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O CASTELO DE VIDRO / Violet Winspear
O CASTELO DE VIDRO / Violet Winspear

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CASTELO DE VIDRO

 

Pamela sabia que estava a ser observada e por isso sentia-se incomodada. O olhar dele dirigia-se para os seus cabelos ruivos e para as mãos pálidas que percorriam o teclado do piano. Dias antes, a sua prima Sybil dissera-lhe que a mansão do alto do monte, com vista para a praia, fora comprada por um homem muito rico que viera do Extremo Oriente. Era ele. Quem mais poderia ser? Estava vestido a rigor, com extrema elegância, e parecia fazer questão em manter uma certa distância em relação aos demais convidados. Continuava a olhá-la insistentemente, embora agora estivesse na companhia do tio Saul a provar o melhor conhaque da região.

Quando ouviu um rapaz pronunciar o seu nome, Pamela sentiu-se aliviada e voltou a cabeça noutra direcção.

- Pamela, toca uma música de Chaminade! Uma rapariga bonita como tu não deve interpretar as melodias de Liszt. São muito românticas e podem fazer-te mal...

- Tonto! - exclamou, dirigindo um sorriso especialmente simpático a Ben, porque sabia que o outro homem continuava a observá-la.

Diziam que Ben gostava de Sybil, mas Pamela achava que era uma coisa passageira, não era amor. Gostaria que o amor fosse algo forte, arrebatador e repentino, algo que nos proporcionasse um infinito prazer e dor ao mesmo tempo, pensou Pamela.

O pensamento fez-lhe bem, e ela tocou melhor do que nunca, sendo vivamente aplaudida por todos. O tio Saul, que tinha financiado as suas lições de piano, estava radiante com o talento e a graça da sobrinha.

- Não acha que a Pamela toca muito bem? perguntou o tio ao homem que estava com ele.

- Gostou do conhaque? Estava armazenado na adega que um lorde me vendeu.

- Foi um excelente negócio.

A voz, educada e segura, era a de um homem que raramente dá crédito a estranhos, não atribuindo a mínima importância ao que os outros pensam.

Pamela levantou-se e, antes que o estranho pudesse ir ter consigo, dirigiu-se para a varanda

A noite estava bastante agradável, e muitos dos convidados passeavam alegremente pelo jardim

Desceu as escadas e caminhou durante alguns instantes pelo relvado até chegar à beira do lago.

Quando era pequena, na época em que aquela casa pertencia ao pai, Pamela caiu ao lago. Felizmente, o jardineiro, um rapaz alto e magro, viu-a cair,

mergulhou imediatamente e salvou-a. Não parava de chorar quando o rapaz a entregou aos pais. Foi a última vez que o viu. Desde então, nunca mais ouviu falar dele. Muitos anos se passaram, mas sempre que voltava à mansão Memory lembrava-se desse incidente.

Pamela quase caiu outra vez no lago quando, subitamente, ouviu alguém dizer:

- Teve receio de que eu julgasse a sua interpretação como a de uma amadora?

- Eu? Receio? - indagou ela, irritada. Pouco me importa o que pensa de mim.

- Estava a referir-me ao seu talento musical e não à sua pessoa - corrigiu ele, com um sorriso irónico. - Mas se quiser saber a minha opinião sobre...

- Não, muito obrigada! - interrompeu a rapariga.

A mãe de Pamela morrera repentinamente de uma doença incurável, quando ela tinha apenas seis anos. O pai, também doente e desgostoso com a morte da mulher, perdeu toda a fortuna e deixou que a morte o levasse.

Quando olhou, furiosa, para o convidado do tio Saul, teve a sensação de que os pais”, há tanto tempo tão longe dali, estavam no entanto bem perto; sentiu um arrepio de frio e apertou os braços.

- Está com frio? - perguntou o homem.

- Não... estou bem. Está uma noite muito agradável. Gosto de ficar a contemplar a água do lago quando está assim, calmo.

- Isso é o que você pensa. Parece estar calmo, mas há muitas correntezas perigosas...

- Eu sei... - disse secamente. Afastou-se alguns passos quando teve a impressão de estar a correr perigo perto daquele homem alto, moreno e misterioso, que parecia não encontrar lugar na festa de aniversário da ingénua e despreocupada Sybil. Era muito mais velho do que os outros convidados e, além disso, acabara de chegar do Oriente. Quando a luz incidiu sobre o seu rosto, Pamela olhou mais atentamente para aquilo que não tinha ousado ver na sala de visitas, onde as luzes eram mais fortes. Tinha uma cicatriz profunda, que ia da sobrancelha direita ao maxilar, o que acentuava o aspecto sinistro da sua fisionomia. Essa marca era certamente o vestígio de uma vida repleta de experiências que ninguém sabia ao certo quais eram. Diziam que ele andara um pouco por todo o mundo antes de se estabelecer nas índias Orientais. Contavam, também, que alguém o atacara e, com uma faca, teria deixado aquela marca.

- Parece estar perturbada. É devido à minha companhia?

- Ora, é claro que não. Eu não estou nada perturbada - respondeu, tentando disfarçar o seu temor.

- Eu sei que a perturbo.

- É muita pretensão da sua parte dizer isso retrucou ela.

Ao levar o charuto à boca, um brilho irónico surgiu-lhe nos olhos, dando a impressão de que tinha ido àquela festa simplesmente para escolher uma rapariga e submetê-la ao seu encanto diabólico... E parecia ter sido ela a escolhida. Pamela tinha motivos de sobra para se inquietar. Ouvira os rumores que corriam sobre o proprietário do Castelo de Vidro, uma fantástica mansão construída há muito tempo atrás por um comerciante norueguês riquíssimo.

Pamela não escondeu o seu espanto ao saber que Edwin Trequair tinha comprado a casa que todos diziam estar assombrada e cheia de mistérios, sobretudo porque acreditava que ele, realmente, tinha uma mulher trancada a sete chaves, na torre do castelo.

Para ela, Edwin era o tipo de homem que vê a mulher como um simples objecto de prazer. Como rapariga independente que era, sentia uma profunda antipatia por esse género de homens. Pamela trabalhava como secretária num escritório de advocacia, em Londres, e não achava a mínima graça em servir de distracção a homens solitários e melancólicos. No entanto, sentiu-se inexplicavelmente atraída pela extrema elegância de Edwin.

- Quem pensa o senhor que é? Algum deus que sabe tudo a respeito das pessoas que acabou de conhecer? - perguntou Pamela com frieza e irritação na voz. - O senhor não passa de um estranho para mim e, para falar verdade, prefiro que continue a sê-lo. Não sei e nem quero saber nada a seu respeito.

- A sério? - indagou ele olhando-a fixamente nos olhos, como se estivesse acostumado a dominar os outros unicamente pelo olhar. - Pensei que a sua prima lhe tivesse contado histórias a respeito do meu misterioso passado e da exótica amante oriental que mantenho cativa no Castelo de Vidro...

- Ela é sua amante? Ouvi dizer que era sua mulher... - disse, interrompendo-se bruscamente ao perceber que falara de mais.

- Tem de aprender a controlar a sua impulsividade, para não se arrepender depois... Mas fique sabendo que não tenho nem uma esposa nem uma amante em casa. Aliás, em lugar nenhum; sou solteiro de corpo e alma. Vocês, mulheres, gostam muito de inventar coisas a respeito dos outros, principalmente quando se trata de homens. No Oriente costuma-se dizer que a imaginação da mulher é um labirinto de fantasias onde o homem não se deve aventurar.

- Muito interessante! Nesse caso diria que a imaginação do homem é uma estrada plana e rectilínea onde os pensamentos fluem tranquilamente, sem a menor perturbação. É por isso que vocês são tão cansativos e pretensiosos também.

- Vê-se que nunca encontrou um homem que lhe interessasse realmente. E não sei se ainda vai a tempo, pois tenho a impressão de que o namoro é algo que está fora de moda. Vivemos na época da liberdade e da emancipação feminina, em que os valores tradicionais estão todos invertidos.

- Por culpa das mulheres, naturalmente...

- Sem dúvida. Os homens sempre foram livres e nunca precisaram de reivindicar nada.

- Ainda bem que reconhece!

Pamela pôs-se a admirar o brilho do luar reflectido na água que, ao incidir também no seu rosto, lhe acentuava o ar de seriedade e distinção que a maioria das pessoas supunham ser frieza. Esta era

a principal razão pela qual os rapazes a procuravam menos do que à sua prima Sybil, embora fosse mais atraente. De certa forma, a sua infância contribuíra para isso; o seu pai adorava demasiado a mulher para que conseguisse amar, também, a sua única filha. Pamela cresceu sabendo o quanto doía amar loucamente. Aprendeu que era preferível controlar os sentimentos e as afeições para não se magoar. Daí manter uma aparência reservada. Era como se usasse uma armadura para se defender das partidas que a vida nos prega. Até ao momento nenhum homem ainda havia ousado tirar-lhe essa capa protectora.

- Este lago parece exercer um forte fascínio sobre a sua imaginação - comentou Edwin. Enquanto as outras raparigas estão a divertir-se lá dentro, na companhia dos rapazes, você fica aí, a contemplar um simples lago que não tem nada para lhe oferecer.

- Não sou e nem quero ser como as outras raparigas! - exclamou Pamela. - Sybil acha que eu venho aqui para procurar algo que perdi há muitos anos. Talvez ela tenha razão. Gosto muito dela e agrada-me saber que alguém se preocupa comigo. Não somos apenas primas de beijos e abraços, somos verdadeiras amigas.

- Tem algo contra os beijos, e abraços?

- Tenho! - respondeu ela, olhando-o com indignação. - Ouça, o senhor veio até aqui pensando que eu fosse uma rapariga fácil, não é? Certamente pensou que eu fosse ceder aos caprichos do homem alto e moreno que veio do Oriente. Se é isso pode deixar as esperanças de lado. O senhor não me agrada nada com esse seu jeito arrogante e pretensioso.

- Nunca ouviu dizer que a esperança é a última coisa a morrer? Pois então, talvez eu seja do tipo paciente. De qualquer forma é melhor ter cuidado comigo, porque não estou habituado à ironia e à rebeldia das mulheres emancipadas de hoje.

- Provavelmente porque o senhor veio de um país onde as mulheres se submetem aos desejos e aos caprichos dos homens como se eles fossem seus donos. Imagino que tenha tido uma grande desilusão ao ouvir as mulheres daqui exprimirem-se com tanta liberdade...

- Atrevimento é a palavra certa. São mais atrevidas do que qualquer prostituta.

- Muito obrigada pela parte que me toca! vou dormir melhor esta noite depois de ouvir a sua opinião a meu respeito! - disse Pamela com frieza e ironia.

- A sua vaidade e egocentrismo de adolescente não têm limites. Pensa que se referem a si as opiniões de carácter geral, como se os outros só a si tivessem em mente - retrucou ele, olhando-a de alto a baixo. - Fique sabendo que eu seria incapaz de a comparar a uma prostituta. Além disso é bonita de mais para se maquilhar de forma exagerada, e inteligente, também. Você é livre como um pássaro e fria como o gelo.

Pamela estava perplexa com estas palavras. Nunca tinha ouvido uma análise tão correcta do seu carácter e da sua aparência. No entanto, não sabia se devia sentir-se lisonjeada. Edwin descrevera-a como uma mulher interessante, e ela era suficientemente vaidosa para apreciar essa opinião. De qualquer maneira, não queria deixar transparecer o seu contentamento.

- Como pode o senhor ser tão arrogante e insolente? Talvez seja um costume que adquiriu com os colonos da sua plantação. Mas eu não sou sua empregada e não gosto de ser tratada como tal. Não sou capacho de ninguém.

Edwin riu-se e Pamela, irritada com a atitude, disse que ia voltar para o salão.

- Eu acompanho-a até lá e aproveito para me despedir dos seus familiares. vou deitar-me cedo. Quando é que nos poderemos encontrar outra vez?

- vou voltar para Londres na segunda-feira, por isso acho pouco provável que nos vejamos de novo. E, para falar verdade, não sinto vontade em revê-lo.

- Pois eu gostei de conhecê-la, principalmente porque é muito sincera, Pamela. Há um ditado no Oriente que diz: se duas pessoas estão curiosas por se conhecer vão acabar por se encontrar, mais tarde ou mais cedo. A curiosidade é como o tigre que segue o rasto da corça...

- Se o senhor é o tigre e eu sou a corça, isso pouco me importa. Já lhe disse que não tenho vontade de encontrá-lo novamente, muito menos para ser devorada pela sua curiosidade. Daqui em diante, quando o senhor vier a casa do meu tio vou procurar evitá-lo.

Edwin dirigiu-lhe um sorriso melancólico e, antes que ela pudesse impedi-lo, pegou-lhe na mão e beijou-a. Pamela sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo e ainda estava um pouco atónita quando Sybil apareceu na porta da sala, de onde ficou a admirar o vulto do misterioso Edwin Trequair.

- Boa noite, Pamela. Não sonhe com tigres esta noite - disse ele, com ironia, ao soltar-lhe a mão.

Em seguida afastou-se, acenou com a cabeça para Sybil e saiu da sala.

- Muito bem! - exclamou Sybil. - Desapareceste da festa com aquele homem, e quando voltas és beijada da maneira mais educada e bonita que eu já vi. O meu pai diz que ele é inglês, mas pelo seu tom de pele parece ser italiano.

- Pelo nome é de origem britânica - comentou Pamela. - Fica sabendo que não fui eu que me deixei beijar... foi ele quem agarrou a minha mão, e confesso que não gostei nada da maneira como se despediu de mim. Não adianta olhares para mim dessa maneira, Sybil! Garanto-te que não fiquei nada impressionada com esse tal Edwin Trequair!

- Pois eu acho-o muito atraente. Para alguém que viveu tantos anos na índia, veste-se com a elegância de um lorde. Adoraria que ele me convidasse para ir até ao Castelo de Vidro. Por falar nisso, ele é casado ou não?

- Provavelmente tem um harém. Para ir lá sozinha era preciso que eu estivesse completamente louca!

- Ora, não exageres! - exclamou Sybil, rindo.

- Sabes uma coisa, estás a ficar igualzinha à tua chefe, que desconfia das pessoas mesmo antes delas se manifestarem. O problema com o Edwin é que ele se sente sozinho. Que outro motivo o faria vir à minha festa de anos?

- Não foste tu que o convidaste?

- Não, foi o meu pai. Tu sabes como ele é, está sempre a tentar ser agradável com as pessoas quando está interessado em fazer algum negócio. Penso que os dois têm uma sociedade, mas não sei de quê. Nunca pensei que ele fosse aparecer e apanhei um susto quando o vi entrar em casa. Posso confessar-te uma coisa? Gostaria imenso de sair com ele, acho-o tão bonito... mas eu nunca atraio homens como o Edwin... Somente rapazes como o Ben se interessam por mim.

- Sorte a tua. É melhor atrair gatos do que tigres... ser mordida não é nada agradável, podes ter a certeza.

- Foste mordida? - perguntou Sybil com um sorriso malicioso. - Levas a vida muito a sério. Em tudo é preciso um pouco de descontracção. Porque não arranjas um outro emprego que te ajude a descontrair, algo mais animado.- Podias trabalhar como manequim.

- Em primeiro lugar, não pretendo servir de cabide para um monte de roupas e desfilar para mulheres fúteis e desocupadas e, em segundo lugar, gosto muito do meu emprego. Além disso, ganho um ordenado razoável, que me permite ser independente. Estou muito grata ao teu pai por tudo o que fez por mim, mas sinto-me melhor sabendo que já não dependo dele para sobreviver.

- Eu sei, querida. - disse Sybil, beijando-a no rosto. - Foi apenas uma sugestão... Vem, vamos comer alguma coisa. A esta hora a Lilian deve estar a servir uns salgadinhos deliciosos.

Lilian, a madrasta de Sybil, ao contrário das madrastas dos contos de fadas, era uma mulher encantadora.

Embora a festa estivesse agradável, Pamela ficou contente quando pôde subir para o quarto onde dormira durante vários anos, antes de a casa, que era do seu pai, passar para as mãos de Saul Kendall. A decoração estava praticamente na mesma: o papel de parede, o tapete ao lado da cama e as cortinas que balançavam à brisa nocturna. Na estante, em cima da secretária, estavam os livros que lera e relera muitas vezes. O seu romance preferido era Grandes Esperanças de Charles Dickens. Gostava muito daquele livro porque todas as personagens pareciam extremamente reais e humanas. Antes de conseguir adormecer, Pamela reviveu algumas recordações do passado, no quarto que um dia fora seu. Só apagou a luz da mesinha-de-cabeceira quando a Lua mudou de posição, deixando de brilhar em cima do lago onde estivera a conversar com Edwin Trequair.

Porque beijara ele a sua mão? Teria realmente a intenção de voltar a vê-la? Absorta nestes pensamentos, acabou por mergulhar no sono.

No dia seguinte, à tarde, Pamela saiu para dar um passeio e depois foi ao cemitério visitar o túmulo dos pais. Levava um ramo de narcisos e túlipas que ela mesma colhera no jardim. Ruth, a sua

mãe, gostava muito dessas flores, tipicamente primaveris. Ela própria fora uma flor da Primavera, bela e florida durante um curto espaço de tempo.

Assim que Pamela atravessou o portão do cemitério a chuva começou a cair. com medo que as flores se estragassem, cobriu-as com a gabardine, e caminhou tranquilamente pela alameda ao som do chilrear dos pássaros. Aqui e ali ouvia o sussurro de vozes de outras pessoas que também tinham ido visitar parentes e amigos falecidos. Algumas lápides estavam gastas, cobertas de musgo, com os epitáfios quase ilegíveis.

Pamela parou junto do canteiro que marcava a lápide dos pais, um canteiro de pequeninas flores

- que alegravam a pedra mórbida. Releu as palavras que estavam gravadas no livro de pedra aberto... palavras que o pai escolhera quando perdera a mulher... palavras que lembravam à filha o sentimento de solidão e abandono experimentado por ele.

Meu vinho transbordou

Do alto do cálice, e não há ninguém

Para recolher o pão do meu banquete.

Estes versos, escritos pela poetisa preferida de Ruth, expressavam tudo o que o pai sentira.

Como seria viver assim tão amada por alguém?, pensou Pamela, ao ajoelhar-se para fazer o arranjo das flores. Depois, inclinou a cabeça e rezou uma oração. Levantou-se em seguida e voltou pela mesma alameda em direcção da saída do cemitério. De repente, sentiu-se muito sozinha no mundo. Os pais de Sybil eram muito carinhosos com ela, mas não podiam dar-lhe a mesma atenção que davam à filha. Era sempre bem recebida na família, mas quando tinha de regressar a Londres parecia temer voltar para o pequeno e silencioso apartamento em Bloomsbury.

Ao fim de alguns dias, a sensação de solidão ia-se dissipando pouco a pouco, mas era sempre penoso abandonar a alegria e o calor do antigo casarão, onde os cães latiam, as visitas não cessavam e o gira-discos estava sempre ligado, porque tanto Sybil como Lilian eram animadas e cheias de vida.

O apartamento onde Pamela vivia ficava perto do escritório onde trabalhava, e de alguns cinemas e teatros que, normalmente, tinham uma boa programação. Mas a única vista que tinha da janela era o incessante movimento dos carros e das pessoas na rua. Nem sequer podia ter um animal de estimação, porque a casa era muito pequena.

Desde miúda que Pamela gostava muito do mar. Por isso, ao sair do cemitério correu para apanhar o autocarro que passava pela praia de Jocelyn. Queria respirar o ar puro antes de voltar para Londres.

- Hoje não está lá grande dia para ir à praia comentou o motorista.

- Não faz mal. Estou desejosa por rever o mar.

Ao sair do autocarro caminhou por um terreno coberto de flores, cujo perfume adocicado se misturava com a maresia e com o odor das pedras húmidas. Antes de chegar à praia passou por uma loja de antiguidades onde se deteve por alguns instantes a admirar as bonecas de cera, os pássaros empalhados, os jarros de porcelana e os móveis de mogno gastos pelo tempo. Enquanto aguardava que o sinal abrisse para poder atravessar a estrada, Pamela reconheceu um carro desportivo que pertencia a um amigo de Sybil, e virou o rosto para não ser reconhecida, acabando por sentir-se triste e sozinha quando o automóvel passou por ela a toda a velocidade.

Atravessou a rua e seguiu por um caminho entre as árvores cujas folhas balançavam ao vento. Passou ao pé de uma fileira de veleiros e pelo Lady Audacity, um antigo navio agora transformado em clube, que estava sempre ancorado na praia. O velho transatlântico tinha um ar romântico e boémio...

Lá ao longe o mar brilhava sob os raios que atravessavam as nuvens. Pamela parou junto do corrimão da escadinha que levava à praia e ficou a observar os pássaros que saltavam por entre as pedras à procura de alimento, ao mesmo tempo que respirava a brisa marítima.

Durante os anos que ali passou, Pamela viveu em perfeita harmonia com o mar e com as gaivotas. Tinha a sensação que tudo aquilo lhe pertencia, que fazia parte desse ambiente. Agora, era como uma estranha, uma moradora da cidade, que visitava a praia de tempos a tempos, desejosa de rever a paisagem tantas vezes recordada. Nem mesmo o sucesso no trabalho e a satisfação de ser independente se comparavam à sensação de alegria e bem-estar que sentia quando revia a praia de Jocelyn... Desceu os degraus da escadinha em direcção à praia e, enquanto caminhava pela areia, curvava-se para apanhar conchinhas. Depois, sentou-se ali mesmo e pôs-se a recordar os banhos de mar, quando criança, na companhia do seu cachorrinho. Foi quando avistou um barco à vela movendo-se sobre a água. Só alguém muito corajoso seria capaz de aventurar-se no mar com aquele tempo. Provavelmente estava agora à espera que a maré subisse para entrar no ancoradouro.

- Boa tarde, Pamela.

A voz baixa surgiu tão inesperadamente que ela quase morreu de susto. Voltou-se num gesto súbito e encarou o homem alto, vestido com umas calças castanhas e uma gabardine esverdeada. Um homem moreno cujos cabelos pretos já tinham fios grisalhos, batidos pelo vento.

Pamela reconheceu-o imediatamente, e procurou ocultar o nervosismo com uma aparência de tranquilidade.

- Que surpresa encontrá-lo aqui! Não dei conta da sua chegada.

- Você estava muito longe daqui... absorta nos seus pensamentos. Aposto que esta parte da praia é o seu local preferido. Acertei?

Sim, ele tinha acertado, o que provava que Edwin não era um homem comum... era alguém acostumado a ler nas fisionomias e nas mentes dos outros. Quando olhava profundamente para uma mulher, era capaz de sondar os seus segredos mais íntimos e tirar partido deles. Por isso, Pamela via-o como um invasor da sua intimidade, e isso, sem dúvida, era algo perturbador e inquietante.

- Sabe, há pessoas que vemos apenas uma vez, mas há outras que encontramos diversas vezes, mesmo sem querer. Agrada-me o facto de você também gostar de lugares solitários. É muito raro encontrar uma mulher que goste de estar só e que não se incomode quando o vento lhe despenteia os cabelos...

Pamela lembrou-se da época em que ia à praia, depois do colégio, e tirava o chapéu para deixar os cabelos soltos ao vento. Embora se sentisse bem a recordar estes episódios de infância, olhou para ele com uma certa ironia.

- Pelos vistos não simpatiza muito comigo, pois não? - indagou ele sem rancor, como se isso não fosse importante... como se achasse graça à reacção que a sua presença provocava, especialmente nas mulheres.

- Se já sabe que não, então por que pergunta? E que diferença faz se simpatizo ou não? Mais de metade das mulheres da cidade está interessada em conhecê-lo... e eu não.

- Talvez seja perigoso não gostar de alguém nos primeiros encontros... tão perigoso como amar alguém à primeira vista...

Amar... era a última emoção que podia associar a Edwin. Os sentimentos de amor pareciam tão alheios a ele como o namoro leviano a ela. Aquele homem sinistro e misterioso podia possuir uma mulher, mas não sabia nada sobre aquilo que Pamela julgava ser o amor.

- Nunca gostei de ninguém à primeira vista. Para falar a verdade acho que nunca amei homem algum. Seria uma loucura apaixonar-me por um estranho - respondeu com frieza na voz.

- Sem dúvida, uma loucura perigosa e, ao mesmo tempo, fascinante. Não me diga que a Pamela nunca sonhou com um amor à primeira vista! Ah, você parece surpreendida... Será que adivinhei o seu pensamento?

- Não, errou desta vez.

Contudo, na noite anterior, ao tocar um prelúdio de Liszt, sentiu uma enorme vontade de amar alguém, amar intensamente, sofrer por amor... Mas não queria contar nada disto a Edwin. Ele era um estranho... um estranho que parecia saber alguma coisa a seu respeito. O modo como ele a olhava causava-lhe essa curiosa impressão.

Assustou-se quando ouviu um trovão, anunciando uma tempestade. Quando a chuva começou a cair Pamela levantou-se, lançou um breve olhar para a maré que estava a subir e disse:

- vou andando. Está na hora... vou esta noite para Londres e ainda tenho algumas coisas para arrumar.

- O meu carro está lá em cima - disse Edwin. - Há poucos autocarros aos domingos e se ficar aqui à espera com certeza irá apanhar uma molha. Posso levá-la até à casa do seu tio, se quiser.

Pamela hesitou em aceitar o convite, mas acabou por ceder, pois recusar seria o mesmo que confessar o medo que ele lhe causava.

- Pois é... realmente não gostaria de esperar o autocarro debaixo desta chuva.

Caminharam sobre a areia em direcção aos degraus, de onde Pamela lançou um último olhar para a praia, antes de entrar no carro.

Edwin abriu a porta para que Pamela entrasse e, só quando estavam bastante afastados da praia, é que voltou a falar com ela.

- Quinta-feira tenho de ir a Londres... quer jantar comigo?

- Para quê!?... - Interrompeu-se subitamente e acrescentou: - Desculpe, fui indelicada, mas confesso que fiquei surpreendida com o convite. De qualquer maneira acho pouco provável poder jantar fora durante a próxima semana.

- Não me diga que já tem a agenda cheia e que não pode dispor de algumas horas para mim...

- Às vezes trabalho à noite.

- Pois não devia. Se trabalhar muito vai ficar com rugas em volta dos olhos, o que seria uma pena... Você é tão bonita.

- O senhor está a tentar seduzir-me, não está? Pois acho melhor parar por aqui, já tem idade suficiente para ter juízo.

- Por que diz isso? Os homens mais velhos assustam-na? Realmente parece não se sentir muito à vontade comigo, caso contrário não me trataria por senhor.

- E como é que deveria tratá-lo? Tem alguma preferência?

- Trate-me por Edwin. E não vejo razão para nos tratarmos por você.

- A mim isso pouco me importa, mas se assim o preferir pode tratar-me por tu.

- Óptimo, mas ainda não respondeste à pergunta que te fiz.

- Que pergunta?

- Ora, sabes muito bem... os homens da minha idade assustam-te?

- Não necessariamente - respondeu ela, arrependendo-se logo em seguida, pois mais uma vez tinha confessado algo que preferia manter em segredo. Para disfarçar o seu constrangimento, sorriu e acrescentou: - Qual era o seu... o teu propósito, quando me convidaste para jantar? Era apenas para me testar?

- E não só... Há qualquer coisa em ti que me deixa intrigado, curioso. Espero que sintas o mesmo por mim... Somos duas pessoas que não acham muita graça a certos hábitos modernos, como por exemplo locais barulhentos e cheios de gente. Pelo menos foi essa a impressão que tive ontem à noite na festa, quando reparei que não estavas perfeitamente à vontade com os amigos de Sybil. E hoje também, quando te vi sentada sozinha na praia. Tens uma maneira de ser que não é muito comum nas raparigas de vinte e dois anos.

- Como sabes a minha idade?

- Foi apenas um palpite.

- Não acredito. Ontem à noite tive a impressão de que andavas a fazer perguntas a meu respeito a outras pessoas... que sabias certas coisas do meu passado.

- Talvez... Esta cidade é muito pequena e as notícias correm muito depressa. Já estamos quase a chegar a casa do teu tio e ainda não me disseste se aceitas ou não o meu convite.

- Sinceramente não sei se me apetece...

- Sabes, a melhor maneira de superar as hesitações dos outros é tomarmos a iniciativa - interrompeu ele. - Onde é que eu te posso ir buscar na quinta-feira para irmos jantar?

Pamela queria recusar o convite, mas foi vencida pela curiosidade. Em geral sabia controlar as suas emoções e não se deixava dominar, muito menos por um estranho. Mas havia qualquer coisa em Edwin que a atraía.

- Está combinado - disse finalmente. - Vai ser uma novidade jantar fora durante a semana.

- Óptimo - retrucou Edwin com frieza, como se fosse uma coisa sem importância.

Depois de Pamela lhe ter dado o telefone de casa e do escritório, não falaram mais no assunto até chegarem à mansão Memory. Quando Pamela desceu do carro, Edwin deu a volta pela parte da frente e segurou-a pela mão com uma força impiedosa, como se não estivesse disposto a abandonar uma decisão a partir do momento em que se tivesse empenhado nela.

- Então, até quinta-feira. Vê lá se não mudas de ideias.

- E se mudar? - perguntou ela, encarando-o olhos nos olhos, enquanto a mão dele apertava os seus dedos.

- Sei onde te encontrar... - disse Edwin, soltando-lhe a mão e deixando-a com a impressão de que possuía um temperamento violento, que não era aconselhável desafiar.

Pamela subiu as escadas a correr como se desejasse fugir daquele homem, que tinha um inexplicável poder de sedução. Fora justamente esse poder que a levara a aceitar o convite contra a sua vontade.

Edwin foi-se embora, mas desta vez Pamela não conseguiu afastá-lo dos seus pensamentos. Ele sentia prazer em atormentá-la, pensou, furiosa.

 

Os dias seguintes, em Londres, foram de grande actividade para Pamela. No final do expediente, levava para casa uma pasta repleta de anotações para dactilografar; estava distraída a trabalhar activamente quando o telefone tocou, às nove da noite de quarta-feira.

Apanhou um susto ao ouvir o ruído da campainha. Assim que levantou o auscultador, ouviu alguém dizer do outro lado da linha:

- Como tens passado, Pamela?

- Quem fala?

Como esperava um telefonema da advogada para quem trabalhava, ficou surpreendida ao ouvir uma voz masculina.

- Não me digas que já te esqueceste de mim?...

- Ah, és tu! Não esperava que me telefonasses hoje...

- Mas sabias que eu ia telefonar! Ou pensaste que eu me ia esquecer do jantar de amanhã?

- Não... eu é que me esqueci. Tenho andado tão ocupada estes últimos dias... Agora mesmo estava a trabalhar.

- Foi o que eu pensei. Estavas um pouco distraída quando atendeste o telefone. Olha, comprei bilhetes para o bãllet. Gudrun Lewis está a dar um espectáculo e pensei que gostasses de ir. Mas se quiseres ir ao cinema ou ao teatro não há problema. Posso vender os bilhetes.

Havia algo na voz dele que a deixava irritada... Desejava dizer-lhe que não queria sair com ele, mas Edwin, graças à sua intuição infalível, convidara-a para ir ao bãllet, o espectáculo de que ela mais gostava. Tivera aulas de dança quando era miúda, mas depois da morte dos pais deixou de frequentá-las.

- Não sei se vou poder ir, Edwin. Tenho muito trabalho para fazer esta semana.

- Pamela, se não te apetece ir, diz de uma vez por todas. Não gosto de pessoas que adoçam as desculpas. Se não podes ou não queres sair comigo amanhã à noite é problema teu. Pensei que gostasses de desanuviar um pouco. Matas-te a trabalhar porque não tens ninguém interessante com quem sair.

- Nunca conheci ninguém tão pretensioso... é incrível! - exclamou furiosa.

- Sou apenas mais velho, só isso. Tenho mais experiência do que tu e sou capaz de perceber melhor certas atitudes das pessoas. Ao contrário de ti, que tens a mania de condená-las sem sequer as julgares.

Desta vez Edwin falou com a voz firme, mas sem agressividade.

- Ousadia é o que não te falta!

- É verdade. Ousei mais na minha juventude do que muitas feministas hoje em dia.

- Tens algo contra as feministas? Provavelmente sentes-te ameaçado por elas.

- Basta! Estás muito nervosa e irritada por causa do teu trabalho. Se não te distraíres de vez em quando acabas por ficar completamente neurótica. Por isso, aconselho-te a aceitares o meu convite, Pamela. Vamos jantar fora e depois vamos ao ballet. Eu vou buscar-te aí às sete e meia, está bem?

- Está bem, já que tanto insistes... Estarei à tua espera.

- Óptimo. Boa noite, Pamela. Dorme bem.

Antes mesmo de poder dizer alguma coisa ouviu o clique do telefone. Como se não bastasse o facto de Edwin ter tido a palavra final, tinha-a deixado um pouco preocupada e deprimida. Sabia que ele tinha razão, estava certo, mas era difícil assumir isso. Pousou o auscultador com toda a força, jurando a si mesma que odiava aquele homem arrogante e pretensioso.

Foi até à cozinha preparar um café. Ainda havia muita coisa para escrever à máquina, e ficaria acordada pelo menos mais duas horas.

Eram quase onze quando terminou o trabalho. Antes de se deitar, lembrou-se de ir dar uma olhadela no guarda-fatos para escolher o vestido que iria usar no jantar. Achou que todos eles estavam um pouco fora de moda, e decidiu comprar um. Sentir-se-ia mais segura.

Pamela estava intrigada com o facto de Edwin exercer sobre ela uma atracção inexplicável. Não possuía nenhuma beleza especial, com excepção dos olhos, que nunca revelavam os pensamentos mais íntimos. Pamela continuava com a curiosa impressão de que ele sabia algo do seu passado.

Cansada como estava, decidiu esperar pelo dia seguinte e foi-se deitar. Estava desejosa por parar de pensar nele, mas não conseguia deixar de visualizar o seu rosto.

No dia seguinte, aproveitou a hora de almoço para ir comprar o vestido. Depois de ter experimentado vários modelos escolheu um em tons de verde. Todo em seda, tinha as mangas compridas e um decote redondo à frente.

- vou levar este, é muito bonito - disse Pamela, entusiasmada.

- Fica-lhe lindamente. Tenho a certeza de que o seu namorado também vai gostar - comentou a vendedora.

Namorado? Pamela sorriu, meio constrangida e, depois de ter pago, despediu-se da senhora que a atendera.

Durante a tarde não parou um minuto sequer. Mesmo assim, a advogada Francis Carnaby mostrou-se irritada ao saber que naquela noite Pamela não estaria disponível para passar a limpo os seus apontamentos.

- Vai sair? - perguntou espantada. - Arranjou um namorado?

- Namorado!? - exclamou Pamela com vontade de rir. - Não, é um amigo do tio Saul que está na cidade. Esteve fora uns anos e como não conhece ninguém em Londres prometi jantar com ele.

- Então já é um senhor... - comentou Francis. - Quanto tempo é que ele cá fica?

- Acho que se vai embora amanhã. Francis parecia sentir-se aliviada com o facto de Edwin não ser o namorado de Pamela. Provavelmente porque tinha receio de perder a sua melhor secretária, caso esta se casasse.

Pamela pensou em dizer-lhe que Edwin deveria ter mais ou menos a sua idade, uns quarenta anos, mas preferiu deixá-la a pensar que ele tinha a idade do tio Saul, para evitar perguntas indiscretas.

Pamela chegou a casa às seis e meia; tinha uma hora para se arranjar. Depois do banho, perfumou-se toda, penteou-se e vestiu-se. Quando se olhou ao espelho, ficou espantada consigo mesma. Estava muito bonita. O vestido novo ficava-lhe lindamente, acentuando todos os seus contornos de uma maneira elegante e sensual. Estava a abrir a caixa das jóias quando ouviu a campainha tocar.

Edwin também estava elegantemente vestido, com um fato azul-escuro, camisa branca e um lenço de seda ao pescoço. Trazia o sobretudo em cima dos ombros. Olhou-a de alto a baixo deixando transparecer uma certa admiração. Pamela perguntou a si mesma se ele teria adivinhado que comprara um vestido novo só para o impressionar.

- Senta-te. Estou quase pronta. Queres beber alguma coisa?

- Um uísque, se tiveres...

- Por acaso tenho. Eu não costumo beber, mas comprei esta garrafa quando estive constipada, porque me disseram que não há nada melhor para curar a constipação do que um gole de uísque com limão - explicou Pamela. - Queres puro ou com gelo?

- com gelo, por favor.

Edwin examinava atentamente a sala, como se estivesse à espera de encontrar algum sinal de mau gosto ou de desarrumação. Mas Pamela era uma pessoa muito organizada e herdara da mãe o gosto pelas coisas bonitas. Ficou satisfeita ao perceber que Edwin não podia fazer qualquer crítica nesse sentido. Embora o apartamento fosse pequeno, era muito acolhedor.

- Dá para perceber que gostas muito de coisas antigas - comentou ele.

- É verdade. Se pudesse comprava todos os antiquários da cidade - retrucou Pamela ao estender-lhe o copo de uísque.

- Obrigado - agradeceu ele. - Vestida dessa maneira fazes-me lembrar a tua mãe...

- O quê? - indagou Pamela boquiaberta.

- Como é que sabes?

- Vi o retrato dela na casa do teu tio. Gostei tanto do quadro que me ofereci para comprá-lo.

- Não posso acreditar! - exclamou furiosa.

- E por que não? O teu tio não se mostrou indignado com a minha proposta, antes pelo contrário. E, diga-se de passagem, fica muito bem na minha biblioteca.

Pamela ficou chocada com a maneira leviana como ele falou, dando a entender que o dinheiro pode comprar tudo. Mas, pior do que isso, era saber que o quadro fora vendido a um estranho.

- O tio Saul nunca teria vendido o quadro se não tivesse sido tentado pelo dinheiro. Não tens qualquer tipo de escrúpulos! Aproveitas-te das fraquezas dos outros para teu próprio benefício.

- E depois? É uma maneira de ter sucesso na vida, só isso - retrucou Edwin. - Está na hora de irmos embora. O ballet começa às dez, e ainda temos que jantar. Não vais levar um casaco?

- vou - respondeu Pamela desapontada. Tinha vontade de lhe dizer que fosse sozinho,

mas ao ver o seu olhar ameaçador acabou por ceder. Sem dizer nada, caminhou até ao quarto para buscar o casaco. Foi quando desistiu de pôr o colar de pérolas que tinha herdado da mãe, pois não queria dar a entender que pretendia parecer-se com ela. Que coisa mais absurda, pensou, pendurar o retrato de Ruth na parede da biblioteca!... Seria apenas pela sua beleza e simplicidade? Passou o casaco por cima dos ombros, guardou o colar de pérolas e decidiu deixar a curiosidade de lado. Contudo, ao entrar na sala, procurou lembrar-se se teria visto Edwin alguma vez quando era pequena. Havia algo na sua figura que lhe era familiar... Talvez fosse a entoação da voz, ou o.corpo, alto e esguio. Fosse o que fosse, achou melhor não tocar no assunto.

O carro estava estacionado mesmo em frente ao prédio de Pamela.

- Como Londres mudou - disse Edwin a caminho do restaurante. - Já não tem aquele encanto das cidades antigas. Actualmente parece-se com qualquer outra cidade... Tóquio, Nova Iorque.

- Conheces todas elas?

- Passei por todas elas, queres tu dizer - corrigiu ele. - É preciso viver muitos anos numa cidade para conhecê-la bem.

- Daquelas por onde andaste de qual é que gostas mais?

- Paris - disse sem hesitação. - Apesar das recentes transformações, Paris conserva ainda um pouco do seu charme original. É uma cidade encantadora, ideal para se viver um grande amor. Adoro ver as parisienses a desfilar na rua com os seus collants de seda... são extremamente bonitas e sensuais.

- Vocês, homens, são todos iguais... - comentou Pamela, decepcionada.

Edwin riu-se.

- Não me digas que ficaste chocada com as minhas palavras? Pensei que gostasses de pessoas sinceras... e que preferisses ser tratada como uma mulher adulta e não como uma adolescente, o que até seria mais fácil... Afinal, vinte anos de vida separam-nos um do outro. Já agora, gostaria de saber uma coisa: se não simpatizas comigo por que aceitaste o meu convite para jantar?

- Porque estou com fome - disse ela, com petulância. - Gosto de comer bem, e nos últimos dias não tenho tido tempo para me alimentar como deve ser. Tenho a certeza de que não me vais oferecer uma coca-cola e uma sanduíche.

- É isso que comes normalmente? Por isso é que estás tão magra.

- Muito agradecida pelo elogio.

- Ah!, afinal sempre gostas que te elogiem... Pamela, tens uma beleza original, um encanto raro e natural que não tem nada a ver com esse vestido elegante. É algo que vem de dentro... Mas pelo teu olhar consigo perceber que não és uma pessoa feliz.

- Como sabes que eu não sou feliz? Tenho tudo o que preciso...

- Pensas tu - interrompeu ele. - Um dia, quando te apaixonares a sério por alguém, vais saber o que é a verdadeira felicidade.

- O amor faz-nos sofrer...

- Se não fizesse não era amor.

Edwin estacionou o carro frente ao restaurante e o porteiro abriu-lhes a porta para saírem. Pamela ficou encantada com a decoração. Nunca tinha entrado num lugar tão luxuoso. Deixou o casaco no bengaleiro e, juntamente com Edwin, acompanhou o chefe-de-mesa.

Quando se sentaram, o empregado trouxe-lhes a ementa.

- Humm!... tem coisas óptimas para comermos de entrada - disse Edwin com um sorriso.

- Salmão fumado, lagostins, caviar,” escargots... E então, já escolheste?

- Já, quero caviar com arenque e presunto.

- Óptimo. vou comer o mesmo.

Edwin chamou o empregado, fez o pedido e aproveitou para escolher um vinho.

Pamela olhou à sua volta e percebeu que alguns homens estavam a olhar para ela, o que era perfeitamente natural. Ao usar um vestido daquela cor, contrastando com o seu tom de pele e cabelo, era difícil não chamar a atenção. Naquele momento, não se parecia nada com a secretária eficiente que trabalhava num escritório de advogados.

Queria saber se conseguira impressionar Edwin, mas assim que olhou para ele sentiu o coração a bater mais depressa. Tentou dizer alguma coisa para disfarçar a sua excitação, mas não conseguiu. Foi Edwin quem falou primeiro.

- Dava tudo para saber o que estás a pensar, sobretudo quando olhas para mim dessa maneira... Estás com medo de alguma coisa?

- Não, porquê? - indagou ela, hesitante.

- Bem, para falar a verdade eu não confio muito em ti... Fazes-me sentir...

- Como um ratinho? Um ratinho que está com imensa vontade de comer um pedaço de queijo, mas que treme de medo ao avançar para provar um bocadinho...

- Não, não tenho medo de ti - disse ela, corando ligeiramente. - Quando te vi na festa da minha prima tive a nítida impressão de que já te conhecia, não como convidado do tio Saul, mas da época em que a casa pertencia ao meu pai. Pensei que fosses...

- Um negociante qualquer, amigo do teu pai?

- interrompeu ele. - Alguém que te faz reviver as recordações do passado, da tua infância?

- Exacto. Chegaste a conhecer a minha mãe?

- indagou curiosa.

- Sim. Ruth era uma mulher muito bonita, e tu herdaste a melhor parte dessa beleza, o seu aspecto rebelde e irreverente.

No momento em que Pamela ia dizer algo, o empregado trouxe o vinho e as entradas. A sua fome era tanta que, só passados cinco minutos, foi capaz de parar para provar o vinho.

- Estavas cheia de fome... Quantas vezes por semana comes como deve ser?

- Bem... não passo fome, mas geralmente não tenho tempo para almoçar, e quando chego a casa estou tão cansada para cozinhar que me contento com uma fatia de pão torrado, leite e fruta. Só cozinho mesmo aos fins-de-semana.

- Nunca pensei que soubesses cozinhar - disse ele, com ironia.

- Sei cozinhar muito bem. Se não faço comida mais vezes é por falta de tempo. Não és capaz de perceber que eu sou uma mulher independente e que sei cuidar de mim mesma? É muito difícil para ti aceitar a emancipação das mulheres, não é?

- Já ouvi falar na revolução dos sexos, mas prefiro não me pronunciar a esse respeito... Hum, o caviar é excelente.

Ao reparar que os botões de punho dele eram de ouro, teve curiosidade de saber qual era a sua fortuna, e quanto custava morar num casarão como o Castelo de Vidro. Situado no alto do monte, o castelo parecia ter saído de um conto de fadas. Tinha a certeza de que Edwin se divertia com os boatos que corriam a seu respeito

- E então, estás a gostar?

- Claro que sim, mas talvez não fosse necessário termos vindo a um local tão caro...

- As mulheres gostam de homens generosos - comentou com ironia. - Está na altura de escolhermos o prato principal. Proponho que isso fique por minha conta e sejas tu a escolher a sobremesa. Que tal?

- Acho óptimo. És um perfeito anfitrião. Aposto que quando eras miúdo tinhas tudo o que querias e nunca passaste dificuldades.

- Aí é que tu te enganas. Batalhei tanto na vida como o comerciante de lãs que construiu o castelo onde vivo agora. Por falar nisso, o que achas do meu castelo?

- Fantástico. Quando era pequenina chamava-lhe o castelo do Conde Drácula.

Edwin riu-se.

- O nome é perfeito.

Esta resposta deixou Pamela mais assustada do que nunca. Edwin não era uma companhia muito agradável, no entanto admitia que se sentia bem ao seu lado, mesmo sem saber porquê.

Depois da sobremesa, beberam um conhaque e, pouco tempo depois, já estavam a caminho do teatro. Durante o trajecto Edwin parou numa florista e comprou uma rosa branca.

Pamela aguardou ansiosa, dentro do carro, e quando ele voltou com a flor na mão sentiu um certo embaraço.

- Espero que aceites esta flor como prova da minha amizade por ti. Gostava muito que fosses minha amiga, Pamela - disse Edwin apertando-lhe o pulso.

Amiga?, pensou ela. Seria esse o interesse de Edwin, o de uma simples amizade? Era uma amiga que ele desejava ter?

Pamela não sabia o que dizer. Sentia-se confusa e desejava afastar-se dele. Mas, temendo que se tornasse agressivo, dirigiu-lhe um sorriso de agradecimento.

Não sabia como interpretar aquele gesto inesperado. Estaria Edwin apaixonado por ela? Talvez fosse apenas um homem solitário à procura de companhia...

- Se não disseres alguma coisa nos próximos minutos vou pensar que não gostas de mim - comentou Edwin.

- Eu... eu não te conheço bem, e para falar verdade não sei se te quero conhecer.

- Porquê? Tens medo de te apaixonar por mim?

- Que ideia! És mesmo convencido, não há dúvida.

- Talvez seja... mas isso não me impede de te lembrar que a paixão entre uma mulher e um homem é a coisa mais natural do mundo - disse Edwin no momento em que estacionou o carro diante do teatro.

Pamela estava surpreendida. Ninguém... nenhum outro homem... falara com ”ela daquela maneira.

- Temos um camarote - comentou Edwin ao subirem as escadas.

Quando se afastaram das outras pessoas que se dirigiam para a plateia, Pamela teVe a impressão de que pareciam amantes clandestinos que desejavam estar sós.

- Que luxo! - exclamou ela assim que entraram no camarote. - Até parecemos as estrelas de cinema quando não querem ser reconhecidas pelo público...

- Quando comprei os bilhetes já não havia lugares na plateia - explicou Edwin.

O camarote ficava à esquerda do palco. Era todo alcatifado e tinha umas cadeiras muito bonitas, forradas de veludo vermelho-escuro. Pamela tinha a certeza de que Edwin reservara o camarote propositadamente. Ele era bem capaz de comprar os melhores lugares do teatro só para impressionar os outros, da mesma forma que comprara o Castelo de Vidro.

Poucos minutos depois apareceu uma rapariga com o programa do espectáculo e vendendo bombons. Apesar dos protestos de Pamela, Edwin comprou-lhe uma caixa muito bonita, com um cisne branco pintado na tampa.

- És sempre assim tão... tão extravagante quando sais com uma rapariga? - perguntou Pamela segurando a caixa.

- Eu diria que sou extravagante e que raramente saio com raparigas. Há anos atrás, quando deixei a Inglaterra para ir trabalhar na índia, perdi o contacto com todos aqueles que conhecia; as mulheres estão casadas, são mães de família, e, quanto aos amigos... nós já não falamos a mesma língua. As ambições e os desejos deles já não correspondem aos meus. Confesso que te convidei para saíres comigo porque me sentia muito sozinho. Talvez seja um pouco romântico e extravagante, como tu dizes, por ter vivido num país

cheio de mitos e tradições. Durante todos estes anos, muita coisa se transformou, nada é como dantes...

- Nem tudo mudou - interrompeu ela.

- Como vês, nem toda a gente está nos bares e discotecas da moda. O teatro está cheio.

Foi então que as luzes começaram a apagar-se para dar início ao espectáculo. Apesar de estar voltada para o palco, Pamela não conseguia esquecer a presença daquele homem a seu lado. Admitiu que Edwin era um pouco mais humano do que imaginara a princípio, e que, ao contrário de muitos homens da sua idade, não levava uma vida sedentária. Parecia-se com Litov, o elegante bailarino que acabara de entrar no palco para dançar com Grudun Lewis.

Durante o intervalo, foram até ao bar.

- Estás a gostar? Ao ver Grudun Lewis ocorreu-me que podias ser uma óptima bailarina. Tens corpo para isso, sem falar no temperamento...

- Eu tive lições de ballet quando era miúda.

- Eu lembro-me... e por que não continuaste?

- Fui obrigada a parar.

- Entendo. Depois que a tua mãe morreu...

Pamela ficou espantada ao perceber que ele sabia certas coisas do seu passado. Provavelmente era um dos convidados que iam jantar e jogar bridge a casa do seu pai; alguém que embarcara repentinamente para o Extremo Oriente, como se tivesse tido uma grande desilusão amorosa.

Como não sabia o que dizer, ficou contente quando um homem se aproximou de Edwin para cumprimentá-lo.

- Edwin! Que surpresa! Depois de tantos anos...

Num primeiro momento parecia que Edwin não ia responder ao recém-chegado, mas acabou por dizer com frieza:

- Olá, Harvey. Como estás?

- Vai-se andando - respondeu ele, fixando o olhar em Pamela. - Seria um imenso prazer ser apresentado a esta jovem encantadora.

Edwin não parecia muito feliz com este encontro, porém agiu educadamente.

- Pamela, este é o Lane Harvey. Estivemos juntos no Exército. Harvey, apresento-te a Pamela Brooks. É natural que o conheças, Pamela.

- Não... o rosto não me é familiar, mas a voz...

- Trabalhei na rádio durante três anos. Era o locutor da ”Voz dos Poetas. Talvez tenha ouvido algum programa meu.

- É isso! Você era excelente como recitador de poemas e muito divertido no papel de Oscar Wilde. Fiquei triste quando abandonou o programa.

- Ofereceram-me um papel numa peça de teatro e eu aceitei. Depois, recebi uma proposta para trabalhar com um grupo de actores em Bridensea, do Teatro Pavillion, e nunca mais voltei a fazer programas de rádio.

- Ah!, que maravilha. Eu morei perto de Brindensea durante alguns anos, e cheguei a ir muitas vezes ao teatro.

Olhou curiosa para Edwin, e percebeu que ele não demonstrava o menor interesse pelo facto de Harvey trabalhar no teatro que ficava a alguns quilómetros da praia de Jocelyn. Naquele momento a campainha tocou anunciando a segunda parte do espectáculo.

- Gostaria de encontrá-la novamente - disse Lane olhando para Pamela. - Que tal depois do

ballet? Podemos ir tomar um copo...

- Impossível - interrompeu Edwin com voz firme. - Pamela trabalha e tem que se levantar cedo amanhã. Adeus, Harvey.

Quando chegaram ao camarote, Pamela não deixou de comentar:

- Foste um pouco rude com o teu amigo. Parecia ser uma pessoa simpática, mas trataste-o como se não gostasses dele.

- Minha querida Pamela, ele só falou comigo porque eu estava contigo. Não penses que fomos grandes amigos no Exército. Tenho a certeza de que se eu estivesse sozinho no bar ele não me teria cumprimentado.

- Já percebi, mas de qualquer maneira acho que não és muito sociável...

Edwin dirigiu-lhe um olhar repreensivo, mas como o espectáculo estava prestes a começar, preferiu omitir qualquer comentário.

Quando saíram do teatro, Edwin apressou-se a levá-la a casa, e durante todo o trajecto não lhe dirigiu a palavra. Pamela, por sua vez, achou melhor ficar em silêncio, embora lhe quisesse dizer que tinha gostado de estar com ele.

Edwin estacionou o carro, saiu para lhe abrir a porta e disse:

- Eu telefono-te um dia destes, Pamela. Espero que tenhas gostado desta noite...

- Gostei... muito. O ballet foi lindo e o jantar estava óptimo - respondeu Pamela, admirada.

- Boa noite, Edwin.

- Boa noite, Pamela.

Edwin esperou que ela entrasse no prédio para ligar novamente o carro. Pamela estava exausta. Afinal, tinha trabalhado o dia todo. Mesmo assim, não conseguiu adormecer rapidamente. O facto de Edwin exercer sobre ela uma atracção inexplicável era algo que a atormentava. Apesar de ter tido uma noite divertida, não sabia ao certo se gostaria de vê-lo novamente. Habituada à sua independência, não estava disposta a ceder aos caprichos de um homem machista e pretensioso.

 

Várias semanas se passaram sem que Pamela ouvisse falar em Edwin. Era melhor assim, pensou. Embora fosse um homem interessante, havia momentos em que a inquietava.

Sábado à tarde, quando se preparava para fazer café, ouviu a campainha tocar. Como não estava à espera de ninguém, pensou que fosse a sua prima Sybil, quando abriu a porta, encontrou um rapaz com um pequeno embrulho na mão.

- Senhora Pamela Brooks?

- Sim, sou eu.

As suas mãos tremiam ao assinar o recibo que comprovava a entrega.

- Boa tarde - disse o rapaz dirigindo-se para as escadas.

- Boa tarde.

Pamela fechou a porta e sentou-se por alguns instantes no sofá, com o embrulho na mão. Era raro receber prendas e aquele não era o seu dia de anos. Por isso, sabia que aquilo não fora enviado pelo tio Saul nem por Sybil.

Quando finalmente retirou o papel encontrou uma caixinha aveludada. Abriu-a e viu um relógio de pulso todo em ouro, com rubis. Era tão bonito que pensou haver algum engano. Foi nesse exacto momento que o telefone tocou! Estremeceu e levantou-se imediatamente para atender.

- Estou? - disse, ansiosa.

- Pamela?

- Sim, sou eu.

Nem valia a pena perguntar quem era; a entoação firme e segura só podia ser de Edwin. Começou a tremer novamente e, durante o minuto de silêncio que se seguiu, ouviu a palpitação do próprio coração.

- Como tens passado?

- Tenho andado muito ocupada - respondeu, forçando a voz para parecer natural e tranquila.

- Eu também. Estou a fazer obras no castelo... mandei pôr outro papel de parede e deitei fora quase todos os móveis que lá estavam. Já comprei a mobília da sala de jantar e redecorei os quartos todos. Deves calcular o tipo de comentários que estas alterações suscitaram por parte dos vizinhos...

- Faço ideia...

Pamela era capaz de imaginar a curiosidade dos vizinhos diante dos pintores e operários a trabalharem na misteriosa mansão que permanecera vazia durante anos, antes de ser comprada por Edwin Trequair. A última pessoa que morara ali fora Olívia Glass, a neta do homem que construíra o castelo. Pamela lembrava-se perfeitamente de ouvir boatos sobre o Castelo de Vidro quando era criança. Depois da morte de Olívia Glass, a mansão permanecera fechada por mais de vinte anos.

- Precisas ver o castelo depois das obras disse ele com naturalidade. - Gostaste da prenda?

- Foste tu... Não posso aceitar um presente desses, é caro de mais. Não vou ficar com ele.

- Vais, pois eu não vou recebê-lo de volta. Põe o relógio no pulso e aceita-o como um presente de um amigo da tua mãe.

- Não posso... não vou aceitá-lo - disse decidida. - vou devolvê-lo à joalharia. Podes ir lá buscá-lo segunda-feira.

- Não, não vais - interrompeu ele com uma voz severa. - Vais ficar com o relógio, e se não gostares guarda-o na gaveta. O presente é a minha maneira de te agradecer pela noite que saímos juntos. vou estar em Londres na próxima semana e espero que nos possamos encontrar de novo... Podemos ir ao teatro ver A Ninfa do Lago. Eu já vi essa peça, mas isso foi há muitos anos atrás. Conheces a história?

- Li o livro...

- Então vais ter uma agradável surpresa. Aceitas o convite?

Pamela estava indecisa entre o desejo de recusar e a incapacidade de resistir.

- Estou muito ocupada para sair... - disse finalmente.

- Faz um esforço - insistiu. - vou chegar na sexta-feira de manhã e telefono para ti no final da tarde, por volta das seis e meia. O teatro começa às oito, por isso vamos comer a seguir. Não me digas que és obrigada a trabalhar aos sábados?

- Não, só em casos excepcionais.

- Óptimo. Assim podes dormir até mais tarde. Vemo-nos na sexta-feira?

- Tenho as minhas dúvidas...

- Eu telefono-te. Ah! Não guardes o relógio na gaveta... Ele foi feito para ser usado, assim como os casacos de peles e os colares de pérolas. Espero que estejas mais bem disposta na sexta-feira.

- vou tentar.

Permaneceu um instante a olhar para o telefone e compreendeu que, mais uma vez, Edwin tinha conseguido aquilo que queria. Aborrecida por ter cedido, atirou a caixinha para cima do sofá e dirigiu-se à cozinha para fazer o café. Qual seria o objectivo dele para persegui-la daquela maneira? Primeiro mandava-lhe um presente caríssimo, depois convidava-a para ir ver uma peça com um nome muito sugestivo: A Ninfa do Lago... Teria alguma relação com as recordações de Ruth? Ou Edwin estaria disposto a conquistá-la?

Voltou para a sala e sentou-se no sofá para tomar o café. Ao pensar na conversa que tivera ao telefone, não foi capaz de se lembrar de nada que pudesse indicar que ele sentia amor por ela.

Só ficou mais tranquila quando finalmente concluiu que Edwin a convidara para sair porque estava muito sozinho desde que voltara para a Inglaterra. Sendo a filha de Ruth, era a pessoa mais chegada que ele conhecia. Edwin nunca mencionara a família. Era como se não tivesse parentes e tivesse vivido sempre só.

Pegou na caixinha, retirou o relógio e colocou-o no pulso. O dourado combinava com a pele clara, e os rubis com o tom do cabelo. De facto, Edwin não era um homem vulgar, pensou. Usa-o ou guarda-o, dissera ele, mas não ouses devolvê-lo! Tentou imaginar o que Sybil iria dizer do relógio quando o visse. Lembrou-se de repente que Sybil ficara de passar alguns dias no seu apartamento, na próxima semana, e que talvez fosse uma boa desculpa para recusar o convite de Edwin. Podia telefonar-lhe e dizer que se tinha esquecido completamente da visita da prima. Hesitou durante alguns minutos e acabou por concluir que seria um absurdo. Se fosse outro homem qualquer não teria o mínimo receio de cancelar o encontro, mas havia algo nele que a impedia de agir levianamente. Começava a suspeitar que Edwin exercia um certo domínio sobre ela.

Decidiu ir dar um passeio para espairecer um pouco. Estes pensamentos tinham-na deixado muito tensa.

Quando chegou a Queensway estava a chover torrencialmente e ela foi obrigada a entrar numa galeria de arte para se abrigar do temporal. Já estivera ali outras vezes, para comprar os quadros e as gravuras que estavam no seu apartamento. Pamela gostava do clima de tranquilidade que ali pairava. Enquanto caminhava pela galeria avistou uma pintura que não conhecia; era o retrato de uma praia deserta que lhe recordava a praia de Jocelyn. Estava a observar o quadro atentamente quando ouviu uma voz dizer:

- Gosta dessa pintura?

Pamela voltou-se na direcção da voz, com os olhos arregalados e uma expressão de espanto.

- Desculpe se a assustei...

- Ah!, é você - murmurou Pamela. David Wildwine era o dono da galeria. Certa vez convidara Pamela para trabalhar consigo porque achava que ela tinha muito bom gosto e uma certa ”sensibilidade” para a pintura. David era um homem extremamente simpático e atencioso, mas Pamela não tinha a intenção de trabalhar com ele porque não queria abandonar a sua profissão.

- É uma pintura muito bonita - comentou Pamela. - Mas é mais cara do que posso pagar de momento.

- Sempre pagou o preço certo pelas coisas que deseja, Pamela - disse David tocando-lhe de leve no pulso esquerdo, onde estava o relógio de ouro.

- Como é uma pintura muito especial não posso vendê-la por menos...

- Não estou a pedir-lhe que baixe o preço! disse exaltada. - O quadro é muito bonito, mas se o comprar agora vou passar algumas semanas a pão e água...

- Ora, não diga isso. O seu encanto e a sua beleza também têm um preço...

- David, vim aqui para admirar as pinturas e não para ouvir conversa fiada!

- Que pena... Pelo menos fico satisfeito em saber que o meu rival tem bom gosto, como posso ver por esta linda jóia que traz no pulso!

- Se lhe dissesse que ganhei esta prenda de um amigo de família, acreditaria?

- Por mais estranho que pareça, acreditaria...

- respondeu ele olhando-a de alto a baixo. - Ouça, se lhe oferecer o quadro, é capaz de posar para mim? Não sou nenhum Renoir, mas tenho algum talento...

- Não, David... Prefiro ter o dinheiro na mão para comprar o quadro do que recebê-lo em troca de um favor...

- Realmente não consigo compreender. Você é capaz de se apaixonar por um quadro, mas nunca por um homem - disse David acompanhando-a à porta. - Amanhã mesmo o quadro estará em sua casa.

- Não tenho dinheiro agora.

- Quem é que falou em dinheiro?

- David, já lhe disse que não estou disposta a pagar qualquer preço por esse quadro. Dentro de algumas semanas terei dinheiro suficiente. Pode guardá-lo para mim?

- Fique descansada, minha querida. Só queria perceber por que razão tem tanto medo dos homens, com excepção desse seu amigo de família...

- disse David com ironia.

Pamela despediu-se, sem fazer qualquer comentário, e saiu da galeria.

David era um pouco atrevido, mas inofensivo. Apesar de tudo, Pamela sabia que podia confiar nele, pois era uma pessoa séria e respeitada no mundo artístico.

A chuva já tinha abrandado e o sol tornara a brilhar. Passava do meio-dia quando Pamela entrou num café para comer uma refeição rápida. Como era fim-de-semana, estava cheio de rapazes e raparigas, alguns dos quais se voltaram na sua direcção para admirá-la. Pamela sentiu-se satisfeita por saber que era fisicamente atraente, embora não gostasse de ser abordada por nenhum homem naquele momento.

Quando acabou de comer decidiu ir ao cinema, em vez de voltar para o apartamento. Não tinha muitas oportunidades para se distrair e sentia necessidade de desanuviar um pouco, para não pensar em Edwin, pelo menos por algumas horas. No domingo aproveitou o dia para limpar a casa e pôr alguns papéis em ordem.

Na véspera do dia em que prometera encontrar-se com Edwin, Pamela sonhou novamente com o incidente do lago.

Era noite de lua-cheia. Atraída pelo luar, saiu de casa e foi até à beira do lago. Ao esticar o braço para apanhar um nenúfar escorregou e caiu. Teria morrido afogada se o jardineiro não estivesse por perto. Quando a ouviu gritar, mergulhou para salvá-la. Ruth, que também ouvira os seus gritos, foi a correr ver o que tinha acontecido.

Nunca mais viu o jardineiro que a salvou. Segundo contava a governanta, era um rapaz inteligente e ambicioso, que desejava ser alguém na vida.

Na noite do sonho, Pamela acordou assustada. Enxugou as lágrimas, mas não pôde apagar as recordações provocadas pelo sonho. Agora tinha a certeza de que Edwin estava em casa na noite do acidente... que estava ao pé do lago quando a mãe pegou nela ao colo.

Continuou a pensar no sonho algum tempo e depois adormeceu novamente. Acordou tarde no dia seguinte e chegou atrasada ao escritório. Francis Carnaby estava ansiosa à sua espera para dactilografar um documento importante que deveria ser-lhe entregue no tribunal antes das onze da manhã. Francis foi obrigada a ir para o tribunal com o processo incompleto, enquanto Pamela fazia os possíveis por acabar o trabalho a tempo. Assim que terminou, correu até ao tribunal com os papéis que faltavam e entregou-os à advogada. Quando Francis voltou para o escritório, no final da tarde, estava bem-humorada.

- Os três casos que levei a tribunal estão a caminhar lindamente. Aliás, o juiz deu-me os parabéns - disse ela com um sorriso. - Ah!, por falar nisso, utilizei aquele argumento que você acrescentou nas anotações do processo... Por que não segue o meu conselho e estuda Direito? Há poucas advogadas eficientes, e você tem muito jeito. Além do mais, é muito dedicada, e isso é essencial para se ter sucesso na nossa profissão. Por que não pensa seriamente no assunto, Pamela? Forme-se e será minha assistente...

Pamela pensara muitas vezes em estudar Direito, mas precisava de dinheiro para tirar-o curso e não lhe agradava a ideia de voltar a depender do tio Saul. Ele sustentara-a durante os tempos de colégio, mas agora Pamela não queria abdicar da sua independência.

- Pense nisso seriamente - insistiu Francis, antes de entrar no seu gabinete. - Embora seja uma profissão bastante agitada, tem as suas compensações.

Pamela foi buscar um copo de água e voltou à sala, desejando que Francis não aparecesse de repente com algum trabalho para fazer em casa. Passara toda a semana na dúvida quanto ao encontro com Edwin. Finalmente, deixou-se convencer perante a perspectiva de ir ao teatro e jantar num bom restaurante. Por que não? Seria agradável sair com um homem adulto e sofisticado após uma semana de trabalho.

Pouco tempo depois, Edwin telefonou-lhe a dizer que iria buscá-la a casa por volta das sete e meia. Pamela despediu-se de Francis e saiu do escritório juntamente com Lucy, a outra secretária.

- Tens algum programa para hoje à noite? perguntou Lucy enquanto esperavam o autocarro.

- vou ao teatro - respondeu Pamela com entusiasmo.

- Hum, mas que chique! Aposto que vais com um homem simpático?

Lucy tinha um namorado fixo há já algum tempo, e não havia a menor entoação de inveja na sua voz. Mas, sabendo que Pamela normalmente não saía com rapazes, estranhou a sua ansiedade e impaciência para chegar a casa; sinal evidente de que havia um homem envolvido.

- Bem, simpático não é a palavra certa - respondeu Pamela com um sorriso. - Só te posso dizer que ele é aquele tipo de homem alto, moreno e cheio de mistério, de quem as cartomantes sempre falam.

- Interessante... Ah, vem ali o meu autocarro. bom fim-de-semana. Espero que te divirtas!

- Até segunda! bom fim-de-semana para ti também! - respondeu Pamela.

Ao chegar a casa tomou um demorado banho de imersão para descontrair e afogar as preocupações do dia. Enquanto se vestia indagou consigo mesma se, ao sair novamente com Edwin, não estaria dando a entender que gostava um pouco mais dele. Nesse caso, era natural que tentasse beijá-la, e ela não queria nem pensar na maneira como iria reagir. Levava um vestido vermelho escuro, que combinava lindamente com os seus cabelos ruivos, sem falar nos rubis do relógio.

Estava a acabar de se pentear quando a campainha tocou. Sentiu um pequeno tremor percorrer-lhe o corpo, mas procurou ignorá-lo e foi abrir a porta.

Edwin, como sempre, estava extremamente elegante.

- Estás muito bonita - disse Edwin oferecendo-lhe uma caixinha que trazia na mão.

- Muito obrigada - respondeu ela, abrindo a caixinha onde estava uma flor branca com uma folha em formato de coração.

- É uma flor de lótus - explicou Edwin.

- Estou a cultivá-las na estufa até poder transplantá-las para o lago do jardim.

- É linda! - exclamou Pamela adivinhando o motivo pelo qual Edwin lhe oferecera aquela prenda. A flor era parecida com o grande nenúfar do lago da sua casa, onde quase morrera afogada. Edwin lembrava-se do incidente e queria estabelecer uma relação entre a mulher de hoje e a criança que pregara um susto à mãe.

- Onde vais usá-la?

- No cabelo. Bebe alguma coisa enquanto eu vou arranjar o cabelo. Volto já.

Pamela prendeu o cabelo na altura da nuca, onde prendeu o lótus com dois ganchos. A flor dava-lhe um ar exótico; parecia uma nativa das ilhas do Pacífico.

Pegou na mala e no casaco e voltou para a sala. Edwin estava junto à janela, com um copo na mão, a observar os carros que passavam na rua.

- É natural que sintas falta da praia... - comentou, voltando-se para ela. - Está perfeito. As pétalas combinam com o teu tom de pele.

- Bem, acho que está na hora - disse ela, caminhando em direcção à porta. - Não podemos chegar atrasados ao teatro.

- Já não vamos ao teatro. Os bilhetes estavam esgotados. Pensei que podíamos dar um passeio e jantar nos arredores da cidade..

- Que pena! - exclamou Pamela, decepcionada. - Apetecia-me tanto ver a peça...

- Podemos ir outro dia. Conheço um restaurante fora da cidade onde se come muito bem.

- Avançou para abrir a porta e acrescentou:

- O que foi, Pamela, não confias em mim? Achas que estou com más intenções?...

- És imprevisível... Tens sempre uma surpresa escondida...

- É uma surpresa assim tão desagradável sair de carro e jantar num lugar tranquilo depois de uma semana de trabalho?

Ela concordou finalmente que seria bom sair da cidade e respirar um pouco de ar puro.

- Aonde vamos exactamente? - perguntou enquanto fechava a porta do apartamento.

- É surpresa - disse Edwin sorrindo. Quando chegaram ao carro, Edwin disse:

- Entre na carruagem, Cinderela. Prometo trazê-la de volta à meia-noite.

- vou levar essa promessa a sério - disse ela, apontando para o pulso onde brilhava o relógio de ouro com rubis.

Antes de Edwin entrar no carro, Pamela reparou que ele caminhava de um modo muito elegante. Embora fosse bastante alto, não andava curvado; pelo contrário, tinha uma postura imponente.

- Estás bem? - perguntou Edwin quando se sentou.

- Estou óptima - respondeu ela, observando as mãos finas que seguravam o volante. Admitiu, com certa relutância, que as mãos dele eram bonitas, e as suas feições também.

- Dava todo o meu dinheiro para saber no que estás a pensar.

- Achei que fosses capaz de ler os meus pensamentos. De qualquer maneira, não é com dinheiro que me consegues convencer a contar-te. São muito pessoais... Eras capaz de me contar os teus pensamentos mais íntimos?

- De momento não - disse, dirigindo o carro pela rua Threadneedle. - Não quero destruir uma bela amizade...

- Porquê? São assim tão terríveis?

- Para uma pessoa como tu talvez sejam. O que um homem da minha idade pode descobrir e pensar acerca de uma mulher, costuma assustar uma rapariga mais nova. Estás sempre à espera que eu cometa uma imprudência, mas isso é o que os rapazes fazem. Os meus métodos são muito mais subtis.

- Como assim?

- Espero que fiques comigo tempo suficiente para descobrir...

Pamela estava a ficar cada vez mais curiosa a respeito das intenções de Edwin, sobretudo porque não sabia nada a seu respeito.

- Nasceste em Jocelyn? - indagou ela.

- Não... não foi em Jocelyn - respondeu Edwin, hesitante.

- Então onde foi? - insistiu ela, com a impressão de que ele estava a esconder-lhe algo.

- Ficarias surpreendida se soubesses...

- Edwin, por favor, deixa-te de mistérios...

- Eu nasci numa barraca, algures... A minha mãe era solteira e não tinha condições para me criar. Abandonou-me na praia de Jocelyn, onde fui encontrado por um pescador que me levou para um orfanato. Fugi de lá quando tinha catorze anos. Andei durante um ou dois anos a fazer alguns trabalhos pequenos e depois apanhei um comboio... sem destino. Nessa altura era um rapaz magro e faminto, que desconfiava das pessoas como se fosse um cão rafeiro. Não que tivesse sido maltratado, mas a verdade é que nunca tinha recebido muito carinho e atenção. Hoje procuro convencer-me de que essas coisas não me marcaram, embora saiba que nunca as conseguirei esquecer, por muito tempo que viva.

Era difícil acreditar que um homem tão elegante e sofisticado pudesse ter nascido numa barraca e vivido durante anos num orfanato. - Perdeste a fala, agora que te contei a história da minha vida?

- Nunca pensei... Quando te vi na festa de anos da Sybil, pensei que eras o tipo de pessoa que nunca passou dificuldades. Dava a impressão de que te achavas superior aos outros... Foi por isso que não simpatizei contigo.

- E agora, o que pensas de mim? - indagou Edwin, seguindo pela estrada que Pamela conhecia tão bem; a estrada que ia dar à praia de Jocelyn.

- Acho-te muito mais simpático e humano...

- E mais digno de amor?

- Não sei... És uma pessoa totalmente imprevisível... um tigre, e não um gatinho inofensivo.

- Não estou a compreender...

- És elegante como um tigre, mas és igualmente ameaçador.

- Já percebi... Tens medo que este felino te possa devorar?

- Talvez, não sei... - respondeu indecisa.

- Achas mesmo que eu seria capaz de te levar para um lugar deserto, arrastar-te para trás de uma árvore e aproveitar-me da tua inocência? Como já te disse, os meus métodos são mais subtis. Sabes perfeitamente que estamos a caminho da praia de Jocelyn, onde moro, numa espécie de castelo assombrado.

Ela sabia que aquela estrada ia dar a Jocelyn, mas ficou perplexa ao ouvi-lo dizer que estavam a ir para o Castelo de Vidro.

- Então é lá que vamos jantar? - murmurou, tentando dissimular o pânico que sentia.

- Exacto. Pensei que gostasses de ver o interior da casa sobre a qual correm tantos boatos... Além disso, gostaria de saber a tua opinião sobre as mudanças que estou a fazer. Acho que tens sensibilidade para esse tipo de coisas.

- Porquê?

- Ora, basta ver a maneira como combinas a roupa para saber que tens bom gosto.

De facto era inacreditável que aquele homem alto e elegante fosse um órfão que conseguira vencer sozinho na vida. A julgar pelas suas maneiras, dir-se-ia ter frequentado as melhores escolas. Era tudo muito estranho, pensou.

- Por que estás pensativa a olhar para mim?

- indagou Edwin, ao perceber que estava a ser observado.

- Não consigo entender como podes ser tão cavalheiro...

- Há certas coisas que não dependem apenas da educação, nascem connosco.

Nesse instante, Pamela avistou o mar e sentiu uma satisfação enorme. A imensidão do mar e o movimento constante das ondas encantavam-na desde criança.

- Isto é tão lindo... - murmurou.

Edwin diminuiu a velocidade para que ela pudesse apreciar a paisagem e ouvir as gaivotas que se abrigavam nos penhascos.

Como seria bom voltar para casa!, pensou. Alguns instantes depois estavam a passar pelo grande portão de ferro onde se inscrevia o nome da mansão: Castelo de Vidro.

Quando Edwin parou o carro, Pamela percebeu que, finalmente, após tantos anos, entraria na casa que sempre despertara a sua curiosidade e sobre a qual imaginara tantas histórias.

- Bem-vinda ao meu castelo - disse Edwin, estendendo-lhe a mão, no momento em que um empregado asiático, com um turbante na cabeça, abriu a porta principal para que eles entrassem.

 

Ao entrar, Pamela sentiu um leve odor a tinta fresca; percebeu imediatamente que todas as paredes, antes sombrias e escuras no mais puro estilo vitoriano, tinham sido pintadas com cores claras e suaves que pareciam iluminar todos os objectos.

As grades de ferro estavam pintadas de branco-sujo, e contrastavam com a passadeira vermelha. Pamela olhou admirada para uma armadura de ferro, ao pé da escada em caracol, que mais parecia uma gaiola para prender as pessoas.

- Guardei esta relíquia - comentou Edwin, como se lesse os seus pensamentos.

- É fantástica... - murmurou Pamela, examinando a sala.

Reparou no rendilhado gótico das janelas de três abas, de onde se podiam ver as cercanias do castelo. Todos os objectos eram de muito bom gosto; ao fundo da sala havia uma lareira em mármore e ao centro estava um tampo de madeira apoiado sobre duas grandes presas de elefante minuciosamente talhadas.

Os objectos de estilo oriental combinavam com as estruturas góticas do salão.

- A antiga dona da casa ficaria surpreendida com as mudanças que fizeste, mas gostei muito...

- Vem ver a sala de estar - disse Edwin. Voltou-se para o empregado e falou numa língua que ela não entendeu.

- Pedi para servir o jantar - explicou. Chandra e a mulher estão comigo há muitos anos. É a primeira vez que vêm a Inglaterra e ainda não aprenderam a falar inglês. Vanda é uma excelente cozinheira. Espero que gostes da comida oriental.

- Nunca provei, mas acho que vou adorar. Pamela sorriu consigo mesma, ao pensar que Edwin recriara, no interior daquela mansão, algo do clima oriental.

- Vamos jantar aqui - disse Edwin quando entraram na sala. - A sala de jantar é muito grande e formal. A mesa é tão comprida que são precisas umas vinte pessoas sentadas para não se ouvir o eco de uma ponta à outra.

Havia outra lareira na sala de estar. Diante da janela havia uma mesa com quatro cadeiras. O chão estava coberto de tapetes persas e numa das paredes, revestida de madeira, estava uma tapeçaria enorme com um dragão bordado em fios de seda. Quando se aproximou da mesa, Pamela percebeu que era toda trabalhada em alto relevo com desenhos de lótus e dragões.

Não se podia aplicar a palavra ”aconchegado” àquele ambiente, apesar das chamas reluzentes da lareira. Era um jantar a dois no ambiente mais exótico que Pamela já tinha visto.

- Vem ver este órgão. Era da Olívia Glass disse Edwin.

- Foi uma das coisas de que não tive coragem para me desfazer... troquei apenas o veludo do banquinho e mandei afiná-lo. Queres experimentar? Para quem sabe tocar piano tão bem não deve ser difícil.

- Ah, eu teria de praticar durante horas! Este pequeno órgão é muito mais complicado do que um piano!

- Então vamos beber alguma coisa - sugeriu Edwin dirigindo-se para a lareira. - Este vinho chama-se Shau-shing. É feito de arroz e deve ser servido quente numa garrafa de pedra - explicou ele. - Antes de virmos para cá pedi a Chandra que a pusesse a aquecer. Parece-se um pouco com o nosso cherry, tanto na cor como no gosto.

Edwin estendeu-lhe um cálice, e, após ligeira hesitação, Pamela bebeu o vinho e achou que era muito suave... até sentir um calor percorrer-lhe todo o corpo.

- Queres mais um pouco?

- Não, muito obrigada! Não estou acostumada a beber este tipo de vinhos...

- Já deves estar com fome. vou mandar servir o jantar.

Edwin pegou num pequeno sino de bronze e tocou duas vezes para chamar o criado. Ao perceber que Pamela estava um pouco tensa, comentou:

- Fica à vontade, Pamela. Já nos conhecemos o suficiente para jantarmos a sós na minha casa. Por falar nisso, o que achaste disto tudo? Corresponde às tuas fantasias românticas?

- As minhas ideias nunca foram românticas protestou ela.

- Ora, Pamela, todas as raparigas são românticas... Certamente acreditavas que vivia aqui um homem cruel e impiedoso que mantinha uma jovem exótica trancada a sete chaves na torre do castelo... Ela gritava por socorro, mas ninguém a ouvia...

- Agora tu é que estás a ser romântico...

- Como qualquer mortal, tenho as minhas fantasias... Agora vem sentar-te, o jantar deve estar quase pronto - disse Edwin apontando para uma das cadeiras.

Pamela sentou-se, vendo-o afastar-se em direcção ao outro extremo da mesa. Sentia-se muito mais jovem e também vulnerável, diante de um homem tão experiente.

O criado entrou na sala empurrando um carrinho de chá onde trazia uma travessa com ostras, um prato de arroz branco com carne de caranguejo e cogumelos, outro com castanhas cozidas e, por fim, uma espetada de camarões fritos. Pamela não se fez rogada e provou de tudo um pouco.

- Está uma delícia. Pelos vistos continuas preocupado com a minha alimentação.

- Ainda não terminou. Agora vem o meu prato preferido... e depois, é claro, a sobremesa.

- Mais comida? Não sei se vou...

- Claro que vais. A não ser que queiras deixar a Vanda triste... Ela sabe que estou a receber uma convidada esta noite, e está ansiosa por mostrar as suas habilidades culinárias a uma jovem inglesa.

- Sou a primeira? - indagou Pamela, mostrando-se surpreendida.

Não podia acreditar que era a primeira mulher a visitar o Castelo de Vidro e, muito menos, que Edwin esperara mais de três meses antes de convidar alguém para lá ir.

- Já devias ter percebido que não sou uma pessoa comum. Apesar de viver aqui não faço a mínima questão de ser conhecido entre os meus vizinhos. Não é que seja arrogante ou pretensioso, como a maioria dos homens ricos. Simplesmente, escolho muito bem as minhas companhias porque sei que se fosse pobre e morasse num casebre as pessoas me desprezariam e me tratariam como se eu fosse um marginal, por causa do meu rosto.

Passou a mão pela cicatriz e perguntou:

- O meu rosto desagrada-te? Deves achar-me feio.

- Não, não te acho feio. Mas confesso que essa cicatriz é um pouco assustadora...

- Gosto da tua franqueza - comentou Edwin, tornando a encher os copos de vinho. - Apesar do meu rosto sinistro não costumo seduzir jovens inocentes... muito menos a filha de Ruth. Seria muita hipocrisia da minha parte, não achas? com o retrato dela na minha casa... A não ser que consideres hipócrita o facto de possuir o retrato... Mas por que não haveria de tê-lo se o teu tio não lhe dava muita importância? Sabes, Pamela, a posse não é o fim nem mesmo o início de alguma coisa. Na verdade, nunca possuímos algo realmente! Por exemplo, quando vemos um pôr do sol maravilhoso não podemos agarrá-lo com as mãos. Podemos, quando muito, guardar a recordação da sua beleza. Se somos beijados, não podemos prender o beijo no rosto da mesma maneira como seguramos uma flor. A única coisa que possuímos verdadeiramente, e que levamos desta vida, são as lembranças.

Subitamente, o rosto dele tornou-se triste e sombrio. Houve um momento de silêncio e, quando Edwin ia acrescentar alguma coisa, Chandra apareceu trazendo mais comida.

- Costeletas são o meu prato preferido - disse Edwin, sorrindo. - Vanda sabe prepará-las melhor do que ninguém. bom apetite, Pamela!

- Isto foi um autêntico banquete - comentou Pamela quando terminaram de comer.

- Fico contente por saber que gostaste. Mas não te esqueças que tens de provar a sobremesa preparada por Vanda!

- Isso é uma ordem ou uma sugestão?

- Julgas-me um tirano...

- Não exactamente... mas para teres conquistado tudo aquilo que possuis, deves ter sangue de pirata nas veias...

- É como um pirata que me tenho comportado contigo?

- Bem, se não é, pelo menos tentaste. Continuo a achar que tens algum motivo especial para...

Calou-se imediatamente. Não queria confessar quanto receava que ele desejasse manter uma relação especial com ela. Edwin dissera-lhe que procurava a sua companhia porque não gostava de estar só, mas ela não acreditava que fosse só isso... Tinha que haver mais qualquer coisa.

- Sim, tenho - disse com frieza. – Tenho um motivo especial para te trazer até aqui, mas não vamos falar disso agora.

Tocou o sininho. Logo de seguida Chandra apareceu com um cão enorme.

- Este é o Tigre. Parece feroz, mas é inofensivo. Veio conhecer-te e comer as costeletas que sobraram.

Pamela fez-lhe uma festa enquanto ele olhava interrogativamente para o dono.

- Está bem, eu dou-te as costeletas... mas vais comê-las na cozinha para não sujares os tapetes.

- Vamos, Tigre - ordenou Chandra a caminho da cozinha, depois de ter levantado os pratos, e servido a sobremesa.

- Não sabia que gostavas de animais - comentou Pamela.

- Gosto; especialmente deste. Encontrei-o abandonado na praia há um mês. Trouxe-o para casa, alimentei-o e acabei por ficar com ele. Gostamos um do outro...

- Há pessoas mesmo más... - disse Pamela, indignada.

- Mas ele está feliz agora, e é isso que importa, não achas?

Pamela olhou admirada para Edwin.

- Nunca pensei que fosses tão humano. Demorei a perceber isso, mas agora vejo que estava enganada.

- Também és uma pessoa adorável.

Ela sorriu e serviu-se da sobremesa; uma mousse de ananás que estava divina.

- Afinal, ainda não me disseste se gostaste de vir até aqui. Não ficaste aborrecida por não ter ido ao teatro?

- Quem é que não iria gostar de um jantar como este? O teatro pode ficar para outra altura.

- Óptimo! Quando terminares a sobremesa vamos dar um passeio pelo jardim. O cheiro da brisa marítima misturado com o perfume das flores faz-me lembrar a índia...

- Tens muitas saudades? Pensas em voltar um dia?

- Quem sabe, Pamela? O nosso destino é uma coisa imprevisível...

Edwin levantou-se e foi buscar um charuto.

- Diz-me uma coisa, Pamela, já pensaste alguma vez nas voltas que a vida dá e que a felicidade não passa de uma obra do acaso?

- Sim, já pensei, e concordo contigo; muitas vezes a felicidade está onde menos se espera... De certo modo é preciso sermos um pouco ”aventureiros” para alcançá-la. No fundo, acho que a felicidade não depende apenas do acaso, mas do temperamento das pessoas...

- Consideras-te ”aventureira” ou és do tipo ”cauteloso”? - perguntou Edwin acendendo o charuto.

- Achas que estaria aqui se fosse ”cautelosa”? Que eu saiba, não me obrigaste a vir... entrei aqui porque quis.

- com alguma relutância... - comentou.

- Vamos até ao jardim? Está uma noite maravilhosa... Vais gostar de ver as flores sob o luar.

Antes de saírem de casa, Edwin pediu-lhe que aguardasse um instante; ia buscar o casaco dela, que Chandra levara para a biblioteca. Quando voltou trazia um lindo casaco de peles.

- Acho que isto vai ficar-te muito bem - disse ele, pondo-lhe o casaco sobre os ombros. - Um cingalês que me devia alguns favores ofereceu-me estas peles e eu mandei fazer este casaco. Nunca o vesti, e acho que és a pessoa indicada para usá-lo.

Pamela não sabia o que dizer, estava perplexa. O casaco era lindo, mas não queria receber outro presente de Edwin.

- Não posso aceitar um presente tão caro disse finalmente.

- Ora, Pamela, eu já te disse uma vez que os casacos de peles foram feitos para serem usados. Aceita este presente e não digas mais nada. Vamos embora - disse Edwin encaminhando-se para o corredor.

- É lindo...

Por mais que tentasse, Pamela não conseguiu dizer nada durante algum tempo. Caminharam em silêncio por entre as árvores e canteiros do jardim até chegarem ao miradouro de onde se podia ver a praia. Isto é fantástico, pensou Pamela ao admirar a paisagem.

- O Castelo de Vidro parece ter saído de um conto de fadas - disse sorrindo. - O que te levou a comprar esta casa?

- O desejo de encontrar uma mulher que viesse morar aqui... comigo. Gostavas ”de ser a dona do Castelo de Vidro?..

Pamela ouviu todas as palavras da pergunta, mas o que mais lhe chamou a atenção foi a palavra ”dona”. Sentiu o coração a bater mais depressa; sabia que Edwin iria fazer aquela pergunta, mas ficou atónita ao ouvi-la.

- Foi por isso que me trouxeste até aqui... para me fazeres essa pergunta? - indagou irritada.

- Foi - disse ele com frieza. - Não precisas ficar ofendida. Como sou rico e elegante, apesar do meu rosto desfigurado, pensei que não fosse um mau negócio. Era uma boa oportunidade para morares outra vez ao pé do mar.

- Pretensão é o que te não falta! - exclamou ela. - Não, muito obrigada! Não pretendo ser a boneca do teu Castelo de Vidro.

Pamela estava indignada e olhava-o com desprezo.

- Eu tinha o pressentimento de que ias fazer essa proposta... e a minha resposta é não! O que queres?... Divertires-te comigo durante uns meses até te cansares? Não estou à venda!

- Não é nada disso. Não quero que sejas o meu brinquedo por algumas semanas, quero que sejas a minha mulher! - disse Edwin segurando-a com força pelos braços.

- Solta-me!

- Não, antes de me dizeres se queres casar comigo!

Pamela olhou perplexa para o homem à sua frente sentindo-se completamente indefesa.

- Quando os homens propõem casamento às mulheres, esperam que, pelo menos, elas gostem deles. Eu não sinto amor por ti, Edwin; por isso não adianta fingir.

- É exactamente isso do que gosto em ti, Pamela, o facto de não fingires nem manifestares emoções que não sentes - disse Edwin soltando-a.

- Mas não gostamos o suficiente um do outro para nos casarmos. Não temos nada para oferecer um ao outro.

- Aí é que tu te enganas. Não és a mulher ideal, como eu também não sou o homem ideal, mas pensei que poderíamos dar-nos bem juntos. Cada um de nós tem para dar o que o outro necessita; posso oferecer-te uma vida de sonho, longe da cidade e perto do mar... eu sei que tu adoras a praia.

Pamela sabia que o romantismo daquela mansão sempre a seduzira; sabia que de todas as coisas que Edwin lhe podia oferecer, o Castelo de Vidro era a mais preciosa. Nunca poderia possuir um castelo como aquele se não se casasse com Edwin, mas isso não era razão suficiente para abdicar da sua independência.

- E eu... que tenho para te oferecer?

- Quando encontrei esta casa sabia a razão pela qual queria comprá-la. Passei todos estes anos da minha vida a viajar pelo mundo, sem conseguir encontrar um lugar onde me sentisse tranquilo, como se estivesse em casa. Durante dois anos vivi nesta praia, e é aqui que gosto de estar. Foi por isso que comprei esta casa. Mas não quero passar o resto da minha vida sozinho, sem ter uma mulher ao meu lado, uma amiga, uma companheira...

- É isso que eu te posso oferecer? Ser a mãe dos teus filhos? - interrompeu Pamela. - Nunca pensei que te quisesses casar...

- E tu? Algum dia pensaste em te casar?

- Não - respondeu Pamela com sinceridade.

- Pensei sempre em dedicar-me inteiramente à minha profissão. Para falar verdade, o casamento sempre me pareceu uma forma de escravidão. Talvez pense assim por causa do meu pai... Ele gostava tanto da minha mãe que parecia não existir mais ninguém no mundo. Quando a minha mãe morreu, ele deixou praticamente de viver, como se não tivesse mais nenhum interesse na vida... Foi por isso que sempre evitei amar alguém profundamente, porque o amor faz-nos sofrer...

Fez uma pausa e olhou atentamente para o rosto de Edwin.

- Já amaste alguém, Edwin?

- Já. Amei a tua mãe - respondeu Edwin sem hesitação. - Embora fosse muito novo, amei-a loucamente. Ela também era tudo para mim, e foi por isso que me fui embora. Não suportava a dor de vê-la casada com outro homem.

- Então é por isso que te queres casar comigo, porque me achas parecida com ela?

- Só se for fisicamente. Ruth era um anjo...

- E eu não sou? - interrompeu Pamela.

- Não propriamente. És demasiado rebelde e impulsiva... mas acho que te consigo dominar. Seja como for, estou decidido a afastar-te daquele escritório, antes que te tornes uma mulher obcecada pelo trabalho e te esqueças de aproveitar as coisas boas da vida. Quero ter a tua beleza e juventude em minha casa, e em troca ofereço-te o Castelo de Vidro.

Foi a maneira como Edwin disse ”ofereço-te o Castelo de Vidro” que a levou a pensar no casamento como uma possibilidade viável. Era como se Edwin segurasse na mão o brinquedo que ela desejava ter. Desde pequena que se sentia atraída por aquela mansão fascinante.

Ah, como seria bom poder fugir da rotina diária da cidade e voltar a viver na praia de Jocelyn, pensou. Mas não sabia se estava disposta a ceder aos caprichos de um homem rico. Edwin era uma pessoa difícil, com um passado misterioso e uma força de vontade inabalável, capaz de fazer qualquer coisa para alcançar os seus objectivos. Era isso que acabara de fazer: oferecera-lhe o castelo para que se casasse com ele, sem demonstrar qualquer sentimento mais profundo.

- Não gostas de castelos? - perguntou, lendo o pensamento dela.

- Bem, são um pouco antiquados... - respondeu ela, tentando não se deixar seduzir pela ideia de viver no Castelo de Vidro.

- E eu? Também sou antiquado? - perguntou ele com ironia. - Preferias ter o castelo sem o dono?

- A tua franqueza surpreende-me - disse por fim. - Fazes-me sentir como uma mercenária.

- Todos nós somos mercenários, em maior ou menor grau e não temos que sentir vergonha por isso - respondeu com frieza. - Se é uma carreira profissional que tu queres, basta dizeres. Se é um castelo, aqui o tens.

- Preciso pensar... - disse em voz baixa afastando-se dele.

- Se te der tempo para pensar, vais acabar por descobrir motivos para não te casares com um homem que tem o dobro da tua idade e de quem tu não gostas.

Após uma breve pausa respondeu:

- Gosto muito do meu trabalho. A doutora Carnaby já me disse que eu tenho jeito para a advocacia, e sugeriu que eu estudasse Direito.

- Pois eu acho que não deves desgastar a tua beleza com os aspectos rudes da vida, lutando pelos interesses dos outros. O teu lugar é aqui, junto do mar, da praia e das rochas que se estendem pela costa...

Ele tinha encontrado novamente o seu ponto fraco. Pamela amava a praia de Jocelyn, onde passara os melhores anos da sua vida, e nada podia compensar viver longe dali, nem mesmo uma belíssima carreira profissional.

- Sinto-me tentada...

- Como Eva no paraíso? E eu, sou o Adão? indagou com ironia.

- És muito experiente e mundano para te pareceres com Adão - respondeu Pamela olhando para a lua-cheia. - Por que me pediste em casamento e não para ser tua amante? Seria muito mais fácil decidir... Não me vais dar mais tempo? Uma proposta de casamento é demasiado importante para ser respondida à pressa.

- O tempo não te vai ajudar a decidir... e eu quero uma resposta agora.

- Não posso agir impulsivamente num caso destes, Edwin. Não estás a ser compreensivo.


- Pensei que esta noite de luar pudesse facilitar as coisas, fazendo com que te sentisses mais romântica, mas, pelos vistos, és muito exigente. O que hei-de fazer para te provar que gosto de ti e que te desejo?

Sentiu-se tensa ao ouvir falar em desejo e não ousou encará-lo de frente. Foi então que percebeu que tudo tinha o seu preço, de uma maneira ou de outra, e que se aceitasse o Castelo de Vidro teria que aceitá-lo como amante.

Pensou nas mãos dele, finas e delicadas. Pensou nos lábios bem desenhados e naquele olhar profundo que a deixava tão indefesa.

- Daqui a algumas semanas os montes vão estar cobertos de flores - continuou Edwin. - Mimosas, margaridas, túlipas... Haverá um perfume no ar, misturado com o odor salgado das ondas... enquanto que na cidade o ar é sempre pesado e irrespirável e o barulho dos automóveis ensurdecedor. Os bares cheios de gente e de fumo...

- Não! - exclamou Pamela. - Estás a exagerar! As coisas não são assim tão más quanto tu dizes.

- A cidade é uma selva onde as pessoas se comportam como animais esfomeados, capazes de tudo para conseguirem sobreviver.

- Tu assustas-me!

Sentiu um arrepio e apertou o casaco de peles contra o corpo. Pensou nos homens que conhecia... A maioria imaginava que as raparigas que moram sozinhas tinham ideias e comportamentos liberais. Até mesmo David Wildwine, de quem gostava mais, desejava ter um caso com ela. Mas somente Edwin tinha perguntado: ”Queres casar comigo?”.

Pamela queria ter a certeza de que Edwin se interessava por ela como pessoa, e não como filha de uma mulher que confessara ter amado.

- Eu não quero que te cases comigo só porque sou a filha de Ruth. Eu sou uma pessoa. Tenho um nome próprio.

- Eu sei disso. - Olhou-a nos olhos. - O teu rosto lembra-me o da tua mãe, não posso negar isso. Mas tu és a Pamela e é contigo que eu quero casar.

Após alguns instantes de silêncio, Edwin perguntou novamente:

- E então, o que decides?

Pamela olhou-o com determinação, consciente de que tinha chegado o momento da decisão final. Já nada havia a acrescentar. Edwin tinha sido totalmente franco com ela, deixando a claro a razão do seu pedido. Ela sabia que não o amava, mas deixara-se seduzir pela ideia de ser a dona do Castelo de Vidro e levar uma vida fantástica.

- Aceito casar-me contigo - disse por fim.

- Não sei ao certo por que fui eu a escolhida, quando há tantas raparigas que estariam dispostas a viver contigo...

- É justamente por isso que gosto de ti...

Edwin não se mostrou surpreendido com a decisão de Pamela. Provavelmente porque sabia que a rapariga acabaria por ceder aos seus encantos.

Tirou uma caixinha do bolso do casaco e ofereceu-a a Pamela.

- Abre, por favor. Espero que gostes do que está lá dentro.

Pamela estava muito nervosa. Pressentia que era um anel e sabia que se o aceitasse, o noivado estaria definitivamente estabelecido.

Após alguns instantes de hesitação, abriu a caixinha e encontrou um anel muito mais bonito do que imaginara, e tão original como o próprio noivo; um anel antigo, todo em ouro com uma cruz de rubis e diamantes.

- Gostas? - indagou Edwin.

- É lindo! - exclamou Pamela pondo o anel no dedo.

- Há muitos anos atrás esse anel pertenceu a uma duquesa austríaca. Espero que o conserves por muitos anos também... - disse Edwin com um sorriso. - Posso dar-te um beijo?

Sem dizer nada, Pamela cerrou as pálpebras e esperou que ele a beijasse.

 

Foi assim que pela primeira vez Edwin a beijou. Num primeiro instante sentiu-se embaraçada pela intimidade do gesto, mas não se afastou; permaneceu quieta experimentando uma curiosa sensação por todo o corpo. Edwin, ao contrário dos rapazes que a beijaram, não era desajeitado nem parecia ansioso. Beijou-a com delicadeza sem insistir num beijo prolongado.

- Tens de voltar ainda hoje para Londres? perguntou Edwin logo em seguida. - Por que não ficas cá?

- Não! - exclamou ela indignada. - Foi isso que...

- Minha querida, não tires conclusões precipitadas. A casa é grande e tem vários quartos disponíveis. Podias aproveitar para passar o dia de amanhã na praia - sugeriu ele.

- Tenho de voltar - insistiu. - Sybil e eu combinámos passar o fim-de-semana juntas. Vai chegar amanhã de manhã e devo estar em casa para recebê-la.

- Bem, nesse caso... Mas haverá outros dias de praia à nossa espera, ou já te esqueceste de que somos noivos?

Pamela olhou para aquele rosto moreno e percebeu que Edwin tinha um olhar ameaçador, capaz de obrigar os outros a cederem diante da sua vontade.

Durante a viagem de regresso a Londres permaneceram em silêncio. Embora Pamela repetisse consigo mesma que não tinha medo dele, sentia que alguns aspectos da sua personalidade eram estranhamente persuasivos. Ela não o amava, mas ia casar-se com ele. Ele também não a amava, mas decidira que ela lhe pertencia e estava disposto a tudo para não a perder.

Edwin guiava com agilidade e segurança pela estrada escura, iluminada apenas por alguns candeeiros e pelos faróis do carro. Pamela desejava examinar com atenção o anel que tinha na mão esquerda, mas não queria demonstrar a Edwin que estava encantada com o presente. Era curioso que, ao contrário do que seria habitual, Edwin não a tivesse levado a um joalheiro da cidade, nem lhe tivesse oferecido um anel convencional de noivado. Parecia conhecê-la intimamente, pois adivinhara que ela gostava de jóias antigas.

Estavam quase a chegar a Londres quando Edwin rompeu o silêncio.

- vou passar a noite no hotel Ritz. Tu e a tua prima podiam almoçar comigo amanhã. O que achas da ideia?

- Acho óptimo - respondeu ela sem grande entusiasmo.

Pamela preferia deixar passar algum tempo antes de contar tudo à prima, mas sabia que não podia recusar o convite. Esperava apenas que Sybil não comentasse o noivado com os amigos.

- Queres encontrar-te comigo no hotel, ou preferes que passe por tua casa?

- Podemos ir ter contigo ao hotel. Sybil vai fazer compras de manhã... é preferível não marcarmos uma hora certa.

- Não há problema. Estarei à vossa espera, a partir do meio-dia e meia, no restaurante do hotel. Assim Sybil terá tempo de sobra para fazer compras e aproveita para conhecer o novo membro da família. Espero que os teus parentes simpatizem comigo.

- O tio Saul vai ter um choque - comentou com ironia. - Ele tem esperanças de que Sybil se case com um homem rico, mas nunca pensou que a sobrinha pobre fosse a primeira a dar o golpe do baú.

- É essa a ideia que fazes do casamento?

- É o que os outros vão pensar!

- E tu importas-te com a opinião dos outros?

- Como posso não me importar se é a verdade? Somos os primeiros a reconhecer que não nos amamos... é tudo uma questão de interesses; tens muito para dar e eu estou disposta a receber... Serei dona do Castelo de Vidro, como tu mesmo disseste.

- Pára de te agredires estupidamente, Pamela

- disse com firmeza. - Talvez não saibas, mas o que a maioria das mulheres procura no casamento é casa e protecção, embora falem muito de independência e emancipação feminina. Por isso, não te envergonhes de ter aceite a casa que te ofereci, mesmo sabendo que não estás apaixonada por mim...

- Mas tens o direito de esperar isso da mulher com quem te vais casar - disse em voz baixa.

- Não vamos falar agora de direitos nem de regalias... Deixemos isso para mais tarde.

Ao pararem num semáforo, Edwin olhou-a de relance e indagou:

- Gostaste do anel?

- É muito bonito... e muito valioso também.

- Perguntei se gostaste e não quanto valia disse com voz firme. - Pensei que ias gostar.

- Gostei muito, Edwin, mas...

- Mas o quê?! - interrompeu ele, exaltado.

- Não me sinto no direito de usá-lo... Tenho a impressão de que este anel foi oferecido uma vez a uma mulher, com muito amor e carinho. É uma jóia muito especial...

- com certeza que é - concordou com voz fria. - Mas o que importa agora é teres gostado. Talvez os tempos românticos do amor profundo e apaixonado tenham chegado ao fim. Vivemos numa época em que já ninguém se apaixona de verdade. Em que já ninguém quer viver um amor impossível.

- Ninguém? - indagou Pamela admirada.

- A maioria das pessoas casa-se por razões práticas e não por amor. Mas isso não significa que todos os casais sejam iguais...

Após um breve instante de silêncio e hesitação, Pamela conseguiu dizer:

- Edwin, acho que não devo casar contigo...

- Já deste a tua palavra, e ninguém volta atrás comigo! Sabias disso desde o primeiro instante,

quando nos conhecemos na festa da tua prima. iDepois, quando concordaste em sair comigo e, fiInalmente, quando aceitaste o anel. Pela primeira vez, Edwin parecia estar seriamente revoltado. Agora, fora Pamela quem tocara no seu ponto fraco: ele não gostava mesmo de ser contrariado.

Nesse momento o carro parou frente ao edifício onde Pamela morava. Permaneceu imóvel, enquanto Edwin a observava fixamente. Pensou em devolver o anel naquele mesmo instante, mas não foi capaz...

- Sabes, Pamela, entre certas pessoas há um vínculo misterioso e inexplicável - disse Edwin com uma entoação mais calma. - Como se, numa outra época, se tivessem conhecido intimamente e vivido algo muito intenso. Pode ter sido o ódio ou o amor que criou esse vínculo e que as uniu novamente... como nós os dois. Não tens essa impressão, Pamela? Não te parece que o Castelo de Vidro sempre esteve ali à nossa espera?

Desde pequena que o Castelo de Vidro a fascinara, é verdade. Mas nunca pensara em viver lá com um homem que mal conhecia e que parecia não acreditar no amor. Até mesmo um jantar na sua companhia era inquietante. Como poderia pensar em passar o resto da vida a seu lado?

- Realmente tenho sérias dúvidas quanto ao nosso casamento - disse por fim. - Acho que não sou o teu tipo...

- E qual é o meu tipo, posso saber? - interrompeu ele.

- Uma mulher sofisticada... viajada... provavelmente com mais dez anos do que eu e muito mais bonita.

- Uma mulher da alta sociedade, queres tu dizer?

- Sim, uma mulher segura de si mesma... e segura em relação a ti.

- Sentes-te insegura, Pamela?

- O que achas?

- Penso que tiveste um dia muito agitado e que estás cansada. vou acompanhar-te até à porta, como fazem os noivos tradicionais.

- Edwin...

- Vamos - insistiu.

Edwin deu a volta ao carro, estendeu-lhe o braço e segurou a chave do apartamento. Quando chegaram ao andar de Pamela, abriu a porta e devolveu-lhe a chave.

- Vai-te deitar e tenta descansar. Não fiques acordada a pensar em nós. Amanhã conversaremos outra vez. Dorme bem.

- Boa noite, Edwin.

- Boa noite, Pamela.

Não tentou tocá-la nem beijá-la; despediu-se com um aceno de mão e desceu a escada. Ouviu a porta da frente fechar-se e permaneceu na sala à espera de ouvir o barulho do carro a afastar-se. Passou um minuto, dois minutos, como se Edwin estivesse a acender um charuto antes de partir. Finalmente ouviu um ruído do motor rompendo o silêncio da noite por alguns segundos.

Pamela precisava dormir um sono tranquilo e profundo, mas estava tão confusa que só conseguiu adormecer quando já passava das três da manhã. Algumas horas mais tarde acordou sobressaltada ao ouvir a campainha da porta. A luz do dia entrava pela janela e o despertador marcava dez e um quarto. Nunca dormira até tão tarde, nem mesmo nos fins-de-semana!

Levantou-se rapidamente, calçou os chinelos, vestiu o roupão e correu para abrir a porta, sentindo-se um pouco tonta.

- Olá - exclamou Sybil entrando no corredor. - Pensava que era só eu que dormia até tarde...

- É a primeira vez que isto me acontece - interrompeu Pamela -, deitei-me muito tarde, ontem à noite, e não consegui acordar antes... Peço-te mil desculpas, Sybil. Importas-te de preparar o pequeno-almoço enquanto tomo um banho rápido?

- Que fizeste ontem, para te deitares tão tarde? - perguntou Sybil, curiosa, olhando em volta como se procurasse encontrar vestígios da passagem de um homem. - Não me digas que arranjaste um namorado?.

- Não vou contar nada... antes de me arranjar e tomar o pequeno-almoço - disse Pamela dirigindo-se para a casa de banho.

- Combinado.

Olhou para a porta aberta do quarto de dormir e perguntou:

- Posso pôr a minha mala no quarto?..

- Claro, querida, mas cuidado para não tropeçares nos homens que estão a dormir no tapete disse com ironia.

- Ora, Pamela, deixa-te de brincadeiras. Eu sei que tu não és assim tão liberal... ou agora és?

Examinou a prima com um olhar desconfiado e acrescentou:

- Estás mudada... Há qualquer coisa em ti de diferente... ou sou eu que estou a ver coisas?

- Tu e as tuas adivinhações...

Pamela tomou um duche frio para a ajudar a acordar e sentir-se mais bem disposta. Queria estar em forma, pois era a primeira vez que ia à rua na qualidade de noiva de Edwin Trequair.

Acabara de se vestir quando Sybil entrou no quarto para dizer que o pequeno-almoço estava pronto.

- Tens um corpo tão bonito, Pamela! Por que não trabalhas como modelo? Podias ganhar bom dinheiro.

- Era preciso que fosse suficientemente vaidosa... Além disso, não me agrada a ideia de andar a desfilar para os outros me verem.

- Que caixinha linda! - exclamou Sybil. Ao abri-la viu o anel e olhou, perplexa, para Pamela.

- É teu?

- É - respondeu Pamela, temendo as suas próximas perguntas.

- Parece uma jóia muito valiosa. Foste tu que a compraste?

- Não, não fui.

- Então quem foi?

- Um homem - respondeu Pamela tentando parecer indiferente.

- Um homem?

- Sim, um homem, daqueles que fazem a barba todos os dias e nunca vestem saias - retrucou com ironia.

Sentiu prazer em brincar com a prima, embora soubesse que o assunto era muito sério. - Não me digas que... - Sybil estava boquiaberta com a notícia. -Não, não é possível... não posso acreditar...

- Mas é verdade. Estou a falar a sério, de um homem de carne e osso que está decidido a casar comigo. Vamos encontrá-lo à hora do almoço no hotel Ritz, e logo poderás aprovar ou desaprovar a escolha. Para já, estou a morrer de fome e não me apetece falar mais no assunto, por isso vamos tomar o pequeno-almoço.

- Nunca pensei que fosses capaz de agir de modo tão leviano - comentou Sybil com ar sério.

- Não é nada o teu género...

- Por que não? - perguntou Pamela a caminho da cozinha. - vou ser a vida toda um modelo de seriedade? Seria insuportável...

- Não foi isso que eu quis dizer... não me leves a mal, Pamela. Mas a verdade é que tu não costumas brincar com coisas sérias.

Pamela sempre fora mais madura do que a prima, que não vivera a experiência dramática de perder os pais. Mas agora Sybil tinha a impressão de estar a conversar com uma menina de doze anos.

- Isso deve ter acontecido de repente, porque quando te telefonei, na semana passada, não me disseste nada.

- Vamos almoçar com ele e terás tempo suficiente para tirares as tuas conclusões. Mas previno-te desde já que não é um homem muito novo...

- Não! - exclamou Sybil surpreendida.

- Não me digas que estás a pensar em casar com um homem que tem idade para ser teu pai?! Isso seria o cúmulo, Pamela! Pelos vistos estás disposta a servir de distracção para um velho... Não consigo acreditar! Sinceramente... não sei onde é que estás com a cabeça!

- vou ser o brinquedo de um homem rico disse com voz tranquila, enquanto punha manteiga no pão.

- Quer dizer então que é um velho rico? Nunca pensei que pusesses o dinheiro à frente do amor... Embora às vezes uma fortuna em vista seja melhor do que um casamento por amor... mas sem dinheiro.

- És igualzinha ao teu pai, Sybil - comentou Pamela.

- Acho que o amor é um sentimento muito bonito... mas o dinheiro é importante, não há dúvida. De certo modo acho que te compreendo... Quem é o felizardo, Pamela? Algum magnata do petróleo? Disseste-me uma vez que são todos gordos e com mais de sessenta anos...

- Pois foi... disse isso na noite dos teus anos. Tem piada, quase não fui à festa porque a doutora Carnaby pediu-me para a acompanhar a Bournemouth...

- Não me digas que estás a pensar em continuar a trabalhar depois do casamento? Se ele é assim tão rico, podes passar o resto da vida sem teres esse tipo de preocupações. Além disso, é muito provável que ele morra antes de ti... e te deixe toda a sua fortuna. Então logo serás uma ”viúva alegre”.

- Meu Deus! Que ideia mais absurda...! exclamou Pamela dando uma gargalhada, embora não houvesse alegria no seu coração.

Pamela estava com a mão esquerda sobre a mesa. Os raios de sol faziam cintilar as pedras preciosas do anel que aceitara do homem de quem não gostava. Pensara em devolvê-lo na noite anterior, mas não tivera coragem. Tinha-o guardado na caixinha e só tornara a pô-lo quando Sybil o encontrou em cima da mesa-de-cabeceira. Agora o anel parecia queimar-lhe a mão; as pedras brilhavam intensamente sob a luz do dia.

Uma cruz de fogo a que estava condenada... condenada a sentir as chamas da paixão sem amor para torná-las suportáveis. Levantou-se de repente como se quisesse fugir dos pensamentos que a atormentavam.

- Vamos pôr as chávenas no lava-loiças e sair para fazer compras. Hoje é sábado e as lojas fecham mais cedo.

Havia tanta coisa para ver e comprar que durante duas horas não pensaram mais no assunto do casamento. Sybil, que era despreocupada por natureza, acabou por contagiar Pamela com o seu entusiasmo.

- Por que estás a olhar para mim com essa cara? - perguntou Sybil quando apanharam o táxi para o hotel Ritz.

- Estava a pensar na tua reacção quando vires o meu noivo...

Se não acabasse logo com a brincadeira estaria condenada a viver com ele o resto da vida, pensou. Como poderia ter-se envolvido com um homem de quem não gostava e a quem não desejava pertencer? E agora, teria coragem para enfrentá-lo?

O táxi estacionou frente ao hotel. Pamela podia sentir cada batida do seu coração. Foi com muita coragem que passou pela porta giratória e acompanhou Sybil até à portaria, onde deixaram as compras que tinham feito.

Caminharam em silêncio até ao elevador que as levaria ao último andar. Pamela sentiu o seu corpo ficar tenso no momento em que avistou o homem alto, de fato escuro, que ocupava uma das mesas do restaurante.

Ao avançarem em direcção a Edwin, Sybil perguntou em voz alta:

- Qual deles é? Não me digas que é aquele militar barrigudo de bigode?

Pamela tinha a certeza de que Edwin ouvira o comentário à distância em que se encontrava, mas felizmente o militar estava mais longe e não deu por nada.

- Olá, querida! - exclamou Edwin levantando-se. Deu um passo e beijou-a no rosto.

- Olá, Edwin. Estás aqui há muito tempo? perguntou, evitando encará-lo nos olhos. – Vocês já se conhecem, naturalmente... - acrescentou, notando que Sybil estava perplexa.

- Claro que nos conhecemos! - exclamou.

- Então é você...

- Eu mesmo - disse com voz tranquila.

- Sentem-se. Querem beber alguma coisa antes de escolhermos os pratos?

- Um aperitivo - disse Pamela, sentando-se. No momento em que Edwin levantou o braço para chamar o empregado, Sybil continuava a olhá-lo como se não acreditasse no que estava a ver.

- Está assim tão admirada? - perguntou a Sybil, recostando-se na cadeira e cruzando as pernas com uma segurança que Pamela invejou.

- Bem, pelo que a Pamela me contou, pensei que estivesse noiva de um velho. Nunca podia imaginar que fosse você - disse com sinceridade.

- Olhe, acho que vou beber um vodca com laranja para me recompor da surpresa.

- Espero que a vodca a ajude a ver o nosso casamento com bons olhos.

Edwin estava a observá-la como se quisesse detectar as diferenças físicas entre elas. Nesse preciso momento o empregado chegou e Edwin fez os pedidos.

- Acho que foi a melhor coisa que aconteceu nos últimos tempos! - exclamou Sybil, entusiasmada. - No dia dos meus anos disse à Pamela que você era um homem fascinante. Mas ela, como sempre, não fez qualquer comentário. Adora manter as coisas em segredo. Foi por isso que pensei que se ia casar com um velho sem interesse, apenas por dinheiro.

- Mas estou a ver que já não pensa assim comentou Edwin.

- Não, claro que não. Você é um homem muito interessante. Eu sabia que Pamela nunca se casaria por dinheiro... teria de estar perdidamente apaixonada. Vocês conheceram-se na minha festa? Foi amor à primeira vista? - Sybil não escondia a sua alegria enquanto olhava para um e para outro.

- Só pode ter sido de repente... Vocês vão dar uma festa de arromba, não? Ah, espero que sim! Pamela vai ficar linda de vestido de noiva... o branco fica-lhe muito bem porque contrasta com os seus cabelos avermelhados.

- Foi mesmo isso que pensei - disse Edwin com um brilho nos olhos. - Aceita ser a nossa madrinha de casamento?

Pamela desejava gritar: não, não me vou casar contigo! Não quando sabemos que não existe amor entre nós! Mas, ao ver o empregado aproximar-se, conteve-se pois não estava disposta a provocar um escândalo.

- com muito gosto! Felicidades para os noivos - exclamou Sybil levantando o copo. - Estou muito contente por saber que em breve fará parte da nossa família.

Muito obrigado, Sybil - agradeceu ele.

- Quer dizer então que não sou muito velho para casar com uma rapariga de vinte e dois anos?

- De modo algum! Você é um desses homens em que a idade não tem importância. Quando o meu pai me contou que você tinha comprado o retrato da tia Ruth, achei estranho, mas agora já sei qual foi o motivo... Olhou para a prima e acrescentou: Deve ser emocionante morar no Castelo de Vidro... Ah, és uma rapariga de sorte!

- Achas? - indagou Pamela desanimada.

Bebeu o aperitivo até ao fim, procurando ganhar coragem para dizer que tudo não passara de uma brincadeira, e que não tinha intenções de viver na mesma casa com Edwin... e muito menos como sua mulher.

Como se tivesse lido os seus pensamentos, Edwin comentou:

- Pamela ainda não se acostumou à ideia do nosso casamento e tem dúvidas quanto aos seus sentimentos...

Sentiu novamente vontade de gritar: ”Não quero casar! Não quero o noivado!”... mas sabia ser impossível escapar de Edwin. Ele não dissera que a amava, mas estava decidido a possuí-la. Tudo parecia estar relacionado com a mãe, com o lago e com a praia de Jocelyn. Não havia maneira de fugir do inevitável... seria a mulher de Edwin Trequair e moraria com ele no Castelo de Vidro.

- Pamela sempre foi uma pessoa muito fechada... não revela os seus sentimentos. Provavelmente porque tem medo de ser magoada - explicou Sybil.

- Algumas pessoas são assim - comentou Edwin. - Constróem uma concha em volta delas para esconder as suas emoções...

Voltou-se para Pamela e acrescentou:

- Agora que estamos na companhia da nossa madrinha de casamento, que tal marcarmos a data? - Edwin apertou-lhe a mão enquanto aguardava uma resposta.

- Junho seria perfeito - sugeriu Sybil, sem notar que estava mais animada do que Pamela.

- Se o tempo estiver bom podem dar a festa em nossa casa. As rosas estarão em flor e será um óptimo ambiente para festejarmos.

Ao perceber que as coisas tinham chegado a um ponto de onde não havia retorno, acabou por ceder.

- É verdade - concordou Pamela com uma voz triste. - O jardim da vivenda Memory é o lugar ideal para o casamento.

- Acho que está na hora de pedirmos alguma coisa para comer - disse Edwin, acenando para chamar o empregado.

Depois de terem escolhido os pratos, Edwin pediu a carta dos vinhos.

Ao reparar nas suas maneiras requintadas, Pamela lembrou-se das coisas que ele lhe contara... da sua triste infância.

- Adorei o anel de Pamela - comentou Sybil.- É muito original... Geralmente os noivos oferecem um solitário com um diamante ou com uma esmeralda.

- O verde-esmeralda combina melhor com as morenas - disse Edwin. - Os rubis parecem-se mais com Pamela, além de protegerem quem os usa de morte por afogamento. Você sabia que todas as pedras preciosas têm um significado especial, assim como as flores, as cores e até os nomes próprios?

- Não, não sabia. Pamela já lhe contou que quando era pequena caiu no lago da nossa casa? Foi o jardineiro quem a salvou.

- Ah, essa história é muito antiga - interrompeu Pamela. - Olha, vem ali o empregado...

Já podes matar a fome.

- Hum, está óptimo! - exclamou Sybil provando a salada de camarão. - Pamela, vais casar na Igreja de São Marcos? Espero que sim, é uma igreja tão bonita... - Já escolhi a igreja - interveio Edwin.

- A cerimónia será na Igreja de Santa Maria, em Geesewell. O que achas, Pamela?

Edwin escolhera outra igreja porque sabia que os pais de Pamela estavam enterrados no Cemitério de São Marcos.

- Acho que a Igreja de Santa Maria é muito bonita... mas não seria melhor casarmos apenas pelo civil? Afinal não somos um casal muito romântico...

- Não sejas desmancha-prazeres! - exclamou Sybil. - Não há nada mais bonito do que uma noiva vestida de branco entrando na igreja ao som da Marcha Nupcial. Esse é o sonho de qualquer mulher, e tu és uma das raparigas mais românticas que eu já conheci.

- Não se preocupe, Sybil - disse Edwin depois de ter bebido um gole de vinho. - Farei tudo para que a sua prima tenha um casamento inesquecível. Sei como isso é importante para ela, embora tenha a certeza de que, como todas as pessoas verdadeiramente românticas, Pamela é um pouco tímida.

- Por favor, parem com essa história de que sou uma pessoa romântica! - explodiu Pamela.

- Sou exactamente o oposto disso! Nunca liguei aos ideais de amor e felicidade, e vocês sabem perfeitamente que me vou casar por dinheiro! Então, para quê falar em igrejas e vestidos de noiva?

- Não sabes o que estás a dizer, minha querida - comentou Edwin com frieza. - O início do noivado é sempre um período de incertezas... Para algumas raparigas é como atravessar um campo cheio de minas... antes de darem os primeiros passos têm vontade de recuar, com medo de se arrependerem depois. Pamela, tenho a certeza absoluta de que não te sentirias assim se casasses comigo apenas pelo dinheiro.

- E que outro motivo teria eu? - perguntou irritada. - Se te amasse não teria medo de me casar contigo.

- Estás muito nervosa, é só isso - disse Edwin tentando tranquilizá-la. Voltou-se para Sybil e acrescentou, sorrindo: - Pamela e eu somos assim... parecemos cão e gato. Não é certamente a forma mais delicada de namoro, mas é a mais excitante sob muitos aspectos.

- Já reparei que vocês não são propriamente um casal de pombinhos - comentou Sybil.

Nesse instante o empregado serviu o prato principal. Ao provar o bife do lombo, que estava tenro e saboroso, Pamela sentiu-se melhor e com mais apetite. No fundo estava contente com a des- crição que Edwin fizera do namoro deles, dando a entender que estava mais preparado para ouvir respostas tortas do que receber beijos.

Enquanto comia, o seu olhar encontrou o de

Edwin. Os dois pareciam entender-se às mil maravilhas, embora Pamela estivesse convicta de que jamais o compreenderia. Edwin continuava a ser

um mistério...

Depois do almoço levou-as ao apartamento de Pamela onde Sybil deixou as compras que fizera

de manhã; em seguida foram a um joalheiro e Edwin comprou um anel de safiras azuis, da cor

dos olhos de Sybil, e ofereceu-lho. Era uma maneira de agradecer a sua simpatia. Sybil adorou a prenda e disse que se Pamela mudasse de ideias se candidatava a casar com ele.

Assim que entraram no carro, Edwin voltou-se para ela e comentou:

- Você é uma pessoa encantadora, Sybil, mas é muito jovem para um homem da minha idade.

- Sou apenas quatro meses mais nova do que Pamela!

- Mas ela é mil anos mais velha do que você.

- Que história é essa? Não estou a perceber nada.

Pamela, sentada no banco da frente, voltou-se para encarar a prima que parecia perplexa.

- Reencarnação, minha querida.Há milhares de anos Edwin era o rei da Babilónia, e eu a sua escrava preferida. Como não me portava bem” Edwin mandou-me prender na torre do castelo.

- Ah, vocês estão a brincar! - exclamou Sybil bem-humorada. - E não havia nenhum príncipe corajoso que te fosse salvar?

- Não, não havia. Por isso fui obrigada a fazer uma trança dos meus cabelos compridos. Atei-a às grades, e estava a descer quando o rei apareceu. Empunhou a espada, cortou a trança e eu caí-lhe nos braços. Pensei que fosse matar-me, mas, em vez disso, casou-se comigo.

- E vocês viveram felizes para sempre?

- Só te digo que não sei o fim da história. Pergunta ao Edwin.

- A Babilónia transformou-se em poeira. O vento soprou durante séculos e séculos, até que nos encontrámos outra vez. Talvez a história não termine nunca porque o escriba pode continuar a vida inteira a escrever sobre amor e ódio, paz e guerra, tristeza e alegria. Os átomos espalharam-se pelo universo, e hoje encontram-se reunidos em cada um de nós, seres humanos... uma memória do tempo perdido e do tempo redescoberto.

- Fez uma pausa ao estacionar o carro em frente do teatro. - vou buscar os bilhetes. Reservei entradas para a peça... aquela que perdemos, Pamela.

- Quer dizer que os podias ter comprado ontem?

- Podia. Mas tinha outros planos. Como dizem no Oriente, quando o homem sai para caçar um tigre não pode perder nenhuma oportunidade. Volto já.

Edwin saiu do carro e entrou no teatro.

- A Ninfa do Lago? - indagou Sybil a olhar para o cartaz. - Isto não será um bocado antiquado, Pamela?

- Não. Vais gostar, é a história de uma rapariga que se mata por amor.

- Edwin é mesmo esperto. Sabe exactamente quais são os nossos gostos.

- Teve milhares de anos para aprender.

- Acreditas mesmo nessa história incrível de reencarnação?

- Não sei - respondeu Pamela a olhar para o anel. - Tenho sempre a impressão de que Edwin sabe mais coisas sobre o meu passado do que eu mesma. É esquisito... lembranças de família, factos de que já não me recordo. Não consigo libertar-me dele.

- É mesmo isso que queres? - perguntou Sybil desconfiada. - Ele pareceu-me ser muito generoso... e tenho a certeza de que gosta de ti.

- Não, não gosta. Ele foi muito franco comigo e disse-me que o nosso casamento não era por amor. Edwin voltou para a Inglaterra decidido a casar, e encontrou em mim aquilo que deseja numa mulher. Diz que sou diferente das outras porque tenho uma personalidade forte e não sou uma mulher fácil... Em troca disso deu-me o Castelo de Vidro. Não me sinto mal por ter aceite a sua proposta, porque pelo menos somos honestos um com o outro.

- Acho que fizeste muito bem - comentou Sybil. - Gostaria tanto que te casasses de branco, Pamela.

- E por que não? Afinal é a primeira e será a última vez.

 

Maio chegou ao fim e as últimas flores da Primavera caíram dos ramos, durante um temporal, na véspera do casamento. Pamela levantou-se cedo para ver o vestido depois dos arranjos finais. Fora feito em Londres a partir de um tecido de seda bordado com fios de ouro, que Edwin trouxera da Indonésia. Quando o vestiu, porém, achou que era demasiado exuberante, como se fosse feito para uma estrela de cinema; telefonou imediatamente para Mary, que era a costureira da família há muitos anos.

- Mary, por favor, deixe o que está a fazer e venha para cá imediatamente. Os costureiros de Londres transformaram o meu vestido num modelo de Hollywood. O tecido é lindíssimo, mas eu quero um vestido mais discreto.

- Tem razão, o importante é que se sinta bem. Irei para aí o mais depressa possível.

Mary chegou poucos minutos depois e passou o resto do dia com Pamela e Sybil na biblioteca, o lugar mais sossegado da casa; as duas raparigas davam sugestões enquanto as mãos experientes da costureira transformavam o vestido num modelo mais simples, mas igualmente adequado à ocasião.

- Não tenho nada contra a alta costura - disse Mary. - Mas acho que as roupas são demasiado vistosas e pouco práticas. Não são confortáveis. Usar um vestido caro nem sempre significa sentirmo-nos à vontade, e a descontracção é a verdadeira marca do encanto feminino, sobretudo numa noiva.

- Tem razão - concordou Sybil ajudando-a a marcar a bainha.

- Ah, agora sim, está a ficar bom! - exclamou Mary dando os últimos retoques. Às dez e meia da noite o vestido estava pronto. Uma hora depois, Pamela caiu exausta na cama, satisfeita com os resultados: o vestido estava tal e qual como ela queria, dando-lhe um ar sereno e encantador.

Ao acordar na manhã seguinte, olhou para o relógio e viu que era muito cedo; a agitação do grande dia ainda não começara. Pela janela avistou os primeiros raios de Sol atravessando as nuvens, e desejou que fizesse bom tempo.

Pensou nos presentes que estavam na sala de estar e no bolo de vários andares enfeitado com rosas de açúcar. A casa tinha sido limpa de alto a baixo e os móveis e objectos de decoração estavam a brilhar como nunca.

Pamela puxou os cobertores até ao pescoço, fechou os olhos e mergulhou novamente no sono. Pouco tempo depois acordou sobressaltada ao ouvir bater à porta. Era uma das empregadas da casa.

- bom dia, Pamela. Dormiu bem? - perguntou a criada, aproximando-se da cama com uma bandeja na mão. - Trouxe um chá com torradas e uma prenda para si... foi entregue pelo indiano que trabalha para o senhor Trequair.

- Muito obrigada.

- Vai beber o chá primeiro ou abrir a prenda?

- perguntou a empregada ansiosa por ver o que continha o embrulho.

- vou ver a prenda primeiro...

- Acha que é um colar de pérolas?

- Duvido - respondeu Pamela sabendo que Edwin não lhe daria uma prenda tão vulgar.

Desembrulhou-a e viu uma caixinha de couro branco, muito macio.

- Então, não vai abrir? - disse a empregada parecendo mais animada do que Pamela. - Estou morta de curiosidade para ver o que o seu noivo lhe ofereceu.

Pamela abriu finalmente a caixinha, e em cima do veludo branco encontrou uma cruz de rubis que combinava com a aliança, pendurada num fio de ouro.

Pamela e a empregada ainda estavam deslumbradas a olhar para aquela jóia magnífica quando Sybil entrou no quarto.

- bom dia, noiva! Ouvi dizer que Edwin te enviou uma prenda e vim a correr para ver o que era.

- Aqui está - disse Pamela.

- É divina - exclamou Sybil pegando na cruz.

Depois de Pamela ter tomado o pequeno-almoço, a empregada perguntou:

- Vão ao cabeleireiro sozinhas ou preferem que o motorista as leve?

- É melhor irmos com ele - disse Sybil. Estou muito nervosa para conduzir. E tu, Pamela, como te sentes?

- Estou a fazer os possíveis por me controlar - respondeu com frieza.

- Já sabes que penteado vais fazer? - perguntou Sybil guardando a cruz de rubis na caixinha.

- Não, só sei que quero um penteado simples.

- Quem me dera estar no teu lugar, Pamela. Lilian acha que Edwin é muito atraente, embora não goste da cicatriz, mas, para mim, aquela marca ainda lhe dá mais encanto... Sabes o que o meu pai disse ontem? Que tu vais estar tão bonita como Ruth no dia em que se casou; não achas que é um belo elogio?

- Hoje estás com a corda toda, Sybil. Acho melhor acalmares-te, pois temos muita coisa para fazer.

Pamela levantou-se e pôs a caixinha com a cruz de rubis em cima da cómoda.

- Vamo-nos vestir para ajudarmos Lilian a arranjar as flores antes de irmos embora.

O resto da manhã passou tão depressa que Pamela não teve tempo para se sentir nervosa. À uma e meia, quando voltaram do cabeleireiro, Pamela não tinha fome e sentou-se na varanda a observar os empregados a enfeitar as mesas. Sybil, pelo contrário, estava com apetite e serviu-se de várias sanduíches.

- Não comas muito - advertiu Lilian acompanhando um dos empregados até ao jardim.

- Senão ainda corres o risco de te sentires mal disposta na igreja.

- Eu não sou a noiva! - retrucou Sybil.

- Não, mas vais acompanhá-la à igreja. Vê lá o que vais fazer... O Edwin encarregou-me de organizar tudo muito bem para o casamento e não quero decepcioná-lo.

Logo que Lilian desceu as escadas que davam para o jardim, Sybil começou a rir às gargalhadas.

- Pelos vistos estão todas apaixonadas pelo noivo, menos tu!

Pamela continuava sentada a observar o movimento dos empregados cuidando dos últimos preparativos para o casamento. Aos olhos de todos era visto como um verdadeiro triunfo para uma rapariga pobre que perdera os pais quando pequena. Qual seria a reacção dos convidados se soubessem a verdadeira origem de Edwin?, pensou. Provavelmente achavam que ele era filho de uma família rica e que frequentara as melhores escolas. Lilian não ficaria muito contente se soubesse da verdade, mas o tio Saul era capaz de não se importar. Sabia que, actualmente, Edwin era muito rico, e isso era razão suficiente para fazer dele o marido ideal.

Pamela esboçou um sorriso cínico, que lhe era habitual desde que aceitara aquele ”casamento vantajoso”.

- Quando falas de amor, Sybil, falas com tanta leviandade... como se fosse um chocolate ou outra coisa qualquer que se pode comprar no supermercado e comer quando apetece.

- O amor talvez seja isso para mim. Mas reconheço que para outras pessoas pode ser diferente. Seja como for, já não podes voltar atrás... Olha, se não me engano estou a ouvir as nossas amigas a subir a escada.

- Olá meninas, chegámos!

Eram três colegas dos tempos de escola que iam ser as damas de honor de Pamela, no dia em que deixava a adolescência para sempre.

A hora seguinte foi uma confusão geral: vestidos de cetim, arranjos de flores, gargalhadas sonoras... Pamela comportava-se de modo indiferente, dando aos outros a impressão de que agia assim por ser uma pessoa reservada.

Ao sair do banho transformou-se numa boneca, sob os cuidados da costureira e de uma amiga de Lilian.

Depois de ter vestido a roupa interior, foi cuidadosamente maquilhada e penteada. No momento em que calçou os sapatos, parecia muito alta, mas fizera questão de usá-los porque sabia que sem eles ficaria muito mais baixa do que Edwin.

- Agora o vestido, querida - disse Mary. Após ter puxado o fecho, a costureira admirou-a de alto a baixo com um sorriso.

- Está uma maravilha! - exclamou batendo palmas de alegria. - Conheci a sua mãe quando era da sua idade. Ah, como ela se orgulharia de si, Pamela! Pense nisso e não fique triste com o facto de Ruth não estar aqui para a ver...

- Ontem fui ao cemitério e pus lírios na sepultura dela - murmurou Pamela.

- Lírios! - exclamou uma amiga da Lilian segurando o comprido véu de renda.

- Vai levar um ramo de lírios hoje, Pamela. Mas não vai ficar triste por isso, pois não? Hoje é um dia em que só deve sentir alegria! Edwin é um homem muito distinto. E você é uma rapariga de sorte. Aquela mansão... o dinheiro... não precisa de se preocupar com mais nada.

Dinheiro! Pamela não sabia ao certo porque aceitara casar-se com Edwin, mas de uma coisa tinha a certeza: todos pensavam que se casava por dinheiro.

- Vai usar o colar de pérolas? - indagou Mary tentando mudar de assunto, como se dissesse a Pamela que não deveria importar-se com os comentários invejosos que acabara de ouvir.

- Não - respondeu Pamela dirigindo-se à cómoda.

Pegou na caixinha de couro, abriu-a e tirou a cruz de rubis.

- Edwin mandou entregar esta jóia hoje de manhã. Acho que vai ficar contente por me ver com ela.

- É uma beleza! - exclamou Mary. - E combina com o vestido. Dêcá que eu ponho.

Quando Pamela se olhou ao espelho, não pôde disfarçar a sua alegria ao notar que estava muito bonita.

- Fica mesmo bem - disse com um sorriso.

Depois, Mary ajudou-a a prender o véu de renda irlandesa, que fora emprestado por uma freira sua amiga.

- É a noiva mais bonita que eu já vesti!

- Muito obrigada - disse Pamela, corando. A cruz de rubis brilhava no seu peito e a renda cobria-lhe os cabelos que caíam sobre os ombros.

- Esse véu é muito bonito, Pamela - comentou a amiga de Lilian. - Está lindíssima, e esse crucifixo fica-lhe mesmo muito bem. Deve ter custado uma pequena fortuna. Não perdeu tempo, Pamela, quando conheceu Edwin Trequair... E todos nós a acreditarmos que ia seguir carreira em Londres, estudar Direito, talvez...

- Todas as raparigas são assim - comentou Mary. - Pensam em continuar os estudos até que encontram o homem certo. Que pode oferecer uma carreira? Falo por experiência própria. Não há nada mais triste do que uma mulher a viver sozinha, sem um companheiro, mesmo tendo alcançado grande êxito profissional. A solidão é uma grande armadilha...

- Isso é verdade! - disse a outra mulher.

- Eu não estava a criticá-la por se casar com Edwin, antes pelo contrário, acho que faz muito bem. Lilian disse-me que, na lista dos convidados, não há nenhum parente de Edwin. Não me diga que ele é a ovelha negra da família?

- Edwin não tem família - respondeu Pamela. - Mas sei que ele é descendente de nobres da Cornualha que, como sabe, é a região dos castelos da antiga nobreza.

- Não me diga! Por acaso já tinha reparado que Edwin tinha um ar aristocrático... E a cicatriz no rosto... como foi que isso aconteceu? Estou morta de curiosidade por saber!

- Ah, isso foi na índia, durante uma caçada ao tigre... Edwin sempre foi muito corajoso, mas dessa vez arriscou-se de mais... - explicou Pamela.

- Edwin é o último descendente vivo da família Trequair, e como o castelo ancestral da Cornualha está em ruínas, ele decidiu comprar o Castelo de Vidro para dar início a uma nova dinastia.

- Que história fascinante! - exclamou a amiga de Lilian.

Pamela sorriu e, ao voltar-se para Mary, encontrou-a com um olhar interrogativo. Pelos vistos a costureira não acreditara na história inventada naquele momento.

- O vestido está exactamente como desejava

- disse com alegria para Mary. - Não sei como lhe agradecer.

- Sou eu que lhe agradeço, Pamela. Foi um prazer costurar para a filha de Ruth - retrucou Mary. - Acho que está na hora. As suas flores já devem estar arranjadas e as damas de honor já estão vestidas. Está nervosa, querida?

Pamela sentia os joelhos ligeiramente trémulos, mas nada mais. Esperava apenas que a calma aparente não anunciasse uma tempestade.

- Estou pronta - disse por fim. - Edwin não é o tipo de homem para se deixar à espera no altar.

- Deus me livre - disse a amiga de Lilian rindo às gargalhadas. - Gostaria muito que a minha filha arranjasse um marido como o Edwin, mas ela só gosta daqueles rapazes de cabelo comprido que não fazem nada na vida. Estou farta de lhe dizer que ninguém pode viver do ar, mas ela não liga ao que eu digo.

Pamela ajeitou o véu e desceu as escadas em direcção à sala de visitas, deixando para trás as lembranças da infância e as recordações da casa que um dia fora sua. Dentro de algumas horas atravessaria o portão do Castelo de Vidro, aquele que era a sua nova residência.

As damas de honor estavam na sala, aguardando, com ansiedade, a chegada da noiva. Pamela foi buscar o ramo de lírios que Lilian acabara de fazer, e poucos minutos depois estava sentada num Rolls-Royce prateado, ao lado do tio Saul. Dirigiram-se em silêncio pela estrada em direcção à igreja de Santa Maria. O dia estava ensolarado e o céu azul contrastava com o verde do mar, que cintilava sob os raios do Sol.

Quando o carro parou frente à igreja, os convidados aglomeraram-se para ver a noiva. Ao saírem do carro o tio Saul segurou a mão de Pamela e comentou:

- Estás linda... tiraste a sorte grande ao casares com Edwin.

- Dizes isso só por causa do dinheiro dele, não é?

- Não é só por isso - respondeu ele encarando-a nos olhos. - Edwin é uma pessoa corajosa e de carácter. Sabes uma coisa, ele lembra-me o meu comandante. Numa das nossas viajens desabou um temporal e o barco começou a andar à deriva. Era impossível continuar a navegar. A nossa única salvação era atirarmos os botes à água e tentarmos remar até à costa. Já deves ter ouvido falar que o comandante é o último a abandonar o navio. Pois bem, a verdade é que ele permaneceu no barco até ao fim, acabando por morrer como um herói. Não era um homem comum. Era um soldado da cabeça aos pés. Durante a tempestade foi o primeiro a manter o sangue-frio, enquanto nós, os mais jovens, entrámos em pânico. Foi ele quem me empurrou para o bote; foi graças a ele que me salvei

- disse, com lágrimas nos olhos. - Não era um homem fácil de ser amado, mas também não era fácil de ser esquecido.

Pamela entrou finalmente na igreja de braço dado com o tio; o canto dos pássaros foi ficando para trás, graças ao som da música solene da Marcha Nupcial. Feixes de luz entravam pelos vitrais góticos, e lá adiante podia-se ver Edwin elegantemente vestido com um fato cinzento. Visto de longe, parecia indiferente a tudo, sem olhar uma única vez para trás; enquanto o padre, com o livro de orações nas mãos, mantinha o olhar fixo na noiva, que se aproximava do altar.

Pamela estava resplandecente no seu vestido branco, com o véu de renda comprido, e as suas magníficas jóias. Perguntava a si própria como era possível estar ali com tanta naturalidade, quando devia era sair pela porta da igreja naquele preciso instante.

Durante toda a cerimónia sentia-se distante, e a sua mão estava gelada no momento em que Edwin a segurou para lhe pôr a aliança.

Dois dias depois, os recém-casados iriam embarcar no veleiro de Rip Lawson, o padrinho de casamento, com destino ao sul de França. Passariam a lua-de-mel em Cap Deville, onde Edwin tinha comprado uma casa de campo.

Depois de terem assinado o livro de registos, foram para a mansão Memory, juntamente com os convidados, onde a recepção se prolongou durante horas.

Não se olhou a despesas: empregados fardados de branco serviam champanhe, caviar, salmão fumado, faisão e muitas outras delícias. Nenhuma outra noiva fora tão felicitada.

- Pamela Trequair! - exclamou Sybil com uma taça de champanhe na mão. - O nome combina contigo. Parece ter sido feito especialmente para ti... Foi o destino, minha querida prima!

Pamela olhou-a com indiferença, e não fez qualquer comentário.

Você devia chamar-se Helena - disse Rip Lawson, aproximando-se dela com um cálice de conhaque na mão. - Edwin mandou-me entregar-lhe isto. Disse que é para você beber até à última gota.

- vou provar - respondeu Pamela com frieza, pegando no copo. - Porquê Helena?

- Helena de Tróia, que pela sua beleza provocou uma guerra. Edwin é um homem muito esperto, e sempre teve muito bom gosto... É compreensível que tenha querido guardar uma jóia rara consigo - disse Rip Lawson olhando-a de alto a baixo.

- É por isso que dizem que foi comprada...

- Ora, não diga isso. Tenho a certeza de que Edwin ama cada fio do seu cabelo.

- Mas não é só isso que conta, não para mim.

- Já é meio caminho andado. A outra metade depende da mulher. Como disse Shakespeare: ”A mulher tem o poder de apaziguar o tirano mais feroz”.

- Quer dizer que me casei com um tirano?

- De certa maneira, sim. Edwin tem um temperamento difícil, e não foi nenhum santo no passado... Mas se é um anjo que você quer... o meu veleiro está ancorado perto da praia. Vamos partir juntos? - disse Rip com ironia.

- Só se for pelo Tamisa... - Está a falar a sério?

- E por que não?

- E por que teria de ser pelo Tamisa?

- Tenho uma amiga em Londres que me poderia ajudar a anular este casamento.

- Não diga isso, Pamela! Não está certo disse acenando para Edwin.

Pamela permaneceu onde estava, ao ver Edwin caminhar na sua direcção por entre os grupos de convidados dispersos pelo jardim.

- Pamela está ansiosa pela sua companhia disse Rip olhando para o copo que tinha na mão.

- Está vazio. vou buscar mais conhaque.

- Estás tão pálida... - disse Edwin segurando-lhe a mão esquerda enquanto mexia na aliança.

Para Pamela era difícil deixar de pensar no casamento senão em termos de negócio... Trocara a monotonia da rotina do trabalho em Londres por uma nova vida na praia de Jocelyn... a tentação fora irresistível, pensou.

- É impressão tua - disse Pamela esboçando um sorriso. - Estou muito cansada, só isso... Foi tudo muito agitado.

- De facto casar é quase tão cansativo como um dia de trabalho - comentou Edwin apertando-lhe a mão. - Vamos dizer à Lilian que queremos partir o bolo e depois partimos para longe desta confusão.

Trouxeram o bolo entre gritos e palmas de alegria. Pamela sabia que era o noivo quem o devia partir, mas não conseguiu disfarçar a sua admiração quando Edwin abriu uma caixa de madeira e tirou um kríss, o punhal dos malaios. O cabo era todo em ouro, cravejado com pedras preciosas e a lâmina era ligeiramente curva.

Todos os presentes ficaram surpreendidos com aquela atitude inesperada de Edwin, e um deles perguntou:

- Mas não dizem que se alguém quiser um kríss tem de matar quem o possui?

- É verdade - respondeu Edwin. - Mas para não imaginarem coisas fantásticas, saibam que não obtive esta faca matando o seu dono. Foi-me oferecida por um príncipe da Indonésia, e nunca foi usada em combate. Este bolo é a sua primeira vítima.

Depois de as fatias terem sido distribuídas e mais taças de champanhe servidas, Edwin resolveu anunciar:

- Agradeço a todos os que nos desejaram felicidades e nos presentearam com tanto carinho... Agora, vou raptar a noiva e levá-la para o meu castelo - disse sorrindo.

Foi exactamente o que fez. Pegou nela ao colo e levou-a até ao carro. Enquanto os convidados batiam palmas, Pamela protestava dizendo que queria mudar de roupa.

- Nem pensar! - disse Edwin, pousando-a no chão para abrir a porta do carro. - Vais entrar no nosso castelo com esse vestido, como se fosses a princesa de um conto de fadas! Só nos falta um cavalo alado e a minha armadura de cavaleiro...

Minutos antes de entrarem no carro os convidados apareceram e atiraram grãos de arroz sobre os noivos, desejando-lhes felicidades.

Quando partiram, Pamela teve a sensação de estar realmente a ser raptada... arrastada à força para longe de tudo o que conhecia e amava.

Edwin era diferente de qualquer homem. Fazia o que queria, sem se preocupar com o que os outros pudessem pensar. Pamela tinha de aceitá-lo como marido. Contudo, ao ver a torre do Castelo de Vidro, sentiu-se insegura na companhia daquele homem imprevisível.

 

Muito abaixo das janelas do quarto, o oceano cintilava ao pôr do Sol. Durante um tempo que lhe pareceu interminável, Pamela permaneceu ali, admirando o movimento das águas.

Desceu para jantar a sós com Edwin; em cima da mesa havia uma jarra enorme com rosas brancas e três castiçais de prata. Comeram uma deliciosa combinação de carnes frias com espargos e beberam vinho verde. De repente, como se o vinho lhe tivesse subido à cabeça, Pamela exclamou em voz alta, para ser ouvida pelo homem que estava na outra extremidade da mesa comprida:

- És rico de mais, Edwin. Podes comprar tudo o que quiseres... por isso é que olhas para tudo e para todos como se fosses superior. Não tens medo de nada, pois não?

Edwin fitou-a com serenidade, enquanto bebia um gole de vinho; o rosto moreno e sombrio tinha um ar imponente, aristocrático.

- Aprendi a dominar o medo, mas isso não significa que o não tenha.

- Tenho a certeza de que não sentes medo há muito tempo. És uma pessoa muito segura, que não tem nada a temer, graças à tua autoridade e força persuasiva. Que demónios te poderiam assustar? Eles até têm medo de tentar...

- Porquê, achas que o meu rosto os assusta?

- Não - respondeu Pamela. - É verdade que o teu rosto tem uma aparência... como dizer... perturbadora... mas não é isso que os assusta; é qualquer coisa que está dentro de ti, uma força interior... capaz de te transformar num semideus.

- Já devias saber como eu sou...

- Isso não é fácil. És muito esperto... fazes as coisas de um modo subtil, quase imperceptível.

- Inclusive para a minha mulher? - indagou ele admirado. - Pois eu não pretendo continuar a ser um estranho para ti, Pamela. Mas será que há alguém que se conheça a si próprio? Não somos por acaso um enigma para nós mesmos, da mesma forma que o somos para os outros? E esse mistério não será a parte mais excitante da vida?

- Talvez... - murmurou Pamela. - Mas não deixa de ser um pouco assustadora.

- Estás sempre a falar de temores... Tens medo de mim, Pamela? Sou algum monstro, por acaso?

- Há de facto um demónio em ti! - exclamou sem se conter.

- E tu? És algum anjo, minha querida?

- Não, sou apenas uma pessoa comum - respondeu Pamela tentando demonstrar que estava calma.

- Acreditas mesmo que sou o tipo de homem que se casaria com uma mulher comum? Achas que gostaria de conviver com uma rapariga submissa e bem comportada? Se quisesse isso, Pamela, não me

teria casado contigo. Sabes bem que és diferente das outras mulheres, aliás já te disse isso. A tua maneira irreverente de ser e a tua beleza interior são únicas. Não acredito que sejas assim tão modesta... conheces o teu valor e sabes o que mereces. Foi por isso que te casaste comigo, porque eu gosto de ti como tu és, e posso oferecer-te tudo aquilo que quiseres. Acima de tudo, sabemos aquilo que queremos...

A maneira como Edwin falara dava a entender que o amor não desempenhava nenhum papel importante no relacionamento deles.

- E depois? - indagou Pamela. - Basta um estalar de dedos para que os meus desejos se realizem, é isso?

- Nem todos... - respondeu Edwin com ironia. - A tua principal tarefa será tentar o diabo. Não me digas que tens medo.

- Tenho - respondeu Pamela.

Ao olhar para o relógio, sentiu-se aliviada ao ver que eram nove e meia; ainda não estava na hora de irem para o quarto.

- vou dar um passeio pelo jardim - disse Edwin levantando-se. - Pelos vistos estás com vontade de ficar sozinha... Vais tomar café na sala de estar?

- vou.

Durante mais de uma hora ficaram separados. Quando Pamela já estava na sala de estar, Chandra levou-lhe uma chávena de café e voltou logo para a cozinha. Depois de ter bebido o café, Pamela levantou-se e sentou-se ao piano. A música tinha o dom de acalmá-la; lembrou-se das Quatro Estações, de Vivaldi, uma das suas peças preferidas e começou a tocá-la. Sentiu vontade de fugir através da melodia, num sonho de Primavera que ficara para trás, quando era uma mulher livre. Agora tinha um compromisso com Edwin, que a obrigava a ceder aos seus desejos. Mas não queria pensar nisso, ainda não... era assustador imaginar que iria deitar-se na mesma cama que Edwin.

Tocou mais algumas músicas, sem perceber que a melodia ecoava pelo jardim, onde um homem passeava, cercado por plantas lindas e exóticas, que importara de uma terra distante para perfumar o ambiente.

Ao dar-se conta de que tocava uma música dos seus tempos de infância, levantou-se subitamente e correu em direcção à porta do Castelo de Vidro. Ao constatar que estava trancada, assustou-se, mas sabia que, se quisesse, poderia abri-la e esconder-se na casa do tio Saul.

Que iriam dizer se aparecesse de repente na noite de núpcias? Provavelmente pensariam que tinha enlouquecido... sem falar que Edwin correria atrás dela, e seria humilhante ser levada de volta como uma criança rebelde. Mas era uma mulher e tinha que se comportar com dignidade. Por isso, de cabeça erguida, subiu a escada e atravessou o corredor em direcção ao quarto. Os seus passos eram tão silenciosos como os de um fantasma.

Entrou no quarto e observou com atenção tudo o que estava à sua volta: o papel de parede era branco-pérola, e todos os móveis de madeira escura. Ao ver a cama grande, com uma colcha rendada e várias almofadas de cetim por cima, sentiu um calafrio. Ao

lado da cómoda havia um banquinho forrado de veludo vermelho escuro onde estava uma camisola de dormir de seda pura e um roupão a condizer. Essa roupa, bem como as demais que estavam no armário e nas gavetas, faziam parte do seu enxoval, que Edwin fizera questão em oferecer-lhe.

Estava cercada de um luxo que muitas outras raparigas invejariam. Pamela, no entanto, não se sentia feliz, pois achava que tudo aquilo era a recompensa por ter aceite ser um simples objecto das mãos de um homem poderoso e rico. Sentia-se como uma mulher num harém, envolta em sedas e perfumes à espera do seu senhor, um brinquedo delicado que Edwin adquirira para exibir aos seus convidados. Ele comprara-a, e nenhum dos dois tinha a menor ilusão sobre aquele contrato. Edwin era um homem rico que não queria viver sozinho; ela era uma rapariga que perdera a família e que não resisitira à tentação de ter uma vida nova.

Contra vontade, despiu-se e vestiu a camisa de seda. Ajeitou o tecido macio sobre o corpo e pôs o roupão. Ao voltar-se para se olhar no espelho, os cabelos caíram-lhe sobre a testa. Lembrou-se de que os homens gostavam dos cabelos soltos, ligeiramente desalinhados e deixou-os assim. Dentro de poucos instantes, pensou, Edwin entraria no quarto a exigir-lhe o primeiro pagamento por lhe ter dado o privilégio de morar numa casa fantástica com vista para o mar, de onde podia apreciar toda a beleza da praia de Jocelyn. Mas de momento pensàva apenas nos dias que teria pela frente, na companhia do homem que se casara com ela apenas para se apoderar da sua pessoa.

Foi ao quarto de vestir, e também ali encontrou uma série de objectos preciosos. Em frente ao guarda-roupa havia uma poltrona forrada de veludo, um toucador com um espelho de três faces e um banquinho com um assento de cetim. Junto à janela encontrava-se uma secretária antiga toda em madeira com um tampo de mármore, onde estava um estojo Fabergé, além de uma colecção de animaizinhos em ouro com pedras preciosas.

Tinha vontade de chorar diante de tanta beleza... o quarto parecia uma caixinha de jóias onde Edwin guardava a sua última aquisição: ela própria.

Depois de ter passado algum tempo a mexer nos objectos que estavam sobre a secretária, olhou para o relógio e alarmou-se ao ver que eram onze horas; Edwin devia estar quase a chegar.

Tomada pelo medo, correu para o quarto de dormir e aproximou-se da porta que dava para o quarto de Edwin. A chave estava na fechadura; podia trancá-la e impedir que ele entrasse. Os seus dedos já estavam a tocar na chave, quando se deu conta de que seria um gesto infantil e cobarde. Como não queria pensar em mais nada no momento, procurou um livro na estante, acabando por escolher A Morte do Rei Artur. Estava muito nervosa para se concentrar na leitura mas ao menos podia distrair-se a ver as bonitas ilustrações antigas.

Sentou-se numa das poltronas do quarto e, quando abriu uma página ao acaso, uma fotografia escorregou e foi parar ao chão. Apanhou-a e, ao examiná-la com atenção, percebeu que estava ligeiramente desbotada, dando a ideia de que era antiga. Quando olhou para o rosto e para o corpo esguio do rapaz vestido com uma farda militar reconheceu-o imediatamente: era Edwin, embora ainda não tivesse a cicatriz. Estava a sorrir, encostado a uma palmeira. A pele estava bronzeada pelo sol e o corpo tinha uma aparência atlética.

Pamela estava pasmada. Lembrou-se de Harvey, o homem que encontraram no teatro, e que dissera ter estado no Exército com Edwin. Virou a fotografia para ver se tinha alguma data e encontrou a seguinte frase: Pago para matar ou para morrer, escrita com a letra que tão bem conhecia. Foi então que identificou o uniforme; pertencia ao corpo de mercenários, homens que matavam ou morriam por dinheiro.

Sentiu um aperto no coração... Então era esse o segredo do passado de Edwin! Era disso que nunca falava! Foi nessa altura que se feriu e ficou com o rosto marcado para sempre! Por uma ironia do destino, o retrato do soldado mercenário estava entre as páginas de um romance que contava as aventuras dos nobres cavaleiros medievais.

com a mão ainda a tremer, pôs a fotografia no mesmo sítio e fechou o livro. Deixou-o em cima da cama, foi até ao toucador e perfumou-se.

Agora, depois de saber a verdade sobre o passado de Edwin, desejava apenas que ele a possuísse; estava disposta a entregar-se de corpo e alma ao homem que tivera de lutar para sobreviver. Contudo, ficou aterrorizada no instante em que viu o reflexo de Edwin no espelho, vestido com um roupão de seda azul-escuro, a entrar no quarto. Fechou a porta à chave e disse: - Olha para mim, Pamela. Sou um homem, e não um monstro.

Ela parecia uma estátua; não conseguia levantar-se, e muito menos falar.

- Vamos, Pamela, não sejas criança! - insistiu Edwin apertando-lhe os ombros e voltando-a para si. Ao notar o cheiro a perfume comentou: - Estás mais perfumada do que uma mulher da rua...

- Não era isso que tu querias? Uma prostituta?

- disse Pamela irritada.

O rosto de Edwin ganhou uma expressão feroz e sombria.

- Que estás a dizer? Sabes do que estás a falar?

- com certeza que sei! Não sou nenhuma criança! - desafiando-o com um olhar que não deixava transparecer o medo que sentia. - Eu sei tudo a teu respeito... Devia ter percebido mais cedo do que eras capaz... até de matar por dinheiro.

- Será que é assim tão terrível o que eu fiz, minha querida?

- Eu não sou a tua querida! - exclamou furiosa. - Sou apenas uma rapariga tola que casou contigo. Agora estou a representar o meu papel. Este perfume agrada-lhe, meu senhor?

- Pára imediatamente com isso, Pamela! - disse Edwin levantando-a nos braços e levando-a para a cama, onde a largou. Debruçou-se sobre ela e olhou-a com uma expressão ameaçadora, deixando-a imobilizada.

- É verdade, eu matei - dissse Edwin mantendo o olhar. - Muitos soldados fizeram o mesmo.

- Mas tu foste pago para matar. Eu encontrei a fotografia...

- Claro, era major de um exército de mercenários. Eu matei e quase fui morto. Que mal há nisso? Lutei com todas as minhas forças pela liberdade de um povo oprimido.

- Então por que fizeste disso um segredo, como se fosse algo humilhante? Por que nunca me contaste nada?

- Há muitas razões para se fazer segredo de certas coisas...

- Que coisas?

- Eu nunca contei, por exemplo, que gosto de ti desde os meus dezasseis anos. Eras uma menina adorável, embora um pouco traquina... tinhas por hábito arrancar as flores do jardim e rabiscar as paredes brancas da cozinha. Talvez não te lembres porque eras muito pequenina, mas eu não me esqueci de nada porque nessa época trabalhava como jardineiro na tua casa.

- Então foste tu! Foste tu quem me tirou do lago?

Um sentimento estranho apoderou-se do seu corpo, algo que nunca sentira antes e contra o qual não tinha o mínimo desejo de lutar.

- Fui. Caíste ao lago quando tentavas agarrar um nenúfar...

Edwin estava com o rosto colado ao dela.

- Eu amei-te desde esse instante, quando te tirei do lago... berravas como um diabinho e estavas molhada como um peixe. Mas, nessa altura, eu era um pobre rapaz, que não tinha nada, e queria ter tudo para te poder oferecer. Foi por isso que saí da tua casa e viajei pelo mundo. Jurei a mim mesmo que só voltaria quando te pudesse dar tudo aquilo que mereces. É verdade que fui um soldado mercenário, mas depois, quando já tinha algum dinheiro, mudei de vida e tornei-me um respeitável homem de negócios. - Edwin esboçou um sorriso e continuou: - Talvez pudesse ter ganho a tua simpatia mais cedo se tivesse contado tudo desde o princípio, mas queria conquistar-te sem recorrer às recordações daquele tempo. Tu pensaste que eu te queria porque amara Ruth, mas isso não é verdade. A tua mãe era uma pessoa encantadora, mas quem sempre desejei foi a filha...

- Sempre? - repetiu Pamela.

Agora entendia o motivo pelo qual não queria mais lutar contra Edwin: ela também o amava. Era delicioso deixar-se submeter ao seu poder, à sua força, ao toque dos seus dedos...

Os lábios dele cobriram os seus, num gesto súbito, como se mais uma vez tivesse lido os seus pensamentos.

- Hoje de manhã, na igreja, enquanto tu te aproximavas do altar, não tive coragem de olhar para trás com receio de descobrir que tudo fosse um sonho...

- Não, Edwin, não foi um sonho... e agora sinto-me feliz por isso.

- Agora e sempre?

- Até que a morte nos separe - respondeu abraçando-a com um prazer até então desconhecido.

- Beija-me... Beija-me - sussurrou.

E quando ele a beijou sentiu-se no paraíso.

 

                                                                                            Violet Winspear  

 

                      

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