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O CLUBE DOS SUICIDAS / Robert Louis Stevenson
O CLUBE DOS SUICIDAS / Robert Louis Stevenson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CLUBE DOS SUICIDAS

 

História do rapaz dos pastéis de nata

Durante a sua permanência em Londres, o ilustre príncipe Florizel de Boémia granjeou a simpatia de todas as classes sociais, não só pela sedução das suas maneiras como pela evidente generosidade do seu espírito. O que dele chegava ao conhecimento do público era suficiente para o notabilizar, e, todavia, isso não era quase nada. Embora de temperamento calmo na vida quotidiana, e habituado a encarar as coisas com a maior naturalidade, não se pode dizer, contudo, que o príncipe de Boémia não tomasse gosto por certos lados aventurosos da existência, demasiadamente excêntricos para a sua posição na sociedade. Uma vez por outra, quando se sentia fatigado do mundo, quando não havia nos teatros de Londres nenhuma peça que o pudesse divertir nem o tempo estava propício aos desportos de ar livre, em que ele era exímio, então ordenava ao seu estribeiro-mor e confidente, coronel Geraldine, que lhe preparasse algumas daquelas excursões nocturnas em que os dois se compraziam.

O estribeiro-mor era um oficial ainda novo, destemido, senão mesmo um tudo-nada petulante. Recebia a ordem com prazer, e apressava-se a dar lhe realidade. A prática que possuía da vida, o convívio que tivera com muita gente, haviam-lhe criado o dom natural de saber se disfarçar: era capaz não só de modificar as feições e o porte, mas até a voz e a maneira de ser, integrando-se no feitio e carácter de indivíduos das mais diversas nações. Desta forma conseguia desviar de cima do príncipe a atenção dos outros, e obtinha facilmente admissões, para os dois, nas mais estranhas assembleias. As autoridades nunca tinham chegado a saber nada a respeito destas aventuras; a imperturbável serenidade de um, e o espírito inventivo, mas sempre cavalheiresco, do outro, haviam feito com que eles passassem sempre incólumes, através de todos os peri gos; e assim, com o decorrer do tempo, a confiança fora aumentando.

Certa noite de Março, uma súbita carga de água obrigou-os a recolherem-se no Oyester Bar, não muito longe de Leycester Square. O coronel Geraldine ia vestido e equipado de maneira a que o tomassem por um indivíduo relacionado com o meio jornalístico; e o príncipe, sobre a indumentária e fisionomia habituais, lançara o disfarce dumas suíças falsas e dumas sobrancelhas postiças, o que lhe dava um ar agressivo, numa cara de poucos amigos. Sabida, como era, a sua urbanidade de trato e de expressão, aquilo tornava-o efectivamente irreconhecível. E, assim incógnitos, resolveram os dois tomar sossegadamente a sua bebida predilecta.

A casa estava cheia de comensais, homens e mulheres. Embora alguns deles mostrassem vontade de entabular conversa, o certo é que os dois amigos não descobriam ali ninguém com quem valesse a pena travar conhecimento. Bem se podia dizer que era a escória da cidade, e aquele lugar um antro de sordidez; o príncipe já começava a bocejar e a considerar a noitada sem interesse, quando a porta de novo girou, lançando violentamente na sala, um após outro, um homem bastante novo e dois moços de fretes. Cada um destes trazia um prato coberto, que imediatamente destapou, deixando ver apetitosos pastéis de nata. O rapaz e os ajudantes deram a volta à casa, oferecendo aos clientes, com a máxima cortesia, o conteúdo dos pratos. Houve gente que aceitou, no meio de grandes gargalhadas, e houve outra que rejeitou indignada, mostrando-se ofendida na sua dignidade. Nesta última hipótese era o ofertante quem afinal comia o pastel, acompanhando o acto de comentários mais ou menos espirituosos.

Por fim aproximou-se do príncipe Florizel.

- Cavalheiro - disse ele, fazendo um cumprimento e mostrando o bolo entre o polegar e o dedo indicador - Quer dar me a honra de provar? Posso garantir a excelente qualidade, porque, desde as cinco horas da tarde, não faço outra coisa senão comer pastéis destes.

- É meu costume - respondeu o príncipe - olhar menos à natureza da oferta do que à maneira como ela é feita.

- A maneira - replicou o desconhecido, repetindo a vénia - é puramente burlesca.

- Sim? E de quem pretende troçar?

- Não venho para aqui expor o meu conceito filosófico, mas apenas distribuir estes produtos de pastelaria. Se lhe disser que me divirto também comigo mesmo, espero que ficará satisfeito e perdoará. Se não, ver me-ei constrangido a comer o meu vigésimo oitavo bolo, e confesso que o exercício me vai cansando já.

- Sensibiliza-me; creia - disse o Príncipe - e tenho a maior vontade em livrá-lo desse dilema, porém, com uma condição. Se o meu companheiro e eu comermos os seus pastéis (para os quais, seja dito, não nos sentimos com grande disposição) gostaria que o senhor se juntasse a nós dois e fôssemos todos três cear.

O rapaz pareceu reflectir um momento.

- Tenho ainda algumas dúzias por consumir - volveu ele, por fim -, e vai ser preciso visitar ainda outros botequins a ver se me desfaço de vez. É coisa para levar o seu tempo; e se o senhor está com pressa...

O príncipe interrompeu-o, com um gesto cheio de deferência.

- Eu e o meu amigo acompanhá- lo-emos - declarou ele -, temos plena confiança no seu modo de passar a noite, que pressentimos ser agradabilíssimo. E agora, que os preliminares da paz estão definidos, deixe-me assinar o respectivo tratado.

E o Príncipe devorou o pastel com uma elegância indiscutível.

- É delicioso - observou.

- Vejo que é entendido - replicou o rapaz. O coronel Geraldine também fez honra à doçaria; e como toda a gente, naquele lugar, já tinha aceitado ou recusado os pastéis de nata, aquele excêntrico sujeito saiu para ir a outros estabelecimentos congéneres. Os dois moços de fretes, que dir se-ia já estarem habituados àquele estranho emprego, seguiram-no sem demora; e o príncipe e o coronel, de braço dado e sorriso nos lábios, formaram na retaguarda do cortejo. Com esta mesma ordem, o grupo visitou outras tabernas, onde se repetiram cenas semelhantes à que narrámos - uns rejeitando, outros comendo os bolos, e o rapaz acabando por engolir o que não conseguia ver aceite.

Ao deixarem o terceiro estabelecimento, contou o rapaz o remanescente dos pratos. Não havia senão nove pastéis, três num e seis no outro.

- Cavalheiros - disse ele, dirigindo-se aos seus novos companheiros. - Não quero retardar mais a vossa ceia. Tenho a certeza de que devem estar com fome, e a minha obrigação é mostrar me atencioso. Este dia é notável para mim, pois fecho, com a mais patusca das acções, uma carreira repleta de loucuras. Quero proceder gratamente a quem deu tão graciosa ajuda. Cavalheiros, não vos farei esperar mais. Embora a minha saúde esteja prejudicada por uma vida de excessos, liuidarei, com risco da própria existência, o obstáculo que se opõe à imediata resolução da nossa festa. Dizendo estas palavras, o rapaz engoliu os nove bolos que restavam, um a um, com a maior serenidade. Depois, voltando-se para os ajudantes, deu a cada um deles a sua gratificação. E acrescentou:

- Agradeço a vocês a paciência com que me aturaram. - Com um aceno de cabeça, despediu-os, e ficou uns instantes a olhar para a carteira de onde tirara o dinheiro. Finalmente, veio a rir para o meio da rua e declarou-se ao dispor dos dois distintos companheiros.

Foi num restaurantezinho francês do Soho, que durante algum tempo gozou de exagerada reputação, mas que depressa decaiu do favor do público, foi aí, dizia, que os três encomendaram uma ceia, conversando entretanto de assuntos variados. Estavam num gabinete reservado, para chegar ao qual se subiam dois degraus. Tinham pedido três ou quatro garrafas de cham pagne. O rapaz era falador e jovial, mas ria em excesso, o que não era natural numa criatura de boa estirpe; as mãos tremiam-lhe violentamente, e a voz tomava súbitas e surpreendentes inflexões, talvez mesmo contra a vontade dele. O criado levantou a mesa, e os três acenderam os charutos. O príncipe dirigiu-se então ao desconhecido, nestes termos:

- Espero que me há-de perdoar a curiosidade. Tudo o que até agora observei na sua pessoa é deveras interessante, mas confesso que me intriga bastante; ainda que me desagrade parecer indiscreto, devo dizer lhe que o meu companheiro e eu somos pessoas a quem se pode confiar um segredo. Nós próprios os temos também, e os revelamos constantemente a ouvidos estranhos. E se, como julgo, a sua história é coisa extravagante, não se coíba por nossa causa, porque somos os homens mais extravagantes da Inglaterra. Chamo-me Theophilus Godall, e aqui o meu amigo é o major Alfred Hammersmith, ou, pelo menos, é o nome pelo qual ele prefere ser conhecido. Passamos a nossa vida unicamente em busca de aventuras originais; e não há nenhuma extravagância que não mereça a nossa simpatia.

- Gosto de si, senhor Godall - volveu o desconhecido -, o senhor inspira-me plena confiança, e, contra o seu amigo major, não tenho nada a objectar. Calculo que é um fidalgo disfarçado: oficial é que não me parece que seja.

O coronel sorriu a este cumprimento, com a sua arte consumada. E o rapaz continuou, cada vez mais animado.

- Há várias razões pelas quais eu não devia contar-lhes a minha biografia; é talvez por isso que estou resolvido a relatá- la. Além disso, vejo-os tão bem preparados para ouvi-la, que seria indigno desiludi-los. O meu nome, ao contrário do dos senhores, não será revelado. A minha idade nada tem que ver com a narrativa. Descendo dos meus ascendentes, como acontece a todas as pessoas, e deles herdei a casa que hoje ocupo, além duma renda de trezentas libras por ano. Suponho que deles também herdei este temperamento leviano, que é o que mais me tem favorecido. Recebi excelente educação. Toco violino, o suficiente para poder empregar-me numa orquestra de pouca responsabilidade. O mesmo direi a respeito de flauta e cornetim. Aprendi do whist o bastante para perder uma centena de libras anualmente neste jogo científico. Conheço da língua francesa quanto basta para dissipar em Paris, com a maior facilidade, o mesmo dinheiro que dispendo em Londres. Em suma, sou uma pessoa revestida de óptimas preridas. Tenho passado por muitas avenf turas, sem excluir um duelo por motivos fúteis. Há precisamente dois meses encontrei uma senhora talhada para o mesmo gosto, tanto no corpo como no espírito. Senti um baque no coração; compreendi que o meu destino se realizava e de que eu estava prestes a apaixonar me. Mas quando deitei as contas ao que me restava de capital, verifiquei que não ia para mais de quatrocentas libras. Respondam-me, se fazem favor: pode um homem enamorar-se, quando tem apenas quatrocentas libras? Decerto que não, é o que vão responder me. Pondo de lado a minha paixão nascente, e acelerando o ritmo das minhas despesas, cheguei esta manhã às minhas últimas oitenta libras. Esta soma dividi-a em duas partes iguais: quarenta destino-as a um fim especial; as restantes dissipei-as até agora. Passei um dia divertidíssimo, e fiz várias partidas além daquela dos pastéis de nata que me proporcionou o prazer do vosso conhecimento. Pois resolvi, como já lhes contei, dar um remate extravagante a uma carreira toda feita de extravagâncias. Quando me viram olhar para a carteira, no meio da rua, as quarenta libras estavam já no fim. Agora já me conhecem tão bem como eu próprio me conheço: um maluco, que persiste na maluqueira. O que não sou, e é favor acreditar me, é choramingas, nem cobarde.

Daquela declaração do rapaz, e do tom com que a pronunciara, concluía- se que ele albergava em si muita amargura misturada com orgulho. Os seus auditores calcularam que a tal paixoneta de que falara não estava tão posta de parte como quisera fazer acreditar; e que havia qualquer projecto de vida esboçado na sua mente. A comédia dos pastéis tinha todo o aspecto duma tragédia disfarçada.

- Não parece estranho - atalhou Geraldine, trocando um olhar com o príncipe Florizel - que nós três, encontrados por mero acaso neste ermo de Londres, estejamos todos nas mesmas condições?

- O quê? - exclamou o rapaz. - Estão ambos, também arruinados? Esta ceia é uma loucura semelhante à dos pastéis? Reuniu-nos o acaso para que façamos a derradeira orgia?

- Deus - interveio o príncipe - às vezes escreve direito por linhas tortas. Esta coincidência impressiona-me bastante; e, embora não estejamos verdadeiramente no mesmo caso, eu vou acabar com a única diferença que existe. Deixe-me tomar como exemplo a sua heróica farsa dos pastéis.

Dizendo isto, o príncipe tirou a carteira e exibiu um punhado de notas.

- Como vê - disse ele - tenho ainda uma semana de atraso quanto a si, mas quero ver se o alcanço e me ponho a par quando chegarmos à meta. Isto - e atirou uma das notas para cima da mesa - é para pagar a conta. Quanto ao resto... - E enquanto falava, aproximou as outras do lume, reduzindo-as num instante a cinzas.

O rapaz quis deter Lhe o gesto, mas a mesa, que os separava, impediu que a sua intervenção chegasse a tempo.

- Desgraçado! Não devias tê- las destruído todas! Devias ter guardado quarenta libras!

- Quarenta libras! - repetiu o príncipe. - Em Nome do Céu, porquê?

- Porque não oitenta? - exclamou por sua vez o coronel. - Pelos meus cálculos, arderam na vela justamente cem.

- É de quarenta libras apenas que ele precisa - volveu o rapaz, com ar sombrio. - Sem elas, ninguém pode ser admitido. O regulamento é expresso. Quarenta libras por cabeça. Maldita vida, em que um homem precisa de dinheiro para se matar!

O príncipe e o coronel entreolharam-se.

- Queira explicar-se - disse este último. - Tenho ainda comigo uma certa soma, e escuso dizer que estou pronto a compartilhá-la com Godall. Mas desejo saber para que fim. Certamente vai pôr nos ao facto da sua ideia.

O rapaz pareceu despertar. Mirou ora um, ora outro, e corou intensamente.

- Não estão a rir se de mim? - perguntou. - Os senhores estão realmente arruinados?

- É como diz - respondeu o coronel. - Pela minha parte estou depenado.

- E eu também - acrescentou o príncipe. - Já lhe dei a prova disso. Quem, senão um homem perdido, se atreve a queimar as últimas notas? O acto falou por si próprio.

- Sim, realmente, um homem perdido... ou então um milionário - comentou o outro.

- Já disse bastante, cavalheiro - volveu o príncipe.

- Não estou habituado a que ponham em dúvida as minhas palavras.

- Arruinados? - repetiu o rapaz. - Exactamente como eu? Chegastes também, depois duma vida de desregramentos, a uma altura em que só se tem uma solução possível? Confessareis as vossas loucuras, escolhendo o único e infalível desfecho delas? Ides desanuviar a vossa resolução heróica?

Interrompeu-se de súbito, e desatou à rir.

- À vossa saúde! - gritou, enchendo o copo. - E boa noite a ambos, meus felizardos sem vintém.

Ia levantar-se, mas o coronel Geraldine segurou-o por um braço.

- Você não tem confiança em nós - disse-lhe então.

- Mas está enganado. A todas as suas perguntas responderei categoricamente. Não sou tímido, até me atrevo a falar, cara a cara, com a Rainha de Inglaterra.

- Nós também, como vocês, estamos fartos da vida e decidimos pôr lhe termo. Cedo ou tarde, sós ou acompanhados, tencionávamos procurar a morte, estivesse ela oculta onde estivesse, e ali a desafiaríamos. Desde, porém, que o encontrámos, que seja esta noite, e já! E, se permite, todos ao mesmo tempo. Como um trio na penúria, caminhemos de braço dado para a mansão de Pluto, e, de cara alegre, entremos no meio das sombras.

O coronel Geraldine dera tal acento de verdade às suas palavras, que o príncipe se sentiu perturbado e olhou para o seu amigo com certa desconfiança. Quanto ao rapaz, estava congestionado e os olhos cintilavam-lhe inquietos.

- São as pessoas de que necessito! - exclamou este, com uma alegria terrível. - Apertemos as mãos em sinal de ajuste - Tinha os dedos frios e húmidos. - Mal sabem os senhores em que sociedade vão entrar! Mal sabem que feliz momento foi este em que partilharam dos meus pastéis de nata! Pertenço a um único regimento e conheço as portas secretas que conduzem à morte. Sou um dos seus familiares, e saberei levá-los à eternidade sem cerimónias e, principalmente, sem escândalo.

Os outros pediram-lhe fervorosamente que expusesse o seu plano.

- Têm, em conjunto, oitenta libras? - inquiriu o rapaz.

Geraldine consultou ostensivamente a carteira e respondeu pela afirmativa.

- Parabéns a ambos! - exclamou o outro. - Quarenta libras é a entrada de cada pessoa no Clube dos Suicidas.

- Clube dos Suicidas... - volveu o príncipe. - Que diabo de coisa é essa?

- Ouça - continuou o rapaz. - Estamos na época do conforto, e isto é a última palavra nessa matéria. Os negócios, hoje, realizam-se em toda a parte, por isso se inventaram os caminhos de ferro. Mas, em todo o caso, ficávamos separados dos nossos sócios e amigos; de aí, os telégrafos que nos põem em imediata comunicação com eles. Nos hotéis temos os ascensores que nos levam a todos os andares. A vida é um espectáculo onde nos divertimos, enquanto houver disposição para isso. Só faltava uma coisa neste conforto moderno: uma maneira decente de abandonar esse espectáculo, uma escadinha particular que nos conduzisse à liberdade, ou, como disse há pouco, às portas secretas da morte. A esta necessidade veio satisfazer, meus amigos, o Clube dos Suicidas. Não se julgue que somos os únicos que sentimos o desejo, digno e razoável, de utilizar esse serviço. Grande número de cavalheiros, sinceramente desgostosos da vida, estão presos a ela apenas por uma ou duas considerações; alguns têm família que podia melindrar se, e censurá-los, se a coisa se tornasse pública; outros são pouco corajosos e recuam perante os pormenores da morte. Sei tudo isso por experiência própria. Nunca fui capaz de apontar um revólver à cabeça e puxar o gatilho; por mais forte que me julgue, o que é certo é que me detenho, e não consigo. E, apesar de não ter amor à vida, falta-me o ânimo para destruí-la. Para casos destes, e para todos os que desejam desaparecer sem escândalo póstumo, é que se fundou o Clube dos Suicidas. Como se chegou a essa realização, qual a sua história e quais as sucursais que tenha noutros países, são coisas que eu ignoro; mesmo o que sei a respeito do regulamento não estou autorizado a divulgar. Em todo o caso, estou às vossas ordens. Se realmente os senhores se sentem enfastiados da vida, tenho muito gosto em introduzi-los esta noite naquela assembleia. E, se não for esta noite, pel menos no espaço de uma semana garanto que facilmente serão libertados deste mundo. São agora - diss ele, consultando o relógio - onze horas. De aqui a mei hora, o mais tardar, devemos sair deste restaurante. Têm meia hora para reflectirem na minha proposta. É mais séria que a história dos pastéis de nata - acrescentou, com um sorriso -, e quero crer que muito mai saborosa.

- Mais séria, sem dúvida - repetiu o coronel Geral dine. - E, por isso mesmo, gostava de falar em particu lar com o meu amigo Sr Godall, apenas uns cinco mi nutos. Dá licença?

- Com todo o gosto - respondeu o rapaz. - Se qui serem, posso retirar-me.

- É muito amável - disse o coronel.

Logo que ficaram sós, o príncipe Florizel pergun tou ao seu confidente:

- Que é isto? Em que trapalhada nos meteste? E es tás perturbado, ao passo que eu me sinto absoluta mente tranquilo. Sempre quero ver o fim de tudo isto...

- Alteza - replicou o coronel, empalidecendo - permita que lhe suplique tenha em consideração não só sua vida, mas também o interesse público. O homen disse que podia deixar de ser esta noite; ora, admitindo que acontecia qualquer desastre irreparável à pessoa de Vossa Alteza, qual não seria o meu desespero e desgosto da nação?

- Quero ver o fim da história - repetiu o príncipe com o ar mais resoluto do mundo. - E tem paciência Geraldine, mas a tua obrigação é cumprir a palavra que deste a esse maluco. Em nenhumas circunstâncias, lembra-te bem, desvendaremos o incógnito sob o qual viajamos no estrangeiro. São estas as minhas ordens, que mais uma vez confirmo. E agora - concluiu - fazes favor pede a conta.

O coronel baixou a cabeça em sinal de acatamento. Mas estava lívido quando chamou outra vez o desconhecido, e quando liquidou a despesa com o criado. O príncipe conservava toda a sua paz de espírito e representou com o jovem candidato a suicida uma comédia divertidíssima. Evitou sempre os olhares suplicantes do coronel, e até escolheu, com o cuidado do costume, um bom charuto entre os da sua preferência. Era realmente, dos três, o único que mantinha o domínio do sistema nervoso.

Liquidada a conta, deu o príncipe toda a demasia ao criado estupefacto. Depois, tomaram lugar numa carruagem, e partiram; mas não tinham ainda feito grande percurso, quando o carro parou na entrada de um pátio um tanto escuro. Apearam-se.

Geraldine pagou a corrida; e o rapaz, voltando-se para o príncipe Florizel, dirigiu-se-lhe nos seguintes termos:

- Ainda está a tempo, Sr Godall, de considerar no que vai fazer. E o senhor também, major Hammersmith. Reflictam antes de dar o passo decisivo. E se os corações lhes dizem não, aí têm o caminho para retroceder.

- Introduza-me, senhor - replicou o príncipe -, não sou pessoa que diga uma coisa mais de uma vez.

- A sua serenidade é animadora - comentou o outro. - Nunca vi ninguém tão fiel à sua palavra, e todavia não é o primeiro que eu conduzo até aqui. Muitos dos meus amigos me têm precedido neste lugar, que eu sabia que mais tarde ou mais cedo devia franquear.

Mas isto não lhes interessa naturalmente. Esperem-me aqui uns minutos só. Voltarei logo que tenha resolvido os preliminares da apresentação.

Com isto o rapaz deixando os seus companheiros, entrou no pátio, meteu-se por um portão e desapareceu.

- De todas as nossas loucuras - disse o coronel em voz baixa - esta é sem dúvida a mais perigosa.

- Também o creio - replicou o príncipe.

- Temos ainda um momento a nosso favor. Deixe-me pedir- Lhe, Alteza, que aproveite a oportunidade para nos retirarmos. As consequências deste passo podem ser tão graves, que me considero justificado se eu abusar da liberdade de linguagem que Vossa Alteza se digna conceder me fora das circunstâncias oficiais.

- Será possível que o coronel Geraldine tenha medo? - perguntou o príncipe, tirando o charuto da boca e olhando fixamente para o seu interlocutor.

- O medo que sinto não é certamente pela minha pessoa - volveu o confidente, ofendido no seu orgulho. - O que pretendo é velar pela sua segurança.

- Bem sei - atalhou o príncipe, sempre de bom humor -, mas não olhemos à diferença das nossas condições. Basta, basta! - acrescentou, prevendo as desculpas de Geraldine. - Estás perdoado.

E continuou a fumar placidamente, encostado à balaustrada, até que o desconhecido reaparecesse.

- Então, a nossa recepção está resolvida?

- Queiram seguir-me. O presidente vai recebê-los no seu gabinete. Permitam-me que os previna de que devem ser francos nas suas respostas. Tomei esse compromisso, mas o clube exige que se faça um inquérito antes da admissão. A indiscrição de um sócio seria suficiente para inutilizar a missão que o clube se propõe levar a efeito.

O príncipe e o coronel tiveram ambos a mesma ideia. Coragem, pensou um. Coragem, pensou o outro. Acostumados como estavam a pôr acima de tudo a sua dignidade, bastou-lhes um recíproco olhar para se entenderem; e ousadamente seguiram o seu introdutor até ao escritório do presidente.

Não havia grandes obstáculos no trajecto. A porta exterior permanecia escancarada; a do gabinete estava entreaberta. E ali, num compartimento pequeno mas elegante, o rapaz deixou-os sós mais uma vez.

- Ele não tardará - informou, cumprimentando e saindo.

Ouviam-se vozes através das portas fechadas, e de vez em quando o ruído de uma rolha que estalava de uma garrafa de champagne, seguindo-se muitas gargalhadas e conversação animada. De uma janela alta via-se o rio e a represa, e, pela disposição das luzes, concluir-se-ia não ser longe da estação de Charing Cross. A mobília era escassa, e o forro das poltronas já muito usado. Não havia nenhum objecto em cima da mesa redonda, senão uma campainha; na parede estavam pendurados muitos chapéus e sobretudos.

- Que espécie de antro será este? - disse Geraldine.

- É o que vamos ver - redarguiu o príncipe. - Deve ser divertido trocar impressões com esta gente.

Precisamente nessa ocasião abriu-se meio batente da porta, dando passagem apenas a uma pessoa; o temível presidente do Clube dos Suicidas. Sentiu-se ao mesmo tempo um burburinho de vozes. O presidente orçava pelos cinquenta anos, ou mais. Largo de ombros, desajeitado no porte, com suíças hirsutas, tinha uma calva no alto da cabeça e olhos cinzentos semicerrados, de onde saía, uma vez por outra, um lampejo. A boca, onde segurava um enorme charuto, continuamente a remexia para todos os lados. Olhou para os visitantes com uma atenção fria e sagaz. O fato era de fazenda leve; a gola larga da camisa, muito aberta, deixava ver lhe a garganta. Debaixo do braço apertava um livro de apontamentos.

- Boa noite - disse ele, depois de fechar a porta. - Disseram-me que os senhores desejavam falar comigo.

- Gostaríamos de pertencer ao Clube dos Suicidas - explicou o coronel.

O presidente volteou o charuto na boca.

- Que coisa é essa? - indagou abruptamente.

- Queira perdoar - replicou o coronel. - Mas creio que é a pessoa mais autorizada para nos dar esclarecimentos sobre esse assunto.

- Eu? Clube dos Suicidas? Essa agora! Isso ê gracejo próprio do dia das petas, permitido a cavalheiros a quem o vinho tivesse subido à cabeça. Acabemos, pois, com isto.

- Chame à sua casa o que quiser disse o coronel. - Sinto que há pessoas nas outras salas, e desejo juntar me a elas.

- Senhor - atalhou o outro bruscamente -, parece-me que está enganado. Isto é uma casa particular; peço-lhes que saiam sem demora.

O príncipe conservara-se muito bem sentado, durante todo este diálogo; quando o coronel, porém, se voltou para ele, como para dizer que tomasse uma deliberação, Florizel tirou o charuto muito devagar e declarou:

- Vim aqui a convite de um seu amigo. Ele deve tê-lo informado das nossas intenções. Deixe-me recordar-lhe que, nestas condições, qualquer pessoa se julgaria ligada por compromisso e não toleraria brincadeiras. Sou criatura de hábitos pacíficos, mas, caro senhor, devo dizer lhe que espero me dê explicações, ou então arrepender-se-á de ter consentido que entrássemos até aqui.

Ao ouvir isto o presidente soltou uma gargalhada estrondosa.

- Isto são maneiras de falar - disse ele. - Vejo que é um homem às direitas. Sensibilizou-me, e poderá fazer de mim o que quiser. Permita - continuou, dirigindo-se a Geraldine - que lhe peça um favor: o de conservar-se afastado durante alguns minutos. Tratarei primeiro com o seu amigo, e as formalidades do clube exigem que seja em audiência particular.

A seguir abriu a porta de um cubículo, para onde fez entrar o coronel. Logo que o presidente e o príncipe ficaram sós, disse aquele:

- Acredito em si, mas, quanto ao seu companheiro... responde-me por ele?

- Não tanto como por mim - respondeu Florizel - embora ele possa ter razões mais convincentes para vir até cá. Há dias foi demitido por fazer trapaça ao jogo.

- Razões de primeira ordem, concordo. Temos outros na mesma situação, e isso tranquiliza-me. Também esteve na tropa?

- Estive, sim, mas deixei isso há muito tempo. Sou demasiadamente preguiçoso para fazer serviços desses.

- E qual o motivo do seu desgosto pela vida? - indagou o presidente.

- O mesmo, pouco mais ou menos. Tudo questão de indolência...

O presidente sobressaltou-se.

- Que diabo! - disse ele - deve ter qualquer motivo melhor do que esse...

- Acabou-se-me o dinheiro - acrescentou Florizel.

- É uma coisa que nos vexa, não há dúvida. Desperta-me o sentido da preguiça até mais não poder ser.

Opresidente moveu o charuto na boca durante uns segundos, olhando fixamente para aquele estranho neófito. Mas o príncipe suportou esse olhar com o maior descaramento.

- Se eu não tivesse grande experiência do mundo - declarou o presidente - mandá-lo-ia embora já, mas conheço a vida e sei que, muitas vezes, as causas mais frívolas são as que forçam mais ao suicídio. E então, quando encontro uma pessoa sincera, como o senhor, prefiro transgredir o regulamento a ter que lhe negar o direito de admissão.

Tanto o príncipe como o coronel foram submetidos a um longo interrogatório; aquele primeiro e sozinho, este depois e na presença de Florizel, de maneira a que o presidente pudesse observar a fisionomia de um enquanto fazia perguntas ao outro. O resultado foi satisfatório; e o presidente do clube, depois de ter anotado num livro os pormenores relativos a cada caso, pronunciou uma fórmula de juramento, que devia ser assinada. Não se pode conceber nada de mais passivo do que a obediência requerida, nem nada de mais rigoroso do que os termos pelos quais cada qual se declarava ligado ao clube. Todo aquele que faltasse à sua palavra considerar-se-ia completamente desonrado. Florizel subscreveu o documento, não sem um certo arrepio; o coronel seguiu-lhe o exemplo com um ar visivelmente abatido. Então o presidente recebeu o respectivo dinheiro da entrada; e, sem mais nada acrescentar, introduziu os dois amigos na sala de estar do Clube dos Suicidas.

Tinha esta sala o mesmo pé- direito do gabinete anterior; era, porém, maior, e forrada de alto a baixo com um lambrim que imitava madeira de carvalho. Bicos de gás e um lume claro e alegre no fogão iluminavam as pessoas presentes. Com o príncipe e o seu companheiro prefizeram estas o número de dezoito. A maior parte delas bebia champagne ou fumava. Reinava uma jovialidade febril, cortada de súbitas e horríveis pausas.

- Estão todos? - perguntou Florizel.

- A maioria - respondeu o presidente. - E a propósito - acrescentou -, se tem dinheiro consigo, é costume oferecer champagne. Dá boa disposição, e para mim constitui um lucrozito...

- Hammersmith - chamou o príncipe. - Deixo o champagne ao teu cuidado. - Disse isto, e começou a dar um giro pela sala, pelo meio dos circunstantes. Acostumado a fazer de anfitrião nas mais distintas reuniões, Florizel sabia cativar e dominar todos aqueles de quem se aproximava. Nas suas maneiras havia qualquer coisa ao mesmo tempo de vitorioso e de autoritário; e a extraordinária serenidade que exibia dava-lhe ainda maior realce no meio daquela sociedade mais ou menos de destrambelhados. Indo de um lado para outro, não deixava de conservar os olhos e os ouvidos bem abertos, e depressa começou a fazer uma ideia geral do meio onde viera cair. Como noutro qualquer lugar, havia um tipo predominante: o do jovem cuja aparência denota inteligência e sensibilidade, mas que dispõe de pouca força ou das qualidades necessárias ao bom êxito. Muitos dos sócios tinham menos de trinta anos e alguns ainda não haviam chegado à casa dos vinte. Estavam ali, encostados às mesas, levantando ora um pé ora outro, fumando às vezes muito depressa, ou deixando os charutos apagarem-se; alguns conversavam bem, outros mostravam uma tensão nervosa, mas jamais com agudeza de espírito. Sempre que, se desrolhava nova garrafa de champagne, havia grandes manifestações de entusiasmo. Só dois se conservavam sentados: um, numa poltrona, no vão da janela, com a cabeça pendente e as mãos enterradas nos bolsos das calças, pálido, húmido de suor, muito calado, verdadeira ruína de corpo e alma; o outro, no divã junto do fogão, e muito diferente dos restantes, pelo que dava logo nas vistas. Devia andar pelos quarenta anos, embora parecesse mais velho. Florizel

pensou que nunca vira homem mais feio nem mais devastado pela doença física e moral. Só tinha pele e osso, era hemiplégico e usava óculos de um grau descomunal, de tal maneira que os olhos apareciam através das lentes excessivamente aumentados e deformados. Excepto o príncipe e o presidente, era ele a única pessoa que ali conservava a compostura natural.

Não havia muita cerimónia entre os membros do clube. Alguns vangloriavam-se de acções pouco dignas, cujas consequências os obrigavam a procurar refúgio na morte, e os restantes ouviam aquilo sem um sinal de reprovação. Reinava uma tácita aceitação de todos os actos imorais: quem passasse as portas daquela assembleia dir-se-ia gozar logo das imunidades concedidas pelo túmulo. Embriagavam-se com as histórias de outros suicidas, que os haviam precedido.

Comparavam e desenvolviam os seus vários pontos de vista acerca da morte, que para uns não era mais do que negrume e suspensão de tudo, e para outros uma esperança de poderem atingir os astros e reencontrar os que já haviam desaparecido.

- À memória sempre viva do barão Trenck, o rei dos suicidas! - gritou uma voz. - Partiu de uma célula pequena para outra mais pequena ainda, e sempre assim por diante até recuperar a liberdade.

- Pela minha parte - disse um dos sócios - não quero mais que uma venda nos olhos e algodão nos ouvidos. O que receio é que não haja no mundo algodão suficientemente espesso.

Outro membro da sociedade dedicava-se à interpretação dos mistérios da vida futura. E ainda havia outro que assegurava dever a sua entrada no clube simplesmente à crença que depositava nas teorias de Darwin.

- Não posso suportar - dizia esse curioso suicida - a ideia de que descendo do macaco.

Não tardou muito que o príncipe não ficasse descoroçoado com as conversas daqueles cavalheiros.

Não me parece que seja - pensava ele - matéria para tanta discussão. Se alguém resolve dar cabo da vida, que o faça, mas, por amor de Deus, como um perfeito cavalheiro. Esta agitação, estas palavras, são coisas inteiramente deslocadas.

Entretanto o coronel Geraldine sentia-se tomado das mais negras apreensões; o clube e as suas formalidades continuavam a ser ainda um mistério para ele; olhava em torno da sala, a ver se descobria alguém que o pudesse tranquilizar. Neste relancear de olhos, descobriu o paralítico dos óculos; e, vendo-o tão sossegado, pediu ao presidente (que andava de cá para lá muito azafamado) que o apresentasse àquele senhor sentado no divã.

O presidente alegou a desnecessidade dessas praxes entre os sócios, mas sempre apresentou o major Hammersmith ao Sr Malthus.

Malthus olhou para o recém-vindo com muita curiosidade, e convidou-o a sentar se à sua direita.

- É novo na casa - disse ele - e naturalmente deseja ser esclarecido. Não podia escolher melhor informador. Faz agora precisamente dois anos que eu visitei este clube pela primeira vez.

O coronel respirou com alívio. Se esse Malthus era membro da sociedade desde há tanto tempo, não haveria pois grande perigo para o príncipe numa simples visita de uma noite. Em todo o caso, Geraldine ficou tão admirado que suspeitou que o outro o queria mistificar.

- O quê? - exclamou ele. - Dois anos! O senhor decerto está a mangar comigo.

- De maneira nenhuma - replicou suavemente o Sr Malthus. - O meu caso é especial. Não sou, propriamente falando, o que se pode chamar um suicida, mas, por assim dizer, um membro honorário do clube. Raras vezes venho aqui, o máximo duas vezes por mês. A minha doença, e a bondade do presidente, têm-me proporcionado estas imunidades, pelas quais pago uma quota adiantada. Ainda assim, tenho tido uma sorte espantosa.

- Desculpe - disse o coronel - mas peço-lhe que seja mais explícito. Lembre-se de que estou ainda pouco familiarizado com o regulamento...

- Um sócio, como o senhor, que vem aqui em procura da morte, volta todas as noites para casa, até que a fortuna o favoreça. Pode até, se estiver sem vintém, pedir cama e mesa ao nosso presidente: coisa muito asseada, creio eu, embora sem nenhum luxo, o que não podia deixar de ser, considerando a exiguidade da jóia que se paga. E o presidente, como vê, é a delicadeza em pessoa.

- Certamente - anuiu Geraldine. - Ele foi muito simpático para comigo.

- Ah! - fez o Sr Malthus -, ainda nem sequer conhece o homem, o camarada! Que cinismo o dele! O que ele sabe de histórias! De nós todos é, incontestavelmente, o mais corrupto. O maior maganão da cristandade.

- E ele também - inquiriu o coronel - é... sócio permanente, como o senhor, sem ofensa para nenhum?...

- Com certeza, mas em condições diferentes das minhas. Tenho sido poupado, é verdade, mas, algum dia, tem de ser. . Ele, ao contrário, nunca joga. Baralha e parte para os outros, e trata de tudo o que é necessário. Aquele homem, meu caro Sr Hammersmith, é, no fundo, uma alma ingénua. Durante três anos, exerceu em Londres o seu ofício, a que poderei chamar, de certa maneira, artístico. E nunca a mais leve sombra de suspeita o atingiu. Recorda-se do célebre caso, passado há seis meses, de um cavalheiro que foi acidentalmente envenenado numa farmácia? E tratava-se de uma das suas habilidades menos importantes, menos engenhosas. Mas com que simplicidade o fez! Com que limpeza!

- Sinto-me aturdido, Sr Malthus. Esse desgraçado cavalheiro era uma das... - Ia para dizer vítimas, mas, reconsiderando a tempo, substituiu pela frase: - era um dos sócios do clube?

Ao mesmo tempo ocorreu-lhe que o seu interlocutor não falava no tom de quem, afinal, se embriagasse com a ideia da morte: por isso acrescentou apressadamente:

- Sinto-me ainda um tanto desnorteado. Falou de baralhar e de dar cartas. Portanto jogam, com que fim? Por outro lado, se não está, como parece, muito disposto a morrer, por que motivo, no fim de contas, vem aqui?

- Bem se vê que está desnorteado - replicou Malthus, animando-se pouco a pouco. - Meu caro senhor, este clube é o templo da intoxicação. Se o meu fraco organismo pudesse tolerar mais frequentemente a excitação que isto causa, decerto viria a esta assembleia muito mais vezes. O sentido do dever, adquirido numa vida de valetudinário, em constantes dietas, preserva-me dos excessos, dos quais este é um, que eu classificarei, se me permite, de última orgia. Todavia a todos experimentei - continuou Malthus, pondo a mão no braço de Geraldine - todos sem excepção, e declaro-lhe, sob minha palavra de honra, que não achei nenhum que não fosse estúpido e falsamente encarecido. Desperdiçamos o tempo com o amor. Nego que o amor seja uma grande paixão; o medo é que sim, é com ele que nos devemos entreter se desejamos experimentar os mais intensos gozos da vida. Inveje-me, senhor, inveje-me: sou um grande cobarde!

Geraldine sentiu um movimento involuntário de repulsa perante aquele ente digno de dó; mas fez um es forço para se dominar, e continuou o seu questionário.

- Como é que pode a excitação ser tão artificiosamente prolongada? De que deriva a certeza ou a incerteza do suicídio, para cada qual?

- Devo informá-lo de que a vítima de cada noite é seleccionada - retorquiu o paralítico -, e não só a vítima, como outro membro do clube que serve de algoz, ou de sacerdote da morte, em cada ocasião.

- Meu Deus! - exclamou o coronel. - Então matam-se uns aos outros?

- O incómodo do suicídio é removido neste caso - declarou Malthus, inclinando a cabeça.

- Deus misericordioso! E é o senhor capaz... serei eu... será o meu amigo... será qualquer de nós capaz de investir, como um assassino, contra outro homem? É isto possível entre criaturas humanas? Oh, infâmia das infâmias!

O coronel ia levantar-se, horrorizado, quando os seus olhos encontraram os do príncipe, que o fixava com espanto e reprovação. Num instante, Geraldine recuperou a linha.

- No fim de contas - acrescentou ele - porque não? Uma vez que o senhor me garante que o jogo é interessante... vogue la galère... Obedecerei ao clube!

Malthus divertira-se sinceramente com o pasmo e a indignação do coronel. Fazia gala da iniquidade, e comprazia-se em ver os outros arrepiarem-se, enquanto ele se considerava, no seu máximo cepticismo, superior a semelhantes emoções.

- O senhor agora - disse ele - depois do seu primeiro momento de surpresa, está apto a apreciar as delícias do nosso agrupamento. Verá como sabemos pôr em volta de um simples jogo de cartas a excitação pró pria de um circo romano. Os pagãos conseguiram alguma coisa neste campo; admiro sem reservas o requinte que puseram na ferocidade, mas estava reservado a uma nação cristã o atingir a quinta-essência, o absoluto no desespero. Tem ouvido contar decerto como um jogador acha insípido qualquer jogo que não seja aquele pelo qual tomou o gosto. A nossa diversão é de uma extrema simplicidade. Temos um baralho com pleto... mas parece que será preferível ver a coisa ao vivo. Ajuda-me, se faz favor, com o seu braço? Infelizmente estou meio paralítico.

Realmente, quando Malthus ia principiar a sua descrição, abriram-se duas portas que davam para outra sala e todos, com certa pressa, trataram de se passar para lá. Era um compartimento parecido com o outro, porém, diferentemente mobilado. Ao centro estava uma mesa comprida, coberta com um pano verde; o presidente baralhava as cartas, com especial solenidade. Apoiado à bengala e ao braço do coronel, conseguiu Malthus chegar até à mesa, em volta da qual já todos estavam sentados. O príncipe, que esperara por estes dois, entrou com eles na sala de jogo, pelo que ficaram abancados perto uns dos outros, ao fundo, do lado esquerdo.

- São cinquenta e duas cartas - murmurou Malthus ao ouvido do coronel. - Repare no ás de espadas, que é o sinal fatídico, e no ás de paus, que designa o juiz da noite. Felizes, felizes rapazes! Vocês têm boa vista e podem seguir o jogo. Ai de mim, que não posso distinguir, em cima da mesa, uma carta da outra!

E, enquanto dizia isto, colocou novos óculos em cima dos primeiros.

       - Ao menos quero ver a cara de cada um – explicou ele aos seus vizinhos.

O coronel informou rapidamente o príncipe acerca de tudo quanto lhe dissera aquele membro honorário, e a respeito da terrível alternativa que os aguardava. Florizel sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha, ao mesmo tempo que Lhe vinha um aperto ao coração.

Respirou com dificuldade e olhou à sua volta, como um homem perdido num labirinto.

      - Outra jogada feliz - cochichou o coronel - e estaremos salvos.

Mas aquela sugestão acabou de anular a coragem do príncipe.

- Cala-te - ordenou ele -, deixa-me ver se jogas esta parada como um perfeito cavalheiro, por mais grave que isto seja.

E mirou em volta de si, aparentando a maior serenidade, embora as palpitações se sucedessem apressadas e sentisse uma angústia insuportável a esmagá-lo.

Os sócios permaneciam silenciosos e atentos; todos estavam pálidos, mas nenhum tanto como Malthus, cujos olhos pareciam sair das órbitas e cuja cabeça baloiçava maquinalmente. As mãos, uma atrás da outra, levava-as à boca, apertando os lábios trémulos e cor de cinza. Era evidente que o sócio-honorário gozava a sua alta categoria com a maior sofreguidão.

- Meus senhores, atenção! - disse o presidente.

E começou então a distribuir as cartas, lançando-as de costas sobre a mesa, pausadamente, e esperando que cada um mostrasse a sua. Quase todos hesitavam, e, às vezes, viam-se os dedos do jogador, indecisos, antes de voltar a carta que lhe coubera em sorte. Quando se aproximou a vez do príncipe, sentiu ele como que uma sufocação, que mais e mais aumentava. Mas possuía um temperamento de jogador e reconheceu, com espanto, que as suas sensações não eram destituídas de prazer Saíra-lhe o nove de paus, e a Geraldine o terno de espadas. A Malthus coubera a rainha de copas, e o respeitável e categorizado membro não pôde deixar de soltar um suspiro de alívio. O rapaz dospastéis de nata, logo a seguir, voltou o ás de paus, e ficou transido de horror, com a carta nos dedos: ele não viera ali para matar, mas para ser morto. E o príncipe, num generoso impulso de simpatia, quase se esqueceu do perigo que ainda impendia sobre ele e sobre o companheiro.

Novamente foram as cartas distribuídas, e o ás da morte continuava a recusar-se. Os jogadores respiravam como que num estertor. O príncipe recebeu outra vez paus, e Geraldine uma de ouros. Quando Malthus verificou a sua carta, um ruído estranho, como de uma coisa que se quebra, saiu-lhe da boca: levantou-se da cadeira e tornou a sentar se, como se não sofresse de paralisia. Era o ás de espadas! O sócio honorário saboreara mais uma vez o horror dos horrores.

A conversação recomeçou quase ao mesmo tempo. Os jogadores deixaram as suas atitudes rígidas e abandonaram a mesa, regressando em grupos de dois e de três para a sala de estar. O presidente estendeu os braços e bocejou, como quem acaba o seu dia de trabalho. Malthus, porém, ficara à mesa, com a cabeça nas mãos, imóvel, como uma coisa denubada.

O príncipe e Geraldine trataram de se pôr a salvo. Ao ar frio da noite, o pavor do que haviam presenciado parecia até que redobrava.

- Ai de nós! - exclamou o primeiro. - Estamos ligados por juramento a uma coisa daquelas! Permitir se que este negócio da morte continue impunemente! Se eu ousasse faltar à minha promessa!

- É impossível para Vossa Alteza - observou o coronel - porque a sua honra é a honra da Boémia; mas estou disposto a faltar ao meu juramento.

- Geraldine - disse o príncipe -, se a tua honra so frer com alguma das aventuras a que te arrasto, não só não to perdoarei, mas (e isto creio que afectará mais a tua sensibilidade) nunca o perdoarei a mim mesmo.

- Recebo as ordens de Vossa Alteza - replicou o coronel. - Fugimos deste maldito lugar?

- Sim. Chama um carro, e vamos ver se esquecemos no sono a recordação desta noite malfadada.

Porém o mais curioso é que, antes de se ir embora, tratou de ler o nome do largo onde se encontravam.

Na manhã seguinte, mal o príncipe acordara, Geraldine trouxe-lhe um jornal, chamando-lhe a atenção para a seguinte notícia:

- TRISTE OCORRÊNCIA. Esta madrugada, cerca das

duas horas, quando, de regresso de casa de uns amigos; o Sr Bartholomew Malthus, Chepstow Place n.o 16 se dirigia para a sua residência, caiu do parapeito mais alto de Trafalgar Square, fracturando o crânio e partindo uma perna e um braço. A morte foi instantânea. O desastre verificou-se quando o Sr Malthus, acompanhado por um amigo, esperava um carro que o devia conduzir, e a causa deve atribuir se ao facto de a vítima sofrer de paralisia. O infeliz era muito conhecido nos meios elegantes, e a sua morte deve ser largamente sentida.

- Se há almas que vão direitinhas ao inferno, esta deve ser uma delas - sentenciou solenemente o coronel.

O príncipe cobriu o rosto com as mãos e ficou pensativo.

- Quase me alegra saber - continuou o outro - que este Malthus morreu. Mas sinto o coração confranger-se ao pensar no rapaz dos pastéis de nata.

- Geraldine - disse o príncipe, destapando a cara - esse rapaz ainda ontem era um inocente, como tu e eu, e agora pesa-lhe na consciência um crime de assassínio. Quando me lembro do presidente do clube, sinto náuseas. Não sei como será, mas tomarei aquele patife à minha conta, tão certo como haver um Deus no céu. Que lição tremenda para nós, aquele jogo de Cartas!

- Um só, felizmente. Não se repetirá - acrescentou o coronel.

O príncipe não respondeu, e o outro começou a ficar alarmado.

- Não pense Vossa Alteza em voltar lá. Já sofreu bastante e já viu demasiados horrores. O dever da sua alta posição impede-o de se expor outra vez.

- Há muita verdade no que dizes - declarou o príncipe Florizel -, mas não estou ainda inteiramente satisfeito. No estofo do maior potentado esconde-se sempre uma criatura humana. Nunca senti tanto a minha fra queza como agora, Geraldine; mas a coisa ê mais forte do que eu. Podemos nós desinteressar nos da sorte que espera esse rapaz que ceou connosco há apenas umas horas? Deixaremos o presidente prosseguir impunemente os seus desígnios criminosos? Então fomo-nos meter numa aventura destas, e deixamo-la a meio? Não, Geraldine: pedes ao teu príncipe mais do que ele é capaz de prometer. Esta noite retomaremos os nossos lugares no Clube dos Suicidas.

O coronel caiu de joelhos em frente do seu amo.

- Disponha Vossa Alteza da minha vida. Pertence-lhe. Mas não me diga que vai arriscar a sua augusta pessoa.

- Coronel - ripostou o príncipe, com certo ar majestoso -, a tua vida é apenas tua. Eu só exijo obediência, e se ela não for prestada de boa vontade, dispensá-la-ei de vez. Acrescentarei só mais umas palavras: neste assunto tens-te mostrado impertinente.

O estribeiro-mor pôs-se imediatamente de pé.

- Alteza, peço-lhe me dispense do serviço esta tarde. Não me atrevo a ingressar segunda vez naquela casa fatal sem tomar algumas disposições relativas à minha última vontade. E Vossa Alteza não encontrará depois nenhuma oposição, prometo, da parte deste devotado e reconhecido servidor.

- Meu caro Geraldine, lastimo sempre quando me chamas a atenção para a minha posição social. Dispõe da tarde como bem te aprouver, mas antes das onze deves estar aqui, e com o mesmo disfarce de ontem.

O clube, desta vez, não estava tão concorrido; quando o príncipe e o coronel chegaram, não havia mais de meia dúzia de pessoas na sala de estar. Florizel chamou o presidente de parte e felicitou-o calorosamente pela eliminação de Malthus.

- Gosto - disse ele - de encontrar aptidões, e o senhor tem-nas de sobra. O seu papel é de uma natureza muito delicada, mas regozijo-me por ver que o desempenha com êxito e sem nenhum escândalo.

O presidente mostrou-se sensibilizado pelos cumprimentos de uma pessoa de tão distintas maneiras como era o príncipe. Agradeceu quase com humildade.

- Pobre Malthy! - ajuntou -, o que será o clube sem ele? A maior parte dos que restam são fedelhos e poetas, com quem não posso entender-me. Não que Malthy não tivesse o seu lado de poesia, mas era de uma espécie que eu podia compreender.

- Concebo perfeitamente a sua inclinação para o senhor Malthus - atalhou o principe. - A mim surpreendeu-me, como uma criatura dotada do mais original dos caracteres.

O rapaz dos pastéis de nata estava na sala, mas parecia profundamente sucumbido, e não dizia palavra.

Os seus companheiros tentavam em vão interessá-lo na conversa.

- Antes queria - bradou ele por fim - nunca ter vindo a esta infamíssima casa. Ide-vos embora, vós que ainda não tendes as mãos manchadas. Se tivésseis ouvido o velho gritar quando caiu, e o ruído dos ossos na calçada! Desejai, se tendes um pouco de comiseração, desejai que me caiba hoje mesmo o ás de espadas!

Com o decorrer do tempo chegaram ainda alguns sócios, mas a assembleia, nessa noite, não reuniu mais de uma dúzia deles, quando tomaram o lugar à mesa. O príncipe, como da outra vez, sentiu uma espécie de alegria no meio dos seus temores, mas o que o admirou foi ver Geraldine muito mais senhor de si do que na noite anterior.

- É extraordinário - pensou - como um testamento, feito ou destruído, pode ter tanta influência sobre o espírito de um homem.

- Meus senhores, atenção! - disse o presidente; e principiou a baralhar.

Três vezes deram as cartas a volta à mesa, e nenhuma das figuras fatídicas saiu da sua mão. À quarta jogada, o nervosismo dos circunstantes era já esmagador. Restavam precisamente as cartas necessárias para aquela última distribuição. O príncipe, que era o se gundo a contar da esquerda do presidente, recebeu, voltada, como era da praxe, a penúltima carta do baralho. O terceiro jogador mostrara um ás negro, era o de paus. O seguinte teve ouros, o outro copas, e assim por diante; porém o ás de espadas continuava a negar-se. Por fim Geraldine, que estava à esquerda do príncipe, voltou a sua carta: era um ás, mas o de copas.

Quando o príncipe Florizel viu que o seu destino estava jogado sobre a mesa, o coração pareceu estrangula-se-lhe. Era corajoso, mas o suor jorrava-lhe da fronte. Havia cinquenta por cento de probabilidade de que a sentença de morte fosse proferida contra ele

Pegou na carta e virou-a: era o ás de espadas. Sentiu um sussurro estranho em torno da cabeça, e a mesa, à sua frente, dir se-ia que dançava. Ouviu o jogador da sua direita rebentar numa gargalhada espasmódica que lhe soou aos ouvidos como jubilosa e triste ao mesmo tempo. Viu a assembleia dispersar se, mas tinha o cérebro ocupado com outros pensamentos. Reconheceu como procedera leviana e criminosamente!

Cheio de saúde, no vigor da mocidade, herdeiro de um trono, jogara de uma forma estúpida o seu futuro e o futuro do seu generoso país. - Meu Deus, perdoai-me! - exclamou. Com isto, a confusão do seu espírito diminuiu, e, num instante, Florizel recuperou o sangue-frio.

Geraldine, com grande surpresa deste, tinha desaparecido. Não havia mais ninguém na sala de jogo senão o carrasco que a sorte Lhe destinara e que estava a conversar com o presidente. O rapaz dos pastéis veio sorrateiramente até junto do príncipe e murmurou-lhe ao ouvido:

- Daria um milhão, se o tivesse, para estar no seu lugar.

Sua Alteza não se lembrou de dizer, antes de o ou tro se ir embora, que por muito menos dinheiro cederia a sua vez.

A conferência entre o carrasco e o presidente, en voz muito baixa, terminara. O do ás de paus deixou sala, dirigindo um olhar entendido ao presidente e este, aproximando-se de Florizel, estendeu-lhe a mão e disse:

- Tive muito prazer em conhecê-lo, e principalmen te numa ocasião de lhe poder prestar um pequeno serviço. No fim de contas, não pode queixar se de demora. Logo na segunda noite, já é estar com sorte!

O príncipe tentou debalde articular quaisquer palavras de resposta, mas tinha a boca seca e a língua como que paralisada.

- Sente-se indisposto? - perguntou o presidente, com grandes mostras de solicitude. - Isso acontece a todos. Tome uma bebida qualquer.

Florizel fez que sim com a cabeça, e o outro encheu logo um copo e apresentou-lho.

- Pobre Malthy! - comentou o presidente, enquanto o príncipe despejava o copo. - Ingeriu perto de meio litro, o bom do velhote, e parecia fazer um grande sacrifício.

- Sou mais dócil no tratamento - ripostou Florizel, já com as forças recuperadas. - Estou outra vez rijo, como vê. E agora, deixe-me perguntar-lhe o que é que devo fazer.

- Deverá seguir pela Strand na direcção da City, sobre o passeio da esquerda, até encontrar o cavalheiro que saiu agora daqui. Ele lhe dará as restantes instruções, e o senhor fará o obséquio de lhe obedecer. Nesta noite esse homem está investido da autoridade do Clube. E agora - concluiu o presidente - desejo-lhe um óptimo passeio.

Florizel agradeceu aquela saudação um pouco atordoadamente, e despediu-se. Atravessou a sala de estar, onde um grupo de sócios consumia ainda champagne, que ele mesmo encomendara e pagara. Intima mente amaldiçoou aquelas criaturas. No escritório, procurou o sobretudo e o chapéu, e tirou o guarda-chuva do bengaleiro. A familiaridade destes actos, e a sensação de que os fazia pela derradeira vez, provocaram-lhe um riso involuntário, que lhe soou falso aos ouvidos. Custava-lhe a deixar o gabinete, e voltou-se um instante para o lado da janela. O espectáculo dos lampeões no meio da escuridão da noite chamou-o à realidade.

- Vamos, vamos - disse consigo -, preciso portar-me como um homem. A caminho!

Na esquina de Box Court, três homens saltaram sem mais cerimónias sobre o príncipe e meteram-no dentro de uma carruagem, isto tudo com incrível rapidez. Lá dentro já havia um ocupante.

- Vossa Alteza há-de perdoar o meu zelo – disse uma voz bastante conhecida.

O príncipe, num impulso de gratidão, abraçou o coronel Geraldine.

- Como posso agradecer te? - exclamou. - E como conseguiste este desfecho? - Embora Florizel caminhasse para a morte sem vacilar e por seus próprios pés, não lhe fora nada desagradável ser dela desviado pela violência de um amigo, que o fazia reentrar na vida e na esperança.

- Pode efectivamente agradecer-me, e bastará que o faça com a promessa de evitar perigos futuros. Quanto à segunda pergunta - continuou o coronel -, tudo se conseguiu pelos meios mais simples. Combinei esta tarde com um detective famoso. Os seus próprios criados, Alteza, encarregaram-se do caso. Desde o cair da noite que o clube fora cercado, e a sua carruagem já estava à espera há mais de uma hora.

- E o miserável que devia matar-me? Que é feito dele? - inquiriu o príncipe.

- Deitámos-lhe a luva, quando ele saiu do clube. E agora está na nossa casa, onde os cúmplices Lhe hão-de ir fazer companhia.

- Geraldine, faltaste às minhas ordens, mas procedeste bem. Não só te devo a vida, mas também uma lição; e não me sentirei à vontade se me não mostrar reconhecido ao professor. Escolhe a maneira como o devo fazer.

Houve uma pausa na conversa, durante a qual a carruagem continuou rapidamente através das ruas da cidade. Os dois iam mergulhados nas suas reflexões. Foi Geraldine quem quebrou o silêncio.

- Alteza - disse ele -, há neste momento um certo número de prisioneiros. Entre eles existe um criminoso a quem deve ser feita justiça. O nosso juramento proíbe-nos de recorrer ao tribunal, e a discrição impe di-lo-ia igualmente, mesmo que o juramento não fosse

acatado por nós. Posso saber quais são as suas intenções?

- Já decidi - respondeu Florizel. - O presidente deverá ser morto em duelo. Resta só escolher o adversário que o há-de enfrentar.

- Permita agora que indique qual a minha recompensa. Poderei aconselhar o nome de meu irmão, para aquele fim? É uma missão honrosa, mas atrevo-me a assegurar que o rapaz a desempenhará dignamente.

- Pedes-me uma coisa desagradável, mas, enfim, nada te posso recusar.

O coronel beijou as mãos do príncipe, em sinal de reconhecimento. E, neste instante, a carruagem atravessou as abóbadas da esplêndida residência de Sua Alteza.

Uma hora depois, Florizel, com o seu uniforme, e coberto de condecorações de todas as ordens da Boémia, recebia os membros do Clube dos Suicidas.

- Homens loucos e malvados! - disse ele. - A quantos de vós a má sorte conduziu a esta extremidade, estou eu disposto a proporcionar empregos e remunerações; aqueles que se sentem culpados de maiores crimes, devem recorrer a uma autoridade mais alta e poderosa que a minha: amanhã contar-me-eis as vossas vidas, e ao que mais francamente me falar mais facilmente poderei remediar lhe o infortúnio. Quanto a si - acrescentou, voltando-se para o presidente - não faria mais que ofendê-lo, a uma pessoa da sua categoria, propondo-lhe qualquer ajuda; tenho para si coisa melhor. Aqui - declarou, pondo a mão no ombro do irmão de Geraldine - está um oficial da minha casa que deseja viajar pelo Continente, e eu peço-lhe o favor de o acompanhar nessa excursão. Atira bem à pistola? - perguntou, mudando rapidamente de tom. - É que vai ter necessidade de mais essa prenda. Quando dois homens vão viajar juntos, devem estar preparados para tudo. Deixe-me acrescentar que, se por acaso o senhor deixar o jovem Geraldine atrás de si, imediatamente outro oficial irá ocupar-lhe o lugar; e todos sabem, senhor presidente, como eu tenho bom golpe de vista, e o braço firme.

Com estas palavras, severamente pronunciadas, o príncipe concluiu o seu discurso. Na manhã seguinte, os membros do clube foram convenientemente tratados pela augusta munificência de Florizel de Boémia, e o presidente seguiu em viagem, sob a fiscalização do jovem Geraldine, que se fazia acompanhar de dois la caios bem adestrados, que andavam ao serviço do príncipe. Além disso, a casa de Box Couzt foi discretamente vigiada por agentes da polícia, e toda a correspondência para o Clube dos Suicidas passou a ser examinada pelo próprio Florizel.

 

História do médico e do baú de Saratoga

Silas Q. Scuddamore era um rapaz americano, simples e inofensivo: não se precisaria de melhor recomendação para quem vinha da Nova Inglaterra -, essa parte do Novo Mundo onde tais qualidades não abundavam. Embora fosse excessivamente rico, tomava nota minuciosa de todas as despesas que fazia, e para esse fim trazia uma agenda na algibeira. Tinha resolvido estudar os atractivos de Paris, de um sétimo andar daquilo que se chama casa mobiliada, no Bairro Latino. A avareza era nele um hábito inveterado; e as vantagens que possuía sobre os semelhantes derivavam principalmente da sua timidez e inexperiência.

O quarto pegado ao seu estava ocupado por uma senhora de figura atraente e de porte elegante, a quem o nosso herói, à primeira vista, tomou por uma condessa. Com o decorrer do tempo veio a saber que ela dava pelo nome de Madame Zéphyrine, e que, fosse qual fosse a situação que ocupasse no mundo, com certeza não era a de uma titular. Madame Zéphyrine, provavelmente na ideia de seduzir o jovem americano, costumava fazer se notada, quando o encontrava nas escadas, ora com um cumprimento atencioso, ora com uma palavra de circunstância, ora com um perturbante relance do seu olhar sombrio, desaparecendo em seguida com um rumor de sedas, enquanto revelava, à vista deslumbrada do vizinho, os seus tornozelos admiráveis e os pezinhos mimosos. Porém, estas audácias, longe de animarem o nosso Scuddamore, mergulhavam-no antes nas profundezas da perturbação e do acanhamento. Por mais de uma vez fora ela pedir lhe um fósforo, ou desculpar-se de imaginários prejuízos provocados pela sua cadelinha; mas a boca do rapaz não se abria, intimidado como estava em presença daquele ente superior; o seu pouco francês não lhe vinha à memória, e ele limitava-se a olhar, pasmado e tartamudo. Aquela insuficiência de trato social não o impedia, contudo, de ouvir insinuações lisonjeiras quando se encontrava nalguma roda de amigos.

O outro quarto - pois havia três nesse andar – era habitado por um velho médico inglês, de reputação um tanto duvidosa. O Dr Noel - era este o seu nome - vira-se obrigado a abandonar Londres, onde a clientela era grande e tendia a aumentar; insinuava-se que fora a polícia quem lhe sugerira a mudança de país.

O caso é que ele, que ganhara algum dinheiro na sua mocidade, vivia agora só e modestamente no Bairro Latino, entregue aos seus estudos. Scuddamore travara relações com o médico, e os dois iam uma vez por outra jantar frugalmente a um restaurante do outro lado da rua.

Silas Q. Scuddamore possuía pequenos vícios de natureza desculpável, e não se coibia de os praticar em certas ocasiões assaz melindrosas. O principal de entre eles era a curiosidade. Nascera bisbilhoteiro, e a vida (especialmente naquilo em que ele não tinha experiência) interessava-o a tal ponto que chegava a ser uma verdadeira paixão. Fazia perguntas atrevidas, sem que pudesse resistir a isso, e os seus inquéritos eram assim perseverantes e indiscretos. Tinha por costume, quando vinha uma carta do correio, sopesá-la na palma da mão, virá-la e revirá-la por todos os lados, e estudar a letra com a maior atenção. Quando descobriu uma fenda no tabique que o separava do quarto de Madame Zéphyrine, em vez de a tapar, alargou-a ainda mais, e de ali espreitou o que se passava na intimidade da vizinha.

Um dia, nos fins de Março, a sua curiosidade foi satisfeita. Arranjando o buraco o melhor que pôde, Silas conseguiu observar outro recanto do aposento. Nessa noite, dispondo-se a não perder nenhuma das idas e vindas da Zéphyrine, ficou admirado ao notar que o orifício estava obscurecido de modo estranho, do outro lado da parede, e muito mais desconcertado quando o obstáculo foi de súbito removido, e quando um frouxo de riso chegou até aos seus ouvidos. Algum pedaço de estuque, tombado no chão, denunciara, evidentemente, a sua espionagem, e a vizinha dava-o a entender. Scuddamore sentiu-se realmente incomodado; praguejou contra Madame Zéphyrine e indignou-se consigo mesmo. Porém, teve ocasião de verificar, no dia seguinte, que ela não tomara nenhumas medidas para lhe evitar aquele passatempo favorito, e que até continuava a prodigalizar lhe sorrisos e a satisfazer lhe a doentia curiosidade.

Nessa ocasião, Madame Zéphyrine recebeu a visita (que foi bastante demorada) de um homem dos seus cinquenta anos ou mais, alto, com aspecto de pessoa fraca, e que Silas nunca vira até aí. O fato e a cor da ca misa, assim como as suíças hirsutas, denunciavam um inglês, e a insipidez dos seus olhos cinzentos produziu em Silas uma sensação de frio. Durante todo o longo colóquio, o homem torceu a retorceu a boca, para cima e para baixo e de um lado para outro, fazendo mover as suíças. Por mais de uma vez, o nosso jovem americano teve a impressão de que o outro, a julgar pela familiaridade dos seus gestos, se encontrava na sua própria residência; mas a única coisa concreta que pôde apurar, depois da mais escrupulosa observação, foi esta frase do inglês, feita em voz mais alta, e como que em resposta a qualquer relutância ou oposição:

- Estudei os gostos dele com a maior precisão, e devo dizer-te, uma vez mais, que tu és a única mulher por quem a gente se pode suicidar.

Ao ouvir isto, Madame Zéphyrine suspirou, e teve um gesto de resignação, como quem cede a uma autoridade que lhe é superior.

O observatório, nessa noite, foi finalmente obstruído com a colocação de um armário mesmo defronte do buraco; e enquanto Silas lamentava a sua pouca sorte (que atribuía a qualquer maligna sugestão do inglês) a porteira veio trazer lhe uma carta, onde ele logo notou caligrafia feminina. Estava escrita num francês ortograficamente não muito rigoroso, e não tinha assinatura. Com as mais animadoras palavras, convidava-o o anónimo a apresentar se em certo lugar do Bullier Ball, às onze horas da noite. A curiosidade e a timidez combateram longamente no espírito do rapaz; às vezes dominava-o a virtude, noutras todo ele era excitação e audácia; e o resultado foi que Silas Q. Scuddamore, irrepreensivelmente vestido, se apresentou, mesmo antes das dez, à porta da sala do Bullier Ball, pagando a sua entrada com a sensação de praticar uma perversidade diabólica, o que não deixava de ter o seu encanto.

Era peo Entrudo, e o baile estava concorridíssimo e o mais barulhento possível. As luzes e a multidão, ao primeiro embate, intimidaram o jovem aventureiro; porém, subindo-lhe aquilo à cabeça, como uma espécie de intoxicação, Silas excedeu a sua própria percentagem de entusiasmo. Apoderou-se dele súbita energia, e pavoneou-se nas salas com a insolência de um cavaleiro medieval. Quando assim alardeava a sua pe tulância, descobriu Madame Zéphyrine e o inglês, que cochichavam atrás de uma coluna. Imediatamente o assaltou o desejo de escutar o que diziam. Aproximou-se a pouco e pouco, por trás deles, e de maneira a não ser pressentido.

- Lá está o homem - dizia o inglês -, ali, de cabeleira loira... a falar com aquela senhora de verde.

Silas olhou na direcção que eles apontavam e viu um belo rapaz de pequena estatura.

- Está bem - respondeu a Zéphyrine. - Farei o possível. Mas, lembre- se bem, por mais especializada que se seja, pode-se falhar num negócio destes.

- Ora - retorquiu o outro. - Fala-me depois. Para alguma coisa te escolhi entre trinta. Vai, mas cautela com o príncipe. Não percebo por que estranho acaso veio aqui esta noite. Como se não houvesse dúzias de bailes em Paris melhores para ele do que esta orgia de estudantes e de empregadinhas. Vê como ele se senta: parece mais um rei no trono do que um príncipe em férias.

Silas estava outra vez com sorte. Olhou novamente e lobrigou um homem de bela aparência, de porte altivo e nobre, sentado à mesa com outro rapaz também de bom parecer, mais novo uns anos e que se lhe dirigia com extrema deferência. O nome de príncipe soou gratamente aos ouvidos republicanos de Silas Q. Scuddamore, e o aspecto da pessoa que usava esse título produziu-lhe certa fascinação. Deixou Madame Zéphyrine e o inglês entretidos um com o outro, e, furando pelo meio da multidão, acercou-se da mesa que o príncipe e o companheiro haviam honrado com a sua escolha.

- É o que te digo, Geraldine - declarava o primeiro -, isso é uma loucura. Tu (e gosto sempre de o lembrar) designaste o teu irmão para um serviço arriscado, e constituíste-te na obrigação de velar pelo seu procedimento. Ele quis ficar uns dias em Paris, o que é já uma imprudência, considerando o carácter do homem que tem de acompanhar; mas agora, que está a quarenta e oito horas da partida, e com dois ou três dias apenas para a experiência definitiva, pergunto-te: será este o lugar próprio para ele permanecer? Devia antes fazer repouso, dormir muito, andar pouco a pé, observar dieta rigorosa, sem nenhuma espécie de álcool. Julgará o outro patife que tudo isto é uma comédia? A coisa é muito séria, Geraldine.

- Conheço o rapaz muito bem, para que seja necessário intervir - replicou o coronel Geraldine - e para poder conservar-me tranquilo quanto ao resultado. É mais prudente do que se imagina, embora de ânimo alvoroçado. Se fosse uma mulher já não diria o mesmo; mas, a ele, confio, sem um instante sequer de apreensão, tanto o presidente como os dois lacaios.

- Agrada-me ouvir-te falar assim - redarguiu o príncipe - porém, não tenho o espírito sossegado. Os criados são espiões bem treinados, mas já aconteceu o canalha ter iludido a vigilância, e ficado horas e horas longe deles, a tramar decerto algum caso tenebroso. Outro qualquer poderia perdê-lo de vista, por simples acaso; mas se isso aconteceu com Rudolph e Jérome, é que a coisa foi propositada e que o homem dispõe de recursos excepcionais e de grandes dotes de persuasão.

- Parece-me que a questão é agora apenas comigo e com o meu irmão - replicou Geraldine, com um tom de voz que denunciava estar ligeiramente ofendido.

- Concedo que assim seja - disse Florizel -, mas, por essa razão, talvez devas aceitar mais depressa os meus conselhos. Entretanto deixemos isso. Olha, aquela rapariga de amarelo dança muito bem.

E a conversa derivou para os termos vulgares de um baile de Carnaval em Paris.

Silas lembrou-se do motivo que o trouxera ali, e de que se aproximava a hora marcada para a entrevista. Quanto mais reflectia nisso, menos lhe agradava a perspectiva; mas nesse momento, como a multidão redemoinhava na direcção da porta, Silas deixou-se levar também sem maior resistência. Assim se encontrou num canto por baixo da galeria, e os seus ouvidos foram logo impressionados pela voz bem conhecida de Madame Zéphyrine. Falava em francês com o rapaz de cabeleira loira, o mesmo que meia hora antes o inglês indicara a essa mulher.

- Tenho espírito aventureiro - dizia ela -, só escuto a voz do meu coração. Não tem que dizer muito ao porteiro, e ele logo o conduzirá sem mais palavras.

- E qual a vantagem dessa senha?

- Justos Céus! - exclamou a outra. - Então não vê que é o próprio hotel onde me hospedo?

E afastaram-se, ela muito cingida ao braço do seu companheiro.

Silas recordou-se novamente da carta recebida. "É de aqui a dez minutos,", pensou, "naturalmente passearei com uma mulher formosa como aquela, e talvez mais bem vestida, talvez uma verdadeira senhora, mesmo uma titular " Mas então lembrou-se da ortografia, e o seu entusiasmo decresceu. Podia ter sido escrita pela criada, admitiu ainda, em forma de consolação.

O relógio marcava pouquíssimos minutos para as onze, e, a esta aproximação, as palpitações aumentaram-lhe de uma maneira estranha e desagradável. Silas notou com alívio que, afinal, não se tinha comprometido a comparecer. A coragem e a cobardia voltaram a lutar, e ele foi mais uma vez até à porta, mas agora por deliberação própria, e até contra a onda de foliões que vinham em direcção contrária. Talvez aquela prolongada expectativa o houvesse fatigado; talvez sentisse um rebate de consciência, como é costume acontecer segundos antes da prática de qualquer acto, fazendo-nos reagir em diferente sentido; talvez, até, optasse por uma terceira resolução, e de aí o facto de ir esconder-se num sítio muito próximo do lugar marcado para o encontro.

Começou então a invadi-lo uma angústia enorme, durante a qual implorou a ajuda divina, consoante a educação religiosa que recebera. No fundo, não desejava nada aquela entrevista; nada o impedia de fugir, mas um medo estúpido fazia-o estar ali imensamente aflito, e isto foi tão forte que prevaleceu sobre todas as outras razões. E, ainda que não pudesse decidir se a aparecer, sentia-se como que incapaz de se ir definitivamente embora. Quando tornou a olhar para o relógio, reparou que já passavam dez minutos sobre a hora combinada para o encontro. A coragem do jovem Scuddamore recomeçou a surgir lentamente; espiou em volta do seu esconderijo e não viu ninguém no ponto escolhido para a entrevista; com certeza que a sua desconhecida epistológrafa se havia cansado de esperar e resolvera partir. Silas tornou-se, então, tão descarado quanto antes estivera tímido. Parecia-lhe agora que, se tivesse obedecido ao emprazamento, embora chegasse tarde, mais não teria feito do que aceitar cobardemente uma ordem. Sim, tinha a certeza de que se tratava de uma mistificação, e felicitava-se pela sua sagacidade, que o levara a suspeitar das manobras desses burlões. Como um rapaz, às vezes, pode ser iludido!

Animado com estas conclusões, saiu ousadamente do seu recanto, mas, ainda não dera meia dúzia de passos, e já sentia uma mão que lhe apertava o braço. Voltou-se, e deu de cara com uma senhora de formas opulentas e porte majestoso, mas sem nenhuma espécie de severidade no olhar.

- Vejo que é um dom-joão convicto do seu papel declarou ela - visto que se faz esperar dessa forma. Mas eu estava resolvida a não o perder. Quando uma mulher levou tão longe a sua temeridade, a ponto de ser a primeira a dirigir a palavra, é que lançou para trás de si todas as considerações do seu orgulho natural.

Silas sentiu-se confundido com a estatura e distinção da sua interlocutora e pela maneira inopinada como ela tinha surgido. A desconhecida, porém, tratou de o pôr à vontade. Mostrou-se branda e condescendente pára com ele, lisonjeou-o bastante e concordou com tudo o que ele disse; e dentro de pouco tempo, com muitas carícias e largo consumo de bebidas, não só o tinha convencido a apaixonar se por ela, como a declarar também essa paixão com a maior veemência.

- Ai de miml - disse ela -, não sei se devo deplorar este momento, tal é o prazer que as suas palavras me dão. Até aqui era só eu a sofrer; agora, pobre rapaz, será você igualmente. Não tenho criada particular, e não me atrevo a pedir lhe que me visite na minha própria casa, porque sou ciumentamente vigiada. Deixe-me ver - acrescentou ela - sou mais velha do que você, ainda que muito mais fraca; e, embora confie na sua coragem e deliberação, preciso de empregar o meu conhecimento da vida para nosso proveito comum. Onde mora?

Silas indicou a sua residência, nome da rua e respectivo número.

Ela pareceu reflectir uns momentos, como quem pretende recordar se.

- Compreendo - disse por fim -, espero que será fiel e obediente, não é verdade?

O outro assegurou, com transporte, a sua grande fidelidade.

- Amanhã, portanto - continuou a dama, com um sorriso provocante - fique em casa toda a noite; se algum dos seus amigos for visitá-lo, despeça-o imediatamente sob qualquer pretexto que lhe venha à cabeça. A porta da rua naturalmente é fechada às dez horas...

- Cerca das onze - informou Silas.

- Às onze e um quarto - prosseguiu ela - saia de casa. Limite-se a chamar o porteiro, sem conversar com ele, o que poderia vir a estragar tudo. Vá direitinho à esquina dos jardins do Luxembourg para o Boulevard: ali me encontrará à sua espera. Obedeça-me em tudo, e lembre-se de que, se falhar nalgum ponto, pode trazer sérios embaraços a uma mulher que somente é culpada de o ter conhecido e amado.

- Não compreendo a vantagem de todas essas instruções - observou Silas.

- Creio que já está a tratar me como coisa sua - exclamou a desconhecida, batendo-lhe com o leque no braço. - Paciência, paciência, isso acontece... Mas a mulher gosta, primeiro, de ser obedecida, embora, mais tarde, venha a comprazer se, ela mesma, na obediência. Faça o que lhe digo, por amor de Deus, ou eu não respondo por nada. Realmente, agora percebo... acrescentou, com o ar de quem antevê qualquer dificuldade: - Tenho um plano preferível para afastar os importunos. Diga ao porteiro que não está em casa para ninguém, excepto para uma pessoa que provavelmente virá nessa noite reclamar-lhe uma dívida; fale-lhe com certo enternecimento, como se receasse a entrevista, de maneira a ele se comover com as suas palavras.

- Deixe a mim o cuidado de me livrar dos importunos - disse ele, não sem uma certa ironia.

- Estou a sugerir-lhe o que acho preferível - respondeu ela, friamente. - Conheço os homens; vocês não avaliam bem a reputação das mulheres.

Silas corou e deixou pender a cabeça. A sua ideia era sempre de vangloriar se um pouco perante as outras pessoas.

- Principalmente - repetiu a dama - não fale com o porteiro na ocasião de sair.

- Porquê? De todas as suas instruções, parece-me que essa é a menos importante.

- Você duvidou primeiro da necessidade das outras indicações, e agora está convencido de que eu tinha razão. Creia-me, esta também é vantajosa, depois há-de ver a importância que tinha; e como poderei acreditar na sua afeição, se começa a discutir tais bagatelas, logo no primeiro encontro?

Silas embrulhou-se em explicações e desculpas; neste comenos a dama olhou para o relógio e, juntando as mãos, sufocou um grito.

- Meu Deus! Como é tarde! Não posso perder mais um minuto. Desgraçadas de nós, mulheres, constantemente escravas! Já me arrisquei bastante por sua causa.

Depois de repetir todos os informes, ao mesmo tempo que lhes misturava olhares meigos e outras carícias, a senhora despediu-se e desapareceu no meio da multidão.

Durante todo o dia seguinte, Silas não deixou de exibir um ar de importância; estava convencido de que se tratava duma condessa. E, logo que a noite chegou, começou a preparar-se para seguir as instruções. À hora aprazada lá estava ele na esquina dos jardins de Luxembourg. Não viu ninguém parado ali. Esperou cerca de meia hora, e perscrutou a cara de toda a gente que passava ou vagueava pelas imediações. Depois deu um giro pelas outras esquinas do Boulevard e, até, a volta a todo o gradeamento do jardim. Nenhuma bela condessa lhe veio cair nos braços. Por fim, e de muito má vontade, foi encaminhando os passos para o hotel. Pelo caminho recordou-se das palavras que ouvira Madame Zéphyrine dirigir ao rapaz loiro, e isso produziu-lhe um indefinido mal-estar.

- É sina de todos nós - pensou - terrnos que pregar mentiras ao porteiro.

Tocou a campainha, a porta abriu-se, e o porteiro em trajes menores, veio alumiá-lo, ao mesmo tempo que perguntava:

- Ele já saiu?

- Ele? De quem fala? - perguntou Silas; com certa irritação, tanto mais que vinha maldisposto da frustrada entrevista.

- Não dei por que ele tivesse saído - continuou o porteiro - mas espero que o senhor lhe pagará. Não nos convêm hóspedes que se recusem a satisfazer as suas dívidas.

- Que diabo está você a dizer? - inquiriu Silas com modo brusco. - Não percebo patavina dessa história.

- Falo do rapazinho loiro que veio por causa da sua conta... Pelo menos assim penso. Ora quem havia de ser, se eu cumpri a sua ordem de não admitir mais ninguém?

- Mas esse com certeza não veio! - retorquiu Silas.

- Creio nos meus olhos - replicou o porteiro fazendo uma careta.

- O senhor é um insolente! - gritou o americano; mas, sentindo que a sua indignação estava a ser ridícula, e ao mesmo tempo desnorteado por uma avalanche de pensamentos diversos, subiu as escadas a correr.

- Não quer a luz? - indagou o porteiro.

Porém o outro já ia longe, e não parou antes de chegar ao sétimo andar e de reconhecer que estava em frente do seu próprio quarto. Aí deteve-se um momento para poder tomar fôlego, assaltado pelas piores suspeitas e quase com medo de abrir a porta.

Quando finalmente entrou, sentiu-se aliviado por ver que estava às escuras e sem aparência nenhuma de que alguém o estivesse a esperar. Suspirou largamente, considerando-se são e salvo. Seria a sua última aventura, tão certo como tinha sido a primeira. Sobre a mesa de cabeceira deviam estar os fósforos, e Silas caminhou naquela direcção. Enquanto andava, cresciam suas apreensões, e quando encontrava um obstáculo ficava satisfeito por ver que não se tratava senão de uma cadeira. Chegou finalmente junto duns cortinados. Pela posição da janela, fracamente visível, calculou que deviam ser estes os da cama; bastava-lhe, pois, ir ao longo do leito para encontrar a mesa em questão.

Abaixou a mão; porém; no que tocou, não foi positivamente uma colcha, ou então seria uma colcha com qualquer coisa por baixo, como, por exemplo, a perna duma pessoa. Silas retirou o braço e ficou, por instantes petrificado.

- O que será - pensou - o que será isto?

Escutou atentamente, mas não ouviu nada. Mais uma vez, com grande esforço, estendeu a mão até ao ponto onde tocara havia pouco; mas, desta vez, recuou meio metro, e deteve-se transido de horror e com os olhos arregalados. Havia qualquer coisa na cama. O que era, não sabia ainda, mas o facto é que estava lá qualquer coisa.

Passaram-se uns segundos antes que ele pudesse mexer se. Então, guiado pelo instinto, dirigiu-se com segurança até onde estavam os fósforos, e, voltando-se de costas para a cama, acendeu a vela. Logo que o pavio ardeu, Silas moveu-se, embora lentamente, e lançou a vista para onde tanto receava olhar. Sem dúvida, era o pior que a sua imaginação podia ter concebido. A colcha estava cuidadosamente esticada até ao travesseiro, mas modelava a forma de um corpo humano, que por baixo dela jazesse sem sentidos. Quando o americano puxou para baixo os lençóis, com um repelão, surgiu-lhe a figura do rapaz loiro que ele tinha visto no Bullier Ball, na noite anterior, com os olhos abertos mas sem brilho, a face inchada e negra, e um delgado fio de sangue saindo-lhe duma narina.

Silas lançou um gemido, longo e trémulo, deixou cair a palmatória, e tombou de joelhos ao lado da cama. Só acordou do torpor em que o deixara a sua descoberta, quando ouviu bater discretamente à porta do quarto. Levou alguns momentos a recordar se do que se tinha passado; e quando se preparava para evitar que alguém entrasse, era já tarde de mais. O Dr. Noel, com um comprido barrete de dormir, na cabeça, e na mão uma vela que lhe iluminava o rosto lívido, vinha andando pelo quarto dentro, com o seu modo esquisito, um pouco de lado, e com os olhinhos a espreitarem como os de um pássaro.

- Creio que ouvi um grito - disse ele - e não hesitei em vir oferecer os meus serviços.

Silas, muito corado, e com o coração a palpitar-lhe desordenadamente, conservava-se entre o leito e o intruso. Quis responder, mas não conseguiu articular palavra.

- Está às escuras - continuou o Dr Noel - e ainda não se preparou para dormir. O senhor não pode esquivar se ao que é evidente, e a sua cara denuncia que precisa dum médico ou dum amigo. Que vem a ser isto? Deixe-me tomar-lhe o pulso; que me dirá logo qual é o estado do seu coração.

Disse isto e avançou para Silas (que ainda recuou uns passos) na ideia de lhe segurar a mão. Mas a tensão nervosa do americano era demasiado forte para que este sofresse a experiência. Evitou o outro com um movimento brusco e, arremessando-se ao chão, desatou a chorar convulsivamente.

Logo que o Dr Noel percebeu que havia um cadáver sobre a cama, a expressão tornou-se-lhe sombria; voltou apressadamente à porta (que deixara entreaberta) para a fechar e dar a volta à chave.

- Levante-se disse ele, dirigindo-se ao rapaz em tom imperioso. - Não é ocasião para derramar lágrimas. Que é que fez? Como se encontra este cadáver no seu quarto? Fale sinceramente a quem o pode auxiliar Imagina que lhe quero fazer mal? Julga que esse morto, aí na sua cama, vai alterar, de qualquer maneira, a simpatia que o senhor me inspirou? Jovem inexperiente, o horror com que a justiça cega encara uma acção destas não pode influenciar os meus sentimentos para com o seu autor. Se o meu melhor amigo viesse para mim com as mãos tintas de sangue, em nada eù modificaria a afeição que lhe tributasse. Levante-se. O bem e o mal são quimeras. Na vida só conta o destino; e, ainda que o possam acusar a si, lembre-se que a seu lado está alguém que talvez lhe preste alguma ajuda.

Mais tranquilo com esta exortação, Silas ergueu-se e, com a voz embargada, pôs o médico ao corrente dos factos, omitindo, contudo, a conversa que surpreendera entre Geraldine e o príncipe, tanto mais que não percebera bem de que tratavam nem lhe parecia que houvesse qualquer ligação com este caso.

- Pobres de nós! - exclamou o Dr Noel -, ou eu me engano muito, ou você caiu inocentemente nas mais perigosas garras da Europa. Pobre rapaz, foi a sua simplicidade que o arrastou para esta trapalhada! A que horríveis perigos o conduziram os seus pés incautos! Esse homem - continuou ele -, esse inglês que o senhor viu por duas vezes, e que eu suspeito ser a alma desta maquinação, é capaz de mo descrever melhor? Era novo ou velho? Alto ou baixo?

Porém, Silas, que, apesar de toda a sua curiosidade, não era bom observador, não conseguiu fornecer senão escassas generalidades, com as quais era impossível reconhecer alguém.

- Já vejo que espécie de educação se ministra por essas escolas! - volveu o médico, com ar colérico. - De que servem a vista e a fala, se não se pode observar e reconstituir as feições do nosso inimigo? Eu, que conheço todas as quadrilhas deste Velho Mundo, tê- lo-ia podido identificar, e obter novas armas para o defender a si, pobre rapaz. No futuro, não se esqueça de cultivar esta arte: pode extrair daí os maiores proveitos.

- O futuro! - repetiu Silas. - Que outro futuro me espera, senão a forca?

- A mocidade é uma época de cobardia! - redarguiu o médico. - Vê-se tudo mais negro do que realmente é.

Eu sou velho, mas ainda não perdi a esperança.

- E acha que devo contar esta história à polícia?

- Decerto que não. Do que posso inferir desta embrulhada em que o senhor está envolvido, o seu caso, sob certo aspecto, é desesperado. E para as vistas curtas dá autoridade, o senhor é fatalmente culpado. Lembre-se de que apenas conhecemos uma pequena parte da conjura; e os mesmos infames bandidos devem ter forjado outras circunstâncias com que a polícia topará no seu inquérito e que ajúdarão a avolumar a sua culpabilidade.

- Então estou perdido! - exclamou Silas.

- Não digo tanto - obtemperou o Dr Noel. - Sou pessoa cautelosa.

- Mas olhe para ali - disse o americano. - Veja esse corpo na minha cama. Não se pode descrever, não se pode examinar sem horror!

- Horror? - replicou o médico. - Não. Essa espécie de maquinismo de relógio parou, já não é mais que uma peça engenhosa que se investiga com o bisturi. Quando o sangue arrefece e coagula, já não é sangue humano. Quando a vida parou, a carne onde ela existia já não é a mesma que desejamos nas nossas amantes e respeitamos aos nossos amigos. A graça, a sedução, o terror, desapareceram com a vida que a animava. Habitue-se a encará-la com serenidade, pois, se o meu plano é exequível, o senhor terá que viver alguns dias em constante proximidade com isso que tanto o horroriza agora.

- O seu plano? - inquiriu Silas. - Qual é? Diga-mo depressa, Doutor, porque nem tenho ânimo de continuar a existir!

Sem responder, o Dr Noel dirigiu-se para o leito e começou a examinar o desconhecido.

- Morto, sem dúvida - murmurou. - E, como eu calculei, as algibeiras estão vazias. O monograma da camisa foi arrancado. Fizéram obra asseada. Afortunadamente, a vítima é de pequena estatura.

Silas ouviu estas palavras com extrema ansiedade. Por fim o médico, completando o exame, pegou numa cadeira e disse ao americano, com um sorriso nos lábios:

- Desde que cheguei ao seu quarto, e embora os meus ouvidos estivessem alerta e a minha língua ocupada, os olhos não permaneceram inactivos. Notei há pouco que o senhor tem aí, nesse canto, um desses monstruosos objectos que os seus compatriotas levam consigo para toda a parte do mundo: em suma, um baú de Saratoga. Até este momento nunca fora capaz de perceber a utilidade dessas malas. Mas agora surgiu-me uma ideia. Se isso era para conveniência da escravatura ou para evitar os resultados demasiadamente rápidos do emprego do punhal, não posso ao certo decidir; mas uma coisa vejo claramente: essa mala serve muito bem para guardar um corpo humano.

- Parece-me - objectou Silas -, parece-me que a ocasião não é para gracejos.

- Se bem que eu costume expressar me com certa ironia - ripostou o médico -, a verdade é que o sentido das minhas palavras é absolutamente sério. E a primeira coisa que temos a fazer, meu jovem amigo, é esvaziar o baú de tudo o que contém.

Silas, obedecendo à autoridade do Dr. Noel, pôs-se logo à sua disposição. A mala de Saratoga foi logo esvaziada do seu conteúdo, que se espalhou no soalho; e então os dois - Silas pegando pelos pés e o médico pelos ombros - trouxeram da cama o corpo do assassinado e encaixaram-no, com certa dificuldade, dentro do baú vazio. Igualmente, com algum esforço, desceram a tampa de forma a esconder esta estranha bagagem, fecharam a mala à chave, e o próprio Dr. Noel passou-lhe uma corda em toda a volta, enquanto o americano guardava nas gavetas tudo quanto andava disperso pelo chão.

- Agora - disse o médico - o primeiro passo está dado no caminho da sua salvação. Amanhã, ou mesmo hoje, o seu trabalho deve ser no sentido de desviar as suspeitas do porteiro, pagando-lhe o que for necessário; e a mim, deve confiar a tarefa de dispor tudo para que o senhor se ponha definitivamente a coberto de qualquer percalço. Entretanto, siga-me ao meu quarto, onde lhe darei um bom narcótico, pois precisa de repouso para tudo o mais que há-de fazer.

O dia seguinte foi o mais longo de que se recordava a memória de Silas. Dir-se-ia que nunca mais devia acabar. O americano negou-se a receber os amigos, e, sentado num canto do quarto, contemplou sombria mente aquele caixão singular. As suas antigas indiscrições voltavam-se agora contra ele: pois o buraco da parede estava mais uma vez destapado, e o rapaz tinha a certeza de que espreitavam constantemente do quarto de Madame Zéphyrine. Isto tornou-se-lhe tão penoso, que se viu, por fim, obrigado a tapar a abertura; e, uma vez oculto dos olhares estranhos, esteve imenso tempo a rezar, derramando lágrimas abundantes.

Alta noite, o Dr Noel voltou com dois sobrescritos lacrados, sem nenhum endereço; um volumoso, outro tão leve que parecia não conter nada.

- Silas - disse ele, sentando-se à mesa -, chegou a altura de lhe expor o meu projecto. Amanhã de manhã, muito cedo, o príncipe Florizel de Boémia regressa a Londres, depois de ter passado em Paris as festas do Entrudo. Tive ocasião, há já um bom par de anos, de prestar ao coronel Geraldine, estribeiro-mor de sua Alteza, um desses serviços vulgares na minha profissão, mas que, de parte a parte, jamais se esquecem. Não te nho necessidade de lhe descrever a natureza do favor que ele me ficou devendo; basta dizer lhe que ele estará sempre pronto para me ser útil de qualquer maneira. Ora o senhor precisa de chegar a Londres com a sua mala por abrir, circunstância a que se oporiam, fatalmente, os serviços alfandegários. Porém lembrei-me que a bagagem duma pessoa tão importante como é o príncipe, deve estar, como demonstração de cortesia internacional, isenta de tais formalidades. Recorri ao coronel Geraldine e consegui obter o que desejava. Amanhã, se for antes das seis ao hotel onde o príncipe se hospedou, as suas malas serão aceites como fazendo parte da bagagem dele, e o senhor mesmo fará viagem como membro do seu séquito.

- Parece-me, como já lhe disse uma vez, que vi tanto o príncipe como esse coronel Geraldine; escutei parte de conversa deles dois, na outra noite, no Bullier Ball.

- É muito provável, porque o príncipe gosta de meter o nariz em todos os meios sociais. Logo que chegue a Londres - prosseguiu o médico - o seu trabalho estará concluído. Neste sobrescrito mais pesado está uma carta que eu não me atrevi a endereçar. Mas, no outro, achará o nome da rua e o número da casa onde deve levar a sua mala. Ali a receberão, sem nenhum inconveniente para si.

- Meu Deus! - exclamou Silas. - Bem quero acreditá-lo; entretanto, como é isso possível? Traçou-me um projecto audacioso, mas, pergunto eu, devo crer na possibilidade da sua realização? Seja mais generoso, e ponha tudo em pratos limpos.

O médico pareceu bastante impressionado.

- Meu rapaz - volveu ele - não calcula como a sua pergunta é embaraçosa. Mas vamos lá. Estou habituado à humilhação, e seria esquisito se recusasse explicar me, depois de tudo isto que tenho feito por si. Saiba, portanto, que, embora eu lhe apareça tão calmo, frugal, solitário, entregue ao estudo, o meu nome, na minha mocidade, servia para reunir os mais perigosos e audaciosos espíritos londrinos; e conquanto na vida exterior fosse objecto de consideração e respeito, a minha verdadeira influência provinha de secretas, terríveis e criminosas relações. É a uma dessas pessoas que então me obedeciam, que eu agora dirijo essa carta; pedindo-lhe que o livre assim do seu fardo macabro. Eram criaturas de diferentes nações e diversas habili dades, todas ligadas por um juramento medonho e que trabalhavam para o mesmo fim: o assassinato. E eu, que lhe estou a falar com este ar de inocência, era o comandante dessa tenebrosa legião.

- O quê? - exclamou Silas. - O senhor, um assassino? Traficava com o crime? E acha que devo aceitar os seus serviços? Velho e sombrio criminoso, pretende a minha cumplicidade à custa da minha juventude e da minha perturbação?  

O outro riu amargamente.

- O senhor é muito exigente, Scuddamore - disse ele. - Mas deixo-o escolher entre a companhia do assassinado e a dum assassino. Se a sua consciência é demasiadamente pura que o impeça de aceitar o meu auxílio, deixá-lo-ei imediatamente. O senhor descalce a bota como puder e como aprouver à sua consciência.

- Desculpe, não tenho razão. Não esquecerei a generosidade com que me tem protegido, antes mesmo de saber da minha inocência. Aceitarei os seus conselhos com a maior gratidão.

- Está bem: vejo que principiou a aproveitar se das lições da experiência.

- Visto isso - resumiu o americano - confessando o senhor estar tão habituado a estes trágicos acontecimentos e sendo a pessoa a quem me recomenda um seu antigo sócio e amigo, não poderia encarregar se do transporte do baú, e livrar me, de vez, dessa incómoda presença?

- Palavra de honra - replicou o médico - admiro a sua sinceridade. Se não crê que eu já me intrometi bastante nos seus negócios, fique sabendo que penso de maneira contrária. Os meus serviços devem ser aceites ou rejeitados sem alterações. Não me canse com palavras de agradecimento, porque faço ainda menos caso da sua consideração do que da sua inteligência. Tempo virá, se Deus lhe der vida e saúde, em que pensará de forma diferente de tudo isto, e terá vergonha do seu procedimento de agora.

Ditas estas palavras, o médico levantou-se da cadeira, repetiu as suas instruções em termos claros e breves, e saiu do quarto sem dar tempo a que Silas respondesse.

Veio a outra manhã, e Silas apresentou-se no hotel onde o príncipe estava, sendo recebido cordialmente pelo coronel Geraldine. Por então, ficou aliviado das preocupações que lhe causavam a mala e o seu horroroso conteúdo. O dia passou-se sem incidente de maior importância, embora o rapaz se afligisse ao ouvir, por acaso os marítimos e os carregadores do caminho de ferro queixarem-se do excessivo peso que tinha a bagagem do príncipe. Silas viajou na carruagem dos criados, porque o patrão desejara ir só com o seu estribeiro-mor. Contudo, a bordo do vapor, o rapaz chamou a atenção de Sua Alteza pelo ar e atitude melancólica, quando estava a contemplar a fila da bagagem. A inquietação pelo que podia suceder não o abandonara ainda.

- Este jovem - pensou Florizel - deve ter algum motivo para estar tão triste.

- É o americano - informou Geraldine -, o tal que pediu licença para viajar connosco.

- Fizeste bem em lembrar me, porque tenho sido negligente em matéria de cortesia. - E, dizendo isto, Florizel dirigiu-se a Scuddamore, proferindo estas atenciosas palavras: - Tive muito gosto em poder satisfazer o desejo que o senhor me fez constar por intermédio do coronel Geraldine. Não se esqueça de que estarei ao seu dispor para mais qualquer coisa de que precisar!

A seguir, fez-lhe algumas perguntas sobre o sistema político da América, às quais Silas respondeu com ponderação e propriedade.

- É ainda muito novo - observou o príncipe -, mas noto excessiva seriedade para os seus verdes-anos. Naturalmente tem o cérebro ocupado com estudos muito sérios. Mas talvez eu esteja a ser indiscreto falando Ìt, desta maneira...

- Efectivamente - respondeu Silas - tenho motivo para andar cabisbaixo; tenho sido tristemente ludibriado...   

- Não lhe peço confidências - volveu o príncipe. - Porém não se esqueça de que a recomendação do coronel Geraldine é o melhor dos passaportes, e que eu terei muito prazer (e talvez possibilidade) em lhe prestar qualquer serviço.

Silas estava encantado com a amabilidade de tão augusta personagem, porém ao pensamento voltavam-lhe, sem cessar, as mais tristes recordações. Nem mesmo a benevolência dum príncipe para com um democrata pode aliviar um espírito meditabundo, das suas constantes preocupações.     

O comboio chegou a Charing Cross e os fiscais aduaneiros respeitaram, como de costume, as malas do príncipe e da sua comitiva. Esperavam-nos as mais elegantes carruagens, e Silas seguiu, com os outros, para a moradia de Sua Alteza. O coronel Geraldine, ao encontrar-se com ele, expressou-lhe quanto prazer sentia em ser útil a um amigo do médico, por quem o

coronel professava grande consideração.

- Espero - acrescentou ele - que a loiça da sua mala não tenha sofrido com o transporte. De resto, havia ordens terminantes para tratar com todo o cuidado a bagagem de Sua Alteza.   

Depois, determinou aos criados que pusessem uma das carruagens por conta de Scuddamore, e imediatamente o baú foi colocado junto do cocheiro. O coronel apertou a mão do americano e desculpou-se por sua vez com as muitas ocupações que o obrigavam a retirar se.

Silas abriu logo o sobrescrito lacrado que continha a direcção e ordenou ao pomposo lacaio que o levasse a Box Court, nas imediações da Strand. Parece que o sítio era desconhecido do homem, porque ele olhou espantado e pediu que lhe fosse repetido o nome. Foi cheio de inquietação que Silas subiu para o luxuoso veículo e partiu para o seu destino. A entrada de Box Court era excessivamente estreita para deixar passar uma carruagem. Havia apenas uma vereda gradeada, com um pilar de cada lado. Num deles estava sentado um homem, que logo se levantou, fazendo sinal ao cocheiro, como pessoa conhecida. O lacaio abriu a portinhola e perguntou a Silas se queria que lhe levasse a mala e qual era o número da porta.

- Pois sim, se faz favor. Número três.

O lacaio, e o homem que ali estava, carregaram a muito custo com a mala, mesmo com a ajuda do dono. E, antes que a depusessem à porta da casa em questão, já o americano estava aflito pela quantidade de basbaques que ali havia. Bateu, porém, com fingida serenidade e apresentou o outro sobrescrito a quem veio abrir.

- Não está em casa - informou este -, mas, se quiser deixar a carta e voltar amanhã de manhã, poderei informá-lo onde e quando ele receberá a sua visita. Quer deixar o baú? - acrescentou.

- Se tiver muito cuidado - respondeu Silas. Mas logo se arrependeu do que dissera, e declarou, com ênfase, que preferia levar a mala outra vez consigo para o hotel.

Os curiosos que ali estavam parados escarneceram daquela indecisão e seguiram a carruagem com risa das e chufas. Silas, cheio de vergonha e de medo, pediu ao lacaio que mandasse parar à porta de qualquer hotel ou pensão das cercanias.

A carruagem levou-o a uma casa de Craven Street, e desapareceu logo, deixando-o só com os criados da hospedaria. O único quarto disponível era um cubículo que deitava para as traseiras do prédio, e para chegar ao qual era preciso subir quatro lances de escadas. Com muita dificuldade e muitas pragas, dois moços robustos levaram por ali acima o baú de Saratoga. É escusado dizer que Silas os acompanhou a par e passo, e, a cada volta do patamar, sentia a alma pela boca fora. "Uma escòrregadela no degrau, pensou ele, e a mala vai de encontro ao corrimão e estatela-se depois lá em baixo, com o seu conteúdo a descoberto."

Chegado ao quarto, sentou-se em cima da cama, para recuperar as forças e o ânimo. Porém, mal tivera tempo de o fazer, e já a sensação do perigo o tomara de novo, visto os moços estarem de joelhos junto da mala, a desatarem as cordas que a envolviam.

- Deixem lá - gritou o hóspede. - Não vou precisar do que tenho lá dentro enquanto estiver aqui.

- Então devia ter deixado o baú lá em baixo - resmungou um deles. - Uma coisa destas, tão grande e pesada como úma igreja! Do que o senhor guarda aqui não posso fazer ideia. Se é dinheiro, não há dúvida que o senhor é muito rico!

- Dinheiro? - repetiu Silas, subitamente perturbado. - Que julga você? É coisa que não tenho, está a caçoar comigo.

- Está bem, patrão - volveu o outro, com uma piscadela de olhos. - Ninguém lhe rouba a massa. Mas como a mala é tão pesada, não se me dava de beber qualquer coisa à sua saúde.

Silas deu dois napoleões, desculpando-se de não ter senão moedas estrangeiras, mas acabava de chegar de França. O homem olhou cobiçosamente para as moedas, depois para a mala, e por fim resolveu-se a se ir embora.

Estava o cadáver dentro da mala havia já cerca de dois dias. Logo que se viu só no quarto, o infortunado americano pôs-se a cheirar por todos as fendas e aberturas do baú, com o máximo cuidado. Mas o tempo estava frio, e a decomposição não era ainda de molde a causar alarmes.

Silas sentou-se ao lado, numa cadeira, e escondeu o rosto nas mãos. Durante muito tempo meditou pro fundamente. Se não conseguisse desfazer se daquilo o mais depressa possível, podia estar certo de que viriam a descobrir. Só, numa terra estranha, sem amigos, seria um homem perdido se acaso falhasse a recomendação do Dr. Noel. Silas reflectiu tristemente sobre os ambiciosos projectos que fizera para o fzturo. Já não podia vir a ser o herói de Bangor, Maine, sua terra natal; não subiria, como tanto desejava, de emprego em emprego, de honraria em honraria; era melhor dizer desde já adeus à sua esperança de vir a ser eleito presidente da República dos Estados Unidos, e de ter a sua estátua a ornar o Capitólio, naquele mau gosto artístico tão conhecido. Ei-lo aqui, amarrado ao cadáver de um inglês, que o destino encafuara dentro do seu baú de Saratoga! Tinha de desembaraçar-se desse estorvo, ou então desistir de figurar entre as glórias da sua pátria!

Não me atrevo a descrever a linguagem com que o jovem americano se referiu, falando com os seus botões, ao Dr Noel, ao assassinado, a Madame Zéphyrine, aos criados do hotel e aos do príncipe, e, em resumo, a todos aqueles que tiveram próxima ou remota ligação com a terrível aventura.

Às sete da noite desceu para jantar. Mas a sala, guarnecida de amarelo, aterrou-o; os olhos dos outros comensais pareciam perscrutá-lo, desconfiados, e o seu pensamento não se afastava do cubículo onde deixara a mala de Saratoga. Quando o criado lhe serviu queijo, os nervos de Silas estavam tão abalados que ele deu um pulo na cadeira e entornou na toalha a caneca de cerveja.

O criado sugeriu-lhe que fosse até à sala; e, embora preferisse regressar para junto do seu perigoso tesouro, o nosso americano não se atreveu a dizer que não e dirigiu-se para o subterrâneo mal iluminado que constituía, se assim se pode chamar, a sala de estar do Craven Hotel.

Dois homens jogavam ali uma melancólica partida de bilhar, e, durante um momento, Silas julgou que não havia mais ninguém. Porém, de aí a pouco, a vista poisou-se-lhe num recanto afastado, onde um sujeito fumava. Tinha os olhos postos no chão e o seu aspecto era digno e respeitável. Silas lembrou-se que já vira aquela cara, e, apesar de o outro haver mudado completamente de vestuário, reconheceu que era o homem que ele encontrara sentado sobre um pilar, à entrada de Box Court, é que o ajudara a tirar o baú da carruagem. O nosso americano deu meia volta e correu, e não parou sem chegar ao quarto, onde se fechou ime diatamente à chave.

Durante toda essa longa noite, vítima da sua imaginação exaltada, o rapaz não despegou a vista da mala. A ideia, aventada pelo moço de fretes, de que esta estaria carregada de dinheiro, encheu-o de novo terror, de maneira que nunca pôde, realmente, pregar olho. E a presença, na sala do bilhar, daquele homem disfarçado - um dos mirones de Box Court - mais o convenceu de que estava a ser objecto de qualquer obscura maquinação.

Ao soar da meia noite, Silas, impelido pelo desassossego, abriu a porta do quarto e espreitou para o corredor. Estava frouxamente iluminado por um único bico de gás; mas, a certa distância, descobriu um homem que dormia estirado no chão, com a farda de serviçal do hotel. Silas foi, nas pontas dos pés, até junto dele. O homem estava um tanto de lado, e, com o braço, ocultava a cara, de maneira que não era fácil reconhecê-lo. De súbito, porém, o dorminhoco moveu-se e abriu os olhos, e Silas mais uma vez deu de cara com o vagabundo de Box Court.

- Boa noite, patrão - disse este, cortêsmente. Scuddamore não se sentia em estado de espírito, sequer, de responder, e voltou silenciosamente para o quarto.

Pela manhã, trabalhado pelas suas apreensões, e a cair de sono, adormeceu na cadeira, com a cabeça encostada ao baú. A despeito da posição forçada e do horrível travesseiro, aquele repouso foi perfeito e duradouro, e só acordou a uma hora tardia, quando lhe bateram vivamente à porta.

Correu a abri-la, e encontrou- se com o tal servente.

- Foi o senhor que esteve ontem no Box Court? perguntou este.

Silas, com tremor na voz, respondeu que sim.

- Então isto é para si - acrescentou o criado, entregando-lhe um sobrescrito.

Silas abriu-o e leu estas palavras: Ao meio-dia.

Compareceu pontualmente: A mala foi conduzida diante dele, por alguns homens valentes; introduziram-no num quarto, onde um sujeito, de costas para a porta, se aquecia ao calor do fogão. O ruído das pessoas que iam e vinham, e o bater da mala no soalho, quando a descansaram, não conseguiram chamar a atenção dessa criatura. Silas ficou à espera, numa crescente agonia, até que ela se dignasse reparar na sua presença.

Decorreram cinco minutos. Então o homem voltou-se lentamente e o americano reconheceu, com assombro, o príncipe Florizel de Boémia.       

- Com que então, senhor - disse-lhe este num tom ríspido - é assim que me agradece as atenções que lhe dispensei? O senhor mistura-se com as pessoas de bem, no propósito de escapar às consequências dos seus crimes! Agora percebo por que estava tão atrapalhado, quando ontem lhe dirigi a palavra.

- Estou inocente de tudo, esta é a verdade. A única culpa que tenho é de ser infeliz.

E, em poucas palavras, mas bastante persuasivas, o americano expôs ao príncipe a história dos seus infortúnios.

- Vejo que me enganei - assegurou-lhe Sua Alteza, quando o rapaz chegou ao fim da narrativa. - O senhor é apenas uma vítima; e, visto que não devo castigá-lo, a minha obrigação é prestar lhe auxílio. E agora - continuou ele - mãos à obra. Abra já essa mala e deixe-me ver o que contém.

- Mal me atrevo a olhar - declarou.

- Ora - ripostou o outro. - Decerto que não seria a

primeira vez. Deixemo-nos de sentimentalismos. A vista dum homem doente, a quem ainda podemos valer, impressiona-nos muito mais do que o espectáculo dum morto, a quem não podemos fazer bem nem mal, nem podemos amar nem odiar! Coragem, Sr Scuddamore! - Vendo, porém, que Silas ainda hesitava, ajuntou: - É apenas um favor que lhe peço.

O rapaz acordou duma espécie de torpor, e, com enorme repugnância, foi desatar as correias e abriu o baú de Saratoga. O príncipe ficou imóvel, com as mãos atrás das costas, e contemplou o interior da mala, sem alterar sequer a expressão. O cadáver estava rígido, e Silas teve certa dificuldade em mudá-lo de posição, a fim de descobrir-lhe a cara.

Então, o príncipe Florizel recuou, soltando exclamações de dolorosa surpresa:

- Ai de mim, Sr. Scuddamore, mal sabe que cruel presente me acaba de trazer! Este rapaz era da minha comitiva, e irmão do meu melhor amigo. E foi em meu serviço que ele sucumbiu às mãos desses homens violentos e traiçoeiros. Pobre Geraldine - continuou, como se falasse consigo mesmo - como hei-de contar isto ao teu irmão? Como poderei desculpar me perante mim próprio, e aos olhos de Deus? Foram os seus arrojados planos que o levaram a uma morte tão horrorosa. Ah, Florizel, Florizel, quando aprenderás a prudência que compete aos simples mortais, sem te deslumbrares com o poder de que dispões? Poder! - exclamou em alta voz - Quem é menos poderoso do que eu? Olhando para este infeliz rapaz que eu sacrifiquei, Sr. Scuddamore, penso como é mínimo o poder dum príncipe.

Silas estava impressionado com a dor de Florizel. Experimentou murmurar algumas palavras de consolação, mas só conseguiu chorar!

O príncipe sensibilizado com a delicadeza das suas intenções, aproximou-se dele e apertou-lhe a mão.

- Saiba dominar se - disse ele. - Ambos temos muito que aprender, mas o nosso encontro de hoje ser nos-á proveitoso.

Silas agradeceu-lhe com um olhar, em que se lia a maior afeição.

- Escreva-me aqui a direcção do Dr Noel - continuou Florizel, conduzindo-o até junto da mesa -, e deixe- me recomendar lhe que, quando voltar a Paris, evite a companhia desse homem perigoso. É certo que ele, neste caso, agiu com generosa inspiração. Assim o creio, pelo menos. Se fosse cúmplice na morte do jovem Geraldine, é claro que não teria despachado o cadáver à ordem do verdadeiro criminoso.

- O verdadeiro criminoso? - repetiu Silas, estupefacto.

- Nem mais nem menos - replicou o príncipe.

- Esta carta, que a Providência fez cair nas minhas mãos, não era dirigida a outro senão ao próprio assassino, o infame presidente do Clube dos Suicidas. Faça o possível, Sr Scuddamore, de não se imiscuir neste complicado assunto, e dê graças por haver escapado. E agora, é melhor desaparecer desta casa. Por meu lado, tenho imenso que fazer: devo, em primeiro lugar, ocupar me desta carcaça, que a custo se dirá ter sido de um tão belo e elegante rapaz.

Silas despediu-se afectuosamente do príncipe, mas demorou-se no Box Court até o ver sair numa esplêndida carruagem; Sua Alteza ia visitar o coronel Henderson, da Polícia. Republicano como era, o jovem americano tirou rasgadamente o seu chapéu, com a mais profunda devoção. E nessa mesma noite deu início à viagem de regresso a Paris.

 

A aventura do carro de duas rodas

O tenente Brackenbury Rich distinguira-se notavelmente numa das muitas guerras nas montanhas da Índia, tendo conseguido, até, deitar a mão ao chefe dos rebeldes. Quando regressou à pátria, com uma horrorosa cicatriz, duma cutilada de sabre, e com a febre contraída na selva, a sociedade já estava preparada para festejar o tenente como uma celebridade, embora de menor grandeza. Uma das qualidades mais distintas do seu carácter era a modéstia natural. Estremecia a aventura, mas desdenhava da adulação. Andou por praias e termas até que a nomeada das suas acções tivesse atingido o auge e começasse a declinar. Por fim chegou a Londres, nos princípios da season, tão discretamente quanto desejava. Era órfão, não tinha senão parentes afastados e que viviam no campo; de maneira que foi como um estranho que ele se instalou na capital da nação por cuja glória derramara o sangue.

No dia seguinte ao da sua chegada, foi jantar sozinho ao Clube Militar. Apertou a mão a alguns velhos camaradas e escutou as congratulações entusiásticas que lhe dirigiram; mas como todos eles já tinham onde passar a noite, o nosso tenente viu-se reduzido a entreter se consigo próprio. Tinha-se vestido de maneira a poder ir depois a qualquer teatro. A cidade, porém, dir-se-ia nova para ele. Duma escola de província passara para um estabelecimento de instrução militar, e de aí directamente para o Império das Índias: de maneira que este velho mundo, desconhecido para ele, prometia-lhe uma variedade de interessantes explorações. Brandindo a bengala, tomou pachorrentamente a direcção da parte ocidental de Londres. A noite era suave, um tanto escura, e, de vez em quando, chovia. O encontro de certas faces, à luz dos lampeões, despertava a imaginação do tenente; e não se importaria andar indefinidamente naquela estimulante atmosfera da cidade, envolto no mistério de quatro milhões de vidas ignoradas. Olhava para as casas e idealizava o que se passaria por detrás daquelas janelas iluminadas; perscrutava todas as caras e, em cada uma delas, lia uma intenção, umas vezes sã, outras vezes criminosa.

"Fala-se da guerra,", pensou, "mas este é que é o grande combate da humanidade.", E então começou a admirar se de que pudesse ter caminhado ele mesmo pela estrada da vida sem lhe haver sucedido a mais pequena aventura.

"Antigamente, continuou ele a reflectir, eu era ainda um desconhecido, e talvez tivesse um ar estra nho. Todavia, há mais tempo que devera ter me visto arrastado para o redemoinho.", A noite ia já adiantada, quando a chuva, subitamente, desabou do céu muito negro. Brackenbury acolheu-se à protecção de umas árvores, e, quando ali estava, notou que um cocheiro lhe fazia sinal de que tinha a sua carruagem livre. Calhava mesmo às mil maravilhas, e o tenente respondeu que sim com a bengala; de aí a pouco estava abrigado dentro de uma espécie de gôndola terrestre, de duas rodas.

- Para onde seguimos? - perguntou o cocheiro.

- Para onde quiser - volveu Brackenbury.    

E imediatamente, deslizando com incrível rapidez, o veículo levou-o, através da chuva, a um labirinto de vilas; eram todas iguais umas às outras, cada qual com o seu jardinzito á frente, e tão difíceis de distinguir as ruas desertas e mal iluminadas, que Brackenbury depressa perdeu a noção completa do lugar. Estava tentado a crer que o cocheiro se divertia em dar lhe voltas sobre voltas em torno do mesmo ponto, mas a velocidade com que ele o conduzia fê-lo convencer-se do contrário. O homem tinha por certo qualquer coisa em vista, dirigia-se para um fim determinado; e o tenente admirou a perícia com que o outro achava caminho através daquele dédalo, embora não percebesse a razão de tamanha pressa. Brackenbury ouvira contar histórias de viajantes assassinados em Londres. Quem sabe se o cocheiro pertenceria a alguma associação de malfeitores? Quem sabe se o atraía a uma morte violenta?

Mal esta ideia lhe tinha surgido, e já o carro dobrava bruscamente uma esquina e parava defronte de um portão de ferro de um jardim, numa estrada larga e comprida. A casa estava brilhantemente iluminada.

Outra carruagem acabava de chegar, e Brackenbury viu apear-se dela um cavalheiro, que foi recebido à porta por vários criados de libré. O tenente admirou-se de que o cocheiro se houvesse detido, de uma forma tão decidida, em frente dessa casa onde havia recepção; calculou que fosse por acaso, e deixou-se ficar   placidamente a fumar o seu charuto. Mas, nesse momento, ouviu o cocheiro, que lhe falava lá da boleia:

- Já chegámos, senhor.

- Mas onde? - indagou o tenente.

- Disse-me que o levasse onde me apetecesse - replicou o outro, com um risinho de mofa. - E assim fiz.

Brackenbury estranhou a voz desse homem, excessivamente afável e cortês para uma criatura de con dição inferior. Recordou-se da rapidez com que ele o trouxera e notou que a carruagem era mais luxuosa que um simples veículo de praça.

- Veja se me explica - disse ao cocheiro. - Quer que eu fique outra vez à chuva? Faça o que lhe digo, sou eu quem dá as ordens.

- Bem sei que é o senhor quem dá as ordens - ripostou o homem -, mas, quando lhe disser tudo, creio que não deixará de me dar razão. Há uma festa de senhores nesta casa. Não sei se o dono é estrangeiro, e, portanto, sem relações na cidade. Ou então será uma pessoa extravagante. Mas o que é certo é que me encarregou de raptar cavalheiros que estivessem vestidos a rigor, de preferência militares. Não tem mais a fazer do que entrar e dizer que o Sr Morris o convidou.

- É o seu nome?

- Oh, não, não é o meu. Morris é o dono da casa.

- Cá está uma forma pouco vulgar de conseguir convidados - disse o tenente. - Um excêntrico está sempre no direito de ter as suas venetas, e ninguém se pode ofender. Mas se eu recusar o convite do Sr Morris, o que acontecerá?

- Nesse caso, tenho ordem de o levar ao local onde o encontrei, e de procurar outros senhores, até à meia noite. Aos que não gostem de aventuras (disse-me o Sr Morris) é escusado insistir!

Estas palavras decidiram logo o tenente. "No fim de contas", pensou ele, apeando-se, "não tenho de esperar muito para satisfazer a curiosidade." Estava ainda a pôr o pé no chão, e procurava dinheiro no bolso para pagar o serviço, quando o carro despediu numa corrida desenfreada; Brackenbury chamou pelo homem, para lhe lembrar que não pagara, mas o som da voz, em lugar de fazer parar a carruagem, despertou a atenção dos criados da casa, que vieram abrir outra vez o portão e inundaram de luzes o jardim. Um dos criados acompanhou-o com um guarda-chuva aberto.

- O cocheiro já está pago - observou o criado, com a mais delicada das maneiras, seguindo sempre ao lado dele enquanto atravessaram o passeio e galgaram alguns degraus. No vestíbulo, outros lacaios esperavam, os quais lhe receberam o chapéu, a bengala, o sobretudo, a troco duma senha numerada. A seguir fizeram-no subir uma escadaria ornada de plantas tropicais, até à porta de uma sala que ficava no primeiro andar. Aqui, um pomposo mordomo inquiriu da sua identidade e depois anunciou: "O tenente Brackenbury Rich", enquanto o introduzia no salão.

Ao seu encontro veio um rapaz, singularmente esbelto e bem parecido, que o saudou afectuosa e cortêsmente. Centenas de velas de cera, da melhor qualidade, ardiam no aposento, que rescendia, e que, como as escadas, ostentava os mais belos e raros arbustos. Havia uma mesa de canto profusamente fornecida de iguarias. Os criados iam e vinham, oferecendo frutos e taças de champagne. Estariam talvez umas dezasseis pessoas, tudo homens, quase todos novos - as excepções eram poucas - e de aparência distinta e petulante. Dividiam-se em dois grupos, um em volta de uma mesa de roleta, e outro junto de uma de bacará.

- Já percebo - disse o tenente com os seus botões - estou numa casa de jogo, particular, e o cocheiro serve de angariador.

Os olhos de Brackenbury haviam descortinado os pormenores; e o seu espírito tirara a conclusão, e tudo isto enquanto o dono da casa o conduzia. O tenente observou-o outra vez, e, ainda mais que da primeira, a figura de Morris o surpreendeu. A elegância natural das suas maneiras, a distinção, a amabilidade, a energia que se lhe desenhava nas feições, a custo se ajustavam à ideia que Brackenbury fazia do proprietário de uma casa de batota. Também o tom da sua conversa o inculcava como pessoa de mérito e de elevada posição. O visitante sentiu-se instintivamente atraído, num impulso de simpatia, e no íntimo censurou-se pela sua fraqueza, por não saber resistir à sedução que a presença de Morris despertava.

- Já ouvi falar de si, tenente Rich - disse o outro, em voz mais baixa - e creia que me regozijo com este encontro. O senhor não desmente a reputação que trouxe da Índia. E, se quiser esquecer se da maneira irregular com que foi trazido à minha casa, sentirei enorme prazer, além da honra que já tenho. De resto, um homem que se habituou ao estridor da guerra não pode melindrar-se com uma quebra de etiqueta, por maior que seja - acrescentou o dono da casa, sorrindo.

Assim falando, levou-o à mesa onde estavam as iguarias e insistiu com ele para que se servisse de alguma coisa: "Palavra de honra", pensou o tenente, "este rapaz é o mais simpático possível, e esta, sem dúvida, uma das mais agradáveis sociedades de Londres. "

Tomou champagne, e achou excelente. Notou que alguns dos presentes estavam a fumar, e acendeu um dos seus charutos. Vagarosamente foi-se encaminhando para a mesa da roleta, onde fez algumas apostas, sorrindo à sorte dos outros. Enquanto estava assim pachorrentamente entretido, percebeu que todos os cir cunstantes o observavam com a maior atenção. Morris andava de um lado para outro, ostensivamente ocupado com os seus deveres de hospitalidade, mas não deixava de lançar um olhar penetrante a tudo mais. Ninguém escapava àquela observação repentina e perscrutadora. Preocupava-se muito com a atitude dos que perdiam grossas somas, avaliava o montante das paradas, conservava-se uns instantes atrás dos que se embrenhavam nalguma conversa; em suma, não se podia dizer que estivesse presente em nada, mas vigiava e tomava nota de tudo.

Brackenbury começou a hesitar se estava realmente numa casa de batota: parecia-lhe antes um lugar de investigações particulares. Pôs-se a seguir Morris em todos os seus movimentos; e embora o homem tivesse um sorriso sempre pronto, não seria difícil descobrir, por baixo dessa máscara, a expressão dum espírito cansado e inquieto. Os convidados riam e jogavam, porém, o tenente desinteressara-se dos jogadores.

"Este Morris,", pensou ele, "ão está quieto um momento. Há qualquer razão importante que o obriga a isso. Vou ver se consigo desvendar..."

De vez em quando, Morris chamava de parte algum dos seus convidados; e, depois de breve colóquio na ante-câmara, ei-lo que voltava só, e os outros, com quem ele falava, não tornavam a aparecer. Após a repetição insistente desta cena, a curiosidade de Brackenbury atingiu o auge, e resolveu descobrir, por uma vez, que mistério seria esse. Dirigiu-se lentamente para a ante-câmara e ocultou-se num vão de janela coberto por um reposteiro verde. Naquele esconderijo não teve muito que esperar, pois logo ouviu sons de passos e de vozes que se aproximavam, vindos da sala principal. Espiando através do reposteiro, viu Morris acompanhado duma personagem gorda e corada, com ar de caixeiro-viajante, que já dera no goto do tenente pelo seu riso áspero e pelo seu pouco delicado comportamento ao jogo. Os dois pararam defronte da janela, de forma que Brackenbury não perdeu uma única palavra desta conversa:

- Peço-lhe mil perdões - dizia Morris, com os mais atenciosos modos -, e, se lhe pareço rude, estou certo que não deixará de perdoar me. Num lugar tão vasto como é Londres, coisas dessas acontecem sempre. E o mais que podemos desejar é que se remedeiem sem demora. Não nego que o senhor se tenha enganado e dessa maneira honrasse a minha humilde casa, pois, para lhe falar com franqueza, não consigo lembrar me se já o conheci. Deixe-me pôr a questão sem necessidade de circunlóquios: entre homens de honra uma palavra é suficiente. Onde julga o senhor que se encontra?

- Na casa do Sr. Morris - retorquiu o outro, com visível atrapalhação, a qual viera crescendo à medida que ouvia as últimas palavras do seu interlocutor.

- Na do John ou do James Morris? - inquiriu o dono da casa.

- Realmente não sei responder lhe - declarou o infeliz convidado. - Não tenho relações pessoais com ele, como não tenho consigo.

- Compreendo - resumiu o outro. - Há mais uma pessoa deste apelido que vive nesta mesma rua, e estou certo de que o polícia lhe poderá indicar o número. Creia-me, chego a felicitar-me pelo equívoco que me proporcionou o prazer da sua companhia, durante tanto tempo, e deixe-me dizer quanto desejo reencon trá-lo, embora em condições mais naturais. Todavia não quero privar mais tempo os seus amigos de o terem no seu convívio. John - acrescentou, alteando a voz -, procura o sobretudo deste senhor no vestiário.

E, com o ar mais agradável do mundo, Morris acompanhou o outro até à porta, onde o entregou aos cuidados do mordomo. Quando tornou a passar junto da janela, Brackenbury ouviu que ele soltava um profundo suspiro, como se tivesse um grande peso no coração e se sentisse já fatigado do papel que andava a desempenhar.

Durante uma hora, talvez, as carruagens chegaram regularmente, e Morris, por cada convidado que recebia, despedia outro; assim, o número dos que ficavam era sempre igual. Mas, com o decorrer do tempo, as chegadas foram diminuindo, até que por fim cessaram, sem que o processo de eliminação decrescesse de actividade. A sala começou a ficar vazia. O bacará parou, por falta de banqueiro. Alguns despediram-se por sua livre vontade, sem necessidade de queixas nem desculpas. E entretanto Morris redobrava de atenções para com os que ficavam. Andava de grupo em grupo e de pessoa em pessoa com demonstrações de viva simpatia nos gestos e nas palavras. Tanto fazia de dono, como de dona de casa, pois a sua galantaria era muitas vezes feminina, e falava ao coração de toda a gente.

Quando o número de convidados já era escasso, o tenente veio devagar até ao vestíbulo, para tomar um pouco de ar fresco. Porém, mal havia passado o limiar da antecâmara, logo se deteve com uma descoberta na verdade surpreendente. Os arbustos tinham desaparecido da escadaria: defronte estavam três enormes carroças com mobília, e os criados desarrumavam a casa com o maior afã. Alguns deles já tinham vestido o sobretudo, prontos para partir. Era como o final de um baile campestre, onde tudo houvesse sido alugado. Brackenbury estava, na verdade, perplexo. Em primeiro lugar, os convidados - que afinal não eram convidados - haviam sido despedidos; e agora os criados, que naturalmente também o não eram, punham-se igualmente a andar...

- Isto é tudo uma impostura - reflectiu ele -, é como um cogumelo que nasceu de noite e já não existe de manhã.

Aproveitando uma oportunidade favorável, Brackenbury subiu de fugida aos andares mais altos do prédio. Era o que ele previa. Andou de quarto em quarto e não viu um único móvel nem nenhum quadro nas paredes. Embora a casa estivesse pintada e com as salas revestidas de papel, o certo é que, presentemente, ninguém nela residia, ou talvez mesmo nunca tivesse sido habitada. O tenente recordou-se, com espanto, do ar hospitaleiro, confortável, arranjado, que ela apresentava quando ali chegou. Para representar uma comédia destas em tão larga escala, que prodigioso esforço não fora necessário dispender!

Quem era, então, esse tal Morris? Que tenções o animariam para arrendar casa e mobília só por uma noite, naquele remoto canto de Londres? E por que motivo pescava os seus convivas, ao acaso, nas ruas da cidade?

Brackenbury compreendeu que já era tempo de descer, para evitar quaisquer suspeitas. Muita gente saíra durante a sua ausência; e, contando com o tenente e com Morris, não havia agora mais que cinco pessoas na sala, recentemente agrupadas. Morris saudou-o, à sua reaparição nas salas, com um sorriso acolhedor, e veio imediatamente para junto dele.

- É altura - disse ele - de lhe explicar a razão pela qual o desviei das suas diversões usuais. Espero que não tenha achado a noite inteiramente sensaborona; mas o fim que tive em vista não foi distraí-lo, mas satisfazer a mim próprio uma necessidade lamentável. O senhor é um cavalheiro - continuou Morris - a sua aparência o indica, e eu não preciso de outra recomendação. Por isso lhe falo sem subterfúgios, e lhe peço o favor de me prestar um serviço delicado e perigoso.

Delicado, porque desejo que guarde absoluta discrição sobre tudo quanto vir e ouvir; arriscado, porque pode a sua existência correr perigo. Por ser assim tão estranho, este pedido quase que chega a ser cómico; tomei todas as precauções. Devo dizer desde já que, se houver entre os presentes alguém que se considere de mais, se estiver entre eles algunì que retroceda perante uma confidência perigosa e ante um bocado de quixotismo em favor de um desconhecido, estendo-lhe já a minha mão e desejo-lhe boa noite e muitas felicidades, isto com a maior sinceridade deste mundo.

Um sujeito alto, sinistro, curvou-se pesadamente e respondeu a este apelo.

- Agradeço-lhe a franqueza, Sr Morris - disse ele.

- Pela minha parte, vou-me embora. Não faço reflexões, mas não posso negar que o senhor me despertou algum receio. Vou, como disse, e talvez julgue que eu não tenho o direito de comentar com palavras o exemplo que dou.

- Pelo contrário - replicou Morris. - Agradeço-lhe tudo o que disse. Seria impossível mesmo exagerar a gravidade da minha empresa.

- Bem, cavalheiros, o que pensais? - perguntou o homem alto, dirigindo-se aos outros. - Já nos divertimos esta noite. Voltaremos para casa como criaturas bem comportadas? Dar me-eis razão, amanhã, quando virdes de novo o sol, sãos e salvos.

O orador pronunciou estas últimas palavras com uma entoação que lhes dava mais força ainda. O rosto mostrava uma expressão singular, cheia de significação e de gravidade. Outro do grupo levantou-se apressadamente, e, com ar alarmado, preparou-se para sair. Somente dois é que ficaram onde estavam, Brackenbury e um velho major de cavalaria, de nariz rubicundo; mas ambos conservaram uma atitude indiferente. Trocaram um rápido olhar de inteligência e mostraram-se inteiramente alheios à discussão que findava.

Morris conduziu os dissidentes até à porta, que lhes fechou nas costas. Depois voltou para trás, revelando na expressão um misto de animação e de alívio; e dirigiu-se aos dois oficiais, nestes termos:

- Escolhi os meus homens como Josué. Creio agora que tenho o que há de melhor em Londres. A vossa aparência agradou sobremaneira aos meus cocheiros, o que me reconforta. Observei o vosso procedimento no meio desta sociedade desconhecida, em tão inesperadas circunstâncias. Estudei a indiferença como suportastes as vossas perdas ao jogo; finalmente, como definitiva experiência, fiz esta declaração aterradora, que vós recebestes como se fosse um convite para jantar. Para alguma coisa me serviu ter sido o companheiro e discípulo do mais prudente e nobre potentado da Europa.

- No incidente de Bunderchang - observou o major - pedi doze voluntários e todos os soldados das fileiras acudiram ao chamamento. Mas uma casa de jogo não é a mesma coisa que um regimento debaixo da metralha. Deve estar contente por ter conseguido dois homens, e dois que o senhor não precisará de empurrar para a frente. Quanto aos que se foram embora, considero-os os mais reles cachorros que jamais vi. Tenente Rich ajuntou, dirigindo-se a Brackenbury - tenho ouvido ultimamente falar muito de si. E não ponho dúvida em que o meu nome lhe não é desconhecido sou o major ORooke.

O veterano estendeu a mão, vermelha e trémula, ao seu jovem camarada.

- Quem não o conhece?! - respondeu o tenente.

- Quando o assunto estiver resolvido – disse Morris - haveis de convencer vos de que vos recompensei suficientemente, pois não podia prestar-vos maior serviço do que vos fazer conhecidos pessoalmente um do outro.

- É de um duelo que se trata? - inquiriu o major ORooke.

- Um duelo à moda... com um inimigo temível, mas desconhecido; e, ao que receio, duelo de morte. Peço-vos agora que não me chameis mais pelo nome de Morris, antes, se fazeis favor, pelo de Hammersmith. O apelido verdadeiro, assim como o da outra personagem que espero apresentar-vos depois, peço-vos que não mo pergunteis nem procureis descobrir. Há três dias que essa pessoa desapareceu subitamente de casa, e, até esta manhã, eu não recebera nenhum indício quanto ao seu paradeiro. Imaginareis a minha aflição se vos disser que esse meu amigo está ligado pela sua palavra a uma associação que faz justiça por suas mãos. Comprometido por um desgraçado juramento; levianamente prestado, ele acha que é agora necessário, sem ajuda das autoridades, livrar a terra de um homem traiçoeiro e sanguinolento. Já dois dos nossos amigos, e um deles meu próprio irmão, pereceram nesta empresa. E ele mesmo, ou então estou muito enganado, acaba de cair naquelas perigosas malhas. Pelo menos, por enquanto, está vivo e portanto há esperança. Este papel é prova bastante. - E o orador, que não era outro senão o coronel Geraldine, leu a carta, assim concebida:

"Major Hammersmith. - Na quinta-feira, às 3 horas da manhã, serás recebido à porta mais pequena dos jardins de Rochester House, em Regents Park, por um homem de toda a minha confiança: Conjuro-te a que não faltes, nem por um segundo. Peço-te tragas o meu estojo das espadas, e, se conseguires encontrar, dois cavalheiros distintos e discretos, de quem a minha pessoa seja desconhecida. O meu nome não deve transpirar nesta questão.

  1. Godall"

- Bastava este bilhete tão sensato, à falta de outra recomendação - prosseguiu o coronel Geraldine - para que as instruções do meu amigo fossem acatadas sem vacilarmos. Não preciso acrescentar vos, portanto, que nem sequer me aproximei de Rochester House, e que estou totalmente em branco, como vós ambos, sobre a natureza deste intrincado mistério. Logo que recebi esta ordem, recorri a um empresário de mobílias e, em poucas horas, a casa onde estamos adquiriu um aspecto tão festivo. O meu plano, ao menos, foi original, e estòu muito longe de me arrepender duma ideia que me proporcionou os serviços do major ORooke e do tenente Brackenbury Rich. Mas os moradores desta rua terão um despertar inesperado. A moradia que durante a noite esteve cheia de luzes e de convivas, deve aparecer de sabitada e para vender amanhã de manhã. Até as coisas mais sérias têm o seu lado divertido.

- E deixe-nos acrescentar: um epílogo alegre - afirmou Brackenbury.

O coronel consultou o relógio.

- É perto das duas - disse ele. - Temos uma hora à nossa frente, e uma carruagem veloz à porta. Posso contar com a vossa ajuda?

- Até hoje, durante a minha longa vida, nunca me arrependi de nada, nem sequer duma aposta - replicou o Major ORooke.

Brackenbury confirmou a sua aquiescência nos mais calorosos termos. E, depois de haverem bebido uns cálices de vinho, o coronel distribuiu por cada um deles um revólver carregado. Os três subiram então para a carruagem e seguiram para a direcção indicada no bilhete.

Rochester House era uma residência majestosa, situada na margem do canal. Os jardins, vastíssimos, isolavam a casa dos incómodos da vizinhança, e de uma forma tão completa como raras vezes se vê. Dir-se-ia o parc aux cerfs de algum poderoso fidalgo ou milionário. Tanto quanto se podia lobrigar da rua, não havia uma única luz em nenhuma das numerosas janelas. Tudo denunciava um certo abandono, como se o proprietário estivesse há muito tempo ausente.

Os três oficiais apearam-se, e não tardaram em descobrir a tal entradinha, espécie de porta traseira, num atalho, entre os muros do jardim. Faltavam ainda dez ou quinze minutos para a hora marcada. A chuva caiu abundantemente, e os nossos aventureiros abrigaram-se sob uns ramos de hera pendentes; em voz baixa trocaram impressões sobre a sua arriscada tentativa.

De repente Geraldine levantou o dedo, a impor silêncio, e os três apuraram o ouvido o melhor que puderam. Através do rumor da chuva distinguiam-se passos e vozes de dois homens, do lado de dentro do jar dim; e, com a aproximação, Brackenbury (cujo sentido auditivo era perfeito) pôde mesmo recolher alguns fragmentos de diálogo.

- Já abriram a cova? - perguntava uma voz.

- Jâ - respondia a outra. - Atrás da sebe dos loureiros. Quando o trabalhinho estiver todo feito, cobre-se com umas estacas.

O primeiro dos desconhecidos riu, o que arrepiou os que o ouviram, do outro lado do muro.

- De aqui a uma hora - informou o segundo.

O ruído dos passos indicava agora que os dois se haviam separado, e que cada qual seguia direcções contrárias.

Quase nesse instante a portinha abriu-se cautelosamente, deixando ver uma face branca, e uma mão, que acenou aos oficiais. Estes acudiram silenciosos à convocação, a porta fechou-se logo atrás, e eles seguiram o guia através dos passeios do jardim até à cozinha da casa. Ali, nessa vasta quadra pavimentada, ardia uma única vela. A cozinha estava desprovida do mobiliário usual. De lá, passaram a trepar um lance de escada de caracol; o barulho que os ratos faziam denotava bem o abandono em que jazia o prédio.

À frente ia o guia, com a vela na mão; era um homenzinho magro e curvado, mas ainda ágil; voltava-se uma vez por outra e recomendava, por gestos, silêncio e cautela. O coronel Geraldine seguia logo atrás, com o estojo das espadas numa mão e o revólver pronto na outra. O coração de Brackenbury batia apressadamente. Percebia que tinham chegado em momento oportuno, e calculou, pela satisfação do velho, que a ocasião de intervir não tardava muito. As circunstâncias em que esta aventura decorria eram tão misteriosas e ameaçadoras, o lugar parecia tão bem escolhido para acções tenebrosas, que um homem, mais velho do que o tenente, poderia ter desculpa de se sentir tão perturbado, quando, na cauda do cortejo, subisse os degraus daquela escada.

Chegando acima, o guia abriu uma porta e deixou os três oficiais passarem à sua frente para um diminuto aposento, iluminado por uma candeia fumarenta e pelo clarão avermelhado dum fogãozinho. Neste canto estava sentado um homem bastante novo, de aspecto robusto, mas nobre e majestoso. Mantinha-se numa atitude de perfeita imobilidade; fumava um charuto, com visível satisfação. Na mesa, a que apoiava o cotovelo, estava um copo com qualquer bebida efervescente, que espalhava no quarto um cheiro agradável.

Ao ver os visitantes, disse:

- sejam benvindos - e estendeu a mão ao coronel Geraldine. Depois acrescentou: - Nunca duvidei da tua pontualidade.

- Ou da minha dedicação - respondeu o coronel, com uma vénia.

- Apresenta-me aos teus companheiros - continuou o outro. Quando essa formalidade estava já cumprida, ele ajuntou amavelmente: - Desejava, meus senhores, poder oferecer-lhes um programa mais divertido; é triste começar as nossas relações através dum incidente desta ordem, mas a pressão dos acontecimentos prevalece às obrigações da cortesia. Espero que me farão o favor de desculpar o incómodo desta noite; para homens de tal condição será bastante saberem que estão a prestar me um serviço da maior importância.

- Alteza - disse o major ORooke -, perdoe-me o atrevimento. Sou incapaz de esconder o que sinto. Durante uns momentos duvidei do major Hammersmith, porém o Sr Godall é inconfundível. Procurarem Londres dois homens que não conheçam o príncipe Florizel de Boémia é confiar demasiadamente no acaso.

- O Príncipe Florizel! - exclamou Brackenbury, no auge da estupefacção.

E observou com o maior interesse a ilustre personagem que tinha defronte de si.

- Não lamento haver perdido o incógnito - notou o príncipe - porque isso me permite agradecer vos com mais autoridade. Faríeis tanto pelo Sr Godall, estou convencido, como pelo príncipe de Boémia, mas o último tem mais poder para vos recompensar. O lucro, portanto, foi meu - rematou Florizel, com um gesto palaciano.

A seguir conversou com os dois oficiais acerca do exército da Índia e das tropas indígenas, assunto sobre o qual, assim como sobre quaisquer outros, ele possuía abundantes informações e as mais profundas vistas.

Havia tanta dignidade na atitude deste homem, num momento de perigo mortal, que Brackenbury se deixou vencer por uma respeitosa admiração. Igualmente o sensibilizou o encanto do trato e a surpreendente amenidade da sua conversa. Cada gesto, cada entoação, não era apenas nobre em si mesmo, mas dir-se-ia enobrecer o feliz mortal a quem ele se dirigia. E o tenente confessou com entusiasmo que ali estava um soberano por quem um soldado poderia ter gosto em dar a vida.

Passaram-se assim muitos minutos, até que a pessoa que os introduzira na casa, e que estivera sempre sentada a um canto, com o relógio na mão, foi murmurar qualquer coisa ao ouvido do príncipe.

- Está bem, Dr Noel - volveu Sua Alteza, em voz alta. Depois, dirigindo-se aos outros: - Desculpem-me, meus senhores, se os deixar ao escuro. O momento aproxima-se.

O Dr Noel apagou a vela. Uma claridade cinzenta e desmaiada, precursora da aurora, iluminou a janela, mas era insuficiente ainda para que se distinguisse qualquer coisa no quarto. Quando o príncipe se pôs de pé, era impossível ver-lhe as feições ou fazer exacta ideia da comoção que a sua voz traía. Dirigiu-se para a porta e colocou-se a um lado, numa posição atenta e cautelosa.

- Façam-me o obséquio - pediu ele - de observar rigoroso silêncio, e de se conservarem ocultos na sombra.

Os três oficiais e o médico apressaram-se a obedecer, e, durante dez minutos, os únicos sons que se ouviram em Rochester House foram produzidos pelos ratos a passear nas traves. Decorrido aquele espaço de tempo, cortou distintamente o silêncio um inesperado ranger de gonzos; e de aí a pouco observaram que alguém trilhava vagarosamente o caminho e se aproximava da cozinha. O intruso parecia dar dois passos e parar, ficando à escuta; e, durante esses intervalos, que se afiguravam enormes, a inquietação apoderava-se do espírito dos que esperavam. O Dr. Noel, habituado como estava às emoções fortes, denotava uma contenção física penosa; a respiração era sibilante, os dentes batiam uns contra os outros, as juntas rangiam-lhe quando mudava de posição.

Finalmente, sentiu-se poisar uma mão na porta e a lingueta saltou com leve repercussão. Houve outra pausa, durante a qual Brackenbury pôde ver o príncipe empertigar se sem ruído, como se fizesse um esforço desesperado. Então a porta abriu-se, deixando entrar um pouco da claridade da manhã; no limiar surgiu o vulto dum homem, que se quedou imóvel. Era alto, e trazia uma faca na mão. Mesmo no crepúsculo, os ou tros puderam notar que ele abria a boca como um cão prestes a investir e deixava ver a dentuça cintilante. O homem, evidentemente, tinha apanhado chuva havia pouco tempo, pois, enquanto esteve ali, caíram-lhe gotas de água do fato molhado e tamborilaram no chão.

Depois, o desconhecido transpôs o limiar. Houve um pulo, um grito sufocado, uma luta rápida. E, antes que o coronel Geraldine fosse em seu socorro, já o príncipe desarmara o intruso, e o agarrara pelos ombros, indefeso.

- Dr Noel - disse Florizel -, faça favor de tornar a acender a candeia.

Cedendo a presa a Geraldine e Brackenbury, Florizel atravessou o quarto e encostou-se ao fogão. Logo que a luz surgiu, todos notaram a extrema severidade, pouco vulgar, da expressão do príncipe. Já não era Florizel, o gentil-homem descuidado, era o príncipe de Boémia, justamente indignado e resolvido a castigar, que levantava a cabeça e se dirigia ao presidente do Clube dos Suicidas, agora seu prisioneiro:

- Presidente - começou ele -, preparaste o teu último laço e tu próprio caíste nele. O dia vai principiar. É o último da tua vida. Atravessaste a nado o Regents Canal: foi o derradeiro banho que tomaste neste mundo. O teu velho cúmplice, o Dr. Noel, longe de me atraiçoar, soube fazer com que tombasses nas minhas mãos, para tua condenação. E a sepultura que mandaste abrir esta tarde para mim, servirá pelo desígnio da Providência, para esconder o teu cadáver da curiosidade do mundo. Ajoelha e reza, se tens vontade disso, pois o tempo de que dispões é breve, e Deus está cansado das tuas iniquidades.

O presidente não deu resposta, nem por palavras nem por gestos, mas continuou com a cabeça pendida, a olhar para o chão, como se receasse a vista justiceira do príncipe.

- Cavalheiros - ajuntou Florizel, retomando o tom ordinário das suas conversas - este é que é o patife que me tem escapado sempre, mas a quem, graças ao Dr Noel, eu consegui deitar a mão. Contar a história das suas façanhas ocuparia mais tempo do que podemos dispor. Se o canal não contivesse senão o sangue das suas vítimas, creio que o miserável não teria chegado mais enxuto do que o vedes aqui. Mesmo num caso desta natureza, desejo observar as fórmulas em uso. Faço-vos juizes, meus senhores; isto é mais uma execução do que um duelo; e dar a esse velhaco a vantagem de escolher a qualidade da arma seria levar muito longe o rigor da etiqueta. Não tenho o direito de perder a vida por uma coisa destas - continuou ele, abrindo o estojo das espadas - e como uma bala de revólver depende muito da sorte, e a perícia e a coragem podem faltar ao atirador, decidi, e estou certo que aprovareis esta deliberação, que o pleito se resolva pelo cruzar das espadas.

Depois de Brackenbury e do major ORooke, a quem estas considerações eram dirigidas, haverem dado a sua aprovação, o príncipe Florizel acrescentou, voltando-se para o presidente:

- Depressa, senhor, escolha a lâmina e não me faça esperar; estou impaciente por acabar consigo para sempre.

Pela primeira vez, depois de ter sido feito cativo, o presidente levantou a cara, e viu-se bem que principiava a cobrar ânimo. Perguntou ansiosamente:

- É um combate entre nós dois?

- Quis-lhe dar essa honra.

- Então, comecemos exclamou o presidente -, quem sabe, numa luta leal, o que pode acontecer? A atitude de Vossa Alteza é digna de apreço; e, por pior que me suceda, sempre morrerei às mãos do mais galante gentil-homem da Europa.

E o presidente, liberto daqueles que o seguravam, deu um passo para a mesa e tratou de escolher, com muita atenção, uma das espadas. Era um indivíduo soberbo, e parecia pressentir que o resultado do duelo lhe seria favorável. Os presentes assustaram-se com o sangue-frio desse inimigo, e pediram a Florizel que reconsiderasse no que ia fazer

- Isto não é senão uma farsa - respondeu-lhe -, e julgo que vos posso prometer que não durará muito tempo.

- Não confie demasiadamente Vossa Alteza - insinuou o coronel Geraldine.

- Geraldine - respondeu o príncipe - já me viste recusar uma dívida de honra? Garanti- vos a morte deste homem, e não faltarei à promessa.

O presidente acabou por se agradar de uma das armas e deu a entender que estava pronto, com um gesto que não era destituído de certa nobreza rude. A aproximação do perigo e o instinto da coragem dão aos piores bandidos um ar varonil, e mesmo um certo garbo. O príncipe tirou a sua espada ao acaso.

- Coronel Geraldine e Dr Noel - disse ele - tenham a bondade de esperar neste quarto. Não quero os meus amigos pessoais envolvidos neste negócio. Major ORooke, o senhor é uma pessoa de idade e de segura reputação; permita-me que recomende o presidente ao seu cuidado. Tenente Rich, queira prestar-me a sua atenção; a um rapaz novo como eu escasseia experiência neste assunto.

- Alteza, é uma honra que eu devidamente apreciarei volveu Brackenbury.

- Espero mostrar-lhe a minha amizade em circunstâncias mais importantes - replicou Florizel.

Assim falando, tomou a iniciativa de sair do quarto e descer as escadas que iam dar à cozinha.

O médico e Geraldine ficaram sós, debruçados na janela, atentos ao menor sinal do trágico sucesso que ia desenrolar se. A chuva voltara a cair. O dia era quase claro, e os pássaros pipilavam nos arbustos e nas árvores do parque. O príncipe e os seus companheiros surgiram por momentos entre os passeios floridos do jardim, mas, ao dobrarem um ângulo, a folhagem òcultou-os, e tornaram a desaparecer aos olhos dos que estavam à janela. Foi tudo quanto estes tiveram ensejo de ver; o parque era tão vasto e o lugar do duelo evidentemente tão afastado da casa, que nem mesmo o ruído das espadas lhes poderia chegar aos ouvidos.

- Levou-o para o sítio onde abriram a cova - disse o Dr Noel, ao mesmo tempo que sntia um calafrio percorrer-lhe o corpo.

- Deus - exclamou o coronel -, Deus protege os justos.

Em silêncio ficaram, aguardando o resultado da contenda, o médico estremecendo de íntimos receios, o coronel alagado em suores frios. Tinham decorrido já muitos minutos, o dia rompera de todo, os pássaros cantavam mais e mais nos ramos, quando novo rumor de passos os fez olhar outra vez para a porta. Era o príncipe que voltava com os dois oficiais. Deus protegera o justo.

- Tenho vergonha da minha perturbação - disse Florizel. - É uma fraqueza indigna da minha condição social, mas a existência prolongada daquele diabo começava a corroer-me como uma doença, de maneira que a sua morte me há-de beneficiar como um sono reparador. Olha, Geraldine - continuou ele, espetando a ponta da espada no soalho - vê o sangue do homem que matou o teu irmão. Isto alegra a vista. E agora, reparem como nós homens somos criaturas tão estranhas. Ainda não decorreram cinco minutos sobre a minha vingança, e já eu começo a perguntar a mim mesmo se a vingança é permitida a pessoas na minha situação. Uma vez o mal feito, quem o pode remediar? A profissão na qual ele amassou tão vasta fortuna (a casa em que estamos pertencia-lhe) não deixará de ser sempre a de uma parte da humanidade, e, por mais estocadas que eu der, o irmão de Geraldine não deixa de estar morto, e milhares de outros inocentes não deixarão de ser desonrados e pervertidos! A existência de um homem é tão fácil de perder, tão difícil de conservar! Haverá alguma coisa na vida que não nos desiluda?

- Fez-se justiça - concluiu o médico. - Assim o creio. A lição, Alteza, foi cruel para mim. Espero a minha vez, cheio de horríveis apreensões.

- Que está a dizer? - volveu o príncipe. - Já castiguei, e agora, junto de nós, vejo o homem que me pôde ajudar a reparar os danos. Ah, Dr Noel, temos à nossa frente árduo e honroso trabalho a realizar; e o senhor, antes de morrer, talvez possa resgatar os seus erros da mocidade.

- Entretanto - disse o médico - deixe-me ir enterrar o mais velho dos meus amigos.

 

                                                                                Robert Louis Stevenson  

 

                      

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