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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CASTELO BRANCO / Hornan Pamuk
O CASTELO BRANCO / Hornan Pamuk

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CASTELO BRANCO

 

No ano de 1982, o erudito Faruk Darvinoglu encontrou, em meio aos poeirentos papéis dos arquivos públicos de Gebze, um manuscrito curioso, o qual, mais tarde, publicaria sob o título de “O Enteado do Colchoeiro”. Nele está o relato de um veneziano anônimo do século XVII que teve seu navio abordado pelos turcos quando fazia a travessia de Veneza para Nápoles. Depois de escapar do martírio fingindo-se de médico, o prisioneiro foi confiado a Hoja, um cientista excêntrico, com o qual descobriu possuir inquietante semelhança.

Assim começa um dos mais belos romances da literatura contemporânea. O Castelo Branco marca a estréia no Brasil de Orhan Pamuk, o mais importante romancista turco da atualidade, cujo estilo complexo e elegante e o jogo constante de ciência e fantasia fazem lembrar o escritor italiano Ítalo Calvino.

O Castelo Branco é uma narrativa sobre a troca de papéis. A serviço de um sultão, Hoja e o sósia se empenham na construção de uma gigantesca máquina de guerra cujo alvo é uma fortaleza inatingível situada no alto de uma colina. Nas horas que lhes sobram, eles contam um ao outro histórias pessoais e falam das culturas de que provêm, penetrando tão profundamente um no outro que em determinado ponto da narrativa nem eles mesmos, nem o leitor, conseguem mais encontrar o fio de suas identidades perdidas. O final, contudo, traz uma surpreendendo reviravolta que contribui ainda mais para compor uma atmosfera de sonho.

Através da relação de Hoja com o sósia, Pamuk constrói uma fabula profunda e bem-humorada sobre as complexas relações de um Oriente devoto e supersticioso e um Ocidente racional, ao mesmo tempo em que faz uma meditação a respeito da essência humana, única e inalterável, que se encontra adormecida sob os bem trançados fios de cultura.

 

 

                       Para Nilgun Darvinoglu1

Encontrei este manuscrito em 1982 naquele “arquivo” esquecido anexo ao escritório do governador, em Gebze, que eu costumava revolver durante uma semana a cada verão. Estava no fundo de uma cômoda empoeirada e cheia até a boca de decretos imperiais, títulos de propriedade, registros de processos, impostos. O azul de sonho do papel marmorizado da capa, a caligrafia vistosa, brilhando em meio àquele papelório desbotado do governo, logo me chamou a atenção. Percebi, por uma diferença no talhe das letras, que alguém — não o calígrafo original —, como que para acirrar ainda mais meu interesse, acrescentara mais tarde um título à folha de rosto do livro: “O Enteado do Colchoeiro”. Não havia outros cabeçalhos. As margens e páginas em branco haviam sido decoradas com imagens de pessoas de cabeças minúsculas, vestindo roupas com muitos botões, todas desenhadas com mão de criança. Li o livro imediatamente, com imenso prazer. Encantado, mas preguiçoso demais para transcrever o manuscrito, furtei-o daquele amontoado de coisas díspares a que nem o jovem governador ousava chamar de “arquivo”. Aproveitei, para isso, a confiança de um encarregado que, por deferência, me deixara a sós, e enfiei o livro na minha pasta num abrir e fechar de olhos.

De início, não sabia muito bem o que pretendia fazer com o livro, a não ser ler e reler seu texto muitas vezes. Eu ainda não tinha a História em grande conta, e queria concentrar-me no relato que ali se continha por ele mesmo, sem curar do possível valor cultural, científico, antropológico ou “histórico” do manuscrito. Sentia-me atraído pela pessoa do autor. Desde que meus amigos e eu tínhamos sido forçados a abandonar a universidade, eu adotara a profissão de enciclopedista, que era a de meu avô. Foi por isso que me ocorreu fazer uma entrada sobre o autor para a seção de história — minha responsabilidade — em uma enciclopédia de homens famosos.

A isso devotei todo o tempo que sobrava da enciclopédia e das minhas libações. Quando consultei as fontes principais sobre o período em causa, logo me dei conta de que alguns acontecimentos da narração tinham pouco a ver com os fatos. Comprovei, por exemplo, que em determinado momento, durante os cinco anos em que Koprulu serviu como grão-vizir, um grande incêndio devastou Istambul, mas não havia qualquer referência a uma epidemia subseqüente ao fogo, uma epidemia digna desse nome, e muito menos a uma peste generalizada como a que o livro descreve. Determinados nomes dos vizires daquele período estavam escritos com erros, muitos apareciam confundidos uns com os outros, e alguns figuravam com nomes trocados. Também os nomes dos astrólogos imperiais não conferiam com aqueles constantes dos registros oficiais do palácio, mas uma vez que conclui que essa discrepância tinha lugar especial na narra­ção, resolvi não perder tempo com o assunto. Por outro lado, nosso “conhecimento” histórico corroborava, em linhas gerais, os eventos referidos no livro. Em muitas instâncias vi o mesmo “realismo” nos pormenores: o historiador Naima2 descreveu de maneira semelhante a execução do astrólogo imperial Huseyn Efendi e a caça aos coelhos por Mehmet IV no palácio Mirahor.3 Ocorreu-me que o autor, que claramente gostava de ler e de fantasiar, talvez estivesse familiarizado com fontes desse tipo e com muitos outros livros — tais como as memórias de viajantes europeus ou escravos emancipados—e colhera aí material para o seu relato. Pode ser que tenha lido os diários de viagem de Evliya Chelebi,4 que ele diz conhecer. Imaginando que o inverso poderia ser igualmente verdadeiro, como outros exemplos mos­trarão, fiquei procurando referências ao meu autor, mas as pesquisas que fiz nas bibliotecas de Istambul baldaram muitas das minhas esperanças. Não fui capaz de localizar um único dos livros apresentados a Mehmet IV entre 1652 e 1680, nem na biblioteca do palácio Topkapi nem em outras bibliotecas públicas ou privadas, onde pensei que eles pudessem estar desgarra­dos. Achei uma só pista: havia, nessas bibliotecas, outras obras do “calígrafo canhoto” mencionado na narração. Pus-me em busca delas por algum tempo, mas só respostas desalentadoras me vieram ter às mãos de parte das universidades italianas que eu havia bombardeado de cartas. Minhas andanças por entre as pedras tumulares de Gebze, Jennethisar e Uskudar, à cata do nome do autor (revelado no corpo da obra, se bem que. não no frontispício), também foram malsucedidas. Mas, já a essa altura, minha paciência se esgotara. Decidi abandonar outras possíveis linhas de investigação e escrevi meu verbete para a enciclopédia com base, unicamente, no próprio relato. Como eu temia, o artigo não foi aceito, não por carência de documentação científica, mas pelo fato de não ser o autor tão famoso que justificasse a sua inclusão.

Talvez, por esse motivo, meu fascínio pela história tenha aumentado ainda mais. Pensei até em pedir demissão em protesto, mas gostava demais do trabalho e dos colegas para afastar-me. Durante algum tempo, contei a história com paixão a todos que encontrava. Era como se eu a tivesse escrito e não, simples­mente, descoberto. Para torná-la ainda mais interessante, eu falava do seu valor simbólico, da sua relevância fundamental para as realidades do nosso tempo; de como, através dela, eu viera a compreender melhor o mundo contemporâneo etc. Quando argumentava assim, os jovens, geralmente mais ocupados com absorventes questões como a política, o ativismo, as relações entre Leste e Oeste, ou a democracia, ficavam de início intrigados, mas, como os meus companheiros de libações, logo esqueciam minha história. Um professor das minhas relações, devolvendo o manuscrito que examinara por insistência minha, disse que as velhas casas de madeira das ruas mais recuadas de Istambul estavam recheadas de histórias do mesmo tipo. Se as pessoas simples que moravam naquelas casas não as tivessem confundido, dada a sua antiga escrita otomana, por corãos ará­bicos, e guardado todas em lugar de honra, nas prateleiras mais altas dos seus armários, estariam rasgando as histórias página por página a fim de acender seus fogões.

Resolvi, então, encorajado por uma certa garota de óculos, que estava sempre com um cigarro entre os dedos, publicar a história, que eu voltara a ler incessantemente.

Meus leitores verão que não tive pretensões de estilo ao fazer a transliteração do livro para o turco moderno. Depois de ler umas duas linhas do manuscrito, que eu conservava em cima de uma mesa, ia para outra mesa, em outro aposento, onde estavam os meus papéis, e procurava transpor para o idioma de hoje o sentido do que me ficara na cabeça. Não fui eu que escolhi o título do livro, mas a editora que assentiu em publicá-lo. Os leitores, vendo a dedicatória, talvez se perguntem se ela tem algum sentido pessoal. Suponho que ver tudo em relação com tudo o mais é o vício do nosso tempo. E é por ter, eu também, sucumbido a essa doença que dou a lume esta história.

 

                                 Faruk Darvinogluif5

Velejávamos de Veneza para Nápoles quando a esquadra turca apareceu. Contávamos com três navios ao todo, mas a formação das galeras, emergindo do nevoeiro, parecia não ter fim. Perde­mos o sangue-frio. Medo e confusão irromperam no navio, e os remadores, na maior parte turcos e sarracenos, começaram a gritar de júbilo. Nosso barco virou de proa para a terra, ou seja, para oeste, como os outros dois, mas, ao contrário deles, não conseguimos ganhar velocidade. Nosso capitão, temendo ser punido se capturado, não se decidia a dar a ordem de vergastar os cativos nos remos para forçar a voga. Anos depois, muitas vezes pensei que aquele momento de covardia mudara a minha vida.

Mas, agora, parece-me que a minha vida teria sido mudada se o nosso capitão não tivesse sido dominado subitamente pelo medo. Muitos acreditam que nenhum destino é determinado com antecedência, e que todas as histórias pessoais são essencialmente uma cadeia de coincidências. E, no entanto, mesmo os que assim pensam, muitas vezes chegam à conclusão, quando olham para trás, que acontecimentos vistos no passado como produto do acaso eram, na realidade, inevitáveis. Eu mesmo cheguei a esse momento agora, quando me abanco a uma velha mesa para escrever meu livro e vislumbro o vulto dos navios turcos surgindo como fantasmas da cerração. Este parece o melhor momento possível para contar uma história.

Nosso capitão criou alma nova quando viu que os outros dois navios escapavam dos turcos e desapareciam na neblina. Decidiu, então, bater nos remadores, mas era tarde demais. Nem chicotes fariam escravos obedecer, uma vez despertados pela paixão da liberdade. Cortando a enervante muralha do nevoeiro em faixas ondulantes de cor, mais de dez galeras turcas já estavam em cima de nós. Agora, finalmente, nosso capitão resolveu lutar, procurando sobrepujar, creio eu, não o inimigo, mas a sua própria covardia e vergonha. Mandou que os escravos fossem açoitados sem dó nem piedade e que os canhões fossem aprestados, mas a paixão da batalha, que tão tarde se acendera, logo esmoreceu. Nós nos vimos apanhados numa violenta salva pelo flanco — o navio, certamente, afundaria se não nos entregássemos logo — e decidimos içar a bandeira da rendição.

Enquanto esperávamos, num mar tranqüilo como um espelho, que os navios turcos emparelhassem com o nosso, desci até o meu camarote para pôr minhas coisas em ordem, como se estivesse esperando não arquiinimigos que iriam mudar toda a minha vida e sim uns poucos amigos de visita. Abrindo minha pequena mala, pus-me a mexer nos livros, perdido em pensa­mentos. Meus olhos se encheram de lágrimas quando virei as páginas de um volume pelo qual pagara bom dinheiro em Flo­rença. Ouvi gritos, passos correndo para a frente e para trás, um grande tumulto lá fora. Sabia que, a qualquer momento, o livro me seria arrancado das mãos, mas não queria pensar nisso e sim no que estava escrito em suas páginas. Era como se os pensa­mentos, as frases, as equações do livro contivessem a minha vida inteira. A minha vida passada, que eu tanto temia perder. E enquanto lia a esmo frases soltas em voz baixa, como se recitasse uma prece, desejei desesperadamente gravar o volume todo na memória. Assim, quando eles viessem, eu não pensaria neles e no que me fariam sofrer, mas recordaria os pontos altos do meu passado, como se rememorasse as palavras de um livro que tivesse memorizado com prazer.

Naquele tempo, eu era uma pessoa diferente da que hoje sou, e tinha até um outro nome, e era por ele que me chamavam minha mãe, minha noiva, meus irmãos. De vez em quando, continuo vendo em sonhos essa pessoa que costumava ser eu, ou que hoje acredito fosse mesmo eu, e acordo banhado em suor. Essa pessoa que traz à memória as cores desbotadas, as formas de sonho daquelas terras que nunca existiram, dos animais que nunca viveram, as incríveis armas que mais tarde inventamos, ano após ano, tinha então 23 anos, estudara “ciência e arte” em Florença e Veneza, e acreditava saber um pouco de astronomia, matemática, física, pintura. Era convencido, naturalmente. Tendo devorado a maior parte do que fora criado antes do seu tempo, torcia o nariz para aquilo tudo. Estava certo de que faria ainda melhor; de que nada se lhe comparava; de que era mais criativo e mais inteligente que todos os demais mortais. Em suma, era jovem, um jovem comum. Fico desolado ao pensar, quando tenho de inventar um passado para mim mesmo, que esse moço que falava com a sua bem-amada sobre as próprias paixões, seus planos, sobre o mundo e a ciência, que achava perfeitamente natural que a noiva o adorasse, era na verdade eu mesmo. Consolo-me com o pensamento de que, um dia, algumas pessoas hão de ler pacientemente, até o fim, o que deixei escrito aqui e entenderão que eu não era o tal rapaz. Talvez, então, esses pacientes leitores venham a pensar, como eu penso agora, que a história do rapaz que perdeu a vida enquanto lia seus preciosos livros continuou mais tarde no ponto em que fora interrompida.

Quando os marinheiros turcos lançaram as suas pranchas e vieram a bordo, guardei os livros em meu baú e espreitei a ver o que se passava lá fora. O pandemônio dominava o barco. Os turcos reuniam a todos no convés e tiravam-lhes as roupas. Por um momento me passou pela cabeça que eu poderia lançar-me ao mar, aproveitando a confusão, mas pensei que eles me fuzi­lariam na água ou me recapturariam, matando-me imediatamente. Fosse como fosse, eu não sabia a que distância estávamos da terra. De início, ninguém me incomodou. Os escravos muçulmanos, libertados de suas correntes, gritavam de alegria, e um grupo deles começou a vingar-se dos homens que costumavam chicoteá-los. Logo me encontraram no meu camarote, entraram, saquearam o que eu tinha. Remexeram as minhas malas em busca de ouro e, depois de levarem alguns dos meus livros, e todas as minhas roupas, alguém me agarrou, quando eu, distraidamente, folheava os dois volumes deixados para trás, e me conduziu a um dos seus oficiais.

O capitão, um genovês convertido, como depois ficaria sabendo, me tratou bem. Perguntou-me que profissão era a minha. Temendo ser posto nos remos, declarei logo que entendia de astronomia e navegação noturna, mas isso não causou maior impressão. Inventei, então, que era médico, contando com o livro de anatomia que me tinham deixado. Quando me trouxeram um homem que tivera um braço decepado na refrega, disse que não era cirurgião. Isso os enfureceu e, quando estavam a ponto de mandar-me para os remos, o capitão, notando meus livros, perguntou se eu conhecia alguma coisa de urina e pulsação. Respondi que sim. Isso me livrou dos remos. Consegui, até, conservar alguns dos livros.

Esse privilégio, porém, me custou caro. Os outros cristãos, postos em cadeias, me desprezaram imediatamente. Se pudessem, me teriam matado no porão onde éramos trancados à noite. Mas tinham medo, vendo a rapidez com que eu estabelecera relações com os turcos. Nosso covarde capitão acabava de morrer no mastro. E, como aviso aos demais, deceparam os narizes e as orelhas dos marinheiros que haviam açoitado os escravos, em seguida soltaram todos juntos numa jangada. De­pois que eu tratara de alguns turcos, usando mais o bom senso que conhecimentos de anatomia, e seus ferimentos cicatrizaram por si mesmos, todo mundo acreditou em mim. Até os que, de inveja, tinham contado aos turcos que eu não era médico, mostravam-me suas feridas, à noite, no porão.

Entramos em Istambul, com um cerimonial espetacular. Foi dito até que o sultão-menino estava observando a festa. Içaram suas bandeiras em todos os mastros e, abaixo, as nossas, enquanto crucifixos e ícones da Virgem Maria jaziam dependurados de cabeça para baixo; deixaram que vagabundos da cidade subissem a bordo a fim de insultá-los. Tiros de canhão cruzavam o céu. A celebração, como outras muitas que eu veria da terra nos anos seguintes, com um misto de tristeza, repugnância e prazer, durou tanto tempo que muitos espectadores desmaiaram ao sol. Já era quase noite quando lançamos âncora em Kasimpasha. Antes de nos conduzirem ao sultão, fomos postos em correntes e fizeram com que nossos soldados vestissem as armaduras ao contrário, a fim de ridicularizá-los; puseram coleiras de ferro no pescoço dos oficiais. Em meio a um grande soar de buzinas e trombetas, fomos tirados do navio e levados ao palácio numa espécie de ruidoso triunfo. A população da cidade se alinhara ao longo das avenidas e nos olhava com divertimento e curiosidade. O sultão, oculto de nossas vistas, escolheu os escravos que queria e mandou separá-los dos demais. Nós outros fomos transporta­dos para Gaiata, através do Corno de Ouro, em caíques e metidos na prisão de Sadik Paxá.

A prisão era um lugar miserável. Centenas de cativos apodreciam ali, na imundície das minúsculas e úmidas celas. Encon­trei muita gente com quem praticar minha nova profissão e cheguei a curar alguns infelizes. Prescrevia medicamentos também para carcereiros com dores nas costas ou nas pernas. De modo que, também no cárcere, tratavam-me de maneira diferente do resto e me deram uma cela melhor, em que batia sol. Vendo a vida que levavam os outros, eu procurava corresponder a essa minha situação privilegiada, mas um dia eles me acordaram com os demais prisioneiros e me disseram que eu tinha de ir trabalhar. Quando protestei, dizendo ser médico, com conhecimentos de ciência, eles se limitaram a rir. Havia muralhas a serem construí­das em torno do jardim do paxá, e precisavam de homens. Éramos ligados uns aos outros com correntes toda manhã, antes do sol nascer, e levados para fora da cidade. Ao voltar para a prisão, à noitinha, ainda presos uns aos outros, depois de apanhar pedra o dia inteiro, eu refletia que Istambul era, deveras, uma bela cidade, mas que nela cumpria ser senhor e não escravo.

E, todavia, eu não vivia como um escravo comum. As pessoas tinham ouvido contar que eu era um doutor, de modo que agora já não cuidava apenas dos escravos que apodreciam nas masmorras, mas de outros também. Tinha de dar uma grande parte dos emolumentos que me pagavam aos guardas, que me faziam sair às escondidas. Com o dinheiro que conseguia esconder, pagava aulas de turco. Meu professor era um sujeito agradável e mais velho, encarregado dos negócios menores do paxá. Agradava-lhe ver que eu aprendia depressa. Disse que logo me tornaria muçulmano. Tinha praticamente de obrigá-lo a receber o preço da lição todo dia. Dava-lhe também dinheiro para que trouxesse comida, pois eu estava decidido a cuidar de mim o melhor que pudesse.

Numa noite nevoenta, um oficial veio ter à minha cela, dizendo que o paxá queria ver-me. Surpreso e excitado, preparei-me imediatamente para a entrevista. Pensei que talvez um dos meus parentes mais espertos, meu pai ou, possivelmente, meu futuro sogro, tivessem enviado uma soma apropriada como resgate. Enquanto caminhava pelas ruelas estreitas e tortuosas, naquela névoa fantasmagórica, sentia como se fosse a cada momento encontrar minha casa ou dar de cara com os meus entes queridos. Seria como se acordasse de um sonho. Talvez tivessem conseguido despachar alguém que negociasse a minha libertação. Talvez naquela mesma noite e naquele mesmo nevoeiro eu fosse posto num barco e mandado embora. Quando entrei na mansão do paxá percebi que não seria tão fácil escapar. As pessoas ali andavam na ponta dos pés.

Levaram-me primeiro a um salão comprido, onde esperei até ser conduzido a um dos aposentos. Um homenzinho afável estava estendido num pequeno divã, debaixo de um cobertor. Havia a seu lado um outro homem, esse, porém, alto e forte. A figura jacente era o paxá, que me chamou para junto dele com um sinal. Fez-me algumas perguntas. Eu lhe disse que meus verdadeiros campos de estudo haviam sido a astronomia e a matemática e, em menor escala, a engenharia, mas que tinha também conhecimentos de medicina e havia tratado com êxito certo número de pacientes. Ele continuou a interrogar-me, di­zendo que eu devia ser um homem inteligente, pois aprendera turco bem depressa. Disse-me depois que tinha um problema de saúde que nenhum dos outros médicos fora capaz de curar e que, tendo ouvido falar de mim, pensara em pôr-me à prova.

Em seguida, começou a descrever o seu incômodo de tal maneira que fui levado a crer que se tratava de uma doença rara, que só atacara o paxá dentre todos os homens na face da Terra, por terem seus inimigos enganado Deus com calúnias. Mas o que ele tinha era apenas fôlego curto. Eu o interroguei longa­mente, ouvi-lhe a tosse, depois fui à cozinha e preparei-lhe umas pastilhas verdes, à base de hortelã, com o material que pude encontrar. Fiz ainda um xarope para a tosse. Como o paxá tinha medo de ser envenenado, engoli uma das pastilhas com o xarope, enquanto ele me observava. O paxá disse-me para deixar a mansão secretamente, tomando grande cuidado para não ser visto, e regressar à prisão. O oficial me explicou depois que ele não queria provocar o despeito dos outros médicos. Voltei no dia seguinte, escutei de novo a tosse, e dei-lhe o mesmo remédio. O homem ficou encantado como uma criança com as pastilhas coloridas que eu lhe pus na palma da mão. Quando voltei para a cela, rezei para que ele melhorasse. No dia seguinte, soprava o vento do norte. Era uma brisa suave e fresca, e pensei que qualquer um melhoraria com um tempo daqueles, mesmo contra a vontade. Mas nada ouvi do meu paciente.

Um mês depois, quando fui chamado, de novo no meio da noite, o paxá estava de pé e muito bem-disposto. Tranqüilizou-me ver que respirava com facilidade quando ralhou com alguns funcionários. Ele se mostrou contente ao ver-me, disse que estava curado, e que eu era um bom médico. Que mercê desejava pedir-lhe? Eu sabia que não me libertaria intempestivamente nem me mandaria para casa. De modo que apenas me queixei da cela e da prisão. Expliquei que vegetava ali sem qualquer senti­do, sob trabalhos forçados, quando poderia ser mais útil se me ocupasse do que sabia: medicina e astronomia. Não sei até onde ele escutou o que lhe disse. Deu-me uma bolsa cheia de moedas, das quais os guardas ficaram com uma boa parte.

Uma semana mais tarde, um oficial veio ver-me à noite. Após fazer-me jurar que não tentaria fugir, livrou-me das minhas cadeias. Eu continuaria a trabalhar, mas agora tinha tratamento especial. Três dias mais e o mesmo oficial me trouxe roupas novas. Eu compreendi que estava agora sob a proteção do paxá.

Ainda era chamado à noite. Visitava muitas mansões, ministrava drogas a velhos piratas com reumatismo e a jovens soldados com dor de estômago. Dava sangrias nos que tinham coceiras, perdiam a cor das faces ou sofriam de enxaquecas. Certa vez, uma semana após ter dado xaropes ao filho gago de um servo, ele sarou e me recitou um poema.

O inverno passou dessa maneira. Quando a primavera chegou, ouvi contar que o paxá, que não me mandava chamar havia meses, andava com sua frota pelo Mediterrâneo. Durante os dias quentes do verão, pessoas que percebiam meu desespero e frustração diziam-me que não tinha, na verdade, motivos de queixa, uma vez que ganhava bom dinheiro como médico. Um antigo escravo cristão, que se convertera ao islamismo muitos anos antes, me aconselhou a não fugir. Eles sempre conservavam um escravo que lhes parecia útil, como estavam fazendo comigo, e jamais lhe davam permissão de voltar para o seu país de origem. Se eu me tornasse muçulmano, como ele mesmo tinha feito, poderia conseguir a condição de liberto, mas nada mais que isso. Imaginando que ele me dizia tudo aquilo para me sondar, respondi-lhe que não tinha intenção de escapar. Não que me faltasse o desejo. Mas não tinha coragem. Os que fugiam, todos eles, eram apanhados antes que estivessem muito longe. E, depois que os castigavam, era eu quem passava bálsamo nas equimoses dos desgraçados, à noite, nas suas celas.

O outono se aproximava e o paxá voltou com a esquadra. Saudou o sultão com uma salva, procurou animar a cidade, como havia feito no ano anterior, mas era óbvio que não haviam tido uma boa temporada. Poucos foram os escravos que trouxeram para a prisão. Soubemos depois que os venezianos haviam incendiado seis navios. Ansioso por notícias de casa, esperei uma oportunidade de conversar com os escravos, muitos dos quais eram espanhóis. Mas eram todos uns pobres-diabos, calados, tímidos, ignorantes, que só falavam para pedir comida ou ajuda. Apenas um se interessou por mim. Tinha perdido um braço, mas disse, otimista, que um dos seus antepassados vivera galhardamente apesar do mesmo infortúnio e até escrevera um romance de cavalaria com a mão remanescente. Acreditava que sobreviveria para fazer a mesma coisa. Anos mais tarde, quando eu escrevia histórias para viver, lembrei-me desse homem que sonhava com a liberdade para virar escritor. Não muito depois, no entanto, tivemos um surto de doença contagiosa na prisão, uma epidemia horrível que matou mais da metade dos escravos antes de cessar. Dela escapei subornando generosamente os guardas.

Os sobreviventes foram levados para trabalhar em novos projetos. A mim me deixaram ficar. À noite, os outros me contavam de como iam até a ponta do Corno de Ouro, onde eram distribuídos para diversas tarefas sob a supervisão de carpintei­ros, pintores, alfaiates. Faziam modelos em papier mâché: navios, castelos, torres. Mais tarde, ficamos sabendo o objetivo daquilo: o filho do paxá ia casar com a filha do grão-vizir, e ele preparava uma festa suntuosa.

Certa manhã fui chamado à mansão do paxá. Obedeci, pensando que sua dificuldade de respiração tivesse voltado. O paxá estava ocupado e me mandaram esperar em uma antecâ­mara. Depois de alguns momentos, outra porta se abriu e alguém, cinco ou seis anos mais velho do que eu, entrou. Olhei para o seu rosto em choque — fiquei imediatamente aterrorizado.

 

A semelhança entre nós dois era incrível! Aquele homem que entrara era eu... foi o que pensei no primeiro momento. Era como se tivessem desejado pregar-me uma peça e me tivessem feito entrar de novo por uma porta diretamente fronteira à que tinha usado antes e dissessem: veja, você deveria ser este, deveria ter vindo por esta porta, gesticulado assim com as mãos, e o outro homem sentado na sala olharia para você assim. Quando nossos olhares se cruzaram, saudamo-nos. Mas ele não me pareceu surpreso. Então, decidi que não nos parecíamos tanto assim um com o outro. Ele usava barba. E eu havia esquecido que rosto possuía exatamente. Quando o homem sentou-se à minha frente, dei-me conta de que fazia um ano que não me olhava num espelho.

Alguns momentos depois a porta por onde eu entrara abriu-se e ele foi chamado. Enquanto esperava, pensei que tudo aquilo fora criação da minha mente perturbada e não uma farsa cuidadosamente elaborada. Pois, àquele tempo, eu vivia fantasiando que voltaria para casa, seria bem recebido por todos, que logo me libertariam, que ainda estava adormecido no meu camarote no navio, tudo fora um sonho — visões consoladoras dessa espécie. Estava a pique de concluir que aquele também fora um desses devaneios, quase real, ou um sinal de que tudo mudaria de súbito e voltaria ao estado primitivo, quando a porta se abriu e me mandaram entrar.

O paxá estava de pé, um passo atrás do meu sósia. Deixou que eu beijasse a fímbria dos seus trajes e quando inquiriu do meu bem-estar tencionava queixar-me das condições da cela e manifestar o desejo de ir para casa, mas ele não estava ouvindo. O paxá se lembrava, aparentemente, de ter ouvido da minha boca que eu entendia de ciência, astronomia, engenharia. Saberia alguma coisa sobre fogos-de-bengala, esses que se lançam ao céu? Entenderia de pólvora? Imediatamente respondi que sim, mas logo que meus olhos encontraram os do outro homem, suspeitei que os dois me preparavam uma cilada.

O paxá dizia que a festa de casamento que ele planejava não teria paralelo, que desejava uma grande queima de fogos de artifício, e que essa teria de ser, também, sem igual. Meu sósia, a quem o paxá chamava simplesmente 'Hoja', isto é, 'mestre', organizara no passado, para o nascimento do sultãozinho, um espetáculo semelhante com a ajuda de um maltês, mas o maltês morrera entrementes, e ele mesmo sabia pouco sobre tais coisas. O paxá pensava que eu poderia ajudá-lo — nós nos complementaríamos um ao outro. O paxá prometia recompensar-nos se o espetáculo fosse bonito. Quando, julgando que o momento era chegado, eu me atrevi a dizer que o que desejava era ir para casa, o paxá me perguntou se eu havia estado num bordel desde que chegara à Turquia. Diante da minha resposta, disse que, se eu não tinha desejo de mulher, de que me serviria a liberdade? Estava empregando a linguagem grosseira dos guardas e devo ter parecido perplexo, pois ele pôs-se a rir às gargalhadas. Depois, voltando-se para o espectro a que chamava 'Hoja', disse que a responsabilidade era dele. Saímos.

De manhã, quando fui à casa do meu sósia, imaginava não ter nada que pudesse ensinar-lhe. Mas, aparentemente, os conhecimentos dele não eram maiores que os meus. Ademais, estávamos de pleno acordo: o problema todo era conseguir a correta mistura de cânfora. Nossa tarefa consistia, então, em preparar misturas experimentais dosadas e pesadas em balança, acendê-las à noite, na escuridão das altas muralhas da cidade, em Surdibi, e tirar conclusões do que observássemos. As crian­ças assistiam, olhos arregalados, aos nossos homens acenderem os foguetes que tínhamos preparado, enquanto ficávamos à sombra das árvores escuras aguardando, ansiosos, os resultados. O mesmo iríamos fazer de dia e às claras, anos depois, quando testássemos aquela arma inacreditável. Depois desses primeiros ensaios em Surdibi, eu experimentava, por vezes ao luar, por vezes numa treva absoluta, registrar nossas observações num pequenino livro de anotações. Antes de nos despedirmos, à noite, eu ia mais uma vez à casa de Hoja, que dominava o Corno de Ouro, e discutia detalhadamente os resultados obtidos.

A casa dele era acanhada, opressiva, feia. A entrada ficava numa ruela enlameada e sinuosa, por onde corria um fio de água pútrida proveniente de uma fonte que jamais fui capaz de descobrir. Dentro quase não havia mobília. E sempre que eu pene­trava na casa sentia-me oprimido e dominado por estranho sentimento de angústia. Talvez este tivesse raízes no próprio homem, que, por não querer usar o mesmo nome do avô, pedia que eu lhe chamasse de 'Hoja'. Ele me olhava como se pretendesse algo de mim e não soubesse ainda, exatamente, o que fosse. Uma vez que eu não conseguia acostumar-me a sentar nos divãs baixos que se alinhavam contra as paredes, discutia de pé os nossos experimentos, muitas vezes andando, agitado, de um lado para o outro no aposento. Acho que Hoja gostava disso. Ele ficava sentado e podia acompanhar-me com o olhar todo o tempo, comprazendo-se nisso, se bem que fosse apenas à luz fraca de uma única lâmpada.

Sentindo seus olhos que não me largavam, eu me inquietava cada vez mais, pois ele parecia não notar a semelhança entre nós. Uma ou duas vezes pensei que ele a percebera, mas fingia que não. Era como se brincasse comigo, como se estivesse procedendo a uma outra espécie de experiência, de que fosse eu o objeto, coletando informações que eu não podia imaginar quais fossem. Porque ele me analisava todo o tempo, naquela época, como se estivesse aprendendo alguma coisa. E, quanto mais aprendia, mais curioso ficava. Parecia, no entanto, hesitante em tomar outras medidas para penetrar o sentido desse estranho conheci­mento. Era essa indeterminação que me oprimia, que tornava aquela casa sufocante! É verdade que ganhei alguma confiança com a hesitação dele, mas isso não me tranqüilizou. Uma vez, quando discutíamos as experiências com os foguetes, e outra, quando me perguntou por que eu ainda não me tornara muçulmano, senti que o que ele pretendia era provocar veladamente uma discussão, de modo que não respondi. Ele percebeu meu constrangimento; vi que caía em seu conceito, o que me irritava. Àquele tempo, era só assim, talvez, que nos entendíamos: fazendo pouco um do outro. Eu me continha, pensando que, se conseguíssemos realizar a exibição de fogos sem contratempos, talvez me dessem permissão para partir.

Uma noite, animado com o sucesso de um foguete que subira até uma altura extraordinária, Hoja disse que algum dia seria capaz de fabricar um outro tão potente que alcançasse a Lua. O único problema era descobrir as proporções requeridas de pól­vora e um invólucro capaz de suportar a mistura sem explodir. Observei que a Lua estava muito longe, mas ele me interrompeu, dizendo que sabia disso tanto quanto eu, mas não era também o planeta mais próximo da Terra? Quando admiti que ele estava certo, não se acalmou como eu havia esperado. Ficou ainda mais agitado, porém nada mais disse.

Dois dias depois, à meia-noite, voltamos ao assunto: como poderia eu estar tão seguro de que a Lua fosse o planeta mais próximo? Talvez estivéssemos sendo vítimas de uma ilusão de ótica. Foi então que lhe falei, pela primeira vez, dos meus estudos de astronomia e expliquei-lhe sucintamente os princípios básicos da cosmografia de Ptolomeu. Vi que me escutava com interesse, mas relutava em dizer alguma coisa, temendo revelar a sua curiosidade. Um pouco mais tarde, quando parei de falar, ele disse ter também algum conhecimento de Ptolomeu, mas que isso não alterava a sua convicção de que poderia haver um planeta mais próximo da Terra que a Lua. Madrugada adentro, ele já falava do dito planeta como se tivesse obtido provas da sua existência.

No dia seguinte, pôs um manuscrito muito mal traduzido em minhas mãos. A despeito do meu precário conhecimento de turco, consegui decifrá-lo. Acredito que fosse um sumário de segunda mão do Almagesto, extraído não do original, mas de outro sumário. Só os nomes arábicos dos planetas me interessavam, e eu não estava com disposição para entusiasmar-me com eles àquele tempo. Quando Hoja viu que eu não ficara impres­sionado e pusera o livro em cima da mesa, ficou furioso. Pagara sete peças de ouro pelo volume, e era de se esperar que eu pusesse a minha suficiência de lado, folheasse a obra e a lesse um pouco! Como um aluno bem-mandado, abri o livro outra vez e, enquanto lhe virava as folhas, pacientemente, dei com um diagrama primitivo. Mostrava os planetas em esferas grosseira­mente desenhadas com relação à Terra. Embora as posições das esferas estivessem corretas, o ilustrador não tinha idéia das distâncias entre elas. A essa altura, minha atenção foi despertada por um minúsculo planeta entre a Lua e a Terra. Examinando-o com mais cuidado, pude ver que, pela relativa frescura da tinta, ele fora acrescentado ao manuscrito posteriormente. Examinei todo o alfarrábio antes de devolvê-lo a Hoja. Ele me disse que pretendia encontrar o planeta — e não parecia estar brincando ao dizê-lo. Não fiz qualquer comentário, e houve um longo silêncio que o deixou tão enervado quanto a mim. Como não conseguimos fazer outro foguete capaz de ir tão alto que a conversação se voltasse de novo para a astronomia, o assunto não foi reaberto. Nosso pequeno êxito permaneceu uma coinci­dência cujo mistério não pudemos decifrar.

Obtivemos, entretanto, excelentes resultados em matéria de potência, brilho de luz e chama, e sabíamos o segredo do nosso sucesso: numa das lojas de herbalistas que Hoja havia escrutina­do uma a uma, ele descobrira um pó cujo nome nem o vendedor conhecia. Decidimos que aquele pó cor de ocre, que produzia uma iluminação soberba, era uma mistura de enxofre e sulfato de cobre. Mais tarde, misturamos esse pó a todas as substâncias que nos ocorreram para dar brilho ao efeito, mas não consegui­mos mais que um marrom de borra de café e um verde muito pálido, difíceis de distinguir um do outro. Segundo Hoja, mesmo aquilo seria infinitamente melhor que tudo o que Istambul já vira.

Assim foi, com efeito, o nosso espetáculo, na segunda noite das celebrações. Opinião geral. E isso inclui até os nossos rivais, que tramavam contra nós às nossas costas. Eu estava muito nervoso, pois nos disseram que o sultão viera assistir ao espetáculo, da margem mais remota do Corno de Ouro. Tinha medo de que alguma coisa saísse errada e vários anos escoassem antes que me deixassem voltar ao meu país.

Quando nos mandaram começar, rezei. Em primeiro lugar, para dar boas-vindas aos convidados e anunciar o início do espetáculo soltamos os nossos foguetes brancos, que subiram diretamente para o céu. Logo em seguida, disparamos a farân­dola a que Hoja chamava “O Moinho”. Num abrir e fechar de olhos, o céu ficou vermelho, amarelo e verde, ribombando com tremendas explosões. Foi ainda mais belo do que esperávamos. À medida que os foguetes subiam, os arcos de fogo ganhavam velocidade, girando e regirando e, de chofre, iluminando toda a área em torno como se fosse dia, imobilizando-se, suspensos no ar. Por um momento, acreditei estar outra vez em Veneza, com oito anos de idade, vendo pela primeira vez uma exibição como aquela, e tão infeliz então como agora: é que eu não vestia meu novo traje vermelho, e sim meu irmão mais velho, que rasgara suas roupas na véspera durante uma briga. Os fogos eram tão rubros quanto o belo casaco cheio de botões que não me deixa­ram usar naquela noite e que jurei jamais vestir, tão rubros quanto os botões da roupa, apertada demais para meu irmão.

Soltamos, depois, “A Fonte”, que eram chamas lançadas pela boca de um andaime da altura de cinco homens. Os espec­tadores que estivessem na outra margem teriam uma visão magnífica. Deviam estar tão excitados quanto nós quando os foguetes começaram a pipocar da “Fonte”. Não deixamos que a animação morresse: os caíques na superfície do Corno de Ouro entraram em atividade. Primeiro, as torres e fortalezas de papier mâché vomitaram foguetes dos seus torreões à medida que deslizavam sobre as águas, pegavam fogo e ardiam em chamas — o que simbolizava vitórias de anos passados. Quando solta­ram os barcos do ano em que eu fora capturado, diversos outros atacaram o nosso com uma chuva de projéteis. Assim, revivi o dia em que me tornara escravo. Enquanto as embarcações afundavam em chamas, a multidão soltava gritos nas duas margens do canal: Alá! Oh, Alá! Depois, um a um, soltamos nossos dragões. Grandes línguas de fogo saíam de suas bocas, narinas e ouvidos. Deixamos que lutassem uns com os outros. Segundo os nossos planos, nenhum devia sair vencedor no primeiro momento. Pintamos o céu de vermelho vivo com mais foguetes lançados da praia. Quando começou a escurecer um pouco, nossos homens, nos caíques, acionaram os molinetes e outros dragões começaram a subir para os céus devagarinho. Agora, todos gritavam, tomados de assombro e temor. E, quando os dragões recomeçaram a brigar, com estrépido, todos os foguetes dos caíques foram disparados ao mesmo tempo. As mechas que tínhamos posto no corpo daquelas criaturas de papel devem ter acendido ao mesmo tempo, porque todo o cenário, exatamente como planejáramos, se transformou num inferno de fogo. Senti que tínhamos conseguido o efeito desejado quando uma criança se pôs a gritar e chorar perto de mim. O pai tinha esquecido do menino e estava olhando boquiaberto aquele céu conflagrado e terrível. Agora me deixariam ir embora, pensei. Justamente então, o ser a que eu chamava “O Demônio” entrou na refrega num pequeno caíque negro invisível para os espectadores. Tínhamos posto tantos foguetes nele que havia o perigo de que os demais caíques também explodissem, com nossos homens dentro, mas tudo funcionou à perfeição. Quando os dragões que combatiam se perderam no céu cuspindo chamas, “O Demônio” e seus foguetes, todos disparados em uníssono, riscaram a amplidão. Bolas de fogo escapavam de todas as partes do corpo do boneco, rebentando no ar. Exultei ao pensamento de haver conseguido, num átimo, aterrorizar toda a cidade de Istambul. Eu mesmo estava com medo, porque via que afinal eu tinha desencavado coragem para fazer as coisas que desejava na vida. Naquele momento parecia carecer de importância a cidade em que me encontrava. Eu queria que aquele demônio permanecesse suspenso lá no alto, a noite toda, chovendo fogo sobre a multidão. Mas, depois de inclinar-se um pouco para um lado e para o outro, ele desceu lentamente sobre o Corno de Ouro sem fazer mal a ninguém, acompanhado por gritos extáticos vindos das duas margens. E ainda cuspia fogo do alto da cabeça quando mergulhou, de pé, na água.

Na manhã seguinte, o paxá mandou para Hoja uma bolsa recheada de ouro, exatamente como nos contos de fadas. Ele afirmou que ficara muito satisfeito com o espetáculo, mas achara a vitória do “Demônio” estranhíssima.

Continuamos com os fogos de artifício por mais dez noites. De dia, consertávamos os modelos queimados, planejávamos novas atrações, e fazíamos vir cativos da prisão para encher os foguetes. Um deles ficou cego quando dez sacos de pólvora lhe explodiram no rosto.

Concluídas as celebrações do casamento, deixei de ver Hoja. Eu me sentia melhor longe dos olhos perscrutadores daquela personagem singular que me vigiava constantemente. Não que minha mente não voltasse atrás e se detivesse, com prazer, nos dias estimulantes que tínhamos vivido juntos. Quando retornas­se, eu haveria de falar daquele homem que se parecia tanto comigo e, todavia, jamais se referia ao fato. Eu passava os dias na minha cela, sentado, atendendo pacientes para matar o tempo. Quando me disseram que o paxá me mandara chamar, senti um frêmito de emoção, uma quase felicidade, e corri a vê-lo. O paxá começou por louvar-me perfunctoriamente. Todos haviam apreciado sobremaneira a exibição de fogos, os hóspedes se mostra­ram encantados, eu tinha um grande talento etc. De repente, disse que se eu me convertesse ao islamismo ele faria de mim um liberto imediatamente. Fiquei chocado e estupefato. Disse que queria voltar para Veneza. E em minha insensatez cheguei a gaguejar algumas frases sobre minha mãe, minha noiva. O paxá repetiu o que dissera como se não me tivesse ouvido. Por algum motivo, pus-me a pensar naquele instante, nos garotões preguiçosos e inúteis que conhecera em criança. Desses maus filhos que levantam a mão contra os pais. Quando disse que não abandonaria minha fé, o paxá ficou furioso. Voltei para a minha cela.

Três dias depois, ele me mandou buscar-me outra vez. Estava bem-humorado. Quanto a mim, não chegara a qualquer resolução, incapaz de decidir se a apostasia ajudaria mesmo na minha fuga. O paxá me pediu uma definição e disse estar disposto a arranjar casamento para mim com uma bela moça. Num súbito impulso de coragem, confirmei que não mudaria de religião, e o paxá chamou-me de idiota. Afinal de contas, não havia ninguém a quem eu tivesse de prestar contas pelo fato de tornar-me muçulmano. Em seguida, dissertou por algum tempo sobre os preceitos do Islã. Quando deu por terminado o discurso, mandou-me de volta à cela.

Na minha terceira visita, não fui conduzido à presença do paxá. Um camareiro me perguntou o que havia decidido. Talvez eu mudasse de idéia, mas não porque um subalterno mo tivesse pedido! Respondi que ainda não estava preparado para abandonar a religião de meus pais. O funcionário me tomou pelo braço e me levou escada abaixo, entregando-me a outra pessoa. Era um homem alto, magro como os homens que eu estava acostumado a ver em sonhos. Ele também pegou-me pelo braço e me conduziu para um canto do jardim, tão delicadamente como se estivesse ajudando a um inválido. Mas alguém nos interceptou, um homem por demais real para aparecer num sonho, um homem enorme. Os dois, um dos quais levava um machado de pequenas proporções, detiveram-se ao pé de um alto muro e amarraram as minhas mãos. O paxá, disseram, ordenara que eu fosse decapitado imediatamente se não renunciasse à minha fé. Fiquei gelado.

Não tão depressa, pensei. Os dois me olhavam com piedade. Eu não disse nada. Pelo menos, que eles não repitam a pergunta, dizia para comigo, mas logo em seguida o fizeram. E, de súbito, minha religião se tornou algo pela qual parecia fácil morrer. Senti-me importante. Por outro lado, tive pena de mim, como aqueles dois homens, que, quanto mais me interrogavam, tornavam mais difícil para mim repudiar a minha religião. Quando quis pensar em outra coisa, a cena através da janela que dava para o jardim, nos fundos da nossa casa, veio-me nitidamente à memória: pêssegos e cerejas numa bandeja incrustada de madre­pérola sobre a mesa. Por detrás desta, um divã de palhinha, onde se espalhavam muitas almofadas de penas, do mesmo tom da moldura verde da janela; mais além, um pardal empoleirava-se na borda de uma fonte, por entre as oliveiras e cerejeiras. Um balanço, preso por longas cordas a um galho alto de uma nogueira, oscilava suavemente na brisa quase imperceptível. Quando me interrogaram de novo, respondi que não mudaria de religião. Eles apontaram um toco, fizeram-me ajoelhar e pôr minha cabeça naquele cepo. Um dos dois homens ergueu o machado. O outro disse que, possivelmente, eu já lamentava a minha decisão. Ajudaram-me a ficar de pé. Eu tinha mais alguns minutos para refletir.

Deixando-me então para que reconsiderasse, puseram-se os dois a cavar a terra junto ao cepo. Ocorreu-me que talvez me enterrassem ali mesmo. Esse pensamento se misturou ao medo da morte. Agora, também tinha medo de ser enterrado vivo.

Estava dizendo para mim mesmo que chegaria a uma decisão no momento em que terminassem de cavar, quando lá vinham eles de volta, após terem aberto apenas uma cova rasa. Pensei então como seria tolo morrer ali. Considerei que poderia tornar-me muçulmano, mas não tinha tempo para chegar a uma decisão. Se pudesse retornar à prisão, à minha amada cela com a qual me habituara, ficaria sentado a noite inteira pensando. Talvez tomas­se a decisão de abjurar, mas não daquele modo, não imediatamente.

Eles me agarraram repentinamente e me forçaram a ajoelhar. E, no instante em que iam deitar de novo minha cabeça no cepo, fiquei surpreso em ver alguém que chegava veloz por entre as árvores. Era como se voasse. Era eu mesmo, mas com longas barbas, e andava sem ruído, no ar. Quis gritar alguma coisa para aquela aparição de mim mesmo nas árvores, mas não podia falar com a cabeça apertada contra a madeira. Não seria diferente do sono, pensei e me entreguei à sorte. Esperei. Sentia frio na espinha e na nuca. Não queria mais pensar em nada, mas o frio no pescoço não deixava. Eles me soergueram, resmungando que o paxá ficaria furioso. Ao me soltarem as mãos, me admoesta­ram: eu era o inimigo jurado de Alá e do Profeta. Levaram-me, apesar disso, colina acima, para a mansão.

Depois de permitir que eu beijasse a fímbria dos seus trajes, o paxá me tratou com bondade. Disse que me amava por não ter abandonado minha fé para salvar a vida. Porém, momentos depois, já esbravejava, com fúria, dizendo que eu me obstinava por coisa nenhuma. O Islã era uma religião superior ao cristia­nismo e assim por diante. Quanto mais ele falava, mais bravo ia ficando. Resolvera punir-me. Começou a explicar que fizera uma promessa a alguém. Entendi que prometera poupar-me sofrimentos que, de outro modo, me seriam infligidos. Final­mente, compreendi que o homem a quem a promessa fora feita, um homem estranho, conforme ele dizia, era Hoja. O paxá disse, então, de chofre, que me dera a Hoja de presente. Olhei para ele sem expressão. O paxá explicou que eu, agora, era escravo de Hoja. Ele me tinha dado a Hoja de papel passado; ele detinha, doravante, o poder de tornar-me livre ou não; poderia fazer de mim o que quisesse. O paxá retirou-se da sala.

Disseram-me que Hoja estava na mansão, que esperava por mim embaixo. Percebi, então, que havia sido ele que eu entrevira através da cortina das árvores, no jardim. Fomos a pé para a casa dele. Hoja me disse que sempre soubera que eu não renegaria minha fé. Mandara até preparar um quarto para mim antecipadamente. Perguntou-me se eu estava com fome. O medo da morte ainda não me deixara, e eu não estava em condições de comer o que quer que fosse. Mesmo assim, consegui engolir alguns bocados de pão e um pouco do iogurte postos à minha frente. Hoja me observava mastigar com uma expressão de felicidade. Olhava para mim com o prazer de um camponês que alimenta um belo cavalo que acaba de adquirir no bazar, pensando em todo o trabalho que o cavalo executará para ele no futuro. Até o tempo em que ele me esqueceu, submerso nos detalhes da sua teoria de cosmografia e nos desenhos do relógio que pretendia dar de presente ao paxá, tive muitas ocasiões de lembrar-me desse olhar.

Mais tarde, ele disse que eu haveria de ensinar-lhe tudo. Por isso pedira ao paxá que lhe fizesse o dom de mim. E só depois consideraria a possibilidade de dar-me a liberdade. Eu levaria meses para descobrir o que Hoja desejara dizer com esse “tu­do”: significava a totalidade do que eu havia aprendido na escola primária e secundária. Toda a astronomia, toda a medicina, toda a engenharia, tudo o que se ensinava em meu país de origem. Era o que se continha nos livros que eu tinha em minha cela (e que ele mandou um servo apanhar logo no dia seguinte), tudo o que eu vira e ouvira, tudo o que tinha a dizer sobre rios, pontes, lagos, cavernas, nuvens, mares, as causas dos terremotos e do trovão... Por volta da meia-noite, ele acrescentou que o que mais o interessava era o firmamento: estrelas, planetas... O luar brilhava para além da janela aberta, e ele disse que tínhamos, pelo menos, de encontrar provas positivas da existência ou não-existência daquele planeta entre a Lua e a Terra. Mesmo com os olhos devastados de um homem que passara um dia inteiro cara a cara com a morte, eu não podia deixar de notar a exasperante semelhança entre nós dois. E já Hoja, aos poucos, deixava de usar a palavra “ensinar”: íamos pesquisar juntos, descobrir juntos, progredir juntos.

De modo que, como dois estudantes responsáveis que preparam fielmente suas lições, mesmo quando os adultos não estão em casa escutando através de uma fresta da porta, como dois irmãos obedientes, nos sentamos para trabalhar. No começo, senti-me como o solícito irmão mais velho que concordou em repassar suas antigas aulas ao preguiçoso caçula para ajudá-lo a alcançar a classe. E Hoja se portou como um aluno esperto que procura provar que as coisas que o irmão mais velho sabe não são um cabedal assim tão grande. Segundo ele, a diferença entre os seus conhecimentos e os meus não era maior que a diferença entre o número de volumes trazidos da minha cela (e que ele alinhara em uma prateleira) e os livros cujo conteúdo eu memo­rizara. Com sua inteligência viva e diligência fenomenal, em seis meses ele adquirira domínio do italiano básico, que mais tarde desenvolveria, e lera todos os meus livros. Quando me fez repetir tudo aquilo de que me lembrava, não havia mais nada em que eu lhe fosse superior. Ele agia, porém, como se tivesse acesso a uma sabedoria que transcendia o que estava nos livros —ele mesmo concordava em que muitos deles não tinham valor — uma sabedoria mais natural e mais profunda que as coisas que podiam ser aprendidas. Ao fim de seis meses, já não éramos companheiros que estudavam juntos e progrediam juntos. Era ele quem propunha idéias originais, e eu apenas contribuía lembrando-lhe certos detalhes que o ajudassem a avançar ou a rever coisas que já sabia.

Em geral, ele tinha essas “idéias”, muitas das quais já esqueci, durante a noite, muito depois de termos comido a refeição sumária que improvisávamos como ceia, muito depois de todas as lâmpadas da vizinhança se apagarem, deixando tudo em torno de nós mergulhado em treva e silêncio. De manhã, ele saía para lecionar na escola primária da mesquita, dois distritos mais adiante, e, dois dias por semana, ia a um bairro mais distante, onde nunca pus os pés, e visitava a sala dos relógios de uma mesquita, onde os tempos de oração são calculados.6 O resto do nosso tempo passávamos juntos, preparando as “idéias” da noite ou aprofundando-as de dia. Àquele tempo eu ainda tinha esperanças, acreditava que voltaria para casa. E, como eu achasse que debater os pormenores das “idéias” dele, que eu ouvia com pouco interesse, apenas serviria para adiar meu regresso, eu nunca discordava abertamente de Hoja.

Assim passamos o primeiro ano, metidos até as orelhas em astronomia, lutando para descobrir provas da existência ou não-existência do imaginário planeta. Mas enquanto trabalhava concebendo telescópios para as lentes que mandava vir de Flandres com grande despesas, inventava instrumentos e desenhava tabelas, Hoja esquecia a questão do pequeno planeta; estava absorvido por problema mais profundo: contestaria o sistema de Ptolomeu, disse. Mas não brigamos por causa disso. Ele falava e eu ouvia. Ele dizia que era estúpido imaginar que os planetas estivessem dependurados em esferas transparentes. Havia algo mais que os mantinha lá, uma força invisível, de atração talvez. Sugeriu também que a Terra poderia, como o Sol, estar girando em torno de algo. Talvez todas as estrelas girassem em torno de algum outro centro celeste de cuja existência não tínhamos notícia. Um dia, pretendendo que suas idéias seriam muito mais abrangentes que as de Ptolomeu, incluiu um certo número de novos planetas nas suas observações para uma cosmografia mais vasta que a do egípcio, produzindo teorias para um novo sistema. Talvez a Lua girasse em torno da Terra, e a Terra em torno do Sol. Talvez o centro de tudo fosse Vênus. Mas logo se cansava dessas teorias. Tinha chegado a ponto de dizer que o problema agora não era propor novas idéias mas fazer as estrelas e seus movimentos conhecidos dos homens aqui da Terra—começaria essa tarefa de esclarecimento com Sadik Paxá —, quando soube que esse dignitário fora banido para Erzurum. Constava que ele se envolvera numa conspiração abortada.

Durante os anos em que esperamos pelo regresso do paxá, fizemos pesquisas para um tratado que Hoja pretendia escrever sobre as causas das correntes do Bósforo. Passamos meses observando as marés, correndo pela crista das penedias que dominavam os estreitos num vento que gelava até os ossos, e descendo ao fundo de vales com potes que carregávamos para medir a temperatura e o fluxo dos rios que deságuam nos estreitos.

Quando estivemos em Gebze, cidade não muito distante de Istambul, para onde fôramos por três meses, a pedido do paxá, a fim de tratar de alguns negócios dele, as discrepâncias no horário das orações entre uma mesquita e outra deram a Hoja uma nova idéia: ele faria um relógio que mostrasse as horas da prece com perfeita exatidão. Foi então que lhe ensinei o que era uma mesa. Quando levei para casa o exemplar que mandara fazer por um carpinteiro, de acordo com minhas especificações, Hoja não gostou. Aquilo se parecia, disse, com um esquife funerário de quatro pernas, o que era pouco auspicioso. Mas, por fim, acostumou-se com a mesa e as cadeiras. Declarou até que pensava e escrevia melhor agora com a mobília. Tivemos de ir a Istambul para encomendar engrenagens destinadas aos relógios de oração. Tinham de ser fundidas em forma elíptica, correspondentes ao arco do sol poente. Na viagem de volta, nossa mesa, emborcada, com as pernas apontando para as estrelas, veio no lombo de uma mula.

Naqueles primeiros meses de convívio, enquanto ficávamos sentados de frente um para o outro, Hoja procurou saber como calcular as horas de oração e de jejum em países do norte, onde havia grande variação na duração do dia e da noite e um homem passava anos sem ver a face do sol. Outro problema era se haveria ou não na face da Terra um lugar onde as pessoas estivessem sempre de frente para Meca, fosse qual fosse a direção para que se voltassem. Quanto mais percebia que esses problemas me eram indiferentes, mais desdenhoso e insolente se tornava. Pensei, na época, que ele reconhecia minha “supe­rioridade e diferença” e talvez ficasse irritado vendo que eu também estava cônscio delas. Ele falava tanto de inteligência quanto de ciência. Quando o paxá voltasse, ganharia as suas boas graças com os planos e teorias de cosmografia que estava desenvolvendo e demonstraria então, com a ajuda de um modelo e do novo relógio. Ele contagiaria a todos com a sua curiosidade, com o entusiasmo que ardia em seu íntimo, plantaria as sementes de um novo renascimento. Estávamos, os dois, em vigília.

 

Naquele tempo ele se ocupava em imaginar como fazer um mecanismo maior para um relógio, em que fosse necessário dar a e acertar apenas uma vez por mês, em vez de uma vez por semana. Criado esse aparelho, ele pensaria em outro, que só se ajuste uma vez por ano. Finalmente, anunciou que a chave do problema estava em prover suficiente energia para movimentar a engrenagem do grande relógio, que tinha necessariamente de aumentar de tamanha e de peso segundo o intervalo entre os ajustes periódicos Foi nesse dia que ele ficou sabendo, por seus amigos da sala dos relógios da mesquita, que o paxá regressara de Erzurun para assumir um cargo mais elevado.

Hoja foi ter com ele, para felicitá-lo, na manhã seguinte. O paxá o distinguiu na massa dos visitantes, mostrou interesse pelas suas descobertas e até perguntou por mim. Naquela noite, desmontou e reconstruiu o relógio várias vezes, acrescentando-lhe coisas aqui e ali segundo o modelo do universo, nele pintando os planetas com nossos pincéis. Leu-me depois partes de um discurso que havia redigido penosamente, e em seguida memorizado. Tinha a intenção de comover os ouvintes pela simples força da elegância da linguagem e ornamentação poéti­ca. De madrugada, para acalmar os nervos, ele me recitou uma vez mais essa peça de retórica sobre a lógica do movimento dos planetas, mas dessa feita o fez de trás para a frente, como uma encantacão. Carregando os nossos instrumentos num carro que tomara emprestado, Hoja se foi, afinal, para a mansão do paxá.

Fiquei perplexo ao ver como o relógio e seu modelo, os quais tinham enchido a casa durante meses, pareciam agora tão peque­nos na retaguarda daquele coche de um só cavalo. Ele voltou muito tarde nessa noite.

Após descarregar os instrumentos no jardim da mansão, e fazer com que o paxá examinasse aqueles objetos díspares com a severidade de um velho pouco dado a facécias, Hoja imediatamente recitara o discurso que tinha decorado. Contou-me que o paxá, aludindo a mim, dissera o que o sultão iria repetir muitos anos depois: “Foi ele quem te ensinou todas essas coisas?” Essa fora a única reação dele, no primeiro momento! A resposta de Hoja deixou o paxá ainda mais surpreso: “Ele quem?”, perguntou, mas logo entendeu que o paxá se referia a mim. Hoja lhe disse que eu era apenas “um tolo muito lido”. Ao contar-me isso, com perfeita naturalidade, ele não pensava em mim, sua mente estava ainda inteiramente voltada para o que acontecera na mansão. Insistira em que tudo aquilo era descoberta sua, mas o paxá não acreditara. Parecia procurar uma terceira pessoa a quem responsabilizar, pois seu coração não podia admitir que o bem-amado Hoja fosse o culpado.

Foi assim que passaram a falar sobre este escravo em vez de falarem das estrelas. Pude ver que não agradara a Hoja discutir o assunto. Houvera um silêncio, e a atenção do paxá se desviara para os outros convidados à sua volta. Hoja fez uma segunda tentativa para trazer à baila a astronomia e as suas descobertas. O paxá disse, intempestivamente, que tinha estado querendo lembrar-se das minhas feições, mas que foram as de Hoja que lhe vieram à mente. Havia outras pessoas à mesa, e começou um debate sobre a hipótese de serem as pessoas criadas aos pares. Exemplos hiperbólicos foram lembrados para ilustrar o tema, gêmeos idênticos que as mães não conseguiam distinguir um do outro; sósias que ficavam siderados à vista um do outro, mas também, e daí por diante, como que por artes de magia, impos­sibilitados de se separarem de novo; bandidos que assumiam a identidade dos justos e viviam as vidas deles. Quando terminou o jantar e os convidados começaram a despedir-se, o paxá pediu a Hoja que ficasse.

Quando ele recomeçou a falar, o paxá mostrou-se num primeiro momento aborrecido ao ter sua boa disposição outra vez perturbada por aquela montoeira de informações descosidas, e que não lhe pareciam fazer sentido. Mas, depois, tendo ouvido pela terceira vez o discurso memorizado por Hoja, e observado o giro da Terra e das estrelas, diante dos seus olhos, ele pareceu haver assimilado alguma coisa. Pelo menos, começou a escutar atentamente o que Hoja dizia, e até a exibir um grão de curiosi­dade. Àquela altura, Hoja repetia com veemência que as estrelas não eram como toda gente pensava e que era daquela maneira que elas, de fato, se moviam. “Muito bem”, disse o paxá quando ele terminou. “Eu entendo, isso também é possível. Por que não seria, afinal de contas?” Em resposta, Hoja ficara calado.

Imaginei que teria havido um longo silêncio. Hoja tinha os olhos fixos nas trevas, para além da janela, por cima do Corno de Ouro, quando falou. “Por que ele se deteve aí? Por que não continuou?” Se aquilo era uma pergunta, eu não tinha resposta para ela, como ele também não tinha. Imaginei que Hoja teria uma opinião sobre tudo o mais que o paxá devia ter dito, mas ele não me adiantou nada além do que já havia contado. Era como se ficasse contristado que outras pessoas não partilhassem seus sonhos. O paxá mais tarde mostrara interesse pelo relógio, pedira-lhe que o abrisse, que lhe explicasse a função das rodas dentadas, do mecanismo, do contrapeso. Depois, temeroso, e como que estando às portas de um escuro e repulsivo buraco de serpente, tocou com o dedo o instrumento, que tiquetaqueava de leve, e logo retirou-o. Hoja tinha falado sobre torres de relógio, louvando a eficácia da oração coletiva feita por todos os fiéis exatamente no mesmo e perfeito momento quando, de chofre, o paxá explodiu. “Livre-se dele!”, disse. “Se quiser, dê-lhe ve­neno ou, se preferir, a liberdade. Você ficará muito mais à vontade.” Eu devo ter olhado para Hoja com temor e esperança por um momento. Mas ele disse que não me libertaria antes que “eles” compreendessem.

Não perguntei o que “eles” precisavam compreender. Tal­vez eu tivesse a premonição de que Hoja também não soubesse o que era. Mais tarde, falaram de outros assuntos, o paxá de sobrolho carregado, a olhar com desprezo os instrumentos que tinha à sua frente. Hoja permaneceu na mansão até altas horas da noite, na esperança de que o interesse do paxá recrudescesse. Mas, no fundo, sabia que sua presença já não era desejada. Por fim, carregou de novo o tílburi. Fiquei a imaginar alguém que, deitado de costas, numa casa ao longo da escura e silenciosa estrada de volta, não conseguisse conciliar o sono, intrigado com o som do gigantesco relógio, tiquetaqueando imperturbável por entre o estrépido das rodas.

Hoja ficou de pé até o alvorecer. Eu quis trocar a vela, que morria, mas ele me impediu que o fizesse. Como soubesse que ele esperava de mim algum comentário, disse: “O paxá enten­derá.” Disse isso quando estava ainda escuro! Talvez Hoja soubesse tão bem quanto eu que não acreditava de verdade naquilo. Mas, um momento depois, ele retomou a palavra, dizendo que o problema todo era decifrar o mistério daquele minuto em que o paxá parara de falar.

A fim de saber o que acontecera, ele foi ver o paxá na primeira oportunidade. Foi bem recebido dessa vez. Ele disse haver entendido muito bem o que acontecera, ou qual tinha sido a intenção de Hoja, e depois de aplacar-lhe as suscetibilidades, ordenou-lhe que trabalhasse numa arma. “Uma arma que faça do mundo uma prisão para os nossos inimigos.” Isso foi o que ele disse, mas não especificou que espécie de arma seria aquela. Se hoje orientasse sua paixão pela ciência nesse rumo, então o paxá lhe daria todo o apoio. Naturalmente, ele nada adiantou sobre a quantia que tínhamos pretendido obter como verba ou dotação. Deu simplesmente a Hoja uma bolsa cheia de moedas de prata. Abrimos a bolsa em casa e contamos o dinheiro. Havia dezessete moedas — estranho número! Foi depois de entregar a Hoja aquela bolsa que o paxá lhe prometeu persuadir o sultão a conceder-lhe uma audiência. Explicou que o menino se interes­sava por “essas coisas”. Nem eu nem Hoja, que se deixava entusiasmar mais facilmente, levamos essa promessa muito a sério, mas uma semana depois houve novidades. O paxá nos apresentaria — sim, a mim também — ao sultão, depois da quebra do jejum, ao pôr-do-sol.7

Preparando-se para a entrevista, Hoja revisou o discurso que havia preparado para o paxá, verificando se ainda o tinha perfeito na memória, simplificando-o um pouco, em seguida, para que uma criança de nove anos pudesse entender tudo. Mas, por algum motivo, tinha o pensamento no paxá, não no sultão. Intrigava-o o silêncio do paxá. Haveria de descobrir o motivo disso algum dia. Que espécie de arma seria essa que o paxá desejava que eles construíssem? Havia pouco que eu pudesse dizer. Hoja trabalhava sozinho agora. Enquanto ele se trancava no quarto até a meia-noite, eu ficava sentado à minha janela, olhando para fora sem ver, e até sem pensaram no meu eventual regresso à Itália, mas perdido num devaneio sem fim, como uma criança louca: era eu e não Hoja que trabalhava naquela mesa, livre para ir e vir sempre que o desejasse!

Então, uma noite, amontoamos nossos instrumentos num carro e fomos juntos ao palácio. Eu já gostava muito, àquela altura, de passear a pé pelas ruas de Istambul. Sentia-me como um homem invisível, passando qual fantasma por entre os gi­gantescos plátanos, as castanheiras e as acácias dos jardins. Instalamos os instrumentos, com a ajuda de empregados do palácio, no sítio que elas nos indicaram no segundo pátio. O soberano era um menino doce, com faces de romã e estatura proporcional aos seus verdes anos. Mexeu nos instru­mentos como se fossem outros de seus brinquedos. Estarei pensando agora naquele tempo quando eu quis ser seu igual e amigo, ou em outro tempo, muito posterior, quinze anos mais tarde, quando de novo nos vimos? Não sei. Mas senti imediata­mente que não podia faltar àquele garoto. Hoja teve um ataque de nervos vendo o séquito do sultão à espreita, amontoado e curioso. Por fim, conseguiu começar. Tinha acrescentado algu­mas coisas ao texto primitivo. Falou das estrelas como se fossem seres vivos, racionais, assemelhando-as a criaturas cativantes, misteriosas, proficientes em aritmética e geometria, que giravam em perfeita conformidade aos seus conhecimentos. Foi ficando mais veemente à medida que percebeu que a criança mordera a isca, e levantava a cabeça de tempos em tempos para olhar o céu com o assombro estampado no rosto. Vê, senhor, os planetas, pendurados nessas esferas translúcidas que giram, estão repre­sentados ali, no modelo, e aquele é Vénus, que gira assim e assado, e aquela grande bola mais além é a Lua, que segue um curso diferente. Enquanto Hoja fazia com que as estrelas revolvessem devagarinho, o pequenino sino que ele tinha prendido à maquete tiniu suavemente, e o pequenino sultão, assustado, deu um passo para trás. Depois, ganhando coragem, fez um esforço para compreender e se aproximou da máquina que tilintava de leve como se fosse uma arca de tesouro. Agora, que reúno minhas lembranças dispersas, e procuro inventar um passado para mim, vejo nesse quadro um retrato da perfeita felicidade, tal como o das fábulas que costumava ouvir em criança, exata­mente como os autores das ilustrações daqueles contos de fadas teriam feito. Só falta os vistosos telhados de Istambul, com suas cores de confeitaria, serem postos dentro dessas esferas de vidro em que neva quando a gente as sacode. O menino começara a fazer perguntas a Hoja e procurar respostas para as perguntas.

Como é que as estrelas ficavam no ar? Estavam dependura­das em esferas transparentes! E de que eram feitas as esferas? De um material invisível, por isso eram também invisíveis! E não batiam umas contra as outras? Não, cada qual tinha sua zona própria, em camadas, como na maquete. Se havia tantas estrelas no firmamento, por que não havia um número correspondente de esferas? Porque elas estavam muito longe, as estrelas! Quão longe! Muito, muito longe! As outras estrelas também têm sininhos, que tocam quando elas revolvem? Não, nós pusemos os sinos para marcar cada revolução completa das estrelas! E o trovão, tem alguma coisa a ver com tudo isso? Nenhuma! Tem relação com quê, então? Com a chuva! Vai chover amanhã? A observação do céu mostra que não. O que o céu revela sobre o leão doente do sultão? Que ele vai melhorar, mas que é preciso ter paciência. E assim por diante.

Enquanto opinava sobre a saúde do leão, Hoja continuava a olhar para o céu, como tinha o hábito de fazer quando dissertava sobre as estrelas. Ao voltar para casa, mencionou esse pormenor, dizendo que tinha importância. O principal não era que a criança distinguisse entre ciência e sofística, mas que “entendesse” determinadas coisas. Ele empregava a mesma palavra outra vez, como se eu soubesse o que o menino devia entender, mas eu pensava, naquele momento, que não faria a menor diferença se eu me tornasse muçulmano ou não. Havia exatamente cinco moedas de ouro na bolsa que eles nos deram quando deixamos o palácio. Hoja disse que o sultão tinha compreendido que havia uma lógica por trás do que acontecia com as estrelas. Oh, meu sultão! Mais tarde, muito mais tarde, eu o conheci! Eu me admirava que a mesma lua aparecesse na janela da nossa casa. Queria tanto ser criança! Hoja, incapaz de parar de falar, se repetia. A questão do leão era irrelevante: a criança gostava de animais, só isso.

No dia seguinte, ele se fechou no quarto e começou a trabalhar. Poucos dias depois, pôs de novo o relógio e as estrelas no coche e, debaixo do escrutínio de todos aqueles olhos curiosos por trás dos muxarabiês, ele partiu, dessa vez rumo à escola primária. Voltou deprimido, à noite, mas não tanto que ficasse calado.

— Pensei que as crianças entenderiam, como o sultão entendeu, mas eu estava enganado — disse.

Elas tinham ficado apenas assustadas. Quando Hoja lhes fez perguntas, depois da sua exposição, uma das crianças respondeu que o inferno ficava do outro lado do céu e se pôs a chorar.

Ele passou a semana seguinte proclamando sua fé na inteli­gência do soberano. Repassou comigo, momento por momento, o tempo que tínhamos permanecido no segundo pátio, pedindo meu apoio para as suas interpretações. A criança era inteligente? Sim. Já sabia pensar? Sim. Já possuía suficiente caráter para resistir às pressões dos que o cercavam na corte? Sim! De modo que, muito antes que o sultão começasse a tecer sonhos para nós, como o faria em anos subseqüentes, nós começamos a fazer planos para ele. Hoja trabalhava também no relógio, por essa época. Penso que ele cogitava, também, um pouco, da arma, porque disse isso ao paxá quando chamado por ele. Mas pude ver que desistira do paxá.

— Ele, se tornou como os outros — disse. — Já não quer mais saber o que não sabe.

Uma semana depois, o soberano convocou Hoja mais uma vez, e ele obedeceu. O sultão lhe pareceu animado. “Meu leão está melhor”, foi logo dizendo, “como você previu.” Depois saíram juntos para o pátio, acompanhados da comitiva de costu­me. O menino, mostrando-lhe os peixes do tanque, perguntou-lhe o que achava deles. “Eram vermelhos”, respondeu Hoja, segundo me contou.

— Não me ocorreu outra coisa.

Mas, então, observou uma configuração peculiar nos movi­mentos dos peixes. Era como se estivessem discutindo coreogra­fia entre eles, no afã de aperfeiçoá-la. Hoja disse que achava os peixes inteligentes. E quando um anão achou graça disso, um anão que estava junto a um dos eunucos do harém, e que vivia lembrando ao soberano as advertências de sua mãe, o menino ralhou com ele. Como castigo, não permitiu que o anão, que tinha cabelo ruivo, sentasse junto dele quando subiu na sua carruagem.

Eles tinham ido de carruagem ao hipódromo e à casa do leão. Os leões, leopardos e panteras do sultão, mostrados por ele, um a um, a Hoja estavam presos por correntes às colunas de uma antiga igreja. A comitiva se deteve diante do leão cujas melhoras Hoja vaticinara. A criança apresentou-os solenemente. Em se­guida, foram até outro animal, que jazia a um canto. Esse não cheirava mal como os demais. Era uma leoa e estava prenhe. O menino, de olhos muito brilhantes, perguntou: “Quantos filhotes vão nascer? Quantos machos e quantas fêmeas?”

Apanhado de surpresa, Hoja cometeu o que mais tarde descreveria como uma “asneira”. Disse ao sultão que entendia de astronomia, mas não era astrólogo. “Mas você sabe mais que o astrólogo imperial Huseyn Efêndi!”, disse a criança. Hoja não respondeu, temendo que alguém pudesse ouvir e contar tudo a Huseyn Efêndi. O soberano, impaciente, insistira: ou Hoja não sabia nada e observava as estrelas em vão, afinal de contas?

Em resposta, Hoja se viu obrigado a explicar de imediato coisas que só pretendia discutir muito mais tarde com o menino. Respondeu que aprendera muito com as estrelas e chegara a conclusões muito úteis com base no que aprendera. Interpretan­do favoravelmente o silêncio do sultão, que escutava de olhos muito abertos, disse que era necessário construir um observató­rio para estudar as estrelas. Como o que seu antepassado Murad III, avô de Ahmed I,8 construíra para o falecido Takiyuddin Efêndi noventa anos atrás e que ficara em ruínas por falta de conservação. Ou coisa mais adiantada que isso: uma Casa da Ciência, em que eruditos pudessem observar, não apenas as estrelas mas o mundo inteiro, seus rios e oceanos, nuvens e montanhas, flores e árvores e, naturalmente, animais, para depois discutirem suas observações descansadamente e fazerem avanços no campo do intelecto.

O sultão escutara a exposição de Hoja sobre o seu projeto, de que eu também ouvia falar pela primeira vez, como se fosse um belo enredo. Quando voltavam para o palácio nas carruagens, o menino perguntou uma vez mais: “Como a leoa dará à luz? O que tem a dizer sobre isso?” Hoja havia pensado no assunto e, dessa vez, respondeu: “Haverá um número igual de machos e de fêmeas.”

Em casa, ele me disse que não havia perigo em dizer uma coisa daquelas.

— Logo terei aquela criança idiota na palma da minha mão —disse. — Sou muito mais competente que o astrólogo Huseyn Efêndi!

Fiquei chocado ao ouvi-lo referir-se daquela maneira ao soberano. Por alguma razão, fiquei até ofendido. Naquele tempo, eu me ocupava do serviço doméstico por puro fastio.

Mais tarde, ele passou a usar a palavra como se fora uma chave mágica, uma gazua capaz de abrir todas as portas. Porque eram uns “idiotas”, não viam as estrelas que se moviam por cima de suas cabeças nem refletiam sobre a natureza delas; porque eram “idiotas”, não perguntavam primeiro que utilidade prática teria o que estavam a ponto de aprender; porque eram “idiotas”, não se interessavam em conhecer tudo em profundi­dade mas apenas pela rama; e por serem “idiotas” eram todos iguais. E assim por diante.

Embora eu também tivesse gostado de criticar as pessoas daquele modo, anos antes, quando ainda vivia em meu próprio país, não disse nada a Hoja. De qualquer maneira, ele estava preocupado com os seus idiotas, não comigo. Ao que parece, minha loucura era de outra natureza. Certo dia, em que me deixei levar pela indiscrição, contei-lhe um sonho que havia tido: ele se fora para Veneza em meu lugar, casara com a minha noiva, e durante as festas ninguém descobrira que ele não era eu. E, durante todo o tempo, eu o observava de um canto, vestido de turco. Nem minha mãe nem minha noiva me reconheceram! Viraram-me as costas, apesar das lágrimas que verti e que, afinal, me acordaram.

Por essa época, ele foi duas vezes à mansão do paxá. Entendo que esse dignitário não estava lá muito feliz vendo que Hoja se relacionava com o soberano longe do seu olhar vigilante. O paxá o enchia de perguntas. Pedia notícias minhas. Andara investigando a minha vida, mas só muito mais tarde, depois que ele fora banido de Istambul, Hoja me contou isso. Temia que eu fosse passar meus dias no terror de ser envenenado se o soubesse. Pois, assim mesmo, eu sentia que o paxá mostrava-se mais curioso em relação a mim do que a Hoja. Eu ficava lisonjeado, vendo que minha semelhança física com Hoja deixava o paxá mais pertur­bado do que a mim. Naquele tempo, essa semelhança era como um segredo que Hoja não quisesse conhecer e cuja existência me comunicava uma estranha coragem. Às vezes, imaginava que unicamente graças a essa semelhança inacreditável eu estava seguro enquanto Hoja vivesse. Talvez, por isso, eu tenha contra­ditado Hoja quando ele disse que o paxá também era um dos tais idiotas; isso o irritou. Ele me espicaçou tanto que assumi uma desfaçatez que não é do meu feitio. Queria sentir tanto a sua necessidade em relação a mim, quanto a sua vergonha diante de mim. Interroguei-o sem trégua sobre o paxá, sobre o que ele dizia com relação a nós dois, levando Hoja a uma fúria cujo motivo, acho, não era evidente nem mesmo para ele. Então ele se punha a repetir teimosamente que eles dariam cabo do paxá também. Logo os janízaros tentariam alguma coisa. Ele sentia a presença de conspirações no palácio. Por esse motivo, se ia trabalhar na construção de uma arma, como o paxá sugeria, faria isso não para um vizir qualquer, que esses vêm e vão, mas para o soberano.

Por algum tempo, imaginei que ele estivesse ocupado exclu­sivamente com essa obscura idéia de arma; planejando sem nada realizar, eu disse comigo mesmo. Pois, se tivesse feito algum progresso, estou seguro de que me contaria, mesmo fazendo pouco de mim no processo. Mas contaria o que tinha em vista para saber minha opinião a respeito. Uma noite, estávamos voltando de uma casa em Aksaray, onde costumávamos ouvir música e deitar com prostitutas, como fazíamos a cada duas ou três semanas. Hoja disse que tencionava trabalhar até de manhã. Depois começou a perguntar sobre mulheres — nós jamais tínhamos conversado sobre mulheres antes — e, de repente, disse:

— Estou pensando...

No momento em que entramos em nossa casa, porém, ele se fechou em seu quarto sem revelar o que tinha em mente. Fiquei sozinho com os livros, que agora não tinha vontade sequer de folhear. Fiquei pensando nele: que idéia ou plano teria, que eu a convencido de que não seria capaz de levar a cabo, fechado em seu quarto, sentado à mesa a qual ainda não se acostumara de todo, olhando as páginas em branco à sua frente. Sentado infrutiferamente à mesa, durante horas, envergonhado, furioso...

Hoja emergiu do quarto muito após a meia-noite e, como um estudante atrapalhado que precisa de ajuda para enfrentar um problema menor, que não consegue resolver, chamou-me para que entrasse, timidamente.

— Ajude-me — pediu, abrupto. — Vamos pensar juntos. Não consigo avançar sozinho.

Fiquei calado por alguns instantes, imaginando se aquilo alguma coisa a ver com mulheres. Quando ele notou meu olhar pasmo, falou com seriedade.

Estou pensando nos idiotas. Por que são tão estúpidos?

E, como se soubesse qual seria a minha resposta, acrescen­tou:

— Muito bem, não são estúpidos, mas falta-lhes algo na cabeça.

Não perguntei a quem ele se referia.

— Será que não têm na cabeça algum canto onde armazenar conhecimentos?

A pergunta foi acompanhada por um olhar ao redor, como se procurasse a palavra certa.

— Deveriam ter um compartimento na cabeça, algum compartimento, como se fossem gavetas de um armário, um local onde pudessem guardar diversas coisas, mas agem como se não existisse tal lugar. Você entende?

Eu queria acreditar que sim, que percebera uma coisa ou duas, mas não tive muito sucesso. E por um longo tempo ficamos nos encarando em silêncio.

— Quem pode saber por que um homem é como é, afinal de contas? — disse ele, por fim. — Ah! Se você fosse médico de verdade e me ensinasse — continuou — sobre os nossos corpos, o interior dos nossos corpos, das nossas cabeças...

Hoja parecia um tanto embaraçado. Com uma expressão de bom humor, fingida, achei, para que eu não ficasse assustado, anunciou que não pretendia desistir, que iria até o fim, tanto pela curiosidade de ver o que aconteceria quanto pelo fato de não ter mais o que fazer. Eu não entendi nada, mas alegrava-me pensar que ele aprendera tudo aquilo comigo.

Mais tarde, ele repetiria freqüentemente o que tinha dito nessa noite, como se ambos soubéssemos do que se tratava. Mas, a despeito de afetar convicção, Hoja tinha mais o ar de um estudante perdido em devaneios a fazer perguntas. Cada vez que afirmava estar disposto a ir até o fim, sentia-me como se ouvisse as queixas amarguradas de um amante desafortunado, a pergun­tar por que tudo aquilo desabara sobre si. Naquele período, dizia isso muitas vezes; disse-o quando ficou sabendo que os janízaros tramavam uma rebelião; disse-o quando me contou que os alunos da escola primária estavam mais interessados em anjos do que em estrelas; disse-o ainda, depois que outro manuscrito pelo qual pagara considerável soma foi posto de lado num ímpeto de fúria mesmo antes de a leitura chegar à metade, após despedir-se dos amigos da sala dos relógios da mesquita, com quem ainda se reunia por puro hábito, depois de gelar nas termas mal aquecidas, depois de ficar estirado na cama com seus amados livros espalhados pela coberta florida, depois de ouvir o tolo blablablá dos homens que faziam abluções no pátio da mesquita, depois de saber que a frota fora derrotada pelos venezianos, depois de escutar pacientemente os vizinhos, que vinham dizer-lhe que ele estava ficando velho e precisava casar. Hoja repetia sempre a mesma coisa: que iria até o fim.

Ponho-me, neste ponto, a imaginar: quem, tendo lido o que escrevi até o fim, acompanhando pacientemente tudo o que consegui registrar com referência ao que aconteceu ou ao que imaginei, que leitor poderá dizer que Hoja não cumpriu o prometido?

 

Um dia, já perto do fim do verão, ouvimos dizer que o corpo do astrólogo imperial Huseyn Efêndi fora encontrado boiando ao longo da costa de Istinye. O paxá havia obtido, finalmente, a ordem para matá-lo, e o astrólogo, incapaz de ficar quieto, traiu seu esconderijo enviando cartas a torto e a direito, dizendo que Sadik Paxá logo passaria desta para melhor, pois estava escrito nas estrelas. Quando procurou fugir para a Anatólia, os executores alcançaram o bote e o estrangularam. Logo que Hoja soube que os bens do defunto haviam sido confiscados, correu a ver se conseguia apoderar-se dos papéis e livros que ele havia deixado. Gastou todas as suas economias em propinas, mas veio para casa, uma noite, com uma grande mala cheia de milhares de páginas. Devorou-as em uma semana e concluiu com fúria que ele mesmo era capaz de fazer muito melhor.

Ajudei-o na sua faina de cumprir a palavra. Para os dois tratados que decidira escrever para o soberano, intitulados O Bizarro Comportamento dos Animais e Curiosidades e Maravilhas das Criaturas de Deus, descrevi para ele os belos cavalos e jumentos, coelhos e lagartos que conhecia dos vastos prados e jardins de nossa propriedade em Empoli. Quando Hoja observou que meus poderes de imaginação eram por demais limitados, lembrei-me das tartarugas de bigode, francesas, do nosso tanque de nenúfares, das araras azuis que falavam com sotaque siciliano e dos esquilos que se sentavam de frente um para o outro, catando-se, antes de acasalar-se. Devotamos muito tempo e cuidados a um capítulo sobre os hábitos das formigas, assunto que fascinava o sultão, mas sobre o qual ele não podia aprender o bastante, uma vez que o primeiro pátio do palácio era varrido continuamente.

Enquanto escrevia sobre a vida organizada e lógica das formigas, Hoja acalentava um sonho: o de educar o jovem sultão. Achando inadequadas, para esse propósito, as nossas formigas comuns, pretas, ele descreveu o comportamento das formigas-ruivas, americanas. Isso lhe deu a idéia de escrever um livro que fosse tão divertido quanto instrutivo sobre os preguiçosos aborígines que viviam num país infestado de serpentes chamado América, jamais alterando a sua vida. Suponho que ele não se atreveu a terminar esse livro, em que dizia, entre outras coisas, segundo me contou pormenorizadamente, de como um menino-rei, amigo dos animais e caçador, morria empalado e queimado na fogueira por infiéis espanhóis por não fazer caso da ciência. Os desenhos de um miniaturista, por nós empregado para dar uma representação vívida do búfalo alado, dos bois de seis pernas e das cobras de duas cabeças, não nos satisfizeram.

— A realidade pode ter sido assim plana, antigamente — disse Hoja —, mas agora tudo é tridimensional, a realidade tem sombras. Não é mesmo? Até a formiga mais ordinária carrega pacientemente a sua sombra às costas, como um gêmeo.

Como Hoja não recebesse qualquer mensagem do sultão, pediu ao paxá que lhe apresentasse os tratados em seu nome, mas depois arrependeu-se. O paxá lhe fez um sermão, dizendo que astrologia era sofística, que o astrólogo Huseyn Efêndi metera os pés pelas mãos justamente por imiscuir-se em política, que ele desconfiava que Hoja estivesse de olho no cargo agora vago, que ele próprio acreditava nessa história de ciência, mas ciência era uma questão de armas e não de estrelas, que a posição de astrólogo imperial era aziaga — todos os que a tinham ocupado morreram assassinados mais cedo ou mais tarde ou, pior, desapareceram sem deixar traços, e por isso, não queria que seu bem-amado Hoja, em cuja ciência punha fé, assumisse o cargo; que, de qualquer maneira, o novo astrólogo imperial devia ser Sitki Efêndi, suficientemente estúpido e simplório para desempenhar suas funções a contento; que ouvira que Hoja recolhera os livros do falecido titular e não queria que ele se ocupasse mais do assunto. Hoja respondeu que só se ocupava de ciência e passou às mãos do paxá os tratados que queria enviar ao sultão. Naquela noite, em casa, ele me disse também que, com efeito, só lhe interessava a ciência, mas faria tudo o que fosse necessário a fim de praticá-la. E como um bom começo amaldiçoou o paxá.

No mês seguinte, procuramos saber a reação da criança aos pitorescos animais criados pela nossa fantasia, enquanto Hoja se angustiava por não ter sido ainda convocado ao palácio. Por fim, nos chamaram para a caça. Fomos ao palácio Mirahor, nas margens do rio Kagithane, ele para ficar ao lado do soberano, eu para vê-los de longe. Havia uma grande multidão. O guarda-caça imperial preparara tudo muito bem: lebres e raposas haviam sido soltas na área, e os galgos já estavam à espera. Vimos quando todos os olhares se concentraram numa das lebres, que se afastara das demais e se lançara n' água, nadando freneticamente para alcançar a margem oposta. Os guarda-caças quiseram soltar mais cães, do lado de lá, mas mesmo da distância em que estávamos pudemos ouvir que o soberano negou-lhes a permissão de fazer dizendo: “Que a lebre se vá em paz.” O animal, no entanto, arrepiou caminho e de novo entrou na água. Um cão selvagem, da outra margem, correu atrás dela e pegou-a. Os guarda-caças acorreram para salvá-la e levaram a lebre para o sultão. A criança examinou o bicho e alegrou-se; não havia ferimento grave. Mandou que a lebre fosse levada até o alto da montanha e solta. Foi então que vi um grupo, que incluía Hoja e o anão de cabelos vermelhos, reunido em torno do sultão.

Naquela noite, Hoja me contou o que se passara. O sultão havia perguntado como interpretar o acontecimento. Depois que todos tinham falado, chegou a vez de Hoja. Disse então que aquilo significava que inimigos emergeriam de onde o sultão menos esperava, mas que ele escaparia incólume de suas tramas. Quando os rivais de Hoja, como o novo astrólogo imperial Sitki Efêndi, criticaram essa interpretação por suscitar o espectro da morte — chegando ao extremo de comparar o soberano com um coelho — o sultão os silenciou dizendo que tomaria as palavras de Hoja como um brinco para sua orelha. E mais tarde, quando observavam uma águia negra, atacada pelos falcões, lutar pela vida, e viram o triste fim de uma raposa massacrada por cães famintos, o sultão disse que a leoa dera à luz dois filhotes, um macho e uma fêmea, exatamente como Hoja havia predito; que adorara os bestiários de sua lavra; e fez perguntas sobre os touros de asas azuis e sobre os gatos cor-de-rosa que habitavam as campinas próximas ao rio Nilo. Hoja ficou intoxicado com uma estranha mistura de triunfo e temor.

Só muito mais tarde ficamos sabendo da intriga no palácio. A avó do sultão, Kosem Sultana, conspirara com os aghas janízaros. O sultão seria assassinado, juntamente com sua mãe, e substituído pelo príncipe Suleyman, mas a trama fracassou. A velha foi estrangulada. Apertaram-lhe a garganta até que o sangue jorrou da boca e do nariz. Hoja ficou sabendo de tudo isso pelos bobos na sala dos relógios da mesquita, e continuou a dar suas aulas na escola. Mas, afora isso, não se aventurou a sair de casa.

No outono, considerou por algum tempo retomar suas teo­rias cosmográficas, mas perdeu o ânimo: precisava de um obser­vatório. Além disso, os idiotas locais ligavam tão pouco para as estrelas quanto as estrelas ligam para idiotas. Veio o inverno, nuvens negras surgiram pesadas, pendendo do céu, e um dia nos contaram que o paxá fora exonerado. Ele também deveria ser estrangulado, mas a mãe do sultão não consentiu, e ele foi, ao invés, banido para Erzinjan depois de ter os bens confiscados. Nada mais soubemos dele até a morte. Hoja disse que agora não temia ninguém e não devia nada a ninguém — não sei que consideração ele dava ao que aprendeu comigo ao dizer isso. Dizia não temer nem o menino nem sua mãe. Estava pronto para jogar a sorte, e tanto se lhe dava que os dados decretassem morte ou glória. Mas, apesar do rompante, ficamos em casa com os nossos livros, quietos como cordeiros, discutindo as formigas-ruivas da América e planejando um novo tratado sobre o assunto.

Passamos o inverno assim, em casa, como tínhamos passado tantos antes, e como passaríamos outros no futuro. Nada acon­teceu. Nas noites frias, quando o vento do setentrião soprava pela chaminé abaixo ou passava por debaixo das portas, ficávamos no andar térreo conversando até alta madrugada. Ele já fazia pouco de mim ou já não se dava ao trabalho de demonstrar superioridade mesmo que a sentisse. Eu atribuía essa nova atitude de camaradagem ao fato de que ninguém o cortejava mais: nem o palácio nem as pessoas do círculo do palácio. Às vezes, eu achava que ele percebia a extraordinária semelhança entre nós tanto quanto eu, e me afligia que, olhando agora para mim, ele se visse: o que estaria a pensar? Tínhamos terminado um outro longo tratado sobre animais, mas desde o banimento do paxá o volume jazia em cima da mesa. Hoja dizia não estar disposto a sofrer os caprichos daqueles que tinham acesso ao sultão. De quando em vez, que os dias passavam sem qualquer incidente, eu virava, entediado, as folhas do livro, vendo os gafanhotos roxos e os peixes voadores que eu mesmo desenhara e imaginando o que o menino acharia quando lesse aquelas linhas.

Só com a chegada da primavera Hoja foi finalmente convo­cado. A criança se mostrara encantada em vê-lo. Segundo Hoja, era óbvio em cada gesto, em cada palavra, que o sultão nele pensava havia muito tempo, mas fora impedido pelos idiotas da corte de chamá-lo à sua augusta presença. O soberano aludiu à traição da avó, lembrando que Hoja previra a ameaça doméstica, mas previra, também, que o sultão sobreviveria incólume. Na­quela noite, no palácio, a criança não tivera sombra de medo ao ouvir os clamores dos que queriam assassiná-lo. Lembrava-se de que o cão não fizera mal ao coelho, embora o tivesse aboca­nhado. Depois dessas palavras de louvor, mandara que Hoja passasse a receber as rendas de uma propriedade fundiária de bom tamanho. Hoja teve de sair antes que houvesse oportunidade de tratar de astronomia. Disseram-lhe que esperasse a doação antes do outono.

Enquanto esperava, Hoja fazia planos para a construção de um pequeno observatório no jardim, prevendo a renda das terras. Calculou a profundidade em que deveriam ser fixados os alicer­ces e o preço dos instrumentos que seria preciso comprar, mas logo se desinteressou do problema. Foi então que encontrou um manuscrito no bazar de livros velhos com os resultados das observações de Takiyuddin. A transcrição era ruim, mas Hoja passou dois meses conferindo a exatidão dos dados. Por fim, desgostou-se e mandou tudo às favas, incapaz de determinar que discrepâncias se deviam à precariedade dos seus próprios instrumentos, quais aos erros de Takiyuddin e quais ao desleixo do escriba. O que o irritou ainda mais foram os versos que um antigo proprietário do livro escrevera entre as colunas trigonométricas calculadas em até sessenta graus. O homem, usando valores numéricos do alfabeto e outros métodos, oferecia suas humildes observações sobre o futuro do mundo: ele teria um filho homem, depois de quatro fêmeas; uma peste viria para distinguir os inocentes dos culpados; seu vizinho Bahaeddin Efêndi morreria. Embora de início Hoja ficasse divertido com essas predições, acabou deprimido. Agora falava do interior das nossas cabeças com uma estranha e agourenta convicção. Era como se falasse de arcas que tivessem tampas que se podiam abrir para olhar dentro, ou sobre os armários de nossos aposentos.

O presente do sultão não se materializou no fim do verão, nem com a aproximação do inverno. Hoja foi informado de que um registro do novo título de propriedade estava sendo prepara­do e cumpria esperar. Durante esse tempo, ele foi convidado, mais de uma vez, ao palácio, embora não com freqüência, para dar sua interpretação de fenômenos como um espelho rachado, um relâmpago de luz verde que caíra em mar aberto, perto da ilha de Yassi, uma garrafa de cristal cheia de suco de cerejas que se partiu sozinha em pedaços no lugar onde se encontrava, ou para responder a perguntas do sultão sobre os animais do último tratado que ele havia escrito. De volta para casa, Hoja comentou comigo que o menino estava entrando na puberdade; que essa era a idade mais impressionável do homem; e que ele teria a criança na palma da sua mão.

Com esse objetivo em mente, deu início a um livro comple­tamente novo. Aprendera comigo a história da conquista do México e das memórias de Cortez, mas antes disso ele já imaginara o tal enredo com um patético rei-menino que acabou empalado e queimado vivo por não fazer caso da ciência. Hoja gostava de falar desses miseráveis que, contra toda moral, com seus canhões e máquinas de guerra, suas falsidades e armas de fogo, atacavam de emboscada homens honrados enquanto dormiam e os obrigavam a submeterem-se ao seu domínio. Mas por muito tempo escondeu de mim o que quer que fosse que se trancava no quarto para redigir. Eu sabia que, no começo, ele esperava que eu demonstrasse interesse, mas naquele período as saudades que eu tinha de casa, e que muitas vezes me faziam mergulhar na mais extraordinária melancolia, aprofundavam meu ódio por ele. Dominei a curiosidade, pretendi ignorar os livros empoeirados e de encadernações puídas que ele lia porque custavam pouco, e a desdenhar as conclusões que ele tirava do que eu lhe havia ensinado. Dia a dia ele foi perdendo a confiança, primeiro em si mesmo, depois no que estava escrevendo, enquanto eu o observava com um prazer vingativo.

Ele subia para o pequenino quarto que tornara seu estúdio particular, sentava-se à nossa mesa, a que eu mandara fazer, e pensava, mas eu sabia que não estava escrevendo. Não podia. Não tinha coragem de pôr idéias no papel antes de ouvir a minha opinião sobre o seu valor. Não foi exatamente a falta dos meus humildes pensamentos, que ele pretendia desprezar, que o fez perder a fé em si mesmo. O que ele desejava realmente era saber o que “eles” pensavam, os “outros” que me tinham ensinado toda aquela ciência, instalado aqueles compartimentos, aquelas gavetas cheias de conhecimentos dentro da minha cabeça. O que pensariam eles se estivessem na situação em que ele se encon­trava? Era isso que morria de vontade de perguntar, mas não se animava a fazê-lo. Ah, quanto tempo esperei que ele engolisse seu orgulho e reunisse a coragem necessária para fazer-me essa pergunta! Mas ele não perguntou. E logo abandonou o livro. Eu não soube se tinha conseguido completá-lo ou não e retomado seu velho refrão sobre os “idiotas”. Ele abandonaria sua con­vicção de que a ciência fundamental, a que valia a pena praticar, era a que analisasse as causas da insensatez deles. Abandonaria o desejo de saber por que a cabeça delas funcionava daquele modo. Deixaria de pensar nisso! Eu acreditava que essas rumi­nações eram fruto do desespero, pois os sinais de favor que ele esperava do palácio não vinham. O tempo passava em vão, e a promissora puberdade do soberano não adiantou muito, afinal de contas.

Entretanto, no verão que precedeu a posse de Koprulu Mehmet Paxá como grão-vizir, Hoja recebeu sua mercê, afinal. E era tal que ele poderia tê-la escolhido em pessoa: deram-lhe a renda combinada de dois moinhos perto de Gebze e duas aldeias a uma hora de distância daquela cidade. Fomos a Gebze no tempo da colheita, alugando a nossa velha casa que, por sorte, estava desocupada. Mas Hoja havia esquecido os meses que passamos lá, os dias em que olhava com antipatia a mesa que eu levara do carpinteiro. Suas lembranças pareciam ter ficado ve­lhas e feias com a casa. Seja como for, ele estava devorado por uma impaciência que o impedia de cuidar de qualquer coisa do passado. Nas poucas ocasiões em que fomos inspecionar as aldeias, ele calculou a renda obtida nos anos precedentes e, influenciado por Tarhunju Ahmet Paxá, de quem ouvira falar por seus amigos da mesquita, anunciou haver inventado um novo sistema de contabilidade, muito mais simples e mais fácil de entender.

Mas a originalidade e utilidade dessa inovação, na qual nem ele acreditava, não lhe bastou. As noites perdidas que passou sentado no jardim, contemplando o firmamento, reaqueceram nele a paixão pela astronomia. Encorajei-o por algum tempo, convencido de que ele levaria suas teorias um passo à frente. Mas sua intenção não era a de fazer observações ou usar o raciocínio. Ele chamou para nossa casa os moços mais inteligen­tes que conhecia, na aldeia e em Gebze, dizendo que lhes ensinaria a mais alta de todas as ciências, montou para eles, no quintal dos fundos, o planetário que mandou buscar, por meu intermédio, em Istambul, consertou os sinos, lubrificou o mecanismo, e certa noite, com uma energia e um entusiasmo que não sei de onde os tirava, repetiu com paixão, sem omissão ou erro, aquela teoria dos céus que havia explicado, anos antes, primeiro ao paxá e, depois, ao sultão. Mas quando, na manhã seguinte, achamos um coração de carneiro na soleira de nossa porta, ainda quente e sangrando, com uma fórmula mágica escrita por cima dele, isso bastou para que ele finalmente perdesse as esperanças, tanto nos jovens que tinham deixado a casa à meia-noite sem fazerem uma única pergunta, quanto na astronomia.

No entanto, não ficou remoendo esse malogro. Certamente aqueles rapazes não estavam aptos a compreender o movimento da Terra e das estrelas. Nem era necessário que compreendes­sem, no momento. Aquele que precisava compreender estava a ponto de deixar a puberdade e talvez nos tivesse procurado durante a nossa ausência. Estávamos, talvez, perdendo nossa oportunidade por uns poucos tostões que receberíamos ali depois da sega. Regularizamos nossos negócios, contratamos como caseiro o mais vivo daqueles moços inteligentes, e voltamos para Istambul.

Os três anos que se seguiram foram para nós os piores. Todo dia, todo mês, era como o anterior; toda estação uma exasperante repetição de alguma outra estação do passado. Era como se estivéssemos assistindo dolorosamente, desesperadamente, as mesmas coisas aconteceram duas vezes, como se aguardássemos em vão um desastre que não sabíamos chamar pelo nome. Hoja ainda era chamado ao palácio de vez em quando. Esperavam dele alguma das suas interpretações inócuas. Ele ainda se reunia com os amigos interessados em ciência na sala dos relógios da mesquita, nas tardes das quintas-feiras. Ainda via seus alunos toda manhã e batia neles, se bem que não com a mesma regula­ridade. Ainda resistia aos que vinham, de quando em vez, à nossa casa com propostas de casamento, não tão determinadamente como costumava fazer. Ainda era obrigado a ouvir aquela mú­sica que me dizia não gostar mais a fim de deitar com mulheres. Ainda parecia sufocar de raiva com os idiotas. Ainda se trancava no quarto, deitava-se na cama, folheava com irritação as páginas dos manuscritos e livros espalhados à sua volta, e esperava, olhando para o teto, horas a fio.

O que o fez sentir-se ainda mais miserável foram as vitórias de Koprulu Mehmet Paxá, de que lhe davam notícia os amigos da sala dos relógios na mesquita. Quando ele me contou que a esquadra tinha posto os venezianos para correr, ou que as ilhas de Tenedos e Limnos haviam sido recapturadas, ou que o rebelde Abaza Hasan Paxá fora esmagado, acrescentava que aqueles eram os últimos e fugazes sucessos, as patéticas contorções de um aleijado que logo estaria sepultado no lodo da idiotice e da incompetência. Parecia aguardar uma catástrofe que rompesse a monotonia daqueles dias, que nos deixavam exaustos sobretudo por sua contínua repetição.

Sua primeira impressão era produto de pura frustração. Por não poder concentrar-se em nenhum assunto por muito tempo, ele passava agora o tempo como uma criança mimada e burra que não sabe como brincar. Ia de um cômodo para outro da casa, subia e descia as escadas entre um andar e o seguinte, olhando, distraído, por uma janela ou por outra. Quando passava por mim no curso desses giros incessantes, que me deixavam louco, e faziam os soalhos da casa de madeira rangerem e estalarem em protesto, eu sabia que ele esperava que eu o interrompesse e distraísse com uma pilhéria, uma idéia nova, uma palavra de encorajamento. Mas, a despeito do meu próprio sentimento de derrota, a irritação e o ódio que eu sentia por ele não haviam perdido a força, e eu nada dizia. Mesmo quando, para arrancar de mim alguma espécie de reação, ele engolia o orgulho e respondia, humildemente, com alguma palavra gentil, à minha intratabilidade, eu não dizia o que ele queria ouvir. Quando anunciava que tinha informações do palácio que podiam ser interpretadas favoravelmente, ou, tomado de uma súbita inspi­ração, aludia a uma nova idéia que valia seu peso em ouro, se ele persistisse e a investigasse até o fim, eu fingia que não o ouvira, ou jogava água fria no seu entusiasmo, escolhendo para dar ênfase a coisa mais insípida de todas as que dissera. Gostava de vê-lo debater-se no vácuo de sua própria mente.

Mais tarde ele encontrou, porém, justamente nesse vazio, a idéia nova de que tanto precisava. Talvez por ter sido deixado entregue às próprias elucubrações; talvez porque sua mente, incapaz de ficar ociosa, não podia escapar à impaciência rampante que nela mesma se continha. Foi então que lhe dei uma resposta — eu queria encorajá-lo, pois meu interesse também fora despertado. Talvez, enquanto aquilo se passava, eu tivesse chegado a pensar que ele se importava comigo. Uma noite, quando os passos de Hoja fizeram estalar o soalho em direção ao meu quarto, e ele me apareceu e perguntou, como se fizera a mais comum das indagações, “Por que sou o que sou?”, eu quis encorajá-lo e procurei responder.

Disse que não sabia por que ele era o que era, acrescentando que a pergunta era feita com frequência por “eles”, cada vez mais freqüentemente, aliás. Quando disse isso, não tinha nada em que apoiar-me, nenhuma teoria em especial, absolutamente nada, senão o desejo de responder à pergunta como ele desejava, talvez por sentir instintivamente que ele apreciaria o jogo. Hoja se mostrou surpreso. Olhou-me com curiosidade, querendo que eu continuasse. Quando permaneci calado, ele não pôde conter-se, empenhado em que eu repetisse o que havia dito: Então eles perguntavam mesmo aquilo? Quando viu que eu sorria, aprovan­do, imediatamente zangou-se. Não estava perguntando aquilo por pensar que “eles” perguntavam a mesma coisa, perguntara por conta própria, sem saber que eles o faziam. Não lhe impor­tava em nada o que eles fizessem. Em seguida, num tom estranho, disse:

É como se uma voz cantasse em meu ouvido.

Aquela misteriosa voz lembrava-lhe o pai muito amado, que também ouvira uma voz como aquela antes de morrer, mas a canção de seu pai fora diferente.

— A minha fica repetindo o mesmo refrão — explicou. E, parecendo um tanto embaraçado, acrescentou subitamente: — Eu sou o que sou, eu sou o que sou, ah!

Quase ri alto, mas refreei o impulso. Se aquilo era uma brincadeira inocente, ele também se riria. E ele não ria, mas percebeu que estava a pique de parecer ridículo. Tive de mostrar que estava cônscio tanto do despropósito quanto do sentido do refrão. Porque, desta feita, eu queria que prosseguisse. Disse, por isso, que o refrão devia ser tomado a sério. Naturalmente, o cantor que ouvia não era outro senão ele mesmo. Hoja deve ter sentido alguma nota de zombaria no que eu disse, pois ficou zangado. Ele também sabia disso. O que o deixava confuso era: por que a voz ficava repetindo a frase?

Estava tão agitado que eu não lhe disse o que se segue, mas francamente foi o que pensei: eu sabia, não só por experiência própria, mas pela experiência de meus irmãos e irmãs, que o tédio que afeta crianças egoístas tanto pode levar a resultados positivos quanto a contra-sensos. Eu disse apenas que não era o porquê de ouvir o estribilho, mas o seu sentido que devia ser considerado por ele. Talvez me tivesse ocorrido, também, naquela hora, que ele poderia enlouquecer à falta de algo em que se fixar. E que eu poderia escapar à opressão do meu próprio desespero e covardia observando-o. Depois, talvez eu fosse genuinamente capaz de respeitá-lo dessa vez. Se ele pudesse fazer isso, alguma coisa de real poderia acontecer, agora, em nossas vidas.

— O que devo fazer, então?—perguntou por fim, num tom de desamparo.

Eu lhe disse que ele devia pensar em por que era o que era, e que não lhe dizia isso com a presunção de dar-lhe conselhos. Eu não podia ajudá-lo. Aquilo era coisa que ele tinha de fazer por si mesmo.

— E o que devo fazer? Olhar no espelho? — perguntou Hoja sarcasticamente.

Mas ele não me pareceu menos perturbado. E eu não disse nada, para dar-lhe tempo de refletir.

— Devo olhar no espelho? — repetiu.

De súbito, fiquei enfurecido. Senti que Hoja não seria jamais capaz de realizar nada sozinho. Queria que ele se desse conta disso, queria dizer-lhe cara a cara que sem mim ele não podia pensar. Mas não ousei. Com um ar de indiferença, disse-lhe que fosse em frente e se mirasse no espelho. Não, não era coragem que me faltava, eu simplesmente não queria dizer aquilo. Ele bateu com a porta, de raiva, gritando ao sair:

— Você é um idiota!

Três dias depois, quando eu trouxe o assunto à baila e vi que Hoja ainda queria falar sobre “eles”, resolvi continuar a brin­cadeira. Fosse qual fosse o seu resultado, eu ficava esperançoso, vendo-o ocupado com alguma coisa. Eu disse que “eles” se olhavam no espelho e, na verdade, muito mais freqüentemente que as pessoas daqui. Não só os palácios dos reis, príncipes e nobres em geral, mas as casas de gente comum estavam cheias de espelhos, cuidadosamente emoldurados e pendurados nas paredes. Não era só por causa disso, mas pelo fato de pensarem constantemente em si mesmos que “eles” tinham feito progressos nesse particular.

— Em quê? — perguntou ele, com uma ânsia e uma candura que me deixaram surpreso.

Pensei que ele estava tomando a sério o que eu dizia, mas então Hoja sorriu:

— O que você está dizendo é que eles se olham no espelho de manhã à noite!

Pela primeira vez ele fazia troça do meu país e do que eu havia deixado para trás. Com raiva, procurei alguma coisa que o ferisse para dizer e, de súbito, sem pensar, sem acreditar naquilo, declarei que só ele poderia descobrir quem de fato fosse, mas que não era homem o bastante para tentá-lo. Senti prazer ao ver seu rosto contorcer-se de dor.

Mas esse prazer me custaria caro. Não porque ele tivesse ameaçado envenenar-me. Alguns dias depois, pediu que eu demonstrasse a coragem que, na minha opinião, lhe faltava. De começo, levei a história na brincadeira. Naturalmente, uma pessoa não podia descobrir quem era pensando nisso ou contem­plando o próprio reflexo num espelho. Eu disse aquilo apenas para aborrecê-lo, mas ele não me acreditou, ou fez como se não acreditasse. Ameaçou dar-me menos de comer e, até trancar-me no quarto se eu não provasse minha coragem. Eu tinha de pensar o que eu era e escrever tudo, preto no branco. E ele veria como aquilo fora feito e quanta coragem de fato eu tinha.

 

Primeiramente, escrevi umas poucas páginas sobre a minha infância feliz com meus irmãos e irmãs, minha mãe e minha avó, em nossa propriedade em Empoli. Não sei exatamente por que escolhi escrever sobre essas lembranças em particular como meio de descobrir por que eu era o que era. Talvez o tivesse feito movido pelas saudades que sentia daquela vida que perdera. E Hoja me pressionava tanto, a respeito de uma coisa dita num momento de ira, que eu me sentia obrigado, como me sinto agora, a inventar alguma coisa que fosse convincente para o leitor e de leitura agradável. Mas, inicialmente, Hoja não gostou do que escrevi. Todo mundo podia escrever coisas daquelas, disse. Duvidava que fosse aquilo o que as pessoas pensavam ao contemplar-se no espelho. Aquilo não podia ser a tal coragem de que ele carecia, a meu ver. Teve a mesma reação quando leu sobre de como eu me vi, subitamente, cara a cara com um urso numa expedição pelos Alpes com meu pai e irmãos; e de como ficamos, eu e o urso, encarando-nos longamente; ou de como eu me senti no leito de morte do nosso amado cocheiro, esmagado pelos seus próprios cavalos diante de nossos olhos. Todo mundo podia escrever coisas daquelas.

A isso respondi que, lá, as pessoas não faziam mais que aquilo, que o que eu contara antes fora exagerado, estava zangado, e Hoja não devia esperar mais de mim. Mas ele não me dava ouvidos. Eu tinha medo que me trancasse no quarto, de modo que continuei a pôr no papel as imagens que me iam ocorrendo. Passei dois meses assim, revendo e revivendo, às vezes dolorosamente, às vezes com alegria, toda uma série de memórias dessa espécie, menores mas gostosas de lembrar. Rememorei e revivi as experiências desagradáveis que tivera antes de ser escraviza­do e, por fim, concluí que esse exercício me fora grato. Agora Hoja não tinha que exercer pressão sobre mim para que escre­vesse. Toda vez que ele dizia não ter ficado satisfeito, eu embarcava em outra memória, em outro conto, que já havia decidido mesmo escrever.

Muito mais tarde, quando percebi que Hoja gostava de ler o que eu tinha escrito, comecei a esperar uma oportunidade para induzi-lo a dedicar-se à mesma atividade. Para preparar o terre­no, aludi a certas experiências da minha infância: contei-lhe dos terrores da interminável noite de insónia que se seguiu à morte do meu maior amigo, com o qual eu tinha o hábito de pensar a mesma coisa ao mesmo tempo, de como temi que me julgassem morto também e me enterrassem vivo com ele. Não esperava que a história comovesse Hoja a tal ponto! Logo depois, atrevi-me a narrar-lhe um sonho que tivera: meu corpo se separara de mim, juntava-se a um sósia, cujo rosto estava na sombra, e os dois passavam a conspirar contra mim. Hoja por aquela época reco­meçara a dizer que o ridículo estribilho voltara a persegui-lo, e que o ouvia mais e mais, intensamente. Quando senti, como esperava, que ele havia ficado impressionado com o meu sonho, insisti em que essa espécie de escrita era algo que ele também devia experimentar. Serviria para distraí-lo daquela expectativa sem fim, e ele acabaria por descobrir o que o fazia diferente dos seus idiotas. Ele ainda era ocasionalmente chamado ao palácio, mas nada de animador acontecia por lá. De início resistiu, mas quando perseverei ficou curioso, embaraçado, e tão saturado com a minha insistência que disse estar disposto a tentar. Estava com medo de fazer papel ridículo, e até perguntou, de brincadeira: se escrevermos juntos, não poderemos, também, contemplar-nos juntos no mesmo espelho?

Quando ele disse querer que escrevêssemos juntos, não imaginei que a sua idéia era a de que nos sentássemos simulta­neamente à mesma mesa. Eu havia pensado que, ao começar Hoja a escrever, eu pudesse voltar à liberdade ociosa de um escravo indolente. Estava errado. Ele disse que nos abancaríamos às duas pontas da mesa e escreveríamos de frente um para o outro. Nossas mentes, confrontadas por aqueles perigosos temas, divagariam, procurando escapar, e só dessa maneira conseguiríamos trilhar o caminho certo, fortalecendo-nos reci­procamente com espírito de disciplina. Mas, eram desculpas. Eu sabia que ele tinha medo de ser deixado sozinho, de sentir a solidão enquanto pensava. Vi isso, também, na maneira como ele começou a resmungar, alto o suficiente para que eu o ouvisse, quando se viu face a face com a página em branco. Esperava que eu aprovasse a priori o que iria escrever. Depois de rascunhar umas poucas frases, veio mostrá-las com a inocente humildade e sofreguidão de uma criança. Haveria, de fato, coisas dignas daquele esforço? Dei-lhe, naturalmente, todo o meu apoio.

Assim, no espaço de dois meses, fiquei sabendo mais sobre ele do que nos onze anos precedentes. Sua família tinha vivido em Edirne, cidade que visitamos mais tarde com o soberano. Seu pai morrera muito jovem. Ele não estava certo se se lembrava direito de suas feições. A mãe fora mulher trabalhadeira. Casou uma segunda vez. Teve dois filhos do primeiro marido, um menino e uma menina. Do segundo teve quatro filhos. Esse homem era colchoeiro de profissão. O filho com mais vocação para os estudos tinha sido, naturalmente, ele mesmo. Fiquei sabendo que era também o mais inteligente, esperto, diligente e forte dos irmãos. Também o mais honesto. Lembrava-se de todos com rancor, à exceção da irmã, mas não estava muito seguro se valia a pena, de fato, registrar tudo isso. Encorajei-o a fazê-lo, talvez por pressentir que um dia adotaria seus modos e sua vida como meus. Havia alguma coisa na linguagem dele, na maneira como sua mente funcionava, que me encantou e que desejei aprender. Uma pessoa deve amar a vida que escolheu o bastante para chamá-la sua até o fim. Eu a amo. Ele pensava, naturalmen­te, que todos os seus irmãos eram tolos. Só o procuravam quando queriam dinheiro. Ela, porém, se dedicara ao estudo. Aceito no seminário de Salimiye, fora acusado caluniosamente de uma falta qualquer quando estava a ponto de formar-se. Ele jamais voltou a se referir a esse incidente e jamais falou de mulheres. No início escreveu que estivera para casar. Depois, com raiva, rasgou tudo o que havia escrito a respeito. Chovia muito nessa noite. Era a primeira de muitas noites iguais, terrificantes, que eu teria de sofrer. Ele me insultou, disse que o que tinha escrito era mentira, e recomeçou tudo do princípio. Como exigia que eu ficasse sentado à sua frente, escrevendo, passei duas noites em claro. Ele já não dava a menor atenção ao que eu escrevia. Eu ficava na minha ponta da mesa, passando a limpo o que tinha feito sem me importar em usar a imaginação, observando-o cora o rabo do olho.

Poucos dias mais tarde, naquele papel caro, imaculado, importado do Oriente, ele começou com o título “Por Que Sou O Que Sou”, mas sob esse cabeçalho, toda manhã, escreveu só os motivos pelos quais “eles” eram tão inferiores e estúpidos. Fiquei sabendo, não obstante, que depois da morte de sua mãe ele fora defraudado pelos demais herdeiros e chegara a Istambul com a roupa do corpo e o pouco dinheiro que conseguira salvar. Hospedou-se por algum tempo em casa de um dervixe, mas mudou-se quando concluiu que todos lá eram baixos e falsos. Quis que ele elaborasse sobre suas experiências na casa do dervixe. Pensava que romper com aquela gente fora uma verda­deira proeza para ele: conseguira marcar distância entre ele e os outros. Quando lhe disse isso, porém, ficou enfurecido e disse que o que eu queria era ouvir sordidez que um dia pudesse usar contra ele. Eu já sabia demais nessa linha, de qualquer maneira, e, acima de tudo, isso fê-lo suspeitar que eu queria conhecer tais detalhes para — e aqui ele usou uma dessas expressões sexuais consideradas vulgares. Falou depois, longamente, sobre a irmã, Semra, de quão virtuosa era, e de quão depravado fora o marido. Falou da pena que tinha por não vê-la havia tantos anos, mas quando demonstrei interesse no assunto, ficou suspeitoso outra vez e mudou abruptamente de assunto. Após gastar em livros todo o dinheiro que havia trazido, não fez nada senão estudar por muito tempo. Depois, conseguiu trabalho como escriba, aqui e acolá — mas as pessoas eram tão despudoradas — e logo se lembrou de Sadik Paxá, cuja morte acabava de ser anunciada de Erzinjan. Hoja ficara conhecendo o paxá naquela época, e logo seu interesse pela ciência chamara a atenção do dignitário. O paxá conseguira para Hoja seu primeiro emprego em uma escola primária, mas não passava, ele também, de um grande idiota.

Uma noite, ao fim dessa fase de escrevinhação, que durou um mês, tomado de vergonha, Hoja rasgou tudo o que havia feito. E é por isso que, agora que procuro reconstituir o que ele escreveu, e minhas próprias experiências, contando apenas com a imaginação, já não tenho medo de ficar enredado nas minudências que tanto me fascinam. Num último ímpeto de entusias­mo, ele redigiu algumas páginas sob o título geral de “Idiotas Que Conheci Bem”, mas depois teve um acesso de cólera: todo aquele esforço de escrever levara a nada, e ele ainda não sabia por que era o que era. Eu o tinha enganado, fizera com que pensasse sem propósito em coisas que preferia esquecer. Ia castigar-me.

Não sei por que essa idéia de castigo, que lembrava os primeiros tempos de nossa convivência, tanto o preocupava. Às vezes, pensava que minha obediência cega o tornara audacioso. Mas, do momento em que falou em castigo, decidi enfrentá-lo. Quando Hoja ficou completamente farto de escrever sobre o passado, pôs-se a andar pela casa. Isso durou algum tempo. Depois, veio ter comigo e me disse que era sobre o pensamento em si que devíamos escrever: assim como um homem vê a sua aparência num espelho, ele examinaria sua essência no interior dos próprios pensamentos.

A brilhante simetria da analogia que Hoja descobrira me excitou tanto quanto a ele. Sentamo-nos imediatamente para escrever. Dessa vez eu também escrevi — se bem que um tanto ironicamente — “Porque Sou O Que Sou” no alto da página. E, logo em seguida, uma vez que aquilo me acudiu à mente como algo característico da minha personalidade, comecei a escrever uma memória da infância sobre a minha timidez. Então, quando li o que Hoja escrevia sobre a perversidade dos outros, tive uma idéia que me pareceu no momento de suma importância, e falei. Hoja devia escrever também sobre os seus defeitos. Depois de ler o que eu produzira, ele insistiu em que não era um covarde. Argumentei que, embora isso fosse verdade, ele tinha, como todo o mundo, lados negativos, e caso se aprofundasse nelas encontraria seu autêntico eu. Eu tinha feito isso, e ele queria ser como eu, podia sentir isso nele. Vi que ficou irritado quando lhe comuniquei o fato, mas controlou-se. E, procurando ser racional, disse que os outros é que eram maus. Não todos, é claro, mas muitos, e era por causa desse grande número de pessoas imper­feitas e negativas que tudo estava errado no mundo. Discordei dessa conclusão, dizendo que nele havia muita coisa ruim, negativa, e mesmo vil, e que devia reconhecer tal coisa. Acrescentei, desafiadoramente, que ele era pior do que eu.

E foi assim que aqueles dias absurdos e terríveis começa­ram! Ele me amarrava à cadeira e se sentava à minha frente, ordenando-me que escrevesse o que ele queria, embora já não soubesse exatamente o que queria. Não tinha nada em mente senão aquela referida analogia: assim como um homem se mira no espelho e vê o seu eu exterior, deve ser capaz de observar o interior da própria mente nos seus pensamentos. Disse que eu sabia como fazer isso, mas que escondia dele o segredo. Enquan­to Hoja me confrontava da sua cadeira, esperando que eu disser­tasse sobre o dito segredo no papel, eu enchia folhas e mais folhas com histórias em que exagerava meus próprios defeitos. Escrevi com deleite sobre os pequenos furtos da minha infância, as mentiras geradas pelo despeito, os esquemas que armava a fim de fazer-me mais amado que meus irmãos e irmãs, as indiscrições sexuais da juventude, espichando a verdade além dos limites permissíveis à medida que avançava no relato. A gulosa curiosidade com que Hoja lia essas histórias, e o visível prazer que tirava delas, me chocavam. Depois, ele ficava ainda mais raivoso, intensificando o tratamento cruel que me dava, e que já excedia os limites. Talvez fosse por não poder tolerar os pecados de um passado que talvez ele já sentisse que iria assumir como seu. Começou a espancar-me gratuitamente. Era só ler a história de uma das minhas transgressões e ele bradava:

— Seu patife!

E me dava um murro nas costas, com tal disposição que só podia ser tomada como brincadeira; uma ou duas vezes, incapaz de conter-se, ele me esbofeteou. Talvez fizesse essas coisas por ser chamado ainda com menos freqüência ao palácio, talvez por estar àquela altura convencido de que não acharia outra coisa com que distrair-se senão nós dois, talvez por simples frustração. Porém, quanto mais lia sobre os meus pecados, quanto mais multiplicava suas punições mesquinhas e infantis, tanto mais eu me imbuía de um sentimento de segurança: pela primeira vez comecei a achar que o tinha na palma da mão.

Uma vez, depois de ferir-me com grande brutalidade, vi que ele teve pena de mim. Mas era um sentimento maligno, mistu­rado com a repugnância que a gente sente por uma pessoa que não considera, de maneira nenhuma como um igual. Percebi isso também na maneira como ele foi capaz, finalmente, de olhar-me sem ódio.

— Vamos parar de escrever — disse. — Não quero que você escreva mais nada — acrescentou, corrigindo-se.

Havia semanas que ele meramente ficava a observar o meu trabalho de escrever sobre as faltas cometidas. Ele disse que precisava sair daquela casa, cada dia mais profundamente mer­gulhada em desalento, a fazer uma viagem, talvez a Gebze. Ele pretendia dedicar-se outra vez aos seus estudos de astronomia e pensava em escrever um tratado mais rigoroso sobre a vida das formigas. Eu ficava alarmado vendo que ele estava prestes a perder todo respeito por mim, de modo que, num esforço para mantê-lo interessado, inventei mais uma história, que expunha a minha depravação à mais crua das luzes. Hoja leu-a com volúpia e nem mesmo ficou zangado. Senti que aquilo apenas o intrigava: como podia haver alguém tão pervertido quanto eu? Talvez, também, em vista de tal baixeza, ele não quisesse mais imitar-me e se contentasse em ser ele mesmo até o fim. Natural­mente, ele sabia que havia um elemento de jogo em tudo aquilo. Naquele dia, por exemplo, eu lhe falei como um sicofanta de corte que sabe não ser um homem de verdade. Tentei acirrar a sua curiosidade ainda mais: o que tinha a perder se, antes de partir para Gebze, ele tentasse uma última vez — a fim de entender como eu podia ser como era — escrever sobre os seus próprios erros? O que escrevesse não precisava sequer ser verdadeiro, nem ninguém precisava acreditar na confissão. Se ele o fizesse, poderia entender a mim e a outros como eu, e um dia esse conhecimento poderia ser-lhe útil! Finalmente, incapaz de con­ter a sua curiosidade ou calar a minha verbosidade, disse que iria tentar no dia seguinte. Naturalmente, não se esqueceu de acrescentar que só o faria por querer, não por ter caído na cilada dos meus jogos infantis.

O dia imediato foi o mais agradável de todos os que passei em cativeiro. Embora ele não me tivesse atado à cadeira, fiquei o dia inteiro sentado de frente para ele, vendo como se ia transformando em outra pessoa. De começo, ele acreditava tão intensamente no que estava a fazer que nem se importou em pôr aquele título ridículo de sempre, “Porque Sou O Que Sou”, no alto da página. Tinha o ar de uma criança traquinas em busca de uma brincadeira divertida. Pude ver de um golpe que ele ainda se encontrava no seu mundo seguro. Mas, esse sentimento exagerado de segurança não durou muito tempo. Nem a mostra de contrição em que ele se arvorara por minha causa. Em curto prazo seu desdém se converteu em ansiedade e o jogo se fez real. Aquele ato de auto-acusação o deixava, ao mesmo tempo, atur­dido e assustado, mesmo tratando-se de um faz-de-conta. Ele riscou logo tudo o que escrevera, sem me mostrar. Mas sua curiosidade fora despertada, e eu creio que ele se sentiu enver­gonhado, ali, à minha frente, de modo que persistiu. E, no entanto, se tivesse obedecido ao primeiro impulso e saído da mesa imediatamente, talvez não tivesse perdido sua paz de espírito, conforme a perdeu.

Nas horas que se seguiram eu o vi desenredar-se devagari­nho: ele escrevia alguma coisa crítica sobre si mesmo, depois destruía o papel sem mostrar-me o resultado, e ia perdendo mais e mais o auto-respeito e a autoconfiança. Depois, recomeçava, na esperança de recuperar o que tinha perdido. Supostamente, ele me mostraria as suas confissões. Mas a noite chegou e eu ainda não vira uma palavra do que tanto queria ler. Hoja rasgava tudo, deitava tudo fora, e sua energia parecia àquela hora exau­rida. Quando, por fim, passou a insultar-me, dizendo que aquilo não passava de um jogo, um desprezível jogo de infiel, sua autoconfiança estava, já, tão baixa que eu lhe respondi impune­mente que ele se acostumaria a não sentir remorsos e a ser perverso. Ele se ergueu da mesa e saiu de casa, talvez por não suportar que eu o observasse. Quando voltou, bem tarde, eu podia jurar, pelo perfume nele, que, como eu suspeitara, havia estado com prostitutas.

Na tarde seguinte, para incitá-lo a prosseguir no trabalho, eu lhe disse que certamente ele era suficientemente forte para não se deixar afetar por jogos inofensivos daquela espécie. Acresce que fazíamos aquilo para aprender alguma coisa e não apenas para matar o tempo. Por fim, saberíamos por que aqueles que ele se comprazia em chamar idiotas eram como eram. E a perspec­tiva de nos conhecermos um ao outro de verdade já não teria suficiente fascínio? Um homem poderia ficar tão fascinado por alguém conhecendo todos os detalhes de sua alma como se fosse um pesadelo.

Não foi o que eu lhe disse, e que ele levou tão a sério quanto levaria a lisonja de um anão do palácio, mas a segurança da luz do dia que o fez sentar-se outra vez à mesa. Quando se ergueu, à noitinha, acreditava menos ainda em si mesmo do que na véspera. Quando o vi sair para ir procurar novamente as prostitutas, tive grande pena dele.

Dessa forma, toda manhã ele se sentava à mesa convencido de que seria capaz de transcender os males sobre os quais escreveria, esperando recuperar o que perdera no dia anterior. E, toda noite, deixava na mesa mais um pedaço de autoconfiança que ainda lhe restava. Uma vez que agora tinha o maior desprezo por si mesmo, não podia mais olhar-me com desprezo. Achei que ele havia encontrado uma confirmação da igualdade que erradamente eu acreditava existir entre nós nos primeiros dias de nosso convívio. Isso me agradava muito. Por estar desconfia­do de mim, ele disse que eu não precisava mais sentar-me à mesa, e isso também era um bom sinal. Mas minha ira, que vinha aumentando através dos anos, tomava agora o freio nos dentes. Eu queria vingar-me, passar ao ataque. Como Hoja, perdera meu equilíbrio. Sentia que se conseguisse fazê-lo duvidar de si mes­mo um pouco mais apenas, se pudesse ler umas poucas daquelas confissões que ele me escamoteava tão cuidadosamente, se conseguisse humilhá-lo de maneira sutil, então ele seria o escra­vo e o pecador da casa, não eu. Já havia sinais disso, de qualquer maneira. Eu via que ele precisava agora estar certo, de vez em quando, se eu zombava dele ou não. Já não podia acreditar em si mesmo. Tinha começado a pedir a minha aprovação. Perguntava minha opinião com maior freqüência do que antes sobre as questões triviais do dia-a-dia: se as suas roupas estavam apropriadas, se a resposta que dera a alguém fora adequada, se gostava de sua caligrafia, em que estava pensando eu naquele momento.

Não desejando que ele caísse completamente em desespero e desistisse do jogo, eu às vezes me criticava também, como que para levantar seu ânimo. Ele me lançava um olhar que significa­va “seu patife”, mas não me batia mais. Estou seguro de que pensava que ele também merecia ser surrado.

Eu estava extremamente curioso sobre aquelas confissões que o faziam sentir-se assim tão mal. Uma vez que estava acostumado a tratá-lo como meu inferior, se bem que apenas era segredo, pensei que consistiriam, certamente, em pecadilhos insignificantes. Agora, quando procuro emprestar realismo ao meu passado, e procuro imaginar em detalhes uma ou duas daquelas confissões de que jamais li uma única sentença, não posso figurar-me um só pecado que Hoja pudesse cometer que destruísse a consistência da minha história ou a vida que imagi­nei para mim mesmo. Mas suponho que alguém na minha posição pode aprender a confiar em si mesmo outra vez. Devo dizer que ajudei Hoja a fazer uma descoberta sem que ele o percebesse, que eu o expus aos seus pontos fracos e aos das pessoas que o cercavam, se bem que não o tivesse feito de maneira inteiramente decisiva e franca. Provavelmente pensei que não estaria longe o dia em que eu poderia dizer a ele e aos outros o que pensava de todos. Eu os destruiria então, provando-lhes o quão perversos eram. Imagino que os leitores desta história compreendam a esta altura que aprendi tanto com Hoja quanto ele aprendeu comigo! Talvez eu pense assim, agora, porque quando as pessoas envelhecem, procuram maior sime­tria, mesmo nas histórias que lêem. O ressentimento, que ga­nhava força anos após anos, ferveu e transbordou. Depois que Hoja se tivesse humilhado inteiramente, eu o faria aceitar a minha superioridade ou, pelo menos, minha independência. E, então, de maneira decisiva, exigiria a liberdade. Eu sonhava que ele me daria a alforria desejada sem reclamar sequer, pensando em como eu escreveria livros sobre as minhas aventuras entre os turcos quando estivesse de volta ao meu país. Como fora fácil para mim perder todo o sentido das proporções! As notícias que ele trouxe uma bela manhã mudaram tudo isso.

A peste surgira na cidade! Uma vez que ele disse isso como se falasse de outro lugar, muito remoto, e não de Istambul, não acreditei no que ouvia. Não no primeiro momento. Perguntei quem lhe contara aquilo. Queria saber de tudo. O número de mortes súbitas crescera sem motivo aparente mas, presumivel­mente, por alguma espécie de doença. Perguntei quais os sinais da doença — talvez não fosse a peste, afinal de contas. Hoja riu de mim. Que não me preocupasse. Uma vez apanhada a moléstia, logo saberia do que se tratava, sem sombra de dúvida. A pessoa tinha apenas três dias de febre para investigar. Em alguns, apareciam inchaços atrás das orelhas. Em outras pessoas, eles surgiam debaixo do braço ou na barriga. Esses bubões se desen­volviam, depois a febre se declarava e tomava conta. Às vezes os tumores rebentavam, às vezes saía sangue dos pulmões. Havia os que morriam tossindo violentamente como tuberculosos. Ele contou que, em todos os distritos, as pessoas estavam morrendo, três a cinco de cada vez. Aflito, indaguei sobre o nosso bairro. Ah, você ainda não sabe? Um pedreiro que brigava com todos os vizinhos, porque as galinhas deles entravam pelo seu muro, morrera aos gritos, havia exatamente uma semana. Só agora se sabia que morrera de peste bubônica.

Mas eu ainda não queria acreditar na evidência. Lá fora, na rua, tudo parecia tão normal, as pessoas que passavam pela nossa janela estavam tão calmas! Seria preciso encontrar alguém alarmado, como eu, para acreditar na realidade da doença.

Na manhã seguinte, quando Hoja saiu para a escola, corri para a rua. Fui ver os italianos convertidos que eu conseguira conhecer no curso daqueles onze anos de Islã. Um deles, conhe­cido pelo seu novo nome de Mustafá Reis, saíra para as docas. Outro, Osman Efêndi, não me deixou entrar quando bati à sua porta, embora eu o fizesse com tanta força que arriscava botar a casa abaixo. Mandou dizer pelo empregado que não estava, mas finalmente cedeu e gritou que eu entrasse. Como poderia ainda duvidar que a peste estivesse na cidade? Não vira os caixões carregados rua abaixo? Ele disse que eu estava assustado — podia ver o terror estampado em meu rosto — por ter ficado fiel ao cristianismo! Ele admoestou-me; um homem precisava ser muçulmano para ser feliz ali, mas ele não se deu ao trabalho de apertar minha mão antes de retirar-se para a úmida escuridão de sua casa; não me tocou em nenhum momento. Era a hora das orações, e quando vi as multidões nos pátios das mesquitas tive medo e voltei apressadamente. Estava tomado dessa espécie de atordoamento a que as pessoas ficam sujeitas em momentos de desastre. Era como se eu tivesse perdido o meu passado, como se a minha memória tivesse sido esgotada até a última gota. Eu estava paralisado de medo. Quando avistei um grupo carregando um esquife pelas ruas próximas a nossa casa fiquei completa­mente apavorado.

Hoja voltara da escola. Senti que ele gostou ao ver-me naquele estado. Notei que meu medo aumentou a sua autocon­fiança, e isso me deixou desconfortável. Queria que ele se livrasse daquele orgulho tolo na própria intrepidez. Procurando dominar minha agitação, pus para fora todos os meus conheci­mentos médicos e literários sobre o flagelo. Descrevi o que me lembrava da leitura de Hipócrates, Tucídides e Bocácio. Disse que a doença era contagiosa, mas isso apenas aumentou nele o desprezo — ele não temia a peste; era a vontade de Deus. Se o destino de um homem fosse morrer de peste, de peste ele morreria. Era inútil, portanto, ficar dizendo tolices como eu fazia, ou querer ficar trancado em casa covardemente, cortando ligações com o mundo exterior, ou tentando fugir de Istambul. Se estivesse escrito, o fato se cumpriria: a morte haveria de nos achar. Qual o motivo do meu terror? Aqueles pecados sobre os quais escrevera dia e noite? E ele sorria, e seus olhos brilhavam, convencido de que acertara.

Até o dia em que perdemos um ao outro, eu nunca fui capaz de descobrir se ele realmente acreditava no que dizia. Vendo-o tão destemido, eu tivera medo por um momento, mas, depois, lembrando-me das nossas discussões à mesa e aqueles jogos aterradores que praticávamos, fiquei cético. Ele conversava em círculos, procurando retornar ao tema dos pecados que tínhamos posto por escrito juntos, reiterando a mesma idéia com uma presunção que me deixava fora de mim. Se eu tinha tanto medo da morte, como me tornara senhor de toda aquela depravação sobre a qual parecia escrever tão valentemente? A coragem que eu exibia confessando os meus pecados era o simples resultado da minha desfaçatez! Já ele hesitava, naquela época, por estar tão meticulosamente atento ao menor deslize. Mas, agora, estava tranquilo. A profunda confiança que sentia em face da peste não deixava dúvida em seu coração de que devia ser um justo.

Indignado com aquela explicação, em que, como um parvo, acreditei, resolvi discutir com ele. Ingenuamente, sugeri que ele estava confiante não por ter a consciência limpa, mas por não saber que a morte estava às portas. Expliquei que medidas de proteção tomar: não tocar nos doentes, reduzir os contatos com as pessoas, ver que os cadáveres fossem enterrados em covas com cal. Quanto a Hoja, não devia ir mais à escola, por estar sempre apinhada de gente.

Parece que essa última coisa que eu disse deu-lhe idéias ainda mais horríveis que a peste. No dia seguinte, às doze, de volta da escola, ele me disse haver tocado em todas as crianças, uma por uma. Depois, estendeu as mãos para tocar-me. E vendo que eu recuava, com medo, ele se acercou e me abraçou com gosto. Eu quis gritar, mas, como num pesadelo, a voz não saiu. Quanto a Hoja, disse com um desprezo que só muito mais tarde eu iria compreender, que ele ia ensinar-me a bravura.

 

A peste se espalhava rapidamente, mas eu, de algum modo, não consegui aprender aquilo a que Hoja chamava bravura. Ao mesmo tempo, não tinha tanto cuidado quanto no começo. Não suportava mais ficar confinado a um aposento só, como uma velha inválida, olhando pela janela, dia após dia. De vez em saía para a rua como um bêbado, via as mulheres fazendo compras no mercado, os comerciantes nas suas tendas, os homens reunidos nos cafés após enterrarem seus entes queridos, procurando conviver com a praga. Eu poderia ter feito a mesma coisa, mas Hoja não me dava quartel.

Toda noite ele me estendia as mãos que dizia haver tocado em todos o dia inteiro. Eu o via aproximar-se sem mover um músculo. Sabe o leitor como a gente reage quando, apenas acordado, sente que um escorpião caminha sobre as cobertas? Como fica rígido, imóvel como uma estátua? Era assim. Os dedos dele não eram como os meus. Correndo-os calmamente pela minha pele, Hoja perguntava:

Está com medo?

Eu não me mexia.

— Sim, está. Com medo de quê?

            Às vezes eu sentia um impulso de empurrá-lo e fugir, mas que isso o irritaria ainda mais.

— Pois vou dizer-lhe porque tem medo. Tem medo por ter a consciência pesada. Tem medo por estar atolado em pecado. Tem medo porque acredita mais em mim do que eu acredito em você.

E foi ele quem insistiu em que nos sentássemos às duas extremidades da mesa e escrevêssemos juntos. Era a hora de escrevermos porque éramos o que éramos. Mas, como antes, ele acabava escrevendo apenas sobre “os outros”: porque eles eram como eram. Mas, pela primeira vez, mostrou-me, orgulhosa­mente, o que havia escrito. Quando pensei que ele esperava humilhar-me com o que lesse, não pude disfarçar minha aversão, e lhe disse que ele não era em nada diferente dos idiotas sobre os quais escrevia, e que morreria antes de mim.

Percebi que aquela predição era a minha arma mais eficaz. Recordei-lhe seus dez anos de trabalho, os anos que passara em teorias de cosmografia, ou na observação do céu, que fizera a expensas de sua visão; dos dias em que não tirara por um só instante o nariz de um livro. Agora, era eu que não o deixava em paz. Disse como seria tolo morrer em vão, quando era fácil evitar a peste, e continuar vivendo. Dizendo essas coisas, eu não aumentava apenas as suas dúvidas mas os meus castigos. Notei que ele parecia, lendo o que eu havia escrito, recobrar a contra­gosto o respeito que tivera um dia por mim.

Assim, e como que para esquecer meu infortúnio naqueles dias, enchi páginas e páginas com os belos sonhos que às vezes tinha, não só durante a noite mas também durante a sesta Procurando esquecer tudo, logo que acordava me punha a lançar no papel os meus sonhos, em que a ação e o sentido formavam uma unidade, e fazendo todo o esforço para tornar o estilo poético. Sonhei que havia gente morando no bosque perto de nossa casa, gente que resolvera os mistérios que durante anos tínhamos procurado desvendar. Se nos animássemos a entrar na floresta, poderíamos fazer amizade com eles. Nossas sombras não se extinguiam com o pôr-do-sol, mas adquiriam vida própria, aprendendo um milheiro de pequenas coisas que deveríamos ter aprendido, enquanto dormíamos em nossas camas limpas e frescas. As belas, tridimensionais pessoas que eu criava nos quadros dos meus sonhos, saíam das suas molduras e se misturavam conosco. Minha mãe, meu pai e eu montávamos máquinas de aço no quintal para que fizessem nosso trabalho por nós...

Hoja não ignorava que esses sonhos eram armadilhas diabólicas que o arrastariam às trevas de uma ciência fatal. Mesmo assim, ele me crivava de perguntas, embora vendo que perdia um pouco mais da sua autoconfiança a cada pergunta que fazia. O que significava realmente aqueles sonhos? Eu os via de fato? De modo que pratiquei com ele o que faríamos, mais tarde, com o sultão. Dos nossos sonhos tirei conclusões sobre o nosso futuro. Era óbvio que, uma vez mordido pelo fascínio com a ciência, um homem não conseguia mais livrar-se dela: a ciência era como a peste. Não era difícil ver que aquele vício tomara conta de Hoja, mas eu ainda ficava pensando nos sonhos de Hoja! Ele escutava, zombando de mim abertamente, mas desde que refreava seu orgulho a ponto de fazer perguntas, eu podia ver que minhas respostas lhe acendiam a curiosidade. E como percebesse que a equanimidade que Hoja afetava em face da epidemia estava sendo abalada, meu medo da morte não diminuía, mas pelo menos eu já não me sentia sozinho diante dele. Naturalmente, pagava o preço dos seus tormentos noturnos, mas agora percebia que minha luta não era vã. Quando voltou a estender-me as mãos, eu disse mais uma vez a Hoja que ele morreria antes de mim e recordei-lhe que aqueles que não tinham medo eram ignorantes, que seus escritos seriam deixados inconclusos, e que meus sonhos que ele havia lido naquele dia estavam cheios de felicidade.

No entanto, não foi o que eu disse que levou a situação a um desenlace, mas outra coisa. Um dia, o pai de um dos alunos da escola veio a nossa casa. Parecia um homenzinho inócuo e humilde. Contou que morava na vizinhança. Eu ouvia, enrodilhado no chão, a um canto, como um sonolento gato doméstico, enquanto eles falavam de uma coisa e outra. Então, nosso vizinho disse o que estava morrendo de vontade de dizer: sua prima pelo lado paterno ficara viúva no último verão quando o marido caiu do telhado que estava a consertar. Ela agora tinha muitos pretendentes, mas nosso visitante pensara em Hoja. Tinha ouvido que ele estava considerando propostas de casamento. Era verdade? Hoja reagiu mais brutalmente do que eu esperava: disse que não pretendia casar. E mesmo que pretendesse, não tomaria para esposa uma viúva. Nosso visitante não se deu por acabado. Lembrou a Hoja que o profeta Maomé não se importara com a viuvez de Khadidja9 e até a tomara para sua primeira mulher. Hoja disse então que já ouvira falar da dita viúva, prima dele, e que ela não valia um dedo mindinho da santa Khadidja. Ouvindo isso, nosso vizinho, tomado de orgulho, procurou fazer com que Hoja entendesse que ele também não era nenhum achado e, ressalvando que embora não acreditasse, a vizinhança afirmava que Hoja havia enlouquecido, um sinal disso sendo a contemplação das estrelas, suas engenhocas com lentes ou a confecção de bizarros relógios. No estilo desdenhoso de um comerciante que deprecia o que quer comprar, nosso visitante acrescentou que os vizinhos comentavam que Hoja sentava-se a uma mesa para comer como os infiéis, em vez de sentar-se de pernas cruzadas, como todo mundo; que depois de gastar bolsas e mais bolsas de dinheiro com livros, ele os lançava por terra e pisoteava as páginas em que o nome do Profeta estava escrito; que, incapaz de aplacar o demônio que o habitava, olhando o céu horas a fio, deitava-se na cama durante o dia de papo para o ar, olhando o teto sujo; que não se comprazia com mulheres mas só com garotinhos; que eu era seu irmão gêmeo; que ele não jejuava no Ramadã; e que a peste bubônica fora mandada por sua causa.

Depois que se livrou do homem, Hoja teve um acesso de raiva. Concluí que a complacência nele, derivada de tomar a mesma atitude que os outros, ou de pretender fazê-lo, chegara ao fim. Querendo assestar-lhe um último golpe, disse que os que não temem a peste eram tão burros quanto aquele vizinho. Ele ficou apreensivo, mas reafirmou que não temia a peste. Fosse por que motivo fosse, disse aquilo com sinceridade, a meu ver. Parecia muito nervoso, não sabia o que fazer com as mãos, e ficava repetindo aquele infernal refrão, esquecido nos últimos tempos, sobre os “idiotas”. Quando a noite caiu, acendeu a lâmpada, instalou-a no meio da mesa, e disse que íamos trabalhar. Tínhamos de escrever.

Como dois solteirões, lendo a sorte um do outro para passar o tempo em noites intermináveis de inverno, sentamo-nos à mesa face a face, rabiscando alguma coisa nas páginas em branco que tínhamos diante dos olhos. O absurdo daquilo! De manhã, quando li o escrito de Hoja sobre um sonho que tivera, achei-o ainda mais ridículo do que a mim me achava. Hoja descrevera um sonho que era imitação do meu. Mas, como ficara perfeitamente claro da leitura, aquilo era uma fantasia e nunca fora sonho nenhum: nele nós dois éramos irmãos! Ele julgara apropriado assumir o papel de irmão mais velho, deixando-me o de irmão mais novo, que ouvia docilmente suas preleções científicas.

Ao desjejum, na manhã seguinte, ele perguntou-me o que eu havia achado do rumor que o vizinho nos comunicara: de que éramos irmãos gêmeos. A pergunta deu-me prazer, mas não estimulou meu orgulho; nada disse. Dois dias mais tarde, ele acordou-me no meio da noite para contar que, dessa vez, sonhara efetivamente com o que tinha escrito. Talvez fosse verdade, mas não dei importância ao fato. Na noite seguinte, ele me confessou que tinha medo de morrer de peste.

Sentindo-me oprimido por estar fechado em casa tanto tempo, eu saía para a rua no crepúsculo. Crianças estavam subindo em árvores num jardim e tinham deixado seus coloridos sapatos no chão. As mulheres, que tagarelavam em fila, junto às fontes, já não se calavam quando eu passava; as feiras livres estavam cheias de compradores. Havia brigas de rua, gente que tentava apaziguá-las, gente que assistia, divertida, ao espetáculo. Procurei convencer-me de que a epidemia acabara, mas quando vi os ataúdes emergindo um depois do outro do pátio da mesquita de Beyazit,10 entrei em pânico e voltei a casa às carreiras. Já entrava no quarto quando Hoja me chamou.

— Queira vir até aqui dar uma olhada nisto.

De camisa desabotoada, ele apontava para um pequenino inchaço, um ponto vermelho logo abaixo do umbigo.

— Há tantos insetos à volta...

Eu me aproximei para examinar o ponto em questão. A inchação era pequena, a pele estava avermelhada. Parecia efetivamente uma picada de inseto. Das grandes. Mas por que estaria ele a mostrá-la? Fiquei com medo de aproximar o rosto.

— É uma picada de inseto, não acha? — perguntou Hoja, tocando o inchamento com a ponta do indicador. — De pulga, talvez?

Permaneci calado. Não quis dizer-lhe que jamais vira uma picada de pulga com aquele aspecto.

Encontrei uma desculpa qualquer para ficar no jardim até o pôr-do-sol. Talvez não devesse ficar na casa depois daquilo. Mas para onde ir? E se aquele sinal vermelho, que não se parecia com uma picada de pulga, também não era nem tão proeminente nem tão largo quanto um bubão de peste? Mas logo os meus pensa­mentos tomaram outro rumo. Talvez por ter andado no jardim, por entre as plantas, pareceu-me que o ponto vermelho cresceria dentro de dois dias, abriria como uma flor, rebentaria, e Hoja morreria, de morte dolorosa. Disse comigo mesmo que aquilo podia ser apenas um abcesso, causado por indigestão, mas não, parecia mesmo com uma picada de inseto. Eu não demoraria em lembrar-me que inseto era, um desses insetos noturnos, grandes, que pululam nos climas tropicais, mas o nome da criatura, fantasmagórica que era, não me veio, de jeito nenhum, à ponta da língua.

Quando nos sentamos para jantar, Hoja quis fingir que estava alegre e bem-disposto, brincando e me provocando, mas não conseguiu fazê-lo por muito tempo. Depois, quando demos por terminada a refeição, que decorreu, na maior parte do tempo, em silêncio sepulcral, e a noite, sem vento e silenciosa, se instalou, Hoja disse.

— Não me sinto bem. Meus pensamentos são sombrios. Vamos escrever.

Aparentemente, aquela era a única maneira que ele encontrara para distrair-se. Mas não conseguiu escrever nada. Ficou sentado e ocioso, olhando-me de viés enquanto eu escrevia, todo contente.

— O que está escrevendo? — perguntou.

Li para ele o texto: de como eu estava impaciente, ao voltar para casa, de férias, num coche puxado por um só cavalo, depois do meu primeiro ano na escola de engenharia. E, no entanto, eu adorava a escola e os colegas! Li para ele o trecho em que relatava quanta falta sentia dos amigos, sentado à margem de um regato, com um dos livros que levara comigo. Depois de um curto silêncio, Hoja me disse de súbito e em voz baixa, como se revelasse um segredo:

— Eles vivem sempre tão felizes assim, por lá?

Pensei que se arrependeria imediatamente do que dissera, mas ele ainda me olhava com uma curiosidade infantil. E eu disse, também em voz baixa:

— Eu era feliz!

Uma sombra de inveja passou pelo seu rosto, mas não era ameaçadora. Tímida e compassadamente ele me contou a sua história.

Quando tinha doze anos de idade e morava em Edirne, houve um período em que costumava ir com a mãe e a irmã ao hospital da mesquita de Beyazit para visitar o avô materno, que se tratava de uma doença do estômago. De manhã, a mãe deixava o irmãozinho de Hoja, ainda muito pequeno para andar, com vizinhos e saía com Hoja, a irmã e um pudim, que preparara cedo, rumo à casa de saúde. A jornada era curta, mas deliciosa, toda ela por uma estrada sombreada de choupos. O avô contava histórias para as crianças. Hoja gostava das histórias, e mais ainda do hospital, e fugia do quarto para errar por seus corredores e pátios. Numa dessas visitas ficou ouvindo música tocada para os doentes mentais, debaixo da clarabóia de uma grande cúpula. Havia também o som de água, de água corrente. Ele passeava ainda por outros salões em que brilhavam dezenas de garrafas e jarras coloridas. Uma vez se perdeu, chorou muito, e levaram-no a todas as enfermarias, uma por uma, daquele hospital enorme, até encontrarem o quarto de seu avô, Abdullah Efêndi. Às vezes, sua mãe chorava, às vezes ouvia, com a filha, as histórias do ancião. Depois, iam-se embora, com a caçarola vazia do pudim. Antes de chegarem a casa, a mãe comprava halva para as crianças e lhes dizia, num sussurro: “Vamos comer os doces antes que alguém nos veja.” Iam, então, para um lugar secreto, junto a um riacho, à sombra dos choupos, e ali ficavam, com os pés brincando na água, e comendo sem que ninguém pudesse vê-los.

Quando Hoja acabou de falar houve um silêncio, que nos deixava, de certo modo, contrafeitos, mas que nos aproximava, também, com inexplicável sentimento de afinidade. Durante um longo tempo, Hoja ignorou a tensão no ar. E, então, quando a pesada porta de uma casa próxima bateu com estrondo, por inadvertência, ele declarou que seu interesse pela ciência datava daquele tempo e fora inspirado pelos pacientes, por aquelas jarras e garrafas de cor, por aquelas balanças que lhes restituíam a saúde. Mas depois que o avô morreu, eles não foram mais lá. Hoja sempre sonhou voltar ao hospital sozinho, quando cresces­se, mas um dia o rio Tunja, que corta Edirne, encheu sem qualquer aviso, os pacientes foram tirados das camas, os quartos se encheram de uma água túrbida e imunda. E quando, por fim, a inundação cedeu, aquele belo hospital ficou sepultado durante anos debaixo de um lamaçal maldito e fétido que não podia ser removido.

Como Hoja tomasse a ficar calado, nosso momento de intimidade se perdeu. Ele se erguera da mesa e com o canto do olho eu via a sua sombra que ia e vinha pelo quarto. Depois, pegando a lâmpada da mesa, ele se postou atrás de mim, e eu não podia mais vê-lo nem à sua sombra. Quis voltar-me a encará-lo, mas não o fiz. Era como se tivesse medo, como se esperasse alguma coisa maléfica. Um momento depois, ouvindo o som de roupas que eram desvestidas, eu me virei, apreensivo. Ele estava de pé, diante do espelho, nu da cintura para cima, e examinava cuidadosamente seu peito e abdômen à luz da lâmpada.

Meu Deus! — exclamou. — Que pústula é essa?

Eu fiquei calado.

Venha cá — disse ele —, olhe isto!

Eu não me mexi. Ele, então, gritou:

— Venha aqui, estou dizendo!

Temeroso, eu me aproximei, como um aluno que vai ser punido.

Nunca tinha estado tão perto do corpo nu de Hoja. Não gostava daquilo. De começo pensei que fosse isso que hesitava em aproximar-me dele, mas sabia que não era; eu temia a pústula. Eu sabia disso. Ele também sabia. No entanto, procurando esconder o medo, eu me acerquei um pouco mais e murmurei alguma coisa ininteligível, de olhos fixos na inflamação, e com um ar de médico.

— Você está com medo, não é? — perguntou Hoja, final­mente.

Procurando mostrar que não estava, aproximei minha cabeça um pouco mais.

Você está com medo de que seja um bubão da peste.

Eu fingi que não ouvira. E estava a ponto de dizer-lhe que um inseto o picara, muito provavelmente o mesmo estranho inseto que já me picara também uma vez, em algum lugar, mas o nome do bicho de novo não me veio à memória.

— Toque nele! — comandou Hoja. — Sem tocá-lo, como poderá saber? Toque em mim!

Quando viu que eu não obedecia, ele se animou. E estendeu os dedos com que havia palpado o inchaço na direção do meu rosto. Quando viu que eu recuava com nojo, Hoja riu alto, fazendo troça de mim por ter medo de uma simples picada de inseto, mas essa hilariedade não durou muito.

— Tenho medo de morrer — disse, de súbito.

Era como se falasse de outra coisa. Estava mais enraivecido do que envergonhado. A ira que demonstrava era a de alguém que se sentia traído.

— Você não terá uma pústula igual à minha? Tem certeza? Vamos, tire a camisa. Agora!

Diante da insistência dele, puxei minha camisa pela cabeça, mas com a relutância de uma criança que não quer tomar banho. Fazia calor no quarto, a janela estava fechada, mas soprava, assim mesmo, uma brisa fresca vinda de alguma parte. Talvez fosse a frieza do espelho que me arrepiou a pele. Não sei. Com vergonha da minha aparência, dei um passo para fora do limite do espelho. Via o rosto de Hoja refletido obliquamente, agora que ele punha a sua cabeça junto a meu torso no espelho. Ele inclinou em direção ao meu corpo aquela cabeça grande que todo mundo achava tão parecida com a minha. Faz isso para envenenar o meu espírito, pensei de repente. Mas eu nunca fizera nada de parecido com ele, muito pelo contrário, durante todos aqueles anos eu me orgulhara de ser para ele um professor. Por absurdo que pareça, acreditei, por um momento, que aquela cabeça barbuda, grotesca sob as sombras da lâmpada, fosse sugar meu sangue! Ao que parece, eu fora afetado pelas histórias de horror que me comprazia ouvir quando criança. Enquanto pensava isso, senti os dedos dele na minha barriga. Quis fugir, quis bater na cabeça dele com alguma coisa.

— Não, você não tem nada — disse Hoja.

Ele foi para trás de mim, examinou minhas axilas, meu pescoço, olhou atrás de minhas orelhas.

— Não há marcas aqui, é de crer que o inseto não picou você.

Puxando-me pelos ombros, ele se adiantou e postou-se de pé ao meu lado. Agia como um velho amigo que soubesse todos os meus mais íntimos segredos. Apertando minha nuca entre os dedos de uma das mãos, ele me puxou, dizendo:

— Venha — pediu —, olhemo-nos no espelho. Juntos. Eu olhei e, à luz crua da lâmpada, vi mais uma vez, o quanto nos parecíamos um com o outro. Lembrei-me de como ficara aterrado com isso, quando o vi pela primeira vez na antecâmara de Sadik Paxá. Aquele tempo, eu vira alguém que eu deveria ser, agora, pensei que ele também devia ser alguém como eu. Nós dois éramos uma e a mesma pessoa! Isso agora estava ali patente, à vista. Fiquei como se estivesse de pés e mãos atados, incapaz de mover-me. Fiz um movimento de recuo, como se quisesse fugir, safar-me, ou como se quisesse certificar-me de que ainda era eu mesmo. Passei rapidamente a mão pelos cabelos. Mas ele imitou meu gesto, e o fez com perfeição total, sem perturbar de forma alguma a simetria de sua imagem no espelho. Hoja imitava também meu olhar, a posição da minha cabeça, o terror que eu não suportava ver no espelho, mas do qual, agora, transfixo como estava de emoção, não conseguia tirar os olhos. Então ele se mostrou alegre como um menino que implica com um amigo, replicando-lhe as palavras e os gestos. Gritou que morreríamos juntos! Que tolice, pensei. Mas eu também estava com medo. Aquela foi a mais aterradora das noites que jamais passei com ele.

Confessou, então, ter estado com pavor da peste desde o primeiro dia. Tudo o que fizera era para testar-me, como quando vira os carrascos de Sadik Paxá levando-me para a execução ou quando as pessoas nos tinham tomado um pelo outro. Disse também que se apossara do meu espírito. Um minuto antes reproduzira meus movimentos. Pois bem: agora, tudo o que eu pensava, ele sabia, e tudo o que eu sabia ele estava pensando! Quando me perguntou em que pensava, no momento não consegui pensar em nada senão nele, e respondi que não conseguia pensar, mas ele não me prestava atenção, já falava, não para descobrir alguma coisa, mas para assustar-me, para jogar com o seu próprio susto, para fazer com que eu partilhasse a carga desse susto. Percebi que, quanto mais ele sentia apropria solidão, tanto mais queria fazer-me mal. Passando os dedos pelos nossos rostos, procurando enfeitiçar-me com o horror daquela misteriosa semelhança, ficando cada vez mais excitado e agitado (muito mais excitado e agitado do que eu), achei que tinha em mente alguma perversidade. Disse a mim mesmo que se ele me imobilizava ali, seguro pela nuca, em frente àquele espelho, era porque seu coração não concordava em cometer a tal maldade imediatamente. Mas ele não me parecia nem absurdo nem desampara­do. Ele tinha razão, eu também queria dizer e fazer as coisas que ele disse e fez, invejava-o por agir quando eu era incapaz de fazê-lo, e invejei-o por ser capaz de brincar com o medo da peste e com o espelho.

A despeito, porém, da intensidade do meu temor, e embora eu compreendesse que havia — ali e naquele momento — visto coisas sobre mim mesmo que nunca vira antes, não conseguia livrar-me da sensação de que tudo não passava de um fingimento. A pressão dos seus dedos no meu pescoço abrandara, mas não saí dos limites da moldura do espelho.

— Agora, eu sou como você — disse ele. — Conheço o seu terror. Tornei-me você!

Compreendi o que Hoja estava dizendo, mas procurei convencer-me de que a profecia era falsa e infantil, a profecia da qual metade, estou hoje seguro, era, ao contrário, verdadeira. Ele pretendia ser capaz de ver o mundo como eu o via; “eles”, repetia, finalmente os compreendia como pensavam, como “eles” sentiam. Deixando que seu olhar vagueasse para além dos limites do espelho, falou por algum tempo, perscrutando, em tomo, na sombra, a mesa, os copos, as cadeiras, os objetos semi-iluminados pela luz da lâmpada. Afirmou que podia, agora, dizer coisas que nunca pudera dizer antes porque não podia vê-las. Mas penso que ele estava enganado: as palavras eram as mesmas e os objetos, também. O único dado novo era o medo que ele sentia. Nem isso: mas a forma da sua experiência desse modo. Pareceu-me, no entanto, que até isso, que eu não sei descrever claramente agora, era algo que ele simulava diante do espelho, um novo estratagema seu. E pondo de parte, a contra­gosto, mais esse jogo, sua mente parecia girar às avessas para fixar-se naquela pústula rubra e perguntar: foi um inseto ou é a peste?

Hoja falou por algum tempo sobre como pretendia retomar tudo do ponto em que eu tinha largado. Estávamos ainda de pé, seminus, diante do espelho. Ele tomaria o meu lugar. Eu o dele. Para fazermos isso, bastaria que trocássemos de roupas, que ele raspasse a barba, e eu deixasse crescer a minha. Esse pensamento tornou a nossa semelhança no espelho ainda mais horrível, e meus nervos ficaram tensos quando dele ouvi, então, que eu faria dele um homem livre. Falou com júbilo sobre o que faria quando regressasse ao meu país, em meu lugar. Eu via, aterrorizado, que ele se lembrava de tudo o que lhe contara sobre a minha infância e mocidade, até os mínimos detalhes, e com eles construíra, a seu gosto, uma terra estranha e fantasiosa. Minha vida escapava ao meu controle, estava sendo levada a outros rumos em suas mãos e eu sentia que não havia nada a fazer senão, passivamente, observar de fora o que estava acontecendo comigo, como se sonhasse. Mas a viagem que ele pretendia fazer ao meu país tinha aquele conteúdo de estranheza e ingenuidade que me impediam de nela acreditar completamente. Ao mesmo tempo, ficava surpreso com a lógica nos pormenores da sua fantasia. Tinha vontade de dizer que aquilo também podia ter acontecido, que a minha vida poderia ter sido vivida assim. Tomei consciência, então, de haver sentido, pela primeira vez, alguma coisa de mais profundo sobre a vida de Hoja, mas não era capaz, ainda, de dizer o que fosse. Tudo o que eu podia fazer naquela hora em que ouvia, tomado de perturbação, o que “eu” iria fazer no meu velho mundo com o qual sonhara todos aqueles anos, era esquecer o medo da peste.

Mas isso não durou muito. Hoja queria que eu dissesse o que faria quando tomasse o seu lugar. Meus nervos estavam tão exaustos por ter de ficar ali, rígido, naquela pose bizarra, procurando crer que não nos parecíamos, e que aquela marca escarlate era apenas uma picada de inseto, que nada me vinha à mente. Quando ele insistiu, lembrei-me de ter desejado um dia escrever minhas memórias quando regressasse a Veneza. Quando lhe disse que pensava, no futuro, preparar uma boa história com as aventuras dele, Hoja me olhou com desagrado. Eu não o conhecia tão bem quanto ele a mim — na verdade, não o conhecia de todo! Tirando-me do caminho brutalmente, ele ficou sozinho em frente ao espelho. E quando assim assumiu o meu lugar, decidiu na hora o que iria me acontecer! Disse que o inchaço era um bubão. Portanto, eu morreria de peste. Descreveu os sofrimentos horríveis pelos quais passaria antes do desenlace. O medo, para o qual meu espírito não estava preparado, uma vez que eu não compreendera ainda o que se ia passar, seria pior que a morte. Enquanto descrevia como eu seria sufocado pelos tormentos da doença, Hoja se afastou do espelho. E quando o olhei de novo, ele estava estendido na sua cama, que desenrolara sumariamente no chão. Tinha a mão contra o ventre, como que para tocar a dor que me anunciava. Nesse momento, chamou-me. E quando eu, trêmulo, fui deitar-me a seu lado, imediatamente lamentei tê-lo feito. Ele procurou pôr as mãos em mim outra vez. Fosse qual fosse a razão, agora eu estava convencido de que o sinal era uma picada de inseto, mas, assim mesmo, tinha medo.

A noite inteira foi passada desse modo. Enquanto procurava infectar-me com a doença e com o medo da doença, Hoja ficava repetindo que eu era ele e que ele era eu. Faz isso porque gosta de distanciar-se de si mesmo, de observar-se a distância, pensei, e fiquei a repeti-lo no meu foro íntimo, como alguém que se esforça para acordar de um sonho: é apenas um jogo, pois ele mesmo empregava a palavra “jogo”; Hoja suava muito, como alguém fisicamente enfermo do que uma pessoa sufocada por pensamentos malignos num quarto abafado.

Quando o sol raiou, ele falava sobre as estrelas e a morte, sobre as suas falsas profecias, sobre a estupidez do sultão e, pior, a sua ingratidão, sobre seus bem-amados idiotas, sobre “nós” e “eles”, e sobre como ansiava por ser outra pessoa. Eu já não o ouvia. Saí para o jardim. Por algum motivo, tinha a mente preocupada com idéias sobre a imortalidade que lera num livro antigo. Não havia outro movimento lá fora que o dos pardais, que pulavam, gorjeando, de ramo em ramo por entre as tílias. Como era desnorteadora a quietude! Pensei em outros quartos de Istambul, onde as vítimas da peste jaziam agonizantes. Se a doença de Hoja fosse a bubônica, tudo continuaria daquele modo até o fim; se não fosse, até que a tumescência e a vermelhidão desaparecessem. Mas, agora, era claro para mim que eu não poderia permanecer naquela casa por muito mais tempo. Quando entrei, não sabia ainda para onde fugir ou onde me esconder. Sonhava com um lugar longe de Hoja, longe da peste. Enquanto enfiava umas poucas peças de roupa num saco, sabia apenas que tinha de escolher um sítio próximo que pudesse alcançar sem ser apanhado.

 

Eu tinha economizado algum dinheiro furtando um pouco de Hoja sempre que podia, e ganhando algum aqui e ali. Antes de deixar a casa, tirei esse dinheiro da arca em que o escondia, dentro de um pé de meia, por entre os livros em que ele agora não mexia. Assaltado pela curiosidade, entrei no quarto de Hoja, onde ele adormecera, transpirando profusamente, com a lâmpada ardendo. Fiquei surpreso com as dimensões modestas do espelho que tanto me aterrorizara a noite inteira com aquela semelhança de bruxaria em que eu nunca fora capaz de acreditar completamente até então. Sem tocar em nada, deixei a casa às pressas. Soprava uma leve brisa enquanto eu percorria as ruas desertas da vizinhança. Tinha um impulso de lavar as mãos, mas sabia agora onde me refugiar, e estava feliz. Gostava de andar pela rua no silêncio da madrugada, descer as colinas rumo do mar, molhando as mãos nas fontes, apreciando a vista do Corno de Ouro.

Ouvira falar pela primeira vez da ilha de Heybeli por um jovem monge que viera de lá para Istambul. Quando nos encontramos, no bairro europeu da Gaiata, ele descrevera com entusiasmo a beleza do arquipélago. Aquilo deve ter deixado forte impressão em mim, posto que ao deixar o nosso distrito sabia que era para lá que iria. O balseiro e os pescadores queriam inacreditáveis somas em dinheiro para levar-me até a ilha, e fiquei deprimido pensando que eles sabiam que estava fugindo — certamente me denunciariam aos homens que Hoja mandasse em meu encalço! Mais tarde, concluí que era assim que eles intimidavam os cristãos, que desprezavam por recearem a epidemia. Procurando passar despercebido, fiz uma barganha com o segundo barqueiro com quem negociei. Ele não era um homem forte e fez menos esforço remando que falando sobre a peste e os pecados que ela tinha vindo punir. Acrescentou que não adiantava ir esconder-se da peste na ilha. Enquanto falava, percebi que ele devia ter tanto medo quanto eu. A viagem levou seis horas.

Só muito mais tarde tomei consciência de que os dias passados em Heybeli haviam sido felizes. Paguei pouco para ficar na casa de um pescador grego e solitário, e procurei ficar longe da vista das pessoas por não me sentir de todo seguro. Às vezes pensava que Hoja estava morto, às vezes que ele enviara homens atrás de mim. Havia muitos cristãos como eu na ilha, fugindo da peste, mas eu não queria que me notassem.

Eu me fazia ao mar todas as manhãs com o pescador e voltava à noite. Por algum tempo trabalhei fisgando lagostas e caranguejos. Se o tempo não era favorável à pesca, eu caminhava pela ilha. E, em certos dias, ia até o jardim do mosteiro e dormia tranqüilamente debaixo das parreiras. Havia um caramanchão apoiado numa figueira de onde se podia ver até a mesquita de Hagia Sofia num dia claro, quando eu me deixava ficar sentado à sombra contemplando Istambul, perdido em devaneios durante horas. Num dos meus sonhos eu velejava para a ilha e via Hoja nadando com os golfinhos na esteira do barco. Ele fizera amizade com os bichos e pedia-lhes notícias minhas. De outra vez, era minha mãe que estava com eles e ralhava comigo por chegar tarde. Quando acordava, suado, com o sol na cara, queria sonhar outra vez. Mas como isso não era possível, eu me obrigava a refletir. Se imaginava que Hoja estava morto, via seu cadáver na casa vazia que eu abandonara, via os funerais, a que ninguém compareceria, depois pensava nas suas predições, nas coisas divertidas que inventava com tanto prazer bem como nas que ele criava com má vontade e raiva. Pensava também no sultão com seus animais. Acompanhando esses sonhos, que eu sonhava acordado, havia a dança pesada das lagostas e caranguejos que eu espetara pelas costas.

Procurei convencer-me de que, cedo ou tarde, conseguiria fugir para o meu país. Tinha apenas de roubar das portas que encontrasse abertas na ilha. Mas, antes, era essencial esquecer Hoja. Porque eu tombara, inadvertidamente, sob o fascínio do que me havia acontecido, era presa da tentação da memória. Chegava, quase, a censurar-me por abandonar um homem que se parecia tanto comigo. Exatamente como faço hoje, sentia falta dele apaixonadamente. Seria possível que ele se parecesse tanto assim comigo ou estaria eu a iludir-me? Era como se jamais o tivesse encarado naqueles onze anos. Quando, na verdade, mui­tas vezes o fizera. Sentia até vontade de ir a Istambul para vê-lo, morto embora, uma última vez. Estava convencido de que, se tinha de ser livre, precisava acreditar que aquela incrível semelhança entre nós era um erro crasso da memória, uma amarga ilusão que cumpria esquecer. Cumpria também acostumar-me com a idéia.

Por sorte, não me acostumei. Porque um dia, de súbito, vi Hoja à minha frente. Eu me havia estendido por terra no quintal do pescador, e sonhava acordado, de olhos fechados na direção do sol, quando senti a sombra dele. Estava de pé, em face de mim, sorrindo como alguém que me amasse e não como alguém que me vencera no jogo. Tive um sentimento tão extraordinário de segurança à vista dele que fiquei alarmado. Talvez tivesse esperado por aquilo secretamente, porque logo recaí nos senti­mentos de culpa de um escravo preguiçoso, submisso e dado a salamaleques. Enquanto reunia meus pertences, em vez de ter ódio de Hoja, eu me descompunha a mim mesmo. E foi Hoja quem pagou minha dívida com o grego. Ele viera acompanhado de dois homens e fomos para casa a toda velocidade, com aquela dupla de remadores. Chegamos antes do anoitecer. Eu tinha sentido falta do cheiro de nossa casa. E o espelho fora retirado da parede.

Na manhã seguinte houve a confrontação com Hoja. Meu crime era muito sério e ele ardia de vontade de castigar-me, não só por fugir, mas por abandoná-lo no seu leito de morte, supondo que uma picada de inseto fosse um tumor bubônico. Mas agora não era hora disso. Explicou que na última semana o sultão o mandara chamar, finalmente, para perguntar quando terminaria a peste; quantas vidas ainda iria ceifar; e se a dele, soberano, estava em perigo. Hoja, muito excitado, dera respostas evasivas. Não estava preparado para aquelas perguntas. Pediu tempo para consultar os astros. Poderia ter voltado dançando pelo caminho de tão contente que estava com a vitória, mas não sabia ainda muito bem como manipular o interesse do sultão em seu próprio benefício. Por isso, decidira trazer-me de volta.

Tinha conhecimento há muito tempo de minha presença na ilha. Logo que fugi de casa, ele caiu de cama com um resfriado e só pôde sair a procurar-me três dias depois. Achou a minha pista graças aos pescadores e, tendo aberto um pouco os cordões da bolsa, o boquirroto do barqueiro contou que me levara para Heybeli. Sabendo que eu não podia ir mais longe que as ilhas, deu por encerrada a busca. Quando me disse que esse encontro com o sultão era a maior oportunidade de sua vida, concordei com ele. E Hoja disse francamente que precisava dos meus conhecimentos.

Metemos mão à obra imediatamente. Hoja tinha agora o ar decidido do homem que sabe o que vai fazer. Muito me alegrou essa determinação, que raras vezes observara nele. Uma vez que sabíamos que ele seria chamado de novo no dia seguinte, resolvemos marcar passo. Assentimos de imediato numa coisa: dar poucas informações e mencionar só o que tivesse chance de ser confirmado. A argúcia de Hoja, que eu tanto admirava, levara-o diretamente à opinião de que “profecias são bufonaria, mas têm a sua utilidade para dominar os tolos”. Ouvindo-me dissertar sobre a peste, ele pareceu partilhar da minha opinião: a peste era uma calamidade que só podia ser contida por medidas de medicina preventiva. Como eu, ele não negava que o flagelo procedia da vontade divina, mas só indiretamente. Por isso, até nós mortais poderíamos avaliar a situação e tomar medidas de prevenção sem ofender o orgulho de Deus. Pois o califa Omar, o Corretamente Guia­do, não havia chamado o general Ebu Ubeyde da Síria para Medina a fim de proteger os seus exércitos da peste? Hoja aconselharia o sultão a reduzir seus contatos com terceiros ao mínimo absoluto para sua proteção. Não que não tivéssemos pensado em persuadir o soberano a precaver-se recorrendo ao susto, mas isso era perigoso. Não se tratava simplesmente de aterrorizar o sultão com uma descrição retórica da morte. Mesmo se a eloqüência de Hoja o impressionasse, ele tinha uma chusma de tolos à sua volta para partilhar dos seus terrores e ajudá-lo a vencê-los. Depois, esses tolos sem escrúpulos acusariam Hoja de incredulidade. Assim, com base no meu conhecimento de literatura, inventamos uma história para contar ao sultão.

A coisa que mais intimidava Hoja era decidir quando a peste acabaria. Achei que devíamos começar pelo número de mortes por dia. Quando propus isso a Hoja, ele não me pareceu convencido, mas concordou em pedir esses dados ao sultão, escondendo o verdadeiro intuito do pedido. Não acredito muito em matemática, mas não tínhamos alternativa.

Na manhã seguinte, ele foi ao palácio e eu à cidade assolada pela peste. Tinha tanto medo da doença quanto antes, mas o bruaá da vida comum que continuava, o desejo ubíquo de tirar algum proveito do mundo, me deixaram de cabeça tonta. Era um dia de verão, fresco e ventilado. Caminhando entre mortos e moribundos, eu me dei conta de que havia anos que não amava tanto a vida. Entrei em pátios de mesquitas, anotei o número de esquifes num pedaço de papel, e caminhando pelos arredores procurei estabelecer uma relação entre o que via e os números oficiais. Não era fácil fazer uma avaliação, mesmo aproximada, com todas aquelas casas, pessoas, e alegria da multidão, o luto, a festa. E, curiosamente, minha atenção se dirigia principalmente para o secundário, as vidas dos outros, a felicidade, o desamparo, a indiferença das pessoas vivendo em suas casas, com a família e os amigos.

Por volta do meio-dia, atravessei para a margem oposta do Corno de Ouro, para o bairro europeu da Gaiata, e, intoxicado pelas multidões e pelos cadáveres, entrei em cafés ordinários, perambulei pelos estaleiros. Fumei um pouco, timidamente comi numa tasca modesta, com a única intenção de compreender, andei a esmo por bazares e lojas. Queria registrar todo pequeno detalhe na cabeça, de modo a poder chegar a alguma espécie de conclusão. Voltei para casa depois do crepúsculo, exausto, e Hoja me deu notícias do palácio.

Tudo correra bem. A história que tínhamos combinado afetara o sultão profundamente. Sua mente aceitara a idéia de que a peste era como um demônio que tentasse enganá-lo assumindo forma humana. Ele resolveu não mais permitir a entrada de estranhos no palácio. Todas as idas e vindas ficaram sob estrita supervisão. Ao perguntar a Hoja quando e como a epidemia cessaria, ele já havia suscitado uma tal tempestade na imaginação do soberano que ele disse, com medo, que podia ver Azrael, o anjo da morte, vagando pela cidade como um bêbado. Pegaria pela mão quem quer que seus olhos fixassem e o arrastaria consigo. Hoja se deu pressa em corrigi-lo. Não era Azrael mas Satã quem atraía os homens para a morte. E ele não tinha a lucidez perturbada pela bebida, pois era extremamente ardiloso. Hoja, como tínhamos combinado, mostrou que era imperativo declarar guerra a Satã. Para entender quando a peste deixaria a cidade, cumpria observá-la em ação, estudar os seus movimentos. Embora houvesse, no seu séquito, quem dissesse que com­bater a praga era opor-se à vontade de Alá, o sultão não fez caso deles. E, depois, perguntou sobre os animais de estimação: o demônio da peste faria mal aos seus falcões, gaviões, leões, macacos? Hoja respondera imediatamente que o demônio vinha aos homens sob as aparências de um homem, e aos animais disfarçado em rato. O sultão ordenou que quinhentos gatos fossem trazidos para Istambul de uma cidade remota, onde a peste não chegara, e mandou que Hoja tivesse quantos homens pedisse para a luta.

Logo espalhamos os doze que foram postos sob nosso comando direto para os quatro cantos de Istambul a fim de patrulharem todos os bairros e nos transmitirem dados sobre o número de vítimas e tudo o mais que observassem e lhes pare­cesse relevante. Abrimos na nossa mesa um mapa de Istambul que eu copiara grosseiramente de livros. Com apreensão e júbilo ao mesmo tempo, marcávamos nele, toda noite, os pontos onde a peste se manifestara e rascunhávamos a tabela que apresenta­ríamos ao sultão.

De início não ficamos otimistas. A epidemia percorria a cidade como um vagabundo sem rumo e não como um demônio ardiloso. Um dia tirava quarenta vidas no distrito de Aksaray; no dia seguinte estava em Fatih. Aparecia de súbito na outra margem, em Tophane e Jihangir, mas depois, quando olhávamos de novo, ela mal havia tocado esses lugares, passara através de Zeyrek sem se deter, e penetrara no nosso próprio bairro, com vista para o Corno de Ouro, matando vinte pessoas. Também o número de mortos não fazia sentido: quinhentos num dia, cem no dia seguinte. Perdemos muito tempo até entendermos que precisávamos saber não onde a epidemia derrubava suas vítimas, mas onde elas haviam contraído a infecção. O sultão chamava Hoja outra vez. Discutimos o assunto longamente e resolvemos dizer que a peste freqüentava os mercados apinhados de gente, os bazares onde as pessoas se demoravam conversando, os cafés onde se sentavam juntas para tagarelar. Ele saiu e regressou à noitinha.

Hoja dera-lhe a informação. “O que devemos fazer?”, perguntara o sultão. Hoja aconselhou que fosse reduzido pela força a freqüência aos bazares, feiras e cafés. Os simplórios da corte logo se opuseram a isso, como seria de se esperar. Como alimentar a cidade? Se os negócios fossem afetados, a capital ficaria paralisada. Acresce que a notícia de que a peste vagueava sob a forma de um homem infundiria o terror em todos os que a ouvissem. O povo acreditaria que o Dia do Juízo havia chegado e tomaria o freio nos dentes. Ninguém quereria ficar num sítio em que o demônio da peste andava solto. Haveria uma rebelião. “E eles têm razão”, dissera Hoja. A essa altura, um dos idiotas perguntara de onde tirar soldados em número suficiente para conter a população em pânico, e o sultão se pôs furioso. Assustou a todos dizendo que haveria de castigar quem duvidasse do seu poder. Na sua indignação, mandou que as recomendações de Hoja fossem postas em prática, mas não sem consulta prévia ao seu círculo principal. O astrólogo imperial Sitki Efêndi, cujos dentes eram afiados sempre que se tratava de Hoja, lembrou que ele ainda não dissera quando o flagelo cessaria. Com medo de que o sultão lhe desse ouvidos, Hoja prometeu trazer um calen­dário na próxima visita.

Tínhamos enchido o mapa da mesa com sinais e números, mas não havíamos conseguido encontrar qualquer lógica nos movimentos da peste pela cidade. Já o sultão pusera as recomendações em execução. Elas eram obedecidas há três dias. Janízaros montavam guarda às entradas dos bazares, avenidas, ancoradouros de barcos, fazendo parar os passageiros, interrogando-os: “Quem é você? Aonde vai? De onde vem?” Recam­biavam os tímidos, surpresos e ociosos viajantes de volta às suas casas, para que não fossem vítimas da peste. Quando ficamos sabendo que a atividade decrescera no Grande Bazar e em Unkapi, estudamos as listas de mortos que tínhamos recolhido no mês anterior. Escritas em pedaços de papel, estavam agora pregadas nas nossas paredes. Na opinião de Hoja, era vão esperar que a epidemia progredisse de acordo com alguma espécie de lógica, e se quiséssemos escapar com vida, teríamos de inventar alguma coisa que contentasse o sultão.

Foi por esse tempo, ainda, que se instituiu o sistema dos alvarás. O aga dos janízaros distribuía licenças de funcionamento a todos cujo trabalho fosse considerado essencial ao funcionamento do comércio e ao aprovisionamento da cidade. Quando eu começava a perceber um sentido na incidência da doença e no número de mortos, soubemos que o aga estava arrecadando grandes somas com as licenças, e que os pequenos comerciantes, não querendo pagar, preparavam uma rebelião. Interrompendo o que Hoja me contava sobre o grão-vizir Koprulu, que estaria mancomunado com os pequenos comerciantes na conspiração, eu lhe dei parte do que descobrira e procurei convencê-lo de que a peste já se retirara, lentamente, da periferia da cidade e dos bairros pobres.

O que eu disse não o convenceu, mas ele deixou para mim a tarefa de preparar o calendário. Disse ter escrito uma história para distrair o sultão. Era tão vaga que ninguém poderia tirar dela qualquer conclusão. Poucos dias depois me perguntou se seria possível escrever-se alguma coisa sem intuito moralizante e com a única preocupação de divertir o ouvinte ou leitor.

— Como a música? — sugeri.

Hoja me olhou, surpreso. Chegamos à conclusão de que a história ideal devia começar inocentemente, como um conto de fadas, ser terrificante no meio, como um pesadelo, e concluir melancolicamente, como uma histeria de amor que termine com a separação. Na noite que precedeu sua ida ao palácio, conversamos alegremente mas trabalhamos depressa. No quarto ao lado, nosso amigo calígrafo, o canhoto, passava a limpo o começo da história a que Hoja não conseguira ainda dar um desfecho satisfatório. De madrugada, e trabalhando com base na informação fragmentada de que dispúnhamos, concluí, a partir de equações que lutara vários dias para armar, que a peste faria suas últimas vítimas no mercado e deixaria a cidade em vinte dias. Hoja não me perguntou em que eu me apoiava para essa afirmativa, mas observou que o dia da salvação ficava, assim, muito longe; que eu fizesse uma revisão do calendário, reduzindo o prazo para duas semanas, e disfarçando a coisa com dados fictícios. Eu duvidava que aquilo desse certo, mas fiz como ele mandava. Hoja compôs, então, ali mesmo, na hora, cronogramas em verso para algumas das datas e passou-os às mãos do calígrafo que estava a terminar seu trabalho; disse-me também que ilustrasse alguns dos versos. Por volta do meio-dia, irritadiço, deprimido e assustado, ele deu ao tratado uma capa azul, marmorizada, e saiu com ele. Disse que tinha menos fé no calendário que nos pelicanos, touros alados, formigas-ruivas e macacos falantes com que recheara seu texto.

Quando voltou, à noite, estava animado, e essa exuberância dominou as três semanas seguintes, durante as quais ele convenceu o sultão do bem-fundado das suas predições. De início dissera apenas que “tudo poderia acontecer”. No primeiro dia não estava muito confiante. Uns poucos dentre os que cercavam o sultão haviam rido durante a sua história, lida por um rapaz de boa voz. Naturalmente, fizeram isso por acinte, para indispor Hoja com o sultão, mas o soberano pediu silêncio e admoestou-os. Perguntou a Hoja em que sinais se apoiava para tirar a conclusão de que a epidemia acabava em duas semanas. Hoja respondeu que tudo estava contido na história que ninguém fora capaz de entender. Então, para ser agradável ao sultão, ele deu uma grande demonstração de afeto pelos gatos de todas as cores, trazidos de barco de Trabzon, e que agora pululavam nos pátios internos e em todos os aposentos do palácio.

Contou-me que, ao chegar no segundo dia, encontrou o palácio dividido em dois campos: um grupo, que incluía o astrólogo imperial Sitki Efêndi, queria suspender todas as medi­das de precaução impostas à cidade; outro, que tomava o partido de Hoja, dizia: “Que não se permitia à cidade respirar sequer. Ou corre o risco de inalar o demônio, que anda solto.”

Eu, por mim, estava animado, vendo o número de vítimas fatais decrescer dia a dia, mas Hoja ainda se mostrava aflito. Dizia-se que o grupo que lhe era hostil se entendera com Koprulu e começava a preparar uma revolta. Seu objetivo não era vencer a peste mas liquidar os rivais.

Ao fim da primeira semana, era visível a redução no número de mortes, mas meus cálculos mostravam que a epidemia não desapareceria em apenas uma semana. Lamentava que Hoja tivesse alterado meu calendário, mas ele parecia confiante. Disse-me, muito excitado, que os boatos sobre o grão-vizir tinham cessado. Além disso, o partido de Hoja espalhava agora a notícia de que Koprulu passara a colaborar com eles. Quanto ao sultão, estava aterrorizado com todas aquelas maquinações e buscava paz de espírito com os gatos.

Ao fim da segunda semana, a cidade sufocava mais com as restrições do que com a peste. A cada dia que passava menos gente morria, mas só nós e os que tinham acompanhado, como nós, a evolução da epidemia víamos isso. Havia rumores de escassez e fome, e a poderosa Istambul parecia um burgo abandonado. Hoja me contava essas coisas, pois eu jamais deixava o nosso distrito. Era possível sentir o desespero do povo assolado pela peste por trás daquelas janelas cerradas, daqueles portões fechados. Temia-se uma recidiva da bubônica e mais uma grande leva de vítimas. O palácio também vivia um momento de suspense. Cada vez que uma taça caía ao chão ou alguém tossia alto, a massa dos sabichões se mijava de gozo antecipadamente, comentando à socapa: “Hoje veremos o que o sultão decide.” Eram uns pobres-diabos histéricos que, como todos os pobres de espírito, querem sempre que alguma coisa aconteça, seja o que for. Hoja se deixava contagiar pela agitação. Ele tinha procurado explicar ao sultão que a peste estava, de fato, em retirada gradual, que suas previsões se confirmavam, mas não conseguia impressioná-la e se vira obrigado a falar de novo sobre animais.

Dois dias mais tarde, ele pôde concluir, de uma contagem feita nas mesquitas, que a epidemia se retirara efetivamente da cidade, mas sua felicidade naquela sexta-feira devia-se mais a outro fato: um grupo de comerciantes desesperados se chocara com janízaros que guardavam as estradas; e outro grupo de janízaros, descontente com as medidas de prevenção, se aliara a um grupo eclético de imãs idiotas que pregavam nas mesquitas, vadios interessados em saquear armazéns e outros ociosos que diziam ser a peste um castigo divino com o qual não cabia interferir. Mas a desordem foi contida antes que pudesse se espalhar. Por ordem do xeque do Islã, vinte homens foram executados imediatamente, talvez para que os ditos eventos parecessem mais momentosos do que eram. Hoja ficou encantado.

Na noite seguinte, ele anunciou sua vitória. Já ninguém no palácio defendia a interrupção das medidas preventivas. Convocado à presença do sultão, o aga dos janízaros mencionou os partidários dos rebeldes na corte. O soberano ficou furioso, e aquele grupo, cuja inimizade tinha infernizado a vida de Hoja, se dispersou como um bando de perdizes. Comentou-se que Koprulu tomaria, agora, medidas severas contra os rebeldes com os quais colaborara. Hoja anunciou com evidente prazer haver influenciado o sultão também nesse particular. Aqueles que sufocaram a revolta vinham procurando convencer o sultão que a peste amainara. E o que diziam era a expressão da verdade. O soberano louvou Hoja como nunca fizera antes. Levou-o para ver os macacos que mandara trazer da África numa jaula feita de acordo com suas especificações. Enquanto observavam os animais, cuja imundície e impertinência desgostaram Hoja, o soberano lhe perguntou se era possível aprender a falar como os papagaios. Depois, voltando-se para o seu séquito, declarou que queria ter Hoja a seu lado com maior freqüência. O calendário que ele fizera provara ser correto.

Numa sexta-feira, trinta dias depois, Hoja foi nomeado astrólogo imperial. Ficou ainda mais importante que isso: quan­do o sultão se dirigiu à mesquita de Santa Sofia para as preces semanais, em que toda a cidade participava para celebrar o fim do flagelo, Hoja caminhava logo após o soberano. As precauções haviam sido canceladas e eu também estava no meio da multidão, dando vivas e graças a Deus e ao sultão. Quando o soberano passou por nós, a cavalo, todos os circunstantes se puseram a gritar a plenos pulmões. Tinham a expressão extática, empurravam daqui e dali, e chegaram a avançar num movimento coletivo, de onda, que os janízaros a custo conseguiram conter. Fiquei por um momento imprensado contra uma árvore e quando por fim abri caminho a cotoveladas, me vi face a face com Hoja. Ele estava a quatro ou cinco passos apenas de distância e parecia feliz. Mas manteve o olhar distante, como se não me conhecesse. Naquele indescritível tumulto, estupidamente empolgado pelo entusiasmo geral, achei que ele de fato não me vira, e se eu berrasse seu nome com toda a força ele tomaria conhecimento da minha existência, me resgataria da multidão anônima e eu passaria a participar daquela parada, entre os felizardos que tinham nas mãos as rédeas da vitória e do poder! Não que eu quisesse uma fatia do triunfo ou um prêmio pelo que tinha feito. O sentimento era outro, muito diverso. Eu tinha o direito de caminhar ao lado dele, eu era o próprio Hoja! Ficara separado da minha verdadeira identidade e me via de fora, como nos pesadelos que tinha freqüentemente. Não queria nem mesmo saber a identidade daquela pessoa que agora habitava, dentro da qual estava naquele momento. Queria, apenas, vendo passar a mim mesmo como um estranho, sem o menor sinal de reconhecimento, juntar-me a ele o mais depressa possível. Mas um brutal soldado me empurrou para trás com violência e fui outra vez engolido pela multidão.

 

Nas semanas que se seguiram ao fim da peste, Hoja não foi apenas elevado à posição de astrólogo imperial. Estabeleceu também um relacionamento mais íntimo com o sultão. Mais íntimo até do que havíamos esperado: o grão-vizir, depois do malogro do pequeno motim, persuadira a mãe do soberano que era tempo de resgatar o filho dos bufões que ele mantinha a seu redor. Tanto os mercadores quanto os janízaros responsabilizavam aquela coorte de papalvos pelas desordens. Assim, quando a facção do ex-astrólogo imperial Sitki Efêndi, supostamente comprometido com a conspiração, foi afastada do palácio, para o exílio ou posições menores, seus antigos deveres também passaram à responsabilidade de Hoja.

A essa altura, ele já ia diariamente a um ou outro dos palácios em que o sultão estivesse residindo no momento e conversava com ele durante as horas que o sultão lhe reservava em sua agenda. Quando Hoja vinha para casa, contava-me, alvoroçado e exultante, de como toda manhã o sultão lhe pedia, antes de mais nada, que interpretasse um sonho da noite anterior. De todas as funções que ele assumira, essa era a que mais lhe agradava. Quando o sultão admitiu com tristeza, certa manhã, que não sonhara durante a noite, Hoja lhe propôs interpretar o sonho de outra pessoa. O soberano aceitou a sugestão com entusiasmo, e logo os guardas imperiais saíram correndo em busca de alguém que tivesse tido um sonho interessante para levá-lo à presença do sultão. Desse modo, ficou estabelecido como costume que um sonho seria interpretado toda manhã. O resto do tempo, quando passeavam pelos jardins que grandes árvores em flor sombreavam, ou quando cortavam o Bósforo em caíques, Hoja discorria sobre os adorados animais do sultão e, naturalmente, sobre os nossos próprios seres imaginários. Mas ele abordava também outros assuntos, coisas que me relatava, exuberante: qual a causa das correntes do Bósforo? Que valiosos conheci­mentos poderiam ser obtidos pela observação dos costumes metódicos das formigas? Tirante Alá, de onde os magnetos derivam a sua propriedade de atração? Que significado tem o pisca-pisca das estrelas? Será possível encontrar nos hábitos dos infiéis alguma coisa além de infidelidade, alguma coisa que valha a pena conhecer? Poderá alguém inventar uma arma que infunda o terror em exércitos inteiros e os disperse? Depois de contar-me como o sultão o ouvira atentamente, Hoja corria para a mesa e desenhava, em papel caro e encorpado, estudos para a tal arma suprema e definitiva: um canhão de longo alcance, mecanismos automáticos de detonação, engenhos de guerra, aparições que evocaram na mente monstros satânicos, chamando-me para ser testemunha da violência daquelas imagens, as quais, segundo ele, seriam dentro em breve realidade.

Eu, todavia, desejava partilhar os sonhos de Hoja. Talvez por isso minha mente ainda se ocupava com a peste, que nos fizera experimentar aqueles dias terríveis de confraternização. Toda Istambul tinha orado em Hagia Sophia para agradecer estar livre do demônio da peste, mas a doença ainda não desaparecera completamente. Pela manhã, enquanto Hoja corria ao palácio, eu percorria a cidade, anotando ansiosamente o número de funerais que ainda saíam das mesquitas da vizinhança, com seus minaretes atarracados, as pobres mesquitas de pequeno porte, telhas vermelhas cobertas de musgo, rezando, por motivos para mim mesmo incompreensíveis, que a epidemia não abandonasse a cidade e a nós.

Enquanto Hoja falava de sua vitória e de como conseguira influenciar o sultão, eu lhe explicava que a peste ainda não acabara e que, com o fim das medidas preventivas, ela poderia recrudescer a qualquer momento. Ele me silenciava com brutalidade, dizendo que eu estava despeitado com o seu triunfo. Eu compreendia essa atitude: o homem era agora astrólogo imperial, o sultão lhe contava todas as manhãs os sonhos que sonhara. Ele podia ser ouvido pelo sultão em particular sem a multidão de parvos em torno. Eram coisas pelas quais tínhamos esperado quinze anos! Era uma vitória. Mas por que Hoja falava como se ela fosse apenas sua? Parecia haver esquecido que fora minha a iniciativa das medidas de prevenção, fora eu quem preparara o calendário, que não resultara tão acurado quanto deveria ser, mas fora recebido como exato. O que eu mais sentia era que ele se lembrava apenas que eu fugira para a ilha e não as circunstâncias que fizeram com que fosse me buscar com urgência.

Talvez estivesse certo, talvez o que eu sentia fosse mesmo ciúmes, mas o que ele não percebia é que se tratava de um sentimento fraterno. Eu queria que ele entendesse isso. Mas quando procurei lembrar-lhe como, nos dias anteriores à peste, costumávamos sentar nas duas pontas da mesa como dois solteirões que procuram esquecer o aborrecimento de noites solitárias, quando lhe recordei como, às vezes, tivemos medo, mas aprendemos tanto desses temores, e confessei que tinha saudade dessas noites, mesmo quando estava só, na ilha, ele ouvia desdenhosamente o que eu dizia como um simples testemunho da minha hipocrisia que aflorava num jogo em que não tinha parte. Ele não me dava esperanças. Não dava qualquer mostra de que um dia voltaríamos àquele período em que vivíamos juntos como irmãos.

Indo de bairro em bairro, eu podia agora verificar que, a despeito do levantamento das restrições, a peste, como se não desejasse lançar sombras sobre aquilo a que Hoja chamava “vitória”, batia vagarosamente em retirada. Ocasionalmente, eu me perguntava por que aquele sentimento de abandono e solidão que se apossava de mim quando eu pensava que o sombrio temor da morte se afastava de nós e ia embora. Muitas vezes eu quis que conversássemos, não sobre os sonhos do sultão ou os projetos que Hoja lhe propunha, mas sobre a nossa vida anterior a dois. De há muito eu estava pronto a postar-me ao lado dele, mesmo temendo a morte, e enfrentar o terrível espelho que ele removera da parede. Mas já há bastante tempo Hoja me tratava com desprezo ou fingindo que fosse. O pior é que havia momentos em que eu acreditava que ele não se importava sequer em fazer isso.

De vez em quando, tentando reconduzi-lo à nossa vida feliz de antigamente, eu lhe dizia que era chegado o tempo de nos sentarmos à mesa de novo. Assim, para dar o exemplo, procurei, por duas vezes, escrever como outrora. Quando li para ele as páginas que enchera com relatos exagerados do terror da peste, do desejo de fazer o mal, dos meus pecados contados pela metade, ele nem sequer me escutou. Disse, zombeteiramente, com uma veemência talvez derivada mais da minha impotência que do seu próprio triunfo, que ele entendia, mesmo então, que nossas redações não passavam de tolices, que se dispusera àqueles jogos por puro tédio, para ver em que redundariam e também para testar-me. Fosse como fosse, ele ficou sabendo que espécie de homem eu era quando fugi ao pensar que ele fora infectado. Eu era um malfeitor! Havia só dois tipos de homem: os probos, como ele; e os culpados, como eu.

Não respondi a essas palavras de Hoja, que atribuí à intoxicação da vitória. Minha mente estava afiada como sempre, e quando eu me apanhava irritando-me com trivialidades, sabia que não perdera minha capacidade de indignar-me. E, no entanto, parecia não saber como responder às provocações dele, como levá-lo pelo nariz, como pegá-lo numa armadilha. Durante os dias que passei na ilha Heybeli, fugindo dele, percebi que havia perdido de vista o meu alvo. Que diferença faria regressar a Veneza? Depois de quinze anos, minha mente há muito aceitara que minha mãe tivesse morrido, que minha noiva estivesse perdida para mim, casada e com família constituída. Já não queria pensar nelas, que apareciam cada vez menos nos meus sonhos. Acresce que eu não me via mais com elas em Veneza, como nos meus primeiros anos de exílio, mas sonhava com elas morando conosco, em Istambul. Sabia que se voltasse à Itália, não poderia retomar a minha vida no ponto em que a deixara. Na melhor das hipóteses, poderia recomeçar com outra vida. Já não sentia entusiasmo com os detalhes da existência anterior, exceto no que dizia respeito à possibilidade de escrever um ou dois livros sobre os turcos e meus anos de cativeiro.

Às vezes, achava que Hoja me tratava com desprezo por sentir que eu não tinha nem país nem objetivos, por saber que eu era fraco. Mas também duvidava que ele fosse capaz de entender mesmo isso. Todo dia ele parecia tão intoxicado com as histórias que contava ao sultão, com a imagem e o triunfo daquela incrível arma com que sonhava e que serviria, segundo ele, para conquistar definitivamente o sultão, que talvez nem se desse conta do que eu estaria pensando. Eu me via observando com inveja aquele contentamento tão interiorizado de Hoja. Eu o amava, amava a falsa jovialidade que ele exibia e que era fruto do seu exagerado sentimento de vitória, seus planos mirabolantes, a maneira que ele tinha de dizer que logo o sultão estaria comendo da palma da sua mão. Eu não poderia admitir, nem para mim mesmo, pensamentos da mesma espécie, mas acompanhando as suas manobras, sua atividade cotidiana, ficava às vezes domina­do pela impressão de estar vendo a mim mesmo. Vendo uma criança ou um moço, um homem revê a própria infância ou a própria juventude, e sente uma certa ternura a par da curiosidade. O temor e a curiosidade que eu sentia eram dessa natureza. Freqüentemente recordava o dia em que ele me agarrara pelo cachaço e dissera: “Eu me tornei você.” Mas quando eu lhe relembrava esse período, Hoja me interrompia e contava o que tinha dito naquele dia ao sultão para que ele acreditasse no poderio da inacreditável máquina de guerra. Ou descrevia em detalhe como, naquela manhã, seduzira a mente do sultão enquanto interpretava seu último sonho.

Eu também quisera ser capaz de acreditar no brilho daqueles sucessos que soavam tão doces, quando Hoja os narrava. Às vezes acontecia que, levado nas asas das minhas próprias e tresloucadas fantasias, eu me punha gostosamente no lugar dele e acreditava em tudo. Então eu o amava, e amava a mim, a nós dois, e, de boca aberta como um papalvo a quem contam uma história absorvente, perdido no enredo que ele ia desfiando, eu acreditava que Hoja falava dos maravilhosos dias futuros como um objetivo que perseguiríamos juntos.

E foi assim que eu acabei ajudando-o na interpretação dos sonhos do sultão. Hoja havia decidido levar o soberano, então com 21 anos, a exercer maior controle pessoal sobre o governo. Ele me explicou que os cavalos selvagens que o sultão costumava ver galopando solitários nos seus sonhos estavam tristes por não terem ginetes; que os lobos que ferravam os dentes sem dó nas gargantas de suas vítimas eram felizes por serem auto-suficientes; que as velhas chorosas e as belas virgens cegas, e as árvores cujas folhas caíam levadas por chuvas negras imploravam que ele as socorresse; que as aranhas sagradas e os orgulhosos falcões simbolizavam as virtudes da independência. Queríamos que o sultão se interessasse pela nossa ciência depois que ele tomasse as rédeas do governo. E chegávamos a explorar até seus pesadelos com esse fim em vista. Durante as longas e fatigantes noites das expedições de caça, o sultão, como muitos dos que amam a caça, sonhava que ele mesmo era a presa ou, com medo de perder o trono, se via sentado nele como uma criança. Hoja explicava que, no trono, ele permaneceria sempre jovem, mas só fabricando armas superiores às dos seus sempre vigilantes inimigos estaria seguro contra a traição deles. O sultão sonhou que seu avô, o sultão Murat11, provara sua força partindo um jumento em dois com um só golpe de espada, desferido tão rapidamente que as duas metades galoparam para longe uma da outra; que a megera chamada Kosem Sultana, sua avó, saiu da sepultura para estrangulá-lo e à sua mãe, e saltou sobre ele nua em pêlo; que em vez de plátanos, havia figueiras no hipódromo, das quais pendiam, em vez de frutos, corpos ensangüentados; que homens maus, cujas feições eram iguais às suas, o perseguiam a fim de enfiá-lo nos sacos que carregavam às costas e sufocá-lo; ou que um exército de tartarugas, com velas acesas nas costas, que curiosamente não eram apagadas pelo vento, entravam no mar em Uskudar e nadavam diretamente para o palácio. Nós procuramos interpretar todos esses sonhos, que eu pacientemente e alegremente anotava num livro e classificava, tendo sempre em vista os interesses da ciência e da incrível arma de guerra que precisava ser construída. Como eram injustos os cortesãos quando murmuravam que o soberano descurava dos negócios do governo e não tinha nada na cabeça a não ser caçadas e animais!

Segundo Hoja, nós o influenciávamos gradativamente, mas eu já não acreditava que conseguíssemos nossos intentos. Hoja obtinha a promessa do soberano com relação à nova arma ou a construção de um observatório ou de um instituto das ciências e, depois de noites fazendo projetos com entusiasmo, passava meses sem tratar do assunto seriamente com o sultão. Um ano depois do fim da peste, quando o grão-vizir Koprulu morreu, Hoja descobriu outro pretexto para o otimismo. O sultão hesitara em pôr seus planos em prática por temer o poder e a personalidade do defunto. Agora que Koprulu desaparecera, e seu filho, menos influente que o pai, assumira o lugar dele, era lícito esperar corajosas decisões por parte do soberano.

Passamos os três anos que se seguiram esperando por elas. O que me deixava perplexo não era a inatividade do sultão, deslumbrado com os seus sonhos e as suas partidas de caça, mas o fato de que Hoja punha ainda suas esperanças nele. Todos aqueles anos eu havia esperado pelo dia em que ele perdesse a esperança e se tornasse como eu! Embora já não falasse tanto em “vitória” quanto antes, e eu não sentisse a mesma animação dos meses que sucederam à epidemia, ele ainda mantinha viva a convicção de que um dia seria capaz de manipular o sultão com o que chamava seu “grande plano”. Estava sempre disposto a encontrar uma desculpa: logo depois do grande incêndio, que reduziu Istambul a escombros, os vastos investimentos do soberano em grandes planos deram aos seus inimigos a oportunidade de conspirar para elevar o irmão do sultão ao trono; as mãos do sultão estavam temporariamente atadas porque o exército partira numa expedição à terra dos hunos; no ano seguinte, esperava-se que eles lançassem uma ofensiva contra os alemães; havia ainda que completar a nova mesquita Valida às margens do Corno de Ouro, onde Hoja muitas vezes ia com o soberano e sua mãe, Turhan a sultana. Grandes somas eram gastas nessa obra. Havia também as intermináveis caçadas, nas quais eu não tomava parte. Enquanto esperava em casa que Hoja voltasse, procurava seguir as suas instruções e apresentar algumas idéias brilhantes para o “grande plano” ou “ciência”, dormitando preguiçoso, enquanto folheava os livros dele.

Sonhar acordado com esses projetos já não me divertia. Pouco me importavam os resultados que porventura viessem a existir, caso fossem mesmo realizados. Hoja sabia tanto quanto eu que não havia nada de substancial nas nossas elucubrações sobre astronomia, geografia ou, até, ciências naturais durante os primeiros anos do nosso relacionamento. Os relógios, instrumentos e modelos tinham sido esquecidos em um canto e há muito enferrujavam. Tínhamos postergado tudo até o dia em que praticássemos aquele obscuro negócio a que ele chamava “ciência”. O que tínhamos na mão não era um grande plano, capaz de salvar-nos da ruína, mas apenas a ambição de um plano assim. Para poder acreditar nessa baça ilusão, que a mim não seduzia, para sentir uma certa camaraderie com Hoja, eu procurava, às vezes, ver com os olhos dele as páginas que folheava, ou me colocava em seu lugar à medida que os pensamentos me ocorriam, ao acaso. Quando voltávamos de uma caçada, eu agia como se tivesse acabado de descobrir uma nova verdade sobre um tema qualquer que ele me dera para afiar a minha mente, e pudéssemos, à sua luz, mudar tudo. Quando eu dizia, por exemplo: “A causa da variação periódica do nível do mar está relacionada com o maior ou menor aquecimento dos rios que nele desaguam” ou: “A peste se espalha por grãos de poeira no ar. Quando o tempo muda, esses argueiros se dissipam e ela vai embora” ou: “A Terra gira em torno do Sol e o Sol em torno da Lua”, Hoja, que tirava suas roupas de caçador, cobertas de poeira, sempre me dava a mesma resposta, que me fazia sorrir de enlevo: “E os idiotas daqui nem se dão conta disso!”

Depois, ele explodia num acesso de fúria que me arrastava no seu bojo, delirava horas a fio sobre como o soberano correra em pós de um javali desorientado; ou sobre a tolice que era, para ele, chorar por uma lebre contra a qual atiçara os mastins; ou admitir o que dizia ao sultão no curso de uma partida de caça entrava por um ouvido e saía pelo outro; ou perguntar rancorosamente quando os tais idiotas compreenderiam a verdade. Seria uma simples coincidência que tantos idiotas estivessem reunidos num só lugar ou seria isso inevitável? Por que eram tão estúpidos?

Dessa forma ele chegou, gradualmente, à conclusão de que cumpria recomeçar a coisa a que denominava “ciência”, desta feita, a fim de entender a natureza da mente dos idiotas. Uma vez que isso me recordava aqueles dias que eu tanto amava, quando nos sentávamos à mesma mesa e, desprezando um ao outro, éramos idênticos, fiquei tão entusiasmado quanto Hoja com a retomada da nossa “ciência”, mas após algumas tentativas frustradas, nós dois nos demos conta de que as coisas já não eram como tinham sido.

Em primeiro lugar, visto eu não saber como orientá-lo ou por que deveria fazê-lo, não podia pressioná-lo. E, mais importante ainda, eu sentia seu sofrimento e suas derrotas como se fossem minhas. Em uma oportunidade, lembrei-lhe o desatino das gentes locais, dando exemplos exagerados, fazendo-lhe ver que ele estava fadado ao desastre — embora eu não pensasse assim —, e observando, em seguida, sua reação. Em que pese ele discordar do meu diagnóstico violentamente, dizendo que o malogro não era inevitável se tomássemos a iniciativa da ação e nos devotássemos com vigor à tarefa em pauta — se, por exemplo, conseguíssemos realizar o projeto daquela tal arma, poderíamos mudar o curso da História que nos empurrava, no momento, para trás — e apesar de ver, com alegria, que ele falava em 'nossos' planos, como costumava fazer quando estava desesperado, não obstante ele temia a proximidade da derrota inescapável. Eu pensava nele como um órfão abandonado, adorava sua fúria e sua tristeza, que me lembravam meus primeiros anos de escravidão. E queria ser como ele. Enquanto ele percorria o aposento a grandes passadas, de um lado para o outro, olhando lá fora as ruas imundas e enlameadas debaixo da chuva escura ou as luzes trêmulas que ainda ardiam em umas poucas casas às margens do Corno de Ouro, como se procurasse por lá algum indício ou sinal a que pudesse prender as suas esperanças, parecia-me que aquilo que percorria o quarto, agoniado, não era Hoja, mas a minha própria juventude. A pessoa que eu havia sido me deixara e se fora, e a pessoa que eu agora era, sonolenta, jogada para um canto, desejava-o ciosamente, como se, nele, ela pudesse recobrar o entusiasmo perdido.

Mas, na verdade, ao fim e ao cabo, eu já me cansara daquele entusiasmo que jamais desistia de regenerar-se. Depois que Hoja se tornara astrólogo imperial, sua propriedade de Gebze fora ampliada, a nossa renda aumentara. De longe em longe a gente ia a Gebze, percorria os moinhos dilapidados, e as aldeias, em que os cães de pastores eram os primeiros a saudar-nos. Verificávamos a escrita, folheávamos as contas, procurávamos descobrir quanto o intendente nos furtara. Escrevíamos tratados divertidos para o soberano, rindo às vezes mas, na maior parte do tempo, gemendo de tédio. E era tudo o que fazíamos! Se eu não existisse, talvez ele não organizasse aqueles interlúdios, em que nos deitávamos com prostitutas luxuriosamente perfumadas depois de dias e dias de ociosidade.

O que o deixava mais enervado era o soberano, encorajado pela ausência do exército e dos paxás, que tinham trocado a cidade pela campanha alemã ou a fortaleza cretense, e também porque sua mãe não conseguia obrigá-lo a ouvi-la, reunira outra vez à sua volta todos aqueles sicofantas, bufões e travestis que haviam sido expulsos do palácio. Decidido a manter-se à margem dessas figuras que encarava com ódio e repugnância , e fazê-lo aceitar a sua superioridade, Hoja não se misturava com eles. Mas, quando o soberano insistia, ele não tinha outro remédio que dirigir-lhes a palavra e assistir aos seus debates. Depois de reuniões em que se discutia se os animais tinham alma e, se tinham, de que espécie; ou se os animais iam para o céu e, se iam, quais; ou se os mexilhões eram machos ou fêmeas; se o sol que nasce toda manhã é um sol novo ou simplesmente o mesmo sol que se deitou à tarde, Hoja emergia desesperando do futuro e dizendo que, se não tomasse providências, logo o sultão lhe escaparia por entre os dedos.

Como falasse de “nossos” planos e “nosso” futuro, eu fui nas águas dele. E todo feliz. Uma vez, tentando descobrir o que o sultão tinha em mente, relemos os cadernos de notas que eu colecionava há anos, nossos sonhos, nossas lembranças. Como se estivéssemos fazendo o inventário do conteúdo da gaveta de uma cômoda, procuramos organizar uma listagem do conteúdo da cabeça do soberano. O resultado não foi encorajador. Embora Hoja ainda se sentisse capaz de falar animadamente da incrível arma que seria a nossa salvação ou dos mistérios ainda por resolver no recesso de nossos cérebros, eleja não podia comportar-se como se não antecipasse uma derrota catastrófica e iminente. Passamos meses inteiros discutindo o assunto.

O que entendíamos por “derrota”? Que o império perderia todos os seus territórios, um por um? Abríamos nossos mapas em cima da mesa e determinávamos pesarosamente primeiro que territórios, depois que montanhas ou rios seriam perdidos. Ou derrota significava que o povo mudaria e alteraria as suas convicções sem se dar conta disso? Ficávamos a imaginar a população de Istambul levantando dos seus leitos quentes uma bela manhã como uma outra gente. Não saberiam como usar as roupas de todo dia nem seriam capazes de lembrar-se para que poderiam servir os minaretes. Talvez derrota fosse admitir a superioridade dos outros e procurar copiá-los. Hoja, então, recordava algum episódio da minha vida pregressa em Veneza e ficávamos a imaginar como nossos conhecidos de Istambul viveriam a mesma experiência, com seus chapéus exóticos na cabeça e suas calças bufantes.

Como último recurso, resolvemos apresentar ao sultão esses sonhos que faziam com que o tempo passasse despercebido, enquanto os inventávamos. Pensamos que todas essas visões de derrota, animadas pelas cores vivas da nossa fantasia, talvez o incitassem a agir. Assim, durante as noites escuras e silenciosas, enchemos um livro com as visões nascidas das fantasias de derrota e fracasso que sonhávamos com uma alegria triste e desesperada. Aqueles pobres de cabeça baixa, as estradas enlameadas, os edifícios inacabados, as ruas estranhas e sombrias, as pessoas implorando que tudo fosse outra vez como havia sido, sem entenderem as preces que recitavam, mães e pais desolados, homens desgraçados cujas vidas eram curtas demais para que tivessem tempo de transmitir-nos o que fora conseguido e registrado em outros países, máquinas abandonadas, pobres-diabos de olhos úmidos de tanto lamentar os bons tempos de outrora, cães vadios reduzidos a pele e ossos, camponeses sem terra, vagabundos a errar pela cidade sem destino, muçulmanos iletrados metidos em calças, e todas as guerras terminando em derrota. Relegamos minhas memórias apagadas a outra parte do livro: umas poucas cenas dos meus dias de estudante em Veneza, experiências felizes e instrutivas com meu pai, minha mãe, irmãs e irmãos: aqueles que conquistavam para nós vidas como essas. Tínhamos de agir antes que eles o fizessem e os emulassem! Na conclusão, nosso calígrafo canhoto copiou um poema bem metrificado, o qual, usando a metáfora do armário repleto de que Hoja tanto gostava, podia ser considerado como uma porta que abrisse para o negro labirinto dos intricados mistérios das nossas mentes. A névoa bem tecida dessa poesia, majestosa e tranqüila à sua moda, captava admiravelmente a triste essência de todos os livros e tratados que eu tinha escrito com Hoja.

Um mês apenas depois da entrega desse livro, o sultão nos ordenou que começássemos a construir aquela arma incrível. Ficamos perplexos com esse comando, e nunca chegamos a saber até que ponto nosso sucesso fora resultado do livro.

 

Quando o sultão disse “Vamos ver então essa arma incrível que vai ser a ruína dos nossos inimigos'', talvez estivesse brincando com Hoja, talvez tivesse tido um sonho que não lhe contara, talvez quisesse mostrar à sua mãe dominadora e aos paxás que o importunavam que os “filósofos” que ele tinha a seu redor serviam para alguma coisa. Talvez esperasse de Hoja um outro milagre depois do fim da peste, talvez as imagens de derrota de que o nosso livro estava repleto o tivessem afetado, ou talvez suas poucas derrotas militares, e não as nossas imagens, o tivessem alarmado com o pensamento de que, como temia, aqueles que desejavam colocar seu irmão no seu lugar o expulsassem do trono. Consideramos todas essas possibilidades ao calcular, deslumbrados, a tremenda renda que adviria das aldeias, caravançarás e olivedos que o soberano nos dera para financiar o canhão.

Hoja resolveu que só seríamos apanhados de surpresa por nossas próprias artimanhas. Seriam assim tão falsas todas aquelas histórias que ele contara ao sultão ano após ano, os tratados e livros que tínhamos escrito, que agora fôssemos ter dúvidas quando o soberano acreditava neles? E havia mais: o sultão começara a ficar curioso do que havia nos escuros recessos das nossas mentes. Hoja me perguntou, excitado, se não era essa a vitória pela qual tínhamos esperado tanto tempo.

Era, de fato. E desta vez começamos o trabalho como parceiros. É como eu tivesse menos ansiedade que ele quanto ao resultado, eu também me sentia feliz. Durante os seis anos que se seguiram, no curso dos quais Hoja trabalhou para desenvolver a arma, estivemos em constante perigo. Não porque trabalhássemos com pólvora, mas porque atraíamos sobre nós a inveja dos nossos inimigos; porque todo mundo esperava impaciente­mente pelo desfecho, triunfo ou malogro. E estávamos em perigo também por vivermos, nós mesmos, na temerosa expectativa das mesmas coisas.

Primeiro, passamos todo um inverno trabalhando no papel. Estávamos excitados, entusiásticos, mas de palpável tínhamos apenas a idéia da arma e as noções obscuras e informes que nos ocorriam quando imaginávamos seu efeito devastador sobre o inimigo. Mais tarde, decidimos sair para o campo e fazer experiências com pólvora. Como durante as semanas de preparação do espetáculo pirotécnico, nossos homens combinavam os pro­dutos nas proporções que determinávamos, depois acendiam-nos de uma certa distância, enquanto nos abrigávamos à sombra fresca de velhas árvores. Era grande o número de curiosos, vindos de todos os recantos de Istambul para ver as fumaças coloridas explodindo com diversos níveis de estrondo. Com o tempo, a multidão converteu num terreiro de feira o campo em que estavam armadas as nossas tendas, os alvos e os dois canhões, de cano curto e de cano longo, que tínhamos fundido. Um dia, no fim do verão, o próprio soberano apareceu, sem avisar.

Fizemos uma demonstração para ele, sacudindo céus e terra com explosões. Item por item, exibimos os caixotes de munição, os obuses que tínhamos preparado com variadas misturas de pólvora, calculadas à perfeição, os projetos para os moldes de novas peças de artilharia e do canhão de cano longo ainda por fundir, os mecanismos de disparo cronometrados, que pareciam detonar sozinhos. Ele mostrou mais interesse por mim que por eles. Hoja quis manter-me longe do sultão no começo, mas quando a demonstração começou, e o soberano viu que eu dava ordens tão freqüentemente quanto seu astrólogo, que os nossos homens pediam instruções a mim tanto quanto a ele, ficou curioso.

Quando fui conduzido à sua presença, pela segunda vez em quinze anos, o sultão me olhou como se eu fosse alguém que ele já tivesse visto, mas que não conseguisse reconhecer imediata­mente. Era como alguém que busca identificar de olhos fechados uma fruta que está comendo. Quanto a mim, beijei-lhe a fímbria da túnica. Ele não reagiu com estranheza ao ser informado de que eu me encontrava em Istambul havia vinte anos e ainda não me tomara muçulmano. Pensava em outra coisa.

— Vinte anos? — perguntou. — Que estranho! — E, de súbito, me fez aquela pergunta:

É você, então, quem lhe ensina tudo isso?

Aparentemente, não perguntara isso a fim de obter de mim qualquer resposta, pois saiu em seguida da nossa tenda esfarrapada, que cheirava a salitre, e marchou em direção ao seu belo cavalo branco. Mas, de súbito se deteve, virou-se para nós, que estávamos de pé, lado a lado, e seu rosto se abriu num largo sorriso, como se acabasse de ver uma dessas incomparáveis maravilhas que Deus cria para dobrar a cerviz do homem, fazer com que ele veja a absurdeza delas: um anão perfeito em todos os detalhes ou irmãos gêmeos, absolutamente idênticos, como ervilhas numa vagem.

Em casa, fiquei pensando no sultão a noite inteira, mas não da maneira como Hoja desejaria. Ele continuava a falar do soberano com aversão, mas eu verificara que não poderia sentir pelo rapaz nem ódio nem desprezo. Ficara encantado com sua informalidade, sua doçura, seu ar de criança mimada e voluntariosa, que diz o que lhe vem à cabeça. Quisera ser como ele ou ser, pelo menos, seu amigo. Depois da explosão irada de Hoja, fiquei deitado na cama procurando dormir, mas refletindo que o sultão não era pessoa que se devesse enganar. Quisera poder contar-lhe tudo. Mas o que, exatamente, era tudo?

Meu interesse foi correspondido. Um dia, quando Hoja disse, com relutância, que o soberano esperava a mim também naquela manhã, fui com ele. Era um desses dias de outono que têm o cheiro do mar. Passamos a manhã toda junto de um tanque coberto de nenúfares, à sombra dos plátanos, numa vasta floresta atapetada de folhas secas, de um vermelho ferruginoso. O sultão queria falar dos buliçosos sapos que enchiam o tanque. Hoja não estava disposto a fazer-lhe a vontade e se limitou a repetir uns poucos clichês carentes de fantasia e colorido. O sultão nem percebeu a rudeza dele, que tanto me chocava. Só tinha olhos para mim.

Então dissertei longamente a respeito da mecânica do salto dos sapos, sobre o seu sistema circulatório; de como seus corações continuavam a bater por muito tempo se removidos do corpo com cuidado; e, finalmente, sobre as moscas e outros insetos que eles comem. Pedi pena e papel para demonstrar com maior clareza os estádios por que passa o ovo até tornar-se sapo adulto no tanque. O soberano ficou observando atentamente, enquanto eu desenhava com as penas de bambu que ele me emprestou, e que vinham num estojo de prata cravejado de rubis. Ele escutou com evidente prazer as histórias que consegui lembrar sobre sapos. Quando cheguei ao episódio em que a princesa beija o sapo, ele fez cara de nojo, mas mesmo assim não tinha nada do adolescente atoleimado que Hoja costumava descrever. Era mais como um adulto sério que insistia em começar cada um dos seus dias com ciência e arte. Ao fim dessas horas calmas, durante as quais Hoja se manteve de cenho fechado, o sultão olhou as reproduções de sapos que tinha na mão e disse:

— Sempre desconfiei que era você quem inventava as histórias dele. Vejo que as ilustrações também são suas! — Em seguida, me fez perguntas sobre sapos bigodudos.

Foi assim que começaram as minhas relações com o sultão. Agora eu acompanhava Hoja sempre que ele ia ao palácio. No começo, ele falava pouco, e eu conversava com o soberano a maior parte do tempo. Tratando com ele de seus sonhos, seus entusiasmos, seus temores, do passado e do futuro, eu me perguntava até que ponto aquele homem inteligente e bem-humorado que eu tinha à minha frente se parecia com o sultão de que Hoja me falara, ano após ano. Podia ver, das perguntas inteligentes que me fazia, da sua argúcia, que desde que recebera os livros com que lhe presenteamos, o sultão especulava o quanto de Hoja era eu e o quanto de mim havia em Hoja. Quanto a este último, ele estava àquele tempo ocupado demais com o canhão para interessar-se por essas especulações, que, de qualquer maneira, considerava idiotas.

Seis meses após termos começado a trabalhar no canhão, Hoja ficou alarmado ao saber que o general-em-chefe da artilharia imperial estava furioso conosco. Indignava-se de que metêssemos o nariz naqueles assuntos que lhe concerniam. Queria de duas, uma: pedia demissão do cargo ou loucos como nós dois seriam corridos de Istambul. O crime: desmoralizar a ciência da artilharia com a nossa pretensão de estarmos inventando coisa nova. Hoja não procurou um compromisso, embora o militar estivesse inclinado a fazer um acordo. Um mês depois, quando o sultão nos ordenou que desenvolvêssemos a arma de um modo que não tivesse nada a ver com canhões, Hoja não se perturbou. Ambos sabíamos que as novas armas e o canhão de cano longo que havíamos fundido não eram em nada melhores que o material antigo, em uso havia anos.

Assim, de acordo com Hoja, tínhamos entrado numa nova fase, em que conceberíamos tudo de novo desde o começo. Mas como eu já me acostumara às suas fúrias e aos seus sonhos, a única coisa nova para mim era ter conhecido o soberano. E o sultão gostava da nossa companhia. Como um pai amoroso que aparta dois filhos que discutem sobre as suas bolas de gude, dizendo “esta é sua, e esta é sua”, ele nos separava com observações sobre a nossa fala e comportamento. Essas observações, que eu às vezes achava infantis e às vezes inteligentes, começaram a aborrecer-me. Comecei a crer que minha personalidade se dividira e uma parte se unira à de Hoja, e vice-versa, sem que tivéssemos dado conta disso, e que o sultão, apreciando essa criatura imaginária, chegara a conhecer-nos melhor do que nós mesmos.

Quando interpretávamos seus sonhos ou falávamos sobre a nova arma — e, àquele tempo, tínhamos só nossos sonhos acerca da arma para estimulá-lo — o soberano nos interrompia de chofre e, virando-se para um de nós, dizia: “Não, este pensa­mento é dele e não seu.” Às vezes distinguia também entre nossos atos: “Agora você está olhando em volta como ele faz! Seja você mesmo!” E se eu ria, surpreso, ele prosseguia: “Isso já é melhor, bravo! Vocês nunca se olharam ao espelho juntos?” E perguntava qual de nós continuava a ser ele mesmo quando nos contemplávamos ao mesmo tempo no espelho. Certa ocasião, mandou que lhe trouxessem todos os tratados, bestiários e calendários que tínhamos feito para seu uso, ao longo dos anos, e disse que, quando os lera pela primeira vez, procurara imaginar virando as páginas uma a uma, qual de nós escrevera que partes, e até que partes um de nós escrevera pondo-se no lugar do outro. Mas foi o personificador que ele convocou, quando estávamos em sua presença, que enfureceu Hoja, e me encantou, embora me deixasse também inteiramente confuso.

Este homem não se parecia conosco, nem nas feições nem na forma. Era baixo e gordo, e se vestia de maneira diferente. Mas quando começou a falar, fiquei chocado: era como se Hoja, e não ele, estivesse falando. Como Hoja, ele se inclinava para o ouvido do soberano, como se estivesse sussurrando um segredo; como Hoja, ele empostava a voz com um ar grave e estudado quando discutia pontos mais sutis. E, de súbito, exatamente como Hoja, ele se deixava tomar pela excitação do que estava dizendo, e gesticulava apaixonadamente, com as mãos e os braços, a fim de persuadir o interlocutor, e perdia o fôlego. Mas embora falasse no tom de Hoja, o homem não discutia projetos relacionados com as estrelas ou com armas de poder inacreditável: enumerava simplesmente os pratos que aprendera a fazer na cozinha do palácio e os ingredientes e especiarias necessários para prepará-los. Enquanto o sultão sorria, o mímico continuava a sua imitação. Hoja ficou com a cara no chão, e o homem simplesmente relacionava, pela ordem, os caravançarás entre Istambul e Aleppo, um por um. O sultão lhe pediu depois que imitasse a mim. E aquele que me olhou com a boca aberta, em estado de choque, era eu. Fiquei estupefato. E quando o soberano lhe pediu que personificasse alguém que fosse metade Hoja e metade eu, fiquei de todo enfeitiçado. Observando os movimentos do mímico, eu me sentia pronto a dizer, como o sultão, “este sou eu, e este é Hoja”. Mas o mímico fazia isso, apontando o dedo para cada um de nós, alternadamente. Depois que o sultão elogiou o homem e o despediu, disse-nos que refletíssemos sobre o que tínhamos visto.

O que queria dizer com isso? Naquela noite, quando observei a Hoja que o sultão era um homem muito mais inteligente do que a pessoa que ele vinha descrevendo para mim havia anos, Hoja teve mais um dos seus acessos de cólera. Daquela vez senti que havia motivo para isso: a arte do mímico não era coisa que se pudesse engolir passivamente. Hoja disse que jamais poria de novo os pés no palácio a não ser forçado. Não tinha a intenção, agora que a oportunidade pela qual esperara tanto tempo estava finalmente ao seu alcance, de humilhar-se perdendo tempo com aqueles parvos. Uma vez que eu conhecia os entusiasmos do sultão, e tinha disposição para bobo da corte, que fosse ao palácio em seu lugar.

Quando informei ao soberano que Hoja estava doente, ele não acreditou.

— Deixemo-lo trabalhar na arma — disse.

Assim, nos quatro anos em que Hoja detalhou e construiu a arma, fui ao palácio e ele ficou em casa, entregue aos seus sonhos, como eu costumava fazer.

Naqueles quatro anos aprendi que a vida deve ser gozada e não apenas sofrida com paciência. Aqueles que viram que o soberano tinha tanta estima por mim quanto por Hoja, logo me convidaram para as cerimônias e celebrações que eram ocorrências diárias no palácio. Um dia, uma filha de vizir se casava; em outro, um novo filho nascia para o soberano, as circuncisões dos meninos eram marcadas por festivais, celebravam a recaptura de um castelo aos húngaros ou comemorava-se o primeiro dia de um principezinho na escola. Havia também o Ramadã e outras festividades religiosas. Engordei rapidamente ao deliciar-me com magníficas carnes ou pilaus, deglutindo leões, avestruzes e sereias de amêndoas e açúcar nestas festas, que às vezes duravam dias. A maior parte do meu tempo era gasta assistindo a espetáculos: lutadores com a pele brilhante de óleo batendo-se até o desfalecimento; funâmbulos equilibrando-se em arames estendidos entre minaretes de mesquitas; malabaristas que jogavam para o ar bastões que levavam às costas, achatavam cravos de ferraduras com os dentes e se apunhalavam com facas e espetos; mágicos que tiravam serpentes, pombos e macacos das roupas e faziam desaparecer xícaras de café em nossas mãos ou moedas em nossos bolsos num abrir e fechar de olhos. Havia também o teatro de Karagoz e Hajivat, cujas obscenidades adorei. À noite, quando não havia fogos-de-bengala, eu acompanhava meus novos amigos, muitos dos quais feitos naquele mesmo dia, a uma ou outra daquelas mansões onde todos iam. Após tomar raki ou vinho durante horas e ouvir música, eu me divertia brindando belas dançarinas que imitavam lânguidas gazelas, formosos afebos que andavam em cima d'água, vocalistas de vozes ardentes que cantavam árias sensíveis e jubilosas.

Freqüentemente ia à casa de embaixadores, que mostravam muita curiosidade a meu respeito. Depois de assistir a um bale de moças e rapazes movimentando seus belos braços e pernas, ou de escutar o derradeiro e pretensioso disparate executado por uma orquestra trazida de Veneza, eu gozava os benefícios da minha fama crescente. Os europeus reunidos nas missões diplomáticas pediam-me que eu lhes contasse as terríveis aventuras por que passara. Podiam imaginar o quanto eu devia ter sofrido, que provas tivera de suportar, e não sabiam como ainda tinha forças para ir adiante. Eu escondia o fato de haver passado minha vida toda entre quatro paredes, cochilando ou escrevendo livros sem pé nem cabeça, e contava-lhes histórias incríveis que aprendera a improvisar sobre aquela terra exótica pela qual pareciam fascinados. Exatamente como o sultão. Não só as donzelas, que faziam aparições pré-nupciais diante dos seus pais, ou as mulheres de embaixadores, que flertavam comigo, mas também todos aqueles ilustres dignitários e funcionários ouviam, cheios de admiração, as histórias de sangue, religião, violência, e as intrigas de amor e de harém, que eu inventava. Se me pressionavam muito, eu sussurrava dois ou três segredos de Estado ou descrevia alguns hábitos estranhos do sultão, que ninguém podia conhecer, pois eu acabava de criá-los. Quando pediam maiores informações, eu afetava com gosto um ar de mistério. Agia como se não pudesse contar tudo o que sabia, refugiava-me num silêncio que inflamava a curiosidade daqueles tolos que Hoja queria que imitássemos. Mas eu sabia muito bem que eles cochichavam entre si que eu estava envolvido em algum projeto grande e misterioso, que exigia perícia em ciência, algo relacionado com uma obscura espécie de arma, que consumia uma soma fabulosa de dinheiro.

Quando regressava, à noite, dessas mansões e palácios, cheio das imagens dos belos corpos que vira, ou tonto com os vapores das bebidas alcoólicas que consumira, encontrava Hoja abancado à nossa mesa de vinte anos de uso. Lançara-se ao trabalho com um ímpeto que eu jamais vira nele anteriormente.

A mesa estava sempre coberta de estranhas maquetes que não faziam qualquer sentido para mim, desenhos, páginas e mais páginas de desesperados garranchos. Ele pedia que lhe contasse o que vira e fizera o dia todo, mas logo ficava enfarado com aqueles passatempos que julgava vergonhosos e estúpidos, de modo que me interrompia e começava a descrever seus planos, falando de “nós” e “eles”.

Repetia, uma vez mais, que tudo estava ligado à paisagem interior e desconhecida de nossas mentes. Ele, por exemplo, fundava seu projeto inteiro na configuração da sua, e falava excitadamente sobre a simetria, ou o caos do armário cheio de refugos a que chamamos cérebro, mas eu não podia entender como aquilo serviria de ponto de partida para projetar a arma na qual ele depositava todas as suas esperanças, as nossas esperanças. Eu duvidava que alguém — inclusive ele, coisa que eu não pensara antes — fosse capaz de tal proeza. Hoja declarou que algum dia nossas cabeças haveriam de ser abertas, e essas suas idéias seriam comprovadas. Falou de uma grande verdade de que se apercebera durante os dias da peste, quando nos contemplamos juntos no espelho. Agora tudo aquilo estava claro como água na sua mente. Não vê? A arma tivera sua gênese nesse momento de verdade! E ele me mostrava, os dedos a tremer — a mim, comovido como estava, e sem entender nada — uma bizarra, obscura, ambígua forma no papel.

Essa forma, que, a cada vez que me era mostrada, parecia ligeiramente mais amadurecida e nítida, lembrava-me alguma coisa. Olhando a mancha negra a que chamarei o “demônio” do desenho, eu ficava a ponto de dizer o que era que aquilo me recordava, mas depois de um momento de hesitação, ou achando que a memória me pregava peças, eu me calava. Naqueles quatro anos de gestação do projeto, jamais percebi com clareza a dita forma que ele esparramava em muitas folhas, dando-lhe cada vez maior definição a que, depois de consumir esforço e dinheiro acumulados naquele tempo todo, conseguiu trazer à luz. Em algumas ocasiões, eu a ligava a acontecimentos da nossa vida cotidiana, noutros a imagens em nossos sonhos, uma ou duas vezes a coisas que vimos ou a que nos referimos nos velhos tempos em que nos confiávamos reciprocamente nossas memórias, mas ficava invariavelmente incapaz de clarificar as imagens que passavam pela minha mente, de modo que eu me submetia à confusão dos meus pensamentos e esperava em vão pela própria arma, que me revelaria, ela mesma, o seu mistério. Decorridos mais de quatro anos, depois que aquela mancha negra se transformara num ser bizarro, tão alto quanto uma mesquita das grandes, uma aparição terrificante de que toda Istambul falava e a que Hoja chamava uma verdadeira máquina da guerra, e que cada um assemelhava a uma coisa ou outra, eu ainda me perdia nos detalhes do que Hoja me havia comunicado no passado sobre como a arma triunfaria no futuro.

Como alguém que acorda e luta para lembrar um sonho que a memória, teimosamente, deseja esquecer, eu procurava, nas minhas visitas ao palácio, repetir aqueles detalhes vívidos e assustadores ao sultão. Falava das rodas, da catapulta, da cúpula, da pólvora, das alavancas que Hoja descrevera para mim, Deus sabe quantas vezes. As palavras não eram minhas, e embora não houvesse nada do fogo apaixonado de Hoja no que eu dizia, vi que o soberano ficava impressionado. E me comovia também que aquele homem, que eu considerava sério, ficasse inspirado e esperançoso com aquela confusa massa de palavras, minha crua versão da fervente poesia de Hoja, tocada de vitória e salvação. O soberano diria que Hoja, o homem que ficara em casa, era eu. Esses seus jogos intelectuais me confundiam imensamente, mas já não eram surpresa para mim. Quando ele dizia que eu era Hoja, achava melhor não acompanhar a sua lógica, pois logo afirmava com toda a convicção que fora eu quem ensinara a Hoja tudo o que ele sabia — não a pessoa letárgica que eu era agora, mas a que transformara Hoja tantos anos atrás. Se pelo menos pudéssemos conversar sobre as diversões, os animais, os festivais de antigamente, ou os preparativos para o desfile dos comerciantes, pensava eu. Mais tarde o sultão disse também que todo mundo sabia que eu estava por trás do projeto da arma.

Isso era o que mais me aterrorizava. Hoja não era visto em público há anos, e estava quase esquecido. Eu aparecia com tanta freqüência ao lado do soberano nos palácios, na cidade, que agora todos tinham ciúmes de mim, o infiel! Rilhavam os dentes à minha vista, não apenas porque as rendas de tantos rebanhos de carneiros, olivais e caravançarás estavam associadas àquele obscuro projeto de uma arma de que se comentava também cada vez mais; não apenas por estar eu tão próximo do sultão, mas também porque, trabalhando nesse engenho, estávamos enfiando o nariz no que não era da nossa conta. Quando eu não podia fechar os ouvidos a esse coro de injúrias e difamação, queixava-me a Hoja ou ao sultão.

Eles, entretanto, não eram muito receptivos. Hoja se enterrara completamente no trabalho. Eu tinha saudades da fúria dele como um velho tem saudades da paixão da juventude. Durante os últimos meses, em que ele alimentava aquela mancha escura e ambígua no papel com pormenores e a convertia em desenhos para o molde de um monstro grotesco e aberrante, gastando somas inacreditáveis na moldagem e fusão de um ferro pesado demais e impossível de perfurar por qualquer canhão, ele nem ouvia os boatos tenebrosos que eu lhe relatava. Mostrava interesse apenas nas mansões dos embaixadores, onde se falava do trabalho dele: que espécie de homens eram esses diplomatas estrangeiros? O que pensavam? Emitiam alguma opinião sobre a sua arma? E, mais importante ainda: por que o sultão jamais pensava em despachar enviados ao exterior, que estabelecessem embaixadas para representar o império nos outros países? Senti que ele desejaria um posto desses para si. Escaparia, assim, aos idiotas locais e iria viver melhor alhures. Mas ele nunca me falou abertamente desse desejo, mesmo nos dias em que desesperava de realizar o seu projeto, quando o ferro que ele havia fundido rachava, ou quando achava que as verbas de que dispunha não seriam suficientes. Deixou escapar uma vez ou duas que queria ter relações com os homens de ciência “deles”. Talvez os estrangeiros entendessem as verdades que ele tinha descoberto sobre o que havia por dentro das nossas cabeças. Desejaria corresponder-se com homens de ciência de Veneza, Flandres, ou qualquer lugar remoto cujo nome lhe ocorresse no momento em que falava. Quem eram os melhores desses homens, onde viviam, como entrar em contato com eles? Não poderia eu descobrir isso em conversa com os embaixadores? Naqueles últimos dias, demonstrei pouco interesse pela arma, já em fase adiantada de construção, entregando-me apenas aos prazeres e descurando de suas esperanças, em que havia traços de abati­mento e melancolia que nossos rivais teriam achado divertidos.

O sultão também fazia ouvidos moucos para o falatório dos nossos inimigos. Naquele período em que Hoja, pronto para testar a sua máquina, procurava voluntários, homens dispostos a entrar naquela terrificante montanha de metal e operar os volantes, embora sufocados com o cheiro insuportável de ferrugem, o sultão não quis nem ouvir o que eu lhe contava sobre os rumores. Como de hábito, pediu que lhe repetisse o que Hoja andava dizendo. Ele tinha fé em Hoja, estava satisfeito com o desempenho dele, não se arrependia de nada. E, por tudo isso, era grato a mim. E pelo mesmo motivo de sempre: fora eu quem ensinara tudo a Hoja. Como Hoja, ele falava também do interior das nossas cabeças. E, como Hoja, vinha depois com outra pergunta, sobre assunto que muito o interessava: como viviam as pessoas naquela terra, no meu país de origem?

Dei-lhe um regalo de sonhos. Não sei dizer agora se as histórias que lhe contei, muitas das quais acabei por ter como verdadeiras, à força de repeti-las, eram de fato coisas que eu vivera na mocidade ou visões que me fluíam da pena cada vez que me sentava à mesa para escrever meu livro. Às vezes lançava na página uma ou duas falsidades divertidas que me ocorriam de repente. Havia entre elas certas fábulas que vinham crescendo, por assim dizer, com o uso. Uma vez que o soberano mostrava curiosidade pelo detalhe — se as roupas tinham muitos botões, por exemplo — eu prestava atenção para não deixar tais minudências de lado, e contava histórias que, talvez, não fossem verdadeiramente memórias. Talvez fossem, simplesmente, sonhos. Mas havia também coisas que eu não pude esquecer após vinte e cinco anos, coisas reais: conversas com meu pai e minha mãe, com meus irmãos e irmãs, durante o desjejum à mesa familiar, sob os plátanos! Estes eram os detalhes que menos interessavam ao sultão. Ele me disse uma vez que, basicamente, uma vida não difere de outra, o que me assustou, por algum motivo: havia uma expressão diabólica no rosto do sultão quando disse isso, uma expressão que eu não lhe vira antes, e quis perguntar-lhe o sentido daquilo. Enquanto eu olhava, apreensivo para o rosto dele, senti um impulso de dizer: “Eu sou eu.” Era como se, tendo tido a coragem para dizer essa frase absurda, liquidasse desse modo, e de um só golpe, todos os jogos em que se empenhavam os que queriam que eu fosse outra pessoa, a começar por Hoja e pelo soberano. Poderia então viver outra vez em paz comigo mesmo. Mas de medo, como os que recuam até da menção de qualquer incerteza que possa pôr em perigo a sua segurança, calei-me.

Isso aconteceu na primavera, nos dias em que Hoja dera por encerrados os trabalhos na arma, mas ainda não pudera testá-la por não ter reunido a equipe de que necessitava. Pouco depois, ficamos chocados ao saber que o sultão partira com o exército para uma expedição à terra dos poloneses. Por que não levara a arma suprema, por que não levara a mim? Não confiava em nós? Como as demais pessoas deixadas para trás, em Istambul, acreditávamos que ele não fora fazer a guerra, mas caçar. Hoja alegrou-se, pois ganhava mais um ano. E uma vez que eu não tinha outras obrigações ou divertimentos, trabalhamos juntos na arma.

Era muito difícil recrutar homens para operar a máquina. Ninguém se dispunha a entrar naquele veículo assustador e misterioso. Hoja anunciou que pagaria muito bem, espalhou arautos pela cidade, para os estaleiros, as fundições, procurou conseguir homens entre os desocupados dos cafés, os sem-teto, os aventureiros. Os que ele conseguiu contratar, e que, vencido o temor, entravam naquela montanha de ferro, logo fugiam espavoridos, incapazes de manobrar os controles apertados naquele bizarro inseto que cozinhava ao sol. Quando conseguimos mover o veículo, já para o fim do verão, todo o dinheiro acumulado para o projeto ao longo dos anos fora gasto. A arma se mexeu desajeitadamente debaixo do olhar surpreso e atemoriza­do dos curiosos e, saudada por gritos de vitória, girou para a direita e para a esquerda, disparou seus obuses contra uma fortaleza imaginária, depois imobilizou-se. Dinheiro continuava a jorrar das aldeias e olivais, mas a equipe que tínhamos reunido era cara demais para manter, e Hoja se viu obrigado a deixar que os homens fossem embora.

O inverno passou, à espera. De volta da expedição, o soberano se detivera na sua amada Edirne. Ninguém nos procurou, ficamos entregues a nós mesmos. E desde que não havia ninguém de manhã no palácio a quem pudéssemos divertir com nossas histórias, e ninguém que me pudesse entreter, à noite, nas mansões, não tínhamos o que fazer, Hoja e eu. Procurei passar o tempo posando para meu retrato por um pintor de Veneza e tomando aulas de música no 'ud12. Hoje ia toda hora a Kuledibi, junto às velhas muralhas, ver a máquina, que deixara vigiada por um guarda. Não podia resistir à tentação de acrescentar uma coisa aqui e outra ali, mas acabou por cansar-se disso. Durante as noites do último inverno que passamos juntos, ele não mencionou a arma nem os planos que tinha para ela. Uma letargia caíra sobre ele, mas não por haver perdido sua paixão — estava assim porque eu já não o inspirava.

À noite, passávamos a maior parte do tempo esperando, esperando que o vento cessasse, ou a neve, esperando pelos últimos pregões dos vendedores que passavam pela rua nas horas mortas; ou esperando que o fogo esmorecesse para botar mais lenha na estufa. Numa dessas noites de inverno, em que conversávamos pouco, entregues aos nossos próprios pensamentos, Hoja disse, de súbito, que eu havia mudado muito, que eu me tornara uma pessoa completamente diferente. Meu estômago ardeu e comecei a transpirar. Queria enfrentá-lo, dizer-lhe que estava enganado, que eu era como sempre fora, que nós éramos semelhantes, que ele devia dar-me atenção, como fazia no co­meço, que ainda tínhamos muitas, muitas coisas sobre as quais conversar. Mas ele estava certo. Meu olho bateu no retrato que eu trouxera para casa naquela manhã e deixara no chão, encostado à parede. Eu tinha mudado. Engordara de tanto comer nas festas. Exibia agora um duplo queixo, minha pele estava flácida, meus movimentos morosos. Pior: meu rosto se alterara inteira­mente. Havia uma expressão dura nos cantos da boca, por beber e fazer amor naqueles bacanais; e meus olhos estavam lânguidos de dormir a qualquer hora, de tombar em estupores de alcoólatra. E, como os parvos, que estão contentes com suas vidas, com o mundo, e consigo mesmos, havia uma crua enfatuação no meu olhar. Mas eu sabia que estava satisfeito com esse estado de coisas. Calei-me.

Mais tarde, e até o momento em que o sultão nos chamou a Edirne com a arma, para a campanha, tive repetidamente o mesmo sonho: estávamos em um baile de máscaras em Veneza, reminiscência, na sua confusão, das festas de Istambul. Quando “cortesãs” removeram suas máscaras, reconheci minha mãe e minha noiva na multidão. Tirei então, eu também, a minha máscara, na esperança de que elas por sua vez, me reconheces­sem, mas de alguma forma não souberam que aquele era eu. Apontavam com suas máscaras para alguém atrás de mim. Quando me virei para olhar, vi que essa pessoa, que saberia que eu era eu, era Hoja. Então, quando me acerquei dele, querendo que me reconhecessem, o homem que era Hoja tirou a sua máscara sem uma palavra. E por trás dela, apavorando-me com uma pontada de culpa que me despertou do sonho, emergiu a imagem da minha juventude.

 

Estamos no começo do verão. E Hoja, finalmente, entrou em ação ao saber que o soberano nos esperava, e a arma, em Edirne. Foi então que percebi que ele tinha tudo pronto, que mantivera contato durante todo o inverno com o grupo de homens que havia operado com a arma. Em três dias, estávamos prontos para partir. Hoja passou a última noite como se estivéssemos de mudança para uma casa nova, folheando seus velhos livros de lombadas rotas, tratados inacabados, rascunhos já amarelecidos, objetos de uso pessoal, e assim por diante. Pôs para funcionar seu antigo e enferrujado relógio de orações e tirou a poeira dos instrumentos de astronomia. Ficou acordado até o sol raiar, examinando o produto de vinte e cinco anos de esboços e rascunhos de livros, modelos e armas. Era dia claro e ele ainda virava as folhas um tanto dilaceradas e amarelentas da pequena caderneta que eu enchera de observações para aquele primeiro espetáculo de fogos de artifício. Ele perguntou timidamente: deveríamos levar aquilo conosco? Achava eu que aquelas coisas nos poderiam ser úteis? Depois, vendo que eu o olhava sem qualquer expressão, jogou tudo para um canto, aborrecido.

Não obstante, nos dez dias de viagem de Istambul até Edirne, estivemos próximos um do outro, se bem que menos do que antigamente. Acima de tudo, Hoja estava otimista. Nossa arma, a que chamavam indiferentemente aleijão, inseto, satanás, casco de tartaruga, torre movediça, monte de ferro velho, galo verme­lho, chaleira de rodas, monstrengo, gigante, ciclope, porco, cigano, assombração de olhos azuis, começou a rodar pela estrada com extrema lentidão e um bizarro estrépito compósito, pontuado de guinchos e roncos, que infundia em nós o terror que Hoja queria para o inimigo! E logo andava mais depressa do que ele previra. O inventor se deliciava vendo que os curiosos acorriam das aldeias vizinhas e se alinhavam no alto das colinas, dos dois lados da estrada, esticando o pescoço para ver a máquina, cuja aproximação temiam. À noite, no silêncio perfurado de grilos, quando nossos homens dormiam profundamente nas suas barracas, depois de terem suado sangue e lágrimas o dia todo, Hoja descrevia para mim a devastação que seu galo de rinha ia fazer nos arraiais do inimigo. É verdade que ele não era mais tão exuberante quanto no passado, e se preocupava, como eu também, com a reação do exército, e dos amigos do sultão, com o papel que lhe atribuiriam na formação de ataque etc. Mas ele era ainda capaz de falar com satisfação e certeza da nossa “última oportunidade”, de como ele conseguira virar a maré a nosso favor, e, com maior empáfia, do tema do “eles e nós”. Não perdera sua eterna mania.

A arma entrou em Edirne com algum cerimonial. Mas só o sultão e uns poucos sicofantas do seu séquito a receberam com calor. O sultão tratou Hoja como um velho amigo. Havia prognósticos de guerra, mas nenhuma preparação ou alvoroço; o soberano e Hoja começaram a passar os dias juntos, e eu os acompanhava, quando montavam a cavalo e iam até as matas escuras ouvir o canto dos passarinhos, ou faziam excursões de barco descendo os rios Tunja e Merich para observar os sapos, ou iam fazer festas às cegonhas que tinham ficado arranhadas em lutas com águias e gemiam no pátio da mesquita Selimiye, ou observavam uma vez mais a arma em ação, eu estava sempre com eles. Mas descobri, com mágoa, que não tinha o que oferecer como contribuição à conversa dos dois, nada que eu pudesse dizer com sinceridade ou que pudessem achar de interesse. Talvez eu sentisse ciúmes da intimidade entre ambos. Mas sabia que, na verdade, estava farto daquilo tudo. Hoja recitava ainda as mesmas poesias e, àquela altura, eu ficava chocado vendo como o soberano se deixava levar pelas velhas balelas de superioridade, e vitória, fácil de que o tempo era chegado para nos erguermos, afinal, e tomar a iniciativa. Hoja falava também ao sultão, para agradá-lo, do futuro e dos mistérios da mente humana.

Um dia, em meados do verão, um verão pejado de rumores de guerra, Hoja anunciou que precisava de um companheiro robusto e me pediu que o acompanhasse. Atravessamos Edirne a passos rápidos, passando pelo bairro dos ciganos e pela judia­ria, e atravessando depois ruas cendradas e fantasmagóricas, por onde eu já havia transitado antes com o mesmo sentimento de opressão que agora me tomava, diante das casas de muçulmanos pobres, muitas das quais difíceis de distinguir umas das outras. Percebi, a certa altura, que as fachadas cobertas de hera que eu vira à esquerda se perfilavam agora à minha direita e entendi que voltávamos sobre os nossos passos. Perguntei onde estávamos e me disseram que aquele era o distrito de Fildami. De repente, Hoja bateu a uma porta. Uma criança de olhos verdes, aos seus oito anos de idade, veio abrir.

— Leões — disse Hoja. — Leões fugiram do palácio do sultão e estamos dando uma busca.

Ele afastou a criança do caminho e entrou na casa comigo em seus calcanhares. Avançamos rapidamente pela semi-obscuridade reinante no interior e subimos uma escada que estalava e nos levou a um salão comprido, no andar de cima. Hoja começou a abrir as portas que davam para essa passagem. No primeiro quarto havia um ancião, que dormia. Sua boca desdentada estava muito aberta, e duas outras crianças que riam preparavam-se para puxar-lhe a barba. Pularam, sobressaltadas, quando viram a porta abrir. Hoja fechou-a e abriu outra. Havia uma pilha de acolchoados lá dentro, e material para acolchoamento. A criança, que abrira a porta da rua, segurou a maçaneta da porta do terceiro quarto antes que Hoja o fizesse, dizendo:

Aí dentro não está nenhum leão, só minha mãe e minha tia.

Hoja abriu a porta assim mesmo. As duas mulheres estavam de costas para nós e faziam suas preces à luz pálida que entrava pela janela. No quarto aposento, um homem costurava um colchão. Ele se parecia mais comigo que com Hoja, porque não usava barba, e se levantou quando o viu:

— Seu louco! — exclamou. — O que faz aqui? O que quer de nós?

— Onde está Semra? — perguntou Hoja.

— Ela foi para Istambul há dez anos — respondeu o homem. — Ouvimos dizer que morreu de peste. Por que você também não bateu as botas?

Hoja não disse mais nada. Desceu as escadas e saiu da casa. Fui atrás dele mas pude ainda ouvir que a criança dizia alguma coisa e que a mulher lhe respondia.

— Os leões estiveram aqui, mãe!

— Não, criança, foram seu tio e o irmão dele.

Talvez por não ser capaz de esquecer o passado, talvez em preparação para a minha nova vida e para este relato, que o leitor ainda acompanha, pacientemente, duas semanas depois voltei àquele mesmo lugar ao alvorecer... De início, não podendo ver bem à luz coada da manhã, tive dificuldade em encontrar a casa. Quando consegui identificá-la, retornei pelo caminho que me pareceu ser o melhor atalho para o hospital da mesquita de Beyazit. Possivelmente por estar enganado, pensando que Hoja e sua mãe teriam ido outrora pelo caminho mais curto, não achei a estrada ensombrada de álamos que levava à ponte. Encontrei uma estrada com álamos, mas não havia um rio onde eles pudessem ter descansado comendo halva discretamente tantos anos antes. E no hospital não havia as coisas que eu imaginara, não era enlameado mas perfeitamente limpo, não se ouvia o som de água corrente nem havia garrafas de cor. Quando vi um paciente acorrentado, não pude resistir ao desejo de fazer perguntas a um médico sobre ele. O homem se apaixonara, ficara louco e agora acreditava ser outra pessoa, como a maior parte dos loucos. O médico me contaria muito mais que isso, mas fui embora.

Já desesperávamos de ver tomada a decisão de embarcar na campanha quando isso ocorreu, no fim do verão, e no dia em que menos se esperava: os poloneses, que não se conformavam com a derrota do ano precedente, nem com a pesada taxação que se seguiu à guerra, enviaram a seguinte mensagem: “Se querem receber seus impostos venham de espada desembainhada.” Enquanto se planejava a formação de ataque, ninguém no exército cogitou de empregar a arma, e Hoja passou vários dias sufocado de raiva. Ninguém queria marchar para a batalha ao lado daquela ferralha toda. Ninguém esperava nada útil de uma espécie de chaleira gigante. Pior: achavam que a arma era aziaga. Na véspera da partida, enquanto Hoja examinava os prognósticos para a campanha, ouvimos dizer que nossos rivais intrigavam e diziam abertamente que a arma tanto podia trazer a vitória quanto o desastre. E quando Hoja me disse que a responsabilidade pela pretendida maldição era mais minha que dele, na boca do povo, fiquei apavorado. O soberano manifestou sua confiança em Hoja e na arma e ordenou, para evitar mais discussões, que, durante a batalha, o engenho ficasse diretamente subordinado à sua pessoa, às suas forças. Num dia quente do princípio de setembro deixamos Edirne.

Todo mundo pensava que era tarde no ano para encetar uma campanha, mas não se debateu muito isso. Eu começava a ver que, na guerra, os soldados têm tanto medo de maus augúrios quanto do inimigo e, às vezes, mais. Naquela nossa campanha, lutavam muito contra esse medo. Na primeira noite, depois de marcharmos para o norte através de aldeias prósperas, passando pontes que gemiam sob o peso da arma, tivemos a surpresa de sermos convocados à barraca do sultão. Como os seus soldados, o soberano ficara, de súbito, infantil. Tinha o ar de um garoto excitado e impaciente que apetecesse o começo de um jogo novo. Ficava perguntando a Hoja, tal como os soldados, como interpretar este ou aquele sinal: uma nuvem cor de sangue escondendo o sol poente; os falcões voando baixo; a chaminé partida de uma casa de aldeia; as cegonhas voando para o sul. O que queriam dizer essas coisas? Hoja, naturalmente, interpretava todos os presságios favoravelmente.

Ao que parecia, no entanto, nosso trabalho não estava ter­minado. Descobríramos que, em viagem, o soberano gostava particularmente de ouvir histórias estranhas e horripilantes à noite. Hoja conjurou imagens sombrias da apaixonada poesia do livro de que eu mais gostava, de quantos havíamos feito, e que fora presenteado ao sultão havia muitos anos. Tinha ilustrações em que abundavam os cadáveres, imagens de batalhas sangrentas, derrotas, traições, e misérias, mas ele dirigia os olhos arre­galados do sultão para a chama da vitória que brilhava a um canto do quadro. Tínhamos de alimentar aquela chama com os foles da nossa inteligência, “deles e nossa”, e descobrir as verdades secretas do interior de nossas mentes e todas as outras coisas que Hoja me dizia há anos, e que eu desejava esquecer agora — tínhamos de sair do nosso estado sonolento o mais depressa possível! Eu começava a ficar cansado daquelas histórias lúgubres, mas toda noite Hoja acrescentava um pouco mais ao que havia nelas de sinistro, de malevolente, talvez por pensar que o próprio soberano também já começava a ficar saturado com elas. Mas de novo senti que o sultão estremecia de prazer quando Hoja mencionava o interior de nossas mentes.

As caçadas começaram uma semana depois da partida. Um pequeno destacamento, que viera com o exército para esse fim, adiantava-se do grosso da tropa e vasculhava a área. Em seguida, atravessando campos cultivados e acordando os camponeses, o soberano, nós e os caçadores galopávamos ora para uma floresta famosa por suas gazelas, ora para as encostas de um morro habitado por javalis, ora para uma outra floresta rica em lebres e raposas. Depois dessas curtas e alegres diversões, nós nos reincorporávamos à marcha com uma elaborada fanfarra, como se regressássemos, vitoriosos, de alguma batalha. O exército saudava o soberano, e nós assistíamos à cerimônia, perfilados diretamente atrás dele. Hoja odiava esse ritual, mas eu adorava tomar parte dele. Gostava, também, de conversar com o sultão, à noite, muito mais sobre a caçada que sobre a marcha, as aldeias pelas quais o exército havia passado, o estado das cidades e as últimas notícias do inimigo. Até que Hoja, enraivecido com esse tipo de conversa, que achava estúpido e idiota, começava com suas histórias e predições, que escalavam em violência a cada noite que passava. Como outros do seu círculo, até eu já me entristecia vendo o sultão dar crédito a tais patranhas que tinham a intenção de serem assustadoras, ou a história de fantasmas sobre os escuros recessos da mente.

Mas eu seria testemunha de coisa ainda pior! Estávamos caçando mais uma vez. Uma aldeia vizinha fora evacuada. Os habitantes, distribuídos pela mata, batiam panelas de metal a fim de dirigir, com esse clamor, o javali ou o veado para o lugar onde estávamos de tocaia, com nossas montarias e armas. Mesmo assim, às doze horas, não aparecera ainda qualquer animal. Para aliviar nosso enfado, e o desconforto do calor do meio-dia, o soberano mandou que Hoja narrasse um daqueles contos que lhe arrepiavam os cabelos à noite. Avançávamos muito devagar, de ouvido no ruído apenas perceptível das panelas, ao longe, quando, ao entrar numa aldeia cristã, fizemos alto. Foi então que vi Hoja e o sultão apontarem uma das casas abandonadas da aldeia e acenarem para um velho magro que esticara o pescoço fora da porta. Chamavam-no. Um pouco antes, tinham estado a discutir os “outros” e o que se passava dentro da cabeça deles. Agora, vendo a expressão de fascínio no semblante dos dois, e ouvindo Hoja formular algumas perguntas ao homem através de um intérprete, eu me aproximei, já abominando o que viria. Hoja pedia ao homem que respondesse incontinenti, sem pensar, qual fora a pior transgressão de que se lembrava, a pior coisa que fizera na vida. O aldeão, num dialeto eslavo que o intérprete tinha dificuldade para traduzir, murmurava em voz rouca que ele era um velho irrepreensível, inocente. Mas Hoja insistia, com uma veemência peculiar, que o ancião falasse sobre si mesmo. Só ao perceber que o soberano estava tão atento quanto Hoja, o velho confessou ter, de fato, pecado. Sim, ele era culpado, deveria ter deixado a aldeia com os demais, deveria ter ido com seus irmãos e irmãs levantar os animais para os caçadores, mas tinha uma desculpa: estava doente, não tinha saúde para correr pela floresta o dia inteiro. E, quando fez um vago gesto em direção ao coração, pedindo que o perdoassem, Hoja se enfureceu e gritou que falava de pecados de verdade, não daquilo. O camponês, todavia, não parecia entender a pergunta, embora o tradutor a repetisse seguidamente. Acabou, ele também, pondo a mão, pesaroso, no coração: não sabia mais o que dizer. O velho foi levado embora. Quando um segundo habitante que trouxeram saiu-se com as mesmas coisas, Hoja se pôs rubro. Passou logo a relatar ao desconhecido as minhas transgressões quando criança, as mentiras que eu havia contado para ser mais querido que meus irmãos e irmãs, e as indiscrições sexuais que cometera quando estudante de universidade, tudo como se descrevesse os crimes de um pecador anônimo e desse exemplos de perversidade e vício como deixas para o aldeão. E eu ouvia, lembrando com repugnância e vergonha os dias que tínhamos passado juntos, ao tempo da peste, os mesmos que hoje recordo com saudades ao escrever este livro. Quando o último habitante do lugar a que nos trouxe­ram, um aleijado, confessou, num fio de voz, haver espionado mulheres que tomavam banho no rio, Hoja se acalmou um pouco. Sim, vejam bem, era assim que eles se comportavam, quando confrontados com os próprios pecados: eram capazes de encará-los. Quanto a nós que, supostamente, compreendíamos o que acontecia no recesso da mente etc, etc. Eu queria crer que o sultão não ficara impressionado.

Mas a verdade é que seu interesse fora estimulado. Dois dias depois, ele fechou os olhos a uma reedição do mesmo drama no curso de uma outra caçada, talvez por não poder suportar a insistência de Hoja, talvez por experimentar mais prazer com o interrogatório do que tinha imaginado. Já então havíamos atravessado o Danúbio e estávamos outra vez numa aldeia cristã. As perguntas que Hoja fazia aos habitantes pouco diferiam das anteriores. Elas me faziam lembrar a violência daquelas noites durante a peste, quando consegui fazer com que ele pusesse por escrito os seus pecados. Inicial­mente, eu nem quis ouvir as respostas que lhe davam os aldeões, que temiam as perguntas, e o homem que as fazia, aquele juiz anônimo, tacitamente apoiado pelo sultão. Fiquei tomado de uma estranha náusea. Mais do que a Hoja, eu culpava o soberano, que, se não estava sendo manipulado por ele, era incapaz de resistir à atração desse jogo sinistro. Mas não demorou muito e eu também me vi fascinado. Um homem não perde nada por apenas ouvir, pensei, e me acerquei deles. Muitos dos pecados e iniqüidades, contados agora numa linguagem delicada, mais agradável aos meus ouvidos, eram parecidos uns com os outros: simples mentiras, pequenas trapaças; um ou dois golpes sujos; uma ou duas infidelidades; e, quando muito, uns poucos furtos insignificantes.

À noite, Hoja comentou que os moradores da aldeia não tinham revelado tudo, estavam escondendo a verdade. Eu mesmo fora muito mais longe nas minhas confissões. Eles deviam ter cometido faltas infinitamente mais graves, mais profundas, mais reais, que os diferenciariam de nós. A fim de convencer o sultão, de arrancar-lhes essas verdades, de provar que espécie de homens eles eram em contraposição a nós, estava disposto a recorrer à violência, se necessário fosse.

Essa brutalidade de mau gosto foi ficando mais virulenta e sem sentido a cada dia que passava. No começo, tudo fora simples: éramos como crianças brincando, que trocassem pilhérias inofensivas, por grosseiras que fossem, nos intervalos. Cada hora de interrogatório era como que um pequeno entreato separando nossas longas e agradáveis partidas de caça. Mas, com o tempo, a inquisição se fez ritual. E embora minasse nossa vontade, nossa paciência, nossos nervos, tornou-se indispensável. Vi camponeses estupefatos de horror em face das perguntas de Hoja e seu furor absolutamente incompreensível. Se, pelo menos, compreendessem o que se esperava deles, talvez tivessem assentido. Vi homens velhos, desdentados e frágeis, serem conduzidos como gado para a praça da aldeia. Antes de gaguejarem seus malfeitos, reais ou imaginários, eles imploravam socorro dos circunstantes, nós inclusive, com desespero no olhar. Vi jovens maltratados, lançados por terra e obrigados a levantar-se outra vez, quando suas confissões e pecados eram considerados insatisfatórios. Eu me lembrava muito bem de quando, depois de ler o que eu havia escrito, Hoja dissera “Seu patife!” e me dera um murro entre as omoplatas, resmungando e roendo-se de raiva. Não entendia que eu pudesse ser tão vil. Mas agora ele tinha uma idéia mais clara do que estava procurando, da conclusão a que queria chegar, mesmo se não precisa­mente. Experimentou outros métodos também: muitas vezes interrompia o que um aldeão dizia, insistindo em que era mentira. Nossos homens, então, lhe batiam. Em outras ocasiões, inter­rompia a vítima, alegando que um dos seus amigos dissera coisa diferente. Chegou a pensar em chamar os infratores de dois em dois. Quando via que as confissões eram superficiais e que os homens, envergonhados, não se abriam, como ele desejava, em público, apesar da brutalidade dos guardas, tinha acessos de raiva.

Quando as chuvas, pesadas, inexoráveis, começaram, eu já estava quase acostumado ao que acontecia. Lembro-me de aldeãos que disseram pouco e não tinham intenção de dizer mais e serem espancados inutilmente e obrigados a ficarem de pé e molhados até os ossos, na praça enlameada de uma aldeia, hora após hora. Com a passagem do tempo, os atrativos das caçadas se esfumaram, e nossas excursões foram reduzidas. Ocasional­mente, matávamos uma gazela de olhos tristes ou um javali cevado, o que entristecia o sultão, mas a preocupação central eram, agora, os interrogatórios, cujos preparativos, como anteriormente os das caçadas, começavam com grande antecedência. À noite, como se se sentisse culpado pelo que fizera o dia todo, Hoja desabafava comigo. Tudo o que de fato sentia vinha à tona. Ele também não gostava do que estava acontecendo, da violência, mas queria ainda provar alguma coisa, alguma coisa que seria benéfica para todos nós. Queria demonstrar isso ao sultão também. E, ademais, por que os aldeãos escondiam a verdade? Mais tarde, ele disse que deveríamos fazer a mesma experiência numa aldeia muçulmana, para comparação. Isso, no entanto, não deu resultado. Embora ele tivesse interrogado os habitantes com o mínimo de coerção, a verdade é que eles fizeram mais ou menos as mesmas confissões e contaram as mesmas histórias que seus vizinhos cristãos. Foi num desses dias deploráveis, em que a chuva não dava trégua, e Hoja resmungou umas poucas palavras implicando que eles não eram verdadeiros muçulmanos, mas à noite, quando os acontecimentos do dia foram discutidos, vi que ele percebera que essa verdade não havia escapado ao sultão.

A descoberta apenas aumentou a sua fúria e o obrigou a recorrer a uma dose maior de violência que o sultão estava disposto a testemunhar mas que, como eu, acompanhou com uma curiosidade mórbida. À medida que progredíamos para o norte, ingressávamos outra vez numa área densamente arboriza­da, em que os camponeses falavam um dialeto eslavo. Numa pequena aldeia, pitoresca, Hoja bateu com os próprios punhos fechados num adolescente bem-apessoado que não conseguiu oferecer mais que uma mentira infantil. Hoja jurou que não faria aquilo de novo, e se mostrou, à noite, esmagado por um sentimento de culpa que até eu julguei excessivo. Em outra ocasião, quando uma chuva amarelada caía, pensei ver as mulheres da aldeia chorando de longe pelo que estava sendo feito com seus homens. Mesmo nossos soldados, que já estavam, a essa altura, peritos no que tinham de fazer, mostravam-se enojados com o que acontecia. Algumas vezes, eles mesmos escolhiam, antes que nós o fizéssemos, quem seria o próximo homem a confessar e nosso intérprete fazia as primeiras perguntas em lugar de Hoja, que parecia exaurido pela própria cólera. Não que deixássemos de encontrar, eventualmente, vítimas interessantes, que contavam os próprios pecados longamente, detalhadamente, como se, no fundo dos seus corações, tivessem esperado durante anos por aquele dia de interrogatório apavorados e aturdidos, ao mesmo tempo, ou pela notícia da nossa violência, a qual, como sabíamos, passara de aldeia a aldeia até tornar-se lenda, ou pelo espectro de alguma justiça absoluta cujo mistério eram incapazes de penetrar. Mas, já agora, Hoja não se interessava por infidelidades de maridos e mulheres, ou por histórias de aldeãos pobres que invejavam vizinhos ricos. Ele repetia, sem cessar, que havia uma verdade mais profunda, mas penso que duvidava, de quando em quando, como nós outros, se seríamos capazes de descobri-la alguma dia. Ou, pelo menos, percebia as nossas dúvidas, e se irritava com elas, mas nós todos, e o sultão também, sabíamos que ele não tinha intenção de desistir. Talvez por esse motivo nos tornamos espectadores resignados, que víamos como ele tomava as rédeas nas próprias mãos. Uma vez, abrigados contra um temporal debaixo de um telheiro, animou-nos a visão de um Hoja encharcado que interrogava um adolescente que odiava o padrasto e os meio-irmãos por maltratarem sua mãe. Mas, à noite, ele deu o assunto por encerrado, dizendo que aquele era apenas um rapazinho comum, que não merecia ser lembrado.

Continuamos a marchar para o norte. O caminho, que ser­penteava entre as altas montanhas, era lamacento, cortava densas florestas negras, e progredíamos muito devagar. Eu gostava do ar frio, do escuro da mata, rica em pinheiros e faias, do silêncio nevoento propício à dúvida, e que tornava tudo indistinto. Embora ninguém chamasse as montanhas pelo nome, acredito que estivéssemos nos primeiros contrafortes dos Cárpatos, que eu vira na infância num mapa da Europa que meu pai tinha, e que fora desenhado por algum artista medíocre e enfeitado por ele com representações de alces e castelos góticos. Hoja se resfriou com as chuvas, e estava doente, mas nós nos entranhávamos assim mesmo na floresta toda manhã, separando-nos da coluna que avançava a passo por uma estrada que se torcia como se quisesse impedir que alcançássemos qualquer destinação. Era como se tivéssemos esquecido as caçadas; como se estivéssemos às margens de um lago ou à beira de um precipício, não para matar veados, mas para fazer com que os campônios que esperavam por nós esperassem mais tempo! Quando decidíamos que o tempo era chegado, adentrávamos uma aldeia e, após cumprir o ritual de sempre, seguíamos no rastro de Hoja, que nos conduzia a outra, mais adiante, e a outra ainda, incapaz de encontrar o tesouro que buscava, mas decidido a esquecer desesperadamente aqueles que maltratava e espancava — e seu próprio desespero. Em certa ocasião, ele se propôs a fazer uma experiência. O soberano, cuja paciência me deixava atônito, mandou avançar vinte janízaros a pedido dele. Hoja fez as mesmas perguntas: primeiro a eles, depois aos camponeses de cabelo cor de linho que estavam de boca aberta diante de suas casas. Em outra ocasião, ele trouxe os aldeãos conosco, exibiu-lhes a máquina de guerra que vinha a reboque, rinchando e gemendo no esforço de acompanhar a infantaria naquelas estradas barrentas. Perguntou-lhes o que pensavam da arma e fez com que os escribas tomassem nota das respostas dadas. Mas sua força estava no fim. Talvez fosse, como ele dizia, pelo fato de não sabermos nada da verdade; talvez por estar, ele mesmo, intimidado com aquela violência gratuita e sem sentido; talvez por sentir-se esmagado pelo sentimento de culpa que se apoderava dele à noite; talvez por estar farto de ouvir exército e paxás resmungarem sua reprovação contra a arma e contra o que se passara na floresta; ou talvez, simplesmente, por sentir-se enfermo. Não sei. Sua voz já não ribombava como outrora e ele perdera sua velha animação em fazer perguntas cujas respostas sabia de cor. À noite, quando falava de vitória, de futuro, ou de como precisávamos subir mais para ficarmos a salvo, era como se a sua própria voz, cujo diapasão ia diminuindo com a passagem do tempo, não acreditasse no que ele dizia. A última imagem que me ficou dele foi interrogando, sem nenhuma convicção, alguns eslavos perplexos de uma aldeia qualquer enquanto uma chuva tocada a amarelo, como fumos de enxofre, recomeçava a cair. Não queríamos ouvir mais nada e guardávamos distância. Através daquela luz fantasmagórica, que a chuva achatava, nós os vimos olhando sem expressão as próprias caras num grande espelho de moldura dourada que Hoja passava de mão em mão.

Não empreendemos outras expedições de “caça”. Tínhamos vadeado o rio e entrado na terra dos poloneses. Nossa arma não conseguia progredir em estradas que se tinham convertido em argila empapada naquela chuva detestável e interminável, e parecia mais pesada a cada dia que passava. Ela atrasava a marcha, justamente agora que cumpria andar depressa. Foi, então, que os rumores aumentaram sobre a natureza aziaga do engenho, a que os paxás já tinham ódio. Ela nos traria má sorte e, até, faria recair sobre nós a maldição. Esses rumores eram condimentados com as inconfidências dos janízaros que tinham participado das “experiências” de Hoja. Como sempre, não culpavam a Hoja, mas a mim, o infiel. Quando Hoja começava com suas arengas de sempre, entremeadas de versos que agora deixavam até o soberano impaciente, e falava da indispensabilidade da arma, do poder do inimigo, da necessidade de criarmos ânimo e assumir a iniciativa, os paxás que o escutavam na tenda do sultão ficavam ainda mais firmemente convencidos de que nós éramos charlatões e que o nosso engenho de guerra dava azar. Viam Hoja como um homem doente que se desencaminha­ra, mas que era recuperável. O culpado, o perigoso, era eu, que enganara Hoja e o soberano. Eu, o verdadeiro autor daquelas idéias funestas. À noite, quando nos retirávamos para a nossa barraca, Hoja vilipendiava os paxás na sua voz destroçada, exatamente como costumava fazer no passado ao falar dos idiotas anônimos. Mas, já nada restava da alegria e da esperança que eu acreditava havermos conseguido manter viva naquele tempo.

Podia ver, no entanto, que ele não estava ainda disposto a desistir. Dois dias depois, quando a máquina ficou atolada na lama bem no meio da formação de marcha, eu perdi as esperanças. Mas Hoja continuou a lutar, doente como estava. Ninguém nos cedeu um homem ou, sequer, um cavalo. Hoja foi falar com o sultão, e descobriu quase quarenta cavalos. Mandou que fossem desatrelados do canhão, reuniu um grupo de soldados, e, à noitinha, depois de pelejar o dia inteiro, debaixo do olhar dos que rezavam para que a máquina afundasse na lama e ficasse atolada para todo o sempre, ele açoitou os cavalos com fúria e conseguiu que o nosso monstruoso inseto se movesse. Passou a noite discutindo com os paxás, que queriam livrar-se de nós, e diziam que a arma solapava o moral da tropa, além de trazer má sorte. Mas eu sentia que eleja não acreditava na vitória.

Naquela noite, em nossa tenda, quando procurei tocar alguma coisa no 'ud que conseguira levar comigo, Hoja tomou-o das minhas mãos e o lançou para o lado. Estava eu ciente de que pediam a minha cabeça? Estava. Ele me disse que ficaria feliz se estivessem atrás da cabeça dele e não da minha. Eu sabia que isso era verdade, mas não disse nada. E estava a ponto de apanhar outra vez o 'ud, quando ele me interrompeu, pedindo que lhe falasse mais sobre o meu país. Quando lhe contei duas pequenas mentiras convencionais, como fazia com o soberano, ele se pôs colérico. Queria a verdade, fatos reais. Fez perguntas específicas sobre minha mãe, minha noiva, meus irmãos e irmãs. Quando comecei a dizer a “verdade”, ele se pôs a falar ao mesmo tempo, em voz baixa, no italiano que aprendera comigo, em frases curtas e incompletas cujo sentido em parte me escapava.

Nos dias seguintes, quando viu as fortalezas arruinadas que nossas forças haviam capturado, senti que estava desesperada­mente preocupado com pensamentos estranhos e malévolos. Um dia, em que avançávamos lentamente através de uma aldeia atingida pelo nosso canhoneio, ele desmontou ao ver um grupo de feridos que agonizavam ao pé de um muro, e correu para eles. Vendo-o a distância, pensei, de início, que queria ajudá-los, socorrê-los, ou dar-lhes consolo. Indagaria sobre os seus feri­mentos se tivesse um intérprete à mão. Mas não era isso. Percebi que estava, ao invés, possuído de um entusiasmo cujo motivo me escapava. Havia outra coisa que ele queria perguntar-lhes. No dia seguinte, quando acompanhamos o sultão numa visita às fortificações e pequenas torres derruídas de um lado e outro da estrada, Hoja manifestou o mesmo estado de excitação da véspera ao ver um ferido cuja cabeça ainda não fora separada do corpo. Jazia entre as barricadas de madeira e os edifícios arrasados pelo canhão. Hoja correu para ele. Eu o segui, a fim de impedir que cometesse algum ato de vilania. Tinha medo de que pensassem que eu o induzira a fazer o que quer que fizesse. Ou fui por simples e baixa curiosidade. Era como se ele achasse que os feridos, cujos corpos os projéteis e obuses tinham retalhado, pudessem dizer-lhe alguma coisa relevante antes de afivelarem ao rosto a máscara da morte; Hoja estava preparado para inter­rogá-los; deles conheceria a verdade suprema que transformaria tudo num instante, mas vi que identificar imediatamente o desespero estampado nas fisionomias daqueles que estavam tão próximos da morte com o seu próprio desespero, de modo que quando chegou junto deles estava incapaz de articular uma só palavra.

Naquele mesmo dia, ao crepúsculo, sabendo que o sultão estava irritado, pois o castelo Doppio não fora capturado a despeito de todos os esforços, Hoja foi ter com ele, presa ainda do mesmo estado de excitação. Estava apreensivo ao voltar, mas parecia não saber por quê. Tinha dito ao soberano que desejava pôr a sua arma em ação. Tinha dito que fora para aquele dia que trabalhara tantos anos na máquina. O soberano, contrariando a minha expectativa, concordara em que o momento havia soado, mas julgara necessário dar mais tempo a Huseyn Paxá o Louro, a quem já cometera a missão de atacar o castelo fortificado. Por que teria dito isso o soberano? Nunca soube ao certo, no correr dos anos, se Hoja me fez essa pergunta ou a si mesmo. Por algum motivo, eu já não me sentia próximo dele, estava farto daquela ansiedade toda. Mas já Hoja respondia ao que havia perguntado: era por temerem que ele lhes roubasse uma parte da vitória!

Até a tarde seguinte, quando ficamos sabendo que Huseyn Paxá o Louro não fora ainda capaz de conquistar o castelo, Hoja gastou toda a sua energia tentando convencer-se de que estava certo. Com os rumores de que eu era aziago e espião, já não me admitiam à tenda do sultão. Naquela noite, quando ele foi interpretar os acontecimentos do dia, Hoja teve um certo êxito: o sultão pareceu dar crédito às suas arengas sobre vitória e boa sorte. Quando regressou à nossa barraca, arvorava outra vez o ar otimista de um homem confiante na sua capacidade de prevalecer contra Satanás ao final do desafio. E é curioso que ouvindo-o, eu tivesse ficado menos impressionado com o seu otimismo que com o extraordinário esforço que devia estar fazendo para mantê-lo à tona.

Ele veio com as mesmas histórias de sempre sobre nós e eles, e sobre a vitória iminente, inescapável, mas havia na sua voz uma tristeza que eu nunca percebera antes e que acompanhava as histórias como um fundo musical de grande melancolia. Era como se falasse de uma memória da infância que ambos conhecêssemos muito bem, por a termos partilhado uma vida inteira. Ele não objetou quando peguei meu 'ud, nem quando corri os dedos, desajeitadamente, pelas suas cordas. Falava do futuro, dos dias radiosos que teria depois de virar a direção do rio no sentido que lhe interessava. Mas, nós ambos, sabíamos que ele falava, na verdade, do passado: visões de tranqüilidade me passaram diante dos olhos, belas árvores num jardim fechado por trás de uma casa, quartos quentes, brilhantes de luz, uma família feliz e numerosa, congregada em torno da mesa de jantar. Aquilo me dava um sentimento de paz pela primeira vez em anos. Eu entendi o que ele dizia, que seria duro partir, que amava as pessoas à sua volta. Depois, refletindo sobre essas pessoas por um momento, ele lembrou-se dos seus idiotas e ficou enfurecido; eu considerei que havia bons motivos para isso. Parecia que seu otimismo não era simples afetação. Talvez porque esse sentimento de que uma vida nova estava às portas, fosse algo que ambos sentíssemos. Ou talvez eu pensasse que agiria do mesmo modo se estivesse em lugar dele. Não sei.

Na manhã seguinte, quando, juntos, pusemos a máquina para funcionar, experimentalmente, contra uma pequena fortificação inimiga nas proximidades da frente de combate, tivemos, os dois, a mesma estranha premonição de que não lograríamos sucesso. Aproximadamente cem homens, que o soberano tinha colocado à nossa disposição, saíram de forma e dispersaram durante a primeira investida da arma. Alguns foram esmagados por ela, outros se feriram quando ela empacou como um burro na lama, depois de alguns disparos inócuos, e eles se viram sem cobertura. Muitos fugiram espavoridos, com medo da má sorte, e não conseguimos reagrupar a bateria para um novo ataque. Acho que nós dois pensávamos a mesma coisa.

Mais tarde, quando Hasan Paxá o Gordo e seus homens tomaram a fortificação, quase sem baixas e em menos de uma hora, Hoja quis pôr à prova aquela profunda ciência uma vez mais, dessa vez com uma esperança que eu também julgava compreender perfeitamente, mas todos os soldados infiéis da guarnição haviam sido passados pelas armas. Não havia um só homem vivo, de resto, entre as ruínas fumegantes das barricadas. E quando vi as cabeças empilhadas a um lado para serem levadas ao soberano, soube na hora o que Hoja estava pensando. Cheguei mesmo a julgar seu fascínio justificado, mas já não suportava vê-lo ir longe demais. Dei-lhe as costas. Pouco depois, quando olhei, vencido pela curiosidade, eleja se afastava da pirâmide de cabeças. E nunca pude saber até onde ele chegara.

Ao meio-dia retomamos a marcha, e ouvimos que o castelo Doppio não fora ainda tomado. Aparentemente, o sultão estava furioso, falava em punir Huseyn Paxá o Louro. Todos nós, o exército em peso, engrossaríamos o cerco! O soberano disse a Hoja que, se o castelo não caísse até o anoitecer, nossa arma seria usada no ataque da manhã, e ordenou que um comandante inepto, que não conseguiria conquistar nem uma pequena posição fortificada depois de um dia inteiro de ataques, fosse decapitado. O sultão não dera atenção ao fiasco da nossa arma contra a fortificação, embora a notícia já tivesse alcançado a coluna. Também não fizera caso dos rumores sobre a má sorte que ela podia trazer. Hoja já não falava em sua eventual parte na vitória: embora ele não a confessasse, eu sabia que estava pensando na morte do antigo astrólogo imperial; e, quando eu pensava em cenas da minha infância, ou nos animais da nossa propriedade, sabia que as mesmas coisas estariam passando pela cabeça dele; sabia que ele também pensava que a notícia de uma vitória no castelo seria a nossa última chance, que ele realmente não acreditava nessa chance, nem a desejava. Sabia que havia uma pequenina igreja em chamas, com sua torre, numa aldeia destruída por ódio ao castelo que se mostrava inexpugnável, e que nessa igreja as preces entoadas por um bravo sacerdote nos chamavam a uma vida nova; que, à medida que marchávamos para o norte, o sol, deitando-se por trás das colinas da floresta, acordava nele, como em mim, o sentimento da perfeição de algo que está sendo conduzido silenciosamente, cuidadosamente, à perfeição.

Depois que o sol se pôs, e que soubemos que não só Huseyn Paxá o Louro tinha falhado mas que austríacos, húngaros e casaques se tinham aliado aos poloneses no cerco de Doppio, avistamos, finalmente, o próprio castelo. Estava no topo de uma colina elevada, e havia muitas bandeirolas e flâmulas nas suas torres. O fulgor vermelho do sol poente as tingia de leve. Mas o castelo era branco, do branco mais puro, e muito belo. Não sei por que pensei, então, que só se podia ver uma coisa assim, tão bela e inacessível, num sonho. Nesse sonho, se subiria por uma estrada que serpenteava através de uma floresta escura, procurando alcançar, naquele cimo de colina, o dia claro e o edifício ebúrneo. Como se houvesse, lá no alto, um grande sarau em que se pudesse tomar parte, uma chance de felicidade que não se podia perder, mas, embora se esperasse atingir o fim do caminho a todo instante, o caminho não tinha fim. Quando soube que o rio havia deixado um pântano fétido após invadir as terras baixas, entre os escuros bosques e o sopé da elevação, embora tivesse cruzado o alagadiço, e que a infantaria, não conseguia escalar a colina por mais que tentasse, a despeito da cobertura que o canhão lhe dava; pensei na estrada que nos trouxera até ali. Era como se tudo tivesse sido perfeito demais, tão perfeito quanto a visão daquele castelo de alvura imaculada, com pássaros voejando em tomo de suas torres, tão perfeito quanto o penhasco rochoso, que escurecia para baixo, ou a floresta, negra e imóvel. Sabia agora que muitas das coisas que, eu considerara durante anos como coincidências, eram, na verdade, inevitáveis; que nossos soldados jamais conseguiriam alcançar as brancas torres do castelo, e que Hoja pensava a mesma coisa. Sabia sobejamente que quando nos juntássemos ao cerco pela manhã, nessa máquina afundaria no paul, que os homens dentro dela e em tomo dela morreriam, e que, em conseqüência, muitas vozes se elevariam pedindo minha cabeça para silenciar os rumores de uma praga, e conjurar o terror e os protestos dos soldados. E eu sabia que Hoja tinha a mesma opinião. Lembrava-se de como, anos antes, para provocar as confidências dele, eu lhe falara de um amigo de infância com o qual eu desenvolvera o hábito de pensar a mesma coisa ao mesmo tempo; tinha certeza de que Hoja estava pensando as mesmas coisas que eu naquele momento.

Ele foi, tarde da noite, à tenda do sultão e pareceu que jamais retornaria. Por algum tempo, sabedor do que ele iria dizer, pois o soberano lhe pediria que interpretasse, para os paxás reunidos, os acontecimentos daquele dia e predissesse o futuro, considerei a possibilidade de que o tivessem matado no lugar e que os mesmos carrascos logo viriam pegar-me. Depois, imaginei que ele saíra vivo da tenda e, sem vir contar-me o que acontecera, rumara diretamente para as brancas torres do castelo, que luziam no escuro, e que, tendo passado as sentinelas, varado charco e floresta, já as tivesse alcançado. Esperava que o dia raiasse, pensando na minha nova vida sem maior entusiasmo, quando ele voltou. Só muito mais tarde, anos depois, e tendo conversado longamente com os que tinham estado na tenda do sultão naquela noite, vim a saber que Hoja dissera, de fato, o que eu tinha pensado que ele diria. Ele nada me contou naquela noite. Agitava-se, apressado, como alguém que deve partir de viagem. Disse que havia uma cerração impenetrável do lado de fora. E eu entendi.

Até a alvorada falei com ele sobre o que deixara para trás, no meu país, disse-lhe como encontrar a minha casa, falei de meu pai, de minha mãe, de meus irmãos e irmãs, da reputação que tínhamos em Empoli e Florença, mencionei particularidades pelas quais ele poderia distinguir as pessoas umas das outras. E ao falar lembrei-me que já lhe havia contado tudo aquilo, até o grande sinal escuro de nascença que meu irmão caçula tinha no meio das costas. Às vezes, quando divertia o soberano, ou agora, escrevendo este livro, tais histórias me pareciam um simples reflexo de minhas fantasias, não a verdade. Mas, naquele mo­mento eu acreditava nelas: a gagueira de minha irmã era real, assim como o excessivo número de botões em nossas roupas, e as coisas que eu vira da janela que dava para o jardim atrás de nossa casa. Já quando a manhã se aproximava comecei a pensar que fora seduzido por essas histórias, porque acreditava que elas teriam continuação, talvez até de onde haviam ficado interrom­pidas, mesmo se muito mais tarde. Sabia que Hoja estava pensando a mesma coisa, que ele acreditava, todo feliz, em sua própria história.

Trocamos de roupa um com o outro, sem pressa e sem qualquer palavra. Dei-lhe meu anel e o medalhão que conseguira manter longe do alcance dele todos aqueles anos. Dentro, estava o retrato da minha avó materna e um pequeno cacho do cabelo de minha noiva, que ficara branco. Acho que gostou dele. Seja como for, Hoja o pôs logo no pescoço. Depois, saiu da barraca e se foi. Eu o vi desaparecer, na bruma, devagarinho, e sem a mais leve bulha. Começava a clarear. Exausto, deitei-me na cama dele e adormeci tranqüilamente.

 

E eis que alcancei o fim do meu livro. Talvez leitores mais perspicazes, convencidos de que a minha história terminou há muito tempo, já a tenham deixado de lado. Houve um tempo em que eu pensava a mesma coisa. Meti estas páginas numa gaveta há vários anos, com a intenção de jamais reler o que nelas escrevi. Àquele tempo, era minha intenção tratar de outras histórias, inventadas, não para o sultão, mas para o meu próprio prazer. Eram romances passados em terras que eu não conhecia, em lugares desolados ou florestas geladas, que tinham como personagem central um mercador esperto que vagava por elas como um lobo. Queria esquecer este livro, esta história. Embora eu soubesse que não seria fácil, após tudo o que ouvira e experimentara, talvez tivesse tido êxito, não fora a aparição de um visitante, que comigo esteve há duas semanas e que me persuadiu a retomar o livro. Hoje sei, finalmente, que de todos os meus livros este é o meu favorito. Vou terminá-lo como deve ser terminado, como sempre quis e sonhei fazer.

Da velha mesa a que me aboleto para escrever estas últimas páginas, posso ver um pequeno veleiro, que corta o mar de Jennethisar para Istambul, um moinho de vento que gira ao longe, no meio das oliveiras, crianças que se empurram, brincando no fundo do jardim, debaixo das figueiras; e a estrada poente que leva de Istambul a Gebze. Durante as neves do inverno, pouca gente passa por aqui. Na primavera e no verão, vejo as caravanas indo para o Oriente, para a Anatólia e, mesmo, para Bagdá e Damasco. Muitas vezes fico contemplando os carros de boi, desconjuntados, que passam com a lentidão de lesmas, e às vezes fico excitado à vista de um cavaleiro que galopa a distância e cujos trajes não posso identificar. Mas quando ele se aproxima, vejo que não veio para me ver. Nestes dias ninguém vem, e agora sei que jamais alguém virá.

Mas não me queixo. Não sofro de solidão. Economizei muito dinheiro durante meus anos de serviço como astrólogo imperial, casei, tenho quatro filhos. Previ os distúrbios que viriam e renunciei à minha posição em tempo, talvez com o discernimento adquirido na prática da minha profissão. Antes que os exércitos do sultão partissem para Urena, antes que os aduladores, os palhaços e o astrólogo imperial que me sucedeu fossem decapitados no frenesi da derrota; antes, muito antes, que o nosso soberano, que tanto amava os animais, fosse destronado, fugi aqui para Gebze. Mandei construir esta villa e aqui me instalei com meus queridos livros, meus filhos, e uns dois criados. Minha mulher, com quem casei quando era ainda o astrólogo do sultão, é muito mais moça que eu, uma boa dona-de-casa, que tudo dirige e me poupa, de tarefas menores, deixando-me entregue aos meus livros e sonhos, marchando para os setenta anos, sozinho o dia todo neste aposento. Assim, e para dar um fim apropriado à minha história e à minha vida, penso n'Ele o quanto queira.

E, todavia, nos primeiros anos, procurei não fazer jamais isso. Uma ou duas vezes, quando o soberano quis falar d'Ele, percebeu logo que o assunto não me era agradável. Creio que ele se conformou, sem esforço, em deixar as coisas como estavam; era apenas curiosidade de sua parte, mas sobre o quê, exatamente, ou até que ponto, jamais fui capaz de descobrir. De início, ele disse que eu não devia ter vergonha de ter sido influenciado por Ele, de ter aprendido com Ele. Soubera, desde o começo, que todos aqueles livros, calendários e predições que eu lhe apresentara, ano após ano, haviam sido escritos por Ele. E dissera isso a Ele, mesmo quando eu ainda labutava em casa com desenhos para a nossa arma que acabaria empacada no pântano; sabia também que Ele me havia contado tudo, da mesma forma como eu estava acostumado a contar tudo a Ele. Talvez, naquela época, nós dois não tivéssemos ainda perdido o fio da meada, mas percebi que o sultão tinha os pés mais firmemente plantados no chão do que eu. Naquele tempo, eu pensava que o soberano era mais sagaz do que eu, sabia tudo o que devia saber, e brincava comigo a fim de estar mais firmemente na palma da sua mão. E talvez eu estivesse também influenciado pela gratidão que sentia por ele ter-me salvado da derrota, cujo germe estava plantado no pântano, e da ira dos soldados enlouquecidos com os rumores da maldição. Pois, quando souberam que o infiel havia escapado, alguns quiseram a minha cabeça. Nos primeiros anos, se o sultão me tivesse pedido francamente a verdade, eu lhe teria contado tudo. Os rumores de que eu não era eu ainda não tinham começado. Eu gostaria muito de poder falar com alguém sobre o que acontecera e sentia muita falta d'Ele.

Viver sozinho naquela casa em que tínhamos vivido juntos tantos anos me deixava ainda mais nervoso. Com os bolsos cheios de dinheiro, meus pés logo aprenderam o caminho do mercado de escravos. Fui e vim durante meses até encontrar o que queria. No fim, comprei um pobre-diabo que não se parecia realmente comigo e com Ele e trouxe-o para casa. Naquela noite, quando eu lhe disse que me ensinasse tudo o que sabia, que me falasse do seu país, do seu passado, que admitisse os pecados que houvesse cometido, quando o levei comigo para olhar-se no espelho, ele ficou com medo de mim. Tive pena do pobre homem e decidi dar-lhe alforria pela manhã. Mas minha avareza foi mais forte e eu o levei ao mercado de escravos para revendê-lo. Depois disso, resolvi casar e deixar que a notícia se espalhasse pela vizinhança. Eles vieram ter comigo alegremente, pensando que fariam de mim um deles, afinal, que a paz reinaria na rua. Eu também estava contente de ser como eles, fiquei cheio de otimismo, convencido de que os rumores tinham cessado e que eu poderia viver sossegado, inventando histórias para o meu soberano, ano após ano. Escolhi minha mulher com todo o cuidado. Ela até tocava 'ud para mim à noite.

Quando os rumores recomeçaram, pensei, de início, que aquilo devia ser obra do sultão, pois acreditava que lhe dava prazer ver-me aflito e fazer perguntas que me desestabilizassem. No princípio, eu não ficava alarmado quando ele me dizia, à queima-roupa, coisas como “Nós nos conhecemos? Um homem tem de saber quem é.” Pensei que ele aprendera essas perguntas com os sabichões interessados em filosofia grega que faziam parte do grupo de sicofantas reunido outra vez à sua volta. Quando me pediu que escrevesse alguma coisa sobre o tema, dei-lhe meu último livro, sobre gazelas e pardais, contentes porque jamais refletiam sobre si mesmos e não sabiam nada de si. Quando descobri que ele tinha levado o livro a sério e lia-o com genuíno prazer, fiquei um pouco aliviado, mas os rumores começaram a me chegar aos ouvidos: dizia-se que eu tratava o soberano como um tolo, que eu nem sequer me parecia com o homem cujo lugar tinha tomado. Ele era mais magro e mais delicado. Já eu havia engordado. Sabiam que eu mentia quando dizia não poder saber tudo o que Ele sabia. Um dia, em tempo de guerra, também eu lhes traria má sorte e depois desertaria como Ele fizera. Venderia segredos de Estado ao inimigo, azeitaria o caminho da derrota etc. etc. Para me proteger desses rumores, que a meu ver o próprio sultão desencadeara, deixei de freqüentar festas e festividades, era visto muito pouco em público, perdi peso, e investiguei com cautela o que fora discutido na tenda do soberano naquela última noite. Minha mulher teve um filho atrás do outro, minha renda era ampla, eu queria esquecer os rumores, esquecer a Ele e ao passado, e continuar meu trabalho em paz.

Perseverei mais sete anos. Talvez tivesse ficado até o fim, se meus nervos fossem mais fortes, ou, mais importante do que isso, se eu não tivesse sentido que haveria outro expurgo no círculo dos íntimos do sultão. Teria passado pelas portas que o soberano me abria e abandonado a vida antiga que queria, de qualquer maneira, esquecer. Respondia agora, sem pudor nenhum, perguntas sobre a minha identidade que de início me botavam de orelha em pé: “Que importância tem quem um homem seja?”, dizia. “O importante é o que fazemos e faremos.” Acho que foi por essa janelinha que o sultão entrou na minha mente! Quando ele pediu que lhe falasse da Itália, do país para onde Ele fugira, e eu respondi que sabia pouco do assunto, ficou zangado. Sabia que Ele me havia contado tudo. Por que tinha medo? Bastava repetir o que Ele tinha dito. Então, descrevi, de novo, para consumo do sultão, e em detalhe, a infância d'Ele e Suas belas memórias, algumas das quais incluí neste livro. No início, meus nervos eram ainda confiáveis, e o soberano me escutava como eu havia desejado que o fizesse — como se ouvisse alguém contar o que ouvira de outra pessoa — mas, nos anos que se seguiram, ele foi mais longe: passou a ouvir como se fosse Ele que falasse. Perguntava-me pormenores de que só Ele poderia ter conhecimento, dizia-me que não tivesse receio e fosse dizendo o que me viesse à cabeça: que incidente provocara a gagueira da irmã d'Ele? Por que Ele não fora admitido à universidade de Pádua? De que cor eram as roupas do irmão dele, por ocasião do primeiro espetáculo de fogos de artifício a que Ele assistira em Veneza? Enquanto eu relatava esses aconteci­mentos ao sultão, como se tivessem ocorrido comigo, nós nos fazíamos ao mar por um dia ou ficávamos modorrando ao pé de um espelho d'água enfeitado de nenúfares e fervilhante de sapos; ou observando despudorados macaquinhos em gaiolas de prata; ou caminhando por um daqueles jardins que, por terem sido cenário de outras caminhadas, as deles dois, estavam cheios de memórias compartilhadas. Então o soberano, satisfeito com as minhas histórias e com o jogo das nossas memórias, que se abriam como se abrem as flores, sentia-se mais próximo de mim e me falava d'Ele como se recordasse um velho amigo que nos tivesse traído. Dizia que era bom que Ele tivesse ido embora, pois apesar de achá-Lo divertido, muitas vezes perdia a paciência com as impertinências Dele, e pensava em mandar matá-Lo. Revelou certas coisas que me assustaram, por não saber ao certo de qual de nós ele estava falando. Mas falava com amor, não com violência. Havia dias em que, incapaz de tolerar por mais tempo a falta de conhecimento de si mesmo que Ele demonstrava, teria acabado com Ele num momento de cólera — naquela última noite, por exemplo, estivera a ponto de chamar os verdu­gos! Mais tarde, observou que eu não era impertinente. Eu não me considerava o homem mais capaz e mais inteligente do mundo. Eu não havia procurado interpretar o terror da peste em meu proveito. Eu não deixava as pessoas sem dormir à noite com histórias de meninos-reis empalados em estacas. E, agora, não havia ninguém a quem eu pudesse contar, quando de volta para casa, os sonhos do sultão, ridicularizando-os após tê-los ouvido respeitosamente; ninguém que me ajudasse a redigir livros de ficção, divertidos mas tolos, e destinados a desencaminhá-lo! Eu escutava e me via, nos via, aos dois, de fora, como que num sonho, e percebia que tínhamos perdido o fio da meada. Mas, nos últimos meses, o sultão, como se tivesse a intenção de enlouquecer-me, foi mais longe ainda: eu não era como Ele, eu não dera minha mente aos sofistas que distinguiam entre “eles” e “nós” como Ele havia feito! Durante os fogos-de-bengala, o pequeno soberano, de oito anos de idade, observara o espetáculo da outra margem antes de nos conhecer, meu Demônio pessoal trouxera vitória àquele outro demônio no escuro dos céus e agora se fora com Ele para a terra onde acreditava encontrar a paz! Depois, durante os passeios pelo jardim, que eram sempre os mesmos, o soberano perguntava, como se pensasse em voz alta: será preciso ser um sultão para entender que os homens, nos quatro cantos e sete climas do mundo, se parecem uns com os outros? Temeroso, eu me calava. E, então, como que para quebrar meu último esforço para resistir-lhe, ele repetia a pergunta, refundindo-a: não seria a melhor prova disso, de que os homens são os mesmos em toda parte, que eles podiam tomar o lugar um do outro?

Por acreditar Firmemente que o sultão e eu acabaríamos por esquecê-lo um dia, e por ter tido a precaução de guardar mais dinheiro, eu poderia suportar essa tortura com paciência. Pois já me acostumara com o medo que nasce da ambigüidade. Ele abria e fechava as portas da minha mente impiedosamente, como se cavalgasse para cá e para lá, em perseguição a uma lebre numa floresta em que tivéssemos nos perdido. E o que é mais grave: ele fazia isso, agora, na frente de qualquer pessoa. Estava outra vez rodeado de sicofantas. Eu tinha medo, pois pensava que haveria outro expurgo, e que todas as nossas propriedades seriam confiscadas. Pressentia as convulsões que de fato vieram. Foi no dia em que ele me fez dissertar sobre as pontes de Veneza, sobre o rendado da toalha da mesa em que Ele tomava o café da manhã em criança, na vista da janela que dava para o jardim nos fundos da casa d'Ele, e de que Ele se recordava quando estava a pique de ser decapitado por sua recusa em converter-se ao Islã — foi nessa oportunidade que o sultão me ordenou que escrevesse tudo isso num livro como se fora o registro de coisas que tivessem acontecido comigo, e foi em razão direta disso que decidi escapar de Istambul o mais depressa possível.

Mudei-me para uma outra casa, em Gebze, a fim de esquecê-Lo. Tive medo, nos primeiros tempos, que os guardas do palácio fossem à minha procura, mas isso não ocorreu. Também as minhas rendas não foram tocadas. Ou eu fora esquecido, ou o soberano me fazia vigiar secretamente. Não me preocupei mais com aquilo, comecei a trabalhar, toquei a obra da casa, projetei o jardim nos fundos segundo meus desejos e meus impulsos íntimos. Passava o tempo lendo, escrevendo histórias para meu próprio deleite, e atendendo a visitantes que me vinham consultar, por saber que fora um dia astrólogo, mais por achar isso divertido que pela cor do dinheiro deles. E foi, talvez, por eles que aprendi mais sobre o meu país, em que vivo desde a infância: antes de concordar em ler a sorte de aleijados, de homens ensandecidos pela perda de um filho ou de um irmão, de doentes crônicos, de pais de solteironas, de homens que não atingiram a sua plenitude, de maridos ciumentos, de cegos, marinheiros, amantes de olhos esgazeados, eu os intimava a que me contassem a história de suas vidas com toda a minúcia. E, à noite, escrevia tudo aquilo em cadernos para usar o material em histórias futuras, como fiz na composição deste livro.

Foi durante esses anos, também, que conheci o velho Evlyia, que trouxe consigo uma profunda tristeza para dentro de minha casa. Vendo a expressão contristada que tinha estampada no rosto, percebi que a solidão era a causa da sua melancolia, mas ele não disse isso. Parece que devotara a vida toda a andanças e à obra em dez tomos que estava em via de completar. Antes de morrer pretendia visitar os lugares mais próximos de Deus que todos os demais, Meca e Medina, e escrever sobre eles também, mas faltava algo ao seu livro, coisa que muito o perturbava. Quisera poder falar das fontes e pontes da Itália, de cuja beleza ouvira falar. Será que eu, que ele procurava em vista de minha fama em Istambul, poderia dizer-lhe alguma coisa dessas maravilhas? Quando eu lhe disse que não conhecia a Itália, ele respondeu que era sabedor disso como qualquer outra pessoa. Mas que ouvira falar de um escravo italiano que eu tivera em certa época, e que descrevera tudo para mim. Se eu, por minha vez, descrevesse tudo a Evliya, ele me pagaria com histórias divertidas. Pois inventar e ouvir histórias não era a melhor parte da vida? Quando ele retirou timidamente da bolsa um mapa, o pior mapa da Itália que eu jamais tinha visto, resolvi atendê-lo.

Com sua mão rechonchuda e infantil, ele se pôs a apontar cidades na carta e, depois de pronunciar cada nome, sílaba por sílaba, escrevia cuidadosamente as indicações que eu lhe dava. Para cada cidade queria uma anedota curiosa. Passando treze noites assim, em treze cidades diferentes, atravessamos de norte para sul toda a península, que eu via pela primeira vez e então voltamos a Istambul de barco, partindo da Sicília. Assim passa­mos toda a manhã. Ele ficou tão contente com o que lhe contei que decidiu retribuir a gentileza. Falou-me dos homens que andam na corda até desaparecerem no céu, em Acre; da mulher de Konya que deu à luz um elefante; dos touros de asas azuis das margens do Nilo; de gatos cor-de-rosa; da torre do relógio de Viena; dos incisivos falsos que ele mandara fazer naquela cidade e que, agora, exibia, num sorriso; da caverna falante do mar de Azov; e das formigas-ruivas da América. Por algum motivo, essas histórias me causaram uma profunda melancolia. Tive vontade de chorar. O clarão avermelhado do sol poente tingia meu quarto. E quando Evliya perguntou se eu também conhecia contos extraordinários dessa espécie, resolvi dar-lhe uma surpresa de verdade e convidei-o a pernoitar em minha casa, com seus servos. Eu tinha uma história que o deleitaria: a de dois homens que trocaram suas vidas um com o outro.

À noite, depois que todos se recolheram, depois que o silêncio que nós dois desejávamos caíra sobre a casa, voltamos ao quarto. Foi então que imaginei este conto que o leitor está a ponto de acabar! A história que contei não parecia fabricada mas vivida. Era como se alguém a estivesse soprando baixinho ao meu ouvido. As frases se sucediam, macias, numa perfeita seqüência: “Velejávamos de Veneza para Nápoles quando a esquadra turca apareceu...”

Quando a minha história terminou, passava, havia muito, a meia-noite, houve um prolongado silêncio. Senti que nós dois pensávamos n'Ele, mas na mente de Evliya havia um Ele completamente diverso do que eu abrigava na minha. Não tenho dúvida de que o homem pensasse na sua própria vida! Quanto a mim pensava na minha, n' Ele, e de como gostava da história que acabara de inventar. Sentia orgulho de tudo o que experimentara ou criara. O aposento em que estávamos transbordava com as tristes memórias de tudo aquilo que ambos tínhamos querido ser um dia e do que tínhamos sido, afinal. Foi então que compreendi, claramente, e pela primeira vez, que eu jamais conseguiria esquecê-Lo, que isso me faria infeliz pelo resto da minha vida. Soube, também, então, que nunca seria capaz de viver só. Era como se, tão tarde da noite, a sombra de um fantasma sedutor tivesse caído, oblíqua, sobre o quarto, despertando nossa curiosidade e, ao mesmo tempo, pondo-nos em guarda. Já quase ao alvorecer, meu hóspede me encantou, dizendo que havia adorado a minha história, embora acrescentasse que era forçado a discordar de alguns detalhes. Talvez para fugir à enervante lembrança do meu gêmeo e para voltar, tão depressa quanto possível, à minha nova existência, eu lhe dei toda a minha atenção.

Ele concordou que é preciso buscar o estranho e o inesperado, como na minha história. Sim, talvez isso fosse a única coisa que pudéssemos fazer para combater o tédio cansativo deste mundo, pois ele sabia disso desde os monótonos dias da infância e da escola, e jamais considerara a possibilidade de fechar-se entre quatro paredes; por isso mesmo, passara a vida inteira viajando, procurando histórias em caminhos que pareciam não ter fim. Mas há que buscar o bizarro e o extraordinário no mundo externo e não dentro de nós mesmos! Investigar para dentro, pensar tão longamente, tão minuciosamente sobre nós mesmos, apenas nos faria infelizes. Fora isso o que acontecera com as personagens da minha história. Por essa razão os heróis jamais toleraram ser eles mesmos, por essa razão eles sempre quiseram ser outras pessoas. Suponhamos que o que relatei na minha história tivesse de fato acontecido. Poderia eu acreditar que aqueles dois homens que tomaram o lugar um do outro pudessem ser felizes nas suas novas vidas? Não respondi. Depois, por este ou aquele motivo, ele me recordou um pormenor da história: não nos podemos deixar seduzir e induzir em erro pelas esperanças de um escravo espanhol de um braço só!13 Se o fizermos, a pouco e pouco, escrevendo esse tipo de contos, procurando o que há de estranho em nós mesmos, nós também nos tornaríamos outras pessoas e, Deus não o permita, o mesmo poderia acontecer com os leitores! Ele não queria nem pensar no que seria do mundo se os homens falassem sempre deles mesmos, das suas peculiaridades, se seus livros e histórias tivessem sempre isso como tema.

Mas eu queria tanto isso! De modo que, quando o homenzinho que eu aprendera a amar em apenas um dia, reuniu seus companheiros ao alvorecer para a viagem a Meca, e partiu estrada afora, eu me sentei imediatamente à mesa e escrevi o presente relato. Em consideração aos meus leitores nesse terrível mundo por vir, fiz tudo o que pude para que tanto eu quanto Ele, que não consigo separar de mim mesmo, aparecêssemos vivos na história. Mas, recentemente, apalpando o que pusera de lado há dezesseis anos, achei que não tivera muito êxito. De modo que peço desculpas àqueles leitores que não gostam quando um homem fala de si mesmo — especialmente quando ele é presa de emoções tão conflitantes — e acrescento estas páginas ao meu livro.

Eu O amei. Eu O amei da mesma forma como amei aquele inerme e miserável fantasma de mim mesmo que eu costumava ver em sonhos, como se sufocasse de vergonha, fúria, inclinação para o pecado e melancolia do dito fantasma, como se arrasado de opróbrio à vista de um animal selvagem sofrendo e morrendo, ou indignado com o egoísmo de um mimado filho meu. E, talvez, acima de tudo, eu O tenha amado com a estúpida revulsão e a estúpida alegria de conhecer a mim mesmo. Meu amor por Ele se parecia com a maneira como me acostumei aos fúteis movi­mentos de inseto de minhas mãos e braços, com a maneira pela qual entendi os pensamentos que ecoavam todo dia contra as paredes do meu cérebro e logo morriam, com a maneira como reconhecia o distintivo cheiro do meu mísero corpo, meu cabelo cada vez mais ralo, minha boca feia, a mão rosada que segura a pena. Foi por tudo isso que eles não conseguiram enganar-me. Depois de escrever o meu livro e engavetá-lo, para esquecê-Lo, jamais eu me deixei iludir pelos boatos que corriam, obra daqueles que tinham ouvido falar da nossa fama e queriam tirar proveito dela. Não mesmo! Certo paxá do Cairo O tomara sob sua proteção e, agora, ele fazia desenhos para uma nova arma!

Estivera no interior das muralhas de Viena durante o cerco frustrado, dando conselhos ao inimigo sobre a melhor maneira de pôr nossa gente para correr! Fora visto em Edirne disfarçado em mendigo e, durante uma disputa entre mercadores, provoca­da justamente por Ele, enfiara a faca num colchoeiro e desaparecera em seguida! O imã de uma mesquita, numa aldeia remota da Anatólia, não era outro senão Ele! Ele montara por lá uma sala dos relógios — os que me contaram essa história juraram que era verdadeira; começara a recolher dinheiro para a construção de uma torre de relógio! Ele enriquecera escrevendo livros na Espanha, para onde fora na esteira da peste! Dizia-se que fora Ele quem conspirara para destronar nosso pobre soberano! Estaria vivendo em aldeias eslavas, onde era objeto de grande respeito como um lendário sacerdote epiléptico, e onde escrevia livros cheios de negro desespero, com base nas confissões verdadeiras que Ele conseguira, afinal, obter! Viajava, errante, pela Anatólia, dizendo que destronaria todos aqueles sultões idiotas, chefiando uma gangue que Ele enfeitiçava com suas predições e sua poesia, e me pedia que fosse reunir-me a Ele! No curso daqueles dezesseis anos em que eu escrevera histórias para esquecê-Lo, para distrair-me, para não pensar naquela gente terrível e nos terríveis mundos do futuro, para experimentar em plenitude os prazeres das minhas fantasias, ouvi muitas outras variantes desses rumores, mas não dei crédito a nenhuma. Não sei, e me pergunto se a mesma coisa acontecerá a outros, mas, às vezes, quando nos sentíamos como prisioneiros no âmbito daquelas quatro paredes, nos confins do Corno de Ouro, esperando, às vezes, por um convite que não vinha nunca, do palácio ou de qualquer mansão, saboreando o ódio que tínhamos um do outro, ou trocando sorrisos enquanto escrevíamos um novo tratado para o nosso soberano, nas coisas da vida cotidiana, nós nos fixávamos no mesmo momento num pequeno detalhe: um cão molhado que tínhamos visto na chuva, de manhã, a geometria oculta nas formas e cores de um varal de roupas postas para secar entre duas árvores, um lapso de linguagem que, de chofre, trazia à tona a simetria da vida! São esses os momentos de que mais tenho saudade! E por esse motivo retornei ao livro da minha sombra, imaginando que algum curioso o leia depois de anos, de centenas de anos, até, depois da morte d'Ele, e figure a sua própria vida em vez da nossa; esse livro, que não me importa muito, na verdade, que ninguém o leia, e no qual escondi o nome d'Ele, enterrando-o, se não muito fundo, no seu bojo: de modo que eu pudesse uma vez mais sonhar com as noites da peste, com a minha infância em Edirne, com as horas deliciosas que passei nos jardins do sultão, com a primeira vez em que eu O vi, glabro, em casa do paxá, e do frio que senti na espinha. Pôr as mãos de novo na vida e nos sonhos que perdemos; todos entendem a necessidade de sonhar com essas coisas uma vez mais: eu acreditava na minha história!

Vou concluir este meu livro contando o dia em que decidi dá-lo por findo. Duas semanas atrás, estando eu aboletado à nossa mesa, procurando inventar uma história diferente, vi um homem que se aproximava a cavalo pela estrada de Istambul. Ninguém me trouxera notícias d'Ele nos últimos tempos, talvez por ser eu tão brusco, em geral, com os visitantes. Achava, até, que não viriam mais. Mas, logo que dei com os olhos naquele ginete, que usava uma capa e tinha um pára-sol, na mão, soube que ele vinha me ver. Ouvi sua voz antes que entrasse na sala em que eu estava. Falava turco com os mesmos erro d'Ele, mas logo que se apresentou diante de mim passou a falar italiano. Quando viu que minha expressão se anuviava e que eu não lhe respondia, disse, no seu turco de péssima qualidade, que pensava que eu soubesse pelo menos um pouco de italiano. Mais tarde, explicou que ouvira meu nome e ficara sabendo quem eu era dos lábios d'Ele. Após regressar ao seu país, Ele havia escrito diversos livros narrando suas inacreditáveis aventuras entre os turcos, sobre o seu último soberano, amigo dos animais, sobre os sonhos desse sultão, sobre a peste bubônica e o povo da Turquia, nossos costumes na corte e na guerra. Como a curiosidade em torno do Oriente exótico começava a difundir-se no seio da aristocracia, entre as senhoras da sociedade, especialmente, ele teve muito êxito e seus livros eram muito lidos; fazia conferências em universidades a enriqueceu. Sua antiga noiva, enfeitiçada pelo romantismo do que Ela escrevia, esqueceu a própria idade e a morte recente do marido, e casou com ele. Compraram a velha casa avoenga, que fora dividida, e passara a outras mãos, e nela se instalaram, restituindo a propriedade, com seus jardins, ao antigo esplendor. Meu hóspede sabia tudo isso porque, tendo admirado os livros d'Ele, visitara-O em casa. Fora muito bem recebido. Ele lhe concedera o dia todo, fora extremamente polido, e respondera às suas perguntas, recontando alguns dos episódios do livro. Foi, então, que falou de mim longamente. Estava escrevendo um livro a meu respeito, Um Turco das Minhas Relações. Pretendia apresentar minha vida inteira aos seus leitores italianos, desde minha infância em Edirne até o dia em que Ele partiu, baseando-se nas suas interpretações, feitas com tanta inteligência, sobre as peculiaridades dos turcos. “O senhor lhe contou tanta coisa!”, disse meu hóspede. Mais tarde, para intrigar-me ainda mais, reproduziu detalhes do pouco que lera do livro. Eu me envergonhara de haver batido brutalmente num amigo, em menino, e chorara de arrependimento; era inteligente; aprendera em apenas seis meses toda a astronomia que Ele me ensinara; amava minha irmã com ternura; era religioso, fazia regularmente minhas preces; adorava cerejas cristalizadas; e tinha um interesse especial pela colchoaria, profissão de meu padrasto; como todos os turcos, amava as pessoas etc. etc. Tendo mostrado tanto interesse por mim, não pude mostrar-me pouco hospitaleiro com aquele tolo. E como um viajante teria seguramente interesse em ver a casa, mostrei-lhe tudo, peça por peça. Ficou, depois, fascinado pelos brinquedos dos meus filhos e seus amigos no jardim. Anotou num caderninho as regras dos jogos de cabra-cega e de bilharda, que tive de explicar-lhe; e as do jogo de pular carniça, embora desse não tivesse gostado tanto. Foi a essa altura que ele me disse ser grande admirador dos turcos. Quando o levei a passear no jardim, por falta de outra coisa que fazer, e em seguida mostrei-lhe a infeliz cidade de Gebze, e a casa em que morei com Ele anos antes, o homem reiterou seus protestos de admiração. Ao examinar nossa despensa, viu, me­tido entre os potes de doces e de picles, as jarras de azeite e vinagre, que muito lhe interessaram, meu retrato a óleo, feito por um pintor veneziano, e confessou, como se traísse um segredo, que Ele não era, a rigor, tão grande amigo assim dos turcos, e que escrevera coisas desairosas a respeito: que estávamos em decadência e descreveu as nossas mentes como sendo armários sujos cheios de velharias imprestáveis. Disse que não seria possível reformar o país, e que, se quiséssemos sobreviver, nossa única alternativa seria submeter-nos imediatamente, e depois disso não seríamos capazes de fazer nada durante séculos senão imitar aqueles a quem nos tivéssemos rendido. “Mas Ele nos queria salvar”, lembrei-o, desejando que o homem se calasse, mas ele respondeu imediatamente que sim, por nossa causa havia construído uma arma, mas não O tínhamos compreendido; um dia nevoento, a máquina fora largada num miserável pântano em que ficara atolada, como a carcaça de um navio pirata encalhado numa tempestade. Depois, acrescentou: sim, Ele tinha querido. e muito, salvar-nos. O que não quer dizer que não houvesse perversidade n'Ele. Todos os gênios são assim! Examinando atentamente meu retrato, que segurava nas mãos, continuou a resmungar mais algumas coisas sobre os gênios. Se Ele não tivesse caído em nossas mãos, se tivesse vivido em Seu próprio país, poderia muito bem ter sido o Leonardo do século XVII. Mais tarde, voltou ao seu assunto predileto, o mal, contando um ou dois boatos maldosos sobre Ele com relação a dinheiro, que eu já ouvira mas logo esquecera. “O curioso”, observou, “é que o senhor não tenha sido afetado por Ele!” Disse que viera me conhecer e que gostara de mim. E expressou seu espanto: não podia entender como duas pessoas que tinham vivido tantos anos junto, podiam ter tão pouca semelhança uma com a outra. Não pediu o meu retrato, como eu temera que o fizesse. Depois de recolocá-lo no lugar, perguntou se podia ver os acolchoados. “Que acolchoados?”, perguntei, perplexo. Ele se mostrou surpreso: pois eu não passava meu tempo bordando colchas? Foi então que resolvi mostrar-lhe o livro em que não tocara nos últimos dezesseis anos.

Com isso, ele ficou muito agitado, disse que sabia ler turco, e que, naturalmente, estava muito interessado em qualquer livro a respeito d'Ele. Subimos para o meu estúdio, que dava para o jardim. Ele se instalou à nossa mesa, e eu encontrei o livro onde o havia colocado, como se fora na véspera, há dezesseis anos. Abri-o diante dos seus olhos. De fato ele era capaz de ler turco, se bem que laboriosamente. Enterrou-se no livro com aquela ânsia de se deixar conduzir sem abandonar de todo seu próprio mundo, seguro e racional, que eu já observara em outros viajantes e que desprezava. Deixei-o a sós. Saí para o jardim e sentei-me num divã de palhinha, de onde podia vê-lo pela janela aberta. De início, ele pareceu animado e prazenteiro, e até comentou, pela janela: “Como é óbvio que o senhor jamais esteve na Itália!” Mas logo se esqueceu de mim. Fiquei três horas naquele divã, olhando ocasionalmente para o estúdio com o rabo do olho, à espera de que ele acabasse a leitura. Àquela altura, já o compreendera, embora seu rosto estampasse uma certa confusão. Uma ou duas vezes disse em voz alta o nome do castelo fortificado que ficava por trás do pântano que engolira nossa máquina de guerra. Até tentou, em vão, falar italiano comigo. Depois, voltou-se para o jardim e ficou olhando, sem expressão, pela janela, como se descansasse e procurasse digerir o que tinha lido. Eu o observava com gosto, vendo como ele fixava, de início, um ponto infinito no vazio, como fazem as pessoas naquela situação, um ponto focal não-existente. Depois, como eu esperava, sua visão se pôs em foco: agora ele via a cena enquadrada na moldura da janela. O leitor inteligente já terá, certamente, compreendido: ele não era tão estúpido quanto eu imaginara. Mas, como esperava que o fizesse, começou a virar as páginas do livro com avidez, procurando alguma coisa. Aguardei, excitado, até que ele encontrou a página que buscava e a releu. Em seguida, contemplou de novo a vista que se descortinava da janela, para além do jardim da minha casa. Eu sabia exatamente o que ele via. Pêssegos e cerejas numa bandeja incrustada de madrepérola sobre a mesa. Por detrás desta, um divã de palhinha, onde se espalhavam muitas almofadas de penas, do mesmo tom de moldura verde da janela. Sentado nele, eu, já beirando os setenta anos de idade. Mais além, um pardal empoleirava-se na borda de uma fonte, por entre as oliveiras e cerejeiras. Um balanço, preso por longas cordas a um galho alto de uma nogueira, oscilava suavemente na brisa quase impercep­tível.

 

 

  1. Nilgun Darvinoglu, “irmã extremosa”, a quem o A. dedica o livro, com datas de nascimento e morte fantasiosas (1961-1980), é, na verdade, personagem da segunda obra de Orhan Pamuk, Sessiz Ev (A Casa Silenciosa).

 

  1. Mustafa Naima (1655-1716), protegido do grão-vizir Huseyn Paxá, escreveu uma história do período que vai de 1591 a 1659. Essa obra foi publicada primeiro (1730), em dois volumes; depois (1884), em seis, sempre como o mesmo título, Tarih (Crónica).

 

  1. Para a figura do sultão, Pamuk se inspirou em Mehmet IV (regnabat 1649-1687), que sucedeu ao pai, Ibrahim (louco, deposto) aos seis anos de idade. Fez guerra à Áustria e à Polônia, mas seus maiores interesses eram, de fato, os animais e a caça, donde o nome com que passou à História: Avci (“caçador”). Destronado, viveu os últimos anos da vida em Edirne, antiga Adrianópolis, a 210 km a noroeste de Istambul e do Bósforo.

 

  1. Evliya Chelebi (c. 1611 -1682) é o autor do celebrado Seya-hatname (Livro de Viagens), em dez volumes. As observações que reuniu nessa obra são, todas, de primeira mão pois que, como Heródoto, passou a vida inteira viajando. Naima se louvou, seguramente, nele e em outros ilustres predecessores (Hasan-beyzade, Sharihulmenarzade).

 

  1. Faruk Darvinoglu, pretenso descobridor e editor do “ma­nuscrito”, é também personagem de Sessiz Ev. Como observou Savkar Altinel, que fez a crítica do livro para The Times Literary Supplement (N9 4.567, de 18.12.90), o artifício serve para reforçar a natureza ficcional desta obra.

 

  1. Recitar as preces rituais cinco vezes por dia em horas predeterminadas é um dos deveres religiosos (ou “pilares da fé”) dos muçulmanos. O complicado cálculo dessas horas de prece incumbe a um funcionário especial, o moakhit. Toda mesquita tem o seu — e uma sala dos relógios — onde ele opera.

 

  1. Durante o sagrado mês de jejum e penitência (Ramadã), que é o nono do calendário muçulmano, todas as atividades são reduzidas, e os fiéis se abstêm de comer, beber e manter relações sexuais até o pôr-do-sol.

 

  1. Murad III, último dos Osmanlis, reinou de 1574 a 1595.

 

  1. A grafia é incerta. Victoria Holbrook, que traduziu o livro para o inglês do original turco, escreve Hadije. A Encyclopaedia Britannica grafa Khadijah. Usei a mesma transliteração, que é corrente em português.

 

  1. A forma Bajazet é mais comum, mas Beyazit e Beyezit são preferíveis. Trata-se do sultão, segundo do nome, que sucedeu a Muhammad II e reinou de 1481 a 1512. A mesquita foi construí­da entre 1501 e 1505.

 

  1. Murat ou Murad IV (regnabat 1623-1640).

 

  1. Conhecido na Pérsia medieval por barbai, da palavra árabe para “madeira” (os instrumentos mais antigos da mesma família eram feitos, tradicionalmente, de couro), o 'ud é o alaúde islâmico. Tem o corpo em forma de pêra e o pescoço mais curto que os dos modelos europeus. Data do século VII.

 

  1. Cervantes, que servia a bordo do Marquesa, na batalha de Lepanto (1571), foi ferido duas vezes no peito e perdeu para sempre o uso da mão esquerda, “para maior glória da direita”, como disse. Mais tarde (1575), a bordo do So/, foi capturado pelos mouros, com o irmão, e só conseguiu ser resgatado em 1580. Já estava na ocasião embarcado para Istambul como escravo do cruel bei Hasan Paxá, que deixava Argel.

 

                                                                                Ornan Pamuk 

 

                      

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