Fred, com a velha ao colo abraçad ao seu pescoço, olhava espantado o espectáculo que acabavam de dar, com entrada grátis e sem direito a repetição.

O gerente compreendeu a situação num ápice.

- Calma, calma. Não é assalto nenhum. O tiro não é tiro. Foi com certeza o escape de um carro. Foi apenas essa senhora que desmaiou. Chamem uma ambulância e façam favor de tratar dos vossos negócios.

Calma. Ah, e ponham esse pastor evangélico na rua. Aqui não se prega às almas.

Fred saiu do banco com a velha ao colo. Nem queria acreditar. Um assalto tão bem preparado não tinha passado de uma girândola de foguetes.

Mais tarde, já com Gaby recuperada, reuniram-se em casa. Messias não se cansava de justificar que a pistola tinha encravado e, como dera o tiro dentro da algibeira para não se perceber que era de alarme, o fulminante queimara-lhe a algibeira.

- E agora onde vou descobrir umas calças sem os bolsos rotos?

- Este merdas pirou! - Porcalhão descarregava em Doses. - Carreguei com o animal às costas mais de uma hora.

- Dói-me o corpo todo. Parece que toda a gente que estava no banco passou por cima de mim.

- Se não tivesses passado a noite na paródia com o Messias, já não te doía o corpo.

- Encravou. Eu bem puxava o gatilho, mas nada. -A culpa foi minha.

Fred apagou a ponta do cigarro contra o chão, esmagou o resto com o sapato e repetiu visivelmente melancólico:

-A culpa foi minha.

Doses quis balbuciar qualquer coisa, mas ficou-se por um gesto sem forças.

- Vocês nem jeito têm para ser ladrões. Eu serei toda a vida carteirista. Desculpem-me. Não passamos de pedaços de merda.

Dito isto retirou-se para o seu quarto e deitou-se na palha. Acendeu outro cigarro. Fred confrontava-se com as suas próprias impossibilidades. Passara a vida treinando os bafos. O indicador e o médio. Rápido como um garfo que pica a comida. Entra e foge. Movi mentos de valsa. Ligeiros e espertos. Uma carteira fUran tada como se fosse uma carícia. A adrenalina nas pontas dos dedos e depois a representação:

- Roubaram-lhe a carteira?! Mas como? Eu estava sempre ao seu lado. Eu sou uma pessoa séria, meu caro senhor. Pode revistar-me. Aqui está a minha carteira, a chave da minha casa. Se quiser, vou consigo até à esquadra. Já não há respeito. Isto é que é um país, há?! Chamam país a isto, é?!

A velhice estava aí. Cheia de memórias. E de carteiras de todas as cores. Uma geração que visitou o Aljube e Monsanto, Vale dos Judeus e Pinheiro da Cruz sem nunca perder o rasto que leva um homem até aos corredores penitenciários. Sai e torna à profissão de sempre. Ladrão. Podiam mudar as cadeias, a vida cá fora correr mais apressada, que homem que é homem não esquece as artes só porque foi engomado. O mesmo acontecia com os matadores. Roubar e matar era profissão para sempre. Pevides despachou cinco.

Levou vinte e cinco anos. A lei não permitia mais. Saiu

ao fim de doze e no primeiro dia de liberdade despachou dois. Exactamente aqueles que tinham consolado a mulher durante a ausência. E porque ela ainda protestou, ou não fosse de tomates lavar a honra com sangue, varou-a, cortando-lhe o coração em dois. Três dias depois estava preso. Quatro anos depois na rua. Mas agora fugido à justiça. Quando tornaram a deitar-lhe a mão, já contavam mais cinco tipos desfeitos por Pevides. Imprudentes que tentaram resistir quando Pevides roubava. Um homem é um homem. Para o bem e para o mal, e Fred tinha orgulho em pensar assim.

Enfiaram-no na solitária por não ter chibado Querubim. Querubim era ladrão por prazer. Até na cadeia roubava. D. Celeste, empregada da secretaria, vivia segura e confiada. Devia ter desconfiado de Querubim quando por três dias seguidos foi perguntar se o juiz tinha despachado a sua precária. Ela nem percebeu que o preso nem estava em condições de ter saída precária. Quando deu por falta da carteira e de outra mais pequenina onde guardava os santinhos e um crucifixo de prata que a avó lhe dera, já era tarde. Fred viu o outro meter os garfos na mala de D. Celeste, mas não se abriu. Ainda hoje não imaginava qual a razão que levava Querubim a querer tanto santinho, mas cada um é como é.

- Não vi, senhor guarda.

- Fred Astaire, dou-te uma tareia que ficas sem conserto.

- Pode matar-me, senhor guarda. Não vou acusar ninguém ao calhas só porque desapareceram os santinhos da dona Celeste. E depois quem é que lhe garante que foi um preso que fez os santinhos da senhora?

- O que é que estás para aí a dizer?

- Podia ter sido outra pessoa. Um colega seu, por exemplo.

Quando saiu da solitária ainda trazia sinais das nódoas roxas. Mas homem que é homem não chiba. Sabia que, se fosse ao contrário, Querubim também ficaria achantrado.

Era esta ausência de balizas, a não existência de um, sol como guia, que deixava Fred Astaire perplexo sei, compreender Porcalhão ou a necessidade de Doses me ter para a veia. Era tudo tão sem regra e tão sem norte Parecia que eram filhos das danças que tinham derrotado a valsa e o tango. Sem compasso nem melodia, bati da forte e bem gritada. Só podia ser assim. O improvisto não agrada a um carteirista. É um recurso. Não é um método. Procedimento que levou Fred Astaire a defen der várias vezes que carteirista podia ser ministro vice-versa. Como a propriedade comutativa da adição.

Gabriela entrou no quarto. Encostou-se a um canto a observar Fred Astaire, que tinha os olhos fixos na teia de teias de aranha que se enrolavam no tecto sujo.

- Tens razão. Não prestamos para nada.

O carteirista não respondeu.

- Somos todos tontos. A começar por mim. Sabes que esta noite abri as pernas ao Messias? Abri-lhe as pernas porque ele me disse que era virgem.

- E era?

- Não sei. Homem não é igual a mulher. Mas é, terno e hoje não pensei noutra coisa. Até durante o assalto.

- Estás apaixonada por um polícia virgem. Uma prostituta e um polícia virgem. Está certo.

- Dizes isso como se não estivesse certo.

- Estou Preocupado, Gaby. Não vejo como sair desta escuridão. Malditas caixas multibanco!

- E se voltássemos a assaltar o banco?

- Para quê? Ia tudo falhar outra vez. Nenhum de nós tem fibra para fazer assaltos a bancos. Não temos fibra. Nem disciplina. Nem cabeça.

Gaby encolheu-se ainda mais. Enrolava os cabelos longos no dedo.

- Outro dia disseste que precisávamos de uma ideia.

- Casar com o Messias de vestido de noiva e flor de laranjeira? - ironizou Fred Astaire.

- Não gozes. Se calhar é uma ideia parva, mas é. - E posso saber que ideia é essa? - Entrarmos nos concursos de televisão.

- Gabriela, dói-me a cabeça. Não digas mais disparates. Vai lá amar o Messias e cala-te. - Mas porquê?

- Porque não sabes o que dizes. Televisão é para gente séria.

- Há quantos anos não vês televisão?

- Não gosto. Tirando uns jogos de futebol, não vejo. - É por isso que falas assim. A televisão é coisa do povo.

- Gabriela, nós não somos povo. Somos o lixo do povo.

Levantou-se decidida.

- Vou pedir ao Messias e ao Porcalhão que roubem um televisor para veres como é. Ganham-se milhares e milhares só por uma resposta certa.

Saiu. Fred Astaire nem conseguiu ficar zangado, Sentia-se cansado e deu consigo a pensar em Inês. E se ela surgisse agora por aquela porta? Com certeza que traria asas de anjo e seria para tomá-lo no colo, passando-lhe a mão pelas rugas cansadas, o rosto luminoso a sorrir para ele.

- Olá, Fred. Estou aqui.

E dançariam toda a noite. Como faziam antes nos bailes da Feira Popular e seria uma valsa para ele conduzir como se fossem duas borboletas a voar pela sala. E dançariam, abraçados, o resto da vida. E o resto da morte.

Namorava e dormitava alheio à discussão que atravessava a camarata dos seus companheiros.

- Eu vou-me embora daqui. Não tenho cu para aguentar, meu. Não tenho cu.

- Porcalhão! És capaz de me ouvir?

- O velho está choné, minha. Isso é coisa de tipos passados dos carretos.

- A ideia não foi dele. É minha.

- O Messias, em vez de te fazer um filho, fez-te uma ideia.

- Mais vale ficar prenha com uma ideia do que ter merda na cabeça como tu. Não és uma santola, Porcalhão. És um sem-tola, estás a ouvir? E, se queres discutir, vieste bater à melhor das portas, que até posso ser uma maria-vai-com-as-outras, mas quando me chega a mostarda ao nariz não há puta em Lisboa mais ordinária do que eu. Queres discutir comigo, é?

Doses fez um gesto de repulsa.

- Eh, pá, discussões não, pá. Estou com a carola a ferver. Discussões, não. E qual é o teu problema, Porcalhão? Nunca gamaste uma televisão?

- Televisão? Concursos? Tu não ouviste esta gaja?

- E qual é o problema?

- O problema é que não vou gamar um televisor

por causa da televisão e dos concursos, meu. Se ganhasse algum, ia. Agora só para o velho ver. O gajo que vá! Gabriela olhou ternamente para Messias. - Messias, vais buscar a televisão? Eu ajudo-te. Messias não podia dizer outra coisa: - Vou. Eu vou sozinho.

Ela sorriu para ele. Um sorriso diferente que Messias percebeu e sorriu também. Foram os dois. Há muito tempo que o rapaz tinha marcado uma loja da Morais Soares que merecia uma visita.

- O dono, quando fecha o estaminé, corre as grades de protecção, mas não mete cadeados. Está empanturrado de aparelhos.

Passearam na Alameda, esperando que escurecesse. Estabelecera-se entre ambos um silêncio ao mesmo tempo comprometido e cúmplice. Foi Gaby quem tomou a iniciativa.

- Fizeste-me passar a noite mais bela da minha vida.

Messias corou. Sentaram-se num banco. Um grupo de rapazes jogava à bola nos relvados da Alameda e no banco ao lado quatro velhotes lançavam as cartas sob o olhar vigilante e crítico de uma pequena multidão que apreciava a partida. O rapaz rompeu o silêncio.

- Fui muito desastrado, não fui?

- Foste terno, meigo, fogoso.

- O meu problema é a timidez.

- Ser tímido não é problema nenhum. E tu? Gostaste?

- Gostei.

- Só isso?

- Não sei dizer muitas coisas, Gaby. Gostei tanto

que queria que fosse sempre assim.

Ela sorriu triste e ele percebeu.

- O que foi? Disse alguma coisa que não devia? - Não irias gostar de viver sempre assim, para

usar as tuas palavras. Eu não passo de uma mulher da

vida.

- E eu de um polícia falhado e de um ladrão sem energia. Se ao menos fosse como o Arroz Cigala.

- Quem é o Arroz Cigala?

- Esse que vem aí.

Gabriela voltou a cabeça. À frente de um grupo rapazes vinha Arroz Cigala. Era negro, camisa cavad olhar firme. Nem olhou para o casal. O grupo caminhava sério e decidido.

Vão roubar. É o bando mais perigoso que ataca nesta zona. Vivem lá em cima, na Curraleira, e corre a fama que o Arroz Cigala já despachou dois.

- Ser bom ladrão não significa ser bom homem.

- É um herói.

- Entre ladrões. Pareces o Fred Astaire a falar. Há um mundo dos ladrões e um outro que não existe. Quer dizer, existe para ser roubado.

- E é mentira?

- Mesmo que fosse verdade, o amor faz parte de todos os mundos.

Messias calou-se. Sentiu a mão quente da rapariga sobre a sua e estremeceu. Os velhos tinham deixado de jogar. Discutiam em voz alta, afastando-se do jardim. Aproximava-se a hora do jantar e os prédios em volta começaram a ficar salpicados de janelas iluminadas. O olhar de Gabriela viajava por essas luzinhas, descobrindo famílias que se sentavam à volta da mesa, alegres, contando uns aos outros as aventuras do dia.

- Quando era mais nova, sonhava. Sonhava disparates. Príncipes encantados e viagens até às estrelas. Disparates. Não há príncipes encantados e paguei caro todos esses sonhos. A vida tornou-se um pesadelo e eu fiquei sozinha.

-A cidade está cheia de gente como nós.

- Eu sei. Mas também sei que está cheia de sonhos e nós não sabemos por onde eles passam.

- Estamos perdidos, queres tu dizer.

Os rapazes que jogavam futebol gritavam uns com os outros. Messias prestou atenção. Um deles levantou-se a coxear e um outro pousou a bola no chão. I marcar uma grande penalidade. Os gritos sossegaram O rapaz tomou balanço, chutou e o que estava à baliza atirou-se sem medo esbofeteando a bola para longe. Agora uma parte aplaudia o guarda-redes e os outros gritavam com o jogador que falhara.

- Como é que eles conseguem ver a bola no mei desta escuridão?

- Concentração. Concentração e vontade de jogar. Vamos?

Levantaram-se. Dirigiram-se à Almirante Reis. Iam de mãos dadas.

 

                 UM TELEVISOR EM RUÍNAS

Doses acordou estremunhado. À luz da vela, Fred Astaire observava o panfleto com heroína.

- Estás a roubar-me o pó? Tu estás a roubar-me? - Não. Nunca tinha visto droga.

Doses tirou-lhe o pacote da mão.

- Os outros?

- O Porcalhão saiu, o Messias e a Gaby ainda não voltaram.

- Dás-me um cigarro?

Fred Astaire tirou um cigarro e deu-lhe. Acendeu outro para si. Doses inspirou o fumo longamente.

- Podes contar comigo nessa história dos concursos para a televisão.

- E o pó?

- Há?

- O pó. Estás agarrado, feito num oito. És um puto, podias ser meu neto e estás mais descarnado do que eu. Como podes querer alinhar em assaltos ou em concursos se não fazes outra coisa senão chutar pra veia?

Doses ficou crispado.

- Lições de moral, não. Não fugi de casa para ouvir outra vez a minha mãe através da tua voz. Liçõesde moral, não.

- Estou-me nas tintas para a moral, para a tua mãe em geral e para o teu vício em particular, como costumas dizer. Se queres morrer, morre. Não sou eu quem te vai pedir que te safes. Já me bastam os meus problemas.

- Então, qual é o problema?

- Enquanto só pensares em heroína, não pensas noutra coisa. É muita areia para essa cabeça-de-burro. Esquece a televisão, os concursos e mata-te.

O rapaz fixou Fred Astaire. Estava surpreendido com a aspereza.

- Tu és mesmo assim bera ou só dizes essas coisas para te armares ao pingarelho?

Encolheu os ombros. Doses representava para Fred o tempo da sua ruína e lia a passagem desse tempo através das suas passagens pela prisão.

- A primeira vez que fui preso nem sabia o qi era um drogado! - costumava dizer.

Para logo explicar que pouco a pouco os companheiros de cativeiro foram mudando. Cada vez mais rascas e cada vez mais viciados. Até as alcunhas com que cada um defendia o nome se alteraram. Dantes era o Pulgas, o Pevides, o Sandokan, o Fateixas, o Joí Alarve - título ganho por comer doze sandes de queijo ao pequeno-almoço -, o Alcaçuz, o Pirata, o Tigre, mas agora já não havia rastos de bandido de alto quilate. Ele era o Doses, o Fomínhas, o Make Love Not Druggs, o Serenal. Alguém pode levar a sério um ladrão que responde pelo calmo nome de Serenal? Conforme foram sendo substituídas as alcunhas que enxameavam as prisões, assim se foi agravando a ruína do carteirista.

- Não precisas de embirrar comigo. Não foi a malta do pó que te chinou o destino. Foram as caixas multibanco. Acabou-se o graveto nas estálias e tu ficaste só com as mãos.

-Tudo tem a ver com tudo. Por causa da droga há mais dinheiro a circular e as caixas multibanco... Doses saltou.

- Chega. Pra mim chega. Não tenho nada a ver com carteiristas arruinados, não sou dono da merda das caixas multibanco. O meu problema, problema da gente todos, é só um. Pode dizer-se de muitas maneiras, mas é só um: grana, arame, caroço, graveto, massa, bago, dinheiro. Isso mesmo! Dinheiro. E por caroço eu roubo, mato, vou a concurso de televisão e até canto. Portanto, se estás zangado com a vida, zanga-te com a vida, mas não me azucrines os abanos. Ponto final. Tenho sede, vou roubar uma coca-cola.

E saiu. Fred apalpou os bolsos. Não tinha cigarros. Era sempre a mesma coisa. À noite ficava sem tabaco. Contou o dinheiro que tinha nos bolsos. Chegava mas doía-lhe o corpo. Se confiasse em Doses poderia ter- lhe pedido que comprasse, mas o rapaz iria logo com prar um panfleto. Que raio de concursos seriam aqueles que tinham posto Gabriela tão entusiasmada? Apesar de tudo, era a única naquele grupo que merecia alguma consideração a Fred Astaire. Em comum havia o mesmo passado. Carteirista cresceu e viveu braço dado com prostituta, chulo, fadista e ladrão. A sua memória mais profunda surgia da mesma raiz e da mesma identidade do que a vida de Gaby. De certa forma, era herdeira de tradição marginal e clandestina. Filha da noite e do pecado, habitante do mesmo mundo onde Fred se reconhecia. E era esse o problema que o intrigava. Ele vira nascer a televisão. As primeiras emissões na Feira Popular. Por acaso até abichanara uma boa mão-cheia de carteiras e, desde então, a pantalha era uma janela aberta sobre o fantástico onde viajavam pessoas que tinham feito coisas. Por exemplo, Ingrid Bergman abraçando Humphrey Bogart em Casablanca encharcada de espiões, o derradeiro beijo, o último adeus que milhões de pessoas copiaram, desde os casacos aos penteados, o último suspiro, a carícia final que Fred não conseguira fazer a Inês no dia da sua partida. John Wayne corria pelas pradarias despachando índios, e Amália cantava em recortes de negro e branco por onde chispavam as centelhas do génio. Era uma caixa de segredos e mistérios. Sagrada. A sacralidade das emoções. O primeiro passo para chegar ao céu, já que era pelo céu que chegavam as imagens de encantamento.

Pois era aqui que o pessimismo de Fred Astaire esbarrava. Não descobria o encantamento de Doses ou do Porcalhão, que magia se libertava da timidez de Messias ou, até mesmo, da sua Gabriela. Ainda por cima eram descaradamente analfabetos. E brutos. Mesmo ordinários.

É certo que há muitos anos que não passava cinco minutos que fossem à frente do televisor. Fred Astaire tinha um segredo que escondia só para ele. Quando passou os quarenta anos descobriu que para ver certas coisas com mais minúcia precisava de franzir o nariz e semicerrar os olhos. Ao descobrir que fazia caretas sondou-se para saber donde viera aquele tique. Não demorou muito para descobrir que estava com falta de vista e, como não tinha dinheiro para comprar óculos, desistiu de olhar para tudo o que era excessivamente pequeno. Não via televisão. Só muito perto, coisa que na prisão ou em clube recreativo não dava jeito. Quando havia jogo de futebol procurava as montras dos estabelecimentos que expunham televisores ligados, encostava-se à vitrina, nariz quase em cima do ecrã, e dava-se por satisfeito.

Gabriela e Messias entraram carregando dois caixotes. Transpiravam, ofegantes.

- Viemos da Morais Soares até aqui puxando estes burros. Estou roto. - Messias deixou-se escorregar e ficou sentado no chão.

- Trouxeram duas?

- Uma. A outra caixa é a bateria. Esta casa maldita nem tem electricidade. Nem sabe o que é.

Gaby descalçava-se enquanto se abanava com outra mão.

- A bófia não chateou?

- Não há tiras nas ruas. A esta hora estão todos a beber ginja e a jogar às cartas.

- E agora?

- Temos que montar o animal. Deve estar a dar algum concurso.

Messias levantou-se com energia redobrada e começou a desencaixotar a fábrica das magias e ilusões. Fred Astaire sentou-se a observar. Bem perto, para ver o que o rapaz fazia.

 

       COMO FRED DESCOBRIU QUE ESTAVA VELHO

Porcalhão passou três dias sem aparecer. Ao segundo dia, começaram as perguntas:

- Ainda não apareceu? Onde é que se terá metido?

Ninguém sabia responder. Aliás, bem se podia dizer que nem Porcalhão nem Fred apareciam na sala comum. Mas o velho carteirista por uma razão clara: desde que a televisão chegara que estava dia e noite sentado na cama de palha, nariz colado às imagens. Os outros aceitavam este recolhimento. Fred via mas não via. Olhava e pensava e todos o respeitavam por pensar. Mas de Porcalhão nem rasto. Ao terceiro dia, Messias começou a bater a zona, falou com outros rapazes que andavam na vida, foi à Guerra Junqueiro, avenida onde costumava ganhar as massas com que matava a fome e o vício. Também ali não sabiam de Porcalhão. Há três dias que não aparecia.

Foi a gota de água.

- Se calhar chinaram-no.

- Ou deram-lhe a cana.

- Será que está doente?

- Deu-lhe um amoque e ferrou um tiro na pala. - O Porcalhão não tem tomates para se matar.

Um tipo para se chinar precisa de tê-los no sítio.

- Morto ou preso.

Doses não tinha dúvidas. Portanto, as primeiras diligências seriam na morgue e na polícia. Ele iria à morgue, Messias à bófia. Protestou logo.

- Tás pirado, mano? Entro numa esquadra e esta logo abafado.

- Eles andam atrás de ti?

- Não sei, mas é possível. Ando no gardanho há meses. Sei lá se já estou agarrado.

- Então, como é? Doses?

- Não posso ir a uma esquadra, Gaby. Vêem-ir

assim, todo ganzado e com estas roupas, não me dizem

nada. Ainda por cima me batem. Vais tu à esquadra vai o Messias à morgue.

- Nem morgue nem esquadra. A morgue está quase sempre infestada de judites. Parece praga.

- Já me desorientaram. Não sei quem vai aonde - Vamos começar do princípio. Não foi necessário. Porcalhão acabava de entrar. - Porcalhão!

- Onde é que te meteste, Porcalhão? - Donde é que tu saíste? - Fui engomado. Saí agora. - Preso? Mas o que é que fizeste?

- Gaby, não faças perguntas parvas. - Parvas?

- Se calhar engomaram-no por dar milho aos pombos.

- Mas pode ter sido...

- O que é que fanaste para te darem a cana?

- Estávamos assustados. Até íamos sair à tua procura.

Deitou-se na enxerga. As olheiras fundas mostravam que não dormia há muito tempo.

- Apanharam-me com um cantante. Um otário parou o carro e não me deu gorja. Deixou o cantante à vista e a porta aberta. Estava mesmo a merecê-las.

- E apanharam-te?

- O piolhoso tinha apenas ido dar um recado. Chamou um tira, que me deu o flagra.

- Devias ter dado corda ao sapato.

- Não tive tempo. Fui para o Governo Civil e o merdoso do juiz só hoje me mandou embora. Dois dias sem dormir. Estou feito em papas.

- Ouve uma coisa...

- Doses, estou roto.

- Não tens caroço?

Ensonado, procurou na algibeira. Tirou umas moedas e pôs-lhas nas mãos. Quase a seguir adormeceu.

Fred Astaire não deu por nada. Estava absorto a olhar para o aparelho. Decidira começar a tirar notas. De vez em quando, apoiava o pequeno bloco no joelho e escrevia com um coto de lápis pequenos rabiscos.

Mudava de canal. Umas vezes para a frente, outras vezes para trás. Parecia estar num velório. Apenas um ligeiro sorriso de tempos a tempos lhe iluminava o rosto. Gabriela levou-lhe duas bananas. Ficaram a apodrecer. Saiu apenas o tempo suficiente para dar uma saltada ao metro. Teve sorte. A carteira que tirou a uma mulherzinha com ar cansado que, distraída, ama mentava um bebé escondia cinco notas. Uma fortuna!. Largou a carteira na estação de correios dos Restaura dores, comprou cigarros e voltou para o seu buraco; Foi nessa altura que Doses perguntou:

- Então, ó velho, já viste tudo? Quando é que o maralhal tem direito a ver os bonecos?

- Já falta pouco. Já falta pouco.

E entrou no cubículo.

Saiu dois dias depois. Nas mãos trazia três blocos de notas. Messias comentou com um sorriso:

- O Fred Astaire nem parece que saiu de uma despensa malcheirosa. Quem o vê com tantos papéis julga que acabou uma aula na universidade.

- Se fosse a uma universidade, talvez não tivesse aprendido tanto.

Fred reparou que ele e Gaby estavam de mãos dadas. Sorriu. Porcalhão não se susteve.

- Como é, ó meu? Que raio de coisa estiveste a fazer que esta malta tem estado para aqui nervosa como se viesses distribuir a grande?

O velho sentou-se. Puxou de um cigarro e afagou os blocos de notas. Depois dirigiu-se a Gaby.

- Tinhas razão.

- Eu?

- Se formos espertos, ganhamos fortunas e ainda por cima gozamos que nem perdidos. Aquilo é nosso.

Gaby olhou-o surpreendida. Fred falava de uma forma diferente. Bem-disposto. Parecia mais jovem. Expirou o fumo e fez um gesto amplo com a mão.

- O maior disparate da minha vida foi passar tantos anos sem ver televisão.

- E agora?

- Precisamos de um telemóvel e de gamar muitas revistas.

- Eu trato do telemóvel - garantiu Messias, e Fred continuou:

-Aquilo é nosso. É a coisa mais fácil do mundo. Tão fácil que um grupo de atrasados mentais como vocês pode fazer um figurão. E mais importante: rapar-lhes a massa.

Doses não gostou.

-Atrasados mentais, ponto e vírgula. E tu pões-te de fora? Dormes connosco, vives aqui, se nós somos atrasados mentais, tu não és?

- Não. Eu sou ladrão. Carteirista.

- Tens toda a razão, Fred. Somos atrasados mentais. Não faz mal. Desde que venha arame eu sou tudo. Até freira.

Isto era Porcalhão a falar. Sentia o cheiro do dinheiro por perto e punha-se de cócoras.

- Precisamos de um telemóvel e de gamar muitas revistas. Para concorrer temos de enviar cupões recortados das revistas.

Gaby quis saber:

- E vamos concorrer a qual?

- A todos.

Fred folheou um bloco de notas, afastou-o de si e assinalou qualquer coisa. De repente, mudou de expressão. Tenso.

- Oiçam. Isto não vai ser como no assalto ao banco. O folclore acabou. Este é o meu território. Não há violência. Só truques e enganos, vigarices, rasteiras e fintas, disto sei eu. Há mais de quarenta anos que é a minha profissão. Portanto, tudo na linha. Se algum de vocês deixar ficar mal este negócio, vai saber quem é o Fred Astaire. - Calou-se e olhou-os um a um. Depois rematou: - Vamos começar.

Explicou. Em cima da mesa pôs várias hipóteses. Decidiram atacar dois ao mesmo tempo. Um era simples. O apresentador fazia perguntas e quem respondesse mais depressa ganhava cem contos por resposta certa. O segundo dava mais dinheiro mas era mais demorado.

- Neste encerram-te numa casa com mais meia dúzia de marmanjos e todas as semanas é expulso um. O que ficar, rapa a massa toda.

- O que é que se faz nessa casa?

- Nada.

- Então um tipo é expulso porquê?

- Porque não faz nada.

- Mas se não faz nada na casa! Nem para ser expulso? E como é que se ganha?

- Ganha-se por não fazer nada. Porcalhão olhou Fred com desconfiança. - Tu estás a gozar, não é?

- Tão certo como estarmos aqui todos. Messias apoiou.

- É verdade. Quando estava na polícia via todas as noites.

- Mas não se faz mesmo nada?

- Quer dizer, uma pessoa fala com os outros gajos, não é? Diz umas bocas, faz a comida e é filmado de dia e de noite.

- Mesmo a cagar?

- Tudo. Se engatares um miúdo e o fizeres ali à má fila, és filmado e visto por nós.

- Deus me livre. Fui puta mas não desço tão baixo. Era o que faltava.

- Gaby, deixa-te de merdas. Se para ganhar trinta mil mocas eu precisar de baixar as calças e pôr-me de rabiosque para o ar, estou lá. Que esquisitice é essa?

- Deus me livre.

Doses continuava sem perceber.

- Então um tipo ganha o guito como prémio por não fazer nada.

- E ficas célebre. Dás autógrafos, apareces nas revistas e em todas as festas.

- Mas para quê?

- Para não fazer nada.

Doses deu um passo em frente.

- Eu sou candidato.

- Tu?

- Se não faço a ponta de um corno e estou fechado durante três meses, talvez seja a única maneira de me libertar do vício.

- Como tratamento, não é mau. Não entra droga na casa.

- Põe aí o meu nome. Vou a esse.

Fred voltou-se para Messias.

- Sabes tocar batuque?

- Eu?

- És negro. Batuque é coisa de pretos.

- Mas estou cá desde pequenino. A minha mãe que...

- Olha lá, ó Fred. O que é que a porcaria do batuque tem a ver com os concursos? Ou há algum de música africana?

- Quem expulsa as pessoas da casa são os outros inquilinos e as pessoas que vêem o programa. O Doses precisa de saber todos os dias o que pensam dele como se deve comportar para não ser expulso.

- Lá isso.

- Não há telefone nem jornais. Portanto, a única forma de dar a volta ao caso é comunicar por batuque. Não conheces nenhum preto das barracas que toque essa porra?

- Não. Mas com um batuque pode fazer-se comunicação morse. Cada tantã é uma letra, eu aprendi morse na polícia.

Porcalhão sorriu feliz.

- Não há dúvida de que a polícia é uma escola de virtudes.

Fred atalhou.

- Toca a gamar um batuque e a ensinar morse ao

Doses. E revistas. Precisamos de muitas revistas. - E o concurso das perguntas e respostas? - Vai a Gaby. É a mais esperta de nós todos. E Gaby ficou nervosa. Ia aparecer na televisão.

 

                              AS ESCADAS DA GLÓRIA

O palácio em ruínas transformou-se num circo. Até Doses começou a picar menos. Porcalhão e Messias faziam todos os dias as rondas dos quiosques e tabacarias, furtando a retalho ou por atacado e amontoando centenas de revistas e jornais. Gaby recortava cupões que Fred e Doses escreviam de forma elegante. Para o concurso das perguntas e respostas havia uma revista especial que trazia todas as questões possíveis com a solução de cada uma, e já ninguém da quadrilha estranhava quando a rapariga dizia:

- Vou até lá dentro estudar.

Mas não era estudo a sério. A angústia minava-lhe a atenção. Era como um bichinho que rói, rói e distrai e, por mais força que alguém faça para se concentrar nesta ou naquela pergunta, nada salva a cabeça de caminhar ao desbarato por caminhos ínvios. A angústia de Gaby tinha uma razão de ser. Já enviara uma montanha de cupões e o maldito do telemóvel não havia meio de tocar. E se o endereço não está certo? Será que Fred Astaire sabe manejar com telemóveis? Será que descobriram que somos uma quadrilha de bandidos? Procurou desabafar com o velho. Respondeu-lhe confiante:

- Não têm hipóteses. O telefone tocará.

- Como tens tanta certeza?

- Porque sei o que estou a fazer.

E, pesem as dúvidas da rapariga, ele sabia. No dia seguinte o telefone tocou perante todo o grupo, que afanosamente cortava cupões. Fez-se um silêncio medroso em volta de Fred. Deixou tocar mais duas vezes, perante a aflição de Gaby, e atendeu calmamente.

- Estou, sim?... É, é dela este telemóvel, sim senhor... não, não... é o pai que fala. A minha filha está na biblioteca. Eu vou chamá-la... um momento, por favor...

Escondeu o telemóvel atrás das costas e falou baixo e pausado:

- É da televisão, Gaby. Controla-te, não grites, fala pouco e diz obrigada. Respira fundo, por favor. Respira fundo e calma. E diz obrigada.

Pegou trémula no telefone mas a voz estava segura. A conversa foi rápida e Gabriela disse obrigada ao desligar. Duas lágrimas de alegria dançaram-lhe nos olhos. Saltos, abraços e Doses, eufórico, gritou:

- Vou picar! Esta merece um chuto!

E de repente um relâmpago petrificou a sala. Fred Astaire deu-lhe tão grande e sonora estalada que uma trovoada não teria maior efeito nas respectivas testemunhas.

- Tu vais picar-te, o caraças! É hora de trabalhe não de disparates.

- Tu bateste-me.

- Não... Quando te bater, levas uma sova que ficas de ressaca mais de uma semana. Não queiras experimentar, Doses.

Porcalhão condescendeu.

- Bom, se uma lambada destas não é bater, eu vou ali e já volto.

Ao que Messias respondeu.

- Mas foi só uma. Sova é coisa mais complicada. Gabriela indignou-se.

- Vocês não têm vergonha? Acabamos de ser nomeados para o primeiro concurso e voceses discutem o tamanho da lambada que o Doses apanhou? Foi bem dada, pronto !

- Gaby, não se diz voceses.

- Seja como for! Eu preciso de estudar. Aliás acho que precisamos todos de estudar.

Doses ainda amuou por umas horas, mas o entusiasmo dos outros fê-lo esquecer a cacetada. Já Gaby exasperava.

- Não consigo. São coisas de mais. Não consigo.

Fred brincou.

- Qualquer doutor tem a cabeça do tamanho da tua. Escuta-me. Não queiras aprender. Isto não é um curso, é um concurso.

- Mas se não aprendo...

- Truques, Gaby. É para decorar e deitar fora. Por exemplo, a data da conquista de Ceuta: mil quatrocentos e quinze. Reparaste? Catorze, quinze, mil quatrocentos e quinze. A chegada ao Brasil: mil e quinhentos. Quinze com duas bolinhas.

- Isso é um bacamarte! - gracejou Porcalhão.

O olhar de Fred gelou-lhe a fonte das graças.

- Primeiro Presidente da República depois do 25 de Abril: António de Spínola. Primeiro e primeira letra do alfabeto. A e António. Estás a perceber?

- São harmónicas. A minha professora costumava brincar com esses truques - elucidou Messias.

- Harmónicas? Isso é instrumento para tocar, meu.

- Se não são harmónicas, são harmónias.

- Talvez filarmónicas. Fred, são filarmónicas,

não são? - Doses era agora todo doçuras.

O velho encolheu os ombros.

- São truques. Vamos recomeçar?

Insistiram até à exaustão. Foi a primeira noite das

últimas semanas em que Gaby e Messias não se aven

turaram no corpo um do outro. Abraçaram-se e sussurraram sonhos.

- Se ganharmos muito dinheiro, a primeira coisa que quero comprar é uma cama.

- E um fogão.

- Um fogão?

- Tenho saudades de comida quente.

- Quanto é que custará uma cama?

- E uma casa? Não gostavas de viver numa casa com luz?

- É uma fortuna. Mesmo que eu acertasse as respostas todas.

- Também gostava de ter calças novas e andar contigo na montanha-russa e comer farturas.

- Estás a sonhar muito alto.

- O Fred diz que se deve sonhar alto.

- Olha no que acabaram os sonhos do Fred. Ensina truques a gatunos para não morrer de fome.

- Tens sono?

- Tenho sonhos.

- Posso dizer-te uma coisa?

- Podes.

-Amo-te.

Gaby sentiu nesse dia as lágrimas pela segunda vez. Beijou-o docemente e adormeceu abraçada a Messias.

Fred ficou de vigília. Dormia pouco. Habituara-se na cadeia. Preso dorminhoco pode ser feito à má fila por um manhoso qualquer. Não era agora o caso, mas havia qualquer coisa no ar que lhe cheirava a perfume. E não era por certo a confiança nos rapazes. Não se admirava de que Doses fosse logo expulso da casa por causa de uma ressaca qualquer e nem o espantava que durante o concurso, Gaby pusesse a mão na anca, abrisse a boca e deixasse o estúdio de gravação com as orelhas a arder. Só que era tudo fácil de mais. Até ele estava tentado a candidatar-se. Havia um concurso de provérbios, um dos seus passatempos preferidos quando estivera em Pinheiro da Cruz. Chegava a fazer despiques com o chefe dos guardas. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. O luar de Janeiro não tem parceiro, mas lá vem o de Agosto que lhe dá no rosto.

Às vezes, quando o sono não chegava, já saciados de amor, Fred brincava com Inês aos provérbios. As gargalhadas dela ainda ecoavam nos seus ouvidos. Outras vezes, eram adivinhas. Qual é a coisa qual é ela que cai no chão e fica amarela? Inês roçava a ponta do nariz com o dedo indicador, olhos negros fixos concentrados no tecto e respondia um disparate. Riam os dois e Fred descobriu que ela respondia assim não porque desconhecesse a resposta, mas porque o disparate era objecto de gargalhadas.

Acendeu outro cigarro, aspirou e logo a seguir apagou-o. Uma pontada no peito fê-lo contorcer-se com dores. Respirou fundo e pausadamente. Não era a primeira vez que sentia aquelas picadas fortes que lhe adormeciam o braço. Deitou-se. Se Inês estivesse ali, inventaria logo um remédio com que lhe massajaria o peito e aqueceria a alma. Se esta história dos concursos resultasse, procuraria um médico. Era isso. À falta do calor de Inês talvez um médico lhe tirasse a dor do braço.

Porcalhão e Doses não conseguiam dormir. Foram dar uma volta e comer bifanas e beber cervejas às rulotes do Campo Pequeno.

- Doses.

- Há?

- Já se falou alguma coisa do caroço?

- Há?

- Caroço, bago. - Porquê?

- Porra, meu. Vais para o concurso da casa, a Gaby

vai àquele dos truques. Se vier bago, como é? A mielas.

Se não for a mielas armo um estrilho do cacete.

- O Fred disse que era a mielas. - Então, está certo. - Ele bateu-me. - És totó.

- Preciso de pó, mano.

- Fuma. Porque é que te picas? - Fumar? Heróica? - É o que eu faço. - Heróica?

- Não dá a mesma pedrada mas é do cacete, meu.

E depois um gajo não precisa de se picar. Queres?

- Tens?

Sentaram-se num banco de jardim. Porcalhão fez,

dois charros. Deu um a Doses. Fumaram.

- Que tal? - Baril.

- É porreiro, meu.

Doses saboreou o fumo de olhos semicerrados. - Baril. Porque é que te chamam Porcalhão? - Dizem que digo muitos palavrões. - Pois dizes.

- Uma pessoa habitua-se e já não sabe falar de

outra maneira. Não me importo.

- A minha mãe chamava-me porcalhão quando não lavava as mãos antes de ir para a mesa. Tens mãe?

- Não. Nunca a conheci. Morreu quando eu era pequeno.

- Eu tenho mãe. Acho que tenho. - E não a visitas?

- Ela pôs-me na rua por causa do pó.

- Roubaste as pratas à velha.

- Roubei tudo. Até o sorriso dela. - É chato. Mas mãe é mãe, meu.

- Eu sei. Às vezes tenho saudades. E do meu pai. - Lá isso. Pai é pai. O meu velho nunca quis saber de mim. Arranjou uma gaja podre de boa, fez-lhe  uns filhos e cagou em mim.

-A sério?

- Mais ou menos.

- Mais ou menos?

-Acho que fui eu que caguei nele. Não suportava que tivesse outra mulher que não fosse a minha mãe.

- Isso é coisa de doença. De malucos. Não és dono da vida dele.

- É verdade. Acho que me espalhei. Tenho passado a vida a espalhar-me.

- E o teu pai?

Continua à minha espera. Quando me vê, percebe-se que continua à minha espera.    

- Se não dás o passo, vai morrer à tua espera, e depois de morto já não podes fazer nada. - Não sei.

- O meu chorava quando me via passado e aminha mãe perguntava sempre a mesma coisa: porqê? Mas porquê? E não havia porquês. Uma pessoa mete-se nisto e pronto.

- Quando era pequeno, o meu velho era porreiro. Costumávamos jogar à bola nas matas da Charneca da Caparica.

- E tu cagaste nele?

-Acho que fiz mal. Não tenho ninguém que goste de mim.

Ficaram em silêncio, observando o movimento em torno das rulotes. Um grupo de rapazes embriagados bebia cervejas e ria às gargalhadas de um outro que vomitava descontroladamente. Doses sentia saudades da mãe e do pai. Aquele cigarro dava-lhe esperança. E, se o concurso corresse bem, aparecia com dinheiro e uma camisa nova.

- Gostava de abraçá-los agora.

Porcalhão não percebeu.

- Quem? Agora, o quê?

- Nada. Estava a sonhar.

- Isto tem de ser a mielas, Doses. Estou farto de roubar revistas para agora ficar a seco. Amanhã vou ter uma conversa de homem para homem com o Fred. Ou é a mielas ou então vai haver merda.

- Gostava tanto de abraçá-los agora! - sussurrou Doses, e uma lágrima correu-lhe pela face.

 

                                         O PRIMEIRO TRUQUE

No dia da gravação, o palácio trepidava de nervosismo. Porcalhão e Messias tinham dado um arraso na Feira do Relógio. Havia roupa nova para toda a gente. Até um perfume trouxeram, mas Fred Astaire rejeitou.

- É ordinário. Lavem-se com sabonete, que não dá nas vistas.

Gabriela tremia. Soltava uns gritinhos nervosos. - Tenho cólicas. Se isto me dá, mijo-me toda. Fred Astaire franziu o sobrolho. Não gostava de a ouvir falar naqueles termos. Ela percebeu. Hesitou e balbuciou:

Desculpa.

- Como é que vai ser?

Porcalhão penteava-se com um creme brilhante que lhe encharcava as orelhas. Fred ajeitou a gravata às riscas.

- Não há gritos. Nem bocas. Se quiserem dar espectáculo, será aqui em casa.

Alisou o cabelo e falou mais pausado.

- Eu sou o pai da Gabriela. O Porcalhão e o Doses são primos e meus sobrinhos. O Messias é amig de casa. Sou viúvo, os vossos pais são engenheiros trabalham numa plataforma petrolífera na Arábia, e tomo conta da família. Também sou engenheiro, m estou reformado e não há alcunhas. O Porcalhão cha ma-se Alfredo, o Doses é o ArtUran e eu sou o tio Ambrósio. Há dúvidas?

- Mas para que é essa encenação toda, meu?

- É hábito entrevistarem os apoiantes da con corrente. Vamos dar-lhe uma família de luxo! - respirou fundo e depois, voltando-se para Gaby, entregou-lhe um pequeno objecto parecido com um grão ligado a uma pequena pilha. - Metes isto no ouvido e escondes a pilha detrás da orelha. O cabelo tapa iso tudo.

- Mas o que é?

Gabriela estava perplexa. Fred Astaire sorriu.

- Uma pequena ajuda. É um transmissor. E ligado a mim. Se tu não souberes e eu me lembrar, safas-te.

- Se somos apanhados, correm com a gente. - Se não acertarmos nas perguntas, correm na mesma e vimos sem cheta.

- Lá isso.

- E depois somos ladrões. Em circunstâncias

iguais não podemos competir com ninguém. Além de

que precisamos de dinheiro.

- Gosto deste concurso. O Fred metido com tecnologias. Parece um filme de ficção científica. Onde é que gamaste o aparelhómetro?

- Um amigo ofereceu-mo. Um velho amigo das Portas de Santo Antão.

- Não há nada como ter amigos extraterrestres. Parece um filme de ficção científica.

- Meus senhores, chega de bocas, vamos ganhar o nosso dinheiro.

Era argumento mais do que suficiente. Gabriela pediu para ficar sozinha. Queria rezar uma oração. Retirara-se, mas Messias aproximou-se dela e entregou-lhe uma pequena medalha da Virgem.

- Toma. A minha mãe entregava-me esta medalha quando ia com ela vender sandes de coiratos. Dizia que dava sorte ao negócio.

Arrecadou a medalha e beijou-o. - Obrigada.

O rapaz ia retirar-se quando Gabriela o chamou: - Messias!

- Sim?

- Na outra noite disseste-me uma coisa e eu não te respondi.

- Eu?

- Sim. Quero que saibas que também te amo. Messias sorriu e baixou os olhos.

A entrada no estúdio não foi auspiciosa. Porcalhão, boquiaberto com o emaranhado de cabos e projectores, tropeçou numa bancada de adereços e foi estatelar-se

no plateau, deixando cair um dos instrumen tos que adicionavam os pontos acumulados pelos con correntes. O olhar glacial de Fred Astaire encolheu rapaz, que se sentou junto aos outros, apertando , mãos entre as pernas.

A apresentadora era simpática e foi muito calorosa com um dos concorrentes, a quem chamou profissional de concursos. Era já a quarta vez que ali ia discutir prémios, pergunta a pergunta, resposta a resposta, e Ga briela gelou quando soube que o homem era campeão., Cinco carros e três apartamentos, para além da conta choruda, eram o saldo de um ano de profissão. Mas se Gaby gelou, o coração de Fred aqueceu e um sorriso luminoso iluminou-lhe o rosto. E depois o resultado foi em cheio.

O profissional de concursos pecou. Uma falta muito conhecida em futebol e política. Excesso de confiança, que é uma variante do pecado da soberba. "Isto está ganho, os adversários são uns patos, ganhamos até com os olhos fechados."

Nem teve tempo de abrir a boca. Fred desdobrou uma revista e à sua frente a resposta à pergunta que a apresentadora estava a fazer. Até foi sem intenção que disse:

- Eusébio! - e Gaby, que não tinha regulado o som do auricular, ouviu dentro da cabeça um berro:

"Eusébio!" E respondeu, assustada: - Eusébio!

- Está certo!

E fez um elogio rasgado à velocidade com que Gaby respondeu e ao elogio respondeu uma salva de palmas da assistência. Atacou a segunda pergunta e Fred reparou que na revista era a que vinha a seguir: saprófitas. - Saprófitas!

- Está certo !

Os aplausos estoiraram e o profissional de seguros cambaleou. Donde é que tinha aparecido aquela fera? Procurou concentrar-se, mas estava ferido de morte. O esforço para mobilizar a atenção fê-lo descuidar-se e ainda memorizava a pergunta quando ouviu o grito de Gaby:

-Alcácer Quibir!

- Está certo!

Em menos de dois minutos ganhara trezentos contos, facto relevante em qualquer sítio do mundo, que já impunha direito a entrevista.

-A Gabriela vem muito bem preparada. Estudou muito?

- Nem por isso. O papá tem uma biblioteca muito grande e eu passo os meus tempos livres a ler. Adoro ler. É só isso.

Fred sorriu, orgulhoso. Podia contar com a rapariga, enquanto Uran da Doses se apertava com dores de barriga.

- É dos nervos. Ganhámos trezentas mocas em dois minutos.

- Cala-te. Não te mexas. Não mudes de posição para continuar a dar sorte.

O profissional transpirava. Foi com um sorriso amarelo que admitiu:

- É uma adversária admirável. Admirável, senhor.

Messias, babado de orgulho, segredou para Porcalhão:

- Alcácer Quibir. Esta era difícil, há?!

E logo embasbacou quando a ouviu responder: - Cefalópodes!

- Está certo!

Doses babava-se. Como é que Gaby sabia tanto tão de repente? Nunca imaginara que a prostituição fosse coisa de tamanha cultura e foi com um salto na cadeira que recebeu o grito:

- Kuala Lumpur!

- Está certo, Gabriela! - A apresentadora já a tratava pelo nome e acrescentou: - Não precisa de gritar. Os microfones captam a resposta num registo normal de voz.

Não fazia por mal. A voz de Fred, amplificada pelo auricular ecoava-lhe dentro da cabeça como se não tivesse miolos e fosse um enorme claustro de altas colunas. A ressonância induzia-a a levantar a voz.

- Príncipe Perfeito! - Certo!

Porcalhão chorava e o profissional de concursos, de olhos em bico, não tocava na chicha. Transpirava e suspirava.

- Capuchinho Vermelho!

- Certíssimo!

Os aplausos já não paravam. Fred, perna cruzada, mão a tapar-lhe a boca, controlava a emoção. Gaby estava a chegar às duas mil notas. Nunca vira tanto dinheiro à sua frente. Estava ali mais uma profissional de concursos.

-Alexandre Dumas!

- Está certo!

Porcalhão e Messias abraçavam-se. Avistava-se a vitória em toda a linha e Doses não conseguiu resistir mais. Levantou-se a aplaudir e, com ar de censura, voltou-se para Fred Astaire.

- Não percebo como estás aí encolhido. Estamos ricos, mano!

Fred rosnou:

- Respeitinho pelo tio. Respeitinho pelo tio.

O golpe era tão bem feito que nem Doses se apercebia de que era Fred quem estava a ganhar o concurso. O carteirista era profissional e foi este sentido ético de trabalho cooperativo que fez com que Gaby perdesse uma pergunta em favor do profissional de concursos. É que, como ele costumava dizer, quando a esmola é grande o pobre desconfia e, assim, o campeão saía dali com uma grande tareia, mas sem ser completamente humilhado.

Três mil e quinhentos contos. Uma porrada de notas. Uma festa de arromba, que meteu miúdos de frango, marisco e cerveja à descrição. Apenas Gabriela mal comeu, arrasada pela dor de cabeça que lhe martelava

a voz de Fred: cefalópodes. Kuala Lumpur. Prínci Perfeito.

Compraram uma garrafa de uísque para continuar a festa no palácio em ruínas. O próprio carteirista abri uma excepção e bebeu fartamente. Uran continua eufórico e sem perceber.

- Como é que sabias tudo e tão depressa? Ainda por cima palavras estranhas, esquisitas como o cacete!

Porcalhão quis saber:

- Como é que tu, com um pai tão rico que até tem biblioteca, te meteste nesta vida?

- Era número, pá!

- E bem grande. Para saberes tanto, devem ser milhares de livros.

Messias acrescentou:

- Na minha casa só tinha livros de cowboys e de gajas nuas.

- Vocês não perceberam? O papá era o Fred.

- O Fred? Onde é que tens os livros, Fred?

- Não era o que estava combinado? Como é que vocês podem ser tão burros?

Porcalhão não gostou.

- Burros, não. Eu não sou burro. Distraído talvez mas burro não!

Doses concordou.

- Também fico em brasa quando me chamam burro.

Mas Fred não deixou que a discussão se complicasse.

-Acabou. Aqui não há burros. Somos todos muito espertos e precisamos de falar de negócios. Hoje foi um dia histórico, mas foi apenas o princípio. Amanhã passamos ao ataque.

- Amanhã? Tenho setecentas mocas para gastar e tu queres que trabalhe?

- Se trabalhares amanhã, para a semana tens mil e quatrocentas.

- Como é?

- Mas não foram setecentas mocas a cada um? - O Fred está a falar em mil e tal. Não percebo estas contas.

- O que estou a tentar explicar é que descobrimos a galinha dos ovos de ouro. Amanhã vai mais uma carga de cupões em nome da Gabriela. Messias, o Doses já sabe morse com toques de tambor?

- É um burro. Para aprender é uma aflição.

- Messias, burro, não!

- Pronto, se não és burro, és uma besta!

- Quando souberes morse enviamos os cupões para o concurso da casa fechada. Eu vou concorrer a um sobre provérbios e há um outro que não é preciso pensar. Basta que um homem se dispa e coma minhocas, insectos e coisas assim para trazer um saco de dinheiro. Estava a pensar no Porcalhão.

O rapaz fez um gesto de dúvida.

- Tenho que me descascar?

- Nuzinho. E comer as minhocas e essas coisas.

- Comer por comer, marcham minhocas, lacraus. Sou de boa boca. Mas descascar-me...

- Tens vergonha de mostrar alguma coisa?

- Eu não posso. Se me ponho nu, toda a gente os braços picados.

-A propósito, não te vi chutar para a veia.

-Ando a tentar um tratamento. Agora fumo.

Mas Porcalhão não estava pelos ajustes.

- Eh, pá. Não fujam à conversa. Eu não vou despir-me em público. As minhas cuecas estão rotas.

- Compram-se cuecas e tu tomas banho.

- E o país vai ver-me descascado? Cum caraças!

- Se fosses uma gaja boa. Passa aí a garrafa, Gabriela.

-A Gaby hoje foi a rainha. O profissional de con cursos levou uma cabazada que até andou de lado.

Fred Astaire levantou-se. O álcool pesava-lhe nas pernas e o cansaço nos ombros. De facto, não era noite para falar de trabalho. Foi deitar-se. Há muitos anos que não tinha tanto dinheiro na carteira e a algibeira volumosa contra o peito dava-lhe uma agradável sensação de conforto. Teria Inês visto o concurso? Ela gostava de televisão. Sobretudo de telenovelas. Um dia entrara em casa e ficara sobressaltado. Inês chorava. Afinal era de alegria. Os dois personagens da novela depois de muito sofrimento, finalmente tinham-se reencontrado para ficarem juntos e felizes para sempre. Fred afagou-lhe o cabelo, beijou-lhe a orelha sussurrou:

- Nós nunca nos separaremos e seremos felizes para sempre.

Inês não respondeu. Limpou as lágrimas, soltou uma risada nervosa e exclamou:

- Parvoíces. São histórias de cordel. Vou fazer o jantar.

Cada vez que lhe falava do futuro ela calava-se ou mudava de assunto. E Fred ficava com a sensação de que havia um limite no tempo. Um fim de tudo quase tão forte que o futuro não podia existir sem Inês. Revolveu a palha do colchão e acomodou-se com mais conforto. Era preciso sair daquela casa o mais depressa possível. Uma aparição não tinha grande importância, mas Fred percebia que a segunda entrada de Gabriela no concurso iria chamar a atenção dos vizinhos. Era o fim do seu projecto, se alguém descobrisse que a "linda família do senhor engenheiro", como os adjectivou a apresentadora, não passava de um bando de vagabundos que habitava num dos edifícios abandonados da Lisboa antiga. Foi com este propósito e a secreta esperança de que Inês o tivesse visto na assistência do concurso que adormeceu profundamente. De tal maneira que não ouviu os suspiros, beijos e palavras sussurradas que até de madrugada Messias e Gabriela trocaram, com juramentos de amor eterno.

 

                           OS VENTOS DA GLÓRIA

A Picheleira é um bairro antigo de Lisboa que corre pelos cumes de uma colina para, de repente, abrir braços francos sobre o rio. Se as pedras sorrissem, como Messias acreditava que sorriam, por certo que a Picheleira sorria enamorada pelas águas que se espraiavam até às bandas do Montijo. Foi nesta encosta luminosa que encontraram a casa que os transformou na respeitável família do senhor engenheiro. Era ampla, o estuque das paredes fora reconstruído e, pese o facto de ser i construção dos tempos da Primeira República, cheira nova. O aluguer não era caro e tinha duas casas de bar Porcalhão olhava com curiosidade e, como se estivesse perante um aparelho electrónico complexo, apontou as duas torneiras e explicou gravemente ao Messias:

- Tás a ver? Uma é para a água quente e a outra para a água fria.

Nem lhe respondeu. Estava atrasado. Doses ente para o concurso da casa fechada e estava na hora de comunicar com ele por batuque.

- Tenho de ir.

- E a Gabriela?

- Foi ao cabeleireiro. Tem uma jornalista que a vai entrevistar e a seguir vai para o concurso. O Fred está à espera dela com o transmissor por causa das respostas.

- Esta noite ele tem o concurso de provérbios. - É amanhã.

- Tens razão. O meu a comer minhocas é depois de amanhã.

- Tu não tens nojo?

-Apenas enjoo. Quando são gordas de mais, enjoo. O Doses como está a safar-se?

- Subiu dois lugares na pontuação do público e não foi nomeado para sair esta semana.

- Já lá está há quase dois meses. Ainda salta para a cueca da morena que lhe anda a fazer cócegas nas orelhas.

- O Fred diz que se ele a come, lixa-se!

- Mas porquê? Andam dois ou três pares a comerem-se.

- E estão a ser expulsos.

- Como?

- Diz o Fred que é de propósito. Depois casam-nos cá fora e o concurso é fora e dentro da casa, tás a ver?

- Seja como for, é sempre concurso.

- Com a diferença de que o gajo que ficar para o fim é que embrulha as trinta mil notas.

Os últimos dois meses tinham sido uma revolução. À segunda participação da Gaby no concurso perguntas-respostas, onde arrasou por completo os adversários, o país parou. A filha do senhor engenheiro é muito culta. Dois jornais referiram-se-lhe em pequenas colunas publicando fotografias. Foi o delírio no palácio abandonado e o sinal de alerta para Fred Astaire.

- Precisamos de alugar uma casa decente custe o que custar.

Enquanto Messias continuava a roubar revistas jornais paia aTxanjaa** cupões, Gaby estudava e Doses Porcalhão e Fred Astaire procuravam casa nas páginas de publicidade e corriam a cidade, verificando a **bt dade das promessas optimistas dos especuladores imobiliários. Foi Porcalhão quem a encontrou.

É grande pra cacete, meu! Se a Gaby continuar a dormir com o Messias, sobram quartos.

Fred tinha razão. O país ficou boquiaberto à terceira grande vitória de Gaby e chegaram os primeiros pedidos de entrevistas. Uma revista queria entrevistar o senhor engenheiro e fotografá-lo com toda a família num ambiente familiar. Conseguiu escusar-se a esta primeira tentativa, mas sabia que a pressão aumentaria ao ponto de não poder recusar. Coisa que Doses, já de mala aviada para o concurso dos fechados em casa não percebia.

- Qual é o teu problema? Até era baril aparecer uma fotografia nossa no papagaio. A família toda junta. O pai, a filha, os sobrinhos.

- Não sou teu tio.

- Mas era porreiro.

- Se os jornais descobrem quem nós somos, vai ser lindo, vai.

Porcalhão discordou:

- Qual é o problema? Com estes cenários, vestidos e penteados, até somos parecidos com uma família.

- Só que um dos clientes da Gaby pode reconhecê-la, um dos tipos a quem riscaste o carro por não te dar gorjeta pode topar-te, além de que a minha fotografia, bem e mal vestido, está em todos os ficheiros de todas as polícias de norte a sul e, talvez, até no internacional.

- Isso era o antigamente, meu. Agora somos importantes. Até temos conta no banco.

E era verdade. A quantidade de dinheiro que estava a entrar obrigou a essa decisão. Que não foi pacífica, diga-se.

Messias, traumatizado pela experiência com os bancos, estremeceu.

- Depositar o dinheiro? E se nos assaltam?

- O risco é maior se tivermos milhares de contos aqui.

- Eu nem durmo com medo de que me metam os garfos nos bolsos - desabafou Porcalhão. -Até porque dá estatuto.

- E se nos assaltam? Não me dizem? Hoje assaltam bancos como quem palita os dentes. Eu que o diga.

- O banco assume as culpas.

- Se é assim...

O problema seguinte foram os cartões multibanco.

Fred recusava-se a ter na sua posse a causa da sua ruína.

- Só depositamos o bago no banco que tenha também cheques. Só uso cheques.

Porcalhão mais uma vez explicou que ao banco até lhe dava jeito que tivessem cartões e cheques, mais cobrava de serviço.

- Mas porquê?

- Porque assim ganha a dois carrinhos.

Gabriela, pouco dada a transacções financeiras de alto cotumo, não achou bem, embora não se preocupasse em demasia. Andava nas nuvens. Na rua as pessoas cumprimentavam-na, sorriam. Até lhe pediam autógrafos. E a Gabriela sonhadora, que um dia partira da sua vila determinada a conquistar o mundo a pulso e a palmo, renascia dentro da Gaby das Mamadas, E todos os dias havia dedos tímidos, embora apaixonados, a correrem-lhe pelo corpo. As mãos trémulas de Messias de lábios grossos, que lhe acordavam as fontes do desejo e lhe aconchegavam o colo de ternura. A memória dos dias difíceis desaparecera como água em areia e até o sol era mais quente. Nunca Gabriela fora tão bonita como nesses dias de apoteose e não admira que uma das revistas que investiam em mulheres formosas a entrevistasse com fotografia a abrir e ao lado um extracto da entrevista como legenda: "Um dia gostava de ter um filho." Título estrondoso que fez correr multidões aos escaparates e por milhares de lares, consultórios médicos, salões de cabeleireiros e manicuras ficou a saber-se que a nossa estrela do pergunta-responde era do signo Carneiro, tinha como passatempo ler e jogar xadrez e só agora estava a começar o seu primeiro namoro a sério. Para além do já citado filho, desejaria visitar Punta Cana, sendo que ficou claro que aquilo que mais admirava nas pessoas era a honestidade e a virtude.

A partir daí foi a tempestade de êxitos e quando se soube que era seu primo o concorrente que, noutra cadeia de televisão, todas as quartas-feiras comia com apetite devorador minhocas, sapos e aranhas foi o furacão na vida deles.

De facto, Porcalhão era agora o homem do dia. A sua participação neste concurso de comes e bebes sacudiu as audiências. Logo na primeira sessão rebentara com todos os recordes de provas gastronómicas. Para além dos inevitáveis pratos com minhocas, tinham posto à frente dos concorrentes um cágado, um caracol e uma lesma. O apresentador guardara a surpresa para depois do intervalo, e consistia em cada concorrente dirigir um destes bicharocos numa corrida de cinco centímetros. O concorrente cujo animal ganhasse seria premiado com um fim-de-semana no Algarve, mas nada disto se chegou a saber. Tinham informado Porcalhão de que aquele era um concurso de comes. Não se fez rogado. Ao primeiro sinal emborcou as minhocas, engoliu a lesma, desfez o caracol num ápice e atacou o cágado. Quando chegou ao fim, perante o silêncio atónito do apresentador e da assistência, arrotou e disse com um sorriso descarado:

- Estava com fome.

Ao que o apresentador, carregado de ironias que o pobre cérebro de Porcalhão era incapaz de entender perguntou:

- Não quer mais?

E respondeu, seráfico:

- Não me importo. Desde que a sanduíche seja feita com pão um bocadinho mais mole.

Foi recebido nos serviços de publicidade da emissora. O povo estava ali semanalmente, olho pregado ao canal apreciando os petiscos de Porcalhão. O sucesso foi tal que comer um cágado vivo foi introduzi do como prova cuja realização era um prémio de mil contos. Convidaram-no para fazer um anúncio de comida para animais. Se houvesse caroço, explicou, comeria enlatado de cão, de gato, de tudo. Mas caroço à vista, que só ele é que sabia como padecia cada noite que se seguia a uma sessão do concurso. Queria três mil e em notas. Era muito dinheiro. Pediram-lhe que esperasse num gabinete ao lado enquanto decidiam. Por isso ouvia vozes, embora não soubesse quem falava.

- O gajo mete-me nojo.

- Mas que tem jeito para pedir dinheiro, lá isso... Três mil é muito.

- Olhe que não. Se o anúncio for intercalado no intervalo do concurso é um grande investimento. Veja o share do programa.

- Não sei. O gajo mete-me nojo.

- Oiça. Não tenho esse merdas aqui por causa dos seus lindos olhos. Estoira com as audiências. O povo adora isto e isto é negócio. O seu, o meu, o nosso negócio. O povo gosta de ver comer cágados, rãs, cobras e gafanhotos. Pois aí tem um tipo com apetite.

- Como é? Faz o anúncio ou não?

- E quanto é que custa para além dos três mil para o animal?

Porcalhão não sabe quanto é que custou porque as vozes baixaram. A verdade é que no dia seguinte foi a um estúdio onde o gravaram a comer um enlatado de comida de cão, outro de comida de gato, ainda comeu umas bolas que lhe sabiam a sal e a areia para, de seguida, roer um osso feito de cálcio e vitaminas, e chegou a casa com os três mil contos na algibeira e a tempo de ver o spot passar. Enquanto ele comia, uma voz feminina dizia, langorosa: Como podem o seu cão e o seu gato viver sem a comida que as estrelas de televisão preferem?

Sorriu feliz. Era estrela de televisão.

Com Uran das Doses as coisas tinham começado tremidas. Nos interrogatórios preliminares, o psicólogo hesitara. Ainda havia antigos sinais de picadas de seringa nos braços.

- Você droga-se?

- Eu? Oh, senhor doutor.

- E essas picadas no braço?

- Salmonelas.

- Perdão?

- Salmonelas, senhor doutor. Fomos passar quinze dias à Grécia e num hotel comi ovos com salmonelas. Parecia o fim da minha vida, senhor doutor. Outra vez na Dinamarca, tive um problema com um hambúrguer estragado, mas as salmonelas iam-me matando. O médico não me encontrava a veia para me meter o soro deixou-me o braço nesse estado. Felizmente as picadelas estão a desaparecer. Coisas de médicos, de médicos gregos, está claro.

De facto, não se viam picadelas recentes. Foi aceite com o seguinte parecer clínico: "Embora muito viajado, apresenta um nível razoável de estupidez. É aceitar."

Os primeiros dias dentro da casa não foram fáceis. Não fazer nada só é bom para quem não sabe fazer outra coisa. Dormir, comer, estar sentado e falar. Depois os companheiros da casa só sabiam falar de si próprios o que era um problema para Doses. Não podia dizer às câmaras de televisão que era toxicodependente, ladrão, gatuno de esticão e arrumador de carros. A única coisa que lhe levantava o moral era o batuque ao fim da tarde. Tantantan. Tan. Tan. Tantan. Tan. Tantantan Pegava num bloco e juntava as letras. N-Ã-O C-O-M-A-S

A M-O-R-E-N-A. Tantan. L-I-X-A O G-A-J-O D-A-S B-A B-A-S. Tantan. É O

M-A-I-S P-O-P-U-L-A-R.

 

Uma vez, durante o jantar, uma das raparigas, a que dava as gargalhadas maiores e dizia os piores palavrões, comentou:

- Há um caralho qualquer que todas as tardes toca um cabrão de um tambor que até parece que estamos em África com a cona da tia.

Andava na faculdade e era a mais culta deles todos. Atirava-se a Doses como gato a bofe. Uma noite acordou com ela enfiada na cama. Ao princípio gostou do calor do corpo encostado contra o seu, mas, de repente, lembrou-se dos trinta mil contos e dos avisos de Fred.

- Se comeres alguma gaja lá dentro, arranjam logo maneira de te pôr cá fora e armam-te um trinta e um tão grande que és mesmo obrigado a casar, a ter filhos e a andares com a televisão em cima de ti a toda a hora. Por isso, aguenta os cavais, come-lhes o bago, que depois tens todo o tempo do mundo para saltares para cima das miúdas que quiseres.

Afastou a rapariga.

- Desculpa. Sou teu amigo, mas não nos conhecemos o suficiente para nos enfiarmos na cama. - Ó puto, tu és paneleiro?

- Não. Sou apenas um rapaz que crê no amor. No verdadeiro amor.

Tinha ouvido a tirada numa telenovela e decorara-a. O povo labrego e faminto de paixões rendeu-se.

Tantan. É-S O M-A-I-O-R. Tantan. E-S-T Á-S E-M P-R-I-ME-I-R-O L-U-G-A-R E-N-T-R-E O P-O-V-O. Tantan. A-G-U-E-N-T-A. Tantan. As últimas duas semanas foram um suplício. Não percebia como é que o raio do povo expulsara este, expulsara aquele, até que só restara ele e a morena dos palavrões, cada vez mais atrevida.

- Dá-me a tua gaita, vá lá, filho. Fico toda húmida só de olhar para ti.

- Ó Graça, tu dizes coisas, rapariga?! As câmar estão a filmar.

- Que se fodam as câmaras. Estou doida por te comer todo. Não tenho na faculdade nenhum colega que me dê tanta ponta.

- Quando sairmos daqui, está bem? Quando sair mos daqui.

Mal sabia Doses os efeitos desta posição tão moralista entre a audiência mais jovem e** ignara. Para as raparigas, era um deus. Não havia reportagem de rua realizada por diligentes jornalistas para os serviços noticiosos em que as opiniões femininas saíssem deste intervalo:

- É o máximo. Ele vai ganhar.

- É o maior.

- Até eu casava com o Uran. Estou apaixonada por ele.

- Se o meu marido fosse delicado como o Uran.

- Sim, sim, é ele quem vai ganhar. E merece.

Porém, entre as plateias masculinas a popularidad descia aos níveis da vergonha:

- Só pode ser rabo. A rapariga a oferecer-se ali, ele nada.

- Acho-o frouxo. Com um bife daqueles à mão e põe na borda do prato.

- Rabo. Só pode ser.

-Abafa a palhinha com toda a certeza.

Tantan. A-G-U-E-N-T A. Tantan. E-S-T Á N-O P-A-P-O.

Tantan.

Aguentou. Saiu em ombros. Entrevistas, fotografias, autógrafos, noitadas e, sobretudo, trinta mil dele a caminho da conta bancária colectiva. Depois, o tempo de clausura fizera-lhe bem. Deixara de consumir droga, engordara, voltara-lhe a força e, passados os primeiros dias de euforia, telefonou à morena dos palavrões. Convidava-a para jantar na sua casa na Picheleira e a rapariga, que ainda não começara as aulas do terceiro ano na faculdade, apresenta-se de vestido negro, cabelo apanhado na nuca e um decote generoso onde lhe pulsavam os seios. O jantar esfriou e a cama de Uran ferveu toda a noite. Já para a madrugada, ela confessou-se:

- Os meus pais não gostaram da maneira como me atirava a ti dentro da casa. Até dizem que és maricas.

Uran estava cansado de mais para ouvir desaforos.

- Veste-te e desaparece daqui. - Eu? Mas...

- Se não sabes educar os teus pais, não sou eu que tenho de aturar esses disparates.

- Uran!

- Sai daqui. Querias casamento, não? Menina faculdade queria casar com um bom partido. O Uran das Doses agora é o maior. É rico!

- O Uran... das Doses?

- Das Doses, sim, filha. Dos panfletos, dos dru fos, dos chutos. A minha profissão antes de ir para o concurso era essa. Meter para a veia. Tás a ver? Chutar, picar. Sou ordinário? Talvez. Mas olha que nunca vivi com gente tão ordinária como nestes três meses. A equipa de ladrões que vive aqui comigo tinha muito a aprender contigo e com os outros. E agora pira-te e nã faças barulho. O Fred Astaire tem o sono levezinho.

A rapariga a evocar os pais ficou-lhe gravado na cabeça. Que pensariam os seus próprios pais das lides em que ele agora andava, e deu consigo a sentir u forte nó na garganta e as lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces. Eram dores de saudades. Decidiu que nesse mesmo dia iria procurá-los. O reencontro após uma viagem pela vida sem destino durante três anos. Quando apanhou Fred à mão, confessou-lhe.

- Vou visitar os meus pais.

O velho carteirista sorriu.

- Fazes bem.

Quando o táxi parou e saiu, a rua trouxe-lhe os cheiros e os sons que aprendera em menino. Olhou em volta como se abraçasse a rua e reparou que as pessoas que lhe tocavam, que o beijavam, que lhe pediam autógrafos, não reconheciam o Doses, o patife que roubara pratas e dinheiro a todos os vizinhos da rua, e só viam à sua frente o Uran, a vedeta que acreditava no amor verdadeiro. De repente, deixou de ouvir os gritos, os aplausos e os comentários. Uma velhinha de cabelo prateado e um sorriso tão doce que Uran acreditou que nunca tinha visto tanta beleza assim, e com o coração a cabriolar pelas veias correu ao seu encontro, perdendo-se no abraço mais reconhecido que sempre conhecera.

- Meu querido filho!

- Mãe, ó minha mãe!

Os braços que lhe deram colo, os braços que pacientemente o embalaram por baladas de encantar, vai-te embora passarinho / deixa a baga do loureiro / deixa dormir o menino / que está no sono primeiro, os braços trémulos de medo que o queriam segurar quando na fúria das ressacas roubava o ordenado do pai e partia a loiça da cozinha, os braços que lhe ensinaram o calor do abraço.

- Perdoe-me, minha mãe. Perdoe-me.

Uran soluçou os remorsos de uma vida e, quando se afastou dela, percebeu a sombra curvada do pai, olhos húmidos de alegria, sequioso do seu rapaz.

- Bem-vindo, rapaz, bem-vindo!

E abraçado aos dois velhos entrou e fechou a porta da casa, indiferente à multidão babada que lhe gritava o nome e o aplaudia.

 

                       QUANDO A GLÓRIA ATRAPALHA

Estavam ricos. Tinham mais de trezentos mil contos, a casa já estava comprada e cada um conduzia um carro caro. Porcalhão estava cada vez mais gordo por comer tanta gordura animal. Estabelecera um novo recorde do concurso ao comer de uma assentada seis enguias vivas, mas o povo desinteressara-se de tanta porcaria. As audiências baixaram e Porcalhão foi corrido do estúdio de gravação como se fosse lepra.

- Fora daqui, seu javardo.

- Rua!

- Não me toque, o senhor não me toque que chamo a polícia. Enoja-me.

A ingratidão é deste tamanho. Meses a alimentar . audiências, a fazer trepidar multidões de cérebros esquálidos, milhões de cabeças inertes, e agora saía assim, insultado e maltratado, sem um obrigado e muito menos festa de despedida. Ainda por cima, quando o recorde de enguias era mundial. Constava no Guinness Book um indiano que engolira cinco cobras. Era quase da mesma família da enguia e ele papara seis, mas em vez de uma apoteose era expulso com desprezo e indignação. Uma injustiça.

Reuniram-se no salão. Fred à cabeceira da mesa, com o habitual bloco de notas à sua frente. Fez um sinal para que deixassem de falar ao mesmo tempo e pediu à empregada - exactamente!, à empregada vestida com farda, que Gaby fazia questão - cafés e águas para a mesa. E disse:

- Meus senhores, a mama está a chegar ao fim. Gaby não gostou de ouvir.

- Não digas disparates, Fred. Pela tua rica saúde.

- É verdade. A mama está a chegar ao fim.

- Mas porquê? O Porcalhão ficou desempregado, mas não é razão para ficarmos à brocha. Pode concorrer àquele da ilha onde os maridos e mulheres se encornam uns aos outros.

- O Porcalhão descasca-se e fogem com medo dele. Até na peida tem tatuagens.

Gaby ficou mais impaciente.

- Não pode ser. O meu concurso ainda está a dar.

- Está no fim, Gabriela. Na última sessão, o assistente de realização veio três vezes até ao meu lugar. Desconfiou do nosso truque. Nem fui capaz de te comunicar as últimas duas respostas.

- Mas acertei uma.

- Porra, Gaby. Para saber que as azeitonas de Elvas são verdes e não pretas não se precisa de ninguém a apitar ao abano. Até eu sabia.

- Seja como for, temos de pensar na nossa vida. Ainda por cima agora que mal contamos com o Doses Ou está com os pais ou fechado no quarto, esfola admiradoras.

- Qual é o mal? É proibido? Mais vale estar a comê-las do que andar por aí a bezerrar, armado tanso, ou não é?

- Posso dizer uma coisa?

- O que é?

- Não admito que ponham em causa a minha idoneidade por ter tatuagens no ananás.

- O quê?

-Já disse. Não percebo o que estão a dizer, mas o cu é meu e faço dele o que quiser.

- Mas que conversa é essa, Porcalhão?

- Já disse.

Fred Astaire suspirou. Nove meses depois de ter começado a grande aventura nada tinha mudado. Quando se juntavam, a velha matilha regressava todo o seu esplendor.

Messias resolveu falar.

- Chega de confusão. Não deve haver nenhum ladrão que tenha gamado tanta revista e tanto papagaio como eu. Arrobas de papel. Não entrei nos concursos, não sou famoso, sou o único que não tem smoking e não vai às galas de caridade e festas sociais, não há aqui pinta que tenha rebentado o canastro a balhar como eu. Por isso, cago nas tatuagens na pela do Porcalhão, nas admiradoras do Doses e quero saber o que vamos fazer. Fala o Fred e acabaram-se as bocas da geral antes que haja merda. Fred, fala!

Explicou a situação. A televisão é como um camaleão. Vai mudando de cor e de programas conforme a audiência e sabe-se que quanto mais simples e mais estúpido for o programa mais o povo gosta. Sinal de que o povo gosta de merda. Que conseguiram um feito único. Aquele grupo de bandidos que o povo odeia, porque rouba, disfarçou-se de povo e deu cartas. São presenças constantes nas revistas dos famosos, coisa que a ele, Fred, lhe dava uma vontade de rir do catano. Depois de ver tanta fotografia, tanto smoking, Porcalhão de smoking a posar de braço dado com aquela modelo que faz o anúncio das meias e Doses a beber copos na companhia do deputado de pêra, que lhe desculpassem, mas não conseguia deixar de rir até às lágrimas. Que tinha um grande orgulho de ter montado aquele espectáculo, alguns dos mais ranhosos bandidos de Lisboa transformados em estrelas de televisão, até que chegara à conclusão de que era tudo uma questão de verniz. Um bom sapato sujo de lama é um bom acessório desprezível, um calcante marado com um bocadinho de verniz brilha a grande altura. Daí as suas dúvidas e certezas. Debaixo do verniz todos os gatos são pardos. Podem luzir, pelo que não distinguia já quem era manhoso ou quem não era no meio de tanta confusão. Fosse como fosse, a moda dos concursos a carcanhóis estava no fim. Os que se anunciavam para breve ofereciam viagens, quecas, misturadoras eléctricas e férias tropicais, mas papel, pilim, nada. Por isso estava hora de mudar. Ou, dito por outras palavras, agora que eram famosos chegara a altura de fazerem a gestão de carreira.

Terminou o longo discurso e percebeu que o seu calvário não terminara: ninguém tinha percebido o que ele dissera.

- Gestão de carreira? Mas agora somos alguns doutores ou quê?

- Tenho um primo que se formou em gestão de empresas.

- Eu estou cagando para a fama. Caroço. A min profissão é caroço e muito.

- É por isso que nos reunimos aqui. Até agora en ganámos saloiada, patos e otários. Se estiverem dis postos, podemos ferrar o dente num tubarão a sério.

Olharam para Fred, intrigados.

- Podemos comer-lhes um milhão de notas. Mais concretamente, um milhão e trezentos mil contos.

Doses engasgou-se e Porcalhão caiu da cadeira. Foi em pé que Gaby perguntou desconfiada:

- Um milhão?... Tu...

- Exactamente.

Ninguém sabia o que fazer, nem o que dizer, e Fred Astaire aproveitou o desnorte para atacar.

-A televisão é coisa que dá massa, mas não é negócio de campeões. É para pilha-galinhas, arrivistas chouriços e camones. O verdadeiro golpe tem de ser dado no coração do dinheiro.

O coração do dinheiro! Messias desconhecia o facto de o dinheiro ter coração, e a gozar perguntou:

- Ó caramelo, e já agora onde é que fica o caroço do bago?

Fred sorriu, enigmático. Fez um compasso de espera e exclamou:

- O banco!

O rapaz fez um gesto de contrariedade. Outra vez o banco. Não conseguia libertar-se desta presença malvada. Duvidou.

- Para mais assaltos a bancos, não contem comigo. Estou farto de comer a isca e cagar no anzol. Chega.

- Eu também não. Até porque não tenho estatuto social para ir ter badagaios no banco.

O carteirista levantou a mão em sinal de concórdia.

- Os tesos é que fazem assaltos à mão armada. Arriscam muito e roubam pouco. É destino de pobre. - Então?

Doses desatou a rir.

- O Fred entra no banco e diz: "Olhe, eu sou engenheiro, aquele que anda a fazer batota com os concursos de televisão. Sou bonito, tomei banho, passe para cá um milhão de notas que eu dou-lhe um autógrafo."

- Conversa de bêbados.

- Assaltos, não. Para mim chega. Prefiro andar a gamar papagaios o resto da vida.

Porcalhão impacientou-se.

- Como é que é, meu?

Fred acendeu um cigarro. Aspirou o fumo longamente. O olhar perdia-se sobre o rio e os prédios Expo. Era linda a cidade vista dali.

- Temos trezentos mil no banco. É massa suficiente para nem passarmos cartucho ao gerente. Só falamos com camarada de director para cima. Pedira um milhão emprestado. Não há banco nenhum que negue emprestar este colhão de massa a quem tem uma conta do tamanho da nossa.

Porcalhão voltou a não perceber.

- E para que é que vamos pedir dinheiro emprestado, se temos o nosso?

- Para não pagar e ficarmos com ele.

- Não estou a perceber. Pagar o quê?

- Porcalhão, és mais estúpido que um torresmo. O Fred está a falar bem. Cala-te e ouve, cum cacete.

- Sacamos um milhão e, com os trezentos que comemos aos totós das televisões, chega-nos e sobra-nos para o resto da vida.

Gabriela apertou com força a mão de Messias. mãos juntas para o resto das suas vidas.

- Fred... tu achas que eles emprestam?

- E não será perigoso?

Encolheu os ombros. Dantes ouvia falar na cadeia mas para si era só conversa da treta. Os grandes vigaristas safam-se sempre e só os pelintras vão de saco. A experiência mostrava-lhe que os burlões de pataco estavam mais ou menos espalhados entre Pinheiro da Cruz passando por Alcoentre e chegando a Custóias.

Mas rapaz de fato fino e gravata a condizer não se via por aquelas bandas. Pelo menos, Fred Astaire não conhecia. Até pusera em dúvida se tais bocas foleironas não seriam arrotos de pelintras invejosos com a fortuna dos afortunados. Mas agora que se sentava confortavelmente em cima de um monte de trezentas mil notas percebia os sinais da fome que pedem infatigavelmente mais notas, como se a ambição fosse uma mancha de óleo que lentamente escorre, invadindo todos os interstícios da alma até não se querer outra coisa que não seja mais dinheiro. É doença. Um fungo que se apodera do desejo, matando a alma aos poucos até só restarem ruínas e cinzas e aumentar a fome de mais dinheiro e mais, enquanto a saprófita descasca o tutano dos afectos, descasca a raiz da ternura e cresce, matando para crescer e apenas sobrevivendo pela morte.

Fred compreendia agora que esta sedução voraz era do tamanho do infinito. Por enquanto, não dizia aos rapazes, mas sabia que quando chegasse o milhão tornaria a reuni-los em volta da mesma mesa para lhes comunicar que tinham condições para agora quererem dois milhões.

- Quando se tem dinheiro, para comer mais guito um homem não precisa de assaltar. Somos ladrões ricos. É a diferença quanto ao antigamente. Dantes éramos ladrões pobres. Mas nunca deixámos de ser ladrões.

Porcalhão era teimoso:

-Pronto, vá, não há assalto. Mas como é que , gatas esse tal director? Dás-lhe um beijo na boca e chamas-lhe Tarzan?

- É complicado. Vocês não iam perceber.

- Como é que sabes? Ainda não explicaste.

- Basta que percebam o seguinte. Estes parvalhões estão convencidos de que sou engenheiro. A puseram no livro de cheques a palavra engenheiro atrás do nome. Portanto, não vai espantá-los o senhor e genheiro, cliente endinheirado, ir pedir um empréstimo para a construção de um hotel. Até lhes levo uma planta e tudo.

- Vamos construir um hotel?

- Ninguém percebe nada de construção civil. E és carteirista! Fred, tu não me digas que te convenceste de que és engenheiro?!

Messias foi o mais indignado:

- Se pensam que depois de passar um ano a alo bar com sacos cheios de revistas, vou passar o resto dos meus dias a carregar baldes de cimento bem podem tirar o cavalinho da chuva.

- Calma, calma, ninguém vai construir nada não se fala mais nisso. A única coisa que preciso de saber é se tenho autorização para endrominar o director

Por mim...

- Desde que não tenha de alancar...

- Se tens tanta certeza que lhe afanas o milhão..

- Conta com a malta, Fred. O povo está contigo

 

Desta forma ficou Fred Astaire nomeado legal representante da matilha para esmifrar o tal milhão ao otário do director. Porém, antes que desatassem todos a falar ao mesmo tempo, Gabriela, pouco à vontade, falou:

- Tenho uma coisa para vos dizer.

Voltaram-se para ela.

- A última jornalista que me entrevistou pediu-me autorização para dar o meu telemóvel a uns senhores que querem falar comigo.

Messias olhou-a de soslaio. O ciúme transbordava no tremor dos lábios.

- Tu não vais voltar à vida! Gabriela, tu juraste-me que...

- Não digas disparates.

- Claro. A vida de puta também já deu o que tinha a dar.

- Só se fosse para montar uma casa para senhores importantes. Deputados e banqueiros não podem ir dar quecas às pensões do Cais do Sodré.

- Deixam-me acabar?

Silêncio na sala.

- Bom, esses senhores são de um partido que concorre às próximas eleições. Querem que eu seja cabeça de lista para a junta da freguesia.

Doses não se conteve. Desatou a aplaudir. Porcalhão, porque não lhe vinha coisa melhor à cabeça, acompanhou Doses nos aplausos, enquanto Messias sorria com a angústia desfeita. Só Fred ficou preocupado. Gaby reparou.

- Não achas bem?

- Não sei.

A rapariga explicou:

-Acho que só me querem para fazer a campanha

eleitoral. Depois das eleições peço a demissão e fica

outro à frente da junta.

- Querem a tua cara e o teu nome para caçar votos Pois, é capaz de ser.

Messias achou que tinha a obrigação de dar opinião e deu:

- Acho porreiro.

Ao que Porcalhão acrescentou:

- Eu também. As campanhas eleitorais têm sempre petiscos, bifanas, sardinha assada. Depois da minhocas e cágados que gramei no concurso, conta comigo para te apoiar.

Doses afastou-se da discussão:

-Não fiques zangada, mas não sou capaz. Depois de ter passaddo tantos anos na merda não quero voltar ao mesmo. Estou na maior com os meus pais e dava-lhes um desgosto do cacete se me metesse na política. Já chega a merda que fiz.

Gabríela recebeu as adesões e a indiferença sem grande entusiasmo. Preocupava-a a preocupação de Fred.

- Fred?

Descoseu-se.

- Se ao menos fosse uma câmara, Gaby. Uma junta de freguesia nem dinheiro tem para urinóis, quanto mais para uma pessoa se poder servir.

- Mas é só dar o nome.

- Faz o que quiseres. Eu apoio a tua decisão.

- Eles vêm cá a casa. Disse-lhes que teria de falar com o meu pai.

- Bem visto. Dá um ar educado.

- Eu cá não acho - atalhou Porcalhão. - Já era para te ter dito há mais tempo. Cada entrevista que dás, por dá cá aquela palha, aí vai o papá. Porra, Gaby, tens trinta anos, cum escafandro! Tanto papá numa rapariga com a tua idade dá para desconfiar. Ou é betínha ou é parva. Elas agora nem chegam aos quinze já estão com o animal entre as pernas. Eu não sei, mas acho que essa do papá não é a melhor coisa para o negócio.

Doses concordou. Messias nem que sim nem que não. Fred acendeu outro cigarro.

A verdade é que Gabriela já pensara nisso. Saía-lhe espontaneamente esta tirada do papá e deu consigo a pensar que padecia da doença de Doses: saudades. Porém era maior a distância. Doze anos é muita vida e tempo de sobra para que, por um dos atalhos em que andou, ter reencontrado o pai ou a mãe ou os dois. É verdade que a vaidade, o desejo de matar a Gaby das Mamadas ditava a alegria com que aceitava dar entrevistas e ser fotografada. Mas reconhecia que era habitada pela secreta esperança de que os pais a apreciassem, que de uma vez por todas pudessem esquecer os dias de vergonha depois da sua fuga da vila atrás do seu professor de Inglês. Porém, da terra só lhe chegavam silêncios. Estariam ofendidos por chamar papá ao Fred? Não sabia. Apenas silêncio. A disposição para aceitar a candidatura era mais uma insistência. Mostrar-se, acreditar que o pai agora mostrava o jornal na taberna, orgulhoso da filha.

Fred acenou com a cabeça.

- Muito bem. Vamos lá então falar com os senhores da política.

 

           O LADO PIEDOSO DE FRED ASTAIRE

A empregada introduziu-os no salão. Dois homens e uma mulher que Fred Astaire conhecia da vizinhança. - Senhor engenheiro, os senhores estão aqui. - Entrem, entrem, é um prazer recebê-los. Cumprimentou-os calorosamente.

- Senhor engenheiro, Maria de Fátima, uma sua criada.

- Muito prazer... Tomam alguma coisa? Maria, traz cafés e águas para os nossos convidados. Sentem-se. A minha filha está na biblioteca. Já aí vem.

- A menina Gabriela não se cansa. Eu não sei como é que ela tem cabeça para tanta coisa. Eu vejo sempre quando vai à televisão. Na minha casa toda a gente vê.

- Uma aventura! ... A minha filha quis e quem sou eu para lhe dizer que não?

- E fez muito bem. Aprende-se muito com estes concursos. Eu digo sempre ao meu filho. Filho, vê com atenção. Olha para a inteligência da nossa vizinha.

A mulher estava a fazer as despesas da conversa mas Fred percebeu que o verdadeiro patrão do partido era o mais velho dos homens. Deu-lhe maior atenção.

- Também é vizinho?

Estava ansioso por mostrar como era importante.

- Não, não. Também sou engenheiro, somos colegas, e sou o presidente da comissão política da freguesia. Com certeza que a vossa filha lhe deu conta das nossas pretensões.

- Querem candidatá-la.

- Exactamente. É o orgulho da nossa freguesia pensamos que é o melhor trunfo que o nosso partido pode mostrar. Como sabe, nas últimas eleições perdemos por oito votos. Com a Gabriela a encabeçar a nossa lista colocamos a hipótese de maioria absoluta.

-A popularidade da minha filha é impressionante.

Foi a abertura para a mulher entrar na liça.

- É da inteligência. Da inteligência e da virtude. Sou eu quem lho diz, senhor engenheiro, e sei do que falo. Olhe que tenho duas sobrinhas, filhas da minha irmã e do meu cunhado que trabalha na Carris, que são umas cabras. A mais nova tem dezasseis anos e aos fins-de-semana chega a casa de manhã. Veja lá, de manhã! Metidas nessas discotecas de pouca-vergonha. É por isso que digo sempre ao meu filho, o meu filho tem catorze anos e já passou para o nono ano, mas eu digo-lhe, filho, põe os olhos na nossa vizinha Gabriela, olha como é inteligente! Não perdemos nenhum concurso em que ela entra. Nem um!

Fred afastou-a de novo. Fixou o colega engenheiro.

- Disse-me a Gabriela que só estão interessados nela para a campanha e que a seguir às eleições renuncia.

- É isso mesmo. Sabe como é a política. Se não forem estes truques, a população não vai lá e depois a abstenção é aquilo que se vê.

- Estou a ver.

- Portanto, é coisa simples e o incómodo pequeno. Quinze dias de campanha, fazemos só um comício. Nada de muito cansativo.

- Muito bem.

- Ficamos gratos por nos ter recebido na vossa casa.

- Não agradeçam, eu é que vos agradeço a visita. Pigarreou, ajeitou o cabelo por trás da orelha e comentou:

- Portanto, o que os senhores pretendem da Gabriela não é que ela faça política, mas sim publicidade ao partido.

- Claro. É isso mesmo, senhor engenheiro.

- Exactamente, senhor engenheiro.

- Não há melhor publicidade, senhor engenheiro.

Lá isso... Aquela inteligência é a melhor publicidade.

A maior publicidade.

- Ora ainda bem que estamos de acordo. Trata-se de publicidade. A minha filha costuma cobrar dois mil contos por cada filme publicitário. Atendendo à vizinhança e de cá em casa votarmos todos no vosso partido, ela vai fazer-vos um desconto e apenas cobrar cinquenta por cento.

- Mil contos?!! Vossa Excelência disse... mil contos?

- Por outras palavras, mas foi o que disse. Mil contos.

Os três militantes estavam baralhados. A mulher até perdeu o pio. Abanava-se e soprava.

- Bom, é uma questão que temos de pôr à comissão política.

- Mil contos é dinheiro.

- Muito dinheiro.

Fred Astaire esmagou o cigarro no cinzeiro e rematou com condescendência:

- Trocos. Apenas trocos.

Porcalhão ia deixando cair o queixo quando soube do negócio ali realizado em nome da política local.

- Mil brasas? Porra! Tu não tens dó?

Fred Astaire era implacável. Ladrão não nasceu para perdoar. O destino que lhe estava marcado na mão obrigava-o a arriscar. Sem piedade das vítimas, sem respeito por valores ou projectos que não fossem seus. O carteirista conhecia-os e o presidente da comissão política que fora à sua casa era feito desse barro. Pedir favores, implorar votos, suplicar solidariedade e, quando chegasse a hora de recordar os esforços, esquecer, ignorar, não cumprir. Fred mostrava com o exemplo que ladrão é pessoa de princípios. Ficou famoso. Foi o primeiro cidadão que, em tempos de campanha eleitoral, em vez de doar conseguiu cobrar. E tal fama haveria de chegar longe, como adiante se verá. Por agora, introduzamos o leitor no mundo da política, onde os nossos amigos brilharam a grande altura. Logo na apresentação dos candidatos, a sala do clube recreativo regurgitava. As velhas da freguesia, todas de barriga disforme e ancas desconjuntadas, ocuparam lugares sentados, deixando as coxias para os homens e rapazes, que agitávam bandeiras do partido. O apresentador de serviço bem se esforçava por animar o pessoal, mas a aparelhagem sonora, de fraca qualidade, soltava silvos estridentes que punham as velhas em sobressalto. O ambiente degradava-se rapidamente e nem mesmo o vozeirão do cantor que servia de almofada ao chefe da propaganda conseguia animar as hostes.

Foi então que o engenheiro e a família deram entrada no salão. Uma salva de palmas sacudiu o velho clube. Doses distribuía beijos e autógrafos à descrição. As velhas riram e algumas esconderam a cara envergonhadas, como se a luz que resplandecia na estrela as ofuscasse.

- É o Uran!

- O Uran!

- Quem?

- Aquele que a rapariga morena não deixava em paz.

- Ah, o Uran...

- Pensava que era mais alto.

- E simpático. Tal e qual como na televisão.

Quando chegou ao palco foi o delírio completo. bandeiras agitaram-se, a juventude partidária gritou palavras de ordem e Uran, que se tornara estrela-ca dente por ter ganho um concurso de fazer nada, justifi cou plenamente a sua vitória. Não fez nada. Agradeceu os aplausos e apontou para o fundo da sala. Centena de cabeças voltaram-se para trás. Eufórico, Porcalhã exibia na mão um molho de minhocas, na outra um prato repleto de ovos de galinha. Um "aaah!" colectivo encharcou a colectividade.

- O come-minhocas!

- São irmãos. Este é irmão do Uran.

- E primos da Gabriela. Está ali o tio, o senhor engenheiro.

- Um belo rapaz. Será tão inteligente como o irmão?

- Será que vai comer as minhocas aqui à nossa frente?

- Tantos ovos, devem ser duas dúzias.

- É, mais bonito assim do que na televisão. Porcalhão chegou sorridente ao palco. Voltou-se para o animador e disse-lhe:

- Põe aí uma música mexida para a malta abanar o capacete enquanto eu como esta merda toda.

A música arrancou. Porcalhão gritou para a assistência que era hora de dança e ele próprio começou a dançar. Quase no mesmo pulo, as velhas levantaram-se e, desajeitadas, remexiam-se e batiam palmas, marcando o compasso enquanto as bandeiras rodopiavam e Porcalhão ora comia minhocas, ora partia ovos a um palmo da boca, que lhe iam chocalhantes pelas goelas abaixo. Era o delírio completo. O presidente da comissão política não queria acreditar e teve de gritar para a sua colega que falava muito:

- Vamos arrasá-los: foram os mil contos mais bem pagos de toda a minha carreira política. - Deus o oiça, Deus o oiça.

Quando a música terminou, Porcalhão abriu as mãos para a assistência e fez rodopiar o prato na ponta do nariz, mostrando que comera tudo. Os aplausos e os gritos ribombaram. A candidatura adversária, que fazia a apresentação dos seus autarcas noutra colectividade a trezentos metros da festa, escutou a algazarra e encolheu-se. Muitos abandonaram o recinto para irem divertir-se na festa dos filhos do engenheiro.

A música tornou a tocar, as palmas ganharam um ritmo sincopado e quando estava a chegar ao fim, frente à loucura das velhas, algumas delas aos gritos com os pés já em cima das cadeiras, à agitação das bandeiras, Porcalhão aproximou-se do microfone e, os braços esticados com os dedos em sinal de vitória, deu um arroto colossal e disse: "Santinho!" E a música parou.

O povo das audiências apaixonado pelo arroto de Porcalhão, o barulho ensurdecedor, lágrimas de emoção e lenços brancos a acenarem à estrela que deixava o palco, apontando para a porta.

As cabeças tornaram a voltar-se para trás, a Ave -Maria de Schubert arrancou em alta e o contraponto **música louca que a antecedera desequilibrou os presentes. A porta abriu-se e, toda vestida de branco, surgiu Gabriela. Se ainda restassem pastorinhos em Lisboa, bem se podia dizer que estávamos em ambiente sagrado próprio para videntes. Gabriela, Gaby das Mamadas, a pedinte que cobrava fotografias aos japoneses, Gabriela amante e amor, ali era virgem, pura e sublime, sorrindo ao som da Ave-Maria de Schubert, e as velhas deixaram que as lágrimas corressem, que os corações batessem mais forte e rezaram. Agradeceram Deus ter-lhes enviado tão boa e santa gente para a política da sua freguesia. O presidente da comissão poli tica seguia um pouco atrás, e depois os restantes candi datos. Quando o cortejo chegou ao palco e **se sentaram, ouviram-se os últimos acordes de Schubert e o silêncio instalou-se. O presidente pegou no microfone e começou a falar.

O nosso partido tem a honra de vos saudar e o prazer de vos convidar a votar na nossa candidatura. Há quatro anos o partido que ganhou prometeu um chafariz e um urinol público. Foram bandeiras que o levaram à vitória e, quatro anos depois, respondam-me: onde está o chafariz? Onde está o urinol?

Engasgou-se quando uma velha lhe gritou:

- Queremos lá saber do chafariz e do urinol. Deixe a Gabriela falar.

- Como?

- Queremos a Gabriela...

- Mas o chafariz...

- Queremos a Gabriela, queremos a Gabriela... - E o urinol...

- Gabriela, Gabriela, Gabriela, Gabriela...

Batiam palmas, agitavam as cadeiras, cantavam em coro, Gabriela, Gabriela, Gabriela, Gabriela, o presidente da comissão política, aflito, a transpirar de medo pela turba em fúria, Gabriela, Gabriela, Gabriela, Gabriela, alargou o nó da gravata, fez um sorriso forçado, apontou para a rapariga e gritou:

- Amigos, eis a nossa futura presidente da junta!

O salão outra vez em apoteose. Gaby dirigiu-se ao microfone, sorriu e o povo das audiências delirou com o seu sorriso.

- Obrigada. A única coisa que vos quero dizer é que votem em nós, votem no partido... no partido... - enervou-se ao descobrir que se esquecera do nome do partido e rematou: é isso, votem no nosso partido!

E votaram. Maioria absoluta e ainda hoje se recorda essa memorável festa que lançou a matilha na política. Houve apenas um pequeno senão. Um gatuno metera-se entre a multidão eufórica e militante para surripiar quase todas as carteiras da plateia. É evidente que ninguém podia imaginar que, durante o espectáculo, o senhor engenheiro se convertera subitamente em Fred Astaire e fez daquele acto de liturgia política a evocação do seu passado de carteirista.

 

           QUANDO FRED ASTAIRE DANÇA

É verdade que quase se ignorou a participação televisiva do Fred Astaire no concurso dos provérbios. *É natural. Participou em duas sessões e ganhou-as sem problemas. Mil contos. Embora significativo, não era nada comparado com as avalanches de notas que outros ganhavam. E deve dizer-se que não foi o dinheiro que moveu o nosso herói. O secreto impulso que o levou a expor-se tinha um nome: Inês.

Conforme os dias passavam e a sua fortuna crescia à velocidade da luz, mais teimosamente se impunha a imagem da antiga amada. Corria-lhe a memória, como uma miragem que se desfazia cada vez que lhe queria tocar, afagar, transportá-la nos braços até ao colo da noite e ao regaço das estrelas. Desgraçadamente não sabia como encontrá-la. Quando partiu não deixou rasto, e Inês tinha a doçura das nuvens e tal como elas não deixava rasto. Pairava, luminosa, naquela miragem que durante seis meses viveu tão dentro de si e que depois partiu sem um único sinal por onde pudesse segui-la. E agora, que não deixara de ser carteirista mas mudara de vida, longe da ameaça da polícia e dos medos de prisões sem fim, não chegava notícia do seu paradeiro. Os outros por vezes não compreendiam o súbito mutismo que prostrava o Fred Astaire dias a fio.

- O Fred está ca mosca.

-Anda a cismar.

- Esta noite acordei para ir mijar e o gajo estava na sala às escuras. Assustou-me. Parecia um fantasma, pois fumava uma bironda e falava sozinho.

- Já o apanhei muitas vezes a falar sozinho.

- Perguntei-lhe se havia azar e respondeu-me que estava a falar com Deus.

- Ter muito dinheiro deu-lhe a volta aos miolos. Conheço alguns casos de tipos tesos que, quando se viram com graveto, até ao pai e à mãe deixaram de falar.

Gabriela ficou inquieta.

- Se estava a falar com Deus... será que tomou vocação?

To mou vocação? Ó Gabriela, que merda de comprimido é esse? Ou é xarope?

- Ora, é uma maneira de dizer quando alguém decide ir para padre.

Doses desatou a rir às gargalhadas.

- O Fred Astaire padre? Estás passada, minha. O maior carteirista de Lisboa e o mais importante engenheiro dos concursos televisivos rezando missa. Dava a hóstia com uma mão e com a outra sacava carteiras.

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- Nem o deixavam entrar para padre. Pelo menos para a polícia precisa de apresentar registo crimi nal.

- Para padre não é preciso. Basta ter fé e tome vocação de oito em oito horas, de acordo com o prognóstico da Gaby, Porcalhão ficava aflito com trocadilhos e interrompeu a conversa entre Doses, Messias e Gabriela.

-Agora a sério. Vocação é mesmo um comprimido?

- Porcalhão, que raio de pergunta.

- Porque, se é comprimido, o Fred Astaire anda a tomar comprimidos desses às escondidas. Eu já vi.

- Comprimidos de vocação?

- Não sei se são de vocação ou se são para a dor de cabeça, mas que toma, toma. E às escondidas.

A rapariga ficou preocupada. Fred Astaire era seu maior amigo. Pelo menos o único que procurava protegê-la e, sobretudo, o homem que, sem nunca a censurar, a levara por palavras, as mais das vezes por silêncios, a abandonar a prostituição. É verdade que amor por Messias ajudara, mas o olhar de censura de Fred, o gesto estimulante para que resistisse foi a almofada onde se amparou quando a fome apertava e o desejo de resolver tudo marchando até à avenida espiava. Procurou-o.

Estás bem?

- Estou.

- O Doses diz que vais entrar para padre.

- Com a minha idade só entro se me aceitarem como bispo.

- E o Porcalhão está convencido de que é verdade porque andas a tomar comprimidos de vocação.

- Os naturais disparates do Porcalhão.

- Pode ser parvo mas não é cego. Ele viu-te a tomar comprimidos.

- E depois?

- Estás doente e não dizes nada. Eu gosto de ti, Fred. Talvez seja a tua maior amiga e estou assustada. Que se passa contigo?

- Nada. Estou bem.

- Não me mintas.

- A sério.

- E os comprimidos?

- Um médico deu-mos. Com a minha idade é preciso ter cuidado com o coração.

- Estás doente do coração?

- Não! - mentiu ele.

- Jura!

- Juro! - mentiu outra vez.

Não podia dizer a Gabriela que sofria duas vezes do coração. E a doença menor era a angina de peito que o médico lhe diagnosticara meses antes. A mais grave chamava-se Inês. Essa mulher com asas de anjo que lhe entrara pelo corpo, fizera-lhe o ninho no peito e depois partira, ficando sempre tão presente que Fred sentia esta presença-ausência como o relógio dos seus dias que evocava memórias e sonhava futuros. Contratou uma agência de detectives. Surgiu-lhe um cavalheiro cheio de diplomas. Criminólogo, psicólogo, parapsicólogo, tarólogo, especialista em fotografia nocturna cartomante. Fred contou-lhe que procurava Inês e o perito em divórcios, relações de adultério, astrólogo etective particular credenciado pelo FBI respondeuque era fácil e informou sobre honorários.

- Dois mil contos.

- Filho, andamos os dois ao mesmo.

- Perdão?

- Tu tens esses títulos e especialidades todas e eu sou engenheiro. Desconfio que tirámos os cursos na mesma universidade, por isso não gastes mais paleio.

- Mas, senhor engenheiro, oiça...

- Não. Ouve lá, ó doutor em tarologia. Preciso de um tipo suficientemente porco como tu para me fazer um serviço porco. Procuro uma pessoa que não quer que eu a encontre. Se a encontrares, pago-te cem contos.

Nem piou.

-A sua esposa?

- Não tenho esposa. Procuro uma mulher que se chama Inês.

- Filha?

- Não te interessa. Encontra-a e ganhas cem notas.

Deu-lhe as indicações possíveis e despachou-o. Não tinha grande confiança no detective privado. Tal vez a fome o obrigasse a trabalhar com a ânsia de arre, cadar os cem contos. Fosse como fosse, restavam poucas esperanças. Fred sabia que não tinha outra escolha, por isso esperou e, para que a espera não o angustiasse, começou a preparar o golpe do milhão contra o banco. E a primeira abordagem foi carregada de promessas. O gerente, ao saber da pretensão, informou o director, este abriu os braços generosos e numa atitude de grande altruísmo convidou Fred Astaire para almoçar.

Esperavam-no não um, mas três directores. Tudo gente generosa e de sorriso fácil. Fred ficou em alerta. Percebeu que utilizavam a técnica de que se servira durante anos para levar os otários ao castigo e sacar-lhes as carteiras. Sentou-se à mesa de casaco abotoado, não fosse o Diabo tecê-las.

- É um grande prazer conhecê-lo pessoalmente. Só o conhecia da televisão.

- E a sua filha, Gabriela? Agora não tem aparecido. - Tem uma filha notável, notável! - Obrigado, muito obrigado.

- Lá em casa vemos pouca televisão. Saio tardíssimo do banco e, tirando um ou outro programa desportivo, deixo-me dormir. Mas quando a sua filha vai, não perco.

- Ela desistiu?

- Cansou-se. A minha Gabriela é uma rapariga de impulsos. Talvez ainda apareça numa ou noutra sessão do concurso, mas vai ser difícil. Está apaixonada.

- Ah, então parabéns. Casamento à vista, não é verdade?

- Compreendeu-me mal, senhor director. Eneida. O Vaticano propôs-lhe que traduzisse do latim a Eneida de Virgílio.

Não passou pela cabeça de nenhum perguntar qual seria o interesse que o Vaticano tinha na Eneida, Virgílio ou numa tradução feita por Gabriela, e Fred. **Ficou feliz. Estavam desatentos. Decidiu, para **confi + a operação, tirar a prova dos nove.

- É a segunda encomenda. Há uns anos en mendaram-lhe a tradução do grego para inglês Odisseia de Homero.

O director, que estava sentado à sua frente, desiquilibrou-se.

- A sua filha... grego, latim, inglês?

- E alemão.

-Alemão? Alemão, mesmo?

Ferrou a estocada final.

- E mandarim. Desde cedo que estuda línguas. É o seu forte. Senti que era a vocação dela. Quando ainda era gaiata, tinha quinze anos, eu estava na Malásia a construir hotéis na cadeia Hilton e decidi enviá-la para Inglaterra. Terminou os estudos em Oxford. Média final de dezanove.

- Não admira que ganhe os concursos todos. Oxford!

- Uma educação sólida.

- É a melhor herança que podemos deixar aos nossos filhos, senhor director.

- Tem toda a razão, senhor engenheiro. Toda a razão.

Enquanto comeram discutiram política e, com medo da indigestão, atacaram fruta da época à sobremesa. A chegada do café anunciou o princípio do negócio.

- Então, quer dizer que o senhor engenheiro pretende regressar à vida activa.

- Um hotel, não é verdade?

- Uma belíssima ideia. Lisboa tem cada vez mais procura.

Afastou a xícara, passou a mão pelo cabelo e explicou:

- Se querem saber a verdade, estou cansado da reforma. Durante trinta anos corri o mundo, com uma vida alucinante. Reformei-me e estes dois últimos anos têm sido de um tédio terrível.

- Compreendo perfeitamente.

- É isso. Às vezes dou comigo a desejar que chegue a reforma, mas depois vem a pergunta: e o que é que vais fazer? Uma pessoa habitua-se a viver nesta tensão e depois deve ser complicado.

Fred não lhes ligou. Era a hora do ataque em profundidade.

- Tenho pouco dinheiro depositado em Portugal. Apenas trezentos mil contos, no vosso banco. Tenho dinheiro no Brasil, por causa dos juros altos, na Suíça, como segurança, e uma carteira de acções e obrigações na Bolsa de Londres, na ordem dos dois milhões de libras.

Passou os olhos pelos convivas para sentir o efeito das palavras e rematou:

- Dá para viver.

Não tugiram nem mugiram e Fred Astaire continuou o espectáculo.

- Desenhei um hotel. Tenho terreno apalavrado e as autorizações da câmara para construir. Ou trabalho ou então esta velhice vai ser curta. Aliás, estou a falar convosco apenas por descargo de consciência. Para dizer a verdade, por comodismo. Podia ir trabalhar para o Brasil, para a Suíça ou até para Inglaterra, onde tenho o meu dinheiro e não precisava de pedir emprestado. Mas não me apetece sair de Lisboa. A minha filha gosta da cidade, os meus sobrinhos vivem comigo, p que o meu irmão e a minha cunhada são engenheiros especializados em plataformas petrolíferas e trabalham na Arábia Saudita. Digam-me, senhores directores, podem emprestar-me um milhão de contos?

Um mar de sorrisos e olhares cintilantes inundou a mesa de repasto. Foi um milagre Fred Astaire não ter sido beijado.

- De caras, senhor engenheiro.

- O seu aval pessoal chega e sobra.

- Até lhe emprestamos mais desde que nos prometa que não abandona o país. É homens como o senhor que aqui são precisos.

Fred apalpou o pulso e ficou satisfeito. Havia um menos eufórico que perguntou:

- Desculpe-me a pergunta, senhor engenheiro, mas vai construir o hotel para explorar ou para vender?

Deu graças a Deus por ter falsificado a carta que redigira nas folhas timbradas do Hotel Hilton, postas à disposição dos clientes para escreverem para casa. Tirou a falsificação da pasta e mostrou-a.

- Quando pensei em construir, contactei a cadeia Hilton, para a qual trabalhei mais de vinte anos. Mandaram-me esta carta.

O director leu em voz alta.

- "Caro Ambrósio. Foi com alegria que recebemos a notícia de que queres voltar à guerra. Claro que compramos o hotel. Falei com o George, que me disse que está interessado em Lisboa. Avaliámos a planta que mandaste. Não peças mais de quatro milhões de contos. É o número que o George tem na cabeça. Um abraço. Jeffrey."

O director estremeceu e Fred Astaire, divertido, disse-lhe:

- Leia o post scriptum.

Leu.

- "Como vês, as tuas lições de português não foram em vão e até fiz o câmbio de dólares para escudos para te mandar o preço."

Fred explicou:

- O Jeffrey é administrador e acompanhou de perto a construção do hotel que fiz em Manaus, na Amazónia. Ensinei-lhe português. - O riso dos outros não conseguia disfarçar o nervosismo.

- Investe um milhão e meio para vender por quatro.

- Dois milhões e meio de lucro.

- É dinheiro.

Olhou em volta e baixou a voz.

- Dois milhões.

- Dois? Mas aqui diz...

- O meu problema não é o dinheiro. É actividade. O meio milhão de contos é para eu oferecer como agradecimento às pessoas que me ajudarem a regressar à vida activa.

Não podia ser mais claro. Uma hesitação de cinco segundos, trocas de olhares cúmplices e negócio fechado com fortes apertos de mãos. Agora era preciso tratar da documentação. Coisa rápida. Uma, duas semanas.

Quando terminou o almoço, que os directores f fizeram questão de pagar, Fred Astaire decidiu fazer um passeio a pé por Lisboa. Quando deu por si, estava no Intendente, à entrada da Rua do Benformoso, e o coração, grato pelo resultado do almoço, desatou a bater descompassado. Naquela rua, por aqueles bares, correram horas e horas da sua vida no tempo em que era carteirista a tempo inteiro. Os jogos de cartas intermináveis com chulos e intrujas, os piropos às prostitutas, discussões acaloradas sobre futebol, as conspirações clandestinas com outros carteiristas, que discutian sítios onde iam roubar.

Estava contente, com os directores arrecadado bolso, e o cheiro a ginja e a urina podre que exalava dos bares trazia-lhe memórias antigas. Foi então reparou que, num deles, um grupo de homens e mulheres dançava ao som dos discos que uma máquina seleccionava. Eram tangos.

O rosto do carteirista iluminou-se. Entrou, pediu uma ginja e dançou. Os outros pararam. Nunca tinham visto dançar assim. Só nos filmes antigos em que entrava um actor e bailarino já falecido que se chamava Fred Astaire.

 

         QUANDO TOCARAM AS TROMBETAS DO APOCALIPSE

Os dias corriam nervosos. Mas, como sublinhava filosoficamente Messias, não era apenas o grupo que andava irritadiço. Era um sintoma da onda de cepticismo que atravessava o país. O governo estava mergulhado em mais uma crise. Não era a primeira nem era a mais grave. Para sermos rigorosos, devemos dizer que o governo era a crise. E não estava relacionada com algum acontecimento especial. Naquele início de milénio, crise era a palavra mais repetida por todo o mun do. Nem se deveria dizer que resultava de governar mal. Não governava. Nem bem nem mal. Estava quieto, adormecido, e o povo andava em bicos de pés e sinal de respeito. Se o governo dorme, deixá-lo dormir. Mas deve dizer-se que o povo também estava em crise. Desinteressara-se de si próprio e tomara partido pelas cadeias de televisão em vez de escolher no espectro partidário. Deixara de ser povo. Despira a roupeta proletária, deixara a apodrecer na arrecadação as bandeiras da propaganda política e subdividira-se em audiências. Não espanta, pois, que o próprio governo, e a oposição, se distribuísse pelas televisões para ser escutado pelas audiências que julgava governar. Mas infelizmente não governava. Era um sério candidato a ganhar o concurso da casa fechada, cuja finalidade era não fazer nada para que não se fosse expulso. Aceitando esta lógica dedução, somos levados a concluir que Doses, último campeão do nada, seria um bom elemento do governo. Corrijamos o tempo do verbo, que, para sermos honestos com os nossos personagens, merece um particípio passado. Teria sido um bom elemento do governo, porque agora, sendo um homem rico, continuava sem fazer nada mas a fortuna era um óbice. A única virtude da arte de governar era exactamente essa. Dar emprego a pobres desvalidos, gastos nas juventudes partidárias e sem préstimo para outra coisa que não fosse governar. Uma verdadeira instituição de beneficência, um pouco mais secularizada que a Santa Casa da Misericórdia, mas não tão laicizada como a Casa Campeão, recordista de vendas da taluda nacional.

Fred Astaire, ainda que não o confessasse publicamente, sentia-se o verdadeiro responsável por esta revolução. O brilhantismo infalível de Gabriela, a sornice de Doses, as arrobas de minhocas deglutidas por Porcalhão, as toneladas de papel roubadas por Messias, conferiram ao grupo uma obrigação transcendente - transformar a pátria numa multidão boquiaberta, olhos cravados no televisor a beber imperiais ou a tirar macacos do nariz. De certa forma, era uma pátria condicionada pelos bancos e pela televisão. E Fred, que ludibriara a televisão e estava na iminência de esfaquear a pança do banco, sacando-lhe um milhão das somíticas entranhas, sentia orgulho de ser o líder do grupo de revolucionários de Alfama que, pelo talento e pela burla, reformara o país como jamais alguém foi capaz de reformar. A reconversão do povo em audiência e a adaptação do governo aos horários televisivos era obra. E virtuosa. O melhor que pode acontecer a um país é desgovernar-se sem que ninguém faça alguma coisa para o parar ou não parar. Além de que muito mais democrático fazer confluir para o ecrã todas as paixões nacionais. O ministro que, vermelho e a deitar fumo pelas orelhas, grita que parou a inflação, que se segue a peixeira, lamentando-se que cada vez vende menos petinga, para dar abertura ao secret de Estado, que garante o preço da beringela nos próximos três meses, seguido do taxista, que **explica como assaltaram à mão armada, dando o passo ao director-geral confiante, que tudo o que se diz não passa de boatos, e confirmado pelo dirigente desportivo, que demonstra que não fez branqueamento de capitais na compra de dois jogadores, chegando antes do intervalo o grande êxito. Os Espinhos do Amor, cantados por J e Bé, que se declaram satisfeitos com o seu álbum, que se inspirou n’Oos Lusíadas de Gil Vicente, fechando a emissão com um debate entre um deputado e um homicida sobre a importância do segredo de justiça.

Esta televisão que não toma banho e que cheira a suor do sovaco era a grande vitória de Fred Astaire. Apaziguou todas as consciências e silenciou o povo até então dado a alvoroços. O combate com o banco não se adivinhava difícil. E compreende-se. Banco odeia pobre porque pobre não tem dinheiro. Sejamos francos. Odeiam-se mutuamente. É por isso que os dejectos do povo assaltam bancos à mão armada e as sagradas instituições financeiras obrigam-no ao cumprimento de um destino colectivo historicamente merdoso, não lhe emprestando dinheiro para desenvolver uma ideia genial porque quem vive em duas assoalhadas de prédio social, com passe na Carris e conta no merceeiro não pode ter ideias geniais. Roubou-as, seguramente. Banco patrocina as artes nobres. Futebol, ralis, torneios de golfe e festas sociais. Paga as fotografias das festas sociais. E respectiva legenda. Landinho em amena cavaqueira no Bar das Ostras com Bibi e Xaró. A senhora de Carvalho com o senhor comendador José Carvalho. Clitoris de braço dado com Cocó. É claro que nem Landinho nem Cocó fazem o que quer que seja. Aliás, a missão que desempenham é a mesma que Doses cumpriu. Não fazer a ponta de um corno. A sua função social é altamente patriótica e imensamente nacional, ir a festas e deixar-se fotografar. As audiências, comida a sopa e os croquetes com arroz, precisa de imaginar que esteve naquela festa, com aquele vestido, com aquele sorriso, com aquelas jóias. A audiência descalça os sapatos, liberta-se das peúgas malcheirosas e esfrega os dedos doridos, enquanto acredita que salta e pula nas festas cor-de-rosa em que toda a gente bebe champanhe e faz de conta que está contente. E que é gente. Este espectáculo é seguramente apadrinhado pelo banco e, claro, tem o aplauso de Fred Astaire, que descobriu que rico não rouba banco, pede dinheiro emprestado, que o banqueiro empresta e até agradece. Por tudo isto, o nosso herói habituou-se a odiar o povo e a amar os seus filhos dilectos: os telespectadores. Não gritam, nem protestam. Comem e calam. É este o país de sonho que qualquer ladrão deseja para si, e o velho carteirista modelou-o à sua imagem e semelhança: preguiçoso e embusteiro. E analfabeto, que audiência que se preze de leituras sabe pouco e, quanto a escrever, sabe assinar.

Nenhum dos companheiros percebeu esta arenga do pai e tio improvisado e os protestos não tardaram. Porcalhão tossiu, fazendo saltar pedaços de perna de frango que mastigava.

- Com essa conversa toda ainda não disseste quando é que o milhão de notas vem para o lado de cá.

Doses esclareceu, excitado, enquanto desdobrava um papel.

- Ontem à noite estive a fazer contas. Se comermos a narta ao banco, cada um de nós fica com trezentos e vinte e cinco mil contos. É isso. Trezentos e vinte e cinco mil.

- O quê?

- Não ouviste? Ficamos tão empanturrados de caroço que cada um pode ir bulir pela sua. Eu vou com os meus pais até aos Himalaias. Tem neve. Neve é porreiro. Gramo neve à brava.

- Eu gostava de ir a África. À terra onde o meu pai nasceu e onde a minha mãe aprendeu a fazer coiratos. Ias comigo?

Gabriela não respondeu à pergunta de Messias. Foi a vez de Porcalhão:

- Qual África, qual Himalaia, qual porra. Monto-me num avião e vou para aquela ilha do Pacífico onde as gajas andam todas descascadas com flores à roda dos umbigos e a enfeitarem-lhe as cometas. Como-as, empanturro-me de carne e lagosta, durmo e torno a comê-las outra vez.

Desatou a rir da sua própria graça e exclamou:

- Passo o tempo a comer. Sentado ou deitado, como!

Os outros não acharam graça e Messias estava preocupado com a inquietação de Gabriela. - Gaby?

- Sim?

- Tu estás bem?

- Eu?

- Sim, tu. Calaste-te de repente. - Estou triste.

- Triste? Porquê?

- A conversa do Doses fez-me despertar.

- A minha conversa? Qual é o mal? É proibido ir aos Himalaias?

- Esse dinheiro vai ser o fim de tudo. Vamos separar-nos.

Ficou um silêncio tenso no salão. Gaby continuou:

- Vocês são a minha família. Passei com vocês melhores dias da minha vida. Mesmo quando viviam na casa em ruínas. Não sei se quero esse dinheiro ou quero ficar como estou desde que estejamos todos juntos.

Fred contemporizou.

- Nunca estaremos sempre juntos, nem sequer separados. Só a morte nos afasta. Ou nos aproxima quando morrermos todos.

- Lagarto, lagarto, lagarto!

- O Fred tem razão.

- Não sei. Tanto dinheiro vai separar-nos para sempre. Eu sinto.

- Por favor, Gabriela. Tu sabes que eu te amo.

- Voceses os dois é que têm uma sorte do cacete. Ó Doses, com quanto é que ficam o Messias e a Gaby juntos?

- Vou fazer a conta.

Pegou no papel e começou a escrever. Fred acendeu um cigarro. Aspirou o fumo, fez uma careta e apagou-o. Tinha decidido reduzir o tabaco e agora nunca fumava antes de almoço. Disse:

- Podemos continuar a fazer golpes. Quando ti vermos mais de um milhão de contos, ninguém nos prende.

- Porquê?

- Porque em Portugal não se prende ninguém que tenha mais de um milhão de contos.

- É ilegal?

- Não. É indelicado.

-Ah, é uma questão de delicadeza.

- Podemos continuar a fazer golpes até chegarmos aos dez milhões de contos.

- Porra.

- Doses, quanto é dez milhões de contos a dividir pelo pessoal?

- Seiscentos e cinquenta mil contos. - Porra. É uma data de massa.

- Não. Seiscentos e cinquenta mil contos é quanto soma o dinheiro do Messias e da Gaby do golpe do milhão.

- Porra.

- E com dez milhões?

- Já agora, antes dessa conta, faz lá esta: quanto dinheiro é que cada um de nós tem agora?

- Oiçam lá, vocês querem-me pôr os miolos a ferver com tanta conta?

- Afinal no que é que ficamos?

- Eu não quero separar-me de vocês.

Gaby falava para a parede, pois parecia que ninguém a ouvia, entusiasmados com as contas de somar e dividir. Fred fez-lhe uma festa no rosto.

Estarei sempre contigo. És a minha melhor e única amiga.

Seria a necessidade de matar a imagem de Inês de uma vez por todas que o levou a dizer aquilo? Passara anos sem colocar ninguém nos pedestais que lhe aornavam o peito. Todos preenchidos com a imagem da mulher amada, e agora decidida em pelo menos um deles colocar Gaby.

- Não esqueço a primeira vez que pedi esmola nas Escadinhas da Sé. Endrominaste os japoneses **nos queriam fotografar e mataste-me a fome nesse dia.

Lembras-te?

Gaby sorriu afirmativamente.

Parece que foi ontem e já passou tanto tempo. Um bom ladrão nunca esquece quem o ajuda. Olharam-se com ternura e Messias ficou despeitado.

- Que olhares de merda são esses? Andam a comer-se?

- Messias!?

- Que conversa é essa, ó puto?

- Ao menos respeitem-me! Ao menos respeitem-me!

Nem parecia o pamonha do Messias, o ex-policia escolhera a profissão em função das borlas no futebol.

- Com licença. Não aturo conversas de merda! Gaby saiu batendo violentamente com a porta.

Fred olhou-o friamente.Não a mereces. Não nos mereces.

- Eu sei o que digo.

- Só uma besta diz o que tu dizes. Porcalhão concordou.

- É verdade. Uma grande besta. A Gaby é baril, meu. Nunca te enchifrava com o Fred. Nem com Fred nem com ninguém.

Doses concordou.

- A ex-garína mais afinada que conheço. E porreira.

Fred Astaire acendeu instintivamente um cigarro. Que se lixasse o vício. Messias nem imaginava que, embora como sombra, Inês vivia com tanta força dentro de Fred que não poderia existir outra mulher nos seus braços. Por isso falou assim.

- Messias. Eu sei o que são ciúmes e por isso estás desculpado. Mas, como não tens razão, só voltas a falar comigo no dia em que pedires desculpa à Gabriela.

E saiu da sala. O tímido Messias ficou sem bóia. Não era nem em Doses nem em Porcalhão que arranjaria apoio. Uran andava nas nuvens com a chusma de namoradas que conquistara depois da vitória no concurso do nada fazer e Porcalhão estava no seu pão pingado: comia e dormia. Ora Messias não era rapaz de grandes raciocínios. Nem de grandes rancores. As coisas ou eram ou não eram e pôs-se a medir o sorriso trocado entre Gaby e Fred para ver se era. Bom, era verdade que fora por mão da sua amada que o carteirista chegara à matilha. Como também era verdade que o velho tinha mais atenção para ela do que para os outros. Contudo, não recordava um único comportamento de Fred ou mais velhaco ou mais interessado em Gaby ou noutra mulher qualquer. Até se pusera a imaginar se não pegaria de empurrão. Depois tinha o testemunho de dias e meses de dedicação de Gaby, da entrega dos segredos do corpo e dos segredos dos segredos que se dizem ao ouvido e em abraços tão totais um sorriso, mesmo que fosse mais íntimo, não ser porta aberta para esse mundo de afectos que partilhava com ela. Pôs isto num prato da balança, colocou aquilo no outro prato, olhou o fiel com atenção e o visor deu a seguinte pesagem: Messias, espalhaste-te ao comprido.

Entrou devagar no quarto de Gaby e onde Gaby chorava em silêncio. Fred Astaire, que entretanto mudara de casaco para ir a mais uma reunião no banco passou perto e ouviu as palavras envergonhadas de Messias pedindo desculpas e jurando amor eterno à namorada. Ficou satisfeito. Não podia, no regresso, deixar de falar a Messias.

No banco foi recebido em apoteose. O senhor engenheiro já podia dispor do dinheirinho que pedira emprestado, o milhãozito de contos, pois que o banco analisara tudo, os projectos, os desenhos, a conta bancária, o passado do senhor engenheiro, o presente e, claro, o futuro, pelo que estava tudo certinho, bastava assinar aquela letrazinha, o contratozito que entretanto estava já redigido, e pronto, o dinheiro era seu, o hotel quase uma realidade, e que todos se sentiriam muito honrados de estar na festa de inauguração. O senhor engenheiro assinou tudo o que lhe pediram e discursou. Que assim, sim. Este naco de terra, hesitante entre uma discussão sobre futebol e uma telenovela, começava a parecer um país, que não havia progresso sem rápido entendimento entre bancos e investidores, que esperava corresponder na construção do novo hotel à herança artística que tinha deixado espalhada pelo mundo, qual espuma da diáspora lusa errante, de mala de cartão ao sovaco, palmilhando léguas para levar a Palavra a herejes, ateus e a todos os apóstatas que não se haviam convertido ao Benfica nem ao fado do trinta e um. Pois que, embora velho, reconhecia que a pátria precisava do esforço de todos, e era evidente que estavam todos convidados para a inauguração do narcísico hotel e, claro, os tais quinhentos mil contitos já prometidos estariam à disposição daqueles queridos amigos mal fosse colocada a última pedra e a cadeia Hilton procedesse à aquisição. Tanto entusiasmo fez estoirar as rolhas das garrafas de champanhe e deu direito a brindes. E abraços. Mais um tijolo acabava de ser posto na construção magnífica daquela república de doutores, engenheiros e vadios. Brindaram e Fred saiu do banco com o coração tremente de saudades.

O velho mestre Pulgas deveria ressuscitar dentre os mortos, qual experiência do dia do Juízo Final, e testemunhar o golpe que o seu aluno predilecto acabara de dar no coração da bondade. Criminoso que se preze, ladrão de fino cotumo cultiva a caridade, pois que é acto de devoção, e despreza a bondade, adorno nascido de educações menos firmes. Depois da antiga batina do velho capelão da cadeia, este golpe era a coroa de louros, a ascensão ao panteão dos deuses, a subida ao primeiro lugar do pódio ao som do hino nacio

nal, iluminado pela bandeira desfraldada. Mesmo que voltasse à prisão, já não lhe chegaria o trono que Olimpo aguarda os carteiristas de mais fino recorte. Emergeria, por certo, na dimensão panteísta da b total, a síntese perfeita entre o burlão e o artista, a sublimidade transcendente na arte de ser ladrão. E que Inês não gostaria de saber. O rosto toldar-se repetiria o mesmo medo de sempre:

- Tenho medo, Fred. Não gosto de saber que fazes essas coisas!

Como não a queria magoar, não lhe diria nada. Mas daria corpo a todos os seus desejos como se fosse uma rainha, seria feliz na felicidade dela, sorriria alegre no riso cristalino de Inês. Estava decidido que não diria nada. Mas confessaria o golpe ao mestre, e Pulgas semicerraria os olhos e, a voz embargada, exclamaria:

- É um milagre. Uma verdadeira obra-prima!

Até Porcalhão chorou. Nem imaginava o que um milhão de contos, mas a evocação que Fred fez do seu professor deixou-o comovido, enquanto Gaby e Messias trocavam um longo e lânguido beijo apaixonado e de vitória. Doses também ferrou um beijo na bochecha de Fred e exclamou:

- Fred, o próximo golpe é apoderarmo-nos do governo do país!

- Não é difícil. Ninguém quer ir para o governo.

- Nem sair.

- Eu discordo. Fiquei farto de entrar em sítios mal frequentados.

- Mas têm o Ministério das Finanças. Há dinheiro. - Dinheiro sujo. Roubado aos pobres. -Aos pobres?

- É quem paga os impostos. Os ricos estão isentos.

- Por acaso era porreiro tornar o governo. À porta do meu gabinete escrevia: "Porcalhão, ministro da Educação."

- A vizinhança ficava desiludida. Eles gostam tanto de nós. Até acham que somos sérios.

- Lá isso, ir para o governo seria um desastre. - Julgavam que não sabíamos fazer mais nada. - Dê por onde der, vou até aos Himalaias. - E eu vou a África. Gaby, vens comigo? - Vou.

- Então, mais um brinde. Viva a televisão e a banca. O poder a quem trabalha!

- Viva!

Tornaram a encher os copos. Trocaram promessas e desenharam novos golpes. Porcalhão, ainda que um pouco transtornado pelo álcool, teve uma ideia luminosa:

- Vamos propor que se erga uma estátua ao Fred. Há? Uma estátua!

A proposta ganhou logo adeptos. E por certo que a noite não terminaria sem projecto concluído se a campainha da porta da rua não tivesse retinido. Fred Astaire olhou, surpreendido, para o relógio. Quem seria àquela hora da noite? Foi espreitar ao corredor e na sala de entrada estava o maltês criminólogo, parapsicólogo, cartomante e vidente, de rosto taciturno e embrulhado numa gabardina sombria. O coração deu um baque. Trazia novas de Inês. Cumprimentou-o rapidamente e perguntou ansioso.

- Encontrou-a?

- Encontrei.

Respirou fundo para dominar a dor que lhe vinha do peito até ao braço.

- E ela? Falou-lhe de mim?

Só quando o detective e tarólogo hesitou, percebeu o rosto carregado do pombo-correio.

- Então?

- Inês morreu.

Fred não quis ouvir e repetiu a pergunta.

- É verdade, senhor engenheiro. A Inês morreu. Trago-lhe a certidão de óbito. Está enterrada num cemitério do Porto. Morreu há cinco anos. Um acidente de viação.

Um vento glacial enregelou-lhe o corpo e tempestades de lágrimas soltaram-se dentro de si. Donde viria aquele frio, santo Deus? Um frio que doía, e a dor foi tão forte que se desequilibrou e, quando o peito doeu como se estoirasse em estampidos de explosões, não percebeu e interrogou, doido varrido:

- A minha Inês morreu?

Ao silêncio do detective, o braço adormeceu, depois o outro braço, de todos os cantos de si correram vozes angustiadas que gritavam por Inês, desencontra das e chorosas, e o corpo cada vez menos seu, esmagado pela dor que lhe saía do peito e se espalhava até tocar os habitantes da casa e inundar a cidade. Sussurrou um sorriso, murmurou: Inês!, e caiu morto aos pés do emissário da desgraça.

Já não ouviu o pranto de Gaby, nem se apercebeu do nervosismo do aterrado Porcalhão, que mastigava pão seco sem cessar, nem viu as lágrimas tristes de Messias, nem o choro convulsivo de Doses, encolhido a um canto. Fred Astaire estava longe. Passeava de mão dada com Inês nos prados azuis que existem a decorar o céu dos namorados.

 

                           O PRINCÍPIO ERA O VERBO

Quem hoje passear por Lisboa e passar junto à Sé descobre, entre os mendigos que por ali recolhem esmolas, a mão de uma mulher carcomida pelos anos com o olhar marcado pelo sofrimento que discute esmolas com fotógrafos japoneses e implora misericórdia pelas alminhas. E quando o Sol começa a encobrir-se nos prédios da Madragoa surgem por ali dois homens curvados e mal vestidos, um que responde por Messias e outro a quem o vício da droga fez esquecer o nome, que vão buscar a pedinte, seguindo os para uma casa abandonada junto às ameias do castelo onde se encontram com Porcalhão, que conta as moedas que ganhou nesse dia a arrumar carros na Avenida Guerra Junqueiro.

Quem por eles passar por certo não conhecerá os nossos amigos, os heróis de primeira página de revistas e vedetas intocáveis de televisão. É natural que o leitor mais resistente e que chegou até aqui nesta história de ladrões pergunte, incomodado com este epílogo, como puderam aquelas almas, depois da morte de Fred Astaire, gastar assim, sem proveito nem para o corpo nem para a alma, mais de um milhão de contos. Dir-lhe-ei, meu caro, que não o gastaram. Até, sendo mais preciso, nem lhe tocaram.

A maldita conta bancária onde estavam todos os seus pertences não tinha outro titular a não ser Fred Astaire, conhecido pela alcunha de engenheiro Ambrósio, e a imensa quantidade de notas acumulada foi digerida pelas entranhas do banco. Pelo que é vê-los entre a multidão de indigentes que povoa a cidade. E nesta felicidade criada pelas mãos divinas dos homens, lá em cima, no Alto de São João, descansa em paz o último ladrão que abriu a batina de um padre. Na lápide que o evoca escreveram: "Fred Astaire, o dançarino com mãos de nuvem." Devemos dizer que ainda morreu em bom tempo. As caixas multibanco, sem algibeiras e sem cérebros, conquistaram definitivamente a cidade. E mandam. 

 

                                                                                Moita Flores 

 

 

                                         

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