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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CEGO DE SEVILHA / Robert Wilson
O CEGO DE SEVILHA / Robert Wilson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

 

PRIMEIRA PARTE

 

- Tens de olhar - disse a voz.

 

Mas ele não era capaz. Era precisamente quem não podia olhar para aquilo, porque ia desencadear uma grande actividade naquela parte do cérebro, a que aparece a vermelho-vivo nas tomografias que se fazem enquanto se dorme, naquele túnel do labirinto do cérebro a que os leigos chamariam da «imaginação desenfreada». Era uma zona de perigo, que tinha de ser bem fechada, barricada com tudo o que viesse à mão, pregada, acorrentada, fechada a cadeado e atirada a chave ao lago mais profundo. Era o beco onde a sua constituição de homem do campo, de ossos largos e articulações fortes, ficava reduzida à frágil nudez de um rapazinho, de cara enfiada no conforto limitado, duro e escuro de um canto, com as pernas e as nádegas assadas por se sentar na urina da sua incontinência.

 

Não ia olhar. Não era capaz.

 

O som vindo do televisor voltou a um filme antigo. Ouvia as vozes dobradas. Sim, para isso podia olhar. Era capaz de olhar para o James Cagney a falar espanhol, com os olhos assestados à sua cabeça, enquanto os lábios diziam palavras que não correspondiam ao som.

 

A fita zunia no leitor de vídeo, à medida que ia sendo rebobinada, e deu um estalido ao chegar ao princípio. Sentiu insinuar-se um horizonte no fundo da sua cabeça. Náusea? Ou pior? O maremoto do passado a avançar. A garganta apertou-se, os lábios tremeram, uma turbação afectou o espanhol transviado de James Cagney. Enrolou os dedos dos pés descalços, agarrou-se aos braços da cadeira, com os pulsos já cortados pelo cabo que os imobilizava. Os olhos marejaram-se e deixaram tudo indistinto.

 

- Lágrimas na hora de ir deitar - disse a voz.

 

Deitar? O cérebro esgrimiu com esse conceito. Deu uma tossidela abafada, por causa das meias que lhe enchiam a boca. O fim? Era isso que queria dizer ir deitar? O fim era preferível àquilo. Hora de ir para a cama. Uma cama infinita, escura, funda.

 

- Peço-te que voltes a tentar... a tentar ver. Mas antes tens de olhar. Não se pode ver sem olhar - disse-lhe a voz, devagar ao ouvido.

 

A luz do «play» piscava a vermelho no meio da escuridão. Abanou a cabeça e apertou os olhos com força. A voz de James Cagney foi engolida pela gargalhada estrepitosa, o clamor do riso nervoso de um rapazinho. Era uma gargalhada, não era? Meneou a cabeça de um lado para o outro, como se isso pudesse ensurdecer-lhe o som, um som confuso que se recusava a acreditar que fosse de agonia, de uma agonia penetrante. E o soluço final, a impotência, o desfalecimento de quando acabam as cócegas... ou seria a tortura? O soluçar. O fôlego arquejante. A recuperação após a dor.

 

- Não estás a olhar - disse a voz, zangada.

 

A cadeira balançou, numa tentativa de se atirar para longe do ecrã, afastando-se do som perfurante. Voltou o perfeito staccato espanhol de James Cagney e o som da rebobinagem, a aceleração até ao baque surdo da fita a chegar ao fim.

 

- Eu tenho-me esforçado - disse a voz. - Eu tenho estado a ser paciente e... razoável.

 

Razoável? Isto é razoável? Atar-me pés e mãos à cadeira, enfiar-me as minhas meias malcheirosas dentro da boca. Forçar-me a ver isto... oh... isto...

 

Uma pausa. O impropério resmungado atrás de si. Lenços de papel sacados da caixa em cima da secretária. De novo aquele cheiro no quarto. Lembrava-se dele. A sombra negra vinda na sua direcção, não num farrapo, mas em lenços de papel. O cheiro e o que ele significava. Escuridão. Adorável escuridão. Dá-ma. Prefiro-a a isto.

 

O forte cheiro característico do clorofórmio atirou-o outra vez para o espaço.

 

Um ponto de luz, pequeno como uma estrela, perfurou a grande cúpula. Cresceu em círculo e tirou-o do seu poço negro. Não, quero ficar. Deixem-me aqui nas trevas da masmorra. Mas sentia-se inexoravelmente arrastado, atirado para dentro do círculo em expansão, até ressurgir na sala, onde continuava James Cagney, e agora uma rapariga, que não representava a única diferença que havia a registar. Tinha fio eléctrico a vincar-lhe a cara. Tinha sido apertado com força por debaixo do nariz e atava-o ao espaldar alto da cadeira, de tal modo que sentia os contornos esculpidos de uma espécie de antigo brasão a penetrar-lhe no couro cabeludo. Mas havia mais. Valha-me Maria, Mãe de Cristo, Virgen de la Macarena, de la... de la Esperanza... o que é que me fizeram?

 

Sentia lágrimas quentes nas bochechas, correrem-lhe pelos lados do rosto até aos cantos da boca. Caíam-lhe pesadamente na camisa branca. Deixavam um sabor de metal adocicado entre os dentes. «O que é que me fizeram.» O ecrã de televisão rolou na direcção dele e deteve-se junto dos seus joelhos. Estavam a acontecer demasiadas coisas ao mesmo tempo. Cagney beijava a rapariga, provocadoramente. A corda enfiava-se-lhe no septo. O pânico crescia-lhe dos pés, espalhando-se violentamente pelo corpo, reunindo mais pânico pelo caminho, afunilando-se à entrada dos órgãos, dirigindo-se veloz para a aorta em compressão. Irreprimível. Imbatível. Impensável. Tinha o cérebro lívido, os olhos a arder, as lágrimas irrompendo sem cessar. As pálpebras - rastilhos queimando na escuridão - avançavam sobre as pupilas negras e brilhantes, ferindo-lhe o branco dos olhos.

 

Surgiu um conta-gotas na sua visão incendiada, com uma trémula gota de orvalho suspensa no tubo de vidro. Os olhos iam absorvê-la. E pedir mais.

 

- Agora vais ver tudo - disse a voz. - E eu forneço as lágrimas.

 

A gota caiu no olho. A fita começou a rodar e gemeu. James Cagney e a rapariga foram consumidos por uma crescente tempestade. Depois veio a gritaria e a administração meticulosa de lágrimas.

 

Quinta-feira, 12 de Abril de 2001, Edificio del Presidente, Los Remedios, Sevilha

 

Tudo começou no momento em que entrou naquela sala e viu aquele rosto.

 

Tinha recebido a chamada às 8h 15, precisamente quando se preparava para sair de casa: um cadáver, uma suspeita de crime e uma morada.

 

Semana Santa. Fazia sentido que houvesse pelo menos um assassínio na Semana Santa; não que tivesse algum efeito sobre as multidões que acompanhavam a deslocação diária de Virgens Santas, tremendo nos seus andores, convergindo para a catedral.

 

Tirou cuidadosamente o carro do casarão que pertencera ao pai, na calle Bailén. Os pneus trepidaram no calcetado das ruas estreitas e vazias. A zona antiga, relutante em acordar em qualquer época do ano, estava especialmente silenciosa àquela hora durante a Semana Santa. Entrou no largo fronteiro ao Museo de Bellas Artes. As casas caiadas, emolduradas a ocre, estavam silenciosas por detrás das palmeiras altaneiras, duas colossais árvores da borracha e grandes jacarandás que ainda não tinham florido. Abriu a janela à manhã, ainda fresca devido ao orvalho da noite anterior, e rumou ao Guadalquivir e à alameda que forma o Paseo de Cristóbal Cólon. Teve uma sensação que beirava a satisfação, ao passar pelas portadas vermelhas da Puerta del Príncipe, na fachada da Plaza de Toros de La Maestranza, prestes a receber as primeiras touradas da semana que antecedia a Feria de Abril.

 

Isto era o mais próximo que conseguia estar da felicidade, nos dias que corriam, e ainda durava quando virou à direita, depois da Torre del Oro, e atravessou o rio, que estava enevoado sob os primeiros raios de sol, afastando-se da parte velha da cidade. Na Plaza de Cuba, desviou-se do caminho habitual de ida para o trabalho, e desceu a calle de Asunción. Mais tarde, tentaria recapturar aqueles instantes, porque eram os últimos do que, até então, considerava ter sido uma vida bastante satisfatória.

 

O novo juez de guardia, um muito jovem juiz de escala, estivera à sua espera no imaculado patamar de entrada, em mármore branco, do grande e dispendioso apartamento de Raúl Jiménez, no sexto andar do Edificio del Presidente. E tinha tentado avisá-lo. Lembrava-se disso.

 

- Prepare-se, inspector jefe - dissera.

 

- Para o quê? - perguntou Falcón.

 

Durante o embaraçoso silêncio que se seguiu, o inspector jefe Javier Falcón tinha escrutinado minuciosamente o aspecto do fato do juez de guardia, que decidiu ser italiano ou de um estilista espanhol na berra; Adolfo Dominguez, talvez. Caro, para um jovem juiz como Esteban Calderón, de trinta e seis anos e apenas um de serviço.

 

A aparente falta de interesse de Falcón decidiu Calderón, que não quis ser tomado por ingénuo pelo inspector jefe del Grupo de Homicidios de Sevilla, de quarenta e cinco anos, mais de vinte dos quais passados a ver gente assassinada em Barcelona, Saragoça, Madrid e agora Sevilha.

 

- Já vai ver - disse, com um encolher de ombros nervoso.

 

- Então posso avançar? - perguntou Falcón, observando os procedimentos regulamentares com um juiz com quem nunca antes trabalhara.

 

Calderón anuiu e disse-lhe que a Policía Científica tinha acabado de entrar no edifício e que ele podia efectuar as suas observações iniciais da cena do crime.

 

Falcón atravessou o corredor que ligava a entrada ao escritório de Raúl Jiménez, pensando em preparar-se, mas sem saber como. Parou à porta da sala de estar e franziu o sobrolho. Estava vazia. Voltou-se para Calderón, que estava nesse momento de costas para ele, ditando qualquer coisa à secretaria del juez, enquanto o médico forense escutava. Falcón espreitou para dentro da sala de jantar, igualmente vazia.

 

- Estavam de mudança? - perguntou.

 

- Claro, inspector jefe - disse Calderón. - A única mobília ainda no apartamento é uma cama no quarto das crianças e o escritório completo do Sr. Jiménez.

 

- Isso quer dizer que a Sra. Jiménez já se encontra na casa nova com as crianças?

 

- Não temos a certeza.

 

- O meu adjunto, o inspector Ramírez, deve estar a chegar. Mandem-no imediatamente vir ter comigo.

 

     Falcón avançou até ao fundo do corredor, subitamente consciente de cada passo seu no soalho encerado do apartamento vazio. Os olhos fixaram-se num gancho na parede nua em frente, por baixo do qual se distinguia um quadrado mais claro do que a envolvência, marca de ter estado ali dependurado um espelho ou um quadro.

 

Enfiou um par de luvas cirúrgicas, puxou-as bem à volta dos punhos e ginasticou os dedos. Virou-se para entrar no escritório, levantou os olhos das palmas de látex opaco e deu com o rosto assustador de Raúl Jiménez, de olhos fitos nele.

 

E foi então que tudo começou.

 

Não se trata de olhar para trás, para esse momento, e perceber que tinha sido um ponto de viragem. A mudança não foi subtil. Uma alteração na química corporal deu-lho imediatamente a perceber. As mãos começaram a suar dentro das luvas, bem como o alto da testa, imediatamente abaixo da linha de implantação do cabelo. O palpitar tenso do coração fê-lo parar e começou a sentir dificuldade em extrair oxigénio do ar. Respirou fundo por alguns segundos e apertou a garganta com os dedos procurando facilitar a entrada de ar. O corpo dizia-lhe que havia ali qualquer coisa a temer, enquanto a mente lhe transmitia indicações contrárias.

 

O cérebro estava a fazer as habituais observações desapaixonadas. Os pés de Raúl Jiménez estavam descalços e os tornozelos presos às pernas da cadeira. Alguns móveis estavam fora do lugar, destoando do resto da sala. O precioso tapete persa tinha marcas que reve           lavam a posição habitual da cadeira. O cabo da TV/vídeo estava completamente esticado, porque o móvel com rodas estava uns metros afastado da posição normal, ao canto, junto da tomada. Uma bola de tecido, que parecia feita de meias ensopadas de saliva e sangue, jazia no chão, perto da secretária. As janelas, de vidros duplos, estavam fechadas e as cortinas corridas. Havia um grande cinzeiro em pedra-sabão em cima da secretária, cheio de beatas com marcas do aperto dos dedos e filtros inteiros, não utilizados, retirados dos cigarros, da marca Celtas, cujo maço se encontrava ao lado. Cigarros baratos. Os mais baratos. Apenas o mais barato para Raúl Jiménez, dono de quatro dos mais frequentados restaurantes de Sevilha, e de dois em Sanlúcar de Barrameda e em Puerto Santa Maria, na costa. Apenas o mais barato para Raúl Jiménez, dono de um apartamento de noventa milhões de pesetas em Los Remedios, com vista para o terreiro da Feria, com fotografias de famosos dependuradas na parede por detrás da sua secretária de tampo de pele. Raúl com o torero El Cordobés. Raúl com a apresentadora de televisão Ana Rosa Quintana. Raúl, Santo Deus, Raúl com uma faca enorme por trás de um jamón, que devia ser do melhor Pata Negra, flanqueado por António Banderas e Melanie Griffith, que parecia completamente horrorizada com a unha do bicho apontada directamente ao seu seio direito.

 

O suor não só não parava como ia aparecendo noutros lados. No lábio superior, ao fundo das costas, escorrendo-lhe do sovaco até à cintura. Sabia o que estava a fazer. Estava a fingir, autoconvencendo-se de que estava calor na sala, que o café que acabara de tomar... mas não tinha tomado café. O rosto.

 

Para cadáver, era um rosto com presença. Como os santos de El Greco, cujos olhos nunca se despegam de nós. Estavam a segui-lo?

 

Falcón afastou-se para um lado. Sim. Depois para o outro. Absurdo. Partidas do cérebro. Recompôs-se e fechou com força o punho revestido de borracha.

 

Passou a perna por cima do cabo esticado da parede até à TV/vídeo e foi pôr-se por trás da cadeira do morto. Olhou para o tecto e depois baixou os olhos sobre o cabelo de palha-de-aço de Raúl Jiménez. A nuca estava densamente empastada, negra e vermelha, na zona onde tinha batido repetidamente contra o brasão esculpido nas costas da cadeira. A cabeça continuava presa à cadeira por um cabo flexível. Inicialmente, devia ter estado justo, mas Jiménez tinha ganho uma certa folga ao debater-se. O cabo tinha penetrado profundamente na carne por baixo do nariz e tinha subido, forçando a parte cartilaginosa do septo, que foi mesmo serrado até atingir o osso da cana do nariz. Este pendia no meio da cara. Tinha igualmente dilacerado a carne das maçãs do rosto, em consequência de ter rodado violentamente a cabeça de um lado para o outro.

 

Falcón desviou os olhos do perfil da vítima e deu em cheio com a imagem frontal, reflectida no ecrã apagado da televisão. Pestanejou, desejando fechar aqueles olhos fitos, que, mesmo reflectidos, eram penetrantes. O estômago revolveu-se-lhe só de pensar no horror das imagens que tinham sido capazes

de forçar um homem a fazer aquilo a si próprio. Estariam ainda ali, gravadas a fogo na retina, ou mais atrás, no cérebro, num estado de digitalização de tipo cubista?

 

Abanou a cabeça, pouco habituado a que ideias delirantes como aquelas interferissem na frieza da sua investigação. Deu a volta, até ficar de frente para o rosto dilacerado, ainda sem o ver integralmente porque o móvel da TV/vídeo estava colado contra os joelhos do homem. E nesse momento, Javier Falcón sofreu uma primeira quebra física. As pernas não se dobravam. Nenhuma das habituais mensagens motoras conseguia superar o pânico que lhe tolhia o peito e estômago. Fez o que o juez de guardia tinha recomendado e desviou os olhos para a janela. Registou a luminosidade da manhã de Abril, recordou a inquietação que sentiu enquanto se vestia na penumbra das persianas fechadas, o desconforto deixado por um Inverno longo e solitário, com demasiada chuva. Tanta chuva que até ele reparou que os jardins da cidade tinham rebentos com a profusão de uma selva e a riqueza de uma vasta exposição botânica. Olhou para o terreiro da Feria, que duas semanas depois estaria transformado numa Sevilha de tendeiros, povoado de casetas e tendas desmontáveis, para sete dias de muita comida, ingestão de finos e dança de sevillanas até ao amanhecer.nspirou fundo e baixou-se até ficar à altura da cara de Raúl Jiménez.

 

O horrível efeito de fixidez era produzido pelos olhos salientes das órbitas, como se tivesse problemas de tiróide. Falcón passou os olhos pelas fotografias em redor. Jiménez não tinha olhos protuberantes em nenhuma delas. A causa foi... As suas sinapses chocaram como automóveis a enfaixar-se num acidente em cadeia. O globo ocular visível. O sangue escorrido pela face. A coagulação na linha do queixo. «E isto? O que são estas coisas delicadas no peito da camisa? Pétalas. Quatro. Mas ricas, exóticas, carnudas como orquídeas, com finos filamentos, semelhantes a uma teia. Mas pétalas... aqui?»

 

Recuou, levantou a borda do tapete e caiu no chão de tacos, ao tropeçar no cabo de alimentação do televisor, o que fez saltar a ficha da tomada. Gatinhou até bater na parede; ficou sentado de pernas abertas, com espasmos nas coxas e os sapatos a tremer.

 

Pálpebras. Duas de cima. Duas de baixo. Nada o podia ter preparado para aquilo.

 

- Sente-se bem, inspector jefe?

 

- É você, inspector Ramírez? - perguntou, levantando-se devagar e desajeitadamente.

 

- A Policia Científica está pronta para entrar.

 

- Mande cá o médico forense.

 

Ramírez desapareceu do vão da porta. Falcón recompôs-se. O médico forense chegou.

 

- Viu que cort... retiraram as pálpebras a este homem?

 

- Claro, inspector jefe. O juez de guardia e eu próprio tivemos de confirmar que o homem estava morto. Vi que as pálpebras lhe tinham sido removidas e... está tudo nas minhas notas. A secretaria anotou o facto, também. Era difícil não se dar por isso.

 

- Não, não; não tenho dúvidas quanto a isso... Só me admirei que não mo tivessem mencionado.

 

- Acho que o juez Calderón lho ia dizer, mas...

 

A cabeça careca do médico forense rolou sobre os ombros.

 

- Mas o quê?...

 

- Acho que ele se intimidou com a sua experiência nestes assuntos.

 

- Tem alguma opinião sobre a causa e hora da morte? - perguntou Falcón.

 

- Sobre a hora, cerca das quatro, quatro e meia desta madrugada. Sobre a causa, bem, vamos a ver, o homem tinha mais de setenta anos, excesso de peso, era grande fumador de cigarros, que preferia sem filtro, e, na sua qualidade de empresário da restauração, apreciava um bom copo de vinho. Mesmo um jovem em plena forma teria tido dificuldade em suportar estes maus tratos, esta agonia física e moral, sem sofrer um choque profundo. Morreu de ataque cardíaco, não tenho dúvidas. A autópsia vai confirmá-lo... ou não.

 

O médico forense terminou, incomodado com a firmeza do olhar de Falcón e aborrecido com a idiotice da sua declaração final. Saiu e foi imediatamente substituído na porta por Calderón e Ramírez.

 

- Vamos a isto - disse Calderón.

 

- Quem chamou os serviços de emergência? - perguntou Falcón.    

 

- O conserje - disse Calderón; o porteiro. - Depois de a criada ter...

 

- Depois de a criada ter entrado, achado o corpo, saído a correr do apartamento e voltado de elevador para o rés-do-chão...?

 

- ... e se ter atirado em histeria à porta do apartamento do conserje - terminou Calderón, irritado com a interrupção de Falcón. - Levou um certo tempo até conseguir extrair algum sentido das palavras dela e depois chamou o 091.

 

- O conserje veio cá acima?

 

- Não até à chegada do primeiro carro-patrulha, que veio selar a cena do crime.

 

- A porta estava aberta?

 

- Sim.

 

-E a criada... onde está agora?

 

- Está sob o efeito de sedativos, no Hospital de la Virgen de la Macarena.

 

- Inspector Ramírez...

 

- Diga, inspector jefe...

 

Todas as conversas entre Falcón e Ramírez começavam assim. Era a maneira de Ramírez lembrar ao inspector jefe que tinha vindo de Madrid e ficado com o lugar que ele, Ramírez, sempre presumira que iria ser seu.

 

- Peça ao subinspector Pérez para ir ao hospital e, assim que a criada... Já sabemos o nome dela?

 

- Dolores Oliva.

 

- Assim que ela reaja... ele que lhe pergunte se viu alguma coisa estranha... Bem, sabe o que tem de perguntar. E indague quantas voltas deu à chave para abrir a porta e quais foram precisamente os seus movimentos antes de encontrar o corpo.

 

Ramírez repetiu tudo ao subinspector.  

 

- Já sabemos do paradeiro da Sra. Jiménez e das crianças? - perguntou Falcón.

 

- Julgamos que estejam no Hotel Cólon.     -

 

- Na calle Bailén? - perguntou Falcón.

 

Era o hotel de cinco estrelas em que ficavam todos os toreros, apenas a cinquenta metros da sua... da casa do seu falecido pai... Uma não-coincidência.

 

- Mandámos lá um carro - disse Calderón. - Queria concluir o levantamiento del cadáver logo que possível e remover o corpo para o Instituto Anatómico Forense antes de trazermos a Sra. Jiménez cá acima.

 

Falcón anuiu. Calderón deixou-os. Os dois peritos da Policia Científica Felipe, beirando os cinquenta e cinco anos, e Jorge, quase nos trinta.

 

- Entraram, murmurando buenos dias. Falcón olhou fixamente para a ficha do televisor caída no chão e decidiu não mencionar o facto. Fotografaram a sala e, entre eles, começaram a reconstituir um cenário. Entretanto, Jorge tirava as impressões digitais a Jiménez e Felipe polvilhava o móvel da TV/vídeo e as duas capas de vídeos vazias que aí estavam. Estavam de acordo quanto à posição normal do aparelho e o facto de Jiménez dever olhar para ele habitualmente sentado numa cadeira reclinável em pele, cuja base giratória, quando deslocada, deixava uma marca circular no chão de madeira. O assassino tinha imobilizado Jiménez, retirado a cadeira de pele, que não se adequava aos seus propósitos, e ido buscar uma das cadeiras de espaldar alto, de modo a poder erguer o corpo com um único movimento de rotação. O assassino amarrou, em seguida, os pulsos de Jiménez aos braços da cadeira, descalçou-lhe as meias, enfiou-lhas na boca e prendeu-lhe os tornozelos. Em seguida, manobrou a cadeira, fazendo-a avançar alternadamente sobre as pernas, até ficar na posição ideal.

 

- Os sapatos dele estão aqui debaixo - disse Jorge, apontando para o vão da secretária. - Um par de mocassins cor de vinho com berloques franjados.

 

Falcón apontou para uma zona desgastada no soalho em frente da cadeira de pele.

 

- Ele gostava de tirar os sapatos e sentar-se diante do televisor a esfregar os pés no chão de madeira.

 

- Enquanto via filmes pornográficos - disse Felipe, polvilhando uma das capas de vídeo. - Este chama-se Cara o Culo.

 

«Cara ou Cu - I».

 

- E a posição da cadeira? - perguntou Jorge. - Para quê mudar tanta mobília de sítio?

 

Javier Falcón avançou para a porta, voltou-se e abriu os braços para os investigadores.

 

- Impacte máximo.

 

- Um verdadeiro homem de espectáculo - concordou Felipe. - Esta capa tem La Familia Jiménez escrito a caneta de feltro vermelha e há uma cassete no aparelho com o mesmo título e a mesma caligrafia.

 

- Não parece excessivamente aterrador - disse Falcón e todos olharam para o terror sublinhado a sangue em Raúl Jiménez, antes de retomarem o trabalho.

 

- Este não gostou do filme - disse Felipe.

 

- Não se deve ver o que não se é capaz de aguentar - disse Jorge debaixo da secretária.

 

- Nunca gostei de filmes de terror - disse Falcón.

 

- Eu também não - disse Jorge. - Não aguento tanta... tanta...

 

- Tanta quê? - perguntou Falcón, surpreendido por estar interessado.

 

- Não sei... normalidade, aquela portentosa normalidade.

 

- Todos precisamos de um pouco de medo para nos estimular - disse Falcón, admirando a gravata vermelha que trazia, com o suor a perlar-lhe outra vez a testa.

 

Ouviu-se uma pancada debaixo da secretária, quando a cabeça de Jorge bateu na parte interior do tampo.

 

- Joder. Porra. Sabem o que é isto? - disse Jorge, recuando para fora do vão da secretária. - E um naco da língua de Raúl Jiménez.

 

Silêncio dos três homens.

 

- Meta num saco - disse Falcón.

 

- Não vamos encontrar impressões digitais nenhumas - disse Felipe. - Estas capas estão limpas, bem como o vídeo, o televisor, o móvel e o comando. Este tipo vinha preparado para fazer o trabalho.

 

- Tipo? - perguntou Falcón. - Ainda não falámos sobre isso.

 

Felipe ajustou à cara um par de lentes de aumento especiais e deu início a uma inspecção minuciosa do tapete.

 

Falcón estava assombrado com os dois peritos de investigação criminal. Tinha a certeza de que nunca haviam visto nada tão horrendo em toda a sua carreira, pelo menos não em Sevilha, seguramente. E no entanto, ali estavam... Tirou do bolso um lenço quadrado, perfeitamente passado a ferro, e percutiu a testa com ele. Não, não era um problema de Felipe e de Jorge. Era seu. Eles portavam-se assim, porque era como ele próprio se portava normalmente e como lhes tinha ensinado que era a única maneira de proceder numa investigação de homicídio. Frieza. Objectividade. Distância. O trabalho de detective, ouvia-se a dizer numa aula no anfiteatro da academia, é um trabalho destituído de emoção.

 

O que havia então de diferente com Raúl Jiménez? Porquê este suor, numa manhã fresca e clara de Abril? Sabia como lhe chamavam nas costas, na Jefatura Superior de Policia, na calle Blas Infante. El Lagarto. Gostava de pensar que era por causa da sua imperturbabilidade física, a impenetrabilidade da sua expressão, a sua tendência para olhar intensamente para as pessoas enquanto as escutava. Inés, a sua ex-mulher, a sua recém-divorciada mulher, tinha-lhe esclarecido esse mal-entendido:

 

- Tu és frio, Javier Falcón. És frio como as pedras. Não tens coração. Então o que é esta coisa a ribombar-me no peito? Empurrou a lapela com o polegar e deu por si de queixo cerrado, enquanto Felipe, junto ao chão, olhava para ele com olhos de peixe de aquário.

 

- Encontrei um cabelo, jefe - disse. - Trinta centímetros.      

 

- Cor?

 

- Preto.

 

Falcón aproximou-se da secretária e olhou para a fotografia de la Familia Jiménez. Consuelo Jiménez vestia um casaco de peles até aos pés, com o cabelo loiro armado ao alto como um bolo, enquanto os três filhos faziam um sorriso forçado para a fotografia.

 

- Mete num saco - disse e chamou o médico forense.

 

Na fotografia, Raúl Jiménez estava de pé ao lado da mulher, com os dentes de cavalo expostos num sorriso, as bochechas caídas a darem-lhe um ar de avô e, à mulher, de filha. Casamento serôdio. Dinheiro. Conhecimentos. Falcón perscrutou o sorriso deslumbrante de Consuelo Jiménez.

 

- Belo tapete, este - disse Felipe. -- Seda. Mil nós por centímetro quadrado. Boa densidade, para que tudo assente perfeitamente em cima dele.

 

- Quanto acha que pesa Raúl Jiménez? - perguntou Falcón ao médico forense.

 

- Agora, entre os setenta e cinco e os oitenta quilos. Mas tendo em atenção a flacidez do peito e estômago, diria que já teve muito para cima de noventa.

 

- Problemas cardíacos?                                        

 

- O médico dele há-de saber, se a mulher não souber.

 

- Acha que uma mulher seria capaz de o erguer daquela cadeira de pele, baixa, e pô-lo naquela cadeira de espaldar alto?

 

- Uma mulher? - perguntou o médico forense. - Acha que foi uma mulher que fez isto?

 

- Não foi isso que lhe perguntei, doutor.

 

O médico forense empertigou-se, com esta segunda vez em que Falcón o fazia sentir-se idiota.

 

- Já vi enfermeiras experientes levantarem homens mais pesados do que este. Homens vivos, claro, o que é mais fácil... mas não vejo por que não.

 

Falcón afastou-se, sem mais conversa.

 

- Devia perguntar ao Jorge acerca de enfermeiras experientes, inspector jefe - disse Felipe, de rabo para o ar, como a farejar o tapete.

 

- Cala-te - disse Jorge, farto daquela piada.

 

- Parece que é uma questão de ancas - disse Felipe - e de contrapeso das nádegas.

 

- Isto é só teoria, inspector jefe - disse Jorge. - Ele nunca teve o benefício da experiência directa.

 

- Que sabes tu disso? - disse Felipe, pondo-se de joelhos, agarrando nuns quadris imaginários e fingindo dar-lhes umas estocadas. - Também tive a minha juventude.

 

- Não era grande coisa, a do teu tempo - disse Jorge. - As pequenas eram todas fechadas como ostras, não eram?

 

- As espanholas eram - disse Felipe. - Mas eu sou de Alicante. Benidorm fica logo ao virar da esquina. Aquelas inglesas todas, nos anos 60 e 70...

 

- Estás a sonhar - disse Jorge.

 

- Sim, tive sempre sonhos muito excitantes - disse Felipe.

 

Os investigadores riram e Falcón olhou para eles, a rastejar pelo chão, foçando como porcos em busca de bolotas, com futebol e sexo a lutarem pela supremacia dentro das suas cabeças. Achou-os um pouco repugnantes e voltou-se para as fotografias penduradas na parede. Jorge meneou a cabeça para Falcón e articulou com os lábios para Felipe: «Mariquita.» Maricas.

 

Voltaram a rir. Falcón ignorou-os. O olhar, à semelhança de quando apreciava um quadro, foi atraído para as extremidades do conjunto das fotografias expostas. Afastou-se da secção central de pessoas famosas e deu com uma fotografia de Raúl Jiménez com os braços à volta de dois homens, ambos mais altos e corpulentos do que ele. À esquerda, estava o Jefe Superior de la Policia de Sevilla, comisario Firmin Léon, e, à direita, o promotor de Justiça principal, o fiscal jefe Juan Bellido. Falcón sentiu uma pressão física abater-se sobre os ombros e mexeu-os para a aliviar.

 

- Aha! Ora, cá estamos - disse Felipe. - Assim já me parece melhor. Um pêlo púbico, inspector jefe. Preto.

 

Os três homens viraram-se em simultâneo para a janela, porque ouviram vozes abafadas por detrás dos vidros duplos e um som mecânico, como o de um elevador. Do lado de fora da varanda, apareceram lentamente dois homens de fato-macaco azul, um com o cabelo comprido, preso em rabo-de-cavalo, e o outro cortado à escovinha e um olho negro. Estavam a berrar para a equipa que, dezoito metros abaixo, accionava o mecanismo do monta-cargas.

 

- Quem são estes idiotas? - perguntou Felipe.

 

Falcón saiu para a varanda, espantando os dois homens que se encontravam de pé na plataforma e que acabavam de ser içados por uma espécie de escada extensível, a partir de um camião estacionado na rua.

 

- Quem raio são vocês?

 

- Somos da empresa de mudanças - disseram e viraram-lhe as costas para mostrarem, estampado em letras amarelas nos fatos-macaco, as palavras Mudanzas Triana Transportes Nacionales y Internacionales.

 

Quinta-feira, 12 de Abril de 2001, Edifício del Presidente, Los Remedios, Sevilha

 

O juez Esteban Calderón autorizou o levantamiento del cadáver, que revelou outro elemento de prova a guardar num saco. Por baixo do corpo, estava um farrapo de algodão, cujo cheiro indiciava clorofórmio.

 

- Um erro - disse Falcón.

 

- Diga, inspector jefe? - perguntou Ramírez, por trás do ombro dele.

 

- O primeiro erro numa operação planeada.

 

- Então e os cabelos, inspector jefe?

 

- Se esses cabelos pertencerem ao assassino... perdê-los foi um acidente. Deixar um trapo embebido em clorofórmio foi um erro. Ele pôs Raúl Jiménez inconsciente com clorofórmio, não quis guardar o farrapo no bolso, atirou-o para cima da cadeira e, depois, atirou don Raúl para cima dele. Fora da vista, fora da lembrança.

 

- Não é uma pista assim tão importante...

 

- É um indício do tipo de mente com que deparamos. É uma mente cuidadosa, mas não profissional. Pode ter sido descuidado noutras áreas; por exemplo, na obtenção do clorofórmio. Talvez o tenha comprado aqui em Sevilha, num laboratório ou numa loja de artigos médicos; ou pode tê-lo roubado num hospital ou numa farmácia. O assassino pensou obsessivamente no que queria fazer à vítima, mas não em todos os pormenores do acto em si.

 

- A Sra. Jiménez foi localizada e informada. Mandámos um veículo levar os filhos a casa da irmã, em San Bernardo, e trazê-la para cá.

 

- Quando é que o médico forense faz a autópsia? - perguntou Falcón.

 

- Quer estar presente? - perguntou Calderón, balouçando o telemóvel.

- Ele disse que ia fazê-la imediatamente.

 

- Não há necessidade - disse Falcón. - Só quero os resultados. Há muito a fazer por aqui. Este filme, por exemplo. Creio que devíamos todos ver estas filmagens do La Familia Jiménez, já, antes que a Sra. Jiménez chegue. Está cá mais alguém da brigada, inspector?

 

- O Fernández está a falar com o conserje, inspector jefe.

 

- Diga-lhe para recolher todas as cassetes das câmaras do sistema de segurança, vê-las com o conserje e tomar nota de toda a gente que ele não reconheça.

 

Ramírez avançou para a porta.

 

- E outra coisa... arranje alguém para indagar em todos os hospitais, laboratórios e lojas de produtos médicos sobre clorofórmio vendido a pessoas inusitadas ou frascos desaparecidos. E instrumentos cirúrgicos também.

 

Falcón fez deslizar o móvel de TV/vídeo para a posição habitual, ao canto da sala. Calderón sentou-se na cadeira de pele. Falcón voltou a ligar o aparelho. Ramírez ficou em pé junto à cadeira do morto, que estava agora envolvida em plástico, pronta para seguir para os laboratórios da Policia Científica. Murmurou umas coisas para o telemóvel. Calderón fez ejectar a cassete, inspeccionou a fita, voltou a introduzi-la e carregou no botão de rebobinar.

 

- Os homens das mudanças ainda ali estão, inspector jefe.

 

- Agora não há ninguém para falar com eles. Eles que esperem. Calderón carregou no «play». Sentaram-se todos pela sala e esperaram, no denso silêncio do apartamento vazio.

 

A gravação começava com imagens da família Jiménez a sair do Edificio del Presidente. Raúl e Consuelo Jiménez estavam de braço dado. Ela vestia um casaco de peles até aos pés e ele tinha um sobretudo cor de mel. Os rapazes estavam todos vestidos de igual, em verde e cor de vinho. Caminharam em direcção à câmara, que se encontrava do outro lado da rua, e viraram à esquerda, para a calle de Asunción. O filme saltava para o mesmo grupo mas com roupas diferentes, num dia de sol, a sair dos armazéns do El Corte Inglés, na Plaza del Duque de la Victoria. Atravessaram a rua em direcção à praça, que estava cheia de vendedores ambulantes de joalharia de pechisbeque e xailes, CD, carteiras e porta-moedas em pele. O grupo enfiou pelo Marks & Spencer.

 

A família foi sendo mostrada repetidamente, no meio de centros comerciais, de encontros de praia, de paseos na Plaza de España e no Parque de Marta Luisa, até dois dos três homens estarem já a abafar bocejos.

 

- Ele está a mostrar-nos que fez o trabalho de casa? - perguntou Ramírez.

 

- Espantosamente aborrecido, não é? - disse Falcón, sem achar que fosse, sentindo-se estranhamente fascinado pela dinâmica do grupo familiar em diferentes locais.

 

Vivia fascinado pela ideia de família, especialmente deste tipo, aparentemente feliz, e como seria ter uma dele; o que o levava a pensar por que teria falhado tão estrondosamente nesse campo.

 

Uma mudança de rumo do filme fê-lo retomar abruptamente a atenção. Era a primeira gravação em que a família não aparecia em grupo. Raúl Jiménez e os filhos estavam no estádio de futebol do Bétis, num dia em que este jogava contra o Sevilla, como era patente pelos cachecóis - o derby local.

 

- Lembro-me deste dia - disse Calderón.

 

- Perdemos 4-0 - disse Ramírez.

 

- Vocês perderam - disse Calderón. - Nós ganhámos.

 

- Não me diga - disse Ramírez.

 

- Por quem torce, inspector jefe? - perguntou Calderón.

 

Falcón não reagiu. Não lhe interessava. Ramírez lançou um olhar por cima do ombro dele, pouco à vontade com a sua presença.

 

A câmara voltava ao Edificio del Presidente. Consuelo Jiménez, sozinha, a entrar para um táxi. Plano a pagar o táxi numa rua arborizada, à espera por instantes até que o carro arrancasse, antes de atravessar a estrada, e a subir vários degraus de uma casa.

 

- Onde é isto? - perguntou Calderón.

 

- Ele vai dizer-nos - disse Falcón.

 

Uma série de planos mostravam Consuelo Jiménez a chegar à mesma casa em dias diferentes, com diferentes toilettes. Depois o número da porta: 17. E o nome da rua: calle Rio de la Plata.

 

- Aquilo é em El Porvenir - disse Ramírez.

 

- Isto é o futuro - disse Calderón. - Cheira-me que temos aqui um amante.

 

Plano nocturno e a traseira de um grande Mercedes Classe E com matrícula de Sevilha. A imagem ficou fixa por um bocado.

 

- Ele não imprime grande ritmo ao argumento - disse Calderón, que depressa tinha atingido o seu patamar de saturação.

 

- Suspense - disse Falcón.

 

Finalmente, Raúl Jiménez saiu do carro, trancou-o, saiu da zona iluminada da rua para a escuridão. Plano de uma fogueira em plena noite; pessoas à volta das chamas crepitantes. Mulheres com saias curtas, algumas revelando cintos de ligas e os remates das meias. Uma virou-se, dobrou-se e voltou o rabo para o fogo.

 

Raúl Jiménez apareceu à beira da fogueira. Encetou uma conversa inaudível. Regressou a passos largos para o Mercedes com uma mulher atrás de si, cujos saltos altos a faziam tropeçar no chão irregular.

 

- Isto é na Alameda - disse Ramírez.

 

- Apenas o mais barato para Raúl Jiménez - disse Falcón.

 

Jiménez empurrou a rapariga para o banco de trás, baixando-lhe a cabeça como se fosse um suspeito da polícia. Olhou em redor e entrou atrás dela. O plano fixou a porta traseira do Mercedes, seguindo movimentos obscuros por trás do vidro. Não passou mais de um minuto e Jiménez saiu do carro, apertou a braguilha e estendeu uma nota à rapariga, que lhe pegou. Jiménez voltou a sentar-se ao volante. O carro arrancou. A rapariga cuspiu para o chão, aclarou a garganta e voltou a cuspir.

 

- Foi uma rapidinha - disse Ramírez, previsível.

 

Seguiram-se mais filmagens nocturnas. O esquema era o mesmo, até que, numa mudança abrupta de cena, a câmara mostrava um corredor, que recebia luz de uma porta aberta, ao fundo à esquerda. Avançou pelo corredor fora, revelando um quadrado mais claro na parede do fundo, com um gancho por cima dele. Os três homens ficaram subitamente paralisados, porque sabiam que estavam a ver o corredor anexo à sala em que estavam agora sentados. A mão de Ramírez gesticulou nessa direcção. A câmara tremeu. O suspense crescia e aumentava a expectativa dos três investigadores quanto ao horror do que poderia seguir-se. A câmara chegou ao limiar da luz, o microfone colheu uns gemidos vindos da sala, um lamento trémulo e sofrido de alguém que devia estar em tremenda agonia. Falcón queria engolir, mas a garganta recusava-se. Não tinha saliva.

 

- Joder - disse Ramírez, para quebrar a tensão.

 

A câmara abriu o plano e entrou na sala. Falcón estava tão abismado que quase esperava vê-los aos três ali sentados, a olhar para o aparelho. A câmara começou por focar o televisor, que, com o movimento, mostrava ondas e luzes a piscar, mas não sem que se pudesse aperceber o desempenho explícito de uma mulher a masturbar e a chupar o sexo de um homem, cujas nádegas se apertavam e relaxavam alternadamente.

 

A câmara abriu num plano mais largo e Falcón manteve o pestanejar acelerado dos olhos perante a confusão de sons e as imagens esperadas. De joelhos no tapete persa, a olhar para o ecrã de televisão, estava Ra~´ul Jiménez, com a fralda da camisa caída para os lados, as peúgas pelo meio da barriga das pernas e as calças atiradas a monte atrás dele. De quatro, à sua frente, estava uma rapariga com longos cabelos negros, cuja cabeça hirta informava Falcón de que estava a olhar fixamente para um ponto determinado, imaginando-se noutro lugar. Emitia os competentes sons de estimulação. Depois, a cabeça começou a virar-se e a câmara saltou bruscamente para fora da sala.

 

Falcón pôs-se de pé num repente, batendo com as pernas contra a beira da secretária.

 

- Ele estava lá - disse. - Ele estava... quer dizer, ele esteve aqui o tempo todo.

 

Ramírez e Calderón sobressaltaram-se nos lugares com a explosão de Falcón. Calderón passou a mão pelo cabelo, visivelmente transtornado. Olhou para a porta de onde a câmara tinha estado a espiar a sala. A cabeça de Falcón estava num torvelinho, sem saber já o que estava a ver. Imagem ou realidade. Avançou, recuou, tentou apagar a visão que tinha na cabeça. Estava alguém de pé na soleira da porta. Falcón fechou os olhos com força e voltou a abri-los. Conhecia a pessoa. O tempo desacelerou. Calderón atravessou a sala com uma mão esticada.

 

- Señora Jiménez - disse. - Juez Esteban Calderón. Os meus sentimentos... Apresentou Ramírez e Falcón; e a Sra. Jiménez, com invulgar dignidade, avançou pela sala como se passasse por cima de um cadáver. Cumprimentou todos com um aperto de mão.

 

- Não a esperávamos tão depressa - disse Calderón.

 

Não havia muito trânsito - disse ela. - Sobressaltei-o, inspector jefe?

 

Falcón compôs o semblante, que ainda devia manter vestígios da anterior perturbação.

 

- O que estavam a ver? - perguntou ela, assumindo o controlo da situação, habituada a fazê-lo.

 

Olharam para o ecrã. Branco e com ruído de estática.

 

- Não a esperávamos... - começou Calderón.

 

- Mas o que se passa, Señor Juez? Estou em minha casa. Gostava de saber o que estavam a ver no meu televisor.

 

Aproveitando o facto de a pressão se centrar em Calderón, Falcón pôde observar a recém-chegada. Apesar de não a conhecer, conhecia bem o género. Era o tipo de mulher que aparecia em casa do pai, quando o grande artista ainda era vivo, para comprar um dos seus trabalhos mais recentes. Não as obras especiais que o tornaram famoso. Essas já há muito que tinham seguido para coleccionadores americanos e para museus de outras partes do mundo. Este género procurava comprar trabalhos mais acessíveis, sobre Sevilha - pormenores de edifícios: uma porta, uma cúpula de igreja, uma janela, uma varanda. Devia ser uma daquelas mulheres requintadas que, com ou sem um marido aborrecido e rico à trela, gostavam de levar para casa um quinhão do velho.

 

- Estávamos a ver um vídeo que foi deixado no apartamento - disse Calderón.

 

- Não era um daqueles... - disse, hesitando na perfeição, de modo a que percebessem que «sujos» ou «indecentes» era desnecessário. - Tínhamos poucos segredos... e ainda apanhei os últimos segundos daquilo que estavam a ver.

 

- Era um vídeo, doña Consuelo - disse Falcón -, que foi aqui deixado pelo assassino do seu marido. Somos os três elementos que vamos conduzir a investigação sobre a morte dele. E achei importante vermos o filme o mais depressa possível. Se tivéssemos sabido que ia ser tão rápida...

 

- Eu já o conheço, inspector jefe? - perguntou ela. - Já nos encontrámos? Voltou-se de modo a encará-lo absolutamente de frente, com o casaco escuro de gola de peles aberto e um vestido preto por baixo. Não era pessoa para aparecer sem a indumentária apropriada fosse qual fosse a ocasião. Brindou-o com toda a força da sua sensualidade. O cabelo loiro não estava tão bem armado como na fotografia da secretária, mas, ao vivo, os olhos eram maiores, mais azuis e mais metálicos. Os lábios, que controlavam e modulavam uma voz habituada a dominar, eram orlados por uma linha escura, não fosse alguém menos avisado pensar que a sua boca suave e maleável admitia alguma vez ser desobedecida.

 

- Não me parece - disse ele.

 

- Falcón... - disse ela, apalpando os anéis dos dedos, enquanto olhava para ele de cima a baixo. - Não, seria demasiado ridículo.

 

- O quê, se me é permitido saber, doña Consuelo?

 

- Que o artista Francisco Falcón pudesse ter um filho inspector jefe del Grupo de Homicídios de Sevilla.

 

«Ela sabe», pensou ele. «Vá lá saber-se como.»

 

- Então... esse filme - disse ela, virando-se para Ramírez, afastando o casaco para trás e levando as mãos à cintura.

 

O olhar de Calderón cruzou o peito de Consuelo Jiménez antes de se fixar em Falcón, por cima do ombro esquerdo dela. Falcón abanou a cabeça lentamente.

 

- Não me parece que seja uma coisa que deva ver, doña Consuelo - disse o jovem magistrado.

 

- Porquê? É violento? Não gosto de violência - disse ela, sem despegar os olhos de Ramírez.

 

- Não se trata de violência física, não - disse Falcón. - Penso que poderia achá-lo uma invasão de privacidade muito desagradável.

 

As pistas do vídeo gemeram. Ainda estava a funcionar. A Sra. Jiménez pegou no comando à distância, de cima da secretária, e rebobinou a cassete. Carregou no «play». Nenhum dos homens interveio. Falcón mudou de posição, para lhe ver a cara. Ela semicerrou os olhos, contraiu os lábios e trincou a parte de dentro da bochecha. Os olhos foram-se abrindo à medida que o filme mudo avançava. A cara afrouxou, o corpo retraiu-se, afastando-se do ecrã, quando começou a compreender ao que estava a assistir, quando viu os filhos e ela própria transformados em objecto de estudo do assassino do marido. Quando chegou ao fim da sua primeira viagem de táxi, para aquilo que toda a gente sabia agora ser o nº 17 da calle Rio de la Plata, parou a fita, atirou o comando para cima da secretária e saiu rapidamente da sala. Os homens trocaram um silêncio entre si, até ouvirem a Sra. Jiménez aos vómitos, gemendo e cuspindo na sua casa de banho de mármore branco, iluminada a halogéneo.

 

- Deviam tê-la impedido - disse Calderón, passando de novo a mão pelo cabelo, tentando passar a responsabilidade para outra pessoa.

 

Os dois polícias não disseram nada. O juiz olhou para o seu complicado relógio e anunciou que ia sair. Concordaram em encontrar-se depois do almoço, às cinco horas, no Edificio de los juzgados, para sistematizarem as suas primeiras descobertas.

 

- Viu aquela fotografia ali à ponta, junto à janela? - perguntou Falcón.

 

- Aquela com Léon e Bellido? - disse Calderón. - Vi, sim. E se olhar com atenção, vai ver uma do magistrado juez decano de Sevilla, também. Spinola, o velho Olhos de Falcão.

 

- Vai haver bastantes pressões neste caso - disse Ramírez.  

 

Calderón passou o telemóvel de uma mão para a outra, enfiou-o no bolso e partiu.

 

Quinta-feira, 12 de Abril de 2001, Edificio del Presidente, Los Remedios, Sevilha

 

Falcón mandou Ramírez interrogar os homens das mudanças, perguntando-lhes especificamente quando tinham chegado e partido, e se o equipamento tinha sido deixado sem vigilância nalgum momento.

 

- Acha que foi por onde ele entrou? - perguntou Ramírez, que não era capaz de se limitar a fazer o que lhe pediam.

 

- Não é fácil entrar e sair deste edifício sem ser visto - disse Falcón. - Se a criada confirmar que a porta estava fechada à chave quando chegou esta manhã, é possível que ele tenha utilizado o monta-cargas das mudanças para entrar. Senão teremos de analisar as gravações do circuito fechado.

 

- É preciso ter muito sangue-frio, inspector jefe - disse Ramírez -, para esperar aqui dentro mais de doze horas.

 

- E esgueirar-se depois de a criada entrar e encontrar o corpo.

 

Ramírez mordeu o lábio inferior, pouco convencido de que existisse um homem com semelhante têmpera. Saiu da sala como se estivesse na iminência de voltar para trás para pôr mais questões.

 

Falcón sentou-se à secretária de Raúl Jiménez. As gavetas estavam todas fechadas. Experimentou uma das chaves de um chaveiro que estava sobre a secretária e que abriu todas as gavetas de ambos os lados; outra abriu a do meio. Apenas as duas gavetas de cima de cada lado tinham coisas dentro. Falcón folheou rapidamente um maço de facturas, todas recentes. Uma chamou-lhe a atenção, não tanto por ser das vacinas de um cão, e não haver indícios de cão nenhum, mas porque se tratava do consultório da irmã dele, e estava assinada por ela. Isso enervou-o, o que era ilógico. Pôs aquilo de lado, considerando tratar-se de mais uma não-coincidência.

 

Examinou a gaveta central, que continha várias embalagens vazias de Viagra e quatro cassetes de vídeo. Pelos títulos, pareciam ser filmes pornográficos.

 

Entre eles Cara o Culo II, a continuação do vídeo cuja capa tinha sido deixada vazia no móvel do televisor. Lembrou-se de que não tinham encontrado o filme que passava na televisão quando Raúl estava com a prostituta. Fechou a gaveta. Iniciou uma inspecção pormenorizada das fotografias por trás de si. Ocorreu-lhe que Raúl Jiménez podia ter conhecido o seu pai. Afinal, era um pintor famoso, uma figura bem conhecida da sociedade de Sevilha, e Jiménez parecia ser um coleccionador de fotografias com famosos. À medida que evoluía do centro para as pontas, deu-se conta de que se tratava de uma colecção de outro tipo de celebridades. Ali estava Carlos Lozano, apresentador de El Precio Justo; Juan Antonio Ruiz, conhecido nas arenas como «Espartaco»; Paula Vázquez, apresentadora de Euromillión. Eram tudo caras da televisão. Não havia escritores, pintores, poetas nem encenadores. Nada de intelectuais anónimos. Era a face superficial de Espanha, a gente da Hola!. E quando não eram esses, eram as figuras importantes do burgo. Os polícias, os magistrados, os funcionários que podiam tornar a vida de Raúl Jiménez mais fácil. A futilidade e a venalidade.

 

- Encontrou quem procurava? - perguntou a Sra. Jiménez por trás dele.

 

Tinha tirado o casaco e enfiado um casaquinho de malha preta. Apoiou-se numa cadeira e, apesar do retoque da maquilhagem, via-se que os olhos estavam congestionados.

 

- Lamento que tenha visto aquilo - disse Falcón, apontando para a televisão com a cabeça.

 

- Tinham-me avisado - disse ela, retirando um maço de Marlboro Lights do bolso e acendendo um cigarro com um isqueiro Bic que estava em cima da secretária.

 

Atirou o maço para cima da secretária, oferecendo-lhe um cigarro. Ele recusou com a cabeça. Falcón estava habituado a este ritual de avaliação. Não se importava. Dava-lhe tempo a ele também.

 

Viu uma mulher sensivelmente da sua idade e bem arranjada, talvez em excesso. Tinha muitas jóias nos dedos e unhas demasiado longas e excessivamente cor-de-rosa. Os brincos cintilavam nos lóbulos, sob o ninho do seu capacete loiro. A maquilhagem, mesmo tratando-se de pintura retocada, era muito carregada. O casaco de malha era a única coisa simples que havia nela. O vestido preto estaria bem, não fora ter um remate de renda que, em vez de apelar para sofrimento, trazia sexo despropositadamente à ideia. Tinha ombros direitos, busto levantado e era cheia sem ter gorduras a mais. Dir-se-ia um corpo tratado em ginásio, pelo modo como os músculos do pescoço lhe emolduravam a laringe e os da barriga das pernas se delineavam sob as meias pretas. Era aquilo a que os ingleses chamariam «handsome», bem parecida.

 

Ela via um homem em boa forma física, num fato de corte impecável, com bastante cabelo, precocemente grisalho, mas que pertencia a um tipo de pessoas que nunca pensaria em devolver-lhe o preto original. Usava sapatos de atacadores e os laços fortemente apertados levavam-na a crer que era uma pessoa que raramente desabotoava descontraidamente o casaco. O lenço no bolso do peito parecia ser presença constante, sem nunca ser usado. Imaginou que teria uma grande quantidade de gravatas e que as usava sempre, mesmo aos fins-de-semana, possivelmente até na cama. Via um homem contido, todo «pregadinho», hirto. Não se expunha demasiado, o que podia ser uma atitude profissional, embora não lhe parecesse. Não lhe pareceu um sevilhano, pelo menos não se comportava como tal.

 

- Disse há pouco, doña Consuelo, que a senhora e o seu marido tinham poucos segredos.

 

- Sentemo-nos - disse ela, indicando-lhe a cadeira da secretária do marido com o cigarro e fazendo rodar com destreza a cadeira reservada às visitas. Sentou-se rapidamente, reclinou-se sobre um dos braços da cadeira e cruzou as pernas de modo que a bainha de renda subiu acima da barriga da perna.      

 

- É casado, inspector jefe?

 

- Trata-se de uma investigação sobre o assassínio do seu marido - disse ele, directo.

 

- É relevante.

 

- Fui casado - disse ele.    

 

Ela puxou uma fumaça e contou os dedos com o polegar.

 

- Não precisava de entrar em pormenores - disse ela. - Bastava um «Sim».

 

- Não devemos pôr-nos com jogos destes - disse ele. - Cada hora que passa é uma hora a mais sobre a morte do seu marido. Estas primeiras horas são importantes. Contam mais do que as horas de, digamos, daqui a três ou quatro dias.

 

- Separou-se da sua mulher? - disse ela.

 

- Doña Consuelo...

 

- Serei breve - disse ela e abanou o fumo no meio deles.        

 

- Estamos separados.

 

- Depois de quanto tempo?

 

- Dezoito meses.

 

   - Como é que a conheceu?

 

- É delegada do Ministério Público. Conheci-a no Palacio de Justicia.

 

- Portanto, uma união de pesquisadores da verdade - disse ela, e Falcón procurou ironia nas suas palavras.

 

- Não estamos a avançar nada, doña Consuelo.

 

- Parece-me que sim.

 

- Posso estar a satisfazer a sua curiosidade...

 

- É mais do que curiosidade.

 

- Está a inverter os papéis. Sou eu quem tem de descobrir coisas a seu respeito.

 

- Para ver se matei o meu marido - disse ela. - Ou o mandei matar.

 

Silêncio.

 

- Está a ver, inspector jefe: o senhor vai procurar descobrir tudo a nosso respeito, vai espiolhar as nossas vidas. Vai dissecar os negócios do meu marido, vai sondar-lhe a vida privada, desencobrir os seus pecadilhos: os seus filmes pornográficos, as suas putas baratas, os seus... cigarros baratos.

 

Inclinou-se para a frente e agarrou no pacote de Celtas, atirando-os por cima da secretária, de modo a caírem no colo de Falcón.

 

- E a mim, não me vai deixar em paz. Vou ser a sua suspeita principal. Viu aquela coisa horrível - disse, acenando para o televisor atrás dela.

 

- Nº 17, calle Rio de la Plata?

 

- Exactamente. O meu amante, inspector jefe. Também irá falar com ele, sem dúvida.

 

- Como se chama? - perguntou, sacando da caneta e do bloco de notas pela primeira vez, finalmente a trabalhar.

 

- É o terceiro filho do Marquês de Palmera. Chama-se Basilio Tomás Lucena.

 

Teria detectado orgulho nas suas palavras? Tomou nota.

 

- Que idade tem?

 

- Trinta e seis, inspector jefe - disse ela. - Perguntou antes de eu ter acabado.

 

- Já é um avanço.

 

- Ela tinha outro?

 

- Quem?

 

- A defensora pública.

 

- Isso não tem...

 

- Tinha?

 

- Não.

 

- Pior - disse ela. - Eu acho que é pior.

 

- O quê? - perguntou ele, automaticamente aborrecido consigo próprio por estar a morder o isco.

 

- Ser deixado porque ela preferiu ficar sozinha.

 

Aquilo penetrou-o como um ferro em brasa. A cabeça começou a recuperar lentamente.

 

A Sra. Jiménez passou os olhos em redor da sala, como se fosse a primeira vez que ali estava.

 

- Tinha conhecimento de que o seu marido tomava Viagra? - perguntou ele.

 

- Sim.

 

- O médico dele sabia?

 

- Calculo que sim.

 

- Devia saber dos riscos que representa para um homem entrado nos setenta.

 

- Ele era forte como um touro.

 

- Tinha perdido peso.

 

- Por ordem do médico. Colesterol.

 

- Teve de ter uma grande disciplina.

 

- Eu era a disciplina dele, inspector jefe.

 

- Como dono de restaurantes, podia pensar-se que, rodeado de tanta comida...

 

- Sou eu quem contrata e gere todo o pessoal dos restaurantes - disse ela. - Foram ameaçados de despedimento se lhe dessem nem que fosse uma côdea.

 

- Despediu muitos?

 

- São sevilhanos, inspector jefe, pelo que, como provavelmente sabe, raramente levam alguma coisa a sério. Despedimos três antes de terem percebido.

 

- Eu sou sevilhano.

 

- Então deve ter estado muito tempo fora, para ganhar essa sua... gravidade.

 

- Estive em Barcelona doze anos, mais quatro em Saragoça e outros tantos em Madrid, antes de voltar para cá.

 

- Até parece que foi despromovido.

 

- O meu pai estava doente. Pedi transferência para estar perto dele.        

 

- Recuperou?

 

- Não. Não chegou a entrar no novo milénio.

 

- Já nos vimos antes, inspector jefe - disse ela, esmagando a beata do cigarro.

 

- Então, não estou recordado.

 

- No funeral do seu pai. Estamos a falar de Francisco Falcón, não é verdade?

 

- Antes, não achava possível - disse ele, enquanto pensava: «Vamos lá ver o que é que isto muda.»

 

- Era dele que estava à procura nas fotografias? - perguntou ela; e ele acenou com a cabeça. - Não o vai encontrar aí. Não era o género de celebridade para o Raúl. Nunca foi a nenhum dos nossos restaurantes. Duvido que se conhecessem. Fui ao funeral, porque eu conhecia-o. Tenho três quadros dele.

 

Imaginou o pai com Consuelo Jiménez. O pai gostava de mulheres atraentes, especialmente se comprassem os seus estúpidos quadros... Mas esta? Talvez o tivesse interessado. A forma espampanante, ligeiramente ostentatória de vestir, aliada a uma língua afiada e a uma intuição aguçada. A turba habitual que lhe comprava os quadros tentava sempre dizer qualquer coisa «inteligente» acerca deles, quando não havia neles nada de inteligente. Consuelo Jiménez não teria feito isso. Teria encontrado qualquer coisa diferente para dizer ao pai, feito provavelmente uma observação pessoal ou ensaiado mesmo uma pequena interpretação, o que a maioria das pessoas, subjugadas pelo efeito da sua colossal fama, nunca se atreveria a fazer. Sim. E o pai teria apreciado isso. Seguramente.

 

- Então, a senhora estava totalmente envolvida nos assuntos de trabalho do seu marido? - disse.

 

- O que aconteceu à casa dele, em calle Bailén?

 

- Vivo lá eu - disse Falcón. - O seu marido... deve ter atropelado algumas pessoas na sua ascensão. Há possivelmente pessoas por aí que gostariam...

 

- Sim, há pessoas por aí que gostariam muito de o ver morto, especialmente aqueles que corrompeu e que agora se vêem livres do fardo de qualquer obrigação.

 

Estendeu displicentemente uma unha para a parte da galeria fotográfica onde estavam os funcionários públicos.

 

- Se sabe alguma coisa... talvez ajudasse.

 

- Não ligue. Estava a falar por falar - disse ela. - Se tivesse havido corrupção, eu não seria posta ao corrente. Eu dirijo os restaurantes. Desenhei os interiores. Organizei os arranjos de flores. Garanti que o que saía das cozinhas era da mais alta qualidade. Mas, como provavelmente imagina, mesmo sem ter conhecido o meu marido, não estive em contacto com uma única peseta de dinheiro vivo; nem lidei com nenhuma das figuras, jurídicas ou outras, que permitiram ao Raúl fazer as construções, lhe passaram licenças e se certificaram de que não haveria... situações inesperadas.

 

- Então, é possível que...

 

- É muito pouco provável, inspector jefe. Se alguma coisa tivesse corrido mal por esse lado, os podres teriam rapidamente chegado aos restaurantes e nada com tão mau cheiro me chegou ao nariz.

 

Falcón decidiu que já tinha dado rédea solta à mulher por demasiado tempo. Era chegada a altura de ela saber o que ali tinha acontecido. Era altura de ela deixar de olhar para aquilo como um assunto episódico de noticiário, que não a afectava. Era altura de a envolver na questão.

 

- O corpo do seu marido está neste momento a ser autopsiado. A seu tempo, teremos de ir ao Instituto Anatómico Forense, para a senhora identificar o corpo. Constatará que o assassínio do seu marido foi invulgar, o mais invulgar que alguma vez vi ao longo da minha carreira.

 

- Eu vi a pequena produção do assassino com os meus olhos, inspector jefe. Para se espiar uma família daquela forma, é preciso ser-se profundamente desequilibrado.

 

- O que viu foram apenas os últimos momentos do vídeo, quando chegou. Talvez não estivesse preparada para o que ia ver - disse ele. - O seu marido esteve aqui a divertir-se com uma prostituta, a noite passada. O assassino filmou isso. Pensamos que deve ter entrado no apartamento bastante antes, por volta da hora de almoço, utilizando o monta-cargas exterior da empresa de mudanças; e que se terá escondido aqui, à espera do momento certo.

 

Os olhos dela arregalaram-se. Procurou os cigarros e acendeu um. Passou a mão pela testa.

 

- Estive aqui ontem à tarde, com as crianças, antes de irmos para o Hotel Cólon - disse, agora de pé, andando ao longo da secretária.

 

- Encontrámos o seu marido sentado no par dessa cadeira - disse Falcón, sem tirar os olhos dela. - Os braços, os tornozelos e a cabeça estavam presos por um cabo eléctrico. Estava descalço, porque utilizaram as meias dele para o amordaçarem. Obrigaram-no a ver qualquer coisa no ecrã, algo tão horrendo para ele que lutou com todas as forças para não olhar.

 

Ao dizer isto, lembrou-se de que era apenas meia verdade. O horror na tela podia ter sido o começo; mas o que fez Raúl Jiménez contorcer-se convulsivamente foi voltar a si, agonizante, e aperceber-se de que um louco lhe tinha cortado as pálpebras. Depois disso, devia ter percebido que não tinha nada a perder e devia ter lutado como uma fera, até o coração ter cedido.

 

- O que é que o estavam a obrigar a ver? - perguntou ela, baralhada.

- Não vi...

 

- O que a senhora viu envolvia um certo tipo de horror para si, pessoalmente. Ser-se perseguido é assustador, mas não é nada que faça alguém debater-se até à automutilação para evitar ver.

 

Ela sentou-se muito direita na cadeira, de joelhos bem apertados, como uma menina bem comportada. Inclinou-se para a frente, segurando as canelas com força, a controlar-se.

 

- Não faço ideia - disse ela. - Não concebo uma coisa dessas.

 

- Eu também não - disse Falcón.

 

Voltou ao cigarro e lançou o fumo como se fosse desagradável. Falcón procurava qualquer sinal de fingimento.

 

- Não faço ideia - repetiu ela.

 

- Tem de fazer, doña Consuelo. Tem de rever cada minuto passado com Raúl Jiménez e tudo aquilo que sabe da vida dele antes de se conhecerem.

 

E tem de me contar tudo... E talvez entre os dois consigamos encontrar a pequena frincha... a...

 

- A pequena frincha?

 

A cabeça de Falcón teve uma branca. De que frincha estava ele a falar? Uma aberta. Uma fenda. Mas para ver o quê?

 

- Talvez descobríssemos qualquer coisa que nos desse uma pista - disse ele. - Sim, uma pista.

 

- De quê?

 

- Daquilo que o seu marido temia - disse Falcón, perdendo o fio ao pensamento.

 

- Ele não tinha nada a temer. Não havia nada de assustador na sua vida.

 

Falcón refreou os pensamentos. Temer? Em que estava a pensar? O que é que o temor deste homem lhe ia contar?

 

- O seu marido tinha determinados... gostos - disse Falcón tocando no maço de Celtas. - Aqui estamos nós, num dos mais prestigiados edifícios de apartamentos de Sevilha, ou que o era, pelo menos há quinze anos...

 

- Que foi mais ou menos quando ele o comprou - disse ela. - Nunca gostei de cá viver.

 

- E para onde iam mudar-se?

 

- Heliopolis.

 

- Outra zona cara - disse Falcón. - Era dono de quatro dos restaurantes mais conhecidos de Sevilha, frequentados pelos abastados, pelos poderosos e pelos famosos. E no entanto, são... Celtas, a que era retirado o filtro. São... prostitutas baratas, apanhadas na Alameda.

 

- Isso é uma coisa recente. Só de há dois anos, no máximo... desde... desde que passou a haver Viagra. Antes disso, esteve impotente durante três anos.

 

- A escolha do tabaco remonta provavelmente a tempos em que não tinha dinheiro. Quando foi isso?

 

- Não sei, nunca falou nisso.

 

- E de onde são as raízes dele?

 

- Também nunca falámos sobre isso - disse ela. - Nós, espanhóis, não temos um passado de que a geração dele se possa orgulhar.

 

- O que sabe sobre os pais dele?

 

- Que morreram ambos.

 

Consuelo Jiménez já não olhava de frente para ele. Os olhos azuis-metálicos vagueavam pela sala.

 

- Quando conheceu Raúl Jiménez?

 

Na Feria de Abril de 1989. Fui convidada para a sua caseta por um amigo comum. Dançava muito bem sevillanas... nada das palhaçadas que os homens costumam fazer. Tinha a dança dentro dele. Fizemos um excelente par.

 

- Teria então cerca de trinta anos. E ele andava pelos sessenta.

 

Puxou uma longa fumaça e esmagou o cigarro. Foi até à janela, transformando-se numa silhueta escura contra o céu azul e brilhante. Cruzou os braços.

 

- Já sabia que isto ia acontecer - disse ela, com a boca colada ao vidro frio. - Espiolhar. Revolver. Por isso, quis começar por saber coisas a seu respeito. Não queria ter a minha vida devassada por uma máquina policial que reduz vidas a umas quantas páginas A4, que não dá margem a matizes ou ambiguidades; que não vê cinzentos, só preto ou branco, e que, de facto, só tem olhos para o preto.

 

Ele mudou de posição na cadeira, tentando captar a luz no rosto dela. Acendeu o candeeiro da secretária e iniciou uma reavaliação de Consuelo Jiménez a esta luz mais suave. Talvez a dureza inicial que tinha manifestado tivesse sido aprendida por viver e trabalhar para Raúl Jiménez. A roupa, as jóias, as unhas, o cabelo - talvez fosse assim que Raúl Jiménez a quisesse e ela os usasse como uma armadura.

 

- O meu trabalho é procurar a verdade - disse ele. - Faço-o há mais de vinte anos. Durante todo esse tempo, eu... e a ciência policial, desenvolvemos centenas de técnicas que ajudam a alcançar a verdade que é passível de ser provada. Gostaria de lhe dizer que já é uma ciência exacta, que é realmente científica; mas não posso. Porque, tal como a Economia, outra das chamadas ciências, envolve pessoas; e onde há pessoas envolvidas, há variabilidade, imprevisibilidade, ambivalência... Respondi à sua dúvida, doña Consuelo?

 

- Talvez, no final de contas, o seu trabalho não seja tão diferente do do seu pai.

 

- Não entendo.

 

- Esqueça. Estava-me a fazer perguntas sobre o meu marido. Como nos conhecemos. A disparidade das nossas idades.

 

- Apenas me surpreendeu o inusitado de uma mulher atraente, à beira dos trinta anos, ter...

 

- ... ido com um velho sapo como o Raúl - terminou. - De certeza que lhe conseguia arranjar uma resposta de circunstância sobre a estabilidade económica e emocional do homem maduro; mas acho que chegámos a um acordo, não foi, inspector jefe? Por isso, vou-lhe dizer. O Raúl Jiménez perseguiu-me implacavelmente. Encurralou-me, pressionou-me, implorou-me. Vergou-me até eu dizer «Sim». E depois de ter passado meses a evitar essa palavra, e até a dizer mesmo «não, não, não», assim que a disse... libertei-me.

 

- O que é que a prendia?

 

- Calculo que já se tenha sentido desiludido. Quando a sua mulher o deixou, por exemplo. Que idade tinha ela, a propósito?

 

- Trinta e dois - respondeu, deixando de resistir aos seus desvios.

 

- E o senhor?

 

- Quarenta e quatro, na altura.

 

Sentou-se na cadeira de pele, cruzou as pernas e rodou de um lado para o outro.

 

- Como já deve ter reparado, não sou sevilhana - disse. - Vivo com eles há mais de quinze anos, mas não sou uma das deles. Sou madrilena. Na realidade, venho de um pueblo da Extremadura, logo a sul de Plasencia. Os meus pais saíram de lá quando eu tinha dois anos. Cresci em Madrid. Em 1984, estava a trabalhar numa galeria de arte e apaixonei-me por um dos clientes, filho de um duque. Não o vou cansar com pormenores... Fiquei grávida. Ele disse-me que não podíamos casar e pagou-me para ir fazer um aborto a Londres. Separámo-nos no aeroporto de Barajas e, desde então, só o tenho visto nas páginas da Hola!. Mudei-me para Sevilha em 1985. Tinha cá estado de férias. Gostei da alegria da cidade. Quatro anos depois e com pouca alegria, devo confessar, encontrei o Raúl. Estava preparada para o Raúl. A desilusão tinha-me preparado.

 

- Deu a entender que ele estava louco por si. Teve três filhos dele. Parece gostar do seu trabalho. A sua decisão de ter acabado por aceitá-lo deve ter, como parece, simplificado as coisas.

 

Ela dirigiu-se para a secretária, abriu violentamente as gavetas até encontrar uma pilha de fotografias a preto e branco já envelhecidas, que percorreu rapidamente, escolhendo uma, que encostou ao peito.

 

- Pois foi. Até ter visto isto...

 

Passou-lhe um retrato. Falcón olhou da fotografia para ela e de novo para a fotografia.

 

- Se não fosse pela mancha no lábio superior, não conseguia distinguir-nos, pois não, inspector jefe? Parece que era apenas ligeiramente mais baixa do que eu.

 

- Quem é?

 

- A primeira mulher do Raúl. Está a ver agora, inspector jefe: Consuelo uma vez, toda a vida Consuelo.

 

- E que lhe aconteceu?

 

- Suicidou-se em 1967. Tinha trinta e cinco anos.

 

- Por alguma razão?

 

- O Raúl dizia que lhe tinha sido diagnosticada uma depressão. Foi a terceira tentativa. Atirou-se ao Guadalquivir. Não foi de uma ponte, foi mesmo da margem, o que sempre me impressionou, por ser uma coisa estranha de se fazer. Não se inquinar de barbitúricos, não se punir selvaticamente cortando os pulsos, não mergulhar no autismo, para todos verem: atirar-se ao rio, sem mais.

 

- Como lixo.

 

- Sim, acho que é isso. O Raúl não me contou nada disto, bem entendido. Foi um velho amigo dele, dos tempos de Tânger.

 

- Eu cresci em Tânger - disse Falcón, cujo cérebro se manifestava incapaz de resistir a outra não-coincidência. - Como se chamava esse amigo do seu marido?

 

- Não me lembro. Foi há dez anos e já passei por demasiados nomes desde então; sabe como é, quando se trabalha no ramo da restauração.

 

- O seu marido teve filhos desse casamento?

 

- Sim. Dois. Um rapaz e uma rapariga. Devem andar hoje pelos cinquenta anos ou perto disso. A rapariga... sim, é interessante. Cerca de um ano depois de termos casado, recebemos uma carta de um lugar chamado San Juan de Dios.

 

- É um sanatório nos arredores de Madrid, em Ciempozuelos.

 

- Como qualquer madrileno sabe. Mas quando perguntei ao Raúl de que se tratava, inventou uma história ridícula, até o ter confrontado com um débito directo àquela instituição. E ele teve de me contar que a filha estava lá internada há mais de trinta anos.

 

- E o filho?

 

- Nunca o vi. O Raúl não queria tocar no assunto. Era^assunto encerrado. Um capítulo passado. Não se falavam. Nem sei onde vive, mas calculo que agora vou ter de descobrir.

 

- Sabe o nome dele?

 

- José Manuel Jiménez.

 

- E o nome de solteira da mãe?

 

- Bautista; ah, e tinha um nome próprio estranho: Gumersinda.

 

- As crianças nasceram ambas em Tânger?

 

- Provavelmente.

 

- Vou procurar no computador.

 

- Claro que vai - disse ela.

 

- Ele falou-lhe alguma vez dos tempos de Tânger... o seu marido?

 

- Isso foi mesmo há muito tempo. Estamos a falar dos anos 40 e 50. Acho que ele saiu de lá pouco depois da independência, em 1956. Parece que não veio directamente para cá, mas não tenho a certeza. Só sei é que, por volta de 1967, quando a mulher se matou, vivia no último andar de um daqueles blocos de apartamentos da Plaza de Cuba. Eram novos, naquela altura.

 

- E estavam perto do rio.

 

- Pois, ela deve ter olhado inúmeras vezes para aquele rio. Um rio, à noite, pode ser bastante magnetizador. As águas plácidas, negras, não parecem tão perigosas.

 

- O que sabe acerca das relações do seu marido...?

 

- Chame-lhe Raúl, inspector jefe.

 

- ... as relações pessoais e profissionais do Raúl e, digamos, a morte da primeira mulher e o vosso encontro na Feria em 1989?

 

- Isso são histórias passadas, inspector jefe. Acha que pode ter algum interesse?

 

- Não, não acho, é apenas para ter uma ideia dos antecedentes. Tenho de conhecer uma vida numa manhã. Tenho de enquadrar a vítima no seu contexto, sem o que não tenho possibilidade de descobrir o motivo. Muita gente é morta por pessoas que conhece...

 

- Ou que pensava conhecer.

 

- Exactamente.

 

- O assassino conhecia-nos, não é? A feliz Família Jiménez.

 

- Conhecia coisas sobre vocês.

 

Inesperadamente, o rosto encrespou-se-lhe e ela desatou a chorar, desfeita por soluços dilacerantes, e deixou-se cair de joelhos. Falcón dirigiu-se para ela, não sabendo como agir naquele tipo de situações. Ela sentiu-o e levantou a mão. Ele estendeu-lhe uma caixa de lenços de papel, fazendo-a pairar, qual criado desajeitado. Ela atirou-se para trás na cadeira, arfando, de olhos negros e brilhantes.

 

- Perguntou sobre as relações pessoais e profissionais dele - disse ela, fixando os olhos para lá da janela.

 

- Tinha quarenta e quatro anos quando a primeira mulher morreu. Não quero crer que ficasse vinte anos sem...

 

- Claro que teve outras mulheres - disse abruptamente, zangada, possivelmente com ele, pela sua curiosidade e pela inutilidade da questão. - Não sei quantas foram. Calculo que muitas, mas nenhuma durou. Houve algumas que vieram ver-me... a vencedora da devoção do Raúl. A maior parte vinha, rancorosa, de unhas afiadas, para me esgatanhar. Sabe como lidei com elas, inspector jefe? Dei-lhes a satisfação de pensarem que eu era uma putefiazinha tonta. Sabe como é, um bocadinho cursi, oca. Fi-las felizes. Eram melhores do que eu. Com isso, deixaram-me em paz. Algumas delas, hoje, são minhas amigas... no sentido sevilhano da palavra.

 

- E os negócios?

 

- Só se meteu nos restaurantes depois da explosão do turismo, nos anos

80, quando as pessoas descobriram que a Espanha era mais do que a Costa del Sol. Começou por ser um passatempo. Era muito sociável e não via razão para não fazer dinheiro à conta disso. Começou com o de El Porvenir, para os amigos ricos; depois foi o de Santa Cruz, para os turistas, tal como o grande, perto da plaza Alfalfa. Depois de termos casado, montou os dois da costa e, no ano passado, abrimos o de La Macarena.

 

- De onde veio o dinheiro para iniciar o negócio?

 

- Ele ganhou muito dinheiro em Tânger, depois da Segunda Grande Guerra, quando aquilo era um porto livre. Havia milhares de empresas por lá, naquela época. Teve o seu próprio banco e uma empresa de construção. Era um bom sítio para se enriquecer, como decerto sabe.

 

- Eu era muito novo. Não me lembro de nada de quando lá estive - disse Falcón.

 

- Ele fundou uma empresa de transportes fluviais, aqui em Sevilha, nos anos 60. Acho que até foi dono de uma fábrica de chapas de aço, por uns tempos. Depois, entrou para o ramo imobiliário e fez sociedade com a empresa de construção Hermanos Lorenzo, que largou em 1992.

 

- Amigavelmente?

 

- Os Lorenzo são clientes habituais dos restaurantes. Costumávamos levar os miúdos para a casa deles de Marbelha todos os Verões, até o Raúl se fartar.

 

- Portanto, depois da morte da primeira mulher e de a filha ter enlouquecido, acha que não houve grandes percalços na vida de Raúl?

 

Ela ficou em silêncio por uns momentos, olhando através da janela, a dar ao pé, com o sapato solto do calcanhar.

 

- Começo a achar que o Raúl era o protótipo do espanhol e talvez também do sevilhano. A vida é uma fiesta. - disse, erguendo as mãos para o terreiro da Feria. - Era exactamente como o vê nas fotografias. Risonho. Feliz. Encantador. Mas isso era uma fachada, inspector jefe. Era uma fachada para a sua profunda infelicidade.

 

- Um antídoto também, talvez - disse ele, sem concordar com ela, pensando que também ele era espanhol e não se considerava um infeliz.

 

- Não, não era um antídoto, porque a sua alegria não era uma reacção a nada. Nunca remediava o seu estado essencial, que era, acredite em mim, de abjecta infelicidade.

 

- E nunca soube a raiz disso?

 

- Ele não me deixava tocar nesse assunto e eu também não queria saber. Descobriu rapidamente que, apesar de eu ser o substituto visual da primeira mulher, não era um clone dela. Depois de me ter perseguido incessantemente, nunca soube amar-me. Acho que, na verdade, o tornava ainda mais infeliz, por estar sempre a recordar-lha. E contudo, honrou a parte dele no contrato, há que reconhecê-lo.

 

- Qual era?

 

- Ele não queria absolutamente mais filho nenhum e eu queria imenso tê-los. Disse que não casava com ele se não me desse filhos. E assim... copulámos, acho que é o termo apropriado, nas três ocasiões necessárias. Para o mais novo já foi complicado. Foi na época pré-Viagra.

 

- E então a senhora encontrou Basilio Lucena.

 

- Ainda não acabei de lhe contar das crianças - disse ela, cortante. - Apesar de ele ter dito que não queria filhos, era completamente babado por eles e era incrível e obsessivamente protector. Era um maníaco da segurança. Tinha sempre alguém para os ir buscar à escola. Mesmo para brincar tinham vigilância. E viu a porta de entrada deste apartamento? Aquilo foi instalado após o nascimento do mais pequeno. São seis espigões de aço, embutidos na porta, que penetram na parede com cinco voltas da chave. Nem no escritório temos uma porta como esta e está lá um cofre.

 

- Quem costumava fechar a porta à noite?

 

- Ele. A menos que estivesse fora; nesse caso, telefonava-me à uma, duas da manhã, para se certificar de que a tinha fechado.

 

- E fechava-a, se estivesse sozinho?

 

- Tenho a certeza de que sim. Passava a vida a criar rotinas, insistentemente, para que nunca se esquecesse.

 

- Alguma vez lhe falou desse inusitado comportamento obsessivo?

 

- Sensibilizava-me que se preocupasse tanto com os filhos.

 

Ramírez ligou-lhe pelo telemóvel. Já tinha acabado de falar com os homens das mudanças. Tinha demorado a fazê-los ceder, mas, finalmente, admitiram que tinham ido almoçar e deixado o monta-cargas armado, porque havia ainda uma cómoda para tirar do apartamento. Disseram que o monta-cargas não funcionava sem que o motor do camião estivesse a trabalhar; mas a plataforma deslocava-se sobre guias, e funcionava como uma escada. Depois de terem tirado a cómoda, ninguém voltou ao apartamento. Falcón disse-lhe para ir ter com Fernández, visionar as gravações do circuito fechado de televisão com o conserje, e desligou.

 

- Fale-me de Basilio Lucena - disse.      

 

- Não há nada para dizer.

 

- Traçaram alguns planos?    

 

- Planos?

 

- O seu marido estava velho. Nunca lhe ocorreu...?

 

- Não, nunca... em tempo algum. O Basilio e eu passamos tempos muito agradáveis juntos. Envolve um pouco de sexo, claro, mas não é uma grande paixão. Não estamos apaixonados.

 

- Estava a lembrar-me do filho do duque que mencionou anteriormente.

 

- Isso foi diferente. Não faço tenção de desenvolver a minha relação com o Basilio. Aliás, acho que isto até é capaz de lhe pôr fim.

 

- A sério?

 

- Esperava que o senhor, filho de um pai famoso, soubesse como os olhos da sociedade vão estar postos sobre mim. Vai haver falatório e pensamentos maldosos, pouco distantes da suspeita que o Estado lhe paga para ter. Vai ser tudo infundado... mas mal-intencionado; e eu vou proteger os meus filhos disso.

 

- É a senhora ou o seu marido quem tem inimigos?

 

- Sou vista como pessoa sem mérito, um apêndice do meu marido, alguém que teria falhado na vida se não fosse Raúl Jiménez. Mas vão ver - disse, mostrando a tensão do músculo do queixo nas maçãs do rosto. - Vão ver.

 

- Está ao corrente do conteúdo do testamento do seu marido?

 

- Nunca o vi assinar nenhum, mas sabia das suas intenções. Tudo seria deixado a mim e aos filhos, com uma disposição a favor da filha, à sua hermandad e à sua instituição de caridade preferida.

 

- Qual era?

 

- «Nuevo Futuro» e, em especial, a parte que lhe interessava: «Los Niños de la Calle».

 

- Crianças de rua?

 

- Por que não?

 

- As pessoas escolhem as instituições que apoiam por alguma razão: a esposa morre de cancro, o marido faz doações para a pesquisa do cancro...

 

- Disse que começou a contribuir depois de uma viagem à América Central. Ficou muito sensibilizado com a total indigência das crianças deixadas órfãs pela guerra civil nesses países.

 

- Talvez ele próprio fosse órfão da Guerra Civil.

 

Ela encolheu os ombros. A caneta de Falcón pairava por cima do bloco de notas, onde a palavra putas aparecia sublinhada.

 

- E as prostitutas? - disse, atirando a palavra ao ar, para um ponto indefinido da sala. - Não viu a parte do vídeo em que o seu marido aparece filmado a frequentar a Alameda. Podia pagar ambientes melhores e menos perigosos. Por que é que acha...?

 

- Não me pergunte por que é que os homens vão às prostitutas - respondeu ela; e, pensando melhor:... A sua infelicidade, diria.

 

- Não consegue vislumbrar uma causa?

 

- As pessoas só falam dessas coisas se quiserem e se souberem como fazê-lo. Aquilo que pode ter levado o meu marido a semelhante degradação estava provavelmente enterrado tão fundo que ele já nem se daria conta. Era assim e pronto. Como é que se inicia uma conversa sobre uma coisa dessas?

 

As palavras de Consuelo Jiménez puseram Falcón em transe. A sua mente recuou às primeiras horas daquela investigação e voltou a sentir o mesmo medo, o pânico a avolumar-se. Estava de novo a caminhar pelo corredor, uma caminhada a dois, porque os seus passos e os do assassino avançavam em paralelo, na direcção da parede branca com o gancho vazio iluminado pela luz proveniente da câmara do horror. Depois o rosto, e os olhos no rosto, e a terrível inclemência do que tinham visto.

 

- Don Javier - disse ela, devolvendo-o à realidade, porque não o tratou pelo posto.

 

- Desculpe. Estava perdido. Quer dizer, estava noutro lado.

 

- Não me pareceu um lado onde desse vontade de estar.

 

- Estava a rever algumas coisas na minha cabeça.    

 

- Então deve ter visto coisas horríveis. O senhor foi o próprio a dizer, acerca do assassínio do Raúl, que era o mais invulgar da sua carreira.

 

- Pois, disse isso, de facto; mas não tinha nada a ver com isto - disse ele e achou-se no limiar de uma confissão, o que, em sua opinião, não era situação em que o inspector jefe del Grupo de Homicídios devesse alguma vez colocar-se.

 

Quinta-feira, 12 de Abril de 2001, Edificio del Presidente, Los Remedios, Sevilha

 

Propôs-lhe transporte. Ela recusou e disse que ia sozinha para casa da irmã. Pediu-lhe informações sobre a irmã, só para manter a pressão, e recordou-lhe que iria buscá-la mais tarde para a levar ao Instituto Anatómico Forense, a fim de proceder à identificação do corpo. Queria interrogá-la nessa altura, depois de o choque da visão do cadáver do marido lhe ter destruído quaisquer resíduos de complacência. Pediu-lhe para pensar em qualquer coisa de invulgar na vida pessoal ou profissional de Raúl, no último ano. E disse-lhe para ligar para o restaurante e pedir os nomes e moradas das três pessoas despedidas por terem dado comida ao marido contra as suas ordens. Sabia que essas pistas não levariam a nada, mas queria induzir-lhe o temor pela exaustividade do trabalho dele.

 

Deram um aperto de mão à porta do apartamento; a dele estava húmida, a dela seca e descontraída.

 

Ramírez seguiu-o quando regressou ao escritório de Raúl Jiménez.

 

- Foi ela ou mandou fazê-lo, inspector jefe?. - perguntou, afundando-se na cadeira de espaldar alto.

 

Falcón girou a caneta várias vezes nos dedos.

 

- Há notícias do Pérez, do hospital? - perguntou.

 

- A criada ainda não voltou a si.

 

- E as cassetes do circuito interno?

 

- Quatro pessoas não identificadas pelo conserje. Dois homens. Duas mulheres. Uma das mulheres, diria que era a rameira, mas parece muito nova. O Fernández levou as cassetes à central e vai trazer fotografias digitalizadas para mostrar nas imediações do edifício.

 

- E quanto à possibilidade de se sair do edifício por saídas alternativas? A garagem, por exemplo.

 

- Nenhuma das câmaras está a funcionar. O conserje chamou os técnicos esta manhã, mas ainda não chegaram. Semana Santa, inspector jefe - explicou.

 

Falcón deu-lhe os nomes e moradas dos empregados despedidos e disse-lhe que os interrogasse o mais depressa possível. Ramírez saiu. Falcón pegou na fotografia da primeira mulher de Raúl Jiménez - Gumersinda Bautista. Telefonou para a Jefatura e pediu que procurassem o que havia sobre José Manuel Jiménez Bautista, nascido em Tânger em finais dos anos 40, princípios dos anos 50.

 

Sentou-se a olhar para as outras fotografias, percorrendo as pessoas anónimas. Topou com uma fotografia de Raúl Jiménez no convés de um iate. Estava quase irreconhecível. Nem sombras do ar de sapo que viria a ter. Era bem-parecido e confiante e mostrava-se como tal, de mãos nas ancas, ombros vigorosos e peito saliente. Falcón passou o polegar por aquele peito, pensando que havia uma mancha na fotografia. A mancha permaneceu e, numa observação mais atenta, parecia uma espécie de cicatriz no peitoral direito, perto da axila. Voltou-a - «Tânger, Julho 1953», estava escrito nas costas.

 

O telemóvel tocou. O computador da polícia tinha encontrado uma morada em Madrid e um número de telefone de José Manuel Jiménez. Tomou nota deles e perguntou por Serrano e Baena, dois outros agentes da sua brigada. Estavam de folga durante a Semana Santa. Ordenou que os convocassem, para irem ter com ele ao apartamento de Jiménez.

 

Em vez de rever as notas e planear os próximos assaltos às defesas cultivadas pela doña Consuelo Jiménez - a qual, não podia negar, continuava a ser o seu principal suspeito -, deu consigo a espiolhar num molho de fotografias antigas. Havia algumas de grupo, de novo em Tânger, em 1954, segundo as datas no verso. Olhou atentamente para as caras, pensando que andava à procura do pai em alguma delas, até se ter dado conta de que estava sobretudo concentrado nas mulheres; e perguntava-se se a mãe, que morrera sete anos depois de aquelas fotografias terem sido tiradas, estaria entre aquela gente. Fascinava-o a perspectiva de encontrar uma fotografia dela que nunca tivesse visto, na companhia de pessoas de que nunca ouvira falar, numa época em que ainda não era nascido. Algumas das caras eram demasiado pequenas e indefinidas, pelo que decidiu levar as fotografias para casa, para as ver com uma lupa.

 

Tirou um cigarro do maço de Celtas e cheirou-o. Não fumava havia quinze anos. Tinha largado o vício aos trinta anos, no mesmo dia em que terminou a sua relação com Isabel Álamo. Ela tinha ficado com o coração destroçado, sobretudo porque estava convencida de que a conversa particular que iam ter ia ser uma proposta de casamento. Com o horror dessa memória, partiu o filtro, pegou no isqueiro Bic e acendeu o cigarro. Era horrível, mesmo sem inalar o fumo, e pousou-o no cinzeiro.

 

Reclinou-se na cadeira e o pensamento recuou-lhe até outra recordação, em Tânger, na véspera de Ano Novo de 1963. Estava de pé à beira das escadas, em pijama, dando pela cintura dos convidados, que estavam de saída para ir ver o fogo-de-artifício no porto. Mercedes, a sua segunda mãe, a segunda mulher do pai, pegou nele e subiu as escadas para o ir pôr na cama. Tinha este cheiro no cabelo, Celtas; alguém devia ter estado a fumar a mesma marca na festa. Ainda havia muitos espanhóis em Tânger, naquela época, apesar de os tempos áureos já terem passado há muito. Mercedes pô-lo na cama, beijou-o com força e apertou-o contra o peito. Abandonou a recordação naquele ponto. Nunca tinha avançado naquela memória, porque... apenas porque não. Achou interessante descobrir que este novo cheiro o tinha feito recuar àqueles tempos. Normalmente, só se lembrava de Mercedes quando lhe cheirava a Chanel nº 5, o perfume de eleição dela.

 

Um toque na porta fê-lo regressar à realidade. Serrano e Baena apareceram no corredor.

 

- Foram rápidos - disse Falcón.

 

Os homens entraram desajeitadamente na sala, pouco à vontade com o chefe, que supunham estar a ser sarcástico. Tinham demorado quarenta minutos.

 

- O trânsito - disse Baena, resolvendo a questão por qualquer dos ângulos.

 

Falcón estava alheado, a olhar para o cigarro reduzido a uma serpente de cinza à sua frente. Um relance pelo relógio deixou-o surpreendido com o facto de já passar das onze horas e ainda não ter concluído nada. Verificou as notas, para ver quando é que tinha sido o intervalo para almoço dos homens das mudanças, de acordo com Ramírez; e ordenou a Serrano e Baena que fossem para a rua tentar encontrar testemunhas que tivessem visto alguém, provavelmente de fato-macaco, a escalar pelo sistema do mont-cargas até ao sexto andar do Edificio del Presidente.

 

O subinspector Pérez telefonou a dizer que a criada, Dolores Oliva, tinha finalmente dado acordo de si. Não falaria até ter um rosário na mão e, durante o interrogatório, segurava um porta-chaves da Virgen del Rocio. Estava convencida de que tinha entrado em contacto com a personificação do Mal e que temia que tivesse encontrado maneira de entrar nela. Falcón tamborilou na secretária. Com Pérez, era sempre assim. A academia e onze anos no terreno não tinham conseguido destruir a sua necessidade de contar uma história em cada relatório. Levou oito minutos até revelar que Dolores Oliva tinha aberto a porta, fechada à chave com cinco voltas.

 

Falcón interrompeu Pérez e disse-lhe para ir a Los Remedios o mais depressa possível, para confrontar as pessoas dos outros apartamentos com as fotografias dos não identificados, produzidas a partir do circuito interno de vigilância. A prostituta também tinha de ser identificada e encontrada. Desligou e viu que tinha uma mensagem do médico forense, a dizer que a autópsia estava concluída e que o relatório estava a ser dactilografado. Por instantes, pensou se devia deixar Consuelo Jiménez ver o corpo em todo o seu horror e decidiu que era preferível deixar a remoção das pálpebras apenas como informação para a polícia. Telefonou para o médico forense e pediu-lhe para ter o cadáver limpo e apresentável.

 

Preparou-se para ir buscar Consuelo Jiménez a casa da irmã, em San Bernardo. Enquanto se dirigia para o carro, telefonou a Fernández e disse-lhe para entrar em contacto com Pérez, para trabalharem os apartamentos.

 

A claridade da rua parecia agressiva, em comparação com a escuridão do apartamento, e estava quase quente. Era sempre assim quando se aproximava a Semana Santa e a Feria, uma época do ano muito ambígua. Nem quente nem fria. Nem seca nem húmida. Nem religiosa nem secular.

 

Entrou no carro e atirou o molho de fotografias para o assento. A de Gumersinda, a primeira mulher de Raúl, estava por cima de todas. Era um retrato formal e ela estava a olhar muito séria para a câmara; mas foram as palavras de Consuelo Jiménez que lhe vieram à mente: «Nunca soube amar-me.» Dois pensamentos bizarros entrechocaram-se na sua cabeça, descarregando adrenalina no sistema, o que o fez pôr o carro em andamento e arrancar sem olhar. Houve um chiar de pneus. Um grito abafado de «Cabrón!» chegou até ele.

 

Fez inversão de marcha e atravessou o rio pela Puente del Generalísimo.

 

Os carris da via férrea do porto serpenteavam mais abaixo e as gruas formavam uma guarda de honra até à maciça Puente del V Centenário, que emergia da neblina urbana. Os pensamentos brotavam-lhe, à medida que seguia para nordeste, através do Parque de Maria Luisa. E desejou desesperadamente aquele cigarro que tinha deixado consumir-se em cinza no escritório de Raúl Jiménez. Vieram-lhe à cabeça as palavras da sua própria mulher, Inés, a quem ele, também, não soubera amar: «Não tens coração, Javier Falcón»; e isto surgia à mistura com a imagem de Gumersinda, uma mulher do tempo dos pais, que lhe fizera pensar na sua mãe de sangue, Pilar, e depois na madrasta, Mercedes. Tudo mulheres imensamente importantes para ele, que, sentia agora, não tinha sabido amar.

 

A ideia era tão nova e estranha que lhe provocou um vivo desejo de ocupação que lha fizesse esquecer.

 

Parado nos semáforos, os dedos mexendo nervosamente no volante, ia rosnando: «Isto é de doidos.» Porque não lhe podia estar a acontecer. Ele nunca tinha pensamentos aleatórios inexplicáveis. Por natureza, nunca tinha sido de sonhar acordado. Tinha sido sempre calmo e metódico, características que não se lhe aplicavam agora. Desde o momento em que tinha visto o rosto horrivelmente deformado de Raúl, tinha-se operado nele um cataclismo com um nível semelhante ao de uma mutação genética. A mente divagava por memórias incómodas, o suor escorria-lhe da testa e molhava-lhe as mãos, a concentração estava de rastos. Nem sequer tinha esta investigação sob controlo. Não tinha verificado as janelas e as portas da varanda do apartamento de Jiménez. Passos elementares. E aquela história do televisor, desligá-lo da tomada e não o mencionar: era antiprofissional. Não era dele.

 

Percorreu a calle Balbino Murrón até ao fim, até um edifício que dava para o campo de futebol do Colégio de los Jesuítas. Colocou as fotografias no porta-luvas. Consuelo Jiménez saiu de casa mesmo antes de ele se ter aproximado. Uma criança, provavelmente o filho mais novo, estava de pé à janela. Disse-lhe adeus com a mão e o rapaz respondeu com um aceno frenético. Aquilo entristeceu Falcón. Viu-se a si próprio, à janela, deixado para trás.

 

Partiram, atravessando as principais artérias, em direcção ao centro da cidade. Ela olhava fixamente para a frente, sem ligar muito ao que se passava para lá do vidro.

 

- Já contou às crianças? - perguntou.

 

- Não. Não quis contar-lhes e depois deixá-los para ir ao hospital.

 

- Já devem ter percebido que alguma coisa não está bem.

 

- Percebem que estou nervosa. Não sabem por que têm de ficar com a tia. Não param de me perguntar por que é que não estamos na casa de Heliopolis e quando é que o pai lhes vai trazer o presente que prometeu.

 

- O cão?

 

- Consegue surpreender-me, inspector jefe - disse ela. - Não tem filhos, pois não?

 

- Não... - disse ele, querendo rematar de alguma maneira. Prosseguiram em silêncio, virando para norte, em direcção a La Macarena.

 

- Como vai a investigação? - disse ela, polida e distante.

 

- Está no princípio.

 

- Quer dizer que só tem o motivo óbvio para avançar.

 

- E que é?

 

- A mulher que se quer ver livre do marido velho e desapaixonado, que herda a fortuna dele e desaparece com um amante jovem.

 

- Já houve quem matasse por menos.

 

- Fui eu quem lhe deu esse motivo. Ninguém podia ter-lhe contado que Raúl Jiménez não me amava.

 

- Então e Basilio Lucena?

 

- Ele só sabe que o Raúl era impotente e que tenho necessidades físicas.

 

- Sabe onde ele estava ontem à noite?

 

- Ah, sim, claro. Foi o amante que praticou o crime - disse ela. - Quando conhecer o Basilio há-de dizer-me o que acha que ele era capaz de fazer.

 

Passaram pela Basílica de la Macarena e, alguns minutos depois, encostaram o carro junto a um edifício austero da avenida Sánches Pizjuan, que albergava o Instituto Anatómico Forense. Uma multidão reunia-se na rua. Falcón estacionou dentro da vedação do hospital. Consuelo Jiménez pôs óculos escuros. A multidão já estava em cima deles quando saíram do carro, de gravadores assestados. Troavam palavras soltas, no meio do barulho indistinto das conversas, cortantes como estilhaços - «marido», «asesinado», «brutalmente». Falcón pegou-lhe no braço, furou por entre a multidão e fê-la transpor a porta, que bateu atrás de si.

 

Conduziu-a pelos corredores até ao gabinete do médico forense, que os levou à sala de observações. O funcionário abriu a cortina e, por detrás do painel de vidro, iluminado de cima, jazia Raúl Jiménez, debaixo de um lençol que o tapava até ao peito. Ardiam duas velas à cabeceira. Os olhos, limpos do sangue, olhavam fixamente para o tecto. Estavam vazios. A parte de trás da cabeça, anteriormente empastada de sangue coagulado, tinha sido lavada. O nariz tinha sido miraculosamente recosido e a cicatriz provocada pelo cabo nas faces tinha desaparecido. A velha ferida no peitoral direito, que tinha visto na fotografia, parecia agora a pior coisa que aquele corpo tinha sofrido. Consuelo Jiménez identificou formalmente o corpo. A cortina foi corrida. Falcón pediu-lhe para esperar, enquanto trocava umas impressões com o médico forense. Este disse-lhe que Raúl Jiménez tinha morrido às três da manhã. Tinha tido uma hemorragia cerebral e uma paragem cardíaca. Tinha um teor elevadíssimo de Viagra no sangue. A conclusão do médico é que a subida provocada da pressão arterial e o alto nível de tensão psicológica combinados com a obstrução das artérias da vítima tinham provocado em Raúl Jiménez uma espécie de rebentamento interno. Deu a Falcón o relatório oficial por escrito.

 

Dirigiram-se para o carro, mas, em vez de voltarem pela vedação, que estava apinhada de jornalistas, meteu pelos jardins e contornou o edifício principal do hospital para a calle San Juan de Ribera.

 

- Podiam ter-lhe fechado os olhos - disse Consuelo Jiménez. - Não se consegue ter paz de olhos abertos, mesmo que não vejam.

 

- Não lhos podiam fechar - disse ele, no momento em que os semáforos lhes permitiram virar à esquerda para a calle Muñoz León.

 

Saiu das muralhas da cidade velha e encontrou um lugar na rua movimentada. A Sra. Jiménez segurou-se à pega do tecto, com os nós dos dedos brancos e a cara a começar a engelhar-se, antecipando as palavras que sabia que estavam para ser ditas. As piores da carreira dele.

 

Contou-lhe o que acontecera, sem adoçar a pílula, dando-lhe a sua terrível versão. Sim, tinha sido do pior que tinha visto na sua carreira. Havia cenas que tinha tido de «processar» e que talvez soassem pior do que aquela - entrar num apartamento de uma urbanización nos arredores de Madrid, quatro mortos na sala de estar, paredes cheias de sangue, dois mortos na cozinha, agulhas, seringas, papel de prata cheio de sangue coagulado e, no quarto, uma criança chorando num lamento, presa numa cama de grades nojenta. Mas isso era tudo o horror que se podia esperar de uma cultura de brutalidade. Em relação à tortura de Raúl Jiménez, não conseguia ser objectivo e não era apenas devido a uma sensibilidade particular pela questão dos olhos, que lhe eram tão importantes para o trabalho. Tinha a ver com a maneira como o castigo infligido pelo assassino à vítima tinha afectado a sua imaginação. Aterrava-o a noção de uma realidade implacável, absoluta, visualmente incessante, sem folga. Como a Sra. Jiménez tinha constatado, nem mesmo na morte lhe fora dado usufruir de um longo sono, antes tinha de permanecer eternamente de olhos abertos para a inominável capacidade humana de praticar o mal.

 

A Sra. Jiménez começou a chorar. A chorar a sério. Não era uma encenação; era uma explosão enraivecida, convulsa, sufocada pelo ranho. Javier Falcón sentiu a crueldade do trabalho de polícia. Não era homem para confortar aquela mulher. Tinha sido ele a pôr-lhe as imagens na cabeça. O seu trabalho, o objectivo do seu trabalho naquele momento era observar, não apenas a veracidade do quadro emocional, mas também para ver se encontrava uma aberta, uma fresta na carapaça, onde pudesse meter um pé-de-cabra. Tinha sido uma táctica consciente metê-la num carro, qual bolha circunscrita numa rua movimentada, sem poder mexer-se para lado nenhum, enquanto um mundo indiferente passava por ela, alheado da monstruosidade que estava a viver.

 

- Esteve no Hotel Cólon na noite passada? - perguntou e ela acenou com a cabeça. - Ficou sozinha, depois de as crianças irem para a cama?

 

Abanou a cabeça.

 

- Basilio Lucena esteve consigo na noite passada?

 

- Sim.

 

- Toda a noite?

 

- Não.

 

- A que horas saiu?

 

- Jantámos no quarto. Fomos para a cama. Deve ter saído pelas duas da manhã.

 

- Para onde foi?

 

- Para casa, suponho.

 

- Não foi ao Edificio del Presidente!

 

Silêncio. Não obteve resposta. E Falcón ficou a olhar para a estrutura do rosto dela.

 

- Qual é a profissão de Basilio Lucena? - perguntou.

 

- Uma porcaria qualquer na Universidade. É leitor.

 

- Em que departamento?

 

- Num de ciências. Biologia ou química... não me lembro. Nunca falámos disso. É coisa que não interessa. Não passa de um lugar e um ordenado.

 

- Deu-lhe uma chave?

 

- Daquele apartamento? - disse ela, meneando a cabeça. - Encontre-se com o Basilio antes sequer...

 

- Como sabe que ainda não o fiz?

 

Silêncio.

 

- Esteve em contacto com Basilio Lucena esta manhã? - perguntou.    

 

Ela acenou com a cabeça.

 

     - O que lhe contou?

 

- Pensei que ele devia saber o que tinha acontecido.

 

- Para se poder preparar?

 

- Se visse o Basilio Lucena num jornal, inspector jefe, poderia pensar que se tratava de um homem inteligente. É, de facto, um homem cultivado e sofisticado. Mas tem a inteligência orientada para uma faixa muito restrita de interesses e a sua sofisticação é admirada por uma pequena clique. A falta de entusiasmo no trabalho tem-no tornado preguiçoso. A casa e o carro foram-lhe dados pelos pais. Não tem dependentes. Os proventos permitem-lhe um estilo de vida irresponsável. Não é uma pessoa que alguma vez tivesse de pensar com os pés assentes na terra, pelo que passa a maior parte do tempo reclinado. Isto é perfil para um assassino?

 

O telemóvel de Falcón tocou. Pérez traçou um elaborado relatório das pessoas não identificadas que as câmaras do circuito interno tinham apanhado. Duas identificações positivas, uma negativa; e tinha participado aos Costumes a rapariga que presumiam ser a prostituta. Disse a Pérez que investigasse a rapariga e pediu que Fernández fizesse nova ronda pelos apartamentos à hora do almoço.

 

A oportunidade com Consuelo Jiménez tinha passado. Avançou para o meio do trânsito, fez meia-volta e voltou para oeste, em direcção ao rio. Deitou uma espreitadela à sua refém, para ver como progrediam os pensamentos dela. Pressentia um ponto de crise, começava a ter a sensação de que tudo podia estar terminado antes da primeira reunião com o juez Calderón. Era assim que este trabalho se desenvolvia, dizia-lhe a experiência. Tudo terminado em vinte e quatro horas; senão, entrava-se em longos meses de inclemente partir de pedra.

 

- Vai-me levar outra vez ao apartamento? - perguntou ela.

 

- É uma mulher inteligente, doña Consuelo.

 

- A sua oportunidade para me lisonjear já passou há muito.

 

- Passou a vida no meio de pessoas - disse ele. - Compreende-as. Acho que compreende as exigências do meu trabalho.

 

- Que o obriga a ser tão repugnantemente desconfiado.

 

- Sabe quantos homicídios há em Sevilha todos os anos?

 

- Nesta cidade irradiando felicidade? - disse ela. - Nesta cidade de gente a bater palmas pelas ruas, com cervecitas y tapitas con los amigos? Nesta cidade de los guapos, de los guapísimos? Nesta cidade bendita da Virgem Santa?

 

- Na cidade de Sevilha.

 

- Uns dois mil - disse ela, atirando o número ao ar com os dedos cheios de anéis.

 

- Quinze - disse ele.

 

- As facadinhas nas costas são, metaforicamente falando, homicídios.

 

- As drogas estão na origem da maior parte desses assassínios. Os poucos que sobram remetem para a classificação de «domésticos» ou «passionais». Em todos esses crimes - todos, doña Consuelo - a vítima e o homicida conheciam-se e, na maioria das vezes, eram íntimos.

 

- Então, aqui tem uma excepção, inspector jefe, porque eu não matei o meu marido.

 

Atravessaram o viaduto junto da velha estação de caminhos-de-ferro da Plaza de Armas, seguiram ao longo da margem pelo Paseo de Cristóbal Cólon, passaram a praça de touros da Maestranza, a Ópera e a Torre del Oro. O sol brilhava sobre as águas e sobre as grandes árvores de copa direita cobertas de folhas. Não era altura para se confessar um homicídio e passar o resto das primaveras da vida atrás das grades.

 

- A negação é uma atitude muito poderosa no homem... - disse ele.

 

- Não faço ideia, nunca neguei nada.

 

- ... porque não há dúvidas... nunca.

 

- Ou sou mentirosa ou uma completa farsante - disse ela. - Não tenho hipótese, inspector jefe. Mas pelo menos, conto sempre a verdade a mim mesma.

 

- Mas e a mim, conta-ma, doña Consuelo? - perguntou ele.

 

- Até ver... mas talvez esteja a mudar de opinião.

 

- Não sei como convenceu as velhas conquistas do seu marido de que era uma putéfia tonta.

 

- Fardei-me como tal - disse ela, fazendo tinir as unhas. - Também sei falar como elas.

 

- É uma actriz consumada.

 

- Tenho tudo contra mim.

 

Os olhos de ambos encontraram-se. Os seus, meigos, castanhos da cor do tabaco. Os dela, gelados, azuis-marinhos. Ele sorriu. Não conseguia evitar gostar dela. Aquela força. A boca inflexível. Divagou, pensando a que saberia e expulsou imediatamente esse pensamento da cabeça. Atravessaram a Puente del Generalísimo e ele mudou de assunto.

 

- Nunca tinha reparado como este cantinho da cidade era tão franquista. Esta ponte. A rua com o nome de Carrero Blanco...

 

- Por que é que julga que o meu marido vivia no Edificio del Presidente?

 

- Pensei que fosse para seguir a moda Paquirri.

 

- Bem, sim, o meu marido era entusiasta de los toros; mas gostava ainda mais de Franco.

 

- E a senhora?

 

- Não é do meu tempo.

 

- Nem do meu.

 

- Devia pintar o cabelo, inspector jefe; julguei-o mais velho.

 

Arrumaram o carro. Falcón telefonou a Fernández pelo telemóvel e disse-lhe para ir para o apartamento de Jiménez. Subiu de elevador, com a Sra. Jiménez, até ao sexto andar. Cumprimentou com a cabeça o polícia postado à porta. Avançaram a par pelo corredor vazio, na direcção do gancho vazio, com aquela caminhada em paralelo a moer o pensamento de Falcón. Sentaram-se no escritório e esperaram em silêncio que Fernández chegasse.

 

- Mostra as tuas fotografias à Sra. Jiménez, por favor - disse ele. - Pela ordem em que aparecem nas cassetes do circuito interno.

 

Fernández passou-as uma a uma, recebendo sempre uma negativa de Consuelo Jiménez. Até à última, em que ficou de olhos esbugalhados e se obrigou a pestanejar repetidamente.

 

- Quem é que está na fotografia, doña Consuelo?

 

Ela ergueu os olhos para ele, como que hipnotizada, e comentou como se fosse magia:

 

- É o Basilio - disse, sem que a boca se lhe fechasse.

 

Quinta-feira, 12 de Abril de 2001, Edificio del Presidente, Los Remedios, Sevilha

 

Como é que aquilo se resolvia? Falcón resistiu à tentação de tamborilar na borda da secretária como um pianista em apoteose. Apoiou o queixo no polegar, cerrou as maxilas e esfregou a bochecha com um dedo, enquanto a adrenalina lhe corria velozmente pelas artérias. «É isso mesmo», pensou. «Mas como fazer com que a verdade venha ao de cima? Separados ou os dois juntos?» Sentia-se empolgado. Decidiu-se por uma abordagem do tipo luta de galos. Pô-los juntos, deixá-los esbracejar e pegar-se, bicar-se e apunhalar-se.

 

- Vou com a Sra. Jiménez para El Porvenir - disse a Fernández. - Contacte o subinspector Pérez e ajude-o a encontrar a prostituta. Diga-lhe que já identificámos os desconhecidos das cassetes do circuito interno.

 

A Sra. Jiménez cruzou as pernas e acendeu um cigarro. O pé não conseguia estar quieto. Falcón foi ao corredor para falar com Ramírez pelo telemóvel. Desejava gostar mais dele.

 

Ramírez estava chateado. Andava na ingrata tarefa de entrevistar os empregados despedidos e, até ao momento, após ter contactado dois, não tinha conseguido mais do que saber que estavam satisfeitos por se terem livrado da Sra. Jiménez. Falcón observava-a enquanto Ramírez descarregava a pressão. Estava a estalar a unha do polegar com a do indicador, enquanto arrumava as ideias na cabeça. Falcón fez o relatório a Ramírez e deu-lhe a morada de Basilio Lucena; disse-lhe para ir para lá e preparar-se para apertar com os dois protagonistas.

 

Falcón levou Consuelo Jiménez até ao número 17 da calle Rio de la Plata. O trânsito estava mais denso, devido à proximidade da hora do almoço. Os desportistas faziam jogging no parque, raparigas de rabo-de-cavalo emergiam aqui e ali por detrás das vedações, animadas pelo sol. Estes momentos do trabalho policial fascinavam-no - conduzir despreocupadamente, enquanto o suspeito travava uma violenta batalha interna entre a negação e a verdade, entre manter uma mentira e procurar o alívio do castigo e absolvição. De onde viria o impulso que encaminhava a química corporal para uma decisão de tal magnitude?

 

Virou à direita para a avenida de Portugal, por detrás das altas torres da plaza de España. O edifício, que tinha sido o ex-libris da Expo’92 fazia de tal modo parte da paisagem que nem reparava nele. Excepto naquele dia, em que os tijolos vermelhos contra o céu azul e o verde a toda a volta o deixaram encantado. Trouxe-lhe uma memória do pai, levantando-se subitamente da cadeira, quando estavam a ver «Lawrence da Arábia» na televisão, para mostrar que David Lean tinha usado o edifício para fazer de Embaixada Britânica no Cairo.

 

- Pode falar, se quiser - disse ele.

 

Ela começou a mostrar-se agressiva e recuou depois da primeira sílaba. Encontrou o batom na mala e retocou os lábios... com muito cuidado...

 

- Estou tão curiosa como o senhor - disse ela; o que o enervou.

 

Estacionaram na rua, a alguma distância da casa. Não havia sinal de Ramírez. Falcón puxou do relatório da autópsia e leu-o, arrepiando-se com os pormenores. Os instrumentos utilizados, os conhecimentos técnicos demonstrados e as substâncias químicas patentes nas roupas da vítima - tudo confirmava as suas suspeitas.

 

Um carro parou perto dele. Ramírez acenou e estacionou ao cimo da rua. Desceu, passou pelo portão e tocou a campainha do número 17. Lucena abriu. Houve uma troca de palavras. Ramírez mostrou a sua identificação. Foi mandado entrar. Passaram alguns minutos. Falcón e a Sra. Jiménez saíram do carro e tocaram à campainha. Lucena veio à porta, atarantado. Deu logo de caras com os olhos de Falcón e captou o brilho azul dos da sua amante. O medo era inconfundível, mas de quê Falcón não tinha a certeza.

 

Entraram. O homem estava completamente encurralado na sua própria sala de estar, com a pressão de três pares de olhos postos nele. Falcón colocou-se junto ao televisor, que estava ligado a uma câmara de vídeo. Ramírez ficou de pé, à porta. Lucena sentou-se na beira de um cadeirão. A Sra. Jiménez ocupou o sofá em frente, olhou para ele pelo canto do olho, cruzou as pernas e pôs-se a dar à ponta do pé.

 

- Já sabemos, pela Sra. Jiménez, que esteve com ela ontem à noite - disse Falcón. - É capaz de se lembrar de quando saiu?

 

- Por volta das duas da manhã - disse ele, passando a mão pelo cabelo, fino e castanho.

 

- Onde foi, depois de sair do Hotel Cólon?

 

O pé parou de abanar.

 

- Voltei para aqui.

 

- Voltou a sair de casa durante a noite?

 

- Não. Fui trabalhar esta manhã.

 

- Como foi para o trabalho?

 

Ele hesitou, atrapalhado com uma questão elementar.

 

- De autocarro.

 

Ramírez assumiu o interrogatório e fê-lo num oito com trajectos de autocarro.

 

Lucena manteve a mentira até Falcón lhe pôr paulatinamente nas mãos a cópia das imagens da cassete do circuito interno.

 

- É o senhor, Sr. Lucena?

 

Acenou nervosamente numa confirmação.

 

- Que cadeira lecciona na Universidade?

 

- Bioquímica.

 

- Então trabalha provavelmente num daqueles edifícios da avenida de la Reina Mercedes?

 

Assentiu.

 

- Muito perto de Heliopolis, para onde a Sra. Jiménez se está a mudar?

 

Encolheu os ombros.

 

- Na sua faculdade, deve ser fácil obter substâncias químicas como clorofórmio.

 

- Muito fácil.

 

- E solução salina e bisturis e tesouras cirúrgicas?

 

- Claro que sim, há um laboratório.

 

- Vê aqueles números no canto inferior direito da fotografia... o que dizem?

 

- 02.36. 12.04.01.

 

- Quem ia visitar ao Edificio del Presidente àquela hora?

 

Apertou a cana do nariz e fechou os olhos com força.

 

- Podemos falar deste assunto em privado? - pediu.

 

- Somos todos parte interessada - disse Ramírez.

 

- Vinte e cinco minutos depois de ter entrado naquele edifício, Raúl Jiménez foi assassinado - disse Falcón, que via agora que Lucena, em vez de o considerar um perseguidor, o queria do seu lado; era da mulher que ele tinha medo.

 

- Fui para o oitavo andar - disse Lucena, atirando as mãos ao ar. Uma resposta inesperada, que fez Ramírez pegar no bloco de notas.

 

- Oitavo andar? - disse a Sra. Jiménez.

 

- Orfilia Trinidad Muñoz Delgado - disse Ramírez.

 

- Ela deve ter noventa anos de idade - disse a Sra. Jiménez.

 

- Setenta e quatro - disse Ramírez. - E também Marciano Joaquim Ruíz Pizarro.

 

- Marciano Ruíz é o encenador - disse Falcón.

 

Lucena acenou com a cabeça.

 

- Eu conheço-o - disse Falcón. - Costumava visitar o meu pai, mas é...

 

- Un maricón - disse a Sra. Jiménez, brusca e com voz grossa.

 

Ramírez deu rapidamente um passo atrás, como se fosse um actor cómico exagerado, e ficou a olhar para Lucena. Falcón utilizou o telemóvel para falar com Fernández, que lhe disse não ter havido resposta do apartamento de Ruiz, quando lá batera, naquela tarde.

 

- Ele hoje não está em casa - disse Lucena. - Deixou-me no trabalho e foi para Huelva. Está a ensaiar as «Bodas de Sangre» de Lorca.

 

A temperatura do ar na sala mudou. A Sra. Jiménez arrancou da cadeira onde se encontrava, antes que houvesse qualquer possibilidade de intervenção. A mão tomou balanço para trás e desferiu uma violenta estalada na cabeça de Lucena. Não foi uma estalada, foi uma verdadeira cacetada. «Aqueles anéis todos...», pensou Falcón.

 

- Hijo de puta - bramou da porta.

 

A cara de Lucena começou a sangrar de lado. A porta da frente bateu. Os saltos faziam saltar as pedras do caminho.

 

- Não percebo - disse Ramírez, agora mais relaxado, pelo facto de a mulher ter saído da sala. - Por que é que andava a comê-la, se é... »

 

Lucena tirou um pacote de lenços e limpou a testa.

 

- É capaz de me explicar isto? - disse Ramírez. - Quer dizer, ou dá para um lado ou para o outro, não é?

 

- Tenho de responder a este imbecil? - perguntou Lucena a Falcón.

 

- A menos que queira passar uma temporada longa na Jefatura, sim.      

 

Lucena pôs-se de pé, de mãos nos bolsos, avançou para o centro da sala e virou-se para Ramírez. A sua fraqueza tinha dado lugar a uma suavidade aristocrática e vingativa, do género adoptado pelos galanteadores a quem é pedida reparação em duelo.

 

- Comia-a porque me lembra a minha mãe - disse.

 

Era uma ofensa calculada, que teve o efeito desejado de chocar Ramírez, que Lucena percebera ser de uma classe social diferente da sua. O inspector era de uma família operária conservadora sevilhana e vivia com a mulher e as duas filhas em casa dos pais. A mãe ainda era viva e habitava com eles; e quando o sogro morresse, o que estava por poucos dias, a sogra também se lhes juntaria. Ramírez cerrou o punho. Ninguém falava assim acerca de mães com ele.

 

- Vamos embora - disse Falcón, segurando Ramírez pelo bicípite entumecido.

 

- Eu quero... quero tomar nota do número de telefone do outro maricón - disse Ramírez, a engasgar-se com as palavras.

 

Desprendeu violentamente o braço da mão de Falcón.

 

Lucena dirigiu-se à secretária, passou uma caneta por um pedaço de papel e estendeu-o a Falcón, que levou Ramírez da sala.

 

Lá fora, a calle Rio de la Plata movia-se tão devagar como o próprio rio em Buenos Aires. A Sra. Jiménez estava ao fundo da rua, com a raiva a faiscar à luz do sol. Ramírez não estava menos irado. Falcón pôs-se entre os dois, já não como detective, mas mais como assistente social.

 

- Telefone ao Fernández - disse a Ramírez. - Veja se já encontraram a rapariga.

 

A porta de Lucena fechou-se com grande estrondo. Falcón avançou pela rua abaixo, em direcção a Consuelo Jiménez, pensando: «Era esta a sofisticação de que falava há bocado, que tanto a cativou? E agora? Onde estamos? Esta sociedade sem regras de compromisso...»

 

Ela estava a chorar, mas, desta feita, de raiva. Rangia os dentes e batia com os pés, de humilhação. Falcón chegou junto dela, de mãos nos bolsos. Acenou com a cabeça, como se concordasse, mas a pensar: «É isto o trabalho de um polícia - num momento, estamos à beira de solucionar um caso e de arrumar tudo, prontos para as cervejas comemorativas; no momento seguinte, eis-nos de volta à rua, perguntando-nos como pudemos ser tão imediatistas.»

 

- Levo-a a casa da sua irmã - disse ele.

 

- Mas o que fiz eu àquele tipo? - perguntou ela. - O que raio lhe fiz eu?

 

- Nada - disse Falcón.

 

- Mas que dia - disse ela, olhando para o céu imaculado, todo serenidade, para lá da estratosfera. - Que porra de dia.

 

Olhou para a amálgama do lenço de papel que tinha na mão, como um vidente à procura de uma razão, de clarificação ou de futuro. Atirou-a para a sarjeta. Ele pegou-lhe no braço e encaminhou-a para o carro. Estava a ajudá-la a entrar quando Ramírez disse que tinham encontrado a rapariga da Alameda e que a estavam a levar para a Jefatura da Blas Infante.

 

- Diga ao Fernández para entrevistar o último empregado que a Sra. Jiménez despediu. O Pérez que deixe a rapariga suar até chegarmos lá. Quero todos os relatórios prontos às quatro e meia, que temos de estar com o juez Calderón às cinco.

 

Falcón ligou para o telemóvel de Marciano Ruiz e disse-lhe que precisava que regressasse a Sevilha nessa noite para fazer um depoimento. Houve um protesto da parte de Ruiz, seguido de uma ameaça de Falcón quanto a uma hipótese de prender Lucena.

 

- Já está calmo? - perguntou a Ramírez, que acenou por cima do tejadilho do carro. - Leve o Sr. Lucena para a Jefatura e saque-lhe um depoimento escrito... E não seja duro.

 

Falcón conduziu Lucena até ao banco de trás do carro de Ramírez. Foram-se todos embora. Falcón dobrou-se por completo sobre o volante, refilando por dentro, enquanto os pneus guinchavam pela avenida de Borbolla. Estava tudo doido, naquele dia. Alguns casos eram assim. Arranhavam fundo de mais. Sobretudo, os que metiam crianças. O rapto, seguido da espera e da inevitável descoberta do corpo violentado. Isto era o mesmo... como se algo terrível tivesse sido adicionado aos excessos da experiência humana e lhe tivesse subtraído uma dimensão maior, que nunca poderia ser reposta. A luz do dia seria sempre um bocadinho menos intensa, o ar nunca mais voltaria a ser tão fresco.

 

- Vê muitas coisas destas? - perguntou a Sra. Jiménez. - Sim, calculo que sim, calculo que veja coisas destas o tempo todo.

 

- O quê? - perguntou Falcón, encolhendo os ombros, sabendo ao que ela se referia, mas não querendo meter-se por aí.

 

- Pessoas com vidas perfeitas, que as vêem destruídas numa questão de...

 

- Nunca - respondeu no limiar da veemência.

 

Essa palavra, «perfeição», crispava-o e lembrava-se das anteriores palavras que ela utilizara para lhe pôr a vida «perfeita» em carne viva: «Eu acho que é pior. Ser deixado porque ela preferiu ficar sozinha.»

 

Sentiu vontade de ser cruel e refreou o impulso de retaliar: «Eu acho que é duro. Ser-se trocada por um homem.» Arquivou aquilo na cabeça como «Indigno» e substituiu-o pelo pensamento de que talvez Inés tivesse abalado o seu apreço pelas mulheres.

 

- Tenha dó, inspector jefe... - disse ela.

 

- Não, nunca - disse ele -, porque nunca conheci ninguém com uma vida perfeita. Um passado perfeito e um futuro promissor, sim. Mas o passado perfeito é sempre brilhantemente rescrito e o futuro promissor um sonho sem esperança. A única vida perfeita é a que se passa no papel e, mesmo nessa, há aqueles espaços entre as palavras e as linhas, e é raro serem hiatos inócuos.

 

- Sim, somos cautelosos - disse ela -, cautelosos com o que mostramos aos outros e com o que revelamos a nós próprios.

 

- Não quis ser tão... incisivo - disse ele. - Tivemos um dia longo e ainda não acabou. Sofremos alguns abalos.

 

- Nem acredito que tenha podido ser tão idiota - disse ela. - Conheci o Basilio no elevador do Edificio del Presidente. Vinha provavelmente a descer do oitavo andar. Não pensei. Mas... mas por que é que ele... se deu ao trabalho de me seduzir?

 

- Esqueça-o. Ele não tem importância.

 

- A menos que me tenha dado alguma coisa.

 

- Faça os testes - disse Falcón, mais bruto do que tencionava. - Mas comece a pensar também, doña Consuelo, em quem poderia ter um motivo para matar o seu marido. Quero os nomes e moradas de todos os amigos. Quero que se lembre, por exemplo, quem lhe contou como era parecida com a primeira mulher dele. Quero a agenda de Raúl.

 

- Ele tinha uma agenda de secretária no escritório, que era eu que actualizava. Deitou fora o livro de endereços quando passou a ter telemóvel. De qualquer modo, só contactava as pessoas por telefone. Não gostava de utilizar papel e estava sempre a perder as canetas e a roubar-me a minha.

 

Falcón não se recordava de qualquer telemóvel. Telefonou aos peritos de investigação criminal e ao médico forense. Nada de telemóvel. O assassino devia tê-lo levado.

 

- Há mais registos?

 

- Uma antiga lista de telefones no computador do escritório.

 

- Onde é isso?

 

- Por cima do restaurante da plaza Alfalfa.

 

Estendeu-lhe o telemóvel e pediu-lhe que arranjasse uma cópia impressa dentro de meia hora.

 

Deixou-a no exterior da casa da irmã, em San Bernardo, precisamente às 3 da tarde. Dez minutos depois, estacionou junto ao portão leste aos Jardines de Murillo e prosseguiu a pé, meio a correr, por entre as ruas apinhadas do barrio de Santa Cruz, onde os turistas se reuniam para as procissões da Semana Santa. O sol espreitava por detrás das nuvens. Estava calor e depressa ficou a suar. O ar nas ruas estreitas cheirava fortemente a Ducados, flor de laranjeira, bosta de cavalo e vestígios de incenso das procissões. As pedras da calçada estavam salpicadas e escorregadias com a cera das velas.

 

Despiu a gabardina e atalhou pelas ruas secundárias, que conhecia das poucas vezes em que tinha conseguido assistir às aulas de inglês que pagava sucessivamente no Instituto Britânico, na calle Frederico Rubio. Foi dar ao canto sudeste da plaza Alfalfa, que estava apinhada com todas as tribos do mundo. Máquinas de filmar apontavam para ele. Abriu alas pelo meio da multidão, trotou calle San Juan acima e foi subitamente arrastado por uma mole de gente que irrompia da calle Boteros. Percebeu o seu erro tarde de mais, viu a procissão a vir na sua direcção, mas não conseguiu descolar-se do rebanho. Arrastaram-no para a frente, em direcção ao andor florido, que tinha acabado de vencer um canto difícil e ia agora avançando à custa da energia dos vinte costaleros que tinha por baixo. A Virgem, impávida sob o dossel de renda branca, cintilava à luz intensa do sol; o incenso dos turíbulos espalhava-se de um lado para o outro da rua, a qual ressumava calor, enchendo-lhe a cabeça e o peito de forma que o ar mal lhe entrava. Os tambores da banda por detrás do andor troavam, martelando um ritmo portentoso.

 

A multidão avançou. O paso furava pelo meio dos rostos veneradores, com a Virgem planando acima deles, baloiçando da direita para a esquerda, ao ritmo dos esforçados costaleros. Trombetas ensurdecedoras e dissonantes troaram, a anunciar a paixão. O som, confinado nas ruas estreitas, reverberou no peito de Falcón e pareceu rasgá-lo. A multidão saudou entusiasticamente o momento glorioso, a Virgem chorosa, nos píncaros do êxtase... E Falcón sentiu o sangue abandonar-lhe o corpo.

 

Quinta-feira, 12 de Abril de 2001, calle Boteros, Sevilha

 

O paso voltou a arrancar. Lá no alto, os olhos piedosos da Virgem avançaram e foram pousar-se sobre outras pessoas. O aperto sofreu um certo alívio. A última explosão das trombetas ricocheteou nas varandas. Os tambores calaram-se. Os costaleros apearam o andor de sobre os ombros. A multidão ovacionou a sua prestação. A procissão dos nazarenos, com os seus chapéus pontiagudos, pousou as cruzes e os círios que carregavam.

 

Falcón agarrou-se a uma pega na traseira da cadeira de rodas de uma velhota, e pousou a outra mão no joelho. A velhota estava a acenar a um dos nazarenos, que tinha levantado a fralda do capuz. Sorriu, revelando o ser humano vulgar por baixo da máscara, um mangas-de-alpaca de óculos, nada de mais sinistro do que isso.

 

Falcón afrouxou a gravata e limpou o suor frio da cara. Arrastou-se por entre a multidão, atravessando em passo cambaleante as filas de nazarenos. As pessoas foram-lhe abrindo alas. Acabou por encontrar um pouco de chão e dobrou a cabeça sobre os joelhos; sentiu o sangue voltar a ser bombeado para o córtex cerebral e realimentar-lhe o cérebro.

 

Não tinha comido em todo o dia, pensou; mas sabia que não era disso. Voltou a olhar para o paso, onde a Virgem fitava fixamente o fundo da rua, sem se preocupar mais com ele. Mas a questão era precisamente essa: tinha-se preocupado... Durante um breve momento, durante aquela fracção de segundo, ela tinha entrado nele e tinha-se apoderado dele. Tinha sido uma experiência que quase se lembrava de já ter vivido, mas não conseguia retomar exactamente essa memória. Era muito longínqua.

 

Encontrou o escritório por cima do restaurante de Jiménez, pegou nos papéis impressos e bebeu um copo de água. Saiu da cidade velha, evitando todas as procissões.

 

Conduziu em direcção ao rio e atravessou-o para a Plaza de Cuba; sentiu-se vazio e com fome. Parou num bar na República Argentina e comprou um bocadillo de chorizo, que comeu tão depressa que ficou empanturrado e que tinha uma côdea tão rija como a dor de uma perda, o que era estranho porque não tinha perdido ninguém desde a morte do pai, dois anos atrás.

 

A Jefatura ficava no cruzamento das calles Blas Infante e López de Gomara. Estacionou nas traseiras do edifício e subiu os dois curtos lanços de escadas que levavam ao seu gabinete, o qual tinha vista para os carros ordeiramente alinhados. Era um gabinete espartano, sem um único objecto pessoal. Tinha duas cadeiras, uma secretária metálica e uns armários-arquivo cinzentos. Era iluminado por uma barra de néon por cima da sua cabeça. Não suportava distracções no trabalho.

 

Tinha trinta e oito mensagens, cinco das quais do seu superior imediato, o jefe de brigada de la Policia Judicial, comisario Andrés Lobo, que estava, com certeza, a reagir às pressões do chefe dele, o comisario Firmin León, cujo relacionamento com Raúl Jiménez era agora do conhecimento de Falcón graças às fotografias.

 

Foi directamente para a sala de interrogatório, onde Ramírez, em pé e inclinado para Basilio Lucena, mostrava o punho como se lhe quisesse dar um murro. Chamou Ramírez para fora da sala, debateu com ele a estratégia de interrogatório da rapariga e mandou-o chamar Pérez. Entrou para falar com Lucena, que olhou para ele e voltou à escrita do seu depoimento.

 

- O que disse há bocado ao inspector Ramírez... - começou Falcón, tendo ainda presente o acinte da tirada que antecedeu a saída de casa.

 

- Qualquer estudante lhe dirá que os professores reagem muito mal a idiotas.

 

- Foi só isso?

 

- Surpreende-me que esteja preocupado, inspector jefe.

 

A ele também o surpreendia e perguntou-se se estaria a ser ridículo.

 

- Duvido que a minha mãe alguma vez tivesse sido tão boa na cama como a Consuelo, se é o que está a pensar - disse Lucena.

 

- É um homem desconcertante, Sr. Lucena.

 

- Num tempo desconcertante - disse ele, agitando a caneta na direcção de Falcón.

 

- Há quanto tempo andava com a Sra. Jiménez?

 

- Há mais ou menos um ano - disse ele. - Foi a primeira vez que voltei ao Edificio del Presidente desde que a conheci... Veja bem a minha sorte.

 

- E Marciano Ruiz?

 

Afinal, é tão curioso como o inspector, não é? - disse ele. - Eu aborreço-me com facilidade, don Javier. Vou ter com o Marciano quando o meu tédio atinge um nível elevado.

 

Pérez entrou, disse a Falcón em que sala estava a prostituta e substituiu Falcón junto de Lucena.

 

A rapariga estava sentada diante de uma mesa a fumar, ao mesmo tempo que empilhava e desempilhava dois maços de Fortuna. O cabelo, escadeado e sem preocupações de simetria, parecia ter sido cortado por ela própria e sem espelho. Olhou para o ecrã de televisão apagado que tinha na frente, com olhos sombreados a azul e boca cor-de-rosa. Uma peruca loira estava dependurada numa cadeira vazia. Vestia uma mini-saia de escocês, blusa branca e botas pretas. Era pequenina e parecia ainda em idade escolar; mas a depravação que tinha visto ao longo da sua extensa ausência da escola estava-lhe gravada nos olhos castanhos-escuros.

 

Ramírez pôs a fita a gravar, apresentou-a como Eloisa Gómez e anunciou-se a si e a Falcón.

 

- Sabes por que estás aqui? - perguntou Falcón.

 

- Ainda não. Disseram que me queriam fazer umas perguntas, mas eu já vos conheço. Já cá estive... Conheço as vossas manhas.

 

- Somos diferentes dos outros tipos - disse Ramírez.

 

- Pois são - disse ela. - Quem são vocês?

 

Falcón fez um rápido sinal com a cabeça a Ramírez.

 

- Estiveste com um cliente ontem à noite... - disse Falcón.

 

- Estive com imensos clientes ontem à noite. Estamos na Semana Santa - disse ela. - É a época mais concorrida do ano.

 

- Mais do que a Feria? - perguntou Ramírez, um pouco surpreendido.

 

- Sem dúvida - disse ela. - Especialmente nos últimos dias, em que vem toda a gente de fora da cidade.

 

- Um dos teus clientes foi Raúl Jiménez. Foste ter com ele ontem à noite, ao apartamento dele no Edificio del Presidente.

 

- Conheci-o como Rafael. Don Rafael.

 

- Já o conhecias antes?

 

- É dos habituais.

 

- No apartamento dele?

 

- Ontem à noite, foi talvez a terceira ou quarta vez que foi no apartamento dele. Normalmente, é no banco de trás do carro.

 

- E como é que se processou desta vez? - perguntou Ramírez.

 

- Ligou-me para o telemóvel. O meu grupo de raparigas comprou três telemóveis no ano passado.

 

- A que horas?

 

- Não fui eu que atendi. Estava com outra pessoa... mas devia ser meia-noite. Da primeira vez.

 

- Da primeira vez?

 

- Só queria falar comigo, por isso voltou a ligar por volta da meia-noite e um quarto. Pediu-me para ir ter ao apartamento dele. Disse-lhe que estava a fazer muito dinheiro na plaza e ele perguntou quanto eu queria. Disse-lhe cem mil.

 

Ramírez soltou uma gargalhada rouca.

 

- É Semana Santa para ti - disse ele. - Os preços são ridículos.

 

A rapariga também riu e relaxou-se um pedaço.

 

- Não me digas que ele pagou isso - disse Ramírez.

 

- Fechámos por metade.

 

- Joder.

 

- Como foste até lá? - perguntou Falcón, tentando voltar ao assunto.

 

- De táxi - disse ela, acendendo um Fortuna.

 

- A que horas te largou lá?

 

- Passava pouco da meia-noite e meia.

 

- Havia alguém por ali?

 

- Que eu visse, não.

 

- E no prédio?

 

- Nem vi o conserje, o que me alegrou. Não havia ninguém no elevador nem no átrio e abriu-me a porta antes mesmo de eu tocar à campainha, como se tivesse estado a espreitar pelo ralo da porta.

 

- Não o ouviste destrancar a porta?

 

- Limitou-se a abri-la.

 

- Trancou-a depois de entrares?

 

- Sim. Não gostei disso, mas deixou as chaves na porta, portanto não protestei.

 

- Reparaste nalguma coisa, no apartamento?

 

- Estava quase vazio. Disse-me que estava em mudanças. Perguntei-lhe para onde, mas não respondeu. Tinha outras coisas em que pensar.

 

- Conta-nos tudo - disse Ramírez.

 

Ela fez uma careta e abanou a cabeça, como se os homens fossem todos iguais em qualquer parte do mundo.

 

- Segui-o pelo corredor fora até ao escritório. Estava uma televisão ligada a um canto, a passar um filme antigo. Tirou uma cassete da secretária e meteu-a no vídeo. Pediu-me para vestir uma saia azul grossa, que me dava pelos joelhos e uma camisola azul por cima da minha blusa. Pediu-me para prender o cabelo em totós. Eu estava com uma peruca preta comprida - disse ela. - Ele preferia morenas.

 

- Viste-o tomar alguma pastilha?

 

-Não.                                                                                            

 

- Não reparaste em nada estranho, à parte a casa estar vazia?

 

- O quê, por exemplo?

 

- Algo que te pusesse nervosa?

 

Pensou um pedaço, desejosa de colaborar. Levantou um dedo. Eles inclinaram-se para a frente.

 

- Ele estava descalço - disse ela. - Mas isso não me fez propriamente entrar em pânico.

 

Voltaram a deixar-se cair nas cadeiras.

 

- Eh! A culpa é vossa. Querem que eu tenha visto coisas onde não havia nada.

 

- Continua - disse Ramírez.

 

- Pedi-lhe o meu dinheiro. Deu-me cinco mil notas, que eu contei. Pegou no comando e começou a passar um filme pornográfico na televisão. Tirou as calças. Quer dizer, deixou as calças caírem e saltou para fora delas. E passámos aos actos.

 

- E as janelas? - perguntou Ramírez.

 

- O que é que têm?

 

- Estavas de frente para as janelas.

 

- Como é que sabe?

 

- Ele presume que estivesses de frente para as janelas - disse Falcón.

 

- As cortinas estavam fechadas - disse ela, agora reticente.

 

- Tiveste então relações com ele - disse Ramírez. - Quanto tempo durou?

 

- Mais do que eu esperava.

 

- Foi por isso que te voltaste? - perguntou Ramírez.

 

Os olhos castanhos endureceram. Estes jogos não eram os do costume.

 

- Quem são vocês? - perguntou.

 

- Inspector Ramírez - disse ele, seco como um fino.

 

- Somos do Grupo de Homicídios - disse Falcón.

 

- Alguém o matou? - perguntou, alternando o olhar entre os dois homens, que assentiram com a cabeça.

 

- A pessoa que o matou estava no apartamento enquanto lá estiveste.

 

Ela sacou o cigarro da boca e soltou uma grande baforada.

 

- Como sabem?

 

Ramírez já tinha preparado a cassete e carregou no comando, pelo que o ecrã ficou instantaneamente preenchido com o corredor vazio, o gancho livre, a luz jorrando pela porta do escritório, enquanto a banda sonora reproduzia bem alto a mistura dos dois falsos êxtases. Os pêlos arrepiaram-se no pescoço de Falcón. A rapariga estava completamente siderada. A câmara deu a volta, e ela viu-se a ela própria ajoelhada diante de Raúl Jiménez. Este tinha os olhos fixos no ecrã da televisão, e ela tinha as cortinas pela frente. Quando voltou a cabeça, a câmara recuou apressadamente para a escuridão.

 

A rapariga atirou a cadeira para trás, fazendo-a cair e pôs-se a andar pela sala. Ramírez desligou o ecrã.

 

- Isto é muito estranho - disse ela, apontando para o ecrã com os dedos do cigarro.

 

- Apercebeste-te de alguma coisa? - perguntou Falcón.

 

- Já não sei se são vocês a meterem-me coisas na cabeça; mas agora estou-me a lembrar de uma coisa - disse ela, fechando os olhos. - Foi apenas uma mudança de luz, uma sombra passageira. Na minha actividade, é disso que tenho medo... quando as sombras se mexem.

 

- Quando a escuridão ganha vida - disse Falcón; as palavras saíram-lhe sem querer, fazendo com que Ramírez e a rapariga olhassem para ele, a ver se estava a sentir-se bem. - Mas não reagiste... a esses movimentos da sombra?

 

- Pensei que era na minha cabeça e, de qualquer modo, acho que ele se veio por essa altura e isso distraiu-me.

 

- E depois?

 

- Lavei-me na casa de banho dele e saí.

 

- Ele trancou a porta quando saíste?

 

- Sim. O mesmo que da primeira vez. Cinco ou seis voltas. E ouvi-o tirar as chaves da fechadura, também. Depois, chegou o elevador.

 

- Que horas eram?

 

- Não devia passar muito da uma. À uma e meia já estava com outro cliente na Alameda.

 

- Cinquenta mil - disse Ramírez. - Bela tarifa horária.

 

- Talvez lhe levasse algum tempo a ganhar isso - disse ela e ambos riram.

 

- Qual é o teu número de telemóvel? - perguntou Falcón e voltaram os dois a rir-se, até perceberem que ele estava a falar a sério e Eloisa lho recitar de jacto.

 

- Pronto - disse Ramírez, ainda bem-humorado. - Parece que é tudo... excepto o facto de ela ter omitido qualquer coisa, não foi, inspector jefe?

 

Falcón não reagiu ao jogo brutal de Ramírez. A rapariga afastou os olhos dele e dirigiu-os para onde sentia subitamente vir a ameaça.

 

- Contei-lhes tudo o que aconteceu - disse ela.

 

- Excepto o mais importante - disse Ramírez. - Não nos disseste quando foi que o deixaste entrar no apartamento.

 

Levou alguns segundos até que o verdadeiro significado desse comentário aparentemente inócuo penetrasse nela; e então a cara tornou-se-lhe rígida como uma máscara fúnebre.

 

- Bem me pareciam bons de mais para serem verdade - disse ela.

 

- Eu não sou bom - disse Ramírez - e tu também não. Sabes o que é que o tipo fez... o que deixaste entrar no apartamento? Torturou o velhote até à morte. Sujeitou o teu don Rafael aos piores sofrimentos que já vimos nas nossas carreiras de polícias. Não, não foi apenas um tiro na cabeça ou uma faca no coração. Foi tortura... lenta, brutal.

 

- Não meti ninguém no apartamento.

 

- Disseste que ele deixou as chaves na porta - disse Falcón.

 

- Não meti ninguém no apartamento.

 

- Disseste que viste qualquer coisa - disse Ramírez.

 

- Vocês levaram-me a pensar que vi qualquer coisa, mas não vi.

 

- A luz mudou - disse Ramírez.

 

- As sombras moveram-se - disse Falcón.

 

- Não meti ninguém lá - disse ela, devagar. - Passou-se tudo como lhes contei.

 

Terminaram o interrogatório perto das 16h. 30. Falcón mandou Ramírez levar a rapariga a uma mulher-polícia que superintendesse a colheita de um pêlo púbico, para se fazer a comparação na Polidcia Científica. Mal saíram, ouviu Ramírez falar com a rapariga como se fossem velhos amigos e estivessem para ir tomar uma cervecita; só as palavras eram diferentes.

 

- Não, Eloisa, vou-te dizer. Se eu fosse a ti deixava o gajo da mão, largava-o como um carvão em brasa. Se ele foi capaz de matar um tipo daquela maneira, é capaz de te matar a ti. É capaz de te matar sem sentir rigorosamente nada. Por isso, tem cuidado. Se tiveres quaisquer suspeitas, quaisquer dúvidas, telefona-me.

 

Falcón voltou para o gabinete e telefonou a Baena e Serrano, para saber se tinham encontrado alguma testemunha fora do Edificio del Presidente. Ninguém. Poucas pessoas nas imediações. Lojas fechadas. A maioria dos habitantes estava no centro da cidade, nas procissões.

 

Desligou. Estalou as articulações dos dedos uma a uma, um hábito que Inés detestava, mas que era um acto inconsciente, uma coisa que fazia para acalmar o cérebro. Aquilo costumava fazê-la arrepiar-se.

 

Falcón telefonou ao comisario Lobo, que lhe disse para se apresentar no seu gabinete. No caminho para o elevador, encontrou Ramírez, a quem pediu para preparar a papelada para a reunião com o juez Calderón. Subiu ao último andar. A secretária de Lobo, uma dessas sevilhanas minimalistas que reservam toda a sua extravagância para depois das horas de serviço, mandou-o entrar com uma piscadela de olho.

 

Lobo estava voltado para a janela, de mãos atrás das costas, fazendo flexões de joelhos, enquanto olhava para o relvado do Parque de los Príncipes, do outro lado da rua. Era baixo e entroncado, com mãos de cavador, grandes e peludas. Tinha pescoço de touro e cabelo cinzento-fuligem. Tinha usado sempre uns óculos de pesadas armações pretas, fora de moda, até que, no ano anterior, a mulher o tinha convencido a mudar para lentes de contacto. Era uma tentativa de melhoramento de imagem, que falhou porque tinha olhos cor de lama e a falta da armação tornara o aspecto do nariz mais adunco, pondo a nu uma face bem mais brutal do que muitos gostariam de ver. Tinha lábios finos, pouco mais escuros do que a cor de azeitona da sua tez. Tinha mais aspecto de criminoso do que a maior parte dos presos preventivos; mas era bom organizador e directo a falar, apoiando sempre os subordinados.

 

- Sabe o que lhe quero? - perguntou, por cima do ombro.

 

- Raúl Jiménez.

 

- Não, inspector jefe. É o comisario Léon.

 

- Constava das fotografias encontradas no escritório de Jiménez.

 

- Com quem estava ele na cama?

 

- Não era esse estilo de...

 

- Estou a brincar, inspector jefe - disse Lobo. - Provavelmente, viu muitos outros funcionários nessas fotografias.

 

- Vi, sim.

 

- Viu-me a mim?

 

- Não, comisario.

 

- Porque não consto nelas, inspector jefe - disse, caminhando rapidamente para a secretária.

 

Sentaram-se; Lobo apertou as mãos como se estivesse prestes a esmagar pequenas cabeças.

 

- Não estava cá quando foi da Expo de 1992? - perguntou.

 

- Estava em Saragoça, nessa altura.

 

- Aqui, na altura da Expo’92, vivia-se uma situação muito diferente da dos Jogos Olímpicos de Barcelona. Certamente que está recordado, os catalães tiveram lucros enormes com os jogos. Mas aqui, os andaluzes sofreram prejuízos estrondosos.

 

- Houve rumores de corrupção.

 

- Rumores! - bramou Lobo, selvaticamente. - Não foram apenas rumores, inspector jefe. Houve mesmo corrupção. Houve tanta corrupção que, quem não estivesse a facturar milhões, morria de vergonha. Era de tal modo embaraçoso que aqueles que não tinham conseguido encher os bolsos andaram a alugar Mercedes e BMW para fingirem o contrário.

 

- Não me tinha apercebido disso.

 

- E não foram só os locais. Os madrilenos também vieram em força. Perceberam que imperava uma certa atitude. Um certo laxismo. Uma falta de atenção aos pormenores, que podia ser financeiramente explorada.

 

- Em que é que isso é relevante, passados dez anos?

 

Lembra-se de quantas pessoas foram chamadas a depor por causa disso?

 

- Não me recordo, comisario.

 

- Nenhuma! - disse Lobo, esmurrando a secretária com os punhos cerrados. - Nem uma.

 

- Hermanos Lorenzo - disse Falcón. - Construção civil.

 

- O que é que têm?

 

- Raúl Jiménez tinha negócios com eles, que terminaram em 1992.

 

- Agora está a começar a perceber. Raúl Jiménez estava no comissariado da Expo de Sevilla. Fazia parte da direcção responsável pelo desenvolvimento imobiliário do recinto. A Hermanos Lorenzo não era a única empresa de construção a que ele tinha ligações.

 

- Continuo a não ver como é que isso possa ser relevante para este homicídio, quase dez anos depois.

 

- Possivelmente, não é. Duvido que haja alguma ligação. Mas vai andar a mexer no vespeiro, inspector jefe. Vão vir à superfície coisas muito desagradáveis.

 

- E o comisario Léon?

 

- Não quer surpresas desagradáveis. Tem de me comunicar, se tropeçar em informações «sensíveis» e... sem fugas, inspector jefe. Ou seremos todos trucidados pela roda.

 

Outra das razões pela qual os homens de Lobo gostavam dele era o jeito ímpar que tinha para os fazer compreender a gravidade da situação. Falcón levantou-se para sair, dirigiu-se para a porta, sabendo que havia algo mais, porque Lobo gostava de atirar sempre coisas bombásticas aos homens, quando iam a sair. Provocava uma impressão mais duradoura.

 

- Provavelmente pensou que, com toda a experiência trazida de Barcelona, Saragoça e Madrid, a sua candidatura a uma cidade de segunda divisão em matéria de assassínios, como Sevilha, seria bem recebida.

 

- Não tomo nada por adquirido, comisario. A política joga um papel em cada nomeação.

 

- Tive de me esforçar muito por si.

 

- E porquê? - ele, para quem Lobo era um desconhecido antes de entrar para a brigada.

 

- Pela razão, tão pouco em voga, de que era o melhor homem para o lugar.

 

- Então estou-lhe muito agradecido.

 

- O comisario Léon era um grande admirador dos talentos de tenacidade do inspector Ramírez.

 

- Eu próprio, comisario.

 

- Mantêm-se em contacto, inspector jefe... informalmente.

 

- Compreendi.

 

- Ainda bem - disse Lobo, subitamente jovial. - Sabia que ia compreender.

 

Quinta-feira, 12 de Abril de 2001, Edificio de los Juzgados, Sevilha

 

- Acho que a Eloisa Gómez o deixou entrar - disse Ramírez, quando atravessaram o rio.

 

- O Baena e o Serrano não conseguiram ninguém fora do Edificio del Presidente - disse Falcón. - E eu prefiro esse cenário ao do assassino a trepar pela estrutura do monta-cargas e a esconder-se no apartamento durante meio dia, pese embora tenha estado vazio, à excepção de uma curta visita da Sra. Jiménez. A rapariga estava assustada?

 

- Não disse uma palavra depois de terminado o interrogatório.

 

- Ela acredita em nós?

 

- Quem sabe.

 

O Edificio de los Juzgados ficava próximo do Palacio de Justicia, no lado oposto dos Jardines de Murillo. Já passava bastante das cinco quando Falcón e Ramírez estacionaram nas traseiras do edifício do tribunal. Falcón, que detestava chegar atrasado, tinha vontade de partir em dez pedacinhos o pente que Ramírez passava pelo cabelo preto com brilhantina. O seu olhar assassino não surtia efeito sobre o inspector, que considerava que tinham chegado cedo e o seu penteado era prioritário - podia haver secretárias nas imediações.

 

Os dois homens, de fato escuro, camisa branca e óculos de sol, encaminharam-se para a frente do edifício triste e pardacento - o expoente monocromático da justiça na cidade-jardim. Colocaram as pastas na máquina de raios-X e mostraram as respectivas identificações. O edifício estava tranquilo; quase tudo se passava de manhã. Subiram ao primeiro andar, para o gabinete do juez Calderón. O interior do edifício era sombrio, quase lúgubre. Nada de belo na justiça, mesmo quando era boa e verdadeira.

 

Ramírez perguntou-lhe o que queria Lobo e Falcón disse-lhe que já se manifestava a pressão do comisario León; mencionou a perspectiva de corrupção. Ramírez pôs um ar aborrecido.

 

Calderón não estava no gabinete. Ramírez mergulhou numa cadeira e pôs-se a brincar com um anel de ouro que usava no dedo médio, cravejado com três diamantes. Aquele anel sempre intrigara Falcón, por ser demasiado feminino para a musculatura tisnada de Ramírez.

 

- Vamos ter de extrair qualquer coisa daquele atraso de vida do maricón do Lucena - disse Ramírez com brutalidade. - Senão vamos parecer incompetentes no nosso primeiro encontro com o novo juiz.

 

Falcón deixou os olhos vaguear pela sala forrada de estantes. Ramírez empertigou-se.

 

- Sabe, eu acho que, mesmo que coma mulheres e homens ao mesmo tempo, no fundo é um maricón - disse ele.

 

- Mesmo que tivesse sido uma vez sem exemplo? - perguntou Falcón.

 

- Não é coisa que se ande a experimentar, inspector jefe. Está nos genes. O simples facto de se ser capaz de pensar nisso... já faz da pessoa um maricón.

 

- Não vamos falar nisso ao juez Calderón.

 

O jovem juiz chegou ao quarto para as seis, sentou-se à secretária e foi directo ao assunto. Estava agora a desempenhar o papel de juez de instrucción, o que significava que tinha a responsabilidade última da direcção do caso. Tinha de apresentar em Tribunal os indícios necessários para uma condenação bem sucedida.

 

- O que temos nós? - perguntou.

 

Ramírez bocejou. Calderón acendeu um cigarro e atirou o maço a Ramírez, que retirou um. Fumavam, enquanto Falcón se interrogava como é que aqueles dois se tinham conhecido... até se lembrar do futebol. O Betis a perder 4-0 no dia em que o assassino filmou Raúl com os filhos. Donde lhes vinha aquela descontracção? Tentou lembrar-se se alguma vez a tivera. Devia tê-la tido e perdido algures durante a juventude, quando o trabalho se tornou demasiado sério; ou talvez se tivesse tornado demasiado sério em relação ao trabalho.

 

- Quem começa? - perguntou Calderón.

 

- Comecemos pelo corpo - disse Falcón e deu um resumo da autópsia.

 

- Como é que ele acha que as pálpebras foram tiradas? - perguntou Calderón.

 

- Incisão inicial com bisturi e corte feito com tesoura. É de opinião que se tratou de um trabalho bem feito.

 

- E achamos que isso foi feito para o forçar a ver qualquer coisa na televisão.

 

- A gravidade das feridas auto-infligidas sugere que o homem estava horrorizado com o que lhe tinha sido feito, bem como com o que estava a ser forçado a ver - disse Falcón.

 

- Vou nisso - disse Calderón, passando inconscientemente os dedos pelas pálpebras. - Alguma ideia sobre o que o assassino lhe mostrou?

 

Ramírez abanou a cabeça. Não havia, naquele crânio duro, lugar para esse tipo de conjecturas.

 

- Acho que só sabemos dos nossos medos, não dos dos outros - disse Falcón, tentando não pôr um ar crítico e condescendente.

 

- Pois, eu cá detesto ratos - disse Calderón, prazenteiro.

 

- A minha mulher não pode estar numa sala em que haja uma aranha - disse Ramírez. - Nem que seja na televisão.

 

Os dois homens riram-se.

 

- Isto é algo um pouco mais forte do que uma fobia - disse Falcón, entalado no papel de mestre-escola. - E conjecturar não nos vai ajudar para já; temos de nos concentrar sobretudo no motivo.

 

- Motivo - disse Calderón, chamando a si essa tarefa. - Falaram com a Sra. Jiménez?

 

- Foi ela própria a indicar-me o motivo que a levaria a matar ou mandar matar o marido - disse Falcón. - O casamento deles não era consumado, ela tinha um amante e ela e os filhos herdariam tudo.

 

- E o amante, falaram com ele? - perguntou Calderón.

 

- Sim, porque foi filmado a entrar no Edificio del Presidente cerca de meia hora antes de Raúl Jiménez ser assassinado. Além disso, é professor de Bioquímica na universidade.

 

- Oportunidade e competência - disse Calderón.

 

- Bem como acesso a clorofórmio e instrumentos de laboratório - disse Ramírez, chamando a atenção de Calderón, que ficou sem saber se o fazia por ironia ou estupidez.

 

- Então? - perguntou Calderón de mãos abertas, à espera do óbvio.

 

Falcón deu-lhe a má notícia de que Lucena ia a caminho do apartamento de Marciano Ruiz, no oitavo andar.

 

- Conheço esse nome - disse Calderón. - Não é um encenador?

 

- É um mariquita bem conhecido - rematou Ramírez.

 

- Não compreendo - disse Calderón.

 

- Andava a comer os dois - disse Ramírez. - Ele disse que andava a comê-la a ela porque lhe lembrava a mãe.

 

- A que propósito vem isto?

 

- Lucena estava a tentar ofender o inspector Ramírez - disse Falcón.      

 

- Mas não a si - disse Calderón com suavidade. - Vai prendê-lo?

 

- Antes de mais, não acho que pessoas como o assassino sejam estúpidas ao ponto de se pavonearem diante de câmaras de vigilância...

 

- A menos que estejam a ser muito inteligentes e subtis nesse particular - disse Calderón. - Por exemplo, nunca se vê o amante no filme da Família Jiménez, pois não? Só vemos o endereço.

 

- Está a esquecer a prostituta, Eloisa Gómez - disse Falcón. - Se Lucena fosse o assassino, estaria no apartamento, filmando-a a ter relações com Raúl Jiménez, como vimos. A rapariga foi filmada a sair do edifício três minutos depois da uma e estava de regresso à Alameda à uma e meia. Basilio Lucena ainda estava no Hotel Cólon com a Sra. Jiménez. Estive a confirmar os tempos, para ver se era possível, e é; mas altamente improvável.

 

- Bem, estivemos quase lá - disse Calderón. - Quando é que Lucena saiu do edifício?

 

- Não há registo - disse Falcón. - Diz que saiu de manhã, com Marciano Ruíz.

 

- Por que é que não há registo?

 

- As ligações da câmara da garagem foram cortadas - disse Ramírez, o que era novidade para Falcón. - Segundo a Policia Científica, foram vandalizadas com alicate.

 

- Bem, como é que o assassino entrou?

 

Falcón transmitiu-lhe a teoria do monta-cargas nas traseiras do camião da empresa Mudanzas Triana.

 

- Portanto, ele introduz-se no apartamento, que está confirmadamente vazio; esconde-se lá durante doze horas e até leva com ele uma câmara de vídeo, para gravar Raúl Jiménez com uma puta? Não me parece...

 

- A ter sido assim, não acho que essa parte tivesse sido planeada - disse Falcón. - Acho que fez isso num impulso de arrogância. Queria mostrar-nos que tinha estado lá o tempo todo. Se não os tivesse filmado, saberíamos muito menos. Ainda estaríamos provavelmente a perder o nosso tempo com Basilio Lucena. Por isso, temos de agradecer ao assassino este pequeno deslize, bem como o farrapo com clorofórmio, porque, com cada um desses erros, vai-nos dizendo alguma coisa a seu respeito.

 

- Que é um amador - disse Calderón.

 

- Mas um amador com fibra - disse Falcón. - Arrisca-se e gosta de provocar.

 

- Psicopata?

 

- Assumido e com gozo - retorquiu Falcón. - E sem muito a perder.

 

- E com alguma prática cirúrgica - disse Ramírez.

 

Falcón traçou o segundo cenário: Eloisa Gómez deixando entrar o amante ou o protector da «vida», para ele matar Raúl Jiménez.

 

- Nada foi roubado - disse Ramírez. - A casa estava praticamente vazia; portanto, o único motivo para lá entrar era matar Raúl Jiménez.

 

- Como é que ela se portou no interrogatório?

 

- Manteve-se firme - disse Ramírez.

 

- Vai voltar a ela com dureza, não vai? - disse Calderón.

 

No silêncio que se seguiu à troca de assentimentos, Falcón transmitiu a Calderón um curto relatório sobre a sua conversa com Lobo quanto ao nível de corrupção na construção da Expo’92 e o envolvimento de Raúl Jiménez. Mencionou o aviso que lhe deu o comisario.

 

- Se houver corrupção associada a este caso, tenho de ter liberdade para falar disso - disse Calderón, de olhar iluminado, subitamente no papel de juiz-cruzado.

 

- Claro que tem - disse Falcón. - Mas há alguns temas sensíveis envolvidos e pessoas importantes, que, mesmo que não tenham nada a ver com isso, podem não gostar de se verem associadas ao caso. Lembra-se de quem aparecia naquelas fotografias: Bellido e Spinola, para só falar de dois nomes.

 

- Foi há dez anos, de qualquer modo - disse Calderón, com o idealismo instantaneamente moderado.

 

- Não é muito tempo quando se alimenta um ódio - disse Falcón; e os dois homens olharam para ele, como se alimentasse vários em simultâneo.

 

Falcón relatou a conversa tida com Consuelo Jiménez e estendeu a cópia do livro de endereços, mencionando que o assassino tinha roubado o telemóvel de Raúl Jiménez. Calderón percorreu a lista. Ramírez bocejou e acendeu outro cigarro.

 

- Portanto, o que me está a dizer - disse Calderón - é que, apesar do terrível cenário que o assassino deixou no apartamento, apesar de todas as entrevistas e depoimentos recolhidos até agora... não temos realmente qualquer pista consistente?

 

- Continuamos com a Sra. Consuelo Jiménez como principal suspeita. É a única com um motivo definido e que tem os meios para o executar. Eloisa Gómez é possível cúmplice de um assassino agindo por conta própria.

 

- Ou não - disse Calderón. - Nada obsta a que o assassino fosse pago pela Sra. Jiménez e, a ser o caso, ela não gostaria de chamar a atenção sobre si própria, dando ao assassino a sua própria chave. Ter-lhe-ia dito que entrasse pelos seus próprios meios.

 

- E ele teria utilizado a prostituta ou o monta-cargas das mudanças? - perguntou Ramírez. - Eu sei o que escolhia.

 

- Se ele utilizasse a rapariga para entrar, por que iria filmá-la? - perguntou Calderón. - Não faz sentido. Faz mais sentido o contrário... mostrar-nos como é brilhante.

 

- Há possibilidades e improbabilidades em ambos os cenários - disse Falcón.

 

- Têm ambos a Sra. Jiménez na conta de séria candidata a ter mandado matar o marido?

 

Ramírez disse que sim, Falcón que não.

 

- Em que direcção quer conduzir o caso, inspector jefe?

 

Falcón estalou os nós dos dedos um a um. Calderón arrepiou-se. Falcón não queria ainda ter de pôr na mesa o que o instinto lhe ditava. Precisava de mais tempo para pensar. Já havia demasiadas coisas fora do comum neste caso para que ele sugerisse ainda que dessem uma vista de olhos sobre o que tinha acontecido a Raúl Jiménez nos finais dos anos 1960. Mas era ele o líder e, como tal, cabia-lhe ter ideias.

 

- Devíamos trabalhar ambos os cenários e a lista de endereços de Raúl Jiménez - disse. - Acho que devemos manter presença dentro e à volta do edifício, para tentarmos encontrar uma testemunha que corrobore uma das teorias para a entrada do assassino e que talvez nos dê uma descrição. Precisamos de entrevistar a empresa de mudanças. E devíamos manter a pressão quer sobre Consuelo Jiménez quer sobre Eloisa Gómez.

 

   Calderón não contestou.

 

Estavam de novo no carro, a caminho da Jefatura na Blas Infante. Ramírez ia ao volante. Quando atravessaram o rio, para a Plaza de Cuba, o anúncio à cerveja Cruzcampo desencadeou uma súbita secura na garganta do inspector. «Bebia uma», pensou, «mas não com Falcón.» Queria beber com alguém mais sociável do que Falcón.

 

- Que lhe parece, inspector jefe? - perguntou, sobressaltando Falcón, mergulhado nas suas reflexões sobre como tinha sido estranho o primeiro encontro com o jovem juiz.

 

- Penso mais ou menos o que disse ao juez Calderón.

 

- Não, não, não me parece - disse Ramírez, tamborilando no volante. - Eu conheço-o, inspector jefe.

 

Aquilo fez Falcón virar-se no assento. Imaginar que Ramírez pudesse ter uma pálida ideia de como a sua mente funcionava, quase lhe dava para rir.

 

- Conte lá, inspector - disse.

 

- Estava-lhe a dizer umas coisas, enquanto pensava noutras - respondeu Ramírez. - Quer dizer, sabe que percorrer aquela lista telefónica vai ser uma tão grande perda de tempo como, por hipótese, interrogar aqueles rapazes que a Sra. Jiménez despediu.

 

- Não sei se é assim - disse Falcón. - E o senhor sabe que os procedimentos elementares têm de ser cumpridos. Temos de demonstrar que fomos exaustivos.

 

- Mas não lhe parece que haja uma ligação, pois não?

 

- Sou um homem de espírito aberto.

 

- Isto é obra de um psicopata e o senhor sabe isso, inspector jefe.

 

- Se eu fosse um psicopata e gostasse de matar pessoas, não escolhia um apartamento no sexto andar do Edificio del Presidente, com todas as complicações que isso acarreta.

 

- Ele gosta de se exibir.

 

- Ele estudou aquelas pessoas. Ele quis conhecer o alvo. Foi muito objectivo - disse Falcón. - Deve tê-los visto a visitar a nova casa. Viu o pessoal das mudanças entrar no apartamento...

 

- Temos de falar com esses, amanhã bem cedo - disse Ramírez. - Fatos-macaco desaparecidos, esse tipo de coisas.

 

- Amanhã é Viernes Santo - disse Falcón. Sexta-Feira de Paixão.

 

Ramírez entrou no parque de estacionamento que ficava nas traseiras da Jefatura.

 

- Motivo - disse, saindo do carro. - Por que é que está a tirar a cabra da jogada?

 

- A cabra?

 

- Os rapazes com quem falei, os que estavam satisfeitos por se terem livrado da Consuelo Jiménez, não tiveram uma só palavra amável para dizer dela, pessoalmente; mas profissionalmente dizem que é brilhante.

 

- E isso é invulgar em Sevilha? - perguntou Falcón.

 

- Em mulheres como aquela, mulher de um marido rico, é. Normalmente, não gostam de sujar as mãos e limitam-se a falar com o Marquês y Marquesa de No Sé Que. Mas a Sra. Jiménez, aparentemente, fazia de tudo.

 

- Como seja?

 

- Lavava salada, cortava legumes, cozinhava revueltos, servia à mesa, ia ao mercado, pagava os ordenados e geria as contas; e também recebia as pessoas e fazia os agradecimentos.

 

- Então, qual é a sua ideia?

 

- Ela adorava aquele negócio. Transformou-o no seu negócio. O novo espaço que abriram, em La Macarena... foi ideia dela. Fez todos os projectos, supervisionou a execução dos interiores, decorou o restaurante, seleccionou o pessoal... tudo. A única coisa em que não tocou foi na ementa, porque sabe que as pessoas vão lá por causa da ementa. Pratos sevilhanos clássicos e simples, feitos com perfeição.

 

- Fala como se já lá tivesse ido.    

 

- O melhor salmorejo de Sevilha. O melhor pan de casa de Sevilha. O melhor jamón, os melhores revueltos, as melhores chuletillas... tudo do melhor. E a preços razoáveis. E também sem elitismos, apesar de reservarem sempre uma mesa para os toreros e outros idiotas.

 

Ramírez empurrou com o ombro a porta das traseiras da jefatura, manteve-a aberta para Falcón passar e seguiu pelas escadas acima.

 

- Onde quer chegar com isso? - perguntou Falcón.

 

- Como acha que ela iria reagir se, por hipótese, o marido resolvesse vender o negócio? - perguntou Ramírez, deixando Falcón parado no meio da escada. - Não falei disto à frente do Calderón, porque só tenho a palavra dos dois rapazes sobre isto.

 

- Ainda bem que foi você a falar com eles - disse Falcón. - Está a ver a que me referia sobre o cumprimento dos procedimentos elementares?

 

- Ainda assim continua a não conseguir pôr-me a vasculhar aquela lista de endereços - disse Ramírez.

 

- Então esses rapazes viram Raúl Jiménez falar com alguém?

 

- Já ouviu falar de uma cadeia de restaurantes chamada Cinco Bellotas, dirigida por um tipo chamado Joaquín López? É jovem, dinâmico e tem bons apoios. É uma das poucas pessoas em Sevilha que poderia comprar e gerir os restaurantes de Raúl Jiménez.

 

- Alguma ligação entre ele e a Sra. Jiménez?

 

- Não sei.

 

- É um plano muito elaborado. Elaborado e horrendo - disse Falcón, recomeçando a subir as escadas, empurrando com a ponta do pé a porta do seu gabinete. - Ponha-se esta questão, inspector: quem iria ela encontrar e que tipo de pagamento teria de disponibilizar para persuadir alguém a fazer aquela filmagem preliminar, entrar no apartamento daquela forma e torturar o velho até à morte?

 

- Depende de quanto isso fosse importante para ela - disse Ramírez. - Não há aqui inocência nenhuma, se quer a minha opinião.

 

Olharam ambos pela janela do gabinete de Falcón e para as filas de carros, que diminuíam com o cair do dia.

 

- E olhe, outra coisa - disse Falcón -, o que quer que o assassino quisesse mostrar a Raúl Jiménez era sério. Ele não quis vê-lo, foi por isso que o assassino teve de lhe cortar...

 

Ramírez assentiu com a cabeça, suspirou, deu o trabalho mental por findo por aquele dia. Acendeu um cigarro, sem se lembrar de que Falcón detestava que se fumasse no gabinete.

 

- Então, qual é a sua abordagem, inspector jefe?

 

Falcón sentia que o seu foco se tinha estreitado. Já não olhava para o estacionamento a esvaziar-se, olhava para o seu próprio reflexo no vidro. Os olhos estavam encovados, vazios, cegos, sinistros mesmo.

 

- O assassino esteve a forçá-lo a ver - disse.

 

- Mas o quê?

 

- Todos temos algo de que nos envergonhamos, algo em que, quando pensamos nisso, nos faz tremer embaraçados ou coisa pior.

 

Ramírez empertigou-se atrás dele, pondo subitamente uma carapaça impenetrável. Ninguém ia meter-se nos seus assuntos privados. Falcón viu-o através do vidro e decidiu facilitar a vida ao sevilhano.

 

- Sabe, como ter-se feito uma figura triste perante uma rapariga, em miúdo; ou talvez ter-se acobardado em vez de proteger um amigo; ou ter-se manifestado fraqueza moral, não lutando por uma coisa em que se acreditava para não se levar uma sova. Esse género de coisas, mas transferido para a vida adulta, com implicações adultas.

 

Ramírez olhava para a gravata, que tinha tanto de introspectiva como ele.

 

- Refere-se ao género de coisas para as quais o comisario Lobo o alertou? Falcón viu nisto uma maneira brilhante de desviar o assunto. Corrupção - a mancha controlável. Lavada, ensaboada e espremida. Esquecida. É apenas dinheiro. Faz tudo parte do jogo.

 

- Não - limitou-se a dizer.

 

Ramírez foi andando para a porta e anunciou que dava o dia por encerrado. Falcón despediu-se através do vidro.

 

Estava subitamente exausto. O peso do dia assentou-lhe nos ombros. Fechou os olhos e, em vez de pensar em jantar, beber um copo e ir para a cama, constatou que o cérebro continuava a girar, tecendo espirais em torno da questão:

 

«O que é que podia ser tão horrível?»

 

Quinta-feira, 12 de Abril de 2001, casa de Javier Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

Javier Falcón sentou-se no escritório da grande casa setecentista que tinha pertencido ao pai. A sala ficava no piso térreo e dava para as arcadas do pátio, no meio do qual havia uma fonte com um rapaz em bronze, equilibrado num dedo do pé, com uma perna erguida e um cântaro sobre o ombro. Quando a fonte jorrava, a água saía pelo cântaro. Falcón só a abria no Verão, que era quando o marulhar da água lhe podia dar a ilusão de alguma frescura.

 

Estava sozinho na casa. A empregada, Encarnación, que já tinha sido governanta do pai, saía às 7 da tarde, o que significava que nunca a via. O único indício da sua presença era um bilhete ocasional e o hábito - irritante para ele que tinha de mudar as coisas de sítio. Os vasos de plantas do pátio apareciam de repente arrumados num canto diferente, peças de mobiliário mais portáteis desapareciam do lugar respectivo e reapareciam noutra divisão, efígies da Virgen del Rocio ocupavam nichos anteriormente vazios. A mulher dele, a ex-mulher, tinha sido igualmente uma grande promotora de mudanças.

 

- Podíamos transformar esta sala na tua sala de snooker - tinha alvitrado.

- Podíamos pôr ali um humidificador, para os teus charutos.

 

- Mas eu não fumo.

 

- Mas ficava bem.

 

- E também não jogo snooker.

 

- Devias começar a jogar.

 

Estas conversas idiotas insinuaram-se-lhe na mente quando se sentou à secretária com a lupa. Não era aquele ridículo exemplar de antiquário, à Sherlock Holmes, que a mulher lhe tinha dado num aniversário, demasiado absurdo para o inspector jefe del Grupo de Homicídios. Esta era uma lupa montada sobre uma caixa de acrílico, que emitia luz sobre aquilo que estava a observar.

 

Estava a ver as fotografias que tinha retirado da secretária de Raúl Jiménez. Diante dele, encostadas à moldura da fotografia da mãe com ele ao colo em bebé, rodeados pelo irmão, Paco, então com sete anos, e a irmã, Manuela, de cinco, estavam duas outras fotografias, lado a lado. A primeira era outro instantâneo da mãe, sentada na praia com o vento a dar-lhe no cabelo, em fato de banho e com uma touca com pétalas de flores em borracha. Era a sua fotografia informal preferida. No verso tinha escrito «Tânger, Junho de 1952». Tinha vinte e cinco anos e não dava para acreditar, vendo-a assim, cheia de vitalidade, que só teria mais nove anos de vida.

 

A segunda fotografia era do pai - de cabelo negro penteado para trás, um bigodinho de tira-linhas, nariz demasiado grande para o rosto jovem, boca sensual e os olhos... Mesmo a preto e branco, aqueles olhos eram extraordinários. Parecia que estavam habituados a ver com clareza a grandes distâncias e que toda a luz recebida brilharia nas íris, que eram verdes, mas se tornavam âmbar junto à pupila. Já entrado nos oitenta anos, depois de o primeiro ataque cardíaco o ter enfraquecido, aqueles olhos verdes ainda conseguiam reter a luz. Eram os olhos que se esperava que um artista da sua envergadura tivesse - observadores, penetrantes e iluminados. Naquele instantâneo, o pai vestia um casaco branco e um laço preto. Por trás, estava escrito: «Véspera de Ano Novo, Tânger, 1953.»

 

Falcón percorreu as fotografias de Jiménez, furioso com a falta de qualidade das provas. Perguntou-se por que diabo o fazia. Tinha o hábito de trabalhar tangencialmente, mas isto era absurdo. Não tinha relação com o caso. Que diferença faria se encontrasse qualquer dos pais nessas fotografias? E o que tinha a ver terem os pais estado em Tânger ao mesmo tempo que Raúl e Gumersinda Jiménez? O mesmo acontecia com outros 40 mil espanhóis. Quanto mais argumentos tecia contra a sua confusão ilógica, mais crescia a sua fascinação. E ocorreu-lhe por instantes que podia apenas estar a ficar velho.

 

As fotografias do iate, simples instantâneos de um novo brinquedo de Raúl Jiménez, não lhe interessaram, até ver uma do porto, cheio de barcos, com pessoas a festejarem no convés. Jiménez, a mulher e os filhos estavam em primeiro plano. Pareciam felizes. A mulher acenava com a mão e tinha os dois garotos ao colo, a rir. Falcón levantou a lupa e percorreu os outros barcos alinhados por trás do de Jiménez. Parou, regressou a um par no convés e ignorou as semelhanças. Avançou e voltou ao casal; e percebeu por que o tinha descartado. Era o pai, inclinado sobre a balaustrada de um iate maior que o de Raúl. Estava com uma mulher cujo rosto não conseguia ver bem, mas que tinha cabelo loiro. Estavam a beijar-se. Tinha sido um momento privado, rápido, que o fotógrafo de Jiménez tinha captado inadvertidamente.


Olhou para o verso: «Tânger, Agosto de 1958.» Pilar, a sua mãe, ainda estaria viva.

 

Olhou para a loira mais de perto e ficou espantado por ver que se tratava de Mercedes, a segunda mulher do pai. Sentiu-se nauseado e afastou a lupa. Apertou as palmas das mãos contra os olhos. É o que acontece quando uma pessoa se mete por uma tangente... depara com verdades inesperadas. Foi essa a única razão para o ter feito.

 

O telefone tocou. Era a irmã, num telemóvel, falando de um bar sobrelotado.

 

- Já sabia que te apanhava em casa, se não estivesses a trabalhar - disse Manuela. - O que fazes, maninho?

 

- Estou a ver umas fotografias antigas.

 

- Eh! Então, avozinho, tens de aprender a viver um bocadinho. Estamos aqui no La Tienda e vamos ficar mais meia hora; vem tomar uma cervecita connosco. Depois vamos jantar ao El Cairo. Também podes vir connosco, se trouxeres a bengala.

 

- Acompanho-vos na cervecita.

 

- Faz isso, maninho. E mais. Uma condição muito importante...

 

- Sim, Manuela?

 

- Ficas proibido de pronunciar a palavra «Inés». ’Tá?

 

Desligou. Abanou a cabeça para o telefone mudo. A psicologia falhada de Manuela. Pôs o casaco, ajustou a gravata, vasculhou os bolsos e descobriu a morada e telefone do filho de Raúl Jiménez. No dia seguinte era Viernes Santo. Feriado. Tentou o número, à sorte. José Manuel Jiménez atendeu. Falcón identificou-se e apresentou as suas condolências.

 

- Já fui informado - disse ele, preparando-se para desligar.

 

- Só queria dizer-lhe que...

 

- Não posso falar consigo agora.

 

- Talvez nos pudéssemos encontrar amanhã... para uma conversa rápida. Era importante, para esboçar um pano de fundo.

 

- Não vejo realmente em que...

 

- Deslocar-me-ei a Madrid, evidentemente.

 

- Não há nada para dizer. Não vejo o meu pai há anos.

 

- Por isso mesmo. O presente não me interessa.

 

- Não sei absolutamente nada.

 

- Pense nisso durante a noite. Volto a telefonar amanhã de manhã. Não demoro e pode representar uma grande ajuda.

 

Jiménez despediu-se atabalhoadamente e desligou. Falcón sabia que se tratava de um advogado, mas não se tinha comportado como tal; demasiado hesitante e denotando falta de segurança. Desligou o candeeiro e saiu para o pátio. Respirou o ar fresco da noite e o silêncio quase absoluto, visto que as movimentações da cidade chegavam como um fraco rugido a este centro fechado e escuro da casa. Espreguiçou-se, alargou o peito e os braços e viu por entre os arcos da galena por cima do pátio aquilo a que Eloisa Gómez teria chamado «o movimento das sombras». Correu escada acima, procurando no bolso a chave para abrir a porta de barras de ferro forjado que barrava o topo. Percorreu a galeria até à porta de ferro forjado seguinte, que dava para outra sucessão de arcos, no exterior do velho estúdio do pai. Estava vazia. Recuou até ao arco onde tinha visto o movimento e olhou para o pátio em baixo. A água da fonte, plácida e negra como uma pupila, fitava o céu. «É cansaço», pensou, e apertou os olhos com força.

 

Saiu de casa, atravessou uma portinha aberta nos portões de madeira cravejados de latão, que formavam a entrada para aquela enorme casa da calle Bailén. Demasiado grande para ele, sabia-o, e demasiado imponente para a sua posição; mas de cada vez que pensava vendê-la, afundava-se rapidamente no que isso acarretava de trabalho. Antes de mais, teria de fazer aquilo que o pai lhe deixara instruído no testamento - limpar o estúdio e incinerar tudo. Queimar tudinho, até ao último esquisso. Não era capaz de o fazer. Não o tinha feito. Nem sequer tinha entrado no estúdio desde que o pai morrera, havia quase dois anos. Não tinha sequer aberto aquela última porta de ferro forjado da galeria.

 

O advogado do pai tinha morrido três meses depois da leitura do testamento, e Paco e Manuela não se tinham importado com isso. Estavam demasiado absortos nas suas próprias heranças. Paco, com a finca de criação de toiros em Las Cortecillas, na subida para a Sierra de Aracena; Manuela, com a casa de férias em El Puerto de Santa Maria. Não tinham tido com o pai o mesmo tipo de relação que ele. Falara com ele praticamente todos os dias depois do primeiro ataque cardíaco e, assim que começou a trabalhar em Sevilha, se não fossem almoçar todos os domingos, pelo menos saíam para tomar um fino, só para ele sair de casa. Tinham praticamente recuperado o nível de intimidade que tinham na sua juventude, no início dos anos 1970. Era o único filho que lhe restava, depois de Manuela ter ido para Madrid, estudar Veterinária, e Paco se ter instalado na quinta, depois de recuperar de um ferimento grave na perna, infligido enquanto novillero na praça de touros de Sevilha, La Maestranza. O acidente tinha acabado com qualquer veleidade de uma carreira de torero.

 

Falcón dirigiu-se pelas estreitas ruas afuniladas, pavimentadas de pedra, até ao bar da calle Gravina. Era uma mercería transformada, ainda com as velhas balanças no balcão. As pessoas espalhavam-se pela rua com as suas cervejas. Manuela estava com o namorado, envolta na multidão. Falcón espremeu-se por entre a mole humana. Homens que mal conhecia deram-lhe un abrazo à sua passagem, mulheres desconhecidas beijaram-no - amigas da Manuela.

 

A irmã beijou-o e apertou-o contra o corpo trabalhado em ginásio. Alejandro, o namorado, que ela tinha conhecido nas máquinas de remo do clube, estendeu-lhe uma cerveja.

 

- Maninho - disse, tratando-o como fazia desde criança -, estás com um ar cansado. Mais cadáveres?

 

- Só um.

 

- Outra morte horrenda por causa de droga, não? - disse ela, acendendo um dos seus repelentes cigarros mentolados, que pensava não lhe fazerem tanto mal.

 

- Horrenda, sim, mas não por droga, desta vez. Mais complicado.

 

- Não sei como aguentas.

 

- Não há muitos amigos teus a quem passasse pela cabeça que alguém tão bonita e sofisticada como a Manuela Falcón poderia ter andado com os braços enfiados até aos ombros para sacar vitelos nados-mortos de dentro das vacas.

 

- Oh, já não faço disso.

 

- Não te estou a ver a cortar as unhas a caniches.

 

- Tens de falar com o Paco - disse ela, ignorando-o. - Está muito tenso, sabes.

 

- A Feria é a época do ano em que tem mais trabalho.

 

- Não, não é por isso - segredou-lhe. - São as vacas locas. Está preocupado se a manada foi infectada com a BSE. Estou a fazer testes a todos os animais, em segredo.

 

Falcón deu um golo na sua cerveja, comeu um pouco de jamón ibérico de bellota, macio e apaladado.

 

- Se fizerem testes oficiais - continuou ela - e descobrirem um só animal doente, tem de abater toda a manada, mesmo as que têm 120 anos de apuramento de linhagem de sangue.

 

- Isso provoca grandes tensões.

 

- A perna está mal. É sempre assim, quando fica mais tenso. Tem dias de mal conseguir andar.

 

Alejandro pôs um prato de queijo à frente deles e Javier, instintivamente, virou a cara.

 

- Ele não gosta de queijo - explicou Manuela, e o prato foi retirado.    

 

- Falou-se hoje no teu nome, no meu trabalho - disse Falcón.

 

- Isso não pode ser bom.

 

- Vacinaste um cão para uma certa pessoa. Era um recibo.

 

- De quem era o cão?

 

- Espero que te tenha pago.

 

- Não tinhas encontrado um recibo assinado se não tivesse.

 

- Raúl Jiménez.

 

- Sim, um Weimaraner muito bonito. Era um presente para os filhos... vão-se mudar para uma casa nova. Devia tê-lo ido buscar hoje.

 

Falcón olhou fixamente para ela. Manuela pestanejou, olhando para a cerveja e pousou-a. Era raro aquilo acontecer, um assassínio real interferir numa situação social. Normalmente, ele iria empatando, se instado, com histórias de detecção, a sua abordagem idiossincrática, a sua atenção aos pormenores. Nunca contava o que realmente se passava - sempre trabalhoso, por vezes muito entediante e entremeado com momentos de horror.

 

- Preocupas-me, maninho.

 

- Não corro perigo.

 

- Quer dizer... este trabalho. Faz-te coisas.

 

- O quê?

 

- Não sei, calculo que tenhas de te insensibilizar para sobreviveres.

 

- Insensibilizar? Eu? Eu investigo homicídios. Investigo as razões por que ocorrem esses momentos de aberração. Por que é que, no coração de tempos tão racionais, com tantos expoentes de civilização, ainda podemos fraquejar e falhar como seres humanos? Não é como se estivesse a matar animais de estimação ou a abater manadas inteiras.

 

- Não sabia que eras tão sensível a esses aspectos.

 

Estavam tão próximos que ele sentia-lhe o cheiro do mentol dos cigarros no hálito, mesmo no meio do suor e perfume espalhados pelo bar. Manuela era mesmo assim, provocadora, e era por isso que os namorados, escolhidos pelo aspecto e pela carteira, nunca duravam. Era incapaz de manter por muito tempo aquela feminilidade palpitante.

 

- Hija - disse, sem querer continuar com aquilo. - Tive um dia longo.

 

- Não foi o que disseste ser uma das acusações da Inés?

 

-Foste tu quem disse a palavra proibida, não fui eu.

 

Manuela olhou para o ar, sorriu e encolheu os ombros.

 

- Esperavas que tivesse sido paga para vacinar o cão do pobre homem. Achei apenas ser uma falta de sensibilidade, foi só. Mas talvez estivesses apenas a ser... fleumático.

 

- Foi uma piadinha de mau gosto - disse e depois surpreendeu-se a mentir. - Não sabia que era um presente para os filhos.

 

Alejandro atravessou o seu belo perfil entre ambos. Manuela riu completamente a despropósito, a não ser estarem no princípio da relação e ela ainda desejar ardentemente que o seu homem se sentisse valorizado.

 

Falaram acerca de los toros, o único tópico que tinham em comum. Manuela empolgou-se a falar do seu torero favorito, José Tomás, que não era, contra seu hábito, um dos homens mais bonitos da plaza, mas que admirava por manifestar grande tranquilidade na faena. Nunca se apressava, nunca arrastava os pés, conduzia o touro com a frente da muleta, nunca com o canto, pelo que o touro passava sempre o mais perigosamente perto de si que era possível. Inevitavelmente, acabaria por ser colhido e, quando isso aconteceu, levantou-se e regressou lentamente ao touro.

 

- Vi-o uma vez na televisão, no México. Foi colhido pelo touro, que lhe rasgou a perna das calças. O sangue escorria. Ficou pálido e fraco; mas levantou-se, equilibrou-se, acenou aos seus homens que saíssem e voltou ao touro. E a câmara mostrou: havia tanto sangue a escorrer-lhe pela perna abaixo que •• lhe enchia o sapato e esguichava a cada passo. Colocou o touro e deu a estocada final. Levaram-no directamente para a enfermaria. Que hombre, que torero.

 

- O vosso primo Pepe - cortou Alejandro, que já tinha ouvido a história muitas vezes -, Pepe Leal: vai ter alguma oportunidade na Feria?

 

- Ele não é nosso primo - disse Manuela, esquecendo o seu papel por momentos. - É filho do irmão da nossa cunhada.

 

Alejandro encolheu os ombros. Estava a insinuar-se a Javier. Sabia que Javier era o confidente de Pepe e que, quando o trabalho lho permitia, ia à plaza na manhã da corrida, para seleccionar os touros para o jovem torero.

 

- Este ano, não - disse Javier. - Portou-se muito bem em Olivença, em Março. Cortou uma orelha em cada um dos touros e vão voltar a convidá-lo para a Feria de San Juan em Badajoz; mas ainda não lhe reconhecem estatura para a Feria de Abril. Resta-lhe ficar por aí e esperar que alguém desista.

 

Tinha pena do rapaz, Pepe, com apenas dezanove anos e um grande talento; e um agente que nunca o conseguia incluir nas plazas de primeira categoria. Não tinha nada a ver com habilidade, apenas com estilo.

 

- As coisas vão mudar - disse Manuela, que sabia que Javier se sentia responsável pelo rapaz.

 

- Ele está convencido de que já está demasiado velho para fazer carreira disse Javier. - Olha para El Juli, que parece andar nisto há décadas e só tem mais um par de anos do que ele; e perde o alento.

 

Alejandro encomendou mais três cervejas ao empregado do balcão. Manuela estava a levantar a sobrancelha a Javier.

 

- O que é? - perguntou Javier.

 

- Tu - disse ela. - Tu e Pepe.

 

- Esquece isso.

 

- Lembra-te do que o tipo do «6 Toros» escreveu no ano passado.

 

- Era um idiota.

 

- Estás mais próximo do Pepe que o próprio pai. Tantos negócios na América do Sul e nem vai sequer ver o próprio filho, quando ele actua no México.

 

- Estás a ser uma sentimental, como o jornalista - disse Javier. - Eu só ajudo o Pepe com os touros.

 

- Tens um orgulho nele que o pai não tem.

 

- Não estás a ser justa - disse; e para mudar o assunto: - Vi hoje uma fotografia do Papá...

 

- Precisas de arranjar uma mulher, Javier - disse ela. - Não tem jeito andares às voltas com os velhos álbuns.

 

- Foi uma fotografia que encontrei no escritório de Raúl Jiménez. Estiveram em Tânger pela mesma altura. O Papá não se deu conta de ter sido fotografado.

 

- Estava a fazer alguma coisa condenável?  

 

- Era datada de Agosto de 1958 e ele estava a beijar uma mulher...      

 

- Não me digas... não era a Mamá?  

 

- Acertaste.

 

- E ficaste chocado?    

 

- Sim, fiquei. Era a Mercedes.

 

   - O Papá não era um anjo, Javier.

 

- A Mercedes não era ainda casada na altura?

 

- Não sei - disse Manuela, afastando tudo com um gesto do cigarro. - Era a Tânger daquela época. Andava tudo completamente «pedrado» e comiam-se todos uns aos outros.

 

- És capaz de fazer um esforço de memória? Eras mais velha. Eu não tinha nem quatro anos.

 

- Que importância tem isso?

 

- Acho que pode ajudar-me.

 

- Com o assassínio de Raúl Jiménez?

 

- Não, não. Acho que não. É pessoal. Queria tirar isso a limpo, é só.

 

- Sabes, Javier, talvez não devesses viver naquela casa tão grande sozinho.

 

- Tentei viver lá com outra pessoa, que não podemos mencionar.

 

- Aí é que está. As casas velhas estão cheias de fantasmas e as mulheres não gostam de partilhar o seu espaço, a menos que seja por iniciativa própria.

 

- Gosto de lá morar. Sinto-me no meio das coisas.

 

- E nem ao «meio das coisas» vais, pois não? Não conheces nada que não esteja entre calle Bailén e a Jefatura. E a casa é demasiado grande para ti.

 

- Como era para o Papá?

 

- Devias arranjar um apartamento como o meu... com ar condicionado.

 

- Ar condicionado? - perguntou Javier. - Sim, se calhar ajudava. Limpava o ar. Os últimos modelos não têm um botão suplementar de «Acondicionar o passado»?

 

- Foste sempre um rapazinho estranho. Talvez o Papá te devesse ter deixado ser pintor.

 

- Isso tinha resolvido tudo, porque ficaria tão desfalcado que teria de vender a casa mal ele morreu.

 

Os amigos de Manuela e Alejandro chegaram e Javier engoliu a cerveja. Arranjou uma desculpa para não ir jantar com eles, no meio de um coro de protestos forçados. Trabalho, disse ele e repetiu várias vezes; o que poucos entenderam, porque estavam bem defendidos contra as agruras do trabalho árduo quotidiano.

 

De volta a casa, comeu mexilhões em molho de tomate, frios. Foi Encarnación que lhos deixou, por saber que não se alimentaria decentemente sem uma mulher em casa. Bebeu um copo de um vinho branco barato e molhou um bocado de pão duro no molho. Não dava por estar a pensar e, no entanto, a cabeça parecia andar num turbilhão. Pensou que era o cérebro a descomprimir, no final do dia; até se ter dado conta de que era mais um rebobinar, como numa cassete; um rebobinar em acelerado. Inés. Divórcio. Separação. «Não tens coração.» A mudança para a casa. O pai a morrer...

 

Parou aquilo. Havia uma martelada audível dentro da sua cabeça. Foi para a cama com coisas a mais no corpo. Chocou com uma barreira de sono e teve o primeiro sonho de que se lembrava havia um período muito considerável de tempo. Era muito simples. Ele era um peixe. Achava que devia ser um peixe muito grande, mas não se via a si mesmo. Era um peixe; apenas se dava conta da água que passava por ele a toda a pressa e de uma centelha no olho, que ele fechava, porque o instinto lhe dizia para fechar. Era rápido. Tão rápido que nunca viu aquilo que perseguia. Limitava-se a percebê-lo e seguia para diante. Só que... ao fim de um tempo, sentia um esticão, sentia o primeiro repelão da suas vísceras e saía projectado para a superfície.

 

Acordado, olhou em redor, espantado por se encontrar na cama. Carregou na barriga. Aqueles mexilhões, estariam bons?

 

Sexta-feira, 13 de Abril de 2001, casa de Javier Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

Levantou-se cedo; as guinadas no estômago tinham passado. Passou uma hora na bicicleta de exercício, escolhendo um programa árduo para fazer. A concentração requerida para ultrapassar a barreira da dor ajudou-o a organizar o dia. Não era feriado para ele.

 

Apanhou um táxi até à Estación de Santa Justa e bebeu um café solo no quiosque da estação. O AVE, comboio de alta velocidade para Madrid, saía às 9h. 30. Esperou até às 9 e telefonou a José Manuel Jiménez, que atendeu como se estivesse à espera que tocasse.

 

- Diga.

 

Falcón apresentou-se e pediu para marcar um encontro.

 

- Não tenho nada para lhe dizer, inspector jefe. Nada que o possa ajudar. O meu pai e eu não nos falamos há bem mais de trinta anos.

 

- A sério?

 

- Passámos muito pouco em comum.

 

- Gostaria de falar consigo a esse respeito, mas não pelo telefone - disse e Jiménez não respondeu. - Posso estar aí dentro de uma hora e estará livre antes do almoço.

 

- Não vem nada a propósito.

 

Falcón deu por si surpreendentemente desesperado para falar com aquele homem, mas tinha de ser fora de serviço. Endureceu a argumentação.

 

- Estou a conduzir a investigação de um homicídio, Sr. Jiménez. Os homicídios nunca vêm a propósito.

 

- Não tenho nada que esclareça o seu caso, inspector jefe.

 

- Tenho de conhecer os antecedentes.

 

- Fale com a mulher dele.    

 

- O que é que ela sabe sobre a vida dele antes de 1989?

 

- Por que é que tem de recuar tanto no tempo?

 

Isto era absurdo, esta luta para falar com o homem. E aumentou a sua determinação.

 

- Tenho uma forma especial de trabalhar, mas que tem dado bons resultados, Sr. Jiménez - disse, só para impedir que desligasse. - E a sua irmã... Costuma vê-la?

 

A linha sibilou durante uma eternidade.

 

- Volte a ligar-me dentro de dez minutos - disse; e desligou.

 

Falcón pôs-se a andar de um lado para o outro do átrio da estação, pensando numa nova estratégia durante dez minutos. Quando voltou a ligar, tinha uma série de perguntas engatilhadas como numa cartucheira.

 

- Espero por si à uma da tarde - disse Jiménez e desligou.

 

Comprou o bilhete e entrou no comboio. Ao meio-dia, o AVE deixava-o na Estación de Atocha, no centro de Madrid. Apanhou o Metro para Esperanza, o que parecia auspicioso; ficava a curta distância do apartamento de Jiménez.

 

José Manuel Jiménez fê-lo entrar para o átrio. Era mais baixo do que Falcón, mas mais forte de constituição. A cabeça encaixava no pescoço como se estivesse debaixo de uma viga ou se carregasse um fardo nos ombros. Quando falava, os olhos não paravam de olhar em redor, a coberto de umas sobrancelhas escuras e pesadas, que a mulher dele não conseguia manter alinhadas. O efeito não era furtivo, antes deferente. Pegou no casaco de Falcón e levou-o por um corredor com chão de tacos, afastando-o da cozinha e das vozes da família, até ao escritório. Andava inclinado para a frente, como se puxasse um trenó.

 

O escritório tinha muitos tapetes marroquinos sobrepostos, que tapavam o chão de madeira até uma secretária de estilo inglês em nogueira. Alinhados nas paredes, até à janela, estavam os livros encadernados associados ao local de trabalho de um advogado. Ofereceu um café, que foi aceite. Nos instantes em que foi deixado sozinho, Falcón inspeccionou as fotografias de família dispostas no cimo de um escaparate. Reconheceu Gumersinda com os dois filhos pequenos. Não havia nenhuma de Raúl. Não havia nenhuma da rapariga depois dos doze anos de idade. As outras fotografias eram da família de José Manuel Jiménez ao longo dos anos, culminando em duas fotografias de formatura de um rapaz e uma rapariga.

 

Jiménez voltou com o café. Manobraram em torno um do outro para Falcón voltar para a sua cadeira e Jiménez se sentar atrás da secretária. Apertou as mãos; os bicípites e ombros incharam por baixo do casaco de tweed verde.

 

- Por entre velhos instantâneos do seu pai, encontrei um do meu próprio pai - disse Falcón, avançando para a abordagem tangencial.

 

- O meu pai tinha restaurantes; por certo, tinha muitas fotografias com clientes.

 

Então ele sabia pelo menos aquilo sobre o pai.

 

- Não estava entre as fotografias das pessoas famosas...

 

- O seu pai era uma pessoa famosa?

 

Era uma brecha que não queria abrir, mas talvez, como acontecera com Consuelo Jiménez, revelar um pouco de si pudesse provocar revelações surpreendentes por parte dos outros.

 

- O meu pai era o pintor Francisco Falcón, mas não era por isso...

 

- Então, não me admiro que não estivesse na parede do meu pai - cortou Jiménez. - O meu pai tinha a sensibilidade cultural de um camponês, que era o que ele era.

 

- Reparei que ele fumava Celtas, a que retirava os filtros.

 

- Costumava fumar Celtas cortas, sem filtro, mas que eram melhores do que o esterco seco que teve de fumar depois da Guerra Civil.

 

- Era camponês onde?

 

- Os pais dele trabalhavam as suas terras perto de Almeria. Foram mortos durante a Guerra Civil e a família perdeu tudo. Depois da morte deles, o meu pai foi-se embora. É tudo o que sei. É provável que fosse por isso que o dinheiro se tornou tão importante para ele.

 

- A sua mãe não...

 

- Duvido que soubesse. Se sabia, não nos contou. Acho mesmo que ela não sabia nada da sua vida antes de o conhecer e o meu pai não ia dizer aos pais dela até a ter conquistado.

 

- Conheceram-se em Tânger?

 

- Sim, a família dela mudou-se para lá no início dos anos 40. O pai era advogado. Foi para lá, como todos os outros, para ganhar dinheiro, depois de a Guerra Civil ter deixado a Espanha em ruínas. Ela era uma rapariguinha, com cerca de oito anos. O meu pai apareceu em cena um pouco mais tarde... Por volta de 1945, acho eu. Embeiçou-se por ela no instante em que a conheceu.

 

- Ela era ainda muito nova, não era? Treze anos?

 

- E o meu pai vinte e dois. Era uma relação curiosa, que os pais dela não viam com bons olhos. Obrigaram-na a esperar até aos dezassete, antes de a deixarem casar-se.

 

- Foi só por causa da diferença de idades?

 

- Ela era a única filha que tinham - disse Jiménez. - E não creio que a falta de pergaminhos familiares os tivesse impressionado favoravelmente.

 

Devem ter visto de que massa ele era feito. E para além disso, gostava de ostentação.

 

- Era rico, nessa altura?

 

- Ganhou muito dinheiro lá e divertia-se a gastá-lo.

 

- Como é que ganhou esse dinheiro?

 

- Contrabando, provavelmente. O que quer que fosse, tenho a certeza de que não era legal. Mais tarde, entrou no negócio de câmbios. A certa altura, teve até um banco, ainda que isso não quisesse dizer grande coisa. Entrou no negócio do imobiliário e na construção civil, também.

 

- Como é que sabe tudo isso? - perguntou Falcón. - Não tinha mais de dez anos quando se veio embora e é pouco provável que ele lhe contasse muita coisa.

 

- Juntei peças, inspector jefe. É assim que a minha cabeça funciona. Foi a minha forma de dar sentido ao que aconteceu.

 

O silêncio ocupou a sala como a notícia de uma morte. Falcón estava desejoso de que ele continuasse, mas Jiménez tinha os lábios colados aos dentes, a fazer-se de forte.

 

- Nasceu em 1950 - disse Falcón, incitando-o a continuar.

 

- Nove meses exactos depois do dia em que se casaram.

 

- E a sua irmã?

 

- Dois anos depois. Houve umas complicações com o parto dela. Sei que quase a perderam e que deixou a minha mãe muito fraca. Queriam ter muitos filhos, mas a minha mãe não podia, depois daquilo. E afectou também a minha irmã.

 

- Como?

 

- Ela era uma rapariga de temperamento muito doce. Cuidava muito das coisas... animais, especialmente gatos vadios, que havia em grandes quantidades em Tânger. Não havia nada que pudesse... Ela era apenas... - hesitou, com as mãos a massajar o ar, forçando as palavras a sair. - Ela era apenas limitada, só isso. Não era estúpida... era apenas descomplicada. Não era como as outras crianças.

 

- A sua mãe chegou a recuperar as forças?

 

- Sim, sim, recuperou completamente. Ela... - Jiménez dispersou-se e olhou para o tecto. - Voltou até a ficar grávida. Foi um período difícil. O meu pai teve de sair de Tânger, mas a minha mãe não se podia deslocar.

 

- Quando foi isso?

 

- No final de 1958. Levou a minha irmã e eu fiquei.

 

- Para onde foi ele?

 

   - Alugou uma casa numa aldeia, nos montes por trás de Algeciras.        

 

- Fugido?

 

- Das autoridades, não.

 

- Um negócio que correu mal?

  

- Nunca descobri.

 

- E a sua mãe?

 

- Teve o bebé. Um rapaz. O meu pai apareceu misteriosamente na noite do nascimento. Apareceu em segredo. Temia que algo corresse mal, como da vez anterior, e que ela não sobrevivesse ao parto. Ele estava...

 

Jiménez cerrou o cenho, como se tivesse dado com uma coisa para lá da sua compreensão. Pestanejou, lutando contra a interferência das lágrimas.

 

- Isto é um domínio muito difícil, inspector jefe - disse. - Pensava que, quando o meu pai morresse, ficaria satisfeito. Seria um alívio e, de certa forma, uma libertação de... Significaria o final de todos estes pensamentos inacabados.

 

- Pensamentos inacabados, Sr. Jiménez?

 

- Pensamentos que não têm fim. Pensamentos intermináveis porque não têm solução. Pensamentos que me deixam permanentemente suspenso, em desequilíbrio.

 

Apesar daquelas palavras serem reconhecíveis em termos de língua, o seu significado era obscuro; mas de novo, sem saber porquê, Falcón percebeu um pouco do tormento do homem. Também ele tinha a mente povoada de palpites dilacerantes - a morte do pai, as coisas deixadas por dizer, o estúdio nunca investigado.

 

- Talvez seja o nosso estado natural - disse Falcón. - Sermos originados por seres humanos complicados que não é possível conhecer. Somos sempre os portadores do não-resolvido, que depois acrescentamos com as nossas próprias questões irresolúveis, e que, por nosso turno, passamos à descendência. Talvez seja melhor ser-se descomplicado, como a sua irmã. Não ter de carregar com a bagagem das gerações anteriores.

 

Jiménez fitou-o com olhos de animal, por debaixo das suas sobrancelhas em escova. Sorveu as palavras da boca de Falcón. Recompôs-se e desanuviou a expressão do rosto.

 

- O único problema em relação a isso... - disse -, no caso da minha irmã, é que a sua falta de complexidade não a dotou com o sistema, o potencial para reordenar o caos depois do cataclismo ter atingido a nossa família. Perdeu o ténue elo com uma existência estruturada e ficou, a partir de então, a flutuar no espaço. Sim, acho que é a isso que a sua loucura se assemelha... a um astronauta desligado da nave, rodopiando num vazio interminável.

 

- Acho que já nos estamos a afastar do assunto.

 

- Pois é - disse. - E sei porquê.

 

- Devíamos voltar ao seu pai temendo que a sua mãe pudesse não aguentar o parto.

 

- O que eu pensava na altura, aquilo com que me debatia, era uma memória, surpreendente à luz de acontecimentos posteriores, do meu pai profundamente apaixonado pela minha mãe. É uma coisa que mesmo agora tenho grande dificuldade em admitir. Em rapaz, quando a minha mãe morreu, nunca acreditaria em tal coisa. Pensava que ele tinha feito tudo para dar cabo dela.

 

- E como é que chegou à nova conclusão?

 

- Psicanálise, inspector jefe. Nunca pensei ser candidato a tal pantominice. Sou advogado. Tenho um cérebro organizado. Mas quando se está desesperado, e refiro-me a um desespero absoluto, daqueles em que só se consegue ver a vida a desmoronar-se à nossa volta, então tem de se admitir para nós próprios: «Estou maluco e vou ter de resolver isto deitando tudo cá para fora.»

 

Jiménez dirigiu esta explicação directamente a Falcón, como se tivesse visto nele alguma coisa que merecesse atenção.

 

- Então, o que aconteceu à sua mãe e ao bebé? - perguntou Falcón.

 

- A minha mãe precisou de alguns dias para recuperar. Lembro-me muito bem dessa altura. Não tínhamos autorização para sair de casa. Os criados foram instruídos para dizerem que não estava ninguém. A comida vinha secretamente de casa de vizinhos. Homens armados, que geralmente guardavam os estaleiros das obras, foram colocados do outro lado da rua. O meu pai andava de um lado para o outro da casa, como uma pantera enjaulada. Parava apenas para espreitar por uma fenda nas portadas das janelas, quando ouvia qualquer coisa na rua. A tensão e o tédio preenchiam-nos em partes iguais. Foi o início do ensandecimento da família.

 

- E nunca descobriu de que é que o seu pai tinha medo?

 

- Eu era um miúdo, nesse tempo, não me interessava. Só queria evitar chatear-me. Mais tarde... muito mais tarde, achei que era importante descobrir o que é que tinha levado o meu pai àqueles limites. Por isso, trinta anos depois, pensei que a única pessoa que me podia dar uma resposta seria ele. Foi a última vez que falámos a nível pessoal. E é essa a magia do cérebro humano.

 

- Qual? - perguntou Falcón, com um salto na cadeira, como se tivesse perdido o momento vital.

 

- Se temos lá dentro alguma coisa de que não gostamos, passamos por cima dela. Como um rio que está farto de fazer a mesma curva fechada dia após dia; corta a direito e vai-se juntar ao trecho de rio para lá do meandro. A curva desliga-se e forma um pequeno lago, um reservatório de memória que, na falta de alimentação, acaba por secar.

 

- Ele esqueceu-se do que aconteceu?

 

- Ele negou ter acontecido. No que lhe dizia respeito, aquilo nunca aconteceu. Olhou para mim como se eu estivesse louco.

 

- Mesmo com a sua mãe morta e a sua irmã internada em San Juan de Dios?

 

- Estávamos em 1995. Ele tinha-se casado com a Consuelo. Estava noutra vida diferente. O passado estava tão distante dele como... uma encarnação prévia.

 

- Ficou surpreendido com a Consuelo?

 

- Com o aspecto dela? - perguntou. - Deus meu, fiquei siderado. Pôs-me em pele de galinha. Queimei a fotografia que me mandou do casamento.

 

- Portanto, não conseguiu ajuda pelo lado do seu pai?

 

- Só para concluir que aquilo que eu pensava que precisava de saber não era importante. Não havia nada no mundo do meu pai, tanto quanto podia ver, que ele tivesse colocado em mais alta prioridade do que a vida de um filho. A prová-lo estava o silêncio dele, a negação liminar, toda a expressão da sua vida... o casamento com uma sósia da mulher...

 

- Isso não seria uma tortura?

 

Jiménez lançou um ronco de escárnio.

 

- Se quiser chamar ao conforto de uma mulher bonita castigo... então sim.

 

- Acha que ele limpou a folha e começou uma vida nova?

 

- O meu pai era um animal instintivo. O funcionamento da cabeça dele não era o dos seres humanos normais. Para se ser um homem de negócios com o sucesso dele (e eu sei, porque trabalho para alguns homens muito bem sucedidos), não se pode pensar como as pessoas vulgares... E ele não pensava.

 

- Perdemo-nos outra vez. Se calhar está a ir depressa de mais no raciocínio.

 

Jiménez inclinou-se por cima da mesa, com o queixo firme.

 

- Nem lhe passe pela cabeça que eu não sei o que estou a fazer - disse ele. - Nunca falei destas coisas com ninguém antes, a não ser com o homem que conseguiu desmanchar-me o nó no cérebro. E sabe porquê? Porque nunca me ocorreria perturbar a paz de espírito da minha mulher com coisas tão terríveis. Ensombrariam o nosso lar e deixar-nos-iam a tropeçar no escuro.

 

- Lamento - disse Falcón.

 

Jiménez levantou a mão a desculpar-se, dando-se conta de que tinha sido demasiado duro. Sentou-se e endireitou as costas.

 

- Saímos de Tânger de noite. Sem malas, apenas as roupas que tínhamos vestidas e o fato de noiva e as jóias da minha mãe. Toda a gente no porto tinha sido paga adiantadamente. Não mostrámos quaisquer documentos. Houve um momento em que pareceu que nos iam mandar parar, mas apareceu mais dinheiro, metemo-nos no barco e partimos. Fomos buscar a minha irmã à aldeia próxima de Algeciras e começámos a nossa vida errante, como os ciganos. Nunca tivemos a sensação de perigo. O meu pai nunca voltou a andar de um lado para o outro dentro de casa; mas mal o instinto lhe dizia para ir embora... íamos embora. Normalmente, íamos para grandes cidades. Passámos uns tempos aqui em Madrid, mas o meu pai detestava Madrid. Acho que Madrid o fazia sentir-se provinciano, lhe lembrava de quem ele era. Chegámos a Almeria no início de 1964. O meu pai geria um par de batelões que ligavam Algeciras a Cartagena, mas teve oportunidade de construir um hotel na marginal de Almeria, pelo que nos mudámos para lá. Parecia gostar da ideia de assentarmos. Deve ter pensado que cinco ou seis anos em fuga eram suficientes, que o mundo segue em frente, que os grandes ressentimentos se gastam se não forem alimentados de vingança. Enganou-se. Por isso é que eu pensei que era importante saber o que tinha ele feito que tornou as pessoas que ofendeu tão implacáveis, ao ponto de nunca terem desistido de tentar dar cabo dele. E tenho de admitir que isso me continua a interessar, apesar de ter domado a minha fascinação com a irrelevância do facto.

 

- Porquê?

 

- Acho que teria ajudado a avaliar o monstro que ele era.

 

Falcón arrepiou-se, sugestionado pelas emoções contraditórias de Raúl Jiménez ser um monstro e de ter a memória do próprio pai a fazer-se passar por monstro. Que horríveis caras, a escorrerem baba, o pai ia buscar quando o devorava. Era um homem sem inibições porque havia pouco no seu mundo que exigisse controlo pessoal; e muitas vezes Javier tinha a marca de uma dentada gravada nas costas durante dias.

 

- Sente-se bem, inspector jefe? Esperava não ter ido buscar uma das caras de gárgula do pai com uma grande língua de fora.

 

- Pensamentos incompletos - respondeu.

 

- Onde íamos?

 

- Almeria,   1964. Não contou como a sua mãe encarava toda essas mudanças.

 

- Em termos de saúde, estava bem. Se era infeliz, não o mostrava, nem a nós nem a ele. De qualquer modo, também não havia essa coisa de as mulheres terem uma palavra a dizer, naqueles tempos. Só tinha de colaborar.

 

- O seu pai estava a construir o hotel?

 

- Chegados a este ponto, tenho de lhe falar da Marta. Lembra-se de lhe ter contado o amor que ela tinha a coisas?

 

- Gatos.

 

- Sim, gatos. Quando saímos de Tânger, transferiu isso tudo para o Arturo. A minha mãe podia confiar o Arturo aos cuidados da Marta. Ela fazia tudo por ele. Ele era a vida dela. É engraçado, não é? A Marta nunca teve bonecas.

 

Compravam-lhas, mas nunca quis saber delas. Fascinava-se mais por coisas vivas. É estranho, não lhe parece, para alguém tão descomplicado?

 

- Talvez não tivesse uma imaginação muito desenvolvida.

 

- Talvez. A imaginação é uma coisa complexa, mas a vida também é.  

 

- Provavelmente, ela não fazia associações.

 

- Eu costumava cogitar sobre o que ia na cabeça dela.

 

- Já não o faz?

 

- Ela mal abriu a boca nos primeiros vinte anos. Depois aconteceu uma coisa notável. Ao longo dos anos, o pessoal foi mudando por lá. É um sinal dos tempos que tão pouca gente nova queira trabalhar em saúde mental e, por isso, esses trabalhos estão a ser preenchidos por imigrantes. No caso da Marta, houve um marroquino que apareceu com um gatinho bebé que tinha encontrado e qualquer coisa fez clique dentro dela. Ficou animada. Deve-lhe ter recordado os primeiros anos, os criados que serviam lá em casa e os gatos.

 

- Falou?

 

- Palavras, não. Articulou umas coisas, nada de inteligível. Não usava as cordas vocais há décadas. No entanto, foi o princípio de qualquer coisa. Houve alguns progressos, desde então. Não me «diz» nada quando lá vou. Talvez eu seja uma recordação demasiado forte do trauma original.

 

- Os médicos sabem que trauma foi esse?

 

- Só há três anos e não sabem a história completa.

 

- Há três anos?

 

- Quando eu consegui sequer ousar começar a falar sobre isso eu próprio. Andaram a perguntar-me quem era o Arturo. Ela tinha ido até aí. E eu remeti-os para o meu pai, que negou ter havido alguém com esse nome no círculo da família, o que não era verdade. O pai da minha mãe chamava-se Arturo. Contei-lhe que morreram?

 

- Não.

 

- No ano antes do nascimento do Arturo, ambos os pais da minha mãe morreram, com três meses de intervalo. Ela tinha cancro. Ele teve um ataque cardíaco. Acho que foi por isso que a minha mãe se sentiu preparada para correr o risco de ter outro filho.

 

- O que disse aos médicos da Marta?

 

- O meu psicanalista esclareceu-lhes tudo por carta, mais tarde; mas, naquela altura, disse-lhes que era um irmão mais novo que morrera.

 

- O que era verdade - disse Falcón. - Não era?

 

- Calculo que, na sua área de trabalho, esteja bastante familiarizado com a maldade em estado puro - disse Jiménez.

 

- Já me cruzei com coisas más e coisas insanas, mas não tenho a certeza de alguma vez me ter cruzado com «a maldade em estado puro». Tudo aquilo que tenho investigado tem sido criminal e, portanto, compreensível. Quando começamos a falar de maldade, entramos no campo metafísico.

 

- E isso ultrapassa o âmbito de um inspector jefe del Grupo de Homicidios de Sevilla?.

 

- Não sou padre - disse Falcón. - Se fosse, talvez isso ajudasse, porque o assassínio do seu pai foi o mais chocante da minha carreira. Quando vi o rosto dele e percebi o que lhe tinham feito, tive consciência de estar na presença de algo muito poderoso. Sou normalmente bastante desapaixonado no meu trabalho, mas este afectou-me. É algo que não gostaria que os meus superiores soubessem.

 

Jiménez sentou-se de lado na cadeira, com uma perna cruzada sobre a outra. Testou a flexibilidade das mãos, abrindo-as e fechando-as. Falcón pensou que ele talvez quisesse saber o que acontecera a Raúl, mas não quisesse perguntar.

 

- A mente demoníaca tem uma compreensão profunda da natureza humana - disse Jiménez passado uns momentos. - É uma mente que se compraz entre a vingança e a traição, alimentando-as. Conhece instintivamente onde e como atacar, indo direita ao cerne... das coisas. Não mataram o meu pai, o que teria provavelmente sido justo. Não violaram e mataram a minha mãe, a minha irmã ou eu próprio, o que teria sido injusto e cruel. Fizeram a única coisa que sabiam que destruiria com sucesso e inteiramente a família do meu pai. Levaram o Arturo. Limitaram-se a levá-lo, um dia, e nunca mais voltámos a saber dele nem deles.

 

Jiménez piscou os olhos rapidamente, perdido no vasto descampado da sua incompreensão.

 

- Está a dizer que o raptaram?

 

- A caminho da escola, a Marta deixava o Arturo na dele. No regresso a casa, ia buscá-lo. Um dia, não estava lá, nem estava em casa. Vasculhámos a cidade, enquanto a minha mãe foi chamar o meu pai à obra. Ele tinha seis anos. Era ainda um bebé. E levaram-no.

 

Jiménez fixou as suas fotografias de família, como se a riqueza que representavam estivesse manchada por esta memória envenenada. O lábio de baixo tremia-lhe. A maçã-de-adão saltou-lhe na garganta.

 

- A polícia não conseguiu fazer nada? - perguntou Falcón.

 

- Não - disse Jiménez e a palavra saiu-lhe como a respiração de um fantasma.

 

- Normalmente, quando uma criança desaparece...

 

- Não conseguiram nada, inspector jefe, pela simples razão de que não lhes foram dadas quaisquer informações.

 

- Não entendo.

 

Jiménez inclinou-se sobre a secretária, que rangeu; os olhos saltavam-lhe das órbitas.

 

- O meu pai participou o rapto, disse-lhes que era um mistério e, em vinte e quatro horas, tínhamos saído de Almeria - disse Jiménez. - Não sei se por temer fortemente que essas pessoas pudessem voltar, ou se por ser a sua maneira de evitar perguntas difíceis das autoridades, ou se pelas duas. Mas saímos de Almeria. Passámos dois dias num hotel em Málaga. Fiquei com a Marta, que se meteu para dentro da sua concha e nunca mais disse uma palavra. A minha mãe e o meu pai ficaram no quarto ao lado e os berros... as lágrimas... Meu Deus, foi horrível. Depois, mudou-nos a todos para Sevilha. Alugámos um apartamento na Triana e, mais tarde no mesmo ano, mudámos para a Plaza de Cuba. O meu pai teve de voltar a Almeria algumas vezes, para liquidar os negócios e comparecer junto das autoridades. E assim acabou o Arturo.

 

- Mas o que é que ele lhe disse a si, à família? Como é que explicou o sucedido e a sua estranha reacção?

 

- Não explicou. Limitou-se a utilizar a sua ira vulcânica, para nos fazer perceber que tínhamos todos de esquecer o Arturo... que o Arturo não existia.

 

- E os raptores... quer dizer que não fizeram exigências...?

 

- Não compreendeu, inspector jefe - disse Jiménez, avançando a sua mão suplicante através da mesa. - Não houve exigências. Foi o preço deles. O Arturo foi o preço que eles estabeleceram.

 

- Tem razão. Não compreendo. Não compreendo nada nisso.

 

- Então, entrou para o nosso clube. A minha falecida mãe, a minha irmã louca, eu e agora você - disse Jiménez. - Nessa mudança de Almeria para Sevilha, perdemos completamente o rasto do Arturo. Nenhum vestígio da sua existência chegou connosco a Sevilha. Nem fotografias, nem roupas ou brinquedos, nem sequer a sua cama. O meu pai rescreveu a história da família e deixou o Arturo de fora. Quando mudámos para o apartamento da Plaza de Cuba éramos como mortos-vivos. A minha mãe passava o dia de olhos fitos na janela, a olhar para a rua, saltando para o vidro de cada vez que aparecia um rapazinho. A minha irmã mantinha o silêncio e teve de ser tirada da escola para que acabara de entrar. Eu ficava o mais tempo que podia longe dali. Perdi-me... com novos amigos, que nunca me conheceriam como o rapaz que tinha tido um irmão mais novo.

 

- Perdeu-se?

 

- Acho que foi o que me aconteceu. Tinha uma estranha incapacidade para me recordar de qualquer coisa anterior aos meus quinze anos. A maior parte das pessoas tem memórias que recuam até aos três ou quatro anos, algumas mesmo mais, até se verem no carrinho de bebé. Eu não tinha nada preciso, apenas intuições vagas, formas sombrias do que tinha sido... Até há poucos anos.

 

Falcón tentou lembrar-se da sua primeira memória e não conseguiu ir muito além do pequeno-almoço da véspera.

 

- E não tem ideia nenhuma de por que é que o seu pai tomou essa decisão devastadora?

 

- Presumo que fosse uma questão criminosa. Uma investigação séria ao rapto do Arturo teria exigido grandes revelações, que teriam provavelmente arruinado o meu pai... talvez pondo-o na prisão. Tinha obviamente a ver com aquele assunto obscuro de Tânger. Pode também ter tido um ângulo moral, um comportamento assustador qualquer, que virou a mulher contra ele. Não sei. Fosse o que fosse, o meu pai deve ter equacionado, à sua maneira especial, que o Arturo já estaria no Norte de África ou seguramente num barco com rumo ao Norte de África, poucas horas depois do rapto. Deve ter pesado, na sua mente monstruosa, que a polícia não tinha a mínima hipótese, que ele não tinha a mínima hipótese. A mensagem dos raptores era clara. Este foi o preço pelo que fizeste. E agora, escolhe: vem procurá-lo e arruina-te, ou aceita este preço elevado e continua em frente. Não acha que a perfeição desta terrível escolha é de maldade em estado puro? Eles estavam a dizer: optas pelo bem ou pelo mal? Se és um homem bom, vens à procura do teu filho, fazes tudo ao teu alcance e isso arruina-te totalmente. Acabas a viver no exílio ou na prisão. A tua família fica destruída. E... esta é a parte mais horrorosa de todas, inspector jefe, continuarás a não reaver o Arturo. Sim, foi isto. Foi o que concluí. Forçaram-no a optar pelo mal e, ao fazê-lo, teve de recorrer aos esquemas do mal para sobreviver. Persuadiu-se a ele e a nós de que o Arturo nunca tinha existido. Obliterou-o e a nós com ele. Forçou-nos a lidar com a perda à sua maneira e destruiu tudo. A mulher e a família. E o cálculo final deve ter sido este: uma vez que o Arturo está perdido, que a minha família vai ser destruída faça eu o que fizer, então o que é preferível para mim?

 

Jiménez levantou uma mão, tomou-lhe o peso, ergueu-a bem alto e disse:

 

- A extraordinária leveza moral da bondade? - Ergueu a outra mão e deixou-a cair brutalmente sobre a secretária: - Ou o peso dourado do poder, posição social e riqueza?

 

Silêncio, enquanto ambos contemplavam o desequilíbrio dos dois pratos da balança.

 

- Pensava - disse Falcón, na serenidade da sala forrada de livros - que já tínhamos ultrapassado a idade da tragédia, uma época em que eram possíveis figuras trágicas. Já não temos grandes guerreiros ou reis que possam cair de semelhantes alturas para tais profundezas. Hoje, damos connosco a admirar actores de cinema, desportistas ou homens de negócios, que, de certo modo, não têm o estofo da tragédia. E afinal... o seu pai. Parece-me um dessas aves raras... uma figura trágica moderna.

 

- Só gostava que a peça não tivesse sido a minha vida - disse Jiménez.

 

Falcón levantou-se para sair e viu o seu café, frio e por beber, na ponta da secretária. Apertou a mão de Jiménez por mais tempo do que costumava, manifestando o seu agradecimento.

 

- Foi por isto que tive de voltar a telefonar-lhe - disse Jiménez. - Tive de falar com o meu psicanalista.

 

- Para pedir autorização?

 

- Para ver se ele achava que eu estava capaz. Ele pareceu achar que seria uma boa ideia que a única pessoa para além dele a ouvir a história da minha família fosse um polícia.

 

- Para actuar em função dela, é isso?

 

- Porque tem um dever de confidencialidade - disse o advogado, muito sério.

 

- Prefere que não fale em nada disto à Consuelo?

 

- Servirá para algo mais do que para a aterrorizar?

 

- Ela teve três filhos do seu pai.

 

- Nem acreditei quando soube.

 

- Como soube?

 

- O meu pai mandava-me umas linhas sempre que nascia mais um.

 

- Ela teve de o forçar a isso. Foi uma condição para se casar com ele.

 

- É compreensível.

 

- Ela também me contou que ele andava obsessivamente preocupado com a segurança. Instalou uma porta fortíssima no apartamento e assumiu como tarefa pessoal trancá-la todas as noites.

 

Jiménez olhou fixamente para a secretária.

 

- Ela contou-me mais uma coisa que lhe deve interessar...

 

A cabeça de Jiménez emergiu de um pescoço muito cansado. Havia um vislumbre de medo nos olhos dele. Não queria ouvir nada que pudesse exigir mais revisões à sua visão recém-construída dos acontecimentos. Falcón encolheu os ombros para desdramatizar.

 

- Conte.

 

- Primeiro, ela acredita que o seu mundano marido, profissional de sucesso, com a sua colecção de fotografias sorridentes, era um homem que vivia preso numa infelicidade abjecta.

 

- Então, foi finalmente apanhado - disse Jiménez, sem satisfação. - Mas talvez não soubesse que o era.

 

- A segunda coisa foi um pormenor do testamento. Deixou dinheiro à sua obra de caridade preferida, Nuevo Futuro - Los Niños de la Calle.

 

Jiménez abanou a cabeça, por tristeza ou negação do facto, era difícil dizer. Deu a volta à secretária até junto de Falcón e abriu a porta. Seguiu pelo corredor fora no seu passo deslizante. «Andaria de forma diferente antes da psicanálise?», perguntou-se Falcón. Talvez tivesse um caminhar pesado antes, como se carregasse um peso e, agora, ao menos a bagagem seguia atrás dele. Jiménez foi buscar o casaco de Falcón e ajudou-o a vesti-lo. Apenas uma pergunta balouçava na mente de Falcón. Fazia-a ou não...

 

- Alguma vez lhe ocorreu - acabou por dizer - que o Arturo pudesse ainda estar vivo? Teria hoje quarenta e dois anos.

 

- Dantes, sim - disse. - Mas estou melhor desde que lhe associei um sentido de assunto encerrado.

 

Sexta-feira, 13 de Abril de 2001, AVE Madrid-Sevilha

 

Mesmo aquele AVE, o último, que não chegaria a Sevilha antes da meia-noite, estava cheio. Enquanto o comboio atravessava disparado a noite castelhana, Falcón limpava do colo as migalhas de um bocadillo de chorizo e olhava para a janela, através do reflexo transparente do passageiro à sua frente. Os pensamentos fluíam-lhe na cabeça cansada, mas ainda palpitante com os resultados das investidas efectuadas na família Jiménez.

 

     Tinha deixado José Manuel Jiménez às 3 da tarde, depois de lhe perguntar se se importava que fosse visitar Marta ao instituto psiquiátrico de San Juan de Dios, em Ciempozuelos, quarenta quilómetros a sul da cidade. O advogado avisou-o de que não seria provavelmente um encontro muito produtivo, mas concordou em telefonar, para que estivessem a contar com ele. Jiménez tinha razão, mas não pelas razões que pensava. Marta tinha caído.      

 

Falcón encontrou-a na sala de tratamentos a levar uns pontos no sobrolho. Estava lívida, o que ele supôs ser a sua cor normal. O cabelo era preto e branco, puxado para cima e preso num carrapito. Os olhos eram profundamente cavados e estavam rodeados por um sulco cinzento-escuro com grandes quartos de círculo púrpura que lhe chegavam até às bochechas. Podiam ser mazelas da queda, mas pareciam mais permanentes do que isso.

 

Um enfermeiro marroquino estava sentado junto a ela, segurando-lhe a mão e murmurando palavras num misto de espanhol e árabe, enquanto uma médica jovem fechava o sobrolho que tinha sangrado profusamente, salpicando a bata do hospital. Durante a intervenção, segurou-se a qualquer coisa suspensa de um fio de ouro que tinha ao pescoço. Falcón partiu do princípio de que fosse uma cruz, mas na única ocasião em que ela o largou, viu que era um medalhão em ouro e uma chave. Estava numa cadeira de rodas.

 

Acompanhou o enfermeiro, quando a levou de volta para a enfermaria, que tinha outras cinco mulheres. Quatro estavam caladas e a quinta mantinha um murmúrio constante, que tinha a cadência de uma oração, mas era realmente uma cadeia de obscenidades. O marroquino estacionou a cadeira de Marta e foi ter com a mulher; pegou-lhe na mão e fez-lhe uma festa nas costas da mesma. Ela sossegou.

 

- Fica sempre muito agitada quando vê sangue - explicou.

 

O nome do marroquino era Ahmad. Tinha o curso de Psicologia da Universidade de Casablanca. O bom feitio e abertura gelaram-lhe visivelmente quando Falcón lhe mostrou a identificação de polícia.

 

- Mas o que vem fazer aqui? - perguntou Ahmad. - Estas pessoas não saem. São residentes permanentes, praticamente incapazes das coisas mais simples. Para lá dos portões, é como se fosse outro planeta, para eles.

 

Falcón olhou para a cabeça grisalha de Marta, com o penso branco no sobrolho, e sentiu instalar-se uma imensa tristeza no peito. Ali estava a verdadeira vítima da história dos Jiménez.

 

- Ela percebe alguma coisa do que dizemos? - perguntou.

 

- Depende - disse ele. - Se falar de G-A-T-O-S, pode reagir.

 

- E de A-R-T-U-R-O?

 

A cara de Ahmad apresentava a impassibilidade cautelosa que Falcón já tinha visto nos imigrantes sujeitos a interrogatórios de polícia. A impassibilidade visava minimizar qualquer laivo de irritação do agente; a cautela servia para obstar a questionários indiscretos. Era uma atitude que talvez resultasse com a polícia marroquina, mas que aborrecia Falcón.

 

- O pai dela foi assassinado - disse calmamente.

 

Marta tossiu uma vez, duas e a terceira foi seguida por um vómito, que fez poça no colo dela e escorreu para o chão.

 

- Está em choque devido à queda - disse Ahmad e afastou-se.

 

Falcón sentou-se na cama, com a cara ao nível da de Marta. O vomitado prendeu-se nuns pêlos que tinha no queixo. Respirava com ruído e não olhava para ele. A mão continuava a segurar no medalhão. Ahmad voltou com roupa lavada e um carrinho com material de limpeza. Correu o cortinado de Marta. Falcón sentou-se do outro lado da sala à espera. Por baixo da cama, viu um pequeno baú de metal, fechado à chave.

 

A cortina tornou a abrir-se e Marta reapareceu, vestida de lavado. Falcón acompanhou Ahmad, que conduzia o carrinho.

 

- Alguma vez falou com ela sobre o Arturo?

 

- Não me compete. Sou formado, mas só no meu país. Aqui sou enfermeiro. Só o médico fala com ela acerca do Arturo.

 

- Assistiu?

 

- Não tenho estado de plantão, mas assisti.         

 

- Como é que ela reage ao nome?

 

Ahmad executou as tarefas de limpeza em modo automático.

 

- Fica muito zangada. Mete os dedos na boca e faz um barulho, uma espécie de imploração desesperada.

 

- Articula alguma coisa?

 

- Não é capaz de articular.

 

- Mas você passa mais tempo com ela, talvez a compreenda melhor do que o médico.

 

- Ela diz: «Não fui eu. Não tive culpa.»

 

- Sabe quem é o Arturo?

 

- Não vi a ficha dela e ninguém acha necessário dar-me informações dessas.

 

- Quem é o médico dela?

 

- A Dra. Azucena Cuevas. Está de férias até à próxima semana.

 

- E o gatinho? Não foi você que trouxe o gatinho e ela começou...

 

- Não são permitidos gatos na enfermaria.

 

- O medalhão que tem ao pescoço e a chave... é a chave do baú que está debaixo da cama? Sabe o que é que ela guarda lá dentro?

 

- Estas pessoas não têm quase nada, inspector jefe. Se vejo uma coisa que é privada, deixo-a ficar só para elas. É tudo o que lhes resta para além... da vida. E é incrível como se sobrevive tanto tempo, quando não se tem mais nada.

 

Ahmad era assim. Um indivíduo manifestamente inteligente, razoável, meigo, mas pouco expansivo, pelo menos diante da autoridade. Deixou Falcón irritado. Tentava fazer-lhe o retrato na escuridão que se sucedia, veloz, na janela do AVE, tal como fizera com José Manuel Jiménez, cujas visões atormentadas permaneciam gravadas a estilete na sua mente. Não conseguiu, porque Ahmad fez o que todos os imigrantes tentam fazer: fechou-se completamente. Não se abriu minimamente. Fundiu-se com os subúrbios cinzentos e sem graça, e desapareceu na moderna sociedade espanhola.

 

O fluir destes pensamentos cessou quando descobriu que o reflexo transparente da mulher à sua frente lhe devolvia o olhar. Gostava daquilo: olhar a seu bel-prazer, como se não estivesse a fazer nada para além de admirar a noite que se projectava a grande velocidade. A centelha do sexo começou a despontar nele. Era celibatário desde que Inés o tinha deixado. A sua actividade sexual tinha sido quase tumultuosa, nos primeiros tempos. Só pensar nisso, fazia-o sentir o colarinho apertado. Eles a comerem no pátio, ao ar livre, e Inés ir de repente ter com ele, passar as pernas por cima do colo dele, repuxando-lhe as calças, conduzindo as mãos dele pelo vestido acima. Onde tinha ido tudo isso? Como é que o casamento tinha extinguido aquilo tão depressa? Para o fim, ela não o deixava vê-la vestir-se sequer. «Não tens coração, Javier Falcón.»

 

De que estava ela a falar? Porventura, ele via filmes pornográficos? Tinha relações com prostitutas enquanto assistia a filmes pornográficos? Era capaz de abolir a existência do próprio filho? E afinal... era Raúl Jiménez quem tinha tido, efectivamente, o conforto de uma mulher bonita. Consuelo, o seu consolo.

 

A mulher à sua frente já não lhe procurava os olhos no vidro. Olhou para o verdadeiro rosto dela. Havia um leve sinal de horror, um toque de piedade, como se se tivesse apercebido das complicações de um homem de quarenta e tal anos e não quisesse nada com o que via. Mergulhou na sua carteira, desejando que a engolisse por inteiro; mas era um modelo pequeno de Balenciaga, com espaço apenas para um batom, dois preservativos e alguns trocos. Ele regressou ao vidro. Uma luzinha despontou na escuridão, remota e sem outra por perto.

 

Deixou-se cair para trás, exausto com os intermináveis ciclos do pensamento, não os da investigação, mas os do seu casamento falhado. Aquilo acabava sempre por provocar uma quebra interior, assim que chegava à parede levantada pelas palavras de Inés: «No tienes corazón, Javier Falcón.» Até rimava. Tinha sido uma nova química do cérebro, concluiria mais tarde, que lhe tinha dado a primeira ideia nova acerca de Inés, ou melhor, a consciencialização de uma ideia antiga. Ele não ia ser capaz de fazer qualquer avanço, não ia ser capaz de namoriscar uma mulher numa carruagem, até ter provado a si mesmo que as palavras de Inés estavam erradas, que não se lhe aplicavam. Isso atingiu-o com mais força do que esperava. Houve até uma descarga de adrenalina, que poderia significar medo, a não ser pelo facto de estar sentado no AVE a divagar, com a desconfortável sensação de que ela podia ter razão.

 

Adormeceu - um homem num expresso prateado superveloz, cruzando a escuridão em grande velocidade, para um destino desconhecido. Voltou a ter o sonho em que era um peixe; e nadar veloz através da água com o medo a persegui-lo, enquanto o esticão nas vísceras se preparava lentamente para o apanhar. Acordou ao embater com a cabeça no assento. A carruagem estava vazia, o comboio na estação e uma multidão de passageiros a passar pela sua janela. Foi para casa e viu um filme sem lhe ligar nenhuma. Desligou a televisão e adormeceu como uma pedra, sem ter comido nem ter mudado de roupa, por cima da cama. Entrou e saiu do sono, para não voltar a ter aquele sonho; mas não queria acordar com um mundo de ansiedade fora das suas paredes. Às quatro da manhã, foi devolvido em permanência ao despertar na escuridão. Preocupou-o a nova química do seu cérebro, que lhe podia alterar o equilíbrio mental; enquanto isso, as vigas de madeira da sua vasta casa gemiam, como outros loucos menos afortunados, internados numa parte distante do hospício.

 

Sábado, 14 de Abril de 2001

 

Levantou-se às 6 da manhã, cansado, com os nervos chocalhando como as chaves de um carcereiro, de tal modo que começou a pensar em chaves da casa e onde estariam as que abriam o estúdio do pai. Dirigiu-se para a secretária do escritório e encontrou uma gaveta cheia de chaves. Onde havia tanta porta? Levou a gaveta consigo até ao portão de ferro forjado que fechava a parte da galeria fronteira ao estúdio do pai. Experimentou-as a todas, mas nenhuma funcionou. Foi-se embora, deixando a gaveta no chão e as chaves espalhadas.

 

Tomou banho, vestiu-se, saiu, comprou o jornal - o «ABC» - e bebeu um café solo. Viu as notícias dos falecimentos. Raúl Jiménez ia ser enterrado nesse dia às 11 horas, no Cementerio de San Fernando. Foi para o escritório e, no caminho, verificou as mensagens do telemóvel, todas de Ramírez.

 

Estavam presentes os seis membros do Grupo de Homicídios, o que não era habitual num sábado de Páscoa. Relatou-lhes o resultado da conversa com Calderón. Colocou Pérez e Fernández no terreiro da Feria, frente ao Edificio del Presidente, Baena nas ruas em torno do bloco de apartamentos e Serrano a trabalhar numa lista de laboratórios e fornecedores de material médico, em busca de uma venda inusitada de clorofórmio ou do desaparecimento de instrumentos. Os quatro homens foram-se embora. Ramírez ficou, de braços cruzados, encostado à janela.

 

- Mais algumas ideias, inspector jefe? - perguntou.

 

- Já temos um depoimento de Marciano Ruiz?

 

Ramírez apontou com a cabeça para a secretária e disse que não trazia nada de novo. Falcón leu tudo, apenas para evitar contar a Ramírez sobre a sua viagem a Madrid e aos horrores da família Jiménez. Tinha de ter maior relevância para o assassínio ou Ramírez começaria a torpedeá-lo e veria outros polícias a olharem para ele com pena, como o tipo que tinha começado uma investigação de homicídio recuando a um incidente de há trinta anos.

 

- Ontem à tarde, fui ter com a Eloisa Gómez - disse Ramírez.

 

- Sacou-lhe alguma coisa?

 

- Não me ofereceu um broche à borla, se é a isso que se refere.

 

- Depois do que lhe fez ontem, não - disse Falcón. - Ela cedeu?

 

- Ela não me vai dizer nada, ainda que tivesse sido ela; e agora está assustada.

 

- Vocês estavam a dar-se tão bem - disse Falcón. - Pensei que a ia levar para casa.

 

- Talvez eu devesse ter sido mais paciente - disse Ramírez. - Mas sabe, achei mesmo que ela tinha metido lá o tipo e que um choque verbal forte pudesse resultar.

 

- Vamos começar o dia pelas Mudanzas Triana - disse Falcón, levantando-se. - Depois vamos ao funeral de Jiménez com uma câmara de vídeo e filmamos os presentes. Confrontamos os participantes com a lista de endereços e fazemos-lhes entrevistas. Vamos fazer o filme da vida dele.

 

- E quanto à Eloisa Gómez?

 

- O Pérez pode apertar com ela outra vez esta tarde. Faz cerca de quarenta e oito horas desde que ela esteve com Raúl Jiménez. Se for cúmplice, o assassino terá entrado em contacto com ela entretanto e isso pode ter mudado a sua atitude mental.

 

- Ou a totalidade da sua atitude - disse Ramírez. - Para pior.

 

Ramírez pegou na câmara de vídeo e conduziu ambos até às Mudanzas Triana, que ficavam na avenida Santa Cecilia. Falaram com o patrão, Ignacio Bravo, que escutou o cenário teórico sem mover os olhos, por detrás das pálpebras inchadas, enquanto fumava um Ducados aceso noutro.

 

- Antes de mais, isso é impossível - disse. - Os meus operários...

 

- Assinaram um depoimento - disse Ramírez, morto de tédio, passando-lho.

 

Bravo leu o documento, batendo a cinza vagamente na direcção de um pneu em miniatura que albergava um cinzeiro.

 

- Vão ser despedidos - disse.

 

- Conte-nos da sua combinação com a Sra. e o Sr. Jiménez - disse Falcón. - Pode começar pela razão que os fazia quererem mudar-se na Semana Santa, que deve ser a época mais movimentada do ano nos restaurantes.

 

- E nada barata para mudanças. Os nossos preços duplicam. Expliquei tudo a ela, inspector jefe. Mas não podíamos fazê-lo na semana que vem, quando os restaurantes dela fecham, porque temos o tempo todo ocupado... como todas as outras empresas. Portanto, ela pagou. Não se importou.

 

- Quando é que teve o primeiro contacto para o trabalho?

 

- Estive lá na semana passada a estudar o esquema, a quantidade de móveis grandes, o número de caixas necessárias para proceder ao empacotamento, essas coisas todas. Telefonei-lhe no dia seguinte para lhe dizer que era trabalho para dois dias e dei-lhe um preço.

 

- Trabalho para dois dias? - perguntou Ramírez. - Então quando começaram?

 

- Na quinta-feira.

 

- O que dá três dias de trabalho.

 

- O Sr. Jiménez telefonou a dizer que não queria que o escritório fosse mudado antes de sexta-feira. Disse-lhe que isso ainda ia custar mais caro e que podíamos fazer o trabalho dentro do prazo. Ele insistiu. Eu não discuto com gente rica; apenas me certifico de que pagam. São os piores... Perdeu o gás quando viu o olhar dos polícias.

 

- Quantas pessoas sabiam da alteração da combinação original? - perguntou Falcón.

 

- Estou a perceber onde quer chegar - disse ele, incapaz de se descontrair.

 

- Claro, toda a gente tinha de saber. Envolvia ter de mudar todos os trabalhos em curso. Não está a pensar que um dos meus homens possa ser o assassino...

 

- O que nos intriga - disse Falcón, deixando a suspeita de Bravo a pairar

 

- é que, se o cenário traçado estiver correcto, o assassino teria de ter conhecimento da alteração do que estava combinado. Tinha de saber que o Sr. Jiménez ia aguentar em casa mais uma noite e que estaria sozinho. Quando confirmou o trabalho com a Sra. Jiménez?

 

- Quarta-feira, 4 de Abril - disse, folheando a agenda.

 

- Quando é que o Sr. Jiménez fez a alteração?

 

- Sexta, 6 de Abril.

 

- Já tinha determinado uma equipa para o trabalho.

 

- Fi-lo na quarta.

 

- Como é que procede?

 

- Chamo a minha secretária, que informa o encarregado do armazém, que inscreve tudo num quadro branco que há lá em baixo.

 

Falcón pediu para falar com a secretária. Bravo chamou-a: uma morena pequena e nervosa, com cerca de cinquenta anos. Perguntaram-lhe o que tinha dito ao encarregado.

 

- Disse-lhe que tinha havido uma alteração, que o Sr. Jiménez não queria que mexessem no escritório até sexta-feira de manhã e que deviam deixar uma cama pequena no quarto dos garotos.

 

- E o encarregado o que disse?

 

- Fez um comentário ordinário acerca de para que serviria a cama.        

 

- O que é que ele faz com essas informações?

 

- Escreve-as num quadro branco, a vermelho, para se ver bem que houve uma alteração - disse ela. - E escreve os comentários sobre o escritório e a cama numa coluna separada.

 

- E isso é também escrito à máquina nas folhas de trabalho - disse Bravo -, para que haja duas maneiras de não se esquecerem. No negócio das mudanças, o pessoal não costuma ser muito dotado...

 

Os três homens desceram ao armazém e viram o quadro branco, que continha todas as informações para Abril e Maio e que tinha o trabalho para Jiménez ainda em aberto. O encarregado apareceu. A secretária tinha razão, tinha o aspecto de quem começava o dia a aviar dois copos de bagaço.

 

- Portanto, qualquer pessoa neste armazém sabia da alteração do trabalho para os Jiménez? - perguntou Falcón.

 

- Sem dúvida - disse o encarregado.

 

- Como é a segurança, aqui? - perguntou Ramírez.

 

- Não guardamos nada aqui, portanto é mínima - disse Bravo. - Um homem e um cão.

 

- Durante o dia?

 

Bravo abanou a cabeça.

 

- Também não têm circuito interno de segurança?

 

- Não é necessário.

 

- Portanto, pode-se entrar directamente pelas traseiras, vindo da calle Maestro Arrieta?

 

- Se se quiser.

 

- Deu pela falta de alguns fatos-macaco? - perguntou Ramírez.

 

Não tinha desaparecido nada, nada tinha sido relatado. Os fatos-macaco eram banais e tinham MUDANZAS TRIANA estampado nas costas. Não era difícil copiar.

 

- Esteve aqui gente que não devesse? - perguntou Ramírez.

 

- Gente?

 

- Há dois ou três tipos por semana que aparecem por aqui e eu digo-lhes sempre o mesmo: não recrutamos gente na rua.

 

- E nas últimas duas semanas?

 

- Umas quantas mais do que o habitual, tentando juntar algum dinheiro para a Páscoa e a Feria.

 

- Vinte?

 

- Mais para as dez.

 

- Que aspecto tinham?

 

- Bem, felizmente eram todos baixos e gordos, senão teria uma trabalheira a recordar-me para lhe dizer.

 

- Olhe, engraçadinho - disse Ramírez, apontando com o dedo. - Alguém veio cá, recolheu informações sobre o trabalho que estavam a fazer no Edificio del Presidente e utilizou-a para se introduzir num apartamento e torturar um velho até à morte. Por isso, veja se se esforça um bocadinho a responder.

 

- Não tinha dito que o tinham torturado até à morte - disse Bravo.

 

- Continuo a não me lembrar - disse o encarregado.

 

- Talvez fossem imigrantes - disse Ramírez.

 

- Alguns podiam ser.

 

- Marroquinos, talvez, que trabalham quase de graça.

 

- Não empregamos... - começou Bravo.

 

- Já ouvimos isso antes - disse Ramírez. - E não acreditei. Portanto, se quer uma vida tranquila, sem visitas dos serviços de Imigração, comece a pensar, comece a lembrar-se de quem esteve aqui desde a última sexta-feira e se viu alguém particularmente interessado naquele quadro branco.

 

- Porque - disse Falcón, dirigindo-se ao encarregado - você é a única pessoa que encontrámos que provavelmente viu o assassino, que falou com ele.

 

- E sabe... isso é algo em que o assassino pode começar a pensar também - disse Ramírez. - Buen-as.

 

Sábado, 14 de Abril de 2001

 

- Ele tem razão... o Sr. Bravo - disse Ramírez. - É uma associação demasiado óbvia, mas o assassino pode ser um dos seus trabalhadores.

 

- Mas apenas se o segundo cenário, aquele em que Eloisa Gómez deixa o assassino entrar no apartamento, for o correcto - disse Falcón. - Se ele tivesse entrado pelo monta-cargas, faltaria ao trabalho da parte da tarde. Vamos ter de entrevistar cada um dos trabalhadores e apertar mais com a rapariga.

 

- Sabe do que não gosto neste tipo? - perguntou Ramírez. - No nosso assassino?

 

Falcón não respondeu, olhou pela janela, para os diferentes bares e cafés que brilhavam ao longo da calle San Jacinto, de regresso ao longo do rio, através da Triana. Estava subitamente deprimido com a forma como a investigação estava a descer à verificação de pormenores do quotidiano em empresas de mudanças.

 

- Ele tem sorte - concluiu Ramírez. - Ele tem muita sorte, inspector jefe.

 

- Esperemos que se fie nela - disse Falcón, brusco e mal-humorado.

 

Estava irritado devido ao café no estômago vazio e mole por falta de dormir e ainda sem nenhuma aberta no caso. Os homens que tinha em campo em Los Remedios não tinham descoberto ninguém, uma pessoa só que fosse, que se lembrasse de ver um camião de mudanças e um monta-cargas na rua.

 

- O que quer isso dizer, inspector jefe?

 

- As pessoas que confiam na sua sorte, fazem-no geralmente até bastante depois de ela ter acabado. Como os jogadores - disse Falcón. - No fundo, são estúpidas.

 

- Está a insinuar alguma coisa, inspector jefe?

 

- Eu? Não.

 

- Acha que ele ainda vai voltar, não é? O assassino.

 

- Não sei.

 

- Acha que ele vai querer testar a sua sorte mais uma vez... para ver até onde consegue ir.

 

Falcón não gostava daquela faceta de Ramírez. O polícia bom que nunca parava, que observava constantemente, que deduzia para lá das palavras, que empolava frases. E agora estava a fazer isso com ele.

 

- Está a falar de um «ele» - disse Falcón, utilizando uma táctica de diversão -, mas ainda não chegámos aí.

 

Ramírez resmungou, quando atravessavam a Puente de Isabel II e viravam para norte, ao longo da margem leste do rio, em direcção a San Jerónimo e ao cemitério.

 

- Sabe que vamos perder o nosso tempo aqui, não sabe, inspector jefe?

 

- Não, não sei. Onde é que acha que vamos encontrar a nossa falha? Não a achámos em nenhum dos lugares óbvios: no corpo, no apartamento, no Edificio del Presidente, fora dele, na empresa de mudanças, em nenhum desses lugares.

 

- Sabe que lhe liguei ontem? - perguntou Ramírez, mudando a agulha.

 

- Não fui às mensagens senão hoje de manhã.

 

- Foi só porque achei que o senhor tinha razão, inspector jefe - disse Ramírez.

 

Falcón olhou devagar para o lado dele, como se estivesse apenas a apreciar a vista da zona da Expo’92, La Isla Mágica, que se apresentava com um ar completamente mundano, do outro lado do rio langoroso e cinzento. Ramírez nunca achava que alguém tivesse razão e muito menos o seu inspector jefe.

 

- Como disse, é demasiado elaborado. O método - disse Ramírez.

 

- Para o motivo ter sido algo tão vulgar como os negócios, é o que quer dizer?

 

- Sim.

 

Demorou uma fracção de segundo a que várias observações subliminares se reunissem no espírito de Falcón. Ramírez tinha estado a ser mais simpático do que nunca. Não o tinha torpedeado nas Mudanzas Triana. Tinha tomado a iniciativa de lidar com o encarregado, que era muito mais o seu tipo. Tinha-lhe telefonado quatro vezes num dia feriado. Tinha-lhe revelado que tinha estado com Eloisa Gómez e admitiu que a sua impaciência tinha possivelmente inviabilizado informações valiosas. Agora, dizia que ele, Javier Falcón, tinha razão.

 

- Conhece os procedimentos - disse Falcón. - Não temos autorização para fazer nada. Tínhamos muito pouco para dar ao juez Calderón, para além de Consuelo Jiménez e Eloisa Gómez. A primeira é uma pessoa complexa e sofisticada, com oportunidade e meios; a segunda tinha a oportunidade, mas não fala connosco. O nosso trabalho é desenvolver pistas e quando não surgem das provas, temos de as ir sacando gradualmente e com urbanidade às pessoas ou ir pesquisá-las... por vezes em locais estéreis, como cemitérios e agendas.

 

- Mas suspeita de que essas fontes tenham alguma ligação com o caso?

 

- Claro que há suspeita, mas vou fazê-lo porque pode desencadear qualquer coisa que, indirectamente, venha a desenvolver uma pista.

 

- Tal como?

 

- Aquilo de que falou no outro dia. Como se chamava o tipo... do Cinco Bellotas?

 

- Joaquín López.

 

- Os rapazes que a Sra. Jiménez despediu... viram os dois homens a conversar. Não sabemos a que respeito. Pode ter alguma implicação; ou pode ser completamente inócuo. Temos de averiguar.

 

- Mas continua a pensar que isto é obra de uma mente perturbada?

 

- As mentes não perturbadas podem perturbar-se se toda a sua forma de vida for ameaçada.

 

- Mas aquelas filmagens todas, a entrada no apartamento, ficar escondido durante doze horas...

 

- Ainda não sabemos se fez isso. Estou mais inclinado para que «ele» tivesse estabelecido uma relação com a rapariga, tivesse recolhido as necessárias informações nas Mudanzas Triana e tivesse feito convergir esses dois factores para entrar no apartamento.

 

- Mas e o espectáculo de horror por que fez Jiménez passar?

 

- Nada disso está para lá da imaginação - disse Falcón, duvidando de si próprio ao dizê-lo. •- Não é inimaginável, pois não?

 

- Para mim, é.

 

Era verdade, pensou Jiménez; e Marta Jiménez atravessou-lhe velozmente o espírito, com o queixo vomitado e o penso no sobrolho. Ramírez era descomplicado. Não ia passar de inspector, porque a sua imaginação não lhe permitiria a cada passo aspirar a mais do que ao posto acima. Os seus horizontes eram limitados.

 

- O que é que acha que ele lhe mostrou, inspector?

 

Ramírez travou a um sinal vermelho, agarrou com força o volante, fixou os olhos no carro da frente, esperando que avançasse. Tentou fazer com que o cérebro entrasse por canais laterais, nunca visitados.

 

- Aquilo de que o horror é feito - disse Falcón - não é necessariamente o que é verdadeiramente terrível.

 

- Continue - disse Ramírez, achando-o uma ave rara, mas feliz por se ter libertado do trabalho criativo.

 

- Veja só, nós, agora, no auge da civilização... Quer dizer, já nos podemos rir do canibalismo. Nada nos assusta... já vimos de tudo, excepto...

 

O semáforo mudou, Ramírez deixou o carro ir abaixo e soaram buzinas atrás dele.

 

- Excepto o quê?

 

- Aquilo que decidimos que não queremos saber.

 

- E isso é inimaginável?

 

- Refiro-me às coisas que sabemos acerca de nós próprios. Os assuntos mais privados, profundamente escondidos, que não mostramos a ninguém e que negamos firmemente alguma vez terem acontecido, porque não seríamos capazes de viver com a presença desse conhecimento.

 

- Não percebo do que está a falar - disse Ramírez. - Como é que se pode não saber uma coisa que se sabe? Isso é ridículo como o caraças.

 

- Quando o meu pai veio para Sevilha, nos anos 60, tornou-se amigo do padre local, que costumava passar à sua porta a caminho da igreja, ao fundo da calle Bailén. O meu pai nem ia à igreja nem acreditava em Deus; mas frequentavam o mesmo café; e ao fim de anos de conversa, ficaram amigos. Um dia, às três da madrugada, o meu pai estava a trabalhar no estúdio e ouviu alguém a berrar na rua: «Eh! Cabrón! Foste-me enviado de propósito, não foste, Francisco Cabrón? Era o padre, que não estava nada sereno, antes zangado e quase louco. A sotaina estava toda rasgada, o cabelo revolto e bebia aguardente directamente da garrafa. O meu pai abriu-lhe a porta e ele fez um pé-de-vento à volta do pátio, maldizendo-se a si e à sua vida inútil. Naquela manhã, tinha comungado e, de repente, tinha-lhe vindo uma coisa à cabeça.

 

- Perdeu a fé - disse Ramírez. - Está-lhes sempre a acontecer. Eles recuperam-na.

 

- Foi pior do que isso. Disse ao meu pai que nunca tinha sentido ponta de fé. Toda a sua carreira eclesiástica tinha partido de uma mentira. Tinha conhecido uma rapariga que não retribuiu o amor que sentia por ela. Parece que tinha decidido ir para a Igreja para a mortificar e o que tinha acabado por acontecer era ter-se mortificado a si próprio. Por mais de quarenta anos, o padre soube isto... mas sem o saber. Era um bom padre, mas isso não tinha importância; porque havia uma falha no edifício da sua vida, a pequena mentira sobre a qual tudo assentava.

 

- O que lhe aconteceu? - perguntou Ramírez.

 

- Enforcou-se no dia seguinte - disse Falcón. - O que é que se pode fàzer quando se é padre e se passou a vida toda a ensinar a procurar o caminho da verdade na palavra de Deus?

 

- Meu Deus - disse Ramírez -, mas não é preciso suicidar-se. Não é preciso levar a vida tão a sério.

 

- Foi por isso que o meu pai me contou a história - disse Falcón. - Eu tinha dito que queria ser pintor... como ele. Ele disse-me para ter cuidado, porque a arte também tem a ver com a procura da verdade, seja ela pessoal ou universal.

 

- Estou a ver - disse Ramírez, batendo no volante e rindo.

 

- Percebeu agora - disse Falcón. - O que sabemos sem sabermos.

 

- Porra! Já percebi por que veio para a polícia - disse ele, urrando.

 

- Diga lá.

 

- À procura da verdade. Porra, é brilhante - disse ele. - Somos todos uns cabrões duns artistas.

 

Tinha sido assim? Não. Porque quando tinha feito tenções de ser artista e se confrontou com as dúvidas do pai acerca do seu talento, disse-lhe que ia ser historiador de arte e o pai riu-se-lhe na cara. «Os historiadores de arte são apenas polícias que trabalham com pintura. Procuram pistas. Preenchem as suas vidas com especulações e conjecturas e nove em cada dez vezes percebem tudo ao contrário. História de arte é para falhados. Não apenas pintores falhados, mas também seres humanos falhados.» Uma manifestação das reservas de desprezo que o pai nutria por essas pessoas... Portanto, foi para polícia. Não, também não foi exactamente assim. Foi para a Universidade de Madrid e estudou inglês (a única raça, com a espanhola, a que o pai dedicava algum tempo) e criou um certo gosto pelo filme negro americano dos anos 40. Depois é que se tornou polícia.

 

Sentiu uma sensação de precipitação, como quando desfilava à superfície em sonhos, só que estava acordado, com os pensamentos a passarem por ele a correr, rápidos e brilhantes como um cardume de sardinhas. Sacudiu a cabeça, arrepiou-se com o regresso à vida real - os assentos do carro, plástico, vidro, outros sólidos, coisas feitas pela mão do homem.

 

- O Serrano conseguiu alguma coisa sobre o clorofórmio e os instrumentos cirúrgicos? - perguntou, firmando-se nas palavras.

 

- Até agora, nada.

 

Subiram para o cemitério. Ramírez foi buscar a câmara à parte de trás do carro, Falcón flutuou pelo caminho fora, observou atentamente a multidão dos presentes, o muro de flores do lado de fora da capela, o céu azul quase a tornar o cenário agradável. Consuelo Jiménez estava no meio do rebanho, com as três crianças com ar de grande sofrimento por entre a floresta de pernas dos adultos. Falcón também tinha estado num funeral quando tinha aquele tamanho.

 

Devia ter acabado de ser dada a bênção. O caixão estava a ser carregado da capela para dentro do carro. O condutor avançou para os portões, os enlutados reuniram-se por trás e começou uma lenta procissão pela alameda de ciprestes acima, em direcção ao coração do cemitério. Por trás de sebes cortadas a direito, viam-se mausoléus e monumentos, como o enorme bronze do torero Francisco Rivera em trajo de luzes, com um touro imaginário a correr para ele por toda a eternidade, uma mão brandindo uma espada quebrada, a outra uma capa imaginária.

 

O carro chegou a Jesús de la Pasión. Retiraram o caixão e levaram-no para o jazigo de granito, onde o colocaram em frente ao outro único ocupante - a primeira mulher. Consuelo Jiménez recebeu condolências daqueles que ainda não lhas tinham dado. Falcón observou o jazigo por dentro. A prateleira por baixo da da primeira mulher não estava totalmente vazia. Tinha uma pequena urna num canto, demasiado pequena para conter cinzas. Sacou da sua pilha de bolso e leu a pequena placa de prata: Arturo Manolo Jiménez Bautista. Talvez estivesse ali a «finalidade» de José Manuel Jiménez.

 

Falcón voltou para junto dos enlutados, apresentou as suas condolências e partiu rapidamente para a entrada. Ramírez estava afastado, no meio das campas, com a câmara de vídeo.

 

- Evidentemente, conhecia-lo, não é? - disse uma voz próxima da orelha de Falcón, com uma mão a agarrar-lhe o ombro.

 

A cara de cão triste de Ramón Salgado foi-lhe entrando no campo de visão. Era um exemplar daquelas pessoas por quem o pai nutria um escárnio selvagem. Não directamente, claro, porque, apesar de Salgado ser historiador de arte, era mais conhecido como o negociante que tinha tornado o pai famoso. Tinha uma carteira de clientes muito ricos e, até ao primeiro ataque cardíaco do pai, mandava-os regularmente à calle Bailén, para se aliviarem daqueles inúteis maços de notas que lhes entupiam as contas bancárias.

 

- Não, não conhecia - disse Falcón, manifestando a habitual frieza que votava àquele homem. - Devia conhecer?

 

Falcón estendeu-lhe a mão; Salgado usou ambas as mãos para apertar-lha. Recuou. Salgado passou a mão pelo cabelo longo e pretensioso, cuja alvura prateada caía aos caracóis sobre a gola do fato azul-escuro. «Salgado... até a caspa dele tem brilho», costumava dizer o pai.

 

- Não, talvez nunca o tivesses encontrado, agora que penso nisso - disse Salgado. - Ele nunca foi lá a casa. Tens razão. Agora me recordo. Mandava sempre a Consuelo sozinha.

 

- Mandava-a?

 

- Sempre que abria um novo restaurante, tinha sempre de meter lá um Falcón. Sabes, sinónimo de Sevilha e assim.

 

- Mas por que é que havia de a mandar a ela?

 

- Acho que talvez soubesse das práticas do teu pai e, sendo o importante homem de negócios que era, não estivesse para lidar com... eh... como direi... com o processo sardónico, sim, sardónico... de aliviar as carteiras dos outros.

 

Referia-se, evidentemente, ao expoente máximo do desdém para com clientes, que o pai utilizava para se deleitar com tão óbvio prazer.

 

Avançaram para os portões do cemitério. Os círculos rosados em torno dos olhos encovados de Salgado davam a entender que os teria limpado à pressa depois de chorar. Jiménez sempre tinha achado que ele devia ter sido muito mais pesado do que o espeto que era hoje; e que, quando perdeu esse peso, tinha arrastado a pele do rosto no sentido da gravidade, formando papos debaixo dos olhos e da queixada. Era o pai que dizia que ele parecia um sabujo, mas que ao menos não abanava a cauda. Era um cumprimento velado. O pai abominava elogios, a menos que viessem de uma mulher bonita ou de alguém cujo talento admirasse.

 

- Como é que o conheceu?

 

- Como sabes, vivo em El Porvenir. Quando abriu o restaurante lá, fui um dos primeiros clientes.

 

- Não o conhecia antes?

 

Caminhavam ligeiros e os membros longos de Salgado tinham tendência para se desengonçar. O pé dele bateu no de Falcón de lado e ter-se-ia estatelado no chão se Falcón não o tivesse agarrado.

 

- Valha-me Deus. Obrigado, Javier. Não quero cair, com a minha idade, quebrar o fémur e acabar fechado em casa, a tornar-me apático.

 

- O senhor está óptimo, Ramón.

 

- Não, não, é um grande medo que eu tenho. Uma asneira qualquer e uns meses depois fico transformado num velho tonto, a babar-me num canto escuro de um desses lares que ninguém visita.

 

- Não seja tonto, Ramón.

 

- Aconteceu à minha irmã. Vou a San Sebastián na próxima semana, para a trazer para Madrid. Aconteceu-lhe isso. Caiu, bateu com a cabeça, partiu o joelho e teve de ir para um lar. Não posso ir para tão longe todos os meses, por isso vou trazê-la mais para o sul. Um horror. Não importa, olha, por que é que não vamos daqui embora, tomar um fino?

 

Falcón deu-lhe uma palmada no ombro. Não queria gastar tempo com Salgado, mas estava com pena dele, como fora provavelmente sua intenção.

 

- Estou em serviço.

 

- Num sábado à tarde?

 

- É por isso que aqui estou.

 

Ah, sim, já me esquecia - disse Salgado, olhando em redor, para as pessoas enlutadas que passavam por eles de ambos os lados. - Já vais ter bastante trabalho para fazer uma lista dos inimigos dele, quanto mais entrevistá-los a todos.

 

- É? - disse Falcón, que conhecia a propensão de Salgado para o exagero.

 

- Um homem de negócios poderoso como este não vai para o túmulo sem Arrastar alguns com ele.

 

- O assassínio é um passo considerável.

 

- Não para as pessoas com quem ele costumava lidar.    

 

- E quem são essas pessoas?

 

- Não falemos nisso à porta do cemitério, Javier.

 

Falcón foi avisar Ramírez e entrou para o grande Mercedes de Salgado. Guiou pela calle Betis até ao rio, entre as pontes. Salgado estacionou no passeio, empurrando um velho Seat meio metro para a frente, de modo a caber. Caminharam pelo passeio, alguns metros acima do rio, até Salgado parar e dar espectáculo a respirar o ar sevilhano, que naquele local não era do mais agradável.

 

- Sevilla! - disse, feliz, agora que tinha garantido companhia. - La puta del Moro, como lhe chamava o teu pai. Lembras-te, Javier?

 

- Lembro, sim, Ramón - disse, agora deprimido por ter-se voluntariamente exposto àquilo que, estava certo, iria ser um dos famosos panegíricos de Salgado.

 

- Tenho saudades dele, Javier. Tenho muitas saudades dele. Tinha uma visão tão penetrante, sabes. Um dia, disse-me: «Há dois cheiros que dão Sevilha, Ramón, e o que me irrita... não, o meu grande segredo em aberto é que, agora, no fim da vida, só pinto um deles, razão pela qual vendo sempre.» Estava a gozar, é claro. Eu sei. Aquelas cenas de Sevilha que pintava não lhe diziam nada. Eram o joguinho dele, agora que tinha a sua reputação firmada. Disse-lhe: «Então, agora, o grande Francisco Falcón é capaz de pintar cheiros. Em que é que mergulhas os pincéis?» E ele respondeu: «Sempre na flor de laranjeira, nunca no esterco.» Eu ri-me, Javier, e pensei que tinha acabado por ali. Mas, depois de uma grande pausa, ele acrescentou: «Passei a maior parte da vida a pintar o esterco.» Que pensas disto, Javier?

 

- Ande, vamos tomar uma manzanilla - disse Falcón.

 

Atravessaram a rua e entraram na La Bodega de la Albariza. Encostaram-se a um dos grandes barris negros, encomendaram a manzanilla e um pires de azeitonas, que veio com alcaparras e alho de conserva, branco como dentes. Bebericaram o xerez pálido, que Falcón preferia aos finos, por causa do travo a mar das uvas de Sanlúcar de Barrameda.

 

- Fale-me dos inimigos de Raúl Jiménez - disse Falcón, antes que Salgado mergulhasse noutro mar de reminiscências.

 

- Está tudo a acontecer outra vez, enquanto estamos aqui a falar, enquanto bebericamos a nossa manzanilla. Está tudo a acontecer exactamente como em 1992 - disse, tirando partido de estar a ser pouco explícito e assim manter a total atenção de Javier Falcón. - Sinto-o. Eis-me chegado aos setenta anos de idade e a fazer mais dinheiro do que em toda a minha vida.

 

- Está bom para o negócio - disse Javier, completamente entediado.

 

- Isto não é para ficar registado, pois não? - disse Salgado. - Sabes, eu não devo...

 

- Não tenho aqui onde registar nada, Ramón - disse Falcón, mostrando as mãos vazias.

 

- É ilegal, evidentemente...

 

- Desde que não seja criminoso.

 

- Ah sim, um preciosismo de distinção, Javier. O teu pai dizia que tu eras o mais inteligente. «Todos julgam que é a Manuela», costumava ele dizer, «mas o Javier é o que vê as coisas com clareza.»

 

- A expectativa está a dar cabo de mim, Ramón.

 

- La Gran Limpieza - disse Salgado; a Grande Limpeza.

 

- O que é que andam a lavar?

 

- Dinheiro, é claro. Que mais é que se suja? Não lhe chamam «dinheiro sujo» por acaso.

 

- De onde vem?

 

- Nunca faço essa pergunta.

 

- Dinheiro da droga?

 

- Chamemos-lhe apenas «não declarado».

 

- OK. Então, lavam-no. Porquê?

 

- Por que é que o lavam agora, é que devia ser a tua pergunta.

 

- Está, bem, eu faço essa pergunta.

 

- Para o próximo ano, chega o euro e é o fim da peseta. Tens de declarar as pesetas que tiveres, para as converter em euros. Se forem sujas, pode ser incómodo.

 

- O que lhes fazem?

 

- Compram arte, entre outras coisas; e imóveis - disse Salgado. - Experimenta comprar um apartamento neste momento em Sevilha.

 

- Não estou comprador.

 

- E arte?

 

- Tampoco.

 

- Já começaste a limpar o estúdio do teu pai?

 

Ali estava. A pergunta. Falcón não queria acreditar que tivesse caído no acto patético de Salgado no cemitério. Era para ali que resvalavam sempre as conversas que tinha com Salgado, e era por isso que nunca queria estar com ele. Agora ia começar a persuasão, a menos que atalhasse com firmeza ou conseguisse mudar de assunto.

 

- Há muito dinheiro sujo no negócio dos restaurantes, não há, Ramón?

 

- Por que é que achas que ele estava a mudar de casa? - disse Salgado.

 

- Isso já é mais interessante.

 

- Nunca ninguém comprou um quadro ao teu pai com cheque - disse Salgado. - E estás certo, acerca do negócio dos restaurantes, especialmente os para turistas, que servem refeições a preços razoáveis, pagas em dinheiro e sem factura. Esse dinheiro dificilmente entra nos livros que os fiscais dos Impostos vêem.

 

- Então é isso que está a acontecer agora... E em 1992?

 

- Isso são águas passadas. Estava só a dar um exemplo.

 

- Eu não estava cá, mas ouvi dizer que havia montes de corrupção.

 

- Sim, sim, sim, mas isso foi há dez anos.

 

- Fala como se tivesse alguma coisa a esconder, Ramón. Não estava...?

 

- Eu? - disse, ultrajado. - Um negociante de arte? Se julgas que tive alguma oportunidade de ganhar dinheiro com a Expo’92, estás louco.

 

- Sabe alguma coisa, Ramón? Quero dizer, estamos aqui os dois só para opinar generalidades ou tem alguma coisa em especial que me possa ajudar a encontrar o assassino de Raúl Jiménez? O que se passa com essas pessoas todas que vão às suas exposições? Aposto que falam acerca de coisas «reais», depois de terem parado de dizer aquelas baboseiras todas acerca dos quadros.

 

- «Aquelas baboseiras todas acerca dos quadros?» Javier, surpreendes-me, logo tu.

 

«Estamos no bom caminho, agora», pensou Falcón. Isto é uma troca. Informações a troco do que o Salgado quer mais do que tudo: a possibilidade de virar o estúdio do pai às avessas. Não era pelo dinheiro. Era pelo prestígio. Seria o momento que coroaria a vida inglória daquele homem, montar uma última exposição dos trabalhos nunca vistos de Francisco Falcón. Viriam coleccionadores. Os americanos. Os conservadores de museus. Subitamente, ele estaria outra vez no centro das atenções, como tinha acontecido quarenta anos antes.

 

Falcón trincou uma azeitona grande e carnuda. Salgado separou com uma trincadela o botão de alcaparra e girou o talinho nos dedos.

 

- A sua informação é a toda a prova, Ramón?

 

- Ouvi umas coisas a que outros vieram acrescentar outras, sem saberem do que eu já sabia. Ao longo dos anos, tracei um quadro. Um tableau vivant.

 

- E esse quadro tem título?

 

- «Flor de laranjeira e esterco»... acho que seria um título apropriado.

 

- E dava-me uma cópia dessa magistral obra se eu lhe desse acesso ao estúdio do meu pai e que mais? Deixá-lo fazer uma exposição com os seus...?

 

Oh, no, no, no, que no, Javier, hombre. Nunca faria tal exigência. Claro que seria muito simpático fazer uma viagem nostálgica pelas suas paisagens abstractas, mas isso é tudo passado. Se ele tivesse alguns nus escondidos, como o do Prado, os dois do Guggenheim e o que a Barbara Hutton doou ao MoMA, então a questão seria outra. Mas tu e eu sabemos...

 

- Então, estou baralhado, Ramón.

 

- Quero apenas passar um dia sozinho no estúdio dele - disse, trincando outra alcaparra. - Podes trancar-me lá dentro. Podes revistar-me à saída. Tudo o que peço é um dia no meio dos seus pincéis, dos seus rolos de tela, das grades dos quadros e óleos.

 

Falcón olhou intensamente para o homem, com o copo de manzanilla a meio caminho da boca, tentando ver para dentro dele, o seu funcionamento interior, as molas e engrenagens.

 

Salgado rodou o copo pelo pé, fazendo uma marca circular na madeira do topo do barril. Tinha um ar triste, porque era o que tinha sempre. E era impenetrável: a sua urbanidade era como uma blindagem.

 

- Vou ter de pensar nisso, Ramón - disse. - Não é exactamente um negócio qualquer.

 

Sábado, 14 de Abril de 2001, Jefatura, calle Blas Infante, Sevilha Falcón e Ramírez sentaram-se na sala de interrogatórios da Jefatura, com a câmara de vídeo ligada à televisão, enquanto um polícia mais novo, que percebia daquilo, punha tudo a trabalhar. Ramírez perguntou pelo velhote do cemitério.

 

- Ramón Salgado. Era o negociante de arte do meu pai.

 

- Não parecia capaz de levantar Jiménez da cadeira - disse Ramírez - ou de ter trepado por uma escada.

 

- Também é historiador de arte e faz ocasionalmente palestras na universidade, que ninguém ouve. Tem uma galeria na calle Zaragoza, perto da Plaza Nueva. Algumas pessoas influentes vão lá, incluindo a Sra. Jiménez e o marido.

 

- Tinha o ar de quem sabe sacar dinheiro às pessoas.

 

- Falámos de dinheiro sujo em negócios de restaurantes. Até aflorou a Expo’92, o que, penso, não era sua intenção. E tive uma oferta de informação.

 

- Mas não lhe disse nada?

 

Falcón sentiu de novo o toque daquela sonda.

 

- Conheço o Ramón Salgado - disse Falcón. - Por fora, é um homem de sucesso: dinheiro, bom carro, casa em El Porvenir, clientes influentes. Mas aos seus próprios olhos, é um falhado. Nunca se empenhou do mesmo modo que os artistas que representa. Faz palestras para auditórios vazios. Escreveu dois livros sem reconhecimento académico ou comercial.

 

- Então, o que queria ele? - perguntou Ramírez.

 

- Uma coisa pessoal... tem a ver com o meu pai, a troco de informações. Não lha quero dar e receber boatos em troca.

 

- O que para aí há mais é boatos - disse Ramírez.

 

- Nunca foi a uma «vernissage», inspector, pois não? Estão cheias de pessoas que fingem saber mais do que sabem, que pensam que apenas elas conseguem ver a verdade na obra, e depois... tentam passar aquilo a palavras.

 

- Isso são tretas, não são boatos.

 

- São pessoas que querem estar onde «a coisa» se dá.

 

- Que «coisa»? - perguntou Ramírez.

 

- O génio - disse Falcón.

 

- Os ricos nunca estão satisfeitos com o que têm, não é? - disse Ramírez.

- Até os tipos do barria que tiveram sucesso acham que isso não lhes chega. Estão sempre a ver se nos esfregam o sucesso deles na cara e ainda querem que continuemos amigos depois disso.

 

- O meu pai também nunca percebeu isso e era rico - disse Falcón. - Era uma coisa que desprezava.

 

- O quê? - perguntou Ramírez, pensando que ainda estavam a falar de génio.

 

- Consumismo.

 

- Oh, claro que sim - disse Ramírez, sarcástico, alcançando o maço de cigarros.

 

Sabia que o velho Falcón tinha deixado uma fortuna em propriedades que ele tinha «consumido», comprado, adquirido. Se desprezava o consumismo, então o velho cabrón desprezava-se a si próprio.

 

O equipamento estava finalmente pronto. Viraram-se para o ecrã. O barulho da estática da máquina estacou à primeira imagem: o silêncio do cemitério, as sombras dos ciprestes a riscarem o caminho, os acompanhantes do enterro em torno do jazigo.

 

O pensamento de Falcón desviou-se para Salgado, o pai, o estúdio nunca investigado e o estranho pedido. Tinha sido Salgado a abrir o caminho ao pai, o que justificava o especial desprezo que lhe era reservado em privado. Salgado tinha montado a exposição em Madrid, onde foi feita a venda do primeiro nu de Falcón, nos idos anos 60. O mundo artístico europeu tinha ficado maluco. A casa da calle Bailén foi comprada à conta disso.

 

Apoiado nessa aura de fama, luminosa mas provinciana, Salgado tinha montado uma exposição em Nova Iorque. Falou-se de encenação, que o quadro já tinha sido prometido à herdeira dos Woolworth e «Rainha» de Tânger, Barbara Hutton, e que a «exposição» era apenas isso, uma forma de criar agitação em torno do nome de Francisco Falcón. Fosse como fosse, deu resultado. Barbara Hutton comprou o quadro e a exposição foi vista por uma série de brilhantes colunáveis de Nova Iorque. O nome Falcón estava em todas as bocas. As duas exposições seguintes tiveram um êxito estrondoso e por umas escassas semanas, em meados dos anos 60, Francisco Falcón foi um nome quase tão reputado como Picasso.

 

Uma parte desse êxito deveu-se aos talentos de Ramón Salgado, que conhecia à partida os limites do trabalho do cliente. A verdade é que só houve quatro nus de Falcón - e isso provocou muito azedume, raiva e frustração ao pai. Foram todos pintados no espaço de um ano, no início dos anos 60, em Tânger. Quando se mudou para Espanha, aquele filão de génio especial secou totalmente. Nunca mais recuperou as qualidades únicas e misteriosamente inacessíveis daqueles quatro quadros abstractos. O pai costumava falar-lhe de Gauguin. De como Gauguin não era ninguém até ter visto aquelas mulheres da Oceânia. Elas tinham despertado o génio nele. Viu-as e viu por dentro delas. Se isso lhe tivesse faltado, teria acabado em França a pintar portas. Foi o que aconteceu a Francisco Falcón. A primeira mulher tinha morrido, a segunda também e ele tinha saído de Tânger. Os críticos disseram que os nus tinham sido pintados com uma inocência conhecedora, o que lhes dava uma presença intocável e que talvez fosse o trauma dos últimos anos em Tânger que tivesse quebrado o fluxo. As suas perdas vedaram o acesso à pureza dessa inocência. Nunca tentou sequer pintar outro nu abstracto.

 

O olho de Falcón captou algo. Uma mancha negra tinha aparecido e desaparecido rapidamente no branco do ecrã.

 

- O que foi aquilo?

 

Ramírez saltou na cadeira. Ele mal estava a olhar para aquela porcaria. Tudo aquilo era uma perda de tempo, na sua opinião.

 

- Vi ali uma coisa - disse Falcón. - Ao longe. No canto direito. Pode voltar atrás?

 

Ramírez planou à volta do ecrã como uma varejeira em torno do esterco. O seu dedo largo e impreciso agrediu a máquina e as personagens começaram a correr para trás. Mais uma agressão e voltaram a um ritmo mais digno.

 

Era depois da cerimónia no jazigo. Os acompanhantes do funeral estavam a dispersar-se. Falcón fixou o segundo plano - o recorte dentado dos telhados dos jazigos de família, as linhas direitas dos altos blocos de ossários onde os restos mortais dos mais pobres repousavam. A câmara começou uma lenta deslocação da esquerda para a direita.

 

- O que foi aquilo, outra vez? - perguntou Falcón, sem ter agora a certeza de estar concentrado.

 

- Não vi nada - disse Ramírez, reprimindo um bocejo.

 

- Vá lá buscar outra vez aquele rapaz e ele que «congele» a imagem. Ramírez trouxe outra vez o jovem polícia e ele passou a sequência fotograma a fotograma.

 

- Ali - disse Falcón. - No canto superior direito, contra o jazigo branco.

 

- Joder - disse Ramírez. - Acha que é ele?

 

- Apanhou-o mesmo no final daquela deslocação de imagem.

 

- Oito fotogramas - disse o jovem polícia. - É um terço de segundo. Não sei como conseguiu ver aquilo.

 

- Não vi - disse Falcón. - Tive só uma percepção.

 

- Ele está a filmar os acompanhantes do enterro - disse Ramírez.

 

- Deve tê-lo visto com a sua câmara e atirou-se para trás da parede do jazigo - disse Falcón. - Mas isso, tenho a certeza, é um terço de segundo do nosso assassino.

 

Viram o vídeo todo três vezes e não conseguiram extrair mais nada dele. Foram ao departamento de informática e encontraram um operador ainda a trabalhar. Digitalizou as imagens da cassete e introduziu os oito fotogramas no computador, seccionou o elemento vital e ampliou-o ao tamanho do ecrã. Havia uma certa distorção, mas não tanta que não se visse o cuidado que aquela pessoa tinha posto na sua indumentária. Usava um boné de basquete sem marca. A pala estava ligeiramente desviada, de modo a poder encostar bem a câmara ao olho. Usava luvas e tinha gola alta subida até ao nariz. Estava ajoelhado e o casaco escuro roçava no chão.

 

- Não podemos dizer sequer de que sexo «ele» é - disse Falcón.

 

- Posso limpar estas imagens para lhe dar - disse o operador. - Vai-me levar o fim-de-semana, mas consigo fazê-lo.

 

Pegaram numa impressão da imagem e voltaram para o gabinete de Falcón.

 

- Vamos lá a isto: o que estava ele ali a fazer? - disse Falcón, sentando-se à secretária. - Estava a filmar alguém em particular ou apenas a cena global?

      

- A conclusão do seu trabalho - disse Ramírez. - O sacana morto e enterrado. É o que me palpita.

 

- Ele arriscar-se-ia deste modo só por satisfação pessoal?

 

- Este risco todo, não. Não é normal filmar gente enlutada no funeral de uma vítima - disse Ramírez.

 

- Podia ser a conclusão daquela parte do trabalho e o começo da próxima

- disse Falcón.

 

- Não era o que tinha subentendido antes de termos ido ao cemitério?      

 

- Não me lembro de ter subentendido nada.

 

- Disse que mentes não perturbadas podiam perturbar-se. Não é o mesmo?

 

- Um louco com um motivo maligno - disse Falcón. - Ou um louco maligno sem motivo.

 

Ramírez olhou para trás de si, para ver se alguém mais inteligente tinha acabado de entrar na sala.

 

- E é essa a questão, não é? - disse Falcón. - Continuamos a não saber o suficiente pata anular qualquer linha de investigação. Pregou a imagem impressa na parede.

 

- É como aquele jogo nas revistas dos miúdos - disse Ramírez, atirando-se para a cadeira. - Tem de se adivinhar a identidade de uma estrela pop a partir de um olho, um nariz ou uma boca. Os meus filhos acham que eu devo ser bom nisso, porque sou polícia; mas não percebem que eu não conheço nenhuma daquelas pessoas. Quem raio é Ricky Martin?

 

- Filho do Dean Martin? - disse Falcón, sem fazer qualquer ideia.

 

- E quem, raio, é o Dean Martin?

 

Falcón não aguentou aquela. Entrou em histeria. Talvez fossem as noites perturbadas por sonhos estranhos. Ria loucamente e baixinho. As lágrimas corriam-lhe e limpava-as em movimentos rápidos. Contorcia-se na cadeira, em golfadas sucessivas que o submergiam. Ramírez olhava para ele como um advogado para um cliente imprevisível que tem de levar a depor.

 

Ramírez telefonou para os homens em campo e ouviu os relatórios. Nada. Saiu para almoçar. Falcón recompôs-se e foi para casa, ainda atordoado com aquela sua explosão, com o facto daquilo ter acontecido com ele, aquela perda de autocontrolo.

 

Comeu o que Encarnación lhe deixou no fogão, sem se dar conta do que era. Foi para a cama, ansiando por uma hora de sono. Acordou às 9 da noite, na escuridão total do quarto. Saiu bruscamente do sono, como se alguém lhe tivesse apertado um nó no estômago. Tinha visto acontecer o mesmo aos bêbados, recuperarem a consciência nas celas, como se fossem directamente ligados à corrente da vida. Estava zonzo e a língua coberta com uma coisa qualquer que sabia mal. Os membros estavam rígidos e as articulações rangiam.

 

Meteu-se debaixo do chuveiro e deixou a água levar-lhe a confusão reinante de dentro de si. A cabeça e a barriga pareciam uma misturadora na qual tivesse posto talheres, escaqueirados e retorcidos. Foi para o quarto de vestir, enfiou umas calças cinzentas e uma camisa branca que não assentou bem sobre os ombros quando a vestiu. Olhou para a sua imagem no espelho e não aguentou ver-se. A camisa. Detestou a brancura dela. Não aguentava a... falta de cor. Arrancou-a, arrepiou-lhe a repulsa que lhe causou; arremessou-a para o outro lado do quarto. Aproximou-se do espelho, inspeccionou o rosto, pressionou a pele macia por baixo dos olhos, viu-a enrugar-se e não readquirir a sua macieza anterior. A idade. «Será que o enrugamento também se dá interiormente? Estarão a formar-se pequenas rugas no meu cérebro, de maneira que vou para a cama a gostar de camisas brancas e acordo a detestá-las?»

 

Pôs uma camisa verde. .

 

De regresso ao quarto, teve um súbito lampejo de memória, quando olhava para os lençóis azuis-escuros, enrodilhados na cama. Inés sempre tinha querido que fossem brancos, mas ele não conseguia dormir em lençóis brancos. Lá estava outra vez aquela tendência antibranco. Assentaram em azul-claro. Falcón tinha uma curiosa percepção de si próprio como um excêntrico, como o pai tinha descrito alguns dos coleccionadores ingleses que tinha conhecido. Não, isso era uma mentira inoculada pelo seu ego. Viu-se tal como Inés o teria visto - um velho com hábitos e manias, só que aos quarenta e cinco anos não se é velho. Quando tinha quinze anos, os de quarenta eram velhos. Usavam todos fato, chapéu e bigode. Agora que pensava nisso, apercebia-se de que ele próprio usava sempre fato; mesmo aos fins-de-semana, punha casaco e gravata. Inés tinha tentado introduzir camisolas desportivas e jeans, camisolas tricotadas pelo pescoço acima, até camisas sem gola, que ele não conseguiu de todo usar. Faltava-lhes estrutura. Gostava de camisa e gravata, porque isso o mantinha apertado, o fazia sentir-se contido. Detestava sentir-se a nadar dentro da roupa. Gostava de fatos feitos por medida. Gostava da sensação de concha que um bom fato lhe dava. Agradava-lhe a sua protecção.

 

Protecção de quê?

 

Outra vez aquela sensação de desfilada. Mas agora, em vez de a afastar, tentou examiná-la. Era como um filme acelerado, mas não era bem isso, porque não havia qualquer progressão - pelo contrário. Não era regressão, era paralisia. Sim, era isso. Estava imóvel e o passado alcançou-o. Uma ideia riscou o ar, como estilhaços brilhantes a passarem diante de uma janela. Donde vinha aquilo? Estilhaços brilhantes que passavam a toda a velocidade... Começou a recordar o sonho do que pensava ter sido um sono sem sonhos, razão pela qual tinha acordado de um pulo. Sabia de onde o sonho tinha surgido. Tinha lido um relato do inquérito à explosão do voo 103 da PanAm, em Lockerbie, na Escócia. Um homem acordou, em casa, e deu com uma fila de passageiros, ainda sentados nos respectivos lugares, no meio do jardim e... estavam todos a fazer figas com os dedos. Esse pormenor pungente tinha fixado à mente de Falcón o horror da explosão do avião; tinha permanecido dentro dele e agora a memória tinha-o trazido à superfície. O barulho. Os fragmentos vitais a passarem ao lado da janela - pedaços da turbina, partes da asa - e depois atirados para a noite lânguida, desfilando através da ténue negrura; a mente embotada; apenas o instinto a lutar por tempos menos perigosos; a montanha-russa, Montanha Mágica. Oh, vamos safar-nos, cruzemos os dedos. O solo invisível correndo para os alcançar. O negro mais negro. Do género sem estrelas. Oh meu Deus, o mundo todo às avessas. Não fomos feitos para isto. Para que serve agora aquele «Agarrem-se! Agarrem-se!»? Isto é efectivamente a classe económica. E vamos chegar tão atrasados. Todos aqueles pensamentos - a filosofia desgarrada, as piadinhas de comédia, a ânsia de normalidade - à medida que corremos para ele, mergulhando ao seu encontro.

 

Mas ele não tinha chegado ao fim. Tinha acordado. Não tinha havido impacte. A mãe tinha-lhe dito - a primeira ou a segunda mãe?, uma delas tinha-lhe dito - que, desde que não se atingisse o solo no sonho, estava bem. Ridículo. Pois se ele estava na cama. As coisas em que se acredita.

 

Ajoelhou-se e atou os atacadores, com um nó bem firme, apertando os sapatos de modo a que os pés ficassem seguros e estáveis - confiáveis. Não era ocasião para andar a tropeçar pela casa, chinelando por ali com as babuchas de couro amarelo que tinha comprado porque lhe lembravam o pai, que era o que usava quando trabalhava - descalço ou de babuchas, nunca outra coisa.

 

Era desesperante, este constante regresso à superfície.

 

Saiu do quarto para a arcada que dava para o pátio. Estava morno. O ar que soprava em torno dos pilares era tão suave como uma rapariguinha que o viesse beijar. Aspirou o ar exótico que subitamente lhe encheu a cabeça com um aroma de possibilidade. A pupila negra da água parada da fonte do pátio fixava a noite por cima dela. Sentiu um arrepio. Aquelas casas todas olhavam para dentro, pensou. «Estou emparedado. Os lados estão a apertar-se. Tenho de sair. Tenho de me libertar de mim.»

 

Começou a descer as escadas, mas voltou à galeria, ao estúdio do pai. A gaveta com as chaves tinha desaparecido. Encarnación. «Estranho», pensou, «com um nome daqueles e vejo-a tão raramente. Anda aí, supostamente para a eternidade, com forma humana, mas nunca aparece. Só se vêem vestígios da sua actividade.»

 

Avançou para a grade de ferro, porque via agora que tinha sido lá deixada uma chave na fechadura e a outra dependurada num fio. Bateu nas palmas das mãos com as pontas dos dedos. Húmidas. As mãos dele tinham sido sempre secas e frescas. Inés tinha comentado isso. Quando se amavam, costumava bastar ele passar as mãos pelas costas dela abaixo que isso a fazia comprimir o estômago contra a cama e levantar o rabo na direcção dele, oferecendo-lhe o sexo. Essas mãos frescas e secas na pele dela. No final do casamento, chamava-lhe peixeiro. «Não me toques com esses blocos de gelo!»

 

Girou a chave. Uma, duas e meia. O trinco fez clique e abriu-se. A porta rodou nos gonzos sem barulho. Quem os teria oleado? A fantástica Encarnación? O coração batia com força, como se soubesse que algo estava para acontecer. Tirou a chave da fechadura e fechou o portão de ferro forjado.

 

Nesta ponta da galeria, o pai tinha colocado barras nas aberturas dos arcos, obcecado com a segurança como sempre fora. Falcón percorreu-a em toda a sua extensão, com a água negra da fonte, parada, agitando-se na sua visão.

 

Retrocedeu, até à porta que ficava a meio, a pesada porta de mogno com as suas almofadas proeminentes em evidência, dizendo «Não entres»; ou talvez melhor, exigindo: «Não entres sem estares preparado.»

 

A segunda chave deslizou na fechadura e deu facilmente a volta. Tudo muito encorajador. Empurrou a pesada porta, vencendo a primeira resistência. Abriu-se com um som gemebundo, como o caixão de um vampiro. Soltou uma risada nervosa. Nervoso como Leda quando viu o cisne a apertar as asas. Uma das piadinhas do pai acerca das mulheres que tremiam perante o seu avassalador carisma. Tacteou à procura do interruptor.

 

Uma enorme parede vazia salpicada de tinta surgiu sob o brilho intenso das luzes de halogéneo. A extremidade onde o pai costumava trabalhar. Cinco por quatro metros de parede de trabalho. Por debaixo das pingas escorridas e dos riscos de tinta, pareciam flutuar os vestígios de quatro quadrados de tela. Uma ponta da parede, mais próxima da janela, estava quase totalmente preta, com uma altura grande de tinta, como se tivesse ali trabalhado em ideias cheias de iminente condenação. No resto da parede, havia uma predominância de vermelho, que não era uma cor que tivesse grande presença em qualquer das obras posteriores aos nus de Tânger - linhas voluptuosas pintadas sobre blocos de cores marroquinas - azul de tuaregue, ocre do deserto, âmbar ardido, terracota e, depois, os vermelhos; a paleta completa de vermelhos de sangue, do carmesim capilar ao vermelho venoso e ao púrpura profundo arterial. Todos diziam que estava nos vermelhos. O fluxo da vida. Mas ele não tinha usado vermelho depois de Tânger. Os quadros que fazia de pormenores de Sevilha raramente utilizavam vermelho. As paisagens abstractas eram verdes e cinzentas, castanhas e pretas, sempre atenuadas com uma misteriosa luz difusa proveniente de uma fonte desconhecida. Luz a que o crítico do «ABC» chamava «etérea» e o «El País», «Disney».

 

«Não se pode ensinar as pessoas a ver», dizia o pai. «Elas só vão ver o que quiserem. A cabeça está sempre a interferir com a visão. Devias saber isso, Javier, na tua profissão. É como as testemunhas que viram tudo com grande clareza, mas uma vez confrontadas no interrogatório parece impossível terem lá estado sequer. Aprende-se mais com um cego. Lembras-te do filme ”Doze homens em fúria”? Sim? Por que é que estavam ”em fúria”? Porque as pessoas acreditavam firmemente na veracidade da sua visão. Se não podemos confiar nos nossos próprios olhos, nos de quem podemos confiar?»

 

Ao recordar estas palavras, Falcón estacou, tão ridículo como os mimos da calle Sierpes. O pensamento girava-lhe em torno do âmago da questão, procurando uma verdade que lhe permitisse penetrar na mente do assassino de Raúl Jiménez. O tal que tudo fazia para obrigar a vítima a ver, que a forçava a combater as interferências do cérebro e obrigava a ver uma verdade inaceitável.

 

Mas não conseguiu chegar lá e regressou, tão surpreendido como um paciente anestesiado após ter estado algum tempo afastado do mundo.

 

Rodeou as mesas esmurradas, cobertas de frascos e potes de barro atascados de molhos de pincéis completamente ressequidos, hirtos com tinta encrostada. Por baixo das mesas, havia caixas de cartão e pilhas de livros, catálogos e revistas, publicações de arte obscuras e resmas de papel, rolos de tela, placas de platex. Levar-lhe-ia meio dia só a levar as coisas para baixo, para não falar em olhar para elas. Mas era essa a questão: não se pretendia que olhasse para elas. Era para ser tudo levado dali e incinerado. Não era pôr aquilo no lixo, era destruí-lo, para não mais ser reconhecido.

 

Falcón passou a mão pelo cabelo repetidamente, ensandecido por aquilo em que estava a embarcar, sabedor de que a razão pela qual tinha ido ali era especificamente para desobedecer aos desejos do pai. Andava a evitar aquele momento desde a morte dele, precisando de ganhar distância para pôr fim a uma era e poder recomeçar sozinho. A sua própria era? Homens vulgares como ele chegavam a ter uma era deles próprios?

 

Agachou-se e puxou uma revista da pilha. Era um «New Yorker», de cujos cartoons o pai era grande entusiasta, quanto mais surreais melhor. Tinha apreciado particularmente o desenho de um peão de xadrez, de pé ao lado de um cacto do deserto, com a legenda: «Queen’s pawn to Albuquerque, New Mexico» (o peão da Rainha a Albuquerque / a Rainha refém de Albuquerque, Novo México). Achava fascinante a sua estonteante falta de significado. Achava isso uma atitude perfeita em relação à vida, talvez porque a sua tivesse sido levada à beira de perder todo o significado, devido à perda do seu estonteante génio. As memórias acumulavam-se e atropelavam-se.

 

Uma discussão acerca de Hemingway. Por que é que Hemingway se tinha matado em 1961, no mesmo ano em que a sua mãe morrera. Um homem que tinha conseguido tantas coisas, tinha-se matado porque não suportava não ser capaz de continuar a fazer mais. Javier tinha 16 anos quando falaram acerca disso.

 

«Javier: Por que é que ele não se limitou a reformar-se? O tipo já tinha mais de sessenta anos. Por que é que não se limitou a dependurar o estojo dos lápis, instalando-se numa espreguiçadeira sob o sol cubano e a beber uns quantos mojitos?

 

Pai: Porque ele tinha a certeza de que aquilo que perdera poderia ser reencontrado. Tinha de ser reencontrado.

 

Javier: Só isso devia tê-lo mantido ocupado. Caça ao tesouro... é um jogo de que toda a gente gosta.

 

Pai: Não é um jogo, Javier. Não se trata aqui de um jogo.

 

Javier: O seu lugar na literatura estava assegurado. Teve o Prémio Nobel. Com «O Velho e o Mar», a sua obra estava feita. Não havia mais nada para dizer. Porquê tentar dizer mais, se já não há...

 

Pai: Porque teve-o e perdeu-o. É como perder um filho...

 

Javier: E olha para ti, Papá. Não és diferente e, no entanto...

 

Pai: Não vamos falar de mim.»

 

Falcón atirou a revista ao chão, execrando a sua tremenda insensibilidade. Puxou uma caixa e abriu as badanas. Quanta tralha! A acumulação do lixo de uma vida, ainda mais tratando-se de um artista, que se agarrava a qualquer coisa que pudesse provocar uma ideia. Percorreu as paredes forradas de estantes de livros, do lado e ao fundo da sala. «Também devo queimar estes?», perguntou-se. «Era isto que tu querias fazer de mim - um incendiário de livros? Atirá-los todos pela galeria, para o pátio e fazer uma grande fogueira de palavras e desenhos? Não podes ter pensado em mim para isso.» Persuasão da mente culpada que se preparava para transgredir.

 

A parede do lado da rua tinha quatro janelas do chão ao tecto, que o pai tinha instalado para tirar o máximo partido da luz natural. Cada janela estava protegida por uma porta-lagarta de aço que se podia fazer correr de dentro. A sala era pouco menos do que uma fortaleza.

 

Voltou para ao pé da parede de trabalho e atravessou uma porta, ao canto, entrando num quarto sem janelas e iluminado por um casquilho nu. Tinham sido construídos ao longo da parede quatro estreitos cacifos verticais. Telas montadas e outros materiais estavam aí alinhados. Um móvel de gavetas para desenhos de grandes dimensões ocupava a maior parte da parede oposta. Tinha pilhas de caixas quase até ao tecto. Cheirava a mofo, cediço e, depois do longo Inverno, a humidade. Aproximou-se dos cacifos e puxou uma folha de papel ao acaso. Era um estudo em carvão de um dos nus de Tânger. Puxou outra folha. Um desenho a lápis do mesmo nu. Outra e outra folha, cada uma trabalhando o mesmo nu, desenvolvendo um pormenor, examinando um ângulo. Passou às telas. O mesmo nu de Tânger pintado vezes sem conta, umas vezes em grande, outras pequeno, mas sempre o mesmo. Falcón investigou os outros separadores e descobriu que os quatro cacifos em que o pai tinha arrumado o trabalho correspondiam a cada um dos quatro nus de Falcón. Cada qual continha centenas de desenhos e esboços a carvão, óleos e acrílicos.

 

Uma tremenda tristeza apossou-se subitamente dele. O seu trabalho, a parede de cacifos no quarto mal iluminado, era o que restava das tentativas do pai para reencontrar o génio, para fazer bem feito, mesmo que só mais uma vez, mesmo que fosse só um pequeno pormenor, para voltar a agarrá-lo. Havia dor nesse acesso de tristeza, porque Falcón podia constatar, mesmo à luz patética daquele miserável casquilho, que nenhuma daquelas peças continha nada das excepcionais qualidades dos originais. Estava tudo nos devidos lugares, mas não tinha vida, não tinha rasgo, não tinha força, não tinha garra. Era tudo medíocre. As suas paisagens abstractas eram melhores do que aquilo. As suas cúpulas e janelas, portas e contrafortes, até esses eram melhores do que aquilo. Estes queimá-los-ia; queimá-los-ia sem pensar duas vezes.

 

Subiu a um banco e tirou uma das caixas de cima do armário de gavetas. Pesada. Mais livros. Abriu a caixa, passou os olhos por eles, uns encadernados a couro, outros a tecido, alguns de escritores dos anos 60 e 70, outros clássicos. Abriu um e descobriu uma dedicatória pessoal. Eram ofertas de admiradores: aristocratas, ministros, encenadores, poetas. Abriu desajeitadamente outra caixa que continha porcelanas cuidadosamente empacotadas. Outra continha pratas. Charutos - por fumar. Caixas de cigarros. Gravuras em madeira. Estatuetas. O pai detestava estatuetas de porcelana. Três caixas cheias delas. As mais antigas, embrulhadas em jornais dos anos 70, as mais recentes em plástico de bolhas. Percebeu o que estava a observar. Tinham sido gestos para homenagear o pai. Eram pequenos presentes que lhe davam quando aparecia em cerimónias públicas. Eram pequenas expressões de gratidão pelo seu génio.

 

Mais memórias. Viajar com o pai. Ele raramente pagava uma refeição ou uma dormida num quarto de hotel, sempre engalanado de flores. Se ficavam numa casa particular, as pessoas da região iam deixar-lhe silenciosamente oferendas de fruta e legumes, para mostrar o reconhecimento pela visita do grande homem.

 

«E assim mesmo», dizia o pai. «A grandeza é constantemente recompensada. Não seria diferente, se eu fosse futebolista ou torero. O génio é que importa - com o pé, capa, caneta ou pincel, não importa. E contudo... o que é? Grandes artistas pintam quadros banais, excelentes toreros fazem coisas horríveis com grandes touros, magníficos autores escrevem maus livros, futebolistas sublimes jogam que é uma desgraça. Portanto, o que é esse... esse volúvel génio?»

 

Sim, e ficava zangado com aquilo. Levantava a mão, com o polegar e o indicador apertados até as pontas ficarem brancas e Javier pensava que ele se preparava para dizer que o génio não é nada.

 

- O génio é um interstício.

 

- Um quê?

 

- Uma fenda. Uma pequena abertura em que, se fores abençoado, podes espreitar e ver a essência de tudo.

 

- Não percebo.

 

- Nem podes, Javier, porque tu foste abençoado com o dom da normalidade. O interstício, para um futebolista, surge no momento em que ele sabe, sem estar consciente disso, exactamente onde a bola vai estar, como deve correr para ela, onde deve colocar os pés, onde está o guarda-redes, o preciso momento em que deve chutar a bola. Cálculos aparentemente impossíveis tornam-se fantasticamente simples. O movimento não implica esforço, a escolha do momento é sublime, a acção tão... lenta. Já reparaste? Já reparaste no silêncio desses momentos? Ou só te lembras do rugido quando a bola afaga a rede?»

 

Outra daquelas conversas intermináveis do pai. Falcón abanou a cabeça para se livrar daquilo. Percorreu todas as caixas, vagamente desconfortado com a organização metódica do pai. Costumava trabalhar no meio de um grande miasma de tinta e haxixe, com música e, em Sevilha, sobretudo à noite; e no entanto, nesta arrecadação, revelava-se um autêntico guarda-livros. E como a confirmar esse facto, abriu uma caixa que estava cheia até acima de dinheiro. Não teve de o contar, porque tinha uma nota no cimo que lhe dizia que continha 85 milhões de pesetas. Uma enorme quantia, que poderia ter servido para comprar um palacete ou um apartamento de luxo. Recordou-se da conversa de Salgado sobre dinheiro sujo. Isto também era para destruir?

 

A última caixa continha mais livros, encadernados a couro, mas não trabalhados e sem título. As lombadas eram também lisas. Abriu um ao acaso. As páginas estavam cobertas com a escrita imaculada do pai. Uma linha singela saltou-lhe à vista.

 

Estou tão perto.

 

Fechou o livro ruidosamente e reabriu-o na primeira página, que continha a inscrição: Sevilha 1970-. Diários. O pai tinha escrito um diário, de que ele não tinha conhecimento. O suor surgiu-lhe outra vez na testa e tornou a passar a mão para o afastar. As mãos estavam húmidas. Voltou à caixa para ver por que ordem estavam e percebeu que tinha pegado no último. Saltou as páginas até Dezembro de 1972 e leu as últimas palavras do diário:

 

Estou tão farto. Acho que vou parar.

 

Junto aos livros, encontrou um envelope fechado, endereçado: «Para o Javier.» Os pêlos eriçaram-se-lhe no pescoço. Abriu-o com os dedos a tremer. A data da carta era 28 de Outubro de 1999. O dia anterior à sua morte, três dias depois do seu último testamento.

 

Querido Javier:

 

Se estás a ler esta carta, é porque pensas desobedecer às instruções e aos desejos especificados nas minhas últimas disposições e no testamento de 25 de Outubro de 1999. Para o caso de teres esquecido, estipula-se ali, numa linguagem sem ambiguidades, que o conteúdo do meu estúdio seja completamente destruído.

 

Sim, está aqui uma aberta para ti, Javier, com a tua mente de polícia. Podes ter decidido que isto te dá a oportunidade de inspeccionar, apreciar, ler e bisbilhotar os meus pertences antes de os destruíres. Conheces-me melhor que qualquer dos meus outros filhos. Conversámos os dois de uma forma, com uma intimidade, que nunca consegui com o Paco ou a Manuela. Sabes o que quero dizer com isto. Sabes por que fiz isto e to deixei nas mãos.

 

Para começar, nem o Paco nem a Manuela seriam capazes de queimar 85 milhões de pesetas, e tu vais ser, Javier. Sei que vais, porque sabes o segredo da origem deste dinheiro e, mais importante, és incorruptível.

 

Podes pensar que a minha profunda confiança em ti te dá o direito de ler estes diários. Claro que não posso fazer nada para te impedir e é mesmo assim; mas devo avisar-te de que o que neles está contido pode ter um efeito muito destrutivo. Não serei responsável por isso. Tens de ser tu a decidir.

 

Os diários estão incompletos. É preciso trabalho de detective. És perfeito para essa tarefa. Não a empreendas com leviandade, Javier, especialmente se estiveres forte, feliz e revigorado com a tua vida presente. Isto é um pequeno historial de dor, que passará a ser teu. A única maneira de a evitares será não começares.

 

O pai que te adora,

 

Francisco Falcón

 

Sábado, 14 de Abril de 2001, casa de Javier Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

Falcón voltou a pôr a carta dentro do envelope e entalou-o dentro da caixa. Apagou a luz nas duas salas e sentiu a escuridão engolir de novo o trabalho do pai, gulosamente. Fechou os portões à chave e saiu de casa, desejoso de se afastar destes acontecimentos, de sair para longe deles.

 

Os jardins fronteiros ao Museo de BelLas Artes estavam a começar a encher-se de gente nova, que fumava charros e bebia Cruzcampo por garrafas de litro. Ainda era cedo, 11 da noite; dentro de mais algumas horas, as árvores escuras iriam troar com o barulho de uma enorme «rave», uma dessas festas abertas cheias de gente que vão pela noite dentro. Pôs-se dali para fora, afastando-se do centro e de toda a parte onde pudesse ser reconhecido.

 

Entrou numa cadência que não exigia que pensasse; apenas sentia os paralelos do pavimento através das solas dos sapatos. As palavras da carta do pai metralhavam-no tão interminavelmente como a cadência do movimento de um comboio de mercadorias. Sabia que ia fazê-lo, que não ia resistir a ler os diários.

 

Passada meia hora, deu consigo na calle Jesús del Gran Poder - um nome longo para uma rua sem nada que a recomendasse. Atalhou para a Alameda, onde as raparigas se espalhavam por entre as árvores, os carros estacionados e o espaço livre onde a feira da ladra se realizava todos os domingos de manhã. A batida da música ressoava dos clubes e bares do lado oposto. Uma rapariga aproximou-se dele, esticando a mini-saia de licra no rabo, e perguntou-lhe o que procurava. A cara dela era preta e branca, sob a luz amarela da rua, tinha os seios atirados para cima, com grande efeito visual, vestia um top de rede e mostrava a barriga redonda e nua. Os lábios rebrilhavam em preto, a língua saiu-lhe da boca, sondando como uma criatura marinha emergindo de uma rocha. Ele estava hipnotizado. Ela fez algumas sugestões, que surpreenderam Falcón por funcionarem. Ele teria gostado de ter relações. Nunca lhe tinha ocorrido pagar por elas. Ela tinha agora captado a sua atenção, usando todos os truques. Tinha as entranhas todas alvoroçadas, mas na posição errada, com a cor errada - tripa negra - agitando-se como uma cobra, monstruosa e muda, a meter-lhe ideias na cabeça, ideias terríveis que ele não sabia que era capaz de ter. Estava chocado, se bem que fascinado, com a excitação viva provocada pela cena. Teve de se forçar a sair daquela situação.

 

- Sou da polícia - disse hirto. - Procuro Eloisa Gómez.

 

Ela amuou e apontou com a cabeça para um grupo que estava em pé na praça. Ele saiu de debaixo das árvores, perturbado por descobrir que já não tinha confiança no seu comportamento. A imprevisibilidade estava a penetrar lentamente na sua natureza. Teve de se lembrar de que era bom, uma força do bem, porque o instantâneo que tinha acabado de ver do lado negro da sua natureza tinha provado estar esse bastante vivo. À medida que avançava pelo chão áspero da Alameda, ocorreu-lhe a noção insana de que poderia passar a ter medo dele próprio, do que tinha dentro de si e que desconhecia. Não tinha sido isso o que o assassino tinha feito a Raúl Jiménez, mostrar-lhe o que ele temeu todos os dias da sua vida?

 

Alcançou o grupo de mulheres que estava do lado oposto à calle Vulcano, onde mais raparigas estavam de pé sob a iluminação da rua, silhuetas de botas até às coxas. Mulheres de fantasia, que na sua actividade dizem aos homens que lhes podem fazer tudo o que quiserem, menos beijá-las na boca. O grupo dispersou-se sem uma palavra e esperaram que ele falasse, porque sabiam que não era um cliente. Perguntou por Eloisa Gómez. Uma rapariga baixa e gorda, de cabelo pintado de preto e cara inchada, disse que ela não andava por ali. Não a via desde que tinha respondido a uma chamada de um cliente, na noite anterior.

 

- É invulgar ela não voltar para aqui? - perguntou e elas encolheram os ombros.

 

- Você deve ser polícia - disse uma das raparigas. - Está com aquele cabrón que veio cá na noite passada?

 

- Sou polícia de homicídios - disse Falcón. - Ela esteve com um cliente na quarta à noite, quinta de manhã. Depois de ter saído, ele foi assassinado.

 

- Que azar.

 

Seleccionou o número de telemóvel de Eloisa e carregou nele. Não obteve resposta; deixou mensagem, com o seu número e dizendo-lhe para telefonar. Fizeram-no sentir-se um animal de jardim zoológico, a olharem para ele para verem se fazia alguma coisa interessante; até que uma loura lá detrás disse:

 

- Se queres um broche, fazemos-te o desconto habitual para polícias.

 

E riram-se todas.

 

Avançou para a calle Vulcano, deixando para trás as raparigas de fantasia, em direcção à calle Mata, e depois para leste, para a calle Relator. Tentou lembrar-se da última vez que tinha estado naquela zona, provavelmente com o pai, porque nunca tinha ido para ali beber um copo ou comer uma tapa. Havia artesãos, nesta parte da cidade. Sim, um que fazia molduras e um copista, também, um tipo perigoso, de pele escura, que o pai dizia ser consumidor de heroína. Como é que se chamava? Era uma alcunha. Da primeira e única vez que o vira, tinha vindo à porta envergando apenas umas cuecas pretas de cetim. Era magro, com a musculatura de um animal selvagem. Dentes grandes. Tinha-o chocado, pela maneira como não se preocupou em vestir-se; e discutiu o trabalho com o pai, com uma mão dentro da parte da frente das cuecas.

 

Atravessou a calle Feria até uma igreja com um nome em latim - Omnium Sanctorum - que ficava ao lado de um mercado coberto. Estava escuro e silencioso, de modo que, quando o telemóvel tocou, sobressaltou-se.

 

- Diga - disse.

 

Silêncio, à parte o silvo etéreo.

 

- Diga - repetiu, mais alto.

 

Quando a voz chegou, era calma, suave e masculina.

 

- Onde está?

 

- Quem fala? - disse Falcón, que se irritava com pessoas que não se identificavam.

 

- O que achas da nossa proximidade? - perguntou a voz e essas palavras provocaram-lhe uma transfiguração e dobraram-no ao meio, como se, de cócoras, ouvisse melhor.

 

- Não sei, qual é?

 

- Maior do que julgas - disse a voz e o telefone ficou mudo.

 

Falcón virou-se para todos os lados, verificou cada porta e cada canto da rua, bem como a alameda escura entre a igreja e o mercado. Correu, olhando para as ruas laterais. Um casal com um cãozito atravessou a rua para o evitar. Devia ter-lhes parecido amalucado, a dançar com as sombras como um pugilista com uma folga na cabeça.

 

Parou e olhou para o chão, preocupado com os dois cenários possíveis. Se o assassino não conhecia Eloisa Gómez antes, tinha obtido o número dela a partir do telemóvel de Jiménez, que tinha roubado no apartamento. Tinha-lhe telefonado na véspera e agora devia ter apanhado o telemóvel dela, porque tinha ido buscar o número de telefone dele de uma mensagem acabada de deixar, o que significava... A culpa instalou-se-lhe no peito. Ele matou-a. E se a conhecia antes... o desfecho não se alterava.

 

«Ensarilhámos isto tudo», pensou. Desatou a correr, chegou à Alameda escorrendo suor e sem fôlego. As mulheres rodearam-no.

 

- Onde mora a Eloisa Gómez? - perguntou. - E alguém sabe onde foi ontem, quando recebeu aquela chamada?

 

A rapariga gorda levou-o numa corrida desengonçada a uma casa na calle Joaquín Costa; passaram por grupos reunidos em entradas de prédios e terrenos vagos, acocorados sobre papel de prata, chupando tubos de esferográficas vazios, à espera do momento em que a droga batesse.

 

Meteu a chave à porta de um edifício antigo e decrépito, com ervas e flores a crescerem nas frestas do estuque da parede. Não havia luz na escada e os degraus de madeira cheiravam a urina. A rapariga apontou para uma porta no primeiro patamar. Ele bateu. Não houve resposta. Ela trouxe um duplicado da chave, que tinha no quarto dela. Eloisa não estava lá dentro, só um grande e carinhoso panda, novo em folha, no sofá rebentado.

 

- É para a sobrinha - disse a rapariga. - A irmã vive em Cádis.

 

O panda estava sentado, com os braços abertos num abraço hirto, com uns olhos estúpidos e melancólicos. Falcón contemplou momentaneamente a sua própria solidão na expressão daquele boneco. Voltou a ligar para o número de telemóvel de Eloisa Gómez e foi ter à caixa de correio.

- Onde está ela? - perguntou.

 

Deu o cartão dele à rapariga e disse-lhe as coisas habituais. Ela pegou-lhe com uma mão trémula. Sabia o que aquilo queria dizer.

 

O seu falhanço tinha-o posto maldisposto. Saiu da Alameda e subiu a calle Amor de Dios. Caminhou aparentando ter um objectivo, mas virou sem rumo à esquerda e à direita, descendo as ruas desorganizadas, até desembocar num fedor a gato. Os muros fechavam o local antes de se abrirem para uma igreja chamada Divina Enfermera. Divina Enfermeira? Grandes bocados de asfalto preto jaziam amontoados na Plaza San Martin. Tinha passado por ali com o pai, a caminho do copista. Passaram pela Divina Enfermeira e o pai tinha feito uma piada porca e foi-lhe mostrar as «divinas enfermeiras» no seu posto de trabalho. Mulheres de sessenta e cinco anos, sentadas à porta de casa, de pernas abertas, negro de corvo por cima das coxas irregulares e borbulhentas. O pai tinha-o deixado aterrado com uma interminável negociação de um broche, até Javier já não poder mais e correr para o extremo da rua, onde ficou à espera, debaixo de um anúncio em azulejo de fino Amontillado e manzanilla pasada. Os nomes das ruas foram passando por ele até ir dar a San Juan de Palma, que estava a abarrotar das pessoas que sobravam da Cervezería Plazoleta, bebendo cerveja à volta de duas palmeiras que desapareciam por cima dos candeeiros. Era tão fácil sentir-se só nesta cidade. Caminhou em frente da casa da Duquesa de Alba. Tinha lá estado uma vez, debaixo das latadas de buganvílias, bebendo néctar com a alta sociedade. É assim que os vadios se sentem por dentro? Estou a ficar um vagabundo para mim mesmo.

 

Uma brisa arrefeceu-lhe a patina de suor da testa. Não achava que estivesse a pensar e, no entanto, as palavras amontoavam-se dentro dele, vogando vindas do nada, de modo próprio. Menopausa masculina. Quarenta e cinco anos. Pronto para isso. Mais parvoíces das revistas da Manuela. Não. Isto é apenas um envelhecimento puro, não adulterado. O avanço gradual e furtivo foi-se fazendo notar no corpo e no espírito. «A idade é apenas a desintegração da possibilidade e a asserção da probabilidade com a proporção entre ambas a reduzir-se a cada dia» - Francisco Falcón, Junho de 1996.

 

Correu. Arrancou, como se tivesse uma hipótese de se afastar do que se ia desenrolando na sua cabeça. As pessoas afastavam-se dos seus passos pesados. Os que tinham um instinto de carneirada juntavam-se-lhe, à espera que ele soubesse para onde estava a ir. Os tolos, o raio dos tolos. Quando chegou à calle Matahacas, estavam umas vinte pessoas com ele e foi então que viu a multidão materializar-se vinda da escuridão; e sentiu o profundo silêncio que os sevilhanos reservam para duas coisas - La Virgen e los toros.

 

No fim da rua das Escuelas Pias, por cima de um mar ondulante de cabeças pretas, apareceu a Virgen, iluminada por círios. A cabeça curvada, a roupa branca cravejada de jóias, o rosto semeado de lágrimas, tudo rodopiando com a espiral dos fumos do incenso queimado.

 

A adoração abraçou-se-lhe aos pés vinda da multidão compacta por baixo dela, enquanto o paso balouçava em todas as direcções no meio da escuridão.

 

As pessoas por trás de Falcón empurravam-no para a frente, na direcção da irradiante visão de beleza, que simultaneamente o atraía e repelia, lhe inspirava reverência e terror. A multidão na frente adensava-se. Mulheres pequenas, que lhe davam pela cintura, murmuravam preces e beijavam os rosários. Estava agora encurralado neste bizarro mundo paralelo. A Alameda com as suas putas e clientes estimulados pelos gemidos e os seus viciados em busca de alheamento na ponta de uma agulha estava a viver uma vida diferente, feita de sangue e sujidade. Completamente afastada deste momentoso silêncio de catedral, com a sua beleza mortificadora, que se movia numa maré de reverência e adulação.

 

Seremos todos da mesma espécie?

 

A questão surgiu-lhe do nada, mas fê-lo pensar que era possível o bem e o mal residirem no mesmo espaço, na mesma pessoa. Até nele. O pânico prendeu-o com força. Tinha de sair daquela multidão e a única via era seguindo em frente.

 

A Virgem parou e mergulhou na escuridão. A luz das velas vacilou diante da face dela, captando as lágrimas cristalinas e os olhos enlutados. Tinha de passar por ela; tinha de passar por aquele terrível emblema da perda, o esplendoroso exemplo ao mundo da sua capacidade para a barbárie.

 

Esgrimiu para passar as penitentes, as mães silenciosas, um pai com uma criança aos ombros. Não aguentava aquilo.

 

Bateram-lhe. Deram-lhe palmadas nas costas, quando passou pelo meio deles. Arcou com o escárnio deles. Chegou à barreira, rolou por baixo dela e correu por entre os nazarenos silenciosos, vestidos de preto com grandes capuzes cónicos, indiscerníveis da noite. Tinham os olhos postos nele. Olhos sinistros em faces encapuçadas - as das ordens silenciosas eram mais duras do que as outras. Correu através das filas de homens descalços, para longe da Virgem flutuante. Estava desesperado.

 

As multidões foram-se tornando menos compactas e conseguiu saltar a barreira, mas não abrandou até chegar à calle Cabeza del Rei Don Pedro. E só então se deu conta, no silêncio da rua, de que estava a falar alto consigo próprio. Tentou ouvir o que estava a dizer, o que era ainda mais louco. Continuou a andar, recompôs-se e passou por uma viela que ligava à calle Abades. E parou mortificado na rua, porque, sozinha ali, olhando para o prédio de onde acabara de sair, estava a sua ex-mulher, Inés. Estava a rir; a rir com tanta vontade que atirou a cabeça e o cabelo comprido para a frente e agarrou as próprias coxas. Estava de frente para a luz que saía da porta do Bar Abades e Falcón sabia que não estava bêbada, porque ela não gostava de álcool. Sabia que estava a rir porque estava feliz.

 

As portas do bar abriram-se e saiu um grupo. Inés agarrou o braço de um dos do grupo e desceram a rua, afastando-se dele. Estava com saltos muito altos, como sempre, e caminhava com uma segurança que era de cortar a respiração, cruzando o piso irregular.

 

Para Falcón, obrigar os pés a mexerem-se foi mais problemático. A ocorrência tinha reaberto um enorme desfiladeiro negro que o percorria de alto a baixo. De um lado, a sua anterior e mais feliz vida de casado; e do outro, o seu eu presente, solitário e a tornar-se sombrio. E no meio? O golfo, a fenda, o poço sem fundo daqueles terríveis sonhos de quedas, para os quais a única cura era acordar sobressaltado numa realidade mais inexorável.

 

Seguiu-a. Ouvia a sua alegria. Estavam a contar piadas sobre juízes e advogados de defesa. Foi um alívio descobrir que eram colegas de trabalho; mas cada gargalhada de Inés embatia nele e prendia-se-lhe com o equivalente ao peso de um touro. A alegria dela era quase insuportável, por oposição ao tormento recém-adquirido por ele. E quando as estilhas da sua imaginação bateram na serra circular das suas suspeitas, a cabeça encheu-se de faúlhas lancinantes.

 

Na avenida de la Constitución, o grupo chamou táxis. Ficou à espreita na sombra, para ver com quem ela seguia. Meteram-se quatro num táxi. Viu-lhe o tornozelo e o triângulo da correia do sapato desaparecerem pela porta, que se fechou. Observou, desanimado, enquanto o vermelho das luzes traseiras do táxi era engolido pelo trânsito.

 

Caminhou em direcção ao rio, sempre pelas avenidas, sem vontade de se meter nas ruas estreitas de El Arenal, com os seus turistas e a sua alegria descontraída. Atravessou o rio escuro e cintilante na Puente de San Telmo e parou a meio, surpreendido pelos anúncios nos edifícios de apartamentos da Plaza de Cuba: Tio Pepe, Airtel, Cruzcampo, Fino San Patricio - xerez, comunicações e cerveja. Eis a Espanha de hoje - todas as nossas necessidades estão cobertas.

 

O rio teve uma ligeira ondulação à superfície e continuou a correr tranquilo por baixo dos seus pés. Veio-lhe à mente a primeira mulher de Raúl Jiménez. A tortura de não saber foi demasiada para uma mãe aguentar. Perguntou a si próprio se ela se teria atirado de onde ele estava e lembrou-se de Consuelo Jiménez ter dito que tinha descido à margem, numa noite, e se tinha jogado ao rio. Imaginou-a a flutuar rio abaixo, com a água a subir-lhe pela cara, cantos dos olhos e boca, até se encontrarem e a escuridão que ela tanto desejara se fechar sobre si.

 

O telemóvel tocou. A estupidez do seu toque foi bem-vinda, no meio destas suas divagações mórbidas. Encostou-o ao ouvido, ouviu o silvo do éter e soube que era ele.

 

- Diga. - disse tranquilamente.

 

Sem resposta.

 

Esperou, sem quebrar, desta vez, o encanto com palavras supérfluas.

 

- Está a pensar, inspector jefe, que isto é a sua investigação; mas devia saber que tenho uma história para contar e, quer queira quer não, vai deixar-me contá-la. Hasta luego.

 

Domingo, 15 de Abril de 2001, casa de Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

Falcón ressuscitou do sono com o coração em tropel no peito, ainda acelerado pela adrenalina. Mediu o pulso: noventa. Pôs as pernas fora da cama, exausto ainda antes de começar o dia. Tinha a cara quente e o cabelo suado, como se tivesse passado a noite, ou melhor, a manhã, a correr. Só tinha ido para a cama às quatro da madrugada. Não tinha vontade de voltar para casa.

 

Fez uma hora de exercício na bicicleta e persuadiu-se de que se sentia melhor. Tomou banho e vestiu-se. O mundo exterior, a um passo dali, parecia morto. Bebeu café e comeu uma torrada com azeite e alho. O pequeno-almoço do pai. Subiu ao estúdio e arrumou os diários por data, constatando que a qualidade dos livros se tornava mais pobre com o passar dos anos - o papel era menos espesso, os cadernos deixavam de ser cosidos e passavam a ser colados, as lombadas estavam estaladas e tinham páginas soltas. Até a letra tinha mudado. Nos primeiros volumes, era dificilmente reconhecível como sendo do pai. As letras encavalitavam-se, os intervalos eram irregulares, as linhas inclinavam-se para baixo e os acentos e til pareciam chocalhados num copo e atirados para a página. Denotava falta de confiança, instabilidade, quase loucura. Posteriormente, a mão tornava-se mais firme, mas só se transformava na bela caligrafia que Javier conhecia depois do regresso a Espanha, nos anos 60.

 

Fora então que se produzira o salto. Um dos diários acabava no Verão de

1959, em Tânger, e o seguinte começava em Maio de 1965, em Sevilha. Tudo tinha acontecido naquele intervalo de tempo. A mãe e a madrasta tinham morrido. O pai tinha pintado os nus de Falcón, tinha-se tornado famoso e tinha saído de Marrocos. Era o volume vital, mas em que é que a sua perícia como polícia o podia ajudar a encontrá-lo?

 

Era quase uma da tarde e esperavam-no para almoço na propriedade do irmão Paco, a herdade Las Cortecillas, que ficava a uma hora de distância de automóvel. Queria começar a ler os diários, mas sabia que tinha de parar quase imediatamente. Ia ler a abertura e ficar por ali - um aperitivo, um pincho antes do gran plato.

 

19 de Março de 1932, Dar Riffen, Marrocos

 

Faço hoje dezassete anos e o Oscar deu-me de prenda este livro vazio, que me disse que tinha de ser eu a preencher. Há quase um ano que se deu aquilo a que me refiro como «o incidente» e comecei a pensar que, se não registar as coisas como as vejo, vou esquecer-me de como fui. Apesar de, depois de dez meses de treino e disciplina brutal na Legião, já não saber muito bem como era. Para aguentar os dias na caserna, é melhor não pensar. Para aguentar os dias no campo de batalha, é melhor não pensar. Em acção, não consigo pensar, é tudo muito rápido. Durmo com um único sonho, no qual não quero pensar. Portanto, não penso. Digo isto ao Oscar e ele responde: «Se não pensas, logo não existes.» Não percebo onde quer chegar. Diz-me que este caderno vai inverter a situação. Espero que não seja tarde de mais. A vida antes do «incidente» perdeu definição. Tudo é irrelevante, agora. A minha educação não significa mais nada do que eu saber ler e escrever, o que é bastante mais do que fazem os tontos da minha companhia. As minhas velhas amizades têm menos significado. A minha família esqueceu-se de mim, morreu para mim. Quem sou eu? Chamo-me Francisco Luis González Falcón. No meu primeiro dia na Legião, o capitão disse-nos que éramos novios de la muerte. Tinha razão. Sou um noivo da morte, mas não no sentido que ele lhe dava.

 

O telemóvel tocou; era a irmã, Manuela, a lembrá-lo para a ir buscar. Começou a queixar-se de como Paco a ia pôr a trabalhar para ganhar direito ao almoço e Javier solidarizou-se com ela, mas não a ouvia. Que pesada lhe era a minúcia.

 

Saíram da cidade sob um sol luminoso e dirigiram-se para norte, a caminho de Mérida. À medida que avançavam pelas planícies intermináveis, com a vegetação ondulante, Javier foi-se relaxando. As pressões da cidade, a intensidade das ruas estreitas, os apertos, as hordas de turistas, a crescente complexidade da investigação, ficou tudo para trás. Nunca tinha invejado o amor de Paco pela vida simples, o espaço, os touros a pastarem; mas agora, depois do assassínio de Raúl Jiménez, a cidade, em vez de lhe provocar fascínio, estava a inculcar-lhe medo. Não era a primeira vez que entrava numa procissão nocturna da Virgem, à luz das velas. Até já tinha acompanhado uma depois de abandonar a cena de um crime e não tinha sentido qualquer emoção. Nunca se tinha identificado com a loucura da idolatria mariana da cidade. Mas por duas vezes em dois dias, tinha ficado afectado pelo que era, no fundo, um boneco em cima de um andor e, na noite anterior, tinha entrado completamente em pânico. A necessidade de se afastar dali, ou melhor, de ultrapassar tudo aquilo, tinha-se tornado um instinto. Não tinha sido nenhuma elaboração racional. Sacudiu a cabeça e recompôs-se à passagem pela vila de Panojas, branca que cegava.

 

Mal chegaram à finca, Manuela trocou o fato de seda Elena Brunelli pela bata de veterinária. Paco pôs uma arma ao ombro e pegou em três dardos tranquilizantes. Entraram todos para um Land Rover e foram em busca de um dos retintos de Paco, que tinha levado uma cornada no flanco, numa luta com outro touro.

 

Encontraram-no sozinho, debaixo de uma azinheira. Era um adulto feito e já estava vendido para a Feria desse ano. Paco carregou um dardo e disparou ao quadril. O touro largou a trote pelo meio das árvores. Seguiram-no de carro, até ele parar numa clareira relvada e iluminada pelo sol, toldado e com falta de forças nas patas traseiras. Saíram do veículo e, quando se aproximaram, levantou a cabeça, ainda com vestígios de força na vasta musculatura do cachaço. O olhar primitivo captou-os e, por instantes, Javier penetrou no interior da cabeça do touro. Não havia medo lá dentro, apenas uma imensa intuição da sua força, que se ia consumindo lentamente pelo efeito do tranquilizante.    

 

A cabeça do touro afundou-se na erva. Manuela limpou a ferida, deu uns pontos, injectou-lhe antibiótico e tirou uma amostra de sangue. Paco não parava de falar e segurava no corno do touro, afagando com o polegar a ponta macia e afiada, atento a outros touros que pudessem atacar. Javier, dando umas palmadinhas no quadril do animal estonteado, sentiu um súbito desejo de alcançar aquela plenitude de ego que o touro lhe tinha revelado por segundos, «A complexidade tornou os humanos tão frágeis. Oh, se pudéssemos ser tão concentrados como o touro, tão consciente da nossa força, em vez de atendermos às nossas constantes e patéticas necessidades.»

 

Manuela injectou um estimulante no animal e retiraram-se para o Land Rover. A cabeça ergueu-se e o touro começou imediatamente a reunir as forças, com o instinto a dizer-lhe que estava vulnerável, ali deitado no chão. Levantou-se, concentrou as forças e obrigou-se a andar. Os quartos traseiros executaram um ressalto alternado, à medida que ia desaparecendo por entre as árvores.

 

- Um touro fantástico - comentou Paco. - Vai estar impecável para a Feria, não vai, Manuela?

 

- Ainda vai ter aquela ferida, mas vai mostrar-lhes quem é - disse ela.

 

- Fica de olho nele, Javier. Segunda, 23 de Abril, vai estar em La Maestranza e não há ninguém, nem mesmo José Tomás, que leve a melhor sobre aquele touro. O Pepe já sabe de alguma coisa?

 

- Nada.

 

- Vai chegar a sua hora. Alguma coisa vai acontecer até à Feria, os números ditam-no.

 

Almoçaram borrego, que Paco tinha assado num forno de pão, em tijolo, que tinha restaurado. Havia imensa gente para o almoço: sogros, tios, a mulher de Paco e os quatro filhos. Rodeado pela família, Javier descontraiu-se e bebeu muito vinho tinto, mais do que de costume. Foram todos dormir, em seguida. Manuela teve de acordar Javier, que estava a dormir tão ferrado como um ídolo caído.

 

Começava a escurecer quando se meteram no carro e ainda estava azamboado. Paco pôs-lhe o braço à volta dos ombros. Ficaram presos num prolongado adeus.

 

- Algum de vocês sabia que o Papá tinha estado na Legião? - perguntou Javier.

 

- Qual Legião? - retorquiu Paco.

 

- El Tercio de los Extranjeros de Marrocos, nos anos 30.

 

- Eu não sabia - disse Paco.

 

- Hah! - exclamou Manuela. - Tens estado a limpar o estúdio. Pefguntava-me a mim própria quando lá chegarias, maninho.

 

- Estou só a ler alguns diários que ele deixou, nada mais.

 

- Ele nunca falou nisso... A Guerra Civil - comentou Paco. - Nem me lembro de ele falar sequer da sua vida antes de Tânger.

 

- Menciona também um incidente... - disse Javier - uma coisa que aconteceu aos dezasseis anos e o fez sair de casa.

 

O irmão e a irmã abanaram a cabeça.

 

- Vais contar-nos, maninho, se encontrares mais um dos seus nus, que ele possa ter deixado caído atrás de um baú ou coisa assim. Quer dizer, não ia ser muito justo, pois não?

 

- Há centenas deles. É só escolheres.

 

- Centenas?

 

- Centenas de cada um.

 

- Não estou a falar de cópias - disse Manuela.

 

- Nem eu... são todos «originais», todos pintados por ele.

 

- Explica-te lá, maninho.

 

- Pintou-os uma vez e outra e outra, tentando recapturar... sei lá, os segredos do trabalho primitivo. Não prestam para nada e ele sabia-o; por isso os queria destruir.

 

- Se o Papá os pintou, não podem não prestar para nada - disse Manuela.

 

- Nem sequer estão assinados.

 

- Isso arranja-se - disse Manuela. - Como é que se chamava aquele tipo tenebroso que ele utilizava...? Um heroinómano. Vivia perto da Alameda.

 

Os dois irmãos olharam fixamente para ela e Javier recordou as palavras do pai na carta. Manuela devolveu-lhes o olhar.

 

- Heh! Que cabrones sois - desabafou, pondo o seu sotaque andaluz mais ordinário.

 

Riram-se todos.

 

Javier não se deteve a perguntar-lhes por que é que se chamavam todos Falcón, que era o nome de solteira da mãe do pai, e não González, que deveria ser o apelido de família. Os diários iriam esclarecer isso. Paco e Manuela não sabiam nada.

 

Manuela guiou no regresso para Sevilha, com Javier encolhido junto à porta. À medida que a cidade invisível se aproximava, a espiral de tensão foi crescendo dentro dele, repassando assustadoramente para as suas entranhas. O céu tingiu-se de laranja e ele ensimesmou-se, retomando as estreitas vielas do pensamento, os becos assustadores dos pensamentos inacabados, as avenidas congestionadas das coisas meio recordadas.

 

De regresso à casa da calle Bailén, foi direito à cozinha e bebeu água gelada, directamente da garrafa que estava no frigorífico. A campainha tocou. Eram nove e meia da noite. Ninguém o costumava visitar àquela hora.

 

Abriu a porta da frente e viu a Sra. Jiménez a dois metros de si, como se se preparasse para mudar de ideias.

 

- Fui buscar a minha bagagem ao Hotel Cólon - disse. - Lembrei-me de que a casa não era longe. Ocorreu-me ver se estaria por cá.

 

Uma coincidência notável, posto que tinha acabado de chegar.

 

Mandou-a entrar. O penteado estava diferente, menos armado do que antes. Trazia um casaco de linho preto, uma saia preta e umas sandálias de cetim encarnado com saltos-agulha, pormenor que retirava o ar sofredor à viúva enlutada. Avançou pelo pátio. Ele seguiu-lhe os calcanhares descobertos e as pernas, cujos músculos se retesavam a cada passo.

 

- Já conhece a casa - disse Falcón.

 

- Apenas estive no pátio e na sala onde ele mostrava os trabalhos. Não parece ter mudado nada.

 

- Mesmo os quadros continuam ali - disse ele - pendurados como da última vez que os mostrou. Encarnación limpa-lhes o pó. Tenho de os tirar... para organizar as coisas.

 

- Surpreende-me que a sua mulher não o tenha feito.

 

- Tentou. Eu não estava preparado, nessa altura, sabe, para eliminar por completo a presença dele da casa.

 

- Ele tinha uma presença realmente imponente.

 

- Sim, algumas pessoas achavam-no intimidante; mas não pensava que fosse uma delas, Sra. Jiménez.

 

- No entanto, a sua mulher, talvez se sentisse um pouco constrangida... ou esmagada. Sabe, uma mulher gosta de dar um toque pessoal à casa e sente-se frustrada se...

 

- Quer dar uma vista de olhos? - disse, avançando pelo pátio, sem vontade de a deixar imiscuir-se mais na sua vida privada.

 

Os saltos ressoavam provocantemente nas velhas lajes de mármore que rodeavam a fonte. Falcón abriu as portas de vidro que davam acesso à sala, acendeu a luz, fez-lhe sinal para entrar e notou um choque instantâneo na cara dela.

 

- Há algum problema? - perguntou.

 

Consuelo Jiménez caminhou lentamente em redor da sala, detendo-se em cada quadro, das cúpulas e contrafortes da Iglesia de San Salvador, ao Hércules sobre pilares da Alameda.

 

- Estão todos aqui - disse ela, olhando para ele, espantada.

 

- O quê?

 

- Os três quadros que comprei ao seu pai.

 

- Ah - disse Falcón, parco a exibir embaraço.

 

- Ele disse-me que eram originais.

 

- Eram... quando os vendeu.

 

- Não compreendo - disse ela, apertando o casaco no peito, agora arreliada.

 

- Diga-me, Sra. Jiménez, quando o meu pai lhe vendeu os quadros... beberam uns copos com tapas no pátio e depois? Pôs-lhe a mão no ombro e trouxe-a para aqui. Segredou-lhe: «Tudo nesta sala é para venda, excepto... aquele?»

 

- Foi exactamente o que ele disse.

 

- E caiu nessa três vezes?

 

- Claro que não. Isso foi o que ele disse da primeira vez...

 

- Mas foi precisamente o quadro que acabou por comprar?

 

- Ela ignorou-o.

 

- Da vez seguinte, ele disse: «Este é demasiado caro para si.»

 

- E na vez seguinte?

 

- A moldura não tem nada a ver com este... não lho venderia.

 

- E de cada vez, comprou o quadro que não devia ou não podia comprar. Ela bateu com o pé, furiosa com a humilhação retrospectiva.

 

- Não é caso para se zangar, Sra. Jiménez. Mais ninguém possui os quadros que lá tem. Ele não era estúpido nem desleixado. Era apenas um gozo pessoal.

 

- Faça o favor de me explicar - ordenou e Javier ficou satisfeito por não ser um dos empregados dela.

 

- Só lhe posso dizer como se passava. Nunca percebi ao certo a sua motivação. Nunca frequentei as festas. Ficava no meu quarto a ler livros policiais americanos. Quando as visitas saíam, o meu pai, que estava geralmente bêbado, nessa altura, entrava-me pelo quarto de rompante, estivesse eu a dormir ou não, e gritava: «Javier!»; e abanava um maço de notas junto à minha cara. A receita da noite. Se eu estivesse a dormir, rosnava-lhe um cumprimento. Se estivesse acordado, acenava-lhe com a cabeça por cima do livro. Em seguida, ele subia imediatamente ao estúdio e pintava exactamente o quadro que tinha acabado de vender. De manhã, estava emoldurado e dependurado na parede.

 

- Que pessoa extraordinária - disse ela, fula.

 

- Por acaso, vi-o pintar esse telhado da catedral. Sabe quanto tempo demorou?

 

Ela olhou para o quadro, uma série de arcos trabalhados, paredes e cúpulas, fantasticamente complicados, todos trespassados por energia cubista.

 

- Dezassete minutos e meio. Pediu-me para o cronometrar. Estava bêbado e pedrado, nesse dia.

 

- Mas com que fito?

 

- Um lucro de cem por cento numa noite.

 

- Mas por que é que um homem daqueles...? Quer dizer, é demasiado ridículo. Eram caros, mas não me lembro de ter pago mais de um milhão por qualquer deles. Qual era a jogada? Ele precisava do dinheiro ou coisa do género?

 

Silêncio, enquanto um vento morno volteava no pátio.

 

- Quer o seu dinheiro de volta?

 

A cabeça dela deslocou-se vagarosamente do quadro, fixando os olhos nele.

 

- Ele não o gastou. Nem uma peseta. Nem sequer o meteu no banco. Está todo numa caixa de detergente, lá em cima, no estúdio.

 

- E o que quer tudo isto dizer, don Javier?

 

- Quer dizer... que talvez não deva ficar tão zangada com ele, porque o jogo dele era, em última instância, contra ele próprio.

 

- Posso fumar?

 

- Com certeza. Vamos para o pátio, eu sirvo-lhe uma bebida.

 

- Um uísque, se tiver. Preciso de uma coisa forte, depois disto.

 

Sentaram-se em cadeiras de ferro forjado, diante da mesa forrada a mosaico, iluminados pela única lâmpada de parede do claustro. Bebericaram uísque. Falcón perguntou-lhe pelos filhos. Respondeu-lhe com a cabeça noutro lado.

 

- Fui a Madrid no sábado - disse ele. - Fui ver o filho mais velho do seu marido.

 

- É muito meticuloso, don Javier. Não estou habituada a tanto rigor, ao fim de tantos anos de viver no meio dos nativos.

 

- Sou especialmente rigoroso quando fico fascinado.

 

Ela cruzou as pernas, ginasticou os dedos dos pés por baixo da faixa de cetim vermelho da sandália apontada na sua direcção. Tinha o ar de saber o que fazer na cama e de ser muito exigente, mas compensadora. Pensamentos libidinosos acompanharam esta sua frívola teorização e viu-a ajoelhada, com a saia preta puxada por cima das coxas, olhando por cima do ombro. Abanou a cabeça, pouco habituado a que este tipo de ideias descontroladas lhe assaltasse o cérebro. Fez um esforço consciente para abafar qualquer ponta de desvario e concentrou-se no gelo do copo.

 

- Foi saber por que é que a Gumersinda se matou - disse ela.

 

- Estava interessado na abjecta infelicidade do seu marido, como se lhe referiu; que também devia ser o estado de espírito de Gumersinda quando morreu. Queria saber o que poderia ter causado tal devastação.

 

- Os polícias são todos assim?

 

- Somos como as pessoas... cada um de nós é diferente dos outros.

 

- E descobriu?

 

Perante o relato da conversa com José Manuel, a sensualidade atrevida de Consuelo Jiménez foi desaparecendo. O sapato, que tinha estado tão próximo do joelho dele, foi juntar-se ao par, assente nas lajes de mármore do chão do pátio. Apenas os ombros chumaçados do casaco mantinham forma, quando ele terminou. Falcón serviu mais uísque.

 

- Los Niños de la Calle - disse ele.

 

- Também estava a pensar nisso.

 

- A obsessão pela segurança.

 

- Se eu soubesse, teria tentado descobrir o que o Raúl tinha feito. Não teria conseguido passar por cima de uma coisa dessas. Teria de saber, para o compreender... e aos seus motivos.

 

- E se isso a obrigasse a não fazer mais nada?

 

Ela acendeu outro cigarro.

 

- Acha que isto tem alguma relação com o assassínio?

 

- Perguntei a José Manuel se achava que o Arturo ainda podia estar vivo.

 

- E que tivesse voltado para se vingar? - disse a Sra. Jiménez. - Isso é absurdo. De certeza que mataram o pobre garoto.

 

- Porquê? Tenho a mesma certeza de que tirariam proveito dele... a fazer nós em tapetes ou outra coisa qualquer.

 

- Como escravo? E se ele escapasse?

 

- Já alguma vez esteve num lugar como Fez? Imagine Sevilha, sem a maior parte dos grandes edifícios, largos e espaços verdes, comprima tudo de modo a que as ruas fiquem mais estreitas e as casas quase se toquem no alto; por fim, chocalhe, para que tudo fique meio arruinado. Multiplique por cem, subtraia mil anos à data de hoje e aí tem Fez. Pode-se entrar na medina em criança e sair-se já velho sem nunca ter passado em todas as ruas. Se ele tivesse conseguido fugir e descobrisse como sair da medina sem ser apanhado, para onde iria? Quem é ele? Onde estão os seus documentos? Não pertence a ninguém nem a lado nenhum.

 

Consuelo ficou abalada com aquela terrífica hipótese.

 

- Então é dele que está agora à procura?

 

- As cúpulas da polícia, isto é, as pessoas com orçamentos para dirigir uma força policial, têm aversão a fantasias. Teria de fazer muito mais do que reproduzir a minha conversa com José Manuel para os persuadir a encetarem uma caça desse tipo ao homem. Temos de ser mais ponderados e menos inventivos, porque tudo o que fazemos acaba por ser apresentado a um juiz e eles detestam ficção nos tribunais.

 

- Então, o que vai fazer agora?

 

- Varrer a vida do seu marido e ver o que de lá sai. Pode ajudar-me.

 

- Isso tira-me da lista dos suspeitos?

 

- Não, até encontrarmos o criminoso. Mas pode poupar-me muito tempo a dar a volta a setenta e oito anos de vida.

 

- Eu só posso ajudar com os últimos dez.

 

- Bem, isso inclui uma fase em que ele andava nas bocas do mundo... A Expo’92.

 

- A Comissão de Construção - disse ela.

 

- E há também esse fenómeno interessante das pesetas «sujas» que se transformam em euros «lavados».

 

- Tenho a certeza de que já está ao corrente do negócio dos restaurantes.

 

- Não estou interessado numa pequena fraude fiscal, doña Consuelo. Não é o meu departamento. Tenho de pesquisar possibilidades mais espectaculares. Coisas, por exemplo, que requeiram uma grande dose de confiança e em que, possivelmente, essa confiança tenha sido quebrada e se tenham perdido fortunas, arruinado vidas, provocando fortes motivos para vingança.

 

- É para isso que é polícia de homicídios? - atirou-lhe e levantou-se.

 

Ele não respondeu, acompanhou-a à porta e tentou não ouvir os saltos dela no mármore, a escreverem S-E-X-O em código Morse.

 

- Quem a apresentou ao meu pai? - perguntou; táctica diversória.

 

- O Raúl recebeu um convite e mandou-me a mim. Como eu tinha trabalhado numa galeria, partiu do princípio de que saberia o que fazer.

 

- Foi assim que conheceu o Ramón Salgado?

 

Ela ficou suspensa durante um instante.

 

- A galeria dele mandou os convites. Foi o Ramón que abriu a porta e fez as apresentações.

 

- Foi o Ramón Salgado que lhe contou da sua incrível parecença com a Gumersinda?

 

Ela pestanejou, como se não se lembrasse de ter deixado escapar aquela informação. Falcón abriu a porta que dava para o pequeno troço calcetado, ladeado de laranjeiras, que desembocava na calle Bailén.

 

- Sim, foi ele. A minha vinda hoje aqui trouxe-me tudo à memória. Toquei à campainha e ouvi-o falar com as pessoas que tinham entrado antes de mim; ele estava, portanto, voltado para trás quando abriu a porta. Quando os nossos olhos se encontraram, percebi que ficou completamente pregado ao chão. Acho que até começou por me chamar Gumersinda, mas pode ser a minha memória a exagerar as coisas. Contudo, quando começámos a beber, contou-me isso; o que fez com que eu bebesse demasiado uísque e me pusesse a pairar como uma tonta com o seu pai, personagem que eu passara metade da vida a desejar conhecer.

 

- Portanto, o Ramón e o seu marido conheciam-se desde os tempos de Tânger.

 

Mais uma coisa que ela não se lembrava de ter dito.

 

- Não tenho a certeza - disse ela.

 

Deram um aperto de mão. Ele olhou para as pernas dela, descendo a calle Bailén. Fechou a porta e subiu directamente para o estúdio.

 

Excertos dos diários de Francisco Falcón

 

20 de Março de 1932, Dar Riffen, Marrocos

 

O Oscar (não sei se é o verdadeiro nome dele, mas é o que usa) é, não apenas o meu sargento, mas também o meu professor. Era professor na «vida real», como lhe chama. É tudo o que sei a respeito dele. Los brutos (os meus camaradas) dizem que o Oscar está aqui porque abusou de menores. Não têm a certeza absoluta disso, porque é norma da Legião não se revelar o passado. Los brutos, é claro, deleitam-se a revelar-me os passados deles. A maioria é de assassinos, alguns são mesmo violadores e assassinos. O Oscar diz que são carne, sangue e ossos, com uns fios primitivos que os seguram por dentro e lhes permitem manter a vertical, comunicar, defecar e matar pessoas. Los brutos olham para o Oscar com desconfiança apenas porque qualquer arremedo de inteligência lhes mete medo. (Tenho de esconder-me para escrever este diário, ou o Oscar deixa-me utilizar o quarto dele.) Mas los brutos têm-lhe respeito. Já os venceu a todos à pancada.

 

O Oscar escolheu-me para pupilo quando me apanhou a desenhar na caserna. Mandou um par de los brutos segurar-me e arrancou-me o papel das mãos. E apercebeu-se de que estava a ver-se a ele próprio, em toda a sua brutal inteligência. Eu estava transido de medo. Agarrou-me pelo colarinho e arrastou-me até ao quarto dele, seguido por gritos de incitamento de los brutos. Atirou-me contra a parede, de tal modo que caí sem fôlego. Olhou de novo para o desenho, pôs-se de cócoras, com a cara ao nível da minha e olhou para a minha cabeça com os olhos azul-aço. «Quem és tu?», perguntou, o que era estranho. Eu sabia que não me estava a perguntar o nome e calei-me. Disse-me que o desenho era bom e que passaria a ser o meu professor, mas que tinha uma reputação a manter. Por isso, levei pancada na mesma.

 

17 de Outubro de 1932, Dar Riffen

 

Confessei ao Oscar que só tinha escrito duas vezes neste caderno desde que mo deu. Ficou furioso. Disse-lhe que não tenho nada para dizer. Passamos a vida em exercícios sem fim, seguidos de períodos de copos e pancadaria. Recordou-me que este diário não é apenas um relato do exterior, mas um exame interior. Não faço ideia como fazer essa abordagem interior de que ele fala. «Tens de escrever sobre quem és», é o que me diz. Mostrei-lhe o primeiro texto. Disse-me: «Lá porque não tens família, não quer dizer que tenhas deixado de existir. Ela é apenas uma referência; agora tens de encontrar o teu próprio contexto.» Escrevo isto sem fazer ideia do que significa. Contou-me que um filósofo francês disse: «Penso, logo existo.» E eu pergunto: «O que é pensar?» Houve uma pausa muito longa, durante a qual, por alguma razão, imaginei um comboio a atravessar uma vasta planície. Contei-lhe isto e ele respondeu: «Bom, é um princípio.»

 

23 de Março de 1933, Dar Riffen

 

Completei agora mesmo o meu primeiro trabalho de fôlego, que é a companhia toda caricaturada individualmente, em cima de camelos, retratando algumas das suas características. Montei tudo em pranchas e pendurei-as na caserna, de modo a parecerem formar uma caravana apontada ao arco do Dar Riffen, onde, em vez da habitual divisa do legionário, se lê: legionários a beber, legionários a joder. Todos os graduados entram e pedem para ver. O Oscar desmontou o meu arco de cartão e disse: «Não vale a pena ires a tribunal militar e seres fuzilado por conta de uma parvoíce de um desenho.» Agora, nunca me faltam cigarros.

 

12 de Novembro de 1934, Dar Riffen

 

Acabámos de dar as boas-vindas ao coronel Yagüe e à Legião, vindos das Astúrias onde foram esmagar uma rebelião de mineiros... O Oscar não está satisfeito. Não houve resistência e, depois de terem entrado em Oviedo e Gijón, los brutos «demonstraram grande falta de disciplina e não foram travados pelo comando». O que quer dizer que mataram, violaram e mutilaram sem medo de serem punidos. Ao longo desta conversa, o Oscar revelou ser alemão e chateou-me dizendo que soldados alemães nunca se teriam comportado assim. As suas botas vazias pareciam gritar no canto do quarto. «Isto é o princípio de uma catástrofe», disse ele. Não vejo as coisas assim e excitam-me imenso as histórias de horror contadas e recontadas. Aparentemente, ainda não aprendi a pensar. Percebi, por todas as histórias que li, com a supervisão do Oscar, como é frequente os que pensam serem levados e fuzilados, enforcados ou decapitados.

 

17 de Abril de 1935, Dar Riffen

 

O meu segundo trabalho de envergadura - o coronel Yagüe quer que lhe pinte o retrato. O Oscar aconselhou-me: «Ninguém gosta da verdade, a menos que coincida com a sua própria versão dela.» Só quando vi o coronel Yagüe sentado na minha frente percebi a verdadeira natureza da tarefa. É um touro, com óculos redondos grossos, cabelo ralo cinzento, queixada pesada e um meio-sorriso que é quase amigável, até se perceber a crueldade que há nele. Sentei-o de modo a que não se veja aquele perfil desastroso. Perguntei-lhe se queria ficar de óculos e ele disse-me que se não fosse assim ficava parecido com um cachorrinho recém-nascido. Vi um casaco com gola de peles numa cadeira. Pedi-lhe para o usar, porque enquadra-lhe o rosto e dá-lhe um ar aventureiro e heróico. Vestiu-o. Vamos dar-nos bem.

 

1 de Maio de 1935, Dar Riffen, Marrocos

 

O retrato foi um sucesso. Vai haver uma pequena cerimónia privada para o mostrar a um grupo selecto de oficiais. O coronel Yagüe está encantado com as reacções. A gola de peles foi uma inspiração. Afilei-lhe um pouco a cara e projectei-lhe o queixo, de modo a parecer desafiador, forte, sério, mas também destemido e empreendedor. Em fundo, pintei fileiras compactas de legionários marchando sob o arco, com a divisa correcta: Legionários a luchar, legionários a morir. O Oscar disse-me: «Vejo que se produziu uma convergência de ilusões.» O coronel Yagüe não pendurou o quadro na parede. Não podia aparecer com mais projecção e ambição do que os seus superiores.

 

14 de Julho de 1936, Dar Riffen

 

As manobras de Verão terminaram com uma parada que contou com a presença dos generais Romerales e Gómez Morato, os dois comandantes mais graduados do Exército de África. O Oscar, que tem faro para estas coisas, diz que está para acontecer alguma. Os indícios vêm-lhe de que, durante o banquete que se seguiu à parada, ainda antes de ser servida a sobremesa, se ouviram gritos de «Café!», que não eram claramente uma ordem para servirem café. E a sigla de «Camaradas! Arriba! Falange Española!» e que tem o dedo do coronel Yagüe. É um falangista, que o Oscar acredita ser grande opositor do general Gómez Morato. Não sei onde vai buscar estas informações, mas diz que basta eu olhar para os oficiais que foram à cerimónia privada de apresentação do meu retrato do coronel Yagüe.

 

Estamos fechados no quartel, sem sabermos o que se passa do outro lado do estreito. O Oscar descobriu um jornal, «El Sol», que tem um artigo acerca da morte a tiro de um oficial chamado tenente José Castillo, à porta de casa, em Madrid, apenas um mês depois de ter casado. «Foi a Falange», disse o Oscar. Estou confuso. Não percebo de que lado estamos. Perguntei ao Oscar quem devíamos apoiar e ele respondeu: «O nosso comandante, a menos que queiras levar um tiro.» Pelo menos não há decisões difíceis a tomar, por esse lado, embora o Oscar me alarme quando acrescenta: «Seja lá ele quem for.»

 

Mais tarde, chamou-me. Estava muito excitado. Esteve a ouvir a rádio. A Espanha está em estado de choque. Calvo Sotelo foi morto a tiro. É-me completamente indiferente, nem sequer tinha alguma vez ouvido o nome dele. O Oscar aperta-me a cabeça com as mãos. Sotelo era o líder monárquico e uma figura proeminente da direita. O seu assassínio terá terríveis consequências. Perguntei quem o matou e o Oscar passou uma bola imaginária de mão para mão, dizendo: «Tico-teco, tico-teco.»

 

«Só que a esquerda foi longe de mais, desta vez», disse ele. «Isto não vai ser encarado como uma questão individual, devido à posição de Calvo Sotelo. Isto é um assassínio político e agora, é garantido, vai começar uma guerra civil.» Perguntei-Lhe onde é que ele se situava no meio disto tudo e ele ergueu as mãos, com as palmas tão imensamente sulcadas que me dão vontade de as desenhar. «À tua frente», disse. Deixei-o, sem ficar a perceber mais por isso.

 

19 de Julho de 1936, Ceuta

 

O coronel Yagüe fez-nos sair em marcha forçada do quartel às nove da noite e, pela meia-noite, tínhamos controlado o porto de Ceuta. Não houve um tiro, nem nosso nem contra nós. Ficámos decepcionados com a falta de resistência, porque durante a marcha estávamos todos a torcer por uma refrega. De manhã, informaram-nos que Melilha, Tetuão, Ceuta e Larache estavam sob controlo militar e que o general Franco vinha a caminho, para assumir o comando.

 

Voltámos para o quartel de Dar Riffen de manhã cedo. O general Franco chegou de tarde ao aquartelamento e estávamos todos em parada para o receber. Estávamos surpreendentemente excitados sem sabermos porquê. O coronel Yagüe fez um discurso que começava com as palavras: «Aqui estão, tal como os deixou...» e via-se que o general estava muito comovido. Gritámos: «Franco! Franco!» e ele anunciou um aumento de uma peseta por dia. Irrompemos de novo num brado.

 

6 de Agosto de 1936, Sevilha

 

A minha primeira entrada em solo espanhol. Fomos um dos primeiros destacamentos a atravessar o estreito de barco e ficámos decepcionados por não sermos aerotransportados. Meteram-nos em camiões e fomos conduzidos pelo meio de estradas completamente desertas, até Sevilha. Temos ordens de seguir para norte, para Mérida, sob o comando do coronel Yagüe. Disseram-nos que qualquer pessoa que nos resista é um comunista e, como tal, contra a Espanha, e que há que tratá-los com a maior dureza e sem piedade. Diz-se que a oposição está «a borrar-se de medo» à simples menção do Exército de África. A nossa reputação relativamente ao levantamento mineiro das Astúrias precede-nos. O efeito destas notícias, que nos são atiradas com emoção sanguinária, actua como electricidade nas nossas fileiras. Já estávamos empolgados e agora somos invencíveis; e, ainda por cima, estamos do lado da razão.

 

10 de Agosto de 1936, próximo de Mérida

 

O avanço tem sido inexorável (300 quilómetros em quatro dias) e depressa percebemos que as notícias do terror que inspiramos viajam à velocidade do som. Chamamos-lhe castigo. Quando eliminamos um foco de resistência, entramos nas cidades e aldeias com facas e machetes. É o aço frio que aterroriza. Não é impessoal, como as balas.

 

Em El Real de La Jara, as pessoas fugiram para os montes e viram-se cercadas pelos mouros dos Regulares, que lhes fizeram coisas tão terríveis que não encontrámos resistência até chegarmos a Almendralejo. Aí, tivemos um acesso de loucura e matámos toda a gente que ficou na terra. Centenas de cadáveres, de homens e mulheres, juncaram as ruas. O fedor tornou-se rapidamente insuportável e deixámos as casas devassadas e sem vida debaixo de um manto de fumo dos telhados a arderem. O Oscar instiga-me a «escrever tudo», mas estou demasiado esgotado depois dos esforços do dia.

 

11 de Agosto de 1936, Mérida

 

Os oficiais gracejam, dizendo que estão a dar a «reforma agrária» aos camponeses.

 

Um dos mouros dos Regulares mostrou-nos a sua colecção, malcheirosa e cheia de moscas, de testículos humanos. Castram as vítimas, num ritual de batalha. Isto foi de mais para o Oscar, que o comunicou num relatório ao nosso capitão, e a prática foi banida.

 

15 de Agosto de 1936, Badajoz

 

A 4ª Bandera assaltou a Puerta de la Trinidad. Entraram a cantar e levaram com fogo de artilharia mesmo na cara, o que os fez recuar por momentos. Romperam a defesa dos portões pela segunda vez e nós fomos atrás deles, passando por cima dos seus cadáveres. Uma vez lá dentro, foi uma batalha corpo-a-corpo até ao centro. À tarde, todos os suspeitos de resistência foram reunidos na praça de touros, perto da catedral. Ouviam-se lágrimas e preces, mas nós estávamos muito fora de nós depois das perdas do assalto inicial. Ouviram-se tiros até ao cair da noite. Os Regulares passaram uma busca à cidade, casa a casa, à procura de quem tivesse uma arma ou apenas uma marca de coice de arma no ombro que fosse. Depois da indisciplina das Astúrias, o Oscar está decidido a que não percamos o controlo e não encetemos uma orgia de saque e violação como a das outras companhias da bandera e dos Regulares. Os homens ficaram muito chateados até o Oscar trazer algumas caixas com uma miscelânea de garrafas roubadas de um bar. Despejámos aguardiente, anis e vinho tinto no mesmo copo e esta bebida ficou conhecida por nós como «Tremor de Terra».

 

22 de Setembro de 1936, Maqueda

 

Agora já sei o que é endurecer na batalha. Antes, eram apenas palavras associadas aos veteranos. Agora, percebo que é um estado mental que permanece. Resulta de se tomarem muitas decisões sob pressão, da total supressão do medo, de ver gente a morrer à volta todos os dias, de vencer a exaustão e da aceitação da inevitabilidade da batalha.

 

29 de Setembro de 1936, Toledo

 

O ataque foi lançado ao meio-dia de 27 de Setembro. Antes do assalto, passámos pelos cadáveres de dois nacionalistas executados, a poucos quilómetros da cidade. A ordem partiu dos coronéis: «Sabem o que têm a fazer.» A luta foi feroz e os Regulares tiveram dificuldades na invasão inicial da cidade. Quando já pensávamos que íamos ter de retirar e reagrupar forças, os esquerdistas desistiram e fugiram. Houve algumas escaramuças de rua. Os mouros estavam particularmente selvagens nessa tarde, cortando os prisioneiros a machete até as íngremes calçadas da cidade escorrerem literalmente sangue. Atiraram granadas para o hospital de San Juan e, quando os Regulares se aproximaram de um seminário onde um grupo de anarquistas se tinha escondido, ele foi pelo ar em chamas.

 

30 de Setembro de 1936, Toledo

 

O Oscar descobriu que os republicanos deixaram os El Greco na cidade e conseguiu, através do capitão, que os fôssemos ver. Vimos sete pinturas de Apóstolos, mas não o famoso «Enterro do Conde de Orgaz». Fiquei siderado e incapaz de descortinar a sua técnica, a forma como consegue aquela luz interior que brilha através da carne e do sangue e mesmo das roupas dos apóstolos. Depois da ferocidade da batalha, das mutilações, das ruas ensanguentadas, encontramos a paz diante destes quadros e sei agora que quero ser pintor.

 

20 de Novembro de 1936, Ciudad Universitaria de Madrid

 

Esta guerra atingiu um novo patamar. Temos estado a bombardear a nossa própria capital com explosivos e bombas incendiárias há mais de uma semana. Ficámos acampados junto aos carris do comboio, na margem oeste do rio Manzanares; cada tentativa nossa para atravessarmos para o outro lado era facilmente rechaçada. Depois, inesperadamente, passámo-la e corremos para a universidade, espantados com a falta de oposição. Não percebemos o que aconteceu - outra quebra de resistência num momento vital ou o habitual fiasco republicano, que retira uma unidade antes de ser rendida por outra. A luta que se seguiu apontava para a segunda hipótese. Tomámos a Faculdade de Arquitectura, mas fomos rechaçados no átrio de Letras e Filosofia. Estamos a lutar contra brigadas internacionais de alemães, franceses, italianos e belgas. Nos edifícios, ressoavam canções comunistas alemãs e a Internacional. O Oscar diz que são formadas por escritores, poetas, compositores e pintores. Até dão aos batalhões nomes de mártires literários. Perguntei-lhe por que é que os artistas apoiam exclusivamente a esquerda e ele deu-me uma das suas habituais respostas enigmáticas: «Está-lhes na natureza.» E eu, como de costume, tive de perguntar o que queria dizer. A nossa relação aluno/mestre nunca mudou.

 

- São criativos. Querem mudar as coisas. Não gostam da velha ordem monárquica, da Igreja, dos militares e dos proprietários rurais. Acreditam no poder do homem vulgar e no seu direito à igualdade. Para que isso seja possível, têm de destruir todas as velhas instituições.

 

- E substituí-las por quê?

 

- Precisamente - disse o Oscar. - Substituem-nas por uma ordem diferente... uma de que gostam, sem reis nem padres, nem negociantes nem agricultores. Devias pensar sobre isso, Francisco, se queres ser pintor. A grande arte muda a maneira de ver as coisas. Pensa no impressionismo. Riram-se da visão difusa de Monet. Pensa no cubismo. Partiram do princípio de que, depois de Braque ter levado o tiro na cabeça e ter sido trepanado, tinha perdido o juízo. Pensa no «Les Demoiselles d’Avignon», de Picasso. Aquilo são mulheres? E o que é que pensas que o coronel Yagüe tem pendurado na parede? Ou o general Varela?

 

- Agora estás a meter-te comigo - disse eu.

 

Começou um ataque e rastejámos para uma janela. Disparámos sobre os homens que vinham a correr de Filosofia e Letras (estávamos em Agronomia). Houve uma grande explosão no Hospital Clínico (descobrimos mais tarde que tinham mandado uma bomba pelo elevador contra os Regulares,). Decidimos retirar de Agronomia e voltar para a Casa de Velázquez do Instituto Francês, que estava cheia de cadáveres de uma companhia de polacos. Enquanto corríamos em ziguezague, o Oscar ia-me gritando que o coronel Yagüe vai provavelmente para o túmulo embrulhado na tela heróica que lhe pintei. As balas rasgavam as portas de madeira do edifício e mudámos de rumo, mergulhando através das janelas sobre o chão atapetado de polacos mortos. Ripostámos pelas janelas até o ataque perder o ímpeto.

 

- Pensa nisso - disse o Oscar. - Estamos aqui, na linha da frente, não apenas de uma guerra civil, mas de toda a cultura da Espanha, talvez até da Europa civilizada. O que vais querer pintar depois? Yagüe a cavalo? O arcebispo de Sevilha na retrete? Ou queres redefinir a forma feminina? Ver perfeição na linha de uma paisagem? Descobrir a verdade num urinol?

 

Contornámos o edifício e corremos velozes por trás do hospital Santa Cristina até ao Hospital Clínico, para apoiar os Regulares. Demos com o elevador despedaçado nos escombros do poço e corremos pela escada acima. Num dos laboratórios estavam seis Regulares mortos, sem vestígios de ferimento de balas ou estilhaços de bomba. No chão, havia um lume já sem chama e o cheiro a carne assada. Havia animais a toda a volta e percebemos que os mouros tinham cozinhado e comido alguns. O Oscar abanava a cabeça perante a bizarria da cena. Subimos ao telhado, para observar o terreno. Perguntei ao Oscar o que esperava de tudo aquilo e ele limitou-se a dizer que não pertence a lado nenhum.

 

- Tu é que importas - disse ele. - És jovem. Tens de decidir. Olha... se quiseres passar-te para o outro lado, não te preocupes comigo, não te dou um tiro nas costas. E ponho no meu relatório que o fizeste por razões artísticas.

 

É isto que eu detesto no Oscar: está sempre a tentar espicaçar-me para me pôr a pensar e a tomar decisões.

 

25 de Novembro de 1936, arredores de Madrid

 

Retirámos do ataque directo a Madrid. Aquele mês vital que passámos a libertar Toledo deu aos republicanos tempo para se organizarem. Poderíamos ter continuado a batalhar, mas isso ia ter custos demasiado altos. A estratégia agora mudou. Vamos ocupar o território envolvente e montar cerco. Somos um exército que oscila entre as técnicas mais avançadas (o bombardeamento aéreo) e as medievais (o cerco)...

 

No espaço de seis semanas, os dois exércitos parecem ter ficado mais equilibrados. Os esquerdistas têm agora aviões e tanques russos e as suas Brigadas Internacionais recebem homens de toda a parte do mundo. Controlam os portos de abastecimentos do Mediterrâneo - Barcelona, Tarragona, Valência. O Oscar tinha vaticinado que ia estar tudo terminado pelo Natal; agora acha que vai levar anos.

 

18 de Fevereiro de 1937, perto de Vaciamadrid

 

Fomos expulsos da estrada Madrid-Valência, que era o que esperávamos desde que a tomámos. Os artilheiros russos atacaram-nos pelo ar sem mercê. Estamos agora numa situação de empate e resta-nos esperar para ver como correm as coisas no norte. Temos tempo e bons suprimentos de cigarros e café. O Oscar fez um tabuleiro de xadrez com balas vazias e jogamos; ou melhor, ele ensina-me a perder com estilo. Conversamos de modo a que eu pratique um alemão básico, que me anda a ensinar.

 

- Por que é que és nacionalista? - perguntou-me, enquanto avançava um peão.

 

- E tu? - devolvi-lhe, opondo o meu peão ao dele.

 

- Não sou espanhol - disse, cobrindo o peão com o cavalo. - Não tenho de tomar partido.

 

- Nem eu - disse eu, apoiando o meu peão com outro. - Sou africano.

 

- Os teus pais são espanhóis.

 

- Mas eu nasci em Tetuão.

 

- E isso justifica que sejas apolítico?

 

- Significa que não tenho fundamentação para uma crença política.

 

- O teu pai... era de direita?

 

- Não tenho pai.

 

- Mas era?

 

Não respondi.

 

- Em que é que trabalhava?        

 

- Era dono de um hotel.

 

- Então era de direita - determinou o Oscar. - Ia à missa?

 

- Só para beber o vinho.

 

- Então, essa é a tua fundamentação. A política aprende-se à mesa das refeições.

 

- E o teu pai?

 

- Era médico.

 

- Difícil - ponderei. - Ia à missa?

 

- Nós não temos missa.

 

- Mais difícil ainda.

 

- Era socialista - disse o Oscar.

 

- Então tu estás seguramente no lado errado.

 

- Matei-o no dia 27 de Outubro de 1923.

 

Levantei os olhos, mas ele continuou a estudar o tabuleiro de xadrez.

 

- Arrumo-te em três jogadas - disse ele.

 

23 de Novembro de 1937, Cogolludo, perto de Guadalajara

 

A nossa bandera foi desfeita e fomos repartidos pelo resto do exército. Parece que fomos aqui colocados para uma nova investida sobre a capital. O Oscar não me fala, porque registou-se aqui a minha primeira vitória na mais árdua das frentes: o tabuleiro de xadrez.

 

15 de Dezembro de 1937, Cogolludo

 

Os esquerdistas surpreenderam-nos com uma ofensiva montada em Teruel, precisamente quando nos preparávamos para tomar a capital e passar o Natal na Gran Via. Só sei que Teruel é o lugar mais frio de Espanha e que estão 4000 nacionalistas sitiados na cidade.

 

31 de Dezembro de 1937, perto de Teruel

 

Frio brutal: -18° C. Tempestade de neve. Um metro de neve. Odeio isto. Escrevo com dificuldade e apenas para desviar a mente das péssimas condições em que nos encontramos. O contra-ataque esmoreceu completamente, mas continuamos a bombardear a cidade, que é pouco mais do que ruínas cobertas de neve. Paramos quando a visibilidade desce a zero.

 

8 de Fevereiro de 1938, Teruel

 

Lançámos ontem um ataque, para forçarmos o fecho do cerco. A batalha foi dura e o Oscar foi atingido no estômago; tivemos de o levar para a retaguarda. Assumi as suas funções de sargento.

 

10 de Fevereiro de 1938, Teruel

 

Fui ver o Oscar ao hospital e, mesmo com a morfina, está a sofrer imenso com dores. Sabe que não vai sobreviver aos ferimentos. Deixou-me os livros e o tabuleiro de xadrez e deu-me instruções taxativas para lhe queimar os diários sem os ler. Chora com dores e, quando me beijou, senti as suas lágrimas mornas na minha cara.

 

23 de Fevereiro de 1938, Teruel

 

Enterrámos o Oscar esta manhã. Depois, queimei os diários dele. Obedeci às suas instruções e deitei o primeiro livro ao lume sem o abrir. Enquanto ardia, não resisti a folhear o seguinte, que falava de um amor que parecia não ser correspondido. Nunca mencionava o nome da rapariga, o que não me surpreendia, pois nunca tínhamos falado de assuntos pessoais, excepto quando me disse que tinha matado o pai. No terceiro volume, começou a usar diálogos imaginários, que eram mais fáceis de decifrar do que a sua prosa insípida. Foi com um choque que vi as minhas próprias palavras e que cheguei à electrizante conclusão de que era eu a paixão não correspondida. Isto foi posteriormente confirmado quando, danado por um comentário inconsciente da minha parte, se me referia como Die Künstlerin. Queimei o resto sem ler.

 

Estou agora sentado com uma vela presa nos joelhos. Ocorre-me que a insistência do Oscar para passar a escrito os meus pensamentos era na esperança desesperada de que me revelasse a ele. Deve ter ficado desapontado com as minhas intermináveis anotações sobre manobras militares.

 

Não sinto qualquer repulsa, apesar de o Oscar ser fisicamente repelente. Estou triste por ter perdido o meu professor e amigo, o homem que foi mais um pai para mim do que o que me fez nascer. Voltei a ficar só, sem a sua figura imponente, a sua mente viva, a sua orientação militar segura. Assaltam-me pensamentos incompreensíveis. Algo em mim foi perturbado, que apenas identifico por uma necessidade sem forma. Não compreendo o que se passa. Recusa-se a ser definido.

 

15 de Abril de 1938, Lenda

 

Fiquei desmaiado por algumas horas e fui trazido para aqui para o hospital, que, tiveram de recordar-mo, tomámos há quase duas semanas. Não voltei a escrever desde o funeral do Oscar. Estou danado comigo próprio por não me lembrar se avancei alguma coisa nos meus pensamentos. A «necessidade» que mencionei é um branco no meu cérebro. Vou recuperando a memória dos acontecimentos. O avanço imparável, depois de pormos os republicanos em fuga de Teruel. A travessia do rio Ebro e a tomada de Fraga. Até o ataque a Lérida ganha alguma forma. Mas, por mais que esprema as meninges, não sou capaz de recuperar aquilo em que estava a pensar, aquilo que os diários do Oscar tinham feito abrir. Tenho uma sensação de perda, sem saber de quê.

 

18 de Novembro de 1938, Ribarroya

 

Esta é a última testa-de-ponte dos republicanos. Estão agora todos para trás do Ebro e a situação recuou à que se vivia em julho, excepto que agora a neve cai e mais de vinte mil homens perderam a vida nas montanhas. Recordo aqueles jogos de xadrez com o Oscar, antes de eu ter adoptado uma abordagem mais subtil. Era sempre eu o atacante e o Oscar o defensor, e, tendo percebido os meus planos mal dissimulados, transformava-se num feroz contra-atacante que me expulsava do tabuleiro. O mesmo acontece com os nossos exércitos. Os republicanos atacam e, ao fazê-lo, revelam a concentração das suas forças e a fraqueza das suas intenções. Defendemo-nos, reorganizamos a nossa resposta e remetemo-los para uma posição em que ficam mais fracos do que estavam. Como me dizia o Oscar: «É sempre mais fácil reagir do que ser original. Vais ver que o mesmo se aplica na arte, como na vida.»

 

26 de Janeiro de 1939, Barcelona

 

Ontem, entrámos na cidade vazia, por trás de tanques que não encontraram oposição. Tínhamos atravessado o rio Llobregat na véspera e sentia-se o cheiro do desespero que pairava sobre o ânimo republicano em derrocada. Não tivemos uma sensação de triunfo. Estávamos exaustos, ao ponto de nem sequer sabermos se estávamos felizes por estarmos vivos. Ao fim do dia, tínhamos tudo sob controlo e só então os nossos apoiantes se sentiram suficientemente seguros para se aventurarem a vir para a rua comemorar e, evidentemente, vingar-se dos vencidos. Não os impedimos.

 

Segunda-feira, 16 de Abril de 2001, casa de Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

Outro despertar a 20 mil volts, como se tivesse tido um ataque cardíaco e tivesse sido desfibrilado para regressar à vida. O relógio dizia-lhe que eram 6 da manhã, o que significava que tinha tido uma hora e meia de sono; talvez nem de sono, mais de morte. O cérebro era um órgão estranho que o manteve acordado com uma tormenta de pensamentos sobre o pai, a Guerra Civil, a arte, a morte. E depois, quando estava quase a desistir da possibilidade de alguma vez voltar a dormir - apagou-se. Sem sonhos. Sem descanso. Apenas um sopro de alívio. O cérebro, incapaz de aguentar mais o interminável discurso incoerente, tinha corrido os taipais.

 

Arrastou-se, com o coração aos pulos, para a bicicleta de exercício e pôs-se a pedalar até ter a sensação de estar a ser perseguido, ao ponto de olhar por cima do ombro. Parou, desmontou da bicicleta, perguntando-se se aquilo não lhe faria mal, psicologicamente - gastar tanta energia para ir a parte nenhuma. Estase agitada. E no entanto, precisava daquilo, para acalmar os ciclos do pensamento. Ciclos? Era isso. Estava a fazer com o corpo o que fazia com a mente. Correu em direcção ao rio, subiu até à Torre del Oro e regressou pelo mesmo caminho. Não viu vivalma.

 

Foi o primeiro a chegar ao serviço, conduzindo por ruas silenciosas. Sentou-se à secretária, perdido no meio da mobília espartana e do silêncio denso do cimento da Jefatura. Ramírez apareceu às 8h. 30 e Falcón recebeu-o com a notícia do desaparecimento de Eloisa Gómez. Foi à sala de ocorrências, mas tinha tido pouca actividade. Sevilha estava esgotada, após uma semana de idolatria mariana exacerbada e de bacanais, para sequer pegar num telefone.

 

Ramírez exibiu o envelope que tinha ido buscar à sala dos computadores. Continha as oito fotografias do misterioso operador de câmara do cemitério e o informático tinha trabalhado os dois melhores exemplares; mas continuavam a não ajudar. Não se via nenhum dos olhos, o nariz estava na sombra da pala do boné e o queixo disfarçado pela gola do casaco. Via-se pele, mas a cor e textura não se distinguiam. O técnico de informática tinha mostrado as imagens a um perito de sistemas de circuito fechado de televisão, que tinha adiantado a opinião de que o assassino seria do sexo masculino, entre os vinte e os quarenta anos.

 

- Não nos ajuda nada - disse Ramírez -, mas vai servir para dar alguma alegria ao juez Calderón. A primeira imagem do assassino... é melhor do que não ter imagem nenhuma.

 

- Mas quem é ele? - perguntou Falcón, surpreendendo Ramírez com a inesperada brusquidão. - Actua sozinho? Está a ser pago? Qual é o seu motivo?

 

- Temos ao menos a certeza, agora, de que não era conhecido da vítima? - perguntou Ramírez, copiando o tom de Falcón.

 

- Eu tenho a certeza. Não estou capacitado para o provar em tribunal, mas tenho a certeza de que obteve as suas informações nas Mudanzas Triana, que utilizou Eloisa Gómez para se introduzir no apartamento e que esperou que a criada chegasse para sair. E foi feito tudo para nos confundir.

 

- Então, acho que devíamos trazer cá a Consuelo Jiménez e espremê-la acerca do espectro do cemitério... A ver se ela quebra com a pressão - alvitrou Ramírez. - É a única pessoa próxima da vítima, com todas as informações necessárias e um motivo definido.

 

- Nesta fase, quero trabalhar com Consuelo Jiménez e não contra ela. Vou-me encontrar com ela ao meio-dia, para me inteirar dos sócios do marido, separá-los entre os que têm e os que não têm motivo.

 

- Isso não a coloca no controlo da nossa investigação, inspector jefe?

 

- Não me parece... porque estaremos a fazer a nossa própria pesquisa. Falou no Joaquín López, do Cinco Bellotas. Vale a pena interrogá-lo. O Pérez pode ir à Câmara e obter os nomes de todas as empresas que tiveram contacto com a Comissão de Construção da Expo’92. O Fernández que vá ao departamento de licenças e saque de lá nomes; depois, pode ir aos departamentos de saúde e bombeiros. E só quando tivermos investigado tudo, até às pessoas que entram no restaurante para vender flores aos clientes que se esqueceram de ser românticos, deixaremos a Sra. Jiménez em paz. Portanto, vamos trabalhar com ela; mas ela vai sentir a pressão.

 

- E quanto a rufias locais?

 

- Se tivesse havido alguma coisa a correr mal por esse lado, um dos restaurantes teria sido queimado, não era o proprietário que era torturado e assassinado. Mas pomos na mesma as nossas antenas no ar.

 

Droga? - alvitrou Ramírez. - Uma vez que estamos a lidar com um comportamento de extrema violência psicopática...

 

- Fale com os Narcóticos. Veja se Raúl Jiménez ou alguém a ele associado esteve alguma vez sob qualquer espécie de vigilância.

 

O resto da brigada reuniu-se a eles no quarto de hora seguinte e Falcón fez-lhes o ponto da situação, mostrou-lhes as imagens da cassete de vídeo e incentivou-os para se atirarem a um dia de trabalho chato, longo e árduo. Perguntou a Serrano o que tinha sobre o clorofórmio e os instrumentos cirúrgicos; até ali, nada dos hospitais, que ainda estavam a inventariar os stocks, e continuava a ronda pelos laboratórios. Mandou Baena às Mudanzas Triana para interrogar os trabalhadores e, especificamente, para descobrir o que tinham feito na manhã de sábado, aquando do funeral de Jiménez.

 

Saíram e atendeu uma longa chamada do juez Calderón, que cobriu os mesmos assuntos; e outra do comisario Lobo. Normalmente, esta incessante repetição tê-lo-ia aborrecido; mas desta vez, tanto Calderón como Lobo tinham tomado a iniciativa de pôr fim à chamada. Depois disso, pôs-se a desbastar a papelada, coisa que nunca fazia à segunda-feira de manhã, especialmente com uma investigação em curso. Saiu cedo para o encontro com Consuelo Jiménez.

 

Começaram por ver o vídeo dos acompanhantes do funeral. A Sra. Jiménez identificou-os a todos e forneceu os laços que os uniam ao marido. Não havia ninguém inusitado entre os presentes. Reconstituíram as últimas 24 horas de Raúl Jiménez e depois a sua última semana. Os encontros, os almoços, as festas, as discussões com construtores, um paisagista e um engenheiro de ar condicionado. Forneceu uma lista de empresas com quem tinham tratado nos últimos seis anos - as que tinham ficado com trabalhos, as que tinham ficado de fora, as que tinham sido abandonadas. Era difícil acreditar, depois do que Ramón Salgado tinha dito, que os únicos inimigos possíveis de Raúl Jiménez fossem magarefes, peixeiros e floristas que tivessem perdido negócios de abastecimento dos restaurantes. As espreitadelas furtivas de Consuelo Jiménez ao seu relógio caro tornavam-se mais frequentes e Falcón avançou a pergunta importante.

 

- Já vimos tudo menos a Comissão de Construção da Expo’92 - disse. - Posso ver essas pastas?

 

- Quais pastas? - disse ela.

 

- Os registos do seu marido.

 

- Aqui não há nada - disse, chamando a secretária -, nem no apartamento. Perguntaram o mesmo à secretária, que deu uma resposta bem ensaiada, olhando para o público como se estivesse para obter um aumento de ordenado. A Sra. Jiménez começou a apressá-lo e invocou os filhos.

 

Falcón ficou sentado, enquanto ela reunia as coisas e se punha de pé junto à porta, tamborilando na carteira com os dedos.

 

- Isto foi muito útil - disse, com ar convicto; a visita calculada que ela lhe tinha feito na véspera à noite e a cooperação selectiva daquela manhã tinham-lhe mostrado, pela primeira vez, a possibilidade de que a sua determinação se tivesse desenvolvido, por via da ambição, em implacabilidade.

 

Foi almoçar a casa. Encarnación tinha-lhe deixado um grande tacho de fabada asturiana. Feijão, chorizo, morcilla. Não tinha fome, mas tinha esperança de que um prato assim pesado e dois copos de vinho o pusessem a dormir. Deitou-se com a cabeça cheia de dúvidas de que estivesse a conduzir a investigação como devia. O estômago fez barulhos de canalização velha. As pernas moveram-se num espasmo. Mais estase agitada. Procurou dormir, mas não conseguiu. Telefonou a Ramón Salgado e, quando já estava a ligar, lembrou-se de que ele tinha ido a San Sebastián, para transportar a irmã para Madrid.

 

Voltou para o trabalho, com as mãos húmidas, as tripas a protestarem com a gordura da fabada e a língua com a consistência da camurça. O cérebro não se concentrava numa ideia e remetia-o imediatamente para uma conclusão. O desassossego, como gordura rançosa, misturou-se com o guisado e deram-lhe a volta à mistura. Encostou na República Argentina e telefonou ao médico, que não o podia receber senão na manhã seguinte. Ia ter uma noite inteira pela frente e estava horrorizado com a ideia, apesar de também perceber que isso era ridículo. Lembrou-se de como era agradável sentir-se equilibrado, cinco dias atrás. Os olhos foram invadidos pelas lágrimas. Encostou a testa ao volante. O que é que se estava a passar?

 

Saiu do carro, limpou os olhos e recompôs-se. Entrou no bar mais próximo e pediu uma coisa que nunca tinha bebido - brandy. Era o que todos bebiam nos filmes. O grande calmante dos nervos. O empregado foi-lhe atirando nomes: Soberano, Fundador. Pediu um qualquer e um café solo, para disfarçar o hálito.

 

O brandy dilacerou-lhe os pulmões e teve de recuperar o fôlego. Pegou na chávena de café e ficou siderado por pensar que a mão que estava apoiada no impecável balcão de aço não era a sua. Mexeu-a, dobrou-a, tocou com ela na cara. O empregado olhava para ele com atenção, enquanto limpava uma fieira de copos.

 

- Outro? - perguntou.

 

Falcón confirmou com a cabeça, incapaz de acreditar no que estava a fazer. O líquido cor de âmbar deslizou pelo copo. Admirou a firmeza do empregado, capaz de segurar uma garrafa por cima do rebordo de um copo sem perder o controlo do líquido. Emborcou o segundo brandy, escaldou a boca no café, espalmou uma nota sobre o balcão e saiu.

 

No parque de estacionamento da Jefatura, abrandou o pensamento, apertando a cabeça com as mãos. A luz do seu gabinete estava acesa. Ramírez tinha as costas voltadas para a janela e estava a ler qualquer coisa de uma pasta e a comentá-la a alguém sentado junto à secretária.

 

As pessoas franziam a testa à sua passagem, quando subiu as escadas. Meteu-se na casa de banho e olhou-se ao espelho. O cabelo estava em desalinho, como um mar revolto, tinha a cara vermelha e os olhos raiados. O colarinho da camisa estava por cima da lapela do casaco e a gravata pendia-lhe do pescoço. O verniz estava a estalar. Salpicou a cara com água fria, sentiu um sinal de emergência das tripas e fechou-se numa das cabinas. Intoxicação. Talvez fosse tudo devido a uma intoxicação alimentar, pensou, em desespero. A fabada da Encarnación estragada.

 

A porta da casa de banho abriu-se. Ouviu Ramírez.

 

- ... quanto sei, também a anda a comer.

 

- O inspector jefe? - perguntou Pérez, incrédulo.

 

- Deve andar desesperado, depois do divórcio.

 

Seguiu-se um silêncio, quando se deram conta de que uma das cabinas estava ocupada.

 

Saíram. Falcón lavou as mãos, recompôs o ar de autoridade na indumentária e penteou-se.

 

Os dois polícias estavam no gabinete dele. Em cima da secretária, estava o relatório da Policia Científica.

 

- Adianta alguma coisa?

 

- Nada que nos ajude - disse Ramírez.

 

- O que é que o Joaquín López tinha a dizer?

 

- Foi muito interessante, sobretudo no que diz respeito à mulher - disse Ramírez, incapaz de esconder a sua antipatia pela Sra. Jiménez. - Parece que o Sr. López estava muito mais adiantado nas negociações do que eu pensava. Já tinham acertado tudo e chegado a acordo sobre montantes. Os advogados já estavam a tratar de redigir o contrato.

 

- E foi então que conheceu Consuelo Jiménez... - alvitrou Falcón.

 

- Precisamente... conheceu a mulher - disse Ramírez. - E ela não sabia do negócio.

 

- Devo partir do princípio de que Raúl Jiménez pensasse ser da sua competência vender - adiantou Falcón.

 

- Pois. E era. Mas tanto ele como Joaquín López subestimaram a influência dela. Marcaram um almoço para falar disso. O Sr. López ficou impressionado com a forma como os restaurantes eram geridos. A decoração e todas as coisas que aquela mulher faz.

 

- Espero que não lhe tenha oferecido emprego.

 

- Pensou nisso. O objectivo do almoço era saber se ela gostaria de continuar a gerir os restaurantes ou se o facto de deixar de ser a mulher do proprietário fazia diferença.

 

- E o almoço foi um desastre?

 

- Ela trocou-lhe completamente as voltas. Joaquín López disse que tudo tinha acontecido antes do almoço. Estava tudo decidido. Raúl Jiménez era como um cão escorraçado ao pé da esposa. O Sr. López nem teve de voltar a telefonar mais tarde... percebeu logo que o negócio já não se realizava.

 

- E qual é a sua leitura deste desenvolvimento? - quis saber Falcón.

 

- Acho que ela deu cabo dele - atestou Ramírez. - Podia achar-se que é uma maneira muito elaborada de resolver as coisas, mas é precisamente essa a questão. A mulher tinha feito grande sucesso, por prestar atenção aos pormenores. Ela pensa em tudo de fio a pavio. Nada é deixado ao acaso, seja garantir que as cozinhas estão a receber os ingredientes necessários, seja a planear a morte do marido.

 

- Sabe que mais? - disse Falcón. - Concordo consigo. É uma pessoa bem capaz.

 

O peito de Ramírez inchou. Foi até à janela e olhou por cima do parque de estacionamento, como se aquilo se tivesse tornado o seu reino.

 

- Mas pode haver outra dimensão - acrescentou Falcón. - À primeira vista, tivemos uma reunião com boa cooperação, hoje à tarde; tirando que me disse muito pouco. E quando perguntei pelos arquivos dos tempos da Comissão de Construção da Expo’92, negou que existissem tais documentos e levou a secretária a fazer o mesmo.

 

- Isso é um disparate - disse Pérez. - Tem de existir alguma coisa.

 

- Outra coisa: Raúl Jiménez era um homem de negócios bem sucedido. Vinha de uma cepa de camponeses andaluzes e, pelos relatos do filho, era um duro. Tão duro que, há trinta e seis anos raptaram-lhe o filho mais novo, num acto de vingança. Não colaborou praticamente com a polícia. Mudou-se com a família para outra cidade. Desde então, apagou sistematicamente qualquer memória desse filho. Fê-lo porque a alternativa punha-se entre perder tudo e perder tudo, mais a sua riqueza e posição social.

 

- Não sei se o estou a compreender, inspector jefe - manifestou Ramírez.

 

- O que é que impediu Raúl Jiménez de vender os restaurantes? - perguntou Falcón.

 

- A mulher.

 

- Ela não o assassinou, pois não? - perguntou Falcón. - Mas dada a reputação de Raúl Jiménez, seria normal pensar que seria levada a isso.

 

- Ela ameaçou denunciá-lo - disse Pérez.

 

- De um rapto de há trinta e seis anos? - contestou Ramírez. - Joder.

 

- Ela não sabia do sucedido, nessa altura. Só lho contei depois de ter falado com José Manuel Jiménez.

 

- Então o que é que ela tinha sobre ele?

 

- Algo a ver com a Expo’92 - disse Falcón. - Acho que deve ter encontrado os papéis dele e descoberto um nível de corrupção nunca visto na história comercial da Espanha.

 

- Mas porquê escondê-lo agora?

 

- Porque já tem o que quer. Os restaurantes - concluiu Falcón. - Tudo o que os papéis do marido podem fazer agora é pôr em causa a posição dela. Se ele fosse dado como corrupto, podia influenciar os negócios. Ela podia perder tudo.

 

- Então, a morte dele foi muito conveniente - disse Ramírez.

 

- Não teria sido mais lógico o Sr. Jiménez assassinar a mulher? - alertou Pérez. - Assim, teria vendido os restaurantes e evitado qualquer escândalo.

 

- O assassínio impõe-se quando a lógica cessa - disse Ramírez, olhando para Pérez como se ele fosse um traidor à causa.

 

- Vamos investigar o passado de Consuelo Jiménez... o oficial e o não oficial - prosseguiu Falcón. - Ela falou de uma galeria de arte em Madrid, onde trabalhou; e de um caso com o filho de um duque, que terminou num aborto, em 1984.

 

- Segundo o computador da polícia, a ficha dela está limpa - adiantou-se Ramírez. - Tenho contactos em Madrid que andam a investigar o nome dela por outra via, para ver se há ligações a drogas ou prostituição.

 

- E quanto à Comissão de Construção? - perguntou Falcón.

 

Pérez saltou como se tivesse molas, na direcção da secretária. Pegou num amontoado de papel.

 

- Estão aqui os nomes e moradas de todas as empresas envolvidas em todos os projectos de construção, de qualquer dimensão, até à abertura da Expo’92. Esta é a lista de todas as empresas envolvidas em projectos de construção fora do recinto da Expo, total ou parcialmente financiadas pelo Estado. A maior parte é de expansões residenciais, em lugares como Santiponce e Camas. Esta é a lista de todas as empresas responsáveis por projectos dentro dos pavilhões: designers, técnicos de luz e som, ar condicionado, assentadores de pavimentos, etc.

 

- O que está a querer dizer, subinspector? - perguntou Falcón.

 

- Este livrinho é uma lista telefónica de todos os envolvidos em trabalhos ou abastecimentos dos pavilhões, restaurantes, bares, lojas...

 

Ramírez emergiu, segurando o bordo da secretária.

 

- Olhe, inspector jefe, todos sabemos o que se passou. Toda a gente se encheu com aquilo. Mas foi há dez anos e todos sabemos como as camadas de confusão se acumulam no espaço de dias ou mesmo de horas. E de que é que andamos à procura? Do tipo que não fez fortuna? Onde é que ele está? Do tipo que foi aldrabado? Onde vamos procurá-lo? Estará sequer nestas listas de empresas e pessoas? E se estiver, por onde vamos começar? Fornecedores de vidros? Marmoreiros? Fábricas de cerâmica? Seria uma tarefa gigantesca para um esquadrão especial anticorrupção, quanto mais para nós os seis do Grupo de Homicídios. Tem de haver uma pista escaldante para nos levar a esse nível de pesquisa.

 

Falcón estalou os dedos um a um. Era um bom discurso, mas não soava a Ramírez. Começava porque era sucinto e Ramírez não tinha esse tipo de raciocínio objectivo. Era do tipo subjectivo, reactivo. Trazer Consuelo Jiménez e fazê-la suar era mais o seu estilo.

 

- Então, ambos concordam em que devemos desenvolver a investigação construindo um caso contra Consuelo Jiménez?

 

Ramírez acenou com a cabeça. Pérez encolheu os ombros.

 

- Ela é dura - alertou Falcón. - Não me parece que tenhamos informações suficientes para a fazer sentir-se sequer pouco à vontade. Vamos ter de esgravatar muito.

 

- E se a vigiássemos? - perguntou Ramírez.

 

- Ainda não posso justificar esse tipo de despesa - disse Falcón. - Preciso de mais a respeito dela. O motivo do amante perdeu-se e o motivo de Joaquín López não é suficientemente forte, embora valha a pena apresentá-lo ao juez Calderón.

 

- O Sr. López ofereceu-se para ajudar em tudo o que puder.

 

- Óptimo.

 

- E se descobrirem alguma coisa em Madrid... põe-na então sob vigilância?

 

- Se já tiver estado implicada em assassínio anteriormente, sim. Por furto em lojas, não.

 

- Para a entalarmos mesmo, temos de revelar uma ligação dela com o operador de vídeo do cemitério - disse Pérez, que não avançou mais na conversa.

 

- O que é que ele estava lá a fazer? Comecem por se perguntar isto - disse Falcón. - O trabalho estava feito. Se estiver a operar seguindo instruções, para quê filmar o funeral?

 

- Talvez esteja a fazer um filmezinho de chantagem - aventou Pérez.

 

- Isso é efabulação, subinspector.

 

- E o desaparecimento de Eloisa Gómez também é efabulação? - perguntou Ramírez. - A mulher viu-a no vídeo que estávamos a visionar depois de levarem o corpo.

 

- Acho que alguma ligação entre o assassino e Eloisa...

 

- A mulher pode não ter achado graça à ideia de ter uma cúmplice por aí - disse Pérez.

 

- Pensem por que é que ele andou a fazer joguinhos com o telemóvel de Eloisa Gómez - pediu Falcón. - Porquê aquela deixa sobre ter uma história para contar?

 

- Que deixa é essa? - perguntou Ramírez.

 

- Eu contei-lhes.

 

- Contou-nos a de «O que achas da nossa proximidade?» e «Maior do que julgas» - disse Ramírez -, mas «uma história para contar»... não, não disse nada.

 

Falcón ficou espantado e embaraçado. Preocupava-o que a sua memória estivesse tão cheia de buracos. O brandy. Contou-lhes o que acontecera na ponte.

 

- Foi uma distracção - disse Ramírez.

 

- É de loucos - disse Pérez.

 

- É obscuro só por si; mas tomado em conjunto com o homem que apareceu no funeral com o vídeo, pode querer dizer que se prepara para intervir outra vez - disse Falcón. - Temos de nos manter despertos. Não podemos fechar portas, concentrando-nos apenas em Consuelo Jiménez.

 

Ramírez começou a andar agitadamente à volta da sala. Falcón despediu-se dos dois homens, mas chamou de novo Pérez.

 

- Quero que me faça uma coisa com essas listas - disse-lhe. - Pegue nas duas primeiras que me mostrou e descubra quais dessas empresas ainda existem. Depois, arranje os nomes dos administradores, executivos e não executivos, que estavam nessas empresas entre 1990 e 1992. Só isso; depois esquecemo-las.

 

Segunda-feira, 16 de Abril de 2001, Jefatura, calle Blas Infante, Sevilha

 

Falcón não aguentou ficar sozinho, o que, para um homem reservado, foi uma estranha revelação. Assim que Pérez saiu do gabinete, começou a ficar ansioso, com medo de que alguma coisa lhe acontecesse à cabeça. Não podia confiar em si próprio. Sentia-se como um velho que tivesse detectado os primeiros sintomas de demência - momentos de confusão, lapsos de memória, incapacidade para reconhecer coisas simples - e sentisse a iminente queda livre até ao total alheamento da vida. As outras pessoas davam-lhe contexto, recordavam-lhe a sua velha confiança. Não se conseguia concentrar no relatório da Policia Cientifica. O pânico cresceu-lhe no peito e teve de o obrigar a baixar progressivamente.

 

Ficou tão desesperado só de pensar na solidão que o esperava depois do trabalho, a sobrevivência a toda uma noite antes da consulta com o médico, que telefonou para o British Institute e reinscreveu-se nas aulas de conversação em inglês, a que se tinha proposto no ano anterior e que nunca tinha frequentado.

 

E assim se viu no meio de uma aula, num estado de fascinação aterrorizada, perante uma professora escocesa que contava aos alunos um recente tratamento a laser para os olhos. Lasers nos olhos? Nem queria pensar nisso. Depois da aula, saiu para tomar um copo e umas tapas com outros alunos. Achou reconfortante a presença de estranhos. Não o conheciam. Não podiam avaliar a sua estranheza. Teria de evitar a irmã e os amigos dela. Era a sua nova vida e era assim que a encarava, passados apenas alguns dias.

 

Chegou a casa à 1 da manhã, exausto. Era um cansaço que nunca experimentara antes. Uma profunda fadiga estrutural, como uma ponte antiga que tivesse sustentado várias eras de trânsito e aguentado com imparáveis toneladas de água. As pernas fraquejavam-lhe, as articulações gemiam e, contudo, o interior da sua cabeça, o que quer que fosse que lá tinha dentro, estava tão alerta como um animal nocturno.

 

Arrastou-se até ao quarto, como o moço do talho com uma carcaça às costas.

 

Os lençóis estavam frios como loção, quando gatinhou para dentro da cama, nu, pela primeira vez desde criança. As pálpebras fecharam-se, pesadas como pedregulhos.

 

E no entanto, não conciliava o sono.

 

Vieram à tona imagens terríficas. Expressões de terror, inconcebíveis, mas que habitavam na sua mente. De cada vez que o cérebro capotava na escuridão, apareciam e faziam-no regressar em sobressalto. Remexeu-se nos lençóis, acendeu a luz, apertou os punhos contra os olhos. Não se teria importado de os arrancar, se tivesse garantias de também cegar o olho da mente. O olho da mente. Detestava aquela expressão. O pai já a detestava. Por isso é que ele a detestava. Pretensiosa e incorrecta. As lágrimas surgiram. Madre mia, o que é isto? Soluços arrebatadores levantavam-lhe os ombros da cama.

 

Atirou com as mantas, saiu do quarto, cego pelas lágrimas. Tentou recompor-se na galeria, andando de um lado para o outro. Agarrou-se à balaustrada e olhou para o pátio; viu a pupila negra no centro da fonte, fixando o céu, e pensou que lhe bastava saltar da varanda, mergulhar nas lajes de mármore do chão, rebentar os miolos num último som cacofónico e depois viria o silêncio. A paz, finalmente.

 

A ideia era demasiado tentadora. Afastou-se dali, desceu atabalhoadamente as escadas e entrou no escritório. Abriu o bar, que estava cheio de uísque, a bebida preferida do pai. Tirou a rolha da primeira garrafa que lhe veio à mão e bebeu longamente pelo gargalo. Cheirava e sabia a carvão molhado, mas ardia como uma brasa atiçada.

 

Um espelho alto devolveu-lhe uma terrível actualização da sua imagem nu, a tremer, com os órgãos genitais encolhidos, cara marcada das lágrimas, ambas as mãos agarrando a garrafa, como se fosse ela que o fosse devolver à costa. Porque era onde sentia que estava: perdido num mar alteroso, sem esperança de encontrar terra firme. Bebeu mais daquele asfalto líquido e caiu de joelhos. Continuava a chorar, se se podia chamar assim àquele espasmo do corpo, como se estivesse a tentar vomitar algo maior do que ele. Bebeu outra vez o alcatrão derretido, até acabar. Caiu para trás e a garrafa bateu no chão e rolou. O rótulo desapareceu-lhe da vista a toda a pressa. Arrotou uma essência de betume e escorregou para uma escuridão cheia de brilhos, como se estivesse a ser deitado numa rua negra acabada de fazer.

 

Voltou a si, espalmado por um cilindro de estrada, com as articulações todas deslocadas, ossos esmagados, cara distorcida. Jazia numa poça da sua própria urina, tremendo de frio. Começava a clarear na rua. As pernas doíam-lhe. Limpou o chão e deixou-se cair no chuveiro, de borco para a base. Ainda estava bêbado e os dentes pareciam-lhe do tamanho de pedras da calçada.

 

Ainda a pingar, avançou para a cama e repuxou os cobertores para cima de si. Adormeceu e sonhou com o peixe. Era quase bonito aquilo: percorrer, veloz, a água verde-azulada. Mas a liberdade do instinto perfeito foi perturbada pelo terrível esticão, o puxão visceral que o voltava às avessas.

 

Terça-feira, 17 de Abril de 2001, casa de Falcón, calle Bailén, Sevilha

 

A luz crua entrou-lhe na cabeça. Pontas de aço dardejavam-lhe o crânio negro. Os seus órgãos estavam tão frágeis como porcelana chinesa. Torceu-se com a falta de ar provocada pela dor lancinante da bebedeira.

 

Uma hora e meia depois, esfregado, barbeado, vestido e penteado, sentou-se numa cadeira em frente do médico, hesitante como um homem com hemorróidas de elefante, que lhe percorressem o corpo de ponta a ponta.

 

- Javier... - começou o médico, ficando por instantes sem palavras.

 

- Eu sei, Dr. Fernando, eu sei - disse Falcón.

 

O Dr. Fernando Valera era filho do médico do pai e tinha mais dez anos do que Falcón, apesar de a última semana parecer tê-los posto da mesma idade. Os dois homens conheciam-se bem e eram ambos aficionados de los toros.

 

- Vi-o no meio de uma multidão na Estación de Santa Justa, na sexta-feira - disse o Dr. Fernando. - Parecia normal, naquela altura. O que é que se está a passar?

 

A suavidade da voz do médico emocionou Falcón, que teve de combater as estúpidas lágrimas com a ideia de que tinha finalmente chegado a um porto de abrigo, em que alguém ia tomar conta dele. Deu ao médico um apanhado dos sintomas físicos - ansiedade, pânico, coração aos saltos, falta de sono. O médico fez-lhe perguntas sobre o trabalho. Mencionou-se o caso Raúl Jiménez, sobre o qual tinha lido nos jornais. Falcón confessou que foi quando viu o rosto do homem que notou a alteração química.

 

- Não posso dar pormenores, mas teve a ver com qualquer coisa nos olhos dele.  

 

- Ah sim, você é muito sensível com os olhos... como o seu pai.

 

- Ele também? Não me lembro disso.

 

- Suponho que seja bastante natural para um artista preocupar-se com os olhos; mas nos últimos dez anos de vida, o seu pai tornou-se obcecado... sim, é a palavra: obcecado com a cegueira.

 

- Com a ideia dela?

 

- Não, não, com ficar cego. Estava certo de que lhe iria acontecer.

 

- Não sabia.

 

- O meu pai tentou meter-se com ele para lhe tirar a ideia e disse-lhe que, se não tivesse cuidado, arranjava uma cegueira histérica. Francisco ficou aterrorizado com a ideia - disse o Dr. Fernando. - Mas... Javier... estamos aqui para falar de si. Para mim, está a sofrer sintomas clássicos de stress.

 

- Eu não tenho stress. Estou na profissão há vinte anos e nunca sofri de stress.

 

- Está com quarenta e cinco anos.

 

- Eu sei disso.

 

- É quando o corpo começa a constatar as suas fraquezas. Corpo e mente. As pressões sobre a mente criam sintomas no corpo. Vejo isso todos os dias.

 

- Mesmo em Sevilha?

 

- Talvez ainda mais em Sevilla la maravilla. É uma pressão danada estar sempre bem disposto, só porque... é o que esperam de si. Não somos imunes à vida moderna, só porque vivemos na mais bonita cidade de Espanha. Dizemos a nós mesmos que temos de estar felizes... não temos desculpa. Estamos rodeados de pessoas que aparentam estar felizes, pessoas que batem palmas e dançam nas ruas, pessoas que cantam pelo puro prazer de cantar... e acha que não sofrem? Acha que estão de algum modo excluídas da batalha da condição humana: morte, doença, amor perdido, pobreza, crime e tudo o resto? Somos todos meio malucos.

 

Falcón interrogou-se sobre se isto pretendia fazê-lo sentir-se melhor por estar louco.

 

- Comecei a pensar que estava a ficar completamente maluco - disse.

 

- Está sob pressões muito fortes. Defronta-se com as rupturas momentâneas da nossa civilização, quando as condições se tornaram intoleráveis e o fusível rebentou. Enfrenta as consequências disso. Não é um trabalho fácil. Talvez devesse falar com alguém a esse respeito... alguém que compreenda o seu trabalho.

 

- O psicólogo da polícia?

 

- É para isso que eles servem.

 

- Em menos de uma hora, todos iriam saber que Javier Falcón tinha estoirado.

 

- Essas consultas não são confidenciais?

 

Transpiram. É como viver num quartel ou numa escola dentro da Jefatura. Toda a gente sabe que nos estamos a separar da namorada antes de nós próprios.

 

- Fala de uma experiência dolorosa, Javier.

 

- No meu caso foi ainda pior, sendo a Inés uma fiscal. E uma muito destacada e pouco reservada... Talvez não devêssemos começar a falar da Inés, Dr. Fernando.

 

- Então, não quer ir ao psicólogo da polícia?

 

- Quero uma coisa mais privada. Não me importo de pagar. Tem razão, talvez falar sobre isto me ajude.

 

- Não é fácil conseguir uma consulta privada. E há muitas abordagens diferentes da ciência da mente. Alguns consideram-na como uma situação puramente clínica, um desequilíbrio químico a ser reequilibrado por introdução de drogas. Outros usam drogas e uma abordagem teórica baseada em, por exemplo, Jung ou Freud, entre outros.

 

- Tem de me aconselhar.

 

- Só lhe posso dizer que fulano é bom psicólogo; este trabalha exclusivamente como psicofarmacologista, o outro é um freudiano sério. Pode não gostar das suas abordagens. Sabe o género: o que é que a minha relação com o meu coco em pequeno tem a ver com os meus problemas em adulto? Não quer dizer que sejam maus na sua profissão.

 

- Continua a achar que eu devia ir ao psicólogo da polícia?

 

- Tem a vantagem suplementar da disponibilidade.

 

- Então, agora vai-me dizer que na ciudad de alegria, Sevilla la maravilla, não há um único médico da cabeça disponível? Somos todos chifladoí.

 

- Todos sofremos - disse o Dr. Fernando. - Os espanhóis, e não apenas os sevilhanos, ultrapassam os problemas através de... la fiesta. Falamos, cantamos, dançamos, bebemos, rimos e fazemos a festa noite após noite. É a nossa maneira de lidar com a dor. Os nossos vizinhos, os portugueses, são muito diferentes.

 

- O seu estado natural é estarem deprimidos - comentou Falcón. - Cederam à condição humana.

 

- Não acho. São melancólicos por natureza, como os nossos galegos. Afinal de contas, têm de se confrontar quotidianamente com o Atlântico. Mas são muito sensuais, também. É um país que cometeria suicídio se acabassem com o almoço. Adoram comer e beber e gozam a beleza das coisas.

 

- Pois - disse Javier, começando a interessar-se. - E quanto aos britânicos? O meu pai admirava imenso os britânicos. Como é que esses encaram a vida? São tão reservados e inibidos...

 

- Bem, para nós, são, mas entre eles... Acho que têm uma expressão: «to take the piss», gozar com as situações.

 

- Pois é, nunca levam as coisas muito a sério. Troçam de tudo. Nada é sacrossanto. O famoso sentido de humor britânico. E os franceses?

 

- Sexo. Amor. E tudo o que leva a isso. La Table.

 

- Os alemães?

 

- Ordnung.

 

- Os italianos?

 

- La Moda.

 

- Os belgas?

 

- Mexilhões - disse o Dr. Fernando e ambos riram. - Não conheço nenhum belga.

 

- E os americanos?

 

- Esses são mais complicados.

 

- Têm todos o seu psicanalista particular.

 

- Bem, não é fácil ser líder do mundo moderno, com o direito à prossecução da felicidade inscrito na Constituição - aventou o Dr. Fernando. - E são uma mistura: europeus do norte, descendentes de espanhóis, negros, orientais. Talvez por isso, perderam a ligação com as suas válvulas de segurança tradicionais.

 

- É uma boa teoria. Devia escrever uma tese.

 

- Está a gozar, Javier.

 

- Pois estou - disse, olhando para cima, como se tentasse lembrar-se por que estava ali.

 

- Talvez devesse sair mais. Trabalhar menos. Ser mais sociável.

 

- Continuo a precisar que me encontre alguém com quem possa falar - retorquiu Falcón, outra vez com o peso nos ombros.

 

O Dr. Valera anuiu com a cabeça e passou-lhe uma receita de um ansiolítico ligeiro, chamado Orfidal, e outros comprimidos para o ajudarem a dormir.

 

- Uma coisa é certa, Javier - disse, quando lhe entregou o papel. - O álcool não vai resolver nenhum dos seus problemas.

 

Falcón aviou a receita na avenida República Argentina e engoliu um Orfidal só com a saliva.

 

Ramírez esperava-o no gabinete com um pacote dirigido ao inspector jefe Javier Falcón, com carimbo de Madrid.

 

- Foi radiografado - disse Ramírez. - É uma cassete de vídeo.

 

- Leve-a aos investigadores criminais e peça para a analisarem.

 

- Mais uma coisa que pode ser interessante. Mandei o Fernández às Mudanzas Triana ontem, para ajudar o Baena com os interrogatórios. Travou amizade com o encarregado. Uma das coisas que ficou a saber é que Raúl Jiménez utilizou as Mudanzas Triana, porque já lhe tinham feito mudanças anteriormente. Têm mobílias dele guardadas no armazém desde há duas mudanças.

 

- A mulher dele disse que se tinha mudado para o Edifício del Presidente em meados dos anos 80.

 

- De uma casa em El Porvenir.

 

- E antes disso, esteve na Plaza de Cuba.

 

- De onde saiu em 1967.

 

- Quando a primeira mulher morreu.

 

- Ao introduzirem o nome dele no computador, nas Mudanzas Triana, descobriram que ainda tinham coisas dele no armazém. Perguntaram-lhe se as queria mudar para a casa nova. Disse que não e foi muito enfático. Ofereceram-se para se desfazerem daquilo, porque lhe estava a custar dinheiro. E ele voltou a dizer que não.

 

Ramírez saiu com o pacote. A mão de Falcón pairou sobre o telefone. Encostou-se na cadeira e pensou sobre a qualidade das informações recebidas. O Orfidal estava a funcionar. Sentia-se calmo e concentrado nos seus pensamentos, embora tivesse sido avisado de que poderia estar a sofrer de uma tendência paranóica: acreditar que Ramírez lhe estava a distrair a atenção, com informações atraentes, mas estéreis. Tinha duas opções. A primeira era pedir um mandato de busca, o que significava preencher uma prova documental em como achava que acontecimentos de há trinta e seis anos tinham implicações neste caso. A segunda era pedir a Consuelo Jiménez que lhos facultasse, mas ela já lhe tinha barrado o acesso aos documentos da Comissão de Construção.

 

O telefone fê-lo dar um salto no lugar. O juez Calderón pedia-lhe uma reunião. Tinha acabado de receber uma invulgar visita do magistrado juez decano de Sevilla Alfredo Spinola. Combinaram encontrar-se antes do almoço, no Edificio de los Juzgados.

 

Ramírez voltou com a cassete «limpa» da Policia Científica. Um cartão impresso acompanhava a cassete, em que se lia: «Lição de ver nº 1. Ver 4 e

6.» O título da cassete era Cara o Culo I.

 

- Não era este o título da caixa vazia no apartamento de Raúl Jiménez? perguntou Ramírez.

 

- O assassino deve tê-la levado - disse Falcón. - E... Lição de ver?

 

Foram para a sala de interrogatórios, onde o sistema de vídeo ainda estava montado. Ramírez introduziu a cassete. Começou uma música baixinha e imagens de má qualidade. Seguia-se uma série de cenas, cada uma com cinco a dez minutos de duração, em que situações perfeitamente normais, como uma comemoração num bar, um jantar num restaurante, um churrasco à beira da piscina, descambavam em improváveis orgias de sexo em grupo.

 

Falcón foi instantaneamente assaltado pelo tédio. A música e o falso êxtase irritaram-no e as palmas das mãos voltaram a ficar húmidas. O Orfidal estava a perder efeito. Respirou fundo, para manter a calma. Ramírez inclinou-se para a frente, a brincar com o anel. Fez comentários para si próprio ao longo da sessão e assobiou uma vez por outra. Falcón só saiu do torpor uma vez, durante a última cena, que lhe pareceu tratar-se da que passava na televisão quando Raúl Jiménez estava com Eloisa Gómez.

 

- Não percebo como pode dizer isso - espantou-se Ramírez.

 

- São apenas formas num ecrã.

 

Ramírez fez um esgar. A cassete acabou.

 

- O que é esta «Lição de ver»? - perguntou. - Se isto era o que estava a passar na noite em que o Jiménez morreu, o que é que tem?

 

- Foi a última cena de seis. Mandaram-nos ver a 4 e a 6.

 

- Já vimos.

 

- Portanto, não tem nada a ver com o facto de estar a passar na noite do assassínio.

 

- Lição de ver? - murmurou Ramírez.

 

- Está-nos a ensinar - disse Falcón. - Vê coisas que mais ninguém vê.

 

- A mim, não me está a ensinar nada - disse Ramírez. - Sei essas coisas todas de trás para a frente.

 

- Talvez seja esse o objectivo. Para onde é que olhamos quando vemos um filme pornográfico?

 

- Olhamos para aqueles que estão em acção.

 

- Por isso lhe chamam «skin flicks», nos Estados Unidos, porque é só para o que se olha. A pele. A superfície. A acção.

 

- E que mais há para ver?

 

- Talvez ele nos esteja a dizer que há mais do que a vista abarca. Não são apenas órgãos genitais e penetração. Esquecemo-nos de que os actores são pessoas reais, com caras e vidas - disse Falcón. - Vamos observar a última cena e olhar apenas para as caras, desta vez.

 

Ramírez rebobinou a fita. Falcón cortou o som. Puseram-se mais perto.

 

- Viu a maneira como esta gente está vestida? - comentou Falcón.

 

- Este filme deve ter mais de vinte anos - ripostou Ramírez. - Olhe para os colarinhos daquelas camisas: lembro-me deles assim.

 

Falcón concentrou-se nos rostos e, ao passar de um para o outro, fixando olhos e bocas, perguntava-se o que tinha levado aquelas pessoas a fazerem aquilo. Seria o dinheiro suficiente para abandonarem a moralidade, a inocência e a intimidade? Passou de um par de olhos vazios para uma boca com dentes cerrados, de uma cara sem vida para um lábio displicente e estremeceu sob o peso lento da pequena tragédia exposta. Estas pessoas conhecer-se-ão umas às outras? Talvez tivessem acabado de se encontrar naquela manhã e, à tarde...

 

Uma das raparigas tinha cabelo negro e encaracolado. Nunca olhou para a câmara. Ora olhava fixamente para diante ora para baixo, para a superfície da mesa sobre a qual estava inclinada, como se fosse apenas uma questão de tempo para passar para o outro lado desta experiência. Uma das mãos estava cerrada num punho de fria determinação. Deu-se conta de que, se o foco da câmara tivesse sido assestado em grandes planos das caras, com uma voz revelando as vidas dos participantes, o filme teria dado um documentário. Estas pessoas teriam companheiros, fora deste mundo temporário? Seria possível ter relações com sete ou oito estranhos e depois ir para casa jantar com um namorado ou namorada? Teriam de desistir de viver para poderem fazer este trabalho?

 

Uma onda de tristeza instalou-se-lhe no peito.

 

- Viu alguma coisa? - perguntou Ramírez.

 

- Nada de relevante - disse Falcón. - Não sei de que andamos à procura.

 

- Este tio está a gozar connosco?

 

- É o jogo dele e nós jogamo-lo porque, de cada vez, ficamos a saber mais sobre ele. Voltemos à nº 4.

 

Ramírez rebobinou a fita e carregou no «play». Abria com uma festa num apartamento. A campainha tocava. A câmara seguia uma rapariga com calções justos e um «top» de alcinhas ao longo do corredor. Abriu a porta e entraram dois homens e duas mulheres. Ramírez pôs o dedão no ecrã.

 

- Olhe para esta - apontou.

 

Era a rapariga de cabelo negro encaracolado e punho cerrado, que nunca olhava para a câmara.

 

- Está com uma peruca - disse Ramírez.

 

A câmara seguiu o grupo pelo corredor até à festa, que estava agora indescritivelmente fora de controlo, com toda a gente nua e em acção. Os quatro recém-chegados, em vez de saírem do apartamento aos gritos, juntaram-se aos demais.

 

- Lá está ela outra vez - disse Ramírez.

 

Desta vez, tinha o peito nu e estava sentada no sofá, olhando para a frente volumosa das calças de um homem. A câmara aproximou-se quando as mãos da rapariga avançaram para a braguilha do companheiro.

 

- Sabe o que estamos a ver? - balbuciou Ramírez.

 

- Incrível.

 

- É, não é? - disse Ramírez com palpável satisfação. - É mais nova e Um pouco mais gorda; mas é com toda a certeza a Sra. Consuelo Jiménez.        

 

Terça-feira, 17 de Abril de 2001, Jefatura, calle Blas Infante, Sevilha

 

Voltaram para o gabinete. Falcón, por trás da secretária, pasmado a olhar para a cassete, enquanto Ramírez, de pé, tamborilava com o anel na janela, olhando para o parque de estacionamento, como se tivesse de vender aquilo tudo antes do fim da semana.

 

- Pelo menos, ficámos a saber que ela não era virgem - disse Ramírez.

 

- Sabe o que isto vem fazer? - questionou Falcón, atirando a cassete pela secretária fora. - Exactamente aquilo que se pretendia: lançar a confusão.

 

- Ia supostamente ensinar-nos alguma coisa. Era uma lição de ver - disse Ramírez, endireitando-se, abanando a cabeça para os carros, uma tarefa definitivamente impossível.

 

- Como é que isto se encaixa no caso que estava a construir contra a Consuelo Jiménez?

 

- Não sei - disse, virando costas à janela. - Por um lado, apoia-o, por outro, destrói-o.

 

- É essa a questão - rematou Falcón. - Mostra que ela é capaz de passar das marcas. Mas por que havia o assassino, supostamente pago e instruído por ela... para que nos mandaria a cassete?

 

- A menos que não a tenha mandado.

 

- Veja: Lição de ver número um; e Raúl Jiménez com as pálpebras cortadas. Quem mais podia ser? É preciso muito conhecimento de causa.

 

Ramírez atravessou a sala, agitando o dedo com o anel.

 

- Disse que tinha sido preparado para confundir-nos, não foi? A Sra. Jiménez está sob pressão. Falou demoradamente com ela quase todos os dias, desde o assassínio.

 

- Acha que foi ela que enviou ou mandou enviar isto?

 

- Olhe para a nossa reacção. Não conseguimos acreditar que estivesse preparada para se expor a este nível. Mas pense. Apareceu num filme pornográfico, há vinte anos. Grande coisa. Deve ter tido as suas razões. Falta de dinheiro é a mais provável. O que é que vai fazer: trabalhar como criada de quartos durante uma década ou chupar umas pichas? A única forma deste filme ter impacte na vida dela era se o mandássemos aos amigos que tem em Sevilha, com um círculo vermelho à volta da cabeça dela e «Consuelo Jiménez» a piscar no ecrã. E se não há orçamento para a pôr sob vigilância, seguramente não temos orçamento para uma coisa dessas.

 

Ramírez não conseguia evitar. Aquela beligerância crua e irreprimível acabava sempre por vir ao de cima.

 

- Talvez haja outro nível nesta lição de ver - disse Falcón. - Estava a pensar que esta era a cena que passava quando o assassino filmou Raúl Jiménez com Eloisa Gómez. O que é que isso nos diz de Raúl Jiménez... se ele sabia quem estava a ver?

 

- Era muito estranho.

 

Falcón meditou sobre o funcionamento binário do cérebro humano e as escolhas intermináveis. Por este lado ou pelo outro? O que é que conduzia o instinto que o fazia escolher sempre a pior via? O que faz com que, em vez de estar na cama com a mulher, gozando a alegria do casamento e dos filhos, se seja apanhado com uma puta no escritório, ao mesmo tempo que se observa a própria mulher em acção no ecrã? Raúl Jiménez tinha queda para o que não prestava.

 

- Se tivermos em conta a semelhança de Consuelo Jiménez com a falecida mulher... É quase impossível imaginar o que ia na cabeça do homem - comentou Falcón.

 

- Culpa - disse Ramírez.

 

- Culpa implica ter consciência do que se está a passar.

 

- Passo - disse Ramírez, que se aborrecia depressa. - O que vamos fazer com isto?

 

- Confrontar a Consuelo Jiménez... Ver como reage.

 

- Estou nessa.

 

- Ficámos também de nos encontrar com o juez Calderón antes do almoço

- disse Falcón. - Não me parece que dois polícias a apertar com Consuelo Jiménez acerca do seu lamentável passado seja produtivo. Quero que prepare o material para o encontro com o juez Calderón. Pode também dizer ao Baena, se ainda estiver nas Mudanzas Triana, para tentar que o deixem ver as coisas de Raúl Jiménez ou pelo menos que lhe dêem um inventário.        

 

Ramírez corou, com uma raiva interior a apertá-lo. Não gostava de ver as suas maquinações voltarem-se contra ele e não queria ser excluído da humilhação de Consuelo Jiménez. Falcón fez um telefonema. Ela concordou em encontrar-se com ele e pediu-lhe para ir antes do almoço começar a ser servido nos restaurantes.

 

Tomou outro Orfidal, na casa de banho, encantado com a eficácia do primeiro, tentado a passar o resto da vida dependente deles. Guiou através da cidade rendida e pensou que o médico era capaz de ter razão, que tudo aquilo era apenas stress. Vivemos numa era de uma ansiedade moderada, mas constante. Como já não há grandes acontecimentos arrebatadores no mundo, concentramos a nossa atenção nas minúcias do quotidiano, atascamo-nos em trabalho e actividades, para suprimir a ansiedade que resulta desta paz relativa. «Sim, é isso», pensou, «vou tomar estas pastilhas mais umas semanas, resolver este caso e tirar umas férias.»

 

Havia lugar por trás do Edifício de los Juzgados. Estacionou e atravessou os Jardines de Murillo, entrando no barria Santa Cruz. Abrandou, relembrando as palavras do médico... a cidade mais bonita de Espanha... e olhou em redor, como se fosse a primeira vez. Por cima do ar claro e límpido e das copas das palmeiras, ao céu não faltava nenhum pingo de azul. O sol andaluz brilhava por cima das folhas verdes dos plátanos, provocando jogos de luz e sombra no empedrado gasto dos passeios. Torres de buganvílias magenta, espectaculares depois das chuvas, precipitavam-se dos edifícios brancos e ocres. O vermelho-sangue das sardinheiras acenava através das balaustradas negras das varandas de ferro forjado. O cheiro de café e pão cozido enchia as ruas tranquilas. A frescura cavernosa das vielas desaparecia no calor das praças, onde a pedra de antigas igrejas dourava ao sol em silêncio.

 

Caminhou por baixo dos grandes plátanos da plaza Alfalfa e lamentou o ramo de actividade em que estava - a dor e o embaraço, em contradição com o dia glorioso. A secretária levou-o ao escritório de Consuelo Jiménez. Ela estava sentada encostada à secretária, de mãos assentes no tampo de couro, com os ombros enchumaçados muito direitos. Falcón afundou-se numa cadeira, com o estômago ainda adejando de alegria. Aquelas pastilhas. Como uma pessoa que estivesse a ouvir a sua música favorita com auscultadores, teve de se conter para não o manifestar em voz alta.

 

Estendeu-lhe a cassete de vídeo, num saco plástico de prova. Ela voltou-a e o título fê-la pestanejar. Ele explicou que tinha recebido aquilo no correio daquela manhã e falou-lhe da mensagem sobre a lição de ver.

 

- É um dos filmes porcos do meu marido, não é?

 

- Estava a passar enquanto o assassino filmava o seu marido a ter relações com a prostituta no escritório. O cartão que o acompanhava dizia para vermos as secções quatro e seis com muita atenção.

 

- Muito bem, inspector jefe, e o que aconteceu?

  

- Não faz ideia do conteúdo deste vídeo?  

 

- Não me interesso por pornografia. Abomino-a.

 

- Pela roupa dos actores deste filme, calculamos que tenha cerca de vinte anos.

 

- Roupa num filme pornográfico... isso é uma novidade.

 

- Apenas no começo.

 

- Vá lá, inspector jefe, se houve algum avanço, conte-mo e falemos sobre ele.

 

- As duas secções que vinham nas instruções do cartão da lição de ver mostram-na a si, Sra. Jiménez, em jovem.

 

Silêncio. Suficientemente longo para se formar uma nova idade do gelo.

 

- Por que acha que...? - ia a dizer Falcón.

 

- De que está a falar, inspector jefe?

 

O toque de rispidez na sua voz abalou a confiança de Falcón e ocorreu-lhe a hipótese de se poderem ter enganado, de Ramírez ter feito um mau juízo e que não fosse ela no filme. A mobília do escritório passou por ele em grande velocidade, enquanto mergulhava de cabeça num dos momentos mais embaraçosos da sua carreira profissional.

 

- Pergunto-me - disse, recompondo-se - por que é que alguém quereria mandar-nos este filme.

 

- Por que julga que tem o direito de entrar no meu escritório com essa noção desprezível...

 

- Tem um leitor de vídeo?

 

- Acompanhe-me - disse, arrebatando o saco da prova.

 

Saíram do escritório e percorreram o corredor até uma saleta com dois sofás, uma cadeira e um aparelho de TV/vídeo. Falcón debateu-se com uma luva de borracha, nas mãos agora suadas. O filme estava preparado para começar na quarta secção. Decidiu evitar um embaraço maior, mostrando apenas os primeiros momentos, quando as quatro pessoas entram no apartamento. Congelou a imagem quando ela surgiu à porta. Ela olhou para aquilo com desdém, evidenciando a sua cabeleira loura. Ele deixou o vídeo correr até a câmara se fechar sobre o rosto inconfundível. Tentou congelar a imagem, mas o vídeo não obedeceu. A jovem Consuelo abriu o fecho das calças do homem e sacou-lhe o pénis para fora. Foi então que Consuelo Jiménez, de cara escarlate, lhe deu um encontrão, parou o vídeo e arrancou-o de dentro do leitor.

 

- Isso é uma prova - lembrou Falcón.

 

Ela esmagou a cassete no chão e calcou-a com o salto. O invólucro de plástico rachou-se e ela tentou arrancar a fita, mas estava mais agarrada do que caca de cão à bota. Chutou o seu próprio sapato, arrancou a cassete do salto e atirou-a contra a parede, o que a escaqueirou e fez cair em pedaços. Falcón atirou-se para o chão com o saco de prova e recolheu os restos. Ela saltou-lhe em cima, batendo-lhe na cabeça e nas costas, a gritar, lívida, com uma linguagem pior do que aquela que tinha ouvido em tugúrios de drogados do polígono San Pablo. Virou-se para ela, agarrou-a pelos ombros, deu-lhe dois berros e ela foi-se abaixo, agarrada ao ombro dele, molhando-lhe o tecido do fato com as lágrimas.

 

Sentou-a no sofá. Ela enterrou a cara no braço. O cérebro de Falcón dividia-se entre dois mundos: aquilo era fingimento ou realidade? Ela voltou à tona devagar, com o rosto destroçado. Ele sentou-se na cadeira para marcar distância.

 

- Sim - disse ela -, aquela era eu.

 

- Tempos difíceis?

 

- Um momento muito mau - disse, reduzindo as horas que deveria ter decorrido a uma fracção ínfima.

 

- Problemas de dinheiro?

 

- Problemas de todos os tipos - disse, enfrentando o abismo da inevitabilidade da intrusão. - Dei-lhe voluntariamente os pormenores do meu segundo aborto, pago pelo meu amante. Isto foi o prelúdio do meu primeiro aborto, pago por mim. Voo de ida e volta a Londres, hotel e hospital. Era uma pipa de dinheiro a reunir em dois meses, sem qualquer ajuda.

 

Soluçou e pôs a mão na boca, como se fosse vomitar.

 

- É o género de coisa que ninguém quer ter de recordar. Uma grávida ter de fazer coisas destas para ganhar o dinheiro para matar um feto. É totalmente repugnante para mim.

 

Era uma grande lição, esta «Lição de ver nº 1». Talvez Ramírez devesse ter assistido, porque se encaixava no perfil do assassino. Ele sabia coisas. Procurava a vergonha ou o terror no passado das pessoas e mostrava-lhos, forçava-os a revivê-los.

 

- Como é que alguém podia ter sabido disto? Alguém sabia disto?

 

- Eu própria já tinha apagado isto completamente da minha vida. Não me lembro de nada disto. Fiz uma coisa que tinha de ser feita e, quando terminou, atirei-a para o abismo mais profundo. Mal me consigo lembrar de quem conhecia nessa altura. Voltei de Londres e tratei de mudar tudo.

 

- E o pai?

 

- Refere-se ao homem que não foi pai - argumentou. - Era mecânico numa garagem que o meu pai geria. Quando lhe disse, fugiu. Nunca mais o voltei a ver.

 

- Como é que alguém podia ter sabido disto?

 

- Não podia. Foi a primeira vez na vida que deparei com a verdadeira solidão. Fiz tudo completamente sozinha. Nem à minha irmã contei.

 

- Como encontrou a clínica de Londres? - perguntou, sendo o aprofundamento dos pormenores sórdidos inevitável.

 

- O meu médico deu-me uma morada em Madrid, de uma mulher que me forneceu todos os pormenores.

 

- E para juntar dinheiro... como é que foi parar àquele mundo?

 

- Havia outras pessoas que também conheciam aquele endereço. Não foi por coincidência que encontrei uma rapariga num café, nessa mesma tarde, que me fez uma proposta que cobria precisamente o montante necessário.

 

- Voltou a vê-la?

 

- Nunca.

 

- E os outros actores? - perguntou e ela abanou a cabeça.

 

- Sabe, para o meio em que estavam envolvidos, eram gente surpreendentemente boa. O que estávamos a fazer era depravado e a atmosfera em cena podia ter sido horrível; mas fumámos uns charros e foi tudo muito amigável. Era gente humana e simpática. Talvez tenha tido sorte. E o sexo... o sexo não era nada, de facto. O mais difícil era os homens manterem a erecção, porque era tudo tão pouco emotivo... tão pouco sensual.

 

Falcón manifestava constrangimento, à medida que a pergunta que não queria fazer se lhe formava no espírito. Meteu-a numa prateleira. Era de muito mau gosto.

 

- Disse que tinha mudado tudo, quando regressou a Espanha.

 

- Na noite anterior à operação, dormi num hotel barato em Victoria. Fui dar um passeio a pé, para afastar da cabeça o dia seguinte. Queria perder-me. Fui até ao Hyde Park Corner, desci por Picadilly até Shepherds Market e Berkeley Square. Meti por Albemarle Street e dei comigo no exterior de uma galeria de arte. Havia uma «vernissage». Fiquei a ver as pessoas a andarem de um lado para o outro. Estavam muito bem vestidas, sofisticadas e com um ar civilizado. Nenhuma daquelas mulheres ficaria grávida de um mecânico. Decidi que eram o meu tipo de pessoas, que havia de me dar com elas e tornar-me uma delas. Quando voltei para Madrid, trabalhei arduamente e comprei roupas bonitas; e fui ter com um galerista que me disse que eu não servia, que não sabia o mínimo de arte. Humilhou-me. Levou-me a ver os quadros e fez-me revelar a minha ignorância. Depois perguntou-me acerca das molduras. Molduras? Eu queria lá saber de molduras! Disse-me para aprender a escrever à máquina e pôs-me na rua.

 

Estava a hipnotizar Falcón, fixando-o com um olhar implacável. O punho estava cerrado com força no braço da cadeira, tal como no filme.

 

Estudei história de arte. Não academicamente... não tinha dinheiro para isso. E aperfeiçoei-me nessa área, nos tempos livres. Fui conhecer emolduradores. Conheci artistas, desconhecidos mas que sabiam do que falavam. Trabalhei numa loja que vendia materiais para belas-artes. Aprendi tudo. Fui conhecendo artistas mais consagrados... e foi como consegui o lugar na galeria. O dono não se lembrava de mim. Enquanto falávamos, Manolo Rivera entrou... conhece?

 

- Não pessoalmente.

 

- Bem, ele entrou, beijou-me e disse hola; e o galerista contratou-me no mesmo instante. Deu-me um enorme prazer dar-lhe a volta.

 

- O seu marido sabia alguma coisa disto?

 

- O senhor é o único a saber, inspector jefe. A intimidade é mais fácil com aqueles com quem não partilhamos a cama. E... acho que nós funcionamos no mesmo comprimento de onda, não é, don Javier?

 

Falcón franziu-se, inseguro sobre para onde ela o estava a querer levar.

 

- Parece que estamos a ver de dentro, mas não estamos. Estamos de fora a olhar para dentro, como o seu pai.

 

- Mas não como o seu marido - disse ele, tentando mudar o assunto.

 

- Raúl? O Raúl estava perdido. Se era aquilo o que estava a ver quando estava com a puta, o que é que isto lhe diz sobre ele?

 

- O Ramírez diz que era culpa.

 

- O Ramírez não é tão estúpido como parece - disse ela - ... apenas macho.

 

- Acha que o seu marido não sabia que era a senhora?

 

- Não quero acreditar que soubesse. O meu nome não constava na ficha.

 

- No entanto, ele viu as semelhanças - disse ele e ela meneou a cabeça. - Acha que, para o Raúl, ver alguém parecido com a primeira mulher...

 

- ... agindo como uma puta - acrescentou ela, por ele.

 

- ... pudesse aliviar-lhe os sentimentos de culpa?

 

Ela encolheu os ombros, pôs-se de pé, alisou a saia e disse que tinha de ir tratar do almoço.

 

Ele voltou ao Edificio de los Juzgados, num dia que tinha voltado a pôr-se cinzento, com as folhas das palmeiras a estalarem ao vento suave, enquanto as nuvens se agrupavam. Ramírez estava à espera dele fora do edifício, com uma pasta volumosa debaixo do braço. Passaram pelos seguranças. Tirou uma folha da pasta: o inventário dos bens de Raúl Jiménez no armazém das Mudanzas Triana.

 

Enquanto subia para o gabinete do juez Calderón, passou os olhos pelo inventário, que incluía um conjunto completo de filmagem doméstica, uma câmara de 8 mm, caixas de filmes, projector e ecrã. O juez estava à espera deles, de pé atrás da secretária, com as mãos colocadas como se estivesse a pensar em empurrá-los directamente para o átrio.

 

Terça-feira, 17 de Abril de 2001, Edificio de los Juzgados, Sevilha

 

Falcón e Ramírez desligaram os telemóveis e sentaram-se em frente de Calderón, que manteve a sua pose profissional, até estarem confortavelmente instalados. Sentou-se vagarosamente, como se estivesse a fazer um enorme esforço para conter a fúria.

 

- Digam - disse e colocou os dedos em armação gótica. - Comecemos pelos dados mais recentes do principal suspeito.

 

- Tivemos um desenvolvimento significativo a esse respeito - disse Falcón; e Ramírez, em sintonia, retirou da pasta as duas ampliações retocadas do suspeito assassino e estendeu-as a Calderón. - Estamos em crer que se trata do nosso assassino.

 

Os olhos de Calderón abriram-se quando as duas folhas lhe chegaram por cima da mesa, mas recuperaram a severidade quando viu que nenhuma das fotografias era conclusiva. Falcón discorria sobre a forma como tinham obtido a imagem. A voz parecia desligada do corpo, como se se tivesse tornado um gerador de palavras robótico, não humano. O cansaço que lhe ia até à medula estava a afastá-lo de si próprio. Saíram-lhe mais frases da boca: «... que se crê ser do sexo masculino, na faixa etária dos vinte aos quarenta anos...», «... desenvolvimento recente...», «... uma cassete pornográfica...», «... confundiu a nossa percepção do principal suspeito...». Parou apenas quando Calderón levantou a mão e leu o relatório sobre o filme pornográfico. Baixou outra vez a mão. A fita de Falcón arrancou outra vez e perguntou-se quantas palavras um ser

 

humano expressava ao longo da vida. «A prostituta Eloisa Gómez...»,«... desaparecida desde a noite da passada sexta-feira...», «... foi estabelecido contacto...», «telemóvel roubado...», «... teme-se que tenha sido assassinada...»

 

Tudo aquilo tão distante no tempo e tão recente, pensou. E a investigaçãosobre a vida privada de Raúl Jiménez - o rapto do filho, o suicídio da mulher, a loucura da filha, a neurose do outro filho -, passada seguramente num século diferente. Tudo, hoje, remete para o século passado. Uma grande fatia da história vai sendo deixada à deriva, para se poder começar uma nova acumulação de disparates sem referências...

 

- Inspector jefe - disse Calderón -, a sua especulação sobre história não é relevante para esta investigação.

 

- Não é? - disse ele e, com um medo súbito de ter sido apanhado a dizer o que não queria, veio-lhe o que esperava fosse uma inspiração. - O motivo é sempre histórico, a menos que seja psicótico. A questão é: até onde devemos recuar? Ao mês passado, quando Raúl Jiménez tentou vender o negócio de restauração a Joaquín López? À última década, em que presidiu à Comissão de Construção da Expo’92? Ou há trinta e seis anos, quando o filho foi raptado?

 

- Vamos concentrar-nos no que temos diante de nós - disse Calderón.

 

- O senhor é um inspector jefe com cinco homens sob as suas ordens; há um limite para o que pode fazer com esses recursos. Seguiu as pistas disponíveis. Teve alguns resultados: essa imagem, por exemplo. Mas o mais importante é a aparente audácia do assassino e a sua propensão para comunicar consigo. Como disse, enquanto for destemido, vai fazendo erros, o que, no caso do funeral, lhe ia sendo fatal. Anda a mandar-lhe coisas. Fala consigo.

 

- Em face da reacção de Consuelo Jiménez ao filme pornográfico, está a propor que abandonemos o nosso suspeito principal? - perguntou Ramírez.

 

- E que fiquemos à espera que o assassino fale connosco?

 

- Não, inspector. Consuelo Jiménez objectiva-nos a investigação. É tudo o que temos. Pensamos que a vítima não conhecia o assassino. Neste momento, há duas pessoas com motivos plausíveis: Joaquín López da cadeia Cinco Bellotas, cujo motivo é muito ténue; e Consuelo Jiménez, cujo motivo é um clássico, quase um estereótipo. Dada a sua reacção ao vídeo, tal como a descreveu o inspector jefe, parece agora menos provável, mas isto não a retira completamente da nossa mira. Já fez o bastante para pensarmos que seria capaz, pelo menos, de ser impiedosa. Parece ter ficado bastante decepcionada com os interesses sexuais do marido e a infidelidade manifestada nos negócios. Ainda não fez o bastante para pensarmos que não teria sido capaz de contratar alguém para levar a cabo esta tarefa macabra. E, se o contratou e ele agora matou a cúmplice, pode estar a revelar-se uma má escolha, por ter tomado o freio nos dentes.

 

- Acha que devíamos tentar contactar com ele? - perguntou Falcón.

 

E o que íamos nós dizer a esse tío? - retorquiu Ramírez.

 

- Vamos traçar o perfil dele... agora - disse Calderón.

 

- Já disse que ele está confiante e gosta de brincar - disse Falcón. - Gostaria de acrescentar que é criativo. Interessa-se por cinema: a ideia do olho, ver, visão. Está interessado na maneira como encaramos as coisas. A clareza com que as vemos ou não vemos... a lição de ver.

 

- Vai haver mais dessas - disse Calderón.

 

- Também está interessado em saber como as pessoas se apresentam ao mundo e até que ponto as suas vidas secretas e, possivelmente, a sua história secreta estão em contradição com isso.

 

- Ele faz pesquisa - disse Ramírez -, filmou a Família Jiménez, descobriu a alteração da mudança nas Mudanzas Triana.

 

- Tem de ter charme, talvez seja bem-parecido e deve manifestar compreensão para com os desafortunados do mundo, para ter sido capaz de persuadir Eloisa Gómez a ser sua cúmplice - disse Falcón. - Uma mulher como ela dispensa visitas da polícia e devia saber que as ia ter, mesmo que ele lhe tivesse dito que queria apenas roubar meia dúzia de coisas.

 

- O que é que ele faz? - perguntou Calderón. - Tem de ter dinheiro a vir-lhe de algum lado. Tem acesso a uma câmara e equipamento de computador e de vídeo.

 

- Foi a Madrid meter o vídeo pornográfico no correio - disse Ramírez.

- Não ia deixar isso nas mãos de outra pessoa qualquer. Tem tempo.

 

- Qualquer obcecado tem tempo - disse Falcón. - Pode trabalhar na indústria cinematográfica, o que lhe dava acesso ao equipamento e, se trabalhar como independente, tem tempo e dinheiro.

 

- O médico forense disse que ele revelava algumas aptidões em matéria de cirurgia.

 

- Há muita gente com jeito de mãos - comentou Calderón. - Disse que ele está obcecado, inspector jefe.

 

- Da segunda vez que me telefonou, deixou claro que tinha uma história para contar e que o faria a seu modo. Havia raiva e talvez azedume.

 

- Portanto, podíamos instabilizá-lo se interferíssemos - concluiu Calderón. - Podíamos forçar um erro, fazendo-o zangar-se mais.

 

- Sabe o que é que as pessoas criativas detestam acima de tudo? Ser criticadas por gente que acham que não merece julgá-las. Acredite em mim, que eu sei... Vi a raiva do meu pai.

 

- Mas o trabalho dele... - disse Ramírez. - Este trabalho... o que é que se pode dizer a esse propósito?

 

- Podíamos falar-lhe dos seus erros - disse Falcón. - Falar-lhe do trapo do clorofórmio, de ter sido visto no cemitério... Da sua falta de profissionalismo.

 

Calderón concordou. Falcón pegou no telemóvel com as mãos húmidas. Tinha duas mensagens. A primeira era escrita, e abriu-a instintivamente, porque raramente lhas mandavam.

 

- Antecipou-se-nos - disse e passou o telemóvel a Calderón. A mensagem era uma charada sob a forma de poema.

 

Quando su amor es ciego

No arde más su fuego.

Jamás abrirá los ojos

hablará con los locos.

En paz yacen sus hombros

Donde se agitan las sombras.

Ahora ella duerme en la oscuridad!

Con su fiel amante de la celebridad.

 

O amante cegou e o fogo deixou de arder. Nunca mais abrirá os olhos nem falará com loucos. Os seus ombros jazem em paz onde as sombras se movem. Agora, dorme na escuridão com o seu fiel amante de celebridade.

 

- Pode dizer-lhe que a poesia dele é uma merda, isso deve irritá-lo - disse Calderón, devolvendo o telemóvel.

 

- Ele matou-a - murmurou Falcón. - E está a dizer-nos que pôs o corpo no jazigo dos Jiménez, no cemitério de San Fernando.

 

- Telefone-lhe - disse Calderón. - Diga-lhe.

 

Falcón procurou o número de Eloisa Gómez na memória do telemóvel e marcou-o. Não obteve resposta. Os três homens abandonaram o edifício, entraram no carro de Falcón e acompanharam o rio, até ao cemitério. Correram pela alameda de ciprestes acima até ao Jesús de la Pasión, com Falcón a tentar o número de Eloisa Gómez durante todo o percurso. Quando se aproximaram do jazigo, ouviram um telemóvel a tocar lá dentro. Falcón desligou e o som parou.

 

A porta do jazigo abriu-se com um empurrão. O fedor indicava que a putrefacção já tinha começado. Eloisa Gómez estava deitada de barriga para o ar na prateleira por debaixo do caixão de Raúl Jiménez. Tinha o telemóvel sobre o estômago e, entalado nele, um envelope em que estava escrito: «Lição de ver nº 2.» A saia estava amarrotada e subida, mostrando roupa interior preta e um cinto de ligas com apenas uma meia. A outra perna estava nua.

 

A cabeça dela ficava na parte escura do pequeno mausoléu. Falcón tirou uma pilha de bolso e passou a luz por cima do corpo. Os braços estavam cruzados sobre o peito, cada mão decorosamente tapando um seio. No pescoço, tinha um vergão ulcerado e uma nódoa negra profunda. A cara mantinha a maquilhagem da sua actividade. Por cima de cada pálpebra, estava uma moeda; e pela maneira como as moedas se afundavam nas covas, podia garantir que lhe tinham tirado os olhos. Isso fê-lo dar um salto para trás, batendo no caixão da mulher do falecido e a lanterna caiu-lhe da mão. Saiu dali caminhando de lado, desceu os degraus vacilando e agitando-se.

 

Ramírez estava a telefonar para a sala de ocorrências da Jefatura, dizendo-lhes para mandarem um carro-patrulha e a Policia Científica, mas para não se preocuparem com o juez de guardia, porque o juez de instrucción já estava presente.

 

- Como está aquilo lá dentro? - perguntou Calderón, ao ver o horror estampado na cara de Falcón.

 

- Está morta e tiraram-lhe os olhos.

 

- Joder - exclamou Calderón, visivelmente chocado.

 

- A lição de ver número dois está debaixo do telemóvel, pousada sobre a barriga dela. Vamos ter de esperar que cheguem os peritos de investigação criminal, antes de prosseguirmos.

 

Falcón afastou-se, respirando fundo. Fez uma avaliação rápida em torno do jazigo e voltou para junto de Calderón.

 

- Estivemos a falar da criatividade deste tipo. Isto cheira a improviso. Por algum motivo, não me parece que fizesse parte do plano. É só para nos mostrar como é esperto. Acho que é importante para ele que o saibamos.

 

- Mas se ela era sua cúmplice, ele sabia que ia ter de lhe tratar do pêlo - ponderou Calderón.

 

- Assim? Sei que isto parece ridículo dito assim, mas sabe o que custa trazer um corpo para o cemitério? Não se pode entrar com ele às costas. Olhe para estes muros. Os portões ficam fechados à noite. É uma operação difícil. Se ela não era sua cúmplice, ele deu-se ao trabalho de a apanhar, matá-la, livrar-se do corpo desta forma rebuscada e... como acho que vamos constatar... introduzi-la no seu tema.

 

- O seu tema?

 

- Ver, visão, ilusão, realidade.

 

- Acha que ele está a actuar sozinho?

 

- Ainda tenho algumas dúvidas acerca da Consuelo Jiménez, mas respeito o que disse acerca de objectivar nela a investigação, porque, sem isso, ficamos a navegar em mar aberto. O meu instinto diz-me que ele actua sozinho; mas há uma possibilidade remota de que tenha sido contratado por Consuelo Jiménez, tenha cumprido o trabalho e se tenha entusiasmado com la obra. E estou a falar da sua Obra. Acho que isto é como uma obra de arte, para ele.

 

- Então agora acha que ele é um artista?

 

- Ele acha que é um artista, com as suas lições de ver e a sua poesia, e mais o «tenho uma história para contar».

 

- Se ela não era sua cúmplice - disse Calderón - e apenas figurava no filme dele no apartamento, e se ele tivesse decidido dar cabo dela, como é que a ia encontrar?

 

- As raparigas da Alameda disseram que Raúl Jiménez telefonou duas vezes, porque a Eloisa Gómez não estava lá da primeira vez e ele estava especificamente interessado nela. Portanto, o assassino, se estava no apartamento nessa altura, teria ouvido o nome dela. Roubou o telemóvel do Raúl Jiménez. Tinha o número dela. Mas... isso é interessante. Há um verso no poema que nos mandou: «Donde se agitan las sombras.» Onde as sombras se movem. Isso era uma frase da Eloisa: era com isso que raparigas como ela tinham de se preocupar.

 

- Então ele falou com ela - comentou Calderón. - Ele criou uma relação qualquer com ela.

 

- E isso é invulgar entre uma prostituta e um cliente.

 

- Então ele conhecia-a mesmo.

 

- Se ela se encontrasse com alguém em privado, espanta-me que as colegas não soubessem disso - disse Falcón. - Mas também... acho que conduzimos mal o primeiro interrogatório que lhe fizemos. E somos polícias, elas não gostam de nós. Não sentem propensão para falar connosco.

 

- Acha, inspector jefe - disse Calderón, quase solene - que temos um assassino em série entre mãos?

 

- Temos um assassino múltiplo e, no assassínio de Eloisa Gómez, acho que se tratou de algo quase aleatório, embora, como disse, me pareça que vamos constatar que ela se tornou parte do tema dele e, portanto, depende de como se defina aleatório. O planeamento e a motivação que levaram ao assassínio de Raúl Jiménez estavam ausentes neste. No outro, tínhamos lógica, método e técnica; agora, temos inspiração pura.

 

- Então, acha que ele vai voltar a matar?

 

- Sim... mas acho que não vai ser aleatório. Acho que vai enquadrar-se na estrutura da sua obra. E havia algo na Eloisa Gómez que se encaixava. Ela disse qualquer coisa, para além de donde se agitan las sombras, que encaixou na estrutura retorcida da mente do criminoso.

 

- Se virmos bem, estas raparigas fazem pela vida em lugares escuros e perigosos. Vêem diariamente aspectos da natureza humana que raramente se cruzam no caminho das pessoas normais. Têm de ter olho vivo para sobreviverem a ligações por vezes assustadoras. Muitos assassinos procuram prostitutas. Para alguns homens, estas raparigas apenas fazem ressaltar o que há de mais fraco neles e isso enfurece-os. Raúl Jiménez parecia um homem inofensivo e rico, com pequenos vícios. Só nós sabemos que havia um circuito muito perverso na sua cabeça.

 

- Bem, o instinto dela funcionou com ele - disse Falcón. - Mas falhou retumbantemente com o assassino. Ele penetrou na cabeça dela. Tocou-a. Ela falou com ele. As prostitutas sobrevivem com os clientes mantendo a distância. A intimidade é fatal.

 

- Eis um mundo em que não gostaríamos de viver... onde a intimidade é fatal - disse Calderón; e Falcón, que não tinha feito uma amizade em trabalho desde que tinha estado em Barcelona, percebeu que gostava dele.

 

Um carro-patrulha subia vagarosamente pela alameda principal do cemitério, com as luzes azuis a piscarem por entre o granito escuro e o mármore branco. Calderón acendeu um cigarro e fumou-o com desagrado. Falcón pegou no telemóvel e consultou a segunda mensagem, que tinha esquecido com a excitação da primeira. Era o Dr. Fernando Valera, dizendo que lhe tinha marcado uma consulta num psicólogo e a dar-lhe um endereço em Tabladilla.

 

Felipe e Jorge, os mesmos peritos do assassínio de Raúl Jiménez, apareceram e, juntos, ficaram à espera do médico forense. Chegou alguns minutos depois; era uma mulher com cerca de trinta anos, de longos cabelos negros, enfiados dentro de uma touca branca de plástico. A sua inspecção ao corpo levou menos de um quarto de hora. Saiu do jazigo, passou naturalmente a lanterna que Falcón tinha deixado cair a um dos polícias e fez o relatório ao juez Calderón. Fixou a hora da morte na madrugada de sábado e, como o rigor mortis já se tinha instalado completamente, adiantou que o corpo já ali se encontraria desde o fim-de-semana. A causa da morte foi estrangulamento e, dadas as características da marca ulcerada no pescoço, teria sido provavelmente feita com a meia desaparecida. A profundidade do vergão na frente do pescoço apontava para que o assassino a tivesse abordado por trás, utilizando o peso da rapariga para a matar. Não se sentia habilitada a tecer comentários sobre os olhos, antes de levarem a rapariga para o Instituto.

 

Felipe e Jorge avançaram, procuraram impressões digitais no telemóvel e no envelope, que estavam limpos. Abriram o envelope, verificaram as impressões digitais no cartão que continha, também limpo. Entregaram-no a Falcón, que ergueu as sobrancelhas.

 

Por quê tienen que morir aquellos a quienes les encanta el amor?

 

Por que têm de morrer aqueles que se encantam com o amor?

 

E no verso, estava a resposta:

 

Porque tienen el don de la vista perfecta.

 

Porque têm o dom da visão perfeita.

 

Falcón leu em voz alta e enfiou tudo no saco de prova. A médica forense conferenciou com Calderón e com a secretária, que tomou notas.

 

Ramírez repetiu a lição de ver.

 

- Não percebo o que quer dizer. Percebo o que diz, mas... sabe o que isto significa, inspector jefe?

 

- Bem... talvez seja irónico - respondeu Falcón. - Uma prostituta não se encanta com o amor.

 

Mudou de opinião mal disse aquilo. Veio-lhe à ideia o panda de olhar melancólico com o seu abraço hirto, no quarto de Eloisa Gómez, acompanhado do pensamento de que o assassino poderia ter chegado bastante longe na intimidade com ela.    

 

- E o dom da vista perfeita?

 

- Talvez, como disse, inspector jefe - disse Calderón, reentrando na conversa - estas raparigas vejam as coisas com clareza.

 

- A meia - disse Falcón. - A meia desemparelhada...      

 

- Ele provavelmente deu-lhe clorofórmio para lha tirar - disse Ramírez.

 

- Sim, provavelmente foi o que aconteceu - disse Falcón, desapontado pela banalidade evidenciada.

 

Estava a imaginar um contacto entre o assassino e Eloisa Gómez, que podia ter chegado a alguma intimidade, e que, com a aproximação do contacto sexual e tudo o que isso acarreta de fragilização psicológica, a verdadeira natureza do assassino se tivesse manifestado.

 

- Onde é que ela foi assassinada? - lançou Calderón. - Tem de haver um local, não é?

 

- E teve de ter um transporte, também - disse Ramírez.

 

- Ou podem ter vindo até aqui juntos e depois ele tê-la assassinado e escondido o corpo. Tem de ser um sítio com grande quantidade de lixo de jardim, por aqui - disse Falcón.

 

Mandou Ramírez pedir uma fotografia da rapariga e levá-la ao portero, a ver se ele a reconhecia.

 

- Vamos ter de passar revista ao cemitério, também.

 

Ramírez falou pelo telemóvel e relanceou os hectares de cruzes e jazigos que se espalhavam em todas as direcções, até aos distantes ciprestes e palmeiras, próximo dos muros do cemitério. Falcón olhou por cima dos arranjos de flores garridos, dos nomes intermináveis, das fileiras de mortos, na direcção longínqua do céu azul e dos altos cirros.

 

Uma ambulância entrou na avenida principal a uma velocidade respeitosa; o pára-brisas branco dava-lhe um ar desocupado e impessoal.

 

- Vou falar com o comisario Lobo, para destacar alguns homens para revistarmos o cemitério - disse Falcón.

 

Ramírez acenou com a cabeça, tirou com os lábios um cigarro do maço e acendeu-o.

 

- Os olhos - disse Calderón. - Acha que ele também retirou os olhos aqui?

 

- Sei de fonte segura (um marido ciumento que engavetei há alguns anos em Barcelona) que não é muito difícil fazer isso - disse Falcón. - Ele fê-lo à mulher, que tinha um romance. Disse que eles saltaram sob a pressão dos polegares como dois ovos de pássaro.

 

Falcón estremeceu ao relembrar a história, e os peritos de investigação criminal apareceram a dar o seu relatório.

 

- Matou-a fora do jazigo e arrastou-a para aqui - disse Felipe. - Era muito apertado para a carregar para dentro, por isso teve de arrastá-la pelos degraus acima e erguê-la lá dentro. A saia dela está toda levantada atrás; a meia que sobrou está toda desmalhada e a parte de trás da perna nua esfolada. Encontrámos inúmeras fibras nas prateleiras, onde o casaco dele roçou; mas não há sangue, nem saliva, nem esperma. Também não há pegadas identificáveis. No entanto, encontrámos isto no cabelo da vítima, que pode ajudar a descobrir o local do crime...

 

Jorge ergueu um saco contendo pétalas de rosa e crisântemo, relva e folhas.

 

- Detritos de jardim - disse Felipe.

 

Os peritos foram-se embora. Calderón assinou o auto de levantamiento del cadáver. Os homens da ambulância meteram o corpo num saco, correram o fecho-éclair e levaram-no na maca. A ambulância inverteu a marcha, do Jesús de la Pasión para a avenida principal e, com as luzes a piscar, foi captando olhares surpreendidos das pessoas dispersas pelas campas, espantadas por vê-la num sítio daqueles. Lobo cedeu a Falcón uma brigada de quinze homens, para fazerem a busca ao cemitério. Calderón foi ter com ele.

 

- Este verso: «onde as sombras se movem». Se for disso que se tem medo, vai-se para um cemitério... com qualquer um, ainda para mais um cliente? Não faz sentido.

 

- A menos que se avalie a dificuldade de trazer um cadáver por cima daqueles muros - disse Falcón. - Acho que ele se fez muito chegado a ela... o suficiente para lhe abrir a porta do apartamento de Jiménez e para ir com ele a um cemitério.

 

- A rapariga foi assassinada no sábado - disse Ramírez, regressando da sua conversa ao telemóvel - e sabemos que o assassino voltou cá nesse dia, porque foi visto no funeral.

 

- Talvez não soubesse onde ficava o jazigo dos Jiménez - disse Falcón -, mas estava a filmar, portanto tinha uma dupla razão para estar aqui.

 

- As aparas de relva - disse Calderón.

 

- Se a matou aqui, escondeu-a debaixo de aparas de relva, provavelmente na presunção de que ninguém removeria os detritos da jardinagem ao fim-de-semana.

 

Se a tivesse matado noutro lado e carregado o corpo por cima do muro, teria tido de a trazer para cá de carro e não havia de querer deixá-lo estacionado do lado de fora dos muros do cemitério por muito tempo.

 

- Aquele assomo de inspiração de que falou deu-lhe montes de trabalho comentou Calderón.

 

- É importante para ele, do ponto de vista temático, e quer mostrar-nos os seus talentos - disse Falcón.

 

Calderón voltou para o Edificio de los Juzgados de táxi. Falcón e Ramírez mandaram as pessoas embora e fecharam o cemitério o resto do dia. Lobo apareceu com mais doze homens e, pelas seis da tarde, tinham percorrido todo o cemitério. Encontraram uma meia preta pendurada no punho da espada partida da estátua de bronze do torero Francisco Rivera. Foi encontrada grande quantidade de flores mortas, aparas de relva e folhas num contentor, perto de um portão enferrujado, nas traseiras do cemitério. O muro dava para uma fábrica. Tinha um caminho estreito, com ervas altas em todo o percurso. Encostadas ao muro, entre a fábrica e o cemitério, estavam algumas velhas portas de metal e uma escada, do género das utilizadas no cemitério para subir aos blocos dos ossários mais altos. A erva tinha sido pisada. Esse caminho só era visível aos seguranças que patrulhavam a zona industrial se fossem até lá de propósito e a pé. O contentor estava encostado ao muro. Teria sido possível ao assassino erguer a pequena Eloisa Gómez, passá-la por cima do muro e metê-la dentro do contentor.

 

- É a segunda vez que nos faz isto - discorreu Falcón.

 

- Confundir-nos em relação ao cenário do crime? - perguntou Ramírez.

 

- Sim, é um dos seus talentos... atrasar todo o processo - disse Falcón.

 

- Temos sempre o dobro do trabalho - disse Ramírez.

 

- Era uma coisa que o meu pai costumava dizer a respeito dos génios: fazem tudo à volta deles parecer muito lento.

 

Pelas 18. h30, Falcón e Ramírez estavam na Alameda, mas não encontraram ninguém do grupo de Eloisa na praça. Foram ao quarto dela, na calle Joaquín Costa. Falcón bateu à porta da gorda que tinha a chave do quarto de Eloisa. Veio à porta com um roupão de turco azul e pantufas felpudas cor-de-rosa. Os olhos estavam inchados do sono, mas despertou imediatamente, quando viu os dois polícias. Falcón pediu-lhe a chave e disse-lhe para começar a pensar sobre a última vez que tinha visto a amiga e para pôr as outras raparigas a fazerem o mesmo. Ela não precisou de perguntar o que tinha acontecido e entregou-lhe a chave.

 

A porta abriu-se directamente sobre o panda de ar apatetado. Os dois homens olharam em volta para os despojos de uma vida insignificante e dura. Ramírez foi meter o nariz no bricabraque que estava no toucador.

 

- O que é que estamos aqui a fazer? - perguntou.

 

- Só a ver.

 

- Acha que ele esteve aqui?

 

- Era demasiado arriscado - disse Falcón. - Precisamos da morada e número de telefone da irmã. O panda é para a sobrinha.

 

Ramírez olhou do panda para o chefe e teve dele uma imagem igualmente perdida e patética, inferiorizada e ausente.

 

- Ganhei um destes, na Feria do ano passado - disse Ramírez, acenando para o convidado silencioso. - A minha filha adora-o.

 

- É estranho como os brinquedos fofos despertam esse instinto - disse Falcón.

 

Ramírez recuou perante um potencial sinal de intimidade.

 

- Não tinha uma vista tão perfeita como isso - disse Ramírez, olhando para um par de lentes de contacto sobre a mesa-de-cabeceira.

 

- Ela já o conhecia - disse Falcón. - Tenho a certeza. Todas aquelas filmagens para realizar o La Familia Jiménez: o assassino viu-o ir buscar repetidamente a mesma rapariga. Deve ter querido saber porquê.

 

- Se calhar ela fazia o melhor broche da cidade - disse Ramírez, rudemente.

 

- Tem de haver uma razão.

 

- Ela parecia muito nova - disse Ramírez. - Talvez ele gostasse disso.

 

- O filho diz que ele se apaixonou pela primeira mulher quando ela tinha treze anos.

 

- Não importa, inspector jefe - rematou Ramírez. - São tudo conjecturas.

 

- Que mais temos nós para nos estruturar as ideias? - perguntou Falcón. - Não precisamos de mais pistas, com o rasto que ele vai deixando.

 

- Ainda temos um suspeito principal, de acordo com o juez Calderón.

 

- Não me esqueci dela, inspector.

 

- Se ela contratou alguém e soltou um louco, pode já ter percebido que também não está nada segura - disse Ramírez. - Continuo a pensar que devemos apertar com ela.

 

As raparigas do grupo de Eloisa passaram em fila pela porta, a caminho do quarto da gorda. Ramírez encontrou a agenda de Eloisa. Voltaram à entrada do prédio, onde as raparigas agora se amontoavam com lassidão num espaço cheio de fumo.

 

Falcón relatou-lhes o ocorrido. Só se ouvia o estalido de isqueiros baratos e a inalação de fumo. Perguntou se havia alguém com quem Eloisa se encontrasse fora do trabalho e houve algumas risadas de escárnio. Insistiu para que pensassem no assunto e todas disseram que não valia a pena. Não havia mais ninguém para além da irmã, em Cádis. Estudou-lhes as expressões. Tinham todas o ar de refugiadas. Refugiadas da vida, entaladas nos limites da civilização, afastadas do conforto. Disse-lhes que podiam ir-se embora. A gorda ficou.

 

- Havia alguém - disse, depois de saírem todas. - Não era um habitual, mas viu-o mais de uma vez. Disse-me que ele era diferente.

 

- Por que é que não disse isso antes? - perguntou Falcón.

 

- Porque pensei que ela tinha cavado. Foi o que ela disse que ia fazer.

 

- Comece do princípio - disse Falcón.

 

- Ela disse que ele não queria ter relações com ela. Só queria conversar.

 

- Um desses - disse Ramírez; e Falcón mandou-o calar com o olhar.

 

- Ele disse-lhe que era escritor. Estava a fazer uma coisa qualquer para um filme.

 

- Sobre que é que falavam?

 

- Ele perguntava-lhe tudo sobre a vida dela. Não havia pormenor em que ele não estivesse interessado. E especialmente aquilo a que chamava «ultrapassar limites».

 

- Sabe o que queria dizer com isso?

 

- A primeira vez que teve relações. A primeira vez que teve relações por dinheiro. A primeira vez que permitiu que lhe fizessem certas coisas. A primeira vez que ficou grávida. O primeiro aborto. A primeira vez que lhe bateram. A primeira vez que um homem lhe apontou uma faca. A primeira vez que um homem lhe apontou uma arma... a cortou. Esses limites.

 

- E apenas falavam?

 

- Ele pagava-lhe por sexo, mas só falavam. E para o fim, só falavam.

 

- Ela falou do aspecto dele? - perguntou Falcón. - De onde era? Como falava? Tinha nome?

 

- Ela chamava-lhe Sérgio.

 

- Era com ele que ela ia ter na noite de sexta-feira?

 

Encolheu os ombros.

 

- Alguma vez o viu?

 

Abanou a cabeça.

 

- Ela deve tê-lo descrito.

 

- Nós aqui temos cuidado com o que contamos umas às outras... pode-se virar contra nós - disse ela. - Só me disse que era guapo. Talvez tivesse dito mais à irmã.

 

- Então acha que, se ia fugir com ele, é porque sentia alguma coisa por ele?    

 

- Ela disse que nunca nenhum homem tinha falado com ela como ele.    

 

- Ele falava de si próprio com ela?

 

- Se o fazia, ela não me disse.

 

- O que é que sabe do Sérgio... para além do nome?

 

- Sei que ele tinha feito uma coisa muito perigosa. Deu esperança à Eloisa.

 

- Esperança? - disse Ramírez, como se isso não pesasse nada para ele.

 

- Olhe à volta - disse a gorda. - Imagine o que a esperança faz a quem vive assim.

 

Falcón e Ramírez regressaram à Jefatura por volta das 20 horas, depois de terem revistado e selado o quarto de Eloisa Gómez. Não encontraram nada. Percorreram os números memorizados no telemóvel recuperado a Eloisa e não encontraram referência nenhuma a um Sérgio. Falcón deixou Ramírez com a papelada, enquanto ia a Tabladilla, para a consulta com o psicólogo.

 

Estacionou do lado oposto ao edifício, e andou para cima e para baixo, consultando as placas no exterior da porta, relutante em dar início às consultas. Assaltou-o uma recordação do pai à procura de mecânicos para lhe afinarem o motor do Jaguar, mesmo quando estava a trabalhar lindamente. Dizia sempre que era «só para o caso de alguma coisa poder estar para se estragar». Loucura. A questão era que Falcón precisava mesmo de afinação, mas o que é que o esperava? Que terrível fio negro sairia das malhas apertadas do seu cérebro? Seria possível desembaraçá-lo? Imaginou-se imbecilizado e de queixo pendente, olhando fixamente para dois enfermeiros de bata branca a enfiarem-lhe os braços numa camisa de forças. Bastava um pequeno golpe para se ficar à deriva em relação ao passado. Já estava a descontrolar-se, percebia isso, a pensar em cirurgias do cérebro quando tudo o que ia fazer era conversar. Esfregou as palmas das mãos suadas uma na outra, entalou o lenço de assoar entre elas e atravessou a rua.

 

Ou as escadas eram intermináveis ou ele as estava a fazer render; e teve de se obrigar a atravessar a porta, no cimo delas. Estava uma rapariga sentada à secretária.

 

- Hola, Sr. Falcón - disse com ar animado, habituada a lidar com mentes dilaceradas. - É a primeira consulta, não é?

 

Tinha cabelo louro e lábios grossos e salientes. Deu-lhe uma ficha para ele preencher. Não lhe pegou. Na parede por detrás da rapariga, estava um quadro do pai do portal da iglesia Omnium Sanctorum. Olhou em redor e deu com outro - uma das suas maiores e menos bem sucedidas paisagens abstractas.

 

- Sr. Falcón - disse a rapariga, agora de pé, com a bainha da saia ao nível da secretária.

 

Sabia que não ia ser capaz de aguentar aquilo. Não ia ser capaz de se sentar diante de alguém e debater a vida e obra do pai, com o homem a meter o nariz na sua cabeça, à procura de rugas ou vincos na textura dos seus pensamentos e a passá-los a ferro. Saiu sem dizer nada. Foi a coisa mais fácil de fazer dos últimos anos. Limitou-se a sair.

 

Desencadeou-se-lhe uma turbulência muito desagradável no peito, mas passou, quando voltou para casa, de janelas fechadas. Foi a pé até ao Instituto Britânico e sentou-se nas filas de trás, ouvindo por metade uma lição sobre o condicional. Sentir-me-ia melhor agora se tivesse ido ao psiquiatra. Estaria a mandar cá para fora a minha loucura, deitado no sofá, se não tivesse perdido a coragem. Ajudaria ter alguém com quem conversar.

 

Olhou em redor, para os alunos. Pedro. Juan. Sérgio. Lola. Sérgio? Os pensamentos adensaram-se e tornaram-se mais estranhos. Sérgio. Podíamos passar a chamar Sérgio àquele louco. Fala. Vê as coisas com clareza. Penetra nelas e dá-lhes a volta. Falou com a Eloisa, deu-lhe esperança e tirou-lhe a vida sem esperança. Por que é que não falo com ele? Ele está a contar-me a sua história, por que é que não lhe conto a minha? Deixá-lo arrancar do meu cérebro estas horríveis criaturas que o povoam.

 

- Javier? - interrogou a professora.    

 

- Desculpe se estava a falar alto.

 

Falcón riu-se para si próprio e escarneceu pela forma como o mundo exterior se revelava agora tão insignificante à vista dos arrojados meandros da sua mente. Poderia não sair deles anos a fio; mas assim que a ideia lhe surgiu, fugiu dela a sete pés. Mergulhou nos mecanismos da língua. Era tão fácil juntar palavras, tão relaxante. A única preocupação era o significado daquilo que escorria das palavras para os espaços entre elas.

 

Juntou-se a alguns estudantes e saiu para beber um copo. Caminharam até ao bar Barbiana, na calle Albareda. Beberam cerveja e comeram tapas - atún encebollado, tortillitas de camarones. Os estudantes não faziam parte da clientela daquele bar que, como estavam a dizer, era muy pijo - de classe alta, provavelmente gente com fincas. Isso até Lola olhar embaraçada para ele e mudarem de conversa, porque pensaram que Falcón também era muy pijo, de fato e gravata.

 

Separaram-se antes de Javier estar preparado para ir para casa. Alguma vez se sentiria preparado para ir para casa, nos dias que corriam? A casa era uma prisão, o quarto uma cela, a cama um catre em que era torturado todas as noites. Andou às voltas pela cidade, postando-se junto de grupos em bares bem iluminados; pousava a sua cerveja no meio das deles, até que davam por ele e o afastavam.

 

Acabou a noite debaixo das palmeiras altaneiras e da escuridão profunda das árvores da borracha, na Plaza del Museo de la Bellas Artes. O botellón está no auge, o ar impregnado de haxixe, com um tilintar de vidros e o rugido cavo de humanos que se divertiam.

 

Excertos dos diários de Francisco Falcón

 

30 de Junho de 1941, Ceuta

 

O Pablito veio ao meu quarto esta tarde, deitou-se na minha cama, enrolou um cigarro no peito e acendeu-o. Tinha uma coisa para me dizer. Percebi que sim, mas fiz de conta que não. Estava a desenhar uma berbere que tinha visto de manhã no mercado. A moleza do Pablito foi-se eriçando na cama. Fumava como uma vaca, sempre a ruminar.

 

«Vamos para a Rússia», disse. «Dar cabo dos Vermelhos. Dar-lhes um chuto no seu próprio território.»

 

Pousei o lápis e virei-me para ele.

 

«O general Orgaz inscreveu-nos como voluntários. Pediram ao coronel Esperanza que formasse um regimento. Vão fazer um batalhão com a Legião, os Regulares e os Flechas, aqui em Ceuta.»

 

É como recordo o sucinto anúncio do Pablito. Banal. Estou tão entediado que me parece bem. Aconteceram tão poucas coisas nos últimos anos, que me esqueci de que tinha este diário. O meu diário está nos meus desenhos. Não estou habituado a escrever. Quatro páginas cobrem dois anos. Não é esse o ritmo da vida? Períodos de mudança, seguidos por longos períodos de habituação à mudança, até nos sentirmos compelidos a mudar outra vez. O tédio é o meu único motivo. Também é, provavelmente, o do Pablito, mas ele reveste-o de anticomunismo retórico. Não sabe rigorosamente nada de comunismo.

 

8 de Julho de 1941, Ceuta

 

Foi uma grande multidão ver-nos largar do porto. O general Orgaz fez um discurso empolgante. Se não o tínhamos suspeitado antes, sabemo-lo agora: somos um instrumento político. (Pareço o Oscar a falar agora?) A farda reflecte um pouco o que se passa em Madrid: usamos o barrete vermelho dos carlistas, a camisa azul da Falange e as calças caqui da Legião. Realistas, fascistas e militares, todos satisfeitos e empenhados.

 

Os alemães estão nos Pirenéus há meses. Correm boatos de que vão mandar um destacamento armado para tomar Gibraltar, o que soa bastante a invasão. Fomos mandados para a Rússia para que os alemães fiquem mais satisfeitos com a Espanha, para parecer que estamos do lado deles. O jornal diz que Estaline é o verdadeiro inimigo, mas não menciona a nossa entrada na guerra. Andam a fazer joguinhos e nós estamos no meio. Tenho um mau pressentimento em relação a esta expedição; mas passados os paredões do porto, acompanha-nos um grupo de golfinhos, que nos escolta quase todo o caminho até Algeciras, o que encaro como um bom presságio.

 

10 de Julho de 1941, Sevilha

 

Alojaram-nos no aquartelamento de Pineda, na ponta sul da cidade. Passámos a noite no centro. Não pagámos uma única bebida. Da última vez que alguns de nós estiveram cá, foi a esquartejar homens nas ruas de Triana. Agora somos heróis, enviados para manter o comunismo afastado. Cinco anos é uma eternidade em matéria de relações humanas.

 

Apesar do calor brutal, gosto de Sevilha. Os bares escuros e frescos. As pessoas de memória curta e uma grande necessidade de expressarem alegria. Acho que é um bom lugar para se viver.

 

18 de Julho de 1941, Grafenwõhr, Alemanha

 

Mudámos de comboio em Hendaia, no sul de França. Os franceses ameaçavam-nos com os punhos e atiravam pedras às carruagens, à nossa passagem.

 

Na nossa primeira paragem na Alemanha, a estação de Karlsruhe estava apinhada de pessoas que nos vitoriavam e que cantavam «Deutschland, Deutschland über alles». Cobriram o comboio de flores. Agora, estamos algures a nordeste de Nuremberga. Tempo cinzento. Os novos recrutas e a maior parte dos guripas já estão deprimidos, com saudades da terra. Nós, os veteranos, estamos deprimidos porque acabaram de nos dizer que a División Azul, como nos chamam, não vai ter veículos automóveis mas cavalos.

 

8 de Agosto de 1941, Grafenwõhr

 

O Pablito está com um olho negro e um lábio fendido. Não gosta mais dos alemães do que dos comunistas, que ainda não encontrou. Os homens, os guripas, gostam de usar as camisas azuis e as boinas vermelhas, em vez do uniforme alemão regulamentar. Estalou uma briga no Rathskeller, na cidade. «Dizem que não sabemos tratar das nossas armas», disse o Pablito. «Mas a verdadeira razão é que lhes estamos a comer as mulheres todas e elas nunca se deram tão bem.» Não sei se alguma vez nos vamos entender com os nossos novos aliados. A comida cheira pior que as latrinas, o tabaco deles parece palha e não há vinho. Enquanto o colonel Esperanza recebia um Studebaker President, foram-nos atribuídos 6000 cavalos da Sérvia. Vai-nos levar dois meses só para treinar os animais; mas vamos avançar para a frente já no final do mês. O Pablito ouviu dizer que vamos marchar sobre Moscovo, mas vejo a maneira como os alemães olham para nós. Valorizam muito a disciplina, a obediência, o comando e o aprumo. A nossa arma secreta é a paixão. Só que é demasiado secreta para eles, que não a vêem. Mas no campo de batalha vão ver a chama que arde dentro de cada guripa. Um grito de «A mi la legión!» e o chão vai levantar-se em peso e os russos vão ter de recuar para a Sibéria.

 

27 de Agosto de 1941, algures na Polónia

 

A nossa reputação junto das mulheres precede-nos. Fomos proibidos de nos metermos com as judias, que se reconhecem pela estrela amarela que têm de usar, ou com as polacas (panienkas). Ouvimos dizer que a 10ª Companhia do 262 tinha marchado com preservativos cheios de ar atados às espingardas, em sinal de protesto.

 

2 de Setembro de 1941, Grodno

 

Primeiros sinais de batalha, na marcha sobre Grodno... os arredores foram arrasados. O centro está em ruínas, que puseram os judeus a limpar. Estão exaustos, porque as rações são mínimas. A atitude do Pablito em relação aos alemães endurece a cada dia que passa. Agora acha-os sinistros. Temos de enrijar à medida que avançamos para a frente. O Pablito apaixonou-se por uma panienka loura, de olhos verdes, chamada Anna.

 

12 de Setembro de 1941, Ozmiana

 

O Studebaker do colonel Esperanza tem sido muito maltratado pelas estradas. Não tarda que esteja a marchar com todos nós. Há dias, apareceu um Mercedes preto e saiu de lá o general Muñoz Grandes, que veio almoçar connosco. O Pablito e os guripas estavam num alvoroço. Ele dá-nos alento, porque é dos poucos comandantes que percebe o que é ser-se soldado raso.

 

16 de Setembro de 1941, Minsk

 

O Pablito diz que há um complexo fora da cidade onde estão os prisioneiros russos. Não lhes dão comida. Os locais atiram tudo o que podem por cima da vedação e são mortos por fazê-lo. O Pablito está contente - a sua panienka apareceu em Minsk. Eu estou contente porque ontem chegou grão e azeite. Já faz frio. Sente-se no ar a frescura do Outono.

 

9 de Outubro de 1941, Novo Sokol’niki

 

Estacámos fora de Velikje Luki - as linhas de caminho-de-ferro foram destruídas pelos resistentes. Vamos à cidade buscar comida e acabamos a comer cavalos mortos assados na brasa, no estaleiro do caminho-de-ferro, cantando e bebendo vodka de batata. O Pablito, cheio de saudades da sua amada Anna, canta muito bem. Flamenco nas estepes.

 

10 de Outubro de 1941, Dno

 

Fizemos transbordo para comboios de outra bitola. Velhas dependuradas de candeeiros de rua. Resistentes. Os guripas chocam-se. «Que guerra é esta?», pergunta um deles, como se não soubesse o que aconteceu no seu próprio país há três anos.

 

Próxima paragem: Novgorod e a frente. A partir de agora, recebemos pré de combate. Os Vermelhos dominam os céus. Os abastecimentos estão escassos. Poucos sobressalentes. Comunistas. Nada do Pablito - não apareceu para a missa da tarde.

 

11 de Outubro de 1941, Dno

 

Vigoram aqui medidas de ocupação, pelo que tive de acompanhar a patrulha alemã numa busca casa-a-casa para encontrar o Pablito. Não o encontrámos. Numa casa, fiquei espantado por ver a Anna, a sua panienka, a trabalhar com alguns civis russos. Não percebo como é que veio parar tão longe. Cá fora, na rua, contei ao sargento alemão e dois homens entraram e arrastaram-na para fora. As outras mulheres começaram a gritar e os alemães bateram-lhes com as coronhas. Forçaram a Anna a ajoelhar-se na rua e perguntaram-lhe pelo Pablito. Negou tudo, mas sabia por que é que a escolheram. O sargento, um bruto colossal, tirou a luva e deu-lhe quatro estaladas monumentais, que lhe deixaram a cabeça pendente como uma boneca estragada. O lenço de cabeça da Anna soltou-se e o cabelo louro apareceu. Os homens murmuraram. O sargento tinha uma cara que parecia blindada. A tarde cinzenta arrefeceu. A temperatura caiu. Mais perguntas, mais negações. Despiram-na toda. Ficou azulada. Soluçou de frio e medo. Torceram-lhe os braços por trás das costas e levantaram-na do chão. Ela gritou. O sargento pediu uma baioneta e passou-lhe a lâmina pelos mamilos retesados e isso quebrou-a. O terror do aço frio. Contou que foi obrigada a conduzir o Pablito para uma armadilha dos resistentes. Deixaram-na voltar a vestir-se. A patrulha levou as mulheres todas. Regressei e fiz o meu relatório ao major Pérez Pérez.

 

12 de Outubro de 1941, Dno

 

Pela manhã, o tenente Martínez ordenou-me que organizasse um pelotão de execução de onze homens. Dois comunistas e a panienka do Pablito foram-nos entregues para os executarmos. Encostámo-los à parede, no pátio de carga. A rapariga não se aguentava em pé e não havia postes para a prender. O tenente Martínez disse aos homens para a segurarem entre eles. Arrumaram-se como para uma fotografia de família. O tenente Martínez recuou até ao pé de nós e gritou: «Carguen!», «Apunten» e, à palavra «Fuego!», ela levantou os olhos. Disparei-lhe na boca.

 

Uma patrulha encontrou o Pablito mais tarde, dependurado por um arame numa árvore. Tinham-no despido completamente, os olhos foram-lhe sacados e os órgãos genitais cortados. Fizemos-lhe uma missa fúnebre, a nossa primeira baixa. Pablito, o anticomunista, que morreu sem dar um tiro.

 

13 de Outubro de 1941, Podbereze

 

Saímos do comboio debaixo de forte fogo de artilharia e reagrupámo-nos a sul da cidade, ao longo do rio Volkov. Há uma floresta cerrada por detrás de nós, cheia de resistentes. Do outro lado do Volkov, estão os russos. Lama espessa por todos os lados, chamada rasputitsa, difícil para uma pessoa se deslocar. Gelo à noite.

 

30 de Outubro de 1941, Sitno

 

Retirámos, depois de uma semana desgraçada e de fortes baixas. Esta guerra é menos compreensível a cada dia que passa. Atacámos Dubrovka há dias. Pensámos flanquear as defesas russas e atacá-los por trás. Assim que voltámos a formar a sul da cidade, fomos atingidos pela artilharia e, ao sairmos do sector, demos com um campo minado. O que é que fazia ali um campo minado? Havia corpos por todos os lados.

 

O García, sem a perna esquerda e a segurar a virilha, gritava: «A mi la legión.’» Cerrámos fileiras e atacámos os russos. Ficámos loucos quando chegámos perto deles e tê-los-íamos trucidado se não fosse estarmos exaustos. O tenente Martínez disse-nos que as unidades russas têm todas oficiais políticos, cuja função é manter a disciplina. Põem minas por trás da linha da frente, para impedir as tropas de retirarem. Com quem estamos nós a lutar? Não são os habitantes locais. Quando fazemos prisioneiros, revelam-se-nos tão úteis para nós como os nossos próprios homens.

 

1 de Novembro de 1941, Sitno

 

Eu sei o que é calor. Eu percebo o calor. Vi o que ele faz aos homens. Vi homens a morrerem por beberem água. Mas frio assim, não sei o que é. A paisagem endureceu à nossa volta. As árvores estão estaladiças com o gelo. O solo por baixo da neve fofa e movediça parece ferro. As nossas botas ressoam nele. Uma picareta não faz nada dele. Temos de usar explosivos para abrirmos buracos. A minha urina transforma-se automaticamente em gelo, mal toca no solo. E os nossos prisioneiros russos dizem que o frio ainda não chegou.

 

8 de Novembro de 1941

 

O Volkov está gelado. É difícil acreditar que o gelo atinja um metro, sólido, e mude completamente a estratégia desta pequena guerra. Os soldados já podem atravessar o rio em pranchas. Tentaram deslocar cavalos também, mas um saiu das pranchas e caiu através do gelo. Na sua aflição, arrancou as rédeas ao homem que o conduzia e que observava os esforços do animal aterrado, a tentar subir dali para fora. É surpreendente o pouco tempo que leva um animal tão grande a sucumbir ao frio. No primeiro instante, as patas traseiras deixaram de mexer. No segundo, as patas da frente ficaram hirtas. À tarde, tinha-se formado gelo em redor do torso e o animal estava completamente congelado, ainda com o terror daquele momento bem vivo nos olhos. Tornou-se um monumento ao horror. Nenhum escultor teria feito melhor, se a tarefa lhe tivesse sido encomendada por algum município louco. Os guripas, novos na frente, não conseguiam tirar os olhos dele. Alguns olhavam para trás, para a margem oeste, percebendo que a civilização ficou para trás deles e que, para lá do Cavalo de Gelo, não estará a esperada glória, a causa apaixonada, mas antes uma visão ensanguentada da câmara mais fria do coração humano.

 

9 de Novembro de 1941

 

Em Nikltkino, deparei com uma cena saída da Idade Média. Um prisioneiro russo com um martelo deslocava-se por entre as fileiras de camaradas mortos, partindo-lhes os dedos, que ainda agarravam as armas. Nenhum deles tinha botas. Tinham sido todas roubadas. Partindo-lhes os dedos e braços e retirando-lhes as armas, era possível tirar-lhes as peles e os casacos forrados. Agora pareço um homem-lobo e adquiri recentemente um gorro de pele de urso. A frente estendeu-se agora de modo a incluir Otonskii e Posad.

 

18 de Novembro de 1941, Dubrovka

 

Os russos contra-atacaram nos limites da nossa nova frente. Posad foi atingida com tudo - morteiros, armamento antitanque e artilharia. Apanhámos com eles no dia seguinte, depois de uma carga intensa dos Vermelhos. Começaram com um retumbante «Urra!» e mais qualquer coisa que, quando chegámos perto, entendemos ser «Ispanskii kaput!». A nossa artilharia abriu brechas nas fileiras inimigas; ceifámos o que restava como se fosse trigo - que é como os russos carregam, sempre erectos, nunca vergados. Talvez achem que não é viril. Reagruparam-se e atingiram-nos de novo durante a noite; o recontro deu-se na planície coberta de neve, sob os clarões da queda lenta dos very lights, com a floresta negra por detrás deles. Irreal. A noite tão silenciosa antes do caos. Atirámos granadas e avançámos com uma carga de baioneta. Os Vermelhos dispersaram. A medida que eles se confundiam na floresta, ouviam-se os novos recrutas, que tinham vivido a sua primeira carga, gritarem atrás deles: «Otro toro! Otro toro!»

 

5 de Dezembro de 1941

 

Estou de regresso à frente, depois de um ferimento me ter atirado para o hospital de campanha. Não quero voltar a ver aquele sítio. Nem o frio conseguia eliminar o fedor; pelo contrário, congelou-mo nas narinas para sempre.

 

O frio atingiu uma nova dimensão: -35° C. Quando os homens morrem de calor, enlouquecem, começam a delirar, com o cérebro em fúria. No frio, uma pessoa apenas se deixa ir. Num instante, está ali, se calhar a dar uma passa num cigarro, e no instante seguinte foi-se. Os homens estão a morrer por congelamento do fluido cerebral, por baixo dos capacetes de aço. Estou reconhecido ao meu gorro de pele. Com a queda das temperaturas, os russos começaram a falar connosco em espanhol, utilizando republicanos para traduzir. Prometem calor, comida e diversão. Dizemos-lhes que podem ir foder as putas das mães deles.

 

28 de Dezembro de 1941

 

Véspera de Natal passada em frio profundo. Os homens recitaram poesias e cantaram canções sobre a Espanha - o calor, os pinheiros, os cozinhados das mães e as mulheres. Os russos são impenitentes e atacaram no dia de Natal. Chegaram-nos em números aterradores. Ouvimos falar dos seus batalhões punitivos. Os indesejáveis políticos são mandados correr contra as nossas armas. Caem três ou quatro fileiras e depois os verdadeiros soldados vêm por cima deles, utilizando os cadáveres como trampolim. Estamos no lugar mais afastado de Deus à face da Terra, quase sem luz do dia e com a morte por todos os lados. Relatos de atrocidades em Udarnik, a norte do nosso sector - foram encontrados guripas pregados ao chão por ganchos de gelo. A nossa fúria esmorece com o frio e a fome.

 

18 de Janeiro de 1942, Novgorod

 

Os russos farejam a nossa fraqueza e, precisamente quando pensamos que está de tal maneira frio que não vamos mexer-nos, atacam. Fomos mandados para Teremets para ajudar os alemães. Tentámos dissuadir infindáveis vagas de russos, utilizando alguns dos nossos velhos truques africanos. Retirámos aos prisioneiros toda a roupa útil, cortámos-lhes os dedos do gatilho, rachámos-lhes o nariz, cortámos-lhes uma orelha e mandámo-los de volta. Não surtiu efeito. No dia seguinte, voltaram a atirar-se a nós com bastões e baionetas. Tive sorte por ter conseguido sair vivo de Teremets e apenas porque fui mandado para a retaguarda por ter partido uma perna.

 

17 de Junho de 1942, Riga

 

Apareceram-me complicações na perna depois de um princípio de pneumonia. Estava demasiado fraco para me deslocar e perdi o regresso do batalhão na Primavera. Voltaram a mexer-me na perna. Apanhei tifo. A ferida não queria sarar. Mal me lembro do que me aconteceu durante cinco meses. Recebi a visita do novo comandante do 269, o tenente-coronel Cabrera, que me pediu para voltar para a frente com a nova formação da «Tia Bernarda», a alcunha da minha unidade. A guerra tem estado a correr melhor para os alemães, ultimamente, e voltaram a controlar todo o território a oeste do Volkov, estando agora a apertar o cerco a Leninegrado.

 

9 de Fevereiro de 1943

 

Um desertor ucraniano apareceu hoje e contou-nos mais do que gostaríamos de saber, acerca do que está a acontecer em Kolpino. Estão a instalar uma grande quantidade de baterias por detrás da cidade, com centenas de camiões a descarregarem munições. O inimigo está a preparar-se para atacar amanhã. Depois de toda esta espera, não acreditámos nele. Mas mostrou-nos a sua roupa interior lavada e foi quanto bastou. Os russos distribuem sempre roupa interior lavada antes de um ataque. Significa que vão morrer, mas com dignidade. Foi por isso que ele desertou. Mas porquê com todo esse poder de fogo por trás dele, viria ter connosco, que estamos à beira de levar com ele? O vodka perturba o cérebro eslavo. Os grandes canhões de Kolpino abriram uma barragem de fogo contra as nossas posições a sul. A infantaria fez explodir os campos minados à frente das linhas deles. A nossa patética artilharia ripostou e os russos utilizaram a psicologia como deve ser... nem se dignaram responder.

 

A noite caiu às cinco da tarde. O frio instalou-se dentro dos nossos ossos. Estamos todos assustados, mas o inevitável provoca a determinação. Os motores dos tanques dos Vermelhos arrancaram em uníssono, com um barulho ensurdecedor. Não pararam a noite inteira, tal a preocupação dos russos com a possibilidade de congelarem.

 

«Amanhã, os touros vão ser corridos», disse um dos nossos sargentos. Saí para ir fazer a ronda às sentinelas. O frio torna-os mais desleixados. Enquanto conversava com os homens, os pinheiros em frente das turfeiras eriçavam-se, com milhares de soldados correndo pela floresta, a tomarem as suas posições para o ataque de amanhã.

 

10 de Fevereiro de 1943

 

Nada do que o desertor ucraniano nos contou nos preparou para isto. As 6h. 45, as armas de Kolpino abriram fogo sobre nós. Mil peças de artilharia dispararam simultaneamente. A devastação, numa questão de minutos, foi tão grande como na sequência de um tremor de terra. Saltaram colinas inteiras, numa erupção semelhante à provocada por pressão vulcânica. Os pinheiros eriçados do gelo incendiaram-se. A neve à nossa volta derretia-se instantaneamente. Posições fortemente fortificadas, atrás de nós, desapareciam engolidas pela terra fumegante. Estávamos isolados. Não havia telefones nem visibilidade: o ar ficou coberto de fumo preto e fedendo a turfa. Agachámo-nos sob uma torrente de terra, pranchas, arame farpado, blocos de gelo e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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