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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CHÁ DE AMOR / Jennifer Donnelly
O CHÁ DE AMOR / Jennifer Donnelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CHÁ DE AMOR

Primeira Parte

 

                     LONDRES, 1888

Uma cidade de sombra e luz, onde os ladrões, as prostitutas e os sonhadores se misturam, onde as crianças brincam nas ruas de pedra de dia e os assassinos atacam de noite, onde as esperanças se confrontam com as verdades mais soturnas.

Nessa atmosfera vertiginosa, embalada pelas águas do Tâmisa, Fiona Finnegan, uma jovem destemida operária de uma fábrica de chá, sonha um dia abrir sua própria loja, junto com seu amado, Joe Bristow.

Como muitos jovens, Fiona e Joe fizeram planos e mais planos enquanto juntam dinheiro para poder compartilhar mais que sonhos: uma vida inteira juntos. Mas o projeto dos namorados sofre um profundo revés quando as ações de um homem brutal tiram de Fiona quase tudo e quase todos. Temendo por sua própria vida, ela é forçada a fugir de Londres para Nova York. Lá, essa mulher indomável tem de enfrentar outras provas terríveis.

Velhos fantasmas, no entanto, não deixam Fiona em paz e, para silenciá-los, ela precisa voltar à Inglaterra de sua infância e de seu grande amor, onde um confronto com seu passado torna-se a chave para o seu futuro.

 

LONDRES, AGOSTO DE 1888

Polly Nichols, uma prostituta de Whitechapel, era profundamente agradecida ao gim. O gim a ajudava. Curava-a. Fazia com que ela se esquecesse da fome e aquecia as juntas. Acalmava a dor dos seus dentes cariados e anestesiava as dores lancinantes que sentia quando urinava. Ela se sentia bem melhor com o gim do que na companhia de qualquer homem com quem já estivera. O gim a deixava calma. Ele a confortava.

Bêbada, cambaleando na escuridão de uma rua, levou a garrafa aos lábios e esvaziou-a. O álcool queimava como fogo. Ela tossiu, deixou a garrafa cair e, suando, viu-a espatifar-se no chão.

Ao longe, o relógio da Christ Church marcava duas da madrugada, com ressonantes badaladas abafadas pela neblina. Polly enterrou a mão no casaco à procura de algumas moedas. Duas horas antes estava sentada na cozinha de um albergue da Thrawl Street, sem nenhum centavo. O senhorio a tinha visto, perguntou pelos quatro pences do pernoite e colocou-a para fora quando viu que ela estava sem dinheiro. Ela esbravejou, gritou e pediu para que guardasse sua cama, garantindo que ele teria o dinheiro do pernoite porque naquele dia ela conseguiria o triplo do valor e o gastara com bebida.

— E agora já tenho o dinheiro, seu bastardo — ela murmurou. — Eu não disse que conseguiria? Pegue a sua grana sebosa e um troco para as botas.

Ela achou o dinheiro e o gim nas calças de um bêbado solitário que vagava pela Whitechapel Road. Ele estava precisando de um pouco de agrado. Aos quarenta e dois anos de idade, o rosto de Polly já não valia tanto. Faltavam-lhe dois dentes da frente e agora seu nariz achatado se parecia mais com o de um boxeador, mas os seios fartos ainda se mantinham firmes e uma olhada neles fez o homem se decidir. Ela insistiu que primeiro queria um trago de gim, sabendo que teria a garganta anestesiada e o nariz erguido, e disfarçaria o fedor de cerveja e cebola que ele exalava. Enquanto bebia, ela desabotoava a bata e, ao mesmo tempo em que ele se apressava em agarrá-la, deslizava a garrafa para o bolso do seu casaco. O homem foi desajeitado e vagaroso e ela deu graças quando finalmente ele se afastou cambaleando.

Meu Deus, não há nada como o gim, ela pensava em seguida, lembrando-se de sua boa sorte com um sorriso. Ter o peso de uma garrafa nas mãos, poder comprimir os lábios contra o gargalo e sentir aquela ruína azulada escorrendo quente e rascante pela garganta. Nada se comparava a isso. A garrafa estava quase cheia. E não precisou pagar um só centavo por ela. O sorriso se dissipou quando ela se viu querendo mais. Bebera o dia inteiro e sabia da miséria que a aguardava quando a embriaguez terminasse. Os vômitos, os tremores e, pior ainda, as coisas que ela via — coisas sombrias e assustadoras que saiam das rachaduras das paredes do albergue.

Polly passou a língua pela palma da mão direita e levou-a ao cabelo. Depois suas mãos escorreram pela bata; seus dedos desajeitados arrumaram o cordão sujo da bata e o amarraram mais acima. Ajeitou a blusa por cima da bata, abotoou-a, saiu trôpega do beco e desceu pela Bucks Row, cantarolando com a voz enrolada pelo gim:

Oh, o azar não se pode prever,

A boa sorte sorri ou não,

Senhor, o melhor que se pode fazer

É pôr os altos e baixos em união...

Na esquina da Buck Row com a Brady Street, ela de repente se deteve. Sua visão ficou turva. Um zumbido baixo, parecido com o bater de asas de um inseto, começou a soar em sua cabeça.

— Os horrores da bebida desabaram em mim — ela gemeu. Ergueu as mãos. Tremiam. Abotoou o casaco até o pescoço e apressou o passo, desesperada por mais gim. A cabeça pesava tanto que ela não viu um homem parado poucos centímetros à frente, até que esbarrou nele. — Por Deus! — ela gritou. — De que buraco você saiu?

— Vamos? — ele disse, olhando-a.

— Não vou, não. Estou péssima agora.Boa noite.

Preparou-se para se afastar, mas foi agarrada pelo braço. Virou-se para o homem, pronta para golpeá-lo com o outro braço, quando seus olhos recaíram na moeda que ele exibia entre os dentes.

— Bem, isso muda as coisas, não é? — ela disse. Aquela moeda, mais o dinheiro que arrecadara, dariam para pagar bebida e cama por três dias. Embora se sentindo doente, ela não podia recusar.

Polly e seu cliente retornaram em silêncio ao lugar de onde ela saíra, passando por casas que caíam aos pedaços e por altos armazéns de tijolos. O homem dava passos largos e ela se via obrigada a trotar para acompanhá-lo. De relance, viu que ele estava ricamente trajado. Quem sabe não teria um bom relógio. Claro que enfiaria a mão em seus bolsos no momento oportuno. Ele parou abruptamente no final da Bucks Row, à entrada do pátio de um estábulo.

— Aqui, não — ela protestou franzindo o nariz. — Vai dar um trabalhão...um pouco mais à frente.

— Vai ser aqui mesmo — ele a empurrou contra uma chapa de metal presa por uma corrente e um cadeado que servia de portão ao estábulo.

O rosto do homem brilhava estranhamente na escuridão, sua palidez era ofuscada pelos olhos gelados e negros. Ao mirá-los, uma onda de náusea tomou-a por inteiro. Ai, meu Jesus, ela implorava em silêncio, não me deixe passar mal. Tentou repelir a náusea respirando o mais fundo que podia. Enquanto respirava, sentia o cheiro dele óleo — doce de Macaçar e alguma coisa a mais... o que era? Chá. Chá de sangue, de todas as coisas.

— Então, vamos fazer logo — ela levantou a saia e o encarou, com um olhar de expectativa.

Agora os olhos do homem brilhavam de maneira sombria, como poças reluzentes de óleo.

— Sua vadia imunda — ele disse.

— Sem palavrões essa noite, está bem! Estou com pressa. Precisa de alguma ajuda? — aproximou-se dele. E foi esbofeteada.

— Achou realmente que podia se esconder de mim?

— Olhe aqui, você está indo... — Polly se pôs a falar, mas nunca conseguiu terminar a frase. Sem mais nem menos, o homem agarrou-a pelo pescoço e bateu-a contra o portão.

— Cai fora — ela gritou enquanto se debatia — Me larga!

Ele apertou-a ainda mais.

— Você nos abandonou — ele disse, com os olhos faiscando de ódio. — Nos trocou pelos ratos.

— Por favor! — ela murmurou roucamente. — Por favor, não me machuque.Não sei nada sobre ratos.Eu juro... Eu...

— Mentirosa.

Polly não viu a faca se aproximando. Não teve tempo de gritar quando foi penetrada na barriga com estocadas fortes. Um débil gemido escapou dos seus lábios enquanto era esfaqueada. Atônita, mirou a lâmina de olhos arregalados, com a boca abrindo-se em um enorme O. Devagar e com cuidado, levou os dedos até o ferimento.Voltaram cor de carmim.

Levantou os olhos para o homem; soltou um grito terrível e selvagem quando olhou dentro da face da loucura. Ele ergueu a faca e cortou sua garganta. Os joelhos de Polly penderam e tudo em volta tornou-se escuro, envolvendo-a, arrastando-a ao longo de uma estranha neblina, uma neblina mais funda que o rio Tamisa e mais negra que a noite londrina que penetrou como redemoinho em sua alma.

 

O AROMA DAS FOLHAS — negras, crocantes, maltadas — de chá indiano era inebriante. Ele emanava do Armazém do Oliver, um grande cais na margem norte do Tâmisa, e flutuava pela Old Stairs, uma escadaria de pedras que liga a margem do rio à pavimentada High Street de Wapping. O aroma de chá predominava sobre os outros odores das docas — o fedor azedo da margem lamacenta, a salinidade do rio e o perfume mesclado de canela, pimenta e noz-moscada que se espalhava pelo armazém das especiarias.

Fiona Finnegan fechou os olhos e inalou profundamente.

— Assam — disse consigo mesma. — O aroma é muito forte para ser um Darjeeling; muito rico para um Dooars.

O Sr. Minton, capataz da Burton, dizia que ela tinha nariz para o chá. Gostava de testá-la, colocando um punhado de folhas embaixo de seu nariz para serem identificadas. Ela sempre acertava.

Um nariz para o chá, talvez. Mãos para isso, com certeza, ela pensou enquanto abria os olhos e inspecionava suas mãos maltratadas pelo trabalho, as juntas e as unhas enegrecidas pelo pó de chá. No seu cabelo. Nas orelhas. Dentro da gola.

Suspirando, espanou a sujeira com a bainha da saia. Desde seis e meia da manhã, quando deixou a cozinha da mãe acesa e saiu para as ruas escuras de Whitechapel, era a primeira chance que tinha de sentar-se.

Chegara na fábrica de chá quinze minutos antes das sete. O Sr. Minton encontrou-a no portão e colocou-a para aprontar as latas de duzentos e cinquenta gramas porque o resto das embaladoras estava para chegar. Os homens da mistura que trabalhavam nos andares superiores da fábrica tinham misturado duas toneladas de Earl Grey; isso precisava ser enlatado até o meio-dia. Cinquenta e cinco moças dispunham de apenas cinco horas para embalar oito mil latas. O que equivalia a dois minutos de trabalho por lata. O Sr. Minton era o único a pensar que dois minutos era tempo demais, e então se colocava atrás de cada moça: apressando-a, cronometrando-a, envergonhando-a. Tudo isso só para ganhar uns poucos segundos no processo de embalagem.

Nos sábados trabalhava-se meio período, e mesmo assim parecia interminável. O Sr. Minton chefiava todas as moças com mão de ferro. Fiona sabia que a culpa não era dele, limitava-se a seguir as ordens do próprio Burton. Ela suspeitava que o patrão odiava tanto dar meio dia de folga aos empregados que os fazia sofrer por conta disso. Nos sábados não havia folga para descanso; Fiona tinha que aguentar cinco longas horas de pé. Com sorte, suas pernas adormeciam; sem sorte, ela sentia uma dor lancinante que vagarosamente começava nos tornozelos e subia até as costas. Pior que ficar de pé era a natureza maçante do trabalho: colar o rótulo na lata, pesar o chá, encher a lata, fechar a lata, colocá-la dentro de uma caixa e depois começar tudo de novo. Para uma mente brilhante como a dela, a monotonia era uma verdadeira agonia e em certos dias como esse, por exemplo, ela chegava a pensar que acabaria louca, aprisionada naquele trabalho, e se perguntava se todos os seus grandes planos, se todos os seus sacrifícios valeriam alguma coisa.

Tirou os grampos que prendiam os cabelos num pesado coque à nuca e deixou que ficassem soltos. Depois, desamarrou os cadarços das botas, descalçou-as, retirou as meias e esticou as pernas, alongando-as à sua frente. As pernas ainda doíam por ter ficado de pé por tanto tempo, e a caminhada até o rio não ajudara em nada. As palavras da mãe ecoavam em sua mente:

— Se tivesse juízo, filha, só um pouquinho de juízo, teria vindo direto pra casa pra descansar em vez de flanar pelo rio.

Mas como não passear no rio? Ela pensava enquanto admirava a cor prateada do Tâmisa que cintilava ao sol de agosto. Quem poderia resistir? As ondas batiam com impaciência na base da Old Stairs, deixando-a molhada. Observava as ondas que cresciam em sua direção e imaginava que o rio queria tocar seus pés, enroscar-se em seus tornozelos e arrastá-la para as águas, levando-a com ele. Oh, se ao menos ela pudesse ir.

Enquanto olhava a água em devaneio, Fiona sentia seu cansaço — um cansaço que deixava olheiras profundas e sombrias debaixo de seus brilhantes olhos azuis e uma dolorosa rigidez em seu corpo jovem — e logo uma alegria profunda. O rio a restaurava. Diziam que a City, o centro do comércio e do governo até oeste de Wapping, era o coração de Londres. Se isso era verdade, o rio era então a corrente sanguínea de Fiona, e a beleza dele, o que fazia o coração dela bater mais rápido.

Tudo o que havia de excitante no mundo estava ali na sua frente. A visão dos barcos que atravessavam o rio, carregados de mercadorias oriundas de todo o império britânico, fervilhava na sua imaginação. Naquela tarde, o trânsito no Tâmisa estava intenso. Bateiras e saveiros — barcos pequenos e velozes — transitavam pelas águas, barqueiros entravam e saíam dos barcos no meio do rio. Um pesado e desajeitado barco a vapor tentava chegar no armazém onde ela se encontrava. Uma traineira avariada de volta da pesca do bacalhau nas águas geladas do mar do Norte navegava na direção de Billingsgate. Barcaças que subiam e desciam o rio aos solavancos procurando manter a via preferencial descarregavam a carga — uma tonelada de noz-moscada ali, sacos de café acolá. Barris de melaço. Lã, vinho e uísque. Rolos de tabaco. E caixotes e mais caixotes de chá.

E em todo canto, de pé nas docas conversando com os capitães ou transitando entre barris, engradados e pilhas de cargas, lá estavam os comerciantes — homens sagazes e altivos que saíam em disparada da cidade, logo que os barcos chegavam, para examinar suas mercadorias. Desciam das carruagens com bengalas e relógios de ouro que abriam com mãos bem tratadas e alvíssimas. Fiona custava a acreditar que eram mãos de homens. Usavam cartolas e sobrecasacas e eram atendidos por funcionários que os seguiam como cachorrinhos; eles carregavam livros, apontavam para tudo, franziam o cenho e anotavam. Esses homens eram autênticos alquimistas. Pegavam matéria bruta e a transformavam em ouro. E Fiona desejava estar no lugar deles.

Ela não dava importância à ideia de que as moças não deviam se envolver com negócios — especialmente as moças das docas, como sua mãe fazia questão de frisar. As moças das docas aprendiam a cozinhar, costurar e cuidar da casa para encontrar um bom marido que pelo menos pudesse cuidar delas tão bem quanto os pais.

— Besteira — assim sua mãe se referia às suas ideias, aconselhando-a a passar mais tempo com as massas de torta e menos tempo no rio. Mas o pai não via os sonhos de Fiona como tolice.

— Cultive o sonho — ele dizia. — No dia em que você parar de sonhar, é melhor encomendar o caixão e morrer.

Perdida em seu encantamento pelo rio, Fiona não ouviu os passos que vinham do topo da Old Stairs. Não sentiu a presença do rapaz que se aproximava sorrindo ao observá-la, preocupado em não a perturbar, só querendo admira-la por mais alguns segundos antes de se fazer notar e saborear a imagem dela — esguia, tendo como pano de fundo as pedras cobertas de musgo e as margens lamacentas do rio.

— Eiii — ele a chamou com doçura.

Fiona girou o olhar. Seu rosto iluminou-se quando o viu, amenizando por alguns segundos a resolução, a determinação sempre presente em seu semblante — uma determinação tão visível que as vizinhas reparavam e fofocavam entre si, afirmando que um rosto forte era sinal de voluntarismo. E voluntarismo significava encrenca. Essas mulheres diziam que ela nunca arranjaria um marido. Os rapazes não gostavam de ver esse tipo de coisa nas moças.

Mas aquele rapaz parecia não se preocupar com isso. Só se importava com os cabelos negros e sedosos de Fiona, ondulados em volta do rosto e soltos às costas. Ou com seus olhos de safira que eram como um clarão de fogo azul.

— Chegou cedo, Joe — ela disse sorrindo.

— Sim — ele sentou‑se ao lado dela. — Eu e papai saímos cedo de Spitalfields. O pobre infeliz pegou uma gripe horrível e não pôde trabalhar. Sou todo seu nas próximas duas horas — estendeu uma flor para ela e disse. — Olhe, achei no caminho.

— Uma rosa! — ela exclamou. — Muito obrigada! — Fiona adorava rosas. E não era sempre que ele podia comprar para lhe dar. Acariciou a face com as pétalas vermelhas e depois prendeu a flor atrás da orelha. — E o relatório da semana? Estamos com quanto? — ela perguntou.

— Doze libras, um xelim e seis pences.

— E mais isso — ela tirou uma moeda do bolso. — Agora temos doze libras e dois xelins.

— Como você consegue economizar? Não tirou do jantar, não é?

— Não.

— Estou falando sério, Fi, ficarei bem zangado se fizer isso.

— Eu já disse que não! — ela se irritou e mudou de assunto. — Logo, logo teremos quinze libras, depois vinte e depois vinte e cinco. Isso vai realmente acontecer, não vai?

— É claro que vai. Nesse ritmo, no próximo ano teremos nossas vinte e cinco libras. O bastante para três meses de aluguel e para o estoque inicial.

— Um ano inteiro — disse Fiona. — Isso parece uma eternidade.

— Passa rápido, meu amor — Joe apertou a mão dela. — Essa parte de agora é que é difícil. Seis meses depois de abrirmos nossa primeira loja, teremos dinheiro suficiente para abrir outra. E depois outra, até termos uma cadeia de lojas. E faremos dinheiro se fecharmos a mão.

— Seremos ricos! — ela acrescentou com o rosto outra vez iluminado.

— Não agora — Joe riu. — Mas, um dia, seremos. Prometo a você, Fi.

Fiona levou os joelhos ao peito e se abraçou, sorrindo. Um ano não era assim tanto tempo, ela pensou consigo mesma. Sobretudo se levasse em conta o quanto eles tinham falado da loja. Durante muitos anos, desde crianças. E dois anos antes começaram a economizar, guardavam o dinheiro poupado dentro de uma velha lata de chocolate que Joe mantinha debaixo da cama. Tudo ia para dentro daquela lata: salário, moedas ganhadas no Natal e no aniversário, dinheiro obtido em pequenos serviços e até os vinténs encontrados na rua. Pouco a pouco, as moedas prosperaram e agora eles tinham doze libras e dois xelins, uma verdadeira fortuna.

Durante anos e anos Fiona e Joe projetaram a loja na imaginação, embelezando-a e refinando-a, até que o projeto se tornou tão real que eles fechavam os olhos e sentiam o aroma de chá dentro de si. Ela podia sentir a textura suave do balcão de carvalho sob a mão e ouvir o tilintar do pequeno sino de bronze que soava toda vez que uma pessoa entrava. Seria uma loja iluminada e brilhante, não uma portinha qualquer e mal iluminada. Seria uma beleza de loja, com uma vitrina tão linda que simplesmente ninguém poderia ignorar.

— A aparência é tudo, Fi — Joe sempre dizia. — É ela que chama a freguesia.

A loja seria um sucesso, Fiona estava certa disso. Joe era filho de feirante e sabia tudo sobre vendas. Crescera numa carrocinha e passara o seu primeiro ano de vida dentro de um cesto em meio a nabos e batatas. Antes mesmo de falar seu próprio nome, ele já conseguia gritar ―compra a salsicha, madame!‖. Com a experiência dele e o trabalho de ambos, era impossível falhar.

Nossa loja, só nossa, ela pensava enquanto olhava para Joe, e ele, para o rio. Os olhos de Fiona acarinhavam o rosto dele, deleitando-se com cada detalhe: o contorno forte do queixo, a barba, a pequena cicatriz embaixo do olho. Conhecia cada ângulo dele. Não houve um só momento em que Joe Bristow não tivesse feito parte de sua vida, e também não haveria no futuro. Os dois cresceram na mesma rua miserável separados apenas por uma casa. Desde pequenos brincavam juntos, perambulavam por Whitechapel e cuidavam dos machucados e das dores um do outro.

Na infância, compartilhavam centavos e guloseimas, e agora dividiam sonhos. Logo partilhariam uma vida. Eles se casariam. Mas não por ora. Ela só tinha dezessete anos e seu pai havia dito que ainda era muito jovem. Acontece que no ano seguinte ela teria dezoito e Joe, vinte, com dinheiro economizado e excelentes perspectivas.

Fiona levantou-se e saltou do degrau para a calçada de pedra. Seu corpo vibrava de excitação. Correu até a margem do rio, catou um punhado de pedras e lançou-as na água com toda força e rapidez que podia. Depois de ter atirado todas, voltou-se para Joe, que permanecia sentado em um dos degraus, observando-a.

— Um dia seremos tão grandes quanto tudo isso — ela gritou, abrindo os braços. — Tão grandes quanto a Whites e a Sainsburys. E também tão grandes quanto a Harrods — manteve-se na mesma posição por alguns segundos, contemplando os armazéns que a ladeavam e os ancoradouros ao longo do rio. À primeira vista, sua aparência era muito delicada e frágil, nada mais que uma garota à beira do rio que arrastava a bainha da saia na lama. Mas, se os outros a olhassem como Joe a olhava, veriam determinação e ambição em cada expressão dela, em cada gesto, desde o queixo empinado até as mãos rudes de operária, mãos que naquele momento se cerravam como se em desafio.

— Seremos tão grandes — ela continuou —, que todo mercador do rio fará de tudo para nos vender suas mercadorias. Teremos dez lojas em Londres... dez, não, vinte... e mais algumas espalhadas pelo país. Em Leeds e Liverpool. Em Brighton e Bristol e Birmingham e... — se deteve de repente ao notar o olhar de Joe, subitamente tímida. — Por que está me olhando dessa maneira?

— Porque você é uma moça muito esquisita.

— Não sou, não!

— É, sim. É a mocinha mais impetuosa que já conheci. É mais valente que a maioria dos rapazes — Joe inclinou-se para trás, apoiou-se nos cotovelos e olhou-a atentamente. — Talvez você não seja uma moça, talvez seja um rapaz disfarçado.

— Talvez eu seja mesmo — ela riu. — Nesse caso, é melhor vir até aqui para descobrir.

Joe levantou-se e Fiona, cheia de malícia, virou-se e correu pela margem. O barulho de passos apressados atrás dela lhe dizia que ele descera a escada e a perseguia. Soltou uma sonora risada quando foi agarrada pelo braço.

— A verdade é que você corre como uma moça — ele puxou-a para bem perto e começou a fingir que inspecionava o rosto dela. — É, acho que sua beleza é de moça...

— Acha mesmo?

— Mmm hmm, mas posso estar enganado. É melhor me certificar...

Fiona sentiu os dedos de Joe roçando seu rosto. Ele levantou delicadamente seu queixo e beijou seus lábios, abrindo-os com a língua. Ela fechou os olhos e entregou-se ao prazer desse beijo. Sabia que não devia fazer isso, pelo menos até se casarem. Quando se confessasse para o padre Deegan, ele certamente recomendaria um terço de Ave—Marias como penitência, e, se o pai dela descobrisse, seria esfolada viva. Mas, oh, como os lábios dele eram adoráveis, ele tinha uma língua aveludada e uma pele com cheiro doce quando aquecida pelo sol da tarde. Antes de se dar conta do que fazia, ela já estava na ponta dos pés retribuindo o beijo com os braços em torno do pescoço dele. Nada era tão bom quanto aquilo, seu corpo pressionado contra o de Joe, e os vigorosos braços dele em torno dela.

Gritos e assovios interromperam o abraço. Uma barcaça na entrada de Wapping aproximava-se do portão para as docas de Londres e já estava bem próxima. A tripulação mostrava-se bastante atenta.

Com a face ruborizada, Fiona puxou Joe para o labirinto de estacas onde permaneceram até que a barcaça se foi. Um sino de igreja badalou a hora. Já estava ficando tarde e ela sabia que devia estar em casa para ajudar a mãe a preparar o jantar. E Joe tinha que voltar para a feira. Deram um último beijo e retornaram à Old Stairs. Ela escalou os degraus para calçar outra vez as meias e as botas, tropeçando nas saias como de costume.

Já pronta para ir embora, deu uma última olhada para o rio. Levaria uma semana inteira para que pudesse voltar — uma semana transitando na escuridão de casa para a Burton e da Burton para casa, onde os afazeres domésticos sempre a aguardavam. Mas isso não tinha importância, nada tinha importância; um dia deixaria tudo isso para trás. À beira do rio, a imagem de uma espuma rosada tremulava na superfície da água. As pequenas ondas dançavam. Era a sua imaginação ou o rio queria demonstrar excitação para ela, para eles?

E por que não? Ela se perguntou sorrindo. Ela e Joe tinham um ao outro. E tinham doze libras e dois xelins, e um sonho. O negócio era deixar de lado a Burton e as ruas lúgubres de Whitechapel. Mais um ano e o mundo seria deles. Tudo era possível.

— Paddy? Paddy, que horas são? — perguntou Kate Finnegan ao marido.

— Humm? — ele murmurou, com a cara enterrada no jornal.

— A hora, Paddy — ela repetiu com impaciência enquanto batia alguma coisa dentro da tigela amarela que tinha na outra mão.

— Kate, meu amor, você acabou de me perguntar — ele suspirou, enfiando a mão no bolso para sacar um relógio de prata. — Duas horas, exatas.

Kate franziu a testa, retirou o batedor de dentro da tigela, sacudiu os resquícios da massa cremosa e jogou-o na pia. Pegou um garfo e o espetou numa das três costeletas de carneiro que fritavam no fogão. Um fio de sumo escorreu pela costeleta que chiava na frigideira. Fisgou as costeletas com o garfo, depositou numa travessa e guardou‑as na estufa do fogão, junto com o molho de cebola. Depois, pegou algumas linguiças e colocou-as na frigideira. Quando começaram a cozinhar, sentou-se na mesa ao lado do marido.

— Paddy — ela deu uma pancada na mesa com a palma da mão. — Paddy.

— Sim, Kate. O que quer, Kate? — ele olhou por cima do jornal no fundo dos grandes olhos verdes da esposa.

— Você tem que dar realmente um jeito neles. Não podem chegar na hora em que bem entendem e deixar você esperando para jantar. E me deixar aqui sem saber a que hora devo preparar as salsichas.

— Já devem estar chegando. Pode servir o jantar. Se chegarem quando a comida esfriar, o problema é deles.

— Não é só o jantar — ela confessou. — Não gosto de vê-los andando por aí com todos esses assassinatos acontecendo.

— Quer dizer que você acha que o Assassino de Whitechapel está andando por aí em plena luz do dia? Espreitando malandros desordeiros como o Charlie? Que Deus o ajude se ele fizer isso, dois minutos com o Charlie farão o assassino fugir aos gritos. A Fiona então nem se fala. Lembra do que houve com aquele cafajeste, o Sid Malone, quando tentou agarrá-la num beco? Ela acertou o nariz dele. Quebrou o nariz do infeliz. E olha que ele era o dobro dela.

— Sim, mas...

— Kate, tem um artigo aqui sobre o Ben Tillet, aquele rapaz do sindicato que está organizando os homens nos armazéns de chá. Escuta isso...

Kate olhou para o marido com ar de reprovação. Se tivesse dito que o telhado estava em chamas, a resposta seria a mesma. A despeito do que o jornal dizia, ela não queria ouvir. Conversas sobre sindicato a deixavam preocupada. Com um marido, quatro filhos e um inquilino para alimentar, ela mal conseguia atravessar a semana. Se convocassem uma greve, eles morreriam de fome. E, como se não bastassem essas preocupações, ainda havia um assassino à solta. Whitechapel sempre tivera uma vizinhança conturbada, uma mistura de londrinos, poloneses, russos, irlandeses, chineses e outros mais. Ninguém era rico, a maioria pegava no pesado. Além disso, muitos eram beberrões. Afora os muitos crimes, principalmente roubos. Algumas vezes, os assassinos se matavam entre si ou alguém morria numa briga, mas ninguém saía esquartejando mulheres.

Com Paddy ainda absorto na leitura, ela levantou-se, foi ao fogão, espetou as linguiças e mergulhou-as numa camada de sumo e gordura. Depois, pegou a tigela com a massa reservada e despejou-a sobre a camada de salsichas, cobrindo-as por inteiro. A massa cremosa chiou em contato com a mistura quente e logo se espalhou até as bordas da frigideira, estufando e borbulhando. Ela sorriu. A massa estava fofa e assaria magnificamente. O truque era uma xícara de cerveja. Pôs a frigideira no forno e se voltou para a panela com batatas. Estava amassando‑as quando ouviu a porta da frente abrir-se e os passos leves e rápidos da filha no saguão de entrada.

— Oi, mamãe. Oi, papai — disse Fiona radiante, depositando o salário semanal de seis pences na velha lata de chá em cima da lareira.

— Oi, amor — Kate cumprimentou-a enquanto preparava as batatas.

Paddy soltou um grunhido de alô sem tirar os olhos do jornal.

Fiona pegou um avental que estava dependurado próximo à porta dos fundos. Ao mesmo tempo em que amarrava a fita atrás do corpo, observava a irmãzinha, Eileen, que dormia num cesto perto da lareira, e depois se abaixou até Seamus, seu irmão de quatro anos que brincava com soldadinhos e pregadores de roupa sentado no tapete, e beijou-o.

— Eu também quero um, Seamie.

O menininho ruivo e matreiro comprimiu os lábios em sua bochecha e sapecou‑lhe um beijo babado de framboesa.

— Oh, Seamie! — ela gritou, secando o rosto babado. — Não tem graça nenhuma! Quem lhe ensinou isso?

— Charlie!

— Faz sentido. O que você quer, mamãe?

— Você pode cortar o pão. E depois pôr a mesa, preparar o chá e apanhar a cerveja preta do seu pai.

Fiona começou a trabalhar.

— O que há de novo, papai?

Paddy abaixou o jornal.

— O sindicato. O número cresce a cada dia. Não vai demorar muito para os rapazes de Wapping entrarem. Anote minhas palavras, antes do fim do ano, vai ter uma greve. Os sindicatos salvarão a classe operária.

— E como farão isso? Oferecendo-nos um xelim extra por hora para que a gente morra de fome lentamente em vez de morrer de uma vez?

— Não começa, Fiona... — Kate advertiu.

— Que bonito. São essas ideias antissindicalistas que Joe Bristol tem colocado na sua cabeça. Barraqueiros, todos eles são iguais. Todos independentes. Não dão a mínima para o resto da classe.

— Não preciso que Joe coloque ideias na minha cabeça, tenho as minhas próprias, graças a Deus. E não sou contra o sindicato. Só prefiro fazer as coisas do meu jeito. Qualquer um que acha que os donos das docas e das fábricas vão atender às demandas de um bando de sindicalistas pés de chinelos pode se preparar para esperar sentado.

Paddy desaprovou com a cabeça.

— Você devia se filiar, pagar os encargos e reservar um pouco do seu salário para o bem comum. Senão vai acabar agindo igual a eles.

— Bem, eu não sou eles, papai! — Fiona se esquentou. — Todo dia me levanto para trabalhar, menos domingo, como você. Acho que os operários deviam ter uma vida melhor. É claro que acho isso. Só não estou preparada para ficar sentada, esperando que Ben Tillet resolva tudo.

— Fiona, cuidado com a língua — Kate ralhou enquanto verificava a massa no forno.

— Papai, você acha mesmo que William Burton vai permitir que os empregados dele se sindicalizem? — ela continuou, distraída. — Você trabalha pra ele; nós dois o conhecemos muito bem. Ele não dá o braço a torcer. O único interesse dele é manter os lucros e não dividí-los.

— O que você não consegue enxergar, mocinha, é que precisa começar de algum lugar — disse Paddy endireitando‑se na cadeira, inflamado. — Se você vai às reuniões, divulga as ideias e arregimenta os operários do Burton, todos, tanto os rapazes que trabalham nas docas como as moças das fábricas, ele não terá outra opção senão aceitar o sindicato. Primeiro, é preciso obter pequenos ganhos, para depois obter os maiores. Como aquelas moças dos fósforos em Bryant e May. Protestaram contra as terríveis condições de trabalho que inclusive proibiam conversas e idas ao banheiro. Ganharam depois de uma greve de três semanas. Um bando de mocinhas! Há muito poder nos números, Fiona, anote bem minhas palavras. Os sindicatos salvarão os estivadores, salvarão toda a classe operária.

— Não dou a mínima — ela disse. — O que eu quero é me salvar.

Paddy deu um murro na mesa, fazendo o garfo e a filha pularem.

— Basta — ele esbravejou. — Não tenho que ouvir críticas contra a minha classe dentro da minha própria casa — ele pegou o jornal e, furioso, começou a ajeitá-lo.

Fiona estava bufando, mas sabia que era melhor ficar calada.

— Quando é que você vai aprender? — disse Kate.

Ela deu de ombros, como se nada daquilo importasse e começou a arrumar garfos e facas, mas Kate não era boba. Fiona estava zangada, mas por conveniência sabia que naquele momento era melhor manter suas opiniões para si. Paddy não se cansava de repetir que encorajava os filhos a pensar por si próprios, mas, como todos os pais, o que realmente preferia é que pensassem como ele.

Kate olhou para o marido e para a filha. Meu Deus, os dois são iguais, ela pensou. O mesmo cabelo preto, os mesmos olhos azuis, o mesmo queixo empinado. Ambos com suas grandes ideias, herança do sangue irlandês. Eram sonhadores. Ele, sempre sonhando com o depois de amanhã, com o dia em que os capitalistas se arrependeriam de suas maldades e o céu se encheria de porcos voadores. E essa mocinha fazendo planos para ter uma loja. Não faz ideia do quanto isso é difícil. Mas não se pode dizer nada para ela. É assim desde criança. Cheia de si. Kate se preocupava demais com a filha mais velha. O voluntarismo de Fiona e seu empenho em alcançar o que almejava eram tão fortes, tão direcionados, que davam medo. Uma onda súbita de emoção ardente e protetora invadiu seu coração.

Quantas garotas das docas sonhavam em ter uma loja? Era o que se perguntava. E se Fiona conseguisse abrir a loja e a visse falir? Isso quebraria o coração dela. E depois passaria o resto da vida amargurada por uma coisa que nunca deveria ter desejado.

Em diversas ocasiões, Kate confidenciara essas preocupações ao marido, mas, orgulhoso com o ímpeto da filha mais velha, Paddy sempre dizia que paixão é bom para moças. Paixão uma coisa boa? Ela conhecia bem a paixão. Paixão era aquilo que tirava as moças dos empregos ou fazia com que seus maridos as deixassem de olho roxo. Como é que a paixão podia ser boa se o mundo inteiro está à espreita para lhe dar uma rasteira? Ela suspirou profundamente, um suspiro materno; longo e ruidoso. A resposta para essas questões teria que esperar. O jantar estava pronto.

— Fiona, onde é que está seu irmão? — ela perguntou.

— Procurando pedaços de coque lá na fábrica de gás. Disse que ia vende—los para a senhora MacCallum, para o fogo dela. Parece que ela não quer pagar pelo carvão.

— Esse rapaz encontra meios de fazer dois xelins que o Banco da Inglaterra nem imagina. Pra ganhar alguns vinténs, é capaz de descascar cocô — comentou Paddy.

— Basta! Isso aqui é minha cozinha, não uma sarjeta — Kate ralhou. — Fiona, põe o molho na mesa.

Ouviu-se um ruído de rodinhas à porta da frente. A porta abriu‑se e Charlie entrou arrastando seu carrinho de madeira.

A cabeça do pequeno Samie espichou-se.

— O Assassino de Whitechapel — ele gritou eufórico.

Kate franziu o cenho para demonstrar que não aprovava a nova brincadeira do filho.

— Sou eu, garotinho — a voz soou no saguão de entrada. — O Assassino de Whitechapel, o poderoso homem da noite procurando crianças levadas.

A voz quebrou‑se com uma gargalhada diabólica e Seamie, num misto de terror e prazer, correu com suas perninhas curtas em busca de um lugar para se esconder.

— Aqui, fofinho! — sussurrou Fiona, enquanto saía apressada para a cadeira de balanço na frente da lareira. Sentou-se e abriu um espaço entre suas saias.Seamie engatinhou para debaixo delas, mas esqueceu de esconder os pezinhos.Charlie irrompeu na cozinha ainda gargalhando como um demônio. Quando viu as botinhas que apareciam sob as saias da irmã, tomou isso como um sinal de que devia continuar a gargalhar, levando adiante a brincadeira.

— Madame, a senhora viu por aí um menininho levado? — perguntou Charlie para a mãe.

— Sai pra lá — disse Kate, dando tapinhas nele. — Não assusta o seu irmão.

— Ora, ele adora isso — Charlie sussurrou, fazendo um sinal para que ela se calasse. — Seaaamieeeee — ele chamou com voz sedutora —, vem aqui, vem aqui!—abriu a porta do armário da cozinha. — Ele não está aqui — procurou debaixo da pia. — Aqui também não — depois se dirigiu à irmã. — Você viu por aí um garotinho levado?

— Só este aqui que está na minha frente — disse Fiona, ajeitando as saias.

— E o que é isso? E esses pés pra fora, o que é isso? Parecem muito pequenos para uma gorducha como você. Vou dar uma olhada... aha!

Charlie agarrou os tornozelos de Seamie e o puxou para fora. O menino começou a berrar e Charlie a fazer cócegas nele.

— Vá com calma, Charlie — Kate advertiu. — Deixe o menino recuperar o fôlego.

Charlie deu uma pausa e Seamie chutou a perna dele para fazê-lo recomeçar a brincadeira. Quando o menino ficou realmente sem fôlego, Charlie se deteve e deu‑lhe um tapinha carinhoso na cabeça. Seamie esparramou‑se no chão, olhando o irmão com admiração. Charlie era o centro de seu universo, o seu herói. Ele o cultuava e o seguia como um cachorrinho, queria porque queria se vestir como o irmão e não descansou até que a mãe amarrasse no seu pescoço a imitação de uma peça que Charlie usava: um vistoso lenço vermelho que era usado por todos os malandros. Os dois eram praticamente idênticos, com os mesmos cabelos ruivos e as mesmas sardas e olhos verdes da mãe.

Charlie dependurou o casaco, tirou um punhado de moedas do bolso e depositou-as na lata de chá.

— Esta semana tem um pouco mais, mãe. Fiz umas horas extras.

— Obrigada, meu amor, fico feliz com isso. Estou tentando fazer uma economia para o casaco do seu pai. Lá na Malphlin tem alguns de segunda mão muito bons. Já remendei tanto o casaco velho dele que acabou virando um amontoado de remendos.

O rapaz sentou-se à mesa, pegou uma fatia de pão e começou a devorá-la. Paddy olhou-o por cima do jornal enquanto ele comia e deu um cascudo na cabeça dele.

— Espere por sua mãe e sua irmã. E tire o chapéu quando estiver na mesa.

— Fiona, prepare o Seamie, está bem? — disse Kate. — Cadê o Roddy? Será que ainda está dormindo? Ele sempre vem com o cheiro da comida. Charlie, grita pra ele descer.

Charlie saiu da mesa e foi até a escada.

— Tio Roooody! A comida está na mesa! — sem resposta, ele subiu a escada.

Fiona lavou as mãos de Seamie e o sentou à mesa. Amarrou um guardanapo no pescoço dele e lhe deu um pedaço de pão para mante-lo quieto. Depois, foi ao armário da cozinha, pegou seis pratos e levou‑os até o fogão. Em três pratos serviu uma costeleta, purê de batata e molho. Kate tirou a frigideira do forno e dividiu o conteúdo — o resto do purê e o molho — entre os três pratos restantes.

— Empadão de linguiça! — gritou Seamie ao olhar a crosta crocante e macia, contando gulosamente os pedaços de linguiça que emergiam da massa que os cobriam como tímidos sapos.

Nem Kate nem Fiona nunca se perguntaram por que os pratos dos homens ganhavam costeletas e também empadão. Os homens eram os provedores da casa e precisavam manter as forças. As mulheres e as crianças só tinham um gostinho do bacon e da linguiça nos fins de semana, se desse para esticar o dinheiro semanal. Não se levava em conta o fato de que Kate trabalhava o dia inteiro na frente de uma caldeira, torcendo, carregando e passando quilos de roupas, e de que Fiona ficava em pé durante horas enlatando chá para esticar as finanças, mas, de todo modo, o dinheiro não faria diferença alguma. Os salários de Paddy e Charlie faziam deles os senhores da casa; pagavam o aluguel, compravam as roupas e abasteciam o quinhão maior da comida. Os rendimentos de Kate e Fiona garantiam o carvão e as necessidades da casa como graxa, querosene e fósforos. Se Paddy ou Charlie caíssem doentes, todos na casa sofreriam. Isso acontecia em todas as casas de East London — a comida ficava por conta dos homens e as mulheres faziam o que podiam.

Kate ouviu outra vez os passos pesados de Charlie na escada.

— Ele não está no quarto, mamãe — ele disse, retornando à mesa. — A cama está arrumada, parece que não dormiu nela.

— Estranho — disse Paddy.

— E o prato dele aqui, esfriando — Kate agitou-se.

— Fiona, me passa isso, vou colocar no forno. Onde será que se meteu? Ele não estava aqui de manhã, Paddy?

— Não, mas geralmente só chega depois que eu saio; portanto, não podia vê-lo.

— Espero que tudo esteja bem. Tomara que não tenha acontecido nada com ele.

— Notícia ruim corre depressa — falou Paddy. — Pode ser que alguém que faria o turno depois dele tenha ficado doente e ele precisou substituí-lo. Você conhece o Roddy, vai aparecer.

Roddy O‘ Meara, o inquilino dos Finnegan, não era um membro da família, mas os filhos o chamavam de tio. Crescera com Paddy e seu irmão, Michael, em Dublin, e emigrara com eles primeiro para Liverpool e depois para Londres, permanecendo em Whitechapel com Paddy enquanto Michael seguia para Nova York.Viu os filhos dos Finnegan nascerem, embalou‑os em seus joelhos, resgatou‑os das mãos dos brigões e dos dentes dos cachorros, e à noite lhes contou histórias assombradas ao pé da lareira. Era mais tio do que o tio verdadeiro que eles nunca tinham visto, e de fato todos o adoravam.

Kate serviu o chá e sentou-se.Paddy fez a oração e a família começou a comer. Ela olhava a prole e sorria. Eles só ficavam quietos quando comiam. Agora pelo menos haveria uns dois minutos de paz. Charlie devorava a comida. Nada o satisfazia. Não era esguio, mas bem encorpado para os seus dezesseis anos. Ombros largos e brigão como os bull terriers de alguns vizinhos.

— Tem mais purê, mamãe? — ele perguntou.

— Está lá no fogão.

Ele se levantou e pôs mais purê no prato. Justo na hora em que a porta da frente abriu‑se.

— Roddy, é você? — gritou Kate. — Charlie, pega o prato do seu tio... — suas palavras se desvaneciam à medida que Roddy surgia à porta do cômodo. Paddy, Fiona e até Seamie pararam de comer para olhá-lo.

— Jesus! — exclamou Paddy. — Que diabo aconteceu com você?

Roddy O‘Meara não respondeu. Seu rosto estava cinzento. Em uma das mãos carregava seu capacete de policial. A jaqueta aberta e dependurada deixava entrever uma mancha rubra na parte frontal.

— Roddy, homem... você consegue falar? — disse Paddy.

— Outro assassinato — Roddy finalmente falou. — Na Bucks Row. Uma mulher chamada Polly Nichols.

— Jesus — exclamou Paddy. Kate emitiu um grito sufocado. Fiona e Charlie arregalaram os olhos.

— O corpo ainda estava quente. Vocês nem imaginam o que o sujeito fez. Tem sangue espalhado por toda parte. Por toda parte. Um homem encontrou o corpo quando estava indo para o trabalho, antes do amanhecer. Avistei-o quando corria e gritava pela rua. A gritaria acordou todo mundo. Corri atrás dele e lá estava ela.Garganta cortada. O resto dela estava arregaçado que nem animal no matadouro. Perdi completamente o apetite. Depois o dia clareou e trouxe as pessoas. Mandei o homem à estação para pedir reforço e passado um tempo chegou ajuda, quase tive que lidar sozinho com o tumulto — Roddy deu uma pausa, passando a mão na face cansada. — Não se pôde mexer no corpo antes da chegada dos detetives encarregados do caso. E do coronel. Eles acabaram chegando e precisamos de um batalhão inteiro só para manter o povo afastado. As pessoas estavam furiosas. Outra mulher morta. Esse cara está dançando em círculos em volta de nós.

— Os jornais acham isso — disse Paddy. — Todos corretos. Comentam que a miséria e a depravação produzem demônios. Esses imprestáveis nunca deram atenção a East London. Agora elegem um lunático perdido por aí para que as classes abastadas voltem os olhos para Whitechapel. E só estão comentando o caso porque no fundo o que gostariam mesmo era pôr uma cerca ao redor daqui, para manter o homem trancado de tal maneira que não pudesse caminhar pelas ruas deles e causar problemas.

— Isso não seria possível — retrucou Roddy. — Esse cara se prende a um padrão. Procura sempre o mesmo tipo de mulher... bêbada e acabada. Está preso a Whitechapel, conhece o lugar como a palma da mão. Move‑se pelas ruas como um fantasma e é isso que ele é. Imaginem, aparece um assassino brutal e ninguém vê nem ouve nada — ele ficou em silêncio por alguns segundos e depois continuou.— Nunca esquecerei o olhar daquela mulher.

— Roddy, querido — disse Kate com gentileza —, come alguma coisa. Você precisa se alimentar.

— Acho que não vou conseguir. Perdi completamente o apetite.

— Nossa, isso é horrível — disse Fiona, estremecendo. — Bucks Row não é tão longe daqui. Dá um arrepio só de pensar nisso.

Charlie bufou.

— Por que você está tão preocupada? Ele só pega as prostitutas.

— Cala a boca, Charlie — rebateu Kate, irritada. Sangue e entranhas à mesa e, agora, prostitutas.

— Ai, meu Deus, como estou cansado — disse Roddy. — Eu poderia dormir uma semana inteira, mas amanhã à tarde tenho que me apresentar para o inquérito.

— Sobe, vai descansar — disse Paddy.

— É o que vou fazer. Guarda o meu jantar, Kate?

Kate disse que sim. Roddy tirou os suspensórios e a camisa, lavou o rosto e depois subiu a escada.

— Coitado do tio Roddy — comentou Fiona. — Que choque ele teve. Vai precisar de muitos anos para esquecer.

— Eu precisaria. Não posso ver sangue. Eu teria evitado passar por ela — afirmou Paddy.

Tomara que a polícia o prenda, seja quem for, antes que mate mais alguém, pensou Kate. Olhou para a porta do saguão de entrada. Naquela hora, ele estava lá fora. Talvez dormindo ou comendo ou enfiado num pub como qualquer um. Talvez trabalhe nas docas. Pode ser até que more a duas ruas daqui. Talvez de noite ele passe pela nossa porta. Embora aquecida por ter ficado à boca do fogão, ela sentiu um calafrio gelado percorrendo seu corpo. ―A morte passou por perto‖, sua mãe costumava dizer.

— Eu me pergunto se esse assassino... — Charlie começou a falar.

— Pelo amor de Deus, chega! — ela disse zangada. — Agora trate de acabar de comer a comida que eu cozinhei.

— Kate, qual é o problema? — perguntou Paddy. — Está branca como um fantasma.

— Não é nada. Só quero que esse... esse monstro desapareça. Desejo ardentemente que a polícia o prenda.

— Não se preocupe, meu amor. Nenhum assassino vai pegar você nem ninguém desta família — Paddy tranquilizou-a, segurando sua mão. — Não enquanto eu estiver aqui.

Kate deu um sorriso forçado. Estamos seguros, disse para si mesma; todos nós. Nesta casa sólida e bem trancada. Sabia que as trancas eram resistentes porque tinha obrigado Paddy a testá-las. À noite, seus filhos dormiam no andar de cima, e também ela, o marido e Roddy. Nenhum demônio entraria lá para ferir qualquer um deles. Mesmo assim, Fiona tinha razão. Só de pensar nele o corpo estremecia e gelava até os ossos.

— Maçãs! Olha a maçã madura! Leva quatro por um pêni, as melhores de Londres.

— Berbigões, berbigões fresquinhos, ainda se mexendo!

— Quem vai querer arenque? Ainda pulando! Ainda respirando!

Toda tarde de sábado era a mesma coisa. Fiona podia ouvir as vozes do mercado bem antes de chegar lá. Transbordando das barracas e carrocinhas, ecoavam e arremetiam‑se por cima dos telhados, desciam pelas ruas e atravessavam as esquinas, chamando os fregueses.

— A melhor salsinha aqui mesmo, madame! Quem vai querer salsinha?

— Laaaaranjas, duas por um pêni! Quem vai querer comprar laranja?

E, em meio à música do mercado, irrompe uma nova nota destoante, uma nota que apressa os passos dos feirantes da tarde, fazendo‑os querer estar logo em casa, aquecidos por lareiras e protegidos pelas portas trancadas.

— Outro crime terrível! — grita um jornaleiro esfarrapado. — Só no Clarion! A cobertura completa aqui! A cena do crime, sangue por toda parte! Comprem o Clarion!

A excitação de Fiona aumenta à medida que ela e a mãe se aproximam de Brick Lane. Lá está o radiante mercado estendido à sua frente. Uma criatura risonha que grita e seduz. Um ser gigantesco; fanfarrão, mutável, onde ela pode se introduzir e se integrar. Ela apressa a mãe, puxando‑a pelo braço.

— Pare com isso, Fiona. Estou andando o mais rápido que posso — diz Kate enquanto checa a lista de compras.

As vozes cacarejantes, impetuosas e francas dos feirantes continuam com seu vigoroso rugido. Pavoneiam‑se e cacarejam como galos de briga, desafiando os fregueses a encontrar defeitos em seus produtos e atiçando os outros feirantes a abaixar o preço: o velho truque da provocação praticado em East London.

— Truta velha? — Fiona ouve um feirante gritar para um freguês que questiona o seu produto. — Essas trutas estão mais frescas que margaridas. Quer ver uma truta velha? Olhe-se então no espelho!

Fiona vê o peixeiro com bandejas abarrotadas de peixes, pequenos berbigões azulados, arenques robustos e punhados de ostras frescas aninhadas em suas conchas brilhantes. Próxima à barraca de peixe, a de carne, com seu balcão decorado de folhas vermelhas e brancas de papel crepom repleto de costeletas, salsichas e horrendas cabeças de porco.

Uma multidão de orgulhosos verdureiros exibe pirâmides de frutas em suas barracas — maçãs lustrosas, peras perfumadas, laranjas e limões reluzentes, uvas e ameixas. À frente das pirâmides, cestas de couves‑flores rugosas, cabeças de brócolis, repolhos roxos, nabos, cebolas e batatas para cozidos e assados.

A luz bruxuleante dos lampiões de gás, das lamparinas de querosene e até de tocos de vela assentados sobre os nabos iluminam o cenário. E que aromas! Fiona se detém, fecha os olhos e inala o ar. Um odor de maresia — berbigões marinados em vinagre. Uma lufada emana das especiarias — maçãs fritas e salpicadas de açúcar com canela. Linguiças fritas, batatas assadas, nozes quentinhas e picantes. Sua boca se enche de água.

Ela abre os olhos. Sua mãe se dirige para a barraca de carnes. Ao observar a mãe caminhando em meio à massa de gente, sua sensação é de que todo o império de East End está presente — rostos familiares e estranhos. Solenes, piedosos, os judeus se apressam para o culto; marinheiros compram sopa de enguias ou de ervilhas; trabalhadores de todos os tipos encostados à frente do bar, de roupa limpa e barbeados, alguns seguram terriers debaixo do braço.

E por todo lado uma imensa quantidade de mulheres de idades e tipos os mais variados, espremendo‑se, cutucando, pechinchando e comprando. Algumas acompanhadas pelos maridos que seguram sacolas e fumam cachimbos. Outras cercadas pelos filhos que berram em seus colos, puxam as barras de suas saias e pedem biscoitos, doces e bolinhos. A criançada nascida no bairro grita Mum, a criançada irlandesa grita Mam. As crianças italianas, polonesas e russas gritam Mama, mas todas querem a mesma coisa: um pirulito colorido, uma bolachinha açucarada. E as mães apressadas e sem dinheiro suficiente para o que necessitam compram um pão doce para dividir em três, apenas para que os filhos possam ter o gostinho de alguma coisa boa.

Fiona olhou em volta à procura da mãe e avistou-a na barraca de carnes.

— Vai levar lagarto para assar amanhã, senhora Finnegan? — ouviu o açougueiro perguntar para a mãe.

— Esta semana, não, senhor Morrison. O meu tio rico ainda não morreu. Mas quero um corte de peito. Um quilo e meio, mais ou menos. Cinco pences é tudo que posso pagar.

— Mmmmm... — o homem comprimiu os lábios e franziu as sobrancelhas.—Ontem à noite só cortei peças grandes... mas vou dizer o que posso fazer, querida...— ele fez uma pausa teatral, como se confabulando qualquer coisa consigo mesmo. — ... posso fazer dois quilos e meio por um bom preço.

— Tenho certeza de que deve ser muito caro para mim.

— Besteira, amorzinho — ele disse com voz sedutora. — Veja bem, quanto maior a peça, menor é o preço. Você acaba economizando. Paga mais por uma coisa porque é maior, mas na realidade paga menos porque...

Enquanto sua mãe e o açougueiro pechinchavam, Fiona tentava encontrar Joe. Ela o avistou cinco barracas adiante, vendendo seus produtos. Embora a noite não estivesse quente, a gola dele estava aberta, as mangas arregaçadas e o rosto afogueado. Fazia mais ou menos um ano que Joe insistira com o senhor Bristol, seu pai, que o deixasse participar mais das negociações, em vez de só ficar atrás das barracas. Muito sábio, aliás, porque negociar era de sua natureza. Sozinho, ele vendia uma grande quantidade de produtos toda semana, muito mais do que qualquer vendedor das lojas elegantes de West End vendia mensalmente. E fazia isso sem o benefício de um letreiro atrás dele ou de vitrinas bonitas ou de cartazes e anúncios ou de qualquer outra coisa. Fazia isso graças ao seu talento nato.

Toda vez que se aproximava dele, Fiona se empolgava ao vê-lo em seu trabalho, seduzindo freguesa após freguesa. Seduzindo-as pelo olhar. Atordoando-as.Brincava e sorria o tempo todo; mantinha a negociação e despertava cada vez mais o interesse das freguesas. Ninguém fazia isso melhor que Joe. Ele sabia como divertir e flertar com as mais desavergonhadas, e como tornar a voz séria e sincera com as mais desconfiadas, sentindo-se ofendido e desacreditado quando uma mulher torcia o nariz para as suas ofertas, para as melhores cenouras e cebolas que havia em Londres. Ele tinha um jeito cênico de cortar laranjas e espremer o sumo nos paralelepípedos da rua. Fiona notava que isso atraía os olhares dos fregueses que transitavam pelas imediações. Depois, ele abria uma folha de jornal com teatralidade, colocava dentro dela ―não duas, não três, mas quatro laranjas enormes e suculentas, todas pra freguesa, só por dois pences!‖, e fechava a folha com um floreio.

É claro que os maravilhosos olhos azuis e o sorriso sedutor de Joe não atrapalhavam os negócios, pensou Fiona. Nem os fartos e ondulados cabelos negros que se prendiam num rabo de cavalo, insinuando-se para fora do boné. Uma onda de calor invadiu seu corpo, colorindo‑lhe as faces. Ela sabia que devia manter os pensamentos puros como as freiras aconselhavam, mas isso era cada vez mais difícil. A gola aberta embaixo do lenço vermelho atado ao pescoço deixava à mostra um triângulo de pele. Ela se imaginava tocando-o naquele ponto, pressionando os lábios naquele peito. Aquela pele devia estar tão quente e cheirosa. Adorava o cheiro dele, o cheiro de verduras e frutas que ele manipulava diariamente. O cheiro de seu cavalo. O cheiro do ar de East London tingido com a fumaça de carvão e as águas do rio.

Uma vez ele a tocou por debaixo da blusa. No escuro, atrás da cervejaria Black Eagle. Beijou seus lábios, seu pescoço e sua nuca antes de desabotoar a blusa, escorregar a mão pelo corpete e tocá-la. Ela se sentiu derretendo com o toque dele, com o calor do seu próprio desejo. Afastou‑o, não por vergonha e pudor, mas porque podia querer mais e por não saber até onde o desejo a levaria. Ela sabia que havia coisas que homens e mulheres faziam juntos, coisas que não eram permitidas antes do casamento.

Ninguém tinha falado com ela sobre essas coisas; o pouco de informação obtida, ela conseguira fora de casa. Ouvia os homens da vizinhança conversando sobre o cruzamento de seus cães, ouvia as piadas grosseiras dos rapazes, e se metia na troca de ideias das mulheres casadas junto com as amigas. Algumas diziam que ficar na cama com um homem era um verdadeiro martírio, outras não davam importância às perguntas e sorriam, recusando‑se a falar.

De repente, Joe a viu e acenou com um sorriso. Ela ruborizou, achando que ele sabia o que ela estava pensando.

— Vem, Fi — a mãe dela chamou. — Ainda tenho que comprar as verduras —Kate seguiu pela rua até a barraca dos Bristow com Fiona atrás.

— Alô, querida! — Fiona ouviu a voz da mãe de Joe chamando sua mãe. Rose Bristow e Kate Finnegan cresceram juntas em Tilley Street, uma rua imunda de Whitechapel, e agora eram vizinhas na Montague Street. Com as histórias que a mãe contava, Fiona soube que as duas eram inseparáveis desde crianças, e que depois de casadas sempre relembravam os velhos tempos.

— Pensei que o assassino tinha pegado você — disse Rose para Kate. Era uma mulher baixinha e gorducha, com o mesmo sorriso franco e os olhos azuis do filho. — Parece que esta semana ele decidiu trabalhar mais. Olá, Fiona!

— Olá, senhora Bristow — Fiona cumprimentou-a com os olhos cravados em Joe.

— Oh, Rose! — disse Kate. — Não brinca com isso! Isso é horrível! Tenho pedido a Deus que a polícia o prenda. Vim rápido ao mercado. Afinal, a gente tem que comer, não é? Quero um quilo e meio de batatas e um quilo de ervilhas. Querida, as maçãs estão boas?

Joe passou os brócolis que tinha nas mãos para o pai. Depois, se dirigiu a Fiona, tirou o boné e secou a testa com a manga da camisa.

— Que droga. Veja só, Fi, hoje estamos sendo tão requisitados que não daremos conta das vendas! As maçãs vão acabar antes mesmo de chegar à barraca. Bem que falei para o papai que devíamos comprar mais...

— ... mas ele não deu ouvidos — Fiona terminou a frase apertando a mão dele. Essa queixa era bem conhecida. Joe sempre estimulava o pai a expandir o negócio, e o senhor Bristow sempre resistia. Ela sabia o quanto isso aborrecia Joe e também sabia que o pai nunca o ouviria. — Doze e dois... — ela disse para elevar o astral dele no código secreto de ambos, uma alusão à quantidade de dinheiro que tinham na lata de chocolate — ... pense nisso.

— Pensarei — ele disse sorrindo. — E depois desta noite haverá mais. Vou faturar um extra com essa gente toda. É tanta gente que nem dá tempo de respirar — ele olhou para o pai e para o irmão mais novo, Jimmy, ocupados com a freguesia. — É melhor voltar. Vejo você amanhã, depois do jantar. Vai estar por lá?

— Ah, não sei — Fiona se pôs coquete. — Só se os meus outros pretendentes deixarem.

Joe lançou um olhar matreiro.

— Ah, sim. Como o vendedor de comida para gato — referia-se a um velho caquético que vendia carne para cachorros e gatos duas barracas adiante. — Ou seria o carroceiro?

— Um dia ainda vou trocar o carroceiro por um reles feirante — rebateu Fiona, cutucando a ponta da bota de Joe com a sua.

— Oh, eu preciso do feirante! — uma voz feminina soou esganiçada.

Fiona virou a cabeça e sufocou um gemido. Era Millie Peterson. A Millie mimada, arrogante e convencida. Tão loura, tão viçosa, tão brilhante e tão linda. Tommy, o pai de Millie, era um dos maiores comerciantes de produtos agrícolas de Londres, com pontos de vendas para o atacado tanto em East End como em Covent Garden. Um homem que se fez sozinho, com sua capacidade e um carrinho de mão, um homem que chegou ao topo com trabalho árduo e uma pitada de sorte. Dentre todos os homens de negócio, ele era o mais esperto. Quanto mais negócios ele fazia, mais tempo passava nas ruas e incrementava o seu conhecimento, observando os fregueses dele e dos outros.

Tommy cresceu em Whitechapel. Quando se casou, foi morar na Chicksand Street, uma rua ao lado da Montague. Na infância, Millie brincava com Fiona e Joe, e com as outras crianças da vizinhança. Mas, logo que Peterson começou a ganhar dinheiro, mudou-se com a família para Pimlico, um lugar melhor, um bairro próspero. Pouco depois da mudança, a mulher de Tommy engravidou pela segunda vez. Ela e o bebê morreram no parto. Ele ficou destroçado. Millie foi tudo que sobrou e tornou‑se o centro de sua existência. Ele a enchia de atenções e presentes na tentativa de substituir a mãe que ela perdera. Tudo que Millie queria, Millie conseguia. E desde criança ela queria Joe. Seu sentimento não era correspondido, mas, determinada a obter o que desejava, ela persistia. E geralmente conseguia.

Não havia grande amizade entre Fiona Finnegan e Millie Peterson e, se Fiona pudesse, diria umas poucas e boas para a outra. Mas estava na barraca dos Bristow e o pai de Millie comprava grande parte das mercadorias dele. A oferta de bons preços depende muito das relações. Ela sabia que tinha que se comportar e segurar a língua. Pelo menos tentaria.

— Oi, Joe — disse Millie, sorrindo‑lhe com doçura. — Oi, Fiona — ela cumprimentou apressada. — Ainda está morando na Montague Street?

— Não, Millie — respondeu Fiona, na cara de pau. — Mudamos para West End. Um lugarzinho adorável. Chama‑se Palácio de Buckingham. Toda manhã, papai tem que dar uma boa caminhada até as docas, mas a vizinhança é ótima.

Millie sorriu sem graça.

— Você está caçoando de mim?

— Se você acha...

— E então, Millie — Joe cortou a conversa —, o que a traz aqui?

— Só estou passeando com meu pai. Ele quer dar uma olhada por aí; ver quem está vendendo bem, quem não está vendendo. Você o conhece, está sempre de olho na melhor oportunidade.

Passeio, uma ova, pensou Fiona com sagacidade. Toda produzida assim?

Todos os olhos voltavam-se para Millie, inclusive os de Joe. Ela vestia um estonteante conjunto de saia e casaco verde-musgo, um casaco de corte justo que realçava sua cintura fina e seus seios fartos. Nenhuma mulher de Whitechapel tinha uma roupa como aquela, e, se tivesse, não a usaria no mercado. Seus cachos dourados estavam penteados e em parte escondidos pelo chapéu da mesma cor da roupa. Brincos de pérola complementavam a gola de renda abotoada embaixo do queixo, e delicadíssimas luvas cor de marfim protegiam suas refinadas mãos.

Olhando-a,Fiona se deu conta de sua roupa desbotada, de sua saia de lã, de sua blusa branca de algodão e de seu xale cinzento de tricô em torno dos ombros. Afastou imediatamente esse sentimento; não permitiria que gente como Millie Peterson a fizesse se sentir inferior.

— Ele está então em busca de novos fregueses? — perguntou Joe com seus olhos e dezenas de outros cravados em Millie.

— Mais ou menos. Não está só em busca de fregueses. Ele gosta de vir ao mercado para achar novos talentos. Está sempre em busca de rapazes promissores. Tenho certeza de que está de olho em você — ela respondeu, repousando a mão sobre o braço dele.

Fiona se viu invadida por uma onda furiosa de ciúme. Fingindo amizade, Millie ultrapassara os limites.

— Está se sentindo mal, Millie?

— Mal? — Millie olhou‑a como se tivesse ouvido uma tolice. — Não, estou ótima.

— Verdade? Até parece que vai desmaiar, amparando-se no Joe dessa maneira. Joe, por que não pega um banco pra Millie se sentar?

— Não precisa, obrigada — replicou Millie, tirando a mão do braço dele.

— Está bem, se você diz. Não vai querer desmaiar por aí. Talvez o seu casaco esteja muito apertado.

— Cala a boca, vaca! — Millie gritou com a face rubra.

— Antes vaca do que cadela.

— Moças, comportem‑se. Não vão brigar no mercado agora, não é? — disse Joe em tom de brincadeira, tentando acalmar as duas, que se entreolhavam como dois gatos eriçados prestes a se engalfinhar.

— Não podemos brigar, não — Millie fungou. — Isso é comportamento de gentinha. De gente da sarjeta.

— Cuidado com quem você chama de gentinha. Não se esqueça de que veio dessa mesma sarjeta, Millie — rebateu Fiona em tom baixo e ríspido. — Talvez tenha se esquecido disso, mas ninguém aqui esqueceu.

Frustrada, Millie mudou de tática.

— Já vou indo. Ficou bem claro que não me querem aqui.

— Que nada, Millie — disse Joe, constrangido. — A Fiona não quis dizer isso.

— Quis sim!

— Está tudo bem — disse Millie tristonha, cravando seus imensos olhos de avelã em Joe. — Vou procurar o meu pai por aí. Vejo você depois. Tomara que mais bem acompanhado. Até logo.

— Até logo, Millie — disse Joe. — Dê lembranças minhas ao seu pai.

Assim que Millie afastou-se e já não podia ouví-lo, Joe voltou‑se para Fiona.

— Olhe só o que você fez. Tinha mesmo que insultar a filha de Tommy Peterson?

— Ela é que provocou. Acha que pode comprá-lo com o dinheiro do pai. Como um saco de laranjas.

— Você sabe muito bem que isso é ridículo.

Fiona chutou o chão.

— É melhor tomar cuidado com esse seu temperamento. Vai agir assim quando a gente tiver a nossa loja? Vai colocar a emoção antes dos negócios?

As palavras de Joe atingiram Fiona. Ele estava certo. Ela se comportara de maneira estúpida.

— Joe, pode nos ajudar aqui? — gritou o senhor Bristow.

— Agora mesmo, papai — Joe também gritou. — Tenho que ir, Fi. Tente acabar as compras sem causar mais discussões, está bem? E deixe de ser tão ciumenta.

— Quem é ciumenta? Eu é que não sou, ela é que é... é insuportável. É isso.

— Você é ciumenta e não há razão alguma para isso — ele replicou enquanto voltava ao seu posto.

— Não sou, não! — Fiona bateu o pé enquanto observava Joe assumindo outra vez o seu lugar à frente da barraca. — Ciumenta — ela bufou. — Por que eu seria ciumenta? Ela só é um punhado de roupas bonitas, jóias, peitões, carinha linda e todo o dinheiro do mundo.

Por que Joe se interessaria por Fiona se o que ela lhe oferecia era muito menos do que Millie oferecia? Com um pai importante e a dinheirama dele, Millie podia dar uma loja para Joe. Aliás, dez lojas. Talvez ele jogasse tudo para o alto — a loja deles, os planos que tinham, tudo — só para ficar com Millie. Especialmente depois que ela se comportara tão mal e o deixara furioso. Ele que se danasse. Ela não seria descartada como um saco de batatas podres. Teria a forra. Diria para ele que gostava de Jimmy Shea, o filho do taberneiro. Lágrimas irromperam de seus olhos. Já estavam a ponto de escorrer pela face quando a mãe surgiu atrás dela.

— Foi a Millie Peterson que acabei de ver? — perguntou Kate, olhando para a filha.

— Foi, sim — respondeu Fiona, abatida.

— Meu Deus, ela está cada vez mais exibida, não é? Essa moça é muito arrogante.

Fiona se entusiasmou um pouco.

— Acha isso mesmo, mamãe?

— É claro que acho. Mas, vamos, que a gente tem que se apressar, quero estar em casa... — a voz de sua mãe se dissipava à medida que ela se dirigia para uma outra barraca e Fiona ouvia a voz de Joe sobrepondo-se à gritaria geral, com as ofertas de suas mercadorias. Parecia mais revigorado que nunca. Ela virou-se e olhou-o.

Joe lhe deu um sorriso e, mesmo sabendo que o dia já estava escuro, ela teve a sensação de que o sol acabara de nascer.

— Este repolho suculento... — ele se gabava —, geralmente cobro três pences por um dessa qualidade, mas esta noite é de graça! Quer dizer, é de graça para a moça mais bonita neste mercado. E aqui está ela! — ofereceu o repolho para Fiona, que o pegou imediatamente. — Ah, senhoras — ele suspirou, balançando a cabeça. — O que posso dizer? Ela roubou meu repolho e meu coração, e, se não me quiser, de qualquer maneira eu a quero, querida — piscou para uma freguesa que, além de banguela, devia ter uns setenta anos.

— Eu fico com você, rapazinho! — a velha senhora gritou de volta. — Mas fique com seu repolho porque prefiro seu pepino! — As mulheres na barraca dos Bristow caíram na risada e de novo os pais de Joe embrulhavam as compras o mais rápido que podiam.

A moça mais bonita do mercado! Fiona estava nas nuvens. Como fora tola ao sentir ciúmes de Millie. Joe era seu e só seu. Acenou‑lhe um adeus e correu para alcançar a mãe. Sentia‑se novamente feliz e autoconfiante. Esquentara a cabeça e se martirizara por nada, mas agora tudo passara.

Essa felicidade certamente sofreria um abalo se ela permanecesse um pouco mais na barraca dos Bristow. Pois justamente na hora em que saiu para seguir a mãe, Millie reapareceu com o pai a reboque. Segurava a manga do casaco dele e apontava para Joe como se mostrasse alguma coisa na vitrina de uma loja, uma coisa que ela desejava. Mas Tommy Peterson não precisava que ninguém guiasse a atenção dele para Joe. Seus olhos sagazes já estavam em cima do rapaz, já o tinham notado e aprovado a forma com que vendia o estoque com rapidez. Pela primeira vez naquela noite, Tommy sorria. A filha dele estava certa; ali estava um rapaz que prometia.

 

CINCO PENCES SANGRENTOS por hora; para arrancar nossas tripas, rapazes— disse Paddy Finnegan batendo o copo no balcão do bar. — Sem qualquer pagamento pelas horas extras. E agora o bastardo quer ficar com o nosso bônus.

— Aquele Burton sanguessuga não tem esse direito — disse Shane Patterson, um homem que trabalhava com Paddy. — Curran falou que se hoje a gente descarregasse o barco até às cinco da tarde, ganharíamos o bônus. Terminamos o serviço lá pelas quatro. E aí ele diz que não vai pagar!

— Ele não pode fazer isso — disse Matt Williams, um outro operário.

— Mas fez — replicou Paddy, relembrando a raiva, os gritos e os palavrões de todos quando o capataz anunciou que o extra, o bônus pago pela rapidez no descarregamento da carga, seria retido.

A porta do pub abriu-se. Todos os olhos se voltaram em sua direção. O Lion era um lugar perigoso para se ficar naquela noite. Bem Tillet, o organizador do sindicato, discursava e cada homem presente colocava seu trabalho em risco só pelo fato de estar ali. O recém— chegado era Davey O‘Neill, outro que trabalhava nas docas, no Armazém do Oliver. Paddy se surpreendeu ao vê-lo. Davey tinha deixado bem claro que não queria saber de sindicato. O rapaz era pai de três filhos e se apavorava só de pensar que podia perder o emprego e não conseguir sustentar a família.

— Ei,Davey! — Paddy o chamou com um grito.

Davey, que era magro e tinha cabelos alourados e olhos curiosos, cumprimentou a todos.

— Uma cerveja para mim, Maggie, e outra para o meu companheiro aqui — disse Paddy para a mulher atrás do balcão, esbarrando no homem à sua direita e derrubando o copo dele. Desculpou-se pelo o que fez com a cerveja e se ofereceu para pagar outra rodada, mas o homem recusou com a cabeça.

— Não foi nada — ele disse.

A mulher chegou com as cervejas espumantes e pegou o pagamento de uma pilha de moedas sobre o balcão. Davey protestou, mas Paddy fez sinal para que ele não se preocupasse.

— O que o traz aqui? — ele perguntou. — Pensavam que você estava tirando o corpo fora.

— E estava, até hoje. Até Curran nos ter roubado — disse Davey. — Embora esteja aqui para ouvir o que Tillet tem a dizer, isso não significa que estou aderindo, mas ouvirei as palavras dele. Não sei em quem acredito. O sindicato diz que vai nos conseguir seis pences por hora, mas Burton afirma que vai nos despedir se a gente aderir ao sindicato. Se eu perder meu emprego, estou frito. Lizzie, minha filha mais nova, está de novo doente. Pulmão fraco. Não tenho dinheiro para os remédios. Minha mulher faz o que pode, aplica emplastros na pobrezinha, mas isso não adianta; a menina vive chorando... — Davey parou de falar; seu queixo tremia.

— Você não precisa explicar nada. Nós todos estamos no mesmo barco — disse Paddy.

— Sim — comentou Matt. — No mesmo barco furado. Você ouviu o Curran no relatório.

Paddy lembrou do discurso que o capataz fizera para eles naquele mesmo dia:

— Pensem em suas famílias, rapazes. Prestem bastante atenção nos riscos que estão correndo — ele tinha dito.

— É nelas que estamos pensando — alguém havia replicado. — Nunca chegaremos a lugar algum se não tomarmos uma posição. Sabemos o que o Burton argumenta com os bancos, Curran. Ele apanha dinheiro para incrementar a Burton Tea. É só você dizer para ele que nós somos a Burton Tea e que, se ele quer fazer melhorias, que comece pelo aumento dos nossos salários.

— Rapazes, rapazes — Curran interveio. — Desistam dessa droga de sindicato. Vocês nunca vencerão.

Paddy então retrucou:

— Davey, eu ouvi o discurso dele. Foi só falatório. Burton está a ponto de dar um grande passo para expandir a companhia. Um companheiro que trabalha nos leilões de chá me confidenciou que ele está pensando em comprar uma propriedade gigantesca na Índia. E que cogita em colocar a Burton Tea como garantia para a compra. Acredite em mim, se alguém está assustado, esse alguém é ele próprio. Ele morre de medo de nos ver no sindicato e com poder de obter dele um pêni extra, e então nos ameaça com a demissão. Mas pense só um pouco... e se todos aqui se sindicalizassem? Toda a turma do cais, todo o pessoal de Wapping? Ele não poderia fazer nada contra nós. Como poderia nos substituir? Todos os homens estariam no sindicato e, veja bem, nenhum sindicalizado aceitaria o trabalho. É por isso que devemos aderir.

— Não sei, não — disse Davey. — Uma coisa é ouvir, e outra, aderir.

— Está bem, então — disse Paddy, olhando para cada companheiro presente. É isso que faremos. Vamos ouvir o homem. Ele é um trabalhador das docas. Conhece a nossa luta. Se não gostarmos do que disser, não perderemos nada. Mas, se gostarmos, ele terá conquistado quatro novos membros.

Todos concordaram. Shane disse que ia procurar uma mesa; Matt e Davey o seguiram. Paddy pediu mais uma cerveja. Enquanto a mulher enchia o copo, ele olhava para o relógio de bolso. Sete e meia. O começo da reunião estava previsto para trinta minutos antes. E cadê o Tillet? Deu uma olhada ao redor, mas não viu ninguém com cara de líder sindical. Só o conhecia através de caricaturas em jornais, mas isso não bastava para reconhecê-lo.

— Acho que você convenceu seus companheiros a aderirem — disse o homem à direita, aquele mesmo a quem tinha esbarrado. Paddy virou-se para ele. Era um homem jovem, esbelto e barbeado, com expressão austera. Usava as mesmas roupas rudes que os trabalhadores das docas. —Você é que está no comando aqui?

Paddy soltou uma gargalhada.

— No comando? Aqui não tem ninguém no comando. Isso é parte do problema.

— Você devia estar no comando. Não pude deixar de ouvir. Você é um grande orador. Persuasivo. Deve acreditar realmente no sindicato.

— Claro que acredito. E você, é daqui?

— Sou do sul. De Bristol.

— Bem, se você trabalhou em Wapping, deve saber o que o sindicato significa pra gente. É nossa única chance de salários decentes e de tratamento justo. Veja aquele velho ali — disse ele, apontando para um canto do bar.— Passou a vida inteira descarregando barcos e aí um caixote caiu em cima dele. Quebrou a cabeça. Ficou abobalhado. O capataz o jogou para fora como se fosse lixo. Está vendo aquele outro perto da lareira? Acabou com a coluna num cais em Marrocos. Está impossibilitado de trabalhar. Cinco filhos. Não ganhou um mísero pêni de indenização. As crianças estavam tão famintas que todas elas e a esposa dele tiveram que trabalhar... — Paddy se pôs em silêncio por um segundo, tomado pela emoção, seus olhos brilhavam de raiva. — Eles nos forçam a trabalhar até a exaustão. Dez a doze horas por dia, seja qual for o clima. Não obrigam nem os animais a trabalhar dessa maneira, mas obrigam os homens. E o que a gente ganha com isso?

— E os outros? Sentem o mesmo que você? Têm espírito de luta?

Paddy se arrepiou.

— Companheiro, eles têm muito espírito de luta. Mas são arrasados a tanto tempo que talvez demore um pouco para que o recuperem. Se visse esses homens, o quanto eles aguentam... — a voz dele se embargou.— Têm espírito,sim, todos eles— ele terminou de falar com suavidade.

— E você...

— É claro, mas você faz muita pergunta esquisita — ele cortou a conversa,subitamente desconfiado. Os proprietários das docas pagavam por informações sobre o sindicato. — Qual é o seu nome mesmo?

— Tillet. Benjamin Tillet — o homem respondeu, estendendo a mão. — E o seu?

Paddy arregalou os olhos.

— Ai, Cristo! — ele gaguejou. — Não o Ben Tillet, não é?

— Acho que sim.

— Então passei esse tempo todo pregando para o padre? Desculpe, companheiro.

Tillet riu com franqueza.

— Desculpa? Por quê? Sindicato é meu assunto favorito. Gostei de ouvir o que você disse. Você tem muito a dizer, e fala muito bem. Mas ainda não sei o seu nome.

— Finnegan. Paddy Finnegan.

— Escuta, Paddy — disse Tillet. — Tenho que pôr essa reunião em marcha, mas estamos desorganizados aqui. Precisamos de líderes locais. Homens que possam inspirar seus companheiros, manter o moral elevado quando as coisas não correrem bem. O que você me diz disso?

— Quem? Eu?

— Sim.

— Eu... não sei. Nunca liderei ninguém. Não saberia como.

— Saberá, sim. Saberá — afirmou Tillet, esvaziando o copo e colocando-o no balcão. — Ainda há pouco, quando seus companheiros se mostravam inseguros, você pediu para que todos pensassem no assunto. Agora sou eu que lhe peço. Vai pensar, não vai?

— Claro — respondeu Paddy, atordoado.

— Que bom. Te vejo depois — Tillet afastou-se na direção da multidão.

É, acho que vou estourar, Paddy pensou. Tinha que admitir que se sentia lisonjeado e honrado por ter sido convidado por Tillet para liderar os homens.Mas uma coisa era se sentir lisonjeado e, outra, assumir a tarefa.Seria capaz de fazer isso?Será que seria mesmo isso?

— Companheiros, trabalhadores das docas — era Tillet. Animado, ele falou para todos sobre o confisco que o Armazém do Oliver fizera com o bônus dos seus operários depois mudou de assunto, abordou o corte de salário ocorrido na Cutler Street Tea Warehouse. Inflamado, descreveu a pobreza e a degradação da vida dos trabalhadores das docas e sentou o pau nos responsáveis. Não se ouvia uma só voz, senão a dele. Os homens erguiam os copos de cerveja no ar e os descansavam nas mesas. Aquele homem quieto e austero tornara-se um agitador.

Enquanto Tillet investia contra o inimigo, Paddy pensava na proposta que recebera. O que fazer? Olhou em volta, para os rostos daqueles que trabalhavam nas docas; assemelham-se a bigornas, endurecidos pelo constante martelar quer receberam da vida. E a bebida era o que quase sempre tirava a preocupação daqueles rostos. Copo após copo. Bebida que dissipava a imagem do capataz implacável, do olhar melancólico da esposa, dos filhos mal alimentados e a contínua dor de saber que, por mais que pegassem no pesado, não deixariam de ser trabalhadores das docas que nunca teriam o suficiente: carvão suficiente no depósito, comida suficiente à mesa. Mas, naquela noite, alguma coisa iluminava aqueles rostos: a esperança.Tillet os fizera enxergar a possibilidade de vitória.

Paddy pensava em sua família. Agora tinha a chance de lutar por ela na linha de frente. Por mais dinheiro, mas também por alguma coisa maior. Por uma chance, por uma voz. Os trabalhadores das docas nunca tinham tido isso. Se recusassem a proposta de Tillet, como poderia conviver consigo próprio sabendo que não fizera o melhor pelos seus filhos?

Ecoou uma ovação entre os homens; eles estavam aplaudindo. Paddy olhou para Tillet, que cumprimentava a audiência, próximo à lareira, e viu o reflexo do fogo nos rostos que o observavam. Não havia mais dúvida em sua mente. Quando Tillet quisesse saber de sua resposta, ele saberia o que dizer.

Renda-se agora, Jack Duggan, você vê que somos três para um,

Renda-se em nome da Rainha, você é um filho espoliado...

Fiona acordou com o som de uma canção. Vinha dos fundos da casa. Abriu os olhos. O quarto estava escuro. Charlie e Seamie dormiam; podia ouvir a respiração deles. É tarde da noite, ela pensou, sonolenta. Por que papai está cantando no quintal?

Sentou-se na cama e, sem enxergar nada, procurou a lamparina e a caixa de fósforos à cabeceira. Esticou os dedos e tateou, levou alguns segundos para alcançar a caixa e acender um fósforo. A luz da lamparina iluminou debilmente o pequeno cômodo que durante o dia era sala de visitas e, à noite, quarto de dormir para ela, Charlie e Seamie. Abriu a cortina — um velho lençol dependurado numa corda — que a separava dos irmãos e foi até a cozinha.

— Jack sacou duas pistolas do cinto e empunhou-as com orgulho...

Ela ouviu o rangido da porta se abrindo, e depois a apoteose.

— Lutarei e não me renderei, disse o pequeno soldado!

— Papai! — ela fez um sinal para que ele não fizesse barulho enquanto saía para o quintal totalmente às escuras. — O senhor vai acordar a casa inteira com essa barulheira. Vamos entrar!

— É pra já, minha querida — Paddy falou bem alto.

— Psiu, papai! — ela voltou para a cozinha, pôs a lamparina sobre a mesa e encheu uma chaleira de água. Depois, juntou uma pequena pilha de carvão em brasa debaixo da grelha do fogão.

Paddy entrou na cozinha com um sorriso solto na face.

— Parece que a bebida me fez bem, Fi.

— Estou vendo. Vem e senta aqui. Coloquei a chaleira no fogo. Quer que faça uma torrada? Acho que devia pôr alguma coisa no estômago.

— Sim, isso seria ótimo — ele sentou-se perto do fogo, esticou as pernas e fechou os olhos.

Fiona pegou um pão dentro do armário, cortou uma fatia e espetou-a com um garfo para tostar.

— Olhe aqui, papai — ela cutucou o pai bêbado. — Cuidado pra não deixar o pão pegar fogo.

A água ferveu. Ela acrescentou o chá. Depois, puxou uma cadeira da mesa até o fogão, onde pai e filha sentaram-se em silêncio como dois companheiros; Fiona aquecia os pés no calor do fogão e Paddy virava a torrada em cima das brasas do carvão.

Ela olhou de soslaio para o pai e sorriu. Se a mãe e Roddy não estivessem dormindo, não teria feito sinal para que ele se calasse. Adorava ouví-lo cantar. O som da voz do pai era uma de suas lembranças mais antigas. Ele, não a mãe, é que cantava cantigas de dormir para ela. Cantava a caminho do trabalho — tão alto que se ouvia na rua inteira — e quando voltava do pub. Nas tardes em que ficava em casa para remendar suas botas ou fazer brinquedos para Seamie, ele cantava na cozinha. Quantas noites ela dormira aninhada nas cobertas com a voz dele a entoar graves e agudos? Inúmeras vezes.

— Bem, mocinha — disse Paddy, mastigando um pedaço de torrada. — Será que devo lhe contar as novas?

— Que novas?

— Esta noite você não está tomando chá com um reles trabalhador das docas.

— Estou tomando chá com quem então?

— Com o novo líder da Associação dos Trabalhadores de Wapping.

Fiona arregalou os olhos.

— Está brincando, pai!

— Não estou, não.

— Desde quando?

Paddy limpou a boca com as costas da mão.

— Esta noite. No pub. Antes da reunião, conversei com Ben Tillet por alguns minutos. Enchi os ouvidos dele, mas ele deve ter gostado do que falei porque me pediu para ser o líder local.

Os olhos de Fiona brilhavam.

— Isso é ótimo — ela disse. — Meu pai é um figurão. Estou tão orgulhosa! — começou a rir. — Espere só até o senhor contar pra mamãe, ela vai desmaiar! O padre Deegan vive dizendo que os sindicalistas são um bando de socialistas ateus. O senhor vai acabar ganhando chifres e um rabo pontudo. Mamãe vai ter que passar mais tempo rezando o terço.

Paddy riu.

— O padre Deegan tem que dizer isso. William Burton deu um bocado de dinheiro para o conserto do telhado da igreja.

— E o que o senhor tem que fazer?

— Tentar de todas as maneiras fazer com que os homens se unam. Convocar reuniões e coletar contribuições. E também ir às reuniões com Tillet e os outros líderes — ele deu uma pausa para beber um gole de chá e depois acrescentou.—Talvez eu consiga convencer a minha mocinha a entrar para o sindicato.

— Ora, papai — ela suspirou. — Não comece com isso de novo. O senhor sabe que eu só quero poupar um ou dois xelins para a minha loja. Não sobra nada para contribuições.

— Você podia começar apenas participando das reuniões. Não precisa dar nada pra eles...

— Pai — ela o interrompeu, determinada a cortar o assunto de sua possível adesão antes que ele viesse com outro argumento. — Não quero ser operária para sempre. Lembra de quando eu e Charlie éramos crianças e o senhor nos dizia que devíamos ter um sonho? O senhor falava que, quando a gente para de sonhar, é melhor encomendar o caixão e morrer. Bem, o sindicato é o seu sonho e significa muito para o senhor. O meu sonho é ter uma loja e para mim este sonho significa o próprio mundo. Ou seja, o senhor fica com o seu sonho e eu, com o meu... está bem?

Paddy olhou profundamente para a filha e depois cobriu a mão dela com a sua.

— Está bem, mocinha teimosa. Ainda tem um pouco de chá na chaleira?

— Tem, sim — Fiona encheu a xícara do pai, aliviada pela discussão não ter continuado.— Ah! Chegou uma carta do tio Michael! — ela disse entusiasmada. — Tia Molly está esperando um bebê! Ele diz que a loja está indo bem. Quer ver a carta?

— De manhã eu leio, Fi. Estou sem vista para lê-la agora.

— Nova York deve ser o máximo — ela pensava no seu tio na América, na esposa dele e na lojinha de ambos. No ano anterior ele tinha enviado uma fotografia dos dois na frente da loja, com o letreiro M. Finnegan — Armazém. A ideia de que o tio era dono uma loja a inspirava. Talvez isso estivesse no sangue. — Acha que posso escrever e perguntar pra ele sobre o negócio? — ela disse.

— Claro que pode. Ele vai adorar. É bem provável que responda com uma carta de vinte páginas... Michael gosta de espichar as ideias.

— Vou separar alguns pences para o papel e o selo... — ela falou com voz sonolenta, bocejando. Poucos minutos antes, a urgência de pôr o pai para dentro de casa antes que ele acordasse a rua inteira a deixara completamente desperta. Mas agora, sentada ao pé do fogão, aquecida por dentro e por fora, o sono voltava. Se não fosse logo para a cama, no dia seguinte estaria exausta quando a mãe se levantasse para ir à missa e acordasse o resto da casa para o trabalho.

Kate ia à missa todos os dias da semana pela manhã, e levava Seamie e Eileen com ela. Seu pai nunca ia. Nem mesmo aos domingos, quando Fiona e Charlie iam. Ele não fazia questão de esconder que não gostava de igreja. Não fora nem nos batizados dos filhos. Tio Roddy teve que representá-lo.

Ela se perguntava como a mãe o convencera a comparecer ao próprio casamento.

— Pai? — disse Fiona ainda sonolenta, enrolando uma mecha de cabelo no dedo.

— Humm — resmungou Paddy, mastigando um pedaço de torrada.

— Por que o senhor nunca vai à igreja com a gente?

Paddy engoliu a torrada, olhando para o carvão em brasa.

— Essa é uma questão difícil. Eu simplesmente poderia dizer que nunca gostei da ideia de me confessar para um bando de velhos de batina, mas tem outras coisas envolvidas. Coisas que nunca falei nem para você nem para o seu irmão.

Fiona olhou-o, surpresa e um pouco apreensiva.

— Você sabe que eu e seu tio Michael vivemos em Dublin quando éramos bem novinhos. E também sabe que fomos levados pela irmã de minha mãe, a tia Evie, não é?

Ela assentiu com a cabeça. Sabia que o pai perdera os pais ainda menino. A mãe dele morrera num parto e o pai, logo depois.

— De quê? — ela perguntou certa vez.

— De dor — foi o que ele respondeu.

Ele quase nunca falava dos pais dele. E ela acabou achando que ele era muito novo para se lembrar.

— Pois bem — ele continuou —, antes de nossa ida para Dublin, morávamos com nossos pais em uma pequena fazenda, em Skiberreen. Na costa de County Cork.

Fiona ouvia de olhos arregalados e curiosos. Conhecera os avós maternos antes da morte deles, mas não sabia nada do lado paterno.

— Meus pais se casaram em 1850 — disse Paddy, tomando um gole de chá —, um ano após a praga da batata. Meu pai queria casar mais cedo, mas não pôde por causa da fome que assolava o país. A crise foi tão feia naquela época... bem, você já ouviu muitas histórias a respeito, dificilmente um homem conseguia encontrar comida para encher sua própria barriga e ainda mais para uma família. Meus pais tinham passado por muitas dificuldades e ambos tinham perdido a família. Meu pai sempre dizia que a coisa que o incentivava a persistir era a esperança de um dia se casar com minha mãe.

Paddy descansou a xícara e permaneceu sentado na cadeira com os cotovelos apoiados nos joelhos e o olhar distante. Um sorriso pálido e triste emergiu em seu rosto e desenhou uma ruga nos cantos dos olhos.

— Ele era louco por ela. Adorava ela. Eles se conheciam desde crianças. Ele vivia levando coisas pra ela. Coisas bobas. Violetas bravas na primavera e ovos de pata—roxo vazios. Seixos de praia e pequenos ninhos de passarinho. Meu pai não tinha dinheiro. Essas coisas não valiam nada, mas para minha mãe eram muito valiosas. Ela guardava tudo que ganhava dele.

Paddy continuou.

— Meu pai e minha mãe trabalharam muito, os dois, juntos. Conheceram a fome e queriam ter certeza de que jamais passariam por isso outra vez. Fui o primeiro filho. Depois veio o Michael. Eu tinha quatro anos quando ele nasceu. Quando eu estava com seis anos, minha mãe engravidou de novo. Passava mal a maior parte do tempo. Ainda me lembro bem disso, embora só fosse um garotinho. À medida que Paddy contava a história de sua infância, seu semblante se transformava. As lembranças do passado desbotavam seu sorriso agridoce; seus olhos se enevoavam e as rugas que cortavam as maçãs do rosto e da testa tornavam‑se subitamente mais profundas.

— Na hora do parto, o meu pai saiu para buscar uma parteira. Deixou-me em casa para cuidar de mamãe e do meu irmão. Ela foi piorando enquanto ele estava fora. Agitada, agarrava‑se nas laterais da cama e lutava para não gritar. Eu tentava ajudá-la e corria de lá pra cá com o lenço do papai, molhava‑o e passava na testa dela.

Paddy prosseguiu.

— Quando finalmente a parteira chegou, ela examinou a minha mãe e aconselhou o meu pai a chamar o padre. Ele não queria sair de perto dela. Não deu um só passo até que a mulher começou a gritar com ele: ―Vai lá, homem! Vai, pelo amor de Deus! Ela precisa de um padre!‖. Ele acabou cedendo. Não foi preciso ir muito longe, logo retornou com o padre McMahon. O padre mais parecia um varapau. Eu e Michael estávamos sentados à mesa da cozinha; a parteira tinha nos expulsado do quarto. Meu pai e o padre entraram, mas ela também expulsou o papai. Ele entrou na cozinha, sentou‑se na frente do fogão e ficou lá, com os olhos fixos no fogo, sem mover um músculo.

Exatamente como o senhor, papai, pensou Fiona com o coração doendo pelo pai, pelo jeito dele de sentar, com os ombros caídos e as mãos grandes e fortes entrelaçadas frente ao corpo.

— Eu estava sentado perto do quarto e pude ouvir o que falavam. A parteira,que se chamava senhora Reilly, e o padre. Ela dizia que a mamãe tinha sangrado muito e estava muito fraca, e que seria ou um ou outro. ―Salve a criança‖, disse o padre. ―Mas, padre‖, eu ouvi quando ela disse, ―essa mulher tem dois filhos e um marido que precisam dela, claro que o senhor não...‖.

Paddy não parava de falar.

— Então, o padre disse: ―Preste atenção, senhora Reilly, o bebê ainda não é batizado. Com essa demora, a senhora está pondo em risco a imortalidade da alma dessa criança e de sua própria alma‖. Resumindo, a senhora Reilly tirou a criança de dentro da mamãe. Deus sabe como. O pobre bebê não emitiu um único som. Poucos minutos depois, senti o cheiro de velas e ouvi a voz do padre recitando em latim.

Meu pai também ouviu. Correu para dentro do quarto. Eu o segui e o vi afastar o padre e tomar minha mãe nos braços e segura‑la como uma criança, murmurando palavras em seu ouvido enquanto ela morria — a voz de Paddy ficou embargada e ele engoliu em seco. — A criança foi batizada com o mesmo nome do meu pai, Sean Joseph. Foi o padre que escolheu esse nome. Uma hora depois, ela também morria.

Paddy seguiu adiante.

— Meu pai permaneceu com minha mãe por muitas horas. Já era madrugada quando finalmente a deixou. O padre já tinha ido até os vizinhos, os McGuire, para pegar um pouco de comida e pedir à senhora McGuire para cuidar de nós. A senhora Reilly vestiu o bebê morto. Meu pai colocou o seu casaco de trabalho e me pediu para cuidar do meu irmão. Ele estava terrivelmente silencioso. Se tivesse se enfurecido e quebrado os móveis, talvez tivesse extravasado o sofrimento que estava sentindo. Mas não conseguiu fazer isso. Vi os olhos dele. Estavam mortos. Não havia nem luz nem esperança dentro deles.

Paddy deu uma pausa, e disse em seguida:

— Ele falou para a senhora Reilly que ia ver os animais. Nunca mais voltou.

Quando escureceu, ela foi procurá-lo no celeiro. Os animais tinham recebido alimentação e água, mas ele não estava lá. Ela correu e chamou o padre McMahon e o senhor McGuire para procurá-lo. Eles o acharam na manhã seguinte. No fundo de um penhasco, onde ele e mamãe costumavam passear antes de se casarem. Sua coluna estava quebrada e o mar batia em sua cabeça esmagada.

Com os olhos entorpecidos, Paddy pegou a xícara e tomou outro gole de chá.

O chá deve estar frio, pensou Fiona. Acho que vou pôr um pouco mais de chá quente para ele. Oferecer outra torrada. Acabou não fazendo nem uma coisa nem outra.

— O padre avisou minha tia em Dublin e nós ficamos com os McGuire até a chegada dela, dois dias depois. O funeral de minha mãe e do bebê se deu no mesmo dia em que ela chegou. Lembro claramente daquele dia. Lembro do caixão aberto, da missa, do caixão de minha mãe sendo enterrado ao lado do caixãozinho do meu irmão. Não derramei uma única lágrima no cemitério. Eu achei — ele sorriu de repente —, que os dois podiam me ver e queria me mostrar corajoso para que se orgulhassem de mim.

Paddy seguiu em frente.

— No dia seguinte, o padre me levou para o funeral do meu pai, se é que se pode chamar aquilo de funeral. Vi quando os homens o enterraram num canteiro de urtigas próximo ao penhasco de onde ele pulou. E então, oh, Cristo, ai, mocinha, as lágrimas começaram a escorrer e lá estava eu de pé, chorando e me perguntando por que ele não estava sendo enterrado ao lado de minha mãe. E de Sean Joseph. Eu não conseguia entender. Ninguém me disse que o padre tinha proibido o enterro de um suicida no cemitério da igreja. A única coisa que eu pensava é que papai estava lá sozinho, sem ninguém, acompanhado apenas pelo barulho das ondas. Com frio... tão solitário... sem minha mãe ao lado dele... — as lágrimas irromperam dos olhos angustiados de Paddy e escorreram pelo rosto. Ele abaixou a cabeça e caiu em prantos.

— Oh, papai... — Fiona gemeu, sufocando as próprias lágrimas. Chegou‑se para o lado do pai e encostou a cabeça no ombro dele. — Não chore, papai — sussurrou—, não chore...

Paddy ainda não terminara.

— Aquele maldito padre não tinha o direito de fazer aquilo, não tinha esse direito — ele falou com voz rouca. — A união deles era sagrada, muito mais sagrada do que aquele bastardo junto com toda a sua igreja infame.

O coração de Fiona se condoeu por aquele garotinho, pelo seu pai. Nunca vira o pai chorar, pelo menos daquele jeito. Os olhos dele tinham marejado durante os difíceis e demorados partos de Eileen e Seamie. E nos dois abortos que a mãe sofrera antes de Seamie nascer. Agora ela sabia a razão. E sabia por que ele nunca ia para o pub quando a mãe padecia na cama, ao contrário dos outros pais.

Paddy ergueu a cabeça. E disse, enquanto secava os olhos com as costas da mão:

— Desculpe, Fi. A cerveja deve ter me deixado atordoado.

— Tudo bem, papai — Fiona sentiu-se aliviada porque ele não estava mais chorando. Voltou a sentar-se.

— Veja, Fiona, eu lhe contei tudo isso porque, quando fiquei mais velho, pensei em tudo que tinha acontecido e achei que minha mãe e meu pai ainda estariam vivos se não fosse por aquele padre. Se ele não tivesse mandado a parteira salvar a criança em vez de minha mãe, talvez ela estivesse viva e meu pai não teria feito o que fez. Ainda penso nisso. E é por tudo isso que não vou à igreja.

Fiona balançou a cabeça, em sinal de que compreendera tudo o que o pai dissera.

— É claro que nada disso soará bem para a sua mãe — Paddy referia‑se às suas velhas lembranças. — E seria bom você manter essa conversa em segredo. A igreja significa muito para ela.

— É claro, papai — ela certamente manteria a conversa só para si. Sua mãe era muito devota, nunca perdia a missa e rezava o terço de manhã e de noite. Acreditava que os padres estavam acima de qualquer crítica e divulgavam a palavra de Deus, e que eram especiais para Ele. Fiona nunca questionava isso, assim como nunca questionava o céu ou o sol, nem a existência de Deus.

— Papai... — ela começou a falar hesitante, com um pensamento assustador na cabeça.

— O quê, Fi?

— Embora não goste de padres nem de igreja, você acredita em Deus, não é?

Paddy refletiu um pouco e depois respondeu:

— Sabe em que acredito, mocinha? Acredito que um quilo e meio de carne faz um bom refogado — ele riu da expressão atordoada da filha. — E também acredito, minha querida, que já é hora de você ir dormir. Amanhã tem que trabalhar. Vá logo que eu vou ficar pra limpar o que sujamos.

Fiona não queria ir para a cama, queria ficar e fazer com que o pai explicasse aquela história de um quilo e meio de carne, mas ele já estava pegando o bule de chá e parecia muito cansado para continuar falando. Beijou‑o, deu boa‑noite e voltou para a cama.

Logo caiu no sono, mas não dormiu bem. Teve o sono agitado por um sonho no qual ela corria para a Igreja de São Patrício, atrasada para a missa. Chegava à igreja e as portas estavam trancadas. Contornava o prédio, berrando pelas janelas, fazendo de tudo para entrar. Depois, retornava à porta, esmurrava‑a e suas mãos se cortavam e sangravam. A porta abria‑se de repente e lá dentro estava o padre Deegan, com uma grande panela de ferro. Ela enfiava a mão no bolso da saia, tirava o terço e o entregava ao padre. Ele lhe dava a panela e se retirava, trancando a porta atrás de si. A panela era pesada e ela fazia muito esforço para carregá-la na descida da escadaria da igreja. Repousava a panela no último degrau e abria a tampa. Uma onda de vapor saía da panela e batia em seu rosto, um vapor aromático com cheiro de ensopado de carneiro, cenoura e batata. A panela estava cheia de ensopado.

 

UMA NEBLINA DENSA circundava os lampiões a gás da High Street e ofuscava a luminosidade enquanto Davey O‘Neill seguia Thomas Curran pelo cais do Armazém do Oliver. Era perigoso andar pelas docas em noites como essa; um único passo em falso e podia‑se despencar no rio sem que ninguém ouvisse, mas precisava correr esse risco. O capataz tinha um serviço para ele, uma coisinha à parte. Sem dúvida alguma se tratava de carregar carga roubada. Não queria se envolver com esse tipo de coisa, mas não tinha escolha, Lizzie estava doente e ele precisava de dinheiro.

Curran fechou o portão atrás deles e acendeu uma lanterna, meio desajeitado. O brilho iluminou um caminho entre caixotes de chá que terminava nas portas que davam direto ao rio. Outra vez do lado de fora, Davey via a neblina que pairava sobre o Tâmisa, engolfando grande parte da doca. Ele se perguntava como alguém podia encontrar o Armazém do Oliver naquela escuridão, e ainda por cima trazer um bote e carregá-lo com as mercadorias. Ficou em silêncio por alguns segundos, à espera das orientações de Curran, mas o capataz não disse nada. Simplesmente acendeu um cigarro e encostou‑se na porta. Olhando‑o, Davey se deu conta de que se por alguma razão quisesse voltar por aquela porta, não conseguiria, não com aquele homem bloqueando a passagem. O pensamento o fez sentir-se desconfortável.

— Vem mais alguém, senhor Curran? — ele perguntou.

Curran balançou a cabeça.

— Quer que pegue alguma coisa?

— Não.

Davey sorriu, confuso.

— O que o senhor quer então que eu faça?

— Responda algumas perguntas, senhor O‘Neill — disse uma voz atrás dele.

Davey virou‑se, mas não viu ninguém. A voz parecia ter saído da neblina. Esperou para ver se ouvia o som de passos, mas não ouviu nada, apenas o rumor da água do rio que batia nas pilastras do cais.

Já com medo, ele voltou‑se de novo para Curran.

— Por favor, senhor Curran... o que está havendo... eu...

— Davey, eu quero lhe apresentar o seu patrão — disse Curran, inclinando a cabeça para o lado direito de Davey.

Davey olhou e avistou uma figura sombria que emergia da neblina: um homem de estrutura física bem acima da média, poderosamente constituído. Tinha os cabelos negros penteados para trás, sobrancelhas negras e olhos de predador, sombrios. Davey estimou que ele devia ter uns quarenta anos. As roupas lhe davam uma aparência de cavalheiro: vestia um sobretudo preto de caxemira sobre um elegante terno de lã cinza com um pesado relógio de ouro preso no bolso, mas não havia nada de gentil nele. Suas feições apresentavam um não sei quê de brutalidade, um rastro de violência latente.

Davey tirou o chapéu e o segurou com as duas mãos, escondendo‑as para evitar o aperto de mãos.

— Co... como vai o senhor, senhor Burton?

— Ouviu o que o senhor Curran lhe disse, senhor O‘Neill?

Davey olhou angustiado para Burton e depois para Curran e de novo para Burton.

— Não compreendo, senhor...

Burton afastou‑se dos dois homens, caminhando até a extremidade da doca com as mãos para trás.

— Ou então prestou atenção nas palavras de Ben Tillet?

Davey sentiu um frio na barriga.

— Senhor Bur... Burton — ele gaguejou com um fiapo de voz. — Por favor, não me despeça. Só compareci a uma reunião. Eu... eu não irei à outra. Nunca mais. Por favor, senhor, preciso do meu emprego.

Burton voltou‑se para ele. Davey não pôde ler nada em seu rosto. Mostrava‑se completamente inexpressivo.

— O que o Tillet lhe disse, senhor O‘Neill? Pediu para que lutasse? E que sindicato é esse que ele quer? Ele quer me derrubar? Quer que o meu chá apodreça nos barcos?

— Não, senhor...

Burton se pôs a rodeá-lo devagar.

— Acho que quer, sim. Acho que o Tillet quer me destruir. Arruinar o meu negócio. Não estou certo?

— Não, senhor — Davey retrucou.

— Então, o que esse sindicato quer?

A essa altura, Davey suava, olhando ora para Burton ora para a doca, até que murmurou uma resposta.

— Não ouvi o que o senhor falou — disse Burton, aproximando‑se tanto que Davey podia sentir o cheiro da raiva dele.

— Ma... mais dinheiro, senhor, e menos horas de trabalho.

No futuro — nos amargos e terríveis anos que teria à frente —, Davey tentaria se lembrar de como aquele homem tinha feito o que fez. Como pôde tirar uma faca do bolso com tanta rapidez e usá-la com tanta maestria. Mas naquele instante só sentiu como se o marcassem com ferro em brasa num dos lados da cabeça e o pescoço encharcado.

E depois, ele a viu... sua orelha... no chão da doca.

A dor e o choque o fizeram cair de joelhos. Tapou o ferimento e o sangue que escorria entre seus dedos e suas mãos era uma prova daquilo que sua mente se recusava a aceitar: não havia mais nada, nada mesmo, no lugar de sua orelha.

Burton pegou aquele pálido pedaço de carne e jogou-o para fora da doca. Ouviu-se um pequeno e discreto splash. Obviamente, Davey nunca mais veria a esposa e os filhos, e ele se pôs então a soluçar. Só parou quando sentiu a ponta gelada da faca sob a orelha que sobrara. Ele olhou aterrorizado para Burton.

— Não... — gemeu. — Por favor...

— É essa escória de sindicato que vai me dizer como gerenciar o meu negócio?

Ele tentou negar com a cabeça, mas a faca o impediu.

— Devo obedecer às ordens de rufiões que querem me extorquir?

— Na... não... por favor, não me corte outra vez.

— Vou lhe dizer uma coisa, meu amigo. Lutei muito para que a Burton Tea se tornasse o que é, e esmagarei qualquer coisa, qualquer um que tente se meter no meu caminho. Está me entendendo?

— Estou.

— Quem mais estava na reunião. Quero todos os nomes.

Davey engoliu em seco. Não disse nada.

Curran se aproximou dele.

— Diz logo, rapaz — ele berrou. — Não seja tolo. Por que se preocupar com os outros, Davey? Eles não estão aqui pra ajudá-lo. Davey fechou os olhos. Isso não. Por favor, isso não. Ele queria falar, queria salvar a sua vida, mas não podia entregar os companheiros. Se os entregasse, talvez Burton lhes fizesse o que fizera com ele. Apertou os dentes, esperando pelo golpe da faca, pela dor, mas nada disso aconteceu. Abriu os olhos. Burton já se afastava. Não segurava a faca. E, quando viu Davey olhando-o, fez um sinal para Curran. Davey se distanciou apressado, achando que era um sinal para que Curran acabasse com ele, mas o homem simplesmente entregou‑lhe um envelope.

— Abra — disse Burton.

Ele abriu. Lá dentro havia dez libras.

— Dá para ajudar nas despesas com o médico da Elizabeth, não dá?

— Co... como o senhor sabe?

— Tenho os meus métodos para saber. Sei que você é casado com Sarah, uma moça linda. Tem um filho, Tom, de quatro anos de idade. E uma filha, Mary, com três anos. A Elizabeth só tem um ano. Uma família maravilhosa. Um homem deve cuidar bem de uma família como essa. Não deixar que nada lhe aconteça.

Davey empalideceu. Agora, mais do que dor, mais do que raiva e medo, ele sentia ódio. O ódio estava em seu coração e em seu rosto. Ele sabia que Burton podia vê-lo, mas não se importava. Burton o tinha nas mãos. Se não lhe desse o que ele queria, sua família é que pagaria o preço. Ele podia se dar em sacrifício, mas não tinha o direito de sacrificar a família.

— Shane Patterson... — ele começou a falar. — ... Matt Williams... Robbie Lawrence… John Poole…

Quando acabou sua lista de nomes, Burton perguntou:

— Quem está no comando?

Davey hesitou.

— Ninguém. Ninguém foi escolhido ainda... eles não têm...

— Quem está no comando, senhor O‘Neill?

— Patrick Finnegan.

— Muito bem. Não deixe de comparecer às reuniões e mantenha o senhor Curran informado. Se fizer isso, terá o meu apreço no seu salário. Se não fizer, ou se for tolo o bastante para contar o que houve aqui esta noite, sua esposa vai desejar estar longe de você. Boa noite, senhor O‘Neill. É hora de sair daqui para cuidar desse ferimento. O senhor perdeu um pouco de sangue. Se alguém fizer perguntas sobre a orelha, ponha a culpa num ladrão. Diga que, quando ele descobriu que o senhor não tinha nada para lhe dar, cortou sua orelha. E diga que não conseguiu vê-lo por causa do nevoeiro.

Davey saiu andando, atordoado. Pegou o lenço no bolso e o pressionou na cabeça. Enquanto atravessava a doca ainda podia ouvir a voz de Burton.

— O líder... Finnegan. Quem é ele?

— Um bastardo arrogante. Tem sempre uma palavra para dizer. Mas é um bom operário. Não posso negar isso, é um dos melhores.

— Eu quero que ele seja um exemplo.

— Como, senhor?

— Quero que seja liquidado. O Sheehan cuidará disso. Ele vai falar com você.

Paddy... meu Deus... o que foi que eu fiz? Davey gemeu por dentro, morto de vergonha. Saiu cambaleante do cais e entrou na rua tomada pelo nevoeiro. Sentia‑se tão tonto e fraco que acabou tropeçando no paralelepípedo e teve que se segurar no poste. Seu coração pesava dentro do peito. Pôs a mão ensanguentada sobre o peito e soltou um grito de angústia. Agora ele era um traidor, um Judas. E sob sua pele e seus ossos já não havia um coração, apenas uma coisa enegrecida, partida e podre que ainda palpitava.

 

AS MÃOS DE FIONA TREMIAM enquanto ela despejava dentro de uma lata as folhas de chá que acabara de pesar. Sabia que não podia se desconcentrar. Se ele a visse fazer isso, seria despedida. Certamente era para isso que estava ali, para despedir alguém. Por que William Burton faria uma visita de surpresa? Para dar um aumento de salário a elas? Ele passou próximo e ela ouviu seus passos lentos e medidos. Sentiu o olhar dele cravado em suas mãos que lacravam a lata e colavam o rótulo. Ele percorreu a mesa até o fim e foi para o outro lado. Na metade da fileira, deteve-se. O coração de Fiona deu um salto. Não precisava vê-lo para saber onde estava: atrás de Amy Caldwell. Sai daí, mandou-lhe uma ordem em silêncio. Deixe-a em paz.

Amy era uma moça simples de apenas quinze anos de idade. Seus dedos não eram ágeis e algumas vezes ela esbarrava no prato da balança e derramava o conteúdo ou colava o rótulo errado. Todas as moças colaboravam, trabalhando um pouco mais para compensar a lentidão de Amy. Era o jeito delas de cuidarem umas das outras.

Fiona pesou mais chá, rezando para que Amy não cometesse algum erro. E ouviu então o som inconfundível do prato da balança. Seus olhos se desviaram, certeiros; Amy tinha derrubado chá na mesa. E, em vez de recolher as folhas, estava de pé, batendo o queixo, com ar desamparado.

— Recolhe tudo, querida — sussurrou Fiona para ela. — É isso aí, menina, segue em frente...

Amy entendeu o recado e recolheu o chá da mesa enquanto Burton se afastava para aterrorizar outra moça. Fiona o assistia, furiosa. O acidente de Amy se dera por culpa exclusivamente dele. Não teria errado se ele não tivesse ficado parado tanto tempo atrás dela, deixando a pobrezinha nervosa.

William Burton era um dos mercadores de chá mais ricos e mais bem-sucedidos da Inglaterra. Viera do nada e se igualara aos nomes mais respeitados do ramo: Twining, Brooke, Fortnum&Mason, Tetley. Fiona conhecia a história dele, todo mundo conhecia. Ele tinha nascido e crescido em Camden Town, filho único de uma costureira já falecida cujo marido perecera no mar. Abandonou a escola aos oito anos para trabalhar numa loja de chá e aos dezoito anos, depois de árduo trabalho e muita economia, comprou uma loja e a transformou no alicerce daquilo que mais tarde seria a Burton Tea. Nunca se casou e não tinha família.

Fiona admirava a determinação e perseverança que o impulsionaram ao sucesso, mas não gostava do homem. Não conseguia entender como alguém que tinha vivido e escapado da miséria não mostrava compaixão por aqueles que deixara para trás.

Burton terminou sua ronda e em seguida chamou o senhor Minton. Fiona ouviu quando conversavam. Ainda havia um outro homem. Podia ouvir a voz dele. Arriscou uma olhadela e notou que Burton apontava para várias moças enquanto Minton negava com a cabeça e o terceiro homem, alto, corpulento e ricamente vestido, consultava seu relógio. Depois, visivelmente constrangido, Minton se dirigiu a elas:

— Atenção, meninas. O senhor Burton acaba de me informar que os diversos projetos de expansão recentemente realizados demandam drásticas medidas econômicas...

Cinquenta e cinco rostos, inclusive o de Fiona, voltaram-se para o gerente. Elas não entendiam a retórica dele, mas sabiam que não era coisa boa.

— ... e isso significa que terei que despedir algumas de vocês — ele continuou, provocando um arfar coletivo.— As que tiverem os nomes enunciados, façam o favor de ir ao meu escritório para receber seus salários: Violet Simms, Gemma Smith, Patsy Gordon, Amy Caldwell... — a lista atingiu o total de quinze nomes. E Minton, que segundo o que Fiona testemunhou pelo menos teve a decência de se mostrar constrangido, acrescentou. — Fiona Finnegan...

Ai, meu Deus, não. O que diria para a sua mãe? A família precisava do salário dela.

— ...será multada em seis pences por conversar. Se houver mais conversas, qualquer barulho, as responsáveis serão multadas. Agora, voltem ao trabalho.

Fiona piscou para ele, aturdida e aliviada por não ter sido despedida, e furiosa por ter sido multada apenas porque tentou ajudar Amy. Ela ouviu ao redor o movimento das quinze moças em choque que soluçavam enquanto recolhiam seus pertences. Fechou os olhos. Pequenos pontos luminosos e brilhantes surgiram atrás de suas pálpebras. Era raiva pura e forte dentro dela. Tentou repelir esse sentimento.

Respirando fundo, abriu os olhos e pegou a concha que usava para recolher o chá. Mas não pôde deixar de olhar as pálidas e trêmulas companheiras que se dirigiam para o escritório de Minton. Sabia que Vi Simms trabalhava para o seu próprio sustento e da mãe doente. Gem tinha oito irmãozinhos e um pai que deixava todo o salário no bar. E Amy... era órfã e vivia num quartinho com a irmã. Onde encontraria outro emprego? Como começaria a semana seguinte? Foi a visão de Amy desnorteada, maltratada e congelada que levou Fiona a tomar uma atitude. Pôs bruscamente a concha na mesa. Se Burton queria puní-la por ter falado, teria que ouvir o que ela tinha a dizer.

Dirigiu-se resoluta ao escritório de Minton, passando pelas moças que esperavam pelos seus salários. Para um homem supostamente esperto, William Burton era uma verdadeira mula, ela pensou. Ele as observava como um todo, será que não percebera como o processo inteiro era ineficiente? Obviamente, despedira aquelas moças para poupar dinheiro, mas, se fizesse melhor uso do trabalho delas, poderia fazer mais dinheiro. Ela já tinha tentado falar isso seguidamente para o senhor Minton, mas ele nunca ouvia. Talvez agora ouvisse.

— Com licença — disse Fiona, desviando-se de outra moça à porta.

O senhor Minton estava em sua escrivaninha manipulando o dinheiro.

— O que é? — ele disse bruscamente, sem ao menos olhá-la. Absortos sobre um livro, Burton e seu companheiro ergueram os olhos.

Fiona engoliu em seco, incomodada com o olhar de ambos. Já que a raiva a tinha levado até lá, ela deixaria o medo de lado. E se deu conta de que talvez estivesse frita.

— Desculpe, senhor Minton — ela fez força pra sustentar a voz. — Mas despedir essas moças é uma falsa economia.

Agora ganhava a atenção de Minton. Ele ficou olhando para ela por um tempo que pareceu uma eternidade, até encontrar a própria voz.

— Estou terrivelmente constrangido por isso, senhor Burton — disse de chofre, levantando-se a fim de colocá-la para fora da sala.

— Espere um momento— disse Burton, fechando o livro. — Quero ouvir por que uma de minhas embaladoras acha que conhece o meu negócio melhor que eu.

— Conheço a minha parte desse negócio, senhor. Faço todos os dias — retrucou Fiona, esforçando-se para primeiro olhar os olhos negros e frios de Burton e depois, os do outro homem, que brilhavam com um maravilhoso tom turquesa e destoavam de sua face dura e rapace.

— Se as moças forem mantidas e o senhor fizer umas poucas mudanças na rotina de trabalho, o chá será embalado com mais rapidez. Tenho certeza.

— Continue.

Ela respirou profundamente.

— Bem... cada moça realiza todo o trabalho de embalagem, não é? Quando é uma caixa, ela tem que passar cola nela; quando é uma lata, tem que colar o rótulo nela. Depois, ela enche a lata de chá, lacra e cola o preço. O problema é que sempre saímos do nosso posto para pegar mais material. Isso desperdiça muito tempo. E às vezes o chá gruda no pincel da cola. É perda de material. O senhor devia colocar algumas moças, talvez vinte das cinquenta e cinco, na embalagem. E separar outras quinze para pesar e encher as latas. Outras dez para o lacre e o selo, e mais dez para providenciar o material necessário às mesas. Como o senhor pode ver, cada moça renderia mais. Isso agilizaria o processo e baratearia o custo do empacotamento, tenho certeza. O senhor não poderia pelo menos tentar?

Burton sentou-se em silêncio. Olhou-a e depois se fixou no vazio, ruminando as palavras que acabara de ouvir.

Fiona considerou isso um bom sinal. Ele não a rejeitara nem a despedira. Pelo menos até aquele momento. Ela sabia que as outras moças tinham ouvido. Olhou-as às suas costas e sentiu o peso da esperança desesperada em seus ombros. Sabia que a sua ideia fazia sentido. Oh, por favor, por favor, que ele também pense isso, ela rezava.

— É uma boa ideia — Burton finalmente se manifestou, e o coração de Fiona se encheu de alegria. — Senhor Minton — ele continuou — , quando terminar o que está fazendo, quero que o senhor ponha isso em prática com o restante das moças.

— Mas, senhor Burton — ela disse com um sopro de voz —, eu... pensei que o senhor manteria todas aqui...

— Por quê? Você acabou de mostrar como fazer com que quarenta moças trabalhem por cem. Por que eu deveria pagar para cinquenta e cinco? — ele sorriu para o companheiro. — Alta produtividade com menos custo. Isso vai alegrar o banco, Randolph.

O homem corpulento soltou um risinho de satisfação.

— Pronto — ele disse, enquanto pegava outro livro.

Fiona se sentiu como se estivesse levando uma bofetada. Virou-se e saiu do escritório de Minton, humilhada. Tinha sido uma tola. Uma droga de uma grande tola. Ao invés de restituir o trabalho de suas amigas, confirmou que elas eram desnecessárias. Ensinara a William Burton um modo de obter mais trabalho com menos pessoas. E se desse certo ali, ele provavelmente implementaria as ideias dela em suas outras fábricas, em Bethanal Green e Limehouse, e também despediria algumas moças de lá. Quando é que aprenderia de uma vez por todas a se controlar e manter a boca fechada?

Enquanto passava pelas moças com o rosto pegando fogo e morrendo de vergonha de si mesma, sentiu alguém pegar em sua mão. Dedos magros e ágeis a enlaçavam. Era Amy.

— Obrigada, Fi — ela murmurou. — Por ter tentado. Você é tão corajosa. Eu queria ser assim tão valente como você.

— Ah, Amy, sou insensata, não corajosa — disse Fiona, com os olhos cheios de lágrimas.

Amy beijou o seu rosto e Violet fez o mesmo. Gem aconselhou-a a voltar depressa para o trabalho antes que fosse para na fila com elas.

 

O RAIOS DE SOL QUE AQUECIAM AS COSTAS DE JOE pareciam incompatíveis com as alamedas esquálidas e as ruas estreitas de Whitechapel por onde ele e Fiona passeavam. Raios cruéis que se precipitavam sobre casas e lojas que caíam aos pedaços, expondo telhados avariados, paredes descascadas e canaletas sujas pela chuva e o nevoeiro. Ele podia ouvir a voz do pai dizendo:

— Nada como o sol para fazer esse lugar parecer deplorável. É como rouge no rosto de uma velha prostituta, só faz piorar as coisas.

Ele desejava fazer mais por ela. Queria levá-la a lugares elegantes como um daqueles pubs com paredes revestidas de veludo vermelho e espelhos gravados. Mas tinha muito pouco dinheiro e tudo o que podia oferecer como entretenimento era um passeio pela Commercial Street, para olhar vitrinas e talvez um saquinho de rodelas de batata frita ou amêndoas picantes que custavam um pêni.

Pôs-se a observá-la enquanto ela olhava a vitrine de uma joalheria;

esquadrinhando o movimento do maxilar de Fiona, ele se deu conta de que ela ainda se torturava pelo episódio com Burton, pelas moças que acabaram sendo despedidas. Chamou-a logo após o jantar e durante a caminhada ela contou o que havia acontecido.

— Você realmente achou que podia vencer? — ele lhe perguntava agora.

Fiona virou-se desconsolada.

— Esse é o problema, Joe, eu achei que podia.

Joe sorriu, balançando a cabeça.

— A minha garota tem culhões de ferro, tem, sim.

Ela riu e ele sentiu-se feliz por vê-la rindo. Ela já havia chorado muito pelas companheiras de trabalho, lágrimas amargas de pesar e raiva. Ele não podia vê-la chorando. Isso o fazia se sentir inútil e desesperado. Abraçou-a, puxou-a contra si e beijou o cocuruto dela.

— Doze e seis — sussurrou no ouvido dela enquanto caminhavam. — Esquece o puto do William Burton.

— Doze e seis? — ela repetiu excitada.

— Isso mesmo. Acrescente um pouco mais. Os negócios foram bons esta semana.

— E como estão as coisas com seu pai?

Joe deu de ombros. Não queria tocar no assunto, mas ela o pressionou e ele acabou contando que os dois tinham tido uma briga feia naquele dia.

— De novo? O que foi dessa vez?

— A compra de uma segunda barraca. Eu quero, mas ele não quer.

— Por quê não?

— Bem, Fi, a coisa é assim — ele agitou-se. — Estamos nos dando bem com uma barraca, mas podíamos faturar mais. O negócio está lá. Você mesma viu no último sábado, não conseguimos dar conta da demanda. Ficamos realmente de fora, ficamos de fora, Fi, com as pessoas querendo comprar! Podíamos virar um outro caixote de maçãs, mais figos, mais batatas, mais brócolis, mas não se pode vender com uma carroça vazia. Faz dois meses que tenho falado para o papai comprar uma outra carroça e dividir a mercadoria entre elas, uma para frutas e outra para legumes e verduras. Mas ele teima em não me ouvir.

— Por que não? Isso faz sentido.

— Ele alega que estamos indo bem do jeito que estamos. Que conseguimos viver e que não precisamos correr riscos. ―Não se engane com o sucesso‖, ele diz. Mas, por Deus, vive tropeçando nos próprios pés! Não consegue ter uma visão ampla. Eu não quero trabalhar apenas para sobreviver. Quero ver lucros e fazer o negócio crescer.

— Esquece o seu pai — disse Fiona. — Mais um ano ou um pouco mais, e você não estará sob o domínio dele. Teremos a nossa loja, e faremos o maior sucesso que já se viu. Por enquanto, o que você tem que fazer, é aguentá-lo. Não pode fazer mais nada.

— Você está certa — ele disse com melancolia. Mas se perguntava se conseguiria aguentar. A tensão entre os dois piorava cada vez mais. Não queria contar para Fiona que já tivera aborrecimento demais naquele dia, mas ele e o pai quase chegaram às vias de fato.

Assim como não queria contar que depois da briga o pai saiu para tomar uma cerveja, deixando-o sozinho, e Tommy Peterson apareceu. Ele elogiou a carroça, viu como Joe trabalhava de maneira eficiente e convidou-o para ir ao seu escritório no dia seguinte, em Spitalfields. Joe estava certo de que Tommy queria a aquisição de uma outra carroça e até mesmo oferecer melhores condições de suprí-la. O que diria para o homem? Que seu pai não aprovava? Ele não queria parecer um chato.

Joe e Fiona caminhavam em silêncio enquanto a tarde esfriava. O verão estava terminando. Logo viria o outono e, com o tempo frio e a chuva, as caminhadas no fim da tarde se reduziriam. Joe se perguntava sobre um jeito de ganhar mais dinheiro para que eles pudessem abrir a loja e se casar o mais rápido possível quando, de repente, Fiona disse:

— Vamos tomar um atalho.

— O quê?

Ela ria com malícia.

— Um atalho. Por ali — apontou para um beco entre um pub e um escritório de carvoaria. — Sei que vai dar no caminho para a Montague Street.

Ele levantou uma sobrancelha.

— O que foi? Só estou tentando chegar em casa mais rápido— ela se pôs um ar inocente e o empurrou à sua frente.

Enquanto adentravam pelo beco, alguma coisa com patinhas ágeis saiu de dentro de uma pilha de caixotes de cerveja. Fiona gritou e deu um pulo.

— É só um gato — disse Joe. — Uma...uma...hmm...raça anã.

Ela o impeliu contra a parede rindo e beijando-o. Não costumava ser tão ousada. Geralmente ele é que a beijava primeiro, mas não se incomodou nem um pouco. Na verdade, até gostou.

— E o que significa isso? — ele perguntou. — Está tentando me dominar?

— Se não gosta, pode ir embora — ela o beijou novamente. — Pode partir quando quiser — outro beijo. — É só falar.

Joe considerou a oferta dela.

— Talvez não seja tão ruim — ele disse, abraçando-a. E beijando-a , um beijo longo e intenso. As mãos de Fiona estavam em seu peito, e ele sentia o calor atravessando a sua camisa. Ele delicadamente levou as mãos aos seios dela, achando que seria detido, mas ela se deixou tocar. Podia sentir o coração de Fiona palpitando. A sensação de tê-lo tão forte e tão vulnerável sob a palma da mão e inteiramente à sua mercê deixou-o desarmado. Ela era a sua alma gêmea, fazia parte dele como sua carne e osso. Estava com ele em tudo o que ele fazia. Ela era tudo o que ele queria da vida, a verdadeira medida dos seus sonhos.

Faminto por aquele corpo, ele puxou a blusa e o corpete para fora do cós da saia e deslizou a mão por dentro. Aquele seio em sua mão era tão encorpado quanto uma taça de vinho. Ele acariciou a pele dela com ternura. Ela soltou um gemido abafado. E esse som baixo e urgente o deixou atormentado. Ele a desejava. Precisava dela. Naquele lugar. Naquele instante. Queria levantar a saia de Fiona, encostá-la contra a parede e penetrá-la. Era tão difícil controlar o desejo por ela. A suavidade daquela pele, aquele cheiro, aquele sabor o deixavam louco. Mas ele não podia. Não queria que a primeira vez fosse dessa maneira— rápida, na dificuldade de uma viela imunda. Mas tinha que acontecer alguma coisa, e logo, antes que a dor nos testículos acabasse com ele, em agonia.

Joe pegou a mão de Fiona e guiou-a. Ela tocou na roupa intima dele e depois escorregou a mão para dentro. Ele mostrou como ela devia mexer com a mão e ela aprendeu, friccionou e agitou o membro dele até deixá-lo sem fôlego e afogueado, e ele gemeu no pescoço dela com o corpo estremecendo em doce alívio. Depois, encostou-se na parede, com os olhos fechados e o peito ofegante.

— Joe — ele ouviu o sussurro ansioso de Fiona. — Você está bem?

Ele riu.

— Ah, Fiona, nunca estive tão bem.

— Tem certeza? Eu... acho que você está sangrando.

— Meu Deus! Você o arrancou!

— Que horror! — ela gritou.

Ele não pôde conter o riso.

— Fique tranquila, eu só estava brincando — ele secou-se com o lenço e o jogou fora. — Não posso levá-lo para minha mãe lavar.

— Você não pode?

— Ora, Fiona, você não sabe nada disso, não é?

— Você também não sabe muita coisa — ela replicou.

— Sei mais que você — ele a beijou no pescoço. — Sei como fazer você se sentir tão bem como me fez sentir.

— Então, foi bom?

— Mmm-hmm.

— Parecido com o quê?

Ele levantou a saia dela e tateou por entre as ceroulas antes de introduzir a mão. Acariciou a parte interna das coxas, extasiado com a maciez da pele; depois, seus dedos deslizaram pela fenda de suave penugem. Ele a sentiu estremecendo. Ela o olhava de olhos arregalados e questionadores. Ouviu quando a respiração dela acelerou, ouviu os próprios sussurros que lhe dizia na escuridão... e ouviu o sino da igreja duas ruas adiante badalando a hora.

— Oh, não... que droga! — ela gritou, afastando-o. — Esqueci a hora! Nove horas! Mamãe vai me esfolar. Vai pensar que me assassinaram. Vamos embora, Joe!

Abotoaram sem jeito a blusa e a camisa, enfiando-as para dentro da saia e da calça, e retornaram ao caminho escuro. Por que tinha que ser assim? Por que precisavam se esconder em becos ou na beira lamacenta do rio para namorar?

Nervosa, Fiona imaginava a desculpa que daria por chegar tão tarde. Correram por todo o caminho de volta até a Montague Street.

— Aqui estamos, Fi, você voltou antes que alguém pudesse ter notado sua ausência — ele disse, enquanto a beijava rapidamente na escada.

— Tomara. Pelo menos o meu pai não está em casa. Amanhã a gente se vê — ela virou-se para entrar em casa, mas antes o olhou. Ele ainda estava com os olhos cravados nela, esperando que entrasse só para depois ir embora.

— Doze e seis — disse Fiona.

Ele sorriu para ela.

— Sim, meu amor. Doze e seis.

 

KATE FINNEGAN olhou a enorme pilha de roupas diante dela e gemeu. Lençóis, toalhas de mesa, guardanapos, blusas, camisões de dormir, camisolas, anáguas: tinha que dobrá-las , todas, dentro de seu cesto. E que tortura era equilibrá-lo sobre o ombro durante o longo trajeto para casa.

— Lillie, diz a sua patroa que isso vai custar o dobro, essa carga está enorme — ela gritou da copa da senhora Branston.

Lillie, a empregada da senhora Branston, uma mocinha irlandesa alta e ruiva, pôs a cara na porta.

— Claro, direi a ela, senhora Finnegan, e espero que a senhora consiga. A senhora sabe como ela é. Não abre a mão nem pra dizer bom dia. Aceita uma xícara de chá antes de sair?

— Adoraria, mas não quero metê-la em encrenca.

— Ora, não precisa ter medo disso — disse Lillie amistosamente. — A patroa foi até Oxford Street pra fazer compras. Vai demorar uma eternidade.

— Então, pode colocar a chaleira no fogo, mocinha.

Depois de arrumar a pilha de roupas, Kate sentou-se a mesa da cozinha. Lillie aprontou o chá, e o pôs na mesa, acompanhado de um prato de biscoitos. Conversaram até esvaziar o bule; Kate a respeito dos filhos, e Lillie, do seu namorado, Matt, que trabalhava na Commercial Docks.

— E você o vê muito? — Kate quis saber. — Com você aqui o dia todo e ele trabalhando no rio?

— Vejo, sim, senhora Finnegan. Com tantos assassinatos acontecendo nesses dias, ele virou minha sombra. De manhã, quando sai para o trabalho, passa por aqui, e volta de novo à noite. E vou lhe dizer a verdade, dou graças a Deus por isso. Nunca mais saio à noite.

— E lhe dou razão. Você não acha que essas mulheres também estão apavoradas, com medo de andar pelas ruas? Mas o Paddy diz que ainda vê algumas de noite.

— Elas não tem muita escolha. Se não saírem, morrem de fome.

— O padre Deegan falou sobre os assassinatos na missa de domingo — comentou Kate. — O preço do pecado é a morte, e por aí fora. Não quero discordar dele, afinal é um padre, mas tenho pena dessas mulheres. Tenho mesmo. Às vezes, vejo-as gritando e xingando, bêbadas e alquebradas. Não acho que escolheram essa vida. Acho que acabaram assim por causa da bebida e das dificuldades.

— A senhora devia ouvir o que a senhora Branston diz — disse Lillie com raiva. — Chama essas pobres mulheres assassinadas de filhas do Satã. Acha que mereceram o fim que tiveram porque eram prostitutas. Pra ela é muito fácil achar isso, instalada numa casa quentinha e com dinheiro entrando pelo rabo — deu uma pausa para tomar um gole de chá e se acalmar. — Pra ela é fácil achar tudo isso. Como minha avó dizia, ―a moralidade é pra quem pode pagar por ela‖. Sabe, senhora Finnegan, os assassinatos me preocupam, mas o que realmente me preocupa é o que tem acontecido nas docas.

— Nem me fale.

— Eles estão fazendo a coisa certa, sei que estão, mas, se entrarem em greve, Deus sabe quando eu e Matt poderemos casar — disse Lillie angustiada. — Talvez só ano que vem.

Kate afagou a mão dela.

—Não vai demorar tanto, querida, não se preocupe. E, mesmo que demore um pouco mais do que você imagina, lembre-se que o seu Matt é um bom rapaz. Ele vale a espera.

Suas palavras de estímulo deixaram Lillie mais tranquila em relação à ameaça de greve. Paddy acreditava que a greve era inevitável, só não sabia quando. Na semana anterior, ela se sentara com lápis e papel para calcular quanto tempo eles aguentariam se Paddy aderisse à greve das docas. Poucos dias. No máximo, uma semana.

Ele geralmente ganhava cerca de vinte e seis xelins por semana, por sessenta horas de trabalho. Essa quantia podia aumentar ou diminuir de acordo com o movimento no armazém. Além disso, muitas vezes ele também conseguia três xelins extras trabalhando como vigia noturno ou tarando chá — despejando os caixotes e empilhando as folhas — para os classificadores, tarefas que aumentavam os ganhos para vinte e nove xelins ou mais. Ele ficava com dois xelins para a cerveja, tabaco e jornais, tirava um para o sindicato e entregava o restante para Kate, cujo trabalho consistia em fazer esse dinheiro esticar como a estrada Mile End.

Ela suplementava o salário do marido com seu trabalho de lavadeira que lhe rendia quatro xelins por semana, já descontados o sabão e a goma, e com o aluguel do quarto para o Roddy e a comida que cozinhava para ele, pelos quais recebia cinco xelins por semana. E também ficava com o salário do Charles, cerca de onze xelins, e o de Fiona, cerca de sete, menos o que eles tiravam para as despesas pessoais — Charlie para cerveja e despesas de rapaz, e Fiona para suas compras —, e isso resultava em mais quinze xelins que davam ao todo uns vinte e poucos xelins para ela.

As despesas semanais incluíam os dezoito xelins do aluguel. A casa podia ser cara — muitas famílias se contentavam em alugar um único piso por oito ou dez xelins —, mas era quentinha e não tinha umidade e insetos, e Kate estava convencida de que um espaço pequeno e apinhado de gente acabava sendo uma falsa economia, porque o que era poupado no aluguel gastava-se com médicos e excesso de trabalho. E ainda havia o carvão: um xelin por semana naquela época, mas no inverno podia chegar a dois, e mais seis pences para o óleo das lamparinas.

Tudo isso deixava uma sobra de uns dez xelins, que ela gastava na comida e que não era suficiente para o tipo de alimentação que pretendia. Limitava-se a vinte xelins semanais para a compra de carne, peixe, batatas, frutas, verduras, legumes, farinha de trigo, pão, farinha para mingau, gordura, leite, ovos, chá, açúcar, manteiga, geléia e melado, o que propiciava três refeições diárias para seis pessoas — sem contar o bebê. E também saia um xelin para o seguro — funeral e mais outro para o fundo do vestuário, que era guardado numa lata para o caso de alguém da casa necessitar de um casaco ou de um par de botas, e ainda dois xelins para o fundo de greve. Este fundo ela começara dois meses antes e a partir daí depositava o dinheiro semanalmente, mesmo que para isso tivesse que restringir a quantidade de alimentos. Além disso, restavam quatro xelins para cobrir gastos extras: contas de médico, engraxate, roscas, pastilhas para garganta, fósforos, agulhas, algodão, colarinhos, sabão, tônico, selos e unguento. Geralmente, depois dos sábados restavam apenas uns poucos pences.

Ela e Paddy haviam lutado muito para ter esse padrão de vida. Ele conseguiu se sobressair no trabalho nas docas e tinha um emprego fixo. Já não era aquele trabalhador casual da época em que se casaram — um trabalhador que todo dia era obrigado a madrugar no rio em busca de um chamado, onde na maioria das vezes o capataz optava pelos homens mais fortes e pagava três pences por hora. Agora Fiona e Charlie também trabalhavam e seus salários eram de grande valia. Enfim, eles eram pobres, mas eram pobres respeitáveis, e isso fazia toda a diferença no mundo. Kate não precisava recorrer à casa de penhores para comer. Seus filhos estavam sempre limpos e vestidos de maneira satisfatória, frequentemente com botas remendadas.

A luta constante para manter as contas em dia fazia Kate enlouquecer, mas deixar de pagá-las era algo impensável. Significaria pobreza de verdade. Um completo esmagamento; inevitavelmente a mobília era jogada na rua, não se conseguia mais pagar o aluguel e proliferavam os piolhos na dormida em alojamentos imundos. Uma situação em que os filhos tinham que andar esfarrapados e o marido passava o tempo todo fora de casa para não encarar os filhos esquálidos e famintos. Kate já tinha visto esse tipo de coisa acontecer com algumas famílias vizinhas, de cujas casas os chefes perderam o emprego ou caíram doentes. Famílias como a dela, sem recursos, só com algumas poucas moedas dentro de uma lata. A miséria era um abismo onde se despencava com muita facilidade, e ela queria manter a família o mais longe possível disso. Ficava em pânico só de pensar que a greve podia levá-los até a beira desse abismo.

— Sei o que faremos, senhora Finnegan — disse Lillie sorrindo. — Li no jornal que estão oferecendo uma recompensa para quem pegar o assassino de Whitechapel. É muito dinheiro... cem libras esterlinas. Eu e a senhora podíamos prendê-lo.

Kate também sorriu.

— Ora, isso mesmo, Lillie, que dupla daríamos! Nós duas percorrendo os becos pela noite; eu com uma vassoura, e você com uma garrafa de leite, cada uma mais apavorada que a outra.

As duas mulheres conversaram por mais alguns minutos, depois Kate esvaziou a xícara, agradeceu à amiga e disse que era hora de ir embora. Lillie abriu a porta da cozinha. Ela teria que contornar um portão e descer por uma passagem estreita ao longo da casa que ia dar na rua. E sempre arranhava as mãos no muro de tijolos. Seria preferível atravessar o interior da casa e usar a porta da frente, mas algum vizinho podia bisbilhotar e contar para a senhora Branston. Afinal, era uma casa de classe média situada numa boa rua e os empregados não usavam a entrada da frente.

— Até logo, senhora Finnegan.

— Até logo, Lillie. Não se esqueça de trancar a porta — gritou Kate, com a voz abafada e a cabeça escondida pela cesta de roupa no ombro.

 

O OUTONO JÁ ESTÁ CHEGANDO, pensou Fiona, enquanto puxava o xale pelos ombros. Os sinais eram inconfundíveis: as folhas caíam, os dias eram mais curtos e o carvoeiro berrava de sua carroça. Era um domingo cinzento de setembro e o ar estava gelado. A Estação da morte , estampava a manchete de jornal, O ASSASSINO DE WHITECHAPEL AINDA Á SOLTA.

Sentada no degrau da escada, lendo o jornal do pai com Seamie brincando ao lado, Fiona se perguntava como alguém se arriscava a entrar em becos com um estranho, sabendo que havia um assassino à solta. ― O diabo é um homem sedutor‖, sua mãe costumava dizer. E devia ser mesmo, pensava Fiona, para pegar uma mulher e levá-la por um beco escuro e deserto em meio ao nevoeiro.

Tanto em sua rua como em toda Whitechapel as pessoas achavam que era quase impossível acreditar que alguém pudesse cometer tais atos e depois simplesmente desaparecer. A polícia parecia um bando de bufões. Era criticada pelo Parlamento e pela imprensa. Ela sabia que isso estava acabando com o tio Roddy. Desde a descoberta do corpo de Nichols, ele sofria de pesadelos.

Aquele assassino era um monstro. A imprensa fizera dele um símbolo de tudo que havia de ruim na sociedade: violência e banditismo da classe operária, e libertinagem das classes mais altas. Para os ricos, o assassino era um membro vicioso da ralé, um grosseirão. Os pobres o viam como um tipo refinado, um cavalheiro que extraía um obsceno prazer caçando prostitutas. Para os católicos, ele era protestante; para os protestantes, católico. Para os imigrantes que viviam em East London, era um inglês maluco; bêbado e perigoso. Para o inglês, era um estrangeiro sujo e ateu.

Fiona não tinha uma imagem formada do assassino. Nem queria saber como ele era. Ela não dava à mínima. Tudo o que queria é que ele fosse preso para que ela pudesse passear de noite com Joe, sem que sua mãe pensasse que estava morta em algum beco caso atrasasse cinco minutos.

Seus pensamentos foram cortados pelo barulho dos blocos de construção do irmão que estavam despencando.

— Viado! — gritou Seamie.

— Foi o Charlie que lhe ensinou isso? — ela perguntou.

O menino assentiu com orgulho.

— Deixe o papai ouvir isso, rapazinho.

— Cadê o Charlie? — perguntou Seamie virando-se para ela.

— Está na cervejaria.

— Queria que estivesse aqui. Ele falou que ia me trazer uma bala.

— Ele vai chegar logo querido — Fiona sentiu uma ponta de culpa pela mentira. Ele estava no Swan, um pub que ficava próximo ao rio, dando uma surra em algum sujeito, mas não podia dizer isso para o Seamie. Ele era muito pequeno para guardar segredos e podia contar para a mãe. Charlie lutava por dinheiro. Fiona soube através de Joe, que, por sua vez, soube por um amigo que apostou nele e ganhou. Isso explicava por que constante mente chegava em casa com um olha roxo, sempre atribuído por ele a uma ―mera briga de rapazes‖.

Seu irmão não podia ficar sabendo que ela sabia que ele estava lutando e assim não tinha como lhe perguntar o que faria com o dinheiro ganho nas lutas, mas já imaginava: Tio Michael e a América. Ela notou como os olhos dele brilharam quando dias antes a mãe abriu uma carta do tio e leu a descrição que ele deu de sua loja e de Nova York. E também o viu quando mais tarde, ele leu a carta na mesa da cozinha. Nem se dignou a olhá-la quando ela passou, mas não deixou de dizer:

— Estou indo, Fi.

— Você não pode, mamãe vai ficar arrasada — ela replicou. — E, de qualquer forma, você não tem o dinheiro para a passagem.

Ele a ignorou.

— Do jeito que os negócios do tio Michael estão indo, aposto que vai precisar de um ajudante. Ainda mais com tia Molly esperando um bebê. E por que não o sobrinho? Eu é que não vou ficar aqui me matando na cervejaria para ganhar uma merda de salário.

— Você pode trabalhar na loja que vou abrir com Joe — ela disse.

Ele fez uma careta.

— Não deboche! Teremos nossa loja, espere só pra ver.

— Quero seguir o meu próprio caminho. Vou para Nova York.

Fiona se esquecera completamente da conversa até saber que ele estava lutando. O safadinho falava sério. América, ela pensou, onde as ruas são pavimentadas de ouro. Se ele fosse pra lá, em pouco tempo seria um ricaço. Ela tentaria se sentir feliz pelo irmão quando ele partisse, mas odiava pensar que iria para tão longe. Mesmo ele sendo um encrenqueiro, amava-o muito, e quem partia para a América dificilmente retornava. Tudo que teriam dele quando fosse embora seriam lembranças e cartas.

Ela morreria de saudade, mas entendia o desejo dele de partir. Como ela, Charlie não podia aceitar um futuro de privações e trabalho desumano. Por que teria que ser esse o quinhão dela? E o de Charlie? Por que eram pobres? Não era crime ser pobre — Jesus foi pobre e da classe operária, como seu pai fazia questão de lembrar. O padre Deegan também dizia que a pobreza não era pecado, mas esperava que as pessoas se resignassem com isso. Se você era pobre é porque esse era o plano de Deus, e a você só cabia aceitar a vontade Dele. Coloque-se no seu lugar, e pronto.

Ela olhava toda a extensão da Montague Street, suas casas pobres e escuras com cômodos apertados, paredes frágeis e janelas vazadas. Conhecia a vida de quase todos os moradores da rua. No número 5 — casa dos McDonoughs —, nove crianças, sempre famintas. No número 7 — os Smith —, o marido era um jogador, a mulher vivia na casa de penhores e as crianças, largadas. No número 9 — os Philips —, gente brigona, mas respeitável. A senhora Philips nunca sorria e estava sempre lavando a escada da frente da casa.

Era esse o lugar dela? Fiona tinha certeza de que não o havia pedido. Que outra pessoa ficasse com ele. Ela encontraria um lugar melhor, ela e Joe.

Joe. Ela sorriu quando lembrou do que tinham feito no beco, na outra noite. Sentiu-se dividida por dentro, por um lado não queria pensar nisso e, por outro, pensava sem parar. Chegou até a ir à igreja para se confessar com o padre Deegan, mas desistiu no meio do caminho; ele não tinha nada com isso porque isso não era pecado. Ele até poderia dizer que o que fizeram era errado, mas ela sabia que não era. Não com Joe.

O que está acontecendo comigo? Ela se perguntou. Um minuto atrás estava convencida de que não devia fazer uma coisa como aquela. No outro minuto lá estava ela imaginando-se a sós com Joe, com seus beijos, com suas mãos tocando-a em lugares proibidos. Será que tinham feito algo que se pode fazer antes do grande ato? E como era esse ato? Tinha uma vaga noção do que acontecia. Tinha ouvido que o homem forçava muito, mas por quê? Porque não havia encaixe? E se não houvesse, era por isso que doía? Ela queria que alguém lhe explicasse. Suas amigas não sabiam mais do que ela, e era melhor morrer que perguntar para Charlie.

Ela sentiu que Seamie a olhava. Ele estava com olhos sonolentos. Era hora de tirar uma soneca. Recolheu os blocos de montar e o pôs para dentro de casa, onde o colocou na cama, na sala de visitas. Ele dormiu antes mesmo de suas botinhas serem tiradas. Ela saiu em silêncio e fechou a porta com cuidado. Charlie estava na rua. Tio Roddy estava no pub. Eileen, no andar de cima, dormindo no quarto dos pais. Até sua mãe e seu pai tinham subido para uma soneca, como faziam todos os domingos, uma soneca que ela e Charlie sabiam que não podiam importunar.

Estava livre pelo menos pela próxima hora. Podia preparar um chá e ler um pouco. Ou então dar um passeio pela Commercial Street e olhar as vitrines, assim como podia visitar as amigas. Estava de pé no saguão de entrada, tentando se decidir, quando ouviu uma batida à porta. Abriu-a.

— Alô, senhorita — disse o rapaz na escada. — Vai querer frutas e verduras hoje? Nabos? Cebolas? Couve-de-bruxelas?

— Silêncio, seu louco, vai acordar meu irmão e a casa inteira — disse Fiona, encantada com a presença de Joe. — Voltou cedo hoje. Os negócios foram ruins nessa manhã?

— Negócios? Hum, não, não exatamente, só, hum... terminou mais cedo, só isso. Terminou cedo e pensei que podíamos dar um passeio. Até o rio — ele falou com um sorriso iluminado.

Iluminado demais, ela pensou.E ele nunca terminava cedo. Nem queria dar uma caminhada até o rio no domingo, pois estava exausto depois ter ficado a semana inteira em pé nas vendas. Algo tinha acontecido.

— Vamos, então — ele pegou-a pelo braço.

Joe caminhava a passos largos. E em silêncio. Fiona tinha certeza de que ele tinha alguma coisa em mente. Será que brigara de novo com o pai? Estava ansiosa para saber, mas sabia que ele só falaria quando se sentisse pronto.

As docas estavam silenciosas quando eles chegaram na Old Stairs. O rio também. A maré estava baixa. Apenas algumas barcaças e botes navegavam pelas águas. Ao longo, os armazéns, portões de escoamento fechados; garças, sossegadas.

Como o resto de Londres, o rio se esforçava para honrar o dia do Senhor.

Sentaram-se no meio da escada. Joe olhava o vazio, calado, com os cotovelos apoiados nos joelhos. Fiona olhava-o de perfil, depois voltou a olhar para o rio, esperando que ele dissesse alguma coisa. Ela respirou profundamente e sentiu o aroma de chá. Sempre o chá. Encaixotado no armazém do Oliver ou disposto em pequenos montes no chão. Imaginava a poeira marrom sendo varrida do chão e saindo pelas frestas dos portões. Fechou os olhos e inalou mais uma vez. Doce e vigoroso. Um Darjeeling.

Depois de alguns minutos, Joe rompeu o silêncio.

— Ouvi dizer que o Charlie ganhou fama no Swan.

Ela sabia que ele não tinha ido ao rio só para falar do Charlie. Era uma maneira de rodear o assunto que o preocupava.

— Tomara que a mamãe não descubra — ela disse. — Ele seria arrastado de lá pelas orelhas.

— O que ele vai fazer com os prêmios?

— Acho que ele está economizando para uma passagem de navio para a América. Quer trabalhar com o irmão do meu pai em Nova York...

— Fiona... — Joe interrompeu, segurando a mão dela.

— Sim?

— Pedi pra você dar uma volta comigo porque queria lhe dizer que posso... — ele hesitou. — Que tenho uma chance de... tenho um trabalho em vista,olhe... — ele se deteve outra vez, esfregando a ponta da bota no degrau abaixo. Depois olhou para a água, respirou fundo e desabafou. — Isso não vai ser bom. Você não vai gostar do que vou falar, por mais que eu procure um jeito de dizer. A verdade é que Tommy Peterson me ofereceu um trabalho e aceitei.

— Você o quê? — ela espantou-se.

— Aceitei o trabalho — ele falou rapidamente. — O salário é bom, Fi, muito mais do que ganho no mercado com papai...

— Aceitou trabalhar para o Tommy Peterson? O pai da Millie?

— Sim, mas...

— Então, nossa loja foi para o espaço — ela disse com raiva, dando um soco no ar. — É isso que você está dizendo?

— Não, não, não é isso que quero dizer! Que saco, Fiona! Eu sabia que você ia fazer disso uma tempestade em copo d‘água. Fique quieta e escute, está bem?

Ela desviou o olhar para o rio, recusando-se a olhá-lo. Sabia que ali tinha dedo da Millie Peterson. Joe agarrou seu queixo e puxou seu rosto para ele. Ela afastou a mão dele com um tapa.

— Estarei bem melhor do que estou agora, esgoelando-me para vender a mercadoria — ele disse. — O Tommy me viu trabalhando com papai e gostou do meu estilo. Só que eu vou vender para outro tipo de compradores, não mais para o público...

Fiona o encarou sem dizer nada, espantada.

— ... e dessa maneira vou aprender muito sobre vendas, como adquirir os produtos na fonte. Com os fazendeiros em Jersey e Kent. Com os franceses. Verei como funciona o comércio no maior mercado de Londres e...

— Onde? Em Spitalfields? — ela o cortou, referindo-se ao mercado mais próximo.

— Bem, isso é outra coisa que tenho que lhe dizer. Não vou trabalhar no entreposto de Spitafields do Peterson. Ele me quer em Convent Garden.

— Então, você vai se mudar da Montague Street — ela disse atordoada.

— Não tenho outra escolha, Fi. O trabalho começa às quatro da manhã. Eu teria que sair de Whitechapel lá pelas duas para chegar a tempo. E com os vagões trazendo produtos a cada momento, vamos atravessar a noite trabalhando. Terei que aproveitar o tempo que puder para dormir.

— Onde?

— Num quarto que o Peterson tem lá no entreposto. Em cima dos escritórios.

— Um quarto completo, com cama, lavatório e filha.

— Eu vou dividir o quarto com um sobrinho dele, um rapaz da minha idade. Não vai me custar um só pêni.

Fiona calou-se, contemplando o rio.

— Isso, esse trabalho, pode ser uma coisa boa, Fi. Por que você está tão preocupada?

Por quê? Fiona se perguntou, sem tirar os olhos de uma barcaça. Porque durante a minha vida inteira você sempre esteve na Montague Street, porque o meu coração dispara toda vez que o vejo, porque o seu rosto, o seu sorriso, a sua voz, tudo em você acaba com a feiúra deste lugar, porque os nossos sonhos me trazem esperança e tornam tudo suportável. É por isso.

Ela engoliu em seco, tentando reprimir as lágrimas que ameaçavam rolar.

— É muita coisa para absorver, não é? Tudo tão de repente. Você arruma um novo emprego e se muda. Não estará mais na casa ao lado nem no mercado. Quem vai se sentar aqui comigo aos sábados depois do trabalho...e...e... — a voz dela embargou.

— Fiona, olhe pra mim — disse Joe, secando uma lágrima no rosto dela. Ela virou-se para ele, mas não pôde olhar em seus olhos. — Não aceitei esse trabalho sem pensar. O Peterson me fez a oferta dois dias atrás. Desde então não me saiu da cabeça e tentei imaginar o que seria melhor. Não para mim, mas para nós. E esse trabalho é a coisa certa. Não posso ficar aqui, Fi. Eu e papai brigamos o tempo todo. Não poderei me fazer sozinho. Tenho sido um rival, tirando comida da boca de minha própria família. Com o Peterson vou conseguir o dobro do que consigo com meu pai. Eu poderei economizar mais dinheiro para a nossa loja. E aprenderei coisas que poderemos usar em nosso próprio negócio — ele apertou a mão dela com força. — Você não vê como isso pode nos ajudar?

Fiona balançou a cabeça; ela concordava. Apesar da raiva inicial, via que ele tinha razão; por mais doloroso que fosse, estava para ser dado um grande passo. Qualquer coisa que os ajudasse a conseguir a loja com mais rapidez, era uma coisa boa. Mas ela ainda se sentia triste. A ideia até que fazia sentido, o seu coração é que estava partido.

— Quando você vai?

— Amanhã.

— Por Deus, Joe!

— Não fique tão triste — ele disse, fazendo força para alegrá-la. — Isso não vai durar para sempre e virei para casa correndo toda vez que puder. E sempre trarei alguma coisa, está bem?

— Só traga você. É tudo o que quero. E prometa que não cair nas garras da Millie.Aposto que ela vai encontrar mil pretextos para aparecer em Convent Garden, só para conquistá-lo — ela disse.

— Não seja tola.

Ela desceu os degraus de pedra e caminhou pelo rio na direção do armazém Oriente. Inclinou-se para catar um punhado de pedras e resolveu parar de se preocupar. Tinha sido egoísta, pensando apenas nos seus próprios sentimentos. Devia apoiá-lo; afinal, a coisa não estava sendo fácil para ele. O trabalho em Convent Garden seria algo novo e excitante, mas também uma dureza. Pelo que ouvira falar de Tommy Peterson, ele trabalhava o tempo todo que Deus lhe dava.

Joe juntou-se a ela e também começou a atirar pedras no rio. Depois de atirar todas as pedras, ele inclinou-se para pegar mais. Uma pedra profundamente enterrada na lama do rio fez um ruído surdo ao ser arrancada. Numa fração de segundo, antes que o buraco deixado pela pedra fosse preenchido pela água, ele vislumbrou um brilho azul. Largou a pedra e enfiou a mão na lama. Seus dedos esbarraram numa pequena e sólida protuberância. Após alguns segundos, conseguiu puxá-la.

— Olha, Fi — ele disse, mostrando o objeto. Fiona curvou-se para mais perto. Na mão dele havia uma pedra oval e lisa; reta na base e arqueada no cume. Um longo entalhe saía do cume até a metade, onde se dividia em dois entalhes que se expandiam para os lados. Tinha uma cor índigo e não era muito grande. À medida que secava, a superfície assumia uma aparência opaca, evidência do longo e constante atrito de areia e água.

— Que azul lindo — disse Fiona.

— Não faço a mínima ideia do que seja. Talvez o fundo de um antigo vidro de remédio — ele disse intrigado, girando a pedra ente os dedos. Pegou Fiona pelo braço, pôs a pedra na palma da mão dela e fechou-a. — Olhe. Uma jóia do rio para você. É o melhor que posso lhe dar agora, mas um dia lhe darei outra bem melhor. Prometo.

Fiona abriu a mão e olhou intensamente para o seu tesouro enquanto sentia o peso. Poderia carregá-lo para todo canto depois que Joe fosse embora. Quando se sentisse sozinha, poderia pegá-lo no bolso, ele estaria lá, relembrando Joe.

— Fiona...

— Mmmm? — ela murmurou, absorvida pela pedra.

— Eu te amo.

Ela o olhou, emocionada. Ele nunca tinha dito que a amava. O sentimento que um nutria pelo outro era algo implícito entre eles, mas nunca fora enunciado. Eles não agiam como os londrinos que carregam o coração na mão quando falam dos seus sentimentos íntimos. Ele a amava. Ela sempre soube disse e jamais duvidou, mas ouvir aquelas palavras dos lábios dele...

— Eu te amo — ele repetiu, dessa vez com fúria. — Cuide bem de você, está bem? Já que não estarei por perto. Quando sair da Burton, de volta pra casa, nada de atalhos. Nada de becos. Siga pela Cannon Street e se apresse até a estrada. Nada de vir até o rio, a menos que seja para encontrar seu pai. E, à noite, fique em casa, enquanto o bastardo estiver à solta.

De repente, a tristeza de Fiona tornou-se insustentável. As lágrimas inundaram outra vez os seus olhos. Ele só estava indo para outro lugar de Londres, para West End, mas parecia a China. Ela não poderia ir até lá; não tinha dinheiro para o ônibus. Era praticamente impossível imaginar os dias que os aguardavam. Dias vazios da presença dele, sucedendo-se com monotonia, melancólicos e sem vida, sem a imagem dele saindo de manhã para o mercado e chegando de noite em casa.

— Joe — ela disse baixinho.

— O quê?

Segurou o rosto dele e beijou-o.

— Eu também te amo.

— É claro que você me ama — ele disse, divertido. — Como é que não amaria um cara tão bonito como eu?

Olhando-o, Fiona se viu subitamente invadida pelo terrível medo de perdê-lo. Sentia como se o estivessem arrancando dela. Beijou-o de novo, apaixonadamente, como nunca o beijara, agarrando com fúria a camisa dele. Estava tomada pelo desejo cego e violento por ele. Seu desejo era puxá-lo para si e mantê-lo para sempre. Marcá-lo como seu, proclamar-se sua dona. Eram sentimentos perigosos; ela sabia onde podiam chegar, mas não se preocupava. Ele estava partindo, tinha que partir. Mas ela queria ter certeza de que ele levaria uma parte dela e que ela ficaria com uma parte dele.

Uma distância curta os separava do ponto onde estavam até a escuridão protetora do armazém Oriente. Ela pegou a mão dele e puxou-o para os pilares que sustentavam o armazém. O lugar estava escuro e vazio, ouvia-se apenas o som das ondas do rio que gentilmente arrebentavam em suas margens. Não havia uma só pessoa que pudesse vê-los, nem marinheiros nem barqueiros para fazer zombarias.

Puxou-o novamente para si, beijou-o nos lábios, no pescoço e na nuca. Quando ele tirou a mão de sua cintura para levá-la aos seios, ela cobriu-a com sua própria mão e pressionou-a fortemente contra si. Seus temores de menina haviam desaparecido. Sempre teve avidez pelos lábios e pelo toque dele, mas sentia medo. E agora parecia que o seu corpo tinha um plano violento para ela; a palpitação descompassada do coração e o calor que começava na região do umbigo irradiando-se pelas veias abafavam as vozes de advertência que soavam em sua cabeça. Tê-lo muito perto já não era o bastante; beijá-lo, tocá-lo, sentir as mãos dele tocando seu corpo já não satisfazia esse novo desejo, só o tornava mais intenso. Sentia-se em brasa, sem fôlego, e pensou que morreria se não preenchesse aquele vazio dolorido dentro dela.

Suas mãos puxaram o casaco dele, tentando despí-lo. Ele o tirou apressado e jogou-o no chão. Seus dedos ágeis desabotoaram a camisa dele até o último botão. Deslizou as mãos por baixo da camisa, acariciando-o no peito e nas costas. Comprimiu seus lábios na pele desnuda e sentiu o cheiro dele. Era como se os seus sentidos desejassem conhecer cada centímetro dele e imprimir na memória o cheiro e o gosto dele. E isso ainda não era o bastante.

Ela desabotoou a blusa e depois desamarrou o corpete, lutando desajeitada com os cordões. Até que o corpete de algodão branco soltou-se do seu corpo e escorregou para o chão, deixando-a nua da cintura para cima. Olhou-o no fundo dos olhos e viu o desejo no olhar dele, mas não podia saber o quanto aquele desejo era intenso e forte. Joe a conhecia desde que ela passou a se entender por gente, conhecia seus humores, suas expressões, seus gestos, mas nunca a tinha visto daquela maneira, com os cabelos negros descaindo nos ombros em contraste com a pele de marfim. Os seios desnudos, arredondados, firmes e belos. E os olhos tão profundos e azuis quanto o oceano.

— Meu Deus, garota, como você é bela! — ele sussurrou.

Com delicadeza e infinita ternura, ele apalpou os seios e beijou-os, e também beijou o espaço entre eles e a região do coração. Depois, abaixou-se, recolheu as roupas e entregou-as para ela.

— Por quê? — ela perguntou, magoada. — Você não me quer?

Ele soltou uma gargalhada.

— Não querer você? — ele pegou a mão dela abruptamente e pressionou-a entre suas pernas. — Isso é sinal de que não te quero?

Ela recolheu a mão, furiosamente ruborizada.

— Quero você mais que qualquer outra coisa na vida, Fiona. Há poucos minutos quase a possuí, no chão mesmo. E Deus sabe o quanto lutei pra parar.

— E por que parou? Eu não queria parar.

— Porque, e se nós fizéssemos e acontecesse alguma coisa? Eu estaria em Convent Garden e você aqui, com um barrigão, e o seu pai querendo nos esganar.

Fiona mordeu os lábios. Não tinha sentido lhe dizer que o queria tão intensamente que estava pronta para se aventurar.

— Se isso acontecesse, Fi, casaria com você num piscar de olhos, mas como poderíamos ter um bebê logo agora? Não teríamos recursos. A gente tem que manter o nosso plano: a poupança e depois a loja e depois o nosso casamento. Assim, quando os filhos chegarem, teremos dinheiro para suprir as necessidades deles. Entendeu?

— Entendi — ela disse, acabrunhada. Vestiu o corpete e a blusa. Prendeu os cabelos num coque em seguida tentou se acalmar. Sua razão concordava com tudo o que Joe havia dito, mas seu corpo discordava. Seu corpo estava afogueado, desconfortável e profundamente insatisfeito. Ainda clamava de desejo, apesar de toda a razão.

— Agora vamos — ele estendeu-lhe a mão. Puxou-a para si e eles permaneceram abraçados por um longo tempo antes de sair de debaixo do armazém. Voltaram para a Old Stairs, escalaram os degraus e deram uma pequena pausa quando atingiram o alto, onde ele lançou um último olhar na direção das barcaças, dos armazéns de chá e do rio. Não veria de novo aquela paisagem por um bom tempo.

Enquanto caminhavam para casa, Joe se pôs a brincar com ela, como sempre. Olhava-a e ria. E quando finalmente ela se virou e quis saber o que ele tanto olhava, ele soltou uma risada, balançou a cabeça e disse:

— Eu não sabia.

— Não sabia o quê?

— Não sabia que a minha violetinha tímida, a garota que outro dia mesmo, lá no muro da carvoaria, estava tão preocupada em não chegar ao fim, na realidade é tão fogosa.

— Ora, Joe — ela gritou envergonhada. — Pare de zombar de mim!

— Acho isso ótimo. De verdade. E é melhor guardar esse fogo para o dia que nos casarmos, senão deixarei de querer você. Entrego-a de volta para o seu pai. Devolvo-a como um caixote de maçãs estragadas.

— É melhor ficar calado, está bem? Alguém pode ouvir!

Um casal de idosos passou por eles na calçada. Imitando a voz séria de um homem de negócios, Joe falou:

— Ora, está bem, não fechei o negócio hoje, mas pelo menos dei uma boa olhada na mercadoria. Moça, é de primeira.

Ele a fez rir tanto no caminho de Wapping até a sua casa que ela quase se esqueceu de que ele estava partindo. Mas, ao virar a esquina da Montague Street, ela se lembrou. Ele partiria no dia seguinte. Quando ela voltasse da Burton, ele já não estaria lá.

Como se captando o que ela sentia, ele pegou-a pela mão e disse:

— Lembre-se do que eu disse. Isso não vai ser para sempre. Virei vê-la mais cedo do que você imagina.

Ela balançou a cabeça.

— Cuide-se — ele acrescentou, despedindo-se com um beijo.

— Você também — ela murmurou, observando-o enquanto ele caminhava, enquanto se afastava dela.

 

RODDY O‘MEARA GEMIA E DOBRAVA-SE. De chofre, num único jato, seu estômago pôs para fora a torta de carne e cebolas que ele tinha comido no jantar. Encostado no muro de tijolos do quintal do número 29 da Hanbury Street , ele se esforçava para respirar fundo, torcendo para que a náusea que ainda sentia se acalmasse. Ao passar a mão pela testa, ele se deu conta de que o capacete havia caído.

— Jesus, tomara que não tenha vomitado em cima dele.

Deu uma cuspidela, localizou o capacete e, depois de uma rápida inspeção, colocou-o de novo na cabeça, apertando a correia debaixo do queixo. Depois, fez um esforço para andar de volta até o cadáver. Não permitiria que seu estômago fraco o impedisse de fazer o seu trabalho.

— Melhor? — perguntou George Phillips, o médico legista da polícia.

Roddy fez que sim com a cabeça e pegou a lanterna que deixara perto do corpo.

— Bom homem — disse o doutor Phillips, enquanto se agachava para examinar o corpo. — Ilumina aqui.

Ele projetou o foco de luz na cabeça da mulher. Enquanto o médico escrevia em seu bloco de notas, trocando perguntas e comentários como inspetor Joseph Chandler, o oficial encarregado, e outros detetives, os olhos de Roddy vasculhavam o corpo. Fora de uma mulher viva, poucas horas antes, e agora se transformara numa carcaça estripada. Jazia à frente deles, deitada de costas com as pernas obscenamente abertas e o abdomen escancarado. O assassino a tinha estripado e deixado os intestinos ao lado. Esfaqueara suas coxas e cortara a carne entre elas. Um corte profundo rodeava o pescoço como um colar de granadas vermelhas, e o sangue congelado cintilava na escuridão sob a luz da lanterna.

— Por Deus — disse um dos detetives. — Só quero ver o que os jornais vão dizer dessa aí, com as tripas espalhadas por todo lado.

— Nada de imprensa aqui. Nenhuma. — Chandler esbravejou, olhando o corpo. — Davidson — dirigiu-se ao detetive. — Posicione uma dúzia de homens na frente do prédio. Ninguém pode chegar aqui, a não ser que esteja a serviço da polícia.

Aquele assassinato era uma tragédia. Apesar de todo o policiamento extra colocado nas ruas depois que encontraram Polly Nichols nove dias antes, o assassino acabou estripando outra prostituta.

Roddy já tinha encarado a morte. Mulheres espancadas até a morte pelos maridos. Crianças famintas e negligenciadas. Vítimas de incêndios e acidentes. Mas nada se comparava àquela cena. Aquilo era odioso; sombrio, insano, desnorteante. Fosse quem fosse o assassino daquela mulher, e das outras, nutria contra elas uma fúria incompreensível.

Agora ele tinha uma outra imagem do trabalho do assassino para guardar em sua mente. Mas dessa vez não deixaria que lhe tirasse o sono, dessa vez descarregaria o horror e a raiva no seu relatório. Eles acabariam pegando o homem; era uma questão de tempo. E, quando o pegassem, ele seria enforcado pelo que tinha feito. Até mesmo naquele momento, enquanto o doutor Phillips examinava o corpo, alguns grupos de policiais e detetives investigavam a área em busca de pistas, batendo às portas e perguntando para os moradores se tinham visto ou ouvido alguma coisa.

— Aqui — disse o doutor Phillips, movendo-se do pescoço da mulher para o abdome.

Roddy o seguiu, evitando pisar nas poças de sangue. Projetou um foco de luz na cavidade. Seu estômago revirou outra vez e apertou-se até ficar do tamanho de uma noz. O odor doce e metálico do sangue e o fedor daquelas entranhas eram avassaladores.

— A garganta foi cortada da esquerda para a direita. A morte ocorreu meia hora atrás, o corpo ainda não está rígido — Phillips falou para o inspetor ao mesmo tempo em que escrevia. — A mutilação abdominal está pior que a última. É como se...

Abriu-se uma janela em cima deles. O doutor Phillips olhou para o alto; Roddy e os outros acompanharam a mirada. Dedos apontavam e cabeças espichavam-se para fora em grande parte das janelas dos andares superiores das casas que davam para aquele pequeno quintal.

— Por favor, saiam daí — gritou o doutor. — Isso não é visão para gente decente!

Algumas cabeças recolheram-se, mas a maioria permaneceu.

— Não ouviram o que o homem disse? Todo mundo para dentro ou terei que autuá-los por obstrução do trabalho policial! — berrou Chandler.

— Você não pode fazer isso, homem! — ecoou uma réplica indignada.— Paguei dois pences ao velhote que mora aqui só pra poder espiar.

— Meu Deus — Phillips resmungou, retornando ao cadáver com um ar preocupado no rosto. — vem, vamos terminar e depois a gente cobre ela. Vamos estragar o prazer desses urubus.

Finalizou o exame e dispensou Roddy, que se juntou aos que estavam posicionados diante do prédio. Enquanto o inspetor e os detetives investigavam a área em busca de evidências, Roddy e seus companheiros enfrentavam uma tremenda aglomeração de gente.

Vestindo um sobretudo masculino por cima da camisola, uma mulher o encarou com um misto de medo e raiva.

— Policial — ela gritou, dando alguns passos na direção dele. — Foi ele, não é? O assassino de Whitechapel. Atacou de novo, não é? Por que vocês não o prendem logo?

Obedecendo à polícia oficial, Roddy não fez qualquer comentário. Limitou-se a desviar o olhar para uma casa do outro lado da rua.

— Vocês não estão fazendo nada!— a mulher berrou com a voz esganiçada. — E tudo isso porque essas mulheres são miseráveis, não é? Ninguém se preocupa com a gente. Só quero ver quando ele for para West End e atacar as moças elegantes de lá. Num instante vocês o prendem!

— É tudo mulherzinha— gritou um homem. — Esses policiais não tem coragem nem de bater na porta dos puteiros.

A cada minuto, os escárnios e as zombarias da multidão aumentavam — e cada vez mais grosseiros. O inspetor Chandler passou pelos policiais para investigar a fonte daquele vozeiro. Olhou para aquela aglomeração, voltou-se para os seus homens e disse que a ambulância chegaria a qualquer momento.

— Assim que o corpo for embora, a turba dispersa— ele acrescentou.

— Quantas mais ele vai matar? — gritou uma mulher. — Quantas?

Chandler fulminou a multidão com um olhar sórdido e virou-lhe as costas para se reunir aos seus detetives. Mas, antes mesmo de dar um passo, soou uma outra voz.

— É isso mesmo, inspetor, quantas mais?

Roddy viu a careta que Chandler fez.

— Quantas mais, senhor? O público tem o direito de saber!

Roddy cravou os olhos em quem falava. Conhecia aquela voz. Vívida, excitada, com tom quase histriônico, era a voz de uma figura magra e arqueada que se dirigia intempestivamente para Chandler.

— Não tenho nada pra você, Devlin— vociferou o inspetor.

— A garganta dela foi cortada?

— Sem comentários.

— O corpo foi retalhado?

— Já disse que não tenho nada a declarar! — replicou Chandler. Depoi berrou algumas ordens para os seus homens, recomendando-lhes que continuassem firmes, e reuniu-se a Phillips.

Decepcionado, mas sem dar o braço a torcer, o repórter enfrentou a fila de policiais.

— E quanto a vocês, homens? Parece que o nosso garoto pegou mais uma, né? E a polícia como sempre, não estava por perto. Só apareceu depois que a mulher morreu. Talvez estivesse viva se vocês fossem mais rápidos. Mas são tão molengas...

A provocação de Devlin surtiu efeito. Ofendido pelas palavras do repórter, um jovem policial mordeu a isca.

— Não somos molengas, não. Ela morreu com um corte da vagina até a garganta. Ela...

Devlin anotava e perguntava.

— A que horas? Quem encontrou o corpo?

O rapaz logo foi advertido para se manter de bico calado; e que Devlin, com seu bloco de anotações na mão, fosse tentar a sorte em outra freguesia.

Roddy suspirou. Sentia-se irritado e exausto. Não queria ficar ali. Queria sair, voltar para casa. Ele precisava se movimentar, se mexer; era a única coisa que podia apagar a cena que estava gravada em sua memória: aquele corpo retalhado, as pernas escancaradas, a florzinha vermelha presa o casaco. Será que conseguiria dormir no fim daquela noite? Fechou os olhos e, mesmo de olhos fechados, as imagens persistiam, e a voz de Devlin ecoava com insistência dentro de sua cabeça: ―Quantas mais ele matará? Quantas mais?

 

AGUA QUENTE DIRETAMENTE da torneira. Encanamento de primeira. Era espantoso. Maravilhoso! Joe mergulhou a navalha de barba na tigela de água morna e sabão e maravilhou-se uma vez mais com os milagres da modernidade. Uma pia. Uma banheira. Uma privada com descarga. E tudo dentro de casa! Mirando-se no espelho do banheiro, raspou a barba loura que cobria seu rosto.

Quando Peterson disse que lhe cederia um quarto em seu estabelecimento, ele esperava um quartinho sujo e escuro no quintal. Não podia estar mais errado. No último piso de um prédio de três andares, o quarto fora usado como depósito e depois como hospedaria de pernoite para fazendeiros que chegavam à cidade. Quando Harry, o sobrinho de Peterson, veio de Brighton para trabalhar com ele, o quarto foi reformado e transformado em suíte de solteiro. Tinha pouca mobília, mas era claro e limpo. As paredes estavam pintadas com um tom creme aconchegante. Um fogão de ferro aquecia o cômodo além de cozinhar e ferver a água para o chá. Um velho tapete cobria o chão na frente do fogão e duas poltronas de couro tiradas do sótão da casa de Peterson dispunham-se em seus flancos. Cada rapaz tinha uma cama e um armário estreito, e ainda um caixote de frutas que servia como mesa de cabeceira e uma lamparina.

Tommy fez muito por mim, pensou Joe. O salário e as acomodações eram de primeira. Mas Peterson também lhe dava algo além de um bom salário e um bom quarto, algo que era de extrema valia.. Ele o ouvia. O homem era atarefadíssimo — inspecionava pessoalmente um exército de trabalhadores que abrangia compradores, vendedores, carregadores e motoristas — e mesmo assim encontrava tempo para ouvir as ideias dos seus empregados, desde o mais humilde carregador até o mais importante comprador. Quando Joe sugeriu que as mulheres que debulhavam as ervilhas produziriam mais se houvesse alguém para repor as ervilhas e impedir que elas ficassem se levantando para pegá-las, contratou-se um menino. O aumento da produção promovido pela mudança rendeu-lhe um ―bom rapaz!‖ e um tapinha nas costas. Quando ele notou que os cozinheiros dos hotéis e restaurantes — um bando impaciente e refinado — costumavam zanzar de um vendedor para outro, comprando maçãs aqui e brócolis acolá, perguntou se podia dispor de chá para eles. Tommy concordou e os chefes de cozinha agradeceram pela bebida quente disponível às quatro da madrugada, e se encantaram tanto que passaram a comprar mais.

O dinheiro e o quarto agradaram-lhe imensamente, mas o incentivo que recebia de Tommy o satisfazia ainda mais. Seu pai nunca se interessava por suas ideias, resistia a todas. E agora Joe tinha a confirmação de que elas eram boas e que alguém confiava nelas.

Na primeira oportunidade que teve, mandou uma carta para Fiona, contando-lhe a respeito de sua nova vida: ―Banho quente quando quero, uma cama só para mim e um quarto aquecido com carvão de sobra‖, ele escreveu. ―Tudo isso teremos um dia, e muito mais.‖ Falou ainda do seu trabalho, do seu colega de quarto, dos fazendeiros de Devon e Cornwall, e do incrível movimento de Covent Garden. Foram necessárias quatro páginas para contar essas coisas a ela, e um tanto de páginas para dizer que em duas semanas, quando tivesse um fim de semana inteiro de folga — Tommy só dava um por mês—, ele a levaria para ver as lojas das ruas Regent e Bond. E isso era apenas o começo. Ele fez questão de frisar que estava economizando mais dinheiro. Mais cedo do que pensavam, teriam a loja deles e, quando fossem ricos, teriam uma casa bonita com banheiro moderno. Terminou a carta dizendo que esperava que ela estivesse sentindo tanta saudade dele como ele sentia dela.

E sentia mesmo. Terrivelmente. Sentia falta de sua casa e de sua família, mas principalmente dela. Todo dia procurava prestar atenção em novas coisas para contar—lhe. Era tanta gente nova; tantas experiências novas. Morria de vontade de poder contar à noite para ela, compartilhar tudo e ver sua reação. Sentia falta da voz e dos olhos excitados de Fiona. Toda noite pensava nela antes de dormir, imaginando seu rosto bonito e seu sorriso. Muitas vezes relembrava aquele dia no rio, debaixo do armazém, quando ela quis se entregar para ele. Uma parte dele sabia que tinha agido da maneira certa, mas a outra parte dizia que fora um tolo. Algum rapaz, em sã consciência, recusaria uma garota bonita semidespida? Uma coisa era certa: da próxima vez em que estivessem sozinhos e ela tirasse a blusa, ele não devolveria a roupa. Desde que chegara a Covent Garden, graças ao seu novo colega de quarto, ele tinha aprendido uma ou duas coisas que não envolviam o sêmen.

Os pensamentos de Joe voltados para Fiona foram interrompidos pelo barulho da chuva que batia na janela do banheiro. O dia estava doido. Planejara dar uma caminhada com Harry que cochilava diante do fogão, mas com aquele tempo não se podia ir a lugar algum. Era uma pena. O domingo era o único dia da semana livre e seria bom se pudessem esticar as pernas e quem sabe até tomar uma cerveja. Mas também era bom ficar em casa e ler o jornal. Afinal, os dois estavam exaustos e Peterson era um patrão que exigia muito dos empregados, principalmente aos sábados, ocasião em que tinha que se livrar do estoque. No fim do dia, Joe estava sempre rouco e encharcado de suor. Ele e Harry acordavam de madrugada, despertados pelo sino da igreja, pela barulheira dos jornaleiros e pela cantoria do padeiro debaixo da janela.

Joe secou o rosto com a toalha. Seu estômago roncava. Ele se perguntou se Harry gostaria de enfrentar o tempo e sair para comer. Já estava para lhe perguntar quando ouviu batidas na porta ao pé da escada. Vestiu a camisa, ajeitou os suspensórios e saiu do banheiro. Harry estava sentado numa poltrona, pestanejando.

— Quem é? — Joe lhe perguntou.

— Não faço a mínima ideia — ele respondeu sonolento. — Vai ver, você está mais perto.

Joe abriu a porta que dava para a escada e desceu os degraus para abrir a porta de entrada. — Harry, me deixe entrar, estou ensopada! — gritou uma mulher. Ele abriu a porta e se viu cara a cara com Millie Peterson.

— Joe, querido! — ela exclamou, estendendo-lhe uma cesta de vime.— Segure isso, está bem? Tem mais uma. Harris vai ajudá-lo a pegar — ela disse afobada, derretendo-se em sorrisos, e subiu a escada. Joe e o motorista tiraram a outra cesta do veículo. Ele agradeceu ao homem e depois subiu a escada com as duas cestas.

— Millie, boboca! — ele ouviu o grito de Harry. — Veio nos visitar!

— Vim, sim. Queria fazer uma surpresa pra você, Harry. Trouxe um piquenique. Achei que podíamos ir ao parque, mas teremos que fazê-lo dentro de casa.

Joe fechou a porta ofegando, colocou as cestas de Millie no chão e se pôs a rir quando viu Harry abraçando-a e suspendendo-a com força.

— Harry, me põe no chão! Está me quebrando!

Em vez de soltá-la, ele começou a girar até que ela gritou, implorando para que ele parasse. Quando ele finalmente colocou-a no chão, os dois cambalearam completamente tontos e passaram a rir um do outro.

— Ohhh, Harry Eaton, você me paga. Logo que a minha cabeça parar de rodar.

— Por quê? Você adorava quando eu brincava assim.

— Quando eu tinha cinco anos, seu tolo!

— É bom te ver, Mills — disse Harry, olhando-a com carinho sincero. — Aqui é um tédio só com nós dois. Você é um raio de sol neste lugar enfadonho.

— Tédio? Enfadonho? Muito obrigado, colega — Joe rebateu.

— Desculpe, cara, você é um ótimo colega de quarto, mas a minha prima é muito mais bonita.

Millie realmente iluminava o lugar. Tinha tirado a capa molhada e vestia um conjunto de saia e casaco xadrez, com uma renda marfim na gola e nos punhos. A padronagem em tons de creme e marrom combinava com seus olhos cor de amêndoa e os maravilhosos cabelos louros, dourados como mel. Pequenas gotas de topázio pendiam de suas orelhas e uma delicada pulseira também de topázio circundava o punho. Seu cabelo puxado em um coque para trás era mantido por prendedores de tartaruga. Ela era uma pintura, não se podia negar. Achando que Millie e Harry preferiam comer sozinhos, Joe preferiu se retirar. Foi até o armário e pegou o casaco.

— Aonde você vai? — perguntou Millie, olhando de sua cesta.

— Acho que vou dar uma volta.

— Num dia assim? Na chuva? Você não vai fazer isso. Pode ficar seriamente doente. Fique e coma com a gente. Eu esperava... pensei que você podia estar aqui e por isso trouxe toneladas de comida. Não vai me desapontar depois de todo o trabalhão que tive para chegar até aqui, não é? — ela voltou-se para o primo. — Harry, faz ele ficar.

— Receio que você tenha que ficar, companheiro. Millie deixou bem claro que deseja isso, e nós dois não teremos paz se você não ficar.

Joe viu que não seria educado insistir em sair. Millie já tinha começado a desempacotar um monte de coisas e ele estava faminto.

— Bem, se você acha que não vou incomodar....

— De maneira nenhuma — ela disse. — Tome aqui, pegue essa toalha e estenda-a defronte do fogão. Harry, você pode acender o fogo?

Com Millie no comando, Joe e Harry logo montaram o piquenique. Harry pôs o carvão no compartimento do fogão e preparou o fogo até deixar o carvão em brasa. Manteve a portinhola do compartimento aberta para aquecer melhor o cômodo. Joe estendeu uma toalha de mesa branca sobre o tapete e abriu as garrafas de cerveja. Millie colocou todo o alimento sobre a toalha, chamou os dois para se sentarem no chão, distribuiu guardanapos e talheres e depois serviu.

— Meu Deus, Millie, você trouxe comida para um batalhão — exclamou Joe.

— Um batalhão chamado Harry — ela disse, enquanto cortava a torta de carne de porco.— É culpa da tia Martha, a mãe de Harry. Ela me escreveu pedindo para que eu verificasse se o filhinho dela estava se alimentando. E me enviou uma lista dos seus pratos preferidos.

— Tudo bem, mas ela não quis dizer que eu tinha que comer tudo de uma só vez! E, mesmo que quisesse, eu não conseguiria comer todo esse farnel!— disse Harry.

Além da enorme torta de carne de porco ainda havia ovos recheados, rolinhos de salsicha, pastéis de forno de carne, sardinhas, pão preto, queijos cheddar e stilton, e biscoitos de gengibre e de limão. Joe e Harry estavam esfomeados e, assim que Millie estendeu os pratos, caíram de boca na comida.

— Isso está ótimo, Millie, muito obrigado — disse Joe.

— E como — Harry resmungou de boca cheia.— Bem melhor que a gororoba da loja de comidas.

Enquanto Joe e Harry se alimentavam, Millie falava. Perguntou como o trabalho deles estava indo e contou histórias engraçadas de quando ela e Harry eram crianças, o que fez todos rirem. Joe soube que a mão de Harry era a única irmã da finada mãe de Millie, e que Harry só era seis meses mais velho que ela e que os dois primos eram companheiros de brincadeiras desde a infância, mas que haviam se afastado nos últimos anos, quando a família de Harry mudou-se para Brighton.

Joe olhava atentamente para Millie e Harry; duas cabeças alouradas, duas faces risonhas. Os dois se pareciam muito. Como Millie, Harry era bonito, embora mais corpulento e musculoso. Gostava de esportes, cavalos e garotas bonitas. Não gostava de negócios de produtos agrícolas e tinha dito isso para Joe, fazendo-o jurar que não contaria nada para o tio. Ele queria ser explorador. Seu desejo era ir para a Índia e a África. E também disse para Joe que em dezembro, no seu vigésimo aniversário, realizaria esse sonho.

Logo que Joe terminou seu prato, Millie o encheu de novo. Ele tomou um gole de cerveja e recostou-se numa das poltronas, determinado a comer o segundo prato um pouco mais devagar. O entardecer se estendia e uma prazerosa preguiça o envolvia. A comida, o calor do fogo e a presença animada de Millie tinham dissipado a melancolia do dia e aliviado a sua solidão. Sentia-se aquecido, bem alimentado e satisfeito. Nunca tivera um dia como aquele, sem trabalho, sem preocupações, sem nada a fazer senão sentar-se na frente do fogo com dois amigos. Lá, com Harry e Millie, seu sentimento era que não precisava temer nada no mundo.

Olhava para Millie conversando despreocupadamente e se perguntava se algum dia ela tivera alguma preocupação. Embora ela estivesse de frente para Harry, estava sentada bem perto de Joe e ele podia sentir seu perfume: lilás. A cor de Millie resplandecia; seus cabelos louros brilhavam, iluminados pela luz do fogo. Ele fechou os olhos e pensou em Fiona, em como ela adoraria todas aquelas pequenas luxúrias: a cerveja, os queijos, os biscoitos de limão. Gostaria que ela estivesse ali. Escreveria para ela e contaria tudo. Ou melhor, não, ele pensou, talvez não. O fato de que tinha estado a tarde toda com Millie podia não pegar bem. Mesmo se dissesse que Millie só fora para visitar o primo, e isso era verdade, é claro, talvez Fiona ficasse com ciúmes. Ela não conseguia ver que Millie era uma boa moça. Então, devia manter isso em segredo.

Joe sentiu um delicado beliscão na perna e ouviu os risos de Millie e Harry. Achou que os dois estavam rindo dele.

— Bristow, será que o acordamos? — perguntou Harry.

Joe abriu os olhos, sorrindo.

— De maneira alguma — ele disse, espreguiçando-se. — Só estava descansando os olhos.

— Que horas são? — perguntou Millie.

— Cinco e pouco.

— Já está na hora de ir — ela disse, começando a embrulhar o que sobrara. — falei para o Harris me pegar às cinco. Talvez já esteja lá fora.

Harry colocou-se à frente e agarrou a mão dela.

— Não, me desculpe, mas você não pode ir. Tem que ficar aqui com a gente para sempre.

— Isso não ficaria nada bem, agora me dê licença? Pare, Harry! Tenho que guardar isso... — ela ria, tentando se livrar do primo.

— Só se você prometer que voltará. Logo. Promete, Mills.

— Está bem, mas só se Joe quiser que eu venha.

— É claro que eu quero, Millie — disse Joe, enrubescendo. — Foi bom ter você aqui. — E tinha sido mesmo. A companhia de Millie fizera a tarde voar.

Ela sorriu para ele e depois voltou a separar o que levaria de volta. Harry e Joe ajudaram.

— Não vou levar isso comigo — ela disse.— Guarde num lugar fresco para não estragar.

— Beleza! Estaremos forrados por vários dias — disse Harry.

— E também vou deixar a outra cesta. Tem dois cobertores de lã dentro dela. Já está esfriando e papai nunca pensa que os outros podem sentir frio, a não ser as maçãs e as laranjas.

Depois de terem guardado alguns itens na cesta e dobrado a toalha, Harry ajudou Millie a vestir a capa e ajeitou o capuz, amarrando-o no queixo.

— Vai com cuidado pra casa — ele advertiu. — Vamos descer com você.

Harry desceu na frente e Millie e Joe o seguiram. Lá fora, a chuva tinha parado, mas o tempo estava escuro e caía uma garoa. Os lampiões a gás já estavam acesos, as chamas refletiam na superfície escorregadia dos paralelepípedos e as lanternas brilhavam de cada lado do veículo de Millie.

— Boa noite, Harris — Harry cumprimentou o motorista.

— Boa noite, senhor — disse Harris, tirando o chapéu.

Harry abriu a porta do veículo.

— Até logo, Millie boboca. Pena que você vai embora.

— Eu voltarei. Num dia melhor. E nós todos vamos sair para tomar um chá ou caminhar no parque — ela ficou na ponta dos pés e deu um beijo na face de Harry, depois se voltou para Joe e também o beijou rapidamente no rosto. Ele sentiu outra vez seu perfume quando ela esbarrou em seu corpo; sentiu os lábios tocando o seu rosto e a mão apertando o seu braço. Depois, Harry conduziu-a para dentro do veículo, fechou a porta e ela se foi.

Harry e Joe ficaram assistindo a partida dela por alguns minutos, até que perderam o veículo de vista e subiram a escada. Agora o aposento parecia triste e cinzento.

— Ela é uma figura, não é?

— Oh, sim — respondeu Joe. — Ela é isso mesmo. O lugar parece vazio sem ela.

— É uma ótima garota — disse Harry, colocando-se na frente do fogão. — Uma coisa eu digo, quem ficar com ela será um felizardo. Um rosto lindo, pai rico e um belo par de seios.

— Não notei — disse Joe, pegando o carvão para alimentar o fogo.

Harry deu um sorriso afetado.

— Claro que não notou — ele esticou as pernas, deu um tapinha na barriga e suspirou. — O homem que não colocar Millie no departamento esposa é um burro. Se não fosse minha prima, eu casava com ela.

Joe sentiu-se subitamente desconfortável; o tom de Harry tinha se tornado muito sério.

— Talvez seja melhor você fazer isso, meu amigo. Pelo jeito não terá outra mulher.

Harry fez uma careta.

— Sinto dizer que você está errado. Tem a horrorosa da Caroline Thornton.

— Quem? — Joe fechou a portinhola do fogão e sentou-se na outra poltrona.

—A moça que a minha mãe escolheu para mim. Em Brighton. Olhos esbugalhados, peito que nem tábua, dentes amarelos, mas cheia de grana. E morre de amores por mim.

Joe riu.

— Parece um anjo.

Harry bufou.

— Um diabo, você quer dizer. Mas ela não vai colocar as garras em mim. Não, senhor. Já lhe disse, Joe. Vou me juntar ao departamento de negócios no exterior. Jura que não vai falar para o meu tio...

— Já jurei.

— Jura de novo.

— Eu juro — Joe revirou os olhos.

— Vou cair fora antes do ano acabar. Estarei longe de Londres, de Brighton e da senhorita Caroline Thornton. E também das maçãs e das laranjas. Não suporto esse trabalho. Não dou a mínima para ele e nunca darei.

—Talvez seja melhor falar com seu tio — sugeriu Joe. — Talvez ele entenda.

— Nunca. O tio Tommy vai me matar quando descobrir, mas aí será muito tarde. Estarei num vapor navegando para o leste. — Harry calou-se por um momento, fitando o fogo. — Ele me vê como o filho que nunca teve... o filho que ele perdeu... mas eu não sou.

— Ele não pode esperar isso de você, Harry, você tem que viver sua própria vida. Ele vai superar e acabar encontrando um outro, não é?

Harry assentiu devagar e em seguida voltou-se para Joe, sorrindo.

— Talvez já tenha encontrado.

 

NADA EM LONDRES se comparava ao simples espetáculo, à variedade estonteante, ao tumulto e à comoção da Harrods nas manhãs de sábado. A loja era uma verdadeira catedral gastronômica, onde damas elegantes escolhiam biscoitos e bolos bonitos, donas de casa arrogantes empilhavam pacotes e mais pacotes nos braços de criados desamparados que as seguiam, balconistas ágeis faziam embrulhos na velocidade da luz e rapazes de avental corriam de lá pra cá repondo mercadorias nas prateleiras.

Para Fiona, era uma visão mágica. Ela percorria a loja segurando o braço de Joe para não tropeçar. E simplesmente não conseguia parar de olhar.

— Olha! — ela disse, enquanto apontava para um artístico mosaico de peixes em cima de uma montanha de gelo picado. Mais adiante, coelhos, faisões, gansos, pratos e perdizes pendurados em ganchos de aço. À esquerda, o balcão de carnes: nada de pescoço e carne de segunda. Era carne para ricos: filés macios, presunto e costeletas grossas como um punho. Passaram pelo balcão das especiarias, pelo balcão dos mais finos vinhos do Porto e Madeira, e pela seção de legumes, verduras e frutas, onde Joe apontava com orgulho as selecionadíssimas mercadorias de Peterson, vindas de Convent Garden.

A última parada foi no setor da confeitaria, onde Fiona encantou-se com um maravilhoso bolo de casamento. Cascatas de rosas vermelhas açucaradas tão bem feitas que pareciam reais ladeavam o glacê da cor de marfim. Um cartão na base do bolo informava que era uma réplica do bolo que se produzira para o casamento de Lillian Price Hammersley, de Nova York, com George Charles Spencer—Churchill, o oitavo duque de Marlborough. E também informava que as rosas açucaradas tinham sido modeladas a partir de uma nova espécie de rosa dos Estados Unidos: a beleza americana.

— Teremos um igual a esse — disse Joe. — Só que com belezas de Whitechapel sobre ele.

— Belezas de Whitechapel? Nunca ouvi falar delas.

— Também são conhecidas como margaridas.

— A Harrods também faz entregas em Whitechapel? — perguntou Fiona, rindo.

— Já imaginou? — disse Joe, rindo. — A carruagem da Harrods tentando chegar em Whitechapel? Talvez nem saibam que fica em Londres.

Ao saírem da loja, eles se dobraram de rir ao imaginar a carruagem verde da Harrods com o motorista elegantemente uniformizado, sacolejando pelas ruas esburacadas das docas, seguida pelos moleques e os vira-latas.

— Aonde vamos agora? — perguntou Fiona, com seus olhos azuis brilhando.

— Vamos passar pelo Hyde Park, depois pela Bond Street, depois pela Regent Street, e depois a surpresa. Venha.

Tudo fora surpresa desde o início daquela manhã, quando Joe chegou na Montague Street e bateu à sua porta. Ela voou para abrí-la, sabendo que era ele porque recebera uma carta duas semanas antes em que ele dizia que viria e a levaria para passear.

Tudo fora surpresa desde o inicio daquela manha,quando Joe chegou na Montague Street e bateu á sua porta.Ela voou para abrí-la,sabendo que era ele porque recebera uma carta duas semanas antes em que ele dizia que viria e levantaria para passear.

Ele pediu consentimento a mãe que por sua vez disse:‘‘ peça ao seu pai‘‘,que relutou um pouco e no fim acabou cedendo.Depois implorou ao senhor Minton que a dispensasse do trabalho naquele dia.Ele a fez se rastejar,mais no fim concordou — descontando no salário dela,é claro.

A principio ficou tão excitada que quase não aguentou esperar pelo dia. Mas logo se deu conta de que não tinha nada apresentável parar vestir e que precisava ir com a melhor saia e a melhor blusa de algodão. A mãe percebeu o súbito desanimo que a invadiu e quis saber o que havia de errado. Especialista em tirar tudo do nada,a mãe logo recebeu súbito desanimo que a invadiu e quis saber o que havia de errado. Especialista em tirar tudo do nada, a mãe logo remediu o problema. Levou Fiona para o quarto,onde remexeu um baú ate encontrar o que provocava: um casaquinho godê de listras azul—marinho e creme que havia usado no dia do casamento E não cabia mais nela — depois de quatro filhos,a cintura e os seios aumentaram , mais servia perfeitamente em Fiona e realçava sua figura esguia. Fiona também pegou emprestado um lindo broche com sua amiga Bridget e uma bela bolsa toda bordada com Grace, uma amiga do Tio Roddy.

Seu pai e tio Roddy providenciaram o toque final: um chapéu de veludo azul de abas largas e duas rosinhas vermelhas na sexta, ela chegou um pouco mais tarde do trabalho e encontrou o presente no seu lugar à mesa. O pai estava com a cara enterrada no jornal e o tio Roddy se servia de cerveja. Charlie e Seamie estavam à mesa. Kate,no fogão. Fiona olhou espantada para o chapéu e em seguida olhou para a mãe

— Do seu pai — disse a mãe — e do tio Roddy.

Ela pegou o chapéu. Era de segunda mão e o veludo estava lentamente puído em dos lados onde faltava algumas franjas, mas nada que as rosas não pudesses esconder. Ficou sabendo que fora a mãe que achara o chapéu e que o pagamento ficara por conta do pai e do tio. Tentou agradecer, mais sua garganta apertou e seus olhos se encheram de lágrimas.

— Não gostou, mocinha? — perguntou Roddy, preocupado.

— Claro que gostei, tio Roddy! — ela respondeu, já com a voz recuperada. — Adorei!Obrigada, muito obrigada . Obrigada, papai!

Roddy sorriu.

— Eu mesmo colhi as flores — ele disse.

Paddy riu.

Fiona abraçou o tio e depois se meteu entre o jornal e o pai e também o abraçou.

— Não devia fazer isso, papai. Muito obrigada

— Foi só uma coisinha à toa — ele disse rapidamente — Divirta-se amanhã. E diga ao Bristow que trate de cuidar de você se não vai ter que se ver comigo.

Ela ainda segurava o chapéu acariciando o delicado veludo. Justo quando sentiu que as lágrimas estavam para rolar, Charlie estendeu-lhe um par de luvas azuis, e as lágrimas realmente rolaram.

— Deixe de ser boba — ele disse, embaraçado. — Não é lá grande coisa .Comprei de segunda mão. Só pra você não parecer uma pé-rapada.

Mais tarde, naquela mesma noite, Fiona tomou um banho e Kate lavou seus cabelos. Depois, passou a ferro a saia, a blusa e o casaco enquanto a mãe pregava as rosas no chapéu. Ela achou que não conseguiria dormir, mas dormiu e acordou bem cedo.

Lavou o rosto, penteou os cabelos e prendeu-os no alto da cabeça,com ajuda da mãe.Depois, vestiu-se, experimentou varias vezes o chapéu ouvindo os protestos da mãe que dizia que estragaria o penteado se não parasse com aquilo. Por fim, estava pronta.

—Oh olhe só para ela, Paddy — Kate falou emocionada, enquanto pregava o broche na lapada do casaco — A nossa primogênita cresceu. Está tão linda quanto uma rosa na primavera.

Sentado à mesa e devorando o café da manhã , Charlie fez uma gracinha.

Paddy abotoava a camisa para o trabalho e sorriu.

— Ela é mesmo uma moça muito, muito bonita. Puxou à mãe.

Fiona deu uma olhada no pequeno espelho que ficava sobre a lareira da cozinha e sentiu-se feliz. Sua mãe tinha feito um ótimo trabalho com seu cabelo e o casaco caíra como uma luva.

Não teve muito tempo para se admirar no espelho porque as batidas na porta fizeram com que saísse correndo para se encontrar com Joe. Ela arregalou os olhos quando a viu e não pode evitar um beijo.

— Você esta tão adorável, tão beijável — ele sussurrou — muito mais linda do que eu lembrava . — Fiona estava extremamente feliz por vê-lo; ele partira duas semanas antes ,mas pareciam meses. Ele se mostrava diferente: o cabelo tinha crescido e ele estava mais magro. Ela estava louca para ficar a sós com Joe, mais primeiro ele tinha que conversar com seus pais. Ele entrou na cozinha, tomou ma xícara de chá e contou todos os detalhes de seu novo emprego.

Quando o pai de Fiona começou a falar sobre o sindicato, ela decidiu que já era hora de saírem. Caminharem na direção da Commercial Street, onde pegariam o ônibus para a cidade Mas primeiro Joe tomou um desvio. No final da Montague Street empurrou-a para dentro de um beco e beijou-a longamente.

—Meu Deus, como senti sua falta — afastou-a por uns segundos para contemplá-la e beijou-a outra vez. Por fim, segurou-a pela mãe dizendo. —Vamos, deixe de me provocar. Temos que pegar o ônibus.

Enquanto caminhavam até o ponto de ônibus, ele contava mais coisas a respeito de cover Garden,dos chefes de cozinha do Claridge, do café Royal e do Sr James que torciam o nariz para qualquer coisa,e dos carregadores do mercado que equilibravam cestas na cabeça e das pobres mulheres que ganhavam a vida debulhando ervilhas e descascando nozes. O ônibus chegou puxado por alguns cavalos. Joe ajudou Fiona a entrar, pagou as passagens e os dois subiram para o andar de superior ao veiculo. Era um dia de setembro e por isso não estava frio, e dali eles podiam ter uma visão completa do Londres.

Fiona, que nunca tinha andado de ônibus, estava nas nuvens.

— Tem certeza de quer não e muito caro? — ela sussurrou, preocupada — Você tem certeza de que pode pagar? — Joe fez um sinal que ela se calasse. O ônibus levou-os em direção a City, o centro comercial de Londres e ele apontava os escritórios de diversos comerciantes. Ela apertava a mão dele com força, excitada com todas as novidades que via. Um prédio mais alto e vistoso que todos os outros lhe chamou a atenção.

— E o prédio da Burton — ele disse — Disseram que as inovações custaram os olhos da cara. Desconfio que seu pai não devia achar que a pressão do sindicato é capaz de abalar esse homem.

Eles já sabem já se distanciavam da Harrods através da Brompton Road, e Fiona não tirava os olhos de Joe. Ele falava outra vez de Peterson, mas de repente parou quando percebeu que ela o olhava sorrindo, sem ouvir uma palavra do que ele dizia.

— O que é?

— Nada.

— Me diz.

— É que gosto de olhar pra você só isso. Você esteve fora. E agora esta aqui mesmo, mas diferente. Todo excitado com as coisas novas e as pessoas novas.

— Pare com isso. Esta me deixando sem jeito. Se estou excitado, é por nós dois. Pela nossa loja. Estou aprendendo sim, Fi, muito mais do que se estivesse trabalhando com meu pai, e estou lucrando com isso. Lembra da nossa lata de chocolate?

— Claro, aliás tenho dinheiro pra você colocar dentro dela.

— Você vai ver quanto tem nela

— Quanto?

— Me diz!

— Não.

— Por que não?

— Porque preciso de alguma coisa para atraí-la ao meu quarto, não é?—ele sorriu. — Alguma forma de levar você ate a minha toca.

— Quer dizer que vou conhecer o seu companheiro de quarto? O Harry? — perguntou Fiona fingindo que não tinha entendido.

— Ele vai ficar fora o dia inteiro

— Verdade?Que coincidência.

— Não é?

— Porque será que você me quer no seu quarto, heim? — Ela falou, fazendo força para não rir.

— Porque ele precisa de uma limpeza e não tenho dinheiro para uma faxineira.

— Seu sacana!

Fiona e Joe fizeram uma pausa no Hyde Park para ver se as damas e os cavalheiros que cavalgavam. Eles desceram no final do Knightsbrige para dar uma rápida olhada no Palácio de Buckingham — Fiona queria ver o lugar em que a rainha morava — e depois seguiram pela Picadilly na direção da Bond Street.

Lá eles viram as vitrines da Garrard, a joelharia da Família real; a Mappin & Webb, uma outra joalheria e a Liberty, a loja procurada por todas as pessoas elegantes. Passaram pelas lojas de tecidos que exibiam metros tecido de seda para chapéus, lencinhos indescritíveis luvas de renda e bolsas de contas. E ainda havia lojas de sabonetes e perfumes, livrarias, floriculturas apinhadas das mais variadas flores, as lojas que vendiam bolos deslumbrantes, biscoitos e as mais lindas caixas de doce e balas

Fiona queria comprar alguma coisa para levar para casa para sua família e sofria com os preços. Só tinha um xelim. Queria comprar um lencinho para a mãe mas se comprasse quase não sobraria dinheiro para comprar algo para seu pai, seus irmãos e seu tio Roddy. Como e é que compraria alguma coisa para a mãe? Com ajuda de Joe ela se decidiu por uma linda lata de caramelos de leite. Assim todos poderiam desfrutar do presente exceto o bebê, mas ela ainda era tão pequena que não daria importância.

Seus olhos cravaram-se em tudo e estocavam cada pedaço de conhecimento para uso do futuro. Notaram num armazém elegante como as maças eram empilhadas, como cada uma estava embrulhada num quadrado de tecido azul. Leram os cartazes dos prédios e nos ônibus. E se informaram sobre a melhor maneira de embrulhar doces e balas: em caixas de cor branca com uma fita de cetim rosa ou caixas azul—marinho com uma fita de cetim creme.

E justo quando Fiona pensava que já tinha visto todas as coisas maravilhosas da cidade e que o dia na teria mais surpresa ela se viu junto dele frente a Forthum & Mason‘s. Um porteiro uniformizado abriu a porta. Joe lhe deu um empurrãozinho para que ela entrasse.

— O quê? Aqui? — ela sussurrou, insegura

— Sim, vamos, você não quer?

— Mas Joe ,isso é tão elegante...

—Vamos Fi, vamos lá. Você esta bloqueando a porta — ele a fez entrar com uma cutucada

— Meu Deus é de primeira classe não é? — ela sussurrou, enquanto olhava para o alto do teto em arco, para as vitimas, para o sofisticado piso ladrilhado. — O que é que estamos fazendo aqui?

—Vamos tomar um chá. É um convite. Minha surpresa para você. Vem.

Joe guiou-a pelo saguão de entrada da Fortnum, passando por todas as espécies de guloseimas caríssimas na direção do salão de chá. O recepcionista acomodou-se em duas cadeiras estofadas de mesa baixa ,uma frente a outra ,e Fiona se comoveu tanto com a beleza do salão e das pessoas presentes que se esqueceu de se preocupar com o preço. O salão de chá foi uma revelação para ela. Não fazia a menor ideia de que existiam coisas como aquela: um mundo perfeito e belo onde não se tinha nada melhor a fazer do que tomar chá e mordiscar bolinhos. Olhava ao redor e seus olhos brilhavam , registravam tudo guardavam cuidadosamente cada imagem na memória como se colocando joias em um cofre : o ambiente em tons pasteis, rosa e verde com toalhas de linho branco e rosas verdadeiras sobre as mesas, os homens bem—apessoados e as mulheres elegantes. A música suave do piano, pedaços de conversa risadas soltas. E o melhor de tudo, do outro lado da mesa Joe. O dia estava sendo um sonho maravilhoso e ela gostaria de se manter nesse mundo adorável e não voltar para Whitechapel e ficar outra vez sem Joe. Mas não era hora de pensar nisso, só estragaria as coisas. Segunda feira ainda não chegara. Ela ainda o tinha pelo resto do dia e no dia seguinte, já que ele voltaria a Whitechapel para passar a noite com sua família.

Já eram quase quatro e meia quando saíram do Forthum, carregando sanduíches bolachas e bolo. Fiona descansou a cabeça no ombro de Joe e fechou os olhos . O trajeto foi curto, logo chegaram em Convent Gardem o apartamento dele ficava apenas duas ruas do ponto de ônibus. Em poucos segundos. Joe pegou a chave e abriu a porta. Lá dentro ele acendeu os lampiões a gás e o fogo no fogão. Enquanto o cômodo se aquecia, ela inspecionava o ambiente.

— Tudo isso e seu? — ela perguntou, percorrendo o espaço.

— Sim, meu e do Harry. Cada um tem sua própria cama. Você nem imagina o que senti quando dormi na minha cama pela primeira vez. Tanto conforto, tanto espaço. Sem nenhum irmãozinho pra me chutar a noite inteira.

— E você tem um banheiro? Dentro de casa?

Joe riu.

— Tenho. Dê uma olhada. É uma maravilha.

Quando ela voltou, ele a fez sentar na frente do fogão — a portinhola estava totalmente aberta e o fogo ardia lá dentro. Os olhos dela se desviaram para o console cheio de utensílios masculinhos: navalhas de barbear, um canivete grande um cantil de uísque com as letras H e o E gravadas em cima e uma linda bolsa de seda.

— A bolsa é sua ou do Harry? — ela perguntou, divertida

— O quê?— Joe seguiu o olhar dela — Ah.Isso é... hmmm... isso deve ser da Millie

— Millie! Millie Peterson?

— Sim — ele disse, remexendo o carvão com uma vareta.

— O que a bolsa da Millie esta fazendo aqui? — ela perguntou, indignada.

— Bem... ela costuma visitar o Harry...

— Quantas vezes?

— Sei lá! No ultimo domingo. Algumas vezes durante a semana. E parece que hoje também veio.

— Estou vendo.

— Esta vendo? O quê? — ele disse, ainda remexendo o carvão.

— Ela não vem visitar Harry, vem visitar você.

— Ora, Fiona — ele resmungou — Não comece com isso outra vez.

Fiona estava lívida. Millie Peterson frequentava o lugar nos fins de semana. E também durante a semana, para ver Joe — Aquela vadia! —, enquanto ela era obrigada a esperar quinze dias para vê-lo.

— E você ? o que faz quando ela chega?

— Sei lá ! Na verdade nada.

Ela ergueu a sobrancelha.

— Bem,nós três conversamos ou damos um passeio. Fiona, não me olhe assim. Millie é uma moça legal que gosta de conversar. Você nem imagina como é tedioso estar por conta própria. E passar umas poucas horas com ela e o Harry me desanuvia. Esta bem? Harry é um cara legal, e é primo dela. E ela vem para visitá-lo. Portanto, será que da pra superar isso e não estragar nosso lindo dia?

— Por que você não me contou que ela vinha aqui? — perguntou Fiona, com ar de reprovação.

— Porque eu sabia que você faria tempestade em copo d‘água, exatamente como esta fazendo agora. Por acaso eu levei a Millie para passear na cidade? É com ela que estou sentado agora?

— Não — admitiu ela se dando conta de que mais uma vez agia como uma tola e que o ciúme tirava o que havia de melhor nela. Joe não era culpado pelo fato de Millie visitar o apartamento, o que ele não entendia é que ela faria de tudo para tê-lo. Mas Fiona não tocaria nisso. Não aquele dia; aquele dia que era muito especial. Embora a resolução de comportar não significasse que fecharia os olhos para as manobras de Millie. Aquela bolsa era um aviso. Elas estava perseguindo Joe como nunca.

Sentaram-se em silencio por alguns minutos,olhando o fogo — Fiona na poltrona e Joe no chão, ao lado dela. Ela fez um gesto de reconciliação, acariciando os cabelos dele e brincando com os cachos. Ele encostou-se nas pernas dela e fechou os olhos.

— Gostou do seu dia? — ele perguntou

— Se gostei? Foi o melhor da minha vida, parece até um sonho! Não quero nem pensar que vai acabar. Mal posso esperar para contar para a mamãe. Londres é a mesma cidade onde vivo, mas é um mundo totalmente diferente. A Harrods e as outras lojas, o chá na Fortnum... Eu mal parava para respirar depois de ter visto uma coisa e lá estava outra coisa acontecendo. Foram tantas surpresas!

— Bem, tem outra surpresa — Disse Joe, levantando-se.

Fiona o observou enquanto ele cruzou o quarto até a cama, onde ergueu o colchão e pegou a velha lata de chocolate.

— A nossa lata! — ela exclamou, esticando-se na poltrona. — Quero vê-la! Quanto é que tem agora? Olhe aqui, tenho um xelim para depositar.

Joe sentou-se outra vez aos pés de Fiona, e despejou o conteúdo da lata no colo dela em cima da saia. Sorria ao ver a excitação dela contando dinheiro dos dois.

— Você esta parecendo um esquilo guloso na frente de uma pilha de amendoins.

— Quieto Joe! Doze libras, doze xelins, quatro pences... doze e quinze... doze e dezoito...dezenove... — ela contava. Olhou-o, admirada. — Treze libras?

— Vai em frente que tem mais...

— Treze e seis... quatorze e dez...quinta... nossa! Nós temos aqui quase quinze libras! — ela gritou — De onde veio tudo isso? Quando você partiu, só tínhamos doze e seis!

— O Peterson me pagou dezesseis xelins por semana, Fiona. A mesma quantia que paga para o sobrinho — disse Joe — E sempre ganho uma gorjeta quando faço entregas em hotéis ou restaurantes. O quarto é de graça. Gasto pouco com comida, jornal, cerveja, e só. O resto vai pra dentro da lata.

— Joe, isso é muito mais do que agente pensou que teria agora... você economizou muito... talvez a gente possa ter logo a nossa loja— ela falou sem respirar. —Você disse um ano, mas, do jeito que vai.... — ela falava com tanta rapidez e tão tomada pelas visões da loja que não o viu tirar um embrulhinho do bolso do casaco e só notou quando ele pegou sua mão e pôs o anel em seu dedo anular.

— Uma pequena surpresa a mais, só isso — ele disse, com delicadeza.

Ela olhou o anel e engasgou.

— É pra mim? — ela sussurrou

— Pra sua mãe que não é.

— Oh Joe! Ela atirou os braços em torno do seu pescoço e beijou-o. — É lindo! É a coisa mais linda que já tive. Que pedra é essa?

— Safira. Como seus olhos. Lembra daquela pedra azul que encontramos no rio? Eu disse que lhe daria uma melhor, eí-la aqui. O anel é de segunda mão, mas uma pedra tão grande quanto uma moeda de um xelim.

— Não gostarei tanto como gosto deste — era um anelzinho à toa, de ouro com uma safira minúscula. Mas para Fiona era de tirar o fôlego

Joe não disse nada, limitou-se a segurar a mão dela e examinar o anel girando-o no dedo. Um ou dois minutos depois, ele limpou a garganta.

— Você esta certa quanto as nossas economias. Agora que estou ganhando mais dinheiro, elas estão crescendo com rapidez, e parece que abriremos a nossa loja mais cedo do que pensávamos. Então... — olhou nos olhos dela eu gostaria que ficássemos noivos oficialmente.

Fiona sorriu de orelha a orelha

— Noivado? Você quer dizer que vamos falar com o papai? De verdade?

— Claro, de verdade — Joe riu da reação dela. — Quer dizer, se você me quiser, tolinha.

— Então vou ter que dizer para todos os meus pretendentes que eles não tem mais qualquer chance ?

— Oh sim, — ele disse com ar de matreiro. —Tenho certeza de que ficarão de coração partido.

— Você já tinha planejado não é? — ela disse ainda sem tirar os olhos do anel. — Sabia durante o dia inteiro o que ia fazer e não me deu qualquer pista

Joe assentiu feliz da vida.

— Bem, ainda não pensei — ela se fez de implicante, determinada a não deixar que ele achasse que estava totalmente no controle — Por que você quer noivar comigo?

— O que você quer dizer com esse por quê?

— Só... por quê?

— Pena de você. Uma garota feiosa como você nunca encontraria outro.

— Não é isso, Joe.

— Não?

— Não. É porque...

— ... seu pai vai me pagar.

Fiona começou a rir.

— É porque você me ama, só isso.

Joe bufou.

— Quem lhe disse isso?

— Você, lembra? Lá no rio. Você disse, ouvi você dizer que me ama.

— Eu nunca disse isso.

— Disse, sim. Você me ama, sei que me ama. Portanto, diga mais uma vez e poderei aceitar...

Joe, que estava sentado, levantou-se, puxou-a para si e beijou-a.

Fiona desprendeu-se dele.

— Diz, Joe — ela insistiu.

Ele beijou-a de novo.

— Diz...

Ele a deixou calada com outro beijo, e outro, até que ela se rendeu completamente aos beijos. Era maravilhoso estar com ele daquela maneira, a sós, naquele quarto quentinho. Durante o dia inteiro ela desejou tocá-lo, abraçá-lo. E naquela hora e naquele lugar não havia ninguém para vê-los, nem os pais nem qualquer outro para interferir. Livre de proibições, ela o beijou apaixonadamente, com os lábios, com a língua. Suas mãos percorriam os ombros e o peito dele, clamando outra vez por ele. Sentiu as mãos dele em seus seios. Moveram-se até seu pescoço, onde começaram a desabotoar os botões de seu casaco. Enquanto ele tirava o casaco, ela o olhou longamente e disse:

— Se eu tirar o meu corpete, vai devolvê-lo? Como fez no rio?

— Nem pensar.

Ela desarmou os cordões que mantinham a veste fechada e deixou-a cair, dependurada em sua cintura.

— Agora, você — ela disse, cruzando os braços sobre os seios.

Joe tirou a camisa e a camiseta de baixo em um segundo. Enquanto o olhava, Fiona sentiu um desejo conhecido irromper dentro dela. E se perguntava, será que se pode achar que um homem é maravilhoso? Por que ele era exatamente isso — mais do que bonito —, maravilhoso. Do contorno do queixo até a curva dos ombros e os músculos da barriga.

— O que está olhando? — ele perguntou, autoconfiante.

— Você — ela pressionou a palma da mão no peito de Joe, fascinada por ter descoberto que os pelos do peito eram mais escuros que os cabelos dele. E mais escuros que os das axilas. E os de baixo, sob o umbigo. A visão daquela pele nua deixou-a excitada e o calor em seu ventre crescia. Beijou seu pomo-de-adão e enterrou o rosto no peito dele. Depois, comprimiu o ouvido no peito para escutar as batidas do coração. Ao beijá-lo nessa região, ela o ouviu gemer suavemente e sentiu que ele apertava a sua cintura.

E em seguida os lábios dele estavam novamente comprimidos nos dela. Ele beijou sua boca, seu pescoço. Afastou os cachos dos seus longos cabelos negros e aninhou-se em seus seios. Com os olhos semicerrados, ela rezava para que daquela vez ele não parasse. Ela então sorriu. Deus não era a pessoa mais indicada para ser chamada num momento como aquele. Fiona sabia o que desejava: o toque e os beijos de Joe. Ela queria que ele fizesse amor com ela. Ele ergueu a cabeça e ela suspirou por ter perdido os lábios dele.

— Fi, eu quero você... eu quero fazer amor com você...

Ela assentiu, bêbada de prazer, louca pelos beijos dele.

— Sei de um jeito... não vai acontecer nada...

Ele tirou-a da poltrona e carregou-a para a cama. Ela o observava enquanto ele desafivelava o cinto virado de costas e depois tirava a calça e a cueca. E ele então se virou e ela sentiu um nó de medo no estômago. Meu bom Deus, ela pensou. Olha só o tamanho disso!

Ele começou a despí-la. Era rápido e decidido e num instante tirou a saia, as botas e as meias dela. E durante o tempo todo ela não conseguia tirar os olhos do objeto de seu desejo. Nunca tinha visto aquilo, nunca imaginara que podia ser tão grande e... protuberante. À medida que ele tirava suas calçolas, ela se sentia como um bêbado quando o gim acaba. O desejo afogueado de poucos minutos atrás simplesmente desaparecera. Agora ela só sentia nervosismo. Eles iam fazer amor, não apenas se tocar e se beijar, e embora ela tivesse uma vaga ideia de que se fazia isso, não tinha a menor noção de como fazer.

Depois de deixá-la nua, Joe colocou-a na cama, deitou-se ao lado e puxou-a contra si. Ela pôde sentí-lo, insinuando-se em suas coxas. Ele estava tão calado; era urgente alguma explicação sobre aquilo e ela desejava que ele dissesse alguma coisa. Será que ele estava nervoso? Não parecia. Tudo estava tão bem minutos antes, talvez ficasse de novo se ela relaxasse.

Ela sentiu os beijos dele em seu pescoço e os afagos em suas costas, em seu ventre e depois em suas coxas. As mãos entre as suas pernas, com os dedos abrindo-as delicadamente... e depois alguma coisa tentava introduzir-se lá, apertando-a, e todo o seu corpo se retesou.

— Fi, o que há de errado?

Ela olhou para o vazio e não respondeu.

— Qual é o problema? Você não quer? Está bem, não devemos...

— Não, eu... eu preciso pensar... é só...

— O quê, meu amor?

— Bem, é... isso, Joe! — ela explodiu, apontando a região entre as pernas dele.— É enorme! Pra onde essa coisa vai?

Joe abaixou os olhos e começou a rir consigo mesmo. Virou-se, deitou-se de bruços e riu até chorar.

— Que merda tão engraçada é essa? — ela perguntou, sentando-se na cama.

Depois de recuperar o fôlego, ele disse:

— Eu esperava que você soubesse.

— Não faço a menor ideia — ela riu aliviada. Quando os dois pararam de rir, ele a tomou em seus braços e falou outra vez que ela não precisava fazer o que não queria e que estava tudo bem se eles parassem por ali e se vestissem, mas ela disse que queria e então ele a beijou na boca dizendo ―graças a Deus‖ porque a queria tanto que não podia pensar em não tê-la.

Fiona sentiu uma dor cortante, mas apenas por um segundo, pois ele logo a beijou e a deixou tranquila e relaxada, e depois terminou a dor e ele estava dentro dela. Era bom tê-lo tão íntimo, possuí-lo. Ela sentiu que ele se mexia dentro dela, sussurrava o nome dela e ao ouvi-lo foi outra vez tomada pelo desejo. Mas então, depois do que para ela pareceu apenas alguns segundos, tudo acabou. Ele gemeu e saiu de dentro dela. Virou-se de barriga para cima, com os olhos fechados e o peito arfando. Alguma coisa tinha acontecido com ele — ela notou algo no umbigo, quente e molhado. Alguma coisa tinha acontecido com ele. O que era aquilo?

— Foi tudo bem? — ela sussurrou.

Joe abriu os olhos e virou a cabeça para ela. Ele estava sorrindo.

— Mais do que bem. Eu quase não tirei a tempo. Quase que não percebi.

Fiona sorriu feliz porque ele estava feliz. Esperava ser beijada de novo quando ele recuperasse o fôlego. Sentia-se tão afogueada e inquieta; tão desconfortável. Um ou dois minutos depois, ele saiu da cama, vasculhou alguma coisa na calça e pegou um lenço. Limpou a pequena poça que estava o umbigo, dobrou o lenço e passou na perna dela.

— Só um pouquinho?

— Um pouquinho de quê?

— Sangue.

— Sangue? Ai, meu Deus, Joe!

— Não é nada, Fi. Isso acontece com as moças na primeira vez — ele disse com cara de grande conhecedor.

— Ah, verdade? Desde quando você virou um especialista no assunto?

— Os rapazes comentam. O pessoal daqui vive falando disso — ele deu uma piscadela e voltou para a cama. — Aprendi umas coisinhas depois que comecei a trabalhar aqui e não foi só sobre repolhos.

Tomou-a de novo nos braços, beijou sua boca, seus ouvidos, seu pescoço, seus mamilos e, quando sentiu que a respiração dela acelerava, ele foi descendo.

Ela assustou-se e cobriu o ventre com as mãos.

— Joe! Não! — ela sussurrou.

Ele afastou delicadamente as mãos dela, beijando-as.

— Deixa, Fi. Vai ser bom.

Ela protestou e tentou soltar as mãos, mas estavam firmemente seguras. Ele a beijou onde ela não queria e, depois, saboreou-a. À medida que a explorava com a língua e a deixava eriçada, ensinando-lhe a utilidade daquela parte do corpo, aos poucos os protestos dela tornaram-se gemidos. Indefesa diante da sensação quente e molhada que a envolvia, ela afundou de costas na cama com doces tremores que pareciam emergir do fundo do ser. E agora era ela que o chamava, crispava as mãos em espasmos e enroscava-se no corpo dele, até que o fogo interno explodiu e engolfou-se numa sequência de ondas do mais doce prazer que ela nunca experimentara.

Ofegando e ainda de olhos fechados, Fiona sentiu a boca de Joe em sua barriga, em seu peito, em seu pescoço e, por fim, em sua boca. Ele apoiou-se nos cotovelos e beijou-a seguidamente até que ela abriu os olhos e sorriu.

— Eu te amo, Fi — ele disse com os olhos inundados de ternura. — Sempre te amei e sempre amarei.

— Eu também te amo, Joe— murmurou Fiona. — Sempre...

Ela fechou os olhos. Então, era isso; agora, ela sabia. Não era à toa que todo mundo fazia tanto estardalhaço. Sentia-se tão bem, tão quentinha e sonolenta, tão feliz.

Joe afastou algumas mechas de cabelo do seu rosto.

— Dorme alguns minutos, amor. Depois temos que ir. Eu prometi ao seu pai que estaríamos de volta lá pelas oito e já está ficando tarde.

— Mmm-hmm — ela resmungou, aninhando-se no travesseiro. Ouviu quando ele catou as roupas e separou as dele e as dela, e quando se sentou na beira da cama para calçar as meias. Ouviu quando ele andou de um lado para o outro, arrumando o quarto. E também ouviu quando se deteve abruptamente. Ele ficou parado por alguns segundos e depois se debruçou numa das janelas que davam para a rua.

— Cristo! — ele gritou, espiando pela janela. — Fi, levanta! Rápido! É o Harry, o meu colega!

Fiona ergueu-se sonolenta, esfregando os olhos. E ouviu risadas vindas da rua, uma voz masculina e outra feminina.

— Pensei que ele ficaria fora o dia inteiro — ela disse.

— Pois é, e agora ele chegou — Joe tirou-a da cama. — Pegue suas coisas aqui e entre no banheiro — ele ordenou, empilhando as roupas no braço dela. — Você pode se vestir lá. Ele não vai desconfiar. Para todos os efeitos, você só estava fazendo xixi.

Fiona dirigiu-se apressada para o banheiro, completamente nua. Mas parou quando chegou à porta.

— Joe! Minha bata... Não está aqui...

Joe procurou freneticamente na cama, mas nada de bata. Levantou o colchão, e nada. Depois, correu até a poltrona e lá estava a bata, no chão. Pegou e estendeu-a para Fiona, justamente quando ouviram a porta de baixo abrir-se. Ela arrancou a bata de suas mãos e mais uma vez ele atravessou o quarto para arrumar a cama. Quando Harry e Millie entraram, a porta do banheiro estava fechada e Joe, sentado defronte ao fogo, lendo o jornal.

— Meu velho! — exclamou Harry.

— Oi, Joe — Millie o cumprimentou, sorrindo afetuosamente.

— Não esperava encontrá-lo aqui — continuou Harry. — Achei que você estava passeando pela cidade com sua amiga...

— O quê? — Millie interrompeu bruscamente.

— Uma amiga — disse Harry. Millie encarou o primo em silêncio. Achando que ela não tinha o ouvido ou entendido, ela acrescentou. — Uma señorita. Uma mademoiselle. Uma garota.

— Ouvi o que você disse — replicou Millie, olhando o primo com fúria. De repente, o sorriso doce e a cordialidade desaparecem. — Antes Joe tinha dito um amigo, Harry. Disse que o Joe tinha saído com um amigo.

Fez-se um silêncio constrangedor. Harry distraía-se com os pés. Joe fingia que estava absorto na leitura.

— Pois é — Harry deu de ombros. — Ele saiu.

— Mas você disse...

— E que importância isso tem? — Harry sorriu e seu semblante dizia que ela estava sendo inconveniente.

Isso a fez se recompor. O tom furioso e as feições sombrias se dissiparam com a mesma rapidez com que emergiram, e o sorriso retornou.

— Bem — ela esfregou as mãos, radiante. — A noite está ficando fria. E preciso de uma xícara de chá. Alguém mais também quer?

— Eu quero — disse Harry. Joe recusou, alegando que já estava pesado de tanto tomar chá.

— Tanto assim? — perguntou Millie, afobada, apossando-se do bule de chá. — Por quê? O que você fez para precisar tomar tanto chá?

Joe contou para Millie e Harry sobre aquele dia, sobre o que vira e onde estivera. Nenhum dos três ouviu a porta do banheiro abrir-se; nenhum deles notou Fiona parada à porta. Acabava de se vestir e assistia o flerte de Millie com Joe. Ao ver a cena, ela trincou os dentes. Millie Peterson não passava de uma vadia cara de pau, ela concluiu. De todo modo, estava escolada. Nada de cenas, nada, nada de altercações, nada que a tornasse malvista aos olhos de Joe. Dispunha de outros recursos. Ela tirou o broche da lapela e enfiou-o no bolso da saia.

Quando Joe já terminava de contar suas aventuras para os dois primos, Millie perguntou:

— E quem era a garota sortuda que teve a honra de acompanhá-lo?

— Eu — disse Fiona.

Harry levantou-se de um salto.

— Olá! — ele exclamou. —Perdoe a minha falta de educação. Não sabia que você estava aqui. O Joe não disse nada, mas demos uma chance a ele, não é? Harry Eaton, muito prazer em conhecê-la. Por favor, sente-se na minha poltrona. Esta é Millie, minha prima.

— Muito prazer em conhecê-lo, Harry Eaton. Sou Fiona Finnegan e já conheço a Millie.

— Verdade? Isso não é maravilhoso? — exclamou Harry. Voltou-se para Millie e empalideceu. O rosto dela estampava um sorriso, mas os olhos... a fúria era tão afiada que podia empalar alguém.

— Encantador — disse Millie.

— Sente-se. Tome um chá com a gente.

— Muito obrigada, mas não posso — Fiona recusou com polidez. — Já está ficando tarde, e nós, Joe e eu, temos que voltar para Whitechapel. O mais rápido possível.

Fiona e Harry continuaram conversando enquanto Joe pegava o casaco e a boina. Millie encarava Fiona sem dizer uma só palavra. Depois que Joe se aprontou, eles se despediram e se encaminharam para a porta. Quando Joe abriu-a, Fiona virou-se e disse em alto e bom tom. — Oh, não! Meu broche! Sumiu; eu o perdi!

— Você estava com ele quando entramos aqui? — ele perguntou.

—Tenho certeza de que sim. Deve ter caído em algum lugar.

— Onde estava sentada? — perguntou Harry. — Talvez esteja lá.

Millie não se movia.

— Como é ele? — ela perguntou com mordacidade. — É de rubi? De esmeralda?

— De metal — respondeu Fiona.

— Muito apropriado.

Com Harry agachado de joelhos, e Joe procurando no banheiro, Fiona sabia que Millie a olhava e foi até a cama de Joe, puxou o travesseiro e disse:

— Encontrei!

Sorrindo, prendeu o broche na lapela enquanto atravessava o quarto. Quando ela passava pelo fogão, Millie falou em tom mordaz:

— Eu gostaria de saber como o perdeu lá.

Fiona deu uma piscadela para ela e respondeu:

— Não sei.

Os dois rapazes perderam a troca de farpas; Harry, porque estava sacudindo a poeira da roupa, e Joe, porque saía do banheiro.

— Onde ele estava? — perguntou Joe.

— Ah, estava na... meu Deus! Olha a hora! — exclamou Fiona, olhando o relógio carrilhão. — É melhor a gente se apressar, Joe. Meu pai vai nos matar.

Já do lado de fora, Joe deu um tapinha nas costas de Fiona, dizendo:

— Estou realmente orgulhoso de você, Fi. Foi educada com a Millie, e não se embolou com ela. Comportou-se como uma dama.

Bem mais como uma mulher das docas, pensou Fiona. E sorriu com doçura.

— Espero que você veja o quanto tem sido tola. A Millie sabe distinguir as coisas.

Agora ela sabe, pensou Fiona.

Ao se aproximarem da rua principal, ouviram o barulho dos cascos dos cavalos. Ele agarrou a mão dela.

— Vem, o ônibus já vai sair. Ainda temos uma chance de chagar em Whitechapel lá pelas oito se pegarmos esse ônibus, e o seu pai não vai me esfolar vivo.

— Não vai, não, mas vai me esfolar quando descobrir que estou namorando sério um barraqueiro pé-rapado.

— Não vai, não, vai se orgulhar de você, Fi. Você fez um bom negócio — ele disse, apressando-se para pegar o ônibus que já se afastava lentamente do ponto.

— Eu o quê? — ela perguntou sem fôlego.

Ele sorriu.

— Você fez um bom negócio... trocou a cereja por uma vida de maçãs e laranjas.

Fiona ruborizou. Alcançaram a traseira do ônibus no momento em que o condutor chicoteava os animais. Joe ajudou-a a entrar e saltou para dentro do ônibus. Rindo e ofegando, eles atravessaram o corredor sob o olhar de desaprovação de uma matrona empertigada e sentaram-se quando os cavalos tomaram o caminho de East End, na direção do rio e de Whitechapel.

 

MILLIE PETERSON SUBIU A ESCADA CIRCULAR do saguão de entrada seguida por Olive, sua criada. Entrou furiosa pela porta do quarto, pegou um vidro de perfume na penteadeira e o arremessou contra a parede. O vidro quebrou com um barulho surdo e espalhou água de lilás por todo lado.

— Oh, senhorita — gritou Olive desconsolada.

— Esquece isso! — disse Millie, com aspereza. — Me ajude a tirar as botas —

sentou-se na beirada da cama. Olive ajoelhou-se aos seus pés com uma abotoadeira. — Eu sabia, Olive. Na hora em que entrei no apartamento e vi como ele estava arrumado, eu sabia que ela estava chegando para vê-lo. E estava certa! Harry me convidou para almoçar... lá em Richmond. Disse que andaríamos de trem e passearíamos no campo. Aquele alcoviteiro imundo.

— Mas o convite parece ótimo, senhorita — disse Olive, tirando uma bota.

— Pois é, mas não era. Ele só queria me manter longe do apartamento o dia inteiro para que Joe pudesse ficar sozinho com aquela rameirazinha.

— Mas se vocês estavam em Richmond, como é que a senhorita pode saber que ele estava no apartamento?

— Antes de sairmos, quando o Harry virou de costas, coloquei minha bolsa no console. Depois do almoço, eu falei que estava muito chateada porque a tinha perdido. Voltamos ao restaurante e quando ele viu que não estava lá, concluiu que talvez eu pudesse tê-la esquecido no trem ou no apartamento. Fomos até a estação, mas ninguém a tinha encontrado e devolvido, é claro, e ele teve que me levar de volta ao apartamento. E, quando chegamos lá...— os olhos de Millie se apertaram — ... ela estava lá. Fizeram amor, Olive.

— Não fizeram, não! Sussurrou Olive de olhos arregalados.

— Fizeram, sim. Tenho certeza — retrucou Millie. Ela cheirou o ar e depois fez uma careta. — Meu Deus, como esse cheiro está forte. Limpe isso logo, está bem? E abra a janela. Senão acabo sufocando.

Olive olhou-a de um modo que dizia que o logo possivelmente não seria tão rápido.

Millie jogou-se na cama, gemendo de frustração. Depois que Joe e Fiona saíram, ela sentou-se em silêncio e olhou para a cama de Joe, imaginando-o fazendo amor com Fiona. E agora, no seu próprio quarto, a raiva fervia dentro dela.

— Não entendo a preferência dele por ela, Olive — ela disse. — Honestamente, eu não sei por quê.

— Talvez a senhorita não tenha enviado os sinais certos para ele.

— Já enviei todos os sinais possíveis. Ele deve ser cego.

— Se a senhorita me permite — disse Olive, enquanto recolhia os cacos de vidro —, não é que o rapaz seja cego.

Millie sentou-se na cama.

— O que você quer dizer?

— Bem... ele trabalha para o seu pai, não é?

— E daí?

— Isso não é certo, senhorita. Não fica bem um empregado cortejar a filha do patrão.Tente ver por esse ângulo. Talvez ele pense que o seu pai vai se zangar. Talvez esteja achando que o seu pai já escolheu alguém melhor que ele para a senhorita.

Millie olhou admirada para Olive. Ela estava certa. Não era verdade que Joe não se interessava por ela. Ele é que achava que não era bom o bastante para ela! Millie era uma herdeira, podia ter qualquer um, por que escolheria um barraqueiro pobretão? Agora tudo clareava. Joe sentia admiração pelo pai dela e tinha tanto respeito por ele que nunca a cortejaria. Como ela pôde ter sido tão estúpida?

— Olive, você é demais! É exatamente o que você disse — colocou-se à frente do toucador. Ela precisava de um tempo com Joe e de uma boa oportunidade. Será que ele a achava intocável? Bem, ela lhe mostraria o quanto era tocável. Oh, como mostraria! Os homens têm necessidades poderosamente incontroláveis. Eles simplesmente não conseguem evitá-las. A tia já tinha dito isso por ocasião de sua primeira menstruação.

— Terei que ser audaciosa, Olive — ela mirou-se no espelho. — Tenho que mostrar para ele que estou disponível — mordeu o lábio. — Se ao menos eu pudesse ficar sozinha com ele, sem a presença do Harry ou do papai.

— Que tal a noite de Guy Fawkes, senhorita?

A cada outono, o pai de Millie comemorava Guy Fawkes com uma grande festa para os seus empregados e fregueses. Só faltava um mês e meio para a festa. Haveria, como sempre, uma enorme fogueira, pilhas de comida e rios de bebida. Joe iria à festa; ele tinha que ir. E, em meio à algazarra e aos fogos de artifício, ela ficaria a sós com ele no escuro. Ela o convidaria para conhecer a casa ou coisa do gênero. Ele já teria bebido bastante e, portanto, estaria menos inibido. Alguns homens precisam de um empurrãozinho; ela daria esse empurrão.

Todo mundo que trabalhava para Tommy Peterson esperava a noite de Guy Fawkes com muita ansiedade. Nessa noite ele distribuía os bônus. A maioria das empresas fazia isso no Natal, mas nessa época ele costumava estar muito ocupado com as vendas e preferia não desperdiçar tempo. Embora recém-contratado, Joe também receberia o bônus. Millie soube disse pelo pai durante as conversas na hora do jantar. O pai dela falava constantemente sobre o talento e a ambição de Joe. Ele havia notado como os negócios em Covent Garden prosperaram graças à habilidade do rapaz. Millie achava que ele via muito de si em Joe. Não podia dizer o mesmo de Harry; que já estava lá três meses antes e ainda não tinha feito progresso algum, coitadinho. Ela sabia que o coração de Harry não estava naquele lugar e, pouco a pouco, o pai dela também descobria isso. Ele teve grandes expectativas em relação ao Harry, mas depois essas expectativas se transferiram para o Joe. Embora não tivesse discutido isso com o pai, ela sabia que ele adoraria se um dia Joe a pedisse em casamento. Joe rapidamente se transformava no filho que seu pai sempre desejou.

— Olive, o meu vestido para a festa já chegou?

— Sim, senhorita, está no seu armário. É tão lindo.

Millie pediu para que ela o pegasse. Examinou-o atentamente. Era um vestido de tafetá azul-celeste com mangas bufantes e saia rodada. Era lindo, mas não o bastante. Ela precisava de alguma coisa deslumbrante. E não teria isso com sua figurinista, só encontraria alguma coisa realmente espetacular na Knightsbridge. Custaria caro, mas, se a sorte ajudasse, o pai estaria tão feliz com a notícia do seu noivado que nem ligaria para a conta.

— Você ainda está limpando o perfume? Desce e diz ao Harris que vou precisar da carruagem amanhã. Vou fazer compras.

— Compras? Pra quê, senhorita?

— Bem, primeiro preciso de um novo vidro de perfume — ela disse. — E de um vestido. Um vestido muito especial.

— Um outro vestido? Para que ocasião, senhorita?

— Se eu tiver sorte, Olive, para o meu noivado.

 

DE ONDE ESTAVA, próxima à janela da sala de visitas, Fiona podia ouvir o farfalhar das folhas mortas sendo varridas ao longo da rua pela ventania. Fechou as cortinas que a separavam da noite, e tremeu só de pensar na figura solitária que se apossara da escuridão.

Agora o assassino de Whitechapel tinha outro nome. Ele escrevera uma carta para a polícia se gabando da carnificina que praticara. Foi publicado em todos os jornais. O assassino tinha guardado o sangue de uma das vítimas para usar como tinta, segundo o que publicou, mas o sangue secou no vidro e ele teve que usar tinta vermelha. E ele assinou: Jack, o Estripador.

Diabo desgraçado, pensou Fiona. Foi proibida de sentar no degrau da escada da frente com suas amigas depois do anoitecer e não podia mais ir sozinha ao rio. Agora, ela era obrigada a ficar dentro de casa à noitinha, e não gostava nem um pouco disso. Ajoelhada perto do sofá, puxou debaixo dele uma caixa de charutos. Lá dentro havia algumas folhas de papel de carta e dois envelopes que ela comprara para escrever a Joe e ao seu tio Michael. Voltou para a cozinha. O fogo ardia na lareira; toda a família estava em casa, exceto o pai, que fora trabalhar.

Curran, o capataz do Oliver, pediu para que ele substituísse o vigia que se encontrava acamado com uma forte gripe. Fiona sentia a falta dele na casa, no seu lugar habitual, próximo ao fogo, mas o veria pela manhã. Ouviria quando ele chegasse. Ela gostava do barulho que ele fazia quando chegava em casa, o ruído dos passos nos paralelepípedos, o assovio. Isso a fazia se sentir segura.

Pegou uma pena e um vidro de tinta no armário da cozinha e sentou-se à mesa. Sua mãe costurava. Charlie estava sentado na cadeira do pai e lia um livro sobre a América que pedira emprestado ao senhor Dolan, um vizinho. Em dias normais, teria saído com os amigos, mas, com o pai e o tio Roddy ausentes, ele ficou em casa para fazer companhia à mãe e não deixar que Jack escorregasse pela chaminé e assassinasse todos. Seamie brincava com soldadinhos de chumbo. Eileen estava em seu cesto.

Fiona pensou por um minuto o que escreveria para Joe. Não havia muito a contar. Pouca coisa acontecera em Montague Street nos poucos dias que passaram depois que o tinha visto. A única novidade era o noivado deles. Lembrava-se daquela noite com um sorriso. Sua mãe ficou com os olhos marejados, encantada porque Fiona se casaria com um rapaz bom e trabalhador, feliz porque ela realizaria o sonho de se casar com o namorado de infância. Nenhuma mãe podia querer mais, ela disse. Se todos os seus filhos conseguissem parceiros iguais, ela se consideraria realmente uma mãe de sorte.

Seu pai, no entanto, teve reação diferente. Quando ela mostrou o anel e contou a novidade, ele sentou-se irritado e calado em sua cadeira. Depois que Joe saiu, fez questão de frisar que ela só tinha dezessete anos e que era muito jovem para casar. E disse que esperava que ela tivesse um noivado longo, porque para ele as moças só deveriam casar a partir dos dezenove anos. Sua mãe fez um sinal para que ela ficasse quieta para não iniciar uma discussão. Mais tarde, quando ele saiu para o pub, ela tranquilizou Fiona, dizendo que a reação dele refletia o medo de perder a filhinha.

— Dê um tempo para que ele se acostume com a ideia — ela disse. Pelo menos uma vez Fiona seguiu o conselho da mãe. Não entraria em bate-boca mesmo que de repente ele decidisse que a melhor idade para casar era com trinta anos. No dia seguinte, ele convidou Joe para uma cerveja. Ela não soube o que se passou entre eles, só notou que o pai estava de bom humor quando voltou para casa. Nos dias que se seguiram, ele mudou de dezenove para dezoito anos.

Era desse jeito que se lidava com os homens? Ela se perguntava. Assentir, concordar, dizer o que eles querem ouvir e depois fazer as coisas conforme o planejado? Era assim que sua mãe lidava com seu pai. Ela levou a pena à folha de papel e começou a contar para Joe como o pai tinha mudado intimamente.

— Está escrevendo para quem, Fi? — perguntou Charlie.

— Para o Joe e para o tio Michael.

— Posso escrever uma página para o tio Michael depois que você acabar?

— Mmm—hmm — ela murmurou, debruçando-se sobre o papel e escrevendo com cuidado para que a pena não vazasse tinta.

— Eu gostaria que seu tio e sua tia estivessem aqui — Kate suspirou. — Especialmente agora que vão ter um filho. Ele será primo de vocês. Ou ela. O irmão do pai de vocês é um homem adorável. E, se me lembro bem, também é um pouco endemoniado. Mas agora ele já deve ter se aquietado...

Suas palavras foram cortadas por fortes batidas na porta.

— Eta! — exclamou Charlie, levantando-se de um salto.

— Senhora! Senhora! — gritava um homem. — Abra a porta!

— Fica aí, mãe — disse Charlie, enquanto se dirigia para o saguão de entrada. Em poucos segundos, ele estava de volta, seguido por um policial.

— Senhora Finnegan? — perguntou o policial, quase sem fôlego. — Eu sou o policial Collins...

— Sim? — disse Kate, de pé.

— A senhora tem que vir rápido, madame... é o seu marido...

— Meu Deus! O que houve?

— Ele sofreu um acidente nas docas. Eles o levaram para o hospital. A senhora pode vir comigo, depressa?

— O que aconteceu? — gritou Fiona. A pena caiu de suas mãos, espelhando tinta sobre o papel. Uma mancha horrível espalhou-se pela página.

— Ele caiu, senhorita. De um dos andares... — disse o policial. Ela o olhou, esperando que ele terminasse. O prédio do Oliver era alto, seis andares. Podia ter sido do primeiro andar. Oh, meu Deus, faça com que seja o primeiro andar, ela rezava.

O policial olhou para o vazio.

— Do quinto andar.

— Nãooo... — gritou Kate, cobrindo a face com as mãos. Fiona correu até a mãe e amparou-a, impedindo que ela caísse ao chão.

O oficial olhou para Charlie.

— Por favor, meu filho... não temos muito tempo...

Charlie entrou em ação.

— Mamãe... Mamãe! — ele gritou. — Coloque o xale. Fi, agasalhe Eileen. Vem aqui, Seamie... — Enquanto ele calçava as botas de Seamie, Fiona amarrava o xale da mãe em torno dos ombros. Depois, pegou Eileen no colo, agasalhou-a com uma manta, apagou os lampiões e abafou o fogo. O oficial Collins levou Kate para fora. Charlie correu até a casa dos Bristow. Em minutos, o senhor Bristow estava em seu galpão no extremo da rua, atrelando o seu cavalo.

O barulho e a comoção atraíram os vizinhos para fora. Anne Dolan aproximou-se às pressas.

— Fiona, o que é isso? O que houve? — ela perguntou.

— O meu pai sofreu um acidente. Nós temos... nós vamos para o hospital...

— Olhe aqui — a senhora Dolan enfiou a mão no bolso da saia—, aqui tem dinheiro para alugar uma carroça.

— Muito obrigada, senhora Dolan, mas o senhor Bristow já está vindo com a carroça dele.

Ouviram o tropel de cavalo no final da rua e pouco depois Peter Bristow estava na porta deles. Rose Bristow saiu para a rua e tentava confortar Kate.

— Sobe depressa e senta ao lado do Peter — ela disse. — Irei em seguida. Logo que consiga ajeitar as crianças. Vai dar tudo certo. O seu Paddy é duro na queda.

O policial Collins ajudou Kate a subir e depois se ajeitou na parte de trás da carroça com Fiona, Charlie e as crianças.

O senhor Bristow gritou a ordem de partida para o cavalo e o chicoteou. A carroça deu um solavanco para frente. Enquanto trotavam ao longo das ruas escuras, Fiona, com Eillen os braços, olhava para Charlie, que segurava no colo o apavorado Seamie. Não ousara enunciar seus pensamentos com medo de que pudessem preocupar ainda mais a mãe, mas os seus olhos diziam para o irmão que ela estava aterrorizada. Ela ouviu o senhor Bristow exigindo o máximo do cavalo ao mesmo tempo em que conversava com Kate de depois ouviu o barulho do tráfego, e, quando viu que as ruas estavam mais iluminadas, se deu conta de que se aproximavam de Whitechapel Road. Seus pensamentos fervilhavam. Como o pai dela pôde ter caído? Ele conhecia o Armazém do Oliver como a palma da mão. Somente os loucos e os bêbados tombam assim. Talvez ele tenha sido amparado por uma pilha de sacos ou por rolos de corda, alguma coisa que pudesse amenizar a queda. Talvez ele não tivesse tão mal como o policial tinha dito. Ela recomeçou a rezar com fervor para Jesus, para a Virgem Maria, para São José, para São Francisco, para todo santo que lhe vinha à cabeça, pedindo por ajuda, por favor, ajuda para o pai.

Finalmente, a carroça parou na frente do hospital. Charlie pulou para fora com ela ainda em movimento. O policial Collins fez Seamie saltar. Fiona desceu com Eileen nos braços. Kate subiu imediatamente a escada de entrada, enquanto o senhor Bristow gritava que entraria logo que amarrasse a carroça. Dentro do hospital, uma das duas freiras da recepção os deteve, querendo saber de Kate que paciente ela queria ver.

— Paddy Finnegan. É meu marido. Ele sofreu um acidente... — sua voz embargou.

— Finnegan... — repetiu a freira, enquanto passava o dedo pelo fichário. Ela ergueu os olhos para Kate. — O das docas?

— Ele mesmo — respondeu Charlie.

— Primeiro andar. No final da escada, vire à esquerda. Já tem um homem lá. Um policial. Ele disse que era seu inquilino.

Kate confirmou com a cabeça e se dirigiu para a escada.

— Esperem um minuto — disse a segunda freira, com tom autoritário. — Ela não pode subir com todas essas crianças. É uma enfermaria...

— Irmã Agatha! — soou uma repreensão. — Não tem problema, senhora Finnegan. Vá, querida. Rápido!

Kate subiu a escada, correndo. Fiona a seguiu com um passo menos acelerado por causa do bebê. Estava mais próxima das freiras da recepção sem que elas soubessem e pôde ouví-las quando se aproximava da escada.

— ... às vezes, nós temos que quebrar as regras por razões de compaixão, irmã Agatha... é a última chance que as crianças têm de ver o pai...

— Oh, não... não! — Fiona soluçou, sua voz ecoou na parede daquela recepção cavernosa. Ela entregou Eileen para o policial Collins e subiu a escada em disparada, logo atrás da mãe. A visão que elas tinham era de uma enfermaria que caía aos pedaços.

Paddy estava deitado em um leito perto da entrada da longa enfermaria masculina. Ele murmurava e virava a cabeça de um lado para o outro. Sua respiração era superficial e difícil, e seu rosto pálido estava encharcado de suor. À medida que se aproximavam, ele era tomado por dores lancinantes. Contorcia-se e implorava para que a dor parasse. Fiona viu ferimentos nos braços dele e notou que não havia nada, absolutamente nada, no lugar da perna direita.

Roddy estava sentado ao lado do leito, com sue uniforme azul. Virou-se quando eles estavam mais próximos. O rosto dele estava molhado de tanto chorar.

— Oh, Kate...— ele disse.

Kate correu até o leito.

— Paddy? — ela sussurrou. — Paddy, você pode me ouvir?

Ele abriu os olhos e olhou-a, mas não a reconheceu. Uma nova onda de dor o envolvia; dessa vez ele gritava e debatia-se muito.

Incapaz de suportar, Fiona tapou os ouvidos.

— Ajudem meu pai — ela gemeu. — Por favor, alguém ajude meu pai. — Eillen gritava aterrorizada no colo do policial. Seamie escondia a cabeça nas pernas de Charlie. Duas freiras e um médico chegaram poucos segundos depois. Enquanto as freiras o amparavam, o médico injetava uma seringa de morfina em seu braço. Após o que pareceu uma eternidade, a agonia dele cessou.

— Senhora Finnegan? — perguntou o médico, um homem alto de cabelos grisalhos.

— Sim...

— Sinto muito em lhe dizer... seu marido não tem muito tempo. As pernas dele foram esmagadas na queda. Tivemos que amputar a direita imediatamente porque ele podia sangrar até morrer — o médico fez uma pausa. — Ele também apresenta outros ferimentos e está com uma hemorragia... interna. Estamos fazendo de tudo para aliviar as dores, mas ele não vai aguentar muito... Desculpe.

Kate cobriu o rosto com as mãos e caiu em prantos. Fiona caminhou até a beirada do leito do pai e segurou a mão dele. Ela estava aturdida com o choque. Sua mente não conseguia entender o que estava acontecendo. Não fazia muito tempo que se despedira de seu pai quando ele saiu para trabalhar! E agora ele estava em um leito de hospital com o corpo destroçado. Não pode ser, ela pensou, enquanto olhava para a mão do pai, que era enorme se comparada com a dela. Não é possível...

— Fi...

— Papai! O que é?

Ele engoliu em seco.

— Água.

Ela pegou uma jarra de água que estava na mesa de outro paciente.

— Mamãe! Mamãe! — ela gritou, enquanto enchia o copo. Depois, amparou a cabeça do pai com uma das mãos e encostou o copo nos lábios com a outra, de modo que ele pudesse beber.

Num instante, Kate estava ao lado dele.

— Paddy? — ela murmurou, tentando sorrir em meio ao pranto. — Ai, meu Deus... Paddy...

— Kate — ele grunhiu, arfando no esforço para falar. — Me ajude a sentar — a luz vítrea do olhar se dissipara: ele já reconhecia a família.

Com muito cuidado e bem devagar, Kate e Fiona o inclinaram para frente, pararam quando ele gritou e ajeitaram o travesseiro às suas costas. A respiração dele tornou-se assustadoramente ruidosa; fechou os olhos por alguns segundos até que o chiado em seu peito diminuiu. Reunindo o resto das forças que lhe restavam, ele ordenou que a família se colocasse ao redor. Apontou para Eileen e o policial Collins entregou-a para Kate, que delicadamente abaixou-a até o leito. Ele a tomou em seus braços feridos, beijou-a na mãozinha e na testa e em seguida devolveu-a para Kate. Aliviado por ter ouvido a voz do pai, Seamie precipitou-se na direção dele. Fiona teve que agarrar o braço do menino para que em sua avidez ele não caísse em cima do pai e aconselhou-o a ter cuidado.

— Por quê? — ele perguntou, com tom de reclamação.

— Porque o papai está machucado.

— Onde?

— Na perna, Seamie.

Seamie olhou para baixo da cintura do pai. Chupando o lábio inferior, ele olhou para Fiona e disse:

— Mas o papai está sem perna.

Apesar de chocada, Fiona se dirigiu ao irmãozinho com ternura:

— Só uma perna, Seamie, o machucado está na outra perna.

Seamie fez um sinal de que tinha compreendido. Depois, leve como um camundongo, foi até o pai. Beijou o joelho dele e sua mãozinha o afagou suave e cuidadosamente.

— Está melhor, papai? — ele perguntou.

— Estou sim, Seamie — sussurrou Paddy, estendendo os braços. Ele então abraçou o filho, beijou o rostinho dele e o deixou se afastar.

Em seguida, chamou Charlie e disse que a casa agora estava sob o comando dele, e que ele devia cuidar da mãe, do irmão e das irmãs.

— Não, pai, o senhor vai melhorar...

Paddy acenou para que se calasse e pediu para ele pegar o relógio no seu casaco, que estava dependurado numa cadeira ao pé do leito. Charlie obedeceu. Paddy lhe disse que o relógio pertencera ao seu pai e que agora era dele.

— Você é um bom rapaz, Charlie. Tome conta deles. Cuide de todos.

Charlie assentiu e afastou-se para o outro lado do leito. Seus ombros tremiam.

Paddy voltou-se para Fiona ainda ao seu lado e pegou a mão dela. Ela olhou as mãos entrelaçadas e caiu em pranto.

— Fi...

Ela olhou nos olhos do pai. Os olhos azuis dele se fixaram nela.

— Você me promete, mocinha — ele disse, extremamente emocionado —, que vai manter firme o seu sonho, aconteça o que acontecer. Você vai realizá-lo. Abra sua loja, com o Joe, e não dê atenção a quem disser que o seu sonho é impossível... você me promete...

— Eu prometo, papai — disse Fiona, chorando.

— Boa menina. Estarei olhando por você. Eu amo você, Fiona.

— Eu também amo você, papai.

Paddy voltou-se para Roddy e segurou a mão dele. Os dois homens se entreolharam. Nenhuma palavra foi dita; não era preciso. Paddy soltou a mão de Roddy, que se afastou em silêncio. A respiração de Paddy ficou outra vez complicada. Ele aquietou-se por alguns segundos, olhando apenas para Kate. Ela chorava copiosamente, sem coragem de olhá-lo.

Quando pôde falar novamente, ele acariciou o rosto dela.

— Não chore, amor, não chore — ele disse com ternura. — Lembra daquele dia na igreja há muitos anos atrás? O dia em que vi você pela primeira vez? Você não passava de uma menina. Tão bonita. Correndo na neve, atrasada para a missa. E eu saindo da lanchonete com um sanduíche de bacon na mão. Enfiei o sanduíche dentro do bolso e a segui pela igreja, cheirando a bacon. Você era a coisa mais linda que eu já tinha visto na vida.

Kate sorriu em meio às lágrimas.

— E desde então só tive olhos para você. Eu não o deixei perambular. Até a América. Fiz você ficar aqui em Londres.

— Você roubou o meu coração. E eu nunca mais o quis de volta. Por causa de você, só tive felicidade. Eu amei você desde aquele dia na Igreja de São Patrício, e vou amá-la para sempre.

Kate abaixou a cabeça e chorou.

O chiado no peito de Paddy recomeçou. Uma gota de sangue surgiu em sua boca e escorreu pelo queixo. Fiona o limpou com a ponta do lençol.

— Kate — ele disse, com um sopro de voz. — Escute... No forro da minha velha malha tem duas libras. Os rapazes do Oliver vão fazer uma vaquinha; não seja tão orgulhosa e aceite o dinheiro. Vocês vão precisar dele — Kate assentiu, lutando com as lágrimas. — Escreva para o Michael e conte que... — iniciou a frase, mas a dor o impediu de continuar. Ele arfou e agarrou a mão dela — ... conte o que aconteceu. Ele vai mandar dinheiro para você. E não deixe que eu seja enterrado com a minha aliança. Ela está no pratinho em cima do console. Pegue—a e venda.

— Não.

— Faça isso, é só um anel... — ele disse com convicção.

Kate concordou e ele tombou no travesseiro. Ela tirou um lenço do bolso da saia e secou os olhos. Depois, voltou-se para o marido. O peito dele estava imóvel, e o semblante em paz. Ele tinha partido.

— Oh , Paddy, não! — ela soltou um grito de dor, jogando-se sobre o corpo dele. — Não nos deixe! Por favor, por favor, não nos deixe!

Contemplando a face do pai e ouvindo os gritos da mãe, Fiona sentiu o mundo desabar em sua cabeça.

 

FIONA, QUERIDA... come um pouquinho só — implorou Rose Bristow. Um pouco de ensopado, um sanduíche.

Sentada à mesa da cozinha. Fiona deixou escapar um sorriso fraco.

— Não consigo, senhora Bristow.

—Menina, você tem que comer Suas roupas já estão ficando largas. Só um pedacinho. Por favor mocinha. Joe vai ficar uma fera comigo quando a vir em pele e osso.

Fiona cedeu e aceitou um pouco do ensopado de carne que Rose lhe deu, apenas para agradá-la. Não sentia fome e se perguntava quando sentiria outra vez. A cozinha estava repleta de comida. Os vizinhos tinham levado tortas salgadas, rolinhos de salsicha, guisados, alimentos frios, batatas, repolho cozido e pão para a família, de modo que teriam o suficiente para eles e os convidados durante os três dias que abrangiam o velório e o funeral. Sob os olhos atentos de Rose, ela levou uma garfada de ensopado à boca, mastigou e engoliu.

— Muito bem, mocinha. Coma tudo que agora vou ver sua mãe. Joe chegará logo. Faz dois dias que lhe mandei uma carta. Não se preocupe, querida, ele não vai demorar

A senhora Bristow saiu da cozinha e foi até a sala para receber os convidados que voltavam do cemitério com a família de Fiona, que, ainda na cozinha, repousava o garfo no prato e cobria o rosto com as mãos. Em sua mente, as imagens do enterro do pai. O longo cortejo até o cemitério, o caixão descendo à cova e o corpo da mãe vergando enquanto o padre jogava um punhado de terra sobre o caixão. O pai tinha passado a noite em casa e agora estava enterrado em terra fria.

Ela não chorava enquanto as cenas lhe vinham à mente; estava muito cansada. Tinha chorado no hospital, chorou até inchar os olhos e chorou de novo no velório. A dor devastadora que sentira na noite do acidente tornam-se uma dor pesadamente entorpecida que se espalhava pelo seu corpo e alma — deixando-a alheia a tudo exceto ao fato de que seu pai se fora e nunca mais voltaria. Para essa dor não havia alívio. Ela tentava se ocupar com Eileen e Seamie por algum tempo, mas quando se lembrava do pai a respiração sumia do seu peito. Cada lugar para onde olhava evocava a lembrança dele; a cadeira à beira da lareira, a bolsinha de tabaco, o arpéu. Como aquelas coisas podiam estar ali se ele já não estava presente? Ela foi até console, pegou o arpéu e alisou a madeira esculpida e gasta pelo uso.

O que aconteceria com eles? Sua mãe simplesmente não quis saber de ninguém durante dois dias. Recusou-se a amamentar Eileen. Ela teve que ser amamentada pela senhora Farrell, uma vizinha moradora do outro lado da rua que estava amamentando o filho. Kate se meteu na cama, chorava e chamava pelo marido, enlouquecida pela dor. Antes de romper o segundo dia, ela desceu a escada e colocou-se ao lado do caixão, pálida, cheia de olheiras e descabelada. Ali, juntou-se ao lamento visceral que os irlandeses dedicam aos mortos; gritam e choram o mais alto possível para que o morto possam escutá-los e tome conhecimento do sofrimento deles. É algo terrível de se ver, o clamor de almas humanas despojadas que urram de agonia para o céu.

Mais tarde, ela se deixou ser banhada por Rose, que aplicou compressas quentes nos seus seios empedrados e penteou seu cabelo. Ainda desnorteada, perguntou pelos filhos e pediu com muita insistência para ver Eileen. Conversou com Roddv sobre as providências a serem tomadas para o funeral e depois voltou para a cama e dormiu pela primeira vez após dias

Charlie, a duras penas tentava ser forte e confortar a família. Marcou presença durante o velório e o funeral. E também ajudou a carregar o caixão. Fiona não o tinha visto chorar, mas o viu sentado na cozinha; ele olhava o fogo absorto enquanto segurava o relógio do pai.

Seamie reagiu como toda criança de quatro anos. Em certos momentos, demonstrava medo e confusão e chamava pelo pai, em outros se sentava à frente da lareira e, alheio a tudo, brincava com seus brinquedos. Fiona sofria por ele e Eileen, por todas as coisas que os dois nunca ouviriam do pai: lembranças da Irlanda, histórias assombradas que ele contava no dia de Finados, passeios pelo rio. Eram tantas coisas. Coisas que ela tentaria contar para eles, e que ainda não era hora de contar.

Uma suave mão em seu ombro interrompeu seus pensamentos.

— Fiona, pode pôr a chaleira no fogo? — perguntou a senhora Bristow. — o Ben Tillet acabou de chegar com os homens dele. Talvez queiram uma xícara de chá.

— Claro que sim — ela respondeu, recolocando o arpéu no console.

Rose desapareceu outra vez e Fiona preparou o chá, aliviada por ter uma tarefa com que se ocupar. Quando levou o bule para a sala de visitas, ela se deu conta de que a casa ainda estava com muitos convidados, cuja presença naquele momento e durante os últimos três dias era um tributo ao pai dela, uma prova do quanto ele era querido. Ela se esforçava para conversar com os vizinhos e os amigos. Algumas senhoras afagavam seu braço, outros sussurravam condolências, dizendo o quanto ela se parecia com ele.

De vez em quando, seus olhos procuravam por Joe. Como ela desejava que ele estivesse ali. A senhora Bristow tinha enviado uma carta para Covent Garden, narrando o que acontecera. Se fosse possível, Fiona teria ido até ele, mas estava sem dinheiro e muito preocupada com Kate para deixá-la sozinha. O senhor Bristow também não podia buscá-lo. Já tinha perdido um dia de trabalho só para ajudar nos preparativos para o funeral. Se perdesse mais um dia, certamente outro tomaria o seu lugar. Fiona ouvia com polidez, tentando conciliar sua exaustão, enquanto a senhora MacCallum falava sobre a gentileza com que seu pai sempre a tratara.

Ao mesmo tempo em que atendia a velha senhora, ela também ouvia uma outra conversa. Parados num canto da sala, dois homens, o senhor Dolan e o senhor Farrell, que, além de vizinhos, também era trabalhadores das docas, faziam comentários sobre o pai dela.

— Quinze anos trabalhando nas docas e nunca teve nenhum acidente — dizia o senhor Dolan. — Nenhum dedo perdido, nenhum osso quebrado. E de repente ele cai lá de cima. Isso não faz sentido, Alf.

— Ouvi os policiais dizendo que tinham encontrado óleo na plataforma — disse Alfred Farrel. — Eles acham que vazou de um guincho e causou o acidente.

— Conversa fiada! Por acaso você já ouviu que alguém nas docas não tomou cuidado com a manipulação do óleo? Ninguém descuida disso por lá. É como as alianças de casamento: ninguém usa porque é perigoso. Se alguma coisa se agarrar nela, lá se vai um dedo. O mesmo acontece com o óleo. Se uma única gota cai no chão, logo a mancha é coberta de areia. Qualquer homem do Oliver sabe disso.

Ela estremeceu com o que ouviu. Eles estavam certos, pensou; aquilo não fazia sentido. Fiona tinha informação suficiente sobre o trabalho do pai para concluir que nenhum trabalhador das docas escorregaria em poças de óleo, da mesma forma que não se podia empilhar uma carga de noz-moscada em cima de uma caixa de chá porque as folhas absorveriam o sabor. Ela ouvira o comentário de Roddy sobre o inquérito , dizendo que a polícia havia encontrado o portão da plataforma aberto com uma mancha negra de óleo nas proximidades. Curran, o capataz, declarou que talvez um dos homens não tivesse trancado o portão direito. Na noite do acidente, estava ventando e o pai dela podia ter ouvido o barulho da porta contra a parede. Teria ido até lá para fechá-lo e, como estava escuro e ele só tinha uma lanterna, não viu o óleo. Curran afirmou que naquele dia tinha mandado um dos homens — Davey O‘Neill — injetar óleo nos guinchos. Talvez Davey tivesse deixado derramar um pouco. Foi uma tragédia, disse o senhor Curran. Os rapazes fariam uma coleta e ele tinha certeza de que o senhor Burton compensaria a família com alguma coisa. Satisfeito com esse depoimento, o oficial encarregado da investigação encerrou a ocorrência, considerando-a morte acidental.

Fiona tinha ouvido tudo isso, mas não registrou nada porque estava sobrecarregada pelo choque causado pela morte do pai. Seu pai tinha caído da plataforma. Os detalhes não importavam; o que importava mesmo é que ele estava morto. Mas agora a sua mente clareava um pouco mais...

— Com licença, senhora McCallum — ela disse bruscamente. Deixou a mulher falando sozinha e retornou à cozinha. Tinha que ficar a sós por um minuto para pensar.

Sentou-se na cadeira do pai. Estava claro como o dia: alguém tinha jogado óleo no chão para que ele escorregasse. Por que ninguém percebera isso? Era doloroso pensar nisso, sua mente estava muito confusa, mas ela registraria seus pensamentos e os organizaria. E depois contaria para o tio Roddy, e ele conseguiria que se fizesse uma outra investigação. Era óbvio o que tinha acontecido, estava na cara... era... ridículo.

Por que alguém cometeria essa atrocidade com meu pai? Ela se perguntava. No mínimo, algum colega dele. Ela teria enlouquecido? Sim, era isso. Ela estava perdendo o juízo. Estava em busca de um motivo para a morte do pai, agarrando-se em insignificâncias.

Curvou-se para frente, com os cotovelos sobre os joelhos e a cabeça apoiada nas mãos. Ainda não conseguia aceitar o acontecido; uma parte dela ainda esperava que o pai entrasse pela porta da frente, vindo das docas. Ele se sentaria, leria o jornal e todo o pesadelo seria esquecido. Em sua infância, ele tinha sido o centro do seu universo, e ela presumia que ele estaria sempre presente; para cuidar deles, pôr a comida na mesa, protegê-los dos perigos do mundo. Mas agora tinham perdido o pai. Sua mãe estava sem marido. Quem cuidaria deles? Para onde iriam?

Tal como acontecera nos últimos três dias, naquele momento a dor pela morte do pai desabou sobre ela como uma avalanche. Tentava se controlar, mas a emoção era enorme. E, em prantos, deu-se em conta de que Joe entrava na cozinha.

— Fi? — ele disse com ternura, ajoelhando-se ao lado dela.

Ela virou a cabeça.

— Oh, Joe — ela murmurou. Seus olhos estavam tão tristes e tomados pela dor que os olhos dele se encheram de lágrimas. Ele abraçou-a e manteve-se abraçado enquanto ela chorava. Fazia carinho e afagava os cabelos dela enquanto ela extravasava a dor em soluços.

Quando já não havia mais lágrimas para chorar, ele segurou o rosto dela e secou-lhe as lágrimas com os polegares.

— Minha pobre garota — ele disse.

— Por quê, Joe? Por que o meu pai? — ela perguntou com os olhos azuis cheios de lágrimas.

— Não sei, Fiona. Eu gostaria de ter uma resposta para você.

— Deus, como eu sinto falta dele — ela sussurrou.

— Eu sei que você sente, querida. Eu também sinto. Seu pai era um homem incrível.

Sentaram-se em silêncio por alguns minutos. Joe segurava a mão dela. Entre eles, nenhuma palavra floreada, nenhum chavão. Ele faria qualquer coisa para que ela não sofresse, mas sabia que não havia nada que pudesse fazer. A dor de Fiona seguia o seu curso, como uma febre, só a deixaria livre quando se consumisse por inteiro. Ele não pediria que ela se calasse, nem lhe diria que era vontade de Deus e que agora o pai dela estava melhor. Seria uma tolice e ambos sabiam disso. Quando alguma coisa dói tanto quanto aquilo, o melhor é deixar doer. Não existem atalhos que possam cortar o caminho. Ele se deixou cair na cadeira de balanço de Kate.

Fiona o olhou e notou que ele estava cansado e não tinha tomado banho.

— O trabalho com o Peterson está pesado?

— Está, sim. Chegaram os vagões da colheita. Trabalhamos o tempo todo para descarregá-los. Se não fosse isso, eu estaria aqui mais cedo. Recebi a carta da mamãe ontem de manhã, mas não pude me afastar do serviço. Se saísse de lá, seria despedido. Tommy P. não dá a mínima para o funeral dos outros, a não ser o dele. Estou sem dormir desde que li o que aconteceu. Desculpe, Fi. Eu queria ter chegado mais cedo.

Fiona assentiu com a cabeça; ela compreendia. Ele já estava lá.

— Quando você tem que voltar?

— Esta noite. Não agora, mais tarde. Deixei o Harry terminando o trabalho, mas amanhã de manhã vai chegar outra carga.

Ela se sentiu desapontada. Esperava que ele pudesse ficar. Oh, Deus, como ela queria que ele ainda estivesse na casa dos pais e não em Londres. Naquele momento, ela precisava tanto dele: de suas palavras, de seu conforto. E ele também seria necessário nos dias que ela teria à frente. Mas não estaria presente.

Como se tivesse lido os pensamentos de Fiona, Joe pegou um xelim e pressionou a moeda na palma da mão dela.

— Pegue isso. É para papel e selos. Você pode me escrever. Toda noite. Escreva uma carta quando não estiver aquentando, e isso será como se estivéssemos conversando um com o outro, está bem?

— Está bem.

— Ainda tenho tempo para uma caminhada — ele disse, levantando-se. — Vamos sair daqui. Esse clima de sussurros e lamentos não é bom pra você. Vamos até o rio para ver os barcos. Ainda temos uma hora ou mais antes de escurecer.

Fiona levantou-se e pegou o xale dependurado atrás da porta. Ele estava certo, seria bom sair de casa. Enquanto se aprontava, ela foi tomada pela estranha sensação de que o pai estaria no rio, presente em todas as coisas que ele amava: o marulho cinzento da água, as nuvens que corriam no céu, o voo das gaivotas e a pro ávida de um navio rumo ao mar. Ele não estava ali, naquela casa de dor, estava no rio; ela tinha certeza disso. E quando Joe a pegou pela mão e conduziu-a para fora de casa, essa certeza serviu de alento e lhe deu um pouco de paz.

 

KATE VERIFICOU O NÚMERO do pedaço de papel que tinha em mãos: 65 Steward Street. Era o número que estava na porta. Por que, então, ninguém respondia? Ela bateu outra vez:

— Já vai! — gritou uma voz lá de dentro. — Eu já tinha ouvido.

A porta abriu-se com violência e ela se viu diante de uma mulher gorda e desgrenhada que, a julgar pela aparência, estava dormindo e não demonstrava o menor prazer por ter sido acordada.

— Senhora Colman?

— Sim, eu mesma.

— Eu sou a senhora Finnegan. Estou aqui para ver o cômodo.

— Entre, então — disse a mulher, empurrando-a para dentro do escuro saguão de entrada que fedia a repolho. — O cômodo é lá em cima. No último andar. A porta está aberta. É um cômodo muito bom, senhora Flanagan — disse a mulher. Tinha dentes pretos. E fedia a uísque.

—Finnegan.

— Flanagan, Finnegan, pra mim dá tudo no mesmo. Sobe.

— Obrigada, senhora Colman — disse Kate, subindo a escada. O corrimão trepidava em baixo de sua mão enquanto ela subia para o primeiro andar. Os degraus estremeciam e rangiam. Através de uma porta aberta, ela viu uma jovem mulher que comia um pão ao mesmo tempo em que amamentava um bebê. Em outro cômodo, um homem roncava, estirado sobre a cama.

Ela continuou a subir até o segundo andar. Uma das três portas estava totalmente aberta. Entrou no cômodo. Alguma coisa foi esmagada pelos seus pés. Talvez um pedaço de reboco, ela pensou. O lugar estava escuro; persianas cobriam uma única janela. Puxou-as e deu um grito.

O cômodo inteiro estava infestado de baratas negras. Elas se alvoroçaram com a luz e subiram pelas paredes, escondendo-se nos rasgões do imundo papel de parede e dentro da lareira e de um colchão que caía aos pedaços. Kate desceu a escada em segundos e saiu apressada para a porta de entrada.

— A senhora gostou do cômodo? — gritou a senhora Colman atrás dela.

— Ela está infestado!

— Ah, as baratas não lhe farão mal. Eu posso alugar o cômodo por um preço baratinho. O aluguel também dá direito de usar a cozinha — ela aproximou-se de Kate. — E há uma outra vantagem em ficar com ele. Se as coisas piorarem, você pode fazer um dinheirinho sem precisar sair dele, entendeu? — a mulher sorriu com um olhar malicioso. — Me disseram que o senhor do segundo andar, o Daniels, paga bem.

Furiosa, Kate abriu a porta e saiu correndo. As baratas, a sujeira, o fedor do lugar, tudo isso lhe dava náuseas. Aquela vadia imunda, ela bufava de raiva, com aquelas propostas sórdidas. Se o Paddy a ouvisse, seguramente quebraria todos aqueles dentes podres.

Paddy. Ao pensar nele, irromperam lágrimas. Ela tirou o lenço do bolso e secou os olhos. Não podia se dar ao luxo de começar a chorar naquela hora. Tinha que encontrar um cômodo; o dinheiro estava curto e não dava mais para pagar o aluguel da casa na Montague Street.

A perda do salário de Paddy já seria o bastante para a miséria, ainda mais porque, logo após a morte dele, ela teve que arcar com a conta do hospital e com os custos do caixão, do carro fúnebre do jazigo no cemitério e da lápide. Kate encontrou as duas libras mencionadas por Paddy e, como ele havia dito, os rapazes do Oliver passaram uma lista e a presentearam com mais três libras, afora uma libra do sindicato e outra do seguro-funeral. Fiona e Charlie estavam dando tudo o que ganhavam a Kate e ela voltou a lavar roupa para fora, mas isso não era o suficiente.

Ela esperava que a Burton Tea pagasse dez ou vinte libras de indenização pela morte do marido. Passaram-se aproximadamente duas semanas sem que a companhia desse qualquer sinal, ela então tomou coragem e foi até a administração.

Esperou três horas para ser atendida por um contador jovem e inexperiente que lhe disse para retornar no dia seguinte e falar com o contador mais antigo. Quando retornou, teve que esperar mais uma vez. Um outro contador lhe deu alguns documentos para preencher. Ela quis levá-los para casa para que Roddy os lesse, mas o homem não permitiu e ela teve que preenchê-los ali mesmo, recebendo a orientação para voltar trinta dias depois.

— Um Mês, senhor, eu preciso do dinheiro agora — ela protestou.

O contador, um homem de aparência severa, com costeletas suíças, informou que aquela assinatura concordava com o andamento dos procedimentos compensatórios da Burton. Se ela não seguisse esses procedimentos, sua solicitação não seria validada. Ou seja, esperar era a melhor coisa que ela podia fazer.

O tempo gasto na Burton deixou-a exaurida. Isso foi tudo que ela pôde fazer naqueles dias para não cair aos pedaços. Quando abria os olhos a cada manhã, ela se abatia outra vez com a dor e só tinha vontade de chorar. Depois, ainda atordoada pelo sofrimento, mas guiada pela necessidade, ela se levantava, alimentava os filhos, começava a lavar a roupa e fazia o máximo que podia. Não vestiu luto, nem usou colar e broches pretos. Não havia lugar na casa nem para lamentações nem para choro. Isso ela deixava para as irmãs das classes mais abastadas. Mulheres como ela, ainda que pudessem enlouquecer de dor, acordavam de manhã e se colocavam de pé para alimentar os filhos famintos.

Toda vez que ela pensava nos filhos, o medo do futuro a tomava por inteiro. Como os sustentaria? Talvez pudesse vender alguns itens da mobília quando se mudassem; isso lhe renderia uns poucos xelins. Se tivesse que vender a aliança de Paddy, ela venderia, mas só se fosse necessário. Ela podia vender a tábua de passar roupa e ferro. Não sobraria espaço quando eles vivessem em um único cômodo.

Acontece que, sem esses itens, ela não poderia mais trabalhar como lavadeira, o que significaria a perda dos recursos, embora talvez pudesse lavar e passar na casa dos próprios fregueses. Mas, nesse caso, quem tomaria conta de Seamie e Eileen?

Eu não consigo suportar isso, ela pensou, não consigo. Perdi dois dias com a Burton Tea e nada aconteceu. Ontem e hoje fiquei o tempo todo à procura de um cômodo e não encontrei nada. Ou eram caros ou pequenos e horríveis. E de novo ela se viu envolvida pelas lágrimas. Mas dessa vez eram lágrimas de desespero e não havia nada que ela pudesse fazer para estancá-las.

— Vamos, Bristow, vamos com os rapazes. Vai ser divertido — disse Harry Eaton, enquanto ajeitava a gravata no espelho.

— Não, obrigado, amigo. Estou quebrado — disse Joe de olhos fechados, bocejando.

— Bobagem! Você não está cansado. Sei por que não quer ir.

Joe abriu um olho.

— Por quê?

— É essa garota bonita. A Fiona. Ela não vai gostar. Diz pra ela que o seu pau não é sabonete. Não vai gastar só porque você o molha de vez em quando.

Joe riu. Era o ritual da noite de sábado de Harry. Por mais que estivesse extenuado, ele ainda encontrava tempo e energia para sair com prostitutas... e criticar Joe por não fazer isso.

— Pense, cara — ele argumentou —, mulher bonita, com peitões e vagina apertadinha, tudo isso por três xelins. Loura, morena, é você que escolhe. Conheço uma ruivinha que faz coisas do arco-da-velha. Ela é capaz de chupar toda a tinta de um poste...

— Será que não dá pra você se controlar?

Harry Eaton, no entanto, não se preocupava nem um pouco em se controlar. O que ele queria era pagar pelo sexo e em Londres havia mulheres o bastante para satisfazê-lo. No livro de Harry Haia dois tipos de mulheres: as que dão prazer e as que são para casar; ele preferia as primeiras.

Joe tinha suas razões para não acompanhar o Harry; Fiona era uma delas, mas ele também não queria voltar de um bordel da Haymarket com uma boa dose de gonorréia. Já tinha ouvido Harry gemer no banheiro algumas vezes, porque doía tanto que ele mal conseguia urinar. E ele próprio confessava que o tratamento doía ainda mais, tanto no seu bolso quanto no seu membro. Mas isso não o detinha. Continuava a sair com os amigos do mercado em busca de ― uma bainha para a minha espada‖, como ele mesmo dizia, e sempre soltava uma piada quando estava de saída. Piadinhas sobre como Joe resolveria seus problemas com as mãos, acrescentando que o amigo teria uma maravilhosa noite com Rose Palma.

— Está bem, eu já vou.

— Acho que senti um cheiro.

— Engraçadinho. Não me espere acordado. E, Joe...

— O quê, Harry?

— Você tem examinado os olhos ultimamente?

— Não.

— Pois devia, cara. Sabe, exagerar nisso... — Harry sorriu, fazendo um gesto obsceno — ... leva à cegueira.

— Está bem. Agora cai fora e me deixa em paz.

Harry saiu assoviando escada abaixo.

Tenho pena da pobre moça que você pegar esta noite, pensou Joe, você vai tratá-la como um touro. Ele bocejou de novo. Tinha que ir para a cama, mas estava muito cansado para se levantar. A portinhola do fogão estava aberta e o calor do fogo lhe aquecia os pés. Sentia-se pleno e aquecido... e culpado.

Ele e Harry tinham começado a trabalhar às quatro da manhã. Embora a época de colheita estivesse acabando, os vagões de carga não paravam de chegar. Os fazendeiros estavam aflitos para vender o resto de suas colheitas. Já fazia tempo que ele não tirava o dia de folga. Podia ter insistido nisso, mas não seria inteligente. Não naquele momento. Peterson deixara sinais a respeito de uma promoção. Martin Wilson, o homem que negociava o preço final que eles pagavam pelo produto, estava de saída.

A ideia de substituir Martin não passava pela cabeça de Joe; ele achava que era muito novo para esperar tal promoção, mas os sinais eram inquestionáveis. A cada oportunidade, Peterson elogiava o trabalho dele. E nesse dia o tinha colocado para fazer o trabalho de Martin, que precisava fazer um serviço interno. Ele viu o quanto Tommy e Martin o observavam. Na hora da saída, Tommy analisou o registro de contas; apontou duas transações em que Joe pagara acima do preço, mas também notou com satisfação quatro operações em que ele pagara abaixo do preço e acabou declarando que ―no todo‖ o seu trabalho era ―de primeira‖. Joe quase explodiu de alegria. A aprovação de Peterson tornara-se muito importante para ele.

Joe e Harry terminaram tarde, lá pelas sete. Tommy ainda estava por lá, com Millie a tiracolo. E convidou os dois rapazes para jantar com ele e a filha. O coração de Joe ficou apertado. Ele planejava dar um pulo em Whitechapel para ver Fiona. Já fazia quinze dias que não a via e estava preocupado com ela, mas não podia recusar o convite do patrão. Peterson recomendou que eles fossem se arrumar e que depois o encontrassem no Sardini, um restaurante italiano situado nos arredores. Joe ficou em pânico; era a primeira vez que ia a um restaurante. Ele disse para Harry que talvez não fosse porque as únicas roupas que possuía eram as de trabalho. Harry lhe deu um paletó que já não queria e emprestou uma camisa e uma gravata. E ele vestiu a melhor calça que tinha.

O Sardini estava na penumbra, iluminado apenas por algumas velas em garrafas de vinho, de modo que ninguém notou que a calça de Joe não combinava com o paletó. Tommy fez o pedido para todos. Joe adorou a sopa servida como entrada, mas levou um susto quando chegou o macarrão.

Millie, Tommy e Harry se divertiram quando o viram pelejando com a massa, até que Millie resolveu lhe ensinar como enrolar os fios no garfo. Depois, ela espelhou queijo parmesão sobre o macarrão e limpou o molho de tomate no queixo dele. Ela estava falante, como de costume, e contava como andavam os preparativos para a noite de Guy Fawkes que seria promovida pelo pai. Após o jantar, caminharam de volta para Covent Garden e de lá Tommy e Millie tomaram seu rumo.

Joe adorou o jantar, mas estava se sentindo péssimo. Naquela hora devia estar em Whitechapel com Fiona. Depois da morte do pai, ela ficou destroçada; perdeu o viço e emagreceu. E ele era um grandíssimo de um crápula. Ela precisava dele, e onde ele estava? Divertindo-se no Sardini. Lembrou-se da caminhada na noite do enterro do pai dela quando voltaram do rio, lembrou como ela se agarrou nele na hora em que ele se preparava para sair. Aquilo partiu seu coração. Não devia tê-la abandonado no momento em que ela mais precisava dele. Mas o que podia fazer ? Durante uns dois dias, ele chegou a pensar em largar o emprego e voltar a Montague Street para ficar com ela. Mas o que isso adiantaria para eles? Ele voltaria a trabalhar com o pai e se mataria para pôr alguns centavos na lata, quando vinha depositando libras. E, se ficasse com o cargo de Martin Wilson, ganharia ainda mais. Não era então importante que ele se mantivesse em seu curso? Fiona estaria sofrendo com ou sem ele; a presença dele poderia ser um conforto, mas não afastaria a dor do luto.

Ele se levantou da poltrona, juntou as pedras de carvão no fogão e foi ao banheiro para se lavar. Tinha que dormir um pouco. Enquanto lavava o rosto, olhava pela janela do banheiro. O céu de Londres estava extraordinariamente claro. As estrelas brilhavam na escuridão da noite. Contemplou a que brilhava com mais intensidade. E se perguntou: será que essa mesma estrela está brilhando para ela? Será que ela estava na janela, olhando o céu e pensando nele? Ele disse para a estrela que amava Fiona e pediu que cuidasse de sua amada e a mantivesse a salvo.

Despiu-se e entrou debaixo das cobertas. As imagens de Fiona passavam em sua mente enquanto ele adormecia. Um dia teria o dinheiro que precisavam para a loja e ele largaria o trabalho com Peterson e os dois permaneceriam juntos para sempre. Eles se casariam e aquele tempo difícil de luta e separação ficaria para trás. Um dia. Logo.

 

OS OLHOS DE FIONA passavam pelo arenque defumado exposto na barraca do peixeiro. Ela foi sozinha ao mercado naquela sexta-feira à noite. Sua mãe estava com uma tosse terrível, uma tosse constante, e Fiona não queria que ela se expusesse ao ar úmido de outubro. Não sentia o menor prazer em ouvir as cantorias dos barraqueiros, não demonstrava qualquer interesse por essa bela exibição. Ocupava a mente tentando imaginar como comprar comida para quatro pessoas apenas com seis pences.

— Quanto custa o arenque? — ela perguntou para o peixeiro.

— Os maiores dois pences — ele respondeu. E apontou para os menores. — Esses você leva dois por três pences.

— Vou levar esses dois — ela pôs os peixes na sacola de compras, em cima das batatas que tinha comprado na barraca dos Bristow e das peras que a senhora Bristow colocara ao lado.

Fiona apreciou as peras, mas recebeu a gentileza da senhora Bristow como caridade. Acontece que ela não podia se dar ao luxo de ser orgulhosa e não aceitá-las. Ela conversou um pouco com a senhora Bristow a respeito de Joe e de sua tão aguardada promoção. Ambas recebiam cartas semanais dele, mas já fazia quase um mês que não o viam. Fiona sentia uma falta terrível de Joe. Queria escrever para ele a fim de aliviar a solidão. Mas toda vez que economizada algum dinheiro para comprar papel e selos de carta, ela acabava gastando em compras de pão ou de novas meias para Seamie ou de pastilhas para garganta para a mãe.

Fiona não tinha dúvida nenhuma de que a tosse da mãe era causada pelas paredes úmidas do novo cômodo em Adams Court. Ficava próximo da bomba d‘água do pátio que vazavam noite e dia, o que tornava os paralelepípedos da rua escorregadios e infiltrava umidade nas paredes de casas mais próximas.

Adams Court era um buraco, um beco sem saída acessado pela Varden Street através de uma estreita passagem de tijolos. As casas eram atarracadas, com dois pavimentos independentes, e grudavam-se umas as outras ao longo de uma viela de paralelepípedos. Eles moravam na parte da frente do pavimento inferior de uma dessas casas, no número doze. Antes da mudança, a mãe levou-a para ver a casa. Ela soube do lugar por intermédio de sua amiga Lillie. O noivo de Lillie tinha residido lá, mas depois do casamento o casal se mudou para uma casa maior perto do rio. Não havia pia. Nem armário embutido. A roupa tinha que ser dependurada em pregos. O espaço era mínimo. Tiveram que vender quase toda a mobília. Fiona odiou a casa, mas, quando a mãe pediu sua opinião com um semblante ansioso e esperançoso, ela disse que, apesar do tamanho, era uma boa moradia.

Os velhos amigos e vizinhos tinham feito de tudo para mantê-los na Montague Street, oferecendo-lhes espaços em suas casas já entupidas de gente. Mas eram ofertas afetivas e não práticas; Kate não podia se aproveitar disso. Roddy também tentou ajudar. Não era para Fiona ficar sabendo, mas ela soube. Eles ainda estavam na casa antiga naquela noite em que Roddy chegou tarde da ronda e Kate lhe serviu um chá. A porta da sala de visitas estava aberta e ela pôde ouvir a conversa sobre o processo da mãe com a Burton Tea. E então, de repente, Roddy pediu sua mãe em casamento.

— Sei que você não me ama, Kate — ele disse. — Não depois do Paddy. Sei o que é ficar entre vocês dois. Não se trata disso. É que, bem... eu poderia cuidar de você e das crianças. Eu ficaria no meu quarto e você no seu, e tudo permaneceria como antes. Vocês não precisariam se mudar.

E aí Fiona ouviu os gritos da mãe e a voz ansiosa de Roddy:

— Ai, Jesus, me desculpe. Eu não queria fazer você chorar, só queria ajudar. Cristo, eu sou um idiota...

— Não Roddy, você não é um idiota — replicou a mãe. — É um homem bom e qualquer mulher se sentiria feliz ao seu lado. Só chorei porque fiquei emocionada. Muito pouca gente neste mundo colocaria sua própria felicidade de lado em prol de outras pessoas. Mas não tenho direito de perturbá-lo com outra família. Você deve construir sua própria família com a Grace. Todo mundo sabe da ternura que você dedica a ela; portanto, siga em frente e case com a moça. Nós ficaremos bem.

Mas será que ficariam mesmo? Fiona não tinha certeza disso. Durante aqueles dias, uma voz do fundo do seu coração vivia repetindo que eles tinham muito pouco dinheiro. O salário dela e o do Charlie só conseguiam cobrir o aluguel e quase não sobrava nada para a comida. E de onde viria o resto? O que fariam quando o bebê precisasse de novas roupas ou outra pessoa da casa, de novas botas? Era uma voz paralisante. Uma voz que gritava e se esgoelava e ela nunca tinha as respostas para essa demanda. Fiona rezava para Deus, pedia pela ajuda Dele. Pedia força para resistir, já que perdera a coragem de encarar o futuro. Mas não recebia sinal algum. Parece que Deus não a ouvia.

Quando o desânimo se apossava de sua alma, ela enfiava a mão no bolso e apalpava a pedra azul que ganhara de Joe. Apertava a pedra e visualizava o rosto dele, lembrando-se da loja, dos seus sonhos e da vida que teriam juntos. Um dia. Logo. O dinheiro que guardavam na lata não parava de crescer. Toda vez que escrevia, ele dizia que o dinheiro tinha aumentado. Na última carta, ele afirmou que, se as coisas continuassem a correr bem, eles se casariam mais cedo do que esperavam. Fiona se sentiu feliz quando leu isso, mas a felicidade murchou quando ela se deu conta de que não poderia se casar tão cedo. Sua família precisava do seu salário. Sua mãe ainda estava à espera da indenização que a Burton Tea pagaria pela morte de seu pai. Talvez a quantia atingisse umas vinte libras e com isso a mãe encontraria um lugar melhora para viver, e ainda garantiria uma reserva para elas e as crianças. Fiona sabia que não podia pensar em sair de casa antes da chegada do dinheiro.

Passou pela barraca das carnes e sonhou em ter dinheiro para comprar um bom corte que seria preparado com molho e batatas pela mãe, mas o orçamento já não dava para ser esticado e, mesmo se desse, não se teria como preparar o prato. Era uma casa sem fogão; só tinha uma lareira com uma grelha estreita que aguentava uma panela de cada vez e nada mais. Ela sentia falta dos pratos nutritivos que a mãe costumava preparar. Às vezes, o único ingrediente quente disponível era uma xícara de chá.

Naquela noite, o jantar seria escasso. Ela e Seamie comeriam batatas cozidas com pão e margarina. Nada de manteiga; era muito cara. Charlie e sua mãe comeriam o mesmo, acrescido de arenque. Charlie porque precisava manter a força para trabalhar, e Kate porque precisava de algo mais forte. A tosse estava acabando com ela. Tossia com tanta intensidade que algumas vezes seu rosto ficava rubro e ela quase não conseguia respirar. Talvez Charlie conseguisse algum dinheiro extra no dia seguinte. Em caso afirmativo, ela compraria alguns cortes baratos de carneiro para um ensopado. Eles podiam ser cozidos na mesma panela que as cenouras e batatas. Isso poderia melhorar a saúde da mãe.

Terminou as compras com um pão e duzentos e cinquenta gramas de margarina e se pôs a caminho de casa. Os dedos escorregadios da neblina rodeavam as chamas alaranjadas dos lampiões a gás, projetando uma luz fantasmagórica pela rua. Movimentando-se como um ser vivo, a névoa mergulhava e circundava as barracas do mercado, abafando o som e obscurecendo a visão.

O nevoeiro a fez tremer de frio. Atravessá-lo era como se cobrir de uma manta úmida e fria. A sacola de compras estava pesada, e ela, faminta. Suas pernas doíam por ter ficado em pé o dia todo. Desde o dia em que, inadvertidamente, ensinou ao senhor Burton uma forma de obter mais trabalho com menos moças, o senhor Minton se sentiu ridicularizado e passou a fazer com que ela trabalhasse muito mais, requisitando-a para lavar as conchas de chá à noite, esfregar as mesas e varrer o chão. Ela estava exausta e louca de vontade para chegar logo em casa. Mas um impulso a fez pegar um atalho.

Fiona virou a High Street e caminhou pela escura Barrow Street, uma viela de pensões caindo aos pedaços, com portas quebradas e janelas vazias. Não havia lampiões a gás, todos tinham sido destruídos. A rua estava escura e silenciosa; depois de percorrer alguns metros, ela começou a pensar que aquele atalho talvez não tivesse sido uma boa ideia. Lembrou-se do pavor que sentira quando foi agarrada pelo horripilante Sid Malone. E se ele a tivesse visto na saída do mercado e a seguido? Além disso, ainda havia o Jack. No fim de setembro, três semanas antes, ele tinha assassinado mais duas mulheres, ambas na mesma noite — Elizabeth Stride, na Barner Street, e Catherine Eddowes, na Mitre Square. Isso era o que se comentava. Fiona não prestou muita atenção nos jornais — eles a faziam sofrer com saudades do pai —, mas agora ela pensava sobre o caso. A Barner Street e a Mitre Square não ficavam tão longe assim da Barrow Street. O Jack ainda estava à solta. Podia estar em qualquer lugar. Se ela gritasse ninguém ouviria e... oh, pare com isso, disse para si mesma. Você está sendo tola. Por este caminho, você chega em casa em dez minutos e não em vinte.

Ela tentou se concentrar em outras coisas. Pensou nos novos vizinhos. De um lado, havia Frances Sawyer, que, segundo Charlie, era prostituta. E, do outro lado, o senhor Hanson. Fiona o chamava de senhor Mão Lá. Era um tipo asqueroso que sempre olhava com malícia, apalpando em seu membro; tentava espiá-la e também as outras mulheres pelas frestas do banheiro. Pelo menos as pessoas que compartilhavam a casa com eles eram decentes. O senhor Jensen, um pedreiro que morava sozinho no andar de cima, nos fundos. A senhora Cox era viúva e ocupava o andar de cima, na parte da frente — gritava muito com seus dois filhos. Os melhores eram Jim e Lucy, que residiam no andar de baixo, nos fundos. Jim sempre encontrava tempo para brincar com Seamie, e Lucy estava esperando o seu primeiro bebê e todo dia tomava uma xícara de chá com Kate, enchendo-a de perguntar a respeito de partos e bebês.

Era difícil morar assim colado em tantos estranhos. Eles tinham que encontrar um lugar melhor, mas para isso precisavam de mais dinheiro. Fiona não queria esperar sentada pela Burton Tea e foi procurar um emprego de fim de semana em algumas lojas. Não deu sorte, mas algumas delas anotaram o seu nome. Sua mãe começou a trabalhar por encomenda, confeccionando balões de ar para o Natal. Charlie também ajudava. Às vezes, quando ela já pensava que só havia dinheiro para pão e margarina, ele aparecia com uns poucos xelins ganhos nas lutas e a família podia usufruir tortas de carne ou peixe e batatas fritas.

Fiona estava perdida em seus pensamentos e somente na metade da Barrow Street é que ouviu passos às suas costas. Não é nada, pensou com seus botões, é apenas outra moça voltando do mercado para casa. Mas uma vozinha dentro dela diziam que eram passos muito pesados para serem de moça. Bem, ela calculou, não deve estar tão próximo, não pelo ruído. Mas de novo a voz sussurrou que podia ser o nevoeiro. Ele abafa o som, faz com que as coisas pareçam mais distantes do que realmente estão. Fiona apertou a sacola com força e acelerou o passo. Os passos atrás se aproximavam. Fosse quem fosse que estivesse ali, estava seguindo-a. Ela começou a correr.

O nevoeiro não a deixava enxergar o fim da rua, mas ela sabia que não estava longe. Alguém deve estar por ali, disse para si mesma, alguém vai me ajudar. Ela descia a rua com velocidade, mas a pessoa que a seguia já estava muito próxima. Os passos se tornaram mais pesados e, em dado momento, ela se deu conta de que não conseguiria fugir. Fiona se virou, aterrorizada:

— Quem está aí? — gritou.

— Calma, não precisa ter medo — respondeu uma voz masculina. — Não vou lhe fazer mal. Meu nome é Davey O‘Neill. Preciso falar com você.

— Não o conheço. Se... se afaste de mim — ela gaguejou. Tentou correr de novo, mas foi agarrada. Deixou a bolsa cair e tentou gritar, mas ele tapou sua boca.

— Não! — ele exclamou. — Eu já disse que tenho que falar com você.

Ela olhou nos olhos dele. Estavam desesperados. Ele era louco. Ele era o Jack; só podia ser. E a mataria também. Ela soltou um gemido de terror. Fechou os olhos para não se aterrar com a faca.

— Vou soltá-la, mas não saia correndo — ele disse. Ela assentiu com a cabeça. Depois de solta, abriu os olhos. — Desculpe por tê-la assustado — ele continuou. — Eu quis falar com você no mercado, mas tive medo. A gente nunca sabe quem está espiando.

Ela balançou outra vez a cabeça, tentando se acalmar. Tentando mantê-lo tranquilo. Não conseguia ouvir o que ele dizia, tentando se acalmar. Obviamente, era um lunático, mas os lunáticos podem ser perigosos. Não devia contrariá-lo.

O homem olhou-a aterrorizado, com uma expressão incompreensível.

— Você não me conhece? Eu sou Davey O‘Neill. O‘Neill... não se lembra?

De repente ela se deu conta de que o conhecia, ou melhor, que já havia ouvido o nome dele. O‘Neill, da investigação. Era o homem que deixou cair o óleo que ocasionou a morte do pai dela.

— Sim, eu o conheço. Mas...

— Eles me culparam pelo acidente do seu pai, mas eu não fiz aquilo. Coloquei óleo n os guinchos, como disse Curran, mas não deixei cair nada. Sequei toda a engrenagem para não colocar a segurança em risco, como sempre faço. Quando acabei não havia óleo em nenhum lugar. Eu juro!

— Mas, se não foi você... então, como...

— Eu tinha que contar para alguém que não foi culpa minha. Tem gente que não quer nem falar comigo. Você é a filha do Paddy, a pessoa mais certa para me ouvir — ele olhou ao redor. — Agora eu tenho que ir.

— Espere! — ela agarrou a manga do casaco dele. — O que está dizendo? Se não foi você que derrubou o óleo, então como ele foi parar lá? Eu não entendo...

O‘Neill se desvencilhou dela.

— Não posso dizer mais nada. Tenho que ir.

— Não, espere! Por favor!

— Eu não posso! — pela aparência estava sendo caçado. Ele fez menção de sair, mas virou-se em seguida e disse:

— Você trabalha na fábrica de chá, não é?

— Sim...

— Fique longe do sindicado, ouviu? — agora a voz dele estava baixa e áspera. — Sem o seu pai, a ramificação de Wapping esfacelou-se, mas Tillet está tentando consertar isso. Estão falando que também vão organizar as moças do chá. Fique longe! Promete...

— O que é que o sindicato tem a ver com isso?

— Promete!

— Está bem, eu prometo! Mas pelo menos me diz por quê.

Ele desapareceu na neblina sem dizer mais nada. Fiona queria correr atrás dele, mas suas pernas tremiam tanto que ela não pôde se mover. Que susto ele lhe dera! Ela precisava se acalmar; se a mãe percebesse a sua preocupação, perguntaria o que tinha acontecido e era melhor que não soubesse. Ela estava terrivelmente confusa. Não sabia o que fazer com O?Neill, com as coisas loucas que ele tinha dito. Aquele homem era maluco; só podia ser. Segui-la pela rua daquele jeito, surgir da neblina como um fantasma desgraçado. Ele devia estar sofrendo de consciência pesada.

Ou talvez tivesse dito a verdade. E, se disse, quem teria provocado a queda do pai? Sentiu-se desconfortável com essa questão. Já tinha pensado nisso antes, no dia do enterro, quando o senhor Farrell e o senhor Dolan mostraram estranheza pelo fato de o pai ter morrido daquela maneira quando nunca sofrera um acidente nas docas. Ela descartou essa conversa — e também as suspeitas ridículas — como idiota, produto de mentes tomadas pelo luto. Mas será que eles estavam certos?

O que Davey O‘Neill quis dizer é que ele não tinha derramado óleo ou que o óleo nunca esteve no chão? Não podia ser a segunda hipótese; os policiais que investigaram o acidente encontraram resquícios de óleo. O próprio tio Roddy viu o relatório e declarou que fazia sentido. O que mais O‘Neill afirmou? ―Tem gente que não que nem falar comigo...‖ Fiona sentiu que o seu medo era substituído pela raiva. Agora estava mais claro: alguns operários da doca ficaram com raiva de O‘Neill e o culpavam pela morte do pai dela. Estavam virando a cara para eles; talvez não estivesse nem mesmo encontrando emprego. E ele queria que ela endireitasse as coisas. Queria que ela falasse com os outros que ele não tinha sido culpado. Egoísta barato. O pai dela estava morto, a família penando para sobreviver e tudo o que ele queria era recuperar as boas graças dos companheiros. Ele que se danasse. Como se ela não tivesse outras preocupações além da maré de azar de Davey O‘Neill. Que débil mental! Esgueirando-se como uma serpente e dizendo aquelas coisas a respeito do sindicato. Dizendo que ela não devia ser sindicalizar. Como se ela tivesse dinheiro para gastar com contribuições!

Passou a mão tremula pela testa e afastou as mechas do cabelo. Sabia que tinha que sair da Barrow Street. Ter fugido de um louco já era o bastante; ela que não ficaria plantada ali, à espera de outro. Ainda estava com raiva e queria comentar o ocorrido para alguém. Charlie saberia o que fazer com O‘Neill, mas ficaria uma fera quando soubesse que Fiona pegou um atalho, e ela não estava com a mínima disposição para um bate-boca. Não contaria para ninguém; era melhor esquecer tudo. Pegou a bolsa. Ainda bem que não tinha rolado nada, mas as peras deviam estar machucadas. Retomou a caminhada enquanto apalpava os arenques. Por sorte eles não estavam esmagados. Quanto mais se aproximava do final da rua, mais ela amaldiçoava O‘Neill, prometendo-lhe o troco caso tivesse o desprazer de revê-lo.

 

UMA TROPA DE GAROTOS esfarrapados parecidos com as cotovias que bicam a lama alvoroçava-se na margem lamacenta do rio abaixo do Old Stairs, revirando pedaços do metal, garrafas velhas e pedaços de carvão. Fiona os observava enquanto caçavam na maré baixa; eles enchiam os bolsos e saíam em disparada, ávidos para vender seus tesouros ao vendedor de tralhas.

Ela estava sentada ao lado de Joe, no lugar especial deles. Conhecia essa parte do rio como a palma de sua mão. Tudo ali lhe era familiar, embora nada continuasse o mesmo.

Não conseguia se livrar da sensação que teve quando Joe bateu à sua porta naquela manhã, quando, de repente, ela sentiu que de alguma forma ele tinha mudado, ela não conseguia identificar a mudança; só sentia que ele estava diferente. Vestia um paletó novo: um maravilhoso paletó de tweed verde-musgo que Harry lhe dera. E também usava uma linda camisa branca e uma calça nova de lã que ele próprio tinha comprado para fazer uma viagem até Cornwall com Tommy Peterson. Dentro daquelas roupas novas, ele não parecia mais o antigo carroceiro e sim um rapaz bem-sucedido.

Fiona vestia uma saia azul-marinho, blusa branca e xale cinza. Era um domingo de outono com seus ventos habituais e ela se sentiu feliz por ter uma desculpa para usar o xale; cobria um remendo em uma das mangas da blusa. Estava desconfortavelmente ciente de suas roupas maltrapilhas e das roupas novas e bonitas de Joe. Isso a fazia se sentir constrangida, uma sensação que ela nunca sentira ao lado dele.

Joe parecia excitado, feliz com seu trabalho, com Peterson e consigo mesmo. Ainda não tinha completado dois meses de trabalho e já estava a ponto de ser promovido; ela pensou. Ele não parava de falar de Peterson — Tommy isso, Tommy aquilo —, exagerando no tempo. Seu rosto brilhava enquanto falava da possibilidade de pegar um cargo de comprador. Falou sobre a viagem até Cornwall e do hotel elegante que ficou hospedado. Valia-se de toda sorte de termos comerciais que não conhecia.

Ela tentou se sentir feliz por ele, tentou compartilhar seu entusiasmo, mas tudo parecia pertencer somente a ele e não a ela...

— ... e agora nossa lata está com dezoito libras e seis pences, fico feliz em dizer — ele a tirou dos pensamentos dela.

— E eu não tenho dinheiro para colocar nela. Talvez na próxima semana... — Fiona falou, como se pedisse desculpa.

— Não se preocupe, eu coloco por nós dois.

Ela franziu a testa. Isso não era certo; ele estava depositando dinheiro pelos dois. Tratava-se do sonhos deles. A loja deles. Ela também queria contribuir. Quando conseguissem a posse da loja, ela queria que isso fosse o resultado dos esforços e sacrifícios tanto dela como dele. Será que ele não entendia isso?

Ele pegou a mão dela e acariciou-a.

— Meu Deus, querida, sua mão está áspera — ele disse, inspecionando-a. — Temos que providenciar um creme.

— Muito obrigada, já tenho um creme — ela replicou abruptamente, puxando a mão.

Enterrou as mãos nos bolsos da saia. Não era verdade, ela não tinha creme algum. Mas não queria nada dele. Sentia-se magoada, como se ele a tivesse criticando. Suas mãos sempre tinham sido ásperas. E não eram assim as de todos os outros? Pelo menos as mãos de quem dava duro. As moças finas é que podiam ter mãos macias, ela pensou, sombria.

— Fi, o que há de errado? — perguntou Joe, notando a expressão taciturna dela.

Oh, Deus, ela estava sendo horrível. Ele só tentava ser gentil, só tentava cuidar dela. Já tinha surpreendido a família de Fiona com uma cesta enorme de frutas, legumes e verduras. Fez isso parecer um presente, embora soubesse que era de extrema necessidade. Ele levou doces e balas para a mãe dela e um soldado de madeira pintado para Seamie, que ao vê-lo iluminou a face como um lampião. E, para ela, deu seis rosas vermelhas. Ele fora tão bom, por que então ela se sentia tão chateada, tão defensiva?

— Nada — ela mentiu, enquanto forçava um sorriso, determinada a não permitir que seus pensamentos corroessem e estragassem a primeira noite em que estavam juntos depois de tanto tempo.

— Eu estou falando demais sobre o meu trabalho. Talvez a esteja aborrecendo. Desculpe Fi — ele pôs a mão em torno dos ombros dela, puxou-a para si e beijou-a.

Os medos dela desapareceram nos braços dele. Fiona se sentia como se estivesse outra vez a sós com Joe. Somente os dois... amando-se, possuindo-se, sem pensar em Peterson. Sem preocupações em relação à mãe, ao cômodo que caía aos pedaços e ao dinheiro.

— Eu queria que ficássemos juntos mais tempo, Fi. Odeio não poder vê-la.

— Bem, pelo menos agora você está aqui — ela disse, radiante. — E vai voltar para a noite de Guy Fawkes. Afinal, não está tão longe; só faltam duas semanas — ela estava aguardando tanto o feriado que começou a se animar só de falar nele. — Todos nós voltaremos a Montague Street para a fogueira. Eu não consigo me imaginar longe de lá no Guy Fawkes — ela apertou a mão dele. — Você estará livre o dia inteiro ou só vai chegar a noite?

Ele olhou para o vazio.

— Joe?

— Não vou poder vir, Fiona.

— Você não vem? — ela gritou, decepcionada. — Mas, por quê? Não me diga que Peterson quer que você trabalhe na noite de Guy Fawkes!

— Não, não é isso. É que o Tommy vai dar uma grande festa e eu tenho que ir.

— Por que? Não dá pra dizer ―não, muito obrigado‖, e vir para casa?

— Não, não posso. É uma grande festa que o Tommy dá para os empregados. É nessa noite que ele distribui os bônus e as promoções. Fiona, se eu não for, será uma grande desfeita. Por favor, não fique brava, não há nada que eu possa fazer.

Ela, porém, ficou brava, não pôde evitar. E, além de brava, triste e desapontada. A tal noite de Guy Fawkes era um grande evento na Montague Street; sempre foi assim. Todas as crianças faziam as suas réplicas de Guy; todos os vizinhos saíam para ver a fogueira e soltar fogos de artifício. Os casais entrelaçavam as mãos à luz da fogueira e ela esperava fazer o mesmo com Joe. Era uma festa para ser aguardada, era uma pequena promessa de diversão a que se agarrar e agora ela não tinha nada.

— A Millie vai estar lá?

— Acho que sim. A festa será na casa deles.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos e depois acrescentou:

— Você é doce com ela?

— O quê?

— Você é?

— Não! Que diabos, Fiona! Vai começar outra vez?

— Desculpe, não me expressei bem — ela disse, com azedume. — Quem você ama realmente é o Tommy, não a Millie, não é? Deve ser. Passa todo o seu tempo com ele.

Joe explodiu.

— Fiona, o que você quer que eu faça? — ele perguntou aos berros. — Quer que eu me demita? — não deu chance para que ela respondesse. — Já pensei nisso; meu desejo é voltar e ficar aqui com você. Mas não agi assim porque estou tentando a coisa certa para nós. Estou tentando ganhar a promoção que o Tommy quer me oferecer; só assim poderei ganhar mais dinheiro. É assim que vamos conseguir a nossa loja. Assim poderei cuidar de você.

— Não estou pedindo para você cuidar de mim — ela gritou de volta. — O que peço é que você não deixe de estar por perto... — ela sentia tremor em seus lábios. Não queria chorar, que droga, mas estava com tanta raiva. — Não está sendo nada fácil depois que papai morreu. Se pelo menos você estivesse por aqui de vez enquanto... só para conversar.

— Fi, você sabe que, se eu pudesse, estaria. Você sabe disso. Não será sempre assim. Só quero que você tenha um pouco de paciência. Eu me sinto péssimo, mas não posso fazer nada quanto a isso. Por favor, não faça com que eu me sinta mais culpado do que já estou.

Fiona já estava a ponto de revidar, mas as palavras dele a impediram. Culpa. Ela o fazia se sentir culpado. Seu estômago se revirou. Sentiu-se mal e envergonhada. Fechou os olhos e em sua imaginação viu Harry e Millie. Eles batiam pernas pelas ruas e riam, soltos e despreocupados, fazendo comentários sobre Tommy, fazendo gracejos, olhando as vitrines acesas e brilhantes das lojas e parando para um chá. Porque então ele iria querer voltar para aquele lugar, para as ruas lúgrubes de Whitechapel, quando poderia estar com eles? Por que ia querer estar com ela para ouvir reclamações e temores, e podia ouvir a risada de Millie? Ela não tinha como competir com o luxo de Millie; ela parecia mais uma catadora de lixo em suas roupas maltrapilhas. Seu xale velho, suas mãos ásperas — talvez ele faça centenas de comparações desfavoráveis a mim, ela pensou com o coração apertado. Não era capaz nem mesmo de dar seis pences para que ele depositasse na lata de chocolate. Agora ela entendia tudo, ele estava em meio a uma vida nova e excitante, com novas experiências e pessoas interessantes. Ele seguia em frente, distanciando-se dela, e não queria um fardo. Ela era uma obrigação. Ele não tinha dito isso, e nem precisava dizer. Pois bem, ela era muito orgulhosa para ser uma droga de fardo para alguém. Ela piscou várias vezes e levantou-se em seguida.

— Aonde você vai?

— Para casa.

— Você ainda está zangada comigo.

— Não, está tudo bem — ela disse com tranquilidade, não queria perder a cabeça e levantar a voz de novo. Talvez Millie nunca gritasse. — Você está certo, é melhor você ir para a festa do Peterson. É que... já fiquei muito tempo no rio e preciso voltar.

Ele se levantou para sair com ela.

— Não precisa; vou sozinha.

— Deixe de ser boba. É um longo caminho. Se você insiste em voltar para casa, eu vou com você.

Fiona voltou-se para ele.

— Eu disse não! Me deixe sozinha! Volta para aquela droga de Covent Garden! Não quero ouvir que minhas mãos são ásperas ou que devo ter paciência ou que você vai passar a noite de Guy Fawkes com Millie Peterson!

— Não vou passar a noite com a Millie! Eu só vou a uma festa! O que há de errado com você? Não se satisfaz com nada que eu faço! — retrucou Joe, exasperado. — Diz que me quer mais perto, mas, agora que estou aqui, você quer voltar para casa. Por que você é tão suscetível?

— Por nada, Joe. Por nada! Eu perdi o meu pai, perdi a minha casa, e agora estou perdendo o meu homem! Tudo está uma maravilha!

— Fiona, eu sinto muito por tudo isso, sinto mesmo. Mas você não está me perdendo; eu estou tentando melhorar as coisas. O que você quer de mim, afinal?

— Eu quero o meu Joe de volta — ela disse. E depois saiu em disparada pela escada e desapareceu de vista. Ela correu pela High Street e passou pelos ancoradouros e os armazéns em direção a Gravel Lane e Whitechapel. Não estava entendendo mais nada. Nada fazia sentido. Joe havia dito que trabalhava duro para eles, para a loja deles. E isso devia confortá-la, mas não a confortava.

Se ele realmente estava trabalhando para a loja deles, por que então queria tanto aquela promoção? Não foi ele mesmo que disse que já estavam com dezoito libras e seis pences? Com essa quantia só faltavam sete míseras libras para completar as vinte e cinco de que eles precisavam. Não havia necessidade do cargo de comprador, ele só precisava do salário de uns poucos meses mais. Depois, podia largar o emprego e eles abririam a loja. O que ele estava fazendo? Por que estava atrás daquele cargo?

Depois de ter percorrido um bom trecho da Gravel Lane, ela se pôs a correr mais rápido ainda. Estava quase sem fôlego, as pernas fraquejavam, mas continuava correndo; ela tentava escapar de uma voz que ecoava em sua cabeça, uma voz que respondia às suas perguntas: ―Porque ele não quer mais a loja. E também não quer mais você‖.

 

PERANTE UMA PLATEIA DE OLHOS AVALIADORES, Charlie Finnegan tirou a camisa e jogou-a na cadeira. Esticou os cotovelos até as costas, soltou os ombros e abriu o peito. Os olhos da plateia cravaram-se nos contorno dos músculos. Notavam os braços grossos, as mãos poderosas. Um murmúrio de aprovação alastrou-se pela multidão. Suas chances aumentaram, mudaram-se as apostas e as moedas passavam de mão em mão.

O olhar impassível de Charlie analisava o recinto. Era a sua primeira lua no Taj Mahal — um velho teatro burlesco recém-transformado em ringue. O proprietário, Denny Quinn, fizera a reforma, retirando o palco e os assentos, mas preservando os elegantes lustres a gás, os balaustres e o papel florido na parede. O resultado final foi um espaço amplo, bem-iluminado e perfeito para rinhas de cães e galos, para embates e lutas.

Ele também apreciou a multidão, em sua maioria composta por operários, mas também de alguns homens ricos. Avistou Thomas ―Chapéu Coco‖ Sheehan na multidão. Chapéu Coco era o apelido adquirido pelo marginal mais famoso de East London, por conta do chapéu preto que ele sempre usava. Não havia um só bordel, uma só casa de jogos e um só ringue onde ele não estivesse metido. Os donos dos cais pagavam para que ele ―protegesse‖ suas propriedades. Os taberneiros pagavam para que ele mantivesse os negócios em atividade. E os tolos que se recusavam a lhe dar uma fatia de suas tortas, invariavelmente apareciam boiando no Tâmisa.

A presença de Sheehan no recinto era um testemunho de quantidade de dinheiro que circulava por lá. Ele não perderia seu tempo com lutas insignificantes. Charlie estava feliz em ver que o interesse por ela era alto. Ele sabia que os rapazes de quem Quinn gostava, os boxeadores que entravam para a equipe dele, ganhavam uma comissão da féria arrecadada além de prêmios e dinheiro. Quinn submetera os novos rapazes a um teste antes de contratá-los. Charlie estava determinado a causar boa impressão.

Soou o gongo. Ele e seu oponente colocaram-se no centro do ringue entre aplausos e vaias. Estenderam as mãos para o juiz, o qual, por sua vez, inspecionou-as para se certificar de que não escondiam alguma coisa, mandando-os em seguida de volta aos seus cantos: lados opostos dos círculos formados pelos espectadores.

Charlie analisou o adversário. Ele o conhecia. O nome do sujeito era Sid Malone. Era seu companheiro de trabalho na cervejaria. Sid morava em Lambeth, do outro lado do rio. Não era londrino. De acordo com Billy Hewson, o capataz, ele saíra do campo após a morte da mãe. Não tinha família. E também não tinha amigos. Era um brigão, um encrenqueiro, mas Charlie nunca teve problemas com ele. Pelo menos não até certo dia, muitos meses antes, quando Sid engraçou com Fiona. Convidou-a para ir a um pub e, quando ela se negou, tentou arrastá-la para um beco. Ela quebrou o nariz dele com um soco certeiro, muito mais produto da sorte que da força, e essa era a primeira vez que ele ia a nocaute. Ele precisava recuperar a honra e sabia que a melhor forma de fazer isso era espancar o irmão dela. Sid tinha a mesma idade e altura que Charlie. E também era ruivo, mas não apresentava a mesma constituição sólida. Charlie conhecia o estilo de Sid e achava que podia dar conta dele, mas considerava o fato de que todo boxeador, inclusive Sid, pode tornar-se melhor quando está com raiva.

Alguns boxeadores precisavam trabalhar a própria raiva. Precisavam ter um motivo: uma revanche, chacotas lançadas pela plateia. Tudo o que Charlie precisava fazer era abrir a caixa onde estava a própria raiva. Ele também fora um bom boxeador e ficou ainda melhor após a morte do pai.

A luta o purificava. De sua fúria, de sua culpa, de sua desesperança. Quando lutava, ele esquecia a irmã aflita e a mãe pálida e extenuada. Esquecia o olhar triste e reprovador do irmãozinho porque ele nunca estava por perto.

Esquecia Nova York e a vida que sonhava construir lá. E se perdia completamente de si mesmo nas esquivas, nas falsas investidas, nos estalidos do nó dos dedos no queixo do oponente, na fumaça e na dor suada e brilhante.

O juiz colocou-se no centro do ringue e ergueu o braço. O ar estrelou de tensão. Charlie sentiu os pelos dos braços se eriçarem. A plateia gostou dele e se pôs a gritar seu nome. Soou o gongo e começou a luta. Sid parecia uma marionete. O orgulho ferido e a raiva manipulavam os seus cordões e o faziam arremeter-se em direção a Charlie com socos débeis e imprecisos. Charlie permanecia na defensiva e aparava os golpes facilmente. Sid investia. De sua posição, Charlie o estudava e conservava a energia para decidir o momento certo de esmagar o bastardo.

— Vem, covarde, vem — Sid instigava. — Lute comigo.

A multidão não gostava daquilo; ela queria mais agressividade. Os homens vaiavam e balançavam a cabeça em sinal negativo. Charlie não dava a mínima. Ele podia arrojar-se com uma dezena de socos, provocar o corte de um lábio e o inchamento de um olho, mas queria dar ao público alguma coisa memorável e por isso mantinha-se na defensiva e o irritava, retardando todo o processo como um amante que aumenta o prazer ao protelá-lo.

Como que do nada, porém, o oponente acertou um direito no olho esquerdo. Os nós dos dedos de Sid chocaram-se em sua cavidade óssea e rasparam sua pele. A cabeça de Charlie tombou para trás. O sangue escorria do corte; a multidão urrava. Charlie sacudiu a cabeça e o sangue respingou por todos os lados. Mas ele não se incomodou, porque o corte abaixo do olho não faria o sangue lhe turvar a visão. Agora Sid se mantinha confiante; ele se pavoneava. Charlie estuda a posição e os punhos dele. Estavam mais abertos. E baixavam a guarda.

Sid soltou uns poucos jabs mais; socos inofensivos, permitidos por Charlie que o observa como um furacão. O punho esquerdo do seu adversário abaixava toda vez que ele investia com o direito. Charlie se movimentava e lançava os seus golpes de maneira a preservar o fôlego. E mantinha os seus punhos frente ao rosto. Ainda não era hora de acertar o olho de Sid. Charlie respirou fundo e equilibrou-se, ainda estudando o padrão do oponente. Um golpe de direita, outro de direita, outro de direita. O punho esquerdo abaixava quando ele agredia e erguia-se em seguida, e depois ele dava um tempo. Um outro padrão. Direita, esquerda, direita. Mais uma vez. E depois uma sequencia de golpes de direita. Abaixava e recuava. Charlie ficou á espera. Sid investiu outra vez com o punho direito, abaixando o esquerdo, e Charlie soltou um poderoso direto em sua têmpora.

Sid foi á lona como um saco de pedras. Ele gemeu, fechou os olhos e apagou. Fez-se silêncio enquanto o juiz contava até dez e depois levantou o braço de Charlie, declarando-o vencedor. A multidão irrompeu em aplausos, a maioria exclamava que nunca tinham visto coisa igual. Os homens que minutos antes vaiavam Charlie, agora elogiavam sua resistência e sua técnica.

Sid foi carregado para uma mesa, onde sua equipe tentou reanimá-lo. Charlie cuspiu o sangue que estava em sua boca. Os administradores que tinham apostado nele esticaram rapidamente uma cadeira, um copo de cerveja, toalhas limpas e água. Ele secou o rosto. Um homem corpulento de colete e aspecto rude que carregava uma bolsa preta desgastada apresentou-se como doutor Wallace, o médico improvisado de Denny Quinn, e cuidou do seu olho. Limpou com sabão e água e depois derramou uísque no ferimento, fazendo Charlie estremecer. Quando o médico pegou agulha e linha, Charlie quis saber o que ele faria.

— É um corte profundo — disse Wallace. — Se não fecharmos agora, não vai curar nunca. Na primeira luta que você tiver, isso se abre.

Charlie assentiu com a cabeça e manteve-se firme enquanto Wallace enfiava a agulha em sua pele.

— Aguente firme, rapaz. Temos que manter a sua cara bonita para as garotas — ele deu mais alguns pontos, cinco ao todo, e no fim fez um nó na linha. — Você tem um soco e tanto, rapaz. Não se veem muitos assim, e olha que tenho experiência nisso. O curativo fica por conta da casa. E tem um prato de costeletas a caminho, cortesia do senhor Quinn — Wallace apontou para Sid, que estava desmaiado sobre a mesa. — Vou ver se acordo o Belo Adormecido. Mantenha o corte limpo, está bem?

Charlie agradeceu e acabou de beber a cerveja. Tão logo esvaziou o copo, apareceu outro. E em seguida um prato cheio de costeletas. Avançou no prato porque fazia dias que não comia nada além de pão com margarina. Alguém lhe deu sua camisa e ele a vestiu sem abotoá-la, estava muito afogueado. Os homens que tinham apostado nele se aproximaram para expressar seu apreço.

— As apostas mudaram duas vezes durante a luta — disse um dele, enquanto desalinhava o cabelo de Charlie em um gesto de camaradagem. — Mas eu mantive a minha aposta em você e ganhei um bom dinheiro! Devo isso a você, rapaz.

O homem estava tão feliz que deu dois xelins para Charlie. Ele guardou o dinheiro no bolso e sorriu. A luta transcorrera exatamente como planejara: ele tinha causado uma boa impressão. Encostou-se na cadeira e fechou os olhos. A excitação do combate o deixara exausto. Respirou profundamente, inalando o ar ambiente. Tal como só outros estabelecimentos do ramo, o Taj Mahal exalava a odor de homens e de suas respectivas atividades: cerveja, suor, fumaça, costeletas gordurosas e... perfume. Perfume? Ele abriu os olhos para ver de onde vinha.

Uma linda ruiva encontrava-se à frente dele. Usava um espartilho vermelho rendado, anágua de babados e pouco mais. Seus longos cachos ajeitavam-se num coque, de onde pendiam algumas mechas soltas. Tinha olhos castanhos cálidos, a pele era sardenta, e o sorriso, doce. Charlie não conseguia tirar os olhos daqueles braços desnudos e dos seios sardentos um pouco à mostra. Nunca vira tanta coisa de uma mulher.

— O senhor Quinn disse que você gostaria de uma companhia — ela disse, sorrindo. — Eu sou a Lucy.

Charlie perdeu a fala. Meu Deus, era uma garota linda. Ele podia ver através do espartilho.

— Não quer que eu fique aqui? — ela perguntou, franzindo as sobrancelhas. — Você quer uma outra?

— Não! Não, de jeito nenhum — ele recuperou a voz. — Não quer se sentar? Desculpe o meu jeito, é que estou um pouco cansado. Lutar cansa muito — mas de repente, Charlie descobriu que não estava tão cansado assim.

— Eu não vi a luta. Den não gosta que a gente fique lá embaixo durante as lutas. Ele diz que nós distraímos as pessoas e atrapalhamos as apostas. Mas fiquei sabendo que você acabou com seu adversário!

Ela era então uma das garotas de Denny. Ele engoliu a língua; não sabia o que dizer, mas tinha que dizer alguma coisa. Charlie quis desesperadamente que Lucy ficasse ali, para olhá-la e conversar com ela. Para que todos os outros homens o vissem com ela. E, assim, ele começou a falar da luta e de Sid Malone, e de como a irmã dele tinha quebrado o nariz do seu oponente. Ele fez a garota rir e ela não se foi. Pelo contrário, aproximou-se mais e mais e ele pôde ter uma visão melhor da fenda entre seus seios.

Uma mão repousou nas costas de Charlie e ele olhou para o alto. Era um homem esguio que usava um paletó vistoso. Era Quinn. Ele fez menção de se levantar, mas Quinn lhe disse que ficasse sentado.

— Você fez um bom trabalho, rapaz — ele falou. — Inesperado. Manteve as apostas lá no alto. Foi do jeito que eu gosto. Eu quero você comigo. Depois que o seu ferimento sarar, vou colocá-lo no topo, está bem?

— Sim, senhor. Muito obrigado, senhor Quinn.

— Muitas condições são generosas — Quinn continuou a falar de olhos aguçados enquanto examinava tudo em volta. — O prêmio mais uma parcela da féria da noite. Agora, escute, Charlie, você é bom e os outros vão querer que fique com eles, mas exijo exclusividade e pago bem por isso — ele puxou um maço de notas do bolso, pegou uma nota de cinco libras e deu a Charlie. O rapaz quis agradecer, mas o homem se esquivou. — Se você não tiver muito quebrado, os serviços da nossa adorável Lucy são por conta da casa. Ela vai lhe dar um bom banho, não é, querida? E se você for gentil, ela pode fazer outras coisas mais, imagino.

Antes que o agora ruborizado Charlie pudesse dizer qualquer coisa, Quinn se retirou e caminhou em meio à multidão. Ele notou que uma das garotas de Quinn estava sozinha.

— Pega um homem e sobe — ele o ouviu berrar. — Está pensando o quê? Que isso aqui é obra religiosa?

Lucy pôs um braço em torno de Charlie e achegou-se um pouco mais. O coração dele batia descompassado.

— Ele deve estar te querendo muito, Charlie. Não é todo dia que vejo Denny Quinn estender cinco libras.

Charlie mal conseguia acreditar na sorte que tivera. Ele só queria deixar Quinn impressionado. E agora estava com cinco libras e dois xelins no bolso, fora a promessa de mais dinheiro. E com Lucy. Ele estava com Lucy. Logo estariam no andar de cima e ele poderia tirar o espartilho dele e olhá-la. E beijá-la. Tiraria a anágua e se deitaria ao lado dela e... e tudo mais.

Ele ficou nervoso. Pelas fanfarronices que ele e os rapazes da Montague Street contavam sobre as prostitutas de quatro pences que alegavam ter conseguido, e também porque nunca tinha feito nada além de dar um beijo em Bridget, uma amiga de sua irmã, e tatear os peitinhos dela. Esvaziou o copo de cerveja. Já era o terceiro. Quatro copos mais, e ele estaria realmente pronto para dar conta do recado.

— Vem — sussurrou Lucy, pegando-o pela mão. Ela o conduziu pela escada até um corredor estreito com as portas em ambos os lados. Deteve-se a frente de uma porta, puxou-o para si e beijou-o, acariciando os cabelos dele; depois, ela desceu a mão pelas costas até a bunda dele, apertou, apalpou-a como uma massa de pão e se pressionou contra ele.

— Você quer o banho agora ou mais tarde? — ela sussurrou, tirando as mãos de onde estavam.

— Que banho? — ele grunhiu, pensando em Denny Quinn e na nota de cinco libras em seu bolso, pensando em tudo que pudesse desviar a sua mente do que as mãos dela faziam com ele. Porque, se não fosse assim, ele não aguentaria chegar na cama com ela. Para alívio dele, ela parou e pegou a chave do quarto dentro do espartilho. Sorrindo, ela destrancou a porta e o empurrou para dentro. E na cama macia de Lucy, nos braços deliciosos dela, Charlie Finnegan encontrou uma nova maneira de poder.

 

DIANTE DO CHÁ com torradas da manhã, com a face irradiando felicidade, Fiona relia pela quinta vez a carta de Joe.

Querida Fiona,

Eis aqui dois xelins. Venha até Covent Garden no domingo de manhã. Pegue o ônibus número quatro na Commercial Street, no mesmo lugar onde o pegamos naquele dia que eu a trouxe aqui. Desça na Russel Street e estarei lá esperando. Eu só terei metade do dia: vou até Jersey com o Tommy, uma hora da tarde, mas se você estiver aqui por volta das nove, nós poderemos aproveitar a manhã. Me desculpe pelo outro dia, por Guy Fawkes. Eu sei que você esta passando por um momento difícil. Sinto sua falta e espero que tudo esteja bem.

Com amor,

Joe.

A carta tinha chegado no anoitecer do dia anterior. Na verdade, erauma caixinha embrulhada em papel pardo e barbante que continha a carta e dois xelins com as moedas envolvidas em papel seda, para que não pudessem bater uma na outra, tilintar e chamar a atenção do carteiro.

Fiona quase não dormiu. Desde aquela briga horrível que os dois tiveram, fazia seis dias que ela não o via nem ouvia nada a respeito dele, e já estava imaginando o pior. Imaginando que ele não a amava mais. Que não queria mais a loja deles. Que tinha preferido a Millie. Tais pensamentos a torturavam o dia inteiro e à noite a mantinham acordada, olhando para o teto, solitária, aos trapos e de coração despedaçado. Talvez ela tivesse exigido muito dele. Por que teve que brigar com ele quando tinham tão pouco tempo para ficar a sós? Era tudo culpa dela; tudo o que ele fez foi falar de seu emprego. Ela havia se deixado dominar outra vez pelo ciúme. Estava aflita para consertar as coisas, mas não podia ir até ele. Assim como não podia escrever porque não tinha dinheiro para o papel. Mas o fato é que ele escreveu e ela se encheu de esperança e entusiasmo. Ela o veria. Eles conversariam e tudo ficaria bem. Ela precisava dele, precisava demais da segurança que o amor dele lhe dava.

Ele estava certo; eram momentos difíceis, os mais difíceis de sua vida. Na verdade, terríveis. Todo dia surgia uma nova crise para enfrentar: Seamie precisava de luvas novas e de um suéter. Charlie precisava de um casaco. O inverno chegara e com ele a necessidade de mais carvão. A pequena fábrica que encomendava serviços à mãe dela tinha falido. Ela mesma procurara por todos os cantos — pubs, lojas, mercearias — um novo emprego, mas de nada adiantou.

E o pior é que Eileen acabou pegando a tosse da mãe. Ela já tinha passado mal uma outra noite e tossiu tanto que por pouco não perdeu o fôlego, e no fim expectorou sangue. Correram logo com ela para o médico. Ele disse que não sabia ao certo o que era e recomendou que a observassem atentamente para ver se o remédio prescrito fazia efeito ou não. Fiona depositou esperança no poder do remédio, mas a mãe calou-se de uma forma estranha. Quando chegaram em casa, a mãe sentou-se perto do fogo e chorou. Fiona, mais apavorada com as lágrimas da mãe que com a tosse do bebê, quis saber o que havia de errado.

— É minha culpa. Eileen pegou a minha tosse e agora está morrendo — ela disse. — O doutor não falou nada, mas eu sei.

— Não é nada disso, não, mamãe — replicou Fiona com toda a força, como se suas palavras pudessem dissipar a possibilidade de uma doença terrível. — O doutor disse que podia ser apenas uma inflamação da garganta ou uma infecção. Ele disse que deveríamos observar o efeito do remédio e voltar daqui a uma semana. Foi isso que ele disse, e ele sabe mais do que a senhora.

A mãe secou os olhos e concordou, mas não pareceu convencida. A partir daí, ela examinava Eileen a cada momento; deixou de dormir e ficou cada vez mais ensimesmada e deprimida. E também emagreceu. Aliás, toda a família. O dinheiro da comida era muito pouco.

Praticamente se alimentavam apenas de chá e pão, até a noite em que Charlie apareceu com uma nota de cinco libras e um corte debaixo do olho. Foi num móvel lá no trabalho, ele disse. As despesas com o médico e com os remédios de Eileen mais três semanas de aluguel atrasado e ainda uma compra no mercado acabaram dando cabo de quase todo aquele dinheiro inesperado, mas finalmente alguma coisa boa acontecia agora. Joe tinha escrito e ela o veria em poucas horas. Enquanto tivesse esse amor e os sonhos de ambos persistissem, ela enfrentaria qualquer infortúnio.

Fiona ajeitava o xale em torno dos ombros, tentando se lembrar do tempo em que o ônibus número quatro levava para chegar em Covent Garden, quando o rosto de um garoto apareceu na janela.

Ele bateu no vidro.

— Aqui é a casa dos Finnegan? — gritou.

— Sim, que é você?

— É um recado do senhor Jackson, do Bull. Mandou dizer pra Fiona Finnegan que queria vê-la pra tratar do serviço. Ele falou que, se ela ainda estiver interessada, tem que ir até lá, agora.

— O quê, agora mesmo?

— Foi isso que ele disse — o menino espichou os olhos para o pão em cima da mesa.

Ela cortou uma fatia, passou um pouco de margarina e deu para ele. O garoto comeu com avidez e partiu para receber um outro pêni pelo trabalho de mensageiro.

— Até logo, mamãe — disse Fiona, inclinando-se sobre a cama para dar um beijo na mãe. Ela não dormia, só estava deitada de olhos fechados.

— Até logo, querida.

Fiona suspirou. Há pouco tempo, a mãe a encheria de perguntas sobre o novo emprego — principalmente em um pub —, antes de deixá-la sair de casa. E agora estava muito cansada para se preocupar. Ela nem quis saber do olho de Charlie, assim como não tinha notado que agora o vocabulário de Seamie incluía ―merda‖ e ―bastardo‖. Nós temos que sair daqui, pensou Fiona. A vida de Adams Court era dura e frustrante. Uma vida que modificava a todos e os arrastava em seu curso.

Ela fechou a porta atrás de si e foi na direção do Bull, de dedos cruzados. Se apressasse as coisas, talvez desse para falar com o senhor Jackson no pub e ainda chegar em Covent Garden antes das nove. Já tinha conversado com ele alguns dias antes, mas não havia nada disponível. Alguém devia ter saído. Ele bem que podia ter escolhido outro momento, ela pensou. Com tantos dias para escolher, fez isso justamente hoje! Mas não podia deixar de ir e Joe entenderia se ela se atrasasse um pouco. Se conseguisse o trabalho, ela teria alguns xelins extras no bolso e talvez pudesse comprar carne para a semana ou um vidro de tônico para a mãe. Isso, só se conseguisse o emprego. Talvez estivessem para acontecer duas coisas boas. Ela acabou sendo recompensada com uma dose de sorte.

Chegou ao pub, bateu na porta apressada e em segundos um homem robusto de rosto vermelho com um enorme bigode surgiu à sua frente.

— Você chegou rápido — disse Ralph Jackson. — Acabei de mandar um menino atrás de você.

— Sim, senhor — disse Fiona com um sorriso, esperando causar boa impressão. — Eu não queria deixar o senhor esperando — o fato é que ela não queria deixar Joe esperando, mas aquilo que o senhor Jackson desconhecia não poderia chateá-lo.

— Bom, eu gosto disso nos meus empregados. Então, você acha que pode pegar esse trabalho, não é? — ele perguntou. — Não é trabalho fácil. E não é nada agradável. Tem camadas e mais camadas de gordura para limpar.

— Eu sei, senhor Jackson. Eu posso imaginar. Mas vou fazer um trabalho de primeira para o senhor — ela retrucou, enquanto pensava: lavarei as vitrinas até que fiquem brilhando. Esfregarei o assoalhado até que cintilem. Lavarei os copos e polirei o balcão e beijarei a sua bundona peluda. É só me dar essa droga de emprego!

— São três noites por semana, e também sábados à noite e domingos de manhã. O salário é de dois pences e meio por hora, mais uma refeição e a bebida de sua preferência quando você terminar o serviço.

— Está bem, senhor.

O senhor Jackson mordeu os lábios, olhou-a de cima a baixo, como se medisse um arado, e aprovou-a.

— Está bem, então. Tem esfregão e balde atrás da porta. O balcão também precisa ser polido, mas antes você tem que tirar os copos sujos de cima.

— O senhor que dizer, agora? — Disse Fiona, pestanejando.

— Sim, é claro que é agora. Algum problema? Eu disse que as manhãs de domingo estavam incluídas e hoje é domingo.

Ela não poderia se encontrar com Joe. E ele a estava esperando. Já tinha mandado o dinheiro. Os dois conversariam e ele lhe daria um abraça e as coisas começariam a melhorar. Ela o imaginou de pé na parada do ônibus, procurando o seu rosto enquanto o ônibus chegava e os passageiros saltavam. Imaginou que ele não a encontrava, desistia e voltava para casa.

— É que… eu ia… não pensei que o trabalho começaria agora… — disse Fiona.

— Olhe, mocinha, acabei de perder a minha ajudante — o senhor Jackson se impacientou. — Ela estava grávida e pariu hoje cedo. O meu pub precisa estar limpo. Pra mim não faz a menor diferença quem vai limpá-lo. Se você não quiser o emprego, dou para a próxima que quiser.

— Oh, não, eu quero o emprego, sim — ela retrucou rapidamente, forjando um sorriso. — Estou muito grata porque o senhor lembrou de mim e vou começar a trabalhar agora mesmo.

O sorriso falso de Fiona sumiu do rosto logo que ele saiu do seu campo de visão. Lágrimas amargas britaram em seus olhos e escorreram pela sua face; ela não pode contê-las. Estava aflita para ver Joe e fazer as pazes com ele. Agora ela se sentia outra vez desesperançada. Por que o trabalho tinha que surgir logo naquela hora? Logo naquele dia? Ela não tinha como avisá-lo do ocorrido. Ele ficaria plantado, à espera, e ela não apareceria.

Mas não havia outra opção. Ela precisou de algumas semanas para conseguir o emprego. Se não aceitasse, levaria um tempão para surgir outra oportunidade e ela não podia se dar ao luxo de esperar. Ela precisava muito de Joe, mas a família dela estava muito mais necessitada de dinheiro. Só teria de escrever para ele e explicar o ocorrido. E para isso usaria o dinheiro que ele tinha mandado. Ela também diria que lamentava muito por aquele outro dia no rio. E diria que o amava e que queria vê-lo tão logo ele pudesse. E ainda diria que esperava, do fundo do coração, que ele compreendesse.

Encheu o balde de água e sabão, agradecida pelo fato de estar sozinha no pub, já que o senhor Jackson teve coisas a fazer no escritório. Arregaçou as mangas, deu um nó na saia e colocou-se de joelhos no chão. Mergulhou o esfregão no balde e começou a esfregar, suas lágrimas misturavam-se à água do sabão e à sujeira do assoalho emplastrado de cerveja.

 

UM COPO DE PONCHE, senhor?

— Não. Muito obrigado — respondeu Joe, tranquilo. Ele já começava a se sentir como se estivesse em uma corda bamba. — Eu quero uma limonada, por favor.

— Está bem, senhor — disse o garçom, virando-se para buscar o pedido.

Joe decidiu que não beberia mais ponche. Não estava acostumado com bebidas alcoólicas e dois copos já o tinham deixado zonzo. Ele queria ficar sóbrio. Tommy esteve colado nele quase a noite inteira, apresentando-o para muitos grã finos. Havia conhecido os principais compradores da Fortnum e da Harrods, chefes de cozinha e maítres dos maiores hotéis, donos de restaurantes e inúmeras viúvas e filhos e filhas e isso requeria o máximo de concentração para guardar todos os nomes.

A festa estava divertida e animada; não era a chatice que ele havia imaginado. A animação era geral. Todos os convidados pareciam se divertir. E por que não se divertiriam? Tudo estava impecável: a quantidade surpreendente de alimentos, a bebida, a música, a casa toda decorada de flores, o jardim iluminado por tochas e velas. Era uma visão deslumbrante e ele queria muito que Fiona estivesse lá para compartilhar tudo isso com ela. Fiona. Seu coração apertou ao lembrar dela.

Por que tudo se tornara tão complicado entre os dois? Ele conseguira um bom emprego apenas para realizar o sonho da loja mais rápido do que planejavam. Para que pudessem ficar juntos. E agora se afastavam um do outro.

Na semana anterior, tinha mandado dinheiro para que Fiona o encontrasse em Covent Garden e ela não foi nem deu explicação. Ela pelo menos podia ter escrito para explicar o que houve. Ainda devia estar zangada. Talvez agora o odiasse e não quisesse vê-lo nunca mais. Talvez ela tivesse encontrado um outro.

Na ultima vez em que se viram, no dia em que os dois brigaram, ela estava tão distraída que mal puderam conversar. E ele acabou bancando o idiota, dizendo que ela o fazia se sentir culpado. Não devia ter dito aquilo — ela era muito orgulhosa e as palavras dele a deixaram magoada —, mas a verdade é que ele se sentia realmente culpado.

Ele sabia que se sentia assim porque naquele dia tinha ferido os sentimentos de Fiona na Old Stairs. Mas havia uma culpa maior e mais profunda que o atormentava. Uma culpa que começou depois da morte do pai de Fiona; ele não foi solidário a ela. Não foi capaz de tomar conta dela. Embora quisesse salvá-la, como faria isso? Ela fez questão de afirmar que não podia abandonar a família. E o fato é que ele não podia cuidar de todos. E. se o fizesse, eles nunca conseguiriam abrir a loja.

Era egoísmo não querer assumir esse fardo? Ele ainda não estava preparado para enfrentar os problemas de um homem de família e mesmo assim agia como se fosse um deles. A cada minuto se preocupava com Fiona: será que ela estava voltando para casa tarde da noite? Será que tinha o bastante para se alimentar? Será que a família dela estava com dinheiro? Ele levou alimentos para eles quando foi visitá-los. E aproveitou um momento de distração para depositar quatro xelins na lata onde a família guardava dinheiro. Ele sabia que não era muito, mas era o que podia fazer.

Joe era jovem e chegaria a algum lugar. O patrão gostava dele, respeitava-o. Ele não queria todas aquelas preocupações. O que ele queria mesmo, nem que só um pouquinho, era a liberdade da juventude para fazer o seu trabalho, aprender com isso e aprimorar-se ao máximo. Queria que alguém como Tommy dissesse que ele era inteligente e talentoso e poder sentir-se orgulhoso. Só um pouquinho. Ainda assim, sentia-se culpado por esse desejo. Cristo, isso era demais para ele. Era um problema muito difícil de ser carregado. Um problema que ele era incapaz de resolver, por mais que esquentasse a cabeça na tentativa de resolvê-lo.

O garçom retornou. Joe tomou a bebida e saiu do saguão em direção à varanda, para tomar um pouco de ar. Aquela noite de Novembro estava fresca clara. De onde se encontrava, ele podia ver a fogueira ardendo no enorme quintal de Tommy. Um riso feminino atraiu a sua atenção. Ele conhecia aquela risada; era de Millie. Era uma típica garota que não tinha fardos e nunca teria. Estava sempre rindo, sempre feliz. Os olhos dele procuraram pelo grupo de pessoas em volta da fogueira e a encontraram. Não era tão difícil avistá-la porque ela usava um vestido espetacular. Ele não entendia muito de vestidos, mas, quando o viu, pôde notar que era caro. Era de seda azul-marinho e acentuava cada curva dela. Mas o aspecto mais fascinante é que o vestido evocava fogos de artifício. Bordaram milhares e milhares de pequeninas contas de vidro iridescentes na saia e isso formava uma explosão de contas coloridas rodeada de outras menores. Era muito parecido com os fogos que explodiam no céu.

Esse vestido era o tema das conversas na festa, e Millie, o centro das atenções.

Ela estava ao lado do pai e de um rapaz que trabalhava para ele na sucursal de Spitalfields. O rapaz devia ter dito alguma coisa engraçada porque Millie e o pai riam a valer. Observando-os, Joe sentiu uma súbita pontada de ciúme, de sentimento de posse. Mas, de quem? De Tommy? De Millie? Tommy repousava a mão nas costas do rapaz e Joe se ressentiu. Esse sujeito é tão bom quanto eu? Ele se perguntou. Melhor? Olhando Millie empertigada ao lado do pai, ele compreendeu que quem ficasse com ela também ficaria com o negócio da família. Oficialmente, o que se dizia é que Harry assumiria a firma, mas Joe estava mais bem informado. Harry já tinha comprado uma passagem para a Índia e partiria no mês seguinte. Se aquele rapaz conquistasse o coração de Millie e se casasse com ela, se tornaria filho de Peterson. E como seria? Joe se perguntou enquanto observava Peterson se afastando do grupo e dirigindo-se para casa. Por que de repente se preocupava?

Só ficaria no negócio até que tivesse dinheiro para montar o seu próprio negócio. Ele virou de costas e foi atrás do garçom que passava com uma bandeja, para pegar um canapé de ostra defumada.

— Aí está você, Bristow! Eu estava procurando-o!

Era Tommy. Ele apoiou as mãos na mureta da varanda e sorriu.

— Não é para me gabar, mas a festa está demais — ele disse, observando os convidados. Um garçom aproximou-se e perguntou o que ele queria.

— Uísque. Duplo. E o mesmo para o meu jovem amigo, aqui.

Minha nossa, pensou Joe. Ele já estava meio bêbado. Teria que despejar um pouco fora sem que Tommy visse ou ficaria completamente bêbado. O garçom voltou instantes depois e estendeu um copo. Ele tomou um gole e estremeceu. E bebida caiu como um coice.

— Tenho novidades — disse Peterson, lambendo o uísque dos lábios. — Recebi um papel do palácio de Buck, um pouco antes de deixar o escritório no início da noite. Dá pra acreditar nisso, Joe? Não quero nutrir esperanças — ele agitou as mãos, como se o assunto não importasse, mas sem esconder um brilho nos olhos. — Se gostarem das nossas mercadorias, se nos derem aprovação, isso pode levar o nome Peterson à garantia da realeza. Nunca, nem nos meus sonhos mais malucos, eu vislumbrei isso. Não seria o máximo?

— E como seria — disse Joe, tão excitado quanto o chefe com a garantia real: isso dava o direito de exibir o timbre da casa real e de proclamar para o mundo inteiro que ―a rainha compra aqui‖. Ele já maquinava os meios de convencer o palácio a comprar. — Podemos enviar amostras dos nossos melhores produtos para eles, arranjados em cestas no melhor vagão que tivermos, com nova pintura. E Billy Nevins pode conduzí-lo, impecavelmente uniformizado. Ele é um bom rapaz e tem boa aparência, além de ser limpo e educado. Quer dizer, isso antes de qualquer pedido deles. O negócio é levar os produtos até eles, para que não precisem vir até aqui.

— Boa ideia… — disse Peterson, fazendo um sinal para o garçom. Já tinha terminado a bebida e estava pronto para outra. Olhou para Joe, que só bebera a metade da sua. — quer outro?

Joe descansou o copo e disse que sim.

— É melhor oferecer para eles um preço ridículo, bem barato… — ele continuou enquanto o garçom estendia um outro uísque — … não importa se não tivermos lucro. Ou até mesmo se perdemos dinheiro. Os novos negócios que faremos a partir da garantia compensarão as perdas com o palácio… — notou que Peterson franzia a testa e se perguntou se não estava indo longe de mais. Afinal, ele sugeria que os lucros de Peterson fossem cortados. — Quer dizer, se o senhor concordar.

— É claro que concordo — retrucou Tommy. — eu só estava me perguntando por que nenhum dos meus colaboradores mais antigos apareceu com essas ideias. Acho que só mesmo um jovem seria capaz de sugerir que perdêssemos dinheiro para fazer mais dinheiro. Vamos discutir essas ideias de novo, amanhã de manhã. O que me trouxe até você, em primeiro lugar, foi para lhe dar isso aqui — pegou um envelope no bolso do paletó e deu-o para Joe —, e, em segundo, para ser o primeiro a cumprimentar o meu novo e principal comprador.

Joe levou um susto. Ele aguardava a promoção, ansiava por ela, mas sem nunca se convencer de que o cargo seria seu. E agora ele era. Era o principal comprador de Peterson. Um sorriso iluminou o seu rosto.

— Muito obrigado, senhor Peterson, senhor, eu… eu não sei o que dizer.

— Não precisa dizer nada, rapaz. Você mereceu — Tommy ergueu o copo. — Ao seu futuro na Peterson. Você é um jovem brilhante. Sempre pensa nos interesses da firma, e aprecio isso.

Joe brindou com o patrão e tomou outro gole. Tommy, a essa altura um pouco emotivo, pôs o braço no ombro dele e começou a desenrolar a história de como iniciara o seu negócio. Sorrindo e assentindo, Joe dava a impressão de que estava totalmente absorvido pela história, porém mal podia ouvi-la.

Ele simplesmente não acreditava na sua boa sorte. Pouco tempo antes, nem sequer conseguia convencer ser próprio pai a alugar uma outra barraca para pôr as frutas em uma as frutas em uma e as verduras e legumes na outra. E agora ele era o principal comprador de um dos maiores comerciantes de frutas, verduras e legumes de Londres. Sobrava-lhe talento e energia para realizar esse trabalho. Já provara isso. Ele era o maioral. Bem, não o maioral, pensou, ainda não tinha chegado lá… de qualquer forma, um dos maiorais. E ele só estava com dezenove anos. Alem de ter recebido um aumento de salário, no seu bolso havia um ótimo bônus. Ele tomou um outro gole de uísque, e dessa vez a bebida desceu mais suave. Ele se sentia um milionário. Tudo estava às mil maravilhas. A festa, a comida, o uísque.

— Ora, papai, você não está aborrecendo o pobre Joe com essas velhas histórias, não é?

Millie juntou-se aos dois. Peterson colocou o outro braço em torno dos ombros da filha.

— Claro que não — disse o pai, levemente bambo. — Joe gosta de ouvir histórias sobre negócios — ele pronunciou ―negóchiuus‖. — Não é, rapaz?

— Gosto, senhor — respondeu Joe de pronto. Pronunciando ―chenhorr‖.

Millie olhou para o pai, depois para Joe, e sorriu. E este se perguntou se eles dois estavam parecendo bêbados. Ele se sentia assim.

— Pois eu não gosto — ela rebateu, meneando a cabeça. — Chega de conversa sobre negócios. Vamos falar da fogueira. E dos bonecos de Guy. Como aquele que os seus fiéis empregados estão carregando agora no jardim, papai. Aquele que parece com o senhor.

Ela estava rindo de novo. Millie Boboca, ele pensou. Sempre rindo. Os olhos brilhavam. Os seios grandes e redondos quase pulavam do vestido. Uma garota maravilhosa e sorridente.

— Bem, então temos que ver isso — disse Tommy, fingindo-se ofendido. Descansou o copo de uísque e endireitou a gravata. — Vamos dar um jeito naquele bando. E você, rapaz… — apontou para Joe — … nada de falar mais sobre frutas, legumes e verduras esta noite. A Millie está certa. Os jovens devem se divertir na festa e não falar de negócios — ele gesticulou e empurrou os dois da varanda para o interior da casa. — Millie, mostre a casa para o Joe. Dê alguma coisa para ele comer. E uma bebida também.

— Sim, papai — ela disse. Enquanto o pai desaparecia, descendo a escada da varanda em direção ao jardim, ela voltou-se para Joe e acrescentou. — Espero que ele não tropece e quebre o pescoço. Está completamente bêbado — pegou-lhe o braço e o conduziu pelo saguão. — Vem, vou lhe mostrar a casa.

Joe se deixou conduzir. Era o melhor a fazer. Tommy não era o único a estar completamente bêbado. Ele também estava. Felizmente, Millie não tinha notado o quanto ele estava mal. Não queria que ela dissesse para o pai que ele estava caindo de bêbado.

À medida que atravessavam o interior da casa, as pessoas olhavam para eles e sorriam. Joe sorria de volta; ele gostava de atenção. Já devem estar sabendo que sou o novo comprador, ele pensou, sorrindo. As mulheres cochichavam e balançavam a cabeça em sinal de aprovação. Harry acenava de um canto. Todos eram tão bons. A casa era tão boa. Millie era tão boa. Ele tropeçou no tapete e quase caiu; ela se pôs a rir de novo. Por que ele não conseguia controlar os pés? Surgiu um outro copo de uísque e ela o colocou na mão dele. Ele tomou um gole, só por educação.

Millie mostrou a sala de visitas, dizendo que o seu plano era decorá-la no estilo japonês ou algo assim. E também mostrou o gabinete do pai, com uma enorme escrivaninha de mogno, ricos tapetes e cortinas pesadas, e ainda uma ampla cozinha que estava cheia de empregados e garçons. Depois, ela o levou escada acima. Na metade do caminho, ele se deu conta de que estava passando mal. Sua cabeça começava a girar.

Millie notou seu desconforto. Para seu alivio, ela não estava zangada.

— Meu pobre querido — ela disse. — Não se preocupe. Acharemos um bom lugar para você descansar até melhorar.

Passaram por várias portas, mas ela não mostrou mais nada e o levou para um quarto no final do corredor. Ele estava muito mal. Oscilava para frente e para trás, como um marinheiro em pé no navio. Ela abriu a porta do quarto e o empurrou para dentro. Uma cama macia e convidativa o fez sentar-se nela, na expectativa de que Millie o deixasse sozinho. Em vez disso, ela sentou-se ao lado e começou a tirar o palito dele. Joe protestou, dizendo que estava bem e que só precisava de descansar por um minuto, mas ela fez sinal para que se calasse e disse que daquela maneira ficaria muito mais confortável. Tirou o paletó dele, afrouxou a gravata e o fez deitar na cama, aconselhando-o com uma voz doce e suave a permanecer deitado e de olhos fechados.

Ele obedeceu. E respirou profundamente, desejando que seu cérebro parasse de pular. Pouco a pouco, a tontura se dissipava. Ele ainda se sentia muito bêbado, quase como se estivesse fora do corpo, mas pelo menos já não estava mais com tanta tontura. O movimento de Millie pelo quarto o deixava confuso, ele ouvia um farfalhar de saia. Abriu os olhos. Estava escuro. Ela devia ter abafado a luz do lampião. Focou o olhar numa pilha de almofadas à sua esquerda. Eram rendilhadas e bordadas. Cheiravam a lilás. Fechou os olhos mais uma vez. Devia ser o quarto dela, ele pensou com desconforto. Não devia estar ali. Mas tinha sido tão fácil se deitar e seria tão difícil se levantar.

— Millie?

— O quê?

— Acho melhor eu descer. Seu pai não vai gostar disso.

— E como ele vai saber? — ela perguntou, agora com a voz bem próxima. — Não contarei para ele — sentou na cama ao lado de Joe. O aroma a lilás era forte. Ele sentiu uma pressão em seus lábios. Abriu os olhos. Ela o tinha beijado. Sorrindo, Millie ergueu a cabeça e ele se deu conta de que ela estava semidespida. Só vestia corpete e anágua. Enquanto ele a olhava em transe, ela desabotoava o corpete e se expunha ainda mais. Ele não conseguia tirar os olhos de cima dela. Os seios eram maravilhosos e exuberantes, os pequenos mamilos rosados se intumesciam com a atmosfera fria do quarto. Ele soltou um gemido, de repente o seu membro doía. Ela deixou o corpete escorregar pelos ombros, pegou a mão dele e comprimiu-a contra o seu corpo. Aproximou-se e o beijou outra vez, lambendo os lábios dele.

Não faz isso, ele disse para si mesmo. Não faz. Afastou-a e tentou se equilibrar nas pernas bambas. Ela sorriu e seus olhos brilhavam como se os de um gato que solta o camundongo para vê-lo correr pela última vez antes de matá-lo.

— Eu sou sua, Joe — ela sussurrou. — Eu quero você. E sei que você me quer. Eu posso ver isso. Vi desde o inicio. Você pode me possuir. Você pode possuir qualquer coisa que quiser.

Ele tinha de sair daquele lugar. Naquela hora. Naquele segundo. Mas a desejava. Ele queria tanto foder com ela que mal conseguia respirar. Seria tão fácil ceder, não era o caso? Ali, despreocupado, tudo seria tão mais fácil. Todo o resto era difícil. Mas ele estava ali, na casa do Peterson, onde criadas e garçons ofereciam muita comida e muito uísque. Seria tão fácil na cama de Millie, com seus doces lábios e seus seios fartos e belos. Tudo estava bem. Ele podia possuí-la. Ele podia possuir qualquer coisa. Não foi isso que ela disse?

Millie levantou-se, desabotoou a anágua e deixou-a escorregar até o chão. Agora ela estava completamente nua. Mesmo na escuridão, ele pôde ver a curva daquela cinturinha, as coxas e o tufo de pêlos louros entre elas. Apertada contra o corpo de Joe, ela o beijou novamente enquanto deslizava a mão entre as pernas dele e lhe desabotoava a calça. As mãos dele buscaram os seios dela. Ele tinha que possuí-la. Naquele segundo. Jogou-a na cama, abriu as pernas dela e penetrou-a com brutalidade. Agora ele estava dentro dela, e afundava continuamente naquele veludo profundo e macio. Ela era dele. O cargo de comprador era dele. O que era de Peterson era dele. Tudo era dele. Ele gozou apressado, mordendo o ombro dela enquanto gozava.

Depois que tudo terminou, ele continuou deitado, respirando com dificuldade. O uísque pregava suas peças outra vez. Onde ele estava? Ele não sabia ao certo. Ah, sim, é claro, ele estava com Fiona. No casarão deles. Na enorme cama deles. Na realidade, eles tinham uma cadeia de lojas. Eram ricos e tudo era agradável. Ele se sentiu tranquilo e contente com o rosto enterrado no pescoço de Fi.

Mas algo estava errado. Ele se sentia tão zonzo, tão mal. E de novo aquele perfume enjoativo. Lilás. Ergue a cabeça e mirou com olhos turvos a mulher ao lado. Não é Fiona, gritou a mente dele. Meu Deus, o que fiz? Rolou o corpo para longe dela e saiu da cama. Ele sabia que acabaria passando mal. Segurou a calça com uma das mãos destrancou a porta com a outra e saiu em disparada do quarto.

Na cama, Millie massageava a marca da mordida em seu ombro. Ela sentia em suas pernas o líquido que resultara do que eles tinham feito. Cobrir a colcha com um velho lençol tinha sido uma boa ideia. Ela ergueu os joelhos sem tirar os pés do colchão e depois levantou os quadris, exatamente como lera no livro que pegara emprestado de uma amiga casada. Fechou os olhos enquanto saboreava o gosto dele em sua língua, e sorriu.

 

NÃO QUER UMA, FI? Estão deliciosas, salgadinhas — disse Charlie, oferecendo um saco de batatas fritas para a irmã. — Vamos, só uma...

— Não, obrigada.

Alguma coisa estava errada. Ela não tinha contado nada, mas ele podia ver no rosto dela. Estava triste com alguma coisa. Ele achou que uma caminhada até o rio no entardecer de domingo a deixaria desanuviada, mas as coisas que geralmente provocavam o sorriso de Fiona — canções trazidas pelo vento, gaivotas que voavam ao redor por uma lasca de batata frita — não pareciam surtir efeito. E agora ela se mostrava ainda mais deprimida do que na saída de Adams Court.

Ele acompanhava o olhar da irmã sobre a água cheia de espuma. Duas barcaças navegavam pelo meio do rio. Durante toda a vida, ele nunca conseguiu entender o que ela via naquele rio imundo. Acabou de comer as batatas e depois olhou para ver onde Seamie tinha se metido. O menino estava correndo atrás das gaivotas nas proximidades do Armazém do Oliver.

— Ei, não se aproxime muito da água — ele gritou. Seamie não deu a mínima. Correu atrás de um pássaro até as marolas na beira do rio, encharcou as botas e riu. Charlie praguejou. Não conseguia controlar um menino de quatro anos.

Não era fácil ser o homem da família. Ele trabalhava o dia inteiro na cervejaria e lutava como um tigre no Taj, e mesmo assim não conseguia ganhar dinheiro suficiente para pagar as contas. E embora precisasse de cada pêni que pudesse ganhar, o trabalho o mantinha praticamente o tempo todo fora de casa. Naquela tarde, à mesa, ele conseguiu conversar com a mãe depois de muitos dias. Olhou-a atentamente enquanto ela enchia a xícara de chá e ficou chocado com a palidez dela. Depois, olhou para a irmã e se deu conta de que ela parecia estar sempre combatendo as lágrimas. E viu que o irmão emburrava e choramingava porque ficava trancado em casa por muito tempo. Até a bebê estava adoentada.

Como é que o meu pai fazia? Ele se perguntou. Como mantinha todos bem-alimentados e vestidos? Como fazia para que se sentissem cuidados e a salvo? E tudo isso com o salário das docas? Ele havia prometido ao pai que cuidaria da família e estava fazendo o máximo que podia, mas, por mais arduamente que trabalhasse, não se sentia vitorioso. Se ao menos ele pudesse poupar umas poucas libras, poderia tirar a família de Adams Court e transferi-Ia para um cômodo decente, ou talvez até um andar inteiro de uma casa melhor. Em um daqueles dias, Quinn lhe fez uma oferta para ganhar um dinheiro extra. O homem disse que alguém lhe devia uma quantia considerável em dinheiro. E queria que Charlie e Sid Malone fossem pegar essa grana. Charlie não aceitou. Ele não tinha o menor desejo de bater à porta de estranhos no meio da noite para espancar um apostador em débito. Mas isso foi antes de ter visto a palidez excessiva da mãe. Antes de ver a bebê adoecer. Agora, ele se perguntava se não tinha sido estúpido por recusar.

Fiona suspirou, afastando os pensamentos dele sobre Quinn. Olhando-a, Charlie decidiu que adotaria uma outra tática. Se ele a fizesse falar sobre qualquer assunto — fosse qual fosse —, talvez pudesse fazê-la dizer o que a aborrecia.

— Como está indo lá no Bull? — ele perguntou.

— Bem.

— É trabalho pesado, não é?

—Sim.

Seguiu-se um longo silêncio. Ele tentou de novo.

— Ontem eu vi o tio Roddy.

— Viu?

— Conversamos sobre os assassinatos. Ele disse que o último, o da Kelly, aquela mulher de Dorset Street, foi o pior. Segundo ele, o que restou dela nem parecia uma mulher.

— Verdade?

— É. E eles não estão nem perto de prender o cara.

— Hmm.

A tática não surtira efeito. Pelo jeito, ele teria que apelar para a objetividade. E aguentar toda a falação e emoção como se fosse uma moça. Ele temia isso.

— Está bem, Fiona... o que está havendo?

Ela nem o olhou.

— Nada — ela disse.

— Olhe, alguma coisa há. Você já não é mais a mesma. Se papai estivesse aqui, você falaria; portanto, é melhor me contar. Eu sou o homem da casa, lembra? Ele me deixou no lugar dele.

Fiona riu de suas palavras; ele não gostou disso. E depois, pior ainda, ela começou a chorar. Confuso, ele estendeu o lenço e desajeitadamente colocou o braço em torno dela, torcendo para que nenhum dos seus companheiros estivesse por perto e os visse.

— É entre nós... eu e Joe — ela soluçou.

— Ele terminou com você?

— Não, mas vai terminar. Tenho certeza disso.

Ela contou tudo sobre a carta de Joe.

— Faz um tempão que ele a mandou — ela disse. — Eu quero vê-lo, mas toda vez que junto dois pences acontece alguma coisa ou alguém está com fome e acabo gastando. Eu sei que ele não gosta mais de mim... se gostasse, vinha me ver... — passou o lenço no rosto enquanto as lágrimas escorriam.

— Ah, Fiona, é só isso? — ele disse, aliviado. Sua preocupação é que ela estivesse passando por dificuldades. — O Joe gosta de você. Ele sempre gostou. Vai até lá e faz as pazes com ele, está bem?

— Charlie, eu não tenho dinheiro. Você ouviu o que acabei de dizer?

— Eu vou lhe dar o dinheiro. Vou fazer um extra... é uma forma de conseguir mais dinheiro. Não posso lhe contar o que é, mas...

— Ora, sei do que se trata.

Ele olhou surpreso para ela.

— O que você sabe?

Ela alisou a cicatriz debaixo do olho dele.

— Sei como você conseguiu isso.

— Foi na borda de um barril de cerveja que eu estava carregando. Escorregou e me acertou o rosto.

Fiona riu com malícia. Puxou a gola aberta dele e olhou atentamente a marca de um chupão no pescoço.

— O barril de cerveja também causou isso?

Ele afastou a mão dela, franzindo a testa.

— Está bem, estou lutando. Mas não conte nada pra mamãe. Vou lutar no próximo sábado. Se ganhar, eu lhe dou o dinheiro para ônibus até Covent Garden.

— Oh, Charlie... de verdade?

— Claro.

Ela o abraçou com força.

— Muito brigada... oh, muito obrigada!

— Já chega, Fi — ele disse, soltando-se do abraço.

Ela assoou o nariz no lenço dele e o devolveu.

— Hum... fique com ele — ele disse.

— Onde é que o Seamie está? — ela perguntou, subitamente preocupada.

Ele apontou para o banco de areia.

— O malandrinho está lá na frente. Vamos pegá-lo. E depois vamos beber um Black Dog.

— Com que dinheiro?

Ele lançou um sorriso de superioridade.

— Ao contrário de você, Fiona, alguém tão bonito como eu não precisa de dinheiro. A garota do bar me adora. Ela vai nos servir de graça.

— Foi ela que pôs essas marcas no seu pescoço? É uma garota ou uma vampira?

— Não foi ela, não, foi uma outra antiga.

— É melhor você se cuidar, Charlie.

Ele revirou os olhos. Não precisava que a irmã lhe desse sermão.

— Estou falando sério! Tudo o que não precisamos agora é de uma moça na porta de nossa casa com um bebê ruivinho nos braços.

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Isso nunca acontecerá.

— Porque você... — ela corou ligeiramente —... está tomando cuidado, não é?

Charlie soltou uma gargalhada.

— Claro, tenho sido cuidadoso para não dar meu endereço a ela!

 

— VIRA — DISSE ADA PARKER, a costureira de Millie, com a boca cheia de alfinetes.

Millie obedeceu e Ada embainhou os últimos centímetros da saia de cetim cor de malva da qual tirava a prova. Depois de terminado, ela se afastou para apreciar sua obra e franziu o cenho.

— O que há de errado? — perguntou Millie.

— Não sei. A saia ficou folgada na cintura. Não consigo entender. Tudo parecia bem na última prova. Eu sei que cortei direito. Conheço suas medidas de cor e salteado.

Ela soltou os alfinetes da saia e tirou-a de Millie. Depois, pegou a fita métrica do bolso e mediu a cintura da moça.

— Aqui está a resposta — ela disse com as mãos nos quadris. — Você perdeu peso? O que há de errado? Por que não está comendo bem?

— Não há nada de errado, Ada. O meu... meu apetite diminuiu, só isso.

— Você devia ir ao médico. Não vai querer ficar magricela e arruinar sua linda aparência. E depois, como é que vai arrumar um marido?

Millie sorriu.

— Já encontrei um. Estou esperando o pedido de casamento a qualquer momento.

— Que maravilha! Parabéns, minha querida — disse Ada, abraçando-a. — Em seguida, apontou o dedo para ela. — Mas, se você continuar emagrecendo, ele vai embora!

Millie acariciou a barriga.

— Oh, não se preocupe; ele não vai embora, não — ela disse. — Ada, eu quero ver os tafetás antes que você se vá. Um da cor de marfim, talvez. Ou quem sabe, creme. O branco não vai servir. De jeito nenhum.

 

FIONA LIMPOU O MOLHO que restava no prato com um naco de pão e o saboreou com um gole de cerveja.

— Gostou da comida? — perguntou Ralph Jackson.

— Estava deliciosa. A senhora Jackson faz uma torta de carne maravilhosa.

— Sei muito bem disso! — ele exclamou, batendo no seu barrigão. — Fico feliz por você ter gostado, mocinha. Você está precisando se fortalecer um pouco mais.

Fiona sorriu. Aos olhos do senhor Jackson, se qualquer moça tivesse menos de oitenta quilos, precisava de alguns quilos mais. Ela lavou a louça que tinha usado, colocou o xale e se despediu. Fazia frio lá fora, mas ela estava satisfeita com o jantar e sentia aquela sensação de corpo aquecido que só uma boa refeição propicia. Era sábado, passava um pouco das seis, e ela iniciou a caminhada de volta para casa com o coração leve. Seu ânimo melhorara e ela estava esperançosa. Se Charlie ganhasse a luta naquela noite, e ela rezara fervorosamente para isso, depois de terminar seu trabalho no pub no dia seguinte, seguiria até Covent Garden para se encontrar com Joe. Não era nem um pouco agradável saber que as passagens seriam compradas graças a cortes e ferimentos, mas ela estava desesperada. E o recompensaria de alguma maneira. Logo que tivesse a loja junto com Joe, ela começaria a deixar um dinheiro de lado para a passagem de Charlie até Nova York.

Ela só tinha percorrido alguns metros da calçada quando ouviu alguém gritar seu nome. Virou-se. Era Joe. Ele estava uns dez metros atrás dela. E a olhava, à distância. Ela o chamou. Seu coração encheu-se de amor e felicidade com a visão dele. Joe, o seu Joe! Ele estava ali; oh, obrigada, meu Deus, ele estava ali! Ele não a odiava; tinha voltado para vê-la. Ainda a amava. Ele a amava! Ela correu na direção dele, louca de felicidade. Mas diminuiu o passo à medida que se aproximava. O sorriso se apagou de sua face. Algo não estava certo. Ele parecia magro e pálido. Estava barbado.

— Joe? — ele ergueu os olhos. Ela se sentiu aterrorizada com o que viu dentro deles. — O que é? O que aconteceu?

— Vem, Fi. Vamos até o rio — ele disse com uma voz tão débil e derrotada que ela custou a acreditar que era mesmo a voz dele. Ele se voltou para o Tâmisa e começou a caminhar.

Ela agarrou o braço dele.

— O que está havendo? Por que você não está no trabalho?

Ele não conseguiu nem olhá-la nem responder as perguntas dela.

— Vem comigo, vamos dar uma volta — ele retrucou, e a ela não restou outra opção senão seguí-lo.

Chegaram na Old Stairs e se sentaram no lugar habitual, na metade da escada. Joe pegou a mão dela e apertou-a tanto que doeu. Ele tentava falar, mas as palavras não saiam. Abaixou a cabeça e chorou. Fiona ficou tão amedrontada que perdeu a fala. Só o tinha visto chorar uma vez, por ocasião da morte da avó dele. O que teria acontecido? Será que alguém tinha morrido?

— Amor, o que é isso? — ela perguntou com a voz trêmula. Pôs os braços em torno dele. — O que há de errado? É sua mãe? Está tudo bem com seu pai?

Ele a olhou com os olhos cheios de lágrimas.

— Fiona... eu fiz uma coisa horrível.

— O quê? O que você fez? O que você pode ter feito de tão ruim? Seja o que for, estou aqui para ajudá-lo. Nós vamos resolver tudo — ela esboçou um sorriso. — Você não matou ninguém, não é?

— Eu engravidei a Millie Peterson e agora tenho que casar com ela.

Mais tarde, Fiona se lembraria dos segundos de silêncio absoluto que se seguiram a essas palavras. Ela não conseguia ouvir nada; nem a voz dele, nem o rumor do tráfego no rio nem o barulho que ecoava do pub nas imediações. Era como se os ouvidos tivessem murchado com aquelas palavras, calando o som para sempre. Ela ergueu o tronco, abraçou as próprias pernas e começou a oscilar ligeiramente para frente e para trás. Não ouvia nada. Nada. Uma parte dela sabia que Joe tinha dito alguma coisa, alguma coisa ruim, mas, se ela não pensasse nisso, tudo ficaria bem. Ela sabia que ele ainda estava falando, mas não podia ouvir, porque, se ouvisse, ouviria que ele... ele... Millie... que eles...

Um grito surdo emergiu do fundo de sua garganta, um grito gutural de animal ferido. Ela dobrou-se como se tivesse recebido um soco na boca do estômago. Agora, ela o ouvia; ele gritava o nome dela, colocando os braços em torno dela e puxando-a para si. Ele tinha feito amor com Millie Peterson. Aquilo que eles dois tinham feito em nome do amor, ele também tinha feito com Millie. Alguns segundos antes, a sua mente não conseguia aceitar isso, mas agora ela se torturava com a imagem dele e da outra juntos, com a imagem dele beijando-a, tocando-a. Ela o repetiu, correu até a beira do rio e vomitou.

Quando já não havia mais nada no estômago, ela molhou a bainha da saia nas águas do rio e limpou o rosto. Tentou se manter firme, retornar à escada, mas aí se lembrou do resto que ele havia dito. Millie estava grávida. Ele se casaria com ela. Seria o marido dela. Iria para a cama com ela e acordaria com ela. Passaria o resto da vida com ela. Como um vaso de vidro caindo ao chão de pedras, seu coração se partiu em um milhão de cacos. Ela cobriu o rosto com as mãos e tombou no chão.

Joe desceu correndo a escada, ergueu-a e abraçou-a.

— Desculpa. Me perdoa. Por favor, me perdoa... — ele disse, arrasado.

Ela investiu contra ele, esmurrando-o. Afastou-se aos tropeções. E se viu invadida por uma raiva assassina.

— Seu bastardo! — ela gritou. — Você me disse esse tempo todo que não havia razão para o meu ciúme! E olhe só, eu tinha uma merda de uma boa razão! Há quanto tempo isso vem acontecendo, Joe? Quantas vezes você trepou com ela?

— Uma única vez. Eu estava bêbado.

— Ah, uma única vez? E você estava bêbado... quer dizer, está tudo bem, não é? Suas desculpas são completamente... — a voz dela sumiu e ela teve que engolir em seco antes de continuar. — E você beijou-a como me beijou? Nos lábios dela? No coração dela? Entre as pernas dela?

— Não, Fiona. Por favor. Não foi nada disso.

Ela se arremeteu contra ele com o corpo tremendo de fúria. Queria esbofetear o rosto dele, dar um chute nos testículos dele, fazer alguma coisa que o fizesse sentir uma fração da dor, da humilhação que ela estava sentindo. Em vez disso, caiu em pranto.

— Por que você fez isso? Por que, Joe, por quê? — ela gemia com lamentos compulsivos, com os maravilhosos olhos azuis tomados pela vermelhidão do pranto.

— Eu não sei, Fiona — ele gritou. — Já quebrei a cabeça de tanto me perguntar, mas continuou não entendendo — contou tudo para ela com um jorro de palavras. Disse que sentiu saudades dela na festa e que achou que ela não gostava mais dele. Disse que queria desesperadamente a promoção e que se sentiu como um rei quando a conseguiu. Contou que tinha bebido muito e que Millie lhe mostrou a casa e que a cabeça dele rodava e que acabou parando no quarto dela. E que vomitou as tripas quando se deu conta do que tinha feito.

— Eu estava muito bêbado... era como se tudo o que eu quisesse estivesse bem ali na minha frente... a atenção, o dinheiro, a solução de todos os problemas, mas não estava. Tudo o que eu quero está aqui, bem na minha frente. Eu achei que tinha perdido você, Fiona. Esperei e esperei por você no ponto de ônibus, mas você não apareceu. Eu pensei que estava tudo acabado, que você me odiava. Por que você não foi?

— Eu tentei — ela disse, abatida. — Já estava de saída quando o senhor Jackson, o taberneiro, me chamou. Eu tinha procurado emprego lá e acabou surgindo uma vaga, mas tinha que começar naquele dia mesmo. Eu ia escrever pra você, mas gastei o dinheiro que você mandou com remédios pra Eileen. Desculpe — as lágrimas escorriam pelo rosto dela — Se ao menos eu tivesse ido — os soluços estremeciam todo o corpo dela. Não conseguia mais falar. Quando finalmente pôde emitir algumas palavras, ela perguntou — Você... você a ama?

— Não! Por Deus, não! — ele gritou. — Eu amo você, Fiona. Eu cometi um erro, um erro estúpido, horrível, e daria tudo para voltar atrás e não cometê-lo. Eu daria tudo! Eu amo você, Fi. Eu quero ficar com você, eu quero que as coisas voltem a ser como eram, antes de tudo dar errado. Eu não posso... eu não posso prosseguir com isso... eu não posso... oh, Deus... — ele se virou de costas e suas palavras foram abafadas pelo seu pranto.

Mas você vai, ela pensou. É sua obrigação. Tem um bebê a caminho. Seu filho. Ela o observava enquanto ele chorava como uma criança e, no turbilhão de emoções que a tomavam — tristeza, raiva, medo —, irrompeu um novo sentimento: pena. Ela não queria sentir isso. Queria odiá-lo, porque se não o odiasse, não conseguiria se afastar dele. Mas isso era impossível. Sua mão afagou por instinto as costas dele. Ele sentiu o toque, virou-se e puxou-a para si. Abraçou-a e enterrou o rosto no colo dela. Ela se sentia mal, como se toda sua alma estremecesse.

— Você percebe o que fez? — ela sussurrou. — Já se deu conta do que jogou fora? Nossos sonhos. Nossas vidas, nosso passado e nosso futuro. Tudo o que fomos, tudo o que ansiávamos. O amor que um sentia pelo outro.

— Não. Fi — Joe retrucou, segurando o rosto dela. — Não diz isso. Por favor, não diz que você não me ama mais. Eu sei que não tenho direito de pedir isso, mas, por favor, por favor, não deixe de me amar.

Fiona olhava para o homem que ela amara por toda a vida, o homem de quem ela precisava mais do que qualquer coisa ou qualquer pessoa.

— Eu te amo, sim, Joe — ela disse. — Eu amo você e você vai se casar com Millie Peterson.

O sol despedia-se de Londres, escurecendo o céu e esfriando o ar; Joe e Fiona permaneciam sentados, abraçados, sem conseguir se soltar. Fiona sabia que era a última vez. Quando deixassem o rio, tudo estaria acabado. Ela nunca mais o teria, nunca mais sentiria o cheiro dele. Nunca mais se sentaria nos degraus da Old Stairs com ele, nunca mais ouviria a voz dele dizendo seu nome, nunca mais veria aqueles olhos azuis travessos se fecharem com uma risada. Os sonhos dela tinham se dissipado para sempre, abortados. De repente, seu melhor amigo a abandonava, levando sua esperança, seu amor e o sentido de sua vida.

Ela não suportaria. Era uma dor insuportável. Sem Joe em sua vida, não valia mais a pena viver. Ela não significava mais nada para ele. Com súbita clareza, ela vislumbrou o que devia fazer. Pediria que ele se fosse e, quando ele tivesse ido, ela entraria no Tâmisa e permitiria que o rio a engolisse. Seria rápido. Dezembro já estava próximo e a água estava gelada. Ela queria acabar com aquela dor que a deixava cega e dilacerada.

— Quando será seu... seu casamento? — ela perguntou, custando a crer que essas palavras saíam de sua boca.

— Daqui a uma semana. A partir de hoje.

Tão rápido. Meu Deus, tão rápido, ela pensou.

— Eu preciso de uma coisa que está com você — ela disse.

— O que você quiser.

— Eu preciso do dinheiro. Minha parte de nossas economias.

— Está bem. Eu trago.

— Dê pra mamãe, se eu não... se eu não estiver lá — ela o olhou pela última vez e depois pousou o olhar no rio. — Vai embora agora, por favor.

— Não me mande embora, Fiona. Deixe-me abraçá-la enquanto posso — Ele implorou.

— Vai. Por favor, Joe. Eu imploro.

Joe se manteve estático, olhando-a e soluçando. Depois, ele se foi e Fiona ficou sozinha. Uma voz tênue dentro dela alertou que suicídio era pecado, mas ela não lhe deu ouvidos. Lembrou do avô, o pai do pai dela que pulou de um penhasco quando a esposa faleceu. As pessoas diziam que o tempo cura qualquer coisa. Talvez essas pessoas nunca tivessem amado alguém. O tempo não curaria o seu avô, ela estava certa disso. E o tempo não a curaria.

Ela caminhou até a beira da água e pela última vez olhou o rio que tanto amava, os ancoradouros, as barcaças, as estrelas que começavam a brilhar no céu de Londres. Já estava com a água acima dos tornozelos quando ouviu um grito que vinha do topo da escada.

— Aí está você, sua vaquinha!

Ela virou-se. Era Charlie. Ele estava parado no topo da escada, furioso.

— Por onde você andou? — ele gritou, enquanto descia os degraus. — Estou procurando-a desde sete horas e já são quase nove. Você tem merda na cabeça? A mamãe está louca de preocupação. Nós pensamos que você tinha sido assassinada. Pensamos que tinha sido apanhada pelo Jack. Perdi a minha luta no Taj por sua causa. O Quinn vai me matar... — ele se deteve e mirou o rosto pálido da irmã, viu os olhos inchados de chorar, o cabelo despenteado. — O que aconteceu? — a expressão dele mudou de raiva para preocupação. Algum cara se meteu com você, Fi? — pegou-a pelos ombros. — Alguém tocou em você? Foi o Sid Malone?...

Fiona negou com a cabeça.

— Bom, então o que houve?

— Oh, Charlie — ela gritou, caindo em prantos nos braços do irmão. — Eu perdi o meu Joe.

 

JOE ESTAVA DE PÉ NO ALTAR, elegantemente trajado com um terno cinza. Olhava para a entrada da igreja, aguardando a noiva. Ao lado dele, Harry Eaton.

— Tudo bem, meu velho? — cochichou Harry, notando sua palidez.

Ele fez que sim com a cabeça, mas estava longe de se sentir bem. Sentia-se entorpecido, como se vivesse um pesadelo, daqueles em que não se consegue gritar nem correr. Estava inteiramente preso em uma armadilha. Seu pai não o educara para se esquivar das responsabilidades. Ele era adulto e tinha de enfrentá-las. Cometera um erro fatal e estúpido e passaria o resto da vida pagando por isso. O resto da vida, por causa de uma noite. E Harry que pensava que suas prostitutas eram caras. Uma risada histérica formou-se dentro dele, fazendo-o morder o interior das bochechas para contê-la.

— Você não vai desmaiar, não é?

Ele negou com a cabeça.

— Não se preocupe. Isso não é uma sentença de morte. Sempre existe a possibilidade de você se divertir por aí.

Joe sorriu sem graça. Harry achava que ele compartilhava seu mesmo pavor pela monogamia. Ora, Harry, ele pensou, se fosse assim tão simples. Ele sabia que com a nova posição que tinha na Peterson e o dinheiro que Tommy dera para eles, poderia ter quantas mulheres quisesse. Mas isso não importava. Ele não teria a única mulher que desejava.

Seus olhos recaíram na fileira de rostos à sua frente. Lá estavam seus pais, seu irmão, Jimmy, e suas irmãs, Ellen e Cathy, todos vestidos com as roupas novas que ele mesmo comprara. Seu pai cerrava os lábios, sua mãe não parava de chorar, da mesma forma que vinha chorando desde que soube das novidades.

Ele viu pessoas que conhecia no trabalho, fregueses importantes de Tommy, amigos e parentes de Millie. Para os padrões de Tommy, eram poucos os convidados, aproximadamente uma centena de pessoas. Mas eles se decidiram pelo casamento às pressas e não houve tempo para organizar algo maior.

Tommy ficou furioso quando soube do que tinha acontecido, mas acalmou-se quando viu que Joe pretendia se casar com Millie. Mais tarde, ela disse que tudo foi cena do pai. Na verdade, ele ficou fascinado com a ideia de que Joe seria seu genro, mas precisava representar o papel do pai preocupado.

A gravidez de Millie tornou-se um segredo revelado. Os homens se cutucavam entre si, comentando que o diabo do Bristow não pôde esperar. As mulheres sorriam entre si, comentando sobre a ocorrência de um parto antes do tempo. Ninguém se escandalizou, todos se sentiram felizes pelo bonito casal,alegres por ver que a filha de Tommy e o seu protegido estavam se casando. Logo viria um filho, uma terceira geração com o comércio no sangue. Diziam que a combinação não podia ser mais perfeita.

Joe ouviu o toque do órgão. Os convidados se levantaram e olharam para a entrada. Ele seguiu os olhares. Surgiu a pequena dama-de-honra seguida pela dama-de-honra da noiva, que era seguida pela própria Millie, conduzida pelo pai. Ao vê-la, seus olhos não expressavam alegria e sim pavor. Era como se ele estivesse assistindo à aproximação do seu verdugo. Millie usava um vestido de tafetá marfim com véu, mangas bufantes e cauda longa, e carregava um enorme buquê de lírios brancos. Ele achou que ela estava parecida com um fantasma, coberta de branco da cabeça aos pés. Igual ao fantasma daquela história de Natal de Charles Dickens, o fantasma dos natais futuros, dos dias que ele teria pela frente.

Durante a cerimônia, ele quase não prestou atenção em nada. Enunciou seu voto, trocou as alianças, beijou a noiva no rosto e depois a conduziu para a nave lateral, onde receberam os cumprimentos já como senhor e senhora Bristow. Administrou uma sucessão de sorrisos falsos. Era tudo irreal, ele ainda estava vivendo um pesadelo. Certamente, a qualquer momento ele acordaria suado em sua cama, aliviado por tudo não ter passado de um sonho ruim.

Acontece que não era um pesadelo. Uma carruagem os conduziu para a recepção no Claridge‘s. Ele teve que suportar inúmeras danças com ela; brindou de acordo com o figurino, comeu, beijou-a com negligência e sorriu para gente que nem conhecia. Em dado momento, deu uma escapada por alguns minutos, para beber com Harry na varanda. Harry lhe disse que partiria em uma semana. Ele tentou ficar feliz pelo amigo, mas a verdade é que não queria vê-lo partir porque sentiria muita falta dele. E o invejava.

Por fim, era hora de irem embora. Entre piadinhas e risos, Joe e Millie saíram às pressas em direção à suntuosa mansão que Tommy reservara. Passariam a noite lá e na manhã seguinte partiriam para Paris em lua de mel de dois meses. Millie queria três meses, mas Tommy disse que precisava de Joe no trabalho e este rapidamente concordou. Não fazia a menor ideia de como aguentaria dois meses ao lado de Millie, quando apenas duas horas já pareciam insuportáveis.

Já na suíte, Millie desapareceu para se trocar. Joe tirou o paletó, afrouxou a gravata e serviu-se de uísque. Foi até a varando do quarto e de lá olhou a linha do horizonte no céu de Londres. East London. Era o lugar onde ele estava.

Vestindo uma camisola sensual, Millie juntou-se a ele.

— Vem pra cama — ela sussurrou, pondo os braços em torno dele.

Ele ficou tenso.

— Eu prefiro ficar aqui.

— Alguma coisa errada? — ela perguntou, com seus olhos procurando os dele.

— Não. Nada. Só estou cansado. Foi um dia exaustivo.

— Eu posso te animar — ela pressionou o corpo contra o dele.

Joe fechou os olhos para que ela não percebesse o quanto ele não estava disposto.

— Preciso de um pouco de ar, Millie. Por que não vai se deitar? Você deve estar exausta. Eu vou daqui a pouco.

— Promete?

— Sim.

A primeira noite de uma vida de mentiras. Oh, Deus, como ele poderia levar isso adiante? O que diria quando a desculpa do ar já não colasse? Que ele não aguentava vê-la? Que a voz, o sorriso, tudo nela deixava o seu estômago embrulhado? Que não a amava e nunca amaria? Olhava para o uísque no copo, mas a bebida não tinha respostas pra ele. Lembrou-se que era o responsável pela gravidez dela. Logo ela seria mãe do seu filho; ele não podia ser cruel com ela. Se ao menos pudesse voltar atrás; se pudesse voltar àquela noite e não entrar no quarto dela.

Essa seria, então, a sua noite de núpcias com Fiona. A alma de Joe clamava por ela. O casamento, o fato de que agora Millie era sua esposa, nada disso mudava coisa alguma. Em seu coração, Fiona ainda lhe pertencia, assim como ele pertencia a ela, mesmo que nunca mais pudesse ver o rosto que tanto amava. Ver os olhos iluminados, ouvir a voz animada de Fiona; tocá-la, amá-la. O que aconteceria com ela? Ele sabia a resposta. Com o tempo, ela o esqueceria e encontraria outro homem. E esse homem seria então aquele que desfrutaria o sorriso dela, compartilharia os dias com ela e a possuiria no escuro. Esse pensamento o fez se sentir fisicamente mal.

Ele precisava sair dali, daquele quarto, fugir de Millie. O hotel tinha um bar. Ele encheria a cara naquela noite e em todas as noites daquela maldita lua de mel. Logo ela estaria enorme pela gravidez e o dispensaria. E, depois que o bebê nascesse, ele encontraria uma nova desculpa. Faria viagens para o Tommy, trabalharia vinte e quatro horas por dia. Ele sabia que dificilmente a tocaria outra vez. Entrou na saleta da suíte e fechou as portas que davam para a varanda. Procurou o paletó, ajeitou a gravata e pegou a chave do quarto.

— Joe? — ele ouviu quando ela o chamou, sonolenta. A resposta dele foi o ruído da porta se fechando.

 

A RESPIRAÇÃO DE EILLEEN ESTAVA completamente tomada pelo catarro. Kate a ouvia com atenção, na expectativa de um súbito espasmo que anunciaria a tosse, mas isso não acontecia. Talvez a pobrezinha acabe dormindo a noite inteira, ela ansiou por isso. Já eram dez horas; se Eillen ficasse quieta por mais meia hora, ela poderia se deitar. Sentada em sua cadeira de balanço, ela bebeu um pouco de chá, mantendo os olhos na filhinha. Os últimos meses não tinham sido bons para ela. Já estava com olheiras escuras debaixo dos olhos e com rugas onde antes não havia nenhuma. Durante semanas, ela permaneceu naquela cadeira, preocupada com a saúde do bebê, e agora Eillen não era a única que a preocupava. Ergueu o olhar para a cama. Fiona chorava outra vez antes de dormir. Já tinha se passado uma semana desde que ela chegara do rio passando mal, amparada por Charlie. A temperatura dela continuava alta apesar de todas as tentativas para abaixá-la. Fiona estava extremamente pálida. Recusava-se a comer. Kate teve que fazer de tudo para que ela tomasse um caldo.

A febre preocupava Kate, mas o estado de Fiona era o que mais a preocupava. Sua filha não estava reagindo, não estava combatendo a doença. Sua menina risonha e amistosa se fora, sendo substituída por uma morta-viva. Vê-la nesse estado partia o coração da mãe. Ela sempre se irritava com o entusiasmo que a filha demonstrava, determinada a abrir uma loja. E agora o que mais queria era ouvi-la falando da loja ou do que fosse, nem que apenas com um pouco do seu antigo entusiasmo.

Kate já tinha cuidado de muitas doenças dos filhos, mas nunca vira nada igual a doença de Fiona. Não havia razão para a febre; ela não tinha tosse, nada nos pulmões. Não tinha dor de estômago nem vômitos. Ela estava com as meias e as botas ensopadas quando Charlie levou-a para casa, mas Kate não achava que isso tinha a ver com a febre. Nenhum doutor concordaria, mas ela estava certa de que era por causa de coração partido.

Quando descobriu o que havia acontecido, teve vontade de esganar Joe Bristow. Mas, com o tempo, a raiva virou pena. Sobretudo de sua filha, mas também de Joe. Rose Bristow fez uma visita a elas. A pedido do filho, levou quase vinte libras. Dinheiro que teria financiado o sonho de Fiona. E agora o dinheiro serviria para pagar a conta do médico, os remédios, a comida e um novo lugar para a família morar. Fiona insistiu que fosse usado para isso. Kate argumentou, dizendo-lhe para guardá-lo, mas a filha foi irredutível.

Rose se desmanchou em lágrimas quando viu Fiona. Não queria que seu filho se casasse com Millie, e isso porque sabia o quanto ele amava Fiona.

— O estúpido, o imbecil — ela disse com amargura. — Arruinou sua própria vida. Você tem mais sorte que ele, Fiona. Ainda pode encontrar alguém para amar e com o tempo encontrará. Ele não terá essa chance.

Kate reclinou a cabeça no encosto da cadeira e fechou os olhos. Daria qualquer coisa para acabar com a tristeza da filha. Sabia que Fiona adorava Joe desde criança. Toda a sua vida se limitou a Joe e aos sonhos que os dois compartilhavam. Talvez não desse para superar uma perda como aquela. A ferida podia sarar, mas a cicatriz doeria para sempre. Ela mesma não tinha superado a morte de Paddy e não esperava superá-la. Como uma mulher poderia superar a perda do único homem que amou de corpo e alma? Ela seguiria em frente, anestesiada, movendo-se em um mundo cinzento. Só lhe restaria fazer isso.

Kate ouviu o som despreocupado de alguém que cantava através das paredes. Frances deve estar em casa, ela pensou. As paredes entre as duas casas eram tão frágeis que ela a ouvia cantar com frequência, além de derrubar as panelas e, pior, entreter clientes. Mas se alegrou por saber que Frances estava em casa. Naqueles dias, Charlie nunca estaca por perto e Lucy Brady se fora para o hospital para ter o filho. Ela gostou de saber que havia alguém por perto, alguém a quem ela recorreria para cuidar de Seamie e Fiona caso tivesse que levar Eileen ao médico.

Ela bocejou. Meu Deus, como estou exausta, pensou. Vou me deitar agora mesmo. Em vez disso, cochilou. Algumas horas depois, despertou com a impressão de ter ouvido gritos e em seguida cochilou de novo, achando que tinha sonhado. Alguns minutos depois, acordou. A respiração da filhinha chiava e seu rosto estava completamente vermelho. Kate pegou-a no colo para confortá-la, tentando não entrar em pânico. E decidiu que levaria o bebê ao médico antes que o chiado piorasse. Com movimentos apressados, colocou o bebê de volta no cesto e pegou o xale.

— O que é, mamãe? O que há de errado? — perguntou Fiona, zonza.

— É a Eileen. Vou levá-la ao médico.

— Pode deixar que eu o trago aqui — disse Fiona, levantando-se e apoiando-se na beirada da cama para não cair.

— Volte pra cama. Agora. Vou pedir a Frances pra ficar com vocês.

Kate pegou o bebê no berço e correu até a casa de Frances. Bateu à porta. Sem resposta. Nervosa, acercou-se de uma janela próxima e limpou-a com a bainha da manga. No tremeluzir de uma pequena lareira avistou Frances na cama, com um homem de camisa debruçado sobre ela. Certamente um cliente; pelo que parecia, ele só estava acertando a conta. Kate estava muito desesperada para sentir-se constrangida. Colocou o cesto no chão e gritou pela amiga enquanto batia na janela. Frances não se moveu, mas o homem ergueu-se. E Kate pensou: ele me ouviu, graças a Deus!

Lentamente, como se em transe, o homem se dirigiu até a porta e o alívio de Kate tornou-se horror quando notou que ele segurava uma faca. A lâmina estava escura e melada. A mesma substância que cobria suas mãos e a frente da camisa e que escorria em um fio pelo seu rosto.

— É sangue — ela murmurou. — Oh, meu Deus, veja isso!

Gritando, afastou-se da janela, mas o salto de sua bota prendeu-se na bainha da saia e ela caiu ao chão. A porta rangeu e o homem apareceu. Ela ergueu as mãos na tentativa de se defender, mas foi inútil. No instante que antecedeu a entrada da faca em suas costelas, ela vislumbrou aqueles olhos enlouquecidos, inumanos, e reconheceu o homem. Era Jack.

 

FIONA OLHAVA FIXAMENTE para as simples cruzes de madeira fincadas no solo manchado de neve. À esquerda, a do pai, já exibindo as marcas do tempo. Próximas à dele, a da mãe e de Eileen, que começavam a escurecer. E, próximas às delas, uma nova cruz: uma de madeira ainda clara e intacta. A do seu irmão, Charlie.

Três dias antes, Roddy chegara do trabalho com a notícia. Os policiais do rio tinham tirado o corpo do Tâmisa — o cadáver de um rapaz de aproximadamente dezesseis anos de idade. Ele tinha ido ao necrotério para identificar o corpo; uma tarefa que, segundo ele, foi praticamente impossível devido ao tempo que o corpo passou no rio. Já não havia mais rosto. O cabelo que restara era ruivo. Uma busca na roupa do cadáver confirmou sua identidade. Em um dos bolsos encontraram o relógio de prata com a inscrição: ―Sean Joseph Finnegan Cork, 1850‖. O nome do avô dele. O relógio do irmão dela. Quando Roddy o colocou em suas mãos, ela entendeu tudo de imediato.

Agora, de olhos fechados, tomada pelo desespero, tudo o que ela desejava era estar enterrada com eles. Dia após dia, o luto negro e sufocante a invadia, e a saudade de sua família e de Joe — sempre Joe — era insuportável. Sentava-se pelas manhãs e olhava em volta, imaginando como enfrentaria o dia. Ela quis acabar com a própria vida na noite em que Joe comunicou seu casamento com Millie. E quis morrer de novo logo após a morte da mãe, sentindo-se incapaz de encarar a perda e a maneira horrível como Kate foi morta. Fiona ainda se sentia assim, mesmo tentando manter-se inteira pelo bem de Seamie; em certos momentos, ela pensava em acabar com a própria vida porque a dor parecia eterna.

Como consolo, tentou imaginar o rosto da mãe da forma que gostava de se lembrar: Kate sorrindo e soltando risadas. Mas ela não conseguiu. Essas imagens se dissiparam.

Só lhe vinham à mente a lembrança da mãe estirada na rua, lutando para viver enquanto o sangue escorria. Fiona ouvira seus gritos e saíra em disparada pela porta em sua procura. Ao encontrá-la, ajoelhou-se ao seu lado, pressionou a mão contra o ferimento e se pôs a gritar por ajuda. As pessoas logo chegaram, fizeram o que podiam, mas Jack tinha esfaqueado o coração. Felizmente o fim foi rápido. Sua mãe tocou sua face com os dedos trêmulos, manchando de sangue suas bochechas e depois tombou sem vida, com os olhos embaçados e vazios.

Fiona não queria se lembrar daquela noite, mas a cena não saía de sua cabeça. Ela continuava a ver o corpo da mãe na rua, continuava a ouvir os gemidos do bebê e os gritos de Seamie nos braços dos policiais.

E Charlie... ela ainda o via correr pela Adams Court, gritando e empurrando as pessoas que lá estavam. Ela via a expressão desnorteada no rosto dele enquanto olhava a mãe. Ela o havia chamado e ele se virou, mas os olhos dele estavam tão desvairados que não a reconheceram. Ele pegou o corpo da mãe nos braços e o segurou com força, gemendo e chorando. Recusou-se a deixar que os policiais a tirassem dele e lutou com eles até ser vencido. Quando os policiais o soltaram, ele tentou puxar o corpo da mãe para fora da carroça.

— Pare com isso, Charlie! — gritou Fiona. — Para com isso, por favor! — mas ele não parou. Agarrou-se à carroça quando já se movimentava e depois saiu correndo. Correu para fora de Adams Court e se perdeu na noite. Ninguém soube do seu paradeiro. Roddy procurou por ele ao longo dos dias e das semanas. E depois o corpo foi encontrado. Não havia dinheiro com ele e seu crânio estava furado. A hipótese de Roddy é que Charlie sucumbiu com o choque e a dor, vagou por uma rua perigosa e acabou sendo vítima de ladrões que o atacaram e o roubaram e depois jogaram o corpo no rio. Fiona agradeceu por não terem visto o relógio, agradeceu por ter alguma coisa para lembrar do irmão.

Ela agarrou-se à esperança de que Charlie ainda estivesse vivo até o dia em que encontraram o corpo. A morte do irmão deixou-a dilacerada. Sentia falta das fanfarronices masculinas, da risada e de todas as piadas idiotas do irmão. Sentia falta da força dele e pedia a Deus que o mantivesse ao seu lado para confortá-la. Agora eram apenas ela e Seamie. A pobrezinha da Eileen só resistira cinco dias após a morte da mãe, atacada por uma infecção pulmonar que a matou.

Fiona se perguntava se ela e Seamie teriam sobrevivido se não fosse pela intervenção do tio Roddy. Ele os levou logo após o assassinato. Mentira para as autoridades, afirmando que era parente, primo da mãe, e assumiu a guarda deles. Fiona não estava em condições de cuidar de Seamie e Eileen e ele teve medo de que as autoridades pudessem colocá-los num orfanato.

Ele lhes deu um lar e os alimentou, cuidou e fez o que podia para aliviar a tristeza de todos. Nos dias em que Fiona tinha dificuldades até mesmo para se levantar da cama, ele a pegava pela mão e dizia:

— Um passo de cada vez, mocinha, é a única maneira — e era assim que ela vivia, arrastando-se entorpecida, oscilando entre a vontade de viver e de morrer.

Durante a maior parte dos seus dezessete anos, Fiona abraçara a vida. Apesar de toda as dificuldades, sempre vislumbrava alguma coisa adiante: as noites aquecidas ao pé do fogo com a família e os passeios com Joe e a vida que planejavam juntos. Mas agora o amor pela vida e a esperança no futuro tinham se dissipado. Ela vivia em um mundo cinzento, enterrada no limbo. Impossibilitada de dar cabo de sua vida por causa do irmãozinho que dependia dela, mas também incapaz de vivê-la plenamente com a presença da dor e das perdas, ela simplesmente sobrevivia.

Já não encontrava mais propósito para viver, em seu coração não havia mais sonhos. As palavras do pai, palavras que a incentivaram em muitos momentos de dificuldades, já não faziam sentido para ela. ―Mantenha os seus sonhos, mocinha. No dia em que perdê-los, é melhor encomendar um caixão.‖ Fiona olhou ao redor, para todos aqueles túmulos, pensou em seus sonhos abortados e concluiu que ela estava morta.

Um vento frio soprou pelo cemitério e sacudiu os galhos nus das árvores. O outono dera lugar ao inverno. O Natal e o Ano-novo já tinham passado; ela nem ligou para isso. Já era metade de janeiro de 1889. Todos os jornais estampavam uma nova história: Jack, o Estripador, estava morto. Cometera suicídio, diziam. No fim de dezembro retiraram um corpo do rio. Seu nome era Montague Druitt, um jovem advogado de Londres. Druitt tinha um histórico familiar de instabilidade mental e os que lhe eram próximos declararam que apresentava sinais de comportamento excêntrico. Ele deixou um bilhete dizendo que a morte era a sua melhor opção. Sua senhoria disse para a polícia que o horário dele era estranho, ele nunca estava em casa à noite e só retornava ao amanhecer. A imprensa especulava que Druitt se viu tomado pelo horror e o remorso após os assassinatos na Adams Court e acabou se suicidando por afogamento. Sua morte não trouxe alegria para Fiona. O que ela queria é que ele tivesse morrido antes de assassinar sua mãe.

O vento gelado trouxe flocos de neve. Ela se levantou. O ar estava piorando. Os coveiros só conseguiram enterrar seu irmão por conta de um degelo. Ela pensou em Charlie, tão cheio de vida e agora enterrado no solo duro, e lágrimas rolaram outra vez. Buscou algum conforto em sua mente, uma explicação para a perda de sua família, de Joe, de tudo que possuía, tal como fazia todo dia. E, como de costume, não encontrou conforto algum, nem explicações. Saiu do cemitério rumo ao apartamento de Roddy, como uma figura pálida e triste contra o céu desolado do inverno.

 

DURANTE OS PRIMEIROS meses de 1889, Seamie Finnegan cresceu a olhos vistos. Suas pernas espicharam e a aparência de seu corpo deixou de ser tão rechonchuda. Ele completou cinco anos em dezembro e rapidamente deixava para trás a tenra infância. Sua capacidade de recuperação era extraordinária; isso aliado à presença amorosa de Fiona, que o ajudava a lidar com a perda da mãe, do irmão amado e da irmãzinha. Ele era uma criança radiante, sensível e quase sempre amistoso, e também era devotado a irmã e sintonizado com ela. Quando Seamie sentia que Fiona estava escapulindo para entrar naquele lugar escuro e silencioso que abrigava dentro de si e onde muitas vezes se recolhia, ele começava a fazer palhaçada até que ela sorrisse, e, ela estava muito triste, ele subia em seu colo e se deixava ser abraçado até vê-la melhorar.

Fiona também era muito dedicada a Seamie. Ele era tudo que lhe restara e ela era super protetora, nunca o deixava fora de vista e só confiava em Roddy e sua noiva, Grace Emmet. Aquele rosto sardento e sua voz doce de criança era a única coisa que a confortavam.

E agora ela olhava enquanto preparava a refeição. Ele estava sentado á mesa, segurava o garfo e esperava pela comida com gulodice. Ela pôs o prato á frente dele e ele começou a devorá-lo. Pão, batatas cozidas e uma pequena truta defumada. Não era o bastante para uma criança em crescimento, ela pensou; ele devia ter leite, carne e verduras. Mas era o que Roddy podia comprar. Ele é que sustentava os dois e seu salário não dava para isso. Outro dia mesmo, ele comprou um suéter quentinho para aquecer Seamie no frio gélido de março e deu um xale pra Fiona no dia em que ela completou dezoito anos.

Ela se sentia grata por tudo que Roddy fazia por eles. E também se sentia culpada. Ela notava o jeito com que ele e Grace se entreolhavam. Sabia que, se não fosse por ela e Seamie, eles já estariam casados e morando sob o mesmo teto. Estavam morando com ele desde novembro. Nas ultimas semanas, ela ganhara um pouco de peso e perdera as olheiras e o aspecto doentio. E agora já conseguia ir ao mercado, limpar a casa e lavar e passar roupa. Era hora de volta ao trabalho e encontrar um quarto para ela e Seamie. Roddy não podia tomar conta deles para sempre.

Mas a simples ideia de procurar um lugar para eles a deixava atormentada. Ela estava sem dinheiro. O que restava das vinte libras que Joe mandou foi gasto no pagamento dos caixões e do funeral. O senhorio vendeu todos os pertences que eles tinham na casa — a pouca mobília, a louça, as roupas da mãe e até as luvas que Charlie havia deixado — e reteve o dinheiro arrecadado para cobrir o aluguel. Roddy conseguiu salvar algo: uma caixa de charutos com alianças, fotos e documentos dos seus pais. E, ainda por cima, ela estava sem emprego. Encontrara uma amiga da Burton Tea na rua que lhe disse que o lugar dela já estava preenchido. Ralph Jackson também a substituiu por outra empregada. Ela podia começar a procurar trabalho, mas levaria semanas até encontrá-lo e, mesmo que encontrasse, teria que esperar um mês para receber o dinheiro que daria para o aluguel de um quarto.

Ela estava na expectativa de uma ajuda do tio Michael. Sua mãe tinha escrito para ele logo após o funeral do pai, mas não houve resposta. Talvez ele não tivesse recebido a carta. Vez por outra, o correio extraviava cartas de um extremo a outro de Londres, imagine então de Londres para Nova York. Ela escreveria outra vez.

Um grito vindo do andar de baixo espantou suas preocupações. Era a senhora Norman, a senhoria. Ela foi até o patamar da escada. A senhora Norman estava lá em embaixo com uma carta na mão.

— É para você, querida. Acabou de Chegar — ela disse, sacudindo o envelope com impaciência.

Fiona desceu a escada para pegá-lo, agradeceu-lhe e deixou-a frustrada porque logo subiu ao apartamento de Roddy para ler a carta a sós. Era de Burton Tea. Endereçado à sua mãe. Ela pôde ver pelas anotações no envelope que primeiro fora enviado para Montague Street e depois para Adams Court e por fim para aquele lugar. Abriu-a. Escrita com caligrafia meticulosa, a carta informação à senhora Patrick Finnegan que infelizmente a solicitação de indenização feita à Burton Tea fora negada. E isso porque a morte do seu marido se dera pela negligência de um companheiro, David O‘Neill, e não da Burton Tea Company, de modo que não cabia uma indenização. A carta também dizia que, em caso de qualquer duvida, ela teria que entra em contato com o senhor J. Dawnson, o cantador.

Fiona pôs a carta de volta no envelope, Já tinha se esquecido da ida da mãe à Burton. Tentou se lembra da quantia solicitada. Dez Libras? Vinte? Isso não era nada para uma empresa do porte da Burton Tea. Parecia extremamente injusto que William Burton não desse umas poucas libras para a família de um homem que morrera do jeito que morreu. Injusto ou não. Disse para si mesma, não há nada que você possa fazer. Resignada, guardou a carta na caixa de charutos e sentou-se para o chá.

Observava o irmão enquanto ele passava um naco de pão pelo prato, raspando o restinho de peixe. Eu e Seamie, ela pensou, não estaríamos da forma que estamos se não fosse pelo William Burton e seu maldito armazém. Meu pai ainda estaria vivo e todos nós estaríamos na Montague Street. E imagino o que ele comeu hoje no chão. Talvez rosbife, uma costela suculenta? Aposto que não comeu truta de um pêni.

Como uma brasa que se inflama pelo sopro, sua indignação fumegou, se acendeu e se fez chama. Lentamente, tão lentamente que ela nem se deu conta que acontecia, sua indignação se fez ira. Aquele dinheiro teria ajudado tanto quando eles se mudaram para Adams Court sem dinheiro suficiente para uma boa alimentação e roupas de lã. Assim como teria ajudado quando ela não teve o dinheiro necessário para comprar papel de carta para escrever para Joe. E naquele momento também poderia ajudá-los. O dinheiro podia ser o incentivo que eles precisavam para se mudar do apartamento de Roddy. Para começar de novo. Aquele bastardo, ela pensou. Pela primeira vez depois de um longo tempo, ela estava furiosa e isso lhe dava um certo prazer. De algum modo, isso modificava o sofrimento; deixava-a fortalecida e trazia de volta um pouco de sua velha determinação.

— Pare de comer, Seamie — ela disse, tirando-o da mesa.

Ele a encarou, intrigado.

— Vem, termine a comida em pé. Você vai ficar um pouco com a tia Grace.

Seamie obedeceu e enfiou o resto do pão na boca. Ela o agasalhou, vestiu-se com o seu casaco e levou o irmão para Grace. Lá, explicou que tinha uma tarefa para fazer e que ficaria nisso por uma ou duas horas, e perguntou se a moça podia ficar com Seamie. Surpresa com a súbita animação de Fiona. Não sabia ao certo como chegar ao endereço, mas pediria informação até encontrar o Mincing Lane. O dia já ia ao longe; quase cinco e meia da tarde. Pela hora, Burton já devia ter ido embora, mas havia uma possibilidade de ainda estar por lá.

Esse dinheiro é nosso, ela pensava, enquanto seguia apressada pelas ruas escuras, sacudindo as saias. Meu e do Seamie. Se o William Burton pensa que a vida do meu pai não vale nem dez libras, ele está muito enganado.

 

DEPOIS DE TER ANDADO UNS QUARENTA MINUTOS e entrado em algumas ruas erradas, finalmente Fiona chegou ao numero 20 da Mincing Lane, a matriz da Burton Tea. Os escritórios da fábrica ocupavam um prédio de maravilhoso de granito cercado de grades de ferro.

À entrada, uma cabine envidraçada o porteiro tomava uma xícara de chá quente acompanha de uma torta de carne de porco.

— Estamos fechados, senhorita — ele disse. — Viu a placa? Visitantes somente das nove às seis horas.

— Eu tenho que ver o senhor Burton, meu senhor. — Replicou Fiona, resoluta. — É urgente.

— A senhorita marcou uma entrevista?

— Não, eu não, mas...

— Qual é o seu nome?

— Fiona Finnegan.

— O que a senhora quer falar com o chefe?

— É a respeito de uma petição que a minha mãe fez — ela disse, tirando o envelope do bolso da sai. — Eu tenho esta carta aqui, dizendo que não é valida e... invalida. Aqui está vendo? Mas isso não é justo, senhor. Meu pai foi morto no armazém do senhor Burton. Só pode ter havido algum engano.

O porteiro suspirou, como se já estivesse acostumado com aquele tipo de coisa.

— A senhorita terá que ver o senhor Dawson. Volte amanhã para a secretaria marca uma entrevista.

— Mas, o senhor, isso não vai me adiantar nada. Se ao menos eu pudesse ver o senhor Burton...

— Ouça bem, querida, a própria mãe do chefe não consegue entrar para vê-lo. Ele é um homem muito ocupado. Volte amanhã. — O porteiro retornou à torta de carne.

Fiona abriu a boca para falar, mais fechou-a em seguida. Argumentar com aquele homem era pura perda de tempo. Ele não a deixaria entrar. Ela então saiu. Lá fora, já no portão, virou-se para lançar um ultimo olhar de reprovação e viu que o homem se levantava da cadeira. Ele deixou a cabine e caminhou pelo corredor.

Ele vai ao banheiro, pensou. Plantou-se no portão, mordendo os lábios. Ela não queria se entender com um contador. Tinha que se entender com o próprio Burton. Precisava daquele dinheiro. Um impulso a fez retornar até a entrada do prédio, passar correndo pela mesa do porteiro e se dirigir para uma escada à frente. Subiu os degraus às presas até o primeiro piso. O vestíbulo estava às escuras. Empurrou as portas de vidro que havia ali e se viu num corredor ainda mais escuro. Seus passos ecoavam no piso de madeira encerada. Portas de vidro ladeavam o corredor. Todas idênticas. Ela tentou girar uma maçaneta. Aqui não deve ser o lugar de trabalho do Burton, ela raciocinou. Não é grande o bastante.

Ela foi para o segundo andar. Parecia mais promissor. No lado esquerdo do corredor, quatro portas de madeira sólida exibiam nomes de placas de metal, mas todas estavam fechadas. À direita, uma solida porta dupla. Aberta. Ela entrou na ponta dos pés. Então, viu uma sala grande com uma enorme escrivaninha no centro. Atrás da escrivaninha, fileiras de armários de madeira do chão até o teto. Três desses armários era arquivos; em vez de terem gavetas, abriram-se em dobradiças como uma porta. Atrás da porta falsa havia um cofre. Sobre a escrivaninha, um abajur de metal de cúpula de vidro verde. A luz era fraca, mas o suficiente para iluminar as pilhas de notas sobre a mesa. Fiona perdeu o fôlego; nunca vira tanto dinheiro na vida. Claro que Burton não se recusaria a lhe dar dez libras.

À direita da escrivaninha, uma outra porta semi-aberta. Alguém estava lá; a luz estava acesa. Ela deu um passo hesitante para frente, e se perguntou se estava maluca. Já tinha entrado sem permissão. Se ele chegasse naquele segundo e a visse, certamente acharia que era uma tentativa de roubo do seu dinheiro e ela seria presa. Olhando outra vez aquelas pilhas de dinheiro, ela quase perdeu a coragem. Assim que passou pela escrivaninha, ela ouviu vozes vindo de dentro do escritório. Burton não estava sozinho. Será que devia bater à porta? Ouviu risadas de dois homens, eles conversavam; depois, ouviu um deles mencionando um nome que ela reconheceu: Davey O‘Neill. Curiosa, ela se aproximou um pouco mais da porta entreaberta.

— O‘Neill? Ele está fazendo um bom trabalho. Tem fornecido nomes. Exatamente como você mandou.

— Que ótimo, Bowler fico feliz em ouvir isso. Esse rapaz tem prestado um serviço incalculável. Olhe, mais cinco libras pra ele. O que ele falou sobre o Tillet?

Bowler. Bowler Shelan. O sangue de Fiona gelou. Em um instante, ela esqueceu sua curiosidade em relação a Davey O‘Neill e a reivindicação de dez libras. Tinha que sair dali. Naquele momento. Shelan era um homem mau. Mau mesmo. Se ele estava ali, claro que não era por caridade. Ela havia cometido um grande erro ao entrar sorrateiramente no escritório de Burton; se fosse pega, pagaria por isso. Deu um passo atrás com muito cuidado, e depois outro. Calma, calma, ela disse para sim mesma. Devagar. Não se afobe. Mantinha os olhos na porta do escritório. Ainda conseguia ouví-los.

— O Tillet está tentando organizá-los novamente, mas até agora só conseguiu reunir uns poucos gatos pingados.

—Sim, mas conhecendo-o como o conheço, ele não vai desistir até que o sindicato esteja cheio de adesão e funcionando outra vez. Se ao menos pudéssemos dar ao Tillet o mesmo fim que demos no bastardo do Finnegan.

Fiona congelou.

— Aquele, sim, foi um trabalho e tanto, não foi? — disse Sheehan com um risinho de satisfação. — Uma puta perfeição! Eu me esgueirei até o local e eu mesmo espalhei o óleo. Destravei a porta, fiz a porta bater algumas vezes e depois me escondi atrás de um caixote de Chá; assisti ao Senhor Organizador de Sindicato escorregar e despencar do quinto andar. E o O‘Neill é que levou a culpa! — ele gargalhou.

Fiona mordeu os lábios para não gritar. Imagens e pedaços de conversas desfilaram vertiginosamente em sua cabeça. O funeral do pai. O senhor Farrel e o senhor Dolan estranhando a queda de Paddy, um dos operários mais cautelosos. O acidente ter ocorrido logo depois que o pai assumiu a liderança local. Davey O‘Neill seguindo-a pela Barrow Street.

Ela mal conseguia respirar. Sua mente não parava de girar. Seu pai, assassinado por Bowler Sheehan, sentado a poucos metros dela, rindo do que tinha feito. Desorientada, ela se esqueceu de onde estava e deu um passo desastrado para trás. Seu calcanhar bateu na escrivaninha e fez barulho. Ela perdeu o equilíbrio, tropeçou e se aprumou. Sua mão resvalou na pilha de notas.

Dentro do escritório, conversa interrompida.

— Fred? É você? — a porta se abriu por inteiro e William Burton apareceu. Ele esbugalhou os olhos quando viu Fiona. Percorreu com o olhar o tampo da escrivaninha de sua secretaria, onde a mão de Fiona ainda repousava sobre o dinheiro dele. — O que você está fazendo aqui? Quem a deixou entrar?

Ela não respondeu; seus dedos agarraram as notas. Num segundo, seu medo se foi e deu lugar a uma onde de raiva. Ela jogou um bolo de dinheiro em cima de Burton; as notas caíram nos ombros dele Ele avançou em sua direção e ela atirou o abajur. A peça despencou no chão à frente dele e explodiu com uma chuva de cacos de vidro e óleo.

— Seu bastardo assassino! — ela gritou. — Você o matou! Você assassinou o meu pai! — arremessou uma bandeja de cartas que o acertou no peito. E depois atirou um outro bolo de dinheiro.

— Sheehan — ele berrou. — Vem aqui!

Ao ouvir esse nome, ela fugiu. Seu medo voltava a todo vapor. Correu para fora do escritório e bateu a porta atrás de si. Passou em disparada pela porta dupla e pelo corredor e depois desceu a escada quase aos pulos, segurando uma pilha de notas com uma das mãos e a saia com a outra. Já estava na metade do caminho para o primeiro andar quando ouviu uma aproximação de passos.

— Agarre-a, Fred! — gritou Burton enquanto descia a escada. — pare essa menina!

Ela estava no alto do ultimo lance de escadas quando os passos ficaram cada vez mais próximos. Era de Sheehan; ela nem precisava olhar para saber. Continuou a descer a escada com uma velocidade vertiginosa; ela corria para não morrer. E agora a cabine do porteiro estava visível. Se ele tivesse ouvido os gritos de Burton já estaria do lado de fora, esperando para bloqueá-la, e ela só teria uma chance para derrubá-lo. Desceu os últimos degraus já se preparando para o confronto, mas o porteiro não estava lá. Ela passou voando pela porta de entrada e desceu os degraus que levavam para o portão, com Sheehan a poucos metros em seu encalço. Foi só ai que ela avistou o porteiro. Estava de pé no portão, pronto para trancá-lo. E de costas voltadas para ela. Sheehan gritou por ele, bem atrás dela. O porteiro virou-se com uma lata de óleo na mão.

— Mas que diabinha... — ele começou a falar. Desesperada, Fiona arrancou de si um resto de velocidade e passou por ele como um raio, atravessando o portão antes que ele se apercebesse. Ao passar pelo portão, ela agarrou uma das barras e o empurrou. O portão trancou-se. Foi o que a salvou.

Fiona desceu a Mincing Lane com os gritos de Sheehan atrás dela; ele ordenava que o porteiro abrisse a porta. Ela arriscou uma olhada para trás. O homem procurava a chave, mas deixou-a cair. Enraivecido, Bowler deu um chute nele e outro no portão. Próximo aos dois, William Burton assistia à fuga dela. Os olhos de ambos se confrontaram por um segundo e, olhando aqueles olhos, ela se deu conta que, se os dois homens a pegassem naquela hora, seria ele, e não Sheehan, que a mataria.

Ela saiu correndo na direção da Tower Street. Lá, avistou um ônibus que saia do ponto rumo a East London ela o pegou com um salto. Quase sem fôlego, sentou-se num banco e olhou pela janela. Eles ainda poderiam estar em seu encalço; perceberam que ela virou na Mincing Lane. Talvez a tivesse visto pegar o ônibus. E se eles pegassem um taxi e a seguissem? Foi tomada pelo medo. Ela estava muito visível. O ônibus deu uma parada na Tower Hill. Ela saltou enquanto outros passageiros entravam.

Saiu em disparada para o lado norte da rua, até que se colocou à entrada de um pub. De lá podia observar o trafego. Não havia muito movimento devido à hora — quase sente horas — e ela podia ter uma visão completa de cada veiculo que passava. Viu um ônibus que passava rumo a West London, duas carruagens, um cavalo e uma carroça e três cabriolés. Por fim, quase três minutos depois de ter entrado no saguão do pub, ela avistou uma carruagem negra e vistosa que disparava na direção de East London. Ela se escondeu enquanto a carruagem passava e notou que um dos ocupantes gritava para o condutor. Era Sheehan. O veiculo aumentou a velocidade e deu uma guinada para a East Smithfield Street na direção da rodovia, seguindo a rota do ônibus onde ela estava. Fiona fechou os olhos, encosto-se na parede e começou a tremer.

— A senhora está bem?

Ela abriu os olhos e se deparou com o rosto de um senhor que saia do pub.

— Se a senhorita quer alguma coisa para beber e, me desculpe, parece que está precisando mesmo, o setor feminino do bar é por aquela porta.

Um drinque. Sim, era uma boa ideia. Durante toda a vida ela nunca tinha entrado sozinha em um pub para beber, mas era uma boa hora para começar. Podia se sentar por alguns minutos para que as pernas parassem de tremer. Além disso. Teria tempo para pensar no próximo passo.

Ela entrou no pub propriamente dito, caminhou lá dentro em meio à fumaça e muita gente, até que empurrou uma porta aonde se lia DAMAS. Viu-se sozinha num recinto lúgubre iluminado a gás com umas poucas mesas de madeira, bancos estofados de veludo, espelhos e papel de parede felpudo. O taberneiro anotou seu pedido e sumiu. Enquanto ela se sentava e alisava seus cabelos negros, ele voltou com meio copo de cerveja. Ela enfiou a mão no bolso para pegar algumas moedas; em vez disso, sentiu uma textura de papel. O que é isso? Ele se perguntou ao mesmo tempo em que esquadrinhava o bolso. Ao se dar conta de que eram notas de dinheiro, seu coração deu um pulo. Pegou rapidamente meio xelim dentro do bolso e entregou-o ao taberneiro, que lhe deu o troco e saiu.

Ela examinou outra vez o bolso. Diabos, como aquelas notas foram parar ali? Relembrou a cena dentro do escritório de Burton. Tinha atirando coisas, tudo que lhe aparecia à frente. Devia estar com o dinheiro na mão quando ele chamou por Sheehan e talvez o tenha colocado no bolso na hora da fuga. Tirou o maço. Era uma pilha de notas de vinte libras. Contou-as. Terminou e arrumou a pilha, colocando-a de volta ao bolso. Em suas mãos havia quinhentas libras de William Burton.

Levou o copo à boca e bebeu o conteúdo de um só gole, lambendo a espuma que ficara nos lábios. Depois, olhou-se em um dos espelhos, piscou e disse?

— Você está frita!

 

— POR DEUS, MENINA, POR ONDE VOCÊ ANDOU! Eu já estava morrendo de preocupação — disse Grace.

Fiona chegou às oitos horas, afogueada e sem fôlego.

— Desculpe, Grace. Eu estava na Burton. Fui até lá para pegar o dinheiro da indenização pela morte do meu pai. Eles me deixaram esperando durante horas! Corri como uma louca até aqui; não queria chegar tão tarde — ela disse, forçando um sorriso.

— E as pessoas ficam lá até essa hora? Devem trabalhar como um burro de carga lá na Burton.

— E como! O Burton é um verdadeiro senhor de escravos — Fiona viu o irmão sentado à mesa, olhando um livro de versos para crianças. Vamos Seamie querido — ela disse. — Temos que ir — abotoou o casaco dele e depois se voltou para Grace a fim de agradecer-lhe. Sabia que nunca mais a veria. Sua garganta deu um nó. Grace e Roddy eram as únicas pessoas que ela ainda tinha no mundo e, depois daquela noite, eles também estariam fora de sua vida.

— Obrigada, Grace — ela disse.

— Deixe de ser boba. Não foi nada. Ele é um anjo — disse Grace, sorrindo.

— Não digo só por hoje. Quero agradecer por tudo que você fez.

— Ah, deixa pra lá — retrucou Grace, sem graça. — Não fiz nada.

—Você fez, sim, e nunca esquecerei disso — disse Fiona, dando-lhe um apertado.

Quando chegou na White Street, onde Roddy morava, olhou para todos os lados para se certificar de que não havia estranhos rondando. Depois, entrou depressa no prédio e subiu a escada mais apressada ainda. Esbaforida, entrou no aposento com Seamie, trancou a porta e calçou-a com uma cadeira. E começou a recolher suas coisas e as de Seamie. Não havia muito tempo. Sheehan procurava por ela e a essa altura ele e Burton já tinham decifrado o seu rastro com a ajuda do porteiro, para quem ela tinha fornecido o seu nome. Eles a conheciam, sabiam por que ela tinha ido até lá e o que ouvira. Talvez ele levasse um dia ou dois para encontrá-la, mas ela queria arriscar. Eles tinham que sair de Whitechapell. Naquela noite.

Ela não tinha a menor ideia para onde ir, mas decidiu que pegaria um trem. Qualquer um. Pouco importava para onde fosse, contanto que se distanciasse o mais possível de Londres. Sua esperança era de que Burton pensasse que ela evaporara e se esquecesse dela depois de perdê-la de vista por algumas semanas.

Como não tinha mala, teve que se arranjar com um velho saco de farinha estava debaixo da pia para carregar suas roupas e as de Seamie. O que mais ela levar? Pegou a caixa de charutos sobre o console e despejou o conteúdo em da mesa. Certidões de nascimento seriam levadas. Uma mecha de cabelo — do Charlie quando bebê — ficaria com ela. A fotografia do casamento dos pais... ela contemplou a foto, aquela jovem tão bonita, tão cheia de vida e de esperança. Graças a Deus, a mãe nunca saberia que aquele rapaz bonito ao seu lado fora assassinado. Pelo menos ela foi poupada disso.

Tomada por um tremor, Fiona fechou os olhos e debruçou-se na mesa. Continuava pensando e agindo, mas ainda estava em choque. Embora tivesse ouvido o que ouviu, ela ainda não conseguia entender. Seu pai... assassinado. Porque Burton não queria pagar aos operários das docas seis pences por hora em vez de cinco? A raiva ferveu dentro dela. Eu não vou fugir, ela pensou com bravura; ficarei aqui e irei até a polícia. Eles me ajudarão. Eu sei. Eles vão me ouvir... e contarei o que Burton fez e eles vão...

... rir na minha cara. Isso seria quase um ultraje. Ela, acusando William Burton do assassinato do pai. Baseada nas acusações dela, a polícia nunca colocaria em duvida o comportamento dele, e mesmo que o fizesse, ele nunca confessaria. Diria para a polícia que ela havia entrado em seu escritório e destruído seus pertences e ainda por cima, roubado o seu dinheiro. Ele diria que a tinha flagrado e havia testemunhas. E ela então seria presa. Seamie ficaria sozinho; Roddy e Grace é que o educariam. Isso era revoltante! Burton assassinara o seu pai e ela não podia fazer nada. E já que não se faria justiça com a morte do seu pai, se ela não saísse de Londres certamente também sofreria um acidente. Lágrimas de impotência rolaram pela sua face e caíram sobre o retrato de seus pais.

— Você está bem, Fi? — perguntou Seamie.

Ela não havia notado que ele a observava.

— Estou bem, sim, meu querido — ela disse, enxugando os olhos.

— Vamos para algum lugar? — ele perguntou, olhando para o saco.

— Sim, eu e você vamos viajar.

Ele arregalou os olhos.

— Uma viagem? Pra onde?

Ela não sabia.

—Onde? Bem, isso é... humm... uma surpresa. Vamos viajar de trem e vai ser divertido.

Enquanto Seamie brincava de imitar o barulho de trem, Fiona seguia examinando o conteúdo da caixa de charutos. As alianças de casamento dos pais... ela levaria o canivete do pai... guardaria consigo. Recibos de aluguel... esses poderiam ir para o fogo. Do fundo da caixa caiu um maço de cartas do seu tio Michael.

Ela pegou uma das cartas. Lia-se no remetente: ―M. Finnegan, 164 8th Avenue, York City, New York, U.S.A. Ela estava errada. Terrivelmente errada. Roddy e Grace não eram as únicas pessoas em sua vida. Ela também tinha o tio em New York. Michael Finnegan os receberia. O tio cuidaria deles até que se firmassem e ela poderia retribuir trabalhando na loja dele. ―Nova York‖, ela murmurou, como se, ao dizer o nome do lugar, ele se tornasse realidade. Era tão longe. Do outro lado do Atlântico. Lá, estariam a salvo.

Ela tomou a decisão em um segundo. Pegariam o trem até Southampton e um navio para a América, O dinheiro de Burton compraria as passagens. Com muita rapidez pegou um outro saco de farinha e recortou um retalho quadrado. Desabotoou a blusa, desamarrou o corpete e com agulha e linha transformou o retalho em bolso embutido. Sacou as notas de dentro do bolso da saia e colocou-as nesse outro bolso, exceto uma nota. Seu plano era ir até a Commercial Road para pegar um táxi até a estação, mas primeiro ela queria dar uma parada numa loja de penhores para ver se encontrava uma mala de viagem. Não podia ir para Nova York carregando um saco de farinha.

— Nós já vamos, Fi? — perguntou Seamie, indócil.

— Um minutinho. Só vou escrever um bilhete para o tio Roddy.

—Porquê?

— Pra falar sobre a nossa viagem — ela disse. Pra me despedir dele, pensou. — Agora seja um bom rapazinho e vista o casaco.

Enquanto procurava a folha de papel, Fiona tentava elaborar o que escreveria. Ela queria contar a verdade para Roddy, mas ao mesmo tempo não queria preocupá-lo e, principalmente, não queria colocá-lo em perigo. Claro que Sheehan iria até a casa dele quando descobrisse que ela estava morando ali. Ela não achava que Sheehan seria estúpido o bastante para se encrencar com um policial, mas poderia aparecer por lá na esperança de descobrir alguma pista que indicasse o paradeiro dela. Por fim, ela encontrou papel e lápis e começou a escrever.

Querido tio Roddy,

A Burton Tea liberou o meu dinheiro. Foi maior do que eu pensava e com quantia eu e Seamie iniciaremos uma nova vida. Por favor, não se preocupe conosco, estaremos bem. Lamento partir tão subitamente, mas é mais fácil para mim que seja dessa maneira. Tem havido muitas despedidas penosas em minha vida e preciso partir esta noite, antes que eu perca a coragem. Muito obrigada por ter cuidado de nós. Não estaríamos aqui se não fosse o senhor. O senhor tem sido um pai para nós e sentirei muitas saudades. Mais do que consigo expressar. Eu lhe escreverei assim que puder.

Com amor,

Fiona e Seamie

Pronto... sem nomes, sem endereços. Ela pôs o bilhete sobre a mesa. Sentia-se péssima por estar fugindo dessa maneira, mas não havia nada que pudesse fazer Roddy não conseguiria salvá-la quando Sheehan a encontrasse. Lançou um último olhar em torno do cômodo, pegou o irmão e o saco, abriu a porta, trancou-a fora e enfiou a chave por debaixo da porta.

Já estava para descer a escada quando ouviu a porta da entrada se abrir. Os passos na entrada eram pesados e as vozes, masculinas. Vozes de três homens. Ela sentiu um puxão em sua saia.

— Fi... — Seamie começou a falar. Ela tapou a boca dele e o mandou ficar calado. As vozes estavam baixas e as palavras, incompreensíveis, mas ela pôde ouvir ente um dos homens à medida que ele se aproximava da escada.

— E aqui que mora o policial — ele disse. — Ela também mora aqui. Era Sheehan.

Fiona procurou freneticamente a chave do apartamento de Roddy em seu bolso. Ela precisava entrar; tinha que esconder Seamie. Onde é que estava a merda da chave? Ela puxou o bolso pelo avesso, mas depois lembrou que a tinha empurrado por debaixo da porta. E a empurrara de tal maneira que ninguém conseguiria pegá-la. Instalou-se o pânico, ela começou a bater na porta da vizinha com a maior leveza possível.

— Senhora Ferris? — ela sussurrou. — Senhora Ferris... a senhora está aí? Por favor,senhora Ferris... — sem resposta, ela tentou outra porta. — Senhora Dean? Tem alguém aí? — ninguém respondeu. Ou não estavam em casa, ou não conseguiram ouví-la.

Ela ouviu outra vez ruídos vindos do pé da escada. Fragmentos de conversa carregados pelo ar.

— ... segundo piso... precisamos ter cuidado com... não aqui... muito barulho... — de repente, os ruídos se transformaram em pisadas nos degraus. Em poucos seguneles estariam no primeiro piso e só faltava um único lance de escada para o próximo. O medo tornou-se horror. Ela pegou Seamie no colo, agarrou o saco de farinha e começou a subir a escada para o terceiro piso, torcendo para que as pas pesadas dos homens abafassem o som das suas. Ouviu quando eles pararam de Roddy e mexeram na fechadura.

— Anda logo com isso, rápido — disse Sheehan. — Minha avó consegue arrombar uma fechadura bem mais depressa.

Quando Fiona ouviu a porta se abrindo e os homens entrando na casa, ela galgou os últimos degraus. Se pudessem chegar ao telhado, atravessariam para o ao lado e se esconderiam atrás da chaminé até que Sheehan se fosse. Finalmente, ela chegou ao patamar do terceiro piso, entulhado de coisas: caixotes, balsacos de estopa. Um velho tapete mofado e cheio de buracos estava encostado ede. Ela tentou abrir a porta. Trancada.

— Por favor, por favor... — ela implorava ao mesmo tempo em que empurrava a a maçaneta, e nada acontecia. Eles estavam encurralados. Se Sheehan tivesse a ideia de dar uma olhada naquele lugar, eles estariam fritos.

Ela procurou o canivete do pai dentro do saco e, depois de achá-lo, abriu-o com as mãos trêmulas. Olhou para o irmão; ele estava em pé ao lado do tapete com os olhos arregalados e aterrorizados. Fez um sinal para que Seamie se mantivesse calado e ele arremedou-a, depois ela encostou o ouvido no corrimão para ver ouvia alguma coisa. Não ouviu nada; os homens ainda deviam estar dentro do aposento. Encostou-se ainda mais para ver se filtrava algum ruído, alguma indicaç do que eles estavam fazendo, mas de repente Seamie deixou escapar um grito.

Um enorme rato saía do tapete bem próximo da perna dele. Ao sentir o cheiro de Seamie, o rato escancarou os dentes. Fiona correu e o atingiu com o canivete. O animal tentou mordê-la. Ela chutou o tapete e ele entrou. Rapidamente, tapou o buraco com um chumaço de estopa e retornou ao seu posto de observação. Os homens já estavam saindo do apartamento.

— Talvez o O‘Meara diga alguma coisa sobre o que ela escreveu no bilhe Bowler, mas ele não vai ser um informante voluntário, não é?

— Eu não mexo com polícia — replicou Sheehan. — Eles são que nem abeIhas. Você mata uma delas e vem a colmeia inteira atrás de você.

Fiona ouviu um murmúrio — ela não conseguiu identificar — e depois ouviu Sheehan ordenando a seus homens que verificassem o telhado.

— Oh, Deus — ela engoliu em seco —, oh, não — eles tinham sido vistos. Precisavam se esconder. Rápido! Mas, onde? Só havia o tapete. Decidida, ela enfiou o saco atrás do tapete e chamou o irmão.

— Vem, Seamie, por favor — ela sussurrou. Mas ele não obedeceu. Olhava para o tapete e balançava a cabeça em sinal negativo. Ela já ouvia passos subindo os degraus. — Não tem problema, querido, está tudo bem... o rato foi embora. Por favor, Seamie... vem! — ele se apavorou com o ruído de passos na escada e correu na direção da irmã. Ela o empurrou para dentro e depois se ajeitou perto dele, com as costas encostadas na parede e os joelhos calçando o tapete. Mesmo no escuro, ela podia sentir o irmão. — Sshhh... — sussurrou. O fedor de rato era sufocante. Deve haver mais de um, ela pensou, talvez dezenas. Justamente nesse momento ela sentiu alguma coisa roçar em sua perna. Mordeu o lábio para não gritar.

— Está vendo alguém aí? — ela ouviu o grito de Sheehan.

— Não! — o homem já estava no patamar da escada. Ela ouviu quando tentou abrir a maçaneta. — A porta está trancada — ele gritou. — Não há nada além de entulho.

— Olhe tudo, Reg, investigue até ter certeza.

O tal homem, o Reg, proferia palavrões enquanto chutava tudo. E já se aproximava. Apossada pelo terror, Fiona mal conseguia respirar. Gotas de suor engorduradas rolavam pela sua pele. Agarrava-se ao canivete com toda a força, pronta para proteger Seamie a todo custo. Por favor, por favor, não chegue muito perto, ela implorava em silêncio. Vai embora, por favor, vai embora.

Alguma coisa passou pelo pé de Fioná. Ela enterrou as unhas na palma da mão. Depois, sentiu um corpo gordo e gorduroso deslizar pelo seu tornozelo, e perdeu o controle. Enterrou o canivete nele. Ecoou um guincho terrível, mas ela continou a golpear o rato. Os guinchos alertaram os outros animais. De repente, o tapete se fez vivo, dezenas de corpos quentes fugiam rebolando lá de dentro.

Ouviu-se um grito e um forte pontapé.

— Que merda! Sai pra lá! Seus bastardos fodidos.,. Jesus!

— Reg, o que é isso? — mais passos pela escada.

— Ratos! Uma merda de ninho de ratos!

Fiona ouviu as risadas dos outros homens e Reg correndo pela escada. Em seguida , o rumor de uma desavença e logo uma pancada surda, como se alguém sido jogado contra a parede.

— Isso não é nada engraçado, Stan! Uma ratazana subiu pela minha perna. Uma merda de rato do tamanho de um gato, cara!

— Calem a boca. Os dois. Você viu algum sinal deles por lá?

— Não tem ninguém lá. E se não está acreditando, é só subir pra ver.

Bowler não alimentou a discussão.

— Ela não pode ter ido longe — ele disse. — Reg, você vai pela Whitechapel Stan, pegue a Commercial Street. Eu vou pela Stepney. A gente se encontra na Blind Beggar. Aquela putinha larápia! Quando eu encontrar a desgraçada, juro arrebento a cara dela.

Fiona ouviu quando eles se retiraram. Esperou até ouvir o ruído da porta de entrada se fechando e depois saiu de trás do tapete, sacudindo os pés. Seamie tremia, de olhos marejados. Ela o aninhou nos braços e disse que ele tinha sido muito corajoso.

— Quem eram eles, Fi? — ele perguntou.

— Uns homens muito malvados.

— Por que estavam atrás da gente?

Ela não podia dizer a verdade.

— Eles queriam roubar o nosso dinheiro — foi o que respondeu.

— Nós ainda vamos andar de trem?

—E claro que vamos. E agora mesmo.

— Eles vão vir atrás da gente outra vez?

—Não, nunca mais. Eu não vou deixar — ela pegou o saco de farinha, segurou o irmão pela mão e começou a descer a escada.

 

SHEEHAN JÁ ACHAVA QUE WILLIAM BURTON era louco varrido, mas agora, ao vê-lo espumando de raiva e zanzando pela sala, a ideia voltava de novo à sua cabeça. Chegara à casa de Burton meia hora antes para avisá-lo que Fiona Finnegan tinha simplesmente sumido de Whitechapel. Ele pensou que Burton ficaria aliviado, não ficou. Ficou, sim, furioso, irado como um louco. Berrava com Sheehan e o acusava de a ter deixado escapar; ele gritou como um maluco até que suas veias do pescoço saltaram, a boca se encheu de espuma e seus gélidos olhos negros se incendiaram.

Agora ele já não estava mais gritando, mas continuava zanzando de um lado para o outro.

— Ela é perigosa — ele afirmou. — Não posso tê-la no meu caminho. Acabei de iniciar as negociações com o Albion Bank para tornar a Burton Tea pública. Os caras do banco não vão me ver com bons olhos com todo o falatório nas docas. E, com uma acusação de assassinato, a coisa vai ficar mais complicada ainda. Essa moça pode me atingir, Bowler. Ela sabe o que eu fiz com o pai dela.

— Não importa o que ela sabe — replicou Sheehan, limpando as unhas com ponta do canivete. — Ela não pode atingí-lo. Mesmo que falasse com a polícia, não acreditariam, porque ela não tem provas. A polícia é o último lugar que ela iria agora. Está muito mais preocupada do que o senhor. Ela roubou uma grande soma de dinheiro e sabe que existem testemunhas.

Burton, no entanto, não deu ouvidos. Continuou a falar de como ela era traiçoeira, de como era uma vaca intrometida, de como destruiria a negociação dele e de como ele precisava de dinheiro para financiar a expansão dos seus negócios.

Sheehan fechou o canivete; ele pensava como tipos iguais a Burton sempre complicam suas negociatas financeiras com aquele troço de ações. Seria muito mais fácil apenas pegar o dinheiro. Ele já tinha tido o bastante por uma noite. Já era tarde. Precisava de uma boa refeição e um copo de uísque. Não era obrigado a ficar sentado ali, ouvindo a cantilena de um maluco.

— O que exatamente o senhor quer que eu faça? Quer que saia por aí, batendo em cada porta de Londres?

Burton parou de zanzar. Pousou seus impenetráveis olhos negros em cima outro. Bowler, que era um sujeito violento capaz de matar qualquer um com a próprias mãos, sentiu aqueles olhos cravados nele e se surpreendeu com o frio que percorria sua espinha.

— O que quero — disse Burton —, é que você encontre essa moça o mais rápido que puder e acabe com ela como eu mandei.

— Mas eu já disse que tentei...

Burton deu um murro na escrivaninha.

— Tente mais!

Sheehan levantou-se e saiu. Lá fora, ele cuspiu de mau humor e informou a Reg e Stan que iria sozinho para o Quinn e que eles deveriam passar a noite na White Lion Street, espiando o apartamento de Roddy O‘Meara. De imediato, os dois começaram a reclamar. Eles queriam uma cerveja... estavam com fome... tinham umas garotas esperando por eles. Bowler mandou que calassem a boca. Já ouvira o Burton e agora tinha que ouvir aqueles dois. Se a Burton não lhe pagasse tão bem, ele já teria caído fora muito tempo atrás. Os problemas do desgraçado eram bem maiores que o preço dele.

 

O PESADELO ERA SEMPRE o mesmo. Um homem todo de preto corria atrás dela. Ele a encurralava em um beco que terminava em um muro alto. Não havia saída. Ela tentava escalar o muro. Os passos se aproximavam cada vez mais e de repente ela sentia uma mão pousar em seu ombro e...

— Meia hora para Southampton, senhorita.

Fiona acordou sobressaltada. O condutor a sacudia.

— Desculpe por assustá-la, mas já estamos quase chegando.

— Mui... Muito obrigada — ela gaguejou. Respirou fundo e tentou se acalmar. Aquele maldito sonho era sempre tão real. Olhou para Seamie. Estava dormindo. Ele tinha apagado logo depois que embarcaram às sete da manhã. E quando o condutor recolheu as passagens, ele também caiu no sono, exausta. Eles se movimentaram desde que saíram da casa de Roddy, cerca de dez horas antes. A primeira parada tinha sido no agiota, onde encontraram uma sacola de viagem. Quando ela puxou uma nota de vinte libras do bolso para pagar, a pedra azul que Joe lhe dera caiu sobre o balcão. O agiota viu e quis saber se a pedra estava à venda. Fiona se perguntou por que ainda a guardava consigo. Joe se fora, por que então manter uma recordação dele?

—Quanto o senhor me dá? — ela perguntou.

— Uma libra e seis xelins.

Ela ficou espantada com o valor. Não respondeu, tentava resolver se a dispensava ou não. O agiota compreendeu mal sua indecisão, achando que ela não aprovava o preço.

—Está bem, duas libras mais a sacola e não se fala mais nisso.

Ela pestanejou, surpresa. Duas libras por uma pedra e mais a sacola de graça?

O homem só podia estar doido. Aceitou rapidamente a oferta antes que ele mudasse de ideia.

—Você tem outras como essa? — ele indagou, enquanto aguardava a pedra.

—Não, mas tenho isso aqui — tirou do dedo o anel que ganhara de Joe e o estendeu para o homem.

— Isso não vale muito. Dou três xelins por ele.

—Feito — disse Fiona, feliz pelas duas libras, os três xelins e a sacola.

Ela transferiu os pertences para a sacola e rumou para Commercial Road. Estava sobressaltada. A cada passo pelo caminho ela temia ouvir a voz de Sheehan ou sentir a rude mão dele sobre seu ombro. Os dois só se sentiram seguros quando se viram dentro do carro de aluguel. Seguiram pela Waterloo Station, e lá entraram para comprar as passagens. Para a decepção de Fiona, o último trem tinha partido vinte minutos antes. Então comprou duas passagens para o trem da manhã e em seguida foi comprar chá quente e sanduiches de bacon frito para ela e Seamie. Depois, foram se abrigar na sala de espera feminina para passar a noite. Longe das vidraças. Só por precaução.

Agora, enquanto se espreguiçava em seu assento, Fiona tentava elaborar os próximos passos. Tinham que obter informações sobre o caminho da estação até o porto. Um carro de aluguel parecia a melhor solução. Seria uma despesa, mas pelo menos eles não corriam o risco de se perder. Seamie acordara poucos minutos antes da chegada em Southampton e ela teve tempo suficiente para calçar as botinhas e o casaco dele antes do trem parar na estação. Logo que desceram, ele pediu para ir ao banheiro.

— Você vai ter que se segurar um pouquinho. — ela disse. — Não sei onde fica o banheiro.

Enquanto caminhavam pela plataforma, ela avistou um cartaz de Burton Tea e estremeceu. Não fazia ideia de até onde Willian Burton tinha chegado. Quanto mais rápido ela e Seamie pegassem o navio, melhor.

Finalmente, ela avistou o banheiro feminino e entrou junto com o irmão. Quando ele acabou, ela o levou até a pia e o fez lavar as mãos e o rostinho sujo. Depois ela cuidou de suas próprias necessidades, pegou outra nota de vinte libras no bolso embutido do corpete e coloco-a no bolso da saia. De volta ao saguão da estação, eles seguiram as setas que indicavam o ponto das carruagens. Passaram pela plataforma e ela fez por instinto uma sondagem, apenas para ter certeza que Sheehan não estava na outra extremidade. O lugar estaria vazio se não fosse por um homem que estava tão carregado de bagagens que mal conseguia andar. O peso da bagagem o atrapalhava de tal modo na caminhada que ele não viu uma pilha de jornais no meio do caminho.

—Cuidado! — gritou Fiona.

Tarde demais. Ele tropeçou na pilha. E na queda suas malas voaram para todos os lados. Ela correu na direção dele.

— Meu Deus! — ela exclamou segurando-o pelos braços e ajudando-o a levantar. — O senhor está bem? A queda foi feia.

—Eu... acho que sim — ele disse, pondo-se de pé. — Parece que não quebrou nada. Esses carregadores inúteis, nunca estão por perto quando se precisa deles — sorriu para ela, afastando os cabelos dos olhos. — Nicholas Soames — estendeu-lhe a mão — Muito obrigado.

A mão de Fiona já estava estendida quando ela notou que a mão dele sangrava.

— O senhor se machucou! — ela disse.

—Ah, querida. Odeio ver sangue. Especialmente o meu. Eu fico... quase... tonto...

—Oh, não! Não fique! Se o senhor desmaiar, não conseguirei levantá-lo!

Ela o guiou até o banco. Ele se sentou e pôs a cabeça entre os joelhos.

— Desculpe o transtorno.

— Sshhh. Fique aí sentado até se sentir bem. Enquanto isso, eu recolho sua bagagem.

—Muita bondade sua — ele sussurrou.

Fiona foi à plataforma para verificar os danos. Uma caixa de chapéu tinha rolado. Ela pediu para Seamie buscá-la. Uma das malas estava intacta. As outras duas estavam abertas e com as roupas espalhadas. Um grande portfólio jazia a descoberto, exibindo duas pinturas. Eram vibrantes e esquisitas, quase infantis. Levaria um tempo para recolocar cada item nas malas. Ela suspirou com impaciência; não queria perder tempo com os pertences de outra pessoa. Seu desejo era estar a caminho do navio. Mas não podia abandonar aquele homem. Ele precisava de ajuda Ela começou a recolher as coisas dele.

— Está tudo bem com as telas? — ele perguntou, erguendo a cabeça. — Não se danificaram, não é?

— Estão bem — ela respondeu. — Pelo que vejo, não sofreram dano.

— Graças a Deus. Elas são o meu capital. Vou viajar para vendê-las.

— O quê? — ela disse irritada, socando tudo dentro da mala.

— Vou vendê-las em Nova York.

— Ah, é? — ela disse, fechando a mala. Não fazia a menor ideia do que o senhor Nicholas estava falando. Deve estar falando por falar, ela pensou. Deve ser a tonteira. Ninguém conseguiria vender esses quadros; parecem os desenhos de Seamie. Tão logo fechou uma das malas, voltou-se para a outra e colocou as elegantes roupas dentro dela. Seamie reapareceu, arrastando a caixa de chapéu atrás dele.

—Muito obrigado, meu bom homem — disse Nicholas, convidando-o a sentar a lado.

Fiona levou de volta uma das malas, e depois a outra.

— O senhor está se sentindo melhor? — ela perguntou, ansiosa para ir embora.

— Muito melhor, muito obrigado. A senhorita foi muito gentil. Eu não quero atrasá-la pode ir que ficarei bem.

—Como é que o senhor vai carregar essas malas? — ela se preocupou.

— Ora, logo um carregador estará por aqui. Talvez estejam ocupados com o pessoal que está chegando para o navio que partirá para Nova York.

— O senhor sabe como chegar nesse navio?

— Não exatamente. Mas estou indo para o cais. Para o terminal da White Star. E a senhorita? Gostaria de dividir um carro?

— Claro que sim. - ela respondeu de pronto, aliviada, porque não teria que achar o caminho sozinha.

— Está bem, então. Vamos agora? — ele sugeriu. Fiona assentiu e juntos eles atravessaram a plataforma, dessa vez Nicholas só carregava as três malas Fiona levava o portfólio e sua sacola, e Seamie vinha atrás com a caixa de chapéu.

 

JÁ NO CARRO DE ALUGUEL, FIONA, NICHOLAS E SEAMIE puderam se apresentar de maneira mais apropriada e ela teve a chance de estudar melhor o seu estranho companheiro.

Alto e desajeitado, Nicholas parecia bastante juvenil. Fiona calculou que ele não era muito mais velho que ela; teria no máximo uns vinte e poucos anos. Tinha longos cabelos louros e lisos na testa que afastava constantemente dos olhos. Suas feições eram finamente esculpidas; seu nariz, perfeitamente reto. Seu sorriso era lindo, mas os olhos de sobressaiam mais. Eram azul-turquesa e emoldurados por cílios tão longos e curvos que causariam inveja a qualquer mulher. Pelo linguajar e pelas roupas elegantes e pelas malas de couro, ela estimou que se tratava de um cavalheiro. A certa altura, ele disse que ia viajar para Nova York e Fiona disse que eles também iam.

—Vocês vão de primeira classe? — ele perguntou. Ela balançou a cabeça em sinal negativo, conjecturando que Nicholas Soames era muito educado. Era penosamente óbvio que, com suas roupas humildes e a sacola de segunda mão, eles viajaria na terceira classe.

—Eu vou. Eles me enfiaram em uma cabine assustadoramente cara. Quando fiz a reserva, não havia mais cabines de solteiro disponíveis e tive que ficar com uma de casal.

De repente Fiona preocupou-se. E se perguntou o que significava ―reserva‖? Será que para pegar um navio era preciso comprar passagem com antecedência? Ela não estava contando com isso. Achava que pegar um navio era a mesma coisa que pegar um trem. Era só comprar a passagem e seguir. E se não fosse assim?

— É preciso fazer reserva... pra pegar o navio? — ela perguntou com medo da resposta.

—Oh, sim. Para se pegar um navio daqui para a América dá uma trabalheira danada. É muita demanda. Mas a senhorita deve saber disso. Se não soubesse, não estaria vindo para pegar o navio hoje, estaria? — A fisionomia angustiada de Fiona revelou que ela não sabia. — Hum... bem, olha — ele disse —, talvez o navio não esteja lotado. A gente nunca sabe. Pode ser que alguém tenha cancelado. Assim que chegarmos, a senhorita deve ir até o setor de venda de passagens para ver se sobraram vagas. Eu tomo conta do Mestre Seamie enquanto a senhorita estiver lá.

— Verdade?

— É o mínimo que posso fazer.

O trajeto não demorou muito. Nicholas perguntara o preço antes do embarque e pagou, e em seguida Fiona lhe deu a metade. Juntos eles entraram no terminal da White Star em busca do setor de venda de passagens. Estava uma confusão lá dentro. Centenas de pessoas circulavam, carregando sacolas e arrastando baús, caixotes e malas estufadas de tão cheias.

— Primeira classe! — gritou o homem uniformizado. — Primeira classe a bordo. Por aqui. Por favor.

Nicholas conduziu Fiona até a fila e depois se sentou para tomar conta de Seamie.

— Sim?— berrou o agente.

— Sim, por favor... duas para Nova York.

— Eu não a estou ouvindo, querida!

Ela limpou a garganta.

— O senhor teria duas passagens na terceira classe, por favor? Para o navio de hoje?

—As passagens para o navio de hoje foram vendidas duas semanas atrás. E o da próxima semana também está lotado. Nós estamos vendendo passagens para o navio que parte daqui a duas semanas, o Republic.

— Duas semanas? — seu coração partiu ao meio. Não podiam esperar quinze dias. Significaria ficar em um hotel de Southampton por duas semanas. Ela queria partir naquela hora, naquele dia. Lembrou novamente de Willian Burton e do que vira refletido nos olhos dele. Será que ele havia desistido de procurar por ela? E se Sheehan descobrisse onde ela estava? Burton estava irado o bastante para acabar com ela? Esse pensamento deixou-a aterrorizada.

— Sim, uma quinzena. Terceira classe, não é?

— Não posso esperar tanto tempo. O senhor tem certeza de que não sobrou nada para o navio de hoje?

— Eu já disse, não disse? Se a senhorita não quer a passagem disponível, por favor, afaste-se um pouco. A senhorita esta atrasando a fila.

Então, seria assim. Ela e Seamie não pegariam o navio. Estavam presos em Southampton. E ela não conhecia a cidade; não fazia ideia de onde poderia encontrar uma hospedaria respeitável. Estava com um monte de dinheiro, mas sabia que tinha que ser cautelosa porque só com esse dinheiro teria como escapar. Ele compraria as passagens para Nova York e lhes daria um novo começo, e sua obrigação era preservá-lo.

Caminhou na direção de Nicholas para pegar Seamie e seus pertences. Ela estava cansada e confusa. Não sabia onde deveria ir e qual seria seu próximo passo. Talvez pudesse encontrar uma cantina barata, tomar uma xícara de chá e sentar por um minuto. Depois pensaria no próximo passo.

—Como foi? — perguntou Nicholas esperançoso.

Ela balançou a cabeça em negativa.

— Eles não têm nada. Só iremos daqui duas semanas.

— Que diabo de azar! Eu sinto muito. Vocês ficarão bem em Southampton?

Já têm lugar pra ficar?

— Temos sim, p ela não queria ser mais um problema. — Muito obrigada por tomar conta de Seamie, senhor Soames. E boa sorte para o senhor em Nova York.

— E para você também, senhorita Finnegan.

 

NICHOLAS OBSERVAVA SEUS AMIGOS SE AFASTANDO, perturbado pelo que vira no rosto da moça. Não era um olhar de desapontamento ou de frustração, mas de medo. Ela parecia desvairada. Ele devia ajudá-la de alguma maneira. O menino estava cansado. Talvez ele pudesse... não, isso não funcionaria, seria uma viajem longa e eles eram desconhecidos. Quem poderia garantir que se comportariam bem?

Oh, que merda. Ele tinha uma queda por vira-latas. Talvez viesse a se arrepender, talvez não. Ele sabia que acabaria se sentindo péssimo se não os ajudasse. Eles pareciam não ter ninguém e não era fácil estar sozinho no mundo. Ele sabia disso muito bem.

— Senhorita Finnegan! — ele gritou. — Senhorita Finnegan! — ela não podia ouví-lo, estava distante. — Que merda, essas malas — resmungou, pegou-as e correu atrás deles. — Senhorita Finnegan! — ele chamou, dessa vez mais de perto.

Fiona se virou.

— Senhor Soames, o que houve? O senhor está tonto de novo?

— Não, estou bem — ele colocou as coisas no chão. — Olhe, por favor, não pense mal de mim; não quero sugerir nada que seja reprovável...

Fiona parecia perplexa.

— ...mas, como eu já disse, tenho uma cabine dupla a bordo do navio e eu não preciso desse espaço todo. Se a senhorita for como minha esposa... se nós fingíssemos que somos uma família, eles nos deixariam juntos. Vocês podem dividir a cabine comigo. Tem duas camas de solteiro e talvez uma cama de sobra. Prometo que vocês estarão perfeitamente seguros em minha companhia.

O alivio inundou o semblante de Fiona. E ela não hesitou.

— Oh, senhor Soames, muito obrigada! Muito obrigada, mesmo! Nós não podíamos esperar mais duas semanas. Ficaremos tão quietos como um camundongo, o senhor nem vai notar que estaremos lá.

Nicholas notou que ela enfiava a mão no corpete e puxava um maço de notas de vinte libras. Parecia ser uma pessoa muito pobre para ter uma quantia tão grande como aquela de dinheiro. Oh , meu Deus, ele pensou horrorizado, ela é uma ladra!

Ela pegou uma nota.

— Eu quero pagar mais que a metade — ela disse —, porque eu e o Seamie somos dois. — o rosto dela estava tão iluminado de gratidão e alivio, e mostrava-se tão honesto e franco, que ele se sentiu envergonhado com sua suspeita momentânea. Ela não era uma ladra. Era uma garota de East London. Rude, mas decente. Talvez tivesse poupado aquele dinheiro.

—Guarde isso — ele disse. — Acertamos depois. Agora, escute o que faremos... vou pegar nossos cartões de embarque. Eles me entregarão apenas um e eu vou dizer que houve um engano, que fiz uma reserva para minha família e foi por isso que adquiri uma cabine dupla. Eles aceitarão meu argumento; tenho certeza — ele franziu a testa.

— E então? — perguntou Fiona, ansiosa.

— Nós temos que arrumar um jeito de despistar a ausência de alianças em nossos dedos. Se acharem que estamos tentando, poupar dinheiro, ocupando uma única cabine, eles podem nos encher de perguntas ou procurar sinais que indiquem que não somos casados. Por ora, vista suas luvas.

— Eu não tenho nenhuma luva — ela replicou. — Mas tenho isso— remexeu em sua sacola por um instante e retirou duas alianças de ouro. — Eram dos meus pais.

— Brilhante! — ele exclamou, enfiando a mais larga no dedo. — Claro que agora poderemos enganá-los. Mas não se esqueça a Senhorita é senhora Soames e eu sou o pai do Seamie — ele se dirigiu para o setor de embarque. Em poucos minutos retornavam triunfante — Consegui — ele disse. — É melhor que eu fique com os cartões. Um pai de família faria assim não é?

Ela concordou

—Nossa isso foi uma delícia — ele exclamou, rindo como uma criança que acabara de pregar uma peça. — Nós realmente os enganamos. — Ouvi dizer que a primeira classe dessa companhia é excelente. As cabines são confortáveis e a comida é muito boa.

— Senhor Soames, as refeições são muito caras? — perguntou Fiona.

— É Nicholas. E não, a comida não é cara, mas já esta incluída no valor da passagem. Você não sabia?

— Não, eu não sabia. Já está tudo pago? Mas isso é maravilhoso — ela disse, sorrindo.

— Vamos nos divertir muito — ele continuou, entusiasmado — Há música e dança. Você pode jogar cartas e vários outros tipos de jogos. Haverá uma porção de gente com quem conversar. Veremos os outros e seremos vistos.

O sorriso de Fiona feneceu.

— Senhor Soames, quer dizer, Nicholas... você tem sido muito gentil conosco, mas acho que não estamos em condições de participar disso tudo. O acho que você não vai querer nem ser visto com a gente.

— O quê? Por que não?

Ela apontou para as próprias roupas.

—A primeira classe é elegante, não é? E nós não temos roupas. É por isso.

—Verdade? — ele disse incrédulo. Nunca conhecera alguém que tivesse dito com tanta honestidade que só possuía a roupa do corpo. Ele franziu a testa, olhando-os de cima abaixo. Ela estava certa. Isso seria um problema. Eles tinham que ter roupas novas. — Olhe, tenho certeza que podemos ir até uma loja e voltar em tempo — ele acrescentou.

—Você acha?

—Se nos apressarmos. A primeira classe fará uma outra chamada daqui uma hora, e depois darão outra hora para a segunda classe e em seguida para a terceira. Vamos tentar.

Eles lutavam para verificar a bagagem quando Nicholas disse:

—Esse casaco é tudo que você tem? Como é que vai se manter aquecida? Vai precisar de um casaco apropriado e Seamie também, e de cachecóis e luvas quentinhas. Você sabe, estamos em março. O ar estará gelado a bordo — assim que deixaram as coisas por conta dos carregadores, ele começou a enumerar os itens com os dedos. Você precisa de duas ou três saias e algumas blusas. Um casaco, um ou dois vestidos de noite e um par de chapéus, concorda?

Ele olhou para ela, que concordou.

— O que você achar que for preciso — ela disse.

Ele se comoveu com a fisionomia de Fiona: uma mistura genuína de esperança e incerteza. E ofereceu o braço para ela.

— Então, tudo bem. Vamos logo, senhora Soames. Não temos o dia todo.

 

NOS CONVÊS DA POPA DA PRIMEIRA CLASSE DO BRITANIC, de pé e voltada para o porto, Fiona segurava com força a balaustrada. O ar estava gelado, mas ela quase não sentia frio com o vento que agitava os seus cabelos e agitava sua saia. Olhava incrédula para as mãos abrigadas em luvas de couro, a saia e as botas novas.

Num espaço de duas horas, numa loja de departamentos apinhada. Nicholas a transformara, pelo menos em aparência, de uma ratinha das docas londrinas em uma jovem dama. Agora ela possuía um novo casaco de lã; boas botas de couro, três saias de lã, quatro blusas, dois vestidos e um cinto de couro. Sem mencionar as novas roupas de dormir, as roupas íntimas, as meias, os prendedores de cabelo de tartaruga e uma segunda sacola de viagem enorme, onde pôde colocar tudo isso.

Ele escolheu todas as roupas; combinou os trajes, decidiu qual era o melhor casaco e o melhor chapéu. Fiona concordou com tudo; afinal, ele é que sabia o que se devia vestir em viagem, e não ela. No fim, ele pegou um conjunto para que ela usasse na volta ao navio e sugeriu que empacotasse as roupas velhas. Ela entrou na cabine de roupas e vestiu sua nova saia café com uma blusa de listras bege e creme, um cinto de couro macio marrom e um novo par de botas de cor de tabaco. Um casaco azul—marinho que descaia no chão completava o conjunto, arrematado por um lindo chapéu de aba larga. Quando ela se olhou no espelho, viu uma entranha olhando-a. Uma mulher alta, esguia, elegantemente vestida. Ela pôs os dedos no vidro para tocar nos dedos daquela estranha. E se perguntou, será que sou eu mesma?

Dois dias antes ela não tinha dinheiro nem para alugar um cômodo em Whitechapel.

E agora viajava para Nova York na primeira classe, compartilhando uma cabine com cama macia, banheiro moderno, uma cabine mais luxuosa do que qualquer coisa que já tinha imaginado. Uma hora antes receberam chá e biscoitos na cabine. A ceia seria servida às oito horas, seguida por concerto. No dia anterior, tudo o que ela conseguiu oferecer para Seamie comer foi uma truta pequena; naquele momento, ele cochilava em sua caminha; naquela noite, vestida um novo casaco de flanela que combinava com as calças curtas e depois teria como jantar deliciosa refeição.

Tudo mudara. Sua antiga vida se fora, literalmente varrida na noite anterior, e agora ela estava no limiar de uma nova vida. Ela parecia diferente; sentia-se diferente. Tão certo como Nicholas transformara a sua aparência, a dor, a perda e a amargura tinham transformado o seu intimo, efetuando mudanças que ela sentia, mas ainda não compreendia.

A menina brincalhona e simplória que se sentava no rio sonhando um futuro com o rapaz que amava se fora. Em seu lugar surgia uma jovem e soberba mulher, endurecida pelo sofrimento e pela desilusão. Uma mulher que já não carregava sonhos no coração, somente pesadelos.

Ela ainda estava de pé no convés quando as palavras de Burton vieram-lhes a mente.

— ... se ao menos pudéssemos dar ao Tillet o mesmo fim que demos no bastardo do Finnegan — e a resposta do Bowler, com sua risada obscena. — ... foi um trabalho e tanto... eu mesmo espalhei o óleo... assisti ao Senhor Organizador de Sindicato despencar do quinto andar...

Fiona queria gritar até não ouvir mas essas vozes. Mas sabia que, enquanto vivesse, não poderia esquecê-las. A verdade estava marcada em seu coração. Tudo o que tinha acontecido com ela e com pessoas que amava fora por causa de William Burton. A justiça não seria feita, não agora, nem depois, pois nunca conseguiria provar o que ele fizera. Mas haveria uma revanche. De algum modo ela se tornaria importante em Nova York. Os pobres enriqueciam na America. As ruas de lá não eram pavimentadas de ouro? Ela veria como se ganhava dinheiro por lá e imaginaria uma forma de também ganhá-lo.

— Ainda não acabou, Burton — ela murmurou para o oceano, para as águas escuras daquela noite de inverno. — Ainda nem começou.

A Inglaterra perdia-se de vista no horizonte. Sua Terra natal. O solo onde sua família estava enterrada. As ruas por onde ela e Joe passeavam. Tudo tinha sumido. Ela não conseguia ver nada além de água. O oceano a deixava exasperada, ela não conseguia ver o outro lado como conseguia ver o outro lado da Tamisa. Sentia-se irremediavelmente sozinha e apavorada pelo que vinha a frente. Fechou os olhos, desejando alguma coisa, alguma coisa em que pudesse se agarrar.

— Você parece atormentada, minha filha — disse uma voz ao seu lado. Espantada, ela virou-se. Era um homem de aparência bondosa com uma batina preta, um padre bem ao seu lado. — Você estava rezando? Isso é bom. Acalma a alma. Você pode contar para o todo-poderoso todos os seus problemas e Ele a escutará. Deus sempre ajuda.

Verdade? Ela pensou, sorrindo com amargura. Ele fizera um trabalho terrível.

— Olhe, vamos rezar agora e pedir a Ele que a ajude a curar suas feridas — disse o padre, estendendo-lhe um terço.

Ela negou com a cabeça.

— Não, muito obrigado, padre.

O sacerdote olhou-a, perplexo.

— Mas certamente você acredita que o poder do todo-poderoso é capaz de socorrê-la nas necessidades? Claro que você acredita...

Acreditar em quê? Ela se perguntou. Uma vez acreditara com todo o coração na força do amor, na permanência do lar e da família; acreditara que seus sonhos se realizariam e que suas preces seriam atendidas.

Agora ela só acreditava em uma coisa; no dinheiro escondido em seu corpete. Aquelas libras tinham salvado a sua vida; não Joe, nem Deus, nem seus pobres pais falecidos, nem o sindicato, nem as orações, nem os terços, nem as velas de um pêni.

Fiona pensou no pai, na conversa que um dia tiveram a beira do fogo. Parecia que tinha sido muitos anos atrás. Naquela ocasião, as palavras dele a deixaram confusa; ela meditou sobre essas palavras nos meses que se seguiram à morte dele e não conseguiu entendê-las plenamente, mas agora o significado delas tornava-se perfeitamente claro.

— O que eu acredito, padre — ela devolveu o terço —, é que um quilo e meio de carne faz um bom ensopado.

 

E AÍ, NÃO VAI SE MOVER? Mova essa bunda desprezível, seu desgraçado! — gritou o condutor do carro de aluguel. À frente dele, uma carroça de tijolos movia-se lentamente demais para o seu gosto. Ele acionou as rédeas de tal maneira que o cavalo deu uma guinada abrupta. As rodas do carro encostaram no meio-fio enquanto ele ultrapassava a carroça, deslocando Fiona e Seamie do assento como dados em um copo.

Só haviam percorrido dois quarteirões desde o terminal e o que já tinham visto da cidade de sua gente confirmava o que ouviram a bordo do Britannic. Nova York era bestialmente barulhenta e movimentada. Em torno deles as pessoas circulavam com tanta rapidez e desatenção quanto o tráfego. Os homens disparavam pelos cruzamentos, esquivando-se das carruagens que passavam. Um deles, um chapéu de coco, lia um jornal e ao mesmo tempo andava, virando as páginas e uma esquina sem perder o ritmo. Um outro comia um sanduíche enquanto se dependurava num bonde. Uma mulher que vestia uma saia reta e um casaco curto caminhava ereta rumo ao seu destino, os ombros jogados para trás, o queixo empinado e as plumas do chapéu tremulando a cada passo.

À medida que o cabriolé em que estavam atravessava a 10ª Avenue, Fiona e Seamie olhavam atentas as amplas estações de carga e as fabricas que a ladeavam com suas frenéticas atividades. Parelhas de cavalo puxavam enormes rolos de papel para as gráficas e fardos de algodão para as indústrias têxteis. Homens carregavam tapetes, caixas de retrós, cristaleiras e pianos das saídas das fábricas até as carroças de entrega. Eles os ouviam a tocar ordens com as estouvadas vozes americanas. Viram ladeiras abertas que formavam ondas de vapor no ar e mulheres de rostos afogueados dentro delas, salpicando água nos lençóis que passavam. Sentiram o cheiro de café torrado, de biscoitos assando no forno e odores menos perfumado que vinham das fábricas de sabão e dos abatedouros.

Nova York, Fiona se deu conta, na era nada perecida com Londres. Era uma jovem emergente. Uma cidade onde cada rua e cada prédio exalava velocidade e modernidade. Ela lembrou-se de como Nick reagira quando o navio atracou, de como ele atrasou a primeira classe inteira ao se deter na prancha de desembarque, eletrizado pela visão do lugar.

— Nova York!— ele exclamou. — Olhe só para isso, Fi! A cidade do comércio e da indústria. A cidade do futuro. Olhe os prédios! O arrojo arquitetônico, as linhas elevadas. Refletem a realização dos ideais artísticos. Templos da ambição. Hinos ao poder e o progresso!

Agora ela sorria consigo mesma. Aquilo era a cara do Nick. Discursar sobre os ideais artísticos quando tudo que ela— e milhares de outros — queriam era sair daquele maldito navio.

Sentado na ponta do banco, Seamie virou-se para ela e disse:

—Eles vão gostar de nós, Fi? A tia Molly e o tio Michael?

—É claro que vão; querido — ela respondeu, querendo se sentir tão confiante quanto suas palavras. Uma voz tênue dentro dela lembrava que os tios não faziam a menor ideia de que ela e Seamie estavam prestes a bater a bater à porta deles. E essa voz perguntou: e se eles não receberem vocês?

Ela calou essa voz. É claro que os receberiam. Michael era irmão do pai dela. Eles eram a família dele e seriam recebidos. Bem, talvez ele se surpreenda a principio: quem não se surpreenderia? Mas seriam bem recebidos e eles tinham se esmerado para isso. Ela vestia uma saia azul-marinho com uma blusa branca e Seamie, um paletó de tweed com calças curtas que ela comprava em Southampton; portanto, causariam uma boa impressão. Ela reconheceu o quanto eles eram sortudos por terem uma família a quem recorrer, ao contrario do pobre Nick, que não tinha ninguém.

Durante o percurso da viagem, ela soube que Nick rompera com o pai e por isso saíra de Londres. O pai dele era dono de um banco e esperava que um dia o filho assumisse os negócios, mas Nick tinha outras ideais. Era apaixonado por aquilo que chamava de nova arte — a obra de um grupo de pintores que vivia em Paris. Já trabalhara por um tempo naquela cidade com o comercio de arte e agora pretendia abrir sua própria galeria em Nova York. Teria exclusividade na apresentação desses artistas. Impressionistas, era como os chamava. Ele mostrou para ela as diversas telas que carregava consigo. A principio, ela achou que eram esquisitas. Não se pareciam com os quadros que costumava ver nas vitrines das lojas e nos pubs — telas que retratavam crianças e cachorros ou casais enamorados ou cenas de caçada. Mas quanto mais ele lhe falava a respeito das ideias existentes atrás das pinturas dos próprios pintores, mais ela se abria para essas pinturas.

Nick mantinha uma das telas — uma pequena natureza-morta de rosas brancas, maças, pão e vinho — na mesa de cabeceira que separava as duas camas, onde podia olhá-la. Levava a assinatura ―H. Besson‖ e, estranhamente, Fiona sentiu atração por ela. A tela a fazia pensar em Joe. Em quanto ainda sentia a falta dele e ansiava por ele. E ficou intrigada com o fato de uma tela tão simples e pequena pudesse desapertar tais sentimentos. Segundo Nick, isso acontecia porque o artista colocava o coração na pintura.

Embora estivessem separados por apenas uma hora e meia, no máximo, Fiona já sentiu saudades de Nick. De uma maneira que incomodava. Era quinta-feira. Eles haviam combinado que se encontrariam na quinta seguinte, no hotel dele. Só faltava uma semana, mas parecia uma eternidade. Ela sentia falta do entusiasmo e do otimismo dele, do ilimitado senso de aventura que tinha, das maneiras divertidas e pouco praticas. Lembrava-se do primeiro jantar a que foram juntos. À medida que entravam no salão, ela se via tomada pelo pânico. Não fazia a menor ideia de como agir ou do que dizer. Como poderia passar pela esposa dele, uma esposa fina?

—É simples — ele lhe disse. — Seja sempre grosseira com o serviçal. Desdenha de cada ideia nova que o mundo apresenta. E não pare de falar dos seus cães.

Ela teria preferido um conselho mais pratico como, por exemplo, a indicação dos copos para água e para o vinho. Aquele primeiro jantar foi um verdadeiro desastre. Ela se confundiu com a profusão de talheres, copos e porcelana. Antes de conseguir decifrar qual era a colher de sopa, Seamie já estava tomando o seu consommé direto da tigela. Ele a tirou da boca disse:

—Esse chá é horrível! — ela o fez colocar a tigela sobre a mesa, usar a colher e cortar um pedaçinho de pão de cada vez, passando manteiga nele, como Nick fazia, em vez de pegar o pão inteiro. Ela não podia exigir muito mais do seu irmão. Ele estava birrento e irritado e não conseguia entender por que de repente tinha que chamar a irmã de mãe e um homem estranho, de pai. Ele não gostou da salada de lagosta e recusou-se a comer a codorna porque foi servida com a cabeça.

Para estabelecer uma conversa, Nick indagou sobre a família dela. Enquanto ela se ocupava em formular um retorno a essa difícil questão, Seamie respondeu por ela.

—Nossa mãe morreu — ele disse direto. — Ela foi esfaqueada por um homem chamado Jack. Nosso pai também morreu. Ele caiu nas docas. Eles cortaram a perna dele. O Charlie e a Eileen também morreram. Uns homens maus vieram atrás da gente. Eles queriam nosso dinheiro. A gente se escondeu num sofá. Tinha ratos nele. Eu fiquei apavorado. Não gosto de ratos.

Quando Seamie terminou, Nick estava boquiaberto. Depois de alguns segundos de um silêncio atormentador, ele perguntou se aquilo era verdade. Fiona respondeu que sim. Com os olhos cravados no prato, ela explicou o que tinha acontecido com sua família, omitindo o envolvimento de William Burton. Seamie não sabia nada disso. Ninguém sabia e ela queria manter isso de maneira que estava. Era algo sombrio, uma coisa horrível, uma coisa para ficar apenas com ela. Quando terminou de falar, ela ergueu os olhos para Nick, esperando ver uma expressão de desprazer em sua face elegante e nobre. No entanto, viu lagrimas nos olhos dele.

Durante as quase três semanas que dividiram a cabine, as refeições e a vida, ela se aproximou incrivelmente daquele homem charmoso, sonhador e generoso. Ainda não sabia ao certo como isso acontecera. Talvez porque os dois estivessem sozinhos no mundo. Ela perdera a família e fora obrigada a deixar sua casa, e ele, também — por vontade própria. Nunca passou pela sua cabeça que eles se tornariam bons amigos, ela presumira que, com origens tão diferentes e o grande abismo social entre ambos, essa hipótese não era possível. Mais isso foi antes que os dois estivessem compartilhado o aconchego da cabine nas noites de tempestade, com Seamie em sua caminha e eles tomando chá e compartilhando sonhos e esperança enquanto o navio balançava. Isso foi antes de Nick fazer com que ela e Seamie praticassem a frase "o rato roeu a roupa do rei de Roma" inúmeras vezes seguidas, até que deixassem de omitir os erres. Antes de Fiona levar chá de gengibre e ler trechos dos livros de Byron e Brownings para ele durante os acessos de fadiga que o cometiam. Antes dos momentos em que ele sentava na beira da cama dela para consolá-la quando ela acordava gritando por causa de pesadelos.

Isso foi antes do dia em que Fiona descobriu uma fotografia. Uma fotografia que não imaginava encontrar.

Uma manhã, Nick saiu para sua costumeira caminhada para o convés. Ela notou que ele tinha deixado o relógio aberto na mesa de cabeceira. Era de ouro, maravilhosamente trabalhado e maravilhoso, sem sombra de dúvida. Querendo evitar um possível acidente com o relógio, ela o pegou para guardá-lo. Ao erguê-lo, caiu uma fotografia. E ela viu o rosto de um homem bonito de cabelos escuros que sorria para a câmera. O semblante dele estava repleto de amor pela pessoa que tirara a foto. Ela não sabia que o fotógrafo era o próprio Nick e que aquele homem era o amante dele.

Quem mais ele poderia ser? Os rapazes não mantinham fotos de amigos em medalhões de relógio. Isso certamente explicava por que Nick nunca falava de namorada, mesmo quando ela comentava a respeito de Joe. E também por que ele nunca demonstrava interesse por ela ou por qualquer outra mulher no navio. Ela receara isso quando ficaram pela primeira vez na cabine. Estava tão ávida para pegar o navio que nem pesou na possibilidade de que ele pudesse estar motivado por algo mais que a generosidade. Naquela primeira noite, debaixo das cobertas e com medo de dormirão próxima de um estranho, ela se perguntava sobre o que faria se ele fizesse algum movimento. Seria difícil ela se queixar com o capitão, afinal eles eram supostamente casados. Mas ele nunca lhe deu um só motivo de preocupação. Ela se pôs a olhar aquele homem bonito por mais alguns segundos, questionando como ele seria, se também iria para a América, e curiosa sobre que raio de coisa que dois homens fariam juntos. Até então, ela não tinha conhecido um homem que gostasse de outros homens. Depois, ela se repreendeu por ser muito abelhuda e deixou o relógio de lado.

O cabriolé fez uma parada brusca, o solavanco levou-a de encontro à posta de madeira dura e a fez esquecer de Nick e da viagem. Ecoaram outros xingamentos e berros enquanto o condutor abria caminho pelo cruzamento da 8th Avenue com a 14th Street, pulando sobre os sucos do solo e sacolejando as pobres rodas. Fiona observava que as fabricas davam lugar as casas e lojas elegantes e bem preservadas. O cabriolé acelerou de novo e parou quatro quarteirões adiante, frente a uma casa de três andares no lado leste de avenida, entre as ruas 18th e 19th.

Com as mãos trêmulas de expectativa, Fiona pulou para fora do taxie em seguida tirou Seamie e as coisas deles. Pagou a corrida e a carruagem partiu com as rodas levantando poeira e cascalho. Com as sacolas de viagem em uma das mãos e Seamie na outra, ela avistou o numero 164.

Não era o que esperava.

O letreiro em cima da porta dizia: M. FINNEGAN — ARMAZÉM, além de indicar o horário de funcionamento, mas estava fechada. Um cadeado trancava a porta e a poeira embaçava a larga vidraça. Dentro do estabelecimento, baratas mortas e excrementos de ratos em meio a mercadorias com invólucros esmaecidos e franzidos pelo sol.

Na parte inferior do canto direito da vidraça, um cartaz onde se lia:

Oferecida em leilão público pelo First Merchants Bank

164 8th Avenue: 7,5 m — prédio amplo de três andares num lote de 30 m².

Funciona como estabelecimento comercial e residência.

Data do leilão: sábado, 14 de abril, 1889.

Para maiores detalhes, por favor, entre em contato:

Sr. Joseph Brennan, agente imobiliário.

21 Water Street, Nova York.

Fiona se espantou com o cartaz. Deixou a bagagem no chão, pôs as mãos em concha e espiou pela vidraça. Viu um avental branco jogado sobre o balcão, um enorme relógio de parede atrás dele com os ponteiros marcando a hora errada, uma caixa registradora de metal, lâmpadas a gás e prateleiras ainda estocadas de mercadorias. O que tinha acontecido? Ela se perguntou aflita. Onde está todo mundo?

— Vamos, Fi. Vamos ver o tio Michael.

— Um instantinho só, Seamie.

Ela deu um passo atrás e olhou para o segundo andar. Não havia sinal de vida. Tentou abrir a porta para os andares superiores; estava trancada. Recomendou ao irmão que ficasse naquele mesmo lugar e foi bater à porta do número 166, e ali também estava vazio. Pelos manequins que havia lá dentro e os rolos de tecido e os carretéis de linha espalhados, ela presumira que se tratava de uma loja de costura. Fez uma outra tentativa no número 162, depois de ter passado por uma pilha de baldes de tinta vazios e pincéis velhos estocados no lado de fora. Mais uma vez sem resposta. Já estava mordendo o lábio inferior e começando a entrar em pânico quando um adolescente passou por ela na calçada.

— Por favor... —ela disse. — Você conhece Michael Finnegan? Sabe onde ele está?

— Talvez no Whelan's Ale House — respondeu o garoto, com as mãos no bolso.

— O quê?

— Whelan‘s. Um quarteirão ao norte — ele começou para sair.

— Espere, por favor! Ele não mora mais aqui?

— Ele dorme aqui, senhoria, mais vive no Whelan‘s — o garoto imitou com afetação um bêbado levantando uma garrafa. O semblante confuso de Fiona deixou claro que ela não tinha entendido. O garoto revirou os olhos. — Vou ter que soletrar? Ele bebe. Passa os dias na bebedeira e depois volta cambaleando. Meu pai faz a mesma coisa, mas só nos sábados. O senhor Finnegan faz o tempo todo.

— Isso não pode ser — disse Fiona. O tio dela não era um bêbado. Era um comerciante que trabalhava muito. Tinha o retrato e as cartas dele como prova.— Você sabe por que a loja está fechada?

Soou um assovio no final da rua.

— Já vou — gritou o garoto. Impaciente para juntar-se aos amigos, voltou-se para Fiona. — Ele não pagou as contas. Ficou doido quando a mulher dele morreu.

— Morreu! — ele repetiu de supetão. — Molly Finnegan morreu?

— Sim. De cólera. No ultimo outono. Muita gente morreu. Agora eu tenho que ir — disse o garoto, saindo aos trotes. — Whelan‘s Ale House. Na 20th — ele gritou sobre os ombros.

Na calçada, pasma com o que acabara de ouvir, Fiona segurava o rosto com as mãos para digerir esse ultimo desastre. Isso não é possível, disse para si mesma. Não pode ser. O garoto deve ter se enganado. Ela precisava encontrar o Michael. Ele explicaria tudo e ambos dariam boas risadas pelo mal-entendido.

— Vem, Seamie — ela disse, pegando a bagagem.

— Aonde vamos, Fi? — ele choramingou.— Estou cansado. Estou com sede.

Fiona tentou se mostrar animada e confiante para que o irmão não percebesse nenhuma aflição em sua voz.

— Vamos procurar o tio Michael, Seamie. Ele não está em casa agora. Temos que achá-lo. Ele vai ficar contente por saber que a gente está aqui. Tenho certeza. Depois teremos uma coisa deliciosa para beber e uma comida gostosa também.

— Está bem, então — ele disse, dando a mão a ela.

É mais do que uma visita — ela disse, acomodando-o outra vez no banco. — Viemos pra Nova York em definitivo. Como imigrantes.

— Só vocês? Cadê o Paddy? Não está com vocês? E a Kate?

Fiona não teve coragem de responder logo. Afinal, o homem perdera a esposa e , pelo andar da carruagem, não estava lidando bem com o fato.

—Tio Michael...— ela começou a falar, passando para Seamie uma das águas gasosas trazidas pelo bartender —... o meu pai morreu. Ele caiu de uma plataforma das docas — Michael calou— se, engolindo em seco. — E minha mãe também morreu. Assassinada.

— Assassinada? — ele gritou. — Quando? Como?

Fiona contou tudo sobre Jack. E sobre Charlie e o bebe, e Também como ela e Seamie tinham sobrevivido graças à gentileza de Roddy O‘Meara.

— Eu não consigo acreditar. Todos se foram — ele disse, atordoado. Meu irmão... passaram-se tantos anos, mas sempre pensei que o veria outra vez — olhou para Fiona com os olhos cheios de dor. — Ele... ele sofreu?

Ela pensou nos últimos momentos do pai. Lembrou-se de como ele estava no hospital, com o corpo quebrado. Lembrou-se da conversa entre Burton e Sheehan, falando às gargalhadas sobre a morte dele. Michael não precisava saber que seu irmão fora assassinado por causa de um pêni a mais por hora de trabalho. O mínimo que ela podia fazer era poupá-lo disso.

— Foi um acidente feio. Ele não resistiu muito — ela disse.

Ele fez um gesto de resignação com a cabeça e pediu outra dose. O bartender colocou a bebida à sua frente. Ele a ingeriu como se fosse água.

— Viva! Onde ela está?— perguntou Fiona alarmada. — Não está em casa, está?— ela não conseguiria imaginar um bebezinho numa casa escura e vazia.

— Não, está com a Mary... uma amiga... — ele suspirou; falar tornava cada vez mais difícil para ele—... uma amiga de Molly... levou-a depois do funeral.— Ele acenou para o homem que atendia no balcão.

Por Deus, mais um, não, pensou Fiona. Ele mal conseguia falar.

— Onde é que a Mary mora? — ela perguntou. — Onde está o bebê?

— Comigo... em casa... com Mary...

Ele estava se tornando incoerente. Ela precisava se apressar com as perguntas antes que o tia não conseguisse fala mais nada.

— Tio Michael, a loja será leiloada, não é? O leilão pode ser impedido? Quanto o senhor está devendo?

— Eu odeio aquela loja!— ele gritou, dando um soco no balcão. Seamie desceu apavorado do banco e escondeu-se atrás da irmã.— Eu não quero por os meus pés lá! O desgraçado do banco que fique com ela! Era a nossa loja, minha e de Molly. Foi a Molly que a deixou bonita. Ela é que fez a loja funcionar — deu uma pausa para tomar outro copo que o bartender colocara à sua frente. Seus olhos brilhavam cheios de lagrimas. Minha Molly!— ele irrompeu em prantos.— Eu queria que Ele tivesse me levado e não ela. Eu não consigo viver sem ela... não consigo...— agarrou o copo. Suas mãos tremiam.

— A loja, Michael — insistiu Fiona. — Quanto é que o senhor deve?

— Trezentos dólares. Isso é do banco. Mas cento e poucos dólares aos fornecedores... não tenho essa quantia... só tenho uns poucos dólares em meu nome, vê? Ele pôs a mão no bolso e puxou duas notas, espalhando as moedas com esse gesto. — Que merda de moedas... — resmungou enquanto trocados e níqueis caiam e rolavam pelo chão imundo.

Fiona apoiou os cotovelos no balcão e segurou a cabeça que começara a doer de uma maneira insuportável. Não era isso que ele estava esperando. De jeito nenhum. Imaginara uma recepção acolhedora. Abraços da tia. Sanduíches e chá e um bebe gorducho para pegar no colo. Nunca teria imaginado isso um minuto depois, ela se levantou. Precisava sair do Whelan‘s. A ida para Nova York tinha sido um erro. Ali não havia família para ajudá-la. Ela estava por sua própria conta.

Michael olhou-a, aterrorizado.

—Não — ele implorou, apertando a mão dela.— Você não está indo, está? Não vá!

— Estamos cansados — ela disse, soltando sua mão. — O Seamie está com fome. Temos que achar um lugar pra ficar.

— Na minha casa... vocês podem ficar lá... por favor, eu não tenho ninguém— ele disse, agora com um ar sentimental. A bebida fazia oscilar entre a grosseria e a pieguice. — Está muito bagunçada, mas vou limpá-la.

Fiona deixou escapar um sorriso amargo. Limpar uma casa? Ele nem consegue catar as moedas!

Michael pegou outra vez a mão dela.

— Por favor? — ele insistiu.

Mesmo não querendo, ela olhou mos olhos do tio. A miséria que viu dentro deles era tão abjeta, tão profunda, que o não que ela planejava dizer se desfez na garganta. O dia já ia longe. A noite cairia a qualquer momento. Ela não fazia a menor ideia de onde encontrar um outro lugar para ficar.

— Está bem. Ficaremos lá — ela disse. — Pelo menos por esta noite.

Michael meteu a mão no bolso, tirou uma chave e entregou-a para ela.

— Vão indo. Irei em seguida — ele disse. — Limparei a casa... — arrotou — ... ela vai ficar limpinha. Tim, traz mais um.

 

DE VOLTA AO NUMERO 164 DA 18th AVENUE, Fiona abriu a porta e subiu a escada para o segundo andar, com Seamie atrás dela. Ao chegarem no apartamento do tio, eles foram saudados por um fedor de leite azedo e coisa estragada. A entrada estava escura; era quase impossível enxergar um palmo à frente. Ela pediu a Seamie que ficasse onde estava e percorreu o corredor a apalpadela até chegar à cozinha. Uma cortina de renda esfarrapada estava dependurada na janela e se afastou às pressas, batendo o pé no chão para intimidar algum desgarrado. A luz do dia penetrou na cozinha. Os raios de sol atravessaram a poeira levantada pelos movimentos dela e deixou à mostra a maior, a mais surpreendente bagunça que ela já tinha visto na vida.

A pia estava entupida de pratos sujos. Louças imundas espalhadas sobre a mesa e o chão. Aqui e ali as baratas se fartavam com os restos de comida deixados pelos camundongos. Os copos estavam com crostas de cerveja velha e café rançoso. Sob os pés dela, o chão estalava em alguns pontos e grudava em outros. O fedor deixou-a nauseada. Ela abriu a janela, desesperada por um pouco de ar fresco.

— Fi? — Seamie chamou-a do corredor.

— Fique aí, Seamie — disse Fiona, enquanto se movia da cozinha para a sala de visitas. Lá, também abriu as janelas e trouxe luz ao caos. Garrafas vazias de uísque e roupas sujas espalhadas por todos os cantos. A correspondência estava empilhada no chão. Ela pegou um envelope selado. Endereçava-se a Michael Finnegan, remetido pelo First Merchants Bank com a marca URGENTE. Pegou uma folha de papel dobrada. Era a carta de um açougueiro que demandava pagamento imediato das dividas pendentes. Um envelope fechado — carimbado de ponta a ponta — chamou-lhe a atenção. Era a carta de sua mãe enviada após a morte do pai.

A sala estava silenciosa. O único som que se ouvia era o tique-taque do relógio sobre a lareira. Atordoada pela recepção que tivera, Fiona não o ouvia. Só conseguia ouvir a badalada de um milhão de problemas que martelava em sua cabeça. A tia estava morta. O tio tornara-se um bêbado. A prima encontrava-se em algum lugar daquela maldita cidade, mas onde? A loja, fechada; o trabalho que esperava ter, mão teria mais. O prédio seria leiloado. Para onde eles iriam depois disso? O que fariam? Como ela encontraria um lugar para viver? Como acharia trabalho?

Percorreu o apartamento inteiro; em todos os lados surgia uma outra bagunça. Tal como a sala de visitas, o quarto de Michael estava cheio de garrafas vazias.

Lençóis emaranhados pendiam da cama até o chão. Um porta-retratos repousava em cima de um travesseiro. Ela o pegou. Na foto, uma mulher linda com um olhar feliz.

— Fiiiii! — gritou Seamie, chorando. Vem! Estou com medo!

— Já estou indo, Seamie! — ela correu na direção dele.

— Não gosto daqui. Eu quero ir pra casa — ele choramingou.

A preocupação e a exaustão eram visíveis no semblante dele. Fiona não podia deixar que ele notasse que ela estava arrasada; tinha que ser forte.

— Shhhhh, gatinho. Tudo vai ficar bem, você vai ver. Vamos comprar alguma coisa pra comer e depois vou arrumar a casa e tudo vai melhorar muito.

— Essa é a tia Molly? — ele perguntou, apontando para a fotografia que ela segurava.

— Sim, querido.

— Ela está morta, não está, Fi? Foi o que o tio Michael falou.

— Sim, infelizmente — ela disse. Queria mudar de assunto. — Vamos, Seamie, vamos achar uma loja e comprar pão e bacon para os sanduíches. Você adora sanduíche de bacon, não é? — pegou a mão dele, mas ele puxou-a.

— Morta! Morta! Morta! — ele gritou com raiva. — Igual a mamãe e o papai e o Charlie e a Eileen! Todo mundo morreu! Odeio a morte. O pai também está morto, não é? Não está, Fi?

— Não, Seamie — respondeu Fiona carinhosamente, ajoelhando-se na frente dele. — O Nick não está morto. Foi para um hotel. Você sabe disso. Vamos vê-lo na semana que vem.

— Não vamos, não. Ele está morto — insistiu Seamie, dando um chute em uma sacola.

— Ele não está morto, não! Agora pare com isso.

— Ele está, sim! E você também vai morrer! Eu vou ficar sozinho!

Os olhos de Seamie encheram-se de lagrimas. O rostinho dele se contraiu. Essa visão partiu o coração de Fiona. Ele é só uma criança, ela pensou. Ele perdeu a família inteira, menos eu. Perdeu a casa, os amiguinhos, tudo. Ela o puxou para si.

— O Nick não está morto, meu querido. E eu não vou morrer. Vou viver muito tempo. E sempre estarei ao seu lado para protegê-lo, está bem?

Ele fungou no ombro dela.

— Você promete, Fi?

— Prometo — ela o soltou e fez um X no peito. — Eu cruzo o meu coração e acho que só vou morrer...

— Não! — ele gritou.

— Desculpe. Então, só... só cruzo o meu coração. Que tal assim?

Ele secou os olhos com a mãozinha e depois disse:

— O vovô O‘Rourke está morto e a vovó O‘Rourke, também. E Moggs, o gato. E o cachorrinho da Bridget Byrne que não comia e o bebe da senhora Flyn e ...

Fiona gemeu. Pegou um lencinho no bolso e limpou o nariz do menino. Ela queria a mãe ali. A mãe saberia o que dizer para afastar os medos de Seamie. Sua mãe sempre sabia o que dizer quando ela sentia medo. Fiona não fazia ideia de como ser mãe. Nem mesmo sabia onde poderia comprar o jantar dele ou onde dormiriam no meio daquela bagunça. Não sabia como seria o amanhã, nem onde procurar um cômodo, ou como fariam para o dinheiro render. Além disso, ela não sabia onde estava com a cabeça quando resolveu ir para aquela maldita cidade. Tudo o que ela desejava naquela hora era estar na Inglaterra. Eles deviam ter idopara Leeds ou Liverpool, ou para o norte, para a Escócia. Ou para o oeste, para Devlon ou Cornwall. Estariam bem melhor em alguma cidade perdida no campo. Contanto que estivessem em qualquer lugar da Inglaterra ou em qualquer outro lugar que não fosse aquele.

 

NICHOLAS SOAMES encolhia-se enquanto o médico colocava o estetoscópio em seu peito desnudo.

— Meu Deus! Onde o senhor guarda essa coisa? Na geladeira?

O severo e robusto médico alemão não achou graça.

— Respire, por favor — ele ordenou. — Inspire e expire, inspire e expire...

— Sim. Está bem. Eu sei como faz. Há vinte e dois anos que faço isso — grunhiu Nick. Ele respirou profundamente e depois soltou a respiração. Não queria estar ali, no consultório do Dr. Wener Eckhardt, com aquele cheiro horrível de ácido fênico e os sinistros instrumentos metálicos de exame, mas não havia escolha. A fadiga dele tinha piorado durante a viagem de navio. Diversas vezes, Fiona tentou encaminhá-lo para o médico de bordo, mas ele se recusou. Não podia, senão teria que retornar para Londres.

Logo depois de sua chegada ao hotel no dia anterior, ele escreveu para Eckhardt para marcar uma consulta, porque sabia que era um dos melhores médicos em seu campo. O doutor enviou uma resposta, dizendo que alguém desmarcara a consulta e que podia atendê-lo naquele mesmo dia.

Ao mesmo tempo em que Nick respirava profundamente, o Dr. Eckhardt movia o estetoscópio do peito até as costas, ouvindo com atenção. Depois, ele se empertigou, tirou o aparelho dos ouvidos e disse:

— É o coração. Tem lesões. Pude ouví-las. O sangue está com um chiado.

Isso não é a cara de um alemão?, pensou Nick. Nada de chavões para amenizar o baque. Nada de mão no ombro. Somente uma boa pancada na cabeça. E depois a loquacidade habitual que lhe servia de escudo contra o mundo e seus horrores o abandonou e ele pensou, oh, Deus. É o meu coração. O meu coração.

— Senhor Soames, sua doença está progredindo — continuou o médico. — É uma doença oportunista. Se quiser retardar o avanço dela, o senhor terá que se cuidar um pouco mais. O senhor precisa de repouso, de alimentação saudável e deve evitar qualquer tipo de esforço.

Atordoado, Nick concordou. Primeiro o coração dele. E depois, o que viria? Os pulmões? O cérebro? Ele imaginava a doença invadindo o cérebro como um exército inimigo, comendo aos poucos todas as suas faculdades até obrigá-lo a colher dentes—de—leão e recitar versinhos infantis. Mas ele não permitiria. Se suicidaria antes disso.

O médico continuava a falar com monotonia e o desejo de Nick era que Fiona estivesse com ele. Ela era tão adorável, tão boa, tão leal. Pegaria a mão dele e diria que tudo acabaria bem, exatamente como tinha feito no navio. Será?, ele se perguntou com ansiedade. Mesmo uma pessoa tão especial como ela devia ter seus limites. Se ela descobrisse o que realmente havia de errado, ele certamente a perderia, sua querida Fi, sua única amiga. Da mesma forma que perdera todo mundo.

O senhor está me ouvindo, senhor Soames? — perguntou Eckhardt, olhando-o sério. — Isso não é uma piada. É importante que o senhor tenha um bom sono. Dez horas por noite. E um cochilo durante o dia.

— Olhe, doutor Eck, vou descansar mais — ele disse —, mas não posso virar um inválido. Veja, tenho que abrir uma galeria e não poderei fazei isso da cama. Que tal o tratamento com mercúrio?

Eckhardt tez um gesto de desaprovação.

— Inútil. O mercúrio escurece os dentes e dopa.

— Interessante! O que o senhor prescreve, então?

— Um tônico que eu mesmo concebi. Fortalece o organismo e deixa o indivíduo mais resistente.

— Vamos experimentá-lo, então — disse Nick. Enquanto ele se vestia, Eckhardt decantava uma solução escura e viscosa num pequeno frasco de vidro, dando-lhe instruções sobre a dosagem. Depois, o médico disse que ele teria que retornar no mês seguinte e pediu licença para atender um outro paciente. Nick foi ao espelho para dar um nó de Windsor em sua gravata de seda e, olhando o seu rosto, pensou. Pelo menos ainda pareço saudável. Talvez um pouco pálido, mas só isso. O Eckhardt está exagerando. Todos os médicos exageram. E assim que mantêm os pacientes. Vestiu o paletó e guardou o vidro no bolso. Na saída, pediu a recepcionista que mandasse a conta para o hotel.

Lá fora, a manhã ensolarada de março era revigorante. Nick estava especialmente elegante com seu terno cinza, colete, gravata, sapatos e sobretudo marrons, cor que preferia ao preto. Com as mãos no bolso, caminhou pela Park Avenue atrás de um carro de aluguel. Seu modo de andar era ligeiro e estranhamente gracioso. O ar gelado coloria sua face pálida realçada pelas maças do rosto bem marcadas e estonteantes olhos azul—turquesa. Embora atraísse muitos olhares de admiração, ele se entregava aos seus próprios pensamentos sem prestar atenção em nada.

Por fim, conseguiu uma carruagem e pediu ao condutor que o levasse ao Gramercy Park. Durante o percurso, o veículo passou por uma galeria de arte na 40th Street. O estabelecimento parecia extremamente prospero, com um toldo branco e porcas de metal polido ladeadas por vasos de bronze. Olhou-a com uma expressão determinada. Teria a sua galeria e ela também seria próspera. Não se deixaria abater pela doença. Ele era mais forte do que aparentava e provaria isso. Para Eckhardt. Para ele mesmo. Para muitos, para o pai que o considerava uma aberração e desejava que ele morresse logo para poupar a família de uma futura desgraça. A imagem desse homem surgiu de maneira espontânea. Corpulento, frio, sisudo. Riquíssimo, Poderoso. Monstruoso.

Nick estremeceu e quis que a imagem se dissipasse, mas ela persistiu e ele lembrou a noite em que o pai ficou sabendo de sua doença. Quando o jogou furiosamente contra a parede. Ele se viu caído no chão, tentando respirar; olhando as biqueiras, do elegante par de sapatos do pai enquanto este andava pela sala. Eram sapatos, da Lobb's, reluziam de tão polidos. A calça da Poole's estava impecavelmente vincada. A aparência era tudo em um homem. Fale e se vista como um cavalheiro e você será um deles, mesmo sendo um espancador de seus cavalos, criados e filhos.

Nick repeliu a lembrança e puxou o relógio, Tinha que encontrar um corretor Imobiliário às onze horas para ver alguns imóveis para a galeria, ele abriu por engano a parte de trás do medalhão. Uma pequena fotografia caprichosamente recortada caiu em seu colo. Pegou-a. Seu coração se apertou enquanto ele olhava o jovem que lhe sorria. Ao lado do rapaz liam-se as palavras "Chat Noir" escritas na parede. Nick ainda se lembrava perfeitamente daquele lugar. Podia até sentir o gosto do absinto e o aroma da noite: uma rica mistura de fumaça de cigarro, perfume, alho e tinta a óleo. Assim como podia ver os amigos — seus rostos, suas roupas surradas e suas mãos manchadas. Pôs a mão no coração e sentiu os batimentos. Lesões? Se a horrível perda que sofrerá no outono passado não o fizera parar de bater, como algumas poucas situações fariam isso? Continuou a mirar a foto e de repente já não se encontrava em Nova York, eslava outra vez em Paris. Com Henri sentado à frente na mesa do café vestindo seu paletó favorito, cor de vinho. Não era março, era maio, na noite em que se conheceram. Ele estava de novo em. Montmartre...

 

—... DUZENTOS E CINQUENTA PRANC0S POR AQUELE PÔSTER? — gritava Paul Gauguin em um francês grosseiro e encharcado de vinho. — Parece mais um cartaz de poste, um anúncio!

— Melhor um pôster que uma caricatura infantil... como as suas, bretão! — gritou de volta Henri Toulouse—Lautrec, extraindo risadas das outras pessoas presentes.

No início daquele dia, Nick tinha vendido uma das telas de Toulouse-Lautrec, um retrato colorido de Louise Weber, uma dançarina conhecida como A Gulosa. O patrão de Nick, Paul Durand Ruel, um renomado comerciante de arte, estava inseguro em representar Toulouse-Lautrec, mas ele o pressionou e o homem acabou concordando em vender os quadros, Nick só ganhou uma pequena comissão pela venda, mas obteve algo mais importante: uma vitória para a nova arte.

Comercializar a nova geração era uma façanha. Era muito difícil vender um Manet, um Renoir ou um Morisot — os que começaram com tudo aquilo. Mas Nick tinha fé. Em 1874, quando a vanguarda exibiu-se pela primeira vez eles não conseguiram vender nada. Aproveitando a deixa de um quadro de Monet intitulado Impressão nascer do sol, a crítica rejeitou a todos como impressionistas, meros amadores. Rebelando-se contra o que a sociedade considerava aceitável — em termos de história e estilo de pintar —, eles procuravam representar o real e não o ideal. Uma costureira debruçada em seu trabalho era um objeto tão válido quanto um imperador ou um deus. Suas técnicas eram livres, espontâneas, o que permitia evocar melhor a emoção. O público os havia rejeitado, mas Nick amava todos eles, o realismo com que retratavam a vida saciava a sua fome de um pouco de honestidade em sua própria existência.

Ele cursava economia em Cambridge porque o pai o queria bem preparado para assumir o Albion, o banco da família, mas passava a maior parte do tempo estudando arte. Ele estava com dezenove anos na primeira vez que viu a obra dos impressionistas Da National Gallery; trabalhava no Albion nas ferias de verão e odiava cada segundo que passava lá. Depois de ter visto a exposição, ele saiu do museu, pegou uma carruagem de aluguel e pediu ao condutor que ficasse dando voltas durante uma hora pela cidade, nos lugares de sua preferência, para que pudesse chorar em paz. Naquela noite, quando chegou em casa, ele já estava determinado a não continuar no banco e não voltar para Cambridge. Desafiaria o pai e partiria para Paris. Ele odiava a vida que tinha, odiava aqueles dias sufocantes, odiava os jantares em família com a pai bombardeando-o com perguntas sobre finanças e censurando-o por não saber as respostas, odiava as festas insuportáveis nas quais as amigas da mãe empurravam as filhas para cima dele como cafetinas, já que um filho único era tido como um bom partido. Era uma vida de aparência. Quem ele era — o que ele era — tornara-se inaceitável. Mas nas telas de Monet, Pissarro e Degas ele vislumbrou o mundo em sua realidade, não como mera aparência, e abraçou esse ripo de visão.

Enquanto Nick tomava um gole de vinho, Gauguin e Toulouse-Lautrec seguiam implicando um com o outro. E ele se divertia imensamente. Os ânimos estavam elevados e triunfantes. A Gulosa em carne e osso chegou entre assovios e aplausos. Nick olhou em volta e viu que Paul Signac e Georges Seurat discutiam acaloradamente. Émile Bemard amotinava um jovem de longos cabelos escuros, um pintor que Nick não conhecia, dizendo que a garçonete estava apaixonada por ele. Alguns dos seus colegas da galeria estavam presentes. Os irmãos VanGogh, também; Vincent, desleixado e irritadiço, e o solene Theo, diretor da Montmartre Goupil, uma galeria rival. A testa eslava ótima, e a noite, maravilhosa, até que ocorreu o desastre.

Nick tinha comido os mexilhões cozidos a vapor e ainda raspava o molho de alho que os acompanhava com pedacinhos de pão. Quando se debruçou para pegar um pão que Gauguin deixara de lado, um enorme repolho podre atirado de algum lugar o acertou na cabeça. Ele se sentou, chocado, sem conseguir falar; e começou a tirar a gosma dos olhos. Soou um grito e os membros da confraternização saíram em disparada para pegar o atirador. O homem foi levado de volta à cena do crime, era um funcionário dos correios enfurecido com os quadros de Gauguin. Além de se recusar a pedir desculpas, ele ainda culpou Nick por ter metido a cabeça no caminho e fazê-lo errar o alvo.

O fedor estava insuportável. Nick se levantou e anunciou que tinha que se retirar para se trocar, mas um dos integrantes do grupo — o jovem paquerado pela garçonete — ofereceu-se para levá-lo até um estúdio, onde ele poderia se lavar e pegar emprestada uma camisa limpa.

— Meu nome é Henri... Henri Besson — ele disse, meu estúdio fica perto daqui, só uma rua de distância.

— Vamos, então — disse Nick.

Eles subiram os cinco lances de escada até o pequeno estúdio de Henri, com Nick tirando a camisa pelo caminho. Já dentro do aposento, ele se debruçou sobre uma pia encardida e jogou um pouco de água na cabeça. Henri estendeu-lhe um sabão e uma toalha e, depois que ele se vestiu, um copo de vinho. Nick tinha entrado tão afoito para se lavar que não prestou atenção no estúdio de Henri; só fez isso depois que se limpou. Para sua surpresa, em qualquer direção que olhava, lá estavam as telas mais vibrantes e luminosas que ele já vira — dependuradas nas paredes, encostadas nos móveis. Uma jovem que dançava com um sutil e perfeito rubor em suas faces de marfim, uma lavadeira com a saia levantada acima dos seus joelhos carnudos. Carregadores em Les Halles. E depois ele viu uma tela que o deixou petrificado: um retrato de dois homens no café da manhã. Um deles sentado à mesa com uma torrada e um jornal, e outro, bebendo o café à janela.

Estavam vestidos, nem mesmo se olhavam, mas uma atitude de familiaridade dizia que os dois eram amantes. Era um quadro inocente e incendiário. Nick engoliu em seco.

— Incrível, Henri... você já mostrou essa?

Henri foi ver a tela à qual ele se referia e negou com a cabeça.

— Nossos amigos que pintam a verdade, Nicholas, são atingidos pelos repolhos — ele riu. E seus agentes também — O sorriso sumiu enquanto ele deslizava os dedos pelo quadro. — A pintura revela o que somos e as pessoas não aguentam isso. Quem aceitaria a realidade da minha vida?

Eles não se juntaram aos outros. Beberam uma garrafa de vinho, abriram outra garrafa e conversaram a noite inteira sobre os amigos pintores, sobre os escritores, Zola, Rimbaud e Wilde, sobre os compositores, Mahlei e Debussy e sobre eles mesmos. E na manhã seguinte, enquanto os primeiros raios do sol acariciavam o corpo de Henri que dormia, Nick continuava acordado e, quase sem fôlego, observava a respiração dele, com uma estranha plenitude em seu coração...

Um policial deu umas batidas no seu veículo e o tirou de seus pensamentos,

— Tem uma carruagem virada lá na frente — ele gritou para o condutor. — Está tudo parado. Pegue a 5ª.

Nick abaixou o olhar para a foto ainda em sua mão. O paletó que Henri vestia o fez sorrir, lembrava-se de tê-lo comprado para ele. Colocou a foto no medalhão do relógio. Henri achava que Nick era muito bom, muito generoso para ele. O que Henri não sabia é que os presentes que Nick recebia — amor, felicidade, coragem — eram muito mais valiosos. Foi o único que o convenceu a enfrentar seu pai, a viver a vida de acordo com suas próprias escolhas. Mas nem tudo foi um mar de rosas; eles tiveram algumas brigas e uma delas aconteceu no Louvre. Ainda bem que fizeram isso em inglês — Henri insistia em conversar nessa língua para se aprimorar — e a maioria dos presentes não entendeu nada, o que não a tornou menos constrangedora.

— Henri, por favor! Abaixe o tom da voz!

— Pelo menos admita que estou certo!

— Eu gostaria, mas...

— Mas? Mas o quê? Você não precisa do dinheiro dele. Ganha muito bem na galeria...

— Nem tanto assim.

— Ganha, sim! Dá para pagar o aluguel, garantir comida e vinho e ainda nos dá uma boa vida...

— Que diabo, Henri, você está fazendo um escândalo! As pessoas olhando...

— Que se danem! Quest-ce-que vous regardez, eh? Mêlez-vous de vos affaires! — ele berrou para duas matronas abelhudas e olhou no fundo dos olhos de Nick. —Mande-o para o inferno, Nicholas. Deixe que ele o prive da herança. Você pode fazer sucesso à sua própria custa. Você ê o melhor vendedor do Durand Ruel. Qualquer galeria de Paris quer lançar você...

— Me contratar.

— Você pode abrir a sua própria galeria e ter escritórios em Londres, Amsterdã, Roma...

— Você não entende. Henri, a coisa não é tão simples...

— Messieurs, s‘il vous plait... — interveio o guarda.

Seguiu-se um silêncio de pedia. Henri fingia interesse em um quadro de Vermeer. Nick olhava o amigo que, por sua vez, observava a tela de testa franzida, de pé e de braços cruzados, com os cabelos castanhos caindo pelas costas. Que homem bonito, ele pensou, tão bondoso e carinhoso. Talentoso. Inteligente.

Infernalmente teimoso. E o amo mais do que qualquer outra pessoa que já amei. Loucamente.

Henri lançou um olhar furioso para o guarda e depois sussurrou para Nick:

— Você quer voltar pra casa. Sente falta daquela horrível Londres. Da chuva. Das nuvens. Pode ir, inglesano, você não me ama.

— É inglês, Henri. E o amo. Loucamente. Mas eu...

Henri o cortou.

— Então você não se ama. Se voltar, será a sua morte, Você sabe disso, não sabe? Você não deve a sua felicidade a ele, Nicholas. Não deve a sua vida a ele.

— Eu sinto que devo.

— Mon Dieu... por quê?

— Dever, eu acho. Eu sou filho único. Nossos ancestrais fundaram o Albion há mais de duzentos anos. Já se passaram seis gerações; eles esperam que eu seja a sétima.

— Mas você odeia bancos, Nicholas! Não consegue controlar suas contas... nem mesmo deposita as suas comissões. Eu é que tenho que fazer isso.

— Eu sei, eu sei...

— E você deixaria Paris por um banco! A sua vida aqui? Seu trabalho? Você me deixaria?

— Mas o maldito problema é justamente esse, Henri! Não posso te deixar.

Nick tinha se apaixonado por Henri na noite em que se conheceram, e a recíproca foi instantânea. Ele já tinha feito sexo antes, furtivamente, escondido; isso o deixou se sentindo sujo e envergonhado, mas nunca se apaixonara. Como era maravilhoso! De repente, a atividade mais banal se enchia de magia. A simples compra de um frango lhe dava um prazer indescritível, só porque o levaria para Henri cozinhar com ervas e vinho para a ceia. Encontrar rosas brancas no mercado era o melhor que podia acontecer no dia, mesmo que ele tivesse vendido seis telas, pois eram as flores favoritas de Henri. Ir a Tasset & Lhote no sábado para escolher as melhores tintas e melhores pincéis — Henri não tinha dinheiro para comprar essas coisas — e depois deixá-los ao lado do cavalete com todo o cuidado trazia uma alegria indescritível. Depois de um mês eles já estavam morando juntos, e o que se seguiu foi um ano de perfeita felicidade. Nick foi promovido duas vezes. Durand Ruel declarou que nunca tinha visto ninguém tão jovem com tanto tino comercial para arte. E toda noite Henri o esperava em casa. Para conversar e rir dos acontecimentos do dia.

Mas havia uma nuvem escura no horizonte: o pai de Nick. O homem ficou furioso quando Nick partiu para Paris. No início, ele o deixou em paz, achando que o interesse do filho pela arte em apenas uma fase. Mas agora ele queria que Nick voltasse para casa. Já tinha completado vinte e um anos de idade, e o pai escreveu, era tempo de Nick assumir suas responsabilidades. O pai dele queria expandir a influência do banco abrindo filiais pela Inglaterra e por toda a Europa. O mundo dos negócios estava mudando, ele disse. O Albion precisava se tomar mais visível para o público e ele queria o filho ao lado, ajudando-o a planejar esse crescimento.

Quando Nick se recusou a retornar, o pai cortou-lhe a mesada. Como isso não funcionou, agora ele ameaçava deserdá-lo. Se isso acontecesse. Nick perderia um legado incalculável: milhões de libras em dinheiro vivo, créditos e investimentos; uma casa em Londres, uma propriedade em Oxfordshire, propriedades em Devon e Cornwall, uma cadeira na Casa dos Lordes. Ele escreveu para o pai com uma proposta: se tivesse um pouco mais de tempo, só até o verão, voltaria para Londres em setembro e os dois poderiam conversar. O homem concordou. E agora já era inicio de julho. Dois dias depois, ele e Henri deixariam Paris para ir até Arles, e nas semanas seguintes pensaria no que fazer.

Um vento gelado entrou pela janela da carruagem. Ainda perdido nas lembranças, Nick nem se deu conta e ele e Henri acabaram alugando uma velha casa de pedras em Arlen. Lá, davam longas caminhadas pelo campo, dormiam embalados pelo silêncio, acordavam descansados e juravam nunca mais voltar para a imunda e barulhenta Paris. Henri pintava durante o dia e Nick se correspondia com artistas e clientes, ou lia. Às vezes, caminhavam até o centro da cidade para jantar em algum café, mas na maioria das vezes era Henri quem cozinhava. À noite, a decisão de Nick seria revelada; Henri tinha feito uma torta de cebola. Nick não conseguiu comer um só pedaço...

— Eu estou muito preocupado com Vincent, Nicholas. Ele não está bem — disse Henri, servindo-se de um copo de vinho. Os dois jantavam no jardim.

— Pra você, nada está bem — retrucou Nick.

— Não brinque, isso é sério — Henri se pôs a descrever o que acontecia de errado com Vicent Van Gogh, que passava o verão em Arles, mas Nick não ouvia uma única palavra.

Durante o verão inteiro eles haviam conversado sobre arte, amigos, comida, vinho; conversavam sobre todo tipo de coisa, menos sobre o que mais pesava sobre ambos. Mas naquela noite eles teriam que entrar nesse assunto. Nick já tinha feito a sua escolha. Durante a tarde, enquanto Henri estava fora para pintar ele caminhou até o correio e enviou uma carta ao pai, comunicando a decisão que tomara.

Depois, sentou-se num banco próximo ao correio e esperou até que fechasse e o funcionário saísse com a sacola de correspondências para ir à estação e colocá-la no trem para Paris; só assim ele teria certeza de que não poderia pegar a carta de volta. Quando chegou em casa, encontrou Henri tirando a torta do forno. Ele tentou falar, mas Henri o cortou, mandando-o sentar-se à mesa.

— Essa tarde eu vi o Vincent na cidade. - disse Henri. — Está tão magro que quase não o reconheci. Vestia um paletó velho e uma calça surrada. Pensei que era um vagabundo. Ele me convidou pra ver o trabalho dele.

— E que tal?

— Surpreendente. Fez uma natureza—morta de uma xícara de café que você tem que ver, e um retrato de um garoto zuavo... que cores! Tão fortes, tão completamente originais.

— Ou seja, ele não conseguirá vendê-los.

— Bem... — Henri lançou um olhar esperançoso para Nick —... talvez nas mãos de um bom negociante, o melhor de Paris...

Nick tomou um gole de vinho e o olhou longamente.

— Você pelo menos podia tentar?

— Claro — Nick abaixou o copo, mas suas mãos tremiam tanto que ele o derrubou na mesa.

Henri correu para limpá-la.

— Nicholas, você está bem desastrado... olhe, seu prato está cheio — Henri notou que Nick não tinha tocado na comida. — Por que não está comendo? Não gostou da torta?

Ele não respondeu. Seu peito apertava como se todo o ar tivesse fugido.

— Nicholas, o que está havendo?

— Henri, eu... — ele quase não conseguia falar. — Oh, Deus... — ele gemeu.

— Diga, o que há de errado? Você está doente?

Ele olhou para Henri e segurou a mão dele.

—Eu... eu escrevi hoje para o meu pai... — o rosto de Henri empalideceu e ele se apressou em concluir —... e disse que eu não podia... que eu não podia voltar pra casa.

Henri caiu de joelho, ao lado da cadeira de Nick. pondo as mãos no rosto. Nick o puxou para si e o abraçou com força, até que sentiu que ele soluçava.

—Henri, por que você está chorando? — perguntou. — Achei que você ficaria feliz.

— Eu estou feliz, seu idiota. Estou feliz por mim. E estou chorando por você... por tudo que você vai perder. Sua casa, sua família... tantas coisas.

— Sshhh, está tudo bem. Agora você é a minha casa e a minha família.

Naquela noite, eles choraram, mas também deram muitas risadas. Nick sabia que talvez um dia se lamentasse pela decisão que tomara. Mas tinha sido a decisão mais certa. Retornaram a Paris em meados de agosto. Nick retomou o trabalho, —determinado a prover seus amigos artistas com o dinheiro e a fama que as vendas podiam ocasionar. Henri começou a vender seus quadros. Duas telas para a Durand Ruell, três para a Goupil. Quando chegou setembro sem que Nick recebesse qualquer palavra de casa, ele compreendeu que o pai cumprira a ameaça e que não haveria mais contato com a família. Isso o fez sofrer profundamente, mas ele podia aguentar. Havia encontrado um amor estável com Henri e era disso que mais precisava. Nessa época, ele achava que a felicidade duraria para sempre...

 

A CARRUAGEM PAROU NO LADO LESTE DA IRVING PLACE, tirando Nick de suas lembranças. Ele saltou, sacou a carteira e pagou a corrida. Elegante, ele pensou, enquanto dava uma olhada na vizinhança. Ricos tradicionais. Sorriu e se perguntou se Nova York tinha ricos tradicionais há muito tempo; Uma geração? Duas? Não importava se eram novos ricos ou velhos ricos, contanto que os nova-iorquinos comprassem suas telas.

E eles comprariam. Durand Ruell tinha ido para Nova York em 1886 com trezentas telas impressionistas e teve uma resposta esmagadora. Havia muita gente na cidade com sofisticação suficiente para apreciar a nova arte. E Nick teria muitos quadros para vender. Antes de partir para a América, ele enviou milhares de libras para a galeria — quase todo o seu dinheiro — junto com um telegrama em que dizia para seus antigos colegas o que queria e os instruía a mandar as telas para um armazém de depósito em Nova York. Chegariam em uma semana. E, quando elas chegassem, ele veria o rosto de cada um dos velhos amigos em suas telas. Cada tela continha um pedaço da vida do artista, de sua alma. Alguma coisa da vida de Nick também estava naquelas telas. E da vida de Henri, também. Se ele fosse bem-sucedido nesse empreendimento, se abrisse um mercado para os novos pintores, se os provesse do dinheiro necessário para que se mantivessem trabalhando, sairia alguma coisa boa de todo o sofrimento pelo qual tinha passado.

Ainda sorrindo, foi ao encontro do corretor, Eckhardt que fosse bater em outra porta com todo o seu pessimismo, ele pensou. Nick não fazia planos de partir tão cedo. Não naquele dia. E no outro também não. Ele tinha um trabalho Importante para fazer e queria vê-lo realizado.

 

TIO MICHAEL? — chamou Fiona da porta do quarto do tio. — Tio Michael, está me ouvindo? O senhor tem que acordar agora.

Não houve resposta do homem que dormia. Ele estava deitado na cama de barriga para cima, enrolado nas cobertas. Usava um encardido macacão de malha e meias com muitos buracos.

— Ele deve estar morto — sugeriu Seamie,

— Não comece com isso outra vez, Seamie, ele não está morto. Mortos não roncam.

Ela chamou de novo pelo tio. Ao ver que ele não respondia, ela o sacudiu. Michael continuou roncando. Ela deu alguns tapinhas suaves nas bochechas e depois o agarrou pelos braços e o puxou. Ele caiu pesadamente de volta à cama. Irritada, ela resolveu que jogaria água nele e foi até o banheiro.

No decorrer de sua primeira noite insone em Nova York, Fiona se deu conta de que Michael não podia perder a loja. Tanto a sobrevivência dele como a dela estava em suas mãos. No dia anterior, depois de ter colocado Seamie para dormir ela saiu para comprar alimentos. Teve que andar sete quarteirões até encontrar uma loja decente. O dono da loja era muito sociável e fez com que ela se apresentasse; em seguida, o homem disse que conhecia o tio dela e que sabia o quanto ele tinha dado duro para economizar dinheiro para comprar a loja.

— Michael fez um trabalho e tanto naquele estabelecimento. E poderia fazer de novo se parasse com as bebedeiras — ele disse.

Depois que voltou, ela arregaçou as mangas, amarrou a saia e começou a faxina. Descobriu sob toda aquela sujeira um apartamento muito bem montado. Além do quarto de Michael, havia um segundo quarto onde ela dormiria e um quarto de criança que ficaria para Seamie. Dentro de casa havia um banheiro com privada, descarga de porcelana. E ainda sala de visitas e uma cozinha com um fogão novo, uma pia dupla e uma grande mesa redonda de carvalho. A medida que varria e limpava o pó se deparava com lindos objetos. Um vaso de vidro verde gravado com a frase ‗Lembrança de Coney Island‖. Um par de castiçais de vidro próximo a uma caixa ornamentada com conchas. Quadros de flores. Na sala também se via sobre um tapete de lã em tons verde-claro e musgo um conjunto de sofá e duas poltronas, estofados de veludo cor de ameixa. Nada disso era de primeira qualidade, mas tinha sido escolhido com cuidado e refletia a prosperidade de uma sólida classe trabalhadora.

Obviamente, o tio construíra uma vida confortável e ele podia fazer isso de novo. Ela não precisaria mais trabalhar em fábricas de chá nem limpar pubs por uma ninharia; trabalharia para o tio como planejara. Aprenderia o negócio e depois abriria a sua própria loja com o dinheiro do Burton. Ela só tinha gastado quarenta libras das quinhentas que subtraira dele. Trocara cinquenta libras por duzentos e cinquenta dólares americanos a bordo do navio. As quatrocentas e dez libras que restavam lhe dariam mais dois mil dólares. Esse dinheiro era uma fortuna, mas destinava-se ao futuro, de Seamie e tinha que ser preservado. Ela sabia por experiência que o salário de uma fábrica não poderia cobrir o aluguel de um cômodo miserável e a comida, mesmo que pouca. Se não tomasse cuidado, o dinheiro seria usado com as carências imediatas e acabaria escorrendo pelo ralo por nada. E no fim ela estaria pobre, exatamente em Whitechapel. E estava determinada a deixar de ser pobre para sempre. Ela iria enriquecer. Tinha que manter suas promessas em relação a William Burton e Bowler Sheehan e, embora não fizesse ideia das formas de vingança que adotaria, sabia que precisaria de dinheiro — de muito dinheiro — para efetuá-la. Ela queria subir na vida, não afundar, e aquele roncador no quarto ao lado iria ajudá-la.

Ela pegou um copo na pia do banheiro e o encheu de água fria. Voltou ao quarto e despejou-o na cabeça do tio.

Ele engasgou, cuspiu e sentou-se na cama. Olhou espantado para ela e disse:

— Quem diabos são vocês? E por que está tentando me afogar?

Ela o encarou, com incredulidade.

— O senhor não se lembra de nós? Somos sua sobrinha e seu sobrinho. Fiona nie. Já falamos com o senhor, ontem mesmo, no Whelan‘s. O senhor disse que podiamos ficar aqui.

— Eu devo ter sonhado isso — ele falou, enquanto se abaixava para pegar a calça no chão.

— Então pense mais uma vez — ela retrucou com raiva. — O senhor não sonhou . Da mesma forma que não sonhou que o apartamento estava limpo ou que sua cama estava feita ou que havia costeleta de porco na cozinha. Quem o senhor acha a cozinhou? As fadas?

— O diabo, na certa. Estava uma porcaria; queimada — ele saiu da cama e procurou pelos sapatos.

— Não custa nada agradecer — Fiona elevou a voz. — Não custa nada dizer muito obrigado!

Michael tapou os ouvidos com as mãos e fez uma careta.

— Minha cabeça está rachando. Vê se não fala muito.

A essa altura, Fiona estava furiosa.

— Vou falar, sim, e o senhor vai me ouvir, O senhor tem que parar de beber, tio Michael. Eu sinto muito pela morte da tia Molly, sei que deve estar sendo muito difícil para o senhor, mas assim vai acabar perdendo a sua loja.

— Ela já está praticamente perdida — ele disse. — Eu devo centenas de dólares e não tenho o dinheiro — ele abriu a gaveta de cima da sua cômoda enquanto falava.

— Mas eu tenho.

Ele riu.

— Não esse dinheiro todo — ele disse, procurando algo na gaveta.

— Tenho, sim. Recebi uma... indenização. Do patrão do papai. Pelo acidente dele. Empresto o que for preciso. O senhor poderá pagar ao banco e a todos os credores.

— Não, você é que vai me escutar — ele disse, apavorando-a com a súbita verocidade de sua raiva. — Eu não quero o seu dinheiro. Dispenso a sua ajuda. Tudo o que quero é ficar sozinho — tomou outro trago do uísque, fez um gesto de desdém e saiu do banheiro.

Fiona o seguiu, com Seamie atrás dela.

— Mas o senhor não se preocupa com a loja? — ela perguntou. — Não se preocupa nem consigo mesmo? Com a sua filhinha? Com a gente?

Michael bufou.

— Me preocupar com vocês? Mocinha, eu nem os conheço.

Fiona se sentiu como se tivesse levado uma bofetada. Seu bastardo, ela pensou. Se fosse o contrário, se os filhos dele pedissem ajuda aos pais dela, certamente o pai não os trataria tão mal.

O senhor vai acabar nas ruas, sabe disso ela disse, com a paciência se esgotando como o estopim de uma dinamite. — Vai virar mendigo e vagar por aí sem destino. Dormindo nas ruas. Revirando latas de lixo atrás de comida. Só porque não quer se encarar. O senhor acha que as outras pessoas não sofrem perdas? O senhor acha que realmente que é o único? Eu quase enlouqueci quando perdi meus pais, mas segui em frente. Seamie também. A verdade é que um garotinho de cinco anos tem mais... mais culhões que o senhor!

Essas palavras, especialmente as últimas, o deixaram paralisado.

— Você não desiste, não é? — ele disse, tirando alguma coisa do bolso. Fiona esquivou-se quando ele a jogou em sua direção. O objeto caiu aos pés dela. — Está — ele gritou. — Fique com ela! Fique com a merda da loja. Ela é sua. Só me deixe em paz, sua agourenta!

Ele saiu batendo a porta com violência. As lágrimas de Fiona escorreram. Ela olhou para o chão de modo que Seamie não pudesse vê-las. Enquanto fazia isso, o o que Michael tinha jogado lhe chamou a atenção. Era prateado e brilhava no escuro. Era uma chave. As palavras de Michael ecoaram em seus ouvidos. Fique com ela. Ela é sua. Arqueou-se e tocou-a, e de repente esticou a mão para pegá-la.

O que ela estava pensando? Estaria ficando louca? Era necessário ter experiencia para gerenciar uma loja: saber comprar a quantidade certa de mercadorias, como se manter a par do estoque e ler um balancete. Ela não possuía esse tipo de experiência. Joe, sim. Mas Joe não está aqui, não é? Dizia uma voz. Aquela voz no fundo dela que sempre apontava o que ela não via. Ele está em Londres, continuou a voz, com Millie Peterson, E você está em Nova York, sem emprego, morando numa casa que logo será vendida se você não parar de se lamentar e choramingar e encontrar um jeito para que isso não aconteça.

Ela esticou outra vez a mão e agarrou a chave. Enquanto fazia isso, ouviu passos na escada e em seguida uma batida tímida à porta. A porta se abriu com um rangido.

— Alô, Michael? — chamava uma voz. — Você está aí?

Fiona pegou a chave no chão, colocou-a no bolso e ergueu-se.

— Alô? — uma mulher esticou a cabeça pela abertura da porta. — Michael?

— Oh! — ela exclamou, espantada. — Meu Deus! Você me deu um susto — a mulher entrou, apertando o peito com uma mão vermelha e encharcada. Ela era baixa, de constituição sólida, com cabelos castanhos presos num coque, rosto redondo e grandes olhos castanhos. Suas mangas arregaçadas exibiam braços molhados picados de espuma de sabão. — Eu sou Mary Munro, a inquilina de Michael. Moro no andar de cima — ela disse.

— Eu sou Fiona Finnegan e esse é Seamie, o meu irmão. Somos sobrinhos do Michael. Desculpe por tê—la assustado. Não era a minha intenção.

Os olhos de Mary cravaram-se na face de Fiona, molhada de lágrimas.

— Eu ouvi a gritaria. Foi por isso que desci — ela disse com um leve sotaque cês. — Estou vendo a acolhida que ele deu pra vocês.

Fiona esboçou um débil sorriso.

— Uma acolhida não tão boa quanto esperávamos — ela disse.

Mary balançou a cabeça.

— Vamos até lá em cima. Você está com cara de quem precisa de uma xícara de chá — Mary se pôs a falar enquanto se dirigiam ao terceiro andar. Fiona ficou sabendo que ela emigrara da Escócia dez anos antes e que já fazia três anos que morava no prédio, com o filho e o sogro. O marido dela tinha morrido. Sofrera um acidente em um trem de carga. Eles foram recebidos à porta por um garoto que aparentava uns quatorze anos e que Mary apresentou como seu filho.

— Pegue as xícaras e os pires bonitos, lan, e coloque a chaleira no fogo — eia disse, acomodando-os na mesa da cozinha. — Vou enxaguar e dependurar a roupa e depois tomaremos uma bebida quente.

A cozinha de Mary exalava aroma de coisas boas: pão, canela e bacon. A pia cintilava. O fogão tinha sido recém-pintado de preto. O chão de linóleo desgastai e rachado em alguns pontos estava encerado e brilhava. Nas janelas havia cortinas brancas de renda dependuradas. Humilde, mas imaculada, aquela cozinha evocava em Fiona a lembrança da cozinha de sua mãe e era um bálsamo estar dentro dela..

— Quer dar uma olhada em sua prima? — perguntou Mary, torcendo as fraldas.

— O bebê? Ela está aqui?

— Está, sim, na sala de visitas, E uma criança tão boa. Estou com ela desde o funeral.

— Oh, é um alívio saber que ela está bem — disse Fiona. — O tio Michael me disse que ela estava com uma amiga, mas não disse onde. E também não disse onome dela.

Mary balançou a cabeça.

— Ele já não sabe nem mesmo o nome dele. Ela se chama Eleanor; é o nome da mãe de Molly. Nós a chamamos de Nell. Vá vê-Ia. Eu não vou demorar muito.

Fiona foi até a sala de visitas e viu uma mãozinha rechonchuda agitando — dentro de um cesto e ouviu um balbucio feliz de bebê. Espiou dentro do cesto. A menininha era uma verdadeira visão. Tinha os cabelos negros e os olhos azuis pai e o rostinho lindo e redondo da mãe. Quando Fiona segurou a mãozinha dela e fez uma festinha, foi recompensada com um sorriso divertido. Tirou-a da cesta e levou-a para a cozinha, feliz por vê-la tão bem cuidada.

— Aqui estamos! — disse Mary, dependurando as últimas fraldas de Nell num varal à janela. Sorriu quando viu Fiona e Neil se comunicando através de gu-gus. — É uma princesinha, não é? Diga, Fiona, você é filha de Patrick Finnegan? De Lodres?

— Sou, sim.

— Já estava achando isso. Seu sotaque não nega. Molly me falou sobre o irmão de Michael. Acho que tinha esperança de que o seu irmão... Charlie, não é?.. viesse pra trabalhar na loja.

— Ele teria adorado.

— Teria? Ele não veio com vocês?

—Não, ele não veio. Morreu alguns meses atrás.

— Eu sinto muito! — exclamou Mary, baixando o bule que acabara de apanhar. — Deve ter sido horrível para os seus pais perder um filho tão jovem.

— Na verdade, perdemos nossos pais antes de termos perdido Charlie — disse Fiona. Enquanto Mary se esquecia do bule e se sentava, Fiona lhe contava uma versão abreviada de tudo o que ocorrera com ela e Seamie nos últimos meses.

—Meu Deus, Fiona, depois de tudo isso você viaja pra América e encontra o seu tio desse jeito. Deve ter tido um tremendo choque!

— Pois é. Ainda custo a acreditar — disse Fiona, com um toque de amargura na voz — Pelas coisas que ouvíamos de nossos pais e pelas cartas que recebíamos do tio Michael, eu achava que ele era um bom homem. Nunca imaginei que ele pudesse ser tão estúpido.

Mary balançou a cabeça em negativa.

— Oh, mas ele não é. Você não deve pensar isso. Pelo menos... não era assim. Era um homem extremamente gentil. Sempre sorrindo, sempre pronto para ajudar. Foi a bebida que deixou ele assim. Antes da morte de Molly, ele não bebia. De vez em quando tomava uma ou duas cervejas em casa, mas não era um beberrão. Era bom homem, um excelente marido. Trabalhador. Tinha ajeitado o apartamento e ia ajeitar o meu. E ele também queria expandir a loja. O Michael tinha tantos planos. Se a Molly o visse agora, ela ficaria arrasada. Eu não sei o que fazer. Já tentei conselhos e ameaças. Mantenho a Nell longe dele. Nada funciona. Logo ele estará nas ruas. E depois? Molly era a minha melhor amiga. Eu amo a Nell como se fosse a minha própria filha. O que vou dizer quando ela crescer? Que o pai a abandonou? — sua voz se entrecortou. — Oh, querida, aqui vou eu... — secou as lágrimas. — Eu sinto tanto. O meu coração fica partido só de ver o que ele está fazendo consigo mesmo. É o luto. Eu sei o que é isso. Ele nunca chorou, Fiona. Nem uma vez. Mantém tudo trancado. Ele bebe e esbraveja quando tudo o que precisa é somente chorar.

Mary serviu o chá. Depois, fatiou um bolo de gengibre e serviu generosos pedaços. Fiona provou. O bolo estava delicioso, ela elogiou Mary. E logo provou o chá.Era horrível. Tão ruim quanto o chá que tinha comprado no dia anterior. ―Delicado‖, definiu o vendedor. ―Agua suja‖, teria sido a definição mais apropriada. Era um chá-preto chinês da pior qualidade, sem nenhum viço, com folhas muito velhas, como um tapete roto e encardido. Stuart Bryce, um homem de quem ela e Nick ficaram amigos no navio, um importador de chá e café que estava indo para Nova York a fim de abrir uma filial de sua firma, já a tinha alertado sobre a qualidade do chá na América. Ela guardou na memória o aviso de que devia procurar folhas indianas. Como todos os londrinos, Fiona achava que era muito mais fácil com as adversidades da vida com uma xícara de chá bem forte na mão.

Mary adoçou sua xícara de chá e disse:

— Não sei se você sabe; ele está prestes a perder a loja. Isso é ruim pra ele também pra nós. Talvez os novos proprietários não nos queiram aqui. Não sei para onde iremos. Michael não cobrava muito. E não sei onde encontraremos um lugar com um quintal para o Alec e as plantas dele. E o meu sogro. Ele é jardineiro. Está muito velho e não encontra mais trabalho, e mesmo assim consegue uns poucos dólares aqui e ali — seus olhos brilhantes estavam preocupados.

— Mas era justamente por isso que estávamos discutindo agorinha mesmo. - disse Fiona, lembrando-se da briga com Michael. — Eu queria trabalhar pra ele. Um dia eu quero ter a minha própria loja. O que eu esperava é que ele pudesse me ensinar o que preciso saber.

— Se ao menos eu tivesse o dinheiro — disse Mary —, eu mesma pagaria para o desgraçado do banco. Mas ele deve uma fortuna... centenas de dólares...

— Isso não adiantaria nada — retrucou Fiona, olhando para a xícara de chá.

Eu já tentei. Tenho algum dinheiro comigo e me ofereci para pagar a dívida, e ele se recusou. — Ela mexeu o líquido e disse bem devagar: — Mas me deu a chave dele. E disse que eu poderia ficar com a loja.

Fez—se silêncio. Depois, Mary disse:

— Ele lhe deu a chave?

Fiona a olhou. Os olhos de Mary já não estavam tão aflitos. Ela inclinou-se frente e se ajeitou na beirada da cadeira, com uma expressão intensa e excitada.

— Bem, mais ou menos. Ele atirou a chave em mim.

— Meu Deus, menina! Você tem a chave e o dinheiro... você pode reabrir a loja!

Desde o instante em que o tio de Fiona saíra intempestivamente, ela cogitava exatamente a mesma coisa. E agora Mary enunciava os pensamentos dela em alto e bom som.

— Você realmente acha que eu poderia? — ela perguntou com timidez.

Mary se debruçou sobre a mesa e segurou as mãos de Fiona.

— Acho, sim! Você não acabou de dizer que queria uma loja? Fique com a do seu tio!

— Mas não sei gerenciar uma loja, Mary. E se eu fizer uma baita besteira? — ela oscilava entre o desejo e o terror.

— Você não vai fazer nenhuma besteira, Fiona. Tenho certeza de que não vai! Posso ver que você é uma moça capaz. Aprenderá o que precisa saber. Michael não sabia nada quando começou. Ele também teve que aprender.

A ideia toda era uma loucura — pura e simples — e ainda havia o risco de Fiona perder o seu dinheiro. Mas, desde que tocara naquela chave, ela pensava em levar a ideia adiante. E se acabasse dando certo? Salvaria a loja, manteria Mary e a família no prédio, tiraria o tio das ruas e não teria que trabalhar numa fábrica.

— Acho que preciso ir ao banco pra falar com o encarregado — ela disse, excitada. — Mas nunca pisei dentro de um banco. Não saberia o que dizer pra eles. E, mesmo que saiba, talvez eles não me dêem ouvidos.

— Aposto que vão ouvir. Estão à beira de perder dinheiro com o leilão. Nunca conseguiriam reaver o dinheiro deles. Tenho certeza de que preferem que se continue com o pagamento da hipoteca. Nós vamos ajudá-la, não é, lan? — lan concori iorosamente com a cabeça. — Ajudaremos na faxina. Eu tomarei conta do Seamie e lavarei as cortinas pra você. Não queremos deixar o nosso apartamento, não é, lan? — lan balançou a cabeça. Ouviram a porta abrir e fechar. — Olhe, é o Alec — disse Mary. — Ele também vai ajudar. Pode fazer as cantoneiras para as janelas. Molly estava querendo fazê-las. Ela queria que ficassem prontas para a primavera. Oh, Fiona, diz que sim, diz! Faça a loja funcionar.

Fiona riu.

— Está bem, Mary, farei isso!

Mary pulou e abraçou-a, repetindo inúmeras vezes que Fiona não falhariaa. Faria da loja um sucesso, claro que faria. Quando ela se sentou, um homem aparentando uns sessenta anos entrou na cozinha. Suas roupas estavam gastas, mas limpas, passadas e caprichosamente costuradas. Tinha cabelos grisalhos sob um boné de tweed, barba grisalha e doces olhos verde-acinzentados.

Eu trouxe peixe, Mary — ele anunciou feliz, com um sotaque escocês tão acentuado que Fiona quase não entendeu. — É de primeira.

— Papai — Mary o repreendeu —, não empeste o lugar, estamos com convidados.

Mary apresentou Fiona e Seamie para o sogro e lhe falou sobre os planos Da moça. Ele prometeu fazer lindas cantoneiras, e encher todas de jacintos, narcisos, e amores—perfeitos. Disse que sairia para preparar seus canteiros de flores e pediu ao neto para ajudá-lo.

— Vamos, vovô — disse lan, enquanto colocava um último pedaço de bolo na boca. Pegou baldes do avô, acompanhado pelo olhar desejoso de Seamie.

—Você também gostaria de ajudar, rapazinho? —perguntou Mary. — Estou certa eles vão precisar de mais ajuda. — Seamie balançou a cabeça com avidez. — Então, você também pra fora.

Fiona sorria enquanto seu irmão seguia AIec e lan para fora do apartamento, com um balde na mão. Seria bom para ele se divertir lá fora com companheiros sem quee lidar com gente que tinha morrido. Ela ajudou Mary a lavar as louças e depois que decidiram que seria melhor começar a faxina da loja naquele instante.

Enquanto Mary abria o armário de limpeza em busca de sabão, trapos e esfregão Fiona se dirigia à janela para dar uma olhada no irmão. A cozinha dava para o quintal e ela pôde ter uma visão clara do menino; ele misturava terra e fertilizante em um carrinho de mão com uma enxada. Mostrava-se desajeitado com o tamanho da ferramenta, mas AIec não se importava. Ela ouviu quando o vei o encorajou, acrescentando que, se ele segurasse o cabo mais embaixo, seria mais fácil de manejar.

Soprou uma brisa suave. Segunda-feira; era o primeiro dia de abril e, pelo que a brisa indicava, a primavera não estava longe. Ela se sentiu feliz. Aquela temperatura amena significava que não gastaria muito dinheiro no aquecimento do prédio.

Sentiu um frio na barriga quando pensou na loja, mas depois se lembrou que tinha sobrevivido à perda da família e conseguido iludir assassinos e escapado a salvo junto com o irmão. Se havia conseguido tudo isso, ela poderia gerenciar com êxito um armazém.

— Lá vamos nós — disse Mary, tirando o bebê do colo dela e entregando-lhe um esfregão, balde de metal e uma barra de sabão. — Só vou colocar a Nell na cesta e depois descemos a escada.

Já fora do prédio, Fiona enfiou a chave na fechadura da porta da loja e girou-a.

— Veja só, menina — disse Mary. — Você só tem um dia aqui em Nova York e já é dona de uma loja. Isso faz a gente pensar que todas essas coisas que são ditas da América podem ser verdadeiras. Não se diz que aqui é a terra prometida e que as ruas são pavimentadas de ouro?

A fechadura destravou. Fiona girou a maçaneta e a porta se abriu. Um forte fedor a fez apertar o nariz. Ela sentiu náusea e cobriu as narinas com um dos panos de limpeza de Mary. Tão logo seus olhos se acostumaram com a escuridão no interior da loja, ela viu a fonte do fedor: um balcão refrigerado de alimentos. Seu conteúdo parecia mover-se. Larvas, ela se deu conta. Milhares de larvas. Eram marrons e brancas e se contorciam. A náusea se intensificou e ela teve que fazer força para não vomitar o bolo de gengibre que acabara de ingerir.

— Isso me faz pensar que o ditado que o meu pai ouviu um dia de um marinheiro chinês pode ser verdadeiro — ela disse, impressionada com a bagunça à sua frente.

— E que ditado é esse? — perguntou Mary, com os olhos irritados pela sujeira e um lenço amarrado ao rosto.

— Cuidado com o que você deseja, pois isso pode se realizar.

 

QUIETINHA AGORA, Nell, você é tão bonitinha... — Mary cantarolava para o bebê que se esgoelava. Não adiantava. O choro da criança era ensurdecedor.

— Fi? Pode me dar dinheiro pra roscas? Você me dá um níquel?

— Não, Seamie, você não pode comer roscas, senão acaba não jantando.

— É almoçando, Fi. O lan disse que aqui jantar é almoçar. Aqui eles chamam janta de ceia. Eu quero um níquel.

—Não.

— Charlie sempre me dava um níqueL

— Charlie nunca lhe deu um níquel. Não temos níqueis em Londres.

— Está bem, então é pêni. Você me dá um pêni? Você me dá cinco?

Soou um tremendo barulho vindo do porão, seguido por um grito.

— Que droga, lan! Olhe só o que você fez! Agora estou todo coberto dessa coisa...

— Foi você, Robbie! Eu disse pra você segurar na sua ponta!

Fiona largou o pano que usava para polir a caixa registradora e correu até a porta.

— lan! Robbie! Vocês estão bem? — ela gritou por cima do berreiro de Nell.

Ian estava no meio da escada e segurava um caixote de madeira. Abaixo dele, o seu amigo Robbie segurava a outra extremidade do caixote, coberto de um mofo marrom.

— Estávamos tentando trazer algumas maçãs estragadas aqui pra cima. E o caixote caiu — ele disse.

Fiona sentiu um puxão em sua saia.

— Fi eu quero um níquel!

Marv disse aos gritos que Nell estava se esgoelando como uma sirene porque devia estar molhada e que ela estava subindo para vê-la. Fiona mandou que os meninos também subissem para se lavar. Com as mãos imundas, ela tirou cinquenta centavos do bolso da saia.

— Pegue, lan, é pra comprar o jantar... que dizer, o almoço... pra todos vocês, quando acabarem de se lavar — ela disse. — E leve o Seamie junto, por favor! Depois que eles saíram, deixando a loja em silêncio, Fiona sentou-se no bando balcão e recostou-se na parede. Estava suada e imunda, esgotada e dolorida. O otimismo que sentira na sexta-feira na cozinha de Mary se dissipara, deixando-a com a sensação de que tinha dado um passo maior que as pernas. Já fazia dias que estava fazendo a limpeza sem parar junto com Mary, lan e Rohbie e ainda havia uma montanha de serviço a ser feito. Ela pensou que, se o apartament de Michael estava em ruínas, isso não era nada em comparação com a loja.

Os parasitas e a negligência fizeram um trabalho terrível. Depois de ter solucionado o fedor da comida estragada, ela e Mary se depararam com um ninho de ratos caixa de chá. Outros tinham roído barris de picles, deixando-os escorrer pelo chão, e, para alcançar o tabaco, também roeram caixas de charuto. A farinha de e a aveia se encheram de brocas. Os potes de mel e melado estavam ladeados de moscas mortas. Frutas, verduras e legumes acabaram apodrecendo nas caixas.

Foram precisos dois dias para tirar as mercadorias estragadas de dentro da loja. O balcão refrigerado teve que ir para o lixo; estava completamente arruinado. Fi quis pagar a todos, mas Mary se recusou a aceitar qualquer dinheiro. Apesar disso, ela arranjou um jeito de passar um dólar para cada um sem que Mary visse. Alec foi outro que participou. Ficou nos fundos para construir as cantoneiras. Seamie também fez sua parte, limpando os lugares que a sua altura permitia. Somente Michael ficou de fora. Não moveu um dedo para ajudar. Nem mesmo quando, certa manhã, ela o procurou no Whelan‘s para fazer uma pergunta sobre a caixa registradora.

— Não consigo abrir a gaveta da caixa, tio Michael — ela disse, aflita e furiosa por vê—lo outra vez bêbado. — Tem uma chave?

—Tem, sim.

— O senhor pode me dar?

— Não. A caixa registradora não é sua. A loja também não é sua — ele declarou com voz pastosa; tão embriagado que teve que se segurar na barra para não cair do banco.

— Mas foi o senhor mesmo que disse para que eu ficasse com ela.

— Mudei de ideia. Não quero vê-la aberta.

— Seu desgraçadol Dê logo a merda da chave

— Antes me dê um dólar — ele disse.

— Eu não posso acreditar nisso. O senhor está me vendendo a chave? O senhor não tem vergonha?

— Vergonha eu tenho, minha garota querida. O que eu não tenho é dinheiro.

Fiona fumegava de raiva. Ela não queria que o dinheiro de Michael fosse parar na caixa registradora de Tim Whelan, mas precisava da chave. Tirou uma do bolso e trocou-a pela chave.

— Um dólar — ela disse. — E tudo que o senhor vai ganhar, por isso trate de economizar.

Lançando um olhar de desaprovação para o tio e depois para Tim Whelan, ela deu meia-volta e se dirigiu para a porta. Ao girar a maçaneta, virou-se para Michael e disse:

— Ela é linda, o senhor sabe — ele a olhou sem entender. — Sua filha. Nell. Tem os olhos azuis e o cabelo preto do senhor, o resto é todo da tia Molly.

A dor cortou a face de Michael quando ele ouviu o nome da esposa

— Eles a chamam de Nell? — ele perguntou, e pediu outra dose.

— Imbecil — ela disse entre dentes, fazendo jus à sua educação. Precisava desesperadamente da ajuda dele. Na limpeza, por mais pesada que fosse, ela era perfeitamente capaz. Mas negociar com o banco e os credores exigia uma habilidade que ela não possuía. Dois dos fornecedores de Michael — o moleiro e o peixeiro já tinham aparecido. Eles viram a loja aberta e entraram para cobrar o dinheiro. Ela pagou, esperando que o pagamento restituisse o crédito do tio, mas eles se recusaram. Como é que ela podia achar novos fornecedores? E quando os encontrasse, como saberia se não estava sendo passada para trás? Ela ainda não estava a par do coisas. Nem fazia ideia do que os americanos gostavam de comer. Qual a quantidade certa para as encomendas? Uma loja daquele tamanho demandaria por semana um saco de farinha de aveia de vinte quilos? Ou dois sacos? Ou dez? Quantos litros de leite ela teria que comprar por dia? Quanto de carnes e de embutidos? Aquilo não daria certo. Ela era muito inexperiente. No banco, então, a coisa seria bem pior. No dia anterior, na segunda-feira, ela foi até lá e marcou um encontro com o presidente para o fim da semana. Ele veria que ela não sabia nada de gerenciamento de lojas e a despacharia.

Como sempre fazia quando estava preocupada ou assustada, ela enfiou por a mão no bolso à procura da pedra azul que Joe lhe dera, mas a pedra não estava lá. Claro que não, já a tinha vendido. Sentiu-se completamente desolada. Sentia a falta de Joe e precisava muito dele. Se ao menos ele estivesse ali. Saberia melhor o que fazer. Tudo seria mais fácil se estivessem juntos. Quando ela desanimasse, ele a provocaria com brincadeiras e a beijaria até ela rir, como costumava fazer. Era tão doloroso pensar nele. Era como pôr o dedo numa velha ferida e se dar conta de que ainda doía. Por que não conseguia esquecê-lo como ele se esqueceu dela e da noite de Guy Fawkes?

O relógio na parede badalou meio-dia. Em Londres já deviam ser cinco horas da tarde, ela pensou. Hora do chá de uma terça-feira. Ele devia estar saindo do trabalho e voltando para casa, onde quer que fosse. Ela tentava imaginar a vida de Joe naquele momento. Será que morava numa casa elegante? Será que trajava roupas finas e andava de carruagem? Será que já era uma pessoa importante na Peterson? Seria feliz? A simples ideia de que ele era visto por Millie todos os dias e usufruia o sorriso dele e o tocava deixou-a dilacerada. E ela? Nunca mais o veria? Talvez ele estivesse em casa desfrutando uma refeição quente, ou em algum restaurante chique, ou..

Independentemente de onde estivesse, claro que o bastardo não estava no meio de uma loja bagunçada, coberto de poeira da cabeça aos pés, disse a voz interna de Fiona com indignaçáo. Ela tentou seguir o que a voz dizia. Tentou sentir raiva e não tristeza; seria mais fácil. Tentou se convencer de que não dava a mínima para onde ele estava ou para o que fazia, simplesmente porque ela o odiava. Mas isso não era verdade. Ela o amava. Ainda. Apesar de tudo. E a coisa que ela mais desejava no mundo é que ele entrasse pela porta e a tornasse nos braços, dizendo-lhe que tudo não passara de um terrível engano.

Praticamente impossível, ela pensou. Com esforço, tirou Joe da cabeça. Tinha muito trabalho a fazer e não sobrava tempo para ficar parada, sentindo pena de si mesma. As paredes precisavam de uma pintura. Ela não fazia a menor ideia de onde comprar a tinta, mas se lembrava de ter visto baldes de tinta no prédio ao lado no dia de sua chegada. Pouco importava quem residia ali, o fato é que o lugar fora pintado recentemente. Talvez o morador; ou moradora, lhe indicasse o caminho Uma carruagem parou em frente à loja justo na hora em que ela saía. A porta do veículo se abriu e saltou um homem alto e louro, carregando uma cesta de piquenique.

— Nicholas!— ela exclamou, feliz. — Que diabo você está fazendo aqui?

— Fiquei com saudade de você! Sei que íamos nos encontrar na próxima terça, mas não aguentei a espera.

Fiona ficou contente por vê-lo. Um simples sorriso dele tinha o dom de animá-la.

— Você está ótimo — ela disse. E ele, como sempre, estava realmente bonito e elegante. Embora um pouco pálido.

— E você está parecendo uma catadora de lixo! — ele disse, enquanto limpava a sujeira no queixo dela. — Que diabo você está fazendo? — ele a examinou com um olhar de cima a baixo, viu as mangas arregaçadas e a saia amarrada. Depois, notou a pilha de lixo na caçamba, a loja vazia, o cartaz do leilão ainda pregado na vidraça e franziu a testa. — Hmmm, as coisas não estão saindo de acordo com seus planos, não é, truta velha?

— Parece que não — ela sorriu com a expressão esquisita que ele usou. Ela a chamava pelos nomes mais terríveis. Sapato velho. Mala velha. Toupeira velha Cerveja choca.

— O que aconteceu?

Ela suspirou.

— Bem... minha tia está morta e meu tio virou um beberrão e não trabalha há meses. O banco fechou a loja dele e planeja leiloá-la. Marquei um encontro com o presidente do banco para ver se ele me deixa assumir a dívida. Já gastei uma boa parte do meu dinheiro no pagamento dos credores. O pior é que talvez tenha sido em vão. O banco pode tranquilamente me descartar.

— Entendo.

— E como estão as coisas pra você?

— Perfeitas! — ele disse, radiante. — Não consigo achar um lugar para morar. Não consigo achar um lugar para a minha galeria. E, quando encontro, ou é pequeno ou é muito sombrio ou é muito caro. Para completar, faz uma hora que recebi um telegrama dizendo que todas as telas que comprei, todo o meu estoque, foram colocadas no navio errado, lá no porto de Le Havre, e enviadas para Johanneshurgo. Na Africa. Vai levar um tempão até que cheguem aqui. Meu hotel é barulhento. A comida péssima. E o chá, melhor nem falar. Não consigo entender ninguém nesta droga de cidade. Eles não falam o inglês. E também são uns grosseirões.

Fiona sorriu.

— Eu odeio Nova York — ela disse.

— Eu também. Desprezo esse maldito lugar — ele riu de volta para ela.

— Mas, quando aportamos, você disse...

— Esquece o que eu disse. Eu estava delirando — ele pôs o braço em torno dos ombros dela.

— Oh, Nick — ela suspirou, aconchegando-se nele. — Que burrada.

— E bota burrada nisso.

Ela o encarou.

— E agora, o que é que a gente vai fazer?

— Encher a cara de champanhe. Imediatamente. E o mínimo que podemos fazer.

Fiona pegou as coisas que ele segurava, colocou-as dentro da loja e disse que iria até a casa ao lado para saber onde poderia comprar tinta. Já à frente da porta vizinha eles ouviram vozes inflamadas — a de um homem com sotaque nova-iorquino e de uma mulher com sotaque italiano. Aparentemente, os dois brigavam. Fiona estava para bater à porta e deu um passo atrás, mas em segundos surgiu um rapaz amistosocusando suspensórios estampados e uma gravata com a mesma estampa.

— Entreml Entrem! Eu sou Nate. Nate Feldman. E esta é Maddalena, minha esposa — uma mulher estonteante de olhos negros e vasta cabeleira negra acenou da mesa de desenho. Vestia uma blusa branca manchada de tinta e uma saia cinza—azulada.

Fiona se apresentou e também a Nick, e disse em seguida:

— Eu... eu queria saber se vocês podem me dizer onde comprar tinta. A loja de tintas. Estou trabalhando na loja ao lado... a loja do meu tio, e há poucos dias vi baldes de tinta aqui na frente... espero não estar interrompendo...

— Ora, você ouviu a gritaria? — disse Nate, rindo. — Não se preocupe, é assim que trabalhamos. Primeiro, nos esgoelamos, depois, voam facas e balas, e quem sobrar é o vencedor — ele olhou para os semblantes atônitos de Fiona e Nick. — Estou brincanndo com vocês dois! E uma brincadeira. Sabem... ha ha ha? Agora prestem atenção nessa ideia e me dêem a opinião de vocês... — ele abriu um grande cartaz imaginário no ar — Imaginem o desenho de uma carruagem tendo acima as palavras ÁGUA DO HUDSON. O condutor também aparece nesse desenho, encostado no assento e falando com você o freguês. Ele diz; ―Para os problemas de estômago, experimente nossa água gasosa, entregamos rapidamente!‖. Olhem, lá está o desenho, mostre pra eles, Maddie... estão vendo? O que vocês acham? Será que funciona?

— Sim. Acho que sim — disse Nick. — A ilustração é muito convincente.

—E as palavras? Vocês gostam...

— Nate, pelo amor de Deus! Convide—os a se sentar! — disse Maddalena.

— Desculpem! Por favor... — ele apontou para um sofá coberto de anuncios e cartazes. Fiona tirou um cartaz do lugar e o pôs de lado.

— Desculpem a bagunça — ele continuou. — Aqui é nosso escritório e nossa casa. Estamos assumindo o negócio, sozinhos. Acabamos de abrir a nossa própria agência de publicidade. Está um caos.

— Este aqui está maravilhoso, senhor Feidman — disse Fiona, admirando põster em suas mãos.

— Por favor, só Nate.

— Nate — ela continuou. — Que desenho lindo! — o pôster exibia a frase

 

BISCOITOS WHEATON. UMA AVENTURA EM CADA CAIXA! A ilustração mostrava crianças que acabavam de abrir uma caixa de biscoitos Wheaton. Os biscoitos escapavam da caixa e transformavam-se em zebras, tigres e girafas que carregavam as crianças no dorso pelo quarto. Fiona estava certa de que Seamie ficaria louco por uma caixa dessa no instante em que visse o pôster. — Com um anúncio como esse, os biscoitos Wheaton venderão como água — ela acrescentou.

— Hum... bem — disse Nate encabulado —, ainda não está pronto.

— Nenhum desses está — disse Maddie, saindo de detrás da prancheta. Abrimos na semana passada. Ainda é cedo para termos clientes.

— Todos esses são experiências — disse Nate. — Abordamos algumas empresas e nos oferecemos para fazer o primeiro anúncio de graça. Se os anúncios incrementarem as vendas dos clientes, aí eles nos pagarão pelo segundo.

— E uma forma complicada de se começar — comentou Nick.

— É mesmo, mas logo teremos contas de verdade — afirmou Nate com otimismo. — Nós temos muitos contatos. Eu, da Pettingill, a firma onde trabalhava. E Maddie, da J. Walter Thompson. Isso é muito importante para o nosso começo não é, Mad?

Maddie fez que sim com a cabeça, sorriu para o marido e Fiona identificou um olhar esperançoso, mas também um traço de preocupação entre ambos. Nate voltou-se para os convidados,

— Hoje eu realmente esqueci das boas maneiras. Posso oferecer um drinque a vocês, ou alguma coisa para comer? — ele perguntou.

— Oh! Nate, querido, eu... eu ainda não fiz compras hoje — disse Maddie sem jeito. Ela voltou-se para Fiona. O rosto dela estava ruborizado. — Veja só, estamos tão ocupados que esqueci de fazer as compras.

Fiona se deu conta de que eles estavam sem dinheiro.

— Ora, não se preocupe. De qualquer forma, não podemos rapidamente. — Nós... eu... tem a loja e...

Nick intrometeu-se, com elegância.

— Olhem, não quero saber de vocês nos convidando quando acabei de bater à porta de Fi com uma grande cesta de petiscos e duas garrafas de Cliquot de uma excelente safra. Não seria melhor se vocês se juntassem a nós? Eu insisto. De verdade. Comprei em excesso e não consigo ver tanta comida desperdiçada. quando há tanta criança faminta em... hum — fez um gesto com a mão — qualquer lugar onde haja crianças famintas hoje.

Fiona os convenceu a dizerem sim e no fim eles cederam. De volta à loja, Nick abriu a cesta e tirou caviar, salada de lagosta, galantina de frango, salmão defumado, frutas e bolinhos. E nela ainda havia pratos de porcelana, talheres de prata e de cristal para quatro, mas comida suficiente para o dobro disso. Utilizaram o balcão como mesa e conversaram enquanto comiam. Nate e Maddie queriam saber de Nick e Fiona e sobre o que eles planejavam fazer na cidade. Depois, Nate explicou para Fiona o que era a nova ciência da publicidade, seu poder, sua importancia e a necessidade de incutir as marcas dos produtos na consciência do público. Aconselhou-a a fazer uso da propaganda quando a loja reabrisse. Fiona afirmou que seria a primeira cliente pagante deles e Nick disse que seria o segundo.

Durante a refeição, os meninos entraram com um enorme saco de roscas que colocou de lado até que eles se alimentassem de maneira mais adequada. Ian subiu correndo a escada para pegar mais pratos. Seamie abraçou Nick e transbordou de felicidade por vê-lo vivo.

— Não pergunte — disse Fiona para Nick, que exibia um semblante aterrorizado e chamou—o de pai e ela teve que explicar para Nate e Maddie que isso não era o que parecia. Depois de ter alimentado Nell e a colocado para dormir, Mary desceu e procurou se familiarizar com Nick, que logo lhe estendeu um copo de champanhe. Saindo do jardim, Alec apareceu com uma cantoneira já pronta e se mavilhou ao ver o estado da loja.

— Obrigada, Alec — disse Fiona choramingando, enquanto preparava um prato para ele. — Tomara que eu não esteja limpando a loja para o próximo dono.

Mary espantou as preocupações dela, e Maddie, que lá tinha terminado sua refeição olhou para as paredes e disse que um bege clarinho cairia bem melhor que branco. Deu para Fiona o endereço de uma loja de tintas nas vizinhanças e o nome da cor que tinha em mente; lan e Robbie ofereceram-se para buscá-la. Maddie também falou que as paredes tinham que ser lavadas antes de ser pintadas. Pegou um balde já estava com água e sabão, arregaçou as mangas e se pôs a trabalhar. Fiona se emocionou e lhe disse para não se preocupar, mas ela insistiu, dizendo que, se não fizesse aquilo, teria que voltar ao trabalho com o marido e francamente preferia lavar as paredes. Fingindo-se ofendido, Nate pegou um pano e começou a polir a maçaneta da porta. Entusiasticamente incompetente, Nick pegou o esfregão e começou a passa-lo no chão, mas só conseguiu sujá-lo ainda mais.

Eles riam de Nick e Fiona se via um pouco aliviada da carga em seus ombros; pela primeira vez desde que chegara a Nova York, ela se sentia feliz, verdadeiramente feliz. Talvez as coisas não tivessem saído exatamente como planejara, e talvez até ela não recebesse ajuda do tio.

 

BOA TARDE, senhor Ellis, eu sou Fiona Finnegan...

— Muito artificial, pensou Fiona. Nervosa, ela caminhava com os saltos das botas ecoando pelo piso de mármore da sala de espera do presidente do banco. Para todos os lados que olhava, via-se mármore brilhante e frio — no chão, exceto nas paredes cobertas de murais que exibiam velhos mercadores aIemães. Um dos grupos de mercadores descarregava um navio. Um outro montava a loja. Um terceiro comprava Manhattan de alguns índios, dando em pagamento o que pareciam duas pulseiras e um colar. Ela fez uma nova tentativa. ―Eu sou Fiona Finnegan. Boa tarde, senhor Ellis...‖ Ainda não está bem. ―Senhor Ellis, eu suponho. Sou Fiona Finnegan. Boa tarde...‖

— Senhorita Finnegan, tem certeza de que não quer sentar-se? — perguntou a senhorita A. S. Miles, secretária do senhor Ellis, conforme dizia a plaqueta em sua mesa — Ele estará disponível em um minuto.

Fiona se sobressaltou com o tom da voz dela.

— Não. Não, obrigada — disse com um sorriso. — Prefiro ficar de pé — suas mãos estavam frias e a garganta, apertada.

Usava sua melhor roupa — saia chocolate e blusa listrada —, esperando que esse conjunto a fizesse se sentir segura. Nick costumava dizer que boas roupa imprimiam confiança. Além do conjunto, vestia um sobretudo azul-marinho com uma écharpe rosa de seda no pescoço. O cabelo estava preso no alto, uma aproximação do estilo que Nick havia bolado em uma tarde de tédio no navio, o coque não parecia perfeito — ela estava muito ansiosa, muito apressada quando se penteou —, mas não fazia feio.

Na semana anterior, ela havia aplicado na loja do tio aproximadamente trezentos dólares. Uma parte do dinheiro em coisas como um novo balcão refrigerado, tinta e prateleiras novas. Uma outra parte no pagamento dos outros credores tio. Ela achou que impressionaria o banco se demonstrasse que era séria e capaz de saldar os débitos.

Ela olhava pela janela, na direção de um lugar agitado conhecido como Wall Streeet, quando ouviu a voz da senhorita Miles:

— Senhorita Finnegan? O senhor Ellis a verá agora.

Seu estômago revirou como uma enguia. Entrou no escritório de Franklin uma sala decorada com painéis escuros de madeira, paisagens do vale de Hudson e mobília de mogno. Ele estava sentado a uma credência, virado de costas, mas o terno preto, o cabelo engomado e a maneira com que ergueu o dedo indicador quando acabou de ler um documento deram a Fiona a impressão de que se tratava de um homem severo e austero.

Se ao menos Michael estivesse aqui, ela pensou, de certa forma intimidada. Se ao menos ela não tivesse que fazer aquilo sozinha. Na noite anterior tinha pedido — implorado — para que ele a acompanhasse, mas o beberrão se recusou. Mesmo que ele não quisesse pôr os pés na loja, não custava nada ir ao banco. Afinal, o que sabia a respeito do negócio? Nada! Só sabia que o prédio do tio tinha custado 15.000 dólares porque tinha olhado no livro de pagamento. Quatro anos antes, dera 3.000 dólares de entrada e assumira uma hipoteca de trinta anos, a 6% de juros pelo que restava. Os pagamentos eram de 72 dólares mensais. Ele deixara de pagar a partir de novembro e já devia ao banco 360 dólares e mais 25 em multas. Se Ellis fizesse perguntas sobre lucros e porcentagens, se quisesse saber qual era o montante da amortização da hipoteca ou que tipo de despesas tinha, ela estaria frita. Vou armar a maior confusão, disse para si mesma. Ele não vai me ouvir, Não vai me levar a sério. Ele não vai...

Franklin EIlis viroa-se. Fiona sorriu, estendeu a mão e disse:

— Boa tarde, senhor, Fiona. Eu sou Finnegan, Ellis — oh, que merda!, ela pensou. — Não, eu... quer dizer, eu sou...

— Sente-se, senhorita Finnegan — disse Ellis, com um tom cortante, apontando uma cadeira na frente de sua escrivaninha. Ignorou a mão dela estendida. — Creio que a senhorita esteja aqui para falar do número 164 da 8th Avenue.

— Exatamente, senhor — ela tentou se recompor. — Tenho o dinheiro para pagar os trezentos e oitenta e cinco dólares do débito do meu tio ao banco. E gostaria que o senhor considerasse a possibilidade de me deixar responsável pelo financiamento da loja.

Com esforço, ela se acalmou, concentroa-se e passou a expor o caso de maneira metódica. Abrindo uma pequena pasta que pediu emprestada a Maddie, pegou os recibos dos fornecedores do tio, mostrou as contas e deixou que Ellis as inspecionasse. Depois, expôs seus planos de uma publicidade modesta: meia página no jornal local por três domingos consecutivos, uma vez que a edição de domingo era mais barata que a de sábado. E exibiu um anúncio — um desenho encantador da em bico de pena feito por Maddie. Nate exaltava a qualidade, a seleção superior e o serviço. Um desenho com um duplo propósito: além de servir como cartaz, seria usado como folheto a ser convertido em cupom que daria 120 gramas de chá gratis em qualquer compra que ultrapassasse um dólar.

À medida que discorria sobre seus planos para a loja, Fiona deixava de LADO o nervosismo. Não via os olhos de Ellis cravados no relógio. Não se dava conta que ele olhava os seus seios. Não notava que, enquanto a ouvia, ele fazia planos para o jantar. Não estava sabendo ler a fisionomia dele. Ela via interesse onde havia mero divertimento, daquele tipo que se experimenta quando se ouve cachorro latindo em resposta a somas.

Fiona achava que estava prendendo a atenção daquele homem. Falou das melhorias que tinha feito na loja: pintura nova, cantoneiras, linda cortina de renda na vitrina. Falou de suas ideias para vencer a competição, oferecendo produtos caseiros, mercadorias de melhor qualidade e flores frescas. Ela chegou até a planejar um serviço de entregas, imaginando que, se pudesse poupar um pouco do tempo das mulheres da vizinhança, elas só comprariam na Finnegan...

— Veja então, senhor Ellis — ela concluiu com as maçãs do rosto imediatamente ruborizadas —, acredito que serei capaz de assumir a loja do meu tio com sucesso e de fazer os pagamentos mensais em dia.

Ellis balançou a cabeça afirmativamente.

— Quantos anos, mesmo, a senhorita disse que tinha?

— Eu não disse, mas tenho dezoito anos.

— E já gerenciou alguma loja antes?

— Bem... eu... não exatamente... não, senhor, não gerenciei.

— Aprecio os seus esforços para ajudar seu tio, mas temo que a senhorita seja muito jovem e inexperiente para assumir a responsabilidade de um negócio. Estou certo de que a senhorita compreenderá que tenho que considerar os interesses do banco, acho que a solução mais segura nas circunstâncias presentes é manter o leilão.

— Desculpe-me, senhor, mas isso não faz sentido — ela argumentou. O senhor vai perder dinheiro no leilão. O que ofereço é pagar os atrasados e continuar honrando os termos do empréstimo. E isso significa um lucro de 6%. Certamente o senhor prefere ganhar dinheiro e não perdê-lo...

— Nossa entrevista acabou, senhorita Finnegan. Até outra vez — disse com frieza, irritado por ter ouvido uma menina de dezoito anos explanando o próprio negócio.

— Mas, senhor Ellis...

— Passar bem, senhorita Finnegan.

Fiona recolheu os papeis e colocou-os de volta à pasta. Com a dignidade de uma rainha, não de uma mocinha arrasada, ela levantou-se e estendeu a mão, achando que talvez Ellis a cumprimentasse. Depois, deixou o escritório para que suas lágrimas só escorressem quando ela estivesse totalmente alcance dele.

Ela estava arrasada. Todo o seu trabalho da última semana não servira para nada. E o dinheiro que gastara! Cristo, seria melhor que o tivesse jogado fora. Como pôde ter sido tão estúpida a ponto de pensar que o banco lhe seria receptivo? Estava com medo de voltar para casa. Sabia que Mary a esperava, torcendo para que tudo tivesse corrido bem. O que diria? Mary estava contando com ela. Todos estavam. E, depois que transmitisse a notícia, viria o que ela mais temia: procurar trabalho e um lugar para morar. Testemunhar a venda do prédio. Testemunhar o tio virando um mendigo perdido pelas ruas, bêbado que nem gambá. Apressoa-se em fechar a pasta. De cabeça abaixada, ela não notou um homem elegantemente vestido sentado na poltrona de couro ao lado da porta de com o cotovelo pousado sobre o joelho. Alto, aparentando uns quarenta anos notavelmente bem-apessoado, ele a olhava com interesse e admiração. Deixou de lado a ponta de charuto que segurava, levantoa-se e caminhou até ela.

— Ellis virou-lhe as costas?

Lutando para segurar as lágrimas, Fiona assentiu rapidamente com a cabeça.

— Ele parece uma velha. Sente-se aí.

— Não estou entendendo.

— Sente-se. Eu a ouvi. Suas ideias são ótimas. A senhorita é objetiva, com um diferencial.

— Com o quê?

— Diferencial — ele sorriu, — Gostou da palavra? Eu mesmo a cunhei. Significa que se põe à parte da competição. Oferece coisas que os outros não oferecem. Eu vou ver o que posso fazer.

Ele desapareceu dentro do escritório de Ellis, fechando a porta atrás de si. Atordoada, Fiona continuou plantada exatamente onde ele a deixara, até que a senhorita Miles pediu para que ela se sentasse.

— Quem é ele? — perguntou Fiona.

— William McClane — a secretária respondeu com reverência.

—Quem?

— McClane? Da Mineração McClane e da Madeireira McClane, e outros investimentos. E um dos homens mais ricos de Nova York — disse a secretária com um tom que sugeria que Fiona devia ser uma grosseirona por não saber tal coisa. — começou a ficar rico com a prata — continuou, animada. — Depois, investiu em madeira. E agora tem planos para fazer o primeiro caminho subterrâneo de Nova York. Ouvi dizer que ele também está investindo na eletricidade e no telefone.

Fiona tinha apenas uma vaga noção do que era um telefone, mas não fazia a menor ideia do que era eletricidade e fingiu que sabia, balançando a cabeça.

— Ele também é dono do First Merchants. E... — chegou bem perto de Fiona — ele é viúvo. A esposa morreu há dois anos. É o homem mais cobiçado pelas damas da alta sociedade da cidade.

A porta do senhor Ellis abria-se outra vez, silenciando a conversa entre elas, e o senhor McClane saiu.

— A senhorita conseguiu a sua loja — ele informou animado, olhando para ElIis. — Converse com Ellis sobre os detalhes. E gaste um pouco mais com publicidade. Se puder, pegue uma página inteira e anuncie nos sábados, não nos domingos, mesmo sendo mais caro. E nos sábados que a maioria dos homens da sua vizinhança recebe o salário. A senhorita quer que o seu nome seja lembrado quando eles estiverem com dinheiro no bolso e não depois que o gastarem, não é?

Antes que Fiona tivesse tempo de dizer alguma coisa, ele acenou com o chapéu para ela e para Miles e se retirou, deixando-a de pé na esteira dele, olhando-o e sussurrando ―muito obrigada‖.

 

TODAS AS AMPLAS casas de pedra da Albemarle Street situadas no novo e requintado bairro Pimlico eram conservadas de maneira impecável, com os postigos e as portas pintados da mesma cor, preto brilhante, o metal das caixas de correio sempre polido e reluzente e as flores plantadas em vasos de terracota em urnas de cerâmica. Cada casa com sua lâmpada a gás à frente brilhando vivaz às nove horas dessa noite de abril.

As casas refletiam uma sólida e louvável mesmice que, embora insípida, peIo menos se sobrepunha à reprovação, uma qualidade desejada pelos seus moradores: membros recém-ingressos numa classe média que precisava provar que era tão respeitável e refinada como seus vizinhos ricos e bem-nascidos de Belgravia e Knightsbridge. Não havia nada quebrado, nada fora do lugar, nada que não pudesse ser visto. Não havia lixo na rua, nem vagabundos nem vira-latas, Era uma quietude de cemitério, tão asfixiante quanto um caixão, e Joe Bristow desprezava cada pedacinho da rua.

Sentia saudades da cor e da vivacidade da Montague Street. Sentia falta do tempo em que chegava à noite e ouvia as risadas dos seus irmãos, as piadas dos colegas e jogava bola na rua de pedras. E acima de tudo isso, ele sentia saudade das caminhadas até a casa 8 para se encontrar com a garota de cabelos negros sentada na escada da frente, brincando com o irmão e tendo ao lado uma pilha de costura.

Ele sentia falta de poder chamá-la pelo nome, de admirá-la quando ela se virava com o rosto iluminado por um sorriso. Só para ele.

Sua carruagem, uma caleche negra puxada por um belíssimo cavalo, ambos presentes de casamento do sogro, deteve-se no pórtico defronte da casa. Seus passos não se apressaram ao se aproximar da porta, assim como o seu coração não se encheu de ansiedade para ver sua mulher. Seu único desejo era que ela já estive dormindo, e também os criados, cuja presença na casa e em sua vida não o deixava à vontade. A visão de sua agitada empregada zanzando de um lado para outro no topo da escada de entrada lhe disse que alguma coisa não ia bem.

— Oh, senhor Bristow! Graças a Deus que finalmente o senhor chegou! — ela disse aflita.

— O que houve, senhora Parrish? O que a senhora está fazendo aqui fora? Cadê o Mathison?

— Ele está na despensa, procurando uma segunda chave do seu estúdio.

— Por que ele estaria...

As palavras de Joe foram cortadas pelo ruído de vidro se quebrando.

— É a senhora Bristow, senhor. Trancou-se em seu estúdio e não quer sair — a senhora Parrish quase sem fôlego. — Pensei que ela estava na cama. Já estava indo para o meu quarto quando ouvi barulho de algo se quebrando. Corri de volta... eu... eu não sei o que aconteceu... ela estava fora de si! Estava espalhando os seus papéis e jogando coisas nas paredes. Não consegui detê-la, Bem que tentei, mas ela me expulsou do estúdio. Oh, por favor, vá até lá, senhor! Depressa, antes que ela prejudique o bebê!

Joe disparou para o segundo andar. Desde que tinham voltado da lua de mel, dois meses antes, MiIlie não estava bem. Sua gravidez estava muito difícil. Tinha começado a sangrar no último mês e quase perdeu o bebê. O médico recomendou que permanecesse na cama.

Enquanto procurava a chave no bolso, ele ouvia soluços vindos do outro lado da porta e uma sequência de baques, como se uma pilha de livros tivesse caído. Enfiou a chave na fechadura, abriu a porta e viu o seu estúdio destroçado. Papéis espalhados pelo chão. Uma estante completamente quebrada. O tampo de vidro da escrivaninha partido. E no meio da devastação, Millie, em pé, com o rosto banhado de lágrimas, os cabelos louros despenteados e sua barriga de grávida sob a camisola. Tinha nas mãos um maço de folhas. Ele as reconheceu. Eram os relatórios de um detetive particular que contratara para encontrar Fiona.

— Volte pra cama, Millie. Você sabe que não pode ficar de pé.

— Eu não conseguia dormir — ela disse chorosa —, então me levantei e vim até aqui para ver se você estava em casa. E encontrei isso. Vi os papéis sobre a sua mesa. Você está à procura dela, não é? Ela se mudou ou... saiu de Londres ou algo assim, e você está tentando encontrá-la.

Joe não respondeu. Ela não tinha visto os papéis sobre a escrivaninha porque ele os trancara. Mas ele não achou que seria inteligente iniciar uma discussão naquele momento. Sabia muito bem como ela ficava quando estava com raiva.

— Vem, Millie, você sabe que o médico disse...

— Me responde, desgraçado! — ela berrou, atirando os papéis na direção dele.

— Eu não vou falar sobre isso agora — ele disse, controlando-se. — Você está irritada. Você tem que se acalmar, senão acaba prejudicando o bebê.

— Você está dormindo com ela, não está? Só pode estar, porque você não dorme comigo. Pelo menos há cinco meses! Todo esse tempo você tem dito que chega tarde em casa toda noite por causa do trabalho, mas não é, não é verdade? E aquela prostituazinha imunda! — ela voou para cima de Joe e começou a esmurrar o peito dele. — Você tem que parar com isso! — gritou. — Você tem que parar de vê-la!

Joe segurou-a pelos pulsos.

— Basta! ele gritou.

Ela se debateu e o xingou, tentando se soltar. E então, de repente ela parou. Fez uma careta de dor e em seguida manteve-se inteiramente imóvel.

— O que é? — ele perguntou.

Ela o olhou com os olhos arregalados de medo. Pôs as mãos sobre a barriga. Um gemido saiu de sua boca e ela dobroa-se. Joe envolveu-a com o braço. Ele tentava recompô-la, mas ela não deixava. Soltou dois gritos, enterrando as unhas no braço dele.

— Shhh, está tudo bem — ele disse, tentando acalmá-la. — E só respirar fundo, assim, garota. Está melhorando. E só uma cólica. O médico disse que você podia tê-las, lembra? Ele disse que você não precisava se preocupar com elas.

Mas não era só uma cólica. Ela deu alguns poucos passos à frente, ainda na tentativa de se recompor, e ele viu as gotas de sangue brilhantes que caiam no tapete, sob os pés dela.

— Millie, ouça — ele disse, tentando manter a voz calma. — Vou sair para chamar o médico. Ele vai vê-la e tudo ficará bem. Deixe-me colocá-la outra vez na cama, está bem?

Ela consentiu e começou a caminhar na direção da porta. Foi acometida por uma outra onda de dor que a fez se dobrar outra vez. E foi aí que ela notou as manchas vermelhas que empapavam seus chinelos brancos.

— Oh, não — ela gritou. — Oh, Deus... por favor, não... — em segundos, gritos se tornaram berros.

Joe segurou-a no colo e tirou-a do estúdio. A senhora Parrish aguardava apavorada no corredor, com uma vela na mão.

— Traga o doutor Lyons! — ele gritou para ela. — Depressa!

 

SENTADO NO BANCO DE MADEIRA NO LADO DE FORA DO QUARTO de Millie no hospital, Joe segurava a cabeça. Ele a tinha ouvido chorar — e gritar — praticamente durante a noite inteira, até que os choros e os gritos acabaram parando quando o dia amanheceu.

O doutor Lyons estava com Millie, junto com duas enfermeiras e o pai dela. Ela não o quis por perto e ele não a culpava. Afinal, a culpa era toda dele. No dia anterior, ele devia ter chegado cedo em casa com flores e jantado com ela. Era isso que os maridos deviam fazer. Ele nunca devia ter brigado com ela. Nunca devia ter procurado Fiona.

Na manhã seguinte à noite de núpcias — ocasião em que saiu da suíte do hotel e se embebedou —, ele despertou com ressaca e com uma mulher chorona e a certeza de que não conseguiria viver daquele jeito. Ele não amava Millie e não podia dormir com ela, mas pelo menos podia ser gentil e educado. Partiram para a França naquela tarde e ele teve que suportar aquela interminável lua de mel — o rosto de Millie, sua voz, sua conversa inconsequente, suas tentativas constantes de fazer amor — da melhor maneira possivel. Ele era polido e solícito com ela durante o dia, acompanhando-a nas compras, museus, nos cafés, no teatro, onde ela quisesse ir. Mas, à noite, se recolhia ao seu quarto separado que ele fazia questão de ter em cada hotel e cada cidade que visitavam, em busca de paz, alívio e espaço para lamentar o que tinha feito e o que perdera.

No início, ela só ficou magoada com a falta de atenção dele, mas, com o passar do tempo, se enfureceu. A rejeição dele feria sua vaidade. Ela o queria e não estava acostumada a ser rejeitada. Uma semana depois, tiveram a primeira briga horrível entre as muitas que se sucederam. No Crillon de Paris, no corredor fora dos quartos. Estavam se retirando para dormir após o jantar no Café de la Paix. Millie queria que ele entrasse no quarto dela. Ele se recusou. Mais uma vez. E foi acusado de ser frio com ela. Millie começou a chorar e lhe disse que não era assim que as pessoas casadas procediam. Ele se retirou em silêncio, preferindo manter seus sentimentos consigo para não ser cruel. Ela se enraiveceu, lembrando-o de que ele não tinha sido frio daquele jeito na noite de Guy Fawkes, e quis saber por que ele mudara.

— Você não recusou meus beijos naquela noite — ela disse, com um tom de reprovação. — E mal pôde esperar para me tocar. Naquela noite você disse que me queria, Joe. E disse que me amava.

— Eu nunca disse que a amava, Millie — ele replicou com calma. — Nós dois sabemos disso.

Quando voltaram para casa, o relacionamento tinha se deteriorado com discussões constantes. Joe saía de casa ao amanhecer e só retornava tarde da noite para evitá-la, entregando-se de corpo e alma ao trabalho. O Palácio de Buckingham tinha dado a Peterson o selo de garantia. Os negócios prosperaram e quase dobraram de volume. Tommy estava em êxtase. Sentia-se tão feliz com Joe quanto Millie se enfurecia com ele. Mas Joe só encontrava distração no trabalho, nunca em casa.

Depois que voltou para casa, ele passou a receber cartas seguidas da mãe. Ela queria que ele fosse vê-la, precisava falar com ele. Tinha que falar algumas coisas para ele. Mas ele não foi. Não queria visitar a família; eles perceberiam com toda a nitidez o quão miserável ele se sentia. Ele não conseguia lidar com a ideia de voltar a Montague Street, de rever a casa de Fiona e os lugares onde costumavam passeat Lugares onde falavam de seus sonhos, do futuro que teriam. Lugares onde ele a tomava nos braços e a beijava. Sua mãe foi umas poucas vezes à sua casa e ao seu escritório, mas ele sempre estava fora.

Só pensava em ver Fiona. Só em vê-la. Olhar nos olhos dela outra vez. Ver-se refletido neles, não um outro, e saber que ela ainda o amava. Ouvi-la dizer seu nome. Mas ele sabia que não tinha esse direito e prometera a ela que não a procuraria, e fora capaz de honrar tal promessa por um longo tempo. Até que, numa tarde de março, o desejo de vê-la foi tão devastador que ele retornou a Whitechapel. Agora seu coração doía com essa lembrança. Se ao menos ele soubesse o que tinha acontecido, se ao menos soubesse onde ela estava. Ele se lembrou claramente daquela tarde, do terrível choque...

— JOE, PAZ, VOCÊ AINDA ESTÁ AQUI? São quatro horas! — disse Tommy Peterson. — Eu pensei que lhe tinha dito para voltar cedo para casa. Passar mais tempo co sua mulher.

— Eu só queria terminar essas contas... — ele começou a falar.

— As contas podem esperar. Vá para casa e aproveite a tarde. É uma ordem.

Joe forçou um sorriso, agradeceu a Tommy e disse que iria. O sorriso se desfez tão logo o sogro saiu. Ir para casa era a última coisa que desejava fazer. Chegara tarde na noite anterior e encontrara Millie sentada à mesa de jantar com pratos de comida fria à frente. Estava esperando para jantar com Joe. Ele tinha prometido que iria, mas se esqueceu. Ela pegou uma travessa de salmão e despejou-a em cima da cabeça dele. Sabe Deus o que esta noite prometia.

Recolheu os papéis e solicitou a carruagem. Enquanto rumava para casa, vislumbrou a longa tarde e parte da noite que o aguardava. Afundou no banco, comprimindo as costas das mãos em seus olhos. Sentia-se um prisioneiro de sua própria vida. Não conseguia enfrentar a Albermale Street, aquela casa, Millie. Gemeu, e o que desejava mesmo era gritar e berrar até ficar rouco. E poder chutar aquela merda de carruagem. Poder fugir e desaparecer nas ruas de Londres. Abriu os olhos, afrouxou a gravata desabotoou a gola da camisa. Estava abafado dentro da carruagem, ele mal conseguia respirar. Tinha que sair. Precisava de um pouco de ar. Precisava de Fiona.

Antes que pudesse calar seu desejo, gritou para que o cocheiro parasse o veículo. E, quando o homem parou, ele disse:

—Vou ficar aqui. Leve as minhas coisas para casa. Diga a senhora Bristow que chegarei tarde.

— Sim, senhor.

Joe pegou um carro de aluguel, dizendo ao condutor que o levasse a Whitchapel e dando-lhe o endereço da Burton. Se tivesse sorte, chegaria lá antes da hora da saída e ele a encontraria. Ela estaria furiosa com ele — já se preparara para isso —, mas talvez, quem sabe, conversaria com ele.

Chegou na fábrica justo antes das seis. Esperou no portão, andando de um lado para o outro. Por fim, o apito tocou, as portas se abriram e as operárias começaram a sair. Ele procurou pelos rostos, mas não encontrou o dela. Esperou até a última moça saísse e ainda esperou um pouco mais, caso ela estivesse varrendo a seção ou recolhendo as suas coisas. Mas o capataz acabou saindo e trancou as portas, e já não havia mais o que esperar.

Começou a se sentir agoniado, mas concluiu que devia haver uma explicação. Tentaria no Jackson‘s. Talvez ela tivesse saído da Burton para trabalhar em tempo integral. Mas ela não estava lá. Nem o homem atrás do balcão e nem a garota que limpava as mesas tinham ouvido alguma coisa sobre ela. Segundo essa garota, naquele momento os Jackson visitavam a pobre mãe da senhora Jackson, mas ela disse que, se ele quisesse, poderia esperar porque ambos estariam de volta em uma hora ou pouco mais. Ele não quis.

Agora estava mais angustiado ainda. Sabia que Fiona tinha adoecido no dia casamento dele. Caíra com febre, sua mãe lhe dissera. E se ela não tivesse superado? E se estivesse muito mal e incapacitada para o trabalho? Em pânico, pôs-se a correr na direção da Adams Court. A senhora Finnegan devia estar furiosa com ele e Charlie certamente gostaria de chutar seu traseiro. Talvez não deixassem vê-la. Ele não se importava. Ficaria sabendo por eles se ela estava bem. Ela está com o dinheiro, com nossas economias, disse para si mesmo. Era dinheiro suficiente para a sobrevivência da família dela. Oh, por favor, por favor, faça com que ela esteja bem, ele rezava. Passou correndo pela passagem de tijolos que ligava a Varden Street e a Adams Court, desceu pela calçada estreita e já estava quase para bater no número 12 quando a porta se abriu e ele deu de com uma jovem mulher com um bebê nos braços que lhe perguntava o que ele queria.

— Eu preciso ver os Finnegan — ele disse ofegante. — Fiona. Ela está em casa?

A mulher o olhou como se ele estivesse louco.

— Os Finnegan?

— Sim. Pode chamar a Fiona pra mim, madame?

— Quem é você, rapaz?

— Meu nome é Joe Bristow. Eu sou... um amigo da Fiona.

— Eu... eu não sei como lhe dizer isso, mas os Finnegan... eles não moram mais aqui.

O coração de Joe se encheu de pavor.

— Para onde eles foram? Aconteceu alguma coisa? Aconteceu alguma coisa não é? A Fiona está bem?

— E melhor você entrar.

— Não, diga o que houve! — ele gritou, com os olhos injetados de medo.

— E melhor você entrar — disse a mulher, — Por favor — ela o pegou pela manga da camisa e o conduziu pelo pequeno sagão até um cômodo nos fundos da casa. Fez com que ele se sentasse na única cadeira do cômodo e sentoa-se na beirada da cama com o bebê no colo. — Eu sou Lucy Brady — ela disse. — Era a vizinha da Kate. antes... — ela balançou a cabeça, perturbada —, não acredito que você não tenha ouvido nem lido nada a respeito disso. Saiu em todos os jornais.

— Ouvido o quê? A senhora tem que me contar tudo, por favor, senhora Brack. Ela engoliu em seco.

— Um assassinato. Foi o Estripador — Lucy começou a falar. — Ele assassinou a mulher da casa 10, Francis Sawyer. Era tarde da noite, mas a polícia acha que Kate o viu. Ela estava a caminho do médico porque o bebê estava muito mal. Jack. ele... ele a matou também. Oh, meu Deus, me desculpe por estar dizendo isso.

O corpo todo de Joe começou a tremer. Ele sentiu um terror que nunca conhecera. Um terror que transformava o sangue, os ossos e o coração em areia.

— E Fiona... e Fiona...

— Foi ela que encontrou a mãe — Lucy fechou os olhos. — Pobre moça, eu nunca esquecerei daquela noite enquanto viver.

— Onde ela está agora? — ele perguntou, ligeiramente aliviado,

— Pelo que sei, foi morar com um amigo da família. Ele é um policial.

— Roddy. Roddy O‘Meara.

— Sim, acho que é esse mesmo. Ele está cuidando dela e do irmãozinho.

— E o Charlie? E o bebê?

—Mortos, os dois. O bebê logo após a morte da mãe. Eo rapaz um pouco depois. Voltou para casa depois de uma luta, viu o corpo da mãe e fugiu. O corpo dele foi encontrado no rio.

Joe cobriu o rosto com a mão.

— Meu Deus — ele murmurou. — O que fiz a ela? Eu a deixei aqui neste buraco de merda. Deixei-a para isso...

— Você está bem? — perguntou Lucy.

Joe não a ouviu. Levantoa-se cambaleante, quase sem fôlego.

— Eu tenho que encontrá-la... — ele disse. Deu um passo em direção à porta. Suas pernas se dobraram e ele caiu.

 

— O SENHOR TEM VISITA, SENHOR O`MEARA, um rapaz. Está aguardando-o lá em cima.

De onde estava sentado, dois degraus acima do patamar da escada que dava no apartamento de Roddy, Joe ouviu Roddy e a senhoria conversando no saguão de entrada lá embaixo. Ouviu os passos pesados de Roddy subindo e logo ele chegava. Vestia o uniforme de policial e carregava uma sacola de compras. Parecia ter envelhecido desde a última vez que Joe o vira. A perda de Paddy e do restante dos Finnegan deve tê-lo abalado profundamente. Joe sabia que eles tinham sido mais que amigos para ele. Eles eram a sua família. A unica que ele tinha. Sentimentos de pesar, de culpa e remorso, agora seus companheiros constantes, emergiram de dentro dele. Não tinha comido nem dormido desde que estivera com Lucy Brady no dia anterior. Tudo aquilo era culpa dele. Tudo.

— Olá, Roddy.

— Boa tarde — disse Roddy. Sua expressão dizia que ele não tinha o menor prazer em ver Joe. — Você está com uma cara péssima, rapaz — ele continuou. — Aquela sua esposa não o alimenta? — abriu a porta de seu aposento e empurrou Joe para dentro. Apontou uma cadeira para que ele sentasse, mas ele ficou de pé.

— Roddy, eu... eu preciso ver a Fiona. Ela está aqui?

— Não — respondeu Roddy, tirando o casaco e dependurando-o nas costas de uma cadeira.

— Você sabe onde ela está?

—Não.

Joe não acreditou nele.

— Deixa disso, Roddy.

— Eu já disse que não sei onde ela está.

— Você não sabe? Mas você estava cuidando dela, tomando conta dela.

Roddy viroa-se e o fulminou com um olhar furioso.

— Sim, eu estava. Mais do que se pode dizer de alguém!

Joe baixou os olhos.

— Olhe, Roddy... eu sei que sou um patife. Não preciso que você me diga. Só preciso saber se ela está bem. Só preciso vê-la. Por favor, diga onde ela está.

— Rapaz, eu estou dizendo a verdade. Não sei onde ela está.

Joe estava a ponto de levar a discussão adiante quando notou que a raiva no rosto de Roddy sumira para dar lugar a uma expressão de preocupação. Alguma coisa estava errada.

— O que é? — ele perguntou. — O que está havendo?

— Eu gostaria de saber — Roddy sentoa-se à mesa e despejou num copo um pouco de cerveja ale de um jarro de faiança. — Tenho que dizer, rapaz, eu estou muito desapontado em vê-lo. E não somente porque não gosto de você — ofereceu o jarro para Joe, que recusou com a cabeça. — O que está fazendo em pé, esperando um ônibus? Sente-se. — Joe sentoa-se e Roddy continuou. — Fiona estava aqui. Ela e o Seamie.

— Eu vi a Lucy Brady ontem. Ela contou o que aconteceu — disse Joe.

— Ela ficou comigo depois que a mãe foi assassinada. Levou um tempo para se recuperar do golpe, mas depois de algumas semanas estava recomposta. Falava em procurar um emprego e um lugar para morar por conta própria, até que uma noite eu cheguei em casa e encontrei na mesa um bilhete dizendo que tinha partido. De repente. No bilhete, ela dizia que tinha conseguido um dinheiro do Burton — uma indenização pela morte do Paddy — e que queria uma partida rápida e sem despedidas. E ela não disse para onde estava indo.

— Isso não é típico dela. Por que não ia querer que você soubesse do paradeiro dela?

— Primeiro, eu pensei que tinha fugido para ficar com você e não queria me encontrar porque sabia muito bem que eu a impediria. Mas agora você está aí sentado e essa teoria foi por água abaixo.

— E o que você está pensando agora?

Roddy tomou um gole da cerveja e pôs o copo na mesa.

— Não sei. Nada disso faz sentido.

— Roddy, ela está sozinha em algum lugar disse Joe, aflito. — Temos que encontrá-la.

— Eu já tentei! Coloquei todos os homens do meu distrito para procurá-la. Dei uma descrição detalhada tanto dela como do Seamie para quase todos os distritos da cidade, mas não fiquei sabendo de nada. Ninguém viu nem um só fio de cabelo deles.

— Que tal um detetive particular?

— Eu pensei nisso, mas não tenho dinheiro.

— Eu tenho. Dê o nome de um. Eu o contratarei esta noite mesmo. Ela tem que estar em Londres. Não pegaria um trem para outro lugar qualquer, ela não saberia aonde ir. Nunca tinha entrado num ônibus antes do dia em que a levei a Covent Garden. Ela não pode ter ido longe.

Roddy escreveu um nome e um endereço em um papel e o entregou para Joe dizendo-lhe que não se esquecesse de falar que era da parte de P C. O‘Meara. Ele também pediu que Joe fosse vê-lo assim que soubesse de qualquer coisa. Foi com Joe até a porta e, embora tenha dispensado o aperto de mão, desejou-lhe boa sorte. E, numa fração de segundo, Joe teve a impressão de ter visto nos olhos de Roddy algo mais que raiva e preocupação. Teve a impressão de ter visto uma expressão de tristeza. Por ele..

 

ÀS DEZ DA NOITE, AS BARRACAS DA PARTE EXTERNA do mercado de Covent Garden encontravam-se em completo silêncio. Os cestos redondos de cipó que eram usados pelos carregadores para transportar as mercadorias estavam empilhados; algumas carroças, também vazias. Aqui e ali flores soltas e frutas amassadas espalhadas pelas alamedas, e o ar pesava com o odor de legumes e verduras decompostas. O que sempre surpreendia Joe, que retornava ao seu escritório após um jantar com cliente, era como um lugar que de manhã podia ser infernalmente barulhento, tornava-se tão calmo e deserto de noite. A medida que cruzava uma estreita viela através de uma galeria aberta numa enorme praça pavimentada de pedras, ele sentiu um cheiro que vinha de um estábulo próximo. Ouviu um relincho e o som de um coice contra a cavalariça. Um rato no feno de algum cavalo, ele pensou. Wynne, o cavalo de seu pai, odiava ratos.

— Joe. Joe Bristow — uma voz soou de repente na escuridão.

Joe parou. Não tinha visto vivalma quando entrara na praça.

— Aqui.

Ele se virou e viu um homem encostado numa das colunas de ferro da galeria. A figura se moveu do lugar onde estava e saiu das sombras. Joe o reconheceu. Era Stan Christie. Um rapaz de Whitechapel. Quando crianças, os dois tinham estudado na mesma classe, até o dia em que o professor resolveu disciplinar Stan com uma vara, o équal, por sua vez, à epoca com doze anos de idade, inconsciente do fazia, tirou a vara da mão do professor e o surrou.

— Como vão as coisas? — perguntou Stan, dirigindo-se em passos vagarosos até Joe.

— Ótimas. Mas você está muito distante de casa esta noite, não é?

— Pois é. Vim até aqui só pra te ver.

— Estou emocionado, companheiro. Eu não sabia que você se importava comigo.

Stan caminhou com os braços para trás, como um professor ou um padre. Joe tava certo de que ele escondia alguma coisa, Um porrete. Uma faca. Explosivos. Ninguém poderia prever o que Stan carregava.

— Eu vim fazer uma investigação. Para o chefão — ele disse. Sua mão direita saiu de suas costas. Ele coçou um lado do nariz e lançou um olhar significativo para Joe.

— Ah, é? E quem seria esse chefão? O primeiro-ministro? O príncipe de Gales?

— Cuidado com o que diz, cara. O senhor Sheehan não gosta de trapaças.

Sheehan. Bowler Sheehan. Jesus. Joe não sabia que Stan trabalhava para ele.

— O que o Sheehan quer comigo? — ele perguntou, tentando mostrar firmeza.

— Ele quer saber o paradeiro da garota Finnegan. Todo mundo sabe que vocês namoravam antes de você casar com a filha do Peterson, então achei que podia saber.

— O que ele quer com a Fiona? — perguntou Joe irado, livre da apreensão que sentira. Não gostou do interesse de Sheehan pela Fiona. Nem um pouco. Agora Stan estava bem próximo e, como nunca, Joe desejava ter na mão o seu canivete. Ou a alavanca de ferro que usava para abrir os caixotes de frutas. Uma navalha. Um molho de chaves para usar entre os dedos. Cristo, pelo menos a merda de um saca-rolha.

— Quem faz as perguntas é o senhor Sheehan, Joe. Ele não responde nada. Ah, é? Então lá vai a resposta: diga pra ele ir à merda. Que tal?

Stan soltou uma risadinha estúpida, e em seguida, numa fração de segundo, arremeteu um bastão que escondia às costas. Joe já esperava por isso, esquivoa-se do golpe. Não foi atingido na cabeça e sim no ombro. Xingando de dor, projetou a cabeça no rosto de Stan e sentia-se vingado quando ouviu o estalo que saiu do nariz do oponente. Stan urrou de dor. Instintivamente, ele levou as mãos ao nariz quebrado e baixou a guarda. Joe se aproveitou disso e desfechou um poderoso soco em seus rins. Stan deixou cair o bastão. Joe o pegou e o apertou com toda a força contra a garganta de Stan.

— Se você se mexer, eu juro que acabo com a tua raça, eu juro que...

— Tudo bem, tudo bem... — grunhiu Stan, suspendendo as mãos ensanguentadas.

— O que o Sheehan quer com a Fiona?

Stan não respondeu. Joe pressionou ainda mais o bastão. As mãos de Stan tentaram afrouxar a pressão; ele começou a tombar. Estava sufocando. Joe aliviou a pressão. Foi um erro, pois Stan estava fingindo. Ele agarrou os braços de Joe e lhe deu um balão. Joe caiu pesadamente no chão, batendo a cabeça contra um parlelepípedo. Ficou cego por alguns segundos com um clarão nos olhos, Tentou se levantar, mas não conseguiu. Agora Stan estava em cima dele, ameaçando esmigalhar seu crânio se ele não revelasse o paradeiro de Fiona. Deitado contra o seu lado esquerdo, Joe ainda mantinha o bastão na mão. Ele sabia que tinha aproximadamente dois segundos para usá-lo, caso contrário correria o risco de ser encontrado na manhã seguinte com a cabeça esmagada. Erguea-se com um grito e deu uma porretada na rótula joelho de Stan, fazendo-o urrar de dor. Stan deu a briga por encerrada, mas prometeu a Joe que o mataria quando o visse outra vez. Depois, fugiu.

Joe se pôs em pé. Quis correr atrás de Stan, mas suas pernas não deixaras Sua cabeça latejava. Tocou-a e encontrou um enorme galo. Tinha que ir até Roddy para contar o ocorrido. Aquilo não era nada bom. Se Stan queria matá-lo só pela mera suspeita de que ele sabia do paradeiro de Fiona, o que faria quando a encontrasse? Que raio de coisa ela tinha feito para atrair Sheehan e seus capangas? E o que fizera? Ele também precisava se encontrar com Henry Benjamin, o detetive particular que havia contratado, para apressá-lo na investigação. Já tinha procurado o detetive dois dias antes. Segundo Benjamin, dificilmente Fiona teria ido para longe. Ele estava confiante de que a encontraria em uma ou duas semanas. Era muito tempo. Joe queria encontrá-la no dia seguinte. Fiona era esperta, obstinada, mas Bowler Sheehan era muito mais.

 

— É MUITO DIFÍCIL — DISSE MILLIE. — É muito difícil achar uma boa babá. Já entrevistei dez e não entregaria nem o meu gato para elas, quanto mais um bebê. Você não pode dar muita confiança. Eu gostei da última que entrevistei, mas a senhora Parrish a viu colocar biscoitos no bolso quando saí da sala. Ela não sabia estava sendo observada. Não se pode ter uma babá sorrateira. Deus sabe o que poderá fazer quando eu virar as costas. Sally Ennis disse que flagrou a babá dela colocando gim no leite do bebê. Você pode imaginar?

Joe desviou o olhar do balancete que estava conferindo.

— Não, não consigo — ele respondeu, tentando se mostrar o mais interessado possível.

— Não sei o que vai ser de mim — ela disse, ansiosa, pondo o bordado de lado. — A agência se comprometeu a mandar outras candidatas, mas o que farei se não encontrar uma a tempo? E se o bebê nascer e eu não tiver uma babá?

— Millie, você vai encontrar alguém. Ainda tem muito tempo para isso. Além disso, sua tia virá e ela também a ajudará. Se for preciso, ela mesma encontrará a babá para você. Não se preocupe com isso. O que você tem que fazer é terminar essa roupinha do batizado. Não vai querer que o bebê seja batizado de fraldas, não é? Joe tentou se mostrar positivo. Ele sabia que aquilo a deixava realmente aborrecida e não queria que ela se aborrecesse.

— Você tem razão — ela disse. Deu um largo sorriso e ele se aliviou.

Fazia quatro dias que ela tivera um sangramento depois de apanhar um vaso pesado na prateleira. Chamaram o médico. Ele estancou o sangramento e salvou o bebê, mas disse que ainda havia um risco de aborto. Ele a confinou na cama e recomendou que ela evitasse qualquer esforço físico e aborrecimentos. Olhando-a agora, na luz esmaecida de uma noite de domingo, Joe percebia o quanto ela tava pálida. Tinha olheiras muito escuras sob os olhos. Ela também estava excessivamente pálida. Ele sentiu pena dela. Sofria por vê-la sofrer.

Ela não estava se sentindo bem e tinha mandado Clive, sua criada, ir ao estúdio dele para pedir que ele lhe fizesse companhia até ela dormir. Ele concordou e levou o livro contábil no qual trabalhava, sentando-se numa poltrona ao lado da cama dela. Estava se esforçando para ser um marido melhor e confortá-la.

Millie falou um pouco sobre a vestimenta de batizado e outras roupinhas que estava fazendo para o bebê. Ele fez o máximo que pôde para prestar atenção e participar da conversa, mas era uma tarefa muito dificil. Ele estava completamente alheio. Na noite anterior tinha se encontrado mais uma vez com Benjamin. O homem o encontrara num pub indicado por ele.

— Reconhece isso? — perguntou o detetive, estendendo-lhe algo. Era a pedra aul do rio. A que ele dera para Fiona.

Benjamin disse que a tinha encontrado numa loja de penhores nos arredores do apartamento de Roddy. O agiota não só se lembrava de uma moça com a descrição de Fiona como ainda se lembrava de que ela havia trocado a pedra por dinheim vivo e uma sacola de viagem, e que estava acompanhada por um garotinho. E também disse que ela negociara um anel de ouro com uma safira minúscula, mas que já o tinha vendido. Benjamin teve que pagar cinco libras pela pedra. O agiota conhecia o que tinha nas mãos: um antigo escaravelho que provavelmente se soltara do anel de um nobre conquistador romano ao atravessar o Tâmisa com sua tropa.

Joe pagou a Benjamin pela pedra; segurou-a firmemente enquanto o detetive acabava de falar, já certo de que Fiona não estava em Londres. Certo de que ela realmente tinha ido embora. Mas, para onde? Benjamin também achava que ela deixara a cidade. E afirmou que também faria isso se Sheehan estivesse atrás dele.

Isso dificultava ainda mais a tentativa de encontrá-la. Ela não tinha familia nem amigos fora de Londres, o que significava que não havia um ponto especifico a ser investigado. Ela podia estar em qualquer lugar. Benjamin aconselhou-o não perder a esperança. Ele estava certo de que alguém, além do agiota, também a tinha visto deixar Whitechapel. Falaria com os condutores de carros de aluguel faziam ponto na Commercial Road para ver se um deles se lembrava dela e, sorte, do lugar a que a levara.

Joe sabia que Benjamin estava se esforçando ao máximo, mas a espera acabava com ele. A ideia de que a pessoa que ele mais amava estava sozinha no mundo sem ninguém a quem recorrer e talvez com dificuldades terríveis, ocupava a mente o tempo todo.

Olhou para Millie, recostada em almofadas de renda enquanto bordava a veste de batizado, e outra vez avaliou o tamanho da irrealidade em que ela vivia. Nada daquilo era para estar acontecendo. Não era para ele estar ali naquela casa, casado com aquela mulher. Ele devia estar em Whitechapel, casado com Fiona. Eles já teriam aberto a lojinha e já estariam trabalhando como loucos pelo sucesso dela. Isso seria difcil, exaustivo, uma luta sem trégua, mas era o que ele mais desejava. Apenas sentar-se à mesa de noite com Fiona e conversar sobre o dia. Dividir a mesma cama, fazer amor com ela no escuro, de maneira suave e doce. Ouvir alguém chamá-la de senhora Bristow. Balançar o filhinho deles nos joelhos e ouvir ela e sua mãe se perguntando qual lado da família o bebê puxara.

— Joe, querido? Que nome você prefere? Annabelle ou Lucy?

A voz de MiIlie o tirou dessa divagação tão adorável, trazendo-o de volta a realidade.

— O quê, Millie? Desculpe, eu estava pensando no trabalho.

— Eu perguntei que nome você acha melhor se o bebê for menina. Se for menino, gostaria de chamá-lo de Thomas, por causa do meu pai. Thomas Bristow. Acho que combina. Eu tenho certeza de que é menino. Estou com esse pressentimento. Eu... — Millie parou de falar e pôs a mão sobre a barriga.

Joe pulou para fora da poltrona, deixando o livro contábil escorregar do seu colo.

— Millie, o que foi? Alguma coisa errada? Devo chamar o médico? — ele perguntou alarmado.

Ela o olhou.

— Não — ela disse lentamente, com um sorriso de alegria e devaneio iluminando sua face. — Eu estou bem. O bebê chutou, Joe. Eu senti. Eu senti. — Pegou a mão dele e pressionou-a em sua barriga. Ele não sentiu nada. Ela o olhava, mas atenta em sua barriga. — Aqui! — murmurou entusiasmada. — Você sentiu? — ele não tinha sentido. Ela pressionou um pouco mais a mão dele e de repente ele sentiu. Talvez um pequenino cotovelo, ou um joelho, ou um calcanhar. Um pequenino e tímido caroço. O bebê — o seu bebê — de repente se tornava real.

Ele foi invadido por uma intensa onda de emoções: sentimentos paternais, ardentes e protetores, e sentimentos de completa desolação. Com uma certeza estranha e ancestral, ele sabia que amaria aquela criança. E sabia que desejara que isso nunca tivesse acontecido. O futuro dele — como pai da criança e marido de Millie — desabrochou à sua frente. Lágrimas brotaram em seus olhos, lágrimas de amor e pesar por aquele bebê que era seu, mas não era seu e de Fiona, e por sua vida vazia e sem esperança. Ele tentou ignorar esses sentimentos. Então, viu Millie, o farfalhar de sua camisola de seda, aproximando-se dele.

— Ssshhh — ela sussurrou, beijando-o. — Está tudo bem. Você amará o seu filho, Joe. Você amará. E ele o amará. Ele já ama. E quando ele chegar talvez você me ame. E aí seremos uma família e tudo ficará bem.

 

— SENHOR BRISTOW?

A voz do médico tirou Joe do passado e o trouxe para o presente. Ele se sobressaltou.

— Como ela está? — ele perguntou.

— Ela passou por momentos difíceis, mas ficará bem.

Ele se sentiu aliviado.

—E o bebê?

— Lamento dizer que ele foi abortado. Não conseguimos deter as contrações. Foi uma bênção que ele tenha morrido.

— Era um menino — disse Joe, desolado.

O médico confirmou. Pôs a mão no ombro de Joe.

— Era prematuro demais para sobreviver fora do útero. Sofreria muito. Ela terá outros. Que irão nascer no tempo certo.

— Posso entrar para vê-la? — perguntou joe. Ele se preparou para se levantar.

O doutor Lyons manteve a mão em seu ombro, forçando-o a permanecer sentado.

— Não, não — ele disse rapidamente. — Não é uma boa ideia. Não agora. O senhor Peterson logo virá para vê-lo. Falará com você. — O médico saiu para tomar seu café da manhã, dizendo que voltaria em uma hora para examinar Millie.

Joe afundou novamente no banco, vazio demais para chorar. O bebê tinha sido abortado. Como tudo mais em sua vida, todos os seus sonhos, todas as suas esperanças. Como tudo o que ele sempre quis ser: bom, gentil, compreensivo. Um marido e um pai carinhoso. A partir do momento em que sentiu aquela coisinha chutando, o seu anseio era segurá-la, cuidar dela e amá-la. Aquele pequenino movimento lhe parecera uma promessa de que alguma coisa boa surgiria em meio a toda aquela miséria. Mas agora o bebê estava morto por sua culpa.

A porta do quarto de Millie se abriu e o sogro dele saiu.

Joe levantoa-se e o olhou.

— Ela quer me ver? — ele perguntou.

Tommy permaneceu imóvel, de punhos cerrados, com o semblante congelado de fúria.

— Eu só não te mato agora por causa da Millie — ele disse, por fim. — Ela me contou tudo. Como têm sido as coisas entre vocês. Sobre a moça. Fiona. Nem sei se ela queria contar. Estava delirante por causa da dor e do clorofórmio. Ela me falou sobre a noite de Guy Fawkes... e o que ela fez. Uma coisa dura de se ouvir — ele abaixou os olhos com o maxilar trêmulo e depois voltou a olhar para Joe. — Eu quero você fora da casa. Fora de nossas vidas. Pegue o que é seu e vá embora. Para o divórcio será alegado adultério. De sua parte. Se você contestar, eu...

— Não vou contestar — disse Joe. Divórcio, ele pensou. Ganharia a liberdade Devia se sentir feliz? Ele não estava. Sentia pesar e vergonha. Não era para haver o divórcio, isso era uma coisa drástica, feia e escandalosa, e o fato de Tommy ter solicitado só indicava o quanto ele o desprezava. Tommy Peterson, o homem cuja aprovação um dia tinha sido a coisa mais importante para ele. Joe pegou seu paletó. Deu uma olhada para a porta.

— Eu gostaria de dizer para ela que sinto muito — ele disse.

Tommy negou com a cabeça.

— Deixe-a em paz.

Enquanto Joe caminhava pelo corredor, Tommy gritava:

— Por quê? Por quê, seu desgraçado estúpido? Por que você tinha que fazer isso? Você tinha tudo, tudo o que quisesse.

Joe voltoa-se e o olhou com um sorriso amargurado e triste.

— Tudo, Tommy, e nada.

 

EU QUERO DUAS COSTELETAS de carneiro... aquelas, as maiores, essas... e meio quilo de cebolas, um maço de salsinhas e duzentos e cinquenta gramas de manteiga. Você também colocou a farinha de aveia, não é?

— Sim, senhora Owens — disse Fiona, pegando as mercadorias da cliente em sua loja super superlotada. — Seamie, querido, traz mais maçãs — ela gritou para o irmão. Ele despejou os limões que carregava numa caixa e correu de volta para o porão.

Ela se sentiu agarrada pelo cotovelo.

— Eu quero um pouco do seu chá, querida. Tenho um cupom do seu folheto... cupom vale cento e vinte e cinco gramas, não é? Não acabou tudo, não é? — era Julie Reynolds, que morava na mesma rua.

— Senhorita! Senhorita! — chamava uma outra voz. — Eu quero um pouco do Bolo Madeira antes que acabe!

— E para já, madame — respondeu Fiona. E viroa-se de volta para a senhora Reynolds. — Não se preocupe, senhora Reynolds. Tenho mais dois caixotes de chá no porão. Só me dê um minutinho.

Fiona ouviu uma batida brusca.

— Rapaz, você pode me servir farinha de trigo? Por favor! — era uma senhora a batendo no balcão com o cabo da bengala.

— E pra já minha amada — disse Nick, virando-se para Fiona. Ele pesava meio quilo de maçãs enquanto ela escolhia cebolas num cesto. Eles negociavam com alegria rapidez. — Meu Deus, a loja está lotada! Estou com um monte de cupons dos folhetos no meu bolso e um bocado na caixa registradora. Logo, logo precisares ter um outro caixote de chá no porão. Quantos anúncios você colocou?

— Só um no jornalzinho do bairro!

— Todo esse movimento por conta de um único anúncio? O Nate está certo. publicidade realmenté funciona!

Ele se apressou em efetuar a venda das maçãs e Fiona agradeceu pela presença dele ali. Estaria perdida sem a sua ajuda. Ele era tão charmoso e sociável. As mulheres o amavam e ele se deleitava em representar o papel de vendedor. Era um outro jogo, uma brincadeira que Nick, uma criança grande, adorava.

Ela pesou e embrulhou as costeletas, a manteiga e as cebolas, pôs os embrulhos junto ao saco de farinha de aveia e finalizou o pedido com o maço de salsinhas.

— A senhora já provou nossos biscoitos de gengibre? — ela perguntou para a senhora Owens, oferecendo-lhe um. — Eles são uma delícia. Eu não consigo afastar o Seamie do pote — ela acrescentou, já avisada de que a senhora Owens era uma mãe que adorava os seus cinco filhos, na expectativa de aumentar pouco mais a conta.

— São caseiros? — perguntou a mulher, saboreando a prova que Fiona lhe dera.

— Praticamente acabaram de sair do forno. Quem os fez foi Mary Munro. Ela é que faz todos os bolos, pães e biscoitos da loja.

— Oh, eu conheço a Mary! E uma confeiteira de mão-cheia. Vou levar um bocado. Manterão as crianças quietas por algum tempo. Eu também preciso de leite e um quilo de farinha de trigo. E não esquece do meu chá, Fiona! Aqui está meu cupom. Ele é bom? Eu não quero porcaria.

— E um excelente chá, senhora Owens. E um T—G—F—O—P — disse Fiona c um ar de cumplicidade. — Tippy Golden Flowery Orange Pekoe — ela tinha visto J oe agir assim. Lançar um termo exótico na conversa. Ele dizia que isso acarreta uma cumplicidade, um conhecimento superior do produto que fazia o cliente sentir um profundo conhecedor.

— Eu vi essas letras no caixote. O que significa?

— E a qualidade do chá. Isso indica que você está comprando um chá composto de folhas grandes e de uma floração enorme. Significa que o chá foi colhido nas extremidades dos galhos da planta, no caso a Orange Pekoe, e não na base, onde as folhas velhas estão — ela abaixou o tom da voz. — Tem gente que não conhece a diferença — ela disse, olhando ao redor —, mas as pessoas como a senhora fazem questão de um chá de melhor qualidade.

A senhora Owens assentiu com a cabeça.

— Então me dê esse chá, mocinha. Deus sabe há quanto tempo eu não saboreio um bom chá: anos!

Fiona sorriu ao ver o entusiasmo da senhora Owens. Ela também o compartilhava. Se havia uma coisa que não tolerava, era um chá ruim. Frustrada pelas ofertas do fornecedor do seu tio, ela suspendeu as compras dele e optou pela Millard, dirigindo-se à firma de importação de seu amigo Stuart, na South Street, onde solicitou um composto de chá indiano. Disse para Stuart o que queria e ele, valendo-se de folhas oriundas de três regiões de Assam, criou uma mistura encorpada e fresca, com um brilhante tom de malte. Ele ficou feliz por ter feito isso. Estava com dificuldade para negociar o seu estoque de chá indiano. Seus clientes americanos só queriam comprar o que conheciam, ou seja, o chá chinês. O seu chá era bem superior, mas ele não conseguia convencê-los. Fiona, no entanto, não compraria outro chá senão o dele. Ela reconheceu imediatamente a sua qualidade. Sabia que suas freguesas também gostariam do chá indiano. Graças à Virgem Maria, ela já as conhecia. Jovens operárias ou esposas de estivadores e de operários — quase todos imigrantes —, elas gostavam de um bom chá. Tratava-se de uma pequena luxúria que suas vidas de trabalho diário permitiam.

Fiona pesou o chá da senhora Owens e depositou o saco sobre o balcão, junto com o resto das compras dela. Depois, embrulhou os biscoitos de gengibre, pesou de farinha de trigo e retirou o leite de um galão, transferindo-o para uma a senhora Owens trouxera de casa.

— É só isso? — ela perguntou, enquanto começava a somar as compras.

A mulher olhou longamente para a vitrina da loja.

— Oh, aquelas batatas estão tão lindas. Me dê um quilo delas e um maço de aspargos também. O senhor Owens adora aspargo. Eu acho que, por ora, chega. Nem sei se conseguirei levar essas compras.

— A senhora gostaria que entregássemos em sua casa?

— Entregar em casa? A Finnegan agora faz entregas?

— Sim, madame. Aos sábados, o dia todo, e, durante a semana, à tarde, depois que os entregadores saem da escola. — E quanto é isso?

— Para a senhora, nada — na verdade, era gratuito para todos, mas por que mencionar isso?

— Bem, então eu quero, sim! — disse a mulher, lisonjeada e embevecida. — E me dê também um ramo daqueles lindos narcisos. Pode deixar que esses levo comigo agora ja que não tenho mais nada para carregar. E por favor, peça para o menino tomar cuidado com minha jarra de leite!

A senhora Owens pagou pelas compras e saiu. Sem perder um só segundo, Fiona voltoa-se para a próxima cliente.

— E agora, senhora Reynolds, muito obrigada por ter aguardado. Em que posso servi-la? — e, depois de servir a senhora Reynolds, ainda havia uma fila de outras mulheres para atender, Fiona não conseguia parar nem por um segundo, mas estava nas nuvens. Todo mundo estava comprando! As pessoas compravam leite e pão e farinha de trigo, itens básicos e mais baratos, mas também compravam mercadorias mais caras: ramos de flores recém-colhidas, biscoitos da Mary e os legumes e verduras frescos expostos na vitrina!

Fiona tinha padecido com aquela vitrina. Deixara para montá-la na última por volta das seis da manhã. Nunca havia arrumado uma vitrina e não sabia por começar, mas sabia que precisava ficar maravilhosa e atraente o bastante para chamar a atenção das pessoas da rua. Sozinha, de pé no meio da loja, ela olhava ao redor, analisando todas as mercadorias — aveia, picles, leite, farinhas e outros itens — e perguntando como criar uma forma de expô-las. Quando os primeiros raios de sol iluminaram a rua, ela entrou em pânico. Mas então ouviu a voz de Joe ecoando em cabeça, dizendo: ―Fi, tudo depende da apresentação. E ela que desperta o freguês para as compras‖. Seus olhos se cravaram num caixote de aspargos, não planejara comprá-los, eram caros, mas foi convencida pelo verdureiro, que afirmara que, depois de um longo inverno, as pessoas ficam loucas por legumes e verduras frescas e não se importam em pagar um pouco mais por eles. Seu olhar repousou nas batatas frescas, lindas, cobertas por uma casca rosada... e nos narcisos de Alec... e nos ovos de pata, marrons e pintados, dispostos numa caixa cheia de feno... e aí teve uma ideia.

Subiu até o apartamento e pegou uma toalha de mesa de linho branco da Molly. Na sala de visitas, pegou um vaso verde, na cozinha, uma tigela azul e branca, depois desceu correndo para a loja. Foi ao porão, pegou um caixote de frutas vazio, uma grande lata de biscoitos redonda e algumas cestas, e depois subiu na vitrina começou a trabalhar. Tão logo terminou, saiu para ver o resultado da rua.

Criara um quadro perfeito da primavera. Um arranjo de narcisos amarelos no vaso verde ao centro da vitrina sobre a lata de biscoitos que cobrira com toalha de linho. Atrás do arranjo viam-se compridas bisnagas douradas dentro uma cesta. Próxima a elas, em cima de um caixote de madeira, uma outra cesta repleta de batatas. Perto disso tudo, molhos de aspargos amarrados com barbante e arranjados na tigela azul e branca. Frente ao ninho que ela improvisara com feno, viam-se seis ovos de pata. Rústica e convidativa, a exibição de Fiona e totalmente diferente de todas as outras vitrinas das lojas, geralmente entupidas de mercadorias desencontradas, como latas de graxa, barras de sabão e caixas doces. Seu pequeno cenário evocava os dias cálidos e verdejantes que estavam vir. Evocavam tulipas desabrochando nos campos e novas mudas nas árvores, um cenário aconchegante e caloroso que deleitava os pedestres já saturados frutas de inverno e de batatas velhas.

A vitrina ilustrava para Fiona a primeira e mais importante regra do comércio, uma regra que tinha aprendido por instinto com Joe, e com os mercados e as vitrinas das lojas de Whitechapel: crie o desejo por alguma coisa que as pessoas a compram.

Uma mulher que admirava a vitrina entrou na loja seguida por lan quase sem fôlego. Fiona apontou para as compras da senhora Owens e lhe deu o endereço dela. Ele rapidamente acondicionou as compras em uma caixa e saiu. Robbie entrou quando lan saía e Fiona lhe deu a ordem de entrega da senhora Reynolds. Irritada, pensou em como seria mais fácil se o tio estivesse trabalhando ao seu lado em vez de estar se embebedando no Whelan‘s. No dia anterior, ela o tinha a trazido até a loja para que ele consertasse a gaveta da caixa registradora e mostrasse como se desenrolava a fita. Isso lhe custara outro dólar. E durante o tempo em que estivera na loja, ele criticara muitas coisas que ela havia comprado.

Muitos revendedores tinham lhe vendido o dobro do que ele comprava para uma semana, aproveitando-se da inexperiência dela. Ela teve, então, que ouvir até que suas orelhas queimassem. Depois, ele quebrou um ovo dentro de um prato, furou a gema e lhe disse que o ovo estava velho. Enfiou a mão no barril de farinha de trigo, deixou um punhado escorrer entre os dedos e encontrou brocas. Avistou os três caixotes de chá da Millard e disse que ela havia comprado em excesso e que o chá envelheceria antes que fosse todo vendido. Pegou um peixe, examinou as guelras e disse que estava quase estragado. Enfurecida, ela argumentou que nada daquilo teria se ele estivesse presente para ajudá-la na hora das compras. Resmungandou transferiu os caixotes de chá e de café junto com as caixas de roscas, farinha de trigo e alguns itens básicos que as mulheres compram com mais frequência para perto balcão e afastou os vidros de cacau, noz—moscada e canela em pau do sol; depois, aconselhou-a a tirar os fósforos do balcão refrigerado para que não ficassem úmidos.

Pou um único momento, seu tio tornoa-se o dono de loja competente e conhecedor que ela sabia que ele podia ser, mas, justo na hora em que ela pensava que ele podia ficar para ajudá-la, Michael saiu entristecido por estar naquele lugar. Enquanto saía, ele menosprezou os belos toques que ela dera na loja: o dossel de renda, pratos de vidro para os quitutes de Mary, as cantoneiras da vitrina e a placa de ABERTO que Maddie pintara à mão para ela. Ele afirmou que ali era um bairro operário e que as pessoas se interessavam pelo preço e não pelos enfeites.

Ele estava errado. Fiona sabia disso. A classe operária amava a beleza da mesma forma que os ricos. Talvez até mais, uma vez que havia tão pouca beleza em suas vidas. Mas ficou arrasada com as palavras dele, e Nick, que chegara para ajuda-la a arrumar a loja, teve que restaurar sua confiança abalada. Ele disse que os erros dela não passavam de enganos de principiante e que havia tempo de corrigi-los, também disse que talento e habilidade eram o que mais importava e que isso havia de sobra nela. Ele segurou-a pelo rosto e sugeriu que ela fosse ao peixeiro e jogasse o bacalhau velho na cara dele, junto a uns bons desaforos. Ela fez o que ele aconselhou e teve de volta um maravilhoso peixe fresco. Depois, obrigou o moleiro a trocar a farinha e o granjeiro a lhe dar ovos frescos.

Enquanto embrulhava os últimos biscoitos de gengibre para uma freguesa — todos já tinham acabado e ainda não eram dez horas! —, Fiona se deu conta do que tinha feito: reabrira a loja. Havia clientes, dezenas deles! E eram tantos que as mercadorias já estavam acabando. Ela precisava renovar o estoque, e com rapidez. ―Você não pode vender com uma carroça vazia‖, Joe costumava dizer. Ela estava muito aliviada porque tudo correra bem. Mais do que isso, sentia-se feliz e orgulhosa. O chá, os quitutes, a linda vitrina; tudo isso fora ideia dela e funcionara. Havia uma emoção surpreendente em ter sucesso em alguma coisa. Era uma nova emoção — metade felicidade, metade orgulho — e ela a saboreava. Com uma pontada de remorso, lembroa-se de quando se sentava com Joe na Old Stairs e ele tentava lhe falar do seu sucesso na Peterson e do que isso significava para ele. Ela estava enciumada na ocasião, sentia-se extremamente ameaçada para ouvi-lo. Se ao menos o tivesse escutado. Se ao menos tivesse tentado entendê-lo, em vez de brigar com ele. Se ao menos, e só se ao menos.

Enquanto segurava a porta para uma cliente sair com as compras que fizera questão de carregar, Fiona viu uma carruagem estacionar à frente da loja. O condutor caminhou até a porta, perguntou seu nome e depois lhe entregou uma caixa.

— O que é isso? — ela perguntou.

— Dele, a gente nunca sabe — ele disse, já de volta à carruagem e agitando as rédeas.

Fiona olhou para a caixa. Era um brilhante retângulo azul, de tamanho médio, a tampa marchetada com peças iridescentes de vidro. Ela girou a caixa e viu o nome ―Tiffany Studios‖ gravado embaixo. Intrigada, abriu-a. Surpreendea-se ao ver que dentro havia um jornal, um exemplar do New York World. Na primeira página estava escrito ―veja a página 5‖. Ela fez o que a frase pedia e viu que o anúncio de sua loja feito por Nate e Maddie, o mesmo colocado no Chelsea Crier, ocupava uma página inteira. Ela se espantou. Como isso acontecera? Não tinha feito aquele anúncio. Não havia dinheiro para isso. O World era o maior jornal da cidade, não era um jornalzinho de bairro. Talvez aquilo explicasse por que a loja estava tão lotada.

Um pequeno cartão branco escorregou de dentro das páginas e caiu ao chão. Ela o pegou. A letra era grande e masculina. O cartão dizia:

Minha cara senhorita Finnegan,

Espero que este pequeno presente contribua para o seu sucesso.

Cordialmente,

William R. McClane

WILLIAM McCLANE SE PERGUNTAVA SE ESTAVA PERDENDO O juízo. Ele se atrasara para um jantar no Delmonico, um jantar ao qual não podia faltar. Era uma recepçao privada oferecida pelo prefeito. Grande parte dos homens de negócio da cidade estaria lá. O jantar seria uma excelente ocasião para ele expor seus planos de uma ampla via subterrânea ao longo da cidade, e despertar o interesse e o entusiasmo entre as pessoas cujo apoio talvez fosse crucial para o seu sucesso.

E o que ele estava fazendo? Sentado em sua carruagem estacionada em uma rua perdida em West Side, do outro lado da rua de um pequeno armazém, aguardando, esperando para ver, mesmo que de relance, a jovem cujo rosto ele não conseguia tirar da cabeça desde que a tinha visto pela primeira vez, uma semana antes, num dos escritórios do seu banco. Um rosto enigmático que tanto se mostrava ansioso como determinado, aberto e resguardado, forte e dilacerantemente vulnerável. O rosto mais atraente que já vira.

A caminho do restaurante na 5th Avenue, um impulso o fez dizer para Martin seu cocheiro, que virasse à esquerda. Ele falou que precisava dar uma parada a antes de chegar ao Dolmenico. Ao ser informado do endereço, Martin fez uma expressão intrigada.

— O senhor tem certeza de que é esse endereço mesmo? — perguntou o cocheiro. Ao receber a confirmação de Will, ele balançou a cabeça como se não estivesse entendendo mais nada. Will conhecia a sensação, ele também já não se entendia. Não entendia por que arriscara o dinheiro de seu banco numa garota cheia de ideias, mas sem nenhuma experiência. Ou por que fizera Jeanne, sua secretária, percorrer quatro dias seguidos todos os jornais da cidade até encontrar a cópia do anúncio que Fiona colocara no Chelsea Crier para também estampá-lo no World.

Ele também não entendia por que pensava umas cem vezes por dia numa garota que nem conhecia. Ou por que, de repente, passou a se sentir insuportavelmente sozinho, apesar da vida intensa que tinha, das demandas de seus negócios e prazeres que partilhava com os amigos e a família.

Com quarenta e cinco anos de idade, William McClane já tinha vivido tempo suficiente para conhecer sua própria mente. Entendia suas motivações e seus objetivos. Era um homem astuto e racional, alguém que usara sua formidável inteligência e seu brilhante tino financeiro para transformar uma modesta fortuna familiar numa soma estonteante de dinheiro. Ele era um homem altamente disciplinado, e se orgulhava da atenção que dava ao fato e à lógica, e de sua capacidade de não se deixar levar pela emoção ou pelos devaneios.

Então, que diabo ele estava fazendo ali? A espreita, como um tarado.

No final do trajeto, ele disse para si mesmo que só estava cuidando dos negócios. Vistoriando o investimento de seu banco. Ele só estava querendo se certificar a senhorita Finnegan tinha entrado com o pé direito. Afinal, uma loja era um empreendimento muito grande para ser cuidado por uma jovem. Mas, à medida que os minitos passavam, e depois de ter visto no relógio que já eram quase sete horas e ela não tinha saído da loja, deixando-o desconsolado, ele se viu forçado a admitir que a sua visita não tinha nada a ver com negócios e sim com o olhar machucado dela quando Ellis a descartou e com a maneira tocante e corajosa com que ela manteve a cabeça erguida e segurou as lágrimas quando ele se dirigiu a ela, e com o alívio real e palpável no semblante dela quando anunciou que ela teria a loja.

Precisava saber se ela estava bem. Se as coisas tinham corrido bem. E, se não tivessemsem acontecido assim, ele queria ser aquele que as endireitaria. Ele acendera as suas emoções. Sentimentos de preocupação e proteção, além de outros sentidos mais profundos e desconhecidos. Sentimentos que ele não compreendia e não sabia como nomeá-los.

Will olhou o relógio. Eram exatamente sete horas; ele tinha que ir embora. Não só porque estava atrasado para o jantar, mas também porque já estava chamando atenção. Seu coche, fabricado na Inglaterra, valia facilmente o dobro de qualquer um dos prédios dali, e as pessoas estavam parando para admirá-lo. E, para o seu horror também para admirá-lo em seu traje de gala. No Delmonico ou na ópera ninguém o olharia duas vezes, mas ali, naquele bairro operário, ele se tomara um verdade espetáculo. E isso era algo que um homem com sua bagagem e linhagem não fazia.

Ele já estava a ponto de pedir que Martin colocasse o coche em movimento quando a porta da loja abriu e uma jovem vestindo um longo avental branco saiu de dentro dela. Seu coração pulou ao vê-la. Fiona. Ela encaixou o gancho de um longo cabo que carregava num aro metálico sobre a porta de entrada e começou a enrolar o toldo. E então, antes que percebesse o que acontecia, ele estava saindo do coche e atravessava a rua a passos largos. Ao pisar na calçada, a porta da loja abriu- se e um rapaz saiu. Ele tirou o cabo da mão dela, acabou de enrolar o toldo em seguida, de repente ergueu-a do chão e os dois começaram a girar; exultantes e felizes. O rapaz colocou-a de volta ao chão, e ela beijou o rosto dele.

Will se deteve imediatamente. E claro que devia ser o marido dela. Por alguma razão, ele não a tinha imaginado casada. Ela lhe pareceu tão sozinha naquele dia no banco, como se não tivesse ninguém para lutar por ela, ninguém que a defendesse. Observando os dois, ele se maravilhou com a excitação e a vertiginosa emoção de ambos. O dia devia ter sido promissor e eles deviam ter feito algum dinheiro. Ele ficou admirado em ver como alguns dólares podiam deixar alguém tão feliz. Anna, sua finada esposa, nunca o abraçara daquela maneira, nem mesmo quando ele conseguiu seu primeiro milhão. De repente, ele desejou estar de volta ao coche. Sentia-se um intruso barganhando a felicidade daqueles dois. Sentia-se incomodado e, para seu espanto, dolorosamente desapontado. Deu meia-volta esperando não ser notado, mas nesse momento Fiona o viu. Sua face, já brilhante de felicidade, tomoa-se incandescente.

— Senhor McClane! Olhe, Nick, é o senhor McClane, o homem de quem falei! Aquele do banco! Oh, senhor McClane, o senhor não vai acreditar no tivemos! Tinha tanta gente! Rios de gente! Oceanos de gente! Vendemos tudo e não sobrou quase nada para vender, quase nada! E tudo isso por causa do senhor!

E ela então ultrapassou a pequena distância que havia entre eles, jogou os braços em torno do pescoço dele e o abraçou tão forte que quase o sufocou. Ele ficou tão aturdido e tão encantado que literalmente engoliu as palavras. Suas mãos subiram pelas costas dela. Ele podia sentir o calor do corpo dela vazando pela blusa. Os cabelos de Fiona roçando um lado do rosto dele, e a face dela, como cetim, colada à dele. Ela exalava um aroma de manteiga e chá e maçã aconchegante e doce suor feminino.

E depois, como se recobrando a consciência, ela afastoa-se, dando um passo atrás, e todo o corpo dele sentiu uma falta profunda do toque dela.

— O senhor fez tanto por nós! Primeiro, salvando a loja para mim, e o anúncio! — ela disse. — Como o senhor conseguiu colocá-lo no World? Eu deixei uma cópia com o senhor Ellis? — ela não esperava por respostas, continuou falando atropelamente, poupando-o de uma explicação. — O senhor não sabe o que isso significa para nós... para minha família — ela ainda sorria, mas ele viu uma brilhante pelicula de lágrimas no rosto dela. — Não vamos precisar nos mudar e não tenho que encontrar um trabalho e a família Munro poderá ficar e... oh, não! Olhe só o que fiz! — Will acompanhou o horrorizado olhar dela até a frente do seu paletó e viu que estava coberto de farinha de trigo. — Me desculpe! Vou pegar um pano! — ela desapareceu da loja, deixando-o próximo ao seu companheiro.

— Ela não é uma espoleta? — ele disse, olhando-a e rindo. — Eu sou Nicholas Soames, um amigo de Fiona. Muito prazer em conhecê-lo.

Apenas um amigo? WiIl o cumprimentou, iluminado.

— O prazer é meu, senhor.

Fiona saiu e lançoa-se atrapalhada no paletó dele, esfregando a farinha com o pano e piorando ainda mais as coisas, até que ele assegurasse para ela que estava tudo bem e que a farinha sairia com uma boa sacudidela. Particularmente, ele estava tranquilo porque sabia que Charles Delmonico mantinha uma reserva de paletós e calças para os seus clientes, no caso de algum acidente à mesa. Ao mesmo tempo em que ela desistia e enfiava o pano no bolso, Nick apagava as lâmpadas a gás etrancava a porta e lhe entregava a chave.

— Vou subir para ver se Mary precisa de ajuda para o jantar, Fi. O que devo fazer com isso? — ele segurava a caixa da Tiffany que Will tinha enviado.

— Vamos olhar outra vez! — ela disse com um olhar guloso. Nick abriu a caixa. Ela estava cheia de notas e moedas. Eles olharam para o dinheiro, entreolharam-se e es explodiram em risos como duas crianças diante de uma caixa de doces.Will não conseguia se lembrar de ter se divertido tanto em fazer dinheiro algum dia. Talvez devesse desistir da mineração, da madeira e das vias subterrâneas e tentar o comércio.

— Esconda em algum lugar. Debaixo da minha cama. Aí tem dinheiro suficiente para o próximo pagamento mensal da hipoteca. Se Michael encontrá-la, ele vai secar todos os bares da cidade — ela olhou para WilI. — Meu tio tem um problema com o uísque. Tenho certeza de que o senhor Ellis lhe contou.

Will assentiu com a cabeça. Ellis tinha contado, escolhendo as palavras. Ele se surpreendeu com a forma direta com que Fiona falara. No seu circulo social, ninguem falava abertamente sobre essas coisas. Elas aconteciam; bebida, jogo e coisas piores. A regra, no entanto, era fingir que não existiam.

— Muito prazer em conhecê-lo, senhor McClane — disse Nick, entrando no prédio.

— O prazer foi meu, senhor Soames.

— O senhor pode cear conosco, senhor McClane. Ou o certo é jantar? Eu confundo tudo. Adoraria que o senhor ficasse. Todos nós adoraríamos. O jantar será uma pequena celebração. Ainda mais agora! De manhã eu estava tão preocupada achando que ninguém viria. Por favor, junte-se a nós! O Nick trouxe champanhe.

— Me chame de Will, eu insisto. Adoraria me juntar a vocês, mas tenho ir depressa para um jantar de negócios.

Fiona balançou a cabeça. Olhou para o chão e depois ergueu os olhos para ele, mas seu sorriso adorável se dissipara.

— Talvez um jantar elegante e silencioso, eu imagino. Devo me desculpar. Não costumo tagarelar tanto assim. Estou muito excitada. Nem sei se conseguirei dormir esta noite.

Will notou que ela havia pensado que a sua recusa ao convite se devia ao comportamento impetuoso dela. Nada podia estar mais longe da verdade.

— Senhorita Finnegan, não... por favor, não... não pense... eu gosto do seu entusiasmo pela loja. Eu também sou assim. Me dê uma chance e encherei seus ouvidos falando do meu metrô. Olhe, ainda tenho um pouco de tempo antes ir para o centro. Quando estou muito excitado, sempre dou uma caminhada. É ótimo. Vamos caminhar um pouco?

— Eu adoraria! Mary não vai terminar o jantar tão cedo, pelo menos enquanto Nick estiver se intrometendo por lá. Mas não o estou atrasando, estou?

Ele negou com um aceno.

— De jeito nenhum. Tenho muito tempo — ele disse. Mas não tinha. Estava escandalosamente atrasado. E não se importava com isso.

Ela sorriu outra vez. Um sorriso largo, generoso, genuíno, desprovido de qualquer arrogância e profundamente desconcertante. Ele a tinha feito sorrir e isso o deixou feliz. Ela tirou o avental e o largou num degrau da escada.

— Estou pronta — ela disse. — Vamos?

— Espere um pouco — ele disse, puxando um lenço do bolso. E gentilmente esfregou o rosto dela com o lenço. — Canela. Uma listra comprida. Parece que você estava liderando um conselho de guerra. — Ela riu. Sua pele era tão sedosa quanto uma petala de rosa. Ele continuou esfregando até acabar com a mancha de canela, e procurou se deter antes que ela pensasse que só estava tentando tocá-la. E era o que fazia.

Eles saíram e ela disse que, já que passaria a chamá-lo de WiII, ele devia chama-la de Fiona. Ele concordou, abafando um sorriso pela aparência dela. Mechas cabelo tinham escapulido do penteado e caíam pela cintura, e suas roupas estavam imundas e amarrotadas. Mas seu rosto estava corado e seus magníficos olhos brilhavam. Will pensou que ela era a mulher mais bela que ele já tinha visto.

Enquanto caminhavam para o leste da 18th Street, ele quis saber da loja, do que os fregueses haviam comprado e de onde ela tirara tão boas ideias. As respostas eram inteligentes e perspicazes. E depois ela começou a lhe fazer perguntas. Como ricos nova-iorquinos fizeram fortuna? O que produziram? O que venderam?

— Bem, Carnegie ficou rico com o aço — ele se pôs a falar. — E Rockefeller com o petróleo. O Morgan com estrada de ferro e finanças e... por que você quer saber disso, Fiona?

— Por que eu quero ficar rica. Quero ficar milionária, Will.

— Mesmo? — ele perguntou, sorrindo por outro tabu quebrado. Outra regra atirada jovialmente para o alto e espatifada como uma garrafa velha de leite. Obviamente, ela não sabia que as mulheres não deviam falar de dinheiro. Pelo menos as mulheres de sua classe social. Ele teve a nítida sensação de que ela não dava a mínima se soubesse disso.

— Mesmo. Como você fez para ficar rico? Como foi?

Otimo, lá se foi outra garrafa de leite. Desde pequeno ele aprendera que nunca devia perguntar de maneira tão direta para um amigo a respeito de suas finanças.

Mas ele achou tão jovial a forma com que ela perguntou e pediu aconselhamento que não hesitou em responder-lhe.

— Com uma pequena fortuna familiar eu investi no corte de madeira de algumas terras que herdei no Cobrado, e com o projeto de comprar mais terras por lá o solo é abundante em prata.

Fiona franziu a testa e suas sobrancelhas se contraíram.

— Eu não tenho nenhuma dessas coisas — ela disse. — Mas estou pensando que, se tudo correr bem, talvez eu possa pedir outro empréstimo e abrir uma segunda loja. Talvez dez ou quinze ruas ao norte da primeira...

— Em Hell‘s Kitchen? E melhor que não seja.

— Bem, então ao sul — ela especulou — ou alguns quarteirões ao leste. Talvez Union Square. Já estive lá, é bem movimentada. E depois eu poderia abrir uma loja e em pouco tempo teria uma cadeia de...

Will olhou-a longamente.

— Você não acha que seria mais sensato caminhar um pouco antes de sair correndo? Faz um dia que você abriu a loja. E um ótimo dia, por sinal, mas você ainda precisa aprender algumas coisas antes de abrir uma segunda loja.

— Como o quê?

— O perfil de sua clientela. Experimente abrir uma loja como a sua em HeIl‘s Kitchen e verá a sua vitrina depauperada. Eles saquearão tudo. É um bairro perigoso. E você está certa, sim, Union Square é um lugar muito movimentado, mas atende um público que procura por mercadorias mais luxuosas. Ouça o conselho que o meu pai me deu quando comecei, Fiona: para crescer, use aquilo que você conhece. Acabamos de ver que você ainda não conhece bem os bairros da cidade para fazer investimentos maiores em qualquer um deles. Não apresse as coisas. Comece pequena.

— Como? Com o quê?

Will pensou por alguns segundos.

— Você disse que todos os seus bolos e biscoitos foram vendidos, não foi?

Fiona confirmou.

— Você já sabe que os doces vendem, então, agora tente vender salgados. Empadões de carne... de galinha... esse tipo de coisas. E um risco, você pode não vendê-los, mas é um risco calculado. Veja as probabilidades. Tente uma seleção de bons doces. Se as pessoas estão comprando biscoitos, existe a chance de comprar chocolate. O que mais? O aspargo vendeu todo, não é? Uma noite dessas, eu provei no Rector a mais deliciosa alface no vapor que já comi na vida. Era uma alface nova, colhida antes de estar inteiramente formada. Talvez as pessoas que gostam verduras frescas também comprem esse tipo de alface. Talvez não, mas você de investigar cada possibilidade. Antecipe as necessidades. Seja a primeira a dar seus clientes aquilo que eles querem, mesmo que eles não saibam o que desejam…

Abria-se uma janela em cima da cabeça deles. Uma mulher se debruçou no parapeito e gritou com um tosco sotaque irlandês.

— Sean! Jimmy! Em que raio de buraco vocês se meteram, seus malandros. As costeletas de porco estão esfriando. Venham já para casa, senão vão levar uma surra, os dois!

— Costeletas de porco, Will — disse Fiona, apontando para a janela. — E o que os meus fregueses querem. Não ficarei rica vendendo essas coisas.

WiIl sorriu.

— Talvez não. Pelo menos, não agora. Mas você aprenderá. Acabará descobrindo o que vende e o que não vende e saberá por quê. E crescerá com esse conhecimento. Ficará esperta, Fiona. E esse é o primeiro passo para enriquecer.

— É, sim. Eu nunca teria sabido comprar minhas minas de prata se já não tivesse ido ao Colorado por conta dos meus negócios com a madeira. Eu não teria tentando vender para a cidade o meu plano para o metrô se não tivesse o connhecimento de engenharia subterrânea que adquiri com minhas minas. Confie em mim. Para crescer, use aquilo que você conhece.

Continuaram a caminhar e a conversar alheios ao tempo que passava, e não houve em nenhum momento um silêncio constrangedor, um só segundo em que dois não conseguissem pensar no que falar. Will estava profundamente encanto com Fiona. Nunca tinha conhecido alguém como ela: uma mulher tão apaixona tão direta, tão honesta, tão desprovida de malícia. Ela o fascinava e intrigava, e queria saber mais sobre ela. Perguntou sobre a família dela e, quando ela contou o que havia acontecido, ele parou no meio da calçada no cruzamento da 18th a 5th e a Broadway, incapaz de acreditar como ela havia sobrevivido. Isso e tudo sobre ela, respondia a todas as perguntas dele. Explicava por que ela estava ali. Por que ela lutava para fazer da loja um sucesso, por que estava determinada a enriquecer. Ele admirou a coragem, a força dela, mas seu coração também sofreu por ela. Sem pensar, segurou as mãos dela e disse que ela o procurasse quando necessitasse de qualquer coisa. Ele não tivera a intenção de agir assim; seria um gesto ousado, mas o impulso falou mais alto. Ela simplesmente apertou as mãos dele, agradeceu e disse que o procuraria se acontecesse alguma coisa.

Quando chegaram na Union Square, Fiona surpreendea-se por eles terem andado tão longe e disse que tinha que voltar. O jantar já devia estar quase pronto. Contudo, antes de retomarem, ela avistou uma florista — uma menina encardida, aparentando não mais de doze anos — que vendia seu produto. A menina tinha rosas vermelhas, Fiona deixou seu olhar pousado durante um tempo sobre elas, e de repente disse que compraria al gumas rosas por mais que fossem caras. Como um presente pelo sucesso da inauguração. Ele esboçou um gesto para comprá-las, mas ela não deixou. Ele notou que ela pagou pelas flores da menina um pouco mais do que custavam. Ela confessou que amava rosas vermelhas e ofereceu uma para que ele colocasse na lapela.

Quando finalmente chegaram de volta à loja, um menininho ruivo — ela disse que era o seu irmão — estava debruçado na janela. Ele gritou para que ela se apresasse, Todo mundo estava morrendo de fome, ele disse. Will beijou a mão de Fiona, segurou-a por mais tempo do que devia e por fim se despediu. Ele olhou para trás enquanto o coche se afastava e a viu de pé na calçada, com as rosas nas mãos, vendo-o partir. E nunca em sua vida ele havia lamentado a perda de uma garrafa de Château Lafite e um jantar doméstico.

 

STAN CHRISTIE e Reg Smith não estavam distantes das costas de Roddy O‘Meara. Ele não conseguiu vê-los, mas ouvia os passos deles, ouvia o barulho do seu próprio cassetete na palma de sua mão.

— Vai em frente, Bowler, desembucha — disse Roddy, sentando-se na mesa de Sheehan, — Certifique-se de que eles me peguem antes que eu pegue você.

Sheehan se pôs de costas na cadeira. Ele tentava tirar um pedacinho de comida dos dentes com a língua, e em seguida balançou a cabeça, incisivo. Reg e Stan voltaram imediatamente aos seus lugares no bar do Taj Mahal. Bowler empurrou o seu prato ainda com um enorme e suculento pedaço de bife na direção de Roddy.

— Pegue. Eu ia dar pra Vick, minha cadela... — ele apontou para uma terrier horrorosa deitada aos seus pés — ... mas, com o salário que você ganha, é bem provável que precise mais dele.

— Eu não sabia que você é casado, Bowler — disse Roddy, pegando o bife e atirando-o para o cachorro. — Sua mulher até que é bonitinha — depois de ter engolido a carne de uma só vez, o animal soltou um sonoro peido. Roddy ouviu risinhos atrás dele.

— Calados — gritou Bowler. Lançou um olhar fulminante para Roddy. — O que você quer?

— Na outra noite o seu homem no bar brigou com um rapaz chamado Joe Bristow.

— Você só pode estar brincando, não é? Não me diga que está aqui só por causa de uma briguinha.

— Estou aqui por causa de uma mocinha chamada Fiona Finnegan. O Bristow me disse que o seu gorila queria saber do paradeiro dela. Eu quero saber por quê.

— Não sei do que você está falando, policial — Bowler retrucou com um tom excessivamente melindrado. —E além disso, acho que você passou dos limites vindo até aqui, arruinando o jantar de um homem, acusando-o de crimes que ele nã cometeu...

Roddy suspirou, preparando-se para ouvir a cantilena de Browler, que fingirá ignorância, inocência e ultraje, como de costume. Quando ele finalmente esgotou as alegações, Roddy acrescentou.

— Se é assim que você quer, Bowler, está bem. Você sabe que sempre preferi viver e deixar viver. Se um bandido como você quer tirar dinheiro de um outra bandido como Denny Quinn, não vejo nenhum problema nisso. Enquanto você não mexer com pessoas trabalhadoras e honestas, eu faço vista grossa. Mas estou avisando-o que isso pode mudar. Ou você me fala o que eu quero saber ou tornarei sua vida um inferno. Quando você sair de casa de manhã, estarei lá. Quando entrar num pub, num puteiro ou numa briga de cachorro, de galo ou de rato, estarei atrás de você, colado na sua bunda que nem papel higiênico. E só tentar...

— Está bem! Está bem! — disse Browler. — Cristo, lamento que os assassinatos do Estripador tenham parado. Era melhor quando o Jack mantinha vocês na cola dele. Mantinha vocês longe de mim.

— Que tal falarmos de Fiona? — sugeriu Roddy.

Bowler tomou um gole de cerveja e disse em seguida.

— A sua senhorita Finnegan roubou quinhentas libras de um associado meu. Ele quer a grana de volta. Ele não quer encrenca. Só quer que eu a encontre pegue o dinheiro dele.

— E quem seria esse associado, Bowler?

— Isso eu não posso dizer. Só posso dizer que é um ricaço e que não quer negócios dele revelados.

Roddy balançou a cabeça.

— Está bem — ele disse, levantando-se —, vamos fazer então da maneira mais difícil. Quando você estiver cansado de mentir, me avise.

— Pelo amor de Deus, O‘Meara, não há nada que te satisfaça! Você queria e contei a verdade. E depois você não acredita em mim!

— Bowler você não saberia o que é a verdade mesmo que ela se esfregasse nas tuas fuças. Eu conheço aquela menina desde que ela nasceu. Ajudei a criá-la, ajudei mesmo. E sei que ela é tão capaz de roubar quinhentas libras como você de ser sagrado cavaleiro da rainha por suas boas ações. Estarei de olho em você.

Roddy deixou Bowler resmungando sobre o fato de que a Inglaterra ainda era um país livre, pelo menos desde o último dia em que ele tinha checado. Ninguém podia forçá-lo a nada. Ele tinha direitos, Cristo!

A frente da porta, Roddy viroa-se e disse:

— Onde quer que ela esteja, Bowler, é melhor que nada aconteça a ela. Se algo cer, eu vou atrás de você.

— Que beleza! Eu não sei em que porra de lugar ela está, não mais do que você! Do que mais você vai me responsabilizar? Pela batalha de Trafalgar? Pela guerra dos Cem Anos?

Fora do Taj, Roddy tirou o capacete e passou a mão no cabelo. Ele estava frustrado e preocupado. A conversa com Sheehan não tinha adiantado nada; o paradeiro de Fiona continuava desconhecido. Sheehan só contara mentiras, fazendo-o perdiçar seu tempo. Ele foi vê-lo em seu próprio território, mas da próxima vez a coisa seria diferente, Sheehan seria intimado a comparecer na delegacia. Roddy ficou arrepiado com o vento gelado que soprava do rio.

Ele esperava que Fiona, fosse lá aonde tivesse ido, estivesse aquecida. E Seamie também. Suas luvas já estavam gastas. Na noite em que fugiram, Roddy tinha acabado de comprar um par novo. Ele se perguntava se teria chance de entregá-lo. Puxou a gola para proteger o pescoço, enfiou as mãos nos bolsos e tomou o rumo de casa.

 

FIONA ABAIXOU A CABEÇA e chorou.

Ela estava à entrada do cemitério, onde a mãe, o pai, o irmão e a irmã tinham sido enterrados. O portão estava trancado com um cadeado. Ela tentava entrar, sacudindo as barras do portão até que ele rangeu e suas mãos se esfolaram, mas sem resultado. Ela queria se sentar junto com a família. Queria contar seus problemas e pensar que eles a escutavam, mesmo sem poderem replicar. Ela virou o cadeado e o bateu seguidamente contra o próprio portão, lutando com as lágrimas.

Uma voz a chamou pelo nome, uma voz com um leve sotaque irlandês.

— Fiona, filhinha...

Ela largou o cadeado, que se chocou contra o portão. Seu pai estava de pé do outro lado, a poucos passos de distância. Vestia seu casaco e sua boina, e seguram o arpéu no ombro, como se estivesse voltando para casa depois do trabalho nas docas.

— Papai! — ela gritou, sem poder acreditar no que via. — Oh, papai... — ela enfiou a mão através das barras. Ele a segurou e a manteve colada ao rosto.

— Papi, por onde o senhor tem andado? Eu sinto tanto a sua falta — ela começou a chorar. — Você vai sair daí agora, não vai? Vai voltar para casa junto com a mamãe, e o Charlie, e o neném...

Ele balançou a cabeça em negativa.

— Eu não posso, minha querida. Você sabe que eu não posso.

— Mas por quê? Eu preciso do senhor, papai — ela puxou a mão dele. — Por favor...

— Pegue isso, Fiona — ele disse e ela sentiu que havia algo em sua mão. — tem que usar aquilo que conhece.

Ele olhou para o que havia recebido dele. Era uma plantinha. Não tinha mais que dez centímetros de altura. Uma muda de talo ereto e frágil com algumas folhas brilhantes. Confusa, ela ergueu o olhar em direção a ele. — O que é isso? — ela perguntou.

— Aquilo que você conhece.

— O que eu conheço? Papai, isso não faz sentido... nunca vi uma planta como esta...

Ele soltou a mão dela e deu um passo para trás.

— Aonde o senhor vai? Espere, papai! Ela aninhou a pequena planta no colo enquanto chamava o pai com a outra mão. — Não, não vá. Por favor, não vá embora. Volte...

— Cuide da planta para que ela cresça, filhinha. Você nem imagina como ela pode ficar grande — ele acenou com um sorriso agridoce na face e depois partiu, desaparecendo na penumbra do cemitério.

— Não! — ela soluçou. — Volte! Por favor, por favor, volte! — ela sacudiu o portão com toda a força, mas foi em vão. Jogoa-se contra ele e entregoa-se a sua dor.

Enquanto chorava, ouviu o som de galope de cavalos. Olhou e viu uma carruagem se aproximando. Era um veículo brilhantemente negro; polido e reluzente. As chamas ardiam intensamente em suas lanternas laterais. Um par de cavalos negros como a noite puxava a carruagem. A medida que galopavam sobre cascalhos, saíam faíscas azuis de seus cascos. Seria a carruagem escolhida pelo diabo se ele resolvesse dar uma volta à meia-noite. E o que ela viu em seguida deixou-a convencida de que se tratava mesmo de uma carruagem infernal.

Frances Sawyer, ou o que sobrara dela, segurava as rédeas. Ela não tinha rosto, Jack o cortara. Seu crânio fantasmagórico era branco e brilhava sob a luz dos lampiões a gás, e nele se via uma mancha de sangue.

Um vestido esfarrapado despencava sobre o seu corpo mutilado e ensanguentado. Fiona podia ver as costelas abertas como um acordeão e os ossos esfolados dos braços da mulher enquanto manipulava as rédeas dos cavalos, até que os deteve bruscamente. Ela virou a cabeça e Fiona pôde ver a garganta cortada de uma extremidade a outra e os buracos vazios, negros, dos olhos.

— Ele está aqui — disse a mulher com uma voz grossa, gargalhando.

Espremida contra o portão, incapacitada de se mover ou gritar, Fiona desviou o olhar do cocheiro na direção dos ocupantes da carruagem. A janela estava aberta mas ela só conseguiu ver a silhueta dele: de cartola e mãos cruzadas sobre o da bengala. Mesmo assim... ela sabia quem era. Jack. O homem das sombras. Seus dedos agarraram o peitoril da janela. A porta se abriu por inteiro e folhas de chá se precipitaram em torrente para for. Ele saiu da carruagem, fez uma saudação irônica com o chapéu e riu, exibindo dentes brancos cobertos de sangue. Não era Jack. Era William Burton. E ele segurava uma faca.

Ele investiu contra ela com o braço direito erguido. A lâmina fez um barulho surdo, penetrando profundamente no peito dela. Ela gritou de dor. Ele puxou a faca, lambeu a lâmina molhada de sangue e disse:

— E um Assam. Só pode ser. Muito forte para ser um Darjeeling. Muito encorpado para ser um Dooars — ele ergueu outra vez a faca, mas dessa vez ela reagiu, investiu contra ele como uma alucinada.

— Pare com isso, Fiona! — ele gritou, segurando as mãos dela. — Jesus!

— Eu te mato — ela gritou, arranhando o rosto dele.

— Como! Sua pequena... isso machuca! — ele a pegou com força pelos pulsos e sacudiu-a. — Acorde, sua mocinha tola! Sou eu, o Michael! Não é o bicho-papão!

Fiona acordou sobressaltada. Abriu os olhos. A frente dela, uma face sonolenta e zangada. Seu tio. O rosto do tio, não o de Burton. Ela olhou em volta com o coração ainda aos pulos. Estava sentada numa poltrona na sala de visitas do apartamento de Michael. O livro contábil da loja e um exemplar do Times londrino aos seus pés. Estava a salvo. Ainda assim, teve que dar uma olhada no peito para ver se não havia uma faca enfiada.

— Tio Michael... desculpe... eu estava sonhando... — ela gaguejou.

Ele a soltou.

— Que diabo de problema há com você? — ele resmungou. — Berrando e se debatendo... quase me matando de susto. Achei que alguém estava te matando.

— Eu também.

— E o que é que você está fazendo aqui? Por que não está em sua cama?

— Eu estava conferindo as contas. Da loja. Acho que caí no sono.

Ele balançou a cabeça.

— Bem... já que agora você está bem — ele disse com rispidez.

— Estou, sim — ela disse, mas em seguida foi acometida por violentos tremor. Ele recomendou que ela ficasse onde estava. E, ainda resmugando, entrou na cozinha. Fiona ouviu o som de água escorrendo da torneira. Meu Deus, que pesadelo horrível, ela pensou. O pior que já tinha tido. Cobriu o rosto e gemeu ao lembrar-se de Jack. De Burton. Eles haviam se fundido no pesadelo, tomando-se um só homem, um amálgama infernal dos seus maiores temores.Um bicho-papão. O rei dos bichos-papões.

Ela se esticou para recolher os papéis do chão, determinada a esquecer do sonho. Ao esticar os braços para alcançar o Times aberto no chão, seus olhos cravaram on artigo que já tinha lido. ―Oferta pública lucrativa feita por mercador de chá‖, dizia manchete e, abaixo dela: ―Burton Tea abraça plano ambicioso de expansão‖.

Foi isso que causou o pesadelo, ela se deu conta. Como de costume, comprara um exemplar do jornal de manhã cedo na esperança de encontrar alguma notícia a respeito do sindicato das docas, mas acabou se deparando com o artigo sobre Burton. Embora não entendesse muito bem o que era o mercado de ações, ou como ele funcionava, ela lembrava que o pai havia comentado sobre a tal oferta, citando-a como uma das razões para Burton não querer que seus operários entrassem em greve sabia que a oferta representava um grande triunfo para ele, e na verdade o artigo detaIhava como o interesse pelas ações superara as expectativas. O artigo dizia que Burton planejava usar o dinheiro para modernizar a sua atuação em Londres e para começar a sua própria plantação de chá na India: mudanças que lhe permitiriam descarregar e embalar o chá com mais eficiência. ―Nos próximos dois anos pretendo reduzir o custo do meu chá para o público e garantir um retorno significativo para os investimentos dos meus acionistas‖, ele declarou ao jornal. E o repórter ressaltou que, embora agora tivesse que prestar contas aos acionistas, o controle da companhia permanecia em suas mãos, já que retinha 51% do milhão e meio de ações emitidas.

Saber que William Burton prosperava enquanto sua família inteira, exceto Seamie, jazia na terra fria cortava Fiona tão profunda e dolorosamente quanto a faca no pesadelo que acabara de ter. Antes de ler o artigo, ela se debruçara na contabilidade da loja e se sentira feliz por ver que os lucros tinham sido mais aItos que esperava, suficientemente altos para começar a ressarcir o dinheiro que usara para cobrir as dívidas do tio. Tomar ciência disso deixou-a com uma maravilhosa sensação de segurança. Mas agora, depois do pesadelo, os lucros da loja pareciam insignificantes. Risíveis. Não eram nada comparados com a riqueza de Burton.

Quando o Britannic deixou a costa da Inglaterra, ela jurou se vingar de Burton. Belas palavras, ela pensou. E palavras não passavam de palavras. Agora, a primeira semana de maio transcorria e ela já estava há mais de um mês em Nova York e ainda não fazia ideia de como levar avante a vingança. Ou de como financiá-la. Ela sabia que precisava de muito dinheiro para acabar com alguém como Burtón. Mas ainda não tinha a menor ideia de como conseguir esse dinheiro. Will havia dito que ela devia se fixar naquilo que conhecia. O problema é que ela não conhecia nada que pudesse enriquece-la. Aveias e biscoitos e maçãs não eram prata nem petróleo. Ela precisava encontrar alguma coisa, alguma coisa que fizesse a sua fortuna... mas o quê?

Michael entrou na sala de visitas com uma xícara de chá.

— Olhe, beba isso — ele disse. Esse gesto deixou Fiona surpresa. Ela não estava acostumada com manifestações de preocupação da parte dele, mas aceitou o chá, agradecida. Ele sentoa-se com ela por mais alguns minutos, bocejando e esfregando o rosto. Olhando-o, ela ficou outra vez surpresa com a semelhança que havia entre ele e seu pai. Uma imagem embaçada e fugidia lhe veio à mente: a de seu pai como ele apareceu no pesadelo. Ele tentou lhe dar alguma coisa, tentou lhe dizer algo, mas ela não conseguia se lembrar. E depois Michael disse que ia se deitar e que esperava que o bicho-papão já tivesse esgotado a sua aparição noturna. Ele a aconselhou para que descansasse.

— Mesmo que tentasse, tio Michael, acho que não conseguiria — ela disse, levantando-se. Ela sabia que se fosse para a cama ficaria acordada, revivendo o pesadelo. O trabalho era o único antídoto para os seus medos, a única coisa que a desanuviaria. Pegou o avental que tinha deixado no encosto da cadeira e o amarrou à cintura.

— E meia-noite — disse Michael. — Pra que diabo de lugar você está indo?

— Para a loja. Vou adiantar o serviço do dia.

— Pelo menos espera clarear. Você não devia ficar lá sozinha.

Fiona soltou um sorriso cansado. Sozinha? Com todos esses fantasmas e essas lembranças.

— Não estarei sozinha, tio Michael — ela replicou. — Terei o bicho-papão como companhia. E todos os amigos dele.

 

NAS NOITES EM QUE NÃO CONSEGUIA DORMIR, Nicholas Soames geralmente gostava de caminhar pelas ruas de Manhattan. Andando pelas ruas escuras, ele se sentia em paz e tranquilo. Uma sensação de que o monstro estava dormindo. Nessas ocasiões, a cidade parecia só dele. As calçadas vazias. As lojas fechadas. Somente os pubs e restaurantes continuavam acesos. Se quisesse, ele podia olhar as coisas com toda liberdade. Não havia quase ninguém para esbarrar nele, e ninguém para o abordar, caso parasse para investigar um prédio interessante ou admirar um lindo jardim.

Nessa noite, ele já havia percorrido uma boa distância. Todo o caminho do hotel até a 5th e a 23rd, passando depois pela Washington Square e seguindo até a Bleecker Street. Já era tarde, passava da meia-noite, e ele resolveu caminhar até a Broadway para ver se conseguia uma carruagem.

Já estava para quase atravessar a Bleecker quando os viu. Dois homens. Andavam lado a lado. Não de mãos dadas, nem se tocando, mas ele os identificou. Pela forma que inclinavam a cabeça um para o outro. Pelas risadas. Ele entendia disso.

Ficou a observá-los até que um deles abriu a porta de um bar e ambos entraram. Ele permaneceu parado como um poste. Vieram mais dois e entraram no bar. E depois mais um, desacompanhado. E depois, quatro. Ele se recobrou e já ia atravessar a rua quando viu uma placa perto da porta do bar. THE SLIDE, estava escrito. Uma mão passou à sua frente. Os dedos agarraram a maçaneta.

— Vai entrar? — disse o dono da voz, um homem de cabelos louros e ondulados.

— Eu? Não... eu... não, muito obrigado. Não.

— Fique à vontade — disse o outro.

No segundo que antecedeu o fechamento da porta, ele ouviu risos, odor cigarro e de vinho. Mordeu o lábio. Queria entrar. Queria estar por uma noite com gente igual a ele. Para compartilhar uma garrafa de vinho com um homem bonito. Para deixar a máscara cair. Só por pouco tempo.

Agarrou a maçaneta da porta e depois a soltou. Era muito perigoso. Ele não era livre para ser o que era. Será que já não tinha aprendido? Com toda a a dor e sofrimento que causara a si mesmo, à sua família, a Henri? Afastoa-se da porta e abrigoa-se à sombra de um enorme olmo.

Volta, ele disse para si mesmo. Dá meia-volta. Agora. Era muito arriscado. E se alguém o visse? Alguém que ele conhecia. Projetou o olhar no The Slide e viu homem caminhando em direção ao bar. Era alto e tinha maravilhosos cabelos negros que caíam em ondas sobre os ombros. De longe, parecia-se com Henri. O homem parou, olhou para Nick escondido debaixo da árvore, balançou a cabeça e riu.

— Você vai passar a noite toda escondido debaixo dessa árvore, cagão? — perguntou. E ainda ria quando a porta se fechou atrás dele.

Nick encarou a porta. Ajeitou o cabelo. Naquele instante, tudo o que precisava estava lá dentro. Companheiros. Risos. Aconchego. Compreensão. A indecisão o sufocava. Vou entrar e ficar só um pouquinho, ele falou consigo mesmo. Só uma hora. O tempo de tomar um ou dois drinques. Talvez conversar pouco. Não tem perigo. Só um drinque, e depois eu saio. Só essa vez.

 

QUE TAL um pouco mais de torta querido? — perguntou Mary, levantando-se da mesa.

Seamie aceitou gulosamente e estendeu o prato.

— O esganado — observou Fiona.

— Bobagem! Ele só tem um bom apetite. Como convém para um menino em crescimento.

— Eu também quero mais, mãe — disse lan, levantando-se para ajudar a mãe.

— Eu também — disse Fiona.

— Fiona, esse é o seu terceiro pedaço — disse Mary, sorrindo. — Afinal, quem é o esganado?

Rindo a valer, Fiona estendeu o prato para lan. A comida de Mary era uma delicia. A crosta de sua torta era dourada e crocante, os pedaços de carne, suculentos e macios, banhados em molho. Seu purê de batatas era fofo e as ervilhas, cozidas no ponto certo.

Mary trouxe de novo os pratos empilhados. Tinha feito muita comida e Fiona estava feliz por isso. Estava faminta. Tinha sido um outro sábado movimentado e ficara de pé o dia todo. Eles comiam na cozinha de Michael e não na de Mary, poiser a maior e tinha uma grande mesa redonda que dava para todos se sentarem. Em tratando de cozinha, Fiona tinha poucas habilidades e quase nenhum interesse, para ela era importante que Seamie tivesse uma boa alimentação. Fiona e Mary tinham feito um trato duas semanas antes: ela forneceria os ingredientes e Mary cozinharia. Era um trato bom para as duas. Fiona adorava comer com a familia Munro. Já começava a considerá- los sua própria família. Ela e Seamie faziam parte da vida daquela família como fizeram parte da sua, de uma forma que o tio, que passava a maior parte do tempo no Whelan‘s, não fazia.

— Todo mundo já tem o que quer? — perguntou Mary, colocando os pratos na mesa, antes de se sentar.

— Sim, completamente — disse Fiona.

— Na quarta- feira vou replantar as suas cantoneiras, mocinha — disse Alec.

— Verdade? — disse Fiona em deleite. — Todas elas?

— Sim, as novas mudas estão prontas. Só preciso retirar as plantas velhas, parar um pouco o solo, um pouquinho antes, e plantá-las. Elas ficarão lindas.

Fiona nunca tinha conhecido alguém como AIec. Ele vivia para a jardinagem. Tinha necessidade de pôr as mãos na terra, tocá-la e cultivá-la, tal como as outras pessoas precisavam de ar. Ele amava as plantas como se fossem suas filhas, vivia remexendo-as, endireitando- as, preocupava- se quando as folhas de sua amada roseira apresentavam um pontinho de ferrugem ou de mofo. Seamie o adorava. Eles passavam horas no quintal — o velho, de boina e paletó de tweed; o menino, de calças curtas e suéter —, capinando as ervas daninhas, derramando esterco nos canteiros de flores, estaqueando as roseiras, mimando as peônias.

Certa vez, Fiona passou pela porta dos fundos da loja que se abria para o quintal e viu Seamie com o rostinho iluminado pela curiosidade, observando uma enorme borboleta iridescente que pousara em sua mão. De repente, a borboleta voou e o deixou olhando-a longamente, triste por ela ter ido embora. Fiona teve vontade de correr, abraçá-lo e dizer que aquilo não tinha importância e que a borboleta voltaria, mas, antes que pudesse se mover, Alec já estava com ele. Colocou a mão sobre o ombro de Seamie e assistiu ao afastamento daque magnífica criatura, explicando para o menino como é que as borboletas viviam e migravam, como ajudavam a polinizar as flores, e como aquela em particular tinha extraído o pólen do poderoso pé de lilás do quintal para depositar em outros pés de lilás, ajudando-os assim a crescer. Seamie acatou as palavras dele sem lágrimas nem raiva, sem perguntar se a borboleta morreria. Enquanto escavavam, Fiona agradeceu em silêncio a Alec, um jardineiro que, segundo tudo indicava podia cultivar toda sorte de sementes.

Quando Seamie dizia para Fiona os nomes das plantas que ele e Alec tinhan plantado durante o dia, ela ouviu a porta do apartamento abrir e fechar, seguido pelo som de passos no corredor. Era Michael. Fiona sentiu uma onda de raiva, certa de que ele ia pedir mais dinheiro. Ele não costumava chegar do Whelan‘s tão cedo. Devia estar outra vez duro.

Mary lançou imediatamente um olhar para Fiona.

— Você acha que ele veio para se juntar a nós? — ela cochichou.

Fiona bufou.

— Acho que não, a menos que você esteja servindo uísque junto com a torta — ela disse. Fiona desistira de esperar que um dia o tio parasse de beber.

— Quanto tempo faz que ele não come uma boa comida? Ele devia se alimentar melhor.

— Eu sei disso, Mary. Eu tento. Sempre deixo pra ele um prato preparado. À vezes, ele come, outras vezes, não.

— Você devia chamá-lo.

— Ele não vai me ouvir. Ele nunca me ouve. Tenta você.

— Está bem, vou tentar. Vou chamá-lo.

— Neste século ou no próximo? — grunhiu Michael.

— Fiquem falando normalmente — disse Mary. — Ele não virá se perceber que estamos falando dele.

— Exatamente o que estamos fazendo — disse Alec.

Fiona voltou à conversa como se nada de incomum estivesse acontecendo.

— Acho que as novas flores poderão realmente renovar a vitrina — ela tagarelou. Os passos pesados se aproximaram. Michael passou apressado pela porta da cozinha e foi para a sala de visitas. — Já imaginaram como ficarão lindas com as cortinas de renda sobre elas? Espero que as cantoneiras tenham muitas flores vermelhas e amarelas entre as outras que você plantou, Alec...

— Michael? — Mary chamou com displicência. — É você?

Após alguns segundos de silêncio, ouviu-se um ―sim‖ mal— humorado.

— Você está com fome? Fiz torta de carne com cebolas. Tem muita torta aqui.

Fiona fez um sinal de aprovação. Mary estava se saindo muito bem. Atraía um animal desconfiado e ferido, um animal que provavelmente colocaria o rabo entre pemas e fugiria, em vez de lamber a mão de quem o chamava.

De novo, silêncio. E depois...

— Carne e cebola?

— Isso mesmo, vem comer um pouco.

Os olhos de Fiona se arregalaram de espanto quando ouviu os passos do tio em direção à cozinha. Ele surgiu na porta com a boina na mão e ela fez força para manter uma expressão neutra. Olhando-o, ela tanto sentia pena como raiva. Ele estava tão magro quanto um vira-lata, talvez uns quinze quilos a menos do que aparentava na foto que MoIly tinha mandado para eles, embora o rosto estivesse inchado como o de um afogado. O cabelo estava longo e desalinhado. As roupas, imundas. Ele estava barbado e cheirando a pub.

— Olá, Michael — disse Mary, sorrindo. — Que tal uma boa xícara de chá para acompanhar a torta?

— Sim — ele disse sem jeito. — Eu gostaria.

— Bem, então, sente-se. Aqui, entre mim e Fiona, lan, chegue um pouco pra lá.

— Não se preocupem — ele disse. — Eu como na sala.

— Deixe de ser bobo. Você não pode equilibrar um prato e uma xícara de chá nos joelhos. Sente-se.

Michael sentou-se sem olhar para nenhum deles. Mary pôs o prato de comida à frente dele junto com uma faca, um garfo e um guardanapo. Fiona serviu-lhe uma xícara de chá.

— Obrigado — ele disse. Pegou sua xícara de chá com as mãos trêmulas e tom um gole. — E um bom chá — acrescentou.

— E um novo que comprei da Millard — disse Fiona. — E indiano.

Michael aprovou com a cabeça. Olhou para Fiona, ergueu ligeiramente o queixo e disse:

— No jantar eu tomo chá, não uísque. Ao contrário do que alguns possam pensar.

— Bom para o senhor — disse Fiona. — O uísque arruína o sabor da comida e a torta da Mary está deliciosa. Nunca comi outra igual.

— Oh, pare com isso — Mary sorriu, fingindo modéstia.

— E verdade, mãe — disse lan. — Tem mais batatas?

— Aqui, pegue.

— Pode passar também o molho?

Todos faziam um jogo. Jogavam com displicência. Tentando não dar importância à presença de Michael. lan devolveu a tigela de molho e pediu mais ervilhas, Alec quis uma outra xícara de chá. Seamie arrotou e Fiona o obrigou a desculpar-se — Era como se todos seguissem papéis ensaiados, atuando como se nada de diferernte estivesse acontecendo, como se todos eles — inclusive Michael — jantassem juntos nos últimos vinte anos. Não havia espaço para recriminações, súplicas e censura. Mary e Fiona já tinham tentado esse caminho, e falharam. Só havia aceitação. Uma boa refeição. Companhia e conversa. De cabeça baixa, dolorosamente absorto, era como se Michael achasse que aquilo era mais do que ele podia esperar.

Na tentativa de atraí-lo para a conversa, Fiona lhe fez uma pergunta.

— Eu estava pensando que seria uma boa ideia colocar grades nas janelas, tio Michael. O senhor sabe quem pode fazer isso? Acho que devíamos colocá-las nos dois apartamentos.

— Grades? Por quê?

— Pela Nell. Daqui a pouco ela estará andando e segurança nunca é demais.

Como se ouvindo sua deixa, Nell emergiu de sua cesta, encostada debaixo da janela da cozinha. Michael se contraiu e pousou seu garfo sobre o prato.

Ai, meu Deus, ele vai fugir. Ela levantou-se imediatamente, tentando impedi- lo.

— Olhem só a nossa meninaJ — ela disse radiante, enquanto pegava a p no colo. — Acho que a acordamos. Não sei como ela consegue dormir com barulho em volta — sentou- se de novo com o bebê em seu colo. — Ela pode comer purê de batatas? — perguntou para Mary.

— Pode, sim. E um pedacinho de pão molhado no molho, mas cuidado pra não ir com cebola.

Alec quis saber de Mary se ela havia guardado as cascas de batatas para a pilha de composto. lan e Seamie faziam caretas um para o outro. Fiona dava colheradas de purê para Nell. E Michael permanecia sentado como um morto, com a comida deixada de lado e os olhos cravados na filha.

— Posso segurá-la? — ele perguntou subitamente, com um fiapo de voz.

Fiona lhe passou o bebê. Ele afastou a cadeira para trás e pegou a filha. Fiona viu a emoção estampada em seu rosto e sabia que ele estava pensando em Molly. Não fuja agora, ela implorou em silêncio.

— Eleanor Grace — ele disse com voz trêmula. — Que mocinha bonita você é.

Acomodada nos braços do pai, com seus grandes olhos azuis de safira, Nell tentava agarrar o rosto do pai. Sua testinha se franziu.

— Bah, bah, pah pah! — ela balbuciou de repente.

Michael arregalou os olhos, incrédulo.

— Ela disse papai! Ela me conhece!

— Ela disse, sim. Ela o conhece — disse Fiona, sabendo muito bem que Nell costumava falar bah e pah para tudo que via.

— Pah Pah! — o bebê se exibia, pulando no colo dele.

Você é uma boa menina, NelL, mantenha — se assim, pediu Fiona em silêncio para ela. Depois, olhou para Mary, que estava ao seu lado. Com a mão trêmula ... Michael tocou a bochecha da filha. Nell segurou o dedo polegar do pai e começou mastigá-lo.

—Ela parece tanto com a mãe — ele disse. — É igualzinha a MolIy — e então cobriu o rosto com a mão e começou a chorar. Grandes lágrimas escorreram pelo seu rosto, caindo no vestidinho de Nell. Os soluços irromperam com violência do seu peito. Seu sofrimento emergiu pesado, rapidamente, como as chuvas de verão no deserto, fluindo e derrubando os diques que ele erigira para se manter protegido. A raiva e a amargura se esfacelaram, ele só tinha o pesar que o esmagava.

—Meu Deus, que estardalhaço em cima de uma criança — resmungou Alec. Mary fulminou o sogro com um olhar.

— Está tudo bem, Michael — ela o acalmou —, você precisava chorar. Já estava em tempo. Não é nenhuma vergonha chorar por uma mulher como a Molly. Deixe o choro sair. Só vai lhe fazer bem.

— Eu queria que ela estivesse aqui, Mary — ele disse com a voz embargada. — Gostaria que ela pudesse ver a Nell.

Mary assentiu com a cabeça. Pegou a mão dele e apertou-a.

— Ela está aqui, Michael. Ela pode ver a Nell.

 

VOCÊ CHECOU a porta dos fundos? — perguntou Ed Akers, enquanto Joe trancava o estabelecimento.

— Sim.

— E os pêssegos? Colocou-os bem alto para que os camundongos não posssam alcança-los?

— Fiz isso. E com as cerejas também. Já chequei tudo, Ed.

— Otimo, você é um bom rapaz — disse Ed, dando um tapinha nas costas de Joe. — Pegue, é um extra. Você merece. — Joe agradeceu. — Não precisa agradecer. Os negócios melhoraram desde que você começou a trabalhar aqui. Você é capaz de vender areia na praia. Bem, acho que é só isso. O dia todo eu evitei a patroa e seus diabinhos, mas chegou a hora de encarar, não é?

Joe riu.

— Não existe ajuda pra isso — ele disse, Ed estava na casa dos quarenta e tinha doze filhos. Ele gostava de reclamar da mulher e dos filhos — senhora Akers e suas dores, eles costumava chamá-los assim. Gostava de falar da barulheira que faziam, do inferno que era criá-los, da praga que eles eram e de como ficavam com todo o seu dinheiro, mas, a cada noite que voltava para casa, ele carregava um embrulho debaixo do braço, com cerejas, morangos ou biscoitos quebrados que ele comprava mais barato na barraca do padeiro. Suas queixas eram pura cena, mas Joe se aprazia em alimentá-las.

— É mesmo, não existe ajuda pra isso — repetiu Ed, balançando a cabeça. Parecia que já estava de saída, mas continuou parado. Chacoalhou o cadeado, olhou para o céu estrelado e vaticinou um domingo junino claro e ameno e depois disse sem jeito. — Escute, eu sei que não é da minha conta, mas por que você não pega um pouco do dinheiro que lhe dei e vai se divertir num pub? Um rapaz jovem como você não devia ficar sozinho.

— Talvez em outra ocasião. Hoje eu estou acabado — disse Joe. — Vou alimentar o Baxter e, depois de dar uma boa escovada nele, vou deitar mais cedo.

Ed suspirou.

— Então, esteja à vontade.

— Deixa comigo. Boa noite, Ed. Te vejo na segunda.

— Boa noite, rapaz.

Joe caminhou para oeste. Três ruas à frente estavam os estábulos que alguns proprietários de barracas usavam para abrigar seus cavalos. Um deles pertencia a Ed, que por sua vez permitia que Joe dormisse no celeiro. Era bom para Ed que ele estivesse ali para ficar de olho nas coisas e também era bom para Joe porque ele não tinha que pagar para dormir numa hospedaria pulguenta com estranhos.

Depois que deixou sua casa e Millie, seis semanas antes, ele passou por maus bocados, alimentando-se precariamente, fazendo bicos em Covent Garden, quando conseguia encontrá-los. Um dia, já faminto e fraco, ele tropeçou de defronte a um pub. Duas mãos amistosas o ajudaram a se levantar. Para sua surpresa, e vergonha, era Matt Byrne, um rapaz da Montague Street que agora trabalhava em Covent Garden. Matt o reconheceu e quis saber o que havia acontecido com ele. No pub, debruçado sobre o prato que Matt insistiu em pagar para ele, Joe contou que estava tendo dificuldade em encontrar um trabalho decente porque Tommy Peterson tratou de recomendar que ninguém o contratasse. Furioso Matt o aconselhou a ter um encontro com Ed Akers, um amigo dele que estava à procura de um ajudante. Ed é dono do seu próprio nariz, ele disse, e Peterson não é dono de ninguém em Covent Garden. Pelo menos até agora.

Seu novo trabalho não era grande coisa — somente vender e entregar a mercadoria para barraqueiros e pequenas lojas — e era como se desse um passo atrás em relação à sua antiga posição na Peterson‘s, mas era melhor que morrer de fome e ele agradecia por tê-lo conseguido. Comprou dois cobertores de segunda mão numa barraca de mercadorias e fez uma cama para ele no celeiro. Alimentava-se em cantinas e uma vez por semana tomava banhos em banheiros públicos. Não foi um dos melhores acordos, mas servia. Era uma oportunidade que tinha para se manter e que lhe premitia ficar sozinho à noite, e solidão era o que ele mais queria naquela hora.

Um bando ruidoso de jovens operárias que comemoravam a noite de sábado passou alegremente por ele. Uma delas lhe deu um sorriso, mas ele desviou o olhar. Atras dele um jovem casal passeava de mãos dadas. Ele apressou o passo. Não tinha sido franco com Ed. Não estava cansado. Sofria ao ver a felicidade daquele casal de namorados, ao ouvir as risadas das operárias. Um dia ele tinha sido como eles: feliz, ávido por qualquer coisa que o dia pudesse trazer, E agora feria qualquer um em quem tocasse. Tudo em que ele tocava se transformava em merda.

Joe entrou numa cantina e comprou uma salsicha enrolada. O lugar não passava de um buraco na parede, mas tinha duas mesinhas e uma garota atrás do balcão, uma linda morena com sorriso doce convidou-o para sentar e comer ali, em vez de sair às pressas. Ele recusou com uma desculpa e saiu, louco para chegar no estabulo, onde não haveria nenhuma alma além dele, exceto Baxter e um velho gato preto que adorava se aninhar perto dele quando dormia.

O céu estava sem lua, somente com estrelas, e a escuridão fez com que ele levasse um minuto para enfiar a chave na fechadura. Já dentro do estábulo, procurou pelo lampião que deixava dependurado à esquerda da porta e pela caixa de fosforos que ficava ao lado.

— Alô, Baxter! — ele saudou. — Quem é o garoto adorável, hein?

Baxter, um cavalo castanho e castrado, relinchou de sua cocheira. Joe dependurou o lampião num suporte de madeira e deu um passo à frente para coçar as orelhas do cavalo. Baxter fuçou o bolso do paletó de Joe com sua boca macia e cabeluda.

— Nada de salsicha enrolada, meu velho. Eles dizem que é de porco, mas tenho cà minhas dúvidas. Ela pode ser de um dos seus e isso faria de você um canibal. È pena de morte na certa, Bax. Com certeza você seria enforcado, e como é que ficaríamos? Olhe só o que eu trouxe pra você — tirou duas cenouras do bolso da calça e deu para o cavalo comer. Depois, tirou o animal da cocheira para que ficasse no lugar que gostava. Não havia necessidade de amarrá-lo, Baxter era um verdadeiro cavalheiro.

Ao mesmo tempo em que o cavalo piscava com seus grandes olhos negros, Joe escovava com uma escova resistente, do pescoço ao lombo. Quando a pelagem já estava brilhando, ele desembaraçou os nós da crina com seus próprios dedos. Baxter estaria bem sem as cenouras e as escovadas, mas Joe se convencera de que o cavalo precisava de mimos para ficar mais manso e adestrável. Na verdade, era ele que precisava dessa rotina noturna. Ele tinha que cuidar de um ser vivo, tinha que nutrir alguma coisa para preencher o doloroso vazio dentro dele, para esquecesse todo sofrimento que havia causado.

Com Baxter fora da cocheira, Joe limpou o chão, tirou o feno velho, subtituiu por um novo e encheu o cocho de aveia. Ao sentir o cheiro da comida, o cavalo trotou de volta à sua cocheira. Joe lhe deu boa — noite, pegou seu lampião e depois subiu a escada que dava para o celeiro e sua cama.

O ático não passava de um assoalho de pranchas de madeira sob o telhado, mas era bem construído, com portas de saída na frente que se fechavam com firmeza, e era bem protegido do vento e da chuva. Tirou o paletó e deixou-o sobre o fardo de feno que lhe servia de cômoda. Depois, puxou um frasco do bolso de trás, tirou a tampa e entornou o conteúdo — leite fresco, cheio de nata — numa vasilha no topo da escada. O gato vadio chegava tarde da noite, Joe nunca conseguia vê-lo nessa hora, mas de manhã ele estava sempre lá, aninhado nas dobras de joelhos. Joe providenciava para que não faltasse leite para o gato, e este retribuia gentileza afastando os ratos do local.

Depois de ter se alimentado, ele tirou a roupa, ficando apenas com as de baixo, afofou o feno sob a coberta de cavalo e deitou — se para ler o jornal. Quando acabou de ler, apagou o lampião e se enfiou debaixo do cobertor. Ficou deitado e quieto, sabendo que custaria muito para dormir. Um rumor distante de risadas e cantorias ecoou de um pub dos arredores. Ele se sentia só, completamente isolado. A certeza de que uma curta caminhada para chegar a um bar cheio de joviais frequentadores de fim de semana só servia para reforçar ainda mais a sua solidão. Ele nunca mais poderia se alegrar ou sorrir. Estava muito assombrado pelo que tinha feito. Arrasado pelo remorso.

Certa vez, quando ainda era um menino de dez anos ou pouco mais, dois amiguinhos do seu time de futebol tiveram que ir a igreja numa tarde de sábado depois do jogo para se confessar. Ele perguntou para os garotos o que aquilo significava e eles disseram que tinham que contar seus pecados para o padre e se declarar arrependidos, porque só assim entrariam no paraíso. Ele também queria ir para o paraíso, mas os garotos afirmaram que ele não podia. Só os católicos é que podiam, e ele era metodista. Aborrecido ele correu para casa. A avó Wilton, que tomava conta dele e de seus irmãos enquanto os pais trabalhavam no mercado à noite, quis saber o que estava havendo.

— Eu vou para o inferno por causa dos meus pecados, porque não posso dizer para Deus que estou arrependido — ele respondeu.

— Quem lhe disse isso? — ela perguntou.

— Terry Falion e Mickey Grogan.

— Não dê importância a eles, menino — ela disse. — Isso é uma bobagem. Eles os papistas, podem se lamentar com Maria o quanto quiserem. Isso não faz a menor diferença. Não somos punidos por causa dos nossos pecados, rapazinho. Somos punidos pelos próprios pecados.

Ela o fez se sentir melhor, principalmente porque o abraçou e lhe deu um biscoito. Naquela época, ele era muito pequeno para entender as palavras dela, mas agora as entendia. Uma vez, quando Joe tinha Fiona e ambos tinham sonhos e esperanças, ele não compreendeu que o paraíso estava bem aqui, na terra. E agora conhecia o desespero. Sua avó tinha razão. Deus não precisava puni-lo, ele criara seu próprio inferno. Com suas próprias mãos.

Sentindo-se péssimo, ele se pôs de barriga para cima com as mãos debaixo da cabeça. De onde estava podia ver pela janela o céu escuro e estrelado. Uma estrela cintilava mais que as outras. Ele se lembrava de quando olhou aquela estrela... parecia que fora milhões de anos antes... e disse para ela que amava uma garota, Fiona. Lembrou de também ter dito que logo eles ficariam juntos. Ele havia se perguntado onde ela estava neste mundo tão vasto, O detetive particular que contratara não a encontrou e deixou de procurá-la porque ele já não tinha dinheiro para pagá-lo. Roddy foi outro que não teve sorte, ainda que tenha avisado a Sheehan para se manter afastado dela. Joe rezava que ela estivesse a salvo, pouco importa onde estivesse. Ele se perguntava se ela pensava nele, se o tinha esquec ido. E caçoava de si mesmo por nutrir tais esperanças. Depois do que ele tinha feito? Certamente, ela o odiava, como Millie e Tommy o odiavam. Como ele proprio se odiava.

Fechou os olhos, abalado pela solidão e pelo sofrimento, à espera do abismo da inconsciência. Por fim, depois de se revirar na cama por um bom tempo, caiu num sono cheio de demônios e pesadelos que o fizeram se debater e gritar. Logo após um desses gritos, ele ouviu pisadas macias que subiam a escada e em seguida a sonoridade de ávidas lambidas na tigela de leite. E, depois de beber todo o leite, o gato o rodeou. De vez em quando, ele arreganhava os dentes para alguma coisa na escuridão e no fim se aninhava no feno. A presença do gato não perturbava Joe. Pelo contrário, deixava-o tranquilo. Sua respiração se equilibrava e ele acabava se rendendo ao sono. E durante a noite inteira o gato vadio permanecia por lá. Ele piscava seus olhos amarelos na escuridão. Desperto. Firme, Em guarda.

 

OH, VOCÊ TEM QUE VER, FI! É absolutamente perfeito! A vitrina toma a frente inteira. O lugar é cheio de luz. E é amplo. Não falei para você? Posso facilmente colocar trinta quadros nas paredes e mais dez em cavaletes espalhados pelo ambiente. Tenho que dar um trato no chão e repintar as paredes e depois...

Nick zanzava pela loja de um canto para o outro enquanto falava, tão excitado que não conseguia ficar parado. Acabara de alugar uma loja em Gramercy Park que seria transformada em galeria, com sua residência no apartamento de cima. Situava-se num lindo prédio de quatro andares que tinha um inquilino em cima do apartamento dele e a senhoria com seus dois filhos no último andar. Ele fez um depósito e mais o primeiro mês de aluguel para a mulher e depois desceu correndo pela 8th Avenue para falar com Fiona.

Ela polia o balcão quando ele irrompeu pela loja e se alarmou quando o viu: ele estava magro e branco como leite —, mas não teve como interromper o que ele dizia para perguntar se estava tudo bem.

— ... e o teto é alto, Fiona! Quinze pés! Oh, será a galeria mais famosa de Nova York! — debruçou-se sobre o balcão e rapidamente beijou-a nos lábios.

— Tome juízo! — ela o repreendeu, rindo. — Você vai manchar o seu paletó de cera.

— Você vai vê-la, não vai, Fi?

— E claro que vou. Quando você quiser. Nick, você está se sentindo...

Ele cortou as palavras dela.

— Pode ir esta noite? — ele ergueu as mãos como um guarda de trânsito. — Esta noite, não! A galeria não está pronta e alguns quadros ainda precisam ser pendurados e... — ele deu uma pausa, cobriu a boca e tossiu — ... eu tenho acabar de pendurá-los e deixar tudo bonito e... — tossiu de novo, dessa vez forte. Depois, pegou o lenço e virou de costas até que os espasmos pararam. Quando ele se voltou outra vez para Fiona, com os olhos encharcados, ela já não sorria.

— Você não foi ao médico como havia me prometido, não é? — ela perguntou.

— Fui, sim.

Ela cruzou os braços.

— Verdade? Então, o que foi que ele disse?

— Ele disse... hum... que era... hum... uma espécie de... coisa pulmonar.

— Uma coisa pulmonar? Ora, até parece que um médico diria isso, você esta mentindo, seu...

— Eu fui, Fiona! Eu juro! Fui no doutor Werner Eckhardt. Na Park Avenue. Ele até me deu um remédio. Estou tomando e tenho me sentido bem melhor.

O tom de Fiona abrandou-se.

— Mas você não me parece bem — ela ficou agitada, erguendo as sobrancelha com uma expressão de preocupação. — Você está muito pálido e magro, e com olheiras. Você tem se alimentado bem, Nick? — correu o dedo por dentro da camisa dele. — Você está sobrando dentro das roupas. E agora aparece com essa tosse. Estou preocupada com você.

Nick resmungou.

— Ora, deixe de ser chata, sua toupeira velha. Eu estou bem, de verdade, Admito que estou um pouco cansado, mas não é por causa da galeria. Eu penei um bocado para achar uma loja bem localizada. Devo ter visto umas dez, doze lojas por dia, pelo menos. E agora encontrei uma! Já lhe falei como a vizinhança é maravilhosa? E que tem uma parreira na frente que se estende sobre a vitrina? E de como ela é enorme?

— Umas três vezes, pelo menos. Você está tentando mudar de assunto.

—Estou?

— Você tem que me prometer que vai se alimentar direito, Nick. Não só de champanhe e dessas horríveis ovas de peixe.

— Está bem, eu prometo. Agora conte o que há de novo com você, Fi. Fiquei falando e nem perguntei como andam as coisas do seu lado.

Não havia muito a contar. Ela havia passado a semana inteira ocupada com a loja. Michael não tinha voltado mais para o Whelan‘s e ela e Mary já começavam a achar que ele nunca mais voltaria. Ele estava fazendo a parte dele na loja e vinha dizendo que daria um jeito na cozinha de Mary. Ela tinha levado Seamie para comprar roupas novas porque ele não parava de crescer e os dentinhos de Nell começavam a nascer.

— Mmm— hmmm — Nick resmungou com impaciência quando ela terminou. — E o que mais? — Ele sorriu. — E o William McClane apareceu de novo?

Fiona enrubesceu.

— E claro que não.

— Eu ainda custo a acreditar. Só há uns poucos meses em Nova York e você um já fisgou um milionário.

— Será que dá pra você parar com isso? Demos uma caminhada, e só. Tenho certeza de que não o verei de novo.

— Você sabe, ele é podre de rico. Lembro de o meu pai ter falado sobre ele. Acho até que eles jantaram juntos, uma ou duas vezes. Eu vi como ele olhou pra você. Estou certo de que ele está caidinho por você.

— Deixe de ser ridículo! Eu tenho a metade da idade dele e não sou rica nem pertenço à mesma classe social dele.

— Fiona, você é uma mulher maravilhosa e cativante. Que tipo de homem não se interessaria por você? Admita... você também ficou caída por ele, não foi? Pode me contar.

Fiona olhou de soslaio.

— Um pouquinho, pode ser — ela admitiu. — Ele é um homem maravilhoso. charmoso e gentil. Incrivelmente inteligente. Ele sabe tudo. E é um verdadeiro cavalheiro, mas...

— Mas o quê? Como é possível haver um ―mas‖ depois de tudo isso?

Fiona meneou os ombros.

— Fi?

Ela franziu a testa enquanto passava o pano sobre uma mancha imaginaria.

— Ahh, eu acho que já sei. E por causa daquele rapaz de Londres, aquele você me contou, não é? O Joe.

Ela esfregou o pano com mais força.

— Ainda?

Ela largou o pano sobre o balcão.

— Ainda — ela admitiu. — E uma idiotice, eu sei. Eu tento esquecê-lo, mas não consigo — ergueu os olhos para Nick, — Uma vez eu ouvi um doqueiro que tinha perdido a mão em um acidente dizer para o meu pai que ele ainda sentia a mão. Disse que sentia as juntas doendo com a umidade e a pele picando com o calor. E mais ou menos o que sinto em relação ao Joe. Ele se foi, mas não se foi. Ainda está dentro de mim. Eu posso vê-lo. Ouvi-lo. Ainda converso com ele na cabeça. Quando é que isso vai parar, Nick?

— Quando você se apaixonar outra vez.

— E se eu não me apaixonar?

— E claro que vai. O que acontece é que você ainda não o esqueceu. O conselho é que você passe mais tempo com McClane. Um Astor ou um Van também poderia ser uma boa companhia. Você só precisa disso, Fi. Um bom milionário nova-iorquino. Isso é que vai fazer você esquecer do barraqueiro. E o que o McClane lhe falou durante aquele passeio? Você nunca me contou.

— Ele falou sobre a loja e sobre as vias subterrâneas.

Nick fez uma careta.

— Que romântico.

— Ele está tentando me ajudar, Nick. Eu falei pra ele que queria me uma milionária. Falei queprecisava achar uma coisa que me fizesse rica.

— E o que ele disse? Contou o segredo que está por trás de todos aqueles milhões?

— Ele me aconselhou a ser paciente, observar e aprender e ver o que vende e elaborar meios para incrementar as vendas. Disse que, se eu fizesse isso, alguma coisa acabaria dando certo. E também disse para que eu começasse com coisas pequenas. E depois com as maiores, por exemplo, comida pronta ou até mesmo uma segunda loja. Ele colocou tudo isso de uma maneira engraçada, falou que eu cresceria se usasse o que conheço.

— E funcionou? Você já fez a sua fortuna?

Fiona franziu a testa.

— Não. Mas estamos vendendo mais. Os salgados da Mary são todos vendidos, no fim do dia não resta nenhum, e também começaremos a oferecer saladasl Vamos realmente precisar de um novo balcão refrigerado para acomodá-las. Mas ainda não sou uma milionária. Estou muito longe disso.

— Não se preocupe, Fi — disse Nick, dando um tapinha na mão dela. — Vou lhe dizer como se tornar uma milionária.

— Como?

— Case-se com um.

Ela atirou o pano em cima dele, mas ele se abaixou.

—Não vou casar com ninguém. Jamais. Os homens só causam problemas.

— Não eu.

A porta da loja se abriu. Michael entrou com uma expressão preocupada. Segurava uma folha de papel.

— E por falar em problema... — ela sussurrou.

— Fiona, essa fatura não pode estar certa — ele disse.

— Que fatura é essa e por que não?

— E de uma fornecedora de chá. A Millard‘s. O que lhe cobraram da última vez?

— Não houve última vez. Essa é a primeira fatura. O que há de errado?

—Aqui está registrado que nós adquirimos dezenove caixotes desde a reabertura da loja.

— Deve estar certo. Vou verificar os recibos de entrega para confirmar, mas não acho que o Stuart nos passaria para trás.

— Isso é do chá indiano? — perguntou Michael, colocando a fatura no balcão.

— É.

Ele balançou a cabeça.

— Devo ser uma besta. Eu me achava sortudo quando vendia um caixote do outro chá.

— Por semana?

—Por mês!

Fiona olhou a fatura, seus olhos seguiram seus dedos à medida que desciam coluna. A loja tinha comprado dezenove caixotes num período de dois meses. Ainda restavam dois caixotes no porão. Isso significava uma venda de dois caixotes por semana contra o caixote mensal do tio. Ela seguiu até o final da fatura, somando mentalmente enquanto examinava a aritmética da Millard‘s, até que encontrou o total que correspondia ao número de caixotes vendidos mais os dois restavam no porão.

E foi aí que ela se deu conta de uma coisa.

No final da fatura lia-se o nome impresso ―R. T Millard‖ sobre um desenho de três espécies botânicas identificadas como cafezeiro, cacaueiro... e pé de chá.

Quando Fiona pousou os olhos no pé de chá, uma pequena muda ereta com folhas laminadas, seus pelos começaram a se arrepiar. Não ouviu mais nada que eu tio dizia, embora ele ainda estivesse falando. Ela reconheceu a planta. Já a tinha visto. Em um pesadelo. A planta que seu pai lhe dera, passando-a pelas barras do portão do cemitério. ―O que é isso, papai?‖, ela lhe perguntou. E agora a resposta dele ecoava em sua cabeça: ―E aquilo que você conhece‖.

A planta esteve na frente dela o tempo todo. O chá! ―Use aquilo que você conhece‖, Will tinha dito. Por Deus, se havia alguma coisa que ela conhecia era o chá! Era capaz de só pelo cheiro reconhecer a diferença entre um Keemun um Sichuan, ou entre um Doars e um Assam. Ela sabia que o chá indiano estava vendendo, mas não prestara atenção em como estava vendendo bem. Aquela plantinha tão delicada, tão frágil, era exatamente o que ela tanto procurava. Seria o seu petróleo... seu aço... sua madeira. E sua fortuna.

— Fiona, mocinha? Você está me ouvindo? — perguntou Michael, dando tapinha no rosto dela.

Ela não estava ouvindo. Seu fluxo sanguíneo estava acelerado e tomava seu corpo e fazia seu coração disparar. Ela fervia com o poder, com as possibilida de sua nova ideia: uma mistura exclusiva, vendas por atacado, um armazém com uma vasta coleção de chás, talvez até com um salão de chá. Um lugar maravilhoso, encantado, semelhante à Fortnum & Mason‘s.

— Eu disse que temos que renovar o pedido. Só estamos com dois caixotes. Pelo andar da carruagem, acabam na próxima quarta-feira. Acho que vamos precisar de pelo menos oito caixotes a mais para o mês que vem — disse Michael.

—Não.

— Não? Por que não?

— Porque teremos que pedir mais de oito caixotes. Compraremos todos os caixotes de chá da Millard‘s e pediremos exclusividade! Ninguém mais poderá tê-lo:

Michael desviou o olhar de Fiona na direção de Nick, como se este soubesse o que sua sobrinha maluca estava tramando, mas Nick deu de ombros, dando a entender que não sabia de nada.

— E por que faríamos isso? — Michael quis saber. — Isso é loucura! Nenhum lojista encomenda mais do que ele pode vender!

Fiona o interrompeu.

— Não somos mais lojistas.

— Não? — Michael ergueu a sobrancelha. — O que é que somos então?

— Comerciantes de chá.

 

— O DE SEMPRE, SENHOR MCCLANE?

— Sim, Henry. O senhor Carnegie e o senhor Frick já chegaram?

— Eu não os vi, senhor. Eis sua bebida.

— Muito obrigado, Henry.

— O prazer é meu, senhor.

Will tomou um bom trago do seu uísque e depois passou os olhos pelo bar do Union Club na tentativa de avistar seus convidados. Andrew Carnegie e Henry Frick, os sócios do maior negócio de aço do país, se juntariam a ele nessa noite para discutirem seus planos quanto ao metrô. Estavam interessados em supri-lo com aço e ele, por sua vez, também se interessava em tê-los como investidores. O apoio de ambos, como o de outros industriais, agora era mais do que crucial, porque surgira m novo obstáculo para o seu projeto de construir o primeiro metrô da cidade, um obstáculo que começava a descarrilar seu planejamento e seus contatos políticos.

A porta do bar abriu-se. Will virou-se, esperando ver pelo menos um de seus convidados, mas, em vez disso, viu uma morena baixinha vestida com um conjunto de saia e casaco xadrez azul. Com uma das mãos ela segurava uma prancheta e um lápis, e, com a outra, a bolsa. Seus olhos vivazes o localizaram e ela foi direto até ele.

— Olá, Will — ela disse.

Ele sorriu.

— Que prazer, Nellie. O que você vai beber?

— Um uísque. Com gelo. O mais rápido possível, está bem? — ela disse para o bartender. — Acho que tenho cinco ou talvez dez minutos antes que a gárgula me pegue.

O bartender hesitou.

— Senhor McClane... eu não posso. As regras dizem...

— Sei o que as regras dizem. Eu digo, sirva um uísque com gelo para a senhorita Bly. Agora. — Will elevou a voz; ele não precisava.

— E pra já, senhor.

Will esticou a bebida para Nellie. Ela bebeu a metade, de um só gole, secou os lábios com as costas da mão e desceu a mão até o pescoço.

— Eu soube que o August Belmont entrou na briga. Minha fonte na prefeitura disse que ele também apresentou um plano para o metrô.

— Por que você não pergunta para o próprio? Ele está sentado naquele canto com o John Rockefeller. Certamente, desmerecendo o meu plano.

— Porque ele é inflexível e nunca me diz nada. Will, por favor, tenho que fechar a pauta até nove horas.

Will esvaziou seu copo e pediu outro.

— É verdade — ele disse. — Ele tem sua própria equipe de engenheiros. Mapearam uma rota inteiramente diferente da minha e entregaram os planos para o prefeito dois dias atrás. Argumentaram que o plano deles é mais econômico.

Nellie pôs seu copo no balcão e começou a escrever.

—E é?

— No papel. A verdade é que o projeto deles custará mais para a cidade. Muito mais.

— Por quê?

— A rota de Belmont se estende por uma região pantanosa em certos trechos, com puro xisto em outros. Em algumas regiões, ele projetou linhas que vão dar direto em lençóis d‘água. As rotas dele são mais diretas que as minhas; ele está vendendo a economia dele para o prefeito assim, mas com os obstáculos naturais, a operação no seu todo ficará mais cara para os cofres públicos, tanto em mão de obra como em equipamentos.

— E o que você fará?

— Vou dizer ao prefeito para deixar de ser bundão e adotar o meu projeto.

— Você sabe que não posso escrever isso. Mas adoraria. Faça uma declaração como manda o figurino.

WilI pensou um pouco e disse:

— Estou seguro de que o nosso estimado prefeito e seus competentes conselheiros levarão em conta a topografia, a geografia e a carência de transporte de Manhattan quando pesarem os méritos de cada projeto. E estou igualmente confiante de que, quando fizerem isso, não deixarão de notar os erros flagrantes, os cálculos e as representações equivocadas do projeto de Belmont. Ele não só arruinaria economicamente a cidade, como também colocaria em risco a integridade e a estrutura das ruas de Manhattan com seus principios equivocados de engenharia; isso sem mencionar a segurança dos cidadãos... que tal?

— Perfeito — disse Nellie, escrevendo com fúria. — Muito obrigada, Will, você é um doce — ela acabou de escrever, fechou o bloco de notas e tomou outro gole de uísque, esvaziando o copo. Will ofereceu-lhe outra dose. Ela o olhou bem de perto enquanto ele lhe estendia o copo.

— Você está bem? Estou achando-o mais magro.

— Eu? Estou ótimo.

— Você tem certeza?

Ele assentiu com a cabeça, encolhendo-se um pouco com o olhar dela. Ele gostava de verdade de Nellie, mas sempre fora cauteloso em relação à profissão dela. Fornecer uma informação de negócios para uma repórter era uma coisa, mas lhe dar uma informação pessoal poderia ser extremamente perigoso. Ele percebeu que ela ainda o olhava, à espera de uma resposta. Ele então decidiu admitir que as expectativas o estavam deixando cansado para ver se a despachava.

— Acho que é o trabalho — ele completou. — Esses últimos dias têm me esgotado.

— Não estou acreditando. Você adora uma competição. Alguma coisa está errada. Você está doente?

Will suspirou, irritado.

— Não há nada errado! Estou bem, eu só...

Ela levou o copo aos lábios, mas parou no meio do caminho.

— É uma mulher, não é?

— Alguém já lhe disse que você é muito abelhuda, Nellie?

— Todo mundo. Quem é ela?

— Ninguém! Não tem nenhuma mulher! É o metrô. Está bem?

Nellie levantou uma sobrancelha, mas deixou o assunto morrer. Will se sentiu aliviado, embora estivesse com raiva dele mesmo por deixar que suas emoções irrompesse de maneira tão espalhafatosa. Ultimamente, Fiona não saía de sua cabeça e, por mais que tentasse, ele não conseguia entender seus sentimentos por ela. Tentou conversar sobre ela com William Whitney, um dos seus maiores amigos, mas Whitney limitou-se a perguntar por que ele estava fazendo drama.

— Compre uma bugiganga pra moça e leve-a pra cama — ele aconselhou. Ele pensou em conversar com Lydia, sua irmã, mas achou que ela não reagiria bem; ela estava sempre tentando despertar o interesse dele por uma de suas amigas, uma viúva de Saratoga. No fim, resolveu falar com Robert, seu irmão mais velho. Tomaram uns drinques ali no clube, uma semana antes, na véspera de outra excursão de Robert ao Alasca, onde ele procurava ouro. Robert tinha trinta e seis anos e nunca se casara. Perdeu sua noiva, Elizabeth, para a tuberculose quando eles estavam com vinte e quatro anos. Eles se amavam muito. A morte dela partiu seu coração e nunca mais ele se recuperou.

— Por que toda essa agonia, Will? — perguntou Robert. — Leve-a pra cama e pronto.

— Você está parecendo o Whitney, a coisa não é assim — retrucou Will.

— Quer dizer que estamos falando de uma possível esposa? Então, me desculpe. Achei que você se referia a uma prostituta.

— Nós estamos falando de uma mulher, a mulher mais bonita, mais inteligente mais divertida que já conheci — disse Will.

— Ela sabe dos seus sentimentos?

— Talvez. Eu não sei. Não me declarei.

— Por que não? Só porque... faz dois anos que Anna faleceu? Seu luto acabou. Você é livre para se casar de novo, se quiser. O que está impedindo-o?

— Complicações, Robert. Ela não é... não compartilhamos a mesma formação.

— Ah — exclamou Robert, tomando um longo gole de sua bebida.

— Ela é uma lojista. Acho que meus filhos não irão aceitar. Muito menos a Liddy. Eu não sei o que a família dela achará de mim. E, é claro, sou bem mais velho que ela.

— Essa é uma situação difícil, garoto! — disse Robert. Ele deu uma pausa por alguns segundos e disse em seguida: — Você a ama?

— Não consigo parar de pensar nela. Nunca conheci ninguém com quem eu quisesse conversar com tanta franqueza...

— Will... você a ama?

Ele pestanejou, confuso.

—Não sei.

— Você não sabe? Will, você já se apaixonou antes, não é? Quer dizer, por Anna, é claro... e suas várias... bem, você já se apaixonou, não é?

Will olhou para o copo.

— Não. Eu, não — ele bebeu, constrangido. — É assim mesmo? Esse sentimento... essa sensação de saudade, de desejo? Isso é horrível!

Robert riu, admirado.

— Sim, é assim mesmo — ele disse, acenando para o garçom. — Vou pedir um outro drinque pra você. Talvez a garrafa inteira. Você deve estar precisando de uma — balançou a cabeça. — Você nunca se perguntou sobre o que podia estar perdendo?

— Não, eu não acreditava nisso. Eu achava que era uma coisa inventada pelos romances femininos — WilI deu de ombros, desamparado. — Não me leve a mal, Robert eu sentia alguma coisa pela Anna. Ela era uma mulher maravilhosa, uma companheira, uma pessoa incrível. Mas não era nada parecido com o que estou sentindo.

— Cristo, Will, isso realmente leva o prêmio. Apaixonado pela primeira vez — Robert riu. — Espero que você possa ensinar novos truques para um cachorro velho.

Will riu.

— Você tinha que dizer cachorro velho?

Robert deu um tapinha nele.

— Por que não deixa ela mesma decidir se gosta ou não de estar com você? Se você valer a pena, ela vai superar as dificuldades.

— Se eu valer a pena?

— Sim. Se. E se ela for metade do que você diz que é, está mais do que à altura da empreitada. A família dela vai ficar em cima. E a sua também — Robert sorriu. — Eu já sei. A Liddy ficará sabendo. E você pode deserdar seus filhos se eles se opuserem.

De repente, uma mão balançou na frente do seu rosto.

— Will? Will, você está me ouvindo?

— Desculpe, Nellie.

— Caramba, você está realmente mal — ela disse. — Queira você falar ou não, o fato é que alguém roubou seu coração — ela se achegou bem perto dele. — Você tem um coração, não tem?

Enquanto WiIl sorria divertido, Cameron Eames, um jovem juiz amigo de Will Junior, o filho mais velho de Will, irrompeu pela porta.

— Boa noite, senhor McClane — ele disse.

— Olá, Cameron.

— Estou vendo que o senhor tem uma convidada. Eu não sabia que o clute admitia damas. Oh, é você, Nellie.

— Pois é, eu mesma, Eames. E você, tem prendido muitas crianças? Acabei de ver uns meninos jogando taco a poucas ruas daqui. Você sabe o que as pessoas costumam dizer: taco leva ao assalto. Você não pode bobear. E melhor chamar a polícia. Talvez até mesmo o exército.

Dois homens que estavam próximos soltaram alguns risinhos. Will os ouviu e, portanto, também Cameron. O rosto do rapaz se fechou.

— Aquilo foi uma matéria histérica. Escrita por uma repórter histérica mais guiada pelo coração que pela razão — ele disse.

— O menino só tem dez anos, Eames.

— Ele é um criminoso.

— Ele estava com fome.

Irritado, Eames voltou-se para Will e disse:

— Se o Will Junior chegar, poderia lhe dizer que estou no restaurante, senhor McClane?

— Claro, Cameron.

— Divirta-se, senhor — falou e se retirou.

— Isso não foi nada inteligente, Nellie. Agora ele vai pedir ao maítre para manda-la embora.

— Eu tenho certeza de que ele fará isso. Por que este clube seria diferente da corte dele? Ele vive me expulsando de lá, e não passa de um merdinha presunçoso — ela disse, — Desculpe. Eu sei que ele é amigo do Will Junior.

Will deu de ombros.

— Mesmo assim continua um merdinha presunçoso. — Ele sentiu uma mão pousando em seu ombro.

— Oi, papai. Oi, Nellie — soou uma voz. Will virou-se e sorriu para o homem louro de compleição sólida ao lado dele, com vinte e cinco anos de idade. Era o seu filho mais velho. Ao mesmo tempo em que Will o cumprimentava, feliz por vê-lo, da mesma forma que se alegrava por ver qualquer dos seus filhos, ele se admirava por se dar conta do quanto o filho se parecia com sua falecida esposa. Quanto mais velho ficava, mais e lembrava Anna e seus ancestrais alemães, com suas faces coradas e sua lógica.

—Eu tenho um encontro com o Cameron. Algum sinal dele? — perguntou Will Junior. Cameron e Will Junior tinham crescido juntos em Hyde Park, no Hudson, e também juntos frequentaram a Universidade de Princeton, participando dos mesmos clubes e da mesma fraternidade. Agora casados, os dois mantinham residências no vale do Hudson, onde ficavam suas famílias, e apartamentos na cidade, onde permaneciam durante a semana de trabalho.

— Ele está no restaurante — respondeu Will.

— Que bom — disse Will Junior. Ele voltou-se para Nellie. — Que artigo sarcástico o seu.

— Vou considerar como um elogio.

— Você pode arruinar a carreira de qualquer homem com artigos assim.

— O Cameron é capaz de fazer isso sozinho. Não precisa da minha ajuda.

Desde janeiro, quando fora indicado para ocupar o comando do Tribunal Justiça da cidade, Cameron Eames iniciara uma campanha de limpeza de Nova York com muita divulgação. Ao contrário das críticas favoráveis da maioria dos jornais da cidade, Nellie, repórter do World, escreveu um artigo em torno de um garoto polonês do Baixo East Side que Cameron tinha mandado para Tombs, a cadeia de Manhattan, por ter roubado um pão. Embora o roubo tivesse sido o primeiro delito, o garoto foi trancafiado numa cela com um bando de criminosos. Na manhã seguinte, os guardas encontraram o corpo dele debaixo de um tapete no fundo da cela. Tinha sido agredido — uma palavra polida para estuprado — e estrangulado até morrer. O estômago de Will se revirou quando leu o artigo. Ele perguntou como Cameron podia ter sido tão estúpido.

— Cameron precisava fazer uma escolha moral e a fez — disse WiIl Junior. fendendo o amigo.

Nellie riu.

— Por favor, McClane. Quanto mais criminosos ele mandar para a cadeia mais publicidade terá em torno dele. Nós dois sabemos disso. Não é a moraIidade que norteia o Cameron, é a ambição.

— Tudo bem, Nellie, Cam é ambicioso. Mas também sou e você também. Não há nada de errado nisso — retrucou Will Junior, de ânimo quente. — Ele quer ser o mais jovem juiz nomeado pela Suprema Corte do estado. E vai conseguir isso, a despeito de todas as suas tentativas para desmoralizá-lo. A campanha dele é sucesso. Em um ano, ele já colocou mais criminosos na cadeia do que fez o antecessor em três anos.

Will olhou longamente para o filho.

— Pelo pouco que ouvi, filho, se o Cameron quiser fazer diferença, acho que ele precisa tocar na raiz do problema, ou seja, ir atrás dos chefões do jogo, das cafetinas e dos chefes de gangues. E dos policiais que os acobertam.

Will Junior bufou.

— Eu disse que o Cameron é ambicioso, papai, não maluco. O importante é que ele está prendendo a bandidagem. Tornando as ruas mais seguras para nós.

— Um juiz sábio entende qual é a diferença entre roubar para obter ganho e roubar para matar a fome.

— Você também tem um coração mole — replicou Will Junior, irritado, impaciente com essas sutilezas, apegado a sua forma de ver tudo preto no branco. Roubar é roubar. Os imigrantes estão entupindo esta cidade. Eles precisam saber, que o desrespeito à lei não será tolerado aqui.

— É fácil de falar quando nunca se passou fome — disse Nellie.

— E o padeiro que ele roubou? Que tal falar sobre ele? Ele não tinha uma filha para alimentar? — perguntou Will Junior, elevando a voz.

— Pelo amor de Deus! Era só um pão, nada que o homem tivesse na caixa registradora.

Will calou-se, enquanto WiII Junior e Nellie continuavam o debate. Ele amava o filho, mas achava que ele e muitos outros de sua geração eram impiedosos em sua busca de dinheiro e posição, além de serem cruéis com os menos afortunados. Em diversas ocasiões era obrigado a lembrá-lo que tanto os McClane como a família de sua mãe — os Van der Leyden — também tinham sido imigrantes; Tal como todos os outro membros das famílias ricas da cidade. Mas as palavras de Will não faziam diferença para o filho. Ele era um americano. E todos os outros que aportavam em Castle Garden não o eram. Italianos, irlandeses, chineses, poloneses; não importava qual fosse a nacionalidade. Não passavam de preguiçosos, estúpidos e sujos. Gente que só trazia ruina para o país. A intolerância do rapaz era algo que ele desenvolvera sozinho, não com os pais. E era uma faceta do filho da qual Will não gostava.

Enquanto observava Will Junior gesticulando para Nellie, ele se perguntava como o filho reagiria quando soubesse de Fiona. Ele sabia a resposta: ficaria estarrecido com a ideia de o pai ter qualquer espécie de relação com uma mulher que trabalhava para viver e integrava a classe de imigrantes que tanto desprezava.

— Não, Nellie! Você está errada! — ele exclamou com a voz muito alta para o gosto do pai. Will já estava a ponto de ralhar com o filho quando foram interromos por um cumprimento espalhafatoso.

— Olá, meus queridos! — Will abafou um gemido. Isso poderia melhorar o clima. Era a voz de Peter Hylton, o editor de ―Peter‘s Patter‖, uma coluna do World que era parte de um novo fenômeno editorial conhecido como coluna social. Elaborada para distrair os leitores com relatos de casos afetivos e festas dos nova- iorquinos ricos, o ―Peter‘s Patter‖ tornara-se a mais famosa coluna do jornal, fazendo a circulação aumentar vertiginosamente. Ninguém admitia que a lia, mas todo mundo lia. Quando a coluna elogiava uma peça, a lotação do teatro esgotava. Se ela criticava um restaurante, ele fechava as portas em uma semana.

Na opinião de Will, era uma coluna horrorosa, irresponsável, que fazia um mau uso da imprensa, um pouco acima da série de fofocas rasteiras. Hylton não respeitava os códigos de decência pública. Não tinha o menor escrúpulo em mencionar que um certo barão do carvão estava na ópera em companhia de uma mulher ,que não era a sua esposa. Ou que a recente venda de uma mansão da 5th Avenue devia-se às perdas que o seu proprietário sofrera nas pistas de corridas. A época, os jornais começaram a prática de imprimir fotografias, e frequentemente Hylton mantinha seus fotógrafos à espreita do lado de fora de restaurantes e teatros, com câmeras e flashes infernais. Will fora flagrado algumas vezes por elas. Ele não gostava daquele homem e WilI Junior o desprezava. Três anos antes, quando Will Junior se candidatou pela primeira vez a uma cadeira no Congresso, Hylton escreveu sobre a queda que ele tinha pelas coristas. Ele ainda era solteiro, mas comportamento não foi bem aceito pelo público. E acabou perdendo a eleição. Tentou processar Hylton, mas não tinha provas. Hylton fizera uma descrição dele, mas nunca o mencionou pelo nome. Quando pressionado pelo advogado de Junior, ele negou tudo, alegando que se referia a um outro jovem empresário de uma proeminente família. Will Junior teve que desistir da ação.

— Hylton! — Will Junior silvou. — Que diabo você está fazendo aqui?

— Vim jantar, meu querido. Agora eu sou sócio. Não sabia? Fui aceito pelo voto.

— Então, eu vou me desligar! Não quero ser patrono de um clube que permite a entrada de agitadores como você e — ele apontou o dedo na direção de Nellie — ela.

— Eu sou agitadora, sim, denuncio a corrupção — disse Nellie de forma empertigada. — Peter não merece o título.

Will Junior ignorou-a.

— Vocês dois acham que podem andar por aí se metendo nos negócicios dos outros e espalhando as coisas por tudo que é canto, não acham? Vale qualquer notícia, desde que alimente os seus trapos!

Vestido em roupas vistosas e com joias de ouro, Peter, um homem baixo e gorducho, recuou e pôs suas mãos gordas no peito como um esquilo.

— Meu Deus ! Tomara que o restaurante seja mais civilizado — ele disse, retirando-se.

Nellie o olhava enquanto ele desaparecia na sala do restaurante, um ambiente cujos frequentadores valiam juntos mais que o produto interno bruto de países. Gente cujo poder e influência podiam moldar política e financeiramente a conjuntura nacional e internacional. A inveja era visível nos olhos de Nellie.

— Por que o Hylton pode entrar neste clube e eu não posso? — ela perguntou para Will.

— Porque é de uma família importante e, acredite ou não, porque ele é homem. — respondeu Will.

— Isso é questionável — replicou Will Junior, irritado. — Ele farfalha tanto quanto um vestido de seda. É um desmunhecado.

— Ele tem mulher e filhos. Vivem em Nova Jersey — disse Nellie.

— Eu não os culpo — disse Will Junior. — Janta conosco, papai?

— Lamento, mas não posso. Estou esperando meus convidados. Camegie e Frick.

— Estou louco para saber como será esse jantar. A primeira coisa amanhã será passar no seu escritório. Até logo, papai — disse Will Junior. Virou-se em seguida para Nellie e acrescentou com frieza. — Senhorita Bly.

Enquanto ele se retirava, o maitre se dirigia a ela com um olhar furioso.

— Senhorita BIy, já lhe disse centenas de vezes que o Union Club não permite a presença de mulheres — ele disse, pegando-a pelo cotovelo.

Ela se desvencilhou dele, terminou o drinque e pôs o copo no balcão.

— Obrigada pelo uísque, Will. Você viu como essa gárgula aqui me retira desse maisoléu.

— Senhorita Bly! Eu insisto que se retire agora!

— Está bem, seu idiota, fique tranquilo. Eu posso ver quando não sou querida!

— Arduamente, não é, Nell? — comentou WilI, sorrindo. Ele observou enquanto ela se afastava, dizendo desaforos para o maítre a cada passo. Quando ela saiu, ele vasculhou o interior do clube. Mausoléu! Nunca o tinha visto dessa maneira, Nellie tinha razão. Dois velhotes, vestidos elegantemente, conversavam aos berros porque não conseguiam ouvir. Será que estarei aqui quando tiver setenta anos? Ele se perguntou. Rangendo os ossos por aí, chupando a comida, assombrando o lugar como um fantasma?

Olhou os outros homens — amigos e colegas — ao redor que se agrupavam no bar ou se dirigiam para o restaurante. Passavam grande parte de suas noites ali, não em suas casas. Não havia razão para ficarem com a família. Não havia amor, não havia paixão em seus casamentos, nada de calor na cama. Conhecia isso muito bem; ele também era vazio. Todos eles entregavam seus corações para os negócios, e nada para as esposas; por isso mesmo eram desgraçadamente ricos.

Will sabia que, se quisesse um casamento por conveniência, teria com muita facilidade. As amigas de sua irmã e de sua finada esposa encaixavam-se perfeitamente. Se ele aceitasse a demanda, se veria casado com um tipo de mulher igual a esposa — socialmente eminente, bem-nascida, bem-educada —, com o mesmo casamento insatisfeito que já tivera. Teria uma nova esposa de sua mesma classe social. Seria uma sócia. Ou melhor, uma amiga. Ela atenderia sua demanda sexual, como Anna, mas sem nunca demonstrar prazer porque isso não era apropriado. O sexo era grosseiro e vulgar e só servia para gerar filhos. Se ele quisesse se divertir com uma mulher que gostasse de fazer amor, que procurasse uma amante, o que ele fez inumeras vezes no passado. Ele e a esposa teriam vidas separadas, quartos separados.

Mas, por Deus, se Fiona fosse sua esposa, ele não dormiria em outro quarto. Faria amor com ela todas as noites, e depois dormiria ao lado dela, respirando o seu suave perfume. Ele a beijaria quando ela acordasse de manhã, contemplando-a enquanto ela abriria seus olhos deslumbrantes, franzia o rosto com um bocejo e lhe dava um sorriso lindo. E então se perguntava: como seria um casamento assim? Como seria passar a vida com uma mulher que se ama tão loucamente? Ele nunca tinha experimentado tipo de coisa. Estava com quarenta e cinco anos e não sabia o que era estar apaixonado. Mas agora ele sabia. Nada nem ninguém havia tocado o seu coração como ela.

A porta do bar se abriu de novo e Carnegie e Frick caminharam na direção de Will, com suas faces aristocráticas sombrias o bastante para banir o romance de Cupido. E de repente ele perdeu a vontade de discutir o projeto do metrô.

—Robert, você faria de novo? — ele tinha perguntado ao irmão, uma semana antes. Naquele mesmo lugar.

— Fazer o quê?

— Pedir Elizabeth em casamento. Mesmo... quer dizer, mesmo depois de ter acontecido tudo.

— Mesmo que ela fosse morrer? — disse Robert, com carinho. — Mesmo que o que eu sentia por ela me afastasse de qualquer outra mulher? Sim, eu faria. Sem nenhuma hesitação — ele se esticou para frente e cobriu a mão de Will com a sua, um raro momento entre eles. — Você seguiu sua cabeça durante toda a sua vida, Will. E agora é hora de seguir seu coração. Você merece. Pelo menos uma vez na vida. Todo mundo merece.

 

FIONA OLHAVA para a montanha de caixotes de madeira empilhados na calçada com as mãos nos quadris. O entregador estendeu-lhe uma folha de papel. Ela leu e assinou. Depois, fechou os olhos e inspirou profundamente. Ela podia sentir o aroma, mesmo com os caixotes fechados. Cheiro de chá. Aconchegante, rico e divertido. Não havia nada igual...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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